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Vocabulârio de

FOUCAULT
Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores

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Tradução
lngrid Müller Xavier

Revisão técnica
Walter Omar Kohan
Alfredo Veiga-Neto

autêntica
Eocnnoo Cnsrno

Vocabu lário de
FOUCAULT
Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores

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Tradução
lngrid Müller Xavier

Revisão técnica
Walter Omar Kohan
Alfredo Veiga-Neto

autêntica
Copyright @ 2004 Edgardo Castro

- -..O ORIG NAL


Ei Vocabulario de Michel Foucault Un recorrido alfabético por sus temas, conceptos y autores
TiÀD u(Áo
lngrid Müller Xavier
tEV 5Ào TÉCNICA
Alfredo Veiga-Neto
Walter Omar Kohan
CAPA E SOBRÊCAPA
Diogo Droschi
(Sobre imagem de Raymond DepardonlMagnum Photos)

EDIÍORAÇÃO ELETRÔNICA
Tales Leon de Marco
Waldênia Alvarenqa Santos Ataíde

REVJSÃO
Ana Carolina Lins Brandão
Cecília Martins
Vera Lúcia Simoni De Castro

CONFECÇÃO DOS íNDICES


Arlindo Picoli
Walter Omar Kohan
EDIToRA RESPoNSÁVEL
Rejane Dias

Revisado conforme o Novo Acordo OrtográÍico.

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Dados lnternacionais de Catalogação na Publicação (ClP)


(Câmara Brasileira do Livro)
t-
Castro, Edgardo
Vocabulário de Foucault Um percurso pelos seus ternas, conceitos e
autores/ Edgardo Castro; traduEão lngrid Müller Xavier; revisão técnica
AlÍredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. Belo Horizonte : Autêntica
Editora, 2009.
TÍtulo or ginal: El vocabulario de Mrchel Foucau t : un recorrido
alfabético por sus temas, conceptos y autores
lsBN 978-85-7526-402 7
1 . Filosofia - Dicionários 2. Foucault, Mlchel, 1926-'1 984 - Dicionários

L Veiqa-Neto, AlÍredo. ll. Kohan, Walter Omar. lll. Título.

09-047 1 6

índice para catálogo sistemático


1. Filosofia : Dicionários 103
SU MARIO

VrRerrrs

PnoLoco n rotçÃo BRASTLETRA 11

Pnrrncto 13

lnrnoouçÃo 15

lrusrnuÇôrs PARA o uso 1i

VocRsuLRnto or FoucnuLr 21

As osnas E AS PAGINAS 431

ÍNorcr DE TERMOS ESTRANGETROS 461

Íruorcr oNOMASTIco ioB


Íruorcr DE oBRAS 415
VERBETES

A Barbárie (Barbarie) 50
Barbln, Herculine 50
A priori historico (A priori historique) 2l
Barroco (Baroque) 51
Absolutismo (Ab s oluti sm e) 2t Barthes, Roland 5I
Abstinência (Ab st in e n ce) 23
5l
Basaglia, Franco
Acontecimento (Év énement) 24
52
Bataille, Georges
.4.mulatio 28
Baudeiaire, Charles 52
Afeminado (Üfféminé) 28
Beccaria, Cessare 52
Agostinho, Santo 28
B ehaviorismo (B éh av i o r i sme) 53
Alcibíades 29 Benjamin, Walter 53
Alienação (Ali é n ati o n) 29 Bentham, leremy 53
Althusser, Louis 30 Bergson, Henri, Bergsonismo (Bergsonisme) 54
Amicitia 30 Bichat, François Xavier 54
Anachóresis 30 Binswanger, Ludwig 54
Analítica da finitude (Analytique debfinitude) 31 Bio-história (B i o -hi st o ire) 55
Analogia (Analogie) 31 Biologia (Biologie) 55
Animalidade (Animalité) 31 Biopoder (Bio-pouvoir) 57
Anomaiia (Anomalie) 32 Biopolítica (Bi op olitiqu e) 59
Anormal (Anormal) J4 Bissexualidade (Bisexualité) 60
Antiguidade (Antíquité) 34 Blanchot, Maurice 60
Antipsiquiatria (Ant ip sy chi atr i e) 35 Bloch, Marc 61
Antissemitism o (Anti mit i sm e )
sé 35 Bopp, Franz 62
Antropologia (AnthroP ologie) 36 Borges, Jorge Luis 62
Aphrodísia 37 Botero, Giovanni 62
Arendt, Hannah 38 Boulainvilliers, Henry de 62
Ariês, Philippe 39 Boulez, Pierre 63
Aristófanes 39 Braudel, Fernand 63
Aristóteles 39 Brown, Peter 63
Arqueologia (Ar ch é olo gi e) 40 Burguesia (B o urge oi si e) 64
Arquitetura (Ar chit ectur e) 42
Arquivo (Archive) 43c
Ars erotica 44 Cabanis, Pierre fean George 66
Artaud, Antonin 44 Cadáver (Cadavre) 66
Artemidoro 4! Canguilhem, Georges 66
Ascese (Áscàse) 45 Capitalismo(Capitalisme) 67
Asilo (Aslle) 46 Carne (Chair) 68
Atualidade (Actu alit é) 46 Cassiano, loão 7l
AuJkliirung 46 Castel, Robert 71
Ausência (Absence) 46 Castigo (Chôtiment, punition) 71
Aotor (Auteur) 47 Cervantes Saavedra, Miguel de 72
Chemnitz, Bogislaus Philipp von 73
B Choms§, Noam Avram 73
Bachelard, Gaston 49 Cícero /3
Bacon, Francis 49 Ciências humanas (Sciences humaines) 74

7
Clausewitz, Carl von 74 Epiméleia 138
Clausura (Renfermement) 74 Episteme (Épistémà) 139
Clemente de Alexandria 74 Episteme clássica (Épistémà classique) 140
Clinica (Clinique) 75 Episteme moderna t44
Cogito 80 Epistemerenascentista 144
Comentário (Commentaire) 81 Epistrophé 145
Comunismo (Communisme) 82 Epiteto t45
Condillac, Étienne Bonnot 82 Epithymía 146
Confi ssão (Aveu, co nfession) 82 Época clássica (Époque classique) 147
Contrato (Contrat) 84 Eros t47
Controle (Contrôle) 85 Erotica(Erotique) 147
Convenientia 86 Escola(École) 149
Conversão (Epistrophé, conversion) 86 Escola dos anais (Ecole des anales) r49
Corpo (Corys) 87 Estética da existência (Esthétique de
Cristianismo (Chr i st i ani s m e) 9l lbxistence) 150
Cuidado de si (Epiméleia, souci) 92 Estratégia(Stratégie) 151
Cuvier, Georges 96 Estruturalismo (Structuralisme) 152
Ethos
t54
D Étíca (Éthique)
155
Darwin, Charles 97
Exame (Examen)
157
Degeneração ( D ége né res Existencialism o (Exi st e nt i ali s m e)
ce n c e) 97 160
Deleuze, Gilles Exomologêsis
98 160
Democracia (D ém o cr at i e) 101
Experiência (Exp érience)
161
Derrida, Jacques r02
Descartes, René r02 F
Descontinuida de (D i s co nt inui t é) 103 Fâbrla (Fable)
r64
Desejo (Désir) 104 Família (Famille)
164
Despsiquiatriz açáo (D ép sy chi at r i s at i o n) 106 Fascismo (Fascisme)
166
Diagnosticar (D iagno stiquer) 107 Fausto (Faasf)
167
Dialética (D i ale ct i qu e) 108 Febvre, lucien
167
Dietética (Diététique) 109 Fenomenologia (Phénoménologie)
167
Disciplina (D i s cipline) 110 Feudalismo (Féodalisme, Féodalité, Féodal)
Discurso (Discours) Ficçáo (Fiction) 170
117
Dispositivo (D i sp o s itifl Filodemo de Gádara 17t
123
Dispositivo de aliança (Dispositif dhlliance) Filosofia (Philosophie) t72
t25
Dispositivo de sexualidade (Dispositif de Flaubert, Gustave t72
Formaçáo discursiva (Formation discursive) 176
sexualité) 125
Divinatio Formalização (Formalisation) 177
125
180
Documento (Document) 125 Freud, Sigmund
Dogmatismo (Dogmatisme) 181
125
Dominação (Domination) 126 G
Dom Quixote 127 Galeno
Doutrina (Doctrine) 128 Genealogia(Généalogie) 184
Dumézil, Georges 129 Gênio (Génie) 184
Durkheim, Émile 129 Gnosticismo (Gnosis,Gnosticisme) 187
Goethe, Wolfgang t87
E Governo, governar, governamentalidade 188
Econômica (É co n omi tlue) 131 (Gouvernement, Gouverneri Gouvernamentalité)
Édipo 133 Gterra (Guerre) 188
Educação (Éducation) 134 Gulag(Goulag) 193
Enciclopédia (En cy cl op é die) 135 t96
Enkrateia 135 H
Enunciado (Enoncé) 136 Habermas, fürgen 197
Epicuro 138 Hadot, Pierre 198

B
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich 1e8 M
Hegelianismo (Hé géli ani sme) 291
Heidegger, Martin
Hermafroditism o (Herm aphr o di sm e)
lii ilxlilffi',§::,tr
Marx, Karl
29t
292
Hermenêutica (Her m en éutique) ;i.;
História (Histoire)
::: Marxjsmo(Marxisme) 294

Historicismo (Historicisme)
:Y: Masturbação (Masturbation) 298

Hitler, Adolf
i:: Materialismo (Matérialisme) 298
iH Medicalização (Médicalisation) 299
Hobbes, Thomas
Modernidade (Modernité) 301
Hôlderlin, Johann Christian Friedrich ;;, Monstro (Monstre\ 303
Homem (Homme)
Montaigne, Michel de 303
Homossexualid ade ( Ho m o s e xu alit é ) ;iZ
Humanismo (Humanisme)
Husserl, Edmund i)i N
Nazismo (Nazisme)
Hypomnémata 221 304
Hlppolite, |ean 222 Nietzsche,Friedrich 305
Norma (Norme, Normalisation, Normalité) 309
I Nosopolítica (Nos o -p olitique) 311

Iatriké 223
Ideologia (Idéologie) 223
o
Ilegalidade (lllégalkme) 224 Obediência (Obédience) 312
Imaginaçáo (Im agin at i o n) 22s Ontologia do presente, Ontologia histórica
Inconsciente (ln c o n s ci ent) 227 (Ontologie du présent, Ontologie historique) 312
Individualizaçã o (In div i du ali s ati o n) 227
Intelectual (lnt ell e ct uel) 228 P
Interioridade (Int é r i o r it é) 229 Panóptico (Panoptique, Panoptisme) 3t4
Interpretação (Int e r pr ét ati on) 230 Parresía 316
Investigação (Enquête, Inquisitio) 232 Pascal, Blaise 318
Pedagogia (Pédagogie) 319
I Pinel, Philippe 320

|arry, Alfred 236 Pitagorismo (Pythagorisme) 320

)usti, |ohann Heinrich Gottlob von 236 Platão 321


Platonismo (Platonisme) 322
1).)
K Plutarco
Poder (Pouvoir) 323
KaÍka, Franz 237
Kant, Immanuel 237 Poder pastoral (Pouvoir pastoral) 554

Klossowski, Pierre 23g Polícia, Ciência dapolicia (Police,


Polizeiwissenschaft) 334
População (PoPulation)
L JJO
241 Positividade(Positivité)
Lacan, Jacques
336
Lamarck, |ean-BaPtiste 241 Práttca(Pratique)
242 Prisáo (Prison) 339
Lei (Loi)
242 Psicagogia (Psychagogie) 344
Lepra (Làpre)
243 Psicanálise (PsychanalYse) 344
Liberalismo (Lib ér ali sm e)
245 Psicologia(Psychologie) 347
Liberdade (Liberté)
249 Psiquiatria (Psychiatrie) 349
Libertinagem (Lib er tinage)
Libido 250
Limite (Limite) 2so R
Linguagem (Langage) 751 Raca (Race) 373
Linguística (Lingui st i que) 255 Racionalidade(Rationalité) 373
Literatura (Littérature) 256 Racismo (Racisme) 376
Lombroso, Cesare 258 Razão de estado (Raison détat) i/ó
Louqra (Folie) 258 Reich, Wilhelm 381
Lrta (Lutte) 288 Religiáo(Religion) 381

9
Repressão (Répression) 384
Resistência (Résistance) 387
Revolução (Rév olution) 387
Roussel, Raymond 392

S
Saber (Savolr) 393
Sade, Donatien-Alphonse-François
Marques de 395
Saúde, salvaçáo (Salut, Santé) 396
Sexualidade (S exu alit é) 398
Shakespeare, William 403
Soberania (S o uv erain et é ) 403
Subjetivação (Subj e ctiv ation) 407
Subjetividade (Subj ectivité) 409
Sujeito (Suleú) 409

T
Tâtica(Tactique) 411
Técnica, tecnologia (Technique,Technologie) 412
Teleologia (Téléologie) 414
Território (Territoire) 474
Therapeutiké 415
Totalidade (Totalrtô 415
Tradição (Tradition) 416
Tianscendental (Transcendental) 417
Transgressão (Transgression) 417

U
Ubuesco (Ubuesque) 419
Ussel, los van 419
Utopra (Utopie) 419

V
Verdade, jogo de verdade, vontade de verdade
(Vérité; leu de vérité, Volonté de vérité) 421

w
Weber, Max 426

x
Xenofonte 428

Z
Zen 429

10
PRoLoGo n rolçÃo BRASTLETRA

Michel Foucault é um dos pensadores franceses contemporâneos mais potentes,


não apenas pela sua produção teórica, mas, sobretudo, pelo seu modo de conceber e
afirmar uma posição para o intelectual. Nesse sentido, Foucault faz do pensamento uma
práticaativa de problematizar as questões do seu tempo. Produziu teoria, rnuita teoria;
mas também ajudou a pensar que há formas diversas de se relacionar com a teoria. Na
esteira de Nietzsche, chamou a teoria de'taixa de ferramentas"; com isso, Foucault
sugeria que nenhuma teoria tem valor em si própria, para além dos usos que lhe são
orriorgudor. Trata-se, então, de uma pragmática - não utilitária - do pensamento: diz-
me o que fazes com o pensamento e te direi o valor desses pensares"'
poucos escritos sobre Foucault merecem tanto o nome de "caixa de ferramentas"
como o livro que estamos apresentando em versão em língua portuguesa: Vocabulário
de Foucault, de Edgardo Castro. Produto de um rigoroso e exaustivo estudo, não hesi-
tamos em afirmar que se trata de um instrumento de trabalho precioso, fundamental,
utilíssimo para os interessados em pensar com e a partir do filósofo. Com efeito, o
leitor tem em máos um sofisticado mapa de suas principais temáticas e questões. Cada
verbete não apenas "faz referência a onde, nos escritos de Foucault, aparece cada termo,
mas quer, ademais, oferecer uma indicação (às vezes sucinta, às vezes extensa) de seus
usos e contextos'i Algo assim como o mais completo "motor de busca" para visitar os
caminhos de seu pensamento.
Na Introdução do autor, o leitor encontrará subsídios muito claros para adentrar
na presente versão em português. Há que se ter sempre à mão as "Instruções para o
uso" (p. 17-19). Todos os critérios da edição em língua espanhola foram respeitados
na presente edição, com leves intervenções no texto para atualizar as referências bi-
bliográficas aos cursos publicados posteriormente à data da edição original do Iivro
na Argentina, em 2004.
Dentro dos verbetes, mantivemos no idioma original o título das obras em francês
por dois motivos: são facilmente compreensíveis para o leitor de língua portuguesa e
nem sempre os títulos em francês coincidem com os das traduções.
As referências remetem às edições francesas dos textos de Foucault. Embora não
seja o ideal, preferimos essa alternativa, dada a existência de diversas traduções ao

II
Português para alguns textos e a inexistência de traduções para outros. Como também
em francês não existe uma única edição francesa dos textos de Foucault e a numeração
das páginas não é a mesma em todas as reedições, ao final d,o Vocabulárlo a seção 'As
obras e as páginas" relaciona as páginas que correspondem aos capítulos ou às seções das
ediçoes em francês utilizadas dos textos de Foucault. Para os Dits et écrits,acrescentamos
o título do texto (verbete, entrevista, intervenção) e, para os cursos no Collêge de France,
a data da aula. Todos os títulos dessa seção estão em francês e em português.

As traduções dos textos em francês citados nos verbetes foram feitas cotejando a versão
em espanhol com o original francês. Na presente edição acrescentamos um índice onomástico
e outro de obras. Os termos em grego foram transliterados segundo as normas de Henrique
Murachco. Língua Grega.Yol.I. São Paulo: Discurso Editorial; Vozes, 2001, p.40-42. De resto,
o texto segue fielmente o original.

Ao leitor, boas viagensl

Ingrid Müller Xavier, Walter Omar Kohan, Alfredo Veiga-Neto

L2
PREFAC!O

Guardadas as diferenças, poderíamos começar como Foucault no prefácio a Les


mots et les choses e dizer que este livro nasceu de um texto de Borges. Foucault refere-se
àquela enciclopédia chinesa onde aparece uma inquietante classificação dos animais:
"(a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) domesticados, (d) leitões, (e)
sereias, (f) fabulosos, (g) cães em liberdade, (h) incluídos na presente classificação, (i)
que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel muito fino
de pelo de camelo, (l) et cetera, (m) que acabam de quebrar a bilha, (n) que de longe
parecem moscas" (Jorge Luis Borges, "El idioma analítico de lohn Wilkins'l in Obras
completas 1923-1972, Buenos Aires, Emecé,1974, p. 708). Sempre, segundo Foucault,
essa classificação provoca riso. Não pelo que nos pode sugerir o conteúdo de cada um
de seus itens, mas pelo fato de que eles tenham sido ordenados alfabeticamente. O que
nos faz rir é que no não lugar da linguagem se tenha podldo justapor, como em um
espaço comum, o que efetivamente carece de lugar comum. Provoca riso e inquietude
a heterotopia que domina essa classificação (cf. MC, 9).
Supondo que os "inumeráveis'l os "fabulosos" ou os"et cetera" existam, na classifi-
cação de Borges, trata-se de ordenar "seres"; no Vocabulário de Foucault - Um percurso
por seus temas, conceitos e autores,de ordenar'tonceitos'l Mas, ainda que pareça que os
"conceitos" estejam mais próximos das palavras e facilitem a operação, apesar disso, o
perigo não e menor. De fato, esle Vocabulário pode produzir o mesmo efeito que a clas-
sificação dos animais da enciclopédia chinesa; Porque, claramente, tal como ela, poderia
ser apenas o esforço para encontrar um lugar comum para o que parece não tê-lo. O
próprio Foucault, com certa frequência, assinalou o caráter fragmentário e hipotético
de seu trabalho, sua recusa em elaborar teorias acabadas, seu horror à totalidade. Seria,
então, somente a pretensão de querer pôr ordem e limites a seu pensamento, recorrendo
àsimplicidade e finitude alfabéticas. Mais ainda, tentando ser simultaneamente breve e
extenso, analítico, mas exaustivo, encerrando o universo do pensamento foucaultiano na
enclausurada gramática de um dicionário, este Vocabulário náo só provocaria o mesmo
efeito que essa estranha classificação de animais, mas correria o risco de converter-se
ele mesmo em uma enciclopédia chinesa. Porque, "notoriamente não há classificação
do universo que não seja arbitrária e conjetural" (J.-L. Borges, op. cit., p. 708). E nada

t3
nos assegura que, com o afã de ordenar, não venhamos a cair nessas autoimplicações
(classificar os conteúdos mesmos da classificação; como Borges, "(h) incluídos na presente
classificação") que só os labirintos da linguagem permitem construir. E, finalmente, no
pior dos casos, provocar somente riso, e, no melhor, também inquietude.
- Mas e se esse espaço comum existisse?
- Ah, bom, então, apresentar este Vocabulário se reduziria a dizer, de novo como
Foucault: "Eu não escrevo para um público, escrevo para usuários, não para leitores"
(D82, s24).

Edgardo Castro

l4
TNTR0DUÇÃ0

Nossa ideia inicial foi elaborar um índice completo da totalidade dos textos publi-
cados de Foucault: os livros editados em vida, a recopilaçâo intitulada Dits et écrits e os
cursos no Collêge de France que apareceram ate o momento. A intenção era dispor de
um instrumento de trabalho em estado "bruto I sem nenhum tipo de seleção ou filtro
dos dados. Dada a sua extensão e à espera de encontrar o modo mais adequado para
publicar este material, com base nele elaboramos este vocabulário.
O presente trabalho difere da nossa ideia original por vários motivos. Por um
lado, não se trata de um índice, mas, mais exatamente, de um vocabulário. Não só faz
referência a onde, nos escritos de Foucault, aparece cada termo, mas quer, ademais,
oferecer uma indicação (às vezes sucinta, às vezes extensa) de seus usos e contextos.
Por outro lado, está constituído por uma seleção arbitrária de termos.
os únicos criterios que nos guiaram, no momento de escolher o que incluir e o que
deixar de fora, foram: importância que reconhecíamos em alguns termos valendo-nos da
a
nossa leitura da obra de Foucault (o que poderíamos denominar sua "representatiüdade"),
nosso interesse pessoal ou, simplesmente, uma suposta utilidade para o leitor. Por exemplo,
no caso das expressóes e dos termos gregos, frequentes nos últimos escritos, quisemos
incluir o maior número possível. Alguns autores foram incluídos não pela frequência com
que são citados; mas, por serem autores menos conhecidos para o público em geral e, por
isso, pareceu-nos útil situá-los na obra de Foucault e também na história. Por exemplo, os
autores estudados a propósito da análise da "Razão de Estado I
As limitaçÕes que, necessariamente, surgem dessas opçoes só poderiam ser sanadas
com um trabalho de equipe, no qual os critérios de seleção se multipliquem e sejam
discutidos. Além do mais, ate que sejam publicados todos os cursos de Foucault no
Collêge de France, torna-se impossível colocar um ponto final na tarefa de elaborar um
vocabulário foucaultiano. Por outro lado, este deveria estar acompanhado de uma bi-
bliografia secundária que pudesse ser sugerida a propósito de cada termo. Outra tarefa
arealizar seria estabelecer "a biblioteca de Foucault'l a lista de obras citadas, segundo
a cronologia e a frequência. Por todas essas razões, este trabalho deveria ser tomado
como o ponto de partida para uma obra coletiva, necessariamente mais abrangente e
mais rica. O convite está feito.
Não setrata, pois, de uma exposição do pensamento de Foucault, mas de um instru-
mento de trabalho. Na redação dos verbetes, tentamos abster-nos o mais possível de nossa

I5
interpretação pessoal. A propósito de cada termo, só quisemos mostrar como e onde ele
aparece. Sobretudo, pretendemos exibir seus sentidos mais releyantes. Por isso, porque nào
se trata de uma exposição sistemática, mas apenas de uma apresentação do conteúdo, mul-
tiplicamos as referências e mantivemos algumas repetiçoes. Muitos termos talvez pudessem
ter sido reunidos dentro de outro. Mas nem sempre os agrupamos. Algumas vezes o fizemos,
a hm de náo nos estender demasiado; outras, os mantivemos separados para facilitar a
consulta por termos, e não por temas. Também para controlar a extensão da exposição e

eritar demasiadas duplicaçôes, às vezes remetemos de um verbete para outro.


Em certo sentido, quisemos conservar a dispersão que caracteriza o trabalho de
Foucault. Por isso, na medida em que os textos o permitiram, em alguns verbetes se
encontrará uma exposição mais ordenada; em outros, já não (sobretudo quando o
nraterial corresponde à recompilação editada como Dlús et écrits; aqui a dispersão está
quase imposta). Por outro lado, alem de apresentar os contextos mais relevantes do
termo abordado, às vezes citamos diretamente algumas expressôes de Foucault, sobre-
tudo quando nos pareceram particuiarmente relevantes, esclarecedoras, simplesmente
provocativas ou também apenas divertidas.
Mantivemos no idioma original o título das obras em francês por dois motivos: são
facilmente compreensíveis para o leitor e nem sempre os títulos em francês coincidem
com o das traduçóes. Por exemplo, os textos que integram a compilação Dits et écrits estão
parciahnente publicados em português com outra ordenação e formato.
Na elaboração deste Vocabulário, tivemos presente o interessante trabalho de Judith
Revel, le vocabulaire de Foucqult (Paris, 2002) [em portuguê s, Michel Foucault: conceitos
essenciais. São Carlos: Claraluz,2005]. Nosso objetivo, em todo caso, foi diferente.

Várias pessoas me acompanharam, com suas sugestões, suas críticas e, sobretudo, seu
entusiasmo na realização deste vocabulário. Alfabeticamente, Ariel Yoguel, Bilrbara Steinman,
Gerardo Fittipaldi, Guido Deufemia, Leiser Madanes, Marcelo Boeri, María Luisa Femenías,
Oscar Conde, Pablo Pavesi e Yves Roussel. Com María Giannoni e Paula Fleisner, ademais,
discutimos alguns dos verbetes mais complexos. Mariana Sanjurjo teve a amabilidade de ler
todo o texto sugerir-me as correções necessárias, para que a leitura fosse mais fluida e a
e
expressão mais correta desde o ponto de vista da lingua. É dificil distinglir o que pertence
a cada um deles; mas impossível não agradecer-lhes. Nos departamentos de fiiosofia da
Universidade de Buenos Aires, da Universidade Nacional de La Plata e da Universidade
Nacional de Rosário, ministrei vários cursos e seminários sobre o pensamento de Michel
Foucault. Sem o trabalho de discussão com os que participaram deles, este vocabulário
nunca teria vindo à luz. Tambem a todos eles o meu reconhecimento.
E por fim, gostaria de agradecer especialmente aos Profs. Walter Omar Kohan e Al-
tiedo Veiga-Neto pelo interesse que mostraram desde o primeiro momento, em realizar a
traduçáo brasileira desta obra. Esse interesse foi acompanhado, ademais, peio trabalho
de revisão e de adaptação necessário. Um rnerecido reconhecimento de minha parte
vai também para Ingrid Müller Xavier. É impossível expressar em poucas palavras o
esforço realizado por ela. Uma parte importante desta obra lhes pertence.

16
TNSTRUÇoES PARA 0 USo

1) Estrutura dos yerbetes. Seguimos um duplo modelo na organização dos verbetes.


Todas as "entradas" do vocabulário estão assinaladas em maiúsculas, negritos e caracteres
um ponto maior que o resto do verbete. Por exemplo: "EPISTEME". Para os verbetes que
abordam um tema extenso e com numerosas relações a outros temas, diferenciamos os con-
textos indicando-os com termos em negrito, e a letra inicial em maiúscula seguidos de um
ponto; por exemplo: "Saber'l Algumas vezes, tivemos que introduzir distinções dentro de
cada contexto. Nesse caso, utilizamos, além de negrito e a letra inicial em maiúscula, números
e parênteses. Por exemplo: "l) Discurso'l Desse modo, é possível distinguir três níveis em
um verbete: EPISTEME (título do verbete), Saber (contexto), f ) Discurso (subcontexto).
Ademais, quando é necessário dar conta das relações entre os diferentes contextos, o verbete
começa com uma breve introdução, para indicá-las. Para os outros verbetes, no entanto, onde
não era necessário distinguir contextos de uso, simplesmente utilizamos asteriscos (*) para
estabelecer algumas divisÕes no texto. Em três verbetes (Clínica, Loucura e Psiquiatria) nâo
tivemos outra alternativa a não ser expor de maneira esquemática, mas analítica, o conteúdo
de alguns livros de Foucault.
É possível distinguir três categorias de verbetes: verbetes que se ocupam de
conceitos

.rp..ifi.u..rte foucaultianos (por exemplo, Episteme, A priori histórico); verbetes que

abordam temas tratados por Foucault (por exempl o, História, Poder) e verbetes que tratam

de autores que aparecem na sua obra.


2) Referências cruzadas. Para formar uma ideia precisa de alguns temas abordados por
Foucault, especialmente aqueles de maior relevância, será necessário consultar vários verbetes.
Isso é inevitável. Para indicar o percurso a ser seguido, indicamos em itálico o verbete ao qual
se remeter, por exemplo: "Yer: Epistemd'.
3) Índice de ocorrências e "loci". Ao flnal da exposição dos usos e contextos de cada termo
do vocabulário, encontram-se as referências acerca de onde aparece esse termo nos textos de
Foucault. Ali indicamos: 1) o termo em francês, 2) entre colchetes, [], a quantidade de vezes
que aparece, 3) as referências bibliográficas abreviadas da seguinte maneira:

AN Les anormaux / Os anormais

AS lhrchéologie du savoir / A arqueologia do saber

17
DEI Dits et écrits I / Ditos e escritos I *

DE2 Dits et écrits II / Ditos e escritos II *


DE3 DiÍs et écrits III / Ditos e escritos III *
DE4 Dits et écrits IV / Ditos e escritos IV *
HF Histoire de la folie à lkge classique / História da loucura
HS Lherméneutique du sujet / A hermenêutica do sujeito
HSI Lhistoire de la sexualité 1. La volonté de savoir / História da
sexualidade I. A vontade de saber
HS2 Lhistoire de la sexualité 2. Ilusage des plaisirs / História da
sexualidade IL O uso dos prazeres
HS3 Lhistoire de la sexualité 3. Le souci de soi / História da
sexualidade IIL O cuidado de si

IDS "Il faut défendre la société" / Em defesa da sociedade


MC Les mots et les choses / As palavras e as coisas

MMPE Maladie mentale et Personnalité / Doença mental e personalidade

MMPS Maladie mentale et psychologie / Doença mental e psicologia


NC La naissance de la clinique / O nascimento da clínica
OD lhrdre du discours / A ordem do discurso
PP Le pouvoir psychiatrique / O poder psitluiátrico
RR Raymond Roussel/ Raymond Roussel
SP Surveiller et punir / Vigiar e punir

* Referências segundo ediçáo francesa de Dlrs


a et écrits, que segue uma ordem cronológica
e não temática como a tradução ao português.

Na deflnição do corpus apartir do qual foi gerada a frequência de aparecimento dos termos,
seguimos os seguintes critérios: I)a totalidade dos livros, exceto títulos e índices; 2) para Dits
et écrits, não incluímos, alem dos índices, a cronologia contida no vol. I; 3) para os cursos do
Collêge de France, deixamos de lado os resumos, que já se encontram em Dits et écrits, e a
"Situation des cours'l redigida pelos editores; mas incluímos as notas.

Há uma diferença entre os termos no verbete e no índiçe. Em cada verbete, apresenta-


mos os contextos de uso de um termo que consideramos relevante desde o ponto de vista
foucaultiano. No índice, de cada verbete, figuram todas as aparições do termo; não só as que
nos interessam.

As referências remetem às edições francesas dos textos de Foucault. Isso apresenta várias
dificuldades. A primeira delas é que não existe uma única edição francesa dos textos de
Foucault, e a numeração das páginas não é a mesma em todas as reedições. Para facilitar a

localização aproximada das referências nas diferentes edições e em suas correspondentes

1S
traduções, ao final do vocabulário haverão de se encontrar, relacionadas por ordem alfabé-
tica: l) para os livros de Foucault publicados antes de sua morte, os capítulos ou as seções
correspondentes à numeração das páginas que utilizamos; 2) para os volumes de Dits et
écrits,o título do texto (verbete, entrevista, intervenção) utilizado;3) para os cursos no
Collêge de France, a data da aula. Ainda que náo deixe de ser um inconveniente, não en-
contramos una solução melhor.
As edições francesas que utilizamos são as seguintes (os anos correspondem à data da
edição utilizada):

Les anormaux, Paris, Seuil-Gallimard, 1999.

Ihrchéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1984.


Dits et écrits I, Paris, Gallimard,1994.
Dits et écrits II, Paris, Gallimard,1994.
Dits et écrits IlI, Paris, Gallimard,1994.

Dits et écrits IV, Paris, Gallimard,1994.


Histoire de la folie à lkge classique,Paris, Gallimard, 1999.
t h erméneutique su suj et, Paris, Seuil-Gallimard, 200 I'
Lhistoire de la sexualité 1. La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1986'
Iihistoire de la sexualité 2, Ilusage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984.

Ilhistoire de la sexualité 3. Le souci de sol, Paris, Gallimard, 1984'


"Il faut défendre la société", Paris, Gallimard-Seuil, 1997'
Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1986.

Maladie mentale et personnalité,Paris, PUF, 1954'


Maladie mentale et psychologie, Paris, PUF, 1997'

La naissance de la clinique, Paris, Gallimard, 1988.

Ihrdre du discours, Paris, Gallimard, 1986.

Le pouvoir psychiatrique, Paris, Gallimard-Seuil, 2003.

Raymond Roussel, Paris, Gallimard, 1992.


Surveiller et punir, Paris, Gallimatd,1987.

I9
1 A PRIOR HISTORICO (A priori historique)

Foucault utiliza a expressão "a priori histórico" para determinar o objeto da descriçáo
arqueológica. Ainda que várias vezes ele tenha assinalado a herança kantiana de seu trabalho
filosófico (D84,632,687-688), o adjetivo "histórico" quer marcar as diferenças com respeito ao
" a priori" kantiano. O " a priorihistórico
I efetivamente, não designa a condição de validade dos
juízos, nem busca estabelecer o que torna legítima uma asserçáo, mas sim as condições históricas
dos enunciados, suas condições de emergência, a lei de sua coexistência corn outros, sua forma
específica de ser, os princípios segundo os quais se substituem, transformam-se e desaparecem.
'A priori não de verdades que nunca poderiam ser ditas nem realmente dadas na experiência,
mas de uma história já dada, porque é a história das coisas efetivamente ditas" (AS, 167). Trata-se
definitivamente da regularidade que torna historicamente possível os enuncíados.O a priorl formal
eo histórico não são do mesmo nível nern da mesma natureza (AS, 165-169). * Foucault utiliza
também a expressâo" a priorl concreto'l Em Histoire de folie à lhge classique, por exemplo, a
la
iclentificaçáo do soclus com o sujeito de direito constitui o "a priori concreto" da psicopatologia
com pretensão científica (HF, 176). * Em um de seus primeiros textos, "La recherche scientifique
etla psychologie'(em Morêre), Des chercheursfrançais s'ínterrogent. Orientation et organisa-
tion du travail scientiJ)que en Franca Toulouse, Privat, Collection "Nouvelle Recherche'l n. 13,
1957,p. 173-201, reeditado em DEl, 137 -168), encontramos a expressão " a priori conceitual e
histórico" (DEl, 155-i58). O sentido dessas duas expressões que acabamos de mencionar não
corresponde ao atribuído ao"a priori histórico' em lhrchéologie du savoir.
Apriorihistorique [17]: AS, 166 167,169,269. DEI,661. DE4,632. MC, t3,15,171,287,329,35s,361.NC, 197.

; ABSOLUTISMO (Absolutisme)

Com o termo " ab solutismo", Foucault refere-se principalmente


à forma de organização do poder

do rei e da burguesia na França, durante os séculos XVII e XVIII; exercício administrativamente

A PRIORI HISTÔRICO (A priorí historique) 2t


centralizadoe pessoal do poder que se adquire hereditariamente. Criação do hospital geral.

À fundaçào do Hospital Geral de Paris data de 1656. À primeira vista, tratâ-se de uma reorga-
nização atraves da qual se uniÍicam administrativamente várias instituições já existentes, entre
ls quais se encontram a Salpêtriêre e a Bicêtre, que então foram destinadas a receber, alojar
e alimentar os "pobres de Paris'l tanto os que se apresentavam por si mesmos quanto aqueles
para lá enr-iados pela autoridade judicial. Ao diretor-geral, nomeado por toda a vida, era-lhe
conterido o poder de autoridade, direção, administração, comércio, polícia, jurisdição, correção
e castigo sobre todos os pobres de Paris que se encontrassem dentro ou fora dos edifícios des-
tinados ao hospital. "O Hospital geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia
e a iustiça, nos limites da lei:
terceira ordem da repressão [...]. Em seu funcionamento ou em
a
seu propósito, o Hospital geral não está vinculado a nenhuma ideia médica; é uma instância
de ordem, de ordem monárquica e burguesa que se organiza nesta época na França" (HF, 73).
Criados por éditos do rei, na organizaçao e no funcionamento dos hospitais gerais, mesclam-se
os privilégios da Igreja quanto à assistência aos pobres e a preocupação burguesa por ordenar
o mundo da miséria (assistência, repressão). A nova instituição se estenderá rapidamente por
todo o reino e chegará a ser, para além da França, um fenômeno europeu. No entanto, na França,

a constituição da monarquia absoluta e o renascimento católico na época da contrarreforma


lhe darão um caráter particular, de cumplicidade e concorrência entre o poder e a Igreja (HF,
77).Yer: Loucura. Direito de castigar. Até o século XVIII, o suplício como castigo não
funcionava de modo a ser uma reparação moral, mas como cerimônia política. O delito era
considerado uma ofensa e um desafio à soberania do rei, ao corpo do rei. O carâter aterrador
e excessivo do suplício, como o de Damiens que Foucault descreye no começo de Surveiller
et punir, tinha como finalidade reconstruir a soberania desafiada. Um espetáculo que, em
seu excesso, queria mostrar a supremacia do monarca e que, enquanto espetáculo, buscava
seu reconhecimento (D82, 726).lJmavtneança tanto pessoal quanto pública. Nesse sentido,
o direito de castigar que o monarca detém pode ser considerado como uma prolongação do
'direito da espada'l direito de vida e de morte inerente à soberania (SP, 52). Polícia. Entre as
transformações das práticas disciplinares durante a época clássica, Foucault assinala a estati-
zação dos mecanismos disciplinares. Enquanto na Inglaterra, por essa mesma época, grupos
privados de inspiração religiosa asseguravam o controle social, na França, a função disciplinar
era geralmente assumida pela polícia. Contudo, apesar de que a organizaçáo centralizada do
aparato policial possa ser vista como uma expressão do absolutismo monárquico, isto é, de
que constitua um aparato de Estado, a função de polícia é coextensiva ao corpo social, ela
deve chegar até seus limites extremos, até os mínimos detalhes. Nesse sentido, o objeto da
polícia não é o Estado ou o reino como corpo visível do monarca, mas "tudo o que acontece']
"as coisas de cada instante" (sP, 213-215). saber governamental. o século XIX
marca o
fim do absolutismo e, com ele, de sua forma de exercício do poder. o poder começa a ser
exercido com a intervenção de certo saber governamental que engloba o conhecimento dos
processos econômicos, sociais e demográficos. Durante a primeira metade do século XIX, esse
saber governamental se estruturou em torno do conhecimento da economia; mas os efeitos
da reorganizaçáo da economia sobre a vida dos indivíduos tornarão necessário outro tipo de
saberes, afim de corrigir esses efeitos, adaptando os indivíduos às novas formas do desenvol-
vimento econômico (a medicina, a psiquiatria, a psicologia). O poder político adquire desse

22 ABSOLUTISMO (Absoluti sme)


modo uma forma terapêutica (D82, 433-434). Lettres de cachet. Ainda que a utilização das
lettres de cachet (umacarta do rei, com seu selo, contendo uma ordem de prisão) tenha sido
um episódio temporalmente circunscrito, apenas pouco mais que um século, não por isso
resulta insignificante desde o ponto de vista da história do poder. Na opinião de Foucault, essa
prática não deve ser vista como a irrupção da arbitrariedade do poder real na cotidianidade
da vida. Antes, articula-se, segundo circuitos complexos e um jogo combinado de solicitações
e respostas. Todos podiam servir-se delas segundo seus interesses. Podem ser vistas, por isso,
como uma forma de distribuição da soberania absoluta (D83,247). Discurso histórico.
Podemos considerar "Il faut défendre la société" como uma genealogia do discurso histórico
moderno. Foucault opõe o que denomina a história jupiteriana ao discurso da guerra de
raças. Aprimeira, tal como a praticavam os romanos e também a Idade Média, era concebida
como um ritual de fortalecimento da soberania. Por um lado, narrando a história dos reis, dos
potentes e de suas vitórias, liga juridicamente os homens ao poder pela continuidade da lei; por
outro lado, narrando exemplos e proezas, fascina e atrai. Dupla função da história jupiteriana,
relato do direito do poder e intensificação de sua glória. Discurso do Estado sobre o Estado,
do poder sobre o poder. Em relação à história jupiteriana, o discurso da guerra de raças pode
ser visto como uma contra-história; ela rompe a unidade da soberania e, sobretudo, obscurece
sua glória. A história dos soberanos já não incluirá a história dos súditos, a história de uns
não é a história dos outros. Os relatos de proezas e façanhas não são senão a transformação,
por parte dos vencedores, das lutas de dominação, de conquista, de opressão. Aparece, então,
um noyo sujeito da história: a nação, a raça (IDS, 57-63). Essa nova forma da história foi
utilizada tanto pelos defensores do absolutismo quanto por seus opositores. Por exemplo,
na Inglaterra, por James I e os parlamentares que se lhe opunham (IDS' 88-89). O discurso
da guerra de raças teve como objetivo, na França com H. de Boulainvilliers e como parte da
reação nobiliária, desestruturar o discurso que ligava a administração ao absolutismo, isto é,
de outro modo'
o discurso jurídico e o discurso econômico-administrativo. Para expressá-lo
é através desse discurso que a nobreza tratou de desconectar a vontade absoluta do soberano
e a absoluta docilidade da administração. Como na Inglaterra, o discurso da
guerra de raças
foi utilizado por todas as posiçoes políticas, de direita ou de esquerda. O absolutismo, por sua
vez, também se apropriou dele (IDS, 101-120).
119-
Absolutisme [46]:DE2,433,465,726.D83,247,323. HF,74. IDS, 87'89,92-94,103, 105-106' 108, 113-114,
120, 125, 127, 128- 130, 136, 157, 180- 183, 207. sP, 82, 2 14.

3. ABSTI N ÊNCIA (Ábstrnence)

Seria fácil mostrar, segundo Foucault, que a história da sexualidade não pode ser dividida
em uma etapa de permissáo e outra de restrições que corresponderiam, respectivamente, ao
paganismo e ao cristianismo. O primeiro grande livro cristão dedicado à prática sexual (cap.
X, livro II do Pedagogo, de Clemente de Alexandria) se apoia tanto na Escritura como em
preceitos e disposições tomados diretamente da filosofia antiga. Tanto no paganismo como
no cristianismo (ainda que, como o próprio Foucault ressalta, trata-se de categorias pouco

ABSTTNÊNclA (Abstí nence\ 23


precisas), a problematizaçáo do prazer sexual e, consequentemente, a abstinência foram uma
parte fundamental da ascese do indivíduo, ainda que com um valor e uma situação diferentes.
* A Antiguidade clássica honrou as figuras dos heróis virtuosos,
como Apolônio de Tiano,
quem, tendo feito voto de castidade, passou sua vida sem manter relações sexuais. Porém,
para além desse caso extremo, como ascese, ou seja, como exercício do indivíduo sobre si
mesmo, aparece vinculada a dois temas importantes, o domínio sobre si mesmo e o conheci-
mento de si, isto é, ao governo e à verdade. Aqui encontramos, respectivamente, Agesilao de
Xenofonte eo Sócrates de Platão (HS2, 20-31). * Nos epicuristas, o exercício da abstinência
servia para marcar o limite a partir do qual a privação se convertia em sofrimento; para os
estoicos, por sua vez, consistia em uma preparaçáo para eventuais privaçoes (HS3, 75). -
No marco geral da evolução da ascese antiga, a relação entre abstinência e conhecimento
tende a ocupar o primeiro lugar, acima da relação entre ascese e governo.
Abstinence [48]: DE , 362-363,547,552,671,80 L HF, 6I 9. HS, 279, 395, 3gg, 403, 40s-412, 414, 4rg,435. HS2,

20-21, 27, l0l, 135-1 36, 187. HS3, 7 5, 77, 85, t44- 116. 272.

d. ACONTECIM ENTO (Even em ent)

Foucault se serve do conceito de acontecimento para caracterizar a modalidade de análise


histórica da arqueologia e também sua concepção geral da atividade filosóflca. A arqueologia
é uma descrição dos acontecimentos discursivos. A tarefa da filosofia consiste em diagnosticar
o que acontece, a atualidade. Como ele mesmo observa, em lhrdre du discours, trata-se de
una categoria paradoxal, que coloca problemas "temíyeis" e que loi "raramente levada em
corlsideração pelos fllósofos" (oD, 59). Em um primeiro momento, podem-se distinguir dois
sentidos desse termo: o acontecimento como novidade ou diferença e o acontecimento como
prática histórica. No primeiro sentido, Foucault fala de "acontecimento arqueológico"; no
segundo, por exemplo, de "acontecimento discursivo'i O primeiro quer dar conta da novidade
histórica; o segundo, da regularidade histórica das práticas (objeto da descrição arqueológica).
Existe claramente uma relação entre esses dois sentidos: as novidades instauram novas formas
de regularidade. Assim, por exemplo, em Les mots et les choses,o "acontecimento" da passa-
gem de uma episteme a outra instaura novos acontecimentos discursivos. É necessário aclarar
que, acerca dessa relação entre novidade e regularidade, entre surgimento e funcionamento
das práticas, tarnbérn se pode distinguir duas posições de Foucault. Em les mots et les choses,
por um lado, o acontecimento arqueológico e pensado, como veremos em seguida, como uma
ruptura radical, só manif'esta por seus efeitos. A regularidade que essa ruptura instaura, por
outro lado, e pensada,
aqui, em termos somente discursivos (ver: Episteme). A medida que
Foucault estenda o domínio de análise ao não discursivo (dispositivos, práticas em geral), o
surgimento de outras práticas (acontecimentos no segundo sentido que distinguimos, ainda
que já não só discursivos) deixará de ser pensado em termos de ruptura radical, de um acon-
tecimento em certo sentido oculto. Com efeito, já não se trata tanto de afirmar o "aparecimen-
to" de outras práticas, porém, mais propriamente, de analisar sua formação. Assim, em Les
mots et les choses, a biologia, por exemplo, em sua regularidade, não é uma transformação

24 ACONTECI MENT O (Événeme nt\


da História Natural, mas surge ali onde não havia um saber sobre a vida. Contudo, mais
tarde, quando Foucault encara a história da sexualidade, a'genealogia do homem de desejo'
é pensada como a história das sucessivas transformações de práticas que, desde a Antiguida-

de, chegaram até nós. Nessa perspectiva, há certa primazia do acontecimento como regulari-
dade. A novidade já náo é um acontecimento oculto do qual as práticas seriam as manifesta-
ções; as práticas definem agora o campo das transformações, da novidade. Pois bem, tocamos
aqui em um ponto nevrálgico do pensamento de Foucault: como pensar a relação entre novi-
dade e regularidade sem fazer danovidade uma espécie de "abertura' ("a la Heidegger") nem
converter as práticas em uma espécie de "a priori" da história, do acontecimento como novi-
dade? Como pensar, ao mesmo tempo, a transformação e a descontinuidade? Por isso, Foucault
deve encontrar um equilíbrio entre o acontecimento como novidade e o acontecimento como
regularidade que não seja uma recaída nos velhos conceitos da "tradição'nem no novo con-
ceito de "estruturai Ou seja, sem reintroduzir nenhuma instância de ordem transcendental.
Trata-se, enfim, de pensar essa relaçáo assumindo a descontinuidade dessas regularidades, o
acaso de suas transformaçoes, a materialidade de suas condições de existência (OD,61). Para
isso, Foucault haverá de se servir dos conceitos de "luta'l "táticas'l "estratégias'l O termo "acon-
tecimento" adquire, então, um terceiro sentido: o acontecimento como relação de forças (em
que se percebe a presença de Nietzsche). 'As forças que estão em jogo na história não obede-
cem nem a um destino nem a uma mecânica, mas antes, ao acaso da luta' (DE2, 148). As
lutas, na história, levam-se a cabo através das práticas de que se dispoe, mas, nesse uso, elas
se transformam para inserirem-se em novas táticas e estratégias da luta. Aqui, Foucault náo
só se serve do conceito de luta, mas também atribui um sentido ao conceito de liberdade.
Todavia não como oposto à causalidade histórica, mas como experiência do limite (Yer: Li-
berdade,IuÍa). Nesse terceiro sentido, o conceito de acontecimento se entrelaça com o
conceito de atualidade (Yer: Diagnosticar)."Dito de outra maneira, nós estamos atravessados
por processos, movimentos, de forças; nós não os conhecemos, e o papel do filósofo é ser, sem
àúuidu, o diagnosticador destas forças, de diagnosticar a realidade" (D83, 573). A partir daqui,
aparece um quarto sentido do termo "acontecimento'] aquele que se encontranoverbo"évé-
nementialiser'l "acontecimentalizar'l como método de trabalho histórico. Resumindo, pode-
mos distinguir, no total, quatro sentidos do termo "acontecimento": ruptura histórica, regu-
laridade histórica, atualidade, trabalho de acontecimentalizaçao. Acontecimento
arqueológico. A mutação de uma episteme a outra é pensada como o acontecimento radical
que estabelece uma nova ordem do saber; desse acontecimento só é possível seguir os signos,
os efeitos (o surgimento do homem como acontecimento epistêmico, por exemplo). Por isso,
a arqueologia deve percorrer o acontecimento em sua disposição manifesta (MC,229-230).
O acontecimento que produz a mutação de uma episteme é pensado em termos de abertura
(MC,232).Nesse sentido, pode-se falar de acontecimento arqueológico (MC,307,318). Ver:
Episteme. Acontecimento discursivo. A arqueologia descreve os enunciados como acon-
tecimentos (AS, 40). Foucault opõe a análise discursiva em termos de acontecimento às
análises que descrevem o discursivo desde o ponto de vista da língua ou do sentido, da estru-
tura ou do sujeito. A descrição em termos de acontecimento, em lugar das condições grama-
ticais ou das condições de significação, leva em consideração as condições de existência que
determinam a materialidade própria do enunciado (AS, 40, 137-138). Ocupamo-nos delas

ACONTECIMENT O (Événe men t\ 25


nos verbetes: Enunciado e Formaçao discursiva. História, série. A noção de acontecimen-

to criação (OD, 56).'As noções fundamentais que se impõem agora [na


se opõe à noção de
descrição arqueológical não são mais aquelas da consciência e da continuidade (com os pro-
blemas que thes são correlatos, da liberdade e da causalidade), não são tampouco aquelas do
signo e da estrutura; sáo o acontecimento e a série, com o jogo de noções que thes estão liga-
das: regularidade, aleatoriedade, descontinuidade, dependência, transformação" (OD, 58-59).
Discursivo - não discursivo. "Porém se se isola a instância do acontecimento enunciativo,
com respeito à língua ou ao pensamento, não é para tratá-la, a ela mesma, como se fosse in-
dependente, solitária, soberana. Ao contrário, é para captar como tais enunciados, enquanto
acontecimentos e em sua especif,cidade tão estranha, podem articular-se com acontecimentos
que não são de natureza discursiva, mas que podem ser de ordem técnica, prática, econômica,
social, política , eÍc.Fazer aparecer em sua pureza o espaço onde se dispersam os acontecimen-
tos discursivos não é tentar estabelecê-lo como uma ruptura que nada poderia superar, não é
encerrá-lo nele mesmo, nem, com ainda mais razão, abri-lo a uma transcendência; ao contrá-
rio, é tomar a liberdade de descrever entre ele e os outros sistemas, exteriores com respeito a
e1e, um jogo de relações. Essas relações devem estabelecer-se no campo dos acontecimentos,

sem passar pela forma geral da língua nem pela consciência singular dos sujeitos falantes"
(DEr,707). História efetiva (wirkliche Historie). A história efetiva, como a entende
Nietzsche, faz ressurgir o acontecimento (as relações de força) no que ele pode ter de único e
agudo. Desse modo, opõe-se à história tradicional que o dissolve no movimento teleológico
ou no encadeamento natural (DE2, 148). Deleuze. Foucault, em sua resenha de Logique du
sel,s, ocupa-se da noção de acontecimento na obra de Deleuze. Yer Deleuze. "Acontecimen-
talizaçíd' ("Evénementialisation"). Com esse neologismo, Foucault faz referência a uma
forma de proceder na análise histórica que se caracteriza, emprimeiro lugar, por uma ruptu-
ra: fazer surgir a singularidade ali onde se está tentado fazer referência a uma constante his-
tórica, a um caráter antropológico ou a uma evidência que se impõe mais ou menos a todos.
Mostrar, por exemplo, que não há que tomar como evidente que os loucos sejam reconhecidos
como doentes mentais. Em segundo lugar, caracteriza-se também por encontrar as conexões,
os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias que permitiram formar,
em um momento dado, o que depois se apresentará como evidente. Segundo Foucault, isso
implica uma multiplicação causal: 1) analisar os acontecimentos segundo os processos múl-
tiplos que os constituem (por exemplo, no caso do presídio, os processos de penalização da
clausura, a constituição de espaços pedagógicos fechados, o funcionamento da recompensa e
da punição); 2) analisar o acontecimento como um polígono de inteligibilidade, sem que se
possa definir de antemão o número de lados; 3) um polimorfismo crescente dos elementos
que entram em relação, das relações descritas, dos domínios de referência (D84,24-25)."Há
já bastante tempo, os historiadores náo amam muito os acontecimentos e fazem da 'desa-
contecimentalizaçao'o princípio de inteligibilidade histórica. E o fazem referindo o objeto
de sua análise a um mecanismo ou a uma estrutura, que deve ser o mais unitária possível,
o mais necessária, o mais inevitável possível, enfim, o mais exterior possível à história. Um
mecanismo econômico, uma estrutura antropológica, um processo demográfico como
ponto culminante da análise. Eis aqui a história desacontecimentalizada. (Certamente, só
indico e de maneira grosseira uma tendência.) É evidente que, com respeito a esse eixo de

26 AcoNTEctMENTo (Évenement)
análise, no que eu proponho, há demasiado e demasiado pouco. Demasiadas relações dife-
rentes, derr-rasiadas linhas de análise. E, ao mesmo tempo, pouca necessidade unitária.
Pletora do lado das inteligibilidades. Déficit do lado da necessidade. Porém, isso é para mim
a aposta comum da análise histórica e da crítica política. Náo estamos e não tenros que nos
situar sob o signo da necessidade única" (D84,25). Revolução, Iluminismo. A propósi-
to da célebre resposta de Kant à questão "O que é o iluminismo?'l encontramos outro sen-
tido do termo "acontecimento" nos textos de Foucault. Esse tem a ver com o que Kant
considera um signo "rememoratívurn, demonstrativunt, pronosticum", ou seja, um signo
que mostre que as coisas sempre foram assim, acontecem tanbént atualmente assim e
acontecerão sempre assim. Um signo com essas características é o que permite determinar
se existe ou não um progresso na história da humanidade. Para Kant, o acontecimento da
Revolução Francesa reúne essas condições. O que constitui o valor de acontecimento (de
signo rememorativo, demonstrativo e prognóstico) não é a Revolução mesma, nem seu
êxito ou seu fracasso, mas o entusiasrno pela revolução que, segundo Kant, põe de manifes-
to uma disposição moral da humanidade (D84, 684-685). Foucault estende essas conside-
rações acerca da Revolução ao Iluminismo em geral, como acontecimento que inaugura a
Modernidade europeia. "O que e o iluminismo?" e'b que e a revolução?" são as duas ques-
tões que definem a interrogação filosófica kantiana acerca da atualidade. Se, com as Críticas,
Kant fundou uma das linhas fundamentais da filosofia moderna, a analítica da verdade que
sepergunta pelas condições do conhecimento verdadeiro, com essas duas perguntas, Kant
inaugurou a outra grande tradição, a ontologia do presente, uma ontologia do presente que
se pergunta pela signif,caçâo filosófica da atualidade (DE4,686-637). "Não são os restos da
Auftkirung que se deve preservar, é a questão mesma desse acontecimento e de seu senti-
do histórico (a questão da historicidade do pensamento universal) que é necessário ter
presente e conservar no espirito como o que deve ser pensado" (D84, 687). Por isso, poder-
se-ia considerar como uma filosofia do acontecimento nâo só a arqueologia dos discursos,
mas também a ontologia do presente, na qual o próprio Foucault se situa, isto é, a genealogia
e a ética. Governo, Verdade. "Para dizer as coisas claramente. Meu problema é saber como
os homens se governam (a si mesmos e aos outros) através da produção de verdade (repito-o
uma vez mâis, por produção da verdade não entendo a produçáo de enunciados verdadeiros,
mas o ajuste de domínios onde a prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tem-
po, regrada e pertinente). Acontecimentalizar (événementialiser) os conjuntos singulares
de práticas, para fazê-Ios aparecer como regimes diferentes de jurisdição e veridicidade, eis
aqui, em termos extremamente bárbaros, o que eu queria fazer. Vocês veem que não é nern
uma história dos conhecimentos, nem uma análise da racionalidade crescente que domina
nossa sociedade, nem uma antropologia das codificações que regem nosso comportamento
sem que o saibamos. Eu queria, definitivamente, ressituar o regime de produçâo do verda-
deiro e do falso no coração da análise histórica e da crítica política" (D8 4, 27).
Éverrenent[593]:4S,36-37,40-41,44,83,133 134,137,140,143,159,\62-163,169,170,185,187,215,218,224,230-23t,
246. DEl,85, 155, i74 t76, t9t-]192, 199,202-203,2t3-2r4,235,248,258,265,277,284,286,352. -170, 38r,424,430,456, 504,51 t,
520,598,607,673,675,704 707,768,770,793,796,798.D82,77,81-89,92,94,t48,226,237-238,213,273,275-278,283,292,295,
393,400,407,466,484, s03, ss l, s94-s9s,607,633,6s8,677,693-697,712,7t3-7ts,751.D83,10, 48, 80-82, 98-100. 1 16, 144- 145,
162,190,244,279-280, 302, 314, 385, ,t17,467 -468,480,481,524, s38,551,573 574,579,581,600,604,622,627,676,686,7]f',726,

ACONIECIMENTO (Évé ne me nt\ 27


,- 15.746,783,788-789,807.Dr/.,23-24,37,76,80,112-113, r33,179,231,249,360,382,390,424,441,454,463,467,468-469,47t-

1;2,474,479,483,490-492,494,497,503,522,562-564,571 572,577,615,680-684,686-687,697,800-801, 803, 815. HF '9' 10'70,


05, 108, 133, 2 10, 226,238,243,261,279 281,368,371,409,455,505,553,562,580-58 l, 604, 659. HS, 1 1, 23, 84, 128, 174' 175' 177
1
'
)vn,)03,212,214,244,255,286,301,308-3 10, 3 12, 346, 430,450-452,454,457 -458. HSl, 86, 88. HS2, 149. HS3, 17,22,23,24,25,
t, -19, 32, 39, 44, 83, r23,225.1D5,7,20, 88, 141, 144,221. MC,95,141,166,229,230,232,249-251,255,259,261-262,264,274,

r9l-291. 30;, 3 18, 328, 333, 340, 3s6, 362, 382, 388, 398. MMPE, 17, 29. MMPS, 27, 29, 88, 94. NC, xI, XV 24, 28, 61, 85'97,104'
109, 1 i0, r33, 139, 147, 155, 157. OD, 1 1, 23, 28, 53, 56-60. PP, 12,35,49,222-233,237-241,245-246,248,256,262,292'318-320.

RR, 1.1, 53, 69, 72, 76, 109, 120. SP, 18,4s, 143, 190,218.

Événementialisation l8l: DEA 23, 25 -26, 30.

5, ÃMULATIO

Uma das flguras da semelhança.Yer: Episteme renascentista.


Aemulatio [6 ] : DEl, 482, 484, 489; MC, 3 4, 3 6, 40.

*. AFEM I NADO (Effem i n e)

Na Antiguidade, a linha de separação entre um homem viril e um afeminado não coincide


com nossa oposição entre hétero e homossexualidade; tampouco se reduz à oposição entre
homossexualidade ativae passiva. Marca, antes, uma diferença de atitude em relação aos pra-

zeres. Os signos do afeminado serão: a preguiça, a indolência, a recusa às atividades pesadas, o


gosto pelos perfumes, os adornos. "O que constitui, aos olhos dos gregos, a negatividade ética
por excelência não é evidentemente amar os dois sexos, tampouco preferir o próprio sexo ao
outro, é ser passivo com respeito aos prazeres" (HS2, 99).
Efféminé [ 9 ] : DE4, 3 1 3, s48. HS, 327 . }lS2, 2r, 98- 99, 22 l. HS3, 22t, 233.

r. AGOSTINHO, Santo (3s4-430)

As referências de Foucault às obras de S. Agostinho articulam-se principalmente em


torno à ideia de carne e ao célebre livro XIV da Cidade de Deus. Agostinho nos oferece
ali uma descrição do ato sexual como uma espécie de espasmo: o desejo apodera-se de
todo o homem, sacode-o, sobressalta-o, mescla as paixoes da alma com os apetites car-
nais... Trata-se de uma transcrição da descrição já presente no Hortensio, de Cícero. Pois
bem, Agostinho admite a possibilidade da existência de relações sexuais no Paraíso, ou
seja, antes da queda, mas, aqui, não teria essa forma quase epiléptica. Sua forma atual,
definida pelo caráter involuntário e excessivo do desejo, é uma consequência da queda
original, do pecado original. Segundo Agostinho, esse teria consistido na desobediên-
cia da vontade humana com respeito à vontade divina. O efeito dessa desobediência foi
a desobediência interna do homem. Santo Agostinho denomina "libido" o princípio do

28 EMULATIO
movimento autônomo, desobediente, dos órgãos sexuais; desse modo, sua força, sua origem
e seus efeitos se convertem no principal problema da vontade. O conceito de carne faz
referência ao corpo conquistado pela libido. Posto que esse desejo, certamente não em
sua dinâmica atual, provém de Deus, à diferença de Platão, nossa luta espiritual não con-
sistirá em dirigir nosso olhar para o alto, mas para dentro, para baixo, a fim de decifrar
os movimentos da alma (D84,174-177).
Saint Augustin [47]:DFL,295. DE3,555. DE4,174-177,300,308, 389,394,563,614,619,793,805. HS,28, 180,
184, 315, 44i. HS2, 49, 155, 27 8, 280. HS3, 168.

S. ALCIBIADES

O Alcibiades I, o diálogo que a Antiguidade não tem dúvidas quanto a atribuí-lo a Platão,
é considerado por Foucault como o ponto de partida da tradição da epiméleia heautoú, do
cuidado de si mesmo, a primeira grande emergência teórica do cuidado (HS, 46). Nele, a
questão do cuidado de si mesmo aparece em relação com outras três: a política, a pedagogia
e o conhecimento de si (DE4,213-218,355, 789). O curso no Collàge de France dos anos 1981-

1982, L'herméneutique du sujet, está amplamente dedicado ao Alcibiades. Após anaiisar esse
diálogo (HS, p. 27-77), Foucault se ocupa da evolução do tema do cuidado de si mesmo até
o helenismo. Yer Cuidado.
Alcibiade [339]: AN, 25; DEl, 414; DE4. 177,213,329, -355'357, 385, 390, 398, 407, 552,615, 71 3, 721,786,789-
792,795-796_I{S, 10,27 ,32-43,45-46, 49-50, 52-54,57 -58,62-67 ,69-7 \,73,7s-77 ,79-81 ,84, 86, 88, 90 9 r, 93, l 04, 108,

I 14. 123, 156, 163-169,179-180,182, 191, 197-198,212,215,237,244,256,330-331,395,397,400-401,414,421,42e-430,

435-437,438,441, 454. HS2, 27,53,81,85, 102, 208, 264-265,283. HS3, 58-59, 251,259' 278.

*. ALIENAç AO (Al ienation)

No verbete Loucura, ocupamo-nos largamente do conceito de alienação em Foucault. Em


linhas gerais, Foucault passa de uma concepção, na qual se combinam e se confundern os registros
histórico, sociológico e psicológico, para uma concepção mais complexa, mas mais estrllturada,
com base nas práticas de saber e poder. Desse modo, em Maladie mentale et personalité, aalie-
nação aparece como um produto das alienaçôes históricas da sociedade. No entanÍo, em Histoire
de lafolie, a alienação mental é produto das práticas que alienam não o espírito, a mente, mas a

pessoa, a liberdade daqueles que sáo reconhecidos como doentes mentais. Nesse sentido, a raiz
da doença mental não é a alienação, mas a discriminação histórica entre o normal e o patológico
que constrói as formas de alienação: "Náo há verdade para a psicologia que náo seja, ao mesmo
tempo, alienação para o homeni'(HF, 548). Yer; Loucura, Psiquiatria.
Aliénation [217]: AN,45,100. 125, 128, 130-132, 134, 136, 1,18, 154, 1s6,260.266,271,285-287,291 292,301. AS,
56, 59. DEl, 93, tt9, 195,232,270, 480, 54 1, 657, 825 .D82,213,359,445,807 ,821,824. DE3, 1 7 I, 308, 337, 445 446, 448,
451, 453, 472, 808. DE4, 52, 62,74, 186,226,500-501, 5l 7, 594, 665. HF, I l2- 1I 3, I 15- l 16, 139, l4l,145, 147, 152, 158,
166.168,171 178,r82,184 185,211,269,281,297,307.333,380,44]1,4O.,165,171-474,486 488.490491,494,539,5,]J.

ALIENAçÂO (Alienation) 29
5+, r18,55+,559,564,566,570,575,579,584,588,590-591,595-597,599-600,606,610,612-614,623,626,631,651 654.
IDS, i6. IÍC, 273,27s,325,388. MMPE, 16,76,77,80 83, r02-108. MMPS, 15,89. NC,40. PP, 18,31,37-38, 100-101,
109-110,rr8-119k,120-122,139-140,166-168,189,192 193,195,210,212,223-224,254,263265,280,291-295,329.

:=. ALTHUSSER, Louis (1918 1990)

A diferença de Althusser, Foucault não afirma nenhuma ruptura epistemológica a pro-


pósito de Marx (DEl, 587).* Interrogado acerca da categoria de estruturalismo, Foucault
separa-se de Althusser afirmando que, enquanto esse busca o sistema em relação com
-
a ideologia, ele, por sua vez, busca-o em relação com o conhecimento (DEl, 653). Há
poucas coisas em comum entre os chamados estruturalistas (o próprio Foucault, Althusser,
*
Lacan, Lévi-strauss) (DEl, 653, 665). Althusser liberou o marxismo de seu componente
*
humanista (D82,272). Têm em comum (Althusser, Lacan e Foucault) problematizar a
filosofia do sujeito (D84,52).
Louis Althusser [52J: AS 12. DEr, 5 16, 587, 653, 658, 665, 8 I 3. DE2, 170,272,406,621,736,772.DF3,33'34,313,

429, 590, 609. DE4, 5 1 -s3, 65-66, 7 4, s29. PP, 20.

11. AMICITIA

Uma das figuras da semelhança.Yer Episteme renascentista.


Amicitia [3]: DEf ,480. HS, 160. MC,32.

12. ANACHÓnrStS

O Alcibiades 1, atribuído a Platão, é considerado por Foucault como a primeira grande


emergência teórica do cuidado de si mesmo. Esse texto se inscreve, no entanto, em uma velha
tradição de práticas de si mesmo, de exercícios do sujeito sobre si mesmo. Entre essas, encontra-
mos o "retiro ] a anachóresis. O termo " anachóresis" tem dois sentidos na linguagem corrente:
a retirada do exército diante do inimigo e a fuga de um escravo que deixa a chóra (HS, 204);
mas, no contexto das práticas de si mesmo, significa um ausentar-se do mundo no qual alguém
se encontra imerso, interromper o contato com o mundo exterior, não sentir sensações, não se
preocupar com o que passa à nossa volta, fazer como se não se visse o que acontece. Uma ausência
visível aos outros (HS, 47). * Reelaborada filosoficamente, a encontramos no Fédon de Platão
(HS, 49). * Marco Aurélio (Pensamentos, IV 3) consagra uma extensa passagem à descrição
dessa técnica (HS3, 66; HS, 50). x A escritura de si mesmo aparece nos textos da Antiguidade
como uma técnica complementar da anachóresls (DE4, 416). Ver: Hypomnémafa. * A ascese
cristã, especialmente partir do desenvolvimento do cenobitismo, levou a cabo uma forte crítica
a

do que pode haver de individualista na prática do anacoretismo (HS3, 57).

30 AITHUSSER, Iouis
Anachoràse [5]: DE4, 416. HS, 47, 50. HS3, 57, 66.
Anakhôrêsis I I 3 ] : DE 4, 362, 7 99. HS, 47, 49-50, 88, 97, 204, 256.

:3. ANALíTICA DA FINITUDE (Analytique de la finitude)

A analítica da finitude, junto com as Ciências Humanas, define a disposição antropológica


da episteme moderna. Yer: Homem.
Analytique de la finituile [15]: MC, 323, 326,328-329,349, 350, 362,365,373,384-385,393.

i4 ANALOGlA (Ana|ogie)

Figura de semelhança. Yer: Episteme renascentista.


Analogia [1]:D81,489.
Analogie [196]: AN,4l, 121,288. AS, 18,68,88, 187, 190. DEl, 188,241,257,282,345,358,363-365,368-369,373,
375-376,378-379,381-382,388 390,397,407,484-485,488,491,492,494,566,594,63t',644,649,749,752,769-770,807,
840,846.D82,39,41,17t,439-440,643.D83,166,169,439,468.D84,64,416,435,47t472,474,484,755,810811.
IJF,279,306,348,421,641. If9,93,179,256, 441. HS2, t91.,232,236.H53,27 -29,31-32,45, t32-t33,274. IDS, 1 i, 14,
88. MC, 36, 37 , 40, 42-44, 46, 52-53, 63, ).2t-122, 130, 70, t77 ,2t4, 230, 247 ,284,392. NC, XIII, 5-6, 9 1, 99- 101, 133,
1

135, 144, 1 51, 210. PP, 27 6, 284, 294-295, 334. RR, 1 10, r 75. SP, 32, 89, 106, 166.

: : ANIMALIDADE (Animalite)

Loucura. Os bestiários medievais eram bestiários morais (os animais expressavam


simbolicamente os valores da humanidade); durante o Renascimento, no entanto, as relações
entre a animalidade e a humanidade se inverteram (os animais fantásticos representaYam os
segredos da natureza do homem). O classicismo, por sua yez, mostrou um pudor extremo ante
a todo o inumano (justificandoprática da clausura), exceto a respeito da loucura. No asilo
a
encontramos assim a desrazão que se oculta, e a loucura que se mostra, adquire a f,gura do
monstruoso. É, mais precisamente, sua violência o que foi objeto de espetáculo. Ela é encerrada
em razão de sua periculosidade social; no entanto, é mostrada pela liberdade animal que ela
manifesta. Com efeito, na sem-razão, essa animalidade não será a manifestação do diabóli-
co, nem das potências infernais; mas da relação imediata do homem com sua animalidade
(HF, 198-199). Os animais impossíveis, que surgem da imaginação da loucura, revelarão ao
homem os segredos de sua natureza (HF, 36-37). * Sem perseguir a finalidade de castigar ou
de corrigir, os loucos, cuja violência animal era difícil de dominar, foram objeto de práticas
extremas de sujeiçáo (atados aos muros, às camas, grilhões nas pernas, nos pulsos, pescoço,
etc.). Através dessa violência sem medida, a imagem da animalidade atormenta o mundo do
asilo. Posteriormente, em uma perspectiva evolucionista, essa animalidade será considerada

ANIMALIDAOE (Animalite) 31
como a essência da enfermidade; porém, para a época clássica, ao contrário, é signo de que
o louco não está doente. A animalidade, com efeito, protege-o das debilidades que provoca a
loucura. Essa animalidade feroz exigia ser domada, domesticada. Através da animalidade, a
loucura não encontrará as leis danatureza,mas as mil formas de um bestiário em que o mal já
não tem lugar. Entre a experiência da animalidade como manifestação das potências do mal e nossa
experiência positiva, evolucionista, situa-se a experiência clássica, uma experiência negativa da
animalidade. Na loucura, com efeito, a relação com a animalidade suprime a natureza humana
(HF , 197 -212). * Por volta do final do século XVIII, a tranquilidade do animal constitui uma
característica própria da bondade da natureza. Agora, será afastando-se da vida imediata do
animal - isto é, com o surgimento do meio - que surge a possibilidade da loucura. O meio
desempenhará agora o papel que antes desempenhara a animalidade (HF, 465-467). * A lenda
do encontro entre Pinel e Couthon conta a história de uma purificação: o louco purificado de
sua animalidade violenta e selvagem; cabe-lhe agora uma animalidade dócil, que não responde
violentamente à coerção e ao adestramento (HF, 592-593). Biologia. Para o saber da vida
do século XIX, a animalidade representa noyos poderes fantásticos. Nela se percebe melhor
o enigma da vida (MC,289-291). Politicidade. milênios foi, como para
O homem durante
Aristóteles, um animal e, além disso, capaz de uma existência política. O homem moderno,
no entanto, é um animal, em cuja vida política sua própria animalidade é objeto de questio-
namento (HSl, 188). Ver também: Biologia, Biopoder.
Animalité [66]: Al{,283.DEt,234.D82,17.H.F,36-37,197-209,212,256,465,467,475,529,543,552,592-594,603,609,
6,10. HS3, 247. MC, 120, 289 290. RR, 90.

:+ ANOMALIA(Anoma\ie)

Alienação. A patologia clássica sustenta que primeiro é o anormal em estado puro: o


anormal cristaliza ao seu redor condutas patológicas que constituem a doença mental, e a
aiteração da personalidade que dela se segue produz a alienação mental. Segundo à análise
de Maladie mentale et personnalité,haveriaqne inverter os termos: partir da alienação para
definir em último lugar o anormal (MMPE, 103, 105). Genealogia do anormal. o campo
da anomalia, tal como funciona no século XIX, foi constituído a partir de três elementos, ou
melhor, de três figuras que pouco a pouco o dominaram: o monstro humano, o indivíduo a
corrigir e o masturbador. * O lugar de aparecimento do monstro é o jurídico-biológico; ele
representa, com efeito, uma violação das leis dos homens e da natureza. uma figura ambígua:
transgride a lei, mas não se pode responder à sua violência por meio da lei; surge a partir das
leis da natureza, mas se manifesta como uma contranatureza. A monstruosidade representa
o desdobramento, mediante o jogo da natureza, de todas as irreguiaridades possíveis. Nesse
sentido, o monstro se apresenta como o princípio de inteligibilidade de toda anomalia pos-
sivel; e necessário buscar o que há de monstruoso mesmo nas pequenas irregularidades. O
anormal será um monstro cotidiano, pálido, banalizado. * O espaço do indivíduo a corrigir é
muito mais restrito do que o do monstro: não é a lei e a natureza, mas simplesmente a família
e as instituiçoes vinculadas a ela (a escola, a paróquia, o bairro, a rua). Mas é muito mais

32 ANOMALIA \Anomaiie)
frequente. É também uma figura ambígua. Com efeito, o indivíduo a corrigir aparece como
tal na medida em que é incorrigível, na medida em que a família e as instituições, com suas
regras e métodos, fracassaram. O anormal será não apenas um monstro empalidecido, mas
também um incorrigível que terá de ser colocado em um meio de correção apropriado. * O
espaço do masturbador é ainda mais restrito: o quarto; mas sua frequência é muito maior,
quase universal (um segredo que todos compartilham, mas ninguém comunica). Na patologia
do século XVIII, a masturbação representará um princípio de explicação quase universal; toda
enfermidade terá uma etiologia sexual. "O indivíduo anormal do século XIX estará marca-
do - e muito tardiamente, na prática médica, na prática judicial, no saber e nas instituições
que o rodeiam - por essa espécie de monstruosidade cada vez mais diminuída e diáfana, por
essa incorrigibilidade retificável e cadavez mais rodeada de aparatos de retificação. E, enfim,
marcado por esse segredo comum e singular, que é a etiologia geral e universal das piores
singularidades. Consequentemente, a genealogia do indivíduo normal nos remete a estas três
figuras: o monstro, o incorrigível, o onanista" (AN, 56). Sexualidade e psiquiatria. Com
base na figura do monstro, o campo do anormal, tal como vai sendo configurado na psiquiatria
do século XIX, estará dominado pela noção de instinto. Esse mesmo campo se encontrará
atravessado pela sexualidade, pela natureza sexual do instinto. Por um lado, porque serão
aplicadas a esse campo as noções provenientes dos fenômenos da herança e da degeneração.
Por outro, porque, nesse campo, prontamente se estabelecerão as desordens de caráter sexual.
Entre 1880 e 1890, a sexualidade aparecerá como o princípio etiológico de toda anomalia (AN,
155-156).Asaulas delge26defevereiro delgT5deLesanormauxestâodedicadasaomodo
como o tema da sexualidade ingressa no campo da psiquiatria: partindo da prática cristã da
conflssão, ou seja, do surgimento do corpo do prazer e do desejo nas práticas penitenciais,
*
até a medicalização das conulsões como modelo neurológico da doença mental. Por esse
caminho, abre-se a possibilidade de incorporar a problemática da masturbação como objeto
da psiquiatria e, contemporaneamente, da medicalização da família e do surgimento da família
celular. O nexo entre anomalia e instinto aparecerá precocemente, na infância. 'A' psiquiatria,
tal como eu a descrevi, passou de uma análise da doença mental como delírio à análise da
*
anomalia como desordem do instinto" (AN, 208). "O indivíduo'anormall do qual, desde o
final do século XIX, tantas instituições, discursos e saberes se encarregaram, deriva tanto da
exceção jurídico-natural do monstro, da multidão de incorrigíveis dos institutos de correção,
quanto do universal segredo das sexualidades infantis. Na verdade, as três figuras do monstro,
do incorrigível e do onanista não vão exatamente se confundir. Cada uma se inscreverá em
sistemas autônomos de referência científica. 1) O monstro, em uma teratologia e uma embrio-
logia que encontraram, em Geofrroy Saint-Hilaire, sua primeira grande coerência científica; o
incorrigível, em uma psicopatologia das sensações, da motricidade e das aptidões; o onanista,
em uma teoria da sexualidade que se elabora lentamente a partir d a Psychopathia sexualis de
Kaan. Mas a especificidade dessas referências não deve deixar esquecer três fenômenos essen-
ciais, que em parte a anulam ou, pelo menos, a modificam: a construção de uma teoria geral da
degeneração que, baseando-se no livro de Morel (ver: Degeneraçao),var servir, durante mais
de meio século, ao mesmo tempo, de marco teórico e de justificação social e moral, para todas
interr.enção sobre os anormais; a organizaçào
as técnicas de localização, de classiflcação e de
de uma rede institucional complexa que, nos confinamentos da medicina e da justiça, serve

ANOMALIA (Anomalie) JJ
tanto de estrutura de 'recepção' para os anormais como de instrumento para a defesa da
sociedade; finalmente, o movimento pelo qual o elemento que aparece mais recentemente na
história (o problema da sexualidade infantil) vai recobrir os outros dois, para converter-se, no
século XIX, no princípio de explicação mais fecundo de todas as anomalias" (D82, 827 -828).
Yer : D egeneraçao, Norma.
Anomalie I75l: AN, 23,51,52,53,55-58, 68,70,97,101,122,15i, 155-156, 180-181,208, 265-266,290 291,293,

296,298. AS, 56. DE2, i09, 131, 446,814. DE3, 49, 161,257 , 437, 441, 495, 624. DEA, 82,772,774. HS, 32s. IDS, 5.

MMPE,56. MMPS,56. PP, 116, 124, 199,208,218-221,274,292.5P,25,258-259,304,307.

':?. ANORM AL(Anormal)

Yer: Anomalia.
Anormal 1rI6l: AN, 38-39,52-56,85, 101-102, t22 124,127,155,239,249,258,265,275'283,290'294'300,307'
309310.AS,57,188.D81,122,150,624.D82,233,396,417,454,539,823,825,827.D83,50,374,378.DE4,38i,532.
HF. 123, t74.322.lts,51,10. HS2,44. IDS,228. MMPE,56,68,75, 103, 10s. MMPS, s6,68,7s. NC, \02'1s7't96.PP'
57, 83, r l5- 1 16, 124, 188, 208, 218-220. sP, 28, 104, 185, 20r, 217, 307, 3ll.

: s" ANTIGU IDADE (Antiq u ite)

Até a Histoire de la sexualifé, Foucault se havia ocupado fundamentalmente do que ele


denomina "época clássica" e da "Modernidade'l em outros termos, do período que vai de
Descartes até nós. A expressão "época clássical com efeito, como no título de Histoire de la
folie, não fazia refeftrcia, como para nós, à Antiguidade grega, mas aos séculos XVII e XVIII.
A partir de Histoire de la sexualifé, Foucault vai dirigir seu olhar para a Antiguidade. No
começo de llusage des plaisirs, explica essa mudança dizendo que, após ter se ocupado dos
jogos de verdade nas ciências empíricas dos séculos XVII e XVIII, dos jogos de verdade nas
relações de poder (nas práticas punitivas), era necessário ocupar-se dos jogos de verdade na
relação do sujeito consigo mesmo, na constituição de si mesmo como sujeito, do que se poderia
denominar uma "história do homem de desejo'l Essa genealogia exigia dirigir a análise para
a Antiguidade clássica (HS2, 12). Aqui se situam os dois últimos tomos de Histoire de la
sexualité eo curso dos anos 1981-1982, I-iHerméneutique du sujet.* Segundo tais declara-
çôes de Foucault, seu interesse pelos antigos seria fundamentalmente um interesse ético, ou
seja, pela problemática da constituição de si mesmo. E, com efeito, esse é o domínio em que
se movem os textos citados anteriormente. No entanto, mais amplamente, podemos dizer que
Foucault não só se interessa pela ética dos antigos, mas também pela sua política(pelo Político
de Platão, por exemplo). Não só pelas relações do sujeito consigo mesmo, mas também com
os outros. Nesse sentido, seria a questão do'governo'l de si e dos outros (ética e política), o
elxo em torno do qual se articula o interesse de Foucault pela Antiguidade clássica, helenista
e romana. * Porem não se trata de nostalgia histórica: "Tentar repensar os gregos hoje não
consiste em fazer valer a moral grega como o domínio moral por excelência, do qual se teria

34 ANORMAI- \Anormal)
necessidade para pensar-se a si mesmo, mas em fazer demodo tal que o pensamento europeu
po§§a recomeçar a partir do pensamento grego como experiência uma vez dada a respeito da
qual se pode ser totalmente livre" (D84, 702).
Antiquité [220]: AN, 64, 70, 1 90. DEl, 85, 295 296,307,497 . DE2,220,222,52t, A10-8 1 1. DE3, 69, 162,278.394,
5t5,538,558,,560,563,635. DE4, 116, 128, 139, 143, 160,291,308,312,328,353,385,396,402,404,407,440,462,478,
486,511,544-547,551-553,559-560,584,610,615,622-623,625,628,650,653_654,657,660,668 673,681,698,699,70t_
702.705 706,712,731 733,744,759, r-86,789,792,803,81.1. HF, 198, 261,396,403,108. HS,4, l8-19,60, 98, l2t, 139.
1 4 l , 1 65, r 75, 1 83, 196, 200, 208 ,2t2,235,240,246,280-281,296,299, 305, 3 1 3, 325, 3 27,338,340,346
347, 373, 383, 390,
4t6-417,445. HS2,12-13, r5, 17, 18,20-21.26,28,29,37.38,95, 106, tr5,166,216, 220,274.HS3, 16,36,48,163, 181,
222,271.IDS, 6, 58, 59-60, 62, 65-66, 156. MC, 48. MMPE, 76. NC, 88, 125. OD, 34. pp, 257, 261. Sp, 218.

:e ANTIPSIQUIATRIA (Antipsychiatrie)

Apesar de Foucault desconhecer a existência do movimento da antipsiquiatria, durante a


composição de Hístoire de la J'olíe, essa obra Íbi vinculada ao movimento (D82,522). O mo-
vimento antipsiquiátrico, na Inglaterra e nos Estados Unidos (T. S. Szasz), foi por ele abraçado
e utilizado em seus trabalhos (DF.2,523). * O curso dos anos 1973-1974 no Collêge de France
(cujo resumo encontra-se em DE2, 675-686), esteve dedicado ao poder psiquiátrico). Em te
PoLtvoir psychiatrique, Foucault aborda a questão da antipsiquiatria e da despsiquiatrização.
O que caracteriza a antipsiquiatria, à diferença da despsiquiatrizaçâo (ver o verbete), é a luta
contra a instituição asilar e as íormas de poder na relação médico-paciente. Esquirol dava
cinco razões para a existência do asilo: promover a segurança pessoal do enfermo e da famíiia,
livrar os enfermos das influências externas, vencer suas resistências pessoais, submetê-los a
urn regime médico, impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais. "Vê-se que tudo é questão
de poder, dominar o poder do louco, neutralizar os poderes exteriores que possam exercer-se
sobre ele, estabelecer sobre ele um poder terapêutico e um endireitar de brtopedial Pois bem, é

a instituição (como lugar, fonna de distribuição e mecanismo destas relações de poder) o que a

antipsiquiatria ataci' (DF-2,684). * É necessário prestar atenção a que a oposição da antipsiquiatria


ao asilo não acabe sendo uma multiplicação da psiquiatria fora do asílo (D82,232).
Antipsychiatrie [55]:DEl,77 1.DE2,209,232,433,522 523, 640, ó8 l, 683- 686,773,776.D83,52,76,162.,1 68, 235, 330,

332,337,314,348,377,4'14,633,808.D84,22,45,46,58,60-61,81,386,536,537.IDS,7,12.PP,15,18,137,253,265.

2a ANTISSEMITISMO (Antisem itisme)

O antigo antissemitismo de caráter religioso foi utilizado pelo racismo de Estado somente
a partir do século XIX; desde o momento em que aprreza da raça e sua integridade se con-
verteram em uma questão de Estado (IDS,76-77). Foucault situa esse momento como uma
etapa no desenvolvimento da noção de guerra de raças que analisa em "Il faut défendre la
société". Yer Biopoder, Guerra.
Antisémitisme I I 6] : DE3, 280, 325, 502, 7 53. DE4, I I 5. lDS, 7 s -7 7 .

ANÍlSSEMlTlSMO (Anti sém i tisme) 2e


?i. ANTROPOLOG lA (Anth ropol og i e)

Foucault apresentou retrospectivamente seu trabalho como uma análise histórica dos diferentes
modos de subjetivação (D84,222-223). Nesse sentido, o sujeito foi o eixo de todo seu percurso
histórico-f,losófico. No entanto, tal projeto não constitui, de nenhuma maneira, uma antropologia,
nem no sentido filosófico nem no sentido das Ciências Humanas. Desde a extensa introdução à

edição francesa da obra de L. Binswanger, I e rêve et lbxistence,aÍé Les mots et les choses e as obras
posteriores, pode-se descobrir seu progressivo afastamento da antropologia, tal como era praticada
no contexto intelectual onde se formou Foucault. A via real da antropologia. "Na antropologia
contemporânea, a obra de Binswanger nos parece seguir a üa real. Ele tomou de viés' o problema
da ontologia e da antropologia, indo diretamente à existência concreta, seus desenvolvimentos e
seus conteúdos históricos" (DEl,67).Binswangervai evem das formas antropológicas às condições
ontológicas da existência. Não se trata, contudo, de uma aplicação dos métodos da filosofia da análise
existencial (Heidegger) aos dados da experiência, nesse caso, clínica; mas de alcançar o ponto em
que se articulam as formas e as condições da existência, ou seja, o indivíduo. Desse modo, a antro-
pologia de Binswanger eüta uma distinção a priori entre ontologia e antropologia ou dividir esta
em filosofia e psicologia. Além dessa atração pelo texto e pelo procedimento de Binswanger, Foucault
promete uma obra posterior na qual situaria a análise existencial no desenvolvimento da reflexão
contemporânea sobre o homem. Nela, mostraria a inflexão da fenomenologia sobre a antropologia,
os fundamentos propostos à reflexão concreta sobre o homem. Uma antropologia que se opõe a
todo positivismo psicológico e a situa em um contexto ontológico (DEf , 65-66). Essa obra nunca
veio à luz. O sonho antropológico. 'A antropologia constitui, Íalvez, a disposição fundamental
que dirige e conduz o pensamento filosóÊco desde Kant até nós" (MC, 353). Desde o momento em
que a representação perdeu o poder de determinar por si só o jogo da aniílise e da síntese, isto é, com
o desaparecimento da episteme clássica, a antropologia, como analítica da finitude, converteu-se
nessa disposição fundamental. Apareceu, assim, essa forma de reflexão mista, em que os conteúdos
empíricos (do homem vivente, trabalhador e falante) são subsumidos em um discurso que se eleva
até a presunção do transcendental. Nessa Dobra do empírico e do transcendental, a filosofia entrou
no sonho antropológico: todo conhecimento empírico, se concerne ao homem, vale como campo
filosófico possível, em que se pode descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus
limites ea verdade (MC, 352). Essa dobra delimita o terreno em que germinaram as Ciências Hu-
manas (psicologia, sociologia, aniílise dos mitos e da literatura). O surgimento das Contraciências
Humanas (a etnologia, a psicanálise, a linguística) nos anuncia que o homem está por desaparecer.
Mas Foucault vê, sobretudo em Nietzsche, o primeiro esforço para desenraizar o pensamento da
antropologia, para despertar o pensamento de seu sonho antropológico. "Nietzsche encontrou o
ponto em que o homem e Deus se pertencem mutuamente, em que a morte do segundo é sinônima
do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e

antes de tudo, a iminência da morte do homem' (MC, 353). Filosofia da história e arqueologia.
A diferença das filosoÍias da história, a descrição arqueológica dos enunciados se propõe multiplicar
na análise as instâncias da diferença, da multiplicidade, da descontinuidade. Não se trata, para
ela, de recorrer a um sujeito único (a consciência, a razâo, a humanidade) como suporte de uma
história contínua, na qual o passado encontra no presente a sua verdade, e na qual esse, em forma
de promessa, antecipa um futuro mais pleno. Antes, o contrário: multiplicar as rupturas, evitar as

36 ANTROPOLOGIA (Anthropologie\
visadas retrospectivas, renunciar à pletora do sentido ou à tirania do signiÍrcante. Nesse sentido, a
arqueologia rompe com essa solidariedade constitutiva entre antropologia e filosofia da história.
"Na medida em que se trata de definir um método de análise histórica que esteja liberado do tema
antropológico, vemos que a teoria que esboçaremos agora lemlhrchéologie du savoirl se encontra
em uma dupla relação com as investigações anteriores. Ela trata de formular, em termos gerais (e
não sem muitas retificaçoes, não sem muitas elaborações), os instrumentos que essas investigações
utilizaram enquanto se encaminhavam ou forjaram segundo as necessidades. Mas, por outro lado, ela
se fortalece com os resultados obtidos então para definir um método de anrílise que esteja puriÍrcado
de todo antropologismo" (AS, 26). Ver também'. Homem,Ilumanismo, Sujeito.
Anthropologie [140]: AN,26,49,70,95-96,143,153. A5,22,26, 182. DEl, 65 68, 87, 96, 105, 109, 1 13, 1 17, 1 19,
t36,239,248,288-293,436,439,446-447,452,541,553,608,821.D82,220. DE3, 80, 96, 144,208,454-4s5,457 ,458 459,
461-462,579,622.D84,27,58,170,184,579,729.}IF,203,307,412,440,646,652.}l5, 60, 102. HS3, 283. IDS, 174, 235.
MC, 15,238,261, 269,271,273-27s,350-353,388,390. MMPE,89. MMPS, 101. PP,218, 294,326-327.5P,24.

;}.. APHRODíSIA

Ética. Em grande medida, os segundo e terceiro volumes da Histoire de la sexualité


estão dedicados ao tema dos aphrodísia; partiaiarmente o segundo volume, cujo título,
O uso dos prazeres, tradtz a expressão grega chrêsis aphrodisiôn. Trata-se de um adjetivo
substantivado que os latinos traduziram pot "venerea" e que o Suda propõe como signifi-
cado para as 'toisas" ou os "atos de Afrodite" (atos queridos pela natureza, aos que associa
um prazer intenso e aos que conduz por uma força sempre suscetível de excesso e revolta)
(HS2, 105). * À diferença da noção cristã de'tarne" moderna noção de "sexualidade'l
e da

os aphrodísia não foram objeto nem de classificação nem de deciframento. A problemati-


zaçáo etica dos aphrodísia ou, para utilizar o vocabulário foucaultiano, a modalidade em
que se converteram em substância ética, responde a uma forma de interrogação diferente da
cristã e da moderna. Por um lado, mais do que a morfologia do ato, o que está em primeiro
plano é a sua dinâmica, isto é, a sequência desejo-ato-prazer, que liga esses três elementos
de modo tal que formem um conjunto inseparável. A interrogaçáo cristã e moderna, por sua
yez, estruturou-se baseando-se na sua separação (entre ato eprazeL entre desejo eprazer).
Por outro lado, quanto ao objeto de interrogação ética, a problematização dos gregos se
articula em torno de duas questões: a quantidade e a polaridade; com relação à quantidade,
a intensidade dos atos e sua frequência. Desse modo, os aphrodísia caem dentro do campo
da virtude da continência e do vício da incontinência. Quanto à polaridade, isto é, quanto
aos papéis ativo ou passivo que podem ser desempenhados nas relações sexuais, a preocu-
pação dos gregos passa por certo isomorfismo com a situação que, "por natureza', se ocupa
na sociedade: a atividade é própria do homem e, mais ainda, do cidadão; a passividade, por
própria das mulheres e dos escravos. Novamente, à diferença da noção moderna,
sua vez, é
não nos encontramos aqui com a sexualidade concebida como algo comum a homens e
mulheres. * Na classificação dos prazeres, os aphrodísia aparecem como inferiores. Essa
inferioridade, no entanto, à diferença da noção cristã de carne, não depende do estado de
natureza caída, do pecado das origens, mas do fato de que são prazeres comuns ao homem

APHRODiSIA 27
e ao animal. Porém, apesar dessa inferioridade, a intensidade do desejo sexual, pelo qual a

natureza assegura a continuidade da espécie, faz deles uma preocupação ética maior. Nesse
sentido, desde o ponto de vista dos prazeres, a analogia entre os aphrodísia e os prazeres da
mesa (a bebida e a comida) foi uma das constantes do pensamento grego. * Brevemente, a
interrogação ética dos gregos acerca dos aphrodísla se resume à pergunta: como usá-los?
Não se trata, pois, de uma problematização do desejo ou do prazer, mas do exercício, da
chrêsis. Nessa perspectiva, encontramo-nos com três âmbitos fundamentais de preocupação:
com relação à saúde, a dietética; com relação à casa (oikos), a econômica; e flnalmente com
relação à pederastia, a erótica (H52,47-62). Helenismo. Enquanto, como dissemos, no
segundo volume da Histoire de la sexualitá, Foucault aborda a questão dos aphrodísia nos
autores clássicos e em relação ao conceito de chrêsis, no terceiro, Le souci de soi, estende
o período de análise e se situa na perspectiva do "cuidado", epiméleia. A análise começa
por A chave dos sonhos, de Artemidoro, e se estende até Sêneca, Galeno, Epiteto, Plutarco e
Marco Aurélio, ou seja, até o helenismo. Ainda que a problematização moral da experiência dos
aphrodísiapermaneça dentro do marco definido na época clássica, encontramos, no entanto,
modificações significativas: uma preocupação maior pela conduta sexual (os médicos, atentos
aos efeitos da prática sexual, recomendam a abstinência e declaram preferir a virgindade ao
uso dos prazeres), maior importância conferida ao matrimônio (os filósofos condenam toda
relação que pudesse ter lugar fora do matrimônio e prescrevem uma fidelidade mais rigorosa
entre os esposos), menor valor conferido ao amor aos mancebos, até alcançar sua desqualifi-
cação doutrinal. Em poucas palavras, um estilo mais rigoroso em que se modifica a maneira
de definir a relação entre o sujeito e sua atividade sexual (HS3, 50,269). Os autores cristãos
se apropriaram amplamente da moral sexual do helenismo. * Foucault aborda a questão dos
aphrodísia nessa cultura do cuidado de si mesmo (novo contexto político marcado pela
crise da pólis clássica e o aparecimento de uma nova forma de individualismo) com relação
ao corpo, à esposa e aos mancebos. Cristianismo. Como vemos, a continuidade dos códigos
éticos da conduta sexual entre a Antiguidade e o cristianismo (HS2, 21 e ss.) é somente uma
continuidade relativa. Na moral cristã, a problematizaçào da carne já nào será uma questão
de "uso'l mas de deciframento dos arcanos do desejo, pelas formas e funções de um conjunto
de atos cuidadosamente definidos (HS2, 106), dando lugar assim a uma hermenêutica do
desejo e a uma hermenêutica do si mesmo. Yer Carne, Sexualidade.
Aphrodisia[143]:DF.4,21.5-216,218,302,394,397-399,481.,487,619,621,661662.HS,4,21,41.HS2,41,43,
44-45,47-59,61,63,67,77,79,92,105-106,112, tts,t23-r24,126-127,t30,133-135,142 143,153,156,236,242,251,
257,264,274-275.}I53,15,42,49,53,127,129,132-133,139,146, 148, 151-152, 154, 156, 158, 162 164,168,197,199,
201 -202, 206, 210, 214, 216, 222, 229 -230, 233, 237 -238, 242, 245, 253, 261.

r:. ARENDT, Hannah (1906-197s)

Nos textos publicados até o momentol, encontramos uma única referência do próprio
Foucault a Hannah Arendt; as outras aparecem em perguntas que the foram formuladas. Nessa

Da publicação em castelhano,2004. (N.T.).

3 8 ARENDT, Hannah
única referência, precisamente respondendo a uma pergunta, Foucault assinala que não se
pode tazer, diferentemente de Arendt, uma distinçâo taxativa entre "relação de dominaçâo" e
"relação de poder" (DE4, 589).
Hannah Arendt [5/: DE4, 588-589.

:.; ARIÊS,Philippe (1s14-1sB4)

O encontro entre Foucault eAriês remonta àépocadapublicaçáodeHistoire delafolie.Quando


ninguém queria pubiicar essa obra, foi precisamente ArÍês, consultor da editora P/on, o impulsor de
seu aparecimento (DE4, 649). * Foucault considerou Philippe Ariàs como o inventor da história das
mentalidades, a história que relata o que o homem faz de si mesmo como espécie úvente (DE3, 503).
Mais tarde, no artigo publicado pela ocasião de seu falecimento, considera os trabalhos históricos de
Ariês, mais do que uma "história das mentalidades'l como uma "história das práticas" da "estilização
da existência'] isto é, das formas pelas quais o homem se manifesta, se inventa, se esquece ou se nega
em sua fatalidade de ser vivente e mortal (DE4, 648). Essa história das práticas toma por objeto as
condutas que coucernem à vida eà morte, o modo pelo qual a vida se converte em história. * Foucault
situa os próprios trabalhos de "história'na linha teórica de Ariês (DEa,650).

Philippe Artàs [ 46 ] : DE1 192, 503 - 505. DEr', 29 5, 646-6s3, 65s. HF, 686. SP, t 43.

2: ARISTOFANES (-445--3Bo AC)

Quatro comédias de Aristófanes são citadas emLusage des plaisirs: Assembléia de mulheres,
as tesmoforiantes, os cqvaleiros e os acarnensex Foucault faz referência a elas, principalmente,
emrazão das descrições desqualificadoras dos efeminados e da prática da pederastia (Agatão,
principalmente) (H52, 26,211,241-242,255.DF4,551-552). x Encontramos também várias
referências à figura literária de Aristófanes no Banquete, de Platão (H52,255-256).

Aristophane [20]:D84,551,552. HS, 376. H52,26 27,57,210,240,242,254-256,266,279.

2ç ARISTOTELES (-386 *322 a.C)

Ética dos prazeres. Foucault se ocupa de Aristóteles a propósito de numerosos temas


vinculados à ética dos prazeres: a desqualificação moral das relações extraconjugais (HS2,
24); anoçâo de intemperança que, para Aristóteles, concerne aos prazeres do corpo (excluindo
olfato) (HSz,49-50); com relação aos prazeres naturais, em que
os da visão, da audição e do
as únicas faltas que podem ser cometidas são da ordem da quantidade (HS2, 54-55); sobre
a passividade da mulher (HS2, 56); acerca da relação entre desejo e razão (HS2,60);sobre
o nexo entre prazeres da mesa e prazeres do amor (HS2,61-64); acerca da distinção entre

ARtsTóTELES 39
sophrosine e enkráteia (H52,75-82); da liberdade e da escravidão na cidade e no indivíduo
(com respeito ao governo dos prazeres) (H52,92-99);sobre os perigos para a saúde pelo abuso
dos prazeres sexuais (HS2, 134-138); acerca da reprodução (HS2, 148-150); sobre a relação
entre atividade sexual e morte (HS2, 152); as políticas da temperança (HS2, 193-200). As
categorias. Sobre a teoria clássica do signo e sua crítica à doutrina das categorias de Aris-
tóteles, cf DEl, 643-644. Vontade de saber. Segundo o resumo dos cursos do anuário do
Collêge de France, o correspondente aos anos 1970-1971 foi dedicado à "vontade de saber'i
Dois modelos teóricos foram levados em consideração, Aristóteles e Nietzsche. "O desejo de
saber, que as primeiras línhas da Metafísica colocam tanto como universal quanto natural, se
funda nesse pertencimento primeiro que já é manifesto pela sensação" (D82, 243). Trata-se
do mútuo pertencimento entre conhecimento e prazer, e, ao mesmo tempo, a independência
desse nexo em relação à utilidade vital do conhecimento.
Aristote [238]: AS,187. DEl, 85,170-171,361,374,381,451, 453,457,742-644,768,770,796,804,818. DE2,
45,65,76,91,106,242-243,403,571. DE3,395,538. DE4, 140,387,399,550, 613,673,699-701. HF,202,333. HS, 19,

26,28, 56,72, 139, 178, 1 82- 1 83, 365, 37 1,376-377 . HS l, 1 88. }{52,24, 15, 48,56, 58-64, 68-69, 75-78,81 -82,86, 88, 92,
94-95,97 101,103,118,126,131,134-135,138-140,148-152,161,165,184-185,191,1.93-1.97,200-202,214,224,226,
238, 252, 279-280, 284. HS3, 55, 108, 1 3 1, 148, 167, 173-174, 180, 187, 189, 203, 208, 215, 27 1-272, 275-27 6, 284. MC,
52,70, 108. RR,82.
Aristotle II ] : tISz, 28L

:;. ARQU EOLOG lA (Archeo log i e)

Ordem. Les mots et les choses tem por subtítulo "Uma arqueologia das ciências humanas'l
O pref,ício, com efeito, apresenta a obra, mais do que como uma história no sentido tradicional do
termo, como uma arqueologia cujos problemas de método serão estudados em uma obra posterior
(qteserálhrchéologie du savoir) (MC, 13). láemHistoire delafolie àl'âge classique, Foucault
concebia sua prática da história como uma arqueologia do saber (HF, 314). A arqueologia não se
ocupa dos conhecimentos descritos segundo seu progresso em direção a uma objetividade, que
encontraria sua expressão no presente da ciência, mas da episteme, em que os conhecimentos são
abordados sem se referir ao seu valor racional ou à sua objetividade. A arqueologia é uma história
das condiçÕes históricas de possibilidade do saber. Essas dependeriam da "experiência desnuda da
ordem e de seus modos de ser" (MC, l3). Existe, para Foucault, entre os'tódigos fundamentais de
uma culturd' e as teorias científicas e filosóficas que explicam por que há uma ordem, uma "regiáo
intermediária' ("anterior às palavras, às percepções e aos gestos que devem traduzi-la com maior
ou menor exatidão [...]; mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais verdadeira do que
as teorias" [MC, l2]) que Íixa, como experiência da ordem, as condições históricas de possibilidade
dos saberes. A arqueologia se propõe analisar, precisamente, esta "experiência desnuda" da ordem.

A esse nível, o trabalho de I es mots et les choses não nos mostra o movimento quase ininterrupto
daratio europeia, mas sim duas grandes descontinuidades: a que separa o Renascimento da época
clássica e a que distancia essa da Modernidade (MC, 13 14). História, monumento, documento.
A arqueologia do saber se situa nessa transformação (nem recente nem acabada) pela qual a his-
tória redeÍine sua posição arespeito dos documentos. A tarefa primeira da história já não consiste

40 ARQUEOL0GIA Arch"ologte)
t
em interpretar o documento, determinar se diz a verdade ou seu valor expressivo, mas, antes, em
trabalhá-lo desde o interior: "Ela o organiza, o divide, o distribui, o ordena, o reparte em níveis,
estabelece séries, distingue o que é pertinente e o que não é, assinala elementos, deflne unidades,
descreve relaçoes" (AS, 14). Em outros termos, em lugar de tratar os monurnentos como documentos
(lugar da memória do passado), agora os trata como monumentos. Não busca neles os rastros que
os homens tenham podido deixar, mas desdobra um conjunto de elementos, isola-os, agrupa-os,
estabelece relaçoes, reúne-os segundo níveis de pertinência. Os efeitos de superfície dessa mudança
de posição da história a respeito do estatuto do documento foram, em primeiro lugar, no campo
da história das ideias, a multiplicação das rupturas, e, na história propriamente dita, o surgimento
dos grandes períodos (AS, l5). Outras consequências dessa rnudança de posição foram: a nova
importância da noção de descontinuidade (AS, 16-17), a possibilidade de uma história geral, não
de uma história global (AS, 17-19), novos problemas metodológicos (a constituiçâo deumcorpus
coerente, a determinação do principio de seleção, a definiçáo do nível de análise, a delimitação dos
conjuntos afticulados, o estabelecimento das relações entre eles) (AS, 19-20). História das ideias.
Como resposta a esses novos problernas metodológicos, Foucault elaborou uma série de noções
(formaçoes discursivas, positividade, arquivo) e definiu um domínio de análise (enunciados, campo
enunciativo, práticas discursivas). 'A arqueologia descreve os discursos como práticas específicas no
elemento do arquivo' (AS, 174). Nesse sentido, a arqueologia se distingue da história das ideias. Os
grandes ternas da história das ideias são a gênese, a continuidade, a totalizaçào; a passagem da não
filosofia à filosofia, da não çientificidade à ciência, da não literatura à obra. A arqueologia não é uma
disciplina interpretativa, nâo trata os documentos como signos de outra çoisa, mas os descreve como
práticas. Não busca, com isso, estabelecer a transição contínua e insensível que une todo discurso ao
que o precede e ao que o segue, mas sua especilicidade. Não está ordenada à obra (para encontrar ali
a expressão da individualidade ou da sociedade, a instância do sujeito criador; não é nem psicologia
nem sociologia); deline práticas discursivas que atravessam as obras. Finalmente, tampouco pretende
estabelecer o que foi dito em sua identidade (o que os homens no momento em que protêriram seus
díscursos pensaram, quiserarn, tentaram ou desejaram dizer), mas é uma reescritura dos discur-
sos ao nível de sua exterioridade (AS, 182-183). Entre uma e outra, encontramos quatro grandes
diferenças: 1) Com respeito a outorgar a novidade. A arqueologia não está em busca das invenções
ou do momento em que algo Íbi dito pela primeira vez, mas da regularidade dos enunciados. 2)
Da análise das contradiçoes. As formações discursivas, objeto da descrição arqueológica, não são
um texto ideal, contínuo. A descrição arqueológica quer manter suas múltiplas asperezas. 3) Das
descriçoes comparativas. Suspendendo a primazia do sujeito e, por isso, não reduzindo o discurso
interior deumcogito,a arqueologia não pretende tampouco ser
à expressão de algo que sucede no

uma análise causal dos enunciados que permitiria relacionar ponto por ponto um descobrintento
e um 1àto, um conceito e uma estrutura social. Ela se inscreve na história gerai; quer mostrar conlo
a história (as instituiçoes, os processos econômicos, as relações sociais) pode dar lugar a tipos
definidos de discurso. 4) Do estabelecimento das transformaçoes. A contemporaneidade
de várias transformaçoes não significa uma exata coincidência cronológica. Entre elas,
numerosas relações são possíveis. A ruptura é o nome que recebem as transtbrmações que
afetam o regime geral de uma ou de várias formações discursivas. Por isso, a época nao é
aunidade de base. Se a arqueologia fala de época, o faz a propósito de práticas discursivas
deternrinadas. Foucault aborda cada um desses temas em AS, lB4-231 . Formalização e

ARQUEOLOGIA (Archeologie) À1
+l
interpretação. A arqueologiadeflne uma metodologia de análise dos discursos que não é nem
formalista nem interpretativa (AS, 177). Enquanto a unidade de trabalho das metodologias
formalistaséaproposição-significanteeaunidadedainterpretaçaoéafrase-significado,a
arqueologia se ocupa de enunciados eformações díscursivas (Ver os respectivos verbetes).
Outras arqueologias. Até o momento da publicação de Larchéologie du savoir (1969),
a episteme era uma modalidade de interrogação dos saberes. Nesse sentido, tratava-se de
arqueologias orientadas à episteme. De todo modo, Foucault pensa na possibilidade de outras
descrições arqueológicas, náo orientadas à episteme: uma arqueologia da sexualidade, da
pintura, da política (AS,25l-254). Geologia, genealogia. "Meu objeto não é a linguagem,
mas o arquivo, quer dizer, a existência acumulada de discursos. A arqueologia, como eu a
entendo, não é parente da geologia (como análise do subsolo) nem da genealogia (como des-
crição dos começos e das sucessões), éa análise do discurso em sua modalidade de arquivo'
(DEl, 595). Kant. Utilizou o termo "arqueologia'para referir-se à história do que torna
necessária uma forma de pensamento. O texto de Kant é: "Fortschritte der Metaphysik i in
Gesammelte Schriften, Berlin, Walter de Gruyter, t.XX, 1942,p.341. Esse é o terreno da
arqueologia; e não o de Freud, como pensa Steiner (D82,221). (Ver também Enunciado,
Episteme, Formação discursiva, Filosofia, Saber)
Archéologie [260]: AN,24,55,98,100. AS, 15, 27,173,177-178,182-183, 189-190,192,194,199-200,206-209,
212-213,2ts-2t6,21.8 223,225,227 -228,230-233,235,239,244,251-252,255,265,268-27 L DEr, 1 60, 296, 498, 499-500,
543, 575,587, 589, 595, 599, 602, 606, 663, 676,68 l, 696, 708,730,77 I 772,776-778,786-787 ,832, 843-844. DE2, I 04,
1 07, 1 57- 1 58, t66-r67 , 173, 182, 192,207,221,239,242,405-406, 521 522,643-645,752,7 59,790, 808, 8 1 3. DE3, 28 3 1,

37,39,88, t67,235,300,399,404 405,419, 468, 582, 585, 678. DE4,42,57,71-72,196,283,393, 437,443,451,457,530,


599,6t8,632,652,730. HF,113,144,314. HS,468. HS1,172. HS2,19. IDS, 11,20,167,191. MC,13-15,64,142,214,
220-221,229 230,274,281,290,3t8,377,398. MMPE, 26. MMPS, 26.PP,14,20,89,92,197,238'239,256-2s8.

is ARQUITETURA (Architectu re)

O tema da arquitetura está estreitamente ligado à questão do poder. Foucault distingue,


com efeito, uma arquitetura do espetáculo e outra da vigilância cuja forma paradigmática é o
panóptico de Bentham (DE2, 608). Essa relação entre arquitetura e poder passa pelo modo
como a organização do espaço distribui o movimento do olhar, determina avisibilidade. "Tradi-
cionalmente o poder é o que se vê, o que se mostra, o que se manifesta e, de maneira paradoxal,
encontra o princípio de sua força no movimento pelo qual se desdobra. Aqueles sobre os quais
se exerce o poder podem Íicar na sombra. Eles recebem luz somente desta parte de poder que
lhes é concedida ou do reflexo que por um instante os alcança. O poder disciplinar se exerce
tornando-se invisível. Como contrapartida, impõe àqueles que ele submete um princípio de
visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os sujeitos os que devem ser vistos" (SP, 189). A
arquitetura dos templos, dos palácios, dos teatros responde ao jogo da visibilidade no exercício
tradicional do poder (SP, 218); a correspondente ao poder disciplinar será a arquitetura das
prisões, dos hospitais, das escolas. Yer: Panóptico.
Architecture [ 158/: AN, I 28. AS, 49,52,62,7 5-76,80,82,129,152,196,242,263.D81,148,212-214,225,240,411,
125, 505, 507, 550, 620,622,675,7t4,716,766,782,794,843. DE2,76,96,293, 437, 439,594, 608, 613, 686, 812. DE3,

42 ARQUITETURA \ArCh itectu re)


24,34, l9o,192 t93, 404,5 19, 576, 698, 725,736. D84,220,270-271,274'276,278-285,351,431,673,752.}{F,62,253'
573. HS3, 124. MC, 52,242,244,250,252,283,293,298,303. MMPS, 79. NC, 114, 120,201. PP, 92,104,1.27,179. RR,
15-16, 44,7 4,99, 160, 192. SP, 35, tt7 , t4t, 145, 170, 174-175, I 88, 190, 204, 208, 2 I 8, 241,252.

âs ARQUIVO (Archive)

Em Foucault, o termo "arquivo" nao faz referência, como na linguagem corrente, nem
ao conjunto de documentos que uma cultura guarda como memória e testemunho de seu
passado, nem à instituição encarregada de conservá-los. "O arquivo é, antes de tudo, a lei do
que pode ser dito, o sistema que rege o surgimento dos enunciados como acontecimentos
singulares" (AS, I 70). O arquivo é, em outras palavras, o sistema das condições históricas de
possibilidade dos enunciados. Com efeito, os enunciados, considerados como acontecimentos
discursivos, náo são nem a mera transcrição do pensamento em discurso, nem apenas o jogo
das circunstâncias. Os enunciados como acontecimentos possuem uma regularidade que
lhes é própria, que rege sua formação e suas transformações. Por isso, o arquivo determina
também, desse modo, que os enunciados não se acumulem em uma multidão amorfa ou se
inscrevam simplesmente em uma linearidade sem ruptura. As regras do arquivo definem:
os limites e as formas da decibilidade (do que é possível falar, o que foi constituído como
domínio discursivo, que tipo de discursividade possui esse domínio), os limites e as formas
de conservaçao (que enunciados estão destinados a ingressar na memória dos homens,
pela recitação, a pedagogia, o ensino; que enunciados podem ser reutilizados), os limites
e as formas da memória tal como aparece em cada formação discursiva (que enunciados
reconhece como válidos, discutíveis ou inválidos; que enunciados reconhece como próprios
e quais como estranhos), os limites e as formas dareativaçao (que enunciados anteriores
ou de outra cultura retém, valoriza ou reconstitui; a que transformações, comentários,
exegeses e análise os submete ), os limites e as formas da apropriaçao (qte indivíduos ou
grupos têm direito a determinada classe de enunciados, como define a relação do discurso
§ com o seu autor; como se desenvolve entre as classes, as nações ou as coletividades a luta

tfl *
para encarregar-se dos enunciados) (AS, 169-171, DEl, 681-682). "Entendo por arquivo
o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados. Esse conjunto é considerado não ape-
nas como um conjunto de acontecimentos que tiveram lugar uma vez por todas e ficaram
em suspenso, no limbo ou no purgatório da história, mas também como um conjunto que
continua funcionando, se transforma através da história, da possibilidade de aparecer de
outros discursos" (DEl, 772).* Não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma
*
sociedade ou de uma civilizaçâo (AS, 171). O umbral de existência do arquivo está fixado
pelo que separa nossos discursos do que já não podemos dizer. Por isso, o arquivo concerne a

algo que é nosso, mas náo à nossa atualidade (AS, 172).


*'A arqueologiadescreve discursos
como práticas específicas no elemento do arquivo" (AS, 173). 'A arqueologia é, em sentido
estrito, a ciência desse arquivo" (DE1, 499).
Archive [51]: AS, 103, 166, 169-173,177,269-270.D81,299,499,530,595,681,688,708 709,733,772,786-787.
DE2, 658, 7 40. DE3, 468- 469. DEA, 35 1, 7 59. HSl, 85. SP, 167, 19 l.

ARQUIVO (Archive) 43
3ü. ARs EROTICA

Segundo Foucault, historicamente existem dois procedimentos para produzir a verdade


do sexo: a qrs erotica e a scientia sexualis. Na ars erotica, a verdade do sexo se extrai do
prazer mesmo, tomado como prática e reunido como experiência. A China, o Japão, a Índia,
as sociedades árabe-muçulmanas dotaram-se de uma ars erotica (HSl, 77). Na scientia se-
xualis, a verdade do sexo, por sua vez, é da ordem do discurso. * Ainda que nossa civrlizaçao
tenha dado lugar a uma scientia sexualis, apesar disso, a ars erotica não desapareceu; ela
subsiste na direção de consciência, na busca da união espiritual, to prazeÍ da verdade, por
exemplo (HSl, 94-95). * "Um dos numerosos pontos onde cometi um erro nesse livro [la
volonté de savoir) foi o que eu disse d esla ars erotica. Eu a opunha à scientia sexualis. Porém,
é necessário ser mais preciso. Os gregos e os romanos não tinham nenhuma ars erotica em
comparação com a ars erotica dos chineses (ou digamos que não era algo muito importante
na sua cultura). Eles tinham tmatékhne toü bioü onde a economia do prazer desempenhava
um papel muito importante. Nessa hrte de viverl a ideia segundo a qual era necessário exer-
cer um domínio perfeito sobre si mesmo se converteu rapidamente no problema central. E a
hermenêutica cristã de si constituiu uma nova elaboração desÍa tékhne" (DE4, 390, 615). *
Na relação amorosa entre Marco Aurélio e Fronton, a ars erotica constituía um dos temas de
discussáo (D84,794).
Ars erotica [23]:D83,134,525-526. DE4,390, 615,794. HS1,77, 90,94 96.

ARTAUD, Antonin (1896 1948)


=.:.

Em Artaud, a consciência trágica da loucura se expressa por debaixo da consciência


crítica em suas formas filosófica ou científica (HF, 47). * A obra de Artaud, como a de
Roussel, põe de manifesto o novo modo de ser da literatura, na qual a linguagem deixa de
estar subordinada ao sujeito (MC, 395). * Em Artaud, a linguagem discursiva está destinada
a desatar-se na violência do corpo e do grito, e o pensamento, abandonando à interioridade
tagarela da consciência, converte-se em energia material, sofrimento da carne, perseguiçào
e desgarramento do sujeito (D81,522).
Antonin Artaud 155/: AN,50. DEl, t61,169,266,268,412-413,419,500, 522,525,704.D82,80, 105, 108-109,
132, 412. DE3, 47 s, 490, 578, 677 .
}lF,28, 47 , 48,221,223,3\4, 432, 433, 435, 440_441, 632,656,66 -663. MC, 59, 339,
1

39s. MMPS,89, 104. OD,23. RR,207.

:: ARTEMIDORO (il d.c )

Foucault consagra primeira parte de Le souci de soi àaúlise do texto desse filósofo pagão do
a

século II, Á chave dos sonhos (HS3, 16-50). Três capítulos dessa obra estão dedicados aos sonhos
sexuais. A economia, as relações sociais, o êxito e o fracasso do indivíduo e a sua vida política e

44 ARs EROTICA
cotidiana permitem compreender os sonhos sexuais. Nesse sentido, Artemidoro está próximo de
Freud. O valor social do sonho não depende da natureza do ato sexual, mas do estatuto social dos
partners (D84,174).
Artémidore [ 198/: HS, 468. HS3, I 3, t5-22,24-37,39-46,48_49,276.D84, t74,176,2t6, 462_486,803.

33. ASCESE (Áscese)

Ascese antiga e ascese cristã. A diferença das conotações que esse vocábulo sugere
atualmente, a ascese para os antigos não era um caminho de progressiva renúncia a si
mesmo. Antes, tratava-se do trabalho de constituição de si mesmo, isto é, da formação de
uma relação consigo rlesmo que fosse plena, acabada, completa, autossuficiente e capaz
de produzir essa transfiguração do sujeito que é a felicidade de estar consigo mesmo (HS,
305). . Nossa noção de ascese está determinada pela herança cristãi Foucault assinala
três diferenças conceituais entre a ascese filosófica, a helenÍstica e a rorlana, e a ascese
cristã. A diferença desta última, como já dissemos, a ascese filosófica: l) não está orien-
tada à renúncia a si mesmo, mas à constituição de si mesmo; 2) não está regulada pelos
sacrifícios, mas pelo dotar-se de algo que não se tem; 3) não busca ligar o indivíduo à
lei, mas o indivíduo à verdade (HS, 316). * o sentido e a Íunçáo fundamental da ascese
filosófica helenÍstico-romana fbram assegurar a subjetivação do discurso verdadeiro,
fazer com que eu me converta em sujeito de enunciação do discurso verdadeiro. Não se
trata, então, da objetivaçâo de si em um discurso verdadeiro, mas da subjetivação de um
discurso verdadeiro; tornar próprias, na vida, as coisas que se sabe, os discursos que se
escuta e que se reconhece como verdadeiros. "Fazer sua a verdade, converter-se em sujeito
de enunciação do discurso verdadeiro; creio que é esse o coração da ascese filosófica" (HS,
317).* Descartes rompeu com tudo isso. Para aceder à verdade, é suficiente a evidência,
basta um sujeito que seja capaz de ver o evidente. A evidência substituiu assim a ascese
(DEa, 630; HS, l5-16, 19,29). * É interessante fazer referência à interpretação histórica
que Foucault nos oferece dessa ruptura cartesiana. A separação entre verdade e ascese não
seria uma consequência do clesenvolvimento da ciência moderna, mas da teologia. Refere-
seespecialmente à teologia inspirada em Aristóteles. O modelo de sujeito cognoscente foi
um Deus concebido em termos cognoscitivos. O conflito entre espiritualidade e ciência
foi precedido pelo conflito entre espiritualidade e teologia (HS, 28). * Na Antiguidade,
no entanto, o acesso à verdade exige do sujeito pôr em jogo o próprio ser, que ele se trans-
forlne mediante o trabalho da ascese. Na realidade, ascese e éros foram as duas grandes
formas da espiritualidade ocidental mediante as quais o sujeito se modifica para ter acesso
à verdade (HS, 17). Ascese e Modernidade. A ascese caracteriza tarnbém a atitude de
Modernidade. Aqui Foucault faz referência a Baudelaire (DE4, 570-571).
Ascàse [120]: DE2, I 38, 260. DE4, 165,307,359,36t,398 399, 41 l, 416,543,560, 621,630. HF, 104. HS, 17, 32,
88, 100, 172, 203,205,301-303, 305-307,312 313, il5-318,322-323,326,334,343,348 349,355,397-399,402.409-410,
433.450,457,465. HS2,15,38, 105, 193,253,267. HS3, -lns. pp.89.

ASCESE (Áscese) 45
34, ASILO (Asile)

Yer'. Loucura.
Asile [240]: AN, lll, 132, 134, 138, 228,246,276,280,301. D81,270,409.D82,211,217,232 233,237,298-299,
307,319,321-322,431,433 434,439,593,620,665,679-680,682,685,700,746,790-792,802 804,806,811,813.D83,36,
58-62,68,91,92,).09,154,164,229,265,27t 274,333,361-364,367,388-389,393,466,505-506,766,802.DE4,27,122.
665. HF, 10t,117,147,160, 163, 191, 196,2t8,224,344,426,446,450,481,493,530,534, 538,542,545-546,548,550,
553,57 t,57 5-576, 580, 586, 596,600,602 603, 605-606, 608 -614,619-620,622-626,631,640,653. IDS, 8. MMPS, 84-86.
NC,39,104.PP,3,5-10,16t7,1920,27,29,6061,81,95,96,99-100,102-106,108,109,r15,119t20,123,125128,133,
137 138, 143, 146, 148 i51, 153-156, 160 t65,169-176,178-191, 193-195,200,2t1 2t2,215 2t7,226,228 229,233,235,
248.252,253-254,265,27 t,277 -278,310,312,325. SP, 26, 20 1, 307.

i=. ATUALID ADE (Actualite)

Foucault concebe a atividade filosófica como um diagnóstico da atualidade. Ver:


Diagnosticar.
Actilalité [122]: AN, 141. ÂS, 11,81, 171-172.DFL,77,93,113-114,129,253,281,282,336,428,500,545. DE2,
254,259-26t,289-290,296, DE3, 43, 68, 100,274,377 , 431,535,573 574, 588,
434, 558, 58 1, 584, 588, 656, 657, 659, 800.

606,656,707,809.D84,21,60,8r, 11s,231,363,461,467, s03, s19, s64,s67 s68,574 575,s87,679-682,686-687,688,


733,747,765. HS, 454, 455. HS2, 68. }I53,22,219. IDS, I 15, 204. MC, 250, 325. NC, 164.5p,164,202.

3* AITFKLÁRUNG

Yer Modernidade.
Auftliirung [106]: DEl,76, t20, 545-546, 549. DE} 431-433, 479,783. DE4,36-37,73,225,231, 438, 440, 448,
562-568, 57 t-573, 577, 679 -682, 685-687, 7 65-7 68. HF, 174. }{S, 297. 467. NC. 51. 126.

:?" AUSÊNCIA (Ábsence)

Para a loucura concebida como ausência de obra,ver: Loucura.


Absence [341]: !rN,26, 101, 104-105, 1 13, I 15-l 18, 122, 128, 138-139, 168 ,230,282,295. A5,27,37,89,118,120,t46-147,
t87 ,234,242.DEr, 90, 107, 1 10,1 13, I I 8, 149, I 5 1, 162-163, 174,182, t96-203,214,227,232,234,242,245,247,249_250,257,
260,265-266,274,279,284,299,329,367,406,412,4t8,434,477 ,506,5t9,521,526,529,531,535, 538, 553, 585, 620,629_630,
632,636,639,642-643,646,705,745-746,779-780,790,7 93, 795, 808, 836. DE2, 50, 76, 80, 150, 152,180,212,2t6,234,325,397,
489,532,546-547,583,595,655,666,725,740,790,8t8.D83, t5,29,47,280,293,3t0,401,445,594,647,691,702,7 14_715,751,
760.D84,12, 17,33, 96, 108, I 13, 142, 303-304, 333,38t,414,566,651,732,74LHÊ,48,59,61,153,201,2t6,233,235,237,240,
249,251,265,266,304,314,326,327,354,436,46t,467,515, 548, 566, 606, 6 t6,631,647 _649,659,662.Idi,27,47,t78,187,203,
230,241,30t,331,403, 455, 469. HSI ,202-203. IlS2, 172, t75,226,240. HS3, 63, 75, 97_98, I 1 1, 188, 194,233,237 _238,254,
260. IDS, 130. MC,3l, \04,140,146,158,2t9,239-240,299,339,348,370,396. MMPE,21,29,63. MMPS,21,29,63. NC.XI,
x:,r,48,51,72, r47, \63,202. OD, 61, 81. RR, 29, 30, 107, l3l, t37,169,175, t97,207.5p,42, t50,170,203,2t3,296_297.

46 ASILO (Ásile)
AUTOR (Auteur)
=é.

A arqueologia deixa de lado as noções com as quais tradicionalmente se escreYeu a história


do conhecimento e das ciências, a história da literatura e da filosofia; especialmente, as cate-
gorias de obra,livro e autor. Quanto a esta última, para além das questões metodológicas da
arqueologia, acríIícaà noção de autor forma parte da crítica geral, desde o ponto de vista da
filosofia, à noção de sujeito, à função fundadora do sujeito. O questionamento da noção de autor
*
está presente também na crítica literária e na relação escritura/morte. Foucault se ocupou
da função-autor em lhrchéologie du savoir, Lbrdre du discours e em uma conferência na
sociétéfrançaise de philosophle, "Qu'est-ce qu'un auteur?" (DEl, 789-821).Nome próprio.
O "autor" não funciona como um nome próprio; a relação entre o autor e aquilo que nomeia
não é isomorfa com a relação entre o nome próprio e o indivíduo que designa. Foucault nos
oferece vários exemplos. Descobrir que Pierre Dupont não é médico ou não vive em Paris não
modifica o nexo de designaçáo. Do mesmo modo, se descubro que Shakespeare nào nasceu
na casa que se visita como seu lugar natal, isso não altera o funcionamento do nome do autor.
Pelo contrário, se descubro que ele náo é o autor dos Sonetos ou que é o autor do Organum
de Bacon, ou que Shakespeare e Bacon são a mesma pessoa, entã0, modifica-se inteiramente
o funcionamento do nome do autor. Por isso, "[...] um nome de autor não é simplesmente um
que pode ser substituído por
elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento,
função de
um pronome, etc.); exerce ierto papel com respeito aos discursos: assegura uma
excluir
clasificaçáo; um nome desse tipo permite agrupar certo número de textos, delimitá-los'
alguns, opô-los a outros. [. . . ] o nome de autor não está situado no registro
civil dos homens,
ruptura que instaura certo grupo
não está tampouco situado na ficção da obra, está situado na
de discursos e seu modo de ser singular. [...] A função autor é,
pois, característica do modo de

existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos dentro da sociedade"


(DEl'
Função-autor. Foucault distingue quatro características fundamentais da função-autor:
798).
o universo
1) Está ligada ao sistema jurídico e institucional que rodeia, determina e articula
propriedade é
dos discursos. Os discursos são objetos de apropriação. Pois bem, a relação de
possuir
secundária com respeito à apropriação penal. Com efeito, os discursos começaram a
um autor na medida em que esse podia ser castigado. O discurso, antes de ingressar no circuito
da propriedade, foi historicamente um gesto carregado de riscos
(DEf , 799). 2) Não se exerce
uniformemente e da mesma maneira em relação a todos os discursos, em todas as épocas e em
todas as civilizações. Alguns discursos circulam sem recorrer a um autor como princípio de
seu sentido ou de sua eficácia: notas cotidianas que se lançam quase imediatamente, decretos,
contratos, formulas técnicas. Porém, mesmo nos campos em que normalmente se requer o autor
(a literatura, a filosofia e a ciência), tampouco funciona da mesma maneira: na Idade Média,
por exemplo, o valor científico de um texto provinha de seu autor; a partir do século XVII, no
entanto, essa função não cessa de debilitar-se, até desaparecer (no discurso científico serve
apenas para dar nome a um teorema, a um efeito, a uma síndrome). No campo da literatura,
no entanto, a atribuição a um autor não deixou de se fortalecer. Na Idade Média, circulava
no anonimato (OD, 30-31, DEl, 799-800). 3) Não está definida pela atribuiçáo espontânea
*
ao seuprodutor, mas por uma série de operações específicas e complexas. Para Foucault, a
maneira pela qual a crítica literária define o autor deriva diretamente da maneira pela qual

AUTOR (Áuteur) 47
atradição cristã determinou a autenticidade. Foucault se refere a São ferônimo (DEl, 801).
Desse modo, o autor permite explicar a presença de certos fatos em uma obra, sua transfor-
mação, sua deformaçáo; mas também confere certa unidade aos discursos, permite superar as
contradições, é o foco de expressão. 4) Não reenvia pura e simplesmente a um indivíduo real,
pode dar lugar simultaneamente a vários egos. O sujeito que fala no prefácio de um tratado
de matemática não é o mesmo que fala no decurso de uma demonstração ou o que fala das
dificuldades e obstáculos que encontrou no decorrer de seu trabalho (DE1, 803). Fundadores
de discursividade. Alguns autores não são apenas autores de suas obras, mas também da
possibilidade e das regras de formação de outros discursos. Por exemplo, Marx ou Freud. A
instauração da discursividade é distinta da fundação da cientificidade. Enquanto, nesse caso, o
ato de fundação se encontra no mesmo plano que suas transformações futuras, a instauração da
discursividade lhe é heterogênea. Ela não é da ordem da generalidade formal, mas da abertura
de um campo de aplicações a respeito das quais se mantém atrás. "Para falar de maneira muito
esquemática, a obra desses instauradores não se situa em relação à ciência e ao espaço que ela
desenha, mas é a ciência ou a discursividade que se referem à sua obra como à coordenadas
primeiras" (DEl, 807). A partir daqui, compreende-se essa necessidade que guia todas as
exigências de retorno à origem, de redescobrimento, de reatualização.
Auteur [588]: AN, 18, 20, 49,98,236,246 247. AS, 12,33-36, 38, 41, 43, 57, 107, 1 10, 122-123,1.25-126, I 35, 140,
1 50, I 52, t61, 167 , 183, I 85, I 96, 224,27 4. DEt, \72, 177 -t79, 183, 186, 204-205, 254, 273, 292, 337 , 349, 361, 369, 372,
38s, 422, 429, 443, 467 , 47 4, 477 -478, s06, s I 3, 540, 59 l -593, 596, 653, 660-66 I, 682, 68s, 694, 696,702-70s, 709.7 t0,
736,758,760,765,77 4,786,789-8 1 3, 8 1 7 820. DE2, 24, 60-61, 132, 166, 172, 198,210, 2t3,216, 218,222-223, 267 , 309,
326,369,408,425,481,583, 606-607,645,664,708,721,732,767,781,. DE3,20,39,68,95, 101, 131 132, 140, 190,215,
253 254, 358, 399, 443-444, 448, 452-455, 464, 591, 620, 660,707 ,7 42,773-774,806. DE4, 16-17 , 31, 104, 106-107 , 121,
1 54, 1 56, 166, t7 4, 208, 325-326, 328. 367, 373, 392, 41.2, 421-123, 457 , 472,530, 550, 570, 59 1, 599, 601, 607 , 622, 642,
707,735,780,788,816,823.HF,9-10,57,6t,83,8s-87,97,147,163,261,277,301,220,380,461,s46,622,688.HS,2s,
61,99-100,118,140,160,196,219,339,341.HS1,31,59.HS2,25,56,70,75,113,120,124-127,129,13s,144,150,159,
194-195, 198-199,226,228,232,234,246. HS3,29, 131, 168, 181, 184,203,208, 244,259-260. IDS,20, 103, t19,2).2.
rúC.22.27.3031,1s6, 181 182,208.MMPE,38.MMPS,38.NC, 13,27,209.OD,29-32,39,54,65-69. PP,122,292,
328. RR,86, t)r,126, t79,181. SP, 17,24-25,78, 103, 159,248,256,268.

l8 AUT0R {Áuteur)
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:....,'. 11,Í;'
:ll--:,':'1iií.

3s BACHELARD, Gaston (1884-i962)

Foucault se refere a Gaston Bachelard, fundamentalmente, em relação à noção de atos e


cortes epistemológicos. Por esse motivo, ele o situa entre as figuras centrais que operaram
a transÍbrmação do campo da história das ideias, das ciências, da filosofia. com a noção
de corte epister:rológico, Bachelard suspendeu a acumulação indefinida de conhecimentos;
não busca, com efeito, estabelecer nem o começo silencioso dos conhecimentos, nem os
primeiros precursores, mas a aparição de um novo tipo de racionalidade (AS, 1 I ). * Foucault
também faz referência à função que Bachelard atribui à imaginação na percepção (DE1,
114). * Para alem de todas as oposiçôes que possam servir para descrever o panorama da
filosofia francesa do século XX (marxistas e não marxistas, freudianos e não freudianos,
especialistas e não especialistas, etc.), Foucault propõe separar uma filosofla da experiência,
do sujeito e do sentido, de uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito. Na primeira,
encontramos Sartre e Merleau-Ponty; na segunda, Cavaillês, Bachelard e Canguilhem (DE3,
430). Apesar das dit-erenças de estilo, o equivalente dessa segunda linha de pensamento, no
pauorama alemáo, como interrogação histórica da racionalidade, seria a Escola de Frankfurt
(DF.3,432-433).
Gaston Bachelard [28]: AS, I 1,248. DEI. 11.1,434, 149,696-697.DE2,382. DE3, 409, 430,432-134. DE4, 56,
440. 654, 7 54. 764, 7 67. 769.

:+. BACON, Francis (1 560/1 561 -1626)

Encontramos em Bacon uma crítica da semelhança que, à diferença de Descartes, não


concerne às relações de ordem e igualdade entre as coisas. Trata-se de uma doutrina do qui
pro quo, dos idola do teatro e do foro que nos fazem crer que as coisas se assemelham ao
que apreendemos neles (MC, 65). * No início da época clássica, Bacon buscou introduzir a
metodologia da inquisitio (enquête) nas ciências empíricas. Foucault entende por inquisitio

BACON. trancis 49
o procedimento político-judicial, tal como se o encontra, por exemplo, na Inquisição (sp,227;
DE2, 391). Yer: Investigaçào.
Francis Bacon [16]: D81,479,492,797.D82,391, 630. HF, 293. MC, 43,65-66,137. Sp,227 .

é:. BARBÁR lE (Ba rbarie)

Foucault se ocupou da figura do bárbaro e da barbárie, fundamentalmente, em relação com


a formação do discurso histórico; mais precisamente, do discurso histórico da guerra de raças.
O selvagem e o bárbaro. Conhecemos o papel que desempenhou, na formação do pensamento
jurídico e político do século XVIII, a figura do selvagem que abandona os bosques para contratar
e fundar a sociedade. Uma figura inclinada ao intercâmbio e à troca; figura elementar do Homo
oeconomicus. Daí a bondade natural de sua figura. O discurso histórico-político inaugurado
por Boulainvilliers erigiu, contra o selvagem, a figura do bárbaro. Entre ambas, podem ser
estabelecidas as seguintes diferenças: l) O selvagem, quando ingressa na sociedade, deixa de
ser selvagem. O selvagem o é como tal apenas no estado insocial. O bárbaro, no entanto, o
e somente em relação à civllizaçâo. O bárbaro situa-se sempre nas fronteiras do Estado e da
civilização; quer destruir essas fronteiras e apropriar-se da civilização. Ingressa na história não
para fundar a sociedade, mas para incendiá-la e destruí-la. 2) O bárbaro não é um vetor de
intercâmbio, mas de dominação. Não leva a cabo a ocupação primitiva do solo, mas a rapina, a
pilhagem. Sua relação com a propriedade é sempre de segundo grau. A diferença do selvagem,
nunca cede sua liberdade. Para o bárbaro, o governo tem sempre uma forma militar; não a
cessão de direitos, mas a dominação. Nesse sentido, é o homem da história. Revolução. No
discurso histórico-político do século XVIII, cuja formação é analisada em "Il faut défendre la
société'i o problema nâo foi revolução ou barbárie, mas revolução e barbárie, ou seja, como
filtrar constitutiva de toda revolução (IDS, 176-177,179-lB0). por isso, um dos
a barbárie
problemas maiores do pensamento político moderno será encontrar o justo equilíbrio entre
barbárie e constituição: o que há que manter e rechaçar da barbárie para encontrar uma
constituição equilibrada do Estado? (IDS, 173-176). Castigo. Não se deve pensar a prática
punitiva do suplício em termos de barbárie. Não se trata de uma prática irracional, mas de
um mecanismo, de certa lógica do castigo (SP, 60; DEZ,5B4).
Barbarie [32]:DF,|,540. DE2, 727.H-F,471,535. IDS,5l, 176, 176,t77,179, 180, 181, 182, t83, 190. MC,295.
sP, 16, 37, 64,76,267 .

ê:. BARBIN, Herculine (1838-1868)

Foucault publica as memórias de Herculine Barbin, tomadas dos Annales d'hygiàne


p ubli que. Y er : Her mafro ditismo.
Adelaíde Herculine Barbin, também chamada Alexina, Abel e Camitle [18]: DE3, 232, 4gg,624, 675-676.
DE4.9. 115. 118 i19. 122 123.

50 BARBARIE lBarbarie\
-r BARROCO (Baroque)

Barroco, teatro e loucura. * Um dos eixos do teatro barroco foi a extravagância dos
espíritos que não dominam suas quimeras, cono Dom Quixote (MMPS, 79). * O bufão, no
Renascimento e no Barroco, era o personagem que dizia a verdade. Uma espécie de profeta, mas
que se diferencia da figura do profeta nojudeu-cristianismo, porque não sabe que diz a verdade. *
Os personagens barrocos se dividem entre os que dominam sua vontade e os que são portadores da
verdade, os que não estão loucos e os que, sim, o estão. No louco há verdade, mas não yontade de
verdade (DE2, 110- 112). O personagem do louco representa a verdade irresponsável (DE3,489).
* O personagem da tragédia clássica, à diferença do personagem barroco, não pode
estar louco
(HF, 312-313). Há que esperar o século XIX, a literatura do século XIX, Nietzsche e a psicaná-
lise, para reencontrar o mútuo pertencimento entre loucura e verdade (DE2,ll2). Barroco e
semelhança. No início do século XVII, durante esse período que, com razâo ou não, se chama
de barroco, o pensamento deixa de mover-se no domínio da semelhança (MC, 65). O barroco é
o triunfo da ilusâo cômica, do quíd pro quo, do sonho e as visÕes e do trompe-lbeil.
Baroque [21]:DBr,479. DE2, 110, 112,725,789.DF.3,229,489,675.DE4,123,488,489,495. HF, 56,62,64,313.
H53, 244. MC, 63, 6s. MMPS, 79.

+€. BARTHES, Roland (19i s-1980)

Respondendo a uma pergunta acerca do pertencimento de Lévi-Strauss, Lacan, Althusser,


Barthes e Foucault ao estruturalismo, este último argumenta que aquilo que distingue, pelo
menos negativamente, o estruturalismo é problematizar a importância do sujeito humano, da
consciência. Desse modo, a crítica literária de Barthes implica uma análise da obra que nâo se
refere à psicologia, nem à individualidade, nem à biografia pessoal do autor, mas a uma análise
das estruturas autônomas, às leis de sua construção (DEl, 653). * Pode-se vincular o caráter
transitivo da escritura, de que fala Barthes, à função de transgressão (DE2, 1 14). * Introduzindo
a noção de escritura, Barthes queria descobrir um nível específico a partir do qual se po de fazer a
história da literatura como literatura, com sua especificidade particular, para além dos indivíduos,
*
com as próprias leis de condicionamento e transformação (DE2, 270). Foucault considera que
seus caminhos divergem, como a literatura da não literatura (DE2, 801).
Roland Barthes [37]: DEl,364, 371-372,584, 653, 8 13. DE2, 74, ll4, 116, 126,209,270, 522,524, 720, 800-801.
DE3, 88, 388,572-573,580, 590. DE4, 44,59, 1 24, 608, 650-65 1.

4r. BASAGLIA, Franco (1924-1980)

O que Basaglia, como Berúeim e Laing, problematizou éa maneira como o poder do médico
*
estava implicado naverdade do que dizia, A característica das instituições médicas é uma separação
taxativa entre os que têm a verdade e os que não a têm (DE2, 681).

BASAGLIA, tranco 5l
Yer Antipsiquiatria.
Franco Basaglia [16]:D82,209,233,681,684-685, 693,773. DF.3,350-351. D8{594

4§. BATAILLE, Georges (1891-1962)

O "Préface à la transgressiori' (Critique, n' 195-196, agosto-setembro de 1963, 751-769;


reimpressão em DEl, 233-250) constitui uma homenagem à obra de Bataille. "Talvez a emer-
gência da sexualidade em nossa cultura seja um acontecimento com múltiplos valores: ela está
ligada à morte de Deus e a esse vazio que ela deixa nos limites de nosso pensamento; ela está
ligada também ao surgimento, ainda que surdo e tateante, de uma forma de pensamento no qual
ainterrogação acerca do limite substitui a busca da totalidade e no qual o gesto da transgressão
substitui o movimento das contradições (DE1, 248).Yer: Limite, Transgressao.
Georges Bataille [101]: DEl,233-236,238,240-247 ,249-250,268,284,329,336,339,395-396' 437 ,522,525,557 ,

614-6ts. D82,25-27 ,74,80, 104- 105, 166, 412. D83,575, 588-590. DE 4, 43, 47 -50, 52-54, 57 , 437, 446, 608. HSI, 1 98.

MC, JJ9, 195. OD,23.

4:. BAUDELAIRE, Charles (1821 1867)

Em um dos artigos sobre a famosa resposta de Kant à pergunta "O que é o Iluminismo?'l
Foucault aborda a Modernidade como tm êthos, ou seja, como uma atitude, e não como uma
época. Aqui, para caracterizar a atitude de Modernidade, aparece a figura de Baudelaire. Dois
textos constituem as referências de Foucault a esse respeito: Le Peintre de la vie moderne e De
l'hérolsme de la vie moderne (em Oeuvres complàtes,Paris, 1976, t. II). Com base neles, sáo
indicadas quatro características da atitude de Modernidade: I ) Fazer heroico o presente. A atitude
de Modernidade, à diferença da moda, não consiste apenas em seguir o curso dos tempos. Não
se define simplesmente peio fugitivo, pelo passageiro; mas, ao contrário, por agarrar o que há de
eterno no momento que passa. 2) Um heroísmo irônico. A Modernidade, para Baudelaire, é um
exercício em que a atenção extrema ao real se confronta com uma prática da liberdade que, ao
mesmo tempo, respeita e viola o real. 3) Uma relação que é necessário estabelecer consigo mesmo
(dandismo). Ser moderno náo consiste em aceitar-se a si mesmo tal como se é, mas em tomar-se a
si mesmo como o objeto de uma elaboração complexa e exigente (ascetismo). 4) Para Baudelaire,
essa atitude só pode ter lugar na arte, e não na sociedade ou na política (D84,569-571).
Charles Baudelaire [41 ]: DEl, 246, 37 3, 377 . DE2, 132, 708, 715, 748, 782. DE3, 490. DE4, 392, 446'447, 494,
568-571. HS, 25,241.}l52,17. NC, 175. SP,72.

i= BECCARIA, Cesare (1738-1794)

Yer'. Prisao.

52 BATAILLE, Georges
Cesare Beccaria 156/: N4,8,26, I 19 DE2, 207 -208, 461-463, 589 -593, 596, 603, 606, 620, 7 26, 726. DE3, 357. 452.
463.DE4,11, 16. PP, 18. SP, 14-1s,77,93 95-98, 106, 108-109, I 19, 130.

{e. B EHAVIORISMO (Beh avio ri sme)

Psicologia. Foucault escreve a seção "La psychologie de 1850 à 1950" da obra de D. Huisman
e A. Weber, Hl stoire de la philosophie européenne (t.11 Tableau de la philosophie contempo-
raine,Paris1977,59l-606).EssetextofoireimpressoemDEl, 120-137).Assuasconsiderações
sobre o behaviorismo aparecem sob o título "O estudo das significações objetivas'i O behavio-
rismo, segundo Foucault, busca 'b sentido adaptativo das condutas a partir das manifestações
objetivas do comportamento. Sem fazer intervir a experiência vivida, nem tampouco o estudo
das estruturas nervosas e seus processos, deve ser possível encontrar a unidade do comporta-
mento confrontando a análise dos estímulos e das reações" (DEl, 130). Foucault distingue duas
espécies de behaviorismo: molecular (realíza a análise em seus segmentos mais elementares) e
molar (segue as articulações significativas do conjunto, Tolman). História do conhecimento.
Os estudos históricos de Foucault deixam pouco espaço à criatividade dos indivíduos. Nesse
sentido, se poderia pensar em certo behaviorismo no trabalho de Foucault (DE2,490). A questão
foi suscitada em um debate televisivo com Choms§. Esse, com efeito, combate o behaviorismo
na linguística, a fim de recuperar a criatividade do sujeito. Para Foucault, a questão do sujeito
é diferente no behaviorismo e na história do conhecimento. Aqui se torna difícil atribuir a um
inventor os fenômenos coletivos ou gerais. Por outro lado, a história se apresentava como um
obstáculo para o acesso do sujeito à verdade (mitos, preconceitos, etc.). Para Foucault, no entanto,
trata-se de analisar a capacidade produtiva do conhecimento como prática coletiva e de ressituar
os indivíduos e seus conhecirnentos no desenvolvimento do saber (DE2, 480).
Béhaviorisme [ 1 4] : DEl, I 30. DE2, 480, 490, 49 1, 492.

BENJAMIN, Walter ('18e2-1940)


=*.

Foucault se refere ao estudo de Benjamin sobre Baudelaire ("Über einige Motive bei
Baudelaire'l Zeitschrifi für Sozialfurschung, n" VIII, 1939, p. 50-89) a propósito da noção de
'tstética da existência' (HS2, l7).
Walt e r B enj a min [ 5 ] : DE3, 84, 390. DE4, 447. HS2, 1 7.

:i:. BENTHAM, Jeremy (1148-1832)

"Peço desculpas aos historiadores da filosofia por esta afirmação, mas eu creio que Bentham é mais

importante para nossa sociedade que Kant ou Hegel. Dever-se-ia render-lhe homenagem em cada
uma de nossas sociedades. Foi ele quem programou, deÍiniu e descreveu, da maneira mais precisa,

BENTHAM, Jeremy 53
asformas de poder em que vivemos, e quem apresentou um maravilhoso e célebre pequeno
modelo desta sociedade da ortopedia generalizada: o famoso Panóptico" (DE2, 594). Ver:
Disciplina, P anóptico.
leremy Bentham [109]: DF,2,31 1, 430, 437, 444,589-591, 594, 606-608, 729. DE3, 190- 191, 194-200,202 206,

452,466,4r'3-474,576,626,628,821.D84,18,28, 186,639. PP, 43,62,75-80,92-93, 103-105, 108. SP' 175,201-207,


209-210, 218, 226, 252, 268.

BERGSON, Henri (1Bse-1e41), BERGSONISMO (Bergsonisme)


==,

Bergson vai no sentido contrário quando busca no tempo, e contra o espaço, as condiçÕes
sob as quais é possível pensar a individualidade. Com a formação da clínica, o indivíduo se
ofereceu ao saber através de um longo movimento de espacialização. Bichat, um século antes
de Bergson, deu uma lição mais rigorosa a esse respeito; a morte se converteu no espaço de
*
abertura do indivíduo à linguagem e ao conceito (NC, 174-175). "Quando eu era estudante,
uma espécie de bergsonismo latente dominava a filosofla francesa. Digo bergsonismo, nào que
tudo isso tenha sido a realidade de Bergson, longe disso. Havia certo privilégio concedido a
todas as análises temporais em detrimento do espaço, considerado como algo morto e fixo"
(D83,s76).
Henri Bergson IIZ: AN, 232,246. DEI,342, 770,782. DE2, 106,229.D83,34,193,541,576.DF4,455'764.
MC, 170,258. NC, t75.OD,79.
Bergsonisme [4] : DEl, 342. DE3, 57 6.

5=. BICHAT, François Xavier (1171-1802)

Yer Clínica
François Xavier Bichat [112]: AS, 47,48, 72,166,189.DF,L,123,625,713.D82,29,58,481,490,676.D83,36,
51,209,2t4,437. DE4,772.}{F,471. IDS, 189. MC, 138, 245. NC, VIII, lX,74, t23, ].27,128, r29,130, t3t,132,133,
134,136,t40,142,143,t44,t45,t47,t48,149,151, 152,153, 155, 156, i57, 158, 159,t64,169,170,17t,175,177,t78,
179, 180, l8s, 188, 189, 190, 192, 193, 199,201,202,212. PP, 18s, 196-197,300-301,304-305,325.

BINSWANGER, Ludwig (1881-1e60)


=4.

Foucault dedicou uma extensa introduçáo à tradução francesa da obra de Ludwig Binswanger,
Le rêve et lbxistence (DEl, 65-119). "Na antropologia contemporânea a obra de Binswanger
nos parece que segue a via real. Ele tomou de viés' o problema da ontologia e da antropologia,
indo diretamente à existência concreta, seus desenvolvimentos e seus conteúdos históricos"
(DEl, 67). Esse texto pode ser considerado como o ponto de maior aproximação entre Foucault
ea fenomenologia. Ver: Antropologia, Fenomenologia.

j.1 BERGSON, Henri, BERGSONISMO (Berçrsonisme)


Luilwig Binswanger [57]: DEl,65,67,68,79, 80, 8i, 83, 87, 90, 93, 96, 98, 100, 103' 104, i07' 108, 1 17, I 19, 136,

377 .DE4,58. IDS, 19. MMPB,62,66,67,68,69,111. MMPS, 62, 66, 67, 68, 69, 105.

BIO-H ISTORIA (Bio-h istoi re)


=5.

Poder-se-ia chamar desse modo as pressões pelas quais os movimentos da história inter-
ferem com os processos da vida (HSl, 188). Yer: Biopoder.
Bio-histoire [9]: DE3, 48,57,95,97,207-208. HSr, 188. PP, 12, 298.

BIOLOG lA (B iolog i e)
=+.

As condições de possibilidade da biologia. Podemos pensar a análise foucaultiana


do saber, a descrição arqueológica, como o efeito de um olhar vertical. Com efeito, Foucault
não aborda a história do conhecimento em termos de continuidade, mas de descontinuidade.
Por isso, em lugar de lidar com ela em termos de evoluçáo, do que antecipa e do que realiza,
que
o faz emtermos de ruptura. Foucault, de fato, pergunta-se acerca do que torna possível
condições de possibilidade do
certas coisas tenham podido ser ditas em um momento dado. As

saber são condições ao nível da simultaneidade (MC, l4). Por isso pode aflrmar, sem causar
estranheza para o leitor advertido, que nem abiologia (nem os outros saberes da Moderni-
dade: a economiq política, a nem a vida existiam antes do século XIX. Durante a
filologia)
época clássica, só existiam os seres viventes e a História Natural (MC, 139, 173). Porém,
é

necessário precisá-lo; quando desaparece a episteme clássica, a biologia não vem substituir a
História Natural;antes, ela se constitui ali onde essa não existia (MC, 220).* Lamarck, com
sua noção de organização, encerrou a época da História Natural e entreabriu a da biologia
(MC,243).* A partir de Cuvier, a noção defunçao,que certamente existia na época clássica,
vai desempenhar um novo papel e, consequentemente, será definida em outros termos. Na
época clássica, a noção de funçao era utilizada para estabelecer, por identidades e diferenças,
a ordem das coisas. Com Cuvier, no entanto, ela será o termo médio que permitirá vincular
conjuntos de elementos desprovidos de toda identidade. Surgiráo, então, novas relações: de
coexistência (um órgão ou um conjunto de órgãos náo podem estar presentes em um animal
sem que outro órgão ou conjuntos de órgãos também o estejam), de hierarquia interna (o
sistema nervoso aparecerácomo determinante de toda disposição orgânica), de dependência
com respeito a um plano de organização (a preeminência de uma função implica que o
organismo responda a um plano). A diferença da História Natural, não encontramos um
campo unitário de visibilidade e ordem, mas uma série de oposições cujos termos não se
situam ao mesmo nível (órgãos secundários, visíveis/órgáos primários, ocultos; órgãos/
funções). 'A vida não é mais o que se pode distinguir, de maneira mais ou menos certa, do
mecânico; ela é aquilo no que se fundam todas as distinções possíveis entre os viventes. E
esse passo da noção taxonômica à noção sintética de vida que é indicada, na cronologia das
ideias e das ciências, como um florescimento, no começo do século XIX, dos temas vitalistas.

BIOLOGIA (Biologte) 55
Desde o ponto de vista da arqueologia, o que se instaura nesse momento, são as condições
de possibilidade de uma biologia" (MC, 281). * Do século XVIII ao XIX, a cultura europeia
modificou fundamentalmente a espacialização do vivente. Para a época clássica, o vivente era
uma cela ou uma série de celas no quadro taxonômico dos seres. A partir de Cuvier, os seres
viyos se envolvem sobre si mesmos e rompem suas proximidades taxonômicas. Esse novo
espaço é o espaço das condições da vida (MC,287). A ruptura do espaço clássico permitiu
descobrir uma historicidade própria da vida, aquela da manutenção de suas condições de
existência. 'A historicidade [forma geral da episteme moderna] foi introduzida, então, na
natureza ou, melhor, no vivente; mas ela é mais que uma forma provável de sucessão, pois
constitui algo como um modo de ser fundamental" (MC, 288). Animalidade, morte.
Posto que só os organismos podem morrer, é desde as profundezas da vida que sobrevém a
morte. A vida, nesse sentido, torna-se selvagem; daí os novos poderes da animalidade, seus
novos poderes imaginários (}{C,289-291). O objeto da História Natural na época clássica
éo conjunto de diferenças que podem ser observadas; o objeto da biologia é o que é capaz
de viver e é susceptível de morrer (D82, 55). Cuvier e a história da biologia (Geoffroy
de Saint-Hilaire, Darwin). Em Dlfs et Ecrits (D82,30-66) encontra-se uma extensa dis-
cussão acerca da situação de Cuvier na história da biologia. Ali, Foucault defende e precisa
a sua posição a esse respeito. A taxonomia clássica, da História Natural, era uma ciência das
espécies; definia as diferenças que separam umas espécies de outras e as classificaYa para
estabelecer entre elas uma ordem hierárquica. O problema da História Natural consistia,
então, em determinar como estabelecer espécies bem fundadas. Desse modo, surge a polêmica
entre sistematizadores (partidários de um sistema artiÍicial) e metodistas (defensores de um
método natural). Para Darwin, contudo, deve-se começar pelo conhecimento do indivíduo e
de suas variações. A obra de Cuvier tornou possível essa transformação. Com a introdução da
anatomia comparada, mostrou-se que as categorias subordinadas ou superiores à espécie não
são regiões de semelhança, mas tipos de organização. De agora em diante, pertencer a uma
espécie será possuir uma determinada organização (e não possuir certas características). O
conjunto de estruturas anatômico-funcionais, fisiologicamente dirigidas, define as condiçoes
de existência do indivíduo. "Por condições de existência, Cuvier entende o enfrentamento
de dois conjuntos: por um lado, o conjunto das correlações que são fisiologicamente com-
patíveis umas com as outras; por outro, o meio em que vive, isto é, a natureza das moléculas
que tem que assimilar, pela respiração ou pela alimentação" (D82,34). x Cuvier e Geoffroy
de Saint-Hilaire resolveram um mesmo problema: como marcar uma identidade orgânica
seguindo uma constante que não nos é dada imediatamente? Cuvier recorreu à noção de
função; Saint-Hilaire a rechaça e a substitui pelo princípio da posição e da transformação no
espaço(D82,42). Ecologia. A integração da ecologia à biologia foi realizada por Darwin
(D82,56). Ciências humanas (A psicologia). Foucault fala de modelos constitutivos
das Ciências Humanas, aqueles que foram tomados das ciências empíricas, como a biologia.
Nesse caso, se trataria da oposição função-norma. Ainda que esse modelo tenha servido
particularmente para a formação da psicologia, também exerceu sua influência nas outras
ciências humanas, como na região sociológica (MC, 366-369). "Poder-se-ia admitir então
que a'região psicológica tenha encontrado seu lugar ali onde o ser vivente, na prolongação
de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também

56 BIOtOGIA (Bioloqie)
na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibiiidade da representação [...]"
(MC,367). Raça. "Mas o que é noyo no século XIX é o surgimento de uma biologia de tipo
racista, inteiramente centrada em redor da concepção da degeneração. O racismo não foi
primeiramente uma ideologia política. Foi uma ideologia científica enaltecida por toda parte,
em Morel e nos outros. E a utilização política foi levada a cabo primeiro pelos socialistas,
pela esquerda, antes que pela direita" (D83,324). Modernidade. Desde o momento em que
a espécie ingressa no jogo das estratégias políticas, alcançamos o "umbral da Modernidade
biológica" (HS1, 188). A partir do século XVIII, a vida se converteu em um objeto de poder
(DE4, 194). Yer: Animalidade, Biopoder, Racismo.
Biologie [229]: AN,57, 289. AS, 44, 50,7 1,78, 200, 225, 226, 227 , 229,235, 245, 252, 269. DEl, 124, 142, 152,
514,540,594,611,657,666,674,676,679,7t7,72]l,727,728,729,785,800,806,821,833,838,843.D82,8,11,27,28,
30,31,36,38,39,43, 44,48,49,50,51,55, 56,57,59,62,64,65,66,67,99, i00, 101, 102, 103, 104, 162, t64,t68,220,
280,371,405,473,474,475,476,486,524,676.D83,95,96,143,157,235,324,434,438,439,440,44),,533.DE4,56,
67,223,517,768,770,773,774,715,784.HF,47). HSr,46,73,t02,204.IDS,52,170.MC,13,14,t39.t71,173,179,
219,220,230,232,233,243,245,25r,258,259,264,265,277,281,287,292,294,307,321,323,356,358,360,361,363,
365, 366, 367, 368, 372, 377, 389, 393, 396. OD, 36, 37, 66.

5?. BIOP0DER (B i o- Po uvoi r)

Disciplina, biopolítica. Dos textos publicados até o momento,' o último capítulo


de La volonté de savoir e o curso de 17 de março de 1976 de "Il faut défendre Ia société"
devem ser considerados corno os textos fundamentais de referência acerca do biopoder. No
primeiro, a questão do biopoder aparece em seguida à descriçâo da formação do dispositivo
de sexualidade e termina na questão do racismo moderno, um racismo biológico e de Estado.
No segundo, o biopoder aparece ao flnal de um extenso percurso, no qual Foucault analisa as
transformaçôes do conceito de guerra de raças. Em um e no outro, o biopoder se mostra em
sua dupla face: como poder sobre a vida (as políticas da vida biológica, entre elas as políticas
da sexualidade) e como poder sobre a morte (o racismo). Trata-se, definitivamente, da esta-
tização da vida biologicamente considerada, isto é, do homem como ser vivente. A formação
do biopoder, segundo Foucault, poderia ser abordada a partir das teorias do direito, da teoria
política (os juristas dos séculos XVII e XVIII colocaram a questão do direito de vida e morte,
a relação entre a preservação da vida, o contrato que dá origem à sociedade e a soberania)
ou ao nível dos mecanismos, das técnicas e das tecnologias do poder. Foucault se situa nesta
última perspectiva (IDS, 214-215). * A partir da época clássica, assistimos no Ocidente a

urna profunda transformação dos mecanismos de poder. Ao antigo direito do soberano de


fazer morrer ou deixar viver se substitui um poder de fazer viver ou abandonar à morte. O
poder, a partir do século XVII, organizou-se em torno à vida, sob duas formas principais
que não são antitéticas, mas que estão atravessadas por uma rede de relações. Por um lado,
as disciplinas, tma anátomo-política do corpo humano. Elas têm como objeto o corpo
individual, considerado como uma máquina. Por outro lado, a partir de meados do século

I Depois da publicação da edição original argentina do I/ocaóuldrío de MicAel Foucauh en2l)04, até Íevereiro de 2009, foram
publicados os segrrintes cursos: À'onwnce de la óhpolitiquc (Pa:js: Seuil/Gallimard. 2001); Sécurití, terrinire et population
(Paris: Seuil/Gallimard.200,l): Le goutememeu de soi et des autre.s (Paris: Seuil/Gallimard.2u(t8). (N.T.)

BIOPODER \Bio-Pauvoir) 57
XVIII, uma biopolítica da populaçao,do corpo-espécie. Seu objeto será o corpo vivente,
suporte dos processos biológicos (nascimento, mortalidade, saúde, duração da vida) (HS I ,
183). . "Sabemos quantas vezes foi colocada a questão do papel que pode desempenhar,
durante toda a formação do primeiro capitalismo, uma moral ascética; mas o que ocorreu
no seculo XVIII, em alguns países do Ocidente, e que está ligado ao desenvolvimento do
capitalismo, é um fenômeno de outro tipo e talvez de maior amplitude que essa nova moral
que parecia desqualiflcar o corpo; isso foi, nem mais nem menos, o ingresso da vida na his-
tória[...]"(HS1, 186).Pelaprimeiravez,ofatodevivernãoconstituiumabasequeemerge
vez em quando, peia morte e a fatalidade, entrando no campo de controle do saber e das
intervençoes do poder (HS1, 187). Capitalismo. O biopoder foi um elemento indispen-
sáve1 para o desenvolvimento do capitalismo. Serviu para assegurar a inserçáo controlada
dos corpos no aparato produtivo e para ajustar os fenômenos da populaçào aos processos
econômicos (HS1, 185). Sexualidade. O sexo funciona como dobradiça das duas direções
em que se desdobrou o biopoder: a disciplina e a biopolítica. Cada uma das quatro grandes
políticas do sexo, que se desenvolveram na Modernidade, foi uma maneira de compor as
técnicas disciplinares do indivíduo com os procedimentos reguladores da população. Duas
delas se apoiaram na problemática da regulação das populações (o tema da descendência,
da saúde coletiva) e produziram efeitos ao nível da disciplina: a sexualização da infância e
a histerização do corpo da mulher. As outras duas, inversamente, apoiam-se nas disciplinas

e obtinham efeitos ao nível da população: controle dos nascimentos, psiquiatrização das


perversoes. (HSl, 191-193) Sangue e sexualidade. "São os novos procedimentos do poder,
elaborados durante a época clássica e postos em funcionamento no século XIX que fizeram
simbólica do sangue [poder derramar o sangue, possuir
nossas sociedades passarem de u,ma
o mesmo sangue] auma analítica da sexualidade.Íl claro, se há algo que está do lado da lei,
da morte, da transgressão, do simbólico e da soberania é o sangue. A sexualidade está do lado
da norma, clo saber, da vida, do sentido, das disciplinas e das regulações. Sade e os primeiros
eugenistas são contemporâneos dessa passagem da 'sanguinidade' à 'sexualidade"' (HSl,
195) Racismo. "o racismo, creio eu, assegura a função de morte na economia do biopoder
[ . ]" (IDS, 230) Lei, norma, sociedade normalizadora. "O principio: poder matar para
poder viver, que sustentava a tática dos combates, converteu-se no princípio de estratégia dos
Estados; mas a existência em questão não é aquela jurídica, da soberania, mas a biológica,
de uma população" (HSl, 180). Por isso, a importância crescente da norma, e consequen-
temente da normalidade, em detrimento do sistema jurídico da lei (HSf , lS9). 'A norma é
o que pode aplicar-se tanto a um corpo que se quer disciplinar como a uma população que
se quer regtlarizar. A sociedade de normalização não é, pois, nestas condições, uma espécie
de sociedade disciplinar generahzada, cujas instituições disciplinares teriam colonizado e

finalmente recoberto todo o espaço. Essa é só uma primeira interpretação, e insuficiente, da


ideia de sociedade de normalização. A sociedade de normalizaçâo é uma sociedade onde se
cruzam, segundo uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulação'
(IDS, 225). A sexualidade é um exemplo maior desse cruzamento ortogonal de disciplina
ebiopolítica. Mas também, por exemplo, a cidade ideal, a cidade operária, a cidade utópica
do século xlx (IDS, 223-224). "Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma
tecnologia de poder centrada na vida" (HSf , 190). Esta forma do poder, ao mesmo tempo

5B BIOPODER (Bio-Pouvoir)
individualizante e totalizante é, para Foucault, a característica fundamental do poder mo-
derno: "[...] desde o começo, o Estado foi, ao mesmo tempo, individualizante e totalitário"
(D84, 161). 'Ao conseguir combinar esses dois jogos, o jogo da cidade e o cidadão e o jogo
do pastor e do rebanho, no que chamamos de Estados modernos, nossas socieclades se re-
velaram verdadeiramente demoníacas" (DEa, 147). soberania. o poder, organizado em
termos de soberania, tornou-se inoperante para manejar o corpo econômico e político de
uma sociedade em vias de expiosão demográÍrca e, ao mesmo tempo, de industrialização. Por
isso, de maneira intuitiva e ao nível local, apareceram instituiçÕes como a escola, o hospital, o
quartel, a fábrica. Em seguida, no século XVIII, foi necessária uma nova adaptação do poder
para enfrentar os fenômenos globais de população e os processos biológicos e sociológicos
das massas humanas (1D5,222-223). Conhecimento. Se a questão do homem tbi coloçada
em relação com sua especificidade de ser vivente e em suas relaçoes com os outros viventes,
foi em razão do ingresso da vicla na história. (HS1, 189) * É impossível fechar o balanço da
questão do poder em Foucault até que se tenha publicado a totaliclade dos cursos no Collàge
cle France.os cursos de 1972-1973, dedicados a La société punitive, de 1973-1974, a Le
pouvoir psychiatrique, para o conceito de disciplina. Os cursos de 1977-1978, Sécurité,
territoire, population, de 1978-1979, I'laissance de la biopolitique, e de 1979-19g0, Du
Souvernement des vivants, para o conceito de biopolítica. No momento, além do material
depositado no Fond Michel Foucault, atualmente no IMEC (Institut pour la Mémoire de
l'Édition Contemporaine), em Paris, só dispouros dos resumos nos annários do Collêge de
France.2 Ver também: Biopolítica, Disciplina, Governo, Liberalismo, Medicina, Norma,
Populaçao, Poder, Polícia, Razao de Estado.
Bio-pouvoir [42]; DE3, 231. D84,386. HSr, 183, 185-186, 189. IDS,2l3. 216,220-221,226-234.

i* Bl0PoLíTlcA (B i opol iti q u e)

"Pois bem, tudo isto começou a ser descoberto no século XVIII. Percebe-se, conse-
quentemente, que a relação do poder com o sujeito, ou melhor com o indivíduo, não deve
ser simplesrnente essa forma de sujeição que permite ao poder tornar dos sujeitos bens,
riquezas e, eventualmente, seu corpo e seu sangue, mas que o poder deve exercer-se sobre
os indivíduos, uma vez que eles constituem uma espécie de entidade biológica que deve
ser levada em consideração, se queremos, precisamente, utilizar essa população como
máquina para produzir, para produzir riquezas, bens, para produzir outros indivíduos.
o descobrimento da população é, ao mesmo tempo qr,re o descobrimento do indivíduo
e do corpo adestrável ldressablel, o outro núcleo tecnológico em torno ao qual os pro-
cedimentos políticos do ocidente se transformaram" (DE4, 193). * Há que entender
por "biopolítica" a maneira pela qual,a partir do século XVIII, se buscou racionalízar
os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um

i Dos ctrrsos aqui referidos, Nai-ç.çatcede la àiol,olitigue (Pails: Seuil/Gallimard, 2004) e Sécurité. territoire et yopulation
(Paris: Seuil/Gallimard. 2004) foram publicados depois da edição original argentina do tr ocabulário. Du gouvemement
des yiyants ainda está inédito. (N.T.)

BloPoLÍTtcA (Biopotitique) 59
conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça
(D83, 818). Essa nova forma do poder se ocupará, então: 1) Da proporção de nascimentos,
de óbitos, das taxas de reprodução, da fecundidade da população. Em uma palavra, da
demografia. 2) Das enfermidades endêmicas: da natureza, da extensão, da duração, da
intensidade das enfermidades reinantes na população; da higiene pública. 3) Da velhice,
das enfermidades que deixam o indivíduo fora do mercado de trabalho. Também, então,
dos seguros individuais e coletivos, da aposentadoria.4) Das relações com o meio geográfico, com
o clima. O urbanismo e a ecologia. Disciplina. Se compararmos uma e outra forma de poder,
podemos diferenciá-las da seguinte maneira: 1) Quanto ao objeto: a disciplina tem como objeto
o corpo individual; a biopolítica, o corpo múltiplo, a população, o homem como ser vivente,
pertencente a uma espécie biológica. 2) Quanto aos fenômenos considerados: enquanto as
disciplinas consideram os fenômenos individuais, a biopolítica estuda fenômenos de massa,
em série, de longa duraçã0. 3) Quanto aos seus mecanismos: os mecanismos das disciplinas
são da ordem do adestramento do corpo (vigilância hierárquica, exames individuais, exercícios
repetitivos); os da biopolítica são mecanismos de previsão, de estimativa estatística, medidas
globais. 4) Quanto à finalidade: a disciplina se propõe obter corpos economicamente úteis e
politicamente dóceis; a biopolítica persegue o equilíbrio da população, sua homeostase, sua
regulação (ÍDS,2l6-220). . '[...] o poder é cada vez menos o direito
de fazer morrer e cadavez
mais o direito de intervir parafazer yiver, e sobre a maneira de viver, e sobre o tomo' da vida;
a partir desse momento, então, em que o poder intervém, sobretudo a esse nível, para ampliar

a vida, para controlar os acidentes, o aleatório, as deficiências, em suma, a morte, como fim
da vida, é evidentemente o fim, o limite, o extremo do poder" (IDS, 221). Liberalismo. Não
se pode dissociar o nascimento da biopolítica do marco de racionalidade política dentro do
qual surgiu, isto é, do liberalismo (DE3, 818). Ver também: Biopoder, Disciplina, Governo,
Populaçao, Razao de Estado.
Biopolitique [j5]:DE3,9s,97,210,723,818. DE4, 193-194,826. HSl, 183, 185, 188. IDS,2i6-219,234.

BISSEXUALI DADE (B isexua I ite)


=*.

A propósito dos gregos, pode-se falar em bissexualidade, apenas se com isso se quer fazer
referência ao fato de que se podia amar simultaneamente a um jovem ou a uma jovem. Mas,
nisso, não se reconheciam duas espécies de desejo ou pulsão (HS2, 208).
Bisexualité [ 3 ] : DE4, 332. HS2, 208.

BLANCHOT, Maurice (1907 2003)


=*.

"Blanchot é, de certa maneira, o Hegel da literatura, mas, ao mesmo tempo, encontra-se


no lado oposto ao de Hegel" (D82, I24). Essa afirmação nos permite medir a importância
que Foucault atribuía a Blanchot e a posição que ele ocupa. Como a Raymond Roussel, com

60 BISSEXUALIDADE (Bisexua lité)


quem frequentemente o yincula (DE1, 168), dedicou-lhe um escrito inteiro: La pensée du
dehors (aparecido primeiramente em forma de artigo, em Critique lrf 229,junho de 1966,
523-5461, depois em separado e, finalmente, reimpresso em DEl, 518-539). "Durante um
longo período, houve em mim uma especie de conflito mal resolvido entre a paixão por
Blanchot, Bataille e, por outro lado, o interesse que alimentava por determinados estudos
positivos, couro os de Dumézil e de Levi-Strauss, por exemplo. Mas, no fundo, essas duas
orientaçÕes, cujo único denominador comum fosse talvez constituído pelo problema
religioso, contribuíram em igual medida para conduzir-me ao tema do desaparecimento
do sujeito" (DE1,614). Literatura e representação, "o fora" e a interioridade. Em
sentido estrito, o que se deve entender por "literatura" não é da ordem da interioriza-
ção, mas de um passo em direção ao fora. A linguagem escapa, então, ao modo de ser
do discurso, à dinastia da representação. Desse modo, a literatura, como surgimento da
iinguagem em seu ser bruto, mostra sua incompatibilidade com a consciência de si e a
identidade (DEl, 520-521). "É verdade, é Blanchot quem tornou possível todo discurso
sobre a literatura. Antes de tudo, porque foi o primeiro a mostrar que as obras se vincu-
lam umas às outras por esta face exterior de sua linguagem onde aparece a 'literaturai A
literatura é, assim, o que constitui o fora de toda obra, o que fende toda linguagem escrita
e deixa em todo texto a marcavazia de um rastro. Ela não é um modo da linguagem, mas
unr vazio que recorre como um grande movinento todas as linguagens literárias. Ao fazer
aparecer esta instância da literatura como 'lugar comum', espaço vazio aonde as obras vêm
alojar-se, eu creio que ele indicou à crítica contemporânea o que der.e ser seu objeto, o
que torna possível seu trabalho, ao mesmo tempo, de exatidão e invençáo" (DEl, 293).
O discurso reflexivo, contudo, pretende reconduzir a experiência do fora à interiorida-
de, à consciência, em que, como descrição do vivido, o fora se converte em experiência
(DEl, 523). Atraçâo (attirance): 'A atração é, para Blanchot, o que é, sem dúvida, para
Sade o desejo, para Nietzsche a Íbrça, para Artaud a materialidade do pensamento, para
Bataille a transgressão: a experiência pura do fora e a mais desnuda [...] Ser atraído não
é ser convidado pelo atrativo do exterior, mas, antes, provar, Ilo vazio e no desenlace, a
presença do fora e, ligada a essa presença, o fato de que se está irremediavelmente fora do
fora" (DE1, 525-526). Literatura, morte.'A linguagem de Blanchot se dirige à morte.
Não para triunfar sobre ela corn palavras de glória, mas para manter-se nessa dimensão
órfica onde o canto, tornado possível e necessário pela morte, nunca possa olhar a morte
cara a Çara nem fazê-la visível, ainda que lhe fale e fale dela em uma impossibilidade que
promete o murmúrio ao infinito" (DEf , 336). Yer'. Literatura.
Msurice Blsnchot [1 20]:DEl,1 68, l 9 l. 20 1, 238, 240, 250, 168, ,129, ,136, 339, -195, -196, 408, 437, 5 1 8, 512 ,5)3,5)4,
525, 526, 533, 53B,544,557.592,593. 596, 614, 615, 660. DE2, 82, 104, 105, 107, r23,124,125,126, t27,166,171,209,28r,
4t2, 425,521,7 20,763,765,800. DE3, 88, 575, 579, 588, 589, 590,7 62,788. DE4, 43, 44, 47 ,.18, 52. 53, 54. 59, 437 .

.r. BLOCH, Marc (1886-1944)

Yer: Escola dos Anais.


Morc Bloch [6]: DEt,667.773.787 . DE3, I 93, 467, 580.

BLOCH, Marc 6 I
*:. BOPP, Franz (1191 1B6t)

'Apenas os que não sabem ler estranharão que eu tenha aprendido mais claramente em
Cuvier, em Bopp, em Ricardo que em Kant ou Hegel" (MC, 318). Foucault aqui se refere à
disposição da episteme moderna, ao pensamento da finitude. Yer.. Homem, Linguagem.
Franz Bopp [34]: AS, I 86, 221. DEr, 671,724,732,751. DE2, 60, 778. MC,71,264 26s, 292,294,295,297,30s,
3 I 8. 396.

+ii. BORGES, Jorge Luis (1899 1986)

Segundo Foucault, les mots et les choses nascetde um texto de Borges, mais precisamente
de "El idioma analítico de |ohn Wilkins" (em Obras completas 1923-1972, Buenos Aires,
Emecé, 1974,p.706-709). Trata-se de uma classificação de animais de certa enciclopédia
chinesa. Esse texto de Borges, segundo Foucault, põe de manifesto a heterotopia. 'A mons-
truosidade que Borges faz circtlar em sua enumeraçáo consiste [...] em que o espaço comum
dos encontros se acha arruinado' (MC, 8).
lorge Luis Borges [23]: DEl, 252,256,260,298, 544, 599. DE2, 67,223, 425,645. DE3, 84, 85. MC, 7, 8, 9, 10.
oD,25.

6.§, BOTERO, G iovanni (i544-1 611)

Foucault se interessa pela obra de G. Botero no marco da análise da razâo de Estado. Ver:
Razão de Estado.
Giovanni Botero [5]: DEa, 150, 816, 826.

s5. BOULAINVILLIERS, Henry de (16s8 1722)

Uma parte considerável de "Il faut défendre la sociéte' está dedicada à análise da obra de Bou-
lainvilliers. Com vistas
à educação do Duque de Bourgogne, Luís XIV requereu de seus intendentes

a preparação de informes sobre cada uma das áreas de sua competência. A nobreza que rodeava o
Duque de Bourgogne, formada em parte por um núcleo que se opunha às políticas absolutistas
de Luís XII encarrega Boulainvilliers da tarefa de recodificar esses informes e transmiti-los ao
duque herdeiro. Essa é a origem de État de la France dans lequel on voit tout ce qui regarde
le gouvernement ecclésiastique, le militaire, la justice, les
finances, le commerce, les manu-
factures, le nombre des habitants, et en général tout ce qui peut faire connattre à fond cette
monarchie; extrait des mémoires dressés par les intendants du royaume, par ordre du roy
Louis XIV à la sollicitation de Monseigneur le duc de Bourgogne, pàre de Louis W à présent

62 BOPP, Franz
régnant. Avec des Mémoires historiques sur lancien gouvernement de cette monarchie
.iusquà
Hugues Capet, par M.le comte de Boulainvilllers (London, 1727).Emprimeiro lugar, Boulain-
villers reconstrói a situação das Gálias, antes da invasão dos francos, nesses termosr ao chegarem, os
romanos desarmarant a velha aristocracia guerreira do país e formaram uma nova aristocracia, já
não de caráter militar, mas administrativo (que conhece o direito romano e se expressa em latim).
Perante a ameaça das invasões, os ocupantes tiveram que recorler a uma armada de mercenários
que requereu, para arcar com a sua manutenção, aumentar acarga fiscal e, conseqLtentemente, a
desvalorização empobrecimento do pais. Os francos, por sua vez, são uma aristocracia guerreira
eo

que elege um rei para guiáJa em tempo de guerra e para que faça às vezes de rnagistrado em tem-
pos de paz. Pois bem, o rei dos francos recorre aos mercenários gauleses para afirmar seu poder.
Sela-se assim uma aiiança entre o trono e a antiga aristocracia guerreira gaulesa, que está reforçada
pela relação da Ig§a com ambos. A ignorâLncia da nobre zafranca (do latim, das práticas jurídicas,
da administração) é, na análise de Boulainvilliers, a causa de sua pobreza. História e guerra.
Boulainvilliers generaliza assim o conceito de guerra. Yer: Guerra. O sujeito da história. Com
Boulainvillers, aparece um novo sujeito da história,o continuum histórico-político (LDS,l5l.
HenrydeBoulaintilliers[151]:D83,126,129,302,323-324.HSr,115.IDS,43,54,101,112114,rt6,t22,t25,
127 - 152, 1s8, 170- r80, 182, 184- t8s, I 88- 190, 193, 196, 198, 201, 208.

*ij. BOULEZ, Pierre (i930-2002)

"Na época em que aprendíamos os privilégios do sentido, do vivido, do carnal, da expe-


riência originária, dos conteúdos subjetivos ou das significações sociais, encontrar-se com
Boulez e a música foi ver o século XX sob um ângulo que náo era familiar: o da longa batalha
em torno ao 'formall Era reconhecer como na Rússia, na Alemanha, na Áustria, na Europa
Central, através da rnúsica, da pintura, da arquitetura, ou da filosofia, da linguística ou da
mitologia, o trabalho do formal havia desafiado os velhos problemas e alterado as maneiras
de pensar" (D84,220).
Pierre Boulez [40]: DEI, 613. DE3, 388, 591 -592. DE4, 1 I I - I 1 3, I I 5, 219-222, 259, 488, 490-492, 494. 534-535.

6i. BRAUDEL, Fernand (1902-198s)

Yer Escola dos Anais.


Fernand Braudel [ 10]: DEl,585, 587 , 607 ,773,787 . DE3,30, I 93, 580.

*s. BROWN, Peter (1935-)

Os escritos de Peter Brown desempenharam papel de primeira orclem na abordagem fou-


caultiana da Antiguidade (HS2, 14). - A tarefa de ambos consistiria em estabelecer de que

BROWN, Peter 63
modo a sexualidade se converteu no sismógrafo da subjetividade (DE4, 172). * Brown concede
importância fundamental, em sua maneira de escrever a história, à noção de estilo. Nessa linha,
podem situar-se os trabalhos de Foucault (DE4, 650, 698). Ver: Estética da existência.
Peter Brown [11]:DF{'172,308,542,650,698-699. HS2, 14, NC, 181, 197.

6* BURGUESIA (Bou rgeo6ie)

Ilegalidade. A economia da ilegalidade se reestruturou com a formaçáo da sociedade


capitalista. Por um lado, encontramos a ilegalidade que concerne à propriedade (o roubo,
por exemplo); por outro, tem-se aquela que concerne aos direitos (fraude, evasão fiscal).
Tribunais ordinários e castigos para a primeira; tribunais especiais com transações e acordos
para a segunda. Tal separação recobre uma oposição de classes: a ilegalidade que concer-
ne à propriedade será própria das classes populares; enquanto a ilegalidade dos direitos
refere-se à burguesia (SP, 89-90). A ilegalidade das classes populares foi mal suportada
pela burguesia em relação à propriedade imóvel e, mais ainda, com respeito à propriedade
cOmerciâl e industrial (SP, 88). A reforma penal nasceu da intersecção das lutas burguesas
contra o suprapoder da monarquia e o infrapoder da ilegalidade popular (SP, 90). Sexu-
alidade. "Não nos imaginemos a burguesia castrando-se simbolicamente para melhor
recusar aos outros o direito a ter um sexo e de usá-lo à vontade. É necessário, no entanto,
vê-la ocupada, a partir de meados do século XVIII, em se dotar de uma sexualidade e em
constituir-se, a partir dela, um corpo específico, um corpo de classel com uma saúde, uma
higiene, uma descendência, uma raça: autossexualizacâo de seu corpo, encarnação do sexo
em seu próprio corpo, endogamia do sexo e do corpo" (HSl, 164). * A burguesia converteu
o sangue azul dos nobres em um bom organismo e uma sexualidade saudável e tagarela
(bavarde) (HSl, 166, 168). Conhecimento histórico. Para Foucault, contrariamente
ao que se diz, a burguesia foi a menos interessada, a mais reticente em historicizar seu
discurso po1ítico. Contrariamente, a aristocracia foi a mais interessada. Arazão é simples.
A burguesia dificilmente podia reconhecer-se para além de meados da Idade Média. Assim
sendo, durante muito tempo, a burguesia foi anti-historicista. Durante a primeira parte do
século XVIII, a burguesia foi partidária do despotismo ilustrado, uma forma de limitação
do poder real que não passava pela história, mas pelo saber, pela filosofia, pela técnica, pela
administração. Durante a segunda metade do século XVIII, a burguesia busca escapar do
historicismo exigindo uma constituição; daí, a importância do direito natural, do contrato
social. A burguesia foi partidária de Rousseau (IDS, l36). O anti-historicismo da burguesia
modificou-se a partir da convocação dos Estados Gerais (IDS, 187). Essa modificação foi
levada a cabo através da reelaboração política da ideia de "nação'l Foucault toma como
exemplo o texto de Sieyês, O que é o terceiro Estado? Abre-se caminho assim à dialeti-
zacâo da história e, consequentemente, torna-se possível uma filosofia da história (IDS,
210-212). "Interesse da burguesia", "dominação da burguesia", repressão. "Creio
que se pode deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da dominação da classe burguesa'
í DE3, 1 82 ). Para Foucault, é necessário proceder em sentido inverso. Não partir da noção

6l BURGUESIA tBourgeotsie\
de dominação da burguesia, mas desde baixo, dos mecanismos de controle da loucura, da
repressão, das proibiçoes que concernem à sexualidade. Mostrar, então, quais foram os agentes
reais desses mecanismos de controle: o entorno imediato, a família, os pais, os médicos, a
polícia. O sistema da burguesia poderia ter sustentado o contrário. Seu interesse se dirige
não tanto aos efeitos quanto aos mecanismos. "Mais ainda: as noções de 'burguesia' e
'interesse da burguesia carecem provavelmente de conteúdo real, pelo menos a respeito
dos problemas que acabamos de ver agora. Não foi a burguesia que pensou que a loucura
devia ser excluída ou que a sexualidade inÍàntil devia ser reprimida, mas que, a partir
de um determinado momento e por razões que é necessário estudar, os mecanismos de
exclusão da loucura, os mecanismos de vigilância da sexualidade infantil procuraram certo
benefício econôrnico, certa utilidade política e, de súbito, tbram colonizados e sustentados
por mecanismos globais e, finalmente, por todo o sistema do Estado" (D83, 183; IDS,
29). Foucault reage aqui às posições de Whilhelm Reich (DerEinbruch der Sexualrnoral,
Berlin, 1932) e Reimut Reiche (Sexualittit und Klassenkampf, Frankfurt, 1969). * Do
princípio de dominação cla burguesia, se poderia deduzir exatamente o contrário do que
foi deduzido; por exemplo, que, desde o momento em que a burguesia se converte em
classe dominante, então, não são mais desejáveis os controles da sexualidade inÍàntil, mas
a aprendizagem sexual, a precocidade sexual, para reconstituir pela sexualidade a força de
trabalho (IDS, 28). Monarquia, discurso jurídico. "[...] a burguesia que, ao meslno
tempo, se aproveitava do desenvolvimento do poder real e da diminuição, da regressão
dos sistemas t'eudais, tinha todo o interesse em desenvolver esse sistema de direito que
lhe permitia, por ontro lado, clar forma aos intercâmbios econômicos, que asseguravan-l
seu próprio desenvolvimento social. De modo que o vocabulário, a forma do direito, foi
o sistema de representação do poder comum à burguesia e à monarquia. A burguesia e
a monarquia conseguiram estabelecer pouco a pouco, desde finais da Idade Média até o
século XYIII, uma tbrma de poder que se representava, que se oferecia como discurso,
corno linguagem: o yocabulário jurídico" (DE4, 185). Ver também: Família, História.
Bourgeoisie [298]: AN,241,255.4S,91,92,93. DEl, 382, 569, 576,577,666,688,759.D82,69, 115, Il9, 120,
16r, 185, 187, 188, 191, 193.224,272,302,309, 311,325,334,335, 336,342,344,345, 347,349,351,352,353,35s,356,
357, 358, 36 1, 362, 368, 400, 422, 435, 436, 437 , 440, 442. 503,508, 525, 53 l, 533, 534, 535, 597, 598, 600, 60.1, 650, 654,
7\9,722,725,727,728,730,738,743,744,745,747,748,758,779,783,812. D83,74,79,93, 101, 130, 181, 182, 183, 198,
t99,203,2tt,216,225.307,311, 376,379,42t,486.502,558,702,7t4,785,806. DE4,31, 62.,85,94. u4, 185, 189, -j71,
502,640. HF,74, 105. HSl,9, 15, 159, 163, 164, 165, 166, 168, 169. IDS, 28,29,30,86,88, l13, 115, 116, 126, 145, 146,
158, 169, r76, 183, 184, 186, 187, 188, t9,r, 210,21r. MC,356,379. NC, 7.+. pp,59-60, l12. Sp,8s,86,87,88,39,90,
22-r,279,290,295.

BURGUESIA (Bourgeotste) 65
ã*. CABANIS, Pierre Jean George (1757 1B0B)

Asilo. Cabanis concebe a ideia de um'diário de asilo" no qual se registram de maneira


escrupulosa: o quadro de cada enfermidade, os efeitos dos remédios, a abertura de cadáveres,
Inclui também um registro por nome dos internados (HF, 550). Clínica. Acerca da intervenção
de Cabanis na organizaçao da medicina após a Revolução, ver: Clínica.
Pierre Cabanis [68/: DE3,216. HF,531,543-544,546-551,553,573,575,585,640,649,686-687. MMPE, 79. NC,
40-41,46-48,57,59,6t,64,7475,78-8t,98,t17-119,122,132,136,r48,174,208.

;r. CADÁVER (Cadavre)

Com a medicina anatomopatológica, com François Xavier Bichat, o cadáver e a morte se


convertem no lugar da verdade do corpo e da vida. Yer Clínica.
Cadawe [70]: AN,21,78, 104,270. DEl, 152,211,227,689. DE2,398,490,687. DE3, 132'219'501's03 504,658,
778.DF4,123. HF, 31, 382,660. HS, 291, 299. HS2, 171. IDS, 90. MMPE, 61, 66-67. MMPS,61,66-67 . NC, 126, 127,
't35-136, 142-143, 151, 162,165- 1 66, 68, 170-172,200. F.P., 62,72,1 96, 202. SP,
1 17 , 48,54, 55, 197 .

?: CANGUILHEM, Georges (1904-1ges)

"Mas excluam Canguilhem e não entenderão muito de toda uma série de debates que teve
lugar entre os marxistas franceses; tampouco captarão o que há de específico em sociólogos
como Bourdieu, Castel, Passeron, o que os marca tão fortemente no campo da sociologia;
vocês perderáo todo um aspecto do trabalho teórico dos psicanalistas e em particular dos
lacanianos. Mais ainda, em todo o debate de ideias que precedeu ou seguiu o movimento de
1968, é fácil encontrar o lugar daqueles que, de perto ou de longe, tinham sido formados por
Canguilhem' (D84,763-764). Arqueologia. As análises de Canguilhem mostram que a

66 CABANIS, Pierre Jean George


história de um conceito não éa história de seu aperfeiçoamento progressivo, do crescimento
de sua racionalidade, mas dos diferentes campos de constituição e validade, de suas regras
sucessivas de uso. Canguilhem distingue, ademais, entre as escalas micro e macroscópicas na
história das ciências (AS, 11). * Foucault tomou de George Canguilhem o termo "monumento'l
com o sentido que tem na arqueologia (DEl, 682,708). História das ciências. Repetidas
vezes, Foucault se move dentro de um esquema de interpretação da filosofia do século XX na
França que responde a dois conceitos fundamentais. A filosofia contemporânea na França
teria começado com as conferências pronunciadas por Husserl em 1929, isto é, as Méditations
cartésiennes.A partir daqui, encontramos uma dupla recepção da fenomenologia: uma na linha
de uma filosofia do sujeito (Sartre, por exemplo) e outra na linha da teoria da ciência (Cavaillàs).
Nessa segunda linha, situam-se Koyré, Bachelard e Canguilhem. Com eles, a célebre questão
da Auftlàrung, que coloca como problema a relação enÍre a razao e sua história, foi retomada
desde o campo da história das ciências. Canguilhem deslocou a análise das disciplinas formais
e axiomatizadas para o campo da biologia e da medicina. Por esse caminho, levou a cabo uma
reestruturação do domínio da análise histórica das ciências. Foucault resume esse trabalho em
quatro pontos: l) A introdução do tema da descontinuidade. 2) A história da descontinuidade
não está adquirida de uma vez para sempre; ela mesma é descontínua. Em outros termos, uma
história do discurso verdadeiro é necessariamente recorrente. Daí que, em Canguilhem, a análise
da descontinuidade e a relação entre a história das ciências e a epistemologia se acompanhem. 3)
Canguilhem mostrou a especificidade das ciências da vida. Aparece assim, como fundamental,
a relàção biologia/vitalismo. 4) A história da biologia de Canguilhem é
fundamentaimente uma
história da formação dos conceitos (DE3, 530-539). "Nietzsche dizia da verdade que era a mais
profunda mentira. Canguilhem diria talvez, ele que está, ao mesmo tempo, perto e longe de

ffil1{::illTrrã:ffi'*T..;Í;::,;1hjil#r#x*I;fi
que fenomenologia perguntou vivido
ilÍm*Ilx;hr
(vécu),
ao canguilhem
++t;. Por lsso, se poderia dizer: o a

perguntou ao vivente. Nietzsche. "Eu li Nietzsche um pouco por acaso e me surpreendeu ler
que Canguilhem, que era o historiador das ciências mais influente nessa época na França, estava
também muito interessado por Nietzsche [. . . ]" (D84, 436).
Georges Canguilhem u27l: AN,45-46, 50. As, 11,187,226,248. DEl, 167, 448-457 , 460-464,679, 688, 696-69;,
708.D82,53-54,73,240. DE3, 42g 430,432-442,583. DE4, 37,56-57,67,435 436,440,654,763-764,76;'776 }{53'
167-168,281. MC, 169. NC, 147. OD, 36,73.PP,200,221. sP, 190.

:: CAPITALISMO (Capitalisme)

Biopoder, medicalização. O biopoder foi um elemento indispensável para o desenvolvi-


mento do capitalismo; através dele, assegurou-se a inserção dos corpos no aparato produtivo e
se ajustaram os fenômenos demográficos aos processos econômicos. Segundo Foucault, o bio-
poder (políticas do corpo) foi muito mais determinante para o desenvolvimento do capitalismo
do que a moral ascética (a renúncia ao corpo, a mortifrcação) (HS1, 185-186). "Eu sustento a
hipótese de que com o capitalismo não se passou de uma medicina coletiva a uma medicina

CAPITALISMO (Ca p ita I i sme) 67


privada, mas se produziu precisamente o contrário. O capitalismo, que se desenvolve no final
do século XVIII e início do XIX, antes de tudo socializou um primeiro objeto, o corpo, em
função da força produtiva, da força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos
não se efetua somente através da consciência ou da ideologia, mas também no corpo e com
o corpo" (D83, 209). História. Na ideologia burguesa, a história teve, por função, mostrar
como as grandes unidades nacionais, de que o capitalismo necessitava, vinham de longe e
tinham mantido sua unidade através das revoluções (DE2, 272). Asilo. O desenvolvimento
do capitalismo, com a passagem ao capitalismo industrial no final do século XVIII e início do
XIX, vai requerer uma massa de desocupados como instrumento da política salarial. Então,
as instituições de clausura em massa deixaram de ser úteis e até se tornaram perigosas.
Por isso, serão substituídas por um sistema hospitalar com dupla utilidade; por um lado,
para aqueles que não podiam trabalhar por razões físicas e, por outro, para os que estavam
impedidos por razões não físicas (DE3,497 -498). A hospitalização não estava destinada, a
partir do século XIX, a absorver o desemprego, mas a mantê-lo o mais alto possível (DE3,
498). "Mas, sobre esse fundo de antiga exclusão etnológica do louco, o capitalismo formou
certo número de critérios novos, estabeleceu certo número de exigências novas; por isso, em
nossas sociedades, o louco tomou o rosto do doente mental. O doente mental não é a verdade
finalmente descoberta do fenômeno da loucura, é o seu avatar propriamente capitalista na
história etnológica do louco" (D83,499).
Capitalismell0U:4N,271.4S,90-91,213.D81,503.DE2,134,235,272,297-299,312 313,316,321322'332-

334,416,431,438,449,494,553,604,612,623,638,702,739,752,777.779,817.DE3,113114,146,159160,11J6,201,
209,258,344,360,374375,401-402,494-495,497,499,569,576,610,724,781,78s,821.D84,56,68,79,190,200,216'
371,441,147,150,502. HSl, 12, 162, 185, 186. IDS,20,33. MMPE,87. PP,88, I 12, 113.

:.:. CARNE (Chair)

O conceito de'tarne" faz referência ao corpo atravessado pelo desejo, a concupiscência, a

libido. * O cristianismo verá aqui uma consequência da queda, do pecado original. Yer: San-
to Agostinho. x 'A técnica de interiorização, a técnica da tomada de consciência, a técnica do
despertar-se a si mesmo em relação às suas debilidades, enquanto seu corpo, enquanto sua
sexualidade, enquanto sua carne, esse me parece ser o aporte essencial do cristianismo na
história da sexualidade. A carne é a subjetividade mesma do corpo; a carne cristã é a sexuaii-
dade aprisionada dentro dessa subjetividade, desse assujeitamento do indivíduo a si mesmo
que é o primeiro efeito da introduçáo do poder pastoral na sociedade romana" (D83, 566).
Asilo. Na clausura asilar, encontramos um lugar comum aos pecados da carne e às faltas da
razão, aos portadores de doenças venéreas e aos insensatos (HF, 120). Poder pastoral. O
cristianismo encontrou um meio de instaurar um tipo de poder que controlava os indivíduos
por meio de sua sexualidade. Mas, no fundo, a sexualidade nunca constituiu um mal absolu-
to; antes, foi algo que requeria uma vigilância contínua. Através da problemática da carne,
instaurou-se o poder pastoral sobre os indivíduos (DE3, 565-566). (Ver: Poder pastoral).
Pastoral da carne, confissão. Com a Contrarreforma, a extensão da confissão não cessa de

68 CARNE (Chair)
crescer. Por um lado, nos países católicos, acelera-se o ritmo da prática da confissão; por outro,
concede-se cada vez maior importância à carne, à sua presença nos pensamentos, nos desejos,
na imaginação, enfim, em todos os movimentos do corpo e da alma (HSl, 27-28). A carne
*'As confissões da carne" é o título de um volume
tende a converter-se na raiz de todo pecado.
nunca publicado daHistoire de la sexualité; e1e haveria de se ocupar das técnicas cristãs de
*
si mesmo, da formação da pastoral cristã da carne. 'A confissão, o exame de consciência,
toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não forma aPenas um meio
de proibir o sexo ou de afastá-lo ao máximo da consciência; foi uma maneira de situar a se-
xualidade no coração da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos
obscuros. O sexo foi, nas sociedades cristãs, o que era necessário examinar, vigiar, confessar,
transformar em discurso" (D83,257). Foucault aborda a evolução da confissão e do poder
pastoral em La volonté de savoir (71-98) e em Ie s anormaux (aulas de 19 e 26 de fevereiro).
(Yer: Confissao). Bruxas e possuídas. A prática da confissão, do exame de consciência, da
direção espiritual não foram as únicas expressões culturais da pastoral da carne. Foucault
menciona outras duas, o misticismo e a possessão. O primeiro é deixado de lado, mas sobre
a segunda ele se detém longamente para nos mostrar quais vínculos existem, por um lado,
entre possessão e técnica de exame e, por outro, entre os problemas que os fenômenos de
possessão colocam e a história da psiquiatria, ou seja, a configuração da anormalidade. Em
primeiro lugar, Foucault distingue e separa possessão de bruxaria. Ambos os fenômenos, é
certo, têm lugar em correlação com o processo de cristianização em profundidade que se
origina na Reforma e na Contrarreforma. Mas, com certa defasagem cronológica: a bruxaria
é mais frequente no século XVI, e a possessão, no seculo XVII. 1) Quanto ao lugar: a bruxa

h'lffi ;H#.;T3.,:,'ffi :T[il1!:""H"l"i,t"#;ft


dos lugares onde o cristianismo
;:\Tl;H::"h
se encontra plena-
entanto, é um fenômeno interno, próprio
exclu-
mente instalado, onde funcionam os mecanismos do discurso exaustivo e a autoridade
confessor): no convento, nas casas religiosas' O sujeito da
siva (a confissão do penitente e o
possessão é um sujeito religiosamente marcado: a superiora, a prioresa. 2) Quanto aos perso-

nagens envolvidos: a bruxaria põe em jogo duas personagens, a bruxa e o diabo. Na possessão
há, pelo menos, três personagens que, por sua Yez, se desdobram e se multiplicam: a possuída,

o diabo, o confessor-diretor de consciência. A figura do confessor-diretor se desdobra na do


bom e do mau confessor-diretor. Esse desdobramento segue as contradições da estrutura
eclesiástica, como a oposição entre seculares e regulares. A possuída se desdobra na figura da
)
serva dócil do demônio e na que resiste à sua influência. O mesmo corpo da possuída se des-
dobra ou se multipiica: divide-se em uma multiplicidade indefinida de movimentos, comoções,
agitações, dores, prazeres. Aparece como um campo de batalha entre elementos que se opõem.
) 3) Quanto à forma da relação: entre a bruxa e o diabo estabelece-se um contato particular-
S
mente sexuai. Entre a possuída e o diabo, não há pacto e tampouco somente contato, mas um
habitar, uma impregnação, uma residência insidiosa. 4) Quanto à forma do consentimento:
entre a bruxa e o diabo, existe um pacto; a forma da relaçáo é de tipo jurídica. A vontade da
possuída, no entanto, está marcada por todas as ambiguidades do desejo: o jogo dos pequenos
prazeres, das sensações imperceptíveis, dos consentimentos minúsculos, do querer e não

CARNE (Chalr) 69
querer. 5) Quanto ao corpo: se o corpo da bruxa é um corpo marcado, o da possuída, por sua
vez, é aquele em que a forma plástica do combate com o diabo se apresenta como convulsão.
A carne convulsionada é o corpo atravessado pela exigência de exame, o corpo submetido à

obrigaçáo da conf,ssão exaustiva; é o corpo eriçado contra o exame e a confissão. O corpo da


possuída é o produto de certa tecnologia de poder, um capítulo da história política do corpo.
* A partir da possessão, do corpo da possuída, surge um problema fundamental para o exercí-

cio do poder pastoral: como manter e desenvolver as tecnologias de governo das almas, mas
evitando os efeitos de resistência, os contragolpes? Como continuar com o exame e a confissão,
mas sem gerar conr,ulsões? Para resolver a questão, foram acionados três tipos de procedimento:
1) A moderaçáo interna, a retórica e as exigências de estilo nos discursos de exame e de confissão.
2) A conr,ulsão passará para o domínio da medicina. Como manifestação paroxística do sistema
neryoso, foi, de fato, a forma primeira da neurologia. A conmlsão será pensada, então, como um
estado de liberação involuntária dos automatismos; o que se converterá no modelo para pensar
o instintivo. 3) O apoio dos sistemas disciplinares e educativos (AN, 187-212). Masturbação,
família. A atenuação das indiscrições discursivas foi acompanhada por uma reestruturação do
espaço (dormitórios, internatos), ou melhor, pela adequação do espaço aos requisitos da vigilân-
cia. Nesse movimento de transferência da palavra ao espaço, aparece a grande cruzada contra a
masturbação (que Foucault analisa na aula de 5 de março de Les anormaux) e o gênero discur-
sivo contra a masturbação. Trata-se de um discurso diferente tanto da pastoral da carne quan-
to da psicopatologia sexual do século XIX. Por um lado, não se expressa em termos de prazer e

desejo; por outro, não se trata, propriamente falando, de sexualidade (AN, 219).* A partir
dessa grande campanha contra a masturbação, estabelecem-se noyas relações entre pais e filhos.
Requer-se dos pais ir em busca de odores, rastros, signos das práticas de seus filhos. "Há certa-
mente uma transposição, no elemento da família, da carne cristã. Transposição no sentido estri-
to do termo, porque há um deslocamento local e espacial do confessionário: o problema da
carne passou à cama' (AN, 249). Sexualidade. A experiência da sexualidade se distingue da
experiência cristã da carne (HS2, 11), mas é necessário seguir a formação do dispositivo de
sexualidade como uma transformação da experiência cristã da carne. Desse modo, onde a Idade
Média havia organizado um discurso unitário acerca da carne, encontraremos, mais tarde, uma
discursividade dispersa, múltipla: a demografia, a biologia, a medicina, a psiquiatria, a psicologia,
a moral, a pedagogia, a crítica política (HSf , 46). "[...] a tecnologia do sexo, no essencial, se
ordenará, a partir desse momento, pela instituição médica, pela exigência de normalidade, e,
mais que pela questão da morte e do castigo eterno, pelo problema da vida e da doença. A tarne'
é rebaixada ao organismo" (HSl, 155). Ambas, a experiência da carne e da sexualidade, são duas
experiências do homem de desejo (HS2, I l; DF,4, 540). Afrodisia. Acerca das diferenças entre
aexperiênciadacarne edosafrodisia,ver:Afrodisia.Yer ademais: Etica,Confissao,Família,
Masturbaçao, Poder pastoral, Santo Agostinho, Sexualidade.
Chair [247]:4N,91, 166, 174-176,179-180,187-189, 198,201-202,204-21,1,217 220,249 250,259,309. DEl,89, 107,
t77 , 194,225,245-246,250,253,304,329, 472, 485, 522, 527,536, 555. DE2, 18,20-21,640,763,765,769,825. DE3, 10,87,
105,135,257,313,319,380,565 566,570,661.DF4,t73,191,216,295-299,301,305,353,384-385,393-394,399,406,487,539,
540,546,561,584,611,618-619,626,659,66t,673,738,783784,787,802.HF,36,40,119 120,t37,194,383,,146,510,654.
H5,9,21,24,292,299,456.}{51,27-30,46, 95, 102-103, 130,142,149 150, 153, 155, 159-160, 162, 206. HS2, 1 1, 18, 39,43-44,
17,49-51,56,58,60,79,1.28,140, 155,203. HS3,49. MC,26,37,62,t57,323,395. MMPE,77.NC,l75. RR,21,92. pp, 11,
179. SP,10-11,262.

7 O cARN E (chai r)
r5. CASSIANO, João (360/368 -434t43s)

Foucault presta particular atençáo a Instituiçoes cenobíticas, de Cassiano; apoia-se nessa


obra para estudar a evolução das práticas da conÍissão nas instituições monacais. Ademais,
ela representa um momento fundamental da Íbrmação do poder pastoral. Nós nos ocupamos
desses temas nos seguintes verbetes, aos quais remetemos: Confissao, Poder pastoral.
Iean Cassien [78]:DE4.127,128,144, 145, t77,296-297,299-304, -106-308,364,4t6,802-803,809-812. HS,25,
1 19, r40, 218, 286-288, 299, 391, 393, 404.

?+. CASTEL, Robert (1e33 )

EmLe psychanalysme (Paris, 1973), Castel aborda a questão da psicanálise desde o ponto
de vista das relaçoes de poder. Segundo Foucault, a tese de Castel consiste em afirmar que a
psicanálise trata de deslocar, modificando-as, as relações de poder da psiquiatria tradicional
(DF-z,639-640; DE3, 77). Foucault se interessa também por outra obra de Castel, Lbrdre
psychiatrique (Paris, 1977). Segundo Foucault, Castel aí rnostra como: 'A loucura doravante
fazparte de nossa relaçáo com os outros e com nós mesmos, assim como a ordem psiquiátrica
atravessa nossas condições da existência cotidiana" (D83,274). Para uma apreciação geral da
obra de Castel por parte de Foucault, Cf. "Lasile ilimité" em DE2, 27L-275.
RobertCastel[29]:DE2,392,639,640,684.DE3,77,92,271-275,331,333334,351,429.DE4,386,764.PP,).9,
38, 88, 198,229, 264.5P,29.

?? cAsTlGo (Châtiment, Punition)

Ainda que muito presente em Histoire de la folie, na obra de Foucault, o tema do poder se
situa no centro da cena em Surveiller et punir, com o estudo dos modos de castigar. Nosso autor
Íixa quatro regras gerais para levar a cabo essa análise: 1) Não centrar o estudo dos mecanismos
punitivos somente em seus eíeitos negativos, repressivos, do lado da sanção; mas, antes, situar
o castigo na série de efeitos positivos que pode induzir, o que implica considerar a punição
como uma função social complexa. 2) Considerar os castigos desde o ponto de vista da tática
política. A punição não é simplesmente a consequência da aplicação das regras jurídicas ou um
indicador das estruturas sociais, mas uma técnica específica no campo geral dos procedin-rentos
de poder. 3) Situar a tecnologia do poder como princípio da humanização da penalidade e do
conhecimento do homem. 4) Investigar se o ingresso do saber científico, da "almal na prática
iudicial não é o efeito de uma transformação da maneira como as relaçoes de poder investem o
corpo (SP, 28). . O corpo, com efeito, encontra-se imerso em um campo político. As relações de
poder operam sobre ele: supliciam-no, marcam-no, constrangem-no ao trabalho, obrigam-no
a certas cerimônias, exigem dele certos signos. Trata-se, em definitivo, de toda uma estratégia
de sujeição. Para isso, não se recorre apenas à violência ou à ideologia, mas também ao cálculo,

CASTIGO (Châtiment, Punition) 7l


à organização, às técnicas. Há uma ciência do corpo que não é o conhecimento de seu funcio-
namento e o manejo de suas forças, que não é só a capacidade de dobrá-lo. Esse conhecimento
e esse manejo constituem uma tecnologia política do corpo, difusa e multiforme, raramente
formulada em discursos sistemáticos, que não se localiza nem em um tipo definido de instituição
nem no aparato do Estado. Trata-se, antes, de tmamicrofísica do poder. Por isso, não devemos
pensar o poder como uma propriedade, mas como uma estratégia constituída por disposições,
manobras, táticas, técnicas, funcionamentos, etc. Nesse sentido, não há nem analogia nem ho-
mologia; as relações de poder não reproduzem ao nível dos indivíduos a forma geral da lei ou
do governo. Desse modo, o corpo aparece como uma realidade histórica na qual se articulam
os efeitos de certotipo de poder e certas formas de saber. Através deles, a alma se converteu no
cárcere do corpo. * "Em suma, tratar de estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir
de uma tecnologia política do corpo, onde se poderia ler uma história comum das relações de
poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da doçura penal como técnica de
poder, se poderia compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal
ou anormal vieram a dobrar o crime como objetos da intervenção penal e de que maneira um
modo específico de sujeição lassujettissement)pode dar nascimento ao homem como objeto de
saber para um discurso com estatuto tientífico"' (SP, 28-29). Mais sucintamente, Suryeiller et
punir é, ao mesmo tempo, uma genealogia da sociedade disciplinar e das ciências humanas com
base na aná1ise das relações entre as técnicas do poder eo corpo. Foucault estuda três momentos
da tecnologia do castigo: o suplício, a punição generalizada da reforma penal do final do século
XVIII ea disciplina. Temo-nos ocupado dos primeiros dois no verbete Corpo e ao último, dada
sua importância no discurso de Foucault, dedicamos um verbete, Disciplina.
Chôtitt ent [276]: AN, 17,76-79,82-83,105,274,311.4S,60. DE1,95, 184,257,529,530,625.D82,138, 143,362,
396,458,46t 462,528 529,716,727,748,794,828.D83,70,73,149,200,244,287,292,294,297,413,425,452,782.D84,9,
24,175-176,t95,203,206,297,559,594,669,691,781, 806,814. HF, 38,41,42, 58 61, 72, 81, 84-85, 87,99,103,105, 1 16-121,
t42, 145, tss-1s6, 245,292,298, 300, 315, 373-374, 406-407, 410, 462, 499,535, 557-559, 561, 564, 60 I -602, 609, 616, 621,
626.62a.646,678. HS, a,22,455. HS1,111_112, 118, 155, 178. H.52,37,57,69,262. IDS,11g, lg0. MC,5l. MMPE,7g.
MMPS,80,88.RR.48,77,103.SP,13,15-16,18-19,21-23,34,46,47,50-52,54,59-60,76,77,89,92-99,101,105-117,119,
t27, 130-132, 134, 162, 1 80- 1 82, 208,234-236,238,210,247,255,258,260-261,264,265, 286, 30 l, 306, 308.

Punition 1361J: AN,6,8, Ls,17,22,29,33,62,76,81-84,103, 105-106, 169. DEl, 312,429.D82,t80,297,390,430,


432,443,457,458,461462,464,168,521,530,541,590-592,601 602,606,6t4.D83,17,64,66,72_74,79,86.88,150,179,
183, 198,255,273,287 -288,290,293-294, 309, 351-352,357, 37 4,391, 4t3, 452-454, 458, 46t, 466,507, 543, 544, 568, 598.
670,674,778,8\7. DE4,8,21,24,26,30,73,195,203,209,235,346,351,389,524.594,61 4,641-642,645,645,657 _658,669,
689,691696,806.IJF,41,s9,77,78,81,87,I04,117,119,130-131,138,165,191,197,20t,41r-412,452,460,461,199,548,
5s8,559,620-621, 626-627,634,678 679. HS,8,426. HS2, 186. IDS,25,30. MC,5l. MMPE,47,77. MMPS,47. pp, 12,
33,53,57-58,71,106,120,144,t54,171,178,182-183,257,304. RR,48,r03,117,203.Sp,14,I5,19-20,23_24,26_28,10,
33 3,1, 39, ,15-46, 50 52,55-57,59-61,69,7 1,73,75,84,90,92,94-97,10 1, 104, 106 107, I 09, 1 12_ 1 13, I 15, r I 7, I 1 8, 122_ 123,
1)7 , 129, \3t -134,1 8 1 - 183, 198, 228, 238,241.243,249-250,256,259,265,273,277 ,282,306,311.

:= CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de (1541-16i6)

Em Cervantes, nada conduz a ioucura à verdade ou à razão; a loucura se relaciona à pre-


sunçào e a todas as complacências da imaginação (HF, 58-59). Yer: Dom Quixote.
)Íiguel de Cervantes Saavedra [10]:DF,l,169, 171. HF, 57 60.ÀlC,62,222.

-f CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de


r=. CHEMNITZ, Bogislaus Philipp von (1605 1678)

Foucault se ocupa da obra de Chemnitz (Dissertatio de Ratione Status in lruperio nostro


romano-germanico,1647) nomarco daanálisedarazão deEstado. Chemnitzdefirearazãode Estado
nestes termos: certa consideração política necessária para todas as questões públicas, conselhos e

projetos, cujo único objetivo é a preservação, a expansão e a felicidade do Estado (DE4, 816).
Bogislaus Philipp rcn Clrcmnitz [4J: DE2, 151, 816.

*i.: CHOMSKY, Noam Avram (1928-)

"Estudando a 'linguística cartesianal Chomsky não aproxima a gramática dos clássicos e


a linguística atual. Ele alltes se propÕe a fazer aparecer, conlo seu porvir e seu futuro lugar
comum, urna gramática onde a linguagem seria analisada não mais como um conjunto de
elementos discretos, mas como uma atividade criadora; onde as estruturas profundas esta-
riam desenhadas por debaixo das figuras sr-rperficiais e visíveis da língua [...]" (DEl, 733)'
* Em DE2, 47).-512, encontra-se um extenso debate entre Foucault e Chomsky. Ainda que o

tema de discussão proposto fosse "da natureza humana: justiça e poder'l a primeira parte da
discussão gira em torno da questâo da história do conhecimento. Também se eucontrará uma
confrontação, entre eles, acerca da criatividade do sujeito. A última parte da discussão se ocupa
dos interesses políticos de Chomsky e Foucault. "Parece-me que, em uma sociedade como a
nossa, a verdadeira tarefa política é criticar o jogo das institr"rições [as instituiçÔes do saber, de
prer,idência, assistenciais] aparentemente neutras e independentes; e criticá-las e atacá-1as c1e
maneira que a violência política que nelas se exerce obscuramente seja desmascarada e se possa
lutar contra elas" (DE2,496). "Finalmente, esse problema da natureza humana, enquanto foi
colocado em termos teóricos, não provocou nenhuma discussão entre nós. Definitivamente,
nos entendemos bem sobre questões teóricas. Por outrcl lado, quando cliscutimos o problema
da natureza humana e os problemas políticos, apareceram as diferenças entre nós. Contra-
riamente ao que você pensa [Chomsky], você não pode impsdil-m. de crer que essas noçôes
de natureza humana, dejustiça, de realização da essência humana sejam noçÕes e conceitos
que lbram formados dentro de nossa civilização, em nosso tipo de saber, em nossa forma de
fllosofia, e que, consequentemente, isso forma parte de nosso sistema de classes, e que uilo se
pode, por ntais lamentável que seja, fazer valer essas noções para descrever ou justificar um
combate que deveritr (que deve, em princípio) mudar os fundamentos de nossa sociedade. Há
nisso uma extrapolação da qual não consigo encortrar a justificativa histórica' (DE2, 506).
Noau Chonrsky [81]: D87,7-3-1, 807. DE2. 470,172,171,476-177, 179-182, 18'1-49 l, 493-512. DE3, 155, 67 l.

*:. cícERo ('r06 a.c.-43 a.c.)

Foucault se ocupa várias vezes de Cícero em L'herméneutique du sujet, isto é, na


análise da cultura do cuidado de si na época helenístico-romana. Em relação à crítica da

cÍcERo 1'
educação recebida (HS, 92-93); à enfermidadelpáthos; ao vício (HS, 9a-95); à rerórica
(HS,366-367).
Cicero [2]: DE4,585. HS,352.

Cicéron [39]:D81,80,734.D82,220.D84,175,387,426,613,794.IlF,238.IJ,i,2t,92,94-95.100, 102, t4t, 160.


1 95, 343, 366, 37 6, 392, 416, 424, 433, 456. H53, 7 0, 27 6.

Yer: Homem.
Scienceshumaines [203]: AN,100, 105,305. AS, 225.D81,121,418,439-441,413,445-447,499-500,503,515 517,
543,580. DE2, 11, 164, 169, 182-183,405,410, 595,622.D83,29,188 189,279, 551,579,586 587,662.Df4,18,75,75,
205,415,633,651,730,813. HF, 108. HS, 181. IDS, t9-20,34,36, 153,237.MC,t6,259,321.,355_378,382 393. NC,
201. PP, 20, 59, 92. SP, 28, 186- 187, 227, 287, 302, 312.

§=. CLAUSEWITZ, Carl von (1780-1831)

Em "Il faut défendre la société", Foucault se ocupa de analisar o discurso que Clausewitz inverteu
quando afirmou que a política é a continuação da guerra por outros meios. Trata-se do discurso da
guerra de raças (DE3, l7l-l72.IDS, 16). Yer.. Guerra.

Carl von Clausewitz [19]: DE3, 152, 171-172,637. IDS, 3, 16, 20. 41, 146.

CLAUSURA (Renfe rm em e nt)


=r.

'A grande clausura'é o título do segundo capítulo da primeira parte de Histoire de


la folie. Ali é narrada a formação do espaço clássico da loucura. Yer: Loucura.
Renfermement l49l:NA,41,44,276, 308. DE1, 165,417.D82,296,319,392,804,824. DE3, 142,144,368-369,
404, 4t8-420, 63 I . DE4, ,160. HF, 67, 84, 86, 90, 1 0s, I 07, I I 3, 141, t46, 149, 443, 480, 507 , 526,542,582,668,678.
HS,406, HSI,54, pp,71,191,26s. Sp, 143,200, 212.304.

s=. CLEMENTE DE ALEXANDRIA (II-III D C )

primeiro grande texto cristão consagrado à prática sexual na vida matrimonial é o capítulo
O
X do livro lI do Pedagogo de Clemente de Alexandria (DE2,2l) . Nele se pode observar como
o cristianismo apropriou-se da filosofia moral da Antiguidade, especialmente helenística, de
seus conceitos, de suas imagens, de seus exemplos, de suas recomendações.
clément dAlexandrie [20]:D84,302,547. HS, 79,97,247,257,4t6. HS2,2t, 142-143,2g1.Hs3,90, lg1, 198,
206,276,281.

74 ClÊNClAs HUMANAs (Sciences humatnes\


*ã. cLíNIcA (Clinique)

O nascimento da clínica. Foucault começa La naissance de la clinique contrapondo


dois textos, um de Pomme, de meados do século XVIII, e outro, de menos de cem anos mais
tarde, de Bayle. Valendo-se deles, define o propósito de Lq naissance de la clinique; descrever
o que tornou possível essa mutação do discurso, não em seus conteúdos temáticos ou moda-
lidades lógicas, mas se dirigindo a essa "região onde as'coisas'e as'palavras' ainda não estáo
separadas, onde ainda se pertencem, ao rés da linguagem, a maneira de ver e a maneira de
dizer'l questionando "a distribuição originária do visível e do invisível na medida em que ela
está ligada à separação entre o que se enuncia e o que se cala' (NC, VII). A clínica responde,
assim, não a uma descoberta do valor da observação e ao fortalecimento da objetividade, mas
a uma reestruturação das formas do ver e do falar. Para Descartes e Malebranche, ver era
perceber, mas despojando a percepção de seu corpo sensível, tornando-a transparente para o
exercício do espírito; no final do século XVIII, ver consistirá em deixar à experiência sua maior
opacidade corporal. "É essa reorganização formal e em profundidade, mais que o abandono
das teorias e dos velhos sistemas, o que abriu a possibilidade de uma experiência clínica, o
que suspendeu a velha proibição aristotélica: finalmente se poderá ter um discurso com es-
trutura científlca sobre o indivíduo" (NC, X). Essa reestruturação foi levada a cabo através de
sucessivas elaboraçoes e reelaborações: da medicina das espécies à medicina epidêmica, depois
à medicina dos sintomas, à medicina anatomopatológica e, finalmente, à medicina das febres.
Medicina das espécies, medicina das epidemias. Foucault distingue três formas cle es-

pacialízaç?rc medicina das espécies situaYa as


da enfermidade: Primária: o espaço em que a

enfermidades, um território de homologias, onde não é atribuído nenhum lugar ao indivíduo.


Um espaço lógico de conflguração. Secundária: também relativa à medicina das espécies, a
exigência de uma percepção aguda do singular, independentemente das estruturas médicas
coletivas, livre de todo olhar grupal e da experiência hospitalar. Terciária: 'b conjunto de
gestos pelos quais a doença, em uma sociedade, é rodeada, investida medicamente, isolada,
repartida em regiões privilegiadas e fechadas, ou distribuída através dos meios de tratamento,
adequados a serem favoráveis" (NC, 14). Para a medicina das espécies, o hospital, como a
civilizaçáo, um lugar artificial, onde a doença corre o risco de perder sua identidade; o lugar
é

natural da enfermidade é a família. Mas o exercício da medicina de assistência familiar, dos


cuidados a domicílio, só pode encontrar apoio em uma estrutura socialmente controlada do
exercício da arte de curar. Nessa nova forma de espacializaçáo institucional da enfermidade,
*
a medicina das espécies desaparecerá e surgirá a clínica (NC, l8-19). A medicina das epi-
demias e a das espécies se opôem como a percepção coletiva de um fenômeno global e a
percepção individual da essência de uma enfermidade. Ambas, no entanto, encontram-se
diante de um mesmo problema: a deÍinição do estatuto político da medicina. Essa é a origem
da Société Royal de Médecine (1776), órgão de controle das epidemias e de centralizaçao do
saber, e de seu conflito com a Faculdade (NC, 25-27). "O lugar onde se forma o saber não é
mais o jardim patológico onde Deus distribuiu as espécies, é uma consciência médica gene-
rulizada,difusa no espaço e no tempo, aberta e móvel, Iigada a cada existência individual, mas
também à vida coletiva da nação" (NC, 31). Assim, nos anos que se seguem à Revolução,
aparecerâo dois grandes mitos: o mito de uma profissão médica nacionalizada, organízada

cLÍNtcA lclinique) 75
como o clero, e revestida, com respeito à saúde e ao corpo, de poderes semelhantes aos que se
exercem sobre a aima, e o mito do desaparecimento total da doença em uma sociedade sem
distúrbios nem paixões, restituída à sua saúde originária (NC, 31-32). Uma vez vinculada ao
destino do Estado, a medicina não será apenas o corpo das técnicas e conhecimentos de cura,
mas também um conhecimento do homem saudável, do homem não enfermo, do homem
modelo. Por isso, a medicina do século XIX se organiza mais pela normalidade do que pela
saúde (Claude Bernard, por exemplo). Desse modo, o objeto das ciências do homem (suas
condutas, suas realizações individuais e sociais) é um campo dividido pelo princípio do nor-
mal e do patológico (NC, 35-36). Reforma das instituições da medicina. A oposição
entre a medicina das espécies e a medicina das epidemias exigia uma reorganização do espa-
ço da doença: necessidade de um espaço onde apareçam livremente as espécies patológicas,
necessidade de um espaço onde a enfermidade esteja presente em sua totalidade, onde se
possa formar um conhecimento da saúde da população. Nesse ponto, convergem as exigências
da ideologia política e da tecnologia médica. No fina1 do século XVIII, assistimos na França a

uma série de reformas das instituiçoes da medicina. Reforma das instituições hospitalares:
descentralização da assistência (confiada agora às instâncias comunais), separação entre as-
sistência e repressão. Ao mesmo tempo em que se descentrahzaa assistência, medicaliza-se
seu exercício. O médico julgará acerca de a quem se deve prestar assistência; acerca da moral
e da saúdepública (NC,40-41). Reformas do exercício e do ensino da medicina: requisito de
estudos universitários e públicos, abolição das corporações. "Durante todo esse período, fai-
tava uma estrutura indispensável, aquela que poderia dar unidade a uma forma de experiên-
cia já definida pela observação individual, o exame dos casos, a prática cotidiana das enfer-
midades, e a uma forma de ensino que, se compreende bem, deveria dar-se no hospital mais
que na Faculdade, e no percurso inteiro da enfermidade. Não se sabia como restituir pela
palavra o que se sabia que era dado apenas ao olhar. O Visível não era Dizível, nem Diszível
(indizível/não dizível)" (NC, 50-51). A protoclínica. A organização da clínica não é corre-
lata ao descobrimento do individual na medicina. A necessidade da prática no ensino da
medicina era também amplamente reconhecida (NC, 58). Nesse sentido, Foucault fala de uma
protoclínica do final do seculo XVIII. E necessário, então, distinguir essa protoclínica tanto
da prática espontânea como da clínica propriamente dita. Foucault aponta cinco característi-
cas de tal protoclínica: 1) Mais que um estudo sucessivo e coletivo dos casos, ela deve tornar
sensÍvel o corpo da nosologia. 2) O corpo do qual ela se ocupa no hospital é o corpo da enfer-
midade, não o do doente (que é apenas um exemplo). 3) Não é um instrumento para descobrir
a verdade, mas uma determinada maneira de dispor das verdades já conhecidas. 4) Essa
protoclínica é somente pedagógica. 5) Não é uma estrutura da experiência médica, mas uma
prova do saber já constituído (NC, 58-62). Os hospitais, Cabanis. "Thermidor e o Diretório
tomaram a clínica como tema maior da reorganização institucional da medicina. Para eles,
era um meio de pôr fim à perigosa experiência de uma liberdade total; uma maneira, no en-
tanto, de dar-lhe um sentido positivo, uma via também para restaurar, conforme aos desejos
de alguns, algumas estruturas do antigo regime" (NC, 69). Com esse propósito, foram toma-
das uma série de medidas capitais. 1) Medidas do 14 frimário, ano 1I1: o projeto apresenta-
do por Fourcoy à convenção prevê a criação de uma école de santé em Paris. Nela, à diferen-
ça da Faculdade, Iugar de um saber esotérico e livresco, e segundo o modelo da École

cLiNlCA yClrnique)
Centrale des Travaux Publics, os alunos realizaráo experiências químicas, dissecações anatô-
micas, operações cirúrgicas. 'A clínica se converte em um momento essencial da coerência
científica, mas também da utilidade social e da pureza política da nova organização médica"
(NC, 70). Mas não se trata apenas de experimentação; essa clínica se def,ne ademais como
um saber nrúltiplo da natureza e do homem em sociedade. 2) ReJormas e discussões dos anos

V e Vl: reconstituição das sociedades médicas que haviam desaparecido com a Universidade,
antes de tudo da Société de Santé. Projeto cle criação de cinco escolas de saúde, segundo o
projeto de Calàs, para estabelecer um corpo médico qualificado por um sistema cle estudo e

exames. 3) A intervençao de Cabanis e a reorganizaçao do ano XI: Foucault analisa o


texto de Cabanis Raltport du Conseil des Cinq-Cents sur un mode Ttrovisoire de police
médicale (4 messidor ano VI). No contexto das ideias liberais, isto é, da liberdade de inclústria
e do juízo dos consumidores acerca da utilidade do que consomem, Cabanis distingue entre
a determinação do valor de uma mercadoria mediante o juízo dos consumidores e a necessi-
dade de fixar o valor de algumas por decreto. Trata-se, neste último caso, daquelas mercado-
rias que servem para lixar o r,'alor de outras (os metais preciosos) ou daquelas nas quais,
quando se trata do indivíduo humano, os erros podem ser funestos. Como conciliar, então, a
Iiberdade de indústria, liberdade econômica fundamental, com â necessidade de fixar por
decreto o valor daqueles bens que concernem à existência dos indivíduos? A solução de Ca-
banis consiste em distinguir entre um juízo acerÇa dos produtos (que é prerrogativa dos
consumidores) e um juízo acerca da competência de queru os procluz (prerrogativa do gover-
no). Ainda que a proposta de Cabanis não tenha sido aceita, ela acabou sendo a solução
adotada para dar à rnedicina o estatuto de proÍissão liberal que conserva até nossos dias. O
princípio de controle será estabelecido com base na noção de competência, das virtualidades
que caracterizam a própria pessoa do médico (saber, experiência, probidade). E aqui onde a
relação aquisição do saber/exame será determinante. 'Assim, dentro de um liberalismo eco-
nômico manifestamente inspirado em Adam Smith, deÍrne-se unla profissão, ao mesmo
tempo,'liberal'e têchada'(NC, 81). Cabanis distingue, além disso, entre os doutores e os
oficiais da saúde que se ocuparão, sobretudo, das pessoas de vida mais simples (os trabalha-
dores, os camponeses). "Conforme a ordem ideal do liberalismo econômico, a pirâmide das
qualidades corresponde à superposição dos estratos sociais" (NC, 82). Não apenas ao nível
da organização (transmissão e exercício do saber médico) da profissão médica, mas também
com respeito à organizaçáo dos hospitais, era necessário encontrar uma soluçâo compatível
com os princípios liberais. Era impossível a utopia de uma sociedade sem hospícios nen-r
hospitais. Paris, por exemplo, no ano II, devia fazer frente a mais de 60.000 pobres. Por outro
lado, a hospitalização, entre outros inconyenientes, tornava por demais dispendioso o trata-
mento das enfermidades. Os hospitais serão confiados, então, às administrações comunais.
"Essa comunalização dos hospitales liberava o Estado do dever de assistência e deixava às
coletividades restritas à tarefa de se sentirem solidárias com os pobres; cacla contuna se con-
vertia em responsável por sua miséria e pela maneira como se proteger dela. Entre os pobres
e os ricos, o sistetna cle obrigação e de cornpensação não passava mais pela lei do Estado, mas

por uma espécie de contrato variável no espaço, revogável no tempo que, situado ao nível das
municipalidades, era antes da ordem do iivre consentimento" (NC, 83). Outro conirato (si-
iencioso, segundo Foucault) se estabelece entre a nova estrutura hospitalar e a clínica onde se

cLíNlcA (clinique) 77
formam os médicos. "Posto que a enfermidade não tem possibilidade de encontrar uma cura,
a menos que os outros intervenham com seu saber, com seus meios, com sua piedade, posto
que não há enfermo curado a não ser na sociedade, é justo que o mal de uns seja transforma-
do para os outros em experiência'(NC, 35). O hospital transforma-se no lugar da experimen-
tação. Assim, em um regime de liberdade econômica, o hospital encontra a possibilidade de
interessar aos ricos. A clínica será, desde o ponto de vista do pobre, o "juro pago pela capita-
lização hospitalar consentida pelo rico" (NC, 85). Signos e casos, a medicina dos sintomas.
"Não é, pois a concepção da enfermidade que mudou primeiro e depois a maneira de reco-
nhecê-la; não é tampouco o sistema semiótico que foi modificado e depois a teoria; mas tudo
juntoe, mais profundamente, a relação da doença com esse olhar ao qual ela se oferece e que,
ao mesmo tempo, a constitui" (NC, 89). Essa modificação concerne em particular à estrutura
linguística do signo e à estrutura aleatória do caso. O sintoma converte-se em signo para um
olhar sensível à diferença, à simultaneidade ou à sucessão, e à frequência (NC, 92-93). |á não
se trata de reconhecer a enfermidade nos sintomas, mas da presença exaustiva da enfermida-
deneles.Assim,épossívelasuperposiçãoentreovereodizet'Aclínicapõeemjogoarelação,
fundamental em Condillac, do ato perceptivo e do elemento da linguagem. A descrição do
clínico, como a análise do filósofo, profere o que é dado pela relação natural entre a operação
de consciência e o signo" (NC, 95). Quanto
à percepção do caso, é necessário levar em conta:
a complexidade de combinações (daquilo que a ÍaÍrreza associa em sua gênese); o princípio
de analogia (o estudo combinatório dos elementos realça as formas análogas de coexistência
ou de sucessão que permitem identificar os sintomas da doença); a percepção das frequências
(a certeza médica não se constitui a partir da individualidade totalmente observada, mas a
partir de uma multiplicidade de fatos individuais); o cálculo dos graus de certeza (do caráter
mais ou menos necessário de uma implicação). 'A clínica abre um campo que se tornou'visí-
vel'pela introdução, no campo do patológico, de estruturas gramaticais e probabilísticas.
Essas podem ser historicamente datadas, porque são contemporâneas de Condillac e seus
sucessores" (NC, 105). Yer Saber. Em sua forma inicial, a experiência clínica representa um
equilíbrio entre o ver e o falar, entre o olhar e o dizer. Um equilíbrio precário que tem como
postulado que todo o visível é enunciável e que o totalmente enunciável é totalmente visível.
Mas a lógica de Condillac, que serviu de modelo epistemológico à clínica, não permitia uma
ciência na qual o visível e o dizível se encontrassem em uma adequação total (NC, 116-l l7).
Consequência dessa dificuldade na evolução da clínica: a combinação deixará de ser a opera-
ção fundamental da clínica; a transcrição sintática tomará seu lugar. Assim, a clínica haverá
de se afastar e de se opor ao pensamento de Condillac.Aqui encontramos Cabanis e toda uma
série de transformações do olhar clínico. "O olho clínico descobre um parentesco com um
novo sentido, que lhe prescreve sua norma e sua estrutura epistemológica; não é mais o ouvi-
do voltado a uma linguagem, é o dedo indicador que palpa as profundidades. Daí essa metáfora
do tato pela qual, sem cessar, os médicos vão definir o que é seu olhar" (NC, 123). Abrir
cadáveres, a medicina anatomopatológica. Com a medicina anatomopatológica, o corpo
tangível se instalará no centro da experiência clínica. Bichat substitui o princípio de diversi-
ficação segundo os órgãos de Morgagni pelo princípio de um isomorfismo dos tecidos funda-
do na identidade simultânea da conformação exterior, das estruturas, das propriedades vitais
e das funções (NC, 129). A noção de tecido deslocará a noção de órgáo e a de lesão à de

7B cLÍNtcA \ctínique)
sintoma (NC, l4l-142). "Técnica do cadáver, a anatomia patológica deve dar a essa noção [a
noção de morte] um estatuto mais rigoroso, isto é, mais instrumental. Esse manejo conceitu-
al da morte pode ser adquirido primeiro, ao níyel muito elementar, pela organização das clí-
nicas. Possibilidade de abrir imediatamente os corpos, diminuindo o mais possível o tempo
de latência entre o óbito e a autopsia, ela
permitiu tàzer coincidir, ou quase, o último momen-
to do tempo patológico e o primeiro do tempo cadavérico. [...] A morte não é mais que a linha
vertical e absolutamente delgada que separa, mas permite referir uma à outra, a série dos
sintomas e a das lesoes" (NC, 143). * Com a anatomia patológica, à diferença do que aconte-
cia no século XVIII, a relação entre a vida, a enfermidade e a morte será pensada cientifica-
mente. A doença ingressa na relação interior, constante e móvel da vida com a morte. "Não é
porque adoeceu que o homem morre; é, fundamentalmente, porque pode morrer que lhe
acontece de estar doente. [...] Agora ela [a morte] aparece como a fonte da enfermidade em
seu ser mesmo, essa possibilidade interior à vida, mas mais forte que ela, que a faz desgastar-
se, desviar-se e fitralmente desaparecer. A morte é a enfermidade tornada possível na vida.
[...] Daí, a importância que tomou, desde o aparecimento da anatomia patológica, o conceito
de degeneração" (NC, 158). A medicina das febres. Com a medicina das febres, assistimos
ao último passo na reorganização do olhar médico como clínica, assistimos à passagem da
anatomia à fisiologia. Com a obra de F. Broussais resolvem-se as diferenças entre a anatomia
patológica e a análise dos sintomas. Trata-se de uma medicina dos órgãos em sofrimento que

comporta três momentos: a determinação do órgão que sofre, a explicação de como alcançou
esse estado, a indicação do que é necessário fazer para detê-lo (NC, 195). Desse modo, "[...]
começa uma medicina das reaçÕes patológicas, estrutura de experiência que dominou o sé-
culo XIX e até certo ponto o século XX" (NC, 196). As ciências do homem. Com a morte
integrada epistemologicamente à experiência médica, a enfermidade se desprendeu de sua
contranatureza e tomou corpo no corpo vivente dos indivíduos. O primeiro discurso científi-
co sobre o indivíduo teve que passar, então, pelo momento da morte. 'A possibilidade para o
indivíduo de ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de seu próprio conhecimento implica que
se tenha invertido o jogo da finitude no saber" (NC, 201). Desse modo, o pensamento médi-
co se insere completamente no estatuto filosófico do homem. 'A formaçáo da medicina clíni-
ca não é senão um dos mais visíveis testemunhos dessas mudanças das disposiçoes funda-
mentais do saber" (NC,202). Yer: Homem. Descrição, enunciação. O discurso clínico não
é apenas da ordem da descrição; sua formação implica um conjunto de hipóteses sobre a vida
ea morte, opções éticas, decisões terapêuticas, regulamentos institucionais, modelos de en-
sino. Por outro lado, a descrição não cessou de modificar-se. De Bichat à patologia celular,
modificaram-se as escalas e os pontos de referência. O sistema de informação modificou-se:
a inspeção visual, a ausculta e a palpação, uso do microscópio e testes biológicos. Também se
modificou entre o anátomo-clínico e os processos fisiopatológicos. Desse modo,
a correlação
a posiçáo do sujeito que olha com relação ao enÍ-ermo configurou-se de outra maneira (AS,
47-48). * No discurso clínico, o médico é: quem interroga, o olho que vê, o dedo que toca,
quem decifra os signos, o técnico de laboratório. Todo um conjunto de relaçoes está em jogo
entre o hospital (lugar de assistência, de observação e de terapia) e unl grupo de técnicas e
de códigos de percepção do corpo humano. "Pode-se dizer que colocar em relação elemen-
tos diferentes (alguns novos, outros preexistentes) foi realizado pelo discurso clínico; é ele,

ctíNtcA \Ctinique) 79
enquanto prática, que instaura entre todos eles um sistema de relações que não é'realmente'
dado nem constituído de antemão. Se há uma unidade, se as modalidades de enunciação que
utiliza ou às quais dá lugar não são simplesmente justapostas por uma série de contingências
históricas, é porque faz funcionar de maneira constante esse plexo de relações" (AS, 73).
Olhar, sujeito. Na medida em que as modalidades de enunciação manifestam a dispersão
do sujeito e não a síntese ou a função unificante, a expressão 'blho clínico" não é muito feliz
(AS, 74). Ciência, formação discursiva. A clínica não é uma ciência, nem responde aos
critérios formais, nem alcança o nível de rigor da física ou da química. Ela é o resultado de
observações empíricas, ensaios, prescrições terapêuticas, regulamentos institucionais. Mas
essa não ciência não pode ser excluída da ciência. Ela estabeleceu relações precisas com a Íi-
siologia, a química, a microbiologia. Seria presunção atribuir à anatomia patológica o estatu-
to de falsa ciência (AS, 236). Trata-se de uma formação discursiva que não se reduz nem à
ciência nem ao estado de disciplina pouco científica.
Clinique [458]: AN, 2s, 34, 49, 63-65, 98, 1 1 0, 21 5, 226,245 247,269,283, 302-303. AS, 25'27,17,72-74,86,95,99,
141, 166, 205, 208 ,212,218,225,227,236,238,240,242,245. DEl,67, I 40, 1,18, 191, 369, 498-499,558, 590, 602,6s6,

676,678,680,688 689,691,696,708,713 714,722,785-786,843. DE2, 11,29.48,62,104, 107, ts7 161.,239,211,316,


32t 322,324, 409. 481, 522, 524,620,676. DE3, 13,27 , 44,50 5 1, 88, 141, I 46, I 88, 190, 214,33t,377,390,393, 399,
102-103.,10e, s21, 571, sas,677,739.DF4,26,12,16,66-67, tio,82,393,591,619, 633,676,748. HF,315,387. HSl,
41,87,91, r3[.]. IDS,34, 167, 189. MC,360,370. MMPE,3s,97. MMPS,34,93. NC, X-XI, XI\r-XV,2,28-29, 47,51 63,
67-79,81,82,84 90,92,94 102, l0s, 107-128, 130-132, 134 143, 1,19, 156,162-166,168-169,172-173,177 178, 180 l8l,
188,196 197,199200,202,210-2]11,213.OD,66.PP,12,97,114,122,132-133,140-141,171,183,t84 185,195-191J,
226-263.267 ,278 279,293,299 -301, 304-307 ,309 3I 0, 3 r 3, 3 I 6, 324-326,328-330, 332-334, 336. Sp. 226, 252.

.:;=.
coclTo

O cogito e o impensado. E uma das figuras da analítica da finitude. Yer: Homem.


Cartesiano e kantiano. Foucault fala de um duplo deslocamento do cogito moderno
(isto é, a partir de Kant) a respeito do cogito cartesiano: l) à diferença de Descartes, não
é a forma geral de todo pensamento (inclusive do erro e da ilusão); no cogito moderno,
trata-se, antes, de fazer valer a distância que separa e, ao mesmo tempo, une o pensamento
com o não pensamento. 2) O cogito moderno, mais que uma descoberta, apresenta-se
como uma tarefa: a de explicitar a articulação entre pensamento e não pensamento. Por
isso, no cogito moderno, o "eu penso" não conduz à evidência do "eu sou" (MC, 334-335).
Fenomenologia. A fenomenologia uniu o tema cartesiano do cogito ao transcendental que
Kant deduziu de sua crítica a Hume (MC, 336). Enunciado. A anáiise dos enunciados se
realiza sem referência a um cogito (AS, 160-161). Yer: Discurso. Loucura. As páginas de
Histoire de la folie à lkge classicl ue dedicadas a Descartes deram lugar a uma polêmica
entre Foucaulte Derrida ("Cogito et Histoire de la folie'l In Llécriture et la différence, Paris,

1967,p.51-97), acerca da relaçâo entre cogito e loucura. Enquanto, para o primeiro, trata-
se de uma relação de exclusão total, para o segundo, no entanto, a loucura afeta apenas de
maneira contingente algumas regiões da percepção sensível; a hipótese do sonho, em todo
caso, seria mais arriscada que a hipótese da loucura. Foucault responderá extensamente em

8 0 coGtro
duas ocasiões à interpretação de Derrida: "Mon corps, ce papier, ce feu" (D82,245-268),
"Réponse à Derrida" (D82,281 295).
Cogtro [a9]: AS, 161. DEl,455,609-610. DE2,26-5,281. DE3, 4Q..DF4. i-76.HF,187,209-210, 114. HS,26,28.
MC, 323, 326,333-337,346-347 . OD,49.

*::. COM E NTARIO (Com m enta i re)

Segundo Foucault, na episteme renascentista, saber consiste em comentar. O ser da linguagem,


durante o Renascimento, tem uma disposição, ao mesmo tempo, ternária e unitária. Por um lado,
distirrgue-se entre os signos (marcas, signaturcs), o conteúdo que eles assinalam, e o nexo entre
ambos. Mas a natureza das marcas, do conteúdo e do nexo é da mesma ordem da semelhança
(MC,57). Dois universos de semeihanças (dos signos e das coisas) estão unidos pelo mesrno jogo
das semelhanças. A sernelhança domina a trama do mundo das coisas, elas se relacionanr umas
com as outras segundo as diferentes formas da semelhança: convenientia, aemulatio, analogia,
sympathio.Mas não há semelhança sem rr arca,semassinatura.O mttndo das semelhanças é un.r
mundo marcado. Assim, por exemplo, há simpatia entre o acônito e os olhos. Mas essa simpatia, pela
qual esse fiuto é bom para as enfermidades dos olhos, permaneceria oculta, se não Êosse.r.r,raiogi"
que existe entre os grãos do acônito (pequenos grãos negros rodeados de capas brancas) e os olhos

(MC,42). A marca da semelhança entre as coisas está marcada por outra forma de semelhança; a

simpatia está marcada pela analogia. Esse entrelaçamento eutre marcas e coisas supõe o prir.ilégio
da escritura que dominou durante todo o Renascimento (as marcas que Deus pôs nas coisas) e,
portanto, a subordinação do som ao escrito (Adão, quando impôs nomes às coisas, simplesrnente
leu as marcas nelas postas); desde a origem, o escrito precedeu ao falado (MC, 53-54). Por sua vez,

a marca da analogia será a ernulaçâo; a da emulação, a conveniência; a da conveniência, a simpatia.


No espaço delimitado pela defasagem entre o Lrniyerso de semelhança das marcas e o universo de
semelhança das coisas, situa-se todo o saber da episteme renascentista: a eruditio, deciframento
da semelhança dos signos; a diyinatio, deciframento das similitudes das coisas. "Charnemos
hern'renêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem Íàzer falar os signos
e descobrir seu sentido; chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que
permitem distinguir onde estão os signos, dehnir o que os institui como sigtlos, conhecer seus
nexos e as leis de seu encadeamento. O sécu1o XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma
da semelhança" (MC,44). Por isso, saber, para o Renascimento, não é vet nem demonstrar, mas
comentar, dobrar uma linguagem com outra. O trabalho de comentar, por um lado, é uma tarefa
inÍinita; todo comentiirio poderá ser, por sua vez, dobrado por outro comentário. Mas, por outro
lado, por debaixo de todo cornentário, situa-se o Têxto primitivo, cujo sentido há que restituir. 'A
linguagem do sécuio XVI (entendida não como um episódio na história da 1íngua, mas como uma
experiência cultural global) se encontra aprisionada sem dúvida nessejogo nesse interstício entre
o Têxto primeiro eo infinito da Interpretação'(MC, 56).
Cornmentaire III4l: AN,26.45,34,77,97,\09,157. DEl, 165, 189,208,249,196,336, 525,613,682,782,785.
D82,221,281.292,108,457,461,712,736. DE3, 108. DE.l, 138-r39,385,423,55,1,666,795. HF.32, 169,225,55s. HS,
100, 156, 165, 166, .282, 313, 333, 352, 370. HS2, 30. IDS, 12r. MC, 5 4 57,92 95,1 14, 131, 143, -11 1. MN{PE, 23. MMPS,
23. NC. XII XIil. OD, 23, 25 28, 3r 32, 65, 66. PP, I 1 9. RR, I 2, 73. SP, r n. 56, r -10.

coMENTÁRlo lcommenraire) 81
,r COMUNISMO (Communisme)

Yer: Marxismo.
Communisme [14]: DF,2,193,345,738. DE3, 610, 623, 667. DF4,50,412,496.

CONDILLAC, Étienne Bonnot (1114-1tlo)


='r1.

Sobre a função da Ideologia e de Condillac particularmente na organização da medicina,


verl Clínica.
Étienne Bonnot Condillac [81]: AN, 174, 185, 302. AS, 2l 7. DEl, 178, 542,611,671,751. DEz,424. MC,14,70,
7 4-77,79,85, 90, 96 98,
109- I l 0, t12, t20-122, t28-129, 133, 135, 193,204,209-210, 213,234, 248,270, 329. NC, 92-96,
99, 105, l l 5, I 17, I 18. 130. PP, 80, 93.

§:. CONFISSÃO (Aveu, Confession)

"O homem ocidental converteu-se em um animal de confissão" (HSl, 80). 'A confissão é

um ritual de discurso em que o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é também
um ritual que se desdobra em uma relação de poder, porque náo se confessa sem a presença,
ao menos virtual, de tm partner que não é simplesmente um interlocutor, mas a instância
que requer a confissão, a impõe, a avalia e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar e
reconciliar; um ritual em que a verdade se autentica pelo obstáculo e as resistências que teve
que vencer para formular-se; um ritual, enfim, onde apenas a enunciação, independentemen-
te de suas consequências externas, produz em quem o articula modificações intrínsecas ..] "
[.
(HSl, 82-83). Na Antiguidade. Estritamente falando, segundo Foucault, não encontramos
o ritual da confissão na Antiguidade grega, nem na helenística, nem na época romana. Existem
certas práticas, como o exame de consciência, as práticas de consulta. Existe também a obri-
gação de dizer a verdade ao diretor de consciência ou ao médico, de ser franco com os amigos,
mas esse "dizer a verdade" é só instrumental, não é operador de salvação, de saúde. o sujeito
da Antiguidade convertia-se em sujeito de verdade de um modo muito diferente de como
ocorre na confissão. Na Antiguidade, a verdade em questão era a verdade dos discursos ver-
dadeiros (}J5,346-347). Na confissão, o sujeito da enunciação deve ser o referente do enun-
ciado; na filosofia greco-romana, na prática da direção espiritual, ao contrário, quem deve
estar presente na verdade do discurso é quem guia. É ele quem deve poder dizer: "Essa ver-
dade que te digo, tu a vês em mim" (Hs, 391). No cristianismo primitivo, no monasti-
cismo. O momento em que a tarefa de dizer a verdade sobre si mesmo se inscreve no proce-
dimento indispensável da salvação foi um momento absolutamente capital na história da
subjetividade ocidental (Hs,346). o curso dos anos 1979-1980 no Collêge deFrance,Du
gouvernement des vivants, esteve em grande parte dedicado ao tema do exame das almas e

B2 COMUNISMO (Communisme)
da confissão no cristianismo primitivo. A história da prática penitencial do século II ao sécu-
lo V mostra qte a exomologesls (confissão, reconhecimento) não era uma confissão verbal
analítica, nem das faltas, nem das çircunstâncias; por outro lado, ela não obtinha a remissão
pelo simples fato de ser formulada na forma canônica diante de quem tinha o poder de redi-
mir os pecados. A penitência era, antes, um estado no qual se ingressava e do qual se saía ri-
tualisticamente. Durante o período da penitência, o penitente reconhecia suas faltas com sa-
criticios, austeridade, modo de vida; a expressão verbal não tinha papel fundamental. Nas
instituições monásticas (Foucault se ocupa da obra de Cassiano, Institttições cenobíticas e
Conferências), a confissão se enquadra no marco da direção espiritual. Aqui, é necessário
analisar o modo de dependência com reiação ao mestre, a maneira de ievar a cabo o exame
de consciência, a obrigação de dizer tudo sobre os rnovimentos da alma. A confissão prescri-
ta por Cassiano não é a simples enunciação das faltas cometidas, nem uma exposição global
do estado da alma, mas a verbalização permanente de todos os movimentos do espírito (DE4,
125-128). A partir da Idade Média, durante a reforma. Na evolução da prática cristã da
penitência, é necessário prestar atenção, por um lado, à relação confissão/penitência, por
outro, à função da confissão. Quanto ao primeiro aspecto, como dissemos, originariamente a
conÍissão não Íbrmava parte do núcleo da penitência. Quanto ao segundo, a função da confis-
são, na penitência, modificou-se notoriamente. A partir do século VI, com o que se denominou
penitência tarifada, a confissão Çomeça a inscrever-se no coração da prática da penitência.
Trata-se de um modelo irlandês, não latino, de matriz laica, judicial e penal. Devido ao fato
de que cada falta grave requeria uma satisfaçáo proporcional, a enumeração das faltas, sua
conflssão, tornou-se necessária. Mas, aqui, a confrssão das fàltas, por si mesma, não tem valor
eficaz; sin-rplesmente permitia ao sacerdote estabelecer â pena. A partir do século XIII, assis-
timos a uma reinserçáo da confissão nos mecanismos do poder eclesiástico. O Concílio de
Letrán, de l2l5,estabelece a obrigação para todos os cristãos de confessar as suas faltas graves.
A frequência dessa prática era pelo menos anual, mas se recomendava que fosse mensal ou
semanal. A prática da confissão converte-se assim em uma obrigação regular, contínua e
exaustiva (não só os pecados grayes, mas também os veniais). O sacerdote, por sua vez, com
suas perguntas será o garante dessa exaustividade. A penitência converte-se, a partir desse
momento, estritamente, em um sacramento. * A partir do século XVI, assistimos a um pro-
cesso de cristianização em profundidade. Nesse processo, encontramos, por um lado, a exten-
sáo do domínio da confissão: tudo ou quase tudo da vida do indivíduo deve passar pelo filtro
da confissão. Por outro lado, o fortalecimento da figura do confessor que, além da absolvição,
disporá do direito de exame da vida do penitente e de toda uma série de técnicas para levá-lo
a cabo. Tambérn a partir do século XVI, baseando-se na pastoral de São Carlos Borromeo,
conjuntamente com a conÍissão, se desenvolveráaprática da direção de consciência. Com o
diretor, há que tratar de tudo o que concerne à pessoa interior: pequenas penas do espírito,
tentaçoes e maus hábitos, repugnância ao bem, etc. Durante a época da Reforma e da
Contrarreforma, a prática da confissão transÍbrma-se, especialmente em relaçáo com o
sexto mandamento ("não cometer atos impuros"): o antigo exame era um inyentário das
relações permitidas e proibidas; o novo, no entanto, é um percurso meticuloso do corpo,
uma anatomia do desejo, urna cartografia pecaminosa do corpo (AN, 155-186). Scientia
sexualis. Segundo Foucault, historicamente há dois grandes procedimentos para produzir

coNFlSSÃo (Confesslon) 83
a verdade do sexo: ars erotica e scientia sexualis. Na primeira, a verdade do sexo é extraída
do próprio pÍazer; na segunda, a verdade do sexo aparece em um procedimento de saber-
poder cujo eixo é a confissão (aveu). Ainda que a confissão tenha permanecido conservada
no ritual da penitência durante séculos, apesar disso, com a Reforma e a Contrarreforma, com
a pedagogia do século XVIII e a medicina do século XIX, perdeu sua localização ritual exclu-
siva. A conÍrssão começou a ser utilizada em toda uma série de relaçÕes: pais-filhos, alunos-
pedagogos, enfermos-psiquiatras, delinquentes-expertos. No que concerne ao sexo, o proce-
dimento da confissão sofreu uma série de transformações que permitiram ajustar o ritual da
confissão à regularidade científica: 1) pela codificação clínica do"fazer-falar" (combinando o
relato com os signos e os sintomas decifráveis), 2) pelo postulado de uma causalidade geral e
difusa (o sexo pode ser causa de tudo e de qualquer coisa), 3) pelo princípio de uma latência
intrínseca da sexualidade, 4) pelo método da interpretação, 5) pela medicalização dos efeitos
da confissão (HSl, 84-94) . Como prática judicial. Na época clássica, o corpo do condena-
do não só era o objeto do castigo, do suplício, mas estava inscrito no procedimento que devia
produzir a verdade acerca do crime. Apesar de seu caráter secreto (é celebrado na ausência do

acusado), escrito e submetido a regras rigorosas, o procedimento penal da época clássica


tende necessariamente à confissão. Ela é, ao mesmo tempo, uma prova tão forte que náo requer
outras e uma vitória sobre o acusado. 'A confissão, ato do sujeito criminoso, responsáve1 e
falante, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta" (SP, 42). Mas, por um
lado, por mais importante que seja, a confissão não basta para condenar; é necessário que
esteja acompanhada de índices que mostrem sua veracidade e, além do mais, se for o caso, o
juiz deverá realizar indagações complementares. Por outro lado, deve ser obtida respeitando
certas formalidades e garantias; apesar do uso da força, da coerção e da tortura, requer-se que
seja "espontâneal Eis, pois, o caráter ambíguo da confissão no procedimento penal da época
clássica: elemento de prova e contrapartida da informação, efeito da coerção e transaçãO Se-
mivoluntária (SP, 43). Nos catálogos de prova judicial, a confissão aparece nos séculos XIII e
XIV (SP,43). Yer: Parresía, Poder pastoral. Barroco Freud. "Freud transferirá
e a confissão
da rígida retórica barroca da Igreja ao relaxante divã da psicanálise" (DE3, 675).
Aveu [338]: AN, 1 55, 157 -).64, 17 1-17 3, 177 , 179-180, 188- 1 89, 198, 202 ,201-205,208,217,225,235-236, 238, 309.
DEI,r73,t84,270-271,337,666,669,7s6. DE2,341,391,585,690,695,809-811,813-814,825.D83,90,103,230,235,
245 246,248,255,282,303,314,316 3r8,326, 4tt-4t3,444,493,526,549,s64,658 660,662. DE4,t25 r29,169,282,
306-307,352,4t6,,1r9,633,656-659,665.HF,79,191,507,616,627.HS,216,316,338,347,352 3s3,39r,393,461.HS1,
27,46,53,61,78,80-91,93-94,96, 148, 1s3, 173. HS2,7,1. MC, 134. MMPS,79. PP, 12,33, 158-160, 173, 175, 184 185,
233-234,240,256-257,267,272,275277,279.5P,4243,47 48,59,63,72,99,263.
Confession Ir85]: AN, 155,157, 159, 161-178, 181-187, 189, 195,202-205,210-2).1,215,217-218,247.D87,270,438.
DE2, 583, 69s, 809 8 1 l, 8 14. DE3, 103, 16 1, 230, 245, 255,257 ,303,317 ,375,382,411 -413,441,526-527 ,549,564, 658, 674-

675.DE4,125,147,17)..405,107,625,633,657,783-784,795,798,805-806,811-812.HF,82,116-118,r9r,268.HS,111,
151, 316,346,352, 373,461. HSt, 27 28, 78,80,82,85,87,9r,93-9,1. HS2,47. IDS,5. OD,63. PP,257, SP,45.

:.=. CONTRAT O (Contrat)

A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece obedecer ao esquema de uma sociedade
que se teria constituído a partir dos indivíduos, segundo as formas jurídicas do contrato e do

B4 CONTRATO (Contrat)
intercâmbio. Mas, nessa mesma época, não se pode deixar de lado que existia uma técnica
para constituir efetivamente os indivíduos como elementos correlativos de uma forma de
poder e saber. O indivíduo é, assim, o átomo fictício de uma representação contratual da
sociedade; mas, ao mesmo tempo, uma realidade fabricada com a tecnologia da disciplina
(SP, 195-196). * Para pensar o nexo social, o pensamento político burguês do século XVIII se
serviu da ftrrma jurídica do contrato; o pensamento revolucionário do século XIX, por sua vez,
fez uso da forn'ra lógica da contradição (D83,426). * Podem-se opor dois grandes sistemas
de análise do poder. No que encontramos nos filósofos do século XVIII, o poder é concebido
valendo-se de um direito originário que se cede, que é constitutivo da soberania e que tem o
contrato como matriz originária. Aqui, quando o poder excede os limites do contrato, encon-
tramos a opressão. No outro moclelo, a opressão não se apresenta como a transgressão de um
contrato, mas como um enfrentamento perpétuo de forças, como a continuação da guerra,
da dominação (IDS, 17).
Contrat[105]:4N,83,85,88, 141, 193. AS,69, 110. DEr, 178, 180,223-224,38s,798. D82,167,535,68-] 684.
DE3, 79, 83, 169 t7 3,201.2()5,255,123. Q6,642.650.654,77 6. DF4,2rr.237 ,5 14, 567. HF, 75, I 24, 125, 589, 658. HS,
4t2,423. HSl, 184. HS3, 94, 95. IDS, 14-17, 83, tt5, 186, 197,215,218. NC, XI,61,66, 83-85. OD, 13. PP, 59. SP, 31,

33, 92-93, I58, l7r, 195, 224, 228, 3r0.

:.: CONTROLE (ContrÔle)

Com a extensão das disciplinas, no século XIX ingressartos na época do controle so-
*
penais precedentes (DE2, 593). O panoptismo é uma das
cial, à diferença das sociedades
características fundamentais de nossa sociedade. E um tipo de poder que se exerce sobre
os indivíduos sob a forma da vigilância individual e contínua, sob a fbrma do controle, do
castigo e da recompensa, e sob a forma cla correção, ou seja, da formação e da transformação
dos indivíduos em função de certas normas (D82, 606). Humanismo. "Nós nos dizemos:
con.to telnos um fim, deveuros controlar nosso funcionamento. Enquanto que, na realidade,
é apenas sobre a base dessa possibilidade de controle que podem surgir todas as ideologias,
as filosofias, as rnetafísicas, as religioes que oferecem uma determinada irnagem capaz de
polarizar essa possibilidade de controle do funcionamento. Você entende o que quero dizer?
É a possibilidade de controle que faz nascer a ldeia de fim. Mas a humanidade não dispõe
de nenhum fim, ela funciona, controla seu próprio funcionamento e cria, a cada instante, as
tbrmas para justificar esse controle. O humanismo é uma delas, a última' (DEl, 619). Ver:
Di sciplina, Parúptico, Razão de Estado.
Contrôle [607]:4N,36,39, 41,14,47 48,80 81, 139, 149, 151, 155, 164, 179-180, 189-191,200 201,206'208,217-
218,134-236,238239,241-243,250,253-255,257,260,275,279280.282,290,292,307,309-310.AS,86,2r4.DEl.11l,
415,,135,590,619,690,76t.D82,28,69,175,187,300,311,315-316,319,323326,328,337 338,i50,353,360,363,377,
383,388,390-391,1r7,419,,131,445,455 456,460,464466,468-470,494-495,497,539,592-593,595 596,599-602,604-
607,610,613-620, 638, 644, 654, 662-663,683, 70 I, 7 17 ,7 28-731,7 18,7 51-7 55,758,796-i97 ,822, 825 826. DE3, t4. l7 ,
2l').2,25,51,65,7478,91.93-94,112,124,150,1s2153,t59,1t-3.177,182-183,193,200,202,206,210,213,220223,
225,228,233-234,2s9,299,336,3{0,384,3tt6,45.2,464,467 468,194,513 514,516 518,529,550,563,566,629,612,666,
670 671,674,681,695,731,734,737 738,760,766.773,802. DE4,35,38,62,71,116,147.156, 175, 177, 183, 189-190,
r92. t94-t96.202-203.226,227 ,210, 263, 278. 36.{, 40 5,466,497 , s I 3, 557-558, 581, 604, 612, 6,10. 645, 662, 66s, 688, 709,

cONTROLE (Contrôle) 85
721,739,797,803,809.HF,16,78-79,t20,135,152,163,171,508,518,538,548,554.HS,60,98,119,149,269,314,358,
375,413-414,418,438.HS1,20,26,40,56-57,61,66,118,132,138_140,148,155,157,159,161,163,167,179,183184,
187, 193, 195. HS2,34 35,53,64,76,86,90, r05, 141, 194. HS3,21,78,80_81,273. IDS, 18,23,28,30, 119, 152, 159_160,
163 164,194,216,2t7,223-224,23t.MC,279.MMPB,9,32.MMPS,9,32,81,84_85.NC, 19,26,27,30_31,46,66_67,
72,75,79-81,179, 18 l. OD, 23, 37,38,44,67 -68.pp, 17,19,49 52,71,78,87,1 16, 124, 18 1, 219, 310, 3 18. Sp, I 5, 32, 34,

71,78,82-83,91, 105, 128,132,138-139,141-144,149,150-i54,156, t59,162-163,167,169,170_171,174-179,rls,193,


20t,206-207,213,215,2t6,220,223-224,241,249 25t,275,284 285,287 -288,302-303, 306, 3 I 3.

*â. CONVENIENTIA

Uma das figuras da semelhança (MC, 33). Ver: Episteme renascentistÇt.


Convenientia [8]: DE1,481,484,489. MC, 33,36, 40.

CONVERSÃO (fprsfro phe, Conversion)


==.

Epistrophé platônica e epistrophé helenístico-romana. O obj etivo comum das práticas


de si é a conversão até si mesmo (HS3, 81). Trata-se de um tema originariamente platônico
(Foucault o analisa a partir de Alcibiades 1), mas que sofreu, como em geral as práticas de si
mesmo, uma importante reformulação na época helenística. Além de diferenciar a epistrophé
platônica daquela da época helenística e romana, é necessário distingui-la também da noção
cristã de metánoia - termo que também se traduz por conversão; Foucault dedica a essas
noções a aula de 10 de fevereiro de 1982 de Lherméneutique du sujet (197-219). Quanto às
diferenças entre a epistrophé platônica e a helenístico-romana: l) Em Platão, o movimento
da epistrophé tem como objetivo desviar-se das aparências. Nesse movimento, está em jogo a
oposição entre o mundo das aparências e o mundo do ser. Na epistrophé daépoca helenístico-
romana, por sua vez, o movimento da conversão não se realiza entre dois mundos, mas em
um espaço imanente onde se distingue o que depende de nós do que não depende de nós. 2)
A conversão platônica implica o reconhecimento da própria ignorância, para ocupar-se de si
mesmo; além do mais, esse ocupar-se de si implica a liberação do corpo. Na época helenística e
romana, ocupar-se de si é também ocupar-se do próprio corpo.3) Em Platão, o encaminhamento
ao ser realiza-se através do conhecimento. Na conversão helenístico-romana, o conhecimento
ocupa um lugar importante, mas não fundamental. Epistrophé e metánoia. Com relação
às diferenças entre a epistrophé helenística e a conversão cristã: 1)
A diferença dametánoia
cristã, a epistrophé náo implica uma alteração brusca, mas um proteger-se, um defender-se,
um equipar-se. Trata-se de ser senhor de si mesmo, de possuir-se e gozar da posse de si. 2) No
cristianismo, essa alteração brusca implica a passagem da morte à vida, das trevas à luz. O
objetivo da epistrophé é o si mesmo, concebido frequentemente como umafortaleza. Esse si
mesmo é pensado, umas vezes, como já dado, outras, como o resultado de uma elaboração. 3)
A metánoia está dominada pela renúncia a si mesmo; na epistrophé, por sua vez, não encon-
tramos essa renúncia a si mesmo. A conversão é um voltar-se sobre si mesmo, um retirar-se

86 CONVENIENTIA
(anachóresis) em si. Ver: Anachóresis. Conversão do olhar. Orientar o olhar, dirigi-lo cor-
retamente, é um componente essencial da conversão. Também aqui temos que distinguir entre
a conversão platônica do olhar (exercícios de conhecimento), a helenístico-romana (exercicios
de concentraçáo) e a cristã (exercícios de deciframento). Para Platão, a orientaçáo do olhar
tem como finalidade converter-se a si mesmo em objeto de conhecimento; no cristianismo,
o olhar se apresenta como vigilância das imagens, das representaçoes que podem invadir e
turvar nossa alma; na cultura helenístico-romana do cuidado de si mesmo, trata-se de desviar
o olhar dos outros e do mundo exterior. Assim, em Plutarco, por exemplo, encontramos toda
uma série de exercícios anticuriosidade: abrir o próprio cofre (recordar o que foi aprendido),
caminhar olhando só adiante.
Epistrophê [4O) : DE4, 3-56. HS, 197, 20 | -203, 207 -209, 2 14-2 I 5, 2 I 8. HS3, 8 l.
Conversion [171 /: AS, 145. DEr, 191,524,601. D82,145,309.D83,70,479,512.DE4,51,356,410,675,714 715.
HF, 17, 35, 49-50, 84, 138, 405, .140. +49,453,53,1, 539, 620. HS, t7,30,82,97,99, 163, 172, t74, 183, 191, 197, 199 209,
215-216,218,221,237 238,242-243,247,249,257,277,295-296,301 302,313,315,410.HS2,220.HS3,81-82.IDS,
70-71, 108, 149, 191. NC, 32, 148, 190. RR, 24,27 . SP, t25,184,2t4,242.

?ii. CORPO (Corps)

Alma, espírito, enfermidade. Nem a medicina árabe, nem aquela da Idade Média, nem
tampouco a pós-cartesiana admitem a distinção entre enfermidades do corpo e do espírito
(MMPS, 94).* Acoincidência exata entre o corpo da enfermidade e o corpo do homem do-
ente é um dado histórico e transitório (NC, 2). Yer: Clínicq. Analítica da finitude. Cada
uma das formas positivas pelas quais o homem apreende que é finito (o modo de ser da vida,
do trabalho e da linguagem) lhe é dado a partir do fundo da própria finitude. O modo de ser
da vida lhe é dado fundamentalmente pelo próprio corpo (fragmento de espaço ambíguo cuja
espacialidade própria e irredutível se articula sobre o espaço das coisas) (MC,326'327)..
Com o aparecimento do homem, esse duplo empírico-transcendental, surgirá um tipo de
análise que se aloja no espaÇo do corpo e que, mediante o estudo da percepção, dos mecanis-
mos sensoriais, dos esquemas neuromotores e da articulaçáo do organismo com as coisas,
constituem uma espécie de estética transcendental. Descobre-se, então, que o conhecirnento
tem uma natureza que determina suas formas e que the manifestam seus conteúdos empíricos
(MC, 330). Aphrodísia, dietética. Toda uma secção de Lusage des plaisirs está dedicada à
problemática do corpo ern relação com os aphrodísia na Antiguidade clássica (HS2, 109- 156).
'A preocupação principal dessa reflexão Ia dietética] era definir o uso dos prazeres (suas
condiçoes favoráveis, sua prática útil, sua rarefação necessária) em função de certa maneira
de ocupar-se de seu corpo" (HS2, l l2). De igual modo, uma secção de Le souci de soi se
ocupa do tema na época helenística (HS3, 119-170). "Nesse quadro, táo marcado pela
preocupaçáo com o corpo, a saúde, o meio ambiente e as circunstâncias, a medicina coloca a

questão dos prazeres sexuais: de sua naturezae de seu mecanismo, de seu valor positivo e

negativo para o organismo, do regime ao qual convém submeter-se" (HS3, 126). Carne, sexo.
Com a pastoral da carne, aparecerá um novo discurso que seguirá atentamente a linha de união
entre o corpo e a alma. Fará a malha da carne aparecer debaixo da superfície dos pecados

CORPO (Corps) B7
(HSl,28-29). Yer Carne, Sexualidade. Ciências humanas. Sobre o estudo dos mecanismos
de poder que investiram os corpos, os gestos, os comportamentos, há que edificar a arqueo-
logia das ciências humanas (D82,759). Cinema, sadismo. À diferença do sadismo (que
rompia sua unidade, fragmentava-o para o desejo), no cinema contemporâneo (Foucault se
refere a Schroeter), o corpo se desorganiza, converte-se em uma paisagem, em uma caravana,
etc. Não se trata de fragmentá-lo, mas de fazer nascer imagens para o prazer (DE2, 820).
Corpo do rei. * Corpo duplo, segundo Kantorowitz. Comporta um elemento transitório
que
nasce e morre e outro que permanece através do tempo (SP, 33). * É o extremo oposto do
panoptismo (SP,210). Corpo sem órgãos. Yer Deleuze. Corpo social, população. A
teoria do direito reconhece o indivíduo e a sociedade, o indivíduo que contrata e o corpo social
constituído pelo contrato voluntário ou implícito dos indivíduos. Nas tecnologias modernas
do poder, o objetivo não é o corpo sociai, tal como o deÍinem os juristas, mas o corpo múltiplo,
a população (IDS, 218). O corpo, do castigo à correção. "Se se Írzesse uma história do
controle social do corpo, seria possível mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos
indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e penas. O corpo estava
feito para ser supliciado e castigado. |á nas instâncias de controle, que surgem a partir do
século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente diferente; não é mais o que deve ser
supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidÕes,
receber certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar" (DE2,618).
l) Suplício. Surveiller et punir começa com a descrição do suplício do parricida Damiens.
Foucault lhe contrapõe um horário que regula a utilização do tempo nas prisões. Entre uma
tecnologia punitiva e outra, o estatuto do corpo mudou. No suplício, o corpo era o objeto maior
da repressão penal; tratava-se de um enfrentamento ritual entre o corpo do rei e o corpo do
condenado. Segundo a definição de laucourt, um suplício é uma pena corporal, dolorosa, mais
ou mcnos atÍoz; a produção regrada e rituai de certa quantidade de sofrimento (Sp, 37 38).
O corpo é, ao mesmo tempo, o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade
(SP,46). Um corpo destruído parte por parte, reduzido a pó pelo poder infinito do soberano
(SP, 54). Mas, antes do castigo, o corpo supliciado se inscreve no cerimonial judicial que
produz a verdade (SP, 39); encontramos, assim, a confissão obtida por tortura. Na prisão, o
corpo se converte não no objetivo, mas no instrumento da punição. Se ele é enclausurado, se
se o faz trabalhar, é para privar o indivíduo de uma liberdade que se considera perigosa. "O
corpo, segundo essa penalidade, é colocado em um sistema de coerção e de privação, de obri-
gações e de proibições" (SP, 16). Mesmo na pena de morte, o contato corpo a corpo entre os
executores e o executado é reduzido ao mínimo; trata-se de alcançar a vida mais que o corpo.
E, no entanto, no sistema punitivo das prisões, sobrevive um fundo de suplício, um suplemen-
to de castigo que afeta o corpo: trabalhos forçados, má alimentação, abstinência sexual (SP,
21). 2) Contrato, marca. A reforma penal, que começa no flnal do século XVIII com Bec-
caria, Servaa, Dupaty e outros, inscreve-se, ao nível dos princípios, na teoria geral do contrato.
o criminoso aparece como o inimigo do pacto; não se enfrenta agora ao corpo do rei, mas
ao corpo social (SP,92). As penas serão calculadas não em razão do crime, mas de sua
repetição possível, para evitar a reincidência e, além disso, o contágio. Castigar se conver-
terá, então, em uma arte dos efeitos. Por isso, mais que a realidade corporal da pena, o que
deve ser maximizado é a sua representação. 'A arte de punir deve repousar em toda uma

88 CORP0 (Corps)
tecnologia da representação" (SP, 106). Os trabalhos públicos foram a pena especialmente
proposta pelos reformadores. "No antigo sistema, o corpo dos condenados se tornaYa coisa do
rei, sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder. Agora,
ele será antes um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil" (SP, I I I ). Por outro
lado, na punição se poderá ler as leis: assim, por exemplo, se se trata de um condenado à
morte por traiçáo, eie irá com uma camisa vermelha com a inscrição "traidor"; se de um
parricida, a cabeça será coberta por um véu negro e em sua camisa estarão bordados os ins-
trumentos que utilizou para o crime; se, de um envenenador, serpentes bordadas. "Elisão do
corpo como sujeito da pena, mas não necessariamente como elemento em um espetáculo"
(SP, 97). 3) Disciplina. A prisão não responde aos objetivos do castigo previstos pelos re-
formadores. No entanto, será ela que colonizará as formas da penalidade no século XIX. A
prisão constitui uma maneira de traduzir nas pedras a inteligência da disciplina (SP, 252).
Assim, embora Surveiller et punir Íenha por subtítulo "O nascimento da prisão I trata-se, na
realidade, de uma genealogia da sociedade disciplinar. Com a disciplina, nos séculos XVII e
XVIII, nasce uma arte do corpo humano que busca não apenas o acréscimo de habilidades,
nem tampouco o fortalecimento da sujeiçáo, mas a formação de um mecanismo pelo qual o
cgrpo se torna tanto mais obediente quanto mais útil, e vice-versa. Com as disciplinas, o
corpo entra em uma maquinaria que o explora, desarticula-o e o recompõe' Não se trata
de

obter corpos que façam o que se deseja, mas que funcionem como se quer, com as técnicas, a
rapideze a eficácia que se pretende deles. As disciplinas são, ao mesmo tempo, uma anatomia
política do corpo e uma mecânica do poder (SP, 139-140). A disciplina fabrica a partir dos
corpos que ela controla uma individualidade dotada de quatro características: celular, orgâ-
nica, genética e combinatória. "O corpo já não tem que ser marcado, deve ser direcionado; seu
tempo deve ser medido ou plenamente utilizado, suas forças devem ser continuamente apli-
cadas ao trabalho. A forma-prisão da penalidade corresponde à forma-salário do trabalho"
(D82,469). Para uma exposição detalhada da relação disciplina-corpo, ver o verbete Dlsci-
plina.Disciplina, soberania. Se tomarmos como referência o que em Le pouvoir psychia-

triqueFotcault denomina singularidade somática (PP,56), podemos dizer que as relações


de soberania situam-se abaixo ou acima delas. Por um lado, o corpo dos súditos é um corpo
fragmentado. Um exemplo disso é o ritual do suplício; aqui o corpo é dividido, desmembrado,
desarticulado. Por outro, o corpo do rei é um corpo duplo. O dispositivo disciplinar, no entan-
to, tem por objetivo a singularidade somática. Mais precisamente, o objetivo das disciplinas é
converter a singularidade somática em sujeito de uma relação de poder e, desse modo, fabri-
car indivíduos; "[...] o indivíduo não é outra coisa senão o corpo assujeitado' (PP, 47). His-
tória, genealogia. Em "Nietzsche,la généalogie, l'histoire" (DE2, 136-156), Foucault anali-
termos como"(Jrsprurg' (origem), "Herkunft" (proveniência),
sa o uso que Nietzsche faz de
"Entstehun§' (emergência). Trata-se dos conceitos que definem a prática nietzschiana da
genealogia. Pois bem, o corpo e tudo o que the pertence (alimentação, clima) é o lugar da
Herkunft. Sobre o corpo encontram-se as marcas dos fatos passados, nele nascem os dese-
jos, as insuficiências, os erros, expressam-se as lutas. 'A genealogia como aná1ise da
proveniência é, então, a articulação do corpo e da história" (D82, 143). Medicina, ca-
pitalismo. Yer: Capitalismo.Morte, cadáver. Com a anatomia patológica do século
XIX, o cadáver, resto inanimado do corpo humano, haverá de se converter na fonte e no

CORPO (Corps) 89
momento mais claro da verdade do corpo (NC, 135). ver Clínica. Poder, política. O corpo
vivente, o corpo individual, o corpo social e a população se converteram no verdadeiro objeto
da política moderna (IDS, 216). * O corpo não existe como um artigo biológico ou um mate-
rial, mas dentro e através de um sistema político (DE3, 470). Yer: Biopoder, Biopolítica.
Possessão. Para São Tomás, a liberdade é anterior à sua alienação pela possessão do demônio.
A possessão concerne apenas ao corpo, nele penetram os anjos maus; mas ela não afeta nem
o exercício nem o objeto da vontade, porque essa não depende de um órgão corporal. Com o
Renascimento, contudo, a possessão adquire um novo sentido, será possessão do espírito,
abolição da liberdade; não é mais perversão do corpo (MMPE, 77).Yer Loucura.Simesmo,
sujeito.*NaanálisedoAlcibíadeslosujeitoéoquegovernaocorpo,oqueseservedele
como instrumento (HS, 55). * No epicurismo e no estoicismo, à diferença do platonismo, o
corpo emergirá novamente como objeto de preocupação; ocupar-se de si mesmo será, ao
mesmo tempo, ocupar-se do corpo e da alma (HS, 104). * Na conversão helenística e romana,
à diferença da platônica, não se trata de liberar-se do corpo, mas que a preocupação pelo
corpo se torne um requisito para a adequação do si mesmo consigo mesmo (HS, 202). Ver:
Conyersã0, Cuidado.Instrumentos corporais de punição. Contemporaneamente à lei
francesa de 1838 sobre a internação psiquiátrica, assistimos a uma disciplinarização do espa-
ço asilar. Foucault mostra como o espaço asilar é reorganizado de acordo com os mesmos
princípios que animam a formalízaçâo disciplinar projetada por Bentham (PP, 103), isto é,
visibilidade permanente, vigilância centralizada, isolamento, punição incessante. * Quanto
aos mecanismos de punição, encontramos nessa época uma alternativa: coerção física ou no
restraint (segundo a expressão proveniente da Inglaterra em torno de 1840), ou seja, abolição
dos instrumentos físicos de punição e controle. Na realidade, na opinião de Foucault, trata-se
apenas de uma alternativa de superfície. De fato, nessa época encontramos uma maravilhosa
proliferação de novos instrumentos técnicos: a cadeira flxa, a cadeira giratória, a camisa de
força (inventada em 1790 por Guilleret, um tapeceiro de Bicêtre), as algemas, os colares com
pontas internas (PP, 106). Foucault se detém aqui na análise desses instrumentos que mani-
festam uma tecnologia específica do corpo. Antes do século XIX, os numerosos instrumentos
corporais podem ser agrupados em três categorias: 1) instrumentos que garantem uma prova
(cinturões de castidade);2) instrumentos para arrancar a verdade (o suplício da água); e 3)
instrumentos para marcar a força do poder (marcar com fogo uma letra no corpo). Mas os
instrumentos que proliferam no século XIX são de outro tipo, pertencem a uma quarta cate-
goria; trata-se de instrumentos ortopédicos, que buscam garantir o endireitamento, o ades-
tramento do corpo. Esses possuem três características: 1) são aparatos de ação contínua;2)
seu efeito progressivo tende a que eles se tornem inúteis (o efeito deve continuar quando re-
tirados); 3) são homeostáticos (quanto menos se resiste a eles, menos se os sente; quanto mais
se resiste, mais se os sente). "Vocês têm aqui o princípio do instrumento ortopédico que é,
penso, na medicina asilar, o equivalente ao que Bentham havia sonhado como forma da visi-
bilidade absoluta' (PP,108). corpo neurológico. Acerca do corpo neurológico e da emer-
gência, a partir desse, do corpo sexual, ver Psiquiatria.
Corps [j241]: AN,12,31,34,43-44,54, 56-58, 60-61, 64,71,74,76,80,84,87,91,95,100, 107, 109-1 1 1, 1 13, 1 16, 150,
1 r5, 1 65, 1 70- 171, 1 73 180, 183, 1 87- I 89, I9 1 - I 99, 20t 204,206-207,209-213,217 -218,221 227 ,231-236,238-243,249-2s4,
l-i6 158,267 268,271,281,289,295-297,308 310.45,36,47,57-58,69-72,78,1),0,112,t24-1,25,132, 138, 148, 1s3, 1s9,

90 CORPO r Corps)
170, )96-197,198, 213, 253. DEl, 70-71, 76,77,8t 8t, 85-86, 92 93,102,107, t22,133, l -17, 139, I.15, 151, 185, 189, 216,
218,220 222, 224-225,230,233, 240,246, 249, ).51 254, 256-257, 259, 262,264, 269,277, ZB3,3t t' , 325,327 , 334-336, 37 4,
39 t, ,392, 398, .113, 434, 440 -441, 165, 472, 176, 481,484-,185, ,188-489, 19t, 496,504, 507, 5 r 3, 522-523, 527 , -530, 536, 538,
540, 5s7, 559, 56ó, s7 l, 577, 596. 621,626-628, 630 632, 616, 649, 678, 685, 689, 704,7 t2-7 13,722,729,736, 754_756. 760,
764 765,767 ,800, 843-844, 846. DE2, 12, t8-23,29, 41, 53,74-75,78-83,85, 86, 1I 3, 120, 1 33, 1 39- 1 40, 142 145, 147 , r49,
l5l,155,186,200,203,226227,229,241,)43,245,217,251,253256,259,262-266,281,188,290,314,321,)27,356,377,
384.387,402404,431,447450,453,457.467,468470,475,477,495,513,520,522523,537,547,551,575,583,590,600,
608-609, 61 2, 6 1 7-61 8, 620, 622, 637 ,6,10, 643, 662, 677 , 69s-697, 699,703,7 1.2,7 t7 ,722-724,727.728,7 41 -7 42,754-7 57,
759.763,766'767,769.771 772,77s,773-779,781, 798,803-U05,807,810-81 1,81s,818-822,824 827. DE3,8- 10, 14, 16-21,
23-25,27,36,37,41-43,51,54-55,64,66,86 87,89, 104, n2, 115-116, 1 18, 121, 126, 128, 132, 135, 139, 149 153, 159, 163,
165 t66,r72,176-182,184-187,190-191, 195-196, 198 200,201-204,208-211,214 2\6,)20,222,227 228,2!-232,234 )35,
247,249,25r.255,258-259,26t-262,261.270,272 273,284,286,288,304, 310, 313, 3.2.2,333,337-338, 347,353 351,372,
376, 378-380, 382, 386, 397, 41 1, 4 14, 420-421,424-42s,432,434-435,437 ,442,450,454,469-470,478,487 ,494,504, s r 5-5 16,
-524-528, -538. 541-542, s16, tO9-559, -§-53, 56s--566, 575, -582, 585 587, 591, s92 594, 616,621 622,631-632,646,654, 666,
672,675,680,726,730734,736737,740.DF4,16-18,23,28,36,55,63,81 82,87,102,112,116-117,119,121,150-151,152,
157,\66,171,173 175, 183-184, 186-187, 190 191, 193-194, t96,200,213,217,226,231,233,236,239,243,246,248,252,
256,257,272,296-298, t0 r -305, _il7, 309, -3 16, 330, -3.12 333, i45, 354, -r57, 371, 392, 396, 398, 399, .1 1 5-4 16, 421, 427 ,429-430,
450,458,467,468 469,471,475476,478,480,482,485,487,511,517,543,548-550,553-555,571,s77,582,601,6\7,621,
638,643,672-673,7 10,730,732, /'37 -738,7 43,750,758, 766, 768 769,77 6,784 785.787,79t,794, 8 1 7. HF, 9, 27, 35, 36 37,
67-68,84,90, 115, 119-120, 123, 167, 181, 195,201..204,229,23t,236,238,239,243,256 257,26t,262,268-276,278 279,
2tt0, 282-285, 288-292,294-296,300,303 305, 309 310,321-322.327 32e, 335-338, 341 342. 353-35.5. 358 370.372-375,377 .

380-385, 389, 392-39-r, 39-5 396, 398-402, 407 4t3. 4t9, 422, 427, 416-447, 456, 459, 462-163, 470, s 10, 5 I 7, 528-s:9, s.10,

544-546, 561,562, 588, 594, 624, 634, 641 642, 645, 648, 654-656, 667 , 673-67 4,684, 686. H5,22-24,26,38, 49, 54 61, 64,
72, 82,92-97, t 02- I 04, 1 r 3, 117 ).19, 122, 156, 166, 175-177, 179, 197,201'202, 215, 239, 262,269, 272-273,291,309, -3 I 3,

318-y.9,323,326-328, -13 l, 335, 34 1 - 342,350 352,377,38 l, i95-396, 399, 403, 408-4 1 1, 4-38. HSr, 9- 1 0, 12,11,28-30,32,59,

60 62,64 66,73,77 -78,82,86,97, 102-103, 117,119, 121 122, 124,127,128, 1 30. 1 37 142, 148, 1 50, 152,154-155, 160-170,
t78 180, 183-189, 19t-194,197.199,200-202,205-206,208,210-21r. HS2, l-5,21,23-24,28,30,39,14,19 50,52,54,58-60,
64,67 ,68-69,79,84-85,91-92,103-t07, 112,1t6-123, t25-139,141 - 149, 15 1, I 53- 1 55, 163- I 64, 170, 175,177 ,179- I 80, 193,
220,228,230,232,234,25t,256-258,261 262,265,276,278. HS3, 22-24,27,33,35-37, 40, 43, 47, 53, 55, 60, 66,70-7 4,83,
1 06, 1 15, 1 19, t22-126, t28-t35, t 38, 140- 142, 144, 146, 148- r 50, 1 52- 16 1, 163- 165, t67,169,179.196,211-213,233,235 236,

248,251 252,255-257,259-260,271-272,283.1D5,7, t0,16,22-30,32 33,36, 41-42,


,5r-53,61,64,70,75-76,78,92, 44, 47

105,1U,113,128,141,144,1s0,15-5, l-57, l6l,162,164,173-174,180-181,194-195,199,201,206,213,215-216,218-219,


222-226,230 232.MC,7,t5,20,26,29,33,36-37,40-41,43,47,5t,56,66,84,92,115,117-118, t20-123,134,147,149,162,
167,172,t74,180,191,202,212,222,237,24]l-242,271,276,279,28\,282-283,28s287,290,307,311,325-332,355,381,
395. MMPE, 4, 8, t2,24-25, t7,33,44,55,57 -58,64-67,74,77 -78, 92, 100, 107. MMPS, 4, 8, 12,24-25,27,33,44, 55, 57-58,
64-67,74,86, 94. NC, VI-VII, lX, XI XII, 1-3, 6-12, 14 16,25,27-28,3t-34, 42, 45-46,53,55,57 -62,70,72,74 77,8(),82,
8-5,91,93, r00, tlt-113, ll8, l2l, 123, 126-127,129-139,142-t43,t46,\17,153, 155,162-164, 166,167-168, ).70,178-179,
186-i88, 191-193, 195- 196, 199-201, 212. OD, i3, ,13, 59, 68. PP, 4-6, I 5- 17, t9,).3,25 27,29-30,38.42-44,46-51, 54, 56-59,
6t-63,73,75-79,83,88,97,101,t06107,1t4,116-1]17,1.20,129,134,),39-140,144,160,163,178180,185-186,188,190,
\91, r97 , 2t4-216,2»,225. 230,234, 236,242, 246,248, 253, 260-26t, 264, 267 -269, 271 -27 3, 277 -278,28 l -2ii2, 284, 286,
288-290,294-295,297,299-301,303-304,306-307,309, 311, 314-3r6, 319-319, 322-323, t27,330-,131, 335. RR,38,71-73,
75,90,95, 106, lt l, 138, 145,147,154,17t,198,202,204. SP,9, 11, 14,16 19,21-22,28-35,38 40,41-50,52-55.58-60,67,
69,7t,75-76,78,80,81,83-84,92 99, 101, 103, 105,106, 109, 1i1, 117-118, 120, 128, 130-r34, 1i7-147, r53-155, 157.159,
163.173,t75,179-180,186,190 191,193,195,198-200,203,207,209-2t2,215,217-219,22t-223,227-228,233,235,237,239,
242,245,258,262,264, 270,276, 282, 286. 300 302, i05, 308 312,314-315.

§r CRISTIANISMO (Christianisme)

Ocupamo-nos mais extensamente da questão do cristianismo em cada um dos verbetes que


tratam dos temas através dos quais Foucault o aborda; remetemos a eles. * "O cristianismo não

CRISTIANISMO (Christianisme) 91
e apenas uma religiâo de salvação, mas também uma religião confessional que, muito mais do
que as religiões pagãs, impõe obrigações muito estritas de verdade, de dogma, de cânon' (DE4,
804). O interesse foucaultiano pelo cristianismo passa fundamentalmente por tais obrigações de
verdade que foram forjadoras das formas da subjetividade e do poder no Ocidente, inclusive para
além das instituições do cristianismo. Doença mental, loucura. * O cristianismo despojou
a doença mental de seu sentido humano e a pensou em termos de possessão demoníaca. Mas
a possessão, por exemplo, para São Tomás, concernia somente ao corpo, não à vontade nem à
liberdade (MMPE, 77 -78). * O grande tema renascentista da loucura da cruz tende a desaparecer
ou a transformar-se durante a época clássica; não se tratará, então, de humilhar arazáo em seu
orgulho, mas apenas uma falsa razão. Depois de Port-Royal, há que se esperar por Dostoievsky
e Nietzsche para queCristo recupere a glória de sua loucura (HF,204).Yer: Loucura. Carne.
O tema da carne, para Foucault, define a experiência cristã do homem de desejo. Yer: Carne,
Aphrodísia.Práticas de si mesmo, confissão. Com o monasticismo, as práticas de si mesmo
*
foram incorporadas ao poder pastoral. A elaboração cristã das técnicas da confissão constitui
um momento fundamental na história da sexualidade e da subjetividade ocidental em geral. Ver:
Cuidado,Práticas de si mesmo,Confissão.Poderpastoral. "Precisamente, nahistória que tento
fazer das técnicas de poder no Ocidente, das técnicas que concernem ao corpo, aos indivíduos,
à conduta, às almas dos indivíduos, fui levado a dar um lugar muito importante às disciplinas
cristãs, ao cristianismo como formador da individualidade e da subjetividade ocidentais . .
[. ]"
(DF-3,592).Yel Poder. Paganismo, Nietzsche. "[...] entre o paganismo e o cristianismo, a
oposição não é entre tolerância e austeridade, mas entre uma forma de austeridade que está ligada
a uma estética da existência e outras formas de austeridade que estão ligadas à necessidade de
renunciar a si mesmo decifrando sua própria verdade" (DE4, 406). "Sim, creio que
[Nietzsche]
cometeu um erro atribuindo isto Iao ascetismo cristão o mérito de fazer de nós criaturas capazes
de prometerl ao cristianismo, dado tudo o que sabemos da evolução da moral pagã do século IV
a.C ao século IV d.C" (D84,406). Yer: Aphrodísia,Etica.
christianisme l33r l: AN, 64, 159,191,27 4.DE t,306-307,326,337,521,632.D82,144. DE3, ro3, t62,219,230,234,
215,257,37 t, 112, 527, 548,5,19, 558,560, 562-566, 587 , 592,593, 621,693 694,709,7 19,790. Df.4,1 08, 126, I 39, 14,1 I 48,
t71 174,176,215-216,229,288,290,307 308,310,320,384,396-397,399,402,404_406,408_409,417,s07,544,545_547,551_
553, 559--56 l, 572, 611,62r-624,626,629,633,653,657,661,669,672-6 /'3,697 ,699 700,702,706,7 12,7 \7,731,784, 804-806,
812-8r3.HF,201,207,610.HS,11,15,21,28,65,79,105,116 lt7,tlg,t73-174,178,183,199,202,208,218,220,228.240.
245 217,281,312, 314, 340,345,37 4,378,381, 389-390, 393, 402-404, 419, 427 428, 461. HSr, 1 49, I 53, I 54, 2t 0. HS2, 1 5,
17,18,20,26-27,29,37-39,74,156,201,274,278. HS3, 149, 168,214,2s1,269 271,273. IDS,6. MMPE,78. Sp,58.

1i= CUIDADO DE SI (Epimeleia, Souci)

A expressão " souci de sol" (título do terceiro volume de Histoire de la sexualité) traduz
o grego "epiméleia heautoú" (em latim "cura sui"); 'tuidado de si mesmo,,parece a melhor
tradução para o português. o tema do cuidado de si foi consagrado por Sócrates; a filosofia
posterior o retomou e, na medida em que ela mesma se concebeu como uma arte da existência,
a problémática do cuidado ocupou o centro de suas reflexões. Esse tema acabou ultrapassando
os limites da filosofia e alcançou progressivamente as dimensões de uma verdadeira cultura do

92 CUIDADO DE Sl (Epiméleia, Souci\


cuidado de si. Os dois primeiros séculos da época imperial (séculos I-ll) podem ser considerados
como a idade de ouro da cultura do cuidado de si mesmo (HS3, 59). Além de Le souci de soi,
entre os textos publicados de M. Foucault, Iiherméneutique du sujet esÍáinteiramente dedica-
da à análise da cultura de si mesmo, desde o momento socrático-platônico até a Íilosofia hele-
nístico-romana. Em outros cursos no Collêge de France, essa problemática também foi aborda-
da. Dos Cursos ainda não publicados, no momento temos os resumos publicados no Annuaire
du Collégede France e reimpressos em Dits et écrits. É necessário, ademais, levar em conside-
ração o seminário de Foucault na Universidade de Vermont (outubro de 1982): As tecnologias
de si (Technologies of the selfl (enDE4, 783-813). Uma história do cuidado de si mesmo.
'A história do tuidado e das 'técnicas' de si seria, então, uma maneira de fazer a história da
subjetividade; mas já não através das separações entre loucos e não loucos, enfermos e não en-
fermos, delinquentes e não delinquentes, mas através da formação e das transformações em
nossa cultura das 'relações consigo mesmo] com seu arcabouço técnico e seus efeitos de saber.
Desse modo, se poderia retomar desde outro ângulo a questão da'governamentalidade': o go-
verno de si mesmo por si mesmo, na sua articulação com as relaçôes com os outros (como é
encontrado na pedagogia, nos conselhos de conduta, na direçáo espiritual, na prescrição de
modelos de yida, etc.)" (DE4, 214). Essa história iria desde as primeiras formas filosóficas do
de mii
cuidado de si, no século V a.C., até o ascetismo cristão, século V d.C. Uma história, então,
na qual haveria que distinguir, pelo menos, três momentos fundamentais: o momento
anos
(séculos I - II) e a
socrático (século V a.C.), a idade de ouro da cultura do cuidado de si mesmo
passagem do ascetismo pagão ao ascetismo cristão (séculos IV-V). l) A pré-história filosófi-
ca das práticas do cuidado de si mesmo. Entre as técnicas do cuidado de si mesmo, encon-
(ana-
tramos: os ritos de puriflcação, as técnicas de concentração da alma, as técnicas de tetiro
choresis),os exercícios de resistência. Esse conjunto de práticas já existia na civilização grega
arcaica e foi integrado nos movimentos religiosos, espirituais e ÍilosóÍrcos, em especial no pita-
gorismo (HS,46-48). O'tuida-te a ti mesmo'não éuma invenção Íilosófica; trata-se, antes, de
uma tradição de antiga data. Plutarco faz referência a um certo Alexândrides, um espartano que
faz mençáo ao'tuida-te a ti mesmo'l Aqui, aparece ligado ao privilégio político, econômico e
social: aqueles que possuem propriedades e escravos que as trabalhem podem ocupar-se de si
mesmos. Como vemos, o'tuida-te a ti mesmo'não está originariamente ligado a uma posição
intelectualista (HS, 32-34). 2) O momento socrático. Platão nos apresenta Sócrates, na Ápo-
logia, como o mestre do cuidado de si mesmo. A partir daqui, Foucault analisa o Alcibíades l,
que toda a Antiguidade não tem dúvidas de atribuir a Platão, como o ponto de partida da histó-
ria do cuidado de si. No Alciú íades l,a problemática do cuidado de si aparece relacionada a três
questões: a política, a pedagogia e o conhecimento de si. A propósito da pergunta'b que signi-
fica ocupar-se?'] emerge o que poderia denominar-se o momento constitutivo do platonismo: a
subordinação do 'tuidado' ao 'tonhecimento'l o entrelaçamento das práticas (exercícios) do
cuidado e o conhecimento (HS, 75-76). A análise do Alcibíqdes l se estende de HS 27 a77.3)
A época de ouro do cuidado de si mesmo. Na filosofia helenístico-romana produz-se uma
profunda transformação do cuidado de si com respeito ao tratamento desse tema no platonis-
mo: 1) Estende-se temporalmente. |á não concerne somente a quem abandona a adolescência
para ingressar na vida política, mas a vida toda do indivíduo. 2) Quanto à finalidade, já não
está dirigido a governar a pólis, mas em relação consigo mesmo. Trata-se de uma espécie de

CUIDADO DE Sl rFpimeleta.5ouci\ 93
autof,nalizaçáo do cuidado de si. 3) Em relação às técnicas do cuidado, não se trata só nem
fundamentalmente de conhecimento, mas de um conjunto muito mais vasto de práticas (HS,
79-84). * Assim, se acentuará a função crítica do cuidado de si mesmo. Há, em Platão, uma crí-
tica à pedagogia; pois bem, é esse elemento que irá se acentuando e se reformulando. Trata-se,
agora, de uma correção-liberação. Aprender a virtude é desaprender os vícios. O tema da desa-
prendizagem é frequente nos estoicos. Aqui nasce também a oposiçáo entre o ensino da filosoÍia
e o ensino da retórica. Produzir-se-á, por outro lado, uma aproximação entre a filosofia e a me-
dicina. A própria prática ÍilosóÍica é concebida como uma operação médica. Aqui se situa a
noção fundamental de therapeúein (therapeúein hequtón: curar-se, ser servidor de si mesmo,
render culto a si mesmo). O vocabulário do cuidado de si haverá de se enriquecer marcadamen-
te. * Também nos encontramos com uma revalorização da velhice. Na época helenística, a velhi-
ce passa a constituir um momento positivo, de realizaçáo, a culminação de toda essa longa
prática que o indivíduo deve realizar. O ancião é quem é soberano de si mesmo. A velhice, então,
deve ser considerada como um objetivo positivo da existência. * Modifica-se também a posição
do 'butro" na prática do cuidado. A ignorância segue desempenhando um papel importante,
mas, em primeiro plano, encontra-se agora a má-formação do indivíduo. Nunca, nem antes de
seu nascimento, o indivíduo teve com a natureza uma relação moralmente válida, de vontade
racional. Mais que superar a ignorância, então, trata-se de passar do estado de não sujeito ao
estado de sujeito. Consequentemente, o mestre não é mestre da memória, mas o guia, o diretor
da reforma do indivíduo. Encontramos, pelo menos, três formas dessa relação com o outro. O
epicúreo Filodemo de Gádara fala da necessidade de um /z egemón e de dois princípios que devem
vincularodiretoreodirigido,ointensoafetoearelaçãodeamizade,eumaqualidadeessencial,
a parresía. O modelo comunitário dos estoicos é, em todo caso, menos rígido. A escola de Epi-
teto, em Nicópolis, é como um internato, onde não se comparte a totalidade da existência. A
presenta do outro está assegurada pelas reuniões frequentes. A forma romana: o conselheiro,
alguém que é recebido na casa de uma pessoa importante, para que o guie e o aconselhe e que,
além disso, cumpre as funções de um agente cultural. * Finalmente, é necessário assinalar a
extensão social do cuidado de si mesmo. A figura do filósofo, desde a Antiguidade, foi uma figu-
ra socialmente ambígua e frequentemente deflagradora de suspeições e suspeitas. Na época
helenística e imperial, alguns
- como, por exemplo, Atenodoro (personagem da corte de Augus-
to) -
incitavam a uma despolitizaçáo da vida. Parece que o próprio Augusto tornou suas essas
ideias. Outros, como o epicúreo Meceno, sustentavam a busca de um equilíbrio entre a vida
política e o otium. Contudo, para além de qual tenha sido a posição acerca da participação do
filósofo na vida política e social, assistimos a uma extensão social do 'tuidado de si mesmo I uma
propagação das práticas de si mesmo que vai muito além do papel do filósofo profissional. * No
estudo do cuidado de si na época helenístico-romana, Foucault aborda numerosos autores e
temas: Fílon (a questão dos terapeutas), Sêneca (a noção de stultitia), Plínio, Proclo e Olimpo-
doro (comentários neoplatônicos do Alcibíades I), as noções de conversão e salvação, Epicuro,
Filodemo de Gádara (a questão da parresía), a noção de ascese, Marco Aurélio (o exame de
consciência), Plutarco, etc. As quase quatrocentas páginas que se seguem à análise do Alcibíades
I, em Lherméneutique du sujet,estão dedicadas ao estudo do cuidado de si na época helenís-
tica e romana.4) Cristianismo. Com o cristianismo, as práticas de si mesmo foram integradas
ao exercício do poder pastoral (especialmente as técnicas de deciframento dos segredos da

94 CUIDADO DE 5l (Eplméle ia, Souci)


consciência) (DE4,545). Nos séculos III-IV formou-se o modelo cristão do cuidado de si mes-
rno. Ainda que em um sentido geral se possa falar de modelo cristão, seria mais correto chamá-
1o modelo ascético-monástico (HS, 244). Nele, o conhecimento de si está ligado ao conhecimen-
to da verdade tal como nos é dada no Texto da Revelação. Encontramos uma relação çircular
entre o conhecimento de si, ou conhecimento da verdade e o cuidado de si mesmo: não é possí-
vel conhecer a verdade nem conhecer-se a si mesmo sem a purificação de si mesmo, do coração.
Em segundo lugar, as práticas de si mesmo têm como função essencial dissipar as ilusoes inte-
riores, reconhecer as tentações que se formam dentro da alma, desatar as seduçôes das quais se
pode ser vítima. Em terceiro lugar, o conhecimento de si mesmo não persegue o voltar-se para
si mesmo, em um ato de reminiscência, mas a renúncia a si mesmo (H5,244-245).5) Momen-
to cartesiano, Modernidade. A partir do momento em que Descartes faz da evidência da
existência do sujeito a porta de acesso para o conhecimento do ser e da verdade, assistimos a
uma requalificaçáo do "conhece-te" e uma desqualificação do 'tuida-te'l Foucauit distingue,
entrefilosofia e espiritudidade. Filosofia: a forma de pensamen-
nessa altura de sua exposição,
to que determina as condiçÕes de acesso do sujeito à verdade. Espiritualidade: a busca, as
práticas, as experiências pelas quais o sujeito se modifica para ter acesso à verdade. A esse res-
peito, são necessárias três observações: 1 ) a verdade nâo se oferece imediatamente ao sujeito por
um ato de conhecimento; implica \ma conversao.2)Há diferentes formas de conversão: éros e
askesis.3) O acesso à verdade produz certos efeitos sobre o sujeito: beatitude, tranquilidade. A
Modernidade começa quando o acesso à verdade passa a ser uma questão de conhecimento que,
certamente, implica condições - internas, de método; externas, não estar louco, realizar estudos
sistemáticos, o consenso científico, a honestidade, o esforço -, mas que não envolvem o sujeito
quanto à sua estrutura interna. Em outras palavras, a Modernidade comeÇa quando a verdade
se torna incapaz de salvar o sujeito. A (rnica recompensa é que o conhecimento se projeta na
dirnensão indefinida do progresso. * O que devemos entender por "momento cartesiano'? Em
primeiro lugar, devemos notar que não se trata de um "momento' no sentido estrito do termo,
de algo pontual. A referência a Descartes, por outro lado, não se limita exclusivamente à sua
pessoa, como se a sua obra maÍcasse uma ruptura abrupta. O "momento cartesiano ] em segun-
do lugar, foi preparado. Pois bem, sobre essa preparação algumas observaçÕes cle Foucault sáo
particularmente interessantes e significativas. Com efêito, para nosso autor, a ruptura entre filo-
sofia e espiritualidade, definição do momento cartesiano, não teria que ser rastreada através de
um conflito entre ciência e espiritualidade, mas entre teologia e espiritualidade. Por um lado, a
existência de certos saberes, como a alquimia, por exemplo, mostra como ciência e espirituali-
dade conviveram. Por outro lado, seria precisamente do lado da teologia fundada em Aristóteles
(tomismo) que haveria que buscar os antecedentes da ruptura entre filosofia e espiritualidade.
Segundo Foucault, nessa teologia escolástica de origem aristotélica, aparece uma ideia de
sujeito de conhecimento que encontra em um Deus onisciente seu fundamento e seu modelo.
Aqui, repetimos, haveria que rastrear os antecedentes da separação entre filosoÍia e espiritua-
Iidade. Mais duas precisões. Em primeiro lugar, a ruptura não foi nem completa nem deflni-
tiva. Ainda depois de Descartes, a exigência da espiritualidadefez parte da filosofia. Por
exemplo, segundo nosso autor, está presente na ideia de reforma do entendimento nas filoso-
fias do século XYII (especialmente Spinoza). A filosofia do século XIX pode ser vista como
um esforço para pensar, dentro do marco da filosofia moderna tradicional (o cartesianismo),

CUIDADO DE Sl (Fplméleia, Souci) 95


a necessidade da espiritualidade (especialmente Hegel). Em segundo lugar, Foucault faz notar
como, por um lado, se consideram falsas ciências aquelas que apresentam elementos de espiri-
tualidade, isto é, que exigem uma conversão do sujeito para aceder à verdade e the prometem,
em troca, alguma forma de beatitude. Ele está se referindo, clarament e, ao marxismo e à psica-
nálise.Por um lado, assinala como em ambos os campos, à exceção de Lacan, falta uma tema-
tizaçâo explícita do legado da espiritualidade, ou seja, da relação ascese do sujeito/acesso à ver,
dade. Ademais, observa que as exigências da espiritualidade foram reinterpretadas em termos
sociológicos, a saber, de pertencimento awgrupo (HS, 19-20,27-32). Aphrodísia.Enquan-
to que therméneutique du sujet é uma análise geral da cultura do cuidado de si, Lusage de
plaisirs
e Le soucie de soi - volumes 2 e 3 de Histoire de la sexualité - ocupam-se da cultura do

cuidado em relaçáo com os aphrodísia. A esse respeito,ver Aphrodísia.Ética,liberdade. O


cuidado de si, no mundo greco-romano, foi o modo pelo qual a liberdade individual ou a liberdade
cívicaserefletecomoética(DE4,712).Yertambém: Alcibíades,Ascese,ConJissao,Conversao,
Exame, Po der Saúde, Subj etiv açao.

Souci [829]: AN, 146, 231,233-234,261. A5,32,54,105, 123,213, 221,259,265. DEl,68, 120,203,263,267,429,
527 -528,530,540-541,575,582,654 689, 802. DE2, 10,7 1,136, 156, t91,207 ,212,234,293,326,483,511,673,707 .D83,
15, 19,31,75, 101-102, 105, 191,229,277,326,330,373,397,437,570,586,697,732,783. DE4, 11, 108, 142, 149,153,
213-215,230,317, 353-357, 385, 390, 400 403, 405, 409 ,415,420-42t ,462.532,536,539,544, 546, 553, 555, 609, 6 1 1, 61 5,

622-624,626,629,636,646,649,668 670,67 4-675,708-709,7 t2-7 ),7 ,7 19,721-723,786-797, 8 10, 8 1 5. HF ,24,26,76,90,


t04,245,277,284,300,397,404,454,513,546,560,581,585-586.HS,3-6,8-16,18,21,2325,27,30,32-34,36-41,43,
46, 49-53, 56-59, 61,63-67 , 69-70,73,7 5,79-87 ,89-90,93-94, 96- 100, 102- 1 05, 108- 1 10, 1,1.2-l I 4, tt7 -119, 121, 1.22, 1.26,
t29-13r,143,156,159-160,163,167-172,r74,179-180,182,185-191, t93-197,201,21s-217,237,238,242-247,257-258,
266,298,361 362,369,375,377,400-401,4t7,4t9,42t,129-430,434,436,438,440,443 444,446,448,455,465,468 469.
HSr,31, 47,51.,56,165 167,t72,1.97,199,209. HS2, 16, 18,28, 30,45,47,58,64,85, 112,116,123,130,137,140, 153,
164 165,2t4,2t6,232,234,236,258,268,27 6. HS3, 58-59, 6 I -62 ,68 69,72-73,77 ,127, 146, 151 152,162, 166, 175, 185,
202,242,245,247 ,259,264,27 1 -272, 274. IDS, 7 1. MC ,127 ,150,259,310,3r4,345.352,381-382,390,397'398. MMPE,
4E, 9E. MMPS, 48. NC, 40, 74, 127.128,138,142,149,179,190. Pp,2t1-212. RR, 1 10, 186. Sp, 23, 114,20s,228.

:3-*. CUVIER, Georges (1769 1832)

Foucault recorre à obra de Cuvier para descrever o nascimento da biologia eo modo de ser da
üda na episteme moderna. Ve r: Biologia, Episteme moderra.
* "Cuvier
liberou a subordinação dos
caracteres de sua função taxonômica, para fazê-la entrar, para além de toda classificação eventual,
nos diferentes planos de organização dos seres viventes [. . . ] O espaço dos seres viventes gira em
torno a essa noção [de organização] e a
tudo o que havia podido aparecer, até agora, através da
quadricula da história natural (gênero, espécies, indivíduos, estruturas, órgãos), tudo o que se
oferecia ao olhar ganha, a partir de agora, um novo modo de ser" (MC, 275-276).
GeorgesCuvier[256]:A5,187,i88,221,227,245.DE1,499,791,806. D82,273t,33-36,3862,66,100,222,
-109. DE3,28,222,410. MC, 14,71, 149, 150, 157, 163,241,241,264 265,275_280,282_290,293_294,306_307,309 310,
,r18. -123,396.

96 CUVIER, Georges
:**. DARWIN, Charles (1809 1BB2)

Cuvier, espécie. A espécie para Darwin não é uma realidade originariamente primeira e

analiticamente última, como é para Cuvier. Para Darwin, é difícil distinguir entre a espécie
e

a variedade (DE2, 30). População. Darwin foi o primeiro a ocupar-se dos seres viventes ao
nível da populaçáo e não da individualidade (DE2, 160)'
charles Darwin I7sl: AS, 50, l,170,204,567 ,658,696,717 ,791,845. DE2, 30-3 1,
136-137 ,166,1 87, 1 90, 200. DE

33,3536,4445,54-56,58,60,66,100,I60,163,t67,269,335,409.DE3,48,156,471DE4,41'5.HF,406,36-37 IDS,
s2, 229. }/C, 14, 139, 166. MMPE, 36-37.

r *r. DEGENERAçÃO (Degenerescence)

Tecnologias do sexo. A Psychopathia sexualis, de Heinrich Kaan (1846), pode ser


tomada como o indicador da independência do sexo a respeito do corpo e do aparecimento
do domínio médico-psicológico das perversões. Pela mesma época, a análise da herança
reconhecia a importância do sexo em relação à espécie, aparecia como o princípio de certas
patologias da espécie. A teoria da degeneração permitiu vincular a noção de perversão com a
herança. O conjunto perversão-herança-degeneração constituiu o núcleo mais sólido das novas
*
tecnologias do sexo (HS1, 157). A degeneração, enquanto princípio de enfermidades ao nível
do indivíduo e da população, serviu como ponto de articulação de mecanismos disciplinares e
*
mecanismos reguladores (IDS, 225). A noção de degeneração faz referência a um elemento
patológico, involutivo ao nível da espécie, das gerações (DE3,456). Psicanálise. A psicaná-
iise rompeu com o sistema da degeneração, retomou o projeto de uma medicina do instinto
sexual, mas liberada de suas correlações com a noçáo de herança e, portanto, de todo racismo
ou eugenismo (HSf , 157). Biologia, racismo. A novidade no século XIX foi o aparecimento
de uma biologia do tipo racista centrada em torno da noção de degeneraçáo. O racismo não
foi, em primeiro lugar, uma ideologia política, mas científica. Sua utilização política foi levada a
cabo primeiro pelos socialistas, por gente de esquerda, antes que por gente de direita (D83,324) .

DEGENERAçÃo (Dégénérescence) 97
Anormalidade, psiquiatria. A noção de degeneração permite isolar, recortar uma zona
de perigo social e dar-lhe, ao mesmo tempo, o estatuto cle enfermidade (AN, 110).. A
degeneração é a peça teórica mais importante da medicalização do anormal (AN, 298).
* A figura do degenerado permitirá um relançamento formidável do poder psiquiátrico (AN,
298). Doença mental. Com a psiquiatria do século XIX, com Morel, a enfermidade mental
será pensada em termos de degeneração (HF, 614). Representantes. Foucault se refere aos

seguintes autores: B.-4. Morel, Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales
de lbspàce humoine, et des couses quí produisent ces varíétés maladives, Paris, 1857;Y.
Magnan, Leçons cliniques sur les maladies mentales, Paris, 1893 ;M. Legrain & V. Magnan,
Les Dégénérés, état mentol et syndromes épisodiques, Paris, 1895.
Dégénérescence I70l: AN, I I0, 125, 1 55, 180,223-221,27 1,297 -301,307,3 1 l . 45, 56, 99. DE2' 143, 1 63, 355, 359,
HF, 170, 174,570, 61'1, 6'1'1 HS1, 41, 56, 156'158, 171 i72, 198.
758. DE3, 308, 314, 323-,125, 419,45,1, ,156,'158 4.59.
IDS,53,225,235,250,258. NC, 161, I7l. OD,34. SP,295.

DELEUZE, Gilles (192s 19e5)

"Mas um dia, talvez, o século será deleuziano" (DE2, 76). Diferença e repetição, Lógi-
cq do sentido. Foucault apresenta Dffirence et répétition de Deleuze nesses termos: "Hou-
ve a filosofia-romance (Hegel, Sartre), houve a fiiosoÍia-meditação (Descartes, Heidegger)' Eis
aqui, depois de Zaratustra, o retorno da filosofia-teatro. Não como reflexão sobre o teatro,
tampouco teatro carregado de significações, mas como f,losofia convertida em cena, Persona-
gens, signos, repetição de um acontecimento único e que não se reproduz nunca" (DE1, 768).
"Theatrum philosophicum"
" Ã Dffirence et répétition e à Logique du sens dedica também
*
(D82,75-99; de75 aST,Logique du sens e depots Différence et repetition). Como sabemos,
a obra cle Deleuze âpresenta-se como uma inr.ersào do platonismo, porém não restituindo os
direitos à aparência, mas através do estbrço por pensar o impalpável fantasma e o aconteci-
mento incorporal. É nesse sentido que Deleuze se dirige ao epicurismo e ao estoicismo. Para
os primeiros, os fantasmas são pensados como emissoes que vêm da profundidade dos corpos,
efeitos de superfície que topologizam a materialidade do corpo. Porém, não a partir do dilema
verdadeiro / falso ou ser / não ser, mas como "extra-s eres". Logique du sens é, por isso, o iivro
mais afastado da obra de Merleau-Ponty, da Phénoménologie de la perception Aí, o corpo-
organismo estava ligado ao mundo por uma rede de signiÍicações originárias que a percepçào
mesma das coisas fazia aparecer. Para Deleuze, o organismo forma o incorporal e a impene-
trável superlície do corpo, a partir da qual as coisas se afastam progressivamente. Trata-se de
uma física concebida como discurso da estrutura ideal dos corpos; de uma metafísica, como
discurso da materialidade dos incorporais (fantasmas, ídolos, simulacros) (DE2, 79)."t...1
uma metafísica liberada da profundidade originária como ente supremo, mas capaz de pensar
o fantasma fora de todo modelo e no jogo das superfícies; uma metafísica onde náo se trata
do Uno-Bom, mas da ausência de Deus e de seus jogos epidérmicos da perversidade" (D82,
80). Para Deleuze, trata-se de retirar a ilusão dos fantasmas e, nessa tentativa, se cruza com a
psicanálise (como prática metafísica) e o teatro (das cenas fragmentadas, que não representam
nada), com Freud e Artaud. * Nos estoicos, Deleuze busca um pensamento do acontecimento.

98 DELEUZE, Gilles
"
[. .. ] no limite dos corpos profundos, o acontecinrento é um incorporal (superfície metatisi-
ca); na superfície das coisas e das palavras, o incorporal-acontecimiento é o sentido da pro-
posição (dimensão lógica); no Íjo do discurso, o incorporal sentido-acontecimento está ali-
nhavado pelo verbo (ponto infiuitivo do presente)" (D82,83). " O neopositivismo, a
fenomenologia e a filosoÍia da história foram tentativas para pensar o acontecimento. Porém,
o primeiro o reduziu a um estado de coisasi a segunda, ao sentido para uma consciência; a
terceira, ao ciclo do tempo. "Uma metafísica do acontecimento incorporal (irredutível, pois,
a uma física do mundo), uma lógica clo sentido neutro (mais que urlla tênomenologia das
signiÍicações e do sujeito), unr pensamento do presente inÍinitivo (e não a substituição do
tuturo conceitual na essência do passado), é isto o que Deleuze, me parece, nos propõe para
retirar a tríplice sujeição na qual é mantido o acontecimento, aindar em nossos dias" (DE2,
8,1). * Finahnente, Deleuze se propÕe a pensar as ressonâncias entre essas duas séries: acon-
tecimento/fantasma, incorporal/impalpável; no entanto, não a partir de um ponto comum,
mas em sua desunião. "Depois de tudo, nesse século XX, o que há para pensar de mais impor-
tante que o acontecimento e o lautasrna?" (DE2, 87).- Difiérerrce et réPétitiorz constitui um
esforço para pensar a diferença para além do conceito, da representação e cla dialética. Desde
a perspectiva do conceito, a diferença aparece como especificação, e a repetição, como a indi-
ferença dos indivíduos. Em uma ÊlosoÍra da representação, cada representação nova deve
estar acompanhada de representaçoes que desdobrem todas as semelhanças; a repetição será,
então, o princípio de ordenamento do semelhante. A dialética, por sua vez, não libera a diÍ'e-
rença, e sim garante que será sempre recuperada. "Era necessário abandonar, em Aristóteles,
a ider"rtidade do conceito; renunciar à sernelhança na percepção, liberando-se, de uma vez, de
toda filosofia da representação; eis que, agora, é necessário desprender-se de Hegel, da oposi-

ção dos predicados, da contradição, da negação, de toda dialética'(DE2,


91). Mas, a sujeição
mais tenaz da diferença são as categorias. Ao mostrar de que maneiras se pode dizer o ser,
especificando de antemão as furmas de atribuição do ser, elas preservam o repouso sem dife-
rença do ser. Quarta condição, então, para pensar a diferença, liberar-se do pensamento cate-
gorial, pensar o ser univocamente. Aqui as referências de Deleuze são Duns Escoto e Spinoza.
No entanto, em Deieuze "[...] a univcrcidade não categorial do ser não liga diretamente o
múrltiplo à unidarle nlesnta (neutralidade universal ou força expressiva da substância); ela põe
em jogo o ser como o que se diz repetitivamente cla diferença. O ser é o retornar da diferença,
sem que haja diferença na maneira de dizer o ser. Esse não se distribui em regiões: o real não
*
se subordina ao possível, o contingente não se opõe ao necessário" (DEz,9l-92). Na histó-
ria da univocidade do ser, encontramos frnalmente Nietzsche, que nos convida a pensar o
retorno. "Não há que entender que o retorno é a Íbrma de ilm conteúdo que seria a diferença,
mas que, descle urna diÊerença sempre nômade, sempre anárquica, ate o signo sempre em
excesso, sempre deslocado do retornar, uma fulguração se procluziu que levará o nome de
Deleuze: um novo pensamento é possível; o pensamento é de novo possível" (D82, 98). GIP
(Grupo de infonnação sobre as prisões). Gilles Deieuze, Jean-Marie Dornenach, Pierre
Vidal-Naquet tbran.r os fundadores do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP). "Nós
queríamos literalmente dar a paiavra aos detidos. Nosso propósito não é fazer o trabalho do
sociólogo nem do reformador. Não se trata de propor uma prisão ideal. Creio que por deflnição
a prisâo é um instrumento de repressão" (D82,204).Intelectuais, poder. Em DE2, 306-315,

DELEUZE, Gilles 99
encontra-se uma discussão entre Foucault e Deleuze acerca dos intelectuais e o poder ("Les
intellectuels et le pouvoir"), cujos pontos relevantes são os seguintes: * As relações entre a
teoria e a práxis são parciais e fragmentárias. O intelectual teórico deixou de ser um sujeito,
uma consciência representante ou representativa. Aqueles que lutam deixaram de ser repre-
sentados. Quem fala e quem atua é sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou
atua (DE2, 307-308). * Os intelectuais descobriram que as massas não têm necessidade deles
para saber; elas sabem perfeita e claramente. Mas existe um sistema de poder que impede e
invalida esse discurso e esse saber. O papel do intelectual é lutar contra as formas do poder ali
onde é, ao mesmo tempo, objeto e instrumento, na ordem do saber, da verdade, da consciên-
cia, do discurso. Trata-se de uma prática local e regional, não totalizante (D82, 308). * Uma
teoria, seria, então, uma caixa de ferramentas. * Nossa dificuldade para encontrar formas
adequadas de luta provém de que ainda ignoramos o que é o poder. A teoria do Estado, as
análises tradicionais dos aparelhos de Estado não esgotam o campo de exercício e de funciona-
mento do poder (DE2, 312). * A generalidade da luta não se logra sob a forma da totalização. O
que faz a generalidade da luta é o sistema mesmo do poder, todas suas formas de exercício e de
aplicação (D82,315). Genealogiado capital. Em D82,452-456, seencontraráuma discussão
entre Foucault, Deleuze e Guattari a propósito da publicação de Généalogie du capital, t. I: Les
équipements du pouvoir. "O papel do Estado será cada vez maior: a polícia, o hospital, a sepa-
ração louco / não-louco; e depois a normalização. Quiçá a indústria farmacêutica se encarregue
dos hospitais psiquiátricos ou das prisões quando os internados forem tratados com neurolép-
ticos. [Tratar-se-á da] desestatização dos equipamentos coletivos que haviam sido o ponto de
ancoragem do poder do Estado' (D82,456).Édipo, psicanálise. Deleuze e Guattari (Capita-
lisme et schizophrénie, t. I, IAnti-Oedipe, Paris, 1972) mostraram que o triângulo edípico
pai-mãe-filho não é uma verdade intemporal nem uma verdade profundamente histórica de
nosso desejo, mas uma maneira de conter o desejo. Édipo não é o conteúdo secreto de nosso
desejo, mas a forma da coerção psicanalítica (DE2, 553-554). * O essencial no livro de Deleuze
é o questionamento da relação de poder que se estabelece, na cura psicanalítica, entre o psica-
nalista e o paciente; relação bastante parecida à que existe na psiquiatria clássica. Deleuze des-
creve a psicanálise como uma empresa de refamiliarização (D82,623-624). * O que há de inte-
ressante na análise de Deleuze é dizer que Édipo nao é nós, é os outros, esse grande Outro: o
médico, o psicanalista. A psicanálise como poder, isto é Édipo (D82,625). "O livro de Deleuze
é a crítica mais radical que já se fez da psicanálise. Uma crítica que não está feita desde o ponto
de vista da direita, de uma psiquiatria tradicional, em nome do bom sentido, em nome, como
foi o caso de Sartre, da consciência, da consciência cartesiana. Em nome de uma concepçào
extremamente tradicional do sujeito. Deleuze a fez em nome de algo novo. E, com bastante rigor,
provocou um desgosto físico e político à psicanálise" (DE2, 777).* Fotcatlt escreveu o prefácio
à edição estado-unidense de lAnti-Oedipe (NewYork,1977) (D83, 133-136). Deleuze e Guat-
tari combatem três inimigos: 1) os burocratas da revolução e os funcionários da verdade, 2) os
técnicos do desejo (psicanalistas e semiólogos), 3) o maior inimigo, o adversário estratégico, o
fascismo, não só o de Hitler ou Mussolini, mas o que está em nós, em nosso espírito, em nossa
conduta (DE3, 134). Propõe-se, com isso, a liberar a ação política de toda forma de paranoia
unitária e totalizante; fazer crescer a açào, o pensamento e os desejos por proliferação, não hie-
rarquicamente; liberar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração), preferir

I 00 DELEUzE, ciiles
o que e positivo e múltiplo; não imaginar que é necessário estar triste para ser militante;
não utilizar o peusamento para dar a uma prática política valor de verdade; não exigir da
política que restabeleça os direitos do indivíduo tal como foram definidos pela filosofia; não
se enamorar do poder (D83, 135-136). Nietzsche. "Em todo caso, se Deleuze escreyeu um
livro soberbo sobre Nietzsche, no resto de sua obra, a presença de Nietzsche é certamente
sensível, mas sem que haja nenhuma referência estridente nem nenhuma vontade de levan-
tar alto a bandeira de Nietzsche para alguns efeitos de retórica ou alguns et'eitos políticos"
(D84, 444). * Foucault escreyeu junto com G. Deleuze a introdução geral às Oeuvres phi-
losophiques complàtes de Nietzsche (DEl, 561-564). Genealogia. A genealogia se propõe
à reativação dos saberes locais, menores, como diz Deleuze, contra a hierarquizaçâo cien,
tífica do conhecimento (IDS, I 1).
Gilles DeleuzeII3ll: AN, 271.D87,549,561, 573,767 77t,775.DBz22,7s-81,84,86 B7, et, es. e8, 1e8, zo.1
205,306 307,309,311,313-315,392,139,452,454,523,553-554,623-628,632,634,642,644,777,779.781 782,815 816.
DE3, 133, 1.35-136, 162, \67,425,582,588 590, 625 626,717. DE4,433, 436,436-437,444-445,696. IDS, 11,20. PP,
88. SP, 29.

r *:. DEMOCRACIA (Democrati e)

Classe. "Se se entende por democracia o exercício efetivo do poder por uma população
que náo está dividida nem ordenada hierarquicamente em classes, é perfeitamente claro que
estamos muito longe dela. É tambem claro que vivemos em um regime de ditadura de classe,
de poder de classe que se impõe pela violência, ainda que os instrumentos dessa violência
sejam institucionais e constitucionais" (DE2, 495). Mercado. Dependemos de uma demo-
cracia de mercado, do controle que provérn da dominaçâo das forças clo mercado em uma
sociedade desigr"ral (D82, 497). Grécia. Antígona e Electra de Sófocles poden ser lidas
como uma ritualização da história do direito grego, a história do processo através do qual
o povo se apodera do direito de julgar, de dizer a verdade, de opor a verdade a seus chefes.
Esse direito foi a grande conquista da democracia grega (D82,571). Controle, vigilância.
Quanto mais democracia, maior a vigilância. Uma vigilância que se exerce quase sem que as
pessoas se deem conta, pela pressão do consumo (D82,722). * Foi a democracia, mais do
que determinado liberalismo que se desenvolveu no século XIX, o que aperfeiçoou técnicas
extremamente coercitivas. Elas foram a contrapartida da liberdade econômica; não se podia
liberar o indivíduo sem discipliná-lo (D84, 92). Liberalismo. A democracia e o estado de
direito náo sâo necessariamente liberais, nem o liberalismo é necessariamente democrático
ou está ligado ao estado de direito (DE3, 822). Socialdemocracia. A concepçào suposta-
mente marxista do poder como aparato do Estado, como instância de conservação, couro
superestrutura jurídica é encontrada essencialmente na socialdemocracia europeia do final
do século XIX. O problema da socialdemocracia era como fazer Marx funcionar dentro do
sistema jurídico da burguesia (DEa, 189).
Déntocratie [59]:DEt,615.D82,3.10, 384, 195. +97,513. 571, 702,72t 722.. DE3, 184, 280,614, 623,626,692,
721.822. D[,4, 49. 78, 92, I 89, 3.14, 3e2, 500, 504, 52 l, 587 ,617,751. HS, 130_131. 159. HS2. 242. IDS, 30, 180- 1 81, 185,
190, 234. PP, 78. SP,245, 293.

DEMOCRACIA (Démocratiei 101


:,-i.: DERRIDA, Jacques (1930 2004)

Cogito,loucura. Aleitura das Meditaçoes de Descartes, da relação entre o cogito ea


loucura, deu lugar a uma conhecida polêmica entre Foucault e Derrida. Yer: Cogito. Escritura,
discurso, metafísica. Respondendo a uma pergunta acerca da interpretação de Derrida sobre
a metafísica ocidental como dominação da palavra sobre a escritura, Foucault assinala: "Eu
não sou capaz de fazer tão altas especulações que permitiriam dizer: a história do discurso é a
repressão logocêntrica cla escritura. Se fosse assim, seria maravilhoso... Infelizmente, o material
humilde que eu manipulo não permite um tratamento tão majestoso. [...] parece-me que se
se quer fazer história de certos tipos de discurso, portadores de saber, não se pode não levar
a

em conta as relaçÕes de poder que existem na sociedade onde esse discurso funciona" (DE2,
401;. * 'n ' alguns anos, havia na França um costume 'a la Heideggerl diria: todo filósofo que
fazia uma história do pensamento ou de um ramo do saber devia partir pelo menos da Grécia
arcaica e sobretudo nunca ir mais além. Platão não podia ser senáo a decadência a partir da
qual tudo começava a cristalizar-se. Esse tipo de história, em forma de cristalização metafísi-
ca estabelecida de uma vez por todas com Platão, retomada aqui na França por Derrida, me
parece desolador" (DE2, 521).
lacquesDerrida[107]:D81,101,813,815.DE2,245,247218,250,252-258,262267,281-29s,409,s21.DE4,
,146. HS, 26, 351. PP, 295.

:r::, DESCARTES, René 1rs96,1650)

Loucura. Em Histoire de lafolie, Foucault explora o caráter contemporâneo da publicação


das Meditaçoes metafísicas ea criação do Hospital geral em Paris. Por um lado, o gesto institu-
cional que exciui o louco, confinando-o ao hospital, dando início ao 'grande enclausuramento";
por outro, na interpretação de Foucault, o gesto teórico que exclui a não razão, que a separa da
razão. "Na economia da dúvida, há um desequilíbrio fundamental entre a loucura, por um lado,
o sonho e o erro, por outro. Sua situação é diferente em relação à verdade e com aquele que
a busca. Sonhos ou ilusões estão superados pela estrutura mesma da verdade; mas a loucura
está excluída pelo sujeito que duvida" (HF, 68-69). "Se o
homem pode sempre estar louco, o
pensamento, como exercício cla soberania de um sujeito que se impõe o dever de perceber
o verdadeiro, não pode ser insensato" (HF, 70). Tal interpretação, acerca da relevância ou,
melhor, da especificidade da loucura no caminho da dúvida, deu lugar a uma polêmica com
Derrida da qual nos ocupamos no verbete Cogito. Cartesianismo. Em les mots et les choses,
é-nos oferecida uma interpretação do cartesianismo a partir daquilo que Foucault denomina
episteme clássica, ainda que e é necessário ter isso presente Foucault esteja se ocupando
- -
da episteme clássica, como fenômeno geral, e não de Descartes em particular. Segundo sua
ieitura, há que distinguir três coisas. 1) o mecanicismo que, durante um período bastante
breve, se propôs como modelo teórico para outros domínios do saber; 2) os esforços para
matematizar as ordens empíricas, às vezes aceito e proposto como horizonte de toda ciência,
às vezes também rechaçado; 3) a relação que todo o saber da época clássica mantém com a

102 DERRtDA, Jacques


máthesis como ciência geral da medida e da ordem. Pois ben, na expressão de Foucault, sotr
a fórmula rnágica e yazia da "influência cartesiana' ou "rnodelo neil,toniano'l confundem-se
frequentemente essas três coisas e, por isso, define-se o racionalismo como a tentativa de tornar
a rlatureza calculável e mecânica (MC, 70). "Porque o fundamental para a epistérne clássica
não é nern o sucesso ou o fracasso do mecanicismo, nem o direito ou a impossibilidaiie de
matematizar a natureza, mas uma relação ct>m a máthesls que, até o ínal do século XVIII,
permanecerá constante e inalterada. Essa relação i]presenta cluas características essenciais. Â
primeira é que as lelações entre os seres serão pensadas sob a forura da ordem e da medida,
mas com esse desequilibrio fundamental: sempre se pode referir os problemas da medida
àqueles da ordem" (MC, 7t). Medir e ordenar serão os r.nodos racionais de comparzrr. Foucault
reíere-se aqui às regras \rl, VII e XIV, das Regtlae de Descartes. Nesse sentido, o pensamento
c1ássico, à difêrença do Renascimento, exclui a semelhança como experlência fundamental e
forma gerai do saber; :rgora, é necessário submetê-la à análise segundo a medida e a oldem
(MC, 66-67). Modernidade. Em les ntots et les choses, For.rcault opoe o cogito moderno e
o cogito cartesiano. Yer Cogito, Home'm. Nesse çontexto, a Modernidade nào começa conl
Descartes, mas, eul ternlos filosóficos, corn Kant. N{ais adiante, desde a perspectiva do estudo
histórico das práticas de si mesmo, Foucault faz coincidir o começo da Nloderniclade com o que
denomina de "momento cartesianoiYer Cuidado, N[odernidade. Sujeito: A identiÍrcaçâo
sujeito-consciência ao nír,el transcendental e característica da filosofia ocidental de Descartes
até os nossos dias (DE2, 372). O sr.rjeito foi o problema fundamental da filosoÍia n-roderna de
Descartes a Sartre (DE3, 590).
RenéDescqrtes[214]:DFl,171,247,)61,127,348,116,451.155,.1-57-.158,461,479,499,5-\15:il,-596,(r1t,649,
66),,7 68,770, t-7 5, 78,1. DE2, 1 06, 1 1 3. 245-2,18, 250-25 1 , 253 256. 259 260, 262-268,283 295,372,376, 382, '177-'179, '18.1,

5+0,547,519,751.DE3,10,4-r1,433,571,5q0.D84,.52,1ó9,231,.110--1t1,'146,6i0-6J1,67e-6E0,71-i,767,711e,u10.HF,
67,69-70,186-187,210,136,289,294,311,337,366,375,412,414.431,137,638.HS,19,25 28,30,183,281.296,340-'+',11.
MC,65,ô6,84, 138,140, 217,260,314,33.1 335, i57. NC, IX. PP,29, -i8, tl0, t39,184,295. SP, li8

: :,,. DESCONTINUIDADE (Discontinuite)

Foucault assillala quatro consequências da nova disposição da história: a multiplicação das


rupturas, a nova importância da noção de descontinuidade, a impossibilidade de uma histó-
ria global, o surgimento de outros problemas metodológicos. "Para a história, etu sua forma
clássic:r, a descontinuidade era, âo mesmo tempo, o dado e o impensável: o que se oferecia
na forma de acontecimentos dispersos (decisões, acidentes, iniciativas, descobrimentos) e o
que devia ser delimitado pela análise, reduzido e suprimido para que apareça a continuidade
dos fatos [...] Ela [a descontinuidade] se tornou, agora, um dos elemeutos funclamentais da
análise histórica" (AS, 16). A noção de clescontinuidade, segundo Foucault, tem três funçoes:
1) constitui uma operação deliberada do historiador (que deve distinguir níveis, os metodos
adequados a cada uma, suas periodizaçÕes); 2) e também o resultado da descrição; 3) Trata-
se deum conceito que não cessa de ser ajustado (toma novas formas e funções especíÍicas de
acordo com os níveis que se lhes são designados) (AS, 16-17). A arqueologia, que se situa a si
mesma dentro desse marco de renovação do conhecimento histórico, tem dupla tarefa. Por um

DESCONTINUIDADE (Di5coni/nuire) I03


lado, desfazer-se daquelas categorias com as quais tradicionalmente assegurou, para além de
todo acontecimento, a continuidade do pensamento, da razáo, do saber: autor, obra, livro.
Por outro lado, elaborar as próprias categorias, as que permitam pensar a descontinuidade na
ordem do discursivo (ver: Formação discursiva). "Tratava-se [na arqueologia] de analisar
essa história em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria de antemão, de
posicioná-la em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia encerrar, de deixá-la
desdobrar-se em um anonimato ao qual nenhuma constituição transcendental imporia a
forma do sujeito, de abri-la a uma temporalidade que não prometeria o retorno de nenhuma
aurora" (AS,264-265). * "Eu me esforço, ao contrário, por mostrar que a descontinuidade
não é um vazio monótono e impensável entre os acontecimentos que haveria que apressar-se
a preencher (duas soluções perfeitamente simétricas) com a triste plenitude da causa ou pelo
ágil jogo do espírito; mas que ela é um jogo de transformações específicas, diferentes umas
de outras (cada uma com suas condições, suas regras, seu nível) e ligadas entre elas segundo
esquemas de dependência. A história é a análise descritiva e a teoria dessas transformações"
(DEl, 680). Yer: Arqueologia, Episteme.
Discontinuité [ 126l: AN, 8 1, I 42. AS, 12-13, 16-17 , 21,23, 24, 31, 40, 44, 46,74,78, 105, 153, 159, 225, 228, 264.
DEr,108,191,491,504-505,586,673-674,677,679,680,696,698-701,706,71,0,7t2,717,731.D82,37,5152,6465,
279, 28t,315,793. DE3, 3 1, 142-144. 167 , 434-435, 641. DF.4, 23, 25, 49, 56, 457, 569,7 69-770. }IF, 132, 144,520. HS,
290-292,305, 400, 448, 468. HS l, 1 32. HS3, 229.tDç,12,20,104. MC, 43, 87, t2s,22s,280,286, 288, 30s, 308, 349, 370,
389,391. NC, 1r0. OD, s4, s8,60. pp,3, s4. sp, 132.

r*?. DESEJO (Désil

Na obra de Foucault, encontramos numerosíssimas referências ao tema do desejo, sem que ele
nos ofereça ou pretenda fazer uma teoria do desejo. Mas cada um dos campos de análise de Foucault
deu lugar a considerações acerca do desejo. Saber. 1) representação. O fim da episteme clássica
coincidirá com o retrocesso da representação com respeito à linguagem, ao vivente, à necessida-
de. e do desejo escapará ao modo de ser da representação (MC,
A força surda da necessidade
*
222). A psicanálise serve-se da relação de transferência para descobrir, nos confins exteriores
à representação, o Desejo, a Lei e a Morte (MC, 389). Ver: Episteme clássica.2) Finitude. No
fundo de todas as empiricidades que mostram as limitações concretas da existência do homem,
descobre-se uma finitude mais radical que está dada pela espacialidade do corpo, pela abertura
do desejo e pelo tempo da linguagem (MC, 326). Yer: Homem.3) Psicanrilise, psicologia. * À
diferença das ciências humanas (a psicologia, a sociologia, por exemplo) que se movem no âmbito
da representação, a psicanálise ayança para uma região em que a representação fica em suspenso.
Nessa região, esboçam-se três figuras: a vida, que com suas funções e suas normas vem fundando-
se na repetição muda da Morte; os conflitosregras, na abertura nua do Desejo; as significações
e as

e os sistemas em uma linguagem que é, ao mesmo tempo, Lei (MC, 386). * A psicanálise se serye

da relaçáo de transferência para descobrir, nos confins exteriores à representação, o Desejo, a Lei
e a Morte, que designam no extremo da linguagem e da prática analítica as figuras concretas da
finitude (MC, 389). Poder. l) Repressão, poder, lei. * No tema geral do poder que reprime o sexo
e na ideia da lei como constitutiva do desejo, encontra-se uma mesma suposta mecânica do poder,

I04 DESEJo (Désir)


definida de maneira bastante limitacla. Seria um poder cuja única potência consiste em dizer "nâo l
sem produzir nada; um poder concebido essencialmente segundo um modo jurídico, centrado no
enunciado da lei e no funcionamento da proibição (HSf , 112-113). * É necessário desprender-se
da imagem do poder-lei, do poder-soberania que os teóricos do direito e da instituição monárquica
desenhararn; desprender-se do privilégio teórico da lei e da soberania (HSl, I 18). * Essa concepçâo
jurídico-discursiva do poder domina tanto a temática da repressão como a teoria da lei constitutiva
do desejo. A distinção entre a análise que se faz em termos de repressão dos instintos e a análise
que se faz em tertros de lei do desejo passa pelo modo de conceber a dinâmica clas pulsões, não o
poder (HSl, 109). * A relação de poder está ali onde há desejo; é, pois, uma ilusão denunciá-lo em
termos de repressão e é vã a busca de um desejo tbra do poder (HSl, 108). Yer: Poder, Repressão.
2) Verdade. * "[...] o discurso verdadeiro não é mais, desde os gregos, aquele que responde ao
desejo ou aquele que exerce o poder. Na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso
verdadeiro, o que está ern jogo senão o desejo e o poder?" (OD,22).3) Édipo. Considerar a his-
tória de Édipo náo conro o ponto de origem da formulação do desejo ou das Íbrmas do desejo do
homenr, mas, ao contrário, como Lrm episódio bastante curioso da história do.saber (D82,542)..
Édipo não seria uma verdade da natureza, mas um instrumento de limitação e de coerção que os
psicanalistas utilizam, desde Freud, para conter o desejo e fàzê-lo entrar em uma estrutura fami-
liar definida historicamente (DE2,,553). Ver: Edipo.4) Deleuze. Deleuze e Guattari trataram de
mostrar como o triângulo edípico pai-mâe-f,lho náo é uma yerdade aternporal nem uma rerdade
profundamente histórica de nosso desejo, mas uma estratégia de poder (DEZ, -sS:). Yer: Deleuze,
Édipo.5) Conhecimento,prazer.* Em Aristóteles, a relação conhecimento-prazer-verdade que
o ato de ver manifesta é transportada à contemplação teórica. O desejo de conhecer sr,rpõe :r relação
entre conhecimento, verdade eprazer (D82,243).Ética. l) homem de desejo. * A experiência
moderna da sexualidade e a experiência cristã da carne são duas figuras históricas dominadas pelo
homenr de desejo. Os volumes I e II de Histoire de la sexualité se propõem a estudar os jogos de
verdade na relaçiio consigo mesmo como sujeito no âmbito do homem de desejo; constituiriam
uma genealogia do homem de desejo desde a Antiguidade clássica até os primeiros seculos do
cristianismo (HS2, 1l-13). * A genealogia do homem de desejo não é um exirme das sucessivas
concepções do desejo, da concupiscência ou da libido, mas uma análise das práticas pelas quais os
hdir,íduos se constituem como sujeitos de yerdade em relação ao desejo, isto é, das práticas que
permitem dizer a verdade do desejo (HS2, 11). 2) Dispositivos de sexualidade e de aliança.
Com a psicanálise, é a sexualidade que dá corpo e vida às regras de aliança, saturando-as de desejo
(HSl, 150). * Freud fez do mundo da imaginação um mundo habitado pelo desejo, assim como
a metafísica clássica fez que o querer e o entendimento habitassem o mundo físico (DEl, 70). 3)
Confissão, scientia sexualis. * "O desejo era assim um elemento consÍitutivo do pecado. E liberar
o desejo não é outra coisa que cada um decifrar seu inconsciente como os psicanalistas e, muito
antes, a disciplina da confissão catóiica o havia feito" (D83, -
Ãdifêrença da ttrs erotica, na
52.7).
scientia sexualis encontramos um tipo de saber que problematiza o desejo, não o prazer (DE3,
l04). Ver: ConJtssao.4) Sade. * O aparecimento do sadismo se situa no momento em que a des-
ruzão, encermda depois de mais de um século e reduzida ao silêncio, reaparece não como figura do
mundo nem como imagem, mas como discurso e desejo (HF,453). *'A grande tentativa de Sade,
com tudo o que pode ter de patético, reside no fato que trata de introduzir a desordem do desejo
em um mundo dominado pela ordem e pela classificação. Isso é o que significa exatamente o que

DESEJO (Desir) 105


denomina'libertinageml O libertino é o homem dotado de um desejo suficientemente forte e de
um espírito suficientemente frio para conseguir fazer entrar todas as potencialidades de seu desejo
em uma combinatória que esgota absolutamente todas" (D82, 375).Yer Sade.5) Aphrodísia,
prazeÍ. A atração exercida pelo prazer e a força do desejo que leva a ele formam, com o ato mesmo
dos aphrodísia, uma unidade essencial para os gregos da época clássica. Com o helenismo e com
o cristianismo, essa unidade começará a se fragmentar (HS2, 51-52). No uso dos aphrodísia, o
objetivo não e anular o prazer; ao contrário, trata-se de mantê-lo (HS2, 66). Mas, nos gregos - por
exemplo em Aristóteles, posto que o desejo de prazer é insaciável -, é necessária a medida da razão
que caracterizaà sophrosine (HS2, 100). * Conceder ao prazer o menor espaço possível, utilizá-
1o, apesar disso, para ter filhos, praticá-lo apenas dentro da instituição do matrimônio; esses três
princípios que se consicleram característicos do cristianismo, estavam já presentes r.ro helenismo
+
e no mundo romano (DE3, 559). Yer. Aphrodisia, Prazer.6) Hermenêutica: Na experiência
cristã da carne, a problematização da conduta sexual não éo prazer ou a estética de seus usos, mas
a hermenêutica purificadora do desejo (H.52,278).Yer: Cuidado.
Désir [912]: AN, l8 20, 114, 120-121,132 134, 146, 1-55, 165 166, 170, 17s,177 180,1IJ7, 189, 195,203,205'217 220'

229 230,247,249,251 253,257-258,261,263-261,268,288,309-310. AS,22,21,31,65,89-91, 138, 151, 1-53, 196-197. DEl,


69-71,74,78,88-89,92,94,105,107,110,112-113,115116,124,162,219,221-227,233,263,297 298,300,305,307308,312,
327 -328,329.334-336,426,512,521-522.525,532-533,688,700,749,759,7f13, 785 786, 802, 818.D82,2\,67 ,7 5, 78, 84, 94,

102, 1 16, 145, 16l,164,226,232,).42-243,314,325,3s5,365,375.377,386, 395, 447,448, s16, s42, 547, s47, ss3-ss5, 6l 1,
623621,626 628,63s,639,611,644,651,65365-5,660,664,678,692,695,707,710,713-714,746,754,757,769,772,779,
814-815,819-820,825-826.DE3,21,54,83,90-91,98,104,133 135,149,227,262,265,280,-103,-163,381-382,422,421,470,
174,517,526-527,553-556, 559, 568,594,603,617,628,733, t-47,781,783.D84,79, 108, 121, 148-149, 163-16,1, 175, 183,

198,205,215,24,1,246,248,25]l-252,295-297,303,310,313,316-317,320,326,333,352,386,389-397,399-401,,145,467 169,
529, 533, 540 542, 546, 552. 557,583, 592, 605, 608, 61 1, 614, 616 617 , 619 620, 622, 633-634, 637 , 657 ,661, 663, 668, 672,
705,710711,717-718,730,735,738,751,783,802,810-811.HF,35-38,76,122,137 138,221,231,372,384,413,423-126,
152-453,460,466 467,636,639,643,657-659,671. HS,41,49,84,88, 134, 211 212,2t-4,330-331,363,405,413 414. HSl,
20,28,30,32-33,63,103,107 109,112,11,1,118,14,1,149-1-50,170 172,198,207-208.HS2,10-13,18-19,27,34,'18,50--55,
59.62,65,66,78,81,89,98, r00-103, 106, 151-152, 155, 162, 180, 186,208,210,2\2,218,226,244,216,248,252-253.25s,
261,263,265,267 269,278.}153,22-25,60,81,83,8,1 85,97-98,128-I30,136,145, I50, I55, I57-160,162,165, I67, I79,193,
229,232,238,25t-252. IDS,36, 108, 132. MC, 107, 121, 134, 184-185, 187, 203-204,22r 224,235-237,250,255,269,320,
325-326,373,386 387, 389. MMPE, 26,38,42-46,49,66. MMPS, 26, 38, 42 46, 49, 66. NC, 16, 84. OD, 8-9, 12,15,22-23,
48.80. PP,6l, 102,1.07,1.74 :l75, 18,1-185, 189,275,293. RR, 183, 199. SP, 108, 114, 124,182.243,252,272,310.

: .-:=. D E S PS I Q U I AT R I ZA Ç AO (D e p sy c h i a t r i s a t i o n)

O curso dos anos 1973-1974 no Collêge de France foi dedicado ao "poderpsiquiátrico'i


Foucault distingue duas formas ou dois movimentos de despsiquiaÍnzação. O primeiro se
inicia com Babinksi, quem, à diferença de Charcot, quer reduzir ao mínimo as manifestações
da doença mental; em outras palavras, trata-se de eliminar o teatro introduzido por Charcot
(uma espécie de pasteurização do hospital psiquiátrico). As duas formas mais notáveis desse
processo de despsiquiaÍrizaçâo foram a psicocirurgia e a farmacologia. A segunda forma de
despsiquiatrização, inversamente à anterior, busca que se inverta, na relação médico-paciente,
a direção da produção da verdade. Há que escutar a verdade da loucura. Nesse caso, para man-
ter o poder médico, agora "despsiquiatrizado'l o primeiro movimento foi desativar os efeitos

1 06 DESPStQUtATRIzAçAo lDepsychiatrisation)
próprios c1o espaço asilar: regras do "cara a cara' entre médico e paciente (livre contrato entre
paciente e médico); regras da liberdade discursiva; regras do divã (que só concede realidade
aos efeitos que se produzem ali). Em poucas palavras, a psicanálise foi a outra grande fbrma
de psiquiatrização. 'A essas duas grandes tbrmas de despsiquiatrizaçâo, arnbas conservado-
ras (umai porque anula a produção da verdade, outra porque trata de adequar a produção da
r,erdade e o poder medico), se opõe a antipsiquiatria' (DE2, 683).
Dépsychiatrisation [11 ]: DE2, 681 68i,68ô. DE3, 3i5, 349 350. PP, 137.

i ;= DIAGNOSTICAR (Diagnostiquer)

Várias vezes, Foucault definiu seu trabalho como uma tbrma de "jornalismol um "jorna-
lismo Íilosóhco" que quer diagnosticar a atualidade. Frequentemente também, esse modo de
entender a Íilosofia é apresentado como uma herança de Nietzsche. A diferença de urna larga
tradição filosófica que havia têito do eterno e do irnóvel o objeto da filosofia, Nietzsche introduz
o "hoje" no campo da filosofia (D82,434; DE3, 431, 573). Pois bem, nos dois artigos escritos
por ocasião do bicenteniírio da célebre resposta de Kant à questão colocada pelaBerlinische
Monatsschrifi, "O que é o Iluminismo?'l não é Nietzsche, mas Kant, quern inaugura essa forma
de interrogação Íilosófica como diagnóstico da atualidade ou, segundo outra expressào, como
'bntologia do presente" (DE4, 564). * Pode-se interrogar o presente como Platâo to Político,
isto e, como uma época do rnundo distinta ou separada de outras; como Santo Agostinho, para
descobrir os signos que anunciam um acontecinento próximo; como rv'ico, como urn rnornento
de transição para unr mundo novo. Para Kant, a atualidade, o presente, não é nem uma epoca do
mundo, nem um acontecimento revelador do iminente, nem a aurora de uma realização. Kant,
com efeito, define a atualidade em termos completamente negatir.os: saída do estado de minori-
dade. O presente, para Kant, coloca-se assim simplesmente em termos de diÍàrença (D84,564,
680-681). Não como uma relação longitudinal do presente com respeito aos antigos, mas urla
relaçáo "sagital' (DE4, 681). Interrogar o presente em termos de diferença define, para Foucault,
a atitude de Modernidade (um éthos,rno uma época) (DE4, 568). "Eu caracterizaria esse áflros

61osófico próprio da ontologia crítica de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos
limites que podemos atravessar e, assinr, colno um trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos
*
enquanto seres livres" (D84, 57 5) . Kant se apresenta, desse modo, como o lundador das duas
grandes tradições críticas nas quais se divide a Írlosofia rnoderna. Por um lado, a analítíca da
verdade que se interroga acerca de como é possível o conhecimento verdadeiro. Por outro, rz

ontologia do presente, que se pergunta o que éa atualidade. Nessa forma de filosofia, que vai de
Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Weber, Foucault situa sua própria tarefa
filosófica (DE4, 687-688). * Foucault, em uma entrevista dos anos primeiros (1967), diz que
"La philosophie structuraliste permet de diagnostiquer ce qubst'aujourd'hui"' (DEl, 580-
584). * Pode-se caracterizar o conceito tbucaultiano de atualidade rnediante três elementos: a
repetiçâo, a diferença e o limite. Diagnosticar a realidade consiste ern estabelecer o que constitui
nosso presente, os acontecimentos que repetimos (por exemplo, a separação razãolloucura
[DE3, 574]). Mas a atualidade não é sornente o presente no sentido da repetição. Diagnosticar

DIAGNOSTICAR (Diagnostiquer) lO7


a atualidade consiste também em marcar as diferenças. Não se trata de compreender o presente
a partir do passado (como uma época do mundo) nem do futuro (como anúncio ou promessa),
mas em sua diferença, a partir de si mesmo. O conceito de crítica permite vincular o presente-
repetição e o presente-diferença.
Diagnostiquer [25l : ,{N, 32. DEr, 580, 580-58 1, 583, 606 -607, 620,665,753. DE2,140, 149, 1 59, 686,772. D83,
57 3. DF4, 307. HF, 171, 1 80. MMPS, 93. pp, t0, 292. Sp, 228, 259, 3 10.

: : +. DIALÉT ICA (D i a t ecti q u e)

Loucura. O século XVI privilegiou uma experiência dialética da loucura; mais que
nenhuma outra época foi sensível ao que podia haver de indefinidamente reversível entre a
razão e a razâo da loucura (HF ,222). A clausura da época clássica é o espaço onde se orga-
nizam, com a coerência de uma prática, a inquietação dialética da consciência e a repetição
ritual de uma separação (HF, 223). Antropologia. No início do século XIX, constituiu-se
uma disposição do saber na qual figuram, ao mesmo tempo, a historicidade da economia,
a finitude da existência humana e o acabamento da história. História, antropoiogia e sus-
pensão do devir se pertencem segundo uma figura que define uma das conexões maiores
do pensamento do século XIX. A erosão lenta ou violenta da história (como desaceleração
indefinida ou inversão radical, Ricardo ou Marx, por exemplo) fará brotar a verdade antro-
pológica do homem. No final do século XIX, Nietzsche destruiu as promessas combinadas
da antropologia e da dialética (MC, 273-275).Yer Homem. Sartre. "Pois bem, me parece
que Sartre, escrevendo a Crítica da razao dialética, em certo sentido pôs um ponto final,
fechou o parêntesis para todo um episódio de nossa cultura que começa com Hegel. Fez tudo
o que pôde para integrar a cultura contemporânea, ou seja, as aquisições da psicanálise, da
economia política, da história, da sociologia à dialética. Mas é característico que não tenha
podido deixar de lado tudo o que provém da razao analítica e que profundamente faz parte
de nossa cultura contemporânea: lógica, teoria da informação, linguística, formalismo. A
Crítica da razão dialética é o magníf,co e patético esforço de um homem do século XIX
para pensar o século XX. Nesse sentido, Sartre é o último hegeliano e, também diria, o
último marxista" (DEl, 541-542). Razã,o analítica, cultura não dialética. Foucault
identifica uma série de manifestações do que denomina cultura analítica ou cultura não
dialética: ela começou com Nietzsche (com o descobrimento da mútua pertença da morte
de Deus e a morte do homem), continuou com Heidegger (com a tentativa de retomar a
relação fundamental com o ser mediante um retorno à origem grega), com Russell (com
a crítica lógica da filosofia), com Wittgenstein (através do problema das relações entre a
lógica e a linguagem), com Lévi-Strauss. * Contudo, Foucault sublinha a necessidade de
evitar um retorno àrazâo analítica do século XVIII. Enquanto a razão analítica do século
XVIII se caracterizou por sua referência à natureza, earazâo dialética do século XIX se
caracterizou por sua referência à existência (as reiações entre o indivíduo e a sociedade, da
consciência à história, da práxis à vida, do sentido ao não sentido, do vivente ao inerte), a
razão não dialética do século XX se constitui pela sua referência ao saber (DEr, 542). * Na
linguística, na etnologia, na história das religioes e na sociologia, os conceitos de ordem

108 otnlÉTlcn lDratectique)


dialética, formados no século XIX, foram em grande parte abandonados (DE1,585). Marx.
A reativação e transformaçáo dos temas marxistas (Althusser, por exemplo) tentam separar
Marx tanto do positivismo como de Hegel (DEl, 825). Poder. Nas relações de poder, en-
contramos fenômenos complexos que não obedecem à forma hegeliana da dialética (DE2,
754). A dialética hegeliana do senhor e do escravo é o mecanismo pelo qual o poder do
senhor se esvazia pelo próprio exercício; Foucault, no entanto, quer mostrar como o poder
se reforça com o seu exercício, não passa ao outro lado. (DE2, 817) As relações de poder
são recíprocas, não dialéticas(DE3,471). Cuidado, Platão. Em Platáo, graças ao diálogo,
estabelecia-se um nexo dialético entre a contemplação de si e o cuidado de si. Na época im-
perial (séculos I-II), desaparece essa estrutura dialética; esses dois temas se complementam
(D84,797). Guerra, história. A dialética codifica a luta, a guerra) o enfrentamento em
uma lógica da contradição; ela assegura, assim, a constituição de um sujeito universal, de
uma reconciliação. A dialética é a pacificação. Através dela, a filosofia colonizou o discurso
histórico-político dos séculos XVII e XVIII (IDS, 50). * A possibilidade de uma filosofia da
história encontrará, no presente, o momento em que o universal manifesta sua verdade. Teve
lugar, desse modo, uma autodialetização do discurso histórico (IDS, 2 I 1 ). Transgressão.
A linguagem da transgressão (Bataille) é uma linguagem não dialética do limite (DF'L,244).
Yer Transgressão. Yer também: Blanchot, Deleuze.
Dialectique [226J: AN, 177. AS,5l ,169.D81,73,94-95. 100, 129, 143-145,149,160 161, 180, t84,218,236,238-239,
24r,241.247-249,257,266,268,328329,34t,523-524,541-544,573,585 586,606,609,611,6t3,7r8,727,787,815,81ó,
825,840.DE2,65,90-91,321,.108,.12.1-125,751,808-809,817.D83,34,53,145,311,426 427.171-172,5t'6.DE4,20,65,
197,294,29i,439,740,790-79).,793,797.HF.30,49,84,86,89,99,100,143,200,217,222-223,233,237,273,312,336,
349,358,417,453,469,543,589,590-591,599,608,651,654,659'660. HS,4l' 141' 284,3s9. HS2, 101, 264. IDS,37, s0,
52,72,96,193, l9{, 21 1 -2 12. MC,257,261,275, 3i0-33 1, 350-351. MNÍPE, lÔ, 20' 12, 25, 83, 8ó-87, 93-9'1, I 00- 102, 109.
MMPS, 16, 20,22,25,98. NC,51,97. PP, 150, 161,

:: :. Dl ETÉT ICA (D i eteti q u e)

Em L'usage des plaisir"s,Foucault se ocupa de quatro formas principais da estilização da


conduta sexual: em relação ao corpo, a Dietética; em relaçáo ao matrirnônio, a Econômica;
em relaçâo ao amor aos mancebos, a Erótica; em relação à verdacle, a Filosofia (HS2, 44).
'A preocupaçâo principal dessa reflexâo era definir o uso dos prazeres (suas condiçÕes favo-
ráveis, sua prática útil, sua rarefação necessária) em função de certa maneira de ocupar-se
de seu corpo. A preocupação era muito mais dietética que 'terapêutical trata-se do regime
ter.rdente a regular uma atividade que era reconhecida como importante para a saúde" (HS,
112). O tratamento da dietética do seculo V a.C. ao século III a.C. se estende da pág. 109 a
156. A esse respeito, Foucault aborda quatro questões: 1) Do regime em geral: preocupação
de estabelecer a medida dos exercícios (naturais e vioientos), os alimentos e as bebidas (em
relação ao ciima e às atividades), os sonhos (as horas que se lhes dedicam, as condições enr
que se dorme), as relaçoes sexuais. Na regulação dessas atividades, não entra em questão
só o corpo, mas também a alma. A relação entre a saúde do corpo e da alma constitui um
eixo centr aI da dietética. * A dieta, por outro lado, não era concebida como uma obediência

DtETÉTtcA (Dietetique) I 09
cega ao saber de outro; ela devia ser uma prática reflexa de si mesmo e de seu corpo (HS2,
l2l).2) A dieta dos prazeres: a dietética problematiza a prática sexual nào como um con-
junto de atos que se possam diferenciar segundo suas formas e seu valor; mas como uma
atividade à qual se deve deixar um livre curso ou pôr um freio segundo a quantidade e as
circunstâncias. Mais que organizar-se na forma binária do permitido e o proibido, sugere
uma oscilação permanente entre o mais e o menos (HS2, 131-132).3) Riscos e perigos: a
necessidade de moderar a prática dos prazeres não repousa sobre o postulado de que os
atos sexuais seriam por natureza maus. No entanto, peias consequências do ato sexual para
o corpo do indivíduo e pela preocupação com a progenitura, devem ser objeto de cuidado
e medida (HS2, 133 e 137).4) O ato, o gasto, a morte: o ato sexual foi considerado, desde
sua origem, como uma mecânica violenta; atribui-se a Hipócrates tê-1o considerado como
uma pequena epilepsia (HS2, 142). Expulsando o sêmen, o ser vivente não só libera um
humor que teria em excesso, mas também se priva de elementos valiosos para a existência
(HS2, 146). O ato sexual é o ponto em que se cruza a vida individual, destinada à morte e
*
uma imortalidade que toma a forma da especie (HS2, 150). De maneira geral, pode-se
observar uma notável continuidade, desde a época clássica ao helenismo, da dietética, de seus
temas, de seus princípios que, em todo caso, foram reÍinados e detalhados. Mais que de uma
mudança, devemos falar de uma intensificação da preocupação por si mesmo e pelo corpo.
Nesse quadro, marcado pela solicitude pelo corpo, o meio ambiente e as circunstâncias, a
medicina da época helenística abordou a questáo dos prazeres sexuais: de sua natureza, de
seus mecanismos, de seu valor positivo e negativo para o indivíduo, do regime a que convém
submetê-lo (}J.53, 126, 272).
Diététique[53]:D84,611.HS,43,58-59,102,144,154,156.HS2,44,107,109,112-116,119-121,124,I25,I30 131,

t 34, | 6t, 218, 224, 230, 234. 275. HS3, t24, 126, 166, 272. NC, 35.

: :.:. DISCI PLI NA (Drscrpirne)

Em Foucault, encontramos principalmente dois usos do termo'disciplinal Um na ordem


do saber (forma discursiva de controle da produção de novos discursos) e outro na do poder
(o conjunto de técnicas em virtude das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resul-
tado a singularização dos indivíduos [DE3,516]). Mas é necessário enfatizar que não são
dois conceitos sem relação. Ainda que a questão da disciplina - desde o ponto de vista do
poder, isto é, dessa forma de exercício do poder que tem por objeto os corpos e por objetivo
sua normalização - tenha sido a que principalmente ocupou os especialistas e interessou aos
leitores, não se pode deixar de lado o uso discursivo do conceito de disciplina. Esse uso re-
sulta particularmente interessante para iluminar o modo como Foucault concebe as relações
entre o saber e o poder. * A disciplina como técnica política não foi inventada no século XVIII,
mas sim elaborada a partir do momento em que o exercício monárquico do poder se tornou
demasiado custoso e pouco eficaz. A história da disciplina se estende ao início do cristianismo
eà Antiguidade; os monastérios são um exemplo disso (D83, 514-515). Discurso. Emlhrdre
du discours, Foucault enumera os mecanismos de limitação dos discursos (OD, 331-38). Aí a

I I0 DtsctPLtNA (Disclpline)
disciplina aparece como uma das formas internas desse controle, isto é, como uma forma
discursiva de limitação clo discr.rrsivo. As outras duas fon.nas internas que precedem à disci-
plina são o comentário e o autor. A diferença desse último, a disciplina define um campo
anônimo de rnétodos, proposiçoes consideradas conro verdadeiras, um jogo de regras e defi-
nições, técnicas e instrumentos (OD, 32). A diferençir do comentário, não busca a repetição;
antes, exige a novidade, a geração de prqpeslç5.s ainda não f-ormuladas. A disciplina deter-
mina as condiçoes que uma determinacla proposição deve cumprir para entrar no campo do
vercladeiro: estabelece de quais objetos se deve falar, que instrumentos conceituiris ou técnicas
há que utilizar, em que horizonte teórico deve inscrever-se. Disciplinarização dos saberes.
Em "ll faut détênclre la société ", Iroucault distingue entre história das çiências e genealogia dos
saberes: enquanto a primeira se articula em torno do eixo estrutura do conhecimento/exigên-
cia de verdade, a segunda se dá ern torno do eixo prática dÍscursiva/enfrentamento de pocleres.
A tarefa de uma genealogia dos saberes é, antes de tudo, desfazer a estratégia do Iluminismo:
a NÍodernidade não é o avanço da luz contra as sombras, do conhecimento contra a ignorân-
cia, rnas sim uma história de cornbates entre saberes, uma luta pela disciplinarização do co-
nhecimento. * Um exemplo de genealogia dos saberes é a organização do saber técnico e
tecnológico no final do seculo XVIII. Até então, segredo e iiberdade haviarn sido característi-
cas desse tipo de saberes; um segredo que assegurava o privilegio de quem o possuía e a in-
dependência de cada gênero de conhecimento que permitia, por sua vez, a independência de
queÍn o manejava. Ao Íural do século XVIII, por ocasião das novas fbrmas de produção e das
exigências econômicas, faz-se necessário ordenar esse campo. Instaia-se, para dizê-lo de algum
modo, uma luta econômico-política ern torno aos sarberes. O Estado inten'irá para disciplinar
o conhecimento mediante quatro operaçÕes estratégicas: a) Eliminação e clesqualificação dos
saberes intiteis, economicamente custosos. b) Normalização dos saberes: ajustá-los tllls aos
outros, perrnitir que se comuniquem entre eles. c) ClassiÍtcação hierárquica: dos mais parti-
*
culares aos mais gerais. d) Centralizitção piramidal. É nessa luta econômico-política em
torno aos saberes em que devemos colocar o projeto da Enciclopedia e a criaçao das grandes
escolas (de minas, de pontes, de caminhos). E é nesse processo de disciplinarizaçào que surge
a ciência (previamente o que existia eram as ciências). A Írlosofia deixa, então, seu lugar de
*
saber funclamental, abandona a exigência de verdade, e se instaura a da ciência. E nessa e
por luta também que surge a universidade moderna: seleção de saberes, institucionali-
essa
zaçáo do conhecirlento e, consequentemente, o desaparecimento do sâbio-arnateur. Surge
também um novo dogmatismo que não tem como objetivo o conteúdo dos enunciados, mas
as lbrmas da enunciação. Não ortodoxia, mas ortologia (IDS, 159-165). Poder. A terceira
parte de Surveiller et punir (135-229) está inteiramente dedicada à análise do poder discipli-
nar. Aí, Foucault especifica detalhadarnente o que entende por poder disciplinar, a relação coru
as ciênciashumanas, a signiÍicação para a história social e política moderna. Trata-se de uma
forrna de poder que teul como objetivo os corpos em seus detalhes, em sua organização in-
terna, na elicácia de seus movimentos. Nesse sentido, há que distingui-la das outras formas
de poder que tarnbém têm por objeto o corpo: a escrqvidao (que estabelece uma relação de
propriedade), a domesticaçrio (que se define pela satisfação do capricho do amo), a vassalq-
gent (uma relação codificada entre o senhor e os súditos, mas distante) e o ascetismo cristao
(marcado pela renúrncia, não pelo fortalecimento das capacidades corporais). * A disciplina

DISCIPLINA lDiscipline) 1I1


mantém com o corpo uma relação analítica. Segundo a linguagem de Foucault, encontramos
uma microfísica do poder, com uma anatomia política do corpo cuja finalidade é produzir
corpos úteis e dóceis ou, se quisermos, úteis na medida de sua docilidade. Com efeito, o ob-
jetivo da disciplina é aumentar a força econômica do corpo e, ao mesmo tempo, reduzir sua
força política. * Por isso, devemos considerar a disciplina desde um ponto de vista positivo ou
produtivo como geradora de individualidade. A forma da individualidade disciplinar respon-
de, segundo Foucault, a quatro características: celular, orgânica, genética e combinatória. Cada
uma dessas características corresponde a técnicas do poder disciplinar: 1) A distribuição dos
corpos no espaço. Para isso, são empregados vários procedimentos. A clausura: definição do
lugar do heterogêneo. O quadriculamento: localização elementar, cada corpo em seu lugar,
tantos espaços como corpos. Localizações funcionais: articulação do espaço individual, por
exemplo, com os processos de produção. A unidade do espaço disciplinar é a posrçáo na Jila
(à diferença do território, unidade de dominação, e do lugar, unidade de residência): espaço
definido partir de uma classificação. Em outras palavras, trata-se de ordenar a multiplicida-
a

de confusa, de criar um quadro vivente. 2) O controle da atividade: horário (atividades regu-


lares afinadas em minutos), elaboração temporal do ato (ajustar o corpo aos imperativos
e os gestos (o corpo disciplinado favorece um gesto efi.caz),
temporais), correlação entre o corpo
articulação do corpo com os objetos, utilização exaustiva do tempo. 3) A organização da gê-
nese (o problema é como capitalizar o tempo): divisão do tempo em segmentos nos quais se
deve chegar a um termo, serialização das atividades sucessivas, o exercício como técnica que
impõe aos corpos tarefas repetitivas e diferentes, porém graduadas.4) A composição das
forças: articulação e localização dos corpos, combinação das séries cronológicas, sistema
preciso de mando. * Para gerar a individualidade disciplinada, essa técnica de poder se serve
de instrumentos simples: l) A vigilância hierárquica: trata-se de uma série de técnicas, par-
tiçularmente iigadas à distribuição do espaço (panoptismo) e do ver que induzem relações de
poder. As "pedras" dos edifícios disciplinares - à diferença do "palácio" construído para ser
visto e da "fortalezi'pensada para controlar o espaço exterior - tornam os indivíduos dóceis
e cognoscíveis. Trata-se de fazer possíve1 um poder do "ver sem ser visto" que assegure seu
luncionamento múltiplo, automático e anônimo. 2) A sanção normalizadora. Há um modo
específico de castigar no domínio do disciplinar. Para a disciplina não se trata nem de expiar
uma culpa nem de reprimir, mas de referir as condutas do indivíduo a um conjunto compa-
rativo, em diferenciar os indivíduos, medir capacidades, impor uma "medidal traçar a fron-
teira entre o normal e o anormal. Por isso, a "norma' se distingue do conceito jurídico de "lei"
(cuja referência são os códigos, propoe-se a diferenciar atos, distingue entre o permitido e o
proibido). Enquanto a lei separa e divide, a norma, por sua vez, pretende homogeneizar. A
norma funciona em um sistema binário de gratiÍicação e sanção; para ela, castigar é corrigir.
3) O exame. Técnica que combina o olhar hierárquico que vigia com a sanção normalizadora.
Nela, superpõem-se relações de saber e de poder. No exame se inverte a economia da visibi-
lidade no exercício do poder, o indivíduo ingressa em um campo documental, cada indivíduo
se converte em um caso (a individualidade tal como se pode descrevê-la). A diferença de
outras técnicas de poder, encontramos uma individualização descendente. O exame é a forma
ritual da disciplina. * O processo de disciplinarização das sociedades ocidentais modernas
pode ser visto como um processo que vai do espaço da quarentena, para enfrentar a peste, ao

112 DtsctPLrNA (Disciptine)


espaço do panóptico tal como o descreve Bentham. A organização do espaço da quarentena
clisciplinava o espaço da exclusão. Tratava-se de um estado de exceção que funcionava a partir
da ameaça de morte (para quem abandonasse os limites da quarentena ou o lugar que lhe fosse
designado). 0 panóptico, por sua vez, é um modelo generalizável de vida, uma tecnologia
política que é necessário separar de todo uso específico. O panóptico é uma máquina de dis-
sociar o ver do ser rristo; desse modo, reduz o número dos que exercem o poder ao mesmo
tempo em que aumenta o número daqueles sobre os quais o poder se exerce. Automatiza-se
(não é necessário o exercício atual e efêtivo da vigilância, basta o lugar do controle) e se de-
sindiviclualiza o poder (não se sabe quem vigia). Ainda que descontínua em sua ação, a vigi-
lância é permanente em seus efeitos: induz nos indivíduos um estado consciente e permanen-
te de vigilância. Nesse processo de disciplinarização, deve-se assinaiar: 1 ) A inversão funcional
das disciplinas: não só evita um perigo, mas acl escenta a utilidade possível cios indivíduos. 2)
A difusâo dos mecanismos disciplinares: sua extensão e desintitucion alização.3) A estatização
dos mecanismos da disciplina: a polícia. * Não só o cárcere resulta da aplicação das técnicas
da disciplina, como tambem o hospital, o asilo, a escola, a lábrica.As ciências humanas, os
saberes "psi". Se a investigaçáo judicial, tal como se delineou no medievo, foi a matriz jurí-
dico-política das ciências empíricas, a disciplina foi a matriz política das ciências humanas.
Enquanto a primeira pode independentizar-se de seu contexto político, ligado às formas c1o
poder, a segunda, por sua vez, está intimamente ligada a ele. "Todas as ciêucias, análises ou
práticas com o radical 'psico-' tên.r seu lugar nessa mudança histórica dos procedimentos de
individualização. 0 momento em que se passou dos meçanismos histórico-rituais de formação
da individualidade aos mecanismos científico-disciplinares, em que o normal substituiu o
ancestral e a medida tomou o lugar do estatuto, substituinclo desse moclo a individualidade
do homem merncrável pela do homem calculável; esse momento em que as ciências do homem
tornaram-se possíveis é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia
do poder e outra anatomia política do corpo. E se, desde o fundo da Idade Média até hoje, 'a
aventura'é o relato da individualidade, a passagem <la épica ao romanesco, do grande feito ao
interior da infância, das justas aos fan-
segreclo da singularidade, dos longos exílios à busca
tasmas se inscreve tambérn na lormação da sociedade disciplinar" (SP, 195). * Como vemos,
essa explicação da formação das ciências humanas, de caráter genealógico, ou seja, a partir
das formas do poder, é diferente, ainda que náo excludente, da explicação arqueológica na
ordenr do discurso que encontranos em Les nxots et les choses. Monarquia, democracia,
direito. Desde o momeuto em que houve necessidade de um poder infinitamente menos
dispendioso e brutal que a administração monárquica, foi concedido a certa classe governan-
te ou a seus representantes maior participação na elaboração das decisões. Ao mesmo tempo,
a modo de compensação, tbi posto em funcionamento um sistema de discipiinamento das
outras classes sociais e também da burguesia. Por isso, "a discipiina éa outra face da democracia"
(D82,722). * A teoria da soberania e a organização de um código jurídico, centrado nela,
permitiram superpor aos mecanismos da disciplina um sistema de direito que ocultava seus
procedimentos e eliminava o que podia har.er de dominação na disciplina (DE3, i87; IDS,
33). - O poder se exerce nas sociedades modernas através dojogo entre um direito público de
soberania e uma mecânica polimorfa da disciplina (IDS, 34). Normalização. Â sociedade
de normalização, a sociedade moderna, é uma sociedade na qual se cruzam, em uma articulação

DISCIPLINA (Discipline) 113


ortogonal, a norma da disciplina dos indivíduos e a norma da regulação da população, a dis-
ciplina e o biopoder. A interpretaçâo da socieclade de normalização apenas em termos de
disciplina é un-ra interpretação insuficiente (IDS, 225).Por isso, não se trata de pensar a his-
tória do poder moderno como a substituição c1e uma sociedade de soberania por uma socie-
dade disciplinar e, depois dessa por uma sociedade de governo das populações. Antes, atual-
mente encontramos um triângulo soberania-disciplina-gestão governamenttrl cujo objetivo
tundamental é a populaçào, e seus rnecanismos essenciais são os dispositivos de segurança.
(DE3,654). As grandes linhas de uma história da disciplina. No cnrso de 28 de novem-
bro de 1973 de Le pouvoir p»,chiatríque (PP,65-94), Foucault esboça uma história da dis-
ciplina. Nela e mostrado como os dispositivos disciplinares, que, durante séculos, havialn
permanecido ancorados, como ilhotas, nos dispositivos de soberania, começam a se genera-
lizar a partir dos séculos XVII e XVIII. l) I'{a ldode |v'Iédia. Nessa história temos que prirnei-
ro considerar as comunidades religiosas da Idade Média. No mundo cristão, tais dispositivos
estavan subordinados aos dispositivos de soberania, feudal, monárquica, mas desempenharam
papel crítico. Eles tornaram possír,eis os diferentes processos de reforma das ordens, das
práticas, das hierarquias e da ideologia relieiosas. Foucault toma como exemplo as reformas
da ordem beneditina, nos séculos XI e XII. Com efeito, a reÍbrma de Citeaux tbi um movimen-
to para afastar a ordem dos dispositivos cle soberania feudal pelos quais havia sido colonizada,
e para retornar a um dispositivo disciplinar, tal como o encontrado em suas regras de vida
mais antigas. Essa reforma permitiu à ordem conseguir determinadas inovações ecouômicas
(horários de trabalho, anotações, contabilidade). Mas, por outro lado, também possibilitou
certas inovaçÕes po1íticas. As novas formas dos dispositivos de soberania (soberanias monár-
quica e papal) utilizaram esses dispositivos disciplinares (das ordens beneditina e clominica-
na, sobretudo) para desarticular os mecanismos da soberania feudal. Mais tarde, no século
XVI, os jesuítas também desempenhararn esse papel. As disciplinas também perrnitiram
inovaçÕes sociais, isto é, reaçÕes ante as hierarquias estabelecidas de acordo com os mecanis-
rnos da soberania feudal. Aqui devemos situar as ordens nendicantes da Idade lvlédia e, às
\,ésperas da Reforma, por exemplo, os Irmãos da Vida Comum (surgidos na Holanda, no sé-
culo XIV). 2) A colonizaçao pedagogica, os lrmãos da Vida Comum. A pirrtir dos séculos
XYIi e XVIII, conro dissemos, as disciplinas começaÍrl a generalizar-se e a se estender. Por
quê? Como? Em primeiro lugar, como discipiinarização da juventude estudantil que, durante
a Idade Média, forrnava junto com os mestres e professores comunidades relativamente móveis

e até vagabundeantes. Essa colonização disciplinar da juventude estudantil te\,e seu ponto de
partida com os Irrnãos da Vida Comum. Aqui, o trabalho progressivo do indivíduo sobre si
nlesmo, o trabalho ascético, foi o prirneiro rnodelo de colonização pedagógica da juventude.
"O acoplamento tempo-progresso é característico do exercício ascético e será também carac-
terístico da prática pedagógicir" (PP, 69). Nas escoias fundadas pelos Irmáos da Vlda Comum
(em Deventer, em Liêge, em Strasbourg), encontraremos pela primeira vez a separaçào por
idade e por divisoes com programas de exercÍcios progressivos. Em segundo lugar, nesse
contexto aparecerá, também pela prirneira vez, a regra do enclausuramento pedagógico, ou
seja, a necessidade de um espaço fechado, com um mínimo de relações com o mundo exterior
como condição do exercício pedagógico. Em terceiro lugar, a necessidade, para o exercício do
trabalho do indivíduo sobre si mesmo, da clireção constante de um guia, de um protetor que

1 14 DísclPLlNA rDisctpline)
assuma a responsabilidade do progresso. Em quarto lugar, nas escolas encontramos uma or-
ganrzaçao de tipo paramilitar (grupos de trabalho, de meditação, de f-ormaçâo intelectual e
espiritual). LIm esquerla que já se encontra nos con\rentos da Idade Média e que se inspira na
organização das legiões romanas. 3) A colonizaçao dos povos, precisamente, colonizados;
os jexitas. Aqui, como contraponto à escrayidão, os mecanismos disciplinares foram aplica-
dos e aperfeiçoados. "Com efeito, osjesuítas, adversários da escrayidão (por razões teológicas
e religiosas, igualmente por razões econômicas) sào os que se opuseram, na Anérica do Sul,
a essa forma certamente imediata, brutal e altamente consumidora de vidas humanas, a essa
prática de escravidão tão custosa e pouco organizada, conr outro tipo de distribuição, de
controle e de exploração, com um sistema disciplinar. E as famosas repúblicas, chamadas
tomuuistas' dos guaranis no Paraguai, eram, na realidade, microcosmos disciplinares" (PP,
70-71). Nelas encontramos um sistema de r,igilância constante e uma espécie de sistema penal
permanente. 4) A colonizaçao dos vagabundos, dos ntendigos, dos nômades, dos delin-
quentes, das prostitutas e "toda o clausura da época clássica". 5) Séculos X\III e Xf|III, a
disciplinarizaçao "secular". Os processos que mencionamos até aqui se apoiavam, ideológi-
ca e institucionalmente, na religiâo; a partir dos séculos XVII e XVIII, sâo postos em Funcio-
namento mecanismos "seculares" (não conectados diretamente com a religiáo) de disciplina-
rização: o exército, as fábricas, as minas. A esse respeito, Foucault menciona o papel
fundarnental desempenhado por Frederico II da Prússia na disciplinarização do exército, isto
é, na transformação de um exercito que rccrutava, quando necessário, vagabundos e merce-
nários, em um exército profissional (quartéis, adestramento, práticas, etc.). 6) O panóptico
de Bentham (1787) A obra de Bentham e uma Íbrmalizaçâo da rnicrofísica do poder disci-
plinar. Não se trata de um modelo para as prisões, mas para toda urna série de instituiçoes
(escola, hospital, etc.). Na realiclade, nem sequer se trata de um modelo institucional, mas de
um modelo para fortaiecer as instituiçôes. O "panóptico' é um rnultiplicador, um intensifica-
dor de poder (PP, 75). 7) A Jumília (um dispositívo de soberania). Do nlesrlo motlo que
durante a Idade Nlédia existiam dispositivos disciplinares em urna sociedade domineda por
mecanismos da soberania, tarnbém enl nossa sociedade disciplinar existeur mecanismos de
soberania. É o caso, para Foucault, da família. Por um lado, é necessário notar que a família
não serviu de nroclelo para o asilo (contrariamente ao que havia sustentado em Histoire de Ia
folie à lkge classique), a escola ou o quartel. Na família encontramos os mecanismos do
dispositivo de soberania: a maior individualização se encontra no r,értice, o pai. Funda-se em
um acontecimento passado (o matrimônio, o nascimento). Nela há reiaçÕes heterotópicas
(nexos locais, contratuais, de propriedade, de compromisso pessoal e coletivo, etc.). No en-
tanto, não se trata de uma forma residual das formas de soberania, mas de uma engrenagenr
essencial da sociedade disciplinar. Ela funciona como â articulação de diferentes dispositivos
disciplinares. Por um lado, a farnília assegura a inserção do indivíduo nos diferentes dispositivos
disciplinares (escola, trabalho, exército). Por outro, assegura a passagem de um a outro (da
escoia ao trabalho, por exemplo). Não se trata de um resíduo ademais porqlle, no início do
século XIX, assistimos a uma crise da família. O estabelecimento de uma sociedade discipli-
nar requereu, de fãto, um tbrtaleclnento da lamília - a iegislação dos poderes do pai, a exi-
gência da união legal para ingressar no mundo do trabaiho, etc. - e, ao mesmo tenpo, uma
limitação, sua redução à célula dos pais e fi1hos. Pois bem, quando a famíiia entra em crise e

DlSCfPtlNA (Disctpline) t 15
não desempenha mais sua função, então surge toda uma série de mecanismos disciplinares
para remediar essa situação (os orfanatos, por exemplo). "E é aqui, nessa organização de
substitutos disciplinares da família, que vocês veem aparecer o que eu chamaria a funçáo-Psi,
isto é, a função psiquiátrica, psicopatológica, psicossociológica, psicocriminológica, psicana-
lítica, etc.). E, quando digo'funçãol não entendo apenas o discurso, mas a instituição e também
o indivíduo psicologizado em si mesmo [...] A função-Psi, pois, nasceu desse face a face em
relação à família. A família pedia a internação, o indivíduo era posto sob a disciplina psiqui-
átrica e se supunha que deveria ser refamiliarizado. Em seguida, pouco a pouco, a função-Psi
se estendeu a todos os outros sistemas disciplinares: à escola, ao exército, à fábrica, etc. Ou
seja, essa função-Psi desempenhou o papel de disciplina para todos os indisciplinados [...] E
depois, flnalmente, no início do século XX, a função-Psi se converteu, ao mesmo tempo, em
discurso e controle de todos os sistemas disciplinares" (PP, 86-87). Corpo. "Por isso [poder
disciplinarl eu não entendo outra coisa senão uma determinada forma de algum modo ter-
minai, capilar de poder, um último re1é, uma determinada modalidade pela qual o poder
político, os poderes em geral vêm, em último nível, tocar os corpos, mordê-los, encarregar-se
dos gestos, dos comportamentos, dos hábitos, das palavras; a maneira como todos esses poderes
se concentram para baixo até tocar os próprios corpos individuais, trabalham, modificam, diri-
gem o que Servan chamava as'fibras mórbidas do cérebrol Dito de outra maneira, eu creio que
o poder disciplinar
é uma determinada modalidade muito especílica de nossa sociedade do que
se poderia chamar o contato sináptico corpo-poder" (PP,42). Escritura. "Para que o poder
discipiinar seja global e contínuo, o uso da escritura me parece absolutamente requerido. E me
parece que se poderia estudar a maneira como, a partir dos sécuios XVII e XVIII, se vê, tanto no
exército como na escola, nos centros de aprendizagem e igualmente nos sistemas policiais ou ju-
diciais etc., como os corpos, os comportamentos, os discursos das pessoas foram pouco a pouco
revestidos pelo tecido da escritura, por uma espécie de plasma gráÍico que os registra, codifica-os,
transmite-os ao largo da escala hierárquica e acaba por centralizá-1os. Vocês têm aqui uma relaçâo,
creio que nova, uma relação direta e contínua da escritura com o corpo. A visibilidade do corpo e
a permanência da escritura caminham lado a lado; e têm por efeito, evidentemente, o que se po-

deriachamara individualização esquemática e centralizada" (PP,50-51). A alma do indivíduo


moderno. Um efeito do caráter onicompreensivo do dispositivo disciplinar é que esse tende
a intervir não só de maneira contínua, mas também ao nível das virtualidades, das disposições,
da vontade, ou seja, ao nível do que se pode chamar a "almal "[...] uma alma muito diferente da
que havia sido definida peia prática e pela teoria cristãs" (PP, 54). "Vocês têm, então, no poder
disciplinar, uma série constituída pela função-sujeito, a singularidade somática, o olhar perpétuo,
a escritura, o mecanismo de punição inhnitesimal, a projeção da psyché e, finalmente, a separa-
ção normal-anormal. É tudo isso que ajusta, finalmente, uma a outro, a singularidade somática
a um poder político' (PP, 57). * Acerca da contraposição entre reiaçoes de soberania e disposi-
tivos disciplinares, veja Soberania, Ver também: Biopoder, Biopolítica, Dominaçao, Norma,
Panoptico, Poder.
Discipline[414]:4N,37,48,70,95,130,149,180,240,308-309.4S,10,13,15,64,178-182,233 234,268,271.DEl,498,
586, 605, 687, 700, 72t,725,738,740 741,790,804,832-833, 839. DE2, 8, 28,38,223,272,3()s,347,359,423,43]1,469,486,52t,
6t7,613,663,679,700,7 \5,722,731,757,759,776,824,826.D83,28,37,57 ,65,67,69,71,138, 147, 187_ I 89, l94,2oO 201,210,
319,32t-,392,395 396,429-430,434,460, 514, 5i4-518, 52]L,527,531-533,582, 588, 593, 618, 626,654,655,722.DF4, 16,24,
28,90,171,187 188,191,192,194,197-199,235,277,390,466,56s,571,590,656,661-662,695,763-764,769,808,821,824.HF,

1 I6 DtsctPUNA lDíscipline)
98, 103, 123,423,536. HSr,39,55, 184, 192-193. HS3,21. IDS,33-35, 135, 149, 153. t6t-r66,2t3,2t6,219_220,222-225,232,
260.MC,294,392.MMPE,24.MMPS,24.NC,34.OD,32-38,54,6_5,68,70.pp,4,23,25,27 28,30,41_44,48_53,55_59,62,
66-67,72,74-75,7 7, 8-l-84, 87-88, 95, 99, 1 13, 1 16, 123 t25, 128,13 1, 150, 152, 1 54, 1 56, 165, 168, 1 76, 1 78, 186, 1 89, 196, 2 19,

248,250,252-253,277,289,304,325.5P,124,135,139-143,14s 148,150-152,154-156,163,166-169,171 173,175,179,181-183,


185,187-193, r95 t96,t99-20t,210-2t4,2t6-2t7,2t9-225,228,238,240,252-253,276,297-298,3U-305,i07_3tt.

r 13. DISCURSO (Drscours)

termo "discurso" toca um dos temas centrais do trabalho de Foucault. A arqueologia é


O
uma modalidade de análise do discurso.'A arqueologia, como eu a entendo, não é parente da
geologia (como análise do subsolo) nem da genealogia (como descrição dos começos e das
sucessÕes), ela é a análise do discurso na modaiidade d,e arquivo" (DEl,595). Desde esse
ponto de vista, o termo "discurso" coloca uma questáo metodológica: definir as regras da
descrição arqtreológica. Em grande parte, essa é a tarefa de lhrchéologie du savoir.Nesse
texto, Foucault define o discurso como o "conjunto de enunciados que provém de um mesmo
sistema de fbrmação; assim se poderia falar de dÍscurso clÍnico, discurso econôrnico, discurso
da história natural, discurso psiquiátrico" (AS, 141). O discurso "está constituído por um
número lirnitado de enunciados para os quais se pode definir um conjunto de condições de
existência' (AS, 153). A medida que Foucault substitui a noção de episterne pela de disposi-
tivo e, finalmente, pela de prática, a análise do discurso começará a entrelaçar-se cadavez
mais com a análise do não discursivo (práticas em geral). Essa mudança está sujeita, ela mes-
n-ra, a modificações, posto que Foucault varia sua concepção de poder. Assim, desde um
ponto de vista metodológico, é necessário abordar a questão do discurso em relação à arque-
oiogia, à genealogia e à éticur, ou seja, os eixos do trabalho de Foucault. Claramente, na arque-
ologia o conceito de discurso tem tratamento mais extenso, posto que ela se def,ne como uma
análise discursiva; mas seria um erro restringi-lo ao âmbito da episteme. Pois bem, além do
discurso, tornado como uma questão metodológica, é necessário ter presente os resultados
dessa metodologia, isto é, a descrição dos discursos, das formaçoes discursivas nos trabalhos
de Foucault. Aqui, dois temas merecem atenção particular: a ideia de discurso na episteme
clássica e a oposição entre o ser do discurso e o ser do homern (desta última, ocupamo-nos
no verbete Linguagem. Arqueologia, saber. l) As unidades do discurso. A primeira
etapa da arqueologia e negativa: liberar-se ou, ao menos, suspender momentaneamente, pôr
entre parêntesis, todas aquelas categorias ou conceitos através dos quais se diversifica e se
conserva o tema da continuidade ou pelos quais a história das ideias reduz a descontinuida-
de histórica valendo-se da função sintetizante do sujeito. Foucault enumera três grupos de
categorias ou conceitos: as categorias que relacionam discursos, as categorias que classificam
discursos e as categorias que garantem uma continuidade infinita. No primeiro grupo, en-
contramos: a noção de tradiçao (ela nos permite descobrir em toda mudança, em toda novi-
dade um fundo permanente); a categoria de inJluência (estabelece uma causalidade - vaga-
mente explicitada - entre indir,íduos, obras, conceitos ou teorias); as categorias de
desenvolvimento e evoluçao (reagrupam uma sucessão de fatos ou discursos dispersos a
partirdeLlmmesmoprincípioorganizador);ascategorias dernentalidadeeespírito (permitem

DISCURSO lDiscours) I17


estabelecer entre fenômenos simultâneos ou sucessivos pertencentes a uma mesma época
nexos simbólicos, semelhanças, etc.). No segundo grupo, encontramos as categorias de gêne-
ro,livro, obra.Forcault problematiza a aparente evidência dessas categorias. A unidade dos
discursos não pode identificar-se com a unidade material do livro. Com efeito, um discurso
não pode encerrar-se nos limites materiais do livro; para além do começo, do título e das linhas
finais, está implicado um conjunto de referências a outros discursos e a outros autores. Ademais,
não são as mesmas, ainda quando materialmente semelhantes, a unidade de uma antologia,
ou de uma publicação de fragmentos póstumos ou de um tratado de matemática. A mesma
indeterminação afeta a noção de obra. Com respeito à função da noção de autor, não é a mes-
ma reiação a que estabelece um autor com os textos publicados sob o próprio nome ou ser-
vindo-se de um pseudônimo ou entre as obras acabadas e publicadas e aquelas inacabadas
que projetava publicar (ver: Autor). O terceiro grupo está composto das noções de origem e
interpretaçao que nos autorizam a remeter todo acontecimento, por mais novo que se apre-
sente aparentemente, a uma origem historicamente inverificável ou buscar para além da for-
mulação dos enunciados, para além do dito, o não dito, a intenção do sujeito, sua atividade
consciente ou o jogo de forças inconscientes (AS, 31-43). 2) Formações e práticas discur-
sivas. A segunda etapa dessa metodologia pode definir-se como o projeto de uma descrição
dos fatos (événements) discursivos como horizonte para a investigação das unidades que
esses conformam (AS, 38-39). Foucault elabora quatro hipóteses de investigação a fim de
estabelecer relações entre os discursos e de explicitar sua unidade: 1) a unidade dos discursos
se funda na unidade do objeto;2) a unidade dos discursos se funda em sua forma e tipo de
encadeamento, em seu estilo;3) a unidade dos discursos se funda na permanência de deter-
minados conceitos e 4) a unidade dos discursos se funda na identidade de determinados temas.
Em um primeiro momento, guiado por suas investigações históricas anteriores, Foucault re-
chaça cada uma dessas hipóteses; em seguida, propoe uma solução diferente, ainda que para
lela, para cada uma delas: regras de formação dos objetos (AS, 55-67), das modaiidades
enunciativas (68-74), dos conceitos (4S,75-84), das estratégias discursivas (AS,85-93). * Em
outro lugar, Foucault distingue três critérios para a descrição individualizante do discurso: 1 )
Critérios de formação: a individualidade de um discurso, como a economia política ou a
gramática geral, não depende da unidade de um objeto, nem da estrutura formal, nem tam-
pouco de uma arquitetura conceitual coerente; mas sim da existência de regras de formação
para seus objetos, para suas operaçôes, para seus conceitos, para suas opções teóricas. Indivi-
dualizar uma formação discursiva consiste em definir esse jogo de regras. 2) Criterios de
transformaçao ou umbrais: definir as condições precisas, em um momento dado, que per-
mitiram estabelecer as regras de formaçáo dos objetos, as operações, os conceitos e as opções
teóricas; deÍrnir o umbral de transformação de novas regras. 3) Critérios de correlaçao: a
medicina clínica, por exemplo, pode ser considerada uma formação discursiva autônoma, caso
se possa delimitar as relações que a definem e situam-na a respeito de outro tipo de discursos
(a blologia, a química) e com o contexto nâo discursivo em que funciona (instituiçÕes, relações
sociais, conjuntura econômica e política) (D81,675). Ocupamo-nos detalhadamente de cada
uma dessas regras e desses critérios no verbete Fo rmação discursiva.3) Enunciado. "Enfim,
em lugar de restringir pouco a pouco a signiÍrcação tão flutuante da palavra discursol creio
ter multiplicado seus sentidos: às vezes domínio geral de todos os enunciados, às vezes um

1 18 DtscuRso (Dlscours)
grupo individualizável de enunciados, às vezes uma prática regrada que dá conta de certo
número de enunciados; e essa mesma palavra "discurso I que devia servir de limite e envoitó-
rio ao termo enunciado, não a fiz variar à medida que deslocava minha análise ou seu ponto
de aplicação, à medida que perdia de vista o próprio enunciado?" (AS, 106). "Quanto ao termo
discurso,do qual se usou e abusou aqui [em tarchéologie du savoir) em sentidos muito di-
ferentes, pode-se compreender agora a razão de seu equívoco: de maneira mais geral e mais
indecisa, designa um conjunto de performances verbais, e por discurso entendia-se, então, o
que havia sido produzido (eventualmente tudo o que havia sido produzido) de fato como
conjuntos de signos. Mas se entendia também um conjunto de atos de formulação, uma série
de frases ou de proposiçÕes. Enfim, esse sentido foi finalmente privilegiado (com o primeiro
que the serve de horizonte); o discurso está constituído por um conjunto de sequências de
signos, uma yez que elas são enunciados, isto é, uma vez que se thes possa conferir modalida-
des de existência particulares" (AS, 141). Ver: Enunciado. Genealogia, poder.'As práticas
discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Elas tomam cor-
po no conjunto das técnicas, das instituições, dos esquemas de comportamento, dos tipos de
transmissão e de difusão, nas formas pedagógicas que, por sua Yez, as impõem e as mantêm"
(D82,241).1) Controle discursivo. Nessa linha, para incorporar a ordem clo nâo discur
formas de
sivo, em lordre du discours, Foucault distingue, como objeto de análise, várias
três tipos
controle discursivo: l) Procedimentos de exclusão'.Em primeiro lugar, encontramos
do discurso, às circunstancias em que pode ser pro-
de proibição que concernem ao objeto
nunciado, ao sujeito que pode pronunciá-lo. Em segundo lugar, a oposição ou a divisão razão-

loucura. Desde Média, o discurso do louco não pode circular como o dos outros; seja
a Idade
porque não é reconhecido como admissível (na ordem jurídica, por exemplo), seja porque lhe
atribuem poderes especiais (como voz da sabedoria ou da verdade escondida). Em terceiro
lugar, a antítese entre verdadeiro e falso. Certamente, como assinala nosso autor, à primeira
vista, não parece razoavel situar em um mesmo nível a oposição entre verdade e falsidade, a
oposição entre razão e loucura e os diversos estamentos de exclusão mencionados antes; mas,
se nos situarmos na perspectiva genealógica, isto é, da Herkunft e do Entstehung históricos,
não há por que privilegiar a oposição entre verdade e falsidade. Para justificar esse ponto de
vista, Foucault faz referência, como Nietzsche e Heidegger, a esse momento essencial para o
Ocidente que se situa entre Hesíodo e Platáo, e a partir do qual o discurso deixa de valer pelo
que é (discurso ritual, por exemplo) ou pelo que faz (curar ou julgar) e começa a ser estimado
pelo que diz (OD, 17 -lg) 2). Procedimentos de controle internos ao discurso: Trata-se do
controle que os discursos exercem sobre outros discursos. Em primeiro lugar, o comentário.
Foucault supõe que em toda sociedade existe uma defasagem entre dois tipos de texto, os
textos que poderíamos chamar primários e os outros, secundários, que não fazem outra coisa
senão repetir e retomar o que se diz nos textos primários a Íim de trazer à luz uma pretensa
verdade originária que permaneceu oculta. A relação entre textos primários e secundários,
entre textos que podem ser ditos e textos que dizem o que já foi dito, Iimita as possibilidades
discursivas impondo como limite os textos primários. Em segundo lugar, Foucault indica
entre os controies a noção de autor, o que ele denomina em L'orchéologie du savolr posições
subjetivas, isto é, o que determina no nível das instituições e da sociedade quem pode ter um
tipo determinado de discurso. Em terceiro 1ugar, a disciplina;ela determina as condições que

DIScURSO (Discours) II9


uma proposição deve cumprir para poder pertencer a um domínio determinado do saber, para
poder ser considerada como verdadeira ou como falsa (OD, 38) 3). Procedimentos de rqre-
façao (raréfaction):Procedimentos que limitam o intercâmbio ea comunicação dos discur-
sos e que determinam a apropriação social do discurso: as instâncias rituais, religiosas ou não,
o sistema educativo, o aparato judicial, etc. "Em nossa sociedade, há sem dúvida, e eu imagi-
no que em todas as outras, mas com um perfil e com escansões diferentes, uma profunda
logofobia, uma espécie de medo surdo contra esses fatos, contra essa massa de coisas ditas,
contra o aparecimento de todos esses enunciados, contra tudo o que podem ter de violentos,
contra esse grande murmúrio incessante e desordenado do discurso. E se queremos nào
-
digo suprimir esse medo mas analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos, creio
-
que é necessário dissolver três decisões às quais nosso pensamento atual resiste um pouco e

que correspondem aos três grupos de funções que acabo de evocar: questionar nossa vontade
de verdade, restituir ao discurso seu caráter de fato e, Írnalmente, eliminar a soberania do
significante" (OD, 52-53). * "Creio que essa Ordre du discours havia mesclado duas concep-
çÕes, ou melhor, para uma questão que considero legítima
(a articulação dos fatos do discur-
so nos mecanismos do poder), propus uma resposta inadequada. É um texto que escrevi em
um momento de transição. Até esse momento, me parece que eu aceitava a concepção tradi-
cional do poder, do poder como um mecanismo essencialmente jurídico, o que diz a lei, o que
proíbe, o que diz'nãol com toda uma quantidade de efeitos negativos: exclusão, rechaço,
barreira, negação, ocultamentos... Agora considero inadequada essa concepção [...] O caso
da penalidade me convenceu que não era tanto em termos de direito, mas em termos de tec-
nologia, em termos de tática e de estratégia; essa substituição de uma grade técnica e estraté-
gica no lugar de uma grade jurídica e negativa foi a que tratei de fazer funcionar em Surveil-
ler et punir, depois a utilizei em Histoire de la sexualité" (D83,228-229).2) Estratégias,
táticas, lutas. "Não tento encontrar atrás do discurso uma coisa que seria o poder e que seria
sua fonte, como em uma descrição de tipo fenomenológico ou de qualquer método interpre-
tativo. Eu parto do discurso tal como é. Em uma descrição fenomenológica, tenta-se deduzir
do discurso algo que concerne ao sujeito falante; trata-se de reencontrar, a partir do discurso,
quais são as intencionalidades do sujeito falante, um pensamento que se está formando. O tipo
de análise que eu pratico não se ocupa do problema do sujeito falante, mas examina as dife-
rentes maneiras pelas quais o discurso cumpre uma função dentro de um sistema estratégico
onde o poder está implicado e pelo qual o poder funciona. O poder não está, pois, fora do
discurso. O poder não é nem a fonte nem a origem do discurso. O poder é algo que funciona
através do discurso, porque o discurso e, ele mesmo, um elemento em um dispositivo estra-
tégico de relaçÕes de poder" (D83, 465). * Não há de um lado o discurso e de outro o poder,
opostos um ao outro. Os discursos são elementos ou blocos de táticas no campo das relações
e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia (HSl,
de força; pode haver diferentes
*
134). Em "ll faut défendre la société", Foucault analisa o discurso da'guerra de raças" como
um instrumento de luta (IDS, 52-53). 3) Ética, sujeito. Nos volumes I e II de Histoire de la
sexualité e na Herméneutique du sujet, Foucault se ocupa da função do discurso como
formador da subjetividade. Essa função consistiria em ligar o sujeito à verdade. Na época
clássica e na época helenística, não se trata de descobrir uma verdade no sujeito nem de fazer
da alma o objeto de um discurso verdadeiro, mas de armar o sujeito com uma verdade (D84,362).

1 20 DtScuRso (Dlscours)
Para os gregos e também para os romanos, a ascese tem como principal objetivo a constituição
do sujeito. Parte essencial da ascese é dotar (equipaa paraskeué) o sujeito de discursos ver-
dadeiros, discursos que possam conl,erter-se na matriz dos cornportamentos éticos (HS, 312).
"1...] a ascese é o que permite, por um lado, adquirir discursos verdadeiros, dos que se tem
necessidade em todas as circunstâncias e peripécias da vida, para estabelecer uma relação
plena e acabada consigo mesmo; por outro, a ascese é o que permite tornar-se a si mesmo o
sujeito desses discursos verdadeiros, é o que permite tornar-se a si mesnto um sujeito que diz
verdade e que, por essa enunciação da verdade, se encontra transfigurado t. . .] " (HS, 3 16). A
partir do cristianismo, a função do discurso, como nexo entre o sujeito e a verdade, será dife-
rente; se tratará, agora, de verter no discurso a verdade de si mesmo, a hermenêutica de seu
desejo, de seus pensamentos, de suas imaginações. O discurso torna-se, assim, um modo de
objetivação c1o sujeito em termos de verdade (HS, 317). O discurso como objetivação do su-

jeito será a modalidade fundamental na confissão e, posteriormente, no discurso das ciências


humanas e da psicanálise. Ver: Ascese, Confissao, Desejo, Psicanálise. Época clássica,
representação. Na época clássica, a tarefa da linguagem foi representar o pensamento. Pois
bem, precisa Foucault, representar não quer dizer tradtzir, quer dizer oferecer uma versào
perceptível do pensamento. Tampouco se requer alguma atividade interior, essencial ou
primitiva de significação. Poderíamos dizer que o papel do sujeito consiste em reproduzir a

ordem do mundo e náo em produzi-la. Nesse sentido, não existe nenhuma atividade huma-
na enquanto tal, uma atividade que possa ser qualificada collro transcendental. A ordem do
mundo é preexistente ao sujeito e independente dele e, por isso, a única atividade do sujeito,
do ego cogito, é a de alcançar a claridade dos conceitos e a ceÍÍezadas representações. Entre
ornundoeohomem,entreosereopensamento,entreo"eusou"eo"eupenso'i existeum
nexo estabelecido pelo discurso, pela transparência dos signos linguísticos e pela função
nominatiya da linguagem. No discurso, representação duplicada, entrelaçam-se a represen-
tação-representante e a representaçáo-representada. " "No umbral da época clássica, o signo
deixa de ser uma figura do mundo, deixa de estar ligado ao que ele marca pelos nexos sólidos
e secretos da semelhança e da afinidade" (MC, 72). Segundo Foucault, o classicismo define
o signo por três variáveis: a origem do nexo com o que ele representa (natural, convencional),

a natureza do nexo: um signo fazparte do que representa ou está separado disso, a certeza
do nexo (constante, pror,ável). Foucault assinala três consequências desse novo estatuto do
signo. 1) A linguagem deixa de pertencer ao mundo das coisas e se instala no âmbito do
conhecimento. Só há signo desde o momento em que se conhece a relação de substituição
entre dois elementos conhecidos. 2) O signo para funcionar requer que, ao mesmo tempo
que se o conheça, conheça-se também aquilo que ele representa. Para que um elemento de
uma percepção, por exemplo, possa servir como signo, é necessário que se a distinga e separe
de aquilo do que fazia parte. A constituição do signo é inseparável da análise da representação.
3) Os signos naturais são só um esboço do que se instaura por convenção. Um sistema arbi-
trário de signos, por outro iado, deve permitir a análise das coisas em seus elementos mais
simples (MC,72 77). Pois bem, como vemos, um signo pode ser mais ou menos provável,
estar mais ou menos afastado daquilo que representa, ser natural ou arbitrário; mas o que
o define como signo é a relação entre o significante e o significado que se estabelece na
ordem do conhecimento, da representação. Segundo a definição da Grarnatica de Port-Royal:

DISCURSq (DiscoursS l2)


o signo encerra duas ideias, uma da coisa que representa, a outra da coisa representada; e sua
natureza consiste em excitar a primeira pela segunda (MC, 78). 'A anáiise da representação
e a teoria dos signos se penetram absolutamente uma na outra . . (MC, 79). * Durante a
[. ]"
Época Clássica, pensar consistia em elaborar um método universal de análise que conduzisse
à certeza mediante uma adequada concordância entre signos-representantes e representações-
representadas, de modo que esses, os signos, repetissem o mundo ordenadamente, oferecen-
do-nos um "quadro" dos seres que desordenadamente constituem o mundo. A possibilidade
desse método universal de análise se funda na capacidade de nomear, de atribuir un nome - um
signo representante a cada uma de nossas representações e articular esses nomes entre si.
O discurso, para a época clássica, é a redução da linguagem ao funcionamento na proposição.
E essa a exigência fundamental de todo o pensamento clássico - Foucault diria "a exigência
epistêmica' que determina a forma de todas as ciências clássicas: exigência de nomear, de
duplicar as representações, e de articular o nome das representaçÕes mediante a função co-
pulativa do terbo "ser'l O verbo "ser'l com efeito, afirma a coexistência das representaçÕes.
Aqui radica o essencial da noção Íbucaultiana de discurso aplicada à Época Clássica: a possi-
bilidade de representar articuladamente as representaçÕes, de analisar na sucessividade da
proposiçào a simultaneidade do pensamento. Através do discurso, duplicando as representa-
ções, é possível dispor as séries sucessivas dessas em um quadro simultâneo de identidades
e

diferenças. Em outras palavras, é possível analisar o pensamento e, através de tal análise, es-

tabelecer uma taxonomia dos seres. O discurso, o poder de representar articuladamente as


representações, funda o nexo entre o pensamento e os seres, e funda, como dissemos, a pos-
sibilidade de reconstituir um quadro ordenado de identidades e diferenças, a partir do que
nos é dado através dos sentidos e, sobretudo, através da imaginação. 'A vocação profunda da
linguagem clássica foi sempre a de fazer quadros': seja como discurso natural, recolecção da
verdade, descriçáo das coisas, corpo de conhecimentos exatos ou dicionário enciclopédico"
(MC,322). * A gramática geral terá por função estudar o funcionamento representativo da
linguagem: uma análise do nexo que une as palavras entre si (teoria da proposição e do verbo),
das diferentes ciasses de nomes e da maneira como recortam a representação e se distinguem
entre si (teoria da articulação); e da maneira como as palavras designam o que dizern em seu
valor primitivo (teoria da origem, da raiz) e seus deslocamentos (teoria da retórica e da deri-
vação) (MC, 106-107). * A diferença do Renascimento, a linguagem não se move no espaço
do comentário, limitaclo por seu trabalho infinito e a existência de um Texto primitivo. Em
seu 1ugar, pelas exigências da máthesis e da taxonomia (ver: Episteme clássica), encontra-
remos a Ars combinatoria e a Enciclopédio. Elas constituem o momento cientificamente
forte do classicismo. Literatura, linguística. No século XIX, "a literatura se distingue cada
vez mais do discurso das ideias e se encerra em uma intransitividade radical; ela se desprende
de todos os valores que podiam fazê-la circular na época clássica (o gosto, o prazer, o natural,
o verdadeiro), e elafaz nascer em seu espaço próprio tudo o que pode assegurar a negação
lúdica (o escandaloso, o feio, o impossível); rompe com toda definição de 'gêneros' como
formas ajustadas a uma ordem de representações, e se converte em pura e simples manifesta-
ção de uma linguagem que só tem por lei afirmar, contra todo outro discurso, sua existência
escarpada" (MC, 313). Na cultura contemporânea, a literatura, bem como a linguística, vêm
ocupar o lugar que ocupava, na época clássica, o discurso (MC, 394).

122 DtscURSo (Discours)


Discours[3841]:4N,3,7,11 12,14-15.20,2,r,26,30--t4,.17,55.6.1-67,69,73,108 il1,120,12i,1.11,1,18-150,156,
1-58,164,170,174)75,1t'9.181,185,188189,191,194,198.202-205,20t1,210,215,217220,223-224,)26.236,238.250,
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222 2t3,225. 2t,r-23t,215-2.18, 210-244,246-217, t51-251,2rr5,260 l6i,2o7 268,270,275.DBt,77,30,86,89,97, I 12,
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.154,158-,1-59,464,.19-1,497,501-502,,s06,509,511,c12,514,518-513,s25,s34.536 539,54s,547,548,5s1,555-s56.s65.
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67.{-687,61t3 714,7t6-7)2,724 731,736,740,750-751,757 759.772.781,783-785, 787,7.SI1, 790 7er,798 808, Ul0-(912,
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257-260,)62)63,277 279,281,2902»,)91-295,298-299,301,303,306,312-315,31rJ.320 -121,313,33-1-334,338,351,
i5; 358, 367, -369, 172, i80 382, i86, 402, 104 .105, 110, 412-411, 118 120, 422 421, 435, 444, 464-167, 469 470, 413 .17 L
483-485, 488-490, 50-1, 522-5:6, 528, 5-11 543, 5 19, 55.t,558, 56I, 570-57i, 575,579,583 58-5, 594, 600,60:, 612, 6t 8 6t 9,
622,626'627,632.,631,638,642,729,7-1.1, 768, 806 807,
81 i, S14-816. DÊ.4,26,32-34,44 46,,18, 53-5.1, 57, 6t),6t- 71,75.77.
79,81-85,91,9798,101,105,141.150t51,161,163,169,180,r8s,197,20r,204,219,22t,27r,282,284,286,287,292,315,
32 r, 328, 33,1-335, 346, 349, 3s9, 360-362, 371.i, 395, 403, 405, 40U, 41 8-420, Q.6, 432,437 .443, ,14tr, 450_45 1, 454, 456, 465,
+8 t, 485, 490, 497, 501, -530, 5i7, 543, 5.16, 550 -552,57 4,577 ,591 592, 602, 6 19, 625, 628, 6,12 63.1, 6-36-637, 639, 642, 670,
677 679,681,700,703,709,7 19,724,726,7 32,7 37 ,7 4t 7 42,769_770.782, 78-5, 790, 797, 800, 804, 8 1 6, 825. HF, 9 I 0, 29,
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420.427,453,.166,485,593,601,608,618,63U,640,651,667. HS, 21,23,16,37,61,8.1,88, to0, 1()2, I rB, r-rr, 13.r 1-rs,
140, 143, 148, 158, ró5, 176, 179-180, 182, t91,'.207,2t4-2t5,229,232-233,241,243,301,308-309,312-113,315.318,322,
324326,328-332,33.1,338,341.143.346-348,350-35r,355-356,359,362--163,365-367,369,37-l-374,376-.178,382-386,
388-393.397,398,433,450,464,167.HSl,9 16,182t,25-26,29-30,32 35,37,50,58,60,64,71.73-76,78,8292,94-98,
102,110,116,119,128 130,1i2-135,139,14-5,14ti,153,'159,162,170-171,184-185,189,207,209-210.HS2,15,18,24-
25.27 , 51,6t\,64,66, 10 1, r 65, 1 73, 1 82, I r]8- 19 1, 208, 210,212,211, 222,224.230, 234,240, 252-255,258-260,263,273,
279,)8t. HS3,19,41,47,54,65,73,103,1r0,r23,136,161,165-167,177,189,195,219,227,243-252,254,259.26t,276.
IDS,3,7.9-13,15,2224,27,33-37,42-53,5773,75,83-89,92,94-96,r01,106,111 112,116-t20,i2i,125-126,115147,
1-5r, 1,55, 15rt 159, 162, 165, 169-170, 173-174,t76,177,180,181, 184-186, 191, 193 194, 198 204,208,2r1,229.MC,9,
.1-5,49-50, -55 59,63.77,80-81,93-100, 102-10i, 105, t06 117, 120 122,127, l3t-136, 142-143, 147-148, 151, 156, 160,
1 63, r 70- 1 7 l, 1 79 I 80, r 82, 2 16 -217 ,220-224,229-230,232,240-246,248-249,2s1,262,264,268r.69,293,295,296, 306,

309,31r 313,115-323,325-326,331-332,334,346350,352,355,357,3ó4,366,369,370,372 373,-384-385,388,390391,


394-395,397. NC.VII-VIII,X XUó2,6,1,68,82,SrJ,96, t0l,107, It8 119, 121,137, 157-158, 172,175.200,202,208-209,
211. OD,7 12, 14-18,20 t9,31,35,55,59, 6t-62,64-i4,7U-81. Pp,4,6,8-9, 12, 14,16, 18,28 29,33,41-43,50-51,5,1,
57,61,86-88,95-96, 100, 103, 122-123,132-134,136, 139, 146, 148. 160, 164-166, 170, t95,208, -101.307,321-322. RR,7,
10,24,36.17,5455,70,7),71,80,98.t24,128-129, l3l,143-144,148,163,165,167,183.186,192-193,196 197.Sp,21,
27,29,31,3315,51,59,63ó9,71,75-t-6,80,82,9395,99,100-102,105,108,110,112 116,t31,133,150,152.160,17t.
1 7'1, I80, 1 93- r 94, )26 227 , 234,238, ).42,256, 260,276,280-28 1, 288-290, 295-296, 3 1 i-3 15.

: .§, DISPOSITIVO (Dispositif)

" É costume distinguir em Foucault, ao menos, um período arqueológico e outro genealógico.


Para falar en terrnos bibliográficos, Les mots et les choses lhrchéologíe du savoir,por um lado, e

Surveilller et punir e La volonté de savoir, por outro. Pois bem, enquanto que as duas primeiras

DtsPostTtvo (Disposítií) 123


obras estão centradas na descrição da episteme e dos problemas metodológicos que ela coloca, as
duas segundas descrevem dispositivos (o dispositivo disciplinar, o dispositivo de sexualidade).
A episteme era o objeto da descrição arqueológica; o dispositivo, por sua vez, o é da descrição
genealógica. Essa mudança de perspectiva e de objeto de análise responde às dificuldades des-
critivas da arqueologia eà conseguinte introdução da análise do poder. Com efeito, a arqueologia
permitia descrever os discursos das diferentes epistemes (renascentista, clássica, moderna), mas,
encerrada na ordem do discursivo, não podia descrever as mudanças em si mesmas, somente em
seus resultados. Como reconhecerá o próprio Foucault, faltava ao seu trabalho a análise do poder,
da relação entre o discursivo e o não discursivo. A essa necessidade responde a introdução do
conceito de dispositivo como objeto da descrição genealógica. O dispositivo é, em definitivo, mais
geral do que a episteme, que poderia ser definida como um dispositivo exclusivamente discursivo
(DE3, 301). Foucault falará de dispositivos disciplinares, dispositivo carcerário, dispositivos de
poder, dispositivos de saber, dispositivo de sexualidade, dispositivo de aliança, dispositivo de
subjetividade, dispositivo de verdade, etc. * Para sermos exaustivos, podemos delimitar a noção
foucaultiana de dispositivo como se segue: 1) O dispositivo é a rede de relações que podem ser
estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito
eo não dito. 2) O dispositivo estabelece a natureza do nexo que pode existir entre esses elementos
heterogêneos. Por exemplo, o discurso pode aparecer como programa de uma instituição, como
um elemento que pode justiÍjcar ou ocultar uma prática, ou funcionar como uma interpretação
a posteriori dessa prática, oferecer-lhe um campo novo de racionalidade.3) Trata-se de uma
formação que, em um momento dado, teve por função responder a uma urgência. O dispositivo
tem, assim, uma função estratégica. Por exemplo, a reabsorção de uma massa de população
flutuante que era excessiva para uma economia mercantilista. Tal imperativo estratégico serviu
corno a matriz de um dispositivo que se converteu pouco a pouco no controie-sujeição da loucurâ,
da doença mental, da neurose.4) Além da estrutura de elementos heterogêneos, um dispositivo
por sua gênese. A esse respeito, Foucault distingue dois momentos essenciais. Um pri-
se define
meiro momento do predomínio do objetivo estratégico; um segundo momento, a constituição
do dispositivo propriamente dito. 5) O dispositivo, uma vez constituído, permanece como tal na
medida em que tem lugar um processo de sobredeterminação funcional: cada efeito, positivo e
negativo, querido ou não querido, entra em ressonância ou em contradição com os outros e exige
um reajuste. Por outro lado, encontramos também um processo de perpétuo preenchimento
(remplissemenÍ) estratégico. Por exemplo, no caso da prisão. O sistema carcerário produziu um
efeito que nem estava previsto de antemão, nem tem nada a ver com a astúcia estratégica de um
sujeito meta ou trans-histórico que o houvesse querido ou planejado. Esse efeito foi a constituição
de um meio delinquente diferente dos ilegalismos do século XVIII. A prisão serviu como filtro,
concentração e proÍissionalizaçao do meio delinquente. Mas, a partir de 1830, assistimos a uma
reutilização desse efeito involuntário e negativo; o meio delinquente é utilizado para diversos fins
políticos e econômicos (por exemplo, a organização da prostituição) (DE3, 299-300).
Dispositif [220]: AN,45,65, 164, I 77, 282,292,310.D82.719,7s9,827.D83, 18, I 13, 159,201 ,207,233-234,248,251 253,
260,298-302,306 307,312-314,320-321,323,33r, 422, 465,527, s70,575 576,594,632,73t,772. DI4,28,240 241.,368 370,
375,659662.H5,305,344,393,441,450,464,469.HSl,33,58,63,67,82,91,99,111,132,139_147,149_150,160 162,166_173,
185, 198, 200-201, 203-2 I 1. IDS, 152,154,169. pp, 14, 15, 48, 54, -5 5,66_67,79,82-83, 86_87, 109, l$, r47 ,152,156, 163 164,
186, 233, 299-301, 305-3 10, 3 16, 324. Sp, 142,145,170,173,176, t78 \79, t99,202-203,206,208_209,211,269,287,306.

124 DtspostTtvO (Dispositifl


:'i=. DISPOSITIVO DE ALIANç A (Dispositif d'alliance)

Acerca do dispositivo de aliança, ver Sexualidade.


Dispositif dhlliance[15]: HSi, 140 145, 149.

::*. DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE (Dispositif de sexualite)

Yer Sexualidade.
Dispositif de sexualité1631:DF,3,234,260,298,302,312-313,320. DE4, 662. HS l, 99,140-147 ,1 49- 1 50, 160- 162,
166-167 , 169-173, 1 85, 198, 20 1, 203-208.

1.1; DIVINATIO

Forma de saber no Renascimento, desciframento das marcas das coisas. Ver: Co-
ment ár io, Ep i st e me re nas c enti sta.
D iv inatio [8] : DEI, 497, 566. MC, 18, 7 3 -7 1, 1,85.

i :*. DOCUMENTO (Document)

Os problemas colocados pela transformação teórica no campo da análise histórica, de que


faz parte a arqueologia, podem ser resumidos no questionamento do documento. O documento
não e mais essa matéria inerte a partir da qual a história trata de reconstruir o que os homens
disseram ou fizeram; agora, quer definir o tecido documental segundo suas unidades, seus
conjuntos, suas séries, suas relações (AS, 13-14). Assim, a arqueologia não se ocupa dos dis-
cursos como um clocumento, como o signo de outra coisa, mas como um monumento, isto é,
segundo sua descrição intrínseca (AS, 15, 182). Ver: Arqueologia.
Document [48]:4N,49,273. AS, 13-11,70, 182. DEl, 166,297,370,429'130,545,690. DE2, ).83,211-212,217-
tr9, 126,216, 466, 472, 49r,825. HF, 169. HS3, 2 1,
218,277 ,280, 392,514,761. DE3, 63, 68,72,270,283,339. DE4, 7,
29. MC, l4l. RR, 19-5. PP,226. SP, 193.

:: :. DOGMATISMO (Dogmatisme)

Como consequência do processo de disciplinarização dos saberes, no final do século XVIII,


produz-se uma mudança na forma do dogrnatismo. A antiga ortodoxia, tbrrna religiosa e,
sobretudo, eclesiástica do sabet implicava a exclusão de certos enunciados cientificamente
verdadeiros e fecundos. A nova ortodoxia não concerne ao conteúdo dos enunciados, mas à sua
forma. "O problema será saber quem falou, se estava qualilicado parafazê-lo, a que nírel se situa o

DOGMAÍl5MO (Dogmatisme) 125


enutlciado, em que conjuntose pode situá-lo, em que e em que medida se adéqua a outras formas

ea outras tipologias do saber" (IDS, 163). Essa nova forma do dogmatismo permite, ao mesmo
tempo, um liberalismo quanto ao conteúdo dos enunciados e um controle mais rigoroso sobre
os procedimentos de enunciação. A partir da disciplinarização, podemos falar, então, mais que
de uma ortodoxia, de uma'brtologia'dos discursos (IDS, 161).
Dogmatisme [19]: DEl, 1 39, 816. DE3, s38. DE4, 65, I 60, 43 I ,133, ,156, 5 I 7, 567. HF, 2 18. IDS, I 63. NIC, 256, 259, 352.

.-.:. DOM I NA çÃO (Oo m i n ati on)

A dominaçãoé tanto uma estrutura global de poder quanto uma situação estratégica, mais ou

menos adquirida ou consolidada, em um duradouro enfrentamento entre adversários na história


(D84,243). * As relaçoes de dominação são relações de poder que, em lugar de ser móveis e
permitir aos partners uma estratégia que as modifique, estáo bloqueadas e congeladas (DE4,
710-711). As relações de poder, à diferença dos estados de dominação, supÕem o exercício da
liberdade (D84,720). O poder não é um sistema de dominação que controla tudo e não deixa
nenhum espaço à liberdade (D84,721). Governo, resistência. Entre os jogos de poder e os
*
estados de dominação, encontram-se as técnicas de governo (D84,728). Na relação consigo
mesmo (elemento constitutivo da governamentalidade) encontramos um conjunto de práticas
que permitem constituir, definir, organizar estratégias que os indivíduos podem desenvolver a
respeito dos outros (D84,728). * Foucault denomina governamentalidade o encontro das téc-
nicas de dominação e as técnicas de si. (DE4, 785) Técnicas. Foucault distingue quatro tipos de
técnica: de produçao (que permitem produzir, transformar e manipular objetos) , de significaçao
ott comunicaçao (que permitem a utilização de signos e símbolos), de poder e de dominação
(que permitem determinar a conduta dos outros) e técnicas de sl (aquelas que permitem aos
indivíduos realizar certas operações sobre si mesmos: operações sobre o corpo, sobre a alma, sobre
o pensamento, etc.) (D84, 171, 185). "Eu insisti demais, quando estudava os asilos, as prisões,
dominação' (DE4, 171). Contrato, guerra. Em "Il faut défendre la société",
etc., nas técnicas de
Foucault opõe dois esquemas de análise do poder: o esquemajurídico, contrato-opressão, e o
esquema guerra-repressão ou guerra-dominação. Neste último, a dominação não é um abuso
de poder, mas uma relação de força, de guerra perpétua (IDS, l7). * Em lugar de derivar po- o
der da soberania, em "Il faut défendre Ia sociéte", trata-se de extrair histórica e empiricamente
os operadores de dominação (IDS, 38) e de tomar a guerra como analisadora das relações de
dominação (IDS, 40). Microfísica do poder, disciplina. * A microfísica do poder supõe que
o poder não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia; que seus efeitos
de dominação não sejam atribuídos a uma apropriação, mas a disposições, manobras, táticas,
técnicas, funcionamentos (SP, 3l). * Não é a dominação global o que se pluraliza e se distribui para
balxo. Há que analisar a dominação começando por baixo, a partir dos fenômenos, das técnicas,
dos procedimentos de poder (DE3, 181; IDS, 24). * valendo-se do século XVIII, não só houve
uma racionalização econômica, como também uma racionalização das técnicas políticas, das
técnicas de poder e das técnicas de dominação. A disciplina é parte importante desse processo
(DE3, 392). * A disciplina estabelece um nexo coercitivo entre o potenciamento das atitudes dos
indivíduos e uma dominação crescente (SP, 140). * A disciplina é uma técnica de dominação de

126 DoMtNAçÃo (Donínatian)


extrena racionalidade (DE3, 395). Práticas de si mesrno. Para os gregos da época clássica, para
constituir-se como sujeito virtuoso e temperante, o indivíduo devia instaurar com respeito a si mesmo
uma relação de dominação-obediência (HS2, 82). \rer: Cuidodo. Lutas. Hoje em dia, prevalecem
as lutas contra a sujeição, a submissão da subjetividade, ainda que as lutas contra a dominação e a

exploraçâo não tenham desaparecido (DE4, 228). Burguesia, Classe. Qualquer coisa pode ser
deduzida do fenôtneno eeral cle dominação da classe burguesa (IDS, 28). Yer: Burguesia. Esta-
do, soberania, direito. O século XIX se preocupou com as relaçôes entre as grandes estruturas
econômicas eo poder do Estaclo; aeora, os problernas ftrndamentais são os pequenos poderes e os
sistelnas difusos de dominação (DE2, 806). * O discurso e a técnica do direito tiveram por função
essencial dissoher a dominaçâo dentro do poder; para fàzer aparecer, em lugar cla dominação, duas
coisas: os direitos legítin-ros da soberania e a obrigação legal da obediência. Foucault tenta fazer o
inverso, isto é, urostrar como o direito é um instrumento de clominação; não só ir lei, mas tambenr
o aparato, as instituições, os regramentos. Por dorlinação não há que entender um fato em massa
e global deum sobre outros ou cie um grupo sobre outro, nras as rnúltiplas formas pelas quais o
poder se exerce em uma sociedade (DE3, 177-1.78; IDS, 30, ,33). * Nas sociedades humanas, não
há poder político sem clominação (DE4, 10). Hobbes. O dlscurso Íilosólico-jurídico de Hobbes
foi urna maneirir de bloquear o discurso do historicismo politico do século X\/ll, substituindo a
dominação pelo conceito de soberania ([DS,96). * A soberania, quer se trate de uma república por
instituiçâo 0u por aquisição, não se estabelece por uma dominação belicosa, e sim pekr cálculo que
pernrite evitar a guerra (IDS,2a3). Nação, Com base na obra de Sieyês,O que é o terceiro Estado?,
o que constitui uma nação nâo é a dominação sobre outras, mas sua capacidade e virtualidades
que se ordenam ao Estado (IDS,200). Razão. É possível concluir que a promessil do lluminismo
de alcançar a liberdade mediante o exercício darazâo deu lugar à dominação da razâo através do
*
perlsanento científico, da técnica e da organização politica (D84,73,438). A história darazao
como história da dominação d arazáo fazparte da interrogação fllosófica de Max Weber a Habermas
(D84, 438). Yer: Mode rnidcrcle. Arendt. Não se pode Íazer uma distinçào tão tuativa, como o faz
H. Arendt, entre relaçÕes de poder e relações de dominação. É necessário ser en.rpírico e analisar
caso a caso (DE4, 589). Yer. Arendt. Ver também: Poder, História.
Dominqtion l4l9l: AN, l9,2lll. D82,.1.1,87 88, 115, 118,237.310,361.409,196-497.532,5i9,546 517,549,614,
640, 679, 682, 684, 694, r-25,790, 806-807, 815. DE3, 33, .15, 74, 83, 94-95, 123, 125,127- 110, I {6, 152, t70,173 1.74,

177-17S,r80-182,r81,r87,re.l,199,132,280.305,307,348,378-J79.39039t,394-,tes,406-407,111-,125,133,500.533,
54E, 558, 560,579, 581,607, 681,688, 711,716,798,804. D84,,10, 73,82, 85, 89, 17t)-171, 186, )27-228,233 2i+,2'1.1,
261 ,261-265, ) r- t-, 341. .138, 417. 449-+5 1, 176. 482 1S3, 500-502, 5 1 7, 540, 517, 588- s90, 596. 676-678 ,7 10-7 11,7 t,1 7 16,

t-20-t21,724,727 -7 29,746,768, 785. HF, 2-r0, 525, 607, 626. HS, 60, 177 ,290,431. HSl, I t, ll2-t 14,117, 12 1, I 26, I 28,
135,158,165,173,186.HS2,11,20,7577,n1,82,9r.96-97,101-102.105-106,143,146,1s9,190,203,224,238,242,).65,
268. HS3,34,43 44, n2,84-8s,262,172. IDS, 14, l7 18,21, 24 28,30, 33, i7 40,47,55. 57, 82, 87-88,90,9{-96, 118, 129,
r31-r,r2, 139, 150,170, 175-r76,\78 179,189.193,195,200 202,201-206,208-211.234.MC,345. NC,23. OD,1l. PP,
84, 2 37. 336. SP, 30--1 r, I 39- 140, I 47, 193, )25, 23 4, 27 7, 298, 3 t2.

;":]i. DOM QUIXOTE

A obra Dom Quixote, de Cervantes, marca os limites da episteme renascentista eo come-


ço cla episteme clássica. Nesse sentido, Dom Quixoúe é a primeira obra moderna (MC, 62).

DOM QUTXOTE 127


Nela parecem novas relações entre a semelhança e os signos. "Dom Quixote não é o homem
da extravagância, mas sim o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas de
semelhança" (MC, 60). Dom Quixote tem de demonstrar que os personagens dos livros de
cavalaria dizem a verdade; ele deve encher a realidade de signos contidos nesses relatos. "Dom
Quixote deve ser fiel a esse livro no qual ele mesmo se converteu; ele tem que protegê-lo dos
erros, das falsificações, das continuações apócrifas; ele deve acrescentar os detalhes omitidos;
deve manter sua verdade. Mas esse livro, o próprio Dom Quixote não o leu, nem tem que ler,
posto que ele o é em carne e osso" (MC, 62). As obras lustine e Juliette, de Sade, encontram-
se na mesma posição, com respeito à cultura moderna, que a obra de Cervantes (MC,223).
"luliette extenua essa espessura do representado para que aflorem nele, sem o menor defeito,
amenor resistência, o menor véu, todas as possibilidades do desejo" (MC,223). Claramente,
Foucault utiliza o termo "moderno" em dois sentidos diferentes: com o sentido específico
que tem em Les mots et les choses, quando afirma que as obras de Sade inauguram a cultura
moderna; e com um sentido mais amplo, incluindo a época clássica, quando afrrma que Dom
Quixote primeira obra moderna. * "No fundo, meus comentários sobre Dom Quixote
éa
são uma espécie de pequeno teatro no qual eu queria por em cena primeiro o que eu contaria
posteriormente [...] Queria divertir-me mostrando no Quixote essa espécie de decomposição
do sistema que se verifica na ciência em torno dos anos 1620 e 1650. Não estou convencido
de que isso represente o fundo da verdade do Quixote" (DBz,l7l).
Don Quiehotte [45]:DEL,257-258,278,298,499,543.D82,171-172,213-214,218, 709. HF, 56-68, 60, 109. MC,
60 62,222-223.

Quichotte [ 7 ] : DEz, 17 l, - 17 2.

r :;r. DOUTRINA (Docfzne)

Em ljordre du discours, Foucault distingue uma série de procedimentos de controle do


discurso e os agrupa em três categorias: procedimentos de exclusão (a proibição, o tabu do
objeto, o ritual das circunstâncias, a separação razãolloucura, a oposição verdadeiro/falso);
procedimentos internos de controle dos discursos (discursos que controlam discursos: o
comentário, o autor, a disciplina); e procedimentos que não buscam o controle sobre os
poderes do discurso, mas sobre seu aparecimento, fixam as condições de sua circulação,
impõem aos indivíduos certas regras. Nesse terceiro grupo, junto ao que Foucault denomina
as "sociedades de discurso" (as formas de rarefação do acesso aos discursos: antigamente,
os grupos de rapsodos; contemporaneamente, o sistema de edição), encontram-se as dou-
trinas (religiosas, políticas, filosóficas). A diferença das "sociedades de discurso'l em que
se trata de limitar o acesso, as doutrinas aparecem à primeira vista como um mecanismo
de difusão, às vezes, sem limite. A diferença das disciplinas, a doutrina como dispositivo
de controle discursivo não se exerce apenas sobre a forma e o conteúdo dos enunciados. O
pertencimento doutrinal pce em jogo tanto o enunciado como o sujeito falante, um através
do outro. "Ela problematiza o sujeito falante através do enunciado, como o provam os pro-
cedimentos de exclusão e os mecanismos de rechaço que entram em jogo quando um sujeito

I28 DoUTRtNA (Doctrine)


surgem
falante formulou um ou vários enunciados inadmissíveis. A heresia e a ortodoxia não
de um exagero fanático dos mecanismos doutrinais; elas lhes pertencem fundamentalmente'
Mas, inversamente, a doutrina problematiza os enunciados a partir dos sujeitos falantes na
medida em que a doutrina vale sempre como o signo, a manifestação e o instrumento de um
pertencimento prévio: pertencimento de classe, de status social ou de raça, de nacionalidade
ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de aceitação. A doutrina liga os indivíduos
a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, em consequência, outros; mas ela se serve, inversa-
mente, de certos tipos de enunciação para vincular os indivíduos entre eles e diferenciá-los,
desse modo, de todos os outros" (OD,44-45). Ver também: Dogmatismo.
Doctrine 1S9l: AN, 162,302.DEl,633,658,784,801. DE2,514,516,668, 552,641,69l'756,784,811, 822.DE4
8t,t50,422,497,517,546,555,561, 570-571,577,595,680. HF,84, 106,681. HS, 166, 234,291' 320, 338-339, 353,425.
HSr, 184. HS2, 18,32,39,60,85, 155, 160,252-253. HS3,121,175,198,200,239. IDS, 189. MC,65,75, 138. NC, VI,9,
181,188,194-195,198,213-214.OD,44-45.PP,38,72,122,190,215,2s7'129'330.

133. DUMÉZIL, Georges (1898-1e86)

"Da mesma maneira que Dumézil faz com os mitos, eu tratei de descobrir as formas estru-
turadas da experiência; cujo esquema pode ser reencontrado, com modificações, em diversos
* *
níveis" (DEl, 168). Dumezil torna inútil a ideia de homem (DEl, 516). A obra de Dumézil
mostra como uma análise estrutural pode articular-se com uma análise histórica (D82,276).
"penso que Dumé2il, longe de identificar ou de projetar todas as estruturas sociais, as práticas
sociais, os ritos em um universo do discurso, no fundo, ressitua a prática do discurso dentro das
práticas sociais" (DF;z,636). A diferença de Lévi-Strauss, que supõe certa homogeneidade do
discurso, Dumézil busca estabelecer, no conjunto constituído pelas sociedades indo-europeias,
uma comparação entre os discursos teóricos e as práticas (DE2' 637)'

Georges Dumézil [a8]:DEl, I 67- I 68, 5 16, 584, 585, 590, 6 I 4-6 15, 665,667 ,822.Dr,2'273-27 6,569 ' 635-637 'D8',4'
62, 415. IDS, 73. l/C, 37 t. oD, 73.

:34" DURKHEIM, Émile (18s8 1e17)

Enfermidade. A concepção de Durkheim e a dos psicólogos estado-unidenses (Benedict)


têm em comum que a enfermidade é considerada, ao mesmo tempo, desde um ponto de vista
negativo (como desvio em relaçáo à norma) e virtual (como possibilidades em si mesmas
náo mórbidas) (MMPE, 73). Durkheim e os psicólogos estado-unidenses, ao conceberem
a enfermidade como desvio, são vítimas de uma ilusão cultural: nossa sociedade não quer
reconhecer-se nesse enfermo que persegue ou enclausura; quando se trata de diagnosticar,
exclui o enfermo (MMPE, 75). CASTIGO. Se se adota o ponto de vista de Durkheim de
Deux lois de lévolution pénale no estudo das formas históricas do castigo, quer dizer, si só
se estuda as formas sociais gerais, corre-se o risco de tomar os processos de individualização
como princípio da "humanízaçâci'do castigo; quando antes se trata de um efeito das novas

DURKHETM. Émile 129


*
tácticas do poder. Foucault segue outra metodologia (SP, 28). Durkheim se colocava o
problema de saber como a sociedade pode criar uma coesão entre os indivíduos. Foucault
se coloca o problema inverso: como a sociedade funciona a partir da exclusão (o cárcere,
por exemplo) (D82,527).Yer Castigo. Sociologia, poder."E o veiho realismo, ao estilo de
Durkheim, que pensava a sociedade como uma substância que se opõe ao indivíduo que,
por sua vez, é também uma espécie de substância integrada dentro da sociedade; este velho
realismo me parece agora impensávef' (DEl, 441).* Foucault quer emancipar a análise do
poder do privilégio das regras e da proibição que dominou a etnologia ea sociologia do poder
a partir de Durkheim (DE4, 184).
Émile Durkheim I35l: AN, 95, 100. DEl,441 ,147,726,8t6,823.DE3,478-479, 579. DE4, 184. MC, 371. MMPE,
72-7 3, 7 5, 85. lIlMPS, 72 73, 75, 96. SP, 28.

I3O DURKHEIM, ÉmiIe


::. ECONÔM ICA (Economique)

A econômica circunscreve um dos âmbitos de interrogação, acerca do uso dos prazeres,


analisados por Foucault em Lusage des plaisirs, no que concerne ao homem como chefe de
família (HS2, 108). Foucault divide a exposição em três partes 1) A sabecloria do matrimônío
(HS2, 159- 168): segundo uma formula do Contra Nerea, atribuído a Demóstenes, um grego
tem cortesãs para seus prazeres; concubinas, para as atenções de todos os dias; esposas, para ter
uma descendência legítima e cuidar da casa. No entanto, a separação radical entre o matrimônio
e as paixões não caracteriza adequadamente a existência do matrimônio na Antiguidade. Se
se aprofunda em demasiado essa separação, corre-se o risco de aproximar anacronicamente a
austeridade dos filósofos à moral do cristianismo. Mas se, em lugar de considerar os códigos,
analisa-se a problematização da conduta sexual, então aparece claramente que o nexo de con-
jugalidade não éofundamento de uma obrigação recíproca e simétrica. Com efeito, o homem
deve restringir seus prazeres ou, ao menos, suas partenaires, porque está casado; mas estar
casado signiÍica, antes de tudo, ser chefe de uma família, ter autoridade, exercer um poder no
âmbito da casa (oíkos) e sustentar suas obrigações de cidadão. Portanto, iimitando seus prazeres
otJ sras partenaires, deve dar provas do domínio de si mesmo (condição de todo chefe). No
caso da mulher, no entanto, a obrigação de não ter outro partenalre, provém do fato de que
ela está sob o poder do marido (HS2, 166-167). 2) A família de Isômaco (HS2, 169-183):
a Econômica de Xenofonte é o tratado da vicla matrimonial mais desenvolvido que a Grécia
clássica nos deixou. A obra se desenrola como uma grande análise da arte de governar: a arte
doméstica é da mesma natureza que a arte política ou a arte militar na medida em que se trata
de governar os outros (HS2, 171). A respeito da reiação do esposo com a esposa, Xenofonte
enfatiza a responsabilidade que tem o marido de convertê-la em sua colaboradora para o governo
ea administração da casa. No desenvolvimento do diálogo, é Isômaco quem deve expor como
levá-lo a cabo e mostrar como se pode aprender essa arte. Nessa ética da vida matrimonial, a
fidelidade exigida ao esposo é muito mais que a exclusividade sexual; está em jogo também a
manutenção do estatuto da esposa, de seus privilégios e de sua primazia com respeito a todas
as outras mulheres (HS2, 183). 3) Três políticas da temperança (H52,184-203): As leis de

EcoNÔMlcA (Éconamique) I3I


Platão, o Nicocles de Isócrates, e a Econômica atribuída a Aristóteles. A primeira vista, cada
um desses tratados, à diferença do de Xenofonte, pareceria sugerir um "duplo monopólio
sexual", certa simetria entre o marido e a esposa. Nesse sentido, estariam muito próximo
do que será depois a moral cristã. Mas não é assim; a fidelidade recíproca não é efeito do
compromisso pessoal entre os esposos, mas a consequência de uma regulação política; no
caso de Platão, autoritariamente imposta; nos outros, imposta pelo homem a si mesmo
como autolimitação (H52, 185). * Durante a época helenística e romana, do século II a.C.
ao século II d.C., o nexo conjugal foi problematizado de outra maneira. Foucault aponta,
pelo menos, duas importantes consequências: 1) A arte da existência matrimonial, sem
renunciar a ocupar-se da administração e gestão da casa, do nascimento e da procriação,
concede um espaço significativamente maior à relação pessoal entre os esposos. Esse
elemento começa a ser considerado como primeiro e fundamental. Mais que uma técnica
de governo, encontramos uma estilística do nexo individual. 2) O princípio de modera-
ção da conduta do homem casado se situa nos deveres de reciprocidade, mais do que no
governo dos outros (}l53,174-175). * Durante essa época, encontramos três princípios
que, considerados desde o ponto de vista do código, não representam nenhuma novidade:
monopólio das relações sexuais, deshedonização das relações, finalidade procriadora. Tais
princípios, por um lado, não estão ausentes nos textos da Época Clássica e, por outro,
continuarão vigentes no cristianismo. Mas, nos textos de Musônio, Sêneca, Plutarco ou
Hierocles, o nexo entre o casamento e os aphrodísla não se estabelece, essencialmente,
nem a partir do primado dos objetivos sociais ou políticos nem postulando um mal ori-
ginário e intrínseco aos prazeres, mas vinculando-os por um pertencimento de natureza,
derazâo de essência. "O princípio de uma fidelidade conjugal perfeita será na pastoral
cristã um dever incondicional para quem se preocupa com a sua salvação. Ao contrário,
nessa moral inspirada pelo estoicismo, é para satisfazer as exigências próprias da relação
consigo mesmo, para não ferir o que se é por natureza e por essência; para honrar-se a si
mesmo como ser razoável, convém fazer um uso razoável dos prazeres sexuais, um uso
dentro do matrimônio e conforme aos seus fins" (HS3, 215).
Économique I59SJ:,4.N,64,65,81, 239,251,278.4S,9,20,33,41, 50 51,72,90-92, 135, 14t,145,151,197,241.
242.D81, r51,153, \79,2r7,616.676,686,689 691, 697,702,707,717-718,721,726,753,818,820 821. DE2, 12,68,
74, 108, 1 14, 129,191,221 222,276 279,297,300,323,325-326,333-334, 337, 380,,1rs-4r6,433,435,438,441,451,455,
467-468.489,,196,505,528,565,573,585,598,610613,618-619,621,637-638,642-643,651,666,672,716,718,724,
727,730,742,744745,748,752,755,814.DE3,13,14,17-18,21,42-44,48,51-s5,57-s8,67,82,112,114,146 148,153,
159-160,170,183,194,197,208,211-212.232,258,261,307,31r,335,337,346,366,392393,395,400,424-425,433,
467-468,176,483 484,488,494 495,497,513,519,533,545 546,548,551,558,577,586-587,597,609,630,632,642,650,
657.666,681,683,689,695,702,713711,717.722.727,731,733,715,748-749,819,821,822-821.DF4,2s,56,69,74,
t'6,78,83,92 93, 1 06, 1 29, 148, 190, 211,226-228,235,237 ,240-241,263'265, 322, 339-340, 347-348, 368, 373-37 5,377 ,

381,398,442,453,478,480,482-484,487,489,498,503,510-512,518,579,-580,611,62r,645-646.677,72r,724,729,762.
HF, 16,91 94.96 98,101,108,226-227,458,471,479,502, sOs 506, s09 513,517,520,523,537-538,545. HS,33,43,59,
63,71,73,82,97,122.114,155-156, 161, 181. HSl, 15,33,35 37, 105, 138, 143, 161, 163, 186. HS2,44,78,83,88,93,97,
107, 157,161,169-17t,175,182- 184, 193- 199, 201, 218, 222,224,230,234,275-276,280,285. HS3, 36, 40 41, 43 45, 49,
65,92-94,173 174, r87-188,203,208,276,280. IDS,3, l4-1s,29,t12,tt5 116, 143, 146, 151, 161, 165, 170, 174, 184,

197,202,209-210,222. MC,90, 137, 180,207 208, 212,234,258,264,268,288-289,291,315, 326,371. MMPE,74,86.


MMPS,74,83. NC, 17,26,39,40-4t,43,49,52,80-82,85. OD,43. PP,26,66-67,90, 1r2, ll5, t17,t26,1.75,t81,2t7,
246,315. RR, 102, 166. SP,22,30,83-84,86,88-89,92,94,96,125,140,142,146, r50, 155, 1.77,204,209,215,220,222,
227, 234-235, 244-246, 251, 27 3, 284, 291, 3 13.

132 EcoNôMtcA (Économique)


::;,, ÉDIPO

Em uma série de cinco conferências na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,


"La vérité et les formes juridiques" (D82, 538-646), em 1973, Foucault se ocupa da história
de Édipo, especialmente na segunda e terceira conferências; não como o ponto de origem e
de formulação do desejo, mas como um episódio da história do saber, que coincide com o
momentodeemergênciadainvestigação(enquête)(D82,542).Apartir deLAnti-Oedipe,de
Deleuze e Guattari, em que se mostra como Édipo não e nem uma verdade atemporal nem nma
verdade profundamente histórica de nosso desejo, mas um instrumento de coerção e limitação

utilizado pelos psicanalistas, Foucault quer mostrar como a história de Édipo representa um
momento particular das relaçÕes entre saber e poder, entre poder politico e conhecimento no
qual ainda nos encontramos imersos (DE2, 554). 'A tragédia de Édipo é fundamentalmente o
primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Como todos sabemos, trata-se
de uma história em que os personagens - um soberano, um povo - ignoram certa verdade
e acabam, por uma série de técnicas das quais falaremos, por descobrir uma r.erdade que
problematiza a soberania do próprio soberano. A tragédia de Edipo é, pois, a história de
uma busca da verdade; é um procedin-rento de busca da verdade que obedece exatamente
às práticas judiciárias gregas da época" (DE2, 555). Na Grécia arcaica, a determinação da
verdade judiciária se realizava mediante uma prova que tinha a forma do desafio, como, por
exemplo, uma corrida de carros ou inediante o desaâo de jurar na presença dos deuses; não
havendo nem juiz, nem sentença, nem investigação, nem testemunhas para estabelecer a
verdade. Nas tragédias de Sófocles, ainda que encontremos resíduos dessas práticas, a busça
da verdade tem outra forma. Foucault descreve esse mecanismo através do que denomina
a lei das metades (para expressar o conteúdo literal do termo "símbolo") (DE2, 557). O
símbolo define uma das formas de exercício do poder. Quem exerce o poder ou conhece
um segredo pode partir em dois um vaso de cerâmica ou outro objeto, conservar uma das
partes e entregar a outra ao outro, para que esse leve uma mensâgem ou testemunhe sua
autenticidade. Na história de Edipo, cada personagem possui um fragmento dessa peça cuja
unidade deve ser reconstituída: Apolo e Tirésias, Édipo e )ocasta, os servidores e os escravos.
Esse jogo de reconstituição, que inicialmente havia sido dito de forma profética, adquire a
forma do testemunho. "Podemos dizer que toda a peça de Edipo é uma maneira de deslocar
a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo para um discurso de
ordem retrospectir.a, não mais da ordem da profecia, mas do testemunho" (DE2, -561). E,
Íinalmente, um pastor, pelo jogo da verdade que viu e que enuncia, pode vencer, por si só, os
mais potentes ."Édipo rei e umaespécie de resumo da história do direito grego' (D82, 570).
Essa obra representa a grande conquista da democracia gresa, o direito de testemunhar, <le
opor a verdade ao poder, uma verdade sem poder a um poder sern verdade. Segue-se daí urna
série de consequências: 1) a elaboraçâo das tbrmas tradicionais da prova e da demonstração
(como produzir a verdade, em que condições, que formas observar, que regras aplicar); 2)
o desenvolvimento da arte de persuadir da veracidade da própria afrrmação, a retórica; 3)
o desenvolvirnento de um novo tipo de conhecimento, o conhecimento por testemunho,
por recordação, por investigação. "Houve na Grécia uma grande revoluçâo que, através de
uma série de lutas e de questionamentos políticos, teve como resultado a elaboração de

ÉDrPo I 33
uma forma detenninada de descobrirnento judicial, jurídico da verdade. Essa cot.rstitui a
matriz, o Ir.rodelo a partir do qual uma série de outros saberes - filosófico, retórico, empíri-
co - puderam desenvolver-se e caracterizar o pensamento grego" (DE2, 571). Antiédipo,
psicanálise. "Ser antiédipo collverteLl-se em um estilo de r.ida, uur rnodo de pensar e de r.iver"
(D83, 134-135). Ver: Deleuze, Psicantilise.
Oedipe[256]:AN,96,271.DEr, 191,198, 100,375-176,416,768769.D82,4(1,5,12,5-5.1 570,5i7,582,613626,
628,630, 634-635, 777, 78 1. DE3, 1 33 I 36. 1 62, 3s1, 373. HF, 422. HS, 352, 4ts 426, 413. HS1, I 72. IDS. 7, 20. MMPE,
26,87. NIÀ{PS,26,98.

Édipo It]:D81,120.

,.. EDUCAçÃ+O $ducation)

Ainda que as ideias e as análises de Foucault tenham interessado justamente àqueles


ocupam da educação, nenhum texto de Foucault estii inteiramente consagrado a essa
qLre se
questão. O tema da educação, que é sem dúvida in.rportante na obra de Foucault, aparece
sempre em lelação com outros, a partir de outros. Em prirneiro luqrrr, sem dÍrvida, na relirção
com a disciplina. Aqui, é necessário seguir os desenvolvimentos de Surveiller et punir e
de Les anormau-r. A organização da educação ocidental se inscrer,e no grande processo de
reorganização do poder moderno que começa durante a monarquia e se aprotunda com o
fim do absolutismo. Foucault sublinhar á o processo de disciplinarização da educação, a nova
importância que nela ganhará o tema do corpo. Ern les anormoux, Foucault se ocupa da
educação no contexto da grande cruzada contrir a masturbação no seculo XVIII e a sexualização
das condutas intantis. * 'A educação se esforça por ser, de direito, o instrumento graças ao
qual, em urna sociedade como a nossa, qualquer indivíduo pode ter acesso a qualquer tipo
de discurso; sabe-se que ela en1 sua distribuição continua, no que ela permite e no que e1a
impede, as linhas que estão marcadas pelas clistâncias, as oposições e as lutas sociais. Todo
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriaçâo dos
cliscursos, com os saberes e os poderes que eles comportam" (OD, 45-46). * Referindo-se à
formação das discipiinas modernas, Foucault sugere: "Nessa grande tradição cla emir.rência
do cietalhe irão situar-se, sem clificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da
pedagogia escolar ou militar, finalmente, de todas as formas do adestrarnento. Para o ho-
mer:r disciplinado, bem como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indiferente, mas
náo tanto pelo sentido que nele se oculta quanto pelo enganche que encontra ali o poder
que quer alcançá-1o. Característico é o hino às 'pequenas coisas' e sua eterna importância,
cantada por loâo Batista de La Salle, em seLr Tratttclo sobre íts oltrigaçoes dos irmaos das
escolas cristos. A mística cotidiana se une aqui à disciplina do minúrsculo" (SP, l4l-142). * A
pirrtir da Revolução Frarncesa, um dos objetivos prescritos ao ensino prinrário será íortiÍlcar
e desenvolver o corpo (SP,212). * O Normal se estabelece como princípio de coerção no
ensino com a itrstauraçâo de urna educação estandardizada e o estabelecirneuto das escolas
normais (SP, 186). * A partir dos séculos XV e XVI, o Ocidente começa a preocupar-se com
a educação, não só do clero mas também daqueles destinados a ser comerciantes, homens de
leis, etc. Começa-se a formar as crianças desde muito cedo. Essa educação burguesa será cada

I34 EDUcAÇÁo (Éducation)


vez mais popular. Tal processo se inscreve nos fenômenos de disciplinarizaçao da sociedade
(DE3, 375). " "Em Surveiller et punir, tratei de mostrar como certo tipo de poder, que se
exerce sobre os indivíduos por intermédio da educação, pela forrnação de sua personalidade,
era correlato, r.ro Ocidente, nào apenas ao nirscimento de uma ideologia, mas também a um
regime de tipo liberal" (DE4, 90). * No final clo século XVIII, aparece com força a ideia de
uma educação natural, segundo certo esquerna racional. O pôr em ÍIncionamento de uma
educação naturai é também o pôr em funcionamento, no contato imediato entre pai e hlhos,
a substancialização da pequena Íamília em torno do corpo da criança e a racionaiização
ou a penetrabilidade da relação pais-filhos por uma disciplina peciagógica e médica (AN,
240). Nesse contexto, que se inscreve na grande campanha contra a masturbação, instala-se
o debate sobre a educação estatal (AN, 24I). * "Eis que agora [com a sexualização do corpo
infantill os psicanalistas começaram a clizer: A nósl a nós! o corpo do prazer das crianças;
e o Estado, os psicólogos, os psicopatologistas, etc. dizem: A nós! a nósl essa educaçãol É
esse o grande engano em que caiu o poder dos pais" (AN, 243).
Éducation [273]: AN,46,57,217,240-243,216-218,263,275,283,309. DEl, 121, 1,11, 151, 293 294,311,402,

517,731.D82,6i,105,r27,193,132,29.\-299,33+,-137,350,35-1,.130,4-5,1,189,-515-516,531,627,661,716,784,805,
825. DE3, 1s, 18, 20, 3.1, s5, 76, 90, 1 03, I 1 2, r50, 1 59, 184, 2s9, 293,329,3s2,375,394,423,588, 591, 728,733.711.,
sr7. D84,90,93, 1-;.1, iq2, 231,,152,358, 375,460,18-5,5ti3,785,790,795,809,811. HF, 106,301,,13-5,4-56,4-58,569,
599,607,626,686.HS,27,33,35,36,38,.t4,52,53,6061,92,98,I03,121,129-130,21s,221.235,zee..113,324325,
136,416, 120-121. HS1,40,.+1,81, 137, 115, 184, 197. HS2, 50.61,72,80,87-88,92,172 \73,2t6,228,238. HS3,47,
65,76,99,r53, 157, 178, 183,208. IDS,30, 1ll,136, 142, 159, 184,201.MC, 127 MMPE,85.MNIPS,96.NC,3l.OD,
45,46. PP, 61-62, 80, 92 93,117,190, 197, 198, 2{)7, 210, )12 214,216,218, 223 226,228 230, 28E,298. SP, 101' l4l,
143, 151, 158, 163, 174, 186,201,205,208,212, 2r7,236,238-23',),254-255,257,271-27),275'281' 298,302,31-1.

T:s ENCICLOPÉDIA (Encyclopedie)

Na episteme clássica, aArs co mbinatoria ea Enciclopédia obedecem à necessidade de respon-


der às imperfeiçoes das línguas naturais. A enciclopédia define o percurso das palavras, prescreve
os caminhos mais naturais, descreve os movimentos legítimos do saber, codifica as relações de
vizinhança e de semelhança (MC, 217). A enciclopédia vincula os vértices da designação e da
derivação no quadrilátero clássico da linguagem (MC,225).Yer: Episteme clássica.
Encyclopédie f90J: AN, 97 , 2t5,246. DEl, 66, 86, 1 55, 309, 542, 543, 547 , 564, 599,7 65-766, 822. DEz,21.3,2r9,

424, 536. DE3, 557, 653. DE4, 821. HF, 239, 260,278,281,295-2e6,307-308, 324, 343-i44, 348, '10tt-409, 4 I 9, '160'46 1,

509,513 s14,597.H.5,249.IDS,r26,147,161.MC,7,9,10,s3,90,97,100,102,12s-126,193,217,260.MMPE,78-79.
NC, 9, 18, 28, 137, 183. PP, 21, 3 1, 259,265,329. sP,37, t77.

*9 ENKRÁTEIA

Foucault se ocupa da enkráteia no âmbito da problematização moral dos prazeres, em


Lusage des plaisirs (H52,74-90). A enkráteia caracteriza-se por uma tbrma ativa de domínio

EuxnÁtera I 3 5
de si mesmo que permite resistir ou lutar no domínio dos desejos e dos prazeres. O signifi-
cado de enkráteia é próximo ao de sophrosyne; mas, nesse último caso, trata-se antes
de um estado no qual não só é necessário ser temperante, mas também piedoso e justo
(HS2,75). Melhor, o uso do termo enkráteia,naÉpoca Clássicagrega, acentua mais o
exercício, do qual Foucault assinala cinco características: 1) O domínio implica uma re-
lação agonística, de combate. 2) Essa relaçáo de combate é também um combate consigo
mesmo. 3) O resultado dessa luta pelo domínio de si mesmo é uma vitória muito mais
bela do que a que se obtém nos ginásios ou nos concursos. 4) Essa forma autocrática
se desenvolve segundo diferentes modelos, especialmente dois: o da vida doméstica (o
homem temperante governa seus desejos como a seus servidores) e o da vida cívica (os
desejos são assimilados à plebe que é necessário dirigir). 5) Para exercitar-se para essa
luta, é indispensável uma ascese. * Para o pensamento grego da Época Clássica, a ascese
que permite ao sujeito constituir-se como sujeito moral forma parte do exercício da vida
virtuosa, da vida do homem livre e político. Mais tarde, tal ascese ganhará autonomia;
por um lado, se separará o aprendizado dos exercícios do governo de si mesmo tendentes
a governar os outros; por outro, também terá lugar uma separação entre a forma desses
exercícios e a virtude (os exercícios do domínio de si mesmo tenderão a constituir-se em
uma técnica particular) (HS2, 90).
Enkrateia [24]: DE3,316. HS, 417. HS2, 41, 45, 74-75,76,81, 88, 96, 177 -178' 180' 182. HS3, 145

1]*. ENUNCIADO (Enonce)

Condições de existência. A primeira tarefa da arqueologia é negativa, desprender-se


das categorias tradicionais com as quais a história das ideias ou da literatura descrevem o
que foi dito (autor, Iivro, obra). Aparece assim um domínio de análise constituído por todos
os enunciados efetivamente ditos ou escritos, em sua dispersáo de acontecimentos e em sua
singularidade (AS, 39). É necessário definir, entáo, o nível próprio da descrição arqueoló-
gica dos enunciados. Foucault o distingue da análise linguística e da análise da história do
pensamento. Os linguistas também trabalham com enunciados e os descrevem, mas, nesse
permitiriam eventualmente construir novos
caso, trata-se de estabelecer aquelas regras que
enunciados. Para a arqueologia, o problema é outro: não segundo quais regras é possível
construir novos enunciados, mas como aconteceu que somente tais enunciados tenham
existido e não outros. A história do pensamento, por sua vez, busca encontrar, para além
dos enunciados ou a partir deles, a intenção do sujeito falante, suas aditividades conscientes
ou inconscientes. A análise arqueológica dos enunciados não os remete a uma instância
fundadora, mas apenas a outros enunciados para mostrar suas correlações, suas exclusões,
etc. (AS, 39-41). O enunciado é uma proposição ou uma frase considerada desde o ponto
de vista de suas condições de existência, não como proposição ou como frase (D81,778).
Proposição, frase, speech acÍ. Foucault utiliza frequentemente as expressõesp erformance
verbal ou linguística, formulaçao, frase, proposiçao. É necessário entender por perfor-
mance verbal ou linguística todo conjunto de signos efetivamente produzidos a partir de
uma língua, natural ou artificial; por formulação, o ato individual ou coletivo que faz surgir,

136 ENUNctADo (Énoncé)


valendo-se da materialidacle, um conjunto de signos; por frase, a unidade analisada pela
gramática; por proposição, a unidade da lógica. Por enunciado, no entanto, é necessário en-
tender modalidade de existência de um conjunto de signos, modalidade que lhe possibilita
a

ser algo mais que um simples conjunto de marcas materiais: referir-se a objetos e a sujeitos,
entrar em relação com outras formulaçoes, e ser repetível. Essa possibilidade de referir-se a
objetos, de implicar sujeitos, de relacionar-se com outras formulações e de ser repetível não
sereduz nem às possibilidades da frase enquanto frase nem às possibilidades da proposição
enquanto proposição. Por objeto, sujeito, relações ou possibilidade de repetição não há que
entender aqui nem as coisas nem o sujeito psicológico ou transcendental, nem os conceitos
nem a estrutura da idealidade, nem as opiniões nem um projeto teórico, mas as instâncias
que definirnos no verbete Formaçao discursiva. O enunciado articuia-se sobre a frase ou
sobre a proposição, mas não deriva deles. Em primeiro lugar, o enunciado não se reduz à
proposição por duas razões: 1) não é necessário, para falar de enunciado, que exista uma
estrutura proposicional; 2) duas expressões equivalentes desde o ponto de vista lógico não
são necessariamente equivalentes desde o ponto de vista enunciativo. Em segundo lugar,
quanto à correspondência entre o enunciado e a frase, Foucault aponta que não todos os
enunciados possuem a estrutura linguística da frase. Não só porque o enunciado compre-
ende os sintagmas nominais - ainda que se possa descobrir neles uma estrutura predicativa
potencial-, mas porque, por exemplo, as palavras dispostas em coluna em uma gramática
latina como "amo, amas, etmat..." constituem também um enunciado (AS, 109). Ao lado
dessas distinções a respeito da unidade da gramática e da unidade da lógica e, precisamente,
por causa delas, Foucauit deve enfrer.rtar a correspondência entre os enunciados e os speech
acrs. Nesse sentido, Foucault afirma em lhrchéologie du savoir: "Náo se poderia estabelecer
uma relação biunívoca entre o conjunto dos enunciados e o dos atos ilocutórios" (AS, 1 1 I ).
A descriçáo do enunciado não é nem análise lógica nem análise gramatical, situa-se em
um nível específico de descrição. Foucault define nestes termos a existência do enunciado:
"Existência faz aparecer algo distinto de um puro traço, mas como um domínio de
qrue

objetos; não como o resultado de uma ação ou de uma operação individual, mas como um
jogo de posições possíveis para um sujeito; não como uma totalidade orgânica, autônoma,
t-echirda em si mesma e suscetível de - -
constituir urn sentido, mas como um
sozinha
elemento em um campo de coexistência; não como um acontecimento passageiro ou um
objeto inerte, mas como uma materialidade repetível" (AS, 142-143). Essa existência não é
uma existência escondida (Foucault a caracteriza como non-caché), mas tampouco visír,el.
Não está escondida porque o enunciado ou, antes, a função enunciativa se exerce através de
elementos significantes eÍ'etivamente produzidos, através de frases e de proposições. Mas
não é visível, posto que se exerce através de outras unidades como a frase ou a proposiçào
e não ao lado ou por debaixo ou por cima: está suposta no fato de que existe o significado
e o significante, está suposta por todos os outros tipos de análise linguística mas não se
identifica com eles. A descrição enunciativa não se ocupa do que se dá na linguagem, mas
do fato de que existe a linguagem, que existem determinadas formulaçoes efetivamente pro-
nunciadas ou escritas e busca determinar as condições de possibilidade de existência dessas
deterrninadas formulações. Como resumo, o nível enunciativo situa-se entre materialidade
a

bruta das formulações e a regularidade formal das frases e das proposições. *Acerca dessa

ENUNCIADO ,Lnon(e) I 37
existência não escondida e não visível, a distinção searleana entre regras constitutivas e
regras regulativas pode oferecer um paralelo esclarecedor. Os enunciados se comportariam,
com respeito às normas que determinam sua regularidade, de maneira análoga a como se
comportam os atos ilocutórios com respeito às regras constitutivas. Função enunciativa,
formações discursivas. Mais do que um elemento, o enunciado é algo assim como o áto-
mo do discurso, é uma função que se exerce verticalmente com respeito a essas unidades
como a proposiçáo ou a frase. Pois bem, a descrição da função enunciativa coincide com
a descrição das formações discursivas, são correlatas (AS, 152). A partir dessa correlação,
é possível delimitar a noção de prática discursiva: "Um conjunto de regras anônimas, his-
tóricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram para uma época dada,
e uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da
função enunciativa' (AS, 153-154).
Énoncé [356]: AN, 11, 158, 160-161, 166. AS, 39,40,42,44,79,103,105'1.26,128-146, 148, 150, 152, 156-157, I63,

170-171.188,t91-192,217.238,269,272.DFL,171,281,41.7,506,519-520,636,638,640-642,644,647-649,705-707,
709 7 10,724,734,7 45,778.D82,28, 82, 207, 484 485, 634, 636. DE3,32, 102,143,245,260,3ol, 437 , s84,602,607,611.
DF.4,71,126,771.HF,166,318. H5,226,250,279,298,310,391. HSl, 15,82, I13. HS2, 190. HS3, 80. IDS, 164. MC,
11,103,112.NC,XIII,111,114,118.OD,17,25,44.PP,118,143,156158,160.RR,32,46,50.

:::. EPICURO (341 a.c.-270 a.C.)

No marco da análise da cultura do cuidado de si mesmo na época helenística, Foucault se


ocupa várias vezes de Epicuro, especialmente a propósito de: a extensâo temporal do cuidado de
si mesmo (nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ocupar-se de si mesmo) (HS3,
63; HS, 85); a concepção de filosofia como uma medicina cujo remédio é a verdade (HS, 9a);
a estrutura da escola epicurista (HS, l3l-133); a relação amizade-utilidade (HS, 185-186);
a oposição pa ideíalfrsíologia (HS, 230-233); a noção de parresía (}J.S,23l-232,373-374). *
"É a primeira vez que se encontra [a propósito da parresía), me parece, essa obrigação que
reaparecerá no cristianismo, a saber: à palavra de verdade que me ensina a verdade e que,
consequentemente, me ajuda na minha salvação, devo responder - sou incitado, interpelado,
obrigado com um discurso de verdade pelo qual eu abro ao outro, aos outros, a verdade de
-
minha própria alma' (HS, 374).
Épicure [72]: DE2,78,80. DE4,354-355,363,421,423,553,788,792-793.HS, 10,23,79,85,94,98, 102, 120, 130
13 1, 140- 141, 185,186, 195, 220,229 233,235,250,338, 373, 393, 455 456. HS2, 28. HS3, 60, 63,75,114,277.

}.}=. EPIMÉLEIA

Yer: Cuidado.
Epimeleia[109]:DE4,213,353-355,385,400 401,409,622623,629,716,787.HS,4-6,10-12,15,18,24,28,31-33,
38, 4,1, .16, 49-51, 58, 64, 66-67,73,76,79,82, 88, 97, I I 3, 176, 400, 421,429, 437, 439,443,465. HS2, 85, I 19, 176, 191,
232. HS3, 59,65.

13 I EPrcuRo
A episteme deÍrne o campo cle análise dir arqueologia. Em les mots ef les c'hoses, a
descrição arqueológica está centrada exclusivamente na episteme (MC, 13); mas a episteme
não é a rhnica direção que a arqueologia pode tomar. Outras arqueologias são possír.eis: da
sexualidade, da imagem - o espaço, a [uz, as cores - da ética, do saber político (4S,251-
255). Foucault passa de uma concepção monolítica da epistenre, em les ntots et les choses,
a uma concepção mais aberta em Larchéologie du savoir. "Em les mots et les choses, a
ausência de pontos de referência metodológica pode fazer crer em uma análise em termos
de totalidade cultural" (AS,27). Em Larchéologie du sot,oir, Foucault quer dar um con-
teúdo à noção de episteme a partir de outras noçôes - formações discursivas, enunciado,
arquivo - delimitadas desde um ponto de vista arqueológico. É necessário remeter-se aos
verbetes correspondentes para compreender o conceito de episteme na obra de Foucault.
* Além dessa rnudança, é necessário ter em conta que, na medida em que Foucault se in-
teressa pela questão tlo poder e pela ética, o conceito de episteme será substituído, como
objeto de análise, pelo conceito de dispositivo e, finalmente, pelo conceito de prática. O
dispositivo é mais geral que a episteme; ela é só um dispositivo especificamente discur-
sivo. Um dispositivo que permite separar o inqualificável cientificamente do qualiÍicável,
não o verdadeiro do falso (D83,300 301). Nos textos dedicados ao estudo da cultura de
si mesmo, Íinalmente, o termo episteme aparece como sinônimo de saber: saber teórico,
*
saber prático (HS, 301-302). A episteme, em primeiro lugar, teln uma determinação
temporal e geográfica. Foucault fala de "episteme ocidental'l "episteme do Renascimento",
"episteme clássicai "episteme modernal Em Les mots et les choses, Foucault mantém, como
dissemos, uma concepção monolítica da episteme: "Em uma cultura e em um momento
dado, nunca há mais do que urna episteme que ctefine as condições de possibilidade de
*
todo saber" (MC, 179). Em segundo lugar, segundo o prefácio deLes mots et les choses'
descrever a episteme é descrever a região intermediária entre os códigos fundamentais de
uma cultura, os que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, seus intercâmbios,
suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas, e as teorias, científicas e filosóÍicas,
*
que explicam todas essas formas da ordem (MC, 11-12). Em terceiro lugar, a descrição
não refere aos conhecimentos nem ao ponto de vista de sua forma racional nem ao de sua
objetividade, rnas às suas condições de possibilidade (MC, l3). Trata-se de descrever as
relações que existiram, em uma determinada época, entre os diferentes domínios do saber
(D82,371),a homogeneidade no modo de formação dos discursos (IDS, 185). Desse modo,
pode-se pensar a descrição da episten.re como um olhar horizontal entre os saberes. * Como
dissemos, Foucault abandonará essa concepção demasiado monolítica da episteme e, em
Lhrchéologie du savoir, buscará deÍrnir o nível da descrição arqueológica, da episteme,
com base no conceito de.formaçao discursit,a. 'A análise das formações discursivas, das
positividades e do saber em suas relações com as f,guras epistemológicas e as ciências é o
que se chamou, para distingui-la das outras formas possíveis de história das ciências, de
análise da episteme. Suspeitar-se-á,talvez, dessa episteme de ser algo assim como uma visão
do mundo, uma fração de história corrrum a todos os conhecirnentos que imporia a cada

EPISTEME I 39
uma as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, certa estrutura
do pensamento da qual os homens de uma época não poderiam escapar; grande legislação
escrita de uma vez por todas por uma mão anônima. Por episteme se entende, de fato, o
conjunto das relações que podem unir, em uma época dada, as práticas discursivas que dão
lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventuaimente a sistemas formalizados; o modo
segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e operam as passagens
à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses umbrais, que podem
entrar em coincidência, estar subordinados uns aos outros ou estar defasados no tempo; as
relações laterais que podem existir entre as figuras epistemológicas ou as ciências, na medida
em que elas provêm de práticas discursivas vizinhas, mas distintas. A episteme não é uma
forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que atravessa as ciências mais diversas,
que manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito, de uma época; ela é o
conjunto de relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências
quando se as analisa ao nível das reguiaridades discursivas" (AS, 249-250). * Características
da episteme: 1) é um campo inesgotável e que nunca se pode dar por fechado; não tem por
finalidade reconstruir o sistema de postulados ao que obedecem todos os conhecimentos de
uma época, mas recorrer um campo indefinido de relações. 2) Náo é uma figura imóvel que
aparece um dia e depois desaparece bruscamente, é um conjunto indefinidamente móvel de
escansões, de defasagens, de coincidências que se estabelecem e se desfazem. 3) Permite captar
o jogo de coerções e limitações que, em um momento dado, se impõem ao discurso. 4) Não é

uma maneira de recolocar a questão crítica, isto é: dada uma determinada ciência, quais são
suas condições de legitimidade? (AS, 250-251; DEl, 67 6). Renascimento, classicismo,
Modernidade. Segundo a análise de Les mots et les choses, a arqueologia mostrou duas
grandes descontinuidades na episteme ocidental: a que inaugura a Época Clássica (em tono
de meados do século XVII) e a que, por volta do começo do século xlx, marca o umbral de
nossa Modernidade. les mots et les choses está dedicado à análise de cada uma delas (MC,
13). Nós nos ocupamos delas nos verbetes: Episteme clássica, Episteme renqscentista e
Homem. Kant. A episteme não tem nada a ver com as categorias kantianas (DEz,37l).
Paradigma. Foucault é consciente de haver confundido demasiadamente a episteme, em les
mots et les choses, com algo assim como o paradigma (DE3, 144). ver também: Arquivo,
Arqueologia, Dispositivo, Formaçao discursiva, Prática.
Epistémà [ 1 14]: AS,249-255. DEl, 493, 495, 676, 679, 696. DE2, 34, 1.72 173,210,216,220, 370-372,415. DE3,
28,300 30r,310,317, s75.D84,71,278,327. HSr, 189. IDS,20, 19i. MC, 13,45, 47,55,68,71,76 77,85_87,89, 100,
140, 179, 183, 192,219-220,222,258-259,261 262,270,320 321,323,336-338,346,356 358,375,376 379,385,390,395,
397. SP,312.

Episteme [2]: HS2, 169, 283.

: :§ EPISTEM E CLÁSSI CA (Episteme c/assique)

A episteme clássica refere-se à disposição do saber durante os séculos XVII e XVIII. Foucault
leva em consideração os seguintes domínios do saber: a gramática geral, ahistória natural e a
análise das riquezas. Gramática geral. A gramática geral não éa simples aplicação da lógica

140 EPISTEME clÁs'IcA


à teoria da linguagem nem uma prefiguração da filologia. Ela é, antes, o estudo da ordem
verbal em relação com a simultaneidade que tem por objeto representar (MC, 97). A gramá-
tica geral comporta quatro teorias ou eixos de elaboração: l) A teoria do verbo ou da propo-
sição (MC, 107-111): o verbo é a condição de todo discurso e, para a Época Clássica, a lingua-
gem náo começa com a expressão, mas com o discurso, com a proposiçáo. O verbo ser afirma
a coexistência de duas representaçÕes. "Há proposição, e discurso, quando se afirma entre duas

coisas um nexo de atribuiçâo, quando se diz isto é aquilo. A espécie inteira do verbo se reduz
ao que significa ser" (MC, 109). 2) A teoria da articulação (MC, 1l I - 119): do mesmo moclo
que o verbo ser é essencial à forma da proposiçáo, também o é a generalidade do nome ao
discurso. A teoria da articulação explica tal generalizaçáo. 'A articulação primeira da lingua-
gem (se se deixa de lado o verbo ser que é tanto a condição como uma parte do discurso) se

leva a cabo segundo dois eixos ortogonais: um vai do indivíduo singular ao geral; o outro, da
substância à qualidade. No ponto em que se cruzam reside o nome comum; em Llna extremi-
dade, o nome próprio, na outra, o adjetivo" (MC, 1 13). 3) A teoria da designação (MC, 119-
125): o princípio da nominação primeira contrabalança a primazia formal do juízo. A análise
da linguagem da ação explica como pode constituir-se un.r signo a partir das gesticulações ou
dos gritos involuntários. As raízes ou palavras rudimentares não se contrapõem aos outros
elementos linguísticos como o natural ao arbitrário, a não ser porque foram assumidas pelos
homens a partir de um processo de compreensão. 4) A teoria da derivação (MC, 125-131):
explica como as palavras e os signos em geral se modificam quanto à sua forma e ao seu con-
teúdo. A forma se modifica em relação aos fatores extralinguísticos, por exemplo, a moda, e à
*
facilidade para pronunciá-los. A teoria dos tropos explica as rnodificaçÕes do conteúdo. 'As
quatro teorias (daproposição, da articulaçáo, da designação e da derivação) formam como os
segmentos de um quadrilátero. Elas se opõem duas a duas e de duas a duas se dão apoio. A
articulação é o que dá conteúdo à pura forma verbal, ainda vazia, da proposição; ela a preen-
che, mas se opõe a ela como uma nominação que diferencia as coisas se opôe à atribuiçâo que
as vincula. A teoria da designação manitêsta o ponto de enganche de todas as formas nominais
que a articulação recorta; mas ela se opõe a essa, como a designação instantânea, gestual,
perpendicular se opÕe ao recorte das generalidades. A teoria da derivação mostra o movimen-
to contínuo das palavras a partir de sua origem, mas o deslizamento na superfície da repre-
sentação se opoe ao nexo único e estável que une uma raiz a uma representação. Enfim, a
derivação retorna à proposição, porqLle sem ela a designação permaneceria dobrada sobre si
e não pocleria adquirir essa generalidade que autoriza um nexo de atribuição; portanto, a
derivação leva-se a cabo segundo uma Írgura espacial, enquanto que a proposição se desen-
voh.e segundo uma ordem sucessiva' (MC, t3l). História natural. A tarefa da história na-
tural é a disposição dos dados da observação em um espaço ordenado e metódico. Nesse
sentido, pode-se definir a história natural dizendo que é a nominalização do visível, a dispo-
sição taxonômica dos seres viventes servindo-se de uma nomenclatura adequada. Para isso,
recorrerii, por um iado à noção de estrutura, por outro, à noção de caráter. A estrutura dos
seres viventes se define pelos valores, não necessariamente quantitativos, que podem ser
atribuídos a cada uma dessas quatro variáveis: a forma dos elementos, a quantidade, a manei-
ra como se distribuern uns com respeito a outros e as dimensões relativas. A descrição da
estrutura é, com respeito ao observável, o que a proposição é com respeito à representação,

EPISTEME CLÁS5lCA (Fplsten-]e ctassiquet 141


isto é, a disposição linear, sucessiva do que se nos oferece de maneira simultânea. A noção de
caráter, por sua vez, permite generalizar a descrição das estruturas observáveis. Essa generaliza-

ção seguiu duas técnicas: o sistema (Linneu) e o método (Adanson, Buffon). Linneu limita a
comparação a um ou a poucos elementos; por exemplo, ao aparelho reprodutivo. Adanson, por
sua vez, descreve uma espécie arbitrariamente escolhida, em seguida descreve as diferenças
entre essa e uma segunda, depois, uma terceira, etc. A teoria da estrutura ocupa o lugar que
ocupavam, na gramática geral, a teoria da proposição e da articulação; a teoria do caráter, por
sua Yez, ocupa o lugar das teorias da designação e da derivação. Estrutura e caráter permitem a
disposição em"tableau" dos seres viventes. Na história natural, o conhecimento dos indivíduos
empíricos é adquirido através de um quadro ordenado, contínuo e universal de todas as diferen-

ças possíveis (MC, 157). Análise das riquezas. À diferença do Renascimento, na Epoca
Clássica, a função fundamental da moeda é a substituição; ela náo substitui porque vale, mas
vale porque substitui. Com base nesse pressuposto, surgirão duas teorias: a moeda como signo
e a moeda como mercadoria. Mas ambas partem de um pressuposto comum, a moeda é como
um intercâmbio diferido. Os preços, por sua vez, dependem da relação de representação entre a
moeda e as riquezas no processo de intercâmbio. A teoria clássica da moeda deÍine como os bens
podem ser representados no processo de intercâmbio e também as relações de representação
entre a moeda e os bens. A teoria do valor, por sua vez, define por que existe o comércio ou, o
que é o mesmo, como se constitui o valor. "Por sua vez, a teoria da moeda e do comércio explica
como uma matéria qualquer pode cumprir a função significante, referindo-se a um objeto e

servindo-lhe de signo permanente; ela explica também (pelo jogo do comércio, do aumento e

da diminuição do numerário) como essa relação do signo ao significado pode alterar-se sem
nunca desaparecer, como um mesmo elemento monetário pode significar mais ou menos rique-
zas, como pode deslocar-se, estender-se, contrair-se com respeito aos valores que está encarre-
gado de representar. A teoria do preço monetário corresponde, então, ao que na gramática geral
aparecia sob a forma de uma análise das raízes e da linguagem da ação (função de designaçao)
e aoque aParece sob a forma dos tropos e dos deslocamentos de sentido (função de derivaçao)
[...] A teoria da moeda preços ocupa, na análise das riquezas, a mesma posição que a te-
e dos
oria do caráter na história natural" (MC, 215). Gênese, máthesis, taxonomia. No início do
século XVII, a semelhança, que durante o Renascimento determinava a forma e o conteúdo do
saber, converte-se na ocasião e no lugar do erro: uma mescla de verdade e de falsidade que exige
ser analisada em termos de identidade e de diferença (MC, 65-68). A crítica cartesiana da se-
melhança confere ao ato de comparação um novo estatuto. Comparar já não consiste mais em
buscar a maneira com as coisas se assemelham, mas em analisá-las em termos de ordem e de
medidz. Medlr, calcular as identidades e as diferenças, é confrontar as quantidades contínuas
ou descontínuas com um padrão exterior. Ordenar é analisar as coisas, sem referi-las a um padrão
exterior, segundo seu grau de simplicidade ou de complexidade. Durante a Época Clássica, co-
nhecer é analisar segundo a ordem e a medida; mas, como todos os valores aritméticos são or-
denáveis serialmente, sempre é possível reduzir o medir ao ordenar. * A tarefa do pensamento
consistirá, então, em elaborar um método de análise universal que, estabelecendo uma ordem
certa entre as representações e os signos, reflita a ordem do mundo. A semelhança delxa de ser
a forma comum às palavras e às coisas e também de assegurar o nexo entre elas. No entanto, a
Época Clássica não a excluiu de maneira absoluta, mas a situa no limite da representação e como

142 EptSTEME cLÁsstcA (Épistemà c/assique)


condição dela. Com efeito, a ciência geral da ordem a exige duplamente: por um lado, é neces-
stirio proporcionar um conteúdo às representações e, por outro, é necessário que a semelhança
seja a ocasião da comparação. A ideia de gênese reúne essas duas exigências desenvolvendo-se,
em primeiro lugar, como uma analítica da imaginaçâo, análise da faculdade de referir a tempo-
ralidade linear da representação à espacialidade simultânea da natureza, e, em segundo lugar,
colllo uma análise da natureza, análise da possibilidade e da impossibilidade de reconstituir, a
partir da natureza, uma ordem representativa (MC, 84). * Podemos reconstruir o qgadro geral
da episteme clássica, partindo do empírico, como se segue: em primeiro lugar, encontramos a
gênese; ern segundo lugar, a taxonomia, em terceiro lugar, a máthesis. A gênese, analítica da
imaginação e analítica da natureza, ocupa-se da semeihança entre as representações e da seme-
ihança entre as coisas, isto é, explica como, através do murmúrio insistente da semelhança das
similitude entre as representações, a comparação e possível. No outro extremo, en-
coisa.s e da
contramos amáthesis, uma ciência da ordem das representações sin-rples que se serve da álgebra
como instrumento. Entre a gênese e a máthesis situa-se a taxonomia, uma ciência da ordem
das representações complexas que se serve de um sistena de signos, náo algebricos, a fim de
poder analisá-las e descompô-las. Em um extremo, a análise da constituiçâo da ordem a partir
do empírico; no outro, uma ciência da ordem calculável. Entre ambas, a taxonomia que analisa
a representação atribuindo um signo ao que nos é dado nela: percepções, pensamentos, desejos,

etc. A tarefa da taxonomia consiste em construir o quadro das representações: o modo como
essas se situam umas com respeito a outras, como se assemelham e como se dilbrenciam mutu-
amente. Aqui se sítuam a grarnática geral, a histório natural ea análise das riquezas. Nesse
espaço definid o pela taxonorairz, situant-se os dois grandes projetos do classicisrno: uma língua
perfeita, uma ars combiflatoria, na qual o vâlor representativo das paiavras e dos signos estaria
perfeitamente delimitado; e a Enciclopédia, qte, em relação ao ideal de uma língua perfeita,
define o uso legítimo das palavras nas línguas reais levando em conta as variaçÕes de seu valor
representativo.Na gramática geral, o ideal da Ars combinatoria esÍá representado pelo lado
que, no quadrilátero da linguagem, une a teoria da atribuição à teoria da articulação (poderíarr-ros
dizer tanrbém pela teoria do juízo); na história flatural, pela teoria da estrutura; e, na análise
das riqttezas, pela teoria do valor. O ideal daEnciclopédia está representado, na gramática
geral, pelo lado que une a teoria da designação à teoria da derivação (ou, se quisermos, pelo
momento da signiÍicação);nahistória natural,pelateoria do caráter;e,naanálise dtts riquezas,
pela teoria do preço. Ars combinotoria e Enciclopédia representam os dois momentos cienti-
ficanrente fortes do classicismo, isto é, o que torna po ssível a gramatica geral, a história natural
e a análise das riquezas. Entre o lado do juízo (ou da estrutura ou do valor) e o lado da signifi-

cação (ou do caráter ou da teoria do preço), os dois lados do quadrilátero que permanecem
abertos representam o momento metafisicamente forte do classicismo; por um lado, a continui-
dade das representações (entre a derivaçáo e a atribuição) e, por outro, a continuidade dos seres
(entre a articulação e a designação). com efeito, para que exista rma gramática gerol, uma
história natural e uma wtálise das riquezas, é necessário o encadeamento das representaçÕes
e o encadeamento das coisas, que
entre as representações e os seres exista uma continuidade,
uma semelhança (MC, 214-221). Representaçáo. A Logique de Port-Royal define o signo
como se segue: o signo encerra duas ideias, uma da coisa que representa, outra da coisa repre-
sentada; e sua natureza consiste em provocar a segunda pela primeira (MC, 78). Uma ideia é

EPtsÍEME ct-Ásstcn gpistemà ctassique) 143


signo de outra, não só porque entre elas existe um nexo que funda a relação de representação,
mas porque essa relação de representação está representada, por sua vez, no interior da ideia
representante. O exemplo canônico do classicismo, o quadro, e o ideal enciclopédico de Locke
o ilustram claramente. * Três variáveis definem o nexo entre as palavras e as coisas: segundo
sua origem, um signo pode ser natural ou convencional; pode formar parte ou estar separado
do que indica; pode ser certo ou provável. Que um signo possa ser mais ou menos certo, que
possa estar mais ou menos afastado do que indica, que possa ser natural ou convencional, tudo
isso mostra com clareza que o nexo entre os signos e seu conteúdo não está assegurado por
uma forma intermediária que, como sucedia durante o Renascimento, pertenceria à mesma
ordem que aquela das coisas (um nexo entre duas ordens de semelhanças assegurado pela
mesma semelhança). A relação entre o significante e o significado situa-se dentro da mesma
representação; ela é a relação entre duas ideias das quais uma representa a outra: a ideia abs-
trata representa à percepção (Condillac), a ideia geral é uma ideia individual que representa
outras ideias individuais (Berkeley), as imagens representam as percepçÕes (Hume), as sen-
sações representam o que Deus quer nos dizer (Berkeley), etc. (MC, 79). Em definitivo, o
signo representante é, ao mesmo tempo, indicação do objeto representado e sua manifestação.
"Como no século XVI,'semiologia e'hermenêutica se superpõem. Mas de maneira diferente.
Na Época Clássica, elas não se reúnem mais no terceiro elemento da semelhança; elas se vin-
culam nesse poder próprio da representação de representar-se a si mesma. Não haverá, então,
uma teoria dos signos diferente de uma análise do sentido" (MC, 80). "Desde o momento em
que deixou de existir [o discurso clássico] e de funcionar no interior da representação como
o seu primeiro pôr em ordem, o pensamento clássico deixou, no mesmo momento, de nos ser
diretamente acessível. O umbral do classicismo à Modernidade (mas pouco importam as
palavras, digamos de nossa pré-história ao que nos é contemporâneo) foi definitivamente
atravessado quando as palavras deixaram de entrecruzar-se com as representações e de qua-
drilhar espontaneâmente o conhecimento das coisas" (MC, 315). Yer: Discurso.
Épistémà classique [15]:D82,172. HSl, 189. MC, 71,76-77,86-87,89, 100,21g,320 321,376.

J3= EPISTEME MODERNA

Ocupamo-nos dela no verbete Homem.


Épistémà moderne [1 1]: DE4,275. MC,258-259,336,357-358, 376, 377 -378.395.3g7

::+. EPISTEME RENASCENTISTA

Em cada um dos saberes que Foucault leva em consideração, a semelhança, com suas diferentes
figuras, aparece como a forma ea condiçáo de possibilidade do conhecimento durante o Renascimento.
*
Nem o problema da representaçáo (como estar seguro de que um signo designa corretamente o que
significa) nem o problema do sentido ou da significação (como a consciência confere um conteúdo
aos signos) ocupam a reflexão acerca da linguagem; entre as palavras e as coisas, entre os signos e a

144 EptSTEME MoDERNA lÉpistenà classique)


realidade existe, para expressá-lo de algum modo, um nexo natural ou, melhor: ambas, palavras e
coisas, possuem uma mesma natureza e comunicam através dela. Propriamente falandg o problema
do 'hexo' entre as palavras e as coisas nem se coloca nem pode ser colocado. Para o Renascimento,
com efeito, os signos são um sistema de formas, de marcas (signaturae), organizado segundo as
diferentes figuras da semelhança (convenientia, aemulatio, analogia, imitatio) e ligado através
das mesmas diferentes figuras da semelhança a um conteúdo, o mundo das coisas, o qual, por sua
vez, está também estruturado segundo os diferentes modos de assemelhar-se. Dois universos de
semelhanças ligados entre si pelo trabalho da semelhança: o signo da simpatia reside na analogia;
o da analogia, na emulação; o da emulação, na conveniência; e o da conveniência, na simpatia. A
defasagem entre esses dois universos de semelhanças superpostos, isto é, o fato de que o signo da
simpatia resida na analogia, e o da analogia, na emulaçáo, etc., deflne o espaço do saber renascen-
tista; conhecer significa superar essa defasagem, passar das marcas das coisas às coisas marcadas,
isto é, ler o livro da criação. As categorias de macrocosmos e microcosmos traçam as fronteiras
desse universo de similitudes; elas limitam o trabalho da sen.relhança encerrando-o entre o limire
superior, o cosmos, e o limite inferior, o homem. O conhecimento da linguagem, por sua vez, não
pode ser outra coisa que comentário, esforço para referir na forma de interpretação o sernelhante
ao semelhante. Se chamarmoshermenêutica o conjunto de técnicas que nos permitem fazer falar
os signos e se chamarmos semiologiao conjunto de conhecimentos que nos permitem defini-los,
durante o Renascimento ambas se superpõem: a semelhança define tanto a forma como o conteúdo
dos signos. Tal como as noçÕes de macrocosmos e de microcosmos, as categoriasdetexto primítivo
e de interpretaçao infnita definem o espaço e os limites do comentário; comentar consiste em
restituir a palavra originária comunicada por Deus aos homens, restituir o texto primitivo através
do esforço contínuo (infinito) de interpretação (MC, 46-47). No projeto enciclopédico dos séculos
XV e XVI, a eruditio (deciframento das similitudes entre os signos) ea diuinatio (decitiamento
do que Deus semeou na natureza, as simi-litudes das coisas) não são as formas imperfeitas de um
conhecimento que não alcançou sua plenitude ou que náo descobriu suas estruturas, mas, antes,
*
as únicas formas arqueologicamenÍe possíveis do conhecer. Não se encontra em Foucault a
expressão'tpisteme renascentista l

}}?. EPISTROPHÉ

Yer: Conversão.

:-rs EPITETO (:o a.c. so a.c.)

Segundo Foucault, Epiteto marca a mais alta elaboração fllosófica do tema do cuidado de
si mesmo: ele define o homem como o ser que foi confiado ao próprio cuidado (HS3, 6l). As
referências a Epiteto são numerosas nos textos de Foucault. Não há, contudo, uma exposição
sistemática de seu pensamento, mas referências que se inserem no marco geral de urna exposição

EPITETO 1 4 5
do tema do cuidado de si mesmo no contexto da filosofia helenista. Assinalamos, a seguir, as mais
importantes. * Epiteto insiste em que a "escola" não seja considerada como um simples lugar de
aquisição de conhecimentos; antes a concebe a partir das metáforas médicas, como um hospital
da alma. Em Epiteto, ademais, as metáforas médicas são regularmente empregadas para designar
as operações necessárias para a cura da alma (HS3, 71; HS, 87, 96). Ainda que a escola de Epiteto
não fosse um lugar de residência, existia, segundo testemunhos, alguma forma de convivência (HS,
133). Nela, se oferecia a formação necessária para cumprir com a missão do filósofo, conduzir aos
outros ao cuidado de si mesmos; o que requer duas condiçoes: ser protreptikós (capaz de dirigir
o espírito na direção correta) e elenktikós (bom na arte da discussão, capaz de refutar os erros).
Nesse sentido, Epiteto nos oferece o que se poderia chamar um esquema de formaçáo profissional
*
do filósofo (HS, 134- 135). Desde esse ponto de vista, da aproximação entre a medicina ea moral,
ressalta-se a importância de reconhecer-se como doente, como necessitado do trabaiho de cura
(}J'53,73-74). * As metáforas que Epiteto utiliza (como, por exemplo, aquelas que se referem à
atitude de vigilância a respeito de si mesmo) tiveram uma influência considerável na espirituali-
*
dade cristã (HS3, 79). Para Epiteto, o "examelatitude da alma com relação a si mesma, consiste
em distinguir as representações, em prová-las, para evitar aceitar o que nos é oferecido nelas "à
primeira vista" (HS3, 80). * Epiteto sustenta a impossibilidade de universalizar a renúncia ao
matrimônio. Em seu retrato do cínico ideal, a renúncia ao matrimônio se segue da necessidade
de cumprir com a missão de ocupar-se dos seres humanos. A renúncia ao matrimônio aparece,
*
então, vinculada só a razões circunstanciais, não essenciais (HS3, 182- 185). Epiteto evoca o ideal
de não ter relações sexuais antes do matrimônio (HS3, 196). * Sustenta a exigência de fidelidade
* Acerca da relação entre cuidado de si e cuidado dos outros, Epiteto nos
matrimonial (HS3,200).
oferece um desenvolvimento em dois níveis. No nível natural, o mundo está organizado de modo
tal que cada ser busca o próprio bem. Pois bem, buscando o próprio bem, naturalmente, busca o
bem dos outros. No nível do homem, ao nível reflexivo, o homem que tem cura de si mesmo como
convém, necessariamente cumpre com seus deveres em relação à comunidade (HS, 188-190). *
Entre os exercícios de si mesmo de que nos fala Epíteto, encontramos: a caminhada (para exami-
nar as representações que nos vêm ao espírito e estabelecer qual seria nosso comportamento) e a
memória (recordar um acontecimento davida passada, estabelecer que influência teve sobre mim,
em que medida sou livre, em que medida dependo dele, como tenho que julgá-lo) (HS, 185-186).
* Foucault analisa também a posição de Epiteto sobre o ouvido como receptor
do lógos; isto é, os
exercícios de escuta (HS,321-323, 329-331).
Épictéte [275]: DF4,356-358,362,364-365,391,3gg, 401, 408, ,11 7, 42 1, ss 1, 6 6, 628, 66 9,698,700,7 12,795,802-
1

803.HS,5,r0-u,21,23,56,63,79,87-88,93,96 100,r02-103,r15,117,120,133-137,139,141 143,148,150,t76,179,


185, 188 19r, r9s, 199,206,209-210,214,216 217,25s,277,286-287,298,307,315, 319 323,329 331,33s,342,349-350,
352353,107,412,414,,116,418-419,422-427,432,438-439,441,154,457,459,461,464,468469.HS2,25,281.HS3,53,
61-62,66 67,71. t'2,71 75,79-81,83, 105-107, tll-l]L2,\74,181 183, 185-1tt6, 196,200,270,277.

Epietetus I3l: HS, 298. }JS3, 67, 282.

t3=. EPITHYMÍA

Yer: Desejo.
Epithumia [7] : HS2, 52, 66, HS3, 128, 160,232.

146 EPITHYMíA
:':,. ÉPOCA CLÁSSICA (Epoque ciassique)

A expressão época clássica tem dois sentidos na obra de Foucault. Por uur lado, r-efere-se aos
séculos XVII e XVIII, em termos filosóficos, de Descartes a Kant. "Clássico' aqui faz referência à
imitação dos autores antigos na ordem da literatura, e se opõe a rcmântico. Nesse sentido, a expres-
são é utilizada em Histoire de la folie e em les mots et les choses. O outro sentido corresponde
à Época Clássica dii cultr-tra ociciental, isto é, a época clássica da literatura e da filosofia gregas,
entre os séculos V a.C. e III a.C. Assim é utilizada, por exemplo, em Ilusage des plaisírs.
Âgeclassique[277]:NA.{4-45,{tt,50,5.1,62,65, ll1, t52,l12.DEl, t59,161,217,3t7,i98,412,429,180,500
502,598 599, 656,672 673,721,732.738,786,842. DE2,9-10,223,408,456,677,7t7,773,790.D83, ls, 140,229,24s,
278,4r9. 548,669, 677,728. D84.315,316.410,6,19,67r, 70t,779. HF,48,67, 77,79 80,87 88,98_99, 102, 105. 108,
110-r12,115,119,130,136,139-140,t42,t48-150,161,164-t66,176-177,179,181-182,186,188,194,201,203,2t0,212,
223-228.230,241,260,265-266,273 275,283,292,301, 306, 3 14, 3 I 7, 319-220.327 ,341.352-35,r, 355, 360-36 1, 379 380,
383 i34, -186 -187,,105,407,411 113,416,42r 42-1, 427,132,538, 513,545,555, 567.573, s82,61.1,6,1tt. HS,465. HSl,
11,20,26,33,38,47, 158, 172, 179, 183-1rJ4, 195. HS2,48. HS3, 181. MC, 13-1s, 58,58,71-72,75 76,79-83,85-88.90,
92 93, 95, 97.99,102 104, 139 140, 142-t+1,148, l(r3, 163, l7l, 175,177,222 T3,233-231,238,143, 24s,250,259-260,
266,277,28t,286,292,105,313, 322,342.348-349,381. AS, 78,230,255. MMPS,85. Sp,36,51,58, 122, 138, 141. r43,
170, 1 73, i86-l 87, 2t0 211, 217, 227, 304.

Époqueclassique[103]:A:5,76-77,84,88,90,92,206,211,219,23423s,238,2.1i.DE1,s00,671.67e,7)t.7st.
DE2,9,36,55,58,63,111-112,214,283,297,585,716.D83,17,76,149,252.481.D84,218,3t7,622.}{F,27,88,90,
105, r20, r26, 145, 199,102, 256.260,31,1,355,.151,513, -520,620. HS, 125,128. HS1,210. HS2,62,86, 90-91, 121, 165,
200.203,220.I{S3,15,49,93,126,175,219.MC,71,88-89,94,95,98,109,119,124,143,173-174,177,258,260,285,
29-5. 300. 303, 310. 346.357 . MMPS, 8l. OD. 63. PP. 71,74,96,132. SP, 46, 62, 159, 165. 306-307.

::::. EROS

Para os gregos, o eros não é nem necessariamente homossexual nem exclusivo do casa-
mento; pode unir seres humanos de qualquer sexo. Na ética sexual do homem casado, não se
requer uma relação do tipo do ero-s para constituir e definir suas regras; no caso do amor pelos
mancebos, no entanto, é necessária para que essa alcance sua forma perfeita e mais bela (HS2,
222-223). * Eros e ascese são as duas grandes formas, na espiritualidade ociclental, pelas quais o
sujeito pode transfbrmar-se para converter-se em sujeito de verdade (HS, 17). Yer'. Erotica.
Eros [9]: AN,244. DE4, 198. HS2, 101,253. HS3, 224,226,251,258. IDS,20. MMPE,86.
Éros [75]:.\N,244.DBr,223,244.D82,375-377,821.D84, 198, 359. HF, 453. HS2, 102, 166,207 -208,2\0,222,242,
252,257 .262-2(\5,267, 2E0 28 l. HS3 ,206,222,224-225,232,234.236-238,241 245,248,250, 28 L IDS, 20. MMPS. 97.

Erôs [9]: HS, t7, 34, 38, t47,271,33t.

:.::: ERÓT|C A (Erotique)

O quarto capítulo de Lusage des plaisirs está consagrado à eróticit (HS2, 205-248). A erótica
define o campo de interrogirção ética acerca do uso dos prazeres quando a relação se estabelece

ERóTtcA (Érotique) 147


entre homens e, mais precisamente, entre um adulto e um adolescente; esse domínio de
problematização ética concerne ao domínio de si do amante, ao domínio de si do amado e à
relação entre essas duas formas de moderação (H52,224). "Os gregos não imaginavam que
um homem tivesse necessidade de outra'natureza'para amar a um homem; mas eles con-
sideravam que aos prazeres dessa relação era necessário dar-lhes uma forma moral distinta
daquela requerida quando se tratava de amar a uma mulher" (HS2, 213). * A preocupação
dos gregos não concerne ao desejo que podia conduzir a esse gênero de relações, nem ao su-
jeito desse desejo. Preocupavam-se, antes, pelo objeto do prazer ou, mais exatamente, por tal
objeto na medida em que esse deveria converter-se, ele mesmo, em senhor de seus prazeres
(HS2, 248). Para compreender, então, de que maneira o uso dos prazeres é problematizado na
reflexão acerca dos adolescentes, é necessário recordar o princípio segundo o qual deve haver
um isomorfismo entre a relação sexual e a relação social. Para os escravos e as mulheres, não
traz dificuldades o fato de que eles sejam passivos na relação sexual; isso coincide com sua
situação social. No caso dos adolescentes, livres por nascimento, coloca-se o problema do qual,
precisamente, se ocupa a erótica. Ela deve estabelecer as regras e os princípios segundo os
quais os adolescentes, destinados a serem cidadãos, podem ser objeto do prazer de um adul-
to. 'A relação sexual com o adolescente exige, pois, por parte de cada um dos dois parceiros,
condutas particulares. Consequência do fato de que o adolescente não pode identificar-se com
o papel que tem que desempenhar, deverá recusar, resistir, fugir, escapar, será necessário que
ponha no consentimento, se finalmente concorda, condições a respeito de a quem cede (seu
valor, seu estatuto, sua virtude) e o benefício que ele pode esperar (benefício antes vergonhoso
se só se trata dedinheiro, mas honroso se se trata da aprendizagem de um ofício, de apoios
para futuro ou de uma amizade durável)" (H52,246-247).
* O quinto capítulo de
sociais o
Ilusage des plaisirs também está dedicado à erótica, mas, âgora, a propósito da relação entre
o uso dos prazeres e a verdade. Nos gregos, a reflexão sobre o nexo entre o acesso à verdade e
à austeridade sexual se desenvolveu a propósito do amor pelos adolescentes (HS2,252). Aqui,
Foucault se interessa particularmente pela erótica socrático-platônica que marca, a respeito da
erótica corrente, quatro evoluções: a passagem da questão da conduta amorosa à interrogação
sobre o ser do amor, a passagem da questão da honra do adolescente à questão do amor pela
verdade, a passagem da dissimetria eÍtre os partenaires à convergência no amor, a passagem
da virtude do amado ao amor do mestre e sua sabedoria (HS2, 259-268). * Nos primeiros
séculos de nossa era, assistimos a uma desproblematização ética do amor pelos adolescentes.
Isso responde a várias causas: o poder do pai nas instituições romanas, a utilização de jovens
escravos, a institucionalizaçâo das práticas pedagógicas (I{53,219-220). * Em Plutarco e
no Pseudo-Luciano, o amor pelos adolescentes perde sua dimensão fiiosófica; mantém, no
entanto, um yalor estético (H53,222-223). Nessa época, se afirmam os elementos de uma
nova erótica que se desenvolve a propósito da relaçáo entre o homem e a mulher (H53,262).
'Assim começa a desenvolver-se uma Erótica diferente daquela que tinha seu ponto de par-
tida no amor dos adolescentes; ainda que, em uma como em outra, a abstenção de prazeres
sexuais desempenhe papel importante, ela se organiza em torno da relação simétrica entre o
homem e a mulher, em torno do alto valor atribuído à virgindade e à união completa em que
ela encontra sua culminação" (HS3, 266).
Erotica [24]: DE3, 134, 52s, 526. DE4, 390, 615, 794. }tsr, 77, 83, 90, 94 96.

148 ERóTtcA (Érotique)


Érotique 115l: AN, 268-270,273,302. DEl, 2t9,222,226-228,24g,615. DE2, 642,652-653,655-656,765-766,
787.D83,102,104,134,234'235,381,556-558,769.DF4,218,258,260,328,611,622,t-01,743,790-79t.HF,ZB5,
355-356,684. HS,43,59, 63,64,73 75,84,114,156,434. HSl, 77,83,94_96. HS2,44,48, 107, 155, 159,2\4,220,222,
224, 234, 248,251 -253. 255-2si , 263, 266-268, 275-27 6. HS3, 2 1 7, 22t 222. 229-230, 231-235, 237, 241 -242, 244, 253.
262-263,266. IDS, I 18.

i43 ESCOLA (Ecole)

* 'A disciplina reina na escoia,


no exército, na fábrica. Trata-se de técnicas de dominação
de extrema racionalidade" (D83, 395). * A fábrica, a escola, a prisão ou os hospitais têm por
objetivo vincular os indivíduos ao processo de produção; trata-se de garantir a produção em
função de uma norma determinada (D82, 614). * O papel do intelectual consiste etn fazer
visíveis os mecanismos de poder que se exercem de maneira dissimulada. Mostrar, por exemplo,
como a escola não é só uma maneira de aprender a ler e a escrever, mas uma maneira de impor
(DF2,772). A partir do seculo XVII, nas sociedades ocidentais, desenvolve-se toda uma série
de técnicas para encaminhar e para vigiar os indivídr.ros err seu comportamento corporal:
parâ qüe aS pessoas aprendam a ficar em pé de determinado modo, a comportar-se de certa
maneira. A escola se converteu em um meio de adestrarnento físico. Cadavez mais exige-se que
os alunos se ponham em fila, alinhem-se diante de um professor, que o inspetor possa vê-los
a cada instante, etc.; de igual rnodo no Exército (DE3, 586). Ver também: Exarne.
École [370]: AN,4,3,1,53, 139, 143, 242,260,274,277,284. DEl, 273,s05,546, 585, 587,601, 769,773,779,8t2'
8 DÉ2, 44, 17, 54.87,227-228,274.311-312,32 r, 1,55, 378, 389, 431, 439,443, 451, 453, 170,508, 5 I 7, 528, 593,
13, 8 16.

609610,613-614,62t,643,671-672,68r,709,742,751,772,780,783,787,792,806.D83,27,36,73,76,19r,t93,196,
200,202,266,302,344,395-396,432 431, 455, 457, 458,162,466,478,515, 576, 580, 586-588,670,739.766,802,823-824.
DEA,Zt,72-74,76,tt9,91,1r2, r29,135, t70,182,209,225,274,275,282.323,351,356-357,358,417,421,433,438-440,
488,519,52t,529,582,650-651,656,662,665,68tt,766-767,796,802,814.HF,106,391,491,672.HS,31.44,8i,96,
u0,u9,12r,13t-r34,136-137,139,\11142,\44,159,172,178,\79,191,214,320-321,327,i35,336,395,4i6,.133,
448, 455. HSl, 40, 65, 167, 184- 185. HS2, 184, 208, 214, 218. HS3, 67, 68,7 r,185,257,259. IDS, 165, r89,222. MC,204.
NC,47,56, 68-71,73,75,77,151, r80-181, 188,208 209,211. PP, 18,41, -51,54,55, 62-63,75-76,78,81,82,87,91-92,
95, 105, 108, ll3, ll6, 128, i49-150, 187,1.96-197,199,211,215-216,226,229,258,328. PP, I8,41,51,54,55,62 63,
75-76,78,81,82,87,9t-92,95,105,108,113,il6,128,149-150,r87,196 197,199,21,1,215-216,226,229,258,328.SP,
12, 113, 130, \42,119,152,156,158 159, 163, 167,168-169,t75,178,180, 183-185, 188 189, 191,213,221-222,225,228,
235, 238, 288, 301-103, 306-307.

:§+ ESCOLA DOS ANAIS (Ecole des Anales)

Foucault começa LArchéologie du savoir referindo-se à transforrnação que, já há alguns


anos, teve lugar no campo do conhecimento histórico. Para além das peripécias políticas, o olhar
foi dirigido para os longos períodos, os equilíbrios estáveis e difíceis de romper, os processos
de produção, as regularidades constantes. Por isso, os historiadores (Foucault alude especial-
mente à Escola dos Anais) elaboraram outros instrumentos conceituais, como, por exemplo, a
categoria de civilizaçao material. No campo da história das ideias, das ciências, da filosofia,

ESCOLA DOS ANAIS (École des Anales\ 149


no entanto, houve uma transformação inversa. A atenção se deslocou das grandes unidades
(época, século) para os fenômenos de ruptura, os cortes, a descontinuidade. Por exemplo, G.
Bachelard, G. Canguilhem, M. Guérou1t. Segundo Foucault, esse movimento inverso é apenas
um efeito de superfície. Na realidade, foi o mesmo problema o que levou em uma direção à
história em geral e em outra à história das ideias ou das ciências. Em ambos os campos, o
que está na origem desse deslocamento da atenção dos historiadores é a discussão em torno
ao estatuto do documento (AS, 9-1a). "Brevemente, digamos, que a história, em sua forma
tradicional, buscava'memorizar'os monumentos do passado, transformá-los emdocumentos
e fazer falar seus rastros que, por si mesmos, não são verbais ou dizem em silêncio algo distinto

do que dizem. Em nossos dias, a história transforma os documentos em monumentos e ali


onde decifravam os rastros deixados pelos homens, ali onde se buscava reconhecer no vazio o
que eles haviam sido, desdobra-se uma massa de elementos que se trata de isolat de agrupar,
de tornar pertinentes, de colocar em relação, de constituir conjuntos. Houve um tempo em
que a arqueologia como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes dos objetos
-
pela
sem contexto e das coisas deixadas pelo passado - tendia à história e só tinha sentido
restituição de um discurso histórico. Pode-se dizer, jogando um pouco com as palavras, que em
(AS, 14- 15)'
nossos dias a história tende à arqueologia, à descrição intrínseca do monumento"
yer: Documento.* "Ãgoraos historiadores sabem bem que os documentos históricos podem
ser combinados segundo séries diferentes que não têm nem os mesmos
pontos de referência
habitat,
nem o mesmo tipo de evolução. A história da civilização material (técnicas agrícolas,
que a
instrumentos domésticos, meios de transporte) não se desenvolve da mesma maneira
Marc
história das instituições políticas ou a história dos fluxos monetários. o que mostraram
mostrá-lo, creio, para a história
Bloch, Febvre e Braudel para a história enquanto tal pode-se
das ideias, do conhecimento, do pensamento em geral" (DEf , 787)'
É cole cles Annales [4 ] : D81, 77 3. D83, 580. DE4, 65 1, 654.

:,::. ESTÉTICA DA EXISTÊwCIA Gsthetique de l'existence)

A partir da noção de ética, que Foucault elabora em tusage des plaisirs (ver: Etica),
podemos compreender a noção de estética da existência como modo de sujeição, isto é, como

uma das maneiras pelas quais o indivíduo se encontra vinculado a um conjunto de regras e
devalores (D84,397).Essemododesujeiçãoestácaracterizadopeloidealdeterumavida
bela e deixar a memória de uma existência bela (DE4,384). Um indivíduo, então, aceita certas
maneiras de comportar-se e determinados valores porque decide e quer realizar em sua vida a
beleza que eles propõem. A vida, como bios, é tida como o material de uma obra de arte (DE4,
390). * Foucault elabora o conceito de estética da existência para descrever o comportamento
moral da Grécia clássica. A reflexão moral na Antiguidade não se orienta nem no sentido de uma
codiÍicação dos atos, nem como uma hermenêutica do sujeito, mas no sentido de uma estilização
*
da atitude e uma estética da existência (HS2, 106). Por estética da existência, há que se entender
uma maneira de viver em que o valor moral não provem da conformidade com um código de
comportamentos, nem com um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais

1 50 ESTÉTlcA on rxtsrÊructa (Esthetique de I'existence)


no uso dos prazeres, na distribuiçâo que se faz deies, nos limites que se observa, na hierarquia que
(HS2, 103). * A estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida
se respeita
como jogo de poder (}J52, 277). Nesse sentido, haveria que caracterizar o modo de sujeição da
moral grega dos aphrodísia não só como estético, mas como estético-político (DE4, 395). A
problemática da liberdade, entendida como não escravidão, encontra-se no coração dessa ética:
não ser escra\ro dos outros, não ser escravo de si mesmo ou, em termos positivos, gor,,erno dos
outros e governo de si mesmo. * Mesmo quando é decisão do indivíduo ter uma vida bela, e os
comportamentos e r,alores que definem essa beieza não têm a forma nem da iei ner.l da norma,
isso não significa que careçam de universalidade. A estética da existência nos põe, com efeito,
diante de uma universalidade sern lei (HS3,215). * Foucault opoe a estética da existência à
hermenêutica cristã do desejo (HS2, 278). * "Eu me pergunto se nosso problema hoje não é,
de certo modo, o mesmo; posto que a maioria de nós não crê que uma moral possa fundar-se
na religião e não queremos um sistema legal que interyenha em nossa vida moral, pessoal e
íntima" (DE4, 385). Nesse sentido, o ser moderno, para Foucault, é uma questão de éthos, de
estilo. Ver: Philippe Ariàs, Buudelaire, Peter Brou,rt, Ethos. Mas isso não significa que se trate
de retomar o modo de viver dos gregos cla Época Clássica. Não se trata de nenhuma nostalgia
histórica. "EIes [os gregos] aicançaram em seguida o que parece ser o ponto de contradição da
moral antiga: entre, por um lado, essa busca obstinada de certo estilo de existência e, por outro, o
eslbrço por fazê-io comum a todos, estilo do qual se aproxinraram mais ou menos obscuramente
conr Sêneca e Epiteto, mas que não encontrou a possibilidade de realizar-se a não ser dentro de
um estilo religioso. Toda a Antiguidade, me parece, foi um'profundo erro" (D84, 698). * A ideia
que se possa fazer de sua vida a própria obra de arte, que é estranha ao Mediel,o, reaparece no
Renascimento. Burkhardt chamou a atenção para isso (DE4, 410). Sobre essa ideia no Renasci-
mento, Foucault se retêre também à obra de S. Greenblatt, Renaissance Self-fashioting Q98A)
(D84,545). * Pode-se encontrar no século XVI uma ética cle si que é também uma estétictr de
si. Poder-se-ia reler lvlontaigne nessa perspectiva. O mesmo se poderia fazer com a história do
pensamento no século XIX (HS, 240-241).
Esthétique de lbxistence [28]: DE4, 385, 390-39 l, 395, 405-406, 4 I 0, ,1 I 5, 488, 545 -546, 6Il, 616, 626, 630,730,
732. HS, 2-\7. HS2, 17 18, tO3, 106,277. H53,215.

Esthétique [1 t6]t A5,64,224. DEt, 169,341,387,389, 430, 548, 673, 795.DE1 \29,172,1 86, 193, 402, 418, 498,
710,746-747,751.797. DE3, r 0, 6-5, I I 8. DE4, 102-1 03, 106.219.221,329, 384-38-5, 390--191, 39-5, 397-398, 101, 40,5,{06,
410,415,488,495,536,545546,604,610-ólt,616,6\9-621,623,626,629-630,651,730,732.HS,14,25,240_241.257,
411,,1l6. HS2, l7-18, 103, 106, 107,'118,220,277-2t*8, HS3, 105, 175,21s,222.MC, 101,330-33l.NC,X,XIII, l22.RR,
92. 5P, 7 2, 108, 290. 296.

: +i. ESTRATÉCtR (Srrarégie)

Foucault distingue três sentidos do termo "estratégia": 1) Designa a escolha dos meios
empregados para obter um fim, a racionalidade utilizada para alcançar os objetivos. 2) Designa
o modo em que, em urn jogo, um jogador se move de acordo com o que pensa acerca cle corno
atuarão os demais e do que pensa acerca do que os outros jogadores pensam acerca de como
ele haverá de se rtover. 3) Designa o conjunto de procedimentos para privar o inimigo de seus

ESIRATÉGtA (5rrategre) l5I


meios de combate, obrigá-lo a renunciar à luta e, assim, obter a vitória. Esses três sentidos
se resumem na ideia da estratégia como "escolha das soluções ganhadoras" (D84, 241). "Em
relação ao primeiro dos sentidos indicados, pode-se chamar'estratégia de poder'ao conjunto
dos meios utilizados parafazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Também
sepode falar da estratégia própria das relações de poder na medida em que elas constituem
modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Pode-se, então, decifrar
em termos de'estratégia os mecanismos utilizados nas relações de poder. Mas o ponto mais
importante é, evidentemente, a relação entre as relações de poder e as estratégias de enfren-
tamento" (D84,241-242). Toda relação de poder, para Foucault, implica essencialmente a
liberdade e, consequentemente, estratégias de luta. As estratégias de poder e as estratégias de
luta limitam-se mutuamente.
Stratégie [221]: AN, 48, 79, 204. AS, 91, 98, isl, 192, 218. DEr, 217. DE2, 187,218,268,274-27s,30s,439,499,
519, 629-632, 634-638, 644, 684, 694,7 19-721, 744,7 55,7 60,791. DE3, 14, 21, 26, 87, 94, 105,
1 1 1, 125, 137 , t39, 152,

157,174,179,202,206,210,229,233,261,267,273,287,300,306 307,309 310,313,330,406,421,425-426,523,s42,s73,


605, 6t2, 615, 637 -638,7 t7 ,733,738,7 60,794,796. DE4, 14, 16-17 , 19-20,22,80,93, 130, 132 134, 241 242,283, 339,
378,506,519,530, 596,639-640,662,711,723-724,742,744,798. HF, 10. HSl, 128-129,132-134,136, 180,202.}l52,
64,66-68, r23, 127,274. HS3, 226. IDS, 18, 26, 40, 53,71,84, 150, 153, 169. MMPS, 86, 102. PP, 18,34, t6s,237 -239.
sP, 31, 76, 83 84, 90-92, 132, 170, 277, 315.

: €?. ESTRUTU RALISMO (Structu ra I i sme)

Frequentemente, Foucault é incluído na história do estruturalismo. Sua noção de episteme


foi considerada uma noção estruturalista. Se seguirmos as declarações de Foucault, sua relação
com o estruturalismo aparece tão problemática como sua relação com a filosofia. Algumas vezes
(poucas, é certo) afirma seu pertencimento, mas na maioria das vezes o nega absolutamente.
"O que tratei de fazer foi introduzir as análises de estilo estruturalista em domínios onde eles
não haviam penetrado até o presente, quer dizer, no domínio da história das ideias, da histó-
ria do conhecimento, da história da teoria. Nesse sentido, fui levado a analisar em termos de
estrutura o nascimento do próprio estruturalismo" (DEf , 583). "Em todo caso, eu não tenho
nenhum nexo com o estruturalismo e eu nunca empreguei o estruturalismo para as análises
históricas. Indo mais longe, diria que ignoro o estruturalismo e que ele não me interessa"
(D83, 80). "Pois bem, eu nunca, em nenhum momento, utilizei os métodos próprios das
análises estruturais" (D82,209). As vezes, sua insistência em negar qualquer pertencimento
ao estruturalismo o leva a aflrmações manifestamente falsas. Em Ilarchéologie du savoir,
sustenta, por exemplo: "Eu não empreguei uma só vez o termo 'estrutura em Les mots et les
choses" (4S,261). Afirmação que é certamente falsa; com efeito, o termo "estrutura" aparece
T9yezes,inclusiveumaveznoíndice (MC,24,47,106,144,147-153,153, 156, 158-160, 170,
t72,2t3,215,2t7 -2t9,225,239,240,243,244,250,252,257,276,292,286,292_293,296,304,
348, 358, 367,370,373,388,391-393). Contudo, Foucault, na reedição de La naissance de la
clinique, ocupou-se de modificar a terminologia demasiado estruturalista da primeira edição.
Brevemente, a situação poderia ser esclarecida dizendo que La naissance de la clinique e, em
parte, Les mots et les choses, marcam uma aproximação entre Foucault e o estruturalismo;

I 52 ESTRUTURAUSMO (Structuralisme)
a partir daqui, há cadavez maior afastamento. Foucault, referindo-se a seu trabalho sobre
R. Roussel, ainda que se possa, sem dificuldade, estender essa apreciação a toda sua obra,
expressa-se nesses termos: " [. . . ] não se tratava exatamente do problerna do estruturalisrno: o
que me importava e o que eu tratava de analisar não era tanto o aparecimento do sentido na
linguagem, mas o modo de funcionamento do discurso dentro de uma cultura dada' (DEl,
605). Sujeito. "Se, ao contrário, interrogarem Lévi-Strauss, Lacan, Althusser e a mim mesmo,
cada um declarará que não tem nada em comum com os outros três e que os outros três nào
têm nada em comum entre si. [. . . ] Parece-me, antes de tudo, desde um ponto de vista negativo,
que o que distingue essencialmente o estruturalismo é que ele problematiza a importância
do sujeito humano, a consciência humana, a existência humana' (D81, 653). "penso que o
estruturalismo inscreve-se atualmente dentro de uma grande transformação do saber das
ciências humanas, que essa transformação tem como ápice não tanto a análise das estruturas
enquanto o questionamento do estatuto antropológico, do estatuto do sujeito, do privilegio
do homem. E meu método inscreve-se no quadro dessa transformação do mesmo modo que
o estruturalismo, junto a ele, não nele" (DEl, 779). Fenomenologia, episteme moderna.
O estruturalismo e a fenomenologia, segundo a análise de Les mots et les choses, têm uma
mesma condição de possibilidade, um lugar comum: a disposição epistêmica da Modernidade
(MC,3l2). "0 estruturalismo não é um método novo, é a consciência desperta e inquieta do
saber moderno" (MC, 221). Existencialismo. O estruturalismo se opôs às duas tendências
maiores do existencialismo: a tentação de situar a consciência em todos os lugares e a de livrá-la
da trama da lógica (DE1, 654). Marxismo. Na França, após se ter querido caçar o marxismo
com a fenomenologia, buscou-se acoplá-lo ao estruturalismo (DE4,434); ainda que, para Sartre
e para Garaudy, se tratasse de uma ideologia tipicamente de direita (D81,658). História.
A propósito da relação entre o estruturalismo e a história, Foucault aponta (DF,2,268-280):
1) em sua forma primeira, o estruturalismo foi uma tentativa de dispor de um método mais
preciso e rigoroso no campo das investigações históricas. 2) A crítica do caráter anti-histórico
do estruturalismo provém, por um iado, da fenomenologia e do existencialismo (por exemplo,
de Sartre, para quem, sem atividade humana, sem atividade do sujeito, não existiria o sistema
da lÍngua); e por outro, de certos marxistas, para os quais os movimentos revolucionários
têm muito pouco de estruturalistas. 3) As duas noções fundamentais da história, tal como se
a pratica hoje, não são o tempo e o passado, mas a mudança e o acontecimento. Os trabalhos
de Dumézil, por exemplo, mostram como uma análise é estrutural quando estuda um sistema
transformável e as condições pelas quais tal transformação se realiza. "Eu creio que, entre as
análises estruturalistas da mudança ou da transformação e as análises históricas dos tipos de
acontecimento e dos tipos de duração, há, não digo exatamente identidade nem convergência,
mas certo número de pontos de contacto importantes" (D82,280). Assim como os estrutura-
listas abordam os mitos, os historiadores abordam os documentos para estabelecer o sistema
de relações internas e externas. Os historiadores e os estruturalistas permitem abandonar a
grande e velha rnetáfora biológica da vida e da evolução, introduzindo a descontinuidade. "O
estruturalismo eahistória contemporânea são instrumentos teóricos graças aos quais se pode,
contra a velha ideia da continuidade, pensar realmente tanto a descontinuidade dos aconte-
cimentos como a transformação das sociedades" (DE2, 281). Filosofia. pode-se distinguir,
por um lado, o estruturalismo como um método que permitiu a fundaçáo de certas ciências

ESTRUTURALISMO (Structuralísme\ 153


como a linguística ea renovaçáo de outras como a história das religiões, e que não consiste na
análise das coisas, das condutas ou de sua gênese, mas das relações que regem um conjunto
de elementos. Por outro lado, também se pode entender por estruturalismo uma atividade
pela qual os teóricos, não especialistas, esforçam-se por definir as relações atuais que podem
existir entre os elementos de nossa cultura. Esse estruturalismo pode valer como atividade
filosófica e, nesse sentido, permite diagnosticar a realidade (DEl, 581).
Structuralisme 11 9Il: AS, 20, 259-263, 265-266. DEl,284, 430, 58 I -584, 599, 603, 605, 652 658, 660, 665, 77 4,

779,788.813 814,816,820,831 832, 835,838-839. DE2, 133, 210,268, 270 27]1,273,281,296,301,374, 635-636,692,
722.D83,80,89,r44 t15,402,493.579,580,590.DE4,52,61-65,70,72,74,r70,431135,447,752.;líC,221,312.OD,
t'2.PP,255.

-+* ÉTHOS

O éthos para os gregos é um modo de ser do sujeito que se traduz em seus costumes, seu
aspecto, sua maneira de caminhar, a calma com que se enfrenta os acontecimentos da vida.
O homem que possui um éthos belo e que pode ser admirado e citado como exemplo é o que
pratica sua liberdade de maneira refletida (DF4,714). Atitude de Modernidade. Em lugar
de tomar a Modernidade como um período e assim distinguir entre "moderno'i "pré-moderno"
e "pós-moderno'i Foucault entende a Modernidade como uma atitude, como um éthos to
sentido grego do termo; ou seja, como uma escolha voluntária de uma maneira de pensar
e de sentir, de agir e conduzir-se, como marca de pertencimento e como tarefa (DE4, 568).
Essa atitude se caracteriza negativa e positivamente l) Negativamentei Trata-se de evitar
a chantagem da Auftkirung não se trata de colocar a questão da Modernidade em termos
de uma alternativa simplista de aceitação ou rechaço. "É necessário tentar a análise de nós
mesmos enquanto seres historicamente determinados, em certa medida, pela Auftkirun§'
(D84,572). Devemos perguntar-nos por aquilo que não é mais necessário para constituir-
nos como sujeitos autônomos. * Não há que se confundir a Auftltirung com o Humanismo: o
princípio de uma exigência de constituir-nos a nós mesmos como sujeitos autônomos estabelece
uma tensão entre AuJklcirung eHrmanismo. Com efeito, este último supõe uma concepçào
universal do homem. 2) Positivamente:Trata-se de uma crítica prática: a crítica kantiana se
preocupava em determinar os limites que o conhecimento não devia superar; a ontologia do
presente, no entanto, é uma crítica que adota a forma prática da superação possível do limite.
É uma crítica arqueológica em seu método (não é transcendental, não trata de estabelecer as
estruturas universais de todo conhecimento): ocupa-se dos discursos que articulam o que
pensamos, dizemos e fazemos enquanto acontecimentos (événemenfs) históricos. É uma
crítica genealógica em sua finalidade: não se trata de deduzir, do que somos, o que nos é
impossível fazer ou conhecer, mas de deduzir, da contingência histórica que nos fez ser o que
somos, a possibilidade de não ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos (DE4,
574). Trata-se de uma crítica experimental: um trabalho de nós sobre nós mesmos enquanto
seres livres, uma prova histórica dos limites que podemos superar. Transformaçoes parciais
e náo as promessas de um homem novo. É uma crítica que faz sua aposta (enjeu) e tem sua
homogeneidade, sua sistematicidade e sua generalidade. A aposta é desconectar o crescimento

154 ÉrHos
das capacidades (produção econôurica, instituições, técnicas de comunicação) da intensiÍicação
das relaçÕes de poder (disciplinas coletivas e individuais, procedimentos de normalização
exercidos em nonle do F,stado, exigências sociais e regionais). Hornogeneitlade: o objeto de
estudo são as práticas. Não se trata l.lem de analisar as represelltaçires que os honrens têm de
si mesmos' nem as condições que os levam a pensar de utna deterrninada mane'ira sent que
eles o saibam, mas o que fazem e o modo como o fazem. As formas de racionalidade que
organizam as maneiras de fazer (aspecto tecnológico) e a liberdade com que atualtl nesses
sistemas práticos (conto reagenl, colno os modificam - aspecto estratégico). Sistematicídade:
esseconjunto de práticas tera três domínios: as relações de domínio sobre as coisas (saber),
as relações de ação com os outros (poder), as relações consigo mesmo (ética). Como nos
constituímos como sujeitos do saber, corlo sujeitos que exercem ou padecem o poder, como
sujeitos éticos de nossas açÕes? Finalmente, generalidade: essas práticas têm um caráter re-
corrente. 'A ontologia crítica de nós mesmos não há que considerá-la como umtl teoria, uma
doutrina, nem tantpouco como um corpo permanente de saber que se acumula; é necesstírio
concebê-la como ttma atitude, vm éthos, uma vicla filosófica onde a crítica do que somos é,
ao nlesmo tempo, análise histórica dos limites que nos são impostos e prova de sua possível
transgressáo" (D84,577). Baudelaire. Foucault também descreve a atitude de À,lodernidade
a partir da obra de Baudelaire.Yer Baudelaire.
Ethos [6] : DE4, 5l-r. H52, 1 I 7, l9l, 214. HS3, I I 0, I 13.

Êthos [41]: DE4, +18,516,568, 571,573-575,577,586-587. t-t4, t-27,800. HS,25. 203,227-228,312,31tt.328,356,


364, 398.

:.:,] ÉTlcA (Éthique)

Foucault delimita de maneira precisa nrr conceito de ética que lhe serve parâ definir
um domínio de aná1ise, do qual se ocupa nos últimos volumes de Histoire de la sexualité
e em vários cursos do Coilàge de France, dos quais fbram publicados therméneutique du
sujet e Le gouvernenrent de si e des autres. Em primeiro iugar, e necessário começar com
aigumas cor.rsideraçÕes sobre o termo "moral'l Por "rnoral" pode-se entendet por um lado,
um conjunto de valores e regras que são propostos aos indir,íduos e aos grupos por diferentes
aparatos prescritir.os (a família, as instituições educativas, as igrejas, etc.), de maneira mais
ou menos explícita. Por outro 1ado, pode-se entender por "moral" os comportamentos morais
dos individuos à medida que se adaptam ou ltão às regras e aos valores que lhes são propostos.
No primeiro caso, pode-se faiar de 'tódigo moral"; no segundo, de "moralidade dos comporta-
lllentos'l Pois bem, ademais dos códigos e comportamentos, pode-se levar em consideração a
maneira pela qual o sujeito se constitui como sujeito moral. Aqui é necessário distinguir quatro
coisas: l) Asubstância ética:apartedo indivíduo que constitui a matéria do contportamento
moral. Por exemplo, uma Inesma exigêr-rcia ao nível do códigtt, a fidelidade, pode concernir
a substâncias eticas dit-erentes: os atos, os desejos. 2) Os modos de sujeiçao: a maneira pela
qual o individuo estabelece sua relação com a regra e se reconhece como ligado a ela: porque
pertence a um grupo, porque se considera herdeiro de uma tradição espiritual. 3) As
formas

ÉTtcA rFrâiquel I55


de elaboração do trabalho ético, para adequar-se à regra ou para transformar-se a si mesmo
em sujeito moral. Assim, por exemplo, a austeridade sexual pode ser praticada através de um
Iongo trabaiho de aprendizagem, como uma renúncia súbita, como um combate permanente.4)
Ateleologia do sujeito moral'.umaconduta moral não tem apenas sua singularidade, situa-se
no conjunto das condutas morais do indivíduo, tende à realização do indivíduo, de uma forma
de individualidade. Por exemplo, sempre no caso da austeridade sexuai, pode-se perseguir o
domínio de si mesmo ou a tranquilidade da alma (HS2, 33-35). "Em suma, uma açào para ser
chamada'moral'não deye reduzir-se a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra,
uma lei ou um valor. Toda ação moral, na verdade, comporta uma relação com o real onde ela
se realiza e uma relação aocódigo ao qual se refere. Porém ela implica também certa relação a
si mesmo. Essa relação não é simplesmente'conhecimento de sil mas constituição de si como
'sujeito morall na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto
dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que segue, fixa certo modo de
ser que quererá como realização moral de si mesmo. E, para fazê-lo, atua sobre si mesmo,
empreende o conhecimento de si, se controla, se põe à prova, aperfeiçoa-se, se transforma"
(HS2, 35). O termo ética refere-se a todo esse domínio da constituição de si mesmo como
sujeito moral. Uma história desses quatro elementos mencionados "poderia chamar-se uma
história da 'ética e da 'ascétical entendida como história das formas de subjetivação moral e
*
das práticas de si que estão destinadas a assegurá-la" (HS2, 36). Foucault propõe distinguir
entre morais orientadas para o código (em que se acentua o elemento prescritivo) e morais
orientadas para a ética (que insistem nos modos de subjetivação). Brevemente, o termo'ética"
faz referência, em Foucault, à relação consigo mesmo, é uma prática,w éthos, um modo de
ser.
* As expressões "sujeito moral" e "sujeito ético" são equivalentes no uso que Foucault faz

deles. * A ética, em seguida ao saber e ao poder, constituiria o terceiro eixo do trabalho de


Foucault (DF4,576). Política. * A ética grega dos prazeres tem a mesma estrutura da política,
ou seja, trata-se de uma questáo de governo; o indivíduo é semelhante à cidade (HS2, 83).
-
Para nós, o problema é, ao mesmo tempo, político e ético, social e filosófico; não se trata de
liberar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas de liberar-nos do Estado, do tipo de
individualização que a ele está associado. É necessário promover noyas formas de subjetividade,
*
rechaçando o tipo de individualidade que nos impõem há séculos (D84,232). "Eu estaria bem
de acordo em dizer que o que me interessa é muito mais a moral do que a política ou, em todo
caso, a política como ética' (DE4, 586). Estética. Para os gregos da Época Clássica, a ética dos
prazeres, desde o ponto de vista do modo de sujeição, constitui uma político-estética, isto é,
uma escolha livre na qual estão em jogo o governo de si e dos outros, e o ideal de uma vida bela
(DE4, 398). * Nessa moral, orientada à ética, trata-se de elaborar uma estética da existência,
e não uma moral dos comportamentos estruturada juridicamente (DE4, 488). Loucura. A
Época Clássica percebe a loucura a partir de uma experiência ética, isto é, a partir de uma
decisáo de separação, de exclusão (HF, 181). Do mesmo modo, a razâo,paraa Época Clássica,
nasce em um espaço ético (HF, 188). * A coerência da prática do conÍinamento, da internação
depende da grande reorganização ética da Época Clássica (reorganização da sexualidade em
relação à família burguesa, do sagrado e dos ritos religiosos, das relações entre o pensamento
constitui, em sua unidade, um espaço ético (HF,
e o sistema das paixões). O confinamento
115-116). Arqueologia.Em lhrchéologie du savoir, Foucault menciona a possibilidade de

156 ÉTrcA (Éthique)


uma arqueologia da étlca; mas aqui o termo éticataz referência à maneira pela qual o sistema
de proibições e de valores está presente no modo de tàlar da sexualidade (A5,252-253). Etho-
poiética. Foucault retoma esse termo, que provém de Plutarco, para referir-se à atividade pela
qual o sujeito se constitui a si mesmo como sujeito ético (HS2, 19). Éthos. À ética, tal como
a entendiam os gregos, e tm éthos, isto e, uma maneira de ser e de conduzir-s e (D84, 7 14).
Liberdade. A liberdade é a condição ontológica da ética, mas a ética é a prática reflexa da
liberdade (DE4,7ll-712). Liberdade para os gregos significa não escravidão. Nesse sentido,
trata-se de urn problema político. Ser livre significa não ser escravo nem de outro hornem nem
de si mesmo, dos próprios apetites, dos próprios desejos. A liberdade é também um modo de
comportar-se em relaçâo aos outros. A questão da prática reflexa da liberdade é mais relevante
que o problema da liberação (D84,714). O cuidado de si mesmo foi o modo pelo qual os gre-
gos colocaram a questâo da liberdade como ética (DÊ,4, 712). Governamentalidade. " [. ..]

a noção de governamentaliclade permite, creio, fazer valer a liberdade do sujeito e a relaçâo


com os outros, ou seja, o que constitui a matéria mesma da ética' (D84,729). Kant. Descartes
libertou a racionalidade científica da moral, e Kant reintroduziu a rnoral como forma aplicada
da racionalidade. Por isso, Kant tornolr a coloÇar a questão: cor11o posso constituir-me a mim
mesmo como sujeito ético? (D84, 411). Modernidade. O pensamento moderno nunca pode
propor uma moral, não porque seja só especulaçâo, mas porque e, em si mesmo, uma ética,
um modo de açâo: reflexão, tomada de consciência, elucidaçâo do silencioso, palavra restituída
ao que é mudo, reanimação do inerte. Tudo isso constitui, por si só, o conteúdo e a forma da
ética nroderna (MC, 338-339). Deleuze. No sentido de ética çomo éthos, Foucault afirma a
propósito de lAnti-Oedipe deDeleuze e Guattari que é um livro de ética: "O primeiro escrito
ern França desde muito tempo'l "Ser anti-Édipo converteu-se em um estilo de vida, um modo de
pensamento e de vida' (DE3, 134-135). Esse modo de vida consiste em liberar-se do fascismo
instalado em nossa cabeça e nosso corpo. Yer: Deleuze.
Éthique [s06]: AN, 16, 119,234,238-239.45,253. DE1,82,91 92, 113, 118'119, t52,237-238,344,556,789,792.
D82,212,355,378 379,435,638. DE3,:r, 133-1j4,252, 267,395,397,187, -526, -595,597,608-609, 733,787. DE4,45,
165,173,176-177,216,229,232,216,295,301-302,307,316 317,380,382-383,385,389,393-399,401,411,414,420,422'
,172,47,1,488,505-507, 531, 536-537,544,516-559,576,579 580, 584,586-588,595-598,609, ól 1,614,619-623,631,653,
661,673-676,699, 708, 7l 0 7 15,721-722,727 -729,731-732,739, 782, 800-802, 820. HF, 80, 87, 99, I 0 1 - 104, I 1 5- 1I 6, I 19,
t24,127,129,133,135,139,143,144 145,178,181,186-187,188-189,.111-212,247,276,220,30,366,372,113,425,474,
51 1. 565. 612,614,657 . HS, 5, 14- 1 5, 2 r, 25, 41,73,77, 106-108, 1 32, 1 5,1- 155, 158, \95,227 ,234,237,210 242,257,333,
338, 350, 355 i56, 359, 364, .110, ,116, 435, 44t 412,444-445, 455, 463-464, 467. HSl, 105, 162. HS2, 16, 19, 21, 13-3-1,
36-37,39,45,49-s1,5-l-56,58 59,60 62,69.73,75-83,88,91,96-97,99-101, 105-106, 141, 156, 16.j. 165, 170, 183, 194,

196,197,199-203,218,222.)42,252,267-269,275,277,280.HS3,29,32,19,82,84,89,92,97,r05,113,ll6,160,163,
165-166,168,17_r,180,187,190t9l,194,213214,216,222,251,253,258-259,273-275.MC,138,i39,350.MMPE,30.
MMPS,30,85,88, 103. NC, 167. OD,48. PP,255. SP,20.

: -.:i':. EXAM E (Exa m en)

Foucault dedica partictúar importância à noção de exame e às suas difêrentes formas


históricas: o exame con.ro técnica disciplinar na qual se entrelaçam o poder e o saber; o exame
de consciência como prática de si na Antiguidade; o exame de consciência no monasticismo

EXAME (Fxamen) 157


e na pastoral da carne. Disciplina. O exame, invenção da Época Clássica, constitui um dos
instrumentos essenciais do poder disciplinar. "O exame combina as técnicas da hierarquia que
vigia e as técnicas da sanção que normaliza. É um olhar normalizador, uma vigilância que per-
mite qualificar, classificar, castigar. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade mediante a
qual se thes diferencia e sanciona" (SP, 186 187). * 'A prática maciça do confinamento, o desen-
r.olvimento do aparato policial, a vigilância das populações prepararam a constituição de um
novo tipo de poder-saber que tomará a forma do exame" (D82, 392). Saber e poder. Em sua
forma altamente ritualizada conjugam-se a cerimônia do poder eo estabelecimento da verdade.
Nesse sentido, saber e poder se reforçam mutuamente não só ao níve1 da consciência, das repre-
sentaçÕes ou do que se crê saber, mas ao nível do que torna possíve1 o conhecimento em suas
técnicas, em seus procedimentos, em suas práticas, como o exame. Exemplo disso é o papel
desempenhado pelo exame na constituição da medicina a partir do século XVIII, na formação
da medicina clínica. A diferença da inspeção de épocas anteriores, prática descontínua e rápida,
com o exame regular, o enfermo se coloca em uma situação de exame quase perpétua; o médico
ingressa em um espaço que, até esse momento, havia sido externo: o hospital. Aparece então a
figura do enfermeiro. O hospital se converterá em um lugar de formação e de conhecimento, do
entrelaçamento das relaçoes de poder com a constituição do saber. Do mesmo modo, a escola
haverá de se converter no aparato de exame init.rterrupto que se superporá a toda operação de
ensino. Desse modo, a escola garante a transmissão do conhecimento do mestre ao aluno e, ao
mesmo tempo, obtém mediante o exame todo um saber reservado ao mestre (SP, 187-189). O
mecanismo saber-poder do exame permite: 1) Inverter a economia da visibilidade no exercício
do poder: tradicionalmente o poder se mostrava, fazia-se visível, dava lugar a um espetácuio
em que os sujeitos sobre os quais ele se exercia permaneciam na sombra. No exame. os sujei-
tos se oferecem como objetos para a observação por parte de um poder que só se manifesta
através do seu olhar. 2) Faz a individualidade ir.rgressar em um campo documental: técnicas
de anotação, registros, constituição de expedientes, formação de arquivos. 3) Com todas as
suas técnicas documentais, faz de cada indivíduo um caso: o exame é o lugar da fixação, ao
mesmo tempo, ritual e científica das diferenças individuais, alinhavando cada um com a
própria singularidade (SP, 189-194). Não só a medicina ou a pedagogia encontram sua con-
dição histórica de possibilidade nos procedimentos do poder disciplinar, no centro dos quais
se encontra o exame, mas todas as ciências humanas em geral (SP, 195). Indivíduo. "Final-
mente, o exame está no centro dos procedimentos que constituem o indivíduo, como efeito e

objeto de poder, como efeito e objeto de saber. Combinando vigilância hierarquizada e sanção
normalizadora, assegura as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de
extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição
ótima das atitudes; da fabricação, então, da individualidade ceiular, orgânica, genética e com-
binatória. Com ele, ritualizam-se essas disciplinas que se pode caracterizar corr uma palavra
ao dizer que elas são uma modalidade de poder para a qual a diferença individual é pertinen-
te" (SP, 194). Investigação. O século XVIII inventou o exame, assim como a Idade Média, a
investigaçâo judicial, a investigação como busca autoritária de uma verdade constatada e teste-
munhada. A investigação judicial serviu de matriz para a formação das ciências empíricas, como
o exame, para a formação das ciências humanas. Porém, enquanto a investigação pode despren-
der-se de seu caráter de procedimento inquisitorial, o exame, contudo, está sempre impregnado

158 ExAME (Examen\


de disciplina (sP,226-227). ver também: Investigaçao. confissão, pastoral da carne. A
confissão e o exame de consciência foram duas das práticas fundamentais da pastoral da carne.
Yer: carne, confrssao. * Na coclificação clínica do"faz.er falar'l combinam,se a confissão com
o exame: o relato de si mesno como o desdobramento de r,rm conjunto de signos e de sintomas
decifrár'eis. Um modo, ern definitir,o, de inscrer,er os procedimentos da confissão em um campo
de obserrações científicas aceitál,eis (HSl, S7). \,rer: Psicsnáhse. Exame de consciência. No
conjunto das práticas de si da Antiguidade, ellcontramos o exame de consciência. Formava ex-
plicitamente parte do ensino pitagórico; rnas se trata, na realidade, de uma prática bastante es-
tendida. O exame matinai tinha por objetivo considerar as tarefas do dia e preparar-se para elas;
o exame da tarde, a rnemorização da jornada transcorrida (HS3, 77). Nesse exame, Foucault
leva particularmente em consideração Sêneca: a relação do sujeito consigo meslno não é uma
relaçáo de tipo judicial, para estabelecer as intiaçoes cometidas (a culpabilidacle, o castigo);
antes, trata-se de uma inspeção, de um controle para apreciar o trabalho realizado, os progressos
obticlos no cuidado de si mesmo. No caso de Epiteto, a finalidade do exame é pôr à prova as re-
presentações, distingui-las, para náo se deixar levar por elas, pelas primeiras impressÕes (HS3,
77-80).* EmL'herméneutique du sujet,Foucault analisa a questâo do exame de consciência em
Marco Aurélio (aulas de 27 dejaneiro e de24 de fevereiro de 1982), Sêneca e Epiteto (aula de 24
de março de 1982). * No cristianismo primitivo, no monasticismo, mais concretâmente, a prá-
tica do exame de consciência se distingue da Prática nas escolas fllosóflcas pelo modo de relação
com o diretor de consciência, pela maneira de levá-lo a cabo, pela exigência de exaustividade.
Implica uma relação de obediência incondicional com respeito ao mestre, ao diretor de consci-
ência, enquanto concerne a todos os aspectos da vida (diríamos, uma obediência exaustiva). O
donilnio de aplicaçã«r do exame de consciência é os movimentos da alma; há que determinar o
que é necessárto fazer para náo cometer fàltas ou reconhecer se foram cometidas. A confissão,
que segue ao exarne, não é só a enumeração das faltas cometidas, mas a verbalização de todos
os nrovimentos da alma (D84, 127-128). 'A obediência incondicional, ou exame ininterrupto e

a conÍrssáo exaustiva formam, pois, um conjunto em que cada elemento irnplica os outros dois;
a manifbstação verbal da verdade que se oculta no fundo de si mesmo aparece como uma peça
indispensável para o governo dos homens, de uns pelos outros, tal como foi posto em funciona-
mento nas instituições monásticas e, sobretudo, cenobíticas a partir do século IV" (DE4, 129).
O cristianismo vinculará, desse modo, a prática do exame à direção de consciência (DE4, 146).
*
Na comparação entre a prática do exame nas escolas filosóficas da Antiguidade e no cristianis-
mo, é necessário também levar em conta a relação com a verdade. No primeiro caso, o exame de
consciência era, antes de tudo, um exercício mnemotécnico, orientado à memorização dos
princípios justos, de uma verdade que está fora. No segundo, a verdacie em questão é a que está
no fundo de si mesmo (DE4, 659). * "Há três grandes tipos de exarne de si: primeiramente, o
exame mediante o qual se avalia a correspondência entre os pensamentos e a realidade (Descar-
tes); em segundo lugar, o exame pelo qual se avalia a correspondência entre os pensamentos e
as regras (Sêneca); ern terceiro lugar, o exame pelo qual se aprecia a relação entre um pensamen-

to oculto e uma impureza da alma. Com esse terçeiro tipo de exame começa a hermenêutica de si
crístã e o deciframento que ela faz dos pensamentos íntimos. A hermenêutica de si se funda na
ideia de que há algo escondido e que nós vivemos sempre na ilusão de nós mesmos, uma ilusão
que mascara um segredo'(D84, 810).

EXAME (Êxame,o) 159


Exame [459]:4N,42, 43, 63,66,72,100, 125, 152, t63-165,167-\7t,173,175-178, 187-188,198,202,211,223,
239,273,276,281.4S,32, ll0, t26,146.D81,67,82,t25,t46,215,225,462,513,676,70:1,755,76t,790.D82,61,69,
88, 26 1, 390, 392, 396, 461, 542, 594-595, 623,
67 4,7 40,751,786,792,824. DE3, 13, 28, 37 , 49, 52,90,94, t02, t3t,230,

257 ,303,37 5, 444-446, ,549, 564. DE4, 13, 23,86, 122, \25_126, t27 128, 129, t46_148, 307, 362,376,385, 399,
517 , 527

407,426,428430,522,541,558,593,611,626,633,659,710,746,794_799,803,807_811.HF,111,282,321,684.HS,13,
23,25, 48,61,1 1 8- 1 I 9, 140, \42,144, t57 ,191-192,195,211,225,258,284_288,298,333,335,347, 353, 398_400, 405, 41 6,
439,444-445,454,457,460-464,468 469. HSl, 28, 4 1,44,61,80,87,94, 1 i9, 130, 142,147,153,155, 158-159, 201. HS2,
12,36,86,228. HS3,65,74,77-80.IDS, 123, 171.MC,94,96,t05,117,149,154-155, 181, 193,243,289, MMPE, 15,88.
MMPS,15,99.NC,4,44,50,56 57,60,66-67,73,77-79,93,r01,111-tt2,125,160,167,181,188,191,194_196,198,209,
213. OD, 40. PP, s4, i83, 195,264,301,304-306, 31 1,316. Sp, 25, 160, t73,182,186-194, 2 15, 226_22s,311.

i 51 " EXISTENCIALISMO (Existential isme)

* Pode-se definir
o existencialismo como um projeto antifreudiano, não no sentido de que
Sartre ou Merleau-Ponty tenham ignorado Freud, antes o contrário: mas no sentido em que
o problema essencial era mostrar como a consciência humana, o sujeito ou a liberdade do
homem chegavam a penetrar em tudo o que o freudismo havia descrito como mecanismos
inconscientes. Esse rechaço ao inconsciente será o obstáculo do existencialismo. * Apesar de
tudo, o existencialismo é profundamente anti-hegeliano, pois o existencialismo tenta descrever
as experiências de maneira que possam ser compreendidas em suas formas psicológicas. A
grande preocupação do existencialismo foi ter posto a consciência por toda parte (DE1, 654).
* "Fui formado filosoficamente em um clima que era o da fenomenologia e do existencialismo;

isto é, de formas de reflexão que estavam imediatamente vinculadas, alimentadas e nutridas de


experiências vividas. E, no fundo, a elucidação dessa experiência vivida constituía a filosofia, o
discurso filosófico" (D83,372). * "Eu não sinto nenhuma compatibilidade com o existencia-
Iismo tal como o deflniu sartre" (D83, 671). * Nietzsche (com o tema da descontinuidade, do
super-homem) e Bataille (com as experiências limites) foram a porta de saída do hegelianismo
(com seu modelo de inteligibilidade de uma história contínua) e da fenomenologia (com sua
afirmação da primazia e da identidade do sujeito) (D84,49).
Existentialisme I40l: 4N, 4, 25. DEl, 346, 513, 582, 616, 653-654, 657 -658. 668. DE3, 233, 337 , 372, 593, 67 1.
DE4, 48-50, 62, 392, 455, s7 3, 608, 617, 718.

1*2. EXOMOLOGÊSIS

termo designa, em um sentido amplo, a manifestação de uma verdade e a adesão do


Esse
sujeito a essa verdade que proclama. É uma afirmação enÍática na qual o sujeito se vincula a
essa verdade e aceita suas consequências. Como ato de fe, é necessária para o cristáo. Mas há
outro tipo de exomologêsls, a confissão dos pecados. Ela não era, no entanto, como a confis-
são da época moderna, uma verbalização analítica das faltas com suas circunstâncias, mas,
antes, um rito coletivo no qual se reconheciam apenas as faltas graves. No monasticismo (mais
especificamente na obra de Cassiano, Instituições cenobíticas), Foucault estuda a prática da

160 ExtsrENctALtsMo (Extstenttalisme\


exomologêsis no marco da direçáo de consciência. Sublinha, a respeito, três aspectos que a
diferenciam da direção de consciência tal como se a praticava nas escolas filosóficas: a relação
de obediência total com respeito ao mestre, a maneira de conduzir o exame de consciência e

a obrigação de dizer tudo ao diretor de consciência (todos os movimentos da alma, todos os


detalhes da vida) (DF4,126-127, 805-808). Yer: Cassiano, Confissao, Exame.
Exomologàse [ 1 3]: DE4, )-26, 127.

Exomologêsis [ 1 I ] : DE4, 805-808, I 1 2.

i 53. EXPERIÊtUCIn @xperience)

O termo "experiência' aparece em numerosas expressões: experiência do próprio corpo;


experiência da loucura; experiência da desrazão; experiência onírica; experiência imaginá-
ria; experiência vivida (vécue); experiência patológica; experiência psicológica; experiência
Iiterária; experiência contemporânea; experiência da sexualidade; experiência da finitude,
etc. Foucault moye-se inicialmente com um conceito de experiência próximo ao da fenome-
nologia existencial, experiência como o lugar em que é necessário descobrir as significações
a

originárias. Esse ponto de vista é encontrado em um de seus primeiros textos, a introdução


à tradução da obra de Binswanger, Le rêve et lbxistence (DEI,75-76). E também, em certo
sentido, no primeiro prefácio a Histoire de la folie. "Tratar de alcançar, na história, esse grau
zero dahistória da loucura, onde ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não di-
*
vidida pela separaçáo mesma" (DEl, 159). Yer: Fenomenologia. Posteriormente, através da
leitura de textos literários e filosóficos (Bataille, BIanchot, Nietzsche), Foucault descobre outra
forma da experiência: já não aquela que funda o sujeito, mas como forma de dessubjetivação.
'A experiência do fenomenólogo é, no fundo, uma certa maneira de olhar reflexivo sobre um
objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma transitória para captar as significa-
çÕes. Para Nietzsche, Bataille, Blanchot, ao contrário, a experiência é tratar de alcançar certo
ponto de vista que esteja o mais próximo possível do não vivível. O que requer o máximo de
intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. O trabalho fenomenoiógico, ao contrá-
rio, consiste em desdobrar todo o campo de possibilidades ligadas à experiência cotidiana.
Ademais, a fenomenologia trata de captar a significação da experiência cotidiana para encon-
trar em que o sujeito que eu sou é efetivamente fundador, em suas funçoes transcendentais,
dessa experiência e de suas significações. Ao contrário, a experiência em Nietzsche, Blanchot,
Bataille tem por função arrancar o sujeito a si mesmo, fazer de modo que não seja mais ele
mesmo ou que seja levado à sua aniquilação ou à sua dissolução. É um empreendimento de
dessubjetivação. A ideia de uma experiência limite, que arranca o sujeito a si mesmo, era o
importante para mim na leitura de Nietzsche, de Bataille, de Blanchot; e que fez com que, por
mais maçantes e eruditos que sejam meus livros, eu os concebesse sempre como experiências
diretas que tendiam a arrancar-me a mim mesmo, a impedir-me de ser o mesmo" (DF,4,43).
* Finalmente, o conceito de experiência recebe uma elaboração propriamente foucaultiana:
como forma histórica de subjetivação. No primeiro esboço do prefácio ao segundo volume de
Histoire de la sexualitd, expressa-se nestes termos: "Estudar, assim, em sua história as formas
de experiência é um tema que me veio de um projeto mais antigo, o de fazer uso dos métodos

ExPERtÊNctA (Experience) l6l


de análise existencial no campo da psiquiatria e no domínio da enfermidade mental. Por duas
razões, que não eram independentes uma da outra, esse projeto me deixava insatisfeito: sua
insuficiência teórica na elaboração da noção de experiência ea ambiguidade de seu nexo com
uma prática psiquiátrica que, ao mesmo tempo, ignorava e supunha. Podia-se tentar resolver a
primeira diÍiculdade referindo-se a uma teoria geral do ser humano, e tratar de outra maneira
o segundo problema mediante o recurso tão frequentemente repetido ao tontexto econômico
e social'; podia-se, assim, aceitar odilema então dominante de uma antropologia filosófica
e de uma história social. Mas eu me perguntei se não era possível, mais que jogar com essa
alternativa, pensar a historicidade própria das formas de experiência. O que implicava duas
tarefas negativas: uma redução nominalista da antropologia filosófica e também das noções
que podiam apoiar-se nela, e um deslocamento em relação ao domínio, aos conceitos e aos
métodos da história das sociedades. Positivamente, a tarefa eratrazer à luz o domínio em que
a formação, o desenvolvimento, a transformação das formas de experiência podem ter lugar;
ou seja, uma história do pensamento. Por 'pensamento' entendo o que instaura, em suas di-
ferentes formas possíveis, o jogo do verdadeiro e do falso e que, em consequência, constitui o
ser humano como sujeito de conhecimento; o que funda a aceitação ou o rechaço da regra e
constitui o ser humano como sujeito social e jurídico; o que instaura a relação consigo mesmo
ecom os outros e constitui o ser humano como sujeito ético'(DE4, 579).8, em uma entrevista
com Paul Rabinow, "Polémique, politique et problématisations" (1984): "De maneira que,
nestes três domínios - da loucura, da delinquência, da sexualidade -, privilegiei a cada vez um
aspecto particular: o da constituição de uma objetividade, o da formação de uma política e do
governo de si, o da elaboração de uma ética e de uma prática de si mesmo. Mas sempre tratei
também de mostrar o lugar que ocupavam os outros dois componentes que são necessários
para a constituição de um campo de experiência. Trata-se, no fundo, de diferentes exemplos
onde se encontram implicados os três elementos necessários de toda experiência: um jogo de
verdade, relaçÕes de poder, formas de relação consigo mesmo e com os outros" (D84, 596).
* "Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que se fabrica para si mesmo, que não existe

antes e que existirá depois" (DE4, 45). * Desde essa perspectiva, Foucault criticará seus usos
anteriores da noção de experiência. "É o conjunto de'práticas e discursos'que constitui o que
denominei experiência da loucura; mal nome, porque não é em realidade uma experiência'
a
*
(DE2,207). A atitude de Modernidade, como éthos, é uma forma de experiência histórica
livre, de experimentaç âo. Yer: Ethos.
Expérience 11552J: AN, 34, 50, 164, 210,226,244. A5,24,27, 35, 45,64,66,75,88, i00, 105, 129, 136, 147, 167,
180,202,209,237,247-249,25t,263-264.DBt,67-68,69,71,73,76,8083,8687,88,90-91,96,98 101,12t,127,t30-
1.31,1.34, t37 ,148, l 53, 1 54, 159,162,164-166,168- 169, 1 80, ).96-199,202,206,2t2,215,226.231,233,235 236,238 239,
24).-244,246-249,262-263,265-266, 268, 280, 283,285,292,297,326 328,330 332,339,35 1 354, 356 357 ,359,362 363,
365,37 \,379 380, 390 39 1, 393-398, 400-40 l, 404, 408, 4 l 5 -417 , 419-420, 428-429, 433, 435-436, 437, 441-442, 449-450,

458, 460-462,480, 502, 504, 520,523, 525. 537 ,543, 555-558, 569-57 1, 579, 582, 604, 614, 616,630, 665, 67 4, 690,704,
7 10,722, 728-730, 765-766,782-783, 794, 800, 843-844. D82, 32-33, 57 ,72, 00, 08, l l 0,
1 1 1 1 2- r 1 3, 122, 172, 17 4-175,
178,207,234-236,246-248,250,256,286 287 ,290,346, 350, 39 1, 399-400,417 -418,422, 472,482,484-485, 488, 497 ,504,
513,518,522,526,546,567,597,648,685686,736,758,803,805.DE3,29,57,59,60,62,82,92,95,104,133,165-166,
223. 225, 229,294,335, 346, 350, 352, 354, 369, 372, 377 , 387, 430, 432, 451, 490, 5r2, 520, 534,536, 54 l, 57 5-578, 590,
610,616, 618,621 622,624,629,671,676,703,707,745,749-750,785,81i,821. DE4,8, 12, i.9,40-17,49 52,54-57.59,
6t-62,67,75,77 80, 90, 97, 124,131,135,148, 160, 181, 207,211,213,2t9 220,224-225,228,244,250,286,289, 291, 308,
3t2, 3t6 317 , 320-32t, 323, 325-326, 329, 339, 343 345, 347 , 369, 372, 385,389, 405, 408, 414, 4t9, 437 , 456, 466, 503,

162 ExPERtÊNctA (Expérience)


51,7 , 526-528,533 53.1, 53-5-536, 539-542, 554-555, 559, 575,577 58 1, 583-585, 590, 596, 60 1, 61 4, 628, 632-631, 636 637 ,

617,667,670-673,684,697-698,701'703,70s706,708,730-731,734,740,742,753,756,763764,766,794,801,812.
HF.31-34,41,4349,51,56,59,63,69-71,8384,99,101-103,106,109,111,113,115-116,1.27,135-137,139,141 146,

148-149, 156, 159,164-167,169,172,174 1.77,179-180,185 186, 190, 194-195,204,209,211,2\5-216,222 225,227'228,


230,235,237 -238,241.,217,248,2s2-254,256-257,260,266 267,273-275,288 289, 3 10, 3 I 8-3 1 9, 324, 332, 338, 440, 346-348,

35 l. 364, 37,1, 387, 39 1, 393, 405, 4 I,1, 418, 422, 424, 426 128, 432, 134, 137 , 440 441, 154-456, 472, 475, 184, 193, 495, 521,
523, s32 533,542, 548 s49,553-555,570 573,579,591,598,610,613, 623-625,633 635,640-641,643-646,648,650-653,
656,660 661,669. HS,16, 18,21,46, 105, 121,123, t17,151,157,172,200,207 208,218,221,271 272,304,323-324,33s.
340341,386,398,423,425,,155,465-467.HSl,77.HSz,10,11,13,26,30-31,37,39.45,50,52-53,56,s8,98,207,210,
212.275-276. HS3, 15, 20-21, 25,49 50,69.73,76,83,85, 97, I 10, ).69,226,228,252, 256. IDS, 10-l 1, 86, ls9. MC, 1I - I 3,

15,56-57,63,66,86-87, I 19, 131, 133-135, 112,141-145,159-160, 169, 171,179,191,193,195,216,222,2-11,237,255-258,


260,273,285,287,291,31 1 312, 320, 322,325 327,331-332,334, 338,342-347,350, 352 353,368,374,387,390, 392,39s,
397. MMPE, 9,25,47 49,52 55,57, s9,65,82,83,8s 87,91-92,97,99. MMPS,9,25,47-49,52,53'57,59,65,77,78,80,
82,87 88,91,95-99. NC, VI, IX-XI, XIV XV, 1-,1,6, t2 16,18,24-26,28, 30,32,35,37-38,45,49-50,52-s6, s8,60 63,65-71,
73, 76, 78,81-82,84 85, 87,89,93 94,96,98-99, I02, 108, 1 10-1 I I, I 16, 118, 121, 123, 128, 130, 137-138, 140, 143,147-149,

162 r63,165-167,170,172,\71-t7s,177,180-181,I88 189,192,196,199203,211.OD,18,35,49,51,76-77.PP,12,20,61,


RR,8, 22,21,28,40,42,110, 155, 198,200,203,205,
78,80, 118, 1,1r, 181, 195, 201,225,251,257,260,280,282-2ti4,297.
207,208-2r0. sP, 18, 142, 187,292,294.

ExPERIÊNclA (Experience) 163


:5{. FÁBULA (Fable)

Yer: Ficção.
Fable [68]: AN, 266. DF],296,403,506 509, 5l 1-5 12, 524,767 -768. DEz,140,26s,414, 553, 819, 821. DE3, 251,
252,256,265,307, 316, 633. DE4, 120. HF, 34 ,136,231. HS, 447. HSl, 49, 101. HS2, 230, 258, 266. HS3, 256. IDS, 105,
108. MC, 133, 141. PP,28. RR,98. SP, 148.

:==. FAMíLlA(Famille)

Sexualidade. Foi na família burguesa ou aristocrática que se problematizou pela primei-


ravez a sexualidade infantil e a dos adolescentes; a sexualidade feminina foi medicalizada;
alertou-se sobre a patologia possível do sexo; fez-se urgente
a necessidade de vigiar e inventar
uma tecnologia racional de correção (HS1, 159). * "Eu creio que a maneira pela qual se fez da
sexualidade das crianças um problema fundamental para a família burguesa, no século XIX,
provocou e tornou possível uma quantidade importante de controles sobre a família, sobre
os pais, sobre as crianças, e criou, ao mesmo tempo, uma nova série de prazeres: o prazer dos
pais em vigiar os filhos, o prazer dos Íi1hos de brincar com sua própria sexualidade, contra e
com seus pais, toda uma noya economia do prazer em torno ao corpo do Írlho" (DE4, 200).
Masturbação, família celular. Em les anormaux, Foucault analisa a reorganização da fa-
mília no século XIX, no marco da grande campanha contra a masturbação. Em primeiro lugar,
mais que de uma moralização, trata-se de uma somatização: 1) A ficção de uma enfermidade
total, polimorfa, absoluta, sem remissào que se instala no corpo do masturbador. 2) O delírio
hipocondríaco gerado pelos médicos que tratam de conseguir que todo paciente vincule os
sintomas de sua enfermidade a essa falta primeira. 3) A masturbação aparece como a causa
possível de toda enfermidade possível: enfermidades do cérebro, do coração, dos olhos, etc.
E, no entanto, apesar de tantos perigos originados da prática da masturbação, a somatização
dessa foi acompanhada de uma desculpabilização. Com efeito, por não serem conhecidas as
causas endógenas da masturbação, as crianças não podiam ser culpabilizadas. Não se trata

164 FÁBULA (Fable)


da natureza, mas do exemplo, da sedução do adulto. A falta provém, então, de fora. A ori-
gem da masturbação seria o desejo dos adultos, que tem por objeto as crianças' Mas, nessa
desculpabilização da criança e consequente culpabilização dos adultos, há que se distinguir
duas coisas. Por um lado, o perigo que representa o pessoal doméstico, os instrutores e os
educadores. São eles os personagens do mau exemplo. Por outro, os pais; nesse caso, sua culpa
consiste em não se ocupar pessoalmente de seus filhos. Disso se extraem duas consequências
complementares: 1) se possível, é necessário suprimir o pessoal doméstico ou, ao menos,
permitir-lhe apenas o contato mínimo com as crianças e 2) a exigência de cuidar (vigiar) os
próprios filhos. A célula familiar, a família medicalizada: a supressão do pessoal doméstico e
a exigência de vigilância reorganizam o espaço familiar para facilitar uma espécie de corpo a
corpo entre pais e filhos; aparece um noYo espaço, o lar, um "novo corpo familiar" marcado por
sua substância físico-afetiva. A família célula vai substituir a família relacional.
partir daqui, a

Mas, desde o momento em que a masturbação se encontra no centro da família-célula e, pela


somatizaÇão da que falamos antes, a família-célula se vincula estreitamente com a medicina.
por um lado, há certo isomorfismo entre a relação pais-filho e a relação médico-paciente: os
pais devem diagnosticar, ser terapeutas, ser agentes de saúde. O espaço densamente afetivo da
família-célula é um espaço atravessado pela tecnologia de poder própria ao saber médico. Dois
exemplos dessa medicalizaçao:1) a discrição ao nível da linguagem entre pais e filhos sobre
foi contrabalançada pela discursividade entre médico e paciente. É necessário
a sexualidade
técnicos são utilizados
que a criança masturbadora ,. .orf.rr. ao médico. 2) Instrumentos
* A partir dessa família celular e medicalizada, apareceu' nos
para controiar a masturbação.
(AN, 249-255)'
primeiros decênios do século xIX, a normalidade e a anormalidade sexual
da pastoral
Incesto. Podemos ver a campanha antimasturbação como uma transformação
infantilização, medicalização'
cristã da carne, mas com algumas modificações fundamentais:
a campanha anti-
instrumentalização (mais que o resultado da constituição da família-célula,
Foucault faz duas observações'
masturbação foi seu instrumento). A propósito desse processo,
infantil havia sido definida em termos de
1) A partir do final do século XVIII, a sexualidade
permitiu instalar de um
não relacionalidade, de autoerotismo. A formação da família celular
a teoria psicanalítica
modo novo a sexualidade relacional no autoerotismo das crianças. 2) Mas
dos filhos' Esse apro-
do incesto beneÍrciará moralmente os pais: os pais são o objeto do desejo
propriedade - para
fundamento da possessão por parte dos pais da sexualidade de seus filhos, a
por um aprofundamento da possessão
dizê-lo de algum modo - do desejo, foi acompanhada
estatal dos .o.por, pela extensão da escolarização e dos métodos e instituições disciplinares'
O

que foi dito anteriormente se aplica à família burguesa; mas o que acontece com o
proletariado?
filhos do casamentol Trata-se de frear
Áo proletariado se the diz'tasem-se, não tenham antes

o fenômeno das uniões livres que se multiplicam graças à debilitação do proletariado rural

formação de um urbano que não requeria os suportes do casamento (assistência entre família,
intercâmbio de bens, etc.). Desde o momento em que a estabilidade da classe operária foi neces-
sária por razões econômicas, também foi preciso uma nova quadriculação política dos corpos.
A palavra de ordem aqui foi: "Não se mistureml Uma nova problemática do incesto, não do tipo
filhos-pais, mas irmão-irmã, pai-fllha. A sexualidade perigosa é, agora, a do adulto. Estamos diante
de uma reoria sociológica, já não psicanalítica, do incesto (AN,257-560). Asilo. EmHistoire de
la folie à lbge classique, Foucault sustenta que a família serviu de modelo para o surgimento
da

instituição asilar no final do século XVIII. Mas, em Le pouvoir psychiatrique, ele retifica essa

FAMÍLlA (Familte) 165


afirmação. A matriz do asilo não foi a família, e sim os dispositivos disciplinares; a conexão entre
a psiquiatria e suas instituições é posterior, data do final do século XIX (PP, i7).
Yer Psicluiatria.
Famille[1082]:AN,34-35,45,5354,-57,60,96,103,115,132-140,113,153,217,220,228,23t-236,238-247,219
251,253 254,256-258,260, 275,279-280,286,296 297,307,310. AS,56,62,69, 75. DEr, 104, 186, 204,342,464,55,1,
689,718,791.D82,-18,53,58,109-110,112,1Li,129-131,151,193194,\97,2rs,232,274,299,335,338,379,389,122,
165, 196,498, 53 1, 553, 568, 572, 601, 614, 624 626, 628, 642-643, 652, 664, 67 5, 678, 684, 697, 700, 709, 724, 778, 792,
796,822,827.DE3,10,1821,24-2-5,36,41,17,62,76,11s,r18,151,182,192-t93,202,205,2\7,219,232233,237,244,
246 248.256, ).70-27 1 , 305, 3 14, 334, 339-340, 360, 379, 395-397, 406-407 , 423, 425,147 , 4-53, 473, ,18 1, ,183 488, 490, 492,
494 495, 532 533, s6s, 567, 569, s97, 630, 640, 641 642, 644, 647, 650-6s1, 672, 682,720,731-734,737 738, 824. DE4,
103,113,150,164,193,200,231,286 288,309,351 3s2,358,403,450,465,477,,180-481,485,515,555,581,646,652653,
710,745,751,754,757-758,760.HF,76.79,85,96,111,11s,124126,t69,170 r71,192,2s82s9,,115,488,491,499,s19,
520-522,531,549-550, 555-557, 563, 580, 589-590,607-609,612,618, 626 629,645. HS, 34, 37,41,43, 57 59, 82,86-89,
93,97,99, r r0, I 14, t36- r37, r50, 156, t60.176,178-179, 190-191, 285, 358, 363,4t4,422,426, ,135 436. HSl, 9, 54, 56,
6365,78,112,132,143-150,157,159,161,171,177,185,197.H52,32,47,97,107,t37,167,169,r72,174,178,182,185,
189,200,218,222,226,234,238,254. HS3, t9, 40-41,47, -5,1,56,67,68,90 92,95 96,132,173, 178, 183, 186, 198, 199,

201,214,220,252,281. IDS, 28 29,39,45,127,209,2r2,220. MC, 1,19, 154-157,234,239-240,305. MMPE, 15,79-81.


MMPS,15,80,83-84,93.NC,8,r6,18 19,38,39,41,43,83,109,134.PP,17,22,27-28,45,81 88,91,95-103,108-11,
113-119,121 126,128,141,144,154,159,172,181,200,202,211,214-215,217,219,221,228,245,251,272-273,27s.F.R,
185, 196. SP, 18,71, I 1,+, 122,143,19t-.204,213,217,248,263,265,273,275,291,296,300 302,304.

: :r=. FASCISMO (Fascrsme)

O nazismo e o fascismo não teriam sido possíveis sem que uma porção relativamente
importante da população se encarregasse das funções de repressão, de controle, de polícia.
Nesse sentido, o conceito de ditadura aplicado a tais fenômenos é relativamente falso (DE2,
654).. O inimigo maior de llAnti-Oedipe de G. Deleuze e F. Guattari é o fascismo: "E não
somente o fascismo histórico de Hitler ou Mussolini - que soube utilizar tão bem o desejo das
massas -, mas também o fascismo que está em todos nós, que habita nossos espíritos e nossas
condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa mesma coisa que nos
domina e nos explora' (D83, 134). Ver: Deleuze. * O século XX não dispunha de um aparato
conceitual apropriado para pensar o fascismo e o stalinismo. Dispunha-se de instrumentos
teóricos para pensar a miséria, a exploração econômica, a formação da riqueza, mas nào se
dispunha de categorias para pensar o excesso de poder (DE3, 400-401). Essa foi, sem dúvida,
uma das motivações do interesse foucaultiano pela questão do poder. * "O que me aborrece na
afirmação do desejo das massas pelo fascismo é que a afirmação cobre a falta de uma análise
histórica precisa. Vejo nela o efeito de uma cumplicidade geral no rechaço de decifrar o que
realmente foi o fascismo (rechaço que se traduz pela generalização: o fascismo está em toda
parte e, sobretudo em nossas cabeças, ou na esquematização marxista). A não análise do
fascismo é um dos fatos políticos importantes desses últimos trinta anos. O que permite fazer
dele um significante flutuante, cuja função é essencialmente a denúncia: os procedimentos de
todo poder são suspeitos de serem fascistas assim como também as massas são suspeitas de
sê-lo em seus desejos. Sob a afirmação do desejo das massas pelo fascismo há um problema
histórico para o qual não foram ainda encontrados os meios para resolvê-lo' (D83, 422). *

I66 tASCISMO (Fa)cirmel


Apesar de sua singularidade histórica, nem o stalinismo nem o fascismo são completamente
originais; utilizaram e estenderam os mecanismos de poderjá existentes nas outras sociedades,
utilizaram as ideias e os procedimentos da racionalidade política ocidental (DF4, 224).
Fascisme 164J: AN, 13. DEI,582. DE2,314,340,498,652, 654,761-762,77-5,805,816,820. DE3, i33-136, t80,
264,387,.100-4()1,422,424,535-536,-545,610,626.DE4,224,751. HS1,t98.IDS,20,27.

:=?" FAUSTO (Faust)

O Fr.rusto é urn exemplo da maneira como a questâo do prazer e o acesso ao conhecimento


se encontrarn vinculados com o amor pela mulher, sua virgindade, sua pureza, sua queda e
seu poder redentor(H52,252). Poder-se-ia interpretar o Fausto deste modo: não há acesso
ao saber sem uma modificação profunda do ser do sujeito (HS, 28). Nesse sentido, Foucault
analisa as transformações da Írgura de Fausto desde Marlowe a Goethe, passando por Lessing
(r{5,296-297).
Faust [22] : DEl, 299. HS, 25, 28, 40,277,296-297, 300. }J.S2,252.

Faustus [1]: HS, 300.

'?=e. FEBVRE, Lucien (1878-1956)

Ver : Escola dos Anais.


Lucien F ebvre [8 ] : DÊ.|, 667, 7 7 3, 7 87. DF,3, 30, 467 . DE4, 650, 652. HS, 432.

: FENOMEN0LOGIA (Phenomenologie)

Análise existencial. A formação universitária de Foucault foi impregnada de fenomenolo-


gia. Em Dits et écrits, sao numerosas as referências à presença e à influência da fenomenologia
durante seus estudos. Ademais, nos anos em que Foucault trabalhou nos hospitais psiquiátricos,
os textos de fenomenologia existencial constituíram uma de suas leituras fundamentais. "Todos
nós fomos formados na escola da fenomenologia, na análise das significações imanentes à vi-
vência, das significações irnplícitas da percepção e da história. Eu me preocupei, além disso, pela
relaçáo que podia existir entre a existência indiviclual
e o conjunto das estruturas e das condições

históricas nas quais essa existência individual aparece; pelo problema das relações entre sentido
e história ou, também, entre método fenomenológico e método marxista' (DEf , 601). 'A leitu-
ra do que se chamava'análise existencial' ou'psiquiatria fenomenológica foi importante para
mim na época em que eu trabalhava nos hospitais psiquiátricos e quando buscaya algo diferen-
te dos esquemas tradicionais da visão psiquiátrica, um contrapeso' (DE4, 58). A introdução à
tradução da obra de L. Binswanger,Le rêve et lbxistence (1954), é produto dessa formação e
dessas leituras. Naquela introdução, Foucault busca, sob a égide de Binswanger, uma conjunção

FENOMENOLOGIA (Phénomenologie) 167


entre Freud e Husserl, entre a psicanálise e a fenomenologia, entre a análise psicanalítica e a
descrição fenomenológica. Nas palavras de Foucault: "Encontrar o fundamento comum às es-
truturas objetivas da indicação, aos conjuntos signiÍicativos e aos atos de expressão era o proble-
ma que a dupla tradição da fenomenologia e da psicanálise colocava. Da confrontação entre
Husserl e Freud, nasce uma dupla problemática. Era necessário um método de interpretação que
restituísse em sua plenitude os atos de expressão. O caminho da hermenêutica não devia deter-
se nos procedimentos de escritura que detêm a psicanálise; deveria ir até o momento decisivo
em que a expressão se objetiva, ela mesma, nas estruturas essenciais da indicação. Era necessá-
rio algo distinto da verificaçáo, era necessário um fundamento. Esse momento fundamental onde
se ligam as significações é o que Binswanger tentou trazer à luz em Rêve et Existence" (DEI,
79). Foucault dedica grande parte daquele texto à análise das Logische Untersuchunger; mais
concretamente, à distinção entre indicação e expressão. Aquele é o único texto de Foucault de-
dicado à análise de um problema husserliano. Foucault nos promete uma obra ulterior na qual
investigaria a situação da análise existencial no marco do pensamento contemporâneo (DEl,
65). Essa introdução a Binswanger pode ser considerada como o ponto de maior aproximação
entre Foucault e a fenomenologia. A partir daqui, devemos seguir, em vez disso, seu afastamen-
to. A questão do sujeito. São várias as razões que o próprio Foucault nos indica pelas quais se
produz essa separação e até oposição à fenomenologia: a questão da linguagem (colocada pela
literatura, a linguística, o estruturalismo), a problemática da historicidade do saber e, fundamen-
talmente, a questão do sujeito, isto é, a dissolução do sujeito. "E creio que, como em todos
aqueles de minha geração, se produziu em mim, entre os anos 50 e 55, uma espécie de conversáo
que parecia intranscendente no início, mas que, na realidade, nos diferenciou profundamente'
o pequeno descobrimento ou, se quiserem, a pequena inquietude, que está na origem dessa

conversão foi a inquietude diante das condições formais que podem fazer que a significação
apareça. Em outros termos, nós reexaminamos a ideia husserliana segundo a qual existe Sentid0
por toda parte, que nos envolve e que nos investe já antes de que comecemos a abrir os olhos e

a tomar a palavra. Para aqueles de minha geração, o sentido não aparecia por si só, não estava
'já aíi ou melhor, sim 'ele já estâ , mas sob certo número de condições formais. E, desde 1955,
consagramo-nos a analisar as condições formais do aparecimento do sentido' (DEl, 601). "Pois
bem, o estruturalismo ou o método estrutural em sentido estrito me serviu mais como ponto de
apoio ou de confirmaçáo para algo muito mais radical: o questionamento da teoria do sujeito"
(D84,52). "Se há um ponto de vista, portanto, que rechaço categoricamente é aquele (chamê-
mo-lo, grosso modo, fenomenológico) que concede uma prioridade absoluta ao sujeito da ob-
servação, atribui um papel constitutivo a um ato e coloca seu ponto de vista como origem de toda
historicidade; brevemente, aquele que conduz a uma consciência transcendental. Parece-me que
a análise histórica do discurso científico deveria, em último lugar, surgir de uma teoria das
práticas discursivas mais do que de uma teoria do sujeito do conhecimento" (D82, 13).
"Nietzsche, Blanchot e Bataille são os autores que me permitiram liberar-me daqueles que do-
minaram minha formação universitária, no início dos anos 1950: Hegel e a fenomenologid' (DE4,
48). "t...1 o tema nietzschiano da descontinuidade, de um super-homem que seria completa-
mente diferente a respeito do homem, depois, em Bataille, o tema das experiências limites peias
quais o sujeito sai fora de si mesmo, se decompõe como sujeito, nos limites de sua própria im-
possibilidade, tem um valor essencial. Isso foi para mim uma espécie de escapatória entre o

168 tENoMENoLoGIA (.Phénomenologie)


hegelianismo e a identidade filosófica do sujeito" (D83, 49). Tudo o que aconteceu no âmbito
do pensamento, na França nos anos 60, provém da insatisfaçáo a respeito da teoria fenomeno-
lógica do sujeito; com diferentes modalidades: a linguística, a psicanálise, Nietzsche (D84, 437).
Arqueologia. A fecundidade metodológica do cogito não é finalmente tão grande como se

acreditava. Para certas descrições, é necessário colocá-lo entre parêntesis. Pode-se descrever,
como o faz a arqueologia, as estruturas do saber sem recorrer ao cogito (DEl, 610). Em La
naissance de la clinique, encontramos uma frase que põe às claras a nova posição de Foucault
a respeito da fenomenologia:'As fenomenologias acéfalas da compreensão mesclam nessa ideia
mal ligada [a ideia de humanismo médico] à areia de seu próprio deserto conceitual" (NC, X).
Como dissemos, o único texto de Foucault dedicado à análise de um problema especificamente
husserliano é a introdução a Binswanger; contudo, pode-se considerar que a arqueologia, tanto
desde um ponto de vista metodológico como desde o ponto de vista da descrição arqueológica,
é em grande medida um diálogo com a fenomenologia. A arqueologia tenta liberar a análise
histórica da fenomenologia, isto é, da busca de uma origem entendida como busca dos atos
fundadores (4S,265). Les mots et les choses pode ser lido como uma anti-Krlsls, isto é, como
uma descrição do conhecimento que se opõe inteiramente à concepção husserliana da histori-
cidade do saber. Foucault não vai em busca dos atos fundadores da racionalidade nem conside-
ra que a história do conhecimento seja o desenvolvimento contínuo e progressivo da racionali-
Nesse sentido' a noçáo de
dade; antes o contrário, trata-se de uma "história" descontínua'
de tradição' Para Hus-
episteme pode ser considerada como o oposto da noção fenomenológica
ratio ocidental; para Foucault,
serl, a fenomenologia está inscrita desde a origem na tradição da
da finitude podem
só na disposição do pensamento moderno. As diferentes figuras da analítica
ser iidas como as dificuldades ou a ambivalência das diferentes
figuras da fenomenologia: a
(Husserl), o retrocesso e o retor-
análise das vivencias (Merleau-Ponty), o cogito e o impensado
epistêmica da
no da origem (Heidegger). ver, a respeito: Homem. No entanto, na disposição
figuras, ao mesmo
Modernidade, a fenomenologia e o estruturalismo aparecem como duas
o estruturalismo compar-
tempo, opostas e complementares. Para Foucault, a fenomenologia e

tilham um lugar comum ou, na linguagem da arqueologia, são possíveis a


partir de uma mesma
essas duas
disposição epistêmica. Na realidade, estruturalismo e fenomenologia representam
tendências correlatas do pensamento moderno, que são a formalização e a interpretação' Pois
tal
bem, trata-se de duas técnicas correlatas cujo solo comum está dado pelo ser da linguagem
com o
como se constituiu na época moderna. É impossível que a interpretação não se encontre
problema das formas puras da linguagem ou que a formalização prescinda de toda exegese' O

esforço do estruturalismo em trazer à luz as formas puras que, antes de todo conteúdo, se impõem
ao inconsciente se cruza com o esforço da fenomenologia em recuperar o solo da experiência, o
sentido do ser, o horizonte de todos nossos conhecimentos, em forma discursiva (MC, 312).
Aqui Foucault se opõe à interpretação de Sartre. O estruturalismo foi criticado desde o ponto de
vista da fenomenologia existencial. A objeção de Sartre consistia em afirmar que o estruturalis-
mo seria uma forma de análise que deixa de lado a história. Sem sujeito falante, sem atividade
humana, como é que o sistema da língua poderia evoluir? (D82,271). Mas, para Foucault, en-
quanto as análises fenomenológicas se ocupam dos discursos para encontrar, através deles, as
intencionalidades do sujeito falante, arqueologia não se ocupa do sujeito falante, mas examina
a

as maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel dentro do sistema estratégico em que

FENOMENOLOGIA (Phenomenologie) I69


o poder está implicado (DE3, 465). Mais ainda, a genealogia como análise da constituição dos
saberes, dos discursos, dos domínios de objetos não é uma relativização do sujeito fenomenoló-
gico. Não se trata de mostrar como uma consciência se transforma através da história, mas de
*
desfazer-se simplesmente de toda função transcendental do sujeito (DE3, 147). Nos últimos
trabalhos de Foucault, dedicados à ética, o problema da constituição do sujeito reaparecerá, não
desde o ponto de vista da consciência, mas das práticas. Yer Ética, Sujeito. Husserl. A filosofia
contemporânea na França começa com as Méditations cartesiennes, pronunciadas em 1929 e
publicadas em 1931. A partir delas, a fenomenologia foi objeto de uma dupla recepçào: uma que
se move na direção de uma filosofia do sujeito (La trascendance de lbgo de Sartre) e outra que
remonta aos problemas fundadores da filosofia de Husserl, o formalismo e o intuicionismo
(Méthode axíomatique e Formation de la théorie des ensenbles de Cavaillês). Apesar de suas
interferências, essas duas linhas permaneceram profundamente heterogêneas (DE3, 430).
Husserl colocou, em Krlsls, as relações ent re arazão e ahistória, mas o fez como busca da origem
(D83,432).Merleau-Ponty. 'A passagem se produziu da fenomenologia ao estruturalismo, e

essencialmente em torno ao problema da linguagem. Haveria aqui, eu penso, um momento


bastante importante: o momento em que Merleau-Ponty se deparou com o problema da lingua-
gem. E vocês sabem que os últimos esforços de Merleau-Ponty foram sobre isso. Eu me lembro
muito bem dos cursos onde Merleau-Ponty começou a falar de Saussure, que, embora estivesse
morto há quase cinquenta anos, era completamente ignorado, náo digo pelos filólogos e linguis-
tas franceses, mas pelo público em geral. Então, o problema da linguagem surgiu e parecia que
a fenomenologia era incapaz de dar conta, tão bem como uma análise estrutural, dos efeitos de
sentido que poderiam ser produzidos por uma estrutura de tipo linguístico, estrutura onde o su-
*
jeito no sentido da fenomenologia não intervinha como doador de sentido' (D84, 434-435)
Merleau-Ponty retomou duas linhas da fenomenologia: a fenomenologia existencial e as análises
fenomenológicas que surgiam como um questionamento da ciência, em seu fundamento, em sua
racionaliclade, em sua história (Koyré) (DE4, 53). Marxismo. Althusser liberou o marxismo de
toda fenomenologia (DE2, 272).Yer Althusser, Marxismo.Hegelianismo. Acerca das relações
entre o pensamento de Hegel e a fenomenologia, na França, ver: Hegelianismo,Llyppolite.Can-
guilhem. Além das leituras de Blanchot, Bataille e Nietzsche, para compreender o afastamento de
Foucault em relação à fenomenologia, é necessário levar em conta a influência dos trabalhos da
escola francesa de história da epistemologia, especialmente G. Canguilhem. Ver. Canguilhem.
Phénoménologie [1 31]: A5,265. DEl,65,69,76-79,127,281,345-346,362,370,545,60 1, 609, 6 13, 779,783,825.

DE2,79,83 84, I 70, 272. DE3, 3'1, 146-147 , 372, 430, 432, 440, 442, 583, 597 , 823. DF.4, 43, 48 49, 52-54, 58, 434-137 ,

14t, 444,445,529, 58 I , 60tt, 6s 1 ,7 18,750,764,767 ,773,775-776. HS,30, 40, 340, 455, 467 , 470. lDS, 19. lN{C,261,312,

332,336,338,342. MMPE, 13,56,69,338. MMPS, 13,56. NC,203. OD,75.

Phénoménologies 1ll: NC, X.

:e*. FEUDALISMO (Feodalisme, Feodalite, Feoda[)

Náo encontramos em Foucault uma análise sistemática do feudalismo, e sim numerosas


observações acerca do modo feudal de exercício do poder. Essas observações distinguem o
feudalismo das formas modernas do poder. * Em sociedades como, por exemplo, as feudais,

170 FEUDAtISMo (Feodalisme, Feodalité, Féodal)


a individualização é máxima do lado onde se exerce a soberania e nas rcgiões superiores clo poder.
Quanto mais poder ou privilégios se possui, mais se é marcado por rituais, discursos e represen-
tações plásticas (SP, I9a). * Quando r.ro século XVI a feudalidade teve que fazer frente às grandes
revoltas camponesas, ela buscou apoio em um poder, um exército, uma fiscalidade centralizados;
apareceram, então, os procuradores do rei, a legislação contra os mendigos e vagabundos, os
primeiros rudimentos de uma polícia e de uma justiça centralizada. Em uma palavra, apareceu o
embrião de um aparato judicial de Estado (DE2, 343). * Acerca da prática judicial na sociedade
têudal, ver kl,estigaçao. * Nas sociedades fêudais, nâo há nada semelhante ao panoptismo (DE2,
606). .
O poder se exercia mediante signos e impostos: signos de fidelidade ao senhor feudal, rituais,
cerimônias, impostos, pilhagerll, caça, guerra (DE3, 153). * A feudaiidade não era exatamente um
sistema militar, era um sisterna jurídico complexo no qual, em determinados momentos, certa
categoria de indivíduos devia exercer a fur-rção da guerra. Mas eles não eram militares de profissão
(D83, 581). * O poder se exercia sobre o corpo dos indivíduos de três maneiras: 1) exigia-se que
o corpo do súdito oferecesse, produzisse e pusesse em circulação signos cie respeito, de devoção,
de servilismo;2) podia-se exercer sobre eles a violência, até a morte; 3) podia-se impor o trabalho
(D83, 586). Esse poder se exercia de maneira descontínua (AN, 80). * O feudalismo desenvolveu
entre os indivíduos urn tecido de nexos pessoais muito diÍêrente do poder pastoral (DE4, 148). - O
poder Íêudal estabelecia relaçoes entre sujeitos jurídicos; desde o nascimento, o individuo se achava
irnerso nas relações jurídicas. No "Estado de polícia ' os indivíduos tambérn possuenl uma situação
jurídica, mas, além disso o poder se ocupa deles enquanto homens, seres viventes que trabalham
*
e comerciam (D84,822-823). A feudalidade como sistema jurídico caracterizou as sociedades
europeias do século VI ao século XV Esse sistema não havia sido isolado nem pelos historiadores
nem pelos juristas antes das análises de Boulainvilliers. Ver: Boulainvilliers.
Féodal 136l: AN, 80-8 1, 93. D82,343,513,57 4,576, 577, 580-58 l, 606,615,727 .DF3, 1 53, I 85, 203, 304-305, 374,
549,586,631,656. DF4,822. IDS,.l1, 189. RR,56. PP,28,66 67. SP, r94,220.

Féodale 126) : AN, 47-48. DE l, 837. DE2, 343, 359, 57 6-579,606, 6 1 5, 623. DE3, I 85, 548, 586. DE4, 185. IDS,
31, 182, 205-206. PP. 66,67

Féodalisme [2] : DEa,1,{8, 157.

Féodtrlité [45] : AN,80. DE2, 109,276,313,391,578,582,696. DE3, 119,203,193.500,581,720. DE4,90. IDS,


66, 108,1 10, t25, 132, 1 34, 1 69, t79 - 184, 1 88- 1 89, 191, 205, 209. Pp, 67. SP, 29.

'i;r FICçAO (Fiction)

Fábula. "Em toda obra que possui a forma do relato, é necessário distingtir fiibula e

ficçao. Fábula é o narrado (episódios, personagens, funçoes que eles desempenhanl no relato,
acontecimentos), o regime do relato, ou rnelhor, os diferentes regimes segundo os quais esse é
relatado: a postura do narrador a respeito do que narra (segundo participe da aventura, ou a
contemple como espectador ligeiramente a distância ou esteja excluído e a perceba do exterior),
a presenÇa ou ausência de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas, assegurando

uma descrição objetiva; compromisso com todo o relato na perspectiva de um personagem


ou vários sucessivamente ou cada um em particular; discurso que repita os acontecimentos
imediatamente ou que os duplique à medida que se desenvolvem, etc. A fábula está feita de

FlcçÃo (Fi cti on) | 7 1


elementos situados em uma certa ordem. A ficção é a trama das relações estabelecidas, através do
discurso, entre quem fala e aquilo do que fala. Ficção, aspecto da fábuld' (DEl, 506). * A ficção
consiste no movimento pelo qual um personagem sai da fábula a que pertence e se converte no
narrador da fábula (DEl, 507). * Uma obra náo se define pelos elementos da fábula, mas
seguinte
pelos modos da ficção. A fábula de um relato se situa dentro das possibilidades míticas de uma
cultura; sua ficção, nas possibilidades do ato de fala (DEf , 506). Blanchot. A ficção em Blanchot
não está nunca nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilitude. A ficção não consiste
em fazer ver o invisível, mas em fazer ver como é invisível o inüsível do visível (DE 1, 524). Aator.
Desde o século XVIII, o autor desempenhou o papel de regulador da ficção, papel característico
da era industrial e burguesa, do individualismo e da propriedade privada (DEf , 811). Verdade,
história, política. Respondendo a uma pergunta a propósito de La volonté de savoir, Foucault
assinala: "Com relação ao problema da ficção, para mim, é um problema muito importante; e me
dou conta que nunca escrevi senão ficçoes. Não quero dizer com isso que esteja deixando de lado
a verdade. Parece-me que existe a possibilidade de fazer trabalhar a ficção na verdade, de induzir

efeitos de verdade com um discurso de f,cção e de fazer de modo que o discurso de verdade suscite
algo que ainda não existe. Então, 'ficciona 'Ficciona-se a história a partir de uma realidade política
que verdadeira,'ficciona-se uma política que ainda não eúste a partir de uma verdade históricd'
a faz

(D83,236). * 'Assim, esse jogo da verdade e da ficção ou, se vocês preferirem, da constatação e
da fabricação, permitirá fazer aparecer claramente o que nos liga, às vezes de maneira totalmente
inconsciente,à nossa Modernidade e, ao mesmo tempo, fará que nos apareça como alterado'
(DE4,
*
46). "Eu pratico uma espécie de ficção histórica" (DE3, 805; DE4,40). Gótico. A novela gótica é

uma novela de ficção científica e política: ficção-política na medida em que se trata essencialmente
de novelas centradas no abuso do poder, ficção-científica, na medida em que se trata de reativar
todo um saber sobre a feudalidade (IDS, 188).
Fietion[116]:AN.223,224.AS,33,118,123.DE1,178,275,277,279282'286'298'309'338'341'399'506-507,
509,511-s13,518,520, 523-525,591,798,800,811. D82,223,266,285-286,658,690,718,810. DE3,60,84-85,
236,242,252,254,341.,406,449,628,805. DE4,40, 14-46,371,589. HF,609. H52,275. IDS, 150, 188-189. MC,62,
66, r94. OD, 30. PP,36,251. SB 199,224,246,310.

:ê:. FILODEMO DE GÁDARA (Seculo I a.c.)

Foucault presta particular atençáo à obra Acerca da parresía, desse Íilósofo epicúreo,
encontrada naVilla dei papiri, de Herculano Yer Parresía.
Philodàme ile Gádara [45]: HS, 119, 132,137,140-141,355,357,367,369-372,374,375 376,379,382,386,388.
HS3,67,278.

n: FILOSOFIA (Philosophie)

Neste verbete, queremos apresentar as observações que o próprio Foucault nos oferece acer-
ca da tarefa da filosofla contemporânea e, mais concretamente, de seu trabalho. A primeira

172 FILoDEMo DE GÁDARA


questão deveria consistir em determinar se se pode enquadrá-lo dentro do campo da filosofia.
Não é uma questáo f,íciI, por duas razões. Em primeiro lugar, porque, para poder julgar acer-
ca do pertencimento ou não ao campo da filosofia, não só se deve dispor de um critério que
delimite o que está dentro e o que está fora desse campo, mas também é necessário mostrar
que se trata de um critério justo, apropriado, autêntico. Em todo caso, propor um critério
dessa ordem náo iria muito além de levantar uma polêmica. A história da filosofia nos põe,
de fato, diante de uma multipiicidade de filosofias que, nem pelo seu vocabulário, nem pelo
seu estilo, nem pelos seus conceitos, nem pelos seus métodos, nem pelas suas finalidades,
podem reunir-se sob um conceito único. Aqui, como nos ensinam os lógicos, compreensâo e
extensão se encontram em relação inversa. Em segundo lugar, o próprio Foucault repetidas
vezes negou seu pertencimento ao campo da Íilosofia. Poderíamos
multiplicar as referências,
mas algumas bastarão. "Nunca me ocupei de filosolia" (D82,493). "É alficil classificar uma
investigação como a minha dentro da frlosoÍia ou das ciências do homem' (DEf , 605). Qual
é o alcance que devemos dar a essas e outras expressÕes semelhantes? Em todo caso, é neces-
sário contrabalançá-las com outras. "Que o que eu faço tenha aigo a ver com a filosofia é
muito possível, sobretudo na medida em que, ao menos depois de Nietzsche, a filosofia tem
como tarefa diagnosticar e não tratar mais de dizer uma verdade que possa valer para todos
e para todos os tempos. Eu trato de diagnosticar, de realizar um diagnóstico do presente: dizer

o que nós somos hoje e o que significa, hoje, dizer o que somos. Esse trabalho de escavaçâo
sob os nossos pés caracteriza desde Nietzsche o pensamento contemporâneo. Nesse sentido,
posso cleclarar-me filósofo" (DE1, 606). * Se tomarmos como ponto de referência o contexto
intelectual em que Foucault formou, as filosoÍias do sujeito (fenomenologia, existencialismo,
se

marxismo), seu trabalho certamente está fora. Mas essa forma de não pertencimento põe de
manifesto, na realidade, uma transformação na própria filosoÍia. E o próprio Foucault, também
repetidas vezes, dá-se conta disso. "Houve a grande época da Íilosofia contemporânea, aquela
de Sartre, de Merleau-Ponty onde um texto filosófico, um texto teórico devia finalmente dizer-
lhes o que era a vida, a morte, a sexualidade, se Deus existia ou se Deus náo existia, o que era
a liberdade, o que se devia fazer na vida política, como comportar-se com os outros, etc. Tern-

se a impressão que essa espécie de filosofia já não pode mais ter lugar, que, se quiserem, a fi-
losoÍia, se não se volatiliz.ou, pelo menos se dispersou, que há um trabalho teórico que se
conjuga, de alguma maneira, no plural. A teoria e a atividade filosóÍica se produzem em dife-
rentes domínios que estão separados uns de outros. Há uma atividade teórica que se produz
no campo das rnatemáticas, uma atividade teórica que se manifesta no domínio da linguísti-
ca, ou nodomínio da história das religiões ou no domínio simplesmente da história, etc. E é
nessa espécie depluralidade do trabalho teórico que se realiza uma filosofia que ainda não
encontrou seu pensador único e seu discurso unitário" (D81,662). "Parece-me que a filosofia
hoje não existe mais; não que ela tenha desaparecido, mas que está disserninada em uma
grande quantidade de atividades diversas. Desse modo, as atividades do axiomatizador, do
etnólogo, do historiador, do revolucionário, do homem político podem ser formas de ativida-
cle filosófica" (DEl , 596). " [. . .] a filosoÍra de Hegel a Sartre foi, apesar de tudo, essencialmen-
te um empreendimento de totalização, se não do mundo, se não do saber, ao menos da expe-
riência humana. E eu diria que se há, talvez, agora uma atividade filosóÍjca autônoma; se pocle
haver uma filosofia que não seja simplesmente uma espécie de atividade teórica dentro das

tlLOSOtlA (Phtlosophie) I7 3
matemáticas, ou da linguística, ou da etnologia ou da economia política; se há uma Íilosofia
independente, livre de todos esses domínios, poder-se-ia defini-ia da seguinte maneira: uma
atividade de diagnóstico. Diagnosticar o presente, dizer o que é o presente, dizer em que o
nosso presente é diferente e absolutamente diferente de tudo o que não é ele, isto é, de nosso
passado. Talvez essa seja a tarefa que se atribui agora ao fliósofo" (DE1,665). Encontramo-nos,
então, diante desta alternativa: a filosofia disseminada em outros domínios e a filosofia como
diagnóstico do presente. Desde esse último ponto de vista, seu trabalho pertence, sem dúvida,
à atividade filosófica. Mais ainda, inscreve-se nessa tradição que Foucault denomina'bntolo-
gia do presente" e que remonta a Kant (DE4, 687). Trata-se de uma atividade, mas também,
deuméthos,doéthosprópriodaModernidade(ver: Éthos).*Poisbem,oaporte,sequisermos,
negativo, desse diagnóstico foi a constatação da "morte do homem' (ver: Antropologia, Ho-
mem), qrter dizer, do fim das filosoÍras do sujeito e das ciências do homem em seu sentido
moderno. Permitimo-nos uma citação pitoresca, mas altamente reveladora a esse respeito.
Respondendo a uma pergunta na qual se the indagava como ensinaria psicologia: 'A primeira
precaução que eu tomaria, se fosse professor de Íilosofia e tivesse que ensinar psicologia, seria
comprar uma máscara a mais aperfeiçoada que se possa imaginar ea mais distinta de minha
fisionomia normal, de modo que meus alunos não me reconhecessem. Trataria, como Anthony
Perkins em Psicose, de ter uma voz completamente diferente, de modo que nada da unidade
do meu discurso pudesse aparecer. Essa seria a primeira precaução que eu tomaria. Em segui-
da, trataria, na medida do possível, de iniciar meus alunos nas técnicas que estão em voga
hoje entre os psicólogos: métodos de laboratório, métodos de psicologia social; trataria de
explicar-lhes em que consiste a psicanálise. E, no momento seguinte, eu retiraria a máscara,
retomaria minha voz e faríamos fiiosoÍia. Entáo, me encontraria com a psicologia como esse
tipo de impasse absolutamente inevitável e absolutamente fatal. [...] Eu não a criticaria como
ciência, não diria que não é uma ciência efetivamente positiva, não diria que é uma coisa que
deveria ser mais ou menos filosófica. Diria simplesmente que há uma espécie de sono antro-
pológico pelo qual a filosof,a e as ciências do homem estão, de alguma maneira, fascinadas e
adormecidas mutuamente, e que é necessário despertar desse sono antropológico, como em
outros tempos se despertava do sono dogmático" (DEf , 448). Foucault quis liberar o pensa-
mento do sono antropológico. Não é o gesto de colocar a máscara, mas o de retirá-ia que de-
fine seu trabalho. Foucault não persegue uma lilosofia travestida de ciências do homem,
buscando nelas aquilo do que falar; tampouco dispersar-se em domínios como a etnologia, a
linguística ou a psiçanálise (que, em Les mots et les choses, qualifica de contra ciências hu-
manas). Mas esse diagnóstico não se detém na constatação da morte do homem, como se se
tratasse do acontecimento epigonal da filosofia, do Íim da filosofia. Ao contrário. A arqueolo-
gia e a genealogia constituem dois esforços em pensar para além do horizonte das filosofias
do sujeito. E os trabalhos dedicados à ética, um esforço em pensar para além das filosoÍias da
morte do sujeito, inclusive, em alguns aspectos, para além do próprio Nietzsche, a quem
tanto deve (a esse respeito, ver: Governo, Poder). Por isso, a ontologia do presente não se
esgota em um diagnóstico negativo, ainda que às vezes possa parecê-lo (por exemplo, quando
analisa as formas modernas do poder, a disciplina e a biopolítica). Diagnosticar, para Foucault,
é levar a cabo o esforço para pensar de outra maneira. "Que é a filosofia, se não uma maneira

de refletir, não tanto sobre o que é verdadeiro ou o que é falso, mas sobre nossa relação com a

174 FtLosoFtA (Phitosophie)


verdade? Lamentam-se de que não haja filosofia dominante na França. Tanto melhor. Não há
filosofia soberana, é verdade, mâs uma filosofia ou, melhor, filosofla em atividade. É filosofla
o movimento pelo qual (não sem esforços e tateios, sonhos e ilusões) distancia-se do que está
adquirido como verdadeiro e buscam-se outras regras de jogo. É filosofia o deslocamento e a
transformação dos quadros de pensamento, a modificação dos valores recebidos e todo o
trabalho que se faz para pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se dis-
tinto do que se é. Desde este ponto de vista, é um período de atividade filosófica intensa esse
dos últimos trinta anos" (DE4, 110). Nesse sentido, todo o trabalho de Foucault, "fragmentos
de filosofia na pedreira da história' (DE4,2l), foi um esforço constante para poder pensar e

ser de outra maneira. Mais precisamente, à luz de seus últimos trabalhos, pensar e ser de
outra maneira consiste em elaborar outros modos de subjetivação, novas práticas de si, em
uma palavra, uma ética, tm éthos, uma ascese. Por isso, poder-se-ia afirmar que a prática
filosófica de Foucault está mais próxima da prática da filosofia na Antiguidade que de Hegel
ou Sartre. Ao menos (ainda que não apenas), do modo como Foucault descreve a prática dos
antigos. Poderíamos dizer, como resumo, que o trabalho de Foucault vai da morte do sujeito
(das filosofias do sujeito, das ciências do homem) à recuperação do sujeito desde o ponto de
vista das práticas. "Não e pois o poder, mas o sujeito o que constitui o tema geral de minhas
investigações" (DE4, 223). Afilosofia de Foucault foi um esforço imenso para abrir um esPa-
.. como práticas reflexas da
ço [u. as práticas de subjetividade fossem novamente possíveis
hu-
ilU.rauà. (vei: Ética);para isso, ele teve que liberar esse espaço invadido pelas ciências
de liberação
manas, as filosofias do transcendental, as disciplinas, a biopolítica. Esse trabalho
que lhes
situa sua filosofia na pedreira da história. 'Afinal de contas, o fato de que o trabalho
apresentei tenha tido esse andamento fragmentário, repetitivo e descontínuo
corresponderia
caráter dos que adoram as
bem a algo que se poderia chamar de'preguiça febrill a que afeta o

os documentos, as referências, as escrituras empoeiradas, os textos que


nunca são
bibliotecas,
lidos, os livros que, mal são impressos, são fechados de novo e dormem depois nas prateleiras
das quais são tirados alguns séculos mais tarde. Tudo isso conviria bem à
inércia atarefada

duqu.l., que professam um saber para nada, uma espécie de saber santuário, uma riqueza de
novo-rico cujos sinais exteriores, como vocês sabem, encontramos dispostos nos rodapés das
páginas. Isso conviria a todos aqueles que se sentem solidários de uma das sociedades secre-
tas, por certo das mais antigas, as mais características também do Ocidente; uma dessas so-
ciedades secretas estranhamente indestrutíveis, desconhecidas, parece-me, da Antiguidade,
que se formaram cedo no cristianismo, na época dos primeiros conventos sem dúvida, nos
confins das invasões, dos incêndios, das florestas. Quero falar da grande, terna e calorosa
*
franco-maçonaria da erudição inútil" (IDS, 6). Não tão inútil. Para flnalizar, uma última
observação. Costuma-se distinguir na obra de Foucault dois ou três períodos que corresponderiam
aos seus eixos de trabalho e também às pausas na publicação de seus livros. Nós nos encontra-
ríamos, então, com um período arqueológico (centrado na análise do saber), um período gene-
alógico (análise do poder) e outro ético (análise das práticas de subjetivação). A passagem do
período arqueológico ao genealógico estaria marcado pela distância entre lhrchéologie du savoir
(1969)e Surveilleretpunir(1975);apassagemdoperíodogenealógicoaoético,peladistância
entre La volonté du savoir (1976) e lusage des plaisirs (1984). Tais distinçoes servem, sem
dúvida, à descriçáo eà apresentação de seu pensamento. Não se pode dizer que sejam incorretas.

FILOSOtIA lPhilosophíe) 175


No entanto, não são totalmente precisas. Basta ler aHistoire de lafolie para se dar conta de
como, desde o início, se encontram entrelaçadas as problemáticas do saber, do poder e as práti-
cas de subjetividade. Por isso, ainda que continuemos falando em período arqueológico, genea-
lógico e ético, não haveria que vê-los como o deslocamento em uma linha reta, mas como um
movimento mais complexo, cuja representação espacial mais apropriada seria o círculo ou a
espiral. "E quanto àqueles para os quais se esforçar, começar e recomeçar, ensaiar, equivocar-se,
retomar tudo desde o início e encontrar ainda o modo de titubear a cada passo, quanto àqueles

pâra os quais, definitivamente, trabalhar mantendo-se na reserva e na inquietude equivale à


renúncia, bem, manifestamente não somos do mesmo planeta'(HS2, 13).
Philosophie [1602]: AN, 4, I 1, 126,220. AS,10,13,20,23,33,53,72-73,78,179,181,225,235,253,260,266-268. DEl,
66-68,78-79,83,87-88,91,96, r01,120,124,126-t27, 138, 140, 168, t69 171,238-242,245,247 249,263,267-268,291,339-342,
345-346,357,370,38i, 387, 39 l, 430, 438-440,444,44t'-463,499,503-504,515,520,541-543, 545-546,548,551 553, 556, 565,

570, s74-575,579-582, s87, s96, 598, 604-606, 6 I i-613, 654-655, 6s7 -6s8, 662-665, 668, 684, 696-697,70t'702,7s9,768-770,

773,775,779-785,789-790,792-793,812,815,821 822,846.DF,2,7-8,).0-l).,25,47,54,65-72,76,78,80,83,85-87,89-91,98-
99, 1 05- 109, 113, 124-126, 137, 141, 149, 152, 164, 166,170, 188, 22 1, 229,242 243,265,272,282-284,293,295-296' 304-305,
369 370,372,376,399,4r2,414,424-425,434,470,476, 483, 493, 506, 522, 539-540, s46-s47,549, s64,568,57r, s94,627,630,

633-634,693,720-721,727,756,781,798,808,827.DÊ3,29-30,95,112,134-135,150,158,175,179,193,210,234,265-266,
27 4,277.279-281,3 16, 349-350, 369,372,377,394,399,429 432, 434-435. 438, 442,476,479,502,534,537 542,547,57 l,573,
574,576,584,590,595, 597, 600-605, 6 07 -609,615-616,618,622,763,783,795-796,823. D84,21.24,29,34, 42,48-50,52 53,
56,62,70,83,103, 107- I 08, ll},127, 134-135, 140,146,169-170,182,205,219-220,224,232,278-279,291,3t7,351' 354'355'

357,387,397,410,412-413,433,436,438,448,455,456,462,500,520,527 ,535,543,547 ,562-564, 579, 581, 586, 613,622,630,


644,652,667,679-682,686-688,697,6s9-702,706-707,721-723,729,763,764768,770,773,775-776,779,786-787,789-790'
795-796,799,811,813,820,824.HF,43,137,202-203,227,284,287,298,379,385,391,416,436,471,551,611,658,662,684,
685. HS, 3, 4, 6, 1 I, I 3- 14, 16, 18-19,23,25-27,29-30,33,40-41,43,46,49,61-62,64 65,67,69,72'77,84, 89-90, 93-96,
98' 100,

102,111,113,r14, 119,123,126,130 131,134,138,141,143-146,148 150,152-153,158-160,163 167,l7t 172,175'178-179'


182- 184, 200, 203-204,206-208,216-218,248-250,257,262 263,269,280,297 -298,306, 309, 3 13-314, 320-321,324' 328-331,

333,335-336,349 3s0,365,369,374.378,384,390-392,397-399,408,415,442,457,466-467.}lS1,80,166,184.HS2,13-i5,21,
44, 51, 100, 107,153,200,232,234,252,262,264,269,275,282.H53,50, 55, 57, s9'60, 6s,70-7't,71,80,102, 1 1 1, i21, 168, l7e,

184-185, 187, 192,219 220,245,249,260,270-271,281-282,284. IDS, 19-22,25,4s-46,50,55,85, 146, 149,153,162,172-173,


t86, 194,2t1-2t2,215. MC, 80, 82-83, 88, 91, 94, 98-99, t33, \36,145-147 ,1 5 I - 154, 156, r59,161,174,207 -208,220,231-233,
253,256-257,260-261,287,292,295-296, 304-305, 316, 326,328,333,336,339, 346, 352-353, 355,357-359,375,382, 384, 396

397.MMPE, 13.MMPS, 14,79.NC,XI,XY55.64,92,105, 116 117, 120, 126, 130, 142,117,157-158,192,206.OD,29,47,51,

60.64.76 . 79. PP, 1 5. 38, 93.121.167.222-223, 258, 292, 295. SP,142,254.

:=+. FLAUBERT, Gustave (1821 1880)

Foucault dedicou um artigo aLa tentation de Saint Antoine de Flaubert (DE1, 293-325).
* "Nessa obra que, à primeira vista,
como uma sucessào um pouco incoerente de
se percebe
fantasmas, a única dimensão inventada, mas com um cuidado meticuloso, é a ordem. O que
passa por fantasma não é nada mais que documentos transcritos: desenhos ou livros, figuras
ou textos. Quanto à sucessão que as une, ela está prescrita de fato por uma composição muito
complexa, que, atribuindo um lugar determinado a cada um dos elementos documentais, os
fazfr,glurar em várias séries simultâneas" (DE1, 308).
Gustave Flaubert [47]: AN,4,25. DEl, 293,293-303,309, 31 1, 502, 660, 793. DEz,27, 115, 117, 412,732. DE3,
108, s00. DE4,392.

I 76 TLAUBERT, Gustave
15s. FORMAçAO DISCURSIVA (Formation Discursive)

A formação discursiva "um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determina-


é
das no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econô-
mica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa' (AS,
153-154). As noções de tbrmação discursiva e de enunciado reenviam uma à outra. * A pri-
meira tarefa da arqueologia é negativa; consiste em desfazer-se das categorias com as quais se
levou a cabo, tradicionalmente, a análise dos discursos: gênero, livro, autor. Uma vez suspen-
Foucault formula quatro hipóteses para delinear os instrumentos próprios
sas tais categorias,
da arqueologia. A partir de cada uma delas, surgiram os conceitos que essa utilizará para
descrever as formaçoes discursivas. Enunciado, proposição, frase. como dissemos (ver:
Arqueologia), a arqueologia enquanto método de análise dos discursos não busca ser nem
interpretação (referir os discursos a outra coisa; à interioridade da consciência, por exemplo)
nem formalização (estabelecer as condições gramaticais, lógicas ou linguísticas da formação
dos enunciados). A arqueologia é, mais precisamente, uma análise das condições históricas
de possibilidade (do a priorihistorico) que frzeram que em um determinado momento so-
mente determinados enunciados tenham sido efetivamente possíveis e náo outros. Por isso,
Foucault distingue a formação discursiva e o enunciado, como unidade de análise, da propo-
sição/signifrcante (objeto da formalização) e da frase/significação (objeto do trabalho da in-
terpretação). Essas diferenças podem ser resumidas como segue: 1) Em relação ao objeto: a
frase remete a um correlato que lhe confere sentido; a proposição, a um referente que deter-
mina seu valor de verdade; o enunciado, a um referencial constituído pelas regras que definern
as condições históricas de surgimento dos objetos. 2) Quanto ao sujeito: o autor é o sujeito da
frase; o sujeito sintagmático, da proposiçáo; o sujeito do enunciado, por sua vez, está deter-
minado pelo conjunto de regras que determinam quem pode proferi-lo e a partir de quais
condições. 3) Quanto ao domínio associado: para a interpretação, as relações entre os enun-
ciados são de ordem lógica ou retórica; para a fbrmalizaçâo, trata-se da ordem sint:itica ou
lógica; a arqueologia, por sua vez,ÍraÍa de descrever urn domínio de associaçÕes que está
constituído pelas relações que podem ser estabelecidas entre enunciados que compartilham
unl mesmo estatuto, entre enunciados que pertence[r a unidades heterogêneas, etc. 4) Quan-
to à materialidade: a materialidade da escritura ou do som constituem a materialidade da
liase; aquela dos signos, a da proposição; no caso do enunciado, trata-se do conjunto de ins-
tâncias que possibilitam e regem sua repetição. Pois bem, para compreender com mais preci-
são tais diferenças, entre o enunciado por um lado e a frase e a proposição por outro, é neces-
sário retomar cada uma das quatro hipóteses que mencionávamos mais acima. Com efeito,
elas estabelecem o que deve ser considerado o objeto, o sujeito, o dclmínio associado e a ma-
terialidade dos enunciados (AS, 116-135). Objeto. A primeira das quatro hipóteses de tra-
balho sustenta que a unidade de um conjunto de enunciados, diferentes por sua forma e
temporalmente dispersos, funda-se no fato de que todos eles se referem a um único e mesmo
objeto. Consequentemente, o que nos permite individualizá-l.os e o relerente, o correlato. i\
luz de Histoire de la folie, Foucault conclui que, em lugar de tentar identificar um objeto
único e permanente (o que, no caso da loucura, é impossír,el), deveríamos estabelecer as
regras que determinam o espaço onde os objetos se perfilam e se transformam. Essas regras

FoRMAÇÃo DtscURstVA lFormation Dtscursive) 177


se manifestam em três níveis: 1) Através das superfícies de emergênclas. No caso da loucura,
trata-se dos lugares onde podem surgir e se manifestar essas diferenças individuais que serão
designadas, descritas e analisadas em termos de enfermidade, anomalia, neurose, psicose, etc.;
por exemplo, a família, o grupo social, o lugar de trabalho, etc. 2) Através das instâncias de
delimitaçao, isto é, os diferentes estamentos sociais que designam, nomeiam ou instauram
os objetos. Sempre em relação à loucura: a medicina, a justiça penal, a autoridade religiosa,
etc. 3) Através das grades de especificaçâo, os sistemas segundo os quais se separam, opÕem-
se, reagrupam-se, ou derivam-se umas das outras as diferentes loucuras como objetos do
discurso psiquiátrico. Por exemplo, o par alma-corpo, a vida e a história do indivíduo, etc.
* Foucault observa também que a descrição precedente é insuficiente e isso por duas razões:
por um lado, não se pode sustentar que o discurso seja o lugar no qual se situem e se instalem
objetos vindos do exterior e, por outro, porque é necessário deÍinir as relações entre esses
diyersos níveis. A formação dos objetos depende das relações que se estabelecem entre super-
fícies de emergência, instâncias de delimitação e grades de especificação e essas relações não
são alheias ao discurso. Elas náo explicam como o objeto está constituído, e sim por que em
uma determinada época começou-se a falar, por exemplo, de determinados comportamentos
e condutas em termos de loucura ou enfermidade mental; como essas condutas e comporta-
mentos foram evidenciados no seio da família ou do grupo social; como foram designados e
circunscritos pelos distintos estamentos sociais; servindo-se de que esquemas mentais foram
classificados ou catalogados. E, sobretudo, que relações foram estabelecidas entre essas dife-
rentes instâncias. A tais relações, por não serem alheias ao discurso, podemos chamá-las re-
laçoes discursivas, e elas se distinguem das relações primarias, que podem ser estabelecidas
independentemente de todo discurso entre as instituições, as técnicas ou outros componentes
da sociedade, e das relações reJlexivas, isto é, do que discursivamente se diz a propósito das
relações primárias (AS, 55-67). Sujeito. A segunda hipótese que Foucault examina sustenta
que a unidade do discurso provém da forma e do tipo de encadeamento dos enunciados; em
uma palavra, do estilo. Por exemplo, no caso da medicina, poderíamos sustentar que o que
caracteriza a medicina do início do século XIX, à diferença dos discursos médicos preceden-
tes, é a forma descritiva de seus enunciados que implica uma mesma maneira de estruturar a
observação (organização do campo perceptivo, estruturação da espacialidade dos corpos, etc.)
eum mesmo modo de transcrevê-la. Em La naissance de la clinique, Foucault conclui que a
unidade do discurso clínico não provém, na realidade, da unicidade das modalidades enun-
ciativas, mas do conjunto de regras que possibilitaram a coexistência de todas essas diferentes
modalidades enunciativas. Por isso, deveríamos interrogar-nos: I ) Acerca do estatuto de quem
pode, por regramento ou por tradiçao, por definiçao jurídica ou por aceitaçao espontânea,
pronunciar determinados enunciados. Como o mostra claramente a história da medicina,
apalavra médica não pode ser pronunciada por qualquer indivíduo; seu valor, sua eficácia e,
em certa medida, seu poder terapêutico são indissociáveis do personagem institucionalizado
que a pronuncia.2) Acercados âmbitos institucionais que circundam o falante. Por exemplo,
o hospital, a biblioteca oficial, o laboratório, etc. 3) Acerca das diyersas maneiras como o
sujeito pode situar-se a respeito de determinados objetos ou grupos de objetos. Esse sujei,
to pode situar-se como interrogante ou como percipiente ou como transmissor. Assim, no
início do século XIX, o discurso médico foi definido pela organização do campo perceptivo e

178 toRMAçÁo DtscURstVA (Formation Discursive)


da posição que nele podem assumir os sujeitos. 4) Pela maneira como cada uma dessas ins-
*
tâncias se relacionam mutuamente. As regras que definem o estatuto de quem pronuncia ou
escreve um enunciado, os âmbitos institucionais que o circundam, as diversas maneiras em
que pode situar-se em relação a um objeto ou um domínio de objetos e as relações entre essas
instâncias constituem o sujeito de um enunciado (AS, 68-74). Domínio associado. Tercei-
ra hipótese: a unidade dos discursos funda-se na permanência e na persistência de determi-
nados conceitos. A propósito das teorias acerca da linguagem e da história natural, em Les
mots et les choses, Foucault mostrou que não é possível organizar os conceitos como um
conjunto permanente e coerente estruturável em forma dedutiva. Ante a impossibilidade de
estabelecer um edifício conceitual dedutivo que dê conta da unidade do discurso, a tarefa da
arqueologia consiste em descrever a organização do campo em que os enunciados aparecem
e circulam. Esse campo supõe: 1) Formas de sucessão que implicam: a) a maneira como as
séries enunciativas se ordenam mutuamente (inferência, demonstraçáo, esquemas de gene-
ralização), e o modo como a temporalidade se especializa na linearidade dos enunciados; b)
tipos de dependência enunciativa: dependência hipótese-verificação, dependência asserçáo-
crítica, dependência lei geral-caso particular; c) esquemas retóricos: a maneira pela qual, por
exemplo, deduções e descrições se articulam dentro de um texto. 2) Formas de coexistência
que incluem: a) campo de presenças: todos os enunciados já formulados em outro lugar e que
são admitidos, criticados ou excluídos e cuja admissão, crítica ou
exclusão se apoiam na veri-
de concomitân-
ficação experimental, na tradição, em sua consistência lógica, etc.; b) campo
ou que pertencem a outro tipo de
cia: enunciados que pertencem a outro domínio de objetos
princípio geral; c) do-
discurso, mas que intervêm a título de analogia, ou de premissa ou de
de memória: enunciados a respeito dos quais, sem serem admitidos ou discutidos,
se
mínio
estabelece uma filiação ou uma gênese ou uma continuidade ou uma
descontinuidade' 3)
de transcrição, modos de
Procedimentos de intervenção: técnicas de reescritura, métodos
tradução, meios para acrescentar a aproximação dos enunciados, modos de transferir enun-
ciados de um campo a outro, métodos de sistematização de proposições,
modos de delimitar
relações definem
a validade dos enunciados, métodos de distribuiçáo dos enunciados.
Essas
quais o enunciado
o campo associadoa um enunciado: os outros enunciados a respeito dos
em questão é um elemento, o conjunto de formulações às quais faz referência, o conjunto
de

formulações que possibilita, o conjunto de enunciados que possuem o mesmo estatuto, etc' A

existência e a exigência de um campo associado marcam uma diferença fundamental entre


o modo de existência dos enunciados e o modo de existência das frases ou das proposições.
A frase, ou seja, a unidade gramatical, não exige a determinação de um campo associado a
fim de ser identificada. Uma única frase é reconhecível enquanto tal valendo-se apenas das
regras da gramática, sem o concurso de outras frases. No caso das proposições, poder-se-ia
objetar que uma proposição não pode ser individualizada sem se conhecer o sistema de axio-
mas da qual depende. A objeção poderia formular-se também a propósito das regras da gra-
mática. Foucault responde distinguindo entre o que propriamente constitui tm campo asso-
ciado eo fato de supor um sistema de axiomas ou de regras. lJm campo associado situa-se no
mesmo nível do enunciado em questão; os axiomas ou as regras gramaticais, no entanto, não
se situam no mesmo nível que as proposições ou frases às quais se referem (AS, 75-84). Ma-
terialidade. A última e quarta hipótese consiste em sustentar que a unidade ou individualidade

toRMAçÃo DlScURslVA (.Formatíon Dtscursive) 179


de uma prática discursiva provém da identidade e da persistência de determinados temas. Fou-
cault demonstrou, a propósito de temas como o evolucionismo ou a formação do valor na teoria
econômica, a inconsistência dessa hipótese. Em lugar de tratar de estabelecer a permanência de
certos temas, de determinadas imagens ou opiniões através do tempo, devemos deflnir as pos-
sibilidades estratégicas que os regem. Estabelecer as estratégias de uma formação discursiva
implica: 1) Assinalar os pontos de difraçao: a) pontos de incompatibilidade (dos enunciados
que, ainda que apareçam na mesma formação discursiva, não podem pertencer à mesma série);
b) pontos de equivalência (dos enunciados que, respondendo às mesmas possibilidades de
existência e situando-se a um mesmo níve1, representam uma alternativa); c) pontos de enganche
em uma sistematização (a partir dos pontos de equivalência ou incompatibilidade, deriva uma
série coerente de objetos, de formas enunciatiyas e de conceitos com outros pontos de incompa-
tibilidade ou equivalência). 2) Explicitar a economia da constelação discursivo que dá conta
de por que nem todas as combinações possíveis se verificaram. Assim, será necessário determi-
nar o papel que podem desempenhar em um discurso determinados enunciados com relação a
outros: pode-se tratar de um sistema formal do qual outros são aplicações em campos semânti-
cos diversos; de um modelo concreto que é necessário referir a outro de maior grau abstrativo;
pode encontrar-se em uma relação de analogia, de oposição ou de complementaridade a respei-
to de outros discursos; podem delimitar-se mutuamente. 3) Estabelecer a funçao do discurso
com relaçao às práticas nao discursivas, como a pedagogia ou a política, os processos e o re-
*
gime de apropriação, as posições do desejo a respeito do discurso. As possibilidades de reins-
crição e de transcrição, os limites e as condições, os outros enunciados que coexistem com ele
determinam a materialidade deum enunciado (AS, 85-93).
Formation discursive [80]: A5,53, 60, 74, 80, 84, 36-87, 89, 91, 98, 106, 141, 15 I -153, 156, 158, 164, 167 ' 173' 190'
200-.20 l. 203, 208, 213, 215,218.223, 226-227 ,232,234 235,240-245,249. DEl, 675'678,7 19,721'723. OD ' 68. DÊ2'
55.D83,28,28. DE4J 69' NA' 122.

: **. FORMALIZAÇÃO (Fo rm a I i sati o n)

Os métodos de interpretaçâo fazem frente, no pensamento moderno, às técnicas de for-


malizaçâo. Os primeiros tratam de fazer a linguagem falar por baixo de si mesma; as segundas
tentam controlar toda linguagem eventual e de carregar o peso da lei sobre o que é possível
dizer. Essa divisão nos pesa e nos domina. Contudo, não se trata de uma separaçào rigorosa;
a interpretação e a formalização possuem um lugar comum, são parte de uma mesma dis-
posição epistêmica (MC,312). * A formalização, interrogando-se acerca das relações entre
a lógica e a ontologia, encontra-se mais uma vez com os problemas que eram colocados, na
época clássica na máthesis (MC, 220). * A formalização, junto com a exegese, a literatura
,
ea filologia são os signos do modo de ser múltiplo da linguagem; à diferença da unidade do
discurso clássico (MC, 314).
Formalisation I58l: 4N, 8. AS, 3, 194,210,244,246-250,255,259, 270. D81,480, 499-500, 502, 68 1, 724,726,
1

821. DEz, 16s. DE3, 434, 439. DE1768. ÀíC,220,225,259,264,312,314,3t6,358-360, 368, 393,394. NC, 105. OD,
80. PP, 65, 75,95, 103. SP, 192.

IB0 toRMALtzaçÃo lrormatisation\


tsr. FREUD, Sigmund (iBs6-1939)

A relação de Foucault com a obra de Freud é, ao mesmo tempo, receptiva e prirfundamente


crítica. Em um primeiro momento, na época de seus estudos de psicologia, da composição da
introdução à obra de Binswanger (DEl, 65-119), Foucault se interessa pela análise existencial,
essa espécie de conjunção entre psicanálise e fenomenologia, entre Husserl e Freud. Trata-se de
encontrar um fundamento comum ao conceito freudiano de sintoma e ao conceito husserliano
de expressâo (DEl, 79). Yer'. Fenomenologia. Desse modo, a fenomenologia viria em auxílio
da psicanálise, situando o mundo dos sonhos em relação com o mundo da expressão. O concei-
to freudiano de símbolo e insuficiente (DEI,72). "Freud não chegou a superar um postulado
solidamente estabelecido pela psicologia do seculo XIX: que o sonho é uma rapsódia de imagens.
Se o sonho fosse só isso, se esgotaria em uma análise psicológica, quer essa se realize com o es-
tilo mecânico de urna psicofisiologia, quer se realize com o estilo de uma busca significativa. Mas
o sonho é, sem dúvida, outra coisa que não uma rapsódia de lmagens, pela simples razão que é
uma experiência imaginária; e se ele não se deixa esgotar, como vimos, por uma análise psico-
Iógica, é porque pertence também à teoria do conhecimento' (DEl, S0-81). * Foucault valoriza
o esforço do pensamento lreudiano em liberar o evolticionisnto de seus supostos naturalistas e,
desse modo, abrir-se à dimensão histórica da existência (MMPE, 37; MMPS, 37). "Mas nenhu-
ma forma de psicologia deu mais importância à significação que a psicanálise. Sem dúvida, ela
permanece ainda ligada, no pensamento de Freud, às suas origens naturalistas e aos preconcei-
tos rnetafísicos ou morais que não cessam de marcá-las. Sem dúvida, há, na teoria dos instintos
(instinto de vida ou de expansão, instinto de morte e de repetição), o eco de um mito biológico
do ser hurnano. Sem dúvida, na concepção da enfermidade como regressão a um estágio anterior
do desenvolvimento afetivo, reencontra-se um velho tema spenceriano e os fantasmas evolucio-
nistas dos quais Freud não nos exime, mesmo em suas implicações mais duvidosas. Mas a his-
tória da psicanálise fez, ela mesma, justiça a esses elementos retrógrados. A importância histó-
rica de Freud provém, indubitavelmente, da própria impureza de seus conceitos: é dentro do
sistema freudiano que se produziu essa grande transformação da psicologia; é no curso da refle-
xão freudiana que a análise causal transtbrmou-se em gênese das significações, que a evolução
deu lugar à história, e que o recurso à natureza foi substituído pela exigência de analisar o meio
cultural" (DEl,l27-128). * Depois, nos anos em que Foucault se encontra imerso no mundo da
literatura (Roussel, Bataille, Blanchot, Artaud) e fascinado por esse "modo de ser da Iinguageml
a Íigura de Freud aparece junto com
a de Nietzsche e a de Marx. Por um lado, Freud teria redes-

coberto uma dimensão da linguagem da loucura que o aproxima à experiência de Nietzsche ou


ao estatuto que a linguagem tem nas obras de Artaud ou Bataille. Com Freud, a linguagem da
loucura deixou de ser blasfêmia proferida ou significação intolerante. A palavra da loucura
aparece como uma palavra que se envolve sobre si mesma e diz, por debaixo do que diz, outra
coisa, da qual ela é, ao mesmo tempo, o único código possível. Freud náo descobre que a
loucura está inserida na rede das significaçõe.s comuns da linguagem de todos os dias, auto-
rizando, assim, a platitude do vocabulário psicológico. "Freud não descobriu a identidade
perdida do sentido; ele delimitou a Írgura que irrompe de um signilicante que nâo é absolu-
tamente como os outros" (DEl, 417 -418). * "se se decifra na correspondência de Freud suas

FREUD, Sigmund 1BI


perpétuas preocupações desde o momento em que descobriu a psicanálise, podemos pergun-
tar-nos se a experiência de Freud não é, no fundo, bastante semelhante à de Nietzsche. O que
se questiona no ponto de ruptura da interpretação, nessa convergência da interpretação a um
ponto que a torna impossír,el, é aquilo que bem poderia ser algo assim como a experiência da
Ioucura" (D81,570-571). Por isso, emHistoire de lafolie,o nome de Freud aparece frequen-
temente junto ao de Nietzsch e (HF , 47 , 209, 438). * Nessa linha, a da oposição entre o modo
de ser da linguagem e a existência do sujeito, Freud e a psicanálise, junto com a literatura, o
estruturalismo e a preocupação do pensamento contemporâneo pelo formalismo fazem par-
te do movimento das'tontra ciências humanas'l da dissolução do sujeito (MC,385-386). AIém
das considerações de Les mots et les choses, nessa linha situa-se também a intervenção
"Nietzsche, Freud, Marx" (D81,564-579). Esses pensadores modificaram profundamente o
espaço de repartição no qual os signos podem ser signos (DEl, 568). * Em um segundo mo-
mento, quando começa a analisar as formas modernas do poder, a posição de Foucault a
respeito da psicanálise como prática se torna cada vez mais crítica. La volonté de savoir pode
ser lida como uma arqueologia da psicanálise; mais precisamente, "a história do dispositivo de
sexualidade, tal como se desenvolveu desde a época clássica, pode valer como uma arqueologia
da psicanálise" (HS1, 172).Yer: Sexualidade. Como sabemos, para levar a cabo essa história
do dispositivo de sexualidade, Foucault critica a noção de repressão (ver: Poder). Como con-
sequência disso, a psicanálise aparecerá não como uma forma de liberação, mas de normali-
zação, uma forma que não é senão uma das transformações da pastoral da carne. "Freud
transferirá a confissão da rígida retórica barroca da Igreja ao relaxado divã do psicanalista'
(D83,675). Claramente, a análise de Foucault mostra que Freud não só não descobriu a se-
xualidade infantil nem tornou possível falar da sexualidade, mas Freud ressituou o sexo em
um dos pontos decisivos marcados pela estratégia de saber e de poder do século XVIII, e, na
opinião de Foucault, o fez cont uma eficácia admirável, 'digna dos maiores espirituais e direto-
res da época clássica" (HS1,210). Yer: Confissao * Nesse momento, foi importante a influência
da obra de Deleuze e Guattari, IAnti-Oedipe.Yer Deleuze. * Foucault expressa a inadequa-
ção dos conceitos de Freud para pensar os problemas atuais e inclusive a necessidade de libe-
rar-se dele. Freud não é suficiente para nos permitir compreender o poder (DE2,313). É
necessário liberar-se de Marx e de Freud, dessacralizar esses personagens; eles nào nos seryem
para pensar os novos problemas, nem para criar novas categorias. Lacan tampouco. A noção
de repressão é inadequada, assim como o conceito de superego, nas análises políticas (DE2,
779-781). No entanto, à luz da análise foucaultiana do poder, a metáfora da liberação não é
apropriada para pensar apráticapsicanalítica (D82, 813-814). * Para sermos precisos, essa
apreciação crítica da psicanálise não é nova na obra de Foucault. Já Histoire de la folie se
movia nessa direção. 'Assim, enquanto o doente mental está inteiramente alienado na pessoa
real de seu médico, o médico dissipa a realidade da doença mental no conceito crítico de
loucura. Desse modo, nada fica, fora das formas vazias do pensamento positivista, a não ser
uma única realidade concreta: o par médico-paciente no qual se resumem, se atam e se desa-
tam todas as alienaçÕes. É nessa medida que toda a psiquiatria do século XIX converge real-
mente a Freud, o primeiro que aceitou em sério a realidade do par médico-paciente [. . . ] Freud
deslocou para o médico todas as estruturas que Pinel e Tuke haviam disposto no internamen-
to. Ele libertou o enfermo dessa existência asilar em que o haviam alienado seus'liberadores';

182 FREUD, sigmund


mas não o libertou do que havia de essencial nessa existência; ele reagrupou os poderes dessa,
contraiu-os ao máximo, ligando-os às mãos do médico; ele criou a situação psicanalítica, onde,
por um curto-circuito genial, a alienação se torna desalienante, porque, no médico, ela se

converte em sujeito. O médico, como figura alienante, continua sendo a chave da psicanálise.
É, talvez, porque ele não suprime essa estrutura última e porque a ela refere todas as outras,
que a psicanálise não pode e náo poderá escutar as vozes da desrazáo, nem decifrar por si
mesmo os signos do insensato. A psicanálise pode desatar algumas formas da loucura; a psi-
canálise permanece estranha ao trabalho soberano da desrazão. Ela não pode nem liberar nem
transcrever, muito menos explicar, o que há de essencial nesse trabalho" (HF, 630-632). Como
vemos, trata-se de uma apreciação da psicanálise desde o ponto de vista do dispositivo, das
práticas. "Quero me manter na situação de exterioridade frente à instituição psicanalítica,
ressituá-la em sua história, dentro do sistema de poder que lhe subjaz. Eu não entrarei nunca
dentro do discurso psicanalítico para dizer: o conceito de desejo em Freud não está bem
elaborado ou o corpo dividido de Melanie Klein é uma estupidez. Isso não o direi nunca. Mas
*
digo que nunca o direi" (DE2, 815). Em um terceiro momento, quando Foucault empreen-
de o estudo das práticas de subjetivação, a genealogia do homem de desejo, a psicanálise se
enquadrará na oposição aphrodísialsexualidade. Yer: Aphrodísia, Sexualidade, onde o
ponto de vista das práticas se estende do disciplinar às técnicas de subjetivação.Yet: Lacan.
Fundador de discursividade. Freud, como Marx, pode ser considerado como fundador de
esÍá de'
discursividad eYer: Discurso. Artemidoro. o primeiro capítulo de Le souci de soi
Freud, em
dicado àA chove dos sonhosde Artemidoro. Ainda que ali Foucault náo mencione
outro lugar assinala: 'A interpretação que [Artemidoro] dá dos sonhos vai ao encontro da

interpretação de Freud" (D84,174). Ver também Psicanálise'


152, 244, 310. AS, 136, 252. DEl, 69,70-72,74'79-80, 94, 96-98' 1 l7' 127 -129,134',
sigmund Frcud [4I2J: AN, 96, 100,
564,566-574,576-580' 654' 658-659' 775',
t42,153-1,54,158, I68, 170,233, 342,401,417 420,440-443,445,447,500-501,559,
785,804-807, 809, 816-818, 820. DE2, 72, 80, 36-87, 106, 1 12, 130-131, 159,184,221 222,226,281,31'2'374'377 '417 '474'553'
317 -320'323' 381
562,620,639,662,759,77g,781,813,815, 826. DE3, 52, 104 105, 132- 133, 147,149,171"293,313-315' '394'
-198,258,324-325,335,433-435'7 11'750' 802'}{F' 47
396, 487, 553-555, 557, 558, 568, 590, 6 75,699,788.Dr.4,174,183, lg7 '
IDS'
72,473,61.6,629,631,636-637,644,646. HS,31,41,443. HSl, 1 I -12,71, 76,157 199' 209-210', 15',
209,388,428,438,4 '172'
20. MC,89,311-31 2,339,371-372,386.MMPF,,23-26,29,31 32,37'39'41,43-46,48,84,86-87, 111. MMPS,23-26'29'31 32'
231, 295, 310, 323, 330, 336.
37 -3g,41,43 46'48,82,96'97,99, 102, 105. NC, 202. oD,67.PP,100, 137, 166, ],69,219,230

FREUD, Sigmund 183


r6ü GALENO (12e-2oo)

Foucault ocupa-se particularmente de Galen o em Le souci de soi, o terceiro volume


de Histoire de la sexualité, a propósito da questão do corpo e do regime dos aphrodísia
na cultura helenística do cuidado de si mesmo (H53, 127-156). Em Galeno, os aPhro-
dísia aparecem situados em três planos diferentes: ancorados na ordem da providência
demiúrgica; situados em um jogo de relações complexas e constantes com o corpo; e
aparentados com um conjunto de doenças (HS3, 133). Com base nesses três planos de
inserção, o pensamento médico de Galeno mantém uma posição ambivalente acerca dos
aphrodísia. Por um lado, esses são objetos de uma valoração positiva: a conjunção sexual
é algo natural que não pode ser considerada como mal. Mas, por outro lado, a dinâmica
dos aphrodísia causa inúmeros perigos para o sujeito (a violência involuntária do ato, o
dispêndio indefinido de esperma que produz um esgotamento) e isso torna necessário
um regime adequado (HS3, 134-135). Por isso, Galeno lembra um efeito positivo da
abstenção (HS3, 143-144). Os atos sexuais devem estar submetidos a um regime extre-
mamente cauteloso (que deve levar em conta a idade, o temperamento dos indivíduos, o
momento favorável, as condições da procriação); contudo, esse regime não é um sistema
de prescrições sobre a forma natural ou legítima das relações sexuais, mas sobre as con-
diçôes do uso dos prazeres (HS3, 147). * Foucault também aborda a questão daparresía
no Tretado das paixões de Galeno (H5,370-374,378-389), porque para Galeno não se
trata de apenas curar as enfermidades, mas as paixões e o erro (HS3, 72).
Galien 1131):D84,217,356,358,792.H5,102,249,258,364,370,37 4-37 6,378-382,387 -389, 391. HS2, 6.1. HS3, 68,
72,119,127-t34,136-137,t39,t44,r47,149,151-152, 154-1s5, i59-165,277.OD,66.pp,t97,221,245,259,26t.

i i+. GENEALOGIA (Genealogie)

Fala-se de um período genealógico de Foucault parafazer referência àquelas obras dedi-


cadas à análise das formas de exercício do poder. A diferença do que ocorre com a arqueologia

184 GATENo (Généatogie)


ecom a noção de episteme, Foucault não escreveu uma obra metodológica a respeito da ge-
nealogia, como sucedeu comlhrchéologie du savoir.Existe, contudo, uma série de princípios
nretodológicos para abordar a análise do poder, que errcontramos, especialmente , em Surveil-

ler et punir e "Il faut défendre la société"; ocupamo-nos deles no verbete Poder. É necessário
precisar que não devemos entender a genealogia de Foucault como uma ruptura e, menos
ainda, como uma oposição à arqueologia. Arqueologia e genealogia se apoiam sobre um
pressuposto comum: escrever a história sem referir a análise à instância fundadora do sujeito
(DE3, 147). No entanto, a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampiiação do carnpo
de investigação para incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e,
sobretudo, a relação nào discursividade/discursividade. Em outras palavras, para analisar o
saber em termos de estratégia e táticas de poder. Nesse sentido, trata-se de situar o saber no
âmbito das lutas. Uma apreciação correta do trabalho genealógico de Foucault requer seguir
detalhadamente sua conÇepção das relações de poder (ocupamo-nos disso nos verbeÍes Poder
e Governo). As lutas não são concebidas, finalmente, como uma oposição termo a terrno que
as bloqueia, como um antagonismo essencial, mas como ttm agonismo, uma relação, ao mes-
mo tempo, de incitaçáo recíproca e reversível (DE4,238). Nessa perspectiva, se poderia Íâlar de
*
uma genealogia dos saberes no âmbito do que Foucault chama governamentalidade. Quanto
à marca nietzschiana da genealogia de Foucault, ocupamo-nos dela no verbeteNietzsche. On-
tologia histórica. Todo o projeto filosóf,co de Foucault pode ser visto em ternlos de uma
genealogia que teria três eixos: uma ontologia de nós mesmos em nossas relações com a ver-
dade (que nos permite constituir-nos como sujeito de conhecimento); uma ontologia históri-
ca de nós mesmos em nossas relações corr um campo de poder (o modo como nos constittt-
ímos como sujeito que atua sobre outros); e uma ontologia histórica de nós mesmos em
nossas relações com a r-noral (o modo como nos constituímos como sujeito ético, que atua
sobre si rnesmo) (DE4, 618). Antropologizaçáo. A antropologizaçáo da história se opõe ao
descentramento operado pela genealogia nietzschiana; ela busca, com efeito, um fundamento
originário que faça da racionalida de o télos da Hurnanidade (AS, 22-23) . Critico/genealó-
gico. Em llordre dtr discours,Foucault propõe distinguir dois conjuntos de análise no traba-
tho que projeta no Collêge de France: um crítico e ouiro geneaiógico. O conjunto crÍtico põe
ern luncionamento o princípio de inversão (renversemenÍ): ver nas figuras do autor, da dis-
ciplina, da vontade de verdade um jogo negativo de recorte e rarefação do discurso e não uma
função positiva. O conjunto genealógico, por sua vez,põe em funcionamento as outras três
regras metodológicas propostas: o princípio de descontinuidade (tratar os discursos cotno
práticas descontínuas, sem supor que sob os discursos efetivamente pronunciados existe outro
discurso, ilirnitado, silencioso e contínuo, que é reprimido ou censurado); o princípio de es-
pecificidade (considerar os discursos como una violência que exercemos sobre as coisas, não
há providência pré-discursiva); o princípio de exterioriclade (não ir ao núcleo interior e es-
condido do discurso, o pensamento, a significação; dirigir-se às suas condições externas de
surgimento) (OD, 54-55). 'A genealogia estuda a formação, ao mesmo tempo, dispersa, des-
contínua e regular [dos discursos]" (OD, 67). Essas duas práticas, crítica e genealógica, não
são na realidade separáveis; não se trata de dois domínios distintos, mas de duas perspectir,as
de análise.'A parte genealógica da análise se concentra, pelo contrário, nas séries de tbrmação
efetiva dos discursos, trata de apreendê-lo em seu poder de afirmação. E entendo com isso

GENEALOGIA lGenéaloqie) 185


não um poder que se oporia ao de negar, mas o poder de constituir domínios de objetos, a
propósito dos quais se poderá afirmar ou negar as proposiçÕes verdadeiras ou falsas" (OD,
7l-72). Alma. Surveiller et punir é "uma genealogia da'alma moderna' (SP, 34). Almeja
mostrar como a alma é permanentemente produzida em torno, na superfície do corpo pelo
funcionamento do poder que se exerce sobre ele. "Essa alma real e incorporal não é uma
substância; ela é o elemento onde se articulam os efeitos de certo tipo de poder e a referência
de um saber, a engrenagem pela qual as reiações de poder dão lugar a um saber possível e o
saber recondu z e reforçaos efeitos de poder" (SP, 34). História da sexualidade. Ela é uma
genealogia de como os indivíduos foram conduzidos a exercer sobre si mesmos e sobre os
outros uma hermenêutica do desejo, isto é, de como se formou a experiência moderna da
sexualidade. Isso concerne especificamente a La volonté de savoir. Os dois últimos volumes,
por sua yez, tentam levar a cabo uma história dos jogos de verdade, isto é, daqueles jogos de
verdade que permitem ao homem pensar o próprio ser (HS2, 11-13). Aqui, Foucault distingue
entre a dimensão arqueológica e a dimensão genealógica da investigação. A
primeira ocupa-se
do homem. A segunda, de sua formação
das formas de problematização: como é pensado o ser

a partir das práticas e de sua transformação. Desse modo, incorporando genealogia das
a

púticas de si mesmo, todo o projeto da história da sexualidade pode ser considerado uma
genealogia do homem de desejo (HS2, 18). Ética. os últimos volumes de
Hístoire de la se-
xualité e também Lherméneutique du sujet podem ser vistos como uma genealogia da ética,
Na intervenção no
isto é, do sujeito como sujeito de ações éticas (D84,397).Interpretação.
colloque de Royaumont, em julho de 1964, "Nietzsche, Freud, Marx" (DEl, 564-579)'
Foucault aborda a genealogia como método de interpretação. Ver: Nietzsche'
História' Em
um extenso artigo, "Nietzsche, la généalogie, l'histoire" (D82, 136- 156), Foucault
ocupa-se

de situar a genealogia de Nietzsche com relação às concepções da história. Yer Nietzsche.


Arqueologia. "[,..] minha arqueologia deve mais à genealogia nietzschiana que ao estrutura-
lismo propriamente dito" (DEf ,599). Anticiência/erudição. A genealogia não opõe a multi-
plicidade concreta dos fatos à unidade abstrata da teoria. Não é um empirismo ou um positivis-
mo no sentido ordinário do termo. EIa tenta, antes, opor os saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-1os,
hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro. Nesse sentido, as ge-
nealogias sáo onticiênclas. "Não que elas reivindiquem o direito lírico à ignorância e ao não
saber, não que se trate do rechaço ao saber ou da inscrição dos prestígios de uma experiência
imediata, não captada ainda pelo saber. Não é disso que se trata, trata-se da insurreição dos sa-
beres; não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma
insurreição, em primeiro lugar e antes de tudo, contra os efeitos de poder centralizadores que
estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado dentro de
uma sociedade como a nossa" (DE3, 165, IDS, 10). "Chamemos, se vocês querem, genealogia
o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a
constituição de um saber das lutas e a utilização desse saber nas tácticas atuais" (IDS, 9-10). 'A
genealogia seria, então, em relação ao projeto de inscrição dos saberes na hierarquia do poder
próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e
torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico
unitário, formal e científico' (IDS, I l). História das ciências. A história das ciências situa-se

I86 cENEAtoclA lGénéalogie)


sobre o eixo conhecimento-verdade, o eixo que vai da estrutura do conhecimento à verdade. A
genealogia dos saberes, por sua vez, situa-se sobre o eixo discurso-poder, práticas discursivas-
enfrentamentos de poder (IDS, 159). Modernidade. Foucault aborda a Modernidade como
um éthos (Yer: Éthos);tal éthos comporta uma atitude crítica, de análise dos lirnites. Essa críti-
ca é arqueológica no seu método (ocupa-se dos discursos como acontecimentos históricos) e
genealógica em sua finalidade: "Não deduzirá da forma do que soilos o que nos e impossível
fazer ou conhecer, mas extrairá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de
não ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos" (DE4, 574). Não se trata de levar
a cabo uma genealogia da Modernidade, mas da NÍoderiridade como questão (DE4, 68i).
Genealogie [2]: DEl,5ó7. IDS, 117.

Géúalogie Il85J: AN,39,53, 56,89,219,258, 266,270,275,298,301. AS,22-23,235. DEI.334, -550,563,567,


572,577 578, s95.599, 613,672,696.DE2, J3, 13(,'138, I10-1.11, 1,+3'148, 150 15'1, 1s6,2{J1,371, 447,152, s.14,544,
550-551, 75-3,808,815. DE3,29,39, 104-r05, 145,117. t65 168,235,122,573,590,605. DE4. 19-21, t70-171,383,386,
393,397,406,D),541,546,595,609,61{:1,626,674,681,102,731. HF,393,558. HS,180. HSr, 156, 15S. HS2, 1l-12,
1819,189.IDS,9-13,58,62,66,68,r0.1,12r,125,147,149.1s9,170.NIC,t00,124,292,316.NC,4.OD,67.Pp,,11,
80, 239. SP, 27,34. 191,205,225.

:;* GÊNIO (Genie)

Como explicação psicológica das mudanças na história do saber, a arqueologia poe entre
parêntesis a noção de gênio, assim como as categorias de crise da consciência ou novas formas
do espírito (AS, 32; DEl,677).
Génie[97]:AN,99.AS,32,S5,191,27-1.DEI,82,1t7,192.197,2t5,327 328,419,461.461'596,677.684,693-691'
l. DE2, I l, I ó6, 168, 223,264 266,316, 394, 485-186 , 491,523,722. D83,203,240,175,573. DE4. 113,259-260,646.
8 1

HF,40, 181,209-210,339,431,439 4.10, 144,546,614,642. HS,26,102. HSl, 104, 210'244. IDS, 156. MC,t26'23),
242. MMPE,37. MMPS, 17. NC,28, 18,49,84, 102. oD, .10. RR,99, 102. SP,219' 253' 314.

: ; :. GNOSTICISMO (Gnosis, G nosticisme)

Foucault não se ocupou por.rtualmente da problemática do gnosticismo. Como se pode ver


no verbete Cuidado,sua preocupação foi servir-se da noção de cuidado de si para levar a cabo
uma leitura dos textos da Antiguidade clássica e helenística desde o ponto de vista das práticas
de si mesmo. Foucault certra-se no Alcibiades I e estende a análise até o início do cristianismo
e as elaborações ascéticas do monasticismo cenobítico. Nesse percurso, há uma tese que domina
o marco da interpretaçáo de Foucault: o acesso à verdade requer um trabalho do sujeito sobre si
mesmo, uma série de práticas como a anachóresis ou ameditaçao. Foucault serre-se do conceito
de espiritualidade para fazer referência, em termos gerais, a esse trabalho de transformação. Pois
bem, a gnose pode aparecer como a grande objeção histórica a essa tese. O próprio Foucault se dá
conta disso em Lherméneutique du sujet (ÍJ.S, l8). "Mas a gnose, e todo o rnovimento gnóstico, é
precisamente um movimento que sobrecarrega o ato de conheclmento, [ao qual] se dá, com efeito,
a soberernia r1o acesso à verdade. Sobrecarrega-se o ato de conhecimento de todas as condições,

GNOSTICISMO (Gnosis, Gnostlclsme) 187


de toda a estrutura de um ato espiritual. A gnose é, em suma, o que tende sempre a transferir, a

transportar ao ato mesmo de conhecimento as condições, as formas e os efeitos da experiência


espiritual" (HS, l8). * O 'platonismo i entendido como a identificação do retorno a si e da memória
da verdade, foi retomado, dentro e fora do cristianismo, pelos movimentos gnósticos. Ante esse
modelo, o cristianismo desenvolveu outro, o modelo exegético. Aqui, o conhecimento de si não
tem a forma da memória do ser do sujeito, mas do trabalho de deciframento dos movimentos
da alma. "Creio que esses dois grandes modelos, platônico e cristão ou, se quiserem, modelos da
reminiscência do ser do sujeito por ele mesmo e a exegese do sujeito por ele mesmo, dominaram
o cristianismo e foram transmitidos pelo cristianismo a toda a história da cultura ocidental" (HS,
246). * A ascese estoico-cínica não tem nenhuma vocação de ser particularmente cristã. Ela foi
retomada pelo cristianismo para fazer frente à tentação gnóstica (HS, 403).
Gnose [18]: DEr,326. HS, 18,26,246,395,402 403.

Gnosticisme [4]: DEl, 295-296. HS, 25.

Gnostique [10]: HS, 3, 18, 26, 246,402-403.

Gnôsis [1],Il5,26.

:,r= GOETHE, Wolfgan g (17 4e-1832)

Yer: Fausto.
Wo$gang Goethe [15]:DF,|,191, 365, 555-556, 562.D82,17. DE3,700. DE4,25l.H.S' 60,296'297' 300. HSr,4l.

: :=. GOVERNO, GOVERNAR, GOVERNAMENTALIDADE


(Gouvernement, Gouverner, Gouvernamentalité)

É impossível fechar o balanço da análise foucaultiana do poder enquanto não for publica-
da a totalidade dos cursos no Collêge de France que Foucault ministrou entre 1970 e 1982.
Poder-se-ia reunir esses cursos em três grupos. O primeiro, constituído pelos cursos cujo
material foi utilizado para a redação de Surveiller et punir e de La volonté de savoir: La
volonté de savoir (1970-1971), Théories et institutions pénales (1971-1972), La société
punitive (1972-1973), Le pouvoir psychiatrique (1973-1974), Les anormaux $97a-D75).
O eixo de trabalho desse grupo de cursos foi, fundamentalmente, a história moderna das
disciplinas, mas Foucault se encaminha da disciplina à biopolítica e abre desse modo o capí-
tulo mais amplo do biopoder. Com efeito, tal como aparece no último capítulo de La volonté
de savoir, as sociedades modernas não são apenas sociedades de disciplinarização, mas tam-
bém de normalização, dos indivíduos e das populaçoes. O segundo grupo de cursos está for-
madopor:"I1fautdéfendrelasociété" (1975-1976),\écurité,territoireetpopulation(1977-
1978),Naissance de lq biopolitique (1978-1979),Du gouvernement des vivants (1979-1980).
O eixo temático desses cursos está constituído, de maneira geral, pela biopolítica em um duplo

I BB GoETHE, wolfgang
sentido: como poder de vida e de morte. Poder sobre a vida, isto é, as Íbrmas de exercício do
poder que surgem a partir do que Foucault denomina o umbral biológico da Modernidade
(HSl, 188), ou seja, desde o momento em que o homem como animal vivente adquire uma
existência política, quando a vida biologicamente considerada converte-se no verdadeiro
objeto do governo. Poder sobre a morte, isto é, o racismo, cuja genealogia Foucault estuda em
"ll faut défendre la société". Nesse domínio de estudo, encontramos o exame d,a razào d.e
Estado, da polícia, do poder pastoral durante a época da Reforma. A partir daqui, as noções
de governo e de governamentalidade dominam a análise foucaultiana do poder. No terceiro
grupo, encontramos: subjectivité et vérité (1980-19g1), Lherméneutique du sujet (1gg1-
1982), Le gouuernement de soi et des autres (1982-1983), Le gouvernement de soi et des
autres: Le courage de la vérité (1983-1984). Parte desse material foi utilizado para a redação
dos volunres II e IIi de Histoire de la sexualil1. Esse terceiro grupo de cursos ocupa-se da
noção de governo de si mesmo e dos outros durante a Antiguidade clássica, helenística e ro-
mana até as primeiras formas do poder pastoral com o advento do cristianismo, especialmen-
te, o monasticismo cenobítico. A noção de governo entrecruza-se aqui com a história da ética,
no sentido foucaultiano do termo, quer dizer, com as formas de subjetivaçâo (a noção de
cuidado, de ascese, de parresía, etc.). Como dissemos, até que seja completada a publicação
um balanço desse material. É possível, no entanto, traçar
clesses cursos, não e desejável fechar
o quadro geral das análises de Foucault. * Podemos dizer que, a partir dos anos 1970, o inte-
resse de Foucault deslocou-se do eixo do saber para o eixo do poder e da ética. A tais desloca-
mentos corresponde a divisão, frequente, de dois ou três períodos na obra de Foucault: arqueo-
logia e genealogia, ou arqueologia, genealogia e ética. A tais deslocamentos corresponde
também seu interesse e preocupação por certas noções características de seu trabalho: epis-
teme, dispositivo e prática. Esse é certamente um modo correto de enfocar o trabalho de
Foucault, na condição, no entanto, de que não se acentuem demasiadamente tais deslocamen-
tos. Por deslocamentos não entendemos abandonos, mas sim extensões, ampliações do cam-
po de análise. Corn efeito, a genealogia não irbandonará o estudo das formas de saber, nem a
etica abandonará o estudo dos dispositivos de poder, mas cada um desses ârnbitos será reen-
quadrado em um contexto mais amplo. A noção de dispositivo incluirá a noção de episteme,
e a noção de prática incluirá a noção de dispositivo. Todo o trabalho de Foucault poderia ser
visto como uma análise fllosófico-histórica das práticas de subjetivaçáo. "Náo é o poder [e po-
deríamos acrescentar, nern o saber], mas o sujeito o que constitui o tema geral de minhas
investigaçÕes" (DE4, 223). Essas práticas de subjetivação, é necessário precisá-lo, são também
formas de objetivação, isto é, dos modos em que o sujeito foi objeto de saber e de poder, para
si mesmo e para os outros. No artigo que Foucault escreve com o pseudônimo "Maurice Flo-
rence'l para o Dictionnaire des philosophes, de D. Huisman (19S4), reirnpresso em DE4,
631-636, concluiu nestes termos. "Vê-se como o tema de uma'história da sexualidade'pode
inscrever-se dentro do projeto geral de Michel Foucault: trata-se de analisar a'sexualidade'
como um modo de experiência historicamente singular na qual o sujeito é objetivado, para
ele mesmo e para os outros, através de certos procedimentos precisos de governo"' (DE4,
636). Essa afirmação, referida aqtriàHistoire de la sexualité,pode ser estendida a todo seu
trabalho. " As noções de governo e de governamentalidade nos permitem compreender por
que e o sujeito, e não o.saber ou o poder, o tema geral das inr.estigações de Foucault. Pois bem,

GoVERNO,GOVERNAR,GOVERNAMENTALIDADE(Gouvernement,Gouverrter,Gouvernamentalité) 189
os deslocamentos aos quais aludimos acima não respondem apenas a uma lógica da ampliação,
mas também a certas dificuldades teóricas precisas. O deslocamento-inclusão da noção de
episteme na noção de dispositivo responde à necessidade de incluir o âmbito do náo discur-
sivo na análise do saber. A formação das ciências humanas, por exemplo, já não será somente
consequência de uma disposição epistêmica, mas encontrará nas práticas disciplinares sua
condição histórica de possibiiidade. Do mesmo modo, a importância das noções de governo
e governamentalidade será uma consequência das insuficiências dos instrumentos teóricos
para analisar o poder. Foucault criticou alguns deles (o conceito de repressão, de soberania)
e,em "Il faut défendre ia société", pôs à prova o que denomina a "hipótese Nietzsche'l isto é,
opoder concebido como "luta'l como 'guerra i Dada a influência que Nietzsche representa no
pensamento de Foucault, poder-se-ia extrair uma conclusão errônea: crer que a posição de
Foucault acerca da questão do poder acaba reduzindo-se à "hipótese Nietzsche'i A questão da
liberdade conduz Foucault a outra conclusão (ver: Poder). "O poder, no fundo, é menos da
ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do compromisso de um frente a outro que
da ordem do governo [. . . ] O modo de relação próprio r1o poder não há, pois, que buscá-lo, do

lado da violência luta,


e da nem do lado do contrato ou do nexo voluntário (que, no máximo,
só podem ser instrumentos), mas do lado desse modo de ação singular, nem guerreiro nem
jurídico, que é o governo" (D84,237). Desde esse ponto de vista, se poderia afirmar que o
quadro geral das investigaçÕes de Foucault foram as práticas de governamentalidade que
constituíram a subjetividade ocidental. Deste modo, situamos as noções de governo e de go-
*
vernamentalidade no centro da obra de Foucault. Quanto à noção foucaultiana de governo,
ela tem, para expressá-lo de alguma maneira, dois eixos: o governo como relação entre sujei-
tos e o governo como relação consigo mesmo. No primeiro sentido, "ele é um conjunto de
/ ações sobre ações possíveis. Ele trabalha sobre um campo de possibilidade aonde vem inscre-
ver-se o comportamento dos sujeitos que atuam: incita, induz, desvia, facilita ou dificulta,
estende ou limita, torna mais ou menos provável, no limite, obriga ou impede absolutamente.
Mas ele é sempre uma maneira de atuar sobre um ou vários sujeitos atuantes, e isso na medi-
da em que atuam ou são suscetíveis de atuar. Uma ação sobre ações" (D84,237). Trata-se, em
definitivo, de uma conduta que tem por objeto a conduta de outro indivíduo ou de um grupo.
Governar consiste em conduzir condutas. Foucault quer manter sua noção de governo a mais
- , ampla possível. Mas, no segundo sentido, é também da ordem do governo a relação que se
pode estabelecer consigo mesmo na medida em que, por exemplo, se trata de dominar os
prazeres ou os desejos (HS2, 95). Foucault interessa-se particularmente pela relação entre as
formas de governo de si e as formas de governo dos outros. Os modos de objetivação-subjeti-
; vação situam-se no entrecruzamento desses dois eixos. Isso vale, sobretudo, para seus trabalhos
' sobre a ética antiga e sobre o poder pastoral. Governamentalidade. Foucault utiliza o termo
"governamentalidade" para referir-se ao objeto de estudo das maneiras de governar. Encon-
tramos, em consonância com os eixos da noção de governo que mencionamos, duas ideias de
governamentalidade. Em primeiro lugar, um domínio definido por: 1) O conjunto constituído
,' pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer
essa forma de exercício do poder que tem, por objetivo principal, a população; por forma
central, a economia política; e, por instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança.
2) A tendência, a linha de força que, por um lado, no Ocidente, conduziu à preeminência

19 0 GoVERNo, covERNAR, GoVERNAMENTALID ADE (Gouvernement, Gauverner, Gouvernamentalité)


desse tipo de poder que é o governo sobre todos os outros: a soberania, a disciplina, e que, poÍ
outro, permitiu o desenvolvimento de toda uma série de saberes. 3) O processo, ou melhor, o
resultado do processo, pelo qual o Estado de justiça da Idade Média converteu-se, durante os
séculos XV e XVI, no Estado administrativo e finalmente no Estado governamentalizado
(D83, 655). O estudo das formas de governamentalidade
implica, então, a análise de formas
de racionalidade, de procedimentos técnicos, de formas de instrumentalizaçao. Trata-se,
nesse Çaso, do que se poderia chamar de "governamentalidade polítical Em segundo lugar,
Foucault chama "governamentalidade" "[...] ao encontro entre as técnicas de dominação
exercidas sobre os outros e as técnicas de si" (DE4, 785). Nesse sentido, o estudo da governa-
rnentalidade não pocle deixar de lado a relação do sujeito consigo mesmo (HS, 241). * O es-
tudo das relações entre o governo dos outros e o governo de si, no marco da governamentali-
dade, pernrite, por outro iado, a articuiaçáo das estratégias de resistência (ver: Resistência).
Artes de governar. A análise da governamentalidade abarca, então, em um sentido muito
amplo, o exame do que Foucault denomina as artes de governar. Essas artes incluem, em sua
máxima extensão, o estudo do governo de si (ética), o governo dos outros (as formas políticas
da governamentalidade) e as relações entre o governo de si e o governo dos outros. Nesse
campo, estariam incluídos: o cuidado de si, as diferentes formas da ascese (antiga, cristá), o
poder pastoral (a conlissáo, a direção espiritual), as disciplinas, a biopolítica, a polícia, a razão
de Estado, o liberalismo. Em um sentido mais restrito, Foucault aborda, no curso Securité,
territoíre et population, a noção de governamentalidade e de artes de governar para delimi-
tar um campo de análise que e diferente do gênero 'tonselhos ao Príncipe" e da ciência polí-
tica (DE3, 635). Esse cnrso é particularmente interessante porque a partir dele podemos
delinear as linhas de desenyolvimento do Estado moderno ou o que Foucault chama de for-
mação do EsÍado governamentalizado. Foucault propõe-se a analisar essa literatura da arte
de governar desde meados do século XVI até finais do século XVIII. Várias foram as razões
do surgimento dessa abundante literatura que responde, na realidade, a uma reativaçáo da
questão: 'tomo governar?'1 Existiu, sem dúvida, um retorno do estoicismo, que foi importan-
te; mas as causas, esquematicamente, podern ser reduzidas a duas: o movimento de concen-
tração estatal (o surgimento dos Estados nacionais) e o movimento de dispersáo e dissidência
religiosa (a Reforma) (DE3, 636). Foucault leva em consideraçáo a obra de G. de La Perriàre
(Le rniroir politique, contenant diverses maniàres de gouverner et policer les républiques,
1555) e de François de la Mothe Le Vayer (Ihecononie du Prince,l653). Este último distin-
gue três formas de governo; o governo de si (a moral), o governo da família e da casa (econo-
mia) eo governo do Estado (a política). Apesar dessa distinção, existe uma dupla continuida-
de entre tais formas de governar: uma continuidade ascendente (quem governar o Estado tem
que poder governar-se a si mesmo) e uma continuidade descendente (em um Estado bem
governado, os pais sabem governar a casa, e os indivíduos também se comportam correta-
mente). A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente, e a polícia, a descen-
dente. A problemática de toda essa literatura, não só a de Mothe Le Vayer, consiste, segundo
Foucault, em como introduzir a economia na política. "Governar um Estado será, então,
pôr em funcionamento a economia, unra economia ao nível do Estado inteiro, isso é, com
relação aos habitantes, às riquezas, à conduta de todos e de cada um e ter urna forma de
vigilância, de controle não menos atenta que aquela do pai de família sobre a casa e seus

G OVE R N O, G OVERNAR, G OVE R NAM ENTALI DADE ( Gou ver nement, G ouverner, G ouvernamentalité\ I 9 1
bens [...] O termo'economia designava no século XVI uma forma de governo; no século XVIII,
designa um nível de realidade, um campo de intervenção [. . .]" (D83, 642). Desde esse ponto
de vista, e à diferença dos outros gêneros de governo, o objeto do governo não é o território, mas
a população. "Para dizer as coisas muito esquematicamente, a arte de governar encontra no final
do século XVI e início do XVII uma primeira forma de cristalização. Ela se organiza em torno
ao tema de uma razâo de Estado, entendida não no sentido pejorativo e negativo que se dá hoje
(destruir os princípios do direito, da equidade ou da humanidade apenas pelo interesse do Es-
tado), mas em um sentido positivo e pleno. O Estado deve ser governado segundo as leis racionais
que the são próprias, que náo se deduzem das puras leis naturais ou divinas, nem somente dos
preceitos da sabedoria e da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua própria racionalida-
de, que é de um tipo diferente. Inversamente, a arte de governar, em lugar de ir buscar seus
fundamentos em regras transcendentes, em um modelo cosmológico ou em um ideal f,losófico
e moral, deverá encontrar os princípios de sua racionalidade no que constitui a realidade espe-
cífica do Estado" (DE3, 648). O mercantilismo foi a primeira forma de racionalização do exer-
cício do poder como prática de governamentalidade, a primeira forma de um saber constituído
para ser utilizado como tática de governo. O desenvolvimento dessa primeira forma foi bloqueado,
fundamentalmente, por causa da preocupação em conjugar essa arte de governar com a teoria
da soberania e com a teoria do contrato. No entanto, certo número de circunstâncias, no século
XVII, determina a reativação do gênero "artes de governar": a expansão demográfica, a abun-
dância monetária, o aumento da produçáo agrícola ou, para ser mais preciso, o recentramento
da economia não sobre a família, mas sobre a população (DE3, 650). Daqui se segue uma série
de consequências: desaparecimento do modelo familiar como modelo de governo (a família se

converterá, agora, em instrumento do governo das populações), a população aparecerá como o


objetivo último do governo (melhora da situação da populaçâo, aumento das riquezas, da dura-
ção da vida, melhora da saúde), surgimento de um saber próprio do governo que' em sentido
lato, se chamará "economia polítical "Brevemente, a passagem de uma arte de governar a uma
ciência política, a passagem de um regime dominado pelas estruturas da soberania a um regime
dominado pelas técnicas será levado a cabo, no século XVIII, em torno da população e, em
consequência, em torno ao nascimento da economia polítlca' (DE3, 653). Isso não significa, no
entanto, que se tenha deixado de lado a questão da soberania e das disciplinas. Ambas serão
aprofundadas, mas desde a perspectiva do governo das populações. "De maneira que é necessá-
rio compreender bem as coisas não como uma substituiçáo de uma sociedade de soberania por
uma sociedade de disciplina; depois uma sociedade de disciplina por uma sociedade, digamos,
governamental. Há, de fato, um triângulo soberania-disciplina-gestão governamental cujo ob-
jetivo principal é a populaçào e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança'
(DE3, 654). "Nós vivemos na era da governamentalidade, que foi descoberta no século XVIII"
(DE3, 656). Essa governamentalidade foi formada, segundo Foucault, a partir de três fenômenos:
a pastoral cristã, a técnica diplomático-militar, a polícia. Duas observações para concluir. Assis-
timos, segundo nosso autor, a uma supervalorização do Estado sob o lirismo de um monstro frio
que nos enfrenta ou sob a forma, paradoxal e aparentemente redutora, de uma limitação do
Estado a certas funçoes consideradas essenciais (o desenvolvimento da produção, por exemplo).
Porém, não é o Estado nem a estatização da sociedade o que tem importância para nossa
atualidade, para a Modernidade, e sima governamentalizaçao do Estado. Em segundo lugar,

192 GOVERNO,GOVERNAR,GovERNAMENTATIDADE (Gouvernement,Gouverner,Gouvernamentalité)


Foucault moYe-se com uma tipologia dos Estados que pode ser resumida deste modo: o Estado
de justiça (nascido em uma territorialidade de tipo feudal), o Estqdo administrativo dos sécu-

los XV e XVI (com uma territorialidade de fronteiras e não feudal, que corresponde a uma so-
ciedade de regramentos e disciplinas), o Estado governamental (que tern por objetivo a popu-
lação e não o território, que utiliza um saber econômico, que controla a sociedade por
dispositivos de segurança) (DE3, 656-657). * Pode-se compreender, à luz do que acabamos de
expor, a importância que terá no pensamento de Foucault a questão do liberaiismo desde o
ponto de vista da racionalidade das práticas de governamentalidade.
Gouvernement [622]: AN, 44, 45, 80, 1 53, 165, 198, 201, 217. 260. D82,1 78, 188, 206, 224, 380, 420, 426 4ZB, 433,
435,137,445 416,496,514-5]15,517,584,636,730,757,781,806.DE3,121,126,130,153,214,225,290,323,330,333,351,
362,366,367,383,389,522,529-530,534,542,567,6t6,629,635-657,663-664,667,68r-683,68s 688,691 694,696,70t-705,
708,712-714,716 7 \7,719 720,724,729,748,780-782.,793,798-799,802,804, 807, 814, 819 -820,822-824.Dr4, 36, 38-39,
78, 82,93-94, 125, 129, 144, 148- 154, t60-161, I 78- 180, 2 t0-2 I l, 214-216,226-227,237,211,266-267,269-273,285, 318,
337 -339, 342-344,350, 40 1, 404, 409-4t0, 4t5, 447, 496, 498,504, 5 14, 5 I 9, 566, 583, 587 , 590,596, 623, 630,635-636,640,
670,677 -678,689,69t,719,727 -728,733,734,740,75t-752, 8 16_8 18, 820- 82t,823_824. IjF,57 ,73, 163,444,505,5t6_517 ,

37,39 40, 45,54, t3t,220, ).39,242, 256, 358,364, 370,386,392,433, 439_440. HS2, 68, 84,
530, 539, 554, 555, 578. HS, 34,
88,92,95,97,107,171,,178,180,189-190,1.9t-,199,200,202,238.HS3,98,103,110,151,174.IDi.54,92-94,10-s,l1l-113,
\22-123,126,128, 130, 147, 151-152, 171, 175, 178. 182, t95,197,212.MC.206-207,210. MMPS,77,80. NC, 19,26.38,42,
4s, 65, 73 7 4, 83. PP, 28, 37, 89, 91, 211, 229. Sp, 32, 208, 238, 244-245, 278, 286.

Gouv ernementalisation [4]: DE3, 656-657.

Gouyernementalité [46]: DE3, 635, 655-657 ,720, 819-822. DE{ 94, 214-415, 582,728, 729, 751,785. }{S, 237 ,

24t-242, 256, 391. IDS, 55.

Gouverner [273]: AN, 12,45, 183,201-202.DF-2,313,433,567.D83,23,152, 390, 5 15, 537-538,629-630,635-654,657,

681.694.703.720,722,736.782,820,822.DF4.,30,1.13,151 153,159-160,171,179,213-214,237,271,273,338,395,397,409,582,
615,6t9,671,678,714,72t,728,751,817-81 8, 82 l. HF, 415,539,674,676,687. HS, 34, 35, 37, 40,44-45,51-52,54,70-73, 80,81,
90, 108, 1 14, t22, r3t, t68-169,220,239,257,265,364,386,397,400,430,433,436,440.HS3, 58, 104, r09- 1 1 0,112, tt'.191.,202.
IDS, 1 12, 200, 20s. NC, 87. PP, 164. SP, 171, 83, 8s,88 91, t22, ls6, 169, 17r, 178, 181, 183, lgt,194,196,207,218,238.

ni4. GUERRA(Guerre)

Poder, política, Clausewitz. Nas teorias modernas (a concepção jurídica liberal e a


concepçáo marxista), o poder é pensado sempre a partir da economia, ainda que de diferentes
modos. Para a concepçáo liberal, o poder é uma espécie de bem que de algum modo se cede,
poder político seja pensado em termos de contrato.A teoria do
se possui, se aliena. Daí que o
poder tem aqui uma tbrma econômica. O economicismo aparece na teoria política marxista
de modo diferente. Não se trata tanto da forma do poder, mas de sua função. A economia
apresenta-se como a razão histórica do poder: o poder serve essencialmente para manter as
relações de produção e a dominação de uma classe. Mas isso é necessariamente assim? Con-
trato e dominação são uma análise adequada do poder? Pode-se colocar várias perguntas: 1 )
o poder está sempre em um segundo piano com relaçâo à economia? 2) há que se pensar o
poder como se fosse uma mercadoria? Nas teorias contemporâneas, encontramos duas res-
postas ao problema do poder que tratam de pensá-lo em termos não economicistas. 1) o pocler
concebido como repressão, que Foucault chama a hipotese Reich; e 2) o poder pensado como
combate, luta, enlientamento, que Foucault denomina a hipotese l,lietzsche. Na realidade,

GUERRA (Guerre) 193


essas duas hipóteses não são irreconciliáveis; poderia opor-se à concepçáo moderna clássica,
poder-contrato, uma análise em termos de guerra-repressão. Em "ll faut défendre la société",
o objetivo de Foucault é abordar o poder em termos de guerra, de luta, de combate, isto é,

seguindo ahipótese Nietzsche. Mais concretamente, Foucault pergunta-se pelo discurso que
teria invertido o princípio de Clausewitz, segundo o qual "a guerra é a continuação da políti-
ca por outros meios'i Foucault quer estudar o desenvolvimento histórico do discurso que diz:
'A política éa continuação da guerra por outros meios'l Trata-se, então, de estudar o poder, a
partir desse discurso, em termos de oposição de forças, de enfrentamento, de combate (IDS,
14-19). Hobbes. A hipótese de trabalho de Foucault leva-o a confrontar-se necessariamente
com a teoria hobbesiana da soberania, ou seja, da instauraçáo da soberania como meio para
acabar com a guerra primitiva de todos contra todos. A esse respeito,ver: Hobbes. Guerra
de raças, luta de classe. Pois bem, contrapondo-se à teoria da soberania e à análise em
termos de relaçÕes de dominação, Foucault se pergunta se o conceito de'guerra" (de "tática'l
de "estratégia') é adequado para a análise das relações de poder. Desloca, na realidade, essa
pergunta para uma interrogação histórica acerca de quando e como surgiu o princípio que
Clausewitz teria invertido. Isto é, quando e como surgiu o princípio segundo o qual "a políti-
ca é a guerra continuada com outros meios"? Segundo nosso autor, tal princípio e o discurso
que ele sintetiza, um discurso histórico-político, circularam ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Paradoxalmente, no momento em que, com o fim das guerras religiosas, as lutas e os com-
bates deixaramdefazer parte davida cotidiana dos povos. No entanto, esse teria sido um
momento em que o Estado teria arrogado, a si mesmo, a exclusividade do uso da força or-
ganizada com a criação das instituições militares. Podemos caracterrzar esse discurso his-
tórico da luta, da guerra da seguinte maneira: 1) Um discurso histórico-político cujos repre-
sentantes foram, entre outros, Edward Cook, John Lilburne - na Inglaterra -, H. de Boulainvilliers,
o conde d'Estaing, Augustin Thierry - na França. É um discurso que sustenta 0 caráter bi-
nário da sociedade, em cuja estrutura se é sempre inimigo de alguém; e cujo sujeito de
enunciação não pretende ser o sujeito universal e neutro do discurso filosófico, mas o su-
jeito interessado que está em um dos dois lados que se enfrentam. 2) Consequentemente,
esse discurso vê a racionalidade abstrata como uma quimera, e a verdade, como brutalida-
de e desrazão. Um discurso que inverte os valores. 3) Um discurso, enfim, de perspectiva
(inteiramente histórico, sem relação com nenhum absoluto), que encontra na mitologia
escatológica a força que alimenta seu páthos, sua paixão. Um discurso, ao mesmo tempo,
crítico e mítico. Esse discurso começou a circular na Europa, a partir dos séculos XVI e
XVII, como consequência do questionamento popular e aristocrático do poder real. E, a
partir de então, atravessou os séculos XVIII e XIX. Pois bem, não há que ver a dialética fi-
losófica, cuja forma emblemática encontramos em Hegel, como uma continuação filosófica
desse discurso histórico sobre a guerra. A dialética, antes, tratou de colonizá-lo, codiÍjcan-
do logicamente a contradiçáo, tendo em vista constituir um sujeito universal da história. A
história desse discurso deve descartar, em primeiro lugar, as "falsas paternidades" (o prín-
cipe em Maquiavel, a soberania absoluta em Hobbes). Deve começar pelo discurso de rei-
vindicação popular e da pequena burguesia na Inglaterra do século XVII; depois, na Fran-
ça, no final do reinado de Luís XIV com as reivindicaçoes da nobreza contra a monarquia
administrativa. A partir daqui, é necessário seguir a história do discurso da guerra de raças,

1 94 GUERRA (Guerre)
suas transformações durante a Revolução Francesa, sua conversão biologicista (o racismo
de Estado, momento em que se converte em discurso de Estado). Trata-se, claramente, de
um discurso polivalente, multifacético (40-44). * O elogio do discurso histórico da guerra
como constitutivo essencial da sociedade, mesmo em tempos de ordem e paz, não é um
elogio do racismo. O racismo foi uma de suas múltiplas facetas, aquela que aparece com a
transformação biológico-sociológica de um discurso já secular, com Írns políticos conser-
vadores. O elogio do discurso histórico sobre a guerra é, para Foucault, o elogio de um
certo uso da erudição histórica, de um uso que, em relação a uma concepção "romana'l
"indo-europeia'l constituiu ttma contra-historia. Segundo Foucault, o sistema indo-europeu
de representação do poder está atravessado por uma dupla exigência ou dimensão. Por um
lado, através da obrigação, o poder une, vincula; por outro, mediante os juramentos ou os
compromissos, o poder fascina. lúpiter é, ao mesmo tempo, o deus dos nexos e dos raios' A
história da soberania, discurso do poder, é, nesse sentido, uma história jupiteriana. Três fun-
çÕes vinculam o uso jupiteriano da história ao poder: l) Função genealógica:
narra a Anti-
guidade de reinos e dinastias. 2) Funçao rememorativa (os anais)'. crônica dos gestos, deci-
sões, atos (mesmo os mais banais) de soberanos e reis. 3) Funçao exemplificadora: narraçâo
daqueles acontecimentos nos quais se pode perceber a lei como viva. Essa história jupiteriana
não é outra coisa senão um ritual do poder. Pois bem, a essa história romana vai opor-se a
partir do final do Medievo uma espécie de cor.rtra-história, uma narração em que não se trata
de fundar Antiguidade de uma dinastia, de recordar os gestos dos soberanos ou mostrar os
a
exemplos capazes de ser imitados. EIa não tem por função unir o povo ao soberano, não
pen-

sa que a história dos fortes inclui em si a história dos fracos, tampouco se propõe a mostrar a

glória luminosa do poder, mas seu lado escuro, suas sombras. Trata-se de uma história, uma
(com suas formas
contra-história, mais próxima daquela mítico-religiosa da tradição judaica
épicas, suas profecias e suas promessas). Aproxima-se do uso crítico que foi fetto da Bíblia
na

segunda metade da Idade Média. É com esse discurso que começa a formar-se a Europa, no

sentido moderno do termo. Algumas observações são necessárias para caracterizar correta-
mente esse discurso: 1) Não pertence por direito próprio a nenhum grupo; não se trata exclu-
sivamente do discurso dos pobres ou dos oprimidos. A burguesia na Inglaterra e a aristocracia
na França utilizaram-no. 2) O conceito de raça não tem nem necessária nem originariamente
um sentido biológico. Designa certa clivagem (corte transversal) histórica de dois grupos que
não se misturam porque não têm a mesma língua, a mesma religiáo ou a mesma origem ge-
ográfica.3) O entrecruzamento desses dois usos da história, ritual do poder e reivindicação
crítica, permitiu a explosão de toda uma gama de saberes, determinou a formação da histo-
riografia moderna. 4) A ideia de revolução, em seu funcionamento político, é inseparável do
surgimento dessa contra-história. A "luta de classes" foi uma das transformações da "luta de
raças'l * É capital compreender que o discurso da luta de raças é um discurso que sofreu nu-
merosas transformações, conversões, traduções. A revolucionária foi uma delas. Mas a opo-
sição ao discurso revolucionário, uma contra-história da contra-história, também foi outra de
suas transformações. Em tais transformações, aparecerá o racismo, quando o Estado se dará
como missão proteger a integridade da raça superior, em sua pureza. No racismo de Estado,
não é o poder no sentido jurídico da soberania o que funciona, mas o poder no sentido da
norma, das técnicas médico-normalizadoras (na transformação nazista, acompanhada de uma

GUERRA (Guerre) 195


dramaturgia mitológica; na soviética, pelo cientificismo de uma "polícia da higiene e da ordem
da sociedade') (IDS, 58-73). Boulainvilliers. Boulainvilliers generaliza o conceito cle guerra:
1) Em relação ao direito: a gr.rerra já não é uma interrupção do direito. Nesse sentido, Boulain-
villiers argumenta favor da inexistência de um direito natural. O que a história nos mostra é
a
que sempre existiram diferenças e desigualdades. Toda situação de direito surge de urna reiação
de forças (do combate, da luta, da guerra). 2) Em relação à forma da batalha: a relação de forças
não depencle nem de uma batalha nem das precedentes, mas da organização das instituições
militares (quem e como possui as armas). A guerra não é, então, um acontecimento, e sim uma
instituição. 3) Em relação ao par invasão/rebelião: não interessa se houve invasão ou rebelião, e
sim como os fortes se debilitam e os fracos se tornam fortes. Em definitivo, a inteligibilidade da
história passa pela luta entre "raçâs" (francos, gauleses, por exemplo) eé aqui onde a história se
torna política em um duplo sentido: na ordem dos fatos e na ordem do conhecirnento. Nos Íàtos,
um é sempre inirnigo do outro. Nos conhecimentos, o saber histórico se converte em uma arma
fundamental. Y er : B oul ainv ill iers.
Guerre [948]: AN,23, 25. DEl, 141, 151, 163,205,215,218, 230-23t,342-313,361,370,502,508, 51,1,517,550,
576, 582, 634, 657,761,779,785, 840. DE2, )9, 21,26,7 4, 1 43, 145, 194,234, 237,310, 342, ,344, 35.1, 359, 411, 426, 442,
453,-159,498,501-506,509-511,515,529,531-532,549,572-573,575-578,6.16 652,657,659,687,689-690,701.702,704,
735,772,813. DE3, 17,34,40,42,17,7r,87,94, 110, \25-126,1.28-130,13i, 139, 1.15, 150, 1s2'153. I55, 171'175, 189,
206,2t1,251.267,268,27t,280,295,311,3-11J,363--364,391,.{0r,430,462,501,503,507,561,573,581-582,606,609 610,
612-613,627,648,671,699,701,703,718,724,729,751,760.784785,802,811,823824.D84,48.19,51,58-60,71,78,
95, 103, 11 t, t30-13-3, 138, 167, 169, 185,202.206, )t0,241,265,267,269,274,338,342,344 345, -148,350, -157,368,378,
38 1, 1-l 1, 452, .155 ,464,472,496,497, 509, 5I 9. 525, 528, 538, 586, 59 I -592,647 -648,666,685.696,733,7 46,7 49,7 64-765,
81s 816. HF,91,182.473,479,501,505-506,508. HS,49, 71,140.2t6-2t7,266,325,166,110. HSl, 123, 135, 138, 177,
181, 194. HS2,80, 117, 171. HS3, r8,29, 164,234. IDS,3, 16-21,36-37,40-53,57,61-62,64-70,72,75,76-85,89,92-97,
105, t08, Ít0-1il,111, t25, l3t 13,1,t37-147,153-r55,157, t70,174,t76,178,193 195,201-205,208,2I1,213 214.229-
231,234.MC,99,187. MMPE, 87, 91. MMPS, 99. NC, 33, 64, 206 207 . PP, 44-45,47-48, 50, 53-55, 265. sP, 52, 54, 60,
90, rl{J, r-14, r47 148, 150, 165, 170 171, 174, 212,266, 292,311.

:;= GULAG (Goulag)

Colocar-se a questâo do Gulag implica quatro coisas. Primeiro, em lugar de perguntar que
erro, desvio, desconhecimento ou distorção especulativa dos textos de Ivlarx e Lênin tornaram
possível o Gulag, perguntar o que o permitiu e continua justificando-o a partir desses textos.
Isto é, colocar a questão em termos de realidade, e não de erro. Em segundo lugar, colocar a
questão em termos positivos, como operador econômico-político em um Estado socialista. Em
terceiro lugar, rechaçar, para levar a cabo a crítica do Gulag, o manejo com urn filtro que per-
mitiria distinguir um falso e um verdadeiro socialismo. Em quarto lugar, rechaçar a dissolução
universalista de todas as clausuras possíveis em termos de Gulag (DÊ,3,419-420). * "Eu temo
certo uso da aproximação Gulag-clausura. Certo uso que consiste em dizer: todos nós temos
nosso Gulag, está na nossa porta, em nossas cidades, em nossos hospitais, em nossas prisoes,
está aqui, em nossas cabeças" (DE3, 41S). * A análise das práticas disciplinares do século XVIII
não é uma maneira sub-reptícia de fazer Beccaria responsável pelo Gulag (DE4, 16).
Goulag [ 39]: DE3, 142, 278-279, 326, 335, 357, 357, 418-42t, 625, 7 t7. DE4. 16.

I96 GULAG (Goutaq)


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i.. HABERMAS, Jürgen (1929-)

Técnicas. Foucault atribui a Habermas a distinçáo que ele rnesmo utiliza entre técnicas
de produção, tecnicas de significação ou de comunicação e técnicas de dominação. Ao mesnto
tempo, sustenta que é necessário acrescentar, com base em suas análises, um quarto tipo de
técnicas, as que permitem o indivíduo efetuar certas operações sobre si mesmo: sobre seu
corpo, sobre sua alma, seus pensamentos, sua conduta. Esse quarto grupo são as técnicas de
si (DE4, 170-l7l). Segundo nosso autor, Habermas não vê aqui três domínios diferentes, mas
três "transcendentais" (D84,234). Foucault é crítico com relação à centralidade que Habermas
atribui comunicaçâo: 'A ideia de que poderia haver um estado de cornunicação
às relações de
que seja tal que os jogos de verdade poderiam circular sem obstáculos, sem impedimentos e
sem efeitos coercitivos me parece da ordem da utopia' (D84,726). Historicismo. "De fato,
o problema de Habermas é, no final das contas, o de encontrar um modo transcendental de
pensamento que se oponha a toda forma de historicismo. Eu, na realidade, sou muito mais
historicista e nietzschiano" (D84, 280). Modernidade. Houve o projeto de um seminário
no qual participariam Foucault e Habermas e que teria como tema a questão da Modernida-
de. Tal seminário nunca ocorreu (D84,446-447). No material publicado em Dits et écrits,
aparecem com clareza as diferenças que Foucault aponta com relação à análise habermasiana
da Modernidade. Referindo-se à Modernidade como tradição darazâo, na perspectiva de Ha-
bermas: "Esse não pode ser meu problema, na medida em que eu não admito absolutamente
a identificação darazâo com o conjunto das tbrmas de racionalidade que puderam, em um
momento daclo, em nossa epoca e ainda recentemente, ser dominantes nos tipos de saber, nas
formas técnicas e nas modalidades de governo ou de dominação, domínios nos quais se fazem
as maiores aplicaçoes da racionalidade. Eu deixo de lado o problema da arte, que é complicado.
Para mim, nenhuma forma dada de racionalida de e a razao. Por isso, náo vejo por que razão
se poderia dizer que as tbrmas de racionalidade que Í-oram dominantes nos três setores dos
quais falo estão no caminho de declinar e de desaparecer. Eu não vejo desaparecimentos desse
tipo. Eu vejo múltiplas transformações, mas náo vejo por que chamar essa transformaçâo de
unr declínio da razáo; outras formas de racionalidade se criam, criam-se sem cessar. Por isso,

HABERMA5, Jürgen 197


não há nenhum sentido sob a proposição segundo a qual a razâo é um longo relato que agora
terminou, com outro relato que começa' (D84,447-448).
lürgen Habermas [22]: DE4, 170,234,278-280, 138 140, 446'447, 562, 584, 588, 726.

:;;. HADOT, Pierre (1922)

Na redação dos volumes II e III de Hlsl oire de la sexualité, Foucault contou com os valiosís-
simos conselhos de P Hadot. Com efeito, Foucault devia enfrentar um domínio no qual não era
especialista (HS2, 14). A presença de Pierre Hadot é também significativa em x/r erméneutique
du sujet.Foucault interessa-se particularmente pela obra de Hadot Exercises spirituels et philo-
sophie ontique (1981). Foucault, como Pierre Hadot, considera a questão das técnicas de si como

uma perspectiva essencial para a leitura da produção filosófica da Antiguidade-


PierreHadot [25]:DE4,542. HS, 25,61,77,119, 141, t96,207,218,280,298, 337,352,370,399-400,415. HS2,

t4, 264, 282. HS3, 57, 6s, 70, 282.

jr*. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1770 1831)

"Nietzsche, Blanchot e Bataille são os autores que me permitiram liberar-me daqueles que
dominaram minha formação, no início dos anos 1950: Hegel e a fenomenologia' (D84, a8)'
,,[. seja por Marx ou por Nietzsche,
. . ] toda nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia,

trata de escapar de Hegel" (OD, 74). Essa frase, que expressa uma posiçào geral, pode ser apli-
cada especificamente à filosofia de Foucault; sua genealogia e sua arqueologia são um esforço
constante para desprender-se de uma concepção da história de tipo hegeliana, em termos de
recomposição dialética, de totalidade, com um sujeito unitário (a razão, o absoluto). As his-
tórias de Foucault são histórias descontínuas e múltiplas; nelas não habita a promessa de uma
reconciliação-acabamento. As referências a Hegel são numerosas nos escritos de Foucault; não
encontramos, no entanto, nenhuma análise detalhada dos textos de Hegel; exceto algumas
poucas referências à filosofia hegeliana do direito e à Enciclopédia das ciências JilosóJicas,
as referências são, principalmente, à do espírito. Loucura, alienação. * A
Fenomenologia
partir da segunda metade do século XVIII, a alienação não é mais da ordem da natureza
ou da queda, mas de uma ordem nova, em que se começa a pressentir a história; nela se
formam, com um parentesco obscuro e originário, a alienação dos médicos e a alienação dos
filósofos. A partir do século XVIII, aparecerá o esforço para incluir as práticas da clausura
no grande mito da alienação que Hegel formulará alguns anos mais tarde (}IF,465,597).
* A loucura solitária do desejo para Hegel, como para os fllósofos do século XVIII, lança
o homem em um mundo naturai que será retomado imediatamente por um mundo social
(HF, 659). Hyppolite. Hyppolite deu uma presença concreta à sombra de Hegel que, desde
o século XIX, percorria o pensamento na França, com sua tradução da Fenomenologia do
espírito (OD, 75). Hyppolite não deixou de confrontar o pensamento de Hegel com: Marx

I98 HADot, pierre


E
il

;l

(a questáo da história), Fichte (o problema do começo absoluto da filosofia), Bergson (o


contato com a não Írlosofia), Kierkegaard (o problema da repetição e da verdade), Husserl
(o tema da fllosofia como tareÍir inlinita ligada à história de nossa racionalidade) (OD, 79).
Hyppolite levou a cabo cinco deslocamentos com relação à fiiosofia, tal corno a concebia
Hegel: a filosofia, em lugar de pensar-se corno totalidade no movimento do conceito, é uma
tarefa infinita, sem fim. Como tarefa sem fim, a filosofia é tambem unra tarefa que sempre
recomeça, destinada ao paradoxo da repetição. Por isso, a Íilosofia não deveria perseguir o
edifício da abstração; deveria romper com as generalidades adquiriclas e aproximar-se da
não filosofia. Deveria retomar, para pensá-1as, a singularidade da história, as racionalidades
regionais da ciência, a profundidade da memória na consciência. Por isso, Hyppolite substitui
o terna hegeliano do movimento do imediato pelo tema do fundamento do discurso Írlosófico
e de sua estrutura fbrmal. Finalmente, Hyppolite se pergunta se a filosofia deve começar
como discurso absoluto: o que acontece com a história e com o começo que se inicia com
um indivíduo singular, em uma sociedade, ern uma classe social, em meio às lutas? (oD,
77-79). Hegel era, para Hyppolite, o momento em qlle a filosofia oci<lental retoma a tarefa
de clizer o ser em uma lógica, o projeto de descobrir as significações da existência em uma
fenomenologia e busca voltar-se sobre si mesma como acabamento e Êm da filosofia (DEl,
783-784). Humanismo, Sartre. Para Foucault, existe um nexo essencial entre a dialética e o
humanismo contemporâneo; Foucault refere-se especialmente a Sartre. A dialética promete
ao ser do homem que ele se converterá em um homem autêntico e verdadeiro. Nesse sentido,
Hegel e Marx são os grandes responsáveis pelo humanismo contemporàneo. Lq Crítíque
de lq raison dialectique de Sartre é o último episódio, o ponto fiual desse período de nossa
cultura que começa com Hegel (D81,541). Totalidade. Antes de Hegel, a lilosofia não tinha
ruecessariamenteapretensãocletotalidade(DE1,611).."[..]afilosofiadeHegelaSartre
foi, apesar de tudo, essencialmente um empÍeendimento de totalização, se não do mr.rndo,
se não do saber, pelo menos da experiência humana. E eu diria que se há talvez agora uma
atividade filosóÍrca autônoma, se pode haver uma Íilosofia que não seja simplesmente uma
espécie de atividade teórica dentro da matemática, ou da lingüística, ou da etnologia ou da
economia política, se há uma Íilosofia independente, livre de todos esses domínios, pode-se
defini-la da seguinte maneira: uma atividade de diagnóstico. Diagnosticar o present e, dtzer
o que é o presente, dizer em que o nosso presente é diferente e absoiutamente difêrente de
tudo o que não é ele, isso é, do nosso passado. Talvez seja essa a tarefa que se lhe atribui
agora ao filósofo" (DEf , 665). * 'Assim, de Hegel a Marx e a Spengler se desdobra o tema de
um Pensamento que pelo movimento em que se realiza (totalldade reunida, recolhimento
violento na extremidade r1a pobreza, declínio solar) curva-se sobre si mesmo, ilumina sua
própria plenitude, termina seu círculo, reencontra-se em todas as figuras estranhas de sua
odisseia e aceita desaparecer nesse mesmo oceano de onde surgiu. Em oposição a esse retorno,
que ainda que não seja ditoso é perl-eito, delineia-se a experiência de Hôlderlin, de Nietzsche
e de Heidegger, onde o retorno não se dá mais no extremo retrocesso da origem, de onde
os deuses se atàstaram, onde o deserto cresce, onde a téchne instalou a dominação de sua
vontade; de modo que não se trata aqui de um acabamento nem de uma curva, mas sim
dessa cesura incessante que libera a origem na medida mesma de seu retrocesso; o extremo
e então o mais próximo" (MC, 345). Antiguidade. * Enquanto, no século xvl, o retorno

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich 199


aos gregos tentava encontrar através do cristianismo uma filosofia greco-cristã, a partir de
Hegel e Schelling o retorno aos gregos tomou a forma de uma recuperação da cultura fora
do cristianismo. Liberdade antiga. Contrariamente a um lugar comum, mais ou menos
derivado de Hegel, segundo o qual a liberdade do indivíduo não teria nenhuma importância
diante da bela totalidade da cidade, a liberdade individual era para os gregos muito importante.
A preocupação com a liberdade foi um problema essencial e permanente na cultura antiga
(D84,712). Espiritualidade. Poderia repensar-se toda a filosofia do século XIX, Hegel
especialmente, como um esforço para pensar as exigências da espiritualidade no âmbito do
conhecimento (HS, 29).Yer. Cuidado. Hegelianismo. No ambiente intelectual da França
do pós-guerra, nas universidades dominava um hegelianismo fortemente impregnado de
fenomenologia e de existencialismo (D84, 48). Ver também: Dialética, Existencialismo,
F e n o me n olo gi a, Hi st óri q.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel [150]: DEl, 108, 340, 462, 499,521,541, 551, 553, 574-575,582, 61 1, 654, 656,
665,768,770,779,782-785.D82,71,90-91, 105-106, t24-125,156,164,378,594,607,621,627,719,753,817. DE3,28,
t34, 193, 278, 281,289, 350, 368, 394, 442, 47 t, 47 6, 538-539, 597 -598, 603,608-609. DE4, 48, 232, 433, 446, 562, 645,
665,688,702-703,71,2,775,814.IIF,437,46s,s97,642,6s9. HS,29,40. IDS, 1s,20. MC, 111,232, 318, 339,34s,396.
oD,74-77,79.

: T§. HEGELIANISMO (H egel ia nisme)

Yer: Hegel.
Hégélianisme [ 1 3]: DE2, 272. DF3, 592. DE4, 43, 48-50, 444, 529. HF, 47 1. OD, 7 6.

:§*. HEIDEGGER, MARTIN (i88e-'1e76)

"Certamente, Heidegger foi sempre para mim o filósofo essencial. Comecei a ler Hegel,
depois Marx, e me pus a ler Heidegger em 1951 ott 1952; e, em 1953 ol 1952,li Nietzsche.
Tenho ainda aqui as notas que fiz sobre Heidegger no momento em que o lia (tenho toneladas!),
e elas são mais importantes do que as que eu tinha feito sobre Hegel e Marx. Todo meu devir
filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche
quem ganhou. Eu não conheço suficientemente Heidegger, não conheço praticamente Ser
e tempo nem as coisas editadas recentemente. Meu conhecimento de Nietzsche é muito
melhor do que o que tenho de Heidegger. No entanto, essas são as duas experiências fun-
damentais qrefiz. É provável que, se eu não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche.
Eu tinha tentado ler Nietzsche nos anos cinquenta, mas Nietzsche sozinho não me dizia
nada! Nietzsche junto com Heidegger, esse foi o choque filosólico! Mas eu jamais escrevi
nada sobre Heidegger e escrevi apenas um pequeno artigo sobre Nietzsche; no entanto, são
os dois autores que mais li" (D84, 703). Como vemos, Foucault não escreveu nenhum texto
sobre Heidegger. A influência essencial desse sobre seu pensamento teria que ser rastreada
através dos temas que Foucault aborda. Isso excede certamente os limites deste vocabulário.

2 00 HEGELtANtSMo (Heçreliantsme)
+
No entanto, algumas indicações podem guiar o trabalho. Em primeiro lugar, haveria que
1
seguir a presença de Heidegger através de suas leituras da psiquiatria existencial, na versáo
T psiquiátrica do Daseinanalyse; ver a esse respeito: Binswanger, Fenomenologia. Em segundo
lugar, seria necessário seguir sua concepção da linguagem e da literatura no período de les
mots et les choses. Yer Linguagem. Em terceiro lugar, apesar da declarada dependência
essencial, Foucault foi crítico em relação à filosofia de Heidegger. Nesse sentido, há que se
considerar a terceira figura da analítica da finitude - o retorno e o retrocesso da origem (ver:
Homem) - e a crítica de certa maneira "a la Heidegger" de fazer história da filosofia (ver:
Derrida) e a história da verdade em termos de esquecimento (ver: Verdade). * Seria possível
distinguir duas espécies de filósofos: os que abrem novos caminhos ao pensamento, como
Heidegger, e os que desempenham o papel do arqueólogo, que estudam o espaço no
qual se desdobra o pensamento, suas condições, seus modos de produção (DEf ,553).
* "Husserl e Heidegger problematizam todos nossos conhecimentos e seus fundamentos,
mas o fazem a partir do que é originário. Essa busca se procluz, no entanto, às expensas de
todo conteúdo histórico articulado. Ao contrário, o que eu gostei em Nietzsche é sua ten-
tativa de questionar os conceitos fundamentais do conhecimento, da moral e da metafísica
recorrendo tr uma análise histórica de tipo positivista, sem se referir às origens" (D82,372).
* A filosofia husserliana, a fllosofia marxista e Heidegger quiseram esclarecer o problema
da vontade; mas a filosofia ocidental foiincapaz de pensar a questão da vontade de maneira
pertinente (D83, 604-605). * Poder-se-ia ler Heidegger como um esforço em recuperar a
dimensão da espiritualidade na fllosofia (HS, 29). Yer'. Ascese, Cuidado.
Martin Heidegger [64] : DEl,342-344, 542, 545,547,5s1, 5-53, 581, 598, 768,770.DF-2' 372' 424' 52 l. DE3' I 93,

604,619. DE4,455, 584,585, 703, 764,780,814. HS, 29, 182,470. IDS, 19. MC, 345. MMPE,64.

r i::. H ERMAFRODITISM O (Herma ph rod isme)

Monstruosidade, criminalidade. No século XIX, encontratros uma nova teoria da


monstruosidade, que vinha sendo preparada a partir do século XVIII e a propósito de um caso
privilegiado de monstruosidade: o hermafrodita. Se durante a Idade Média os hermafroditas
eram queimados (pensava-se que sua origem devia-se a uma fornicação com o diabo), no
século XVIII aparece um novo tipo de legislação. Para dar conta dessa mudança, Foucault
compara dois casos: o caso de Rouen (1601) e o caso de Lyon (1765). Caso de Rouen'. trata-se
de alguém batizadola com nome de Maria, mas que, pouco a pouco, comeÇa a comportar-se
como um homem e vai viver com outra pessoa, aparentemente uma mulher. O tribunal de
apelação, finalmente, suspende a condenação à rnorte da sentença apelada. Libera a "rnulher"
e, sob a ameaça de condená-la à morte, a obriga a viver como mulher e abster-se de qualquer
relação sexual. Esse caso, e é aqui que se encontra o interesse de Foucault, deu lugar a um
debate entre dois medicos, Riolan e Duval. O primeiro não reconhece signos de virilidade no
sujeito, já o segundo, sim. Na análise de Duval, encontramos os rudimentos de uma clínica
sexual; ele leva a cabo um exame minucioso do sujeito, não apenas ocular. Por um lado,
contrariamente ao costume até aquele momento, Duval serve-se de um vocabulário explícita
edetalhadamente sexual; mas, além disso, oferece uma teoria do discurso medico. Em linhas

HERMAFRODITISMO (Hermaphrodisme) 20 I
gerais, ele nos diz o seguinte (muitos elementos dessa explicação, vale a pena ressaltar, não
resistem a uma análise histórica, mas essa era a visão de Duval): 1) a não utiiização de uma
linguagem sexual justiÍica-se pelo objetivo de evitar a concupiscência. 2) Compreende-se
isso porque as mulheres da Antiguidade se conduziam de maneira desenfreada e induziam
os homens no mesmo sentido. 3) Mas, a partir do cristianismo, com a figura da virgem
Maria, reabilita-se a figura da mulher, da maternidade e da biologia sexual feminina. A mãe
foi sacralizadapela religiao, pelo matrimônio e por sua função econômica no lar. 4) para
evitar a mortalidade infantil (que em relação com as teorias econômicas mercantilistas
apresenta-se como um fator de empobrecimento para a nação), é necessário romper com
o silêncio médico. É necessário, então, dispor de um saber sobre a sexualidade e sobre sua
organrzaçâo anatômica. O informe de Riolan que, como dissemos, não reconhece os signos
de virilidade do sujeito, sustenta explicitamente que o hermafroditismo é uma monstruo-
sidade. No entanto, desde um ponto de vista legal, não se segue uma condenação à morte.
O caso de Lyon: um sujeito, batizado como mulher, experimenta certa atração em relação
a suas companheiras, muda-se para Lyon e contrai matrimônio com uma mulher. Apelada
a primeira sentença de condenação, o tribunal exige que se vista como uma mulher e lhe
proíbe de ter relações com a mulher com a qual havia contraído matrimônio. No entanto, as
semelhanças entre os dois casos deixam ver algumas diferenças importantes. Nos informes
médicos, o hermafroditismo deixa de aparecer como uma monstruosidade produzida pela
mescla dos sexos. Trata-se, antes, de uma forma de imperfeição, de um desvio da própria
natureza. Tal imperfeição pode ser o princípio de certas condutas criminais. Conclusão:
entre um caso e outro, a monstruosidade como noção jurídico-natural passa a ser pensada em
termos jurídico-morais. O monstruoso não é a mistura de elementos naturais, mas as condutas
criminosas é que podem originar-se de um desvio da natureza. Dito de outra maneira, se antes
um monstro era potencialmente um criminoso, agora, o criminoso é sempre virtualmente um
monstro. Para sermos mais claros, a monstruosidade sempre foi percebida como a possibilidade
de transgredir a lei. Agora se invertem os papéis: toda a um criminalidade passa a ser referida
fundo de monstruosidade, de desvio da natureza (AN, 63-70). Iconografia, simbolismo.
Na iconografia e na literatura do século XVI, o hermafroditismo se acha ligado à Reforma, à
dualidade da religião cristã; também pode ser a expressão simbólica da dualidade do papado e
do império. No século XVII, ao contrário, o hermafroditismo se liga diretamente ao erotismo.
No século XIX, entre as novas significaçoes do hermafroditismo, em uma perspectiva místico-
religiosa, encontramos aquela do casal original. Uma história do hermafroditismo deveria
elucidar como se chegou à condenação desses dois fenômenos tão distintos: o hermafroditis-
mo e a homossexualidade (DE3, 625). Herculine Barbin. Foucault publicou as memórias
de Herculine Barbin (Herculine Barbin dite Alexina B, paris, l97g). "o que me chamou a
atenção no caso de Herculine Barbin é que, no seu caso, não existe sexo verdadeiro. O conceito
de pertencimento de um indivíduo a um sexo determinado foi formulado pelos médicos e
juristas apenas no século XVIII aproximadamente
[...] Na civilização moderna, exige-se uma
correspondência rigorosa entre o sexo anatômico, o sexo jurídico, o sexo social; esses sexos
devem coincidir e nos situam em uma das duas colunas da sociedade. Antes do século XVIII,
no entanto, havia una margem de mobilidade bastante grande,, (D83,624).
Hennaphrodisme I I 7] : AN, 63, 66-63, 7 2. DE} 4gg, 625. DE4, 12 t. HS l, 59, I 34.

202 HERMAFRoDtTtsuo (,Hermaphradísme)


: r::. H ERM ENÊUTICA (Hermeneutiq ue)

Arqueologia. Enquanto a hermenêutica tenta determinar o que os signos expressam, a


arqueologia, por sua vez, busca determinar as suas regras históricas de tormaçáo (AS, 212).
Renascimento. Se deÍinirmos a hermenêutica col'no o conjunto de conhecimentos que
permitem {azer íalar os signos e descobrir seu sentido, e a semiologia como o conjunto de
conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, conhecer o que os
institui como signos, seus nexos e a lei de seu encadeamento, entâo, durante o Renascimento
ambas se superpÕem na forma da semelhança (MC,44). Hermenêutica do sujeito. A her-
menêutica do sujeito se Íunda na ideia de que há em nós algo oculto e que vivemos sempre
na ilusão de nós mesmos, uma ilusão que mascara o segredo (DE4, s10). Daí a exigência
continua, para o sujeito, de decifrar-se a si mesmo e ao seu desejo (DE4, 672). o curso de
1981-1982 no Collêge deFrance,Lherméneutique du sujet,foi dedicado à análise daformação
da hermenêutica do sujeito, desde as práticas de si da filosofia antiga até a época helenista e
cristã. Ver: Interpretaçao.
Herméneutique [75]:4S,i44,2Í2.DE1,68 69,72,74,79,279,442,444,q46447,493,497,500,566,569,571574.
DE4,176.353,362,364,390,401,s41,563,615,622,672,708,728,781,786,810,811.HSr,89.HS2,11 t2,102 103,106,
252, 278. HS3, 27 4. MC, 44-45, 48, 71, 80, 384. NC, I 2, 60.

; i:r HISTORIA (H istoi re)

Foucault afirmou que todo seu trabalho são fragmentos de filosofia na pedreira da história
(DE4, 21) e também que o sujeito é o verdadeiro tema de suas in\.estigações (DE4, 223). Na
realidade, a relação entre o sujeito e a história constitui, sem lugar a dúvidas, o eixo em torno
do qual se pode compreender toda a sua produção intelectual, desde as prirneilas até as últimas
obras. Por um lado, a relação história/sujeito aparece como o domínio de trabalho de Foucault.
Já na sua primeira obra, Maladie mentale et personnalité (1954), encontramos essa proble-
mática; o capítulo III intitula-se, com efeito, 'A enÍêrmidade e a história individual'l Foucault
ocupa-se em mostrar (em um contexto rnaterialista) a origem da doença mental a partir das
contradições da história concreta do indivíduo. É no conceito de alienação que se cruzam
esses dois eixos do sujeito e da história. No marco de seus estudos de psicologia, a psicanálise
era um dos âmbitos onde aparecia de modo particular essa relação entre o sujeito enfermo e

a história pessoal, assim como também a psicologia de matriz existencial. Na Histoire de la


folie, o enfoque de Foucault modifica-se, passando a se concentrar nas condições históricas
nas quais surge não a ent-ermidade mental como fato patológico, mas os modos, institucionais
e discursivos, nos quais o sujeito é objetivado como alienado, como doente rnental. Essa é a
história do gesto que exclui, que separa, a desrazão da razão. Uma história da diferença. la
nqissance de la cliniclue trata das condições históricas que possibilitaram o discurso da clí-
nica, que tornaram o indivíduo cognoscível. Les mots et les choses é uma arqueologia das
ciências humanas, isto é, uma história, ao nível das condições de possibilidade do saber, da
formação do sujeito moderno, das ciências humanas. 'A história da loucura seria a história cio

HlsTóRlA lHistoire) 203


Outro, daquilo que, para uma cultura, é, ao mesmo tempo, interior e alheio, e, portanto des-
tinado a ser excluído (para conjurar o perigo interior), mas enclausurando-o (para reduzir sua
alteridade); a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo, daquilo que para uma
cultura é, ao mesmo tempo, disperso e aparentado, e, portanto, destinado a ser distinguido
pelas marcas e recolhido nas identidades" (MC, 15). Surveiller et punir é uma história genea-
lógica do sujeito disciphnado. Histoire de la sexualité é uma genealogia do homem de dese-
jo, das práticas de subjetivação. Contudo, a relação entre a história e o sujeito aparece também
como uma preocupação metodológica. Foucault, com efeito, quer deÍinir uma metodologia
de análise histórica que esteja liberada de pressupostos antropológicos, que rompa com a
sujeição da história a uma subjetividade (a razâo, a Humanidade) que garantiria, acima de
tudo, sua unidade e seu sentido. Desde esse ponto de vista, Foucault se opõe à fenomenologia
e àsdiferentes concepções, mais ou menos hegelianas, da frlosofia da história. A arqueologia,
nesse sentido, quer romper com a história, linear, progressiva, unitária, totalizante de uma
razão que, desde a sua origem, se encaminha para o seu acabamento na forma da realização.
As concepções husserliana e hegeliana da história (e, especialmente, o que une essa represen-
tação da história a uma filosofia do sujeito em termos de consciência) são a antípoda da
concepção foucaultiana da história do saber. A leitura de Canguilhem, de Bachelard, entre
outros, da epistemologia histórica da tradição francesa, em definitivo, com seus conceitos de
ruptura umbrais desempenharam um papel de primeira ordem. A história unitária e totali-
e

zante, Foucault oporá o conceito de acontecimento (ver: Acontecimenfo). Em um primeiro


momento, na Ihrchéologie du savoir, Foucault estabelece os critérios de trabalho para uma
história concebida segundo o modelo da análise discursiva. Depois, para incluir na análise o
âmbito do não discursivo e as relações entre discursividade e não discursividade, o objeto de
descrição não será a episteme, mas o dispositivo. Aqui, próximo a Nietzsche, o conceito de
arqueologia, se náo perde terreno, é acoplado ao conceito de genealogia. Finalmente, a epis-
teme e os dispositivos serão incluídos no conceito, mais amplo, de prática (de tal modo que
as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo também estejam contidas nele). A história
aparece, então, na obra de Foucault de duas maneiras: como objeto de descriçào e como ques-
tão metodológica. Na realidade, esses dois aspectos estão tão entrelaçados em uma relação
que falar de história, em Foucault, é falar do sujeito e, vice-versa, falar do sujeito é falar da
história. As histórias de Foucault são, assim, histórias das práticas que constituíram histori-
camente a subjetividade ocidental. Episteme, dispositivo e prática defintao, progressivamen-
te, o campo da análise de Foucault; arqueologia e genealogia, seu método. Remetemos aos
verbetes correspondentes. Ver também: Subjetivaçao. Ontologia do presente. A história
das práticas de subjetivação é uma ontologia de nós mesmos, da constituição histórica de
nosso ser. Yer: Genealogia, Ontologia do presente. Episteme moderna, a mãe das ciên-
cias humanas. Por estranho que possa parecer e o mesmo Foucault o faz notar, a história não
forma parte do triedro de saberes das ciências humanas; é apresentada, no entanto, como a
primeira e a mãe de todas as ciências do homem (MC, 378). Interessa-nos expor aqui como
Foucault situa a história na época das ciências humanas, três pontos particularmente: a rela-
ção entre história e Modernidade (MC, 229-233), entre história e economia política (MC,
270-275) e entre história e analítica da finitude (MC, 378-385). f ) História e Modernida-
de: para expressá-lo de alguma maneira, a forma fundamental da episteme renascentista foi

2 04 HrsróRrA (Histoire)
a semelhança, a da episteme clássica lbi a ordem, e a da Modernidade, a história. O que a
Ordem foi para a episteme clássica, a forma e o conteúdo do que pode ser conhecido com
certeza, a História o foi para a episteme moderna. A história, o fluxo da temporalidade, defi-
nirá tanto o modo de ser das empiricidades como aquilo a partir do qual essas são possíveis:
o modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência. 'A filosofia do século XIX se alojará
na distância da história à História, dos acontecimentos à Origem, da evolução ao primeiro
jorro da fonte, do esquecimento ao Retorno. Ela não será mais, então, Metafísica,a não ser na
medida em que ela será Memória, e necessariamente ela reconduzirá o pensamento à questão
de saber o que é para o pensamento ter uma história. Essa questão urgirá sem cessar a filoso-
fia de Hegel a Nietzsche e para além. Nào vejamos aqui o fim de uma reÍlexão filosófica autô-
noma, por demais matinal e demasiado orgulhosa para inclinar-se, exclusivamente, sobre o
que foi dito antes dela e por outros; não façamos disso um pretexto para denunciar um pen-
samento impotente para manter-se apenas de pé e sempre obrigado a enrolar-se em um
pensamento já concluído. Basta reconhecer aqui uma fiiosofia desprendida de uma metafísi-
ca, posto que se desprendeu de um espaço da ordem, mas destinada ao Tempo, ao seu fluxo,
aos seus retornos, porque está capturada no modo de ser da História" (MC,231-232). 2)
História e economia política: No que concerne à economia política, trata-se particular-
mente de David Ricardo. Foucault encontra quatro consequências fundamentais da introdução
da historicidade na economia. a) Em primeiro lugar, a noção de produção. A análise clas ri-
quezas (o saber da economia da época clássica) concebia o valor de troca das mercadorias em
termos representativos, da capacidade que têm as mercadorias de representarem-se umas às
outras pela medida comum do trabalho, analisado em termos de jornadas de subsistência.
Supunha-se que a quantidade de trabalho necessária para produzir uma coisa equivalia à
quantidade de trabaiho necessária para produzir aquilo pelo qual se podia trocá-la. Para a
economia política de Ricardo, a quantidade de trabalho necessária para a fabricação de qual-
quer rnercadoria depende da forma de produção: da divisão do trabalho, da massa de capital,
dos instrumentos dos quais se clispoe. Essa noção de produção, de cadeia de produção, intro-
duz um índice temporal, de acumulação em série, na formação do valor nâo analisável em
termos de jornadas de subsistência. b) A noção de raridade: a análise da renda marginal nos
mostra que o homem econômico é aquele que perde sua vida para escapar da iminência da
morte. c) A evolução econômica: na medicla em que a população cresça e seja necessário
cultivar terras cada vez menos propícias, os custos de produção aumentarão e chegará um
momento em que os salários somente cobrirão as necessidades básicas de vestuário, rnoradia
e alimentação; os ganhos industriais serão cada vez menores. Então, a mão de obra não pode-

rá crescer, o crescimento da população estancará. Em poucas palavras, a história se imobili-


zará.Uma maneira alternativa de pensar as relações entre a economia ea historicidade, alter-
nativa com relação a Ricardo, é encontrada em Marx. A evolução da história econômica não
tende à imobilidade, mas à revolução graças ao aumento do número daqueles que se encontram
no limite das condições de subsistência por conta da acumulação do capital, o crescimento
das empresas e sua capacidade produtiva, a baixa dos salários e o desemprego. Então, em vez
de imobilizar-se, a própria história produzirá as condições para uma nova história. Foucauit
encontra, em Ricardo e em Marx, uma meslra disposição epistêmica, na qual se conjugam a
economia, a Íinitude do homem e o fim da história, em que se enraíza o pensamento utópico

HlsróRlA (Histaire) 205


do século XIX e em relação à qual é necessário situar o pensamento de Nietzsche. "Essa dis-
posição foi durante muito tempo premente; e, ao final do século XIX, Nietzsche a fez brilhar
pela última vez, incendiando-a. Ele usou o fim dos tempos para fazer deie a morte de Deus e
a errância do último homem; ele aceitou a finitude antropológica, mas para fazer surgir o
broto prodigioso do super-homem; ele retomou a grande cadeia contínua da História, mas
para curvá-la no infinito retorno [...] É Nietzsche quem, em todo caso, consumiu para nós e
antes que houvéssemos nascido as promessas misturadas da dialética e da
antropologia'(MC,
275).3) História e analítica da finitude: por analítica da Írnitude devemos entender, se-
gundo Foucault, as diferentes estratégias próprias do pensamento moderno para pensar o
homem a partir de si mesmo, a finitude a partir da finitude. Essas estratégias são: a oscilação
entreo empírico e o transcendental,aoscilação entre o cogito e o impensado e aoscilação
entre o retorno e o retrocesso da origem (MC,323-346). No sonho antropológico no qual se
lançou o pensamento ocidental, a partir da ruptura epistêmica que se produziu entre os últi-
mos anos do século XVII e os primeiros do XIX, o homem aparece, para servir-nos de uma
terminologia kantiana, ao mesmo tempo, como o que se oferece ao conhecimento eo que deve
ser pensado; o homem é um ser duplo: empírico e transcendental, pensado e impensado,
originado e originante. As ciências humanas, desde o momento em que projetam sobre as
outras ciências (a biologia, a economia política, a Íilologia) a analítica da finitude, são, por
isso, constitutivamente anfibológicas, oscilantes. Em uma situação similar, acha-se a história:
por um lado, encontramo-nos com uma historicidade das empiricidades e, por outro, com
uma historicidade transcendental a partir da qual é possível a historicidade das empiricidades.
Desde o ponto de vista das empiricidades, encontramos uma fragmentação da história, com
um homem desistorizado (MC, 380). A época clássica havia pensado a história como unitária,
seja porque projetava a temporalidade da natureza sobre o humano ou, vice-versa, porque
subsumia toda temporalidade na historicidade humana concebida segundo um modelo pro-
videncial. Com os saberes modernos, a história se fragmenta, aparece uma temporalidade
própria da vida, outra do trabalho, outra da linguagem (MC, 380). Desde um ponto de vista
transcendental, no entanto, essa historicidade desnuda do homem aparece como sua histori-
cidade própria e como fonte da dispersão radical de todas as formas históricas. Aparece
também a necessidade de buscar e pensar as leis dessa forma pura da temporalidade. Daí se
depreende a situação da relação entre a história e as ciências humanas. a) Por um lado, o
homem histórico é o homem que trabalha, que vive, que fala. Os conteúdos históricos do
homem são objeto de conhecimento das ciências humanas. Mas, por outro, esses conteúdos
não são estáveis, pois dependem da historicidade radical do homem. b) A história, que torna
possível as ciências humanas, impede-lhes o acesso à universalidade. c) A história, possibili-
dade das ciências humanas quanto a seus conteúdos e suas formas, erode a relação sujeito/
objeto desde fora, desde o exterior. Pensar a finitude sem recorrer ao inÍinito é pensar uma
finitude sem fim, sem acabamento (MC, 3S4). d) Por isso, a analítica da finitude faz frente
ao historicismo: com a metodologia de compreensâo d,a Lebenswelt, çom a compreensão da
comunicação inter-humana e com a hermenêutica. Arqueologia, história das ideias.
Foucault opõe a arqueologia à história tradicional das ideias. Yer. Arqueologia. Genealogia,
erudição. Acerca da relação nietzschiana e a história, no sentido que o século dezenove dá
ao termo, ver : Genealogia, Nietzsche. Guerra de raças, guerra de classes, história

206 HtsróRtA (Histoire)


jupiteriana. "ll faut déÍ'endre la société"é uma genealogia do discurso histórico da guerra
de raças, de sua dialetização fiiosófica e de sua transflormação bioiogicista com o advento do
racistno de Estado. Yer: Guerra. Estruturalismo. Foucault não considera o estruturalismo
como uma posição contrária à história, Yer: Estruturalismo.Ficçío. "Eu não sou verdadei-
ramente um historiador. E não sou um novelista. Pratico uma espécie de ficçâo histórica"
(DE4,40). Yer: Ficçao.
Histoire [4687] : AN, -3-4, 12, 2 1, 26-27, 39, 49-50, 57, 60-63. 68.70-73, 83,85, 87, 91, 96, 98-99, l0t, l0l- 1 0-5, l l0, 1 1.1,
126,134, r41 142,151-152,154,158,178,182,187,189, t97,199.200,207-208,2\0,2t2,2t5,221-222,225,232,242,244,24(),
262,265-268,292, 293, 305, 307, ,l I l. AS, 9 27, 3 l, 3l-34, 36, 38-40, 53-54, 58 ,64-65,75- t-8,82 86, 89, 92_96, 98, tZ), r37, t1l,
l5-3-154, 159-160, 166-169,172,177-181, 184, 184-185, 188, t9l 193, 195, 198-203,205-211, 2\5.2t7,2'tg-222,225-227,22g,
232-233,235-239,244 251,255,261 268.271-274.D8r, 65, 67, 69, 73, 80, 8 6-88,90-92,96-97,99 100, I 06, 10U, 109, 1 I 3, I 1 8-
122,121-126,128-129, 131, 137,t42-115, i53, 155, r59-166,168-t71, 176, 189,192,202,204,20s,221,229,232,250-25.1,258,
265.278-279,285,290,295296,298,306307,-r09,326,330,358_,162,372,374_380,394 403,416,420,423,427,430,433,437,
4,11,446,451,455-460,486,492,.198,,198-503, 507,510, 521,538,541-5,13, 545 546, 548-549, 551-552, 555-557, 564,571_572,
575, 577, 581 -583, 586, 588-590, -596, -598, 601 -602, 606 60U, 614, 621, 632, 643, 656, 665-667, 67 4 676, 680, 682-683, 686-6tt7,
694-698,700 701,704,708,720,723,725 726,731,733,755,764-765,771-772,774,777-778,780,784,786-788,831.832, tt42,
811. DE,2,7 -r0,12, t7, t9-2t,25,27 -28, 30 3 1, 38-45, 48 50, 55, 57, 59, 6 l, 63-66, 7 t, 76, 83, 8 6-87 ,91,97 99, 102- 104, 106- 107,
110, 112, I 15-117, 124, 128, 136, 138-140, 143, 143,164,167-169,\71,174,182,185, 188, 193,203. 207-210,2t1,216,220 225,
230,234,238 243,245,268,268 273,275-284,296,298, -302, 305, 3t0,318,322,342,344, 350, 353-154, 356, 359. 370, -173,
301
3 77, -389. 391, .{01, -105, 407-409, '114- 415, 418, 422, 126,44.i, 45:, 456, 468- 470,473-476, 179 48.1, 487,
488 -189, 49 t, 49,1, 503,
508, 5 13, 52 1-525, 532, 539-543, 550, 553-555, 558-560, 5 62,564,570,5 /-1,575, 577, 58 1, 58s, 589-590, se8, 602, 608, 6 12, 6 I 8,

625-626,628-629,632 633, 637-6-18, 640, 643-644,616-648, 650, 652, 656-659, 661 662,664,675. 677 ,687 ,693,695,703,720.
721,739-740,746,749 751. r'73.780,792,802,804,815, 822,826-827. DE3. I l-12, 27-31,34,36-37,40,42 43,46-48, 51,54,
s7 58,72,74-77,79-82,88,90-91,95,97-101, 105 107, r12, 115 130, 136, 140 141, 143-148, 156-158, I6l, 172-173, 181, I90,
r92-193, 200, 203, 205,207 -209,213,21.5,2t8,225,128-229,234-237, )39,242,246 248, )56-258,261,).66,266,268, 271-274,
278 279,281.283. 298. 300, .302, 305, 3I 2 3 1 3, I I 5-31 7, 320, 323, .123, 323. 332-334, .350, 357. 360, 362, 364, 368,3 69,371-372,

377,380,385,-190-392,395,398-400,402-403,405,409 4t2,414,419.421,429,431-439.441-442,461,466-168,470,478481,

'198 50r, 503, 510, 514, 522, 524,537-539,544,546.548,553, 555-560, 562, 56.1, 566, 572,575.584,586, -590, 592, 596-s98,
600, 606, 608-6 1 0, 613,618,620, e2-623,62s,628-630,633 634,643,654 656,657,662,666,669,673,674 677,678,682,688,

694-695,699,702,707 ,714,719,726,729,740-7 41,7 43,746,759,761-762,77 t,781,7 83, 785 786, 788, 790 794, 798, 802 B05,
809,818-819,823. DE4, 10-u, t4-16, t8 19,22, 25-27,29-31.34-36,38, 40-42,44-15,17-50,53-62,66-70,71-77,80,82-85,
87,91.,94 95, 100-104,110,115-116, 118-119,122,125-t26,129,134, 136,139,144,148,150, 160 161, 169,182,189,19r-t92,
1 9,1 195, 198, 202, 2t3 216,220-223,2).s,228-230, 232,243,245,249-250,252 253,264, 269,27 4,280, )82 286, 289, 291 -293,
29s.316-317,310.323,340,-14,{-315,348,350--351,353,371.383-386,390.393,409,.111-41s.426,433,43s 446,148-449,151.
453 454, 456, 458, 466, 495, 516-5t7 ,528-530, 532-533, 535-537 ,539-546,549 550, 553, 558,562-565,567,568, 571, 575, 578
58 1, 583, 587, 592,594,597.598,600-60 l, 608-6 10, 6 t2,618,622,627.629, 63 I -633, 635, 637,639,616-659,665 669, 673. 6 r'5,
679-683, 685-687, 69t,69) ,697 -698,700,702,704 705,7 19,721,723-725,730-73t,739,7 44,748-749,752-75-1,755,757,760,
763,76s 773,775,777 -779,78r,784-7 85, 813 S I 5, 819, 821, 824. HF, 15- I 6, 19-20, 2_1, 33 ,i0,72.,79,9t,104, 10tt, 1 I 1 - I 12, I 14,

1 16, il8, 1 44, 158-t -59, 165, 169,187,204,208,221,227,232,239,215 247,26t,264,266,3)9,359,396.397 ,4l,, 408, 414, 423,
426,432, 455,457,465-466,469 475,492,494,502,506, 523, 532, 538, 541, 544, 55 l, 583, 590, 592, 59s, 605, 609, 628, 6s3, 662,
667,681,681-684.HS,4,1r 1-3,15,t9-2t,23 26,30,32-33,,1t,44,56,58-60,65-67,69,73,75,79,97-98,105,109,125,142-t43,
lsl. 158, 166, 170,172-173,181, r84, 190, 198,200,212,235, 239 )40,246.253-254,257-258,294,296,299,302,304 305,325,
340,346-347, 389,393,412,415-416.424,126,428,430,442-444,446,457. HSl, 1 1- 14, 18, 21, 32, 44 46, 59, 73, 75, ti1, 91-93,
r01-105, r07, 109, I ró, 119, t26,t33,119,152, 157, 158, 172-173, 186-189, 197.200,206_207,209. HS2,9 12, 14_17, 19,23.25,
29, 36, 50-51, 55 56, 6 1 , 63, 69, I 02. 12 1, 1 6 1, 25 1. 275,277,280,284.HS3, 21, 36, 103, I 04, I 66, 168, t82,213,220,245.248_249,

276,281.IDS,5,16,t8,27,41,45,47-4n,50-55,577t,73-76,87,96,96_97,9e,101,105_107,109111,1t4_123,125_t26,129,
l'r1'133,136-l41,143-147't49159,165't67.169-177,18-3-191,193-197,200-205,20t--213.229-230.MC,13-15,37,.13,51,53,
55-56,60,64,69-7r,77,81,84,88-90,101 105,109,116,118,124-130,1,33,135,139152,154_155,157_163,167175,177,\79,
t89, 192,202,213-222,225,229)33,238,24t-245, )47 , 219,251-252, 256,261 264,268 269,27 t-277, 281,284-285,287 -289,
29r 292, 300,303,305-307, 309, 3 1 4-3 1 -5. 3 1 9-i20, 322 326, 330-332,336-338, 340 313,345-347.35 1, 353, 356 357. 360-362.

HrsÍóRrA (Histoire) 207


366-368,371-372,376-384, 388-389, 391, 398. MMPE, 22-23,35-37,43,46,50-54,58,67 -68,7 1, 79, 86, 89, 103, 1 1 l. MMPS,
22-23,35,36-37,43,46,50-54,58,67 -68,71,77 ,82,84,97, 101, 103, 105. NC, XI-XIII, XY 4,23,25,28-29,35,43,52-57,63,7t,
74,82,85,88,94-96,tt4,125-t27,t3t-132,137,139, l4t, i49,156,159,168,174,177-t78, l8l-183,187-189,192,195,198-199,
205-207,210-2t3. OD, 8, 12, 16, t9,22,30,35,40,48-49,56-59,6),-62,65-66,73-74,76,78-79. RR, 18,33,68-70,75,79,83,98,
102-103, 1 i5, 1 18, 120, 129, 178, 180, 195,209. PP, 3, 5, 12, 14,17,19-20,24,26-27,30-35,37-39,42,61-62,65,70,73,74,80-93,
98,100,102-103,106-107,110, t17-t21,132,134-139,141,149-150,153,157-159,166-168,172-173,175,179,183,188-191,
194-197,200,216,218,223-226,229-231,233-238,240-241,245-247,254-265,271,280,284,289,291-297,299,310, 3 l4-3 15,
329, 33 1, 333. SP, 16,26-28,30,32-35,41.,53,56,71,77,86, 93, I 0 I - 102, t24,140-142,152, t61-164,173-17 4,186-t87,204,218,

225, 233-234, 236, 255, 269, 288, 290, 291, 303.

i s r HISTORICISMO (H istoricisme)

Analítica da finitude. No pensamento moderno, o historicismo é uma maneira de fazer


funcionar a relação crítica que existe entre a história e as ciências humanas. O conhecimento
positivo do homem está limitado pela positividade histórica do sujeito que conhece; desse modo,
a finitude dissolve-se no jogo de uma relatividade da qual não é possível escapar. "Todo conhe-
cimento se enraíza em uma vida, em uma sociedade, em uma linguagem que têm uma história
e, nessa mesma história, encontra o elemento que lhe permite comunicar com outras formas de
vida, outros tipos de sociedade, outras significações. Por isso, o historicismo implica sempre uma
determinada Íilosofia, ou ao menos uma determinada metodologia da compreensão vivente (no
elemento da da comunicação inter-humana (sobre o fundo das organizaçÕes sociais) e
I ebenswelt)
da hermenêutica (como compreensão através do sentido manifesto, de um discurso de um sentido
ao mesmo tempo segundo e primeiro, isto é, mais oculto, porém fundamental)" (MC, 384). Mas,
contra o historicismo, a analítica da finitude reivindica a finitude que faz possível toda finitude.
Estruturalismo. Os estruturalistas nunca atacaram os historiadores, e sim certo historicismo
(D81,773). História. A história nos protege de um historicismo que invoca o passado para
resolver os problemas do presente (DE4,280). Historicismo político. * O inimigo de Hobbes,
com sua teoria da soberania, era o historicismo político (IDS, 96). * Segundo Foucault, toda a
estratégia do pensamento no século XIX teria sido anti-historicista, tanto a ciência (referindo-se
especialmente às ciências humanas) como a filosofia. Foucault entende aqui por historicismo a
equivalência entre guerra e história: o saber histórico, por mais longe que vá, não encontra nunca
nem a natureza, nem o direito, nem a ordem, nem a paz; mas a guerra. A posição contrária seria
esseplatonismo que não pode conceber o conhecimento senão em termos de ordem e paz. A
forma que reveste esse platonismo no Estado moderno é a disciplinarização dos saberes (IDS,
153-154). Burguesia. A burguesia foi profundamente anti-historicista. Ver: Burguesia.
Historicisme [41J: DEr,598,696,773.DF4,279,280. HSl, ]98. IDS,75,92,96, 149, 153 155, 166, 169, 186. MC,
353, 357, 384, 389.

:*=. HITLER, Adolf (188e-re4s)

Yer: Fascismo.

2 08 HtsrontctsMo (Historictsme)
AdolfHitler [24l:4N,27, 124. DEI,546. DEz,r94,348,6s6,73s. D83,64, 134,228,280,53s,677.6s9,724. DE4.
31, 102,587,666. IDS, 232,23s.

'is6. HOBBES, Thomas (1588-1679)

Deixando de lado algumas referências à Lógica de Hobbes, em Les mots et les choses,
o Lettiata é o texto de Hobbes do qual Foucault mais se ocupa. Com efeito, ao propor como
hipótese de trabalho servir-se do conceito de guerra para analisar as relações de poder, é ine-
vitável a confrontação com Hobbes. Na hipótese de Foucault, a política e, consequentemente,
também o Estado se fundan'r na guerra, enquanto, para Hobbes, na não guerra, Em "Il faut
défendre la société", Foucault aborda extensamente a questão. A ideia de Foucault é que a
guerra, como analisadora do poder, é um recurso para estudar o poder fora do que havia sido
o discurso tradicional a esse respeito no Ocidente: o político-jurídico. O que Foucault tem
em mente, como é óbvio, é a necessidade de reinterpretar a significação da obra de Hobbes.
Decerto Hobbes faz o Estado surgir da guerra de todos contra todos, de uma guerra de iguais
ou quase-iguais, da não diferença, da indiferenciação natural. Como é esse estado de guerra
originário? Nele encontramos: 1)Representações calculadas: a) eu me represento a minhor
força, b) eu me represento que meu inimigo se representa a minha força.2) ManifestaçÕes
enfáticas de vontade: é necessário manifestar que se quer a guerra, que não se renuncia à
guerra. 3) Táticas de intimidação: mostra-se a força, mas não se chega à batalha. Como t emos,
nessa guerra não corre sangue; nela tudo se joga no campo das representações e das ameaças.
Não é a guerra efetiva, mas o medo de ser vencido, a possibilidade de sê-lo (dado que não há
diferenças originárias) o que nos leva a constituir o Estado, a constituir uma soberania. Hobbes
distingue três tipos de soberania: 1 ) De instituição: vários indivíduos concordam que alguem
ou alguns (uma assembleia) os represente total e integralmente. A soberania assume, assim,
2) De aquisição (aparentemente se opõe à anterior): uma república
a pessoalidade de todos.
seconstitui após uma batalha de conquista, quando pela força alguns dominam os outros.
No entanto, a soberania não surge da própria batalha, da vitória. Os que foram vencidos
encolltram-se diante da alternativa de retomar a guerra ate morrer (e nesse caso um povo e
uma soberania desaparecem) ou, a troco da vida, aceitam obedecer aos vencedores. Então se
constitui a soberania. 3) Uma criança quando aceita espontaneamente seguir a vontade de sua
mãe. O importante é que, em cada um desses casos, a soberania se constitui a partir de baixo.
Porque, para Hobbes, o fundamental consiste em eliminar, estrategicamente, o historicismo
político. Esse é o objetivo de Hobbes, seu inimigo e o discurso que faz do conhecimento his-
tórico um uso político, contra a legitimidade dos poderes e instituições constituídos (IDS,
78-86). * No verbete Soberania, ocupamo-nos da posição de a respeito dessa noçâo
Foucar.rlt
e da metodologia que eia implica em relação à análise do poder. "Em outros termos, mais
que se perguntar como o soberano aparece no alto, trata-se de saber como pouco a pouco,
progressivamente, realmente, materialmente se constituíram os sujeitos, o sujeito, a partir da
multiplicidade dos corpos, das forças, das energias, das matérias, dos desejos, dos pensamentos,
etc. Captar a instância rnaterial enquanto constituição dos sujeitos, isso seria, se vocês quiserem,
exatamente o contrário do que quis fazer Hobbes no Leviata" (IDS, 26).

HOBBES, Thomas 209


Thomas Hobbes 18Il: AN, 141. DE3, 128 129,174,179 180, 450, 650. DE4, 722. HSl, 178. IDS, 19,26,36.44.
51, 7 5, 77 -86, 89, 96-97, 109, 144. MC, 77, 82, 96, 108, 133, 191. pp, 59, 63.

:=r. HOLDERLIN, Johann Christian Friedrich (1710-1843)

O nome de Hôlderlin aparece frequentemente em Histoire de la folie à lâge classique e


em Les mots et les choses jtnto aos de Nietzsche, Mallarmé, Artaud. Para Foucault, suas obras
representam a literatura no sentido moderno do termo (Yer Literatura). "E, pela mesma época,
o maior poeta alemão, Hôlderlin, estava louco. A poesia do Íjnal de sua vida está, precisamente,
para nós o mais próximo da essência da poesia moderna. É justamente isto o que me atrai em
Htilderlin, Sade, Mallarmé e também Raymond Roussel, Artaud: o mundo da loucura que foi
deixado de lado a partir do século XVII, este mundo festivo da loucura irrompeu de repente
na literatura. Deste modo, meu interesse pela literatura se une ao meu interesse pela loucura'
(DE2, 109). * Foucault dedicou um artigo "Le 'non du pêre" (publicado em Criticlue n"
178, março de 1962,195-209, e reimpresso em DEl, 189-203) ao texto de f. Laplanche sobre
Hôlderlin, Htilderlin et la question du pàre (Paris, 1961).
Johann Hôlderlin [96] : DEl, 189- 19 l, 195-197, 199-203, 255, 335, 408, 426, 521, 522, 54s, 547 , s79,7 68. DE2,
105,107-109,113,t24,132,171. D83,350,490,575.D84,254.}lF,437,440-141,455,472,632,639,661. MC,59,345,
396. MMPS,89. NC,202.

:=§. HOMEM (Homme)

Les mots et les choses começa e termina com o anúncio da iminente morte do homem.
'Alívio, no entanto, e profundo apaziguamento, o de pensar que o homem é só uma invenção
recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra no nosso saber, e que ele
desaparecerá a partir do momento em que este encontre uma forma nova' (MC, 15). Com o
termo "homeml Foucault se refere aqui a duas figuras da disposição da episteme moderna, a
analítica dafinitude e as ciências humonas. Elas se formaram há apenas dois séculos, quan-
do se começou a pensar o Íinito a partir do finito (MC, 329), quando desapareceu a metafísi-
ca do infinito. A morte do homem é, em definitivo, o desaparecimento do sujeito moderno,
tal como o concebeu a filosoha (particularmente as diferentes formas da fenomenologia) e as
ciências humanas. O desaparecimento da figura que "a demiurgia do saber fabricou com suas
mãos" (MC, 319). "Uma coisa, em todo caso, é certa: o homem não é o mais velho problema
nem o mais constante que foi colocado para o saber humano. [. . . ] o homem é uma invenção
recente, da qual a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente. E,
talvez, o fim próximo" (MC, 398). Foucault sustenta que a figura do homem se formou a
partir do desaparecimento do discurso clássico (ver; Discurso), nos interstícios de uma lin-
guagem em fragmentos. O reaparecimento da linguagem na literatura, na linguística, na
psicanálise, na etnologia nos anuncia que a figura do homem está em vias de se decompor.
Ocupamo-nos dessa incompatibilidade fundamental entre o ser da linguagem e o ser do homem

2 I0 HÔLDERLtN, Johann Christian Friedrich


no verbete Linguagern. Centraremo-nos agora na disposição epistêrnica da Nlodernidade
(século XIX) e no lugar que as ciências humanas nela ocupam. Analítica da finitude. Com
o surgimento da biologia, da economia e da fiiologia e, consequentemente, com o desapare-
citnento do discurso clássico (lugar de elcontro do ser e a representação), aparece o homem,
mas em uma posição ambígua: objeto do saber e sujeito que conhece. Objeto finito e sujeito fi-
rrito. Por unr lado, a ftnitude do homem se manifesta na positividade dos saberes. O homem
está dominado pela vida, pelo trabalho e pela linguagem que são anteriores e mais antigos que
ele. A anatomia do cérebro, os mecanismos dos custos de produção ou o sistema da conjuga-

ção indo-europeia nos ntostrafll, conl os limites que lhe são impostos, que o homem é finito.
Ainda que, e é necessário precisar, essa finitude se apresente sob a forma do indefinido. A
evolução da espécie nâo está concluída, os mecanismos de produção não çessam de se modi-
ficar, nada prova que não se descobrirão sistemas simbólicos capazes de dissipar a opacidade
histórica das línguas. Contudo, cada uma dessas formas exteriores que marcam o homem em
sua finitude não podem ser apreendidas senão a partir da própria finitude. Tenho acesso ao
modo de ser da vida, fundamentalmente, através do meu corpo; às determinaçÕes da produ-
ção, através do meu desejo; à historicidade das línguas, mediante o instante em que as pro-
nuncio. Surge assim a necessidade de remontar-nos da finitude das empiricidades (a finitude
da vida, do trabalho, das línguas) a essa finitude mais fundamental (do corpo, do desejo, e da
fala) através da qual me é dada a primeira. A analítica da Íinitude designa esse movimento de
uma finitude a outra. A primeira característica dessa analítica, o modo colno marca o ser do
homem, será a repetição entre o positivo e o fundamental: 'A morte, que gasta anonimamen-
te a existência cotidiana do vivente, é a mesma que aquela fundamental a partir da qual se me
dá a minha r,ida empírica; o desejo, que liga e separa os homens na neutralidade do processo
econômico, é o mesmo a partir do qual tudo é para mim desejávei; o tempo, que leva as lin-
guagens, se aloja nelas e acaba por gastá-las, é este tempo que estira meu discurso antes
mesmo que eu o tenha pronunciado em uma sucessão que ninguém pode dominar" (MC,
326). Ainda que seja certo, como afirma Foucault, que náo era necessário esperar o século XIX
para descobrir a finitude; no entanto, até então a finitude havia sido pensada em relação ao
infinito, em A analítica da flnitude, contudo, pensa o finito a partir do finito. Neste
seu seio.
sentido, nosso autor afirma: "[...] o fim da metafísica [pensar o finito em relação ao infinito]
é somente a face negativa de um acontecimento muito mais complexo. Este acontecimento é
o aparecimento do homem [da analítica da finitude]" (MC, 328). * Foucault descreverá três
grandes formas que a analítica da finitude (a oscilação entre o positivo e o fundamental) tomou:
oempíricoeotranscendental,o cogitoeoimpensado,oretrocessoeoretornodaorigem. 1)
O empírico e o transcendental: no ser do homem haverá de se considerar o conhecimen-
to do que faz possível todo conhecimento. Por um lado, aquelas formas de análise que se di-
rigem ao corpo (estudos da percepção, dos mecanismos sensoriais, dos esquemas neuro-
rnotores) dâo lugar a uma espécie de estética transcendental; elas nos mostram que o
conhecimento tent uma rlaÍureza. Por outro lado, as que se dirigem à história dão lugar a uma
espécie de dialética transcendental: estudo das condições históricas, sociais e econômicas do
conhecimento. Pois bem, nenhuma dessas análises se pensa como um mero conhecimento
empírico; elas supõem certa crítica, entendida como determinação de divisões e separações.
Entre essas, a fundamental é a divisão a propósito da verdade. Distinguir-se-á, por isso, uma

HOMEM (Homme) 2I I
yerdade da ordem do objeto, da nat:ureza, que se esboça através do corpo, e outra que se es-
boça, por sua vez, através da história, com o dissipar-se das ilusões. Existe também uma
verdade que é da ordem do discurso, uma verdade que permite ter um discurso verdadeiro
sobre a história e a natureza do conhecimento. Mas o estatuto desse discurso é ambíguo: ou
encontra seu fundamento na verdade empírica que se esboça na natureza e na história do
conhecimento ou o discurso antecipa a verdade que se esboça (a verdade do discurso filosó-
fico constitui a verdade em formação). No primeiro caso, temos uma análise de tipo positivis-
ta; no segundo, escatológico. A fim de evitar essa ambiguidade, o pensamento fllosófico pro-
curou dar lugar a uma espécie de analítica, um discurso que não fosse nem redução nem
promessa. Essa foi a pretensão da análise das vivências (vécu). "Ela trata de articular a obje-
tividade possível de um conhecimento da natureza com a experiência originária que se esbo-
ça através do corpo; e de articular a história possível de uma cultura com a espessura semântica
que ao mesmo tempo se oculta e se mostra na experiência vivida' (MC,332).2) O cogito eo
impensado: no modo de ser do homem, funda-se essa dimensáo sempre aberta que vai de
uma parte de si mesmo, que não se reflete no cogito, ao ato de pensamento mediante o qual o
cogito retoma o impensado e, inversamente, dessa recuperaçào pura ao peso empírico. A re-
ativação do tema do cogito tem lugar, segundo Foucault, a partir de um deslocamento quá-
druplo da problemática kantiana: não se trata da verdade, mas do ser (retomar no cogito o
impensado do ser do homem); não se trata da natureza, mas do homem; não da possibilidade
de um conhecimento, mas de um desconhecimento primeiro; não do caráter infundado das
teorias filosóficas com relação às cientíÍicas, mas de retomar em uma consciência filosófica
todo o domínio das experiências infundadas em que o homem não se reconhece. A diferença
de Descartes, no entanto, o cogito moderno (da analítica da finitude) não se preocupa em
fazer do pensamento a forma geral de todo pensamento (nem mesmo do erro, da ilusão). No
cogito moderno faz-se valer a distância que separa e liga o pensamento, como presença a si
mesmo, ao impensado. Nesse espaço, que vai do cogito ao impensado e do impensado ao
cogito, situa-se a fenomenologia de Husserl. "Para nós, o projeto fenomenológico não cessa
de se desagregar em uma descrição das vivências, que é empírica apesar dela, e uma ontologia
do impensado, Que deixa fora de circulação a primazia do 'eu penso"' (MC, 337). O impensa-
do foi o An-sich da fenomenologia hegelian a, o (Jnbewussúe de Schopenhauer, o homem
alienado de Marx, o implícito, o inatual, o sedimentado de Husserl. A tarefa do pensamento
moderno será recuperar o impensado, como tomada de consciência, como elucidação do
silencioso, como o esforço por trazer à luz a parte de sombra que retira o homem de si mes-
mo. Essa tarefa constitui na Modernidade o conteúdo e a forma de toda ética. "Desde a super-
fície se pode dizer que o conhecimento do homem, à diferença das ciências da natureza, está
sempre ligado, mesmo em suas formas mais indecisas, a éticas ou a políticas; mais fundamen-
talmente, o pensamento moderno avança nesta direção na que o outro do homem deve
converter-se em o Mesmo que ele" (MC,339). 3) O retrocesso e o
retorno da origem. No
pensamento clássico, a questão da origem se apresentava como a origem da representação: a
origem da economia a partir da troca (onde dois desejos se representavam); a origem da na-
tureza na quase identidade dos seres representados no "quadro da natureza"; a origem da
linguagem nas formas elementares em que o som (na forma de grito) e o gesto (na forma de
mímica) começavam a representar as coisas. No pensamento moderno, no entanto, o trabalho,

212 HoMEM (Homme)


a vida linguagem adquiriram uma historicidade que thes é própria. Não é mais aquela que
ea

começa com o primeiro instante da representação. "Não é mais a origem o que dá lugar à
historicidade, mas é a historicidade que, por sua própria trama, deixa perfilar a necessidade
de uma origem que seria ao mesmo tempo interna e estranha [...]" (MC, 340). O homem se
descobre, assim, em uma historicidade já feita: a de uma vida que começou muito antes que
ele, a de um trabalho cujas formas jáforum institucionalizadas, a de uma linguagem na qual
nunca encontra a palavra primeira a partir da qual se desenvolveu. 'A origem é, antes, a ma-
neira pela qual o homem se articula sobre o já começado do trabalho, da vida e da linguagem
l. .1" (MC, 341). O originário é, para o homem, esse dobrar-se até as historicidades já consti-
tuídas, essa fina capa de contato entre seu ser e o da vida, do trabalho e da linguagem. Mas
essa capa não imediatez de um nascimento, está povoada de mediações. Por um lado,
tem a
como vemos, a origem das coisas se subtrai sempre ao ser do homem; por outro, é somente a
partir da origem que o tempo pode reconstruir-se, que pode brotar a duração e, deste modo,
colocar-se a questão da origem, a partir da possibilidade mesma do tempo. Nesse movimento
que vai da subtração da origem ao retorno de seu questionamento a partir do ser do homem,
encontraremos tanto os esforços positivistas em articular o tempo do homem na cronologia
das coisas como os esforços contrários para articular, agora, na cronologia do homem a expe-
riência das coisas. No pensamento moderno, encontraremos todos aqueles esforços pelos quais
o pensamento vai em busca de sua origem, se curva sobre si mesmo até desaparecer
ali desde
(Hôlder-
onde hauia partido (Hegel, Marx, Spengler), e encontramos também aqueles outros
lin, Nietzsche, Heidegger) em que não há consumaçã0, mas desgarramento. ciências huma-
nas. O que Foucault denomina o triedro de saberes da episteme moderna é formado por: íis
ciências chamadas exatas (cujo ideal é a concatenação dedutiva e linear das proposições
evidentes a partir de axiomas); as ciências empíricas (a economia, a biologia e a linguística
que, para cada um de seus respectivos objetos - o trabalho, a vida e a linguagem -, procuram
estabelecer as leis constantes de seus fenômenos); e a analítica da finitude. Cada uma dessas
três dimensões está em contato com as outras duas. Por um lado, entre as ciênciâs exatas e as
ciências empíricas, existe um espaço comum definido pela aplicação dos modelos matemáti-
cos aos fenômenos qualitativos. Surgem desse modo os modelos matemáticos, linguísticos,
biológicos econômicos. Por outro, entre a analítica da finitude e a matemática, encontramos
e

todos os esforços do formalismo, e, entre aanalítica dafnitude e as ciências empíricas,


encontramos as filosofias que tematizam os objetos dessas como a priori objetivos: as filoso-
fias da vida, da alienação e das formas simbólicas, por exemplo. As ciências humanas (a psi-
cologia, a sociologia, as teorias da literatura e dos mitos) não se situam em nenhum desses
três domínios, mas no espaço definido pelas relações que mantêm com cada um deles. Alguns
de seus procedimentos vários de seus resultados podem ser formalizados seguindo o mode-
e

lo matemático; mas, por duas razões, as relações entre a matemática e as ciências humanas
são as menos importantes. Por um lado, a problemática da matematização da ordem qualita-
tivo não é uma questão que afete exclusivamente as ciências humanas, é, antes, comum às

ciências empíricas. Por outro, como surge da análise da episteme clássico,o aparecimento das
ciências modernas, à exceçáo das ciências físicas, não é correlata a uma extensão progressiva
da matemática, mas de uma espécie de desmatematizaçâo ou, mais propriamente, de uma
regressão do ideal taxonômico (MC, 360-361). O que define, segundo nosso autor, as ciências

HOMEM (Homme) 213


humanas é a maneira como essas se situam, por um lado, em relaçáo às ciências empíricas e,
por outro, em relação à analítica da finitude. Seu espaço está delimitado pela análise do que
há no homem de positivo (o trabalho, a vida e a linguagem) e o que possibilita o homem saber
o que é a vida, o trabalho e a linguagem. Assim, as ciências humanas se situam no domínio
que vai da positividade do homem à representação dessa positividade, das empiricidades à
analítica da finitude. Elas ocupam a distância que vai da economia, da biologia e da filologia
ao que as torna possíveis a partir do ser mesmo do homem (MC, 365). O que acabamos de
dizer coloca dois problemas específicos: o primeiro com relação à positividade própria das
ciências humanas, a respeito das categorias em torno das quais e a partir das quais esse saber
é possível. O segundo, a respeito das relações entre as ciências humanas e a representação.
Esses dois problemas devem esclarecer em que sentido as ciências humanas devem ser con-
sideradas como uma duplicação das ciências empíricas e, ao mesmo tempo, como uma expli-
citação e um desenvolvimento da analítica dafinitude. Quanto à primeira questão, Foucault
distingue entre os modelos secundários de uma ciência e os modelos constitutivos. Por mo-
delos secundários, devemos entender a transposição de conceitos que, em razâo de sua eficá-
cia em determinados domínios do saber, podem ser aplicados e de fato são utilizados em outros
domínios, mas que não desempenham senão um papel acessório, dando origem a imagens e a
metáforas. Os modelos constitutivos, contudo, são as categorias a partir das quais é possível
construir como objetos um grupo de fenômenos. Foucault estabelece três pares de modelos
constitutivos para as ciências humanas: a partir da biologia, as categorias de funçao e de
norma, a partir da economia, as categorias de conJlito e de regra e, a partir da filologia, as
categorias de significaçao e de sistema. Esses três modelos estruturam, construindo-os, os
fenômenos que são o objeto próprio das ciências humanas: os domínios da psicologia, da
sociologia e da análise da literatura e dos mitos. Duas precisões são necessárias para entender
corretamente a posição de Foucault. Em primeiro lugar, que a psicologia duplique a biologia
desde o momento em que o ser vivente se oferece à representação e que as categorias de fun-
ção e de norma procedam da biologia não significa que essas sejam uma propriedade exclu-
siva do domínio psicológico. O mesmo devemos dizer a propósito das relações entre a socio-
logia e a economia, a propósito das categorias de conflito e de regra, e das relações entre a
análise dos mitos e a da literatura, e das categorias de significação e sistema. No campo das
ciências humanas, os modelos constitutivos gozam de uma mobilidade tal que não se pode
enclausurá-los em um domínio determinado, ainda que certamente o caracterizem. Em se-
gundo lugar, se poderia escrever a história das ciências humanas seguindo a primazia de cada
um desses três modelos constitutivos; assim passaríamos da primazia do modelo biológico à
primazia do modelo econômico e à primazia do modelo filoIógico. Retornando ao problema
das ciências humanas com a representação: em que sentido as ciências humanas desenvolvem
eexplicitam a analítica da finitude na direção da exterioridade? Esses modelos duplos asse-
guram a representabilidade de cada um dos objetos das ciências empíricas, isto é, a forma
como podem ser pensados e, ao mesmo tempo, como a forma na qual aquilo é pensado se
subtrai à consciência sob a forma do impensado. A categoria de significação mostra como a
linguagem, esse objeto que a filologia estuda de maneira objetiva e empírica, pode oferecer-se
à consciência, e a categoria de sistema mostra como a significação é apenas uma realidade
secundária e derivada. A categoria de conflito mostra como as necessidades e os desejos dos

2 14 HoMEM (Homme)
indivíduos podem ser representados na consciência de um indivíduo, e a categoria comple-
mentar de regra mostra como o desejo e as necessidades respondem a uma estruturação que
não é consciente para os indivíduos que os experimentam. A categoria de função assegura a
forma como a vida pode ser representada, e a categoria de norma assegura a forma em que as
funçoes se dáo as próprias regras, que nào são conscientes (MC,373-374). Essa posição in-
termediária entre as ciências empíricas e a filosofia, essa estrutura ou, mais propriamente, a

função que cumprem as categorias estruturantes tomadas das ciências empíricas, faz com que
as ciências humanas não sejam, estritamente falando, ciências;o que não significa que se deva
considerá-las como uma criaçáo imaginária ou artística desprovida de uma conformaçáo
racional. Foucault as compara à situação que ocupavam, durante a época clássica, a gramáti-
ca geral, a análise das ríquezas e a história naturol. Como essas, as ciências humanas se
situam em uma regiao metaepistemológica (MC, 366). Contraciências humanas' A
psicanálise, a etnologia e a linguística ocupam uma posição diferente daquela das ciências
humanas: nosso autor as denomina, em relação às ciências humanas, contraciências. Vimos
que o que define, para Foucault, as ciências humanas é esse espaço intermediário entre as
ciências empíricas e a analítica da finitude, espaço no qual as ciências humanas fazem passar
pelo elemento da representabilidade os objetos das ciências empíricas - a linguagem, a vida
e o trabalho - e, ao mesmo tempo, referem o empírico das ciências empíricas ao que as torna

possíveis na analítica da finitude.A etnologia e a psicanálise não se situam neste espaço de


àscilação entre o empírico e o fundamental; pelo contrário, se situam nos limites de um
e do

outro. Por um lado, a psicanálise se ocupará das figuras da analítica da finitude - aqui nosso

autor realiza um paralelo entre a Morte e o duplo empírico-transcendentai, entre o desejo e o


duplo cogito-impensado, e entre a Lei-linguagem e o duplo retorno-subtração da origem.
(MC, 386). Por outro lado, a etnologia, situando-se no ponto de descontinuidade entre a
natureza e a cultura dirige-se à região na qual as ciências humanas se articulam com a biolo-
gia, a economia e a filologia. Trata-se do ponto de interseção de uma etnologia (que, em lugar
de assimilar os mecanismos sociais sob pressão ou repressão dos fantasmas coletivos, define
o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, as regras que
regem os intercâmbios e as funções da vida como um sistema inconsciente) e de uma psica-
nálise (que, em vez de instaurar uma psicologia cultural como manifestação sociológica dos
fenômenos individuais, descobre que o inconsciente possui ou é uma estrutura formal). Sur-
ge assim o tema e a necessidade de uma teoria pura da linguagem que ofereça a ambas, etno-
logia e psicanálise, um modelo formal, isto é, a linguística, a terceira contraciência (ver:
Linguagem). Humanismo. O'desaparecimento do homem no momento mesmo em que se
o buscava em sua raíznâo faz com que as ciências humanas venham a desaparecer, eu nunca
disse isto, mas as ciências humanas irão se desdobrar agora em um horizonte que não está
mais fechado ou definido por este humanismo. O homem desaparece na filosofia, não como
objeto de saber, mas como sujeito de liberdade e de existência. Pois bem, o homem sujeito de
sua própria consciência e de sua própria liberdade, no fundo, é uma espécie de imagem cor-
relata de Deus" (DEl, 664).
Homme 13150/: AN, 3,4,7,14, l6 18,21, 23,25,35,52 53,58-63,70'7t.73,78,84-85,87,90,92-93'95'97,123,
t26,1.32,144,148, r69, 183-184, 203,223,225,231,244,270,274,283,307. A5,22,24,43,80, 108, 172,255,266,275.DEL,
65-67,69,73,81,83-85,87 94,96-97,100,104,109,118-122,124-126,128,132,135-137,151-154,157'158,160,162 163,

l6s-r66.170-173.178.181-182,186.189,193-194,202,205,209,216,2t9,221,,227,230-232,234,212,246,218'250,

HOMEM (Homme) 215


2s6-2s7,27 1,277 ,283,286,290,292-293,31s,327 ,334-335,338,342-345,347 -349,352,354,358,361,364,366,369-371,
374-375,389, 400, 402, 404, 4t2-415, 420, 424, 428, 432, 436, 439, 441, 445-448, 452, 456, 459, 463, 472, 473, 480-482,
484 486, 489 492, 496,50 1 -505, 5 1 5-5 1 8 , 522, 526-527 , 536, 538-544,552-553, 555-56, 567 -569, 578,580, 596, 599, 604,
607-608, 61 5-6 19, 622,625-627 ,629,645,651,654,656,658-661,663-664,666,693-695,709,720,735,738,7 56,7 62-763,
767 ,773-776,779,78t,788,792,796,812-813,8 1 6-8 1 8, 832, 834, 835-836, 840. DE2, 17 -18,24, 40-4r,51,62,66,77 ,96,
99, r00, 102 103, ll3, 125, 130, 138-139, 142,147,t51., r53, 155-156, 166, 180-r81, 190, 192, 198-201,210,216,2).9,223,
226-227,230-232,238,247 -249,261,275,280,286-287,290,295,302,304,350,375-376,378, 386,387, 390, 395, 405, 413,
424-425,43).,434,470,474,48t,483, 488-489, 491-492, 498, 5 1 I, 535-536,539,54t-542,545-546,551-552,558,562,564,
567 -570,579,607 ,62t-622,625-627 ,629,631,634,647 ,653,657 ,685,691-692,700-701,733,737 ,778-779,7 89, 799, 802,
8r7,822-823,827. DE3, 9- 13, 28,31,36-37,4r,46, 48, 53-54, 70, 8l-82, 84, 88, 107- 108, r 10- r l l, t),7, t2s-126,144, t s6,
I 80, I 84, I 97, 20 l, 222,232,249,26).,270,278,28t,284-286,288-289,315-316,324,332,336-339,354-356,361-362,370,
381,399,406-407,413,415,429,440-44t,443,447,454-455,464,466,470,474 475,503,507,513,5).5,524,541,545,550,
562,570,586,607 ,611,619,623,625,658-662,669,67 1-673,67 5,679,681 -682, 686, 689-692,698,702,705,7 12,7 15-7 16,
741,749,752,756,759,770,773-774,780,782,788 791,793 794,796,812. DE4, 19,28,35, 47,49,52,54-58,62,74 75,

88-89,103,106,111, 1i8, t20-122,t24, t3l, 141, t43,152,155,157,160,164, 166,174-176,200-201,208,218,223,231,


238,244-246,249-250,254,258,260,286-287,291,305, 3 i3-3 16, 3 1 9 ,322-323,328-330,332,337 .349-350, 356-358, 373,
387-388, 398-399, 406, 423, 433,441., 465, 469, 475, 47 8-482, 485-486, 50 4-505,522-523,532,536, 540-542,546, 550-55 1,
554-555. 565-566. 569-57 t.573.575, 582. 61 2-6 I 3, 6 l9 ,622,626,646,648-649,657 ,661,66s-667 ,684,707 ,7 10,7 t4-7 16,
720-721,732,753,763,773-77 4,777 ,781-782,787 ,789,792,794,797 ,803, 807, 8 13, 8 I 7-8 1 8, 822,826,828. }lD,24-27 ,

30-31,15-43,45-54,58,6263,69-70,80,83,95-96,99-101,107,112 113,125,130-131,136,138-141,145'147,157,172-180'
183- 1 86, 1 89- 1 90, 193, 195-209,225,231,234,236,240,245,253,2s6,27 1,280,287 288,292,294-298, 300, 306-307, 3 10-

314,343-346,365,372,378,380,382,389-390,396,403,406-409,411,418-419,422-126,436,439-440,443,451,453 45s,

457 -458, 459 460, 462-473, 475,476, 486,494, 496, 5 I 0-5 12, 5 14, 516,518-521,526-527 , 533,534, 536-538, 544, 517 548,

55 I -552, 554-555, 557, 559 563, 565-569, 57 4-575, 579,582 584,587-588, 590-592, 594,597, 600-603, 607, 6 10-6 I 1, 6 1 5,

624,637-644,646,648-649,651 659,677,679,683-685. HS,3, 10,23,35,39,55,60.74,84,86-88,97-98, 100, I02, 106,

115,123,124,132,136,141-t42,146 \47,150,166,171,179-180,187 189,191-194,196,214-215,218,221-224,226,228,


230,235,254,257,264,279,283,285,293,313,327 -330,342,349,352,364,37 1,373,382-383, 385, 410, 42 l, 423' 426-428,
431-433,438,446-447,448,450,453,457,469.}J51,28,31-33,80,103,158,187-191,201-202,207.H52,11 13,18-19,24,
26.30.45.53-54.56 57,64,69,71,76 77,80,82 84,89'99, 101, 104, 107, 111, ll6, 118, 122, 124-126'131,136, 138, 141'
t43-145,147,149, 152, i55, 159 160,162-165, t67, 170-181, 183-189,194-198,200-202,207-208,210,212,214,216,218,
220,222,221,226,228,230,232,234,238,240,242,244,246,248,251 -255,265-266,268-269,27 1,276-277 ,282. H53, 1 9,
25,33-34,36-37.41,43,46,48,60,62,68,72,76,92 95,97,99 100, 110, 112, 122,t29-1.30,137,139,14i, 143 144, 150,
155, 158, 160,173,175,177 178, 180 181,183, r87-189,191,194-197,199-203,205-206,208,211.,213,2t5-216,227-230,
232,236,238,240,24s,248-249,251-254,256-257,259,262,266,283.IDS,20,26,30,41,54,80,119,156 1.57,173-176,
187 ,213,216,220,226. ÀíC,lt,15-16,26-27 ,32-38,41-43,47 ,60,62 63,68,75 76, 84 86, 99, I 07, 109 1 10, 1t 8, 120 1,22,

160,164-165,169,174,184-185,189,191,207,210,212,234,237-238,254,269,271-273,275,283,287,299,311,3t4,317,
3 1 9 334, 336 339,341-376,378-394, 396-398. MMPE, 2, 16,26,29,31,36, 45, 53, 65, 68,7 1-72,7 1,76-80,83, 84, 86-87,
89, r02, 104, 107, 1 10. MMPS, 2, t6,26,29,31,36, 45, 53, 65, 68, 7t 72,74,88-89,92, 94, 96, 98-101, 103-104. NC, il, l,
7, 12,28,33-36,43, s0, 54, 64, 66, 72, 84-85, 96, 101, 120, 158, 16,1, 176, 193,200-203,206-207,21 1. OD, 30. RR, 18, 45,
52,58,66,77,80,107-108,112-113,121-122,136,141,145,152153,179,t99,210.PP,il1,31,41,58-60,74-75,80-81,
84,88,93, 102,121,129,139,141, 1,14 145, 147,149,157, 168, 170,202,205,219-220,226,24,255,283,294,298,327,
332-335. SP, 11,28,34,41,58,64,72,76,91.,94, 101, 104, 106 107, 111, 116, 119, 124,137-138,14]1-t42,143,157, 160,
1.66, 17 L, 173,193, 19s, 205, 227,238-239,241-242,243,258,263 264,270-272, 284, 288, 293,311-312.

; *:: HOM0SSEXUALI DADE (H o mosexu aI ite)

A época em que se queimam pela última vez os sodomitas - na Europa, a partir de 1726
- é a época em que desaparece todo o iirismo homossexual que a cultura do Renascimento

2l 6 HoMoSSExUAUDADE (Homosexualité\
havia suportado. No Renascimento, com efeito, condenava-se a homossexualidade como se
fazía com a magia e a heresia. No entanto, na época clássica, a homossexualidade não é con-
denada por razões religiosas, mas sim morais. 'A homossexualidade, a que o Renascimento
tinha dado liberdade de expressão, doravante entraria no silêncio e passaria para o lado da
proibição, herdando as antigas condenações de uma sodomia agora dessa cralizadzi' (}JF,122-
123). Na época clássica, a homossexualidade será o amor da desrazão. Os homossexuais, por
conseguinte, serâo internados junto aos portadores de doenças venéreas, os desenfreados, os
pródigos (HF, 126). * "Não há que esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica, médica da
homossexualidade se constituiu no dia em que se a caracterizou (o famoso artigo <le Westphal
em 1870 sobre as 'sensaçoes sexuais contrárias'pode valer como data de nascimento) menos
por um tipo de relações sexuais do que por uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma
determinada maneira do masculino e do feminino de intervir em si mesmo. A homossexuali-
dade surgiu como uma das figuras da sexualidade ser decalcada da prática da sodomia, sobre
uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma" (Hsl, 59). No século xIX,
aparece na psiquiatria, na jurisprudência, e na literatura toda uma série de discursos sobre
as espécies e subespécies de homossexualidade. Através de tais discursos, por outro lado, a
homossexualidade começou a faiar, a reivindicar sua naturalidade (HSl, i34). Na cuitura grega
clássica, a linha de separação entre um homem afeminado e um homem viril não coincide com
a oposiçâo entre homo e heterossexual. Antes, marca uma diferença de atitude a respeito dos
prazeres. O afeminado se caracteriza pela preguiça, a indolência (HSl, 99). * A categoria de
homossexualidade é pouco adequada para analisar a experiência grega dos prazeres (HS2,
207). " "A homossexualidade é uma ocasião histórica para reabrir as virtualidades relacionais
e afetivas, não particularmente pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela sua
posiçáo de algurna maneira oblíqua; porque as linhas diagonais que ele pode traçar no tecido
social pennitem que apareçam essas virtualidades" (DE4, 166).
Homosexualité | 1711: AN, 6, t9,156,220,293. DEr, 416. DE2, I I 7- 1 18, 131, 526-537,572,660,814. DE3, 149, 193,

260-261,297 ,32t-3D.,356,525,625,7 63.DE4, 163-164,166-167 ,254-255,28t,286-288, 290-295, -108 ,31 t -3t 2,314 316,
31,8, 320 3Zt,323-326,328-330,328 330,332-333, -135-336, 532, 660,662-664,7 t r,737 ,7 41,7 44 7 45.HF, 122-t23, 126.
HSI,52,s9,134.}l52,43,48,98,99,207-208,216,220,232,240,244,277.281. HS3,36.220.MMPE,46.SP,r75.

i** HUMANISMO (Humanisme)

Sobre poucos temas haverão de se encontrar, nos textos de Foucault, rnanif'estações tão
enfáticas e constantes como as que encontran)os contra o humanismo: " [. . .] o humanismo
foi, de alguma maneira, a pequena prostituta de todo o pensamento, de toda a cultura, de
toda a moral, de toda a política dos úrltimos vinte anos" (DEl, 616). Liberar-se do huma-
nismo é, para Foucault, uma exigência e uma tarefa filosófica e política. por um lado, há
uma razáo metodológica para o combate contra o humanismo. Razão qLle se enquadra no
marco da crítica às Íilosofias do sujeito (ao existencialismo, à fenomenologia, ao marxismo
humanista) e no marco da crítica à concepçâo da história solidária a cada uma dessas po-
siçoes Íilosóficas. A arqueologia, com efeito, propõe-se a liberar a história da sujeição an-
tropológica, das promessas combinadas do humanismo e da dialética (AS, 22,262,264).

HUMANISMO (tlumanisme) 217


Contra a história unitária, progressiva e teleológica, a arqueologia, com efeito, fará valer os
direitos do acontecimento. Mas, por outro lado, para além ou na raiz dessa razão metodo-
lógica, há uma razão étrca e política. Para compreendê-la, é necessário referir-se, em pri-
meiro lugar, àquelas páginas de Les mots et les choses onde Foucault coloca a dificuldade
em que se encontra o pensamento moderno para formular uma ética. Segundo Foucault, a
instauração do homem no campo do saber (a formação da analítica da finitude e das ci -
ências humanas), ao mesmo tempo como sujeito e objeto de conhecimento, implica um
imperativo que atormenta o pensamento a partir do interior, sob a forma de uma moral, de
uma política, de um humanismo: o dever de encarregar-se do destino ocidental, a obrigação
de cumprir com a tarefa de funcionário da história. Em razão desse imperativo, todo saber
é, ao mesmo tempo, conhecimento e modificação, reflexão e transformação do modo de ser
daquilo que se conhece. Com efeito, a partir da disposição da analítica da finitude (ver:
Homem), todo o saber sobre o homem busca "pensar o impensado'l "tomar consciência'l
"elucidar o silencioso'l "reanimar o inerte'i Nesse sentido, o pensamento moderno não pode
propor uma moral, porque ele mesmo é uma forma de ação, é a forma e o conteúdo de uma
ética (MC, 338-339). Pois bem, como o mostram as análises de Surveiller et punir (em
a instauração do homem
uma perspectiva certamente diferente dade Les mots et les choses),
no campo do saber foi possível a partir de um modo de sujeição (a disciplina e, mais am-
plamente, a normalização) e, ao mesmo tempo, o poder normalizador tornou possível o
conhecimento do homem. Foucault rechaça, desde as primeiras páginas, uma leitura da
história moderna dos modos de vigiar e castigar em termos de progresso do humanismo
(5P,27 -28). Descreve a formação da disciplina como anatomia política do corpo nos se-
guintes termos: "Uma observação minuciosa do detalhe e, ao mesmo tempo, uma conside-
ração política dessas pequenas coisas, para o controle e a utilização dos homens, crescendo
através da iclade clássica, levando com elas todo um conjunto de técnicas, todo um corpus
de procedimentos e de saber, de descrições, de fórmulas e de dados. E, desses detalhes, sem
dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno" (SP, 143). O humanismo moderno é
correlato da sociedade de normalização; essa é sua condição de possibilidade e aquele a
justiÍicação dessa. Em uma entrevisÍa de 1967, Foucault se expressava nestes termos: "Nós
nos dizemos: como temos um fim, devemos controlar nosso funcionamento. Enquanto que,
na realidade, é somente sobre a base dessa possibilidade de controle que podem surgir todas
as ideologias, as filosoÍias, as metafísicas, as religiões que oferecem uma determinada ima-
gem capaz de polarizar essa possibilidade de controle do funcionamento. Você entende o
que eu quero dizer? É a possibilidade de controle que faz nascer a ideia de fim. Mas a hu-
manidade não dispõe de nenhum fim, ela funciona, controla seu próprio funcionamento e
cria, a cada instante, as formas de justificar esse controle. o humanismo é uma delas, a
última" (DE1, 619). "Eu entendo por humanismo o conjunto de discursos através dos quais
foi dito ao homem ocidental: Ainda que tu não exerças o poder, apesar disso, tu podes ser
soberano. Melhor: quanto mais renunciares a exercer o poder e melhor te submeteres a
quem te o impõe, mais serás soberano.'O humanismo inventou, alternativamente, essas
soberanias sujeitadas que são a alma (soberana sobre o corpo, submetido a Deus), a cons-
ciência (soberana na ordem do juízo, submetida à ordem da verdade), o indivíduo (sobe-
rano titular de seus direitos, submetido às leis da natureza ou às regras da sociedade), a

218 HUMANISMo (Humanrsme\


liberdade fundamental (interiormente soberana, exteriormente aquiescente e de acordo
com seu destino). Em suma, o humanismo é tudo isso através do qual no Ocidente se blo-
queou o desejo de poder, proibiu-se querer o poder, excluiu-se a possibilidade de tomá-lo.
No coração do humanismo está a teoria do sujeito (no duplo sentido do termo)" (DE2,
226)."O que me aÍerrorizano humanismo é que e1e apresenta uma determinada forma de
nossa ética como um modelo universal válido para qualquer tipo de liberdade. Eu penso
que nosso futuro comporta mais segredos, liberdades possíveis e invenções do que as que
nos deixa imaginar o humanismo, na representação dogmática que dão dele os diferentes
componentes do espectro político: a esquerda, o centro e a direita" (DF,4,782).Yer: Liber-
dade. * Uma entrevista realizada com Foucault, por C. Bonnefoy ("Lhomme est-il mort?'l
DEf , 540-544), é particularmente interessante quanto à interpretação foucaultiana da
questão do humanismo. Em primeiro lugar, Foucault precisa que, contrariamente ao que se
sustenta habitualmente, o humanismo não é nem uma constante de todas as culturas nem
sequer da nossa. Isso é só uma iiusão. O termo "humanisme'\ por exemplo, nào aparece no
famoso dicionário Littré dalíngua francesa. O movimento humanista data do final do sé-
culo XIX. Segundo Foucault, o homem não tem nenhum lugar nas culturas dos séculos
XVI-XVIII; elas se ocuparam de Deus, do mundo, da semelhança das coisas, das leis do
espaço, e também do corpo, das paixões, da imaginação, mas não do homem (DEl, 540)'
Foucault se refere ao homem como essa Íigura epistemológica formada pela analítica
da

e as ciências humanas (ver: Homem), cuja arqueologia ele levou a cabo em


les
finitude
mots et les choses. "Pois bem, não só o humanismo não existe nas outras culturas, mas

também ele é, provavelmente, na nossa, da ordem do espelhismo" (DEf , 540). Em Sartre,


Hegel
o humanismo, a antropologia e o pensamento dialético estão ligados. Nesse sentido,
e Marx são os responsár,eis pelo humanismo contemporâneo, e a Critique de la raison
dialectiqueé o parêntesis que fecha esse episódio de nossa cultura. A cultura contemporâ-
nea, à diferen da razáo dialética do século XIX, caracteriza-se pelo aparecimento de uma
ça

razão analítica, que os representantes do humanismo ignoram. Ela aparece com
Nietzsche,

que mostrou que a morte de Deus implica o desaparecimento do homem. Em Heidegger,

aparece quando ele trata de retomar a relação fundamental com o ser, mediante o retorno
aos gregos; em Russell, com a crítica lógica da filosofia; em Wittgenstein, quando coloca as
relaçoes entre lógica e linguagem. Também aparece nos linguistas e sociólogos, como Lévi-
Strauss. Por outro lado, enquanto a razâo analítica do século XVII se catacteriza por sua
referência à natureza, e a razâo dialética do século XIX, por sua referência à existência (as
relaçõesentreoindivíduoeasociedade,aconsciênciaeahistória,apráxiseavida,osen-
tido e o não sentido, o vivente e o inerte), o pensamento náo dialético do século XX carac-
teriza-se pela sua referência ao saber (DEl,
542-543). Em outros textos, a interpretação
foucaultiana da história do humanismo é mais ampla. O humanismo aparece, então, como
um conjunto de temas que reapareceram numerosas vezes, através do tempo, nas socieda-
des europeias. Esses temas estão sempre ligados a juízos de valor, mas variaram tanto em
seus conteúdos quanto também o que se considera valioso. Ademais, o humanismo serviu
de princípio crítico de diferenciação. Houve um humanismo como crítica do cristianismo
e da religião em geral; houve um humanismo cristão em oposição a um humanismo ascé-
tico mais teocêntrico (no século XVII). No século XIX, houve um humanismo crítico da

HUMANISMO (Humanisme) 2Lg


ciência e outro que colocava na ciência suas esperanças. Houve o humanismo do nacional-
socialismo e também os stalinistas se proclamaram humanistas. A temática do humanismo
é demasiado móvel, diversa, inconsistente para servir como eixo de reflexão. O humanismo
serve para colorir as concepções de homem. A essa temática do humanismo, Foucault opõe
o princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autono-
mia, isto é, um princípio que está no coração da Auftlcirung. Em todo caso, há que escapar
do confusionismo histórico que identifica aAuftlcirungcom o humanismo (DE4, 572-573).
* A tecnocracia é uma forma de humanismo; os humanistas
consideram, com efeito, que
são os únicos que podem definir o que é a "ventura dos homens" e os únicos que podem
realizá-la (D8f * "[...] o humanismo do século XIX esteve sempre ligado
,617). ao sonho
de que, um dia, o homem seria feliz. Para fazê-lo feliz, se quis transmutar as estruturas
políticas e sociais, ediÍrcaram-se sistemas filosóficos e o homem sonhou o homem para o
homem. O que se torna claro agora, talvez simultaneamente, é que o homem não é nem o
problema fundamentalmente teórico nem o problema prático que foi representado, e que
não é o objeto do qual devemos ocupar-nos sem cessar, talvez porque o homem não pode
pretender ser feliz" (DEl,65l). "Precisamente, o discurso das ciências humanas tem por
função atrelar ou acoplar esse indivíduojurídico [o indivíduo ta] como aparece nas teorias
filosóficas e jurídicas] e esse indivíduo disciplinar, e de fazer crer que o indivíduo jurídico
tem por conteúdo concreto, real, natural o que foi recortado e constituído pela tecnologia
política como indivíduo disciplinar. [...] Conjuntamente, no sentido oposto, por outro lado,
a esses discursos das ciências humanas, vocês têm o discurso humanista, que é recíproco
do primeiro e consiste em dizer: o indivíduo disciplinar é um indivíduo alienado, subjuga-
do, é um indivíduo que não é autêntico; esgaravatem-no, ou melhor, devolvam-lhe a pleni-
tude de seus direitos e encontrarão, como sua forma originária, vivente e efrcaz, um indiví-
duo que é o indivíduo filosófico-jurídico. [...] E o que se chama homem no século XIX e no
XX não é senão uma espécie de imagem remanescente dessa oscilação entre o indivíduo jurí-
dico, que foi o discurso com o qual a burguesia reivindicou o poder, e o indivíduo disciplinar,
que é o resultado da tecnologia empregada por essa mesma burguesia para constituir o indi-
víduo no campo das forças produtivas e poiíticas. Dessa oscilação entre o indivíduo jurídico,
instrumento ideológico da reivindicação do poder, e o indivíduo disciplinar, instrumento real
de seu exercício físico, dessa oscilação entre o poder que se reivindica e o poder que se exerce
nasceu essa ilusão e essa realidade que se chama Homem' (PP, 59-60).
Humanisme [137]: A5,22 23,26.D81,170,3,15, 358,502, s16-517,540-542,607,615-619,651 ,653,658,664,771.
DE2,170,226,227,231 232,272,281,435,692,735,751-752,817.DF{,52,71,572-573,585,634,666 667,782,782.lHF,
48, 159, 270, 535. MC, 329, 333, 338. MMPS, 84. NC, X. pp, 15, 30, 92. Sp, 28, 34. 143. 186. 31 L

:*:. HUSSERL, Edmund (185e-1938)

Yer'. Fenomenologia.
EdmundHusserl[64]:A5,265.D81,69,74,76-79,101,127,500-501,554,582,612 613,667,770.D82,106,16,1.
165,372.DE3,31,141,430,,132,823.DF.4,53,169,134,446,155,761_767,780,789,801,814.HS,29,40,443.455.469
IDS, 19. MC,261,336,338, OD,79. pp,255.

220 HUSSERL, Edmund


:*: HYPOMNÉMATA

Foucault dedicou aos hypornnémata o artigo "tecriture de soi" ("lAutoportrait", corps


écrit, n" 5: fevereiro de 1983, p. 2-23, reimpresso em DE4, 415-430). * Ern um sentido técnico,
os hypomnématapodiam ser livros de contas, registros públicos, cadernos de notas pessoais.
Sua utilizaçáo como"livros de vidal"guias de conduta'era frequente entre o público culto.
Neles, anotavam-se as citações de obras famosas, exemplos de conduta, reflexões, raciocínios.
Eles constituíam a memória material das coisas lidas, escutadas ou pensadas, um tesouro
acumulado para a releitura e a meditação. Esse material servia parâ a composição de trataclos
mais sistemáticos nos quais se apresentavam os argumentos e os meios para lutar contra um
vício ou para superar os obstáculos e as desgraças da vida (DF4, 404,418). Mas não eram
diários íntimos ou relatos da experiência espiritual, como os que podem ser encontrados pos-
teriormente na literatura cristã; seu objetivo não era trazer à luz os arcana da consciência. Em
iugar de desvelar o indecifrável, de revelar o oculto, os hypomnémflta retrnemo já dito, o que
se pode escutar ou ler. Eles têm como objetivo a constituição de si mesmo (D84, 405, 419).
"Não haveria que considerar esses hypomnématq cotno um simples suporte da memória, que
sepoderia consultar a cacla tanto, caso se apresentasse a ocasião. Eles não estão destinados a
substituir a recordação eventualmente débil. Eies constituem, antes, um material e um quadro
para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar, conversar consigo mesmo e com
os outros, etc. [...] trata-se de constituir tmlógos boethetikós [o texto de Dits et écrits diz
"bioàthikos"; juízo, pelo sentido do texto, trata-se de "boethetikós" ], um equipamento
a nosso

de discursos que servem de ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz
e de{azer calar as pai-xões, como um amo que com uma palavra aplaca o latido dos cães" (DE4,
419). Sêneca insiste ern que a prática de si implica a leitura; com efeito, ninguém poderia extrair
do próprio fundo nern armar-se a si mesmo dos princípios de razão que são necessários para
conduzir-se na vida. Mas o ler não pode dissociar-se do escrever. A escrita, como maueira de
reunir as leituras realizadas, é um exercício darazão que se opõe, no entanto, ao grande delêito
da stultitiaprovocada pelo excesso de leituras, e pelo passar de um livro a outro (DE4, 420; HS,
343). * A escritura dos hypomnémata é uma prática regrada e voluntária do heterogêneo. Opoe-
gramático que se propõe a conhecer toda a obra ou todas as obras de um
se, assim, à prática do
autor (DE4,421). * No entanto, tal heterogeneidade não exclui a unificação, ela se estabelece
em quem escreve os hypornnémata.Por um lado, trata-se de unificar esses fragmentos por sua
subietivação no exercício da escritura pessoal. Sêneca utiliza, a respeito, a metáfora da digestão.
Trata-se de digerir o que se lê e se escreve. Os pensamentos e as observaçoes convertem-se, no
mesmo escritor, em princípio de ação racional. Por outro lado, o escritor constitui a própria
identidacle mediante a coleta das coisas ditas (DE4, 422-423). * Os cadernos de notas que cons-
tituem um exercicio pessoal de escritura podem servir também como material para os textos
que se enviam a outros. No entanto, apesar clos pontos de contato, a correspondência não deve
ser considerada corno rnera prolongação dos lrypomnématíi; a correspondência é algo mais que
o treinatnento de si mesmo pela escritura, ela constitui também uma maneira de manifestar-se
a si mesmo e aos outros (D84,423-425).
Hypomnêmata [48]: DF.a,36l, .103 405, 418 -423,425-126,430,62.t-627. HS, 343-3.14, 349 350, 352.

HYPoMNÉMATA 221
:=!. HYPPOLITE, Jean (1907 1968)

Foucault foi o sucessor de |ean Hyppolite no Collêge de France. * Hlppolite desempenhou


papel fundamental na transmissão e crítica da filosofia hegeliana; especialmente com sua
tradução da Fenomenologia do espírito.Yer: Hegel. * "Não há que enganar-se, todos os
problemas que são os nossos (de seus alunos do passado ou de seus alunos de ontem), todos
esses problemas, foi ele quem os estabeleceu para nós; foi ele quem os escandiu nessa palavra
que era, ao mesmo tempo, forte, grave, sem deixar de ser familiar. Foi ele quem os formulou
nesse texto, Logique et existence, que é um dos grandes livros de nosso tempo. Depois da
guerra, ele nos ensinou a pensar as relações entre a violência e o discurso; eie nos ensinou
ontem a pensar as relações entre a lógica e a existência; ainda hoje, ele nos propÕe pensar as
relações entre o conteúdo do saber e a necessidade formal. EIe nos ensinou finalmente que
o pensamento filosóf,co é uma prática incessante; que ela é uma maneira de utilizar a não-
filosofla, mas permanecendo sempre o mais próxima dela, ali onde e1a se liga à existência.
Com ele, é necessário recordar sem cessar que'se a teoria e cinza, a árvore de ouro da vida é
verde"'(DE1, 785).
lean Hyppolite [67]: DF,7, 167, 199, 418-455, 4s7, 4s9 461. 463,779-785. DE2, 136. DE3, 442. DE4, 48, 775. HS,
40. oD. 7,4. 75. 77.79 80.

222 HYppoLtTE, Jean


,,,4.IATRIKÉ

Fílon de Alexandria distingue o exercício da filosofia (como cura da alma) do exercício


da rredicir.ra (como cura do corpo). Para a primeira, utiliza o termo therapeutiké; para a
segunda, iatriké (HS, 95).
Iatrikê [2]:H5,95.

: *1. I DE0LO GIA (l deolog i e)

Foucault mostra-se particularmente cauteloso com o uso da noção de ideologia na descriçâo


da história do saber e clo exercício c1o poder. 'A noção de ideologia me parece dificilmente

utilizável por três razões. A primeira é que, quer se queria, quer nâo, ela está sempre em opo-
sição a algo que seria a verdade. Pois bem, eu creio que o problema não é fazer a divisão entre
o que, em um discurso, provém da cientificidade e da verdade e aquilo que provém de outra
coisa, mas sim ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso
que não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: creio que ela
se refere necessariamente a algo assim como o sujeito. E, em terceiro lugar, a ideologia está
em uma posição secundária em relação a algo que funciona para ela como infraestrutura ou
determinante econômico, material, etc. Por essas três razões, creio que é uma noção que não
se pode utilizar sem precaução" (DE3, 148). Por isso, história do saber ou das formas de
a
exercício do poder, tal como a concebe Foucault, é uma história de práticas, e não de ideolo-
gias. Ver: Prática. Ciência. Para Foucault, colocar a questão da ideologia em relação à ciência
não é colocar a questão das situações ou práticas que refletem de maneira mais ou menos
consciente nem, tampouco, a questão de sua utilização eventual ou de seu mau uso; mas sim
colocar a questão de sua existência como prática discursiva e seu funcionamento em relação
a novas práticas (AS, 241). Assim, por exemplo, a economia política desempenhou um papel
na sociedade capitalista, serviu aos interesses da burguesia; mas toda descrição precisa das

f DEOLOG lA (tdéologie) 223


relações entre a estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela
análise da formação discursiva que deu lugar à economia e ao conjunto de objetos, de conceitos,
e de opçoes teóricas que ela pode elaborar e sistematizar. Dever-se-á mostrar, ademais, como essa
prática discursiva funcionou entre outras práticas discursivas. "Ocupar-se do funcionamento ide-
ológico de uma ciência para fazê-lo aparecer e para modificá-lo não é trazer à luz os pressupostos
frlosóficos que possam habitar nela, não é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que a
legitimam; é problematizá-la como formação discursiva. Não é ocupar-se das contradições formais
de suas proposições, mas do sistema de formação de seus objetos, de seus tipos de enunciação, de
seus conceitos, de suas opções teóricas. E retomá-la como prática entre outras práticas" (AS,243).
Desde esse ponto de vista, não há uma relação de exclusão entre ciência e ideologia; por outro lado,
a análise arqueológica permite escapar do dilema'tiência ou ideologia' (HS2, l0). Poder. Ainda
que as grandes maquinarias do poder tenham sido acompanhadas de produções ideológicas, na
base, no ponto onde terminam as redes de poder, não se forma a ideologia, mas instrumentos
efetivos de constituição e acumulação do saber (métodos de observação, técnicas de registro de
dados, procedimentos de investigação e busca (IDS, 30). Ideólogos. Foucault ocupa-se repetidas
vezes dos filósofos da ideologia (de Deshrtt de Tracy, por exemplo) e de sua localização na episteme
clássica. Desde o momento em que a relação entre o significante e o significado se estabelece no seio
da representação, "era necessário, então, que a teoria clássica do signo se desse como fundamento e

justificação filosófica uma'ideologi4 isso é, uma analise geral de todas as formas da representação,
desde a sensação elementar até a ideia abstrata e complexa" (MC, 81). O projeto da ideologia, no
espaço da episteme clássica, opõe-se à característica universql tanto quanto a universalidade do
discurso exaustivo (a reconstrução da gênese de todos os conhecimentos possíveis) ea universalidade
da língua em geral (que desdobra as ordens possíveis na simultaneidade de um quadro) (MC, 99).
Ideologia burguesa. Yer Burguesia.
Ideologie [ 1 ] : DE3, 502.

Idéologie [277]: AN, 14,85, 123,210. AS, 12,53,206,232,240-243. DEl, 341, 607,617,653,658,666,836. DE2,
tt6,172,19s,230-231,235,272,303, 308, 31 1, 3 I 5, 33 6,338,342,345,3s2-353,356,3s8_362,368,438,481,493, s16_517,
523,53t,533,552,569,596,600,622-623,630,646,654,672,685,726,756-757.DF3,8,29,68,79,83,11i_112,1t4,t47,
148, 1 57, 1 58, 160, I 84, i 86, 2 10 ,263,307,324,337 -338,345-347,348-349,386,435-438,469,476,502,583,60t,626,632,
666,688,715,744,746,807,817,819,82t.D84,11,19,22,24,36,51,53,59,64,69,80,90,97,100,166,220,280,349,
514,517,540,654,663,718,770-772,828. HS,92. HSl,91, 135, 165, 168, 184. HS2, 10. HS3,89. IDS,30, 33,73,169,
230. MC, 79-83,86,96-97 ,99, I0 1, 1 07- 1 08, ltt, 1.20, 126, t28, 133,238,249,253-255,259,328, 339, 376. NC, 37 ,78,96,
104. OD, 64, 65. PP, 20, 66. Sp, 31,33-34, t87,239.

:s§. ILEGALIDADE (lllegalisme)

"Só uma ficção pode fazer crer que as leis foram feitas para serem respeitadas; a polícia
e os tribunais destinados a fazê-las respeitar. Só uma ficçáo teórica podefazer crer que nós
aderimos, de uma vez por todas, às leis da sociedade a que pertencemos. Todo o mundo sabe
bem que as leis foram feitas por alguns e impostas aos outros. Mas, parece, que podemos dar
um passo mais adiante. A ilegalidade não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos
inevitável. E um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cuja função está

224 TLEGAUDADE (tllégatisme)


prevista na estratégia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo dispôs espaços protegidos e
proveitosos onde a lei pode ser violada; outros, onde pode ser ignorada; outros, finalmente, onde
as infrações são sancionadas. No limite, diria, à vontade, que a lei não foi feita para impedir um ou
outro tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de desviar a própria lei" (DE2,
718-719). * Durante o Antigo Regime, cada classe social tinha sua própria forma de ilegalidade, e
as ilegalidades asseguraram o funcionamento da sociedade. Assim sendo, a burguesia transgredia
as regras da alfândega, das corporações, das práticas comerciais, as regras éticas das práticas
econômicas. As classes populares tinham também as próprias formas de ilegalidade, com relação
às leis fiscais e às regras das corporações. Em certo sentido, a burguesia tinha necessidade da
ilegalidade popular. Por um lado, tolerava sem dificuldades as ilegaiidades em matéria fiscal; ela
mesma tinha os próprios comportamentos ilegais a respeito da política de impostos. Por outro,
a ilegalidade das classes populares (o contrabando, por exemplo) era um modus vivendi. Ao
Írnal do século XVIII e início do XIX, a ilegalidade popular se torna intolerável. Essa intolerância
está vinculada ao fato de que a riqueza da burguesia já não é só da ordem dos bens imobiliários,
mas de tipo industrial e comercial. A partir desse momento, torna-se necessário combater todas
aquelas ilegalidades que afetam essa forma de propriedade; o roubo, por exemplo. Ao finai do
século XVIII, assistimos a uma nova economia da ilegalidade. A ilegalidade dos direitos (fraude,
evasão fiscal) continuará sendo tolerada; mas a ilegalidade contra os bens (roubo, pilhagem),
não. Nessa conjuntura, tem lugar a reforma penal: tribunais ordinários e castigo para esse último,
"Em suma, a reforma
tribunais especiais e acordos para o primeiro (SP, 84-91; D8}435-436).
penal nasceu do ponto de encontro entre a luta contra o superpoder do soberano e aquela contra
o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas" (SP, 90). Na passagem do século XVIII
ao XIX, encontramos uma tripla gen eralizaçâo das ilegalidades. A prisáo forma uma população
marginalizada para pressionar contra as formas intoleráveis da ilegalidade: conduzindo pouco
a pouco as formas de ilegalidade à infração, integrando os delinquentes ao sistema de vigilância
(recrutando agitadores, provocadores, informantes), canalizando a delinquência para as classes que
se deseja vigiar (roubar um pobre é mais fácil que roubar um rico) (SP ,27 6-282,D82, 469-470) '
* 'A prisáo não é o instrumento que o direito penal se dá para lutar contra as ilegalidades;a prisão

foi um instrumento para reor ganízar o campo das ilegalidades, para redistribuir a economia das
ilegalidades, para produzir uma determinada forma de ilegalidade profissional, a delinquência,
que, por um lado, fará pressão sobre as ilegalidades populares e as reduzirá; e, por outro, servirá
de instrumento da classe no poder frente ao operário cuja'moralidade'era absolutamente indis-
pensável, desde o momento em que se tinha uma economia de tipo industrial" (DE3, 93).
Yer Prisao.
Iltégalisme [115/: AN, 20, 81. DF,2,435,436,466-467 ,469,470,689,719'743-745'797 . DE3, 67, 86, 94, I 39, 816.
DE4. 190,209.639. HSl, s2. 5P,66,72,78,84-91, 122,278,279-286,288-290,292,296-299,304,312.

r§?. IMAGINAçÃO (tmagination)

Loucura. O primeiro capítulo da segunda parte de Histoire de la folie está dedicado


à classiÍrcação das espécies de loucura durante a época clássica. Nesse esforço taxonômico,

IMAGINAçÃo (tmagination) 225


intervémojuízomoraleaanálisedascausasfísicas;apaixãoeafalta,comoqueelaspodem
ter de liberdade, ou a mecânica dos espíritos animais. "Mas é apenas uma antinomia aparente,
e para nós somente: há, para o pensamento clássico, uma região onde a moral e a mecânica,
a liberdade e o corpo, a paixão e a patologia encontram, ao mesmo tempo, sua unidade e sua
medida. É a imaginação que tem seus erros, suas quimeras e suas presunções, mas na qual se
resumem igualmente todos os mecanismos do corpo. E, de fato, tudo o que podem ter de dese-
quilibrado, de heterogêneo, de obscuramente impuro, todas essas tentações das classificaçoes,
elas o devem a uma determinada 'analítica da imaginação' [...] A imaginação, perturbada e
desviada, a imaginação a meio caminho entre o erro e a falta, por um lado, e as perturbações
do corpo, por outro, é o que os médicos e filósofos concordam em chamar, na época clássica,
delírio' (HF, 256). A cura da loucura supõe um retorno ao imediato, não do desejo, mas da
imaginação; retorno que afasta da vida do homem e de seus prazeres tudo o que é artificial,
irreal (HF,423). Episteme clássica. A imaginação, na costura entre a alma e o corpo, exerce
uma dupla função: uma negativa, que impede perceber diretamente a identidade e as diferen-
a representação, restituir a ordem das
ças das coisas; outra positiva, que permite, duplicando
coisas. Por um lado, sem a imaginação, as sensações se sucederiam sem nenhuma semelhança,
em uma pura monotonia; então, nenhuma comparação seria possível e tampouco o poder
representar a ordem que existe entre elas. Por outro, através da imaginação, retornando sobre
ela, a representação pode ordenar as impressÕes. Ambos os aspectos encontram sua unidade
na ideia de'gênese'l Assim, Descartes e Malebranche, por exempio, analisaram a imaginação
como o lugar do erro e como a possibilidade de aceder à verdade (MC, 83-84)' "Se as noçÕes
de natureza e natureza humana têm, na época clássica, alguma importância não é porque se
descobriu, como campo de investigaçoes empíricas, essa potência surda, inesgotavelmente rica,
que se chama naí)Íeza; nem tampouco porque se tenha isolado dentro dessa Yasta natureza
umâ pequena região singular e complexa que seria a natureza humana. De fato, esses dOis
conceitos funcionam para assegurar o pertencimento, o nexo recíproco da imaginação e a
semelhança [. . . ] Natureza e natureza humana permitem, na configuração geral da episteme,
o ajuste recíproco da semelhança e da imaginação, que funda e torna possível todas as ciências
empíricas da ordem' (MC, 85). Sonho. Na introdução à obra de Binswanger (ver: Fenome-
nologia), Foucault ocupa-se do nexo entre a imaginação e o sonho, e de sua significação no
Daseinanalyse. * Spinoza, em uma carta dirigida a Pierre Balling (1664), distingue dois tipos
de imaginação: a que depende somente do corpo e aquela que oferece um corpo sensível às
ideias do entendimento. A primeira é a que se encontra nos delírios. A segunda constitui
uma forma específica de conhecimento. Esta última é a que aparece na Etica. A análise dos
sonhos proféticos, no Tratado teológico-político, sitta-se entre ambas. A imaginação ligada
ao corpo oferece a coloração individual aos conteúdos dos sonhos proféticos; mas o sentido
desses sonhos, que requer uma exegese, manifesta o nexo entre a imaginação e a verdade. O
sonho e a imaginação são, por isso, uma forma concreta de revelação. Desse modo, Spinoza,
como Malebranche, estabelece um nexo entre a imaginação e a transcendência (DEl, 82-83).
'A imaginação, signo de transcendência; o sonho, experiência dessa transcendência sob o signo
do imaginário" (DEl, 83). - "É a existência mesma que, na direção fundamental da imagina-
próprio fundamento ontológico" (DEl, 109). O sonho não é uma modalidade
ção, indica seu
da imaginação, ele é a condição primeira de sua possibilidade (DEl, 110). Toda imaginação,

226 IMAGINAçÍ\o (lmaginatíon)


para ser autêntica, deve aprender a sonhar, e a arte poética só tem sentido se ensina a romper
o fascínio das imagens, para abrir caminho à imaginação (DEl, 118). * "Quisemos mostrar
tudo o que no texto de Binswanger sobre o sonho podia aportar a um estudo antropológico do
inraginário. O que ele traz àluz no sonho é o momento fundamental em que o movimento da
existência encontra o ponto decisivo da separação entre as imagens, onde a existência se aliena
em uma subjetividade patológica, e a expressâo, onde a existência se realiza, em urna história
objetiva. o irnaginário é o meio, o 'elemento'dessa opção. pode-se, então, alcançando, no co-
ração da imaginação, a significação do sonho, restituir as formas fundamentais da existência,
manifestando a iiberdade, designando a ventura e a desventura, posto que a desventura da
existência se inscreve sempre na alienaçâo, e a ventura, na ordem enrpírica, só pode ser ventura
de expressão" (DEl, 119). Roussel. Roussel descobre uma forma de imaginação até agora
desconhecida. Os jogos de Impressions dAfrique, os mortos de Locus solus não pertencem
nelll ao sonho nem ao 1àntástico. Aproximam-se do extraordinário, mas minúsculo, artificial
e imóvel (D81,422-423). Imaginação política. Os hon-rens do século XVIII e XIX posslíam

o poder de sonhar o futuro da Humanidade. Nós padecemos de uma aridez de imaginação


política. "Uma coisa é deternrinante: que o marxismo tenha contribuído e contribui sempre
ao empol'rrecimento da imaginação política [...]" (DE3, -599). Ver: Marxismo.
Imagination IJ9óJ: AN,9\,249,264 267,271.288s. AS, 35.237,240,251,262. D81,68, 76-77.82-84.86.88.96.
106, I 09, 1 111-l 19, I 86,268,279, 283,297 298,304--108,3r0,327,122,Q3,428-429,4-11,480, s05, 5.10, -556.628,6-10-63 t,
686, 704, 716,757,764 765.DF.z,1.7, )12,192,2t4,25 1, 253. 255-256, 288, 535, 677, 739, 797, 820. DE3, 8 I. 81,239,431,
505,52.1,599-600,607,633,67t.678 779.DE4,87, r r 1, 115, 123,184,329-332,158,570,603-604,661,762,769,300-801.

HF, 21, 28, -10. 37, 43, 51, s7, 67, r2 1, 1 10, 1 50, 167 ,202,249.250-25 1, 254-258, 264,266,284,296 298. 300-30 I, 306-307,
311,321-322,330,333,335,339,341,3.18,354,359,i72,380,383 384,396,407,.116 1t7,423-124,451,4s3,456,458,499,
519,520, -523,5,14-54.5,,s61,566,583,601,634,656. HS,351,375,41+,418,145-416,453. H53, 165. IDS. 189. MC,7.8,62,
72,76,81,83-85,87,105,127,1:15,158,160,172-175,216'217,219,231,252,320,329,340.346,355.MMPE,4.I{MPS,
4,77,85-86,91. NC, VIII,.l3, 1()7. PP, 19,146,202,).23. RR, 1-5,15,49,53,98, 193, 197. SP, 37,93 94,242,215.

:*s. INCONSCIENTE (lnconscíent)

Yer Psicanálise.
Inconscient[207]:AS,22,35,39,65,160,197,252,262,264.DEI,69,87,122123,t27 129,142 143,152,280,338,
440-143, 445, st4,522, 569, 57 6,578, -580, 609, 653-654, 656, 66 1, 663-666 .704,706,708,77 1,779,802,804. DE2, 9, 1 3,
1 89, 232, 28.1, 3 13 , 326,3,-3-37 4,148, 479,523, 553-s55,562,662,666,7 19-720,7 46,770,779. DE3, 30, 97, 118,263,293,
297,3t5,31.8,372,526-527,539,568,590, 595, 766,8r7. DE4,52,62, 386, 435, 6l 1, 652,667.737. HF,144, 456. HS, 41.
HS1,40,94. HS3, r96. MC, 3t).,337,338,373-376.378, i83,385-386,,188,390 392. MMPE.,13,56,86, 108. MMPS,
43, 57, 88, 98. SP, 24, 31 l.

: ::-J- I N D IVI D UALTZAçÃO (t n d i vid u a Ii sat i o n)

Sujeito, poder. As disciplinas marcam uma inversão do eixo político da individualizaçâo.


Nas sociedades feudais, a inclividr.ralização é máxima do lado em que se exerce o poder, nas

INDIVIDUALtzAçÃO çtnclividualisation) 227


regioes superiores do poder. Quanto mais poder se tem, mais se é marcado como indivíduo. No
regime disciplinaç no entanto, são fortemente individualizados aqueles sobre os quais se exerce
o poder, mediante a vigilância contínua e o exame (SP, 194-195). Todas as ciências e práticas
com o radical "psi" encontram seu lugar nessa inversão do eixo de individualização (SP, 195).
* A individuahzaçáo não se opõe ao poder; ao contrário, nossa individualidade, a identidade
obrigatória de cada um é o efeito e um instrumento de uma forma de exercício do poder, o
poder disciplinar (DE2, 663). * A espiritualidade cristã e sua técnica é uma busca crescente de
individualização (DE3, 621). * A racionalidade política moderna enraíza-se no poder pastoral e
na razão de Estado; ela é, ao mesmo tempo, individualizante e totalizante (DE4, 161). Pode-se ver
no Estado moderno uma matriz de individualização e uma nova forma de poder pastoral (DE4,
230). Discurso. A descrição dos enunciados e da maneira como se organiza o nível enunciativo
conduz à individualização das formaçoes discursivas (AS, 152). Yer Enunciado.
Individualisation 1S3J: AN, 43. AS, 16, 33, 51, 53, 1 10, 1 I l, 123, 13 1, 137 152,262. DEr, 558, 674,702,7 t8'792.
'
D82.42.49,663,673.D83,219,516-518,550, 621.DF4,28, 161, 191, r92,227,229-230,232,758,827. HS,391. HSl,
78. IDS.2 l 6. PP, 17, 46, 5 1, 54, 56-58, 7 r,77,79,81, 87, 105, 148. sP, 28, 101 -102, 194- 19-5, 201,,240,242,252'312

:.]ir I NTELECTUAL (l ntel lectuel)

Em DE2,306-315, encontra-se uma interessantíssima entrevista com G. Deleuze acerca


dos intelectuais e do poder. Ocupamo-nos dela no verbete Deleuze. Sobre a mesma questão,
outros textos fundamentais são: "La fonction politique de f inteliectuel" (DE3' 109-114),
"Entretien avec Michel Foucault" (DE3, 140-160). Tradicionalmente, a politização de um
intelectual, segundo Foucault, levava-se a cabo segundo dois eixos: sua posição de intelectual
nâ sociedade burguesa e a verdade que trazia à luz em seu discurso. Um intelectuai dizia a
verdade àqueles que não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la (DE1, 308).
Assim, o intelectual'de esquerda'tomava a palavra e, como representante do universal, se
the reconhecia o direito de falar como mestre da verdade e da justiça. "O intelectual seria a
figura ciara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e
coletiva' (DE3, 109). Foucault opõe a essa flgura do "intelectual universal" a figura do "inte-
lectual específico'1 Enquanto o intelectual universal deriva do "jurista-notável" (do homem que
reivindicava a universalidade da lei justa), o intelectual específico deriva do "sábio-experto'i
Este último é uma figura que se desenvolve a partir do pós-guerra; a figura de Oppenheimer
serviu de dobradiça entre um e outro. "E, por primeira vez, eu creio, o intelectual foi perseguido
pelo poder político, não mais em função do discurso geral que tinha, mas por causa do saber
que possuía; é a esse nível que constituía um perigo político [...]" (DE3, 110). É necessário,
segundo Foucault, redefinir a figura do intelectual específico. Seria perigoso desqualiÍicá-lo por
seu saber específico, dizendo que é para especialistas e que, portanto, não interessa às massas
(pois elas têm consciência de tal saber e estão implicadas nele), ou que serye aos interesses
do capital ou do Estado (pois isso mostra o lugar estratégico que ocupa) ou que é o veículo
de uma ideologia cientiÍicista (o que é secundário com relação aos efeitos de poder próprios
dos discursos verdadeiros) (DE3, 112). Essa redefinição da figura do intelectual especíÍico
passa pela maneira como se coloca a questão da verdade. A esse respeito, Foucault indica cinco

228 tNTELEcTUAt Untellectuel)


características da 'tconomia política" da verdade: 1 ) A "verdade" está centrada nos discursos
científicos e nas instituições que os produzem. 2) Ela está submetida a uma constante incitação
política econômica. 3) A verdade é objeto de difusão e consumo. 4) A verdade é produzida
e
sob o controle dominante, não exclusivo, clos aparatos políticos e econômicos (a universidade,
o exército, a escritura, os media).5) Ela está em jogo em todo debate político e todo enfren-
tamento social. A partir daqui, Foucault apresenta cinco proposiçÕes para redefinir a figura
do intelectual: 1) Entender por "verdade" um conjunto de proceclimentos para a produçâo, a
lei, a repartição, o pôr em circulação e o funcionamento dos enunciados. 2) Entre a verdade
e o poder, existe uma relação circular; os sistemas de poder a produzem e sustentam e ela
incluz ef-eitos de poder. Seria uma quimera opor uma verdade sem poder :r um poder sem
verdade (proposição característica do intelectual universal). 3) Esse regime da verdade não é
só ideológico ou superestrutural, mas tbi uma condição para a formação e o desenvolvimento
do capitalismo, que funciona ainda nos países socialistas. 4) O problema político fundamer:tal
do intelectual não é a crítica dos conteúdos ideológicos, mas a possibilidade de constituir
outra política cle verdade. 5) Não se trata de liberar a verdade de todo sistema de poder, mas
de separar o poder da verdade de suas Íbrmas hegemônicas (sociais, econômicas, culturais)
(DE3, I 12- I 14). Por isso, o intelectual específico está inserido em uma tripla especificidade:
a de sua posição social, a de suas condições de vida e trabalho, a da p6lf1i6x de verdade de
*
nossas sociedades. "Mas, se o intelectual se põe a desempenhar novamente o papel que
desempenhou durante cento e cinquenta anos, de profeta a respeito do que'deve serl do que
'deve acontecerl ter-se-ia novamente esses efeitos de dominação e se terá outras ideologias que
funcionam da mesrna rnaneira" (DE3, 348). 'A função do intelectual não e dizer aos outros
o que têm que fazer. Com que direito o faria? Lembrem-se de todas as profecias, promessas,
mandatos e programas que os intelectuais formularam nos últirnos dois séculos e cujos efeitos
se r,êm agora. O trabalho do intelectual não é modelar a vontade política dos outros; mas é o
de, pelas análises que fez nos dornínios que lhe são próprios, reinterrogar as evidências e os
postulados, sacudir os costurnes, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades
admitidas. Retomar a medida das regras e das instituições e, a partir dessa reproblematiza-
çâo (onde pôe em jogo seu oficio de intelectual específico), participar na formação de uma
vontade política (onde tem que desempenhar seu papel de cidadão)" (D84,676-677). Mais
brevemente, a função do intelectual consiste em diagnosticar o presente, nào em raciocinar
em termos de totalidade para formuiar as promessas de um tempo que virá.
Intellectuel 1245J: AN,5.45,55. DEl, 132,513,516-517,550,652,79r.D82,192,236,307 309, -3-31,3ó1,100,
12t422,173,478,491,498.+99,507,517,525,703,720,737,759,772,775777,782,789.DE3,8,80,8586,107,109,r10-
1 1.1, I 33, 1 54- r60, 26U, 329, 348, 38-1, -199, 175, 53 1, 537, s9.1-596, 604, 60s, 6 10, 6 26,634,667 ,669,7 94, 806. DE4, 18-50,
59, 64, 78, 81, 86 87. 92, 95 96, 105, l, 205, 2 0, 319, 335, 347, 350, 373, 4,19,152, 496, 498. 520, 52e, 535-536,
r8 1 573. 638,
675 677,689,747,7 49,778. HS, 3:, 1 i3, r _15, 282, 424. NC, 21. PP, 62, 2 r9, 225,230, 264,282,292,329.
1

Arqueologia. A arqueologia, com seu princípio descritivo de exterioridade, renuncia a


descrever os enunciirdos como a tradução de operações ou de processos qLle se desenvolvem

INTERIORIDADE \tnteriorite) 229


em outro lugar (na interioridade do sujeito, na consciência psicológica ou em um domínio de
constituições transcendentais), tratando de reconstruir o processo de expressão em sentido
inverso. Ao contrário, devemos descrevê-los como um espaço anônimo cuja temporalidade é

diversa da temporalidade subjetiva psicológica ou transcendental (AS, 158- 160). Pensamento


do fora. A passagem a uma linguagem na qual o sujeito está excluído, a incompatibilidade
entre o aparecimento do ser da linguagem e a consciência de si em sua identidade é uma ex-
periência que se anuncia em diferentes pontos da nossa cultura: nos ensaios de formalização,
no estudo dos mitos, na psicanálise, na busca de um lógos como lugar de nascimento de toda
a razâo ocidental. O pensamento dessa relação de exclusão entre o ser da linguagem e o ser
do homem, com reiação à interioridade de nossa reflexão filosóÍica e da positividade de nosso
saber, pode ser chamado o "pensamento do fora' (DEl,520-521). Psicologia. Com o desa-
parecimento do asilo clássico, no final do século XVIII, a loucura emerge de novo no domínio
público. O conceito negativo de alienaçâo, definido pelo direito, vai deixar-se impregnar e
alterar pelas significações morais que o homem cotidiano atribui à loucura. A psicologia e o
conhecimento do que há de interior no homem nasceram da consciência pública convocada
como instância universal, como forma imediatamente válida darazâo e da moral para julgar
os homens. 'A interioridade psicológica foi constituída a partir da exterioridade da consciência
escandalizada' (HF, 560). Helenismo, cristianismo. "O que se chama interioridade cristã é
um modo particular de relação consigo mesmo que comporta formas precisas de atenção, de
suspeita, de deciframento, de verbalização, de confissão, de auto-acusação, de luta contra as
tentações, de renúncia, de combate espiritual, etc. E o que é designado como a'exterioridade'
da moral antiga implica também o princípio de um trabalho sobre si mesmo, mas de uma
forma muito diferente" (IJ52,74).Nas práticas de si mesmo da cultura helenística, conhecer-se
a si mesmo, no movimento da conversão, não implica o conhecimento de uma interioridade.
Não há tâmpouco uma oposição entre o conhecimento de si e o conhecimento da natureza.
Em Sêneca, por exemplo, é antes o contrário, o conhecimento de si passa pelo conhecimento
da natureza (HS, 267). Yer Subjetivaçao.
Intériorité [80]: AN,96. AS,54,98, 159,164,274. D81,79,90, 194,276,280,357,520-523,526,528-529,534,538,
568, 592, 685, 695, 783, 793, 81 9. DF,2,23,47,284,295,424.D83,564, 820. HF, 236, 4l 1 ,439,460,471,560, 564, 6,16-6.18.
HS.248,265,267,277,288.295. HS2. 74,92.;§{C,283,365. MMPS,86. NC,59. OD,51.

ã*3. I NTERPRETAÇAO (l nte rpretati on)

A questão da hermenêutica e da interpretação, em geral, encontra em Foucault uma dupla


Iocalização. Por um lado, Foucault se ocupa de estabelecer as condiçÕes histórico-epistêmicas
das diferentes concepções da interpretação; especialmente, da interpretação durante o Renas-
cimento e no século XIX. O objetivo desse trabalho é levar a cabo a arqueologia das ciências
humanas. Por outro lado, a arqueologia como método de análise histórica quer ser uma forma
de análise que se distancia dos pressupostos e dos procedimentos da hermenêutica. 'As ciên-
cias humanas apareceram a partir do final do século XIX submetidas a uma dupla obrigação,
uma dupla postulação simultânea. Aquela da hermenêutica, da interpretação ou da exegese: é
necessário compreender o sentido que se esconde. E a outra: é necessário formalizar, encontrar

230 TNTERPRETAçÃo (tnterpretatian)


o sistema, o invariante estrutural, a rede das simultaneidades. Pois bem, essas duas questões
parecem enfrentar-se de maneira privilegiada nas ciências humanas, a ponto que se tem
impressão de que é necessário que elas sejam isso ou aquilo, interpretaçáo ou formalização. O
que eu empreendi foi, precisamente, a busca arqueológica do que havia tornado possível essa
ambiguidade; quis encontrar o ponto de bifurcação" (D81, 500). Renascimento. Durante o
Renascimento, a interpretação, na qual se superpunham uma semiologia e uma hermenêutica,
era essencialmente um conhecimento da semelhança (MC, 71.).Yer: Episteme renascentista.
Episteme moderna. Na episteme moderna, os métodos de interpretação fazem frente às

técnicas de formalização. Interpretação formalizaçáo são os dois grandes métodos da época


e

moderna. Não se trata, no entanto, somente de oposição entre elasi são técnicas correlatas cujo
solo comum está dado pelo ser da linguagem. Era necessário, na época moderna, com efeito,
compensar o surgimento múltiplo da linguagem tornando-a transparente às formas de conhe-
cimento ou fundindo-a nos conteúdos do inconsciente. O estruturalismo e a fenomenologia,
desse modo, encontram seu lugar comum e seu próprio espaço (MC, 312). Arqueologia. A
descrição arqueológica, a análise enunciativa, é um método de análise histórica que renuncia
a toda interpretação (AS, 143,164). A arqueologia não pretende, com efeito, descobrir um
sentido que se encontraria, de algum modo, oculto sob os signos; por isso, não refere os
enunciados à interioridade de uma intenção, de um pensamento, de um sujeito. Artemi-
doro. Foucault dedica a primeira parte de Le souci de soi à análise da obra de Artemidoro, A
chave dos sonhos. A interpretação de Artemidoro situa-se em uma linha que vai do ator do
ato sexual ao sonhador do sonho, do sujeito ao sujeito; partindo do ato sexual e do papel do
terá por objetivo
sujeito ta1 como ele se representa no seu sonho, o trabalho da interpretação
Husserl' Freud' "Da
decifrar o que acontecerá uo qu. sonha quando retorne à vida desperta.
era necessário um método
confrontação entre Husserl e Freud nascia uma dupla problemática:
de interpretação que restituísse a plenitude dos atos de expressão" (DEl, 79). Nietzsche,
julho de L964, foi
Freud, Marx. A apresentação de Foucault no colloque de Royaumont, em
consagrada às técnicas de interpretação em Marx, Nietzsche e
Freud. Ela se encontra reim-
de interpretação do
pressaem DEl,564-579. Segundo Foucault, para compreender o sistema
isto com a superposiçáo
século XIX, é necessário compará-lo com o sistema do século XVI,
é,
da semelhança (Bacon,
da hermenêutica e da semiologia no espaço da semelhança. As críticas
Descartes) mantiveram em suspenso a interpretação durante os séculos
XVII e XVIII; no século
XIX, Marx, Nietzsche e Freud fundaram novamente a possibilidade de uma hermenêutica.
Eles, em primeiro lugar, modificaram profundamente o espaço de repartição
dos signos: um

espaço d.finido pela categoria nietzschiana de profundidade, pela marxista de b aixeza (plati'
tide),pelatopologia freudiana e pelas regras para a atenção psicanalítica. Em segundo lugar,
a interpretação tornou-se uma tarefa infinita. "Eu creio que esse inacabamento essencial
da

interpretação está ligado a outros dois princípios, também fundamentais, e que constituem,
junto com os primeiros dos que acabo de falar, os postulados da hermenêutica moderna' Em
primeiro lugar: interpretação não pode nunca acabar é, simplesmente' porque não há nada
se a

a interpretar. Não há absolutamente nada anterior ao interpretar, porque, no fundo, tudo


já é

interpretação; cada signo é em si mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas inter-
pretação de outros signos" (DE1,571). O segundo princípio: a interpretaçáo encontra-se diante
da obrigação de interpretar-se a si mesma, infinitamente. Deste último princípio, Foucault extrai

INTERPRETAçÃo (lnterpretation) 231


duas consequências. Em primeiro lugar, o princípio da interpretação não é outra coisa senão
o intérprete; a interpretação é sempre a interpretação para um'querni Esse é o sentido que
Nietzsche atribui ao termo "psicologial Em segundo lugar, o tempo da interpretação é circular.
"Parece-me que é necessário entender corretamente o que muitos de nossos contemporâneos
esquecem: a hermenêutica e a semiologia são duas inimigas furiosas. Uma hermenêutica que
se dobra, com efeito, sobre uma semiologia crê na existência absoluta dos signos; abandona
aviolência, o inacabado, a infinidade de interpretações, para fazer reínar o terror do índice e
suspeitar da linguagem. Nós reconhecemos aqui o marxismo depois de Marx. Ao contrário,
uma hermenêutica que se envolve sobre si mesma entra no domínio das linguagens que não
cessam de implicar-se a si mesmas, essa região intermediária da loucura e da linguagem pura.
É aqui onde reconhecemos Nietzsche" (D81,574).
Interprétation [303/: AS, 13,36,42,48,68,80, 109, 143, 146, 158, 164,200,252,261,263.D81,68-72,78-79,94-95,
100, 127 128, t31,176,210,331,335,345, 397,402,432,442-443,480, s00,502,526, s64-s77,s79,591,593,596,609,632,
705,708,713,772,775, 804, 8 15, 839. D82,45, t7).-t72,265,267,272,280,282,327 ,507 ,628-631,635,646,656-657, 808-809,
8 I 5. DE3, 23, 104,133,145-146,287,315,470,479,524,633,735,752,823.DF4,27,66,113, 17 4,198,216,269,292,403,463,
468-469, 47 t, 478, 480-482, 484, 487, 489, 49r,618, 639,659, 692,766,786,797,803-804. HF, 1 10, 145, 408, 549, 644. HS,
5. 6, 1 13, I I 4, 146. HSl, 89, 91. IJS3, t7,23,25,27,35-36,39-43,46,19. IDS, 20, 112,225.]x{C,32,53, 56-57, 71, 85-86, 89,

220.225.3tt-312.360,366,38s,393. MMPE,9,30. MMPS,9,30, 76. NC, XIII, 138, 157, 183, 188. PP,295. SP, s3.

:*3. INVESTIGAçÃO (Enquête, lnquisitio)

Para Foucault, nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação, de registros, de


acumulação, que é uma forma de poder em si mesmo e que está ligado a outras formas de poder.
Por sua vez, o poder não se exerce sem a apropriação e a distribuição de saber. Ambos, saber e
poder, funcÍonam entrelaçadamente (DEf , 389). Nessa perspectiva, Foucault aborda a história
das teorias e instituiçoes penais. Foucault dedicou a essas o seminário de 1970-1971 e o curso
de l97l-1972 (DEl, 389-393), no Collêge de France. Este último atrso, Surveiller et punir, e as
conferências no Brasil - sob o título "La vérité et les formes juridiques" (D82, 538-646) * cons-
tituem os textos fundamentais acerca dessa questão. Foucault examinou as noções de medida
(mesure), de investigação (enquête) e de exame como formas de poder-saber. A medida, liga-
judicial na
da à constituição da cidade grega, tinha a função de ordenar. Na evolução da prática
Grécia, a busca de uma justa medida não só na ordem dos intercâmbios comerciais, mas tam-
bém nas relaçoes sociais dentro da cidade, era um requisito para assegurar a ordem na própria
cidade (busca de tm nómos como justa lei de distribuição) (DEl, 244). A investigaçáo cons-
tituiu um meio para constatar os fatos, os acontecimentos, os atos, as propriedades, os direitos;
mas é também amatriz dos saberes empíricos. Ela teve, como veremos, uma funçáo de centra-
lizaçáo nas instituições penais do Ocidente. O exame constituiu um meio de restauração da
norma, de qualificação e desqualificação e, por isso, de inclusão e exclusão. O exame foi a matriz
das ciências humanas (DEl, 391). * Na terceira conferência de "La vérité et les formes juri-
diques", a história da investigação começa na Grécia. As primeiras conferências são dedicadas
a uma leitura da história de Édipo desde esse ponto de vista (ver: Edipo). Após essa grande
revoluçáo democrática no direito grego, o segundo nascimento da investigação situa-se na
Idade Média. A diferença da investigação grega, que caiu no esquecimento, a forma medieval

232 INVESTIGAçÃo (Enquête, lnquisitio)


da investigação alcançará dimensões extraordinárias na história ocidental das relações entre o
saber e o poder (DEl, 572).Em primeiro lugar, devemos notar que a investigação, como méto-
do de verificação da verdade mediante a experiência e os testemunhos, não existia no antigo
direito germânico. Exceto nos casos de traição e homossexualidade, não havia ação pública na
ordem penal; a confrontação penal situava-se ao nível dos indivíduos, sem a intervenção de
nenhum representante da autoridade. Havia um processo penai desde o momento em que um
indivíduo ou um grupo se consideravam vítimas, prejudicados pela ação de outro indivíduo ou
grupo de indivíduos. O processo, por sua vez,era da ordem da luta, da confrontação entre os
indivíduos envolvidos. Nessa confrontação, podia-se chegar a um acordo, existia a possibilidade
de uma compensação econômica para os indivíduos prejudicados. Nesse caso, podia-se recorrer
a um árbitro para estabelecer a soma da compensação, da indenização. Mas, é necessário preci-
sar, tal "indenização" ou'tompensação" não era a indenização ou a compensação por uma falta
(porque, estritamente falando, não havia falta), mas pelo prejuízo ocasionado. Em poucas pala-
vras, o procedimento penal consistia em uma confrontação, em uma prova de força, que podia
concluir em uma transação econômica (DEr, 572-573).Do século V ao X, houve uma confron-
tação contínua entre o direito germânico e o direito romano; com o Império carolíngio, o direi-
to romano foi substituído pelo direito germânico; mas, a partir da queda dos carolíngios (no
seculo X), e, especialmente, a partir dos séculos XII e XIII, reapareceram os procedimentos do
direito romano. * O direito feudal foi essencialmente de tipo germânico. Foucault indica quatro
características. l) A forma binária da "prova' (épreuve). A "prova" não era uma maneira de es-
tabelecer ou de provar a verdade, e sim a força, o peso, a importância de quem falava. Havia
diferentes forrnas de prova a esse respeito: provas verbais (recitação de uma tórn-rula), juramen-
tos, provas corporais, físicas (ordalies). Tratava-se de recitar uma fórmula sem equivocar-se, de
não hesitar no rnomento de expressar o juramento ou, por exernplo, de caminhar sobre brasas.
2) A confrontação acabava com uma vitória ou uma derrota. Em nenhum lugar aparece algo
assim como uma sentença. 3) A prova funcionava de maneira "automática': não se requeria a
presença de um terceiro personagem para julgar a veracidade dos adversários. 4) O rnecanismo
da prova náo serve para estabelecer quern diz a verdade, e sim quem é mais forte e, por isso, tem
razáo (DEl, 57 4-576). * Esse sistema de 'provas" desaparece durante os séculos XII e XIII, e, no
seio de tal transformação, surgiram outras formas de fazer justiça. "O que foi inventado nessa
reelaboração do direito é algo que não concerne aos conteúdos, mas às f'ormas e às condiçoes de
possibilidade do saber. O que se inventou no direito, nessa época, é uma determinada maneira
de saber, uma condição de possibilidade do saber, cujo destino será capital no mundo ocidental.
Essa modalidade de saber é a investigação, que havia aparecido por primeirayezna Grécia e que
permaneceu dissimulada após a queda do Império romano, durante séculos" (DEl, 577). Foucault
alude à formação de uma administração da justiça de ordem institucional, estatal, no sentido
amplo do termo. Processo que, ademais, acompanha o surgimento da monarquia medieval. Essa
formação trouxe consigo uma série de consequências. 1) Doravante, os indivíduos não terão o
direito de resolver entre eles seus litígios; deverão submeter-se a um poder exterior que se impÕe
como poder judicial e poder político. 2) Aparece urn personagem totalmente novo, o procurador,
como representante de um poder (do soberano, do rei) lesado pelo delito cometido. 3) Apareci-
mento da noção de infração. A infração não é o prejúzo que um indivíduo pode ocasionar a
outro, mas a lesão que um indivíduo ocasiona à ordem da lei, ao poder político. 4) Agora, será o

INVESIíGAçÃO (Enquête, tnquisitio) 233


Estado e não o indivíduo prejudicado quem exige a reparação. Pois bem, dentro desse novo
sistema de administração da justiça, era necessário resolver a maneira pela qual se devia estabe-
lecer a sentença. Havia dois modelos para resolver tal problema. Em primeiro lugar, havia um
modelo intrajurídico. No direito feudal, no direito germânico, existia um caso em que a coleti-
vidade podia intervir para obter a condenação de um indivíduo: o caso do delito in
Jlagranti.
Mas esse modelo devia ser, de algum modo, generalizado para poder justificar a intervenção
coletiva no caso dos outros delitos. O segundo modelo resolveu essa questão. Tratava-se de um
modelo extrajudicial, a investigação (enquête),ainquisitio.Esse modelo tinha um duplo ponto
de inserção na sociedade. Por um lado, era utilizado na ordem administrativa, nas questões de
impostos, costumes, renda ou propriedade. Nesse caso, pedia-se a um grupo de pessoas qualifi-
cadas, devido ao seu conhecimento, a resolução das disputas colocadas. Um método, em defini-
tivo, de gestão administrativa. Por outro lado,ainquisitio era também um procedimento próprio
da ordem eclesiástica. Nesse caso, ela era denominada propriam ente visitatio (generalis, quan-
do o bispo, após um período de ausência, consultava àqueles aos que concernia acerca do que
havia sucedido nesse período; specialis, para estabelecer os fatos e os responsáveis). 'A investi-
gação tem uma dupla origem. Uma origem administrativa, ligada ao surgimento do Estado na
época carolíngia; e uma origem religiosa, eclesiástica, mas constantemente presente durante a
Idade Média' (DEl, 583). A investigação substituirá o flagrante delito. Com efeito, se se pode
reunir as pessoas que, sob juramento, garantam que elas viram, que sabem, que estão informa-
das, se se pode estabelecer a partir delas que algo ocorreu, então, se terá indiretamente, através
da investigação, o equivalente do flagrante delito. Foucault extrai um número de conclusoes
fundamentais dessa inserção dos procedimentos da investigação na reorganização da justiça a
partir dos séculos XII e XIIL I) Não foi a racionalização do procedimento judicial a causa da
inserção da investigação em seu seio, mas uma transformação política. A investigação é, na
realidade, uma maneira de exercer o poder. 2) A noção de investigação está impregnada, em
razão de sua origem, de categorias religiosas. Na concepção da Alta Idade Média, não havia
falta ou infração, mas prejuízo. A partir do século XIII, dá-se uma conjunção entre a violação da
lei e a falta religiosa. 3) O modelo da investigação judicial se difundiu por numerosos domínios,
sociais, econômicos e do saber. Nessa ordem, substituiu o método da "prova'tal como essa
funcionava, por exemplo, na alquimia ouna disputafio da universidade medieval (DEf , 584-
587). * O panoptismo é uma forma de exercício do poder que não se baseia na investigação, mas
em um procedimento completamente diferente, o exame (DEl, 595). Enquanto a investigação
foi o modelo de estabelecimento da verdade a partir do qual se constituíram as ciências empíri-
cas, o exame foi a matriz das ciências humanas. Mas, se as ciências empíricas puderam separar
o modelo da investigação de sua matrizpolítica,as ciências humanas, no entanto, não separaram
o modelo do exame de sua matriz política (5P,226-227).yer: Exame. * Acerca da função da
investigação nos procedimentos judiciais dos séculos XVII e XVIII, ver: Castigo, Confissão.Em
Le pouvoir psychiatrique,Foucault contrapõe duas concepções de verdade: a verdade-demons-
tração e a verdade-acontecimento (ver: Verdade). A prova (épreuve) forma parte da história da
verdade como acontecimento; no entanto, a investigação forma parte da verdade-demonstração.
'A passagem de uma tecnologia da verdade-acontecimento à verdade-demonstração creio que
está ligada à extensão dos procedimentos políticos da investigaçã o (enquête). A investigação, o
informe, o testemunho diante de muitos, a organização das informações, a circulação do saber

234 INVESTtGAÇÃo (Enquêre, tnquisitio)


desde o centro do poder até suas extremidades e seu retorno, também todas as instâncias de
verificaçào paralela, tudo isso progressivumerlte constituiu, ao longo da história, o iustruntento
de um poder político e econômico que é o da sociedade industrial. Daí a aÍinação, a quadricula-

ção cada vez mais ajustada dessas técnicas de investigação dentro dos eiementos onde já havia
o costume de elas serem aplicadas. Em suma, se lhes parece, a afinação que fez com que se pas-
sasse de uma investigaçâo essencialmente de tipo fiscal na Idade Média (saber quem coleta o
que, quem possui o que, para tomar o necessário); a passagem da investigação de tipo fiscal à
investigaçâo de tipo poiicial sobre o comportamento das pessoas, a maneira como vivem, a
maneira como pensam, a maneira como fazem amor, etc., essa passagem da investigação fiscal
à investigação policial, a constituição da individualidade policial a partir da individualidade
fiscal que era a única que o poder conhecia na Idade Méclia. Tudo isso é significativo desse afian-
çamento da investigação em uma sociedade como a nossa. [...] Pode-se dizer que se assiste,
desde o Íinal da Idade Média, a um desdobramento generalizado da investigação sobre toda a
superfície da terra e até os grãos mais Íinos das coisas, dos corpos, dos gestos; uma espécie de
parasitismo inquisitorial [...]" (PP,246). * Nesse sentido, também em Le pouvoir psychiatrique,
Foucault estuda como se transformou a medicina, ou melhor, a prática médica em reiação a
essas duas morfologias da verdade. Com o surgimento da anatomia patológica, a medicina geral
deixa de lado aqueles elementos que pertenciam à história da verdade-acontecimento para
adaptar-se aos procedimentos cujo modelo é a investigação e que pertencem à história da ver-
dade-demonstração. Foucault refere-se, em particular, à noção médica de crise de uma enfermi-
dade. No caso da psiquiatria, no entanto, a noção de crise reaparecerá, transformada, a partir
dos procedimentos de "provas de realidade'l Yer: Psiquiatria.
Enquête [300]: AN,85. AS,60, 105,267. DEl, 133,162,437,495,548,598,634,720.D82,137'174-177'18].'193'
195 200, 203, 206, 232,236,238, )78,307 ,316,32i .346,383,390 492, 5 I 5, 54 I - 542, 556, 570 57 4, 577,58 I -585, -587-588,

594-595, 601, 623,625,628,631, 635,642,658,696-697. DE3, 25, 28,37,45,142,194,196,227 228,245-246,269-270,


339,318,146.509,513.5t9,629,684,719,737,783.D84,35,37,41,55,57,59,67,213,320,465,166,574,592,665,827.
HF, I 7, 151, 428, 4 47,479,521,556, 563, 577. HS ,165,270,461. HS l, 78, 97. HS3, 20-2 l, 77. IDS, 109. MC, 13, 46, 89,

137 , D,4,233,27 1,298. NC, 26, 60, 112. PP, 98, 2I 0. 233,246'248,251 ,256-257 ,262. sP,24' 44-46, 59-60,72' 100' 124'
226-)28,248,255,27 3.

hquisitio [ 4]: D82., 58 l, 583.

lNvEsTlGAÇÃO (Enquêre, lnquisitío) 235


l:i::::i::lr !.i:ri

!=.i:j :::,i::.i

i**. JARRY, AIfred (1873-1907)

Foucault toma de empréstimo da obra de larry, Ubu roi, o termo "ubuesco'l que utiliza
para descrever o funcionamento do poder. Ver: Ubuesco.
AWed larry [1]:4N,26.

:.*=. JUSTI, Johann Heinrich Gottlob von (1717-1771)

Yer: Razao de Estado


lohann lleinrich Gottlob Von fusti [16]: DE4, 1-58,160,825-826. HSf, 35.

236 JARRY, Atfred


r.:it-:.t-::.::i-!:+- j:i

.:l,:.i::::=51:
t::j.::ailr:=!i:al

.5=,:i='

KAFKA, FÍanz (1883-1924)


=*+.

KaÍka é citado junto a Blanchot e a Bataille como os autores nos quais a literatura aparece
no sentido propriamente moderno. "[...] com Kafka, com Bataille, com Blanchot [a literatu-
ra] se oferece como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do
pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária,
sempre aí, no ponto mais próximo à linguagem e mais afastado), como experiência da finitude
(capturada na abertura e na exigência dessa finitude)" (MC, 395). Yer: Línguagem.
255,298,342-344,348, 358, 362,37 4,37 4-376,378, 382, 793. DE2' 82' 124'
733,
Franz KaJka [4g]: AN,1 3. DEl,
DE3,336. IDS,20. MC,39s. RR, 17.

;*:. KANT, Inmanuel (1124-1804)

A relação de Foucault com Kant é, ao mesmo tempo, de ruptura e de continuidade. Por


um

lado, a arqueologia e a genealogia, desde uma perspectiva nietzschiana, opõem-se à disposição

kantiana, antropológica, do pensamento moderno. O mesmo se pode dizer da concepção


foucaultiana da ética. Assim, para dar um exemplo, Foucault marca as diferenças que há entre
o"a priorihistórico" e o"a priorikantianol Enquanto este último busca as condições trans-
cendentais de possibilidade do conhecimento, o " a priori histórico" não remete as condições

de possibilidade do conhecimento a nenhuma instância transcendental, mas apenas às suas


formas históricas regulares, porém contingentes (Ver: A priori historico). Para expressá-lo em
outros termos, em Foucault, à diferença de Kant, não há nenhuma subjetividade transcenden-
taI, mas sim dispersáo histórica. Sua concepção da ética tampouco poderia estar mais afastada
de uma ética concebida em termos de lei universal ou imperativo categórico. Para Foucault, a
ética se define por uma forma de relação consigo mesmo que nào passa por uma lei válida para
todo sujeito humano, mas pelo que denomina uma "estética da existência] quer dizer, fazer da
própria vida uma obra de arte (com tudo o que há de singularidade no conceito de 'bbra de

KANT, lnmanuel 237


arte") (Ver: Etica,Estética da existência). Mas, por outro iado, Foucault não delra de assinalar
sua Íiliação kantiana. No verbete "Michel Foucault'l afirma-se, por exemplo: "Se Foucault se
inscreve na tradição filosófica, o é na tradição crítica de Kant [...]" (DE4, 631). Ainda que essa
frase provenha de François Ewald, o próprio Foucault a subscreveu com o pseudônimo "Maurice
Florence'l Foucault também insiste na origem kantiana de seu uso do termo "arqueologid' (DE2,
221). Também situa (depois de havê-lo feito com relação ao estruturalismo e a Nietzsche) sua
prática filosóÍtca, concebida como um diagnóstico do presente, na tradição e herança kantianas
(DE4, 564). É possível explicar essa relação de ruptura e continuidade a partir do duplo movi-
mento que Foucault atribui à filosofia kantiana. "Parece-me que Kant fundou as duas grandes
tradições críticas em que se divide a filosoÍra moderna. Digamos que Kant, em sua grande obra
crítica, colocou, fundou essa tradição da filosoÍia que formula a questão das condiçoes sob as
quais um conhecimento verdadeiro é possível, e, a partir daqui, se pode dizer que toda uma
corrente da filosofia moderna se apresentou, se desenvolveu, a partir do século XIX, como a
analítica da verdade. Porém, existe na filosofia moderna outro tipo de questão, outra forma de
interrogação crítica: a que se vê nascer, precisamente, na questão da Auftldrung ou no texto
sobre a revolução. Essa outra tradição crítica coloca a questão: que é nossa atualidade? Qual é o
campo atual de experiências possíveis?'Aqui não se trata de uma analítica da verdade, trata-se
do que se poderia chamar uma ontologia do presente, uma ontologia de nós mesmos. Parece-me
que a opção filosófica com que nos encontramos confrontados atualmente é esta: pode-se optar
por uma filosofia crítica, que se apresentará como uma filosofia analítica da verdade em geral,
ou bem se pode optar por um pensamento crítico, que tomará a forma de uma ontologia de nós
mesmos, de uma ontologia da atualidade. Essa forma de filosofia é a que, de Hegel à Escola de
Frankfurt passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual eu tratei
de trabalhar" (D84,657 -688). Ruptura, então, em relação à analítica da verdade, continuidade
em relação à ontologia do presente. * Em vários verbetes, mostramos as referências precisas de
Foucault a Kant. Apresentamos, neste verbete, a temática geral e referimos aos verbetes específicos.
Loucura. Kant questionará a autoridade da ciência médica para reconhecer a loucura; opõe-se,
assim, àposição de Zacchias (HF, 171, 624). semelhança, representação, ideologia. A ideo-
logia e a filosofla crítica, Destutt de Tracy e Kant, constituem duas formas de pensamento opostas,
mas simultâneas. A ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação;
percorre o domínio das representaçoes em geral, fixa as sucessões necessárias que aparecem
nelas, define os nexos que as ligam, põe de manifesto as leis de composição
e decomposição. Para
Kant, no entanto, a relação entre as representações não se funda em suas vinculações internas,
mas na forma que as torna universalmente válidas. Kant ocupa-se daquilo a partir do qual toda
representação é possível, isto é, o a priori (MC,253-255). Máthesis.
Na época de Descartes
ou de Leibniz, a unificação do saber no pensamento filosóÍico não exigia um modo de reflexão
específico, o saber se desdobrava no fundo unificado e unificador de uma máthesis. A partir
de Kant, o problema é completamente diferente. Por um lado, coloca-se a questão das relações
entre o campo formal e o campo transcendental; nesse nível, os conteúdos empíricos do saber
são colocados entre parênteses. Por outro, coloca-se o problema das relações entre o domínio das
empiricidades e o fundamento transcendental do conhecimento; aqui, a ordem do puramente
formal fica à margem. Em ambos os casos, o pensamento filosófico da universalidade não se situa
ao mesmo nível que o campo do saber (MC, 260). sonho antropológico. 'A Antropologia

238 KANT, tnmanuel


constitui, talyez, a disposição fundamental que rege e conduz o pensamento filosóf,co desde
Kant até nós" (MC, 353).Yer: Antropologia,Homem.Nietzsche. Enquanto Kant sustenta que
as condições da experiência e as condições dos objetos da experiência são idênticas, Nietzsche,
por sua vez, pensa que entre o conhecimento e o mundo não há nenhuma relação de afinidade
(D82,546). * Quando Nietzsche fala de 'tonhecimento em si'l entende algo completamente
diferente do Kant. Este último afirmava a impossibilidade de um conhecimento do em si, da
verdade em si, da realidade em si. Nietzsche, no entanto, quer dizer que não há uma natureza
do conhecimento, que o conhecimento é sempre o resultado histórico de condições que não
sáo da ordem do conhecimento, mas da atividade (DE2, 550-551). Antropologia desde o
ponto de vista empírico. Foucault apresentou em 1961, como tese complementar paÍa a
obtenção do doutorado, uma tradução desse texto de Kant, acompanhada de uma introdução
que nunca foi publicada. A tradução apareceu finalmente pela editora Vrin (1964) com uma
nota histórica (DEl, 288-293). Descartes, moral. Com Descartes, o conhecimento da verdade
não requer um trabalho de ascese. Kant teve que enfrentar, partindo do sujeito cartesiano, as
relações entre o sujeito moral e o sujeito do conhecimento. A solução de Kant foi encontrar um
sujeito universal que, porque é universal, pode ser o sujeito do conhecimento e, no entanto,
exigir uma atitude ética, a relação consigo mesmo que é posta na Crítica da razao prática.
Desse modo, Kant reintroduziu a moral como uma forma aplicada do procedimento racional
(D84,411,630-631). MaüemLhermenéutique du sujet, Foucault indica que é com Descartes
e Kant que se levava a cabo a liquidação da exigência de espiritualidade,
isto é, do trabalho de
modiflcação do sujeito como condição para aceder à verdade (HS, 183). Iluminismo'
revo-
por ocasião do bicentenário da célebre resposta
lução. Ocupamo-nos dos artigos de Foucault
de Kant à pergunta "que é a AuJkliirung?" nos verbetes: Diagnosticar,
Ethos, Modernidade,

Ontologia do presente, Revoluçao.


g1,238'239,211,247,267,288-292, 446' 452, 456-457 461, 499, 521',
Immanuel Kant [212]: A5,265-266. DEt, '
1, 594,692,7 51. DE3, 28' 127 t93' 277 431
546, 553, 78 1, 8 14 . D82,53,99, 106,22l -222,23g,37 t-372,546'547, 550-55 ' ' '
431-432,442,604,783, 78g.DF.4,37, 106, 135, 184 185,224,231,279,394'411,438,440,
446'562-568'571'577'6t9'
54 55. MC, 17 5 176' 253-254'257 '
630 63t,679-687 ,7 65-766,77 5,813-814. H5,27 ,29,183, 167 , 17 t,307, 624. IDS, 46,
260. 269,318, 334, 336, 352-353.oD, 67. PP, 294. sP, 95.

;*§. KLOSSOWSKI, Pierre (1 90s-2001 )

O artigo "La prose de Actéon' (D81,326-337) está dedicado a Klossowski. A linguagem


de Klossowski, afirma Foucault, é como a prosa de Actéon, uma palavra transgressora (DEl,
336). Klossowski situa-se no entrecruzamento de dois caminhos afastados e tão semelhantes:
o dos teólogos e o dos deuses gregos; ele descobre essa face secreta da experiência cristã onde
resplandecem os deuses gregos (DEl,
327-328). Nesse espaço, não aparece nem Deus nem o
Demônio; trata-se de um espaço habitado pelos simulacros. "E posto que todas as figuras que
Klossowski desenha e faz mover em sua linguagem são simulacros, é necessário entender este
termo com a ressonância que agora lhe podemos dar: vã imagem (por oposição à realidade),
representação de outra coisa (na qual essa coisa se delega, se manifesta, mas se retira e, em
certo sentido, se esconde), mentira quefaz tomar um signo por outro, signo da presença

K[OSSOWSKI, Pierre 239


de uma divindade (e possibilidade recíproca de tomar esse signo pelo seu contrário), chegada
simultânea do Mesmo e do Outro (simular é, originariamente, vir junto). Assim, se estabelece
essa constelação própria de Klossowski e maravilhosamente rica: simulacro, similitude, simul-
taneidade, simulação e dissimulaçáo' (D81,329). Esse espaço dos simulacros é, para Foucault,
o espaço próprio da literatura. "Klossowski escreve uma obra, uma dessas raras obras que nos
fazem descobrir; nela se percebe que o ser da literatura nào concerne nem aos homens nem aos
signos, mas a esse espaço duplo, a esse vazio do simulacro onde o cristianismo foi encantado
pelo seu Demônio, e onde os Gregos temem a presença fulgurante dos deuses com suas flechas.
Distância eproximidade do Mesmo onde nós, agora, reencontramos nossa únicalinguagem'(D81,
337). * Klossowski, como Bataille e Blanchot, faz explodir a evidência originária do sujeito e faz
surgir formas de experiência nas quais a decomposição do sujeito, sua aniquilação, e o encontro
com seus limites mostram que não existia essa forma originária e autossuÍiciente que a filosofia
classicamente supunha (DE3, 590).
PierreKlossowski[58]:D81,240,268,275,326-329,331 333,335-337,424427,522,526,550,555,704.D82,27,
76,99,243, 412,544,548. DE3, 575, 588-590. DE4, 43,59. PP, 255.

240 KtossowsKt, Pierre


i*s. LACAN, Jacques (1901-1981)

São numerosas as referências de Foucault a Lacan, mas se trata simplesmente de referências.


Foucault não se ocupou sistematicamente de sua obra. Elas estão vinculadas, em geral, à proble-
*
mática das ciências humanas. Com base em Lacan, como em Lévi-Strauss, as ciências humanas
instauram uma relação crítica com elas mesmas (DEl, 447)." Lacatnos mostrou
que o sentido

é, provavelmente, apenas um efeito de superfície, e são as


estruturas da linguagem, o sistema
da linguagem - e não o sujeito - que falam através do discurso do enfermo e dos sintomas das

,.rror., (pEr, st+). "o sujeito tem uma gênese, o sujeito tem uma formação, o sujeito tem
*
sem dúvida; mas
uma história, o sujeito não é originário. Pois bem, quem o havia dito? Freud,
foi necessário que Lacan o fizesse aparecer claramente, daí a importância de
Lacan' (DE3, 590)'
* Lacan mostrou que a teoria do inconsciente é incompatível com a teoria do sujeito no sentido
* que como
cartesiano do termo (DF.4,52). "Se eu me remonto aos anos cinquenta, à época em
parece que a
estudante que era lia as obras de Lévi-Strauss e os primeiros textos de Lacan, me
novidade era a seguinte: nós descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam com
uma
que não era suficiente dizer, vezes com uns,
concepção muito tradicional do sujeito humano, e às

que o sujeito era radicalmente livre e, às vezes com outros, que estava determinado por suas con-

áições sociais. Nós descobríamos que era necessário tentar liberar tudo o que se esconde atrás do
emprego aparentemente simples do pronome'eul O sujeito é uma coisa complexa, frágil, da qual
*
é tão difícil falar e sem a qual não podemos falar" (DE4,204). O que constitui todo o interesse
e a força de Lacan é que ele é o único, depois de Freud, a recentrar a questão da psicanálise sobre
a questão das relações entre o sujeito e a verdade (HS, 31).

lacques, Lacan [78]:4N,27,49. DEl,73, 168, 199,447, 514,516, 585,601,653, 665,752,779,785,788-789,820.

DE2,780,782,814. D83,98,315,323,590. D84,52,58, 182, 198,200,204-205,433,435,666. HS,31,41, 180-182'

r :i!. LAMARCK, Jean-Baptiste (17 44-1829)

Valendo-se de Lamarck, de Jussieu e de Vicq d'Azyr, a transformação da estrutura em


caráter se fundará em um princípio que está fora do domínio do visível da história natural: a

LAMARCK, Jean-Baptiste 241


organização (MC, 239). Deste modo, Lamarck fechou o ciclo da história natural e abriu o da
biologia (MC,243).
Jean-Baptiste Lamarck [42]: A5,187. DE2, 30, 31, 36-38.40,49,220,222.D84,162. MC, 139, 150, 1 63, 166, 239,
24).-245, 247, 251, 285. 287 -288. 293 -294.

::: 15; 1,r'

Yer: Norma, Soberania.


Ioi11558J:,A.N,7-10,15-18,20,22-24,29,38,43,46,51-52,59,6).,76,77,80,85,86-88,93-95,97'98,107-108,114,
116-118,127,130-132,135,150,152,166,171,177,183,260,302,307 308,310.45,15-16,18,47,61,65,68,75-76,100,
109, ll8,125,138,141,152-153,156,158,167-168,170,186,193,195,197,1.99,Ztt,217-218,220,225,227,252,267.
DEI,75,94,112,122,180,191,195,198-200,204,208,2r0,219,226,233,248,259,266,270,278-279,285,407,408,4t1,
436,450,469,470,482,493,501,504,510,5r2-st3,s21,523,527-532,534537,600,632,66s,674,68t,685,695,7ll-712,
714,716,719,726,728-729,740,759,762,766,771,807-808,833.DE2,38,46,74,77,90,92,95-96,101-102,143,145,
I 50,1 5 1, l -54, 194,206,227 ,236,243,282-283,284,318,322-324,335, 344, 355, 38 1, 387 ,396,398-399, 422, 441, 445-447,
458,462,464.468,497,499,500,502,519-520,529,533534,546,557,566,579,580,585,589-593,599,601 602,606,609,
62t,664,66s-666,668,687 692,7t6,718-719,722-723,726-727,730731,778,798,822-824,826.D83,29,31,50,67,73,75,
ôr,99-100,105-r0ó,110-111,113,120,t24-125,128,134135,138-139,148,150-151,156,1.60,1.76,178,188,200,225-226,
228,234,247 ,253,262,268,270,272,27 4-275,280-281, 284,287 -290. 292, 293, 295,307, 339 340, 355-356, 36 1, 363, 373,
375, 378,383, 385, 392, 414, 419, 422-425, 443-444, 447 -448, 453, 461, 463, 465, 486, 496,507 , 540, 542-544,563, 604-605,
6 1 1, 630-63 1, 635, 642, 645-646, 656, 663, 673, 687, 69L, 696-698,702,7 tl,7 t3,749,753,755,757 758,763-768,77 I -772,
776,784-785,793,795,797 ,816.822-823. DE4, 8, 13, 28, 32, 57, 85-89,92,95,99,104, I 30- 1 32, 1 34, I 40, 145, 1 5 r, 159, i64,
1 67, i 83- 184, 186, r 97 -200,202-203,209,215,222,227,230,239,246,287,293, 300, 308-309, 3 1 7 3 18, 337-338, 344, 348, 368,
388, 395, 397, 399, 402,450,47 1-473,475-476,478 479,483,527,543,558-560, 577, 582, 619-622,643,660,664,670-672,678,

689,691,70t,734,739,748,766,778,789,798,819,825. HF,9-10,73,80,99-101, 103-105, i18, 131,134, 143, 181, 185,228,


238,312 313,363,366, 388, 416,422, 426,460,52t-522,526,528-529,540-541,554 555, s57-558, 565, 578, 580-582,600, 613,
621-622,624,626,667.Il5,22,24,100, 10,1, 108-t t0, 115, 179, 198,230,281,289-290,299,301,303-305,316,364,429. HSt,
10,13-15,30,33,51,53-55,57,60,64,66-67,72,76-77,97,108-114,117-122,t26,128,135,140,143,145,149-152,169170,
172, l8l, 189-190, 195-t98,203,205,207,209.}l52,15, 35, 37-38,60,64,66,72 73,106,162,164,176,177,186 188, 220,238,
240,241,258,275,284. HS3,27 ,28,30,33,34,37,44,85,9\ -92,94,96,1 10, 5, I 45,
,202,208-209,2t5,220,
1I 157 , 158, 197

228,240,248,274.tDs,21.-22,24,34,35,38-39,43,46-48,50,53,5859,6r-63,65,71,77,86,91,92,94_95,105,113,115,
tt7 -\19, r25, 1 39, 140, 155, 169, 172-173,1 75, 180, 190, t95-197,208,21]1 212. l.{C,9, 1 -12,23-24,34,44, s3, 60, 1 04, 105,
t20,t22,128,165,170,r82,196,201-202,213,222-223,229,237,244,248,251,263,282,291,300,307,312-313,317318,
MMPE, 15, 80, 109, I 1 l. MMPS, 105. NC, t, 6, 17,38,43,45,60,66_67,73,
324, 338-339, 364,373-374,383,386-387, 389.
75,77,80,83,9t,99, 108, 156, 175,201-202,208.OD,21,47.pp,4,27,33,38,4t,s5,60,93,96-97,107, 110, 117, 141, 151,
167,t75.20t-202,208.RR,13 14,25,52,94,181,209.Sp,13,18-20,2224,32,37,51-55,57,60,64,70.75_77,8r,83,85,91.
93-94,98-100, 102-104, 107-108, 110, 112-118, 121,\22,t25,127,155,\7\,181-182, 185-186, 225,227,233,235_238,24t,
243-245,249,25).,257 ,258-259,261,267,27 t-272,276-284,286,288-289,295-300, 304 3I 0, 3I 4.

LEPRA (tepre)
=:=.

No final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental (HF, 15). 'A lepra se retira,
abandonando sem emprego esses baixos lugares e esses ritos que não estavam destinados a
suprimi-la, mas a mantê-la a uma distância sagrada, a fixá-la em uma exaltação inversa. O que

242 LEr (ror)


V

vai permanecer mais tempo, sem dúyida, e se manterá ainda em uma época em que, já fazia anos,
os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que se haviam uniclo ao personagem
do leproso, o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa Íigura insistente que
não se aparta sem ter traçado ao seu recior um círculo sagrado'(HF, 18). A loucura ocupará
esses lugares, fisicos e simbólicos, que a lepra deixou vazios (HF, 21). Modelo lepra/modelo
peste. Foucault distingue entre o que se poderia chamar um "modelo lepra' e urn "modelo
peste'l com relação às formas de exercício do poder. O modelo lepra, modelo da exclusão, tem
três características: I ) implica urna separação rigorosa, unra regra de não contato entre os indi-
víduos; 2) trata-se de uma exclusão em um mundo exterior, para além dos limites da cidade, da
comunidade; 3) tal exclusâo comporta uma desqualificação não necessariamente moral, mas
certamente jurídica e prolítica. No modelo da peste, também se enclausura, mas trata-se de uma
prática diferente. O território do modelo peste não é o lugar da exclusão, mas o objeto da análise
detalhada, da reticulação minuciosa; trata-se de um espaço de inclusão. Com relação à lepra, o
poder exclui, expulsa os leprosos para além das fronteiras da cidade e dos campos, em um espaço
sem determinação. Como se estivessem mortos, sâo acompanhados para fbra da civilização por
um cortejo e ritos fúnebres, seus bens passam a seus herdeiros. Corn relação à peste, ao contrário,
coloca-se a cidade em quarentena, estabelece-se uma minuciosa reticulação do espaço habitado,
nomeando inspetores que devem controlar que cada um dos habitantes esteja no lugar que the é
próprio (enclausurado em sua casa), intervém-se quando alguém é vítirna da doença, faz-se um
exaustivo e detalhado informe da situação, compilam-se registros gerais, etc. Enquanto a lógica do
controle da lepra leva à exclusão, no caso da peste, ao contrário, leva à inclusão, à individualizaçao
dos sujeitos (AN, 40-44; 5P,200-202). "No fundo, a substituição do modelo lepra pelo modelo
peste corresponde a um processo histórico muito importante que eu qualificaria brevemente: a

invenção das tecnologias positivas de poder" (AN,44).

Làpre[42]:AN,40-41,43 44,50.DE1,413.DE3,218.HF,l5-21,31,80,101,446,148,540.NC,l76.SP'200.

;1*1 LIBERALISMO (Liberalisme)

Foucault interessou-se pelo liberalismo particularmente nos seus últimos anos de trabalho
no Collêge de France, no marco da análise do que denomina governamentalidade. Na história
do Estado moderno, o "Estado governamentalízadçi'representa a última etapa da evolução.
Esse Estado caracteriza-se porque tem como objeto a população, e não o território; governa
através dos saberes (economia, medicina, psiquiatria, por exemplo); articula-se em torno dos
dispositivos de segurança (ver Governo). A formação do Estado governamentalizado coincide
com a formação da biopolítica, com a racionalização dos lênômenos próprios de um conjunto
de viventes constituÍdos como "população'i A racionalizaçáo desses problemas da vida é um
processo que se inscrer/e no marco da racionalidade política do liberalismo (DE3, 8t8). Por
isso, o curso dos anos 1978-1979, Naissance de la biopolitique, esÍá inteiramente dedicado
à questão doliberalismo. * Foucault resume nestes termos o debate político que teve lugar na
primeira metade do século XIX. "Em um sistema preocupado com o respeito aos sujeitos de
direito e com a liberdade de iniciativa dos indivíduos, como se pode abordar o t'enômeno da

LIEERALISMO (Liberaltsme\ 243


'população' com seus efeitos e problemas específicos?" (DE3, 818). * Desde esse ponto de vista,
Foucault não aborda a questão do liberalismo como uma teoria, nem como uma ideologia,
tampouco como a maneira pela qual a sociedade se representa a si mesma, mas como "uma
prática, isto é, como uma 'maneira de fazer' orientada em direção a objetivos e que se regula
por uma reflexão contínua" (DE3, 819). Devemos entender o liberalismo, então, como um
princípio e um método de racionalização do exercício do governo. O que significa duas coisas.
Em primeiro lugar, a aplicação do princípio de máxima economia: os maiores resultados ao
menor custo. Mas isso, por si só, não constitui, de nenhuma maneira, a especificidade do
liberalismo como prática. Sua especificidade consiste, em segundo lugar, em sustentar que o
governo, a ação de governar a conduta dos indivíduos a partir de Estado, não pode ser um fim
em si mesmo. "Maiores resultados" não se traduz em fortalecimento e crescimento do governo
e do Estado. Por isso, o liberalismo distingue-se da racionalidade política da razão de Estado e
da tecnologia que the está associada, aPolizeiwissenshaft (a ciência da polícia). Essa função,
que foi a raiz do polimorfismo da racionalidade liberal, propõe-se como objetivo limitar a
*
ação do governo, exigindo-lhe que se justiÍique ante a sociedade (DE3,819-820). Pois bem,
o liberalismo como prática-crítica da ação governamental não deriva nem se reduz a uma
teoria econômica ou a uma teoria jurídica. O mercado foi o lugar privilegiado para provar a
racionalidade política própria do liberalismo, isto é, a necessidade de limitar a ação do governo.
Com efeito, a economia mostra uma incompatibilidade de princípio entre o desenvolvimento
ótimo do processo econômico ea maximização dos processos governamentais. Por outro lado,
a ideia de uma sociedade política fundada no nexo contratual entre os indivíduos serviu de
instrumento apropriado para moderar ou limitar a ação do governo. Mas a relação entre libera-
lismo e Estado de direito não é uma relação natural e de princípio; "a democracia e o Estado de
direito não foram necessariamente liberais, nem o liberalismo é necessariamente democrático
ou está vinculado às formas do direito" (D83,822). * No curso Naissance de la biopolique,
Foucault analisou o liberalismo como racionalidade política no Ordoliberalisrzo, o liberalismo
alemão de 1848 a 1962, e o neoliberalismo americano da Escola de Chicago. No primeiro caso,
tratou-se de uma elaboração do liberalismo dentro de um marco institucional e jurídico que
oferecesse as garantias e limitações da lei, isto é, que mantivesse a liberdade de mercado, mas
sem produzir distorções sociais. No segundo caso, no entanto, encontramos um movimento
oposto. O neoliberalismo busca estender a racionalidade do mercado como critério para além
do domínio da economia (à família, à natalidade, à delinquência ou à política penal) (DE3,
823-824). Liberalismo e loucura. A época clássica situa a experiência da loucura para além
da ordem da natureza e darazã,o. Ela não é mais a manifestação das forças do natural, e, como
aparece com toda evidência em Descartes, o ser razoável e a loucura excluem-se mutuamente.
No século XVIII, a propósito do que se denomina a enfermidade inglesa, a melancolia, se
buscará uma explicação econômica e política (a riqueza, o progresso, as instituições). Aqui a
noção de meio desempenhará seu papel. Na obra de Spurzheim (Observations sur la
folie,
1818), encontramos uma conceitualização desse gênero. Causas culturais da loucura serão:
a liberdade de consciência, o
tormento pela busca da verdade, a liberdade que não permite
manejar o tempo. Mais concretamente, a nação comerciante é geradora de medos e da perda
da esperança, de egoísmo. "O liberalismo
é facilmente portador de todos os pecados da loucura

do mundo" (HF, 460). Liberalismo e organizaçío da medicina clínica. yer clínica.

244 LIBERAL|SM} (Liberatisme\


Liberalismo, universidade moderna, disciplinarização dos saberes. Um exemplo de

genealogia dos saberes é a organizaçâo do saber técnico e tecnológico no final do século XVIII.
Até então, segredo e liberdade haviam sido características desse tipo de saberes; um segredo que
assegurava o privilégio de quem o possuía e a independência de cada gênero de conhecimento
que permitia, por sua vez, a independência de quem o manejava. Por volta do final do século
XYIII, por ocasião das novas formas de produção e das exigências econômicas, faz-se necessário
ordenar esse campo. Instala-se, para dizê-lo de algum modo, uma luta econômico-política em
torno aos saberes. Aqui, o Estado intervirá para disciplinar o conhecimento com quatro operações
estratégicas: 1) Eliminação e desqualificação dos saberes inúteis, economicamente custosos. 2)
Normalização dos saberes: ajustá-los uns aos outros, permitir que se comuniquem entre eles.
3) ClassiÍicação hierárquica: dos mais particulares aos mais gerais. 4) Centralização piramidal.
É nessa luta econômico-política em torno aos saberes que devemos colocar o projeto da Enci-
clopédia e a criação das grandes escolas (de minas, de pontes, de estradas). E é nesse processo
de disciplinarização que surge a ciência (previamente o que existia eram as ciências). A fllosoÍia
delra, então, seu lugar de saber fundamental, abandona-se a exigência de verdade, instaura-se a
da ciência. É nessa e por essa luta também que surge a ri niversidade moderna: seleção de saberes,
institucionalização do conhecimento e, consequentemente, o desaParecimento do sábio-amateur.
Âparece também um noyo dogmatismo que não tem por objetivo o conteúdo dos enunciados,
"O problema consistirá
mas a forma da enunciação. Não se trata de ortodoxia, mas de ortologia.
esse enunciado,
em saber quem falou e se estava qualiÍlcado para fazê-lo, em que nível se situa
que em qual medida ele se conforma a outras formas
em que coniunto se pode ressituá-lo, em e

. u out.u, tipologias de saber. o que permite ao mesmo tempo, por um lado, um liberalismo em
dos enunciados
um sentido, se não indefinido, pelo menos muito mais amplo quanto ao conteúdo
rigoroso, mais compreensivo, mais amplo em sua
e, por outro, um controle infinitamente mais
superfície, ao nível mesmo dos procedimentos de enunciação" (IDS' 164)'

Libéralisme[54/:DEI,654.D82,173,186,t90,722.D83,764,818 824.D84,36,92'100,129,273,369,374'381'
490,732,826. HF,460. IDS, 164, 183. NC,48-49, 52, 81-83,86.

::4 LIBERD ADÊ (LibCrtC)

Excetuando que seja em termos negativos, tem sentido colocar a questão da liberdade em
Foucault? Não se trata de uma pergunta retórica; ela aparece colocada com toda clareza na
discussão com Chomsky. "O Sr. Chomsky parte de um número limitado de regras com possi-
bilidades infinitas de aplicação, enquanto que o senhor, Sr. Foucault, subiinha a inevitabilida-
de da'grade' de nossos determinismos históricos e psicológicos, que se aplica também à ma-
neira como nós descobrimos novas ideias" (DE2, 484). Que sentido tem, com efeito,
colocar-se o problema da liberdade em uma filosofia que afirma o desaparecimento do sujei-
to ou a "morte do homem'? Na realidade, para compreender a noção foucaultiana de liberda-
de, é necessário partir, precisamente, dessa dissolução do sujeito e do sentido que Foucault
atribui à morte do homem. Segundo suas análises, as ciências humanas nasceram no século
XIX. Mas a constituição do homem em objeto de conhecimento é correlata de um grande mito

LIBERDADE (Liberte) 245


escatológico: "Fazer de modo que esse conhecimento do homem seja tal que o homem possa
ser liberado, por ele, de suas alienações, liberado de todas as determinações das quais ele não
era dono, que ele possa, graças a esse conhecimento que tinha dele mesmo, voltar a ser ou
converter-se pela primeira vez em senhor e dono de si mesmo. Dito de outra maneira, fazia-se
do homem um objeto de conhecimento para que o homem pudesse converter-se em sujeito
de sua própria liberdade e de sua própria existência. Pois bem, o que ocorreu, e por isso mes-
mo se pode dizer que o homem nasceu no século XIX, foi que, à medida que se desdobravam
todas estas investigações sobre o homem como objeto possível do saber, ainda que se tenha
descoberto algo sério, nunca se encontrou esse famoso homem, essa natureza humana ou essa
essência humana ou o próprio do homem. Quando se analisou, por exemplo, os fenômenos
da loucura ou da neurose, o que se descobriu foi um inconsciente, segundo um espaço topo-
lógico que não tinha nada a ver com o que se podia esperar da essência humana, da liberdade
ou da existência humana; um inconsciente que funcionava, como se disse recentemente, como
uma linguagem [...] Esse desaparecimento do homem, no momento mesmo em que se o
buscava em sua raiz, rrao faz com que as ciências humanas venham a desaparecer; eu nunca
disse isto. Mas que as ciências humanas vão se desdobrar agora em um horizonte que não está
mais fechado ou definido por esse humanismo. O homem desaparece na filosofia, não como
objeto de saber, mas como sujeito de liberdade e de existência. Pois bem, o homem sujeito de
sua própria consciência e de sua própria liberdade, no fundo, é uma espécie de imagem cor-
relata de Deus" (D81, 663-664). A noção foucaultiana de liberdade situa-se, em primeiro
lugar, no abandono desse mito humanista de uma essência do homem. A liberdade foucaul-
tiana não é da ordem da liberação, mas da constituição. * Por isso, pode-se dizer acerca da
liberdade o que Foucault afirma sobre o sujeito: "Não é uma substância. É uma forma, e essa
forma não é, sobretudo, nem sempre idêntica a si mesma" (DE4, 718). Ou, para sermos mais
precisos, não é a propriedade de uma substância, mas uma forma que tem e teve diferentes
configurações históricas. Também se pode dizer o que afirma sobre o poder: "o poder não é
uma substância. Ele não é tampouco um misterioso atributo cujas origens haveria que esca-
rafunchar. O poder não é outra coisa que um tipo particular de relaçoes entre os indivíduos"
(D84, 160). Para formular essa ideia, Foucault serve-se da expressão "práticas de liberdade"
(DE4, 710). Trata-se de três temas que se encontram, de fato, intimamente entrelaçados no
pensamento de Foucault. Mais exatamente, o conceito foucaultiano de liberdade surge com
base na análise das relações entre os sujeitos e na relação do sujeito consigo mesmo, as quais
se denominam, em termos gerais, poder. E isso de uma dupla maneira: nas relaçÕes de poder
que se estabelecem entre diferentes sujeitos e nas relações de poder que o sujeito pode esta-
belecer consigo mesmo. No primeiro caso, podemos falar de "liberdade política' (em um
sentido amplo, não reduzido ao estatal, ao institucional); no segundo, de "liberdade ética" ou
também utilizando uma linguagem mais foucaultiana, de "práticas de liberdade" e de "práticas
reflexas de liberdade" (D84,711). No primeiro caso, as práticas de liberdade em sentido
político, partindo da ideia de que o exercício do poder é uma maneira de'tonduzir condutas"
(D84,237), podem ser qualificadas como livres aquelas formas de relação entre sujeitos que,
negativamente, não estão bloqueadas e, positivamente, aquelas em que se dispõe de um cam-
po aberto de possibilidades; isto é, relaçoes que são suscetíveis de modificação. "O poder não
se exerce a não ser sobre'sujeitos livres'e na medida em que eles são 'livresl Entendemos por

246 UBERDADE (riberté)


isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde se
possam dar muitas condutas, muitas reações e diferentes modos de comportamento. Ali onde
as determinações estão saturadas, não há relações de poder. A escravidão não é uma relação
de poder quando o homem está encadeado (trata-se então de uma relação física de coerção),
mas justamente quando ele pode deslocar-se e, no limite, escapar. Não há, pois, um cara a cara
do poder e da liberdade, com uma relação de exclusão entre eles (em todo lugar onde se exer-
ce o poder, desaparece a liberdade), mas um jogo muito mais complexo. Nesse jogo, a liber-
dade aparece como a condição de existência do poder" (DF.4,237-238). No segundo caso, na
liberdade ética, essa disponibilidade de diferentes condutas, reações ou comportamentos situa-
se em um campo que se define por sua reflexividade; com efeito, trata-se de condutas, com-
portamentos e reações pelas quais o sujeito se constitui a si mesmo, dá-se uma forma. Foucault
denomina "éticd'esse trabalho pelo qual o sujeito se constitui a si mesmo; por isso, ele afirma:
'A liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma reflexa que toma a liber-
dade" (DE4, 712). Como vemos, a liberdade, o sujeito e o poder não são táo somente temas
intimamente entrelaçados; a liberdade é a condição de existência do poder e do sujeito. Na
falta de liberdade, o poder se converte em dominação, e o sujeito, em objeto. Ver também:
*
Estética da existência, Ethos, Etica, Subjetivaçao, Poder. Foucault ocupou-se repetidas
vezes do conceito e do problema da liberdade, em relação com os movimentos de liberação,
com as formas de alienação, com a loucura, com a prisão e com a ética da Antiguidade' Libe-
" (DE4,
ração. "Eu fui sempre um pouco desconfiado a respeito do tema geral da liberação [ " ' ]
709). As razões dessa desconfiança podem ser resumidas em dois pontos. No caso, por exem-
plo, da liberação sexual ou, em geral, da liberação do homem, supõe-se a existência de certa
natureza ou fundo humano que teria sido aprisionado por diferentes processos históricos e
que, portanto, basta suprimir os produtos de tais processos para que apareça a natureza
hu-

mana ou, simplesmente, o indivíduo tal como é em realidade, em sua verdade natural' Para

Foucault, no entanto, o que chamamos o "sujeito'ou "a natureza humana'não é independen-


te dos processos históricos que lhe dáo forma. Por isso, não se trata de liberação, mas de
práticas de liberdade, isto é, da forma que podemos dar à subjetividade. No caso das lutas de
liberaçáo política (dos povos colonizados, por exemplo), a liberação não é suficiente; obtida a
liberação, será necessário determinar as práticas de liberdade que definirão a vida política
desses povos. Em suma, as lutas de liberação podem ser uma condição necessária para as
práticas de liberdade, mas, em todo caso, elas não são uma condição suficiente. 'A liberação
abre um campo para novas relações de poder que há que controlar mediante as práticas da
liberdade" (DE4,7ll). * "Os recentes movimentos de liberação sofrem por não encontrarem
um principio sobre o qual fundar a elaboração de uma nova moral. Eles têm necessidade de

uma moral, mas não conseguem encontrar outra moral que aquela que se funda em um pre-
*
tenso conhecimento científico do que é o eu, o desejo, o inconsciente, etci' (DE4, 386). "Desde
o século XVI, sempre se considerou que o desenvolvimento das formas e dos conteúdos do
saber era uma das maiores garantias de liberação para a humanidade. Esse é um dos grandes
postulados de nossa civilização que se universalizou no mundo inteiro. Pois bem, é um fato já
constatado pela Escola de Frankfurt que a formação dos grandes sistemas de saber teve tam-
bém efeitos e funções de escravidão e de dominação. Isso leva a revisar completamente o
postulado segundo o qual o desenvolvimento do saber constitui uma garantia de liberação"

LIBERDADE (Liberte) 247


(D84, 89). Yer: Luta. Alienacão, loucura. Em Maladie mentale et personnaliÍé, Foucault
aborda o tema da loucura desde o ponto de vista da alienação. Nesse contexto, a questão da li-
berdade aparece em relação às diferentes concepções da alienação. Para S. Tomás, a possessão
do demônio não compromete a liberdade do indivíduo. A possessão é possessão do corpo. A
partir do Renascimento, tomará um sentido novo, ela será possessáo do espírito e,
a possessão
consequentemente, abolição de sua liberdade (MMPE, 77). O alíenado moderno náo é um
possuído, mas um despossuído, precisamente, de sua liberdade. Mas não se trata da liberdade
abstrata, senão da liberdade moderna: "O doente mental, no século XIX, é aquele que perdeu o
uso das liberdades que lhe foram conferidas pela revoluçáo burguesa" (MMPE, 80). A alienação
consiste na transferência dos direitos da liberdade individual do enfermo a outra pessoa (o
médico, a família). * No capítulo III da última parte de Histoire de la folie ("Do bom uso da li-
berdade"), Foucault analisa a relaçáo entre o noyo espaço de asilo e a liberdade da loucura. A
internação já não é mais a abolição total e absoluta da liberdade, mas, antes, um espaço de liber-
dade restringida e organizada. Mais ainda:a liberdade concedida aos "internos" é vista como um

recurso terapêutico. Essa "liberdade" permitida ao louco propicia que a loucura ponha de ma-
nifesto o que aproxima o insensato do animal doméstico e da criança. 'A loucura não é perversão
absoluta na contra-natureza [a animalidade selvagem da época clássica], mas a invasão de uma
natureza muito vizinha" (HF, 544). Por isso, no final do século XVIII, não se trata da liberação
dos loucos, mas de uma objetivação do conceito de sua liberdade. Segundo Foucault, tal objeti-
vação teve três consequências: 1) Na reflexão sobre a loucura, já não será questáo, como na
época clássica, do não-ser e do erro, mas da liberdade em suas determinações reais: "O desejo e
o querer, o determinismo e a responsabilidade, o automático e o espontâneo" 2) "Objetiva, essa
liberdade encontra-se no nível dos fatos e das observações, exatamente repartida entre um de-
terminismo que a nega por completo e uma culpabilidade que a exaltal 3) 'A loucura, a partir
de agora, não indica mais uma certa relação do homem com a verdade; relação que, ao menos
silenciosamente, implica sempre a iiberdade. Ela indica somente certa relação do homem com
sua verdade. [...] A loucura jáúo fala do não-ser, mas do ser do homem, no conteúdo do que
ele é e no esquecimento deste conteúdo. E, enquanto ele era, em outro tempo, Estrangeiro a
respeito do Ser, homem do nada, da ilusão, Fatuus (vazio de não-ser e manifestação paradoxal
desse vazio), agora está retido em sua própria verdade e, por isso mesmo, afastado dela. Estran-
geiro com respeito a si mesmo, Álienado"(ÍIF,636-637).Yer: Loucura. Prisão. Para Foucault,
é historicamente incorreto e redutivo interpretar o funcionamento da prisão só em termos jurí-
dicos de privação da liberdade. "O aprisionamento penal, desde o começo do século XIX, cobriu,
ao mesmo tempo, a privação da liberdade e a transformação técnica dos indivíduos" (SP, 235).
Yer: Prisão. Aphrodísia. No volume II de Histoire de la sexualité, tusage
plaisirs, Foucault
des
aborda a problematização ética dos prazeres a partir do eixo liberdade/verdade (HS2, 91-107).
Para os gregos da época clássica, contrariamente ao que se afirma às vezes (Hegel), a liberdade
individual foi uma preocupação maior. "Essa liberdade individual, no entanto, não deve ser
entendida como a independência de um livre arbítrio. Aquilo ao que se enfrenta, a polaridade à
qual se opõe, não é um determinismo natural nem a vontade de uma onipotência; é a escravidão
e a escravidão com respeito a si mesmo. Ser Iivre a respeito dos prazeres é não estar ao seu ser-
viço, é não ser escravo" (H52, 92). Trata-se então de uma liberdade ativa, do domínio sobre si
mesmo, que constitui o caráter viril da temperança. Tal domínio só se pode estabelecer a partir
da relação com o lógos, com a verdade (HS2, 99- I 03).

248 UBERDADE (Liberte)


Liberté[923]:4N,4,7,23,29,34,100,157-158,196.AS,23,149,t61,171,260,271,273.DBt,8j,85,87,90-95,
99-101, 105, l09,1ll-112, n5-116, 118-119, 130, 136, 164, 167, 180-181, 220,229.231,373,398,400,415,43-5,515,5-s3,
556, 562, 583, 6 1 7, 654, 656,659,662-664,666-667 ,681,684,694,738,781, 788, 8 1 0, 832, 840. DE2, 63,69, 7 t _72, 1 1 8, 1 38,
14s-146,1.56,1 64, I 80, I 84, 190-191,226,239,265,271,290,297, 302, 330, 346, ,10 t -402,4t0,419,42g,445-446, 463,476,
484, 486, 488-489, 495,497, 503, 508, 51 7, 536, 540, 625,656,678,683,707 -i08,726-727,801. DE3, 8, 69, 87 ,92, tgs.240,
249,260,262,285,294,297 ,361,364,446,455,458,461.-463,493-494,4s7 ,522,539,543-544, 550, 6 19, 634, 6 85.7 14,7 4t,
7 67 ,789,79t,8\4, 8 1 8, 824. DE4, 8 ,73.77 ,92, I 30, I 32, 1 60. 202 ,206,2r2,236-239,27 5-277 ,289,322,325,328,342,344,
351, 368, 40tt, 414, 449, 485, 505, 513, 516, 5 18, 525-527,553-554,566,570-571,574-576,578,597,628,645,667,686,693,
698, 703, 708,7 r0 7 44, i 46,778-779,782,81 4. HF, 10, 36, 87 ,92, 94, \Og,
15,720,72t,727 -729,7 31,733,735-736,738,7
t23,126,t34,1-16-r37,139,t74,t77-178,183,186 190,195,198,201,203,208-209,211,2r8,232233,256,269,292,297,
301,306,315,3tt6,4t2,119,424 426,458-459,460,467,49r,497,500,514,516,52s 526,fl8-529,532,s34-537,541_550,
552-555,557,571,577,583 586,59.2-594,596,601 604,608,615,619,625,633-637,64r-6-12,650 652,655^658,667-668.
672,67 4. HS, 63, 1 20, tsg, 177, 2t6, 221, 231-232, 253, 260. 27 t,279 280, 284, 289 290,292,295, 309, 348-350, 356 357,
361, 385, 393, 405 -407,428-429,433. HS1, l 3- 14, 19, 38, 80-81, 1 14,
7, 1 1 9. HS2.29.30.41,48,91-94,96,99,106_107,
1 1

111,218,222,230,251,267-268.273,276-2t-7.H53,17,54,62,81,95.IDs,105,125,128,13t-132,139 140,148,175-r76,
179-180, 182-183, 191,202. MC,7-8,102,114,130,222,224,247.279,29-5,303, 329,396. MMPE, 1-5,68,77,80-82,88,
104. MMPS, 15,68,83,86 87, 100, 103-104. NC,9,33,38_39, 45,48_52,65,68_70, 75,79_80,85,98, 167,206. OD,58.
PP,31, l17, 154, 1s5,228,264,276,320. RR,25,88,14s, t77.5p,16,\9,21,23,26,82,94,107,109, 111_1t2, ll6, 119,
122, 148,231-235,238-239,243,247 -248,250-251,258,26]l,266,270,273_27 6,288,297 -298.

:: LIBERTINAGEM (Li berti nage)


=.

Principalmenle ta Histoire de Ia folie, Foucault oferece uma série de indicações que


esboçam uma história da libertinagem. Segundo essas indicações, no início do século XVII,
a libertinagem era "uma inquietude diante da presença da desrazão dentro da própria razão'
(HF, 136), uma forma de ceticismo a respeito da razâo, em sua totalidade: toda a vida é uma
fábula, os conhecimentos não são mais que estupidez, nossas certezas são apenas contos. Com
a grande separação clássica, a separação razáoldesrazã,o (ver: Loucura), essa libertinagem
desaparece ou, mais precisamente, subsiste sob duas formas opostas: um racionalismo que
exclui completamente a desrazão e uma desrazão do coraçâo que se impõe ao discurso da
razão. Durante a época clássica, a libertinagem teve uma existência obscura; situando-se do
lado da desrazão, ingressa no mundo da clausura (HF, 136-137). Como venlos, na libertina-
gem clássica, nos termos de Foucault, não se trata de uma forma de liberdade que se arroga
arazão para examinar-se a si mesma, tampouco de uma forma de livre pensamento, mas das
paixÕes que subjugam a lazào e, portanto, trata-se de desordem. Eis ali, definitivamente, urn
enquadramento ético da libertinagem. Quando, no século XVIII, a libertinagem abandona o
mundo da clausura clássica, quando Sade tenta forrr-rulá-1a coerentemente, ela aparecerá cont
rosto que desenhou a grande separação clássica: submissão darazão à carne, às paixões.
esse
'A libertinagem, no século xvIII, é o uso da razão alienada na desrazão do coraçã0" (HF,
138). Nessa época, oIluminismo e a libertinagem se superpuseram, mas sem se confundirem.
"Só a obra de sade, no final do século
[xvIII] e no momento em que se desfaz o mundo da
internação, conseguirá desatar essa confusa unidade [entre libertinagem e loucura]. A partir
de uma libertinagem reduzida ao denominador da aparência sexual mais flagrante, ela se
tornará a vincular com todas as potências da desrazão, reencontrará a profundidade das
profanaçÕes, deixará que se mostrern nela todas essas vozes do mundo onde está abolida a

LIBERTINAGEM (Libertinage) 249


natureza' (HF, 485). "O libertino é o homem dotado de um desejo suÍicientemente forte e
de um espírito suficientemente frio para conseguir fazer entrar todas as potencialidades de
seu desejo em uma combinatória que esgota absolutamente a todas" (D82,375).
Libertinage [56]: AN, 92-94, ll5,117,229. DEt,417 .D82,375.D83,102,24s-246.D84, tt7,123, 532. HF, 103,
MC, 222. pp, I 8. Sp, 2 14.
I 15, 122, 128, 1 34 140, 1 50, 208, 459, 485-486 , 490, 526, 535, 537 , 634, 667 , 669,683.

::*. LIBIDO

"Santo Agostinho chama


de'libido ao princípio do movimento autônomo dos órgãos sexuais.
Deste modo, o problema da libido (de sua força, de sua origem, de seus efeitos) converte-se no
principal problema da vontade. A libido não constitui um obstáculo externo à vontade; ela é
uma parte, um componente interno. A libido tampouco é a manifestação de desejos medíocres;
éo resultado da vontade, quando essa excede os limites que Deus lhe havia fixado inicialmente"
(D84, 176). "Com as técnicas de si ligadas ao monasticismo, a sexualidade primou sobre o
problema da libido que era um problema social, um problema típico de uma sociedade onde
o combate com os outros, a competição com os outros no domínio social tinha uma grande
importância. A contribuição específica do monasticismo não se traduz, pois, por uma aversão
à carne" (D84,661).Yer: Carne.
Libido [43]:4N,203. DEI,143,80s. DE2, 131,639,779,787. DE3, 133,263,424.DF4,176,299,302-303,306,
541,661. HF,47. HS2, 11. MMPE,23,26,29-30,37,43,84. MMPS,23, 26,29 30,37,43,96. NC, 167.

ã::. LIMITE (Limite)

Yer: Transgressão.
Limite[566]:4N,7,31,51-52,54,59,79,83,112,128,150-151,161,166,19]l,2t1,226,232-233,)52-253,255,
261-262,291,298.45,12,17,3\,44,63,97-98,106,127,131,147_148,156,17:1,201,223,228,231,273.DEL,67,94,
97,102,110,126,139,152,161,162,165,178,181,192,198_200,202_203,209,2r2,214,2).9,223,225,233_239,241,
243-249,25r-254, 256-257 ,259,266,27 5,277 ,284,333, 339, 357 358,361 362,367 ,37 4,378-379,382, 395, 398-400,
412, 4\4-416, 428, 433, 435, 437 , 452, 468, 472, 494, 509, 522,536, 538-539, 6 1 0, 6 1 2, 619, 621, 637 , 678,686_687,
689,699,727,737,740,753,774,798,819,839. DE2, 15_16, 25,29,35,40,55,70,75 76,79,82-83,90,94, 118, 156,
295,330,392,448,454,462,486,s20,537,6t1,657,66t,719,753,772,789,79t_7s2,801,816.D83,25,52,69,70,
135,144,172173,t75,234,260,265,285,310,312,341,365,373_374,386,401,421422,439,441,454,469,480,
494,s17,525,530,532,537,568,s75,608,620,626,646,677,737,748,769,77t,775776,822.D84,43,55,57,
183,201,237-238,242,250-25t,258,286,292,298,311,370,378,.151,517,574,590,604,622,738-739,757-758,
774.HF,31,63,155,17s,181,198,206,211..270,289,297,315,327,453,,1s8,492,499,519_520,540,548,557,
565-566,600,603, 614,616,630,658-659. Il5,69,72,107, 130, t74,224,249,269,280,304_305, 430,457. HSl,37,
38, 48, I 10, I 14, t48, 169, r81, 182. HS2, 65 66, 186, 203,220. HS3, 82, 1 10, 1 14, 127, r29,136, 230_231. IDS, 3,
t7-18,21,45,65,90,92,t28,153,156,197,216,219_221,226_227,231.MC,7,15,22,26,46,60,63_64,83,91,93,
111,t33134,142,147,157,174,183,197,214,218,222,224,237,268,271-272,281,291292,319,321,325-327,
352,366-367,382-383,395,398. MMPE,93,97. NC, X, XII,9, 17,33,59,111_112, 116, 143, 148, 152, 156, 160,
169,172,19]1,201-202. OD,31. pp,9,10,48, 55,67,78,87,107,127,134_135,176, 180, 250,252,311,331. RR,
18,23,54,73,88,98, 109-111, 140,167,208. Sp,25, 49,54,76,82,86,93 95,97,168,181, 185, 192,204,224,228,
235, 256, 282-283, 285, 304, 310, 313.

250 LtBtDo (Limite)


LINGUAGEM (langage)
=:=

A problemaltica da linguagem é, sem lugar a dúvidas, um dos tópicos fundamentais da


reflexão filosóÍrca cle Foucault. Por um lado, isso depende do contexto em que surgiu sua obra.
Os estudos linguísticos, os trabalhos daquilo que, em termos gerais, se denominou estrutura-
lismo e hermenêutica har.iam situado
a questão da linguagem em um primeiro plano. Foucault
ievará a cabo utna arqueologia dessa primazia da questão da linguagem. Em le-s ntots et les
clrcses e Lhrchéologie du sovoit', ele está particularmente atento a essa tensão, entre tendên-
cias formalistas e teudências interpretativas, que domina o tratarnento da linguagem no sé-
culo XX. Igualmente importante foi a literatura, no sentido rnoderno e específico do termo.
Foucault declicou um livro a Raymond Roussel e extensos artigos a Maurice Blanchot e Geor-
ges Bataille, entre outros. O interesse de Foucault pela tensão entre interpretação e formaliza-
ção e pela literatura, em que
linguagem se manifesta para além da distinção entre o signifi-
a
cante e o significado (MC, 59), aparece claramente nesta expressão que domina Les mots et
les choses: 'b ser da linguagenil Por outro lado, desde um ponto de vista metodológico, se
quisermos, ele busca definir um método de análise histórica da linguagem. Cont efeito, a ar-
queologia é um método hlstórico de descriçáo da linguagem ao nível do que ele denomina
"enunciados" ou "formações discursivas'l Por esse caminho, Foucault tenta escapâr da alter-
nativa formalização-interpretação e, para isso, encontra na metodologia histórica, mais espe-
cificarnente na história dos saberes, um modo de abordar a linguagem em sua historicidade,
em sua dispersão, em sua materialidade, isto é, sem referi-la nem à sistematicidade formal de
urna estrutura nern à pletora interpretativa do significado. A questão, aqui, não é o "ser da
linguagem'l mas seu uso, seu funcionamento histórico. Com efeito, é baseando-se no uso da
iinguagem que Foucault deÍine o que entende propriarnente por'discurso'l por "práticas
discursivas'l Nessa linha, à medida que Foucault enfoca seu trabalho não em relação à descri-
ção das epistemes, mas dos dispositivos e, mais amplamente, das práticas, ele situará as prá-
ticas discursivas no marco das práticas em geral, isto é, incluindo as práticas não discursivas.
Nesse giro, não é o ser da linguagem que ocupa o centro da cena, mas sim o seu uso e sua
prática, no contexto de outras práticas que não são de caráter linguístico. Foucault já não se
ocupará somente ou primariamente das práticas discursivas, mas também das "práticas" com
as quais se exerce o poder, das "práticas éticas'l A relação entre o discursivo eo não discursivo
haverá de se converter, desse modo, em uma via de acesso à análise histórica dos usos da
linguagem. Para expressá-lo de algum modo, a temática do "ser da linguagern' é substituída
pela temática de 'b que fazemos com a linguagem I A problemática da linguagem, em Foucault,
yai, assim, do "ser da linguagem' ao "uso cla linguagem'] às "práticas discursivas'i Nesse per-
curso, Foucault passará da consideração da incompatibilidade entre o "ser da linguagem" e o
"ser do homeni' à reflexão sobre o uso das práticas discursivas como forrnadoras de subjeti-
vidade. * Da linguagem considerada como prática, ocupamo-nos nos verbetes: Discurso,
Errunciado. Das práticas discursivas como constitutivas da subjetivÍdade, ocupâmo-nos em:
Confissno, Exame, Hypomnémafa. Remetemos a eles. Neste verbete, centraremo-nos na
problemática do ser da linguagem em les mots et les choses, quer dizer, na incompatibilida-
de entre o ser da linguagem e o ser do homem. O ser da linguagem. Les mots et les choses

LINGUAGEM (Langage) 251


começa e termina com o anúncio da morte do homem. Foucault se refere à disposiçáo antro-
pológica do pensamento moderno, isto é, à onalítica da e às ciências humanas (ver:
fnitude
Homem). O aparecimento do homem é o aparecimento daanalítica dafinitude edas ciências
humanas, e seu desaparecimento, a decomposição delas. Mas tal afirmação expressa apenas
uma das duas faces da análise de Foucault; a outra concerne ao ser da linguagem. O "homem'
e a "linguagem'l com efeito, estão ligados por uma incompatibilidade fundamental. 'Até o
momento, a única questão que nós sabemos com toda certezaé que nunca na cultura ociden-
tal o ser do homem e o ser da linguagem puderam coexistir e se articular um com o outro. Sua
incompatibilidade foi uma das características fundamentais de nosso pensamento" (MC, 350).
A flgura do homem foi formada a partir da fragmentaçáo da linguagem e o reaparecimento
do ser da linguagem nos mostra que o homem está em vias de desaparecer. "O homem foi uma
figura entre dois modos de ser da iinguagem [...] o homem compôs sua própria figura nos
interstícios de uma linguagem em fragmentos" (MC, 397). Por isso, ainda que res mots et les
choses, como diz o subtítu1o, seja uma arqueologia das ciências humqnas,isto é, do homem,
também se poderia dizer que é uma arqueologia dos modos de ser da linguagem. Nela, pode-
se distinguir, paralelamente às epistemes, quatro momentos: a linguagem como comentário
(Renascimento), a linguagem como discurso (Época clássica), afragmentaçao da linguagem
(Modernidade), o reaparecimento da linguagem (os sintomas da morte do homem). Da
linguagem como comentário, ocupamo-nos nos verbeles Comentário e Episteme Renascen-
tista.Da linguagem como discurso, nos verbetes: Discurso e Episteme clássica. Também
remetemos a eles. Aqui, haveremos de nos ocupar, então, dos outros dois momentos: da frag-
mentação da linguagem e de seu reaparecimento em seu ser bruto. A fragmentação da
linguagem na Modernidade. Durante a Época Clássica, o homem não existia. Isso não
signilica qre a gramática geral, a análise das riquezas or a história natural não se ocupas-
sem do humano, mâs, ântes, que isso constituía um problema específico, uma regiào sui ge-
neris. com efeito, o homem na episteme clássica ocupa um lugar; porém esse lugar não está
definido pela especificidade de seu ser ou pela dimensão transcendental da atividade subjeti-
va, e sim pelo jogo das identidades e das diferenças no marco ordenado de representações: é
um ser como qualquer outro. * No século XIX, os conceitos de vida, de trabalho e de lingua-
gem (com o nascimento da biologia, da economia política, da indicam os limites
filologia)
da representação, isto é, a impossibilidade de reduzir o que neles nos é dado ao jogo de iden-
tidades e diferenças (impossibiiidade de reduzir a profundidade da organização biológica à
linearidade taxonômica; a temporalidade da produção à análise da medida do valor; e a tota-
lidade linguística à forma da proposição). Esses conceitos, à medida que nos mostram os li-
mites do poder nominativo do discurso, indicam o final da Época Clássica, o hnal da época
do discurso, da possibilidade de vincular o sujeito e o objeto dentro da representação, pelo
poder que essa possui de reapresentar-se a si mesma. De modo mais radical, poderíamos dizer,
simplesmente, que o fim da época do discurso está marcado pela impossibilidade de reduzir
a vida, o trabalho e a linguagem ao domínio da representação. A representação ela mesma se

converte em um produto, na consciência do homem, acerca das necessidades da vida, das


forças de produção ou da historicidade da linguagem. A partir desse momento, o sujeito-homem
e o objeto-homem adquiriram dimensão própria, irredutível ao espaço definido pela taxono-

mia clássica, e, consequentemente, o marco ordenado de representaçÕes será substituído por

252 LTNGUAGEM (.Langage)


umconjLrnto deoposições entre ohomem eo mundo,entreo eu petso eo eu sou, entreo ser
representante e o ser representado. Em deÍinitivo, para Foucault, durante a época do discurso,
a Época Clássica, o homem não existia nem como sujeito - fonte transcendental das represen-
tações -
nem como objeto - região específica de estudo. No final do século XVIII, o discurso
deixa de jogar o papel organizador que possuía no saber clássico. O discurso não é mais o meio
transparente e ordenado entre o mundo das coisas e o mundo das representações. As coisas
se dobraram sobre si mesmas, fora da representação ordenada; apareceram as linguagens com

sua história, a vida com sua organização e sua autonomia, o trabalho com a própria capaclda-
de de produçáo. No espaço deixado livre pelo discurso, apareceu a figura do hornem. "Pode-se
compreender agora, e até o fundo, a incompatibilidade que reina entre a existência do discur-
so clássico (apoiada na evidência náo questionada da representação) e a existência do
homem,
tal corno se oferece ao pensamento moderno'(MC,349). * "O objeto das ciências humanas
não é, pois, a linguagem (contudo, falada somente pelos homens); é este ser que, desde o in-
terior da linnragem pelo qual está rodeado, se representa, falando, o sentido das palavras ou
das proposições que ele enuncia e se dá finalmente a representação da linguagem mesma"
(MC, 364). * A partir do século XIX, com a filologia, com a formalizaçâo, com o retorno da
exegese, com a literatura, a linguagem fragrnenta-se e, em seus interstícios, aparece, então, a
figura do homem. Essa figura dupla (ver: Homem) assegurará agora o nexo entre as palavras
e as coisas. Filologia, exegese, formalização. Valendo-se das análises de Bopp, a linguagem
náo é maris um sistema de representações para decompor e recompor outras representações.
Em suas raízes, designa os estados, as vontades. Quer dizer, não o que se vê, mas o que se quer;
ela se enraíza no sujeito, na sua atividade. Corno a açào, expressa utna vontade. Foucault
aponta duas consequências fundamentais desse deslocamento: 1) Com a descoberta de uma
gramática pura, atribuen'r-se à linguagem profundos poderes de expressão que não se reduzem
à dimensão cla representação. 2) A linguagem já não está ligada às civilizações pelo conheci-
mento que elas alcançaram, mas pelo espírito do povo que as fez nascer e as anima (MC,
302-303). * A Írlologia de Bopp opôe-se, termo a termo, a cada um dos quatro segmentos te-
óricos da gramtítica geral (ver: Episteme clássica). A teoria do parentesco entre as línguas
opõe-se à teoria clássica da derivação. Enquanto esta supunha fatores de desgaste e mescla
artribuíveis da mesma maneira a todas as línguas, a teoria do parentesco, por sua vez, aÍrmra
a descontinuidade entre as grandes famílias e as analogias internas. A teoria rlo radical opõe-
se à teoria clássica da designação. O radical é uma individualidade linguística isolável e interior
a um grupo de línguas, núcleo das formas verbais; na época clássica, a raiz era uma sonorida-
de indefinidamente transformár,el e que servia primariamente para recortar nominalmente
as coisas. O estudo das variações internas opõe-se à teoria da articulação representativa. As
palavras, agora, caracterizam-se pela sua morfologia, e não por seu valor representativo. Fi-
nalmente, a análise interna das línguas opõe-se ao valor que se atribuía ao verbo ser. A análise
da organizaçáo interna das línguas rompe com a primazia da forma proposicional (MC, 308).
'A partir do século XIX, a linguagen-r dobra-se sobre si mesma, adquire sua espessura própria,
desdobra urna história, leis e uma objetividade que só pertencem a eia. Converteu-se em ur1
objeto de conhecimento entre outros, junto aos seres viventes, as riquezas e os ralores, a his-
tória dos fatos e dos homens [... ] Conhecer a linguagem não é mais aproximar-se mais perto do
próprio conhecimento, é apenas aplicar os métodos do saber em geral a um domínio singular

tINGUAGEM (Lanqage) 253


de objetividade" (MC, 309). Mas, segundo Foucault, essa objetivização da linguagem está
compensada de três maneiras. 1) A linguagem é o meio necessário a todo conhecimento
científico. Daí o sonho positivista de uma linguagem que se mantenha rente ao que se sabe.
Por isso também a busca de uma lógica independente da gramática e todos os ensaios de
formalização. 2) O vaior crítico atribuído à linguagem. As disposições gramaticais de uma
língua constituem o a priorl do que se pode enunciar. Daí o reaparecimento de todas as téc-
nicas de exegese no século XIX. Mas a exegese, na forma do comentário, já não vai em busca
de um texto primitivo; parte somente do fato de que estamos atravessados pela linguagem e
vai em busca da linguagem em seu ser bruto. 3) O aparecimento da literatura (MC, 309-313).
* Sobre formalização
e interpretação, yer os respectivos verbetes. O reaparecimento do ser
da linguagem. l) Linguística. Etnologia e psicanálise são, na perspectiva de Foucault,
'tontraciências" humanas (ver: Homem). Pois bem, a etnologia se aproxima da psicanálise,
mas não assimilando os mecanismos e as formas de uma sociedade à repressão dos fantasmas
coletivos, mas definindo como sistemas inconscientes o conjunto das estruturas formais que
tornam significantes os discursos míticos e lhes dão sua coerência e necessidade às regras que
regem uma sociedade. De maneira simétrica, a psicanáiise aproxima-se da etnologia, não pela
instauração de uma psicologia cultural, mas pela descoberta da estrutura formal do incons-
ciente. A etnologia e a psicanálise se cruzam, então, não nas relaçÕes entre o indivíduo e a
sociedade, mas no ponto em que a cadeia significante, mediante a qual se constitui a experiência
do indivíduo, rompe com o sistema formal a partir do qual se constituem as significações de
uma cultura. Aparece então, segundo Foucault, o tema de uma teoria pura da linguagem que
dá à etnologia e à psicanálise seu modelo formal. "Ter-se-ia, assim, uma disciplina que pode-
ria cobrir em um único percurso tanto essa dimensão da etnologia que refere as ciências
humanas às positividades que as rodeiam, como também essa dimensão da psicanálise que
refere o saber do homem à finitude que o funda. Com a linguística se teria, então, uma ciência
perfeitamente fundada na ordem das positividades exteriores ao homem (posto que se trata
de uma linguagem pura) e que, atravessando todo o espaço das ciências humanas, alcançaria
a questão da finitude (porque, através da linguagem e nela, o pensamento pode pensar; de
modo que ele é em si mesmo uma positividade que vale como fundamental). Acima da etno-
logia e da psicanálise, mais exatamente entrelaçada com elas, uma terceira 'contraciência
viria percorrer, animar, inquietar todo o campo constituído das ciências humanas; e transbor-
dando-o tanto do lado das positividades como do lado da finitude, ela seria o questionamen-
to mais geral" (MC, 392). * Desse modo, a linguística não imita simplesmente o que quiseram
fazer a biologia ou a economia política, isto é, unificar sob seus conceitos o campo das ciências
humanas. A situação da linguística é diferente, por várias razões. 1) A linguística se esforça
para estruturar os conteúdos mesmos. Ela não se propÕe simplesmente uma versão linguísti-
ca dos fenômenos observados; as coisas não acedem à percepção, a não ser na medida em que
podem formar parte de um sistema significante. 'A análise linguística é mais uma percepção
que uma explicação, quer dizer, é constitutiva de seu próprio objeto" (MC, 393). 2) por essa
emergência da estrutura, a relação das ciências humanas com a matemática encontra-se no-
vamente aberta, mas em uma nova dimensão. Já não se trata de quantificar os resuitados, mas
de saber se é da mesma estrutura que se fala nas matemáticas e nas ciências humanas. Entáo, a
relação das ciências humanas com as disciplinas formais converte-se em uma relação essencial,

254 LTNGUAGEM (LanEraÇle)


constitutiva. 3) A linguística faz aparecer a questão da linguagem em sua insistência e sua
lbrma enigmática e, desse modo, cruza-se cofir a llteratura. "Por um caminho mais longo e
muito mais imprevisto, se é reconduzido a este lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indi-
cado quando urn havia perguntado: quem fala? e o outro havia feito a resposta faiscar na Pa-
lavra mesma. A interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser retoma, uma vez mais, seu
tonr imperativo" (MC, 394). 2) Literatura. Durante o Renascimento, o ser da linguagern se
maIlil-estava em sua forma enigmática e exigia o trabalho do comentário (entre o Texto pri-
mitivo e a interpretação infinita). A época clássica o reduziu a discurso, a seu funcionamento
representativo no domínio do conhecimento. Com a iiteratr-rra, tal como ela aparece nos um-
brais da Modernidade, reaparece o ser vivo da linguagem. O reaparecirnento da linguagem
ltos mostra que essa flgura do homem, tal como se desenhou nos saberes do século XIX, está
em vias de desaparecer, de morrer (DEl, 500-501). Tal reorganização rla episteme traz con-
sigo uma série de consequências: 1) Converte em quimera a ideia cle uma ciência do homem
que seja, ao mesmo tempo, urna ciência do signo. 2) Anuncia a deterioração na história euro-
peia, do antropologismo e do humanismo. 3) A literatura do seculo XIX deixa de pertencer à
ordem do discurso e se converte em uma manifestação da linguagem em sua espessura (DEl,
502). Ver: Líteratura.
Langage l2600l: AN,33, 49, 6-5, 143. AS, I 4, 22, 26, 48, 5Z, 69,82, gt, t\Z. fi2,1 t4, l2-5, 129-t31, 112, 144, 146-
148,156,168,172.177,18j,185,190,191,196,209,2tt,220.230.235,2,r7,262,275.D81.70_73.78_79,81.91,118.
126, 133, l-50,159,161, 16l-166,170-184, 188-190, 192,194-195, 198-215,217-218,227,230,233-236,239 262,264-268,
27 1-27 4, 277 28,-, 302-304,309-3 10, 3 1 2, 326,329,335 337 ,339-340,3.14 345, 353, 358 ,363-364,368-370,372-37 4,376-
382, 384, 387-393, 395, 397-398, 400, 402, 404-423, 426-437, 442 443, 450-451,457 -458, 461-462, 470 47 1, 480-490, 493,
197 , 501 -504, 507, 509, 5 I 2, 5 l -5, 5 I 9-525. 53 I -532, 534-539, 542-546, s5 1, 554 555. 557, 560, 564 565,57t-572,57 4,57 6,
583-584, 587, -589, -592-59-5, 598, 603, 60-5-606, 611 ,621,623,637,640,642,646,650,653,657,659-662,664,668,671 -673,
676, 678-679,686, 695, 700,7 14,721,724,729,733,738, 644,746,750 751,774,788,793,796,807, 810, 815, 82 I -825,
828,832,835,837840.DE2,8,10,1415,19,21-24,82,86,101,103,105,114,116,120-121,123-125,129,131-132,143,
165-16(r,170 171,220-221,239,262,282,370,374,404405,412,417,425,472-473,476,481,484,486,523,525,539,544,
-561,635, 645,662,703,708,710, t'23,762,808. DE3, 100, 118, 145, 171,24]r,245,249-253,260,303,305,321,340,342,
346, 350, 404.405,114,484,490,192,494,498, 504, 54r,575,582, 593, 707,745,750,752,784.DF4,52, 71, 169, 185,
197.214,278,344,373. 434-435, 412-443,462, 488, 493,520, 546,60t-604, 656, 709,736,7 41.798. HF,29,33-34, 47 ,63,
87, l 10, 1 90, 203,216.221 -223,225,227 -228,237 ,248,264,272.298,300-30 1, 303-304, 309, 3 1 0, 3I 3-3 I 5, -t l7-3 18, 387,
4 l 3, 4 I 8, 420, 423-424, 426, 428, 438-439, 44 t-442,472,189, 492-494,545.546,550. 552, 598, 605-606, 6 1 5-6 16, 63 I , 633,
637 -640,643,648-649, 651 -652, 654 -656,657.660-663. HS, 41, 54, 55, 148,158,264,317 ,319,325-327,348-.150, 359, 366,
384-385,388,438.HSl, 13,25,29,38.44,47,82, 110, 115, 152. HS2, 18, 186,2s8. HS3,208. IDS, 16,202. MC,8-14,
25,32,42,44,48 63,65-66,68,70.73,77,80,90,92 115,117 t35,142-144,146-147,148 151,154,158,160,t70-175,179,
187 , 192,203-204,214 223,230,213-250,253,257 ,262,264,280,290,292-294,298-304,306-329,33t 332, 334,,136, 340-,

342,346-350,355,358-359,361 369,371,373-374,376,379,380 387, 389 390,392-397. MMPE, t2,19,17,28,64,99.


MMPS,12,t9,27-28,64,78,80,rj2,90,95,100,104.NC,V-VIII,X-XIV,6t-62,68,92,94-97,108-109,111-116,118,120,
t23,127,132,147,159,162,\65,173-t75,192,199-203. OD,30,50,63. pp, i43, 146,\49,150_151, 160_161, 164_165,
236,289-290,326327.RR,7,9,11,1315,17,19,22-27,30-36,38-40,42_54,56-57,59_64,67,69,76,79,82_85,87,90,
91,95,97 98,106,109-110, r21,1.24.126,128 129,133, 135,t42,144-149, r53_156,159-161,16-l_166, l7t_176,182_190,
t93-197, 199-2t0. SP, I 14, 139, 251, 281, 298.

:: *. LINGUíSTICA (Li ng u istiq ue)

Yer Linguagem.

LINGUíSTICA (Linguistique) 255


Linguistique [278]: A5,20-22,39, 65, 1 09, \t4, 117 , 12t, t24, 129, 138-140, 148, 152,1 54, 1 90, 194,201,222,225,
259-261,269. DEl, 204, 37 \, 416, 435, 442, 444,
,54 1, 548, 550, 557, 580_582, 585, 593_594, 596,600, 603, 612, 643,
447

650, 660, 662, 665, 667, 67 4,68 I, 685, 705-706,720,727 _728,732-733,735_739,7 50,787 ,806 807, 82 1 -84 1. DEz,8,22,
106,203,222,240,269,37t,374,470,480,483,491,539,637,645,723,741,750,772.D83,80, \5s,302,343,429,442,
466,553. DE4,52,62, ).70,220,223,373,431.,434-435,437, 474,593,601_602,667 ,763,785.HS3, 32. IDS, 86, 1 36. MC,
14,59,97 , t07,259,282,296, 300, 308, 358, 365, 37 1-373,377 ,389,392 394. NC, 89, 92, t17 , 120_122,1 33, 203. OD, 35,
43, 7 3. PP, 143. RR, 208-209.

ã2r:. LITERATURA (Litteratu re)

A literatura desempenhou papel fundamental na obra de Foucault, sobretudo ate Les mots
et les choses. Para sermos mais precisos, não é a literatura entendida em termos gerais, mas
a literatura em seu sentido moderno, a que aparece ao final do século XVIIL PoT um lado, e
essa é uma primeira razão da importância da literatura para Foucauit, ela nos mostra a in-
compatibilidade fundamental entre o ser do homem e o ser linguagem. Por outro lado, uma
segunda razão é que ela representa esse espaço onde ficam fora do jogo os métodos de análises
hermenêuticas e estruturalistas; o ser da literatura não pode ser analisado nem desde o ponto
de vista do sentido nem desde o significante. Por isso, pode-se afirmar que, na epoca de Les
mots et les choses, nos escritos dos anos sessenta, a literatura representa o espaço de uma
alternativa aos métodos de análise do discurso vigentes. Ocupamo-nos dessa problemática no
verbete Linguagem e, da literatura c omo ausência de obra, no verbete Io ucura.lnteressa-nos
desenvolver aqui o que Foucault entende estritamente por literatura. * Pois bem, para com-
preender o sentido que Foucault atribui ao termo "literatural é conveniente partir da situação
da linguagem na episteme renascentista. Na experiência renascentista, a Iinguagem existe, em
primeiro lugar, "em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escritura,
de um estigma sobre as coisas, de uma marca repartida pelo mundo e que forma parte de suas
mais inapagáveis figuras" (MC, 57). Foucault aplica aqui a noção de"signatura" (ver: Epis-
teme renascentista). A linguagem é uma marca, uma coisa, um signo escrito. Essa existência
das marcas das coisas, dispostas pelo Criador, dá lugar a dois discursos: o 'tomentário" que
retoma tais marcas para convertê-las em signos, descobrindo nelas o trabalho da semelhança,
e o "texto" que esse comentário lê quando descobre e retoma os "signos das coisas'l o modo
de existência fundamental da linguagem, no Renascimento, está determinado pela escritura
e, antes de tudo, insistimos, pela escritura das coisas. Na época clássica, essa "escritura das
coisas" desaparecerá, e o funcionamento da Iinguagem ficará encerrado nos limites da repre-
sentação. Em outros termos, o funcionamento da linguagem já não irá do texto ao comentário
e do comentário ao texto, através das escrituras das coisas, mas se situará no espaço que vai do

signiÍicante ao significado. O problema da época clássica será, então, determinar de que modo
um significante está unido a um significado ou, melhor, como no domínio da representação
está representada a relaçáo entre o significante e o significado. A linguagem converteu-se,
assim, em discurso. Jânão é "escritura das coisas'l mas'desdobramento da representação'l
'As palavras e as coisas vão separar-se" (MC, 58). o problema da representaçào ou, com um
termo mais moderno, da significação, ocupará o lugar que ocupava, durante o Renascimento, a

256 LTTERATURA (Litterature\


semelhança. Consequentemente, o movimento infinito para o Texto primitivo (inÍinito porque
nenhum comentário o esgota) será substituído pelo problema da ordem das representações.
Brevemente, a linguagem se submete ao pensamento: é apenas a expressão sucessiva do que
sirnultaneamente nesse. Pois bem, este "ser vivo da linguagem' que existia du-
se nos oferece
rante o Renascimento reaparecerá ao final do século XVIII. Então, a linguagem ultrapassará
o universo da representação, do pensamento, escapará dos limites que lhe impõem as noções
de significante e significado. A literatura, com eÍêito, escapa ao funcionamento da linguagem
na representação; ela não é, estritamente falando, um discurso. Ela não pode ser analisada,
sem ser reduzida, a partir do signiflcante ou do significado. "Que se a analise do lado do sig-
nificado (do que quer dizer, de suas 'ideiasl do que promete ou daquilo a que compromete) ou
do lado do significante (com a ajuda de esquemas tomados de empréstimo à linguística ou à
psicanálise), pouco importa; trata-se apenas de um episódio. Tanto num caso como no outro,
ela é buscada fora do lugar oncle ela - para nossa cultura, faz jálmséculo e meio - não deixou
de nascer e de se imprimir. Esses modos de deciframento provêm de uma situação clássica
da linguagem: a que reinou no século XVII, quando o regime dos signos tornou-se binário e
quando a significação foi refletida na forma da representação. Então, a literatura estava feita
de um significante e de um signiflcado e merecia ser analisada conlo tal. A partir do século
XIX, a literatura restabelece a linguagem em seu ser, mas nào como aparecia ainda no Íinal
do Renascimento. Porque, agora, não há mais uma palavra primeira, absolutamente inicial
pela qual se encontrava fundado e limitado o movimento infinito do discurso. De agora em
diante, a linguagem vai crescer sem ponto de partida, sem fim e sem promessa. O percurso
desse espaço vão e fundamental é o que traça a cada dia o texto da literatura' (MC, 59). Esse
reaparecimento do "ser viyo da linguagem" é contemporâneo da forma çáo da biologia, dafi-
lologia e da economia política (ver: Homem). Também aqui, seus objetos escapam ao mundo
da represetrtação. "Era necessário que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em
obras como as de Artaud ou de Roussel, e por homens colllo esses. Em Artaud, a linguagem,
rechaçada como discurso e retomado na violência plástica do golpe, é reenviada ao grito, ao
corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne. Em Roussel, a linguagem, reduzida
a pó por um acaso sistematicamente manejado, relata indefinidamente a repetição da morte e

o enigma das origens desdobradas. E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem
não pudesse ser suportada ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua própria insuficiência
era insuportável), foi dentro da loucura que ela se manifestou. A figura da finitude se dá assim

na linguagern (corno o que se desvela nela), mas também antes que ela, mais aqui, nessa região
informe, muda, insignificante onde a linguagem pode liberar-se. E é nesse espaço, assim posto
a descoberto, que a literatura - com o surrealismo primeiro (mas sob uma forma travestida),
depois, cada vez mais puramente, com KaÍka, com Bataille, com Blanchot - se dá conro ex-
periência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável
(e em sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre aí, no ponto
mais próximo à linguagem e mais afastado dela), como experiência da finitude (capturada
na abertura e a exigência dessa hnitude" (MC, 395). A literatura moderna é aquela em cuja
linguagem o sujeito está excluído ou, para utilizar a expressáo de Foucault sobre Blanchot, é

aquela na qual aparece a experiência do "fora'cujas categorias são a "atraçâo" para Blanchot,

LITERATURA \Litterature) 257


o'desejo" para Sade, a "materialidade do pensamento" para Artaud, a "transgressão" para
Bataille (DEf , 525). Foucault ocupou-se de todos eles. Remeternos aos verbetes dedicados a
esses autores e a essas noções.

Littérature [625]: AN,26, 43,50,61,69,72,i5,91-92,99,1 33, 65, 2 19, 220-221,224-226, 129, 236, 245, 100. AS,
1

10,13,33,37,123.t29-t30,135,r79,l8l.DEl.83,88-89,91,96,t68,246,218-249,253-256,260-26t,278279,28t,283,
294,296,298, 327,337 -339,313,356, 367,369 370, 377,38 1, 390, 398, 407-408, 412, ,118-42 1, 424, 429 430, 432, 435,
437,443,150,50r-502,507,515,517,519-520,538,54-3 s44,552,s54-557,5e2-594,596,600,660,693,697,70r702,770,
799,812,842-843. DE2,69,74, r 04- 105, 107- 109, l 12, I 15- I 26, 131 - 132, 166, t70 t71,183, 203, 2 15, 218,220,227,270,
280-281,351,393,409 410,412 413,425,524,539,59t-,648,ó53,689,707,732,734.740,713,797.801,819.D83,7,20,
4 l, 8s, 93, 100 102, 108, 238-239,250.252,253,26t-262, 305, 325, 130, 368, 39 1, _199, 403, 410, 1t2-414, 489,490, s00,
560,571,575,615,625, t,36 639, 641,677 678,733,771,815. DE4, 103, 115, r22,136,140, 144, 156-157.t73,176-177,
252, 254. 270, 323,328-329, 3,r5, 387, 405, 408, 4 16, 419, 423, 462, 523,53 r , 548, -5s0, 60 1, 603, 605, 607 . 6t2-6t3, 625,
628,666,802,808,812,820,824.HF,27 30,43-44,56,60,62,258,401.,150,453,499,596,638,649.HS,82,t42,1.59,172,
206,209,239,258,286,296,310,357,358,392,393,431,451.HS1,30,40,80,134.HS2,22,25,48,101,147,210.234,
27,3.HS3,16,97,122,t62,165,227,253,262-263.IDS,20,74,101,122,130,147,172,189,212,235.MC,-53,58-59,62,
95, 103, 119, 134,233,298,313-314,3t7,394 397. MMPS,79. NC,7,1. OD,20,29. PP, 1.14, 169, 218 295,315,333-334.
RR.55, 126, 136.209. sP. 69-72,292 293.

:::. LOMBROSO, Cesare (1836-1909)

Foucault coloca Lombroso como exemplo da função política da psiquiatria. Lombroso en-
frenta o problema de discriminar quais movimentos políticos eram válidos e quais não. Desde
suâ perspectiva, a antropologia pareceria oferecer-nos os meios para estabelecer a distinção.
Os grandes revolucionários (Mazzini, Garibaldi, Gambetta, Marx) eram gênios e possuíam
utna fisionontia maravilhosamente harmoniosa. Ao contrário, apoiando-se nas fotografias de
quarenta e um anarquistas, observa que 31% possuíam estigmas físicos; de cem anarquistas
aprisionados em Turim 34o/o náo tinha uma fisionomia harmoniosa (AN, 142-143).
Cessre Lotnbroso [22]. AN,52,70,89,98. 142-143, 15,3.297, -103. DE2,398. D83,324,773-774.

;'i:. LOUCURA (Folie)

Neste verbete reunimos vários temas dos quais Foucault ocupou-se extensamente :a loucu-
ra, a doença ruental, a alienação, a desrazão. Tratá-los separadamente implicaria demasiadas
repetições e referências recíprocas. Além do mais, como fizemos no verbete Clínicq, quisemos
ofêrecer aqui um esquema de leitura da Histoire de la J'olie. Trata-se cle um elxo temático que
se estende da primeira publicação de Foucault, Maladie mentale et personalité ( 1954), até os
cursos no Collêge de France, especialmente , Le pouvoir psychiatrique (1973-197 4) e Les anor-
maux (1974-1975. Nesse longo caminho, a Histoire de la folie à l'âge classique (1961), sua
primeira grande obra, representa esse momento decisivo em que Foucault define com os próprios
termos (já não a partir dos instrumentos conceituais que havia adquirido durante sua formação)
cada um dos temas meucionados. Percorrer esse caminho, ao preço de estender-nos talvez

258 LoMBRo5o, cesare


demais, é necessário ao menos por três razões fundamentais: para compreender a formação
da metodologia de trabalho de Foucault; para situar sua posição a respeito das ciências huma-
nas e do homem em geral; para mostrar um dos pontos de inserção de seu interesse pela lite-
ratura. * No presente verbete, ocuparemo-nos de três obras publicadas por Foucault que
abordam a questão da loucura e da doença mental: Maladie mentqle et personalité, Histoi-
re de la folie à lhge classique e Maladie mentale et psychologie. No verbete Psiquiatria,
abordamos o conteúdo de dois cursos no Collàge de France e que se ocupam da história da
prática psiquiátrica no século XIX e da noção de anomalia: Les anormaux e Le pouvoir
psychiatrique; o último pode ser considerado como o segundo volum e de Histoire de la folie
(PP, 14). " Doença mental e personalidade. Metapatologia, evolução, história, exis-
tência. Malodie mentale et personalité começa com a formulação de duas perguntas: em
que condições se pode falar de doença no domínio psicológico? E que relações podem ser
estabelecidas entre a patologia mental e a patologia orgânica? A tese que Foucault sustenta
pode ser resumida nestes termos: não se pode falar de "doença mental" a partir de uma me-
tapatologia, isto é, de um marco conceitual comum à patologia orgânica e à patologia mental,
mas somente a partir de uma reflexão sobre o próprio homem (MMPE, 1-2). Nesse sentido,
além do conceito de doença mental, é interessante determinar o que Foucault, nessa altura,
entende por "o próprio homeml O primeiro capítulo dessa obra ocupou-se dos conceitos
elaborados com base nessa "metapatologia'que governa a medicina orgânica e a medicina da
mente e de suas dificuldades. Naquilo que Foucault denomina a patologia mental clássica,
ocupa-se de autores como Dupré (La constitution émotive, 1911), Delmas (La pratique
pryrhiotriqrr,lg2g),Ballet ("Lapsychosepériodique'l 1909-1910), Kraepelin (Lehrbuch der
Píychiatrii,1889), Bleuler (Dementia praecox oder Gruppe der Schizophrenien,lgll)'
Encontramos neles as definições de histeria, de psicastenia, das obsessões, das manias depres-
sivas, de paranoia, de psicose, etc. Segundo Foucault, as análises de tais autores
procedem do

mesmo modo que a patologia orgânica. Por um lado, delimitam uma série de sintomas; por
outro, a partir deles, deÍinem as entidades nosológicas. "Postuia-se, em primeiro lugar,
que a

doença é uma essência, uma entidade específica Io calizávelpelos sintomas que a manifestam,

mas anterior a eles e, de certa maneira, independente deles [..']" (MMPE, 7)' Nesse sentido,
as doenças são essências. Mas elas são também realidades naturais, e
não apenas abstrações.
Com efeito, elas evoluem e podem apresentar variantes. Em suma, a doença mental é uma "es-

pécie natural'l Pois bem, procedendo desse modo, encontramos um paralelismo de métodos
entre a patologia orgânica e a patologia mental; um paralelismo abstrato que delxa de lado o
problema da unidade humana e da totalidade psicossomátic a.Parafazer frente a essa dificulda-
de, a patologia, em geral, evoluirá na direção da totalidade, isto é, de uma concepção da doença
como alteração de todo o organismo. A doença dei,xará de ser, então, essa espécie natural que se
interpõe ao funcionamento do organismo. Na patoiogia orgânica, por exemplo, aparecerá a

importância do sistema hormonal e de suas perturbações; na patologia mental, a ideia de que a


doença é uma alteração da personalidade em sua totalidade. As psicoses serão perturbaçÕes
globais da personalidade; as neuroses, perturbaçÕes setoriais. Porém, para Foucault, "somente
por um artifício da linguagem se pode dar o mesmo sentido às 'doenças do corpo' e às 'doenças
do espírito'l Uma patologia unitária, que utilizasse os mesmos métodos e os mesmos conceitos
no domínio psicológico e no domínio Íisiológico, é atualmente da ordem do mito, ainda que

LoUCURA (Folie) 259


a unidade do corpo e do espírito seja da ordem da realidade" (MMPE, 12). As razões de tal
impossibilidade são várias. A coerência psicológica é diferente da coesão orgânica. A diferen-
ça da medicina orgânica, na psiquiatria, a noção de personalidade torna singularmente difícil
a distinção do normal e do patológico. Finalmente, na patologia mental, não se pode isolar a

realidade do enfermo do meio no qual ele se encontra. Não é possível, como na medicina
orgânica, utilizar instrumentos terapêuticos que funcionem a partir do isolamento do doente.
Como consequência disso, na patologia mental, faz-se necessário estabelecer as formas con-
cretas da doença mental na vida psicológica do indivíduo e determinar as condições reais em
que ela surge (MMPE, 17). As duas partes em que se divide essa obra se ocupam, respectiva-
mente, dessas questões. Na primeira, a noção de doença mental será abordada, entáo, em re-
lação às noções de evolução, de história individual e de existência. l) Evolução. A doença
mental manifesta-se como um déficit g1obal e extenso (confusões espaço-temporais, rupturas
entre as condutas, incapacidade para aceder ao universo dos outros, etc.) (MMPE, 19). Essa
diferença estrutural do indivíduo enfermo é duplicada por uma diferença ao nível evolutivo.
As condutas patológicas são características de um nível arcaico na evolução do indivíduo. A
doença aparece, então, como o desenvolvimento da natureza em sentido inverso (MMPE,
22). Foucault observa que, em uma concepção desse tipo, persistem certos temas míticos. Por
um lado, a "libido' de Freud ou "a força psíquica" de Janet, que seriam uma espécie de material
bruto da evolução, normalmente progridem, patologicamente regridem. Por outro, a iden-
e

tificação do enfermo com o primitivo e com a criança. Pois bem, ainda que a especificiclade
da personalidade enferma possa ser descrita em termos de involução, ela não pode ser com-
preendida como tal. Com efeito, do ponto de vista involutivo, não se pode dar conta da orga-
úzaçao da personalidade enferma. A dimensão evolutiva (naturalista) deve ser completada
pela dimensão histórica. 2) História individual. Em vários momentos de sua obra, Foucault
distingue e, até certo ponto, opõe evolução e história. Do ponto de vista evolutivo, o passado
promete e torna possível o presente. Contudo, do ponto de vista da história, é o presente que
confere sentido e significação ao passado. Nesse sentido, a genialidade de Freud consistiu em
separar a história do indivíduo do horizonte da compreensão evolucionista (herdado de Darwin
e de Spencer) (MMPE, 37). Por isso, "a psicologia da evolução, que descreve os sintomas como
condutas arcaicas, deve então ser completada por uma psicologia da gênese que descreve, em
uma história, o sentido atual destas regressões" (MMPE, 51). Pois bem, a análise da história,
das obsessões ou dos delírios, desde a perspectiva da história individual, faz aparecer a angús-
tia como significado das condutas patológicas. Ela é como o a priori da existência. É neces-
sário, então, abordar essa dimensão da existência para completar a compreensão das descriçÕes
evolutivas e das significaçÕes históricas da doença mental. 3) Existência. Aqui Foucault re-
fere-se a laspers, Minkowski e Binswanger. A existência do doente mental (com a consciência
da doença e do mundo mórbido que e1a implica) caracÍeriza-se por um duplo movimento:por
um lado, o enfermo encerra-se no próprio mundo; por outro, abandona-se aos acontecimen-
tos. "Nessa unidade contraditória de um mundo privado e de um abandono à inautenticidade
do mundo está o nó da doença. Ou, para empregar outro vocabulário, a doença é, ao mesmo
tempo, redobramento na pior das subjetividades e queda na pior das objetividades" (MMPE,
69). Uma vez explorada a dimensão interior da doença mental, Foucault aborda suas condições
exteriores. Disso se ocupa a segunda parte da obra que estamos analisando. Alienação,

260 LoucuRA (Folle)


conflito. As manifestações interiores da doença mental náo mostram suas condições de
aparecimento, ou seja, as raízes do fato patológico (MMPE, 71). Para mostrá-ias, é necessário
abordar a questão da alienação. O capítulo V, que será substituído en Mttladie mentale et
psychologie, tem por título: "O sentido histórico da alienação mental1 A forma primitiva da
alienação seria a possessão, no sentido do energoúmenos grego, do mente caplus latino ou do
possuído cristáo. Em cada uma dessas formas, o homem transt'orma-se em outro. Corn respeito
à possessão cristã, S. Tomás afirma que ela não afeta a alma, mas o corpo (do qual o demônio se
apossa). No Renascimento, no entanto, a natureza frcará asalvo, a possessão será um aconteci-
n'rento da trlma. Os séculos XVIII e XIX devolveram à loucura sua humanidade; ela consistirá na
perda das faculdades mentais. A alienação terá agora ir forma da privação; fundamentalmente,
a privação do reconhecimento da verdade física e moral. Como contrapartida clessa hurnani-
zação da loucura, o doente mentai será excluído do rnundo dos homens. lá não é um possuí-
do, mas um despossuído. A tal despossessão seguir-se-ão a figura jurídica da interdição e a
prática da internação. Para o enfermo, no entanto, é uma experiência real que se inscreve no
âmbito do patológico, caracterizado pela invasão da esquizofrenia nas clarificaçÕes clínicas
das doenças mentais, cujo sintoma será a ruptura com a realidade, ruptura afetiva e efetiva. *
Ainda que a sociedade nâo se reconheça no doente mental, o qual ela considera um estranho
e um estrangeiro, é impossível dar cor.rta da patologia mental sem se referir às estrutura.s sociais,

sem \rer seu meio humano como ur.na condição real da doença. Quer se considere a doença
mental em relação com a evolução da humanidade, a história psicológica intlividual ou as
fbrmas da existência, em qualquer desses casos só a história permite descobrir as condições
de possibilidade do aparecimento do patológico. A doença mental apârece, em relação à evo-
lução do individuo ou da humanidade, como uma perturbação que adquire na neurose a
forma da regressão. Mas a regressão à conduta infantil não é a essência da patologia, mas um
efeito dela. A regressão só é possível em uma cultura que é incapaz de integrar o passado no
seu presente e que, portanto, estabelece entre eles limites que não se prode atravessar. E o ca-
ráter arcaico de nossas instituiçoes pedagógicas que marca esses limites, criando para a
criança um meio superprotegido e artificial. Assim, isola a criança dos conflitos do mundo
clos adultos, situando-a em um mundo infantil; mas clesse modo possibilita o conflito entre
esses dois mundos. De maneira sernelhante, a possibilidade histórica dos delírios religiosos
cleve ser buscada em uma cultura em que a laicização tornou impossível a integração do reli-
gioso. O complexo de Edipo, núcleo das ambivalências familiares, é uma versão reduzida dirs
contradiçÕes econômico-sociais da cultura moderna, em que o que nos yincula aos outros é
feito sob a fonna da dependência: a competência, a e.rploração, a guerra (MMPE, 76-90). A
alientrção histórica aparece, clesse modo, como a condição da alienação psicológica e jurídlca.
Para Foucault, a psicologia de Pavlov permite pensar a passagem de uma à outra. Não se trata,
contudo, de uma simples transposição. As contradiçoes c1o meio convertern-se em doença só
quando são contrzrdições funcionais (MMPE, 105- 106). Os conflitos sociais se tornam, desse
modo, conflitos mentais. Com base nas análises precedentes, Foucault extrai as seguintes
conclusões: 1) "Não e, então, porque se está doente que se é alienado, mas na medida em que
se éalienado, se está enfermo' (MMPE, 103). As doenças são a consequência das contradições
sociais. 2) 'A doença está lêita da mesma trama funcional que a adaptação normal; não é pois
a partir do anorntal, como quer a patologia clássica, que e necessário tentar definir a doença.

toUCURA (Folie) 261


Ao contrario, é a doença que torna possível o anormal e o funda' (MMPE, 105). 3) 'A análise
pavloviana do conflito mostra, com efeito, que é necessário deixar de lado a antítese entre
psicogênese e organogênese. As doenças mentais são danos de toda personalidade por inteiro"
(MMPE, 106). 4) "Querer separar o doente de suas condições de existência e querer separar
a doença de suas condições de aparecimento é enclausurar-se na mesma abstração [...] a
verdadeira psicologia deve desprender-se desse psicologismo, se é verdade que, como toda
ciência do homem, seu objetivo é desaliená-lo" (MMPE, 110). * O "próprio homem" situa-se,
então, na confluência de uma interioridade, definida fenomenologicamente como existência,
e as contradições da sociedade, analisadas em termos marxistas. O materialismo da teoria dos
reflexos de Pavlov explica as formas dessa confluência. A alienação histórico-social aparece
como a condição histórica do aparecimento da alienação psicológica. A tarefa da psicologia,
como das demais ciências humanas - o enfatizamos - seria desalienar histórica e psicologi-
camente. Doença mentql e psicologia e História da loucura " Maladie mentale et
psychologie é uma obra completamente separada de tudo o que escrevi posteriormente. Eu a
escrevi em um período em que as diferentes signiÍicaçoes do termo "alienaçãol seu sentido
sociológico, histórico e psiquiátrico se confundiam em uma perspectiva fenomenológica,
marxista e psiquiátrica. Atualmente, não há nenhum nexo entre tais noções [...] Posterior-
mente abordei o problema de modo completamente diferente; mais que fazer as grandes
passagens obrigatórias entre Hegel e a psiquiatria, passando pelo neomarxismo, tratei de
compreender a questáo desde o ponto de vista histórico e de examinar o tratamento do louco.
Ainda que meu primeiro texto sobre a doença mental seja coerente em si, não o é em relação
aos outros textos" (D84,665). Em 1963, Foucault reedita essa obra, mas com um novo título,
Maladie mentale et psychologie, e substituindo os capítulos V e VI que compõem a segunda
parte. Claramente, tal reestruturação é consequência da investigação levada a cabo em His-
toire de lafolie (1961). O novo capítulo V tem por título:'A constituição histórica da doença
mental'l Como no antigo título, trata-se da relação entre a história e a doença mental. Em
Maladie mentele et personalité, essa relação encontrava sua expressáo teórica no conceito
de alienação. Como dissemos, ia-se da alienação histórica à alienação psicológica. A história,
agora, tem outro sentido. Já não é a história dialética das contradições, mas uma história
tragica, de separações e de limites. É a história que nos é narrada em Histoire de la folie. (De
fato, esse novo capítulo resume seus resultados.) Ou, mais precisamente, como diz o primeiro
preÍácio dessa obra (suprimido a partir de 1972), tal história é a confrontação das dialéticas
da história com as estruturas imóveis do trágico (D81, 162). A loucura já não se reduz a ser
um produto das contradições históricas no nível das estruturas psicológicas e existenciais do
indivíduo. "Fazer a história da loucura, então, quer dizer: fazer um estudo estrutural do con-
junto histórico (noçoes, instituiçoes, medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos) que
tem cativa uma loucura cujo estado selvagem nunca pode ser restituído em si mesmo' (DEf ,
164).Em Maladie mentale et personalité, a história da ioucura enquadrava-se na história da
psicologia; em Maladie mentale et psychologie e em Histoire de la folie, dá-se o contrário.
Tudo isso marca uma primeira grande diferença entre a primeira obra de Foucault e as duas
que lhe seguem: a existência de Ltm grau zero daloucura, de uma loucura em estado selvagem,
uma experiência indiferenciada, sem separações. * E, contudo, essa loucura em estado puro
permanece inacessível; a única maneira de aceder a ela, ainda que sem alcançá-la, consiste em

262 LoucuRA (Folie)


dirigir o olhar em direção a esse enfrentamento originário de razão e loucura, momento da
separaçáo, do estabelecimento dos limites. "Porém, na falta dessa inacessível pureza prirniti-
va, o estudo estrutural deve remontar-se à decisão que, ao mesmo tempo, liga e separa razão
e loucura. Ele deve tender a descobrir o intercâmbio perpétuo, a obscura raiz comum, o en-
frentamento originário que dá sentido tanto à unidade como à oposição do sentido e do sem
sentido. Assim, poderá reaparecer a decisáo fulgurante, heterogênea no tempo da história,
mas inalcançável fbra dele, que separa, da linguagem darazao e das promessas do tempo, esse
murmúrio de insetos sombrios" (DE1, 164). Assim, uma segunda diferença fundamental está
marcada pelas modalidades da relação entre a história e a loucura. /á não se trata do que se
poderia expressar, numa linguagem marxista, de relações entre infraestrutura e superestrutura,
mas de "experiências'l mais ainda, de "movimentos rudimentares de uma experiência" (DEl,
164). Na constituição da experiência da loucura, Foucault distinguirá quatro formas de "cons-
ciência'i l) A consciência crítica: não se trata de uma consciência que clefine, mas daquela
que experimenta uma oposição imediata, que a clenuncia a partir do razoável,do reflexivo, do
moralmente sábio. Mas, em sua falta de definição, de conceitos e de pontos fixos, essa oposiçào
imediata à loucura corre o risco de reverter-se e, desse modo, através de um jogo dialético, a
razáo pode converter-se em loucura, e a loucura, em razão. Uma consciência que se opÕe; mas,
nessa oposição, intercambiam-se a linguagem da razâo e a linguagem da loucura. 2) A cons-
ciência prática dq loucurq: uma consciência imediata da difàrença entre a loucura e a razào
a partir do grupo considerado como portador das normas da razao. Por ser sociai e normati-
va, ela implica uma separaçâo que cala a linguagem da loucura, que a reduza silêncio. Essa
fbrma de consciência, sem sabê-io, sem dizê-lo, retoma os rituais ancestrais que purificam e
revigorarn a consciência obscura da comunidade.3) A consciência enunciativa da loucura:
à diferença das anteriores, essa forma de consciência da loucura não se situa ao nível dos va-
lores, dos perigos ou dos riscos. É uma simples apreensão perceptiva que afirma ou nega, li-
ricamente, a existência da loucura. Ela reconhece imediatamente a loucura a partir da supos-
ta cordura de quem a percebe. Essa consciência não é da ordem do conhecimento, mas do
reconhecimento, do espelho. Mas, reflexionando sobre si mesma no momento de designar o
outro, ela percebe, no outro, seu segredo mais próximo. Não se instaura, no entanto, nenhuma
dialética. 4) A consciência analítica da loucura: uma consciência desdobrada em suas formas,
que conhece, que funda a possibilidade de um saber. Aqui não há diálogo, nem ritual, nem o
lirismo do reconhecimento. A consciência da loucura tem, agora, só a forma do conhecimen-
to: os fantasmas alcançam sua verdade, os perigos da contranatureza se tornam signos da
natureza, o horror náo solicita as técnicas de supressão (H.F,215-221). Cada figura histórica,
cada experiêucia da loucura implica, ao mesmo tempo, a unidade e o conflito dessas quatro
formas de consciência. Em cada experiência da loucura faz-se e se desfaz esse equilíbrio entre
aconsciência dialética, a separação ritual, o reconhecimento lírico e o saber da loucura. Ne-
nhum desses elementos desaparece por completo; às vezes, algum deles e privilegiado e
mautém os outros quase Íla obscuridade. Por isso, não se pode reduzir a história da loucura à
história da psiquiatria; tampouco levá-la a cabo desde o ponto de vista da teleologia da ver-
dade ou da objetiviclade da ciência. Uma história da loucura é necessariamente a história
dessas experiências: experiências do limite pelas quais un.ra cultura rechaça o que será para
ela o Exterior, o Outro (DEl, 161). Já não se trata da história dialética (história de mediações)

LOUCURA (Folle) 263


de Maladie mentale et personalité. Agora, as experiências da loucura ressaltam as estruturas
do trágico, ou seja, de separações irreconciliáveis, de enfrentamentos que penduram. Não é a
história do mesmo, mas +
a do Outro.
Para compreender Histoire de lafolie,não basta mar-
car essas duas diferenças: a existência de uma experiência indiferenciada da loucura (a lou-
cura em estado selvagem, o grau zero daloucura) e as experiências diferenciadas da loucura
(as configurações históricas das diferentes consciências da loucura). É necessário sublinhar
um terceiro elemento:a linguagem da loucura. A linguagem da psiquiatria é, diz Foucault,'b
monólogo darazâo sobre aloucura"; monólogo que só pode estabelecer-se sobre o silêncio da
loucura. Nessesentido,Histoire delafolie é"aarqueologiadessesilêncio" (DEl, 160). Mas
na literatura e na arte (em Goya, em Sade, em Nietzsche, em Roussel, em Artaud, por exemplo),
a loucura faz sentir sua voz. Neles,
loucura manifesta-se em sua forma primordial, para além
a
de toda separação e de toda exclusão. Finalmente será com a linguagem de suas obras que terá
que medir-se a linguagem da razão, a linguagem da psicologia (HF, 663). A linguagem da
Iiteratura testemunha a existência dessa loucura em estado selvagem (não envolvida pela
linguagem da razáo). Nessa linguagem, a loucura se manifesta como o que é: "ausência de
obral Arqueologia, genealogia, ética. Afirmou-se a presença de certa fenomenologia no
primeiro prefácio de Histoire de la folie e, em deÍinitivo, na concepção geral dessa obra. A
linguagem utilizada autoriza sem dificuldade tal aproximação: "consciência'l 'experiêncial
Mas não só a linguagem. As 'tonsciências" da loucura devem medir-se com a existência de
uma loucura em estado selvagem que nunca se esgota em seus conteúdos conscientes, nem
sequer na forma analítica da consciência, ou seja, no saber. Sem negar essa leitura e essa filia-
ção, não se pode deixar de mencionar outra, que nos sugere o próprio Foucault, e ler o con-
ceito de "experiência' em relação à obra de Dumézil, isto é, como formas estruturadas que
podem ser encontradas, com modiÍicaçoes, em diferentes níveis (DEl, 168). * Costuma-se
distinguir, na produção de Foucault, um período chamado arqueológico (centrado no saber),
um genealógico (centrado, de certo modo, no poder) e um período ético (centrado na cons-
tituiçáo da subjetividade). Ainda que tal distinção não seja incorreta, ela não é suficientemen-
te precisa. A qual desses períodos pertence Hlsl oire de la folie? Aqui, a análise das formas do
saber (a consciência analítica da loucura, seguindo o vocabulário dessa obra) está focada em
suas relações com as formas do poder (a consciência prática) e com a objetivação da subjeti-
vidade. Muitos temas e autores que, nos últimos anos de trabalho de Foucault, alcançaram
uma relevância de primeira ordem já se encontram esboçados e estudados (a noção de "polí-
cia I por exemplo, ou os temas do liberalismo
e a razâo de Estado). Nesse sentido, se poderia
sustentar que Foucault não fez outra coisa senão desenvolver e articular (às vezes a partir de
outras noções, como episteme ot dispositivo) o que já estava contido em sua tese de douto-
rado. E também que finalmente a noção de prática acabará sendo a reelaboração em termos
especiÍicamente foucaultianos da noção de "experiência' encontrada na história da loucura.
"É o conjunto de 'práticas e discursos' que constitui o que denominei a experiência da loucu-
ra; mal nome, porque em realidade não é uma experiência' (D82,207). * Ainda que não sem
exercer certa violência (certo reducionismo), podemos dizer que, nas estruturas das experi-
ências que são analisadas em Histoire de la folie, combinam-se três registros: 1) O registro
das práticas: rituais e formas institucionais de separação (a nave dos loucos, a internaçao
clássica, o asilo moderno). Trata-se de rituais e instituições carregados de simbolismo. Eles

264 LoucuRA (Fotie)


nos mostram como, a partir do llnal da Idade Média, a cultura ocidental tratou os loucos. 2)
O registro da linguagem sobre a loucura, a iinguagem darazão em suas diferentes formas: a
filosofia, os saberes com pretensão mais ou menos científica, mais ou menos objetiva. Neles
se expressa o que cacla época entende por loucura. 3) O registro da linguagem da loucura, em
que aparece seu ser: a literatura, a arte. A combinação desses três registros faz com qne a
leitura de Histoire de la folie seja ao mesmo tempo um trabalho fascinante e difícil, pela
amplitude do campo abordado, a multiplicidade de relações que afloram passo a passo, as idas
evindas entre considerações que concernem ao Renascimento, à Epoca Clássica e à Modernida-
de. Difícil e fascinante também pela forma da expressão, em que a cumplicidade entre a beleza
ea erudição trama o tecido da exposição. Renascimento, Época Clássica, Modernidade.
Seguiremos agora um percurso geral pela obra, segundo a estrutura dos capítulos. Acrescen-
taremos, além disso, uma seção sobre a loucura como "ausência de obra'l ou seja, sobre a re-
lação loucura/literatura. Mas, antes de iniciar esse percurso, será útil um esquema geral do
movimento da obra. " 1) Renascimento: o capítulo I da primeira parte ('A nave dos loucos")
aborda a experiência renascentista da loucura. Para além da prática social de embarcar os
loucos, Foucault analisa a consciência cósmico-trágica que se expressa no mundo da pintura e
a consciência crítica que se expressa no dornínio da literatura e da filosofia. A loucura, do
ponto de vista trágico, manifesta a realidade de outro mundo. Nesse sentido, encontramos
uma experiência da loucura na dimensáo do sagrado. Essa consciência trágica e sagrada da
loucura ficará obscurecida pela consciência crítica, na qual começa a desenhar-se a desrazão
clássica. 2) Época clássica: a loucura como desrazão: Os demais capítulos da primeira
parte e toda a segunda parte são dedicados à experiência clássica da loucura, a loucura como
desrazão. Os capítulos iI a V da primeira parte se ocupam das consciências crítica e prática
da ioucura, a consciência que identifica e a que separa. Neles se descreve o mundo da inter-
nação, a partir do gesto que o anuncia no caminho cartesiano da dúvida até a descrição da
fisionomia dos loucos no mundo da clausura. O capítulo II ('A grande clausura") desenvolve
ftrndamentalmente dois temas. Por um lado, o gesto cartesiano da separação razaoldesrazao
que articula toda a experiência clássica. Por outro, a fbrmação do espaço da internação, a
partir de uma nova percepção da pobreza (já não como dimensão sagrada, mas consequência
e perigo moral). O capítulo III ("O mundo correcional") continua com a descrição do mundo
da internação, da população dos internados; além dos pobres e dos loucos, encontramos
aqueles que representam fbrmas de desordem a respeito de uma nova concepção da sexuali-
dade, da religião e do pensamento. Essa nova sensibilidade, como no caso geral da pobreza,
estrutura-se em torno a uma dessacralização, que toma a forma da ética. As formas da desor-
dern alteram não um universo carregado de significações trágico-religiosas, mas uma ordem
ético-social. O capítulo IV ("Experiências da loucura") ocupa-se de mostrar como se superpõem,
na época clássica, uma experiência médica da loucura, herdada do Medievo, e outra, propria-
mente clássica, a experiência social do louco. Em todo caso, esta úrltima é a que organiza o
mundo da internação. O capítulo V ("Os insensatos") descreve a particularidade dos loucos
no mundo da internação. Eles não são apenas internados; são monstros, personagens que, à
diferença dos outros, há que mostrar. O louco mostra a relação do homem com a animalidade,
com a negatividade da animalidade. Toda a segunda parte dessa obra está consagrada ao saber
sobre o louco e a loucura. o capítuio I ("o louco no jardirr das espécies") ocupa-se da percepção

TOUCURA (Folie) 265


filosófica e médica da loucura. Ainda que a Época Clássica possa distinguir o louco, ela não
pode dizer oque é aloucura, a não sernegativamente. A filosofia a define apartir darazao,
como ausência, como desrazão: uma razão que não é como a dos outros, uma razào nào ra-
zoável. A medicina, por sua vez, a aborda com base em uma nosologia abstrata. A partir
dessa, definem-se as figuras concretas da desrazão. Mas tais figuras não são só o produto do
trabalho das classificações, mas da persistência de certos temas (o delírio) e de obstáculos (a
percepção ética, a prática terapêutica). O capítulo II ('A transcendência
do delírio") ocupa-se
do que se pode considerar como a essência da loucura clássica, da desrazão, do delírio: a
linguagem entrelaçada com uma imaginação perturbada. Mostra-se aqui a importância que
teve a noção de paixao. O capítulo III ("Figuras da loucura') trata das formas concretas da
desrazão: ademência,amaniaeamelancolia,ahisteriaeahipocondria.OcapítuloIV('Mé-
dicos e doentes") ocupa-se, Íinalmente, das formas terapêuticas da época clássica: consolida-
ção, purificação, imersão, regulação dos movimentos, exortações, o "despertar'l o retorno ao
imediato, a atuação, etc. Nessa segunda parte, ademais, Foucault mostra as modificaçÕes que
sofreram cada um desses temas no século XVIII, preparando assim a experiência moderna da
loucura. 3) A Modernidade, a loucura como doença mental. A terceira parte da obra
ocupa-se da formação da experiência moderna; deixa-nos nos umbrais da psiquiatria, da
psicologia e da psicanálise. A tese geral de Foucault é que tais domínios de saber não foram
um produto da humanização do mundo da internação nem do desenvolvimento da raciona-
lidade e da objetividade da ciência, mas da reestruturação da experiência clássica da loucura.
A loucura adquirirá sua forma positiva de doença mental. O capítulo I ("O grande medo")
analisa o primeiro movimento de reorganização do mundo da internação a partir do medo de
uma febre dos asilos que ameaçaya contagiar as cidades. Nessa reorganizaçao, a loucura será
distinguida da desrazão, da "libertinageml O capítulo II ('h nova separação") trata do surgi-
mento de lugares de internação só para os loucos e das reformas que se originaram, dentro do
próprio espaço da internação devido aos protestos daqueles que não queriam ser confundidos
com os loucos. Paralelamente, mostra-se o que se pode denominar a inutilidade da internação
clássica: ela já não serve nem para controlar o desemprego nem para manejar politicamente
a pobreza. No movimento de todas essas reformas, a loucura separa-se dapobrezae assim se
desfaz outro dos nexos constitutivos da experiência clássica. A miséria pertence agora ao
campo da economia, e não ao da internação. Mas, se esse nexo se debilita e tende a desapare-
cer, a relação entre a loucura e a internação é cadavezmais forte. O capítulo III ("Do bom uso
da liberdade") analisa o novo espaço social da loucura. Trata-se de um espaço contraditório,
de "liberação" e "sujeição" em que se vai desenhando, com base no conceito burguês de liber-
dade, a objetivação moderna da loucura. o capítulo IV ("o nascimento do asilo") aborda o
gesto "liberador" de Tuke e de Pinel ou, melhor, a ambiguidade desse gesto. Nesse novo espa-
ço social, construiu-se a loucura como objeto do saber e o personagem do médico como su-
jeito desse saber. Não é o seu saber, no entanto, o que o define, mas a moral que representa. A
partir da alienação do louco na pessoa do médico construiu-se a objetivação científica da
loucura como doença mental. O resultado histórico do gesto "liberador" de Pinel e de Tuke foi,
em todo caso, a interiorizaçâo (moralização) da separação razãolloucura. O último capítulo,
quinto da terceira parte ("o círculo antropológico"), segue duas linhas de argumentação. por um
lado, a loucura jánão põe de manifesto o mundo trágico do Renascimento, nem tampouco as

266 toucuRA (Folie)


formas da desrazão, mas a verdade do homem, sua "natureza'l A loucura fala, agora, uma
linguagem antropológica. Por outro lado, a loucura reaparece na literatura em personagens
como Sade, Holderlin, Nietzsche ou Artaud. * Não sem idas e vindas, o movimento geral de
Histoire de la folie vai: l) Do ponto de vista do registro das práticas de exclusão que estabe-
lecem o espaço da loucura: da nave (circulação) à internação (clausura) e ao asilo (cura). 2)
Do ponto de vista do registro da linguagem sobre a loucura: do sagrado, à ética e às 'tiências
do homeml a linguagem do normal e do patológico (psiquiatria, psicologia). 3) Do ponro de
vista do registro da linguagem da loucura: das expressões trágicas e críticas (a pintura e a ii-
teratura do Renascimento), ao silêncio da Época Cliissica e, Íinalmente, ao discurso do 'doen-
te mental" e ao reaparecimento do trágico na literatura moderna. Stultifera navis. A Histoi-
re de la folie começa corn un1 fato: o desaparecimento da lepra na Europa no Íinal da Idade
Media. Segundo os dados da época, o número de leprosários havia alcançado a cifra de 19.000.
Por certo tempo, as doenças venéreas oÇuparam esses lugares. Mas, à diferença da lepra, ra-
pidamente se converteram etrr uma questão médica. Em toclo caso, elas não desempenharam
o papel que teve a lepra: c1e exclusão e, ao mesmo tempo, cle integração. Os leprosos eram o
mal que se exclui e, ao mesmo tempo, um testemunho sagrado; sua exclusão, um novo calvá-
rio, que thes dará a salvação. Os leprosários foram, por isso, lugares de exclusào e, ao mesmo
tempo, de reintegração espiritual (HF, 19). Durante quase dois séculos esses lugares de ex-
clusão ficaraln vazios, esperando uma nova "encarnaçáo do mal" (HF, l5). Corn etêito, no
Renascimento, a experiência da loucura nào l-oi como a experiência medieval da lepra; haverá
que esperar à Época Clássica para que esses lugares de exclusão-integração estejam de novo
habitados. * No Renascimento, a loucura circula, navega. Encontramo-nos assim coln esse
grande tema que encontrou múltiplas formas expressivas, na pintura e na literatura: stultife-
ra navis,a nave dos loucos. Essas formas expressivas elaboram o sentido de uma prática social.
Os loucos eram embarcados e navegavam sem rumo pelos rios da Europa. Um gesto carrega-
do de símbolos: embarcar, partir, peregrinar à deriva em busca darazáo perdida. Foucault
insiste especialmente no nexo simbólico entre a loucura e a água. A água transporta e puriÍica.
Cada embarque pode ser o último. A navegação é, assim, ao mesmo tempo, separação e pas-
sagem ao absoluto. "Ele [o louco] é posto no interior do exterior, e inversamente. Postura al-
tamente simbólica que permanecerá, sem dúvida, até nossos dias, se se admite que o que foi
em outro tempo fortaleza visível da ordem tenha se convertido agora no castelo de nossa
consciência' (HF, 26). Mas, sobre o fundo simbólico de tantos temas imemoriais, ao final da
Idade Média, na literatura e na pintura, em suma, na cultura do Renascimento, a loucura
ocupará um lugar central. Ela será a substituição da morte. Contudo, "a substituição do tema
da loucura pelo tema da rnorte não marca uma ruptura, mas sim uma torção dentro da mes-
ma inquietude. Trata-se sempre do nada da existência, mas esse nada não é mais reconhe-
cido como un1 termo exterior e Íinal, ao mesmo tempo ameaça e conclusão. É sentido desde
dentro, como forma contínua e constante da existência' (HF, ,31-32). A loucura é a presença
da morte neste mundo. Nesse sentido, a experiência da loucura, no tema plástico e linguístico
e na sua prática, encontra urna continuidade rigorosa com a experiência da lepra. A loucura,
tal como a lepra, é a exclusão daqueles que em vida testemunham a presença da morte (HF,
3l). Pois bem, apesar dessa aparente extrema coerência da experiência renascentista da lou-
cura, as imagens e as palavras não têm o mesmo sentido. Em suas formas plásticas, a loucura

LOUCURA (Folie) 267


está ligada ao
mundo e às suas formas subterrâneas, à animalidade (os animais impossíveis,
que surgem da imaginação enlouquecida, expressam a natureza secreta do homem); na lite-
ratura, a loucura está ligada ao homem, às suas debilidades, aos seus sonhos, às suas ilusões
(em suas expressões literárias e Íilosóficas, a loucura adquire a forma da sátira) (HF,4l).
Foucault distingue assim uma experiência cósmico-trágica (plástica) e uLma experiência
crítica (literária) da loucura. Na primeira, a loucura é a expressão do limite da existência; na
segunda, dos limites darazâo. Essa oposição, presente no início do Renascimento, ainda que
não desapareça, será deslocada pelos privilégios atribuídos à experiência crítica da loucura.
A experiência trágica da loucura permanecerá oculta e adormecida. Ela será percebida, mais
tarde, em Goya e em algumas páginas de Sade; mas haverá que esperar Nietzsche e Van Gogh
para que a experiência da loucura reapareça com plenitude. Freud a pressentiu, ao simbolizá-
la na luta mitológica da libido e do instinto de morte. Ela se expressará linalmente nas obras
de Artaud e Roussel (HF, 47 -48). Mas como se formou o privilégio da reflexão crítica? Foucault
indica nessa evolução os elementos que permitiram compreender a experiência clássica da
loucura. Por um lado, a loucur a e a razáo entram em uma relação perpetuamente reversível
(HF,48). Com respeito à Sabedoria, à sabedoria divina, arazao do homem é só loucura; com
relação à sabedoria dos homens, a Razão de Deus é loucura. A loucura não expressa a violên-
cia da animalidade, da natureza; ela existe em relação à razâo. Em segundo lugar, é uma das
próprias formas da razâo (HF, 53). A verdadeira razão deverá seguir os caminhos que lhe
traça a loucura; deverá reconhecer as debilidades que lhe impedem aceder à yerdade e ao bem
(os temas céticos de Montaigne). Haverá que distinguir, então, uma "loucura loucal que re-
chaça a loucura da razão, e uma "loucura sábia" que acolhe a loucura da razâo (Erasmo). Por
aqui nos encaminhamos para a experiência clássica. 'A loucura deixou de ser, nos conÍins do
mundo, do homem e da morte, uma figura escatológica; essa noite, na qual se flxavam os olhos
e de onde nasciam as formas do impossível, dissipou-se. Cai sobre o mundo o esquecimento
que a livre escravidão de sua Nave sulcava. Ela já não irá de um aqui do mundo a um mais
além em seu estranho passo; ela não será jamais esse limite fugitivo e absoluto. Aí está amar-
rada, solidamente, em meio às coisas e às pessoas. Retida e mantida.
Já não mais barca, mas
hospital" (HF, 63). A grande clausura. "o classicismo inventou a internaçào, um pouco
como a Idade Média a segregação dos leprosos; o espaço que estes deixaram vazio foi ocupa-
do por personagens noyos no mundo europeu: são os'internados"' (HF, 77). Foucault come-
ça a análise da experiência clássica da ioucura com algumas páginas dedicadas a Descartes
que foram objeto de polêmica com f. Derrida (ver: cogito) (P.F,67 70). "Na economia da
dúvida, há um desequilíbrio fundamental entre a loucura, por um iado, o sonho e o erro, por
outro" (HF, 68). o sujeito que pensa pode sonhar e equivocar-sei de todo modo, permanece nele
uma verdade que garante o pensamento. Mas o sujeito que pensa não pode estar louco. Estabe-
lece-se uma linha de separação entre razão e loucura que torna impossível a experiência renas-
centista de uma "loucura razoáve|". A loucura desaparece do domínio da razâo,para fundir-se e
deitar raízes em uma nova experiência. Essa nova experiência não surge da reflexão 1ilosófica
por causa do desenvolvimento do saber; mas se forma através de uma prática, cuja estrutura
mais visível é a clausura. Foucault toma como símbolo a data do édito de criação do Hospital
geral de Paris,27 de abril de 1656. (Também levará em consideração a criação das Workhouses,
na Inglaterra, e dos Zuchthciusern, na Alemanha.) Não se trata de um estabelecimento médico,

268 LoucuRA (Fotie)


mas de uma estrutura semijurídica, de uma entidade administrativa que, ao lado dos poderes
já constituídos e fora dos tribunais, decide, julga e executa, uma instância de ordem monár-
qtrica e burguesa (H'F,72-73). "Ela [a clausura] organiza, em uma unidade complexa, uma
nova sensibilidade com respeito à miséria e aos cleveres de assistência, novas formas de reação
frente aos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho
eo sonho de uma cidade onde a obrigação moral se une à lei civil sob as formas autoritárias
da coerçáo' (HF, 80). 1) Uma nova sensibilidade em relação à pobreza e aos deveres
de assistência. As casas de internação situam-se no final de um processo de laicização da
caridade e de condenação moral da miséria. A miséria perdeu seu sentido rnístico; o pobre
deixou de ser o representante de Deus. Esse processo começou com a Reforma protestante e,
não sem vencer resistências, alcançou o mundo católico. A diferença do Medievo que havia
santificado a miséria em sua totaliclade, agora, há que distinguir entre uma pobreza submeti-
daeconlormeàordemeoutraqueseopõeaela.Aprimeiraaceitaainternação; asegundaa
rechaça e, por isso, merece-a. Paralelamente há que distinguir, no domínio da internação, a
beneficência e a repressão (HF, 87). Segundo Foucault, se o louco, durante a Idade Média, foi
considerado como um personagem sagrado, náo o foi porque era um possuído, mas porque
participava dos poderes obscuros da miséria. "Se a loucura, no século XVIlI, e dessacralizada,
é, antes cle tudo, porque a miséria sofreu esse
tipo de queda que faz com que ela seja percebi-
da agora no horizonte da moral" (HF, 89). 2) Novas formas de reação ante os protrlemas
econômicos do desemprego e da ociosidade. Na sua origern, a internação foi uma das
respostas dadas às crises econômicas que afetaram a Europa no século XVII: baixa dos salários,
desemprego, escassez rnonetária. Para além dos períodos de crise, a internação tem como
função dar trabalho aos que estão internados. Mão de obra barata nas épocas de pleno em-
prego; reabsorção do desemprego e prevenção das desordens públicas na época de crise eco-
nômica. 3) Uma nova ética do trabalho. Mas a função econômica da internação durante
a Época Clássica só é compreensível, Íinalmente, a partir de uma nova moral do trabalho, a
partir de sua transcendência ética. A lei do trabalho não está inscrita nas leis da natureza;
trata-se, antes, cle uma consequência da queda, do pecado original. Pois bem, Deus é quem
garante que o trabalho dê seus frutos, e nâo o esforço do homem, por maior que seja (tema
comum a protestantes e católicos). Não querer trabalhar é, por um lado, obrigar Deus a reali-
zar milagres e, por outro, rechaçar o milagre cotidiano que Deus oferece ao homem como
recompensa de seu trabalho. A ociosidade é, nesse sentido, a pior revolta do homem contra
Deus. A partir dessa exigência, econômica e moral, formou-se a experiência do trabalho no
O sonho de uma cidade onde a obrigação moral se reúne com
espaço da internaçáo. 4)
a lei civil. Na internação, enclausura-se
nas cidades da moralidade pura, onde a lei deve
reinar rigorosamente e por coerção. A virtude converte-se err uma questão de Estado, e a
"policia" da internação deve satisfazer as exigências da religião. "Mas na história c1a desrazão,
ela [a internação] designa um acontecimento decisivo: o momento em que a loucura é perce-
bida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de
integrar-se ao grupo; o momento em que começa a conjugar-se com os problemas da cidade"
(HF, 108-109). A alienação é, ern definitivo, o produto da exclusão. Não se exclui o alienado; ao
contrário, enclausura-se aquele que, a partir de uma determinada percepção, de uma determi-
rrada consciência, se percebe como outro. O mundo correcional. No espaço da internação,

TOUCURA (Êolre) 269


não se encontram apenas os pobres e os loucos, mas uma multitude variada; às vezes, difícil
de discriminar. A internação, de fato, não desempenhou apenas uma função negativa de se-
gregação, mas um papel positivo de organização. A prática da internação constituiu um do-
mínio de experiência que tem sua unidade, sua coerência e sua função (HF, l l5). Nessa ex-
periência, entrelaçam-se o domínio da sexualidade em suas relações com a organização da
família burguesa, o da profanaçâo de suas relações com a nova concepção do sagrado, o da
libertinagem em relação às formas do pensamento. Junto com a loucura, esses três domínios
formam o mundo homogêneo do correcional (HF, 115-116). l) Doentes venéreos, sodo-
mitas, prostitutas. O flagelo das doenças venéreas perdeu seu caráter apolítico; agora
designa uma culpa. São internados aqueles que as contraíram graças à desordem e ao desen-
freio de sua conduta; mas não as contraíram dentro do casamento ou da família. A prática da
internação, para os casos de sodomia, é uma certa atenuação do antigo castigo da fogueira.
Na realidade, mais precisamente, a sodomia não é condenada, agora, como a heresia e a pro-
fanação religiosa, ou seja, desde uma perspectiva sagrada, mas a partir da razão. Nesse novo
espaço de percepção, a sodomia e a homossexualidade são as formas de amor da desrazão. 'À
luz de sua ingenuidade, a psicanálise viu corretamente que toda loucura se enraíza em alguma
sexualidade perturbada. Mas isso só tem sentido na medida em que nossa cultura, pela opção
que caracteriza seu classicismo, situou a sexualidade na linha de separação da desrazão. Sem-
pre, e provavelmente em todas as culturas, a sexualidade foi integrada a um sistema de exi-
gências; mas é somente na nossa, e em uma data relativamente recente, que ela foi dividida
de maneira tão rigorosa entre a Razão e a Desrazão, e depois, como consequência e degrada-
ção,entreasaúdeeadoença,onormaleoanormal"(HF, 123).Aosdoentesvenéreoseaos
sodomitas há que acrescentar as prostitutas. Em todos esses casos, a família converteu-se em
um dos critérios essenciais da razão, e o amor foi dessacralizado pelo contrato: não fazer amor
sem celebrar antes o contrato matrimonial. 2) Profanadores. Nos registros de internados,
encontramos também os blasfemadores, aqueles que tentaram o suicídio, os que praticam a
magia e a bruxaria. EIes também foram despojados de sua dimensão sagrada; agora são per-
cebidos do ponto de vista da desordem, da desrazão. 3) Libertinos. A internação deve con-
duzir os libertinos à moralidade pela via das exigências morais. A libertinagem já não é um
crime, mas uma falta. A libertinagem não expressa a liberdade do pensamento nem a liber-
dade dos costumes, mas um estado em que a razão se torna escraya dos desejos. +
Desse modo,
com prática da internação, desenha-se um espaço social que não coincide nem com a misé-
a
ria nem com a pobreza, e tampouco com o espaço da doença. Fora de sua função de "polícia]
de controle, esse espaço não tem nenhuma unidade institucional. Tampouco uma coerência
médica, psicológica ou psiquiátrica. A coerência da internação clássica é uma coerência da
ordem da percepção, da desrazão medida em relação à norma social. "Os homens da desrazão
são tipos que a sociedade reconhece e isola: é o desenfreado, o dispendioso, o homossexual, o
(HF, 140-141). "Pode-se dizer, de maneira aproximada, que, até
mago, o suicida, o libertino
o Renascimento, o mundo ético, para além da separação entre o Bem e o Mal, assegurava seu
equilíbrio em uma unidade trágica, que era aquela do destino ou da providência e da predi-
leção divina. Tal unidade, agora, vai desaparecer, dissociada peia separação decisiva entre a
tazáo e a desrazão. Começa uma crise do mundo ético que duplica a grande luta entre o Bem
eo Mal pelo conflito irreconciliável da razâo e da desrazão, multiplicando assim as figuras da

270 LoucuRA (Fotie)


dissociação. sade e Nietzsche, pelo menos, são o testemunho disso. Toda uma metade do
mundo ético ingressa assim no domínio da desrazão, e lhe aporta um imenso conteúdo de
erotismo, de profanação, de ritos e de magias, de saberes iluminados secretamente investidos
pelas leis do coração" (HF, 143-144). Experiências da loucura. No entanto, seria parcial
sustentar que a época clássica tenha tratado os ioucos, os "furiosos" como se dizia, simples-
mente como prisioneiros. Alguns deles tinham um estatuto especial; a alguns deles, por rudi-
mentares que fossem, se lhes outorgavam tratamentos médicos. Aincla que restringida, não
se pode negar a experiência da loucura como doença. Mas isso nâo quer dizer que a interna-

ção seja o primeiro passo no caminho da hospitalização. Em certo sentido, se poderia falar
inclusive de uma "involuçâol Com efeito, o direito canônico fazia com que a declaração de
denrência dependesse de uma decisão médica. A obra de Zacchias (Quaestiones medico-le-
gales, 1660'166 I ) apresenta o testemunho de toda essa jurisprudência. No entanto, a prática
da internação não está ordenada segundo critérios e decisões medicas. Na experiência clássi-
ca, a loucura é uma questão de sensibilidade social. A experiência jurídica, que data do Me-
dievo (do direito canônico e do direito romano), é uma experiência da pessoa como sujeito de
direito. Uma experiência jurídica: qualitativa, finamente detalhista, sensível aos limites e aos
graus. A experiência clássica da loucura, no entanto, é uma experiência da pessoa como su-
jeito social. Uma experiência normativa, dicotômica (bom ou mau para internar). O século
XVII esfbrçou-se para ajustar a velha noção de sujeito de direito à nova noçáo de sujeito social.
'A psicopatologia do século XIX (e a nossa ainda) crê situar-se e encontrar suas condições a
respeito de w Horno natura ou de um homem normal dado anteriormente a toda experi-
ência da doença. De Íàto, esse homem normai é uma criação, e, se é necessário situá-lo, não
será em um espaço naturai, mas erl um sistema que identifica o socius ao sujeito de direito.
E, consequentemente, o louco não é reconhecido como tal porque uma doença o deslocou
para as margens do norrnal, mas porque nossa cultura o situou no ponto de encontro entre o
decreto social da internação e o conhecimento jurídico que discerne a capacidade dos sujeitos
de direito. A ciência 'positiva' das doenças mentais e seus sentimentos humanitários, que
promoveran-r o louco à categoria de ser humano, só foram possíveis uma vez que essa síntese
Íbi solidamente estabelecida. Ela constitui, de certa maneira, o a priori concreto de nossa
psicopatologia com pretensão científica' (HF, 176). Os insensatos. O mundo da internação
expressa uma determinada sensibilidade moral. Aparentemente, trata-se como no Renasci-
mento do Bem e do Mal; mas, na realidade, de maneira completamente diferente. Com etêito,
no Renascimento, o Bem e o lvÍal eram concebidos substancialmente, sob as formas imaginá-
rias e transcendentes da providência divina, das forças ocultas do cosmos, do destino, etc. Na
Época clássica, o Bem e o Mal situam-se no terreno da etica, das opçoes da vontade. Não se
trata de uma consciência trágica, mas de uma consciência ética. No limite, se poderia dizeç
que já não se trata do Bem e do Mal, mas apenas do bom e do mau das opções da vontade. "É
na qualidade da vontade que reside o segredo da loucura, e não na integridade da razão' (HF,
l8l). Por isso, a época clássica foi indiferente à distinção entre loucura e falta. Ainda que não
se as confunda, existe entre elas um parentesco originário, ambas são um desvio da vontade.
Nesse sentido, sua experiência se opõe à consciênciajurídica cla loucura herdada do Medievo.
E por isso também a loucura pertence por inteiro ao mundo correcional. Tal consciência ética,
no entanto, não é da ordem dos valores ou das regras morais, mas da opção, mais fundamental,

LOUCURA (Folle) 27 |
que separa a razão da desrazão. Essa decisão fundamental aparece, desde o início, no caminho
cartesiano da dúvida. Decidir-se a duvidar é, em definitivo, decidir-se a "estar despertol a
"vigiar'] a evitar as quimeras; em outro termo, decidir-se a "buscar a verdade'i Nesse sentido,
afirma Foucault, tanto a loucura como a razão clássicas nascem no espaço de uma ética, de
uma decisão da vontade. * Mas os loucos ocupam um lugar particular no mundo da interna-
ção. Seu estatuto não se reduz simplesmente à ordem do correcional; eles são "insensatos'l Por
isso, é necessário desenhar sua figura a partir dessa opção ética da qual surge a experiência
clássica da loucura. A forma geral da internação justiflca-se pela vontade de evitar o escânda-
Io. Os loucos, no entanto, constituem uma exceção: eles são mostrados. Foucault faz referência
aos tradicionais passeios pelos lugares de internação, onde a loucura era conyertida em espe-
táculo,
e os loucos, literalmente, em monstros (o que se mostra). Não existe, no entanto, nada

em comum entre essa manifestação organizada da loucura e a liberdade com que os loucos
circulavam durante o Renascimento. Sua monstruosidade é de outra ordem. Agora ela é mos-
trada, mas do outro lado das grades, à distância, sem que a razào se sinta comprometida por
sua presença. O que se mostra é essa animalidade, essa bestialidade que foi abolida do homem.
'A loucura em suas formas últimas é, para o classicismo, o homem em relação imediata com
sua animalidade, sem outra referência e sem outro recurso" (HF, 198). A propósito dessa
relação entre animalidade e loucura, Foucault extrai uma série de conclusões. 1) Ela prova que
o louco não é um doente. A animalidade protege o louco de tudo o que pode haver de frágil e
precário nas doenças do homem. 2) Por isso, a loucura não pertence ao mundo da medicina,
mas ao mundo correcional. 3) A animalidade situa a loucura em um espaço de imprevisível
liberdadequedesencadeiaofuroreexigeaviolênciaeacoerção.*ParaaIdadeMédia,a
animalidade vinculava o homem às potências subterrâneas do mal. Nós os vinculamos através
do tema da evolução. Mas a Época Clássica percebeu a animalidade como uma negatividade
natural que suprime ar,atureza do homem. "Respeitar a loucura não é decifrar nela o aciden-
te involuntário e inevitável da doença; é reconhecer esse limite inferior da verdade humana,
limite não acidental, mas essencial. Assim como a morte é o fim da vida humana desde a
perspectiva do tempo, a loucura é o fim desde a perspectiva da animalidade; e assim como a
morte foi santificada pela de Cristo, a loucura, no que tem de mais bestial, também foi santi-
Íicada[...] A loucura é o ponto mais baixo da humanidade a que Deus consentiu com sua
encarnação, querendo mostrar desse modo que não há nada inumano no homem que não
possa ser resgatado e salvo; o ponto último da queda foi glorificado pela presença divina. E essa
éa lição que, para o século XVII, oferece toda loucura. Compreende-se porque o escândalo da
loucura pode ser exaltado, enquanto que aquele das outras formas de desrazão é ocultado com
tanto cuidado' (HF,206). * No paradoxo do classicismo, a loucura fica envolta em uma expe-
riência ética da desrazão, que a conÍina à internação; mas ela está ligada a uma experiência da
desrazão animal que constitui o limite do humano e sua monstruosidade. O louco é, desse modo,
um condenado inocente; ou, melhor ainda, o louco é a presença inocente da raiz de toda falta, o
testemunho extremo da animalidade do homem. O louco no jardim das espécies. A clausu-
ra resume e manifesta uma das duas metades da experiência clássica da ioucura (a consciência
crítica e a consciência prática). A segunda parte de Histoire de la
folie ocupa-se da outra meta-
de: as consciências enunciativa e analítica da loucura. Nessa segunda parte, além do mais,
Foucault mostra as mudanças que foram acontecendo na passagem do século XVII ao século

27 2 LoucURA (Folie)
XVIII. * Como reconhecer o louco? Como definir a loucura? Da primeira questão, ocuparam-
geralmente, os médicos; da segunda, especialmente, os filósofos e os sábios. * Em relação
se,
à primeira questáo - a consciência enunciativa da loucura -, Foucault começa apontando a
ironia do século XVIII: podem-se distinguir o louco, mas não a loucura em si. Retoma-se um
antigo tema do Renascimento, a natureza da loucura é ser secretamente razão; uma forma
precipitada e involuntária darazão. A loucura não é diretamente perceptível, tampouco se
pode defini-la positivamente, mas apenas a partir da razão. Mas, à prirneira vista e paradoxal-
mente, essa não determinação da loucura está acompanhada pela evidência imediata do
louco. No século XVIII, à diferença de Descartes, a alteridade do louco não é percebida a
partir da certeza de si mesmo. Trata-se de uma alteridade de outra ordem. Foucault cita Vol-
taire (HF, 236): o louco é o que necessariamente nào pensa e age como os outros. O louco é o
Outro em relação aos outros. fá não se trata, então, de uma alteridade pensada dentro do
âmbito da interioridade da razão, mas no espaço da exterioridade, do grupo. Essa nova forma
de consciência da loucura (já não dialética contínua, a consciência crítica do Renascimento;
tampouco oposição simples e permanente, a consciência prática da internação) dá Iugar a uma
experiência em que os nexos entre a razáo e a loucura são mais complexos e elaborados. Por
um lado, a loucura aparece na sua relação àrazáo, com os outros que são seus representantes;
por outro, ela se situa diante da razão, existe para arazão que a percebe e a olha. Ela está do
outro lado e sob seu olhar. "Do outro ladol ela é percebida com base no razoável: ausência
total de razão, evidência de um não-ser. "Sob o olhar darazão", com base nas estruturas do
racional: o comportamento do louco, sua linguagem, seus gestos não são como os dos outros.
Por um lado, a razâo é definida como sujeito de conhecimento; por outro, a razão e definida
como norma. Uma apreensão moral a partir do razoável e outra objetiva a partir da racio-
nalidade. "Pois bem, o que ocorreu no século XVII é um deslocamento de perspectivas, graças
ao qual as estruturas do razoável e as do racional inseriram-se umas nas outras, para formar
finalmente um tecido tão Íbchado que já não será possível distingui-las durante muito tempo"
(HF, 239). Esta éa experiência da desrazão: um conteúrdo definido valendo-se da racionali-
dade, mas que se manifesta como o não razoável (uma razão que não é como a dos outros).
Definitivamente, uma racionalidade nâo razoável. * Pois bem, quando a meclicina interroga-se
acerca da natureza da loucura (a consciência analítica), não o faz a partir da experiência do
louco, mas a partir da doença em geral, a partir de uma analítica da doença. E, para a época,
uma doença consiste na enumeração dos sintomas que servem para reconhecer seu gênero e
sua espécie. Foucault enfoca a análise, agora, nos textos que classificam as doenças (de Plater,
Praxeos Tractatus,1609; de Jonston, Idée universelle de la médecine,1644; de Boissier de
Sauvages, Nosologie méthodique, 17 63; de Linneo, Genera morborum, 17 63; de Weickhard,
Der philosophische Arzt,1790). Pode-se reconhecer no trabalho de todas essas classificaçoes
três obstáculos maiores. 1) A loucura por si só nao pode dar conta de suas manifestaçoes.
Através de uma analítica da imaginação, aparece a experiência moral da loucura, a experiên-
cia da desrazão, do louco (inocente na sua culpabilidade, mas condenado em sua anirnalidade).
O que se denomina delírio éa imaginação perturbada (a meio caminho entre o erro ea falta)
e as perturbaçÕes do corpo. Nesse sentido, pode-se talar de uma transcendência do delírio que
dirige a experiência clássica da loucura (}IF,257).2) A persistência de alguns temas maio-
res, anteriores à época classiJicadortt Ainda que os nomes mudem, bem como seus lugares

toUCURA (Foli e) 27 3
e suas divisões, três noções, que não provêm do próprio trabalho das classificações, delineiam
as Jiguras da loucura: a mania (um delírio sem febre), a melancolia (um delírio particular,
sem febre nem furor) e a demência (a abolição da faculdade de raciocinar, uma paralisia do
espírito) (IJF,260-261). j) A prática médica. Baseando-se nela, o conceito de "vapores" se
imporá. Ele não provém da nosografia, mas das terapias. * Nos capítulos seguintes da segun-
da parte de Histoire de la folie, Foucault abordará cada um desses três obstáculos que definem,
para a época clássica, a experiência da loucura como desrazão. A transcendência do delírio.
Falar de loucura nos séculos XVII e XVIII não é falar de doenças do espírito, mas de uma
realidade em que o corpo e a alma estão juntos. Através do problema da causalidade e do tema
das paixões, é necessário seguir esse pertencimento recíproco da alma e do corpo para com-
preender a essência do delírio clássico. * Na ordem das causas, encontramos antes de tudo a
distinção entre causas distantes e causas imediatas. A causa próxima da loucura será uma
alteração visível do órgão mais próximo à alma, isto é, do sistema nervoso e, em particular, do
cérebro. Entre o corpo e a alma estabelece-se, então, uma causalidade linear. A lista das causas
distantes é variada e numerosa: a herança, o alcoolismo, o excesso de estudo, as doenças ve-
néreas, o amor, os ciúmes, etc. Mas, entre as causas distantes mais variadas e a loucura, por
um lado, situa-se uma determinada sensibilidade do corpo e, por outro, o meio ao qual se é
sensível. "O sistema das causas sofreu, então, uma dupla evolução no curso do século XYIII.
As causas próximas não deixam de se aproximar, instituindo entre a alma e o corpo uma re-
lação linear que cancelará o antigo ciclo de transposição das qualidades. Ao mesmo tempo, as
causas distantes não deixam, ao menos na aparência, de se estender, de se multiplicar e de se
dispersar; mas, de fato, sob esta ampliação delineia-se uma nova unidade, uma nova forma
de nexo entre o corpo e o mundo exterior. No curso do mesmo período, o corpo se convertia,
simultaneamente, em um conjunto de Iocalizações diferentes, para os sistemas de causalidade
linear, e na unidade secreta de uma sensibilidade que atrai para si as influências mais diversas,
as mais distantes, as mais heterogêneas do mundo exterior. E a experiência médica da loucu-
ra desdobra-se segundo essa nova separação: fenômeno da alma provocado por um acidente
ou uma perturbação do corpo; fenômeno do ser humano, integralmente (alma e corpo ligados
em uma mesma sensibilidade), determinado por uma variação das inÍluências que o meio
exerce sobre ele. Dano local do cérebro e perturbação geral da sensibilidade. Pode-se e deve-se
buscar, ao mesmo tempo, a causa da loucura na anatomia do cérebro e na umidade do ar, ou
no retorno das estações ou nas exaltações das leituras novelescas. A precisão da causa próxima
não contradiz a generalidade difusa da causa distante. Elas não são, uma e outra, senão os
termos extremos de um único e mesmo movimento, a paixáo" (HF, 288). Com efeito, a paixão
desempenha papel fundamental, ela é a causa mais constante, mais obstinada e mais meritó-
ria da loucura. Ela é a superfície de contato entre a alma e o corpo e, por isso, converte-se em
condição de possibilidade da loucura. Através da paixão, a loucura ingressa na alma e frag-
menta sua unidade com o corpo. Gera-se, assim, esse movimento do irracional do qual surgem
as quimeras, os fantasmas e o erro. O espaço da loucura está delimitado por uma determina-
da relação entre os fantasmas e o erro, entre as imagens e a linguagem. Um homem não está
louco porque imagina que é de vidro (pode ter essa imagem, simplesmente, porque sonha).
Mas, se a partir de tal imagem, concluiu que é frágil, que pode romper-se, que não se pode
tocá-lo ou que deve permanecer imóveI, então, ainda que essas conclusões sejam lógicas e

27 4 LoucuRA (Fotie)
racionais, está louco. Nessa linguagem da razão envolta nos prestígios da imagem, encontramos
a estrutura interna do delírio. 'A definição mais simples e a mais geral que se pode dar da
loucura clássica é que ela é delírio" (HF, 303). Pois bem, em que consiste o delírio dessa lin-
guagem que, nas suas formas, não deixa de ser racional? A Época Clássica respondeu indire-
tamente a essa questão a partir da comparação entre loucura e sonho, e entre loucura e erro.
Por um lado, o delírio é o sonho das pessoas despertas; por outro, o delírio aparece quando se
obscurece a relação do homem com a verdade. Na Época Clássica, o nome mais próximo à
essência da loucura é cegueira: a noite de um quase sonho que rodeia as imagens da loucura,
crenças mal fundadas, juízos que se equivocam... Ao reunir a visão e a cegueira. a imagem e

ojuizo,ofantasmaealinguagem,osonhoeavigília,odiaeanoite,nofundo,aloucuranão
é nada, porque ela une neles só o que eles têm de negativo. Mas o paradoxo deste nada con'
siste em que ela, a loucura, manifesta-se, irrompe em signos, em palavras, em gestos. "Porque
a loucura, se ela não é nada, só pode manifestar-se saindo de si mesma e tomando a aparência
da ordem darazâo; convertendo-se no contrário de si mesma. Assim se esclarecem os para-
doxos da experiência clássica: a loucura está sempre ausente, em um perpétuo retiro onde ela
é inacessível, sem fenômeno nem positividade; e, sem eles, no entanto, ela está presente e
perfeitamente visível sob as formas singulares do homem louco. Ela, que é desordem insen-
sata, quando examinada, não revela senão espécies ordenadas, mecanismos rigorosos entre a
alma e o corpo, linguagem articulada segundo uma lógica visível' No que a loucura pode dizer
de si mesma, não há senão razâo, elaque é só negação darazaci'(HF, 310). Figuras da lou-
cura. Nesse capítulo, Foucault mostra como a negatividade (ela não é nada, só desrazão) e a
positividade (as múltiplas manifestaçoes da desrazáo) da loucura manifestam-se em cada uma
de suas figuras. 1) O grupo da demência. A demência é a doença do espírito mais próxima
da essência mesma da loucura. Ela é o efeito universal de toda alteração possível do domínio
do "nervoso'] Por um lado, uma acumulação eventual de causas das mais diversas naturezas
(sem níveis nem ordem); por outro, uma série de efeitos que têm em comum manifestar a
ausência ou o funcionamento defeituoso da razão (impossibilidade de aceder à realidade das
coisas ou à verdade das ideias). A demência é a forma empírica da negatividade da loucura
(ausência de razão) (HF, 326). O domínio dessa forma geral e indiferenciada de loucura, a
demência, encontra-se limitada por dois grupos de noções. Em primeiro llugat, o frenesi
é uma doença apirética. Em segundo lugar,
\frenesia). A diferença deste último, a demência
um grupo de noções que está aparentado com a demência: a estupidez, a imbecilidade, a
idiotia. Em um primeiro momento, considerou-se que a estupidez consiste em uma alteração
das faculdades da sensibilidade. O estúpido é insensível à luz e ao ruído, por exemplo. O de-
mente, no entanto, é simplesmente indiferente; a demência afeta a faculdade de julgar. No
final do século XVIII, para Pinel, a diferença entre a estupidez e a demência passa pela oposi-
çáo entre a imobilidade e o movimento. No idiota, há uma paralisia, uma sonolência. No
demente, as faculdades do espírito estão em movimento, mas funcionam no vazio (HF, 332).
2) Mania e melancolia.A melancolia é um delírio parcial, mas duradouro, sem febre, duran-
te o qual o doente está ocupado em um único pensamento, um delírio colorido de tristeza e
angústia. Durante o sécu1o XVIII, o conceito de melancolia foi objeto de um intenso debate,
especialmente, a propósito de sua causa. Foucault resume em quatro pontos os resultados desse
debate. a) A causalidade das substâncias é substituída pela causalidade das qualidades que se

LOUcURA (Fol/e) 27 5
transmitem do corpo à alma. b) Há, ademais, uma dinâmica das forças que entram em jogo.
Assim, o frio e a secura podem entrar em conflito com o temperamento e, então, os signos da
melancolia serão mais violentos. c) Às vezes, o conÍlito aparece dentro da mesma qualidade.
Uma qualidade pode converter-se em seu contrário. O resfriamento do corpo pode originar-se
do calor imoderado da alma. d) As qualidades podem ser modificadas pelos acidentes, as
circunstâncias e as condições de vida (HF, 335-336). "O tema do delírio parcial desaparece
cada vez mais como sintoma maior dos melancólicos em proveito de dados qualitativos como
a tristeza, a amargura, o gosto pela solidão, a imobilidade" (HF, 340). * Enquanto o espírito
dos melancólicos está ocupado por um único objeto, nos maníacos, ao contrário, há um fluxo
perpétuo de pensamentos impetuosos. Por isso, a mania deforma as noções e os conceitos.
Suas causas, no entanto, são da ordem dos espíritos animais, como nos melancólicos. No sé-
culo XVIII, a mecânica ea metafísica dos espíritos animais, que circulam pelos canais nervo-
sos, é substituída pela tensão a que estão submetidos os nervos. Os maníacos, além de estarem
afetados por um delírio universal que deforma as ideias, estão também em contínua agitação.
Foucault observa como "o essencial é que o trabalho [nessas descrições] não vai da observação
à construção de imagens explicativas. Pelo contrário, as imagens asseguraram o papel inicial
de síntese, sua força organizativa tornou possível uma estrutura de percepção onde, Írnalmen-
te, os sintomas poderão ter seu valor significativo e organizar-se como a presença visível da
verdade" (HF, 351). 3) Histeria e hipocondria. Podem-se observar duas linhas de evolução
dessas noções: a aproximação entre ambas e a formação de um conceito comum,'doença dos
nervos'l sua integração, junto com a mania e a melancolia, no domínio das doenças do espí-
rito. Pois bem, à diferença da mania e da melancolia, os fenômenos da histeria e da hipocon-
dria não se situam no registro das qualidades. Elas situam-se no corpo, com seus valores or-
gânicos e morais. No século XVIII, o tema dos trânstornos corporais, que por intermédio do
cérebro transmitem-se a todo o corpo, será substituído por uma moral da sensibilidade (HF,
362). Na histeria, os espíritos animais apossam-se de todos os espaços disponíveis do corpo,
deslocando-se sem seguir a ordem da natureza. O que distingue a histeria feminina da histe-
ria masculina ou a histeria da hipocondria éa solidez do corpo que, no primeiro caso, é menos
sólido e, por isso, menos resistente ao movimento dos espíritos animais. A resistência do
corpo, por outro lado, encontra-se em relação com a força do espírito, da alma que impõe
ordem aos pensamentos e aos desejos. Nâo se trata, por isso, de uma percepção neutra do
corpo, mas ética (HF, 366). Pois bem, essa penetração desordenada dos espíritos animais no
espaço do corpo foi possível, por um lado, pelo caráier contínuo do corpo e, por outro, pela
simpatia entre todas as suas partes. As doenças dos nervos são essencialmente perturbações
da simpatia; elas supõem um estado de alerta geral do sistema nervoso qle faz com que cada
órgão possa entrar em simpatia com qualquer outro (HF, 369). . O conceito de irritabilidade
aportará um elemento decisivo à noção de doença nervosa. Ela se caracterízapor ser um es-
tado de irritação generalizada. Nele, onde não se distingue entre sensibilidade e movimento,
a sensibilidade facilmente alterável do doente acaba por perturbar as sensações da alma.
Aparece, assim, a ideia de uma sensibilidade que não é sensação, que se opõe a ela. A partir
daqui mudará a percepção ética da histeria e da hipocondria. Antes, a alteração concernia às
partes baixas do corpo e exigia uma ética do desejo; agora, todo o corpo é irritável em sua
sensibilidade generalizada e, por conseguinte, toda a vida acabará sendo julgada segundo esse

2 76 LoucuRA (Fotie)
Srau de irritação (abuso das coisas não naturais, vida sedentária das cidade, leitura de novelas,
interesse desmesurado pelas ciências, paixão demasiadamente viva pelo sexo, etc.) (HF, 373).
"Devido à distinção capital entre sensibilidade e sensação, elas Ihisteria e hipocondria] entram
nesse domínio da desrazão que, como vimos, caracteriza-se pelo momento essencial do erro
e do sonho, isso é, da cegueira' (HF,373-374). * Foucault conclui esse capítulo de Histoire de

la folie com uma observação capital. Essa ideia de uma sensibilidade distinta da sensação,
ainda que permita situar a histeria e a hipocondria no domínio da desrazão, introduz um
elemento que não estava presente na experiência clássica: um conteúdo de culpabilidade, de
sançáo moral, de jr"rsto castigo. A 'tegueiral essência da loucura, aparece como o eÍ'eito psico-
lógico de uma falta rnoral. "O que era cegueira se converterá em inconsciente, o que era erro
se converterá em falta; e tudo o que, na loucura, designava a paradoxal manifestação do não-
ser se converterá no castigo natural de um mal moral" (HF, 374). Médicos e doentes. Dn-
rante a Época Clássica, a teoria e a prática médica nâo são duas instâncias coerentes. AIém do
tttais, as práticas tertrpêuticas foram mais estáveis que os conceitos e as classilicações. * Por
um lado, permanece o mito de uma panaceia (o opium, por exemplo), de um remédio único
para todas as doenças; que nào se pensa agora que possa atuar diretamente sobre a doença,
mas sim porque se insere nas formas gerais do funcionamento do organismo. As discussões
acerca da eficácia do meciicamento se centrarão, então, em redor do tema da natureza; um
medicamento cura porque está próximo da natureza, tem uma comunicação originária com
ela. Nesse sentido, a água ou o ar, como rtedicamentos, prolongam a ideia de uma panaceia
universal. Mas à ideia de um remédio universal opoe-se a eficácia particular de alguns meios
terapêuticos. No caso da loucura, eles não provênr do âmbito vegetal, mas do mineral e do
humano. Algumas pedras, como as esmeraldas, são consideradas particularmente eficazes; a
urina e o sangue também. Este último, quente, é considerado um bom remédio para as con-
r.ulsões. Na utilização do strngue e de outros elementos, como as serpentes, aparecem aqueles
valores simbólicos que, há muito tempo, lhes estavam associados. "Esta fragmentaçâo social
que separa, na medicina, teoria e prática, é, sobretudo sensír,el à loucura: por um lado, a inter-
naçâo fazcom que o alienado escape do tratamento dos médicos; por outro, o louco em liber-
dade é, rnais tãcilmente que outro doente, confiado aos cuidados de um empírico' (HF, 386).
E, no entanto, aÍlrma Foucault, a Época Clássica deu plenitude de sentido à ideia de cura (HF,
387). Foucault enumera as ideias terapêuticas que guiaram a prática da cura na Época Clássi-
ca:consolidação (dar vigor ao corpo e ao espírito), purificaçao (a substituição do sangue, por
exemplo), imersão (com todos os valores sinbólicos da água), regulaçao dos moyinrcntLts
(caminhadas, passeios) (HF, 388-407). * a tais remédios, encontramos também a cura
Junto
peias paixoes; a utilização da música, por exemplo, para restabelecer a harmonia e o equilíbrio
das paixões. Mas mostra Foucault: "Entre uma cura pelas paixões e uma cura pelas receitas
da farmacopeia, não há diferença de natureza; mas apenas uma diversidade na maneira de
aceder a esses mecanismos que sào comuns ao corpo e à alma [...] Não é possível, então, ri-
gorosamente, utilizar como uma distinção válida, na Época Clássica, ou, ao menos, carregada
de significação, a diferença, para nós imediatamente decifrável, entre medicações físicas e
medicaçÕes psicológicas ou morais" (HF, 4l I ). A importância atribuída às exortaçÕes, à persu-
asão ou ao raciocínio não contracliz o anterior. Segundo Foucault, tais técnicas não são nen.t
mais nem menos psicológicas que as precedentes. Como se admitia na época, a formuiação

TOUCURA (Folie) 27 7
da verdade moral pode modificar diretamente os processos do corpo. A diferença não passa,
então, pela oposição fisiologia/psicologia. Como as técnicas que mencionamos anteriormente,
que tendem a modificar as qualidades comuns da alma e do corpo, tais técnicas abordam a
loucura essencialmente como paixão. Enfrentam-na como delírio. "O ciclo estrutural da paixão
e do delírio, que constitui a experiência clássica da loucura, reaparece aqui, no mundo das
técnicas, mas sob uma forma sincopada' (HF,414). Entre as técnicas que enfrentam a loucu-
ra como delírio, encontramos: o despertar (estudar matemática ou química, por exemplo), a
realizaçao teatral, o retorno ao imediato. O grande medo. A terceira parte de Histoire de
la folie começa com a obra de Diderot, Le Neveu de Rameau. O sobrinho de Rameau é o
último personagem em que a loucura e a desrazão se unem. Esta última parte da obra, dedi-
cada à formação da experiência moderna da loucura como doença mental, descreve, por um
lado, a "liberaçáo" da loucura (separada da <iesrazão, da pobreza, da criminalidade) e, por
outro, as novas formas de "sujeição" (o asilo, a psiquiatria, a psicologia). Com outros termos,
Foucault mostra os movimentos históricos que levaram à medicalização do espaço da inter-
nação da loucura, ao nascimento das ciências das doenças mentais. * Em meados do século
XVIII, o espaço da internação recuperará seus antigos poderes imaginários. Reaparece o medo
da epidemia: uma febre que começou nos lugares de internação e alcançaria a cidade, que se
transmite através do ar e se percebe pelo cheiro. 'A casa de internação não é mais somente o
leprosário, distante da cidade; ela é a própria lepra frente à cidade" (HF,446). Os movimentos
de reforma da segunda metade do século XVIII encontram aqui um primeiro ponto de origem:
*
isolar melhor os lugares de internação, rodeá-los de ar puro. . . (HF, 451). O espaço clássico
da internação, no entanto, não era só segregação e purificação, mas reserva de imagens e
fantasias; elas reaparecerão com o medo de uma nova epidemia. Mas, agora, essas imagens e
fantasias "se situaram no coração, no desejo, na imaginação dos homens; e, em lugar de ma-
nifestar ao olhar a abrupta presença do insensato, elas deixam brotar a estranha contrâdição
dos apetites humanos: a cumplicidade do desejo e do assassinato, da crueldade e da sede de
sofrer, da soberania e da escravidão, do insulto e da humilhação [. . .] O sadismo não é o nome
Ítnalmente dado a uma prática tão velha como o Eros; é um fato cultural em massa que apa-
receu precisamente no final do século XVIII e que constitui uma das grandes conversões da
imaginação ocidental: a desrazão convertida em delírio do coração, loucura do desejo, diálo-
go insensato do amor e da morte na presunção sem limites do apetite. O surgimento do sadis-
mo situa-se no momento em que a desrazão, encerrada por mais de um século e reduzida ao
silêncio, reaparece, já não como uma figura do mundo, já não como imagem, mas como dis-
curso do desejo" (HF, 453). Contemporaneamente ao medo das epidemias, outro medo in-
quieta a segunda metade do século XVIII: o aumento das 'doenças dos nervos'i Também re-
aparecerá, então, essa consciência que o Renascimento havia experimentado: consciência da
fragilidade da razao ameaçada pela loucura. * A partir daqui, dois movimentos opostos: a
experiência da desrazão haverá de se dirigir às raízes do tempo, enquanto a consciência da
loucura estará cada vez mais ligada ao desenvolvimento da natureza e dahistória (HF, 455).
Nessa mudança, aparecerá o que posteriormente se denominará o "meio'l as "forças penetran-
tes": de uma sociedade que não maneja os desejos, de uma religiâo que não regula nem o
tempo nem a imaginaçâo, de uma civilização que não limita as distâncias entre o pensamen-
to e a sensibilidade (HF,458). 'A loucura converte-se, então, na outra face do progresso;

278 toucuRA (Fotie\


multiplicândo as mediações, a civilização oferece sem cessar ao homem novas oportunidades
de alienar-se" (HF, 469). A loucura já náo será natureza, mas o que se opôe a ela, história. A
desrazão, por sua vez, permanecerá durante longo tempo como uma experiência poética e
filosófica (sade, Hôlderlin, Nerval, Nietzsche). "E, no entanto, essa relação [da loucura] com
a história será rapidamente esquecida. Freud, com esforço e de uma maneira talvez não radi-
cal, será obrigado a separá-la do evolucionismo. É que, no curso do seculo XIX, ela se voltará
em direçáo a uma concepção, ao mesmo tempo, social e moral pela qual foi totalmente traída.
A loucura não será mais percebida como a contrapartida da história, mas o revés da socieda-
de" (HF, 473-474). A loucura se converterá em "degeneração'l o estigma de uma classe que
abandonou a ética burguesa. * o "grande medo" conduziu, por um lado, à separação entre a
desrazão, que se apresenta agora com a face da libertinagem, e a loucura, uma doença da ci-
vilizaçâo. Mas, por outro lado, o'grande medo" marca a entrada do rnédico no espaço da in-
ternação, como custódia da saúde dos outros, dos que náo estão internados. "É importante, e
decisivo talvez, para o lugar que deve ocupar a loucura na cultura moderna, qte o Homo
medicus não tenha sido convocado no mundo da internação como árbitro, para realizar a
separaçãoentreoqueeraocrimeeoqueeraloucura,entreomaleadoença,massimcomo
guardião, para proteger os outros do perigo confuso que transpirava através dos muros da
internação" (HF, 449). A nova separação. Durante o século XYIII, a loucura não sai da
internação, mas se desloca dentro dela. Multiplicam-se, com efeito, os lugares de internaçâo
destinados exclusivamente aos loucos. Mas não se trata nem de reclamar um estatuto médico
para eies nem de melhorar os tratos de que são objeto. Essas novas instituições não se inscre-
vem no processo de reformas que se inicia pouco antes da Revolução. Tampouco eias foranr
somente o efeito do novo medo que inspira a loucura. Simplesmente, os loucos começam a
adquirir uma nova fisionomia. E ela se fará cada vez mais deÍinida à medida que a loucura e

a desrazão se distanciem. O rosto da desrazão será aquele que se denomina indiferenciada-


mente "libertinagemi Os rostos da loucura, no entanto, começam a diÍêrenciar-se;já não serão
simplesmente os que, em geral, "não são como os outros'l * Em um primeiro momento, não
será nem a razáo nem a natureza as que desenham os rostos da loucura, mas a morte. Dois
tipos de personagem começam, então, a se diferenciar: os furiosos (os que são violentos com
os outros e poden-r provocar-lhes a morte) e os imbecis (os que estão passivamente expostos
à morte) (HF, 488-489). Mas se trata só de uma organização rudimentar. A distinção entre
"insensatos" e "alienados" será o critério da nova separação. O alienado perdeu completamen-
te a verdade; no insensato, no entanto, a loucura afeta a percepção ou o juízo acerca da per-
cepçáo, ele não e completamente estranho ao mundo da razâo, mas apenas razão pervertida.
Apesar de sua imprecisão, nessas categorias começa a se ouvir uma linguagem da loucura.
Com base nessa distinção, pouco a pouco, se organizará a percepção asilar da loucura. Ela, no
entanto, não é o produto das classificações em espécies, características do saber médico da
Época Clássica, mas da nova presença do médico no espaço da internação. * Mas esse isola-
mento progressivo da loucura no espaço da internação não foi tampouco uma consequência
nem do pensamento médico nem dos sentimeDtos humanitários. Foi um fenômeno que nas-
ce nopróprio espaço da internação. De fato, Íbram alguns "internos'l gente "razoável'] os que
reclamaram não ser confundidos com os loucos (HF, 497-495). Com o desenvolvimento dos
protestos contra tal confusão no espaço de exclusão, o próprio poder de internar chegará a ser

TOUCURA {Folie) 27 9
concebido como uma forma de loucura (despotismo, bestialidade triunfante). Uma vez reti-
rada essa população, só permanecerão internados aqueles que, por direito, pertencem a esse
espaço de exclusão: os loucos. Em poucas palavras, o nexo entre a loucura e a internação
torna-se mais sólido. * A internação padece outra crise durante o século XVIII; ela provém,
agora, do exterior (HF, 502). Por um lado, se recorrerá à população dos internados para fazer
frente às necessidades demográficas e econômicas da colonização (já não se trata de uma
regulação do mercado local da mão de obra). Por outro, com a reforma das terras, o fenôme-
no do desemprego se instala nas zonas rurais, onde, precisamente, não há casas de internação.
Em suma, a estrutura da internação é cadavez mais ineficaz: não resolve nem o problema do
desemprego nem consegue baixar os preços com mão de obra barata. * Isso levará a uma re-
formulação das políticas de assistência e de repressão ao desemprego. A miséria já não apa-
rece desde uma perspectiva moral; não é uma simples consequência da preguiça. A indigência
converte-se em uma questão econômica, uma realidade econômica que não é nem meramen-
te contingente nem é possível eliminar por completo. Em certo sentido, ela converte-se em
um elemento indispensável do Estado. Os pobres, porque trabalham e consomem pouco, sào
a condição da riqueza do Estado e das classes privilegiadas. Nessa perspectiva, enclausurar a
população indigente é enclausurar a riqueza. Então, se começará a distinguir entre o pobre
válido, que pode trabalhar, e o pobre doente. A assistência, para os primeiros, consistirá na
liberdade: baixos salários, ausência de restrições e da proteção do emprego, supressão de todos
os à possibilidade de trabalhar. Por outro lado, para os doentes que não podem traba-
limites
lhar, "economistas e liberais consideram que um dever social é um dever do homem em so-
ciedade, e não da sociedade mesma. Para fixar as formas da assistência que são possíveis, é
necessário definir, então, no homem social, quais são a natureza e os limites dos sentimentos
de piedade, de compaixão, de solidariedade que podem unir o homem aos seus semelhantes.
A teoria da assistência deve repousar nessa análise semi-psicológica, semi-moral; e não em
uma definição das obrigações contratuais do grupo. Assim entendida, a assistência não é uma
estrutura do Estado, mas um nexo pessoal que vai do homem ao homem" (HF, 518). O doen-
te concerne, agora, não à sociedade, mas ao grupo, à sua família. * Resumindo: um duplo
movimento - um, a partir da internação mesma; outro, a partir da reflexão econômica - faz
que o entrelaçamento, característico da Época C1ássica, entre a loucura, a desrazão e a miséria
comece a desatar-se. A miséria ingressa na imanência da economia, a desrazão, nas figuras
profundas da imaginação que se expressam na libertinagem. A loucura reaparecerá, agora,
internada, mas enfrentada a uma nova concepçào da assistência. O louco já não é o pobre que
pode trabalhar e tampouco o doente que pode ser conÍiado à assistência do grupo próximo ou
da família. Será necessário redefinir, então, o espaço social da loucura. Do bom uso da li-
berdade. As medidas tomadas entre 1780 e 1793 decretam o fim da internação em sua forma
clássica e deixam a loucura "livre'l sem ponto fixo de inserção no espaço social. * A diferença
da época clássica, com a reforma social da internação, no final do século XVIII, o problema
da loucura já não será abordado desde o ponto de vista da razao e da ordem, mas do direito
do indivíduo livre. Quando as faculdades racionais estão perturbadas, a sociedade tem o di-
reito de limitar a liberdade dos indivíduos. Segundo Foucault, partindo dessas premissas,
prepara-se uma definição da loucura a partir de suas relaçÕes com a liberdade. "Então, a in-
ternação do louco não deve ser senão a sanção jurídica de um Estado de fato, a tradução em

280 LoucuRA (Fotie)


termos jurídicos de uma abolição da liberdade já adquirida ao nível psicológico. [... ] O desa-
parecimento da liberdade, que era uma consequência, torna-se fundamento secreto, essência
da loucura' (fIF,547-548). Por isso, não há verdade psicológica que não seja, ao mesmo
tempo, alienação para o homem; a maneira como se aliena o louco se converte, então, na
natureza da alienação. "Se essa nova consciência parece que restitui à loucura sua liberdade e
uma verdade positiva, não é só pelo desaparecimento das antigas coerções, mas graças ao
equilíbrio de duas séries de processos positivos: uns são de atualização, de desprendimento,
e, se se quer, de liberação; outros constroem rapidamente novas estruturas de proteção, que
permitem à razao desprender-se e garantir-se no momento mesmo em que ela descobre a
loucura em sua imediata proximidade. Esses dois conjuntos não se opõem; inclusive fazem
mais do que se completarem. Eles são uma única e mesma coisa: a unidade coerente de um
gesto pelo qrral a loucura se oferece ao conhecimento em uma estrutura que é, desde o
*
inicio, alienante" (IJ.F,571). Dois tipos de disposição farão frente à loucura'deixada livre":
medidas a longo termo - criação de estabelecimentos reservados aos insensatos -, e medidas
imediatas para dominar a violência da loucura. Foucault resume as reformas desse período
"es-
em um esquema no qual enfrenta, uma a uma, as "formas de liberação" da loucura e as
truturas de proteçãd': I ) Supressão da internação que confundia a loucura com todas as outras
formas da desrazão; mas designaçao para a loucura de uma internaçáo que não é terra de
exclusão, mas o lugar onde ela pode encontrar sua verdade. Nesses novos espaços, a
"liberda-
de" tem um duplo valor. Por um lado, com seu trabalho os internados contribuem economi-
camente para os gastos da administração e, ao mesmo tempo, através dele podem alcançar a
liberdade. Premia-se àqueles que mais produzem e, depois de vários prêmios acumulados,
obtém-se a liberdade. Mas, por outro lado, se o interno com seus costumes e comPortamentos
perturba a ordem da instituição, então, perde os prêmios do trabalho, as etapas que levam à
sua liberdade. Essa é, por isso, tanto uma mercadoria como um valor moral. Nesses novos
espaços, conjugam-se o controle moral e o beneficio econômico. A loucura encontra sua ver-
de um
dade burguesa, ela é medida em relação ao trabalho e à moralidade. 2) Constituição
da loucura em um espa-
asilo que só persegue finalidades médicas; mas produz-se a captação
etapa para a "alienação mental" no sentido moderno da expressão'
ço infianqueável. Primeira
é também o espaço que
Mas esse.rpuço ond. a loucura se enfrenta com a consciência médica
com limites fixos. Um espaço de
deve proteger a sociedade dos perigos da loucura, um espaço
a doença e, ao mesmo tempo, de proteção contra o louco.
3) A loucura adqui-
protEão contra
re o direito de expressar-se; mas se elabora, em acima dela, um sujeito, um olhar que
torno e

a converte em objeto. O problema da loucurajá não é considerado


desde o ponto de vista da
novo espaço da
razáo eda ordem, mas desde o ponto de vista do direito do indivíduo livre' O
jurídicos da
internação é a sanção jurídica de uma situação de fato: a tradução em termos
abolição psicológica da liberdade do indivíduo 1ouco. Na clausura clássica, a loucura oferecia
o espetáculo de sua animalidade; agora, ela é observada como um objeto, converte-se em
um
objeto de conhecimento. 4) Introdução da loucura no sujeito psicológico como verdade coti-
diana da paixão, da violência e do crime; mas inserção da loucura em um mundo náo coeren-
te quanto aos valores e no jogo da má consciência. A instância que opera a separação entre a
razâo ea loucura o faz através de uma lorma judicial (tribunais de família, tribunais superiores)
que assimila as regras da moral burguesa (regras da vida, da economia, da moral da família) às

LOUCURA (Folie) 281


normas da saúde, da razâo e da liberdade. A psicologia do crime não nasce de uma humani-
zação da justiça, mas dessas exigências suplementares da moral burguesa, da estatização dos
costumes, do refinamento das formas de indignação. 5) Reconhecimento da loucura, em seu
papel de verdade psicológica, como determinismo irresponsável; mas separação das formas
da loucura segundo as exigências dicotômicas de um juízo moral. O reconhecimento da lou-
cura, mesmo durante um processo judicial, não forma parte do juízo; superpõe-se a ele. A
psicologia deve situar-se dentro do campo dos valores reconhecidos e exigido s (HF , 57 l-572).
"Este duplo movimento de liberação e avassalamento constitui as bases secretas sobre as quais
repousa a experiência moderna da loucura. Cremos facilmente que a objetividade que nós
reconhecemos nas formas da doença mental se oferece livremente ao nosso saber como ver-
dade finalmente liberada. De fato, essa objetividade só se dá, precisamente, àquele que está
protegido da loucura. O conhecimento da loucura supõe em quem o possui certa maneira de
desprender-se dela, de estar antecipadamente livre de seus perigos e de seus prestígios, um
certo modo de não estar loco. E o advir histórico do positivismo psiquiátrico não está ligado
à promoção do conhecimento, a não ser de uma maneira secundária; originariamente, ele é a

fixação de um modo particular de estar fora da loucura: uma determinada consciência de


não-loucura que se converte, para o sujeito do saber, em situação concreta, base sólida a par-
tir da qual é possível conhecer a loucura" (H.F,572). Em todo caso, o estatuto de objeto será
atribuído ao indivíduo que judicial e moralmente se reconhece como alienado. A mitologia
positivista interpretou esse processo dizendo que se enclausura quem está alienado; mas a
história nos mostra que a clâusura construiu a figura do alienado e, sobre essa base, a loucura
foi objetivada como doença mental. A loucura converte-se, assim, na primeira forma de ob-
jetivação do homem. O nascimento do asilo. Os episódios de Tuke e de Pinel constituem
uma espécie de mito fundador para a história da psiquiatria moderna, seu significado foi
yisto como liberaçâo dos loucos. Uma imagem resume o episódio e seu signiÍicado: os loucos
a

são desacorrentados e misturam-se com os outros internados. "É impossível saber com pre-
cisão o que queria fazer Pinel quando decidiu pela liberação dos alienados. Pouco importa, o
essencial está justamente nesta ambiguidade que marcará em seguida sua obra e o sentido que
ela terá no mundo moderno: constituição de um domínio onde a loucura deve aparecer em
uma verdade pura, ao mesmo tempo objetiva e inocente; mas constituição desse domínio de
maneira ideal, sempre indefinidamente recuado; cada uma das figuras da loucura mescla-se
com a não-loucura em uma proximidade indiscernílel. O que a loucura ganha em precisão
no seu perfil científico, perde em vigor na percepção concreta. O asilo, onde ela deve alcançar
sua verdade, não permite distingui-la do que não é sua verdade. Quanto mais objetiva, menos
certa é. O gesto que a libera para verificá-la é, ao mesmo tempo, a operação que a dissemina
e a oculta em todas as formas concretas darazaci'(HF,586). * De acordo com as ideias do
século XVIII, a loucura não é uma doença da natureza, mas da sociedade: o produto de uma
vida que se afasta da natureza. Na loucura, a natureza está esquecida. A partir daqui, segundo
Foucault, começa a desenhar-se um mito que será a forma organizativa da psiquiatria do sé-
culo XIX. Trata-se do mito das três naturezas: a Natureza-Verdade, a Natureza-Razão e a
Natureza-Saúde. "Nesse jogo, desenvolve-se o movimento da alienação e da cura. Se a Natu-
reza-Saúde pode ser abolida, a Natureza-Razão nunca pode ser ocultada, no entanto a Natu-
reza como Verdade do mundo permanece indehnidamente adequada a si mesma. E a partir

282 LoucuRA (Folte)


dela, se poderá despertar e restaurar a Natureza-Razão, cujo exercício, quando coincide com
a verdade, permite a restauração da Natureza-Saúde" (HF, 588). *O Retiro de Tuke (esta casa
de campo para os alienados, uma comunidacle lraternal de enfermos e vigilantes, sob a auto-
ridade de um administrador) representa, ao mesmo tempo, o ideal de um contrato e cie uma
íamília, do interesse e do afeto. Nele, a partir de uma "família natural'l que não aliena, o en-
fermo restabelecerá sua relação com a natureza e com a sociedade. * Nas crônicas da liberação
dos loucos, encontramos relatos como os de Couthon, o de um capitão inglês, o do soidado
Chevingé. Todos esses relatos mostram o senticlo que se atribuiu à liberação de Pinel na ha-
giografia psiquiátrica. Caem as correntes e corn elas cai a animalidade nâo da loucura, mas da
domesticação. Caem as correntes, e os loucos encontram-se livres. Caem as correntes e ime-
diatamente reaparece a humanidade dos loucos, mas sob a forma de urn determinado tipo
social: um oficial, um soldado. Arazão que surge restabelecida não é da ordem do conheci-
mento ou da ventura, mas a razão de certos valores sociais: a honra do capitão, o heroísmo do
soldado, etc. "Couthon é o próprio símbolo dessa'má liberdade' que desencadeia no povo as
paixões, e suscitou a tirania da Saúde pública. Liberdade em nome da qual se deixam os loucos
acorrentados. Pinel é o símbolo cla 'boa liberdadel a que libera os homens mais insensatos e

mais violentos, doma suas paixões e os introduz no mundo calmo das virtudes tradicionais"
(HF, 596). Foucault resume da seguinte Íbrma o movinrento discursir.o que se oculta no mito
de Pinel e Tuke: "1o - Na relação inumana e animal que impunha a internação clássica, a
loucura nâo enunciava sua verdade moral. 2' - Essa verdade, desde o momento em que se
cleixa livre para aparecer, revela ser uma relação humana em toda sua idealidade virtuosa:
heroísmo, f,delidade, sacrifício, etc. 3" - Então, a loucura é vício, violência, maldade, cor1lo o
prova demasiado bem a raiva dos revolucionários. 4o - A liberação na internaçáo, na medida
em que ela é reedilicação de uma sociedade sobre o tema da conformidade aos tipos, não pode
deixar cle curar" (HF, 596-597). " Mas, para além dos temas míticos que a psiquiatria do sé-
culo XIX herdou do gesto liberador de Pinel e de Tuke, urna série de operaçôes organizaran.t
silenciosamente o mundo asilar, os métodos terapêuticos e a experiênciâ concreta da loucura.
Tuke substituiu o terror à loucura pela angústia da responsabilidade (o trabalho possui uma
força de coerção superior a todas as coerções físicas: regularidade das horas, exigências de
atençâo, obrigação de um resultado). Em sua casa de Retiro, mais eficaz que o trabalho são o
olhar dos outros e a necessidade cle estima. "Vê-se que, no Retiro, a supressão parcial das
coerçÕes físicas formava parte de um conjunto cujo elemento essencial era a constituição de
un'selJ'restraint' onde a liberdade do er.rfermo, comprometida conl o trabalho e sob o olhar
dos outros, está sem cessar ameaçada pelo reconhecimento da culpabilidade" (HF, 604-605).
Nesse espaço, surgirá essa figura que substituirá no asiio do século XIX a repressão clássica: a
autoridade. A vigilância haverá de se unir, então, ao juízo. Como contrapartida, a loucura será
uma forma c1e minoridade. * O asilo de Pinel não é, como o de Tuke, uma segregaçâo religio-
sa, mas uma segregação que se exerce no sentido inverso: a religião, no asilo, converte-se em
objeto de consideração médica. O asilo deve estar livre de religião. Na realidade, trata-se so-
mente de suprimir os conteúdos imaginários da religiáo, não sua moral. Os valores da família
e do trabalho devem reinar nele. "O asilo, dornínio religioso sem religiáo, dominio da moral
pura, cla uniformização ética'(HF,612). Um lugar de moral pura e também de denúncia
social. A moral burguesa do asilo adquire o estatuto de uma moral universal, não só para

TOUCURA (Folie) 283


aqueles que habitam o seu espaço, mas para toda a sociedade. Pinel organiza esse espaço de
moral pura mediante três meios principais: o silêncio ("a ausência de linguagem, como estru-
tura fundamental da vida asilar, tem como correlato a manifestação da confissão" [HF, 616]),
o reconhecimento no espelho (mostra-se, por exemplo, a um louco que se crê rei, outro que
também crê sê-lo; vergonha de ser idêntico a este outro tem força terapêutíca), o juízo per-
a
pétuo (o louco é constantemente julgado pela presença exterior da consciência moral e cien-
tífica; se é necessário, a estejuízo seguirá o castigo). Para aqueles que resistem a todos esses
procedimentos, subsiste, no asilo de Pinel, aprática daclausura. 'Ao silêncio, ao reconheci-
mento no espelho, a este juízo perpétuo, há que acrescentar uma quarta estrutura própria do
mundo asilar, tal como se constituiu ao final do século XVIII: trata-se da apoteose do perso-
nagem médico. De todas, ela é sem dúvida a mais importante, porque ela autorizará não só os
novos contatos entre o médico e o enfermo, mas uma nova relação entre a alienação e o pen-
samento médico, e dirigirá finalmente toda a experiência moderna da loucura. Até agora, só
se encontravam no asilo as estruturas próprias da internação, mas deslocadas e deformadas.
Com o novo estatuto do personagem médico, é abolido o sentido mais profundo da internação;
a doençamental, com as significações que agora conhecemos, tornou-se então possível" (HF,
623). Mas sua presença no asilo não é fundamentalmente de ordem médica (o que constitui
só uma parte das tarefas a realizar), mas como garantia jurídica e moral do bom funciona-
mento da instituição. Mais que cientista, sábio. "Crê-se que Tuke e Pinel abriram o asilo ao
conhecimento médico. Eles não introduziram uma ciência, mas um personagem, cujos pode-
res só retomam desse saber seu disfarce ou, no máximo, sua justiÍicação. Tais poderes são, por
natureza, de ordem moral e social. Eles se enraízam na minoridade do louco, na alienação de
sua pessoa, não de seu espírito. Se o personagem médico pode cercar a loucura, não é porque
a conheça, mas porque a domina' (}IF,625-626). O médico entra no asilo, primariamente,
coirro pai e juiz. O próprio Pinel reconhece que o médico cura na medicla em que põe em jogo
essas velhas figuras imemoriais. Desse modo, a estrutura do asilo simboliza as grandes estru-
turas da sociedade burguesa, seus valores: reiação famí1ia-filho, relação falta-castigo. A medi-
da que o saber psiquiátrico encerra-se nas normas do positivismo, a prática moral do médico
ficará encoberta. Mas isso não significa que desaparecerá; pelo contrário. 'À medida que o
positivismo se impÕe na medicina e na psiquiatria, singularmente, esta prática se torna mais
obscura; o poder do psiquiatra, mais milagroso; e o par médico-paciente funde-se cada vez
mais em um mundo estranho. Aos olhos do enfermo, o médico converte-se em taumaturgo.
Agora parece que ele mesmo retém a autoridade que adquire da moral, da família; porque o
médico se crê revestido desses poderes, e enquanto que Pinel e Tuke sublinhavam claramen-
te que sua ação moral não estava ligada necessariamente a uma competência científica, se
acreditará, e o enfermo será o primeiro a fazê-lo, que é no esoterismo de seu saber, em algum
segredo, quase demoníaco do conhecimento que ele encontrou o poder de desatar as alienaçÕes.
E, cada vez mais, o enfermo aceitará esse abandono nas mãos de um médico, ao mesmo tempo,
divino e satânico; em todo caso, fora dos limites do humano. Cada vez mais se alienará nele,
aceitando em bloco e de antemão todos seus prestígios, submetendo-se a uma vontade que ele
experimenta como mágica, e a uma ciência que supõe presciência e adivinhação, convertendo-
se assim,no final das contas, no correlato ideal e perfeito desses poderes que eie projeta sobre
o médico, puro objeto sem outra resistência que a sua inércia, completamente disposto a ser

2 84 LoucuRA (Folte)
precisamente esta histérica na qual Charcot exaltava a maravilhosa potência do médico' (HF,
629). * Em suma, o sentido que Foucault atribui à reorganizaçâo do espaço da internação, ao
nascimento do asilo, é a interiorização da separação razãoldesrazâo, sob a forma da culpabi-
lizaçao e do controle da autoridade. "Pois bem, a partir desse momento, a loucura deixou de
ser considerada como um fenômeno global que concerne, ao mesmo tempo, através da ima-
ginaçâo e do delírio, ao corpo e à alma. No novo rnundo asilar, nesse mundo da moral que
castiga, a loucura converteu-se em um tãto que concerne essencialmente à alma humana, i\
sua cuipabilidade e à sua liberdade; ela se inscreve na dimensão da interioridade. E, clesse
modo, pela primeira vez no mundo ocidental, a loucura receberá estatuto, estrutura e signifi-
cação psicológicos. Mas essa psicologização não é senão a consequência superficial de uma
operação mais sttrda, situada em um nír,el mais profundo. Uma operação pela qual a loucura
encontra-se inserida no sistema dos r.alores e das repressões morais" (MMPS, 86-87). Nasceu
a cloença mental. * "Freud desiocou para o médico todas as estruturas que Pinel e Tuke haviam
acomodado na internação [...] O médico, como Íigura alienante, continua sendo a chave da
psicanálise" (HF,631). O círculo antropológico. Foucault aponta uma série de contradições
no gesto de liberaçao de Pinel e Tuke: 1) deixa-se livre o louco, mas em um espaço mais fe-
chado e mais rígido (menos livre, em todo caso, que a internação clássica); 2) libera-se a
loucura de seu parentesco com o crime e o mal, mas para encerrá-la nos mecanismos rigoro-
sos de um deterrninismo (o instinto, o desejo); 3) desatam-se as cadeias que impediam cr
exercício livre da volltade, mas despoja o louco dessa vontirde, e a aliena na vontade do médi-
co (HF, 636). Náo se trata, em definitir,o, de um gesto de liberação, mas de uma objetivação
do conceito de liberdade. De tudo isso, Foucault extrai três consequências. Em prirneiro lugar,
de agora en.r diante, a questão da loucura já não será a questão do deiírio e do erro, mas a
questão da liberdade; 'b desejo e o querer, o determinisrro e a responsabilidade, o automático
e o espontâneo'l Em segundo lugar, essa "liberdade liberada'se encontrará repartida entre
"urn determinismo que a nega inteiramente e uma culpabilidade que a exalta'l O pensamento
psiquiátrico do século XIX buscará clefinir o ponto de inserção da culpabilidade no determi-
nismo. Em terceiro lugar, a liberdade que Pinel e Tuke impuseram ao louco o encerra em uma
verdade objetiva, que já não é a verdade, mas a suí, verdade. 'A loucura já não falará mais do
nâo-ser, mas do ser do homem, no conteúdo do que ele é e no esquecimento de seu conteúdo.
*Alor.rcurana
[...]Aloucuratemagoraumalinguagemantropológica [...]" (IlF,636-637).
clausura clássica estava reduzida ao silêncio; agora reencontrou a linguagem no saber discur-
sivo. Mas essa linguagenr não é o retorno do velho discurso do Renascimento, do hornem de-
vorado pela animalidade. Agora, a loucura fala a iinguagem do homem, de seus segredos, de suas
profundidades: uma linguagem atravessada por uma serie cle antinomias que acompanharão a
retlexão sobre a loucura duraute todo o século XIX. 1) O louco desvela a r,erdade elementar do
homet.u: seus desejos primitivos, seus mecanismos mais simples, as determinações de seu corpo;
uma espécie de "infância cronológica e social, psicológica e orgânica do homem'l Mas, ao mesmo
ten.rpo, 'clesvela a r,erdade
terminal do homem: mostra até onde puderam empurrá-lo as paixÕes,
a vida em sociedacle, tudo o clue o afasta da natureza primitiva que não conhece a loucura'l 2)
Na loucura mostra-se a irrupção dos determinismos do corpo, o triunfo do orgânico. Mas a
loucura distingue-se clas doenças do corpo, porque ela faz surgir "um mundo interior de maus
instintos, perr,ersidades, de sofrirlentos e de violências que estava adormeciclo I 3) 'A inocência

LOUCURA (Foli e) 2B5


do louco está garantida pela intensidade e a força deste conteúdo psicológico'l a loucura de
um ato se mede pelo número de razões que o determinaram (desejos, imagens, etc.); mas a
verdade da loucura, no homem, é a verdade do que é sem razão. 4) Na loucura, o homem
descobre sua verdade, essa é a possibilidade de sua cura; mas "a verdade humana que a lou-
cura descobre é a imediata contradição do que é a verdade moral e social do homem' (HF,
641-643). * A partir daqui, pode-se compreender a importância que teve a paralisia geral na
experiência da loucura, no começo do século XIX. 'Agora toda loucura e o todo da loucura
deverá ter seu equivalente externo ou, para dizê-lo melhor, a essência mesma da loucura será
objetivar o homem, empurrá-lo para o exterior de si mesmo, desdobrá-lo finalmente ao nível
da pura e simples natureza, ao nível das coisas. Que a loucura seja isso, que ela possa ser toda
objetividade sem relação a uma atividade delirante central e oculta era tão oposto ao espírito
do século XVIII, que a existência das'loucuras sem delírio'ou das'loucuras morais'constituía
um escândalo conceitual" (HF , 646-647 ). A expressão " moral insanity" faz referência a essa
forma de loucura que não se manifesta ao nível da razão ou do entendimento, mas que se
caracteriza pela violência dos comportamentos, pelos gestos irresponsáveis, etc. A paralisia
geral e a moral insanity tiveram esse valor exemplar na psiquiatria, ao longo da primeira
metade do século XIX, um eiemento de interioridade em forma de exterioridade. 'A loucura
éa forma mais pura, a forma principal e primeira do movimento pelo qual a verdade do homem
passa para o lado do objeto e torna-se acessível para uma percepção científica. O homem não
se conyerte em natureza por ele mesmo, mas na medida em que é capaz de loucura. Essa, como
passagem espontânea à objetividade, é um momento constitutivo no tornar-se-objeto do
homem. [. . . ] O paradoxo da psicologia 'positiva do século XIX é ela não ter sido possível senão
a partir do momento da negatividade: psicologia da personalidade a partir de uma análise do
desdobramento; psicologia da memória a partir das amnésias, da linguagem a partir das
afirsias, da inteligência a partir da debilidade mental. A verdade do homem não se diz, a não
ser no momento de seu desaparecimento; ela não se manifesta a não ser convertida no outro
de si mesma' (HF, 648-649). Junto às noçoes de paralisia geral e de loucura moral (moral
insanity), outra noção dominou o campo da psicologia do século XIX; trata-se do conceito de
monomania: um indivíduo que se manifesta como louco em um ponto determinado, mas que
aparece como razoávei em todos os outros. Noção que desempenhou uma função importante
nos processos judiciais contra os criminosos. Um homem que bruscamente torna-se outro.
Na época clássica, o outro que punha de manifesto a loucura como desrazào era o nào-ser, o
erro; agora, como mostra a análise das monomanias homicidas, a alteridade que a loucura
manifesta é a verdade mesma do homem, o que o sujeito é realmente, originariamente (aqui-
1ono qual pode alienar-se, ainda que seja apenas momentaneamente). * Em definitivo, o
"Homo psychologicus é um descendente do Homo mente captu.s" (HF, 654). A loucura
objetivada como doença revela agora a verdade do homem. Literatura, "ausência de obra".
Foucault termina Histoire de la folie referindo-se a Goya e a Sade, a Nietzsche e a Artaud; a
outra linguagem da loucura que, depois do silêncio clássico, reaparece na Modernidade. Con-
clui, na realidade, por onde havia começado: pelas experiências trágicas da loucura, para além,
das promessas da dialética (HF, 660). Na experiência clássica, a obra e a Ioucura estavam
profundamente ligadas e se limitavam mutuamente. A loucura de Tasse, a melancolia de Swift,
o delírio de Rousseau: obra ou loucura? Inspiração ou fantasma? Em Nietzsche, Van Gogh ou

2 B6 LoucuR A (Fotíe)
Artaud a relação entre loucura e obra é diferente; não há comunicação de linguagem. "Por
isso, importa pouco saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, na humildade de Van
Gogh a voz primeira da loucura. Não há loucura a não ser como instante último da obra, essa
a empurra indefinidamente aos seus confins: ali onde há obra, não há loucura' (HF, 663).
Existe para Foucault um nexo de pertencimento entre a loucura e a literatura, no sentido
moderno do termo. Esse nexo torna possível a manifestação da loucura e, nessa manifestação,
anuncia-seaseparaçãoentrealoucuraeadoençamental."[...]adoençamentalealoucura,duas
configurações diferentes, que se reuniram e se confundiram a partir do século XVII, e que se
encontraram agora diante dos nossos olhos, ou melhor, na nossa linguagem'(DE1, a15). Em
nenhuma cultura, afirma Foucault, está tudo permitido; estabelecem-se limites, separaçÕes,
proibições. Algumas dessas concernem à linguagem. Nesse sentido, Foucault distingue quatro
formas de proibições a respeito da linguagem: l) faltas da língua (que afetam o código lin-
guístico); 2) expressões que não rompem o código, mas que não podem circular - as palavras
blasfemas (religiosas, sexuais, mágicas); 3) enunciados autorizados pelo código e que podem
circular, mas cujo significado é intolerável; 4) 'tonsiste em submeter uma palavra, aparente-
mente conforme ao código reconhecido, a outro código cuja chave está dada nesta palavra
mesma, de modo que ela está desdobrada dentro de si. Ela diz o que diz, mas acrescenta um
plus mtdo que enuncia silenciosamente o que diz e o código segundo o qual o diz. Não se
esotérica' (DEf '
trata de uma linguagem cifrada, mas de uma linguagem estruturalmente
a litera-
416). A loucura deslocou-se ao longo dessa escala de proibições de linguagem. com
proferida ou significação
tura moderna, "ela deixou de ser, então, falta de linguagem, blasfêmia
proibições definidas
intolerável (e, nesse sentido, a psicanálise é o grande levantamento das
apareceu como uma palavra que se enrola sobre si
pelo próprio Freud); a literatura moderna
mesmo tempo' o único
rn.rn]u, àir.rdo, por debaixo do que diz, outra coisa, da qual ela é' ao
sua língua dentro de
código possível. Linguagem esotérica, se se quiser, posto que mantém
,.u puiuuru que não diz outra coisa, finalmente, que essa implicação" (DEl, 417)' Alltera-
próprio
tura, no final do século XIX, converteu-se em uma palavra que inscreve em si seu
à que
princípio de deciframento, o poder de modificar os valores e as modiÍicações da língua
p.rt.n... Por isso, loucura e literatura se pertencem. A linguagem da loucura (o delírio) e da

literatura não consiste em pôr em jogo a astúcia de uma significação oculta; mas, em suspen-
jogo dos desdobramen-
der o sentido, para que nesse espaço de suspensão, espaço vazio, pelo
tos,possa alojar-se um sentido, outro segundo sentido e, assim, até o infinito. Trata-se de uma
matriz que, estritamente, náo diz nada (D81,418). Por isso, a loucura e a literatura são ausência
de obra.Mas essa ausência de obra é aquilo que torna possível a obra. Ver: Literatura.
Folie [3770]:AN,29-30,33,50,94, 100-101, 103, 109-114, 117,120 126,128-129, 131-132, 136-140, 145-148,
151

s3, 208-209, 212,225,245,259 261,270,273-27 4,280,282,286,291-292,298, 30 1 -303. AS, 2s-26,


45-46' 55-57 64-65'
1 '
86,91,205, 233,241. DEI,88,92, 159-160, 162-169, I87-188, 190-192, 194-195, 198,201 203, 218,228'266-272'279,
283,295,338 33g,3g4396,3gg-400,409,4t2420,422,437,443,498,499-500,511,522,555,571,574,579,590,598,600,
602-605,624,631-632,635,649,656,663,680,696,708,710-712,720,754,756,763761,766,771,777 778'786,790'842,
813.DE2,19,104-110,112-116,118-119,122,128,130-134,157-r59,163,172,174,206-208,210,2\3'214,216'218-2t9'
239,245 .248,250 256,258,260-267,281-296,298,301, 305, 318, 409-410, 418, 433, 473, 479,489, 507, 521-525, 594,
640, 660, 665-666, 669, 673-67 4, 677 -679,682, 684 686, 689, 706, 708, 7 15, 720,7 41.,7 46,7 50, 759, 773- t-7 4,780, 784,
790-792,800,803 805,807,815,820,824. D83,62,74-78,88-91, 118, 122,140-111,144, 146, 148, 181 183,228-230,233,
235,237 ,239,2s7 ,265,272 27 4,299,308,312, 3 1 5-3 16, 33 I -333 ,343,346,349-350, 357, 368 -369,372-373,377, 379-380,

LoucuRA (Folie) 287


390, 393, 399-,100 , 402-403, 409, 41,4, 445 45r,453-456, 458, 465-466, 472,47 5, 477 482, 488-494, 498 500, 542-543, 55 1,
572,574575,583,598,602-603,615,620,630,631,633,658,662.669,677,713,762,803,805,808.DE4,21,26,27,30,
10-42, 14 46, 55-6 1, 66,68,70, 76, 80-85, 87, 91, 123, 135- 1 36, 147,148, 168_169, 214, 224_225, 280, 352, 393, 436, 443,
.151,456,458,460,162,545,57s,577,581,583,593-594,596,601-602,608,612,618,633_634,649,656 6s7,665,669 670,
673,697,701,718,721,726,730-731,748-749,779,785,814.HF,2t,2537,39_65,67 71,80,87_89,101 102,108_116,
119-1t0,123,126 128,136,138 139,141-150,152,t54,156 159,163-166,168-172,174,176 tgo,t93-212,215-241,244
t-r8. l5l 261, 2.61-275,278 282,284-289,291-298,300-311, 313-32t,323_324,327,331 332,337,343,346,351,353,362,
-r. -1--j,1, 3;9 382, 38.1-386, 388, 39 I -394, 396-397 , 401-402, 405, 407 4\6, 421 _428, 432 436, 438, 440 443, 449, 453_460,
-16r--163, 165-,169, 471-475,477,480, 482, 484-490, 492_495,497 499, 501 502, 523,525_528,531 535, 538_539, 541 555,

-i-i:, 560, )62-564, 566-57 6,579, 584 588, 590-594, 596-608, 6 10, 6 1 2, 61 4,61.6-6t9. 622-624,626-628, 630-663,673, 676,
681,68{ 685,688.H5,24,26,220,257,449. HS1,54,56,206. HS2, 18,54, 104, 117, 136,259. HS3, 72,136.1D5,28 29,
tl9 130,235. MC, 15,63, 188,223, 334,387,395. MMPE, 5,7,23,30,34, 56, 68, 76_79,86,88, 111. MMPS,5, 7, 17,
l-1.30,31,56,68,71,76 83,85-95,97,100,102 105. NC, 10, 193. OD, t2-13,21-22,63. RR, 196-198,205,207. pp,3.
8-10,1.1-15, t9-21,23,27,29,32,34,37-39,41-43,61,97,99-102,104 105,109, tt7-121,129-135.137,139-141,143-145,
117, 152-153, 155 157, 160-162,t64-175,182, 184-185, 188-189,200-204,209,212-213,219,225,230,233-234-,239,
)17 -253,256,258-260,263-265,267 -269,27 r-285,289-295,297 ,308-309, 3 12, 3 I 9, 324,328 329,334-335. Sp, 24-26, 50,

103, 195, 258, 2 t'2, 292, 307.

::=. LUTA (Lutte)

Dominação, exploração, sujeição. Foucault distingue três tipos de luta: l) contra as

formas de dominação étnica, social ou religiosa,2) contra as formas de exploraçào que separam
os indivíduos do que eles produzem, 3) contra as formas de sujeição que vinculam o sujeito
consigo mesmo e, desse modo, asseguram sua sujeiçáo aos outros (D84,227). Nas sociedades
feudais, as lutas contra as formas de dominação predominaram; no século XIX, foram as lutas
contra â exploração. "E hoje é a luta contra as formas de sujeição, contra a submissão da sub-
jetividade, a que prevalece cada vez mais, ainda que não hajam desaparecido as lutas contra
a dominação e a exploração, pelo contrário. Tenho a impressão que não é a primeira yez que
nossa sociedade se encontra confrontada com esse tipo de luta. Todos os movimentos que
tiveram lugar nos séculos XV e XVI, encontrando sua expressão e sua justif,cação na Reforma,
devem ser compreendidos como os indicadores de uma crise maior que afeta a experiência
ocidental da subjetividade e de uma revolta contra o tipo de poder religioso e moral que havia
dado forma, na Idade Média, a essa subjetividade. Então, sentiu-se a necessidade de uma par,
ticipação direta na vida espirituai, no trabalho de salvação, na verdade do Grande Livro. Tudo
issotestemunhaumalutaporumanovasubjetividade. [...] Arazãopelaqualessetipodeluta
tende a prevalecer na nossa sociedade se deve ao fato de que uma nova forma de poder político
clesenvolveu-se de maneira contínua desde o século xvl" (D84,228). Essa nova forma de
poder é o Estado que, para Foucault, em seu sentido estritamente moderno, é uma combinação
complexa de técnicas de individuali zaçáo e procedimentos totalizantes. Desse ponto de yista,
o Estado moderno aparece, pelo menos em um de seus componentes, como uma reelaboração
do poder pastoral (ver: Poder). Ainda que não se possa separar cada uma dessas três formas
de dominação, isso não significa que as formas de sujeição sejam simplesmente um produto
terminal da dominação social ou da exploração econômica. As relações entre elas não são da
ordem da dedução; cada uma delas tem sua especificidade e mantém com as outras relações

2BB LUTA (lurÍe)


que não são lineares, mas circulares. Para Foucault, nosso problema político, ético, social e
filosófico consiste em promover novas formas de individualidade, diferentes das que nos são
impostas há vários séculos (D84,232). Filosofia analítica do poder, lutas transversais,
lutas específicas. No diálogo com G. Deleuze acerca dos intelectuais e o poder ("Les intellectuels
et le pouvoir'l DE2, 306-315), Foucault sublinha que uma das diflculdades fundamentais com
as quais o intelectual se depara na hora de definir e levar adiante formas adequadas de luta é
que ele ignora o que é o poder (DF,z,312). Pode-se encontrar aqui uma das motivações de seu
interesse pelo tema do poder, para desenvolver "uma filosofia analítica do poder'i A filosofia
teve tradicionalmente por funçâo fundar e limitar o poder instaurando-se ela mesma como
lei. Uma lilosofia analítica do poder, no entanto, não se coloca a questão do poder do ponto
de vista do bem ou do mal, mas do ponto de vista de sua existência (D83, 540). Esse modo
de conceber a filosofia do poder inscreve-se em sua concepção geral da filosofia como uma
atividade de diagnóstico. A tarefa da Êlosofia, nesse sentido, não consiste em descobrir algo
que está oculto ou em converter-se na formulação do que está por vir, isto e, em promessa. A
tarefa da filosofia consiste em fazer visível o que é visível, em analisar as forças que constituem
nosso presente (ver Diagnosticar). Desde essa perspectiva, uma filosofia analítica do poder
serve como instrumento para formas de luta que têm quatro características: 1) Não se trata
de qualificar ou louyar o poder de maneira massiva ou global; mas de estudar as relações de
poder como jogos, em termos de táticas e estratégias: jogos de poder ao redor da loucura, da
medicina, da doença, da penalidade, da prisão; onde se trata do estatuto darazao e da náo
razâo, davida e da morte, do crime e da lei. Não se trata de enfientamentos dentro desses jogos
de poder, mas de resistência a tais jogos. Nessas lutas, como, por exemplo, no caso das prisões,
"não se quis jogar o jogo, tradicionalmente organizado e institucionalízado, do Estado com
suas exigências e dos cidadãos com seus direitos. Não se quis jogar o jogo do todo; se impede
de jogar o jogo" (DE3, 544). 2) Tais lutas sáo fenômenos difusos e descentrados. Por exemplo,
de novo no caso da prisão, essas lutas não se colocaram o problema geral de qual deve ser o
sistema legal de punição em um país democrático. Elas partem de problemas mais especíÍicos
e locais: a subalimentação, as condiçôes de detenção, etc. "O que mostra bem que o objetivo de

todos esses novirnentos nâo é o mesmo que o dos movimentos políticos ou revolucionários
tradicionais. Não se trata de aporrtar ao poder político ou o sistema econômico' (DE3, 545).
3) Essas lutas têm por objetivo os fatos ou efeitos do poder, as formas concretas de exercício
do poder. 4) Por último, trata-se de lutas imediatas. Elas não seguem o princípio leninista do
inimigo principal; tampouco esperam um momento futuro que seria a revolução ou a liberação.
"Com respeito a utna hierarquia teórica das explicações ou de uma ordem revolucionária que
polarizaria a história e hierarquizaria os momentos, pode-se dizer que essas lutas são anárquicas.
Elas inscrevem-se dentro de uma história imediata, que se aceita e se reconhece como indefi-
nidamente aberta' (D83, 546). O que acabamos de expor provém da conÍ'erência ern Tóquio,
de 27 de abril de I 978, intitulada "La philosophie ana\,tique de la politique" (DE3, 534-551) .
Posteriormente, em 1982, em "Le sujet et le pouvoir" (D84,222-243), Foucault retomará a
caracterizaçáo dessas lutas. Aqui, ele enumera seis características; algumas retomam as que
já mencionarnos, outras as explicitam. 1) Sáo lutas transversais. Não se limitarn a um país ou
a um sistema econômico. 2) Tem por objetivo os etêitos do poder. 3) São lutas imediatas. 4)
Essas lutas questionam o estatuto do indivíduo. "Essas lutas não são exatamente pró ou contra

LUTA (lutte) 289


o'indivíduol mas elas se opõem ao que se pode chamar o governo por individualização" (DE4,
227).5) EIas opõem formas de resistência aos efeitos de poder que estão ligados ao saber, à
competência e à qualificação. 6) "Finalmente, todas as lutas atuais giram em torno da mesma
questão: quem somos? Elas sáo um rechaço a essas abstrações, um rechaço à violência exerci-
da pelo Estado econômico e ideológico que ignora quem somos individuaimente, e também
um rechaço à inquisição científica ou administrativa que determina nossa identidade" (D84,
227). Revolução, reforma. "Talvez estejamos vivendo o Íim de um período histórico que,
desde 1789-1793, esteve dominado, pelo menos no Ocidente, pelo monopólio da revolução,
com todos os efeitos adjuntos de despotismo que isso podia implicar, sem que, por isso, esse
desaparecimento da revolução signifique uma revalorização do reformismo. Nas lutas das que
acabo de falar, com efeito, não se trata de modo algum de reformismo, porque o reformismo
tem por funçáo estabilizar um sistema de poder após um determinado número de mudanças,
enquanto que, em todas essas lutas, trata-se da desestabilização dos mecanismos de poder,
de uma desestabilização aparentemente sem fird' (DE3, 547). Genealogia. "Chamemos, se
quiserem, 'genealogia ao acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais,
acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse
saber nas táticas atuais" (IDS, 9-10). Luta de classes, luta de raças. Ver: Guerra.
Lutte [710]: AN, 178, 190,209,222,244,256,285. AS,22, 158,261. DEl,95, 196,205,216,308,511,582,633,682.
D82,36,64,121,143 144, 148, 187-188, 195 L96,224,226-228,230-23r,233,243,301,305 306,308-309,311 313,315,
336, 340-34 1, 348, 35 1, 354 355,357 -363,365-368,377 ,379-380, 399-400, 402,404,415,420,423,427,435-436, 440, 442-

443,445.500-502, 506, 5 14, 530,533 ,535-537 ,539,545'546, 548-550, 552,570,572-573,575 576, ,632,634,638, 58 l, 587

644, 648 652, 656-658, 664, 679, 684 685, 699,7 18,724,755,7 57 -758,77 4-775,779-780,782,796, 800, 806. DE3, 42-43,
46,111,113,124,127,130,137,150,152,154,157,159,167,169,173 175,182,185,193,206,211,227,241,268,29t),
310-311,348 349,363-364,367,369,383-384,387,391,402,407,421,424-427,471,477,501,512.516,528-531,545,547,
605-606,609610,612-613,615 616,632,656,686,688,690,701,704,718,727,713744,715,747,759,761,771,806-807,
809, 812. DF.4,47.51,65,71-73,79-80,95, 176,177,181, 185, 228,237 238,241-243,296-298, 303, 312, 319,357'359,
375, 3eô,425,4J9,443,452,499-50r,51 1, 5t7,556,568,576,587, 591, 622,663,667,711,721,728,739 740. HF, 10, 47,

52,1.43,218,301,335,398,171,499,534,616.HS,139.r43,213,222,299,307-308,357,409,126,131,469.HSl,139,
166,173,191.HS2,33,48,74,76-77,84,96,102,115,125,128.HS3,69,158,163,168.IDS,11,13,1719,2t,3t,36-37,
40,43,45,5053,57,60-61,63,65-74,76-77,84-86,88,91,116,118-120,t27,t46,153,159-160,165 166,170,189,193,
20t-202,209 210,229-230,233-234. ÀíC,214. MMPE, 86. MMPS, 98. NC, 16, 33. OD, t2,45.pp,26,72,93, t2t, 136,
t7 t -172, 17 4, t7 6, 189, 213, 240, 256, 3 10. SP, 3 1, 54, 71-7

290 LUTA (tuÍre)


;.r.:. MALLARMÉ, Stéphane (1842-1898)

"O empreendimento de Mallarnré, para encerrar todo discurso possível na frágil espessura
da palavra, nessa delgada e material linha negra traçada pela tinta sobre o papel, responde no
fundo à questão que Nietzsche prescrevia à filosofia" (MC, 316). Mallarmé representa para
Foucault o nascimento da literatura no sentido moderno do termo e, nesse sentido que, como
ern Nietzsche, anuncia o fim do homem. Yer: Linguagem, Literatura.
Stéphane Mallarmé 183J: AS,35. DE1, 195,278,29{i,355,418-419, 426'428,430 133,435-437,522,537,s43,
555-556,703,770,785,796.D82,105, 109, 124,\71,220,645.753. DE3, 575.DD4,220,607. MC,59,95, 111, 119.
3t6-317.394.

?r=. MAQUIAVELO, Nicolás (146e-1527)

Em "Il faut défendre la société'l Foucault enfrenta a questão do poder desde o ponto de vista
da guerra; as relações de poder seriam da ordem da oposição, da luta, do enfrentamento (o
que ele denomina ahipótese l{ietzsche). Por esse caminho, de uma análise do poder a partir
da noção de luta, inevitavelmente deve cruzar com Maquiavel e llobbes. Foucault, no entanto,
considera que nem um nem outro são autenticamente teóricos da guerra na sociedade civil
(DE3,174). Para Maquiavel, a relação de força é descrita essencialmente como urna técnica
política nas mãos do príncipe. Foucault opõe a essa análise a obra de Boulainvilliers (Ver:
Boulainvilliers, Guerra), para quem as relações de força definem o próprio tecido da socie-
dade. 'A relação de força, que era essencialmente um objeto político, se converte agora em um
objeto histórico ou, melhor, histórico-político [... ]" (IDS, 145). 'A história, para Maquiavel, é
simplesmente um lugar de exemplos, urna espécie de antologia da jurisprr.rdência ou de modos
táticos para o exercício do poder. [...] Ao contrário, para Boulainvilliers (e creio que isso é o
importante), a relação de força e o jogo do poder são a própria substância da história" (IDS,
151). Para Foucault, trata-se de prescindir do príncipe e decifrar os mecanismos do poder a

MAQUIAVELO, Nicolás 291


partir de uma estratégia imanente às relações de força (HSl, 128). * No curso do Collêge de
France de 1977 -1978, Sécurité, térritoire et population, Foucault aborda a literatura da "arte
de governar" (ver: Governo). Mais precisamente, a literatura sobre o governo, do período que
vai de meados do século XVI ao final do século XVIII. Por exemplo, L. Politi (Disputationes de
libris a christiano detestandis,1542),1. Gentillet (Discours sur les moyens de bien gouverner
et maintenir en bonne paix un royaume ou autre principauté, contre Nicolas Machiavel,
1576), G. De La Perriêre (Le miroir politique, contenant diverses maniàres de gouverner et
policer les républiques, 1555). Toda essa literatura se situa entre o surgimento de O príncipe,
de Maquiavel, e o reaparecimento dessa obra nos primeiros anos do século XIX. Toda essa
literatura caracteriza-se por sua oposição a Maquiavel, representa a corrente anti-Maquiavel
darazao de Estado (DE4, 817). Nela, circula uma imagem da obra de Maquiavel que Foucault
resume em três pontos: 1) O príncipe encontra-se em uma relação de exterioridade à sobera-
nia, não forma parte dela; a recebe por herança, aquisiçào, conquista, cumplicidade de outros
príncipes. 2) A relação entre o príncipe e a soberania é frágii, está ameaçada externamente
pelos outros príncipes e internamente porque não há nenhuma razâo a priori para que os
súditos o aceitem. 3) O objetivo do exercício do poder é manter o principado, entendendo por
principado não o conjunto dos súditos e o território, mas a relação que o príncipe mantém
com o território e os súditos como possessão sua (DE3, 638-639). "Em suma, digamos que
O príncipe, de Maquiavel, tal como aparece em Íiligrana nesses diferentes tratados explícita
ou implicitamente dedicados ao anti-Maquiavel, aparece essencialmente como um tratado
da habilidade do Príncipe, do saber-fazer do Príncipe que a literatura anti-Maquiavel quer
substituir por uma coisa distinta e, em relação a ele, nova, que é a arte de governar. Ser hábil
para conservar seu principado não é possuir completamente a arte de governar" (D83, 639)'
Foucault insiste em uma diferença fundamental, desde o seu ponto de vista, entre o texto de
Maquiavel e toda essa literatura sobre a arte de governar que leva em consideração. Em Ma-
quiavel, o território e a população aparecem como dois'bbjetos" do exercício da soberania do
Príncipe; nessa literatura anti Maquiavel, no entanto, o problema da arte de governar gira em
torno da articulação da relação entre território e população (D83,643). A partir dessa relação,
haverá de se formar o conceito de biopolítica.Yer: Razao de Estado.
Nicolas Maehiavel [69]: DE3, 17,1,358,637-640, 613-644,616,720.D84,152,817-818. HSr, 128. IDS, 19,51,
55, 145, 147, 150-151, 166.

;.::-:,. MARX, Karl (tat8 1BB3)

"Marx, para mim, não existe" (DE3, 38). "Mas há também de minha parte uma espécie de
jogo. Frequentemente cito conceitos, frases e textos de Marx, mas sem me sentir obrigado a
acrescentar o pequeno documento autenticador, que consiste em fazer uma citação de Marx,
e colocar cuidadosamente a referência no pé de página e acompanhar a citação com uma
reflexão elogiosa. [...] Eu cito Marx sem dizê-lo" (D83,752). Episteme moderna. Uma
parte importante de Ies mots et les choses esÍaconsagrada ao homem como ser que trabalha.
Da mesma forma que em relação ao homem como ser vivente e como ser que fala, Foucault
sublinha, na descrição da episteme moderna, a introdução da temporalidade como horizonte

292 MARX, Karl


que define esses objetos modernos que chamamos "trabalho'l "vida'e "linguagemiNo caso
do trabalho, Foucault atribui a David Ricardo a introdução da temporalidade no campo da
econontia (MC,27l). A pariir daqui, duas alternativas são possíveis acerca da relação entre a
história eo homem como ser que trabalha ou, melhor, duas maneiras de pensar a imobilidade
da história: a que representa o próprio Ricardo e a que representa Marx. No primeiro caso,
devido ao princípio da renda funcional, chegará o momento em que o trabalho já não será
rentável, se estabilizará o crescimento demográfico, a produção alcançará seu limite; então, a
história haverá de se imobilizar. No segundo caso, os trabalhadores produzirão cada vez mais,
mas, pelo princípio de acumulação do capital, aumentará o número dirqueles que se encontram
no limite das condições de existência (diminuição de salários e crescimento do desemprego);
então, se Íàrá necessária a trirnsíormação da história em termos de revolução (MC,27l-273).
"lVÍas pouco importa, sern dúvida, a alternativa entre o 'pessimismo de Ricardo e a promessa
revolucionária de Marx. Esse sistema de opções só representa duas maneiras possíveis de
percorrer as relações da antropologia e da História, tal como a economia as instaura através
das noções de escassez e trabalho" (MC,273). Definitivamente, Ricardo e Marx são possíveis
a partir de uma rnesma episteme. * Nesse sentido, à diferença de Althusser, Foucault náo
consiclera que Marx opere qualquer ruptura epistemológica. "Qualquer que seja a importância
das modificações aportadas por Marx às análises de Ricardo, eu não creio que essas análises
econômicas escapem do espaço episterr-rológico instaurado por Ricardo" (DE1,587). Nlarx
cleduziu a noção de mais-valia diretamente das análises de Ricardo, "Marx é um ricardiano"
(D82, 167). Disciplina. Foucault faz várias referências a Nlarx em relação aos elementos
que delinern o conceito de disciplina. A respeito das tecnicas de composição das lorças in-
dividuais, sublinha, conto Marx, a função que desempenhou a racionalidade das técnicas da
guerra. "Marx insiste, várias vezes, na analogia entre os problemas da divisão do trabalho e
os da tática militar" (SP, 166). Também se refere a Marx a respeito cla noção de vigilância
hierárquica (SP, 177). Em termos mais gerais, Foucault situa-se tambérn na linha de Marx
na medida em que trata de analisar, en Surveiller et punir, as relaçoes entre as mutaçoes
tecnológicas do aparato produtivo, a divisão do trabalho e os procedirnentos disciplinares (SP,
222). Humanismo. Acerca da questão do humanismo, Foucault, por um lado, situa Nlarx
como um esforço por desantropologizar a história e, nesse sentido, oposto ao humanismo
(AS,2l-22); mas, por outro, considera Marx e Hegel como os responsáveis pelo humanismo
contemporâneo (DEl, 541). Interpretação. A intervençâo de Foucault no Colloque de
Royaumont, em julho de 1964, tem por titulo "Nietzsche, Freud, Marx" (DEl, 564-5799).Ela
está dedicada à noção de interpretação no século XIX ou, mais precisamente, às técnicas de
iriterpretaçâo em Nietzsche, Freud e Marx. Yer lnterpretaçao.Poder. Pode-se encontrar em

NIarx, no livro II d' O Capital, alguns elementos conceituais para pensar o poder em termos
de produção (D84, 186). Apesar disso e do que dissemos mais acima acerca do conceito de
disciplina, para Foucault o pensan'rento de Marx nâo é inteiramente adequado para pensar as
relações de poder. Para compreender os mectrnismos do poder em sua complexidade e seus
detalhes, é necessário desfazer-se de certo esquematismo, que se encontra no próprio Marx,
e que consiste ern loc:rlizar as relaçÕes de poder no aparato do Estado ou em uma classe
(DE3, 35). Em outro texto, "Les mailles du pouvoir", Foucault considera que tal esquema
de interpretação é, principalmente, uma maneira de tornar rousseauniano o pensamento de

MARX, Karl 293


Marx. "É inscrevê-lo na teoria burguesa e jurídica do poder" (DEa, 189); por outro lado, essa
inscrição aparece como característica da concepção da social-democracia europeia do século
XIX. * Na perspectiva de Foucault, "Nietzsche foi quem colocou o poder como objetivo es-
sencial do discurso, digamos, Íilosófico. Enquanto que para Marx era a relação de produção"
(DE.2,753). Profecia e luta. O interesse de Foucault por Marx centra-se particularmente nos
trabalhos históricos (O 18 Brumário de Luis Bonaparte, As lutas de classes na França, A
comuna de Paris, A guerra civil na França). Todas essas obras concluem com apreciaçÕes
proféticas que foram geralmente desmentidas pelos fatos. "O discurso socialista da época era
composto de dois conceitos que não conseguiam se dissociar suficientemente. Por um lado,
uma consciência histórica, ou a consciência de uma necessidade histórica; em todo caso, a ideia
de que, no futuro, deveria suceder tal coisa. Por outro, um discurso de luta (um discurso que
provém da teoria da vontade) que tem por finalidade a determinação de um objetivo a atacar.
[. . . ] Mas esses dois discursos, essa consciência de uma necessidade histórica, isso é, o aspecto
profético e o objetivo da luta, não puderam levar a termo o seu jogo" (DE3, 612). Luta de
classe. Marx tomou emprestada a noção de luta de classe dos historiadores franceses; trata-
se, na realidade, da noção de luta de raças (DE3, 50; IDS, 69). Engels. A diferença de Marx,
Engels separou-se da filosofia de Hegel: "Ele considerou que todos esses problemas (vontade
individual, consciência de si, ética ou moral individual) eram descartáveis como motores da
história' (DE3, 597). Discursividade. Marx é considerado por Foucault, assim como Freud,
fundador da discursividade (DEl, 805). A respeito, ver: Autor.
KarlMarx[373]:4N,143. A5,12,21-24,230,245.DEl,516,5,11,547,551,556,s64,566'569,571-577,579,587
588, 658, 666 667 , 676,775,784,79 1, 804-80s, 809, 8r 6 8 18, 824-825. D82,72,87 , 106, \67 -168, 170,22s-226,272,281.,
312,321,332-335,362,406 409,51t,521,621,659,736-738,7 52-753,7 56 7 57 ,779,807 -808, I I 7. DE3, 35, 38-39, 89, I 33,
142, r47,210,258,268,278-,278 279,306,310,342,376,401,419-420,432,470,474,497, 501-502, s30, 538-539, 595-609,
611-615,749.DF4,50,52,66,68 70,73 74,115, 186-187, 189,197,201,433-435,457,703,766,778,785. HS1, 167. IDS,
69,74,87,97.MC,273,331,338-339, 345,371,396. OD,74,79.5P,166,171,177,222,286.

ã:?. MARXI SMO (M a rxi sme)

"Eu não sou nem um adversário nem um partidário do marxismo; eu o interrogo acer-
ca do que tem para dizer a propósito das experiências que o questionam" (D84,595).
Foucault foi formado em um ambiente universitário em grande parte dominado pelo mar-
xismo. Sua primeira obra, de 1954, Maladie mentale et personnallÍé, é testemunho disso
e de suas influências. Como era o costume da época, também esteve filiado ao Partido Co-
munista francês, ainda que por um período realmente curto. A partir de então, a distância
entre Foucault e o "marxismo" não deixou de se acentuar em cada um dos temas centrais
de seu trabalho filosófico: a história, o sujeito, o poder. Nas obras de Foucault, se excetuar-
mos Maladie mentale et personnalité e a crítiçada noção de repressão em "Il faut défen-
dre la societé " e Les anormaux, as referências ao marxismo são muito escassas; no entan-
to, nas suas entrevistas e verbetes, a questão do marxismo aparece com frequência. Entre
suas entrevistas, uma merece particular atenção: "Méthodologie pour la connaissance
du monde: comment se débarrasser du marxisme" (D83, 595-6lS). pois bem, para

294 MARxtsMo (Marxtsme\


abordar a questão com certa ordem, é necessário começar com algumas distinções. Em
primeiro lugar, a distinção entre Marx e o marxismo. Mas também há que introduzir várias
distinções acerca do que Foucault entende por "marxismo'l Existe, por um lado, o marxismo
como posição teórica e, por outro, o marxismo como realidade histórico-política, tal como
se encarna em um partido ou em um Estado. No marxismo - que chamamos por agora -
teórico, há que distinguir entre o marxismo humanista, o marxismo acoplado à fenomeno-
logia, o marxismo estruturalista e o "freudo-marxismo'l Humanismo e fenomenologia.
Há urn marxismo brando, humanista, que busca reunir tudo o que a Íilosofla tradicional
pode dizer de Hegel a Teilhard de Chardin. Esse marxismo humanista é antiestruturalista
(DE1,654). Além do mais, existiu no ambiente intelectual francês dos anos cinquenta - em
Merleau-Ponty e Sartre, por exemplo - um eslbrço de vincular a problemática da fenome-
nologia e a do marxismo. Posteriormente, a partir da questão da linguagem tal marxisrno
humanista se separará da fenomenologia e haverá de se vincular ao estruturalismo (DE4,
434). Estruturalismo. segundo Foucault, o estruturalismo não é uma ameaça para o
marxismo, mas apenas Para uma determinada compreensão do mesmo, que se caracteriza
pelos seguintes elementos: conceber a história como um longo relato linear, interrompido
às vezes por alguma crise, considerar a causalidade a categoria fundamental da análise
histórica, crer que existe uma hierarquia das determinaçôes causais que vai da causalidade
material mais estrita à liberdade humana. Para Foucault, náo existe uma incompatibilidade
de natureza entre o estruturalismo e o marxisrno, porque não se situam no mesmo nível. O
marxismo é uma análise das condições da existência humana em sua complexidade, para
determinar as possibilidades de ação na conjuntura presente. O estruturalismo é um meto-
do de leitura histórica que pode ser utilizado no marco dessa análise (DEl, 583-583). 'Al-
thusser questionou a filosofia clo sujeito, porque o marxismo francês estava impregnado de
ul.l1 pouco de fenomenologia e um pouco de humanismo e porque a teoria da alienaçáo
fazia do sujeito humano a base teórica capaz de traduzir em termos filosóficos as análises
político-econômicas Marx" (D84,52). "Freudo-marxismo". Com a expressáo "freudo-
cle

marxismo", Foucault refere-se particularmente a Marcuse (D84,72) e, em geral, à utilização


da noção de repressão como categoria de análise do poder (IDS, 38). História, sujeito.
Se deixarmos de lado o marxismo estruturalista e, por conseguinte, Althusser, a oposição
de Foucault ao marxismo teórico situa-se em torno de duas questoes centrais: a história e
o sujeito. 'A análise política, nos últimos cem anos ou quase isso, esteve sempre dirigida por
teorias econômicas ou por uma filosofia da história; digarnos, por edifícios teóricos impor-
tantes e um pouco solenes como o marxismo. Pois bem, eu creio que a experiência feita
nestes vinte ou trinta últimos arlos, com o stalinismo, por exemplo, do mesmo modo na
China, tornou inutilizáveis, pelo menos em muitos de seus aspectos, as análises tradicionais
do marxismo. Nessa medida, creio que não era necessário abandonar o marxismo como
uma espécie de velha lua da qual poderían-ros burlar-nos, senáo sermos muito menos Íréis
do que se acreditava em outro tempo à própria letra da teoria e tratar de ressituar as análi-
ses políticas que podem ser feitas sobre a sociedade atual, não tanto no marco de uma teo-
ria coerente, mas sobre o fundo de uma história real. Eu creio que o fracasso dos grandes
sistemas teóricos para fazer a análise politica atual nos conduz, agora, a uma espécie de
empirismo, que talvez não seja muito glorioso, o empirismo dos historiadores" (DE3,377).

MARXISMO \MarÀtsme) 29 5
* Desse ponto de vista, Foucault
lamenta que o marxismo oficial tenha descuidado a im-
portância que tem a questão do corpo em Marx, privilegiando o conceito de ideologia (DE2,
756). * Havia uma tendência do marxismo acadêmico, na França, que consistia em buscar
de que maneira as condições econômicas podiam refletir-se na consciência dos sujeitos e
encontrar, ali, sua expressão. Desse modo, supunham que estão dados anteriormente e
definitivamente: o sujeito humano, o sujeito de conhecimento e as formas de conhecimen-
to, e que as condições econômicas se imprimem neles (DE2, 538). para Foucault, no entan-
to, trata-se de mostrar a constituição histórica do sujeito de conhecimento através do dis-
curso considerado como uma estratégi a que faz parte das práticas sociais (DE2, 540). * Na
mesma linha, situam-se as diferenças entre a problemática marxista e a problemática fou-
caultiana da história das ciências. "O marxismo do pós-guerra se apresentava como uma
teoria geral de caráter científico da ciência, como um tribunal que podia discriminar o que
pertencia à ciência e o que pertencia à ideologia. A questão colocada pelo marxismo era:
"Em que medida o marxismo, reconstruindo, com seus esquemas, uma história da socie-
dade, pode dar conta da história das ciências, do nascimento e do desenvolvimento das
matemáticas, da física teórica, etc.?" (DE4, 53). Para Foucault, sob a influência de Nietzsche,
a questão se coloca em termos completamente diferentes, isto é, em termos de uma história
da verdade. Yer: Humanismo, História, Subjetivaçao. Poder. Evidentemente, não se pode
distinguir completamente entre o marxismo teórico e o marxismo como realidade política:
"O marxismo não é outra coisa que uma modalidade de poder em um sentido elementar
[. . . ] Isso é, o marxismo como ciência (na medida em que se trata de uma ciência da histó-
ria, de uma história da Humanidade) é uma dinâmica com efeitos coercitivos em relação a
determinada verdade. Seu discurso é uma força profética que difunde uma força coercitiva
sobre uma determinada verdade, não só na direção do passado, mas em direção ao futuro
da Hurnanidade. Em outros termos, o que é importante é que a historicidade e o caráter
profético funcionam como forças coercitivas que concernem à verdade" (D83, 600). o
marxismo, por outro lado, segundo a opinião de Foucault, não poderia ter existido sem a
existência do Estado e do partido. Os Estados, antes da Revolução, fundavam-se na religião;
depois, no entanto, passaram a se fundar na filosofia. "t...] o marxismo como discurso
cientíÍico, o marxismo como profecia e o marxismo como filosofia de Estado ou ideologia
de classe estâo intrinsecamente ligados ao conjunto das relações de poder" (D83, 601). por
isso, Foucault questiona o marxismo, finalmente, desde o ponto de vista de seu funciona-
mento na sociedade moderna, isto é, desde o ponto de vista do poder e não só de suas
concepções da história e do sujeito. Ainda que, e é necessário sublinhá-lo, esses três ele-
mentos estejam estreitamente vinculados. A respeito, três observações: l) Marx pertence
ao século XIX e suas análises históricas funcionam nesse marco cronológico; por essa razão,
seria necessário atenuar as relações de poder vinculadas ao caráter profético de Marx. 2) A
existência do marxismo ligada à existência de um partido comunista fez comque determi-
nados problemas tenham desaparecido de seu horizonte teórico. Nesse sentido, também é
necessário atenuar seus efeitos de poder, colocando aqueles problemas que foram deixados
de lado (como a medicina, a sexualidade ou a loucura). 3) Também será necessário vincu-
lar esses problemas aos movimentos sociais nos quais eles encontram sua expressão (ques-
tionamentos, revoltas). os partidos, suas próprias dinâmicas de poder, têm tendência a

296 MARxtsMo (Marxtsmet


ignorá-los (D83,602-603). Nesse sentido e em relaçáo ao desinteresse pela questão do
corpo, Foucault avalia que o movimento de 1968 foi fundamentalmente antimarxista (DE2,
756). Acerca das diferenças entre Foucault e o marxismo a respeito da análise do poder, ver:
Poder. Ciência, contraciências humanas. "Entendo que o marxismo, a psicanálise e a
etnologia têm uma funçáo crítica a respeito do que se chama as ciências humanas e, nesse
sentido, são contraciências. Mas, repito, são contraciências humanas. Não há nada no mar-
xismo ou na psicanálise que nos autorize a chamá-los contraciências, se entendemos por
ciências a matemática ou a física. Não, não vejo por que deveríamos chamar de ciências ao
marxismo e à psicanálise. Isso seria impor a essas disciplinas condições tão duras e exigen-
tes que, por seu próprio bem, seria preferível não chamá-las ciências. Eis aqui o paradoxo:
os que reclamam o estatuto de ciências para a psicanálise e para o marxismo manifestam
ruidosamente seu desprezo pelas ciências positivas como a química, a anatomia patológica
ou a física teórica. Apenas ocultam seu desprezo a respeito da rnatemática. Pois bem, de
fato, sua atitude mostra que eles têm em relação à ciência um respeito e uma reverência
próprios dos estudantes. Têm a impressão que, se o marxisrno fosse uma ciência (e aqui
pensam em algo tangível como uma demonstração matemática), poderiam ter a certeza
de sua validade. Eu acuso essas pessoas de ter uma ideia da ciência mais elevada do que
ela merece e de ter um desprezo secreto pela psicanálise e pelo marxismo. Eu os acuso de
insegurança. Por isso, reivindicam um estatuto que náo é tão importante para essas dis-
ciplinas" (D82, 169). * Para o "genealogista'i a objeção que se deve fazer ao marxismo é
quanto à sua pretensão de ser uma ciência. "E eu diria: 'Quando eu os vejo esforçando-se
para estabelecer que o marxismo é uma ciência, não os vejo, para dizer a verdade, em vias
de demonstrar de uma vez pot todas que o marxismo tem uma estrutura racional e que
suas proposiçoes, em consequência, provêm de procedimentos de verificação. Os vejo,
em primeiro lugar e antes cle tudo, em vias de fazer outra coisa. Os vejo em vias de vin-
cular ao discurso marxista, e os vejo atribuir aos que têm esse discurso, os efeitos de
poder que o Ocidente, desde a Idade Média até agora, atribuiu à ciência e reservou aos
que têm um discurso científico"' (IDS, 11). Economicismo. Na concepção marxista do
poder, subjaz certo economicismo. Foucault fala, mais precisamente, da "funcionalidade
econômica" do poder para o marxismo. O poder teria por função essencial manter as
relações de produçâo e a dominação de uma classe que foi possível pelo desenvolvimen-
to das modalidades de produção e as formas de apropriação das forças produtivas (IDS,
l4). A análise foucaultiana do poder quer desprender-se desse economicismo.Yer Poder.
Ruptura epistêmica. Como explicamos no verbete Marx, o marxismo não introduz
nenhuma ruptura na disposição epistêmica do século XIX (MC, 27 4). Lata. "O que me
assombra, na maioria dos textos, se não nos de Marx, ao menos nos dos marxistas, e que
se deixa em silêncio (salvo talvez em Trotsky) o que se entende por luta quando se fala
em luta de classes" (DE3,310).
Marxisme [303]:D81,400,516, 574,576,582 583, 654,657,809,824. D[J2,67,157,\66-170,187,234,271-
272, 314,-333, ,108-409, 115, 523. 538, 540, 552. 646, 654, 659,724,737,739, 752-753, 756-757,808, 8 I 2. DE3,
28-29,38, 109, 141, 146-147,154, 162-163, \66,278,37 t-,39]L,400,421,124,427,429,142,576,595-s96,599-603,
607-6r1, 6t3,623.627,629,785. DE4,50, 52-5.1,59,61-65, 68-70,72-73,79-81, 184, 191,201, 2r2,412,432 435,
437,444,453,455456,457,497-498,500-501,517,520,529,573,581.595,608,639,649-651,655,763.H5,27,
30. IDS, 7, 10, 1 1, i4, 3ti, 23.1. MC, 274.332.

MARxI5MO (Marxisme) 297


.:== MASTURBAçAO (Mastu rbation)

A aula de 5 de março do curso Les anormaux está dedicada à grande cruzadanovecen-


tista contra a masturbação. Quais são as razões do surgimento dessa grande cruzada contra a
masturbação? Foucault, como em outros textos desses anos, põe em dúvida a explicação mais
difundida, a explicação que, em La volonté de savoir,ele denomina "hipótese repressival As
referências são a Van Ussel (Repres sao sexual) e a Marcuse. A campanha contra a masturba-
ção seria uma consequência da formação da sociedade capitalista, da necessidade de adaptar
as condutas sexuais dosindivíduos, através da família, às necessidades das novas formas de
produção. Em poucas palavras, a campanha contra a masturbação responderia à necessidade
de contar com uma populaçáo saudável e numerosa. Pois bem, além da essência negativa do
poder que circula com essa explicação, Foucault observa que ela não expiica o porquê dessa
focalizaçâo na masturbação e não em outra ou outras práticas sexuais ou, simplesmente, na
sexualidade em geral. Tampouco nos permite compreender por que se concentra nas crianças
e não nos adolescentes; nem - e esse aspecto é mais interessante - por que se trata de um
discurso dirigido às famílias burguesas e não às proletárias. Para Foucault, não só é necessário
analisar o poder em seus efeitos positivos (uma vez que individualiza, sujeita, identifica), mas
é necessário, além do mais, enfocar a q:uzada contra a masturbação a partir de suas táticas:
somatização e desculpabilizaçâo em torno às quais se constituiu a família celular burguesa
(AN, 217 -224). Y er : F amíli a.
Masturbatiot I20U: AN, 55, 56, 172, 1,7 4, 179-1.80, 217 , 219-231,233 234, 236-241, 244-247 , 249 251., 253-254,
256,259-262,264,266-267 ,270,277,279, 309-3 10. DE2, 131,7 55,777 -779,825,827 . DE3, 149, 1 83, 193,259,263,319,
353,396-397,527,568,673.DE4,76,178,295,473,475,478,530,53I532,5,18,6-59-660.HF,674-675.}{Sl,63,202.
HS2, 22, 65, r 30. HS3, 30, 33 -34, 37, I 64 I 65. IDS, 29, 224. PP, 124.

:r= MATERIALISMO (Materialisme)

Acerca de uma pergunta sobre a função do materialismo dialético, Foucault responde:


"Uma pergunta difícil. No sentido pleno e forte da expressão 'materialismo dialéticol ou seja,
interpretação da história, filosofia, metodologia científica e política, não serviu para muito.
Você já viu algum cientistautilizar o materialismo dialético? Em sua tática, o Partido comunista
não aplica o materialismo dialético. Mas claramente o materialismo dialético constitui uma
referência importante. Qual é o seu estatuto para que, até um certo ponto, estejamos obrigados
a passar por ele, ao menos no discurso, pelos seus signos, pelo seu ritual? É um problema. O
materialismo dialético é um significante universal cujas utilizações políticas e polêmicas são
importantes. É uma marca, mas não creio que seja um instrumento positivo. Eu citaria um
exemplo. Na Polônia, onde vivi um ano, havia cursos obrigatórios de materialismo dialético
nas universidades, aos sábados, como os cursos de catecismo nos colégios católicos. Um dia
perguntei: os estudantes de ciências também estão obrigados a seguir esses cursos, como os
estudantes de Humanidades? E o professor (bastante próximo do Partido comunista) respon-
deu: não, os estudantes de ciências ririam..." (DE2, 808-809).

298 MASTURBAçÃo (Masrurbation)


Matérialisme [27]:D81,549.D82,109,808-809. D83,470,609,686. DE4, 36,56,65, t96, 197. HF,283. IDS,96,
161. MNÍPE, 106. OD.60. PP, 176.2t7,279.

r.i: MEDICALIZAçAO (Medica|isation)

moderno do poder é, para Foucault, fundarnentalmente da ordem da normaliza-


O exercício

ção (ver: Norma) dos indivíduos e das populações. Na formaçâo dessa modalidade de exercício
do poder, a medicina desempenhou e desempenha papel fundamentai. "Se os juristers dos
séculos XVII e XVIII int entaram urn sistema social que devia estar dirigido por um sistema de
leis codificadas, pode-se afirrnar que os médicos do século XX estão a inventar uma sociedade
da norma e não da lei. Não são os códigos que regem a sociedade, mas a distinção perrna-
nente entre o normal e o patológico, a tarefa perpétua de restituir o sistema de normalidade"
(DE3, 50). As sociedades modernas estáo submetidas a um processo contínuo e indefinido de
medicalização. As condutas, os comportamentos, o corpo humano, a partir do século XVIII,
integram-se a um sistema de funcionamento da medicina que é cada vez mais vasto e que vai
muito mais além da questão das enfermidades. O termo "medicalizaçâo" faz refêrência a esse
processo que se caracterizapela função política da medicina e pela extensão indefinida e senr
Iimites da intervenção do saber médico. * Pode-se caracterizar o Império Romano de Cons-
tantino dizendo que, pela primeira vez no mundo do Mediterrâneo, o Estado se atribui como
tarefa ocupar-se das almas. Desde Constantino até as teocracias do século XVIII, a salvação
das almas constituiu um dos objetivos fundamentais da intervenção política. Corn base em
um processo que se prepara desde finais do século XVIII, assistimos atualmente à formação
de uma somatocracia: uma das finalidades da intervençáo do Estado é o cuidado do corpo, a
*
saúde corporai, a relaçâo entre a enferrnidade e a saúde (DE3, 43). Pode-se resttmir, como
se segue, o processo de medicalização das sociedades ocidentais modernas. I ) A formação, ao
final do século XVIII, de uma novanosopolítica.Nâo se trata, no entanto, de uma intervenção
vertical e uniforme do Estado na prática da medicina, mas do surginlento do problema da saúde
ern diferentes pontos do corpo social. lirl problematização generalizada da questão da saúde
responde, por um lado, ao deslocamento dos problemas da saúde em relação às técnicas de
assistência. Com efeito, no século XVIII, a enfermidade e a pobreza vão se separar. Até então,
exceto no caso de epidemias, o Estado se encarregava das doenças atrar,és da assistência aos
pobres. No século XVIII, no entanto, a sacralização da pobreza será substituída por uma análise
econômica da ociosidade (ver: Loucura). Nesse deslocamento, as enfermidades aparecerão
como problema específico. Por outro lado, a formação dessa nova nosopoliÍlca inscreve-se
no processo mais geral, o que vemos a propósito da 'tiência da polícia ' (ver: Polícia). Através
dessa tecnologia política ligada à razão de Estado, a população converte-se erl um problema
político. Tradicionalmente, segundo Foucault, as competências do Estado eram a guerra e apaz,
ou seja, a manutenção da paz e da justiça; a elas foram acrescentadas, a partir do Medievo, a
manutenção da ordem ea organização da riqueza. No século XVIII, aparece urna nova função,
o acondicionamento da sociedade como meio de bem-estar fisico, de saúde e de longevidade.
"A nova nosopolítica inscreve a questâo específica da doença dos pobres no probiema geral
da saúde das populaçÕes, e ela se desloca do contexto estreito das ajudas de caridade à forma

MEDICALIZAçÂO (Medicalisation) 299


mais geral de uma'polícia médical com suas exigências e seus serviços" (DE3, l7). Desde essa
perspectiva, o grande problema colocado pelas sociedades modernas, para Foucault, não consiste
na acumulação de capital, mas na acumuiação de homens, ou seja, no problema da população. 2)
Essa nova nosografia do final do século XVIII caracteriza-se pela medicalização privilegiada das
crianças e das famílias, pela preeminência da higiene e pelo funcionamento da medicina como
instância de controle social. Por um lado, a família ou, melhor, o complexo famflia-filhos converte-se
na primeira instância da medicalização dos indivíduos. Por outro, a medicina como técnica geral
da saúde (não só como ciência das enfermidades e arte da cura) ocupa um lugar cada vez mais
importante nos mecanismos administrativos e de governo do Estado. Foucault desenvolve cada
um desses temas em "La politique de la santé au XVIII. siêcle" (DE3, 13-27).3) Em relação à
evolução da medicalização no século XX, Foucault considera como data simbólica para a análise
o ano de 1942. Trata-se do ano de elaboração, na Inglaterra, do plano Beveridge de organização
estatal de políticas da saúde. Aqui, o problema da saúde não se reduz à necessidade de manter a
força física nacional como capacidade de trabalho e de guerra. Agora o direito individual à saúde
converte-se em um problema de Estado. 4) Consequentemente, a moral novecentista da higiene
será substituída pela problemática do direito à saúde e à enfermidade. O direito de interromper
o trabalho torna-se mais importante que a obrigação de higiene. 5) A saúde ingressa no campo
da macroeconomia. A atenção aos problemas de saúde exige uma política de redistribuição de
renda. 6) A saúde converte-se em um verdadeiro objeto das lutas políticas. "Segundo a minha
opinião, para a história do corpo humano no mundo ocidental moderno, seria necessário selecionar
esses anos 1940-1950 como um período de referência que marca o nascimento desse novo direito
[o direito à saúde], essa nova moral, essa nova política e essa nova economia do corpo" (DE3,
42). Foucault aponta duas consequências desse processo. Em primeiro lugar, o risco médico, ou
seja, a relação entre os efeitos positivos e os negativos da medicina. Precedentemente, os efeitos
negativos da medicina concerniam ao indivíduo e, no fim as contas, à sua descendência; agora,
com a genética, o conjunto dos processos vitais tornou-se um campo de intervenção da medicina.
Nasce, desse modo, uma bio-história. Em segundo lugar, a medicalização indefinida: a medicina
impoe-se aos indivíduos como um ato de autoridade, o domínio de intervençáo da medicina já
não concerne apenas às enfermidades, mas à vida em geral. "Hoje, a medicina está dotada de um
poder autoritário com funções de normalização que vão mais além da existência das enfermidades
e dapetição do enfermo" (DE3, 50). Por outro lado, também dentro dessa extensão sem limites
do campo de intervençâo da medicina, a saúde converte-se em um bem de consumo. 'Assim, o
corpo humano entrou duas vezes no mercado: primeiro, pelo salário, quando o homem vendeu
(DE3, 54). Foucault aborda detalhadamente
sua força de trabalho; depois, mediante a saúde"
essas questões em: "Crise de la médicine ou crise de lãntimédicine?" (DE3, 40-5g). ver
também "La naissance de la médicine sociale" (D83,207 -228). Bio-História. como vimos,
o médico e o bióiogo já nãotrabalham ao nível do indivíduo e de sua descendência, mas ao nível
dos fenômenos globais da vida, ao nível da própria vida. Segundo Foucault, essa possibilidade de
intervenção abre o capítulo de uma bio-história. "Em nossos dias, descobre-se um fato novo: a
história do homem e a vida estão profundamente entrelaçadas. A história do homem não continua
simplesmente a vida, não se contenta simplesmente em reproduzi-la, mas a retoma, até certo
ponto, e pode exercer sobre seu processo um certo número de efeitos fundamentais" (DE3,48).

Poder psiquiátrico. Em Le Pouvoir Psychiatriclue, Foucault mostra os esforços que realizou


a psiquiatria para medicalizar sua prática. Yer Psiquiatria.

300 MEDTcAUzAçÃo (Médicatisation)


Médicalisation I9al: AN,36,85, 139, t49,171,2r7,236,238,250,294,295,298. DEI,630, 633,753. DE2, 135'

524. DE3, t5, 1.8,20-21,24,48 53,57 ,76,1 83, 1 88, 207-209, 221,223,227 ,235,323,373 375,380,492,513' 517 ,731 733'
736.D84,381,459,645,724,741.HSl,61,90,92,132,158,167,193.IDS,29,35,217.MMPS,86.NC,32,40 PP,176,
'r1'7 )7q

;]r MODERNIDADE (Modernite)

Podem-se distinguir cinco sentidos do termo "Modernidade" em Foucault. Os dois primeiros


concernem à Modernidade vista como um período histórico. Se levarmos em consideração
Histoire de la folie, Les mots et les choses ou Surveiller et punir, aModernidade como período
histórico começa no final do século XVIII e estende-se até nós (MC, 13, 15). De um ponto de
vista político, começa com a Revolução Francesa; de um ponto de vista filosófico, começa com
Kant. O período que vai do Renascimento até o final do século constitui a época clássica (ver:
Época clássica).Emllherméneutique du sujet,no entanto, a Modernidade começa com Des-
cartes; nesse caso, então, a Modernidade inclui o que nas obras precedentes é a época clássica
(HS, 19). Retomaremos mais adiante o significado de tal mudança. Outros dois \sentidos do
termo "Modernidade" têm aver com o trabalho histórico-filosóÍico de Foucault. Até a publica-
ção dos dois últimos volumes de Histoire
de lct sexualité (1984), os livros de Foucault tinham
como campo de trabalho a época clássica e a Modernid ade. Histoire de la folie, por exemplo,
ainda que comece com a história da loucura no Renascimento, está
principalmente dedicada
aos séculos xvII e XVIII. Les mots et les choses também
começa com o Renascimento, mas

setrata de uma descrição das epistemes clássica (séculos XVII e XVIII) e moderna (séculos
partir do final
XIX e XX). Surveiller et punir ic"tpa-se da história da tecnologia do castigo,
a
ponto de vista da episteme, a
do século XVIII. pois bem, em Les mots et les choses, desde o
à época da analítica
Modernidade é equivalente à época do homem, ao sonho antropológico,
não se situa
da finitude e das ciências humanas. "Porque o umbral de nossa Modernidade
antes, o dia em
no momento em que se quis aplicar ao homem os métodos objetivos, mas,
que se chamou homem" (MC' 329-330)'
que se constitulu o duplo empírico-transcendental
yer.. Trata-se, como vemos, de uma determinação epistêmica da Modernidade. A
Homem.
partir de Surveiller et punir e de La volonté de savoir, encontramos outra caracterizaçâo da
Modernidade, com base nas formas de exercício do poder. Aqui, Modernidade é equivalente
à

como disciplina sobre os


época da normalização, ou seja, à época de um poder que se exerce

lndivíduos e como biopolítica sobre as populaçÕes. A Modernidade é, definitivamente, a época


(SP,
do biopoder. "O iluminismo que descobriu a liberdade também inventou as disciplinas"
224). Yer: Biopoder, Norma. Ainda que falando muito estritamente, a Modernidade como
época do homem e a Modernidade como normalização correspondam às formas do saber
e às formas de exercício do poder nos séculos XIX e XX, no entanto, existe uma diferença
importante na datação histórica desses dois sentidos do termo "Modernidade".Lm Les mots
et les choses, a passagem da época clássica à Modernidade é pensada como ruptura, como
corte mais ou menos abrupto. O homem é uma invenção da Modernidade. Em Surveiller et
punir, no entanto, a formação da disciplina e da biopolítica remontam à época clássica' A
purrug.1n é mais da ordem da transformação do que da ruptura. Finalmente, o quinto sentido

MODERNIDADE (Modernité) 301


que podemos atribuir ao termo "Modernidade" não tem a ver nem com uma época nem com
uma caracterização, mas com uma atitude. Esse sentido aparece nos dois artigos escritos por
ocasião do bicentenário da célebre resposta de Kant à questão'que é o Iluminismo?" ("eu'est-
ce que les Lumiêres?'l D84,562-578 e DE4, 679-688). "Referindo-me ao texro de Kant, me
pergunto se não se pode considerar a Modernidade mais como uma atitude do que como um
período da história. Por atitude quero dizer um modo de relação a respeito da atualidade, uma
eleição voluntária que alguns fazem, enÍrm, uma maneira de pensar e de sentir, e também
uma maneira de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se
apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, o que os gregos chamavam um éthos"
(D84, 568). Yer Éthos. * Retomaremos a seguir a diferença entre os dois primeiros sentidos
que distinguimos: no primeiro, a Modernidade filosófica começava com Kant; no segundo,
com Descartes. Essa mudança tem a ver com a evolução da posição de Foucault a respeito
da questão do sujeito. Em Les mots et les choses, a problemática do sujeito é abordada
desde um ponto de vista epistêmico, isto é, das condições de possibilidade dos saberes que
chamamos, em termos gerais, ciências humanas. Foucault interessa-se, então, pela formação
e decomposição do homem como objeto e sujeito de conhecimento. Pois bem, por um lado,
particularmente a partir de Surveiller et punir (ainda que tal perspectiva de análise já se
encontre em Histoire de la folie), Foucault não só incorporará ao seu trabalho o estudo dos
dispositivos de poder, mas, mais precisamente, abordará a questão das relações entre as práticas
discursivas (os saberes) e as práticas nâo discursivas. As formas concretas e efetivas de exercício
do poder tornarão possíveis as formas do saber e estas, por sua vez, reforçarão e sustentarão
tais práticas. O sujeito-objeto, homem, já não é só uma determinada disposição no campo do
conhecimento, mas o produto do exercício das formas de poder e das formas de saber que
estão entrelaçadas com as primeiras. Para expressá-lo em outros termos, o sujeito converte-
se, agora, em urrra construção histórica das práticas em gerai: práticas discursivas e práticas
não discursivas. Ver: Subjetivaçao. Por outro lado, desde essa ótica e depois de La volonté
de savoir (1976), Foucault começa a ocupar-se das práticas de formação da subjetividade na
Antiguidade clássica e helenística. 'Ainda que a Auftldrungtenha constituído uma fase muito
importante de nossa história e do desenvolvimento da tecnologia política, creio que é necessário
remontar muito mais atrás, se se quer compreender por quais mecanismos encontramo-nos
prisioneiros de nossa própria história' (D84, 225). como expusemos no verbete Cuidado,
Foucault remonta à Antiguidade para descrever as práticas de subjetivaçâo, de formação da
subjetividade. Nelas, o acesso do sujeito à verdade implica uma série de técnicas e exercícios
muito ampla e variada. Dessa perspectiva, a Modernidade começa quando o aceso do sujeito à
verdade está determinado somente por exigências cognoscitivas: "Pode-se dizer que se entrou
na época moderna (quero dizer, a história da verdade entrou na época moderna) no dia em
que se admitiu que o que dá acesso à verdade, as condições sob as quais o sujeito pode ter
aceso à verclade, é o conhecimento e apenas o conhecimento. Parece-me que é aqui onde se
situa e adquire sentido o que chamei o 'momento cartesiano'; sem querer dizer que se trata
de Descartes, que ele foi o inventor, que ele foi o primeiro afazer isso" (HS, 19). Filosofia
moderna. "Imaginemos que a Berlinische Monatsschrift aínda existe em nossos dias e coloca
a seus leitores a pergunta que é a filosoÍra moderna?'Talvez, se pudesse responder com eco: é
aquela que tenta responder à questão colocada, há dois séculos, com tanta imprudência: que é

302 MoDERNTDADE (Modernite)


o Iluminismo?- (DE4, 562). "Haveria que levar a cabo a genealogia, náo tanto da noção de
Modernidade, mas da Modernidade como questão" (DE4, 681). Pós-Modernidade. "O que
se chama Pós-Modernidade? Não estou a par" (D84,446).
Modernité [78]:D81,501, 541, 546,581. DE2,124. DE3,400, 575,656. D84,44-46,90,408,446'447,491, s68

569.570 571,62&647,681,686,759. HF,455. HS,25. HSl, 188, 195. IDS, I54. MC, 13, l5-16, 233,255,315,328-329,

338. oD,76.

: r-. MONSTRO (Monstre)

Para Foucault, o monstro constitui uma dos ancestrais genealógicos do anormal. Ver:
Anormal.
Monstre [236]: AN, 51-62,66, 69-71,73,75,84-85, 87 96, 101'102, 122,128' 132, 150-151, l'55'258-259'275'289,
307-309,311.DE1,18r,227,355,767.DEz,96,220,689,813,822-825,827 828.D83,238,245,291-292,447,655'661'
698,769. DE4,88, 102. HF,49, 195,577,655. IDS, 119,226. MC, 169, 170. OD,37. RR, 117, 186. SP,92'94, 104,263.

::--. MONTAIGNE, Michel de (1s33 1se2)

EmHistoire de lafolie,Montaigne é citado como um representante da consciência crítica


da loucura própria do Renascimento, isto é, daquela experiência em que a loucura e arazáo
intercambiam suas faces e suas linguagens. Entre Montaigne e Descartes, situa-se o surgimento
da razao clássica ou, o acontecimento que lhe é contemporaneamente constitutivo, a exclusão
*
da loucura (HF, 63-70). A afirmação de Montaigne, segundo a qual há mais para fazer em
interpretar as interpretações que em interpretar as coisas, define a situação da linguagem no
*
Renascimento (MC, 55). Para Foucault, seria necessário ler a obra de Montaigne na Pers-
pectiva de uma estética e uma ética de si mesmo (HS, 240)'
HS, 240'
Michel de Montaigne [19]: DEr, 171, 426, 540. DE4 107, 410' 627 . HF, 53-56, 69-70, 140, 222, 661'
MC,55.

MONTAIGNE, Michel de 303


::é. NAZfSMO (Nazisme)

A reinscrição do conceito de raça no Estado moderno passa por uma transformação


biologicista. A raça ea raça biológica. Com essa noção foi possível, por um lado, estabelecer
uma ruptura, no continuuz biológico da espécie humana, entre quem deve e quem não
viver; por outro lado, foi possível levar a cabo uma seleção (a morte do outro melhora a
minha vida). Encontramo-nos aqui com a reelaboração, também em termos biológicos,
da ideia de guerra. Só que agora não se trata da vitória sobre o adversário, mas da elimi-
naçáo do perigo. O racismo foi utilizado, segundo a análise de Foucault, para justificar
o genocídio colonialista, a guerra, o manejo da criminalidade. Devemos ver o racismo,
então, como algo muito mais profundo que uma velha tradição ou uma nova ideologia;
ele está ancorado na tecnologia moderna do poder. "o nazismo foi, sem dúvida, a com-
binação mais ingênua e mais astuta - e astuta pelo seguinte - dos fantasmas do sangue
com os paroxismos de um poder disciplinar. Um ordenamento eugênico da sociedade,
com o que isso podia comportar de extensáo e de intensificação dos micropoderes, sob a
cobertura de uma estatização ilimitada, acompanhada por uma exaltação onírica de um
sangue superior, que implicava, ao mesmo tempo, o genocídio sistemático dos outros e
o risco de expor-se a si mesmo a um sacrifício total" (HSr, 197). "No final das contas,
o nazismo é, com efeito, o desenvolvimento até o paroxismo dos novos mecanismos de
poder que se haviam estabelecido a partir do século xvIII" (IDS,230-231). * Foucault
põe em discussão a noção de nazismo e de fascismo que surge das análises marxistas:
ditadura terrorista da fração mais reacionária da burguesia. Os fenômenos históricos do
nazismo e do fascismo náo teriam sido possíveis sem que uma parte importante da po-
pulação se encarregasse das funções de repressão e de controle. O fenômeno do nazismo
não pode ser interpretado, então, em termos, simplesmente, de ditadura (DE2, 65a).
Yer : Biop o der, Racismo.
Nazisme [47]: AN, 13,299. DE1,561, 582. DE2,650 656,658, 771,920-822. DE3, 169, 724,823.DE4,48-,19,64,
72-73,102 103,279. HSr, 197. IDS, 13,72,213,230_232.

304 NAZtsMo (Nazisme)


;3= NIETZSCHE, Friedrich (ts++-t goo)

Praticamente todo o pensamento de Foucault encontra-se desdobrado em análises históricas:


desde a sua primeira grande obra, Histoire de la folie, até a última, Histoire de la sexualité,
passando por essa história da Modernidade que é Les mots et les choses e por Surveiller et
punir,tmahistória do suplício e da disciplina. Mas as histórias de Foucault não são histórias no
sentido tradicional do termo, não são histórias nem das representaçoes nem dos comportamen-
tos. Às vezes Foucault inclusive eyita o termo "história" e fala, mais precisamente, de arqueolo-
gia e de genealogia: arqueologia dos saberes (das ciências humanas, particularmente), genea-
logia do poder (do poder que direciona os corpos, a disciplina; do poder que governa as
populações, o biopoder). O primeiro desses conceitos (arqueologia) já havia sido utilizado por
Kant e por Husserl para caracterizar certo tipo de história do conhecimento. O segundo (gene-
alogia) é de evidente raiz nietzschiana. * Em lhrchéologie du savoir não aparece nem sequer
uma vez o nome de Hegel; mas seria cegueira não se dar conta de que se está falando dele quan-
do Foucault marca as diferenças entre sua arqueologia e a história tradicional das ideias. A ar-
queologia quer, com efeito, libertar-se da Írlosofia da história e das questões que essa coloca: a
racionalidade e a teleologia do devir, a possibilidade de descobrir o sentido latente no passado
ou na totalidade inacabada do presente (AS, 20). A totalidade e à continuidade da filosofia da
história, Foucault opõe a descontinuidade e a dispersão. Para isso, forjará conceitos como enun-
ciado, prática discursiva, episteme, etc. Mas o alvo de Foucault náo é Hegel em estado puro,
mas esse hegelianismo francês que alguém denominou hégélisme (hegelianismo enlou-
ffilé
quecido), isto é, essa mescla bizarra de hegelianismo e fenomenologia que conhecemos, em
grande parte, sob a etiqueta de existencialismo. Não só, então, Hegel e Husserl, mas, antes, Sartre
e Merleau-Ponty. Por isso, Foucault distancia-se tanto da filosofia da história como da antropo-
logia. Elas são, na realidade, as duas caras de uma mesma moeda (AS, 24). "É nesse panorama
intelectual Ihegelianismo, fenomenologia, existencialismo] que amadureceram as minhas deci
sões: por um lado, não ser um historiador da filosofia como meus professores e, por outro,
buscar algo totalmente diferente do existencialismo: isso foi a leitura de Bataille e de Blanchot
e,

através deles, de Nietzsche" (DE4,48). Em les mots et les choses e também, ainda que menos,
em lhrchéologie du savoir,no entanto, a análise está por demais centrada na discursividade.
De fato, é difícil pensar a descontinuidade a partir apenas das práticas discursivas; por isso, ser-
the-á necessário integrar as práticas não discursivas. Será necessário, entáo, referir um ao outro,
o saber e o poder. Por essas dificuldades da arqueologia, Nietzsche e a genealogia se redimen-
sionam no pensamento de Foucault. A partir daqui, Nietzsche representa a referência filosófica
fundamental com respeito à maneira de conceber a relação entre a história e o sujeito, e entre a
história e o poder. "Em Nietzsche, encontra-se efetivamente um tipo de discurso qrue faz a aná-
lise histórica da formação do sujeito mesmo, a análise histórica do nascimento de certo tipo
de saber, sem admitir nunca a preexistência de um sujeito do conhecimento" (DF,Z,542).
"Nietzsche é quem colocou o poder como objetivo essencial do discurso, digamos, filosófico.
*
Enquanto que para Marx era a relação de produção' (D82,753). Pois bem, como acontece com
outros autores (Heidegger, por exemplo) essa relação fundamental nem sempre é explícita. "Com
respeito à influência efetiva que Nietzsche teve sobre mim, me seria muito difícil precisá-la,

NIETZSCHE, Friedrich 305


v
porque me dou conta do quanto foi profunda. Eu lhes diria apenas que fui ideologicamente
'historicista e hegeliano até ler Nietzsche" (DE1, 613). "Dei cursos sobre Nietzsche, mas escrevi
muito pouco sobre Nietzsche. A única homenagem um pouco ruidosa que lhe rendi foi intitular
um volume de Histoire de la sexualité, La volonté de savoir" (D84,444). Com efeito, o estilo
de Foucault, com respeito a seus autores fundamentais, não é da ordem da citação documentada,
mas da apropriação. * Em todo caso, a obra de Nietzsche indica, para Foucauit, o lugar do seu
pertencimento à filosofia. "Que o que eu faço tenha algo a ver com a filosofia é muito possível,
sobretudo na medida em que, pelo menos depois de Nietzsche, a filosofia tem por tarefa diag-
nosticar e não tratar mais de dizer uma verdade que possa valer para todos e para todos os
tempos. Eu trato de diagnosticar, de realizar um diagnóstico do presente: dizer o que nós somos
hoje e o que significa, hoje, dizer o que somos. Esse trabalho de escavação debalxo de nossos pés
caracteriza desde Nietzsche o pensamento contemporâneo. Nesse sentido, posso declarar-me
filósofo' (DEl, 606). Yer Diagnosticar. * Nessa relação nem sempre explícita de Foucault com
Nietzsche, as principais referências que encontramos em seus escritos são a propósito dos se-
guintes temas: Interpretação. A apresentação de Foucault no Colloque de Royaumont, em
julho de 1964, foi consagrada às técnicas de interpretação em Marx, Nietzsche e Freud (DEl,
564-579). Aqti, Foucault sublinha o caráter inacabado da interpretação moderna. "Em Nietzsche,
também, é evidente que a interpretação está sempre inacabada. Que é para ele a filosofia, senão
uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma Íilologia sem Írm que desdobra sempre mais
longe, uma filologia que nunca seria absolutamente fixa?" (DE1, 570). Yer: Interpretaçao.
Genealogia, história. "Nietzsche, la généalogie et l'histoire" (D82,136-156) é o único
texto de Foucault inteiramente dedicado a Nietzsche. Esse texto coloca três perguntas: 1) Como
diferenciar a genealogia da busca da origem? 2) Que relação existe entre a genealogia e a história?
e3) É possível uma genealogia da história? A primeira dessas perguntas poderia ser reformula-
da nesses termos; que significa "arché" na arqueologia? A resposta de Foucault passa por opor
o"Ursprun§' (origem) e, por outro, d e "Herkunft"
o uso que faz Nietzsche, por um lado, do term
(proveniência) e "Entstehung" (emergência). A busca da origem seria a busca da essência exata
das coisas em sua identidade imóvel. Assim, a história se converteria em metafísica. O genealo-
gista, por sua vez, conduz a história na direção oposta: para o externo e o acidental, para as di-
ferenças e as peripécias. Vê a essência das coisas como máscara.s, atrás de cada coisa há outra
ou outras coisas. O genealogista abandona, para dizê-lo de alguma maneira, toda reelaboração
filosófica do mito do pecado original. Não crê que as coisas, no princípio, na origem, encontravam-
se em sua perfeição (assim teriam saído das mãos do criador) e que a história começa com a
queda. O genealogista não busca a origem, mas, por um lado, a proveniência: dissocia as iden-
tidades (no caso de Foucault, principalmente a do sujeito), perscruta os acidentes, os cálculos,
os erros a partir dos quais se formou com o tempo uma identidade. É, segundo a expressão de
Foucault, a articulação do corpo com a história. A verdade aparece, então, como a afirmação de
um modo de vida. Por outro lado, o genealogista busca a emergência das identidades e das es-
sências, como aparecem a partir do jogo ao acaso das dominações. O olho, antes de aparecer
como consagrado à contemplação, esteve destinado à caça e à guerra; o castigo, à vingança, antes

que à readaptação. A questão da proveniência é, em termos nietzschianos, a questão da qualida-


de de um instinto, de uma força; a emergência, a questão da luta.'A Humanidade não progride
lentamente de combate em combate até a reciprocidade universal, onde as regras substituirão

306 NtETzscHE, Friedrich


para semPre a Suerra; ela instala cada uma dessas violências em um sistema de regras, e vai,
assim, de dominaçáo em dominação'(DE2, 145). conhecimento, vontade, instinto. o
curso dos anos i970-1971 no Collêge de France foi dedicado à "vontade de saber'l Mais precisa-
mente, nesse curso, Foucault contrapôs o modo aristotélico ao nodo nietzschiano das relações
entre conhecimento e vontade. Em Aristóteles, o desejo de conhecer supôe a relação prévia
entre o conhecimento, a verdade e o prazer. En.r Nietzsche, por sua vez, 'b conhecin'rento é uma
invenção"; por trás do conhecimento, há outra coisa: instintos, impulsos, desejos, vontade de
apropriação (D82,243). "Esse modelo de um conhecimento fundamentalmente interessado,
produzido como acontecimento do querer e determinando por falsiÍicação o efeito de verdade,
está, senr dúvida, o mais afàstado possivel dos postulados da metafísica clássica' (.D82,244).
Esse tema, a relação entre o conhecimento e a vontade, é retomado por Foucault, na primeira
corrferência na PontiÍicia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em l973,presente no conjun-
to das conferências intitulado "La vérité et les formes juridiqr-res" (DE2, 538-553). "o conhe-
cimento, então, foi inventado. Dizer que foi inventado é dizer que não tem origem. É dizer, de
maneira mais precisn, por paradoxal que seja, que o conhecimento não está de modo algur-n
inscrito na natureza humana. O conhecimento não constitui o n.rais antigo instinto do homem
ou, inversamente, não há no comportamento humano, no apetite humano, no instinto humano
algo assim como um germe do conhecimento. De fato, diz Nietzsche, o conhecimento tem uma
relação com os instintos, mas ele nâo pode estar presente neles e tampouco ser um instinto como
os outros. O conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do enfrentamento, do encontro,
da luta e do compromisso entre os instintos. Porque os instintos se encontram, se enfrentam e
chegam, finaln.rente, ao Írnal de suas batalhas, a um compromisso; por isso, se produz algo. Esse
algo é o conhecimento' (D82,544-545). * Foucault não só opõe Aristóteles a Nietzsche, a pro-
pósito da natureza do conhecimento; também opôe Nietzsche a Kant. Com efeito, à diferença
deste último, posto que o conhecimento é uma invenção, a relação do conhecimento com as
coisas é de total heterogeneidade. "Em termos kantianos mais rigorosos, haveria que dizer que
as condições da experiência e as condiçÕes do objeto da experiência são totalmente heterogê-
neas" (DE2, 546). Loucura. Como expusemos no verbete Loucura, para Foucault, na obra
de Nietzsche (como também nas de Hôlderiin, Nerval ou Artaud) a loucura faz sentir essa voz
que, depois do Renascimento, tinha sido calada pela razão clássica e, após, foi aprisionada na
linguagem da psiquiatria e da psicologia. "E quando, mediante raios e gritos, ela [a loucura]
reaparece em Nerval ou em Artaud, como em Nietzsche ou em Roussel, é a psicologia que se
cala e fica sem palavras diante dessa linguagem que empresta o sentido das suas a esse rompi-
mento trágico e a essa liberdade da qual apenas a existência dos 'psicólogos' sanciona, para o
homem contemporâneo, o pesado esquecimento'(MMPS, 104). Morte do homem. Em les
mots et les choses, a figura de Nietzsche aparece vinculada aos dois elementos fundamentais e
complementares da episteme moderna: o retorno do ser da linguagem ea morte do homem (ver:
Homem, Linguagem). "Em todo caso, foi Nietzsche quern queimou, para nós e antes mesmo
que tivéssemos nascido, as pronessas mescladas da dialética e da antropologia" (MC, 275).
"Compreende-se o poder de agitação que pode ter e que ainda tem para nós o pensamer.rto de
Nietzsche quando anunciou, sob a forma de um acontecimento eminente, da promessa-ameaça,
que o homem ern brer,e não existiria mais, e sim o super-homem; o que, em uma Írlosofia do
Retorno, queria dizer que o homem, já há algum tempo, havia desaparecido e não delxava de

NIETZSCHE, Friedrich 307


desaparecer e que o nosso pensamento moderno, nossa solicitude com ele, nosso humanismo
dormia serenamente sobre sua rugiente inexistência" (MC, 333). Poder. Foucault estudou de-
tidamente duas formas modernas do poder, a disciplina e o biopoder. Dos cursos no Collêge de
France, Les anormaux (Paris, 1999) trata da disciplina, analisa as práticas não discursivas (os
sistemas penais modernos, as instituições pedagógicas) que estão na base das ciências humanas;
particularmente da psiquiatria e da psicologia. Outro curso, "Il faut défendre Ia société" (Paris,
1997) ocupa-se, por suavez, da genealogia do biopoder. Foucault não se pergunta'que éo poder?'l
mas 'tomo funciona o poder?'l Para isso, ele poe em jogo o que denomina "a hipótese Nietzsche'l
à qual opõe a "hipótese Reichl Trata-se de pensar o poder em termos de dominação e de luta,
em vez de pensá-1o a partir do conceito de repressão. Esse curso é particularmente interessante
porque encontramos nele uma crítica da filosofia da história e, por isso mesmo, da dialética,
valendo-se da questão do poder (IDS, 50-53). * A crítica da hipótese repressiva (que também
ocupa grande parte de La volonté de savoir) implica uma ruptura na trilogia presente na inter-
venção de Foucault no Colloque de Royaumont, que se intitula "Nietzsche, Freud e Marx'l A
hipótese Nietzsche é apresentada, com efeito, como alternativa ao "freudo-marxismo I Yer Poder.
Diferenças. Poderíamos colocar-nos, à guisa de conclusão: finalmente, Foucault é um capítulo
da história do nietzschianismo? Com todo direito, grande parte do trabalho de Foucault pode
fazer parte dessa história. A influência de Nietzsche, como afirma o próprio Foucault, foi pro-
funda; tão profunda que é difícil delimitá-la com precisão. Mas seria um erro pensar que a rela-
ção entre Foucault e Nietzsche esgota-se no gênero das coincidências ou das continuidades. Em
todo caso, em primeiro lugar é necessário ter presente que o interesse de Foucault se centra nos
textos de Nietzsche dos anos 1880, isto é, onde aparece como problema a questão da história e
da verdade e o problema da vontade de verdade. Não ocorre o mesmo com a problemática da
vontade de potência (DE4, 4 44-445). Em segundo lugar, para nos expressarmos de algum modo,
seria necessário distinguir entre o trabalho genealógico de análise histórica e política - ou, no caso
de Foucault, de ético-política - que se segue a partir da aniilise histórica. Com respeito ao primeiro,
ainda que a metodologia de Foucault inscreva-se na linha da genealogia nietzschiana, os resultados
não são idênticos. E isso a propósito de alguns temas fundamentais, como, por exemplo, a situação
eo sentido do cristianismo. "Sim, creio que Nietzsche se equivocou atribuindo isso [que o ascetismo
cristão tenha nos convertido em criaturas capazes de prometer] ao cristianismo, por tudo o que nós
sabemos da evolução da moral pagã, do século IV a.C. ao século IV d.Cl' (DE4,406). Com respeito
à ético-política implícita nessas análises ou em consequência delas, a noção foucaultiana de consti-
tuição da subjetMdade como estética da existência diÍicilmente pode inscrever-se na Íilosofia niet-
zschiana do super-homem ou do eterno retorno. Basta pensar, por exemplo, na noção foucaultiana
de liberdade (ver: Liberdade). Mas, mais amplamente, ainda que Foucault sirva-se da "hipótese
Nietzsche I sua posição acerca do poder acaba se diferenciando da de Nietzsche. "O poder, no fundo,
é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do compromisso de um frente ao
outro que da ordem do governo [...] O modo de relação próprio do poder não há que buscá-io,
então, do lado da üolência e da luta nem do lado do contrato ou do nexo voluntário (que, no mádmo,
só podem ser instrumentos), mas do lado desse modo de ação singular, nem guerreiro nem jurídico,
que é o governd' (D84, 237).
Friedrich Nietxche [533]: AS,23-35. DE r, rcl,239,242,266 267 ,328,331-332, 420, 440, 456, 500, 502-503, 5 1 8,
522, 525, 542-543,545,547 ,549-s56,561,564,566-57 9, 599-600, 606, 6 t2-613,658,664,703,768,770,77 5,794,814,818.

308 NlETzscHE, Friedrich


D82,71,72,98 99,105,113,132,136-139,141,144,146,148-150,153 154,156,220 221,242-243,247,281,313,372,423,
434,542-552, 570, 619, 645,753,784,788,796. DE3, 3 l, 60, 78, 160, 28 1, 392, 432, 44]1, 47 l, 476, 490,538 539, 57 l, 573,
590-592, 598, 603 606, 608, 6 10 6 1 1, 6 I 5, 677 . DF,4, 43, 47 -50, 53-54, 57, lt3, 232, 393, 406, 433-434, 136'437 , 443-446'

448,457,529,562, s8r,58,1-586, 618,626,641,688, 691,702-704,731,766,775,780,814. HF, 28,47 48,143,204,209,


432-433, 438 . 441,455,472,632,656,661 -663. HS, 29,241,168. IDS, 17, 132,
31,1, 147. MC, 89,232,275,3 I l, 316-3 I 7,

333,339,34s,353, 394,396. MMPS,88, 104. NC, Xll. OD,23,74.PP,2s5.

-?=*" NORMA (Norme, Normalisation, Normalite)

Como expusemos nos verbetes Biopoder, Biopolítica, Disciplina e Poder, a análise fou-
caultiana do poder está centrada em seu funcionamento. Dessa perspectiva, Foucault susten-
ta que é necessário deixar de lado os conceitos tradicionais de "lei" ou "soberania" para
abordar a questão do poder. Assim como há que se abandonar a noção de repressão que ofe-
rece uma representação apenas negativa de seus mecanismos. O poder, para Foucault, na sua
forma moderna, se exerce cadayezmais em um domínio que não é o da lei, e sim o da norma
e, por outro lado, não simplesmente reprime uma individualidade ou uma natureza já dada,
mas, positivamente, a constitui, a forma. Foucault distingue duas modalidades fundamentais
de exercício do poder nas sociedades ocidentais e modernas, a disciplina e abiopolítica, ort
seja, o poder que tem por objetivo os indivíduos e o poder que se exerce sobre as populações.
Disciplina e biopolítica são os eixos que conformam o biopoder. Com efeito, o biopoder defi-
ne o verdadeiro objeto do poder moderno, isto é, a vida, biologicamente considerada. O
conceito de normalizaçáo refere-se a esse processo de regulação da vida dos indivíduos e das
populações. Nesse sentido, nossas sociedades são sociedades de normalização.'A sociedade
de normalização é uma sociedade onde se cr:uzaÍn, segundo uma articulação ortogonal, a
norma da disciplina e a norma da regulação. Dizer que o poder, no século XIX, tomou posses-
SãO da Vida, dizer aO menos, que o poder, no século XIX, se encarregou
da vicla é dizer que ele
à popula-
chegou a cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo
por um lado, e das tecnologias de regulação,
ção, pelo duplo jogo das tecnologias de disciplina,
* não são simplesmente sociedades de disci-
por outro" (IDS, 225). As sociedades modernas
plinarização, mas de normalização. Surveiller et punir pode dar lugar a uma interpretação
reducionista em termos de analisar apenas a disciplina. Mas é necessário completar a análise
comLa volonté de sayoir eos dos cursos do Collêge de France, "Il faut défendre la société"e
Les anormaux.r Neles, Foucault ocupa-se do outro eixo do biopoder, o poder ao nível da
população e da raça. Mostra, ademais, como se articulam disciplina e biopolítica (ver os res-
pectivos verbetes). * É necessário ressaltar que a descrição de Foucault refere-se a uma socie-
dade de normalização, não a uma sociedade normalizada. A normalização descreve o funcio-
namento e a finalidade do poder. A realização de tal objetivo, no entanto, ainda que tenha
alcançado uma extensão notável, nem por isso é hegemônica; deve enfrentar-se com os mo-
vimentos de luta e questionamento (ver: Luta). A filosofia, no sentido em que Foucault a

Podem ser acrescentados os cursos: O na.çcimento da Biopolítica e Segurança. terriório e popu/açâo, publicados depois da
edição argentinad o Vocaóulcírio e O goterno do.s Litos, ainda não publicado. (N.T.).

NORMA (Norme, Normalisation, Narmalite) 309


entende, cumpre uma função de antinormalização. Lei e norma. Foucault estabelece cinco
diferenças fundamentais entre a norma e a lei: 1)A norma refere os atos e as condutas dos
indivíduos a um domínio que é, ao mesmo tempo, um campo de comparação, de diferenciação
e de regra a seguir (amédia das condutas e dos comportamentos). A lei, por sua vez, refere
as condutas individuais avÍ7 corpus de códigos e de textos. 2) A norma diferencia os indiví-
duos em relação a esse domínio, considerado como um umbral, como uma média, como um
optimum que deve ser alcançado. A lei especifica os atos individuais desde o ponto de vista
dos códigos. 3) A norma mede em termos quantitativos e hierarquiza em termos de valor a
capacidade dos indivíduos. A lei, no entanto, qualiÍica os atos individuais como permitidos
ou proibidos. 4) A norma, a partir da val orizaçâo das condutas, impoe uma conformidade que
se deve alcançar; busca homogeneizar. A lei, a partir da separação entre o permitido e o
proibido, busca a condenação. 5) A norma, finalmente, traça a fronteira do que lhe é exterior
(a diferença com respeito a todas as diferenças), a anormalidade. A lei, por seu turno, não tem
exterior, as condutas são simplesmente aceitáveis ou condenáveis, mas sempre dentro da lei
(SP, 185). "Nós nos convertemos em uma sociedade essencialmente articulada sobre a norma.
O que implica outro sistema de vigilância, de controle. Uma visibilidade incessante, uma
classificação permanente dos indivíduos, uma hierarquização, uma qualificação, o estabele-
cimento de limites, uma exigência de diagnóstico. A norma converte-se no critério de divisão
dos indivíduos. Desde o momento em que é uma sociedade da norma a que está se constituin-
do, a medicina, posto que ela é a ciência por excelência do normal e do patológico, será a ci-
ência régia' (D83,75-76).'A norma não se define como uma lei natural, mas pelo papel de
exigência e de coerção que é capaz de exercer em relação aos domínios nos quais se aplica. A
norma é portadora, consequentemente, de uma pretensão de poder. A norma não é, sequer
ou simplesmente, um princípio de inteligibilidade; ela é um elemento a partir do qual deter-
nrinado exercÍcio de poder enÇontra-se fundado e iegitimado. Conceito polêmico, díziaCan-
guilhem. Talvez se pudesse dizer: político" (AN, 46). "Outra consequência desse desenvolvi-
mento do biopoder é a importância crescente atribuída ao jogo da norma a expensas do
sistema jurídico da lei [...] Eu não quero dizer que a lei desapareceu ou que as instituições de
justiça tendam a desaparecer; mas sim que a lei funciona cada vez mais como uma norma e
que a instituição judicial se integra mais e mais a ttm continuum de aparatos (médicos, ad-
ministrativos, etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras" (HSl, 189-190). Medicina,
psiquiatria, psicanálise. A sociedade de normalizaçâo coincide com a formação do Estado
governamentalizado (ver: Governo), isto é, com uma forma de exercício do poder que depen-
de estreitamente do saber ou, melhor, com aquela forma em que os mecanismos do poder e
do saber se sustentam e se reforçam mutuamente. Foucault insiste quanto à função de nor-
malização que desempenham os saberes: medicina, psiquiatria, psicanálise, psicologia. * Ocu-
pamo-nos do papel da medicina no verbete: Medicalizaçao. A sociedade de normalização é
uma sociedade fundamentalmente medicalizada. * "Tecnologia do instinto é o que foi o eu-
genismo desde os seus fundadores até Hitler. Do outro lado, vocês têm, frente ao eugenismo,
outra grande tecnologia dos instintos, o outro grande meio que foi proposto simultaneamen-
te, com uma sincronia notável, a outra grande tecnologia de correção e de normalização da
economia dos instintos que é a psicanálise. O eugenismo e a psicanálise são as duas grandes
tecnologias que foram armadas, no final do século XIX, para dar sustentação à psiquiatria no

3 10 NORMA lNorme, Normalisation. Normalite)


mundo dos instintos" (AN, 124). * Na nova psiquiatria - a psiquiatria que substitui a dos alie-
nistas, a psiquiatria dominada pela noção de automatismo -, encontramos um duplo jogo da
norma: a norma entendida como regra de conduta e a norma entendida corno regularidade
funcional. A primeira se opõe à desordem, à excentricidade, ao clesvio na ordem dos comporta-
mentos. A segunda, ao patológico, ao mau funcionamento do organismo. Por esse duplo jogo da
norma, a psiquiatria encontrará seu ponto de ancoragem na medicina orgânica através da neu-
rologia. O anorrnal na ordem das condutas será referido ao anormal na ordem do organismo
(AN, 149-150). Racismo.'A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade da copdenação à
morte em uma sociedade de normalização. Ali onde há uma sociedade de normalização, ali onde
há um poder que é, ao menos em toda sua superfície e em primeira instância, em primeira linha,
um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condiçâo para poder condenar alguém
à nrorte, para poder condenar à morte os outros" (IDS, 228). yer: Racisrno. sexualidade. A
importância da sexualidade, para Foucault, radica em que o sexo situa-se no ponto em que se
cruzam o elro das disciplinas e o eixo da biopolítica (HS1, 191-192). Ver: Sexualidade.Demo-
cracia, soberania. 'A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos, em princípio
igualitários, estava sustentada por esses mecanismos minuciosos, cotidianos e físicos, por toclos
esses sistemas de micropoder essencialmente desigualitários e assimétricos que constituem as

disciplinas. E se, de maneira formal, o regime representativo permite que direta ou indiretamen
te, co[1 ou sem revezamento, a vontade de todos forme a instância fundamentai dir soberania,
as disciplinas provêm, na base, a garantia da submissão das forças e dos corpos. As disciplinas
reaisecorporaisconstituíramosubsolodasliberdadesforn'raise jurídicas. [...] Olluminismo,
que descobriu as liberdades, também inventou as disciplinas" (5P,223-224). O poder se exerce
entre esses dois limites: o direito da soberania e a mecânica das disciplinas (IDS, 34). Ciências
hurnanas. Em Les tnots et les choses, o conceito de norma, junto ao de função, aparece como
um dos modelos constitutivos das ciências humanas; ver'. Homem.
Norme [ 182]: AN,43,46,147 -t5it,260, 264. AS, 248-2,19. DEl, 134, \51,147 ,452,453, 458, 463, 506, 696, 84 l. DE2,
l,9,163,224,323, -1.16,360,362,364 -166,.190,595,614, 67s,695 697,7-31,814. DE3,50,7.1 76, 188,288,29r,.173-374,
378, 380, 407, 436,442,447 ,495,523,697 .D8.4,95,199,377,379-38t,757,77t,775.HF,124,141,237.406, 561, 565, 607.
HSr, 10. s0, 53, 72, 189- 190, 195- 196. HS2, 53. IDS, 21, 34, 53, 71, 156, 2r3, 225. MC,369,37 | 374, .186,387. MMPE, 13,
7i. MMPS, 13,73. NC,36,53, 123. OD,62. pp, 17, -56, 58,206 208,234. Sp, 185-186, 195,221,228,2.57, -106, il0.
Nonnalisation II43l: AN, 3,24,39,40, 45-46, 48, 124, I 51, 239.249,253, .l I 1. DE2, 3l 6, 362, 433,154, 456,611,
622,640-641,644,663,724,758 759,793,828. DE3, 76, 92, t46, t47,150, I tr8- 189, 213.214, 273,358,373-374, 376,42t.
DE4, 10, 16, 60,95, t99, 204, 3i9, 345, 384, 546, 57ó, 610, 643, 781-782. HSl, 12, 92, I 18, 138. HS2, 18. IDS, 3,1 36, -5j,
160-162, 166,217,223,225,228. MC,389. Pp,57,59,87. Sp, 25,t86,228,251,303,31.3-315.
Normalité[42]:AN,241,265.D81,358,634.DE2,418,433,454,469,68-5-686,781.D83,50,375-376,670.DE4,
30, 82, i80, i1 l, 3.12,379, 581, 772. HSl, 155,20,1. HS2,278. MÀípE, t6. IIMpS, 16. NC, 35. pp, 116,282. Sp, 25,
186.229,303,.111.

: r;. NOSOPOLíTICA (Noso-potitique)

Yer: Medicaliznçõo.
Noso-politique [8J: DE3, 14-15, I 7-18

NOSOPOLíTICA lNaso-politique) 311


:3ê oBEDIÊNCIA (Obé dience)

Foucault presta particularmente atenção à função da obediência na formação da espiritua-


lidade cenobítica, isto é, no poder pastoral. À diferença dos gregos, para os quais a obediência
era um meio para alcançar um determinado Írm, na espiritualidade cenobítica, a obediência
é uma virtude, converte-se em um fim em si mesmo (D84, 145-146). "O cristianismo grego
chamou apátheia esse estado de obediência. E a evolução do sentido desse termo é significa-
tiva. Na filosoÍia grega, apátheia designa o império que o indivíduo exerce sobre suas paixÕes
graças ao exercício da razão. No pensamento cristão, o páthos é a vontade exercida sobre si e

para si. A apátheia nos livra dessa recalcitrância' (D84, 146).


Obédience [14]: DEr, 387-188, 407. DEz,149. DE4, 65, 145-147. }{F, 472. NC, 166. PP, 1 I 6. RR, 53.

:== ONTOLOGIA DO PRESENTE, ONTOLOGIA HISTÓRICA


(Ontologie du present, Ontologie historique)

Foucault concebe seu trabalho filosófico como uma ontologia do presente ou uma ontolo-
gia histórica de nós mesmos. Ela tem três domínios de trabalho: a ontologia histórica de nós
mesmos em nossas relações com a verdade (que nos permitem constituir-nos em sujeitos de
conhecimento), a ontologia histórica de nós mesmos em nossas relações a respeito do campo
do poder (que nos constituem como sujeitos capazes de atuar sobre os outros) e a ontologia
histórica de nós mesmos em relação à moral (que nos constitui em sujeitos éticos) (DE4, 393,
618). Cada um desses domínios, como vemos, corresponde a um dos períodos que costumam
ser distinguidos no trabalho de Foucault: arqueológico, genealógico e ético. + O sentido que se
deve atribuir a tais expressões ('bntologia histórica I 'bntologia do presente") é o que Foucault
dá a seu trabalho filosóÍjco: uma atividade de diagnóstico e tm éthos,a análise da constituição
histórica de nossa subjetividade.Yer: Diagnosticar, Ethos. * Além da expressão "ontologia
histórical Foucault utiliza as expressÕes 'bntologia do presente'l que aparece apenas uma vez

3),2 oBEDtÊNctA (obedience\


(D84,637),'bntologia da atualidade" (D84,688) e'bntologia crítica de nós mesmos'(DE4,
575). Esta última, como trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos enquanto sujeitos livres,
faz referência à prova histórico-prática dos limites que podemos ultrapassar.
Ontologie critique [2] : DE4, 57 5, 577.

Ontologie de lhctualité [1] : DE4, 688.


Ontologie du présent [1]:DF4,687 .

Ontologie historique [ 10]: DE4,393,57 4-57 6, 618.

ONTOLOGTADOPRESENTE,ONTOTOGIAHISTÓRICA(Ontologteduprésent,Ontologiehistonque) 3I3
:4*. PANÓPTICO (Pano ptique, panoptisme)

"O panoptismo é o princípio geral de uma nova 'anatomia política cujo objeto e finalidade
nãosãoasrelaçõesdesoberania,masasrelaçõesdedisciplina"(SP,210). Surveilleretpunir
tem como subtítulo 'b nascimento da prisão'l A quarta e última parte da obra, de fato, está
dedicada à formação do sistema carcerário ocidental. Mas o objetivo geral da obra não é
analisar a prisão em si mesma, mas os mecanismos da disciplina, isto é, a tecnologia política
ou anátomo-polÍtica dos corpos. Neste sentido, o nascimento da prisão deve ser situado no
contexto do panoptismo geral da sociedade moderna. Foucault começa a exposição opondo
duas técnicas de castigo, o suplício e a disciplina. Depois se ocupa extensamente do conceito
de disciplina, ao qual dedica a terceira parte da obra; o último capítulo dessa parte está con-
sagrado ao panoptismo. * "O panoptismo foi uma invenção tecnológica na ordem do poder,
como a máquina a vapor na ordem da produção" (DE3, 35). Para descrever essa invenção da
tecnologia do poder, Foucault se serve da oposição entre o que podemos chamar o "modelo
lepra'e o "modelo peste'l O modelo lepra representa um modelo de exclusão; o modelo peste,
por sua vez, o modelo distribuição dos indivíduos em um espaço quadriculado e da formação
de um sistema de coleta de dados (ver: Lepra). Esses dois modelos, ainda que aparentemente
opostos, não são incompatíveis. "Lentamente se os vê aproximarem-se. O próprio do século
XIX é ter aplicado ao espaço da exclusão, do qual o leproso era o habitante simbólico (e os
mendigos, os vagabundos, os loucos, os violentos formavam a população real), a técnica de
poder própria da quadriculação disciplinar. Tratar os 'leprosos' como'empesteadosi projetar
as repartições finas da disciplina no espaço confuso da internação, trabalhá-lo com os méto-
dos de repartição analítica do poder, individualizar os excluídos, mas servir-se dos procedi-
mentos de individualizaçâoparamarcar as exclusões. Isto é o que foi levado a cabo regularmente
pelo poder disciplinar desde o início do século XIX 1..) O Panopticon de Bentham é a figura
arquitetônico desta composição'(SP, 200-201). * Esse modelo arquitetônico pode ser resu-
mido como se segue: uma construção periférica, em forma de anel, e uma torre no centro do
anel. O edifício periférico está dividido em celas, cada uma delas possui duas janelas, uma
para o exterior, por onde entra a luz, e outra que dá para a torre central. Esta, por sua vez,

3I4 PANóPTlCo (Panoptique, panoptisme)


possui janelas que permitem olhar através das janelas interiores das celas. Basta situar o vigi-
lante na torre central para assegurar a vigilância clos que se encontram nas celas. O jogo cla
luminosidacle assegura que esse vigilante possa ver sem ser l,isto. O funcionamento do panóp-
tico repousa essencialmente sobre essa distribuição da visibilidade no espaço. "O panóptico é
uma máquina de dissociar a dupla ver-ser visto: no anel periférico se é totalmente visto, sen.t
jamais ver; da torre central, se vê tudo, sem ser jamais visto" (SP, 203). Deste modo, cada
indivíduo situado en1 sua cela, sem contacto com os que se encontram nas outras celirs, con-
verte-se em objeto de informação sem ser nunca sujeito de comunicação. No limite, posto que
desde as celas é impossível ver se alguém, na torre central, está efetivamente vigiando, o pa-
nóptico poderia funcionar sem a existência de alguém que vigie. Por isso, o efeito maior do
panóptico é induzir nos detentos um estado consciente e permanente de visibilidade. A vigi-
lância se torna permanente em seus efeitos, ainda que seja descontínua em seu exercício (SP,
202). Por esse mecanismo, que torna o poder visível, mas inverificável, o poder se automatiza
e, ao mesmo tempo, desindividualiza-se. Assim, "uma sujeição real nasce mecanicamente de
uma relação fictícia" (SP, 204). * A Antiguidade havia sido uma sociedade do espetáculo;
tratava-se de tornar visível à multidão um número pequeno de objetos. A Modernidade colo-
ca o problema inverso: procurar que um nírmero pequeno possa ver a rnultidão (SP,218).
"Somos certamente menos gregos do que cremos" (SP,219). * À diferença do "modelo peste'l
o panóptico representa um modelo generalizávei (de generalização da disciplina). "Ele [o
panóptico] é polivalente: serve para con'igir os prisioneiros, mas também para curar os en-
fermos, para instruir os escolares, para cuidar dos loucos, para vigiar os operários, para fazer
com que trabalhem os mendigos e os ociosos" (SP, 207). "O sonho de Bentham, o Panopticon,
onde um único indivíduo poderia vigiar todo o mundo é, no fundo, creio, o sonho ou, melhor,
um dos sonhos da burguesia (porque ela sonhou rnuito). Este sonho, ela realizou. Ela não o
realizor, talvez, sob a lbrma arquitetônica que Bentham propunha, mas é necessário recordar
o que Bentham dizia, a propósito do Panopticon: é
forma de arquitetura, mas sobretudo
LLma

é uma forma de governo, é uma maneira, para o espírito, de exercer o poder sobre o espírito"
*
(D82,437). No século XIX, assistimos a uma multiplicação das instituições disciplinares
segundo o modelo benthamiano. Esse processo, no entanto, é o aspecto mais visível de outro,
mais profundo, de reestruturação das disciplinas que Foucault resume em três pontos. l.) Á
inversao funcionql das disciplinas: anteriormente, o objetivo das disciplinas era neutrali-
zar os perigosi agora, desempenharn papel positivo, o de acrescentar a utilidade possível
dos indivíduos (SP,211). 2) A dispersao dos meconismos disciplinares. Multiplicam-se
as instituiçoes panópticas, mas os mecanismos disciplinares tendem a "clesinstitucionalizar-
se'l Os procedimentos disciplinares se disseminam na sociedade mediante centros de
controle dispersos (SP, 213-214). j) A estatização dos mecanismos disciplinares; forma-
ção de uma polícia centralizada, instrumentos de vigilância permanente e exaustiva (SP,
214-217). "Pode-se, pois falar, em geral, da formação de uma sociedade disciplinar neste
movimento que vai das disciplinas fechadas, urna espécie de 'quarentena social, até os
mecanismos generalizáveis do 'panoptismo"' (SP, 217). * Por sua vez, a lormação da socie-
dade disciplinar, a sociedade panóptica se inscreve no narco de determinados processos de
amplo alcance. Em primeiro lugar, as tecnicas para ordenar multiplicidades hurnanas (tec-
nicas que perseguem o máximo de intensidade com o menor custo econômico e político)

PANÓPTtco (Panaptigue, panoptisme) 3 t 5


(5P,222). Se o desbloqueio econômico do Ocidente começou com a acumulação do capital,
o desbloqueio político, com a acumulação de homens. Em segundo lugar, as técnicas disci-
a prolongação das estruturas jurídico-políticas da sociedade, mas tampou-
plinares não são
co completamente independentes (SP, 223). Daí o paradoxo Beccaria/Bentham. Beccaria
subordina a possibilidade de castigar à existência de uma iei explícita, à constatação da
infração dessa lei
e a uma punição que teria por funçào reparar e prevenir o dano que se faz
Segundo Foucault, essa teoria legalista se opõe ao panoptismo. Com efeito, no
à sociedade.
panoptismo se exerce uma vigilância sobre os indivíduos que não concerne tanto ao que se
faz, mas ao que se é e ao que se pode fazer. O panoptismo, em poucas palavras, não consi-
dera o indivíduo desde um ponto de vista jurídico (DE2, 606). Em terceiro lugar, o acrés-
cimo do poder e a formação do saber se reforçam regularmente segundo um processo cir-
cular (SP, 225). O panoptismo é uma forma de poder que não repousa sobre a investigação
como metodologia de formação do saber, mas sobre o exame (D82,594).Yer: Exome,
Investigaçao.* "Panopticum quer dizer duas coisas: quer dizer que tudo é r.isto o tempo
todo, mas também diz que todo o poder que se exerce nunca é mais que um efeito ótico. O
poder não tem materialidade; não tem necessidade de toda a estrutura, ao mesmo tempo,
simbólica e real do poder soberano. Ele não tem necessidade de ter o cetro na mão ou de
brandir a espada para castigar. Ele não tem necessidade de intervir como o raio ao modo do
soberano. Este poder é, antes de tudo, da ordem do sol, da luz perpétua. Ele é a iluminação
não material que atinge indiferentemente todas as pessoas sobre as quais se exerce" (PP, 79).
Esse poder imaterial que se exerce continuamente é também um mecanismo perpétuo da
formação do saber (anotação, transcrição do comportamento individual). "O primeiro efeito
desta relação de poder é, pois, a constituição deste saber permanente do indivíduo; do indi-
víduo confinado em um espaço e seguido por um olhar virtualmente contínuo, que define a
curva temporal <le sua evolução, de sua cura, da aquisição de seu saber, de seu arrependimen-
to, etcl' (PP, 79).
Panoptique[97]:DF,2,437.594-595,606,608,611,729.DE3,34,190191,195-197,199202,204207,466,473,
576,626,628,630. DE4, 18,28. pp,54, 6l-62,77,79-8t,92-93,10-t 104, r08. Sp,202-204, 206 210,2t8_219,223,252_
254, 267, 269, 276, 308, 31 I 312.

Panoptisme U7l:D82,437 438,466,469,594,606 609,621. D83,3,1 35. PP, 57,81,85, 104. SP, 19i,208,210-
211,217,219,221 226.

:1:,':. PARRESÍA

A parresía constitui para Foucault uma das técnicas fundamentais das práticas de si mesmo
na Antiguidade. No vocabulário do cuidado d,e st,"parresía" é um termo técnico. Em primeiro
lugar, na literatura epicúrea, expressa uma qualidade do fisiólogo, o médico conhecedor da
natureza, que define a relação entre o médico e o paciente. Falar com parresía, isto é, com
liberdade de palavra, consiste em dizer ao enfermo as verdades da natureza que podem mudar
o modo de ser do sujeito doente (ÍI5,231-232). Em segundo lugar, no contexto mais amplo
da relação mestre-discíprio, a parresía define a atitude do mestre que corresponde ao silêncio
do discípulo. Neste marco, aparresía se refere tanto à atitude moral, ao éthos, do mestre, do

3I6 PARRESíA

í
diretor de consciência, quanto à técnica necessária para transmitir os discursos verdadeiros.
Por isso, a Parresía tem dois inimigos, um moral e outro técnico: a adulação e a retórica. A
questão da adulação foi um tema importante na literatura helenística do cuidado de si. Plu-
tarco e Sêneca, por exemplo, ocuparam-se extensamente dessa questáo. No que concerne à
oposiçáo entre adulação e parresia, para compreendê-la, é necessário começar pela relação
de oposição e complementaridade entre adulação e cólera. A cólera como vício descreve o
comportamento arrebatado de quern se encontra, em reiação ao outro, em Llma situação de
superioridade: o senhor da casa, o pai, o mestre. O comportamento arrebatado representa um
abuso no exercício do poder. Pois bem, a adulaçâo é, precisamente, o comportamento por parte
de quem se encontra na posição inferior, para compensar esse abuso do poder, ou melhor, para
tttllizá-lo segundo os próprios interesses e Írns. Deste rnodo, quetn está na posição inferior,
mediante o discurso, fazend,o crer ao superior que é mais capaz, mais rico ou mais belo do que
é em realidade, obtérn deste favores e prêmios. Ao mesmo tempo, quem é adulado se torna
dependente do discurso do adulador. Procedendo desse modo, impede-se que queÍn exerce
a autoridade estabeleça consigo mesmo uma relação verdadeira e adequada. 'A conclusáo é
que a parresía (o falar fianco, a libertas) é exatamente a antiadulaçâo. E a antiadulação no

sentido em que a parresía é, com efeito, alguém que fala e làla a outro, mas tàla ao outro
de tal maneira que este outro possa, à diferença do que ocorre com a aduiação, constitulr
uma relação com ele mesmo que seja autônorna, independente, plena e satisfatória" (HS,
362). . Com relação à retórica, Foucault marca três grandes diferenças. Prirneiro, a retórica
nã0 tem por linalidade estabelecer a verdade, mas persuadir. Em certo sentido, é un1â arte
capaz de mentir. Na parresía, ao contrário, trata-se apenas da transmissão da verdade. Em
segundo lugar, a retórica é uma arte organizadasegundo procedimentos regrados. Quanto à
parresía, alguns autores sustentam que não é uma arte (Sêneca), e outros, o contrário (Filo-

derno de Gáclara). Em todo caso, as regras da parresía sáo diÍêrentes das regras cla retórica;
trata-se, antes, de regras de prudência, cle habilidade para saber como e, sobretudo, quando
falar para que o discípulo receba o discurso verdadeiro na melhor ocasião (HS, 367). Em
terceiro lugar, a finalidade da retórica, através da influência que se possa exercer mediante
a palavra, é dirigir as discussões da assembleia, conduzir o povo ou conduzir um exército.
A diferença da retórica, o discurso da parresía tem por finalidade que aquele a quem está
dirigido estabeleça consigo mesmo uma relação plena e soberana (HS, 368 369). * Para
descrever positivamente a parresía, Foucault se apoia em três textos: o Sobre a parresía
de Filodemo de Gádara, a Carta 75 de Sêneca a Lucílio, o Tratado das paixões de Galeno.
Filodemo apresenta a porresía como uma arte conjetural (por oposição ao metodo) acerca
dar ocasião propícia (kairós) para dirigir-se ao discípulo (HS, 371). Neste sentido, a arte
do filósofo é semelhante à arte do nal,egante e do rnedico. O texto de Filodemo (fragmen-
to 25) acrescenta, ademais, um elernento no\ro com relação ao resto da literatura sobre a
questão. Trata-se da porresía como prática nas relações entre discípulos (HS, 372). "8 é
efetivamente isto, segundo certo número de textos, por outro lado extremadamente alusivos
e esquemáticos, o que se encontra nos grupos epicúreos, ou seja, a obrigaçào, parü os que
são alunos, de reunirem-se em grupo diante do kathegotimenos e, então, tàlar: para dizer
o que pensam, para dizer o que têm no coração, para dizer as faltas que cometeram, as
debilidades das quais se sentem responsáveis ou às que ainda se sentent expostos. E, deste

PARRESiA 3I7
modo, encontra-se, por primeira vez parece, de maneira muito explícita dentro desta prática
de si da Antiguidade greco-romana, prática da confissão" (HS, 373). * A diferença da obra
a

de Filodemo, no texto de Galeno não encontramos uma teoria da parreslrz, mas, antes, uma
série de indicações. Em primeiro lugar, Galeno observa que, assim como o médico não pode
curar sem o conhecimento da doença, tampouco é possível curar-se dos erros e das paixões
sem saber quais são. Pois bem, neste caso, posto que somos frequentemente cegos a respeito
de nossos erros e paixões, necessita-se do juízo de outra pessoa. Na linguagem da cultura do
cuidado de si, necessita-se de um diretor de vida, de um guia. Galeno enumera as condições
que esse deve possuir: que fale com parresía, que seja uma pessoa de certa idade, que seja o
mais desconhecido possível. Neste último ponto, Galeno se distancia da tradição platônica
*
em que a direção da alma se âpoiava na relação amorosa (HS, 382). A respeito de Sêneca,
Foucault leva em consideração, ademais da Carta 75 aLucílio, as cartas 29, 38 e 40. Nelas,
Sêneca marca as diferenças entre o discurso retórico eaparresía. Ainda que um discurso
franco possa ser formulado de maneira florida e eloquente, seu objetivo é outro. E, a pro-
pósito disso, Sêneca insiste na relação entre esse discurso e quem o recebe. Não se trata de
retê-lo na memória, com a recordação de sua beleza, mas de conservá-lo de tal modo que
sirva como conduta de vida, que seja possível torná-lo vivo quando se apresente a situação
adequada. Os textos de Sêneca retomam, ademais, as metáforas clássicas do médico e do
navegante. * "Aparresía (alibertas, o falar franco) é, pois, esta forma essencial - e deste
modo resumiria o que queria dizer-lhes sobre a parresía - da palavra do diretor: palavra
livre, independente das regras, livre dos procedimentos da retórica, porque ela deve, por
um iado, certamente, adaptar-se à situação, à ocasião, às particularidades do auditor; mas,
sobretudo e fundamentalmente, é uma palavra que, do lado de quem a pronuncia, equivale
a um compromisso, equivale a um nexo, constitui um determinado pacto entre o sujeito da
enunciação e o sujeito da conduta. O sujeito que fala se compromete. No momento mesmo
em que diz: 'digo a verdadel se compromete afazer o que diz e a ser sujeito de uma conduta
que é uma conduta obediente, ponto por ponto, à verdade que formula" (HS, 388-389).
* Os latinos traduziram parresíapor libertas. Nas línguas românicas, foi traduzida por
"falar francamente" (HS, 248, 356).
Parrhêsia [139]: HS, 132, 152, 158, 163'164,220,231 232,338,348-351,355-357, 362-374,378-379,381-382,384,
386 389,393,397.

Parrhàsie [2]: HS,374.


Parrhesia [ 1 ]: DE4, 7 34.

:+:. PASCAL, BIaise (1623 1662)

Foucault considera a obra de Pascal como um testemunho da sobrevivência, durante a

época clássica, do grande tema da loucura da Cruz. Com efeito, esse tema, frequente no Re-
nascimento, começa a desaparecer a partir da separação clássica entre razão e desrazão (HS,
204). Ver: Loucura.
Blaise Pascal [22J: DEl, 1s9,358,550,813-815. DE2,479. D84,410. HF,56, 195,204. HS,296,433. PP, 139.

318 PAscAL, Blaise


:;: PEDAGOGIA (Pedagogie)

Doença mental. "Toda a pedagogia contemporânea, em seu objetivo irrepreensível de


preservar a criança dos conflitos adultos, acentua a distância que separa, para o homem,
sua vida de criança de sua vida de homem feito. O que significa que, para poupar a criança
dos conflitos, eia a expoe a um conflito maior: a contradição entre sua vida de criança e sua
vida real. Se se acrescenta que, nas instituições pedagógicas, uma sociedade não projeta
diretamente sua realidade, com seus conflitos e contradições, mas que se reflete indireta-
mente através dos mitos que a desculpam, justiÍicam-na e a idealizam em uma coerência
quirnérica; se se acrescenta que em uma pedagogia uma sociedade sonha sua época de ouro
(sonhem aquelas de Platão, de Rousseau, a instituição republicana de Durkheim, o natura-
lismo pedagógico da República de Weimar), compreende-se que as Íixaçôes ou regressÕes
patológicas não são possíveis a não ser em uma determinada cultura; que elas se rnultiplicam
na medida em que as formas sociais não permitem liquidar o passado e assimilá-lo ao con-
teúdo atual da experiência. As neuroses de regressão náo manifestam a natureza neurótica
da infância, antes elas denunciam o caráter arcaico das instituições pedagógicas" (MMPE,
84-85). Yer Loucura. Disciplina. "E assim como o procedimento hospitalar permitiu o
desbloqueio epistemológico da medicina, a época de ouro 'examinatória'marcou o começo
de uma peclagogia que funciona como ciência" (SP, 189). O exame constitui, para Foucault,
um dos componentes essenciais das disciplinas, nele se combina o olhar hierárquico e a
qualificação dos indivíduos. Segundo a análise de Surveiller et punir, a formação das
disciplinas tornou possível a formação dos saberes acerca do homem, como a pedagogia.
Yer Disciplintl, Exrune. "Da mesma maneira [que a psiquiatria], a pedagogia se formou
a partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações observadas e

extraídas de seu comportamento para converter-se em seguida nas leis de funcionamento


das instituiçoes e das formas de poder exercidas sobre a criança' (D82, 620). Confissão,
sexualidade. Na formação do dispositivo de sexualidade, Foucault concede uma impor-
tância decisiva à evolução da conÍissão (ver: Confissão). No final do século XVIII, o ritual
da confissão emigra de seu contexto religioso para a pedagogia, para as reiações entre pais
*
e filhos, para as relaçÕes familiares em geral, para a psiquiatria (HS1,91). Através da
pedagogia, da medicina e da economia, o sexo se converteu em uma questão de Estado (SP,
154). Psicagogia. Em IiHermenéutique du sujet, ou seja, no marco da cultura do cuidado
de si mesmo, Foucault distingue entre pedagogia e psicagogia. Aqui, Foucault entende por
"pedagogia" a transmissão c1e uma verdade que tem por função dotar o sujeito de atitudes,
capacidades, saberes; e por "psicagogia' a transmissão de uma verdade que tem por função
modificar o modo de ser do sujeito, não simplesrnente dotá-lo das capacidades que não
possui. "Na medida em que é do lado do mestre, do conselheiro, do guia que recai o essen-
cial das obrigaçÕes de verdade, creio que se pode dizer que a relação de psicagogia está, na
Antiguidade, muito próxima, ou relativamente próxima, da relação de pedagogia [ ..] Ao
contrário, me parece que o cristianismo, a partir de determinado núrnero de mutaçoes muito
importantes - entre as quais, por suposto, esta: a verdade não provêm de quem guia a alma,
mas a verdade está dada de outro modo (Revelação, Texto, Livro, etc.) -, as coisas vão mudar

PEDAGOGIA (Pedagogie) 319


consideravelmente. E na psicagogia de tipo cristão se verá que, se é certo que quem guia
a consciência deve obedecer a certo número de regras, tem certos deveres e obrigações, o
esforço fundamental, o esforço essencial de verdade e do dizer-verdadeiro'vai recair sobre
aquele cuja alma deve ser guiada' (HS, 390).
Pédagogie [142]: AS,60,71. DEl, 121,140,146,444,580,681,734.DLz81,267,43't,620,628,814. DE3, 149,
230,396,540,636,641,817 . D84,214,216,218,355,357, 494,502,507 ,548,791-792,796-7 97. HF, I 0, 5 1, t54,200,41,6,
600.HS,43-45,64,7t,73-75,84,t21,t64,197-198,237,250,378,390,396. HSl,45-46,56,58,78,82,84_85,91, I45,
153-154. HS2, 22, 172. tDS, I l0-l I L MMPE, 84-85. MMPS, 96. NC, 63, 68,72,76,111. OD, 19. Sp, 124, 141_143,
161, 163- 164, 187, 189, 227.

:4€. PINEL, Philippe (1745-1826)

Sobre a significação do gesto "liberador" de Pinel e a formação do asilo moderno, ver:


Loucura.
Philippe Pinel [365]: AN,49,29 1, 302. AS, 46, 5s ,189,244. DEt,164,269-270,417,7 11. DE2, I 10, 130, I 34,
283.DE3,333,449,480481,492,497,520,633.DE4,598.HF,70-71,73,111,114,t20-121,146,160,175-176,189,
199 200, 224, 254, 259, 262, 332, 344,360, 388, 401, 416, 426 427, 46t, 466, 473, 482, 492-493, 495-496, 524-52s,
53t-532,534,553,570,573-575,577,581 586,592598,609-61t,613-615,617-629,631-633,635,637,641-643,647,
652-6s3,65s,685,687-688. MC,242. MMPE,79, 111. MMPS,84-86, l0s. NC,2,74,94-9s, l0l, 110-114, 128,
132-133,136,149,t56-157,163, 180-182, 185 188, t93,t94,196-197,205,2t1. PP,4-5,8, 10-11, 15, 17-19,21-22,
25,27 28,30-31,37-38,42,96,\06,110-111,119-121, l29,l3l 132,137,139-141,146,\67-168,172,180-182,189,
19 1, 19s- 10s, 202, 209, 223 -224, 28 t, 285, 291, 295 -296, 3 10, 330.

PITAGORISMO (Pythago risme)


=+=,

Duas práticas de si mesmo que provêm do pitagorismo tiveram um desenvolvimento


importante na tradição do cuidado de si mesmo: a purificação preparatória do sonho e o
exame de consciência. Essas práticas tiveram uma presença e um desenvolvimento impor-
tantes na literatura da época helenística (em Plutarco, por exemplo). para o pitagorismo,
sonhar é entrar em contato com o mundo divino, com o mundo da imortalidade; por isso, é
necessário purificar a alma para ser capaz de entrar em contato com o mundo divino e poder
compreender as verdades que, de maneira ambígua, se revelam nos sonhos. Essa purificação
preparatória implica, por exemplo, escutar música, respirar perfumes, etc. Porém, sobre-
tudo, recordar o dia transcorrido, recordar as faltas cometidas e, por esse ato de memória,
puriÍicar-se delas (HS, 48-49). * Foucault insiste também na exigência do silêncio ou, mais
precisamente, na relação escuta-silêncio no pitagorismo. Em primeiro lugar, pitágoras
analisava o aspecto e a contextura corporal daqueles que desejavam ser seus discípulos.
Admitidos em sua "seital impunha-lhes um determinado tempo de silêncio. Durante esse
"silêncio pedagógico'l não lhes estava permitido nem sequer formular perguntas, e tampouco
tomar notas dos discursos do mestre. O exercício do silêncio era, nesse sentido, também
um exercício de memória (HS, 395-396).
Pythagorisme [9]: D84,304. HS,,13, 47 48, 61, 182, 395, 416. HS3, 75.

320 PrNEt, Phitippe

À
246 PLATÃO ?428 a.C.- -341 a.C.)

São numerosas as referências de Foucault a Platão. A diferença do que ocorre com outros
f,lósofos presentes em sua obra, Foucault se ocupou específica e extensamente de dois textos
de Platão: o Político e o Alcibíades I. Do primeiro ele se serve para marcar a oposição con-
ceitual entre duas formas de exercício do poder, o político e o pastoral. Ocupamo-nos dessa
questão no verbete Poder. Quanto ao segundo, à diferença de grande parte dos especialistas
contemporâneos no assunto, Foucault mantém que se trata de um escrito de Platáo (HS, 43).
A ele está consagrado em grande medida o curso dos anos 1981-1982 no Collêge de France,
LHerméneutique du sujet.Mais precisamente, a primeira parte está dedicada à exposição do
tema do cuidado de si na filosofia platônica, fundamentalmente no Alcibíades I, e o resto do
cursoàtradiçãoqueoAlcibíadeslina:uglura,equeseestendeatéaépocahelenísticaeoalvorecer
do cristianismo no Ocidente. No verbete Cuidado, nos ocupamos dele. "Em todo caso, a partir
de aqui [Foucault se refere à relação cuidado de si - conhecimento de si no Alcibíades 1], creio
que se pode compreender em muitos aspectos o grande 'paradoxo do platonismo na história do
pensamento, não só na história do pensamento antigo, mas na história do pensamento europeu,
até o século XVII pelo menos. Este paradoxo é o seguinte: por um lado, o platonismo foi o fer-
mento, e pode-se dizer, o principal fermento, de diferentes movimentos espirituais, na medida
em que o platonismo concebia o acesso à verdade somente a partir do conhecimento de si, que
era reconhecimento de si no divino. A partir deste momento, vocês veem claramente que, para
o platonismo, o conhecimento, o acesso à verdade não podiam realizar-se sem as condições de
um movimento espiritual da alma em relação consigo mesma e com o divino. Relação com o
divino porque ela tinha relação consigo mesma [. . . ] Mas, vocês veem ao mesmo tempo, como
oplatonismo pode ser constantemente também o clima de desenvolvimento do que se poderia
chamar uma 'racionalidadei E, na medida em que nao faz sentido opô-las, como se fossem
coisas que estivessem em um mesmo nível, a espiritualidade e a râcionalidade, eu diria que
de conheci-
o platonismo foi, antes, o clima perpétuo no qual se desenvolveu um movimento
mento, conhecimento puro sem condição de espiritualidade, porque, precisamente, o
próprio
que se
do platonismo é mostrar como todo o trabalho sobre si mesmo, todo o cuidado de si
(HS,
deve ter para aceder à verdade, consiste em conhecer-se, ou Seia, conhecer a verdade"
75-76).* AIém dessas duas referências maiores às obras de Platão, nos volumes II, sobretudo,
e III de Histoire de la sexualité, tusage des plaisirs e Le souci de soi, vátias obras de
Platão

são citadas com frequência. Praticamente, cada um dos temas importantes de Histoire de la
sexualité, isto é, da ética do cuidado de si, é acompanhado por alguma referência à obra de
Platão. Mas aqui se trata de uma leitura dos textos de Platão que se enquadra no marco geral
de uma interpretação da cultura do cuidado de si mesmo. As referências mais relevantes são
sobre os seguintes temas: a imagem dos afeminadosno Fedro (H52,25-26); a relação entre
apetite e representaçâo no Filebo (HS2, 52-53); a concepção de luxúria no Timeu como
enfermidade do corpo (HS2, 5a); os apetites naturais na República e nas leis, entre eles, os
aphrodísia (HS2, 58-61); o exercício da temperança como luta na ordem dos aphrodísia (HS2,
67 -70);as virtudes fundamentais (sabedoria, coragem, justiça, temperança), especialmente na
República e nas Leis (HS2, 75-90); a relação governo de si/governo dos outros (HS2, 9a-95);

PLATÃO 321
a função do lógos no exercício da temperança (HS2, 100-105); a relação medicina/dietética
(HS2, I 13- 1 14); os perigos das dietas e a dietética em geral (HS2, I 18- 123, 136- 140); a reiação
atividade sexual/morte e imortalidade (HS2, 150-153); a legislação acerca do matrimônio
(HS2, 185-188; HS3, 193-194); a erótica, ou seja, a relação amorosa com os mancebos (HS2,
207-219,225-231);a passagem do amor pelos mancebos ao amor pela verdade (HS2, 251-269);
a noção de cuidado de si (HS3, 58).
Platon [5j4]: AS, 136. DEl, 88-89, 92, 242,768,770, 818. D82,76 78,98, 106, 124, 136 137,152,220,242' 414'

521,549,568,570,634, 751.D83,322,394 396,533,537,560, 571,671.. DE4, l4l-143, 176,213,287,353,355,361,385,


388,390,396,399,403,407,470,492,551 552,563,613,62t,624,627,694,699-70]1,713,721-722,786,787,789,792793,
795-797,799. HF,366. HS,6,7, 10,18,22 23,27,36,41-43,46,49-50,53,56,58, 60-65,67 69,71-72,74,77,80-81'84,
94,97,100,102, 104, 118, 120, 139,147,150, 156, 158-159, 161, t63-171,174-17s,178'179,182,185, 188, 191, 195,201,
208,215-216,234 235,256,269-273,275,277,301 302,313,319, 323,329.335, 363, 371'375,377,382,393'395,397'
400-40 1, 408-409 , 41.5-417, 435, 436, 438-439, 441 443, 454, 457 , 468. H.S2, 26, 27 , 45, 50, 52-55, 58, 59-6 1, 63, 67, 68,
70,72,75,77-87,89,91,93-95, 100-104, i13-114, 116, 118-122, 136 140, 142, 148, 150-i52, l6l, 184, 186-188,200-201'

207 -208, 210, 21,2, 214,216, 220,224, 226, 228. 230, 244, 246, 253-255, 257 259, 261 262, 264, 266-268,283-284. HS3,
25-26,58,64-65,50, 128, 148, 173, 180, I93, 213-215,250-251,27t-272,278.1D5, 154. MC,70. MMPE,85. MMPS,96.
oD, 17. PP,236,254.

:+?. PLATONISMO (Platonisme)

Yer: Platao.
Platonisme [67]: DEl, 219. DE2,76-78, 80, 632-633. DF4,29 L HF, 5 l. HS, 36, 64, 66,72,75-76, ll7 , 164, 167 ,

1,69,179.t82,215,247,401 403,415,416,421,441.H52,224.HS3,219,250,263.

" - . PLUTARCO (46 a.c.-r25 a.c.)

No marco da análise da cultura clássica do cuidado de si mesmo, a presença da obra de


Plutarco é frequente e importante, especialmente emLherméneutique du sujet.* O Diálogo
sobre o Amor,de Plutarco, éobjetodeanálise emLesouci de soi(}I53,224-242) apropósito
da constituição de uma nova erótica na época helenística. 'A partir da erótica dualista atra-
vessada pela questão do r.erdadeiro e do simulacro e destinada, essencialmente, a fundar o
amor dos mancebos, mas ao preço de deixar de lado os aphrodísia [a erótica platônica], vê-se
como se constitui em Plutarco uma nova estilística do amor: ela é monista, posto que inclui os
aphrodísia,mas faz desta inclusão um critério que lhe permite reter apenas o amor conjugal e
excluir as relações com os mancebos devido à falta que as marca; elas não podem mais ter um
lugar nesta grande cadeia única e integradora onde o amor se viviÍrca com a reciprocidade do
prazer" (H53,242).* EmLherméneutique du sujet,as referências a Plutarco são a propósito
dos seguintes temas: a origem espartana do conselho't necessário ocupar-se de si mesmo" (HS,
32-33);as práticas de si mesmo (HS,48-49,82); o estatuto da relação de direção de consciência
(150-151); a categoria de salvação (HS, 175-176); a conversão em geral e, particularmente,
a conversão do olhar, e a questão da curiosidade (HS, 210-212); sobre o Tratado da escuta,

322 PLAToN lsMo (Platonisme)


isto é, sobre a natureza ambígua da audiçáo e a charlatanice (HS, 318-326);os Hypomnémata
(HS, 344-345); a cólera e a adulação (HS, 357-358); a atitude do sujeito com respeito ao futuro
e a noção de estupidez (HS, 446-449). * O termo " étho-poéticil para expressar a maneira em
que o sujeito se converte em sujeito ético, provém de Plutarco (HS2, l9; }i5,227).
Plutarque [265]: D83, 499. D84,217 ,218,287 ,291,293,354, 356 357, 359-364, 385, 387 , 117 -419.469, 5'16, 550,
613,713,795796,801.HS,22,32,4r,48,61,82,94,97-98,102,119,1s1,159 160,175-176,178-179,209-212,218,220,
227 ,23s,3 14 3 1 5, 3 I 8-320 , 324-32s,334 336, 344-345, 357-358, 375, ,107, 4 1 3, 4 I 8, 446, 4,19-,150, ,155 456. HS2, 19, 24,

48, 54,69, 162.202.252,28,1. HS3,24, 53, 55, 58, 60, 64-65, 70,74-75,81, I07-1 10, Ll3-114,121-122,154,162,174 175,
1 90, 204, 206, 210-2]15,217 , 221,,223 224,226-231,234-242,254,272,278,281.

.::=. PODER (Pouvoià

Em primeiro lugar, como expusemos no verbete Governo, torna-se impossível fechar o


capítulo do poder na obra de Foucault até que se publique a totalidade dos cursos no Collêge
de France. Para uma apresentação do conteúdo desses cursos, ver: Governo. Aqui nos centra-
remos no material publicado em Dits et écrits. Ao final deste verbete, ofereceremos uma
lista dos textos, a nosso juízo, mais relevantes. Em segundo lugar, como veremos em seguida,
Foucault não escreveu uma teoria do poder, se por teoria entendemos uma exposição siste-
mática. Antes, o que encontramos uma série de análises, em grande parte históricas, acerca
é

do funcionamento do poder. Apesar disso, é possível oferecer uma reconstrução articulada


dessas análises. Isso constitui um esboço da Íilosofia política de Foucault ou, para utilizar uma

expressão dele, de uma "filosofia analítica do poder'l Em terceiro lugar, em vários verbetes
abordamos o tema do poder. Oferecemos neste verbete uma visão de conjunto que fará refe-
rência aos outros verbetes e se centrará no conceito de poder pastoral. Para completar essa
exposição, será necessário remeter-se aos verbetes: Biopoder, Biopolítica, Disciplina, Go'
verno, Liberalismo,Luta, Medicalizaçao,Panóptico, PolíciaeRazão de Estado. As razões
da pergunta pelo poder. Nos verbetes Episteme e Dispositivo, mostramos as razões, para
chamá-las de algum modo, "internas" pelas quais Foucault é levado à análise do poder' A
formação do saber requer que se leve em consideração, além das práticas discursivas, as prá-
ticas não discursivas; e também que se preste particular atenção ao funcionamento entrelaça-
do de práticas discursivas e práticas não discursivas. Com efeito, o saber e o poder se apoiam
e se reforçam mutuamente. Além dessa razão interna, a interrogação filosófica pelo poder tem

outras motivaçÕes teóricas e políticas. Os fenômenos políticos da Modernidade (o Estado


centralizado, a burocracia, os campos de concentração, as políticas de saúde, etc.) nos colocam
diante do problema da relação entre o processo de racionalização da Modernidade e as formas
de exercício do poder. Grande parte das preocupações e dos temas da Escola de Frankfurt tem
a ver precisamente com as formas de exercício do poder que se apresentam como uma exten-
são asfixiante dos processos de racionalização. Para Foucault, a particularidade histórica das
formas políticas da Modernidade, não só do Estado moderno, reside em que em nenhuma
outra sociedade encontramos "uma combinação tão complexa de técnicas de individualização
e de procedimentos de totalização' (D84,229). 'Ao conseguir combinar estes dois registros - o

registro da cidade e o cidadáo e o registro do pastor e o rebanho -, no que chamamos os Estados

PODER (Pouvolr) 323


modernos, nossas sociedades se revelaram verdadeiramente demoníacas" (DE4, 147). Pois
bem, para Foucault, à diferença da Escola de Frankfurt, não se trata de levar a cabo o proces-
so da razão; mas, antes, de analisar racionalidades específicas, a racionalidade de determina-
das práticas (as disciplinas, a biopolítica). Há vários motivos que determinam essa opção te-

órica e metodológica de Foucault, e que determinarão a especificidade de sua abordagem do


tema do poder. Eles podem dividir-se em negativos e positivos. Negativos:1) Os resultados
de trabalhos como Histoire de la folie, Les mots et les choses e lhrchéologie du savoir, qu.e,

situando-se nas antípodas da filosofia da história, mostram a inadequação das categorias to-
talizantes para enfrentar o trabalho histórico. 2) A inadequação da categoria de repressao para
dar conta das relações de poder. 3) A inadequação das análises jurídicas e economicistas.
Positiyos:1) A eficácia crítica da erudição histórica.2) A eficácia das lutas especíÍicas. (Ver.
Luta). Aquestão do sujeito vincula todas essas motivações à primeira que mencionamos, isto
*
é, à necessidade de estudar o funcionamento entrelaçado do saber e do poder. Desde este
ponto de vista, podemos distinguir dois sentidos do termo "sujeito": submetido, "sujeito'l pelo
controle e pela dependência de outro; ligado, "sujeito'l à própria identidade pelas práticas e
pelo conhecimento de si. Em relação a esses sentidos do termo, Foucault distingue três tipos
ile luta: 1) lutas que se opõem a formas de dominação étnicas, sociais e religiosas; 2) lutas
contra as formas de exploração que separam o indivíduo do produto de seus trabalhos; 3)
lutas que se opoem a tudo o que iiga o indivíduo a si mesmo e asseguram assim a submissão
aos outros (D84,227). A análise foucaultiana do poder se inscreve nesse terceiro gênero de
lutas. O tema do poder é, em realidade, para Foucault, um modo de enfrentar o tema do su-
jeito. 'Antes de tudo, queria dizer qual foi o objetivo de meu trabalho destes vinte anos. Não
foi analisar os fenômenos de poder nem lançar as bases para esta análise. Antes, tratei de
produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura;
tratei, nesta ótica, de três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujei-
tos" (D84, 222-223). Esses três modos de subjetivaçáo são: os saberes que pretendem aceder
ao Estado de ciências, as práticas que dividem (louco/são, saudável/doente) ea maneira como
um ser humano se transforma em sujeito (a sexualidade). "Não é, pois, o poder, mas o sujeito
o que constitui o tema geral de minhas investigaçoes" (DE4, 223).Hipóteses e exigências
de método. Pois bem, do mesmo modo como acontece com o tema do saber, Foucault eia-
borou os próprios instrumentos conceituais para analisar o poder. Tal elaboraçáo tem seus
interlocutores, particularmente: Hobbes (o poder concebido em termos de soberania), Marx
eFreud (o poder concebido em termos de repressão). Em "II faut défendre la société", Foucault
opõe a todos eles a "hipótese Nietzsche'] o poder concebido como luta, enfrentamento. Porém,
a nosso juízo, essa hipótese não
posição definitiva ou, ao menos, a mais acabada de Foucault
éa

a respeito do funcionamento do poder. Ela deve ser buscada, antes, no conceito de governo.
t) Poder e soberania: o poder visto desde suas formas externas, extremas e capila-
res. Segundo Foucault, na concepção liberal e na concepção marxista, sempre se pensou o
poder com base na economia. Para os primeiros, o poder é algo assim como um bem, está
sujeito a contrqto, é objeto de possessão e, consequentemente, de alienação. Para os segundos,
o economicismo não concerne tanto à forma do poder quanto à sua função histórica: o poder
serve para manter determinadas relações de produção (IDS, 14-15). Abandonar esses supos-
tos economicistas do poder implica também deixar de lado o conceito de soberania, ou seja,

3 24 PoDER (Pouvoír\
ayisão jurídica do poder (IDS, 30-33, 37-39;DF4,185-186). Com efeito, quer se trate de
explicar a gênese do Estado, quer se denuncie a exploração por parte da burguesia, em ambos
os casos, o que se tem em vista é o poder desde o ponto de vista da lei. Para utilizar uma
imagem espacial, à visáo descendente clássica, Foucault opõe uma visão ascendente: o poder
visto, em primeiro iugar, desde suas extremidades, desde baixo (IDS,25). Não como algo que
se possui, mas como algo que se exerce. Assim, por exemplo, em lugar de nos perguntarmos
pela legitimidade, desde um ponto de vista jurídico do direito de castigar, é necessário estudar
as técnicas concretas, históricas e efetivas do castigo. Em seu distanciamento com respeito à
concepção liberal do poder, Foucault critica Hobbes ou, melhor, certa interpretação do Levia-
tã.ParaFoucault, apesar do modo como Hobbes apresenta as coisas, a guerra do Leviatanáo
é uma guerra autêntica; o que Hobbes persegue é, na realidade, evitar a guerra. O objetivo de
Hobbes seria, mais precisamente, conjurar o discurso histórico da dominação, o discurso
sobre a conquista na Inglaterra (Levellers, Diggers) (ver'. Hobbes, Guerra). Em "Il faut dé-
fendre la société", Foucault se ocupa, precisamente, nesse discurso da dominação, da guerra;
move-se dentro do que denomina a "hipótese Nietzsche", quer dizer, do poder concebido como
Iuta (IDS, 14-19). Pois bem, levar em consideração o discurso histórico da dominação, ana-
lisar o poder em termos de iuta não implica aceitar o conceito ou o princípio explicativo de
dominação da burguesia. Segundo Foucault, da ideia de dominação da burguesia, pode-se
deduzir qualquer coisa (IDS, 23-30). (ver. Burguesla). Essa crítica ao conceito de dominação
burguesa forma parte da crítica geralàhipotese repressiva.2) Poder e repressão: o poder
visto como uma instância positiva. Outro conceito da tradição marxista ou do que, com
certo fastio, Foucault denomina o freudo-marxlsrro (IDS, 38) é o conceilo de repressao ou
ahipótese Reich.Em La volonté de savoir,Foucault se coloca três perguntas acerca da hipó-
tese repressiva: a repressão é uma evidência histórica?; a mecânica do
poder é da ordem da
repressão?; e o discurso contra a repressão, libera ou, em realidade, forma parte do mesmo
pod., qu. denuncia? (HSf , 18-19). Não se trata, em realidade, de formular uma contra-hi-
pótese a propósito de cada uma das dúvidas que essas perguntas colocam. A proposta é, antes,
ressituar cada um desses elementos em uma economia geral do poder. Em La volonté de
savoir,cada uma dessas dúvidas acerca do poder colocada em relação às práticas da sexua-
é

Iidade (discursos, técnicas de exame, regulamentos das instituiçoes pedagógicas, etc.). Foucault
mostra como, a partir do século XVII, mais que a uma repressão do discurso acerca da sexu-
alidade, assistimos a uma extraordinária proliferação discursiva (HSl, 28-30; AN, 172-180)
(ver: Repressao). Por outro lado, a parte final dessa obra chega à conclusão de que a função
dos discursos liberadores (da psicanálise, por exemplo) foi estabelecer novas formas de sujei-
ção e controle (HS1, 11-16) (ver: Psicanállse). Pois bem, desde um ponto de vista teórico, a
conclusão mais importante que nosso autor extrai da crítica histórica da hipótese repressiva
é que o poder deve ser visto como uma realidade positiva, quer dizer, como fabricante ou
produtor de individualidade (SP, 182-184). Do mesmo modo que não há que supor um indi-
víduo natural para explicar como se conyerte em sujeito jurídico, sujeito de direitos e, por
conseguinte, como se gera o soberano e o Estado, tampouco há que se supor uma naturalida-
de do desejo que a sociedade capitalista aliada com a religião viria a reprimir. A individuali-
dade não é algo passivo, dado de antemão, sobre a qual se aplica o poder; é, antes, uma espé-
cie de relay, o indivíduo é ao mesmo tempo receptor e emissor de poder. Nesse sentido, a

PoDER (Pouvolr) 325


imagem que melhor descreve o funcionamento do poder é o de uma rede (IDS,26-27).3)
Poder e governo. A pergunta de Foucault não é o que é o poder, mas como ele funciona.
Desde as extremidades, desde um ponto de vista positivo e reticular sobre o poder, haverá que
se perguntar: a) que sistemas de diferenciação permitem que uns atuem sobre outros (dife-
renças jurídicas, tradicionais, econômicas, competências cognitivas, etc.); b) que objetivos se
perseguem (manter um privilégio, acumular riquezas, exercer uma profissão); c) que moda-
lidades instrumentais se utilizam (as palavras, o dinheiro, a vigilância, os registros); d) que
formas de institucionalização estão implicadas (os costumes, as estruturas jurídicas, os regu-
lamentos, as hierarquias, a burocracia); e) que tipo de racionalidade está em jogo (tecnológi-
ca, econômica) (D84, 239-240). Cada uma dessas instâncias quer descrever e analisar "modos
de ação que não atuam direta e imediatamente sobre os outros, mas sobre suas ações" (D84,
236). O poder consiste, em termos gerais, em conduzir condutas e dispor de sua probabilida-
de, induzindo-as, afastando-as, facilitando-as, dificultando-as, limitando-as, impedindo-as'
Essa última afirmação é, sem dúvida, surpreendente; não coincide com a ideia de luta como
especificidade das relações de podeç quer dizer, com a "hipótese Nietzsche'i Com efeito, em
seus últimos escritos e cursos no Collêge de France, Foucault utiliza uma série de conceitos
que substituem (ao menos na função que esse desempenhava em "I1 faut défendre la société")
o conceito de luta: goyerno, governamentalidade (ver: Governo, Ilietzsche). "O poder, no
fundo, menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do compromisso de um
é

frente ao outro do que da ordem do governo' [...] O modo de relação próprio do poder não
há que ser buscado, então, do lado da violência e da luta nem do lado do contrato ou do nexo
voluntário (que, no máximo, só podem ser instrumentos), mas do lado deste modo de ação
singular, nem guerreiro nem jurídico, que é o governo" (D84,237).4) Poder e revolução:
práticas de liberdade. A história das práticas, tal como é levada a cabo por Foucault, deixa
de laclo não só o ponto de vista jurídico acerca do poder e a hipótese repressiva, mas também
o que podemos considerar como o conceito cardinal da historiografla política moderna: o
conceito de revolução. Na realidade, tanto a concepção jurídica liberal como a marxista, bem
como a freudiana acerca do poder, podem ser vistas como diferentes versões do ideal revolu-
cionário; cada uma, a seu modo, foi a promessa de uma liberação. A substituição do conceito
de luta pelo conceito de governo tem a ver precisamente com o abandono do conceito de re-
volução. Para Foucault, o conceito de revolução é consequência de uma concepção do poder
em termos de totalidade. E isso foi a causa, em grande parte, da ineficácia de certas formas de
oposição ao poder (ver: Deleuze, Luta, Revoluçao).Por isso, a partir do conceito de governo,
Foucault opÕe as lutas e a resistência como práticas de liberdade à luta contra o poder na
forma de revolução ou liberação (ver: Liberdade, Luta, Revoluçao). A especificidade das
relações de poder. Pois, se deixarmos de lado os conceitos de soberania e de repressão, se
renunciarmos a uma representação economicista do poder, como analisar o poder? Em pri-
meiro lugar, é necessário ter presente, como dissemos, que para Foucault o poder não é uma
substância ou uma qualidade, algo que se possui ou se tem; é, antes, uma forma de relaçao.
Para determinar a especificidade das relações de poder, Foucault as distingue das'tapacidades
objetivas" e das "relaçÕes de comunicação'l Por capacidades objetivas, devemos entender: "O
[poder] que se exerce sobre as coisas, e que dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las, consu-
mi-las ou destruí-las'l Por "relações de informaçáolrelações'que transmitem uma informação

326 PoDER lPouvoir)


através de uma língua, um sistema de signos ou qualquer outro meio simbólico" (D84,233).
A diferença destas, as relações de poder são relações entre sujeitos que se definem, como
dissemos, como "modos de ação que não atuam direta e imediatamente sobre os outros, mas
sobre suas ações" (DE4, 236). As relações de poder exigem que'b outro (aquele sobre quem
se exerce) seja reconhecido e mantido até o final como um sujeito de ação, e também que se
abra, frente à relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções pos-
síveis" (DE4, 236). Algumas precisÕes a respeito. 1) As relações de poder não sào nem a
manifestação de um consenso nem a renúncia à liberdade. Ainda que possam supô-los. 2) As
relações de poder, ainda que distintas das capacidades e das relações de comunicação, estáo
entrelaçadas com estas. Quando as capacidades, as relações de comunicação e as relações de
poder se ajustam umas às outras segundo fórmulas reflexas e explícitas, encontramos, então,
ltma disciplina (D84,235).3) As relações de poder sáo um conjunto de ações que têm por
objeto outras ações possíveis, operam sobre um campo de possibilidades: induzem, separam,
facilitam, dificultam, estendem, limitam, impedem (D84,237).4) Segundo Foucault, o termo
que permite captar melhor a especificidade das relações de poder é o termo "conduta': "O
exercício do poder consiste em conduzir condutas e dispor a probabilidade" (DE4, 237).F.ste
é o sentido originário do conceito de 'governo'l dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos.

5) O poder se exerce apenas sobre sujeitos livres, ou seja, sujeitos que dispõem de um campo
de várias condutas possíveis. Quando as determinações estão saturadas, não há
relações de

poder. "O poder não se exerce senão sobre'sujeitos livres'e na medida em que eles sáo'livresi
Entendemos por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante deles um campo
de

possibilidade onde se podem dar muitas condutas, muitas reações e diferentes modos de
comportamento. Ali onde as determinações estáo saturadas, não há relações de poder' A es-
(então se trata de uma
.ruuidao não é uma relação de poder quando o homem está encadeado
relação física de coerção), mas justamente quando pode deslocar-se e, no limite, se escapar'
Não há, pois, um cara a cara do poder e da liberdade, com uma relação de exclusâo entre eles
(em todo lugar onde se exerce o poder, desaparece a liberdade); mas um jogo muito mais
complexo. Neste jogo, a liberdade aparece como a condição de existência do poder" (DE4,
237 -238). Uma história do poder. "O Estado ocidental moderno integrou, em uma forma
política nova, uma velha técnica de poder que nasceu nas instituições cristãs: o poder pastoral"
(D84,229).A história do poder, desde uma perspectiva foucaultiana, busca mostrar como foi
possível a integração do poder pastoral na forma jurídica do Estado moderno. Por essa razão,
essa história coloca a compreensão da formaçáo do Estado moderno e, em geral, das formas
modernas do poder, muito mais além da Auftlcirung. O primeiro capítulo dessa história está
dedicado à formação do poder pastoral, isto é, às formas de poder que surgem com o cristia-
nismo e, mais especificamente, com o monasticismo. A partir daqui, Foucault passa à análise
das reelaborações modernas do poder pastoral, à formação das discipiinas modernas e da
biopolítica, ou seja, ao aparecimento do biopoder. Aqui, é necessário não esquecer que, para
nosso autor, pelas razões metodológicas que explicamos acima, não se pode reduzir o estudo
do funcionamento do poder ao funcionamento do Estado ou da administração. O biopoder
náo é um conceito aplicável exclusiyamente ao governo considerado institucionalmente, mas
ao funcionamento entrelaçado de saber e poder em geral nas sociedades modernas. Em rea-
lidade, a integração do saber ao exercício do governo é uma característica definitória do

PODÊR (Pouvolr) 327


Estado moderno (O que nosso autor expressa com a ideia de Estado governamentalizado.
Yer: Governo). Por isso, os capítulos da história do poder na Modernidade não se reduzem
à história das formas políticas do Estado moderno. Para expressar-nos de algum modo,
diríamos que história moderna do poder contém quatro capítulos: disciplina, biopolítica,
a

razão de Estado e liberalismo. Estes últimos dois capítulos analisam formas políticas, mas
são inseparáveis dos dois primeiros e só compreensíveis a partir deles. Dedicamos a cada
um desses capítulos um verbete próprio. Por isso, enfocaremos particularmente agora o
conceito de poder pastoral. Poder pastoral. Para levar a cabo essa história do poder,
Foucault se serve de um esquema conceitual que lança suas raízes na Antiguidade grega e
judaico-cristã. Trata-se da oposição entre o pastor e o político, da oposição entre uma
concepção própria do judaico-cristianismo e outra de matriz grega. O político dos gregos
exerce seu poder sobre um território, estabelece leis que devem perdurar após o seu desa-
parecimento; sua funçáo é comparável à do timoneiro da nave, persegue a honra. O pastor
do judaico-cristianismo, no entanto, não exerce seu poder sobre um território, mas sobre
um rebanho: reúne indivíduos dispersos; sem o pastor, o rebanho se dispersa; o pastor deve
abandonar o rebanho para sair em busca da ovelha perdida, deve dar a própria vida por
cada uma de suas ovelhas (D84,229-230). Com respeito à concepção grega do poder, Fou-
caultfazreferência a um interessantíssimo texto de Platão (DE4, 140-144). Com efeito, no
Político, Platão se pergunta se se pode definir o político como pastor dos homens. Em um
primeiro momento do diálogo, pareceria que o político é uma espécie de pastor; em segui-
da, a partir do mito do mundo que começa a girar em sentido contrário, essa primeira
aproximação ao problema é posta em dúvida, corrigida e, finalmente, chega-se a uma con-
clusão diferente. Em certo momento, o diálogo entre o jovem Sócrates e o Estrangeiro, a
partir da hipótese de considerar o rei e o político como pastores, coloca-se a necessidade de
diferenciá-los dos outros pretendentes ao título de pastores. "Sabes que todos os comerciân-
tes, agricultores, moleiros inclusive atletas e médicos protestariam energicamente juntos a
estes pastores de homens a quem chamamos políticos afirmando que eles próprios cuidam
da criação dos homens, não apenas dos membros dos rebanhos, mas também dos gover-
nantes?" (Platão, Político,267e - 268 a. [Citamos a tradução de forge Paleikat e foão Cruz
Costa. Platão, Diálogos, São Paulo: Abril Cultural, 1979)), mais adiante, "não teríamos nós
razões para inquietação quando, ainda há pouco, nos assaltou a suspeita de que talvez
houvéssemos traçado um esboço plausível do caráter real, mas que, no entanto, não o levá-
ramos até o retrato fiel do político, pelo fato de não o distinguirmos de todos aqueles que à
sua volta se agitam e reclamam uma parte de seus direitos de pastor? Não o separamos
suficientemente dos seus rivais para mostrá-lo, unicamente, na sua pureza?" (Platâo, Polí-
tico,268 c). A questão é, simplesmente, se o político deve ser o médico dos homens, seu
educador, quem os alimenta, etc. Como sabemos, a discussão deixará de considerar o polí-
tico desde o ponto de vista da arte do rebanho, passando à arte de tecer. Essa mudança se
produz precisamente a partir da distinção entre o político e os pastores (médico, mestre, etc.).
Enquanto estes últimos se ocupam dos homens individualmente, o político, apenas coletiva-
mente e em seu conjunto (D84, 142-144). Finalmente o político, definido a partir da arte de
tecer, será o legislador filósofo, quem tece, a partir de seu conhecimento do imutável, a trama
dapólis. Para a filosofia clássica grega, o político não é o pastor e estritamente falando na

328 PoDER (Pouvoir\


tradição judaica tampouco; com efeito, nesta última, só Deus é o único e verdadeiro pastor.
O poder pastoral é, na realidade, uma figura que se forma com o cristianismo a partir da
tradição hebraica e em certas técnicas de vida da tradiçâo grega, sobretudo da filosofia da
época helenística. É com o monasticismo que essas duas tradições se conjugarão para cons-
tituir a primeira versão do poder pastoral. A partir da literatura cristã dos primeiros sécu-
los (Cassiano, foão Crisóstomo, Cipriano, Ambrósio, Ierônimo, Benedito de Nursia). Foucault
enumera quatro elementos característicos dessa nova forma de poder: I ) A responsabilida-
de do pastor concerne não só à vida das ovelhas, mas a todas as suas ações. Os pecados do
rebanho são imputáveis, em última instância, ao pâstor. 2) A relação entre o pastor e suas
ovelhas é individual e total. 3) O pastor deve conhecer o que se passa no mais íntimo de suas
ovelhas. Aqui vão reunir-se duas práticas que provinham das tradições pitagóricas, estoica e
epicúrea: o exame e a direção de consciência. É nessa reunião que adquirirá forma a doutri-
na da obediência concebida como submissão total. 4) O pastor deve conduzir suas ovelhas
pelo caminho da mortificação, uma espécie de morte cotidiana neste mundo. Essa técnica é,
na realidade, uma forma de relação consigo mesmo (D84,229-230). O pocler pastoral é, em
definitiva, uma técnica de individualizaçâo. O político e o pastor. O poder pastoral foi uma
prática própria das comunidades monásticas que teve um importante desenvolvimento na
literatura cristã dos primeiros séculos. Contudo, o poder pastoral não foi a forma triunfante
durante a Idade Média, mas o império. Vários foram os motivos: trata-se de uma experiência
tipicamente comunitária, incompatível com as condições da vida rr.rral, exige certo nível de
formação cultural, etc. As ordens religiosas e os numerosos movimentos de reforma teste-
munham, entretanto, a constante presença do modelo pastoral do poder. A reÍbrma protes-
tante e a chamada contrarreforma católica, com o fim do feudalismo e o abandono do ideal
de um sacro império, determinaram uma reativação desse modelo. A pastoral da confissão
e da direção de consciência a partir do século XVI são exemplos mais eloquentes dessa rea-
tivação. A tese de Foucault é que as formas de racionalidade do poder, no Estado moderno,
são uma apropriação-transformação das práticas do poder pastoral. Mais precisamente, a
especificidade do Estado consiste, como já indicamos, em haver integrado em uma forma
jurídica nova as técnicas individualizantes do poder pastoral (DE4, 229). Quanto à nova
forma jurídico-política do Estado moderno, Foucault estudou a razáo de Estado da época
clássica (séculos XVII e XVIII) e o liberalismo. A razão de Estado, à diferença do modelo
platônico e grego, e também medieval, deflne a governabilidade não em relação a normas
transcendentes, mas em relação aos elementos imanentes do Estado. Segundo a definiçâo de
Chemnitz, devemos entender por razão de Estado: "Certa consideração política necessária
para todas as questÕes públicas, os conselhos e os projetos, cujo objeto é a preservação, a

expansão e a felicidade do Estado. Para esse fim, empregam-se os meios mais rápidos e mais
cômodos" (DE4, l5I). Quatro elementos fundamentais caracterizam arazão de Estado assim
concebida: l) é uma arte, uma técnica segundo regras; 2) seu objeto é o Estado, e não as leis
divinas ou naturais; 3) contrariamente à tradição que remonta a Maquiavel, seu objetivo não
é aumentar o poder do príncipe, mas do próprio Estado; 4) requer uma forma específica de
saber que, na época, foi chamado estatística ou aritmética política. No curso e no seminá-
rio dos anos 1978 e 1979, Foucault se ocupou (com respeito àrazâo de Estado) da nova forma

PODER (Pouvoir) 329


--

de governabilidade que é o liberalismo.r Do material que dispomos, podemos extrair as se-


guintes conclusões sobre a questão do liberalismo: 1) Foucault não analisa o liberalismo como
uma teoria, nem como uma ideologia, nem como o modo como a sociedade se representa a
si mesma; mas como uma prática, como uma maneira de fazer, orientada por certos objetivos
e regulada pela reflexão contínua. 2) Trata-se cle estudar o liberalismo como uma forma de
racionalização do exercício do poder que obedece à regra da máxima economia: os máximos
efeitos ao menor custo possível. 3) o liberalismo ou, melhor, a racionaiidade política liberal
parte do pressuposto de que o governo não pode considerar-se a si mesmo como o próprio
fim (aqui se separa da racionalidade política darazâo de Estado). 4) A governabilidade para
o liberalismo passa fundamentalmente por uma crítica do Estado cujo objetivo é limitá-lo.
Essa crítica se pergunta, no fundo: por que deve existir um governo, que Íins deve perseguir,
como justificá-lo ante a sociedade? 5) O liberalismo como prática da governabilidade não se
reduz nem deriva da reflexão econômica ou da reflexão jurídica. O mercado, desde esse pon-
to de vista, foi antes tm test, um lugar de experiência privilegiado para mostrar os excessos
da governabilidade (DE4, 818-825). O liberalismo foi, fundamentalmente, uma prática de
Iimitação intrínseca do governo. Durante a época darazão de Estado, desenvolveu-se, para o
governo dos indivíduos, uma Polizeíwissenschafi, uma ciência da polícia. Trata-se de um
fenômeno europeu, mas especialmente alemão (a universidade de Gottingen teve a primeira
cátedra de ciência da polícia). No vocabulário da época, distinguia-se, ademais, entre Politik
e Polizei. O primeiroum conceito negativo, refere-se à luta contra os inimigos estrangeiros
é
do Estado; o segundo, entretanto, é um conceito positivo, referido à tarefa de favorecer a vida
dos indivíduos e do Estado. Segundo a definição de )usti, a Íinalidade da polícia é desenvolver
aqueles elementos constitutivos da vida dos indivíduos de modo tal que contribuam para
aumentar a potência do Estado (DE4, 159). Polícia designa, então, um novo domínio de in-
tervenção do Estado. Pois bem, a partir do século XVIII, contemporaneamente à nova forma
de governabilidade que representa o liberalismo, tem lugar outro processo fundamental para
compreender o funcionamento do poder nas sociedades modernas (DE3, 824). Por um lado,
o desaparecimento ou a debilitação da Igreja católica e de suas instituições; por outro, uma
nova institucionalização do poder pastoral. "Creio que não há que considerar o 'Estado mo-
derno'como uma entidade que se desenvolveu em detrimento dos indivíduos, ignorando quem
são e até sua existência, mas, aocontrário, como uma estrutura muito elaborada na qual os
indivíduos podem ser integrados com uma condição: que se confira à individualidade uma
forma nova e que se os submeta a um conjunto de mecanismos específicos" (DE4, 230).
Nesse sentido, e apesar da função crítica de limitação que representa o liberalismo, o Estado
moderno procedeu a uma reinstitucionalização do poder pastoral. Foucault assinala alguns
aspectos desse processo de transformação-apropriação: 1) uma mudança de objetivo, aiguns
objetivos terrestres substituirão a visão transcendente da pastoral cristã. É signiÍtcativo, nesse
sentido, a evolução semântica do termo "saúde'i Em poucas palavras, se passa da salvação
(salut) no outro mundo à saúde (salut) no mundo presente. 2) Um fortalecimento da admi-
nistração do poder pastoral, da tecnologia de individualização. O poder pastoral é exercido

O autor refere-se ir Naissance de la Biopolitit1ue, pub)icado em ourubro de 2004, depois da publicação de O vocaluLirio de
,llic he I Fo ucau I t. (N.T) -

330 PoDER \pouvoir)


não apenas pelo Estado, mas também por empresas privadas, pela família. Aqui têm impor-
tância capital as instituiçoes médicas. 3) Essa muitiplicação dos objetivos do poder pastoral e
do fortalecimento das instituições que o exercem permitiu o desenvolvimento das ciências do
homem (D84,230-231). Assim, onde "antes só havia sujeitos, sujeitos jurídicos aos quais se
podia tomar seus bens, a vida também, por outro lado. Agora, há corpos e populaçÕes. O
poder se tolnou materialista' (DE4, 194). As novas formas do poder pastoral concernem,
precisamente,aogovernodoscorpos, adisciplina,eaogovernodaspopulações,abiopolítica.
Em Surveiller et punir e em les anormaux, corrigindo em parte o ponto de vista de Histoi-
re de la folie, Foucault opoe dois modelos de exercício do poder: o modelo lepra e o modelo
peste. Comrespeito à lepra, o poder exclui, os leprosos são expulsos para além dos limites da
cidade e das zonas habitadas, para um espaço sem determinação. Como se estivessem mortos,
são acompanhados até o outro lado da civilização por um cortejo e ritos fúnebres, e seus bens
são finalmente herdados. Com respeito à peste, no entanto, a cidade é posta em quarentena,
estabelece-se uma minuciosa reticulaçao do espaço habitado, nomeiam-se inspetores que
devem controlar que cada um dos habitantes esteja no lugar que lhe é próprio, encerrado em
sua casa, intervém-se quando alguém é vítima da enfermidade, procede-se um exaustivo e
a

<letalhado informe da situação, compilam-se registros gerais, etc' (AN, 40-43)' Em Surveiller
et punir, ademais, a partir da análise do Panóptico de Bentham, Foucault traz à luz outro
Com base nesses
componente essencial da discipiina: a interiorização da relação de vigilância'
forma de
elementos, podemos compreender o que Foucault entende por disciplina.l)ma
no espaço; 2) náo exerce
exercício do poder que: 1) é uma arte da distribuição dos indivíduos
seu controle sobre os resultados, mas sobre os procedimentos; 3) implica uma vigilância
de dados sobre o indivíduo'
constante sobre os indivíduos; 4) supõe um registro permanente
'A disciplina é o conjunto de tecnicas em virtude das quais os sistemas de poder têm por
cujo instru-
objetivo e resultado a singularização dos indivíduos. É o poder da singularização
que permi-
mento fundamental é o exame. O exame é a vigilância permanente, classificadora'
ao máximo"
te repartir os indivíduos, julgá-los, avaliá-los, localizá-los e, assim, utilizá-los
(D83,516-517). Mas a ideia de disciplina ficaria indeterminada, se não se insiste no conceito

de normalizaçao. As instituições disciplinares (o exército, o hospital, a fábrica,


a escola) são'
a hie-
com efeito, instâncias de normalização. A repartição, a classificação, a diferenciação e
rarquização dos indivíduos supõem uma regra que permita cada uma dessas operações'

Nesse sentido, Foucault distingue entre lei e norma ou entre penalidade


judicial e micrope-
nalidadeda norma. A penalidade da lei se estabelece em relação a um conjunto de textos, os
códigos, que especificam categorias de condutas segundo a oposição proibido/permitido. A
liberdade dos indivíduos, por outro lado, só é afetada pelas proibiçoes da lei quando se produz
uma infração. Apesar de certas analogias formais entre o sistema judicial e os sistemas disci-
plinares, o funcionamento da norma é completamente diferente. A norma afeta todas as
condutas, refere todos os atos e as condutas individuais a algo que náo é simplesmente da
ordem do permitido/proibido, mas, ao mesmo tempo, um campo de comparação e de dife-
renciação, o normql.É aqui, na elaboração da regra de normalidade, em que se pode desenvol-
ver esse novo campo de conhecimentos que chamamos ciências humanas ou, melhor, é pelo
entrelaçamento de saber e poder, característico do funcionamento das instituições disciplina-
res, que elas puderam formar-se (SP, 184-184). Em definitiva, "as disciplinas reais e corporais

PODER (Pouvoir) 331


-

constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas" (5P,223-224). A disciplina repre-


senta a tecnologia moderna de governo dos corpos, a técnica para criar indivíduos dóceis e
úteis; a biopolítica, por sua vez, foi a tecnologia política das populações. Ambas funcionam a
partir da definiçáo do normal, mas, à diferença das disciplinas, as técnicas de governo das
populações levam em consideração fenômenos coletivos, que têm duração mais longa: a pro-
porção de nascimento, os óbitos, a taxa de reprodução, as enfermidades endêmicas, a higiene
pública, velhice, as relações com o meio ambiente, o urbanismo. Por isso, os mecanismos de
a

previsão e de estimativa estatística tendem a estabelecer medidas globais que têm como ob-
jetivo o equilíbrio da população, sua homeostase e sua regulação (IDS, 17-19). O curso inti-
tulado "Il faut défendre Ia société" está dedicado, precisamente, a uma análise da gênese do
biopoder, da politização dos fenômenos da vida, a partir da ideia de luta de raças, isto é, da
biologização do conceito de raça. Nesse sentido, Foucault levou a cabo uma genealogia do
racismo moderno. A raça e o racismo foram a condição de aceitabilidade do direito de morte
nas sociedades de normalização, a versão moderna, pós-revolucionária, do antigo direito real
sobre a vida e a morte dos súbditos (IDS, 228). Uma consequência do imperativo: "Há que
defender a sociedade'l "Eu creio que é muito mais profundo que uma velha tradição, muito
mais profundo que uma nova ideologia, é outra cosa. A especificidade do racismo moderno,
o que constitui sua especificidade, não está ligado nem às mentalidades, nem às ideologias,
nem às mentiras do poder. Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder" (IDS,230).
* Concluímos com duas citações de Foucault. "Estas considerações históricas podem parecer
muito distantes, devem parecer inúteis à luz das preocupações atuais. [...] Mas a experiência
me ensinou que a história das diferentes formas de racionalidade consegue, às vezes, sacudir
melhor que uma crítica abstrata nossas certezas e nosso dogmatismo. Durante séculos, a re-
ligião não pode suportar que se contasse sua história. Hoje, nossas escolas de racionalidade
não apreciam de modo algum que se escreva a sua história. É, sem duvida, significativo" (DE4,
160). "É muito significativo que a crítica política tenha questionado o Estado por ser simulta-
neamente um fator de individualização e um princípio totalitário. Basta observar a racionali-
dade do Estado nascente e ver qual foi seu primeiro projeto de polícia para se dar conta que,
desde o começo, o Estado foi individualizante e totalitário. Opor-lhe o indivíduo e seus inte-
resses é tão arriscado como opor-lhe a comunidade e suas exigências. A racionalidade políti-
ca foi se desenvolvendo e sendo imposta ao longo da história das sociedades ocidentais. EIa
se enraizou, primeiro, na ideia de poder pastoral, depois na razão de Estado. A individualiza-

ção e a totalização são efeitos inevitáveis. A liberação não pode vir do ataque â um ou outro
de seus efeitos, mas das raízes mesmas da racionalidade política' (D84, 161). * Seleção de
textos de Dits et écrits sobre a questão do poder. l97l:"tJn problême m'intéresse depuis
longtemps, c'est celui du sistême pénal" (DF;2,205-209) "La volonté de savoir" (D82,240-44).
1972:"Les intellectuels et le pouvoir" (DE2, 306-315), "Les grandes fonctions de la médecine
dans notre société" (DE2, 380-382), "Théories et institutions pénales" (DF;z,389-393).1973:
'A propos de l'enfermement pénitentiaire" (DE2, 435-445), "La société punitive" (DF;Z,456-
470). 1974: "Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir" (D82,521-525), "sexualité et
politique" (DF,z,536-537),"Lavérité et les formes juridiques" (D82,538-646). "Table ronde
sur i'expertise psechiatrique ' (D82,664-67 5), "Le pouvoir psychiatriqu e" (DF;Z,67 5-686). 197 5:

332 P}DER (pouvoir)


"La politique est la continuation de la guerre par dãutres moyens" (D82,702-704), "Des
supplices aux cellules" (D82,716-720), "Entretien sur la prison: le livre et sa méthode" (DE2,
740-753), "Ponvoir et corps" (DE2,754-760), 'Asiles, Sexualite, Prisons" (D82,771-782), "Les
anormaux" (D82,822-828).1976 "Les têtes de la politique" (D83,9-13), "La politique de la
santé au XVIIIe siêcle" (DE3,13-27), "Crise de la médecine ou crise de l'antirnédecine?" (D83,
40--58), "Lbxtension sociale de la norme" (DF,3,74-79), "Bio-histoire et bio-politique" (DE3,
95-97), "La fonction politique de l'intellectuel" (DE3, 109-114), "Il faut defender la société"
(D83, 124-130). 1977 : "Lbeil du pouvoir" (DE3, 190-207), "La naissance de la méclecine
sociale" (D83,207 -228), "Les rapports de pouvoir passent à l'intérieur des corps" (DE3, 228-
236), "Non au sexe roi" (DE3, 256-269), "Enfermement, psechiatrie, prisor.r" (D83, 332-360),
"Le pouvoir, une bête magnifique" (DE3, 368-382),"Michel Foucault la séduite et l'Étaf' (D83,
383-388), "La torture, c'est la raison' (DE3, 390-398). 1978: "levolution de la notion d'«indi-
vidu dangereux, dans la psechiatrie légale du XIXe siàcle" (D83,443-464), "Dialogue sur le
potrvoir" (D83,464-477), "Lincorporation de l'hôpital dans la technologie moderne" (D83,
508-52i), "La société disciplinaire en crise" (DF,3,532-534), "La philosophie analytique de la
politique" (DE3, 534-551), "Sexualité et pouvoir" (D83,552-570), "Méthodologie pour la
connaissance du monde: comment se débarrasser du marxisme" (DE3, 595-618), "Précisions
(D83,625-635), "La gouvernamentalité" (DE3,
sur le pouvoir. Réponses à certaines critiques"
635-657), "Du bon usage du criminel" (DF-3,657-662), "M. Foucault. Conversation sans
complexes avec le philosophe qui analese les structures du pouvoir" (D83,669 678), "Secu-
rité, territoire et population' (D83, 719-723).1979:"Lapolítique de la santé au XVIIIe siêcle"
(D83,725-742), "Naissance de la biopolitique" (DE3,818-825). 1980: "Du gouvernement des
vivants" (D8 4,125-129). 1981: "Omnes et singulatirr : vers une critique de la raison politique"
(D84, 134-161). 1982: "Le sujet et le pouvoir" (D84,222-243), "Espace, savoir et pouvoir"
(D84,270-285). 1988: "La technologie politique des individus" (DE4, 813-828).
Poutoir [7276]: AN, 3, 4, 7, 9. Lt-15, 17 -18,24-26,29,31,33.34,36-40, 42-48, 50, 53- 54,56-58,65,70,74-88, 9 I -94,
96, t0], i05-i09,111-120,122-131,135,142,111-145,147 t19,152,1s7,160-t65,167 168,17-5,179-180,187 193,1s6,
t9g-202,206-207,210,215,217,226,231-232,234-236,239 243,250,253,259-260,264-265,267,270'271,274'275,279,
283,287,290-292,295-296,298-299,302,310'311. AS, l7-18, 24,32.,4t,52,56,61, 63,69'87' ll8' 124, 126, l'38, 145-
146. 150. 156, 158, 160, 163, 168,231,266,274. DEr,65,83, 105-106, 169,171,r77,184-t85, 192, 196, 199-201,208 209,
).12, 214, 220, 238, 215, 250-251, 253, 255, 259, 272, 279-280, 302,309, 3I 2, 333, 336, 362, 402, 1ll, 414' 419, 434' 442'
472,482,484,486-487 ,494,4gg,5ol, 5 18, 523-524, 52 570 ,573 575,589,
6,528 529,532-533, 536-539, 546, 555-557, 564,
'
591,598 599,603,624-628.630,639-640,615.648-649,658,674,680-681,688,695,699,722-723,727,732,740,644,753,
759,76r-763,766,773-774,796,801,804,818, 822,824.D82,22.29,33,56,61,69,84, 132, 139, 148-149, 154, 156-157,
173.187 , ),92-196,20t,2\t-21.2,217 ,224,226-227 ,231-238,242,250,255,259-261,272-275,282,285,287 ,297 ,298,300,
l, 333 ,336'337 ,340,342-31s,347-349,3s2,355,357 ,36t,363-364,366-368, 380, 184, 386,
30-5-306, 308-3 l 6, 325, 329, 33
388-392,397,399,40r 402,404,407,409-1t1,413-414,416-419,428,430 440,444-445,447448,451-458,462,464-466,
469-470, 493, 495 -+96, 497 , 499-506, 509-512,5r1,517,52 1, 523, 528 529, 533-535, 537, 544, 546-547, 519 550, 554-556,
560.562-572,578 585,588-589,593 609,615-616,6t8-620,622-626,632-636,638-645,651-656,658,660-663,665,668,
67 r-673, 67 5 676,678-686, 688-689, 691. 694, 696-697. 703. 705, 7 10, 7 t5-722, 724, 726-731, 734 739, 7 41 -7 43, 7 47 ,
751-760,764,77]1-773,77 6-781,786,790-794,796-800, 802-803, 805-806, 809, 8 1 1 -8 1 7, 82 1, 826-828. DE3, 8- 1 I, 1 3, 16,
18,2124,2610,47,50,5860,63,65-68,70,73-78,83,87,90-95,103-106,110-11.1,).24126,\29,134-160,165192,194-
195,197-206,210,212-218,221,223-224,228 234,240 253,257-259,262-269,271,284-285, 289, 300-306, 308 311,321,
326-328,330,332,337,344-345,317 349,362-364,366-368,374-375,37t'379,382,385 393,395-397,399-402,404-408,
4t0, 4t4-415. 417 , 420-425,427, 437,441,449-452,454,464-470, 472-475, 48 1, 486-488, 492,496,506,5t4-520,522 521,
526-543,545-552,556-557, 560-56-1, 565-569, 573, 57 5-577 , 58t,583-587, 592-59,1, 600-602, 607-608, 6 IL 6 1 3, 6 1 5-6 I 6,

618,620,622,624-632,635,639,641 -645, 649, 653, 65 5-656,662,664-666,669-670,67 2-67 3, 679-683, 687-688, 690-69 r ,

PODER (Pouvolr) 333


694-695,701,703,705,709,7 t7 -720,722,724,729,734 739,7 44-7 45,7 47 7 48,7 54_757 ,7 60,7 62,7 69,77 \ _772,77 5,777 ,

784,t'86-787,791794,797-799,803804,813,815816,822,824.DE4,10,11,16 19,25,29,31.38,40-41,46,62-63.73.
79,82-87,89 93, r03,105,107,109, n9, r24,126,135 144, t47-150,152,\56-157,159-161,165,171,178,180_195,197
202,205-207,210,214215,222-243,266,269-270,274,277 278,282,284,287,295,309-311,317,318,328,340,345,355,
358-359, 368, 370,374-376,386, 393, 395, 398, 408-409, 419, 423, 430,444,449 454,457 158,463,467,475,491,497 199.
502, 504-505, 507, 509, 5 1 I -5 1 3, 522,524,526,531,535 536, 540-54 l, 545, 552, 554, 565,566, 57 5-577 ,582 583, 585 586,
588590,593,596,615,6176r8,620-623,629,635639,64t,643,645,649,654,660,662.-663,667,676,678,693_691,
697-699,704,707-708,710-711,714 t'30,732-733,735,740 t'43,746-747,749-751,758,766,775,777,782-783,785,790,
HF, 16, 20, 3s--36, 55, 58, 70, 72 74,77,80,88, 99, 102-10_?, 105, 12s 126, t32,146,
801, 807, 8t 2, 818, 820-822,826 827.
149,158,16r t62,166,171,177,t79,185, r90-191,201,203 204,210,223,233,235,257,261,266,271,275,287,327,329,
336-337, 385, 4 l3 , 117 ,124,426, 433,435 436,442 443, 445,461,47 l, ,185, 490, 503, s08, 5 1 0, 527, 532, 542, 550, 554, 555,
557, 560, 568, 574, 577, 583, .581-586, 590, 59 1 592, 599-600, 606, 6 10 61 l, 6 18-6 1 9 ,624,627 -630, 638,640, 658, 669 670.
HS, 9, 1 7, 29, 33, 35, 37, 40, 43-45,53, 57, 60, 68, 71, 80, 84, U6, 97, 109, 1 13, 1 15, 122, t28, 139, r13, 145, 147,152, 158,
165,168 169,173,176,182, r91-192,198,201,210,213,218.227,231-232,241-242,257,264,267,271,278.283,285,290,
293,295,298,310-313,343,345-346,355,357 362,364-366,370,375,410,112,421,426,431,439,410,444,446,450-451,
458 459. HSl, 12 13,15-21.,26-27,33,35,42,44,45,57-58,60 62,64 6t',78,80 81,83,87,88 89,92-94,96-98, 104, 107-
144,163-164,168,17s,177-20t,204-211. HS2, t0-12,17,27,29-30,60,78 79,82,83,85,88,91, 93-97,99,106, 120, 141,

148 149,154, r62,167 168,170,185,188 193,197 199,201,216,2t8,234,236,238,240,246,218,252,2s7,267,27s 277.


HS3, 17,22,33,54,63,79-83,102-1 11, I l3-r r6, 121-122,124,145, 158, 173, 188, 191,208,220,227,247,254,261. IDS,
3,4,i019,2143,48,50,53,58-64,67-69,73,75-77,80-84,86-87,89-97,102,104109,111120,127,129,131-t37,139,
141,t43-146,149-151,155-161,164-1.65,167,169,175-179,18r 183,185 186,188 189,195,t97,199-200,203,206-207,
212-216,218-223,225-234.MC,7,8,34,36,38-39,45,54,56,62-64,74,75,78,80,8384,89,92,93,96,99-100,110-111,
1 13-l 14, 120-121, r27,129 1.30,132, 139,140, 162, 170, 180-181, 183-184, 186 189, 191, 192, 194,196 197,201 202,213-
215,235,238,24r,245,248,250,252,257 ,259,265-268,273-27 4,292 293, 302 303, 305, 307-308, 3 1 3, 320 321,324,330,

333, 341, 343-3,15, 347-3,18, 351, 360 361, 363. MMPE, 23, 26, 55. MMPS, 23, 26, 55, 80. NC, IX'XI, 2, 29, 48-49, 58, 60,
63 67,70,77, 85, 88, 97,109,126,146, 170, 173,186., OD, 7,9,12,18,20,22-23,34-36, 40, 48, 57,71-72. PP, 3-8, 10, 12,
I 4,- I 8, 2 l, 23 25,27 30,32 34,36, 4t-44,47 -50,52-61,65,73,75-84,86,92 93, 95- I 04, 107, tt2 t 14, \\6 \17, 123,126-
l27,l3t-138,143-153,155,160,165,168,170-t76,179-t89,191,194,196,198-201,208,212 21.7,219220,230,233-235,
23t--239,246,249-2s3,255257,261265,269-271,276-277,279,281290,299,304-305,309310,313-318,322,329,332.
Rn,1_3,17,383e,4s,7s,ao,e7,99-1O0,124,129,139.t51,t52,154,172,174,208.Sp,26_29,3035,37,39_40,42,45,
sl s4,s7-64,66 68,70 72,75-76,80 8s,90-92,9497,99,101,103-108,111,113, lt9,I2r r22,130,132,134,131J_142,
145, 150-151,154 ts-5, 157-158, 162-164,172-174,176-177,179,181,185-211,215 228,233_234,238,240,242,245 246,
250,252,258-260,266,27 t, 27 4,27 6, 278,283,285 286, 288,290, 295_296,302-303,306_3t5.

:=i: PODER PASTORAL (Pouvoir pastoral)

Yer'. Poder.
Pouvoir,pastoral[48]:D83,5a8-549,561562,566,587,719,804.DE4,40,137,139,141,144,148 149,161,229-
231, 409. 545, 629. HS, 44, 60. HS2, 17.

:::::. POLíCIA, ClÊNCIA DA POLíCIA (police, polizeiwissenschaft)

Yer: Razao de Estado.


Police[590]:AN,11,35,53,81,118,144,153,257.DF-L,\68,531,762,766.D82,24,108,134,174,194,198-203,
206-208,223,228,232,283,298,317,328-331,334-33s,340,343,351,353,358,366,383-384,395,398,419,437 439,416.

334 PoDER PASToRAL (pouvoir pastoral)

&
452,455-456,465,469,496,502 503, 522,526,531-532, 593, 596,598,600,604 605,609, 65',1,687,689-690,701, 716,
718,724,729-730,714,746-748,761,775,79s,810. DE3, 7,17,34,36, 68, 69, 93,94,120,149, 151, 182,2\1-213,215,
220-221.243,246,2,{8,250,325,333,339,341 342,361,366,389,394,397,406407,415-417,496,632,641,657-659,666,
668,679,683,687,696-697,70]l,712.71.4715,721-722,730-731,711-712,747'748,757,760.770,778,795-796,816 817,
825. DE4, 78, 86, 130, 150, 1 53-159, 161,203.230,270-273,275,3r8,336-337,352,640,667,744,762,781.816, 820-826.
IJF.16.72-73,8991,103,107-108,ll1,\21,123124,128,131,136,139,141,150,152,170,\76,181,447,496-'198,503,
527 -528,518,554-5s6, 620, 667-669, 68 1 -683, 687. HS l, 26, 35-36, 39, I 85. IDS, 29,72, 162, 167, 223. MMPE, 8 l. NC,
25-26,30,45,78-79,206,208. oD,37. SP,53,63,81'82,88,90,99, 117, 119, 12t-r22,\21'125,130,144, 145,214-217,
262 264, 272, 283 288, 291, 313.

::::. POPU LA çAO 1eop u I ati on)

O probiema maior que a Modernidade colocou para as tecnologias do governo foi a acumu-
lação de indivíduos. Foucault dedicou o curso no Collêge de France dos anos 1977 -197 8 ao tema
segurança-território-população. 'Através da análise específica dos dispositivos de segurança,
tratei de ver como aparecem os problemas específicos da população e, observando de perto
estes problemas, fui rapidamente levado ao problema do governo" (DE3, 635). A expansão
demográfica na Europa, no século XVIII, levou a uma ampla produção teórica no gênero "artes
de governar'l Foucault interpreta essa situação em termos de "desbloqueio epistemológico"
(DE3, 650). O surgimento da população, como uma realidade especíÍica, por um lado, deslocou
o modelo familiar como referência das técnicas de governo, e, por outro, levou a uma nova
definição do conceito de economia ou, simplesmente, levou à ideia de economia política (ver:
Governo).Até esse momento, as técnicas da estatística tinham funcionado dentro do marco
da soberania, ou seja, como instrumento da administração estatal. Pois bem, essa estatística
administrativa mostra que os fenômenos da população têm a própria regularidade, irredutível
ao modelo familiar. Mostram além do mais que o comportamento da regularidade
própria da
população tem também efeitos econômicos especíÍicos. A partir desse momento, inverte-se
a relação, desde o ponto de vista do governo, entre a família e a populaçáo: a
família aparece
como um elemento dentro do fenômeno global da população. A população se converterá, então,
no objetivo último do governo: "Melhorar as condiçoes da populaçâo, aumentar suas riquezas,
sua duração de vida, sua saúde; e o instrumento que o goYerno se dará para obter estes fins
que

são, de alguma maneira, imanentes ao campo da população, vai ser essencialmente a


população

sobre a qual atua diretamente mediante campanhas ou, indiretamente mediante as técnicas
que permitirão, por exemplo, estimular, sem que as pessoas se deem conta disso, a taxa de
natalidade ou dirigindo para uma região ou outra, ou para uma determinada atividade, o fluxo
da população. A população aparece, pois, mais que como a potência do soberano, como o fim e

o instrumento do governo" (D83,652).Como expusemos no verbete Governo,o surgimento da


população como objetivo e instrumento do poder não significou o desaparecimento do conceito
de soberania nem se contrapõe ao processo de disciplinarização (de caráter individualizante).
Trata-se, antes, de três fenômenos que é necessário estudar correlativamente e em suas relações
mútuas. A ideia de um governo da população fortalece a questão do fundamento da soberania
* "O descobrimento
e requer um aprofundamento das disciplinas (DE3, 654). Yer'. Governo.
da população é, ao mesmo tempo em que o descobrimento do indivíduo e do corpo adestráve1,

POPUTAçÂO,Poputation, 335
o outro grande núcleo tecnológico em torno ao qual os procedimentos políticos do ocidente
se transformaram' (DE4, 193). As disciplinas foram as técnicas políticas do corpo individu-
al; a biopolítica, a técnica do governo das populaçõe s. Yer: Biopolítica. * Para Foucault esse
conceito de populaçáo que surge a partir do século XVIII comporta dois elementos: por um
lado, a relação número de habitantes/território; por outro, as relações de coexistência que se
estabelecem entre os indivíduos que habitam um mesmo território (taxas de crescimento, de
mortalidade) existência (DE3, 730). * Acerca da relação entre a questão
e suas condições de
da população e o desenvolvimento da medicina, ver: Medicalização.
Population [624]: !tN, 41, 43-44, 65, 132, 189,206,255,27 l,279-280,293,30 L AS, I 7, 32,38, 69,87, 106,213-214.
DEl, 135, 140,203,294,690,701,705,7 t9,723,753,836-837,842. DE2, 100, t03, ),29, t34,160, t7 4, t7 6,182, 188- 189, 20 1,
204,27 1-278,297,300, 303, 306, 3 18, 323,325-326,330,334-335,339,349,353, 383-385, 410, 431,437 -438,460,464,469,490,
494,495, 499,509,524,529,531-532,534,582,585,595,602,604,609,612,655,663,718,722,743-744,748,762,779. DE3,
14- 16, 18, 2t-27,32, 48-49,62,66-69,89,93,96, 152-153, 192, 194,202,209-210,212,2t4,2t6-217 ,220-221,224-227,286,
288,292,299,327,330,38s-387,392-394,403,417,494,5t1,521,s32, s77,631,635,643,64s-646,650-657,663,684,696,701,
705-706,715,719,72t-723,727 -728,730-731,,734-740,7 46-7 47,749,761,7 68-770,772,792,796-800, 818-819, 824.DE4,21,
56, 60, 96, 143, t49,154,159- 161, 193- 195, 197,226,231,261,265,267,27 4,339,342,369,371,382,384,456,5tt,576,647,
654,699,815,826-827.}IF,7t,79,83,92,102,112, I 14, 139, 148, 151, 1,61-162,176,447,448,477-480,500,503-504, 509-512,
s14, 527, 581, 585, 622,687.}{5,1 10. HSr, 3s-37, 64,136,167,180, 183-185, 193.}152,238,277. HS3, 92, 96, 198. IDS, s5,
94, 107- 108, 134-135, ).42,161,178,213,216-220,222-228,230-23),,234.ÀIC,198-201,269-272,289. NC, 37, 65-66, 98. PP,
72, ).77,190,226,228. SP, 64, 66, 80, 85-87,90,192,200,213-214,220,239,267,270,279,283,286-287.

ã5i. POSITIVIDADE (Positivite)

Foucault utiliza o termo "positividade" para referir-se à análise discursiva dos saberes
desde um ponto de vista arqueológico. Determinar a positividade de um saber não consiste
em referir os discursos à totalidade da signiflcação nem à interioridade de um sujeito, mas à
dispersão e à exterioridade. Tampouco consiste em determinar uma origem ou uma finalidade,
mas as formas específicas de acumulação discursiva. A positividade de um saber é o regime
discursivo ao qual pertencem as condições de exercício da função enunciativa (AS, 163-167).
'Assim, a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico"
(AS, 167). Ver: A priori histórico, Enunciado, Formaçao discursiva.
Positivité [205]: AS,148,164-167,169,172,177,201-202,U.0,212,219 221,223 224,230,232,234-236,240,242-
246,249,251,253 254. DEr, 136, 144,147 149,151, 153-154, 157-158, 161, 165, 200, 239 340,486,520-521,523.526,
537 ,539,6 1 5, 688, 692-693 ,7).9-723,725,783. DE2,34,38, 89, 282, 750. DE3, 44, 432, 479,638. D84,543,767 . HF,80,
ll2,158,202,208,239-240,243,310,319-320,327,466,538,552, 574,627. HSr, 16, 113. HS2, 15. MC, 13_14,37,89,
1.77,230,232,237,251,257,264,268-269,292,294,307,310,324-328,332,344,346,348,351,357,360-361,364_367,
376-378,383-386,389,391-393. NC, VXI.36, 125. RR, 160.

:5ê. PRÁTIC A (Pratique)

Nos verbetes Episteme e Dispositivo, dissemos que o domínio de análise de Foucault


são as práticas. Episteme e dispositivo são, em termos gerais, práticas. As epistemes, práticas

336 PostTrvrDADE (postrtylré)


discursivas. "Finalmente podemos caracterizar agora o que se chama 'prática discursival Não
se pode confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma ideia,
um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode funcionar em um sistema
de inferência; nem com a tompetência de um sujeito falante quando constrói as frases gra-
maticais; um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no
é

espaço, que definiram para uma época dada e para uma área social, econômica, geográfica ou
linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa" (AS, 153-154). Os disposi-
tivos, por sua vez, integram as práticas discursivas e as práticas não discursivas. O dispositivo
como objeto de análise aparece, precisamente, ante a necessidade de incluir as práticas não
discursivas (as relações de poder) entre as condições de possibilidade da formação dos saberes.
"Em lugar de ocupar-se de uma história econômica, social, política, envolvendo uma história
do pensamento (que seria como a expressão e como seu doblete), em lugar de ocupar-se de
uma história das ideias que faria referência (seja por um jogo de signos e expressões, seja pelas
relações de causalidade) às condições extrínsecas, haveria que ocupar-se de uma história das
práticas discursivas nas relações específicas que as articulam com outras práticas'(DEl,686).
O domínio das práticas se estende então da ordem do saber à ordem do poder. Finalmente
Foucault incluirá também o estudo das relaçoes consigo mesmo. Por isso, pode-se afirmar que
de fato, ainda que nem sempre o determinando conceitualmente, Foucault utiliza o conceito
de prática desde as suas primeiras obras. Assim, por exemplo, em Histoire de la folie, analisa
a clausura ou o asilo em termos de prática; I'laissance de la clinique é o estudo histórico da
e
*
prâticamédico-clínic a; Surveiller et punir analisa as práticas punitivas. Pois bem, apesar da
importância que esse conceito tem em suas obras, não encontramos nelas nenhuma exposição
detalhada do conceito de prática; é necessário reconstruí-lo com base em outras indicações.
* Para isso, o primeiro texto a levar em consideração é "Qu'est-ce que les Lumiêres?" (DE4,
562-578). Nesse texto, Foucault coloca a necessidade de considerar a Modernidade como um
éthos (ver: Ethos),isto é, como uma atitude. Tal atitude deve traduzir-se, segundo Foucault, em
práticas
uma série de investigações ao mesmo tempo arqueológicas e genealógicas acerca das
que nos constituem historicamente. Foucault atribui a essas investigações três características
prática. 1) Homogeneidade'
[u., .- definitivo, delimitam e definem o que ele entende por
Essas investigações não se ocupam das representações que os homens têm de si mesmos ou
das condiçoes que os determinam, mas, antes, de'b que fazem e a maneira em que o fazem';
mais precisamente ainda, de "as formas de racionalidade que organizam as maneiras de fa-
zer" (D84,576). Também poderíamos falar, em lugar de racionalidade, de regularidade. Em

Ihrchéologie du savoir,Foucault se servefrequentemente do conceito de regularidade para


caracÍerizar as práticas discursivas (AS, 98, por exemplo). A propósito da racionalidade ou
regularidade das práticas, Foucault fala de "aspecto tecnológico'l Também é necessário analisar
a liberdade com a qual os sujeitos atuam nesse sistema de práticas; o que Foucault denomina
o "jogo estratégico" (D84,576). 2) sistematicidade. Essas investigações exigem, além do
mais, que se considere sistematicamente o domínio das práticas, isto é, que se leve em
consideração o eixo do saber (as práticas discursivas), do poder (as relaçÕes com os ou-
tros) e da ética (as relações do sujeito consigo mesmo), no que elas têm de específico e
em seu entrelaçamento. j) Generalidade. Por último, as práticas estudadas possuem um
caráterrecorrente(asrelações entrerazã,oeloucura,enfermidadeesaúde,crimeelei).

PRÁTlcA (Pratique\ 337


Não há que interpretar, no entanto, essa generalidade ou essa recorrência como se se tratasse
de uma realidade meta-histórica cuja permanência e variações haveria que reconstruir através
da história. A generalidade das práticas é, em si mesma, uma configuração histórica singular
(D84,577) . Nessesentido, Foucault fala de uma redução nominalista da antropologia f,losófica
(D84,579). * Um segundo
texto relevante é a introduçáo a llusage des plaisirs. A história da
sexualidade não é uma história nem dos comportamentos nem das representaçÕes, mas de
uma experiência; "se se entende por 'experiência a correlação, em uma cultura, entre domínios
de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade" (HS2, 10). . O terceiro texto é

aintrodução geral a Histoire de la sexualité,"Préface à l"'Histoire de la sexualité"" (DE4,


578-584). Aqui Foucault interpreta a análise histórica das formas de experiência em termos
de "pensamento'l "Por'pensamento' entendo o que instaura, em diferentes formas possíveis,
o jogo do verdadeiro e do falso e que, por consequência, constitui o ser humano como sujeito
de conhecimento; o que funda a aceitação ou o rechaço da regra e constitui o ser humano
como sujeito social ou jurídico; o que instaura a relação consigo mesmo e com os outros, e
constitui o ser humano como sujeito ético. Assim entendido, não há que buscar o pensamento
nas formulaçoes teóricas, como as da filosofia ou da ciência; ele pode e deve ser analisado em
todas as maneiras de dizer, de fazer, de conduzir-se, nas quais o indivíduo se manifesta e age
como sujeito de conhecimento, como sujeito ético ou jurídico, como sujeito consciente de si e
dos outros. Neste sentido, o pensamento é considerado como a forma mesma da ação, como
a ação na medida em que ela implica o jogo do verdadeiro e do falso, a aceitação ou o rechaço
*
regra, a relação consigo mesmo e com os outros" (D84,579-580). Em resumo, podemos
da
dizer que Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que
os homens fazem ("sistemas de ação na medida em que estão habitados pelo pensamento")
(DE4, 580), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por
isso, constituem uma "experiência'ou um "pensamento'l
Pratique [2028]: AN,7-l l, 14 15, 19,22-23,30-31,35 36,38-41,52,55 57,59,63,65,91,95, 102, 123, 128, 130,
1,1rJ-149, 155, 16s 166, 169-171, 173,177-t78, t82-18s, 187, 198,202,20s,207-209,226,234,238,245,253,284,309. AS,
t7, t9,22,24,46,57,63,65-66, 68, 70,71,73-74,83, 90-91, 96, 98-99, 101, 106, I 53, I 60, 168, t7 t _172.189 190,202 204,
206,212-215.221,227-228,230,233-235,237-240,242-247,249,251 255,261,266,272 274. DEl, 121, 136, 139, r41,
1,16- i 56, 1 58, 232, 269,372,390,416. 429,455-456, 498, s4 r, 557, 559-s60, 580 -58 1, 590, 596, 633, 6s 1, 655, 658-659, 679,
683, 687 695, 699-700,707 ,722-723,7 53-754,7 58,763,772,775-778,783, l, 827, 843, 845. DE2, 8, 20,
785, 787 ,792,80
31,51,80, 119,122,131,147,158, 163, i66, 168, 170, 176, 183,207-209,211,213 2r4,2t7,219,225,227,2.41,243,248,
257 258,268,271,282 283,297,307 -309, 317, 319-320, 338, 344-346, 350, 352, 3s8, 360, 362, 369, 376, 380_381, 390 393,
397, 407 , 422,437, 445, 457 ,462 464, 466, 468 469,47 4, 481-482, 5I 8, 524, 529-530, 536, s,10_54 l, 556, -573, s77, 582, 585,
s91-592,594-596, 602-603,607 608,619,623,631 632,634-638, 640 641,644-615,661 662,661,667,673 674,676,678,
680 681,68s-686,688,693-696,709,736,738,739,745,749,758-759,775,777_779,808,810 811,813_815,825. DE3,8,
t3-14,16,29,44,47-48,51,59,70,74-75,77 78,80,84, 109, tl4, 113, 135, 141, 154, 160, 163, 166, 193, 209,212 2t3,222,
233, 238, 299, 306, 308-3 1 0, 322, 334,336 337 .340-34 1, 345, 348 -349,362 364, 380, 389, 395-396, 4 I 2 ,414, 4lg, 421, 426,
43t , 453-154,159, 46s, 486, 490 492, s02-503, 508 , st2,5\7 ,521,52s, s27 ,537 -538, 5s4, -56,1, 572, 577, s8s, 590, 608 609,
618,621,640,649,672,674-675,678,704,726-727,729,749,758,762,764,795,796,805,808,811,813,818_823.DE4,
13,15,18,21-22,).4,2627,29-30,36,40,46-47,51,54,60,67-68,77,126,127,133,1.18149,152,169-170,t73,t78,202,
204,20t--209,215 216,221-222,224 225,246,275 277,281,285,287,293,306, -109 310,318,328,331 332,335-336,35,1,
357-358, 361-363, 365,316 377,387,392,396, 397, ,100 ,102, 404-405, ,110 _411,416,419 421,425,428 430,440,449,452,
160, 463-464, 466,468, 472,478,481 -4U3, 490, 500, s09, 51I,5 14, 520, 53 1, 533, s39_540, 5 46 547 , s49,554,555 ss6, 558,
566,570,571-575,578-579,582,585,587,592,595-596,598,612 613,617,620,62s,627,631,633,636,638,641-642,644,
647,656-657,660,666-667,669 67t,673,680,688,691,693,700,708-714,718-719,727,731,736-737,742_743,747 749,
754,784-785,787,794-795,797 800, 803, 807-808, 8I 2-8 1 3, 8 18, 82 l, 823-821,827 . HF, 2 1, 25, 59, 76, 80, 87, 1 03, 128_ 129,

338 PRÁTtcA (Pratique)

À
r31, 145, 151-r52, 154, 158-1s9, 161, 165, 167 168, 171-174, t77.1.79 180,183-185, 192,208,210'211,215,217-2t8,220,
223 228,244, 245,258,261-263,277 ,280, 282-283, 285, 29 1, 3 I 7, 330 33 1, 333, 344, 348, 35 1, 354, 358, 363, 375, 386-387,

390 392,397,400 401,403-,10,1,410 412,421, 453,497,507,523,526,533,556,580,587,626 630,641,682,684 686 HS,


4.16.18,32,44,4650,56,59,73,74,79-80,83,85-96,101-106,108111,113-115,tt7,121123,125-126,131133,138-139,
144, 147-1s1, 155 156, 158, 163 164, 166, 170,173,175,180, 183, 192, 197,t99 202,205,207,209,213,217,220,228 229,
233. 235. 239, 243,245,249,284, 286, 30 I -305, 3 13, 3 I 5-3 I 7, 3 I 9, 323 324, 338-340, 342,344-345,347 ,349,352,358, 363'
367, 369, 37 l-375, 377 ,386, 395, 398-399, 402-403, 407, 41 1, 415, 42t, 427 -429, 436, 442-143, 445-446, 448, 457 , 159-162,
468. HS1, 12,27.46,59,72,77-78,83 84, 88-89, 91, 108, 142, 147,157, 17r 172,197, t98,205. HS2, 9, 10, 13, 18, 21, 23,
30-33.35,39,1s,47,5253,55-57,6365,67-68,73,82,85,87,89,91,96,I00-102,10s,107,111-114,116119,121'123,12s'
129, 131 133, 136, 1,10, 160-162, I65, 167, 170, 173, 181, i85, 187,200,202, 208,210,212,216,230,234.236,266'267'273
271,278.IJ53,15,17,19,21,).4,29,37,11,13-44,5,1.58 59,67-69,73 77.89-90,92-93.96, 101, 108, I l0 1lI, 116, 121, 123,
141-143, 145 146, 153, 17,1 175, 180, 184, 191, 198,200,202,208, 2l(t,212,215,219-220,225,229-23r,236,211,251-252.
253,260,263-264,269,271,,2t-3. IDS,4,7, 11,42,50, 57,61,64,66,69,74,85-86,89,94'95,129' 136, 145, 154, 1s8 I59,

161,r75,214,2ru.MC,7,12,99,179,185,187,208,216,218-219.281.,308,356,387,389.MMPE,4,15,16,79-81,110 111.

MMPS,4.15-r6,105.NC,IX,2-5,1416,30,33,35,44,46-48,5051,54-55,57-58,62,68-71,75,78 79,81'82,84,90,92-93,
98, 105, 111, 113, 115, 127, 167, 184, 188,205,208,210 212. OD,35,55,62 63,66,71.PP.8'10, 12, 1',1-15, l7 18,21,27-30,
3233,35-36,52,54,66,68-69,71,75,88,100,102,105107,113,117,t23,125,127-128,131 134,137,148,156'158,164,168,
t7o-172,t75,177-178, 183, 189-190, 196 198, 199,205,209, 212-».4,21.7 218,221,225,233-236,238-239,241-242,244 245,
248-250, 255, 257.259,26r,265,267,269,272,278 280,285-287,289,29,297-299,307,314,319' 329. RR,203. SP,20, 22,

2425,27-28,36,43-46,53,55,59-60,65,71,76,79,84,91,99-102,104,121,128,159,161 162,165'r70,r79'185,200,210,
216, 251-2s6, 263, 282, 285, 290, 302.

::=:. PRISÃO (Prison)

Modelos punitivos. Além de Surveiller et punir, Foucault dedicou ao tema da prisão


ou, mais exatamente, à história do castigo os cursos no Collàge de France dos anos l97l-1972,
Théories et institutions pénales, e de 1972-1973, La société punitive. O primeiro desses cursos
se reveste deum caráter preliminar e preparatório. Neste curso, como naquele do ano prece-
dente(La volonté de savoir,lgT0-1971), Foucault se ocuPa da relação saber-poder, ,enhum
é uma
saber se forma sem um sistema de comunicação, de registros, de acumulação que
forma de poder vinculada a outras formas de poder e, por outro lado, nenhum poder funcio-
na sem apropriar-se de formas de saber. 'A este nível, o conhecimento não está de um
lado e

a sociedade de outro, ou a ciência e o Estado, mas as formas fundamentais do'saber-poder"'


(D82,389-3g0). Foucault se ocupa, em La société punitive, de duas formas de saber-poder:
a investigação e o exame (ver os verbetes respectivos). No ano precedente, ele havia
se ocupa-

do da medida na Grécia clássica. Como veremos, o interesse de Foucault pelo tema da prisão
se articula em torno da mesma questão, isto é, do funcionamento das formas de saber-poder.
A prisão foi o modelo institucional da sociedade de exame, e seu funcionamento, o da socie-
*
dade disciplinar. Pois bem, para situar o nascimento da prisão, Foucault parte da análise das
formas clássicas do castigo. Neste sentido, distingue quatro táticas punitivas e quatro formas
sociais correspondentes: 1) o exílio (expulsar para além das fronteiras, confiscação de bens),
2) a compensação (converter o delito em uma obrigação Íinanceira), 3) a exposiçáo (a marca,
o signo visível sobre o sujeito castigado) e 4) a clausura. Ainda que se possam encontrar todas
essasformas nas diferentes épocas e sociedades (de fato, as encontramos na Época clássica),
segundo a técnica punitiva que privilegiou, pode-se distinguir, respectivamente, quatro tipos

PRrsÃo (Prlson) 339


de sociedade: sociedades de desterro (a sociedade grega); sociedades de ressarcimento (as
sociedades germânicas); sociedades que marcam (as sociedades ocidentais do final do medie-
vo); e sociedades que enclausuram (a nossa) (D82,456-457). * Segundo Foucault, as diferen-
tes formas de clausura que se praticavam até o final do século XVIII não tinham caráter penal,
situavam-se, antes, fora do sistema judicial. No século XIX, no entanto, a prisão se converte
na forma geral do castigo. Essa implantação da prisão, desde o começo, foi acompanhada de
críticas e questionamentos: a prisão impede que o sistema judicial possa controlar a aplicação
das penas; misturando diferentes condenados, forma uma comunidade homogênea de crimi-
nosos; subministrando teto e comida para os detentos, pode converter-se em um lugar de
atração para os delinquentes; pelos hábitos que impõe, pode provocar que os condenados se
dediquem definitivamente à criminalidade (DE2, 458-459). Apesar dessas críticas e dos
projetos de reforma que pretenderam dar-lhes solução, o que era criticável acabou impondo-
se como uma fatalidade do sistema carcerário. "É necessário perguntar-se como foi possível
esta inversão; como os efeitos denunciados e criticados, no final das contas, puderam ser
considerados como os dados fundamentais para uma análise científica da criminalidade; como
pode acontecer que a prisão, instituição recente, frágil, criticável e criticada, tenha podido
enraizar-se no campo institucional com uma profundidade tal que o mecanismo de seus
efeitos tenha podido oferecer-se como uma constante antropológica; qual é finalm enÍe arazão
de ser da prisão; a que exigência funcional ela respondeu" (D82,460). Os reformadores.
Essa interrogação múltipla acerca da prisão é ainda mais necessária porque a prisão não pode
ser vista como o resultado da reforma penal que começa na segunda metade do século XVIII
e que se cristaliza com os novos códigos penais do século XIX. Nenhum dos reformadores do
sistema penal propõe a prisão como forma universal de castigo: nem Beccaria, nem Servan,
nem Le Peletier de Saint-Fargeau, nem Brissot. Pois bem, segundo Foucault, o movimento de
reforma da penalidade que se esboça a partir da segunda metade do século XVIII não pode
ser interpretado em termos de humanização das penas (SP, 80). Por um lado, é necessário ter
em conta uma nova política das ilegalidades (ver: llegalidade); por outro, o discurso dos re-
formadores, estrategicamente coincidente. Não se trata simplesmente de uma crítica da
crueldade do suplício, mas de uma noya economia do poder. "Em suma, os reformadores, em
sua grande maioria, a partir de Beccaria, trataram de definir a noção de crime, o papel da
parte pública e a necessidade da punição, somente a partir do interesse da sociedade ou apenas
apartir da necessidade de protegê-la. O criminoso lesa, antes de tudo, a sociedade; rompendo
constitui em um inimigo interior" (D82, 461). Por isso, porque o castigo
o pacto social, ele se
não deriva da falta, mas da lesão infligida à sociedade, cada sociedade deverá modular a es-
cala das penas. Cada sociedade, além do mais, deverá assegurar que a pena cumpra a função
de proteção da sociedade; toda severidade suplementar constitui um abuso. Em todo caso, na
mentalidade dos reformadores, a pena está orientada para o exterio r e paÍa o futuro; trata-se
de impedir que o crime se repita. Neste sentido, encontramos três grandes modelos punitivos:
a infâmia, o talião, a escravidão em favor da sociedade. Neles, ainda que às vezes apareça como
instrumento, a prisão não é, de nenhuma maneira, a forma geral do castigo. * Partindo da
ideia de contrato social e do delinquente como aquele que rompe o pacto, os reformadores
propuseram toda uma semiotécnica do castigo que repousa sobre seis princípios gerais. 1) A
regra da quantidade mínima: aqueles que cometem crimes o fazem perseguindo determinada

340 PRtsÃo (Prison)

&
vantagem que creem obter. Se se vincula à ideia de crime uma desvantagem maior, ele deixa-
ria de ser desejável. Basta, então, uma quase equivalência para evitar o crime. 2) A regra da
ideaiidade suficiente: o que deve ser aumentado não é a realidade corporal da pena, mas a sua
representação. 3) A regra dos efeitos laterais: a pena deve surtir efeito naqueles que não co-
meteram crimes. 4) A regra da certezaperfeita: à ideia de cada crime e de suas vantagens, há
que vincular a ideia de seus inconvenientes precisos. 5) A regra da verdade comum: despojar
o aparato judicial de seus procedimentos inquisitoriais e abri-los àrazâo comum, a todas as
verdades, basta que sejam evidentes e sensíveis ao senso comum. 6) A regra da especiÍicação
ótima: é necessário classificar todas as infrações, reuni-las e classificá-las (SP, 96-101). "Sob
a humanizaçáo das penas, se encontram todas estas regras que autorizam, melhor, que exigem
a'moderação fdouceur),como economia calculada do poder de castigar. Mas elas reclamam
também um deslocamento no ponto de aplicação deste poder: que não seja mais o corpo, com
o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das marcas resplandecentes no ritual dos suplícios;
que seja o espírito ou, antes, um jogo de representações e de signos que circulam com discri-
ção, mas com necessidade e evidência no espírito de todos"
(SP, 103). O nascimento da
prisão. Segundo Foucault, a forma-prisão, como mecanismo essencial do panoptismo mo-
derno, preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais; ela foi elaborada no processo
geral de disciplinarização da sociedade no final do século XVIII (ver: Panóptico). Ela, em
poucas palavras, se formou com a sociedade moderna. Na passagem do século XVIII para o
século XIX, a forma-prisáo colonizou finalmente o aparato judicial, até converter-se na base
do edifício penal. Trata-se do momento em que a nova legislação define o poder de castigar
como um poder geral da sociedade e que se exerce sobre todos os seus membros (uma justiça
igual para todos e um aparato judicial autônomo) (5P,233-234). A partir de entã0, apesar dos
inconvenientes, a prisão se impôs com uma evidência tal que não se sabe pelo que ela poderia
ser substituída. Para Foucault, essa evidência se apoia sobre as suas duas funções. Em primei-
ro lugar, a privação da liberdade. Com efeito, em uma sociedade em que a liberdade é um bem
que pertence a todos, a privação da liberdade se apresenta como a mais igualitária das penas.
Além de medir o tempo de privação da liberdade, a prisão traduz em termos econômicos a

ideia de que a infração feriu a sociedade. A segunda função é a transformação dos indivíduos.
A prisão é como "um quartel mais restrito, uma escola sem indulgência, uma fábrica sombria;
mas, no limite, nada de qualitativamente diferente" (SP, 235). Desde seu início, no entanto,
ela foi objeto de teorias e de reformas. "Não há que se ver a prisào como uma instituição
inerte que os movimentos de reforma teriam sacudido a intervalos. A'teoria da prisão foi seu
modo de emprego constante, mais do que sua crítica incidental, uma de suas condições de
*
funcionamento" (SP, 237 -238). As prisões, segundo a expressão de Baltard que Foucault cita
(SP, 238), devem ser instituições completas e austeras, um reformatório integral onde é reco-
dificada toda a existência do indivíduo; muito mais, então, que a simples privação da liberda-
de e do que os mecanismos de representação dos reformadores (SP, 239). Foucault aponta
três princípios fundamentais da organização das prisões nos quais aparece esse excesso com
respeito à simples privação da liberdade. 1) O isolamerzfo. Isolamento com respeito ao mun-
do exterior e isolamento também entre os detentos. "O isolamento assegura o'cara a cara'
do detento com o poder que se exerce sobre ele" (SP, 240). Uma individualizaçao coerciti-
va mediante a interrupção de toda relação que não pode ser controlada pelo poder que vigia.

PRlsÃo (Prlson) 34 l
2) O trabalho. Não se trata, no entanto, do trabalho concebido como exemplo e reparação
social, como o entendiam os reformadores; mas dos efeitos que produz na mecânica humana:
uma máquina 'que transforma o detento violento, sem reflexão, em uma peça que desempenha
sua função com perfeita regularidade" (SP, 245). O trabalho deve assegurar a sujeição ao
'tJm
aparato de produção. 3) instrumento de modulaçao das penas. A prisão permite "mo-
dular a pena segundo as circunstâncias e dar ao castigo a forma mais ou menos explícita de
um salário" (SP, 247). Desta maneira, a duração da pena se ajusta à transÍbrmação útil do
detento. Esse "excesso" da prisão com respeito à privação da liberdade tem sua raiz "no fato
precisamente que se exige da prisão o ser'útill no fato de que a privação da liberdade (esta
apropriação jurídica de um bem ideal), desde o início, deveu exercer uma função técnica
positiva, realizar a transformação dos indivíduos. E, para esta operação, o aparato carcerário
recorreu a três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e da
hierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo téc-
nico-médico da cura e da normalização. A cela, a fábrica, o hospital. A margem pela qual a
prisão excede a detenção está satisfeita, de fato, por técnicas de tipo disciplinar. E, este suple-
mento disciplinar, com respeito ao jurídico, é o que, em suma, se chama o 'penitenciário"' (SP,
25 1). * Este "excesso" não se instalou sem diÍrculdades, mas acabou por se impor. A razão, para
Foucault, há que buscá-la no fato de que através do penitenciário a justiça criminal entrou no
campo das reiações de saber. A prisão é, de fato, um lugar de observação dos indivíduos, um
sistema de documentação individualizanÍe e permanente. "Mas isso implica que o aparato
penitenciário, com todo o aparato tecnológico do qual se acompanha, leva a cabo uma curio-
sa substituição: das mãos da justiça, recebe um condenado; mas aquilo sobre o qual deve
aplicar-se não é, certamente, a infração nem tampouco exatamente o infrator, mas um objeto
diferente e definido por variáveis que, ao menos no início, não eram levadas em conta nâ
sentença, porque elas só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva. Este outro persona-
gem, que o aparato penitenciário substitui ao infrator condenado é o delincluenfe" (SP, 255).
Enquanto o infrator se caracteriza por seus atos, o delinquente se caracteriza pela sua vida. *
Foucault considera o ano de 1840, mais exatamente, o 22 dejaneiro, como a data em que
culmina a formação do sistema carcerário. Trata-se do dia da inauguração oficiai da colônia
de Mettray: 'A forma disciplinar mais intensa, o modelo onde se concentram todas as tecno-
logias coercitivas do comportamento" (SP, 300). "É a emergência ou, melhor, a especificação
institucional e como que o batismo de um novo tipo de controle (ao mesmo tempo, conheci-
mento e poder) sobre os indivíduos que resistem à normalização discipiinar" (SP, 303).
Momento contemporâneo do nascimento da psicologia científica (Weber). Em suma, trata-se
do período de normalização do poder de normalizaçáo. Período em que o universo carcerário
se une a todos os mecanismos disciplinares que funcionam, de maneira disseminada, na so-
ciedade. "[..] o arquipélago carcerário transporta esta técnica da instituição penal para todo
o corpo social" (SP, 305). Essa transposição teve vários efeitos maiores: 1) O estabelecimento
de uma graduação lenta, contínua e imperceptível que permite passar da desordem da infra-
ção, como transgressão da lei, à distância com reiação a uma regra, de uma media, à exigência
da norma (SP, 306). 2) O carcerário permite recrutar os grandes delinquentes. "Não é nas
margens e por um efeito de exíiio sucessivo que nasce a criminalidade, mas graças à inserção
cada vez mais estreita, sob vigilâncias cada vez mais insistentes, pela acumulação das coerções

342 PRtsÃo (prison)


disciplinares" (SP, 308). 3) Torna natural o poder de castigar e diminui o limiar de tolerância
da penalidade (SP, 308). Mescla sem cessar a arte de retificar e o direito de castigar. 4) Faz
valer uma nova forma de "lei": composição de legalidade e de natureza, de prescrição e de
constituição, isto é, a norma. 'A rede carcerária, em suas formas compactas ou disseminadas,
com seus sistemas de inserção, de distribuição, de vigilância, de observação, foi o grande su-
porte, na sociedade moderna, do poder normalizador" (SP,311).5) "O tecido carcerário da
sociedade assegura, ao mesmo tempo, as apropriações reais do corpo e sua perpétua observa-
ção; ele é, por suas propriedades intrínsecas, o aparato de castigo mais conforme à nova
economia do poder e o instrumento para a formação do saber de que mesmo esta economia
tem necessidade" (SP, 311). 6) Tudo isso explica, para além de suas controvérsias, a extrema
solidez da prisão. "Se existe um questionamento político de conjunto em torno à prisão, não
setrata, então, de saber se ela é corretiva ou não; se os juízes, os psiquiatras ou os sociólogos
exercerão nela mais poder que os administradores e os vigilantes. No limite, este questiona-
mento não se situa na alternativa entre a prisão ou algo distinto da prisão. O problema atual-
mente está, antes, na grande ascensão destes dispositivos de normalização e toda a extensão
dos efeitos de poder que eles aportam através da colocação de novas obj etividades" (SP, 3 1 3).
Uma história política do corpo. Para Foucault, a história da penalidade no século XIX não
forma parte da história das ideias morais, mas da história geral do corpo. A substituição do
suplício pela prisão é a substituição do corpo marcado pelo corpo dirigido, cujo tempo é
medido e suas forças ordenadas para o trabalho.'A forma-prisão corresponde à forma-salário
do trabalho" (D82,469). Por isso a medicina, como ciência cla normalidade do corpo, insta-
lou-se no coração da prática penal. Mas a prisão não é somente um capítulo da história do
corpo, mas, antes, das relações entre o corpo e o poder político. Neste sentido, para Foucault,
haveria que escrever umafísica do poder; uma nova ótica (orgao de vigilância generalizada
e constante); uma nova mecânico: isolamento e reagrupamento dos indivíduos; uma nova
definição das normas, exclusão do que náo se conforma a elas, intervenções corre-
fisiologia:
rivas (DE2, 469). Ajustificação da prisão: a delinquência. Como dissemos, a prisão foi
objeto, desde o início, de críticas e denúncias: não diminui a taxa de criminalidade, provoca
a reincidência, fabrica delinquentes, favorece a organização do meio deiinquente, etc.
(SP, 269-

273).Masa resposta a essas críticas foi propor novamente a prisão. "Não é necessário, então,
conceber a prisão, seu 'fracasso' e sua reforma, mais ou menos bem aplicada, Como três tem-
pos sucessivos. É necessário, antes, pensar em um sistema simultâneo que historicamente se
superpôs à privação jurídica da liberdade; um sistema com quatro termos que compreende:
o 'suplemento' disciplinar da prisão (elemento de superpoder), a produção de uma objetivi-
dade, de uma técnica, de uma racionalidade'penitenciária" (sP,275-276). A prisão não
corrige; antes, constitui uma população marginalizada que serve para controlar as irregulari-
dades e as ilegalidades que não possam ser toleradas: conduzindo as ilegalidades à infração
da lei, integrando os delinquentes ao sistema geral de vigilância, canalizando os delinquentes
para as regioes da população que requerem maior vigilância (DE2, 269-270; sP, 282-283).
"Se, então, retomamos a questão do início: por que esta estranha instituição da prisão, por que
por uma penalidade cuja disfunção foi logo denunciada? Talvez seja necessário
esta escolha
buscar uma resposta deste lado: a prisão tem a vantagem de produzir delinquência, instru-
mento de controle e de pressão sobre a ilegalidade, peça não desprezível no exercício do poder

pRtsÃo (Prlson) 343


sobreocorpo,elementodestafísicadopoderquesuscitouapsicologiadosujeito'(D82,470).
* Para a relação procedimentos disciplinares-formas de saber-ciências humanas ver Disci-
,
plina.Para completar a análise foucaultiana da forma-prisão, ver: Panóptico.
Prison [1015]:4N,25,26,29'31,50,72,133,138,260.45,60. DEl,70, 106, 184, 222,409,504,530, 637,66t,
761,794.DEz, l 9, 109, 1 1 7, 17 4-181,193,194, t96-197 ,204-206,208-209,230,232,236-237 ,297-303, 306, 3 I 0-3 1 3, 3 I 7,
319,322,330,336, 350-353, 358 -359,386-389,394-395,397, 40'\, 405, 426-428,430-432, 435, 437 -441,444,453,457 -464,
466, 468-470,505 506, 525-53 1, 533, 592,595,602-603, 609-6 1 1, 61 3 -614, 619 62t,661,687 -688,7 14,7 t6,7 t7 -7 18,722,
724-729,731,740-742,744-747,749,751,759,774-777,780,792,795,805-806,818.D83,7,36,65-71,86-88,93-94,r11,
r40, 157 ,164,191,253,2ss,262,285-286,289,292,294-29s,300,308,309,330,332,341,346,3s9,36t,366, 389-390, 393,
399,402,413,416,445,457,466,473-474,480-481,508,529,534 535,542-544,551,568,599,628,63t,633,654,666,670,
673,693,696,757,764,766,780,782,802,806-809,811,812-818.DE4,7-8,10,l3-15,2024,27,31,35-36,46,78,80-81,
83, 85-86, 88, t05, 122, l3t, t80,195-196,202,204,206-207,209,277 -278,280,319,35t-352,399, 472,522 523,636 637,
639-641, 643, 645, 657 , 662, 664,669, 688-689, 691.-693, 695,7 48-7 49,7 60, 779. IlF, 25-26, 96, t04, 147, 1 53, 163- I 64,
t82,344,444,449,451,50r, 52s,576,s83,602,65s,68r. HS, 175, 177,179,201,215. HSr,65. HS3,28, 112. IDS,8,
167. MMPS,80. NC,79,81. PP,30,35,61,75.76,78,87,92,191. SP, i4, 16, 18-19,2t,26,34,3s-36, ss, 110, 116-117,
I 1 9- 123, 125- I 30, 1 33- I 34, 1 84, 206,225,229,23r,233,234-255,258-260,262,267 -273,275-277,281 -284,286-287 ,289,
29t, 293, 295, 300-301, 303-309, 312-3t4.

?55 PSICAGOGIA (Psychagogie)

Yer: Pedagogia.

Psychagogie I8J: HS, 378, 390.

ir?. PSICANÁllSr Psychanalyse)

Nos textos de Foucault, encontramos frequentes referências à psicanálise. Em nenhuma


delas, no entanto, encontramos uma exposição mais ou menos sistemática dos conceitos
psicanalíticos; são, antes, observações desde a própria perspectiva de Foucault. Trata-se, além
disso, em geral e desde seus primeiros escritos, de observações de caráter crítico. Evolução,
história. Em Maladie mentale et personnalifé, Foucault insiste na necessidade de compre-
ender a doença mental a partir do "homem mesmo"; mais precisamente, a doença mental não
pode ser dissociada da história concreta, da relação entre o sujeito e os conflitos sócio-histó-
ricos com os quais se encontra enfrentado (ver: Loucura). O mecanismo de formação e o
sentido da doença mental só são compreensíveis a partir da história. Em poucas palavras, a
alienação histórica é a condição de possibilidade da alienação psicológica. Por isso, Foucault
distingue e opõe evolução e história, desenvolvimento da natureza e condições socioculturais.

A regressão psicológica, como involução, é só um efeito provocado pelas condições históricas;


é só a descrição, e não a explicaçáo da doença mental. Desde essa perspectiva, encontramos
várias referências críticas à psicanálise. * O erro originário da psicanálise consiste em não ter
distinguido suficientemente a dimensão evolutiva e a dimensão histórica. Algumas análises
se inscrevem na dimensão evolutiva (como os Três ensaios sobre a sexualidade, de Freud) e
outros na dimensão da história individual (como as Cinco lições de psicanálise, também de

344 PstcAGoGtA (Psychagogie)


Freud) (MMPE,37).* A psicanálise situa a origem destes conflitos (traumas, mecanismos de
defesa, angústia) nas fronteiras da mitologia: a luta entre o instinto de vida e o instinto de
morte, entre o prazeÍ e a repetição, entre Éros e Thánatos. Mas, deste modo, erigem-se como
princípio de solução os dados do problema (MMPE, 86). * com a noção de inconsciente, só
se penetra nos mecanismos internos da doença recorrendo às astúcias do instinto e à latência
do passado (MMPE, 108). * "Pode-se dizer que a psicanálise é uma psicoterapia abstrata na
medida em que ela constitui, entre o paciente e o médico, um meio artificial, intencionalmen-
te separado das formas normais e socialmente integradas das relações inter-humanas; na
medida também em que ela busca dar aos conflitos reais do paciente o sentido de conflitos
psicológicos; às formas atuais da doença, a significação de traumatismos anteriores; na me-
dida, finalmente, em que ela dispensa as soluçoes reais, propondo, como substitutos, a libera-
ção dos instintos que sua mitologia imagina ou a tomada de consciência de pulsões onde seu
idealismo crê reconhecer a origem dos conflitos objetivos" (MMPE, 109). Psiquiatria, an-
tipsiquiatria. A Histoire de la folie não chega até o surgimento da psicanálise; no entanto,
numerosas observações vinculam a psicanálise com a história da loucura e da desrazão. Como
expusemos no verbete Iouutra,paraFoucault, o gesto "liberador" de Pinel é na realidade um
novo modo de sujeição da loucura nas estruturas do asilo moderno e do discurso psiquiátrico.
* "Freud deslocou para o médico todas as estruturas que
Pinel e Tuke haviam acomodado na
internação [...] O médico, como f,gura alienante, continua sendo a chave da psicanálise" [HF,
*A psicanálise busca apenas ressituar, modificando-as,
63 1 ). as relações de poder da psiquia-
tria tradicional (D82, 639). * A diferença da psicologia, a psicanálise restitui à medicina a
possibilidade de um diálogo com a desrazão. Freud, com efeito, aborda a loucura a partir da
linguagem (HF, 428). Deste modo, substitui o olhar asilar que vigia pela palavra indefinida-
mente monologada do vigiado; mas, nessa sr.rbstituição, na reciprociclade não simétrica de
uma linguagem sem resposta, conserva a antiga estrutura não recíproca do asilo (HF, 605). -
A ausência da linguagem na estrutura do asilo clássico (a regra do silêncio) tem como corre-
lato a confissão, o reconhecimento da culpa. Ainda que a psicanálise recupere a linguagem da
loucura, no monólogo psicanalítico, as formulações também serão da ordem da culpa (HF,
616). * 'A psicanálise pode desembaraçar algumas formas da loucura, mas ela permanece
alheia ao trabalho soberano da desrazão. Ela não pode nem liberar nem transcrever e, com
-
mais razão ainda, tampouco explicar o que há de essencial neste trabalho" (HF, 632). Na
mesma linha, situam-se as considerações de Foucault acerca da psicanálise como tarefa despsi-
quiatrizadora. Yer Despsiquiatrizaçao. Sobre o surgimento da psicanálise em relaçâo ao estu-
do da histeria realizado por Charcot, ver Psiquiatria. Contraciências humanas. Da psica-
nálise como contraciência humana nos ocupamos no verbete Homem. Sexualidade,
família. A volonté de sauoir e, em grande medida, uma descrição do dispositivo de sexuali-
dade; segundo Foucault, a história desse dispositivo "pode valer como arqueologia da psica-
nálise" (HSl, 172). A psicanálise, segundo essa história, desempenha várias funções no dis-
positivo de sexualidade: é um mecanismo que articula a sexualidade ao sistema da aliança,
opõe-se à teoria da degeneraçáo, Íunciona como elemento diferenciador na tecnologia geral
do sexo, confere um novo sentido ao antigo procedimento da conÍissão. * Foucault distingue
entre o dispositivo de sexualidade e o dispositivo de aliança (para uma exposição detalhada
de ambos, ver: Sexualidade).Este último se estrutura em torno a um sistema de regras que

PslcANÁLlsE (Psychanalyse) 345


definem o permitido e o proibido, busca manter a lei que rege o jogo das relaçÕes, concerne
ao nexo entre os membros do casal com estatuto definido, está fortemente articulado com a
economia através da circulação e transmissão da riqueza. O dispositivo de sexualidade, por
sua vez, funciona segundo técnicas móveis e polimorfas, engendra uma extensão permanen-
te das formas de controle, concerne às sensaçÕes do corpo, à qualidade dos prazeres, está
vinculado à economia de maneiras múltiplas e através do corpo (HSr, 140-141). Apesar de
que o dispositivo de aliança e o dispositivo de sexualidade se oponham termo a termo, Foucault
não sustenta que este último tenha substituído o primeiro; e sim que o dispositivo de sexua-
lidade se articulou sobre o sistema de aliança. Pois bem, para Foucault, a psicanálise foi um
dos mecanismos pelos quais o dispositivo de sexualidade se articulou sobre o dispositivo de
aliança. "Mas eis aqui que a psicanálise, que, em suas modalidades técnicas, parecia situar a
confissão da sexualidade fora da soberania familiar, reencontra no próprio coração desta se-
xualidade, como princípio de sua formação e código de sua inteligibilidade, a lei da aliança,
os jogos mesclados do casamento e do parentesco, o incesto. [...] Da direção de consciência
à psicanálise, os dispositivos de aliança e de sexualidade, articulando-se um em torno do
outro segundo um lento processo, que tem agora mais de três séculos, inverteram suas posições.
Na pastoral cristã, a lei da aliança codificava esta carne que estava descobrindo-se e lhe impu-
nha desde o início um arcabouço aindajurídico. Com a psicanálise, a sexualidade dá corpo e
vida às regras da aliança saturando-as de desejo" (HS 1, 148- 150). * A psicanálise rompeu com
o sistema da degeneração (ver: Degeneração). Retomou o projeto de uma tecnologia médica
do instinto sexual, mas independentemente de suas correlações com os fenômenos da heran-
ça. 'Agora se pode retornar sobre o que podia haver de vontade normalizadora em Freud;
também se pode denunciar o papel que desempenhou, durante anos, a instituição psicanalí-
tica. Nesta grande família das tecnologias do sexo que se remonta tão longe na história do
Ocidente cristao e entre aquelas que empreenderam, no século XIX, a medicalização do sexo,
ela foi, até os anos 1940, a que se opôs rigorosamente aos efeitos políticos e institucionais do
sistema perversão-herança-degeneração" (HSl, 157-158). Neste sentido, a psicanálise foi
contemporânea à articulação de uma rede administrativa e judicial contra as práticas inces-
tuosas. E o descobrimento de Édipo foi contemporâneo às leis que organizam juridicamente
o declínio da autoridade paterna (HS 1, I 7l - I 72). "Na sua emergência histórica, a psicanálise
não pode ser separada da generalização do dispositivo de sexualidade e dos mecanismos se-
cundários de diferenciação que nele se produzem" (HSr, 170). * Foucault aborda detalhada-
mente a questão da psicanáiise como tecnologia do instinto em Ies anormaux, no curso do
12 de março de 1975. Liberação, normalização. "o que eu digo é que seria perigoso supor
que Freud e a psicanálise, falando de sexualidade, desanuviando, mediante suas técnicas, a se-
xualidade do sujeito realize com todo direito uma obra de liberação. A metáfora da liberação não
parece apropriada para definir a prática psicanalítica. Por isso, tentei fazer uma arqueologia da
confissão e da confissão da sexualidade, e mostrar como as técnicas essenciais da psicanálise
preexistem (a questão da originalidade não é importante) dentro do sistema de poder" (DE2,
813-814). Com respeito à psicanálise como forma de normalização ou de familiarização e não
de liberação, Foucault se apoia especialmente na obra de G. Deleuze e F. Guattari, LAnti-
Oedipe (D82,779).Yer Deleuze. Sobre a relação entre as técnicas da confissão e a psicaná-
lise, ver: ConJissao. Fenomenologia. Por ter desconhecido a estrutura da linguagem que

346 PstcANÁL|SE (psychanalyse)


necessariamente envolr,e a experiência onírica como fato de expressão, a psicanálise freudia-
na nunca pode captar de maneira completa cl sentido (DEl, 71). Sobre essa questão, ver:
Antropologia, Fenomenologia." Yer: Deleuze, Édipo, Freud, Lacan.
Psychanalyse [44]J: AN, 27,49.94,96 97, 100, I02, 124, t52 153, 15{:},253,256-257. AS,22,270. DEI ,70-7t,73
74,76,78-80,90 91,95-97,127-128, lJ3-134. i4l-113,1,16, i52-153,168, 170,195,2t-t,4t7 418,428,.130.440,142 443.
4,17-448,521,541,s55.557,s67,570.s76577,658,789,805806,809.D82,80,101,112,r35,168-169.242,318.37.r.540.
542,554, 623-624,626,628,6i9-6.1r,661-662,683,686, 721,738,7s8 759, 769, 777. r-79,792,813-815,818. DE3, -52,77,
89-90, 115, 132, 155, r63, 166.202,235,253,290,292,295-296,314-3t5,319 321,325,337,344 345,348, 358,372,423,
429,112,459,526, 553-55ó, -590, 622.6r-5,768,774. DE4, ,52,58, 1 13, 1 70, 196,204,.133,435,137.665-667,763. HF, 123.
428,456,472,545,605,608,6r6,627,629,63t-632.HS,27,-1031,41,89,180-181.HSl,12,r48-150,157.\70-172.\97-
199,209.IDS,7,1011,20. MC,59,372,385-393.NIMPE,13,37,4r,.1345,48,86,108-109.MMpS,23,17,4t,4i44,
48,93,97. NC. Vt, XIII. OD, 12,80. PP,88, 123, 137 138, 169, 198,221,231,284, -130.336.

:=§. PSICOLOG lA (Psycho log i e)

Os primeiros trabalhos de Foucault estão dominados por uma marcada presença e preo-
cupação por temas psicológicos: Maladie mentale et personnalité, Maladie mentale et
psychologie, evidentemente, e tarlrbém dois artigos de 1957, posteriores à primeira obrir: "La
psychologie de 1850 à 1950" (DEl, 120-137) e"La recherche scientifique et la psychologie"
(DEl, 137-158). Em todos esses textos, a psicologia é apresentada em termos problemáticos.
Neste sentido, as considerações de Foucault podem inscrever-se no amplo debate da época
sobre a metodologia das ciências humanas. Assim, Maladie mefitale et personnalité começa
com a oposição entre uma patologia orgânica e outra mental, com a existência de uma meta-
patologia que domina ambas e cujas dificuldades só podem ser superadas a partir de uma
reflexão sobre o concreto (a esse respeito.ver Loucura). Em "La psychologie de 1850 a 1950'l
Foucault aborda as dificuldades metodológicas da psicologia desde a sua herança filosófica. A
psicologia do século XIX herdou do Ilurninismo duas exigências: alinhar-se com as ciências
da natureza e encontrar no homem a prolongação das leis que regem os fenômenos naturais
ou, para expressá-lo de outro modo, trata-se das exigências de que o caminho do conhecimen-
to científico passe pela determinação de relações quantitativas, tbrmulação de hipóteses, ve-
rificação experimental, e que o ser do homem se esgote em seu ser natural (DE1, 120). Se-
gundo Foucault, a história da psicologia, até meados do século XX, é a história paradoxal das
contradições entre o projeto de ser uma ciência como as ciências naturais e o postulado se-
gundo o qual o ser do homem é apenas um ser natural. Com efeito, como consequência da
exigência científica de objetividade, a psicologia foi levada a abandonar a ideia de que o homem
seja apenas um setor de objetividade natural. Por isso, teve que reformular seus métodos e seu
projeto como ciência. "O problema da psicologia contemporânea - e que, para ela, é um pro-
blema de vida ou morte - é saber em que medida ela chegará efetivamente a dominar as
contradições que a fizeram nascer [...]" (DEI,122). Nessa breve história da psicologia que é
"La psychologie de 1850 a 1950'l a conclusão de Foucault é a mesma que em Maladie men-
tale et personnalité e a primeira parte de Maladie mentale et psychologie: nem o esforço de
construir uma psicologia que se apoie na causalidacle estatística (ou behaviorismo) nem o
esforço de uma reflexão antropológica sobre a existência podem liberar a psicologia de suas

PSICOLOGIA (Psychologie) 347


contradiçôes, somente uma reflexão sobre o homem concreto e sua história concreta pode
aplanar o caminho da psicologia. + A partir dos pressupostos da f,losofia do século XVIII, a
psicologia pode delinir-se como uma ciência da alma, da consciência ou do indivíduo. Desse
modo, a psicologia se opunha à fisiologia, corno a alma ao corpo, e à socioiogia, como o indi-
víduo à coletividade. Na época de Schopenhauer e Nietzsche, essa psicologia se opoe à filoso-
fia como a consciência ao inconsciente. A partir de Freud, no entanto, essa oposição se reor-
ganizou (DEf , 440). Mas a descoberta do inconsciente "não é uma extensão da psicologia, é
realmente a conf,scação, pela psicologia, da maior parte dos domínios que cobriam as ciências

humanas; deste rnodo, se pode dizer que, a partir de Freud, todas as ciências humanas se
*
converteram, de uma maneira ou outra, em ciência da psyche" (DE1, 441). "O que dissemos
[Foncault se refere ao capítulo Y de Nlaladie mentale et psychologie] não vale como uma
críttca q priori de toda tentativa de delimitar os tenômenos da loucura ou de definir uma
tática de cura. Tratava-se apenas de mostrar rrma relação entre a psicologia e a loucura e um
desequilíbrio tão fundamental que tornariam vão todo esforço para tratar a loucura como
totalidade, [para tratar] sua essência e sua natureza em termos de psicologia. A noção mesma
de 'doença mentai' é a expressão deste esforço condenado desde o início. O que se chama
doença mental'é apenas aloucura alienada, alienada nesta psicologia que eia mesma tornou
possível" (MMPS, 90). Por isso, posteriormente a esses textos (tal afirmação concerne somen-
te à primeira parte de Maladie mentale et psychologie, qlue retoma o texto da primeira
parte de Maladie mentale et persorutaliÍl), Foucault reorientou a problemática metodológi-
ca c1a psicologia em duas direções. Por um lado, em Les mots et les choses, as anfibologias
r-netodológicas da psicologia provêm cle sua situação epistêmica, mais precisamente, do fato
de que a psicologia é uma projeção da biologia para a analítica da Íinitude, isto é, da posição
do "homem' na episteme moderna (sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do saber). Disso nos
ocupamos no verbete: Homem. "Porque o portal de nossa Modernidade não se situa no mo-
mento em que se quls aplicar ao estudo do homem os métodos objetivos, mas sim no dia em
que se constitui um duplo empírico-transcendental que se chamou homeni' (MC, 329-330).
Por outro lado, as dificuldades rnetodológicas da psicologia ou, mais precisamente, seu esta-
tuto científico é analisado por Foucault desde um ponto de vista histórico-político, isto é, a
partir das relações entre o saber e o poder, entre práticas discursivas e práticas não discursivas.
Nesta linha, situam-se a Histoire de la folie, Surveiller et punir, La volonté de savoir e Les
anorynaux. Em termos gerais, Foucault se ocupa do papel da psicologia na formação e no
funcionamento das formas modernas do poder. Enquanto em les mots et les càoses Foucault
analisa as condiçóes de possibilidade da psicologia cono prática disculsiva, nos outros textos
mencionados, as práticas em geral, discursivas e não discursivas, aparecem como condições
de possibilidacle do conhecimento psicológico. Como expusemos no verbete Poder, Foucault
enfoca sua análise no entrelaçamento mútuo entre formas de saber e formas de poder. Assim,
em Histoire de la folie,leva a cabo uma arqueologia da psicologia a partir da experiência da
loucura, em que aparece como a composição de um discurso liberador e uma prática de su-
jeiçâo (ver: Loucura). "Na reconstituição desta experiência da loucura, uma história das
condiçoes de possibilidade da psicologia foi escrita como que por si mesma'(DEl, 166). Em
Surveiller et punir,apsicoloeia Íbi possívela partir da formaçâo da disciplina moderna e, por
sua vez, o conhecimento psicológico tornou possível as disciplinas (ver: Disciplina). Em Les

34 8 PsrcoLo GtA (PsychotogÍe)


anormaux, Foucault analisa as relações entre o discurso psicológico e as práticas de norma-
lizaçao (ver: *
Psiquiatria). Pois bem, em ambas as reorientações da problemática cla psico-
logia, é necessário ter presente a posição de Foucauit quanto à questão do sujeito (ter: Homem,
Sujeito), ou seja, o questionameuto da noção cartesiana de sujeito e cle todas as suas reelabo-
rações (fenomenologia, existencialismo). Neste sentido, o método de análise de Foucault deve
ser considerado como profundamente antipsicológico. Respondendo a uma pergunta acerca,
precisamente, da exigência de desprender-se de todo psicologismo, Foucault afirma: "Deve-se
poder tàzer uma análise histórica das transformaçoes do discurso, sem ter que recorrer ao
pensamento dos homens, ao seu modo de percepçã0, aos seus hábitos, às influências que
sofreram, etc." (DEl, 773).*
tJma última observação e necessária para compreencler a posição
de Foucault a respeito da psicologia. Em Les mots et les choses,as condições de possibilidade
discursi'n'as da psicologia se situam na disposição epistêmica do século XIX. Em Histoire de
la folie, surveiller et punir, La volonté du savoir e Les anormrzirx, situam-se no que se
poderia chamar, mais que uma arqueologia, em uma genealogia da psicologia, isto é, em uma
análise histórica das práticas em geral, a história da psicologia e compreensível somente a
partir de uma história que remonta muito além do Iluminismo, e que começa com as práticas
de si mesmo na Antiguidade e continua com a reelaboração dessas práticas na época helenís-
tica, no cristianismonos séculos XVII e XVIII. "Eu thes diria que não penso que seja neces-
e
sário tratar de definir a psicologia corno ciência, mas, talvez, como uma forma cultural que se
inscreve em toda uma série de fenômenos que a cuitura ocidental conheceu há bastante tem-
po e nos quais puderam nascer coisas como a confissáo, como a casuística, como os diálogos,
cliscursos, raciocínios que se podia ter em certos meios da Idade Média, os cursos de amor ou
também nos meios preciosos do século xvII" (DEr, 438). * AIém do que expusemos neste
verbete, para ter uma visão mais compreensiva da problemática da psicologia nos textos de
Foucault, é necessário remeter-se aos seguintes verb etes: Disciplina, Episteme, Freud, Hotrem,
Loucura, Poder, Psicanálise, Psiquiatria, Sexualidade.
Psychologie [575]: AN, I 0 1, 142, 153, 215, 2\9,244, 27 4, 302-303. A5,26, 64, 182,252. DEt, 66 67 ,73,7e-8 I , 83,
87-88,101,110,113,120158,165-166,191,195,232,279,282,356-357,-386,402,428-429,438-44]l,444-448,517,540,
546 547,557, 573,577,580, 630, 653, 659-660, 674.726 727,773,809,833, 838. DE2, 104, 107, 1 19, ),57,396-397, 405,
.{37-.118, 470, 483,492,542,595.620.717,738,771. DFj,87,97,272,287,294,297,358, 369, 462, 5-53, 5 56,587,660,724.
DE4, 62, ).\8, 1.47, 199,203-204,208,255,256-258,293,391, 527,530, 608, 616, 629,650, 730. HF, 130, 159, 172, t74,
201,210,343,374,41.2,427 -428,471-472,547-548,560 562, 565-568, 605 ,648-649,653-654,663.}l5,242. HSl, 46. IDS,
19-20,54. MC,237-238, 269 270,34+,356,366,369^37t,378,.182-383, 389,391. MMPE, 1,5, 11, 13, 16,20,23,37,51,
54,87,91,110. MMPS,1,5,11, i3, t6 17,20,23,37,51,-5{,87 90,95,99,102-104. NC,l01. pp,15.58,87,88,145,167,
I 87, 1 88, 205, 258 -259,282,292,298,334.5P.226-228,259,302-303, 313.

:=ç PSIQUIATRIA (Psychiatrie)

Foucault se ocupou extensamente da história da psiquiatria. Como expusemos no verbete


Loucura, ainda que as consiclerações sobre a história dessa disciplina não estejam ausentes
em Maladie mentale et personnaliúé e na primeiraparte de Maladie mentale et psychologie,
o interesse de Foucault se centra, principalmente, nas condições para uma compreensão da

PSIQUIAIRIA (.Psychiatrie) 349


doença mental a partir das contradições histórico-sociais nas quais o indivíduo ou o "homem
concreto'encontra-se imerso; emHistoire de lafolie àlâge classiclue, ocupa-se das experi-
ências da loucura até o aparecimento da psiquiatria, e em La volonté de savoir dos disposi-
tivos de sexualidade. EmLe pouvoir psychiatrique e Les anormaux (considerando os textos
publicados até agora)r no entanto, a análise de Foucault se interessa pela história da disciplina.
Pois bem, não se trata de uma história dos conceitos nem tampouco, estritamente falando, das
instituições psiquiátricas, mas sim das práticas psiquiátricas (ver: Prática), ou seja, dos dis-
positivos de saber e poder em torno da loucura e do louco. Nesses últimos textos, a análise das
práticas psiquiátricas transcende o âmbito da loucura e se estende à constituição do que se
chama, em termos gerais, a anormalidade e do que Foucault denomina a/unçao-Psi. O poder
psiquiátrico Deslocam entos. Le Pouvoir psychiatrirlue apresenta-se como a continuação
I)

do trabalho iniciado em Histoire de lafolie; como um "segundo volume" (PP, 14). Histoire
de lafolie tinha chegado até Pinel e o nascimento do asilo; Le Pouvoir Psychiatrique, come-
ça com Pinel e o asilo estende a análise ao longo de todo o século XIX até Charcot. Mas, como
observa o próprio Foucault (PP, 14-18), apesar da continuidade entre o "primeiro" e o "se-
gundo" volumes, há três grandes diferenças: a) Representaçao/Dispositivo de poder. Histoire
de la folie era uma análise de representações; concedia-se um privilégio à percepção da lou-
cura. Nesse sentido, Histoire de la folie forma parte do gênero "história das mentalidades'i
Le Pouvoir psychiatrique, no entanto, coloca como ponto de partida da análise os dispositi-
vos de poder, mais precisamente, trata-se de estudar os dispositivos de poder como produto-
res de enunciados, de analisar as relações entre dispositivo de poder e jogos de verdade. b)
Violência, instituiçao, família. Foucarlt não se propõe a abandonar, mas sim a deslocar, as
noções de violência, instituição e família. Violência. Essa noção parece sugerir que haveria
um poder "bom" na medida em que atuasse sem yiolência e, sobretudo, se fosse um poder não
físico. No entanto, para Foucault, o corpo é essencial ao poder. "Todo poder é físico e há uma
conexão direta entre o corpo e o poder políticd'(PP, l5). Além disso, a noção de vioiência
também sugere que o uso de uma força desequilibrad a nâo faz parte do jogo racional e calcu-
lado de poder. No entanto, um poder físico, uma força é sempre irregular e, ao mesmo tempo,
faz parte de um cálculo . Instituiçao. Tal noção, aos olhos de Foucault, apresenta duas dificul-
dades. Por um lado, no funcionamento do poder são mais importantes as diferenças poten-
ciais (redes, correntes, relé, pontos de apoio) do que os reguiamentos institucionais. Por outro
lado, partir das instituições implica supor a existência dos indivíduos e da coletividade, mas
eles, de fato, são efeitos das táticas de poder das quais fazem parte as instituições . c) Família.
No caso da noçáo de família, não apenas assistimos a um deslocamento, mas também a uma
correção. Com efeito, em Histoire de la folie, Foucault sustentava que a família havia sido o
modelo da instituição asilar. Agora, no entanto, Foucault retifica essa afirmação. A conexão
entre psiquiatria e família é mais tardia, data do final do século XIX, e não do XVIII. 2) Asilo
e disciplina. As cenas de cura. Foucault centra grande parte de suas análises no que ele
denomina cenas de cura. Elas desempenharam papel fundamental durante os primeiros
vinte e cinco ou trinta anos do século XIX, período fundamental da psiquiatria (pp, 30-32)
"Por cena não há que se entender um episódio teatral, mas um ritual, uma estratégia, uma

r oautorfazreferênciaàsobraspublicadasaté2004,anodaediçãocleE/4ocaóulcíriodeMichel
Foucault.(N.T.).

350 PStQUtATRtA (psychiatrie\


batalha' (PP, 34). Essas cenas evoluíram, transformaram-se ao longo da história das'disci-
plinaspsl" (psiquiatria, psicologia, psicanálise). A esse respeito, Foucault estabelece uma ti-
pologia cronológica: a) as cenas da protopsiquiatria (Íinal do século XVIII e as primeiras dé-
cadas do século XIX); b) as cenas de "tratamento moral" (1840-1870); c) as cenas de cura com
a descoberta da hipnose e a análise da histeria; d) as cenas psicanalíticas; e) as cenas da an-
tipsiquiatria. Todas elas mantêm estreita vinculação com aquela cena que Foucault considera
a cena fundacional do saber-psi, a de )orge II, da Inglaterra. Na análise de todas elas, Foucault

busca mostrar como os dispositivos disciplinares foram a condição histórica da formação do


saber-psi. * O curso tem início não com a cena histórica, mas com a descrição de um asilo
ideal, elaborado por Fodéré: "Queria que estes hospícios fossem construídos nos bosques
sagrados, em lugares solitários e escarpados, em meio às grandes perturbações, como a Gran-
de Cartuxa, etc. Seria útil que o recém-chegado descesse por máquinas, que ele atravessasse,
antes de chegar ao destino, lugares sempre mais novos e mais maravilhosos, que os ministros
usem roupas particulares. Aqui é conveniente o romântico, e eu me disse frequentemente que
se poderia aproveitar estes velhos castelos encostados em cavernas que perfuram as colinas
de um lado ao outro, para terminar em um vale sorridente [...] A fantasmagoria e os outros
recursos da física, a música, as águas, os raios, os trovões, etc. seriam empregados de tanto em
tanto, verossimilmente, não ainda sem algum êxito sobre o comum dos homens" (François
e

Emmanuel Fodéré), Traité du délire appliqué à la médicine à lq morale et à la législation,


tomo II, seção VI, capítulo 2, cítado por Foucault, (PP,3). O texto refere-se, com vemos, à
construção do asilo. Mas Foucault se pergunta: o que acontece dentro desse cenário? Ali deve
reinar a ordem, uma ordem que rodeia os corpos, os penetra, os trabalha, até chegar às "mór-
bidas fibras do cérebro" (PP, 4). Essa ordem é necessária para: a) a construçáo do saber mé-
dico (a observação exata, por exemplo, requer um esquema perceptivo de regularidades:
distribuição dos corpos, dos gestos, dos comportamentos, dos discursos) o saber-psi só é
possível dentro de uma distribuição regulada do poder. b) Para a operação terapêutica. No
asilo, a instância médica funciona primeiro como poder antes que como saber. Quanto ao
primeiro ponto, o texto de Fodéré é muito significativo quanto aos critérios para escolher o
pessoal médico: que tenha bom aspecto físico, nobre e masculino, cabelos escuros e grisalhos
pela idade, membros e abdômen que indiquem a força da saúde, uma voz forte e expressiva-
"que se
Esses requisitos são necessários para que sua presença tenha efeito sobre aqueles
resto do pessoal,
creem acima dos demais" (PP, 5-6). Requisitos similares são válidos para o
gerais.
para aqueles que desempenham as funçÕes de vigilância, para o pessoal dos serviços
iodu..ru rede, que vai desde o médico e os enfermeiros até o pessoal de serviços gerais, deve

servir para impor aos "loucos" a autoridade anônima do regulamento e da vontade particular
do médico. Foucault insiste, sobretudo, nesse aspecto tático de ordem e de força que constitui
essencialmente o asilo. O louco, antes de ser um problema de conhecimento e de cura, coloca
"se crê acima
o problema de uma vitória. É necessário, efetivamente, dominar a força do que
dos demais'] Nesse sentido há que ressaltar que a "força" e não o "erro" (como ocorria nos
séculos precedentes da época clássica) é o critério pelo qual se percebe a loucura. Agora náo
se trata de reconhecer o erro, mas de situar o ponto onde a força da loucura emerge: a caÍac-
terística da força dos "furiosos'] a força dos instintos e das paixões, a mania concebida como uma
luta entre ideias, o melancólico dominado pela força de uma ideia particular, etc. Quanto ao

PsIQUIATRIA (Psychiatrie) 351


segundo aspecto, a cura, trata-se de uma submissão de forças, de colocar alguém sob a depen-
dêncÍa de outro que exerce sobre ele a "força' de sua "autoridade" através de suas qualidades
físicas e morais. Efetivamente, a cura não passa peio reconhecimento médico das causas da
doença, não é uma técnica terapêutica o que se aplica, mas o enfrentamento entre duas forças.
Além disso, esse enfrentamento deve suscitar no alienado um segundo combate, ao nível de
suas ideias e representações, entre seu delírio e o castigo. Finalmente, apenas quando for
submetido é que surge entáo a verdade. Trata-se do que na época se denominou "tratamento
moral'l do qual o inglês fohn Haslam foi um dos teóricos e representantes mais notáveis.
Foucault aponta as diferenças entre a formação da clínica e a da psiquiatria. No caso da clíni-
ca, por esta mesma época, estava-se constituindo um modelo epistemológico da verdade
médica (PP, l3). 3) Soberania e disciplina: a cena de |orge IIL Em Histoire de la folie,
há numerosas referências àquela que se considera habitualmente como a cena fundamental
da psiquiatria moderna, ou simplesmente da psiquiatria: quando em Bicêtre, Pinel leva a cabo
a"liberação" dos loucos. A partir desse momento, os loucos, os "furiosos" entram no caminho
da cura. O capítulo IV da terceira parte de Histoire de la folie: o nascimento do asilo está
especialmente dedicado ao "gesto de Pinef i Para além de quais tenham sido as intenções de
Pinel, Foucault insiste no caráter ambíguo do gesto, isto é, nos novos modos de sujeição da
Ioucura liberada (ver: Loucura). Em Le pouvoir psychiatrique, Foucault escolhe outra cena
para descrever o gesto fundacional da psiquiatria. Ela se situa em 1788 e é narrada na obra do
próprio Pinel, em Traité médico-philosophique, do ano de 1800. Trata-se da cura de forge
III, rei da Inglaterra. Foucault se interessa particularmente por essa cena e a analisa detalha-
damente, porque com base nela descreverá a passagem de um dispositivo de poder para outro,
da soberania à disciplina. Com efeito, nessa cena se enfrentam a macrofísica da soberania
(característica de um poder pós-feudal e pré-industrial) e a microfísica da disciplina (PP, 28).
vejamos a análise da'tena de |orge II'l a) A 'destituição'l Encontramos, em primeiro lugar,
uma espécie de destituição, de coroação ao contrário. Quem leva a cabo o tratamento adverte
Jorge III: "Iánáo
és soberano, deves ser dócil e submissol Os colchões com os quais se cobrem
as paredes do quarto em que se aloja |orge III também desempenham sua função nessa ope-
ração de destituição. Eles isolam o rei do mundo exterior e lhe impedem de transmitir ordens;
são como um "pôr entre parêntesis" seu poder de soberano. B) Mas tal destituição, segundo
observa Foucault, não é como a que podemos encontrar no drama de Shakespeare. Aqui, o rei
não está submetido a outro poder soberano, mas a uma forma diferente de poder: "um poder
anônimo, sem nome, sem rosto, é um poder repartido entre diferentes pessoas" (pp, 23). c)
O ponto em que se leva a cabo a passagem um poder de soberania em vias de desaparecer, ao
poder disciplinar, em vias de se constituir, nós o encontramos no enfrentamento entre aforça
selvagem do rei'destituído" e a força disciplinada e serena dos servidores. d) Essa força dis-
ciplinada dos servidores está a serviço do rei, mas desconectada de sua vontade. Ela não deve
obedecer à vontade do rei, mas a do médico. e) O gesto insurrecional de |orge III. Nessas
condições, forge III retoma o gesto de protesto próprio aos mais pobres entre os pobres, lança
suas imundices no poder médico quando entra no quarto. f) Nesse momento, entra um dos
servidores, sujeita o rei na cama, desnuda-o, lava-o e se retira. Segundo Foucault, trata-se de
uma cena de suplício invertida. Mas aqui o agressor não é executado, mas dominado. Não
encontramos um corpo morto, mas um limpo e verdadeiro. De acordo com Pinel, a partir de

352 PSIQUIATRIA (psychiatrie)


então, produz-se uma cura sólida e duradoura.* Como vemos, nessa cena não encontramos
nem descrição, nem análise, nem diagnóstico, nem conhecimento verdadeiro da doença do
rei, mas um enfrentamento de forças, ou melhor, a confrontação entre dois dispositivos de
força, dois dispositivos de submissão à vontade do outro. Nesse sentido, essa cena é compará-
vel à cena de liberação de Pinel. Aqui também se trata da passagem de um dispositivo de
poder a outro: de uma relação de poder da ordem da violência (prisão, correntes) a outro (a
disciplina). A cena de forge III se inscreve, além do mais, em toda uma série de'tenas de cura'
que encontramos nos textos de Haslam, Pinel, Esquirol, e Fodéré, entre outros. "[...] é que esta
cena psiquiátrica e o que se trama nesta cena, o jogo de poder que nela se delineia, devem ser
analisados antes de tudo o que pode ser a organização institucional, o discurso de verdade, a
importação de modelos" (PP, 33). * A partir da descrição da cena de ]orge III, Foucault se
ocupa das modalidades de exercício de poder nos dispositivos de soberania e nos dispositivos
disciplinares; além disso, esboça as grandes linhas de uma história da disciplina, até a exten-
são desses mecanismos disciplinares no século XVIIL A esse respeito, ver Disciplina, Sobe-
rania. 4) Família e asilo. Uma vez estabelecido o contexto no qual nasce o asilo, isto é, a
extensão dos dispositivos disciplinares, Foucault se ocupa do funcionamento do asilo, ou
melhor, das especificidades que caracterizam o funcionamento desse dispositivo disciplinar
em particular. A análise se articula em torno das relações entre o asilo e a família, posto que:
a) o asilo manteve uma relação específica com a família; b) o asilo foi o lugar de um discurso
verdadeiro; e, sobretudo c) o fato de que essas duas especificidades se apoiam mutuamente,
isto é, o discurso verdadeiro que se forma dentro do espaço asilar será um discurso da família
e sobre a família (PP, 96). Pois bem, a relação entre asilo e família não é uma relação linear,
ela sofreu profundas transformações. Na história dessa relação, é necessário distinguir uma
primeira etapa, a situação do asilo na protopsiquiatria (Pinel, Fodéré, Esquirol) e outra, em
que assistimos ao duplo movimento da familiarização da psiquiatria e do asilo, e da psiquia-
trizaçao da família. " [...] Contrariamente a uma hipótese demasiado fácil, que eu mesmo
haVia SUStentadO, segundo a qual o asilo se havia constituído como uma prolongação do mo
delo familiar, o asilo do século XIX funcionou de acordo com um modelo de micropoder
próximo ao que pode denominar poder disciplinar, que é em se mesmo, em seu funciona-
se
mento, completamente heterogêneo à família. [...] por outro lado, a inserção, a vinculação do
modelo familiar com o sistema disciplinar é relativamente tardia no século XIX - eu creio que
podemos situá-la entre os anos 1860-1880, e é simplesmente a partir de então que a família
não só pode converter-se em modelo para o funcionamento da disciplina psiquiátrica, mas
também e, sobretudo, pode converter-se no horizonte e no objeto da prática psiquiátrica'
(PP, 123). É necessário assinalar que o eixo em torno do qual se levou a cabo a psiquiatrização
da família foi a inÍância. Na relação com seus filhos, a família dotou-se de um olhar psicoló-
gico de vigilância e da função de decidir entre o normal e o patológico. Nessa transformação,
a família importou muitos dos mecanismos e instrumentos disciplinares que se haviam de-
senvolvido no âmbito do asilo: atar as mãos, exigência de manter a postura ereta, controle da
estatura, os gestos, das condutas, etc. (PP, Dü. a) Asilo e família na protopsiquiatria.
Foucault concentra sua análise nas transformações que a lei francesa de 1838 introduz quan-
to à internação psiquiátrica. Previamente a essa lei, o procedimento que regia as relações
entre a família e o "alienado" era a interdicción (um procedimento judicial que transferia os

PSIQUIATRIA tPsych;dtrie' 353


direitos civis do indivíduo alienado para a família). Em suma, tratava-se de um episódio
pertencente ao direito familiar. Durante a época clássica, pode-se afirmar que a internação,
ainda que frequentemente se seguisse àinterdicción, era, no entanto, independente dela. Ela
não era obtida por via judicial, mas mediante a intervenção, normalmente também a pedido
da família, do chefe de polícia (o lieutenant), o intendente ou outro representante da autori-
dade do rei. No entanto, a partir da lei de 1838, a internação será a peça fundamental, e a in-
terdição se converterá em uma medida judicial eventual e suplementar. A internação, segun-
do a lei de 1838, consiste em assenhorear-se do corpo do louco. Em princípio, não se requer
o pedido por parte da família, a internação é decidida pela autoridade do prefeito acompa-
nhada da autoridade médica que opina acerca do caráter alienado do sujeito em questão.
Desse modo, assistimos ao surgimento de um campo técnico-administrativo, o médico-esta-
tal de intervenção. Com relação a esse campo, o louco aparece como um inimigo e um perigo
para a sociedade. No contexto dessa lei, trata-se também de proteger a família dos perigos que
o alienado representa, bem como de proteger a família celular dos poderes que pode exercer
sobre ela a família estendida. Contudo, além da proteção, a lei de 1838 marca uma ruptura
*
entre a família e a internação. Desde o ponto de vista do saber médico, a lei também repre-
senta uma ruptura. Jamais se pode curar um alienado no âmbito da família, ela é absoluta-
mente incompatível com a cura (PP, 99). Nos textos da época, especialmente nos de Fodéré,
encontramos várias razões que fundamentam essa exclusão da família do âmbito asilar. O
princípio de distração (ou de náo associação): o louco não deve pensar na sua loucura. A fa-
mília pode ser, se não a causa, pelo menos a ocasião da alienação (contrariedades, preocupa-
çÕes, ciúmes, penas, etc.). Princípio da "suspeita sintomática' (noção introduzida por Esqui-
rol): o louco supõe que suas alterações não provêm da doença, mas as atribui ao seu entorno.
A existência dentro da família de relações de poder que fayorecem a loucura, principalmente
o caráter tirânico do pai. * Pois bem, uma yez que abordamos o asilo, o louco foi isolado da
família e nos perguntamos então sobre sua capacidade terapêutica, vemos que a capacidade
curativa do hospital radica simplesmente em sua organização como hospital: a disposição
arquitetônica, a organização do espaço, a maneira como se circula nele, o modo como se olha
e se é olhado (PP, 103). A partir daqui, Foucault nos mostra como se trata dos mesmos prin-
cípios que se achavam presentes na formalização de Bentham dos dispositivos disciplinares,
o panóptico: visibilidade permanência, vigilância centralizada, isolamento, punição incessan-
te. * Quanto aos mecanismos de punição, encontramos nessa época com uma alternativa:
coerção física ou no restraint (segundo a expressão proveniente da Inglaterra, em torno do
ano de 1840), ou seja, abolição dos instrumentos físicos de punição e de controle. Na realida-
de, na opinião de Foucault, trata-se apenas de uma alternativa de superfície com relação ao
mecanismo profundo de punição incessante que tem lugar no asilo. De fato, nessa época,
encontramos uma maravilhosa proliferaçáo de novos instrumentos técnicos: a cadeira fixa, a
cadeira giratória, a camisa de força (inventada em 1790 por um tapeceiro de Bicêtre chamado
Guilleret), as algemas, os colares com pontas internas (PP, 106). Foucault se detém na análi-
se desses instrumentos que põem de manifeste uma tecnologia específica do corpo. Ver:
Corpo.b) A familiarizaçao do asilo. A partir dos anos 1850-1860, no entanto, assistimos a

uma estreita aproximação entre família e asilo. Começa-se a formular a ideia segundo a qual
o louco é uma criança e deve ser situado em um meio análogo ao da família. Nessa mesma

354 PSTQUTATRTA (Psychiatríel


época, começa-se a assimilar os loucos aos delinquentes (resíduos da sociedade), aos povos
colonizados (resíduos da história). Os loucos aparecem, então, como resíduos da humanidade.
A esse respeito, duas observações: em primeiro lugar, tal como na história da colonização, na
história da psiquiatria também encontramos duas épocas: aquela em que se utilizavam as
correntes e a dos sentimentos humanitários. Em segundo lugar, essa transformação impor-
tante que assimila o louco à criança e ao primitivo antecede em alguns anos o darwinismo
(efetivamente , A origem das espécies é de 1859). Foucault toma como referência um texto de
Fournet publicado nos Árr ales médico-pschologiclue (1854). * A propósito dessa assimilação,
Foucault, nietzschianamente, pergunta: "Quem fala?" Trata-se de um discurso que provém,
sobretudo, dos estabelecimentos de saúde privados, paralelos e muito diferentes das institui-
çoes públicas (PP, 111), um discurso que busca a integração das anomalias ao circuito de
lucros econômicos. Deste modo, enquanto os dispositivos disciplinares buscavam, durante o
século XVIII, ajustar a acumulação de indivíduos ao processo de acumulação de capital, du-
rante o século XIX, os dispositivos disciplinares buscaram integrar os efeitos dos seus próprios
*
dispositivos (os anormais) ao circuito econômico. Paralelamente, assistimos a um processo
de colonização disciplinar do dispositivo de soberania da família: "E é assim que o poder
disciplinar parasita a soberania familiar, requer que a família desempenhe o papel de instân-
cia de decisao entre o normal e o anormal, entre o regular e o irregular, exige da família que
lhe envie estes anormais, estes irregulares, etc.; disto obtém um lucro que entra no sistema
geral de iucros e que se pode denominar, se vocês quiserem, o benefício econômico da irre-
gularidade" (PP,116-117).5) Curapsiquiátricaedisciplinaasilar. a) Do erro ao poder
psiquiátrico. O sistema disciplinar asilar justifica-se mesmo Por sua função terapêutica;
a si

Foucault se pergunta, precisamente, acerca da metodologia e dos alcances terapêuticos do


asilo. Começa analisando dois casos pertencentes às estratégias de cura da época clássica, um
de Pinel e outro de Mason Cox. Tomemos o primeiro caso: trata-se de um doente que acredi-
tava que os revolucionários o perseguiam, que seria julgado e justiçado (PP, 129). Pinel o
curou armando um pseudoprocesso no qual ele foi absolvido. Esses procedimentos supõem
queonúcleodaloucuraéoerro,eailusãooquedefine,emgeral,aposiçãodaépocaclássica
A única diferença entre o erro extravagante dos loucos e os outros erros extra-
a esse respeito.
vagantes, como os que podemos encontrar, por exemplo, em Descartes, radica em que a estes
últimos se os pode corrigir mediante demonstrações. No caso dos loucos, no entanto, é neces-
sário manipular a realidade, estabelecer uma correlação entre a ilusão e a realidade, oferecer
um conteúdo real para a loucura. Pois bem, no asilo disciplinarizado, na psiquiatria asilar, o
psiquiatra já não será como Pinel ou Cox, o contrabandista da realidade, vai passar compie-
tamente do lado da realidade. A tarefa do psiquiatra no asilo será a de assegurar-lhe a reali-
dade "o suplemento de poder necessário" para que se imponha à loucura e lhe impeça de
evadir-se. Aqui, portanto, o erro e a ilusão já não constituirão o núcleo da loucura e a questão
da verdade, e consequentemente, não serão colocados com relação à loucura (como era no
caso de Pinel e de Cox), mas apenas a propósito do próprio poder psiquiátrico. Nesse sentido,
Foucault oferece a seguinte definição provisória do poder psiquiátrico: "O poder psiquiátrico
é esse suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em nome de uma verdade
que este poder, de uma vez por todas, detém sob o nome de ciência médica, de psiquiatria"
(PP, 132). B) A questao da uerdade, a simulaçõo. A psiquiatria do século XIX se constituiu

PSIQUIATRIA (Psychiatrie) 355


como discurso científlco, por um lado, tomando como referência o discurso clínico ou classi-
ficatório, isto é, buscando estabelecer uma nosologia da patologia mental; por outro, em rela-
ção a uma anátomo-patologia que colocava a questão da correlação orgânica das doenças
mentais. Contudo, a distribuição dos pacientes no espaço do asilo, o regime ao que estavam
submetidos, as tarefas que lhes eram impostas, a maneira como se decidia acerca de sua cura
ou de seu caráter incurável não levavam em conta estes dois discursos (o nosológico e o
anátomo-patológico). "Estes dois discursos eram simplesmente uma espécie de garantia da
verdade de uma prática psiquiátrica que queria que a verdade fosse concedida de uma vez por
todas e que nunca fosse questionada' (PP, 133). Segundo Foucault, a razão dessa falta de
articuiação entre o discurso verdadeiro e a prática psiquiátrica se encontra nesta função de
acréscimo do poder do real que define o poder psiquiátrico. O psiquiatra, com efeito, é quem
deve conferir à realidade a força necessária para apoderar-se da loucura, atravessá-la, fazê-la
desaparecer (PP, l3l).
A partir daqui, pode-se compreender a importância de um problema
que dominou a história da psiquiatria no século XIX até Charcot: o problema da simulação, a
que exerce a loucura a respeito de si mesma, a maneira como a histeria simuia histeria, a
maneira como um sintoma verdadeiro é e um sintoma falso é uma forma
um modo de mentir,
de estar doente (PP, 135). Em suma, se vocês quiserem, a psiquiatria dizia: "Contigo que és
louco eu não colocarei a questão da verdade, pois eu mesmo detenho a verdade em função do
meu saber, a partir de minhas categorias, e se eu detenho um poder em relação a ti, o louco,
é loucura responde: "Se tu pretendes Possuir,
porque possuo esta verdade'l Nesse momento, a

de uma vez por todas, a verdade em função de um saber já constituído, bem, eu, por minha
vez, vou colocar em mim mesma a questão da mentira. E, por conseguinte, quando manipu-
lares meus sintomas, quando lidares com o que tu chamas de doença, cairás na armadilha,
porque haverá em meio aos meus sintomas este pequeno núcleo de obscuridade, de mentira,
pelo qual eu te colocarei a questão da verdade" (135). . Como veremos em seguida, nesse
enfrentamento entre verdade e mentira, saber e simulação, entre psiquiatria e loucura, a

histeria desempenhou papel de primeira ordem. x Frequentemente, Foucault considera que a

psicanálise colocou a questão da verdade dos sintomas, significou o primeiro retrocesso da


psiquiatria. No entanto, para Foucault, trata-se de uma primeira linha de defesa nesse enfren-
tamento entre saberes e loucura. A primeira despsiquiatrização deve ser buscada nesse fenô-

meno a simulação (PP, 137). c) Estratégia de cura no dispositivo asilar.Como dissemos, no


asilo o poder psiquiátrico funciona como um intensificador da realidade, ou seja, como um
suplemento de força que se adiciona à realidade com a finalidade de assenhorear-se da loucu-
ra, de impor-se a ela, e por essa via alcançar a cura. Para descrever os mecanismos desse su-
plemento de poder, Foucault analisa, detaihadamente, um caso de cura, o de M. Dupré, que
foi levado a cabo por quem, na sua opinião, melhor exemplifica esses mecanismos, F. Leuret,
'b homem do tratamento moral" (PP, 144). O caso se encontra em sua obra de 1840, Traite-
ment moral de lafolie. A partir dessa análise, Foucault enumera as estratégias do poder
psiquiátrico. Em primeiro lugar, a dissimetria disciplinar. No primeiro contato entre o mé-
dico e o louco, assistimos ao primeiro ato do ritual asilar. Uma demonstração inicial de força,
uma marca diferencial de poder: o médico que repreende o louco por seus discursos e sua
conduta, que o obriga a escutá-lo, que o mantém de pé em sua presença, etc. "O enfermo deve
sentir-se imediatamente situado diante de algo no qual vai concentrar-se e resumir-se toda a

356 PsrQUrArRtA lPsychiatrie)


realidade com a que terá que se haver no asilo. Toda a realidade está concentrada em uma
vontade alheia, que é a vontade onipotente do médico" (PP, 146). Busca-se, em deflnitivo,
estabelecer um estado de docilidade, e assim debilitar a aflrmação de onipotência caracterís-
tica da loucura. Em segundo lugar, reaprender o uso imperativo da linguagem. Combater o
delírio das denominaçoes polimorfas, obrigando (com banhos e duchas de água fria, por
exemplo) a aprender novamente o significado dos termos, ler livros, recitar versos. E, sobre-
tudo, busca-se que o enfermo se torne acessível a todos os usos imperativos da linguagem. Em
todo caso, nesses exercícios em torno da linguagem, não se trata de combater a falsidade com
a verdade mediante um uso dialético à linguagem, mas de impor a linguagem do asilo, a lin-
guagem do senhor. Em terceiro hgar, organizaçao das penúrias e as necessidades: vesti-
menta grotesca; alimentação racionada, um pouco abaixo da média, uniforme, não à vontade,
trabalho, etc. mas, sobretudo, o asilo organizou a carência e a necessidade de liberdade. "[...]
neste estatuto materialmente diminuído com respeito ao mundo real, da vida de fora do asilo,
o enfermo vai reconhecer que ele também está em um estado de insatisfação, que seu estatu-
to é um estatuto diminuído, que não tem direito a tudo e que se the faltam determinadas
coisas é porque está doente" (PP, 155). Em quarto htgar, imposiçao de uma identidade es-
tatutária: é necessário conseguir que o doente diga a verdade, que conte sua vida e inclusive
que a ponha por escrito (nome, lugar de origem, idade, ofício, lugares e períodos de internação,
etc.). É necessário ligar a individualidade do louco a uma identidade social. "Mas vocês se dão
conta de que esta verdade não é a da loucura falando em seu próprio nome, é o enunciado de
uma loucura que aceita reconhecer-se em primeira pessoa em uma determinada realidade
administrativa e médica constituída pelo poder asilar. E, no momento em que o doente se
reconheça nesta identidade, cumpre-se a operação de verdade" (PP, 160). Em quinto lugar,
des-hedonizaçao da loucura: aniquilar o prazer do sintoma através do prazer da cura. O
enfermo pode integrar o tratamento de sua loucura pela via do prazer e, deste modo, aceitar
o tratamento sem se queixar. Nesse ponto, Foucault observa que Leuret vai além dos psiquia-
tras de sua época, para os quais bastava que o enfermo aceitasse o tratamento. No entanto,
para Leuret, é necessário desarticular a possível conexão entre o tratamento e o prazer da
(PP'
lor.u.u, para tal acrescenta ao tratamento alguns elementos particularmente dolorosos
162).* "[...] Eu creio que é necessário falar de uma tautologia asilar, no sentido de que o
médico entende como sendo próprio ao dispositivo asilar determinado número de instrumen-
tos que têm essencialmente por função impor a realidade, intensificá-la, somar à realidade
este iuplemento de poder que the permitirá agarrar a loucura e reduzi-la para então
dirigi-la,
governá-la. Estes suplementos de poder acrescidos à realidade pelo poder asilar são a dissi-

metria disciplinar, o uso imperativo da linguagem, a organização das penúrias, a imposição


de uma identidade estatuária na qual o doente deve reconhecer-se, a des-hedonização da
loucura. Estes são os suplementos mediante os quais, graças ao asiio e ao jogo do funciona-
mento asilar, realidade poderá impor sua apropriação à loucura. Mas, vocês se dão conta - e
a

é neste sentido que há uma tautologia - de que tudo isso (a dissimetria do poder, o uso impe-
rativo da linguagem, etc.) não é simplesmente um suplemento de poder acrescentado à reali-
dade, é a forma real da própria realidade. Estar adaptado ao real, [...] querer sair do estado de
loucura é, precisamente, aceitar um poder que se reconhece como imbatível e renunciar à

onipotência da loucura. Deixar de estar louco é aceitar ser obediente. É poder ganhar a vida,

PsIQUIATRfA \Psychiatriel 357


reconhecer-se na identidade biográfica que se the foi formada, é deixar de encontrar prazer
na loucura' (PP, 164-165). d) Poder psiquiatrico e "direção": as marcas do saber. O poder
psiquiátrico é, então, mais que uma intervenção terapêutica, uma determinada maneira de
dirigir e administrar. O psiquiatra é quem dirige o funcionamento do hospital e dos indivíduos,
cuja "direção'consiste essencialmente em fazer com que a realidade tenha poder de coerção,
que se imponha à loucura. Segundo Foucault, desta maneira foram importados para o espaço
do asilo técnicas e objetos que haviam sido desenvolvidos durante os séculos precedentes na
prática religiosa de direção de consciênci a (PP, 172) * Pois bem, enquanto dispositivo disci-
plinar, o asilo é isomorfo à escola, ao quartel, à fábrica. No entanto, há um elemento que
marca sua especificidade; o asilo justifica sua função terapêutica pela presença do médico no
seu interior, pelo entrelaçamento entre medicalização e disciplinarização. A aula de 9 de ja-
neiro de 1974(PP,171-198) está inteiramente dedicada a estabelecer em que consiste essa
função de direção do médico no ambiente do asilo. Em primeiro lugar, é necessário ter pre-
sente que o que se introduz como "realidade no asilo é: a vontade alheia (do médico, dos en-
fermeiros, dos vigilantes), a obrigação de amnésia, do reconhecimento da própria loucura (há
que mostrar ao louco que ele está efetivamente enfermo, que na sua loucura há presunção,
maldade e um desejo maligno que a anima), a obrigação de satisfazer as próprias necessidades.
Por um lado, cada uma dessas "realidades" colocará uma série de questões próprias da psi-
quiatria e dos saberes-psi: a questão da submissão, da confissão, do desejo, da compensação
econômica. Por outro, essas "realidades" permitirão, além do mais, definir em que consiste o
indivíduo saudáve|. Este deve ser portador da lei do outro, da identidade própria, do desejo
admissível, o indivíduo que insere suas necessidades no sistema econômico. Em segundo
lugar, deve-se observar que existe uma distância entre o saber médico (nosologia, anatomia-
patológica) e as práticas do médico psiquiatra no âmbito asilar. Por um lado, como já dissemos,
a distribuição de loucos no asilo não segue a taxonomia das doenças; por outro, a medicâliza-

ção é utilizada não como terapia, mas como técnica da


'direçãol Assim, por exemplo, a prá-
tica do banho respondia a uma necessidade de melhorar a circulação do sangue; no entanto,
é utilizada como instrumento de disciplinarização. Em definitivo, não é fundamentalmente o
conhecimento, o saber médico, o que se faz presente no asilo através da pessoa do psiquiatra.
"Parece-me que a marca médica dentro do asilo é essencialmente a presença física do médico,
sua onipresença, em suma, é a assimilação do espaço asilar ao corpo dopsiquiatra' (PP, 179).
Toda terapia começa com a presença em pessoa do psiquiatra. A arquitetura do asilo está
calculada para que o psiquiatra possa estar virtualmente em todas as partes. O corpo do psi-
quiatra deve estar em comunicação com todas as unidades da administração do asilo. Foucault
enumera uma série de "marcas" do saber do psiquiatra no asilo: informação, através da famí-
lia, por exemplo, da biografia do enfermo, interrogatório psiquiátrico, constituição de um
informe permanente sobre o doente, punição terapêutica, a clínica para instruir os estudantes
e mostrar ao enfermo que se conhece sua enfermidade. "São estas marcas do saber, e não
conteúdo de uma ciência, o que vai permitir ao alienista funcionar como médico dentro do
asilo. [...] eu creio que se pode dizer o seguinte: através desta identificação do corpo do psi-
quiatra e do lugar do asilo, deste jogo de marcas de saber e estas quatro formas de realidade
que passam através delas, se pode indicar a formação de um personagem médico que está no
polo inverso de outro personagem médico que está constituindo-se neste mesmo momento e

358 PstQUtArRtA lPsychiatrie)


adquirindo uma figura completamente nova, o cirurgião" (PP, 185). 6) Generalização e
transformação do poder psiquiátrico. A) A psiquiatrização da inÍancia; o idiota e o
retardado. A generalização do poder psiquiátrico não é um episódio tardio, consequência da
difusão da psicanálise, mas um episódio precoce na história da psiquiatria que se produz nas
primeiras décaclas do século XIX. A hipótese de Foucault é que essa generalizaçao náo se levou
a cabo a partir do indivíduo adulto, mas da criança. E rnais precisamente, a partir de duas
figuras infantis: o idiota e o retardado, e não da criança louca (PP, 200-201). A propósito do
idiota e do retardado, assistimos, nas primeiras décadas do século XIX, a dois processos em
grande medida inversos: a elaboração teórica da noção de idiotia e imbecilidade e a institu-
cionalização dos idiotas e dos retardados. Quanto ao primeiro processo, em primeiro lugar, é
necessário assinalar que, até o ânal do século XYIII, a idiotia, a imbecilidade, a estupidez não
possuíam caráter distintivo em relação à loucura; formavam parte de uma mesma série, tra-
tava-se de diferenças, em certo sentido, apenas quantitativas. A diferenciação entre ioucura e
idiotia começa a delinear-se com clareza a partir dos textos de ). Esquirol (por exemplo, o
artigo "ldiotisme'l do Dictionnaire des sciences médicales, t. XXll, Paris, 1818) e ]acques
Étienne Belhomme (Essai sur l'idiotie. Propositions sur l'éducation des idiots mis en
rapport avec leur degré d'intelligence, Paris, 1824). Com eles aparece uma nova definição
de idiotia, já não se trata mais de uma doença, mas de um estado em que as faculdades
intelectuais não se desenyolveram. Por sua vez, E. Seguin (Traitement moral, hygiàne et
éducation des idiots et des autres enfants arriàres ou retardes das leur dévelopPeffient,
Paris), distinguirá o idiota do retardado. No primeiro, o desenvolvimento encontra-se fre-
ado, no segundo, é mais lento em relação às outras crianças da mesma idade. Ainda que
haja uma patologia orgânica na base de ambos os fenômenos, não é a noção de enfermida-
de o eixo dessas novas deÍrnições do idiota e do retardado, mas a ideia de desenvolvimento,
de um processo que afeta a vida orgânica e psicológica do indivíduo. Quanto ao desenvol-
vimento, além do mais, encontramos uma dupla normatividade: a do adulto, o estado ter-
minal que deve ser alcançado e a da medida das crianças que permite estabelecer a maior
ou menos velocidade nesse processo (PP, 205-206). Além do mais, Foucault assinala dois
elementos teóricos dessa nova concepção da idiotia e da imbecilidade. Por urn lado, no
idiota e no retardado emerge um componente do indivíduo que não foi devidamente inte-
grado: o instinto. Por outro, ainda que o idiota e o retardado não sejam doentes, a presença
da não integração do instinto lhes converte em anormais (em relação à normatir.idade do
adulto e das outras crianças). Deste modo, os sintomas sáo a doença e os instintos, a anoma-
lia (PP, 208). Pois bern, quanto ao segurrdo processo, o da institucionalização, como dissemos,
assistimos a um mol.imento inverso: as instituições e as disposições administrativas tendem
a assimilar, apesar da separação teórica, loucura e idiotia. Os idiotas e os inbecis, com etêito,
são situados dentro do espaço asilar. Nesse espaço, a noção de alienação mental se converterá
em uma categoria que reunirá a todos. "Pois bem, uma vez que foi situado dentro do espaço
asilar, o poder que se exerce sobre as crianças idiotas será exatamente o poder psiquiátrico em
estado puro, permanecerá o mesmo, praticamente sem nenhuma elaboração" (PP, 312).
Foucault menciona alguns casos concretos em que se alojarn idiotas e imbecis dentro do es-
paço asilar; mas merece particular atenção a disposição do ministro do interior francês de
1840, segundo a qual a mesma lei de internação de 1838 se aplica aos casos em questão. *

PSIQUIATRIA (Psychidtrie) 359


Ambos os processos, especificação teórica e anexação prática, deram lugar a um movimento
de medicalização da idiotia, e, através dele, se entrelaçaram. Para Foucault, uma razão funda-
mentalmente econômica o explica: a necessidade de obter os recursos financeiros necessários
para ocupar-se e atender os idiotas e os imbecis. E, para isso, para obter fundos, os médicos
da época elaboraram a noçáo de periculosidade social dos idiotas e dos imbecis. "O perigo é
o terceiro elemento que permitirá o início do procedimento de internação e de assistência, e
os médicos efetivamente fazemcerÍífrcados neste sentido" (PP,2l7). * Desse primeiro movi-
mento de generalização do poder psiquiátrico, Foucault extrai três consequências importantes.
Em primeiro lugar, a psiquiatria, como ciência e poder do anormal, poderá conectar-se com
toda série de regimes disciplinares da época. Em segundo lugar, a psiquiatria como poder
sobre a loucura e como poder sobre o anormal vai achar-se na obrigaçáo de definir as relações
que podem existir entre a criança anormal e o adulto louco. A noção de instinto (elemento
normal em sua existência, mas anormal em seu funcionamento) permitirá vincular esses dois
âmbitos. Aqui surgirá outra noção importantíssima, a de degeneração, de restes de loucura
que uma criança herda de seus pais ou dos ascendentes. Foucault observa que a noção de
degeneraçã0, elaborada principalmente por Morel (ver: Degeneraçao) surge antes de Darwin
e do evolucionismo (PP, 220).Terceiro lugar, é nesse movimento e nesse espaço de interro-
gaçáo acerca do destino familiar do instinto que surgirá a psicanálise (PP,22l).b) A questao
da verdade e a noção de crise. Como vimos, Foucault sustenta que o poder psiquiátrico não
busca fundamentar uma prátrca terapêutica na verdade da loucura, e sim organizar um dis-
positivo disciplinar em torno dela. No entanto, isso não significa que, na história do poder
psiquiátrico, não se tenha colocado a questão da verdade. No período que se está analisando
e que vai de 1820 a 1870, a questão da verdade emerge da prática do interrogatório, dos pro-
cedimentos de magnetismo e hipnose e do uso de determinadas drogas (éter, cloroformio,
ópio) e, particularmente, na crise histérica. Ainda que se trate de elementos cuja presença
tenha sido dispersa e fragmentária, neles se levou a cabo uma transformação interna e exter-
na do poder psiquiátrico (PP,233-234). Para descrever essa transformação, Foucault começa
contrapondo duas concepções de verdade: a verdade demonstração-constatação e a verdade-
acontecimento. (Ver: Verdade). * Na história da medicina, ou melhor, da prática médica até
o século XVIII, há um elemento que não pertence à história da verdade-demonstração, mas
à verdade-acontecimento: a noção de crise. Antes da constituição da anatomia-patológica, a
crise era o momento da batalha entre a natureza e o mal, a substância mórbida. Essa batalha
tem o próprio calendário na evolução da doença, aqueles momentos em que a doença produz
sua verdade, quando o médico, tendo previsto esses momentos, deve intervir para reforçar as
energias da natureza. Na sua forma geral, a técnica da crise na medicina grega não difere da
técnica do juiz; trata-se de uma técnica que se enquadra em um modelo de matriz jurídico-
político (PP , 244). Na história da prática médica, a passagem da verdade-acontecimento à
verdade-demonstração está ligada à extensão dos processos políticos de investigação (enquête).
(Yer: Investigaçao). Deste modo, na medicina em geral, com a constituição da anatomia-
patológica, desaparece a noção de crise em torno do final do século XVIII; ela deixa de ser o
eixo de organização da prática médica (PP,247). A psiquiatria e o asilo também excluíram a
noção de crise. Por várias razões. Em primeiro lugar, como vimos, porque o dispositivo disci-
plinar do asilo procura que o doente na esteja absorvido pelo pensamento da loucura, que o

3 60 PStQUtATRtA (Psychiarrie)
doente não pense nela, que se afaste dela mediante as atividades previstas no asilo (trabalho,
passeio, leituras, etc.). Em segundo lugar, a prática da anatomia patológica permitiu rechaçar
a existência de uma crise a propósito da loucura. A verdade da loucura, com efeito, não está
no que os loucos dizem ou fazem, mas nos nervos e nos seus cérebros. Em terceiro lugar, pela
relação estabelecida entre loucura e crime, especialmente mediante a noção de monomania.
A partir dessa noção, todo louco é um criminoso em potencial. Desse modo, o psiquiatra
fundava sua prática na defesa da sociedade, e não na verdade. No entanto, no campo da psi-
quiatria e do asilo, contemporaneamente a essa exclusão da noção de crise, encontramos com
um processo de reaparecimento ou de transformação da noção de crise. "Não mais esta crise
de verdade que jogava entre as forças da doença e as forças da natureza, e caracteriza a crise
médica, tal como funcionou no século XVIII, mas uma crise de realidade que se joga entre o
louco e o poder que o interna, o poder-saber do médico" (PP, 251). Desse modo, o poder
psiquiátirco será levado a colocar-se a questão da verdade da loucura. Foucault aponta duas
razões para essa transformação. Por um lado, nem o regime disciplinar nem a anatomia pa-
tológica haviam permitido à psiquiatria fundamentar sua prática na verdade. Por outro lado,
porque o saber psiquiátrico náo intervém essencialmente para especiflcar ou classificar a
doença, mas sim para decidir se a enfermidade existe ou não, se o indivíduo está ou não lou-
co. "Pois bem, para decidir em termos de realidade, para funcionar neste nível, de quais ins-
trumentos o psiquiatra dispõe? Precisamente neste ponto encontra-se o paradoxo do saber
psiquiátrico no século XIX. Por um lado, ele tratou de constituir-se segundo o modelo da
medicina-constatação, da investigação, da demonstração, buscou constituir um saber de tipo
sintomatológico, construiu uma descrição das diferentes enfermidades, etc. Porém, na verda-
de, isto era somente a cobertura e a justificativa de uma atividade que se situava em outro
lugar; e esta atividade era, precisamente, a decisão: realidade ou mentira, realidade ou simu-
iação. E o ponto de partida da simulaçã0, no ponto da ficção, e não no ponto da caracterizaçao,
onde se situa realmente sua atividade" (PP,251). Encontramos, pois, um duplo funcionamen-
to do poder psiquiátrico: rechaço e transformação da noção clássica de crise. Duas Íiguras
testemunham esse duplo movimento. Por um lado, o demente que responde exatamente ao
funcionamento da instituição asilar. Efetivamente, o demente é aquele em quem foram caladas
todas as especificidades dos sintomas; não há mais manifestaçã0, nem exteriorização, nem
crise. "O demente, com efeito, é aquele que foi fabricado pelo duplo jogo deste poder [o poder
psiquiátricol e desta disciplina' (PP, 253). Por outro lado, o histérico. "Um histérico é aquele
que está tão seduzido pela existência de sintomas mais específicos, mais precisos, aqueles que
se apresentam precisamente nas enfermidades orgânicas, que os retoma por conta própria'
(PP, 253).- Esquematicamente, resumindo a análise de Foucault, pode-se dizer que a prova
(épreuve) de verdade que estava em jogo na noção clássica de crise se dissocia: por um lado,
na medicina geral, através da anatomia patológica, ela desaparecerá com a incorporação dos
procedimentos da verdade-demonstração; por outro, no campo da psiquiatria, ela se conver-
terá em uma prova não da verdade, mas da realidade (PP, 269). (Traduzimos o termo épreu-
ye por prova, mas é preciso assinalar que não se trata necessariamente de uma prova no
sentido da constatação empírica ou da demonstração dedutiva."Epreuve", com efeito, tem o
sentido de confrontação, de enfrentamento, de competição. A esse respeiÍover: Investigação.).
No caso da medicina geral, o médico devia elaborar um diagnóstico diferencial, isto é, distinguir

PSIQUIATRIA (Psychiatrie) 36I


-

as enfermidades com base na especiflcidade dos sintomas. No campo da psiquiatria, no en-


tanto, o médico deve, sobretudo, falar acerca da existência ou não da loucura. Além do mais,
na medicina geral, a anatomia patológica permitiu trabalhar diretamente sobre o corpo, sobre
os componentes orgânicos localizados da enfermidade. Contudo, na psiquiatria, exceto no
caso de paralisia geral, o psiquiatra não dispoe dessa possibilidade. Ainda que seja necessário
assinalar que, mesmo no caso da paralisia geral, alguns psiquiatras como Jules Baillarger
(1809-1890) sustentam que nela não há loucura, mas um enfrentamento entre paralisia e
demência. "O que eu queria fazer agora, a propósito da psiquiatria, é mostrar como essa ver-
dade de gênero do tipo do acontecimento, foi recoberta, pouco a pouco, ao longo do século
XIX, por outra tecnologia da verdade, pelo menos como se buscou esta tecnologia da verdade-
acontecimento, a propósito da loucura, por uma determinada tecnologia da verdade demons-
trativa, de constatação' (PP, 239).* Aprova de realidade, transformação da antiga prova de
verdade da noçáo de crise, buscará transcrever em termos de sintoma e de doença os elemen-
tos que motivaram o pedido de internação de um indivíduo e, ao mesmo tempo, o poder
disciplinar do psiquiatra procurará também existir como saber médico. "Isto significa que a
prova psiquiátrica é uma dupla prova de entronização. Ela entroniza avida de um indivíduo
como tecido de sintomas patológicos, mas entroniza, sem cessar, o psiquiatra como médico,
ou a instância disciplinar suprema como instância médica' (PP, 270). Foucault analisa três
procedimentos de prova de realidade na prática psiquiátrica: o interrogatório, o uso de drogas
ea hipnose e o magnetismo. c) O interrogatório. Previamente nos referimos ao interrogató-
rio como um dos procedimentos disciplinares, aquele mediante o qual se busca que um indi-
víduo reconheça sua identidade social. Mas essa é somente uma das funções do interrogatório;
como prova de realidade, será um procedimento para dar realidade à loucura e, no limite,
provocá-la. Neste sentido, Foucault enumera quatro estratégias do interrogatório psiquiátrico:
a busca dos antecedentes familiares, a dos antecedentes individuais (situar a loucura no con-
texto das anomalias individuais), o entrelaçar ou desconectar a responsabilidade com a sub-
jetividade (se se reconhecem os sintomas, se exime da responsabilidade) e conseguir que o
indivíduo atualize os sintomas no marco do interrogatório. "Creio que se pode decompor este
interrogatório, cujos momentos principais lhes indiquei, em três níveis. Deixemos de lado o
primeiro, o nível disciplinar do qualjá lhes falei; restam dois níveis que são, creio eu, essenciais.
No interrogatório psiquiátrico, trata-se, por um lado, de constituir uma mímesis médica, o
análogon de um esquema médico dado pela anatomia patológica. Em primeiro lugar, o inter-
rogatório psiquiátrico constitui um corpo pela atribuição de herança, atribui a um corpo uma
enfermidade que não o tinha. Em segundo lugar, em torno a esta enfermidade e a este poder
indicá-la como enfermidade, constitui um campo de anomalias. Em terceiro lugar, fabrica os
sintomas a partir de uma pedido. E, finalmente, em quarto lugar, isola, circunscreve, define
um núcleo patológico que mostra e que atualiza na confissão ou na realização deste sintoma
maior e nuclear [a alucinação, a crise histérica, por exemplo]. O interrogatório é, então, na
psiquiatria do século XIX, uma determinada maneira de reconstituir exatamente os elementos
que caracterizam a atividade de diagnóstico diferencial na medicina orgânica. É uma manei-
ra de reconstruir ao lado, paralelamente à medicina orgânica, algo que funciona da mesma
maneira a ordem da mímesis e do análogon O outro estrato, no interrogatório psiquiátrico,
éo nível no qual, efetivamente, por um jogo de passes, de intercâmbios, de promessas, de dons

362 PStQUtATRtA (Psychiatrie\


e contra-dons entre o psiquiatra e o doente se terá a tripla realização: realização de uma
conduta como loucura, realização, em segundo lugar, da loucura com enfermidade e, Íinal-
mente, realizaçáo do guardião do loco como médico' (PP,277).D) O uso de drogas. Airrda
que haja um uso disciplinar das drogas, elas tiveram outra função de primeira ordem na
transformação do poder-saber psiquiátrico. Foucault toma como referência fundamental a
obra de |oseph Jacques Moreau de Tours, Du haschich et de la aliénation mentale (Paris,
1845). Segundo Moreau de Tours, que experimentou em si mesmo, a intoxicação por haxixe
passa pelas seguintes fases: sentimento de bem-estar, excitação e dissociação de ideias, erro
acerca do tempo e do lugar, exagero das sensações visuais e auditivas, ideias fixas, convicçÕes
delirantes, exagero dos medos, ilusões, alucinações. Se excetuarmos o primeiro desses sinto-
mas, todos os sintomas da loucura se encontram nessa série. Deste modo, confiscando psi-
quiatricamente os efeitos da droga, o haxixe oferece a Moreau de Tours a possibilidade de
reproduzir os sintomas da loucura. A partir daqui, eà diferença do que acontecia com Pinel
e Esquirol, já não se buscará determinar qual a faculdade que está afetada pela doença mental;

a loucura passa a ser concebida como uma doença que em sua evolução afeta toda a vida do
indivíduo. Além do mais, a experimentação do haxixe permitiu estabelecer um fundo único
a partir do qual a loucura se desenvolve e evolui, o que Moreau denominou "a modiÍicação
*
intelectual primordial'l ou a "a modificação primordial'l a excitação primitiva. Mas a expe-
rimentação com haxixe teve outra importante consequência. Como assinalamos, Moreau
experimentou a droga em si mesmo, pôde vincular a própria experiência à experiência do
louco, repeti-la na pessoa do psiquiatra. "E é assim que se acha fundada esta famosa e abso-
lutamente nova tomada de possessão da psiquiatria sobre a loucura e que tem a forma da
compreensão. A relação de interioridade que o psiquiatra estabelece por meio do haxixe the
permitirá dizer: isto loucura porque eu mesmo, como indivíduo normal, posso compreen-
éa
*
der o movimento pelo qual se produz este fenômeno' (PP, 283). Finalmente, a experimen-
tação com o haxixe também permitiu reconstituir esse fundo primordial que é o modelo da
louCUra no indivídUo normal: o sonho. "O sonho, como mecanismo que pode ser encontrado
que é
no indivíduo normal e que vai servir de princípio de inteligibilidade da loucura e o
trazido à luz mediante a experimentação com o haxixe" (PP, 283). O sonho, então, aparece

como a lei comum da vida normal e da vida patológica, 'b ponto a partir do qual a compre-
ensão do psiquiatra poderá impor sua lei" (PP, 284). Certamente essa não é a primeira vez
que se vincula a loucura ao sonho; mas é a primeira vez que a comparação entre o sonho e a
loucura se converte em princípio de análise. e) O magnetismo, a hipnose. Ainda que nas
primeiras décadas do século XIX a hipnose tenha sido aplicada nos asilos psiquiátricos, apesar
disso, a verdadeira inserção da hipnose na prática psiquiátrica tem lugar mais tardiamente,
entre 1858 e 1859, quando Paul Brocca introduz na França as experiências de |ames Braid,
autor de Neuro-hypnotogy, or the Rationale of Nervous Sleep Considered in relation with
Animal Magnetism. Illustrated by Numerous Cases of its Successful Application in the
Relief and Cure of Diseases (Londres). A diferença do que acontecia com as experiências
anteriores, com Braid a hipnose aparece como uma abertura através da qual o saber médico
poderá se apropriar do enfermo. O médico, com efeito, poderá dispor do comportamento e
da conduta do enfermo hipnotizado. Isso lhe permitirá, entre ouras coisas, anular os sintomas
da enfermidade, provocar determinados sintomas (contraturas, paralisias) ou modificar as

PSIQUIATRIA (Psychiatríe) 363


funções automáticas do organismo (circulação, respiração). "Então, vocês veem definir-se, ou
melhor, aparecer nesta hipnose, tal como é aceita agora, esse famoso corpo do enfermo que
estava ausente até agora na prática psiquiátrica. A hipnose é o que permite intervir efetiva-
mente no corpo, não só ao nível disciplinar dos comportamentos manifestos, mas também ao
nível dos músculos, dos nervos, das funções elementares. E, consequentemente, a hipnose é

uma nova maneira para o psiquiatra, mais aperfeiçoada, mais avançada que o interrogatório,
de apoderar-se efetivamente do corpo do enfermo; ou melhor, é a primeira vez que o corpo
do enfermo, em seus detalhes e de certo modo funcional, se encontrará finalmente ao alcance
do psiquiatra. O psiquiatra poderá, finalmente, pegar este corpo que se lhe escapava, uma vez
que a anatomia patológica não havia dado conta do funcionamento e dos mecanismos da
loucura' (PP, 289). f) O surgimento do corpo neurológico. Estes três elementos, "prova de
realidade" (o interrogatório, o uso de drogas e a hipnose), adquirirão uma nova dimensão e
maior importância com a descoberta, no âmbito da medicina orgânica, do corpo neurológico
*
com as experiências de Guillaume Duchenne de Boulogne ao redor dos anos 1850-1860.
Ainda que não se possa opor o corpo neurológico ao corpo da anatomia patológica, os proce-
dimentos para ajustar alocalizaçáo anatômica e a observação clínica não são os mesmos.
Enquanto a anatomia patológica buscava a descrição detalhada dos órgãos profundos que
havia sido lesado, a neurologia, por sua vez, procede por uma observação de superfície. Nessa
mudança, modifica-se também o valor dos signos analisados. A anatomia patológica, com
efeito, estimulava o paciente (por exemplo, se percute o abdômen) para obter um determina-
do efeito (o som produzidos por essa manobra); esse efeito é o signo que se deve decifrar, que
deveindicar as lesões profundas. No entanto, na neuropatologia, o signo que se busca estudar
não é simplesmente um efeito, mas, mais precisamente, uma resposta determinada (por
exemplo, a resposta de um músculo à estimulaçáo superficial da pele umedecida). Yalendo-se
das respostas aos diferentes estímulos, podem-se estudar as diferenças funcionais entre os
distintos tipos de comportamento: reflexo, automático, voluntário espontâneo, voluntário
ordenado a partir do exterior. "Toda essa hierarquia no funcionamento corporal do voluntário
e do involuntário, do automático e do espontâneo, do que é requerido mediante uma ordem
ou do que se encadeia espontaneamente dentro de um comportamento, tudo isso vai per-
mitir - e esse é o ponto essencial - a análise em termos clínicos, em termos de atribuição
corporal, da atitude intencional do indivíduo. Consequentemente, possibilidade de uma de-
terminada captura da atitude do sujeito, da consciência, da vontade do sujeito dentro do
mesmo corpo. [...] No poder disciplinar a vontade era precisamente aquilo sobre o que, aqui-
lo ao que devia aplicar-se o poder disciplinar, era precisamente o que se encontrava frontal-
mente com o poder disciplinar, mas, depois de tudo, só era acessível mediante o sistema de
recompensa e castigo. Eis aqui que agora a neuropatologia oferece o instrumento clínico o
qual se pensa que poderá permitir captar o indivíduo ao nível mesmo desta vontade" (PP,
303-304). Surge, desse modo, um novo dispositivo médico-clínico, diferente do dispositivo da
anatomia-patológica e também do dispositivo de poder psiquiátrico. Com efeito, o dispositivo
neurológico substitui o interrogatório do dispositivo psiquiátrico por ordens que buscam obter
uma resposta do sujeito; essas respostas, no entanto, não são verbais, e sim corporais. Por isso
o neurologista poderá estabelecer um diagnóstico diferencial em que já náo há espaço para a
simulação. 'A prova de realidade não é mais necessária: a clínica neurológica oferecerâ a

364 PslQUrArRtA (Psychiatrie)


possibilidade, pelo menos em um determinado domínio, de firmar um diagnóstico diferencial,
como a medicina orgânica, porém a partir de um dispositivo diferente. Em suma, o neurolo-
gista diz: obedeça às minhas ordens, mas cale-se e seu corpo responderá por você dando as
respostas que só eu, porque sou médico, sou capaz de decifrar e analisar em termos de verda-
*
de" (PP, 306). De acordo com Foucault, pode-se dizer que, até o aparecimento da neurologia
clínica com seu noyo dispositivo, existiam duas espécies de doenças: as mentais e as orgânicas.
A esse respeito, Foucault observa que não seria correto superpor essa oposição à oposição
entre corpo e espírito. Com efeito, na prática médico-psiquiátrica, algumas doenças mentais
são concebidas como doenças do corpo acompanhadas de sintomas psíquicos. A linha divi-
sória entre ambas passa pela possibilidade do diagnóstico. No caso das doenças orgânicas,
podia levar-se a cabo um diagnóstico diferencial; nas doenças mentais, no entanto, era reque-
rida uma prova de realidade para poder estabelecer se o indivíduo em questão estava ou não
efetivamente louco (PP, 307). Entre ambos os tipos de doença, além do mais, encontramos
os casos intermediários, bons ou maus desde a perspectiva epistemológica. Entre os primeiros,
está a paralisia geral; nesse caso, deparamos com ambos os gêneros de sintomas e é possível
passar de uns aos outros. Entre os segundos, há a neurose; de acordo com a concepçào cor-
rente do século XIX, doenças com problemas nas funções de relação (funções motoras ou
sensitivas), mas sem correlações anatômicas atribuíveis. Por essa época, no domínio das
neuroses entravam as convulsões, a epilepsia, a histeria, a hipocondria, etc. (PP,308). Essas
doenças eram epistemicamente más por dois motivos: seus sintomas eram irregulares, e era
possível estabelecer uma correlação orgânica e porque com frequência se prestavam à simu-
lação. O surgimento do corpo neurológico permitirá eliminar a desqualificação epistemoló-
gica desse grupo de doenças; o novo dispositivo de diagnóstico dilerencial possibilitará, com
efeito, por exemplo, passar dos distúrbios neurológicos, como os tumores, às convulsões.
Desse modo será produzida uma espécie de consagração patológica do amplo domínio das
neuroses e, em particular, da histeria. g) A histeria. A partir do surgimento do disPositivo
neurológico formação do corpo neurológico, Foucault se ocupa da análise dos fenômenos
e da

histéricos nas experiências de Charcot. Para sermos mais precisos, não se trata de uma histó-
ria da histeria nem dos conhecimentos psiquiátricos sobre a histeria, mas de abordar a histe-
ria como um episódio de luta, de confrontaçáo, de batalha entre o psiquiatra e o histérico.
"Não creio que tenha havido exatamente uma epidemia de histeria; creio que a histeria foi o
conjunto de fenômenos, e fenômenos de luta, que se desenvolveram no asilo e também fora
do asilo, em torno a este novo dispositivo médico que era a clínica neurológica [...]" (PP, 310).
A esse respeito, Foucault descreve três grandes manobras histéricas. Em primeiro lugar, a
organizaçao do cenário sintomatológico.Parapoder situar a histeria no mesmo plano que
as doenças orgânicas, é necessário poder referir-se a uma sintomatologia estável, codificada
eregular. Deste modo, surgiu, com Charcot e seus sucessores, a noção de "estigmas histéricos'l
ou seja, fenômenos encontrados em todos os casos de histeria: diminuição do campo visual,
semianestesia simples ou dupla, anestesia da faringe, contratura provocada por um grupo
muscular em torno da articulação (PP, 311). Além do mais, foi também necessário codificar
as crises histéricas, ou seja, ordenar em sua regularidade a evoluçáo desses sintomas. "Solici-
tando seus estigmas e a regularidade de suas crises, o médico solicita ao histérico que lhe dê
a possibilidade de levar a cabo um ato estritamente médico, isto é, um diagnóstico diferencial"

PsIQUIATRIA (Psychíatrie) 365


(PP, 312). Mas, ao mesmo tempo, o histérico já não será um louco dentro do asilo, mas um
doente dentro de um hospital digno desse nome. "Consequentemente, o funcionamento neu-
rológico do médico depende do histérico que the subministra, com efeito, seus sintomas re-
gulares e, nesta medida, o que se oferece ao psiquiatra náo é somente o que assegurará seu
próprio estatuto de neurologista, mas o que assegurará ao doente a apropriação que ele tem
do médico, pois subministrando seus sintomas pode apoderar-se dele, posto que assim o
consagra como médico e não como psiquiatra" (PP, 312-313). Em segundo lugar, há uma
segunda manobra do manequim funcional (reprodução provocada dos sintomas histéricos
por meio da hipnose). A organização do cenário sintomatológico provocou uma proliferação
dos sintomas e das crises histéricas). Um paciente de Charcot teve 4.506 crises em 143 dias, e

mais tarde, 17.083 em 14 dias. Era necessário poder controlar essa pletora de sintomas. Re-
correu-se então à hipnose e à sugestão para poder isolar perfeitamente um sintoma histérico.
Mas essa técnica tem um inconveniente e o perigo de que possa ser apenas o efeito de determina-
da solicitação, e não exatamente uma resposta no sentido neurológico do termo. Em outras
palavras, era necessário dispor de um sintoma histérico em estado natural, fora do âmbito
hospitalar e sem recorrer à hipnose. Aqui, desempenhou um papel de primeira ordem o sur-
gimento de uma nova categoria de pacientes, os pacientes assegurados, em geral vítimas de
acidentes de trabalho. "E, este duplo aparecimento, a partir de elementos completamente di-
ferentes, do paciente asssegurado e do corpo neurológico é, verossimilmente, um dos fenô-
menos mais importantes na história da histeria' (PP, 315). Esses pacientes assegurados, víti-
mas de acidentes, com efeito, apresentavam desordens pós-traumáticas (paralisia, anestesia)
sem suporte anatômico atribuível. Deste modo, podem autenticar-se como naturais os sinto-
mas que se reproduzem nos histéricos hipnotizados. Mas, ao mesmo tempo, o estudo dos
sintomas histéricos permitirá estabelecer que se trata verdadeiramente de doentes, e não de
simuladores. Neste sentido, o histérico autenticará a enfermidade do traumatizado. "Natura-
lizaçáo do histérico pelo traumatizado, denúncia da possível simulação no traumatizado, pelo
histérico'(PP,316). Em terceiro lugar, existe uma terceira manobra. É também necessário
estabelecer que os sintomas histéricos não eram uma consequência dos poderes médicos
exercidos sobre o histérico; era necessário poder inscrever os sintomas histéricos em um es-
quema patológico estrito. Para isso, Charcot elaborou a noção de traumatismo. Trata-se de um
acontecimento, de um golpe, de uma queda, de um medo, um espetáculo que pode provocar
uma espécie de hipnose discreta, localizada, mas de longa duração (PP, 319). O trauma apa-
rece então como a etiologia da histeria. Desse modo, surge a necessidade de que os histéricos,
sob hipnose ou não, contem sua vida e especialmente sua infância, para buscar e encontrar o
acontecimento fundamental e essencial que se prolonga em seus sintomas. Para Foucault, a
partir dessa exigência, se colocará em funcionamento o que se denomina a contramanobra
dos histéricos. Os histéricos começarão a relatar sua vida sexual. Mas, curiosamente, Charcot
não podia admitir esse aparecimento da sexualidade. De acordo com a análise de Foucault, a
razão dessa impossibilidade reside em que a presença da sexualidade havia sido a causa da
desqualificação da neurose como enfermidade em torno de 1840. A preocupação de Charcot,
com efeito, era qualificar a histeria como enfermidade (PP, 322).Por isso, era necessário
despojar a histeria de seu componente sexual. A esse respeito, Foucault narra a anedota das
declarações que Freud escutou na casa de Charcot, para onde havia sido convidado durante

366 PSTQUTAÍRlA (Psychiatrie)


seu semestre parisiense. Charcotdisse:'Ah! A histeria, todo mundo sabe que se trata de sexu-
alidade'i Freud comenta: "Quando escutei isso me surpreendi completamente e me disse: '
Mas se ele sabe, por que não o diz?" (PP, 323). O relato de Freud (que não coincide exata-
mente, mas esse é o texto de Foucault) encontra-se em Zur Geschichte der psychoanalytis-
.
chen Bewegung(delgl4emGesammelte Werke, vol. X, 1946, p. 51). Surge, desse modo,
um novo corpo, já não o corpo anátomo-patológico, nem o corpo disciplinar, mas o corPo
sexual. Abrem-se então dois caminhos: "Ou bem, o de Babinski, sucessor de Charcot, isto é, a
desqualificação da histeria, que não será mais uma doença posto que possui essas novas co-
notações. Ou bem então uma nova tentativa para circundar o desenvolvimento histérico para
recobrir medicamente essa novidade que surgiu por toda parte em torno ao corpo neurológi-
co que os médicos haviam fabricado. Esta nova investidura será a apropriação médica, psiqui-
átrica, psicanalítica da sexualidade. Forçando as portas do asilo, deixando de ser loucas para
converterem-se em enfermas, entrando finalmente em contacto com um verdadeiro médico,
isto é, com um neurologista, subministrando-lhe os verdadeiros sintomas funcionais, as his-
téricas, para seu gran deprazer, mas sem dúvida para nossa grande desgraça, fizetam com que
a medicina se apoderasse da sexualidade" (PP, 325). Os anormais. Les anormauÍ, o curso
ministrado nos anos 1974-1975, no Collêge de France, está dedicado, como o título sugere, a
Ievar a cabo uma genealogia do conceito de anormalidade. Essa genealogia é, em grande
medida, uma genealogia do poder psiquiátrico. 1) Perícias médico-legais. Como introdu-
ção à problemática do conceito de anormalidade, Foucault começa esse curso com a leitura
de algumas perícias psiquiátricas dos anos 1955-1974. Os informes médico-legais aparecem,
ante seus olhos, sob um duplo aspecto: ao mesmo tempo produtores de poder e ubuescos (ver:
Ubuesco). Por isso, Foucault se pergunta se o discurso dos informes médico-legais (da rnedi-
cina/psiquiatria penal), o discurso das perícias se deslocou da normatividade própria do
discurso médico e se submeteu a novas regras de formação. Em primeiro lugar, são discursos
que não devem simplesmente optar entre o crime ou a loucura. Não se trata apenas de esta-
belecer se o acusado encontrava-se em estado de demência no momento do crime. Antes,
encontramos neles o jogo de uma dupla qualificação: médica e legal; que circunscreve o do-
mínio do que se passará a denominar, a partir de meados do século XIX , a perversidade: tma
série de elementos biográficos que qualificam ao criminoso (preguiça, orgulho, teimosia,
maldade). Em segundo lugar, tampouco se trata de optar entre a prisão e o hospital. Os infor-
mes médico-legais, mais do que simplesmente essa alternativa institucional (posto que o su-
jeito/objeto desses discursos nem é um enfermo - estritamente falando - nem um criminoso),
buscam estabelecer a figura do indivíduo perigoso e os mecanismos sociais para seu controle.
O objeto dos informes médico-legais é, estritamente falando, o indivíduoperverso e perigoso.
Segundo Foucault, na formação desses discursos, observam-se dois elementos característicos.

Por um lado, a reativação das categorias elementares da moralidade (preguiça, orgulho, tei-
mosia, maldade). Por outro lado, tais discursos se assemelham, por seu vocabulário e em seus
argumentos, ao discurso pelo qual os pais tratam de infundir medo a seus filhos. São discur-
sos de caráter parento-infantil. Desde esse ponto de vista, a formação do discurso médico-
legal aparece vinculada a dois fenômenos históricos. Em primeiro lugar, uma regressào a
respeito dos informes de Esquirol, por exemplo. Aqui se tratava da irrupção no tribunal de um
discurso que se havia formado em outro lugar, no hospital. Agora, encontramos um discurso

PSIQUIATRIA (Psychiatrie) 367


que se acha por debaixo da situação epistemológica da psiquiatria. Em segundo lugar, a for-
mação do discurso médico-legal se insere em um longo processo de reivindicação de poder
castigar que foi apresentado, frequentemente, sob o aspecto de uma modernizaçáo da justiça.
Foucault faz toÍar que o discurso médico-legal não é homogêneo nem ao discurso médico
nem ao discurso jurídico. Ambas as categorias se encontram nele adulteradas. Não se trata
nem do enfermo nem do criminoso, mas de um terceiro termo: da anormalidade e do poder
de normalização (AN, 3-19).2) Instinto e psiquiatria criminal. Como expusemos no
yerbete Anomalia,para Foucault, a figura do anormal é a Íigura de um monstro empalideci-
do. O tema que colocado na aula de 5 de fevereiro de 1975, de Les anormaux (AN,l0l - 125),
é precisamente: como é que a figura do monstro se transformou na figura do anormal, do
perverso? Foucault foca sua análise no nascimento e na formação da psiquiatria criminal.
Menciona três casos judiciais, acontecidos entre 1817 e 1826, os diferencia e finalmente ana-
Iisa o terceiro deles: o caso da mulher de Sélestat (essa mulher matou sua filha, despedaçou-a,
cozinhou uma de suas coxas com repolhos e comeu), o caso Papavoine (matou duas crianças
pequenas em um bosque), o caso Henriette Cornier (pediu a uma vizinha que lhe deixasse
sob seus cuidados a sua filha, levou-a para o seu quarto, onde tinha tudo preparado - faca, re-
cipiente para o sangue - e a degolou). No primeiro caso, ainda que nos pareça inverossímil,
argumentou-se que a mulher tinha uma forte razáo para cometer o assassinato e comer sua
filha. Nessa época, com efeito, toda a região se encontrava açoitada por uma grande fome. No
segundo caso, o sujeito apresentou como desculpa que acreditara reconhecer nas crianças
assassinadas dois f,lhos de nobres. Tratar-se-ia, então, de um delírio. Pois bem, no terceiro
caso, no entanto, não aparecem nem sinais de loucura nem aparente razâo oLt motivo para o
crime. A partir dessa situação (que não é única, mas antes exemplar), surge uma interessante
série de problemas que concernem tanto ao sistema judicial como ao saber médico sobre a
criminalidade . l) Desde o ponto de vista judicial. O artigo 64 do Código Penal da época (do
código da reforma) exigia que o sujeito da infração não se encontrasse em estado de demência
no momento de cometer o delito. Em caso contrário, encontramo-nos diante de um sujeito
inimputável. Mas se essa é a situação desde a perspectiva do código penal, desde a ótica da
tecnologia da punição, é muito diferente. O objetivo da reforma penal burguesa era a correçào,
mediante aquilo que se denominava o interesse o:uarazão do crime. Para expressá-lo de outro
modo, o sistema jurídico-penal exige uma dupla racionalidade: a racionalidade do sujeito para
ser imputáve1 e a racionalidade do delito para ser punível, isto é, corrigível. O caso de Hen-
riette Cornier coloca, precisamente, como problema que o sujeito aparece como racional no
momento do ato e, no entanto, o crime carece de razão; apresenta-se, pois, como imputável,
mas não como punível .2) Desde o Ponto de vista da psicluiatria criminal. Foucault começa
com uma observação histórica acerca da situação da psiquiatria na época em questão. A psi-
quiatria criminal não se apresentava então como uma parte da medicina, mas como um ramo
especializado da higiene pública. Na psiquiatria criminal, entrecruzavam-se, assim, o saber
médico e o da higiene social. Na dupla codificação que se faz da loucura, podemos ver o jogo
desse múltiplo pertencimento. Por um lado, a loucura aparecerá como uma doença, mas, por
outro, como um perigo. Nesse sentido, a noção psiquiátrica de degeneraçdo permitiu isolar
uma zona de perigo social e tematizá-la em termos de doença. Aqui tiveram lugar duas gran-
des operações. Dentro do asilo, a psiquiatria deslocou o núcleo essencial da loucura do delírio

368 PStQUtATRtA (psychiatrie)


(ponto de vista tradicional) para a resistência, a desobediência, a insurreição. Fora do asilo,
preocupou-se em detectar o caráter virtualmente perigoso de toda loucura, para justificar sua
*
intervençáo científica e autoritária na sociedade. Podemos compreender, então, a propósito
dos crimes sem razão, como o sistema penal e a psiquiatria criminal engrenaram seus meca-
nismos. Por um lado, a economia da punição exigirá da psiquiatria penal a determinação da
condição da correção, isto é, da racionalidade do crime (não do sujeito no momento do ato).
Por outro lado, a psiquiatria justificará sua necessidade e seu poder mostrando o fundo de
loucura de todo crime. No caso de Henriette Cornier, podemos ver como funcionam esses dois
mecanismos ajustados. Por caminhos diferentes, os psiquiatras peritos da acusação (entre os
quais se encontrava Esquirol) e os da defesa vão interrogar-se não sobre a demência do sujei-
to no momento do ato, e sim sobre a racionalidade do sujeito; em outras palavras, se o sujeito
é passível de punição. Paramostrar que existe estreita semelhança entre o ato e o sujeito, a
acusação argumentará que o crime encontra na condiçáo do sujeito a justificativa do castigo
e da correção. Em poucas palavras, o ato carecerá de razâo, mas o sujeito não. Por um lado, a
história pessoal de Henriette: foi abandonada por seu marido, entregou-se à libertinagem, teve
dois filhos que abandonou à assistência pública. Por outro, a premeditação com que cometeu
a degola (preparou os instrumentos no seu quarto, pensou o diálogo com a mãe da vítima), a
lucidez com que o cometeu (exclamou logo após de tê-la cometido: "Este merece a pena de
morte'l tratou de ocultar o corpo da vítima e de impedir que a máe entrasse no quarto onde
foi levado a cabo o crime). A defesa seguirá outro caminho. Em primeiro lugar, alegará certo
entre estado
estado de doença em Henriette Cornier: as situações de desenfreio, a alternância
Henriette. Em terceiro lugar, e
de alegria e tristeza, etc. Em segundo lugar, a lucidez moral de
encontramos aqui a questão decisiva, o fato de que a consciência moral de Henriette tenha
pre-
permanecida intaCta no momento mesmo do crime, mostra que nOS encontramos ante a
sença de algo que não é o sujeito consciente, um agente extraordinário, estranho às leis regula-

res da organização humana: o instinto. Passamos, assim, do ato sem tazã'o ao ato instintivo.*
Foucault atribui uma importância capital ao surgimento do conceito de instinto nesses termos.
o instinto foi, segundo seu juízo, o grande vetor da anormalidade, porque permitiu, precisa-
mente, encontrar um princípio de coordenação entre monstruosidade e patologia. O surgi-
mento nesses termos do instinto, além disso, determinou: l) Colocar de um modo novo a
problemática patológica da loucura. Até o Íinal do século XIX, a loucura encontrava sua con-
dição de possibilidade no delírio. Agora, é possívei pensá-la a partir da instintividade patoló-
gica. Encontraremos então as pulsões, as obsessões e a emergência de loucura sem erro, a
histeria. 2) Inscrever psiquiatria no marco de uma patologia evolucionista. 3) O surgimento
a

das tecnologias do instinto: as políticas de eugenesia (Hitler, por exemplo) e a psicanálise. 3)


A psiquiatria como saber e técnica do normal. Pois bem, a história da psiquiatria nos
impõe explicar como loucura instintiva chegou a dominar todo o campo da psiquiatria (aula
a

de 12 de fevereiro de 1975,4N, 127-151). Inicialmente, o instintivo concernia apenas àquela


forma da loucura que afeta todos os comportamentos, exceto a inteligência, e que levava ao
assassinato. Desde um ponto de vista genealógico, isto é, desde o ponto de vista da inserção
do saber psiquiátrico nos mecanismos do poder, Foucault analisa três processos centrais: l)
A lei de -1838. Essa lei trata da internação por ordem de uma autoridade policial-administra-
tiva, ou prefeito. Em relação à sua significaçáo na história da psiquiatria, Foucault sublinha

PSIQUIATRIA (Psychiatrie) 369


numerosos pontos: a) Ela consagra legalmente a psiquiatria como um ramo da medicina e da
higiene pública. A internação dos alienados requer uma instituição adaptada para receber
enfermos e com possibilidades de curá-los (corrigi-los). b) A internação requerida por meio
de ofício deve ser motivada por alguma forma de alienaçáo que comprometa a ordem e a se-
gurança públicas. c) Pede-se, então, à psiquiatria que responda acerca dos núcleos de pericu-
losidade ao nível do comportamento dos indivíduos. Antes, a intervenção dos expertos era
apenas para saber se o estado de demência de um sujeito o inabilitava como sujeito de direitos,
como sujeito jurídico; contudo, agora, estabelece-se através da mesma administração um nexo
entre loucura e perigo. 2)A reorganizaçao da demanda familiar. A demanda familiar de
internação muda tanto a respeito da forma como do conteúdo: a) Quanto à forma: não é a
família reunida em conselho, mas o círculo dos achegados, dos mais próximos. b) Quanto ao
conteúdo: trata-se agora daqueles comportamentos que afetam as relações familiares: irmão-
irmã, marido-mulher, pais-filho, etc. Em poucas palavras, as perturbações que o enfermo pode
induzir ou provocar na família. Perturbação e desordem em relação ao campo disciplinar
definido pela família, pela escola, pelos vizinhos, etc. O psiquiatra converte-se em médico da famí-
lía. 3) Uma exigência política para a psiquiatria. Cada revolução, segundo o juízo de Foucault,
introduziu algum critério de discriminação. A Revolução Inglesa (s. XVII) introduziu um crité-
rio jurídico-político para distinguir entre regimes políticos legítimos e ilegítimos (pacto, re-
presentação, soberania). A Revolução Francesa, por sua vez, recorreu a um critério histórico,
determinar que parte da revolução era necessário conservar e continuar. As diferentes revo-
luções europeias que ocorreram entre os anos 1848 e 1871 recorreram à psiquiatria. Foucault
cita o caso, na Itália, de Lombroso. Aqui antropologia parece subministrar os meios para di-
ferenciar a verdadeira revolução da rebelião e da desordem social.* Essas transformações
determinam, para expressá-lo de alguma maneira, um tríplice referencial para psiquiatria:
um referencial administrativo, um referencial familiar e um referencial político. A partir daqui,
produziram-se duas transformações fundamentais no campo da psiquiatria, para adaptar seu
saber às novas formas do poder psiquiátrico: 1 ) A reunificação da loucura. Abandona-se a
ideia de uma loucura parcial, que afete só um setor da personalidade. Ainda que as manifes-
tações de loucura sejam parciais e descontínuas, apesar disso, o indivíduo é profunda e glo-
balmente louco.2) O eixo voluntário/involuntário. A reunificação das manifestações da
Ioucura e sua referência ao indivíduo louco se articula através do eixo voluntário/involuntário.
Se antes a loucura estava aparentada com o delírio, com a ilogicidade do pensamento, agora,
o que está em jogo é a vontade ou, melhor, a falta de controle sobre a vontade. No coração da
loucura, situa-se o jogo do voluntário e do involuntário, do instintivo e do automático. * Vemos
como, a partir daqui, o campo de sintomatologia da loucura modificou-se, foi ampliado e
deslocado. Passam a aparecer como sintomas da loucura e, portanto, como fenômenos de
interesse psiquiátrico todos aqueles comportamentos que se afastam das regras da ordem
administrativa, familiar ou política. Mas, para compreender o estatuto do conceito de norma
na psiquiatria do século XIX (se é que há outra), é necessário ter presente além do mais sua
vinculação com a medicina. Desde essa perspectiva, o eixo voluntário/involuntário, permitiu
vincular psiquiatria e medicina através da neurologia, ou seja, a partir das alterações funcio-
nais do sistema neryoso que perturbam as condutas voluntárias. O conceito psiquiátrico de
normalidade e, consequentemente, de anormal inclui de modo articulado ambos os sentidos:

3 70 PsteutATRlA (psychiatrie\
1) a norma como regra de conduta, como lei informal; seu oposto, então, seria, a desordem,
a excentricidade. 2) A norma como regularidade funcional, cujo oposto seria o patológico.
Agora, a psiquiatria se converte na ciência e na técnica do normal. Loucura e crime definem,
em suas relações, a regularidade de seu domínio de análise e aplicação. 4) Psiquiatria, in-
fância, racismo. Na última aula do curso les anormaux (AN, 275-301), Foucault reúne
uma série de considerações acerca do desenvolvimento da psiquiatria da segunda metade do
século XIX, especialmente sobre a psiquiatrização da infância e a relação entre psiquiatria e
racismo. 1) O novo funcionamento da psiquiatria. Foucault compara o funcionamento da
psiquiatria no caso de Henriette Cornier, que já vimos, com outro caso, o de Charles fouey
(1367). Charles fouey, tinha cerca de quarenta anos no momento dos fatos, filho natural, sua
mãe havia morrido quando ele era pequeno, pouco escolarizado, vivia à margem da cidade,
solitário, bêbado, mal pago. Os fatos: fez-se masturbar por uma menina, após ter'quase" a
violado. O primeiro que devemos ter em conta é que a psiquiatrização do caso Jouey não vem
de cima, mas de baixo: a família o denuncia, o prefeito se interessa, depois o governadoç etc.
Toda a população, em última instância, pede uma psiquiatrização profunda do caso (psiquia-
trizaçao reclamada, não imposta). Em segundo lugar, é necessário analisar o modo como
procede a psiquiatria nesse caso. No caso Henriette Cornier: o patológico se inscreve em um
processo cronológico, o instinto aparece em seu caráter de excesso, de exagero, a doença é
intrínseca ao instinto. No caso Charles |ouey: o patológico se inscreve em uma espécie de
constelação física permanente; o instinto aparece, em seu desequilíbrio funcional, como falta;
não há doença intrínseca ao instinto, mas desequilíbrio funcional. Em um e outro caso, e este
é um ponto fundamental, considera-se a biografia dos indivíduos, mas segundo registros
completamente diferentes. Os alienistas (a escola de Pinel e Esquirol que se haviam ocupado
do caso Cornier) separavam o patológico da infância. A nova psiquiatria vincula o patológico
à infância, posto que o patológico é pensado em termos de um desequilíbrio devido a um
atraso. Esse ponto é importante, porque a infância foi, na análise de Foucault, o princípio de
generalizaçâo da psiquiatria . 2) O funcionomento da infancia na psiquiatr r'a. Na nova
psiquiatria, basta notar a presença de um elemento de infantilidade para que determinado
possível in-
indivíduo ou conduta caiam dentro do campo da psiquiatria. A partir daqui, foi
alienistas funcio-
tegrar o prazer, o instinto e a imbecilidade. Recordemos que o instinto dos
nava na medida em que não implicava o pruzer.A nova psiquiatria leva a cabo, todavia, uma

patologização do prazer sexual a partir do infantil. A psicopatologia dos alienistas, para ser
clas-
ciência, era uma imitação da medicina; estabelecia sintomas como a medicina orgânica,
sificava as doenças, organizava-as. A nova psiquiatria se encontra, antes, numa relação de

correlação. Isto é, situando-se no esPaço aberto pela neurologia do desenvolvimento e, por


conseguinte, do atraso. O que a infância oferece à psiquiatria não é tanto uma doença ou um
processo patológico, mas um estado de desequilíbrio, isto é, caracterizado pela presença
anormal de um elemento não necessariamente patológico. Trata-se, em deflnitivo, de uma
despatologização da anormalidade. 3. Uma nova nosografia. Nas grandes construções teó-
ricas da nova psiquiatria, encontramos uma nova nosografia, com as seguintes características:
a) I,{ao busca sintomas, mas síndromes. Síndromes, isto é, uma configuração parcial e
estável do anormal. Excentricidades definitivamente consolidadas. As primeiras síndromes
foram: a agorafobia, as manias incendiárias, a cleptomania, o exibicionismo, os invertidos,

PsIQUIATRIA (Psychiatrie) 371


os masoquistas, a mania antivivisseccionista. á) O retorno do delírio. A reinscrição do anor-
mal no patológico deu-se conjuntamente à reincorporação do delírio. Agora se trata não de um
delírio referido ao objeto, e sim de raiz instintiva e sexual. c) O surgimento a noçõo de "es-
tado": wa espécie de fundo causal permanente de anormalidade. O estado consiste essen-
cialmente em uma espécie de déficit geral das instâncias de coordenaçáo do indivídto.4. A
metasomatizaçao do anormol. Para explicar o surgimento da anormalidade no indivíduo, a
psiquiatria recorreu ao tema da herança. Surge assim uma espécie de grande corpo formado
por uma rede de relações hereditárias. A partir de então, a psiquiatria náo será simplesmente
uma técnica do prazer e do instinto sexual, será também uma tecnologia do matrimônio
saudável, úti1 e benéfico. Por essa via, além do mais, a psiquiatria vinculará a nova nosografia
do anormal às teorias da degeneração. Foucault confere particular importância a este último
tema, porque, a partir dele, torna-se possível um vínculo estreito entre psiquiatria e racismo:
"Todas as formas de racismo que surgiram na Europa, no final do século XIX e início do XX,
devem ser referidas historicamente à psiquiatria' (AN, 299). Sexualidade. Acerca da função
da psiquiatria em a formação do dispositivo de sexualidade, ver: Sexualidade.
Psychiatrie1363l:4N,3,18,22-23,25,27,29,31-32,34,38,49,87,94,101 102,104-105,108-114,122-124,1.27'
131, 134-137, 139,151, i55-156, 158, 181, 198,208,249,260-262,265-267,271,275-276,279-282,285-303. 45,89,99,
r78,205,234,238.DBr,67 68,87,96,103,124,127,146,160,164,167 t69,412,444,598,674.D82,11,29,62,131,135,
232-233, 239,243, 3 I 8, 322, 380, 392-393, 396, 417 -418, 431, 437 , 443, 496, 524, 595, 620, 623, 639, 642, 644, 660-662,
664-665,669,67 I -672,67 4-675,678, 68 1, 682, 684-686 ,695,7 17,720,724,758,77 l-773,775,777 ,780 78 1, 793, 800, 805,
807,814.D83,29,30,52,75-78,8991,102,112,115,130,141 143,148,156,158,161,167-168,202,235,249-250,257,
264,271-275,290,295 297,307 -309, 3 I l, 3 15, 332-337,341,345-347,349,351,358,403,443-444,446-450,454'456,462,
473, 481, 507, 553 ,556,571, s83.587,599,671,674,677,767,777,805,808. DE4, 3 1, 40, 45, 58, 60-61, 1 18, 147, 168, 199,

203-204,226,231,442,451,458,527-530, 536-537, 540 ,579,595-596,633,642,646,657 -658, 664-665, 709,719,725,784,

8t.4.IJF,22-23,7 1,82, 112, 120, 133, 159 160,175,212,273,319,374,388,391,481,487,492 493,532,s44,575-576,588'


sg7 598,628-629,631,,646,662, 681, 687 688. HS, 391. HSr, 42,46,66,85, 91, 134, 157, 198. HS2, 10. IDS, 5, 12-13.
MC, óJ. MMPE,6, 13,68,82, 109, 111. MMPS,6, 13, 14,68,76,84,105. OD,63,69. PP,5, 10, 12, 16, 18,21,27,29 34,
37,41,43,60,86,87,102-103,110,121,124,127,131,132,134138,r47,t68,t70172,17s,178,179,r83,188-189,193-
t94,200,218-221,230,233-234,239,248,250-251,265,267-271,273,277-278,281,283-284,250-251,265,267 271,273,
277 278,281,283-284,289,293, 305, 325, 329,333. SP, t87 ,226,227 ,303.

372 PSIQUIATRtA tP5y(hiàLtiel


r,q*. RAçA (r?ace)

Como Foucault mostra em "Il faut défendre a société'l o conceito de raça não é nent necessária
nem originariamente um conceito biológico. Ele designa determinado corte histórico-político.
Vai se falar de duas raças, por exemplo, quando há dois grupos que não têm a mesma origem
local, nem a mesma língua, nem a mesma religião. Também se fala de duas raças quando no
seio de uma sociedade coabitam dois grupos que não têm os mesmos costumes e os mesmos
direitos (IDS, 67). Assim funciona o conceito de raça no discurso histórico da guerra de
raças, a partir do século XVII (ver: Guerra). 'A ideia
de pureza da raça [no singular], com
tudo o que ela implica de monista, de estatal e de biológico, é o que substituirá a ideia de luta
de raças" (IDS, 71).
Race [113]: AN, I24. DEz,140,269,529. DE3,96, 127,t74,418,502. DE4, 29,1t1,321,548,679. HF,558. HS,
110,120,288.HS1,88,161,164,180,193195,197.H52,22,152,174,189.IDS,19,45,47,49,5153,57,60,67.7072,
75-76,87-88,105,110,117,122,126.170,188,191,205,2t2213,228-232.NC,36.OD,4s.RR,178. PP,144,296.SP,
262,266,280.

:61. RACIONALIDADE (Rationalite)

"Eu penso que o termo'racionalização é perigoso. O que há que fazer é analisar as racio-
nalidades específicas, mais que invocar sem cessar os progressos da racionalização em geral"
(D84, 225). Esse texto resulne a posição de Foucault acerca da racionalidade e da razáo: por
um lado, a crítica às posições filosóficas (fenomenologia, marxismo, Weber) que abordam a
história darazâo valendo-se do ato fundador do sujeito, da oposição racionalidade/irraciona-
lidade ou em termos de processo de racionalização; por outro, a afirmação da especificidade
das diferentes formas de racionalidade e, portanto, seu caráter histórico-fragmentário. Com
efeito, para Foucault, náo se trata de abordar a história darazâo como um processo que, ape-
sar de seus retrocessos, se reveste de um caráter global e unitário, mas como uma análise das

RACIONALIDADE (Rationalite) 37 3
diferentes formas de racionalidade que organizam a ordem das práticas (ver: Práticas).
Fenomenologia, marxismo. como explicamos no verbete Fenomenologia, a oposição
entre esta e a arqueologia não poderia ser maior. Les mots et les choses e lhrchéologie du
savoir podem ser iidos como uma anti-Krisís. Em Larchéologie du savoir, precisamente a
propósito da história da razâo, Foucault marca com clareza suas diferenças com a concepçào
fenomenológica. Para a fenomenologia, com efeito, o sujeito ou, mais exatamente, os atos
fundadores da consciência constituem um horizonte de racionalidade que, por seu caráter
originário, é também o télos, a finalidade, da humanidade (AS, 22, 73). Desde essa concepção,
então, a história da razâo só pode ser a história do progressivo desdobrar-se da razão e dos
obstáculos que impediram ou dificultaram esse desdobramento. Mas Foucault não só se opõe
à concepção fenomenológica da história darazâo, mas também a um certo modelo marxista.
De novo, eu tratei de desligar-me da fenomenologia que era meu horizonte de partida.
" [. . . ]

Eu não penso que haja uma espécie de ato fundador pelo qual a razão em sua essência teria
sido descoberta e instaurada e de que um determinado acontecimento tenha podido poste-
riormente desviá-la. Eu penso, de fato, que há uma autocriaçáo darazâo e, por isso, o que
tratei de analisar foram as formas de racionalidade: diferentes instaurações, diferentes criaçoes,
diferentes modificações pelas quais umas racionalidades engendram outras, umas se opõem
a outras, umas excluem outras. Sem que, por isso, se possa atribuir um momento em que a
razão tivesse perdido seu projeto fundamental; tampouco atribuir um momento em que se
passaria da racionalidade à irracionalidade. Inclusive, para falar muito, muito esquematica-
mente, o que eu quis fazer nos anos sessenta foi abandonar tanto o tema fenomenológico,
segundo o qual houve uma fundação e um projeto essencial da razão (do qual se haveria
desviado por um esquecimento, sobre o qual é necessário retornar agora), como do tema
marxista ou luckasiano: havia uma racionalidade que era a forma por excelência da própria
razâo, mas determinado número de condições sociais (o capitalismo ou, melhor, a passagem
de uma forma de capitalismo a outra forma de capitalismo) introduziram uma crise nesta
racionalidade, ou seja, um esquecimento da razão e uma queda no irracionalismo. Eles são os
dois grandes modelos, apresentados de maneira muito esquemática e muito injusta, a respei-
to dos quais tratei de diferenciar-me" (DE4, 441-442). Essa posição acerca da razão está es-
treitamente ligada à concepção foucaultiana do sujeito. Para Foucault, com efeito, uma das
dificuldades da fenomenologia consiste em que remete a fundação da racionalidade aos atos
fundadores de um sujeito, mas o sujeito mesmo tem uma história. "É aqui que a leitura de
Nietzsche foi, para mim, a fratura: há uma história do sujeito do mesmo modo que há uma
história darazâo, e acerca desta, a história darazão, não devemos perguntar pelo desdobra-
mento de um ato fundador e primeiro do sujeito racionalista" (DE4, 436).Práticas, técnicas.
"Se se chama'weberianos'aos que quiseram substituir a análise marxista das contradições do
capital pela análise da racionalidade irracional da sociedade capitalista, não creio que eu seja
weberiano. Eu não creio que se possa falar de'racionalização'em si, sem supor, por um lado,
um valor absoluto darazâo e sem se expor, por outro, a colocar qualquer coisa sob a rubrica
das racionalizações. Eu penso que há que limitar este termo a um sentido instrumental e re-
lativo. A cerimônia dos suplícios públicos não é mais irracional em si do que o aprisionamen-
to em uma cela; mas ela é irracional em relação a um tipo de prática penal que fez aparecer
uma nova maneira de alcançar, através da pena, determinados efeitos, de calcular sua utilidade

3 74 RActoNALtDADE (,qationallré)
[...] Digamos que não se trata de julgar as práticas com a régua de uma racionalidade que
permitiria apreciá-las como formas mais ou menos perfeitas de racionalidade; mas, antes, de
ver como as formas de racionaiização se inscrevem nas práticas ou r.ros sistemas de práticas,
e que papel desempenham nelas. Porque, certamente, não há'práticas'sem um determinado
regime de raci<lnalidade" (DE4, 26). Como vemos, a racionalidade, para Foucault, tem antes
de tudo urn sentido instrumental: modos de organizar os meios para alcançar um fim (DE4,
24I). A Foucault utiliza também os termos "técnica' e "tecnologid' (a regulari-
esse respeito,
dade qtre organiza um modo de lazer ou agir orientando-o a um fim) (ver: Técnica). Nesse
contexto, há que considerar ambos os termos em um sentido amp1o, isto é, sem restringi-lo à
nossa noção de tecnologia como aplicação das ciências chamadas exatas (D84, 285). * Por
isso, ainda que essa via de acesso ao problema da racionalidade ou, melhor, a história da ra-
cionalidade pudesse inscrever-se na linha dos trabalhos de !\reber ou, em geral, da Escola de
Frankfurt, apesar disso, o próprio Foucault aponta algumas diferenças notáveis. Em primeiro
iugar, a eclosão da raçionalidade técnica não é um acontecimento ligado ao advento do Ilumi-
nismo, e tampouco se trata, simplesmente, da bifurcação entre razão teórica e razáo prática.
"É certo que eu não falava de uma bifurcaç ao da razâo, mas antes, com efeito, de uma bifur-
cação múltipla, incessante, uma espécie de ramificação abundante. Eu não falo clo momento
em que a razâo se tornou técnica. Atualmente, para dar um exemplo, estou estudando o pro-
*
blema das técnicas de si na Antiguidade helenístico-romana [. . . ] " (D84, 440). Foucault se
propõe, de fato, levar a cabo uma história das diferentes formas de racionalidade estratégica
ou tecnológica, isto é, da racionalidade das práticas. * As "práticas" constituem o domínio de
trabalho de Foucault. Como expusemos no verbete correspondente, uma "prática" se define
pela racionalidade dos modos de fazer ou agir dos homens. Por outro lado, essas maneiras
racionais de agir têm sua sistematicidade e sua generalidade; elas abarcam o âmbito do saber
(as práticas discursir.as), do poder (as relaçoes entre os sujeitos) e da ética (as relações do
sujeito consigo mesmo), e, além do mais, têm caráter recorrente. Mas esse caráter sistentático
e recorrente não nega sua historicidade (ver: Prática). Os trabalhos de Foucault são, em defi-
nitivo, análises históricas da formação e transformirçáo da racionalidade das práticas. Verda-
de. Para Foucault, não se trata de levar a cabo uma história darazâo ou da racionaliclade, mas
unra história da verdade. "É aqui onde a leitura de Nietzsche foi para mim muito importante.
Não é suficiente fazer uma história da racionalidade, mas a própria história da verdade. Isto
é, em lugar de perguntar a uma ciência em que medida sua história se aproximou da verdade
(ou lhe impediu o acesso a ela), não haveria que dizer, antes, qlle a verdade çonsiste em deter-
minada relação que o discurso, o saber mantém consigo mesmo e perguntar-se se esta relação

não é ou não tem ela mesma uma história?" (DE4, 54). Genealogia. Essa história das lbrmas
cle racionalidade, inscrita na história da verdade, reveste-se, além do mais, de um caráter
genealógico ou político: "Mas a experiência me ensinou que a história das diversas formas de
racionalidade, às vezes, corlsegue sacudir nossas certezas e nosso dogmatismo nrelhor que
uma crítica abstrata" (DE4, 160).
Rationalité [391 /:AN, I 3, 83, 93, 106- 107, 235,210,250-251,257 . AS, 1 l, 20, 22,54,61,73-74,93, 56, 1 164, 206.
208,2r3,236-237, 250. DEt, 139,156,447,495, 598, 605-607, 722.723,784.D82, 173,183,242,282,122,584, 585, 620,
723. DE3, 68, 1 27- I 28, I 88, 206, 299, 301, 108, 391-397, .130-433, 435-438, 442, 449, 453, .180, 572, 584, 620, 625, 648,649,
717,720,803,818,823-824. DE4, t4-16, 18, 23,26-28,36,38-39, 53-55,57,73,75,84,106, 135-136, 149,152, r59-161,
221-225,241.272 273,275,279,285,349,35t, 368, 37U-379, 4t 0 -4t1,436-443,417 -450,572,576 577,582,630-61 l, 636-

RACIONALIDADE (Ratianalite) 37 5
637 ,639,641,655,657 ,677,686,690,7 49,764-768,770-772,776,8t5-818, 820, 826-828. HF,232,237 ,241,246,251,319,
445,534. HS, 11,76, 188,268, 270,309,424,455. HSl, 34,73-74,76,93,103,125. HS3, lt0, 179. IDS,34,,17,50, 146,
152. MC,47,55,137, t39, 142, 144, 170-171,232,25t,258,265,356,367. MMPE, 88. MMPS, 100. NC, VIII, Ix, XI, 6,
156. OD,48, 50, 79. pp, 261. Sp,94, 142,186,258,276,310.

RACISMO (Racrsme)
=*:.

"Eu creio que [o racismo] é muito mais profundo que uma velha tradição, muito
mais
profundo que uma velha ideologia, é outra coisa. A especificidade do racismo moderno, o que
faz sua especificidade não está ligado às mentalidades, às ideologias, às mentiras do poder.
Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder" (IDs, 230). "o que inscreveu o racismo
nos mecanismos do Estado foi a emergência deste biopoder. Neste momento preciso, o racismo
se inscreve como mecanismo fundamental do poder tal como se exerce nos Estados modernos
e [como] o que faz com que náo haja funcionamento moderno do Estado que, em um determi-
nado momento, dentro de determinados limites e em determinadas condições, não passe pelo
racismo" (1D5,227).* Ademais de algumas referências dispersas em suas artigos e intervenções,
aproblemática do racismo emerge na obra de Foucault em La volonté de savoir e no curso do
Collêge de France do ano de 1976, "I1 faut défendre a société'l Foucault se ocupa do racismo
moderno, isto é, do racismo biológico e de Estado, por um lado, em relação à formação do bio-
poder (em ambos os textos), e em relação à evoluçâo do conceito de "luta de raças" (ver: Biopo-
der, Guerra, Luta),no segundo. Degeneração. Uma primeira forma de racismo biologicista é
a que aparece no século XIX, com a teoria da degeneração (ver: Degeneraçao). "O racismo não

foi, primeiramente, uma ideologia política. Foi uma ideologia científica que circulava por todas
as partes, em Morel como em outros [expoentes da teoria da degeneração]. E sua utilização
política foi levada a cabo pelos socialistas, por pessoas de esquerda, antes que por pessoas de
direita' (D84, 324) . sexualidade, sangue. Em La volonté de savoir, a propósito dos meca-
nismos de poder, Foucault distingue entre uma simbólica do sangue e uma analítica da sexuali-
dade. O sangue foi um dos elementos essenciais e característicos dos mecanismos do poder até
final do século XVIII: diferenças de castas, linhagens, suplícios, etc. O poder fala e se manifesta
através do sangue. Com a formação do dispositivo de sexualidade (ver: Sexualidade), os meca-
nismos do poder se dirigem para o corpo, para a vida, a progenitura, a população (HSl, 193- 194).
Pois bem, segundo a análise de Foucault, a analítica da sexualidade não sucedeu, simplesmente,
à simbólica do sangue; ambos os mecanismos tiveram pontos de interação e de interferências.
'Aconteceu que, a partir da segunda metade do século XIX, a temática do sangue foi convocada
para vivificar e sustentar com toda sua força histórica o tipo de poder político que se exerce
através dos dispositivos de sexualidade. O racismo se forma neste ponto (o racismo em sua
forma moderna, estatal, biologizante) [...] um ordenamento eugenésico da sociedade, com o
que isso podia comportar em relação à extensão e intensificação dos micropoderes, sob a cober-
tura de uma estatização ilimitada, se acompanhava da exaltação onírica do sangue superior; que
implicava, por sua vez, o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo um
sacrifício total" (HS1, 196-197). Racismo biológico e de Estado. "II faut défendre a société"
éuma genealogia do conceito de "luta de raças'] de "guerra de raças'l Foucault faz remontar essa

376 RActsMo (Racisme)


genealogia até o século XVII e até a formação da historiografia moderna com Henry de Boulain-
villiers (ver: Boulainvilliers, Guerra). Tal discurso, depois da Revolução Francesa, no século
XIX, sofreu duas grandes transformações: por um lado, a formação do discurso da luta de classes,
o discurso revolucionário, por outro, sua transcrição biológica, o racismo moderno. Nesta última,
àdiferença da primeira, o racismo não aparece como o instrumento da luta de uma classe contra
outra, mas como uma estrategia global do Estado, uma estratégia que a sociedade exerce sobre
si mesma em termos de purificação permanente e normalização social (IDS, 52-53). O tema da
guerra histórica (batalhas, invasoes, vitórias) será substituído, então, pelo tema biológico, pós-
evolucionista, da luta pela vida; a luta terá, agora, um sentido biológico: diferenciação das espé-
cies, seleção do mais forte, manutenção das raças mais bem adaptadas. Também o tema de uma
sociedade binária (duas raças, dois grupos diferentes) será substituído por um monismo bioló-
gico, que se encontra ameaçado pelos elementos heterogêneos que se infiltraram. O Estado náo
será, então, o instrumento de uma raça contra outra, rnas o garante da integridade, da superio-
ridade e da pureza daraça (IDS, 70). Pois bem, essa transcriçáo do discurso da guerra de raças
em termos biológicos e estatais foi um discurso antirreyolucionário: "Se o discurso das raças,
das raças em luta, foi a arma utilizada contra o discurso histórico-político da soberania romana,
o discurso da raça (a raça ern singular) foi uma maneira de dar a volta nesta arma e utilizar seu
fio em proveito da soberania conservada do Estado" (IDS, 71). Por sua yez, transcrição
essa
biológica do discurso da guerra de raças sofreu duas transformações no século XX. A transfor-
mação nazi, que utiliza toda uma mitologia popular, dramática e, ao mesmo tempo, teatral,
reimplanta o racismo biológico no discurso da guerra de raças e retoma, do discurso revolucio-
nário, seu caráter profético e apocalíptico. A transfbrmação soviética, que procede por outros
caminhos, sem dramaturgia nem teatralizaçáo, mas de maneira sub-reptícia e'tientíÍrca"; e re-
toma o discurso revolucionário da luta de raças sob a forma de uma gestão policial que assegu-
*
ra a higiene da sociedade (IDS, 72). A primeira função do racismo moderno é introduzir uma
ruptura no domínio da vida do qual o poder se fez cargo; ruptura entre o que deve viver e o que
dere morrer. A segunda função é fazer firncionar a antiga relação de guerra ("se queres vivet é
necessário que possas matar") de uma maneira nova: entre minha vida e a morte de outro,
existe, agora, uma relaçáo biológica: a morte do outro não é simplesmente a condição da minha
vida, mas da vida em geral; a morte do 'butro' a fará mais saudável e mais pura (ID5,227 -228).
Desde esse ponto de vista, o racismo é a condição de exercício do moderno direito de matar; o
racismo aparece onde a morte é requerida: na colonização, na guerra, na criminalidade, nos
fenômenos da loucura e da doença mental, etc. Assim, por exemplo, a guerra "vai aparecer, em
torno do final do sécLrlo XIX, não simplesmente como uma maneira de fortalecer a própria raça,
eliminando a raça adversa (segundo os temas da seleção e da luta pela vida), mas igualmente
como uma maneira de regenerar a própria raça. Quanto maior seja o número daqueles que
morrem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos" ([DS, 230). Antissemitismo.
Foucault assinala que o discurso da guerra de raças dos seculos XVI e XVII, que antecipa as
noções de luta de classe, não se identiâca com o racismo de tipo religioso, com o racismo antis-
semita. O propósito de Foucault não é levar a cabo uma história do racismo em geral, mas de
analisar a formação dos urecanismos modernos do poder, nos quais se inscreve o racismo
biológico. Mesmo assim, é necessário assinalar que o racismo biológico e de Estado reutiliza-
ram o antigo antissemitismo, que tinha originariamente outras razões (IDS, 75-77). Nazismo.

RACISMO (Raclsme) 37 7
O nazismo é, para Foucauit, o desenvolvimento, até o seu paroxismo, dos mecanismos de poder
que se estabeleceram no século XVIII, a discipiina e o biopoder. Nenhum Estado foi mais disci-
plinar e, ao mesmo tempo, mais assassino que o Estado nazi. No limite, no nazismo, o direito
sobre a vida e sobre a morte não só era exercido pelo Estado, mas por qualquer indivíduo, ainda
que seja através da via da denúncia. Por isso, pode-se afirmar que, por um lado, no nazismo, o
poder de matar eo poder soberano se disseminam por todo o corpo social. A guerra, por outro,
não é simplesmente um objetivo político nem sequer um objetivo da política, mas, mais preci-
samente, a fase última e decisiva de todos os processos políticos; de tal maneira que não se
persegue só a eliminaçáo de outra raça, mas também a exposição da própria raça à morte. "É
necessário que se chegue a um ponto em que toda a população esteja exposta à morte. Somente
esta exposição universal de toda a população à morte poderá efetivamente constituí-la como a
raça superior e regenerá-la definitivamente frente às outras raças que teriam sido totalmente
exterminadas ou que serão definitivamente dominadas. A sociedade nazi tem, então, esta coisa
extraordinária: é uma sociedade que absolutamente generalizou o biopoder, mas que, ao mesmo
tempo, generalizou o direito soberano de matar" (IDS,23l-232). Socialismo. O racismo evo-
lucionista, de tipo biológico, também está presente nos movimentos socialistas do século XIX;
não só nos Estados socialistas do século XX, como a União Soviética. Quando o socialismo in-
sistiu na transformação das condições econômicas como condição para a passagem da socieda-
de capitalista à sociedade socialista não recorreu ao racismo; mas, quando insistiu no problema
da luta, o fez. "Em consequência, cada vez que yocês têm estes socialismos, momentos do socia-
lismo que acentuam este problema da luta, vocês têm o racismo" (IDS, 234).
Rscisme [129]: A,275,299-300. DE2, 198,353,511. DE3,96, 324,502.DE4,279. HSl, 157, 166, 197-198. IDS,
52, 53, 57 ,70-73,75-77 ,213,227 -230, 232-234.

?ê3. RAZÃO DE ESTADO (Raison d',État)

'A racionalidade política se desenvolveu e se impôs no curso das sociedades ocidentais.


Ela se enraizou, em primeiro lugar, na ideia de poder pastoral, e depois na de razão de Estado.
A individualizaçáo e atotahzaçao são seus efeitos inevitáveis" (DE4, 161). Para Foucault, a
característica fundamental da racionalidade política moderna não é nem a constituição do
Estado nem o surgimento do individualismo burguês, e tampouco o esforço constante para
integrar os indivíduos à totalidade política. 'A característica maior de nossa racionalidade
política radica, a meu ver, neste fato: esta integração dos indivíduos em uma comunidade ou
em uma totalidade é o resultado de uma correlação permanente entre uma individualização
cadavez maior e a consolidação desta totalidade. Desde este ponto de vista, podemos com-
preender porque a antinomia direito/ordem permite a racionalidade política modernd' (DE4,
827). Enquanto o direito remete a um sistema jurídico, a ordem, a um sistema administrativo.
Historicamente, a busca da conciliação do direito e da ordem foi apenas um esforço para in-
tegrar o direito na ordem do Estado (DE4, 828). * Arazã,o de Estado, segundo a definição do
italiano G. A.Palazzo (Discorso del governo e della ragione vera di Stato,Yenezia, 1606), é
um método ou uma arte que nos permite descobrir como fazer com que a ordem e a paz

378 RAzÃo DE ESTADo Gaison d'État)


reinem no seio da república (D84, 816). Foucault encara, precisamente, a problemática da
razáo de Estado desde a perspectivir da racionalidade política e no contexto da formação da
biopolítica, isto é, do governo das populações, da integração dos indivíduos a uma totalidade
vivente. Conto veremos, nessa literatura da razâo de Estado, Íbrma-se a noção de política da
população. * Pois bem, como vimos, para Foucault, o poder é Ênalmente da ordem do gover-
no, no sentido amplo do termo, isto é, da condução de condutas (ver: Poder). Por isso, em sua
análise da formação das formas modernas do governo, ele se interessou particularmente por
essa literatura das "artes de governar" que floresceu nos séculos XVI e XVII (ver: Governo):
uma literatura contemporânea do desaparecimento do tema imperial e em que se forma a
racionalidade política darazão de Estado (DE3, 720). Foucault precisa, a esse respeito, que'h
'razão de Estado' não é o imperativo em nome do qual se pode ou se deve atropelar as olltras
regras; é a nova tnatriz de racionalidade segundo a qual o Príncipe deve exercer sua soberania
governando os homens" (D83,720). com o desaparecimento do tema imperial, forma-se uma
nova percepção histórica. Por um laclo, se abandona a ideia da reunião de todas as soberanias
em um império escatológico, dos úrltimos dias; por outro e em consequência do anterior, a
história se desdobra em um tempo indefinido, em que os Estados devem lutar uns com os
outros pela sua sobrevivência. Estabelece-se, assim, uma nova relação entre a política e a
história. A natureza do Estado deixa de ser concebida como um equilíbrio entre os diferentes
elementos que uma boa lei deve manter unidos. Agora, o Estado é pensado como um conjun-
to de forças e vantagens que podem aumentar ou debilitar de acordo com âs políticas seguidas
pelo governo. Todo Estado entra, então, em uma competição com os outros Estados e en1 uma
rivalidade indefinida com eles (DE4, 8 19). Por isso, para além das teorias que a justificararn, a

razão de Estado tomou forma em dois grandes saberes ou tecnologias políticas: uma tecnologia
diplomático-militar (busca de alianças, fortalecimento do exército) e a "polícia" (os meios
necessários para fortalecer o Estado desde o interior) (D83,721). * Desde essa ótica, Foucault
leva em consideração um conjunto de autores, especialmente italianos e alemães, para abordar
o tema darazâo de Estado: G. Botero (Della ragione di Stato dieci libri, Roma,1590), G. A.
Palazzo (Discorso del governo e dellq ragione vera di Stato,Yenezia, 1606), B. P. von Che-
meitz (Dissertatio de Rqtione Status in Imperio nostro romarro-germanico,París, 1647).
Assim, por exemplo, Botero deflne arazâo de Estado como: "Um conhecimento perfeito dos
meios através dos quais os Estados se formam, se fortalecem, duram e crescem" (D84, 150).
Da análise dessas obras, Foucault extrai uma série de conclusões: l) Arazao de Estado é vista
como uma arte, uma técnica que procede segundo regras. Neste sentido, na época, a expressão
"razáo de Estado" não fazia referência ao arbitrário, mas à racionalidade própria da arte de
governar. 2) A racionalidade dessa técnica provém da natureza mesma do Estado. Ainda que
aparentemerlte simples, tal maneira de conceber a racionalidade do governo do Estado, como
exigência de ajustar-se à natureza própria do Estado, rompe com a longa tradição clássica e
cristã, segundo a qual o exercício do governo deve ajustar-se às leis divinas, naturais e huma-
nas. "[...] Arazáo de Estado não remete nem à sabedoria de Deus nem à razão ou às estraté-
gias do Príncipe. Ela se refere ao Estado, à sua natureza e à sua racionalidade próprias. [. . . ] O
Estado é, em si mesmo, uma ordem das coisas e o saber político o distingue das reflexÕes ju-
rídicas. O saber político náo trata das leis dos povos nem das leis divinas e humanas, mas da
natureza do Estado que deve ser governado" (DE4,818). 3)Mas essa literatura se opõe também

BAZÃO DE ESTADO ,Ràison d Ftàt) 379


à tradição de Maquiavel. Com efeito, para esta última, a razâo de ser do governo era fortalecer
o nexo entre o Príncipe e o Estado, fortalecer o domínio do Príncipe. Para a razáo de Estado,
contudo, trata-se de fortalecer o Estado, em si mesmo; o que não pode ser conseguido sem o
crescimento do Estado. 4) Arazão de Estado como governo racional capaz de acrescentar ao
Estado requer a constituição de determinados domínios do saber. Não se trata da aplicação
dos princípios gerais da razão, mas da formação de saberes precisos. Esse saber preciso acer-
ca da força do Estado recebeu o nome de "estatística" ou "aritmética polítical Foucault se
ocupa destes temas, especialmente, em: DE4, 151-153 ("Omnes et singulatim: vers une criti-
que de 1a raison politique") e DE4, 816-820 ("La technologie politique des individus"). Polí-
cia. "No Estado moderno, com efeito, a integração marginalista dos indivíduos à utilidade do
Estado não toma a forma da comunidade ética característica da cidade grega. Nesta nova ra-
cionalidade política, ela é obtida com a ajuda de uma técnica particular que se chamou, então,
a polícia' (DE4, 820). A doutrina da polícia'define a natureza dos objetos da atividade racio-
nal do Estado, deÍine a natureza dos objetivos que ele persegue, a forma geral dos instrumen-
tos que ele emprega" (DE4, 150). * A respeito da noção de polícia, os autores da época (séculos
XVI e XVII) não a entendiam como uma instituição ou um mecanismo no seio do Estado, mas
como "uma técnica de governo própria do Estado" (DE4, 153). Foucault leva em consideração,
em primeiro lugar, a obra de L. Turquet de Mayerne (La Monarchie aristodémocratique, ou
le gouvernement composé des trois formes de légitimes républiques, Paris, 1611). Segundo
Turquet, quatro magistrados secundam o rei, um deve ocupar-se da justiça, outro do exército,
outro dos impostos e das finanças, e outro da polícia. Este último deve inculcar a modéstia, a
caridade, a fidelidade, a assiduidade, a cooperação amical e a honestidade. Trata-se, como
vemos, da tradicional consideração do governo desde o ponto de vista da virtude. Porém, mais
adiante, Turquet introduz outro ponto de vista. Sugere a criação em cada província de conse-
lhos encarregados de manter a ordem pública (dois encarregados das pessoas e dois dos bens).
O primeiro conselho encarregado das pessoas se ocuparia da educação, dos costumes, das
proÍissões; o segundo, dos pobres, das viúvas, dos desempregados e também da saúde pública,
dos acidentes, das inundações, etc. Um dos conselhos dos bens deveria dedicar-se às merca-
dorias e aos produtos manufaturados; o outro, ao território e ao espaço (propriedades, heran-
ças, estradas, rios, edifícios públicos). Como vemos, a "polícia'engloba tudo, as relações entre
os homens e suas relações com as coisas, a coexistência dos homens em um território, as re-
lações de propriedade, o que produzem, o que comerciam. O verdadeiro objeto da polícia é,
em definitivo, o próprio homem. Assim entendida, a "polícia'persegue dois objetivos funda-
mentais: a ornamentação, a forma e o esplendor da cidade; o desenvolvimento das relações
de trabalho e de comércio entre os homens, a ajuda e a coexistência (DE4, 154-156). * Outra
obra levada em consideração por Foucault é a de N. de Lamare (TraiÍé de police, Paris, 1705).
De Lamare explicita onze domínios como competência da polícia: a religião, a moralidade, a
saúde, o abastecimento, as estradas, as pontes e os caminhos, a segurança púbiica, as artes
Iiberais, o comércio, as fábricas, os empregados domésticos e as pessoas com dificuldades, e
os pobres. "Então, a'polícia designa o novo domínio em que o poder político e administrati-
vo do Estado centralizado pode intervir" (D84, 157). Pois bem, a polícia, por exemplo, en-
carrega-se da religião; não desde o ponto de vista da verdade dogmática, mas da qualidade
moral da vida; ocupando-se da saúde e do abastecimento, encarrega-se do que preserva a vida;

380 RAzÃo DE ESTADo (Raison d'État\


do comércio, das fábricas, dos pobres, clas comodidades da vida. Em deÍinitivo, e Foucault
insiste nisso, o objeto da "polícia" é a vida (D84, 157). Compreendemos esta insistência de
Foucault a respeito, na medida em que a razio de Estado e a poiícia se inscrevem no processo
de formação da biopolítica (ver: Biopolítlca). * Foucault se refere, logo após os autores citados,
à traclição alemã, a P. C. W. Hohental (Liber de politia, Leipzig, 1776), a J. P. Willebrandt
(Abrégé de la police, accompagné de reflexiotts sur lhccroissement des vllles, Hamburg,
1765), a l. H. G. von lusti (Grundsiitze der Policey-Wissensclnft, Gôttingen, 1756); e, sobretu-
do, à tradição da universidade de Gôttingen, onde, precisamente, se estudava e ensinava a arte
do gor,erno da vida dos indivíduos sob o sugestivo nome de Polizeiy,issenschaft (ciência da
polícia). Von )usti estabelece como finalidade da polícia: desenvoh,er aqueles elementos cons-
titutivos da vida dos indivíduos de modo tal a que contribuam para aumentar a potência do
Estado. Por outro iado, distingue entre Politik e Polizei. Politik é um conceito negativo, refe-
re-se à luta contra os inimigos estrangeiros do Estado. Polizei, no entanto, é urn conceito
positivo, refere-se à tarefa de favorecer a vida dos indivíduos e do Estado. Von lusti insiste
sobre uma noção que logo terá urna importância decisiva: a noção de população. "A Polizeiwis-
serrschafi é, ao mesmo tempe, uma arte de governar e um método para analisar uma popuia-
ção que vive em um território" (D84, 160). Von Justi não inventou nem a noção nem o termo
"populaçãol levou em consideração essa realidade que os demógrafos estavarn descobrindo;
mas a importância da obra de von lusti, a diferença dos outros tratadistas cia ciência da polí-
cia, radica em que ele influiu profundarnente sobre o pessoal político e administrativo dos
países europeus do final do século XVIII e começo do XIX (D84, 826). Yer Biopoder, Bio-
p olític a, Medicali zaç ao, P o der.
Raison d'état [64J: N4,87. DE2,737. DE3,617,6.18,720 721,801,819 820,822. DE4,37, 1s0,153, 155, 161,214,
81ó-820, 822. HS, 239, 2s6.

:ç,;. REICH, Wilhelm (1891-1957)

*
Foucault chama de "hipótese Reich'a concepção do poder em termos de repressão. "[...]
eu penso que o esquema de Reich deve ser completamente abandonado" (DE3, 397).Yer
*
Re pressão. Foucault se refere especialmente à obra de Reich Á irrupção da moral sexl4al
repressiva. Estudo das origens do caráter compulsivo da moral sexual (Berlim, 1932).
WilhelmReich I3Il: NA,309. DE2,314,656,779.809,816,826. DE3, t33, t62,17l-l'72,182,354,397,526,568.
DE4, 19n. HS1, 11, r7.r. IDS,7,t5,1,7,19-20,28,36.

:i,::. RELIGlÃO (Religion)

Cristianismo. Apesar de que nenhuma das obras de Foucault esteja concentrada no tema
da religião, ela ocupa um lugar certamente importante nas análises históricas de Foucault. Na
realidade, Foucault não se ocupa da religião em geral, mas de suas formas históricas e parti-
cularmente da religião cristã. No marco da história da subjetividade ocidental, que é o marco

REttG tÃo \Reltgian) 38 l


desde o quai é necessário abordar a questão da religião na obra de Foucault, um duplo movi-
mento nos permite situar a posição do cristianismo. Por um lado, se poderia falar de um
processo de teologização das práticas e das categorias herdadas da Antiguidade greco-romana.
Ainda que, a esse respeito, Foucault não utilize o termo "teologizaçáci',que só aparece uma vez
emseusescritosereferidoaoséculoXIX(D81,664).Poroutro,deumprocessodeiaicização
ou secularização, um processo que vai no sentido inverso do anterior, nele as práticas e cate-
gorias elaboradas no seio do cristianismo perdem seu conteúdo religioso e, segundo a leitura
de Foucault, incorporam-se às novas formas de governo ou, mais precisamente, a partir desse
processo surgem as formas modernas da governamentalidade. Foucault não é, certamente, o
único a interpretar as relações entre a cultura antiga e a cultura religiosa do cristianismo, e
entre esta e a Modernidade em termos de transformação teoiógica e de laicização ou secula-
rizaçâo (ainda que este último termo tampouco apareça em seus escritos). Esse esquema de
interpretação se impõe, diríamos, pelos fatos. Porém, para Foucault, não se trata de um es-
quema geral, mas de análises historicamente precisas e detalhadas. Nelas se mostra a parti-
cularidade e a relevância da leitura foucaultiana da relação entre a religião e a história da
subjetividade ocidental. Antes de tudo, é necessário ter presente que se trata de uma história
ético-política das relações entre a religião e a formação das práticas nas que se constituiu a
subjetividade ocidental (ver: Governo, Subjetivaçao). Foucault estudou essas práticas espe-
cialmente em relação à questão da sexuaiidade. Desde essa perspectiva, a pergunta que surge
inevitavelmente é: por que a problem atização moral da conduta sexual foi, na história da
subjetividade ocidental, mais importante que a problematização de outros domínios essenciais
da vida individual e coletiva? Para Foucault, afirmar que a razão disso se encontra em que se
trata de proibições cuja transgressão
é considerada como uma falta graye é, simplesmente, dar

como solução os dados do problema. "Brevemente, a proibição é uma coisa, a problematização


moral outra" (D84,544). Nessa perspectiva, à diferença de Nietzsche, por exemplg, a relaÇã6
entre a moral cristã e a moral antiga não é simplesmente de oposição, como se o cristianismo
representasse uma cultura da austeridade (monogamia, abstenção, virgindade) e o paganismo,
uma cultura permissiva ou tolerante, mas, antes, de continuidade e diferenci açãro (D84,402-
406). (ver: Cristianismo). No caso da moral sexual, o aporte do cristianismo não há que ser
buscado na introdução de novas proibições (não há que buscá-lo do lado do código), mas das
práticas,'das novas técnicas para impor esta moral ou, para dizer averdade, um novo con-
junto de novos mecanismos de poder para inculcar esses novos imperativos morais ou, antes,
esses imperativos que haviam deixado de ser novos no momento em que o cristianismo pe-
netrou no Império romano e se converteu, rapidamente, em religião de Estado" (DE3, 560).
'A evolução que se produzirá, por outro lado, com muita lentidão, entre o paganismo
eo
cristianismo não consistirá em uma interiorização progressiva da regra, do ato e da falta,
antes, levar-se-á a cabo uma reestruturação das formas da relação consigo mesmo e uma
transformação das práticas e técnicas nas que se apoia esta relação" (HS2, 74). o cristianismo
encontrou uma nova modalidade de controlar os indivíduos através de sua sexualidade (DE3,
565). Essas novas formas de relação consigo mesmo são aquelas que correspondem ao poder
pastoral. (A respeito ver: Confissao, Exame). Segundo as distinções que Foucault estabelece
a propósito da noção de ética (ver: Ética), trata-se de uma transformação que concerne à
substância ética, às formas de problemati zaçao e às formas de elaboração do trabalho ético. *

382 REUGTÃo (Retiqion)


Tanrbém em Histoire de la folie, as relações entre o cristianismo e a história da subjetividade
ocidental (neste caso, da subjetividade excluída: o louco) ocupam um lugar considerável. O
processo que se produz com a chegada da Modernidade (em um sentido antplo, isto é, incluil-
do a época clássica) não e um processo de exclusão da religião, mas, em primeiro lugar, de
rnoralizaçâo. Assim, por exemplo, a propósito das consequências da ReÍbrma e da constituição
da experiência clássica da loucura, Foucault fala de um processo de laicização da caridade.
Um processo que começa nas Igrejas reformadas, porém alcançará finalmente à lgreja católi-
ca (HF, 83-84). Por outro lado, também em relação à experiência da loucura, no asilo de Tuke,
que segue um modelo religioso, a religiào é utilizada como meio moral para contrabalançar a
violência da loucura (HF, 599-600). Para Pinel, por sua vez, a religiáo não deve ser o substra-
to da vida moral do asilo. O asilo deve estar livre de religiáo, porém nâo de moralidade (HF,
609-610). O asilo se converte, então, em um domínio religioso sem religião, no domínio da
moralidade pura (HF, 612). (ver: Loucura). * Outro exemplo importantíssimo, neste caso,
tanto do processo de teologização como de laicização, é a interpretação que Foucault nos
oferece da categoria de salvação. Não se trata de uma categoria originária nem necessariamen-
te religiosa. Com uma ampla gama de sentidos, foi uma das categorias fundamentais da cul-
tura antiga do cuidado de si mesmo (ver: Saúde). O cristianismo, introduzindo a ideia de uma
salvação para além desta vida, transtornou a temática do cuidado de si mesmo. A partir des-
se momento, ainda que o cuidado de si mesmo seja necessário para alcançar a salvação, a
condição do cuidado será a renúncia a si mesmo (D84,717). Nos séculos XVII e XVIII, em
relação à formação do rtovo poder pastoral, Foucault enfatiza como o termo 'taúde" (salut)
mudou de sentido. Passa-se da salvação no outro mundo à ideia de assegurar a salvação nes-
te mundo. A partir daqui, o ternto"salut" adquire vários significados: saúde, bem-estar, se-
gurança, proteçáo contra os acidentes. "Determinado número de objetivos 'terrestres'vêm
substituir os objetivos religiosos da pastoral tradicional, e isso tanto mais facilmente quarto
esta última, por difêrentes razôes, sempre se adjudicou acessoriamente alguns destes objetivos.
É suficiente pensar o papel da medicina e sua função social que, durante muito tempo, as
Igrejas católica e protestante asseguraram" (DE4, 230). * Para além da importância desses
exemplos, o grande aporte ético-político do cristianismo à história da subjetividade ocidental
foi a formação daquilo que Foucault chama o poder pastoral (Yer: Poder). Para Foucault, a
genealogia das disciplinas modernas começa com a formaçâo do poder pastoral. Neste senti-
do, concede particular relevância à forma de saber característica do poder disciplinar: a
confissão, o exane. (Ver os respectivos verbetes). Zen. O interesse de Foucault pelo budismo
zen tarnbém estti relacionado à questão da subjetividade (DE3, 592).* "Penso que o zen é
totalmente diferente do misticismo cristáo. [...] Quanto ao zen, me parece que todas as técni-
cas ligadas à espiritualidade tendem, ao contrário Ido cristianismo], à atenuação do indivíduo.
O zen e o misticismo cristão são duas coisas que não podem ser comparadas; já a técnica da
espiritualidade cristã e a do zen são comparáveis. E aqui existe uma grancle oposição. No
misticismo cristão, ainda que predique a união de Deus e o inclivíduo, há algo individual.
Porque se trata da relação de amor entre Deus e o indivíduo. Um é aquele que ama, e o outro
o que é amado. Em suma, o misticismo cristão tende à individualização (DE3, 621). * Ainda
que ambas sejam práticas religiosas, a atitude da religião zen e a do cristianismo a respeito do
corpo sâo notavelmente diferentes. No cristianismo, o corpo e objeto de exame; na religião

RELIGIÂo (Religíon) 383


zen, o corpo serye de instrumento, enquanto submetido a regras estritas, para alcançar outra
cosa através dele (DE3, 527).
Religion [246]: AN,64,134,198,207,212. A5,33. DEl, 134,292,31.1,330,347,578,584,590-591,701, 755,761,
7 65,783,8 1 5, 822. DE2, 137 , 144,247 ,269,381,397 , 460, 466, 543-544, 599-600, 602,703. DE3, 76, 126, 129, 1 85, 200,
227,244,305,370-371,403,489,491, 555, 560, 597, 60t,609,6t6,62t,625,637,658,662,674, 681, 683, 686-688,693,694,
7 12,7 16, 7 43-7 44, 7 45-7 46,7 49, 753, 759-761,781,79t-792. DEA t56, t57 , 158, 160, 229, 386, 397 , 465, 572-573, 6tt,
626, 658,731,804,823-824. I{F,77 ,91, 103, 1 06- 108, 1 24, 125, 127 , 132, 1.34-t35, 160, 1 83, 1 92, 301., 458, 459-462, 475,
486,599,609-612,657,667,669,671.HS,25,30,199,215,247,429.}{52,73.HS3,68,r83,270,282.IDS,31,67,103,
10s-106, 110, 145. MMPE,85. MMPS,78,97. NC, 125. PP, 72,2ss.5P,16,50,64,128,246,278,30t.

166. REPRESSÃO (Répression)

Como expusemos no verbete Poder, Foucault, em La yolonté de savoir, coloca três per-
guntas acerca da hipótese repressiva: a repressão é uma evidência histórica? A mecânica do
poder é da ordem da repressão? O discurso contra a repressão, libera ou, em realidade, forma

parte do mesmo poder que denúncia? (HSl, 18-19). Como também expusemos ali, não se
trata, em realidade, de formular uma contra-hipótese a propósito de cada uma das dúvidas
que essas perguntas colocam, mas de mostrar se são historicamente sustentáveis. Da segunda
questão, sobre a natureza repressiva do poder, ocupamo-nos no verbete: Poder; da terceira,
no verbete: Sexualidade. * Aqui nos ocuparemos da primeira questão; Foucault a aborda
extensamente, em relaçáo com a problemática da sexualidade, em La volonté de savolr (HS l,
23-67). Para além de suas razões teóricas, que retornaremos em seguida, a posição de Foucault
acerca da noção de "repressão" se constrói historicamente: a noção de repressão não dá conta
do funcionamento real, histórico, do poder. Desde o ponto de vista da "hipótese repressivdl o
século XVII teria sido o início de uma época de repressáo sexual, própria das sociedades
burguesas. Uma das finalidades de La volonté de savoir e mostrar, a respeito da sexualidade,
que a história dos últimos três séculos é completamente diferente. O poder, seu funcionamen-
to, suas formas de exercício, náo só não são interpretáveis em termos de repressào, mas, mais
ainda, esses mecanismos construíram o que Foucault denomina o 'dispositivo de sexualidade"
(ver: Sexualidade). Ao nível do discurso, mais que a uma repressão, assistimos a uma extra-
ordinária proliferação discursiva (HSl, 25). Houve certamente uma depuração do vocabulá-
rio e também formas de controle dos enunciados; mas o essencial foi a incitação contínua e
crescente a falar de sexo. A esse respeito, Foucault concede particular relevância à evolução
da pastoral da carne a partir da Reforma (ver: Carne). Por um lado, acelera-se a frequência
da confissão e sua extensão; por outro, tende-se a fazer da carne a raiz de todos os pecados, e
a deslocar o momento mais importante de ato para o desejo. "Um discurso obrigado e atento
deve seguir, segundo todas suas voltas, a linha de união do corpo e da alma; ele deve fazer
aparecer, debaixo das superfícies dos pecados, a inervação sem interrupções da carne. [...]
Esta é, talvez, a primeira vez que se impõe, sob a forma de uma obrigação geral, este manda-
to tão particular do Ocidente moderno. Não falo da obrigação de confessar as infrações às leis
do sexo, como o exigia a penitência tradicional; mas da tarefa, quase infinita, de dizer, de dizer-
se a si mesmo e de dizer ao outro, o mais frequentemente possível, tudo o que concerne ao

3 B4 REPRESSÃo (Âépresslon)
jogo dos prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que, através da alma e do corpo, têm
alguma afinidade com o sexo" (HSl,29). Trata-se, em definitivo, do projeto de converter todo
desejo em discurso. Segundo Foucault, seria possível estabelecer uma linha reta que iria da
pastoral da carne à literatura, em geral, e à literatura escandalosa, em particular (HSl, 30).
Para além da espiritualidade cristã, mas a partir dela, a técnica de converter o desejo em
discurso foi retomada por outros mecanismos do poder. Neste sentido, houve também uma
incitação política, econômica e técnica a falar do sexo. Porém, já não desde uma perspectiva
moral, mas racional; isto é, de uma maneira que não esteja ordenada pela separação entre o
lícito ilícito, como algo que se tolera ou se condena, mas como algo que há que administrar,
eo

que há que inserir nos sistema de utilidade. O sexo se converte em uma questão de adminis-
traçáo (HSl, 34-5). Foucault se refere ao surgimento, no século XVIII, de uma "polícia do
sexo'l de uma administração pública do sexo (HSl, 35). (Sobre a noção de "polícia" no sécu-
lo XVIII, ver: Razão de Estado). Assim, por exemplo, uma das novidades nas técnicas de
poder do século XVIII foi o surgimento do problema da população (ver: Populaçao). O sexo
se situa no centro do problema econômico e político da população; é necessário analisar a taxa
de natalidade, a precocidade sexual, os nascimentos legítimos e ilegítimos. "Porém, é a pri-
meira vez que, ao menos de maneira constante, uma sociedade afirma que seu futuro e sua
fortuna estão não somente ligados ao número e à virtude de seus cidadãos, não somente às
regras de seus casamentos à organização das famílias, mas à maneira como cada um faz uso
de seu sexo" (HSl, 37). Encontramos outro exemplo revelador da extensão que teve a proble-
mática do sexo no século XVIII nos estabelecimentos educativos, nos colégios. Em sua dispo-
SiçãO arqUitetônica, seuS regramentos de disciplina e sua organização
interna, o sexo está
presente por toda parte. Por outro lado, seria inexato, segundo Foucault, sustentar que as
antes, elas
instituiçOes pedagógicas em massa tenham imposto o silêncio acerca do sexo;
quali-
multiplicaram suas formas, seus pontos de implantação, codificando seus conteúdos e
ficando seus locutores. Outro espaço de proliferação do discurso sexual foi a medicina, em
pro-
torno à'doença dos nervos" (HSl, 39-41). "Desde o século XVIII, o sexo náo cessou de
sexo não
vocar uma espécie de eretismo discursivo generalizado. E esses discursos sobre o
se

onde exercia e como meio de


multiplicaram fora do poder ou contra ele, mas ali mesmo ele se
para
seu exercício. Por toda parte se instalaram as incitações a falar, por todo lado dispositivos
escutar e registrar, em todo lado procedimentos para observar, interrogar e formular"
(HSl,
5). Além do mais, à diferença da Idade Media, que havia organizado um discurso unitário
sobre a carne, a incitação a falar do sexo, a partir do século XVIII, põe-nos ante uma multi-
plicidade regrada, mas polimorfa, variada. Como Foucault assinala, poder-se-ia objetar que a
finalidade de todos esses discursos, sempre mais numerosos e variados, foi excluir os prazeres,
de reduzir o sexo à reprodução. Na realidade, essa época foi também a da implantação das
heterogeneidades sexuais (HS1, 50-51). Até o século XVIII, os códigos do direito canônico, a
pastoral cristá e a lei civil fixavam a separação entre o lícito e o ilícito. Todos eles estaYam
centrados na relação conjugal. Tratava-se de códigos estruturados em torno da aliança matri-
monial, do dispositivo de aliança (ver: Sexualidade).Osmíltiplos discursos que se desdobram
acerca do sexo modificam em dois sentidos esses códigos. Por um lado, a sexualidade no
contexto do matrimonio se torna cadavez mais discreta; por outro, interroga-se a sexualida-
de infantil, a dos loucos, a dos criminais, as obsessões, a sexualidade dos que não amam o

REPREssÃo (Âepresslon) 385


outro sexo, etc. Mais que proibir, a função do poder através dos discursos sobre a sexualidade
levou a cabo quatro operações: uma penetração indefinida do poder na sexualidade infantil
(dispositivos de vigilância, exigência de confessar, discursos moralizadores, advertências aos
pais); a incorporação das perversões e uma especificação nova dos indivíduos (a sodomia era
um relapso, a homossexualidade é uma espécie); espirais perpétuas de poder e de prazer
(exames, observaçoes insistentes), dispositivos de saturação sexual (separação entre adultos
ecrianças, entre homens e mulheres, vigilância da masturbação; junto à famí1ia, as instituições
escolares também foram os lugares da instalação de uma sexualidade não heterossexual e
não

monogâmica) (HSf , 57-66). "É necessário, então, abandonar a hipótese que as sociedades
industriais modernas inauguraram sobre o sexo uma época de repressão crescente. Não só se
está o ponto
assiste a uma explosão visível das sexualidades heréticas. Mas, sobretudo, e aqui
importante, um dispositivo muito diferente da lei, mesmo quando se apoia localmente nos
procedimentos de interdiçáo, assegura, mediante uma rede de mecanismos que se encadeiam,
à proliferação de prazeres específicos e a multiplicação das sexualidades
díspares" (HSl, 67)

(ver: Sexualidade).* Apsicanálise vulgarizou a ideia segundo a qual interiorizamos a repres-


são- Na perspectiva de Foucault, mais que interiorizar, estamos ainda investidos
pelo contro-
le social. Neste sentido, a individualizaçáo nâo se opõe ao poder: a "individualidade obriga-
*
tória'é um efeito e um instrumento do poder (DE2, 662-663). A sublevação do corpo
sexuado, o poder não responde com o controle-repressão, mas com o controle-estímulo (uma
*
exploração econômica da erotização); "deves estar magro, lindo, bronzeado'(D82, 755). Se
o poder fosse apenas repressão, então, ele seria débil. Ele é forte porque produz efeitos positi-
vos ao nível do desejo e do saber. O poder, mais que impedir o saber, o produz. "Por isso, a
noção de repressão, à qual, geralmente, se reduz os mecanismos do poder, me parece muito
*
insuficiente e,talyez,perigosa' (D82,757). A noçáo de repressão é inadequada para pensar
os mecanismos do poder e seu funcionamento. Quando se definem os efeitos do poder em
termos exclusivamente negativos, tem-se uma concepção puramente jurídica do poder;
identifica-se o poder com a lei que proíbe. O poder, em realidade, induz prazeres, produz
*
saberes, discursos (D83, 148). A noção de repressáo é uma noção jurídico-disciplinar; por
um lado, ela faz referência à teoria dos direitos soberanos do indivíduo, por outro, a uma
*
concepção psicológica de normalização, proveniente das ciências humanas (DE3, 189). Toda
uma corrente psicanalítica (Melanie Klein, Winnicott e Lacan) quiseram mostrar que a re-
pressão não é um mecanismo secundário e tardio para controlar o jogo dos instintos. Neste
sentido, essa corrente reelaborou o esquema freudiano da repressão contra o instinto ou da
cultura contra as pulsões. 'A noção freudiana de Trieb não deve ser interpretada como um
simples dado natural, um mecanismo biológico natural sobre o qual a repressão viria impor
a sua lei de proibição, mas, segundo os psicanalistas, como algo que está já profundamente
penetrado pela repressão. A necessidade, a castração, a ausência, a proibição, a lei são já ele-
mentos através dos quais o desejo se constitui como desejo sexual [..']" (DE4, 183).
Repression [420]: AN, 29, 39, 46-49,221-222,244,309. AS, 46, 144, I57, 164, 185. DEI' 162,165'417 '590,762-763'
795. DEz I i 7- 1 1 8, I 79- 1 80 , 184, 204, 206-207,212, 223 224,227 -228, 230-233, 297 , 298, 302' 309, 311-312' 319 ' 342,
345,347,3s0,352, 359, 379,396, 409-410, 4r9, 433, 456, 469, 479, 486, 494, 513, 523, 528, 532' 602' 635, 654' 658' 662,
666,727,74t,746,755,757,771-773,777-779,781,816,826.D83,61,68,70,75,88,103,105-106'123'133,137'147 149'
t7 I,t7 4, t82,189,228,230,258-260,295,332-333,336,344-345,352,354,387 ,391-392,396-397, 424,457, 536, 558, 567,
6t6-617,673,714,717,773-774,816.DF4,17,34,72,74,77,93,130,133,182'183,r95,197'198'255,262'312'320'327,

386 REPRESSÃo (Répresslon)


336-337,346,39t,530, 53 l, 540, 589, 642, 659-660,67 ),,7 t0-7 r1,732. }IF,73,7 6,87 ,95, I 03, 1 20- I 2 i, 125, 130,135,172,
219,41r,41.6,461,479,501-502,509,545, 606,620-621.,625,643-641,683. HSl, 10 15, 17, 18 19,25, 35,56-57,67,96,
97, 103, 107,109, 121,t51-t52,158, 162, 169-170, t73,209.}t52,t0,212,275.1D5,3, l5 20,28,35-36,38. MC,39l. NC,
40. PP,2s,38, 120. SP, 14,37,66,81,84-8s,87 88, r33, 185,238, 240,257.269,276,293,315.

;,+: RESISTÊruCtn (Resrstance)

Frequentemente reprovou-se Foucault quem, fazendo circular o poder por todas as partes,
tornava impossível toda possibilidade de resistência. "Eu quero dizer que as relações de poder
suscitam necessariamente, reclamam a cada instante, abrem a possibilidade de uma resistência;
porque há possibilidade de resistência e resistência real, o poder daquele que domina trata de
manter-se com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior a resistência. Deste modo, é
mais a luta perpétua e multiforme o que eu trato de fazer aparecer do que a dominação obscura
e estável deum aparato uniformizante" (DE3,407). Em deflnitivo, se não houvesse resistência,
não haveria poder (DE4, 720).* Para Foucault, a resistência ao poder não pode vir de fora
do poder; e1a é contemporânea e integrável às estratégias de poder (D83,425). Desde essa
perspectiva, as possibilidades reais de resistência começam quando deixamos de nos perguntar
se o poder é bom ou mau, legítimo ou ilegítimo eo interrogamos ao nível de suas condições de
existência. O que implica, em primeiro lugar, despojar o poder de suas sobrecargas morais e
jurídicas (DE3, 540). * As formas múltiplas de resistência, por outro lado, podem ser tomadas
como ponto de partida para uma análise empírica e histórica das relaçÕes de poder (D84,225).
* A possibilidade de resistência, para Foucault, não é essencialmente da ordem da denúncia
moral ou da reivindicação de um direito determinado, mas da ordem estratégica e da luta.
Para uma caracterizaçâo da resistência desde essa perspectiva, ver'. Luta.
Résistance [206]: AN, 81, 1 I t, 190, 192, 198,201-202,205-206. AS, 185, 263. DEl,77,149,156,175,332,657.DF,z,
55,246,258-260,286,291,35 1, 3s3, 399, 42s-426, 467 , 496. s76, 646, 648-651. 6s7 . 679. DE3, 8, 1 38, 198, 204 206. 208.

226-227,267,344,37 4,382,407 ,420-421,425,462,531,540,543-545,613,626,632-633,693,706,727 ,784-7 8s, 800, 807.

D84,29,35,93-94,97,181,225 227,236,242,265-266,275,341-342,363,369,586,719-721,728,739,740-742.}{F'252,
257,365,37g,386,388,398,452,622,629.H5,49,r77,241,331,408. HSl,74, 81,125-127' 129, 133, 153, 208.H52'76'
).27,232,264-265,267,269.1D5,97.}lC,259,360,385. NC, 157, 182-183. OD ,45.PP,45,66,166,207,212,220-221,
98,
237 ,278,288. sP, 45, 66, ).66,207,212,220-221,257 ,278,288.

:**. REVOLUçÃO (Revol ution)

Em geral, Foucault evita servir-se do conceito de revolução para analisar a formação do


saber e também para estudar as relações de poder. Isso responde, claramente, à concepção
que Foucault tem da história ou, melhor, da relação entre a história e a subjetividade. Por
um lado, Foucault rechaça conceber a história em termos de totalidade, isto e, de um pro-
cesso contínuo e progressivo, orientado para uma finalidade que, de alguma maneira, está
presente desde a origem (ver; História). Por outro lado, Foucault também rechaça a ideia
de um sujeito cujo caráter originário permite dar conta da constituição da história e, por

REVOLUçÃO (Révolution) 387


isso, apresenta-se como o fundamento de sua continuidade (ver: Subjetivaçao).Emreali-
dade, conceber a história em termos de continuidade e fazer da consciência humana o su-
jeito originário de todo saber e de as duas caras da mesma moeda: o tempo
toda práÍicasão
concebido como totalidade e a revolução como tomada de consciência (DEl,699-700)' (ver:

Arqueologia). * Na ordem do saber, por exemplo, um dos problemas metodológicos fun-


damentais do conceito de revolução reside na questão de sua atribuição. A análise episte-
mológica dos conceitos coloca questões que se situam frequentemente a um nível metain-
dividual (D82, 59-60). A análise discursiva da arqueologia, como assinala Foucault em
Larchéologie du savoir, desarticula a sincronia das rupturas. Neste sentido, a noção de
época só é pertinente em relação às formações discursivas, não como uma espécie de forma
vazia que imporia sua unidade a todos os discursos. Consequentemente, tampouco a rup-
'Assim, a Revo-
tura é uma espécie de limite, mas o nome de uma série de transformações'
Iução Francesa (posto que é em torno dela que foram articuladas até agora todas as análises
arqueológicas) não desempenha o papel de um acontecimento exterior aos discursos, cujo
os dis-
efeito de repartição, para pensar corretamente, haveria que reencontrar em todos
cursos [...]" (AS, 231). A arqueologia descreve transformações que mantêm determinadas

relações discursivas e modificam outras. Essas afirmações, é necessário precisá-lo' corres-


pondem atarchéologie du savoir; em que a noção de episteme modificou-se com
res-
(ver: Episteme). * Na ordem do poder, as consequências do
peito a Les mots et les choses
âbândono dos conceitos de história e sujeito pensados em termos de totalidade sáo seme-
lhantes às que se produzem na ordem da análise discursiva e também solidárias a elas. Para
Foucault, a oposição ao poder pode ser levada a cabo em termos de totalidade, de ruptura
abrupta. Por um lado, é necessário pensar o poder em suas formas históricas, empíricas,
múltiplas e específicas; por outro, a oposição ao poder tem, antes, a forma da resistência
das lutas múltiplas, não da revolução (ver: Luta,Poder). Neste sentido, sustenta: "Talvez
estejamos vivendo o fim de um período histórico que, desde 1789-1793, foi dominado, pelo
*
menos no ocidente, pelo monopólio da revolução [. . .] " (D83, 547) Discurso histórico.
Em "I1 faut défendre a société'l Foucault leva a cabo uma genealogia da formação da histo-
riografia moderna; mais precisamente, do discurso histórico da guerra de raças que se
havia formado com H. de Boulainvilliers (ver: Boulainvilliers). Esse discurso sofre duran-
te a Revolução um duplo processo. Em primeiro lugar, generaliza-se: converte-se em ins-
trumento de todas as lutas políticas (não só da nobreza), precisamente, como tática de luta.
Em segundo lugar, essa tática se desdobra em três direções: a) como tática centrada nas
nacionalidades, em continuidade essencial com os fenômenos da língua; b) como tática
centrada nas classes sociais, cujo fenômeno central será a dominação econômica; e c) como
tática centrada sobre a raÇa, as especificações e seleções vitais. Três direções, então: filologia,
economia política, biologia; falar, trabalhar, viver. Percebemos aqui as correspondências
com as análises de Les mots et les choses. Pois bem, por que essa generalização do discur-
so histórico-político? Segundo Foucault, as razÕes podemos compreendê-las desde as
próprias análises de Boulainvilliers, que fez da dualidade nacional o princípio de inteligi-
bilidade da história. "lnteligibilidade" quer dizer: busca do conflito inicial, genealogia das
lutas, exame de consciência histórico. Daqui se segue uma série de consequências: I ) Cons-
tituiçao e revoluçao, umahistória cíclica: essa inteligibilidade perseguia a reposição de

388 REVoLUçÃo (Revolution\


uma relação de forças boa e historicamente verdadeira. É através dessa forma de inteligibi-
Iidade da história que foi possível acoplar as noções de constituição e reyolução ("Consti-
tuição" tem aqui um sentido méclico-militar, trata-se da boa constituição, do equilíbrio de
forças.). A revolução não seria senão o retorno a uma relaçâo originária de forças, à primei-
ra constituição. No ponto em que se cruzam as noções de revolução e de constituiçáo, o que
encontramos, entáo, é uma filosofia cíclica da história. 2) O selvagem e o bárbaro: uma
relação de forças verdadeira e justa há que ser buscada na história, e não na natureza. O
grande inimigo do discurso de Boulainvilliers é o selvagem, o homem por natureza bom, o
homem antes da sociedade, o que intercambia bens e direitos. A figura do selvagem, à he-
rança de Rousseau, o discurso histórico-político opõe a Íigura do bárbaro, cuja identidade
supõe uma civilização, a respeito da qual, pelo fato de se situar no seu exterior, o bárbaro é
precisamente bárbaro. O bárbaro é, neste sentido, um personagem histórico. A diferença
do selvagem que intercambia bens e direitos (forma jurídica da bondade), o bárbaro é
signo de clominação (invasão, incêndio, destruição, subjugação). Os discursos histórico-
políticos do século XVIII foram dominados por esta questão: como fazer jogar, em um
ajuste de forças conveniente, a barbárie e a revolução? Como adequar o que o bárbaro
aporta de liberdade violência à constituição do Estado? Em outras palavras, o problema
e de
que se coloca é como filtrar a barbárie. Podemos distinguir três grandes modelos de filtra-
gem: 1) A filtragem absoluta: eliminar da história o elemento bárbaro. Os francos não
existem, sâo mito e ilusão (Dubos e N{oreau). 2) Conservar a liberdade dos bárbaros-ger-
manos, mas negar seu caráter aristocrático. O que a invasão introduz não é a aristocracia,
mas a dentocracia. Os francos teriam sido não uma aristocracia guerreira, mas um povo
armado (Mably). 3) Terceira filtragem, com maior projeção histórica - ainda que não ime-
diata. Oposição entre uma barbárie má (Francos) e uma boa (os Galos). Separação de liber-
dade e germanidade, de romanidade e absolutismo. Tese de Bréquiny e de Chapsal; retoma-
da pelos historiadores burgueses do século XIX, Augustin Thierrl', Guizot. O que signiâcava
*
politicamente que a liberdade pertencia à cidade, era um fenômeno urbano. Um percurso
pelas dÍferentes fiitragens da barbárie mostra que os menos interessados ern historicizar a
luta política foram a Terceiro Estado. Com efeito, era-lhes difícil encontrarem-
burguesia eo

se a si mesmos na Idade Média. Esse anti-historicismo da burguesia aparece claramente em


seus ideais de despotismo ilustrado, uma espécie de controle administrativo do poder real.
No entanto, com a Revolução, a burguesia, para fazer frente às reivindicações da nobreza,
teve que se servir de uma nova reativação do conhecimento histórico. Uma de suas formas
foi a reinterpretação da Revolução Francesa ern termos de luta de raças (IDS, 169-189). *
Por paradoxal que possa parecer, a partir da Revoluçáo assistimos à eliminação, à metamor-
fose ou à colonização da guerra como constitutiyo essencial da inteligibilidade da história.
O discurso histórico nascido da Revolução quis evitar o duplo perigo da guerra como fundo
da história e da dominação como elemento principal da política. Nessa transformação, a
guerra reaparecerá, mas agora com um papel negativo: não como constitutiva da história, mas
como conservaclora da sociedade. A guerra não como condição de existência da sociedade,
mas como condição para a sobrevivência das relações políticas. Assistimos, assim, ao abur-
guesamento do discurso histórico, a elaboração pela burguesia (que havia sido o setor mais
reticente a respeito do discurso da guerra) de uma nova forma da história. O que tornou

REVoLUçÂo (Revolution) 389


possível tal transformaçáo foi a reelaboração da ideia de "nação'l Até então encontrávamos
duas noções de "nação'l uma própria da monarquia, outra da nobreza. Para a primeira, a
nação coincidia com o rei. Não existe uma nação porque há um grupo de indivíduos, uma
massa, que habita um território, que têm uma mesma língua e as mesmas leis. O que faz
deles uma nação é a reiação que mantêm individualmente, desde um ponto de vista jurídi-
co e físico, com a pessoa do rei. Para a segunda (para a qual não há uma nação, mas ao
menos duas), é a nação, porque existe, que se dá um rei. * Foucault se apoia em um famoso
texto de Sieyês, Que é o Terceiro Estado? para mostrar a reelaboração que sofreu o concei-
to de nação. Que é, segundo, Sieyês, a nação? Ela requer dois elementos. Por um lado, uma
condição jurídica, a existência de uma lei comum e uma legislatura; por outro, uma condi-
"os trabalhos" (a agricul-
ção efetiva, náo já formal, mas substancial, que Sieyês denomina
tura, o artesanato e a indústria, o comércio e as artes liberais). Uma nação não pode existir
como tal, não pode subsistir na história, ao menos que seja capaz de cultivar o solo, produ-
zir bens e exercer o comércio. Quem assegura tais funções? O Terceiro Estado. Até agora,
na ótica de Sieyês, existe na França funcionalmente uma nação, mas juridicamente ainda
não. Daqui uma série de consequências: l)
Uma nova relação entre a universalidade e a
particularidade. A reação nobiliária, manifesta no discurso de Boulainvilliers, extrai da
universalidade do Estado um direito particular, o da nobreza precisamente. Agora, é o
Terceiro Estado, uma parte do Estado, o único capazde assegurar (em suas condições fun-
cionais, efetivas e substanciais) a totalidade da nação e, consequentemente, a totalidade
mesma do Estado. Já não se trata de reivindicar um direito passado, mas de articular a açáo
política sobre um futuro iminente, virtualmente presente (neste caso, a existência do Ter-
ceiro Estado que ainda não encontrou sua forma jurídica, a lei comum e a legislatura). 2) O
que caracteriza uma nação não é a relação horizontal com outras nações, com outros grupos,
mas a relação vertical que vai dos indivíduos capazes de constituir um Estado à existência
efetiva deste Estado. 3) O que constitui a força de uma nação é o ordenamento das capaci-
dades com relação à figura do Estado. 4) A função histórica da nação não é dominar, mas
administrar e administrar-se, governar e assegurar a constituição. 5) Reintroduz-se no
discurso histórico o problema do Estado, a história deixa de ser antiestatal, para retomar
essa função que assegurava a história jupiteriana, ser um discurso de justificação do Estado.
6) Já não se trata de levar a cabo uma revolução entendida como retorno a um Estado an-
terior, como reconstituição, mas de projetá-la para o futuro em uma temporalidade de tipo
retilínea. O problema histórico será o de passar da totalidade nacional à universalidade do
Estado. 7) A guetra não será mais pela dominação, mas um esforço, uma rivalidade, uma
tensão em direção à universalidade do Estado. O problema central da história e da política,
do século XIX e XX, será o de como pensar a lutas em termos civis. * Nessa nova forma da
história, vão se justapor, entrelaçar-se dois padrões de inteligibilidade: por um lado, o padrão
de inteligibilidade que se havia constituído no discurso histórico do século XVIII, ou seja,
a ideia de que na origem da história se encontra uma relação de força, de luta; por outro, o
momento fundamental não é a origem, mas o presente. Inverte-se aqui o valor do presente
no discurso histórico. O presente revela e analisa o passado. A história reacionária, aristo-
crática, de direita, concederá um privilégio ao primeiro modelo. Por exemplo, Montlosier.
A história de tipo liberal e burguês, no entanto, haverá de o conceder ao segundo. Exemplo,

390 REVotuçi\o (Revolutíon)


Augustin Thierry. como vemos, o que funciona, no coração do próprio discurso da his
tória política, é a possibilidade mesma de uma fiiosofia da história que encontre no
presente o universal. Que é, no presente, a verdade do universal? Será o problerna da fi-
losofia da história. Nasceu a dialética moderna (IDS, 193-212). KANT. para Foucault,
Kant se encontra na origem das duas grandes tradiçoes da filosofia moderna e contem-
porânea, a analítica da verdade e a ontologia do presente (ver: Kant). Em relação a esta
última, além da célebre resposta de Kant à questão ;Que é o lluminismo? de 1784, Fou-
cault leva em consideração o texto de 1798, O conJlito das Jàculdades. Neste último
texto, a questão da revolução emerge a partir do problema de determinar se se pode
sustentar que existe um progresso contínuo do gênero humano. A possibilidade de afirmar
que existe um progresso não pode apoiar-se apenas na constatação de uma trama teleo-
lógica de acontecimentos; exige também que possa atribuir-lhe uma causa. para Kant, a
revolução será o acontecimento signo dessa causa. Um signo rememorativum, demos-
tratiuum e pronosticum, isto é, um signo que mostra que as coisas foram assim, que são
efetivamente assim e que o continuarão sendo. Para Kant, esse caráter de signo histórico
da revolução não reside nem em seu êxito, nem em seu fracasso, nem sequer nos grandes
gestos que a constituem; mas no entusiasmo que ela manifesta. "O entusiasmo pela revo-
lução é signo, segundo Kant, de uma disposição moral da humanidade; esta disposição
se manifesta permanentemente de duas maneiras: primeiramente, no direito de todos os
povos a darem-se uma Constituição política que lhes conyenha e no princípio, conforme
ao direito e à moral, de uma constituição política tal que evite, em razã,o de seus próprios
princípios, toda guerra ofensiva'(DE4,685). "t ..] A questão para a filosofia não é de-
terminar que parte da revolução conviria preservar e fazê-la yaler como modelo. Ela
consiste em saber o que há que fazer desta vontade de revoluçâo, deste 'entusiasmo' pela
revolução que é algo distinto da tarefa revolucionária em si mesma. As duas questÕes:
'Que é o Iluminismo?' E, 'Que fazer da vontade de revolução?' definem, ambas o campo
de interrogação filosófica que trata do que nós somos em nossa atualidade" (DE4, 687).
Loucura. Sobre as transformações da experiência da loucura na época da Revolução
Francesa, ver: Loucura. clínica. Acerca da Revolução Francesa e da organização da
medicina clÍnica, ver: Clínica.
Révolution [646]: AN, I 5, 27, ,19, 8 I,84,86,91-92,97 -99, l4l, 143-144, I 53, 274. AS, l9l,231,27 1 272. DÉt,170,
202,2t5,246,331, 550, 556, 586, 598, 646, 688, 700,770,8),4.D82,59,92,114-115,121,130, 153, 183, 236,272,280-281,
298, 31 I, 3 r5, 316 ,34t-342,345-349,35t,352,355,357 -358,360,362-363,365 367 ,375,425,436,465-466,497 ,503,506,
508-509, s 13-51 8 , 533-s34, s35,57 1,600, 60s, 64r, 643,650, 677 ,7 t6,735-739.806, 8 1 6. DE3, 10, 25,39, 51, 68,7 t-73,
79, 83, 85-86, 129-t30, 134,1 5 1, I 85, 195- l 97, 199,203,2\6,22t,224,248,255,257 ,266-267 ,269,279-28t,330,333,339 -

340, 3-50, 356-357 ,363,368,397 -398,410-41t,427 ,43t,433,473,476,480-48 1, 502, 530, 538, 546-548, 55 1, 60 1, 6 l -3, 615,
623,637,662,690,693,706,7 t6,737 ,7 43-745,7 47,7 49,751,7 55,759,761-7 62,780,783,785^786,789-792,802, 804, 8 1 1.

DE4, i0- 12, 3-5, 38,40,48,62-63,202,204,226,273, 431,629,637,643,647, 682-687,702,721,768,778, 815. }lF,74-75,


98, 102, 11 1, 126, t6r, t7 5, r93,269,366,382,397 ,443, 469, 473,478-480,483,497 -498,504, stg,522,525-s27 ,53]1, s34,

536, 538, 546, 554 555. 570,57 3,581-584, 586, 594,596,610, 61 8, 676, 68 1, 683, 686-688. }t5,200,270,272. HS l, 1 4, 36,
118, 127, 173, 187, 190. HS2, 64. IDS, 31, 42, 52,63,67, 69-70,73 74,76,91, 93, 106, r23, 126, t28, 169, 170, t72-173,
t76-177, t83-t90, t93,201,207-210.212-2t3. MC,163, 193, 356. MMPE, 80, 103. MMPS, 83, 88. NC, 19, 27 28, J0-32,
34,37,40,42-43,45,51,72,74,76,83-84,125,188,198,207,209. pp,3l, 59, 125,191,t97,226. RR, 185, 185. Sp,20,36,
58, 66, 7 5, 7 8, 87, 9 1, I I 1, 148, 212, 220, 27 8, 27 9, 285, 304, 3 10.

Reyolution IsJ: DEr, 576. DE3, 72.HF,93.IDS, 99. PP, 262.

REv0LUçÃo \Révolution) 391


:6e. ROUSSEL, Raymond (tezz-tg::)

O único autor ao qual Foucault dedicou um livro, com título homônimo, é Raymond Roussel
(La pensée du dehors, dedicado a M. Blanchot, era originariamente um artigo). "Este livro
fRaymond Roussel] constitui uma pequena investigação, aparentemente marginal. Roussel, com
efeito, foi curado pelos psiquiatras, por Pierre Janet particularmente. Este último diagnosticou
nele um lindo caso de neurose obsessiva; coisa que, por outro lado, correspondia à realidade.
A linguagem de Roussel, no flnal do século passado [XIX] e inícios deste, não podia ser outra
coisa que uma linguagem louca e identificada como tal. E eis aqui que hoje esta linguagem
perdeu sua significação de loucura, de pura e simples neurose, para assimilar-se a um modo
de serliterário. Bruscamente, os textos de Roussel alcançaram um modo de existência dentro
do discurso literário. É precisamente esta modificação que me interessou e que me conduziu
a empreender uma análise de Roussel" (DEf , 605). Foucault se interessou, com efeito, pela
obra de Roussel a partir de sua relação com a loucura ou, melhor, com o reaparecimento da
linguagem da loucura (ver'. Loucura) e a partir da relação entre linguagem literária e morte
do homem (ver : Homem, Literatura).
Roussel [414]: DEr, 168, 204-212,214-215, 298, 339, 342, 344-345, 357, 368, 419'424, 5t2,60s. DE2, 20,23-24'
10s, 109, r32,44s,733. D84,599-608, 697.IJF,440-441. MC,9, 119,39s. MMPS,89, 104. RR,7-22,24-29,3s,37-4s,

52. 54-55. 57 -63, 68,70-79, 81-82,8s-90, 94, 96'10 1, 103, 105, 108- 1 10, 1t2-t15, 117 , 1t9, 121, 123-t30' 133' 137 ' 140'
1 55- r 60, 164- I 65, 167, t70, 17 4-176, t79, 18L,1 83- 185, 189- I 90, t93, r9s-203,205,207 -210.

392 RoussEt, Raymond


ri* SABER (Savoil

A obra de 1969 leva como título Larchéologie du savoir. o termo "saber" define, precisa-
mente, o objeto da arqueologia. Se, então, levamos em conta as obras precedentes (das quais
"saber",
Ihrchéologie du savoir quer ser o ponto alto do método utilizado nelas), no gênero
devemos colocar: a história natural, a gramática geral, a medicina clínica, a economia política,
Foucault
etc. Para determinar em que sentido ele fala de saber a propósito desses domínios,
"disciplina' um
procede por sucessivas delimitações. Em primeiro lugar, se se entende por
conlunto de enunciados que se organizam a partir de modelos científicos (que tendem à
coerência, estão institucionalizados, são ensinados como ciências), mas que não alcançaram
ainda o estatuto de ciência, é necessário dizer que a arqueologia não descreve disciplinas. As
disciplinas podem servir como ponto de partida para a análise arqueológica, mas não fixam os
limites da descrição arqueológica. Foucault nos oferece como exemplo o caso do surgimento,
no início do século XIX, de uma disciplina psiquiátrica. Neste caso, o que tornou possível as
mudanças conceituais e os modos de demonstração é o jogo de relações entre a hospitaliza-
ção, a internação, os procedimentos de exclusão
social, a jurisprudência, a moral burguesa,
as normas do trabalho. O que caracterizaaprátícadiscursiva que chamamos'disciplina psi-
quiátrica" não só aparece nos textos que pretendem ter um estatuto científico, mas também
nos textos jurídicos, nas expressões literárias, nas reflexões filosóficas, nas decisões políticas,
nas opiniões, etc. Por outro lado, não encontramos nenhuma disciplina precedente a partir
da qual a disciplina psiquiátrica tenha-se desenvolvido. Na época clássica não há nenhuma
disciplina que se possa comparar com a psiquiatria. Por isso, o objeto da arqueologia, o saber,
não é simplesmente a contrapartida de uma disciplina institucionalizada. Em segundo lugar,
o saber tampouco é o esboço de uma ciência futura. A história natural não é o projeto futuro
de uma ciência da vida. Antes, o contrário, a disposição epistêmica da história natural exclui a
possibilidade de pensar o conceito novecentista de vida. Em terceiro lugar, o saber náo só náo
se encontra em uma relação cronológica de precedência a respeito da ciência, como tampouco

constitui uma alternativa. A medicina clínica, como saber, deu lugar a discursos que devem
ser considerados como ciência, por exemplo, a anatomia patológica (AS' 232-236). "Não se

SABER (Savoir) 393


pode identificar as formações discursivas nem com as ciências, nem com as Cisciplina apenas
científlcas, nem com estas figuras que esboçam de longe as ciências futuras, nem, finalmente,
com as formas que excluem desde o início toda cientificidade" (AS, 236). * Foucault entende
por saber as delimitações das relações entre: 1) aquilo do que se pode falar em uma prática
discursiva (o domínio dos objetos); 2) o espaço em que o sujeito pode situar-se para falar dos
objetos (posiçoes subjetivas); 3) o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados,
em que os conceitos aparecem, são definidos, aplicam-se e se transformam;4) as possibilidades
de utilização e de apropriação dos discursos (AS, 238). "O conjunto assim formado a partir
do sistema de positividade e manifestado na unidade de uma formação discursiva é o que se
poderia chamar um saber. O saber não é uma soma de conhecimentos, porque desses se deve
poder dizer sempre se são verdadeiros ou falsos, exatos ou não, aproximados ou definidos,
contraditórios ou coerentes. Nenhuma destas distinçoes é pertinente para descrever o saber,
que é o conjunto dos elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas)
formado a partir de uma única e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva
unitária' (DEl, 7 23). Y er : F orm aç ão di s cursiv a.
Sawir [4025]: AN, 5, 1 1, 1 4, I 8, 20 24,27 ,33-36,38, 39, 43-45, 48'49, 52, 55-58, 60, 64 -65,69,79,83,97 ' 100, I 05-
113,122-124, 127 -129, 131,1 33- 136, I 43, 1.49, 164, 166, 168,172,174,176, 179, 181,1 83- 1 84, 202, 205-206,2t2,235'236'
239-240,247-248,2s0,253,260,263,27]1,275,287,290-292,301,303,310-3tl.AS,ll-13,20,25,38,46,49-50,55-57,
59,64 65, 68,72,74,85, 118, 161, 167, i78-180, 198,209, 214,232,236,238-243,246,248'249,251,253 2s5,259,262,
264,267 , 269. DE I, 83, 102, 122, 142-145, 153-159, 162, 164-165, 170, 173, 1 8 1, 209, 215, 218-221, 224-228, 231, 239,
249,256 ,291,295,297 -300,304, 306-3 I t, 330, 346, 348, 150, 352, 374, 380, 39 1, 393, 397 -398, 402-403' 414 416, 422'
257

438, 444-445,447 , 419, 453-454, 463,47 1,479-481, 484,486, 489-496,498-499, 501, 508-5 I 3, 5 1 5, 5 1 7-s 1 8, 52 1, 54 I -544,
s46 548,5-50,552,554-55s, 557.559, s61,563, 576,582,584-585,587,589,591, 594-596'602,605,607 608,610-611,
616, 622. 624,631,656 661,663-666, 668, 672, 68 1, 683-684, 689, 694, 696,699-700,7 l0-711,7 15 7 17 ,720'721,723-731,
733,736,741,750-751,753-754,760,768-771,774,776-779,784-788, 796, 801,807,815, 817,827,829,832' 834, 836,
838, 840, 842-846. D82,7 -9, 1.1-12,24,28-33,35-36, 38, 40, 44, 46, 57 -59, 62, 68-7 I ' 75,77, 83' 92' 95' 99' 1 00 102, 104,
10ó,109, 112,114, 1ló, 120-121, 1Z5-r28,t34-137,139-140,142,144-145,147-148,150-1-sl, 155-159, 163-165,167,169,
172-176, 178-180, 182- 18s, 1 87, rlt9- 191, 193-195, 206-208, 2 18, 220-222,221-226,228-229.233-234,236,238-243,217,
250,255,257 ,26t,267 -268,27 1,282-285,290,294-295,297 ,304,308-309, 3I 2-3 I 4, 3 I 8, 332-333, 338, 34 1, 349,367 -368,
37 ).,373 375,388 392,396 397 ,399-400, 405 407 , 409-41r, 414-418, 420-422, 424, 432-433, 445 446, 451, 454, 162, 470,
472-476, 478, 481, 484-185, 487 -491, 496-497,504, 506, 51 1, 52 t, 530, 535, 538-539, 54t-544, 546-549,552-555, 557-558,
562,566-57 1, 573,575,577 ,580-585, 587-588, 594-595, 60 1, 604, 607, 614. 61.9 620,622 624, 629-631,633,634,636-637,
639,642-645,647 649,660 661.,667-669,673,675,677,679-682,685-686,692-697,700-702,705,718,724,737-739,741,
750-752,7 57 ,77 1 -773,780-781,783-789,790-79t,795,798,800-80 1, 805, 808, 8 1 3, 8 1 5 8 1 7, 82 1, 827-828. DE3, 14, 23,
26 28,30 31,33,36-37,39-40, 44-45,48, 50-53, 57,59-60,63,75-76,79,82-83,85-88, 90, 94, 96, 103-107, I l0-1 I 2, I 14,
120,122,132,t36-137,141,143, t47,149-150,155 156,158,160 16t,163 1.67,169,177,179,18,1,188 191,1.91,206,
209-211,213-215,219,222,228,230 232,236,238,248,255 2s8,260,264,267-269,274,276 277,279,28t-282,296 298,
300, 3 1 2-3 14, 3 l8 ,327 ,330,343-344,347 ,349,351,357 ,366,369,373,37s, 380-382, 388-389, 39s, 399-400, 402,404-406,
409-410, 420, 426-427 , 430-432, 435-438, 440, 446, 448 449, 451 153, 457 -458, 462-463, 465-466, 468-469, 47 4-477 , 488,
496,500,504,511,514,517 518,521-523,525-531,533-534,543,546,551,554-555,557,563-567,57t-573,582-588,592,
594-595,598,600 60r,603 606,608-612,615,616,618-619,626,629,631,634,639,641,649,652-655,657,659,670,678,
687,704 705,710,719,721,724,726,729,735,739,746,748,754, t'68-772,781, 783, 785-786,80r, 804, 809-811, 818,
820,822. DE4, 10, t2,14,18-1.9,22-23,27,30,32,34,40-42,46,53-54,56 58, 62,65 69,7t 72,74,77,82-83,88 90, 101,
108-109,ll5,\17,120,t23-124,135,146,148 149,152-153,163-164,166,169-170,t74,179,184,189,t9t-193,196-197,
199,201,203,206,213 214,222,227,231-232,234,239,244,248,252,254 255,257,263,267 268,270,273,284-285,289,
292293,326327,330,342,344,348,361,364,367,373,375,377,378380,391,393,39s396,399,40r,403,,111,413414,
418,436-437 ,439-440,142-447 ,450,454. 456-458,462, 466, 472, 481-482,487 ,193,497 -498, 50 I, 5I 9-520, 523,525,529,
535-536, 540,541, 543-544, 565,567 -568,572, 57 4,576-577 ,579-583,594, 596 597 ,599,604,612, 6t5 6 16, 6 1 8-61 9, 62 l,
623 624,628,630,632-634,637 ,641-642,644-645,651-652,654 656,658-659, 66 1, 663, 668,67 r,675 676,682,684, 686687,

394 sABER (Savoir)


695, 698-699, 7tr1 -702,705,707 -708,712,7 14,7 \7 7 19,721,724-727 ,730,732,734,7 41 7 42,7 44-7 45,7 50,753-7 54,7 60,

764766,769,771.,773,777,782,784-785,789,791,812-813,817-818.HF,27,29,34'35,37'39'4r's0,5254,58'70,76,
80,107,111,ll3,1r5,123,134,142,1,15-146,157,166,182,185,215'216,219224,227,234,238239,264-265,268,274,
285,298,31.4,317,319,327,330,33s,341,346,35,1,359,387,406,432,448,456,171,484-185,493 494,528,532 s33'555'
562,565,567,572,574,577,579,586,592, 596,621,624,626,628-629.663. HS,6,23 24,26-31,35 36,39'41, 43'45 46,
48,51-54,57,60,68-69,91, 100, 106, 113-114,117,119,124-127,1.29 130, 134, 139, 145, 150, 153, 165-166, 169-171, 171,
1 80, 1 87, 194, 203 ,2og-213,215,2\8,220-221,225-229,231 233,239,243,248 251,253-254,257 ,260,266-269,273,27 5,
277 -278,280,287 -288, 293 297, 30 l, 303,306, 308, 3 13, 3 1 5, 3 1 7 .323,334,339,348, 350, 352, 366, 3 68-369,373 37 4,376-

377,379-380,390, 399-400, 4l 2 ,41.7,424,426,429,431,433,435 436' 438-441' 449, 466-'168. HSl, 10, 12' 14, 19 21,28'

4t-42,44,55,73-74,7678,80,82,84,87,93-98,101-105,108,118,121,128,130-131,133,135,137,139141,146'148'
163,186-189,195,199,204,210.HS2,10,12,1415,44,49,60,68,73,84,87,99101,105-106,115,1'20-122,126't3t'
139,152,156,169,r77,179,182,\94,207,210,212,216,228,230,232,234,256,259-260,266'276. HS3,21,29'41,43'
53,58-59,62,68,80, 109, 111, 122-123,167,181, 198,206,208,213,234,240,243,249,251,258,270. IDS,3,5-6,8 13,
\6,20,23,25-26,30,34-35,41,49,54,63-64,68-69,84,95-96,101,111-120,130,136-137,r42' 145-146,149154'157'
159-167, r69 t70,t73,176,184-186, 189, 191, 194,201,203, 216-218,225,235. MC, 13'1,6'25' 32-33,35,37,4t,43 48,
51.54 56.58,60,62 66,68,70 71,73,77,79,82,85-91,99, 101-103, 108, 117, 125, 127,135,139' 143, 149, 151, 157'163'
169-17t,173-179,183 I85,193,198,203,208,214,217,220221.,223,229-234,246,251255,259-26t,263265,274,281'
282,284,287 288,292,297, 308-309, 3 1 1, 3 I 3-3 14, 3 16-3 I 9 ,321,323-330,335,337 -338,342,346,352,3s6 364, 366-369,
372, 37 4 378,380, 382 383, 385-387, 389-390, 392-398. MMPE, 22, 44, 56. MMPS, 22, 44, 56, 87 ,92, 103. NC, VII-XI,
xtv.3 4,7, |,22,27-31.35,38,42,45-49,51,53-56,60-63,66-68,70'73,75,78,80-82,84-85,88-89,95' 97, 101, 107, I 13,

115, 117, 121-122,1.25-127,138'139, 148, 149,167,170 171,174-t75,191,200-202. oD, 13-14, 16, l8-19,21,35,39-40,

64-67,74,80. PP,4- 6,10, \2,t4,16,20,29,51'51,75, 77,79'81,93,96,98,99, 103, 104, 107, 109, ll3,l24'r27'l'28'133,
134-135, 136-139, 144,147,150,158-159, 165, 17l-179,181.,182-183, 185 189, 194 195,211,214,230,233,235,238'241,
245-247 ,250-252, 255 258, 262,265, 268, 270, 275, 278,287-288, 301, 307 , 315,336. RR, I 8, 78, 83, 136' r42, 147 164'
'
179,t94,200,204. sP, l0 11,23,27-29,31-34,38 39,42,45,53,76,102,128'129'132-133' 141, 143, 145, 148, 150, 157-

158, 163, 170, 173, 176, 187-189, lg2-t9s,203-204,206,208,212,218,221-222,225,227-228,233,242,252 255,258,260,


276,301-301, l0ó, Jl0-313, ll5.

r::. SADE, Donatien-Alphonse'François Marquês de (1740-'1814)

"Para mim, Sade é o sintoma de um curioso movimento que se produziu no seio de


nossa cultura no momento em que um pensamento que está dominado fundamentalmente
pela representação, pelo cálculo, pela ordem, pela classificação cede o lugar, no momento da
Revolução Francesa, a um elemento que até então jamais havia sido pensado desta maneira,
isto, ao desejo, à voluptuosidade..." (DE2, 375). Desde o momento em que Sade tenta fazer
entrar nas combinações da representação a força do desejo, foi obrigado a retirar do sujeito
sua posição (D82,376). * Sade é contemporâneo da passagem da sanguinidade
privilegiada
à sexualidade (ver: Sexualidade);porém,à diferença dos eugenistas, Sade refere a análise do
sexo aos velhos prestígios do sangue. O sexo, em Sade, não possui nenhuma norma intrínseca
provenha de sua natureza, mas está submetido a um poder ilimitado que só conhece,
qr-re

como o poder do Antigo Regime, o direito ilimitado à monstruosidade onipotente (HS1'


*
195- 196). Nos personagens de Sade, encontramos dois tipos de monstro: a monstruosidade do
homem potente e a monstruosidade do homem do povo; mas em ambos os casos trata-se de uma
monstruosidade ligada a desvio do poder. O abuso do poder um operador de libertinagem. O
é

monstro de Sade não é simplesmente uma natureza intensificada, mas o monstro em que o poder
coloca a natureza contra si mesma. 'A autodestruição da nalr$eza é um tema fundamental em

SADE, Donatien-Alphonse-François Marquês de 395


*
Sade [...]" (AN, 93-94). O erotismo de Sade é um erotismo discipiinar. Sade e um "sargento
do sexo'l Segundo Foucault, é necessário abandonar o erotismo cle Sade, é necessário inventar
corn o corpo um erotismo não disciplinar (D82,821-822). * "Sade passa em revista todas as
possibilidades, todas as dimensÕes da atividade sexual e as analisa, muito escrupulosamente,
elemento por elemento. É um quebra-cabeças de todas as possibilidades sexuais, sem que
as pessoas, elas mesmas, sejamoutra coisa que os elementos nestas combinações e nestes
cálculos. Não somente Sade não existe, como homem empírico; tampouco há verdadeiros
personagens, nem nenhum desdobramento do autor na obra de Sade. Os personagens estão
encerrados dentro de uma espécie de necessidade co-extensiva à descrição exaustiva de todas
as possibilidades sexuais. Aqui, o homem não participa. O que se desdobra e se expressa por
si mesmo é a linguagem e a sexualidade, uma linguagem sem ninguém que a fale, uma sexua-
*
lidade anônima sem um sujeito que goze dela' (D81, 661). Ainda que Sade pertençâ por
suas origens ao século XVIII, à época clássica, desde o momento em que sua obra foi redigida
na prisão, ele é o "fundador da literatura moderna" (D82, 109). A obra de Sade foi possível,
com efeito, a partir de tudo o que nossa cultura moderna exclui: a anomalia sexual, a mons-
*
truosidade sexual. Ver também: Literatura. O surgimento do sadismo se situa no momento
em que a desrazão, encerrada depois de mais de um século e reduzida ao silêncio, reaparece
não como figura do mnndo nem como imagem, mas como discurso e desejo (HF, 453). Ver:
Loycura. *'A grande tentativa de Sade, com tudo o que ela pode ter de patético, reside no
fato de que trata de introduzir a desordern do clesejo em url munclo dominado pela ordem e
pela classificação. É isto o que significa exatamente o que denomina'libertinageml O libertino
éo homem dotado de um desejo sufrcientemente forte e de um espírito suÍrcientemente Íiio
para conseguir fazer entrar todas as potencialidades de seu desejo em uma combinatória que
esgota absoiutamente todas elas" (DE?, 37 5). Y er : Lib er ti n age m.
Donatien Alphonse François de Sade [167]: AN,69,93 94.D81,225,233 236.240 241,248,255-257.259,
278 279,298,331, -518, s21.522,525,543,615,660-661,794.D82,25,80, 105, 107, 109, 113, 115,186,192,375-377,4\3,
8r8-822. DE3, 102,243,339,34t,3s0, 591. HF, 47, tt6,137,143,147,181, t94,202,436,445,4s2-453,472,485,501 -502,

536, 657 - 660. HSt, 30-32, 1 95- 196, r 98. MC, 1 34, 222-255, 290, 3 39.

ir: SAÚDE, SALVAçÃO (Sa/ut, Sanre)

Na cultura do cuidado de si mesmo, a categoria de salvação desempenha um papel de pri-


meira ordem: salvar-se a si mesmo, alcançar a própria salvação é o que as práticas de si mesmo
perseguem. Essa exigência de salvação se articula segundo a dialética todos/poucos, ou seja, é
uma exigência para todo homem, mas que apenas alguns podem efetivamente realizar (HS,
I l6- 118). "O objetivo final da vida para todo homen.r, forma rara de existência para alguns, e
só para alguns; eis aqui, se vocês quiserem, a forma vazia desta grande categoria transistórica
que é a categoria de salvação. Como vocês veem, ela aparece dentro da cultura antiga, segura-
mente como um eco, em correlação ou ligada aos movimentos religiosos; um nexo que seria
necessário definir melhor. Mas é necessário dizer também que ela aparece em certa medida
por si mesma, para ela mesma, que ela não é simplesmente um fenômeno ou um aspecto do
pensamento ou da experiência religiosa. É necessário, agora, ver que conteúdo a cultura, a

396 sAÚDE, sALVAçÃo


filosofia, o pensamento antigos vão dar a esta forma yazia da salvação" (HS, 123). O termo
"salvação" é um termo tradicional, encontra-se em Platão, ainda que nele não pareça ter um
sentido técnico. Ao contrário, nos séculos I e II de nossa era, adquire maior extensão e estru-
tura interna particular. Para nós, sob a influência do cristianismo, a salvação se inscreve em
um sistema binário (situa-se entre a vida e a morte, entre a morte e a imortalidade, entre este
mundo e o outro); a salvação nos faz passar de um ao outro (da vida à morte, da mortalidade
à imortalidade, deste mundo ao outro; mas também do mal ao bem, da impureza à pureza).
Para nós, além disso, a salvação está ligada à dramaticidade de um acontecimento que se situa
na nossa história ou numa meta-história (a transgressão, a falta original, a queda, a conversão,
a encarnação de Cristo). Por outro lado, a salvação, para nós, é uma operação que o sujeito
deve realizar sobre si mesmo, mas que não pode levar a cabo sozinho, necessita da ajuda
de outro. Estes três elementos, então, estruturam nossa categoria de salvação: binaridade,
dramaticidade de um acontecimento, operação dupla (de si mesmo e de outro)' Para nós, a
categoria de salvação é uma categoria primariamente religiosa. Mas, na cultura do cuidado
de si, a categoria de salvação funciona como categoria filosófica. Em grego, o verbo sózein e o
substantivo so teríaposstemvários sentidos: livrar-se de um perigo (de um naufrágio, de uma
enfermidade), proteger (para os pitagóricos, por exemplo, o corpo e uÍn cinturão, peribolós,
que protege, sózetai, a alma), conservar (a honra, o pudor), salvar-se em um sentido jurídico
(de uma acusação), subsistir, fazer o bem. Em latim, a expressão salus augusta faz referência a
Augusto como princípio do bem público. No contexto dessas múltiplas significações, o sentido
do termo "salvação'não pode reduzir-se à dramaticidade de um acontecimento que permite
passar da mortalidade à imortalidade ou do mal ao bem. Nessa cultura do cuidado de si mes-
mo, a categoria de salvação é em ampla medida positiva. Assim, por exemplo, a alma, como
uma cidade, salva-se se possui as defesas suficientes e adequadas (HS, 177). A finalidade da
salvação é não ter necessidade a não ser de si mesmo, ou seja, a ataraxia e a autarquia' Mas
isso não significa que a salvação de si mesmo esteja desconectada da salvação dos outros.
Segundo a análise de Foucault, assistimos na época helenista a uma inversão das relações
que em Platão se estabelecia entre o cuidado de si e o cuidado dos outros. Com efeito, para
Platão, a salvação da cidade incluía, como consequência, a salvação do indivíduo. Na época
helenística, contudo, a salvaçáo dos outros é uma consequência suplementar à salvação de si
mesmo. A esse respeito, Foucault se refere à concepção epicúrea da amizade e à concepçâo do
* categoria
homem como ser comunitário no estoicismo (HS, 184-190). Sobre alaicizaçao da
de salvação na Modernidade, ver: Religiao'
Salut [240]:AN,7l, 170, 183, I85, DE|'92,138,223'30:l,,329,533,579' 689,700,756.DF2,90,282,564,638,
823.DE3, 43,257,376,511,519,526,548 549,561-563,636, 645,661,719-720.Dr]4' 138, 145, 215 216'228-230.291'
667-668,670-671'673',
40g-4r0,557,629,712,717,788,804,81l. HF, 18 19,51,82-83,86, 107, 121, 460'474,596,618,
HS,26,104,116117,123,163,169,174-179,184185,188,198,215,239-240,245,297,299,304,338'346'373-374'398'
419,427-428,466. HSI,83,86, 193. HS2,35, 140' Hs3,56, 122,128,215.MMPE,29,77,MMPS,29.
NC,33,65' 68-70,

7 6, 201. PP, 11, 1,2, 45, 69, 260. RR, I 03, 1 6 1. SP, 45, \64' 209.

santé [712]: AN, 43, 72, 117 , 152, 1 70, I 80, 183, 221, 232, 235, 244-246, 27 1,295, 309-310. AS, 69, 72' 2l'3-214.
DEr, 141, 153, 183,270, 57g,5g0,604,688-690,757.D82,174,178, 194-195, 278,336,386,388,426,434,442'445'532'
754-755,760,803, 805, 817, 825-826. DE3, 13-25, 27,40-43,45,49,51 57, 88-89, 153,192-193,208, 210, 212,2t4,216'
2r8,220,222,223, 225, 227 , 250, 253. 259,27 4,284 285,288, 328, 346 347 , 358, 36t, 366, 37 3, 376, 411, 512' 55 1, 5tt6,
5g4,652,677 ,722,725 727 ,72g,731-739,7 41,802,807, 8I 8-8 19, 824-825. DE4, 38, 1 55- 1 58, 193, 203, 223' 226,230,343,

369-370,375-379,381,389 391,397,417,427,429,465,471,480,515,s21,548,554,577,614-616,62r,655,6s9,673'78t,

snúor, snlvnçÃo (5a/ur, Santé) 397


791,794,815,817,821,823-825.HF,22,84,119,120,123,153,163-164,232,249,264,280,291,302,318,344,352,359,
369,376-378,380, 382 383, 386, 394, 396,399,409, 411, 416-4t7,422,447,456,163,465,470, 518, 53s, 548_549, 557,
583,588,594,597,599,613,643,686.HS,23,100,102,104,117-118,126,153ts4,224,110.HS1,11,36,61,73,147148,
162-167,183-184,187,189,191,193-195,197.HS2,22,30,39,85,111-112,114,117 120,t22_123,t26,129,134_135,142,
145 146, 1s4, 161, 169, 170, 195,200,251,268,278. HS3,20,27.40,60,63,66,70,73,1.21. 123,125_126,129,13,1, 139,
145, 149, t53-154, 167 168,27t-272.IDS, 167. MC, 72. MMPE, 2,56,72. MMPS, 2, 56, 72. NC, 12, 15,25,31_35, 37,
41,43,45,50,57,65-67,69-82, 89, 91, 137, 158-159, 188, 201, 206-210. pp, 5,1.9,32,34, 60, 95, 102, 1 11, I 13_1 16, 120,
122,124-125,129,159,200,226,248,262263,294,296,315. Sp,21,1s4,175,186,208,221,252.284.

i:Ê SEXUALIDADE (Sexualite)

"Não há que imaginar uma instância autônoma do sexo que produziria secundariamente
os efeitosmúltiplos da sexualidade ao longo de sua superfície de contato com o poder. O sexo
é, pelo contrário, o elemento mais especulativo, o mais ideal, o mais interior em um disposi-
tivo de sexualidade que o poder organiza em suas capturas dos corpos, sua materialidade, suas
forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres" (HS1, 205). O dispositivo de sexuali-
dade. A parte IV de La volonté de sayoir está dedicada ao que Foucault denomina o dispo-
sitivo de sexualidade (HSl, 99-173). Essa parte situa-se depois daquela dedicada àhipótese
repressiva e à scientia sexualis (ver os verbetes correspondentes). Nelas se mostra que a
história da sexualidade nas sociedades modernas ocidentais, a partir dos séculos XVII e XVIII,
não é a história de uma repressão contínua, mas, antes, da incitação constante e crescente a
falar do sexo, a verter nossa sexualidade no discurso. "Uma certa inclinação nos conduziu a
colocar para o sexo a questão do que nós somos. E não tanto ao sexo-natureza (elemento do
sistema vivente, objeto de uma biologia), mas ao sexo-história ou sexo-significação, ao sexo-
discurso. Situamo-nos a nós mesmos sob o signo do sexo, mas de uma Lógica do sexo, mais
que de wa Física" (HSl, 102). A pergunta que Foucault se coloca é: por que esta caça à
verdade do sexo, à verdade no sexo? Qual é a história desta vontade de verdade? (HSl, r04-
105). * A análise da hipótese repressiva implicava uma crítica geral à concepção do poder em
termos de repressão (ver: Poder, Repressao). Foucault deve fazer frerúe,agora, a uma objeção
fundamental. Ainda quando se deixe de lado o conceito de repressão, isso não implica neces-
sariamente o abandono da concepção jurídica do poder, isto é, a conceitualização do poder
em termos de lei. Mais ainda, pareceria que a consequência fundamental de um poder enten-
dido em termos jurídicos permanece: não se pode escapar do poder, como não se pode esca-
par da lei (HSl, 108). Por isso, para levar a cabo a história da vontade de verdade acerca do
sexo, é necessário precisar o que se entenderá por poder. Neste sentido, Foucault não se propõe
uma teoria do poder, mas uma analítica do poder que tem como finalidade desprender-se da
concepção jurídico-discursiva, suposta tanto naquelas análises que consideram que o poder
é repressão do desejo como naqueles para os quais a lei é constitutiva do desejo. Cinco ele-
mentos principais definem esse suposto comum: 1) A relaçao negativa. o poder não pode
fazer com o sexo nenhuma outra coisa a não ser lhe dizer "nãci'.2) A instância da regra. O
poder essencialmente dita ao sexo sua lei, segundo o regime binário do lícito e do ilícito, o
permitidoe o proibido. 3) O ciclo da proibição:não se aproximar, não tocar, não consumir, náo

experimentar prazer. O objetivo do poder é que o sexo renuncie a si mesmo; seu instrumento é

398 SExUALtDADE (sexua/ire)


a ameaça de um castigo.4) A logica da censura'. afirmar que algo não está permitido, impe-
dir que se fale dele, negar que exista. 5) A unidade do dispositivo. O poder sobre o sexo se
exerce da mesma maneira em todos os níveis (HSl, 110- 113). Atazao, segundo Foucault, pela
qual se aceita facilmente essa concepçãoé que o poder só é tolerável à condição de que oculte

uma parte importante dele mesmo. O segredo é parte de seu funcionamento. "O poder, como

puro limite traçado à liberdade [como lei], pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral
de sua aceitabilidade" (HSl, 114). É necessário deixar de lado esta concepção jurídica do
poder, que oculta seu verdadeiro funcionamento, para escrever a história da formação do
dispositivo de sexualidade. É necessário, em outros termos, "pensar, ao mesmo tempo, o sexo
*
sem a lei e o poder sem o rei" (HSl, 120). "Por podeç me parece que é necessário entender,
antes de tudo, a multiplicidade das relações de força que sáo imanentes ao domínio onde elas
se exercem e são constitutivas de sua organização; o jogo que através das lutas e dos enfren-
tamentos incessantes as transforma, as reforça, as inverte; os apoios que estas relações de
força encontram umas nas outras, de maneira que formam uma cadeia ou Sistema, ou, ao
contrário, os deslocamentos, as contradições que as isolam umas das outras; Íinalmente, as
estratégias nas quais elas entram em vigor, e cujo projeto geral ou cristalização institucional
toma corpo nos aparatos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais" (HSf , 121-
122). Como vemos, em La yolonté de savoir, Foucault se move no marco do que denomina
em outros textos a hipótese Nietzsche, isto é, o poder concebido como luta, enfrentamento,
relações de força. Também, como em "Il faut défendre la société ", pergunta-se se não haveria
que inverter a fórmula de Clausewitz e dizer que a política é a continuação da guerra por
outros meios. No verbete Poder,mostramos que Foucault, finalmente, acabará concebendo o
poder em termos primariamente de governo, e não de luta ou enfrentamento; sem que a ca-
tegoria de governo, por suposto, exclua o enfrentamento e as lutas. Mas, em La volonté de
savoir, em todo caso, Foucault situa-se ainda dentro da hipótese Nietzsche. Pois bem, para
estudar a relação entre o poder e a sexualidade ou, melhor, a sexualidade como problema
político, n6sso autor enumera um conjunto de regras metodológicas que valem para a análise
o poder não é uma
ào pod.. em geral e das que também já nos ocupamos no verbete Poder'.
mas algo que se exerce; as relaçÕes de poder não são transcendentes, mas imanentes
a
coisa,
as relações
outros tipos áe relaçao (econômicas, cognitivas, sexuais); o poder vem de baixo,
poder são intencionais e não
de poder se formam a partir da base da sociedade; as relações de
subjetivas (elas são inteligíveis e saturadas pelo cálculo, mas náo são o resultado da decisão
de um sujeito individual); onde há poder, há resistência (HSl, 123-129). A partir daqui,
Foucault explicita quatro regras metodológicas específicas para analisar a relação poder/se-
xualidade: l) Regra cle imanência. A sexualidade se constituiu como um domínio de conhe-
cimento com base nas relaçÕes de poder que a instituíram como um objeto possível de conhe-
cimento. 2) Regras das variações contínuas. Não se trata de buscar quem tem o poder e quem
está privado dele, ou quem tem o direito de conhecê-lo; mas as modificaçoes que as relações
de poder implicam em si mesmas. Por exemplo, em um primeiro momento, a sexualidade
infantil foi problematizadaapartir das relações entre o médico e os pais; posteriormente, a
partir da relação entre o psiquiatra e a criança foi problematizada a sexualidade dos adultos.
3) Regra do duplo condicionamenfo. Nenhum centro locai de relações de poder pode fun-
cionar sem inscrever-se em uma estratégia global, e nenhuma estratégia global, por sua vez,

SExUAtIDADE (sexualité\ 3 99
pode produzir seus efeitos sem o apoio de relações precisas. Entre os níveis microscópico e
macroscópico, não há nem descontinuidade nem homogeneidade, mas um duplo condicio-
namento. 4) Regra da polivalência tática dos discursos. Os discursos sobre o sexo não são
a mera projeção dos mecanismos de poder. Saber e poder se articulam mutuamente. Por isso,

a função tática do discurso não é nem uniforme nem estável. Entre ambos - o discurso e o
poder - se instaura um jogo complexo. Os discursos podem ser instrumentos do poder, efei-
tos do poder, obstáculos, pontos de resistência (HSf , 129-135). "Em suma, trata-se de
orientar-se para uma concepção do poder que substitua o privilégio da lei pelo ponto de vista
objetivo; o privilégio da proibição pelo ponto de vista da eficácia tática; o privilégio da sobe-
rania pela análise de um campo múltiplo e móvel das relações de força onde se produzem
efeitos globais de dominação, mas nunca totalmente estáveis. O modo estratégico, mais que
o modo do direito" (HSl, 135). * Por isso, não há que descrever a sexualidade como uma
força monstruosa e indócil; mas como um ponto de passagem particularmente denso para as
relações de poder, entre homens e mulheres, jovens e anciãos, pais e filhos, educadores e
alunos, os administradores e a população. Segundo Foucault, a partir do século XVIII, desen-
volveram-se quatro grandes dispositivos de saber e poder:l) A histerizaçao do corpo da
mulher: um triplo processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado como integralmente
saturado de sexualidade foi integrado ao campo das práticas médicas e, finalmente, estabele-
ceu-se sua comunicação orgânica com o corpo social, o espaço familiar e a vida dos filhos. 2)
A pedagogizaçao do sexo das crianças: todas ou quase todas as crianças se abandonam a
práticas sexuais que implicam perigos morais e físicos para o indivíduo e a população. Os pais,

as famílias, os educadores e os médicos devem, portanto, encarregar-se dessas atividades


potencialmente perigosas. 3) A socializaçao das condutas procriadoras: socialização eco-
nômica para incitar ou frear a fecundidade dos casais, socialização política da responsabili-
dade dos casais, socialização médica do controle dos nascimentos. 4) Á psiquiatrização dos
prazeres perversos'. o instinto sexual foi isolado como um instinto biológico e psíquico autô-
nomo, as suas formas anômalas foram clinicamente analisadas, as condutas foram normali-
zadas e patologizadas (HSl, 137-139). Em cada uma dessas estratégias, não se trata de lutar
contra a sexualidade ou de ocultá-la, mas de produzi-la. "Não há que conceber a esta [à sexu-
alidade] como uma espécie de dado da natureza que o poder trataria de submeter ou como
um domínio que o saber tentaria desvelar pouco a pouco. Ela é o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico: não uma realidade de abaixo sobre a qual se exerceriam difíceis tomadas
de possessão, mas uma grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a inten-
sificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o fortalecimen-
to dos controles e das resistências se encadeiam uns com outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber e de poder" (HSl, 139). * A cronologia da formação do dispositivo de
sexualidade coloca duas questões: a cronologia das técnicas de saber-poder e a cronologia de
sua difusão. Quanto àprimeira, há que buscar o ponto de formação nas práticas penitenciais
do cristianismo medieval e nos métodos do ascetismo que se desenvolveram com particular
intensidade a partir do século XIV (HSl, 153). (Nos seguintes volumes da história da sexua-
lidade, I)usage des plaisirs Le souci de soi,Folcault estenderá esta cronologia até alcançar
e
a Antiguidade clássica e a irrupção do cristianismo no Ocidente.) No século XVIII, nasce uma

nova tecnologia do sexo, independente da temática do pecado e da instituição eclesiástica. Ela se

400 SExUALIDADE (Sexua/ire)


articulou em torno a três eixos: a pedagogia, a medicina ea demografia. A partir dessa muta-
ção, outras modificações foram possíveis, especialmente duas: a formação da teoria da dege-
neração e da psicanálise (ver os verbetes respectivos) (HSl, 154-155). Quanto à cronologia
da difusão dessas técnicas da sexualidade, as técnicas mais rigorosas (como a direção espiri-
tual e a prática minuciosa do exame de consciência) se aplicaram, em primeiro lugar, às
classes economicamente mais privilegiadas. As classes populares, por sua vez, durante Iongo
tempo permaneceram à margem do dispositivo de sexualidade. Como vemos, a cronologia da
formação das técnicas e a de sua difusão torna duvidoso o 'ticlo repressivo'l que supunha o
aparecimento dos mecanismos de repressão a partir do século XVII e sua decomposição no
século XX (HSf , 152, 16l-162). Dispositivo de aliança e dispositivo de sexualidade.
Em todas as sociedades, existe tm dispositivo de aliança que determina os sistemas matri-
moniais, o desenvolvimento da paternidade, a transmissão do nome e dos bens. As sociedades
ocidentais e modernas inventaram, a partir do século XVIII, o dispositivo de sexualidade.
Ambos os dispositivos se articulam sobre o casal, mas de maneiras diferentes. Foucault assi-
l) O dispositivo de aliança se estrutura em torno de um
nala quatro oposições fundamentais:
sistemaderegrasquedefinemopermitidoeoproibido,olícitoeoilícito; odispositivode
sexualidade, por sua vez, funciona através de técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de
poder. 2) O dispositivo de aliança tem como um de seus objetivos principais reproduzir o jogo
de relações e manter a lei que as rege; o dispositivo de sexualidade estende incessantemente
seu domínio e engendra novas formas de controle. 3) O dispositivo de aliança gira em torno
ao nexo entre os membros do casal que possuem um estatuto deflnido; o dispositivo de sexu-
alidade, em torno às sensações do corpo, à qualidade dos prazeres, à natureza das impressões.
4) O dispositivo de aliança está fortemente articulado na economia (na transmissão e circu-
lação dos bens); o dispositivo de sexualidade também está ligado à economia, mas através do
corpo (HSl, 140-141). Em resumo, o fundamental, no dispositivo de aliança, é a reprodução;
no dispositivo de sexualidade, por sua yez, é a penetração e o controle do corpo individual e
social. * Apesar dessas diferenças e oposições, seria incorreto sustentar que, historicamente,
o dispositivo de sexualidade tenha substituído o dispositivo de aliança. Antes, ambos se su-
perpuseram, através da família. 'A família é o instrumento de intercâmbio da sexualidade e
da aliança. Ela transporta a lei e a dimensão do jurídico no dispositivo de sexualidade, e ela
transporta a economia do prazer e a intensidade das sensaçoes no regime da aliança' (HS1,
143). Disciplina, biopoder. A importância política do sexo provém do fato de que ele é a
dobradiça entre os mecanismos das disciplinas e as técnicas do biopoder, isto é, os dois eixos
da tecnologia política da vida (HS1, 191) (ver: Biopoder). Sexo e sexualidade. A história
do dispositivo de sexualidade é a história de um dispositivo político que se articula diretamen-
te sobre o corpo, isto é, sobre o que este tem de mais material e mais vivente: funções e pro-
cessos fisiológicos, sensações, prazeres, etc. Convém insistir no advérbio "diretamente"; com
efeito, a história da sexualidade não é uma história de como o corpo foi percebido ou pensado,
não é uma história das mentalidades, mas do corpo em sua materialidade. Pois bem, pode surgir
aqui a seguinte pergunta: esta materialidade (elementos Írsiológicos, sensações, prazeres) não é
o sexo? Foucault coloca a questão explicitamente nestes termos: "O sexo é, na realidade, o pon-
to de ancoragem que suporta as manifestações da'sexualidade'ou, antes, uma ideia complexa,
que se formou historicamente dentro do dispositivo de sexualidade?" (HSl, 201). A resposta

SEXUALIDADE (Sexualite) 40 I
de Foucault é que se pode mostrar como a ideia do sexo (de que exista algo mais do que os
corpos, os órgãos, as funções, os sistemas anátomo-fisiológicos, as sensações, os prazeres)
se formou através das estratégias de poder que constituem o dispositivo de sexualidade.
Assim, no processo de histerização da mulher, o sexo foi definido de três maneiras: como
algo comum ao homem e à mulher, como aquilo que pertence por excelência ao homem,
ou como aquilo que constitui o corpo da mulher. Na sexualização da infância, o sexo está
anatomicamente presente, mas fisiologicamente ausente; presente em sua atividade, mas
reprodutivamente ineficiente; presente em suas manifestações, mas ausente em seus efeitos.
Na psiquiatrizaçáo das perversões, o sexo foi referido às funções biológicas e a um aparato
anátomo-fisiológico que lhe confere sentido e finalidade, mas também é referido a um
instinto que torna possível o aparecimento das condutas perversas. Na socialização das
condutas procriadoras, o sexo é descrito como aprisionado entre a lei da realidade e a eco-
nomia do prazer (HSl, 201-203). "Vê-se claramente: é o dispositivo de sexualidade, em
* A ideia de sexo
suas diferentes estratégias, que instala esta ideia'do sexo"'(HS1,203).
desempenhou três funçÕes no dispositivo de sexualidade: permitiu agrupar em uma uni-
dade elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; essa unida-
de fictícia funcionou como princípio causal, sentido presente por todas as partes, segredo
que há que descobrir. Em segundo lugar, a ideia de sexo serviu para marcar a superfície de
contato entre o saber da sexualidade e as ciências biológicas; desse modo, o saber da sexu-
alidade recebeu, por vizinhança, a garantia de um saber biológico e fisiológico como prin-
cípio para estabelecer a sexualidade normal. Em terceiro lugar, a ideia de sexo permitiu
inverter a representação das relaçÕes do poder com a sexualidade. Com efeito, pensou-se
essa relação em termos de repressão, de lei, de proibição; deste modo, sua dinâmica produ-
tiva ficou mascarada. Acrescenta, finalmente, uma quarta função desempenhada pela ideia
do sexo; o sexo foi o ponto imaginário e fixo pelo qual há que se passar para alcançar a
própria inteligibilidade (HSf , 204-205). * Desde séculos, reina uma política do corpo. A
partir dos seculos XVII e XVIII, o corpo foi utilizado, quadriculado, encerrado, restringido
como força de trabalho. Essa apropriação política do corpo busca extrair dele o máximo das
forças utilizáveis para o trabalho, o maior tempo utilizável para a produção. Atualmente, a
questão consiste em saber se se pode recuperar o próprio corpo para outra cosa que não
seja o trabalho. "É esta luta pelo corpo a que faz com que a sexualidade seja um problema
político. É incompreensível, nestas condições, que a sexualidade chamada normal, quer
dizer, reprodutora da força de trabalho, com tudo o que ela supõe de rechaço das outras
sexualidades e também de sujeição da mulher, pretenda mostrar-se como normativa. E é
também normal que, no movimento po1ítico que tende à recuperação do corpo, se encontrem
os movimentos pela liberação da mulhet assim como pela homossexualidade masculina ou
feminina" (D82,537). * "Mas eu nunca afirmei que não tenha havido repressão da sexua-
lidade. Eu apenas me perguntei se, para decifrar as relações entre o poder, o saber e o sexo,
o conjunto da análise estava obrigado a orientar-se segundo o conceito de repressão, ou se
não se podia compreender melhor inserindo interdições, proibições, prescrições e dissimu-
lações em uma estratégia mais complexa e mais global que não estivesse ordenada à repres-
sâo lrefoulement) como objetivo principal e fundamental" (D83, 137). Histeria. Sobre a
apariçâo do corpo sexual com base nas experiências de Charcot, ver Psiquiatria.

402 SExUALtDADE (Sexua/lte)


Sexualité [1 314]: AN, 12, 39, 40, 45-46, 48, 55 57,63-66,15 1, 1 55- I 58, 17 l-173, 179 1 80, I 89, 202, 205, 207,210,-21 |,
218-220,222,226-227 ,233-234,236,238-240,242-243,249-251,253,255 263,265-266,27 1,278-279,284,298,309-3 I l. AS,
22,24,57,252.DEt,70,97,154,233-236,248 249,616,655,657,661-662,700. DE2, 63 66, 75, 101, 105- 106, I 16, 1 18, 122,

r29, 131, 164, 181. 184, 193,232,376 379,428,498,517,536-537,568, 617,639,643,660,724,755-756,771,777-779,781,


813-815,825828.DE3,23,36,49,51,76,8991,105-107,136-137,147,119-151,t61,167,173,181 184,193,228231,233-
235,256 263,269,298, 302-303, 3 12 313,315-323,327 -328, 35 1 -355, 357 358, 378, 380-382, 396-397, 399, 405-406, 4 l0-4 I 1,
422,424-425,442,456.473,499,522,524-525,527 ,552 560,562,564-567 ,569-570, 584, 593-s94, 602 603, 660, 673 67 5,735,
763,767-769,772-773,775.D84,27,31,33-34,46,67.81, 116, 135,136, 147, 163, 168, 172,174,176,183, 189, 194,198,200,
21.5,223, 225, 278,280-28 1, 286, 288, 289, 293, 295, 308, 3 12, 3 14, 316.320-321,323,334,337, 35 1, 383 385, 390, 393-394,
443-444,456,487,530,533,536,539-541,560,578-579,583-584,587,594,596 597,606,608-610,618-619,631,633-636,655,
657 -665,667 -675,701,705,7 t0-711,730-732,735 736,743,7 44,7 48-7 49,7 57 ,761,776,i78,783 784,805. HF, I I 5- I I 6, 123,

1.29, t43.IJS,21,23,97,220,243.H.51, 9- 12, r s, 19, 2 1, 32-33, 38, 39-40,42-45, s0-59,6t 66,72 74, 88-89, 9I -92, 95, 98-99,

119,129-131,136-t37,139-152,154,158-162,164,166-173,185,192-201,203-211.HS2,9-11,38,43-41,47,50-52,56,98,
278. HS3, 49, 230. IDS, 5, 12, r8, 28 31, 36, 213, 224,225.MC,222,224.MMP8,25,37, 44, 48. MMPS, 25, 37,44,48. OD,
It,37,63,69. PP, 116, 124,231,323-336. RR,204. SP, 180,285.

SHAKESPEARE, William (1 564-1616)


=:.;.

A obra de Shakespeare como a de Cervantes são um testemunho, cem anos mais tarde, dos
prestígios da loucura anunciados por Brant e Hyeronimus Bosch (MMPS, 79). Em Shakespeare,
a loucura ocupa um lugar extremo, sem retorno; nada pode conduzi-la à verdade ou à razão
(HF, 59). "Mas, em todas estas peças de teatro, quer se trate de Shakespeare ou do teatro francês
do início do século XVII, este louco, que vê as coisas melhor do que os personagens mais sen-
satos, nunca é escutado; e só quando a peça termina se perceberá retrospectivamente que ele
*
dizia a verdade. O louco é a verdade irresponsável" (DE3, 489). As "tragédias históricas" de
Shakespeare são tragédias do direito e do rei, articuladas em torno ao problema da usurpação,
do assassinato do rei, da coroação de um novo rei. "Creio, então, que a tragédia shakespeariana
é, em um de seus eixos ao menos, uma espécie de cerimônia, de ritual de rememoração dos
problemas do direito público" (IDS, 155). O problema das "tragédias históricas" de Shakespeare
*
é,então, o problema da soberania. A teoria da soberania desempenhou, para Foucault, quatro
funções históricas: teve como referência os mecanismos de poder da monarquia feudal; serviu
como instrumento para aorganizaçâo das grandes monarquias administrativas; serviu como
instrumento de luta tanto para aqueles que pretendiam limitar o poder real como para os que
buscavam fortalecê-io; e como modelo para construir as democracias parlamentares como
alternativas às monarquias absolutas (a partir de Rousseau) (IDS' 31-33)'
Shakespearc 13U: AN, 13,26. DEl, 94-96,169,373,375,406,546'702'797. DE2, 133, 152. D83,354,489. HF,

59,60,681.IDS, 155-156. MMPS,79. PP, 37. RR, 124.

SOB ERAN lA (Souvera i n ete)


=:=.

Foucault opõe e deixa de lado dois sistemas de análise do poder: o poder como repressào
eo poder como soberania. Este último sistema, que encontramos nos filósofos do século XVIII,

soBERANIA (Souveraíneté\ 403


articula-se em torno ao poder concebido como um direito originário que se cede e ao contra-
to como fonte do poder político (IDS, 17). A aula de 14 de janeiro de 1976, de "Il faut défen-
dre la société" (IDS, 21 -36), gira em torno da questão se o conceito de guerra é adequado para
a análise das relações de poder. Nesse contexto, Foucault estabelece as diferenças entre uma
análise do poder em termos de confrontação e de lutas, em termos de guerra, e outro em
termos jurídicos, de direito. Nessa discussão, Foucault vai opor o conceito de soberania (ca-
tegoria jurídica central da filosofia política moderna) ao conceito de dominação (porém não
no sentido marxista de exploração, mas como luta). Para Foucault, a elaboração do pensamen-
to jurídico ocidental, desde a Idade Média, teve sempre como eixo a figura do rei. O direito é,

no Ocidente, direito real. Os direitos legítimos da soberania e sua contrapartida, a obrigação


legal da obediência, serviram para dissolver as formas de dominaçáo (de um exercício do
poder, desde o ponto de vista jurídico, iiegítimo). Foucault propõe inverter a marcha. Para
isso, estabelece cinco precauções metodológicas: 1) Não se ocupar das relações de soberania,
mas das relações de dominaçao. Não entender estas últimas como um fato massivo, global,
do domínio de um grupo sobre outro, mas em suas formas múltiplas, nas relações recíprocas
entre sujeitos [D5,24-26).Trata-se de estudar o poder em suas extremidades, em suas formas
capilares. Por exemplo, em lugar de se perguntar pelo fundamento do direito de castigar, es-
tudar técricas concretas, históricas e efetivas com que se castiga. A ideia é situar-se desde
as
o ponto de vista dos procedimentos de sujeiçao (assujettissement).2) Estudar o poder em
sua face externa, não no sujeito que o detém ou em suas intenções. A questão não é, como
em Hobbes: como se forma esta alma do corpo político unificado que é soberania, mas como
se constituem os sujeitos, pelos efeitos do poder, a partir da multiplicidade dos corpos, das
forças, das energias. Não é a gênese do soberano o que interessa, mas a constituição dos "su-
jeitos'l 3) O poder funcione em rede: o indivíduo não é simplesmente o que está frente ao
poder, nunca é um alvo inerte. Os indivíduos sempre se encontram na posição de padecer e
exercer o poder. São, em realidade, receptores-emissores (relay). 4) Levar a cabo uma aná-
lise ascendente e nao descendente do poder. Novamente, não se trata de fazer uma dedução
do poder partindo desde cima e desde o seu centro. Antes, o contrário, uma análise ascenden-
te: como tecnologias e mecanismos de poder locais, com a própria história, são colonizados
por mecanismo mais gerais. Foucault discute brevemente aqui o uso que se faz da noção de
"burguesia i Da ideia de 'Uominação da classe burguesa'l pode-se deduzir qualquer coisa. Por
exemplo, o enclausuramento dos loucos, os controles sobre a sexualidade infantil e o contrário
disso. Onde o interesse da burguesia se situa realmente é, antes, no benefício econômico dos
mecanismos de exclusão e controle. Mais que excluir ou controlar, o que importa é a técnica,
o procedimento de exclusão e controle. Trata-se, neste sentido, de uma "micromecânica do
poder'l 5) Não é a ideologia o que se forma na base dos micromecanismos do poder, mas
instrumentos efetivos de acumulação do saber, métodos de observação, registros, procedi-
mento de investigação, de busca, de verificação (IDS, 25-30). * A teoria da soberania desem-
penhou quatro papéis fundamentais na constituição política das sociedades ocidentais: l)
serviu para o estabelecimento do sistema feudal.2) para a constituição das monarquias
administrativas. 3) como instrumento da luta polítíca nos séculos XVI e XVII. 4) para a
formação das monarquias pailamentares (ÍD5,30-31). t No entanto, a partir dos séculos
XVII e XVIII, surgiu uma nova forma de poder, a disciplina. Se, nessa reorganização do poder,

404 SoBERANtA (5ouveraineré)


ateoria da soberania sobreviveu, foi porque permitiu o desenvolvimento das disciplinas como
mecanismos de dominação e permitiu ocultar o exercício efetivo do poder. Contudo, apesar
de a teoria da soberania ter servido para a formação histórica do poder disciplinar, é claro que
se trata de duas formas diferentes de poder e que as podemos opor como se segue. A sobera-
nia é uma forma de poder que se exerce sobre os bens, a terra e seus produtos. Seus objetos
fundamentais são o território e as riquezas. Exerce-se de maneira descontínua (por exemplo,
a arrecadação de impostos). Trata-se, em definitivo, de uma obrigação jurídica. Supõe a
existência de um soberano, o corpo do rei. A disciplina, no entanto, orienta-se para os corpos
e o que eles fazem, seu objetivo é extrair deles tempo e trabalho. Exerce-se de maneira contí-
nua mediante a vigilância. Exige uma reticulação precisa de coerções materiais (IDS, 32-33).
* Em Le pouvoir psychiatrique (PP,48-59), Foucault desenvolve mais extensamente a con-
traposição entre as relações de soberanias e as relaçÕes disciplinares. Nessa contraposição,
concede-se particular importância à relação entre poder corpo. 1 ) Em primeiro lugar, Foucault
e

observa que a relação de soberania é uma relaçõo assimétrica. Nela o soberano se apropria
dos frutos da terra, dos objetos fabricados, das armas, da coragem, do tempo de seus súditos.
Mas também gasta suas riquezas para celebrar, por exemplo, as festas ou os serviços religiosos.
Mas, entre o que é gasto e o que é arrecadado, existe uma dissimetria fundamental. Os gastos
do soberano com os seus súditos são inferiores à riqueza que é deles extraída. O dispositivo
disciplinar, no entanto, não é uma apropriação parcial dos produtos da terra, do tempo dos
súditos, de seus serviços; senão uma ap ropriaçao total e completa. Com relação ao indivíduo,
o dispositivo disciplinar é " [ ...] uma ocupação do seu corpo, da sua vida e do seu tempo (PP,49)'
2) Anterioridade fundadora. Arclaçáo de soberania se funda em algum acontecimento
anterior: o direito divino, a conquista, a vitória. Esse acontecimento fundador e pertencente
ao passado necessita ser reatualizado mediante o relato dessas conquistas ou vitórias, ou du-
rante a celebração das festas ou competições. Nesse sentido, a relação de soberania é intangí-
vel e frágil; pode romper-se, cair em desuso. O que requer do soberano um suplemento de
ameaça, de violência. O dispositivo disciplinar esta orientado para um estado ótimo, para
o resultado.Aqui, não encontramos a referência a um acontecimento passado, ou a um direi-
to originário, mas um dispositivo orientado para o futuro. 3) Nao-isotopia. As relações de
soberania dão lugar a diferenciações, mas não a uma classiÍicação exaustiva e planificada. Elas
se entrelaçam umas com as outras, sem que exista entre elas uma medida comum; nào
encon-
tramos aqui um sistema único. Alem do mais, os elementos de uma relação de soberania não

sáo necessariamente equivalentes aos de outra; pode tratar-se de multiplicidades humanas


(uma família, uma coletividade), da terra, de um caminho, de um instrumento de produção,
etc. lsotopia. Os dispositivos disciplinares tendem à isotopia. Isso significa várias coisas: a)
cada elemento, cada indivíduo tem seu lugar bem determinado, em sua classe, em seu posto,
na hierarquia dos valores e êxitos. b) Os deslocamentos não podem fazer-se por descontinui-
dades (litígio, guerra, favores), mas por um movimento regulado (exame, concurso, antigui-
dade). c) Não há entre os diferentes sistemas conflito ou incompatibilidade. Os diferentes
sistemas articulam-se entre si (a escola, o trabalho, etc.). d) O sistema exaustivo de classifica-
ção produz, além do mais e sobretudo, o inclassificável, o anômico (o desertor, o débil mental,
o delinquente). 4) Sujeito múltiplo. O elemento-sujeito da relação de soberania náo é um
corpo individual ou, segundo outra expressão de Foucault, que só havia aparecido uma única

SOBERANIA lsouveraineté) 40 5
vez aÍe agorar em seus escritos (AN, 142), uma singularidade somática (singularité somati-
que).Nas relações de soberania, a função-sujeito se desloca por cima ou por baixo da singu-
laridade somática. No caso dos súditos, as relações de soberania concernem aos seus corpos
de maneira descontínua (nas cerimônias, por exemplo), através de marcas (por um signo, por
um gesto) do suplício. Mas o corpo marcado, o corpo supliciado é um corpo fragmentado. Não
há coincidência entre o "sujeito" de uma relação de soberania e a singularidade somática.
Nesse sentido, as relações de soberania não levam a cabo uma individualização da base, dos
sujeitos aos quais se aplica, marca os corpos, suplicia-os, mas não os converte em indivíduos.
Eles, com efeito, não têm uma identidade individual; a individualidade alcança o seu maior
grau em relação ao corpo do soberano que deve ser perfeitamente visívei e identificável.
Individualizaçao. Afinalidade dos dispositivos disciplinares é a individualização dos "sujei-
tos'l "[...] o indivíduo nãooutra coisa senão o corpo assujeitado" (PP,47). O mecanismo de
é

disciplina abrocha [épingle]a função-sujeito à singularidade somática (PP, 57). *Duas razões
explicam a vigência da teoria jurídica da soberania. Em primeiro lugar, desempenhou papel
crítico contra a monarquia e contra todos os obstáculos que podiam opor-se ao estabeleci-
mento da sociedade disciplinar. Em segundo lugar, permitiu a formação de um sistema jurí-
dico que oculta a implantação do poder disciplinar. Assistimos a uma democratização da
soberania (um direito público articulado na soberania coletiva), mas carregada de mecanismos
disciplinares. * Foucault atribui à teoria da soberania uma tripla primitividade ou três ciclos:
1) Primitividade ou ciclo do sujeito: propõe-se a mostrar como um sujeito (um indivíduo),
dotado de direitos e de capacidades, converte-se em sujeito de uma relação de poder (sujeito
no sentido político do termo). 2) Primitividade ou ciclo da unidade do poder: propõe-se a
mostrar como uma multiplicidade de poderes, enquanto capacidades, podem adquirir um
caráter político em relação à unidade fundamental do poder. 3) Primitividade ou ciclo da
legitimidade: propõe-se a mostrar como pode constituir-se um poder sobre a base de uma lei
fundamental, sobre uma legitimidade de base. Uma análise em termos de relações de domi-
nação, entretanto: 1) Considera o indivíduo não como algo dado, desde onde partir, mas se
interroga acerca de como as relações efetivas de poder fabricam os indivíduos. 2) Quer mostrar
a multiplicidade das relações de poder em suas diferenças e especificidades, como se apoiam
e remetem umas às outras. 3) Quer trazer à luz os instrumentos técnicos que permitem o
funcionamento das relações de dominação (IDS, 37-40). Em poucas palavras, em lugar de
estudar a gênese do soberano (que foi a finalidade perseguida pela teoria da soberania), a
genealogia se ocupa da fabricação dos sujeitos.
Souveraineté [674]: AN, 12 13,24,79,105, 1 13, 141, 260, 308. AS, 2t -22, 2 4,32,263,272.D81,193,227,237,240,
243,245,248,253,255-257 ,310,330, 333, 488, 5 19, 538 4,7 83.D82,90, 139,
,594,609,621,643,687,700,725,73]1,769,77
151,227,267,376,461,480,547,555,563,579,580-581,585,695,726,749,794,824.D83,10,1241,26,128,146,150 151,
169, 172, 177 -t80,184'189,231,244,247 ,406,423-424.431,433,586,637 ,643-646,649 65 l, 653-655, 695 ,720,7 56,7 58,
781-782.DF4,89, 187,206, 229,408,560,621, 628,667,705,767. HF, 10,39, 70,73,105,194,309,418,453,555,557,
560,607,617,618,658-660.HS,18,83,130,177,t93,198,327,356,358,361 362,368,449.HS1,1r7_119,121122,135,
149,180,182,189,19r,195-198,206,209.HS2,38,92,94,100,189,265.HS3,75,83,85,106,175,273.IDS,14,17,21,
23-26,30-40, s1,60,61,63 64,68-71,73,7s,80-86,88,90-92,95,96, 102, 106, 125, 128, 130, 132, 144,t50,157,174,t79,
207,213-214,220222,226,228.i[íC,40,56,58,62 63,134,242,248,261,276,286,3rt,320,322,347,351_352,388.NC,

O autor laz referência a 2004. data da edição em castelhano de El l.ocaóulcírio de Michel Foucaub. (N.T .),

406 SoBERANtA (Souyeraineté)


30,88,122.oD,53.PP,21,23,25 28,30,33-34,41-42,44-50,53,54-57,65,6668,81-88,101,116'117,124-125,147.RR,
22,29,84, r r5, 12 l, 125, r 27, 196. SP, 52, 84, 90, 112,133, t72, I94, 210, 215, 219,222 223,227,250,289.

:?.: SUBJETIVAçÃO (Subjectivation)

Amorte do homem e o conceito de episteme foram, sem nenhuma dúvida, os dois temas
de Les mots et les choses que maior difusão e repercussão tiveram. Foucault via no apareci-
mento da psicanálise, da etnologia, da formalização da linguagem e da literatura, no sentido
moderno do termo, o Íim da episteme do século XIX, aquela que, despertando do sono dog-
mático, havia caído em outro, profundamente antropológico. Via, por isso, em cada uma
dessas manifestações culturais, o fim da época das ciências humanas. O subtítulo áe Les mots
et les choses é, nesse sentido, particularmente explícito: "Uma arqueologia das ciências hu-
manas'l O tema da morte do homem é uma expressão hiperbólica dessa mutação no campo
do saber (ver: Homem). A isso devemos agregar sua constante polêmica contra o humanismo
(ver o verbete correspondente) e a premissa metodológica de lhrchéologie du savoir, isto e,
desantropologtzar a história introduzindo nela a categoria de descontinuidade. 'A história
contínua é o correlato indispensável da função fundadora do sujeito t...1" (AS,21-22). Não
pode surpreender-nos, então, que seu pensamento tenha sido, frequentemente, qualificado de
antiantropológico. Isso é certo em relação ao homem do humanismo e das ciências humanas,
com a subjetividade cartesiana e da tradição fenomenológica; mas não o é a respeito do sujei-

to em geral. Seja quando se trate da experiência da loucura, do nascimento da clínica, da ar-


queologia das ciências humanas, da história do castigo, das disciplinas ou da sexualidade, a
preocupação geral de Foucault foi a problemática do sujeito. "Não é, pois, o poder, mas o su-
jeito o que constitui o tema geral de minhas investigações" (DE4, 223). * Pois bem, em pri-
meiro lugar, para compreender a evolução da problemática do sujeito na obra de Foucault, há
que ter presente que, antes de tudo, se trata de uma abordagem histórica da questão da sub-
"não é uma
yetividade. Em clara oposição à tradição cartesiana, Foucault sustenta que o sujeito
substância. É uma forma, e esta forma não é, sobretudo nem sempre, idêntica a si mesma"
(D84, 718). O que Foucault entende aqui por "forma'depende, precisamente, de que ela não
é idêntica a si mesma. Com efeito, o problema do sujeito é, para Foucault, o problema da
história da forma-sujeito. "Tomar como fio condutor de todas estas análises [referindo-se a
suas obras] a questão das relações entre o sujeito e a verdade implica determinadas escolhas
de método. E, antes de tudo, um ceticismo sistemático a respeito de todos os universais an-
tropológicos, o que não quer dizer que se os rechace desde o início, em bloco e de uma vez por
todas; mas que não há que admitir nada desta ordem que não seja rigorosamente indispensá-
vel. Tudo o que nos é proposto, em nosso saber, como sendo de validade universal a respeito
da natureza humana ou das categorias que se pode aplicar ao sujeito exige ser verificado e
analisado [. . . ] A primeira regra de método para este gênero de trabalho é, pois, esta: contor-
nar, o mais que se possa, para interrogá-los em sua constituição histórica, os universais an-
tropológicos (e, certamente, também os de um humanismo que faria valer os direitos, os
privilégios e a natureza de um ser humano como verdade imediata e intemporal do sujeito)"
(Df,4,633-634). O que Foucault, segundo suas palavras, sempre "teve na cabeça' é levar a

SUBJETIVAÇÁo (Subjectivation) 407


cabo uma "história do sujeito" ou, antes, do que denomina modos de subjetivaçao (D84,
697).Em segundo lugar, é necessário ter presente que, para expressá-lo de algum modo, essa
história do sujeito mudou de estilo, de objetos e de metodologia, à medida que Foucault se
desloca da questão da episteme para o dispositivo e, finalmente, às práticas de si mesmo (ver:
Dispositivo, Episteme, Filosofia, Prática). Pelas razões que expusemos em cada um desses
verbetes, Foucault é conduzido a uma história das práticas nas quais o sujeito aparece não
como instância de fundação, mas como efeito de uma constituição. Os modos de subjetivação
são, precisamente, as práticas de constituição do sujeito. * Pode-se distinguir dois sentidos da
expressão "modos de subjetivação" na obra de Foucault. Um sentido amplo, que explicamos
um sentido mais restrito, em relação ao conceito foucaultiano de ética, que expli-
a seguir, e
caremos mais adiante. * No primeiro sentido, Foucault fala dos modos de subjetivação como
modos de objetivação do sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma
determinada relação de conhecimento e de poder (DE4, 223). Com efeito, os modos de sub-
jetivação e de objetivação não são independentes uns dos outros; seu desenvolvimento é

mútuo. Se, como Foucault, chamamos "pensamento" ao ato que instaura, segundo diferentes
relações possíveis, um sujeito e um objeto, uma história do pensamento seria a análise das
condições em que se formaram e modificaram as relações entre o sujeito e o objeto para tornar
possível uma forma de saber. Essas condições, para Foucault, não são nem formais nem em-
píricas; elas devem estabelecer, por exemplo, a que deve submeter-se o sujeito, que estatuto
deve ter, que posição deve ocupar para poder ser sujeito legítimo de conhecimento, sob que
condições algo pode converter-se em objeto de conhecimento, como é problematizado, a que
delimitaçôes está submetido. Essas condiçoes estabelecem os jogos de verdade, as regras se-
gundo as quais o que um sujeito pode dizer inscreve-se no campo do verdadeiro e do falso
(D84,631-632). Nessa perspectiva, Foucault concebe retrospectivamente seu trabalho como
uma história dos modos de subjetivação/objetivação do ser humano em nossa cultura. Ex-
pressando-o de outro modo, trata-se de uma história dos jogos de verdade nos quais o sujeito,
enquanto sujeito, pode converter-se em objeto de conhecimento. Nessa história se podem
distinguir três modos de subjetivação/objetivação dos seres humanos. l) Modos de investiga-
ção que pretendem aceder ao estatuto de ciências, por exemplo, objetivação do sujeito falante
na gramática geral ou na linguística, do sujeito produtivo na economia política. Trata-se dos
modos de subjetivação/objetivação analisados por Foucault, especialmente, em les mots et
les choses.2) Modos de objetivação do sujeito que se levam a cabo no que Foucault denomina
práticas que dividem (praticlues divisantes), o sujeito é dividido em si mesmo ou dividido
a respeito dos outros. Por exemplo, a separaçáo entre o sujeito louco ou o enfermo e o sujeito
saudável, o criminoso e o indivíduo bom. Aqui há que situar Histoire de la folie, La nais-
sance de la clinique e Surveiller et punir.3) A maneira em que o ser humano se transforma
em sujeito. Por exemplo, a maneira em que o sujeito se reconhece como sujeito de uma sexua-
lidade. Nesta linha se sittaa Histoire de la sexualité (D84,222-223). * Como expusemos no
verbete Etica, a propósito desse conceito, Foucault distingue quatro elemen tos: a substância
ética, os modos de sujeiçao, as formas de elaboraçao do trabalho ético, a teleologia do
sujeito moral. Esses elementos definem a relação do sujeito consigo mesmo ou, para expres-
sá-lo de outro modo, a maneira como o sujeito se constitui como sujeito moral.'A ação moral
é indissociável destas formas de atividade sobre si mesmo, que não sào menos diferentes de

408 sUBJETtvnçÃo lsubTectivation)


uma moral outra que o sistema dos valores, das regras e das proibições" (HS2, 36). Foucault
a

denomina "modos de subjetivaçáo" a estas "formas de atividade sobre si mesmo". Apesar de


que toda moral sempre comporta um código de comportamentos e que, em algumas formas
morais, o modo de subjetivação adquire quase essencialmente uma forma jurídica (o sujei-
to se submete à lei, cuja infração implica um castigo), em outras, no entanto, o sistema de
regras de comportamento pode ser bastante rudimentar. Nessas formas morais, acentua-se
o elemento dinâmico dos modos de subjetivação: as formas da relação consigo mesmo, as
técnicas e os procedimentos mediante os quais se elabora essa relação, os exercícios pelos
quais o sujeito se constitui como objeto de conhecimento, as práticas que permitem ao
sujeito transformar seu próprio ser (HS2, 37). Na moral penitencial do cristianismo, desde
inícios do século XIII até o início da Reforma, encontramos um exemplo das primeiras; na
moral grega da época clássica, das segundas (ver; Ascese).
Subjectivation [58]: DEa, $, 223, 307 , 419, 422, 426,430, 558-559, 561, 632-633,706,799. HS, 2 1, 60, 121,206,
220, 256, 315-317, 334, 338, 347 -348, 351, 355-356. HS2, 35-37, 39. HS3, 1 17.

2??. SU BJETIVI DADE (Su bj ectivite)

Yer: Subjetivação.
Subjectivité [176]: AS,7 4, 159-160, ].72,201,239,260, 262-264, 270. DEr, 90-9 1, 97-98, 100, 119' 143' 242-244'

262,264,283-284, 372, 375, 432, s21-522, 680, 684,7v.,78r. DE2, 125, 540-541, 669-671, 67 4. DE3, 61, 526' 549 ' 565-
566, 570, 590, 592-593,7 49,793,80 1 -802. DE4, 37 -38, 47 ,75, 10 l, I 69, 172, 17 6, 178, 2t3'214, 227 -228, 232, 437 ' 540,
633,6s8,667 ,706,708,7 U.,7 s0,800. HF, 70, t77 ,40s,6t8,638-640,648,652,658-659. HS, 3-4, 13,20'2t, t2s, 173 180, '
200,240,304-305,346,350,361-362,430,466.1152,10. HS3, 84. MC, 252,257,260-262,313, 365. MMPE,69. MMPS,
69.PP,274. SP,34.

iTE SUJEITO (Suiet)

Yel: Homem, Subj etiv açao.


sujet [2485]:AN,9, 11, 14,17-24,27,29,79,83, 106-109, 115-116, 118, 121, 130-133, 135, 139, 145, 147,164'195,
20g,2t2,227,235,253,255,284-285,288,294,296,308.45,22,24,26-27,39,43,48,52'63'71'74,84'86'93,96,105,
108,117,120,130, I33, 139-140,142,146,148,150,153,160-161,164,183,196,210,213,215,221,237-239,248,250-
251,260-261,264,266 267,270,272. DEI,90,96-100, 103, 105, 116, 131, 146, 163,175-177,179,).82,218,220,225,227,
240-243.245,247 ,249,269-270,275,277,283-284,337 ,348,360,373,37 6,392,394-396,408, 4 14, 4 18, 432, 434-436,466,
478,502-503,505-508,512,515,519-522,534,536-537,547,552,578-579,591,593,599 600,608-609,612,614-615,634,

,660 661,663-664, 671, 67 4, 678,680, 683-684, 687, 693,699 700,706,708-709,7 13 7 14,722,730 731,
638, 653-654, 658
735,75t,768 770,774-776,779,788 789,791,793,798,810-816, 818-820,825, 831, 836-838, 840'841, 846.DF,z, t2-13,
46,50,59, 71,74-75,84-86,88, 114, 116, 118, 154 156,161-162,164-166,170,173'l9l'210,212,214'216 217'226-227'
240 242,249-251,253-263,265 268,27r,285,287 -294,298, 304, 307-308, 313 ,326,369,372-374,376-377,396,424-425,
454,470,478,480-483,491,493-494,499,504,507,521 523,533,536,538,540,542,547,550,552-553,562,582,584 585,

587-588,595,598,601,615,629,631,633,637,639-640,650-652,661,666,674-675,681,684-686,694 697,725,743,756,

764,776-777,809,813-814,817,819,824. DE3, 17,40,47,49,52 53,62,87,89,91,93, 104, 110, r24'127,136'147'148'


151, 155, 166, 185, 195-196, 199,208,222,247,256-257,293,297,300,306-307,309 310,316-318,3s7,359,417,423,430'

SUJETTo (Sujet) 409


442, 447 -448, 453-455, 461, 463, 465, 472, 474, 493, 505, 522, 526,533, 553-554, 555, 560, 564, 584, 586, 590, 592-594,
598,610,614,616,619,652653,657,660,676,765,774,780.D84,31-32,43,48-50,52-57,61-62,64,65,67,70,74-76,
96, t2r, 125,126,154,169-t71,177,193, t97,204-205,213-215,222-224,227,231,236,254 255, 286, 289, 301, 303, 305,
307 ,3t6-317 ,340,353,359,362,364,373,37 6,389,394,397 398, 400 40 1, 403, 408-4 1 1 ,416,426, 430, 434-437 , 442 443,
446 447 ,450,45t,460,465,467 -468,470,472,479-485, 487 ,519,522,530,540-54t,546,556-562,566, 57 1, 579-58 1, 586,
588,591,606 607,6t0,613 614,617-618,622,628-636,645,653,658,662,665-667,671-672,697,698,705-706,708-709,
7 tt,7 13 714,7 t7 -7 19,722-723,725,728-733,7 41,764,77 5-77 6,784-786,789,793-794,798-800, 803-804, 808-809, 8 1 2

813.HF,33,36,55,68,69-70,76,87-88,100,130,r38,1.67169,172,174,1.77,182,185-186,192,236237,269,282,297,
304, 344, 35t, 394, 405, 4|,, 450, 454, 482, 490,50 l, 5I 5, 547 , 550,553, 563, 572, 57 4. 579, 602, 605, 607, 617 -618, 624.
63t, 633, 647 -651, 654,675. HS, 4-6, 1r, 16-20, 26 32, 39, 4\ -43, 46, 52, 54-60,72, 89, 100, 106, I 09, 122, 125-1.26, 130,
142,163,167,169,17t-t75,177-184,187,190,203-204,206-210,213-214,220-221,226,228,230-233,237-238,241 243,
246-248,250,257,263-264,268,27 t,277 280, 284-285, 288 -290,292-297 ,30 1, 303-305, 308-3 I 0, 3 12, 31.6 318,320-321.,

327 ,332,334, 338-341, 343-35 1, 353, 355-356 ,364,366-368,37 8-379, 382, 388-391, 393, 398, 405, 412, 424-425,435,437 ,

439,441-444,463-465,467. HSl,41, 59,75,82,86,89,93-94, 112,125,148, 194. HS2, 10-12, 19,33-35,37-39,44,45,

50-51,54, 56-57,73,76,81 82,89-90,96, 100, 102 i03, 105-107, trt.,l15,122-123,133, 135, 139-140,147, t54,156, 165,
186, 193, 2t4,224,242,248,251,259,263,266 267,269,274-275. HS3, 19, 22,24,26,29,39-40,43-46,49-50,55,74,
78,81,84-85,89,100,105-106,ll5-117,126,138,141,148,150,152,154,158,167,169,241,243,262,274.IDS,11,26,
37-39,44 46,50,67,101, 112, 116-118, 125 126,137,\64,174,178,186,194,214. MC,21,31, 55,70'104,108-109, 113,

115-116,121,t27,177,2r8,223,248,256,264,295,302,309,317,319,321,323,330-331,334,339,341,352,363,366,381,
383 384,389. MMPE,6, 15,t9,24-25,28,31,38, 40,43,46-47,50 s2,s6,57,60-6).'66'68 69'74'80-82,91, 100, 104,
109.MMPS,6,15,19,24-25,28,31,38,40,43,46,47,50-52,56-57,60-61,66,68-69,74.NC,X,11,35,45,51,54,59,81,
84,89,92-93,104, 111, 117, 131, 138-139, 171,173,1,94,201,207.oD,11, 18-19,39'43'44,49,51,60. PP,3'15,34'41'
44, 46-47 ,56-59, 1 18, 1.50, 17 4, 181, 190,233,237 -238,245,247 ,256,263,270,27 4-276' 279,286, 288, 292,302-304,306'
314-3Is,319. RR,29,4s, 71 72,80,86,145,171,198. SP, 19, 23-24,26,32,33,42,52,70,81,87'97'103'll7'124-125,
1 3 1 - 1 32, 1 34, 160, 1 8 1. 202, 22s. 228. 248. 2s9. 27 1. 282, 284, 3 10.

4I0 suJErTo (sujet)


::=. TÁTIcA (Tactique)

A partir de Surveiller et punir, isto é, a partir do momento em que empreende o estudo


das formas de exercício do poder nas sociedades modernas, Foucault começa a falar de uma
análise em termos de tática e de estratégia. Ambos os conceitos se inscrevem dentro do que
ele chama dehipótese Nietzsche acerca do poder, ou seja, o poder considerado como luta,
enfrentamento; mas não necessariamente se reduzem a esse ponto de vista guerreiro acerca
do poder (IDS, 40). Em Surveiller et punir,por exemplo, fala de abordar a problemática do
castigo desde a perspectiva da tática política (SP, 28), de considerar a disciplina como uma tática
(SP, 151). Neste contexto, em que se interessa particularmente pela técnica da tática militar,
define a tática nestes termos: 'Arte de construir, com os corpos localizados, as aditividades
codificadas e as atitudes formadas, aparatos onde o produto de diferentes forças se encontra
p6tenciad6 por sua combinação calculada" (SP, 169). Com respeito à estratégia e à tática no
a paz
âmbito militar, observa que, nos grandes Estados do século XVIII, o Exército garantta
civil por duas razões, por um lado, porque era uma espécie de espada que ameaçaYa constante-

mente, por outro, porque é uma técnica e um saber que podem projetar-se sobre todo o corpo
social. "A estratégia é o que permite compreender a guerra como uma maneira de conduzir
a

política entre os Estados; a tática é o que permite compreender o exército como um princípio
para manter a ausência de guerra na sociedade civil" (SP, 170). As disciplinas definem uma
tática de poder que responde a três critérios: fazer com que o exercício do poder seja o menos
custoso possível, econômica e politicamente (fazer o poder menos exterior, menos visível),
conseguir os maiores efeitos sobre o corpo social, acrescentar a utilidade e a docilidade de
*
todos os elementos do sistema (5P,219-220). Foucault fala também de polivalência tática
dos discursos; nesse caso, trata-se de uma consideração metodológica que consiste em tomar
os discursos como segmentos descontínuos, cuja função náo é nem uniforme nem estável. A
multlplicl{ade dos elementos discursivos, com efeito, pode desempenhar diferentes papéis
em diferentes estratégias (HSf, 132-133). Não há que interrogar os discursos sobre o sexo,
antes de tudo, para saber de que teoria implícita derivam, ou a que pressupostos morais con-
duzem ou que ideologia representam; antes, há que interrogá-los a respeito dos dois níveis

TÁTlcA (ractlque) 4I1


de sua produtividade tática (que efeitos recíprocos de poder e de saber garantem) e de sua
integração estratégica (que conjuntura e que relação de forças fazem com que sua utilização
seja necessária em um determinado episódio dos diferentes enfrentamento que se produzem)"
(HSl, 135). * Uma tática discursiva é um dispositivo de saber e poder que, enquanto tática,
pode ser transferido a outra situação de enfrentamento entre forças e também converter-se
na lei de formação de um saber. Por exemplo, a tática discursiva do discurso histórico (IDS,
1 69 - 17 0). Y er : E stratégia.
Tactique [1 57]: AN,50,204,223,223. DEl, I 84. DE2 , t17 ,187,275,336,357 ,4s6,663,7 06, 725, 808. DE3, 66, 87,

9 1, 1 25, I 34, 140,152,167 -168,174,181,206,229,267,361,530,542,625-626,649,766. DE4, 19, 24, 80 ,90,23t,265,636,

662,733. HF, 96, 630. HS, 306,366-367,369,38s. HSr, 2 r, 32, s7,113, r32-r33,135, 143, 173, 180, 184, 208. IDS, I 1, 13,
18,27,40,69,154,169-170,173, 180-181, 185,204. MMPS,90. NC,76, 109. PP,8, 10, 18,32,74-75,99,143, 153-154,
174, 186. SP,28,141-142,145, 150-151, 157,1.64,166,1.69 17t-201,219,277,292-295,307.

r** TÉCNICA, TECNOLOGIA (Technique, Technologie)

Como expusemos no verbete Pratica,as práticas definem o campo de estudo de Foucault,


incluindo as epistemes e os dispositivos. As práticas se definem pela regularidade e pela ra-
cionalidade que acompanham os modos de fazer. Essa regularidade e essa racionalidade, por
sua vez, têm caráter reflexo, são objeto de reflexão e análise. Os termos "técnica'e "tecnologia"
agregam à ideia de prática os conceitos de estratégia e tática. Com efeito, estudar as práticas
como técnicas ou tecnologia consiste em situá-las em um campo que se define pela relação entre
meios (táticas) e fins (estratégia). Foucault utilizou essa terminologia e essa conceitualização,
em primeiro lugar, para estabelecer uma metodologia de análise do poder (a disciplina e o
biopoder); depois estendeu essa perspectiva ao estudo da ética. * Abordar o estudo do poder em
termos de estratégia e de tática, e não em termos jurídicos, implica analisar o poder como uma
tecnologia (D83,229). Foucault afirma: "[...] estes mecanismos do poder, estes procedimentos
de poder, há que considerá-los como técnicas, isto é, como procedimentos que foram inventados,
aperfeiçoados, que se desenvolvem sem cessar. Existe uma verdadeira tecnologia do poder ou,
melhor, dos poderes, que têm sua própria história' (D84, 189). * Foucault assinala a obra de
Pierre Clastres (La société contre l'Etat. Recherches danthropologie politique, Paris, 1974)
como um esforço para deixar de lado as concepções do poder em termos de regra e proibição
(Durkheim, Lévi-Strauss) e abordá-lo em termos de tecnologia (DE4, 184). Tecnologia
política do corpo. Segundo as regras de método propostas, emsurveiller et punirtrata-se
de "tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política
do corpo onde se poderia 1er uma história comum às relações de poder e às relaçoes de objeto
[relações de saber]" (SP, 28). O estudo desta metamorfose nos mostra, com efeito, que existe
uma matriz comum, por exemplo, à história do direito penal e à das ciências humanas. A
expressão "tecnologia política do corpo" quer dar conta, precisamente, dessa matriz comum
às relações depoder e às relações de saber que têm por objeto o corpo. Mais precisamente,
Foucault quer mostrar como há um saber do corpo que não é somente um conhecimento do
funcionamento, mas cálculo, organização, e um manejo de suas forças que é muito mais que
a capacidade de vencê-lo (como no suplício), é, antes, a capacidade de manejá-lo. "[...] este

41 2 TÉcNtCA, TEcNoLoGtA (Technique, Technologie)


saber e este manejo (maítrise) constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do
corpo" (SP,31). Seu objetivo consiste em obter corpos úteis e dóceis. Por isso, a disciplina é
uma tecnoiogia, não uma instituição ou um aparato (SP, 217) (ver: Disciplira). No mesmo
sentido, como conjunção do saber e do poder sobre o corpo, pode-se falar de uma tecnologia
do sexo, de uma tecnologia cristã da carne ou de uma tecnologia política da vida (HSl, 119,
l49,19l).Foucaulttambémutilizaasexpressôes tecnologiadegoverno,tecnologiapolítica
dos indivíduos e tecnologia regrLladora da vida, para falar das tecnologias do poder (por
exemplo, em DE4, 814, 820; lDS,222). Téchne toú bíou (técnica de vida). Para os gregos,
a pr«ipria vida era objeto de uma técnica, de uma arte de vida. "Para nós náo há obra nem arte
senâo ali onde algo escapa à mortalidade de seu criador. Para os Antigos, a téchne toú bíou
se aplicava, ao contrário, a esta coisa passageira que é a vida [. . .] Que a vida, porque é mortal,

tenha que ser uma obra de arte é um terna notávei" (DE4, 615). * A propósito da evolução da
cultura de si mesmo na Antiguidade, Foucault sustenta que o grande problema grego nào era
a técnica de si mesmo, rnas a técnica de vida. É muito claro em Sócrates, Sêneca ou Plínio,
por exemplo, que eles não se preocupavam com o que vem depois da vida, do que acontece
depois da rnorte ou se Deus existia. Para eles, isso não erâ um problema verdadeiramente
importante; o problema era: que téchne devo possuir a fim de viver tão bem como deveria.
E creio que uma das grandes evoluções da cultura antiga foi o fato de qLre esta téchne totr
bíou se converteu cadayez mais em wa téchne de si mesmo. Um cidadão grego do século
V ou IV teria pensado que sua téchne de vida consistia em ocupar-se da Cidade e de seus
companheiros. Mas para Sêneca, por exemplo, o problema essencial é ocupar-se de si mesmo
(DE4, 390). Acerca dessa evolução em termos de autofinalização do cuidado, ver Cuidado.
* A tecnologia de si implica a reflexão sobre os modos de vida, sobre a eleiçáo da existência,

sobre a maleira de regular a conduta, de fixar para si mesmo os fins e os meios (DE4, 2l-5).
*

Também encontramos em Foucault, coIrl o mesmo sentido, a expressão técnica de existência


(DF4, 215). Tecnologia da verdade. A ciência e a filosofia supuseram que a verclade é algo
que esperâ ser desvelado, quando nosso olhar para ela se situa na perspectiva correta. Porém,
segundo Foucault, há outra ideia, profundamente ancorada elr nossa civilização, segundo a
qual a verdade não é algo que nos espera, mas que se produz. A verdade náo seria, então, da
ordern do que é, mas acontecimento (événement). "Ela [a verdade] não se dá pela mediação
dos instrumentos, ela é provocada mediante rituais; é atraída pelas astúcias, captada de acordo
com a ocasião: estratégia e não método" (DE2,694). Por isso, pode-se falar de uma tecnologia
da verdade a propósito dos mei<ls para produzi-la: conhecimento dos lugares onde se produz,
dos tempos em que se a a produzem (D82,693-694). Um exemplo dessa
produz, dos rituais que
tecnologia da verdade éo duelo como prova judicial da verdade. Outro exemplo encontramos
na tecnologia da confissão.
Techné [r3]:It52,73,77.103, 156, 169, 193. HS3, 18, 28,57, 59, 85, 123, 128.

Technique 1633l: AN, 17,21,30,45-16,57-58. 127, 130. 136,151, 156-1s7. 163, 165, l7l 173, 179, 187, 189' 198,
200,2r8,236, 239-24t,257,291,297. AS, 15, t7,4t,72 73,141. DE1, 131,141,147 151, 154-155, 157,220,231,30,375,
4\3,115,120,447,449.150,452,{60,517 518,562,565,585,588,603,707,723,726,729,734,768.785,794,805,821,840,
84'1. DE2,3-1,69, 183, 187, 19r, t95,225 226,288.299,322,335,38-3,403,4;2,476,510, 560,581-585,613,616,619.662
663,677 678,680,697,709-711,713,717,746,7s0751,770.DE3,1.5,21,23,27,44,47 18,65,70,73,75,78,94,126,149,
I 77, I8 l, I 83, 195, D3, D9,275, 285, 293, 297, 3I 6, .136-338, 395, 433, ,154, 458, 173, 500,514-5t6,522,526-527 ,532-533,

538,566,588,621,629,651,655,657,665,668,715,727,728-729,731 735,740. DE4, i5,24,35,67,88,91, 134, 14ti, 151,

TÉcNlcA, TEcNoLoGIA lTechnique, Technologie) 4l 3


1s3,169,171,187-188,213,214-215,222,227,229,233,283,307,355,362,376,390,396,,100,403-407,409,414,117 418.
430, 438, 440-44 1 ,447,450, 464,49 l, 575, 58 1, 590, 60 4,623-627 ,613,647 -648,658 659,662-663. 665,67 1,686,692,753,
768,785-786,799800,802-804,808-809,816,820-821,824.HF,149,386,388,391,401,,105,413,416,427.HS,25,4r,
47,49-50,60,68,74,91,122,r33.153-154, 171, 174, 180,232,237,239,250,280,317,321,323,332,349-350,352_353,
355-357,359,365 366,374,382, 391, 398-400, 403, 406 ,411,417,427 -430,463,470. HSl, 2i, 33, 84, 88, 91, 94, 1 18, 142,
151,153,167,r70.HS2,68,84,90,t21,136,155,169,t72 173.HS3,18,108,122,163,168,t74,262,282.tDç,9,24,27,
29,42,145,159, 186,215-216,222,225,230. MC, 152, 154-155, 195,239,282-283,314,370. MMPE,89. NC,51,97_98,
113,122,143,146-147,149,158, 162, 166- 1 67, 171,202. OD, I 9, 43. pp, 12,43,52,57 , t29, ).62, 17 t,176_178,182,185,234,
240,243-244,246 248,272,276,285,287, , 304, 314. RR,39,42-43,47,57,76,100,127,158. Sp, 15, 21, 25 ,28,34,37,63,96,
97, 1 03, 1 1 6, 125,130,132,134,142,147 -148,1 50, 156 157, 159, 1 61, 1 63- 165, 168,170,172,186 189, 194, 195,200,21t 2r2.
218,223-224,226-228,235,242,25r,255-256,258259,261,269,273,275-276,302-301305 306,310,312.
Technologie[325J:4N,14,20,44,54,5657,81-82,85,107,123-t24,151,178,191,201,217,235,253,260,296298,
301. DE2, 103,185,279,470, s10-512,523,693 694,696,702,7 17,727 728,746,749. DE3, 18, 26, 43, 133, 153, I 81, 191-
193,199,202-203,209,221,229-230,273,290,374,392,396,407,452,470,474,508,514-51 5, 521, 526, 530, 532, 58s, s87,
593.619,672,721-722,739,819 820-824.DF4,18,28, 136, 139, 144, 183, 184, 189, 191-194,197,199-200,215-216,225,
264,282,285,305, 384-385, 403, 409 , 441,582,627 ,628,636,660,724,81 3 8 14, 820 82 1, 826, 828. HS, 46, 48, 50, 60, I 09,
117,163,200,358.HSr,61,92,119,138,149,153-157,159-160,163,t67 168,172,180,183,18s,190 192.IDS,27,165,
215-216,218-220,222,226,228,230, 234. NC, 37. PP, 4 l, 59, 60, 106,233,236,238-243,245,246,248, 250, 258, 263. Sp,
28,31,3,1-35,92, 105-106, 130,150, 156, ].64,173,187, 195, 196,207,217,222,225-226,228,236,254-255,276.

Têkhnê [1]: HS,46s.

Tekhnê [1 17]: DE4, 390, 398, 402, 404, 441,464, 47 1,615,621,624 62s,791. HS, 37, 40, s 1, s7, 84, 121, 170 172,

197 ,239,248-249,315,323-324,335, 350, 356, 365,37 t,374,376,379, 405-406, 408, 428-430, 43s, 46s 467 .

:-<§. TELEOLOGIA (Te I eol og i e)

Arqueologia. A arqueologia quer liberar-se do que constitui a f,losofia da história, a raciona-


lidade e a teleologia do devir (AS, 20). "Tratava-se de analisar esta história [a história das práticas
discursivas] em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria de antemão; de localizá-la
em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia encerrar; de deixá-la desdobrar-se em um
anonimato ao que nenhuma constituição transcendental lhe imporia a forma do sujeito; de abri-la a
uma temporalidade que não prometeria o retorno de nenhuma aurora" (AS, 264-265).Értce. e
teleologia moral define um dos quatros elementos de noção foucaultiana d e ética (ver: Etica).
Téléologie [29]: AS,16,20, 22,54,t59,164,262,264,265. DEl, 161,687,687,70r,730,731,731.D82,151. DE4,
396, 398, 557, 620, 620, 621, 622, 67 9. HF, 532. HS2, 34, 39, 4s.

r*:. TE RR IT ORIO (Te r r ito i re)

A propósito das metáforas espaciais que utiliza em seus trabalhos, especialmente nas descriçÕes
arqueológicas, Foucault preci sa território é uma noção geográfica, mas, antes de tudo, uma noção
jurídico-política (designa o que é controlado por determinado tipo de pod er). Campo éuma noção
econômico-jurídica.Deslocamento:umexército, a tropa, apopulação se desloca. Domínio: noção
econômico-jurídica. So/o: noção histórico-geológica. HorizonÍc noção pictórica e também estratégica.
A única noção autenticamente geográfica é arquipélago, empregada a propósito de "arquipélago

414 TEtEotoGtA (Teteotogie)


carcerário' (DE3, 32). "Campo 1 'posiçãol "territóriol como termos político-estratégicos, indicam
con-lo omilitar ou o administrador se inscrevem efetivamente no solo ou nas diferentes formas de
discurso. "Metaforizar as transformações do discurso mediante um vocabulário temporal conduz
necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua ternporalidade própria.
Têntar decifrá-las, ao contrario, através de metáforas espaciais, estratégicas permite captar, preci-
samente, os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através e a partir das relaçoes de
poder" (DE3, 33). * O curso no Collêge de France dos anos 1977-l971tempor título: Segurança,
território, populaçao. O território é o elemento fundamental do principado de Maquiavel e da so-
beraniajurídica do soberano na definiçáo dos filósofos e teóricos do direito da época. Na literatura
das'hrtes de governar" (ver: Governo),adefiniçâo de governo não se refere ao território. O objeto do
governo é uma espécie de conjunto complexo constituído por homens e coisas: os homens em suas
relações e nexos, seu entrelaçamento com as coisas (as riquezas, os recursos e também o território)
(D83,643). A soberania sobre o território se converte, deste modo, em um elemento secundário
da arte de governar. * A ciência da polícia é uma arte de governar e um método para analisar uma
população que habita um território (DE4, 160). O que interessa à polícia (ver: Razao de Estado)
é a coexistência dos homens em um território, suas relações de propriedade, o que produzem, o
que intercambiam, etc. "Há toda uma série de utopias ou de projetos de governo do território que
ganham forma a partir da ideia de que o Estado é semelhante a uma grande cidade; a capital figura
como a praça principal e as estradas são as suas ruas. Um Estado estará bem organizado a partir
do momento em que um sistema de polícia, tão estrito e eficaz como o que se aplica às cidades, se
estender por todo o território. Na origem, a noçáo de polícia designava unicamente um conjunto de
regramentos destinados a assegurar a tranquilidade de uma cidade, mas, neste momento [século
XVm], a polícia se converte no tipo de racionalidade para o goyerno de todo o território. O rno-
delo da cidade se converte na matriz a partir da qual se produzem os regrarxentos que se aplicam
ao conjunto do Estado" (D84,272). * À diferença do político grego, cujo poder se exerce sobre o
território, o poder do pastor se exerce sobre os indivíduos (D83,719) (ver: Poder).
Territoire [99]: AN, 4 1 -42, 287. AS,239 240.D81,594.D82,31,8,328,454.D83,32-33,40, 385, 440, 503, 56 1 562,
598,608-609, 635, 639,643-644,653,655-656,665.706,719-721.DE.4,152, 155, 1-58, 160,271-275,492,510, 774, 8 I 7 8 18,

822, 825. HS, 102. IDS, ss, 173, 234. NC, 25, 29. PP, 190. SP, 79, 147, 167, 2t4.

T,*. THERAPEUTIKÉ

Yer latriké.
Therapeutikê [IJ: HS 95.

?s4. TOTALIDADE (Total ité)

Se a filosoÍia foi a partir de Hegel um pensamento da totalidade, a arqueologia e a genealogia


foucaultianas buscam pensar o saber e o poder sem referi-los a nenhuma forma de totalidade.
* 'A maior parte do tempo, a análise do discurso se situa sob o duplo signo da totalidade e da

ToTALIDADE (Totalité) 4LS


pletora. Mostra como os diferentes textos levados em consideração reenviam uns aos outros,
se organizam em uma figura única, entram em convergência com as instituições e as práticas,
e guardam significações que podem ser comuns a toda uma época. Cada elemento levado em
consideração é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o supera"
(AS, 155). A formaçâo discursiva, contudo, não é uma totalidade em desenvolyimento, antes,
um espaço no qual encontramos lacunas, vazios, ausências e limites (AS, 156). Por isso, para
Foucault, a tarefa não consiste em descrever os enunciados como uma totalidade fechada e
pletórica de significação, mas como uma figura lacunar e desgarrada (AS, 164). * No mesmo
sentido, assim como Deleuze, em lugar de pensar o poder em termos de totalidade, Foucault
e

busca a relação entre teoria e práxis em termos fragmentários e parciais (ver: Deleuze). *
Foucault precisa, respondendo a uma pergunta em que se supõe que é inevitável ser filósofo
desde o momento em que é inevitável pensar a totalidade: "Quero dizer que a filosofia que
busca pensar a totalidade poderia perfeitamente não ser senão uma das formas possíveis da
Íilosofia, uma das formas possíveis que foi efetivamente o caminho mestre do pensamento
filosóf,co do último século, depois de Hegel; mas, depois de tudo, nós poderíamos hoje pensar
perfeitamente que a fllosofia não consiste nisto. Eu assinalaria que antes de Hegel a filosofia não
dispunha necessariamente desta pretensão de totalidade [...] Consequentemente, creio que
a ideia de uma filosofia que abraça a totalidade é uma ideia relativamente recente; parece-me
que a filosofia do século XX está noyamente mudando de natureza, não só no sentido de que
ela se limita ou se circunscreve, mas também no sentido que ela se relativiza. No fundo, que
significa hoje fazer filosofia? Não mais constituir um discurso sobre a totalidade, um discurso
no qual esteja retomada a totalidade do mundo, mas, antes, exercer na realidade uma deter-
minada atividade, uma determinada forma de atividade" (DEl,6ll-612).
Totalité [261 ]: AN, 46, 80, 95, r29, t Bg-189, zg7, 290. AS, t0,20,27 ,82, 112, 142, 155-156, 164, 17 t,201,207,229.
DEr, 78, 98, t35,145,2t0,236,239,242-243,248,357,384,386,449,454,459,46t,508, 548, 536, 588, 591, 595, 600, 10_
6
612,675,689,708,7 48,839.D82,60,146,147 ,164-165, t93,246,253,263-265,272,283,285,287,300,305,30g,3gg,474,
481,528,559,581,615-617,702,782.DE3,38,79,163,185,469,522,562,609,621,789.D84,t5,20,t44,182,526,564,
683,712,759,826-827.HF,86,113,I79,I83,I88,209,220,246,248,zst,2s5-296,2s8,303,306,317,31s,5s8,570,636,
643-644,657,676. HS, 79, I I 8, 2ss, 272-273,282-28s,294-29s,361.H9r, 205. IDS, 8, 32, 4s,81, \99,20t,203, 208. MC,
52,67,69,80,96, 100, 118, 128, 154, t90,21t,261,293,327,345,384. MMPE,8_13, 15,30,33,83. MMPS,8_13, 15,30,
94. NC, XI, 37,58,91,93,96,102, 1 12, I 14_ I l5 , 132,141,162_163, 197. OD,77.pp,48, 5r. RR, 19. Sp, 121, 215,218.

:*=. TRADIç AO (Trad iti o n)

A arqueologia deve levar a cabo, em primeiro lugar, um trabalho negativo, isto é, liberar-se
de todas aquelas categorias utilizadas na análise histórica para manter a ideia de continuidade.
Entre elas, a noção de tradiçao, mediante a qual se oferece um estatuto temporal singular a
um conjunto de fenômenos ao mesmo tempo sucessivos e idênticos, e se retoma a dispersão
da história na forma do mesmo (AS, 31).
Tradition [424]: AN, 58, 64, 84,1 75, 1 78. AS, 12,31,63,70,75,77
, r7 1,223,251. DEt,79_83, 87 , 95, i 89, 209, 300,
379,402,433,469,471,494,497,503, 510, 514, 520, 549, 552, 582, 588-58 9,592,632,638,677,684,701,7\0,751,755,757,
790,795 796,801, 804, 819, 826,843,845 846. DE2, 10,14,70,1 1 i, 140, 148, 153,245,267,282,295,304, 306, 384,39]
,
398,400,407-409,426,428,436,44t,480,483,492,522,525,539 540,546-547,557,630,633,635-636,648,659,689,697,

416 TRADTÇÃo (Tradition)


728-729,751. DE3, 101, 116, 131, 133,141-142,242,324,328,398,413,478,480,483, 490,493'521'526,564,587-588,
604.613,621,638,647,683,687,804.DE4,40,48-49,63-65,70,74,1\5,151-152,155,234,245,262,272,285'363'387'
405,410-4rt,43t,434-435, 440,445-446,447 ,459,463,467,470,491,508-5 1 0, 5 1 8-520, 524,540,548-549,557 563' 569
' '
572, 58 1, 584, 60 l -602,613,625,631,644,648-649,669,680,687,701,743,757,781,786,788-789,793,796,7 98, 800-801,

805, S0S-809, 8 14, 8 1 7, 824. HF, 34, 46, 150, 17 1,230,238-239,258,268-269,292,304-306, 334, 362,386,396, 4 18, 5 10'

53 1. HS, 14, 30-3 1, 33, 40, 62, 182,2ts,248,287 ,30s,3t3,3r7,347 -348,376' 395'
69,75,90,94, 102, 124, 143, 165- 168,

442,467. HSr,29, 77-78,54,96,115, 162. HS2, 11,22-23,34,79,86,89,91,99, 136,142,2t4,268. HS3, 17,21,2s,65'


69-70,75, ).27,153,169,206,221,222,235,244,254,269,27 1,282-283. IDS, 49, 91, 120-121,230. iN.IC,23,25,46, 48-49 '
53,141,221,252,348,378. MMPE,37,76. MMPS,37. NC,58,68,75,89, r07,148,180. oD, 53.PP,26'43'138'164,
258,284-285,294,324,331. RR, 18, 105. SP,32,40,56, 141, 186, 188-189,204,2s6,261,265,267.

rsô. TRANSCENDENTAL (Tra nscen d enta l)

A problemática do transcendental aparece vinculada a duas temáticas centrais do pen-


samento de Foucault, à formação da analítica da finitude e à constituição da metodologia
arqueológica e genealógica. * "O homem na analítica da finitude é um estranho duplo
empírico-transcendental, posto que é um ser tal que, nele, se tomará conhecimento do que
*
torna possível todo conhecimento" (MC, 329) (ver'. Homem). "E o ponto pelo qual ela [a
arqueologia] se separa de todas as filosofias do conhecimento é que ela não refere este fato
[a existência da ciência] à instância de uma doação originária que fundaria, em um sujeito
transcendental, o fato e o direito, mas aos processos de uma prática histórica" (AS, 251) (ver:
Arqueolo gia, A priori hi st órico).
Transcendental [60]: A5,74,159,164,169,251,265,268.D81,239,401,452,612,67 5,677,730,795-796.DE,z,170,
241,326,372-373,379. DE3, 3 10. DE4, 280. MC, 256-257 ,260-262,326,329-333,336,346-347,3st-3s2,36t,375,386.

?si. TRANSG RESSÃO (Tra nsg ressi on)

A ideia de uma experiência limite, que subtrai o sujeito a si mesmo, foi importante para mim
na leitura de Nietzsche, Blanchot e Bataille e, por mais aborrecidos e eruditos que sejam meus
livros, fez com que eu os concebesse como experiências diretas, que tendessem a arrancar-me de
mim mesmo, impedindo-me de ser o mesmo (DE4, 43). Foucault refere-se às experiências-limite
da morte de Deus em Nietzsche, a transgressão em Bataille e o fora em Blanchot, pelas quais
particularmente se interessou em seus trabalhos dos anos 60, quando a literatura desempenhou
para ele papel importante na hora de orientar-se filosoficamente. Essas experiências-limite
animam, segundo Foucault, todo o seu trabalho filosófico e pode-se ver nelas uma parte do
que desenvolverá mais tarde com as noções de éthos, atitude de Modernidade e de ontologia
histórica de nós mesmos. Esta última, com efeito, não é uma teoria, e sim uma atitude em que a
análise dos limites traz, emsi mesma, a prova da sua possível transgressão. Yer Éthos, Ontolo-
gia do presenfe. * A transgressão é um gesto que concerne ao limite, à transgressão e ao limite
e seimplicam mutuamente. Mas, em Bataille, transgredir não consiste em se oPor ao limite ou
negáJo, mas, antes no contrário, em afirmá-lo (D81,236-237). A transgressão não se opõe a

TRANSGRESSÃO (Transgression) 4I7


nada, não é da ordem do escandaloso ou do subversivo, nem da dialética, nem da revolução.
Ela afirma o limite como ilimitado (DEl, 238). Só se pode compreender a relação entre
ambos a partir damorte de Deus. A transgressão, com efeito, é o gesto de profanação em
um mundo que já não reconhece nenhum sentido positivo no sagrado. A morte de Deus
suprime, na nossa existência, o limite do Ilimitado. Mas a supressão do Ilimitado como
limite da nossa existência não é a supressão do limite, é experiência do limite, da finitude,
do "reino ilimitado do Limite" (DE1, 235). * 'A morte de Deus nâo nos restitui um mundo
limitado e positivo, mas um mundo que se desembaraça na experiência do limite, se faz e
desfaz no excesso que o transgride" (DE1, 236).Por isso, essas experiências do limite (a
transgressão, o fora, a morte de Deus) à diferença da analítica da finitude (ver Homem)
não buscam fundar o limite a partir do finito (MC, 329). Nessas experiências do limite, a
existência finita, que não está já limitada pelo limite do Ilimitado, é conduzia ao próprio
limite, ao seu desaparecimento (DEl, 235). A experiência do erotismo, da sexualidade em
Bataille ou da linguagem em Blanchot são experiências da dissolução e do desaparecimento
do sujeito (D81,614-615). * Essas experiências-limite foram, como experiências de dessub-
jetivaçao, um dos caminhos pelos quais Foucault se afastou da fenomenologia e da filosofia
dialética, do hegelianismo e do marxismo, que buscam estabelecer e recuperar, para além
de toda a dispersão, a função fundadora do sujeito (D84,43,48'49). As experiências do
limite representaram para Foucault a possibilidade de outro pensamento, nem fenomeno-
lógico, nem dialético. Segundo um movimento inverso ao da sabedoria ocidental, isto é, o
que prometia a unidade serena de uma subjetividade triunfante, esta outra possibilidade
do pensamento se situa nessa linguagem sem sujeito que aparece nas obras de Bataille ou
Blanchot, na literatura em seu sentido moderno (DFl,244). * Em um primeiro momento,
Foucault ligou essas experiências do limite ao estruturalismo e ao funcionalismo, a Dumézil
e a Levi-Strauss, nos quais o sujeito da fenomenologia e da dialética se dissolvem (DEl,
615). Mais tarde, a noção de transgressão e as experiências-limite em geral se articularam
com as noções de prática de si mesmo e de resistência. Yer: Luta, Prática, Resistência,
Subjetivaçao. Por isso, como dissemos, nessas experiências do limite se pode ver uma parte
do que constitui o trabalho de Foucault em seus últimos anos; mas apenas uma parte. O
desaparecimento do sujeito-fundamento nas experiências do limite se conjugará agora com
a análise da constituição histórica do sujeito. Deste modo, a noção foucaultiana de ética
busca, precisamente, problematizar a relação do sujeito consigo mesmo pela qual esse se
dá, historicamente, uma forma. No mesmo sentido, no registro político de seu pensamento,
a noção de resistência articulará o conteúdo histórico das lutas. Como na experiência de
transgressão, nas práticas de subjetividade e nas lutas de resistência, não se trata de situar-
se para além do limite, em termos arqueológicos e genealógicos, para além do saber e do
poder, ou de fundar a finitude mediante uma analítica. Nem fundamento infinito, nem
fundamento finito. Mas, nessas práticas e lutas, não se busca apenas afirmar um limite cuja
transgressão implique o desaparecimento do sujeito, mas articular relações de saber e poder
como possibilidades de subjetivação e de liberdade. Yer: Liberdade.
Transgression Il I S/: 4N, 20, 58-59, 61, 67 , 69,76, 9 1, 308. DEl, 1 88, 226, 233, 233-234, 236-239, 241,244-249,
260, 336, 339, 395,398, 400, 415, 434, 522, 525, 529, 536, 624, 63t,799. DE2,80, 104, i 14, 117 _118, t2o_t23, t27 , 206,
323,355,823. D83, 253,292,392, 423, DF.4, 147 , 199,326, 479,544, 556. HS, r 74, 224. IJ51, 12_13,90,1 1 2, 195. HS2,
16,32,98. HS3,37. RR, 130. 5P,277,306.

4I8 TRANSGRESSÃo (Transgression)


:**. UBUESCO (Ubuesque)

O termo ubuesco - como precisam as notas da publicação do curso de Foucault, Les anor-
maux - faz referência à obra de Alfred Jarry, Ubu roi. O adjetivo foi introduzido na língua
francesa, eml922,para referir-se a alguém de caráter absurdo e caricatural (AN,26, nota 20).
Foucault o utilizaparafalar do poder. Poder ubuesco: "Maximizaçâo dos efeitos de poder a partir
da desqualificação daquele que os produz" (AN, l2). Se a relação entre verdade e justiça foi uma
das preocupações maiores da frlosofia ocidental, se o pensamento ocidental sempre quis dotar
o poder de um discurso de verdade, na medida em que o poder pode funcionar desde o outro
extremo da racionalidade (e se mostra, por isso, como inevitável), o ubuesco aparece como "uma
categoria precisa da análise histórico-política' (AN, 12). "O grotesco é um dos procedimentos
essenciais da soberania arbitrária. O grotesco é também um procedimento inerente à burocra-
cia aplicada. Que a máquina administrativa, com seus efeitos de poder inevitáveis, passe pelo
funcionário medíocre, nulo, imbecil, fílmico, ridículo, arruinado, pobre, impotente, tudo isto foi
uma das características essenciais das grandes burocracias ocidentais" (AN, 13). * Ubu roi é,
para dizêJo brutalmente, uma paródia de Macbeth. O poder, que em Shakespeare aparece em
seu aspecto trágico, em Ubu roi, no entanto, mostra seu lado ridículo e grotesco.

Ubuesque [9]: AN, 12-13, 26, 32-33.

?§*. USSEL, Jos van (1918-1976)

Yer: Repressão.
Jos van Ussel [10/: AN, 39, 49,221 222,244,309.D82,826

;+*. UTOPIA (Utopie)

Clássica, moderna. Para a época clássica, a utopia era fundamentalmente o sonho da


origem, o sonho de um mundo que assegurava o desdobramento ideal de um quadro onde cada

UTOPIA (Utopie) 4I9


coisa, com suas identidades e diferenças, tivesse seu lugar próprio e ordenado. Essa apreciação
foucaultiana da utopia clássica está estreitamente ligada, como vemos, à descrição da episteme
clássica em termos de ordem e representaçã o (ver: Episteme clássica).Naepisteme do século XIX,

no entanto, em que o saber já não persegue o ideal de um quadro ordenado de representações,


mas o encadeamento temporal do devir, a utopia consiste no desdobramento, precisamente, desse
devir. Já não se trata da utopia da origem, mas do fim, o fim da história (MC,274-275). Poder,
disciplina. O modelo peste (ver: Lepra), atravessado pelas hierarquias, a vigilância, o olhar e
uma cidade perfeitamente governada (SP, 200). * O modelo da
a escritura, expressa a utopia de
prisão, de Bentham, por sua yez, a utopia do aprisionamento perfeito (SP,207). x O panóptico é
a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder, a sociedade que nós conhecemos atualmente.
"Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo" (DE2, 594). * Há duas espécies de
utopia, as utopias proletárias e socialistas, que têm a propriedade de não se realizar, e as utopias
capitalistas, que têm a má tendência a se cumprir. A utopia da fábrica-prisão se realizou (DE2,
611). Ainda que, precisa Foucault, essa utopia nunca se tenha realizado como estava escrita e
descrita (DE3, 628). Experiência. "Eu, ao contrário, oporia a experiência à utopia. A sociedade
futura ça,talvez, através das experiências como a droga, o sexo, a vida comunitária, outra
se esbo

consciência, outro tipo de individualidade... Se o socialismo científico, no século XIX, derivava


das utopias, a socialização real talvez, no século XX, se derivará das experiências" (D82,234).
Liberalismo. "Não se pode dizer, então, que o liberalismo seja uma utopia que nunca se reali-
zou; exceto se se considera que o núcleo do liberalismo são as projeções que teve que formular
de suas análises e de suas críticas. Ele não é um sonho que se chocou com uma realidade e não
conseguiu inscrever-se nela. Ele constitui, e esta é a razâo de seu polimorfismo e de sua recor-
rência, um instrumento crítico da realidade: de uma governamentalidade anterior, da qual tenta
marcar as diferenças; de uma goyernamentalidade atual, que se trata de reformar e de racionalizar
revisando-a, diminuindo seus objetivos; de uma governamentalidade à qual se opõe e da qual se
quer limitar os abusos" (D83, 821). Habermas. Foucault considera uma utopia a ideia que pode
haver um estado de comunicação em que os jogos de verdade pudessem circular sem obstáculos,
a ideia de uma comunicação perfeitamente transparente (D84,727).

Utopie [61]: AN,178.DE,2,234-235,498,594,611,686.D83,202,273,463,628,691,821.DFl,29, 103, 103, 114,154, 156,


159, 313, 490, 589, 643,727,756,821-823. HSl, 191. HS3, 214. IDS, 92. MC, t33,274-275. OD, 25. Sp, 17, 176,200,207,226,
252.278.

420 uT0PrA (utopíe)


:§1" VERDADE, JOGO DE VERDADE, VONTADE DE VERDADI
(Vérité; Jeu de vérité, Volonte de verite)

Foucault, situando-se sob a égide de Nietzsche, concebe a tarefa da filosofia como um


trabalho de diagnóstico, e não como a busca de uma verdade intemporal (DEf , 606). Mas esse
trabalho de diagnóstico, também sob a égide de Nietzsche, pode ser concebido como a tarefa
de levar a cabo uma história da verdade. "É aqui onde a leitura de Nietzsche foi para mim
muito importante: não é suficiente fazer uma história da racionalidade, mas a história mesma
da verdade. Ou seja, em lugar de perguntar a uma ciência em que medida sua história lhe
aproximou da verdade (ou impediu o acesso a ela), não haveria antes que dizer que a verdade
consiste em uma determinada relaçáo que o discurso, o saber mantém consigo mesmo, e Se

perguntar se essa relação não é ou não tem ela mesma uma história?" (DE4, 54)' "Somente
liberando-nos desses grandes temas do sujeito de conhecimento, âo mesmo tempo originário
e absoluto, utilizando eventualmente o modelo nietzschiano, poderemos fazet uma história
*
da verdade" (DE2, 553). Uma história da verdade, da vontade de verdade ou das políticas
de verdade, para utilizar outras expressões de Foucault, é umahistória dos jogos de verdade.
"Entendo por verdade o conjunto dos procedimentos que permitem pronunciar, a cada ins-
tante e a cada um, enunciados que serão considerados como verdadeiros. Náo há, absoluta-
*
mente, uma instância suprema" (DE3, 407). Foucault distingue entre duas histórias da
verdade: por um lado, uma história interna da verdade, de uma verdade que se corrige a par-
tir dos seus próprios princípios de regulação; por outro, uma história externa da verdade' A
primeira é a que se leva a cabo na história das ciências; a segunda, a que parte das regras de
jogo que, em uma sociedade, fazem nascer determinadas formas de subjetividade, determi-
nados domínios de objetos, determinados tipos de saber (D82, 541). As práticas jurídicas, que
Foucault estuda amplamente em "La vérité et les formes juridiques" (D82,538-646), são
um exemplo destas regras de jogo. Vontade de verdade. Entre as formas de exclusão dis-
cursiva, procedimentos para conjurar os poderes e os perigos do discurso, Foucault enumera
a divisáo entre o verdadeiro e o falso (ver: Discurso)."Certamente, se alguém se situa no nível

de uma proposição dentro de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso nâo é nem

VERDADE, JOGO DE VERDADE, VONTADE DE VERDADE (Vérite; .|eu de verité, volonté de verité) 421
arbitraria, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas, se se situa em outra esca-
la, se se coloca a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos,
essa vontade de verdade que atravessou os séculos de nossa história ou, qual é, em sua forma
mais geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então, talvez, se possa ver
esboçar-se algo assim como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institu-
cionalmente coercitivo)" (OD, 15). A propósito do caráter histórico e modificável da separa-
ção entre o verdadeiro e o falso, Foucault assinala como, na época dos poetas gregos do sécu-
lo VI a.C. o discurso verdadeiro era o discurso pronunciado por quem tinha o direito de
fazê-lo e segundo o ritual requerido. Um século mais tarde, contudo, a verdade do discurso
não residia no que esse era ou fazia, mas no que dizia. "Entre Hesíodo e Platão estabeleceu-se
uma determinada divisão que separou o discurso verdadeiro e o discurso falso; uma separaçào
nova, porque de agora em diante, o discurso verdadeiro não é mais o discurso precioso e de-
sejável, porque não é mais o discurso ligado ao exercício do poder" (oD, l7-18). Essa sepa-
ração deu sua forma geral à vontade de verdade: a verdade é da ordem daquilo que o discurso
diz. Mas essa forma geral também sofreu modificações. A vontade de verdade do século XIX
não coincide com a da época clássica (esta última consiste mais em ver, em verificar, do que
em comentar; trata-se da aplicação técnica dos conhecimentos) (OD, 18-19). A vontade de
verdade, além disso, apoia-se sobre os suportes institucionais: as práticas pedagógicas, os
sistemas de edição, as bibliotecas, os laboratórios. A vontade de verdade, por outro lado,
exerce uma espécie de pressão ou coerção sobre os outros discursos. A literatura ocidental,
por exemplo, teve que apoiar-se sobre o natural, sobre o verossímil, sobre a ciência, isto é,
sobre o discurso verdadeiro. Os outros sistemas de exclusão - a palavra proibida ea separação
entre razão e loucura - tornaram-se cadavez mais frágeis e derivaram para a vontade de
verdade (OD,20-21). Apesar disso, para Foucault, a yontade de verdade é, entre todos os
sistemas de exclusão, aquele do qual menos falamos. "Como se para nós a vontade de verdade
e suas peripécias estivessem mascaradas pela verdade mesma em seu desenvolvimento neces-
sário. E arazáo etalvez esta: se o discurso verdadeiro não é mais, desde os gregos, o que res-
ponde ao desejo ou o que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizê-la, o que
está em jogo, neste discurso verdadeiro, se não o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que
a necessidade de sua forma independentiza do desejo e libera do poder, não pode reconhecer
a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, que nos foi imposta há muito
tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode não a mascarar" (oD,2r-2). * o discurso
filosófico, propondo uma verdade ideal como lei do discurso, fortaleceu essas formas de con-
trole discursivo que são as formas de exclusão que mencionamos (OD, 47-48). * Restituir ao
discurso seu caráter de acontecimento é uma maneira de questionar nossa vontade de verda-
de (OD, 53). |ogos de verdade. A introdução ao segundo volume da Histoire de la sexua-
lité, Lusage des plaisirs, reveste-se de um caráter metodológico e, ao mesmo tempo, retros-
pectivo. Por um lado, Foucault explica as modificações que teve de enfrentar para abordar a
questão do sujeito, os deslocamentos teóricos que teve de realizar. Por outro, à luz desses
deslocamentos, Foucault nos oferece uma visão de conjunto de todos os seus trabalhos. Nesse
contexto, entre os textos publicados até o momentor, aparece pela primeira vez a expressão

r O autor refere-se a 2004, ano da edição em castelhano do l.ocaóutcirio. (N.T).

422 VERDADE,JOGODEVERDADE,VONTADEDEVERDADE(VEritE;JEUdEVETitE,VOIONIEdEVéritE)
"jogos de verdade'i Após haver estudado os jogos de verdade na ordem do saber e os jogos de
verdade na ordem do poder, Foucault se propoe, agola, a "estudar os jogos de verdade na re-
lação de si mesmo consigo mesmo e a constituição de si mesmo como sujeito, considerando
como domínio de referência e campo de investigação o que se poderia chamar de'história do
homem de desejo"' (HS2, 12). * "O termo 'jogo' pode induzir a erro; quando eu digo 'jogol
digo um conjunto de regras de produção da verdade. Não é um jogo no sentido de imitar ou
fazer acomédia de...; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um determinado
resultado, que não pode ser considerado, em função de seus princípios e de suas regras de
procedimento, como válido ou não, vencedor ou perdedor" (DE4, 725).Política da verdade.
"Creio que o importante é que a verdade não está fora do poder nem carece de poder (ela não
é, apesar do mito cuja história e função seria necessário analisar, a recompensa dos espíritos
livres, ou a filha das longas solidões, ou o privilégio daqueles que souberam libertar-se). A
verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a coerções múltiplas. E ela possui nele
lmundo] efeitos regrados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua'política
geral'da verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos,
a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valoriza-
dos para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm a função de dizer o que funciona
como verdadeiro' (DE3, 112). Foucault distingue cinco características historicamente impor-
tantes da 'economia política' da verdade em nossas sociedades: ela está centrada no discurso
científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitaçáo polí-
tica e econômica; é objeto de difusão e consumo; é produzida e distribuída sob o controle
dominante de grandes aparatos políticos e econômicos; é a colocação em jogo do debate po-
lítico e das lutas sociais (DE3, ll2-Il3). A propósito da relação entre a política e a verdade
da
ou, de forma mais geral, entre o poder e a verdade, Foucault circunscreve sua concepção
verdade com cinco proposições: 1) "por'verdadel entender um conjunto de procedimentos
regrados para a produção, a lei, a repartição, a colocação em circulação e o funcionamento
dos enunciados"; 2) "a'verdade'está circularmente ligada aos sistemas de poder
que a produ-
'tste regime
zeÍ7 e asustentam e aos efeitos de poder que ela induz e que a acompanham'; 3)

[o regime de verdade] não é simplesmente ideológico: ele


foi uma condição da formação e do
desenvolvimento do capitalismo"; 4) 'b problema político essencial para o intelectual não é
criticar os conteúdos ideológicos ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica es-

teja acompanhada de uma ideologia justa, mas saber se é possível constituir uma nova políti-
ca da verdade"; 5) "não se trata de liberar a verdade de todo sistema de poder, o que seria uma
quimera, porque a verdade é em si mesma poder, mas de separar o poder da verdade das
formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais)" (DE3, 113- 114). Verdade-demons-
traçãoiVerdade-acontecimento. Em Le Pouvoir psychiatriqtze, Foucault esboça as gran-
des linhas de uma história da verdade, opondo a verdade como demonstração à verdade como
acontecimento. Por um lado, o saber científico supõe que existe a verdade por toda parte, a
todo instante, que qualquer pessoa, dotada dos instrumentos necessários, pode descobri-la,
e a ela aceder. "Digamos, para falar de modo mais esquemático, que nós encontramos aqui
uma determinada tecnologia da construção ou da verificação da verdade universal, com efei-
to, com uma tecnologia da demonstração. Digamos que temos aqui uma tecnologia da verdade

vERDADE.JOGODEVERDADE,VONTADEDEVERDADE (Veríte;Jeudeverité,volontédevéríte) 423


demonstrativa, que conforma, em definitivo, um único corpo com a yerdade científica' (PP,
236).Por outro lado, uma concepção da verdade mais arcaica que a anterior. Aqui, a verdade
aparece dispersa, descontinua, interrompida. Manifesta-se somente em determinados lugares
(por exemplo, em Delfos, na Antiguidade) e em determinados momentos. Trata-se de uma
verdade que tem sua geografia e seu calendário. Em lugar de um sujeito universal, essa verda-
de tem seus personagens privilegiados: os profetas, os adivinhos, os inocentes, os loucos, os
sábios. Não é uma verdade universal, mas, antes, um acontecimento. É necessário provocá-la.
Não encontramos aqui a serenidade receptiva do conhecimento, a contemplaçáo do já dado;
mas o enfrentamento, a estratégia. Aqui não é questáo de método, mas de poder. * Com res-
peito à relação entre história da filosofia e concepções da verdade, Foucault assinala: "Há
aqueles [referência a Heidegger] que têm o costume defazer a história da verdade em termos
do esquecimento do Ser. Por isso, essa gente - a partir do momento em que faz com que o
esquecimento desempenhe o papel de categoria fundamental da história da verdade- situa-se
desde o começo nos privilégios do conhecimento. Somente apoiando-se nessa relação admi-
tida, colocada de uma vez por todas, pode produzir-se o esquecimento do conhecimento de
algo. Consequentemente, penso que eles, no fundo, fazem apenas a história de uma das séries
que tratei de assinalar, a série da yerdade apofântica, da verdade-descobrimento, da verdade
constatação, demonstração. Eles situam-se dentro desta série" (PP, 237 ,238). Diferentemen-
te, a tarefa da arqueologia do saber é mostrar que a verdade-demonstração é somente um
episódio na história da verdade-acontecimento. Por isso, a genealogia do conhecimento é
necessariamente a outra face da arqueologia (PP,238,239). * Pois bem, a propósito do que se
pode denominar globalização da verdade-demonstração, Foucault quer mostrar como a ver-
dade acontecimento permaneceu no Ocidente. Esse é o caso das formas jurídicas e das práticas
médicas desde Hipócrates até o século XVIII (PP,239-242). Segundo Foucault, na história das
ciências empíricas, dois processos levaram à transformação da verdade-acontecimento em
verdade-demonstração. Por um lado, o procedimento político da "investigaç âci' (veja: Inves-
tigaçao). Por outro, um procedimento inverso, os procedimentos de "rarefação" (rarefoction)
dos sujeitos que podem conhecer a verdade. O sujeito universal da verdade é, definitivamen-
te, apenas um sujeito abstrato. O sujeito de fato é um sujeito qualificado, construído, nas e
pelas instâncias institucionais: as universidades, as escolas, os laboratórios, etc. * Nos vários
verbetes deste Vocabulario enftentamos a questão da verdade ou, melhor, a análise foucaul-
tiana dos jogos de verdade. Para a relação sujeito/verdad e,ver: Antiguidade, Ars erotica, Asce-
se, Confissão,Cristianismo, Cuidado, Descartes, Desejo, Erótica. Para a relação castigo/pro-
dução da verdade, ver: corpo. Para os jogos de verdade, ver. Edipo, Exame, Investigação.
Jeu de vérité [ 16]: DE4, 596, 632-633,7 t7 -718,724-227,804.

leux de vérité [43]: DE454t-542, 632-633,708-7Og,7tB-7 t9,724-727,730,792,784. Ii,S2, tZ-13.


Vérité [3357]:4N, 3, 7-9, 11, 14,25,26,79, 111, t20-121,1 28, 1 45- 148, tgs,2t2,2gt. A5, t3, 45,62,68,70,77 ,81,
108,118-119,12t,t30,146,155,158,162-163,168,179,t84,189,196-197,202,237,239240,248,252,265,268.D81,
70,75,78,82-83, 85-86, 92, 106, I 10, 1 14, 1 1 8, 120, I 38- 139 , 143-t44, t4g, 152 154, t56-157, 159-163, 165-166, t6g_173,
175-180,185, t92,t94,200,204,210,2t7,219,226 227,231,234,237,240,242,247-248,263,269,270,279,305,307,311,
315,328,330,332,337,347,358,362,378,393,405,412-415,420,146,448-464,497 ,511-513, 5 1 8-520, 523, 525, 538_539,
568,572,596,600,606,616, 626-627,629-630,642,647_648,686, 711, 714,731,739,741,754,756,762,765,777,782,
789,800,811. D82,7,28-29,67,77,79,94,96, 110_112, 129-, 130_133, t38_142,t46,149, 1s1, 153, lss,ts6, 16s_166,
t7\,191,226,238,242-243,246,254,258,260-261,289,294 295,308 309, 3 15, 3 i9, 341 ,346,348-349,366, 367_368, 383,

424 VERDADE,JOGODEVERDADE,VONTADEDEVERDADE(Vérité,'JEUdCVETitE,VAIONtEdEVéritE)
391,395-396,403,4t4,4rs, 420,429,434,479,480-482, 50 l, s08, 538-s39, 540-s4r, s43, 5 47 , s48,5s0,552-5s3, 555-56 I,
563, 567, 569, 570-571, 573-577, 581-585, 587, 588, 601, 626, 628-630, 632-635, 637 ,639, 644, 647, 650, 657, 675-684,
686,690, 693,697,752,78t,790,795,810-811,814,816. DE3,8,9, tl,29-31,73,75,77-78,90, l0l-105, 109, tll-114,
1.27 -128,133-137 , I 40, 148, I 54, 156, 1 58- I 60, 175-176,193,228,230,236,249,251 -252,256-258,26t,263,266,278,288,
312.,315-320,326,331 -332,361,404, 406-408, 4 t I, 4 14, 4t9,423-424,435-436,41t-442,459, 47 4, 488-489,499-500,537,
539-s40, 549, 556-ss7 ,564.565, s7 r-572,584,600,602,61s,633-634,658,661,67s,691,7 \2-7 1.3,7s2-7 53,788,791,795,
805,822. DE4, 19,27,29-30,40-4t,43-47,54-56.57,74,82,98, ilo,118-119,125-126,t29,t4r,117-148,152,157,163,
169, t7 r-172, 176-178,213,227 -229,236,254,256-257 ,307,327 ,361-362,364,367 ,392 393, 402-403,406-408, 4 10-4 12,

417, 418,420-422,429,442-445,450-451. 470,494,504-505,524,535-537 ,511 -543,545,552, 554--5-55, 570--§7 l, 580, 59t -


592,595 596,617-61.8,624,626-628,630,632-634,642,646,649,656-6s9,666,668-669,675,678,687,697-699,703,706,
708-709,7 11,7 15.7 t7 -719,723-727,730-73),733 734,769-77 1,7 t'5-777 ,782-784,787 ,796-800,80.3-805, 807-808, 8I 0,
812-814, 817, 824. I{F,22,26,29-32,37,39,4t-42,46-47,19-52,54,56,58,64,67 -68, 70, 86, I 1 1- I t3, 120, 135, 138-139,
I4 l, 1 43, r 58, 166, I 68, 1 83, l 87- I 88, 200-20 l, 206-2r0,2t5,2t8,22t 223,225,227 ,233,239,242-216,251 -253,255-256,
264-266,270,290,296-297 ,300,302-304,307 -309,311-320,322-324,326,330,337 ,341-343,345, .150-35 1, 384,405-407 ,

41t,413,4t5-42).,423,426-428,434-441,450,457,459-460,464-465,467,469,471-472,475-476,485,489 490,499,523,
532,538,542-546,548-552,555,560-562,565-567,57t-572,574-575,576,578,584-586,588,590-591,595 598,600,607,
610, 612, 6),4-615, 617 -619, 633-638, 640-614, 646, 648-649, 651-654, 656-657 ,66 I -663. HS, 3-5, 7-8, 1 5-2 1, 26-32, 41,
46-48,60-6r,7 5-7 6, 94, 1 00, 1I 4, I 20, I 35, t41,165, t7 1-17 3, \79-184,201.,209.2\6,223,D6 227 ,232 233,240,213,245,
250,256,264,278-279,283,295,298, 302-305, 3 I l, 3 i4, 3I 6-3 18, 32 1 -323, 128, 33 I -334, 338, 340, 342, 344-348, 350-353,

355,362-367,370-37t,373-374,377,383-384,387 393,398,425,432-433.435,437,441-412,411,454,459-460,46-1-464,
467-469.HS1,10,12,14-15,20,71,73-78,80-84,86-89,91-95,97,r01 105,128,155,t70,173,206-208,210.HS2,11-15,
17,26-27,30,39,.11, 44,91,99, i02-103, 106-107, t78,210,251-253,258-269,276-278.H53,2-5,85, 160, 166-168, 185-

t86,223,232,234,255-257,259.1DS, 21-23, 45-50, 63, 145- 146, 152,154, t59,164-165, 185, 204, 207,211-212. MC,49,
5 1,52, 51, 55,56.6t-62,70, 83-84, 88,94-95, 109, I I l, r33, 142, 150, 158, 204,217,221,223,230.252,272-273,275, 311,
322,324,328, 330-334, 338,342,344,347,352-353, 387. MMPE,29,36,54,58,79,87,1 10. MMPS, 29, 36,54,58,76,79,
82,8889,91,98,102 l03.NC,lX-X,XII,2,4,6,8,16,34,37-39,42,48-49,51,54-56,58-60,63-65,68,70,79,90-95,100,
104,108-112,1151t7,120-122,126,139,143,145-149,156,158,161-162,t64,t69-t70,176,178,193,200,203.OD,12-
22,29,33,47,48,50-51,53-54,64,79. PP, 8, 10, 12,15,2t,27 29,33 37,4\,42,87-88, 91, 95, 103, I 07, 121, 123, 130- 1 39,

143,150,156-161,170,174,183-185,188 189,196,202-203,233,243,245-251,255^258,262,265,267,269,275,287,293,
306-307,318,324-325. RR, 14,28 29,36,67,77,102, 112, I 18, 145, 197,205,208.5P,1r,24,27,39-50,59-60,69-70,99,
1 00, 104, I 83, 1 87, 196, l 98- I 99, 2 I 3, 226, 228, 240, 255, 260, 263 264.

Volonté de yérité [26]:D81,152.DI!,Z,156,212,634.DF,3,228,261. DE4, 82, 444. HSl,74.OD,16,18'22' 53-54.

vÉRDADE,JOGODEVERDADE,VONTADEDEVERDADE \Vérité;Jeudeverité,Volontédevérite) 425


:ij: WEBER, Max (1864-1920)

Foucault inscreve seu trabalho na linha, entre outros, de Weber, da reflexão histórica acerca
de nós mesmos, da análise histórica das relações entre a reflexão e as práticas nas sociedades
ocidentais (DE4, 814). Mas marca, com relação a Weber, várias diferenças. Tipo ideal. A
categoria de "tipo ideal" é uma categoria de interpretação histórica com a qual o historiaclor
vincula determinados dados, capta uma essência (do calvinismo ou do capitalismo) a partir
de princípios gerais que, ainda que não estejam presentes em seu pensamento, permitem
compreender o comportamento dos indivíduos. Para Foucault, a análise do aprisionamento
penal, da psiquiatrização da loucura ou da organizaçáo de domínio da sexualidade não é uma
análise em termos de tipos ideais. Por várias razões. Os esquemas racionais da prisão ou do
hospital não são princípios gerais que só o trabalho interpretativo do historiador permitiria
descobrir; são programas explícitos. A disciplina, por exemplo, não é a expressão de um tipo
ideal, mas a generalização e a vinculação de diferentes técnicas ordenadas para objetivos
locais (o ensino, o adestramento militar). Esses programas não passam integralmente pelas
instituições. "Programas, tecnologias, dispositivos; nada de tudo isto é um'tipo ideal"'(DE4,
28). Ascetismo. \Veber colocou a questão de saber a que parte de si mesmo é necessário
renunciar, se se quer adotar um comportamento racional e regular a conduta em função de
principios verdadeiros. Foucault colocou a questão inversa: "Que se deve conhecer de si mesno
afim de aceitar a renúncia?" (DE4, 784). Foucault usa o termo "ascetismo" com um sentido
mais geral que Weber: não como moral da renúncia, mas como exercício do sujeito sobre si
mesmo (DE4, 709). Yer Ascetistto. Iluminismo. "Digamos, em todo caso> que a filosofia
alemã deu [à questão filosófica do Iluminismo] corpo, sobretudo em uma reflexão histórica e
política sobrea sociedade (com um problema central: a experiência religiosa em sua relação
com a economia e o Estado). Dos pós-hegelianos à Escola de Frankfurt e a Lukacs, passando
por Feuerbach, Marx, Nietzsche e Max Weber, todos dão testemunho disso. Na França, é a
história das ciências que serviu de suporte à questão filosófica do que foi o Iluminismo. De
certa maneira, as críticas de Saint-Simon, o positivismo de Comte e de seus sucessores foi uma
maneira de retomar a interrogação de Mendelssohn e a de Kant ao nível de uma história geral

426 WEBER, Max


das sociedades" (DE4, 766). Apartir de Max Weber, a Escola de Frankfurt e muitos historia-
dores das ciências buscam determinar qual é a forma de racionalidade que se apresenta como
dominante e como modelo da razao, para fazê-la aparecer somente como uma das formas
possíveis da racionalidade (D84, aa9)'
MaxWeber [21]:D82,378.DF,3,432,823.Dr. ,27,279,438,440-441,446-447,562,647,655,688,709,766,784,814.

WEBER, Max 427


ãs3" XENOFONTE (430 a.c.-354 a.C.)

Encontramos em Foucault numerosas referências às obras de Xenofonte que se situam no


contexto da análise do tema do cuidado de si mesmo na Antiguidade. As referências a Xenofonte
são a propósito dos seguintes temas: * O Agesilao de Xenofonte aparece como um modelo
de domínio sobre si mesmo, que renunciava a abraçar aos que se amava (H52, 27 , 7l; DE4,
552). . A relação entre o olhar e o prazeL ou seja, da necessidade de dominar essa abertura
direta à alma (HS2, 50). * O caráter comum, aos homens e aos animais, dos aphrodísia (H52,
59). + Os preceitos de conduta de Sócrates com respeito aos prazeres do beber, do comer e
do amor (Hs2, 61-66). * sobre ciro como exemplo de temperança e sobre a temperança em
geral (HS2, 69-78, 105). * A intemperança como mau governo de si mesmo (HS2, 82-84).
* A valorização positiva da educação
espartana. A continuidade entre o governo da própria
casa, da cidade e de si mesmo. A necessidade de exercitar-se no governo de si mesmo (HS2,
87-92,138;D84,721). * O elogio da "alma viril" da esposa (HS2, 97-98). * A relação entre
liberdade temperança, e entre temperança e dialética (HS2, 99-101). * os deveres conjugais
e
e o governo da própria casa. Aqui as referências fundamentais sâo aEconômica de Xenofonte
(HS2, 166-167,171-195;HS3,97, 173, 188-189; HS,82; D84,399).* As relações amorosas
com os mancebos (H52,220-225,245-246,256-257,261). A opção entre mulheres ou homens
não expressa duas tendências opostas do desejo (HS2, 209).
Xenophon [1]:}{53,282.
Xénophon [181 ]: DE4,355, 388, 399-400, 406, 552, 6t3, 623, 627, 67 4,721.,786. HS, 6,22,34, 42,82,97, gg, 155,
161,217,431,434.}l52,27,45,48,50,53,5556,59,6t,65_67,69_72,75,77_78,82 84,86_88,9\,93_95,97,99_101,103,
105,117,123,138 139,161,164,166-167,169-172,174-175,179,181-184, 193-196,199,201-202,208,210,214,2t8,220,
222,224,244,246,256-257 ,26t,266,285. HS3, 58, 64_65, 97, 1 73, 188_ I 89. 258,272.280.

42 8 xENoFoNTE
2§4. zEN

Yer: Religiao.
Zen [55] : DE3, 527, 592, 618'622, 624. HS, 219.

zEN 429
AS OBRAS E AS PAGINAS

A seguir, as páginas que correspondem às obras de Foucault contempladas neste Vocabu-


lário, agrupadas em Livros, Ditos e Cursos. Para os Dits et écrits, acrescentamos o título do
texto (verbete, entrevista, intervenção) e, para os cursos no Collêge de France, a data da aula.
Todos os títulos desta seção estão em francês e em português.

a) Lrvnos
AS = tarchéologie du savoir (A arqueologia do saber). Edição utilizada: Paris, Gallimard,
1984.

Pág. Título Português


7l
29 II Les régularités discursives (IL As regularidades discursivas)
3l I Les unités du discours. (1. As unidades do discurso)

44 II Les formations discursives, (2. As formaçoes discursivas)

55 III La formation des objets. (3. A Íbrmação dos objetos)

68 IV La formation des modalités énonciatives. (4. A formação das rnodalidades enunciativas)

75 V I.a formation des concepts. (5. A formaçào dos conceitos)

85 VI La formation des strategies. (6. A l-ormação das estratégias)

94 VII Remarques et conséquences. (Observaçôes e consequências)

f03 III Iénoncé et l'archive (III. O enunciado e o arquir,o)

105 I Définir lénoncé. (1. DeÍinir o enunciado)

116 II La fonction énonciative. (2. A funçâo enunciativa)

f39 III La description des énoncés. (3. A descrição dos enunciados)

f 55 IV Rareté, extériorité, cumul. (4. Raridade, exterioridade, acumulação)

166 V IJa priori historique et l'archive. (5. O a priori histórico e o arquivo)

175 Ma description archéologique (lV A descrição arqueológica)

431
177 | Archéologie et histoire des idées. ( l. Arqueologia e história das ideias)
184 II loriginal et le régulier. (2. O original e o regular)

f95 III Les contradictions. (3. As contradições)

205 Mes faits comparatifs. (4. Os fatos comparativos)

216 Y Le changement et les transformations. (5. A mudança e as transformações)

232 Yl Science et savoir. (6. Ciência e saber)

257 Y (Conclusão)

HF = Histoire de la folie à lkge classique (História da loucura na época clássica). Edição utili-
zada: Paris, Gallimard, 1999.

Pág. Título Português


7 Préface (Prefácio)

13 Premiêre Partie (Primeira parte)


15 Chap.I. "Stultifera Navis". (Capítulo I. " A nave dos loucos ")

67 II. Le grand renfermement. (ll. A grande clausura)


I l0 III. Le monde correctionnaire. (lll. O mundo correcional)

148 IV. Expériences de la folie. (IV Experiências da loucura)

179 y. Les insensés. (V. Os insensatos)

213 Deuúême Partie (Segunda parte)

215 Introduction (lntrodução)


229 chap. I. Le fou au jardin des espêces. (cap. I. o louco no jardim das espécies)
268 ll. La Transcendance du délire. (A transcendência do delírio)
319 III. Figures de la folie. (Figuras da loucura)
375 ly. Médecins et malades. (Médicos e enfermos)
429 Troisiême Partie (Terceira parte)
431 Introduction (Introdução)
443 Chap.I.LaGrandePeur. (Cap.I.Ograndemedo)
477 II.LeNouveauPartage (ll.Anovadivisão)
525 lll. Du Bon Usage De La Liberté. (III. Do bom uso da liberdade)
576 lV, Naissance De Ilasile. (IV. O nascimento do asilo)
633 V. Le Cercle Anthropologique. (V O círculo antropológico)
667 Notes (Notas)
681 Bibliographie (Bibliografia)
IISI = Histoire de la sexualité 1. La volonté de sayoir (História da sexualidade j. A vontarle de
saber). Ediçáo utilizada: Paris, Gallimard, 1986.

Pág. Título português


7 I. Nous autres, victoriens (1. Nós, vitorianos)
23 II. Iihypothêse répressive (ll. A hipótese repressiva)
25 l. Ilincitation aux discours (1. A incitação aos discursos)

50 2. Ilimplantation perverse (2. A implantação perversa)

69 III. Scientia sexualis (IIL Scie nt i a s e xu al i s)

99 IV. Le dispositif de sexualité (lV. O dispositivo de sexualidade)

lO7 l.Enjeu (i. O que está em jogo)

l2l 2. Méthode (2. Método)

f 36 3. Domaine (3. Domínio)

152 4. Périodisation (4. Periodização)

175 Y, Droit de mort et pouvoir sur la vie (V. Direito de morte e poder sobre a vida)

IJS2 = Histoire de la sexualité 2. Ilusage des plaisirs (História da sexualidade 2. O uso dos prazeres).
Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1984.
Pág. Título Português
7 Introduction (Intodução)

4l L La problématisation morale des plaisirs (l - A problematizaçao moral dos


prazeres)

47 l. Aphrodisia (1. Aphrodísia)

63 2. Chresis (2. Chrésis)

74 3. Enkrateia (3. Enkrateia)


91 4. Liberté et vérité (4. Liberdade e verdade)

r09 II. Diététique (II. Dietética)

ll3 l. Du régime en général (1. Do regime em geral)

124 2. La diàte des plaisirs (2. A dieta dos prazeres)

133 3. Risques et dangers (3. Riscos e perigos)

l4l 4. tacte, la dépense, la mort (4. O ato, o gasto, a morte)

157 lll.Économique (lll. Econômica)

159 f . La sagesse du mariage (1. A sabedoria do casamento)

169 2. La maisonnée d'Ischomaque (2. A econômica de Isômaco)

184 3. Trois politiques de la tempérance (3. Três políticas da tolerância)

205 lV.Érotique (lV Erótica)


207 l. Une relation problématique (L Uma relação problemática)

225 2. thonneur d'un garçon (2. A honra de um rapaz)

237 3. Ilobjet du plaisir (3. O objeto do prazer)

249 Y. Le véritable amour (V. O verdadeiro amor)

271 Conclusion (Conclusão)

433
HS3 = Histoire de la sexualité 3. Le souci de soi (História da sexualidade 3. O cuidado de si).
Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1984.

Pág. Título Português


13 I. Rêver de ses plaisirs (Sonhar com seus prazeres)

f6 l. La méthode dArtémidore (O metodo de Artemidoro)

30 tanalyse
2. (A análise)

39 3. Le songe etlhcte (O sonho e o ato)

5l II. La culture de soi (A cultura de si)

87 III. Soi et les autres (Si mesmo e os outros)

90 l. Le rôle matrimonial (O papel matrimonial)

l0l 2.Lejeupolitique (Ojogo político)

119 IV. Le corps (O corpo)

127 l. Galien (Galeno)

134 2. Sont-ils bons, sont-ils mauvais? (Eles são bons, eles são maus?)

147 3. Le régime des plaisirs (O regime dos prazeres)

157 4. Le travail de lkme (O trabalho da alma)

l7l Y. La femme (A mulher)

177 l.Lelienconjugal (Onexoconjugal)

193 2. La question du monopole (A questão do monopólio)

206 3. Les plaisirs du mariage (Os prazeres do casamento)

2I7 Vl.Lesgarçons (Osrapazes)

224 l. Plutarque (Plutarco)

243 2. Le Pseudo-Lucien (O Pseudo-Luciano)

262 3. Une nouvelle érotique (Uma nova erótica)

267 Conclusion (Conclusão)

MC = Ies mots et les choses, Une archéologie des sciences humanires (As palavras e as coisas.
Uma arqueologia das ciências humanas). Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1986.

Pág. Título Português


7 Préface (Prefácio)

19 Chapitre I: Les suivantes. (Capituio I: As meninas)

32 Chapitre II: La prose du monde. (Capítulo II: A prosa do mundo)

32 I. Les quatre similitudes (As quatro similitudes)

40 II. Les signatures (As assinalações)

45 III. Les limites du monde (Os limites do mundo)

49 IV. Ijécriture des choses (A escrita das coisas)

434
57 V. Lêtre du langage (O ser da linguagem)

60 Chapitre III: Représenter (Capítulo III: Representar)

60 I. Don Quichotte (Dom Quixote)

64 IL lordre (A ordem)

72 III. La représentation du signe (A representação do signo)

77 IV. La représentation redoublée (A representação duplicada)

8f V. limagination de la ressemblance (A imaginação da semelhança)

86 Yl. Mathesis et taxinomia (Máthesis e taxonomia)

92 Chapitre IV: Parler (Falar)

92 I. Critique et commentaire (Crítica e comentário)


95 II. La grammaire générale (A gramática geral)

107 III. La theorie du Verbe (A teoria do verbo)

f 11 IV. Larticulation (A articulação)

119 V. La désignation (A designação)

125 VI. La dérivation (A derivação)

f3f VII. Le quadrilatêre du langage (O quadrilátero da linguagem)

137 Chapitre V: Classer (Capítulo V: Classificar)

137 L Ce que disent les historiens (O que dizem os historiadores)

140 II. lhistoire naturelle (A história natural)

144 IlI. La structure (A estrutura)

150 IV. Le caractêre (O caráter)

158 V. Le continu et la catastrophe (O contínuo e a catástrofe)

f 63 VI. Monstres et fossiles (Monstros e fósseis)

170 VII. Le discours de la nature (O discurso da natureza)

177 Chapitre VI: Échanger (Capítulo VI: Trocar)

177 l. lanalyse des richesses (A análise das riquezas)

180 II. Monnaie et prix (Moeda e preço)

185 III. Le mercantilisme (O mercantilismo)

192 IY. Le gage et le prix (Openhoreopreço)

202 V. La formation de la Valeur (A formação do valor)

209 Yl.I-utilité (A utilidade)

214 VIl. Tableau général (Quadro geral)

221 Vlll. Le désir et la représentation (O desejo e a representação)

229 Chapitre VII: Les limites de (Capítulo VII: Os limites da representação)


la représentation
229 I. IJâge de l'histoire (A idade da história)

43 s
233 ll. La mesure du travail (A medida do trabalho)

238 III. Iiorganisation des êtres (A organização dos seres)

245 IV. La flexion des mots (A flexão das palavras)

249 Y.Idéologie et critique (Ideologia e crítica)

256 YI. Les synthêses objectives (As sínteses objetivas)

262 CHAPITRE VIII: Travail, vie, langage (Capítulo VIII: Trabalho, vida, linguagem)
262 l. Les nouvelles empiricités (As novas empiricidades)

265 ll.Ricardo
275 lll.Cuvier
292 lY.Bopp
307 Y. Le langage devenu objet (A linguagem convertida em objeto)

314 Chapitre IX: Ihomme et ses doubles (Capítulo IX: O homem e seus duplos)

314 l.Le retour du langage (O retorno da linguagem)

3r8 II. La place du Roi (O lugar do rei)

323 lIl. I-analytique de la finitude (A analítica da finitude)

329 lV.IJempirique et le transcendantal (O empírico e o transcendental)

333 V. Le cogito et l'impensé (O cogito e o impensado)

339 VI. Le recul et le retour de lbrigine (O retrocesso e o retorno da origem)

346 Vll. Le discours et lêtre de l'homme (O discurso e o ser do homen)

35MII. Le sommeil anthropologique (O sonho antropológico)

355 Chapitre X: Les sciences humaines (As ciências humanas)

355 I. Le triêdre des savoirs (O triedro dos saberes)

360 II. La forme des sciences humaines (A forma das ciências humanas)

366 III. Les trois modêles (Os três modelos)

378 lY. ühistoire (A história)

385 V. Psychanalyse, ethnologie (Psicaná1ise, etnologia)

398 VL

MMPE = Maladie mentale et personnalité (Doença mental e personalidade). Ediçâo utilizada:


Paris, PUR 1954.

Pág. Título Português


I Introduction (lntroduçáo)

3 mentale
Chapitre Premier. Médecine (Capítulo primeiro. Medicina mental e

organique
et médecine medicina orgânica)

19 Premiêre partie. Les dimensions (Primeira parte. As dimensões psicológicas da


psychologiques de la maladie. doença. Capítulo II. A doença e a evolução)
Chapitre IL La maladie et lévolution

436
36 Chapitre III. La maladie et (Capítulo IIL A doença e a história individual)
l'histoire individuelle
53 Chapitre IV. La maladie et l'eístence (Capítulo IV. A doença e a existência)

7l Deuxiême partie. Les conditions de la maladie. (Segunda parte. As condições da doença.


Introduction Introdução)

76 historique
Chapitre V. La sens (Capítulo V. O sentido histórico da alienação
de làliénation mentale. mental)

9l Chapitre VI. La psychologie du conflit. (Capítulo VI. A psicologia do conflito)

103 Conclusion (Conclusão)

I I I Quelques dates dans l'histoire de la psychiatrie (Algumas datas na história da psiquiatria)

MMPS = Maladie mentale et psychologie (Doença mental e psicologia). F,diçío utilizada: Paris,
PUR 1997.

Pág. Título Português


I Introduction (lntrodução)

3 Chapitre Premier. Médecine mentale (Capítulo primeiro. Medicina mental e medicina


et médecine organique orgânica)

f 9 Premiêre partie. Les dimensions psychologiques (Primeira parte. As dimensões psicológicas da


de la maladie. Chapitre II. doença. Capítulo II. A doença e a evolução)
La maladie et ltvolution

36 Chapitre IIL La maladie et l'histoire individuelle (capitulo III. A doença e a história individual)

53 Chapitre IV. La maladie et I'existence (Capítulo IV. A doença e a existência)

7l Deuxiême partie. Folie et culture. Introduction (Segunda parte. Loucura e cultura. Introdução)

76 Chapitre V. La constitution historique de (Capitulo V. A constituição histórica da


la maladie mentale, doença mental)

90 Chapitre VL La folie, structure globale. (Capítulo VI. A loucura, estrutura global)

102 Conclusion (Conclusão)

105 Quelques dates dans l'histoire (Algumas datas na história da psiquiatria)


de la psychiatrie
NC = Ia naissance de la clinique (O nascimento da clínica). Ediçâo utilizada: Paris, PUR
r988.

Pág. Titulo Português

V Préface (Prefácio)

I Chapitre premier. - Espaces et classes (Capítulo primeiro, Espaços e classes)

2l II. - Une conscience politique (Uma consciência poiítica)

37 III. - Le champ libre (O campo livre)

53 IV. - Vieillesse de la clinique (Velhice da clínica)

437
63 V. - La leçon des hôpitaux (A lição dos hospitais)

87 VI. - Des signes et des cas (Sobre os signos e os casos)

f 07 VIL - Voir, savoir (Ver, saber)

1 25 VIII. - Ouvrez quelques cadavres (Abram alguns cadáveres)

f 5l IX. Iiinvisible visible (O invisível visível)

177 X. La crise des fiêvres (A crise das febres)

199 Conclusion (Conclusão)

OD = tordre du discours (A ordem do discurso). Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1986.


Este breve texto náo contém divisões.

RR = Raymond Roussel. Edição utilizada: Paris, Gallimard, L992.

Pág. Título Português

7 ll. Le seuil et la clef. (O umbral e a chave)

2t lll.. Les bandes du billard. (As bandas do bilhar)

4l lY. Rime et raison. (Rima e razão)

65 Y. Aubes, mine, cristal. (Alvoradas, mina, cristai)

96 YL La métamorphose et le labyrinthe. (A metamorfose e o labirinto)

125 Vll. La surfoce des choses, (A superfície das coisas)

f 57 VIII. La lentille vide. (A lenticula vazia)

195 IX. Le soleil enfermé. (O sol aprisionado)

SP = Surteiller et punir, Naissance de la prison, (Vigiar e punir. O nascimento da prisao.).


Edição utilizada: Paris, Gallimard., 1987.

Pág. Título Português


7 I Supplice (Suplício)

9 I. Le corps des condamnés (O corpo dos condenados)

36 II. féclatdes supplices (A ostentação dos supiícios)

73 II Punition (Punição)

75 I. La punition généralisée (A punição generalizada)

106 II. La douceur des peines (A mitigação das penas )

135 III Discipline (Disciplina)

137 I. Les corps dociles (1. Os corpos dóceis)

143 Ilart des répartitions (A arte das distribuições)

l5l Le controle de làctivité (O controle da atividade)

158 Iiorganisation des genêses (A organização das gêneses)

164 La composition des forces (A composição das forças)

438
172 ll. dressement
Les moyens du bon (lI. os recursos para o bom adestramento)
173 La surveillance hierarchique (A vigilância hierárquica)

180 La sanction normalisatrice (A sanção normalizadora)


186 Lexamen (O exame)

197 Ill. Le panoptisme (lll. O panoptismo)

231 lY Prison (Prisão)

233 I. Des institutions complêtes et austêres (Instituiçoes completas e austeras)

261 ll.Illegalismes et délinquance (Ilegalidades e delinquência)

300 III. Le carcéral (O carcerário)

b) Drrs Er ÉcRrrs
DEI = Dits et écrits I (Ditos e escrlÍos, volume I). Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1994. Os números

[entre colchetes] correspondem à numeração dos textos.

1954
Pág. Título Português

65 [l] Introduction, in Binswanger (L.), (lntrodução, ln Binswanger, L.,O sonho ea

l'Existence
Le Rêve et existência)

1957
Pág. Título Português
120 Í21 La 1950
psychologie de 1850 à (A psicologia de 1850 a 1950)

137 Í31 La recherche scientifique (A investigação científlca e a psicologia)


et la psychologie

l96l
Pág. Título Português
159 [4] Préface, in Foucault (M.), (Prefácio, em Foucault, M, Loucura
Folie et Déraison, Histoire de lafolie e sem-razão. História da loucura na
lkge classique época clássica)

167 [5) La folie n'existe que dans une société (A loucura só existe em uma sociedade)

l7O 16l Alexandre Koyre: La Révolution (Alexandre Koyré: A revolução astronômica,


astronomique,Copernic,Kepler,Borelli Copérnico,Kepler,Borelli)

1962
Pág. Título Português
172 Í71 Introduction, in Rousseau (J. J.), (lntrodução, ln Rousseau, J.-I.,Rousseau
Rousseau juge de Jean-Jacques. Dialogues juiz de lean-lacques. Diálogos)

189 [8] Le "non" du pêre (O "não" do pai)

203 Í91 Le cycle des grenouilles (O ciclo das rãs)

439
205 [10] Dire et voir chez Raymond Roussel (Dizer e ver em Raymond Roussel)

215 [11] Unsicruelsavoir (Umsabertãocruel)

1963
Pág. Título Português

229 ll2) W:áchter übe die Nacht der Menschen (Sereno da noite dos homens. Sobre Rolf
("Veilteur de la nuit des hommes. Italiaander)
Sur RolfItaliaander")
233 ll3) Préface à la transgression (Prefácio à transgressão. Em homenagem a

(en hommage à Georges Bataille) Georges Bataille)

25O ll4) Le langage l'infini


à (A linguagem ao infinito)

261 ll5l Guetter le jour qui vient (Esperar o dia que vem)

263 [16] Ijeauetlafolie (Aáguaealoucura)

272 ll7) Distance, aspect, origine (Distância, aspecto, origem)

285 [lS] fJn "nouveau roman" de terreur (Um "novo romance" de terror)

t964
Pá9. Título Português
288 [19] Notice historique, im Kant (E.), (Notícia histórica, inKant,E., Antropologia
Anthropologie du point de tue pragmatique desde o ponto de ttista pragmático)

293 l20l Postface à Flaubert (G.), Die Versuchung (Posfácio a Flaubert, G, A tentaçao de
d.es Heiligen Antonius (La Tentation Santo Antônio)
de saint Antoine)
326 Í21)Laprosedâctéon (AprosadeActeón)
338 122) Débat sur le roman (Debate sobre o romance)

390 Í231Débat sur la poésie (Debate sobre a poesia)

407 Í24)Lelangagedeltspace (Alinguagemdoespaço)

4I2 125] La folie, l'absence d'euvre (A loucura, a ausência de obra)

421 126l Pourquoi réédite-t-on lbeuvre (Por que se reedita a obra de Raymond
de Raymond Roussel? Un précurseur de Roussel? Um precursor da nossa literatura
moderne
notre littérature moderna)
424 Í27) Les mots qui saignent (As palavras que sangram. Sobre Á Eneida
(Sar tÉ,néide de P. Klossowski) de P. Kiossowski)

427 [28)Le Mallarmé de J.-P. Richard (O Mallarmé de ].-P. Richard)


437 [29] Lobligation décrire (A obrigaçáo de escrever)

1965
Pág. Título Português

438 [30] Philosophie et psychologie (Filosofia e psicologia)

448 [31] Philosophie et vérité (Filosofia e verdade)

464 Í321 Les Suivantes (As meninas)

440
1966
Pág. Título Português
479 l33l La prose du monde (A prosa do mundo)

498 [34] Michel Foucault, (Michel Foucault, Áspalavras e as coisas)


Les Mots et les Choses

504 [35] À la recherche du présent perdu (Em busca do tempo perdido)

506 [36] Ijarriêre-fable (A fábula posterior)

513 l3Tl Entretien avec Madeleine Chapsal (Conversa com Madeleine Chapsal)

518 [38] La pensée du dehors (O pensamento do fora)

540 [39] Ijhomme est-il mort? (O homem está morto?)

545 l40l Une histoire restée muette (Uma história que frcou muda)

549 l4ll Michel Foucault et Gilles Deleuze (Michel Foucault e Gilles Deleuze querem
visage
veulent rendre à Nietzsche son vrai devolver a Nietzsche seu verdadeiro rosto)

552 l42l Qu'est-ce que un philosophe? (Que é um filósofo?)

554 Í43) Cétait un nageur entre deux mots (Era um nadador entre duas palavras)

557 lM) Message ou bruit ? (Mensagem ou ruído?)

1967
Pá9. Título Português

561 [45] Introductiongénérale auxCBuvres (lntroduçãogeralàs Obrasfilosóficas


philosophiques complàtes de F. Nietzsche compleÍas de F. Nietzsche)
564 146) Nietzsche, Freud, Marx
580 Í47) La philosophie structuraliste (A filosofia estruhrralista permite diagnosticar
permet de diagnostiquer ce qutst o que é a "atualidade")

"aujourd'hui"
585 [48] Sur les façons décrire l'histoire (Sobre as maneiras de escrever a história)

600 [49] La Grammaire générale de Port-Royal (A gramática geral de Port-Royal)

601 [50] Che cosê Lei Professor Foucault? (Quem éo senhor, Professor Foucault?)
("Qui êtes-vous, professeur Foucault?")
620 [5]) Les mots et les images (As palavras e as imagens)

1968
Pág. Título Português

624 [52) Les déviations religieuses (Os desvios religiosos e o saber médico)
et le savoir médical

635 [53] Ceci n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo)

651 [54] En intervu med Michel Foucault (Entrevista com Michel Foucault)
("Interview avec Michel Foucault")
662 l55l Foucault répond à Sartre (Foucault responde a Sartre)

441
669 [56) Une mise au point de Michel Foucault (Uma regulagem de Michel Foucault)

670 Í57) Lettre de Michel Foucault (Carta de Michel Foucault a facques Proust)
à )acques Proust
673 question
158) Réponse à une (Resposta a uma pergunta)

696 [59) Sur làrchéologie des sciences. (Sobre a arqueologia das ciências. Resposta

Réponse au Cercle dépistémologie ao Círculo de Epistemologia)

1969

Pág. Título Português

[60] Introduction, in Arnauld (4.) et Nicole (P.), (lntrodução, in Arnauld, A. e Nicole, P.,

Grammaire générale et raisonnée Gramática geral e arrazoada)

752 Í6ll Conversazione con Michel Foucault (Conversa com Michel Foucault)
("Conversation avec M. Foucault")
753 162l Médecins, juges et sorciers (Médicos, juizes e bruxas no século XVII)
au XVIIe siêcle
766 Í631 Maxirne Defert
767 [64] Ariane s'est pendue (Ariane se enforcou)

771 líSlPrécision (Precisão)

771 166l Michel Foucault explique (Michel Foucault explica seu último livro)
son dernier livre

779 Í67) |ean Hyppolite. 1907-1968

786 [68] La naissance d'un monde (O nascimento de um mundo)

789 Í69) Qu'est-ce qu'un auteur? (Que é um autor?)


821 Í7Ol Linguistique et sciences sociales (Linguística e ciências sociais)

842 [7l]Titresettravaux (Títulosetrabalhos)

DE2 = Dits et étits II (Ditos e escritos,volume II). Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1994. Os
números Ientre colchetes] correspondem à numeração dos textos.

1970
Pág. Titulo Português
7 [72] Foreword to the English Edition (Prefácio à edição inglesa, em Foucault, M.,
("Préface à lédition anglaise"), in As palavras e as coisas)
Foucault (M.), The Order of Things

l3 [73] Sept propos sur le septiême ange (Sete propostas sobre o sétimo anjo)

25 [74] Présentation, in Bataille (G.), (Apresentação em Bataille, G.,


CÜutres complàtes Obras completas)

27 [75)La Bibliothêque fantastique (A biblioteca fantásrica)

442
27 {76)lnRevue d'histoire des sciences Discussão sobre uma exposição de F.

et deleurs applications (Discussion sur un Dagognet: "Cuvier")


exposé de F. Dagognet: "Cuvier") (inRevue
d'histoire des sciences et de leurs applications,

30 1771La situation de Cuvier dans (A situação de Cuvier na história da bioiogia)


l'histoire de la biologie
67 Vincennes
[78] Le piêge de (A armadilha de Vincennes)

74 [79] Il y aura scandale, mais... (Haverá escândalo, mas... (Sobre Pierre


(sur Pierre Guyorat) Guyorat))

75 [80] Theatrum philosophicum (Teatro filosófico)

99 [81] Croitre et multiplier (Crescer e multiplicar. Sobre François lacob))


(sur François facob)
104 [82] Kyôki, bungaku, shakai (Loucura, literatura, sociedade)
("Folie, littérature, société")
128 [83] Kyôki to shakai ("La folie et la sociétd') (A loucura ea sociedade)

r97r
Pág. Título Português

136 [84] Nietzsche, la genéalogie, l'histoire (Nietzsche, a genealogia, a história)

157 [85] Entrevista com Michel Foucault (Entrevista com Michel Foucault. Sobre Á
"Entretien avec Michel Foucault") arqueologia do saber)
(Sur l)Archéologie ilu savoir)

174 l861Tract ronéotypé (Manifeste du G.I.P.) (Folheto. Manifesto do G.I.P. 8 de fevereiro


8 février 1971. de l97l)
L75 Í871 (Sur les prisons) in lhccuse, n" 3, (Sobre as prisôes fu, Jhccuse, n' 3, 15 de
15 mars 1971,p.26 março de 1971,p.26, Grupo de informação
Groupe d'information sur les Pri§ons) sobre as prisões)

176 [88] Enquête prisons:


sur les (lnvestigação sobre as prisôes: IomPamos as

brisons les barreaux du silence barreiras do silêncio)

182 [89] A conversation with Michel Foucault (Conversa com M. Foucault)


("Conversation avec Michel Foucault",
Partisan Review)
193 [90] La prison partout (A prisão por todos os lados)

195 [91] Préface àEnquêtedansvingtprisons (Prefácio àpesquisaemvinteprisões)

L98 [gz)Ijarticle 15(Iiaflaire]aubert) (Oartigo 15.Oassunto]aubert)

199 193) Rapports de la commission (Informes da comissão de informação sobre


Iaubert
d'information sur làffaire o assunto ]aubert)

203 l'intolérable
194) |e perçois (Percebo o intoleráve1)

205 [95] Un problême m'intéresse depuis (Um problema me interessa há muito


longtemps, c'est celui du systême pénal tempo: o do sistema penal)

443
209 196) Foucault
Lettre de Michel (Carta de Michel Foucault)

214 197) Monstrosities in Criticism (As monstruosidades da crítica)


("Les monstruosités de la critique")

223 Í98) Par-delà le bien et le mal (Para além do bem e o mal (Entrevista,

Actuel)
(Entretien, Actuel))

236 [99)LediscoursdeToul (OdiscursodeToul)


239 [100] Foucault Responds (Foucault responde)
("Foucault répond")
240 [101] La volonté de savoir (A vontade de saber)

1972
Pág. Título Português

245 ll02l Mon corps, ce papier, ce feu (Meu corpo, este papel, este fogo)

268 [103] Rekishi heno kaiki (Voltar à história) "Revenir à


l'histoire")
281 [104] Michel Foucault Derrida e (Resposta a Derrida)

no kaino "Réponse à Derrida")


296 Ílo5) Die Grosse Einsperrung (A grande ciausura)
("Le grand enfermement")
306 [106] Les intellectuels et le pouvoir (Os intelectuais e o poder)

316 ll0TlTableronde (Mesaredonda)

340 [108]Surlajusticepopulaire. (Sobreajustiçapopular.Debatecomos


Débat avec les maos maoístas)

369 [109] I problemi della cultura. (Os problemas da cultura, um debate


Un dibattito Foucault-Preti ("Les problêmes Foucault-Preti)
de la culture, un débat Foucault-Preti")

380 [ la
I I 0] Les grandes fonctions de (As grandes funções da medicina na nossa
médecine dans notre société sociedade)

382 [lll]Piégersapropreculture (Capturarasuaprópriacultura)


383 [l12] Meeting vérité-]ustice, (Encontro verdade-]ustiça 1500 grenobleses
1500 Grenoblois accusent acusam)

385 [l 13] Une giclée de sang ou un incendie (Um salpico de sangue ou um incêndio)

386 [l 14] Les deux morts de Pompidou (As duas morres de Pompidou)

389 [ll5] Théories et institutions pénales (Teorias e instituições penais)

1973
Pág. Título Português
394 1116) Préface, in Livrozer (S.), (Prefácio, inLivrozer,s.,Daprisao à
De la prison à la révolte revolta)

444
3gg uL7) Pour une chronique de (Para uma crônica da memória operária)

la mémoire ouvriêre
401 [ll8] La force de fuir (A força de fugir)
405 [ll9]Archeologiekaradynastiquehe (Daarqueologiaàdinástica)
("De l'archéologie à la dynastique")
416 [l2}l conclusion
En guise de (A guisa de conclusão)

419 Uzl) Un nouveau journal? (Um novo jornal?)

420 U22) Em torno de Édipo (Em torno a Édipo)


("Autour d'(Edipe")
42L ll23l lintellectuel sert rassembler
à (O intelectual serve para reunir ideias, mas
les idées, mais "son savoir est partiel "seu saber é parcial em relação ao saber

par rapport au savoir ouvrier" operário")

423 ll24) Foucault, o filósofo, está falando. (Foucault, o filósofo, está falando. Pense)
Pense ("Foucault, le philosophe est
en train de parler. Pensez")
425 ll25) Gefàngnisse und Gefàngnisrevolten (Prisoes e revoltas nas prisões)
("Prisons et révoltes dans les prisons")
433 [126] O mundo é um grande hospício (O mundo é um grande hospício)
("Le monde est un grand asile")
435 Í1271À propos de lbnfermement (A propósito do internamento penitenciário)
pénitentiaire
M5 ll2Sl Convoqués à la P. f. (Convocados à P.|.)

447 U29l Premiêres discussions, premiers (Primeiras discussões, primeiros balbucios:


balbutiements: la ville est-elle une force a cidade é uma força produtiva ou de
productive ou d'antiproduction ? antiprodução?)

452 ll31l Arrachés par dénergiques (Erradicados por enérgicas intervençÕes de

interventions à notre euphorique séjour dans nossa eufórica estadia na história,

l'histoire, nous mettons laborieusement en elaboramos trabalhosamente as'tategorias


chantier des'tatégories logiques" lógicas")

456 ll3ll La société punitive (A sociedade punitiva)

1974
Pág. Título Português

471 ll32) Human Nature: |ustice versus Power (Da natureza humana: justiça contra poder)
("De la nature humaine: justice
contre pouvoir")
513 [133] surLaseconileRéyolutionchinoise (sobrea segundaRevoluçaochinesa)

515 [134] La Seconile Révolution chinoise (A segunda revolução chinesa)

518 [135] Paris, galerie Karl Flinker, (Paris, galeria Karl Flinker, 15 de fevereiro

15 février 1974.Présentation de 1974. Apresentação, D. Byzantios,


(D. Byzantios, dessins) desenhos)

445
521 1136) Carceri e manicomi nel congegno (Prisóes e asilos no mecanismo do poder)
del potere ("Prisons et asiles dans le
mécanisme du pouvoir")
525 ll37) Michel Foucault on Attica (A propósito da prisão de Attica)
('À propos de la prison dAttica")
536 [138] Sexualite et politique (Sexualidade e política)
538 [139] A verdade e as formas jurídicas (A verdade e as formas jurídicas)
("La vérité et les formes juridiques")
646 U4D)Anti-Rétro
660 Íl4l) Loucura, uma questão de poder (Loucura, uma questão de poder)
("Folie, une question de pouvoir")
664 Í142) Table ronde sur I'expertise (Mesa redonda sobre a perícia psiquiátrica)
psychiatrique
675 U43) Le pouvoir psychiatrique (O poder psiquiátrico)

1975

Pág. Título português

687 ll44) Préface,in |ackson (8.),Leursprisors. (PrefáciofuJackson,B.,Suasprisões.


Autobiographies de prisonniers américains Autobiografiasdeprisioneiros
estadounidenses)

692 ll45) (Lettre) in Clavel (M.), Ce que je crois (Carta em Clavel, M., O que eu creio)

693 ll46llacasadellafollia (Acasadosloucos)


("La maison des fous")
698 [147) Un pompier vend la mêche (Um bombeiro revela o segredo)

702 ll48l continuation


La politique est la (A política é a continuação da guerra por
de la guerre moyens
par d'autres outros meios)

704 Í149) À quoi rêvent les philosophes? (Com que sonham os filósofos?)

7O7 Íl5O) La peinture photogénique (A pintura fotogênica)

716 ll5l) Des supplices aux cellules (Dos suplícios às celas)

720 [ls2lSurlasellette (Nobancodosréus)


725 ll53) Il carcere visto da un filosofo francese (A prisão vista por um filósofo francês)
("La prison vue par un philosophe français")
731 Í154)Lafêtedelécriture (Afestadaescritura)
734 U55) La mort du pêre (A morte do pai)

740 Í1561 Entretien sur la prison: (Entrevista sobre a prisão: o livro e seu
le livre et sa méthode método)

754 ÍLs7)Pouvoiretcorps (Poderecorpo)

760 [158] Aller à Madrid (lr a Madri)


763 ll59) À propos de Marguerite Duras (A propósito de Marguerite Duras)

446
771 Í160) Hospícios. Sexualidade. Prisões (Asilos, sexualidade, prisôes)
("Asiles, Sexualité, Prisons")
783 [16l] Radioscopie de Michel Foucault (Radioscopia de Michel Foucault)
8OZ [162] Faire les fous (Fazer-se de louco)

805 [163] Michel Foucault. El filósofo (Michel Foucault. As respostas clo filósofo)
responde ("Michel Foucault.
Les réponses du philosophe")
818 [164] Sade, sergent du sexe (Sade, sargento do sexo)

822 1165l Les anormaux (Os anormais)

DE3 = DiÍs et éuits III (Ditos e escritos,volume III). Edição utilizada: Paris, Gallimard, 1994.
Os nÍrmeros [entre colchetes] correspondem à numeração dos textos.

1976
Pág. Título português
7 [166] une mort inacceptable (uma morte inaceitável. o assunto Mirvat)
(l'affaire Mirval)
9 politique
Í167) Les têtes de la (As cabeças da política)
13 [168] La politique de la sante (A política de saúde no século xvlll)
au XVIIIe siêcle
28 [169] Questions à Michel Foucault (Perguntas a Michel Foucault sobre a
sur la géographie geografia)

40 [170] Crisis de un modelo en la medicina? (Crise da medicina ou crise da antimedicina?)


("Crise de la medecine ou crise de
l'antimédecine?")
58 [f 7f ] Sur Histoire de Paul (Sobre História de Paul)

63 [172] Michel Foucault: crimes et châtiments (Michel Foucault: crimes e castigos na URRS

en U.R.S.S. et ailleurs e em outros lugares)

74 [173] L'extension sociale de la norme (A extensão social da norma)

79 ll74)Hanzai tosite no chishiki (O saber como crime)


("Le savoir comme crime")
86 [175] Michel Foucault, I'illégalisme (Michel Foucault, a ilegalidade ea arte
et l'art de punir de punir)
89 [176] Sorcellerie et folie (Bruxaria e loucura)
93 [177] Points de lle (pontos de vista)

94 [f 78] Des questions de Michel Foucault (Perguntas de Michel Foucault aHérodote)


à Hérodote

95 bio-politique
[f 79] Bio-histoire et (Bio-história e biopolítica)
97 [180] Entretien avec Michel Foucault: (Conversa com Michel Foucault: Eu, pierre
Moi, Pierre Riviàre Riyiàre)

447
l0l Il8l] sexe
üOccident et la vérité du (O Ocidente e a verdade do sexo)

106 [182j Pourquoi le crime de Pierre Riviêre? (Por que o crime de pierre Riviêre?)

108 [183] Ils ont dit de Malraux (Disseram de Malraux)

109 [184] La fonction politique (A função política do intelectual)


de l'intellectuel
l14 [185] Le retour de Pierre Riviêre (O retorno de Pierre Riviêre)

123 [186] Le discours ne doit pas (O discurso não deve ser tomado como...)
être pris comme...
124 llSTlllfautdefendrelasociété (Emdefesada sociedade)

1977
Pág. Título Português
l3l [188] Préface Life
à My Secret (Prefácio a My Secret Life)
133 [189] Préface, in Deleuze (G.) (prefácio a Deleuze, G. e Guattari, F.,

et Guattari (F.), Anti-CEdipus: Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia)


C ap itali sm and S chizophr eni a
136 [190] Sexualitât und Wahrheit (Sexualidade e verdade)
"Sexualité et vérité"
138 [191] Préface, iz Debard (M.) (Prefácio ínDebard,,M. e Hennig, l.-L.,Les
et Hennig (1.-L.), Les luges kakis luges kakis)
140 ll92) Intervista a Michel Foucault (Entrevista a Michel Foucault)
("Entretien avec Michel Foucault")
160 [193] Corso del 7 gennaio 1976 (Curso de 7 de janeiro d,e 1976)
("Cours du7 janvier 1976")
175 [te4] Corso del 14 gennaio 1976 (Curso de 14 de janeiro de 1976)
("Cours du 14 janvier 1976")
190 [195] Loeil du pouvoir (O olho do poder)

207 1196l El nacimiento de la medicina social (o nascimento da medicina social)


("La naissance de la médecine sociale")
228 Í1971 Les rapports de pouvoir passent (As relaçóes de poder passam pelo interior
à l'intérieur des corps dos corpos)

237 ll98l La vie des hommes infâmes (A vida dos homens infames)
253 U99) Le poster de l'ennemi public n' I (O pôster do inimigo público n. 1)

256 l200)Nonausexeroi (Nãoaosexorei)


269 [2ol) Les matins gris de la tolérance (As manhãs cinzentas da tolerância)
271 1202) Ijasile illimité (O asilo ilimitado)
275 Í203) Paris, galerie Bastida-Navazo, (paris, galeria Bastida-Navazo, abril de
avril1977 (sur le peintre Maxime Defert) 1977, sobre o pintor Maxime Defert)

277 Í2041 La grande colêre des faits (A grande cólera dos fatos, sobre A.
(sur A. Glucksmann) Glucksmann)

448
(A angústia de julgar)
2SZ l2}Slliangoisse de juger
(O jogo de Michel Foucault, entrevista sobre
2g8 1206) Le jeu de Michel Foucault
(entretien sroir l'Histoire d'e la sexualité a História da sexualidade)
(Uma mobilização cultural)
329 Í207) ll ne mobilisation culturelle
(O suplício da verdade)
33r [208] Le suPPlice de la vérité
prison (Clausura, Psiquiatria, Prisão)
332 [209] Enfermement, psychiatrie,
(\hi-se extraditar Klaus Croissant?)
361 [210] Va-t-on extrader Klaus Croissant?
la (Michel Foucault: doravante a segurança
366 [211] Michel Foucault: "Désormais
des lois" está acima das leis)
sécurité est au-dessus
(O poder, uma besta magnífica)
368 [212] El Poder, una bestia magnifica
("Le pouvoir, une bête magnifique")
(Michel Foucault: a segurança e o Estado)
383 [2f 3] Michel Foucault: la sécurité
et l'État
(Carta a alguns líderes da esquerda)
388 [214] Lettre à quelques leaders de la gauche
(A tortura éarazáo)
390 [215] Die Folter, das ist die Vernunft
("La torture, c'est la raisort'')
(Poder e saber)
3gg lzlílKenryoku to chi ("Pouvoir et savoir")
("Não nos sentimos como uma espécie
415 lzl7)Wir fühlten uns als schmutzige
imunda")
Spezies ("Nous nous sentions comme
une sale esPêce")
(Poderes e estratégias)
418 [218] Pouvoirs et stratégies

r978
Português
Pág. Título
(Introdução Por Michel Foucault)
429 ]2lg) Introduction by Michel Foucault
"Introduction par Michel Foucault")
(A evolução da noção de "indiüduo perigoso'
443 lz2}lAbout the ConcePt of the
Century na psiquiatria legal do século XIX)
"Dangerous tndividual" in l9'h
Psychiatry ("IJevolution de la notion
Legal
d'individu dangereux' dans la psychiatrie
legale du XIXe siêcle")
(Diálogo sobre o poder)
464 Í2zllDialogue on Power
("Dialogue sur le Pouvoir")
(A e a sociedade)
477 to shakai ("La folie et la société") loucuÍa
1222)Kuôki
Herculine Barbin' dita
4gg l2z3lQuatriême de couverture in
(Quarta capa it1

Herculine Barbin, dite Alexina B Alexina B)


(O Eugêne Sue que eu amo)
500 [224] Eugêne Sue que j'aime
(Uma erudição atordoante)
s03 12251 tJne érudition étourdissante
(Alain Peyrefitte se explica..'e Nlichel
505 [226] Alain Peyrefitte s'explique' "
Foucault lhe resPonde)
et Michel Foucault lui réPond

449
506 [227) La grille politique traditionnelle (A grade política tradicional)

507 1228) Attention: danger (Atenção: perigo)

5O8 [229) Incorporación del hospital en la (A incorporação do hospital na tecnologia


tecnologiamoderna("Lincorporationde moderna)
l'hôpital dans la technologie moderne")
522 12301Sei to seiji wo Kataru (Sexualidade e política)
("Sexualité et politique")

532 l23l) La société disciplinaire en crise (A sociedade disciplinar em crise)

534 [232) Gendai no Kenryoku wo tou (A filosofia analítica da política)


("Sexualité et politique")
552 12331 Sei to Kenryoku "Sexualité et pouvoir" (Sexualidade e poder)
571 Í2341 Tetsugaku no butai ("La scêne (A cena da filosofia)
de la philosophie")

595 [235] Sekai-ninshiki no hôhô: marx-shusi (Metodologia para o conhecimento do


wo dô shimatsu suruka "Méthodologie mundo: como desfazer-se do marxismo)
pour la connaissance du monde:
comment se débarrasser du marxisme")
618 [236] Michel Foucault to zen: zendera (Michel Foucault e o zen: uma estada em
taizai-ki ("Michel Foucault et le zen: um templo zen)
un séjour dans un temple zen"
624 1237) Il misterioso ermafrodito (O misterioso hermafrodita)
("Le mystérieux hermaphrodite")
625 [238] Precisazioni sul potere] (Precisões sobre o poder. Respostas a
Riposta ad alcuni critici ("Précisions sur le algumas críticas)
pouvoir. Réponses à certaines critiques")
635 Í239) La "govemamentalitàl' (A'governamentalidade")
("La'gouvemementalité"')
657 l24O) Du bon usage du criminel (Do bom uso do criminoso)

662 [24]) Iiesercito, quando la terra trema (O exército, quando a terra treme)
"Ijarmée quand la terre tremble")
669 12421M. Foucault. Conversazione senza (M. Foucault. Conversa sem complexos com
complessi con il frlosofo che analizzale o fllósofo que analisa as "estruturas do poder")
"strutture del potere" ("M. Foucault.
Conversation sans complexes avec le
philosophe qui analyse les
'structures du pouvoir"')
679 12431 La scia ha cento anni di ritardo (O Xá tem cem anos de atraso)
("Le chah a cent ans de retard")
683 [244] Teheran: la fede contro la scia (Teerã: a fé contra o Xá)
"Téhéranr la foi contre le chah")

450
6S8 Í245) À quoi rêvent les Iraniens? (Com que sonham os iranianos?)

695 1246) Le citron et le lait (O limáo e o leite)

698 Í2471Ein gewaltiges Erstaunen (Uma enorme surpresa)


("Une énorme surprise")
701 Í248) una rivolta con le mani nude (uma revolta com as mãos desnudas)
("Une révolte à mains nues")
704 1249)Sfidaall'opposizione (Desafioàoposição)
("Défi à lbpposition")
706 [250] I "reportages" di idee (As "reportagens" de ideias)
("Les'reportages' d'idées")
708 [25L) Foucault
Réponse de Michel (Resposta de Michel Foucault a uma leitora
à iranienne
une lectrice iraniana)
709 1252) La rivolta dell'Iran corre sui (A revolta do Irã se propagâ nas fitas dos
nostri delli minicasette ("La révolte cassetes)
iranienne se propage sur les rubans
des cassettes")

713 [253] Il mitico capo della rivolta dell'Iran (O chefe mítico da revolta iraniana)
("Le chef mythique de la révolte de l'Iran")
717 Í2541 Lettera di Foucault all'Unità (Carta de Foucault a LUnità)
("Lettre de Foucault à ljUnità")
719 12551 Sécurité, territoire et population (Segurança, território e população)

1979

Pág. Título Português


724 [256] Preface de Michel Foucault (Prefácio de Michel Foucault)

725 [257] La politique de la santé (A política da saúde no século XVIII)


au XVIIIe siêcle
742 1258) What is an Author? (Que é um autor?)
("Qu'est-ce qu'un auteur?")
743 [259] IJesprit d'un monde sans esprit (O espirito de um mundo sem espírito)

755 1260) Maniêres de justice (Maneiras de justiça)

759 126l) una polveriera chiamata islam ("une poudriàre appelée islam') (um barril
de pólvora chamado Isiã)

762 1262) Michel Foucault et l'Iran (Michel Foucault eo Irã)


763 l263llaloidelapudeur (Aleidopudor)
777 Í2641Un plaisir si simple (Um prazer tão simples)
780 [265) Lettre ouverte à Mehdi Bazargan (carta aberta a Mehdi Bazargan)
783 12661Pour une morale de l'inconfort (por uma moral do desconforto)
788 12671Michel Foucault: le moment de verité (Michel Foucauit: o momento da verdade)

451
788 [268] Vivre autrement le temps (Viver o tempo de outra maneira)
790 1269) Inutile de se soulever? (lnútil sublevar-se?)
794 l2701la stratégie du pourtour (A estratégia do perímetro)

798 Í271) Nanmin mondai ha 2l seiku (O problema dos refugiados é um presságio


minzoku daiidô no zenchô da da grande migração do século XXI.
("Le problêmedes réfugiés est un présage Entrevista exclusiva do filósofo francês
de la grande migration du XXIe siêcle". M. Foucault)
Interview exclusive du philosophe
français M. Foucault)
S0l 12721 Foucault Examines Reason in (Foucault estuda a razao de Estado)
Service of State Power ("Foucault
etudie la raison d'État")
806 Í273)Luttesautourdesprisons (l,utaemtornoàs prisoes)
818 1274) Naissance de la biopolitique (Nascimento da biopolítica)

DE4 = Dits et écrits IV (Ditos e escritos,volume IV). Edição utilizada: Paris, Gallimard,
1994. Os números Ientre colchetes] correspondem à numeração dos textos.

1980

Pág. Título Português

7 1275) Preface, in Knobelspiess(R.), (Prefácio in Knobelspiess, R., QHS: Quartier


QHS: Quartier de haute sécurité de haute sécurité)

9 Í276)Introduction,inHerculineBarbin, (Introdução inHerculineBarbin,Beingthe


Memoirs
Deing the Recently Discovered Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth
of a Nineteenth-Century -Century French Hermaphrodite)
French Hermaphroilite
l0 nuage
l277lLa poussiêre et le (O pó e a nuvem)

20 [278] Table ronde du 2O mai1978, (Mesa redonda de 20 de maio de 1978, in


inPerrot (M.), éd., Illmpossible Prison Perrot, M., éd.. L'lmpossible Prison)
35 l2T9lPostface,inPerrot (M.), éd., (Posfácio inPerrot,M., éd., Llmpossible
lilmpossible Prison, Recherches sur le Prison.)
systàme pénitentiaire au XIXe siàcle
37 [280] Foucault Examines Reason in (Foucauit estuda a razao deEstado)
Service ofState Power ("Foucault étudie
la raison d'État")
4l [281] Conversazione con Michel Foucault (Entrevista com Michel Foucault)
("Entretien avec Michel Foucault")
96 [282] Toujours les prisons (Sempre as prisoes)
100 [283] LeNouvelObservateurel'Unione (LenouvelObservateurea Uniãoda
della sinistre ("Le Noutel Obseryateur Esquerda)
et l'Union de la gauche")

452
lO2 Í284) Les quatre cavaliers de I'Apocalypse (Os quatro cavaleiros do Apocalipse e os
quotidiens
et les vermisseaux vermes cotidianos)
104 [285] Le philosophe masqué (O f,lósofo mascarado)

I 1l [286] liimmaginazione dell'Ottocento (A imaginação do século XIX)


("IJimagination du XIXe siêcle")
ll5 1287) Lesexe
vrai (O verdadeiro sexo)

124 Í2881 Roland Barthes (Roland Barthes, 12 de novembro de i9l5-


(12 novembre 1915-26 mars 1980) 26 de março de 1980)

L25 [289) Du gouvernement des vivants (Do governo dos viventes)

l98l
Pá9. Titulo português
130 [290] édition,
Préface à la deuxiàme (prefácio à segunda edição, em vergàs, ].,
juiliciaire
in Vergês (1.), De la stratégie De la stratégie.iudiciaire)
134 [29]) " omnes et singulatim": Towards ("omnes et singulatirn': para uma crítica da
a Criticism of Polirical Reason ("'Omnes razão política)
et singulatim': vers une critique de
la raison politique")
162 [292] Lettre à Roger Caillois in (Carta a Roger Caillois in Hommoge à
Hommage à Roger Caillois Roger Caillois)

163 1293) De lhmitié comme mode vie de (Da amizade como modo de vida)

L68 1294) Le dossier "peine de mort'1 (O informe "pena de rr.rortCl Eles escreveram

contre
Ils ont écrit contra)

168 Í295) Sexuality and Solitude (Sexualidade e solidão)


("Sexualité et solitude")
178 Í2961Est-il donc important de penser ? (Então, é importante pensar ?)

182 Í29714s malhas do poder (As redes do poder. Primeira parte)


("Les mailles du pouvoir"), 1'partie
202 [298] Michel Foucault: il faut tout (Michel Foucault: há que repensar tudo, a
repenser, la loi et la prisons lei e a prisão)
2O4 [299] Lacan, il "liberatore" della psicanalisi (Lacan, o liberador da psicanálise)
("Lacan, Ie'libérateur de la psychanalyse"')
205 [300] contre les peines de substitution (contra as penâs cle substituição)
208 [3Ol] Punir est la chose la plus difficile qui soit (Castigar é a coisa mais difícil que existe)
2lO [302] Les réponses de Pierre Vidal-Naquet (As respostas de Pierre Vidal-Naquet e de
et de Michel Foucault (létat de guerre Michel Foucault. o estado de guerra na
en Pologne) polônia)

2l I [303] Notes sur ce qubn lit et entend (Notas sobre o que se lê e entende. Mesmo
(même sujet) tema)
213 [304) Subjectivité et vérité (Subjetividade e verdade)

453
1982
Pág. Título português
219 l3o5) Pierre Boulez, lécran traversé (Pierre Boulez, a tela atravessada)

222 [306]TheSubjectandPower (Osujeitoeopoder)


("Le sujet et le pouvoir")
243 [307) La pensée, lémotion (O pensamento, a emoção)

251 [308] Conversation avec Werner Schroeter (Conversa com Werner Schroeter)

261 [309) Rekishi heno Kaiki (Um primeiro passo da colonização do


("Un premier pas de la colonisation Ocidente)
de l'Occident")
270 Í3l0l Space, Knowledge and Power (Espaço, saber, poder)
("Espace, savoir et pouvoir")

286 Í3ll) Entretien avec M. Foucault (Conversa com M. Foucault)

295 [312] Le combat de la chasteté (O combate da castidade)

308 [313] The Social Triumph of the (O triunfo social do prazer sexual: uma
Sexual Will: A Conversation with conversa com Michel Foucault)
Michel Foucault ("Le triomphe social du
plaisir sexuel: une conversation avec
Michel Foucault")
315 l3l4l Des caresses d'hommes (As carícias de homens consideradas como
considérées comme un art uma arte)
317 [315) As malhas do poder (As malhas do poder. Segunda parte)
("Les mailles du pouvoir"),2" partie
318 [316] Le terrorisme ici et là (O terrorismo aqui e ali)

32O l3l7l Sexual Choice, Sexual Act (Escolha sexual, ato sexual)
("Choix sexuel, acte sexuel")
336 [318] Foucault: non aux compromis (Foucault: não aos compromissos)
338 [319] Michel Foucault: (Michel Foucault: nâo há neutralidade
"Il n'y a pas de neutralité possible" possível)
340 Í320) En abandonnant les Polonais, (Abandonando os poloneses, renunciamos
nous renonçons à une part de nous-mêmes a uma parte de nós mesmos)

343 Í321) Michel Foucault: "Ijexpérience morale (Michel Foucault: 'h experiência moral e
et sociale des Polonais ne peut social dos poloneses não pode ser apagada")
plus être effacéel'
351 [322) Ijâge dbr de la lettre de cachet (A época de ouro d,elalettre de cachet)
353 Í3231ljherméneutique du sujet (A hermenêutica do sujeito)

r983
Pá9.Título português
366 [324)Destravaux (Trabalhos)

454
367 13251Un systême fini face à (Um sistema Íinito diante de uma exigência
une demande infinie infinita)
383 1326) On the Genealogy of Eúics: (A propósito da genealogia da ética:
An Overview of Work in Progress ('À propos perspectira do trabalho em curso)
de la généalogie de léthique: un aperçu du
travail en cours")
412 [327) Ça ne m'intéresse pas (Isto náo me interessa)

412 Í3281 À propos des faiseurs (A propósito dos intrigantes)


415 !329)Lécrituredesoi (Aescrituradesi)
431 [330] Structuralisme and Post- (Estruturalismo e pós-estruturalismo)
Structuralism ("Structuralisme et
poststructuralisme")
458 [331] An Exchange with Michel Foucault (lntercâmbio com Michel Foucault)
("Échange avec Michel Foucault")
462 [332) Rêver de ses plaisirs. Surl' (Sonhar com os seus pÍazeres. Sobre a
"Onirocritique" dArtémidore "Onirocriticd' de Artemidoro)
488 [333] Michel Foucault/Pierre Boulez, (Michel Foucault / Pierre Boulez. A música
La musique contemporaine et le public contemporânea e o público)

496 l334llaPologne,etaprês? (Polônia,edepois?)

522 Í3351 Vous êtes dangereux (Vocês sâo perigosos)

525 1336) Michel Foucault, an interview (Uma entrevista de Michel Foucault a

with Stephen Riggins ("Une interview de Stephen Riggins)


Michel Foucault par Stephen Riggins")
538 Í337)... ils ont déctaré... sur Ie pacifisme, (...eles declararam...sobre o pacifismo, sua
sa nature, ses dangers, ses illusions natureza, seus perigos, suas ilusões)

539 [338] Usage des plaisirs et techniques de soi (Uso dos prazeres e tecnicas de si)

1984
Pá9. Título Português
562 [339] What is Enlightenment? (Que é o Iluminismo?)
("Qu'est-ce que les Lumiêres?")
578 [340] PréfacetotheHistory ofsexuality (Prefácio aLhistoiredelasexualité)
("Préface à l'Histoire de la sexualité")
584 l34ll Politics and Ethics: An Interview (Política e ética: uma entrevista)
("Politique et éthique: une interview")
591 [342] Polemics, Politics and (Polêmica, política e problematizações)
Problematizations ("Polémique, politique
et problématisations")
599 [343l Archaelogy of a passion ("Archéologie (Arqueologia de uma paixão. Sobre R.
Roussel)
d'une passion") (sur R. Roussel)

609 [344] On the Genealogy of Ethics: (A propósito da genealogia da etica: uma


An Overview of Work in Progress perspectiva do trabalho em curso)

455
("À propos de la généalogie de léthique:
un aperçu du travail en cours")
631 [345] Foucault
636 [346) Qu'appelle-t-on punir? (Que se chama punir?)

646 1347)Lesoucidelavérité (Ocuidadodaverdade)


649 Í3481 Le style de l'histoire (O estilo da história)

656 [349] Interview met Michel Foucault (Entrevista com Michel Foucault)
("Interview de Michel Foucault")
668 [350] vérité
Le souci de la (O cuidado da verdade)

679 l35l) Qu'est-ce que les Lumiêres? (Que é o iluminismo?)

688 [352] Alle fonti del piacere (As fontes do prazer)


("Aux sources du plaisir")
688 [353] Interview de Michel Foucault (Entrevista com Michel Foucault)

696 Í3541Le retour de la morale (O retorno da moral)


("Aux sources du plaisir")
707 [355) Face aux gouvernements, (Frente aos governos, os direitos humanos)
les droits de l'homme

708 [356] Íéthique du souci de soi (A ética do cuidado de si como prática da


liberté
comme pratique de la liberdade)
730 [357) Une esthétique de l'existence (Uma estética da existência)

735 Í3581Michel Foucault, an Interview: (Michel Foucault, uma entrevista: sexo,


Sex, Power and the Politics ofldentity poder e a política da identidade)
("Michel Foucault, une interview:
sexe, pouvoir et la politique de l'identité")

747 Í3591 pouvoirs


Lintellectuel et les (O intelectual e os poderes)

752 [360] Des espaces autres (Dos espaços outros)

r985
Pág. Título português
763 Í361) La üe l'expérience et la science (A vida: a experiência e a ciência

r988
Pág.Título Português
777 l362lTruth,Power,Self (Verdade,poderesi)
"Vérité, pouvoir et soi"
783 l3íSlTechnologiesoftheSeH (Astécnicasdesi)
("Les techniques de soi")

813 [364] The Political Technology of (A tecnologia politica dos indivíduos)


Individuals ("La technologie politique
des individus")

456
c) Cunsos

AN = Ies a.normaux. Cours au Collàge de France. 1974-1975 (Os anormais. Curso no Colégio
de França. 1974-1975). Edição utilizada: Paris, Gallimard-Seuil, 1999.

Pág. Título Português

3 CoursduSjanvier 1975 (aula de 8 dejaneiro de 1975)

29 Coursdu 15janvier 1975 (aula de 15 de janeiro de 1975)

5l Coursdu22janvier 1975 (aula de 22 dejaneiro de 1975)

75 Coursdu29 janvier 1975 (aula de 29 dejaneiro de 1975)

101 Cours du 5 févier 1975 (aula de 5 de fevereiro de 1975)

127 Cours du 12 févier 1975 (aula de 12 de fevereiro de 1975)

155 Cours du 19 février 1975 (aula de 19 de fevereiro de 1975)

187 Cours du 26 Íévier 1975 (aula de 26 de fevereiro de 1975)

217 Cours du 5 mars 1975 (aula de 5 de março de 1975)

249 Coursdu l2marsl975 (auia de 12 de março de 1975)

275 Cours du 19 mars 1975 (aula de l9 de março de 1975)

HS = IiHerméneutique du sujet. Cours au Coüàge de France. 1981-1982 (A hermenêutica do


sujeito. Curso ro Collêge de France. 1981-1982). Edição utilizada: Paris, Gallimard-Seuil, 2001.

Pág. Título Português

3 Cours du 6 janvier 1982. Premiêre heure. (aula de 6 dejaneiro de 1982. Primeira hora)

27 Cours du 6 janvier 1982. Deuxiême heure' (aula de 6 janeiro de 1982. Segunda hora)

(aula de 13 de janeiro de 1982. Primeira hora)


43 Cours du 13janüer1982.Premiêreheure'
(aula de 13 de janeiro de 1982. Segunda hora)
64 Cours du 13 janvier 1982. Deuxiême heure'
79 Cours du20janvier 1982. Premiêreheure' (aula de 20 de janeiro de 1982. Primeira hora)

104 Cours du 20 janvier 1982. Deuxiême heure. (aula de 20 de janeiro de 1982. Segunda hora)

l2l Cours du 27 janüer 1982. Premiêre heure. (a'iade27 de janeiro de 1982. Primeira hora)

144 Cours d:u27 janviet 1982. Deuxiême heure. (aula de 27 de janeiro de 1982. Segunda hora)

163 Cours du 3 février 1982. Premiêre heure. (aula de 3 de fevereiro de 1982. Primeira hora)

180 Cours du 3 février 1982. Deuxiême heure. (aula de 3 de fevereiro de 1982. Segunda hora)

197 Cours du l0 féwier 1982. Premiêre heure. (aula de 10 de fevereiro de 1982. Primera hora)

220 Cours du 10 féwier 1982. Deuxiême heure. (aula de 10 de fevereiro de 1982. Segunda hora)

237 Cows du 17 février 1982. Premiêre heure' (aula de 17 de fevereiro de 1982. Primeira hora)

260 Cours du 17 féwier 1982. Deuxiême heure. (aula de 17 de fevereiro de 1982. Segunda hora)

277 Cotrs du 24 féwier 1982. Premiêre heure. (aula de 24 de fevereiro de 1982. Primeira hora)

301 Cours dr24féwier 1982. Deuxiême heure. (aula de 24 de fevereiro de 1982. Segunda hora)

457
315 Cours du 3 mars 1982. Premiêreheure. (aula de 3 de março de 1982. Prirneira hora)

338 Cours du 3 mars 1982. Deuxiême heure. (aula de 3 de março de 1982. Segunda hora)

355 Cours du l0 mars 1982. Premiêre heure. (aula de 10 de março de 1982. Primeira hora)

378 Cours du 10 mars 1982. Deuxiême heure. (aula de 10 de março de 1982. Segunda hora)

395 Cours du 17 mars 1982. Premiêre heure. (aula de I7 de março de I982. Primeira hora)

419 Cours du 17 mars 1982. Deuxiême heure. (aula de 17 de março de 1982. Segunda hora)

435 Cours du 24 mars 1982. Premiàreheure. (aula de 24 de março de 1982. Primeira hora)

457 Cours du 24 mars 1982. Deu-xiàrne heure. (aula de 24 de março de 1982. Segunda hora)

IDS="Ilfautdéfendrelasociété".CoursauCollàgedeFrance. 1976("Emdefesadasociedade."

curso no college de France. 1976). Edição utilizada: Paris, Gallimard-seuil, 1997.

Pág. Titulo Português

3 Cours du7 ianvier 1976 (aula de 7 de janeiro de 1976)

2l Coursdu 14ianvier 1976 (auia de 14 de janeiro de 1976)

37 Cours du 2l ianvier 1976 (aula de 21 de janeiro de 1976)

57 Cours du 2Ejanvíer 1976 (aula de 28 de janeiro de 1976)

75 Cours du 4 février 1976 (aula de 4 de fevereiro de 1976)

101 Cours du ll fevrier 1976 (aula de 1 1 de fevereiro de 1976)

125 Cours du l8 février 1976 (aula de 1B de fevereiro de 1976)

149 Cours du25 février 1976 (aula de 25 de fevereiro de 1976)

169 Cours du 4 mars 1976 (aula de 4 de março de 1976)

193 Cours du I I mars 1976 (aula de 11 de março de 1976)

213 Cours du 18 mars 1976 (aula de 18 de março de 1976)

PP = Le pouvoir psychiatrique. Cours at Collàge de France. 1973-1974 (O poder psiquiátrico.


Curso no Collàge de France. 1973'1,974. Edição utilizada: Paris, Gallimard-Seuil, 2003.

Pág. Titulo Português

3 Cours du 7 novembre 1973 (aula de 7 de novembro de 1973)

2l Cours du 14 novembre 1973 (aula de 14 de novembro de 1973)

4l Cours du2l novembre 1973 (aula de 21 de novembro de 1973)

65 Cours du 28 novembre 1973 (aula de 28 de novembro de 1973)

93 Cours du 5 décembre 1973 (aula de 5 de dezembro de 1973)

123 Cours du 12 décembrc 1973 (aula de 12 de dezembro de 1973)

143 Cours du 19 décembre 1973 (aula de 19 de dezembro de 1973)

458
171 Cours du 9 janvier 1974 (aula de 9 de janeiro de 197 4)

199 Cours du 16 janvier 1974 (aula de 16 de janeiro de 197 4)

233 Cours du 23 janvier 197 4 (aula de 23 de janeiro de 1974)

267 Cours du 30 janvier 1974 (aula de 30 dejaneiro àel97a)

299 Cours dt 6 février 197 4 (aula de 6 de fevereiro de 197 4)

459
íITIoICT DE TERMOS ESTRANGEIROS

Para facilitar a consulta do vocabulário com base na versão


original da obra de Foucault'
francesas e de outras línguas
oferecemos uma lista alfabética dos termos e das expressões
do vocabulário' Na coluna da direita
estrangeiras que correspondem aos títulos dos verbetes
aparece a tradução correspondente em português ou sua
transliteração'
o termo em
Além disso, incluímos os nomes próprios que foram aportuguesados. Quando
vocabulário, ma§ apenas no índice
questão não aparece propriamente como um verbete do
de um verbete, indicamàs o verbete correspondente.
um índice onomástico completo do
Vo cabulário encontra-se na P. 469'

A
A priori historique A priorihistórico
Absence Ausência

Absolutisme Absolutismo

Abstinence Abstinência

Actualité Atualidade

Aemulatio (latim) Emulação

Âge classique Época clássica

Alcibiade Alcibíades

Alienation Alienação

Amicitia (latim) Amizade

Anachorêse Retiro

Anakhôrêsis Retiro

Analogie Analogia

Analytique de la finitude Analítica da Íinitude

Animalité Animalidade

Anomalie Anomalia

Anormal Anormal

Anthropologie Antropologia

AntipsYchiatrie Antipsiquiatria

Antisémitisme Antissemitismo

Aphrodísia (grego) 'As coisas de Afrodite"

Archéologie Arqueologia

Architeture Arquitetura

Archive Arquivo

Aristophane Aristófanes

Aristote Aristóteles

Ars erótica (latim) A arte do erótico

46t
Artémidore Artemidoro
Ascese Ascese
Asile Asilo
Auflârung (alemão) Iluminismo
Augustin, Saint Agostinho, Santo
Auteur Autor
Aveu Confissáo

B
Baroque Barroco
Béhaviorisme Behaviorismo
Bio-histoire Bio história
Biologie Biologia
Biopolitique Biopolítica
Bio-pouvoir Biopoder
Bisexualité Bissexualidade
Bourgeoise Burguesia

C
Cadavre Cadáver
Capitalisme Capitalismo
Chair Carne
Châtiment Castigo
Christianisme Cristianismo
Cicéron Cicero
Clément dAlexandrie Clemente de Alexandria
Clinique Clínica
Cogito (latim) Cogito
Commentaire Comentário
Communisme Comunismo
Confession Confissáo
Contrat Contrato
Contrôle Controle
Convenientia (latim) Conveniência
Conversion Conversão
Corps Corpo

D
Dégénérescence Degenerescência
Démocratie Democracia
Dépsychiatrisation Despsiquiatrização
Déraison Desrazáo
Désir Desejo
Diagnostiquer Diagnostícar

462
Dialectique Dialética
Diététique Dietética
Discipline Disciplina
Discontinuité Discontinuidade
Discours Discurso
Dispotif dãlliance Dispositivo de aliança
Dispositif de sexualité Dispositivo de sexualidade
Divinatio (latim) Adivinhação, Desciframento
Doctrine Doutrina
Document Documento
Dogrnatisme Dogmatismo
Domination Dominaçáo
Don Quichotte Dom Quixote

E
École Escola

École des Annales Escola dos Anais

Économique Econômica
Éducation Educação
Efféminé Efeminado
Encyclopedie Enciclopédia
Enkratéia (grego) Domínio de si, Moderação
Énoncé Enunciado
Enquête Investigaçào
Épictàte Epiteto
Épicure Epicuro
Epiméleia (grego) Cuidado
Épistàmé classique Episteme clássica
Épistàmé moderne Episteme moderna
Epistrophé (grego) Conversão
Epithymía (grego) Desejo
Époque classique Época clássica
Eros (grego) Eros
Érotique Erótica
Esthétique de 1'existence Estética da existência
Éthique Ética
Ethos Éthos, Uso, Modo de ser, Atitude
Événement Acontecimento
Exarren Exame
Existencialisme Existencialismo
Exomologàse Confissão
Exomologêsis (grego) ConÍissão
Expérience Experiência
F
Fable Fábuia
Famille Família
Fascisme Facismo
Faust Fausto
Féodalisme Feudalismo
Fiction Ficção
Folie Loucura
Formalisation Formalização
Formation discursive Formação discursiva

G
Galien Galeno
Généalogie Genealogia
Génie Gênio
Gnosticisme Gnosticismo
Goulag Gulag
Gouvernement Governo
Gouvernamentalité Governamentalidade Verbete: Governo
Gouverner Governar
Guerre Guerra

H
Hégélianisme Hegelianismo
Hermaphroditisme Hermafroditismo
Hermenéutique Hermenêutica
Histoire História
Historicisme Historicismo
Homme Homem
Homosexualité Homossexualidade
Humanisme Humanismo
Hlpomnémata Anotações

I
Iatrikê (grego) Medicina
Idéologie Ideologia
Illégalisme Ilegalidade
Imagination Imaginação
Inconscient Inconsciente
Individualisation Individualização
Inquisitio (latim) Investigaçáo
Intellectuel Intelectual
Intériorité Interioridade
Interpretation Interpretação

464
I
Jeux de vérité Jogos de verdade, verbete: Verdade

L
Langage Linguagem
Làpre Lepra
Libéralisme Liberalismo
Liberté Liberdade
Libertinaje Libertinagem
Libido Libido
Limite Limite
Linguistique Linguística
Littérature Literatura
Loi Lei
Lutte Luta

M
Machiavel, Nicolas Maquiavel, Nicolau

Marxisme Marxismo
Masturabación Masturbação

Matérialisme Materialismo
Médicalisation Medicalização

Modernité Modernidade
Monstre Monstro

N
Nazisme Nazismo

Normalisation Normalização, verbete: Norma

Normalité Normalidade, verbete: Norma


Norme Norma
Noso-politque Nosopolítica

o
Obédience Obediência
G,dipe Édipo
Ontologie du présent Ontologia do presente
Ontologie historique Ontologia histórica, verbete: Ontologia do presente

P
Panoptique Panóptico
Panoptisme Panoptismo, verbete: Panóptico
Parrhesia (grego) "Fa1ar franca e livremente"

Parrhêsie Parresía
Pédagogie Pedagogia

465
Phénoménologie Fenomenologia
Philodàme de Gádara Filodemo de Gádara
Philosophie Filosofia
Platon Platão
Platonisme Platonismo
Plutarque Plutarco
Police Polícia
Polizeiwissenschaft (alemão) Ciência da polícia, verbete: Polícia
Population População
Positivité Positividade
Pouvoir Poder
Pouvoir pastoral Poder pastoral
Pratique Prática
Prison Prisão
Psychagogie Psicagogia
Psychanalyse Psicanálise
Psychiatrie Psiquiatria
Psychologie Psicologia
Punition Castigo
Pl,thagorisme Pitagorismo

R
Race Raça
Racisme Racismo
Raison d'État Razáo de Estado
Raréfaction Rarefação
Rationalité Racionalidade
Religion Religião
Renfermement Clausura
Répression Repressão

Résistance Resistência
Révolution Revoluçáo

S
Salut Saúde
Savoir Saber
Sciences Humaines Ciências Humanas
Sexualité Sexualidade
Souci Cuidado
Souverainité Soberania
Stratégie Estratégia
Structuralisme Estruturalismo
Subjectivacion Subjetivação
Subjectivité Subjetividade
Sujet Sujeito

466
T
Tactique Tática
Technique Técnica
Technologie Tecnologia, verbete: Técnica
Techné (grego) Arte/Técnica
Téléologie Teleologia
Territorie Território
Therapeutiké (grego) Terapêutica
Totalité Totalidade
Tradition Tradição

Transcendental Transcendental

Trangression Transgressão

U
Ubuesque Ubuesco

Utopie Utopia

v
Vérité Verdade

Volonté de verité Vontade de verdade, verbete: Verdade

x
Xénophon Xenofonte

467
írrrorcr oNoMASTIco

A Barbin, H.: 50,202


Barthes, R.: 51
Actéon: 239
Basaglia, F.: 51, 52
Adanson, M.: 142
Bataille, G.: 52,61, 109, 160, 161, 168, 170, 181, 198,
Agatáo: 39
237, 240, 25r, 257, 258, 305, 417, 4t8
Agesilao: 24,428
Baudelaire, Ch.: 45, 52, 53, 151, I 55
Alexândrides:93
Bayle, B.: 75
Althusser, L.:30,51, 109, 153, 170,293,295
Beccaria, C.: 52, 53, 88, 196, 316, 340
Ambrósio: 329
Belhomme, j: 359
Apolônio deTiano:24
Benedict, R.: 129
Arendt, H.: 38,39,127
Benedito de Nursia: 329
Ariês, Ph.: 39, 151
Benjamin, W: 53
Aristófanes: 39
Bentham, l.:42,5i,54, 90, I 13, 1 15, 314, 315, 316,
Aristóteles: 32, 39, 40, 45, 95, 99, 105, 1 06, 132, 307 331.354.420
Artaud, A.: 44, 61, 98, 18I, 2 10, 257, 258, 261, 267, Bergson, H.:54,199
268,286,287,307 Berkeley, G.: 144
Artemidoro: 38, 44, 45, l83, 231 Bernard, C.: 76
Atenodoro:94 Bernheim, H.:51
Augusto:94,397 Beveridge, W. H.: 300

Bichat, F. X.: 54, 66,78,79


B
Binswanger, L.: 36, 54, 55, 161, 167, 168, 169, 181,
Babinksi, J.: 106
201,226,227,260
Bachelard, G.: 49, 67, 150, 204
Blanchot, M.: 60, 6 l, 109, 16 1, 168, 1 70, 172,181,198,
Bacon, F.: 47 , 49, 50,231 237,240,25r,2s7 ,305,392, 4t7 , 4t8
Baillarger , l.: 362 Bleuler, E.: 259
Ballet, G.: 259 Boissier de Sauvages, F.: 273
Balling, P.: 226 Bonnefoy, C.: 219
Baltard, V:341 Bopp, F.: 62, 253

469
Borges, f. L. : 13,14,62 Costa, J.: 328

Bosch, H.:403 Couthon, G.:32,283


BoÍero, G.: 62,379 Cox, M.: 355
Boulainvilliers, H. de: 23, 50,62,63, l7l,194,196, Crisóstomo, J.: 329
29t,377,388, 389,390
Cuvier, G.: 55, 56, 62, 96, 97
Boulez, P.: 63

Boulogne, G. D. De: 364 D


Bourdieu, P.:66 Damiens, R.-F.: 22, BB

Braid, J: 363 Darwin, C.: 56, 97 ,260,360


Brant, S.:403 Deleuze, G.:26,88,98,99, 100, 101,105, 109, 133,
Braudel, F.:63, 150 134, Is7 , t66, r82,228, 289, 326,346, 347 , 4t6

Bréquiny: 389 Delmas, A.: 259

Brissot, I. P.: 340 Demóstenes: 131

Brocca, P.: 363 Derrida, J.: 80, 81, 102, 201, 268

Broussais, F.: 79 Descartes, R.: 34, 45, 49,75, 80, 95, 98, 102, 103, 147,

Brown, P: 63,64, 151 t57, 1s9, 2t2, 226, 23t, 238, 239, 244, 268, 27 3, 30t,
302, 303,355, 424
BuÍIon, G.-L.: 142
Destutt de Tracy: 224, 238
Burkhardt, J.: 151
Diderot: 278
C Domenach, f.:99
Cabanis, P.: 66, 7 6, 77, 78 Dostoievsky, F: 92
Canguilhem, G.: 49, 66, 67, 150, 170, 204, 310 Dubos, J.-8.: 389
Cassiano, I.: 7 l, 83, 16l, 329 Dumézil G.: 61, 129, 153,264, U.8
Castel, R.:66, 71, Duns Escoto: 99
Cavaillês, J.: 49, 67, 170 Dupaty, C.: 88
Cervantes, M. de: 7 2, 127, l2B, 403
Dupont, P:47
Chapsal, M.: 389
Dupré, E.: 259
Charcot, l.-M.: 106, 285, 345,350, 356, 365, 366,
Dupré, M.:356
367, 402
Durkheim, E.: 129, 130,319,412
Clrardin, T. de:.295
Duval, l.: 201,202
Chemnitz, B. Ph. von:73,329,379
Chomsky, N. A.: 53, 73,245
E
Cí.cero 28,73,7 4
Engels, F.:294
Cipriano: 329
Epicuro:94, 138
Ciro: 428
Epiteto: 38, 94,145,146,151, 159
Clastres, P.: 412
Erasmo: 268
Clausewitz, C. von 7 4, 193, 194,399
Esquirol, I.: 35, 353, 35 4, 359, 363, 367, 369, 37 1

Clemente de Alexandria: 23, 74


Ewald, F.: 238
Comte, A.: 63, 426
Condillac, E. B.: 7 B, 82, 144 F
Constantino: 299 Febvre, Lucien: 150, 167
Cook, E.: 194 Feuerbach, L:426

470
Fichte, l: 199 Hohental, P. C. W: 381

Filodemo de Gadara: 94, 172, 317, 318 Hólderlin, J. C.: 199, 210, 213, 267, 279, 307

Fílon de Alexandria: 223 Huisman, D.: 53, 189

Flaubert, G.: 176 Hume, D.: 80, i44

Fodéré, F. E.: 351, 353, 354 Husserl, E.: 67, 168, 169, 170, 181, 199, 201, 212,
Fourcoy, A.-F.: 76 220,23t,305

Fournet, M.: 355 Hyppolite, J.: 170, 198, 199,222

1 83, 1 86, 23 t, 24t, 260, 268, 27 9, 285, 287, 293, 29 4,


I
306, 308, 324, 3 44, 3 4s, 3 46, 347, 348, 349, 366, 367 Isócrates: 132

Fronton: 44
I
G Janet, P: 260,392

Galeno: 38, 184, 317, 318 |arry, A.: 236,419

Gambetta, L.: 258 lames I, I: 23


Jaspers, K.: 260
Garaudy, R.: 153
Garibaldi, G: 258 Ionston: 273
Justi, J. H. G. Von : 236,330,381
Gentillet, I.: 292
Jussieu, A.-L. de: 241
Goethe, W.: 167, 188
Goya, F: 264,268,286
K
Greenblatt, S.: 151
Kaan, H.: 33,97
Gruyter, W:42 Katka, F. :237 ,257
Guattari, F.: 100, 105, 133,157,166,182,346 Kant, I.: 27, 36, 42, 52, 53, 62, 80, 1 03, 107, 140, I 47,
Guéroult, M.: 150 t57 , 174,237 ,238,239,301,302, 305, 307,391, 426

Guillaume: 364 Kantorowitz, E.:88


Guilleret: 90, 354 Kierkegaard, S.: 199
Guizot: 389 Klossowski, P.: 239, 240, 432
Klein, M.: 183,386
H Koyré, A.:67,170
Habermas, I.: 127 ,197 , 198, 420 Kraepelin, E.: 259
Hadot, P.: 198,
Haslam, J.:352,353 L
Hege1, G. W. F.:53, 60,62,96,98,99,107, i08,109, Lacan, f: 30, 51, 96, 153, l82, 1.83,241,347' 386
168, 1 3, t7 5, 1 94, 198, 199, 200, 205, 2r3, 219,
70, 17 Laing, R. D.: 51
222, 238, 248, 262, 293, 294, 295, 305, 4r5, 416
Lamarck, l.: 55, 241, 242
Heidegger, M.:25,36,98, 102, 108, 119, 169,199'
Lamare, N. de:380
200, 201, 213, 219, 305, 424
Laplanche, f.: 210
Herculano: 172
La Salle, J.: 134
Hesíodo:119,422
Legrain, M.:98
Hierocles: 132
Le Peletier de Saint-Fargeau, L. M.: 340
Hipócrates: ).10,424
Leibniz, G: 238
Hobbes, T.: 127, 19 4, 208, 209, 2\0, 29 l, 324, 325,
404 Lênin, V: 196

47t
Lessing, G.: 167 181, 182, 185, 186, 190, 193, t94,198-201,204-206,

Leuret, F.: 356,357 2t0, 2t3, 2t9, 23t, 232, 238, 239, 255, 264, 267, 268,
27 r, 27 9, 286, 287, 29r, 293, 294, 296, 305-309, 324-
Lévi-Strauss, C: 30, 5 1, 61, 108, 129, 153, 219, 241,
326, 348, 37 4, 37 5, 382, 399, 4t r, 4t7, 421, 426
4r2,4t8
Lilburne, I.: 194
o
Linneo,C.:273
Olimpodoro: 94
Linneu, C: 142
Oppenheimer, f. R.: 228
Locke, I.: 144

Lombroso, C.:258,370 P
Lucílio: 317, 318 Palazzo G.:378,379

Lukacs, G.: 426 Paleikat, J.: 328

Pascal, B.: 318


M Passeron, l.-C.:66
Mably, G.-8. de: 389
Pavlou I. P.:261,262
Machiavel, N.: 292
Perkins, A.: 174
Magnan, V: 98
Perriàre, G. De La: 191., 292
Maiebranche, N.: 7 5, 226
Pinel, Ph.: 32, 182, 266, 27 5, 282 -285, 320, 345, 3s0,
Mallarmé, S.: 210, 255, 291
352, 353, 355, 363, 37 t, 383
Marc Bloch: 6i, 150
Pitágoras: 320
Marco Aurélio: 30,38, 44,94,159
Platâo: 24, 29, 30, 34, 39, 86, 87, 93, 94, 102, 107, 109,
Marcuse, H.:295,298
1 19, 132, 3t9, 321, 322, 328, 397, 422
Marx, K.:30,48, 101, 108, 109, 181, 182, 183, 186, 196,
Plater:273
1 98, i 99, 200, 20 5, 212, 213, 219, 23 t, 232, 258, 292,
293,294,295,296,297 ,305,306, 308, 324, 426 Plinio 94, 413
Plutarco: 38, 87, 93, 9 4, 132, I 48, | 57, 221, 3 17, 320,
Marlowe, C.: 167
1)) l)1
Mayerne, L. Turquet de: 380
Politi,L.:292
Mazzini, G.:258
Pomme, P.: 75
Meceno: 94
Proclo: 94
Mendelssohn, M.: 426
Pseudo-Luciano: 148
Merleau-Ponty, M. : 49, 98, I 60, 169, 17 0, 17 3, 29 5, 305

Minkowski, M.: 260


R
Montaigne, M.: t5l, 268, 303
Rabinow, P.: 162
Montlosier, E de Reynaud, Comte de: 390
Rameau: 278
Moreau de Tours, f. l.: 363
Reich, W.: 65, 193, 308, 325,381
Morel, B.'4.: 33, 57, 98, 360, 37 6
Reiche, R.:65
Morêre, E.: 2l
Ricardo, D.:62, 108, 205,293
Musônio: 132
Riolan, f.: 201,202
Nerval, G. de:279,307
Rousseau, J.:64,286,319, 389, 403

N Roussel, R. : 16, 18, 19, 44, 60, I 53, l&l, 210, 227, 25 l,
257,264,268,307,392
Nietzsche, F. : 1 1, 25, 26, 36, 40, 51, 61, 67, 89, 92, 99,
101, 107, 108, 119, 160-t62, 168, 169, t70, r73, 174, Russell, B.: 108,219

472
S U
Sade, F. Marques de:58,61, 105, 106, 128,210'249, Ussel, Jos van: 298,419

258, 264, 267, 268, 27 r, 27 9, 286, 395, 396

Saint-Hilaire, G. de: 33, 56 V


Van Gogh, V: 268,286,287
Saint-Simon, H. de:426
Vayer, F. de la M. Le: 191
Santo Agostinho : 28, 68, 7 0, 107, 250
Vico, G.: 107
São |erônimo:48
Vicq dAzyr, F.:241
São Tomás de Aquino: 90,92,248,261
Vidal-Naquet, P.: 99
Sartre, |. P.:49,67,98, 100, 103, 108, 153, 160, 169,
Yoltaire:273
t7 0, 17 3, t7 5, 199, 219, 29 5, 305, 442

Saussure, F. de: 170


W
Schelling, F.:200 Weber, À.: 53,
Schopenhauer, A.: 212, 348 Weber, M.: 107 , 127,238,342,373,375,426, 427
Schroeter, W: 88 Weickhard, M. A.:273
Seguin, E.: 359 Westphal, I. C.:217
Sêneca: 38, 94, 132, 151, 159, 221, 230, 317' 318' Willebrandt, J. P.: 381
4t3 Winnicott:386
Servan, f. M. A.:88, 116,340 Wittgenstein, L.: 108, 219
Shakespeare, W.: 47 ,352,403,419
Sieyàs, E.-J.: 64, 127, 390 x
Smith, A.: 77 Xenofonte: 24, l3l, 132,428

Sócrates: 24, 92, 93, 328, 413, 428


Z
Spencet H.:260
Zacchias, P.:238,271
Spengler, L.:199,213

Spinoza, B. de: 95, 99, 226

Spurzheim, l.G.:244

Steiner, M.:42

Swift, l.:286

Szasz, T.: 35

T
Tasse, Le: 286

Thierry, A.: 194, 389, 391


Tolman, E. C.: 53

Tours, f: 363

Trotsky, L: 297

Tuke, W: 182, 266, 282-285, 345, 383

473
íruolcr DE OBRAS

Conferências. Cassiano, 83
A
Con stituti on émotiv e, La. Dupr é, 259
Abrégé de la police, accompagné de reJlexions sur
laccroissement des villes. Willebrand, 381 Crítica da razao dialética. Sartre, 108

Acerca da parresia. Gádara,172 Crítica da razão prática. Kant, 239

Age s il ao. Xetofonte, 2 4, 428 Críticas. Kant,27

Alcibíades L Platão, 29, 30, 86, 90, 93, 94, 96, Critique de la raison dialectique, La. Sartre,199'
187,32r 2t9
Annales d' hygiàne publique. Barbin, 50
D
Antígon a. Sófocles, I0 I Dégénérés, état mental et syndromes
Anti-Oedipe, L. Deleuze & Guattari, 100, 133, épisodiques,Ies. Legrain & Magnan, 98
157 , t66, r82,346 Della ragione dí Stato dieci libri. Botero, 378,
Apologia de Sócrates. Platão, 93 379
Ars combinatória. Leibniz, 122, 135, 143 Dementia praecox oder Gruppe der
S chizophrenie n Bleuler, 259

B Deux lois de l'évolution pénale. Durl<heim,129


Banquete. Platâo, 39 DéveloppemenÍ. Seguin, 359
18 Brumário de Luis Bonaparte, O. Marx,294 Dialogos. Platão,328
Dictionnaire des philosophes. Huisman, 189
C
Dictionnaire des sciences médicales. Esquirol, 359
Capital, O. Marx,293
Diférence et répétition. Deleuze, 98, 99
Capitalisme et schizophrénie, t. I, IAnti-Oedipe.
Discorso del governo e della ragione vera di
Deleuze e Guattari, 100
Stato. P a\azzo, 37 8, 37 9
Carta 75. Sêneca, 317,318
Discours sur les moyens de bien gouverner et
Chave dos sonhos Á. Artemidoro,38,44, 183,231 maintenir en bonne paix un royaume ou autre
Chercheurs français s'ínterrogent, Des. princip auté. Gentillet, 292
Orientation et organisation rlu travail Disputationes de libris a christiano detestandis.
scientiJique en France. Moràre, 21 PoliÍi,292
Cidade de Deus. Santo Agostinho, 28 Dissertatio de Ratione Status in Imperio nostro
Cinco lições de psicanálise. Freud, 344 romano -germanico. Chemnilz, 7 3, 37 9

Comuna de Paris, A. Marx,294 Dom Quixote. Cervantes, 51,72, 127 , 128


Du haschich et de la aliénation mentale. de
Tours, 363
I
lustine e luliette. Sade, 128

E
Econômica. Xenofonte, 131, 132, 428
t
Leçons cliniques sur les maladies mentales.
Ecriture et la dffirence,I'. Derrida, 80 Magnan,98
Einbruch der Sexualmoral, Der. Reich, W,65 Lehrbuch der Psychiatrie. Kraepelir.r, 259
Electra. Sófocles,101 Leis. PlaÍáo, 131,321
En c i cl op é d i a. Leibniz, I 22 Leviatã. Hobbes, 209, 325
Erotika - Diálogo sobre o Amor. Plutarco,322 Liber de politia. Hohental, 38l
Essai sur I'idiotie. Propositions sur léducation Locus solus. Roussel, 227
des idiots mis en rapport avec leur degré Logique de Port-Royal. Arnauld & Nicole, 143
d' int elligence. Belhomme, 3 59
Logique du sens. Deletze,26, 98
Exercises spirituels et philosophie antique.
Logique et existence. Hyppolite, 222
Hadot, i98
Lutas de classes na França, As. Marx,294

F
Fausto. Goethe, 167, 1BB
M
Méditations cartésiennes. Husserl, 67, 170
Fédon. Platáo,30
M e dit aço es metafí si cas. Descartes, 1 02
Fedro. Platão,321
Méthode axiomatique e Formation de la théorie
Fenomenologia do espírito. Hegel, 198,222 des ensenbles. Cavaillês, 1 70
Filebo. Platao,32l Michel Foucault: conceitos essenciais. Reve1, 16
Fortschritte der Metaphysik. Kant, 12 Miroir politique, contenant diverses maniàres
de gouverner et policer les republiques, Le. La
G Perriàre, 191, 292
Généalogie du capital, t. I: Lês équipements du
Monar chie ar ist o démo cratique, ou le
pouvoir.Foucault, Deleuze & Guattari, 100
gouvernement composé des trois formes de
G enera m orb or um. Linneo, 27 3 légitimes republiques, La. Mayerne, 380
G es amm elt e S chr ift e n. Grulier, 42
Gramática de Port-Royal. Arnauld, 12i
N
Neyeu de Rameau, Le.Dtderot,278
Grundsàtze der Policey-Wissenschaft. )usti, 3Bl
Nicocles. Isócrates, I 32
Guerra civil na França, A. Marx, 294
N o sologie métho dique. Sauvages, 273

H o
Histoire de la philosophie européenne. Weber, 53
Obras completas. Borges, 13, 62
Hôlderlin et la question du pàre. Laplanche, 210
Oeconomie du Prínce,I'. Vayer, 191
Hortensio. Cícero, 28
Oeuvres philosophiques complàtes. Nietzsche,
52,10t
I Ordre psychiatrique, L. Castel, 71
Idée universelle de la médecine. lonsÍon,273
Organum. Bacon,47
Impressi ons dAfri que. Roussel, 227
Origem das espécies, Á. Darwin, 355
Instituições cenobíticas. Cassiano, 7 1, 83, 160
Irrupçao da moral sexual repressiva, A. Estudo das P
origens do carater compulsiyo da moral sexual. Panóptico, O. Bentham, 42,54,85,115, 116,
Reich,W.,381 33t,34t,344

476
A\exandr ra, 23, 7 4
P e d ago go.
T
Pensamentos. Marco Aurélio, 30 Tableau de la philosophie contemporaine.
Phénoménologie de la perceptlor. Merleau- Huisman & Weber, 53
Ponty, 98 Tentatiorr de Saint Antoirte, La. Flaubert, 776
Philosophische Arzt, Der. Weickhard, 273 Timeu. Platáo,327
P olítico. Platao, 3 4, 321 Traité de police. N. de Lamare, 380
Pratiqu e psychi atri que, La. D elmas, 259 Tr ait é des dégén ére s cen ce s phy si ques,
P r axeo s Tr actatus. Plater, 27 3 intellectuelles et morales de lbspàce humaine, et
des causes qui produisent ces variétés rnaladiyes.
Préface à la transgression, O. Bataille, 52
Morel,98
Príncipe, O. Maquiavel, 194,292
Traité du délire appliqué à Ia médicine à la
Psychanalysnte, Ie. Castel, 7l
rnorale et à la législation. Foderé, 351
Psychopathia sexualis. Kaan, 33, 97
Traité médico -phil osophi r1ue. Pinel, 352
P sy cho s e p ério tli que, La. BaIIet, 259 Lctreq 356
Traitement moral de la J'olie.

Traitement moral, hygiàne et éducation des


a idiots et des autres enÍants arriàres ou retardes
Que é o terceiro Estado, O? Sieyés,64,127 das leur. Seguin, 359
Qubst-ce que les Lumiàresi Kant, 302,337
Trascendance de lbgo, La. Sartre, 170
Qu aestion es me dico Je gales. Zacchias, 27 7
Tratado das paixões. Galeno, 184,317
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
R Freud, 344
Rapport du Conseil des Cinq-Cents sur un mode
provisoire de police Médicale. Cabatús, 77
U
Regulae. Descartes, 10J
Ubu roi. larry,236, 419
Re naissan ce Self-fashioning. Greenblatt, 1 -5 1

Rep ress íto sexual. U ssel, 298 v


República. Platão,321 Villo dei papiri. Herculano, 172
Rêve et lbxistence, Ie. Binswanger, 36, 54, 161,
167, t68

S
Ser e tempo. Heidegger, 200
Sexualitàt und Klassenkazpl Reiche, R.,65
Sobre a parresía. Gádara, 317,318
Société contre l'Etat, La. Reclrcrches
d anthropologie politique. Clastres, 412

477
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