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9 APRESENTAçãO *
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21 PRELúDIO
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CAPíTULO 1 *

45 Meinóriã. Ligar o passado.


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I* CAPITULO 2 *1

131 Perdão. Desligar o passado:


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CAPíTULO 3 t
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187 Promessa. Ligar o futuro
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CAPíTULO 4 T

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% 301 Questionamento. Desligar o futuro. !

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399 INTERLúDIO 9 •4
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A Este livro estuda as relações entre o direito e o tempo %

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Uma estória que, na verdade, mal acabara de começar Kronos> (que nos .
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tempos mitológicos recuados escrevia-se com Kappa e ainda não era o Deus- .
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tempo: Chronos) fracassara em suprimir em, seu beneficio tanto o tempo
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quanfo o direito A'história de Kronos çomeçft. na indistin ção dom ão -tempó.


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r Na origem, de fato, eram Urano, o céu, e Geia , a terra, enlaçados em um abra-
ço sem fim, do qual nascem inumeráveis filhos, rapidamente lançados ao Tár-
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taro. Deseiosa de repelir as contínuas investidas de seu esposo. Geia, nm dia ,


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.e^.in ícirL.dfí..reiriad.o- de../<rrr7 nr?5. Mas a estória que de tal forma se
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4 lTi inaugura é marcada pela violência e negação do tempo: Kronos logo deqdiu
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enviar seus irmãos, os Ciclopes, ao Tá rtaro, ao mesmo tempo em que se insta -
\
4 lava no trono em lugar de seu pai, inaugurando um reinado que desejava sem
A 4 V divisão. Alertado por uma profecia de que um de seus' filhos um dia haveria
f
| de destroná-lo, ele cuidava na Verdade de devorar seus filhos tão logo sua mu-
lher, Réia, os dava à luz. Até o dia em que esta, aborrecida decidiu poupar o
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* ^
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caçula, Zeus, vingando-se de Kronos: depois de tê-lo escondido em uma gru-
\
' ta, ela deu, para que seu marido real engolisse, uma pedra enfaixada. Chega-
do à idade adulta, Zeus, como o oráculo previrá, assumiu a chefia de uma re-
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» J volta e pôs fim ao reinado de Kronos que, por sua vez, foi enviado ao Tártaro.
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Apresentação
\ Apresentação

longa noite que recobriu, duránte quarenta ant ís, os países:satélite da ex-
*

Será que podemos exprimir melhor a terrificante negativídade conferi


*

- .
.
da ao tempo? Pois enfim. que faz Kronos, que, ao separar o abraço da Terra e União Soviética ( Vaclav Havei espantava-se por nã o encontrar nenhum reló -
do Cé u, lança o próprio movimento da História? Ele se coloca em posição de *
gio de parede em seus escritórios presidenciais no Castelo de Praga, o qual ele ,
senhor do temprybloqueando sua passagem tanto em direção gq, passada foi levado a ocupar,depois da <cRévolução de Veludo”: como se, durante todos
quanto ao futuro. Cortar-OS-genitais-de» seu pai é negar o peso do passado, é esses anos, o tempo não existisse e a história tivesse parado)3 ou, ainda, futu- .
privá-lo de qualquer prolongamento possível: engolir seus próprios filhos é ro*paradoxalmente sufocado pela proliferação de medidas jurídicas urgentes e
fazé-los regressar a uma posição uterina, é privar o porvir, desta vez, de qual- proVisórias. traços frágeis de um diréito efémero, incapaz de orientar dura-
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,

douramente o futuro.
*

quer desenvolvimento futuro. 0 tempo do tirano esgota-se em uqi presente


>

triJLs&iunmiáóJ
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« r E, contudo, os homens apenas acabaram.porinverter essas figuras mor-
Posição insustentável, contudo, como o demonstra a história: é que o tíferas para imprimir sentido e valor à sua vida coletiva, Ná África do Sul, a
reprimido ameaça na sombra e se prepara para retornar violentamente. Tran- comissão Verdade'e Reconciliação conseguiu produzir uma-anistía sem amné-
cafiados no Tártaro, os Ciclopes acabam por dali escapar, ao passo que, na ge- siá que, fazehdp funcionar perfeitamentet memória, abre caminho para um
ração seguinte, Zeus engana a vigilância de seu pai e o obriga á vomitar os fi - .
futuro reconciliado E, em AsEumênides, Ésquilo faz o relato de como a cida-
lhos por ele devorados, Este tempo estático ç fflmpplfiivn e de de Atenas soube inverter alógica vingadora das Er í neas, procedendo ao jul-
mos-ÇQmp amênfQâ-a l&ám^expQ^ gamento democrá tico de Orestes, baseando, a partir daí a vida social sobre a
^ ^
Urano, seguido de Kronos, tenta suprimir suas descendências e, nos dois casos, confiança e a justiça e não mais sobre o medo e o sangue. Foi igualmente em
.
é um de seus filhos que lhes paga na mesma moeda Assim estimula. ^ -se um ci- Atenas que se imaginou a figura das Horas ( .Horai) que poderíamos opor à de
clo de violê ncia, sinónimo de um tempo privado de perspectiva: esse detalhe <

/
.
Kronos, devorador de crianças Filhas de Zeus e de Têmis, as Horas andavam
se prova referindo-se à lenda; do ferimento de Urano, pingaram três gotas de em três, segundo Hesíodo.4 O que chama aatenção-éLa duplaJun ção-gne-se
^

.
sangue que, caídasna terra deram vorigem às Er
. í neast - as deusas com longa lhes atribuía:deusas personifícarn asestaçoes. e.simbolipamrigualmenfeasvir-
^

mémória. consagradaSv como.se sabe, à vingança dos crimes de sangue.


_ tudes cívicas
/
^

Eis, então, seguramente, uma face do tempo; ela nunca deixou de írios . Do lado bucólico, eram denominadas Thallô, Auxô, Carpo, três nomes
assombrar. Pensamoxs na célebre frase de Tocqueville: uo passado, quando não que evocam as idéias de empurrar, crescer e fortalecer. Do lado político, eram
mais ilumina o futuro, deixa o espírito andando -nas trevas”,1 que faz eco a esta ,
denominadas Eunomia, Diké e Eirénê, ou seja, a disciplina, a justiça e a_ paz
, .
reflexão de Chateaubriand; “o mundo atual/ o mundo sem autoridade consa- * Fecunda ambiguidade desta dupla atribuição: não é algo notável que uma or -
grada, está colocado diante de uma dupla impossibilidade: a impossibilidade denação regular das estações esteja associada à concórdia na cidade? Como se
do passado e a impossibilidade do futuro”.2 As manifestações deste nao-tem- o ritmo harmonioso das estações, penhor da fecundidade da natureza, deves-
po mortífero sobejam hoje tanto quanta ontem: passado oue não paSsa f em se simbolizar o equilíbrio, de uma vida social portadora de sentido. Longe de
^
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,

países como a Ruanda, onde úm genocídio impune compromete qualquer es- * f


qualquer naturalismo suspeito, as Horas representam ao contrário do tem -
perança de reconciliação, presente que se eterniza sem projeto, como aquela
3 HAVEL, V, Varnour et la vé rité doivent triompher de la haine et du mensonge. La
1 TOCQUEVILLE, A. de. LaT>émocratie en Amé rique. Paris: Garnier: Flammarion, Tour-d’Aigue: fditions de 1’Aúbe, 1990. p. 36.
1951. t. II, cap. VIII, p. 336. f .
4 BELL, R. E 1Women of Classical Mythplogy. New York: Oxford Univérsity Press,
*

' 1991. p. 248; DESAULTES, J. Dieux et tnythes de la Grèce anáenne . Québec: Presses
2 CHATEAUBRIAND, François-René. M émoires d'oatre-tombe. Paris: Livre de Poche,
1974. t. 3, p. 664. de TUniversité de Lavai, 1988. pf 133.

10 11
Apresentação
Apresentação
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po monol ítico p violento de TCrpnns a pluralidade d s durações, a alterp â p -
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v dar instalar na fachada da sede dé sua empresa, em Bienne (Suíça),.uma mar-
v cia hem -vinda dos per íodos, a medida frem equilibrada dos diase das cidade#
^ ca simbolizando o “novòíneridiano” que servirá de “referência universal para
. a . mcitação da um lempo.dialetlcn> htej ji£gn£nt p tempo Internet”. Não contente em roubar a primazia do meridiano de *

voltar a fnlnr.
, ,
^ ^ ^ /
Greenwich, b homem de negócios propõerse igualmentç a abandonar horas,
Eis, então, çólocada desde os gregos, a relação enigmática entre o tem - *
minutos e segundos para dividir a jornada em 1.000 beatsy 1 beat equivalendo
. a 86,4 segundos. Será comercializado Um relógio Swatch que adotará esse
4

po e ó justo Uma relação que é representada pela ilustração de capa desta V?

obra. Sentadas lado a lado, Temperentíay a.temperança, munida démma am- novo sistema de medida de tempo, não sem mostrar igualmente - a prudên-
pulheta, e Ju$titiay a justiça, armada com um gládio, parecem ainda interrogar - I
í
.
cia obriga - a hora “antiga” 6 Exatamenté como aqueles relógios de parede,
nos. Personagens centrais de A Alegoria do bom e do mau governo, de A. Loren - I hoje tornados raríssimbs, que entre 1793 e 1806 mostravam simultaneamen -
te a hora “antiga” e a hora decimal, imposta pelos revolucionários franceses.
,w
zetti, adornando a Sala dei Nove do Palazzo Pubblico de Siena (1337-1340) ,
. elas não cessám de nos interpelar. Entre a Temperança. qué é a._gabedQria_dQ , Veia-se: o tempo se constVói literalrpente. ele se “ temporaliza” E por isso
,

tempo, e a Tustiça. que é a sabedoria do"direito, qual é de fato a rela ção? E qual que, se podemos “dar” o tempo, modalidade que privjlegiafnos. podemos igu l-
a contribuição para o “bom governo”? O objçfiyo ,4çst£ livro é responder _a tais menteltfím á r1o”. “passárlo” “perdêJo” “encontráJo!Ucmaíá lwganhárlQlll<i;er
^
r
questões. Um livro que se articula ao redor de três teses centrais . »jnQntá-lQ” .. oxónceitQ de temporalizaçãorLosservirá para.pensarestamstitui -
t . , . .
^
Primeira tese: pJempoJjjmâinâlM ção sQcialdQjemmJImJempQ ue ãQ43mrianece.maisxxtçrior àscQÍsas
^ ,

^ ^ , .
m^enoJísic^x uma-exp-eiiênçia pslquic .5 Sem dúvida, ele apresenta uma rea- t, como
^
* ,
^

lidade objetiva ilustrada pelo curso das estrelas, a sucessão do dia e da noite, ' A segunda tese subentendida nesta obra diz respeito ao direito. Ela afir-
òu o envelhecimento do ser vivo. Do mesmo modo, ele depende da experiên- .
ma que a função principal do jurídico é contribuir para a instituição do so -
cia mais íntima da consciência individual, que pode vivepciar um minuto do
relógio, ora como dura ção interminável, ora como instante fulgurante. Mas Io e gestão como se crê jnuitoireqúentementejiaxtualidade. o direito é ,um
vqner o apreendamos sob sua face objetiva on subjetiva, o tempo ê inicia)rpeO ~ ( J discurso perform ativo, nm tecido^de ficções operatórias <pifvrpr{ Í 7ernnr<;pntl-
le, .e antes dctudo, . umaxpnstruçãasQdaL=. e4ngQ>jum.<lesafio.. dg..pod . erauw .
do e o valor da vida em sociedade Instituir significa, aqui, atar o laço social e
.

exigência étic e upi obietojurídico. -


^
Que se tratasse da intervenção do feiticeiro da aldeia africana, inscre- :
oferecer aos indivíduos as marcas necessárias para sua identidade e sua auto
nomia. É sob o â ngulo de sua contribuição para a extração do estado natural
*

'
vendo no ciclo das estações as márcas dõ retorno das chuvas, ou da operação
*
*
e sua violência sempre ameaçadora, sob o ângulo de sua capacidade de insti-
dos astrónomos do papa Gregório XIII, suprimindo onze dias do calendário tuição, que o direito será, então, interrogado.
em 1582} em cada caso. decorrer do tempp tQma-se QbjçtPjdgilma insfitui-
° .
ção social, da qual trata-se de interrogar a natureza.
*
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Finalmente, a terceira tese resulta da intera ção dialética das duas pri
*
*
-
meiras. Será sustentado que um laço potente se estabelece entre temporaliza -
E, do mesmo modo, como os faraós do Egito e os imperadores chine- *

ção social do tempo e instjtuiçãajpudica d, a $qçiedad ç. Mais predsamentejjj


• *
ses proclamavam o nascimento do tempo no dia de sua entronização, óbri-
*

.direito afeta diretá mente a temporafizaçãQ d.0 tempOi flQ, pflfiSQ-quevJSmLtrQCa,


. gando escribas e mandarins a reescrever o calendário, a cada mudança de rei- o tempo determina a força instituinte do dfrfiitftf Ainda maisprecisamenteLQ
nado, atualmente N. Haeck, dono do grupo relojoeiro Swatch, acaba de man- direito temporaliza. ao passo que o tempo institui. Trata-se, então, de uma
^

* \

È5\ Esta é a tese central da obra de ELIAS, N. Du temps.Traduit par M. Hulin. Paris: Fa- .
6 Le monde, p 1, 31 oct 1998 . .
^^yard, 1996. . •»

13
12
f
Apresentação
Apresentação

dialética profunda e não de relações superficiais que se ligam entre o direito e


'
passado; áo redizê-lo, antes, ele o regenera.9 Um tempo neguentrópico e cria-
-dor. j:f.vda e,.assi.i
^ ^
o tempo» .Q témpfí não .permanece exterior itmaténajmld
, ,
^ Fica-nos que a instituição do tempo pelo dirjeito é uma obra frágil,
,

.a^direilanãal eiimita aj^


& ^
* ameaçada de todos os lados pela destemporalização: ou seja; a sa ída do tempo
p * . m

comum instituinte. Assinalaremos não menos de quatro formas desta fugja


* * * +

Antes, é muito mais des-


de o interior que direito e tempo se, trabalham mutuamente, Contra a visão forà do tempo, que são como quatro faces da negação temporal, relacionada
de imediato à figura de Kronos.
positivista que não fez mais que exteriorizar Q tempo.7 i)ós mostraremps que
aão-djrossjyeUidizigjajdiigifaíL
^

-
Trata se inicialmente da própria recusa Ho tempo entendido romn m u -
^^ .
• dança, evolução finitude e,,logQr tarpb ém mortklidade. Desta nostalgia da eter -
mdidaiaimaUk^aêi
^^ - nídade as formas são in úmeras, desde o refugio individuál em paraísos artifi
,

ciais até os fantasmas coletivos das idades de ouro míticas, que fazem preferir
--
A título de primeira aproximação, pode-se citar este exemplo tirado da a unanimidade na fusão comunitária (muitas vezes à sombra de um pai tute- *

.
Política de Aristóteles À questão dé saber se é oportuno mudar frequentemen - lar) aos confrontamentos da vida real e às divisões de uma condição plural.
te as leis, Aristóteles opõe esta resposta: “não é a mesma coisa mudar uma téc-
^
- Como, desde n jn íflp assiimirnossa finitnde de mortais sem nos abismarmos
^
'

nica e uma lei; a lei, na verdade, para fazer-se obedecer só tem a força do hábi- no fantasma.dc.um.lempQ aiaUaada? Primeira questão, primeiro desafio.
to, a qual só se manifesta depois de muito tempo;de tal mòdo que passar facil- ^
SÊgundaioxnmifijl tÊín
mente das leis existentes para outras leis novas, é enfraquecer o poder da lei ”5
1

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^ ^
f sico rijjq rqnvjmgntQJrreyersíveLconduz toda coisa à
,
ição. Airreme-
Dia kronou pléthos,‘‘depois de muito tempo”: ò tempo, vê-se, é a própria subs- diável fugacidade do instante cantado pelo poeta ( “Passam os dias e passam as ” r
tâ ncia da lei, a condição de seu “poderio” Ainda assim, este exemplo poderia semanas/ Nem tempo passado/ Nem nossos amores retornam / Sob a ponte
induzir em erro se dele deduzíssemos que o jurídico exige necessariamente a Mirabeau corre o rio Sena”),10 é Confirmada pela lei de entropia dè s í f sicos:
longa duração, o que não é o caso, O importante é, antes, que um tempo pró- quanto jnais .o tempíLpASsaarmis a ergia e..dissipa e aisLa desQrdeiruaAi7 '
carregado
prio, de um sentido instituinte, seja mobilizado _pelà op.eraçãojla
, ^

^ ^ ^ ^

menta, Será possível ao homem “fazer voltar a ampulheta” não para negar a
^

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iionna i undica._ 0_ tempo -do pjac!eis.Q.- Q£erece._ disso_uma-b.QA-aprQamaçãQ . irreversibilidade do tempo cronológico, o que seria loucura, mas para imprl-
'
. . . . . .
V
*
Tempo separado daquele da vida real, estritamente regulamentado pelas pres- mir-lhe um sentido propriamente humano ao articular passado e futUro Se
^ -
j dçQcs.dojdtud, .da.pamit gunda questão, segundo desafio.
^ Q„jjdgâomtQ
^ ^^
eo er,sgps feitog,psK£Qj:ffla; -*
^ N Terceira forma de destemporalização: o pensamentodetprmiru.qt^qne
. .

Ào redramati- gera a reprçsentação de um tempo homogéneo e qnifoyme. pleno e contínuo.


zar em seu tempó próprio a cena do conflito, o processo mobiliza o tempo so- Se o tempo é apenas duração, qual o lugar efetivamente para a ruptura e a
cial fundador que se destacou da desordem inicial; ao representar o crime em álea, a descontinuidade e o instante? Entre acaso e necessidade, duração con-
formas e em uma linguagem socializada, o processo não se limite ã repetir o -
tínua e instante pontual, de que modo pensar/ uma terceira via para nelarns-

7 Neste sentido,’ BRETTONE, M. Diritto e tempo nélla tradizione europea . Roma: La- .
9 GARAPON, A. Le temps judiciaire. In: Bien jtiger; Essais sur le rituel judiciaire Pa-
terza , 1996. p, 37 et seq. * ris: Odile Jacob, 1997. p. 51 et seq.
^
8 ARISTÓTELES. Politique , Traduit pár J. Aubonnet et M.-L. Desclos. Paris: Belles 10 APOLLINAIRE, G. le pont Mirabea. In: GuillaUmeApollinaire. Paris: Pierre Seghers,
Lettres, 1998, livre II, p. 63. v 1956. p. 67.

14 15 .
Apresentd ção t Apresentação

crever o curso de uma história humana ao mesmo tempo instituída e, logo,


durável, e todavia instituipte e, logo, revolucionária?
- * *

reflexiva do pfojeto pela expêriênçia e pela revitalização do dado pelo possí-


vel . Contra as lentid ões do determinismo histQricQ,AjK£dsQAbr Í r.aS-bjxdiaa.
f

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^ -
F.nfí m . apnnta lima quarta airipara dp destfimpora1Í7arã r>. F.lfl^sçJiga da iniciadva e daalternaÚ¥a^as^^eai^)jatrx).,das-t£mp£u:alidade&atoasJ£.
, ,

sociedades bipermdividudistas, preçisoJiroagÍMi gfi ÀsiBO&.dg flagQfc.


desta vçz à gçfitãq
- .
evidênciamo plutal Oía, se apenas se necessita que uma sociedade* que não é
^

dância dos tempos.


^ ^^ ^
uma caserna, “marche no mesmo passo*’, é essencial, em , contrapartida, que Logo, no centro da coqstrução jurídica do tempo deixa-se, então, per-
seja assegurada uma certa coordenação de seus ritmoS temporais, Sem meca - ceber a pulsação de urti ritmo que nos reconduz diretamentè à figura da tem-
nismo de embreagem de suas diversas velocidades, sem instrumentos de soli- perança. O que é, de fato, esta temperança, senão a sabedoria do tempo^.a-j-US.- .

dariedade temporal, são a “discronia” e a desintegração social que ameaçam.* , ta medidar í eseLLdesenrQlar. ajnistura-haonQnioki.deseusj:.QmponmLes^áa
. .
> %•
Estes riscos de destemporalização são bastante reais: a “nostalgia da mesmp- modQ-qu.e.ajalternâaciaJias.esfaç.QesIasiJPijfl$) QmaaQ dimâS«fsafa
»*

eternidade” engendra ideologias totalitárias das quais o século 20 ofereceu và- ^ ^


fios exemplos devastadores; a “vertigejn da entròpia” conduz aò qué H. Arendt dan ça - garante o equilíbrio das_relaç .sociais. A temperança é “acordo e
QSS,
_ ...

Tiarmnnia ” garante Platã n “espalharia nr> rmijiintoAo -F^tado ela_pQe -em


,

denomina a “crise da cultura”: a incapacidade de articular passado e futuro, - _ ^

memória e projeto, em uma cultura demasiadas vezes marcada pelo instanta- .un íssono das oitavas mais fracas as mais fortes e as intermediárias sob a rela-
,

neísmo e pela supervalorização do presente. A “tentação do determinismo” ías-riqiíezasnuí


çã n Ha sabpHoriaj-da- forraj Ho nií mpyOjr re^epaalqúer^uitríuCQi-
.

marca igualmente nossa época que é caracterizada pelo pensamento único e a sa parecida” 11

dominação do mercado; mesmo quando cessam de valorizar a mudança, nos -


sas sociedades parecem paradoxalmente quase não dar lugar a uma alternati-
' va verdadeira que traçaria novos caminhos para a liberdade. Enfim, o “risco de
discronía” é real nas sociedades poucò solidárias que acumulam as tensões en -
^ IipjiLejlssUgíu:.olemFaLêaSLlimuMãgi
^^
rifínma outra amhi çã n ql é m de refletir a coptrihui çãp do direito para estajus-

é sobre uma medida, em quatro tempos que se toca esta partitura., LadQ-d.Q
tre tempo dos ganhadores e tempo dos excluídos, tempo instantâneo das tro - passador a mè móriaAtoqaerdã o; lado do futuro: a prnmessa e a’ retomada da
,

cas financeiras e tempo lento da produção, ou tempo muito lento da regene - discussão. A memória que liga o pássado, garantindo lhe um registro, uma -
ração dos recíirsos naturais, tempo imediato da comunicação da m ídia, e tem - *

.
fundação e uma transmissão O perdão, que desliga o passado, imprimindo
tf

-
po mediato da reflexão.
lhe um sentido novo, portador de futuro, como quando ao término de uma
É nçste contexto de destemporalização, sempre ameaçador, que a ques - reviravolta de jurisprudência o juiz se libera de uma linhagem de precedentes
tão da instituição jurídica de um tempo social portador de sentido assume •
toda sua acuidade. Uma instituição que, a nosso ver, é tanto runtura quanto r .
tornados ultrapassados A promessa, queligá o futuro através dos comprome -
liga LoJipimsxLaçiffitHáJfijèkjmisatê timentos normativos, desde a convenção individual até a Constituição, que é
^ ^ \
a promessa que a nação fez a si própria. O queStionamento, qUe em tempo ú til
jnaaJrãa4ejKqmsiIaxuuai& c . ^o.iminaisJm:dí^ufi sfijaimd.esinsititui4asq ) cir
desliga o futuro, visando operar as revisões que se impõem, para que sobrevi -
»
.
vam as promessas na hora da mudança Este livro procede à exploração siste -
• esse ritmo feito
/ *

.
de liga ção'e desligamento, de continuidade e de runtura Con- mátícà desses quatro tempos que são como os quatro pontos cardeais do qua
/*
-
drante temporal.
V

tra a tend ência regressiva da eternização,'é preciso fazer valer o tempo desli -
gado da mudança, mas, contra a irreversibilidade mortífera da mudança í f si-
ca, é preciso tentar a ligação cultural ente o passado e o futuro, a fecundação . . . . .
11 PLATÃO La République Traduit par R Baccoú Paris: Flammarion, 1966 p 184 .. .

16 17
^ í,fcr »
Apresentação í
Apresentação *

*v ,

lembra igualmente a pertinência_do aevunu esseJ:empQ pn kmente-institlLr


Mem ória , perd ã o, prorge q ., gifestioriamento! qnatrp rategnria ç fanto
^
normativas quaatoJçmporakJCada uma delas^ traduz^a-seiuniQdQ umajdir .
^ ^

tnen.sno da,temporalizaçãa..nQi:mat.Í Ya .ueJaiÃcaxriQ5>,cada.nrna , expumej


< . - •
* ,
. ,

^
cional Tnem çterno^ nem perecjvel) que oscanonistas da Idade Média soube
.

-
. .
faceta da.in&titwçãoj. uu ^ ima
tmhjLaYaitaiJlS£adaáQx!lÍJoJikdtQv aapa
^ xgijG-pdQdpalnxgní&,a.
^^ .
^
^ Contudo, sob
três condições, pois todas insistem na necessária interação destas categorias
(ainda a “temperança” ). Acentuareníos, de início, que se cada uma destas di-,
,

f t

niensões é uma condição necessá ria da temporalização bem sucedida, nenhu - ’ ,• mais qug pn>a sucessão irregular, de atos jurídicos instantâ neos.
.
ma é uma condição suficiente Exatamente ao contrário: tomados isolada - -
Finalmente, resta nos tentar dissipar dois equívocos possíveis e expri -
mente e absòlutizados, memória, perdão, promessa, e questionamento engen - •
mir um desejo. O primeiro equívoco seria relativo à natureza da proposição;
dram destemporalizaçã o e violência. Notaremos, em seguida, que a dialética se bem que ela trate de inú meras questões de técnica jurídica e aborde diver - •

temporal de que aqui.se trata opera-se no presente, o presente sendo a tarefa *


sos lances de sociedade; este livro não é nem de doutrina jurídica, nem de so -
cega de todas as operações de ligação e dè desligamento do tempo, demiemo-
ciologia do direito. Tomando de empréstimo, às vezes, um omoutro destes re -
ração e deduturição. Se não tematizado desta forma, não é mais que a tempo-
gistros, ele é principalmente de filosofia do direito. Enquanto- a doutrina diz o
ralização sempre em.açã o que estudamos. Enfim, faremos esta terceira obser- direito em vigor (direito “positivo”), nesta ou naquela Ordem jurídica, e a so -
-
, vqção: não-f sii firi mte..dizeutufijaiimán
^
to estão çomprQmetido? nas relações dialéticas, como se se tratasse de dimen-
ciologia indica e explica a distâ ncia entre este texto e a prática, a filosofia do
direito escava a própria normatividade do direito na direção de sua visada: ela
, .

•r 4
\ V 1

&Q£sj£ligadasunas todavia, ainda sçparadas. E ,pre_ciso_ir mais longe _e mc>strar. .


diz o que idealmente o direito deveria ser sef estivesse, de acordo com o seu
jqucé nn .praflrio fiadf.xaiiaj .
^ ^ há muito de es- próprio horizonte regulador Uma abordagem desse tipo foge, parece-nos, à
. - - ^
qiieri mento na memória e muito de mémória no perdãQ: do mesmo modo^
. , ,
•'
«
censura do idealismo, se’em nenhum momento for sugerida a idéia de que o
háanuitcudcind etf.r.m
ideal foi atingido. Depois de ter trabalhado muito o direito na vertente crítica
'A \ Uão existe uma dasJiguras temporaiS que xeencontraremos.que.nikinfere a.
.
-

/ no mais delicado de seus mecanismos^ uma exemplificação desta tensjio fe-


. ç das ciências sociais, não nos parece inútil consagrar uma obra ao aprofunda -
mento do que poderia ser o direito em concordância com seu conceito. De
nun
O que resulta em definitivo deste- caminhar paciénte entre os q úatro _
resto, não alimenta a crítica, pelo menos de maneira oca e negativa, uma for -
ma ou outra de referência ao ideal?
pontos do quadrante temporal? Um livro com entrada dupla que nos ensina *

. O segundo equívoco possível séria relativo ao cará ter histórico ou não


. tanto sobre o tempo .quanto sobre o direito. Como se, por serem examinadas t
da sequência de nossos quatro capítulos. Poderíamos, de fato, ser tentados a
sob o â ngulo temporal, dimensões ffequentemente ocultadas do direito apa - vér em sua. sucessão algo como o reflexo da história 4o próprio direito: a me -
reçam em plena luz; como se, ao inverso, por Ser interrogada em sya vertente
normativa, a temporalização social se revelasse sobmm nova luz. “Revelador”
mória não caracterizaría o direito antigo, todo embaraçado por costumes, tra -

diçõeá e precedentes? E a retomada da discussão não corresponderia a âlgo
d£Ltempo^o,diiritoJaz surgiiiprincipalirLente aJécunclldadLde_um tempQj ue *
próprio do direito contemporâneo, marcado pela incerteza e pelo aleatório?
.
denominaremos “metamóyfjco” (Çyryitçhdirifl; “tempos^da Uernâ ncia entre
, „

^ Entretanto, é preciso defender-se desta impressão e rejeitar4, aqui, qualquer es -


o avan çp e o .tos.Ql)lLqu.e..sabe,se tjau$fQmx ^
^ ,
^m^Ròrissnj^egai^e ele
,
^ ^ pécie de historicismo: sem dúvida, com dose variável segundo as épocas, as
. quatro dimensões acentuadas operam em cada configuração jurídica Assim, .
GURVITCH, G. La multiplicité des temps sociaux. In:
.
k dc la sociologie 2. ed. Pari : PUF, 1963. t. II, p. 343 et seq.
. La Vocation actuel- \ . ditemos tudo o que o direito mais contemporâneo, marcado pela revisão per -
^ . manente, deve igualmente à memória, ao perdão e à promessa.
V

18 19
«
Apresentação *
\
4

\ \ / k
* *
i *
v »
)
, 4*
Enfim, um desejo. O combate com o verdadeiro, assim como o comba-
* * 4
I

• í V

te com o belo, está sempre prestes á recomeçar, porque jamais f òi ganho. Nó 1


*
4
momento de encerrar 0 empreendimento, de muitos anos (a introdução de ; *
i r
V

um livro, sabe-se bem, sempre á última coisa â ser escrita), temos perfeita
/ /
*
\
> > « *
**
consciência de ter atingido ápenas muito parcialniente ò objetivo entrevisto. \
4
\
\
J

Resta-nos desejar a cooperação dos leitòres no prosseguimento do caminho. ¥

Sem d úvida, aí está igualmente a obra do tempo. Portalis escrevia: “os códigos PRELúDIO; -
* 9 *

dos povos fazem -se com o tempo; para falar convenientemente, não os faze- •
, mos” 13 Deveríamos dizer o mésmo dos livros: eles se’ fazem com o passar do f \ f
tempo; propriamente falando, não os escrevemos.
<
••
•J

l * >
t
* >
4 (

%
N • UMA MEDIDA EM. QUATRO TEMRQS V
f •
*

) *
Memória , perdã o, promessa, questionaménto: são essas ás quatrò partes
4

desta obra, os quatro tempos da medjda que queremos atribuir à jnstituição.do,


>
t
f ‘ social. Representam as condições de um “tempo público” que é para o tempo o
que o ^espaço público” é parayo espaço: um meio ao mesmo tempo concreto e
f > abstrato de participação e de integração cidadãs. Assim como o “espaço públi-
4
co” não pode .se privar de uma ancoragem territprial (ele tem “lugar” em algu-
ft

%
\
ma parte) mas a ele não se limita de maneira nenhuma (é um campo virtual de
comunicação), do mesmo modo, o “tempo público”, ée é medido através de ho-
4

4 I»

J ras e datas, procede antes de tudo de representações mentais _e de projeçoes de



* f

V é
valor ele é o fruto de uma .construção-deliberada, o que denominamos “tem?
.

* . l poralização” Antes de abordar nossos quatro tempos, precisamos dizer o que


»
f sico, do qual, contudo, ela se destaca, e
*

t
esta temporaliza ção deve ao tempo í
• i
.1
mostrar como, graças precisamente a este destaque, permite-se fugir às nume- -
/
}
í

V' - *
rosas formas de “destemporalização” que sempre ameaçam .
* Hf
.
t
I 9
r * 9
*
4
*

MEDIR, VIVENCIAR, TEMPORALIZAR O TEMPO


<!
i
»

j
*
13 PORTALIS, Discours et rapports sur le Code civil Caen: Reproduits par la . í “Eu não sei o que é o tempo, desconheço qual seja sua verdadeira me-
Cefttre de philosophie polítique et juridique de Caen, 1992 p. 15, . I
\
4 I
\ f

dida, se, contudo, eje possuir uma. A dos relógios, sei que é falsa. Ela divide o
ft
.t
ft

4
4

20
i 4

* 21
Preludio Prel údio

> o \

tempo espacialmente, do exterior. A das emoções, sei que é falsa: ela divide ¥

Retomemos a quèstao: qual é, então, a medida do tempo,^se ela não se


' '

não o tempo, mas a sensação do tempo.**1 Fernando Pessoa tem jrázão, a veri - f sico dado e homogéneo,
(
I

dadeira medida do tempo n ão é nem relojoeira. nem suhjefiva.


m - sujeita nem à medida quantitativa de um tempo í
.
nem à experiência subjetiva de uma vivência individual? Para nós, esta medi-
£ pm diWidfl n tpmpo í
f sí ro tem a sen favpr sna evidpnpa irrpriisá vpl ? n
3
¥
da que simultaneamente serve-se da materialidade do tempo dado e da expe-
do movimento dos astros no céu e a dos ritmos, biológiçQg eyn nossos corpos. riência do tempo vivenciado, mas reelabora seus elementos - nfelhqr ainda:
dá-lhes as palavras e os instrumentos para se dizer -, é o4 temp.o .'sócjo-his.tó* ^ ^
^
sugsrindojÊikmâ ji isiíxd-âiinâgsmj
^^ * * '

. rico” terceiro tempo radicalmente cultural produto das construções-coletivas


»

coisa externa, substanti-


t

£Ún?jato^.cQjaojmdaáa£iiglQban .
.da histó ria Um tal tempo sócio-histórico náò é uma

dc
*
^aiateáaxáo quai&erímuisjncEgulhfe
*

e.da.quaLiwa CAhmamai£QJá4mu:tam de vfiMraentcum.p£áack sJr


,
4 / •
vo do qual restaria declinar os predicados: é antes, uma operação sempre em 1 /
^
XQS. Deste tempo í
.
,
^ ,

f sico linear e mensurável contínuo e quantificável Aristó-


, ,

teles dirá que é “o numero do movimento de acordo çom Q antçs e o.depjois”2


í

0

curso de elaboração daí a utilização do verbo “ temporalizar” para dar conta
dele Sem d úvida, tendemos a objetiyar e exteriorizar a medida que assim
1

e^séculos.mais-tarde^KarLtfará isso com o espa ço, um quadro formal permi- construímos, (daí o sentimento de que a hora não é construída, mas dada) ,
tindo _a _< csíntese a prinri” ( a pstrntiirq çá o) mas isso não autoriza, em consequência, que se sustente, como o fazia Kant,
qualquer experi ê ncia possíyçl. '
ela
.que a síntese desse modo,operada seja inata ou a priori: muito antes disso
Sem d úvida , poder í amos igualmente apreender o tempo sob o ângulo longo e de elabora çõ es diferen -
*
• ‘ é o fruto de um aprendizado histórico muito
1

da percepçao mais imediata, mais subjetiva. Pensámos no protesío de Santo >

* ciadas de uma sociedade para outra, cada sociedade desenvolve seu “


tempo
Agostinho que sentia fugir o~ tempo de todos os lados: “Ó senhor meu Pai, vós próprio”, sublinha H. Nowotnyv 7

sois eterno. Mas, eu, estou disperso no tempo, cuja ordem ignoro” 3 “Disperso A historia dos calendários e dos instrumento? de foedida^dpJgmpp_é
t

no tempo”, o homem renuncia a medir este dado que ele submete a seus pa -
#
/
_
râ metros mais pessoais: “um tempo não é uma hora”, escreve M.^Proust, «eum
f

*
«
, exgmpJar çmj;ekç .aissikj
^ú;LPJLt
^ ^^
vaso repleto de perfumes, de sons,.de projetos e de climas”.4 Em sua Nova re *
- um -sisteir|á- sqdal ,de medida-dQ-tempn articulacío. tanto com base na recor-
.

futação do Tempo, J. L. Borges vai ainda mais longe, submetendo o tempo ao


. QJj6 ^Cljb^qtt^ jU§teQJ?j mps, dp aUoJE tQle^as.jja. ntiga.çiviliaa ãQjn. pia te-
sujeito: “O tempo e a substância da qqal sou feito. O tempo é um riacho que )
me arrasta com ele, mas o riacho sou eu; é o tigre que me destrói, mas o tigre f "
j >

^ ^ ^ ^ ,

sou eu, é um fogo que me consome, mas o fogo sou eu”.5


*« I
, * - N

consensnalmente a historj i colocou-se em marcha e.passou -a.ter•. sentido. ( o


• ^
nasrimenm riò GristQT.pa.civilizaçâO- cristã > jo..ipícÍQ- da-ihégira.r: Qu fuga de
, ,

. .
1 PESSOA, F Le Livre de Vintranquillité Paris: Christian Bourgois, 1988 p. 222 Para . . ?
a leitura deste capítulo, poderíamos recomendar a obra de CHESNEAUX, J. Habi-
.
ter le ternps Paris: Bayard Presse, 1996. logo, exatamente, como o sublinha P. Ricoeur, um tempo mediador: “se ele
.
2 ARISTÓTELES. Physique Paris:' Belles Lettrés, 1952.219b2, p. 150 cosmologiza o tempo devido ele humaniza também o tempo cósmico”,8
.
. .
3 AUGUSTIN, Saint Les Confessions Traduit par J. Trabucco. Paris: Garnier, 1964.
p. 280. .
6 Cf. ELIAS, N. Du temps. Traduit par M. Hulin Paris: Fayard, 1996. p 52 . .
.
4 PROUST, M. Le temps retrõuvé Paris: Gallimard, 1949. p. 224. .
7 NOWOTNY, H. Time: The modern and postmodern experience Cambridge: Polity .
5 BORGES, J. L. Une nouvelle réfutation du temps. In: Labyrinthes Paris: Gallimard,. Press, 1996. p. 4 . «

1953.
.. . .
is: Seuil, 1985 t III, p 197 (Coll. Points Essais)!
RICOÇUR, P. Temps et récit Paris -
Coa***
f
.

22 A* Uf AJ r
ô* • ijr Wí WÍHA 23
t

f Preludia i *
Prel údio
r *
V
* f

\ *
4 \
vt 4
í 1 I

„0 m ês e o diá tomando d p empréstimo à lua, e o ano, ao sol, o calen^


, da. favgrece. por sua vez, um <ftempP real” operando difetameiltel.e,em.curtQr
\
\ dá riosnem por isso deixou de ser objeto de projeções m íticas e de manipula- *
ções políticas. Será que nos lembramos que os pontífices romanos, antes da
rirrnito o tmhalho do , ten> pQ.u Mas nunca estas transformações são uma ta -
* refa puramente técnica: é das relações de forças e de lances de poder que elas
reforma dé Júlio César, não hesitavam em alongar ou encurtar os meses em
* procedem . Quem for apt? irnppr fl õft Wt ím componentes sociais_sua conSji
’ função das necessidades do recebimento do imposto? E sabe-sé que quandò o .
trução temporal é overdadeirodetentor dopoder, Ó mercado, por exemplo,
12
*
papa Gregório XIII decidiu repor o calendário juliano de acorde) com o sol > *,
deóretando que a quinta-feira 4 de outubro de 1582 seria dif êfamente segui- Vi atualríiente impõe o tempo e dita a medida a todos os Estados do planeta no
da da se&a, 15 de outubro, os países protestantes recusaram -se durante mais quadro de uma economia mundializada e privatizada.
V

Esta última observação nos remete a nosso lance central: a justa medida
4 í]
de um século a alihharem-se - o que levou o astrónomo Kepler a afirmar que •
*
“os protestantes preferem estar em desacordo com o sol do que em acordo ' •
V
v
do tempo social, que procuramos pensar, nunca há de se impor por si própria;
• cò m o papa”
*
4
A
é contra diversas formas de destemporalização que ela terá que se fazer valer .
I *
Quanto aos instrumentos de medida do tempo, toda sua história (des-
K
4
4

i
de o quadrante solar até os relógios atómicos de hoje) revela sua estreita de- A
, v
' •r4

QUATRO FIGURAIS DA DESTEMPORALIZAçãO


' pendência em relação à$ necessidades sociais e configuraçõ es" culturais do

mento. Sabe-se, por exemplo, que durante muito tempo o relógio mecânico
mo - y
:
t
t

A NOSTALGIA DA ETERNIDADE
"
\

t
»
( clocky em inglês) foi desprovido de quadrante indicãndo o curso das horas: »
-
A

% I

durante a idade média cristã, bastava, na verdade, que os sinos que ela aciona-
, *

va chamassem os fiéis para a oração; foi apenas com a passagem para o “tem «
M

’ A primeira forma de recusa do tempo (entendido em seu sentido pri *


-
* ty i
meiro de mudança) é a nostalgia da eternidade: o ref úgio em algum erzats de
po dos mercadores” que se sentiu a necessidade de uma redução mais precisa
das horas e que se adotou o relógio do quadrante, provido de inicio apenas
perenidade, ilusória còmpensação para a dura realidade de uma.condição fi -
com o ponteiro das horas, depois com o dos minutos e logo em seguida, o dos
t . nita è mortal. Diante da eternidade, de fato, qual o peso do tempo? Que é ele
"
. *
senão,mais que uma “ilusão”, comò. o sustentava Einstein,13 o f ísico; “a imagem
segundos.9.CQiri.hLElias. pode-se lembrar, também, que é apenas com o apa-r »
*
4 *

móvel da eternidade”, como o pensava Platão, o metafísico?14 Dupla queda da.


..rerimento .das grandes instituições dnrá veis; rnmn osJEstadbs euas Igrejas que.
^ eternidadedivína. Qlempo^enajxmQjajnarcajkjmi:
* ••
4

.apanágio dexriatataSjnQJlaii
^
ji
^ ^^
se em uma identjdade qualquer. As formas desta nostalgia de um tempo que
imageirLde^ua^ .
Qntinuidgd 10 .*
^
*

Logo, a elaboração cultural do tempo é questão de progresso das técni-


»
A
^
não iria envelhecer são diversas, tal qual, entre outras, à concepção cíclica do
-
*

cas, tanto quantõ desafio de poder. Com B. StieglerT ppde-.se pensar, por v
eterno retorno que daria oportunidade ao tempo para que se reciclasse, em in
.ss.a assrita .pami tervalo regularam illuã tempus das origens. "
N.
partida a língua- *

_ STIEGLER, B. la Technique et le temps.Paris: Galilée, 1997. t. II: la Désorientation;


^emjnediáíLca, assim.como a difusão da comunicação infor ^
r
. •

cf. também La Quinzaine littérairey Paris, p.'18,-maio 1997,


12 SUE, R. Tettips et ordre social Paris: PUF, 1994. p. 20.
v

9 BARREAU, H. Le temps. Paris: PUF, 1996. p. 67. "


*

13 Apud KLEIN, E. Le Temps. Paris: Flammarion, 1995. p. 38.


*

.
10 ELIAS, N. Du temps Traduí t par M. Hulin. Paris: Fayard, 1996. p. 64.
-
14 PLATÃO. Timée, 37c 38d. Paris: Garnier: Flammarion, 1969. p. 417.
v «

i
v

24 i
t
f *
25
*. i

Prelúdio* * \ Prelúdio i
*
<

Podemos pensar que é caractenstieo de todos os fundamentalistás pro •


jetarepi-se neste fora do tempo fabuloso: quer se tratasse de regressar ao tem-
- dade pensava, contudo, a condição htimana como uma tentativa de recon-
quísta da imortalidade; e que via, no exercício da ação política e ilo tomar a
po sagrado das origens . (como o pretendiam as grandes cosmoCracias anti .
gas) 15 ou de Se projetar nos amanhãs radiosos da escatologia (como o fizeram .
- palavra na agora, a atividade humana que se aproximaria mais deste ideal; par -
ticipando da fundação datidade e da discussão de suas leis, mantendo vivo o
' relato desta históriae intacta a confiança que aproximados homens os cida-
alguns totalitarismos, dos tempos modernos), quer se tr àtasse de anunciar um
“Reich de mil anos ou de prometer a “grande noite” é sérqpre de “final dos
*

tempos” que se trata; saltar fora da história e de suas incertezas para mergu - ~
18

dãos ganhãm uma forma de imortalidade a cem léguas da eternidade í
^ f si-
ca do tempo, morte integrísta. Iremos encontrar muitas formas deste tempo
Ihnr, sem.maiVdelongas, na orderrl plena da comurpdade identitá ría. a que ali- í-se absolutamente preçá rio e finitp ^ contudo, tem pretensõ es a
11er sahendf
^
' .

menta o fantasma do “povo ú nico” e gera o integrismo, afilosofia da totalida-


de, Não será significativo, por exemplo, que Hitler tenha declarado um dia es- / umainfinit.udg,semp
i de Média até as nprmasxQnstitucÍQnai$mão revisáveisj3aaQ^direÍto.s_iundaz
^

tabelecera ordem nova baseada numa “anti-história”: apelar para a purez ra-
cial não era, a seus próprios olhos, um modo de “liberar o mundo de seu ^pas-
Resta que, renunciando às miragens da eternidade, o direito se escreve, /
sado histórico?”.16 Ao contrario dós'judeus, que tinham inventado o perdão
que liberta os homens dos pesos do passado, Hitler desejava encerrar a huma-
.
desde então, sob o risco da história IgUalmente, é preciso explicar agora como
ele poderia resistir à “vertigem da entropia”, segunda forma de destemporali- A

nidade num estrito determinismo biológico.17 Onde se vê que a recusa da mu- zação possível .
dan ça está estritamente ligada a uma concepção í f sica do tempo.
\

Arnancar--.se. aj adestempoi zaç


^ ^^ .tempo
A VERTIGEM DA ENTROPIA
. . . - o grito de revolta que os direitos huma-
»
* »
n fipitude de f ,Qr tal
ÇÃQ tí ;

nos traduzem exprime bem este “deáligamento” do tempo eternitário e a aber-


tura de um tempo novo, irredutivelmente plural e amplamente indetermina- , <?
do, como se daqui para frente cada um fosse chamado a refazer por sua con- i
A natureza inteira, a ma •. -
ta o gesto transgressivo de Adão ou de Prometeu, ladrão da maçã ou do fogo, , M

téria, assim como a vida, parece, de fato, levada em um fluxo incessante, que a
'

que dão acesso ao conhecimento e à liberdade. Mas alguma coisa de positivo


Segunda lei da termodinâmica ensina, que a conduz a uma entropia” órescen-
permanece, contudo, desta reminiscência da eternidade perdida: o cuidado de
te e, logo,a um final inevitável. No plá no cultural, esta vertigem se traduz por
retirar n_ essencial à_ nsura tepipo. e ° desejo de imortalizar pelo menpsa
. i uma “pane da historicidade”, entendida como a dificuldade. crescente jjenos -
sa^soci ed n
aialÍ7.açãQ iaiaicíwkg dafae
y

^
põe porque-se ^fazemrvakr ^ ^^
. . PiLelementPs_de ligação ) . É H. Arendt que , neste
. .
, ' sente.
como de proieto. R. Sue está certo ao escrever:“O presente, sempre fugiti-
.sia
ponto, seria preciso reler, ela que fazendo seu luto de uma impossível eterni- vo, constituf-se atualmenté como principal reptesentação do tempo, símbolo *
de uma sociedade que perdeu sua crença na história”.19 Como sç,o passado, de -
15 DRAl, R. La politique de Vinconscient.Paris: Payot, 1979. p. 80-82.
.
16 RAUSCtíNING, H Hitler mya dit. Paris: Pluriel, 1979. p. 311. *

. . .
18 ARENDT, H Condition de Vhotnme tnoderne Traduit par G, Fradier Paris: Cal - *

17 LÊVINAS, E. Quélques réflexions sur Ia philosbphie de Vhitlérísme. Paris: Rivages,


..
1997 p 9.
.
mann-Lévy, 1988. p 43 .
. .. - .
19 SUE, R Tetnps et ordre social Paris: PUF, 1994 p‘ 299 300

26 27
Prel údio Prelúdio

» »

ívamentç terminado, nada mais tivesse a dizer, e que o futuro, decidida-


fmit sentido, entretanto, jamais está definitivamente estabelecido: “cada sociedàde
reescreve sua história à medida em que ela mesma muda”, notava R. Aron, que
mente demasiado incerto, nã b exigisse ser construído a partir de hoje. Comp - '
A *

aeja
4iasâadxuiãQjxigi «itmai ^^ acrescentava: “o passado só é definitivamente.fixado quando não tem mais fu-
í

^ ,
"
turo” 21 E poderíamos dizer, ém contra partida, que uma sociedade amputada
de suas raízes, órfã de sua história, encontra barrado seu acesso ao futuro .
dm^çãQ e cadasaiuicanímte^vírene i Qjn taot copdpnad
^^ ^
ritmo sôfrego da atualidade, “Só falamos tanto de
,
^
^ memória”, escr^SAViY ^ JPQ
çye P. Nora,
^ 1
nam “o
Apenas a fecundação recíproca, que P. Ricoeur e R. Koselleck defiomi-

“porque ela não existe mais”,20 Privadas de um elo vivp com o presente, as tra- *
experiência” •
pf >, iim ^.jCQQSÍstênda.jaegumtxópkaJluiiL5£iitkla huii)itno , A “
)”;
: * '
dições se ressecam e alimentam apenas na melhor das hipóteses um discurso
,

erudito e na pior, uma nostalgia reacionária; amputadas das aspirações do


* ” 1

remete a um passado sempre atual ou atualizável, uma aquisição sempre mo * -


• / bilízável, um ensinamento sempre coerente; a ^expectativa!’ pressupõe umfii-
próprio presente as projeções de futuro procedem apenas da ficção científica » A

* turo já presente, um futurõ antecipado, uma projeção já ativa. A experiência é
ou de. utopias incapazes"de concretização. ' ® V

• '
passado capitalizável, que em certas condições (quando é réviVificado pela ext \
* '
%
« * • N
,
E contudo, o homem é o ú nico ser vivo a ppdgr Yoltfjl ampulhet v ’
^ ^ pertativa )^m ôstra-se portador de interesses: a expectativa _éJhturo.peQhora-
>
i

só eleJ:em a capacidade _de arrancar-se_do esçqaTT> ent irreversível do tempp ^ *

^
'

* \ °
-
|l I

-
r
fisico, ligando o que, a cada instante, ameaça desligar se. Com o homem sur. •
*

portador de crédito Um passado ainda “interessante” e um futuro já “credita-


.
ge, de fato, a 'possibilidade de uma retomada reflexiva do passado e de lima
do/” eis o tempo humano “valorizado”, eis a duração portadora de sentido.
*

construção antecipativa do futura- a capacidade de.reinterpretar o passado ^ a


*

Mas nad à de mais frá gil que esta aliança entre o_p^ssado^^
( não fazer com que elei tenha sido, mas imprimir-lhe um outro sentido, tirar
. “crise da cultura” -propicia o cisma entre tempos, que parecem nada mais ter a
-
f
*
partido dos seus ensinamentos, por exemplo, ou ainda, assumir lima respon . - se dizer: um passado repentinamenté.tornado estranho, uny futuro opaco ç ^

sabilidade por seus erros), e a faculdade de orientar o futuro (não fazèr com
jmprQvável e en.tre SLdQÍs:..umpresente eduzidQ àS-panc das_doinstantâ-
-
que ele chegue, mas imprimir um sentido significação e direção ào que - ^ ^

neo. aos âôhLêâ osjk


^ ^ ,

^
há de vir).
É nesta característica humana, certamente potável, de reflexão do tem- -
.

^ ^^ giaAiiiágj
^^
tratá se de um lance ético - e logo político e jurídicó - de manter as duas -ex- "
-
* •»
* «

po (e> melhor ainda, de reflexão do passado no futuro e deste naquele) que se * tremidades da corrente, garantir que se prossiga o dialogo entre a memória e
a expectativa, pois “uma sociedade deve ser capaz de história”, escrevia Hegel, -
25
* •
depreende a possibilidade de uma £imstaLçãcuiegU£nírftpicaj ÍQj;empo. Qeial1
'
/

Não que queiramos negar o caráter irreversível dr> tempn! pagado ^ ter- ao quàlDurkheim fazia eco: “Sem dura ção, não há sociedade que possa ser
?

°
minado e n fiitqro indeterminado. Logo, não se trata nem de “voltar atrás consistente”.24

hem de “parar o curso do tempo” trata-se antes, de regenerar o tempo que /

passa, conferindo-lhe a espessura de uma dura ção real, graças à fecundação 21 ARON, R. Dimensiom de Ia cptiscí ence histor í que. ParisfPlon, 1965. p. 18.
^ recíproca de um passado que, se bem que terminado, não esgotou suas__pr.o-
. . 22 , RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: Seuil, 19.85, t. III, p. 374 et seq.; KOSELLECK; R.
Le' Futur Passé . Confributioti à la sé mantique des temps historiques , Traduit par J.
r
messas, e de um futuro que, se bem quejndeterminadcKhác átot mente-ak - Hook et M.-C. Hook. Paris: ÉditionS de PÉcole des hautes études en Sciences socia-
fório. É que se, como o escrevia Marx, “a história não repete ^ os pratos”, seu , ^ ^ les, 1995. p. 307 et seq . f
.
23 HEGEL, La Raison dans.PHistoire apud DRAl, R. La Poliiique de Vinconscient. Pa- '
'
4

' ris: Payot, 1979. p.l 6.


20 Les Lieux de mé moirc. Paris: Gallimard, 1997. p. 23, X'
24 DURKHEIM, E, Le Suicide. Paris: PUF, 1976. p. 214.
*

28 29
t
Preludio * . Prelúdio
^

4
* , A hermenêutica dos textos - exercício quotidiano do iurista - conti;jbi L Ora. n ão nodá
^ sa cada vez mais inertè, consagrada à repetição do
eficazmente para esta ligação intertemporal: será que o jpj;z Qjjo.&X£quÍ&ÍtàdÓ
* . / r" ignorar qne se fnv valer també m uma concepção completamente diferente do
_
menl£ .Q..précedente
flue sua decisão poderia representar paya
,
Rein
terpretando doutrihas antigas à luz das questões da atualidade, ele dá vida a so
-
-
tranatoina.a.cQntmMÍdad imQl
— ^^
das suspensões e dos intervalos o /caírÓ5 dos gregos,ro instahte.propíciio .que
°

S b>e:se que Bergson e Bachelard se en-


\

luções que não tinham esgotado todras suas promessas; traçando novos cami- ‘ '
^ ^
frentaram na encruzilhada destes dois tempos: um relacionava-se com o tem27-
po horizontal da duração, o outro, defendia o eixo vertical do instante criador.
nhos com a ajuda de textos que criam autoridade, ele restitui à tradição seu ver-
dadeiro alcance: o poder de transmitir mundos possíveis, qne rfitroativameníp. .
podem enriquecer os princípios herdados. O famoso “círculo hermenêutico
Mas este combate é in útil pois o tempo é uma coisa e outra: uma dura -
” ção, crivada de descontinuidades múltiplas. semprea s£rjreinventado;24 ÍAstan-
, ^ '
. .

encontra, aqui, sua tradução temporal: a troca semântica^entre ò mundo do


texto e o mundo do intérprete é igualmente a reversibilidade histórica epi ação, -
tes carregados de peso e de sentidos “tempos fortes”, logo, destes “momentos
históricos” que iniciam novas perspectiva?. No cruzamento dos dois e.ixòs, é
o diálogo entre trechos confusos de respostas formuladas no passado e interro-
uma diagonal que se inscreve, pelo menos cada vez que somos capazes de ini -
*
‘•ta: entre “mundos culturais”, separados pór sé
.-
gações expressas no presente.25 Podemos, com J M. Ferry generalizar a propos-
J ciativá e de história -de pausa também, desses insfantes suspensos que se mos-
culos, o diálogo hermenêutico, se tram propícios à reflexão e às reorienta ções. Entre acaso e detenninisniPv-de-
bem que não programável, é sempre possível. É a característicõ do “tempo his-
tórico” nutrir-se de tais trocas entre conteúdos de significação, herdados de
* w

mundos muitas vezes^muito distanciados que “se reatam como textos”.26


Essa terceira via, justa medida entre acaso e necessidade, Aristóteles29denomina -
vao kairós; ele via nisto a expressão do bem em matéria de tempo.
Muitas construções jurídicas, nós veremos, contribuem para a consoli-
dação desse tempo histórico neguentrópico: desde o princípio da não retroa
tividade das leis penais até o cuidado de transmissão de um património natu
- Nietzche, sabe-se, tornou-se o advogado eloquente desse necessá rio
ral e cultural ãs gerações futuras, passando pelo princípio de “confiança legí
- desligamento do tempo: não havia palavras bastante duras na verdade para
*

tima” que atravanca à mudança intempestiva das leis. Resta, pois, que p tem
- fustigar os “retardados”, afetados pela “doença histórica” e que, “entretendo o *

po, resolutamente dialético, não se expressa spmente sobre o modo da dura


- brick-a-brack ancestral”, “desenraízam o futuro.” Contra esta história tradi-
30

ção,. da transmissão oy da acumulação. É que a “tentação do determinismo”,


- cionalista paralisante, ele apela para a juventude qúe, senl conhecer o futuro,
tem, contudo, o “pressentimento cheio de promessas”, porque elaainda é “ca-
terceira forma possível da desteiríporalização, está sempre à espreita . paz de esperan ça”* E que, por esse motivo, não hesitará em quebrar alguns ído-
los para liberar a energia inaugural dos tempos fortes que dormitam.
31

7
A TENTAÇÃO DO DETERMINISMO
27 BERGSON, H. Durée et sinultané ité . Paris: PUF, 1992; BACHELARD, G.VIntuition
AjtfdoúzaçãajaecÊSsáriajda * de Hinstant. ParisuStock:Livre de poche, 1992,
gênea e lisa do tempo que, ho limite,^ ^
se cristalizaria rapidamente em uma mas -
28 BACHELLARD, G. l,aDialeçtique de la durée. Paris: PUF, 1963. > *
29 Cf. COULOUBARITSIS, L. Le temps hénologique. In; Les Figures du temps. Sous la
_
direction de L. Couloubaritsis et J.-J. Wunenburger à Strasbourg: Presses Universi- ,

25 GADAMER, H , G. V é rité et méthode. Traduit par E. Sacré. Paris: Seuil, 1976. p. 166 . taires de Strasbourg, 1997. p. 96-98. '

30 NIETZSCHE, F. Considé rations iwctuelles . Tradui par P. Rusch;Paris: Gallimard,
h
et seq.
26 FERRY, J.- M. LesFuissancesde Vexpé rience. Paris: Cerf, 1994.1. 1, p. 205. 1990. p. 109, 136 .
^ ' .
31' Ibid., p. í 67,

30 31
\* 4
Prelúdio Prel údio

S
r %

Admitir o 'kairoSy o instante criador, no seio do tempo social, é reconhe- r *


» por conta própria. Como se os mecanismos cegos da auto-regulação do merca-
cer que o tempo de uma sociedade aberta não é regular e uniforme; é admitir
do, na falta de programa político de transformação social, fossem os ú nicos a re-
*

que ele seja percprrido por hesitações, cruzado por incertezas, transtornado
prcsentar projetos de futuro.Em todos os lugares, só se trata de ''administração
por acontecimçritos imprevistos - e isso principalmente porque ele reconhe- dp futuro” e de “gestão da mudança” mas desde que a questão seja mudar por
* ,
ce o conflito que não procura ocultar. A democracia, sabe-se bem desde Clau- *

mudar, pode-se se perguntar se os_estados^maiores.politicQSTe econó micos não


* t

de Lefort, é o regime marcado pela indeterminação de suas certezas e que, des- _


São prisioneiros de snn própria din â mica de Jransformação descontrolada . Ain
.
~
de então, faz de suas divisões uma força - o élati necessário para a pesquisa de- . . ' (la paradQxalmente..eye-detérm .inisn}ocegQjiomiercadQLiicarreta .
umajds ã -
Q dQ.

liberativa ininterrupta do bem comum.32 - vs Demasiadamente


F essencial, portanto n .pçç p xespeifryn ã o impor.á\jdx àd íúJrptaxis Q E* *
tmp^simjultaneamçnte^dema
^
cheia quando se trata somente em se representar o futuro como a extrapolação
^
,
^
ritmo programado que convém à fabricação das coisas ( poieçp ^) ; uipa yeznque
mecânica dos traços do presente - um “presente prolongado”, como o escreve
^-
a4irimfiirajii Ya d&,:umaJ;empai idad aber.ta ^
inlerafiva daj:azãp^prá jÍ£a .aLTsegunda ^ . ^ ^ ,•
^
*
H. Nowotny,34 que compromete e mesmo hipotecado futuro em vias cada vez
mais irreversíveis,* “presente onipresente”, escreve, por sua vez, J. Santiso. Mas
* 35
^ ^
^
'
,

esta representação do futuro surge ao mesmo tempo singularmente oca de sen-


po homogé neoNp contínuo SednsÍStÍniQà41£Ste pontQ, fi porqpf , SUbstltllir.o
.
\ *
»
4
m%

“agir” (pol ítico ) pelo “fazer” (técnicob assimilar a história dos homens a um
lido, incapaz, certamente, de mobilizar as energias e suscitar o apetite pelo futu-
3r-tfifato, fi-rfidii7!r a nada _ o fispg ço Ho kairós: é o desejo secreto de tpdog QS vezes dogm á ticos, sem
ro. A desvaloriza çã o dos antigos modelos sociai^ muitas
- . - . . - . ’

pensamentos antidemncrá ticng 33 * . .


_dç ideolQgia
dú vida, liberou um càmpo imenso de possibilidadesrmas. carente
Pode-se perguntar a esse respeito qual a forma assumida atualmente oM
> * mobilizadora de mi.
pela tentação do determinismo, em que sentido influencia as tendências x
gin.e c\e incerteza, que n ã o reduzem as representações do futuro. cada.Vez mais
sedimentadas do desenvolvimento histórico. Paradoxalmente, o determinis-
heterogéneas, e que percorrem o corpo social: a ausência de um modelo de fu-
c

mo assume atualmente a forma da mudança radicalizada: uma mudança va -


turo compartilhado por todos, a super posição de diferentes modos de antecir
. .. .

lorizada por si mesma, que acarreta uma prodigios:a_aceleração dos ritmos njend&xtejim
^u^^
_
hretudQ
temporais e _$e traduz pela imposiçãoLda..urgência,como temporalidade ordi-
, , , . ,
fuição ^^ ^pei^
,

náriã. Trata- se, sem dúvida, de um paradoxo, sustentar que o determinismo, *

futuroem _nossassociedadesindusfQais _avançadas:les_creverD,_ Mercuxe


que anula qualquer capacidade de iniciativa verdadeira e esteriliza a concep-
Nestas condições, quais formas poderia assumir uma reteniporalização
^
ção de alternativas reais, assume a forma da mudança, ao passo que, precisa-
* suscetível de desligar as coerções desse determinismo? Qual face para uma
mente, esta mudança é apreèentada como libertação das tutelas do passado e
praxis reencontrada? Qual forma para fo kairós da atualidade? Arrisquemos
das coerções do futuro. -
este improviso em forma de interrogação: e se “prender o instante” significas
O paradoxo se dissipa, entretanto, se percffb fflQs P fatQ dq .quç nada P0:
^ - . . se atualmente “tomar seu tempo”? E, se, num contexto de aceleração e de mu-
>
yece operar esta mudan ça , nada condiciona a realização dfi objetivo sQpafe
sejá^ej^defmoudQ-qqe-mudar surge daí para frente como um objetivo em si. a
dftr ^ . * ’
dan ça radicalizada, a verdadeira alternativa consistisse na aptidão para a len
^
-
coerçã o dqs coerrnes à - qnnLningn ém poderia se OpOf sem que fosse deivadn
^ *

34 NOWOTNY, H. Time The modern andposUnodern experience. Cambridge: Polity


. '

...
Press, 1996 p 8
' 32 LEFORT, C. Essais sur le politique. Paris: Payot, 1986. p. 21 et séq. 35 SANTISO .
, J Les Horloges et les nuages: temps et contretemps des démocratisa -
33 ARENDT, H. Condition de Vhomme moderne. Traduit par G. Fradier. Paris: Cal- .
tions HcrméSy Paris: CNRS, n. 9, p. 1176.
-
mann Lévy, 1988. p. 282-285. 36 MERCURE, D Les Temporalités soáales. Paris: LHarmattan, 1995 p. 41
. . .

32 33
> Prel údio
Prelúdio <r »
t
V <í
=v f

1 .
*

bclecê-lo pata o direito.39 Esta constatação n ão deixa de colocar sérios pro-


V
* *
tidão? Contra . a tirania da urgência e a cultura da impaciê ncia , seria preciso
lembrar, ent ão Ue ajjenma ia > QlKdaKÍQjrasa£ÍaJdvf >J;cur
^ ^ ^ ^
dainforma çã o, da.negodação. da deliberação virtualmente infinita. Contra as
^-i blemas ético-políticos, é, assim,.igualmente jurídicos Q que é mais normal
dn qne o fato He nma «fociedade avan çar em 3gfiloddadfi& diversas? Ainda-é
.
. . . ,

j
ciscLiiisp.oL.de. .ttmunfigamsinsugg
coerções administrativas de um executivo voltado aos “expedientes”, contra as
abreviações de uma justiça pela mídia cada vez mais “expedita” contra as ten-
,
1 &
^^ ^^
tações da “justiça espetáòulo” e da democracia plebiscitária, serià preciso lem- nma..taLar.ticukçãQ,(dizgnmAait
AU^oJ sloaunen
áa
^,^é forçoso constatar, a esse respeito
Ora

brar as virtudes do que Dominique Rousseau denomina a “democracia contí


nua’V.7
- ^ ^
ns crescentes tensões que se estabelecem entre os diferentes tempos sociais:
)

tempo do trabalho; e tempo do não-trabalho ( o primeiro torna-nos “indis-


camente aos períodos.4eitorais,.asjriríudcs-dQ prQcessoJentCLpQrqu& jdiabj.
- - pon íveis ao mundo”, o segundo “éxcluídos do mundo”), tempo familiar e
40
'
gani a mideâioáíant çs Jlggal
^^ ^ ^ ^^^ Ser
^
tempo profissional ( e, porque a família está em crise, há tensão entre tempo
conjugal reversível e tempo parental irreversível),41 tempo da inovação e
“inatual” atualmente, no sentido..em que Nietzche„ o entendia isto é,".intem - - tempo da tradição, tempo dos ganhadores e tempo dos excluídos, tempo da
-
t
x
pestivo e criador, em resumo, livre , é reivindicar o direito à lentidão de onde A

unicamente poderia emergir uma forma inédita de ptaxis social. ..


comunicação e tempo da reflexão. Enquanto determinadas esferas se em-
Resta, então, que é de um outro lado, ainda, que a discordância dos balam e seu ritmo se acelera loucamente , outras, ao contrário, parecem di-
' ^
minuir seu ritmo e mesmo parar: que sociedade poderia conformar-se du-
i

tempos ameaça: do lado da “discronia”, desta vez. ,


*

radouramente com tais extorsões? Bastando compararia este respeito, o ^


y*
f f
\ \
J tempo estagnante de centenas de milhões de seres humanos vivendo abaixo
0 RISCO DE “DISCR0N3A ,r í do limite dê pobreza, com o tempo das trocas comerciais entre os países in- v
dustrializados e, sobretudo, o tempo das trocas financeiras operando em
Até aqui, concentramos nossa atenção na sucessividade do tempo “tempo real” na especulação dás praças das bolsas de valores interconecta -
( móvel ou não, reversível oU irreversível , contínuo ou descontínuo) - um
»

'
i
, das, em operação vinte e quatro horas por dia .
F, nm fato: p tempo contemporâ neo e cada vçz rq àis fragmentadQ. ç
,
> ,

_ _
tempo que, por um cuidado de simplicidade, consideramos como único.
-
Mas-OJ.empo .lplumLaód£ntgmente, e. seu damínicLÍ tanto 0-da simultar
- rpie..não..deixa.ie. cmpixun ct aJ çãa-t]MiáQnâl^á£ÍflIegtaáar .&saíiji
^ ^^^ -
neidade ( tudo o que se passa “áo mesmo tempo”! quanto o da sucessivida
Rfi Q tempo, . em
- :

no
•» <

Àm-açõ£S...pâmfflikmsJ tjín os -grandes momentos de cqmiinh ão coletiva?-42 Nos países ditos da “perb
..

^
^MQ ingidiusâ &- laaia4fô *iifer£ndadas.-
^ ^^
In ú meras escalas tempor *r ?e superpõem, e nã. o têm necessariamente
,
os
,
z'


5
, » 'i
t W

mesmos princípios de encadeamento. Braudel démonstrou-o quanto à his- 7 .


V

.-
39 OST, F. Les multiples temps du droit In: ÁUSTRUY, J J. et al. Le Droit et le futúr
.
.
tória, quando afirmava o tempo policrônico e híbrido; Gurvitch fez dele a .
Paris: PUF, 1985. p 115 et seq.
demonstração ruidosa para os tempos sociais.38 Nós mesmos tentamos esta- . .
40 SUPIOT, A Introduction. In: Le Travail en perspective Sous la direction de d’A Su . -
L piot. Paris? LGDJ, 1998. p.1.
.
41 THÉRY, I Les constellatíons familiales recomposées et le rapport au temps. In:
37 ROUSSEAU, D. La Démocratie continue. Paris: LGDJ; BruxeÚes: Bruylant, 1995 . Quels repères pour tesfamilles recomposées? Sous la direction de M. T Meuldeurs et * -.
.
38 GURVITCH, G La multiplicité des temps sociaux. Ir . . .
I Théry Paris: LGDJ, 1995 p 29 .. .
. . í:
le de la sociòlogie 2. ed Paris: PUF, 1963. t. II, p. 325 et seq.
. LaVocation actuel - .
42 SUE, R Temps et ordre social Paris: PUF, 1994 p 297 * .. .
i
\
i
r *
35
* 34
( Prelúdio
JPrelúdia + %

\'
í

feriai qual a articulação entre o tempo habitual da tradição e o tempo impor- aerviços públicos, cuja característica é satisfazer nècessidades sociais a longo
tado das trocas internacionais? E nos países desenvolvidos, que domínio sobre prazo; serviços a respeito dos quais os recursos de uns e de outros são repar-
o tempo comum têm ainda os excluídos de todo ó tipo, aqueles mesmos dos tidos de modo desigual. Somente o estado $olidáí ro _d_edica^e^assegumLJi •
qvn ) Va çã p da ^ r_bances jQngd.pmzQ.pQj^ íticas4? eijtame3at^dermmi^
quais Minkowski dizia qiie ^desembreavam”?43 E para os que trabalham, qual ^pnflflfi ,

^
df <cdf <;envn1vimenío!L(£m mMériá:. jd £duca< ^ ^
e.saÚdewnOJl maLal
concordâ ncia entre o tempo-mercadoria, minutado e pago, das coerções pro-
^ ^ ^
> > *
^
^

fissionais (mesifto e talvez, sobretudo, que elas sejam “flexíveis”) e o tempo -


qualidade de vida? Qual a relação entre o atravancamento de um44 e ffequen- cada m
,umipê

temente o vazio do outro (“tempo livre” que na maioria das vezes se conten - cm úsm. . Em certos casos a atxi-
ta em reproduzir as coerções do primeiro ) ? btlição de “discriminações positivas” a determinados grupos desfavorecidos *

(os negros americanos, no que se refere ao acesso aos estudos superiores, por
Neste contexto, que forma poderia assumir uma tentativa de retempo - *

* ' çã - .
,raliza o? Tratar seda jembrar
dê inicialmente uma prerrogativa geralmente exemplo) permite “comer bocado duplb” e recuperar, num prazo encurtado,
tempo perdido no passado.
neglígenciada: ó direito ao tem o - *

^
' /
0 \

y 4 seu ritrqn. ( latia nm ? grnpr> mi indivíduo, deveqgfld&iavm


"
Muitos outros exemplos deveriam ser evocados para ilustrar as políti-
£ í ^^
seii .pn .ssn ( nu n ã n-avan çar_) _me1hor_ di?epdn 3 r da urn rlpvp pndpr mn tru ír cas a serem conduzidas, visando resistir aos.riscos de discrohia” No domí-
_< {

mwiiwl - ^ ^ ^ nio do trabalho, por exemplo, mal vemos como nos opõr eficazmente ao fla-
gelo do desemprego, que atinge diretamente à ciàadania social dos indiví -
|Jg jpodgr.te.çQas.ft»itTOj assadajàs..açQrd.p ÇQoi ua xTi£n.â3i.ciav£xoc5a.uk-urix
^
futuro., de-acorda com $uasjexp_ectativas.
^ ^ duos; tanto é verdade que o trabalho ainda continua sendo o principal vetor
'

da integração e da dignidade, se nao operando precisamente uma “divisão do


-
,

Mas isso constitui apenas um preâmbulo, pois o laço social exige igual - tempo de trabalho” - uma alocação do tempo de integração social mais jus
mente mecanismos suscetíveis a garantir o mínimo de concordância dos tem - .
ta As proteções sopaLSfWf ignalmente ser repemadas. para Iie^LJlQVQ
-

^
pos de uns e de outros. Seria fazer o jogo das forças centrífugas edesinstituin- * * Imperativo de flexibiMade^qu£imiJiÍ jni^^ .
tes do mercado, insistir exclusivamente na livre escolha dos ritmos temporais. pei\sonaliza ção as ccmdiçÕ£s d£JxabalhaiJiãQ .se ,.traduza iiQS,
^ ^ ^
fatQ
-
.s^pmutraa>
precariedadeaumentada.
v

Ligar tempos sociais ameaçados ,de implosão, resistir à tendência natural, à ^


fragmentação dos ritmos coletivos, tal é certamente a responsabilidade políti- O domínio da proteção do meio ambiente mostra-se igualmente um
ca do momento. Em sua obra Le Maitre des horloges, PhrDelmas lembra que domínio revelador da “destemporalização” Sabemos muito bem, agora, que
o Estado, ao contrário do mercado, tem o privilégio do longo prazo e que, pro- nossos modos de consumo e de produção, nossos modos de transportes e nos-
$as formas de ocupar o espaço agravam as tensões entre o curto prazo dos rit-
-
vedor de duração e de solidariedade, ele “póde impedir que se rasgue o tecido
sociaPno decorrer das mutações que o esquartejam”.45 mos industriais e o longo prazo da incubação natural, multiplicando assim as
Face ao imperativo de rentabilidade imediata, apenas os poderes públi- ' “bombas de efeito retardado”, cujo efeito é transferido para gerações futuras .
« COSJ aguilhoados pelos movimentos cidadãos, podem garantir a renovação dos O novo “princípio de precaução*’, originado na conferência do Rio e inscrito
no artigo 174 do Tratado que instituiu a Comunidade Européia, tenta, por sua
.
43 MINKOWSKI, E. Le' temps vécu . Paris: PUF, 1933. p. 278.
* vez, desempenhar uma função de descontaminação: se se prova, de fato, que
44 DUPUY, J.-P. Léncombrement du temps et belui de Pespace. Esprit, p. 68 et seq., oct.
na verdade este ou aquele projeto parece exageradamente arriscado, ir-se- á
impor uma moratória, ou medidas redobradas de prudência, até se estar mais
*

. 1
* 1980. ,.
>
45 DELMAS, P. Le Maitre des horloges. Paris: Odile Jacob, 1991. .
bem informado Aqui, ainda, é uma vontade de sincronização de ritmos diver
(
-

36 37

Prel údio
Prelúdio >

sos que se tenta pôr em seu devido lugà r -r^os do homem, ps dahatureza, os ligados por promessas, seríamos incapazes de conservar nossas identidades,
.
das gerações presentes, os das gerações futuras Com toda evidência, a sincror RCWnnlos condenados a errar sem força e sem objetivo ”
46

nização dos ritmos sociais_ tornou-_ se um dos fatpres mqjs importantes da re^ Eis, certamente, dois polos essçnciais da regulaçã o jurídica do tempo
^
Jioclnl: o perdão, entendido no sentido amplo, como essa capacidade que tem
^
-
^ ^
gulaçã o:. queras tratasse deLdhddiiLoJ pcLd.eJxafo
ãa.dolcmíicdiyxe jdóJanptt.ptQfe5Íw»kde.rfip. sM a Qlldaà«ladfi ÊatX£ ^
^ -Í^Q crescimento-_entre
j<mêns.aíiyQ5 rp.çss<3asJdQsas deregularas elocidadesj
.
%

il sociedade para “soldar o passado”, ultrapassá-lo trazendo-o à-tona, liberá-lo,


rompendo ò ciclo sem fim 4a- vingança e do ressentimento; aspromessa, por '

^ ^
^ ,

4a a]2&22jyLamdâii£p.fíL OUtro ladô, entendida em sentido amplo como capacidade que tem a socieda- ,
2£gi
^^ ^^
xadjaALLQ^fim-£a_da-ga_sfi_é.de sincronia _qviesejrata,
„ ,

t o
de pnra “crçditar o futuro”, comprometer-se com ele através de antecipaçõ es
normativas que irão balizar de um momento em diante seu desenvolvimento.
J
Eternidade, entropia, determinismo, “discronia”: quatro patologias tem }
A

-
.
| \
f
) porais, quatro desregramentos da medida, quatro quedas
pafa aquém de um Contra o encadeamento cego da fatalidade, a sociedade coloca o ato absolúta-,
<í ,

\ tempa.instiíuídQ,eLSÍgnificantewe[uatrQxegressQes aa-esíado..de-natureza este


>
-
X

i mente inédito e imprevisível do perdão, dando assim, se se pode dizer, um fu-


-
v { estado pré social no qual prevalecem o medo e a violênòja, sem um m ínimo de1 : \ turo a seu passado: talvez esteja nisto a contribuição mais essencial da demo-
cracia ateniense e seus juízes, de que nos falam as Eumênides de Ésquilo. De
\

\ confiança e de cooperâjção. Face a essa desordem sempre ameaçadora, o que o


\ direito pode opor? i f • modo inverso, pela instituição dà promessa - arquétipo de todo.comprometi-
1 , *

h mento normativo, nele inclúso o da lei, desde que a pensemos nos termos do
contrato social a sociedade apropria-se.de seu futuro, garantindo -o contra
V ,
'
/

MEMóRIA, PERDãO, PROMESSA, RETOMADA DA DISCUSSãO: i o imprevisível radical, conferindo-lhe de qualquer modo um passado: Q acon
'
-
tecimento da aliança que marca a época. Sem d úvida, reside ni$so a contribui-
'
QUATRO FIGURAS DA RETEMPORALIZAÇÃO ‘
)
i * ^ t

> i /

ção essencial do judaísmo, que pensa sua história e a nossa, sob a forma da
n

Que já sabemos? Que a “justa medida temporal” procurada se preserva »


4
jt ^
aliança que faz lei. Assim, passado e futuro estão daqui para frente estreita-
tanto de um tempo petrificado, que não abre nenhuma possibilidade de mu
,

dança, quanto de um tempo exageradamente móvel, que não permite nem lu-
- ,V
mente associados por esses dois atos eminentemente performativos: o perdão
*
que relança o passado, referrndo-o a uma liberdade mais forte que o 'peso do
gar para a continuidade, esta ressalva de aparência anódina ^ encaminha-nos fato provado, e a promessa, que orienta o futuro, relacionando-o a umajei

.
para o centro de nosso tema Ela permite entrever, na verdade, o duplo temor
* * * ^
1
i *
mais forte qué a caótica incerteza do amanhã.
suscitado pela ação coletiva: de uma parte, do lado do, passado, o perigo de *

Mas, perdão e promessa não bastam ainda para criar uma instituição
permanecer fechado na irreversibilidade do já advindo, um destino de carênr " T

jurídica do tempo social. Pôr sua vez, cada um dos dois termos se desdobr ,
1

cia ou de infelicidade, por exemplo condenada a perpetuar-se eternamente;


* - i relançando a dialética tanto no campo do passado, como no campo do futu-
^
de outra parte, do lado do futuro, o pavor inverso que suscita um futuro in- '
. ro. É por isso que ao perdão associamos a memória, e à promessa, a retomada
determinado, èuja radical imprevisibilidade priva de qualquer referência Ne- . '

da discussão. A retomada da discussão será, por sua vez, a antecipação do per-


i
*

nhuma sociedade se acomoda com seus temores; tanto que todas elas elabo-
dão. Mais amplamente, deixa-se entrever uma divisão em quatro tempos: li-
i

• ram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente, a desligar o passado e


gar e desligar o passado, ligar e desligar o futuro. Este parece ser o ritmo ne-
ligar o futuro. Com Hannah Arendt falaremos, aqui, das instituições do per- $
cessá rio a uma produção significante do tempo social.
\ \

.
dão e da promessa Se não fôssemos perdoados explica ela, liberados das con-
* \

sequências do que fizemos, nossa capacidade de agir estaria encerrada num* \

46 ARENDT, H. Condition de Vhomma woderne . Paris: Calmann-Lévy, 1983. p. 302-303.


‘ ato único do qual não poderíamos nunca nos libertar [ ] “Se não fôssemos ... . rV
Ai
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Prelúdio i Prelúdio * %

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tudo começa, principalmente para o direito, pelo ato de memória: uma A


J UlllltC proíbe que algqm dia se modificassem as disposições que ele adota; tal •

tradição imemorial de costumes ancestrais, procedimentos judiciais, uma i


> codificador pretende proteger de qualquer interpretação posterior, judiciária
s
doutrina canónica, direitos inderrogáveis. Algo foi feito ontem que foi impor- f
ou doutrinal, os termos da lei; tal contratante inflexível recusará qualquer re- ,

tante, e ainda hoje o é. Nesta memória ativa da tradição, a sociedade mergu- ÍJ


I ,
t
^ mesmo que deves em devido a um trans-
negociação das cláusulas do acordo á ,
lha suas raízes que lhe garantem identidade e estabilidade, mas o perigo dor " j lorno das circunstâncias, conduzir seu parceiço à ruína.
imobilismo espreita, quando opensamento se toma dogmático, ao passo que, V
Será que o próprio futúrp deveria ser desligado? Mesmo que o direito
carente de imaginação, a instituição se petrifica em suas figuras canónicas, No dificilmente se decide a isso, contudo, consente-o, pelo menos a título excep -
plano repressivo, tão revelador do ethos de um modelo jurídico, a sanção . -J Íí cloiial. A urgência justifica, veremos, muitas conformações com os princípios,
paga-se, então, por um mau equivalente ou superior sem que apareça nenhu- f ao passo que a interpretação, qué nada pára, decididamente garante suave-
ma origem desta reação em cadeia. [ mente as transições. As leis de polícia acabam sempre por fazê-las prevalecer
^
Daí a necessidade da instituição do perdão;'de modo mais amplo, a ne-
1
L gobre os direitos adquiridos e as expectativas mais bem garantidas, ao passo
cessidade de instituições jur ídicas capazes de inovação. O juiz, através de sua V h (
JUC, levadas pela equidade ou pelo realismo económico, os juí zes chegam,
sentença decide o conflito que se eterniza; através do justo castigo que ele apli-
, \À
i mais cedo ou mais tarde, a abrir um caminho para a revisão dos contratos cu-
ca ou do perdão social que concede, ele ultrapassa a lógica compulsiva da dívi- V L jas previsões foram frustradas pelo transtorno das circunstâncias.
da (sempre, de algum modo, impossível de ser apurada inteiramente); através V. | É preciso dizer que ainda aqui o perigo ameaça: desligar o futuro não é
..í‘
de uma distinção corajosa, ele frustra a repetição dos precedentes e assume o ,
r l acrescentar incerteza à incerteza? Exageradamente flexível, o tempo jurídico l

risco de uma reviravolta de jurisprudência. Investido atualmepte de poderes e J?


lorna-se assim, aleatório; quando se multiplicam as “mordomia ” da urgência,
de controle de legalidade dos atos administrativos e de constitucionalidade das si - í-
t
^
a insegurança jurídica ameaça o laço social é este se decompõe. Haveremos de
, leis, pode lhe acontecer de anular o regulamento ou a lei, dando -lhe, assim,. $ F reencontrar muitas destas figuras dadesinstituição em direito penal, em direi-
oportunidade a uma apreciação mais justa do direito e dos direitos. ,
* r [ to familiar e, principalmente, em .direito do trabalho. Onde se verifica .a tese
Mas o perdão não é sem perigo quando inspirado pelo cálculo ou, de segundo a qual cada um de nossos quatro momentos, tomado isoladamente e
modo mais prosaico, pelo esqueciménto, como se deixa observar em determi- r destacado da dialética que o religa aos outros três, fracassa em produzir um
nadas leis de anistia. Pior ainda acontece se o passado for manipulado por íeis U tempo portador de sentido.
retroativas, onde se vê que o respeito da memória constitui a condição mes- *
i,
1 Através desta acumulação de temporalidades jurídicas, sublinhada pela
ma de um perdão sensato. N
/
-í i. [ necessidadé de articular tanto a estabilidade e a mudança, quanto o passado e
. - Mas o tempo social só se conjuga no passado. O futuro insiste também, 0 futuro, o que sej depreende, muito claramente, é a profunda dialética das
0

* 5 ^

pois se nutre de expectativas e temores. Igualmente a sociedade lança pontes ‘A \ temporalidades sociais instituídas. Como o sublinhava C. Castoriadis, o tem-
sobre o desconhecido, sacralizando a promessa que compromete, O juramen- rt po instituinte só é inaugural se se estabelecer no centro dás figuras estáveis do
tenipo instituído;4rquanto a estas' últimas, elas mesmas devèriam surgir exa-
^

to individual ou fé trõcacla, contratos e. tratados bi ou multilaterais, ou mes-


'
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mo leis e regulamentos: o giesmo número de figuras da prõmessà em nossas tamente um diá como rupturas imprevistas na reCorrência da tradição,*e elas
sociedades modernas, que só pensam o laço social nos termos do acordo de não sobreviverão se não se transformarem , mais ou menos rapidamente, nas
- todos com cada um, O Estado de direito encontra aqui sua base, que faz voto V V /
figuras de uma nova eternidade.
\
de estabilidade e de segurança: os pactos privados serão garantidos e o poder J

público, ele mesmo, se compromete a respeitar as leis colocadas por ele. Mas, '
4
. .
47 CASTORIADIS, C. VInstitution imaginaire de la société Paris: Seuil, 1975 p. 277 *

-
aqui, novamente ameaça o imobilismo ou o excesso de confiança: tal consti
'
- % et seq.
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tória da liberdade; confrontada com* a incerteza do amanhã, ele
I

* Sem memória, uma sociedade não se poderia atribuir uma identidade, ,


t
institui a,
*

nem ter pretensões a qualquer perenidade, maS, sern perdão, ela se exporá ao aliança, a promessa e a lei que são como o mapa de um país, entrètanto ainda ’
4 >

risco da repetição compulsiva de seus dogmas,e de seus fantasmas Em troca, . inexplorado; e contra a força de sua própria .letra, ele sabe ainda inventar os
.
4

• >

já o vimos, o perdão sem memória remete-nos aó caos inicial dos cálculos de processos da retomada da discussão para reencontrar o traço do espírito que


s
interesse ou nos leva à tendência confusa do esquecimento Sem promessa, a . / * aí se perdera . ' .
v
*

sociedade erra, de cá para lá, como $e dizia antigamente dos vagabundos, gen - Ligando aquilo que arrisca se separar, desligando o-que se tornou mex
*
' ^
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^
-
” te sem reconhecimento , sem eira nem
“ ”' “ beira”; mas, sem retomada da discus- . 1 * tricável, ó tempo jurídico sabe então operar “em contratempo”; quer dizer: ao
X
são, mais cedò ou mais tarde, a lei oprimi e o contrato social explora Radical, . encontro do tempo natural, fiomogêneo, lineán irresistivelmente arrastado na
-
4

a retomada da discussão iria nos mergulhar, entretanto, em um tempo inde- tendência entrópica .
*
terminado que não é, definitivamente, senão a figura invertida e igualmente Liberar a história de suas nostalgias eternitárias, fazer voltar a aréia da
pouco portadora de sentido dò tempo canónico da memória obsessiva . ampulheta para produzir praias de tempo neguentrópico, apreender Q kairós
-
* Tudo se passa, então, como se o tempo social t o tempo da praxts hu
^
entre acaso e necessidade, atribuir ritmos sociais sempre ameaçados pela “dis -
mana - não se desenvolvesse, por um lado, senão ultrapassando o$ obstáculos xronia”: tais são as apostas da medida em/quatro tempos que nos aprestamos
1
de parelha com a indiferença amnésica e com a memória obsessiva, e, por ou- agora para tocar . /

V tro lado, com a programação determinista e a improvisação inconsequente


, . I

Estas quatro temporalidades, é preciso sublinhá-lo igualmente, se de - I

marcam claramente com o simples tempo natural que se escoa Trata se bem,
, . - i

nos quatro casos, de uma reinterpretação voluntária do tempo que lhe impri-
me um sentido humano em função dos valores visados e que se traduzem, em
cada uma das hipóteses encaradas, por performativos jur ídicos específicos, es- V . /

i
tando entendido que diferentemente do cónstativo que.se contenta com .re-
, »
*
gistrar o que é, o performativo faz existir n que ele o enuncia. Há um , esforço' \
\
* »

de memória que opõe resistência à obra do tempo e que, pela comemoração V

e pela rememoração, apóia-se na tendência natural ao esquecimento Há es- . »

*
forço ^de perdão face à reação “natural” e quase mecânica da violência em re- ;
/
flexo: trabalho deliberado de separação dos mil entraves da vindíta acumula- \
> *> '
.
da do ressentimento e do rancor Há igualmente um’esforço da promessa res-
peitado; diante da atração da mudança, diante das seduções do interesse, do «
t

- f

esquecimento ainda, e da fadiga, todos esses deslizamentos tão naturais, a pa-


t
4

.
lavra “se mantém” e a aliança é reforçada Enfim, nêcessita-se de mais um es- i

forço, coragem sem dúvida, paf a aceitar a pròva da retomada da discussão as-
.
y que nos retenham os laços do hábito e o medo do desconhecido Em cada
sim . '
. \

'caso, o direito institui um tempo , próprio pela força de seus performativos:


M
4

contra a naturalidade do esquecimento, ele instaura a tradição, face ao irrecu-


sável da falta e do inextinguível da dívida, ele arrisca o perdão, que marca a vi•- A

*
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Nb d/a iS de agosto de 1996, a Bélgica desperta em estado de choque: os


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1 / \
corpo$ sem vida de Julie e Melissa, crianças mártires desaparecidas há mais de um•
ano, são encontrados enterrados no fundo do quintal de um casebre da periferia
t

1 operária de Charleroi: No início deste aparente ‘ fato quotidiano”, uma imensa


onda de emoção atravessa o país, que irá rolar durante dois anos, portadofa de
r
*
* *

/ t uma exigência imperiosa de memória e de justiça. Remember! Principalmente *“


r
V
4
não esquecer! Uma vez que as menininhas tinham sobrevivido durante meses em ,
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*
*
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J .
sofrimentos indizíveis, bem perto de nós Não deverí amos nunca esquecê-las. Não
deveríamos jamais “enterrá-las” em nossa memória coletiva, enviá-las às “mas-
> *
s
*

monas” (tão bem denominadas dos fatos quotidianos ). Como os pais e contra
\
qualquer esperançà, foi preciso acreditar nisso, è todos os dias se lembrar.
*
& ' -
*
i * 4

Entã o, agora jurávamos que desta vez não nos esqueceríamos mais: os fa-
i *
tos, todos os fatos seriam estabelecidos, os culpados, todos os culpados seriam pu-
nidos, desta vez, era certo, iríamos até o fim e a própria repetição das marchas
4 *
/ V 4
4

V. , ,
* brancas todos os domingos nos quatro
cantos do país, martelava esta resolução
I
' para se garantir de que ela não se perderia, como todo o resto, na areia moveâi-
' \ 4

. ça das promessas (eleitorais, principalmente ) não cumpridas.


E já se previam, para o futuro, além das reformas nas quais se trabalhava
4 1
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ativamente, aniversários, monumentos, comemorações: questão de fixar para


0
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4
*
sempre uma lembrança tão forte, tão fundadora, como para marcar o início de
0

uma npva era onde “nada seria jamais como antes”


J

45
Capítulo 1 V]
*

Memória. Ligar o passado
M

.
Enfini, ví yíamâs este luto que demorara tanto No luto, descobríamos uma s ,
O sobressalto político se colocou no lugar do 'abatimento emqcional O .
identidade, raízes, uma genealogia, i/mafrátria, uma descendência: até os filhos
/ /T
* caso Julie e Melissa deixara de ser um fato quòtidiano, ele se tornara uma “cau
,
-
,
de imigrantes foram de repente, integrados nesta família reencontrada. A evi - sa” no sentido em que nas vésperas da Revolução Francesa Voltaire soube trans
^ - , /

-
dência da iguald ãâe no sofrimento cerrava fileiras (em 5 de março de 1997, o cor formar peripécias judiciárias em escândalos nacionais, alavancas de mudança '

po mártir da pequena Loubna Benaissa era encontrado nos porões de uma gara- -
social A desgraça privada tornara se um desafio coletivo. O acontecimento •

.
gem de Bruxelas ) Por uma vez, fazia-se ouvir a Voz daqueles que jamais são ou - “marcaria época”: um' processo, irreversível de reformas estava posto em ação, e
-
, . ,
vidos os esquecidos da história de que nos fala W Bênjamih, os sem voz os ex- uma nova sulfura política era chamada para substituir a antiga, radicalmente ,
cluídos, todas estas vítimas cujo lamento, enfim, era levado em consideração desqualificada. Compreendia-se então que a multidão que marchava, domingo
Esse tempo de memória que se prolongou por longos meses era aquele fun
.
dador e sagrado da comunhão Na verdade havia algo sagrado durante todo esse
- '
após domingo, procurava tomar a ser um povo.•Num país ameaçado, mais que
Outros, pela decomposição da identidade e o afundamento simbólico, fazia se ou - -
^

período, um sagrado violento e às vezes mórbido algo assim como a “crise sa-
.
crificial” de què fala R* Girará, que não se conforma com hesitações e discussões
vir uma surda aspiração à Unidade reencontrada. O ato de memória era inicial
~r
f

,
mente uma demanda cidad ã uma maneira,' em resumo de remontar o declive
-
\
-
^

Quando o choque'é tão profundo, e taó vital o lance, é á comunhão qUe é exigi - entrópico do tempo que se usa em direção aos princípios fundadores do grupo.1
.
da Estqatitude culminará com o voto unânime pelo Parlamento, na terça feira,- Logo, fora necessário um terremoto social maior pdra que redescobríssé-
,
15 de abril de 1997 do relato da Comissão de inquérito parlamentar (comissão mos esta Verdade: uma coletividade só[ é construída com base numa memória
^que durante cinco meses trabalhara étn busca da verdade sob o olhar constante compartilhada, e é ao direito que cabe instituí la. Rwanda, que no decorrer do
-
das câmeras ). Como se os processos parlamentares normais tivessem sido coloca- mespio período foi teatro de um genocídio que deixou pelo menos 500.000 mor -
* dos fora do jogo, que as discussões e emendas fossem incongruentes e, para resu - tos, passou por essa experiência em uma escala ainda bem mais trágica: sem jul -
mir, inconvenientes, eque era necessário ainda uma vez, comungar na memória * gamento de pelo menos alguns milhares de genocidas, nenhuma reconciliação
do drama e jurar, todos juntos, que não veríamos niais tal coisa. 4

nacional será possível e o ciclo mortí fero das violências em reflexo não cessará de
Este trabalho de anamnésia era cada vez mais tão profundo, que mergu- se rearmar.
.
lhava longe, no passado - Tomávamos consciência de que os “assassinos estavam %
*
-
\ Sobre o fundo desse caos originário estado de natureza sempre ameaça -
entre nós” já havia muito'tempo; ( re)descobríamos o fenômeno da pedpfilia, de , dor cabe ao direito ditar o limite: dizer quem é quem, quem fez o que, quem é
-
que fingíramos crer que, desde há muito tempo, se tornara marginal , E eis que,, ' .
responsável Estabelecer os fatos, certificar os atos, colocar as- responsabilidades.
agora, os antigos medos reapareciam. Á tualmente ^a pedofiliq, e por que não,
amanhã, o incesto? A proibição arcaica associada às sociedades primitivas ou ao.
Lembrar a ordem genealógica, distribuir ospàpéis, separar os querelantes. Nar -
rar o enredo fundador, reavivar os valores coletivos, fortalecer a consistência da
passado obscuro e acabado da vida rural voltava à superfície de modo violento.
linguagem comum, “a instituição fias instituiçõe s a linguagem das promessas
Tudo aquilo estávamos de acordo, como a lei, não ter podiddignorar, e entretan-
^ que o corpo social se fez para si próprio, a linguagem das leis, graças à qual dis r -
to, nós o havíamos recalcado normais profundo de nosso inconsciente coletivo.
pomos de “palavras para dizê la”, para dizer o que nos religa e nos diferencia,
-
Este brutal retorno do reprimido poderia tèr conduzido a formas regressi- * \ .
vos de justiça. Da, vindita, falou-se muitõ daqui e dali; vozes reclamaram a apli-
m
para dizer onde passa o limite do aceitável e do inaceitâveh
cação da pena de morte, a adoção de sanções irreprimíveis, a supressão da liber -
dade condicional. Mas elas permaneceram, antes, isoladas; em sua grande maio- . 1 ROVIELLO, Á.-M. L’Extase du peuple de Belgigue. Esprit, p. 17,8, sept: 1997.

-ra, o povo belga soube ultrapassar a lógica da vingança e canalizar sua emoção
í
na exigência de uma justiça renovada. . . .
2 GARAPON, A. Leçons d’un automne belge. Le Jjourrtal des prock, n. 314, p. 2, 15
nov. 1996. * N
- i

46 47
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Capítulo 1 * £ Memória. Ligar o passado. \
i
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/
r

Ê que o passado possui seus direitas, que não poderíamos violar impune- mundo se desenha que não conheceria mais, nem crianças; nem adultos - ãistin - _

*w

.
mente, pois ele condiciona nossas identidades Ê muito revelador a esse f õo dam dos papéis onde cada um assunte sua parte de lèi , mas somente gran-
< {

.
respeito
que Big Brother, o ditador imaginado por Orwell, se dedique prioritariamente a des” e “pequenos” em um universo desinstituído onde reinam sedução, e violên- /
b

reescrever o passado (“o Partido pode dizer dê um acontecimento: aquilo, jamais .


aconteceu,.. A História em sua totalidade era um patí mpsèsto raspado e reescri -
-cia. Ioga, nadã se transmite, nem figura parental com a qiíal se identificar\ nem
,

lei à qual caso ocorra, opor-se nada; se nao for toda a potência do desejo em bús-
to tantas vezes quanto fosse necessário* f e a substituir a língua comum, poten - ca de satisfação imediata.5
í tica, pela Novlangue, linguagem estereotipada do Partido. E com
> Muito mais que o' castigo dos culpados, foi a rejeição desta sociedade
clalmente cr - I

desinstituído, que o povo belga exigiu, significando sua necessidade de memória


preendemos, em contraponto, a legitimidade destes textos, como a lei francesa de
13 de julho de 1980, que faz do revisionismo uma infração: eni certos casos, aten- e de leu O povo refazia, assim, uma parte áo caminho que, no imaginário fun
dador, garante sua idetftidade e amarra ao laço social .
-
tar contra a verdade histórica é ameaçar as próprias bases dó contrato social.
V

I
Compreende-se melhor, também, o juiz que, para decidir, refere-se a precedentes: Â primeira etapa deste capítulo é dedicada à exploração desse lado som- ^
, brio do direito. Precisaremos explorar os arcanos da memória, mergulhar nas
mesmo quedhe ocorra descartá-los leva-os seriamente em consideração, testemu - profundezas de sua fundação, percorrer as longas cadeias de suas genealogias,
nho do cuidado com uma necessária coerência diacrônica. V

• compulsar seUslminuto$ e seú s arquivos, seguir o traço sinuoso de seus costumes,


»

Compteende se melhor, igualmente, o abalo que prendeu a Bélgica: pon-


-
do à provaapedofilia , e mais ainda ò incesto; opaísviu-se ãuradouramente con- í superar o amontoado de seus precedentes, medir seus direitos adquiridos e seus
frontado com a inversão desta ordem jur - í dico-temporal O que ameaçava era
,v •
direitos inderrogâvei$% tudo isso para descobrir, no maisprofundo de uma tta
*

-
nada menos que a indistinção das gerações e a indiferenciação das normas. De - - dição imemorial, p enigma luminoso de uma lei sempre renovada,
)
’ \
N.

nis Salas tem razão ao assinalar: o incesto é um crime genealógico.4 Mais além da i
\
integridade física das vítimas, ê contra a identidade delas.que ele atenta. Èmbu-
PASSADOS COMPOSTOS
tindp-as gerações, ele proíbe a criança de ocupar hoje a posição de filho ou de fi -
lha è amanhã a de pai ou de mãe. Ê a capacidade de localizar-se na cadeia das .
A primeira forma do tempo jur ídico instituinte é a da memória A me-
gerações que ele compromete. Crime genealógico e crime genocida dividem este .
mória que lembra exjstir o dado e o instituído Acontecimentos que importar-
triste privilégio de tocar no essencial: a inscrição de nossas ideritidadçs na dura- %
iam e ainda importam e são suscet íyeis de conferir um sentido (uma direçã o
ção, a pertença delas à linhagem de uma filiação.
,

e uma significação) à existência coletiva e aos destinos individuais Instituir o / .
Mas o abalo talvez tivesse razões mais fu.ndamentais ainda: para atém de •passado,
certificar os fatos acontecidos, garantir a origem dos títulos,, das re-
alguns indivíduôs monstruosos, cuja ameaça não ê difícil de se exorcizar, como f*

gras, das pessoas e.das coisas: eis a mais antiga e mais permanente das funções
bodes expiatórios, expulsando-os da cidade, está, sem dúvida, a totalidade de n
v do jurídico. Na falta de tàis funções, surgiria o risco de anómia, como se a So -
nossas socieâddes que são espreitadas pelq indiferenciação das gerações, a tenta- , ciedade construísse sobre a areia. *
i
ção fáustica, cuidadosam^ nte entretida pela publicidade de umajuvêntude eter- Pelo ato de memória, as sociedades buscam responder à questão da ori- .
*

, na. Frequentemente notámos essa juvenilização imaginária de sociedades, as gem que não cessa de interpelá los: undel , de onde veem?, de onde falam ?, a
-
-
nossas, nas quais oM âulto tende cada vez mais a identificar se com a criança. Um que título agem? Assim se amontoa, por essas confusões de respostas formu- -
* í
r

. . .
3 ORWELL, G 1984 Paris: Gallimard,1977. p 48, 54. *
X

5 • MARTENS,- Fz.Triptyque ayec soclété, enfant ét marche' blanche. Politíque, p 59,


"
.
. . .
4 SALAS, Df Uinceste/un crime généalogique, Esprit, n 12, p 130, 1996 *
.
marsl 997 / *
"

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/
/

48 49
.
Capítulo i
Memória.Ligar o passado .

ladas, na fronteira entre o imaginário e o racional, um passado ^memorável ' - v


/

” dificuldade ifiaior com a qual somos confrontados neste capítulo: falar de me-
'

* v -
- digno de memória onde^se enraíza a identidade coletiva. Sobre esta base
de lembranças decretadas, comuns e fundadoras, erige-se a consciência cole
1 •
,
* mória, de tradições e de passado, num xontexto social que pretende poder
- passar sem eles: evocar o papel de “testemunha” e de “guardião” que o direito ^
tiva, na falta da qual não haveria, pura e simplesmente, qualquer ação social
desempenha em relação a eles, justamente quando este papel esta desvaloriza-
possível, nem no presente, nem, afortíori, nò futuro. Sem alimentar, por essè "
do e que o que se tratariaTle guardar, ou o que, em nome de que, $eria preci
'
-
trabalho obscuro de carvoeiro, as lareiras da memória, a sociedade continua- dissipado.
' so testemunhar, parece ter-se
ria em pane, sempre em busca de sua identidade. .
Entretanto, não se termina tão facilmente com o passado Inicialmem
Esta missão de guardião da memória social foi, todos os tempos, con
fiada aos júristas. Não tanto, ou não somente, a título de arquivistas ou notá
- te, porque não chegaremos jantais a traçar umadinha de separação clara entre
A

- *
passado terminado e presente inventivo. Em seguida, esobretudo, porque este
rios, conservadores dos atos passados; não tanto, oú não somente, como cére
• - ' passado, que acreditávamos conservar-sedntegralmente nas sociedades tradi-
bros ciumentos das.portas da legalidade; não tanto, ou não somente, como %

cionais, e que pensamos agora poder conjurar totalmente nas sociedades de


servidores apressados dos príncipes: o direito, bem o sabemos, nunca causou mudança, nãô se deixa tratar tão facilmente, sem dúvida porque ele é infini-
1
(

tamente ma}s paradoxal e heterogéneo do qqe se. acredita, à primeira vista. Se


repugnâ ncia, nem à reescrita dos textos, nem ao deslocamento das fronteiras
do proibido, nem mesmo à fabricação de novas legitimidades. Muito mais
o pensássemos, observando a primeira das temporalidades jurídicas, aquela
*

fundamentalmente, os juristas assumçm seu papel de guardiães da memória, * • '


que se declina sob os auspícios da memória, abordar um tempo simples e ma-
lembrando que, através mesmo de todas estas operações de deslocamento,
/ ciço, avançando inalterado do fundo das idades, repetindo-se com aTegulari
*
-
*

opera alguma coisa comò uma lei comum e indisponível que foi utilizada dade dos fenônienos naturais, destinado ao eterno retorno do mesmo, ou me -
' num dado momento do passado. Não uma injunção inicial e' sagrada se bem
que, na história do direito “a lei comum e indisponível” tenha muito frequen —-
. lhor ainda, à calma persistência em seu ser, será preciso desenganar-se rapida -
mente: este passado simples nos escapa, se é que algum dia.existlu. Em termos '
*

temente jassumido essa forma religiosa -, mas antes a consciência muito clara . de passado, é um passado composto qjíe se apresenta à análise.
* ' ,

-
de que só se institui o novo com base no instituído dito de outro modo: que “Composto”, o passado é inicialmente tanto quanto muito;amplamen - '

há sempre uma parte de indisponível, na medida mesma em que nenhuma^ .


te construído, escrito a partir do presente A memória, que é admitida lhe res-
instituição é absolutamente nova. , tituir, mostra-se efetivamente uma faculdade singularmente paradoxal; espe-
rava-se encontrar uma competência subjetiva e individual, vamos descobri-
*
Desta legalidade original, os juristas são muito mais testemunhas dò
<

que conservadores de súas formas herdadas. Mas, reconheçamos, a consciên- la objetiva e social; nós a pensávamos passiva, inata, recebida e espontânea,
>• / >

cia desta função se obscureceu singularmente numa época que acredita poder nós a descobrimos ativa, construída e normativa; poderíamos acreditar que
se expressar exclusivamenfe sobre um modo de mudança, que se imagina ser ela proviesse dò passado, como a inércia natural de um peso que se açumu-
radicalmente auto-instituinte, e que tenta definir sua identidade no processo ’ la, e eis que a,apreendemos posta em movimento a partir dõ presente e de
*
«

ininterrupto de sua invenção’quotidiana. “As sociedades anteriores às socieda- suas questõ es; esperava-se, ènfim, poder opô-la absolutamente ao esqúeci -
des democráticas 'são naturalmente ligadas pela tradição, pela sequência das . mento, como uma coisasaò seu contrá rio, veremos antes que ela engloba o es -
gerações, escreve Fran çois Furet, pois que está na natureza das sociedades de- quecimento, do qual não poderia totalmente se diferenciar destas diversas in-
mocráticas esquecer seu passado para renegá-lo a cada geração.”6 Tal é, pois, a versões de per pectiva. *
,
^
Este capítulo carrega a marca: ele não será uma instituição estudada,
6 FURET, F. 1789-1917: Aller et retour. LeDébafi n. 57, p. 4-16, 1989. mesmo os mais explícitamente indexados sobre a dura ção e o passado, çpmo
o hábito, o precedente judiciário ou ós direitos ancestràis, que não sejam, em

50
51
/
Capítulo l .
Memória. Ligar o passado

s y* . *

grande pàrte, objeto de seleção e de manipulação a partir do presente. Obser - } (fundamentais, ancestrais, adquiridos), quanto as
# da na qual tarrto os direitos
"

-
va ção crítica que, entretanto - notemos de início , não altera em nada a acui- ' ;
I

penas (em sua dimensão Nretributiya


, ^
), se ancoram no passado, Refletiremos;
dade da questão de saber porque^ esta referência ao pasmado e porque há um f

para terminar, sobre os desvios de úm tempo jurídico “passadista” que, pre-


'

sentido ético e político a perseguir um enraizamento como esse . tendendo simplificar se, chegaria a se absolutizar e, então, assumiria as formas
-
* “Composto”, o passado o é também devido à sua hejerogeneidade. .
,
‘ estéreis e violentas da reação e da restauração: um laço será .assim estabeleci-
Ainda aqui a análise contribuirá para abrir os olhos. No lugar de um passa-. w
ítulo seguinte que, sob a égide do perdão, estudará a maneira
» é

j do com o cap
do monolítico, feito de coisas antigas que se adicionam, comò os livros sobre ' .v i
v ,
pela qual cabe ao direito ultrapassar o passado, sem por isso, recusá-lo
i
.
prateleiras de umabiblioteca, ou as camadas geológicas aparecendo no flan-
Uma questão atravessa todo este capítulo: que sentido existe, para o di
'
-
co• da montanha
r _
, é um passado compósito que se revela, do qual extrairemos
nada menos que quatro dimensões Há, de in ício, o tempo .das funda
. . [
:
,
*
reito, em réferir-se à tradição, em fazer,
ato
t
de memória? Em que medida o
" \

ções: * • 1 passado contribui com eficácia, de um ponto de vista político, à constituição *

. v ' » « *
* tempo inaugural que escapa amplamente à datação e
remete ao que nós já
\ »

de um tempo social? E, enfim, qual é o valor, do ponto de vista ético desta vez,
deixamos perceber da dimensão dè indisponível na base de qualquer institui- de uma certa fohna de fidelidade aos compromissos subscritos in illo tempo-
ção política. Em seguida.vem o.tempo do longo prazo, que reclama a conser-
réi Três interrogações que o direito, discurso tradicional por excelência, sem
-
vação e a repetição e encontra em sua própria permanência um titulo de le-
dúvida, jamais deixou de dirigir a si próprio, mas que assume, na atualidade, ,

uma dificuldade aumentada, desde que, democráticas, nossas sociedades fin-


gitimidade incessantemente melhor garantido; é, por excelência, o tempo da '
* *
tradição. Há, em seguida, o passado cronológico, no sentido estrito - o pas-
^ \

gem esquecer sua origem e que, pluralistas, elas se enraízam não numa, ma§

*
t
sado histórica,^poderíamos dizer , tecido da soma dos atos e acontecimen-
'em m últiplas tradições.
>

tos precisamente datados, cujo traço irrefutável é relatado ou relatável. Há, , 7


i

enfim, o tempo intemporal,das invariantes jurídicas - determinados modos


de pensamento, certas exigências de justiça, a recorrência de determinadas
OS PARADOXOS DA MEMÓRIA
4
• l
argumentações, uma determinada maneira de tratar os textos: um “estilo” ju- t «r

rídico, em resumo, que não se deixa senão parcialmente se confundir com *

- A memória, como todagenealogia


* *
evidência, está no centro das preocupações con-
um tempo do passado, mas que sua permanência mesma conduz frequente
mente a assimilar as antigas receitas.
- temporâneas; a paixã pela se impôs bem para além do círculo dos
4
especialistas, o gênero liistórico e biográfico dá lucro no mundo da edição, o
Eis, então, quatro tempos no lugar e jlosição de apenas um: o tempo ge- gosto pelas antiguidadés e pelos brechós expandiu-se amplamente, a proteção
nealógico das fundações, o tempo repetitivo da ^tradição o tempo çronológi- . ‘
ao. património mobiliza energias m últiplas, enquanto se multiplicam festas e
*
.
co da história dos fatos, e o tempo intemporal das invariantes jurídicas Da ar - coifiemorações de todo tipo;* em todos os lugares,apenas se preocupam com
ticulação destas quatro dimensões do passado jur ídico composto, osdesenvoK lembrança, salva-guardaj proteção, restauração. Como se. uma corrida contra *

vimentos que se seguem buscarão os sinais, ora complementares, ora opostos . o relógio tiyesse se iniciado, em.vista de reencontrar nossas raízes, antes que
Assim, interrogaremos sucessivamente memória, tradição, funda ção e genea- r í tenhamos perdido até mesmo a recordação de que elas éxistiram .Mas esta es- .
logia; evocaremos as diversas maneiras pelas quais o direito desempenha opa - pécie de paixão histórica e a injurição de ter de se lembrar, que a acompanha ,
pcl de guardião da mem ória social; buscaremos a dimensão de mémória e dê ’
tradição atuantes no raciocínio jurídico, assim como nas diversas fontes do di-
não deixa de seremr paradoxais: para dizê-lo cruamente com Pierre Nora
*
'
«*

— i

reito, incluindo a lei ela mesma, a qual parece, entretanto, ser antes um instru- _J
. . ^
*

mento de mudança social voltada para o futuro; mostraremos, ainda, a medi-


*
.
7 LAPIERRE, N Dialectiques' de la mémoire et de Toubli la Métxioire et Voubli
I

-
CommunicationSy n. 49, p, 5 7, 1989 .
r
<
t
52 53
>
/ Capitulo l .
Memória Ligar o passado. *

s »
.
*
»
J I

/ ’
Ir
I I
> grande analista dos “lúgares de memória” “só falamos tanta em memória
tecimentos no registro da memória. Sem dúvida, esta massa de informações é
. porque ela não existe mais”; e ademais; “existem lugares de memória porque ^ ; suscetível de ser integralmente memorizada pelos meios de gravação do som
não há mais esferas de mémóri .”8 Não será significativo a esse respeito que é
^ i e da imagem de que dispomos; mas uma memória desse tipo'“grayadora” (es-
pécie de “caixa preta” oni-memorizante) nada 'tem, evidentemente, em co-
no momento em que, no final do século 19, vacilam os grandes equilíbrios
^
, *
* y jl
tradicionâis e principalmente que desaba o mundo rural;que o tema da me- '
\

j mum com a memória normativa (normativa porque seletiva) ligada às tradi-


mória se impõe no centro da reflexão: pensamento filosófico com Bergson,
ções vivas. Quanto áo segundo fator de declínio da memória coletiva, ele resi -
análise psicológica com Freud, literatura com Proust?9 de na fragmentação ao infinito dos grupos e subgrupos de perten ça que defi-
i


\
nem cada uma das afiliações parciais e superficiais, logo, pouco capazes de
i
>

suscitar identidades coletivas e mobilizadoras.12


UMA MEMóRIA EM MIGALHAS f
Dificuldade, póis, de apreender a memória sôcial nas “sociedades de
* mudança” contemporâ neas, que, desejosas, entretanto, de recuperá-la, só co-
Será preciso estarmos de perfeito acordo: a memória contemporânea ér' lhem, às vezes, confusões de textos desativados. Será que teremos mais suces-
uma memória “em migalha ”; em oposição à mem ória viva, evolutiva, inte- ’
so referindo-nos aõ outro extremo da história, desta vez em direção das socie-
¥
' grada - “mem •
^
ória total”, em resumo, das sociedades anteriores -7a memória
«
*

dades ditas “primitivas”, onde, poderíamos pensar, a vida socialdevia estar to-
contemporâ nea assume formas de museu, parciais e documentárias, como se talmente de acordo com as injunções da memória? Esta intuição, contudo, só
o laço que. a unisse com uma tradição portadora de sentido e de futuro, tives - é parcialmente exata, pois das sociedades pjámitivas;seria melhor dizer que vi-
i

.
se se distendido a ponto de se romper Na década de 1930, Halbwachs já no- ' vem no “presente eterno”; a tradição é, aí, de fato, a tàl ponto natural e englo-
tara este fenômeno que ele relacionava com a difusão universal do capitalis- bante, que não é sequer ff agilizada pela consciência de um desnível histórico
mo e da racionalidade tecnicista, acarretando o alinhamento progressivo de*
-i entre ontem e ágora. Tudo se passa num instantâneo saturado de presença e
todas as esferas da vida social na esfera produtiva e suscitando apenas memó- destinado a se perpetuar sempre. “As sociedades com as quais ò etnólogo tra -
rias técnicas, funcionalizadas e neutras: memórias “planas” desprovidas de ca-
*
balha”, explica Març Augé, “inscrevem-se totalmente no presente”; elas igno
13
-
pacidades norn ativas e criativas.11 Atualmente, o declínio da memória é ain- \
ram a memória do que está terminado, uma vez que? precisamente, nada está
^
da mais acentuado por dois fenômenos. O primeiro deles reside na supera- terminado. A consciência da duração, no sentido não da repetição do mesmo,
*

bundância de informações e imagens geradas pelas medias; da qual resulta mas do passar do tempo e, em consequência, a própria história da memória
uma comunicação jmediata e “pontualizada” em detrimento da coerência social parecem ,ent
*
ão, como nisso.sempre insistiu Elias, p produto de uma abs
^
-
temporal e da hierarquia de sentidos, que é buscada pela narração dos acon- traçã o mental progressiva e, pois, ao fim das contas,.uma. conquista recente da
*
'

t civilização.
s
k

Estè testemunho é confirmado pelo estudo do pré-direito de socieda-


X

R Nora. Paris: Gallimard, 1997 p 23


.
.. . ^
.
8 NORA, R Entre Mémoire et histoire In; Les Lieux de mémoire Soús la direction de
4
i

des arcaicas, como o.da Grécia Antiga, que é analisada por Louis Gernet, O au -
9 Ibid., p. 33 . tor é formal: às formas arcaicas do direito, na Grécia Antiga ou no direito ro -
10 Nesse sentiáo, cf. HERVIEU LÉGER, D. La Religion pour mémoire. Paris: Cerf,
-
1993. p. 183 etseq. /•
»

11 HALBWACHS, M. Les Cadres sociaux de la mémoire Paris: Félix AlcanJ 1935. p. 265
i

- . .
12 Nesse sentido, cf. HERVIEU LÉGER, D La Réligion pour mémoire Paris: Cerf,
*
. f

.. .
1993 p 185
* .
et seq . * * v * «
. .
13 AUGÉ, M La force du présent La Mémoire et Voubli. Communications,n 49, p 43,
. .
\

-V *
1989 . /

54 55
»
f *
i
" " Capítulo 1 . .
Memória Ligar o passado
*

\
y i
«
mano primitivo, inscrevem -se no imediato e no concreto, melhor que na du-
'

ração e na abstração que, por sua vez, marcarão a passagem muito progressi-
QUATRO PARADOXOS *

.
va do pré-direito ao direito. Em matéria de reivindica çã o mobiliária, por
Primeiro paradoxo: a memória é social e não individual. “ Ninguém àe
*

exemplo, não é o caso, ná origem, de reclamar sua propriedade com a ajuda


lembra jamais , escreve Halbwachs* Acontece que nossas lembranças, até as
de um títiilo que teria, num dado momento do passado, configurado o direi- í N

to correspondente; é, antes, caso de exercer um poder imediato, simbolizado mais pessoais e mais íntimas, só conseguem se .exprimir em termos tomados
de empréstimo à tradição; eles só fazem, sentido, por outro lado, sendo toma-
-
por uma penhora concretalobre o objeto reivindicado: “penhora” exercida no
dos por uma comunidade afetiva e social que não^ demora, aliás* em retraba -
“agora” do processo. Assim, se passava principalmente no mancipium roma- '

no: é o gesto material. de apreensão, ligado


. à forma regulamentar (“tneum
*
*
lhá-los. Só íios lembramos, então, sob.a condição de nos colocarmos no meio
\
esse” ) que garante a perten ça, melhor que a legitimidade tirada de um título desta ou daquela correntè de pensamento coletivo e adotar seu pònto de vis-
antigo ou de uma causa bem estabelecida 14 . ta. Graças a esta imersão nos meios sociais de pertença, o indivíduo, e princi-
palmente a criança, beneficia-se do “legado dos costumes e de tradiçõ es de to-
'
É preciso, pois, deduzir-se q úe o tempo da mem ória n ã o é o tempo ju-
rídiço mais antigo; mesmo se n ão for falso sustentar que as sociedades arcai- , dos os tipos”; ò “laço vivo das geraçõ es” dá-lhe, assim, acesso à possibilidade
*
cas vivem num “presente eterno”, que não distingue entre presente e passado, mesma de se forjar uma memória.16 i
x
não mais, de resto, que entre presente e futuro. Eis, então, que nosso estudo da Segundo paradoxo: longe dè proceder do passado, a memó ria opera a
.
,

memória jurídica parece dissolver-se entre as duas extremidades da história: partir do presente Dito de outro modo: não se retém, senão, o que se recons-
*

truiu. Halbwachs-concluía sua obra pioneira de 1935, consagrada aos quadros


«»

por um lado, ela parece absorvida na permanência de um presente‘eternizado


e, por outro, ela se dispersa no estilhaçamento de uma atualidade instantanei- * sociais da "memória > com esta forte afirmaçã o: “o pensamento social é essen-
.
zada Pelo menos, avaliamos agora em que termos ela tem oportunidade de * *
cialmente uma memória e Seu conteúdo só é feito de recordações coletivas, *

aparecer e quais são as condições de possibilidade de seu exercício. Será preci- " mas estas somente subsistem sozinhas entre si, quanto a sociedade, a todo
so deduzir disso, consequentemente, que a memória seidentifica. com o reino témpo trabalhando em seus quadros atuais, pode reconstruir” Assim, então,
17

J
da história e que implica a tranquila presença do passado em sociedades, da- não somente a recordação é social, mas ainda resulta, em anipla medida, de .
qui para frente, conscientes de sua inscrição no tempo? Será que é preciso con- unia reelaboração com a ajuda dos dados tomados de empréstimo ao presen-
^
cluir, do ponto de vista jurídico, que a faculdade de memória traduz a simples te, tanto quanto ao passado próximo, ou seja, às reconstruções intermediárias
remanescência, em sociedades razoavelmente evolutivas, fontes do direito, de que já reinterpretaram consideravelmente, por sedimenta ções sucessivas, o
regras, de processos e de prerrogativas, cuja antiguidade seria o título de legi- • material originário. Logo, nada de memória sem .(re)interpretação coletiva.
timidade? Será preciso, então, acreditar nuiqa espécie de força de inércia na- Contudo, neste estágio, uma distinção essencial deve ser feita entfe
turaltio passado, que sedmporia de alguma forma ao presente, pela ú nica vir- “memória coletiva” e “memória histórica!A primeira, que se poderia chamar
5

tude do peso dos anos? Isso seria, seguramente, desprezar o caráter “compos-
to” do passado (dos passados) e da natureza paradoxal da memória por intç r-
N “quente”, elabora-se nó seio dos grupos sociais e produz tradições^ vivas; a se , --
gunda, que qualificaremos' de ‘%ia” aprésentâ-se como “quadro dç. aconteci
médio da qual ele se exprime. Nada menos que quatro paradoxos tornam mentos” e “compilação de fatos* : ela engendra um saber histórico. No primei
5
- *

complexa a ação da, memória e, logo, o modo de produção do passado.



\
* i

\
.
\
*

15 HALBWACHS, M La M émoire coilective. Paris: PTJF, 1968 p 2 , ; « *


... . s

-
14 GERNET, L. Le temps dans les formes archaiques du droit. In:
. . .
logie de la Grèce ancienne Paris: Maspero, 1968 p. 263 etjseq
. -
. Anthropo . .
16 Ibid , p 50-57 .
^.
*9

..
v * .
1? HALBWACHS, M Ies Cadres sociaux de la tnémórie Paris: Eélix Alcan, Í935 p 4Q1.
.
s
I
. >*

»
t

56 57
I *
Capítulo 1 .
t
v
r.
Màmôí a ligar o passado
*
*
r V

\*
*

ro caso, se depreende algo .como uma genealogia, provedora de identidade e \

de sentido; no segundo, é fornecida uma cronologia sinónima de conheci


r - “linhagem crente”. Belas práticas de anamnésia e da repetição dos ritos sagra- t

* - . *
dos, os fiéis revivem a memória dos acontecimentos fiindadores da linhagem
mento objetivo.18- Cinquenta anos deppis de+ Halbwachs, Pierre Nora n ão diz
t

outra coisa, já que ele diagnostica “a ruptura de um laço de, identidade muito crente, à qual pretendem se rèlígar, realizando assim uma comunidade^ que
• transcende a história.22
*
A
H

antigo:.a adequação da história e da memória ”19 * i

O teíceiro paradoxo da memória situa-se no prolongamento direto do A laicização do mundo 'e a secularização do direito, iniciadas desde a
modernidade, não enfraqueceram verdadeifamente este laço estrutural d
precedente: se a memória opera a partir do presente e não do passado, é que •
ela é uma disppsição ativa, voluntária mesmo, antes que uma faculdade passi memória com o sagrado fundador, Não há, de fato, nenhum Estado moderno ^
va e espontânea."Podéríamos evocar aqui a distinção que já era feità por Aris
'
- que possa ficar sem um romance institucional das origens, dos quais as come -
- morações dos acontecimentos fundadores fornecem, em intervalos regulares,
tóteles entre “mnémé” (simples poder de conservação do passado ) e anam-

nésis” (evocação voluntária deste).20 A tomada em consideração desta última não a simples lembrança no modo da “rememoração” mas uma autêiitica
, a anamnésia oil a reminiscência provar-se-á da mais alta'
- revitalização no modo da “regeneração”: como se a virulência mesmo do pas - r

, nossa pesquisa sobre á instituição jurídica do tempo social.


importância para ;
sado mítico fosse requisitada para se irradiar de novo no presente Quanto a
23
.
Não é espantoso que Aristóteles tenha sido levado * a distinguir a “tnné- -
isto, sabe se qual o papel desempenhado pela evoca ção da Revolução France-
' sapara a reafirma çã o da legitimidade republicana e do valò r dos direitos do
mé” e a “anamnésis”: é que ao longo da história do pensamento grego que o
precedeu, a memória tinha finalmente pouco a ver com o
conhecimento ob-
I
homem. De resto, desde os primeiros dias foi praticada uma polítjca volunta -
jetivo e rigorosõ dos fatos do passado e com a inscrição na temporalidade li- rista de memória: assim, o título primeiro dã Convenção de 3 de setembro de
near que nos é familiar; ela era entendida, sobretudo, como uma faculdade su- 1791 dispõe que.“serão estabelecidas festas nacionais para conservar a lem -
perior, mantida por esforços ininterruptas e exercícios intelectuais rigorosos, brança da,Revolução Francesa, manter a .fraternidade entre os cidadãos e ligá ^ -
los à Constituição, à Pátria e às leis”.
*

de entrada em comunicação com o tempo fundador das origens: quánto a*


*
• ' • * *

Esta preocupaçã o não cessou de assombrar os revolucionários; assim,


*
isso, ela surge como uma via de acesso privilegiada, ora à sanidade da alma,1
ora à sabedoria e ao conhecimento da verdade. “Memória mítica” de algum em 1797 e em 1798, o Instituto colocava ainda no concurso a questão: “quais
modo, para falar como Jean-Pierre Yernant,21 memória relacionada com a fi
- são as instituições próprias para fundar a memória de um povo?” As festas re - N

gura divina de Mnemósine> a mãe das músas


S
. \ rl volucionárias,- verdadeiras liturgias republicanas, contribuíram muito para a
mauutenção.desta memória, mas sua significação profunda é, como -assinalou .
/
Esta ligaçã o da memória coletiva consagrada com a religião não é eSpe
cífica^do mundo grego; pudemos sustentar, de fato, que toda religião implica
-
- - *

Mona Ozouf, mais complexa que possa parecer; ao lado , de objetivos pedagó-
va mobilização de uma memória coletiva e se definia ppla inserção em uma gicos - explícitos (reter tudo das “grandes jornadas” libertadoras), tais festas Vi -
\
*
> *
1 ravam igualmente conjurar a angústia do choque revolucionário, inscreven
/ -
18 HALBWACHS, M , La Mémoire collectiye. Paris: PUF, 1968. p. 67-78
* do-se num tempo maravilhoso; regenerado e novo, sem dúvida, más situado
. i ‘também à margem da história real e de suas áleas.24 Aqui, ainda uma vez, a me -
19 NORA, P. Entre Mémoire et históire/ In: Les Lieux de mémoire. Sous la direçtion de ’ ‘
. .
P, Nora Paris: Gaílimard, 1997. p 24-25.
- •
.
' * *> *
*
20 ARISTÓTELES. De la mémoire et de la réminiscense.Paris: Belles Lettres, 1952.449 * .
22 * HERVIEU LÉGER, D. La Religionvour mémoire Paris: Cerf, 1993 p. 178 18Q.
/

- . -
* b 6, 451 a 20.
.- .
21 VERNANT, J P Aspects mythiques de la mémoire: In:YERNANT, . P.; VIDAL
\ -
23 Nesse sentido, cf. ATLAN, H.; MORIN,~E. Sélection, ré jection.la M émoire. et Vou
blirCommunicationSy n. 49, p.126, 1989.
-
. .
NAQUET, P La Grèce atictenne. Paris:Seuil, Í991 t. II: Uespace et le temps, p. 15
.
et seq. 24 Cf. OZOUF, M. La fête sous la Révolution française. In: Faire de VhUtoire Sous ia ^
.
direçtion. de J. Le Goff et P Nora. Paris: Gallimard, 1974. t, II, p. 257-259.
*

58 t \

59 .
*
Capítulo 1 '
.
Memória. Ligar o passado
/
*4
*
/ *

mória fundadora desempenhava assim seu papel eminentemente normativo'


‘ de instituição de um tempo social configú rado à im ágem do *de$ejo, dos so- ' A TRADIÇÃO, UM PASSADO RECOMPOSTO
nhos e dos valores projetados pelo grupo . -

-
S 4

No centro de uma temporalidade < jue pretende “ligar o passado”


encon
Entretanto, falta-nos ainda indicar um quarto e não dos menores
-
- tra-se necessariamente a tradição, este elo lançada entre as épocas
, esta conti «
-
-
paradoxos da memória ligado desta vez à sua relação com o esquecimen
to: longe de se opor ao esquecimento, a memória o pressupõe. Melhor di-
- .
nuidade viva da transmissão de crenças e de práticas Mais ainda quequalquer
sedimentações
outra disciplina, o direito e tradição, ele se constitui através de
zendoj qualquer organização da "memória é igualmente organização de es
quecimento. Nada de memorização sem triagem séletiva, nada de comemo-
- sucessivas de soluções, e ,a$ próprias novidades que ele produz derivam
de ma-

.
ração sem invenção retróspectiva Logo, a memória pode tanto Ser fundado- neira genealógica de argumentos e de razões autorizadas em um momento ou
ra e instituintê como acabamos de sublinhar, como podè mostrar-se mani- .
outro do passado Por outro lado, se, com ÉricWeil,concordamos em dizer
que

^
puladora e mistjfkadora: estas duas funções são necessariamente solidárias.

o Estado organizà uma “comunidade histórica” será preciso
26 notar o papel es -
* s )
Sem uma reflexão crítica sobre ele mesmo, o tempo da memória poderia, sencial do direito do Estado nalnstitucionalizaçao da tf adição nacional esta
,
*

* então revelar-se enganador e opressivo: esta será


* uma das razões para pro- identidade narrativa e simbólica, esté conjunto de normas e dé símbolos que
.
por mais adiante sua superação no tempo do perdão Mas o esquecimento
, definem a na ão na sua continuidade histórica. A primeira função do estado é>
não é, senão, o produto da má-fé; é também o corolário lógico do caráter es- a esse respeito, garantir a existência durável desta comupidade histórica ins
, -
.
truturante e hierarquizante da memória Podemos, então, dizer que, assim crever sua ação numa história que lhe seja própria e.contribuir, assim para a,
realização da “idéia de direito” de que ésta nação é portadora.
A
27*
còmo há Uma “política da memória”, há também uma “política do esqueci-
>
.
mento” Nicole Loraux, apresentando uma obra precisamente intitulada Po- Mas, ainda, aqui, não poderemos nos contentar com registrar passiva -
litique d&Votí bli*3 escrevia a este respeito que “os lapsos de memória não são mente a ressurgência do antigo no atual: não niais qué a memória era o sim*
, fortuitos”.25 pies receptá culo de recordações acumuladas, não mais a tradição é a soma
Mas, talvez, será preciso também observar que se a memória é esquece - exata de todos os passados. Uma tradição viva, como uma língua viva, é inces -
diça, o esquecimento, em contra partida, poderia perfeitamente ser conserva-
A

santemente atualizada e transformada: “presença do passado”, dizemos algu -


dor, como a+ psicanálise igualmente nos ensinou. O' que- fpi “esquecido” talvez *
mas vezes; não a lembrança de' um vèstígio esquecido, como a exumação de
seja simplesmente recalcado, pronto para fazer seu retornò:materialv psíquico-
um achado arqueológico, mas antes, do passado tornado presente, do passado
»

ou institucional ainda disponível para novas elaborações; como qualquer dia


lética, a da memória e do esquecimento tou da memória e do perdão), nun
- “recomposto” a'partir do presente - a questão dá veracidade histórica ou mes -
- mo, pura e simplesmente, de sua credibilidade sendo, uma vez mais, bastante
- ca, pois, está fechada. *

secundária no que diz respeito aos seus lances normativos .


-
%

O tempo, mesmo passado, nunca é adquirido: sempre requer ser insti - Dois traços caracterizam de chofre a tradição: a continuidade e a con
tuído e reinstituído. O estudo do tema datradição, produto da memória ins
*
tituinte, confirma este ensinamento.
- 1
/
formidade: há, por um lado, reatamento com uma fonte dada de anteriorida -
\ k *
de; de outro,’ há alinhamento a um foco provido de autoridade. A tradição é
V

26 WEIL, E, Phitosophie politique. 3. ed. Paris: Vrin, 1971. p. 31.


* «Política do esquecimento ” (N.R.T.)
27 DUMONT, H. État, nation çt» constitution. In: Belgí tude et crise de V Êtat belge . Sous
'
>
25 LORAUX, N. Pour quel consensus? IniPolitiques de VoUbll Le genre humain. Paris:
Complexe, 1988. p. 15.
. t ,
,

la dhection de JH. Dumont, J L. De Brouwer , C . Francq et E Ost.. Bruxelles: Publi -


cations des Facult s
é Universitaires Saint -Louis , 1989 . p. 79 .

60 61
L.
F

f
• f
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Capítulo 1 4
<
* 4 .
Memória. Ligar o passado
•*
4 * Ir

1 ;

»
•* . t
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r y
% *
uma anterioridade que cria .autoridade; ela é um código de sentido e de valo- *

*1 sim”), ou tomará de empréstimo, em outras oportunidades, os desvios mais


res transmitidos de geração a geração; ela constitui uma herança que define e
sofisticados da argumentação genealógica.*0
*

mantém uma ordem: “ela ordena,. em todos os sentidos da palavra.”28 O essén-


Assim definida, e sem mesmo,- ainda, evocar a possibilidade de sug
*
1 I I

ciai nalradição' é, pois, a autoridade ,reconhecida ao passado para regrar, ain-


4 transformação progressiva, a tradição revela sua utilidade. No plano cogniti-
da hçje, as questões do presente.
vo, ela confribui para forjar nossos instrumentos de pensamento, sem os quais
/ "
*
‘*
* Martin Krygier afina ainda mais esta definição 4istinguindo três ele-
,

mentos em qualquer tradição: ajreferência ao passado,, a autoridade no pre- .



1 t quase nãp teríamos progredido desde a idade das cavernas. Ela mantém um
vasto arsenal dç soluções, de noções e de métodos que nos abrem um acesso,;
* \ ' ’
sente e uma transmissão contínua (real ou pretendida) i9 Primeiro elemento: ' . u

j
,
mais ou menos cômodo, mais ou menos coerente, aos problemas que nos mo-
\
a referência- ao passado. Em direito, esta “manutenção” é particularmerite ins- -k bilizam na atualidade. Paradoxalmente, a tradição fornece também um mate-
titucionalizada: regras, princípios, processos são consagrados como criadores' 1 '
. * vi
rial para crítica: como o lembrava Karl Popper aos racionalistas que ele tenta-
. permanentes de autoridade, algumas vezes até pretenderemos colocar a '
\ va reconciliar com a tradição bem compreendida; a critica é sempre cr ítica de
' autoridade ao abrigo da mudança. É propriamente o conjunto da argumenta
- alguma coisa. A tradição apresenta, também, uma grande utilidade plano
31 no
ção sustentada pelos participantes na tradição jurídica que parece devedora > 4 L*
normativo, desde quando transmite ô relato das origens, nutrindo, assim, a
do passado: justificar uma solução consiste, de fato, no seio desta tradição, em
demonstrar sua compatibilidade com a matéria que faz autoridade. A motiva- -\ 1
*
i
identidade normativa, sem a qual povos e indivíduos nem teriam consciência
de si mesmqs. Mergulhando-nos nisso, pelo viés da instituição linguageira, no
ção daydecisão judiciária é exemplar quanto a isso: por mais inovadores que oceafib das coisas já ditas, a tradição lembra-nos de que nossa posição não é
v
os juízes sejam, sempre será preciso que a interpretação preconizada apresen- 2
v 1 aquela absoluta, de inovadores radicais, mas antes, aquela relativa, de herdei-
te um reatamento plausível com a tradição institucionalizada, com “lugares . J ros.32 Assim, traz ela um duplo sentido: preservando -nos do fantasma da auto -
^ L
comuns” da argumentação jurídica. criação, ela nos gratifica, ao mesmo tempo, com uma herança mínima, susce-
Segundo elemento: a autoridade no .presente. Não é, bem entendido, \
tlvel de nos permitir falar por nossa vez. * 4

todo o passado qué cria a tradição. Apenas uma ínfima parte deste é seleciona- v

da, transmitida e consagrada. Nisso, a tradição diverge da história, como a me-


,
i; A

i
Y
\ *
\ y 1 '
jnória genealógica distinguia
i
^
-se da
*
memória histórica. As montagens “tradicio-
V,
1 TRAPACEAR COM O MOVIMENTO , *

* nais” serão, assim, muitas vezes, fruto de interpretações contestáveis que, sem . *

dúvida, seriam recusadas pelos historiadores inquietos com a verdade. Pouco


,
*
*
j l Sem dúvida, quando se fala em tradição, não se-escapa à suspeita/ de
importa aos participantes da comunidade tradicional se tais produtos fazem *

« »í conservadorismo, nem à objeção do dogmatismo. Então é preciso ver ainda '

sentido aos seus olhos e determinam as soluções que se impõem ainda hoje, 4 cm que medida a tradição sucumbe a estas censuras. A resposta é simples: sem
Um terceiro elemento completa a definição da tradição: a^ transmissão ‘
'
J adaptação, nenhuma tradição sobreviveria. Seu interésse não se liga, portan-
ininterrupta desde a origem. Aqui, ainda-, pouco importa que esta continuida-
s
a
< .• to, na sempiterna reiteração das mesmas receitas, mas antes - o que é infini-
/
de seja real ou pretendida; o que conta é a afirmação de uma linhagem inin- .
*

terrupta, que assumirá ora as formas mais grosseiras ( “sempre fizemos as


, v >
"
- i > «
i
30 Sobre tudo isto, cf. KRYGIER, M. Law as tradition. Laty and Philosophy, n. 5, p. 240-
251> 1986.
31 POPPER, K. Ppur une théorie r tionaliste de la tradition. In: . Conjecturcs
\ 28 HERVIEU-LÉGER, D. La Religionpour mémoire . Paris: Cerf, 1993. p. 123. J V
*

K-
tf ^
et réfutations. Traduit par M. Irène et M. de Launoy. Paris: Payot, 1985. p. 200.
29 KRYGIER, M. Law as tradition. Law and Philo$ ophyy 5, p. 240-251, 1986.
'

ti' 32 RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: SeUil, 1985. t. III, p. 400.


*I *
»

62
V
\ , ÉL. . -
*
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1
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Capítulo 1 . .
Memória Ligar o passado
:
/
*

1
t
v

-
V
* *
«
tamente mais fascinante - na aptidão de produzir incessantemente o inédito J e interpretativo de qualquer tradição, é de natureza a neutralizar muitas ctíti - ^ )

em qpadros antigos, assim como o vinho, novo que colocamos em velhos 3 cas.’3r Mas, rião poderemos nos contèntar com isso. É que existem tradições in -
odres, sem por isso fazê-los explodii;. O enigma e a força dá tradição é reatar ] corrigíveis, radicalmente más, como a do escravagismo, por exemplo. A isso se
sempre o fio da Continuidade, no mesmo instante em que ela incorpora ino * - 4

J acrescentam, de um lado, o problema do afrontamento^ de tradições m últiplas


vação e reinterpretação que o presente exige: a herança é incessantemente mo-
'
i e, de outra parte, o risco sempre presente de uma apologia autoritária do con-
dificada, e, contudo, é dá mesma herança que se trata. Nãò deduzamos disto, *
| .
' teúdo da herança tradicional Enquanto ^‘pretensão à verdade”, a tradiçãq /
f
muito depressa, o efeito de uma prestidigitação mistificadora e mantenhamos, "
•ameaça sempre deslizar rumo à afirmação dogm á tica de uma verdade única e
antes, em reserya, a questão ética, tanto quanto política, de saber qual sentido \ .
permanente Do mesmo modo, a valoração da fecundidade da tradiçã o deve
e qual valor se ligam a esta forma de “fidelidade” ao passado /
< í
aeompanhar-se, em um momento ou outro, de uma fortm de distanciamento . *>

“A tradição”, escreve Balandier, “trapaceia com o movimento”: texto Este debate, que reata com “a crítica das ideologias” (Habermas), confrontada
constifutivo de uma sociedade, ela lhe fornece uma grade dê leitura que. lhe * • com “a hermenêutica das tradiçõ es” ( Gadamer ), será relatado no capítulo se-

guinte, relativo ao perdão e ao esquecimento. Retenhamos no momento que,


i
permite interpretar e tratar dos acontecimentos que a afetam, o presente que a
recoloca em questão. Assim fazendo, ela confere um sentido conhecido ao des "
conhecido, uma aparência familiar às situa ções mais novas; postulando a 'con-
- íamo.s fazer o menor julgamen-
se é necessário isentar-se da tradição, não pojder
' to'crítico, ou mesmo menor julgamento puro simples, sem, previamente /ter-
tinuidade, ela infunde uma ordenação no caos dos acontecimentos. Mas esta mos aprendido a pensar nos termos desta ou daquela tradição herdada.
ordem não é estática; porque, escreve Balandier, a tradição é portadora de um '

“dinamismo” que lhe permite a adaptação e lhe confere uma capacidade de li- *
dar com o acontecimento e explorár determinadas possibilidades alternativas.34 *
A FUNDAÇÃO , FUTURO ANTERIOR DA V

Max Weber, em suas análises sobre o modo de dominação tradicional LEGITIMIDADE


(“validade do que sempre foi” ), notara muito bem, igualmente, estas astúcias
da tradição que chegam sempre a garantir o novo com falsa apar ência, e a par- . *
Pudemos observar, até aqui, o funcionamento paradoxal da mémóriá
tir do antigo: orá será o caso dè oráculos proféticos afirmando verdades, va- *
social e a maneira, em suma criadora, de que as tradições se constituíam .
lendo desde sempre, mas esquecidos no intervalo ou que não foram^correta-
Aproximando.-nos do direito, precisamos agora estudar o “momento funda-
mente apreendidas, ora, mais simplesmente, será o caso <lo “reconhecimento”
do ”, no decorrer do qual convencionou-se instituir a b^ase sobre a qual se edi-
pêlo costume ou precedente de soluções consideradas “válidas a todo tempo”.35
i
^
fica a ordem jur ídica. Poderíamos esperar tratando-se de uma ciência de me-
“Sob o nome de costume imemorial”, escreve por sua vez Marc Bloch, “uma i
^ ^
mória e de um discurso de tradição como é o direito, poder alinharalgumas
massa de novidades se infiltrarám.”36 '

-
Será que respondemos de maneira satisfatória às objeções dirigidas à
certezas fortes sobre es$e instante inaugural que dá bases à instituição. Ora; em *

tradição? Sem dúvida, o argumento antecipado aqui, sobre o caráter evolutivo ar >

37 Quanto aos debates inerentes à interpretação das traduçõ es, cf. MACINTYRE, A.
Àfter Virtue. A Study on Moral Theory 2. ed. London: Duckworth, 1985. p. 222. Cf.
. ,, . ^
.
4

'igualmente, GÉRARD, P. Droit et Démocratie Bruxelles: Eublications des FUSL,


.
. .
.
33 BALANDIER, G. Le Désorãre Éíoge du mouvetnent Paris: Payard, 1988. p 37.
.
34 Ibid., p. 38
35 WEBER, M. Économie et société Paris: Plon, 1995 p. 73, 303
*
.
.
\
s*
_
1995. p. 228: “Apertença comunitária pode ser considerada como um bem à medi-
da que representa uma condição de possibilidade da autonomia.” É que a tradição
-
*

cultural “propicia aos indivíduos um ponto de partida na busca de suas identida


. .
36 BLOCH, M Mémoire collective, tradition et coutume Revue de synthèse hi$toriquex des” sem por isso privar os indivíduos “de qualquer possibilidade de distanciamen-
. ,
Paris, t XL, n. 118/120, p. 80 1925. t
to, de escolha, de crítica e de revisão”. t

t
»
4

64 65
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+ Capítulo 1
V
\
i .
Memória Ligar o passado .
i i
V
r N

.
t
I

4*

caso de certezas, é novamente com um feixe de paradoxos de aporias que a rt Irndiçflo ocidental consagra soíene e explicitamente, pela primeira vez, um
análise é confrontada, Observaremos, bem de iníçio, que, se ele inaugura uma ^ J .
ult á logo de liberdades fundamentais Pela primeira vez? Por que então os re-
duração, esse momento fundador não pertence, verdadeiramente, ele mesmor ,
J datores deste texto sentem a necessidade de afirmar que os direitos que con -
J #

Artgram , eles os “declaram como seus ancestrais sempre o^fizeram em caso se- - t

ao tempo que passa; mítico e solene, ele reclama somente repetir-se em sua ju - *
|
í ndhante para assegurar seus antigos direitos e liberdades”?
« +

ventude eterna. Notaremos em seguida que, se ele produz uma cascata infini
ta de efeitos materiais bastante reais, sua própria realidade lhe é mais simbó-
^ - -
J Este problema da anterioridade dos títulos jurídicos é bastante coíihe-
t \

lica que funcional: à maneira das “pedras fundamentais” “colocadas por esta ^
*
J ddo dos juristas civilistas confrontados com a questão‘da atribuição das pro -
ou aquela autoridade” e que não têm muita coisa a ver com a construção edi
ficada pelos operários, a instâ ncia fundadora diz o sentido da construção,
- i priedades: “sem duvida é seu, porque você o retém de um proprietá rio prece-
dente em virtude de um título jurídico regtdár”, mas este proprietário prece-
mais, do que o peso que ela suporta realmente 38 . dente, de quem*o retinha? Deveríamos, então, remontar ao infinito toda a ca-
Mas, a aporia que nos deterá é mais enigmática ainda, e inscreve-se na .
deia dos proprietários Impossível, claro: sempre uma dúvida se insinuaria na
ordem temporal: é precisqjver, cie fato, que o momento fundador é, literal - legitimidade do que precedeu; os glosadores, desde o século 13, falam nesse
mente* iílassinável, radicalmente indisponível; cada vez quç acreditamos po - ponto de “ probatio diabólica”: uma prova tão necessária quanto impossível .
-
der apreendê loTele desaparece em uni abismo, remètendo a um passado mais
^ * Igualmente, precisamos resolver de imediato: o escoamento de um lapso de
longínquo que o passado; entretanto, cremos poder identificá-lo, ao termo
'
tempo suficiente suprirá a falta de título verdadeiramente originário; iremos
desta regressão rumo ao antigo eis que ele se projeta para frente, Só oferecen
do realidade na antecipação de^sua futura realização; e, quando esta enfim se ,
- 3
contentar-nos com a posse imemorial ( de fato, três gerações), e, logo em se-
'

guida, com a posse trintenária. Faremos “como se” uma ficção mascarasse a
-
produz, percebe se agora, poderíamos dizer retrospectivamente, que ele sem- abertura do fundamento ausente.39
r pre estivera lá e não cessara de operar nos bastidores da história. Eis porque Mas, não há origem dos direitos subjetivos que não desaparece em
nós falamos sobre o modo do “futuro anterior”: anterioridade em relação, a abismo Do lado dos direitos objetivos (fortfes do direito), impõe-se uma mes-
.
i '

ma Constatação, Dois índices, entre outros. Quando Bohannan, como antro-


\
um fato a chegar, ou futuro de uma situação passada; é certamentè no vai-e-
vem enigmático entre esses dois ,pólos do tempo que se produz o efeito de le- ^ > pólogo, parte em busca de um critério de distinção entre direito e pré-direito,
gitimidade, que fornece ao direito á evocacão de sua base fundadora . - -* nas sociedades arcaicas, é de “dupla institucionalização” que ele falará: a regra
% Social consuetudinária torna-se jurídica, para ele, quandoxé reformulada ex-
plicitamente (institucionalizada pela segunda vez) por uma instâ ncia social
V
c

DQ DIREITO ANTES DO DIREITO


I
<
habilitada para isso - modo de reconhecer que o costume já pertencia ao di-
( .
reito, pelo menos ao direito oficioso 40 Segundo exemplo: quando os‘grandes *

Para desatar este emaranhado, precisamos notarJogo' de início a im-


possibilidade de identificai um inicio, qualquer da juridicidáde: algo assim
autores da Escola do direito natural moderno (Hobbes, Locke, Kant, Rous -
seau) estudam a passagem do estado de natureza para o Estado de direito, eles
.
N

como um ponto zero no direito, “Há sempre direito, antes do direito”, pode- '• n *

.
J. ríamos dizer Os índices, aqui, pUlu|am. Tomemos, por exemplo, Um texto
I

fundador entre todos, o BUI ofRights de 13 de fevereiro de 1689, que em toda 39 Cf .ELLUL, J. Aliénation et temporaíité dans le droit. In: Tetnporalité et alié nation .
Paris: Aubier: Montaigne, 1975. p. 191. V

\ "» . r
( 40 BOHANNAN, P. The Differing Realms of the Law. In: Law and the Behavioral
, 38 Sobre a metáfora da “primeira pedra , cf. BACHEIARD, G. Dialectique de la durée.
" Sciences. Edited by L. Friedman, S. Macaulay. New York: Bobbs-Merril , 1980? p. 47
Paris: PUF, 1963. p. 41 , , i et seq.
v
1

66 67
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-
,

Capítulo 1
/

Aíemóm Ligar o passado .


*• *<

* N

í *
V
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-1 4

• se ó contrato foi passado com o povo (povó instituído e não massa in-
V não apresentam o primeiro como um estado desprovido de direito: ao contrá- ^ * *

*1
rio, já ali prevalece a lei natural , cujo único erro é ser incerta e não sanciona- »
forme ), de que modo este teria se instituído antes do ato que designan-
r
'** da. O direito positivo do estado civil Vem, então, explicitar e garantir uma ju- '$
do-o/acredita-o? r

ridicidade já fyastante presente no. corpo social.41 v g • se o contrato é assinado pelos cidadãos (cidadãos instituídos membros
' da nação e não indivíduos isolados), como é que ele seria antes obra
Mas se existe direito antes do direito, podemos dizer, com a mesma segu- da
é
rança, que existe poder antes do poder. A dominação ou a interação política não do pacto que, precisamente, o faz aceder a ess&xlignidade? ’

t 1

escapa, nem ela, à regra do antecedente paradoxal. Derrida nota-o com humor,
colocando a-questão (im)pertinente de saber quem, em definitivo; assina a De-:
v
' ^ >
, .
’ A

Rousseau deu a está última questão uçna formulação exemplar; “para


• . I

claração de Independência dos Estados Unidos de 1776. Será Thomas Jefferson? que um povo nascente pudesse saborear as máximas sadias da polí tica e seguir
* #

Não, é claro, ele é apenas o redator. Serão os “ representativos” da nação américa- flSuj;egfas fundamentais da razão de Estado, seria preciso qiie o efeito pudesse
,
1
na, reunidos em Congresso? jNão, já que são apenas os representantes de um
\ lornar-se a causa, que o espírito social, que deve ser a obra da instituição pre-
sidisse a instituição mesma, em que os homens fossem antes- das leis e o que ~
l
v povó de resto ainda não autorizados, já que a Declaração ainda não foi assina-
da. Será, então, “We the People”, <çnós, o povo”, em nome do qual a independên- ; devem tornar-se através delas”,43 como estar de fato/à altura da lei,,que se con-
A
cia é proclamada mas, sem nenhuma dúvida, ó povo não assina e, além disso, ií
vencionou, entretanto, ter engendrado? Como fazer que se queira o que des-
sem já estar em vigor, a Declaração ainda não o instituiu1 na qiialidade.de povo \ de sempre devia ter-se qtierido? Uma libérdade se afirma, um povo se institui
soberano? Seria então, a Providência em nome da qual o textò é redigido e os
>
que, contudo, convenciònou-se considerá-los còmo tendo desde sempre sido
direitos proclamados? A Providência que retroativamente habilitaria Jefferson a ã chamados à existência. Umafigura retroativa se desenha aqui que indica, em

redigir, os “ rep esentatiVos” a pôr seu nome embaixo do texto, o povo a preten- ídica, rumo a uma potência instituinte
^
der falar em uníssono... Quem, então, assiná a Declaração de Independência?42
*
contra corrente da constituição jur
mais antiga e que, apesar - dela instituição, faz chegar à existência: sem a for- '
,
Este problemade antecedência política, tão velho quánto aprópria so- ma prévia da legalidade, o contrato nada seria e, contudo, é o contrato que re-
, - ciedadè, surgiu sob uma forma aguda desde o momento em que, desde a mo- vela a lei.
t
V

dernidade, o fundamento dó poder convencionou-se residir no contrato so- , Todos esses índices conduzem a uma conclusão formal: do mesmo
ciai que os homens livres e iguais passam entre eles. Quando ela é radicaliza- modo que ninguém começa a linguagem a partir do zero, ninguém começa
da ( ou seja, quando a pretensão à autonomia se pensa como autó-fundação), absolutamente a instituição. “Nunca se assiste ao começo da regra, escreve
esta idéia desemboca em inextricávèis aporias; citémo algumas delas: »44
Paul Ricoeur, só podemos remontar de instituição em instituição.' Nossa
<4

^
% \
ação, nosso discurso, até nossa liberdade, só são possíveis sobre o fundo de in-
• se o contrato é a norma fundadorai, em que repousa a óbriga o de ter *

çã teração já dado; sem estas estruturas prévias de socialidade, o próprio gesto de


que contratar, e o que é que justifica a obrigação de ter que manter seus i
recusa ou deYevolta nenhum sentido teria. Mas, é preciso convir, este saber da *
compromissos?
instituição é, de algum modo, segundo e derivado em relação ao momento da
K. y
<
^ \

afirmação positiva de si, da rupturapolítica e da fundaçãqdé uma regra nova:


I
1

. . , f
41 Cf principalmente LOCKE, J Deuxième Traité du gouvernement civil Traduit par l
i

.
B. Gilson Paris: Vrin, 1979. p 146 et seq ; KANT, E. Métaphysique des ttfoeurs. Pre
. . - 43 ROUSSEAU, J J Du contrat social Des prí ncipes du droit politique. Paris: Bordas,
i

. .
mière partie, Doctrine du ãroit Traduit par A Philonenko. Paris: Vrin,T971 p. 194 . . . .- . *
1 r

.
T
•j
.
1972 p. 109 .
' 42 DERRIDA, J Déclaratiqn (findépendance Jn:
..
lée, 1984 p 25. v
. .
Otobiographies Paris: Gali- . 44 RICOEUR, P Avant la loi morale: Péthique, loc cit., p. 64
. . .
: *4

i
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1

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I

68 I #
I V Jf
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Capítulo 1
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Memória ligar o passado.
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-
4

-
“é semprè no atraso, escreve ainda Ricoeur, que tomo consciência da anterio- rtlestam, por outro lado, a -impossibilidade de remofitar ao fundamento (sem
pre á probatio ãiabolica ) > a necessidade de “resolver rapidamente”, irppondo fic- ’
, írãaâe da regra em relação a qualquer escolha nova” 45 . i
V

\
9

I
çflc$ políticas com tanta força quanto fragilidade de verossimilhança. % »

/
f
4 é Esta primeira interpretação derridiana, da retração do fundamento,
G.OLPE DE DIREITO DOS leva, então, a pensar a fundação da lei como um momento suspenso no
vazio, em ruptura com todo opassadó, e, na melhor das hipóteses, projetado
K
*

HO futuro de sua própria realização. Entretanto, é possível interpretar de ou-


* r
\
Desde que o fundamento desaparece, poderíamos então pensar que r*

Iro modo a retração do fundamento: ler nele não um vazio e um desmame,


T

qualquer gesto de fundaçãq,é, líteralmente, um gesto.revolucionário de rup - -j M ,

tura em relação ao antigo, um ato de rejeição de qualquer anterioridade e de luas, pelo contrário; um elo que não deixa de estender-se e enriquecer-se em
*

\
.
pura afirmação de si Uma nova distinção entre o legal e o ilegal, então, “se im- direção de um passado que nunca deixou de irrádiar em direção do presente.
ter notado, como já vi-
*
poria, que hão se sustentaria senã o pela violência nua de sua pró pria afirma- Esta segunda leitura é de Pau!Ricoeur, que , depois de *

mos, que “a origem da autoridade é fugidia”, não deduz, em consequência dis-


\

ção. Serja dado um golpe de força que se apresentaria em seguida “como um


,
4

golpe de direito. Tal é a análise proposta por Derrida dos momentos instituin-
4

»
- r so, que ele pertence ao contemporâneo - nem mesmo ao juiz constitucional,
'tes de novas ordens jurídicas. No instante revolucionário iria afirmar-se um * tão elogiado, nem às regras da discussão processual nas condições dalegitimi-
dade, de que esperamos tanto na atualidade - que “faça sair o simbólico (fun-
{>

direito novo que por si só se autorizaria; armadò unicamente com sua violén-
cia fundadora, produto de úm ato performativo puro (que realiza o que ele '
s
dador) a partir do vazio”.48 Uma tal pretensão não estaria, a bem dizer, muito
afirma através unicamente daquilo que afirma ); suspensa no vazio do não - distanciada dos fantasmas de todos os totalitarismos que sempre pretendéram
partir do zero para criar um tipo de homem absolutamente novo. O que leva
- 49
^ direito, esta pretensão não teria contas a prestar a ninguém O sujeito do per . -
formativo seria liberado de toda lei na medida em que “é ele qué deve fundá Ricoeur a propor uma saída para ó paradoxo, não na tarefa digna de Sísifo de »

la, como vindo na violência”.46 Seu gesto, escreve ainda Derrida, “é uma deci-
- recriar permanentemente, a partir de nada, uma instância simbólica, mas an -
são què não pertence a nenhum continuum temporal”.47 tes, é a hibridação e revivifica ção das m últiplas heranças*fragmentadas que
NNóS não podemos aderir a esta análise do fundamento da lei, tertamen- coabitam nas nossas sociedades pluralistas. Neste ponto remetemos ao “con-
r te demasiado redutora; de fato, o que poderia ser um “performativo” puro, de '
- 1
» senso por recorte” de que fala John Rawls, assim como a sinergização das he -
preendido de qualquer conhecimento prévio, ser
>
ranças imensas e ainda não esgotadas, porque não interpretadas quanto às
íão a afirmação da mais bru
tal violência; que quereria dizer “fundar uma lei” se não se pudesse tomar 5
- suas promessas, não cumpridas, nas quais Charles Taylor, que visa, principal-
apoio, n ão seria isto senão marginalmente, nas formas prévias de legalidade? ’ mente em The S çurces ofthe Self o judaico-cristianismo, o racionalismo das
}

De resto,’ como se verá, o próprio Derrida não irá ater-se a estas primeiras ano- Luzes e o grande romantismo alemão e anglo saxao do século 19.50 A

-
>

tações. Estas têm, contudo, o mérito de lembrar que se infiltra frequentemen \ Levando um pouco mais adiante o nível do estudo do enigma dq fun- *

te, na génese da lei, uma dose não desprezível de violência e de impostura. Elas
- l
%

damento, Ricoeur propõe interpretar a ausência da atestação original da legi-


*

V
timidade e todas asdnstituições constitucionais, como a do contrato, que ten
1
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-*
v
4
45 RICOEUR, P. Avant la loi morale: Péthiq e, loc; cit , p. 64 ú . . i 4
. .
48 RICOEUR, P. Préface In: A. GARAPON, Á Le Garâien des promesses Paris: Odile .
46 'DERRIDA, J, Forte de JoL Lefondcment mpstique de Vautorité Paris: Galilée, 1994. . Jacob, 1996 p 16 .. .
p. 88.
V 4
;
. . .
/ 47 RICOEUR, P Préface In: A. GARAPON, A Le Gardiett des promesses Paris: Odile . V'
49 Ibid . %

. . -
4

Jacob, 1996 p 16. .. I


50 Ibid , p 15 16.
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Capítulo í t
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Memória Ligar o passado.
V
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dem a mascarar d escândalo, como o sinal de um esquecimento pelos povos


^
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*

pois de ter sustentado a tese já citada, segundo a qual o instante revolucioná -


submetidos tãó longamente, dé sua possibilidade de um “querer viver jun- rio era “uma decisã o excepcional, que não pertencia a nenhum contiíiuum his-
tos” 51 Tudo se passa como se' tivéssemos “esquecido” a própria possibilidade de '
T

tórico e temporal”, o autor acrescenta imediatamente: “mas no qual, entretan -


uma socíalidade sob uma lei, de ordinárjp aceita.Mas este esquecimento con - to, a fundaçã o de um novo direito atua? se se pode dizer, sobrè alguma coisa
*
tinua entretanto a trabalhar, por dentro, nossas figuras de legitimidade, forne-
, n
no direito anterior que,ela amplia, radicaliza, deforma> •54* ^
cendo-lhes o pressuposto sem o qual estas se remeteriam às formas da violên- J k Estainflexão (“entretanto”) é, a nosso Ver, decisiva: a anterioridade da
cia. Um tal pressuposto poderia alimentar a presunção dé^ legitimidade na
V r
y
fundação, percebe-se isso agora, era apenas falsa retrospectiva; de uina certa
>
qvual se apóia a instituição, assim como a confiança indispensável à manuten
ção' do. laço social. V J
- forma, ela era igualmente real è prospectiva: Ora, se isto for verdade como o
'acreditamos, então, n ão se pode mais sustentar que o momento- fundador
\

,
Será preciso, pois, após haver seguido um certo tempo Derrida e Ri - *
opera unicamentè no vazio e na violência, ou que ele não tem contas a pres-
coeur opor irremediavelmente, as beiras do abismo do fundamento ausente, .
tar; senão a si pró prio De resto, o próprio Derrida é logo conduzido a reabi-
de um lado a violência de um ato fundador que se projeta no futuro, e de ou-
*
litar algo como um continuum na vida dás instituições, como se a força ( ele *

tro lado o trabalho paciente do diálogo das culturas, ele mesmo inspirado pela
,
diz: a violência) da fundação não se deixasse distinguir claramente da força
confiança em um socíalidade primeira, esquecida e recalcada no inconscien- * .
que levam as mesmas instituições a. se conservarem “ Uma fundação”, escreve
^
te coletivo? A legitimidade estaria condenada a este choque violento da ante -
, *

(1 ele mesmo, numa fórmula que subscrevemos desta vez totalmente, “é uma
t

cipação e.da anamnésia? Nós não acreditamos nisso, pnis é no vazio de seu
promessa” 55 Mesmo se esta promessa não for mantida de fato (qual o seria in-
próprio andamento que a legitimação opera o vai-e-vém dò passado ao futu-
^
tegralmente), “a iteratividade inscreve a promessa de guarda no instante mais
7 ro e do futuro ao passado. Basta retomar a leitura do texto de Derrida para se
irruptivo da fundação. Ela inscreve assim a possibilidade da repetição no cen-
«
.
convencer distQ Imediatamente depois de ter sustentado que a fundação de • tro do originário”.. “de repente”, acrescenta ele ainda, “não há mais fundação
um direito novo só se sustentava por si mesma e projetava no futuro sua pró
* - pura ou posiçã o pura do direito, logo, pura violência fundadora já que não
^
pria legitimidade, o autor nota que esse direito por vir legitimava em troca,- re
tròspectivamente, a violêAcia da qual nasceu “seufuturo anterior”, já a justifica, ,
- * .
existe violência .puramente conservadora*’5* Com isso, parece-nos, falou-se ,

' escreve ele.52 E


- -
tudo: a fundação é sempre simultaneamente perseguiçao de uma tradição; o
aindâ, “uma revolução bem sucedida, a fundação bem sucedi-
da de um Estado produzirá com atraso o que ela estava de antemãa destinada J
. mesmo que a' conservação ou reiteração da promessa é, inevitavelmente, re-
a produzir”: um' discurso de legitimação 53 . formulação e transformação desta .
. Ainda poderíamos pensar, para continuar este tópico, que o atraso “de Assim, a análise do futuro anterior do momento fundador (quando ele
-
que áqui se trata” é somente da ordem do subterf úgio, uma espécie de presti- •’ . *
, for imposto, já terá sido sempre legitimo), nos faz reatar com a dialética do
.
tempo instituinté e do tempo instituído Está na natureza do tempo instituin-
digita ção ideológica; praticada pelos vencedores da história que sempre sou
beram convencer-se de que “Deus estava com eles”. Mas pérrida desmente
- te, invertet-se'nas formas estáveis, do tempo instituído. Pode-se ver nisso, se
esta interpretação rapidamente e leva mais adiante a dialé tica temporal. De- quisermos, uma forma de ocultação, de denegação, ou de aqto-altemção,
4 f
4 * >

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51 RICOEUR, R Soi nteme comtí ie uti autç f Paris: Seuil 1990. p* 278 279. *
^ - 54 DERRIDA, J. Force dedoi Lefondement mystique de Vautorité. Paris: Galilée, 1994
.
p 98. ‘
-52 DERRIDA, J: Force de lou té fondement mystique de Vmtorité Paris: Galilée, 1994.
p. 87 88. - '
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55 Ibid., p 94.
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* *53 Ibid., p. 90. 56 Ibid.


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Memória Xigar o passado.
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* , como a isso convida Çastoriadis/7 ou ainda uma lamentável tendência à alie- í \\ fuga de Enéas seria apenas um fato quotidiano doméstico, uma cena dramá . - *

llca de família, inscrita nas peripécias dó tempo que passa. Mas Enéas não é um
« *
nação do direito que, atingida a maioridade, tende a intemporalízar-se, petri- 7
j
ficando seu Conte údo ou sua origem, como o acredita Ellul.58 Essas tendências fugitivo qualquer, é um fundador de império: seu tempo não é o da anedota,
,

são reais e alimentam desvios que justificarão, no devido momentp, que se en- ,
VJ mns da genéalogià instituída: fiel á seu pai e confiante no filho, nem por isso
.riqueça amem ória através do perdão (ou, se preferirmos, que se recorde à. ins- i permanece indissoluvelmente ligado a este casulo doméstico. Recomendando "
*
.
tituição sua origem instituinte) Mas, por enquanto,‘lembremos que não há ,
UO pai que levasse - nesse momento de urgência em que muitos outros recur-
força instituinte que não se apóie em formas instituídas . 1 sos seriam, sem dúvida, mais “ úteis” - os “objetos sagrados e os penates dos

_- pais”, é num outro tempo que ele inscreve daí para frente seu empreendimen-
A
t

I to, Não se trata mais de garantir sembem estar privado ou uma reprodução ex-
, ’ A GENEALOGIA: ENÉAS, ASCÂNIO, ANQUISES clusivamente biológica; é, antes, o caso, agora, de perseguir uma grande obra,
cuja origem sagrada se perde na noite dos tempos e cujos efeitos futuros são,
E
.
i
OS PENATES /
pela mesma razão, incomensuráveis. Assim, o tocante (oú dramático) quadro
de família esboçado por Virgílio condensa, em miniatura, a produção do tem-
r
A ordem jurídica não sé erige unicamente sojbre uma base fundadora
'
* po fundador inaugural, cuja eficácia passa, contudo, pelo intérprete da cadeia
de caráter público; nãa são unicamente as mitologias coletivas què ela mobi.- - historicamente situada das gerações.Duas lições essenciais se depreendem des-
*

liza na origem. É necessário a ela, também,' reproduzir-se em ,pequeno à esca-


-
V
ta história: de um lado, o fator eminentemente político das montagens familia-
la de cada indivíduo que se preocupa em instituir “sujeito de direito”. É aqui - ‘
rés (digamos, em linguagem jurídica: das regras do estado civil) e, de outro
que a genealogia privada toma o lugar da fundação pública, reproduzindo
lado, à necessidade cada vez; que está em pauta garantir uma fundação (públi-


seus mecanismos e, finalmente isto é o essencial , relativisando a distinção
mesma entre público e privado. Ao se reconhecef filho do pai que a lei lhe de-
— ca ou privada), articular dois registros temporais distintos: o tempo mitológi
co inaugural, inscrito na perenidade e implicando um princípio genealógico e
-
^

da lei.
-
termina, o indivíduo erige se como sujeito d£ direito e torna-se, por sua vez, o tempo histórico concreto, inscrito na duração (uma duração que, como sa-
Substituto bemos, pode se usar) e implicando um princípio cronológico.
\

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I *
Uma representação mitológica tomada de empréstimo à Eneida de Vir- :
gílio, e comentada por Pierre Legendre, ilustra maravilhosamente este aspecto 1
v

genealógico. Quando Tróia, tomada pelos gregos, está em chamas, Enéas, futu- -il
K
>

ro fundador de Roma, abandona a cidade apressadamente; Pela mão, segura NASCIMENTO DO DIREITO
4

seu jovem filho Ascâ nio; em suas costas,.carrega seu pai Anquises; sua esposa, ' á
Creusa, segue-ó à distância. Antes de pôr o pé na estrada, Èqéas dírige-se nes-

Matéria de direito positivo na França, desde a Ordenança de Blois de
tes termos a seu pai: “você, o genitor, leve nas mãos os objetos sagrados e os pe- *
1579, o regime do estado civil, que oficializa a atribuição a cada sujeito de seus .
. nates dbs pais”.59 Esta última precisão, parai dizer a verdade, é essencial; sem ela,’
i autores legais, não se liga nem a um caso puramente cronológico, nem a dados
S .
puramente biológicos No plano cronológico, sabemos bém a dificuldade que
J*
vj - ^

existe em restituir com certeza a sucessão dos sujeitos ou em produzir provas


/ <
.
57 CÀSTORIADIS, C LVnstitution imàginaire de la société Paris: Seuil, 1975. p 279-294. . irrefutáveis de filiação: “a historiografia das famílias termina sempre em relatos
58 ELLUL, J, Aliénation et temporalité dans le droit In: Temporalité et aliénation .?a
- ..
, ris: Aubier Montaigne, 1975 p 194 et seq. '
.
*
. - .
incertos” 60 Aqui, mais uma vez, os juristás são confrontados com á probatio dia
.
»4
-
, .
59 Virgile, Êneide vers 705 et seq.; cf o comentário de LEGENDRE, P. XInestimable V
\
t

.
Object de la transmission Étude sur Je príncipe généalogique'en Occidetit Paris: Fa . *
- >
60 LEGENDRE, P LTnestimable Object dela transmission Étude sur le pr
. .
í ncipe généa -
yardi 1985. p. 148 et seq. »
*
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.
logique cn Occident Paris: Fayard, 1985 p 147 .. .
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Capítulo 1
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Memória. Ligar o passado . *

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•piox e a um ‘‘pai” com maiúscula (o ancestral mítico cujos penates são conser-
bolicà ) que não se restringe a isto: os penates e os objetos sagrados tomam o lu - *

vados ), ela lhe confere ao mesmo tempo um lugar na;linhagem, que lhe per -
gar do ancestral incerto; a nomeação legal - o pai designada pela lei -livrará o "
\ fí
C í
\ .
sujeito da angústia de ter que se fundar ele mesmo. Quanto ao plano biológi -
i
.
mite à sua vez, assumir seu papel de sujeito De fato, não acabou ele de apren-
<

co, sabe-se qqe no ocidente, çoirio alhures, o& sistemas 'de parentesco instituí- %
v
^
der- que nem seu pai, nem nenhum de seus avós estava em posição de sobera -
dos não têm necessariamente um elo coit í a comunidade de sangue, O laço de ‘
nia: somente, como ele, sujeitos à lei? Erigido como alternativo da lei e como ,

sangue não basta para produzir o sujeito. <cEle deve ser juridicamente trabalha
V
- agente da transmissão, o sujeito é, assim, preservado dadarefa impossível de
N do”:61 não é senão uma vez nomeado, classificado e instituído, no lugar que lhe
cabe na contagem genealógica, que o indivíduo torna-se sujeito de direito, re-
(
_ - .
ter que fundar se a si próprio Dotado pela instituição de lim pai e uma mãe
designados pela lei, o indivíduo é liberado da fantasia de ter que inventar au.-
. conhecido simultaneamente em sua especificidade e integrado na comunida- -
tores e de se'ácreditar soberano! Este dado indisponível, do qual ei lo instituí-
.
de Assim, pois, não basta para o indivíduo nascer- eni in útero, obra da repro T3
- •
do herdeiro, irá permitir-lhe d í para frente expressar-se em primeira pessoa
duçã o biológica; é igualmente necessá rio a ele, para acessar a postura de sujei- ^
no jogo indiferenciada da interlocução.
to, nascer da nomeação jurídica conferida pela instituiçã o.62 Insistamos neste ponto: a transmissão da lei que, assim, se opera, com *

Portanto,'se o estado civil não é inicialmente questão cronológica ebio- '


/

a solda dos novos elos da corrente* só tem virtudes retrospectivas: nao tra-
lógica, é que sua verdade situa-se em outro lugar: ela é instituinte e política,
ta unicamente de assumir uma continuidade em relação ao antigo. Do lado do
produzindo um sujeito, articulando-o como uma nova malha" na cadeia das - J futuro, igualmente, o princípio genealógico revela sua utilidade, como vere-
/

gerações, e, ao mesmo tempo, significando-lhe a lei que, como sabemos, o


mos mais adiante, quando estiver em pauta a responsabilidade em relação às
proíbe de incesto, constituindo aprimeira e mais fundamental das manifesta
ções. Tudo isso, poder se ia dizer, culmina, na ^afirmação de alguma coisa
- -
- gerações futuras: instaurando o imperativo de transmissão como regra pri- *

como “imperativo genealógico” Gomo se a sociedade significasse para o indi- -


meira, tornando pensável e possível a idéia de um dever em relação a seres ain-
da simplesmente virtuais, colocados a nosso ver em relação a nós, contempo-
f

víduo que ele não poderia tornar-se ele mesmo senão assumindo seu lugar na
râ neos, numa situação de dependência radical, de total assimetria. Logo que a
linhagem e aceitando o princípio de cifesimetriaque a caracteriza- . r
;•

onipresença do modelo do mercado conduz com mais frequência a encarar



% * *

apenas obrigações recíprocas e de justiça, e não a igualdade de troca mode -


TRANSMISSãO DA LEI lo que só tçm chances de se realizar nas condições da simultaneidade e da si - 1

r
1
•> i
, «*
inetria -, o modelo da transmissão, em contrapartida, por seu princípio de
transitividade diferida no tempo e operando em cadeia aberta (A transmite a
-
. O imperativo genealógico inscreve cada pessoa hum eixo vertical que w
l

lhe permite diferenciar-se da indistinção original ( de que o incesto é o sinal)


>

B que por sua véz transmite a C), está apto a aplicar-se às interações dissimé- *

-
e, assim, edificar se como sujeito na perspectiva de uma história longa què de tricas e não simultâneas. O princípio de transitividade, Hgadò" à jransmissao,
senvolve a duração tanto em direção aos ancestrais já mortos, quanto aos des-
- surge assim como mais englobante e mais fundamental que o princípio de jus-
,

cendentes ainda por vir. Compreende-se, então, que a dissimetria inerente à ' tiça comutativa ligado à igualdade “dá-sê a quem se dá”: não somente se apli-
cascata genealógica é constitutiva do humano: sê ela o ordena a uma lei ante - ca a situações bem mais numerosas, mas é condição de possibilidade de froca
V

*
comercial. De fato, como tratar, na igualdade entre parceiros contratuais, de
1 »
respeitar a palavra dada,’ se não tivéssemos acedido anteriormente à posição
t
r J
- 61LEGENDRE, P. Ulnestimable Object de la transtnission. Éiuáesur ie prí ncipe gé néq- 1

lôgique en Otcident. Paris: Fayard, 1985. p. 154* v \ de sujeito de direito erigido como substitutè' da legalidade ela mesma, fora da
62 Ibid., p. 227. qual nenhuma convenção se manteria? V
1

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Capítulo 1
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Memória* Ligar o passado *> *

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V*
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IC8CS de Sàvigny foram, transmitidas com muita eficácia por vá rios de seus dis-
VI *

Logo, vê-se quão forte é a interação entre fundação púBlica da institui -


4

ção e edificação privada do sujeito; de uma à outra, é a mesma montagem ge - '


cípulos, entre os quais a história reteve os nomes de Jacob Grimm (1785 1863), -
néalógíca que se operacom o mesmo fator; a transmissão da lei Quer se tra- . •j que foi também um gramático célebre e um contista apreciado, do romanista
Gcorges Pushta (1798-1840) e do germanista Georges Beseler (1809-1888).
<
>
, tasse do romance institucional das origens da nação e do Estado, ou do ro-
t
„ * mance familiar do qual cada um herda, nos dois casos o tempo cronológico Influenciada pelo romantismo alemão, a Escola do direito histórico
pretende reagir simultaneamente contra o racionalismo universalista da Esco-
\

* da vida quotidiana é solidamente disposto em um tempo inaugural fundador


*

.
e inalterável Não ignoramos, bem entendido, que o imperativo genealógico • " la do direito natural do século 18, e contra o legalismo positivista do movi-
de que acabamos de faíar é atualmente seduzido por certas prá ticas da medi - mento da codificação que, conforme o exemplo francês, pretende reduzir o di-
cina, da fecundação artificial. Não é impossível que amanhã, novas formas de reito à lei. Ao contrário dessas teses, Savigny e seus discípulos querem afirmar .
^
* ’

0 fundamento popular e orgâ nico do direito, ancorado na tradição nacional,


i'

' parentesco e aliança venham, ssím, completar o repertório, barroco e diver


^ - .
. sificado, das figuras cuja ajuda o homem tentou instituir o elo intergeracional . assim como, no plano das fontes do direito, a prevalência do costume e da
doutrina- enrrelação à lei. Enraizado no mais profundo da consciência popu-
Contudo, uma coisa é certa; em vez de ser instituído por referência a uma ori - _
gem indisponível ( anterioridade/ autoridade), este elo se desataria e o sujeito, f»
lar, cuja origem.é imemorial, o direitó passa por um desenvolvimento não me-
V
como o menino selvagem correndo nos bosques se encontraria entregue à sel- câ nico e instrumental, mas orgânico e consuetudinário: ele marcha no mgs-
vageria do estado de natureza
*
. . mo passo que a própria nação. É assim valorizado, entre todas as formas do
1
\
4
\
tempo passado, o tempo do imperfeito: o imperfeito que “mostra uma ação em
vias de se desenvolver em umq porção do passado, mas sem deixar ver o iní-
(
4

"A ESCOLA DO DIREITCrHISTÓRICO: V cio nem o fim desta'ação”.64 Do imperfeito, a Escola' do direito histórico, assu-
A APOLOGIA DO IMPERFEITO me igualmente o caráter progressivo, inacabado e, logo, nesse sentido, “não
perfeito*; isso se marca principalmente nas reprovações veementes dirigidas
s
A

por Savigny às ilusões dos codificadores: “nessa época”, escreve ele, a propósi-
%

Antes/de prosseguir nossa exploração das manifestações do tempo da


t
memória na ordem jurídica, impõe-se um tempo deparada, visando tomar co- <• to do século 18 e das grandes codificações, “viera à luz uma sede intelectual'
totalmente cega. O sentido da grandeza e da particularidade das outras épo-
* nhecimento das teses essenciais da corrente teórica que, no pensamento jurídi - cas - como do desenvolvimento dos povos e de suas constituições resumin-
» 0

co deveria, em princípio, ter reservado'a melhor acolhida aos temas da memó


ria, da tradição e do passado: queremos dizer, a Escola do direito histórico, que •"
- V ', í
do, tudo o que torna a história salutar e fecunda, tudo aquilo se perdera Em .
I
dominou o pensamento" jurídico alemão durahte.a maior parte do século i9.63 ' seu lugar, uma expectafiva desmesurada da época contemporânea, que se
\ acreditava chamada a nada menos que à realização de uma perfeição absolu-
\ É bOs escritos programáticos de Frédéric Charles de Savigny (1779-1861) qtie ’
este pensamento jurídico encontra sua expressão mais realizada, a saber, no ma- ..
ta[ ..] Exigiam-se, assim, novos códigos [,..] que deviam ignorar quaisquer
t nifesto da Escola intitulado De la vocation de notre tetnpspour la législation et
, la particularidades históricas e serem igualmente utilizáveis pof pura abstra ção,
Science du Droit, assim como na publicação que^se tornou o órgão da Escola,,# por todos os povos, e todas as 'épocas”.65
% / • *
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Revuepourune Science juridique historique, publicada em Berlim desde 1815.As - 1
.
I

. .
*
”11 64 GREVISSE, M. Précis de grammaire française. 28, ed. ParkJ Duculot, 1969. p 183
. .
63 Cf DUFOUR,A Droit historique (Écolé àu ) .í n: Encyclopédie de théorie etdesocio-
\
> . .
65 SAVIGNY, F de De la vocation de notre temps potí r la législation et la Science du
. .
logie du droit , Sous la direction de A: J Arnaud et a.utres 2. ed Parisr LGDJ, 1993 . . ] . . ..
droit Heidelberg: [s.n ], 1814 p 4-5; Apiid DUÇOUR, A. Rationnel et irrationnel
.
. .
p 192 et seq ea bibliografia citada.
,
- .
dans 1 Éçole du droit historique Archives dephilosophie du droit, p. 149, 1978 ,
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Capítulo 1 r .
Memória Ligar o passado . *
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Ao contrário dos codificadores que pretendem derivar o direito dos A TOTALIDADE DO PASSADO
princípios a priori da razão, a Escola do direito histórico indica seu fundar
* ^
mento nas necessidades internas, histórica e organicamente desenvolvidas, de ' Uma vez expcísta esta evocação das grandes orientações da Escola do
cada nação. Em 1847, Pushta escreve: “o direito repousa, quanto a seu último direito histórico, podemos retornar à concepção do tempo jurídiço que a ins-
^ ^ .
fundamento histórico, na convicção comum do povo Beseler lhe faz eco,
afirmando: “o direito não é o produto do acaso ou do arbitrário dos homens,
'
; . -
pira Savigny explicou se com toda clareza no artigo programático de 1815
Para ele, o conjunto do pensamento jurídico se deixa dividir em duas corren-
nenl da legislação ou, das abstrações dos filósofos, ele se desenvolveu direta-
mênte na vida dos povos como o costume e a língua”,66
-
tes: a Escola histórica, è a Escola ahístóriça dois campos que são opostos pela,
i
resposta à questão de saber qual tipo de relação se trata de estabelecer entre o
Do fundamento assim definido decorre uma teoria das fontes do di- 7
%
\ passado e o- presente, A Escola ahistórica ensina que cada século é o senhor de
reito que, sem d úvida, valoriza o direito popular, mas a tradução desta logo
' >•> I
seu destino, criado por ele em toda libèrdade; o passado só teria utilidade a tí-
iria assumir duas formas distintas nos escritos dos teóricos da Escola do di-. tulo de reservatório de exemplos políticos* e morais. Para a Escola histórica,
* .
reíto histórico Ora será privilegiada sua ^expressão direta e imediata sob a í\
\
<
em contrapartida, “não há nenhuma existênçia humana que seja plenamente
*

^ formaMo direito consuetudinárío, tradução da consciência popular da na - > singular e perfeitamente isolada”: cada indivíduo é simultaneamente membro
, çãb. Tal será a ppção da Corrente “germanistq”, guiada por Grimm e Beseler; de uma família, de um povo, de um Estado; e “cada época de um povo é a con-
aqui, a orientação é empírica e indutiva: trata-se de traduzir diretamente as ' vf
tinuação e o desenvolvimento da épocas passadas” Se for assim, “cada época
« instituições populares, evitando desnaturá-las através de construções im- não cria para ela e em total liberdade, seu universo próprio, mas só o fa? em
*

v portadas de qualquer outro lugar. Ora, ao contrário, é privilegiado o traba -


»
.
relação indissolúvel com a totalidade do passado” Será preciso deduzir disso
lho jia doutrina, característica de um direito que chegou à maturidade e cuja que cada época é determinada por seu passado a ponto de ser privada de sua
expressão é confiada a um casta de juristas especializados Tal é a opção da
^ . a liberdade criadora? Certamente não; a concepção dò,tempo de Savigny não se
corrente “romanista” conduzida por Savigny e Pushta. Aqui, se o método é
A
t. reduz à oposição sumária, passado alienante/presente libertador. Sem dúvida,
r
, sistem ático e dedutivo, nem por isso se trata, sem d úvida, de impor um di
necessidades pesam sobre o presente, limitando seu arbitrário - Mas estas coer- , .
reito/abstrato e iritemporal; o trabalho da. doutrina, de acordo com os axio- ^ 1
t

ções não agem como uma outra forma de arbitrário^ já que, precisa Savigny, *
1 *

mas da Escola, continua entendido como “o nascimento das regras escondi- elas procedem “da natureza mais alta do povo .que é uma totalidade sempre
*
das no espiritando direito nacional que não tinham aparecido, até então, c
em transformação e que não cessa de se desenvolver Deste povo no sentido .
nem na consciê ncia ou nas ações dos membros do povo, nem. nàs fórmulas , I
mais alto, a época atual é igualmerite uma parte integrante . a história não é ..
. do legislador”.67 *
%
mais, desde então, uma seleção de exemplos, mas a ú nica via que conduz aò
.
« I
N
i
•v
verdadeiro conhecimento de ndssa própria situação” 60
Èsta análise de Savigny é essencial e escapa inteiramente, parece-nos, à
t
V/

> j
I

censura de conservadorismo que se poderá em outras ocasiões, dirigirjcom


1 »

.^
4
* *• *

-
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*

:i .
66 Apud DÚFOUR, A. Droit historíque.í?cole 4u) In: Encyèiopédie de théorie et de so - * justiça às tesest da Escola do direito histórico Nesta passagem, Savigny formu
ciologiedil droit. Sous la direction de*A. J, Amaud et autres. 2. ed. Paris; LGDJ, 1993, A >
la uma das justificações éticas jnais convincentes que se pode enunciar em «
\. p. 193 194. * - .A *
4 >
í
i

» : 67 G. Puchta apud DUFOUR,“A. Droit historique (École du). In: Encycíopédie de théo - 'f 1
t v

/
4
X„ rié et de sociologt ç du droit. Sous la direction de A. J. Arnaud et ãutreí. 2. ed. Paris:
w

LGDJ, 1993, p.194, *


1
.
.
.
68 G de Savigny apud DUFOUR, A Rationnel et irratiónnel dans TÉcole du droit his
torique Archives de philosophie du droit, p. 160 161,1978, -
-
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80 I I 4
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Capitulo
Memória. Ligar o passado.
*+ * ; s
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X
4 I
apoio ao teiripo da memória e do recurso aos ensinamentos do passado: um
rdtcr do povo verificam-se no decorrer da marcha do tempo: ainda aqui, é à
V
i

tal ato de anamnésia não tem tanto por função xeferir-se a qualquer exemplo ?
ilustre “estrangeiro* (aqui: “passado”) que poderia ser, aiuda hoje, de alguma
*

l íllgua que é preciso compará-Ib. Assim como para a língua, não há para o di- „
rdlo nenhum mómentó deparada total, [..J. Esta evolução é regida pela mes-
s
!
<

utilidade; trata-se antes, de ir áo encontro de si mesmo, de revivificar virtua


lidades não ainda abertas dè éen próprio passado, de revitalizar possíveis corfs
-
-
,
ma necessidade interna. O direito crepceu, assim, com o povo, desenvolve-se
com ele e acaba por desaparece/quando o povo vem a perder suas particula-
;

titutivos de nossa própria identidade, que não acaba de se redefinir, de rearti-


. *
1 ridades profundas”.71
-
*
, cijlar antigas “promessas, das quais todos os efeitos ainda não foram produzi <

Em sua aula inaugural na Universidade de Berlim, em 1.841, intitulada ^


;
« , dos. Paradoxalmente, seria o caso de. buscar no passado recursos de energia
paraum futuro possível que àí estadia inscrito eimgerme: nós reatamos assim Des antiquités du droit allemand , Grimm retomava, por sua conta, o paralelo .
\
- com a figura paradoxal de um futuro anterior.
%
^ ^ .]
Clltre o direito e a língua, considerados, cada um deles, como sendo iguálmen
lc tão antigos quanto atuais: “Entre direito e linguagem, éfccreve, reina uma
-"V

*.

profunda analogia. Sua essência comum reside, a meu ver, em.sua igual antí-
DIREITO, LíNGUA E POVO , i j
t

.
gllidade e em suá igual juventude Tanto um quanto o outro repousam;de
i

fato, sobre’ um velho e"impenetrávelfundamento, como a tendência a se rege-


nerarem inceSsantemente”.72
t

. Desta filosofia temporal, é possível, agora, extrair alguns corolários res-


/

. - ção da Escola .
*

1
Estas são, pois, muito sucintamente evocadas, as grandes linhas da filo-
^ * "
do direito histórico. Notaremos,
* H
pingados na abundante produ «

<
sofia temporal da Escola do direito histórico: comove, trata-se essencialmen-
^
i
de início, que tanto a lei quanto o Estado pressupõem um direito preexisten -r,
)

te. Assim se exprime Pushta: “a legislação só é possível no interior do Estado,- te da apologia do tempo do imperfeito, entendido como um passado em an-
i
K

mas o próprio Estado é baseado no direito; então, ele não pode tê lo criado ele
mesmo, dejòrma original”.69 De onde deriva, então, este direito preexistente?
- * ' damento, cuja origem se perde na noite- dos tempos e cujo fim ainda não foi
j anunciado. Um tempo do longo prazo supondo a retomada incessante dele
Grimm arrisca uma resposta qUepponta em direção do que denominamos o mesmo, na consciência muito clara da imperfeição das coisas.
i
*

tempo inaugural; “que direito e poesia saem do mesmo leito, não é dif ícil acre- Contudo, ha uma razão dècisivapara i ão se acqitar eril bloco as teses
'
i
.
ditar Em cada um deles, tão logo iremos anàlisá-los, dobramo nos a alguma . - *!
^
desta Escola: falta todo aparelho crítico que lhe permitiria exercer uma- auto
coisa de dado, de preexistente, que poderíamos chamar transhistórico, se não
reflexão de molde a relativizar seus postulados. Carente, então, de um certo
4

se enraizasse precisamente na história[...]. Para nenhum deles a pura institui-,


distanciamento em relação à sua ligação .com a comunidade, com a tradição,
ção ou a vã invenção sãò familiares. Seu fundamento comum repousa em duas
a alma nacional expõe-se a todos os riscos de desvio de identidade e de sinuo-
coisas essenciais: o maravilhoso e o religioso”.70 i
i

" sidade dogmátícá. Como, por outro lado, ela poderia sobrevjver em uma^so:-
* Sem apontar o mesmo fundamento mitológico, Savigny desenvolve 1 '
ciedade em vias de complexificação, cujas pertenças e especializações de seus
*
,
também o paralelo entre o direito e a língua, já que ambõs evoluem no ritmo
da consciência popular; “as relações'orgânicas do direito com a essência e oca- membros se diversificariam? Será preciso lembrar, quanto a fsso, os sarcasmos
%

* %
v que Marx dirigia a esta Escola, que “declara rebelde qualquer. grito do.servo ** »
\ *
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r s • /
‘ *
• 69 p. Puchta apud DUFOUR, À. La Théorie des sources du droit dans TÉcole du droit i
* V

71 E de Savigny apud DUFOUR, A. La Théórie des sources du droit dans TÉcole du


f

historique. Archives dephilosophie du droit, pL 93-94, 1982,


/

70 .
J Grimm apud DUFOUR, A. La Théorie des sources du droit’idarisTÉcole du droit
droit historique. Archives dt thilosophie du droit, p 98, 1982. ^ * .
historique. Archives de philosophie du droit, p. 100, 1982.
i

.
72 J Grimm apud DUFOUK * * a^Théorie des sources du droit dans TEcoIe du droit *

historique Archives de philosophie du droit p.101, 1982.


. , *

/ i

82 '
83
**
Capítulo 1
\ * . Memória, Ligar o passado.
/

*
, « » *
>
contra o chicote, sobretudo o chicote carregado de anos, um chicote de velha* M

aun elo pri-
mostrar que, por um lado, éla quase não permite que se estabeleç >
\ 4

cepa, um chicote histórico?”73 assim depreendi-


*
^
Ainda aqui, o tempo da memória conduz à sua própria superação, mas
% vilegiado com ã memória, e que, por outro ladò, as funções
das são apenas derivadas em relação a um papeímais fundamental que
} , , por
o parêntese não terá sido'in ú til e a “sabedoria do imperfeito ’ deveria .
) dora
vante, equilibrar com utilidade os ardores dos codificadores que se imaginam
5

- $ flua vez, supõe a inscrição numa temporalidade


muito mais estável
'j ,
Relacionar o direito como o faz a definição clássica positivista, a um
\ poder, a cada geração, fazer tábula rasa do direito. garan-
Conjunto de regras de conduta, impostas sob a forma de comandos e
%

/
A
tias pela coerção (normas gerais ou regulamentares ou normas individuais
*

editadas pelo juiz no quadro do litígio), quase não permite que se faça distin-
;
. O DIREITO, ESCRIVÃO DA MEMÓRIA SOCIAL '
J ou ad-
r
*
ção entre a ordem jurídica propriamente è a ordem de caráter gerencial
Estudamos o funcionamento da memória colétiva e a maneira como se ministrativo, como aquele da estratégia num campo de batalha ou do finan-
,
cista no jogo do merfcado das bolsas, Ao nos atermos a essa primeira resposta
*

constituíam as tradições; vimos aparte que o direito assumia na fundação da ,


nada permite, de fato, separar a norma jurídica da injunção gerencial cujo
. anamaneira
ção e comp garantia as genealogias individuais. Precisamos analisar, agora,
4 \ Ideal, poderíamos pensar, consiste em seguir, tão perto quanto possível, a di-
pela qual o direito assume, no quotidiano e no conjunto dos domí ^
- versidade e a variabilidade da conjuntura, adaptando a regra ao decorrer dos
nios da vida coletiva, o papel de guardiã o da memória social Como, reunin
- . acontecimentos. Pensar o direito exclusivamente em termos positivistas de co-
do e protegendo as informações relativas a um nú mero considerável de atos e
’ de fatos, contra os riscos do mando, é, porjanto, privar-se de qualquer meio de resistir ao desvio que con -
esquecimento, ele permite que a vida social se de
senvolva na continuidade de uma memória comum, cujos dados são perma
- sistiriaem dissolver o jurídico na nebulosa da regulamentação,'submetida a
, *

- exempio da regulamentação económica, às leis da eficácia e da aceleração.


nentemente acessíveis a todos 74 .
.
‘ j
, Mas, para bem avaliar o alcance deste papel, é
convéniente se interro
gar previamente sobre a hierarquia das funções que o direito asseguraria na - \

COMANDOS E REGRAS CONSTITUTIVAS


1

I
sociedade. A esta questão responde-se < je um modo geral evocando os papéis
de “direção das condutas” e de “regulamento dos conflitos”, exercidos pelo di
- O que é preciso acentuar, portanto, é que o direito só secundariamen -
reito nas nossas sociedades desenvolvidas; duas funções associadas à idéía de
comando e implicando uma temporalidade curta, aquela da colocação em
.
te évíomando, e quç suas funções de direção das condutas e de resolução de *

conflitos são, elas mesmas, apenas funções derivadas em^relação a um, papel
.
execução imediata No primeiro caso, trata-se* de prover às exigências do bem
' '
muito mais essencial, ,assumido pelo jurídico Este papel furidamental consis-
. *

p úblico através de normas de comando adotadas no quadro de uma função


geral de polícia; no segundo caso, trata-se de pôr finva uma desavença dizen
.
te em instituir uma sociedade Antes de regrar o comportamento dos agentes
“ - ou de separar seus conflitos, é preciso, de fato, definir o jogo no qual a ação
do o direito” por um julgamento dotado de autoridade e colocado em execu-
deles se inscreve Antes de manejar a distinção entre legal e ilegal, entre per-
.
.
'

ção sem tardança. Esta resposta não é falsa sem dúvida. Mas quereríamos
mitido e proibido, é preciso criar o quadro geral de intera ção no seio do qual
.
estas distinçõés ganham sentido É preciso construir o edif ício antes de regu -
.
/73 K. Marx apud DUFOUR, À Droit historique (École du) In: Encyclopédre de. théòrie
.
lamentar seus acessos e a utilização de seus compartimentos Sem dúvida, esta
a/t
..
et de sociologie du droit. Soustia direction de A J Arnaud et autres. ed
2 Paris: . . função instituinte apresenta uma outra relação com o tempo, além do exerd -
LGDJ, 1993. p. 195.
74 ORIANNE, R Introductiott au systèmejuridique. Bruxelles: Bruylant, 1982. p. 270
.
cio do comando de que falamos Ainda que este se acomode com á imediati -
/
dade (e até a reclame, desde que se trate de ser eficaz naquele instante), em

84 85 r
*
Capí fulo 1 fi Memória. Ligar o passado.

* »
/
/
*
K
l
"
i V.
,

*
contrapartida a função instituinte siipõe, por hipótese, tenipo para manifestar
» r
seus efeitos. Nada de Uma mobilidade estática (a parada dp jogo social), mas
*

A
í qimis importa que o traço seja oficialmente conservado para criar publica-
mente autoridade amanhã ainda. As leis, decisões e regulamentos são publica-
v

a própria possibilidade de jogar, graças ao dom ínio controlado do jogo e de r


dos e conservados no Diário oficial (denominado em Luxemburgo, de modo
suas eventuais mudanças.
Significativo, o Memorial ); os fatos mais importantes relativos à vida privada
;

Aqui, a analogia com o jogo não é fortuita: comò mostrou Searle, as re- <1
( nascimento, morte, casamento, escolha do domicílio) são consignados nas
gras mais essenciais do jogo não são aquelas que definem os “golpes” autori- 3| atas de estado civil; os dados que permitem a identificação e a localização geo- '

(
zados e os “erros” proibidos, mas aquelas que determinam as convenções fun- $ gráfica dos bens de raiz, tornam-se objeto de menções no cadastro; enquanto
dadoras do jogor aquelas que habilitam os jogadores e definem seus poderes
^ as hipotecas constituídas sobre tais bens são transcritas nos registros da con-
. respectivos, determinam os lances, fixam os objetivos do jogo.75 Tais regras; . j servação das hipotecas; as principais indicações relativas aos comerciantes e às
Sociedades comerciais podem ser consultadas nos regístros«lo comércio; o jre-
denominadas “constitutivas”, criam, por assim dizer, a possibilidade mesma de
gistro dos protestos informa aos credores quanto à solvabilidade dos tomado-
jogar este ou aquele jogo; sabemos que Hart construirá sua célebre tepria das *
normas secundárias e, de modo mais geral, sua concepção da semântica jurí- . res de empréstimo; as propriedades intelectuais tornam-se objeto de preciosas
dica, a partir da analogia extraída das regras constitutivas dos jogos.76 v ^" Inscrições em documentos que lhes.garantem a publiciclade desejada (registro
• nacional da$ patentes, registro nacional das marcas, . ); a lembrança das in- '
Iríamos, agora, nos dedicar a identificar algumas das técnicas utilizadas
\< M

frações, penais é conservada no prontuá rio- judicial dos indivíduos, ... a lista
p r nossàs ordens jurídicas, parà assim instituir a sociedade e preservar os tra
ò
- j
ços de sua memória. Notaremos, de início, a esse respeito, a ação do direito so- destas formas de memorização das informações socialmente úteis é virtual-
\
Nbre a linguagem: a sua própria, bem entendido, mas também a língua social
que constitui um dos laços nacionais mais sólidos, ao mesmo tempo que um
J mente infinita.77 Oficializando estas informações, o direito lhes confere simul -
1
< taneamente uma credibilidade superior à da informa ção ordiná ria (em certos
critério de pertença política essencial. .Jámeste nível, as intervenções do direi v -
to nã o são desprezíveis, quer se tratasse de determinar a ou as línguas que se
rão reconhecidas como oficiais, quer se tratasse de modular-lhe a evolução fi
xando, por exemplo, regras de ortografia, proscrevendo d uso de dialetos ou
-
- ^ »
casos, como para as menções dos atos do estado civil, somente,a autoridade
judiciária é habilitada a constatar sua falsidade), do mesmo modo qUe uma.
'

publicidade, senvlimite de tempo èm relação a todos que poderiam fazer va


ler um interessè legítimo de aceder a elas.
-
t

de termos tomadòs de empréstimo a uma língua estrangeira, ou ainda, reco


mendando a feminizaçao de nomes de função. Se concordarmos em réconhe
- Em certos casos, a mèmorização n ã o consiste somente no registro de
- . j dados preexistentes, mas antes, na formação mesmo do dado memorizado:
*
cer que uma língua não é apenas um código de comunicação, mas a própria ) nos lembraremos das análises feitas acima, no que se refere ao caráter “cons- /
expressão de uma cultura, compreenderemos que contribuir para a manuten
- \ \ trutivo” e “seletivo” da mem ória. Citaremos,, a este respeito, a atribuição de um
- ' «
s
> ção de uma linguagem comum é uma maneira importante de preservar o pa - nome e de uma filiação às pessoas fisi as conferindo-
ç , lhes, assim, algo como o
'trim ônio de uma na o Notaremos,
çã .
em seguida, um imenso trabalho de gra - passaporte de entrada ila vida'jurídica. Na mesma ordem de idéias, é pfeciso
vação e de difusão das informações relativas aos atos e aos fatos mais impor '
- ' evocar igualmente o reconhecimento da “personalidade jurídica” aos agrupa -
-
tantes‘da vida social atos ou fatos constitutivos de normas ou de direitos dos 4
mentos de pessoas desejosas de colabprar, visando um empreendimento co- ,
mum: associações de fato são, assim, duradouramente chamadas à vida júí r-
. .
75 'SEARLE, J R. LesActes de langage Essai de philosophie du languagè Tra uit par H dica, Até mesmo a nação, ela mesma, assim como o Estado e os poderes pú-
*

. .
.
Pauchard Paris: Hermann, 1972 p 72.
.
. .
76 HART, H L. A. Defínition and Theory in Jurisprudence Law Quarterly Review, 70,
^ \
.i
• . . . . -
77 ' Cf principalmente PETIT, F La mémoire en droít privé Revue dela recherche juri
.
p.137 et seq , 1954 .
\ - . . .
dique Droitprospectifi p 1 et seq ,1997 1 -.
/
86
87 .
^ í
< Capítulo 1 .
Memória, Ligar o passado
f

V
A
y i
h
\J
/
v

blicos subordinados, se tornam d objeto de uma tâlldent


mesmo tempo em que protege de diversas iòrmas a lembrança de sua perso-
r v
íficação-memoriza-'
. çao, do mesmo modo que seus membros permanentes se vêem atribuir a qua
t

lidade de nacionais. Os emblemas e símbolos que representam a existência


- nnlidade; ora se trata de garantir, através das incriminações penais, o respeito
devido aos restos mortais, ora ações de responsabilidade civil protegendo post
Itiartem a honra e a reputação do defunto, ora ainda assegurando a boa exe-
permanente destas coletividades públicas são reguladas detalhadamente pelo V

direito: assim acontece com o nome da divisa e da bandeira do EstadoAA


cu ção das vontades da pessoa morta, no que diz respeito às79modalidades de
8CUS funerais ou à transmissão de seus bens, principalmente.
conservação de certos elerx\entos do passado, a título de “património” históri- y
co da taação, constitui igualmenteum lance importante a este respeito, de que N
Enfim, a contribuição mais essencial do direito à fixação de uma me
*
-
são atestados principalnjente as jregulamentações relativas aos arquivos nacio
- mória social e à manutenção de uma tradição nacional reside certamente na -
>\
,

*
nais e às instituições classificadas . I
afirmação, mais ou menos solenizada e reiterada, dos vàlores fundamentais da
coletividade. É na Constituição que,' de modo positivo, e no Código penal, de
'
*
: »

» \ um modo negativo, esses valores são afirmados com a maior clareza. Mas eles
PAPéIS, ESTATUTOS, VALORES 8C irradiam, em princípio, no conjunto do sistema jurídico. Afirmando
, em
*
, ,
seu artigo 2 , que “a França é uma república indivisível laica democr
o á tica e

-
4

t \

-
Da identificação das pessoas e das coisas passa se naturalmente - no .
í
,
social. Ela garante a igualdade diante da lei de todos os cidadãos sem distin-
ção de origem, de raçâ ou de religião. Ela respeita todas as crenças”. A Cpnsti-
4

exerdeió da função constitutiva-memorizante que aqui nos interessa - à atri-


buição dos estatutos e dos papéis correspondentes. Desde que qle atribui a
-> tuição da Va República apresenta uma concentração de valores fundamentais /
personalidade moraf a um grupamento, o direito define ao mesmo tempo o que a define como uma instituiçã o durável: com isso, ela .exerce simultanea-
- feixe de direitos e deveres que ele vincula a este papel novamente definido; * mente uma função pedagógica em relação às gerações vindouras e fixa as , .
quando"consagra a qualidade de “nacional” a um indivíduo, é ao mesmo tem-
. orientações pelas quais os textos derivados devem, em princípio, se inspirar.*
Sabemos também, em nossas sociedades laicizadas e pluralistas, quauto as De-
*

po um estatuto que o direito atribui, Como um diretor de teatro, o direito 1

identifica átores e atribui .os papéis correspõhdentes. Fazendo isso, ele contri- clarações dos direitos fundamentais representam, como um dos últimos ref ú-
bui eficazmente para estabilizar as expectativãs sociais e garantir a segurança gios do sagrado u ã base de um consenus rninimum, fora do qual a vida social
* >

seria impossíyel.
V

jur -
ídica: convencionbu se que cada um conhece o lugar que ocupa na socie- *

dade, assim como o papel que nela desempenham os outros atores portanto. Notaremos, quanto a isso, dois tipos .de legislações recentes, cujo obje-
to é proteger valores ligados à integridade do próprio pasSado. Trata-se, de um
*
Antes de exercer seu livre arbítrio, em fun ção do princípio de autonomia da
vontade que ele introduz, sem d úvida um fator importante de mobilidade e lado, de textos que, a exemplo da lei de 13 de julho de 1980 , profligam a cón-
i -
testação da existência dos
* *
crimes contra a humanidade, cqmetidos ^ no decor-
» *

deNmudança na vida social, os indivíduos são integrados pela lei numa .multi- » 1

rer da Segunda Guerra Mundial: estas leis, que incrimiqam o revisionismo,


'

dão de estatutos (estatuto de maioridade, de esposo, de comerciante, de refu- *

giado político, >..) que, ao contrário, atuam como poderosos fatores de estabi- pretendem com isso preservar n próprio valor que se liga à verdade histórica.
De outro lado, trata-se de leis que, como o artigo 213-5 do Código penal, de-
*
*

lização e de previsibilidade das intera ções sociais.


»
claram imprescritível a ação pública relativa aos crimes contra a humanidade
No momçnto em que as pessoas mortas não são mais sujeitos de direi
.
to, o direito positivo atribui, entanto, um estatuto jurídico aos defuntos* ao
- i

e às penas pronunciadas. Contra a tendência natural ao esquecimento e a in-


*
I 1
r V

79 PETIT, F, la mémoire en droit privé. Revue de la recherchejuridiquef Droitprospé c-


e*
•s
i
78 OKEANNE, P. Inirpdu,etion au système juridique. Bruxelles: Bruylant, 1982. p. 273.
tif, pt 20 et seq., 1997-1.* .
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Memória Ligar p passado. \ ' V

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clinação humana para .o perdão, estas leis consideram, em tais casos, que a me
0 estudo da argumentação, jurídica faz-nos, então, penetrar no domí
I * ( #

nio
móriá do crime e o respeito à integridade do passado (e, sem dútfida, de todas
- ?
'
'

< Ittupte de difícil acesso, do invariante. Precisamente um autor


como Robert
suas vítimas), constituem imperativos prioritários.
não hesita em sustentar que apesar das mudanças incessantes de que
*
i
n
Percorrendo, assim, rapidamente, as diferentes contribuições do direi-
h|rto, 0 discurso jurídico secàracterizapelo invariante. O traço mais constan -
t

t |
sentido de ver-
,
to para‘a constituição de uma memória social autorizada, não quisemos com
* tf clr ^ilC discurso é, a seu ver, a pretensão de retidão (no duplo
isso dizer que nada esCapasse à memória jurídica. Uma instituição que colo pro-
- dflilti lormal e de validade normativa), que caracteriza cada uma de, suas
casse tudo na memória seria simultaneamente insuportável e inoperante; e
sistimos mais acima no caráter seletivo de toda anamnésia. Nada de organiza
in- .
l ít il çftes Convenceivnos-emos dissoé uma
^
demonstrando, por absurdo a incon
república soberana, federal e injus-
-
*
- [jrufncla de proposições do tipo: “X
ção da memória que não seja ao mesmo tempo orgànizaçãq do esquecimen
\ llMi OU “X está condenado à prisã
o perpétua injustamente, porque a lei foi in - >

to, dizíamos. Mas o próprio esquecimento seria apenas um nada


-
insensato, se • y tfrpretuda falsamente”. Sem d úvida, esta pretensão à validade continua ainda
81
v
’ não se definisse em relação à base estável dos dados memorizados e regular
- purmnente formal; por si mesma, ela não implica nenhum critério material de^
mente rememorados pela instituição jurídica . t
* |lf Illinidade ou.de verdade. Pelo menos tem por efeito transformar ,
o sentido
unica-
r
(In contingência jurídica: esta deixa de ser irrefletida
, casual entregue

sujeita a uma
IH(? nte aos caprichos dos que decidem; ela surge daqui para frente
; j '

Wljjéncia de justificação', ela deverá declinar as razões nas quais apóia.


»

0 PRESENTE ONITEMPORAL DO DISCURSO se


*

«JURÍDICO, VARIAÇÕES SOBRE


0 INVARIANTE
i

%
»
*

Se o direitp contribui com eficácia para a constituição de uma memó COERêNCIA NARRATIVA: O DIREITO DOMO INTEGRIDADE , *

ria social, não é por razões adventícias e éxteriores, como uma


- /

‘ * .
se adapta
ferramenta que
i
Mais precisamente; qual é, no universo do discurso formado pela tra -
a esta ou àquela utilização que lhe impomos, mas, sobretudo, em
dição jurídica, a justificação privilegiada, a razão mais suscetível de confortar *
v .
virtude da natureza mesma de seu discurso, devido à estrutura inerente a seu
i

! 0 pretensão à validade? Para Neil MacCormick, é o argumento da coer


ência
.
modo.de argumentação Uma estrutura da qual mostraremos que se inscreve
l que preenche esta função. Uma
coerência que; entretanto, apresenta duas fa -
na orcTem da continuidade e da repetição, ou, melhor ainda: que seu
está fora dp tempo, intemporal ou onitempqral, no sentido em que os gram á
tempo * CCI segundo o eixo temporal no quafse inscreve. Trata sè -
, de um lado, da coe -
- *

- riilda normativa que pressupõe uma forma de harmonia (axiológica e não sô


ticos falam de “presente onitemppral” para designar um “fato permanente ou
mente formal) entre todas as normas componentes de um sistema, jurídico em
hàbítual*, que o espírito, a qualquer momento de duração que se coloque, )
um dado momento do tempo (perspectiva sincrônica); trata-se, por outro
pode encarar como presente: “a Terra gira*.80 As tautologias fundadoras do N . IttdO da coerência narrativa, entendida, desta vez, como a harmonia a ser esta-
)

tipo “dura lex, sed lex- encontram seu elemento neste eterno presente da evi-
y t
r
belecida entre todas as normas jurídicas, sucessivamente editadas no decorrer
dência: a lei é (foi, continua sendo ) a lei. *Como se a usura mesma do
passado i
82 *
,
do tempo (perspectiva diacrônica) * Ek-nos então no centro dè nosso tema:
i
ou a fragilidade' do não ainda advindo não devesse afetar em nada a força ló
* ^ - /

gica destas verdades fundadoras/ , r %


.
81 ALEXY, R. Law, Discourse, and Time. In: Timey Law and Sôciêty Edited by J JBjarup .
and M. Blegvard. Stuttgdrt: Steiner, 1995. p. 103. ^
f

GREVISSE, M. Le Bon Uságç. Gramtnairefrançaise. Paris: Duculot, 199.3. p. 182.


,
82 MACCORMICK, N. Time, Narratíves and Law. In: Time Law and Society. Edited
'
*

- - .
by J Bjarup and M. Blegvard. Stuttgart: Steiner, 1995.p 119 et seq
. .
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Capí fuIOf X .
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Memóírà, ligar o passado
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náo somente o discurso jurídico cultiva o invariante, mas este se caracteriza, ~


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ingleses ém relação a outras funções liberais, e isso em virtude de antigos pre


.-
,

no essencial, pela produção de justificativas transtemporais, inscrevendo a in • á


cedentes. Aqui, a integridade impôs uma remodulaçao da tradição, naquele
, *

%
*
terpretação presente na continuidade de um discurso jurídico ininterrupto
No pensamento jurídico contemporâneo é, certamente, Ronald Dwor-
;
V . _
ponto onde a simples coerência teria, pelo contrário, exigido a recondução dos
« »
precedentés.85 Para ilustrar essa dialética transtemporal, Dworkin desenvolve a
kih quem desenvolveu b tema com mais eficácia: sua concepção do “direito
como integridade” não é mais que, de fato, um discurso de defesa para a fide-
mais célebre metáfora do “romance escrito em cadeia”*. Interpretar um texto
4 lidade de uma comunidade política aos princípios da morálidade política, que jurídico, explica ele, é uma atividade que se deixa.comparar a essa forma’de^ es- r

crita muito particular, que consiste em compor umaintriga a várias mãos, cada
9

*
«
inspiram, através do tempo, o desenvolvimento d suas normas jurídicas Este
^ . autor passando a cópia ao seguinte, depois de ter redigido um episódio.' Cada *

pensamento que valoriza a continuidade-temporal e a coerência diacrônicadaá


t

^
justificações jurídicas, opõe-se, como sabemos, tanto ao convencionalismo , um terá por tarefa trazer sua pedra para o edifício e prosseguir a intriga como -
.
quanto ao pragmatismo Aos defensores do primeiro (que.poderíamos qualifi- se ela procedesse de um autor ú nico. Para isso, cada co-autor irá aplicar-se era
car de “positivistas”), Dworkin censura o desinteresse pelo passado e o conten- destacar um ponto de vista crivei na progressão da história, a fim de dar-lhe '
uma sequência verossimilhante. Privilegiará aquela que otimizar o sentido e a
%
4
, tamento em basear suas decisões em convençõ es presentes, num consenso atiial
qualidade geral do relato. Uma tal atividade não é nem totalmerite livre, como
/
- arriscando-se a remeterem-sé, assim, às variações atuais da opinião pública .
poderia ser a escrita de um romance novo, nem totalmente coercitivo, como se-
' E se, algumas vezes uma compatibilidade de fachada é procurada em relação às

normas anteriores, corri o objetivo .de evitar as transições demasiado brutais, ria a tradução de um autor estrangeiro; ela se mostra simultaneamente livre e
em nenhum caso é produzida uma “compatibilidade de princípio” que faria coagida, como a obra do próprio juiz. Um juiz que sabe, ele também, que vol -
emergir os princípios suscetíveis de dar conta da evolução do conjunto das de- ta a retomar alonga tradição da jurisprudêncià, aplicando-se, aqui também, a
.
cisões jurídicas pa&adas e presentes da comunidade 83 Aos defensores da cor- * \ extrair disso a melhor história - a melhor versão do ponto de vista da moral ,
*
rente pragmática, Dworkin censura, desta veZ, a preocupação exclusiva com a ,
política da coletividade.86
eficácia da decisão, compreendida como capacidade de agir com sucesso no fa - *
\
4
1

turo da situação tratada. Neste caso, é simultaneamente, influência do paásado «


<4

e o “fetiche” da coerência que são rejeitados.84 Em oposição a estas duas corren- LEI E TRADIçãO "
t t

tes, o conceito do “direito como integridadeí-persegue um objetivo que surge \

como mais exigente qúe a simples coerência diacrônica: se, de fato, a “integri- Talvez, podemos pensar que essas considerações relativas à continuida-
dade” não exige necessariamente reproduzir mecanicamente as decisões do de diacrônica da argumentação jurídica só valem em definitivo para a Com-
passado, ela requer do juiz, em contrapartida, conformar-se com os princípios f
mon Law anglo-americana, da qual ninguém contesta a natureza consuetudí-
.
suscetíveis de dar razão à tradição em seu conjunto Trata-se, de fato, de procu- •
*

- nária e tradicional. Mas aconteceria diferentemente com a tradição oriental,


rar, em cada caso, a interpretação que apresente o passado sob sua melhor luz; que se articula em torno da figura da lei, compreendida desta vez cómo umv -
assim, por exemplo, a Câmara dos Lordes não hesitou em restringir os casos de ' V
A
N. V *

isen ção dç responsabilidade profissional de que se beneficiavam os advogados *


i
i . "
*
85 Caso Saif Ali vs. Sidney Mitchell & Co., 1980, AC 198, Ibid., p. 241.
* *
* * Exemplo célebre de “romance em cadeia” encontramos na literatura portuguesa
83 DWORKIN, R. Vempire dn droitfTradvát par *g. Soubrenic. Paris: PUF, 1994. p. 145- . com o clássico "O mistério da Estrada de Sintra*escrito por Eçade Queirós e Ra- *
"

'
150. i
malho’ Ortigão, em capítulos, em 1870 e publicado pelo jornal Diário de Notícias,
84 Ihid., p. 164-180.„ * \ de Lisboa. (N.R.T.) 4

*
V *9 86 lbid. , p. 251-261.
* %
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93
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Capfttrio 1 / V

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Memória, ligar o passado.
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instrumento voluntarist de mudança social, decididamente voltada parji o ,
escrever com total liberdade, um laço poderoso o religa ao passado das tradi- ‘
^
futuro; e, poderia se acrescentar, no próprio seio da tradição anglo-saxã, á ar- ções recebidas. i
A

gumentação continuísta perderia sua influência, sendo que os estatutos (leis Segundo contexto: ó sistema jurídico preexistente à lei nova. Sem negar
escritas e votadas pelo Parlamento) não cessam de ampliar seu império em de- F i\ possibilidade de modificar marginalmente o sistema, é preciso, entretanto,
trimento das soluções tradicionais da Çommon Law Resumindo,.em todos os . ( omar a exata medida das coerções ge/adas. por um espaço literalmente satu-
lugares ganharia o modo positivista e instrumental de produção do direito, e rado de noções, de princípios e de processos prévios, k luz dos quais qualquer
*
• \
sua concepção prospectiva do tempo social, de modo que o estilo genealógico
'

elemento novo será lido e entendido, ao passo que, diferentemente das outras
v
-
• .ou trânstemporal de interpretação não teria, dentro em póuco, mais que,um
> Iradições, a tradição jurídica é institucionalizada e explicitamente normativa.
valor de recordação. /
Terceiro contexto, as comunidades interpretativas especializadas que são
* <
OS destinatários privilegiados da lei e cuja leitura orienta seu curso de maneira
*
Esta tese, muito difundida, certamente merece ser combatida'de frente.
*
Dedicamo-iíos a isso, seguindo Martin Krygier, levando o argumento no pró- decisiva: administrações, jurisdições, doutrina., Bem organizadas, hierarquica-
prio coração da tese adversa: é possível, de fato, mostrar o quanto alei ela mes-
'
4
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-
mente estruturadas, beneficiqm se de uma formação e de umacultura comuns;'
' ma, arquétipo de instrumento da mudança jurídica, continua profundamen-
<
* estas comunidades garantem uma forma de domínio sobre a tradição, elas de-
> N
finem seus cânones, excluindo os dissidentes, integrando nela os novos preten-
te imersa nas tradições de que não consegue, senão de modo muito parcial, li- é

dentes. Considerar a influência nobre destas autoridades interpretativass é, ao


4

vrar-se - felizmente, de resto, pois sem este enraizamento em diversos contex-


mesmo tempo,•relátivizar a distinção ainda clássica entre as operações de edi-
tos interpretativos não se sabe, com certeza, se tais leis poderiam provocar o ã
ção (obra do legislador) e de aplicação „(abra dos intérpretes) da lei; é igual-
mínimo efeito concreto. *
mente relativizar o falso corte entre momento de ruptura (o instante da pro * -
Então, esta é a tese:ião revolucionária e inovadora que seja, qualquer dução legislativa) e momento de repetição (estágio posterior de aplicação da
lei pressupõe um conjunto de contextos interpretativos que lhe preexistem, lei). Em caso de distinção ou de ruptura, observa-se. antes, um continuam:a lei
envolvem-na e lhe sobrevivem sem que estas leis estejam aptas a afetá-las, de i
é parcialmente escrita visando sua aplicação ( ou Seja, considerando simulta- *

modo radical.87 Primeiro contexto: a própria linguagem, linguagem jurídica e *


língua.usual. Mesmo que ela possa tránsformar o sentido de uma ou outra ex-
pressão que utiliza, nenhum- legislador pode tornar-se totalmente senhor, nem
'
^ 1
neamente rotinas administrativas e princípios previamente depreendidos pelos
juízes e pela doutriha), ao passo que, ao contrário, a aplicação dos textos pelos
intérpretes “subordinados” nunca é isenta de inventividade•, suscetível de inspi- -
v

^
da sintaxe, nem do léxico da língua. É conveniente perceber-se que, para além
i

rar o legislador quando de uma futura reescrita do texto


«

. *•

das convenções'linguísticas explícitas, opera algo como um “discurso invisí- . Este ponto merece ser sublinhado.£ preciso notar que atualmente o le-
vel”: uma cultura jurídica de plano de fundo, que determina como manipular
1
gislador perdeu uma parte de sua soberania desde o instante em quê sé reco -
' as convenções do djscurso jurídico.88 Compartilhado pelos profissionais do di- nheceu o poder a numerosas jurisdições constitucionais (e, às vezes, suprana-
-
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}
cionais) para invalidar a lei eín relação às normas superiores tf eqúentemen * *
reito, este “discurso invisível” determina um amplo acordo implícitoxsobre as
“expectativas de sentido”, que criarão á boa escrita e a boa leitura do texto. ’ j í -
te princípios não escritos dos,qUais esías jurisdiçÕe$ são as guardiãs Por ou-
> . ^
tro lado, não podeitios subestimar a capacidade dos intérpretes de direito e,
Mas esta conivência na comunicação tem um preço certo: ò autor não pode ~ t
principalmente, das administrações para"frear as paixões transformadoras do
* t voluntarismo político. “A.mudança jurídicà”, escreve Jacques Cheyallier, “ir á
87 Cf. KRYGIER, M. The Traditionality os Statutes. Ratio Iuris, v. 1, p. 27 etseq., 1988. -
dobrar se, desde que for transcrito em termos jurídicos, à lógica que présjde a
*
88 Ibiri. . T
construção do direito; os profissionais de direito' vão mobilizar os recursos ju-
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Capítulo 1 /
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Memória Ligar o passado.
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rídicos que disp õem , para evitar os transtornos mais brutais - e assegurar a |1.
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po próprio à argumentação jurídica:, trata-se, em cada caso, de sugerir a ver-
1

dade permanente dos princípios evocados, colocando-os ao. abrigo das mu- '
i

>1
continuidade das significações jurídicas As categorias existentes servirão „
como filtro , atrayé do
s qual a mudan ç a será peneirada, as reformas decanta « - danças de contexto histórico. Objeto de uma ruminação argumentativa per-
das, as inovações efdulcoradas; trata-se de reduzir as distâncias, de tapar as bre- manente, o texto jurídico é incessantemente revisado, apropriado, reapropria-
X

chas que seriam de natureza a comprometer a coesão do direito” 89


* t
*
do; desviado, redescobèrto, reduzido, expandido, transposto por gerações de
Caraçterística, igualmente, da assombrosa continuidade do tecido jurí- autores. Sempre diferente, e contudo, sempre parelho, poderíamos compará- *
,
dico mesmo através de uma mudança de regime político, é o fato mil Tezes , c
' lo á um “palimpsesto”.
constatado de que uma revolução política não acarreta, geralmente, senão a > $ Um “palimpsesto”, explica Gérard Genette, “é um pergaminho do qual
mudança de um número bastante reduzido de disposições jurídicas Na maio
ria das vezes, disposições transitórias (prometidas a um longo futuro), conser-
. - rnspou-se a primeira inscrição para* escrever uma outra, que não a oculta to-
lalmente, de sorte que podemos ler nele, por transparência, o antigo sob o
*
-
vam em vigor o essencial da ordem jurídica precedente. novo”.92 O palimpsesto torna-se, então, um modelo da “literatura em segundo
p
* r\

Das considerações precedentes não seria preciso concluir que o discur- . J grau”: aquela que re úne as “obras derivadas de outras anteriores por transfor- ~
1
so jurídico, no qual está imersa a nova lei, seja necessariamente um discurso H ma ção ou imitação” 93 Ora iserá o casa da presença de um texto “em” Um ou- '
conservador no sentido de se contentar ém repetir, incansavelmente, a mesma tro, através de citação; de referência ou de compilação (citações doutrinais, re-

^^
4

antífona. O que sustentamos é que, nutrida de tradiçã o, a interpretação jurí- ferências aos precedentes...); em outros casos, um texto remeterá a seu para-
dica lança uma ponte sntre a atualidade do litígio è a anterioridade da tradi- * texto (rascunhos, esboços, preâmbulos... de direito, pensaremos nos trabalhos
çã o. É preciso rememorar aqui as páginas que Gadamer consagra à fecundida- & preparatórios da legislação que, por sua vez, remetem a uma quantidade de
de das pré-interpretações, que reatam os juristas a tradição è são como uma * autoridades); ora tratar-se-á de uma remissão de um texto a um outro (meta-
adesão ( 'Vorverstãndnis ist Einverstandnis) aos princípios fundadores da tota- texto que propõe seu estudo crítico) (em direito, a doutrina é um gigantesçò '

f
lidade da ordem jurídica (coérência, estabilidade, racionalidade).90
IV

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*

^
1
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metatexto enxertado na jurisprudência e na legislaçã o ),cenfim, e em quase to ~
dos os casos, o texto jurídico derivará de um texto precedente, pela via de
transformação, de imitação ou de individualização.94
-
PALIMPSESTOS *
ll No domínio jurídico, a hipertextualidade é um modo normal de gera-
ção dos textos, quer se tratasse da concretização progressiva da norma (desde
Tudo isso, evidentemente, conduz a argumenta ção jurídica a uma eli-
y
~ a regra constitucional até o ato administrativo de alcance individual), do em-
são muito característica da temporalidade corrente: mesmo formada por ma- préstimo de uma disposição estrangeira, da transposição em direito interno, ,
* .
gistrados mortos há muito
t
tempo, “o Tribunal é sempre o Tribunal”, nota
»
" /A dc diretivas européias, óu ainda da formação dajurisprudência por um pro-
>
ICrygien “E o que disse o juiz Marshal em 18D3 é considerado como tão im- cesso de aplicação-transformação dos recursos do sistema jurídico. De fató,
» t
> «1

pertinente e importante quanto as proposições sustentadas por seus colegas tudo se passa como se a geração espontânea não existisse em direito; nada de
*

* .
contempor âneos” 91 O “presente Anitemporal” é, assim, perfeitamente, o tem - pá gina em branco, somente o palimpsesto; nada de ab-rogação radical, so-
t
*
*
*
i
\

92 GENETTE, GrPalimpsestes. La litté rature au second degré . Paris: Senil, 1982.4a capa.
1
89 CHEVALLIER, J. Les interprètes du droit» In: La doctrine juridique . Paris: PUF,
. .
#

199,3. p. 277 .
s

* 93 Ibid
90 GADAMER, H. G . Vé rí té et mé thode , Traduit par E Sacré Paris: Seuil, 1976.
*
. . 94 Sobre estas diferentes figuras, cf. 'GENETTE, G. Palimpsestes. La litté rature au sé - *

. .
91 KRYGIER, M The Traditionality ós Statuíes Ratio Luris, v 1, p.34, 1988 • . . cond degré . Paris: Seuil, 1982. p* 7*-19í #

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Capítub 1 * i
Memória, Ligar o passado.
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mente o apagamento progressivo; nada de transformação brutal, somente p ^ mente o desvio dogmático ao qual ela frequentemènte sucumbe.97 Do mesmo
i
enxerto, ahibridação, a sedimentação . i
modo, será preciso, nos capítulos seguintes, escrever e justificar as contribui -'

V Este efeito compilatório é, em alto grau, a obra do comentador; pode- * ções dos tempos do perdão, da promessa e do questionamento para a consti- .
ríamos sustentar que a arte jurídica é, inicíalmente,.e antes de tudo, a arte do tuição de um pensamento jurídico inspirado, mas não alienado por seu pró -
.
* comentá rio oil da glosa O comentarista é inicialfneiite um compilador; ele prio passado .
reú ne uma massa enorme de textos, de origem e idade muito diferentes, que ’ »#
* â

lhe servirão de mãterial bruto para as montagens dogmáticas às quais se dedi-


ca; "textos mortos”, diz. Legendre, "que chamam para a vida do sistema, pelas * TRADIÇÕES, COSTUMES E PRECEDENTES:
operações do compilador, recortando e reaproximando seus fragmentos” 95 ‘ J MÁQUINAS DE REMONTAR 0 TEMPO
RETIRADO do tempo da subjetividade e dos interesses políticos, o texto pode, \
*
então, preter íder expressar uma verdade ' puràmente lógica. Fruto de uma ? A
Prosseguindo nossa exploração dos domínios da ordem jurídica, mar- *

transmissão ininterrupta,' em cujo decorrer o próprio comentário torna-se > \


Crtdos pelo trabalho do tempo da memória, nã p podíamos deixar de cruzar o
. texto, a mensagem é consagrada à perenidade. Pouco impórtá, a este respeito, < campo de três fontes jurídicas mais diretamente ligadas com o passado: a tra-
as diversidades de interpretação e, às vezes, as contradições acarretadas pela A .
dição, o costume e os precedentes judiciários Nestes três casos, a solução jurí-
1
glosa; todas são autenticadas por siia referência ao texto do qual se pode dizer
que extrai sua força de renovação infinita do comentário pouco importa, ain- 1
^
da, que esta ciência histórica do texto seja pouco consciente de'sua própria $ '
^ dica não é mais fabricada que herdada, ela brota do passado e não do pf esen-
le, seu título de legitimidade procede de sua antiguidade e da constância de sua
transmissão mais que de stia racionalidade intrínseca ou sua utilidade social. E,
história e dos fragmentos que ela compila, do mesmo modo que os escolásti- yj
X
COiltudo, precisaremos falar disso como de "máquinas de remontar o tempo”,
cos da Idade Média ignoravam o essencial do passado real da Igreja e do Im
pérío; o importante é que passado e presente sejam integrados no eterno pre-x
- '
não nd sentido banal de uma projeção no passado, mas antes, como dispositi-
sente da verdade dogmá tica.96 \
\
vos servindo para reconstruir ("remontar7’) um passado a partir /io presente e
**

clc suas questões. Dito de outro modo, estará novamente em causa a memória
/

Conhecemos, quanto a isso, o papel iminente 'que desempenhou é de- \ I


sempenha ainda parciâlmente, no direito ocidental, a referência ao direito ro- |f criadora e seletiva, assim como a tradição e o passado "recompostos”.
mano. Encenação legendária da lei, à referência romana convencionóu-se au-
^ *
A tradição, entendida como a refer ência feita às autoridades anteriores
tio Código civil de 1804, nunca perdeu verdadeiramente suas credenciais de
- tentificar as soluções presentes, .ao preço de um cú rto-circuito histórico que
4

faz reatar passado longínquo e atualidade, e a .comungar o tempo fabuloso das nobreza; a Corte de Cassação da Bélgica, por exemplo, não hesita em xeconhe-
,
I
fundações e o tempo intemporal dà doutrina
^ '
.* •\
Não ignoramos sem d úvida, que a aceleração do direito contemporà- ^ 1^
, ^
4* a
^ [
- .
cer lhe o caráter de uma fonte de direito na totalidade Em um decreto de 25
clc abril de 1985, ela rescindiu uma decisão da Corte de Apelação de Bruxelas
V
, neo, a diversificação de sú as fontes e a heterogeneidade crescente dos valores 1
1
por ter ignorado a "regra de direito tradicional” da solidariedade em matéria * •

que o inspiram tornam atualmente a aplicação deste método,genealdgico. de { .


comercial 98 Em uma decisUo anterior, a mesma jurisdição reconheçe ao juiz,
, " p énsaQiento mais trabalhoso que anteriormente . Nã o nos ^ ocultamos igual- < apesar dos termos expressos do artigo 1999 do Código civil e do princípio da
r

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V

j 95 LEGENDRE, P. VAmour du censeur Essai sur Vordre dogmatíque. Paris; Senil, 1974,
; 97 Sobre isto, cf. LENOBLE, J.; OST, F. Droit, tnythe et raisoti . La derive mythologique , í
p. 81. ' “
» • f
de la rationalité juridique . Bruxelles: Publications des FUSL, 1980. ' J

96 LEGENDRE, P. Jouir du pouvoir. Paris; Fayard, 1976;p, 162- 164. 98 Resc » , 25 de abril de 1985, Rev. Dr. Com. Belgé, 1985, p. 628.

98 99
I
> Capítulo 1
*
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, . . Ligãr o passado.
, Memória
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*

! convenção-lei, o poder de reduzir os honorários do mandatário se constatas- $r)> llcrs, que é, ao contrário, quando ele “inova òu é chamado a resolver rapida-
se que estava “fora de proporção .com os serviços prestados”. Motivo: “os au- mente Uma questão delicada”, que o juiz é tentado a se religar às autoridades
tores do Código civil não pretenderam, pelas disposições relativas ao manda- >1 Mitigas?102 No caso, a própria transformação de que a régr tradicional é obje- v
/
to,/derrogar a regra tradicional

do antigo direito, segundo a qual os juízes po- ;*
' {v
10, surge, ao contrário, como uma maneira elegante de adaptar-se às necessi- ^
diam controlar ós honorários dos mandatários” 99
^ v. -- /

tlrtdcs do momento, assumindo absolutamente Uma certa fidelidade a uma , *

*
Ainda é preciso recpnhecer que o conteúdo da tradição é, pelo menos; '
*

Ycompósito e incerto: a soma das autoridades anteriores à lei compreende frag-


-
T
ll )8piração do passado.. Dizemos ^inspiração” enão “lição” do passado: o im-
por tante não é, de fato, o conteúdo exato da regra antiga, sempre incerta e ire- C
mentos de direito romano, m áximas de direito, costumes antigos, jurispru , A - qdcntemente desnaturada, como o vimos; o que importa, sobretudo, é a exi-
dência dos Parlamentos, práticas imemoriais e, enfim e sobretudo, autorida f - ' gê ncia de justiça que se deixa perceber, mais ou menos claramente, na solução
í>
.
des doutrinais anteriores ao Código civil 100 Em suma, uma bagagem' heteró- \i nnliga, e cuja necessidade se ressente hoje com a mesma força de ontem.103 i

clita de regras de direito transmitidas de geração em geração, ^nas faculdades, Jl


nos pretórios, nos cartórios e nos estudos notariais” 101 Que tais regras tradi- J I * f

cionaís sejam amplamente reconstruídas (como se “restaura”, com mais ou RKGRA CONSUETUDINáRIA E PROCESSO CONSUETUDINáRIO
menos fidelidade e felicidade, um edif ício antigo) não deixa; entretanto, ne } -
nhuma dúvida: os juristas que as invocam não» são verdadeiramente providos ‘ \ Se a tradição continua sendo, apesar de suas reafirmações periódicas,
I
de ferramentas para proceder a pesquisas rigorosas sobre sua génese e conteú- lima fonte de direito marginal, deyemos dizer a mesma coisa do cobtume? Cos „ -
do exatos; ao hipostasiar “uma” solução nacional que derivaria do passado, *
IlIlUC que se pode definir como “regra de direito, em geral não escrita, que em -
eles ocultanras inúmeras controvérsias que, muito certamerite, afetaram a for .r - preita a uma prática constante e repetida um caráter jurídico coercitivo, reco -
mulação desta regrá e, enfim, eles aplainam séculos de história e de evolução, nhecido pelos próprios interessados”.104 A bem da verdade, a relação do pensa -
alinhando todos os juristas do passado na via de uma tradição única edninter- '
mento jurídico com o costume é, pelo menos, ambígua; ora seu espaço é redu-
rupta. O propósito, como sabemos, é muito mais genealógico que cronológi- ; lldo a ponto que ele pareça inincontrável, ora; ao contrário, cremos^vê-lo em,
í

todo lugar como se definitivamente fosse a fonte de todas as outras regras. É


'
co; p efeito procurado é garantir a certeza do'argumento, através de um argu- ,
mento de autoridade fundado num passado imemorial, mais que estabelecer que 0 reconhecimento da natureza e do pápel do costume, representa um de-
f
a verdade histórica da génese de uma regra. t ^]
VT
Icfio essencial que opõe as principais orientações da teoria do direito: positi-
Frequentemer íte desnaturada^, às vezes errónea, sempre interpretada, Vlamo ou realismo, monismo ou pluralismo, instahtaneísmd ou continuísmo.
esta tradição nufre-se de si mesma e encontra, na continuidade de sua ante- f Em nossas ordens jurídicas de tradição positivista, o costume aparece -
4
ríoridade, uma fonte inesgotável de autoridade Não deduzamos com muita . ^j ^, ‘ Hmprc em suspenso: sobrevivência anacrónica do passado, seu declínio não
pressa, entretanto, que este uso retórico da tradição persiga necessariamente I
\
visões conserVadoras, até mesmo reacioná rias; não podemos pensar, com Fo~ v

- 4
,
. 1

i -
.
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102 FORIERS, R A. Variations.sur le thème de la tradition. In: Justice et argumentation:
Essais à la mémoire de Chaim Perelman.^ Bruxelles: Editions de TUniversité de
Bruxelles, 1986. p. 55.
>
v
.
99 Resc , 6 de março de 1980 Pas., 1980, 1, 832 . * 4
V

^
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103 PERÇLMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA L. Traité de Vargumntation ou La noa-


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100 FORIERS, P. A. Variations sur le thème de lá tradition. Tn: Justice et argumentation:


Essais à la mémoiçe de Chaím Pejelman. Bruxelles: EditioriS de PUniversité de

[
i
j

vetlc rhé torique. 3* ed. Paris: PUF, 1976. p. 478. ^



S

' Bruxelles, 19&6 p. 49. . r. v I/


!’

- p .
104 Vo Coutume In: Ettcyclopédie de théorie et de sociologie du àroit Sous la direction
..
£ I
x
101 Ibid. p. 50.
, v ' X
• i

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f .
dc A J Arnaud et autres, 2 ed. Paris: LGE>J, 1993. p. 118 . \
4
I

100
1
101
4*

Capítulo 1 ra. Ligar o passado.


Memóí
* * i
K
r. N
*
t

deixaria nenhuma dúvida, enquanto se èncáminha rumo a uma retirada pací- cola do direito histó rico; mais recentemente, no final do século 19, é preciso
fica, seu estudo parece destinádo a uma letargia muito próxima. E absoluta- : evocar o “movimento do direito livre” e os nomes de Eugen Ehrlich e de~ Fran i
-
mente justq, a título de curiosidade, que lhe concedamos ainda algumas rea- çois Gény que convidavam, ambos, a que •se observasse, sob a esfera das regras
parições esporádicas no domínio do direito social ou das relações económicas
,
f sancionadas pelo Estado, o formigamento dos fatos costumeiros. Atualmente,
i >

-
' internacionais { lex mercatoriã)y por exemplo, Mas, definitivamente, tais ma-
105 renovado o favpr atribuído à sociedade civil, assim como o súcesso da tese do
'-- nifestações do costume seriam apenas o índice do estado de subdesenvolvi-
mento do domínio jiíí rdico considerado, que deveria rapidamente juridicizar-

T
• pluralismo-jurídico, conduzem a superestimar uma concepção mais difusa e
mais espontâ nea da criação da otdeiji jurídica, da qual o pensamento neoíibe-
se, a exemplo dos setores vizinhos. ral de Fr. Ha ek é um dos exemplos mais conhecidos.
^ _
)
\ V
A bem da verdade, esta concepção não é nova, desde que se decidiu, a j Seria preciso, pois, optar entre estas *duas teses? Será preciso deixar-se
partir do século 15, colocar os costumes por escrito,vos juristas não deixqram í
fechar numa dicotomia tão redutora? Ou seja, não haveria senão o direito ofi-
A
de nutrir ^esta atitude de domesticação em relação a uma fonte de direito su- j cial, estático, concentrado em suas manifestaçõ es pontuais, ou seja, ao contrá- ^

,
balterna que n ã o poderia levar uma vida própria. As codificações napoleôni: rio, não encontraria o direito vivo, existência senão nas opiniões difusas e nas *

T * cas e as teses da Escola da exegese deviam conduzir, pensava-sé no século Í9, -- ^^ práticas coletivas dos sujeitos de direito Entretanto, é possível, nos parece, 'es-
^
v
,
c
à erradicação próxima do costume: recalcado num passado acabado, e tolera
do pelo futuro somente sob a formalresidual de usos locais e profissionais, ele
V^ ^ *

não deveria, logo mais, fazer concorrência ao reinado soberano £ racional da


* *
* ^ V
capar a esta alternativa enganosa e à concepção redutora do tempo que lhe é
subjacente, distinguindo, com Serge Sur, entre “regra consuetudinária” e “pro-
cesso consuetudinário.”106 Em nossas ordens jurídicas desenvolvidas, formadas
_
l ,

lei, De resto, nos casos em que oé juristas não nutriam desconfiança particu >
lar énl relação ao costume, o interesse mesmo queveles lhe atribuíam, tinha j
- *
pela articulação das normas primárias e secundárias, a “regra consuetudiná-
ria” poderia ser, o mais das vezes, deixada para o direito oficial, que consagra
t

logo, por resultado, eliminar sua especificidade:' reconhecido oficialmente por . sua existência sob as formas mais diversas: tratado, lei, decisão judiciária, cláu-
um juiz, pelo legislador, pelos negociantes de um .tratado internacional ou de ’
}
^ .
sula contratual.. Em contrapartida, o “processo consuetudinário”, sendo usa-

^ do em todo lugar, não se deixa absorver por nenhuma norma positiva. Deste
r
uma convenção coletiva de trabalho, um costume deixa de ser um costume?
X-, Chamado à vida jur ídica do direito oficial por uma autoridade corísagrada, o i processo consuetudinário, poderíamos dizer que é como a matriz das outras ^
costume nã o é, desde então, posto sob tutela? Assim se eliminaria o enigma Í! normas; canteiro de obras permanente, ele ê,apreendido como um direito X t

suscitado pelo costume que t m como efeito transformar o fato errl direito e - 1 imanente, condição do direito aparente ou transcendente. Se as normas ofi-
^
a prática reiterada tm título jurídico (dé onde deriva, de fato, este“ fiatius”? A <
LI
\
ciais identificam-se por sua “fonte” que marca o tempo e o lugâf de*seu apa-
. doutrina'positivista, monista, instantaneísta /é incapaz de dar a resposta), dà ' pj » recimento pontual, o processo consuetudinário opera antes como um “fluxo”: *
mesma maneira que se eliminaria o escândalo causado pelo costume contra le- .
corrente ininterrupta e subterrânea pontuada aqui e ali por fontes aparentes
gem que, diretamente, ou mais discretamente sob a forma do desuso, preten-
deria se opor à força obrigatória das leis ' .
,
**
-

Assim encarado como processo consuetudinário permanente, o costu -
' .
,

Diante desta corrente positivista dominante, sabé-se, contudo, que não ;


í me não se deixa reduzir por nenhum reconhecimento positivo: mesmo a co -
i dificação de que se torna objeto, como em direito internacional, atualmente,
faltaram vozes para reabilitar o costume a ponto de fazer dele, desta Vez, o foco
central de qualquer juridicidade. Relembraremos, quanto a isso, as teses da Es-
* +
^ ,
-
não é de natureza a absorvê lo. Continuando a seguir seu próprio curso, pa
ralelamente à sua redação escrita, o processo consuetudiná rio terá sido enri-
-
' *

-
<

* ,
. . .
105 Cf. Principalmèrite OPPETIT, B Sur la coutume em droit? prive Droits. ReVuefran
çaise de theorie juridique n. 3, “La coutume” Paris, p. 42, 49, 1986 .
- i :
106 SUR, S. La coutume internationale, sa vie, son oeuvre. Tbid., p. 114 et seq. x
/

.
*

i
102 103
»L
* Memória. Ligar o poisado.
Capitulo 1
s
/

e sempre nova^ já que nada interrompe sua capacidade permanente de auto


quecido e r.elançado por uma tal consolidação ou declara ção, sem nunca ser
interrompido por causa disso.‘JVÍelhor dizendo: de uma certa forma, é a rela-
transformação- ( nesse sentido, o processo consuetudinário é sempre mais jo -
vem que as fontes jurídicas oficiais). Vemos quanto o debate relativo aos dois
ção de força que se inverte na medida em que o processo consuetudinàrio não
componentes do costume (o uso repetido e a opinio iuris ) - sai disso .transfor-
pára de trabalhar desde o interrior, de subverter, de qualquer forma, a$ fontes
mado. Devido à repetição do uso relacionamo-nos antes com uma práticà mo-
-
oficiais que ele parasita incesssantemente, ultrapassando as ou se desviando
-
vediça; quanto à opinio iuris o sentimento* partilhado pelos agentes desta prá-
V -
delas, visando adaptá lás às in odificações das práticas (efetividade) e dos jul- ®
-
tica, de que esta reveste Um caráter obrigatório , ela nos oferece um novo
gamentos de valor (légitimidadle) dos atores jurídicos.Assim, não é raro que <

^
*

um tratado seja implicitamente modificado pela prá tica posterior das Altas •
í exemplo da problemática da “antecedência” ,( “existe direito antes do direito”)!
Partes Contratantes: do ponto de vista mesmo do Tribunal Internacional de j não seria ela, de fato, a antecipação, pelos sujeitos de direito, da própria juridi-
Justiça, o processo de votação no seio do Conselho de Segurança da ÒNU, tor- .j cidade da regra, antes que esta seja consagrada por uma autoridade oficial?
#
4 *

-
• nou sè objeto de uma tal modificação consuetudinária, de modo que a Carta

se viu emendada.107
-A Longe de ser prometido a uma pacífica retração, o costume, processo
cm trabalho constante, parece, assim, antes beneficiar-se de uma juventude
, . j
eterna: ele ocupa um “presente indefinido”.105 Seu domínio não é tanto aquele
k

,
Entendido como procesiso, mais que como norma o costume ocupa -j
, um lugar importante no sistem a jurídico -;e, com-de, o tempo continuísta do
T, de um passado retrospectivo, atestado por uma acumulação de precedentes,
.
longo prazo Esta concepção dinâ mica dò processo consuetudiíiário permite, k mas aquele de uma prática viva de atualização da tradição. De modo que po-
por outro lado, fazer a economia destas discussões, sempre um pouco in úteis, deríamos concluir dizendo que o tempo do cotume é, para o tempo da lei, o \
< * >

sobfe o maior ou menor lugar cdo costume nas ordens jurídicas modernas, as -
< ii
que o tempo da história da “longa duração” (Braudel) é para aquele da histó-
sim como cálculos, também itruito discutíveis, do n ú méío de precedentes ne-
cessários, òu da duraçãó exigLda, pára. constituir um costume Do mesmo
, . ,V|
^ ria dos fatos. Na sequência de Fernand Braudel, sabemoS o quanto a Escola
dos Anais contribuiu' para a focalização desta “longa duração”, em obra sob o
modo, eá ta distinção processos/regra poupa a teoria do direito às querelas bi - M
tumulto dos acontecimentos da história política clássica. Enquanto a história
, * zantinas sobre a questão de sáí> er se o costume tira sua força obrigatória de si d ássica.opera com as categorias de indivíduos (atores da história) e de acon-
mesmo ou da regra formal que o consagra. Sabemos atualmente que o costu- , tecimentos (saltos temporais, peripécias pontuais), a história da longa dura -
me não é, senão, Q fluxo periíiamerite dê transformação do direito; quándo ele \í ção trabalha com a ajuda de Categorias coletivas ( mentalidade, inconsciente
é encarado em seu próprio, aparecimento - quando o fluxo surge na superfi- i coletivo...), e com noçoes de longo alcance temporal, tais como os ciclos, as
cie'da vida jurídica *- poderíamos qualificá lo como “costume”. Mas, muito ra-
- tendências e as estruturas.109 Assim fazendo, fraz^ à luz as “correntes de história
i i

*

1 •

-
pidamente, ele dará um jeito de incorporar se nesta ou naquela norma, que o % [ lenta” moveridó-se na “semi-imobilidade de um tempo retardado” - que não
designará daí para frente (tratando, lei, decisão jurisprudencial), Mas o fato de j | 4, entretanto, a “quase intemporalidade dos mitos ou dos dados elementares
•ser assim oficializado e consagr ado não esgota, daí em diante, o fluxo do pro - 1 | do comportamento humano”,110 Entre o instantaneísmo da história dos trata-
cesso consuetudinàrio que pronto terá recomeçado seu. curso subterrâneo,
'
í 1. dos c das batalhas, e a intemporalidade do mito, se desenvolve, então, este
4
para reaparecer logo mais adiante sob uma forjmadiferente. j
A temporalidade que çaxacteriza este fluxo é simultaneamente muito ] .
108 Ibid., p. 124 \
%
%
.
antiga (sempre mais antiga que a fonte “positiva” que o consagra e o sanciona),
J . .
109 RICOEUR, P Temps et récit Paris: PUF, 1983.1.1, p, 146-148.
s
.
/

. 110 VOVELLE , M. Uhistoire et la longue durée. In: La Nouyelle Histoire Sous la direc-
*

107 Ibid , p. 118. . .


tlon de J Le Goff, R. Chartier. Paris: Retz, 1978.p. 317-318. .
t N-
L
/

104 105 .
*

Capitulo 1 i
%
Mefnória.Ligar o passãdo . i
)
* > *

4
i
f
'J
«*
l
tempo da história social,111 tanto quanto o tempo do costume nã o se deixa re- ns decisões dos tribunais de justiça são a prova do que é a Comnian Law” -
'
duzir, nem à avaliação factual das fontes formais, nem à eterna repetição do princípio exato, como se deve, pela’ inevitável referência ao direito romano '
dogma fundador, . fundador: “do mesmo" modo que,- no direito romano, o que havia sido decidi-
do uma vez pelo imperador, deveria ser seguido no futuro”
4 112
a

A autoridade do precedente não deve, contudo, ser superestimada, tan-


I
L *

< V »
%

/
PRECEDENTE: ESCOHER UM PASSADO 9
*
to quanto no direito continental não é conveniente hipostasiar a força da lei ,

escrita, que continua sempre sujejta à interpretação. De um lado, não é tudo


I
4
\
0
Vj
*
o que diz a jurisdição que cria autoridade, mas somente a ratio deciãendi: a ra- »
4 F»

É, sem dúvida, uma temporalidade muitó próxima que caracteriza a l


instituição do precedente, central no direito anglo-americano Segundo a . záo fundamental que explica a decisão. Por outro lado, se o precedente se im-
*
-d põe em casos semelhantes, o advogado imaginativo dedicar-se-á em “distin-
4
doutrina do stare decisis as Cortes e os Tribunais são obrigados a respeitar, no i
fijturo, as decisões que adotaram anteriormente. Será preciso relativizar o al guir”© caso atualmente em discussão do precedente invocado, cujo alcance se
v - $
-
achará assim progressivamente limitado.113 Notaremos, igualmente, um
*
cance real desta doutrina, demonstrando que ela não é incompatível com o
progresso do direito; destacaremos, em seguida, o sentido ético de um anda-
J abrandamento progressivo da doutrina: enquanto, em 1898, a Câmara dos
Lordes afirmava estar definitivamente ligada por seus próprios precedentes,
f

mento que consiste em justificar o direito na atualidade, referindo se às solu - - l


o
cm 1966 muda de opinião sobre esta decisão, considerando, em vista da ne-
ções de .ontem . _ cessária modernizaçã o do direito, que ela poderia, doravante e excepcional-
1
i
.
Uma passagem clássica dos Comentários de Blackstone, publicados ém
inente, descartar uma regra anteriormente declarada. ^ Este poder parece,
114
1765, concentra o essencial da doutrina canónica "do stare decisisv “É uma re - f ,
gra estabelecida de se conformar' aos precedentes [apreciemos o humor de$ta contudo, muito raramente utilizado; por outro lado, os Tribunais de apelação
/
viram recusar-se a liberdade que se dava à Câmara dos Lordes: não é raro, des-~
espirituosidade tautológicà: o precedente se justifica através do precedente ] ...
, i i de então, que um juiz se desculpe junto aos advogados por ter de dar uma de-
quando póntos já julgados retornam diante dos juízes É preciso, de fato, que . -
Câmara dos Lordes.115
f

cisão absurda e os-aconselha a levar seu caso diantêlia «


a balança da justiça seja firmemente segura e estável, não -sujeita a variação %

Entretanto, como em todoJugarfse faz sentir a força irrepressível do que nós


*
com a opinião de cada novo juiz. Além do mais, quando um ponto de direito > -
denominamos de “processus costumeiro”: igualmente vê ^se infundir, à sombra
foi maduramente decidido e declarádo, o que antes era incerto, e não fosse tal '
vez nem mesmo previsto pelo direito, torna-se umà regra permanente, que
- ^ de precedentes , todos os tipos de argumentos inspirados
.
nas “policies exigi- 33

X
* *
das pelas necessidades sociais contempor â neas.116
E o caso notadamente dos
não está no poder de nenhum juiz alterar ou modificar de acordo com os seus
* C.
sentimentos, já que ele está comprometido por juramento a julgar não de
f

.1 ¥
(

acordo com seu julgamento pessoal, mas de acordo com as leis e os costumes 112 BLACKSTONE, W. Commetitariesy 1765, reproduzido em The Sovereignity ofLaw.
i London: Macmillan, 1973. p. 128 . 4

do paí$, qUe sã o conhecidos; ele não tem como missão criar o direito novo/ < 113 Sobre esta técnica de distinguishing, cf. MÀCCORMICK, N. Legal Reasorting and
mas conservar e expor.o velho direito.” Blackstone indica, contudo, a possibi- Legal Theory: Oxfprd: Oxford University Pçess, 1978. p. 127, 176.
lidade de uma exceção: pode acontecer que a regra antiga seja “contrária à ra - 114' DWORKIN, G. Un adoucissement de la théorie du stare decisis à la Chapbre des
Lords. Revue internationale de droit comparé , p. 185 et seq., 1967.
;
zão”; neste caso, permite-se não partir de lim precedente “claramente absurdo : íJ
«

. oii injusto*. Contudo, é preciso, diz ele, “considerar como. uma regra geral que 115 TUNC, À. Coutume et common law. In: Droits. RevUe française de thé orie juridique , . .«
t
, . n. 3, “La coutume**, Paris, p. 57, 1986,
*
^ « *
\
V
*
* *
^

I » t
» 116 Cf. BELL, J. Rolicy Arguments in Judicial Decisions. Oxford: Oxford University Press,
1983.
\

111 RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: PUF, 1983. p. 151; . >

* *
r 4

«
* \
*

106 107
Memória. Ligar o passado.
Capítulo 1 ^
V
\

Estados Unidos, onde a doutriria do precedente sempre foi aplicada com mais »1110, logo veremos, desliga o passado “Superar” não significa, contudo, liqui-
.
v
brandura do que o que previa a exposição clássica de Blackstone. ihUj mas antes integrar em uma forma superior. De repente, continua coloca-
Não será preciso, por outro lado, reconhecer que em um direito tão an- ‘ / fl ila ft questão do sentido ético de uma referência persistente ao precedente.
tigo e desenvolvido, quanto é o direito angloramericano, o juiz quase não tem * % V
dificuldade para escolher o precedente que lhe convém e rejeitar estes ou aque- ‘3
les que" o desagradam? O passado é evidentemente m últiplo e contrastado l IMA DOUTRINA
• #
DE CARNEIROS
\
(não falávamos de “passados compostos”?), de modo que é dado sempre aos
^ L

juristas de hoje escolher entre tais tradições. Exercendo sua “memória eleti » ; Esta questão .deve ser tratada em si mesma, corno a questão do valor
*• 4

-
, va”, eles precisarão reconstruir o passado mais desejável com a ajuda $os pre- rv4 ^ moral do passado, independentemente, portanto, do m érito intrínseco do
.
cedentes pertinentes O combate pela igualdade dos direitos representa uma
% precedente invocado Vá rios argumentos são antecipados em.apoio do respei-
.
bela ilustração deste lancei ele só se désenvolve, de fato, apoiando-se numa tra * ) ; como a idéia, que ^
- 10 ao precedente, alguns perderam muito de seu crédito
*

, - dição liberal, à qual se opôs, no decorrer de toda a história, uma não, menos
.
forte tradição conservadora ‘A tradição igualitária, proclamada desde os pri -
a

« urge em Blackstone, de que o precedente deve ser seguido porque o juiz que
* *

t - t

tneiros dias da Revolução Americana e da Revolução Francesa, nunca deixou ^


V
- 0 enunciou não o criou, mas descobriu-o como índice do estado
da Common
LaWy do qual ele é somente o oráculo. Outros .argumentos, em contrapartida,
de fazer concorrência a outras adições” escreve François Rigaux. As discri
^ -
minações raciais e sexuais mantiveram se durante muito tempo devido a um
- ^ não perderam em nada seus pesos; a necessidade de preservar a segurança ju-
rldica, a confiança dos jiirisdicionados e a previsibilidade das regras; ou ain-
t

pensamento tradicional, que p princípio de igualdade, portador de uma tra


dição concorrente, propunha que se questionasse 11^ , . - da, a exigência de justiça, segundo a qual convém tratar de modo semelhante
*3 os casos semelhantes e de modò diferente as situações diferentes.
* '

Staiiley Fish pode, então, tirar a conclusão que se depreende destas aná -
] Sem dúvida, como; acontece frequentemente na deliberação moral, ne-
s
lises e que se relacionam numa inversão da relação do passado com o presen
te: o precedente é um processo de produção do pãssado pelo presente, objeti
- $ nhuma destas justificatiyas è absofutamente peremptória, de modo que pode
se admitir que, em determinadas hipóteses, considerações mais fortes condu-
*
,

vandapoder se referir a ele como.ao que determina o presente.118 Por mais jus-
- ,3

tificada que seja, essa conclusão crítica nãó esgota, contudo, tudo o que pode zem à rejeição do precedente Contudo, é preciso levar,mais adiante a pesqui-
.
/ 3 sa da justificativa da doutrina do precedente: estes primeiros argumentos e
ser dito sobre o precedente, como a referênt .
ía à tradição em geral É, eviden- y primeiras concessões não são, sem dúvida, bastante fortes para resistir ao peso
,
-
temente, muito mais simples sustentar que o presente constrói para si um pas ’
- das críticas dirigidas à doutrina do síare dectsis; Na esteira deBentham, que via
sado absolutamente novo e puramente imaginário, como se não fosse igual
mente determinado por ele. Por outro lado, sempre se explicaria a raz
- 5 *
no recurso ao precedente uma “doutrina de carneiros”, uma prática pela qual
ão pela ’ . \ tinidos,
qual ele continua a fazer sentido, paraireferir-se ao passado, para justificar o
(<
os mortos enterram os vivos”,119 o juiz da Corte Suprema dos Estados
Holipes, escrevia de fato: “é revoltante não ter outra razão em apoio de uma

presente. A perspectiva crítica ilustra a necessidade de ultrapassar o tempo


regra de direito que o fato de que ela tenha sido colocada assim dèsde o tem-
da /

'
memória, em prol das outras temporalidades, e, principalmente, a 3o perdão,
po de Henri IV”,120 e Lorde Atkin superestimou: “quando os fantasmas do pas-

' \
* »
117 RIGAUX, F. Une machine à remonterie temps: la doctrine da précédent. In: Temps
etdroib Sous la direction de F. Ost et M. Van Hoecke. Bruxelles: Bruylant, 1998. p. 87.. _
119 BENTHAM, J. The Works of Jeretny Bentham. Edited by J.
Bowring. New York: .
118 FISH, S. Doing what comes naturally: Change, Rhetoriç, ánd the Practise [Russell 8c RusSéll], 1962. v. X, p. 51; v. IX, p. 322 .
of Theory
120 HOLMES, O. The Path of the Law. Harvard Law Revieyv, 10, p. 457 1897
in Literary and Legal Studies. Durham: Clarendon Press 1989. p. 513-314. ‘ , .
^ *

108 109
IV
*
*
*
\
Capítulo l >
'S /
*
/ N
T . Ligar o passado.
, Meinôria

í
\
*
\
\ 1 . *
44 A

cedente, neste contexto, nada mais é que manter seus comprometimentos,


, /J

sado estacionam no caminho da justiça, agitando suas correntes medievais, o


*

melhor que o juiz tem a fazer é passar, impassível, pêlo meio”.121 assumir estas exigências que não cessaram de <lefinír o pr ó prio ser da co -
\ *

Para fazer realçar a força moral do passado e desarmar o argumento \v


munidade. É também dar prova de fidelidade e de lealdade com relação
que o apresenta como umâ reconstrução mistificadora é preciso, uma. vez L . aos membros da comunidade ( tanto diacrônica quanto sincronicamente),
mais, insistir na continuidade constitutiva do ser, individual e social,.e do da qual cada sujeito è provido de uma dignidade igual É, enfim, assumir . *

sentido ou dos valores que ele tenta se atribuir. O indivíduo, de fato, não as zonas de sombra desse passado, sabendo, no Vaso concreto, rejeitar dele
pode tomar con çciênciâ de si mesmo e se colocar ha existência como capai os elementos que não são compatí com suas aspirações mais essenciais.
veis
de ações e de projetos, sem estar garantido, principalmente pela memória, Tratar-se-á, nesse caso, de uma forma de responsabilidade quanto aos er-
da integridade emporal de sua pessoa, da continuidade em devir do ser ros e pecados do passado, que ir á supor algo como o exercício de uma “me-
^
que ele é. Esta integridade temporal implica, do plano éticç, que a inteire -
4

mória profética”, que condena uma tradição ( desigualitá ria ou antilibertá -


»

za do passado seja ,assumida, simultaneamente, em seus aspectos negativos, ria,- por exemplo) em nonie de uma ou outra tradição mais antiga ou mais
que podem nutrir o lamento e justificar o endosso de uma responsabilida- autêntica, Sabe-se, quanto a isso, o quão eficaz pôde ser a reivindicaçã o de
£

de específica, e em seus aspectos positivos, que requerem ser reapropriados > igualdade, expressa pelç movimento dos “direitos civis” dos negros ameri-
.
e perseguidos Entre estes últimos figuram principalmente todos ,os nossos canos, uma vez que podia se apoiar em yalores inscritos na própria Cons-
comprometimentos passados, que continuam a representar para nós razões J
tituição e esquecidos durante décadas de tradição escravagista, de início,
* .
presentes pará agir Umas são voluntárias, tais como as promessas e as as- discriminatória depíhs,123 /

sociações que definem objetivos deliberados, dando forma e sentido à no$- 4 Assumir o passado, para o melhor e para o pior, para atribuir-lhe um
sa existência; outras são difusas e involuntárias, como nossa inserção nas V futuro, tal seria então, em definitlyo, o sentido da referência ao precedente
*•
-
> comunidades e tecidos de relações que õs exigem, desta vez as formas de e, mais amplamenfe, o papel do juiz que Antoine Garapon denomhía, com
* lealdade e de fidelidade visando a manutenção da confiança recíproca. O muita oportunidade, o “guardião das promessas”. “A justiça”, escreve, “é guar-
e conjunto desses comprometimentos forma como que um molde que orien- diã do direito, ou seja, dos pactos anteriores que nos ligam ” 7Ela garante a
ta nossa ação; privado destas aspirações e desse íknpeto /cujo foco situarse identidade da democracia, entendida como uma forma que não permanece a
no passado * mas o objetivo no futuro, nosso presente seria singularmente <1 mesma através do tempo, mas que se mantém à maneira de uma promessa
despròvido de sentido, como se existíssemos apenas na modalidade da cumprida. “Em se tratando de crime contra a humanidade, o juiz exerce sUa
transformação. i * «
i
autoridade de-sujeito de direito ou da Constituição, protegendo a memória
Estas observações, tomadas de empréstimo a Postema,122 podem ser desta promessa inicial para e contra tudo, inclusive contra a vontade do‘títú-
v
transpostas para a existência coletiva dos grupos, A existência das coletivi- lar, no exercício da soberania nacional [...] ”124 *
dades, como a dos indivíduos, não se concebe senão nà perspectíva de um >


)
desenvolvimento histórico, no decorrer do qual as,comunidades forjam * >

- sua identidade respectiva, uiyia identidade feita de aspirações, de projétos


* *
.
V

;ainda suspensos, de promessas só em parte realizadas, Levar a sério o pre-


*
\ \ V
v *
* . .
123 POSTEMA, G. J On the Moral Presence of our Past Mac GUI La\v Journal, v 36", .
..
121 Apud. POSTEMA, G f On the Moral Presence of ôúr Past. Mac GUI í aw Journal, • . .
n 4, p 1.180, nota 14, 1991 * . A

.
V. 36, ri. 4, p 1157,'nota 14, 1991. , « > « l
.
124 GARAPON, A Le gardien des promesses. Justice et àêmocratie Paris: Odile Jadob, .
V

. ..
122 Ibid ,'p U71-1.176 . r
i

s
j
i
h
-1996 p 182 .. .
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*
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110 J
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Capitulo 1
* 5 .
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' Memória.Ligar o passado.
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A ti <

sagrados’’ Antígona, na peça de Sófocles, não sustentava uma outra linguagem N <
* "

DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS . .


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/

diante do edito dq Rei de Tebas, seu tio Creonte, Certamente, còmpreendere-



t

ANCESTRAIS, DIREITOS ADQUIRIDOS: '


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mos bem depressa que* é preciso fazer Compromissos para administrar tanto a .
C
O PASSADO INCONDICIONAL? •u.

liberdade do nutro, quanto as exigências do interesse geral. Dedicar-nds-


i *

,
emos, entã o, a colocar parapeitos, a fim de “apreciar a razão de Estado”, como
' j

Prosseguindo nosso péripló..através da ordem jurídica, visando recen- $


o escreveu Mireilíe Delmas-Marty.125
sear nela as principais manifestações do tempo da memória, era previsível que §
j s ' Assim , o Tribunal Europeu dosDireitos Humanos declara querer pro-
reencontrássemos o domínio imenso do$ direitos, das prerrogativas e dos inte -
^
\ 4

teger a própria'substâ ncia dos direitos consagrados pela Conven ção' de 1950,
resseS. Daí, de fato, quando se encara o fenômeno jurídico a partir, do ponto de íi
vista do indivíduo é não mais do Estado ou da coletividade (direito objetivo),
-
mesmo se for preciso, algumas vezes, conformar se aos atentados feitos âs mo-
dalidades dç seu exercício. Por outro lado,, a própria Convenção dedica-se a .
H

-
aborda se o continente dos direitos subjetivos dos quais se' pode presumir o*

definir um “n úcleo duro” de direitos intangíveis, mesmo em caso de.“guerra


.-
apego què lhes devotam seus titulares É, muitas vezes, através da garantia no
í ^ * ou outro perigo público, que ameace a vida da nação” (art 15): assim quanto
tempo, de seus pr óprios direitos, que ao indivídup se representa concretamén-
i

»
j
à proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, inumanos e degradantes (art
te o significado da segurança jurídica, da continuidade das instituições e da paz ’ 3), da escravatura e da servidão (art. 4, al. 1), assim como do princípio dede-
social. Garantir seus direitos fundamentais, sancionar seus direitos adquiridos," ’
galidade das incriminações e das penas (art. 7 - píincípio que tem ele mesmo,
consagrar suas expectativas legítimas, eis o que se volta, o mais freqúentenien- Ú
por corolário, a proibição da retroatividade da lei,penal). No que lhes diz res-
te, para o jurisdicionado individual a função da mem ória jurídica Tais fun
^ . - V,
J
peito, a proteção buscada assume exatamente a forma de um imperativo cate-
*
*

ções, de resto, são respeitáveis e de seu respeito depende amplamente, de fato, ^ J gó rico ou de um passado incondicional..Contudo, a vigilâ ncia se impõe: a ra , -
.
a ordem social Daí haver nisso tuma forma de imperativo categórico, de “pas-
sado incondicional”, que tornaria impossível qualquer modificação deste dado
\V

«s
zão de Estado nunca se desarma e poderia perfeitamente acontecer que, arras -
tada pelo pragmatismo de sua jurisprudência, relativa ao “peso dos interesses”,
/
«
de partida; o que seria, contudo, dar um passo que não autoriza certamente a
ao “princípio de proporcionalidade” e à “margem nacional de apreciação”, o
- observação atenta da situação do díreito.contemporâneo •. í
\
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‘ *
Tribunal se conforme igualmente com atentados feitos a esses direitos,- ditos,
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contudo, “intangíveis”. 4
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DIREITO'S INALIENáVEIS E SAGRADOS . Jf
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* *

Encabeçando a lista dos direitos subjetivos figuram, sem dúvida, os di - f


A RAINHA E OS HURONS « tr
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*
reitos fundamentais ou direitos humanos, consagrados pelas Constituições e * Ã
*

tratados internacionais, cada vez majs numerosos. Já mostramos como, tanfo/ i A problemática dos “direitos ancestrais” dos povos autóctones estabe -
no Bill of Ríghp de 1689, quanto ria Dpdaration des drpits de Vhotntne et du d - t,
lecidos rios territórios, que se tornaram objeto; de tenípos em tempos, de co-
toyen de 1789, estes direitos foram apresentados como “imemoriais”, sendo o lónias de povoamento ocidentais, con$tituem uma outra pedra de toque da
)
^
< *
*
maior ou menor solidariedade da mem <Sria jurídica. Até há pouco, é verdá de,
objetivo destes textos o de relembrá-los- âs vezes depois de um período de ès - esta questão carecia totalmènte de pertinência: quando rião aniquilados; os
-
quecimento ligado a um regime despótico - mais do.que editá los de umá só - '«1
* *

• vez. Declarados e constatados, mais do que criados oU atribu dos, eles


»
*
í se ins- f

. crevem na perspectiva do longo prazo e parecem,Titeralmente, “inalienáveis e


*
125 DELMAS-MARTY, M. Raisotiner lã raisott cT État . Paris: PUF, 1989.
V
*
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Í Capitulo 2
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* i i Memória. Ligar o passado.
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abor ígenes eram confinados em reservas e, em relação ao direito, eles só des-
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por isso eía resolve o choque entre dois passados e duas legititnidades; os di -
.
4
*
frutavam de subestatufos administrativos, que lhes reservavam os colonizado- s *

reitos daí resultantes, parecem, então, singularmente condicionais e frágeis \

res soberanos. Em todo lugar prevalecia a ficção segundo a- qual 'o homem
r

r i
* 1 * *
».
*
No Canadá, os direitos ancestrais dos índios, Esquimós e Mestiços,apre-
branco tomara pé em férrae nullius, em relação às quais era então legítimo que n* sentam a particularidade de serem consagrados na própria Constituição: o ar-
exercesse pretensões de soberania. No que concerne ao imenso continente tigo 35 da Lei Constitucional de 1982 dispõe, de fato, que “os direitos existèn-
. #
- australiano, por exemplo, o Privy Council afirmava, em 1889, que ele consis-
tíá, eni 1788, em “um território praticamente desocupado, sem habitantes se-

tes - ancestrais òu originários dos tratados dos povos autóctones do Canadá,
.
são reconhecidos e confirmados” 129 Por “direitos ancestrais”, é preciso entender
dentários”.126 Durante muito tempo este decreto foi considerado como uni y < os usos e costumes sempre observados e existentes, antes do estabelecimento
precedente, ligando os tribunais australianos: foi dàí para frente entendido A .
da soberania francesa, depois britânica 130 Contudo, nem todos os direitos ime-
X *

que os Indígenas não possuíam suas terras; cada vez que concessões mínéiràs y *
moriais têm por.vocação um reconhecimento atual: destes últimos é conve-
#
eram atribuídas a empresas, não lhes restaria mais que se mudarem, na falta
^
J u
niente, de fato, rejeitar os qtie não são compatíveis Com as leis de uma “socie-
de poderem exibir um título de propriedade conforme 'a Common Law. Em
*

A
* dade livre e democrática” (assim o. costume denominado “spirit dance” sbsce-
1992, contudo, o Tribunal Superior Australiano iria inverter esta jurisprudên-
cia, pela célebre decisão mabo> rejeitando formalmente a doutrina da terrae
nullius, e que a 'declarava não apta a constituir o fundamento da ordem jurí-
^ tível de atentar contra a integridade í f sica e psíquica dos índios), assim como
aqueles que impediram a aplicação das leis federais, desde que essas últimas se -
3
jam razoáveis - reservada para o menos importante, há de se convir.
dica australiana.127 Para dar sequência a esta questão, uma nova legislação fe- . 1 Por outro lado, é preciso notar que a/essa primeira lógica de reconhe -
deral foi adotada, em 1993, o Native Title Á ct: devido a esta lei, os autóctones ? 1
cimento retroativo dos direitos esquecidos dós autóctones, yem opor-se uma .
podem forrqular reivindicações territoriais, cóm a,condição de poderem de- .
outra, sém dúvida mais importante, que conduz as autoridades canadenses a
monstrar que mantiveram uma relação contínua com aterra, fundada no di- reivindicar um conjunto de territórios (territórios do Noroeste e do Yukon,
'a
reito consuétudinário e,,por consequência, que estas terras nãò tenham sido - | ,1
Colômbiabritânica), a respeito dos quais os habitantes indígenas jamais cede- ,
objeto de concessões pela Coroa a interesses privados. Vemos, então, a contra- -
ram oficialmente seus direitos ou porque eles, os detinham devido à Procla-
dição na qual se encerra este texto: ele reconhece a legitimidade dos direitos mãção real de 1763, ou porque sua ocupação fosse ancestral. Convenções são
*

/ .
ancestrais dos primeiros ocupantes da Austrália, ao mesmo tempo consoli- h í
negociadas com os autóctones nesse sentido, tal como o acordo.concluído em
dando os direitos concedidos aos colonos, em violação'a esta Ocupação ime, - '
1975 com os Cris e os Esquimós da baía James, ao norte de Quebec Em vir - . J

* morial.128 Se esta lei apresenta o mérito de não mais ocultar este conflito, nem ' tude desses acordos, os direitos sobre as terras são geralmente cedidos às au -
4
t toridades, mediante 0 reconhecimento aos índios dos direitos ,económicos, so-
126 Cooper V. Stuart (1889) 14 App. Cas. 186; cf. H. REYNOLDS. TJte Law ofthe Land . r 1
r
\

Victoria, 1992. p. 32.


129 Cf igualmente o artigo 25 da Carta canadense doS'direitos e liberdades, que se re-
127 Mabo v. Queenland (Mabo n8 2) (1992) 175 CLR 1; para uma discussão geral, cf.
i

Essays on the Mabo Decision. Sydney l 993; cf. igualmente WEBBER, J. The Juris -
fere igualmente à “Proclamação rpal de 7 de outubro de 1763 assipi como aos di -
^
prudence of Regret: the Search for Standards Qf Justice in Mabo. Syãney Law Re-
reitos ou liberdades existentès derivados de acordos quanto às reivindicações ter
ritoriais ou aqueles suscetíveis de serem adquiridosJdestemodo” (esta última pre
--
view, 17, p. 5 28, 1995. - t
.
cisão contém, percebe-se, uma interessante’ referencia prospectivà .. aos direitos
128 Cf. SCHULTE TENCKHOFF, I. La Question des peuples autochtones Bruxelles:
- . ancestrais). •

. .
Bruylant; Paris: LGDJ, 1997 p. 75. Cf. igualmente LAJOIE, Á et al. Le Statut juridi - . .
130 Neste sentido, cf MORIN, R Le Droit des Autochtones du Canadá et áu Qu ébec
qua des peuples autochtones au Québec et le pluralisme, Cowansville: Éditions Y. dans le contexto du droitprivé, communicatiòn au colloque “L’autochtonie:áppro -
Blais, 1996. -
çhes interdisciplinares”, 19 20 de maio de 1995, p 11 < . . *
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114 . 115
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Capítulo 1 r
MemôírH. Ligar o passado
4 V 1 ^
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ciais e culturais, reputados a garantir a manutenção de seu modo de vida tra - J .
lógica do parque, o Tribunal acabou por dar razão aos autóctones. Vitória,
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dicional; mas. esse direitos de caça, de pesca, comércio de peles e de colheita, ‘ j


^
perdem eles mesmos qipa parte de sua abrangência, devido aos atentados fei-
sem dúvida, mas quanta» ambiguidade
• -
; trata se mais de uma tolerância total-
mente relativa e marginal do que de um franco reconhecimento. Dois passa-
*

.
tos ao meio ambiente pelos projetos de administração destas regiões, tais
1
j
dos se entrechocam, o dos vencedores e o dos vencidos , entre os quais apenas
, como o complexo, hidroelétrico da ba í James A
a . coabita çã o de duas têmpora - . * . « *
administrações detalhistas ainda ,são concebíveis. Contudo, o reconhecimen-
~ lidades diferentes (uma lógica moderna de crescimento e expansão, e uma ló-, - to parcial e tardio dos direitos ancestrais dos aborígenes, na Austrália e no Ca-
*

gica ancestral dé Osmose com a natureza), prova-se, então, muito difícil de se r nadá, príncipalmente, mostra que um “retorno do recalque* histórico não está
realizar sem ambiguidade persistente. excluído, tendo sido a ífrstória jamais definitivamente escrita.
*

-
Destes difíceis éompromissos, um decreto do Supremo Tribunal do Ca
nadá La Reine Sioui, constitui um belo exemplo.131 Os Índios Hurons. eram '
,
- < v
• acusados de ter cortado á rvores, acampado e ateado fogo no parque Jacques-
2?
DIREITOS ADQUIRIDO? E DIREITO TRANSITóRIO
Cartier, em violação a uma regra provincial consagrando o caráter de “sítio y

natural de caráter excepcional”, deste parque. Será que este regulamento se li A terceira pedra de toque da extensão da memória jurídica, em maté-
aplicava aos Hurons, que praticam seus costumes e ritos religiosos? Para sua ria de direito subjetivo, é a questão sempie atual e sempre controversa dos “di-
defesa, os autóctones invocavam um “Tratado” assinado pélo General Murray J reitos adquiridos”- questão que nos remete-à problemática familiar dos con-
em 1760, garantindo-lhes a livre passagem e o livre exercício de seus costumes J .
flitos de leis no tempo Em princípio, a “perpetuidade está, na intenção das
e religiões ancestrais, num vasto território, compreendendo principalmente o J leis”, como é dito no Livro preliminar do Código civil. Quando, contudo, uma
parque Jacqúes-Carfier. O Tribunal declarou que este tratado se aplica sobre 3 "
lei é revogada e em princípio substituída por uma outra, apresentám se situa- -
todo o território frequentado pelos Hurons na época “desde que o exerdcio | j ções transitórias de “conflito de leis no tempo”. DeTato, seria demasiadamen * -
te simples pensar que a lei antiga interrompe seus efeitos quando entra em vi-
dos costumes dos ritos não fosse incomp
ç à tível com . a utiliza çã o particular J > * »
. » *

gor a. nova lei E que sob o regirtie anterior, fatos jurídicos (como um delito
*

que a Coroa faria desse território”.132 A seqiiència merece ser citada integral- |
.mente: “Esta interpretação concilia a necessidade do? Hurons de proteger o Vj propiciando'a indenização) se assentaram; atos jurídicos (uma adoção, um-
exerc ício de seus costiimes e o desejo de expans ã o dos conquistadores britâ ni -\ contrato) foram realizados; direitos subjetivos foram adquiridos, interesses se
'

cos. Ela garante aos ingleses a flexibilidade necessária para responder às neces- **
consolidaram: resumindo, situações jurídicas de todos os tipos se estabelece-
ram, que se prolongam sob o império da nova lei. Esta lei nóva podedgual-
de utiliza çã o dos recursos do Canad á, e pe rmite aos Hurons
^
*

sidades crescentes ,

continuar a exercer seus ritos e costumes nas terras frequentadas, desde que \ * mente afetar expectativas, esperanças, situações em vias de forma ção, como,
• »

estes ritos e costumes não atentem contra o desfrute das terras por seus õcu-
A
] por exemplo, uma renda cuja formação pressupõe um per íodo prolongado de
pantes. Os Hurons não podiam racionalmente esperar que a ocupação fosse -
filiação' e cotização. Em todos estes casos coloca se a questão de saber sem que
medida a lei antiga, mais ou, menos duradouramente incorporada a estas si-
fixada para sempre na situação de 1760” 133 Avaljando que os acampamentos
tuações jurídicas, sobreviverá em relação a elas, apesar da entrada em vigor da
dos Hurons não eram de natureza a comprometer seriamente a vocação eco-
. -
nova lei Em prol do princípio de sobrevida da lei antiga ( a ú nica que nos in-
teressa neste capítulo) clamam os valoresde estabilidade social, de confian ça,
131 La Reine c. Sioui ( 1990 ) , 1 R.C.S., 1025. A
«
de continuidade e de segurança jurídica* , que deveriam, segundo pensamos,
4* *
132 Ibíd., p. ,1.027.
M «

garantir as situações validamerite adquiridas e consolidadas sob essa lei anti-


.
»
133 Ibid. ga O termo vago, mas ideologicamente marcado' e sempre mobilizador, de
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117
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Capítulo 1 " \ * . .
Memória Eigar o passado
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“direitos adquiridos”, é, então, agitado como um talismã destinado a fazer .ba-


j

x vista subjetivo do sujeito de direito sustentado, com a ajuda de seus “direitos


ter em retirada as veleidades reformistas do legislador.
V

< *
adquiridos” contra o Estado, para adotar o ponto de vista mais neutro, basea-
Impregnados de uma filosofia liberal e individualista, os primeiros co- 1'
do no conceito de “situação jurídica”,,do qual distinguia a criação, os efeitos
mentadores do Código civil elaboraram uma teoria dos conflitos de leis no ’ j em curso e a extinção, Roubier preferia a séguinte soluçã o: a cria ção de uma
tempo; articulada em torno do princípio dos “direitos adquiridos”, que eles dis- ' { situação jurídica (inclusive a aquisição de um,direito), assim como os efeitos
tinguiram das simples expectativas, Apenas estas últimas caíam com a vigência já prodúzidos, são e continuam sendo regidos pela aplicação da lei em vigor,
da nova lei; definitivamente integrados ao património de seus titulares, os di- no momento da criação ou da aquisição; em troca, os efeitos sucessivos dessa
reitos adquiridos, em troca, deviam aí ficar. Esta tese, substituída pela Cbrte de relação de direito previamerite formados, assim como suas causas de extinção,
Cassação podia, por outro lado, invocar o artigo 2o do Códigò civil,- que proíbe; procedem, com “efeito imediato”, da nova lei. Falando de outro modo: a nova
expressamente a retroatividade da lei.134 Se bem que, solidamente apoiada na t lei apreende imediatámente a situação jurídica em curso, mas não pode mo-
defesa dos .direitos e liberdades individuais, esta doutrina iria, mò entanto, dificar, sob pena de agir retroativamente, as consequências què tais situa ções
atrair um monte de críticas. Advertia-se que, mesmo no concernente ao.seu ] já produziram. A solução se inverte, contudo, em matéria contratual: os efei-
campo de aplicação . privilegiado - o 'dos direitos de caráter patrimonial a
teoria conduziria a resultados excessivos e perigosos, tornando virtualmente
«


tos dos contratos continuam sendo, com efeito, submetidos às leis que esta
vam em vigor quando da conclusão do acordo. Esta solução, que se justifica
-
inoperantes determinadas /eformas socialmente úteis. Seria preciso, por exem-
1

em relação ao princípio da autonomia da vontade (pode-se considerar, de


plo, deduzir què todo direito de propriedade acrescido a um património per- fato, que a lei antiga se incorporou à convenção desejada e configurada pelas
manecerá “adquirido” tal como é, e não poderá ser modificado por uma nova
^
partes), encontra, contudo, uma exceção quando a nova lei é de ordem públi -
lei sobre o regime dos bens? A esse respeito, nenhuma reforma útil jamais in- ca ou imperativa: assim, quando a lei modifica o salário mínimo ou impõe um
terviria. Uma interpretação tão ampla dos “direitos adquiridos” tornaria qual- cálculo de aluguel legal, ela regerá, com efeito imediato, os efeitos de um con-/
quer lei retroativa*135 Fora do domínio dos direitos patrimoniais, a aplicação da trato concluído sob o regime da lei antiga. y
teoria parecera ainda mais contestável: quando, por exemplo, uma lei atribui a ' J A Corte de Cassação francesa aderiu inequivocamente -aos princípios ‘
capacidade jurídica às mulheres casadas, seria 'evidentemente absurdo revisar o h
de direito transitório de Roubier, a.partir de um decreto de 29 de abril de . ' *

benefício às esposas cujo casameiito é anterior à nova lei, sob o pretexto de que ' t 1960.138 Não é, de se dizer, em consequên&a, que a noção de direitos adquiri-
•* a .aplicarão desta.atingiria os direitos adquiridos pelos maridos.136 Y' , dos tenha desaparecido desde -então. Corretamente interpretada, ela contém
Sabemos o quanto, em seguida, a célebre teoria do direito transitório ] i
um fundqde verdade que reforçará sempre sua grande carga ideológica: àssim
* ^ * >

de Paul Rouhier iria renovar esta problemática.137 Abandonando o ponto de ; como suas ressurgências são frequentes , em direito social139 e em.direito admi-
nistrativo,140 principalmente.^ '

(

Em direito comunitário, igualmente, a noção de direjitos adquiridos fez


134 Neste sentido, cfDEKEUWER-DEFOSSEZ; E Les Dispositiohs tranfitoires dans la
Uriía entrada notável na jurisprudência do Tribunal de Justiça europeu, no
Jégislation civile contemporaine. Paris: LGDJ, 1977. p. 8; MARTY G.; RAYNAUD, P. i
*I
Droit civil . 2. ed. Paris: Sirey, 1972.1. 1, p. 185; GHESTIN, J.; GOUBEAUX, G. Trai-
tê de droit civil 3. ed. Paris: LGDJ, 1990. p. 295. '
* 138 Resc. civ., 29 de àhril de 1960, D., 1960, p. 429, nota HOLLEAUX.
135 GHESTIN, J.; GOUBEAt òC, G. Traité de droitcivil 3. ed. Paris: LGDJ, 1990. p, 296.
'
J
139 “Mantien des avantages acquis”, cf. F. DEKEUWER-DEFOSSEZ, F. Les Dispositions
136 PESCÀTORE P , . Introduction à la Science du droit Luxemburgo: Office des impri- transitoires dans la législation civile contemporaine. Paris: LGDJ, 1977. p. 10, nota 17. . ,
més de TÉtat, 1960. p. 318. !
140 YANNAKOPOULOS, C. La Notion de droits acquis en droit administratif français.
137 ROUBIER, P. LeDroit transiioire. 2. edrParisrDalloz et Sirey, 1960. ( 1. ed. 1929 ). Pari?: LGDJ, i'997.
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Cop /íw /a I * Memória, ligar o passado *
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seio de uma nebulosa de princípios, girando todos em torno daidéia de segu- :j concebe ele mesmo como o primeiro; ele já se deseja vingança de um crime .
rança jurídica: regra de não retroatividade dos atos, princípio da proteção dai mais ^original”.143 Assim, pois, os homens terão sido já sempre confrontados
confiança legítima, princípio “ patere legem quatn ipse fecisti”, respeito aos di-
%
e

reitos adquiridos e à imutabilidade dás situações jurídicas subjetivas Num dos . s ^ t


com a violência; existe um futuro anterior do mal, como existe um futuro an -
terior da legitimidade.
*4

primeiros casos que ele teve de conhecer (o xaso Algera), o Tribunal julgou A esta anterioridade do crime respondfe a perenidade memória pu-
que os atos legais^conferindo direitos subjetivos iião podem, em princípio, ser ( nitiva; senão a sua perenidade, pois no universo moderno irá intervir a pres-
« retirados, porque “tendo sido o direito subjetivo adquirido, a necessidade de 2
crição, pelo menos sua longa duração, Punir é então, de início, se recorday.
^ t
salvaguardar a confiança na estabilidade da situação assim criada tem mais va- Contra o personagem de Kqndera que sustenta que “tudo será esquecido e „
lor do que o interesse da administração que desejasse voltar atrás em sua de-
*

nada será reparado” é preciso invocar a recordação de Hamlet que jura ao es-
cisão”.141 Confirmada em Seguida, epta jurisprudência não é, Contudo, despida
<
de equívoco; mais funcional que conceituai, a referência aos direitos adquiri- v
pectro do pai que irá vingá-lo Menquanto a memória estiver neste globo insa -
no” 144 Até o dia em que este dever de honra e de justiça for satisfeito, ele grita v
dos funciona, sobretudo sob a penada do Tribunal, como uma justificação cô-
m
1
“o mundo estará fora dos eixos?,145 somente a vingança terá Q poder de reco-
*
\

moda e pragmática dos interesses que eláNpretende valorizar.142


* locá-lo no lugar .

Parece bem, portanto, que qualquer que seja o tipo de direitos conside-
*
N

rados (direitos fundamentais, direitos ancestrais ou direitos adquiridos), não *

encontramos senão o “condicional” passado: só excepciònalmente é que um RETRIBUIR é DAR O TROCó.


*
direito atçibuído em um dado momento do passado se beneficiará de uma ' A*

proteção absoluta ao encontro de todas as formas de interesses concorrentes. f «

Serã que o direito penal modernô ainda tem relação com este obscuro
*
passado da pena vingadora? Não terá ainda se livrado de todaddéia de repre -
PAGAR Ô CRIME: A LONGA MEMÓRIA DA PENA A. i
% i


1 sálias? Não abandonou a lei de Talião a uma distante pré história jurídica,
hoje ultrapassada? Podemos, nos parece, reunir em trêsas numerosas funções
-
*
l
esperadas da pena nos sistemas, penais contemporâ neos, relacionando fcada
>
O universo jurídico só é composto por íeis e direitos Por defrás dessa { . uma a uma dimensão temporal distinta: uma função preventiva voltada para
face diurna, oficial e edificante, propaga-se a face noturnà do direito; a do cri
.
me, da ofensa e do prejuízo “No começp, era o crime”: o adágio se verifica
- o futuro, uma função de reparação com eixo no presente e uma fruição de re-
;• tribuição ancorada no passado;146 como se percebe, é esta última que se insere-
>
. ’
V / »

tanto quanto o adágio “no começo, era a lei” E do mesmo modo que dizemos
ve no prolongamento do antigo talião, A
“há direitò antes do direito”, poderíamos sustentar “há crime antes do crime”: V
V
Através da prevenção, a pena visa impedir, no futuro, a realização de
o crime que é punido pèla vingança, explica Renée Giratd, “quasè nunca se
•> v >
comportamentos considerados indesejáveis; seja visando todos os contraven- í

tores potenciais (pievenção geral), seja dirigindo .mais particularmente nos


t
141 Decreto de 12 de junho de Í957 Rec., p, 115
^ . . -•
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á 4
*

142 BOULOIS, J,; CHEVALLIER, R.-M. Grands arrêts de la Cour de justice des cotnmu-
*
J
.
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nautés eufopéennes.5. ed. Paris: Dalloz, 1991.1. 1, p. 82: “a segurança jurídica não é í 143 GIRARD, R* la Vtolence et le sacré Paris: Grassei, 1972 p 28 ..
v A
mais do que o nome atribuído pelo juiz às manifestações de sua equidade ou de sua , . 144 SHAKESÇEARE , W. Hamlet,áto I, cena 5. Paris: Le Livre de poche, 1953, p; 40 ^ . I

-
discricíonaridade”; PAPADOPOULOU, R* É? Prí ncipes généraux du droit et droit \ . . .
145 Ibid > p 45
communautaire, Bruxelles: Bruylant; Athènes: Sakkoulas, 1996. p. 226-227; “as so- .
a
\ 146 TULKENS, F.; KERCHOVE, M, vande íntroductiondu droitpénal 2. ed. Bruxelles;
. luções concretas são adaptadas em fimção dos interesses que ganham importância”. .
i

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Story SçÍentia,.1993. p. 320
- . / .
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Capítulo 1
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Memória Ligar o passado

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reincidentes ( prevenção particular ). De todas as finalidades da pena, esta últi-
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pelo menos uma proporção é estabelecida, que satisfaz um sentimento espon-
f J

ma, sem dúvida, é amais racional; elogiada por Becaria eBentham, ela tem os
\

. \ tâ neo de justiça e tende a uma determinada objetivação da, pena. Resumindo,


favores da corrente utilitarista. A finalidade reparadora, por sua vez, se preo-
cupa essencialmente com a vítima, de quem procura comperisar o dano. Cui-
*
,: Uma tal tarifação, se bem que muito primitiva, pois já presente nas antigas for -
; mulações de talião, devia já representar um progresso social considerável em
c da-se, rip presente, de reduzir ou eliminar o prejuízo sofrido pela vítima, quer
se trate de um particular ou dà coletividade inteira. No limite, com a respon- relação aos “arrebatamentos da cólera”.150
4 Portanto, se a dimensão retributivá não está ausente do direito contem-
habilidade objetiva, o autor do dapo seria obrigado a reparar, mesmo quando ]
nenhuma falta lhe possa ser imputada. Durante m úito tempo desvalorizada, porâneo, muito pelò contrário, é conveniente, então, compreender o sentido, v

. esta função da pena opera atualmente um retorno forçàdQ, com a reá tribui- ,
*

!g
c sobretudo, o alcance da questão temporal qúe está em jogo do talião, do -
ção de um lugar central para a vítima no processo TperiaL147 sacrifício e da vingança. Será que se trata, pela recordação do crime, de se;en -
' *
»
Quanto à função retributivá, a que nos interessa aqui é garantidamente
V

,
cerrar num Çassado traumático e repetitivo, de alimentar o ciclo infinito da
a mais antiga das finalidades reconhecidas a pena; após ter tafiibém ela conhe- ' violência em reflexo, ou bem esta memória do crime é portadora de liberação
eido irni eclipse, faz um retorno atualmentej ao mesmo tempo em que nos aler- ^ c reconciliação? \

^‘tatnos sobre os limites de uma perspectivá exclusivamente utilitarista da reação »•


>
«

penal.148 Se é verdade que “retribuir é dar o troco”, a funçã o retributivá da pena


i * 4
t

supõe uma concepção da justiça, com o eixo no mal do passado (a infração),


'{
LEI DE TALIãO: VINGANçA OU PACIFICAçãO? "

ao qual nos dedicamos a fazer corresponder o mal equivalente (a pena), Por hi~ d
. Falar da vingança e da lei de Talião não é uma coisa f>á cil, tanto se acu-
i

V.
pótèse, esta concepção da pena pressupõe um trabalho de anamnésia: é preci- | . *
* * ’
*

mularam a seu reèpeito as idéias falsas e as condenações, E preciso começar


v •
so tornar presente o maipassado, a fim de avaliar a importância do castigo para
%

Jjj
"
t '

a gravidade do prejuízo causado, ou antes, da falta cometida. Mais que ser útil por lembrar que se o talião encontra na Bíbha determinadas formulações
^
(ém termos de dissuasão, por exemplo), importa antes de tudo, deste ponto de
\ suas, as mais conhecidas ( ‘olho por olho,.dente por dente”, Êxodo, XXI, 24) , à
'

vista, que a pena seja justa, ou seja, merecida e proporcionada.


>
r
k
tradição judia nem por isso jpossui monopólio: ençontram-se expressões
Retomada pela corrente neokantiana, religada nos Estados Unidos aos J 1
igualmente eloquentes no Código de Hamurabi (“se alguém furou um olho a
um notável, um olho lhe será furado”); na lei romana das XII tábuas ( “si mera-*
V
trabalho de Rawls, esta tese procura, então, antes de tudo, definir a “ justa re -
^
tribuição do crime”.149 Para fazer isso ela pode se apoiar, de resto, no trabalho . < brutn rupsit, tii cwn eo pqcit, talio esf )\ assim como no Corão (primeira sura- •
,

do próprio legislador, qúe consagrou uma escala de gravidade paralela da$ in • J ta: “Aos fiéis, o talião vos é prescrito: homem livre pof homem livre, escravo
frações e das penas. Sem dúvida, uma equivalência deste tipo é mais simbóli- •
-
^ .
por escravo* mulher por mulher”) As ocorrências são tão mjmerosas que pó-
ca que material: não se paga nunca exatamentfc o equivalente ao mal causado;
f
í deríamos ver nisso, como em relação à proibição do incesto, a expressão de
uma lei universal. O conceito ^moderno de “destruição m útua garantida”/ ,,
151
ta *

147 TULKENS, F.; KERCHOVE, M. van de. Introduction au droitpé nal . 2. ed. Bçiixelles: pivô da estratégia geopolítica durante as dé cadas da Guerra Fria, nãò éra um
Story-Scientia, 1993. p. 314- 319, Ver igualmente OST, F.; KERCHOVE, M. van de. reaparecimento tão maciço quanto ambíguo (como produtora de um certo
'

Le Présent, horizón paradoxal des sanctions réparatrices? In: Philosophie du droit et


v droit éconotnique, quel dialogue? Paris: Frisdn-Roche, 1999. p. 477 et seq. equilíbrio... no terror, como instrumento
.
de paz eminenteménte mortífero)?
“ » V

V
148 RICÓEUR , P, Éclipses et réapparition de la rétribution en droit pénal . In: Ré tribu- í z'
" *
tion et justice pénale . Paris: PUF, 1983. p; í 1 et seq.
150 • VIRALLY, M. La Pensée juridique. Paris: LGDJ, 1950. p. 109-11Ó.
v %
^
^ av
149 PONCELA, P. Droit de la peine. Paris: PUF, 1995. p. 59.
151 Cf. DRAÍ, R. LeMythe de la loi du talion. Paris Alíné , 1991. p. 26 et seq.
» r »
\
0

122
123
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i
, Capítulo 1
* t
Memória. Ligar a passado. V
*
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9
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*
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V
» I

Lei universal, o talião se presta a leituras contrastantes, corresponden- Um exemplo bíblico ilustra esta irreversibilidade da vindita. Caim, o
* '

do, sem dúvida, às práticas opostas à$ quais pode dar lugar. Ora veremos nis- i primeiro assassino da história, recusa a iníerlocução e o processo que lhe é
» %

-
*
so uma forma regressiva de violência, quando pensamos na violência privada, proposto por Javéí ele não sabe onde está o irmão,, nãó é seu guardiã o. Ei lô
cega, desmedida e virtualmente interminável; ora, ao contrário, analisaremos
»

errando por toda siíperffcie da Terra, e finalmente fundando de uma cidade,


k
*

_ 'como uma figura, rudimentar sem d úvida, mas sólidas legitima de institui-
.
para nela se ocultar Mas a tradição do Midrash (baseando-se no Génese, W3
*
ção justiceira que se traduz, seja por um sistema “vindicativo” civilizado e re- N
' 4á
23) relata,qué Caim foi morto pêlo filho, o qual será morto pelo dele:155 como
•>
. ;•
conciliador, ou por um princípio racional de compensação aplicado por tri- ** na* fábula de Urano, Kronos
x
e Zeus, os inícios do tempo histórico saò^assim, *
*

bunafs embrionários. São essas duas pistas que desejaríamos seguir sucessiva- marcados pelo ciclo irrepressível de uma violência mimética.
»*
*
*

mente, pois conduzem a dois tipos de temporalidade totalmente opostos .


^

^ Ora, o que é muito‘significativo é que esta incapacidade da vingança


No primeiro caso - quando ela é apresentada em contraponto à insti- Chegar a um outro tempo, fechado e repetitivo, corresponde também à sua in- % X

V tuição judiciária -, a vingança é analisada como umapaixão funesta, o apeti- capacidade de chegar à terceira instância social que permitiria triangular o
/
te furioso', desejo de violência contagioso que se nutre, çomo uma chama, de \1 í conflito, e, desse modo, pacificá lo duradouramente. A vingança é simulta
- -
tudo o que acredita se lhe opor. Sustentada por um impulso de morte, esta
- )
• neamente obsessiva ,e privada: encerrada no face a face estéril do delinquente
»
vingança que se veste, talvez, de uma aparênçia de justiça, extraída da recipro- e de sua vítima, esta forma de sanção permanece também prisioneira dè um
cidade de que faz alarde, na realidade, ela continua sendo uma via de fato e de- s tempo entrópieo e mortífero: literalmente, “não dá para sair” x

cuplica á violência ao invés de apaziguá-la.152 Falta-lhe totalmente o distancia-


f r

mento necessário para a reflexão e a mediação do terceiro, sêm as quais a obra j* }


I
f
de justiça não poderia vir à luz. A vingança procede do imediatismo: ela sur- ;
O VINDICATIVO E 0 VINDICATÓRIO 1
'
*

ge de um impulso não refreado, ela exige uma represália imediata. Sem dúvi- 1 I
%

-
,

Dito isto; etnólogos e antropólogos lembram qué a Vingança não se re


'
da, nem sempre é saciada de imediato: nesse caso, ela se nutre de rancòr,
i

4
• *
9

“como se a ofçnsa inicial tivesse feito nascer um crédito, que se tratasse de re- ^ J
4
^
duz necessariamente a este desvio1 caricatural: muito cedo, os povqs .aprende-
ram a transformar o desejo de vindita em uma instituição social suscetível de
cobrar com ágio”.153 Tudo isso passa, então, como se os relógios tivessem para - 1
purgar a mácula da ofensa, compensar o prejuízo sofrido e, com isso, restau-
do na hora da ofensa e que o futuro não apresentasse outra' perspectiva além. - .
rar a concórdia no seioMo grupo De fato, é preciso aprendera distinguir o
da ruminação neurótica do crime e a esperança de sua anulação simbólica. Na" í vindicativo ( desejo cego de vingança de que falamos) do vindicatórip, que é
.' resolução vingativa, o tempo se petrifica no espaço fechado do momento pas- J uma instituição destinada a contçr a violência em limites,aceitáveis.156 O siste- 1

sado da ofensa, do qual o presente e o futuro permitem apenas a repetição ob- ; ma vindicatôrio parte do principio de que a ofensa exige Um dever de repara-
sessiva. Hegel havia notado muito bem o paràdoxo do talião, esta forma de ,
ção: é preciso^ imperativamente, entre iguaij ou grupos iguais, reparar a ofen-'
vingança cujo instante se eterniza: “ela cai”, escreve ele, “num processo infini-
*
_ to e se transmite de gerâção em gerâção” 154
x
,
t!
sa; aequilíbrio exige restituição ou compensação, tanto em questão de ofensa
quanto em questão matrimonial: se uma vida ou uma mulher for retirada do
,
* • N
*
r '
outro grupo, esta perda deve ser compensada
»
>
“ ^ N

DRAÍ, R. Le Mythe de h íoi ãu talion , Paris; Alinéa, 1991. p. 231.


í
152 4 J i

153 Ibid„ p. 75.


I
,,

PRAT, R. Le Mythe de Ia loi du talion. Paris: Alinéa, 1991* p. 102.


S
»
155
i
154 HEGEL,\V. Pr .
í ncipes de la philosophie du droit. Parisr Gallimard, 1966. §102, p 139. .
VERPlER, R. D.efune à lautrevengeance,. In: LaVèngeancet Étuded thnologie; d'h\$ -
(Idées), *
*
V
*
' 156
toire et de philosophie* Sous la direction de R. Verdier. Paris; Cujas, 1980. v. fl/p. 7. ^
' \ .
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i 4»
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124 125
V

’ Memória. Ligar o passado,’


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Capítulo 1 *1
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>
*
'
*
‘ - . ,
Isto pbsto, numerosas regras irão ser empregadas para civilizar este de (
*

- privada, falta a distância necessáríâ para avaliar a proporção correta"entre a


.
ver de vingança Serão ora os limites de tempo (o processo é curto, às vezes ;
muito curto, ele admite tréguas) ora limites de lugar (certos espaços são inter
*

-
v

falta e a sanção; uma equivalência grosseira é aplicada como num jogo empa-
tado entre o ofendido e o ofensòr; na realidade, o jogo é de resultado negatir
-
.
ditos à vingança, pode-se pedir asilo neles) 157 Mais interessante: freqííente-
k

vo porque não se ganha no jogo das represálias. Pelo contrário, a instauração


4

menté são obtidas “composições” que resgatam o direito da vingança; o paga- r do terceiro árbitro permite o acionamento de um jogo mais produtivo, graças
de ,
mento sangue “prémio do perdão apaga a dívida de morte” e se inscreve
158
a um prindpio.de substituição ou cje compensação menos grosseiro que o da
no quadro de um ritual de reconciliação entre as partes Em certos casos, . represália “traço por traço”: algo como um salário será pago,161 a contra parti -
»
-
como entre os Bêduínos, é uma filha ou uma mulher que é èntregue ao gru- f.
# /• da de um progresso, que pague a dívida, e se possível, restaure a solidez do te-
ção pasfca-se, então, à aliança, e do apagamento da dí-
i

po adverso: da cido sodal. Mais tarde, na evolução das mentalidades surgirá também a idéia .
reconcilia
.
vida de morte, à promessa de vida Como simbolizar melhor a passagem do \7,
/ tempo da memória ( o crime rf ão é esquecídoxmas compensado), para o tem- í
* ^ de que a falta não ofende apenas a vítima,mias também a sociedade como um
todo; o processo penal se ídçsenvolverá entre três partes ç a pena deixará de ser
^
-
po do perdão (aceita se uma compensação qué estanca o ciclo da violência), / h
è dò tempo do perdão para o tempo de promessa (a mulher trocada, futura
^, 1í
pensada unicamente como a reação a uma falta cometida em relação à vítima.
\ Uma tal prática institucionalizada da retribuição não inscreve mais a
,
mãe simboliza a reaproximação entre os grupos)? 1 *
pena exclusivamente no tempo da memória.vSem dúvida, o crime é devida-
-
<
Deveríainos lembrar, também aqui, ,a célebre análise de Renée í tirard, \ mente rememorado há o dever de vingança (QU dever de reçlamar o seu de-
para o qual o sacrifício do bode expiatório (uma vítima inocente que fosse to- ’ j
*

vido) - ea falta é cuidafdosamente medida para proporcionar a'importâ ncia


talmente estranha ào crime inicial), explica-se pela mesma vontade de conjurar
a explosão da violência, tornando a violência impossível: quem, de fato, dentro
'

da sanção. Mas o próprio princípio de intervenção do terceiro não é a satisfa -


ção de* uma pulsão de morte que encerra o ofendido no tempo fechado do res -
do grupo tomaria a defesa de uma vítima sacrificada com conhecimento de çau ) - sentimento; o objetivo é, ao contrá rio, reatar o laço social através de práticas /

sa? É precisamente porqu£ a vítima oferecida à vindita não é a culpada que a J cie transformação progressiva do conflito: desvio sacrificial da violência, ofer-
violência desviádà como por um pára-raios extinguír-se-á por ela mesma.159 j ta de uma compensação resultante dos ritos de. reconciliação> até mesmo de ^ -
O passo seguinte, a institucionalização ,da vingança e sua passagem • *
progressiva da selvageria para cultura (ou do estado de natureza ao Estado de l
aliança, colocação em discurso do processo seguido da fixação de uma com
pensação financeira. Ao invés 'de se petrificar ha írreversibilidade do instante
-
v
direito),160 é o acionamento do seu princípio lógico inicial o princípio de ré- - do crime, procura-se inscrevê lo numa temporalidade aberta e confiante. Dá-
-
tribuição “medida por medida” - por um tribunal, a terceira instância susce- 1 8C crédito ao tempo, antes^que se dê ao desejo impulsivo de desforra.
tível de objetivar o regramento da desavença. Enquanto a retaliação continua } Uma outra história judaica nos persuadirá disso, desta vez ao contrário
i das interpretações regressivas do talião. Quando Salomão, renunciando a de- ' 4

.
157 VERDIER, R. Postface. Be la vengeance à la réconciliation InvLa Vengeance.Êtude \ «empatar de outra forma as. duas mães pretendentes da criança em disputa,
“N
.
* dyethnologie, d hístoire et de philosophie Saus la direction’ de R Verdier Paris: Cu-
}
. . j ordena finalmente que esta seja cortada em duas partes (em virtude do direi-
.
*

ja§, 1980. p. 194


158 Ibid., p. 195.
t

V
10 hebraico que quer que os objetos disputados sejam divididos entre os que t
-
1'dantes), a verdadeira m ãe faz a escolha da vida e do tempo neguentrópico:
.
159 GIRARD, R. La Violencc et le sacrê Paris; Grasset, 1972. p. 18, 26, 38, 44.
“que a criança viva”, diz ela, “entregue-a à' outra”. Submetendo os querelantes
160 Este tema é umaconstante nos textos da Escola de direito natural moderno de Gro - rt esta prova, o juiz Salomão pôde ultrapassar a igualdade extremamente ma-
%
tiuâ a Kant, passando pofc Puf íendorf e Locke: cf. BRISSET, J Quelques perspecti . -
-
yes historiques sur la règle “ Nul ne se fait justice à soi même” Archives dephiloto- v

fie du droit, p. 205 et seq , 1976 . .


\ .
161 DRAÍ, R. Le Mythe de la loi du talion Paris: Alínéa, 1991. v
V
LI

126 127 .
s
Capítulo 1 . .
frf èinôria JLigaf o passado

1
'
temática de uma justiça formal, que é também a do talião. Tal como a verda- S obrigações. Do mesmolnodo, a Revolu ção e o Império terão sido apenas um 4

99

deirá ;mãe da criança, ele dava assim oportunidade à única memória autênti- parê ntese infeliz: o Rei esteve “ausente” e ei-lo que volta na^ restauração; vinte
f

' ca, aquela que, por estar ha origem da yida faz também a aposta da sobrevi- *
ra c cinco anos de história são negados e sua memória condenada por uma Car- ^
da.162 Uma mem ória que, antes de se anular no ressentimento, supera-se na
*

ta datada do décimo nono ano do reinado de Luiz XVIII. Sem dúvida, a mo-
% i

confiança do. futuro. narquia sempre soube limitar-se a si própria; os precedentes históricos ates-
tam isso. Do mesmo modo, to rei declara/^a exemplo de seus predecessores,

* t
OS DESVIOS DO PASSADO SIMPLES '
)
Esfor çamo-nos para demonstrar a importância do passado e da memó
- .
: -
apreciar os progressos sempre crescentes das luzes”, mas não nos enganemos
^

com isso: o foco da legitimidade continua sendo a coroa; do mesmo modo, o


soberano espera “que instruídos pela experiência, eles (“nossos povos” ) se-
riam convencidos de que a autoridade suprema é a ú nica que pode dar força -
ria para a instituição jurídica do tempo social. Mas este passado só é portador 1 '
ã$ instituições que ela estabelece, a permanência e a maje$tade de que elamesl
>

.
de sentido na condição de ser “composto”: plural, construído, religadç ao pre-
sente, desde o momento, ao contrário, em que pretende simplificar-se, ele se '
absolutiza e se torna regressivo: apresenta-se como monolítico e canónico, ;
mais que diverso e compósito; ele passa por dadp, evidente, natural, pois que ]
J ^
r
ma é revestida; jque assim, quando a sabedoria dos reis concorda livremente
com o yoto dos povos, uma Carta constituciopal pode ser delonga' duração”.
Para encontrar este ponto de equilíbrio, declara ainda ter procurado

é reescrito a partir de hoje; ele se encerra em sua anterioridade completa, ;


J

uos princípios da Carta constituciohal no caráter francês e nos monumentos


Veneráveis dos séculos passados”. Enfim-, o texto se encerra através desta refle-
*
como se não tivèsse cessado de se transformar no percurso Denominamos . i 1

xão de uma sinceridade desconcertante: procurando, desse modo, “reatar a ca-


“passado simples”, como dizemos “ir sozinho”, esse trajeto sem retorno em di- ^ *
deia dos tempos que funestos intervalos tinham interrompido, apagamos de
reção a um passado fechado e autoritário. J
nossa lembrança, como quereríamos que sè pudesse apagá-los dà história, to-
As manifestações deste passado simples observam-se nas quatro for- i dos os males que. afligiram a pátria durante nossa aqsência...” Através deste
mas de témpos da mèmória que distinguimos: o tempo inaugural das funda- ^ i
trabalho explícito de recalqué, a Restauração quisera fechar perfeitamente um /

ções, o íempo da longa dhração da tradição, o tempo cronológico da história * parêntese da história, a fim de reata* com uma legitimidade monárquica mi -
dos acontecimentos*, e, enfim, o tempo intemporal dos invariantès. O tempo * .
lenar Mas, no intervalo, uma outra legitimidade sopbe dar crédito a seu futu -
das fundações estabelece a legitimidade política e garante, na linguagem ge- ro anterior, de sorte quç, daí para .frente, são a. República e os direitos do ho-
.
, ’ nealógica; a constituição do sujeito Mas se o pai ou ó* príncipe pretende en - ‘ > mem que já ter ão sido sempre legitimados: apesar de vários retornos para trás,
carnar ek mesmo alei, ao invés de ser apenas o substituto óu o porta-voz, o i esta idéia acabará se impondo. *
autoritarismo ameaça, e com ele a negação da história. Desse peso histórico li- ,ij , O longo tempo da tradição - aquele que valorizava a título do “imper ‘ -
gado à reconstituição artificial dç uma cadeia de acontecimentos, e visando ;í feito” a Escola do direito histórico - mostrou igualmente sua fecundidade,
reatar o nó rompido da legitimidade, o Preâ mbulo da Carta constitucional de '
condicionado, contudo, a submeter esta* herança a uma constante adaptação,
COmo era o caso do costume e do precedente. Apesar deste trabalho perma-
.4 de julho de 1&14, assinada pòr Luiz XVIII, oferece um exemplo que ficou cé- ;
lebre. O texto abre-se^com esta considera ção: “A Divina Providência,'chaman- J
nente de atualização, a tradição torna-se inércia, e sua operação um instru-
do-nos a nossos Estados, depois de uma longa ausência, impôs-nos grandes mento de rea ção social. O apego excessivo aos direitos adquiridos é um exem -
l plo disso, uma vez que busca se*opor às necessárias modificações das leis. Ma-
quiavel, o conselheiro dos príncipes, conhecia a força desta afeição preguiço-
V

.
DRAl, R. te Mythe de la loi du talion Paris: Alinéa, 1991. p. 167 et seq.
*
4

162
* “Historire evénementíelle”. (N.R.T.) \ sa ao passado e não hesitava em fazer da temporização um instrumento de go -

128 129
, Capítulo X y
r *
l <
* x J
i ;
\ •*
>
r
\
* I ’e
* * Capítulo 2
verno: “imagine”, dizia elé, “que não existe questão mais difí cil, mais perigosa ‘ *
de manejar, mais jncerta de seu sucessó, que empreender a introdução de no- r •»
i
vas instituições; pois o inovador tem como inimigos todos aqueles que a an- * V
-
f
tiga ordeni beneficiava, e. não encontra senão mornos defensores entre estes %
V ^ * «

que a ordem nova beneficiaria [..* ] Os homens não acreditam voluntariamen- - ,


PERDãO.
/
te nas novidades enquanto não as tiverem tocado com o dedo”.163 ~ ,
I

DESLIGAR -O PASSADO.
Quanto ao tempo cronológico do passado histórico, falamos de sua im-
portância em relaçãa à memória social. O direito contribui para isso, de res-
to, com eficácia, desempenhando frequentemente o papel de notário ou de es-
i ^
crivão dos fatos passados. Mas ainda aqui, os desvios ameaçam: através de
boas, e às vezes menos boas razões, os, fatos é as datas são algumas vezes ma- 1
f
H
* \
t
t
. , nipulados, a memória traficada. Sem dúvida, toda memória é seletiva e toda
tradição reconstruída, mas há uma margem , que alguns atravessam, às vezes, ~ ^í ANDANTE <
4
I

entre memória seletiva e memória falsificadora, tradição reconstruída e tradi - i


V

ção enganadora. >


“Não afirmamos que devemos fechar os olhos para nosso passado. Mas a
O passado composto comportava ainda um quarto tempo, aquele que j '

denominamos o tempo intemporal do estilo jurídico: uma certa relação com - ' •
justi ça não pode processar todo mundo, isto não teria fim”, assim se exprimia, em
os textos, uma certa exigência de justificação que implicava, principalmente, a outubro de 1996, Desmond Tutu, Pré mio Nobel da Paz, presidente da Comissão \ *

$ ul africana “Verdade e Reconciliação” Depois de d écadas de apartheid e de ter-


coerência diacrônica das referências, e a fidelidade aos compromisso assumi- \
dos. Mas, ainda aqui, seu dobrar frio sobre yerdades passadas àmeaça a cristã- " ^ J ror e de ódio, a Á friéa do Sul acabava, de fato, de fazer esta aposta inaudita: sim, \

lização do pensamento* O direito, recusando-sè a deixar-se interpelar pelas 3 seria possível olhar a'verdade de frente, e exorcizar o passado; sim, poderí amos
N

*
exigências do presente, torna-se, então, dogmático e sua prática tòrna-se for- A j
*
perdoar, sem por isso esquecer. V

malista e legalista. Esta anistia sem amnésia tinha sido prometida pela Constituição de 1993
\
Em todos esses casos, importa que o tempo da memória se ultrapasse ou | t uma lei de 26 de julho de 1995, instituindo a comissã o “Verdade e reconcilia-
1

se suplante nas formas enriquecidas de temporalidade: a do perdão que desliga - ção” a tornou possível 1 Toda a verdade será feita, as vítimas serão ouvidas, suas
<
o passado, a da promessa e do questiònamento qpç instituem um novo futqro. $
ofensas estabelecidas; os autores de seus sofrimentos serão identificados, humi -
. O tema da vingança é sem d,úvida a melhor ilustração. Enquanto ela se encerra H *

no passado traumático do ressentimento, a vingança é regressiva e mortífera; }


lhados, e suas confissões devidamente publicadas. Mas, mesmo^que o caráter po-
* mas a partir do dia em que éía se socializa e se inscreve numa perspectiva de ré- | l í tico de seus crimes seja reconhecido, a anistia civil e penal lhes será concedida; .
«
conciliação futura, a vingança (que denominaremos, agora, “exigência dè justi- í quanto às ví timas, elas serão indenizadas por outros canais. As causas, a nature - *
ça” )* inaugura uma temporalidade nova, portadora de sentido e de esperança. * '
[ z a c a extensão das violações dos dirpitos fundamentais serão ànalisadas e fortnu- /

» t \
. latias recomendações para o futuro. Tais são os termos do difícil compromisso ela-
*
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* * *
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* •
> 1 PARKER, P. The polities of indemnities, truth telling and recortciliation in South
163 MACHIAVEL, N. Le Prí nte: Paris: Le Livre de poche, 1983. p. 29-30, África. Human Rights Law Journal, v. 17 , n. 1 / 2, p. 1 et seq., 30 Apr. 1996.
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130 131
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1

Capítulo 2 , , Perdão.Desligar o passado.


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boraâo entre direitos da memória e necessidade dereconciliação. E a aposta pa


v
J - “que os assassinos confessem seus crimes, como ria Á frica do Sul”, exige Estella
rece em vias de ser ganha, abrindo um outro futuro para o país dp apartheid> Barnes de Carlotto; porta-voz delas.4 A Comissão Interanteriçana dos Direitos ‘

A própria França tenta, naquela ocasião, amtesma aposta sobre um futu % - Humanos diz a mesma coisa quando se conforma com as leis da anistia, com a ,

ro reconciliado. No dia .22 de abril de 1988, quatro policiais da brigada He Fa -


< condição expressa, contudo, de que o passado seja posto alimpo e que as vítimas
"
, yaoue, na Ilha Oíivea, na Nova Caledónia, foram assassinados a facadas por in - sejam indenizadas e suà.dignidade restaurada/
No Chile se instalará, igualmente, uma comissão “Verdade e reconcilia-

.
dependentistas Perseguições são imeâiatamente iniciadas a máquina repressiva ,
* sepõejem marcha. Maé uma lei do 6 de novembro seguinte, aprovada por refe ‘ jj - ção”, presidida por Paul Rettig; ela trabalhou ativamente.de] março de' 1990 a
rendum, pronuncia se pela anistiada -
ação pública foi extinta, as perseguições fo ' 4n - março,de 1991: inúmeros testemunhos são colhidos, não menos de quatro mil as-
• ,
.
ram abandonadas Indignados, os parentes das ví timas clamam por justiça, le /4
e

- sassinatos ou desaparecimentos, deVidamente esclarecidos, todo um sistema de


1

„ vando sua demanda até Estrasburgo, Mas a Comissã o Européia dos Direitos Hu A - repressão sistemática programada, claramente desmontado, mas, sem poder im -
manos declarou o recurso inaceitável: “esta lei de anistia, que apresenta um ca í - putrir responsabilidades individuais, seu trabalho não apazigua os rancores O
%

.
ráter absolutamente excepcionàl, foi adotada no qúadro de um processo dç regu - medo continua apesar sobre o povo chileno e, com ele,' um sentimento de aban-
lamento global do contencioso entre as diversas comunidades do arquipélago”2
Ê todo um continente, a América Latina, que se interroga a propósito des
M
V -
^ dono e de covardia:' “vocês fizeram de muitos
.
dentre nós covardes e traidores de
nossos próprios princípios”, escreve Marco Antonio de la Perra, numa carta aber-
*

V ta difícil anistia sem amnésia. Depois de terem sido mergulhados durante mais I -
.
ta ao General Pinochet 6
E, contudo, o incrível aconteceu: no dia 16 de outubro de 1998, às 23 ho-
+r

, , ,
de dua? décadas na noite :das ditaduras Argentina Chile Peru Guatemala , ,
,-
Honduras El Salvador, Uruguai e ainda outros países levantam lentamente a ca - ras e 15 minutos, Pinochet foi preso em seu quarto de hospital londrino: um po-
licial entrega na residência uma citação para comparecer em juízo, seguida de
j

-
beça. Fala se puãicamente de “transição democrática\ Com frequentes anistias
}
A
um mandato de prisão internacional e um pedido de extradição, expedidos pelas
no final da operação, Auto anistias, é preciso, reconhecê lo muito bem: textos im
- - : - *

autoridades espanholas. Assim, um julgado ousou: contra a sacrossanta razã o de


l postos por juntas militares que estando hturn beco sem saída fazem dela a condi - V
"

Estado, todo o peso das cumplicidades diplomáticas e económicas e a pretensa


ção de sua retirada. As vezes, como em El Salvador em 1991, uma comissão ÍCVer -
dade” foi, contudo, instaurada e aplicada sob os auspícios das Nações Unidas; , 1 imunidade jur í dicà <jos antigos chefes de Estado, o juiz espanhol Baltazar Gar -
mas seu trabalho foi minado por uma lei de anistid total votada dois anos mais < ) zon pretende julgar Pinochet fazendo, assim, valer U m novo direito internacio
^ -
nal, em vias deformação, mais receptivo à queixa das vítimas.
s

• tarde: a verdade jamais será dita / Na Argentina, o Presidente Meriem invocan , -


do seu próprio passado de prisioneiro político, apela para o perdão, condição ne - ^ Eis que o medo mudava de campo; era como se a fatalidade tivesse deixa-

-
cessária da reconciliação. Mas a mensagenvê incómoda quando a
estabelecida. E são sobretudo as mães e as avós da Praça de Maio que ouvimos:
as avós da Praça deMaio que circulam há vinte anos sob asjanelàs dofalácio do
não é V
1
verdade
do de pesar sobre as cabeças das vítimas e que, para os tirançs carrascos do inun-
do inteiro, a impunidade fosse substituída pela ilegalidade. v
Ainda era preciso que a Câmara dos Lordes, a mais alta jurisdição inglesa,
permitisse retirar a imunidade do antigo ditador, sempre hóspede do governo bri -
K ,
-
governo, reclamando a verdade sobre o destino dos milhares. de desaparecidos;
t'
.... -. . . - X * *
^ t 1 4 La Libre Belgique, p. 7, 17 jan. 1998.
2 Comissão européia dps direitos humanos, Décisions et rapports, 72, Strasbourg,

*
aVril 19§2, p. 238. ^ 5 LUTZ, E. Responses to amnesties by the Inter-American System for thç protection
.
N ' of human rights, In: HARRIS, D.; LIVINGSTONE, S. (Ed.). The Inter-american
3 LUTZ, E. Respofises to amnesties by the Inter-American System for the protect íon
System of Human Rights. Oxford: Clarendon Press, 1998. p. 368.
of human rights. In: HARRIS, D.; LIVINGSTONE, S. (Ed.) The Inter-american
f

System of Human Rights. Oxford: Clarendon Press,'1998. p. 365. 6 LeMonderp . 3, 19 nov. 1998. '

132 133
•/
4

tânico, Na expectativa da sua prisão, contudo, as coisas se precipitaram: da Bé lgi - de $cr adotados em Roma, em julho de 1998: um Tribunal permanente habilitado
ca,, da Suíça, da Itália, da Suécia, outros pedidos de extradição eram formulados, d julgar, por iniciativa pró pria, os autores de crimes contra afrumaniãaãe.
r
No dia 12 de novembro, a França por sua vez lançava o mandado^ de prisão inter- i “ Uma espiral, uni turbilhão de tempo e de espaço como uma vertigem”,9
.

nacional por usequestro e tortura*, em acusação qo antigo chefe de Estado chileno.


,
assim era comentada a prisão, pela escritora chilena Carmen Castilho. Sem dú-
Finalmente, em 25 de novenibro de 1998, ca ía a decisão da House of vida, muitos obstáculos ainda serão levantados antes que Pinochet seja julgado,
t* avaliada a razão de Estado*. Pelo menos os juí zes abriram caminho para um
*
Lords por três vptos a dois, a imunidade fora retirada; um primeiro obstáculo ao
;

julgamento do ex -ditador estava afastado, Uma outra forma de perdão jurídico \ Olltro passado, penhor de um futuro diferente. . ‘ J
>N

Do perdão assim entendida


, como segunda chance do passado, rèescritura
Í
.
poderia se desenvolver. Não absolutamente a remissão de um crime individual,
• »

mas o início de uma mudança profunda de perspectiva, a adoção de uma solu- 1


^ de um texto tornado insuficiente, o direito, e particularmente a jurisprudência,
ção nova em substituição a uma tradição tornada inaceitável oferecem inúmeros exemplos. Pela interpretação evolutiva, o juiz pode operar as
transições com sutileza e atualizar solu,ções envelhecidas, com o risco de se expor
A prisão tfaz a marca desta mutação.7 Já o presidente Lorde SlyHn ofHa- *
dley, prevenira: será preciso dar efeito às mudanças ocorridas em direito interna- * j '
J í) rcprimenda de retroatividade .
Como, por exemplo, uma jurisdiçãò inglesa que em 1989 condeúava um
cional, principalmente em matéria de imunidade, e não se ater àsé gra de respei-" 1 Indivíduo pela violação de sua pró pria esposa enquanto a disposição inglesa per-
to ao precedente. Igualmente, quando o juiz Lloyd ofBerwick sustentava que “ os 1 '

tinente definia a violação como fato de “ter relaçpes ilegí timas com uma mulher
, atos de assassinato e de tortura, dos quais o senador Pinochet é acusado, são atos *
governamentais por natureza” ( e entram, assim, se ousamos dizer, no exercício ' •O
J que não consente”, o que parecia excluir* a hipótese da violação entre esposos, in-
“normal” de suas funções, coberto pela imunidade ), este será o ponto de vista do terpretação confirmada por uma linha de precedentes remontando a 1736. Com
juiz Nicholls que irá prevalecer: o direito internacional colocou fora da lei as vjo - toda a força dessa pretensa “imunidade conjugal”, o marido indelicado apresen-
loções mais graves dos direitos humanos, e não se podia mais considerar, desde se- tou um recurso em Estrasburgo: invertendo esta interpretação tradicional, apli -
tembro de 1973 ( data do golpe de Estado militar ), que .estas ainda entrassem no
'
cava -se- Ihe,' dizia ele, retrospectivamente, a lei penal, prática proscrita pelo arti-
go 7o da Convenção Europé ia dos Direitos Humanos.
campo das funções* oficiais de um chefe de Estado. ,
£>
* ' *3 Recurso recusado pelo Tribunal europeu: ele não ignora, sem d úvida> a
Desta vez, a hora da verdade se aproximava: contra a “máquina do esque- vi
importância do princí pio da não retroatividade da lei penal, mas escreve: “por
, cimento da ditadura que apaga a existênçia dos assassinados”,0 a justiça marcava , J mais claro que seja o libelo de uma disposição legal, sempre será preciso elucidar
-
um ponto. A igualdade diante da lei triunfava contra o privilégio da imunidade; a
ç
. ompetência universal das jurisdições para os crimes internacionais mais graves
J os pontos duvidosos e- adaptar-se às mudanças de situação” de sorte que “ajuris-
,
%

prudência contribui necessariamente para a evolução do direito penal”. E o,Tri -


(genocí dio, tortura, crime contra a humanidade ) atropelava as fronteiras estatais; . j
bunal conclui que o artigo 7o “não poderia ser interpretado como proscrevendo a
os direitos da memó ria para os atos imprescritíveis se impunham ao esquecimen- X *
clarificação gradual das regras da responsabilidade penal, cíesde que d resultado
to. Ao “lugatnçnhum” e ao “já é tarde” da justiça clássica iriam, talvez, suceder um
'
j seja razoavelmente previsível”.10 Ora, quem poderia negar que a concepção das
tempo e um lugaf novos: os dos direitos humanos imponda -se à razão doEstado. J «
Uma ordem pública internacional em vias deformação ganhava corpo, cujo braçò j 1

armado seria o hovíssimo Tribunal Penal Internacional, cujos estatutos acabavam . j


,
9 CASTILLO, Carmen. La mémoire ne se rend pas. Le monde 27 nov 1998* .
* O original defcta obra Foi publicado no ano de 1999, quando o General Pinochet
*

V
ainda aguardava uma resolução da Justiça quanto ao seu julgamento, do qual ficou
.
7 House of Lords, Regina v Barde and the Comissionner pf Police for the Metropolis
-
isento por tempo indeterminado devido à suposta precariedade em.que se encon -
and others ex parte Pinochet, 25 Nov. 1998, Fublications ón the Internet Judgments.
. . .
tava spa saúde (N E.) .
*
.
8 CASTILLO, Carmen. La mémoire ne se rend pas Le monde, 27 nov. 1998. \
. . -
• 1Ò Decreto S W c. Royaume Uni de 22 de novembro de 1995, § 36 . *
*

f
*
. *
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134' 135
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relações conjugais não era mais, em 1989, o que era em 1736? A 'condenação era J , solução operass'e conl o efeito retroativo de 30 anos.' 2 Todos os processos em cur-
então, Mrazoavelmente previsível” e o juiz inglês permanècerâ fiel à sua missão ao \ SO foram brutalmente interrompidos e desvanéceram-se as esperanças de indeni-
iV Çélo a cargo do Estado. Os querelantes, frustrados tão perto do objetivo, não se
- interpretar um texto intocado, com a ajuda das concepções de hoje
Isso não quer dizer, longe disso, que qualquer retroatividade seja legítima í
,J . <

. confessam derrotados, contudo, multiplicando ações e recursos; o Conselho de Es-


Um outro decreto ão Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deveria conven
>
1
1
- tado não teria estimado, ele mesmo, que a lei em projeto"criava uma inseguran - *

- ,
cer nos disso: se a lei dispõe sobre o futuro ém contra partida, apenas excepció , 1 - çil jurídica e uma discriminação itijastificada”?l O Tribunal de arbitragem, sem
nalmente pode dispor sobre o passado. O legislador belga irá aprendê lo a suas - - dú vida, sensível às ãificuldadés orçamentárias do Estado, não irá julgar, entre-
,
próprias custas num caso que dizia respeito à responsabilidade dos pilotos im l , - tanto,'‘desproporcional” o atentado feito à segurança jur í dica, tanto que os casos
rpostos pelo Estado aos navios que se preparam para subir o Escaut em direção ao .
lernúmios não são revisados Finalm nte
1*
è , a última palavra ficará com o Tri- , •

.
portó de Anvers Se apesar da presença deste piloto algum dano sobrevem ao na
vio guiado deste modo, ou é causado por eley a quem cabe a responsabilidade? )
- bunal Europeu dos Direitos Humanos: por um decreto de 20 de.novembro de -
„ 1995 ele concluirá pela violação da.Convenção, devido à retroatividade inerente
-
Tradicionalmente o Estado Belga eximia se de qualquer responsabilidade: o pi }
loto, dizia se sempre, era apenas “conselheiro” ou o “preposto” do capitão, que *
-
- íl lei interpretativa de 1998 que tinha "como objetivo e como efeito privar os re-
querentes de seus créditos em indenização”.' 5 -
• continua sendo em quaisquer circunstâncias o único senhor a bordo. Assim, de -
3 A reescrita do passado jurídico permanece, então, um exercício' delicado.
i
cidirá um antigo acórdão de cassação de 19 de março de 1896 solução, de res s V
to, confirmada por uma lei de 3 de novembro de 1967.
t - - Se num sentido ela é inevitável e até necessária ( o decreto de rescisão de 1983
reescreveria igualmente o direito, e conrefeito retroativo), contudo, nem toda re-
Mas, eis qúe, por unia decisão de 15 de novembro deJ 983,u o Tribunal de '

Cassação põe fim a este regime: se um -piloto é imposto pelo Estado aos navios r
troatividade é legítima. Entre atualização e manipulação do passado a margem
é estreita, sem nenhuma dúvida. No capítulo sobre o perd ão, tempo do passado
r

mercantés; não será lógico que ele assuma seus erros eventuais? De resto, é a par ç -
tir de uma decisão de 5 de noyètnbro de 1920 que oprí ncí pio de uma possível re- : ‘ desligado que se aborda agora, são os ajustes delicados dessa balança temporal
visão da responsabilidade dós poderes públicos, em cdso, de ertos de sua respon • < què precisaremos descobrir: entre dever de memória e direito ao esquecimento;
- >

entre evidência do passado e exigência do futuro.


sabilidade, fora estabelecido. O decreto, sem dúvida,' não iria p'assar despercebi
9 do: os armadores viam abrir-se repentinamente, diante deles; a possibilidade real
de indenização, tanto que, por efeito da prescrição trintenárfa, a reparação de si '
-
-
^ \

AS EUMÊ NIDES OU A INVENÇÃ O DA JUSTIÇA


f
\

nistros muito antigos tornava se viável. Em alguns meses, a Estado belga viu se
- -
/
citado para comparecer em juí zo não menos que cinquenta e três vezes, elevan-
-
do se os créditos em jogo a mais de três milhões e meio de francos belgas. 1
} 1
^ ê

Como desligar o passado sem aboli-lo? Como superar ç. ofensa sem es-
•*

Podemos advinhar a perturbação tios meios governamentais, cujas previ quecê-la? Como ultrapassar a vingança sem afundar na injustiça e na deson-
J, - ra? l íngué m melhor que Ésquilo, na Trilogia da Oréstia, relatou as condições
soes orçamentarias eram Colocadas em mau estado Inquieto, o governo acabou • .
por obter a votação de uma lei que^iria eliminar tio nascedouro à novajurisprú
dêtt çia: sob pretexto de interpretação dalei de 1967, reafirmo,u se o princípio da
- /
I

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4
1

- 12 Lei de 30 de agosto de 1988 introduzindo um artigo 3bis na lei de 3 de novembro


irresponsabilidade total do piloto e tomamos o cuidado total de prècisar que esta de 1967 . i
V
t *

.
13 Doc Pari , Sénat, 1985-1986 n 369/1 p. 15
. , , . * . V

14 Decreto de 5 de julho de 1990, decreto n. 25/90, p. 214 .


411 Cass. 15 de dezembro de 1983, Pas., 1984,1, p. 418 et seq. e conclusões do advoga - i r
x » j

do geral Liekendael. *
.
15 ArrêtPressos Çompania naviera S A. et autres. c. Belgique, 20 novembre 1995, § 43.
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Perdão Desligar o passado. .í
/ Capítulo 2 / *
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4
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lembrança que não lhes deixa mais’ daí para frente um instapte de serenidade, é-
4

de aparecimento desta justiça que mostrando-se, enfim, capaz de perdão, nem


f

por isso deixa de fazer trabalho de memória. , •<


t
Ihes'necessário cumprir um duplo dever de honra e de justiça.19 Tão primitiva e
*
As Eufnênides narram o ptócesso de Orestes, assassino e sua m ãe Cli- í raivosa que ela seja, esta vingança já é de fato portadora de uma exigência de jus-
^
' (

.
teçnnestra Mas na verdade o crime mesmo deve ser posto em perspectiva, pois / tiça: deixar o crime sem reação séria, ao contrário, uma verdadeira injustiça que
•não é mais que o ponto de chegada de uma sucessão de perversidades de que se
j
“gritaria por vingança ao céu” Não há nénhum desses vingadores que não cla-
*

me de fato pelajustiça, que não pretenda fazer uma obra justiceira. Mesmo Cli-
4 4

, *
A
torhou culpadas Casa de'Argos;Atreu*matara os filhos de Tiestes, seu filho Aga-
*

,
mênon sâcrificara sua pobre filha Ifígênia, na esperança de beneficiar-se com os temnestra* que assassinou covardementè seu esposo no' banho, acredita-se
ventos favoráveis para sua expedição contra Tróia; Clitemnestra vinga-se deste
4
“obreira de uma justa vingança”:20 ela não terá feito justiça ao sacrifício de Ifígê-
crime (é a história narrada pela primeira peça da Trilogia: Agaménon ); e, enfim, - fyj llia e, remontando mais longe, no tempo, nãô é um instrumento do castigo de
*
Orestes vinga, por sua vez, a honra do pai, matando Clitemnestra e seu amante, Atreu?21 - Semeando mesmo a dúvida no espírito do Goro, que parecè hesitar:'
>
Egisto (tal é o tema da segunda peça da Oréstia: as Coéforas )> Assim, o crime é f s 1
i “pode ser que o gêriio que vinga os crimes dos pais seja teu cúmplice”. 22

transmitido de geração lem geração, e os deuses (no caso Hades, deus dõs infer- fi Finalmente, toda esta violência é apenas a execução, ao pé da letra, da v >

nos e as Erínias, suas acólitas, as “deusas de longa memória”, as “implacáveis vin- \ J antiga lei de Talião, lei divina, que é regularmente lembrada no decofrer da
gadoras”) fazem os filhos pagarem pelos erros dos pais . í . ação. Assim, lembra o Coro em Agaménon: “A uma reprovação, corresponde
Ondas de sangue espalharam-se nestas histórias* mas longe de escorrer, uma reprovação, questão difícil de-destrinchar. Quem pega é pego, quem mata
paga a sua- dívida. Á leí continuará çnquanto Zeus permanecer no trono: cao
o sangue se cristaliza,10 aguardando a hora da vingança. Esta constitui'o mo % - culpado, o castigo’. Está na ordem divina” 23
*
* x

tor único de toda a intriga, ò horizonte do único'futuro possível e a mófiya- $


*

ção de cada um dos personagens que parecem permanentemente ou temer ou A Se é incontestável que a vingança e á lei de Talião traduzem uma pre -
. tensão mínima à justiça, o problema é que essa justiça muito rápida e de al-
-- -
esperar a intervenção das Erínias Igualmente, o passado tem pelo menos tan
ta presença quanto o presente: é para ele que o coro voíta se permanentemen-
te para entrever as causas distantes das desgraças atuais xe nele ocultar o ineví j
j -
-
^ *
gum modo demasiadamente imediata 'não dispõe de umetaprincípio” que lhe
pernjitiriã' elevar-se acima do cara a cara das reivindicações opostas: se cada
um pode, cpm todo direito, invocar a justiça de seu lado sem ‘elevar-se à ter-
tável futuro transformado.17 Tudp se passa como se o tempo aqui marchasse * *

ceira instância, quem poderia separá-los, ônde está a diferença entre esta jus-
t
ao contrá rio: longe dé experimentar o novo, não faz mais que completar o an , - tiça e a violência nua? Os personagens de Ésquilo, como todas as sociedades
tigo, confirmar o que estava escrito na memória do crime Por ser transferido { . antigas, são prisioneiros deste dilema: literalmente, não podem “sair dele”. As-
*

de uma geração para outra,'o castigo não é mais que inevitável, como se de- , *
sim acontece com Orestes, dividido entre dois deveres opostos: vingar a hon-
Vesse pagar daí em diante com os interesses . ra do pai e respeitar a sua mãe, mesmo assassina; Clitemnestra o sabe bem, e,- .
Instrumentos desta vingança divina, os heróis fiéis ao seu código de hon- •V >
antes que o punhal a fira, diz-lhe ainda: “reflita, tome cuidado com as cadelas
y
ra quase não têm escolha. O primeiro dever deles é uma obrigação de memória. ‘
%

„ . “Lembra-te do assassinato” lança o Coro a Eletra em As Coéforas;16, Armada da' v , : m


n .
19 SAÍD, S. La tragédie des vengeances In: COURTOIS, G (Org.) La Vengeancc Pa- . . .
. .
/
t
ris: Cujas, 1984. v 4, p. 51 et seq
J
r
i

16 ÉSQUILO. Les' Choéphores, in Thédtte complêt Traduit par E. Chambry Paris: Gar- - . 20 Ésquilo, Agamemnon, Ibid., p. 165 .
nier: Flammarion, 1964 p 180 .. . i '
. . .
21 Ibid ; p 167
^
. . .
17 ROMILLY, J de Xe Tetnpsdans la t; ragédie gtecque Paris:Vrin, 1971. p. 28.
t

22 Ibid . i
/

. % *
- .
18 ÉSQUILO. Les Choçphores, in Théatre còmpíet Traduit par E Chambry. Paris: Gar- x . . .
23 Ibid , p, 168
A \

*
V
»' mier; Flammarion, 1964. p. 182
^
.

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138 í 139
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PerãâQ Desligar o passaâcf

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1

- se Ndiscute no texto - lima ideia política absolutamente nova, que consiste em


i

V
vingadoras de tua mãe”; e Orestes responde: “mas as de meu pai, onde- fugir
delas se eu renunciasse a vingá lo?”24 r
-
Quem não partilharia logo do desespero do Corifeu, quando se fecha
0
^ substituir a força pelo diálogo. Assim, assistimos ao vivo ao nascimento de um *
direito e de um Tribunal cuja “boa fundação” é performat ívamente atestada «.
/ >

este segundo drama: “então, onde se irá parar, enfim adormecido o ardor da V
ll

.
pelo próprio sucesso no “caso Orestes” Ao negociar legalmente o direito, Até-
í
desgraça?”25 e, contudo, na terceira parte da Oréstia, as Eutpênides> Ésquilo a na prova e aprova a possibilidade de instituições justas*indexadas à autorida- ' ,

exemplo da Atenas democrática de seu século irá propor uma. saída comple- $
*
de das leis e da lealdade dos protagonistas.
tamente diferente para o conflito* de uma novidade radical: a justiça, enfim, - :
J
A
Abrindo a cortina, estamos em Delfos: Apoio assume o parricídio de
*
substitui a vingança, a deliberação ultrapassa a violência, enquanto o .tempo / <
Orestes, enquanto as Erínias cobrem-ho de imprecações: “Jovem deus, você A
^
da memória é Substituído pelo perdão ' .
. /
i
esmagou com os pés antigás divindades”.26 Eis-nos alertados: o processo hu- «

t v
/
« t
mano tem exatamenfe por quadro (e também parcialmente por lance) uma
)
* I \
I querela teológica que recai na precedência das divindades: ou bem o triunfo
PROCESSO JURíDICO E QUERELA TEOLóGICA
%
%
*
dos deuses modernos* próximos dos homens e parecendo encorajá-los em
^
t
t suas empresas de autonomização, Apoio e Atena (esta, Veremos, sabe organi-
As Eumènides representam uma obra completa e muito coerente, onde
* 1

-
> ¥

*
t zar os direitos e prerrogativas das divindades antigas); ou bem as Erínias e Ha
diferentes temas se entrecruzam e se reforçam. Duas questões são colòcadas de
>
A;
des aos quais “os mortais devem responder por seus atos na terra”.27
modo explícito e fazem a trama da história: que destino é^preciso reservai para
i

-
%

A cena seguinte transporta-nos para Atenas: Orestes, abraçando a está


Orestes? Que lugar Organizar na cidade para as antigas divindades que são as ^ *
f » *

tua de Atena, pede que a justiça seja feita e invoca o tempo do esquecimento, o
^
y

Erínias? De um lado, o processo jurídico, do outro, a querela teológicá, mas da tempo que “ao envelhecer aniquila com ele todas as coisas”.28 Sem dúvida, as
v
filigrana destes tèmas explícitos perpassam questões mais importantes ainda, \ »
\ Erínias nada entendem desta linguagem: “pedido inaceitável”, gritam elas, e cer-
que dizem respeito ao próprio direito. E logo de início esta: a quê lei será pre- J tas de serem “perfeitas justiceiras”, ei-las que retornam à sua ronda vingadora.29
ciso se referir para decidir estas disputas? Ao direito antigo (baseado nas tradi
ções aristocráticas de força, de laço de sangue, de bravura e de vingança) ou ao
- Atena, contudo, ouviu o apelo que lhe foi endereçado; de chofre, sua in-
>

tervenção assume um feitio jurídico: que se decline a identidade, os títulos, os


direíto novo (baseado em leis adotadas pela maioria e dando lugar à anistia,
quando o bem público o exige)? E ainda esta: que procedimento se precisará
,<
^
í»
.
motivos de sua queixa Antes de^ falar, Atena escuta; cada parte é levada a ex -
adotar para decidir sobre um processo humano que põe em causa, de íim 4
» -
plicar se, a oferecer os motivos de seu comportamento, melhorias razões de
seus atos; àssim, Atena ganha a confiança de todos e pode instituir-se juiz da
modo tão direto, prerrogativas divinas (será preciso deixar as coisas acontece-
querela deles: “Vós me entregais a decisão do julgamento? - Sem dúvida, pois *
*
rem e esperar que infalivelmente o preço do sãnguè seja exigido, ou será preci-
i

so instruir um processo e discutir ou colocar a causa em deliberação)?


,
tu és digna e nós té veneramos como'o mereces” 30 Um primeiro passo decisi -
Finalmente, um motivo adicional atravessa a peça e lhe confere simul-
vo é assim dado: ao impulso mortífero imediato sucede o tempo diferido do

-
r

'taneamente a unidade e a originalidade: é a mediação da própria Atena que


\
,
vivência, diante de nossos olhos, em tempo real, diríamos, aquilo mesmo que \ 26 Ésquilo, Les Eumènides. Ibid., p. 214.
(

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27 Ibid., p. 217i
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»
28 Ibid., p. 218.
* 24 ÉSQUILO. Les Choéphores, ín Théatre complet. Traduit par E. Chambry. Paris: Gar- f

nier: Flammarion, 1964. p. 200. 29 Ibid., p. 217-218.


30 Ibid., p. 221.
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*
25 Ibid., p. 204. **
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, Perdão. Desligar o passctdo.


Capitulo 2 /

«
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* X *
funda o areópago institu ído por ela: uma lei que dirige a abstenção dos cri '
processo; cada um será levado a verbalizar suas pretensões e com beneficio í •i
*

mes. Ou, melhor ainda - uma vez que o conteú do das leis nunca é muito ori
^
desta distância mínima poderá surgir a questão do "mçtacritério” do justo
t’

i,
. -
Contudo, de imediato, é a questão do "metacritério” do procedimento • í ginal, o < jue réalmente vale, de modo definitivo, é a pedra que as funda o. *

que se coloca a Atena: quem será competente para decidir um litígio que com- que Atena institui, neste momento inaugural, e "o respeito e o temor”: o res-

- promete tanto os homens quanto os deuses? Conhecemos a resposta, mas é j '


peito à justiça e o temor do castigo, os dois garantidos por um tribunal "in -
>

preciso pesar bem todos os termos: Atena irá instituir un\ tribunal humano, *£ corruptível, venerável, impiedoso” Assim, a cidade sè preservará tanto da
/mas longe de ser uma jurisdição de exceção, sempre suspeita de aplicar umà
lei • "anarquia”, quanto do "despotismo”*34 Paradoxo assustador: encontramos nes-
de circunstância, ela cuidará de "ligar os juízes por juramento” e “formar um
,
tribunal destinado a durar para senipre” Precisões decisivas na verdade : ao
\ ^ . te discurso fundador um eco dos propósitos sustentados alguns instantes an-
tes pelas Erínias, mas livres de seus tons securitários e vingativos; assim, pois,
»

prestar juramento, os juízes se referem, senão a leis, pelo menos a valores pree- no momento em que retira claramente das imprecações suas prerrogativas,
-
xistentes; instituindo se na duração, a jurisdição se volta a uma obra de justiça , jj Atena integra, na ordem política que funda, a parte assimilável e necessária da
durável, cuja coerência ê estabilidade sao o voto. Duas maneiras bastante efica .3 - mensagem das Erínias: nènhuma cidade pode sobreviver sem o respeito de leis
V zes de casar autonomia e heteronomia na fundação da instituiçã o judicial. '
J das quais não étinteirámente a autora. i

»
As Erínias compreenderam perfeitamente o perigo: nada menos que a 3 Enquanto ressoam as últimas ameaças e imprecações lançadas departe a
, ,
ruína dacidade, daqui para frente ímpia, q que segundo elas aipeaç : a "novas parte, os juízes se retiraram, paça lançar seu sufrágio; nq momento da decisão,
leis irão agora inverter as antigas'se a causa e b crime deste parricídio devam . j dividiram-se exatamente em duas metades. Mas, acrescentado seu voto aos que
triunfar. O resultado vai predispor todos os mortais a cometer, facilmente, o cri- ^ J opinaram a favor da absolidção, Aténa sela a sorte de 'Orestes. Admiremos na
* ' me!”31 Mas Atena não se deixadesarmar: ela acaba de"estabelecer leis para sem f1 - passagem o gênio de Êsquilo que conseguiu sugerir tantas coisas em unja ope- >

«<
"
pre” e espera daqui para frente que os juízes pronunciem um justo decreto ” 32
9 ração tão simples: ao dividirem-se em dois campos iguais, os homens se mar-
' Abre-se, então, o processo conduzido pela própria Atena: Apoio e ó Corifeu ad- . cam pela prudência e deixam abertas, para o futuro, todas as soluções; toman-
-• r %

vogam, cada um contestando o justo direito do outro (até o fato de que o assas-^
4 1 \

do parte na votação, Atena decide, a questão comó se deve, mas vai se dèdicar, "

-
\

sinato de Clitemnestra foi determinando por Zeus, em pessoa, é submetido a dis- .< i como iremos ver, a evitar que a parte derrotada se descaracterize; ao instituir o
cussão: como acreditar nos atos de um deus que "acorrenta ele mesmo seu ve- , ' *
Areópago, a deusa confia aos homens o encargo da justiça, pias votando por sua **
lho pai” ?).33 Onde encontramos a oposição develhos e novos deuses, a ambigui - J —
vez ela relança o enigma do fundamento humano ou divino - da justiça.
‘ dade assustadora e a real finitude das divindades que os Gregos criam para si* 4 *
1
Resta a Atena retirar a tíltima solicitação insistente, a bem da verdade a
N v «
i 1 . » maiS decisiva para o futuro: convencer as Erínias a renunciar à sua cólera, que
*
desta vez seria dirigida contra toda Atenas. Assim se compromete a última nego-
O RESPEITO E O TEMOR r
l ^ dação que,à primeira vista poderia evocar um negocio - as Erínias iriam abster-
* .
i


f] i 8c da vingança se'um culto permanente lhes fosse prestado np próprio seip da cir
Atena convida agora os juízes a decidir com consciência e sob a fé do
.
juramento ,que eles prestaram Mas antes disso, ela lembrará, ainda, a lei que
-
dade e que, portanto, ao que pensamos, procede de uma coisa completamente -
> •u i diferente. Pois, para atingir seus fins, Atena não usa de força nem de trapaça. De l

>i
» r * * cara, situou o debate no plano da deliberação e do direito; jamais fez mistério de *
/
31 Esquilo, Les Euménides. Ibid., p. 222. . .
' . \ T

32 Ibid., p. 223.
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:? 34 Êsquilo, Les Euménides. Ibid., p. 227.
33 Ibid., p. 225. *
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** Capítulo 2 r .
Perdão Desligar o passado .
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Como é possível sair da tradição sem por isso recusá la Em outros termos,
11

^
sua simpatia pela causa de Orestes (ela anunciou sua inten ção de votar em seu f
favor antes da resoluçã o final das vozes, o que exclui qualquer cálculo polí tico de çomo fazer uma crítica da tradição na ausência de um ponto de apoio extra
sua parte); entretanto, ela integrou as leis pelas quais clamam as Erínias no pac- > -
tradicional, fara ajudar nos a não “fazer tábula rasa do passado”, no pró prio
tò* fundador da cidade. Também em sua intervenção.quanto às Imprecações ela ,1, momento em que se inventa um futuro, seguiremos principalmente Popper e
se situa no terreno da promessa (“eu vos prometo que sereis honradas pelos ci- sua “crítica racionalista da tradição”, e Jean-Marc Ferry, que propõe pensar os
..
dadãos” . “por que eu faria promessas que não cumpriria?”) 35 o da persuasão )
< * 1
termos de uma “identidade recçnstrutiva”, que articula os recursos da narra-
r
(“se respeitardès a venerável persuasão, se minhas palavras podem adoçai e en- ‘/ : *
ção identitária e da argumentação universalista.
cantar vossos-corações, permanecereis aqui” ).36
H

- Numa segunda etapa, abordaremos as regiõ es obscuras do esqueci -


.
A promessa é a capacidade de comprometer duradouramente sua'pala-
! / i

. i

mento jurídico Bem que queríamos, ao conceber o projeto desta obra, fazer
*

vra - uma atitude que exige, da parte do interlocutor, “acreditar” em um tal X a ecoríomia do esquecimento, mostrando que o perdão que nos interessa, em
comprometimento. A'peísuasáo é a arte de fazer valer razões que fazem sen-. V *
primeiro lugar, Seria maior e melhor que o esquecimento: uma separação *

tido para á outra parte - e ainda uma atitude que pressupõe a capacidade de ' ‘ consiste do passado (“com conhecimento de causa” ); e não uma deambula-
adotar o ponto de vista do outro: nos dois casos, avinteração se desenrola do ^ .
ção sonambúlica nos labirintos do sistema jurídico Mas, veio-nos bem rápi-
meio da confiança ou fé compartilhada, na qual se pode ver o verdadeiro fun ' . ; - do que o esquecimento era “ incontornável”, como se diz atualmente: tão ine-
' . * '
reconhecê-lo) quanto a noite o é para o dia37 - a noite
damento,antropológico, tanto da lei quanto do. contrato. Atena é de boa-féna vitável (e útil, vamos
S

promessa que formula e isso basta para convencer as Erínias: daí para diante, X
/ .: *
que suspende as atividades jurídicas e coloca os sujeitos de direito em \dgíjia .
seguras de serem honradas em Atenas como divindades antigas, dedicar-se-ã o u De resto, já o sabíamos: a memória ê seletiva, a tradição reconstruída; nelas
a afastar os flagelos da cidade; ^Eumênides” (as benevolentes) será doravante 'o i o esquecimento tem sua parte. Desta face obscura do direito, as manifesta-
^
nome delas. Uma ordem nova emerge - marcada por um nome novo - que ções são in ú meras: do lado do direito objetivo, o desuso e a prescrição extin -
repousa nas potências da palavra; um direito movo se impõe, que faz recuar | tiva, por exemplo; do lado do direito subjetivo, diversas formas de “direito ao
discórdias e represálias. \ esquecimento”; entretánto, cuidado: ao lado destas figuras do esquecimento -
apaziguamento, operam também formas do esquecimento-engano e do es-
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queciipento-recalque
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. ENTRE ESQUECIMENTO- E PERDÃO, X
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*
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O esquecimento, como a memória, exige, pois, ser revisitado, seleciona-


i
A SEGUNDA CHANCE DO PASSADO • i do, ultrapassado, superado, subsumido num tempp que não se reduz tão so-
*
\
\
s
»
mente à declinação dó passado. Eis-nos na terceira etapa, que virámos conduzir' *

1
A Grécia do século 5o antes de nossa era, àô inventar, entre outras coi
sas, a democracia e a tragédia permitiu pensar como desligar o tempo, liberar
- f.
t
no limiàr do perdão, um perdão"que é simultaneamente anamnésia e remissão;
ato de memória eliposta no futuro. Sem dúvida; um perdão desse tipo é um
*
^
4
a mem ória e, assim, dar uma segunda chance ao passado É ainda do passado . J h tanto sublime demais para ser jurídico integralmente; admitamos que ele esta- l

. que se tratara neste capítulo, mas de um passado revisitado, remanejado, rea- í va ligeiramente para além do direito, assim como iodo- esquecimento estaria ffe - ' «

propriado, reinterpretado. Questionaremos, de in ício, numa primeira etapa, '


• •
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37 Às vezes, na verdade, o “Fardo da memória” mostra-se demasiadamente pesado ;
• »
para carregár: cf. GAUDARD, P.-Y. Le Fardeau.de la mémoire. Paris; Plon, 199,7. Às
35 Ésqullo, Les Euménides. Ibid., p. 229, 231. ^
v

*
Vezes a memória é inútil, como o sustenta FINKIELKRAUT, A . La M é moire vaine..
36 Ibid p. 231. ; Du crime contre Vhumanité, Paris: Gallimard: Folio, 1989.
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144 » 145
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V . Capítulo 2
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* Perdão, Desligar o passado: '
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*
qiientemente ,aquém <le suas virtualidades. Contudo, nada impede pensar que o
Até aqui relativizamos o .recurso à tradição, insistindo no fato qué era
ideal de reabilitação pór ele implicado, que o processo coloca em ação, não se- *
- necessariamente a partir do presente e de suas questões que o passado era in-
ria aquilo que, na prática de reconhecimento recíproco dos querelantes, inspira .
1 « terpretado e mesmo reconstruído Será preciso agora dar um passo a mais, e
muitas insiituiçpes penais, mesmo que estas continuem amplamente matizadas
de cálculo de interesses, de relações de força è de comproíhissos políticos, É no
deste passado fazer tábula rasa?” Estaremos nós seguros de poder criar ex ni -
* ' htlo, criar o homem novo e a nova sociedade, chegados, enfim , à altura dos
J
levantamento dessas manifestações do perdão, mais ou menos mescladas de es- * * tempos racionais que não deveriam mais nada ao obscurantismo dos tempos
quecimento e de cálculo, que nos dedicamos, então, entre a anistia, que tende a s '
passados? Sabemós que a modernidade, algumas vezes, nutriu esta ilusão e sa- ‘
'esquecer tudo, e o imprescritível, que tende a conservar tudo:
bemos também aonde isso a conduziu.
*
« *•
*
, . Mas o tempo do perdão que dá suas oportunidades ao passado mani-
v *
*

festa-se unicamente no campo penal: é no sistema judiciário completo que se 4 A questão não é mais, desde então, de liquidar à tf âdição, mas de sub-
/
torna possível consertar seus traços O of .
ício do juiz irá nos servir, aqui, como metê-la ao processo permanente, crítico e reflexivo de revisão, que ao mesmo
tempo lhe garanta uma consciência mais exata de sua singularidade e lhe or-
K

revelador. Um juiz que e, sem dúvida, o “guardião das promessas”, a memória ; ^


ganize uma abertura dialógica com as outras tradições nunj' espaço público’
do direito e a testemunha dos fatos passados, mas um juiz chamado tàmbém
— - —
cortio negá lo? a dizer o sentido atual dos textos e a versão contemporânea
dos acontecimentos dos fatos de ontem. Coloca-se desde já a questão: como, 7,Vi
' ^ — —
• de discussão científica, artística ou política que continua em grande par-
te a se construir. Este processo produz lucros e perdas. Do lado das perdâs, 1

A

no exercício .de sua missão, o juiz articula a inevitável retroatividade de suas r


*

.
iremos separar-nos das tradições alienantes cujas idéias se cristalizam em es
tereótipos e os Valores em tabusvautoritários; o tradicionalismò, de fatOr é re
--
v intervenções e a preocupação legítima de seguran ça jurídica? Como, em ou*
*
v 1

belde à (auto) reflexão .e não se presta ao diálogo argumentado. Do lado do


\

i
,
tros termos .conciliar fidelidade vao
*,
texto preestabelecido e necessidade da tnú- : i
ganho, em contrapartida, o processo de revisão das tradições pode trazer
* * '
, dança quando o juiz aceita seu “pêndulo” para a situação que ele decide? Esta "

.'questão, desafio central do ato de julgar, iremos estudá-la em dois casos nos uma resposta às questões não resolvidas, nas quais Veio agarrar-se ô antigo
quais ela se impõe de particularmente aguda: na hipótese de uma re- . modo de pensamento; a invenção'da justiça em As Eumênides é exemplar
,
maneira
viravolta de jurisprudência e quando o juiz, como acontece cada vez com quanto a isso, pois .permite a superação^ das aporias da vingan ça encerrada
maior frequência, é levado constatar a juivalidade da lei Ao final destá anâ- ' . em umjáce a face repetitivd.
^
lise, irá surgir a emergência de um direito transitório da modificação da regra v i
Mas o que é mostrado também por esse ilustre exemplo é que uma saí-
\

. » V

jurisprudençial que, entre memória e perdão, busca o impossível e, contudo,


*
,
, da “de uma” tradição não 'é, por SiJ uma saída' da tradição:.o que cem vezes é "

neèessário equilíbrio^ dafialança jurídica . devohado à quetão é,a obra do passado da qual tanto ás aquisições quanto as
<
*
imperfeições são - fontes constantes de inspiração parado presente. A crítica ^
/
opera não se sabe de qual ponto de vista extra-tradicional de;Sirius: mesmo
CRÍTICA DA TRADIÇÃO: “FAZER TÁBULA RASA que ela âeserúboque em progressQsfinéditos e às vezes em reais invenções, a
DO PASSADO”? •. ' 1
, v
'I temporalidade crítica do perdão se desenvolve, de iúício, como uma exigência ^
t s interna que se cava no próprio seio áa memória. Á crítica é como. a “anterio-
. • » f
ridade interior da tradição”, explica Anne-Marie Uoviello,38 sêní dúvida, por-
t \

Por que será preciso revisitar as tradições? t)e que maneira se opera este
v k

processo? Eis as questões, que agora ábordambs, e de início esta: que significa t v .
s

^revisitar” ? Por detrás deste termo um tanto neutro, queremos liquidar a tra- <

- .
V
--
38 ROVlELLO, A. M La communication et la question de l universel Critique tradi . ,
*

-
*

^
dição ou regenerá-là?
*
.
tioti, passê, revue Hermés, Paris, n 10, p. 176, 1991,
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Capítulo 2 \ Perdão.Pesltgar o passado.


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» que a tradição e menos um dado que um procèsso permanente de identifica- a discussão pública e permanente dos mitos portadores de nossas dominantes
ção, cuja distância em relação a si própria é pelo nenos rima virtualidade.

i
^ • <5
visõesdo mundo? Uma dimensão reflexiva e crítica assim, escrita no centro
ftiesmo de nossos modos depensamento, submetendo ^ os a um trabalho per
*
-
*
manente de ajuste, bem como da linguagem através da qual se expressam , A,
OS OMBROS DE NOSSOS PREDECESSORES 4
verdade não é, por isso, o termo final garantido desta busca, mas pelo menos *
*
as aquisições da tradição são inscritas numa visão de universalidade ( a pesqui-
A

Em um importante capítulo de suas Conjecturas e refutações, Karl Pop- ; i sa do melhor argumento, a produção da explicação mais esclarecedora) que
per introduz uma contribuição decisiva a este trabalho de crítica interna das i incessantemente rejança o processo de seu aprofundamento.
tradições /9 Preocupado em contribuir para uma “ teoria racionalista dá tradi-

^
ção”, Popper não da razão nem aos anti-racionalistas, que se conformam em
.
recolher em bloco a tradição, como um dado, sem pretender submetê-la av
^ Considerada sob este ângulo-a tradição não mais surge como uma co-
leira alienante, mas çomo Jjma ordenação (provisória) do caos circundante,
uma perspectiya suscetível de definir pontos de referência e finalidades, de
uma análise crítica, e nem aos racionalistas, que pretendem julgar exclusiva- 9 constituir um saber e garantir um mínimo de previsibilidade, de conformar
* mente por eles mesmos rejeitam esta tradição, considerada aqui também A
, ' nossas identidades, de promover, enfim, solidariedade.42 Melhor ainda: ela é
como um todo indissolúveL A estes, ele irá opor o fato de que, mesmo eles, $ aquilo que a partir do qual algo como uma crítica torna-se possível; ela é o
os ra çíonalistas, estão engajados numa tradição - mais recente, sem dúvida, ií trampolim no qual apoiar-se para conceber e experimentar o novo/1 '
x do que aquela que eles criticam, mas uma tradiçã o, contudo, com seus mitos . M Platão, em A República, falara destes reformadores que se imaginavam
fundadores, seus ritos e suas passagens inevitáveis. De fato, como acentua i “limpar a tela* para apagar qualquer marca da antiga sociedade: “esta idéia é
também Rochlitz, nunca nos encontramos radicalmente no exterior de qual- > 3 absurda”; nao hesita em escrever Popper, isso significaria necessariamente
quer tradição.40 Isso*se comprova até no domínio da pesquisa científica, onde J “apagar sua própria pessoa, tod£s as suas idéias e todos os seus planos de fu-
nos apoiamos tanto nas descobertas, quanto nos erros dos nossos predeces- | turo. Estes planos não têm nenhum sentido no áeio de umá sociedade vazia,
sores. “ Não nos resta outra escolha”, explica Popper, que “a de nos manter- 9 .
\
mos sobre os ombros de nossos predecessores”: far
,

íamos nós tábula rasa de ^ num deserto social Eles só adquirem sentido num conjunto de tradições e de
Institúições”.44 *

séus trabalhos, “não teríamos à nossa mórte, avançados mais que Adão e Eva Resta, pois, que este passado, do qual não nos desembara çamos com ,
t

ab término de suas vidas”.41 4


%
l tanta facilidade, permanece em grande parte um eiligma para. nós. Se nao é
Quanto aos anti-racionalistas, Popper lhes objeta que certos aspectos mais “sombra tutelar” ou “herança maldita”, ele se constitui não menos que,
da tradição secaram e acabaram por morrer; daí, o melhor a fazer é separar- para falar pomo jGauchet, “o lastro enigmático de uma identidade que nós
se deles. De resto, não será preciso admitir que um aspecto Central de nossa i p construímos através do devir”. Talvez aqui fossè necessário evocar o enigmá-
45
jj /

tradição européia, inaugurada pelos gregos no 4o é 5o séculos, é precisamente ) i, tico “corcundinha” de que falava W, Benjamin: este, estranho e insistente pas-
v
4*
* *
< é *

. . . .
39 POPPER, K Conjectures et réfutations Traduit par M Iréne et M de Launay Paris: . t ^
42 ROCHLITZ, R. Critique de la traditionrpõurquoi, áu n õm de quoi, comment? Cri-
* k
f

..
Payot, 1985 p 183 et seq. t
i tique, tradit/ oti passé, revue Hermés, Paris, n. 10, p. 171, 1991.
)
»
\

40 ROCHLITZ, R. Critique de la tradition: pourquoi, au nom de quoi, comment? Cri- j 43 POPPER, K. Cortjectures et réfutations.Traduit par M. Iréne ét IvL de Launay. Paris:
V . .
tique> tradition, passé, revue Hermés, Paris, n 10, p 165, 1991 . ^
.
Payot, 1985 p. 199 . i
,
v . *
s
. . .
41 J OPPER, ÍC Cònjectures et réfutations Traduit par M. Iréne et M de Launay Paris:. -
44 Ibíd., p. 199 200. A citação de Platão é extraída cie A República,T50'0b 501a,
- ,

^
í f

.
‘ Payot, 1985. p 196.
. .
45 GAUCHET, M Uécole à Tecole d lle même LeDébat, n. 37, p. 84, noy. 1985.
\
*
\ *
^ -
»

148 149
I,

sado que nã o cesSa de nos interpelar. “Menos nós vemos o corcundinha, escre-
mite, a exacerbação da singularidade identitária conduz à negação dò outro e
. . -
via ele, mais ele nos observa ”46 E este olhar, nós o pressentimos, é às vezes
à violência. Mas, ao inverso, de que ,nos serviria o acesso argumentado pela
.
aquele da censura Pelo menos uma parte do passado nos acusa, ou pelo ihe- '
razão e pelo universal se não chega a se encarnar em nenhuma identidade sin- r
nos lembra a .dívida contraída em relação aos abandonados, ou mesmo às ví-
timas de nossa história. Eis, então, que a relação com a tradição- se complica:
.
gular? J -M.jFerry, que na esteira de Habermas apresenta este dilema, sugere a *
localização dialética de uma “identidade reconstrutiva”, sob a forma de uma
não se trata mais unicamente de recolher os dividendos do passado, mas tam-
rcapropriação crítica de cada tradição por si mesma, no meio reflexiyo que
.
bém de pagar as dívidas qúe aí foram contraídas Assumir a herança será, pois,
constitui a própria linguagem.48 É no próprió seío do discurso retrospectivo,
-
reativar simultaneamente o que, do passado, ainda è poçtador de sentido, mas
também assumir as responsabilidades ém relação aos erros dé ontem, no du-
»
no próprio interior dã niemória, que uma tomada de 'recuo se escava, permi-
tindo a experiência singular de cada identidadè tematizar-Se e justíficar-se em
-
plo sentido da reparação do mal feito às vítimas e da recilsa dé tudo o que . i'

uma linguagem^ razoável, com visão potencialmente universal, que seja igual-
pôde conduzir a tais erros.
*
. t - 74, jhk
mente audível pelo outro.
* **

Sem dúvida, sempre haverá singularidades e diferenças, tensões e con-


•/
?
S \

-
V

flitos, mas pela prática do logoti diâonai fornecer razões em apoio do que é
IDENTIDADE NARRATIVA E IDENTIDADE .áRGUMENTATIVA.
/
1
e do. que se faz -> um espaçÕ público de discussão se abre, o que desenha pelo
menos no vazio o que poderia ser uma figurado universal.49 Logo, não é o caso
i

Mas, precisamente, como fazer a triagem, na tradição, quando se re- v i

nem de renegar a tradição de onde se fala, nem de se diluir em uma ilusória


J
nunciou a ocupar um improvável ponto de Arquimedes fora da tradição?
Como, 'em uma palavra; pensar uma crítica da tradição? »1
- *
identidade, universal: é suficiente, e é muito, fazer troca entre tradições. Por*
^
* *
'
que não mais se pensando como únicas, cada uma delas se engaja no proces -
-
/ r>

.
i

Esta questão, duvida-se, só pode receber uma resposta dialética A dia V


'

so de sua própria transformaçáo. A identidade reconstrutiva, desde éntão, não


** -
lética poderia, por exemplo, articular as duas formas de identidade, narrativa
$e limita mais ase narrar, ela é interpretada, é explicada, é justificada, passam .
-_
*
e argumentatíva, que Habermas diferenciara quando de.suas tomadas de po - do, assim; do registro afirmativo à prova da auto-reflexão e aoTisco da inter
sição no que denominamos a “querela dos historiadores”, suscitada pelo revi- 1
compreensão, ela se atribui a possibilidade de uma reativação de suas aquisi-
V .
sionismo da décàda de 80.47 De um lado, “a identidade narrativa”: aqui, uma j
ções tanto quanto de reconhecimentõ de seus erros/0
'

referência substancial ao passado é estabelecida, nias quase sem acesso ao uni- 1


O tempo* dos perd,ões assim inaugurado não é uhicamente o do perd ão *
, versai; do outro ladb, a “identidade argumentatíva’'; ali se estabelece a refer ên- 1 *

concedido, mas igualmente o do perdão solicitado. Nesta solicitação^ se deixa ’


*
*
^
cia procedimental ao universal, em detrimento, desta vez, da ancorãgem de • •
ouvir algo da história benjaminiana dos esquecidos pela memória, aos quais
.
um passado constitutivo Vê-se perfeitamente o risco de uma identidade '
uma justiça retrospectiva é feita, como se a mem ória dominante aceitasse a v
construída exclusivamente sob o registro narrativo: o que é ganho em termos 11 .
. reescrita de algpns de seus capítulos Sem dúvida, este pãssado é irreversível;
de afirmação de si é perdido no plano do reconhecimento recíproco - no li- r 1
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48 J. M í FERRY. Sur la responsabilité à figârd du passe. Critique, tradition pàssé, rc~ *
- ,
46 BENJAMIN, W. Thèses sur la philosophie de Vhistoire (Poésie et Révolution ) Paris:
[s.n.], 1971. p. 297, apud WOHLFARÇH,> I. Ça nous regarde Critique, tradition,
.
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vue
*
Hermés, Paris, nf 10, p 132 136, 1991.
. %
. - . /
49 ROVIELLÔ,A. M. La communication et la question de lluniversel. Critiquey tradi-
^
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"
\ * V

pàssé, revue Hermés, Paris, n. 10, p. 155, 160, 1991. r .


*
-
V

47 Cf. J.-M. FERRY. Sur la responsabilité à Fégard du passé. Critique, tradition, pàssé,
tion, pàssé, reyue tfermés, Paris, n. 10, p. 174 et seq., 1991 . t
*

1
reyue Hermés, Paris, n. 10, p. 132, 1991. v 50 J. M. PÊRRY. Sur la responsabilité à Fégard du pàssé?Critique,tradition, pàssé, re-
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yue Hermés, Paris, n. 10, p. 134, 1991. . ^
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Capítulo 2 \
+ Èerdão. Desligar o pasí aão.
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mas, pelo menos, é concedidoaim eco àquilo que, então poderia ser dito e que‘ *

4 atualmente faz sentido para os herdeiros, carrascos e v^ ítimas desta história.


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0 ESQUECIMENTO, AMEAÇADOR E *

t Vemos beçn > então,’ que o tempo do perdão não é o inversa da^memória e da CONTUDO NECESSÁRIO X *

tradição; operando ele também uma anamnésia, é antes o tempo de uma “ou- t
•] I f *
“Só há memória sobre um fundo de esquecimento”, escreve Pierre Vi-
a

tra” memória, de 'uma memória segunda, de uma memória crítica que; dó >
próprio interior da instituição comemorativa, que é toda sociedade organiza- £ dal-Naquet, “este esquecimento ameaçador e, contudo, necessário.”54 Se o .es-
:
da, traça as primeiras linhas de uina outra interpretação do passado, ou seja, :
f quecimento, ao contrário da memória, apresenta esta natureza ambígua, è que
de um outro programa para nossos dias. a memória, também ela, é necessária ( já dissemos a que ponto ela era consti-
Esse distanciamento da tradição, para ela mesma, só pode evidente- tutiva do social) e perigosa. No capítulo VII de O Processo, Kafka tem esta fra-
se terrível: “o Tribunal nunca esquéce nada”;55 que sinal mais revelador de uma
% mente ser compreendido se" aceitarmos dissociar conceitualmente passado e v'
J sociedade virtualmente totalitária que um tribunal.que nunca esquece nada?
tradiçã o/1 Desde.que ,o primeiro surja como um dado exógeno, a massa iner-
Mas uma memória infalível não.é apenas ameaçadora, é também ineficaz: um
/ »

te de tudo que passou, em contrapartida, a tradição está sempre à espera de íj

interpretação; ela requer, ainda hoje, ser significada e mesmo escolhida: “ela personagem de. Borges, denominado Funes Ivíemoríoso, é dotado de uma tal
revela / explica Hunyadi,*“o que nós escolhemos ter sido, em relação ao que
* memória universal ( “Eu sozinho tenho mais recordações do que podem ter
x
« > >

queremos ser”/2 Dito de outrb modo, há na tradição um peso normativo que


^
i tido todos os homens, desde.que o mundo é mundo”): insone efebril, ele é ca-
v
não figura no passado. Ora este peso será levado para trás, na simples reafir- paz de reconstituir, uma a uma, todas as lembranças e todas as sensações dé
mação de uma continuidáde narrativa, ora, ao contrário, o centro de gravida - cada dia.(operação que, de resto, lhe; toma uirrdia inteiro); ele é, em contra-
. t
• » . *
partida, incapaz de ‘formular uma idéia geral - de fato ele não pensa, ou mui-
i
de irá deslocar-se para frente, na busca de refiguração de uma identidáde pro-
* blematizada. É. nesta tensão entre os pólos rétrospectivoXe projetivo da ídenti- - to pouco, porque “pensai é esquecer, diferenças, é generalizar, abstrair No * . •

mundo sobrecarregado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”.56


» 1
dade que se desenvolve a capacidade das tradições de superarem a si mesmas.53
* v *

1
Esquilo dizia a mesma cqisa no motnento em que desbatizava as Erínias em $ Portanto, o esquecimento é necessário como o repouso do corpo e a
Bumênidesy integrando-as à cidade, fazendo, assim, a aposta inédita em uma ,
respiração do espírito; ele responde à natureza descontínua do tempo, cujo
* *

/ justiça não vingá&ora que, ao contrário, ainda faz justiça às vítimas. Para tan- „ prosseguimento, como vimos, é entrecortado de pausas e intervalçs, através-
sado de rupturas e surpresas. Nietzche, cantor do esquecimento, dá um passo
L ^
i’
to não foi preciso fazer tábula rasa do passado da cidade, somente aceitar que L%
“ ^ \

se suspendessem algumas de suas certezas, o tempo de uma deliberação p úbli- à frente: o esquecimento não seria tanto uma vis inertiae\> uma maneira de
ca ao risco de uma nova promessa. abandono ou de relaxamento do pensamento, quanto um “poder ativo, uma
*
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faculdade de travàmento” - ainda urn ponto comum, de resto, com a memó -


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.
ria Esta faculdade ativa de esquecimento, ele explica, é prepostó para a manu - *T

tenção da ordem psíquica: sem ela, “nenhuma felicidade, nenhuma serenida-


.
51 Nesse sentido, c£ ROCHLITZ, R Critique de la tradition: pourquoi, au nom de \
quoi, comment? Critiquei tradition, passé, revue Hermes, Paris, n. 10, p. 167, 1991;
*
j
"HUNYADI .
, M Entre je et Dieu: nous. Á propos de deux conceptions concurrentes A *»

- . .
54 VIDAL NAQUET, P Sur une commémoration In: Politiques deVoubli Le genre hu-
(
,
. .
de 1’éthique: J. Habermas et P Ricoeur Critique, tradition, passé, revue Hermés, Pa- .
tnain Paris:Seuil, 1938 p. 134. .
.
ris, n 10, p. 142, 160, Í991 v . 55 KAFKA . .
, F Le Procès )?axis\ Pocket, 1996. p. 187, "
52 Ibid., p. 142.
% *

53 Ibid., p. 150.
.. .
4
56 BORGES, J L Fictions Traduit par P. Verdovoye, Ibarra et R. Caillois Paris:' Galli- . .
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mard: Folio, 1988 p 115, 118 .' ’
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Capítulo 2 *•

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Perdão. Desligar 6 passado
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* *•* *
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de, nênhuma esperança, nenhum orgulho, nenhum desfrute do instante pre- ú


e que nos reencontrássemos, pelo favor da obscuridade e de seus medos an-
- sente poderia existir”.57 O homem de "saúde robusta”, portanto, é um “animal *
r cestrais, algo do estado de natureza primitivo e das violências que se conven-
necessariamente esquecediço” - daí o espanto do filósofo diante da emergên-
cia desta contra força que é a promessa, esta "mem ória da vontade”.58 ,
cionou acompanhá-la . 4

Mesmo o gládio do Estado é suspenso ao anoitecer, reservando seus ri-


*

gores para a luz do meio dia: as significações, as penhoras, as prisões em do^


A
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4
micílio, a$ investigações, não podem, em princípio, ocorrer à noite; se a solu-
AS PAUSAS DO NÃO-ÔIREITO
V. - 4
$ tf ção assume hoje um tom de liberdade pública, ela é, contudo, muito antiga: »

<

Presènte no fundamento mesmo do direito, o esquecimento o acompa- ' .


/
“solis accessus suprema tempestas esto\ o pôr do-sol marcavo limite extremo -
das ações judiciais e dos átos jurídicos em geral, já precisava a lei romana 'das
nha igualmente na sua vida quotidiana, ritmando seus desenvolvimentos, es- l
candindo suás idas e vindas. Contra a,imagem dogmática da continuidade da J
*

XII Tábuas.62 l è

Daí igualmente esta questão tradicional, de odor escolástico: que resul-


*

regra (“um sol que nunca se põe” escreve Jean Carbonier),5’ é preciso admitir, [ l
defato, eçlipses da juridicidade, das baixas jda pressão jurídica - administran- j -
ta da personalidade jurídica è de todos os títulos que a acompanham - en-
'
do pausas de não-direito ou de meno§ direito. Entre os esquimós estas' varia- » quanto dura a noite? O homem que dorme terá direitos, estará obrigado? Al -
guns, radicais, vêm nisso umà analogia com a morte; adormecer seria “depor
*
v çõ es do direito adotavam um ritmo sazonal, a se acredita;' em Mareei Mauss:
,
, *

o fardo jurídico”, o dormente se colocaria fora do jogp, fora da lei, sob o im -


no verão, um direito de dispersão e de individualismo; no inverno, qúando as
pério do vasto espaço do não-direito. Outros, mais moderados, não vêem nes-
i

famílias se reú nem na "casa grande” . um direito coletivista de inspiração co-


«
r munitária.60 Nas
nossas sociedades, a alternância significativa seria, antes, a do í
dia e da noite:"o direito, escreve ainda Carbonnier, é diurno, e a noite para ele $
4
^ TÉ
ta pausa do sono senão uma atenuação da vida ativa; se o sujeito se coloca em
vigília,.nem por isso é. menos homo juridicus, titular de todos seus direitos e
investido de todas as suas obrigações. O esquecimento, em suma,, seria apenas
não é mais que um vazio que ele abandona, ou um desconhecido que ele i
um parêntese na continuidade do direito.63 Admitamos, como um postulado
.
temè” 61 Tudo se passa, de fato, como se o dia estivesse voltado à yida social e
necessário, a idé a de um continuum da personalidade jurídica; concederemos,
^
i
,
racional, a noite sendo antes deixada aos sonhos e aos destinos individuais, f*
côntudo, que este exige, para sua própria persistência, a intervenção^ do sono,
- Como se, a cada noite, o contrato social se desfizesse, pelo menos um pouco, . J do qual se diz precisamente que ele é "reparador”. De resto, não dorme o ino-
i

/
.
V
cente "como um bem-aventurado” ao passo que o culpado, insone, continua
»

. . .
57 \NIETZSCHE, F La Généalogie de la morale Traduif par H Albert Paris:Gallimard:. , ! mesmo no túmulo sob o olho sempre aberto do remorso? 64 Concluímos’ que
.
Idées, 1964. p. 75, 76; cf. igualmente Considérations inactuelles Paris: Gallimard, j o bom direito, como a boa consciência, passa pelo sono e pelo esquecimento.
..
1990 p 130: *Quem não sabe repousar no limiar do momento, esquecendo todo o N
passado, nunca conhecerá o que é felicidade” . As alternâncias jurídicas podem, também, apresentar uma amplitude ,

58 Ibid., p. 76 77 - .
\
\
bem maior, para além das variações'do dia e da noite ou do ciclo das estações;
* * ; •
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1

59 CARBONNIER, J. Nocturne. In:


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. Flexible Droit 8 ed Paris: LGDJ, 1995 r
* p 49 . . k
62 CARBONNIER, J. Nocturne. In: ..
. Flexible Droit 8 ed. Paris: LGDJ,1995 p. .
.
60 M MAUSS. Essaí sur les variations saisonnières des sociètès eskimos.VAnn$ socio- ,
- .
50 51
\
logique,, 1904-1905, IX, p. 39 et seq. apud CARBONNIER, J Noctíirne In:
. . . i
63 Para uma análise jurídica do sono, cf CARBONNIER, J..Nocturne. In: .Fle.
*

-
.. ..
Flexible Droit 8 ed. Paris: LGDJ, 1995 p 49, v
.. . .. .
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xible Droit 8 çd Paris: LGDJ, 1995 p 55-61
61 CARBONNIER, J, Nocturne In: . .. . •*
. Flexible Droit 8 ed Paris: LGDJ, 1995 . - . .
64 *NAHOUM GRAPPE,V Dormir In: La mémoire et Voubtu Commmication, Paris?
4

p 50. . 1
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.
Seuil, n 49, p 90, 1989 . I
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Capítulo 2 <
Perdão. Desligar o passado.
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em certos casos, os fluxos e os refluxos do direito estendem-se por anbs, até • í
'

mesmo dezenas de anos, Reencontramos aqui ò tempo da longa duração, mas, I


Portalis, contudo, o principal redator do Código ciyil de ,1804, dera prova, a
respeito do desuso, de sua costumeira lucidez, ele o apresentava, a exemplo
- v

se se pode dizer, sob sua face negativa: com o tempo, a força obrigatória das . A do esquecimento, como ameaçador e, contudo, necessá rio: “Se não autoriza -
leis.se enfraquece, ao invés de se reforçar; os títulos jurídicos perecem, ao in- , ' * mos formalmente o modo de ab -rogação pelo desuso ou o ã o uso, é que
^
1 *

vés de se consolidar; as provas, antes de se acumularem, se dispersam e se con- , A talvez tivesse sido perigoso fazê-lo”, escrevia ele em seu famoso Discours pré- ^
fundem. Veremos aí, seja a ação destrutiva do tempo, seja o traço de sua obra - liminaire> acrescentando imediatamente: “Mas pode-se dissimular a influên-
i tradicional de apaziguamento, em qualquer hipótese, o movimento .contínuo, \ cia e a utilidade deste concerto não deliberado, desta potência invisível, pela
*
mesmo subterrâneo, de uma vida jurídica que nada detém e que, qual Janus, i *
qual, sem choque e sem comoção, os povos fazem justiça das más leis, e que *

apresentasempre duas faces: enquanto o direito de um se afirma progressiva- 4 > *


• *
parecem proteger a sociedade contra as surpresas feitas ao legislador, e o le- t
mente, o do outro se apaga, enquanto uífià fegra morre pouco a pouco bati- M
,
gislador contra ele mesmo?”67 Este ensinamento nada perdeu de sua atuali-
da pela ineficácia, uma outra, mais jovem, logo ocupa o lugar que ficou vazio. yí
\
i

\
v
dade, ffeqiientemente, de fato, ainda hoje, a passagem de um regime totali-
0 -
4 * , V
tário para um retorno progressivo do Estado do direito ( a “transição demo- *

DESUSO E PRESCRIçãO EXTINTIVã \ \


* crática” ) empresta este suave caminho do desusó: antes de pronunciar de vez
a .ab-rogação do sistema jurídicp anterior, prefere-se desviar progressiva -
i
* O
<
\
-;
-
* <

mente, por via da interpretação jurisprudencial, principalmente, a significa


í
/

As duas formas máis conhecidas de refluxo jurídico são o desuso e a t

prescrição extintíva, faces negativas do costume e da prescrição aquisitiva. O ^*1 ção e o alcance económico, social e político das principais leis e instituições
desuso não deixa de ser paradoxal: eis uma lei, em princípio formalmente do Antigo Regime.68 i

obrigatória até o dia de sua ab


V ,
-rogação,*que,~contudo’ , perde pouco a pouco v
r (
^ . Organizado pela lei e afetando somente prerrogativas individuais a
Y
*

prescrição extintíva civil é menos controversa: o artigo 2219 dõ Código civil a


*
sua validade por um não uso prolongado que, parece^ tolerado^ pelas autori- ' v.
Ml

dades jurídicas,, mesmo quando se apresentem ocasiões de aplicá-la (neste J define como “um nieio de se liberar por um determinado lapso de tempo”. Nâ
caso, a hipótese do desuso distingue-se da de caducidade que se entende ’ * realidade, seu campo de aplicação é duplo; e]a permite a liberação do devedor,
*
' pelo não uso por falta de oportunidades de aplicar a lei). Compreende-se S| ao qual o credor negligencia em reclamar seu devido ( direitos pessoais), mas '

que este fenômeno constitui um escândalo para uma doutrina positivista, „ acarreta também a. extinção, pelo não uso, dos direitos reais (quanto a isso ela
s

pois poderíamos perfeitamente dizer que a ab-rogação total ou parcial da se apresenta como a outra face dò usucapião, ou aquisição por posse çontínua,
lei, por desuso, consagra um costiime contra legem, como no' caso do uso que .
pacífica, pública e a título de proprietário) Como para o desuso, a prescrição * *
V

valida as dádivas diretas, apesar do artigo 931 do Código civil, que exige a V íva surge, assim, como mm mecanismo de adaptação do direito ao fatò:
extint *

redação de uma ata notarial para qualquer doação.65 Ao mesmo tempo, dou- -
\ *

[>
na falta 3e ter podido se realizar conforme à sua prescrição, o direito (aqui en
trina e jurisprudência mostram-se pelo menos circUnspectas, não admit ín- tendido como direito subjetivo) alinha-se na situação de fato contrária qiie se
u *
do o desuso a não ser como a confissão vergonhosa de uma doença inevitá-
0

vel: “o desuso mata as leis, mas é preferível não dizê-lo”, escreve J. Cruet 66 . .
>

.
-
S

67 PORTALIS Discours préliminaire In: .Locré, La Législaúon c\vi\e, commerclalc et


*

.
(

criminelle de la France ou Commentaire et Complément des Cojdes français. Stras-


4
.
t

65 Para outros exemplos, cf. PETLÇ, F La mémoire en droit prive* Revue de la recher -
* . . - .
bourg: Treuttel etWurtz, 1827.1 1, p '269 270 ’ ** /

. ,
' che juridique Droit prospectif nota 35, 1997-1. .
68 No que se refere à situação da Polónia, cf ZIEMBINSKT, Z Problèmes métbodolo . - *

. .. .
66 CRUET, J. La vie du droit et Vimpuissatí ce des lois Paris: Flammarion, 1918 p 258
. .
giques de la désuétude In: Le ternps et le droit Sous la dírection de P A. Côté et J .- .
:
.
Frémont Cowansville (Québec): Yvon Blais, 1996 p 54 .. . /

/ *

156 Ií

157
v
* U'1i 4
Capítulo 2 *
1
*
.
Perdão Desligar o passado, V 1

*
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*•>

consolidou no intervalo. De novo, ou se pode lamentar o revés do direito que, / í


,

por preocupação com efetividade e realismo, acaba por consagrar uma injus- 4
belecimento de compromissos variáveis entre ,memória e esquecimento,pon - /

tinuidade e mudança, justiça e realismo.70


tiça, ou, ao contrário, adimirar as capacidades de auto-adaptação de uma re- '
* ^
r
gulamentação jurídica qué çonseguefinalmente inscrever qualquer fato óu ato
%

à série ininterrupta do tempo, e consagra, assim, uma outra idéia de justiça,


'

que7quer que se esqueça o que durou demais sem chegar a se realizar.69 Sem ,
*
DIREITO AO ESQUECIMENTO OU DEVER DE MEMóRIA?
dúvida, preocupado com aplicar o direito às particularidades das diversas si- J } ^
- tuaçoes, e com isso arbitrar, da melhor maneira,"eiitre essas leituras antagôni-
cas da instituição, o legislador procurou diversificar tanto as durações das V
*

/
Fora da prescrição, outras f ôrmas dp direito ao esquecimento se fazem
valer ainda em direito privado. Uma das formas mais conhecidas é o direito
prescrições extintivas quanto suas modalidades e principalmente as causas de - ao anonimato, quer se trate de sua aplicação mais antiga, “o parto incógnito”
f
suspensão que podem lhes retardar a execução. V -
(artigo 341 L do CóHigo civil: a mãe pode exigir dar à luz sem indicar seu
Na França, Bélgica, Alemanha -e no Luxemburgo, o prazo de direito co- nome, o que tem principalmente por efeito sustar as ações de investigação de
mum da prescrição extintiva, principalmente em direitcf da responsabilidade i maternidade), ou de seus aspectos mais modernos na procriação medicinal-
*
‘contratual, permanece fixada em trinta anos, assim como a prescrição aquisiti- r. mente assistida (artigo L 152 5 al. 3, do Código da Saúde P ública, que prevê,
- -
va; em outros países, em contrapartida, este prazo é mais curto: vinte anos
^
na / 1 o anonimato do casal doador e do casal receptor, em caso de doação de em
*

-
brião). Além da protéção da vida privada, tais disposições, que derivam da or-
~
Dinamarca e na Holanda, quinze anos na/Espanha, dez anos na Itália. Mas, à {\
<
margem desses prazos de direito comum múltiplicam-se os prazos extintivos dem pública, entendem perseguir um interesse geral: a luta contra o iníanticí - *
especiais, cada vez mais curtos, parecendo^ melhor adaptados à duração de vida " dio e facilitaçãò dá adoção, notadamente.71 s.
-
de determinados direitos: surgiram, assim, prescrições próprias aos comercian- J
, Instaurando um esquecimento dèfinitivo, o à nonímato do parto não
tes, aos construtores, aos médicos, ou prazos específicos para a responsabilida- poderá ser revelado através do simples consentimentoxda mãe. Sem dúvida,
de extra-contratual, ou ainda, à natureza desta ou daquela obrigação, como a $ ela poderá exprimir a vontade de reconhecer seu filho em seguida, mas este
obrigação de segurança, ou obrigação de conformidade na venda . v
pedido só será acolhido se a criança ainda não se tornou objeto de uma ado-
Notaremos, por outro lado, que se estes prazos de prescrição se confor- •
ção plena ou ainda não foi destinada a esta adoção.72 Reconheçamos, contu-
mam com diversas causas *de suspensão (por exemplo, o reconhecimento da . j \
do, que, nesta matéria, a arbitragem entre direito ao esquecimento e direito à i

dívida pelo devedor), os prazos ditos “pré-fixados”, que, como em matéria de


„ processo, limitam a duração de existência de um direito de agir, são, quanto a
' memória é particularmente delicada; a compatibilidade da solução francesa
estes, em princípio intangíveis. Estes prazos, opondo-se a qualquer possibili- ^ com o artigo 7o da Convenção de New York, de 26 de janeiro de 1990, relati-
dade de um questionamento indefinido de atos e situações jurídicas, contri- *
buem, de modo decisivo para a garantia da segurançaxjurídica. Adivinha-se
/

^ va aos direitos da criança é, ademais, discutível: este artigo reza, de fato, que
-r )
V

então que nas mãos do legislador a fixação desses diversos prazos constitui um 70 Sobre os diferentes fatores de alongamento ou de encurtamento dos prazos, cf. HE -
dnstrumento eficaz de regular a duração jurídica, entendida aqui como o esta- ^ .
BRAUD, P. Observations sur la notion de temps dans lé droit civil In: Êtudes offer- : *
tes àPierre Kayser. Aix-Marseille: Presses de f univers(té dAix-Marseillé, 1979. £ II,
V
i p. 13-14. * *
. / x

J59 Sobre este discurso, conf. principalmente BRUSCHI, M , Essai d’une typologie de$
prescriptions en droit privé. In: Le tê mps et le droit Sous la direction de P.-A. Côté
71 Cf. LETTERON, R. Le droit à FoublLRevue de droitpublic> p. 4Ó2, 1996-2. . - * — *
D 72 DUCLOS, P. Les Enfants de Voublu Du temps des orphelins à celtii des DDAS. Paris: *
et J. Frémont. Cowansville (Québec): Yvon Blais, 1996. p. 293-294. ' Seuil, 1989.

t
158 i 159
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Capítuío.2 Perdão. Desligar o passado.
Jt < i
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.
, a criança terfi o direito de conhecer Seus pais e ser educada por eles, na me-
í * ; *
rêito a respeito da vida privada. Úma.vez que, personagem públicá ou não, fo-
dida do possível73
Pode ocorrer também .que, dizia-se ontem, em vista de preservar a paz
mos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade
muitas vezes é preciso dizer, uma atualidade penal temos o direito, depois
,

s e a honra das famílias, ou ainda, diríamos hoje, de preservar as ficções impos- j de determinado tempo, a sermos •deixados em paz e a recair no esquecimento
tas pqlo direito , o legislador interdite o estabelecimento ou a contestação da fi- e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. Em uma decisão de 20
lia ção a qualquer momento ou no fim de um prazo de prescrição mais curto .
de abril de 1983, Mme. M Filipachi Cogedipresse, o Tribunal de última instâ n-
.
que'o prazo de direito comtim de trihta anos 74 Mas, aqui também são difíceis cia de Paris consagrou este direito em termos muito clarosr“[,..] qualquer pes-
as arbitragens entre memória e esquecimento, ordem p ública e interesses in- » . soa que se tenha envolvido em acontecimentòvs públicos pode, com o passar
<
dividuais. Notaremos a esse respeito a" solução particularmente imaginativa \ do tempo, reivindicar o direito ao'esquecimento; a lembrança destes aconte-
j .
prevista pelo artigo 34.0-4, al 3, do Código civil: se a ação de investigação de cimentos e do papel -que ela possa ter desempenhado é ilegítima se nã o for 4

v paternidade naturál não foi intentada quando da menoridade da criança, no .J fundada nas necessidades da história ou sefor de natureza a ferir sua sensibi-
decorrer de um primeiro prazo de dois anos, que corre a contar do seu nasci- ’]
*
* >
lidade; visto que o direito ao esquecimento, que se impõe a todòs, inclusive
mento, um novo prazo de dois anos se abre, a contar de sua maioridade Cio- - x . aos jornalistas, deve igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados
so de fançaro véu do esquècimento sobre algumas verdades, o. direito oferece, que pagaram sua dívida para com a sociedade e tentam reinserir-se nela”*75
aqui, através deste prazo de prescrição em dupla abertura, uma Segunda chan- j Tudo isso nos convence, sem dúvida, da utilidade do* esquecimento;
ce à memória dds fatos. Marca, entre muitas outras, que em direito, como no ? mas, quando úecessário, o esquecimentové também perigpso: como a noite, à
inconsciente, nàda nqnca é totalmente esquecido; ainda é preciso que o retor , - qual nós o comparávamos há pouco, ele é simultaneamente calmante e amea-
no do recalcado se opere em condições aceitáveis, a que se dedica ó legislador, çador; Carbonnier lembra, a esse respeito, que se a noite acarreta a paúsa do
harmonizando condições e prazos '
. direito e o sono do justo, abriga ígualmente as manobras dos ladrões e dos
Em oútras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela conspiradores, todos aqueles para quem o não-direito poderia perfeitamente
jurisprudência, surge mais claramente como uma das m últiplas facetas do di- .A
'
significar o contradireito.76 Lembraremos também que os primeiros magistra-
* dos eram vigilantes, como se fosse preciso que alguns, pelo menos, mantives-
sem acesa a chama da lei no decurso das horas escuras da noite.
,
73 LETTEÇON, R. Le droit à Foublí. Revue de droit public p. 403, 1996 2 Àtualmen ' -. - K
Ao lado das diversas formas de esquecimento-pacificação; aprendere-
te “o parto incógnito” é apresentadp como um dom feito por íima mulher anôni- H
‘ ma a um casal que deseje adotar uma criança; o direito aó esquecimento fundar- mos, então, a discernir as figuras do esquecimento-falsário e do esquecimen-
-
se ia, então, num princípio oppsto: “mater sempter certa est” (“a criança tem por -
to recalque. Esquecimentos-falsá rios: mil e uma formas de mentiras piedosas
mãe a pessoa que assim é designada no ato do nascimento”) . da história oficial para legitimar um regime ou reforçar umaideologia, traba-
. -
* -
74 Pode-se citar principalmenfe: art 311 319 e 311 320 do Código civil (impossibilida-
de de estabelecer ou de contéstar a filiação em caso de procriação assistida medica
.
mente); art. 352, al 1 do Código civil (a colocação em vista cia adoção põe emxeque j
-
tória do Japão, baseada no.dogma fundador segundo o qual o imperador não

lhando à vontade com a simples verdade dos fatos basta evocar o caso da his-

. .
• qualquer tipo de reconhecimento); art 340-344, al 1 do Código civil (a ação em bus -. conheceu nem a abdicação forçada, nem a substituição desde a criação do país
ca da paternidade natural prescreve em 2 anos a contar do fiascimento da criança) \ f *

No que diz respeito à inaceitabilidade de determinadas ações, conferir o art. 334-339 3[ *


pelos deuses, postulado que, é claro, só se mantém ao preço de acumular ês-
\do Código civil (ação em busca da paternidade se a criança já tem uma filiação legí
'1
- v> (
tima estabelecida por posse do estado); art. 338 do Código civil (em caso de reconhe j
. -
'


- .
75 TGI Paris, 20 de abril de 1983, em /CP, 1983, II 20434, obs , Lindon; cf igualmente .
‘ cimento de filho natural); art 334 10 do Código civil (se èxístir um impedimento
para o casamento em caso de incesto absoluto ao passo que a filiação já está estabe -. Bruxelas, 21 de dezembro de 1995, /T, 1996, p. 48;“les impératifs de Tactualité ne
paraissent plus justifier aujourd’hui la reproduction des tçaits de mêmes personnes” .
lecida em relação a um dos dois pais); sobre èsta questão, cf. PETIT, R La mémoire
. . . -
en droit prívé Revue de la recherche juridique Droit prospectifi p 15 16; 1997 1 -. .
76 CARBONNIER, J Nocturne In: . . .
.. Flexible Droit 8. ed. Paris: LGDJ, 1995 p. 53. \

v.1 l
^ *

160 161
sCapit\ito 2 > I
y
p

, Perdão . Desligar o passado.


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jr A * » y
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*

quecimentos e “contraverdades” Esquecimentos-recalqué: através dos quais „ ' i dão, ao contrário, há abastança, sublirtf ídadee mesmo gra ça. Um" está abaixo
^
se visam esses fenómenos de amnésia coletiva, que dizem respeito aos vence .
dòres em fela ção à sorte que suas conquistas, guerras, cruzadas e outros dji
-
-
das virtualidades do direito, o outro acima. Um opera na face tenebrosa dp di-
reito, lá onde atuam o cálculo político e o interesse individual; o outro irradia
k
haãs impuseram aos vencidos, vítimas anôniirias enviadas,para asmasmorras « sobre sua face luminosa, assim qúe o ilumina a inspiração ética. Gratuito, ofe-
da história;.esquecimento dos massacres, genocídios, crimes contra a huma- . recido sem contrapartida, o perdão remete ao heroísmo da consciência moral,
^ ••
t

nidade, que acarreta hoje o. sobressalto da imprescritibilidade ; esquecimento '7 até mesmo no ^registro. religioso^ à abastança de uma graça que opõe o amor
ao ódio.81 A esse respeito, pode-se dizer que “o perdão derivou do domínio ex-
* »
dos direitos do hòmem, de que já falava o Preâmbulo da Declaração de 1789, ;j
» i

e qtte justifica a utilidade de sua lembrança periódica; esquecimento vergo «g|


nhoso tambsém destes episódios pouco gloriosos do passado, que preferiríaL
- trs, legal” 82 Contudo, coloca-se a questão de saber em que medida o direito se
deixaria inspirar, ao menos em certas circunstâncias, pela “generosa ilegalida-
<

*
. f


' v
óu Vichy,79 por exemplo de” do perd ão.83
t > 1
mòs iíão mais ver surgir: Munique 78
* *
* h
Contra todas estas formas de esquecimento fazem-se valer os direitos
*

“Generosa ilegalidade”: a expressão é feliz, revela bem o caráter parado *

«
da memória e, por vezes, a necessidade da instituição da recordação..Face às xal do ato de perdoar - um gesto que, frustrando a lei estabelecida ( que equi-

* •
*
\
regressões da noite e aos desvios do nao-direito, saudaremos, então, como
. Carbonnier, o retorno do dia: “cada manhã, o dia-sai da noite, sugerindo aos *
homens, pelo seu próprio retorno, as primeiras idéias jurídicas, a ordem uni- i
^ libra o dano e. seu preço, a falta e a pena), torna visível uma outra lei, restitui
sem motivo e dá sem calcular: pensemos em Antígona, “santamente crimino-
sa”84 pois ela perdoa Polinice, ò traidor, ou ainda em Jesus, que os fariseus que- *

versai, a fidelidadey a promessa”.80 Da memória à promessa, contudo, o cami-


nho não é direto; ele não passa somente, como vimos; pelo bom esquecimen
tp, o esquecimento-calmante e o esquecimento-seleção, qúe faz a triagem do
,
- ^ riam prender, a propósito da mulher adúltera, sem dúvida culpadajsegundo a
lei mosaica, mas perdoada segundo â lei evangélica ( “Quem não tiver pecado
qile atire a primeira pedra!”..).8S.Há, então, como um primeiro traço, algo de
-
necessário na somâ do passado; mas ele pede ainda que se tome o desvio do revolucionário na instituição do perdão: a mobilização de um tempo da inicia-
perdão que; nãò se limitando a conservar, selecionar o passado, transforma-o, * t tiva, de um tempo da surpresa, e do acontecimento que rompe a continuidade
inscrevendò-o na perspectiva de um outro futuro. do que se perpetua, e opera como uma espécie de “ano zero, em qqe as dívidas
seriam extintas, escravos libertados, as terras redistribuídas de modo igual”.86
*
Um perdão desse tipo não se refere nem à indiferença estóica ( atitude
ENTRE. A AMNÉSIA E O IMPRESCRITÍVEL,
0 PERDÃO 3 altiva daquele que finge não ser afetado pela ofensa e, logo/nada tem a per
i
•v
-
t /
*
v
/
:
»

Se o esquecimento está aquém do direitp, o perdão, poderíamos dizer,


<r
» * . . .
81 JACQUES, F La promesse et le pardon. Archivio di filosofia, n JL /3, p 335, 1987 . .
está al m: Há moderação, fatalismo e até cinismo no esquecimento; no per-
. -
82 JANKÉLÉVITCH, Vt Le Pardon Paris: Aubier Montaigne, 1967 p 16; cf igualmeli .. . -
é
V
. . .
te ABECASSIS, A Lacte de mémoiré Le Pardon BriSer la dette et Votibli> revue Au
, .
trement Série Morales, n. 4, p 147, avril 1991 (Sous la direction de O. Abel):“o per
--
- dão está por trás da esfera jurídica” * .
77 EÈRRO, M Les oublís de Lhistoire La Métnoire et Voubli. Communications, n 49J.
1
^
1

. . .
f m I

. . .
•*
*p .
61, 1989.
.
,
.
-
78 TERRAY, E Munich Un anniversaire otiblié. In: Politiques de Voubli Legenrè hu

-
. - 1
83 A colocação é de JANKÉLÉVITCHX V Le Pardon Paris: Aubier Montaigne,"1967
. . .
84 Ibid , p 88
-
i

.
main Paris: Complexe, 1988 p 65 et seq " .. . - 1 * 85 Evangelho segundo São João, cap 8
.
.. \

.
79 LORAUX , N Pour quel consensus? In: Politiques de Voubli Legenre humain Paris: . . .
86 ABEL, O, Tables de Pardon In: JANKÉLÉVITCH, V Le Pardon Paris: Àubier Mon . - -
' Complexe, 1988. p. 15
r
. * / taigne, 1967. p. 229: O autor evoca as reformas de Clístenes em Atenas e o ano,do
jubileu entre os Hebreus.
v

.
/
s
80 CARBONNIER, J Noctume. In: . .< Ftexible Droif 8. ed Paris: LGDJ, 1995 p 54 . . . . 1
/
*

162 163
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*
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Capítulo 2
4
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* Perdã o. Desligar o passado
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. 4

4
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*
4 »*
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V,
#
» J

* doar), nem à escusa intelectual (explicada por esta ou aquela circunstância, o futuro à memória” 91 A natureza dialética do perdão surge, assim> em plena luz,
erro não precisa ser perdoado), nem ao recalque (que é a cruz apressadamen t - já que no cômputo total remete à memória (a falta não é esquecida, mas reco -
te traçada sobre um passado doloroso, cujas angústias. queremos conjurar), r *
nhecida e assumida), e, como aval, desemboca na promessa (a aposta confiam-
nem, sobretudo, ao esquecimento que, acarreta a simples usura do tempo.07 Ao
>
* te num oútro cenário de futuro). 4

contrário de todos esses substitutos, o perdão q simultaneamente um ato tan - i

*
to de memória quanto de remissão: ,o apagamento deliberado de uma ofensa ' . *

bastante real. O ofendido deixa o ófensor quite 'de uma falta;,cuja realidade é 0 PERDÃO, CATEGORIA JURÍDICA?
.
reconhecida pelos dois protagonistas A falta tolerada traduz a complacência
Tudo isso, pensaremos, distancia direito. Ê
da indulgência, a falta esquecida revela a atonia da consciência moral e a de *1 - . -nos consideravelmente do *
verdade que, por muitos traços, o perdão se afasta da lógica jurídica: ato pes-
*

missão do direito, ao passo que a falta perdoada inaugura uma nova historia .
^
/

- uma história que rompe o eterno' retorno da pulsão dê morte que está nav soal ( concedido pelo ofendido ao ofensor que o solicita), o perdão não é uma
X

base do ciclo crime-vingança*88 medida coletiva e pública; não sendo jamais devido, não pode ser imposto por
»
Respondendo ao contra-senso do mal por um acréscimo de sentido, o ,,
,

-
*
lei alguma; gratuito e gracioso, ele excede à lei da equivalência, mais ffeqtien -
t
perdão aposta na liberdade dos interlocutores: o ofendido, que através de seu • temente associada ao reino da justiça:Mas, se ele não pertence à ordem jurí-
gesto imprevisto89 e gratuito renuncia a reclamar o que lhe é devido, e o ofen- dica, não é proibido pensar que o perdão possa constituir-se em um horizon-
te regulador: uma idéia limite que inspira algumas de suas instituições, uma
-
sor, que afàstando se da lógica do pior, solicita o perdão90 e se comprojnete a ,

vez^ que^a justiça,confina com a equidade*9* Voltamos sempre a isso: o direito


restaur ia relação comprometida. Assim, o homem do ressentimento (a víti- .
« <
«
,
ma), e o homem do remorso (o culpado), se libertam juntos de um passado S -
\

é mediação do ético e do político, tradução de um na linguagem ílo outro


*
.
Tanto mais que os perdoes que ele oferece serão sempre cobertos de esqueci
<

-
s.
obsessivo e se tòrnàm disponíveis para um futuro novamente promissor: “O
perdão é uma espécie de cura da memória”, escreve Rícoeur: “liberado do peso 1
da dívida, a memória é libertada para grándes projetos. O perdão oferece um "*
^ à
mento, guiados por cálculospolíticos e cuidados de intendência ( não seria se-
não a consciência da erosão das provas devido ao tempo que passa); ele seria
*
s

* > \
*
redutor por isso, de não creditar o direito de aspirar a uma concepção mais
exigente da justiça, cuja idéia de perdão é, sem dúvida,- um dos modelos.
O
\

87 Eyoçando estes diferentes substitutos do perdão, resumimos toda substância da Que seja, concederemos talvez; mas, pretisamente, á interven ção da
.
obra já citada de V Jankéléyitch . *
f

i
n

justiça (ao invés e em lugar da vingança, principalmente) é tanto, senão mais,


.
88 KRISTEVA,‘J Dostoievski, une poéthique du pardon. In; Le Pardon. Paris: Aubien j
produtora de sanção que de perdão. Sem <fúvida; mas é preciso, agora, notar
. „ Montaigne, 1967. p. 85; tc0 perdão é a histórico. Ele rompe a cadeia das causas e
- ÍJ

dos efeitos, dos castigos e dos crimes, ele suspende p tempo dos atòs. Um espaço l
que as duas figuras não são contraditórias, longe disso. Pois desde que o cas-
--
*

4
-
estranho,abre se nesta intémporalidade que não é aquele do inconsciente selva tigo é justo, nele sedntegrã necessariamente uma dose.de perdão. Se partir -
gem, desejante e assassino, mas sua contrapartida: sua sublimação com conheci 1
mento de causa, tuna harmonia amorosa que não ignòra suas violências mas na
,
mos, de fato, da idéia de que, de uma certa forma, o dano é sempre irrepará -
\
* verdade
*
as âcolhe.”
*
1.
vel e a dívida inextinguível, concordaremos que o castigo judicial é principal- r -
*

89 H. ARENDT mostra bem que <fnunça se pode prever o ato de perdoar. É a única
* 4

,}
I
reação que não se limita a reagir”, Conâition de Vhomme moderne* Traduit par G!
^ Pradier. Paris:Calmann-Lévy, 1988. p. 307 . * . ,
!
.
91 RICOEU.R, P Sanction, réhabilitâtion, pardon. In: Le Juste Paris: Éditions Esprit,
.
.. .
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f
\ 1995 p 207
90 * Não pode haver perdão a não ser que, inicialmente, o ofensor solicite o perdoo. “Al-
>
4

guém lhe pediu perdão?” interroga V. Jaíikélévich a propósito da Shoah (Címpres-


t
.
92 Neste sentido, RICOEUR, P Sanction, réhabilitâtion, pardon, In: Le Juste) Paris:
i
* critíbile, Paris:Seuil, 1986. p. 47 et seqí). Éditions Esprit, 1995 . /
* i *

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Capitulo 2
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Perdão Desligar o passado.
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sua dignidade de pessoa e a autp-estima que a acompanha Frequentemente,


1 mente, nesta medida, uma remissão; por outro lado, como o perdão, o casti- > :
go <ctenta pôr um fim a uma coisa que, sem sua intervençã o, poderia continuar 4^
* também, éla constituirá o primeiro ato do trabalho de luto que é levada a rea-
indefinidamente”.93 lizar. Mas o reconhecimento opera também do lado do réu Importa, antes, .
4

/ *

Da justiça penal ao perdão há, entretanto, uma distâ ncia que seria inú- para que se engate a lógica do perdão, que p réu se reconheça ele mesmo cul -
til minimizar; só ao preço de vá rias mediações é que sua relação pode ser pen- \
sada. No caso em que ela tem sucesso, é a instituição do processo que garante
^ pado: ao assumir sua falta è pedindo perdão, ele se coloca em situação de obtê-
lo. Em seguida, é preciso que a sociedade (e, por detrás desta ção, a opi- abstra
:

a articulação; por seu intermédio são introduzidas sucessivamente as idéias de ‘ nião pública que lhe intenta este processo, reconheça-o como um ser racio-
),
o de terceiro no litígio, de reconhecimento recíproco do queixoso e 'y nal e morài; e não como um monstro inffa-humano Paradoxalmente, como .
^ intervençã
'
-
já’o notara Hegel, a sanção honra o culpado: inflingindo a, a sociedade decla-
4 *

do aciisado, e, enfim, de reabilitação possível do condenado.94


/

É de íé lembrar que, ao contr ário da vingançâ privada, que opõe sém $ ra que ele é responsável por seus atos, e, portanto, capaz de outra coisa Qual- . - »

distância a vítima é o culpado, o processo tenta estabelecer ú justa dis.tâ ncia , s quer que seja a gravidade de seu delito, ele não se reduz a isso," e deste pònto
entre delito e sanção. O processo é, antes de tudo um recuo, uma separação, -V de vista a sanção surge cómo o primeiro passo em direção de um outro futu-
, - . . . . .
uma mediatidade. Por essa tomada de distância, socialmente instituída, o pro- v , ro, além da simples repetição de um passado culpável.
cesso realiza a intervenção do terceiro árbitro numa querela quq será, daqui . Dadd éia de reconhecimento, passa-se, assim, à terceira mediação que
para frente, triangulada, e então, assim verbalizada, referente a uma lei afetan- ^ nos aproxima, desta vez de maneira dècisiva, do perdão: a reabilitação do con-
do as partes. O juiz é separado das partes, assim covmo o poder judiciário está ,
4 '
,
*
.
denado O final do percurso penal (instrução dos autos, processos, pronuncia-
'

em posição terceira em relação aos dois outros podereis, em que o Estado se ^


mento e execução da pena) é, de fato, a reabilitação do culpado. Reabilitar
t

destaca da sociedade civil. E o direito qúe o juiz di não é seu verto próprio, quer dizer apágar as incapacidades, restaurar a capacidade humana funda-
mas a palavra da lei que, no Estado de direito, fixa simultaneamente o mapa e
^ a escala dos delitos e das penas: cadaum, em princípio, pode conhecer de an-
^ ,
\
^
1
mental dó cidadão portador de dirçitos e obrigações. Reabilitar quer dizer re-
duzir progressivamente a exclusão social do condenado, a distância à qual era >

temão a lista das infrações e das san ções, assim "como sua gravidade relativa. < mantido, e da qual a detenção carcerária continua sendo o arquétipo, facilitar,
Enfim, a sentençasó é pronunciada no final de um debate público e contradi- J .
enfim, sua reinsêrção no seio da sociedade Esta reabilitação que intervém de- x*

tóriõ, no decorrer do qual vítima e suspeito tiveram sucessivamente a palavra, '


a pois da sanção, hão é, sem dúvida, o perdão puro e simples, mas é, em todo
tornando-se assim um e outro, os atores fie seu processo. ;
& caso, muito mais que a retorsão. Tanto que, pensando bem, este horizonte de
„ *

, Está característica do processo é essencial, pois ela introduz a segunda N reabilitação opera ao revés, em todos os estágios do proceséo e da execução da
mediação entre justiça e perdão: o fato de que a instância opera um trabalho '
j .
pena Longe de, constituir sua etapa final, ele informa virtualmente todos os
- progressivo de reconhecimento recípropo dos protagonistas A vítima, logo de
início, é reconhecida em seu estatuto dç vítima, o que constitui, frequente
.
-
1 seus desenvolvimentos, mesmo se a maneira fenomenòlógica do processo, que
estamos vendo, represente a descrição abstrata de um “ideal tipo” de justiça,
mente, mais ainda que sua reparação, sua reivindicação principal; apenas este , cuja realidade, repetimos, é sempre mesclada de considerações menos nobres . \

*
reconhecimento público da injustiça que a atinge irá lhe permitir recuperar \
5
4

« 4* *
A PRESCRIÇÃO , ou o ESQUECIMENTO"PROGRAMADO
.
4 f
4

.
93 ARENDT, Hf Cotidition de Vhomtne modeme Traduit par G Fradier. Paris: Cal - » *
*
'
/

* »«
I

mann Lévy, 1988. p. 307.


- I
4 * O
Quais são, precisamente, nas dobras da realidade jurídica, as principais
_-
*

94 Cf. RICOEUR, P. Sanction, réhabilitation, pardon. In: Le fuste. Paris;.Éditions Es


* *
V - *
manifesta ções deste perdão mesclado de esquecimento? Desta curiosa mesçla,
- .
' prit, 1995. p. 19f5 203 *

*
i
t * I
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)
*
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166
*

%
167
I
Capítulo 2
* /
.
Perdã o Desligar o poisado
t
.

4 V
V
de fato, o direito penal oferece uma gama muito .diversificada de exemplos; i Reconheçamos,.entretanto, que nas mãos do legislador as leis de pres-
“entre a referência ao imprescritível que se recusa à nada esquecer e o uso da
* crição penal representam um instrumento particularmente flexível de dosa-
anistia que tende a tudo esquecer”, multiplicam-se, de fato, as formas do per-
^ gem entre memóriá e esquecimento, sanção e perdão, já que é permitido pro-

,
dão, Algumas intervêm antes quq os fatos sejam cometidos e outras depois; al- •
gumas são individuais, outras coletivas; algumas procedem da lei, outras re- ^
- longar ou reduzir o prazo de prescrição, modificar seu ponto de partida ou,
ainda, administrar um domínio para o imprescritível. Logo, de fato, o legisla-
sqltam de uma medida administrativa ou de uma decisão judicial. dor não hesitará em prolongar o prazo m áximo dos processos, correndo, pois,
Antes mesmo que esta ou aquela inffaçao seja cometida, podem ser em socorro do direito, à memória: assim, esta lei de 4 de novembro de 1991,
adotadas leis instaurando uma prescrição. Fica, então, entendido que, devido . votada na Hungria depois da queda dò regime comunista visava prolongar o
, ao decursb de um certo tempo, a sociedade não tem mais interesse em perse- • prazo de prescrição de trinta anos para determinadas infrações copietidas en -
*
guir a infração (fala-sé de extinção da ação pública) ou em exigir a execução y tre 1944 e 1990. Essa lei, controvertida devido ao £eu caráter retroativo, que-
ria, de fato,permitir o processo dos responsáveis, ainda vivos, da sangrenta re-
< 4

da pena que teria sido pronunciada, mas ainda não executada. É que o tempo A
ter á cófroído as provas e embotado as lembranças e que, de qualquer modo, 4 v pressão de 1956.96 Em outras circunstâncias, o legislador se dedicará a retardar
o escândalo social causado pela infração terá se extinguido nesse intervalo de .3 -
o ponto cie p rtida da prescrição da ação pública: é o caso notadamente de vá-
^
V

tempo. Não é porque o silêncio se impôs sobre o fato, que a falta tenha ocor / 3 - rios países em que, sob á pressão da opinião pública, a lei só permite a pres-
rido (como em certos casos de anistia); pura e simplesmente, como em maté- * crição para os fatos dç mau prato ou de abuso sexual cometidos contra as
ria de prescrição civil, o díreito toma nota do escoamentp do tempo e da usu- ' A crianças, a partir do dia em que a vítima tiver atingido a maioridade Ressal- .
^
ra da memória, tanto das testemunhas quanto da indignação pública: depois . ta-se, também, a imoralidade da prescrição clássica que se escoou há muito
r «
'
de um certo prazo, a pessoa visada poderá invocar em seu benefício o direito , ' í * tempo, depois que a vítima tiver encontrado, por fim, os recursos morais e a
*

ao esquecimento. Notemos, entretanto, que este tempo varia segundo se trate vj força necessária para prestar queixa contra um sedutor, sob cuja dependência
-
da prescrição da pena ou dosprocessos. Segundo o artigo 133 2 do novo Gó- 1 poderá ter vivido longos anos 97 .
digo penal, a perseguição de um crime prescreve em 10 anos, e a pena pronun- J Enfim, nos casos de crimes mais graves, em relação aos quais não se ad-
ciada, em vinte anos: o prazo mais.curto da prescrição dos processos s$ expli- mite mais que o tempo lhe apague a lembrança,,impõe-se a instituição da im -
ca porque, nesta hipótese, as provas não foram djscutidas diante do juiz, e, en-
k
prescritibilidadé. Forjando O conceito “crime contra a humanidade”, os juris-
tão, correm o risco de se enfraquecerem. r tas ligados ao processo de Nuremberg obtiveram o efeito de recuar virtual-
" *
*

As leis penais, instaurando mecanismos'de prescrição, não suscitam as » mente ao infinito os limites do esquecimento (prescrição) e do perdão (anis-
mesmas controvérsias que. aquelas relativas à anistia; e isto em razão de sua ]
-
tia), O mecanismo inscrito, desde então, no direito consuetudiná rio interna -
automaticidade (elas legislam de maneira geral e abstrata em relação a* qual I cional foi retomado na lei francesa de 26 de novembro de 1964 ( que “consta -
quer pessoa e qualquer tipo de infração), ê do momento em que elas intervêm ' ta” a imprescritibílidade desses crimes) e, em seguida, traduzido numa Con-
(elas são editadas antes que a infração seja cometida e permanecem em vigor . venção da ONU em 1968, e do Conselho Europeu de 1974, que o estendem
de modo permanente? escritas in tempore non suspecto, elas escapam à acusa- v
n ção de parcialidade dirigida às leis de ocasião)
' . - 96 Cf. HUYSE, L. Justice after transitión: on the choices successor elites make in deà
.
ling with the past. Laty and Social Inquiry, v. 20, n. í, p 69, 1995.
-
,
. . .
95 BOURGET, C Entre amnisti&et imprescriptible In: LeParãon, p. 49; cf igualmen
. .
-
-
te GROSSER, A Du bon usage de la mémoire Juger soas Vichy, reyue í e Genre hu
97 Para uma discussão crítica desta solução conf. XX: Time out of mínd: memory, se -.
xual ahuse and the statute of limitations. In: Time; Law, and , Society. Edited by J
v

. -
main,p 1.11 et secj , éte autorrçne 1994
. . Bjarup et M. Blegvad. Stuttgart: Steiner, 1995 .
*
/

168 169 .
>
J

Capítula 2
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.
Perdão Desligar o passado.
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A

de 39 shillings.100 No nível do estabelecimento da culpabilidade, o juiz pode


aos crimes de guerra.98 A instituição desta maneira de memorial jurídico per - ^ igualmente admitir o jogo das causas de justi | ica'ção ou de, desculpa, assim ‘
segue m últiplos objetivos:99 permitir, em rela ção e contra tudo (aqui, princi- y
, palmente, numa corrida contra o tempo), que se faça justiça em relação aos ' .
como a influência das circunstâncias atenuantés Enfim ^no plano da fixàçãa
delitos que constituem, mais diretamente, atentado Contra a humanidade do ^ das modalidades da pena, sua margem de manobra é igualmente considerável
*
.
Inicialmçnte, o magistrado pode suspender o pronunciamento da con-
*
(

homem (no duplo sentido dq que há de huníano nele, e da humanidade en-


tendida como coletividade, o'gênero humano) / dar um testemunho pedagógi- / denação: neste caso os atos infracionais são provados estabelecidá â culpabi-
lidade do autor deles, mas, com o fim de estimular a recuperação do delin-
0
^ >v

co em relação às geraçõesjrnaisjovens e contra as teses revisionistas, lutar pelo A


acú mulo das provas e arquivamento dós testemunhos, contra a amputação de A «*
.
quente, o estigma da.conderíação lhe é poupado Um prazo dé prova lhe é im-
Uma parte do passado dos povos vítimas de genocídio, apartheid, deportação, aj posto (acompanhado ou" não de.medidas probatórias), em cujo decorrer a
assássinato coletivo e outros crimes contra a humanidade."
i
menor reincidência acarretaria a execução da condenação Na mesma ordem .
de ideias, mas um passo adiante na lógica do castigo, encontra-se a instituição
A prescrição é Uma medida geralmente decidida pela lei antes que a in . - *

do sursis: aqui> a condenação é pronunciada, mas sua execução é suspensa du-


s -
fração seja cometida; depois de cometida intervém igualmente outras formas
de perdão, mescladas de esquecimento. No estágio da instrução do caso, o ór-
gão da lei, o ministério público, já pode, em seu nível, “classificár o caso sem v j
^^
x
rante, um período de prova, eventualmente seguida de medidas probatórias
Este ^ mecanismo de suspensão, interrompendo o curso irreversível do tempo
(aqui, o tempo da divida social) , inaugura uma forma dè reversibilidade rege-
.
relevância”; devido ao princípio não escrito chamado “oportunidade dos pro- 4
7

cessos” ele poderá considerar que, de fato, pelo menos do ponto de vista da u neradora* ao “remontar o tempo” aquém da infração, o desempenho jurídico
faz “como Se” o delinquente fosse capaz de um outro futuro, além daquele de
s sociedade, haveria mais mal do què bem em iniciar os processos. Aqui, esta ,1 - .
reincidente A contrario; mede-se quanto as penas ditas “irredutíveis”, e prin-
-
s

*
mos aquém mesmo do esquecimento, como se preferíssemos não saber óu
.
, não saber demais A vítima pode, contudo, obrigar o ministério p úblico a agir,
apresentando queixa com assistência de parte civil: nesse caso, o ofendido que
*
*

^ cipalmente a “perpetuidade real” voltam as costas a este horizonte de uma rea-


bilitação sempre possível e se encerram na perpetuação do passado traumáti- \
se recusa a perdoar (comoNo poderia, de resto, já que nã o houve nem confis - J *
.
co Ao inverso, todas as medidas dè substituição das penas tradicionais, taisr
N sao, nem pedido de perdão?) obriga a sociedade a se pronunciar e oferece uma ; J como os trabalhos dè interesse geral para a coletividade ou as medidas educa -
segunda chance ao tempo da memória. ' * tivas e terapêuticas, que se inspiram mais num ideal de reabilitação que nUma
í
j lógica de simples retribuição, inscrevem -se, quanto a elas, numa temporalida -
Quando, no final da instrução, o juiz da matéria é levado a decidir,
abrem-se-lhe muitas estratégias de compromissos entre sanção e indulgência.,
^
*V de muito mais qlaramente orientada para o futuro . N

Já no plano da qualificação da infração, ele pode manipular ,a ficção, como 1 V v


'
V

aquele tribunal inglês que, para poupar a um culpado os rigores da lei .(a peria j
de morte para “grand larceny” ou rouber de um valor de pelo menos duas 11- A ANISTIA, OU O PERDÃO CONTROVERTIDO '

' bras)* considerou que um roubo de dez libras resume-se, de fato, a um roubo - i
.
X

Mas as figuras do perdão social não param por aqui Ainda não encon -
- < « r
<*
98 DELMAS-MARTY, M. Pour un âtoit cotnmun. Paris: Seuil, 1994. p. 79 et seq.
»
t
tramos a mais importante e a mais controvertida entre elas: o mecanismo das

> 99 JOINET, L. Uamnistie, Le dro ít à la memoire entre pardon et oubli . La Mé moire et A *


• Voubli. Communications, n. 49, p. 221, 1989. Para uma aplicação ao caso Paul Tou- 100 PERELMAN, C. Présomptions et fíctions en droit. Essai de synthèse. In: Les Pré -
> somptions et les íf ctions en droit. Études publiées pár C. Perelman et P. Foriers. Bru-
, > víér, cf. a decisacudo 13 de janeiro de 1997 da Comissão europeia dos direitos hu- V
xelles: Bruylant, 1974, p. 348 .
manos ( Décisions et rapports, v. 88-A, p. 148 et seq.). - I <

' \
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V

170 171
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* Perd ão. Desligar o passado . s V
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Cajjftuh 2
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leis de anistia. Considerada como uma medida de éxceçãoque inspira o silên- ) ção, sustentar, por exemplo/ que tal pessoa, que agora pretende exercer um
í
mandato político, foi um torturador em outros tempos. O direito à memória
*
cio à lei penal, a anistia é uma práticá freqiiente de m últiplas faces^ Encontr
mos, de fato, formas de anistia menores (anistia das penas) e formas maiores
$
^- não é diretamente atingido neste caso? E a verdade histórica? Se daqui para
frente o antigo criminoso, reabilitado em todos os seus direitos e*títulos, des-
*
(anistia dos, fatos); ora ela intervém nas circunstâncias políticas específicas %
como uma medida puramente circunstancial, ora, ao contrário, será o caso de A fila com suas condecorações, não se pode pensar que o passado foi manipula-
• anistias periódicas e tradicionais pronunciadas por ocasião de aniversários, * do e/que a injustiça, aò invés de se atenuar, se agrava?
fptas nacionais ou eleiçõ es presidenciais. f .
B afirmar que a instituição é controversa Enquanto concordamos, em
Contrariamente à prescrição, que procede de uma lei geral e perma . ] -. geral, em sustentar que “a anistia tende a se identificar ao perdão e a prescri-
ção ao èsquecimento”, alguns, ao contrário, vêem nisso a “antítese” do. per-
102
. / nente, ádotada antes que os delitos sejam cometidos, o mecahismo/ da anistia
4 " procede de leis ou de decisões casuais que intervêm após a infração. Estas di 4
,
á j

- - .
dão, uma forma de “amnésia institucional” 103 De resto, da amnésia à anistia, o
^
ferenças fazem com que, de um lado, a idéia. de perdão seja mais clargmente j parentesco etimológico se impõe, remeténdo a uma falta de memória 104 Nes- .
associada à anistia, pois agora há algo a ser perdoado, ma$, por outro.lado, o ta prática, Ricoeur vê a tentativa “mágica e desesperada” de apagar o inapagá-
caráter circunstancial e a posteriori da medida (que intervem / poderiamos, di- i") vel (a mancha de sangue na mao de Lady Macbeth ) que no Estado republi- ...
zer, em tempore suspectu ) acarreta-lhe frequentemente a suspeita de parciali - cano responde hoje à va tentativa de conjurar o fraco de toda divisã o social -
dade: o que se escondei sob repentina vontade de “passar a borracha”? \ como se o Estado racional devesse necessariamente se produzir como univer-
Das anistias periódicas diremos que se trata, principalmente, de/um l .
sal e se preservar de qualquer discórdia O preço a pagar para garantir esta “in-

-
/

Instrumento de política penitenciária »


: reduzindo a intervalos regulares a su i crível pretensão” é muito alto, avalia.ele: ele representa “todosns delitos do es-
,
perpopulação das prisões o sistema “se purga” ao esquecer; ele tenta, assim, 2
ii
.
quecimento” 105 Entre' estes, citaremos o risco de banalizar ão crime ou ainda
* escapar à paralisia que o espreita e reduz as tensões no interior do universo í neutralizar todos os valores, bons ou maus, colocando-os lado a lado numa
carcerário; por outro lado, subtraindo determinadas infrações ao benefício da A medida comum de clemência, como quando se anistia os antigos opositores I

medida de clemência, o governo assinala as prioridades da política penal que para .melhor anistiar os antigos opressores.*06 \ V

J-
pretende seguir dali pà ra frente,10* ”

f Enfim, se alguns vêem na anistia uma forma de esquecimento forçado


t Mais interessantes são, portanto, as anistias pontuais, de caráter políti- JÍ ou de conspiração do silêncio, outros, ao contrário, interpretam-na como “o
co. Estas se dividenvem anistia das penas e anistia dos fatos. A anistia menor, M perdão por excelência”,107 ò gesto de misericórdia da sociedade que, para es -
que intervem após condenação, interrompe a „execu ção das penas e apaga a j
condenação; entretanto, pelo menos o processo ocorreu no seu tempo, pagan- /i
treitar suas fileiras depois da prova, opta por voltar seus olhares para o futu
t
*
i -
t
vdo assim um tributo à memória. Emcóntrapartida, a anistiar dos fatos extin ’ ] -
j

102 JOINET, L. Uamnístie. Le droit à la memoire entre pardon et oubli. La Mémoire et


gue a ação p ública, porque ojs fatos consideram não terem sido delituosos. \
*
Voublu Communications, n. 49, p. 214, Í989.
Neste ponto, o efeito do desempenho jurídico atinge o seu ápice: agimos como } 103 GACON, S. Uoubli institutionnel. Oublions nos crmesy Revue Autrement, n* 144,
se o mal não tivesse ocorrido; o passado é reescritq e o silêncio é imposto à ) p. 98- 111, avril 1994, ; conf. igualmente RICOEUR, op. cit., p. 205. y

memória. Daí em diante não se pode, mais, sqm se tornar acusado de difama ' i - i
104 LETTERON, R. Le droit à 1’oubli. Revue de droitpublic, p. 394, 1996-2. »

* X
105 RICOEUR, op. cit., p. 205-206.’ 'X

106 JOINET, L. Uamnistie. Le drõit à la memoire entre pardon et oubli. La M é moire et


101 Cf. JOINET, L. Uanuijstie. Xe droit à.la memoire entre pardon et oublí. La Mé moi - Voublu Communicationsy n. 49, p. 221, 1989.
- re et Voublu Communications, n. 49, p. 216, 1989; LETTERON, R. Le droit à Poubli.
107 JEANDIDIER, W. Droit pé nal gé né ral . Paris: Montchrestien, 1992. p. 299.
4

.
Revue d è droitpublic, p. 398,f 1996-2. t
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172 \i 173
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Capltiilo 2 f
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ry * \
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Perdã o Desligar o passado
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' 4
(
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ro. De fato, o tema é recorrente nos debates parlamentares que acompanha- S i


/
* /
liar em relação ao conjunto dos elementos do contexto. Assim, por exemplo, % \

ram todas as grandes leis de anistia votadas pela República, desde a dos parti- £ certo que a questão do retorno à democracia e da punição dos culpados não
N 4

cipantes da Comuna de Paris até a das rebeliões insurrecionais da Nova Cale- ^ f se apresentou nos mesmos termos jia Europa Ocidental depois da Segunda
1
dônia. Em 1876, Victor Hugo justifica para o Senado seu projeto de anistia / Guerra Mundial, e na Europa Oriental, depois da queda da cortina de ferro.111
pelo perdão: “Senhores, a guerra civil é uma espécie de delito universal. Quem l De fato, múltiplos caminhos se abrem visando tentar o; reatamento do liame .
r começou? Todo mundo e ninguém. Daí, essa necessidade: a anistia. Palavra - * ^ sotial: ou^os processos criminais em massa (como foi a opção feita na Euro -
*
profunda, que constata simultaneamente o fracasso de todos, a magnanimida- , * pa em 1944- 1945) , òu a anistia mais óu menòs geral (solução privilegiada na
J

de de todos [..*]. A anistia é a suprema extinção das cóleras; ela é o fim das À Europa Leste^e no final das ditaduras militares da América Latina), ou, ain -
guerras civis. Por quê? Porque ela contém uma espécie de perdão recíproco ’.108 5 da, as soluções bastante originais da anistia sem amnésia de que falaremos em
A

Em 1988, Michel Rocard, a propósito da Nova Caledónia, dizia outra' coisa: “A Ã


um instante. .
anistia nãó é o esquecimentoT Ela é um gesto de perdão para que a vida retor- A favçr de uma aplicação- rigorosa da lei penal militam diversoá argu-
mentos: um devè/ moral elementar, a respeito das vítimas que encontram nis -
.

ne e continiíe, pára que a reconciliação possa prevalecer sobre a violência 0 0 ' 1


^ so a primeira etapa da recuperação de sua dignidade, a purgação coletiva de
enfrentamento, para qUe a paz, de novo, tenha suas oportunidades” 10*
«
um passado traumático que, de outro modo, não deixará de assombrar 0 in-
V A lição parece atravessar a história. Foi praticada em Atenas em 403 as- 1 *

consciente coletivo, o testemunho da capacidade do novo poder em se impor


sim que a democracia foi restabelecida depois do episódio dos trinta tiranos. 'J
e fazer prevalecer, para o futuro, os valores dá demoçracía. A favor da anistia,
Henrique IV colocou-a igualmente em ação no Edito de Nantesde 1598 des- / jj '

em contrapartida, se fazem valer igualmente excelentes razões. E, de início, a


» tinado a restabelecer a paz religiosa. Seu preâmbulo merece ser citado: “Que a y necessidade de virar a página libertando-se definitivamente dos fantasmas do
,

/ •*
memória de todas as coisas passadas desde marçotde 1585, assim como todas / "

passado; assim se exprimia R. Dahrendorf em relação aos processos abertos


as perturbações precedentes, fique extinta e amenizada como algo que não . J contra o antigo-dirigente da Alemanha do Leste, E. Honecker: “Vocês vãò re-
aconteceu, que não seja lícito nem permitido a nossos procuradores gerais, n começar os processos das décadas de 30 e 50? Vocês não aprenderam, então
nem a qualquer pessoa pública ou privada, de lhe fazer menção, abertura de"

nada sobre a história? Não recomecem as velhas receitas. Senão, nunca serão
processos diante de qualquer Tribunal ou jurisdição. Do mesmo modo, proi- 3 capazes de começar algo de novo”.112 J. Semprun sustentou propostas similares
bimos a nossos súditos lhe renovar a memória, atacar, injuriar e provocar um à _ na Espanha pós-ff anquista, assim como, o presidente argentino Alfonsin de-
, ao outro, a propósito do que passou, mas que se contenham e vivam juntos v |j
I %,
pois da queda do regime militar.
como irmãos, amigos e concidadãos55,110 /
Atua, igualmente, a favor da anistia, o risco frequentemente evocado de '
Portanto, esquecimento forçado ou perdão deliberado, conspiração do 5 uma justiça rápida: na emoção que acompanha os grandes traumatismos po-
silêncio ou gesto de reconciliação nacional, que será, então, ã anistia? Tudo, * lí ticos, será que a independência dos magistrados está’garantida? E as condi-
x parece , é questão de circunstâncias: ligada~a conjunturas .políticas sempre í ções habituais de exercício da repressão (com seus prazos, sua publicidade, seu
s X

particulares, cada lei.de anistia é um texto excepcional (ao qual, de resto, os ! respeito ao contraditório) estarão reunidas? Acentuamos igualmente as mani - ;
jurístàs reservaip uma interpretação restritiva) e efémero, que só se pode ava- pulações temporais que se seguem, quase que necessariamente, aos processos/
1

108 HUGO, V. JO, T)é bats, Sénat, p. 3.533 3.534, 23 maio 1876. '
- 1ll Cf. HUYSE, L. Justice.after transition: on the choices successor elites make in dea-
«
- - , 109 Discurso proferido em Lille em 4 de novembro de 1988. .
ling with the past. Law and Sôtial Inquíry, v. 20, n 1* p. 66 et seq., 1995.
110 Cf. GROSSER, A. Le Crime et la mé tnoire. Paris: Flammarion, 1989. p. 137. .
112 Ibid , p. 57. í

* H r \
\

174 175
í t . \ •
*> *

Perdão. Desligar o passado.


\
Capítulo 2
\
~v
V,
» , \
0
« tf
de um lado, a necessidade de punir comportamentos criminosos, a tal ponto ,ií OS PÊ NDULOS NA HÓRA DO JULGAMENTO. .
odiosos, não previstos pela lei penal ordinária (ou pela do regime político já *\
acabado) acarreta a adoção de legislações criminais estpost facto (leis retroa J
tivas, leis interpretativas, referências a princípios gerais de direito internado J
-- O juiz, dissemos, é o guardião das promessas: ele aplica a lei preestabe-
lecida a fatos passados.Ele declara o direito em respeito à segurança jurídica .
>

nal); de outro lado, desta vez em direção ao futuro, coloca-se a questão de sa


ber em que momento do futuro será bom processar os criminosos, o que acar
-- Decidindo o litígio, separando Pedro ^e Paulo, ele fixa o estado do direito que
Cada um, desde o início, sppunha . não poder ignorar. E, contudo, como se
retará, n uitas vezes, o prolongamento do prazo normal de prescrição. pressente, esta Visão do papel dò juiz é exageradamente redutora: o passado
^ /
y
.
nunca è simples, como sustentamos Longe de se fechar em súa anterioridade,
Impossíyel, como vemos, decidir em abstrato entre estes feixes de argu
.
- êlc se prolonga na atualidade que, ao revés, modifica a j? ercepção que dele te-
mentos opostos Entretanto, poderíamos nos basear numa pista interessante ‘ -
*

.
mos Dito de outro modo: tanto os fatos quanfo os textos recebem uma inter-
que nos preservaremos, exatamente, de confundir com um. compromisso fá - pretação evolutiva, enquanto, por natureza, a decisão de justiça que os fixa
#

-
cil que foi aberto pelos países que souberam praticar “a anistia sem amné - .
sia”. Pensamos principalmente na instauração da Truth Commi&ion, no Chile- '1
* possui um efeito retroativo Dizendo no presente o direito do passado", o juiz
-
0 reorganiza necessariamente. O - problema da retroatividade do julgamento é
em 1990, e em EI Salvador em 1991, assim como a Comissão Verdade e Recon ) - então apresentado .
cíliaçãó instaíirada na África do Sul, quando da abolição do regime de apar r -
theid: nesSes ca$os, procura-se estabelecer òs fatos e os atos que ocorreram no 1 Fala-se muito da retroatividade da lei, que se tem, com toda razão, sob
suspeita. Vigiamos igualmente a administração, da qual, em princípio, não se
curso do período precedente, não para punir os culpados, mas para dar à ver j - loléra que faça retroagir seus regulamentos. Mas a retroatividade da decisão
dade seus direitos.113 Assim, ninguém ignora o que aconteceu e quem aí tomou
"

. parte; o passado não é manipulado e o silêncio não é imposto àliistória,Acon- *j


- judicial, e mais particularmente, da regra do direito que ela enuncia? Tudo se
. tece apenas que, por razões superiores, 9 perdão é concedido aos responsáveis, í passa como se um véu pudico ocultasse esta questão, que 'parecemos apenas
pelo menos em certas condições. . \ redescobrir por ocasião desta ou*daquela espécie particularmente embaraço -
, .
sa Ora, hoje, o problema assume uma acuidade muito particular, desde que,
*
Aqui como se
„ vê, a figurá da anistia conseguiu se liberar tòtalmente das
facilidades do esquecimento: é com conhecimento de causa que a sociedade
\ como sabemos, os juízes se viram atribuir, no decurso destas últimas dé cadas,
um papel cada vez mais central na rede jurídica: numerõsas questões, não ver-
fâz a escolha do perdão. Cómo no processo de Orestes, a opção fèita em favor J
, ' de um futuro reconciliado não se paga com o preço da amnésia; ao contrário
*
»

1 •
dadeiramente resolvidas na lei, são deixadas, em definitivo, para sua aprecia -
J
ção; suas competências não cessaram de se ampliar, ao mesmo tempo em que
é porque um gesto fort de memória foi colocado pelo perdão, e então, a libe ] -
^
ra ção dos espíritos pode intervir sem medo de retorno permanente do que foi
se multiplicavam os recursos àe toda ordem, e, enfim, é claro', as jurisdições
estão daqui para frente habilitadas a anular ou passar certificado de invalida-
recalcado. Longe de fugir aprova do espetáculb da divisão sçcial, a sociedade, . \
de não somente a normas administrativas, mas igualmente a textos promul-
colocando-a em cena sob a forma de uma exposição p ública, pode, enfim,. ' gados por assembléias parlamentares .
/ operar -lhé a catarse.. Impossível ainda calar a retroatividàde das decisões de justiça. Mas o tema
%
•*
é mal conhecido:em que a decisão judicial é retroativa? Esta retroatividade é uma
113 HUYSE, L. Justice after transition; on the choices successor. elites make ín dealing

{* . anomalia, seja das leis e dos regulamentos? Seria um mal qué é preciso remediar?
with the p st. Law and Social Inquiry / v. 20, n. 1, p. 52- 53, 1995. Cf. ígualménte

^ Será que ela se agravou com a ampliação do contencioso objetivo que pode levar

i
n
1997\ -4. f
^
BULLIER, A.-J. La Commíssion “Vérite et r çonciliation” dAfrique du Sud> am-
ésie ou amnistie? Revue de droit international et le droit comparé , p. 454 et seq.,
a dispensar a aplicação de uma norma em vigor, até mesmo, anulá-la? São estas
- ^
diversas questões que nos propomos a tratar, fixando-nos ém mostrar este erá
.
*
\

176 177
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Capítulo 2
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Perdão. Desligar o passado . «
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*
I * J

nosso fio condutor neste labirinto como o direito se esforça com sucessos va - [ l í tica jurídica obrigam às vezes .a optar pela retroatividade; compreende-se 115

riáveis para conciliar os dois imperativos opostos à segurança jurídica, que tende A I que esta solução deve permanecer excepcionaL
• a estabilizar o passado e o ^respeito da legalidade, até mesmo do progresso neces - I
I
O qde acontece, em contrapartida, com a decisão jurisdicional? En- *

sário do direito, em nome dos quais ele se dedica frequentemente, a reorganizar v [ quanto a lei só dispõe para o futuro, o julgamento, por sua vez, só preceitua em
relação ao passado.116 Ao juiz se requer que pronuncie sobre se tal fato, tal ato, que
»
este passado que, contudo, se acreditava estabelecido. [
I desenrolaram num determinado momento dp passado, estavam ou não cõnfor-
%

I mes ao direito em vigor naquele momento» Em oposição à regra, abstrata e hi-


A LEI 'PARA O FUTURO7, O JULGAMENTO PARA O PASSADO J y]j [ potética, a decisão é concreta e categórica^não “seJ. então”, mas sobretudo “você *

n < ,' [ que fez aquilo, é agora obrigadera”.117 Neste sentido todo julgamento é declarati-
, *
Comecemos, pois, por distinguir lei e julgamento. Percebe-se bem, * I vo; mesmo as decisões qualificadas como “constitutivas” (como uma decisão de
• numa primeira aproximação, que estas duas fontes do direito não se insere * à - | divórcio, por exemplo, que modifica para o futuro a situaçãoJurídica das partes),
h
vem da mesma maneira no tempo; sua eventual retroatividade não saberia, ' I são declarativas na medida èm que estabelecem a realidade de fatos passados
em conseqúêcia, apresentar os mesmos caracteres. “A lei dispõe apenas para o I ( uma separação de mais de cinco anos, por exemplo, ou um adultério, que cons-
futuro, afirma o àrtigo 2o do Código civil, não tendo, de nenhum modo, efei í - I lituem motivos para pronunciar o divórcio). Pelos fatos que visa, o julgamento é
„ to retroativo”. Mesmo que o princípio de não retroatividade da lei não seja um > I necessariamente voltado para o pasmado e> então, nesse sentido, declarativo. É
princípio constitucional (salvo em matéria penal), e que -o legislador lhe atri ' - I apenas no plano de seus efeitos qiíe os julgamentos podem divergir. Ora ( mais
bua, então, desmentidos, não há dúvijia de que esta solução responde não so , - i fréqtientemente) o julgamento declara que tal efeito de direito deveria produzir . -
- mente a utfia exigência legítima de segurança jurídica, mas também à estrutu
ra lógica da regra legislativa.
t - [ sc, e apesar de uma taf conformidade, èle repõe as coisas no estado jurídico dese- *
/
/

u. P jável, obrigando assim as partes a repensar as consequências de direito de seu


*
Esta, conto se sabe, compõe-se de uma hipótese ( o feto que ela preten ^ - t

r .
comportamento passado Um julgamento deste tipo é chamado “declarativo”;
* , de visar), religada por uma relàção de imputação a hm dispõsitivo ( o‘ efeito de , r seus efeitos são claramente retroativos. Ora a decisão se limita, como uma con-
h I v
‘ v
direito que çla liga à hipótese); sua estrutura corresponde ao modelo “se... en- . I denàção penal, por exemplo, a extrair para o futuro novas consequências de um
tão* ( “então, tal efeito de direito deve se produzir ”). Dito de outro modo, a re - /
t comportamento passado. Um julgamento destes é denominado “constitutivo”;
(
gra é abstrata e hipotética; ela visa um n ú mero indeterminado de fatos e de I seus efeitos nãosão retroativos, mas retrospectivos 118 Por onde se vê que. a retroa- . *

atos aos quais tem vocação para se aplicar um nú mero indefinido de vezes. A ‘V n lividade do julgamento, longe de ser uma anomalia, como no caso da lei, é, ao
lógica quer, por isso, para respeitar o caráter hipotético da. regra, que só a ãpli , 3 - .
/

|. contrá rio, da própria essência da decisão O Jegislador organiza o futuro e, sem *

quemos aíatos, ou atos que irão ocorrer depois de sua edição. Ao inverso, apli I
Car a lei a situações anteriores à sua entrada em vigor representa em si uma ’ j
- * i
« . *

anomalia que tem como efeito, como assinala Jácques Héron, transformar a * \
115 Não desenvolveremos, aqui, a-distinção muito útil que é necessáriò fazer entre “re -
troatividade e rêtrospectividade “ da lei (cf, HÉRON,‘ I. Prí ncipes du droit. trcinsitoí -
regra (norma hipotética oti abstrata) em uma série de decisões (concretas e 1 re. Paris: Dalloz Sirey, 1996. p.96 et seq )
- . (

cátegó ricas): aos fetos e atos já ocorridos, que somos capazes de conhecer, tal * 116 RÍVERO, J. Sur la rétroactivitê de la règle jurisprudentielle. Actuaí ité juridique du
droit administratif, p. 15, 1968.
V
/
' efeito de direito deve aplicar-se daqui para frente.114 Se bem que, razões de po
» * *
- 117 HÉRON, J. Uapplication des jugements dans le temps. In: Le temps et le droit Sous la.•
*
i

*
'
*

,
*
\

)
.
direction de P.-A. Côté et J Frémont. Cowansville (Québee); Yvon Bláls,1996. p. 243.
*
.
114 HÉRON, J. Pr íncipes du droit transitoire. Paris: DalloZ-Sirey, 1996 p. 43. í 118 Ibid., p. 7.
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Capítulo 2 * i
Petdão. Desligar o passado. I
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nenhum problema, lhe é dado reescrever o passado; o juiz, aó contrário, declara Do mesmo modo, os juízes se fizeram mestres na arte de camuflar a novidade
.o direito para o passado (desligándo assim o que fora desajeitado ou injustamen-
das construções que eles propõem: a se acreditar neles, não fariam mais que
te ligado), e sem qualquer problema ele se pronuncia, em regra geral, valendo *
criar soluções que nunca cessaram de inspirai os legisladores ou seus predeces-'

4

para o futuro. Mas de onde vem, então, o embaraço que suscita, apesar de tudo, i ícios retóricos não enganam; em certo número de cásos -
sores* Mas estes artif
pelo menos em certos casos, a retroatividade da decisão? quando se ultrapassa um patamar, por uma interpretação “evolutiva” e, com
Q problema reside na regra de direito aplicada pelo juiz. Em princípio, >
certeza, em caso de “viravolta da jurisprudência” ~, vemo-nos confrontados
segundo a representação canónica, o juiz “diz o direito4 - oVireito de'então, que •
.
*

com umà regra nova e não mais com uma modulação da regra antiga.
'

é principalmente o direito de agora: o direito intemporal tal como se impõe em j • *


i

sua verdade. Eis ainda um aspecto do caráter declarativo do julgamento - um 1 A


” %

julgamento que pressupõe enunciar Uma verdade intangível, decorrente de uma I


\ . lei ou de um princípio preestabelecido. A se. acreditar nesta “ficção declarativa”, ' j
SEGURANçA CONTRA LEGALIDADE
^
•a retroatividade do julgamento não poderia engendrar nenhuma insegurança: 3 f
O conflito de valores depreende-se em toda a sua purezã: afavor do sta-
*
, •

as$im que o juiz pronuncie em t2 a solução jurídica de um litígio, que se ligou t tus quo o respeito certamente advoga pela segurança jurídica . Por detrás des-
\
em tl , esta soluçãb não é senão a aplicação de uma norma fixada em tO, em um J • te termo, “abrange tudo”, com características ideológicas pronunciadas ( como
- momento, portanto, anterior aos acontecimentos em quentão. *
***** «

a expressão, ainda mais conotada de “direitos adquiridos”), faz-se valer uma


Cada um sabe, contudo, que qualquer texto escrito é interpretado e o V 3 série de argumentos opostos à retroatividade: citaremos, principalmente, a
quanto ias interpretações são criativas. A teoria da linguagem demonstrou a confiança dos jurisdicionados, que nao se pode abalar impt ínemente, em um v
inevitabilidade da interpretação; a teoria do direito apropriou-se do caráter .j Éstadò de direito; a necessária previsibilidadé dás situações, indispensável a
*

normativo da produção jurisprudencial. Se se tornou claro, portanto,' que o uma gestão sadia dos negócios públicos e privados; a irreversibilidade dos fa- i
juiz não se limita a repetir uma norma preexistente, mas contribui para con-

tos materiais e do tempo decorrido, que não se pode impedir de haver sido.
figurá-la (adaptando -a às vezes, às vezes criando-a) , então se recoloca o pro- ; /

Evocaremos, ainda, a idéia de prescrição, que é autorizada pelas virtudes paci-


blema da retroatividade. Certamente, se o juiz pudesse dissociar a resolução ficadoras do esquecimento: com ' o tempo, uma situação irregular ná origem
do caso particular, com base na regfa “antiga”, e formular uma regra jurídica ; não acaba por gozar de uma “trahquila posse de êstado” em que haveria* sem
“nova”, que lhe parece melhor, a questão não se colocaria. Mas, còmo se sabe, dúvida, mais prejuí zo do que lucro em revisar?120 Na medida em que o tempo

uma técnica deste tipo que é a dos “julgados de regulamento” pelos quais
uma jurisdição formula uma regra geral para o futuro - não aquela do julga-
. í passa, e que se aprofunda a distância entre o momento do julgamento e dos .
^

fatos disputados, todas essas ràzoes se reforçam, como se o passado se crista-


mento que articula, numa mesma decisão, solução do litígio e enunciação da "
. ,
lizasse progressivamentenum bloco cada Vez mais duro e maciço, contrário às ~
regra com a ajuda da qual foi decidido. N

veleidades de reorganizá-lo. retroativamente.


Igualmente, para retomar aindáuma .fórmula de Jean Rivero, o juiz está ' 1

Nao é gue a tese contrária careça de argumento$nOranos apoiaremos


“condenado à retroatividade ” Eis o paradoxo: muito preocupado com censu- , r*
I
na legalidade, que não sé embaraça em considerações de oportunidade: quais- <

rar a retroatividade das regras enunciadas pelos outros poderes, o juiz é perfei- •
quer que possam ter sidò as motivações ou os conhecimentos das partes, elas
tamente forçado a se conformar àquela vinculada à ua própria intervenção.119
< ^ \\
deveriam saber 6 que era exigido pelo direito ( “a ninguém é pressuposto.. ”).
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*
*
*

119 RIVERO, J. Siír la rétroactiviçé' de la règle jurisprudentielle. Actualité juridique du


dróit adminisiratif , p. 15, 16, 1968.
4
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critique? RJDÁ p 171, 1971.
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120 “ FAVRESSE, J, M. La théorie du retrait des actes administratifs riest elle pas sujet à - f

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*
180
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, Capítulo 2 Perdão. Desligar o passado.
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Restabelecer ex post facto à legalidade é uma operação' que não poderíamos • O problema se torna mais complexo quando um aniquilamento de ,
qualificar de intempestiva ou surpreendente uma vez que o direito tinha vo
'
- ,• uma norma geral, por decisão da justiça, intervém ao termo de uma reviravol -
•capo de àplicá-lo a esta situação desde o início. Ora, entretanto, aceitaremos \ ta de jurisprudência De fato, se é o caso de anular uma regra, cuja ilegalidade
.
que o direito evoluiu, que a solução de hoje não era a de ontem; mas invoca - *
era flagrante desde a origem, a retificação retroativa não é verdadeiramente
remos o “melhor fundamento” da decisão nova; e contra çste “progresso” dor uma surpresa; ela só faz,.em suma, restabelecer uma legalidade que nunca de-
direito, nenhuma razão, acreditaínos, é capaz de resistir. Como, sem obscu- )
.
veria ter sido perturbada Mas, quando a invalidação retroativa é apenas o.re-
rantismo ou má-fé, opor o que asduzes da justiçà de hoje não iluminam, atra- * 1

sultado de uma longa hesitação jurídica, bruscamente concluída por^ uma “re-
vés, de um dia novo, às trevas de outrora?
viravolta de jurisprudência”, compreende-se que o atentadq à segurança jurí-
>
* V

Èste é p dilema. }
\ '4 .
dica se agrava e que as reticências se acumulam “Impiedosa e intemporal [...]
Sem d úvida, ele não se coloca sempre com a mesma acuidade. Quando '1
tal como a estátua do Comendador da legalidadç”,121 a exceção de ilegalidade ,
o juiz se limita a aplicar mecanicamente alei preestabelecida,’ ou quando a .
esmaga tudo em sua passagemipereat mundas, fiat iustit
*

<
ía > *
cmudança” intervém antes que uma prática contrária tenhapodido se conso-
lidar, a retroatividade da decisão passará geralmente desapercebida. Mas, do ,! /

outro lado do espectro, as hipóteses se multiplicam, cada vez mais embaraço ! - •


CONCILIAR MEMóRIA E QUESTIONAMENTO
'
sas > nas quais o.problema não pode mais ser ignorado. Há, logo de inicio, as ' i
*
in úmeras variedades de interpreta ção “evolutiva” (ou “progressiva” ou "teleo - \
É certo que as coisas raramente ficam nisso; confrontada com tal desa-
• lógica”), que em nome da necessá ria consideração da mudança das circuns
i
- fio, a imaginação jurídica se mobiliza para equilibrar os efeitos desta retroati -
tâncias e da evolução das mentalidades estiram cada vez mais o fio tênue de
. - ,
vidade raivosa, Kelsen, que foi, como se sabe, um dos primeiros pensadores da /
palavras que religa a decisão à prescrição dá lei Em seguida,'chega o momen ; - justiça constitucional, percebera o problema desde 1928: partidário do con -
to em que um patamar qualitativo é ultrapassado, que torna ilusória a preten- A-
trole de constitúcionalidade das leis, ele afirmava, em contrapartida, que a
são de ainda reatar a solução nova a um ou outro precedente: aqui o fio se r J
anulação de uma lei por uma jurisdição constitucional só deveria, salvo exce-
rompeu e aceitamos que uma “viravolta de jurisprudência” tenha sè produzi A - ção, causar efeítòs para o futuro.122 É o interesse da questão que estudamos;
, do. Pinalmente, terceiro caso figurado, acontece que juízes se vejam copfiar a . 1
%

tarefa de se pronunciarem com efeito, retroativo sobre a própria validade da ]


apenas levantar as diversas técnicas inventadas para conciliar “mem ória” e -
-
regra de direito: neste contencioso, dito “objetivo”, não se trata mais de orga 1 “questionamento”: quer dizer, a necessária segurança jurídica é a não menos
indispensável faculdade de reabrir às vezes o passado para nele reinscrever as
nizar a situação particular de Pedro ou de Paulo, com base .em seu comporta Q - premissas em diréito ou de uma justiça que estavam extraviadas. V * J
*

mento passado, mas, sobretudo, de dizer se esta ou aquela regra em vigor é sjim q
ou não, conforme a légalidade entendida em sentido amplo (será o caso de 1 Ora, é o próprio juiz que terá medó das consequências sociais que abre
sua decisão; pàra evitar què o solcrlfuja aos pés dos litigantes, oii pelo menos dt
-
apreciar a constit úcionalidade de uma lei, ora é um regulamento administra ' 1
um entre eles, ele visará diferentes cenários destinados a amortecer o choque:
tívoque será entregue à censura do juiz...). Quando ele passa um atestado de {
,

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.
-
invalidade da lei discutida, o juiz exerce, com efeito retroativo, vamos repeti ij 1

.
1
S

lo, um papel de “legislador negativo”, e não deixa de perturbar seriamente a , j 121 MARTENS, P. Lfexception cfillégalité: entre1’injustice et le dêsorâre jLMB,p. 1.535, *

1988 (nota sob CE, 2 set 1987).


k

ordem jurídica: não somente a regra invalidada desaparece para o futuro, mas ] ,

pressupoe-se jamais ter existido nopassado, tornando, assim, pelo menos pre- J 122 KELSEN, H. La garantie juridictionnelle de la eonstitutiòn (la justice constitution -
nelle). Revue du âroit public et de la kience politique> Paris, p. 2.42-243, 249-250,
cárias todas as normas que no período foram adotadas com base nesta regra, t .
- < i
‘ 1928

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182 v 183
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r Capítulo 2 4

Perdão. Desligar o passado.


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em todos os casos, tratar-se-á de uma variante do “decreto de regulamentação”
1
*
jurisprudência do Tribunal de Cassação, julgada, desta vez, não como nova
/ ' v

há pouco evocado, mesmo se se tratar de Uma maneira de julgar que, lhe é, em


\ Í

mas perfeitamente previsível*.. Em outros casos, ainda, aconteceu que a se çã o ^ '

princípio, proibida. Em um caso o juiz formulará um princípio “inovador”, que .


i

de administração do. Conselho 'de Estado da Bélgica anulou ( com efeito re-
1
'

1 ele sabe perfeitamente, por outro lado, que não incide no caso que lhe é sub- troativo, certamente) um ou outro regulamento administrativo, o que acarre-
metido atualmente: assim, ele chega a fazer o direito progredir,sem por isso en- . \
— ^- ta a adoção, em seguida, pela autoridade administrativa visada, de uma nova

ganar a confiança dos jurisdicionados. Em outro caso o juiz deixa entender '

regulamentação, por sua vez retroativa (a fim de evitar ò “vazio jurídico” )...
“a bom entendedor, salve!”- que ele poderia perfeitamente rever proximamen- assim como a seção de legislação do mesmo Conselho de Estado se cpnfor-
tê sua posição; inspirando-se no modelo americano já antigo do prospective
v

mou com uma tal retroatividade,em nome da necessária continuidade do ser-


f •

overruling a jurisdição pode também decidir que a partir da data da decisão irá
)
viçó, ou de algum princípio equivalente;
*

.
adotar tal solução nova para o futuro (Variante: a solução noya será aplicada *
Assim, busca-se por vias mais oq menos harmoniosas o difícil equilí- *

. ao ,caso em curso e às outras instâncias pendentes, mas de nenhum modo o ) < brio entre manutenção do passado'e abertura do presente, que é também,

J

.
passado será questionado) Em outros casos ainda eles são cada vez mais fre- V 1
como se percebe, uma divisão delicada de atribuições entre juiz, legislador e
s quentes
- a lei orgânica das jurisdições, encarregadas de um tal controle de le- "V administração.123
galidade, toma o cuidado de incluir uma cláusula permitindo ao juiz equilibrar I
li

* • V *

-
*
os efeitos retroativos ligados à sua decisão: prevê-se, neste caso, que apesar da ^
1
I 4
/
*
anulação (retroativa) da regra questionada, todo ou parte de seus efeitos (prin- ’?
)
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Vj
çipalmente as regrás derivadas, adotadas com base nela, neste intervalo), sobre-
viverão, Seja definitivamente, seja por um tempo determinado. Sem dúvida, ^ *
f r
*

comprometendo-se nesta via, a jurisdição faz, cada vez mais abertamente, obra
I
V

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política (aqui, no sentido de “organização legislativa” dá regra); pelo mejnos o ' i
4

\
r
A

>
/ problema não se oculta mais atrás da mentira piedosa da ficção declarativa, e *

um esforço consciente é manifestado ém vista de conciliar as duas dimensões !:j * * *

temporais nas quais o direito é chamado a se inscrever.


f \
> *
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Às vezes entretanto a conciliação buscada adquire um contorno niti-
, , \

damente mais caótico: encontramos caso? nos quais, para se opor a uma revi-
^
\
* r
V s.
ravolta de jurisprudênciá, que ele aceita mal, o legislador adota uma lei que j A *
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* *
não hesita em fazer retroagír, não sem se expor, por sua vez, à censura desta l *
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*
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.
jurisdição ou de uma outra De vez em quando, como no caso da “pilotagem j
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*
*
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* *

marítima” já por nós evocada, o conflito volta à confusão geral: quando a lei «
^
*
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*
retroativa, tomada pelo legislador belga para se opor à uma interpretação .
^ VÍ * *
. *
i

“nova” do Tribunal de Revisão, encontrou, acolhida aos olhos do Tribunal de


arbitragem, que não viu nela inconsiitucionalidade; entretanto, cinco anos (

mais tarde ela súcumbe diante do Tribunal Europeu do.s Direitos Humanos, j
*
123 Encontraremos 'amplos desenvolvimentos das questões evocadas nesta seção em %

-
que denuncia uma retroatividade mótivada -unicamente pelo desejo de evitar ;
ao Governo belga a/ revisão de sua responsabilidade, no final, de resto, de uma
i
nosso estudo: Eheure du jugement. Sur la rétroactivité des décísions de justice. In;
. -
Temps etdroit Ze droit a t-il pour voçation de durer? Sous la direction de P Ost et '
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4 t»1
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M Van Hoecke Bruxelles; Bruylant, 1998 p 91 et seq, .. 4
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PROMESSA.
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LIGAR O FUTURO.
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Na Cúpula ãas Nações Unidas, referente ao meio ambienté e ao desenvol -
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vimento Jevaão a efeito no Rio de Janeiro, em junho de 1992, um lobby se distin-
guiu particularmente por sua atividade: o grupo dos pequenos países insulares di -
t
> retamente ameaçados por uma elevação, mesmo reduziãa,4o nível dos mares, con-
-
T
.
sequência previsível do feaquecimento-climático-provòcado pela emissão cada vez
* r
r/ mais concentrada de CO2 na atmosfera. No ritmo atual de consumadas energias i

« fósseisi ó uefeito estufa” ti ão pode, de fato, deixar de se agravar, abandonando estes .*


*
c >
\
países à mercê dos maremotos dclônicos, num primeiro tempo (comojâ acontece
*1 emBangladesh hoje ), e da submersão pura e simples, num segundo tení po. ,
* Dá para se imaginar contehcí oso jur í dico mais complexo? Questionamen - »

\ ! to mais radical de npssas responsabilidades? Eis, então, que está moderna histó -
T
X \
\
ria de dilúvio provocava novamente 0 direito, desta vez erft sua vertente prospec -
-
* tiva . Era preciso intentar uma nova responsabilidade, forjar' novos princí pios,
J formular novas promessas. Ê necessário comprometer o futuro através de regras
V
1
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V » 4 se não quisersemos hipotecá-Jo nas demissões do presente. r t *

* { A ideia de durabilidade se impôs, fruto do encontro entre a economia, que r

\
*
0
dita a circulação rápida das riquezas, ê da ecologia, que lembra a produção len? i

\
I V ta dos recursos naturais. Redescobria-se -o imperativo âe prudência, rébatizado .
N
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\
- como ‘ princí pio de precaução”, afim de dar sua chance à dúvida é seus direitos *

*
à natureza. Pela primeira vez, deixar í amos de colocar uma fé cega no progresso
0
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* *
*
p

187
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i < Capitulo 3 ' .
Promessa Ligar o futuro
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» • I
técnico e a d úvida beneficiaria a natureza, Assim, seriam preservados os interes > ? -
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>

ses das gerações futuras,“às quais tomamos de empréstimo a terra”, e diante das-
pública e privada estão difundidos, novas restrições se intfan, das quais OSJUU \ Aí - ~
zes tornam-se, na oportunidade, os intérpretes.
^
' \
*
quais não nos sentimos tnaU autorizados a exercer um direito de primogenitura. - A promessa jurídica de um mundo durável pod kvante, servir cortvmto
Nao era o^ “contrato natural” assinado com a natureza,1 mas um novo ' ^
princípio regulador dos litígios internacionais. Esta decisMiestada pela decisà ão
contrato social, ampliado às dimensões de todo o planeta, integrando as gerações . ^ dç Tribunal Internacional fie Justiça de Haia, realizada etit 2í le setembro de 1999<g97,
^ ^

futuras na comunidade política, e visando controlar, enfim, nosso domí nio da em um litígio que opunha a Hungria à Eslováquia. Vinté m antes, os dois Estatela-

0
> natureza. Elaborava-se um noVo conceito de responsabilidade, decididamente
‘ '

• voltado para o juturó: nao mais a responsabilidade-imputação ( sanção de uma

falta passada }, mas a responsabilidade no sentido de missão assumida coletiya


mente para o futuro.2 O décimo primeiro princípio da Declaração do Rio, de 13 \
de junho de 1992, fez-se eco desta outra: “Para proteger o meio ambiente, medi ^
j
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-
-
dos haviam concluído um tratado visando realizar\ em coimi, trabalhos faraônn^ li
,

cos de racionalização do Danúbio: uma imensa central hítíttrica estava preVfih is '
ta, assim como barragens, lagos artificiais, uma rede de çaiie de eclusas. Entnr^rre-
tanto, muito rapidamente as dificuldades se acumulawfblemas financárcrc^rvs,
mas também ecológicos. Os trabalhos diminuíram e em J%k Hungria suspên&m&ãe
— -
-

das de precaução devem ,ser amplamente aplicadas pelos Estados. Em casos de da }


«
- sua participação no projeto: é que a liberalização pólítimtriãa permite agefo ç^ ra
*

nos graves ou irreversívèisy à ausência de certeza cientifica não deve servir como 1 aos cientistas e aos defensores do meio ambiente exprimhn temores em rélaçtç ão
pretextç parapostergar a adoção de medidas efetivas, visando prevenir ú degra- aos* danos causados aos ambientes naturais. Entretanto, aEjváqtiia persiste: e è*&la
^
.' constrói em seu território uma central de dimensão maisrèzida e, para alime& n-
i

.
N
* dação do meio anibiente”
» „
\

Na sequência, todos os tipos de textos são adotados, uns simbólicos, como A tá-la, desvia nada menos que nove décimos do volume ã í f a s do Danúbio.
^ »
^
a Declaração da Unescofde 12 de novembro de 1997, sobre “as responsabilidades O Tribunal pronunciará, por direito, a ilicitúde í fy ç fesvio que acarr&e ta
gravp prejuízo ao meio ambiente na Hungria, mas não entretanto, ao sts &eu
^
das gerações presentes para com as gerações futuras”; outros, dotados de efeitos j
* %
,
jurídicos, como múltiplas disposições do Tratado deAmsterdã, constitutivo da V
* >
pedido de constatar .a ruptura do tratado. Ê que, diz cVunal, o acordo, qgi ue
Comunidade Europeia. Assim, daqui em diante, fazem parte das ?missões” da j continua a ligar as partes, contém disposições evolutiva rectiveis de integnir^ ar ^
Comunidade a promoçqo “de um nível elevado de proteção e melhoramento da j as normas ambientais mais recentes, longe de estar congèdo, o Tratado pree vê
^
,
qualidade fio meio ambiente” do mesmo modo a integração desta proteção no ! . uma obrigação contínua, eportanto evolutivas de yelarQualidade das águn^uas
conjunto das outras políticas encetadas pela Comunidade, afim de garantir um do Danúbio e pela proteção dos ambientes naturais? Ásprtes têm o dever - de
considerar os riscos irreversíveis que suas intervenções metam à naturezan f o
“desenvolvimento durável.” Vêmo lo: é de “melhoria” e não somente de “prote
- - ^
ção” da qualidade dos meios naturais de que se trata. Ê. uma ação transformado
ra, mais que conservadora, que se espera do direito. '
- ^ cuidado com as “gerações futuras” e tõm fdesenvolvinm duradouro” obrrusaga
doravante a “conciliar os objetivos económicos com a protão do meio ambide&n-
te . Os dois Estados são, assim, enviados à mesa de negcáyo, com a obrigaçf çzzpãQ
Sem dúvida, um texto, por mais solene que seja, jamais modificou a rea - i
de cooperar de.boa-fé; trata-se de fazer prevalecer o esplàlo Tratado ao pê z . da
lidade apenas por sua virtude. Entre a intenção e a prática, a distância continua ( - j
,
-
i

imensa. Décadas serão neçessárias, sem dúvida, para que a efetividade destes . ,j -
letra.“Oprincí pio de boa fé, conclui o Tribunal, obriga a es reaplicar o àcccczor
^
r*

do de maneira razoável, de tal sorte que seu objetjvo, contendendo o resp&ez^ ito
princí pios seja garantida, e que realmente se melhore a situação na prática. Não j -
ao meio ambiente, possa ser atingido
t

--
*

*
;
importa : um movimento está lançado, novos 'critérios de legitimidade da ação i
l
\
/ 1

.
\

1 SERRES, M. H Contrai naturel Paris: Bourin, 1990 . r 3 Tribunal internacional de justiça, decreto de 25 de setenfc de 1977 no caso rer
^^la - •

V "*

,2 JONAS, H. Le prí ncipe responsabilité


\

.
:Traduit par J. Greisch Paris: Cerf, 1990,
.v *
-
tivo ao projeto Gabcokovo Najymarus (Hungria/ Eslováçí), § 112 e § 140.
V

•s / • 4 lbid., § 141-142.
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n _ 89
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188
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* 1 -Capitulo 3 Promessa. Ltgaf o futuro. *
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* 4

Decisão significativa por mais de urna razão: ela integra as novas normas : . ,
do direito sobre o meio ambiente na caderneta de encargos dos grandes trabalhos
numa massa que nãapára de crescer Atualmente, é o direito,em sua totalidade
v que se recompõe a partir da exigência do respeito aos direitos fundamentais
*
5
.
públicos intetestatais; faz do desenvolvimento durável o princí pio regulador ães J - Eis, então, que abordamos a face diurna do direito, aquela que olha para,
tas empresas e insiste eni que se leve em consideração riscos irreversíveis que com v
prometeriam a herança transmitida às geraç pes futuras:, Mas também, apela-
'
,
- o lado do futuro. Face que, mesmo sendo mais iluminada que a noturna, lado do
para uma cooperação evolutiva das partes, fundada na boa fé: esfa confiatiçp. re ' passado, nem por isso é menos misteriosa. Enfim, pois, a este futuro, como lhe dar *

- - consistência? Como fazer ão ainda não acontecido o ponto de apoio suscetível de


cíproca dos atores é> como veremos, o núcleo das únicas promessas que podem "
comprometer duradouramente o futuro.
alçar o presente? E a promessa que aí nos compromete, em que se baseia: nas pa- /

lavras, sem dúvida, mas de que se autoriza uma obrigação que se atribui a si
I •4

Tudo isso, sem dúvida, permanece ainda, em muitos aspectos, prospectivo . f «


*

mesmo? De onde vem esta mais-valia que faz com que se dê crédito à palavra qUe
Mas se devesse um dia honrar a promessa do desenvolvimento duradouro, o di . - se obriga? E qual é o tempo, suficientemente consistente paraser avalizado; com-
reito não serviria para sua tentativa de ensaio. No passado, princípios também
foram afirmados que pareciam utópicos e dos quais atualmente avaliamos o ít prometido duradouramente na lei que liga os poderes públicos aos particulares, e
,

quanto contribuíram, e ainda contribuem,


fara transformar nosso meiô ambien !> í - os contratos que são a “lei fias partes”? De onde vem esta dupla mais valia do -
'té jurídico. Os homens nascem epermanecem tempo futuro, portadora de crédito; e ão auto-edmpromisso ao qual se acrescen-
“ livres e iguais em direitos”, proçla-
*
*

ma o artigo Io Ja Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão de 1789.Lin- ^ l ta fé? Da confiança, sem duvida, desta vezpartijhaãa, da qual falava o Tribunal
f
/

...
do e perfeitamente contrário à reàlidaãe daquele momentor Seria preciso espe \ Internacional de Justi ça: a boa-fé, na base dos compromissos jurídicos; a lealda- *
- de (ou ainda fidelidade- fé ) na base da tempo das instituições.
,
rar 1848 para que a escravidão fosse abôlidamo território das colónias francesa , :
^
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e só no decorrer da segunda metade do século 20 o princípio de igualdade sera . Instituir; é exatamente disso que se trata: pôr de pé, construir, pôr sobre
.
i

aplicqdo progressivamente às mulheres, aos bastardos, aos estrangeiros.


*
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pés, porque já se entrevêem ds distâncias' a que os passos podem conduzir
' A Constituição Americana de 1791 prometia,
igualmente,, a liberdade e a
/
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igualdade; prudentes, os pais fundadores, entretanto, proibiram a abolição da es-


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cravatura “pelo menos até o ano de 1808” Será preciso aguardar 1865 e o final J ^
^ PROMETEU,l O REBELDE E O INSTITUIDOR
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da Guerra de Secessão para que, ènfim, o princípio fosse posto de acordo com os
\

* *

.
fatos Não importa: uma vez mais um movimento foi lançado, uma promessa ; *
Então* eis-nos no limiar do tempo futuro. Desviando o olhar do passa- *

formulada, que Martin Luther King levará ao pé da letra para conduzir com su - .
do, lançamos os olhos para õ futuro Este gesto é aquele de Prometeu: promes -
cesso, no século 20, seu combate pelos direitos civis . sa, projeto, progresso - “pro”, atenção para adiante, o élan que se arrasta ao
presente. Prometeu: o'previdente, o prudente, o amigo dos homens, o contrá-
»

Mais que uma liberdade instantânea e uma igualdade imediata, o que a l

,
promessa jurídica produz é sobretudó, ,uma liberação e uma equalização gra -J - rio de seu irmão Epimeteií, o esquecediço, o irrefletido, que não nós havia dei- \ *
V

' duais. Aqui, a verdade do direito situa se no futuro e não no passado e, se é ain
-
da questão de tradição, é uma tradição nova que se cria em benefício de um mé
-
-
xado<
nada
,
. »

— é

Tudo começa pior um roubo. Prometeu, o amigo da humanidade,.rou-


'

ba Q fogo celeste para dá-lo aos homens. Homens ads quais ensina a ficar de
*
todo resolutamente prospectivo; o método dos rumos constitucionais e do Tribunal |
Europeu dos Direitos Humanos, que pretendem não somente“proteger” mas tam- j pé, como os deuses, e eis o modo como à história se põe em marcha; por ato
bém “desenvolver” as liberdades e a igualdade. Ampliando dia-a dia sua jurisdi - - \ inaugural, como uma transgressão. Toda ciência çomeçá com uma recusa, dis-
\
Ção, e não cessando de aprofundar as proteções garantidas, estas jurisdições iritro - \

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*

* duziram ho sistema jurídico o princípio de igual liberdade, tal como o fermento '
*

.
*

5 RIGAUX, M.-F. La Loi desjuges Paris: Odile Jacòb, 1996. p. 260. ’


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- . Promessa. Ltgar a futuro.


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t Capitulo 3
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semos. Do mesmo modo, a história comera


com um crime; não há, então, his- s \ bem em direção a um paraíso terrestre que colocamos o pé na estrada, e a pro-
tória que não seja rebelde; seu gesto fundador é uma revolução, uma louca
messa da felicidade uma idéia nova ela tamb ém - está no fim do caminho.
-
ambição; andar como 'os deuses. Nesta separação brutal, deixa-se entrever " ; Úm caminho aclarado pelasluzes da razão e aberto pela energia formidável de
tempos novos eín que Prdmeteu nos precede. ‘ '
* idéias for ças comp liberdade, igualdade e, talvez mesmo, fraternidade. Sem
) -
»
Mas o crime não é tudo, pois agora ele faz durar. Por detrás do Prome-
teu7rebelde perfila-se o Prometeu-instituidor: ao ensinar, com a utiliza ção do í
dúvida, ainda estamos longe do cômputo final, mas'a humanidade é perfectí -
*
yel - logo, a pedagogia estará inscrita no centro do projeto pròinetêico, Desde
fogo, o dom ínio das artes e das técnicas, Prometeu instrui os homens. Ele os ,
o início, ipna certeza: a sorte das gerações futuras será máis' invejável do que á
instrui e os institui. E quem diz instituição empenha a duração!
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das gerações presentes. E o direito, que libera è instituí, contribuirá para a rea-
v . Como conciliar estes dois tempos, o antigo e o novo; a constância e a ,tJ
#
lização deste programa, conjugando'a emancipação dos homens com o esta- ,
ruptura? Será que Prometeu chegaria cedo demais, como Epimeteu sempre
belecimento da Íei/Rebelde ou instituidor, operando a^brecha do tempo ou
*
chega tarde? Atado a seu rochedo caucasiano, com o í f gado devorado pela organizando sua longa duração, Prometeu - aquele que enxerga longe - está,
_
*
águia' de Zeus, Prometeu expia sua falta è, dá testemunho de nossa impotência 0
entãò, antes de toda esperança e confiança. Apenas Hobbes não o compreen -
-
nossa finitude, dizem os filósofos. Sem dúvida, andamos depressa demais; j
sem dúvida acreditamo§^que já tínhamos chegado lá. Esta fuga para diante
deu ao invocar um Prometeu <ftòdo dia roído pelo medo da morte, da pobre-
* zacrn alguma outra desgraça *6 para descrever os homens aterrorizados no es-
V
’ 5
*

< tem uni nome: chama-se utopià (ou u-cronia), ou seja, a impaciência de uma y
^
esperança que negligencia as transições. Será este o erro dos revolucionários
' tado de natureza, cujas desconfianças m útuas levam a se lançarem nos braços
do Leviatã todo-podeipso.

r
que acreditaram poder editar em um dia um calendário, uma Constituição e
um código. Na falta de raízes, foram logo levados pela corrente de uma histó- - Este testemunho, contudo, é eloquente; ele mostra como o fracasso
do calendário republicano, codificações radicáis deBentham ou de Cambacé-

ria menos dócil do que acreditáramos. Mas Prometeu se sai bem; Esquilo mes - f rès, das, constituições-revolucionárias -
que a projeção para o futuro pode re-
mo lhe dá o papel principaLdiante dò Zeus tirânico é inconstante* Prometeu .
duzir. Então como inovar sem perder o fio do tempo, como romper e durar
,
résiste à vingan ça olímpica e seu í f gado, devorado durante o dia, refaz-se. à d "
noite. Pelo sofrimento, a humanidade aprende a constância e seus reveses, en-J
^ i
i
simultaneamente? Precisamente, trapaceando com o tempó. Esta trapaça os '

saia a ser vitoriosa. Ei-la agora que inscreve seu projeto no tempo, mais do que canonistas da Idade Média reinventaram-iia consertando um tempo híbrido
precipitá-lo na temporalidade da utopia. Submetendo-se à prova do fempo, os. que tomava de empréstimo simultaneamente à Bíblia è a Aristóteles: o aevutn;
" Homens conseguem um aliado.
Portanto, será preciso trapacear com o tempo, espécie de eternidade criada, tempo infinito porém móvel, que era divino por .
já que somos mortais. sua infinitude, mas humano por sua mobilidade, Este tempo seria precisa-
l / l

mente ô dos empreendimentos humanos* pervistos para durai: as instituiçõés


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que, á exemplo do í f gado de Pròmeteu ou da Fé nix fabulosa, renascem sem -
\ TRAPACEAR CõM O TEMPO pre de suas íru nas. Um tempo híbrido concedido à finitude de nossa condição
* mortal, mas também à infinitude de nossas aspirações e iiossas solidariedades
r jr «"
- caso, é imortal, mesmo talveziqtxe um dia seja liber-
Prometeu, em todo *
|
J| * confiantes. Denominaremos melamórfico este tempo que sempre se trans-
“ 55 f


f

tado de suas~correntes pensa-se,' espera-se, mas a lenda é muda neste ponto, * forma sem desaparecer jamais - tempo dialético que progride sem se renegar
e que por esta razão encontra o justo equilíbrio entrè estabilidade e mudança.
% >
A esperan ça e o próprio otimismo são, désde aí, ligados ao tempo prometéico 4 ^
em suas duas vertentes: o tempo da rebelião e o da instituição. Como se o fu - t\
> *
I -
turo * estivesse necessariamente associado ao porvir que deveriam cantar É . . .
6 HOBBES, T Léviathan Traduit par F. Tricaud, Paris: Sirey, 1971. p. 105. /
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Capítulo 3
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Promessa.Ligar o futuro .
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¥ Assim é, também e de resto, a promessa, que é a modalidade normàti- ' j ‘tar


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definitivamente fixada.no instante mágico da conclusão do contrato, ela
A
va sob a qual estudamós o futuro jurídico. Relacjonada unicamente com a re- * *
pretenderá opor-se a qualquer revisão ulterior do acordo; isto deveria condu-
solução de quem promete, ela é nada, por mais fechada que seja sua vontade. \ .
zir um dos patceiros à ruína Dèmasiadamente dinâmica* já que, sempre em
* É apenas enraizada numa. socialidàde prévia e relãcionada com alegra de fi- U nome de uma vontade sacralizadá (aqui, a vontade 4o eleitor), ela não opõe
delidade, é apenas sobre o fundo desta confiança partilhada que ela pode tor - nenhum equilíbrio à mutabilidade desenfreada das normas jurídicas, sendo
nar-se laço social.
i

legítima qualquer mudança, desde que se' opere formalmente: qualquenmu-


i

Toda a modeínidade jurídica (Constituição, lei, tratado, contrato), do-


Y •H * dança, inclusive revisões constitucionais (como a de 24 de março de 1933 na
ravante pensará na forma da promessa: promessa pública, promessa privada, ' f

convenção, acordo, contrato social, contrato civil. Incessantemente; sua inter-


Alemanha, e a de 10 de julho de 1940 na França) que reduziam a nadado 'Es
tado de direito e o regime das liberdades, que eram, entretanto, as próprias
-
pretaçã o irá oscilar entre os dois pólos da figura prometêica:a vontade e a ins- J
condições de legitimidade do poder exercido por esses legisladores.
-
*

tituição, a rupfura do instantâneo e a continuidade da duração Prometeu re- 1


Do outro lado, o contínuo. O tempo híbrido com o qual o ^direito
belde e Prometeu instituidor. No decorrer de todo este capítulo, cruzaremos e i * V
*

aprendeu a trapacear: simultaneamente móvel e estabilizado, desinstitufrite e


confrontaremos estes dois fios, que se entremeiam toda vez que ‘se trata dve
avaliar a empresa da regra sobre o futuro. Certas disposições constitucionais ^ j .
instituinte, instituinte e instituído, é o tempo da instituição Preocupado com
transições, ele não crê nem nos aparecimentos instantâneos, nem nas resolu-
1
podem pretender a intangibilidade? Um Código pode legislar tábula rasà? Á
Convém, revisar um contrato quando as circunstâncias transtornaram a eco- ções permanentes. Consciente das trocas m últiplas entre o direito e o social,
nomia? Tais questões e muitas outras são atravessadas pela tensãb entre as ] ele relativizâ as pretensões das. vontades soberanas. Ele sabe que o tempo,
duas faces do tempo prometêico. como o rio de Heráclito, não pára de correr. Mas ligaâo aos valores, fimdântes
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(o rio tem uma fonte, e ò maré seu destino), ele cuida de balizar o nível de al -
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tura e a canalizar-lhe o fluxo, opondo, às vezes, equilíbrios à pressão tumul -
O CONTÍNUO È 0 DESCONTÍNUO
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1
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tiiária das Urgências, liberando, outras vezes, correntes que estagnavam. Ao
encontro da revisão permanente dos textos, faz valer os princípios de seguran-

^
.
De um lado, o descontínuo ou o instahtâneoT Uma vontáde qué se jul- * ça jurídica e dç confiança legítima, sem os quais não há laço sqcial duradou-
/
ga soberana, um ato jurídico que pretende provótar instantaneamente efeitos . ro.irias‘uma Véz que um juiz se agarra, ao pé da letra, â uma convenção sacra -
' obrigató rios, uma norma que quer se impor indefinidamente. Espécie defiat lizada, ele lembra, ao revés, que é preciso saber revisar para durar e que a boa-
iu& instantâneo, esta ordem pretende durar enquanto uma outra ordem não a . fé, que deve presidir aos acordos, implica que se os adapte, de vez que se tor-
.
substitua De fato, ela se coloca fora do tempo, fota da duração real, ao abrigo nam injustos. *
de seus avatares e de suas áleas. Nesta forma de ucroftiá, teremos reconhecido Este tempo instituído é um tempo desdobrado: atrás da instância do 1 ' *

o ponto de vista positivista que isola o direito do social e proíbe de se pensar , imediato, que desfila a grande velocidade em primeiro plano, ele organiza o
as transições. Aqui, o direito nunca é mais que sincronia, coleção de instantâ - \
i
durâdouro .no plano de fundo; atrás do “povo atual” ele, lembra as promessas *

-
*

neos sucessivos, do qual nenhum cenário permite compreender o èncadea v


*

( que são também exigências)*que / o/povo perpétuo” fez em todas as gerações


mento, nada a não ser a soberania de umaí vontade todo-poderosa. Porque ela sucessivas de povo atual. Este tempo confere relevo e profundidade à a ção: não
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*
w *

1 perde o fio do tempo, esta posição positivista é ao mesmo tempo demasiada ij - 6 mais someiitè no eixo sincrônico do instante que ela sè inscreve, o eixo dia -
.
mente estática e demasiadamente dinâmica Demasiadamente estática, já que <
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crónico também é seu domínio; não é maís somente pó futuro que ela se pro -
-
* *

quando presa, por exemplo, à “comum intenção das partes”, pressupondo es t jeta, é também na experiência do passado que ela se apoia. *
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> Çapítulo$ Promessa. Ligar o futuro .


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Entre Prometeu rebelde e Prometeu instituidor, então, não é preciso e$ ; 1
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to, condição de “desfrutetio instante presente”.8 Contra a tendência natural do
-
* *
colher: é porque foi rebelde .que ele institui, é porque ele institui que poderá, esquecimento, o homem tornou-se capaz de promessa, pu seja, de “continui
*

* ainda amanhã, rebelar-se. Nada de mais prospeçtivo que o tempo de Prome- : dade no querer”5'-;a promessa é “memória da vontade”*10
teu acorrentado, pelos pés e punhos a seu rochedo; aquele tempo é neguen- ‘ í Resta que esta faculdade de prometer é eminentemente paradoxal:
trópico - ainda esta noite o f ígado do Titã renascerá. k
como de fato, criar algo normativo por seu próprio feito? Como submeter-se
,
>
\ válida e duradouramente a u m a lei da qual parecemos nós mesmos o autor?
Como acreditar que se possa, assim, extrair o mais doi àienos? È, no plano
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V A PROMESSA: INVESTIR NO FUTURO 1
r temporal, como cofaipréender, para retomar ainda uma vez uma fórmula de *

[ • Nietzsche; que se possà doravante “responder pessoalmente pelo futuro”;11


v
Há certamente, diferentes maneiras de se referir ao futuro: o autor de *
#
^
T
^ v M
- logo, quem sou eu para pretender deste modo saltar por cima de meus pró-
ficção científica sé refere a ele através da imaginação, o investidor económico, ^ * H

prios ombros e ligar-me ao futuro, tíume, a bem dizer, não entendia grande
pela aposta especulativa; para o crente, o futuro é questão de fé e de esperan- *
coisa disso, pois tomava a promessa por < cuma
das mais misteriosas .e mais in-
- H ça, ao passo que para o homem político é objeto de cálculos estratégicos e op- compreensíveis. operações que se possa imaginar, comparando-a até com a
v'
*

ções táticas. A promessa é de uma outra ordem:ela investe no futuro, compro- ' transubstanciação oii a ordenação” 12 . r

metendo aquele que promete: literalmente, ela o põe “como avalista.”, algo dele r 1

mesmo Se põe em risco, sob o regime da auto-obrigação. \ ^


Pela promessa, o futuro se torna menos imprevisível: érlhe dado um HOBBES: ALGO DIFERENTE ACIMA DA CONVENçãO
I seqtido de foilna normativa: “as coisas serão assim, porque me comprometo : * *

nissq”; este comprometimento não é questão item de imaginação, nem de es- j


perança, nem de cálculo estratégico, é da ordem da porma uma norma qúe j
damos a nós Mesmos.
— 1 *
A promessa, colocada no centro do pensamento moderno sob a forma
*

do contrato social e no centro das relações civis sob a forma da “convenção


*

lei”, permanece uma operação misteriosa que sé presta a interpretações con-


-
A estq título, a promessa é duplamente moderna: ela supõe, logo de iní- •• *
.
trastadas Poderíamos, em relação a isso, comparar a interpretação que respec-
cio, uma clara consciêiicia do futuro, idéia que segundo qualquer verossimi^- . .
lhançà só apareceu tardiamente na história das mentalidades, como o atesta a íj
t *
tivamente lhe fazem Th Hobbes e H Arendt: no primeiro, a promessa, instru -
ausência muito generalizada de tempo específico para designar o futuro nas j
mentos de emancipação pelo domínio do futuro, desemboca num tempo fe -
#
*
chado e um retorno à lei da heteronomia; inspirada pelo medo do outro e o
%
línguas primitivas; ela implica, em seguida, que o direito não se declina mais j cálculo do interesse, a“ promessa política engendra uma ideologia securitá riâ
exclusivamente no modo heterônomo da. lei, da tradição* da genealogia fun- J que acaba por confiar o poder absoluto ao Leviatã Em Arendt, ao cóntrário, .
dadora, mas dá seu lugar à vontade do sujeito capaz doravante de se compro } - *

meter na primeira pessoa. Nietzsche vía, nesta faculdade de prometer, a mar- *


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ca da humanidade;,“educar e disciplinar um animal que possa fazer promes- ]
.
8 NIETZCHE, E La Généalogie de la tnorale Traduit par H Albert Paris: Gallimard, .
. .
1964 p. 75 *
sas [...] eis o verdadeiro problema do homem”.7 Um prodígio, certamente, para i
t *

. .
9 Ibid , p 77,
os que conhecem a força e a utilidade dá potência contrária, a do esquecimen-
/

* «
10 Ibid . 4
l
* t 11 Ibid . \
*

1
*

NIETZCHE, E La Génèàíogie de la morale.Traduit par H. Albert. Paris: Gallimard, j j .


12 HUME D Traité delanature humaine. Essaipóur introduire larméihôde expérimen
, -
..
1964 p 75.
%
iv i t, .
tale datis les sujets thoraux. Traduit par A Leroy Paris: Aubier,- 1973 p 644. .. .

196 197 .
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Capítulo 3 <
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Promessa. Ligar o futuro . Í * I ¥

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o mesmo desejo de dominar a incerteza do futuro combina se com a confian , - - Observemos bem, nestas condi ,
ções, o tipo de temporalidade que se
-
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* ça no outro e com a vontade de agir de comum acordo; num clima geral de li- * institui em prol deste contràto social securitário: trata-se de um tempo simul
s
berdade, a promessa surge como um instrumento de cooperação, engendran - taneamente instantâneo e pressuposto perpétuo - maneira dupla, resumindo,
do uma temporalidade simultaneamente aberta,e dominada, i
*
de pretender fugir ao tempo histórico real, com seus riscos e suas potenciali -
. • Enquanto o animal, sègundo Hobbes, liga-se às sensações imediatas e dades, para se abrigar no tempo fantasma de um algures tranquilizante. No-
^
* >
v

-

passa os dias feliz na ignorância do futuro, o homem, pelo contrário, é capaz 1 taremos, logo de início, que à operação de devolução do poder procede de um
*
-
de prazeres e penas por antecipação. Arrancando se do presente, ele se proje ,
ta no futuro; para ele,.a vida é um curso perpétuo guiado pelo desejo insaciá
-
-
_
ato instantâneo, não precedido por nenhuma negociação, e cujas modalidades
de execução são resolvidas em silêncio:17 corno rio registro mágico, é “instan- t

vel que não pára de se aprofundar; ela é também objeto de “temor perpétuo”: taneamente” que o efeito prodigioso se realiza: um compromisso é assumido
este curso social é uma competição na qual todos ,os golpes são permitidos 15 \
O outro é um rival, uma ameaça, mesmo para meus beps e minha segurança, jj
. t e no mesmo segundo torna-se impossível, à sombra do soberano tódo-pode
roso, voltar às suas condições iniciais. Acentuaremos, em seguida, que o poder
-
7 V
Animal racional x
dotado de uma razão calculadora, o homem com "
- íA assim constituído é perpétuo, desde que o compromisso que o produz é ele i
*
preenfie que sua segurança passa, pêlo contrato que garantiria a abstenção ) mesmo absolutamente irrevogável: Somos, doravante, mantidos sem a menor
m útua dá violência; mas na selva que o estado de natureza representa, onde o N possibilidade de revisão dos termos da promessa. Quem reclamaria disso, no *

* homem é o
lobo do homem, o contrato não tem seu lugar: “o tempo”, precisa *1 UniversoThobbesiafto, uma vez que os homens “desejam ver durar esta segu-
,
Hobbes “aí não é mais que uma sucessão de instantes identicamente ameaça | * - rança durante toda sua Vida”; não saberíamos, então, nos conformar Còm um
dores, a confiança não é possível, tanto quanto as convenções” 14 . poder que só seria exercido “por um tempo limitado”.18 Seria o caso, portanto, *

Cétiico quanto à capacidade dos contratantes de sustentar seus compro ' '! - de organizar os mecanismos do governo e principalmente as regras de suces-
missos, se uma força exterior e o medo de uma sanção não os reprimissem são no poder de tal modo que ele possa se beneficiar com uma “eternidade de
*
(“as convenções sem o gládio são'apenas palavras destituídas da força de ga \ - vida artificiaram vista de uma “segurança perpétua”.19
rantir às pessoas a menor segurança”),15 Hobbes imagina, então, um mecanis- * Aranálise de Hobbes é exemplar, simultaneamente pelo lugar central que
i

mo pelo qualyo povo, livre e soberano durante o tempo, infínitamente breve 3 atribui, desde a aurora da modernidade, ao mecanismo da promessa como.ins-
de um instante racional, confia' todo o poder á uma autoridade suprema, ou trumento de domínio normativo e racional do tempo futuro e pela eliminação
Leviatã, que doravante “imporá respeito a tódós” 16 * \\
K
significativa que imprime às suas virtualidades. Como no relato da horda primi -
Esta operação pode ser analisada como uma espécie de “curto circuito tiva, narrada por Freud, parece que num uniyerso de iguais (a frátria dos conju-
político” pelo qual o povo, tão logo constituído, em ator soberano, auto anula- 1
* .
*
^ rados que assassinaram o pai) a violência seja recorrente e o tempo instantâneo,
•* * 2
se, enfeudando-se totalfnente num poder absoluto do grande autómato políti- tanto que os atores não se submetem voluntariamente ao império de uma lei co-
"

.
co De.instrumento de emancipação e de afirmação de si, a promessa se trans \ - ’ mum e inflexível (no caso a interdição do incesto),20 Neste modelo, a promessa
forma em instrumento de dominação: é que a relação com o futuro não deixou não cumpre suas promessas:se elafunda perfeitamente a vida coletiva num com -
% }
de ser marcada pelo medo do risco e da necessidade dominante de segurança w
. - * t

/ . .
17 Nesse sentido, cf GOYARD-FABRE, S Le droit et la loi dans la philosophie de Jho -
*
' 13
M 4

HOBBES, T. Léviathan, Traduit par F, Tricaud. Paris:Sirey, 1971 p. 104 .


/

.
mas Hobbes Paris: Klincksieck, 1975. p. 116 v . v

; lá . .
Ibid., p 136 »
LV
. . .
18 HOBBES, T. Léviqthan Traduit par P Tricaud Paris: Sirey,1971 p. 175 . .
*
, 15 . .
Ibid., p 173, 221
< %

-
19 Ibid., p. 202.
.
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20 FREUD, S. Totem et tabou. Paris: Payot 1970 p 161-165.


* \

/ 16 . .
Ibid , p 177, 4
4*
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198 * 199
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*
Capítulo 3 *
*
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P.romessa Ligar o futuro .
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prometimento pessoal, ela se prova incapaz de dar corpo à liberdade que, contu 4 - '
lidade das interações) que se destaca a promessa como uma modalidade vo- i

I do, pressupõe, do mesmo modo que ela encerra um futuro que, contudo, ínau- ‘ ? luntá ria de colaboração. Através dela, a incerteza do futuro é, pelo menos em *

guraya. Retenhamos, entretanto,- voltaremos a isto a necessidade de “que seja ' ' ^*
‘ *
* '
- -
par.tex conjurada: um desígnio, impõe se, que é analisado como “a ampliação I

preciso ajgo diferente, acima da convenção, para tornar o acordo constante e du- $ formidável, realmente milagrosa, da mesma*dimensão em que pode haverjpo-
radouro”; atrás desta'imagem terrificante do Leviatã, QU da figura castradora do tência eficaz”.23
?

-
pai totenizado; deixa se ouvir a intuição deformada de unia verdade que será ‘ I
l
I Esta promessa à diferen
*» j)
ça de Hobbes nãó se refere, por isso, a um ins- * »
I*

preciso aprofundar: para engajar o futuro, a promessa deve, ela mesma, basear „ - trumentò de dominação, tendo em vista prodúzif não se sabe qual segurança

se em alguma.outra coisa pressuposta por elé, sem contudo esgotá-la. duradouta: pelo contrário, insiste Arendt, “ela corresppnde exatameiite à exis^
}

't
/
- :

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fechar todas as portas do futuro e impor uma vontade idêntica, que sempre
.
tência .de uma liberdade dada na condição'dç não-soberania” 24 ÍSfão se trata de

f àRENDT: UMá AMPLIAçãO FORMIDáVEL . %


\
inspiraria ,os homens “de maneira mágica”;25 isso decorre, antes, de uma coo -
*
*
1
/
peração forte, desde que èla continueVoluntária e reconduzida por seu$ prota-
i X análise da promessa por Hannah Arendt pode nos colocar na pista r gonistas; tanto que irá aproximá-los desta força de interação, os que prometem
deste “algo diferente” que esclarece o fundamento misterioso: Para Arendt, a irão se beneficiar desta “ampliação formidável” de suas possibilidades de ação;
-
promessa, antes de r ser um instrumento de uma razão calculadora, é um ins-
/

*
'
mas desde que se enfraqueça este “desígnio comum”, seu poderio desaparecerá,
V trumentò da ação por excelência: ela permite “começar de novo”, arrancar-se - J v
o tempo entrópico retomará o lugar dè destaque, e os mecanismos de coerção 3»

ao “automatismo inexorável da vida quotidiana* que nos faz “girar em círcu- ; ' ; 1 1* que se lhe poderiam opor* só poderiam acrescentar opressã o à incerteza. .
v

los”; a promessa nos subtrai á “lei da mortalidade”21 lei de entropia, diríamos ^ ) - '
4

/
* A

' - que conduz qualquer coisa à sua ruína. Como" em Hobbes, a promessa tem * '
V
algo a ver com a conjuração da morte: mas aqui não é o caso de procurar a . j UMA MAIS-VALIA ENIGMáTICA
proteção de um poder absoluto, trata-se antes de sé inscrever pela palavra que 4 *

compromete e o empreendimento quevdura, no dom ínio da açã o política, do Em Arendt, vemos,' a promessa “mantém suas promessas”: se ela reduz
*
I
qual sabemos que unicamente ela engendra um tempo neguentrópico. A •« a incerteza do futuro, não é ao preço da liberdade; e se o futuro é, assim, em
Sem dúvida, como em Hobbes, ainda, a promessa tem como primeiro r parte dominado, não resta nenhuma dúvida que é criador e aberto. Contudo,
objetivo reduzir aí imprevisibilidade do futuro Mas enquanto que no autor do . seria falso dizer que o enigma da promessa seja com isso elucidado. Se o asso -
Leviatã esta inçerteza.adquiria a forma patológica de uma desconfiança de to , - * ciamos doravante à liberdade e à confian ça, não percebemos ainda como da. '
-
dos para cada um, para Arendt esta imprevisibilidade é positiva: desde que, de vontade que promete pode surgir um laço que mantém . Tanto que apromes-
fato, os homens são livres, é preciso admitir que elesrtenham dificuldade em i sa não tem outra garantia da decisão voluntária do prometedAr, o que me ga-
gá rantir o que serão amanhã; desde que dividam o mundo em comum, é pre - rante que quem a disse não se desdiga? De que modo um comprometimento
-
ciso aceítã r que esta pluralidade torna as consequências da ação individual di - desse tipo conteria, nele mesmo, as condições de sua própria estabilidade
^
ficilmente previsíveis.22 É neste pano de fundo (liberdade do homem e plura ’ '
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23 ARENDT, H. Cor í fytion de Vhòmtne moderne* Traduit par G Fradier Paris: Cal-
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. mann-Lévy, 1988 p 312.. . }

. 21 ARENDT, H Conditiot\ de Vhotútne moderne Traduit par G Fradier Paris: Cal


mann Lévy, 1988 p 313. * - V .. »
. . . - 24 Ibid., p. 311. I
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I ' 22 Ibid , p. 3Jt -311.
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25 Ibid , p 312 \
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como uma intenção, por mais firme que seja, de quç se transformaria em de - * -
“ bcm sucèdida” esta pressupõe simultaneamente o respeito de suas regras
• >

ver? Tudo se passa, aqui, como se a vontade que compromete se superasse para , <
Constitutivas como ato de discurso (“prometo fazer X, nas condições apro-
priadas, desde que certas circunstâncias que me excusariam não se produ-
criâr um laço que, de alguma forma, se soltaria dela para.religá-la daí em -dian ;
te à posição do terceiro que cria lei. Algo como uma auto-transcendência se <
- zam”) - a não observação destas regras constitutivas faria com que não hou- '

vcsse nenhuma promessa,- mas um desejo ou prognóstico, por exemplo - e o .


/

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-
observa aqui, que faz a “mais valia” jnerente ao próprio ato de prometer ** .
mais valia cuja natureza é profundamente temporal; é um futuro engajado
- respeito de uma regra mais fundamental, de natureza ética, que dirige o res-
que aí se produz, um futuro apropriado à ação de se projetar sob a forma da peito das promessas. Uma coisa é, de fato, formular uma promessa, umá ou-
*

tra é respeitá-la. Entra em jogo, aqui, uma norma superior què podemos chá-
i

promessa, um futuro mobilizado pelo fato de se inscreyer nuiína duração que •


« .
tem sentido Eis-nos novamente conduzidos ao limiar deste “algo diferente”, mar, com Rawls, princípio de fideljdade.27
' 4»

Vemos,.então; que o ato de prometer não se reduz em nada à simples



necessário à faculdade de prometer, compreendido como cápacidade de res C]
poíidçr por si, enquanto futuro . «
- i
“constância” estóica de uma vontade que pretendesse (como numa aposta ab-
Este “algo diferente”, que ultfapassa e funda .a instantaneidade do que * - surda ) “ficar de pé” contra ventos e maremotos. Ele é analisado antes como
-
rer que promete, podemos encontrá lo na duração daprópria instituição dá um compromisso não pensado, ele próprio, senão sobre o fundo de uma es-
promessa (o ato de linguagem do compromisso) e,nas condições de sociabili * - trutura prévia de socialidade, que faz ligação entre o “eu” e o “fu”, e gera a obri-
dade prévias, nas quais ela se insere (confiança,lealdade, boa-fé); fàz-se, assim, •. gação de fidelidade à palavra dada, sem a qual o beneficiário não saberia “dar - o
„ uma remissão a uma temporalidade mais duradoura ,que o próprio compro.
- fé” ao cohipromisso. A promessa gera a confiança e aq^ressupõe, simultanea-
.
misso, uma temporalidade que não chega, como aval, a ligar o futuro, senão '' ^ mente. A exemplo de qualquer ato de palavra que a cada instante mobiliza

na medida em que, no cômputo geral, se enraíza nas formas de uma interação ? toda a linguagem pré-constituída, renovando-a ao mesmo tempo, podemos
confiante e cooperativa. dizer que cada promessa põe em risco, cada vez, a própria instituição da pro- r

Para compreendê-lo, é preciáo aceitar a idéia de que a promessa não se ?


^
messa e algo do contrato social prévio que a sustenta: nisso se acha a fonte de,
limita nem ao âto de palavra do‘ locutor que se expressa em primeira pessoa , i sua mais-valia, um reservatório de energia temporal que íhe permite que se
. (“eu prometo que.. ”), nem mesmo à interlocução do que promete, que se enr * < i
projete com sucesso no futuro. • >

gaja em favor do benêficiário ( “eu te prometq que.,.”) Como o explicam bem ,1 . Vemos o erro que haveria ao relacionar a promessa unicamente à von-
Paul Ricoeur e Francis Jacques, a promessa só funciona sobre o fundo da ins
tituição: “eií te prometo no quadro da linguagem como instituição” O ato sub
J -
- *
tade “autónoma” do sujeito que prometei uma tal intensão autárquica não po-
deria engendrar, por si mesma, um compromisso socialmente crível; ao inver-
jetivo de palavra (eu prometo, eu te prometo) pressupõe á instituição da lin
.
-
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so, é igualmenté redutor dissolver a promessa na autoridade externa ( heterô -


guagem comum; como se, entre os múltiplos possíveis da linguagem, eu mo
- noma) do Leviatã, que pressuõe garanti-la. A promessa é, sobretudo, umaí-
- bilizasse, com prqveito, os recursos da
gura dialética de mediação, que permite ao sujeito subsumir suas intenções
1

instituição promessa. Para que seja * .


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' voluntárias sob princípios éticos prévios,28 mobilizando e regenerando estru-
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26 RICQEOR, P. Soi toème cotr -í rne uti autre. Paris: Seuil, 1990. p. 309-312; RICOEUR
I

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° P. Approches de
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la personne. Esprii, p. 121 124, mars 1990; RICOEUR, P. Les im
plicatíons de la théorie des actes de langage‘pour la théorie générale de 1’éthiqiíe. ’
. . .
27, RAWLS, J Théorie de.Ja justice Traduit par C. Audard Paris: Seuil, 1987. p. 387
/
.
28 RICOEUR, P Les implications de la théorie des actes de langage pour la théorie gé-
.
I

In: Théorie des actes de langage, éthique et droit Sous la direction de P. Amselek. Pa .
. ris: PUF,1986. p. 103 104; JACQUES, E. Ia promesse et le pardon Eí/nca epragtna-
J - .
nérale de Téthique. In: Théorie des actes .de langage, éthique et droit Sous la direc -
* , -
t cax Archivo de filosofia, n. 1/3, p. 328-329, 1987,
\
. .
tion de P.Amselek. Paris: PUF, 1986 p. 103 . V
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) A Promessa. Ligar 0 futuro.
Capitulo 3 V 4

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delegação do poder, baseiam-se numa fé compartilhada, uma confiança gera-
J 1
,
turas preexistentes de cooperação. Cada promessa, poderíamos (fizer, dá vida
/ dora de segurança durável no futuro) .
a uma confiança preexistente, sem a qual ela nadai seria. ,
t , A figura moderna do Estado de direito não pressupõe outra coisa, pres-
¥
'• ft supõe apenas, mas essencialmente, o respeito desta confiança mútua. O autor
* V A contemporâneo Lon Fuller,' ele próprio inspirado pelos trabalhos de G. Sim-
PROMESSA, CONFIANçA E LEALDADE 4 t
* i .
mel, explica igualmente que a própria essência do modelo da Rule ofLaw> te'
«i .V í
’ side na certeza de que os governantes aplicarão de boa-fé ( “ faith-fully”) às re- >

A análise do tempo futuro da promessa nos Conduz, então, a redesco- y


jjras gerais que eles mesmos editaram anteriormente.31 Eis, precisamente, o
brir, em seU plano de-fundp, um alicerce absolutamente fundamental do uni- .
'

que distingue úm regime de direito de uma gestão empresarial: enquanto no


verso normativo (ético, jurídico e político): a des romana, a “fé” Constitutiva
* >
^
dos compromissos sociais, tanto públicos (leis, tratados), quanto privados ) ,
'
primeiro são editadas regras gerais :às quais nos àtemos^garantindo assim si-
• multaneamente a igualdade diante da lei e a segurança na sua vigência, o ge-
(contratos, convenções)* Uma fé cujo sentido originário e fundador não é tan- renciar por sua vez não se liga nem à generalidade de regulamentação, nem à
r.
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to ou “da” QU “de” crença, mas de relação, de ligação interativa cuja versão po- ? i convergência das intenções apregoadas e dos atos bolocados.32 É que seu prin-
« sitiva declína-se sobre a forma da boa-fé, geradora de “fidelidade” e de “con- A} cípio de ação é a eficácia, ao passo que o imperativo dos dirigentes no Estado
fiança”; enquanto que a umâ- fe \ geradora de “suspeita”, “dèsconfiança” “perf í- de direito é a manutenção da confiança mútua. / *
dia” e “infidelidade”, expressa sua face negativa* A esta noção originária de “fé” Em um regime de Rule ofLaw prevalece um contrato tácito, no fim do
-
pode se também relacionar a ídéia de lealdade, cuja etimologia remete à figu- ' qual os governados só obedecerão enquanto as autoridades respeitem, elas
X

ra da lei t lealdade, do latim \egàles )> cujo sentido é o de fidelidade aos com- - i mesmas, as regras que adotaram (princípio patere legem quam ipsefecisti ”) .
pròmíssos e à$ instituições. Desta exigência fundadora de lealdade o direito v« Este contrato gera de uma parte e de outra “expectativas legítimas” expectati- w

positivo esconde inúmeras pistas, quer se tratasse de lealdade constitucional* 1 vas normativas: estamos, doravante, no direito de esperar das autoridades que
de lealdade federal* ou ainda de usos leais (ou desleais) do comércio.29 respeitem sua palavra, do mesmo modo que elas mesmas podem contar com
4 Pode-se dizer, sem medo de errar, que o pensamento moderno’sõbre o \
'


.
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a nossa colaboração cívica. Uma ordem jurídica não é analisada, então, como
a projêçãq da, vontade unilateral e instantânea do soberano; deve ser com-
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contrato social , assim como eie é expresso .sob a pena' de J. Locke, principal- S
mente, pressupõe um tal alicerce de confiança mútua;o povo confia ao gover- } preendida, antes; como um sistema durável de interações e de compromissos
no - pelo mecanismo bem nomeado como “truste” - a tarefa de estabelecer recíprocos baseados na confiança. *

jeis gerais e permanentes, em vista do bem público. AssUme-se o compromis- *


.

so de nos contentarmos com isso, desde que, entretanto, os governantes não . *


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ultrapassem nem se desviem de sua missão (caso em que permanecido sobe-


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BIG BRQTHER E A MANIPULAÇÃO DO. PáSSADO
* f
*

rano, seria autorizado a exercer seu direito de resistência).30 Estas obrigações I



w ,
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É notável assinalar, a esse respeito, que os poderes verdadeiramente
1
recíprocas (obediência a íei, contra a promessa de respeitar as condições da
¥ 4 *
totalitários dedicam-se sempre a destruir a última resistência^ à sua sobera-
9

29 Cf. RIGAUX, M.-R La loyauté fédérale ou la poiysémie d’une nomíe. In: La Loyau- (
- V

.1 té . Mèlanges offerts à Éttienne Cerexhc Bruxelies: Larcièr> ,1996. p. 312-315.


31 FULLER, L. The Morality of Law. ed. rev. New Haven: Yale Universíty Press, 1978.
^
30 LOCKE, J. Deiixième Traité du gouyernementdWl„Traduit par B. Gilson. Paris:Vrin,
p. 30-40, 209 et seq. -
*•

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32 Ibid., p. 210 s.
1977. p. 161. .
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Capítulo 3
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Fromcssa Ligar ó futuro
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* alicerce de uma relação confiante no futuro. Os juristas por sua vçz redesco-
nia: a irreversibilidade das palavras do passado, que em certos casos criam
^
obstáculo a seu total domínio sobre a sociedade. Mudar as regras do jogo no ^
decorrer da partida, a fim de sempre ter razão, esta é a última afronta do di-
-
rigente sem escr úpulos3* basta -observar õ príqcipe, a quem Maquiavel
'

, seu interesse lhe sugira



^^ brem atualmente a importância deste princípio da confiança legítima, que é o
alicerce sobre o qual se apóia a promessa, ela mesma instrumento normatjVo
de domínio do futuro. É curioso, de resto, que décadas de positivismo jur
co tenham lançado a boa-fé à penumbra do esquecimento, no momento em
ídi-
aconselhava a não cumprir sua palavra desde
'
que *
"

^
*

que se desdiga ( “a historia.de nosso tempo ensina que os ú nicos que realiza-
. -
T que, entretanto, esta' noção cardeal figura em lugar de dçstaque nas disposi
-
ram grándes coisas foram os Príncipes que fizeram pouco caso de sua pala * ções absolutamente fundadoras: é o que ocorre no artigo 1134, dó qual cita -
vra” ) 34 Ao inverso, a primeira reivindicação dos povos oprimidos será sem-
.
pre, na falta de obter leis justas, poder no mínimo contar com leis não re-' j
troatíyas, leis das quais eles podem*estar seguros de que serão aplicadas pe-
^ mos sempre a alínea Ia (“as convenções iegalmente formadas, atuam como lei
pára os que a criaram”), esquecendo a alínea 3a: “elas devem ser executadas de
*

boa-fé”. Evocaremos também o artigo 26 da Convenção de Viena de 1969, so-

de poucos direitos,- ou pelo menos do pouco de previsibilidade, nos quais .


,

los juízes, e rião textos suscetívei$_ de manipular o passado e privá-las, assim, J ^jj bre o direitó dos tratados, que dispõe; “qualquer tratado em vigor liga ás par-
tes e deve ser executado por elas de boa-fé”
podem baseai seu comportamento
* . % Atualmente, este princípio de boa-fé é compreendido, côm justiça,
Big Brother, o ditador orwelliano em 1984 , compreendera bem que seu -
poder só seria -total no dia em que pudesse, deste modo, reescrever o passado a -3
"
^ como princípio geral de direito, regulador tanto das relações verticais entre
governantes e governados quanto relações horizontais entre pessoas privadas
.
,seu favor Igualmente, ele estabelecera no seio do Ministério da verdade, (de
^ ou entre Estados. Quanto às primeiras, poderíamos evocar, por exemplo, a
fato, o Ministério da Propaganda, pois, da Mentira) um comissariado de arqui- Convenção Européia dos Direitos Humanos, sobre a qual M. Pettit escreveu
vos cuja tarefa consistia em atualizar minuto a minuto o passado, e em apagar- í que a “confiança legítima” é sua “regra de ouro”36 - lima regra de que o Tribu -
lhe cuidãdosamente todos os„traços que pudessem dificultar o poder hoje, re- nal de Estrasburgo faz efetivamente uma frequente aplicação: a seu ver, im-
velando, principalmente, suas prevaricações e suas in úmeras trocas de aliança 35 . porta de fato que, num Estado democrático, as diferentes autoridades públi-
l
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cas inspirem a confian ça dos jurisdicionados e dos administrados. Assim , ex
plica-se principalmente sua abundante jurisprudência relativa à independ ên-
-
' A BOA-FÉ REGULADORA DOS COMPROMISSOS i cia e à imparcialidade dos tribunais,37 ou ainda sua reprovação de reviravolta
* •S
de jurisprudê ncia que destruiriam “uma jurisprudência e uma prática cons-
x
Assim, a ficção literária.reúne-se ao ensinamento da. análise filosófica: tante> tendo criado, no decorrer dos anos, uma seguran ça jurídica na qual os
o princípio pacta sunt servanda,ligado ele mesmo à irreversibilidade do pas- v requerentes podiam legitimamente confiar”.38
sado - qm passado que cria alicerce e com o < jual se pode contar constitui o - %
.
Nas relações entre pessoas privadas, igualmente, o princípio de con-
fiança legítima opera uma volta forçada, a ponto de ser compreendido, agora, \

. •
* «

.
33 Nesse sentido, cf. HAARASCHER, G Philosophie des droits de Vhattime Bruxelfes: .
i Editions* de 1’Uníversité de Bruxelles, 1987 p 25 et seq .. . .
t *

. . .
34 MÀCHIAVEL, N te Prihce .Traduít par J Anglade. Paris: Le Livre de poche (Librai - .
36 PETTITI, L E. La Convention européenne 'des droits de Vhemnte Paris: Economica,
riogénérale française), 1983 p 91 .. . 1995. p. 33 v .
.
35 ORWELL, G 1984. Paris: Gallimard, 1950. p..62 63: “A história todà inteira seria
- . . . .
37 Tribunal europeu D H Decisão Duinhof et Dtiijf, série A, v 79, n 34, p 15, 22 . .
um palimpsesto raspado e reescrito tantas vezes quantas fossem necessárias Não
, teria sido possível provar "que a mudança efetuada, em nenhum caso, tenha sido
uma falsificação”.
"
. ^
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]
maio 1984

dez. 1997 .
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38 Tribunal europeu Ó. H , decreto Église catholique de la Canée c Grèce, n. 40, 16 . .


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Capítulo 3 i ,
" Promessa^ Ligar a futuro.
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como ò verdadeiro fundamento da força obrigatória dos compromissos con- ).
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* tuição: como uma brilhante auròra e o pren úncio de um belo dia*, estes tex
tos “são detentores das promessas da liberdade e do bem estar para o povo”'*2

- * '

tratuais: “mais que atribuir à vontade abstrata das partes o poder de criar uma
*

lei”, escreve Phílipe Malaurie, “alguns propõem que se funde a força obrigató 1 j - O propósito é exemplar da dupla natureza do tempo futuro que se quer ins-
- .
ria na confiança a relí ance> dizem os ingleses A confiança é inseparável da J taurar: nesse ponto encontramos, simultaneamente, a rjíptura com relação a
segurança jurídica. O preito francês evolui lentamente para esta concepção um passado , desqualificado (a aurora, como as Luzes, rompe definitivamente
-
.
*

que esclarece o princípio suas sanções, através da boa-fé: a inexecução seria


• falha na medida em que enganou a confiança do credor”.39
*

í ^ -
cóm a obscuridade o obscurantismo - dos tempos antigos) e a vontade de
inscrever-se na duração de um tempo regenerado (aurora é “o pren úncio de
Uma tese recente generaliza este propósito: o princípio de “respeito de - um belo dia”). De um lado, trata-se de “destruir leis e costumes existentes”:
\
*
vido às expectativas legítimas do outro” pròva-se simultaneamente fundador .% - “mudar tudo de uma vez nas escolás, nos comportamentos, nos costumes, nos
e regulador do regime contratual.*0 Mais que remeter, o contrato à expressão espíritos, nas leis de um grande povo”;43 de outro, ambicionamos construir
1
'

. instantânea de uma promessa subjetiva, o entendçmos, daí em diante, sobre-


1
tudo como um processo temporal contínuo, no decorrer do qual se dá uma *1
interação entre os parceiros: os atos e as palavras de uns gerandcr “expectáti- .
^ neste campo de ruínas “o grande edif
45
ício da legislação civil”,44 “fixar para sem -
pre o império da liberdade” - resumindo: eternizar leis que são como “â nco-
.
vas legítimas” na cabeça dos outros, uma confiança recíproca se estabelece,
»*

^ ^ ras que servem para fixar o navio do Estado” 46


Como se, doravante, realizando o objetivo de Rousseau, ousássemos»
~ com base na qual um feixe de obrigações irá cristalizar-se progressivamente.
Assim são dadas à luz, além da "promessa individual e subjetiva, a mtersubje-
^ 4 i

“empreender a instituição de um povo” porque nos sentíamos prontos “a mu-


r

tividade produtora da confiança e condicionada pela boa-fé, assim como a JA


inscrição na duração do processo contratual constitutivo lde esperas”, de “ex-
í
^ ’ dar”, por assim dizer, a natureza humana,47 Contudo, o. empreendimento du-
rará pouco. Como a. Constituição de 1793, que nunca será aplicada, os proje-
tos de Cambacérès nunca serão adotados: os tèmpos são de efervescência, não
- pectafivas” ou de “antecipações”, que serão consideradas legítimas e protegidas
pelo juiz, desde que sejam razoáveis e de bom senso.41 . - A
** y

de estabilização; a ruptura é demasiadamente radical para já ser instituída. E,


contudo, é no ^decorrer das mesmas semanas que se fazia valer o mais fantás-
Resíimamos numa palavra: a promessa compromete o futuro se e so- J, *

tico projeto de domínio do tempo social: a instauração de um calendário re-


mente se, consegue se apoiar numa forma prévia de confiança, que ela rege " - publicano que, como se pensava, fixaria um novo início para a história, incul-
x neja e transforma no mesmíssimo tempo.

>C prio tempo. Esta história merece ser relembrada.



caria uma nova memória coletiva nada menos que uma revolução do pró-
\

ROMPER E DURÁR: O PARADOXO DO FUTURO *

r 42 CAMBACÉRÈS. Rapport à la Conyention nationale. In: FENET, P.-A. Recueil com-


No dia 9 de agosto de 1793, Cambacéf ès, autor de um projeto do f>let des travaux .prêparatoires du Code civil Paris: [s.nj, 1827.1. 1 ( réédition Otto
Código civil, dirige-se à Convenção nacional; em nome dos comités de legis- Zeller, 1968), p. l ' \

lação; o código,' diz ele, prolonga a obra redentora de qualquer nova Consti-
*

43 Ibid., p* 11. i
/•

44 Ibid., p. 2.
A
' 45 Ibid., p. 1.
’ 39 MALAURIE, O. Droit civil Les obligations. Paris: Cujas, 1993. n. 610.
'
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_ Ibid., p. ÍO.
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r 46 l
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40 DIEUX, X ± ê Respect d ú aux anticipations l égitimes dyautrui Paris: LGDJ; Bruxe- y
V

lies: Bruylânt, 1995. i


•*
47 ROUSSEAU, J.-J. Du contrat social ou \
1972. p. 108 ,
p incipe$ du droit politique. Paris: Bordas > • .
41 Ibid . , p. 242.
»
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208 / 209
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Capítulo 3 •V .1 \
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«« fyomessa . Ligar o futuro.
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- segundos, è, enfim, que se atribuíssem novas denominações aos meses e aos


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O CALENDÁRIO REPUBLICANO: DECRETAR A ETERNIDADE


•4 dias. No que se refere ao ponto de partida dos novos tempos, o ponto zero da
i

história a ser escrita, uma feliz coincidência prometia ao calendá rio em proje-
O uso sednstalara, nos panfletos e nos jornais, de denominar o ano de *
*

!
to, um belo futuro: de fato, estávamos avisados'que o 22 de setembro (de
r 1789 o áno I da liberdade; mas, é com a proclámação da República, no dia 22
1792 ), data da abolição da realeza e de proclamação da Rep ública, correspon-
de setembro de 1792, que foi dado o passo decisivo: um decreto da Conyen V - dia exatamente ão equinócio de outono. Não se deixou de ver nisso o símbo-
çao estatui que, dali,em diante, todos os atos públicos serão datados do “ano I
da República francesa”, O comité de instrução pública encarrega uma comis- / j
,

são especializada, encorajada por Gilbert Romme, de preparar uma reforma ^ ^ *


lo de um duplo recomeço e de uma dupla igualdade sob o signo de uma con-
yergéncia promissora entre ò curso da história e as leis da natureza. “Assim, a
igualdade do$ dias e das noites estava marcada no céu, no próprio momento
i radical do calendá rio. Este entrará em vigor no dia 5 de outubro de 1793, os ijj <

em que a igualdade civil e moral erá proclamada pelos representantes doqt


**

àvo
tempps mais negros do Terrof, e sobreviverá por 12 anos: Bonapartè irá supri- >
mi-lo no dia Io de janeiro de 1806.
francês como o fundamento sagrado do novo governo ”48 * .
Mas, não se ia parar em tão bom caminho: erá na contagem de cada
i
*

- w Nada mais revelador da utopia revolucionária, de sua radicalidade como v


de seus reveses, do que esta reforma do calendário. Uma vontade apregoada de . $
*
instante que o tempo revolucionário deveria difundir sua obra educativa jun-
to ao povo; era preciso que o acordo entre o social e o- natural fosse marcado
desçristianizaçãò aí encontra o desejo de racionalizar marcãs da vida -Social: £
trata-se de dar cabo das festas religiosas, dos domingos, do culto dos santos e %
por um recorte mais racional da substânciâ do próprio tempo O sistema de- .
dos padroeiros, e ao mesmo tempo imprimir ao tempo social umá contagem %
.
cimal serviria aqui, como, alhures, de modelo Os mesès seriam doravante di-
vididos em três partes iguais de dez dias, os dias seriam divididos em dez ho-
mais rigorosa quanto ao empreendimento geral de uniformização dos pesos e
-
medidas. A Era Cristã do tempo passado, trata se,de substitui la pela Era Re- t - ^ l
ras, cada hora em décimos, cada décimo em centésimos: assim, a igualdade,
presidindo a marcha do tempo, acabaria mesmo, acreditava-se, por entrar nos
r

publicana do tempo desejado, que permitirá, enfim, ao povo chegar à maiori-


.
coStumes Novos relógios precisaram ser fabricados: os “pêndulos decimais”,
' dade e à razão; as datas variáveis e arbitrárias do calendário gregoriano seriam
substituídas pelas marcas fixas e racionais do tempo astronómico.
*
_ t
- dos quais, um exemplar foi colocado na sala onde se sediava a Convenção, a
fim de colocar os representantes do povo sob a nova hora republicana.49
Mais fundamentalmente ainda, espera-se da reforma do' calendário que 1
J
, %
*
Mas a obra não seria completa e os velhos hábitos verdadeiramente er-
ela traduza, rtum plano simultaneaménte.simbólico e quotidiano, a rotura do 2
*
*

radicados a não ser que os meses e os próprios dias mudassem de nome -


tempo que se pretende operar de modo irreversível: a cidade nova e poVo re-
tanto é verdade qúe o nome é, muito frequentemente; a própria coisa. Já na
generado deve corresponder, doravante, um tempo cujo cálculo renovado será 1 derrota da semana de sete dias, o domingo desaparecera, substituído pelo
^ o sinal tangível.
Quer se tornar sensível, e por assim dizer quotidiano, o fato 1 *

de ter entrado numa era nova da historia, depois de ter consumado uma rup- |
.
neutrissimo “décadi” Mas, como denominar os outros dias e os meses do ca-
*
lendário republicano? Os projetos se acotovelavam - num momento mais
*
tura sem volta com um passado obscuro e alienante. Ao investir no calendá já - c
rio o gesto revolucionário toma reflexivamente consciência dele mesmo e. de 3 I
4

Sua inscriçã o no tempo, um tempo que se quer colocar a serviço dá grande \ •48 G. Romme,. Rapport sur Fére de la République fait à la Convention Nationale dans
la séance du 20 septembre de Fan Ií de la République, apud BACZKO, B. Le calen-
empresa regeneradora e pedagógica da revolqção. *
drier républicain. Décréter Fétemité. ín: Les Lieux de tnémoire. Sous la direction de
V

Tecnicamente, esta revolução do tempo implicava em que se fixasse um i
R Nora. Paris: Gallimard, 1997. p. 72. i

novo acontecimento fundador, de onde, partiria a era republicana, que con-


rt
49 Cf. BACZKO, . Le calendrier républicain. Décréter Fétemité. In: Les Lieux de tné -
^
tnoire. Sous la direction de P. Nora. Paris: Gallimard, 1997. p, 77.
/ .
cordasse com o cálculo completamente renovado dos diás, dos minutos e dos
r
p- 4

t v

210
f
/ 211
, . Promessa. Ligar o fiituro. v
Capítulo 3
I <
i

forte, notemos bem, da tormenta' revolucionária. Romme tendia para um 0 FUTURO COMO PROGRESSO
modelo de inspiração histórica, modo de inculcar no povo ú m catecismo re -
volucionário .simples e cômodo: os meses seriam denominados regeneração,
reuniãOijogo âapéla, bastilha, povo, montanha, república, unidade, fraternida- ,i
^^ O tempo da promessa que estamos estudando abre-se, então, com uma
recusa: a recusa da história' morta que esmaga os
i

homens
sob seu próprio
*

.
de, liberdade, justiça, igualdade Entretanto, fez-se sentir ,que tudo isso era, peso, aquela que gera a “doença histórica”, da qual Nietzsche dizia que acarre - *

talvez, demasiadamfcnte francês para ser verdadeiràmente universal, como se tava a impotência para construir o presente e desejar o futuro.50 Contra a du -
desejava. Do mesmo modo é o projeto pastoral de Fabre d’Églantine que ga - n; ração contínuistavtocada pela entropia, fazem-se ouvir a dçscontinuidade do
nhou finajmente: pluvioso e temidor, ventoso e frutidor, e conseguiria, então, \ imprevisto, a ruptura do instante, a fissura do acidente, a álea da contingên-
a unanimidade. v* cia, a sobrevinda do acontecimento. Contra Cronos, sempre çm vias de des-
A unanimidade? Não mais que a Constituição montanhesa ou os códi
verdadeiramente
-
.

u truir suas obras, está Kairós, a ocasião propícia que impõe seus direitos, libe-
rando, às ^vezes, uma energia histórica verdadeiramente inaugural: o tempo
>

gos da Convenção, o calendário republicano n ã o


-
se imp ôs
O país real, o campo, sobretudo, resistia. Persistia se em manter os mercados ^ morto da repetição, cede lugar ao tempo forte da instauração .
nos dias antigos sob a padroagem dos santols tradicionais; domingos e festas < Mas o paradoxo reside precisamente r\o fato de que, por ser inaugural,
religiosas continuavam, como no passado, a serem festejados Os almanaques
)
o acontecimento {luradoUrò, por sua vez, postula a duração: de se projeta
' publicavam, prudentemente, dois calendários, com uma tábua de conversão;
num futuro finalizado, do qual não está absolutamente certo de que esteja
quanto aos “pêndulos decimais”, permaneceram uma curiosidade técnica das
quais somente alguns exemplares subsistiram. Apenas o mundo oficial da fim- 1
#

^ completamente desligado do passado. Nesta segunda vertente, o tempo futu-


ro da promessa pode ser associado à ideia de progresso e de história: tudo se
-
ção pública contentava se, com mais ou menos boa vontade, com a nova ,di - wi
passa como se a humanidade estivesse engajada num movimento geraí, orien-
visão do tempo. O Diretório conservou ainda o calendário revolucioná rio, j
tado para o futuro e dotado de sentido. O otimismo das luzes considera que o
,

sem dúvida , para significar que a funda çã o da Rep ú blica marcava ú m tempo j
de não retorno, um momento irreversível, mas quando Bonaparte o aboliu,
sentido desse movimento é uma superação progressiva das servidões do pas
sado e a conquista de um bem estar crescente: Kant identifica o Aufklàrung
-
em Io de janeiro.1806, quase não eram mais encontrados, defensores do gran- .
de projeto de “decretar a eternidade”. "
, '
i
com a saída do homem de sua menoridade, ao mesmo tempo em que Con -
dorcet redige Esquisse dyun tableau historique des progrés de esprit humain
'
Este fracasso,'como o dos códigos e das Constituições da mesma épo- j
(1795), Três característicàs ligam-se a esta concepção do futuro: ela valoriza o
- ca, é revelador: sem efeito desinstituinte, era inegável sua força de ruptura
futuro, considerado como superior ao passado; ela se refere a um futuro trans-
* / emi relação ao passado incontestável e, sem dúvida, irreversível. Em contra-
)
parente, cujo sfentido é possível num discurso racional e mobilizador ( uma es-
-
partida, faltàva lhes, ainda, a capacidade instituinte que lhes teria permitido
v alicer çar-$e duradouramente
no corpo social: *caT brilhante aurora” não sus- catologia); ela se produz como/tempo histórico e humanista, considerando-se
tentará a promessa dos bélos dias anunciados. Logo, não basta o tempo fu - “
;
* o futuro como a atualiza ção progressiva da essência humana, o cumprimento
das promessas da humanidade,51
turo ser produzido como ruptura radical ç m rela çã o ao passado , para or íen-
, tar duradouramente o futuro; Compreendia-se, então., que para ser produ- ;s
, tor de futuro e n ã o se consurqir nas brasas do momento, o tempo social de- ;
"
50 NIETZSCHE, R Consid é rations inactuelles. De VutUité et des inconvéhients de Vhis-v
veria simultaneamente se inclinar pelo modo do inédito e se inscrever ,numa \ toire pour la vie. Traduit par P. Rush. Paris: Gallimard, 1990. p. 144, 121,
» pêrspectiva finalizada: romper com o adquirido e, entretanto, mobilizar a
51 Cf. HOTTOIS, G. La dimension du fiitur à travers la temporalité mythique, histori-
que et techno-scientifique. Cahiers internationaux de symbolisme, n. 42/43/44, p. 75.
duração.

212 213
>

Capitulo 3
I

»»
X
Promessa. Ligar o futuro . *
l * 1
i.
í i N
V *
> «
< \ %

-
FORçAS INSTITUINTES E FORMAS INSTITUíDAS ~
i

Ora> parece, à reflexão, que esta projeção num futuro finalizado nunca
pode operar-se tofolmente tábula rasa: Saint Just tentara inutilmente susten- ' ’ , i f

tar que a “ história estava vazia desde -os Romanos”, ele não foi menos levado a . Onde reencontraremos a dialética do instituinte e do instituído, deci-
*

^^
apoiar-se numa Roma ou numa Esparta míticas, Notou se frequentementç: o -
4 *

*
'
didamente central para qualquer pensamento sobre o futuro? O tempo “só-
próprio conceito de revolução, na política como ha astrofísica, pressupõe sem - 1
cio-histórico”, o da ação política, é instituinte, mas tudo se passa como se ele
f pre, neste ou naquele momento, o retorno às origens Se ela se nutre do “mito . não o soubesse melhor: como se não .devesse sabê-lo. É que ele só pode se
-
r do reino”, expressa pela escatologia anunciadora de tempos novos, ela reata,
. tornar visível nas “figuras estáveis da instituição”, e é da natureza das institui-
também, mais ou menos secretamente, a nostalgia das origens e o ‘‘mito do re- - *
ções colocarem -se fora do tempo, como "preservadas de sua alteração perma
torno”.52 O que tenta exprimir se ali, sobretudo e desajeitadamente, aliás; é vque
- \ nente.54 Mas esta denegação não deve criar ilusões: como a língua, a institui -
* nenhuma ruptuta é verdadeiramente radical
-
e que o sentida que ligaremos . j
- _ ção social nãa cessa de se transformar, com aajuda de seus próprios recursos:
a isto/ por mais futurista ou escatológica que seja a ruptura, sempre toma em
^ é, então, paradoxalmente, à vitalidade de suas aquisições, a riqueza de suas tra-
"

prestado ao logus as formas herdadas das significações recebidas, livre para » \


clições, que lhe garantem a possibilidade de acolher o nqvo.
-
transformá las profundamente: não seria esta a líçã a ser tirada do fracasso ^ ox Eis, então, o desafio que se apre$entalaos juristas: pensar as vias de aber-
~
do calendário revolucionário? '

tura do futuro''em formas duráveis; romper com õ passado, apoiando-se nele,


f , ^
Georges Gurvitch, em seu afresco monumental, dedicado à multiplici-
liberar as forças instituintes nas próprias formas do instituído. No pensamen-
*

dade dos tempossociais, mostra-o bem: “o tempo avança sobre si mesmo”, o


to jurídico, este desafio é derivado de pelo menos dois lados: o utilitarismo de
tempo descontínuo das efervescências coletivas é uma temporalidade instável ,
que, ora irá se dissolver no “tempo explosivo” das criações sem futuro, ora irá ò um lado, o ihstituçionalismo de outro, se apresentam, de fato, como duas ten- - *

institucionalizar-se na iniciativa de agrupamentos permanentes. É, principal- ' *


mente, o caso do Estado que geralmente está apto a impor sua escala de tem- VT
tativas rivais de oferecer um futuro ap futuro. .
*
— \

-
po, seus ritmos e suas cadências» aos outros grupos sociais; mas o domínio do »

O UTILITARISMO:
.
V
% •* »

tempo social realizado pelo Estado pressupõe, precisa ele, que o “tempo avan-
ce sobre si mesmo”, compõe com p “tempo da alternância em atraso e avan- “UM RRQGRESSO CONTÍNUO NA FELICIDADE ”
ço” (que é precisamehte ò tempo das regras dospstatutos), do mesmo modo •*

ocorre com o “tempo em atraso sob si mesmo”, que é a temporalidade própria i O utilitarismo é, por hipótese, projeção ao futuro: o bem-estar - que /
, das tradições.53 Dito de outra forma: o futuro não pode, duradoura e eficaz- i
ele erige como .finalidade da ação pública é concebido, de foto, como, pro-
-
* j
mente, sei; tornado presente no atual, a não s r mediante o concurso da insti- .
gresso,.progressiva realização de si, no futuro A legitimidade das ações e .das .
^
tuiçã o de suas regras e até de suas tradições; como 'se o trabalho da mudança 1
regras é, desde então, avaliada em função de antecipações He cálculos de pro-
devesse dispor de uma matéria bêm estabelecida, para operar sobre outra coi- ,• 4 i
-
babilidade.55 Esta busca do bvem estar “ uma idéia nova na Europa”, dizia Saint
* sa além do vazio. i i
*
i
4 . Just - é “um direito inalterável do indivíduo”, proclama a Declaração de Inde- . -
pendência dos Estados Unidas, e a Declaração dos direitos hunfonos e do ci-
i
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A
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* . t
y

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\
52 BORDEAUX, G. La Vólitique aupays des mervilles Paris: PUF, 1979. p. 144-154.
. i' / .
54 CÀSTORIADIS, C Iflnstituúon imaginaire de la société. Paris:"Semi, 1975. p. 283. t
.
53 GURVITCH, G. La multiplicité des temps sociaux In: La Vocation actuelle de la so -
í

55 SÉVE. R Lutilitarisme comme philosophie de Pavenir. In: TERRÉ, E et al. Le Droit


. '

.
*

* . .
ciologie Paris: PUF, 1963 t. II, p 366 371 . - .
et le futur Paris: PlÍF, 1985 p 55 56 .. - .
* *
i
. í

%
4 *
t

214 215 \
.
Promessa Ligar o futuro .

» t

dadão de Í 789'o repete: “o objetivo da sociedade é o bem estar comum”


J . quanto das utopias revolucionárias: um tempo “prometêico” o
, do progresso
Bentham, jurista inglês feito Cidadão de Honra da República na época revo 1
- *
através da história. Um tempo que, para Bentham, é simultaneamente
futuris -
lucion ária, continua o teórico, sempre moderno, desta temporalidade utilita
»

rista, orientada para um futuro estabilizado. Suá concepção do tempo jurídi


; - ta (evidentemente a lei reformadora dispõe para o futuro
) , gradualista (para
- , v
implantar-se duradouramente a leisabe operar as administrações necess
á rias
^ co merece ser aqui reèvocada 56 . .• X
em relação ao passaclo), e continuísta (êle garante a estabilidade das institui-
Do lado do passado, Bentham rejeita tanto o. tempo mítico das funda
,
çoes principalmente se condyzir à proclamação de leis irrevogáveis e direitos
A - çõ es e a segurança dos cidadãos, ele implica a permanência do controle social %

, e pressupõe o hábito da obediência,).-


• *

, - imprescritíveis (“sofisma daqueles que pretendem acorrentar a posteridade”),57 i



Um tempo futurista: para um legislador utilitarista e reformador a
" , lei
quanto o tempo habitual e tradicional dòs temporizadoras ( a arit
'

é menos unt reflexo do que o instrumento da mudança desejada. Tomando


“ ígíiidade da : de
. -
lei não é motivo”) 58 Mas ..para não sermos sovinas, e desta vez, do lado do fu •
- f em préstimo a forma cfo imperativo, ela é feita num espírito de perpetuidade
-
turo é uma desconfiança semelhante'que ele nutre a respeito do tempo jurídi
- uma perpetuidade que, contudo, nã o se estende cómo irrevogabilidade: a
lei
4

co instantâneo. Assim, comentando um projeto de Declaração dos direitos que # f


-
mudará, desde que suas razões de ser tenham mudado. Em todos os ramos
61
j
pretenderia abolir “instantaneamente” os privilégios, Bentham exclama: “abolir ;
instantaneamente! Aí está o lema de um déspota que faz dobrar tudo ao* bei- ‘ *1 do direito, é esta preocupaçã o em assegurar as antecipações racionais no á
cl -
.
prazer de suayvontade [ ..) ”. Imediatamente, é um termo importado da Argélia culç utilitarista que prevalece: assim, por exemplo, o objeto do direito civil é
,
óti de Constantinopla. Gradualmente, é â expressão da justiça e da
prudência.59 A
garantir um “progresso contínuo na felicidade”, garantindo, antes de tudo a
Bentham, o reformador utilitarista, delimita logicamente também, o tempo segurança, que é “á extensão dada no caso de tempo a todos os bens aos quais
propriamente revolucionário: esse tempo futuro, que-não hesita em sacrificar o ela se aplica”.62 Em direito penal, as penas não visarão tanto punir o fato pas
*
-
1 sado, mas prevenir os delitos semelhantes, sendo o “alarme ' (expectativa -
* ne
- .
presente ao futuro, poderia"de fato, provar se “sem futuro” É que a violência das
jj *

paixões que se afrontam acarreta uma precipitação' desconsiderada na confec gativa) o verdadeiro mal a ser combatido: o caso- passado não passa um de
çáo das leis; o resultado: “na França escrevem-se as Constituições como canções,
- ponto; o futuro é infinito, escreverá èle.
63:
-
\

O trabalho do reformador, contudo, é progressivo; às rupturas radicais


,
elas se sucedem uma a outra e as ésquecemos imediatamente” 60 .
Como, então, não se “desencantar”? Ao instituir um tempo jurídico tão ele prefere as transições suavèsf um processo contínuo de racionalização pro-
distanciado dos sofismas dilatórios ( “os tempos ainda não estão maduros”), gressiva da sociedade. É que “a bondade das leis depende de sua conformida -
de com a expectativa geral” 64 Organizações impõem se: trabalharemos a edu

- -
.
56 Cf. OST, F Codification et témporalité dans la pensée de Jeremy Bentham. ca ção das novas gerações, diferiremos a entrada em vigor de determinadas
In: Ac-
tualité de la pensée juridique de J. Bentham.Sous la dírection de P Gérard, F Ost et leis, ou só as aplicaremos de modo experimental, ou melhor ainda, guardare-
*
.
M. Van de Kerchove. Bruxelles: Publications des PUSL, 1987, p. 163 et seq.
. . *

.
57 BENTHAM, / Traité des sophismes politiques. In: Oeuvres de . Bentham, juriscon
J - ‘
4 \ 4

6Í BENTHAM, J Traité des sophismes politiques. In:Oeuvres de rBentham>


0

. t
) juriscon-
sulte anglajs. Édité par E; Dumont. Bruxelles: Coster, 1829.1 1, p 490.
.
. .
58 BENTHAM, J Príncipes de législation. In: Oeuvres de J. Bentham, jurisconsulte
.
sulte anglais Édité par B Dumont .
Bruxelles: .
Coster 1829.1 1, p.
,
,
492 493.. -
an- 62 BENTHAM, J Príncipes du Code civil. In: Oeuvres de J Bentham jurisconsulte -’
. an
glais, Édité par E. Dumont. Bruxelles: Òoster, 1829. t í, p 40.
. . *

. .
glais.Édité parE Dumont Bruxelles: Coster* 1829 , 1.1, p. 57 .
. .
, ' 59 BENTHAM, J Sophismes anarchiques. In: Oeuvres de / Bentham, jurisconsulte an
- . , jurisconsulte an -
.
glais Éditépar E. Dumont. Bruxelles:Coster, 1829.1.1, p 555. . 63 BENTHAM. J Príncipes du Code pénal In: Oeuvres de /. Bentham
.
v
. . . , , p 3 . ,.
.
wring, 1838-1843. t III, p. 220.
.
60 BENTHAM, J. Pannomial fragments. In: The Works of J Bentham Edinburgh: Bo . -
glais Édité par E Dumont Bruxelles: Costef 1829 t T
.
64 BENTHAM, j Príncipes du Code civil In: Oeuvres de } Bentham
'
,

.
1
, . ^
jurisconsulte an- -
.
•glais Édité par E. Dumont. Bruxelles: Coster 1829 1.1
, , , p 8 L

216 217
>
9 i
t *
Capítulo 3
V
<•
Promessa. Ligar o.futuro. *

i %
4

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aí <+ * /
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mos seu .benefício para as gerações futuras:65 é preciso, escreve ele, “preparar
m *

.
Í

#
inspiração A instituição será o objeta de uma seção posterior, mas “a idéia de
.
gradualmente as boas instituições” 66 O pènsamento sobre o tempq torna-se '
i

direito” que é seu motor e que tomamos emprestado à G. Burdeau deve ser
aqui, muito forte: “o legislador que deseja operar grandes mudanças, escreve ' apresentada aqui.
*

ele, deve aliar-sé, por assim dizer, ao tempo, este verdadeiro auxiliar de todas t
* .'as mudanças ú teis, o químico que amalgama os contrários dissolve os obstá- . \
V t

.
t 4 ?
t
*
'
- culos e cola as partes desunidas” 67 Mas, se o gfadualismòjsigníí
f ca lentidão no . “A IDÉIA DE DIREITO : *
progresso, conçta igualínente a idéia de uma progressão indefinida, sem ver-
* *
DM DETERMINADO PROJETO• DE FUTURO
dadeiro ponto final. Certamente, Bentham revela-se um partidário convenci- * í -
U h

“ dp da mutabilidade dos contratos68 e da corrigibilidade das leis:65 é caractèrís- ;


tico dos regimes democráticos, entregues à autocorreção permanente de seus ’
?
“A idéia de direito” é a força instituinte do direito.positivo instituído, é
a representação da ordem social desejável que uma comunidade se faz num
'
objetivos, garantir a adaptação contínua da lei.
dado momento de sua história, é a imagem do porvir qúe ela projeta no futu-
* »
A continuidade, terceiro termo deste tríptico. Tudo, na obra do direito,
»

V* '
f
- .
ro 71 A? República, os direitos humanos, o federalismo, a igualdade, constituíram
carrega sua marca: continuidade do.trabalho legislativo, continuidade da obe- I , .
diência (entendida como "hábito”), continuidade também do' controle •social t
e constituem aindahoje as alavancas históricas desse género Imaginemos por
exemplo, o formidável poderio dé transformação social que recepciona a exi-
^
(o famoso princípio panóptico não foi concebido para ser exercídd “a cada .
gência da igualdade: uma boa parte da jurisprudência constitucional, américa-
instante da vida do prisioneiro?” ).70 J
10
,
k \ j

na e européia, é analisada como o aprofundamento constante desta exigência


-
r
t

/
Futurista gradualista, continuísta, parecem ser estes os traços do tem * ^ j
^ - ^ de equalização das condições; e para além da prática jur ídica, é toda a dinâmi -
po prometeico, próprio ao legislador-reformador moderno mas nos engana
^ í - ‘
i
ca política que se esclarece a partir desta referência a um ideal inscrito num tex -
ramos ao identificar esta concepção do tempo somente com os pensadores
í
i

to e amplamente compartilhado pela comunidade. Atuando como um fermen -


utilitaristas. O pensamento institucionalista constitui uma segunda fonte de : to na massa jur ídica, esse tipo de idéia de,direito prova-se um operador de mu-
)

*
»
i
dançáy cujas virtualidades são propriamente incalculáveis. “O amanhã é uma
. .
65 BENTHAM, J Príncipes du Code civil In: Oeuvres de J. Bentham, jurisconsulte an- b .
potência escondida”, escrevia P Valéry:72 desta potência ‘prospectiva algumasN
\
.
glais. Édité par E Dumont. Bruxellès: Coster, 1829.1 1, p 81; cf igualmente Lettres . . . idéias de direito parecem çstar aptas a captar algumas radiações .
X
.
au comte de Toreno. In: Oeuvres. de } Bentham, jurisconsulte ànglais. Édité par E . A idéia de direito, explica Burdeau, é simultaneamente representação,
.
Dumont Bruxelles: Coster, 1829 t. III, p 171 . . . 4

. .
66 BENTHAM, J Sophismes'anarchiques In: Oeuvres de J Bentham, jurisconsulte an . antecipação e efetivação do futuro: mostrà ndo-ó, ele o torna já presente, pma
.
glais. Édité par E Dumont Bruxelles: Coster, 1829.1 1, p. 575 '
. . .
- ‘
.
idéia de direito, como a.de nação, “o sonho de porvir compartilhado”,75 possui
.
67 BENTHAM, ) De finfluence des temps et des lieux en matière‘ de législation In: .

“toda a fecundidade da imaginação, todas aspotências do desejo, todos os presr

Oeuvres de l Bentham, jurisconsulte anglais Édité par E. Dumont Bruxelles: Cos. . - tígios dos começos” 74 Sem dúvida, tais antecipações não são desprovidas de
.
ter, 1829. t I, p. 194. \
*

.
68 BENTHAM, J Traité des sophismes.politiques In: Oeuvres de } Bentham, juríscon- . . l 4
*

. . .
sulte anglais Édité par E Dumont Bruxelles: Coster, 1829 t I, p 491 .. . . .
>

.. .
71 BURDEAU, G Traité ãe Science politiqne 3 ed Paris; IGDJ, 1980.11, v 1, p. 306 . >

\ 69 . .
BENTHAM, J Of laws in general In: HART, H (Ed ) The Collected Works ofjeremy . .. et seq.
.
Bentham London: Athlone Press, 1970 . r
t

. .
72 VALÉRY, P Oeuvres Paris: Gallimard:La Plêiade, I, p,' lÒ25 .
( .
70 BENTHAM, J. Panoptique In: Oeuvres de } Bentham, jurisconsulte anglais Édité. . . < '
..
73 BURDEAU, G Traité de Science politique 3 ed.Páris: LGDJ, 1980* t III p 123 et seq
. - . ,. .
. .
*

. .
par E Dumont Bruxelles; Coster, 1829.1 1, p 251 . \
‘ . .
74 Ibid., 1.1, p 309
I I
I

218
: 219
r * V

* A
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* Capítula 3 «?

V »
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. .
PronteÇa Ligar o juttí rq *
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1 /,

uma parte de ilusão, do mesmo modo que nãd estão imunes a manipulações y ' dicais com o passado. Ele deve ser antes compreendido com base num modo *
políticas, sempre possíveis; mas pelo menos*ecepciona qm projeto, sem o qual
o grupo não chegaria mesmo a identificar-se como tal. A título derepresenta-
-da metamorfose: ao me$ttio tempo instituído e instituinte, torna-se objeto de
if mutações contínuas, de adaptações permanentes, de remodelagens constan-
Ção de uma ordem social desejável, a idéia de direito está assim, simultanea-
tes. Ele deriva da experiência e da história, procede por meio de tentativas e
mente, na fonte do Estado que realiza um início de execução e, ao mesmo tem- ‘
; ' erros, tateamentos e aproximações; éle avança por deslizamentos sucessivos;
po, para além deste: sempre excessivo em relação a ele, trabalhando sem cessar
ele substitui insensivelmente umas formas por outras, sem que jamais o fio
desde o do interior, a idéia de direito o obriga a se transformar, e amanhã, tal- i .
que as religa se rompa totalmente Sem dúvida, esse tempo da metamorfose,
vez, ela o condenará se achar dificuldade- em traduzir suas exigências. u que combina antecipação e tradição, é paradoxal; menos mobilizador que a
Ao contrário dos filósofos Nacionalistas, que privilegiam as idéias dq or- j
ruptura* radical do revolucionário, menos consolador que a longa duração do
dem e de Èarmonia, esta idéia de direito promete uma concepção dinâmica do / conservador, ele não é menos, ao que pensamos, a aproximação mais exata da
jurí dico: antes de tudo, o direito é uma òbra de imaginação, solução para um ' v
problema inédito, idéia diretiva ( àirectum, direito) antecipando um estado de i'
coisas possível e desejável.75 É afirmar que a ordem jurídica vale mais pelas vir- i
A
I
natureza sempre enigmática do,tempo social pelo menos quando este chega
a instituir, só seria por um tempo, a duraçãoxpie sempre escapa.
8
— ’
, Resta, contudo, que a instituição geralmente nega o tributo que paga ao
tualidades que torna possíveis, que pelos conteúdos dos quais já dispõe: “qual- . , , tempo; é-de sua natureza afirma-se “fora .do tempo”: certamente a instituição
quer ordem estabelecida traz em si seu princípio de deSestabilização, pois seu ' jurídica não se apresenta voluntariamente como produto de um ato fundador
objetivo, sdu termo, seu fim, estão localizados no infinito”?6 - caso contrário, \ instantâneo, e como uma entidade pressuposta a perpetuar-se e durar, seme-
encerrado e estéril, estaria condenado ao desaparecimento:JEntão, julgaremos 1
uma ordem jurídica tanto com base em suas regras estabelecidas, que confi- {
lhante a si própria, até que um outro ato, fgualmenteinstàntâneõ, a tenha re -
V .
duzido a nada Isso nos leva a refletir sobre o instantâneo jurídico .
guram sua forma instituída, indispensável à segurança, quanto baseados em \ >

suas virtualidades, que traduzem o eco de suas forças instituintes. O direito i

positivo, nestas condições “só tem valor se permanecer em contato com a idéia INSTANTÂNEOi.: O FUTURO SINCOPADO .
/
de direito”.77 *
V
»
*
*
í

.
* #
f

A concepção instantaneísta do direito apóia-sè em argumentos de. peso:


4
*

V
* um direito instantaneamente válido não será, de fato, um direito livre dos en- ,

0 TEMPO METAFÓRICO /
1
é traves da tradição, liberado dos laços do precedente, separado dos arcaísmos do
r *
1
r
%
costume e da obscuridade dos princípios - uni direito arrancado às moratórias
.
\

ídi- '
O que concluir destas diferentes tentativas de pensar um tenipo jur * da prudência? Este direito instantâneo, teremos compreendido,;tem os favores
co e social que saiba inovar e durar simultaneamente? O fracasso do calendá- . do positivismo que, de Hobbes até hoje, concentra-se nos aios jurídicos, empi-
rio e dos códigos revolucionários nõS terá ensinado: o tempo jurídico arran- V

ricamente identificáveis (uma lei é votada, um decreto é publicado no Diário


v
» <

cado ao efémero não é o das improvisações passionais, nem o das rupturas ra- /


\
A
\ /

-
\

78 Um exemplo entre centenas de outros deste tempo jurídico graduaiista: ó artigo C


. . .
75 BURDEAU, G Traité de sciçnce politique 3. ed Paris: LGDJ, 1980 p 315 .. . do tratado da“União européia de 7 de fevereiro de 1992 (chamado de Tratado de
76 Ibid., p. 322 . .Maastricht ): “a União dispõe de um quadro institucional único que garante á coe -
V
77 Ibíd . 4
rência e a continuidade das açôçs cpndlizidas â fim de atingir seus objetívos, sem- .
4
*
\
. ‘
- pre respeitando e desenvolvendo o acervo comunitário’’ . .
4*
i A,
*
I
è*

220 1
221
I
V
*
\ Capítulo 3 .
Promessa,ligar o futuro
v *
* :
4 V K
'

* » «
i
4

-
>

/
oficial ) , que são a expressão das vontades de seus autores: contratantes autôno 3 '
tivo ao qual o jurista deveria fazer justiça. Resistindo às alterações temporais,
mos, governantes soberanqs. Tudo aqui se refere manifestações, pontuais e j a norma se inscreveria num tempo simultaneamente descontínuo e indivisí-
*,

^
.imediatas de vontade: o poder político é conseguido em termos de soberania, ' 1 vel - em nossa linguagem: um tempo instantâneo e virtualmênte perpétuo.
-
o direito subjetivo é apresentado em termos de domínio privado, “Wtllehs- J Este tempo imóvel da norma pide, êntão, pretender conter simultaneamente
macht” diziam, os autores alemães do século 19: poder de vontade;79 nos dois M todo o passado (do qual recapitula as normas anterioras) e todo o futuro, por-
. casos, o ato criador do direito é pensado como sem entrave, ou quase, reduzi- r ! que tlm comó vocação reger (em princípio, indefinidamente); e Camy con-
V

do a um decisionismo que se livra quase totalmente dos laços Com o tempo or- " J clui: “eis porque o tempo do direito positivo é um presente eterno”.
82

din ário e principalmente o passado.60 Então, não estamos muito distanciados • ' In ú tiL insistir, no momento, sõbre o irrealismo. desta análise, muito
. de .uma concepção mágica do ato jurídico: surgido de lugar nenhum, pressu- j ilustrativa, da propensão das instituições a negarem sua relação com o tem-
poè-se que ele. produza instantaneamente efeitos duráveis. Nãò saberemos ‘3 po. Notemos antes isto: mesmo se dividirmos com Camy a preocupação de
nada de sua génese, nem dos avatares de sua execução. Não há- nenhuma neces- . J preservar a norma de incessantes transformações, que, além do fato de mina-
sidade de se perguntar por que e como a norma se impôs, nem em quais con- .'.‘1 rem sua força obrigatória, podem, às vezes, conduzir a interpretações de má-
dições poderá se manter, importa apenas que um ato de vontade lhe tenha con-
ferido a validade - uma validade que continuará plena e completa até omo-
J fé, é preciso reconhecer que a inscrição da regra num tempo “descontínuo-
i
indivisível” nãò oferece nenhuma garantia a esse respeito, ao coptrário: essa
mento em que um outro ato jurídico, igualmente mágico, a invalidará. concepção “descontinuísU” não impede de nenhum modo que o procesfco de
V
produção normativa se embale e o ritmo de edição/ab-rogação dos ^textos se 7

.
fi

“0 FORA DÓ TEMPO” DO POSITIVISMO JURÍDICO


n
acelere loucamente como observamos atualmente.,A pr ópria questão da mu -
dança normativa, sendo desde o início colocada como extrajurídica, não dis-
'

> pomos de nenhuma barragem jurídica para controlar o fluxo da produção


'Para alguns, entretanto, este instãntaneísmo jurídico apresenta a vanta- ; normativa. V

gem de colocar uma norma jurídica ao abrigo da alteração temporàl e das in


terpretações circunstanciais: o instantâneo iria de par com a perpetuidade
- j
Então, é preciso render-se à evidência: a concepção instantaneísta
(descontinuísta) do tempo jurídico pode igualmente fazer-se acompanhar do
• I

presente eterno visado por Camy, do que de- um frenesi de mudança. Sim -
(perpetuidade relativa, sem dúvida, na expectativa de uma. eventual futura ab- 4
.
rogação) Olivier Camy é muito claro a este respeito: a norma jurídica se be-
t

.1 plesmente, neste último caso as frações temporais dominadas pela norma se-
neficiaria de uma presença irreal, de um estatuto “atemporal9’; à margem do V rão breve e mais numerosas. Que se tratasse de valorizar a perenidade ou a
tempo í f sico e das m últiplas coerções que ele acarreta, a norma imporia um * ^
mudança, a ausência total de consideração das transições normativas reduz a.
dever-ser cujo sentido e validade são extra temporais e fixos 81 Longe àe pres- . análise a -registrar o aparecimento e o desaparecimento das normas, sem po-
tar-se complacentemente a quaisquer espécies dê interpretações ( manipula- der, nem explicá-las, nem pensar em sua regulamentação. Separado de qual-
t,
' * ' ções j atualizantes, a norma apresentaria desde então um sentido fixo e itera- quer perspectiva diacrônica, o direito pressupõe-se renascer de suas cinzas, *

r
íntegro e soberano, a cada nova edição - com a pretensão^cada vez, de valer
eternamente.
\
. - .
79 OST, F Entre droit et non droity Vintérêt Bruxelles: Publications des FUSL, 1990 p. 29 . . * *

* . .
„ 80 SCHMITT, C Les Trois Types de penséejuridique Paris: PUF, 1995. p. 83-84 :“a de -
cisão soberana é começo absoluto” . r i /

81 GÀMY, O. Présence irréelle du droit (à propos de la temporalisation du droit). Re - -


82 CAMY, O. Présence irréelle du droit (à propos de la temporalisation du droit). Re
-
«

(
.
vue interdisciplinaire d’études juridiques, p 1 24,^1998 41 - . <
. -
vue interdisciplinaire d*étudçs juridiques> p 16/1998 41,
*
\

0p

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222 * 223
%
Capítulo 3
4
V
.
Promessa. Ligarv futuro

.
V /
N,

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FIAT IUS! . . i
sobre o casamento; çontrariâmente ao direito çanôhico, ciosó da duração e da
,
- .*
liberdade real na formação do liame (escalonando promessas de futuro e de -
-
Esta concepção instantaneísta, com o positivismp, infundiu-se no con- •ij praésetiti), o Código cria impasse sobre noivados e quase não se detém sobre os
junto do campo jurídico. Em direito público, evocaremos Carré dé Malberg, Sj *

• vícios de consentimento (“no casajnento engana quem pode”); por outro lado,
para quem ,a Constituição, ato fundador e totalizador, tem a virtude de criar si- 1 uma vez pronunciados os^sim” os efeitos matrimoniais do casamento estão do-
multaneamènte o Estado .e o direito. Fora da Constituição, não existiria/ nem A ravante condensados num regime matrimonial imutável e não administrável.
84

direito nem Estado; somente fatos brutos, relações de força, aspirações mo- Esta concépção elitista da liberdade, destinada a desmontar asarmadi-
rais.55 Promulgada uma Constituição, eis que ela faz surgir do caos umav ordem JA '
Ihas do tempo e a insegurança da duração existénciaí, manifesta-se, também,
jurídica çompletamerite pronta; sendo ela invertida, eis que esta ordém desapa- - 3 nos contratos menos solenes, como a venda. As vendas a dinheiro servem
rece, por sua vez, no nada. O ato unilateral de promulgação da Constituição aqui, segundo Carbonnieiy como paradigma; elas não ocupam, explica, ne-
opera assim como um instantâneo jurídico - um fiat ius! - pelo qual a unida . . jj - nhuma textura de duração; concluídas em um instante pela entrega da Coisa e
de e a personalidade são“conferidas ao Estado; à montante, são escamoteadas . 51
pagamento efetivo do preço, elas não deixam atrás de si “nenhuma esteira de
ídicas sob forma, principal- -m
as forças históricas instituintes e suas tradições jur
obrigação” nem mesmo uma obngação de garantia.85 Na concepção clássica
mente, de idéias e direito (idéia de nação, idéia dé liberdade e igualdade), ao
'
^
passo que, como aval, a duração criadora pressupõe-se contida nas formas fi-
*
do contrato, tudo se passa como se a -qualidade do consentimento não fosse
apreciada, senão num;único instante pontual de sua formulação, de sorte que
-M

'
4
*
xas das prescrições constitucionais. Ao absorver a nação na forma estatal ^ (Es-
-
tado nação) e submetendo o Estado aq direito (Estado de direito), a Constitui- 1 -
quase não é levada em consideração a boa ou a md fé que acompanha tanto o
período de negociação pré-contratual, quanto a fase posterior da execução da
'
i

çãô, segundo Carré de Malberg; deveria realizar a plena e completa jurídiciza- j


convenção. Reiomãndo, quase palavra pór palavra, a análise que havíamos
ção dos poderes, e garantir assim aos cidadãos simultaneamente a segurança e 3
a liberdade;- na realidade, na falta de consideração das revoluções institúintes, ' j
'
,
,

l
proposto no contrato social em Hobbes, Jatques Hauser pode, então, concluir
a propósito do contrato civil; “ há nisso, sacrifício da liberdade real. A justifh
-
esta visão é obrigada a registrar uma história constitucional, caótica e sincopa- M
cação geralmeníe apresentada reside no sofisma desesperador de que a liber-
da, feita de uma sucessão de revoluções acarretando, cada vez, o desapareci- ' M
dade só j)ode ter um porvir jurídico aceitando destruir-se a si mesma, nascen-
mento momentâneo do direito, do Estado é de todas às suas instituições. 1 t
3
v '
do e morrendo no próprio instante do consentimento”,86
* No direitq privado, também se marca esta vontade de frear a duração real ‘1
,

nas formas í rgidas de uma criação jurídica, ao mesmo tempo instantânea e vir- M9
v «

tualmente perpé tua. Que baste, para nos convencerníos disto, referir-nò^à con- -S \
cépção clássica do tempo contratual, que se concentra inteiramente no instante M
UMA MUTABILIDADE DESEíIFREADA >

mágico da troca de vontades. Aqui ainda, a mpntante e a jusante - as negocia- 1 <


Sem dúvida, esta concepção instantaneísta da Constituição e do con-
-
ções pré-contratuais e a duração posterior de execução do contrato estão con- m
,traío é justificada pela preocupação, legítima, de assegurar para a regra um
s centradas no único momento em que encontram duas vontades livres e sobera- 1 * "

nas. Assim era, por exemplo, a concepção que é apresentada pelo Código civil si / » r
, J.Temps et liberf é dans la théorie générale de Pacte juridique. In:Religíon
i . . ..
83 Cf BASTID, R VIdée de Constitution Paris: Económica, 1985 p 29; BEAUD, O La
souveraineté dãhs la ‘Cor
.
ítribution à la théorie générale de FÉtaif de Carré de Mal-
84 HAUSER

85 CARBONNIER, J. Flexible Droit 8. ed. Paris; LGDJ, 1995. p. 329,


' _
société et politiqite. Mélcirí ges en hommage à facques Mui Paris; PUF, 1983. p. 504.
> l

86‘ HAUSER, J.-Temps etliberté dans la théorie générale defacte juridique. In: Religíon,
'
.
berg. Revue âe droit public, 5, p. 1.275 et seq , 1994. société etpolitique. Mélanges en hommage à Jacqnes Ettul.Faiis: PUF, 1983. p. 507.
\

^x
224
225
f *
V
Capítulo 3 <
.
ProtUessa. Ligar o faturo
- v

\
V
* í

*
m ínimo de duração, e a seus destinatários, um mínimo de segurança. Mas, a
por contrátos privados, ólegislador manifesta o desejo de uma prorifa entra-
. . .
técnica utilizada torna este objetivo amplamente ilusório É que, inscrevendo y
da em vigor da novâ regulamentação, sempre pressupósta melhor que a pre-
a. regra “forá do tempo” - fora do tempo social efetivo -, privamo-hos de qual ]
quer possibilidade de pensar e dè regular a mudança. Ou, mais exatamente, '
- . -
cedente; a unidade da legislação e a igualdade diante da lei não advogam no
mesmo sentidofpor que, perguntamos, seria preciso reservar somente aos be -
somos conduzidos a avalizar qualquer mudança regular na forma, iridepen ' - neficiários das situações jurídicas posteriores à entrada em vigor da lei, o be-
dentemente de qualquer aváliação de sua legitimidade e de seus efeitos sociais . nef ício de suas disposições?90
Na aplicação do adágio lex posterior derogatprioriy.admite se, de fato, que se 6 ^
- A uestão delicada, e muito complexa, da mutabilidade, dos atos admi-
mesmo órgão adota duas normas contraditórias, em momentos suçessivos, a t ^
nistrativos constitui uma ^segunda ilustração da valorização da mudança por
*

-
segunda impõe se nècessariamente" à primeira 87 *
. •

, Somos assim conduzidos, por um efeito quase mecânico, a valorizar a Ç


11
ela mesma, ligada a uma concepção instantaneísta da criação das normas jii-
rídiças. Se é verdade que prevalece aqui a lei chamada precisamente “a mudan-
*

mudança por ela mesma; esta valorização ê tanto mais forte quanto se conju- ' } ça”: ninguém tem direito adquirido, ensina-se, à manutenção de uma regula -
guem aqui duas filosofias convergentes do tempo: uma concepção utilitarista, \ i
que atribui a prevalência do futuro sobre o presente e o passado (a nova nor , -
1 mentação; a mutabilidade é de princípio, desde que incessántemente se modi-
ficam ás exigências do interesse geral. De resto, a administração não poderia
-
ma sendo, por princípio, pressuposta melhor que a antiga), e um modelo po I - renunciar, a não ser por um tempo determinado, a exercer as competências re- >

sitivista descontínuo, da produção jurídica (a competência normativa sendo ; gimentais das quais foi investida.51 Mesmo os atos regulamentares de alcance
figurada.sob a forma de uma sucessão descontínua de instantes criadores) O ’ . individual, criadores de direito, podem ser revogados por um “ato contrário”,
que assim se acredita é num processo permanente e aotolegitimado de criação } desde que esta hipótese seja prevista pela leie que seja respeitado o “paralelis-
- ab-rogação das normas jurídicas, uma mutabilidade desenfreada da regula Í - mo das formas ’.92
/

Y
V
mentação, um princípio absoluto de reversibilidade dos textos 88 Como se a j
cada mudança legislativa pudéssemos voltar a algum “ponto zero” da juridici- ú
dadé: “apaga-se tudo e se recomeça”
. \

*
Da vida do direito, esta teoria
*
instantaneí
*
sta deixa
,

, então, uma visão sin
copada, feita de uma sucessão de imagens sem elo aparente e inteligível. Do sis ^
»*

tema jurídico tomaremos,, então, apenas um conhecimento sincrônico, por


,
»
-
-
"

Sem dúvida, uma tal representação é demasiadamente apurada para 1 1


cortes sucessivos, em que a única coaçãò de racionalidade reside na exigência
.
contabilizar o conjunto dos fenômenos jurídicos observáveis Resta qué a aná i - * de coerência momentânea das diferentes normas pertencentes a esta estrutura
líse dos dadofc contemporâneos oferece disto numerosos índices Assim, por . síncrona.93 No limite, como o sustentara alguns teóricos do'direito, só haveria
exemplo, o estudo das disposições transitórias, pelas quais 0 legislador regula $
a questão de saber qual da lei antiga ou da lei nova irá aplicar-se às situações
^ sistemas jurídicos “momentâneos” em que a modificação da menor de su ás
normas acarreta a emergência de um sistema jurídico diferente; Do mesmo
\
jurídicas intermediárias, revela a preocupação constante com uma aplicação *
“rápida e extensa” da lei nova*89 Mesmo quando são visadas situações regidas í 90 DEKEUWER-DEFOS5EZ, F. Les Dispositiotts transitoires ãans la législation civile
1 / contemporaine. Paris: LGDJ, 1977. p. 235.
*
f
/
91 LEWALLE, P. Légalité, sécurité, stabilité en droit administratif, Un équilibre introti-
.
87 KELSEN, H. Théoriepure dmdroit. Paris: Dalloz, 1962 p. 275. (Trad. da 2 ed.por . vable? In: Libef amicorumYvoti Hartneqtiart et Roger Rasir. Bruxelles: Kluwer, 1997.
C. Eisenmann) ,
p. 238. * ’ *
.
88 Cf. YANNAKOPÓULOS, C La Notion de droitsacquis en droit administratiffran- /

92 Ibid .
.
çais. Paris: LGDJ, 1997. p 153. ,
89 DEKEUWpR -
DEFOSSEZ, E~Le$ Dispositions transitoires dans la législation civile . .
93 Cf igualmente'BULYGIN, E Time and validity: M: MARTINO, A. A (Ed ) peon- . ..
,

contemporaine., Paris: LGDJ, 1977. p. 229. tic Logic, Cotnputatior


í al Linguistics and Legal Information Systems New1 York: .
1 1
- .. . .
North Holland, 1982 v II, p 66 X

l
I

Y
I
v
' 226
227
\
\ J

Capítulo 3 Promessa. Ligar o futuro, .í


*>
V *
* 9
*
« /
V
4 V
<
<
* f i * ' )
*
modo, certos teóricos estruturalistas da língua puderam sustentar que toda vez 1 do autor). É a tarefa a que se dedicará o positivismo normativista do século
N

que Proust terminava lima frase era o estado da língua francesa ,em sua totali ^ j - V

20, associado aos nomes de Hart e Kelsen.


4

i
dade que se modificava. É, contudo, não entender nada da vida real das línguas, \ *
Para Hart, esta coíitinuidáde na produção do direito é garantida por um
explica Castoriadis; de fato, antes de separar radicalmente sincronia e diacro- i tipo particular de regras, denominadas “secundárias” (meta-regras, em suma),
nia, o que se precisa explicar é como, tránsformando-se constantemente, a lín- . \ I fixando, de maneira geral, abstrata, e atemporal, as qualidades requeridas e o
gua continua simultaneamente a mesma e outra: Proust, como Valéry ou Apol- . ‘ I -
procedimento a seguir para criar, mo<Aificat e ab fogar as regras jurídicas que

linaire Saint-John Perse, inovam sem.nenhunía dúvida... e, nò entanto, nós os Q I criam autoridade.95 Apenas essas normas secundá rias garantem uma tempora-
compreendemos.94 Não é a sucessão de estados diferentes da língua ou do di- « I lidade dominada e contínua, suscetível de assegurar ao soberano a permanên-
' .
reito que merece prender a atenção .É mais, sobretudo, seu engendramento a , J I
^

cia do poder de legislar, mesmo antes de sua “feliz entrada” e depois de sua
partir de uma matriz comum que lhes confere um ar familiar incontestável. A I .
morte Apesar de tais regras, o tempo do direito surge descontínuo e incerto,
. língua,,como o direito, oferece-nos um acesso tanto ao nosso passado como ao - 4 factual, deixado às áleas das relações de força e às contingências políticas.
*

nosso futuro, jreniontando ou descendo a cadeia* de suas transformações, as


II Segundo este modelo, como veqios, o sistema jurídico apresenta a par-
I

I
/
quais, modificandò-os incessantemente, nenvpor isso os desnaturam. ^ I
I
- ticularidade de regrar ele mesmo sua própria criação e ‘garantir, assim, o cará-
ter jurídico das transições de cada um de seus éstados aos seguínjtes. Resta que,
>

?
1 \
V I se uma Certa segurança, pelo menos formal, for assim garantida, esta meta re- -
]
t

' NORMAS SECUNDáRIAS E SISTEMAS JURíDICOS DINâMICOS: | ,


"
giilaçãò jurídica da mudança não opõe nénhum freio material à mutabilidade
V
A SEGURANÇA DO DIREITO •
* [ da regra. Até ao contrário: cpmo o observou Kelsen, é uma estruturação “dinâ-

/
A

/; I mica” da ordem jurídica, que se toma pensável pela concepção formal da vali-
dade e da positividade das normas.Daí, de fato, que,a posítividade da regra re-
Nem a teoria nem a pirática jurídicas podem, então, satisfazer-se com ;;; % *

uma tal mutabilidade nem com . um instantaneísmo tão radical. Do mesmo ' sulte do simples fato de que ela procede de um ato criador regular na forma, e
/

modo, a teoria positivista do século 19 transformou-se; atualmente não nos - t


• '< que e$ta regularidade é apreciada, índependentemente de seu conteúdo, unica-
mente em comparação com as normas superioras, e, em definitivo do ponto de
conformamos mais com o imperativismo de Austin, diretamente inspirado no
decisionismo próprio ao Leviata hobbesiano. Austin via a regra do direito sob I vista de uma norma fundamental cujo objeto é representar “o ponto de parti-
a forma do “imperativo.apoiado em ameaças” - imperativo imposto com su- i da dé um procedimento”;96 é justamente uma concepção formal e dinâmica da
*

cesso pelo soberano que se beneficia dp hábito de “obediência do povo”. Mas, à criação do" direito que se ache acreditada - uma concepção totalmente livre da
Pomo Hart demonstrou muito bem, este modelo, por demasiadamente redu-
referência, a princípio substanciais, de justiça e^ de segurança, por exemplo. '
Sofisticando, assim, suas análises, o positivismo jurídico permite, sem
«
V . tor, deixa sem explicar porque às ordens do soberano serão, em princípio, já
seguidas de efeitos, antes que seja instaurado um hábito de obediência, e por- - * dúvida, ultrapassar as aporias do instantaneísmo puro e simples: os atos jurí r -
que continuarão ainda em tvigor depois de sua morte. Salvo dissolver o direi- dicos sucessiyos são doravante relacionados a um principio formal de criação
^j
*

to em uma coleção de ordens pontuais convém, então, qu.e se assegure simul- (ou seja, meta-regras de competência e de procedimento), .que introduz a >
»

^
taneamente sua continuidade (explicando o título sobre o qual a nova autori- . X*

dade se funda, apriori, para legislar ) e sua permanência ( justificando as razões


«
‘ / 95 HART, H. L. A Le Concept de droit. Traduit par M. Van de Kerchove. Bruxelles: Pu -
blications des FUSL, 1976. p. 72 et seq.> 4
I 4

96 KELSEN, H. Théorie pure du droit Neuchâtel: La Bacoitnière, 1953. p; 1 Í4-115.


94 CASTORIADIS, C. IÍ Imtitution imaginaire de la socié té . Paris: Sguil, 1975. p. 299-300.
1

t
t
( Trad. da Ia ed. por H. Thévenaz).- 4

fl
228 I

229
0 4
V
Capítulo 3 Promessa, Ligar o futuro,
/

» i

) v

-
\

idéia dõ cóntinuidadç .e de diacroçia. Mas, é preciso que o subliqhemos, trá preciso aprender a discernir as continuidades e as transições profundas atrás
ta-se,; ainda, apenas de uma continuidade processual, garantia somente dç » da aparente criação constitucional ex nihiló’* e além dos pretensos desaba-
l
uma segurança formal: é somente do ponto de vista interno do sistema que a
- i

mentos revolucionários; é que o direito pré-èxiste às Constituições, assim


mudança não parece mais arbitrária; nada garante, contudo, que do ponto de como o direito que 'sobreviveis revoluções. (Como o assinala ainda Bastide,
vista de sè u conte údo a mudança regulamentar ocorrida constitiia necessaria r
'
- uma revolução opoe menos a força ao direito que suas idéias de direito con-
mente um progresso: poderíamos dizer que daqui decorre uma <csêgurança do 1 -
correntes).99 Do mesmo modo, ainda, a nação não é submetida às formas or
direito”, mas não ainda uma “segurança, pelo direito”.97
gânicas que lhe atribuem as instituições estatais. No direito e nas forças “pré”

e “trans” constitucionais, deixam-se perceber os princípios deste tempo “me-


REGULAçãO SUBSTANCIAL DAS TRANSIçõES:- tâmórfico” do qual falamos, um tempo feito de continuidade'e de mudan ça e -
que é, a este título, suscetível de operar uma regulação em profundidade dasv

A SEGURANÇA PELO DIREITO ‘
transformações duradouramente assimiláveis pelo corpo social. i

* Deste modo, ctontra os ejqpedientes do “povo atual” e das maiorias de- /

A diacronia buscada não pode, então, reduzir-se a esta perspectiva ex - j magógicas de circunstância, visa-se atualmente proteger a soberani do “povo
clusivamente formal; a institucionalização jurídica buscada parapensar a con - perpétuo”.100 Contra o voto de disposições constitucionais celeradas, frutos da ^
"tinuidade não se deixa enclausurar nestes mecanismos exclusivamente proces - ] cegueira de um instante, introduzimos normas constitucionais intangíveis e
.
suais É que, se na perspectiva “dinâmica” de Kelsen e de Hart, as “imagens” ju- 1 direitos individuais inderrogáveis. Assim, mesmo à revisão da Constituição
rídicas áe encadeiam doravante numa perspectiva continuísta, é preciso ainda
que ã “montagem”- para prolongar a metáfora cinematográfica - opere-se se-
^ pelo poder instituído com este objetivo torna-se aíualmente objeto de um

gundo um “cenário” que torne inteligível o desenvolvimento das imagens


Dito de outro modo; pairece-nos impossível criar o impasse sobre uma con-
. $ ^
1
controle pelos- Tribunais constitucionais, em nome de valores que transcen-
dem, o escoamento do tempo, pois realmente fundadores do regime político
*

em nome do qual a revisão se opera*101 Letizia Gianformaggio, igualmente, é


cepção mais substancial da instituição, que se declinaria também em termos £ bastante inspirada aó falar do tempo “consolidado” das Constituições: se é
*
4

-
de valores e princípios valores e princípios simultaneamente enraizados 1
verdade que estas são analisadas como acordos sobre os valores fundadores do
numa .memória e portadores de um projeto de futuro / . grupo, como promessas que engajaín um futuro comum, e não como ordens
Tanto a prática quanto a teoria do direito contemporâneo gúardam ín- v

dices da localização, hesitánte, contudo, de uma tal forma de institucionaliza- t -


conjunturais, há a oportunidade de preservá las da contingência sócio-políti-
ca e das interpretações desinstituintes; nao j>ara còlocar as Constituições “fora
ção substancial do teippo jurídico. Todos os exemplos evocados mais acima , do tempo”, mas para defender-lhes os valores constitutivos do tempo concre-
podem ser rediscutidos sob ^este â ngulo. 0

Assim, contra a conceçção instantaneísta da Constituição, graças à qual


to da\
vida social efetiva 102 . y

V
nasce simultaneamente tanto o Estado quanto o direito, é preciso lembrar, *

* r »
v *
como Paul Bastid, qu.e “o Estado não surge subitamente pelo efeito de um gol- 99 BASTID, P. llldêe dt Constitution . Paris: Économica, 1985. p. i 76.
~ i ^
.
pe dê varinha mágica Sua formação histórica é lenta e contínua”.98 Então, é 100 GÀUCHET, M. La Ré vòlution* des pouvoirs , Paris: Galíimard, 1995., p. 45; BEAUD,
O. La Puí ssance de VÉtat. Paris: PUF, 1994. p. 445. *

101 KLEIN, C, Théorie etpratique du pouvoir constituant Paris:PUF, 1996. p. 159 et seq.
q
97 YANNAKOPOULOS, C, La Notioti de droits acquis en droit administratif français. ‘
102 GIANFORMAGGIO, L. Temps de la Constitution, temps de la consolidation. In:
s >1 Paris: LGDJ, 1997. p. 154. Tetnps et droit. Le droit a-t- il pour vocat íon de durer? Sous la directíon de F. Ost et
98 BASTID, P. Vld ée de Cç nstitution. Paris: Économica, 1985. p. 30. M. Van Hóecke. Bruxelles: Bruylant, 1998, p. 339.et seq. " ,
I
i

1 I
<
230 t
231
N
Capítulo 3 s . ' .
Promessa' Ligar o futuro .

Semelhantes mutações são observadas também no direito privado; tia da manuten ção do nível de proteção anterior dos direitos, em questão que
Pode-se dizer, a este respeito, que todo o trabalho da doutrina e da jurispru •
dência contemporâ neas consistiu em reinfroduzir um pouco de duração - e 1
- garante o mecanismo de standstill: como uma trata, que impede um mecanis-
mo de girar no sentido opostp, visa garantir uma espécie de direito adquirido
com ela um pouco de liberdade real- numa mecâ nica contratual que era sin- » '
legislativo. Um limite material é assim posto em poder do legislador de ab-ro-
gUlarmente desprovida disso. A.crescente atração pelo tema da boa-fé, que gar ou modificar, num sentido regressivo, uma regulamentação protetora de
desde entã o autoriza o juiz a operar um certo policiamento, tanto da negocia- uma liberdade ou penhor de um direito.105
ção, quanto da execução do contrato, é um signo entre outros.103 Negociar e j Assim, o artiga 13 do Pàcto Internacional da ONU, relativo aos direitos
. executar uma convetição .de boa-fé é, de fato, permitir ap tempo que realize , * económicos, sociais e culturais, atribui ao Estado a obrigação de garantir pro-
r ' sua obra: no cômputo final, ele permite ao consentimento que amadureça ná
^ gressivamente a gratuidade do ensino secundário e superior. Se os detalhes não
serenidade (assim como agora os prazos de reflexão que precedem, obrigato- 1 podem, serii dúvida, coagir de imediato o Estado a realizar as condições desta
riamente, a conclusão das vendas a prestações), e, como aval, elé autoriza a to- :r'> gratuidade, pelo menos podem, devido ao mecanismo de standstill, oporem-se
- mada em cònsideração de uma mudança importante de circunstâncias, em .
vista de um ajuste eventual das obrigações subscritas.
a que os poderes públicos, modificando a legislação anterior, tomem medidas
regressivas que se traduzam em um encarecimento do custo dos estudos. Na
Até a mutabilidade das leis e do regulamento, que evocávamos mais ,
falta, em nossos Estados-providência em crise, de poder ainda .esperar um
acima, não ficou de vez em quando sem passar por.temperamentos e limita-
aprofundamento das proteções sociais, este tipoide limite garante pelo menos
ções. Se ele estiver preocupado com uma aplicação imediata das novas lfeis, o j uma consolidação das aquisições sociais em seu nível de proteçã o atual.106
,

legislador sabe, de fato, às vezes, administrar transições para garantir as trans 1


forniações suavemente e, sobretudo, proteger os jurisdicionados mais frágeis , *'
- Quanto à “lej da mudança” em direito administrativo, ela deve compor
^ atualmente com diferentes princípios jurídicos inspirados pela preocupa ção
que poderiam achar uma determinada proteção sobre o império da lei antiga:
assim, em matéria familiar, a preocupação em proteger os menores e as mu- \
f

-
encontrada da segurança jurídica uma segurança jurídica que o Conselho de
Estado francês colocava no centro de seu Rapportpublic, de 1991 e que abran-
lheres casadas, por vezes, acarretou a sobrevida provisória da lei antiga, em seu \ ge atualmente o conjunto do direito público, por instigação,' notadamente, dos
benefício.104 *
dois Tribtinais europeus,107 Assim', o princípio dito da “confiança legítima”
-
Um novo mecanismo dito iCstandstilF ou “efeito de trava” - opera no 4 vem limitar o poder de ab-rogação e de modificação dos regulamentos, tanto
mesmo sentido: muito típico de uma época devotada à desregulamentação, 1
é verdade que as mudan ças mais frequentes são de natureza a minar a confian-
J
esta técnica tem como efeito extrair de uma norma superior (constitucional'
ou internacional), não necessariamente por si mesma aplicável ‘diretamente, 1
^

um princípio de interpretação que aplicado a normas inferiores, diretamente A . ^ ça dos cidadãos; quanto aos atos administrativos individuais criadores de'di-
, rçito, o respeito aos direitos adquiridos, em princípio, coloca barreira à sua re-
tirada. E mesmo os atos administrativos individuais e regulares, cuja precarie-
%
aplicáveis por sua vez ( uma lei nacional, por exemplo), opõe-se a' qualquer i
modificação destas, em forma dé regressão. Dito de outro modo, é uma garan- A
.
105 YANNAKOPOULOS, C La Notion de âroits acquis en droit administratif français .
..
Paris: LGDJ, 1997 p 40 etseq., assim como a doutfina da jurisprudência citada .
103 HAUSER, J. Temps et liberté dans la théorie générále de Tacte juridique. In: Reli- . ,
106 ERGEC, R. Introduction générále In: Les Droits économiques sociaux et culturels
.
gion, sociêté et politique Mélanges en homnmge à Jacques Lllul Paris: PUF, 1983 . . .
dans la Constitution Sousla direction de R Ergec. Bruxelles; Bruylant, 1995. p. 15,
- .
p. 507 510 \ assim como a jurisprudência citada. „
104 DEKEUWER DEFÓSSEZ, F. Les Dispositions transitoires dans la législation civile
- 107 PACTEAU , B .Là sécurité juridique, un principe qui nous manque? AJDA, p. 151 y
J
contemporaine. Paris: LGDJ, 1977 p. 234. 20 juin 1995 .
s
^
232 233
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« X Capitulo 3
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Promessa Ligar o futuro . <
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dade déyeria ser radical, acabam por se beneficiar com a consolidação tempo-
>
- %
1
ção.completa do direito a partir desta categoria Ora e eis que nos interessa
diretaménte - Hauriou é, sem dúvida, igualmente, o jurista francófono do sé-
f

1

ral: uma vez esgotado o prazo de recurso que permite atacá-los diante das ju-
risdições administrativas, não podem mais, em princípio, ser retirados; o tem -
po desempenha, aqui, unvpapel de estabilização ou cristalização da situação
^\ culo 2Q que mais esteve díretamente preocupado com a temporalidade: “se o
direito não utilizasse o tempo, escrevia, se se reduzisse a atos instantâneos,
irregular 08
'
.
nada seria” 110 Precisamente, a instituição é a seu ver o mecanismo que permi-
^
i
i
>

• te inscrever o direito na duração - uma duração evolutiva, entretanto, que in-


- O mérito destes diferentes temperamentos, cujo alcance não deve, con
tudò, ser exagerado, não reside no efeito retardado que pòderiam imprimir, à
- *
.
cessantemente engendra o novo A convergência com o pensamento bergso* -
maneira de con\bates à retaguarda, ao encontro de um movimento de trans- ^'• .
niano é evidente: as duas obras são desenvolvidas paralelamente e, desde 1910,
, formação do direito, que seriarem definitivo, inevitável e irrepressível. Seu ^ J Hauriou' reconhecerá a profunda semelhança de ponto de vista entre suas
mérito consiste, antes, em sinalizar na direção de uma concepção mais refleti-
‘ análises jurídicas e as teses
defendidas pelo filósofo, três anos antes, na Êvolu-
da jda instituição jurídicâ e da instituição do social pelo direito. À sucessão tion créatice m . i

\ aleatória de instantâneos jurídicos,.ou à sua ‘articulação puramente formal e De fato, será sempre o càso, para Hauriou de equilibrar duas idéias vir-
^
tualmente antagôniçasr a estabilidade e a mudança, ambas nécessárias à har-
processual, eles pretendem substituir a formulação e o início refletido de um yj
processo da sociedade, inscrito na duração.109 Isto abre caminho para uma re-/ J
^
r
( .
monia social XJm ambiente exageradamente instável desencoraja os çmpreen -
flexão mais aprofundada sobre a relação entre instituição e tempo futuro da «
dimentos e paràlisa as liberdades: as previsões são incessantemente frustradas,
1

promessa.

.
os impulsos paralizados Certamente, “o Estado não é somente a ordem no es-
paço, é igualmente a ordem na tempo”;112 quanto ao direito, se for verdade ,que
á

t <

um4 de suas funções é garantir a segurança jurídica, e preciso, então, comple-


4

tlJ

tar sua definição clássica como “arkboni et dequi”, apresentando-a também


*

A INSTITUIÇÃO: O FUTURO DOMINADO ' ' ' 1

r , como “ars stabilis et securi” 113 Mas estabilidade não significa estatismo; deve-
I
"
BERGSON, HAURíOU E A DURAçãO CRIATIVA "
4

se entendê-1a antes como evolução contínua, transformação dominada O


'
.
9

«
4 %
> <! pensamento jurídico deve, então, dar lugar à mudança: com a duração orga-
E um paradoxo, se bem que central na vida júrídica: á noção de insli -^ nizadora ela deve combinar o instante detentor de iniciativa e gerador de mo-
tuição raramerite foiestudada por ela mesma. Nçstaconstatação', uma exceção vimento. A liberdade desta vez tem o seguinte preço: se a instituição é neces -
notável,, entretanto: a obra de Maurice Hauriou, que propõe uma reconstru , ) - sária, ela não pode cristalizar-se sem frear a autonomia: “é preciso sair, escre-
i
ve ele, da maquinaria das instituições sociais que, ao longo do tempo, sufocam
108 LEWÁLLE, P. Légalité, sécurité, stabilité en droit administratif. Un équllibre introu-
4-
*
i t

V
* >
.
Vable? In: Líber amicorum Yvoti Hannequart et Rdger Rasir. Bruxelles: Kluwer,- 1997. < 110 HAURIOU, M. Aux spurces dti droit. Touloúse: Cehtre de philosophie politique et
|

p. 239. , < V; juridique, 1986. p. 189. (reed.) 4


*

109 Comò o deixaVa entender C. PÉRELMAISf (Ce quuneréflexion surle droitpeutap- 111 HAURIOU, M. Précis de droit constitutionnel 1. ed. Paris: Sirey 1910. p. 14. V

porter au philosophe. Archives dephilosophie du droit> p. 42, 1962), é entre o calculá- I *


112 HAURIOU, M. Pré cis de droit constitutionnel 2. ed. Paris: Sireyf 1929. p. 76. (
vel e o político que é preciso tòmar o jurídico:o “calculável”, que ao conduzir o direi-
^

113 HAURIOU, M. Précis de droit constitutionnel . 1 . ed. Paris: Sirey, 1910. p. 61; cf.
to á deduções perfeitamente previsíveis, crê poder encadear o tempo, e o “político”
igualmente HEBRAUD, P. La notion de temps dans Toeuvre du doyen Maurice
«
que, dissolvendo o direito em uma sucessão de decisões imprevisíveis, retira do tem
po qualquer consistência. Entre estes modelos rícionalista e resolucionista, é de uma Jt
- Hauriou. In: La Pensée du doyen Maurice Hauriou et son influence. Paris: Pedone,
1969, p. 179 et seq.
racionalidade prudencial e de uma temporalidade dialética que o direito.realça. /

t
> 1

4
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234 i
II
V r
Capítulo 3
* Promessa. Ligar o futuro. *

/
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V
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. <
direito privado, quanto no direito público. O próprio Hauriou resumia sua
t

...
[ ], Onde iria sê refugiar a autonomia do indivíduo ,e, principalmente, por
^
qual abertura poderia atuar sobre o, mundo ?”114 *•
teoria da instituição nestes termos: “as grandes linhas desta nova teoria são as
Observado deste â ngulo, o tempo jurídico é “virtualidade”; isto é, um seguintes: uma instituição é uma idéia de obra ou eihpresa que se realiza e
poder ainda não atualizado e, contudo,\)í possível que opere pela representa- dura juridicamente num ambiente social; para a realização desta idéia, um po-
^ der se organiza à procura de órgãos, e de outro lado,.entre os membros do J
. 1
ção que nós fazemos dele e a projeção^ que nelé fazemos; cpmouma alavanca t
— -
9 W

. grupo social, interessados ria realização desta idéia, nele sé produzem manifes
transformadora do presente Como $e o porvir um pçrvir desejável e mobi ! - tações de comunhão dirigidas pêlos órgãos do poder e regrados através de
- -
*

lizador trabalhasse a própria matéria do presente, nela inscrevendo vias de i

* *

possíveis ações* Mesmo que Hauriou não utilize esse vocabulário, fica claro processos**116 • % 1
“ «

Então, o processo de institucionalização opera-se em três etapas: no


que ele assim reformula, a seu modo, a dialética do instituinte e do instituído . 1

início se extrai uma “idéia de obra ou de ,empresa”- uma antecipação do pla-


É preciso insistir nisso: estudar o direito como instituição não é, então, -\ no de organização da instituição em pçojeto. É o momento em que, com o
4

-
unicamente interessar se pelos estados de equilíbrio do sistema é também le f
^ - concursb. das forças sociais retentoras do projeto, uma virtualidade, uma for-
var em consideração as turbulências, as descontinuidades, os estados de tran - 4 *i
ma de potência toma corpo progressivamente em um ambiente determinado.
.
sição O tempo que se faz valer nessa perspectiva.é aquele que denominamos
Uma vez precisada a idéia e realizada^ a previsão, surgem ótgãos destinados ao
' “tempo da metamorfose”, ou rnudança gradual de um organismo cuja identir 1
governo da organização; uma Constituição rege sua marcha assim como os
dade permanece, contudo, inalterada. E próprio do organi$mo^vivo, explica
Hauriou, manter-se em seu ser, mesmo quando sua substância se renove in- s
- equilíbrios a se instaurarem entre eles. Enfim, a instituição tende a implantar- -
se em profundidade no corpo social: beneficiando-se da adesão renovada de
' .
céssantemênte Do m esmo-modo os sistemas sociais: na condição de.serem or 1 - seus membros fundadores e do agrupamento de novos aderentes ela se esta-
gatiizados, poderão atravessar os séculos apesar da mudança contínua de seus J /

belece duradouramente, não sem deixar de setransformar.117


'
*

membros e dos contextos nos quais operam.115 y\

Em sua origem, portanto, a idéia de obra é ápenas um possível, entre ou-


\
•\
tros; ela projeta um certo agenciamento de papéis sociais portadores de expec -
tativas convergentes e reveladoras de valores identitários. Uma vez atualizado
*

AS TRÊS ETAPAS DA INCONSTITUCrONALIZAÇÃO ‘ 4

este virtual - como se fosse o caso, para a forma “sociedade anónima” no direi-
*
% \
to com ércial ou “Estado” em direito público, é este ao final de um processo ha-
/
:
\ * » V
Vejamos: é o conceito de instituição que realiza a tradição jurídica des- '
v bitual, geralmente bastante longo, instaura-se uma continuidade jurídica que
ta filosofia do tempo social. A instituição que enriquece o modelo jurídico ' ] '
t passa pelo momento objetivo da “incorporação” (quando um poder suscetível
moderno articulado em torno dos pólos, da vontade, do indivíduo e do ins t
tante, pela consideração dos pólos complementares do estatuto, do coletivo e ,
- de produzir as regras de organização posterior do grupo se institui), e o momen-
to subjetivo da “personificação” (quando “o cidadão” ou “o acionário” dá teste-
/

da duração. Mesmo qub as formulações de Maurice Hauriou sejam irequen j - munho de sua confiança renovada na instituição à qual adere):A continuidade
temente leves e, ás vezes, tintadas pór Um vitalisnio e um idealismo atualmen- . subjetiva da adesão vem assim reforçar a continuidade objetiva da idéia instituí-
te ultrapassados, é preciso reconhecer que lançou, assim, as bases da rigorosa v
.
da hfião é preciso, portanto, enganar-se com isso: por si só, as manifestações de 1
/

teoria da instituição cujas aplicações são inú meras, como veremos, tanto no t

«>
9
^
.

*
.
116 HAURIOU, M. La théorie de finstitution et de la fondation LU cité moderne et les
. -
%

114 HAURIOU, M Précis de droit constitutionnel^


.
*

1 ed. Paris: Sirey, 1910 p 176. .. . .


transfornations du droit. Les Cahiers de la nouveí le journée,Paris, n 4, p 10* 1925 .
.
115 HAURIOU, M. Précis de droit constitutionnel 2 ed* Paris: Sirey,,1929 p. 71 . . . .
117 HAURIOU, M Précis de droit constitutionnel ?. ed Paris": Sirey, 1929. p. 73 .
%
*
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. 236 i
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237 .
Capítulo 3
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. .
Pfomessa Ligar o f\ituto p

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*
vontades individuais não bastam' para garahtír a. “solda dura” entre o passado, ' ' * presa” enquadra a expressão das Vontades individuais. E Hauritfu se utiliza da
*

presente e futuro; encarados sob sua face voluntária - unicamente como “poder * metáfora bqtânica, os fundadorés poderiam ser comparados aos plantadores: ,
*

, 'de vontade” (a
Willensmacht da doutrina alemã) -, elas se refeririam a veleida- “eles confiam ao ambiente social uma idéia viva que, uma vez enraizada, aí se
des esporádicas e descontínuas: consultas eleitorais, reuniões públicas, votações t .
desenvolve por si mesma” 120 Na sequência, o efeito unificador da idéia irá vçr-se
i \ i desta ou daquela lei. Para produzir a duração procurada, elas devem inscrever- J mais reforçado pela ação própria dos poderes estabelecidos (a assembléia geral '
Se no que Hauriou denomina uma “ trajetória”: a trajetória dá idéia diretiva que de uma associação, por exemplo, cujas resoluçõesse impõem ao término das vo-
reata entre elas as diferentes fases do desenvolvimento considerado. Sem dúvi - • tações majoritárias e não necessariamente unânimes), assim como pelos proces-
,
sos em vigor, cujo efeito é encadear no tempo as fases descontínuas da ação.
> »

da, esta »idéia diretiva deixa-se raramente apreendçr positivamente e em toda sua *

*
Assim, pois, para a instituição o homem foi dotado dè um instrumento
NU

plenitude; geralmente as regras de direito só desenham o, contorno no vazio ou M


.
em negativo, fixando parâmetros e limites Entretanto, determinados princípios tJ ' jurídico que decuplica a eficácia de suà ação sobre o curso das coisas: efeitoí de
/• jurídicos superiores como os que figuram nas Declarações dos direitos funda- j direito são produzidos muito além da esfera contratual é dos limites do instan-
mentais, por exemplo, oferecem uma imagem bastante exata 118 . te presente. Como se, através desta figura, a totalidade do porvir fosse mobili-
*
t
zada a serviço de um objetivo aberto à ratificação dos terceiros e dos sucesso-
*
*
*

1 .
res Melhor áinda que o contrato, a Instituição garante a empresa do homem
OS FUNDADORES E OS PLANTADORES
i
sobre o tempo, ampliando seu horizonte e Inscrevendo nele uma trajetória que
outros doravante poderão tomar de empréstimo. Mas se ela sabe utilizar o flu-
f

t
l
* *

A operação de fundação, que dá nascimento à instituição, não deixa, . xo do devir, a instituição nem por isso não o cristaliza; sabemos bem que, se
contudo, de ser paradòxal: como explicar, de fato, que vontades individuais nãcrfor ihcessantemente revivificada ela seria tomada pela usura e pela inércia.
mesmo convergentes, possam engendrar um cqrpo social? Como explicar, ain- ' Igualmente, a revisã o periódica de suas regras e processos, longe de ser analisa-
da comO um fracasso de suas previsões, é a^garantia de sua continuidade.
i

dá, que os efeitos de direito assim produzidos sobrevivam de muito aos funda- *
V

- ^ $

*
dores? Não haverá, aqui, “desproporção entre a causa e o efeito”? Tudo se passa, *
-
^
V
s
de fato, como se “os fundadores primitivos tivessem feito mais do que po /

V
.
diam” 119 Hauriou, ao colocar tais questões, aborda de frente o enigma que per - UMA IDéIA QUE TEM FUTURO *
*

- '
corre todo este capítulo: como engajar o futuro? Como conceber que se possa V
atá-lo através de normas? Exomo nós já o fizemos muitas vezes, ei-lo conduzi- /
/
1

Contemporâneo de Hauriou, um autor italiano, Santi Romano, foi o au-


\

do a notar a “mais-valia temporal” que procura a subscrição para .uma promes- /J


(
tor de uma teoria do direito que daria à Instituição um lugar ainda mais central.
sa, a adesão a uma representação que compromete Sem este suplemento de . Sua obra principal, datada de 1918 e traduzida para o francês sob o título VOr -
* confiança e de àntecipação não compreenderíamos, de fato, que, por um sim- . drejuridiqueym realiza, de fato, uma identificação completa entre direito (ordem
jurídica) e instituição: a instituição é necessariamente uma ordem jurídica, e o

*

pies mecanismo contratual, seja instituído um quadro jurídico duradouro que í


*

.
' empenhará amanhã os novbs aderentes O estatutário” vem, assim, estabilizar i
“ ‘ -
direito só existe sob a forma da instituição instituição de formas m últiplas, de
resto, e não somente estatal: deste ponto de vi$ta, Santi Romano surge também
.oImpulso •contratual inicial, do mesmo modo que “a idéia de obra ou de em * - i t
N
/

120 HAURIOU, M. La théor íe de Pinstitution et de la fondation. La cité moderne et les \

» " w
> . .
118 HAURIOU, M La théorie de Pinstitution et de la fondation La cité moderne et les *
\
I
.
transfomations du droit Les Cahiers de ía tiouvelle journée, Paris, n 4, p 37, 1925 . . .
. . -
transfomations du droit Les Cahiers de la nouveltejournée, Paris, n 4, p 30 33,1925 . t
. . . .. .
p

. .
119 Ibid ; p 37, 1925, 121 ROMANO, S VOrdfe juridique Traduit par L François et P. Gothot 2 ed Paris:
*
*
*
Dalloz, 1975. V

* V

* %
238 239
/

Capítuto 3 Prottiessa. Ligar o futuro.


\

» .
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.
como um dos primeiros teóricos do pluralismo jurídico A regrai a sanção não titucionalj surge como um centro autónomo de decisão, capaz de organizar
* » "**

são, assim, nem específicas do direito, nem sua manifestação originária: existem, - •seu meio ambiente pela produção de regras c[ue lhe sã o próprias Perseguindo

finalidades específicas e surgindo, nos melhores dos casos, como uma comu-
.
de fato, ordens jurídicas desprovidas de normas escritas e nas quais prevalecem \
formas indiretas e difusas de sanção.122 Antes, de ser norma e sanção, o direito é ‘ nidade no seio da qual coabitam capital e trabalho, a empresa apreseilta per-
*

organização, estrutura: instituição. Através do que ele visa uma “consciência so - feitamente a existência autônçma de uma instituição.127 Importada da Alema- .
cial objetiva”, um conjunto de relações de força e de autoridade que criam, apli - .
nha para a França por P Durand, esta concepção institucional da empresa
cam, modificam, fafcem respeitar as formas em vigor.1*3 u
i

exerceu uma profunda influência na legislação e na jurisprudência -Asem por


isso deixar de sofrer os assaltos da teoria contratualista;128 na realidade, é num
-
-
Esta teoria institucional, além dó fato já indicado de apoiar se numa lei - r ^
misto de contrato e de estatuto que irá desenvolver-se a empresa moderna.129
tura pluralista dos fenômenos jurídicos, tirando ao Estado seu monopólio de
produção do direito, engendra duas outras consequências teóricas importantes, v. s Assim , uma vez mais, parece que é sómente sobre o fundo da instituição que
Por um lado, ela oferece aos indivíduos um instrumento que “ultrapassa sua bre- a figura contratual pode se desenvolver.
tf A instituiçã o continua sendo, então, uma figura central do jurídico; é,
ve existência’Yao criar ' entidades mais duradouras que eles”, a instituição permi - entretanto, ao jpreço de ,transformações importantes Sp for verdade que, no.
te “perpetuar seus desígnios*'em função de “fins permanentes”.124 Cqmo em Hauu dr
quadro de nossas sociedades pluralistas e pluriculturais, “aderimos doravante ,
ríou, a instituição surge, assim, como um meio por excelência para engajar du- ,
radouramente o futuro numa forma jurídica: ela é, escreverá ele, “uma unidade . < -
a uma multiplicidade irredutíveEde visões ,* 130 o trabalho de autodefiniçaõ de
sociedade não poderia interromper-se; instituições sempre retomam a tarefa
estável e permanente que não perde necessariamente sua.identidade depois dà ;
de produção de normas suscetíveis de^fornecer as marcas identitárias aos in -
* mutação ocorrida neste ou naquele de seus elementos; ela pode renovar-se sem
pre conservando intocada sua individualidade própria”.125 Por outro ládo, e é um
- divíduos. O Estado, principalmente, continua ainda a assumir esta função;
simplesmente, esta identidade não pode mais ser pensada como adquirida,
\

segundo benefício desta teoria institucional, ela permite que se fuja de uma pers í - nem. como monolítica - ela é o objeto de uma discussão permanente* “O que
*
pectiva estritamente contratualista, ,que só engendra “relações jurídicas” subjeti )* - i
dá a unidade’*, escreve, não sem paradoxo, Charles TaylorJ “é sobre isso que dis-
vás e passageiras entre duas ouyárias pessoas, mas sem chegara elevar-se à.per- , t .
vcordamos, é o centro da controvérsia
*
** 131
manência e à consistênda do direito objetivo. A família poderia, aqui, ser citada •£ . \

como exemplo de uma instituição que “estabelece prolongamentos além dos


9 conjuntos, pelo laço que Une seus membros presentes a seus membros passados /1 O ESTADO GOMO UMA FÉ NIX QUE NÃO .
f
e aos por vir* transformando-se, assim, em uma “unidade contínua**.126
— MORRE JAMAIS
i

A empresa é afora o Estado do qual'falaremos mais tarde - um outro , \


terreno de eleição da têoria * institucional. Longe de reduzir-se à propriedade V - De todas as instituições jurídicas suscetíveis de ligar o futuro, a máis im-
*

das partes sociais e a um feixe' de contratos, a empresa, nesta perspectiva ins -


^ ^- i portante foi, e continua sendo ainda, em larga medida, o Estado Sob a ,condi . -
.
122 ROMANO, S. VOrdre juridique Traduit par .L. François et P. Gothot. 2. ed. Paris:
/

*^ .
"
.
Dalloz, 1975 p. 14-15. ' ' .. .
127 ROBÉ, J -P Lordre juridique de Tentreprise Droits, p 163 et seq , 1997 . .

i23 Ibid., p. 19, 15. 128 SUPIOT;A. Critique ãu dròlt du travail. Paris: PUF, 1994 p 178 .. .
/
124 Ibíd., p. 31. • v
.
129 Ibid , p. 33, 179 et seq. •
*
<

125 Ibid., p. 28 . . .
130 TAYLOR, C Les iristitutions dans la vie nationale Esprit n. 3/4, p. 99, 1994.
^
126 Ibid., p. 48-51.
: i
° 131 Ibid . y
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240 24Í '


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*
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Capítuló 3
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1
Promessa, Ligara futuro . I
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4

manéncia infinita. Chocando-se com a doutrina oficial da Igreja, de inspiração * ,


* * *

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-
ção, contudo, de pensá lo como poder contínuo, e não somente como poder *
agostiniana, que se contentava em opor a eternidade do Criador ao tempoiiu-
soberano. A soberania serposiciona do lado da vontade e, assim, da capacidade ’ '
*

mano transitório e perecível, fazia-se valer uma outra eternidade; a de um


de se impor no momento; a continuidade institucional, ao contrário, pressu
7
-
põe a faculdade de durarialémdas mudanças de pessoas e através das variações ^ .
mundo infinitamênte duradouro Retrabalhada pela escolástica, esta eternida-
de, logo batizada aevutn, não, é, contudo, a transposição laicizada da eternida-
-
4

das relações de força. Muito cedo, parece, cavou se esta distinção entre o titu
- »
1

*
lar de poder, agindo híc et nunc no plano sincrònico, eia própria dignidadeque de Divina: enquanto esta última é atemporal, desprovida de passado, de pre-
representa este poder - um poder que'se desdobra tal como nele mesmo a sente e de futurò, o aevutn caracteriza Uma duração sem dúvida infinita, mas
eternidade O muda” sobre o eixo diacrônico. fista distinção, de uma excepcio feita de movimento e mudança, e, logo, dotada de um passado é de um futuro.
>
- • Bem depressa este aevtim , categoria intermediária entre eternidade Di-
*

nal fecundidade, mergulha suas raízes nos trabalhos dos canonistas e dos civi- w

listas da Idade' Média, eles meá mos inspirados pelas fontes romanas; ainda . vina e tempo humano, foi associado ao tempo dos anjos: criados como os ho-
1.
' mens, não são, entretanto, eternos como o próprio Deus? Logo, o aevutn seria
*

hojg, ela livra o princípio de um desdobramento tanto do sòberano quanto do


povo, e permite, assim, inscrever sua ação presente na perspectiva de um tem \
i
po mais longo: o das promessas que continuam a ter sentido^. É ao estudo des j
-
-
^ o tempo dos seres ideais, das idealidades, das abstrações Daí, logo seria dado
o passo que atribuiria esta espécie de eternidade em movimento às criaçõ es
.
jurídicas, elas também ideais A partir desté momento, Q universo político iria
.
ta questão simbolizada pela imagem da Fénix, ela própria ilustrativa dó tempo \
,

metamórfico que não paramos de cruzar, que será consagrado esta seção. •7
se povoar de Corpos angélicos, pequenos e grandes, dotados de um “corpo
O estudo de Ernst Kantorowicz, consagrado aos Dois Corpos do Rei, é, místico” destinado a transcender o caráter necessariamente transitório das
neste ponto;central? o mergulho què ele realiza na Idade Média ocidental mo-
<
i

vòrítades e das ações humanas. Precatemo-nos de ver nisso apenas delírio mís -
nárquica e cristã, enunciando de iodas as formas anualidade do Corpo Natu , .| J - tico e fábula irracional: com o aevutn e o corpo abstrato dos coletivos huma -
ral do Rei e de seu. corpo místico, que nele se encarna, sem reduzir-se a isso, £ nos, o pensamento jurídico acabava de. dotar-se de um instrumento suscetível
»

esclarece de forma decisiva a origem dó conceito moderno de Estado. No de de unir duradouramente o laço social.
.
4
- ~
Mas a origem da idéia é explicada, também, e de início, por necessida-
• 3

correr desta longa história impõe-se progressivamente a idéia, abstrata, mas ^


y

. oh!; tão eficaz, de um corpo político invisível, formado pela reunião do povo des práticas: a ficção de uma continuidade quase infinita das instituições, a do
e do Reir cuja realidade e legitimidade logo prevalecem sobre as que se ligam reinado principalmente, era exigida pelas necessidades de sobrevivência da
ao corpo í f sico do monarca.1?2 *
)

.
própria instituição Como, por exemplo, garantir ao reino entradas financei-
ras regulares? Chegado um tempo em que não se conformariam mais com as
*
\
-
í
imposições ligadas a um acontecimento cada vez singular, como a guerra ou a «

ENTRE TEMPO E ETERNIDADE , ò AEVUM 4

*
dotação da filha do Rçi, impõe-se, então, a ficção de uma perpetua necessitas: ,

*
com o fisco, nascia a idéia da continuidade do Estado e dos serviços públicos
--
4

A origem da idéia parece ser simultaneamente teórica e prática. No pia ' como , por outf o lado, opor-se às tramoias do próprio Rei, que poderia ser ten-
' . no teórico o elementodecisivo é a redestoberta por yolta do século 12 e por in A tado a alienar porções do domínio público, assim como Ricardo II, acusado
’ * term édio dos filósofos á rabes, entre os quais Averrpis, da teoria aristotélica da j de “crimes contra a Coroa”, de deserdar o próprio reino? Para responder a esta
amea ça, ò conceito de “Coroa’’ era elaborado progressivamente distinto da
n ã o-criação do Universo? não criado, o mundo desfrutaria, então, de uma per
* >
- /
1 JT

.- .
*

133 KANTOROWICZ, E. Les Deux Corps ãu fiou Traduit par J P Genet et N Genet. Pa . -
t
„ .
ris: Gallimard, 1989. (Pédition anglaíse date de 1957). *
-
132• KANTOROWICZ, E Les Deux Corps dwRoL Traduit par J. P. Genet et ISf. Genet. Pa
- n

<
é, ris: Gállimard, 1989 p 209
i
.. . »

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* I
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242 243
Capítulo 3
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ProtnàssíL Ligar o futuro .
*
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* \ >
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/
*

pessoa do Rçi que a usava. Principalmente, como regrar ò delicado proble v auto-regeneração pfef ínanente e renovação sucessiva de seus membros, a ins-
\

134 “
- *

tituição. podia pretender ser, ao mesmo tempo, a mesma e outra. Como se o


* ma dos interregnos, evitar que o reino mergulhasse na guerra civil entre a \
-
*
^
< morte do Réi e a entronização de seu sucessor? Forjando progressivamente o 2 mecanismo da transmissão lançasse uma ponte sobre as descontinuidades po / '
princípio de continuidade dinástica a uma coisa insignificante, a cerimonia da ' \ líticas e as rupturas biológicas . *

sagra çaó. Seria por direito de nascimento inerente, por transmissão de linha Conhece-se o ponto de chegada mais célebre desta doutrina: a imagem 1
,
- \ dos “dois corpos do Rei” elaborada pelos: juristas ingleses na épocados Tudor,
gein do sangue real, e sem que nenhujna cerimonia fosse necessária, que a dig-* 1
4
.
nidade real seria transmitida 135^ Importava, de fato, acima de tudo, que a inter - e o adágio célebre na Erança do século 16 segundo o qual “o Rei nunca mor-
re” Em uma só pessoa o Rei concentrava duas qualidades: o ser carnal, pode- ,
rupção da continuidade do poder, fosse a mais breve possível, que não depen- *

' desse absolutamente de um ato jurídico, de uma voqtade política, ou de uma roso hoje mas destinado à morte próxima, e o titular abstrato de uma digni-
cerimonia litúrgiça, todas estas coisas submissas às áleas dá conjuntura. \ dade, que lhe sobreviveria. O modelo mitológico da Fénix foi, aqui, natural-
r
X Â conjunção destas construções'práticas ( a continuidade dinástica, av. # mente imposto aos comentàristas, para dar conta de uma qualidade igual-
l
» (
Coroa, a perpetua necessitas do fisco ) e da elaboração filosófica do aevum } eter- ' 3
# LM
mente assombrosa: como o Rei, a Fénix é simultaneamente mortal e imortal;
nidade movediça dos corpos místicos, permite lógo, que se chegue a uma idéia % como o Rei, ela concentra em sua pessoa o Indivíduo e a espééie. Único indi-
víduo de sua espécie, a ave fabulosa tinha, de fato, esta particularidade de auto
de síntese: a de “coletivos que não mordem”. A Igreja, de resto, precedera o di
reito neste terreno: uEclesiae numquam moritur” pregava se. E o modelo era i -
- I

geração: chegada ao fim de seus dias, punha fogo em seu ninho, atiçando a fo-
gueira com suas asas abertas e depois logo renascia, das cinzas do braseiro.
romano: não se dizia igualmente do povo romano, que ele nunca morria?'Bal- -^ Baldo e seus sucessores não deixarão de explorar esta imagem:137 assim era o
*<
do, o glosador do século 14, não encontrou dificuldade em transpor este en
sinamento do Império ao reino: “A totalidade ou a comunidade política do ' ~ j
j - significado simultâneo, tanto à vitória da morte quantç a vitória sobre a mor-
reino não morre, porque uma comunidade política continua a existir, mesmo te. Justamente a mensagem necessária' para o estabelecimento de instituições ^
quando os reis forem levados”.136 ^ jurídicas suscetíveis de ligar o futuro, tomando a exata medida do tributo a
V
pagar, ao tempo que passa e que muda.
* »
«
\
3
Nossa teSe é que os teóricos modernos da instituiçã o e do Estado só fi-
I

OS DOIS CORPOS DO REI zeram reformular, e frequentemente num desconhecimento profundo destas
c
s n construçõès medievais, o que já estava expresso com uma perfeita clareza na
doutrina dos “coletivos que nunca morrem”. Em seu monumental Traité de v
'
Opénsà mento teológico político da Idade Média chegara, assim, à ela-
boração das idéias de universitas, oq coletividade política fictícia, distinta de Science politique,Burdeau pareceTpor exemplo, redescobrír com a institucio-
, J nalização do poder no’Estado o fato de < ue “o poder está dissociado dos indi-

seus membros empíricos, e dedignitas ou prerrogativa abstrata do poder se-
parado de sçus titulares concretos,, cujo tempo não era mais aquele, transitó
rio, da vida e da vontade' humanas, mas aquele virtualmente perpétuo da ins-
*
-
^ ’
^
víduos que assupiem transitoriamente a tarefa, para ser atribuído a uma enti-
dade permanente, o Estado”.138 Desde que os homens perceberam que o poder v
.
tituição Perpetuidade mutante cujo princípio, contudo, era o da sucessão: por não era explicado, pelas qualidades naturais do chefe que o eXercia, e nem se
*

*
reduzia a isso, eles procuraram, explica Burdeau, uma explica çã o, de início dõ
r t
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*
134 KANTOROWIOZ', E. Les Deux Corps du Ra /. Traduit parJ.-Pt Genet et N. Genet. Pa- n

ris: Gallimard; 1989.259, 266. * v


ris: Gaílimard, 1989. p. 279 et Seq.
-
137 KANTOROWICZ, E. Les Deux Corps du Rol Traduit par J. P. Genet et N. Genet. Pa-
*1
' 135 lbíd„ p. 230-243. x V
V

I 136 Ibid., p. 212-218.


* 4
138 BURDEAU, G. Traité de science politique. 3. edt Paris: LGDJ, 1980.1. 1, p. 227. <
* >
1

244 245
Capítulo 3 r; t
Promessa;ligar o futuro. V

* *
(, '
* J*
/N »

como sínibolo de uma função. Cabe aos teóricos modernos da política pros-»
1

lado da unção divina de que se beneficiava ó chefe (faraó egípcio, basileus bi - 11

* «• v zantino) e depois do lado da instituição abstrata que lhes sustentaya os atos 1


^
X

. .
seguir o mesmo trabalho no plano, desta vez, do corpo do poder, pois opovo,
no regime constitucional, é ele também, por sua vez, dissòciado. De fato, se,
O Estado moderno sériá, sempre de acordo,com Burdeau, a racionalização
como o Rei, a República ou o Estado ou o povo não morrem, é justamente
v
desta crença.139 Ao final desta evolução, o poder (aqui estatal) é progressiva - .
' , mente libertado de sua ligação subjetiva dos governantes, ao passo que seu \ . porque nele se deixam distinguir duas instâncias: a maioria que hoje quer, fala
e vòta, e o povo transtemporal que constitui sua ideia reguladora. Esta idéia,
princípio parecia, agora, derivar de uma esfera ao mesmo tempo mais perma -
nente e menos empírica . 4
i
que pode parecer perfeitamente especulativa, poderia, ao contrário, estar na
origem de um real aprofundamento do projeto democrático. Sãcf as teses de
t Esta inscrição numa “outra cena” é preciso sublinhá4o claramente, não l * • » «• **

, Dominique Rousseau relativas à “democracia contínua”, e de Màrcell Gauchet


deriva (mesmo se esta eventualidade não pode ser descartada) dos artif ícios > :4
relativas ao “povo perpétuo” (ou “transcendente, ou autenticamente consti-
de uma ideologia enganadora, pela qual um grupo garantia a si um domínio jj - tuinte”) que queríamos evocar neste caminho .
duradouro sobre um povo explorado; ela parece, ao contrário, a condição sine %
>
*

A.democracia é o regime qUe se baseia na manutenção renòvada do


-
qua tion permitindo à instituição aqui, o Estado cumprir seu papel, que' 1 - .
povo Mas, desde Sieyès e a Revolução Francesa, uma tensão não deixou de
^
consiste em atribuir à sociedade o domínio desfmesma. Burdeau tem razão - ‘i *
' * çpor. este ideal democrático à realidade do regime representativo que pressú-
ao sublinhá-ló: é preciso que “a votação de umatlei não lhes pareça [aos indi ^ -
w

põe ser o direito de palavra delegado pelo povo aos representantes, salvo nó
X
víduos] somente como um processo, mas signifique a seus olhos um compro < - decorrer do breve instante das Consultas eleitorais. Sieyès não proclamara que
metimçnto tomado em nome deles; é preciso que eles associem as manifesta-
ções exteriores do poder à idéia de- uni projeto"coléth)o que o grupo formula . *
,
“o povo só pode falar, agir, através de seus representantes”?141 E a lei Le Cha -
pelier, de 4 de junho de 1791, que suprimia as corporações, não proibira aos
para dominar seu destino”.140 , \ associados “tomarrespluções ou deliberações sobre seus pretensos interesses
Eis-nos conduzidos a partir da fábula da “Fénix que não morre”, a uma :
,
-
I

comuns”? Sabe-se que a distância assim cavada, entre vontade dos representa
,
concepção muito mais rica dâ instituição estatal: sua inscrição ha duração
^
transformadora do aevtftn não sem mais, apenas, como há pouco, para resol-
-i dos e palavra dos representantes (liberados de qualquer mandado interativo )
acaba por engendrar a crise atual da representação e a peida de confiança nas
ver problemas práticos de sucessão ou de imposição; ela abre o caminho para a l instituições. É que uma outra concepção da democracia nãò pá ra de insistir,
v

compreensão da parte decisiva assumida pelo Estado na constituição do làço so- j aquela que Alain definia nestes termps: “o que define a democracia não está na
ciai. Mas, para compreendê-lo, é preciso mostrar çomo a dissociação operada
i

origem dos poderes, é o controle contínuo e eficaz que os governados exercem



caracteriza agora o próprio povo no. quadro de Estados tornados democráticos. ‘ sobre os governantes**142 Durkheím, por sua vez, evocava “uma comunicação
4
b

K
4

*
*
ininterrupta entre os representantes e os cidadãos” 143 .
Inúmeros mecanismos vêm atualmente dar corpo a estas idéias de
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E DEMOCRACIA CONTíNUA
»

* v V
*
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*
;
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“controle continuo” e de “comunicação ininterrupta”. Avalizando estalei, cita
remos as sondagens de opinião, o papel das mídias e a censura dos cursos ^
-
*
Os teóricos medievais do poder obraram, vimos, em pensar a dissocia-
<
[5 4

. çã na chefia, do poder: assim, distinguíramos o Rei como indivíduo do Rei


o 1
. - .
141 Apud ROUSSEAU, D De la démocratie continue In: La Dé jtiocmtie continue Sous . *

4 . .
la direction de D ’Rousseau Paris: LGDJ; Bruxelles: Bruylant, 1995 p 8
1

...
139 BURDEAU, G. Traité ãe'Sciencepolitique . 3. ed. Paris:1GDJ, 1980.1.1, p. 228-229. r . . -
142 Ibid , p 15 16. *
«
V

140 Ibid., p. 179. , / , . .


143 Ibid. p 25 X
*
< . (
*
*

246
\

I
247 .

*

\ Capitulo 3
*
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Promessa* Ligar p futuro,
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I ' * \ i
* »
(
*

constitucionais. Realizadas um n ú mero indefinido de vezes entre as consultas i ' a anulação de lei, motivados por'interesses egoístas, mais que por preocupa-
* * *
eleitorais, as pesquisas oferecem à opinião uma representação permanente de <
p *

-
j
ção com princípios, são alguns índices entre outros da realidade deste risco .^
V

-
si mesma uma representação direta e mutante, adaptada às mudanças cons •
tantes de circunstâ ncia.144 Quanto às mídias, elas podem pretender rivalizar
- !]
Sepi dúvida, e ao contrá rio* poderíamos entender, com justiça, que es-
tes mecanismos representam também uma oportunidade de aprofundar o
-'
i
-
com os representantes eleitos no papel da expressão das necessidades e dos 1
i
projeto democrá tico: ampliando o acesso à produção legislativa generaliza-se
1

sentimentos do po o/ no quotidiano. Os cursos constitucipnais, enfim, erigi- ! um princípio deliberativo e torna-se menos fictícia a imagem da “vontade ge-
>
^
dos como intérpretes autorizados da Constituição e em censores do» legislador, *j • ral”; ao permitir a uma minoria, até mesmo a um só indivíduo, solicitar a cen-

-
surgem doravante* a título de co constituinte, como o porta voz mais.emi- - *
sura da lei, damos uma oportunidade suplementar para melhorar seu texto e
nenfe dos direitos fundamentais e da vontade transitória do povo. Nos três ca «
sos, como se vê, a representaçã o parlamentar perdeu seu monopólio de orái
*
- ^ torná-la mais conforme aos princípios de base (o que denominamos “promes-
sas” ) pelas quais clamamos. Poderemos dizer, então, que além dos sobressal-
-
culos da vontade popular; exprimindo se por via de sondagens, de m ídias e de
*

tos que podem representar as áleas das maiorias políticas de circunstância e


^

recursos diante dos Tribunais constitucionais, o povo saiu de seu mutismo e dos instantâneos mais ou menos aleatórios que formam as votações parla-
%

assume doravante o tempo contínuq de uma democracia no dia-a-dia. ; ^ S


mentares desta ou daquela lei, tais mecanismos de participação e de controle
*
De resto, é também à montante da lei que sua função é exercida Hoje oferecem à democracia uma chance de continuidade e uma adaptação graduai
.
de seus valores Deixando de ser confinada ao instante pontual das eleições, a
-^
não é mais verdade que o “Parlamento faz a lei”; esta prerrogativa precisa se i *

*
dividir com os ihúiheros “empresários legislativos” que puderam fazer reco | * democracia torna-se, assim, permanente, e seu princípio de legitimidade em
njiecer seu direito de participar da elaboração da norma geral.145 Associações, , 3 consequência se encerra.
-
#

sindicatos, movimentos sociais, comités de sábios, mediadores, instâncias eu- ? [


<
(

ropéias, cursos de justiça, administrações diversas, e tantos operadores de um I

djreito que se escreve doravante em rede. Rido se passa, desde então, como se POVO ATUAL E POVO PERPÉTUO (

a vontade geral deixasse de ser o produto de uma decisão única e instantâ nea ,
Existe, contudo, uma condição, parece-nos, para a realização deste ce-
« j

, e tomasse hoje a forma de um processo coletivo e aberto. Resumindo: o poder


> IV

• #

âmplia-se, divide-$e, imanentiza-se7 Da cabeça, espalha-se por todo corpo *


. ná rio positivo: é que o que denominamos o “trabalho institucional de distin-
ção” aplica-se doravante aò próprio| $ovo; na falta, é o cenário negativo de di-
Mas, não será preciso, agora, retomar pela base, todo o trabalho insti - .
visão e de instantaneidade que poderia se impor Com a realização progressi-
-
tucional? Concèntrando se nas mãos do povo concreto, o poder não corre o J *

,
risco de produzir-se de novo sem distância, sem mediação e sem pkrspectiva? JH * va da democracia de opinião e o crescimento de poder do juiz constitucional
v

fjste risco não é nulo, certamente, pois ao se generalizar, a democracia de opi- ' j o projeto democrático se aprofunda e a idéia de representação se afina, em be-
nião poderia perfeftamente dar o éspetáculo de uma divisão sem princípio de f
^
nef ício, explica Çauchet, dos mecanismos reguladores que a revolução entre -
.
recomposiçã o e de uma instantaneidade sem constância A tirania das sopda- í .
vira sem chegar consequentemente a estabelecer Mas não precisaria por isso
v gens, reveladoras de um eleitorado emotivo e versátil, a ação de determinadas 1
que a opinião assumisse o lugar da representação nem que o juiz constitucio-
1
;« ‘mídias, geradoras de reflexos plebiscitários, e a multiplicação de recursos para
\
.
nal substituísse sua vontade pela dos eleitos É justamente uma meÚiora e um
redobro da representação que deve estar em causa e não sua liquidação Este .
-
)
\
r
desafio, ainda uma vez, é radicalmente temporal: à distinção governántes/go-
* *
-
; 144 ROUSSEÁU, D. De la démocratie continue. In: Za Démocratie continue SQUS la
* . vernados vem, de fato, acrescentar-se a distinção povo atual/povo perpétiíõ -
t
* direction de D. Rousseau. Paris:
LGDJ; Bruxelles: Bruylant, 1995 p 9 ...
. . -.
145 Ibid jp 17 19 certamente a democracia contínua distingue-se tanto da democracia direta
^ *

*
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\
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248 249
11
&
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.Capítulo 3 Promesícu Ligaro futuro.


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quanto da democracia representativa clássica.146 Esta continuidade, de fato, te” 148Assim, ele testemunha para o povo “automaticamente constituinte” con-V
.
#


não se produz no mesmo plqno temporal que o da periodicidade eleitoral; é
*
K 't
r

tra o “povo do momènto que usurpa indevidamènte seus atributos”, não per-
-
>

preciso, para compreenãê-Ia, pular, por assim dizer, um nível e inscrever-se re- . - dendo de vista que “o soberano Verdadeiro situa-se para além do presenje” 14’ .
solutamente numa temporalidade transcendente . *< Sem dúvida, será preciso, ainda uma vez, precaver-se de confundir esta
*

*
/ *
O que marca esta temporalidade transcendente é que o “povo atual” -
-
o corpo eleitoral .do momento nunca é mais que o representante momentâ-
*
K

.
- c
1
i
fidelidade às promessas fundadoras com o imobilismo de uma censura conser
.
vadora, até mesmo reacioná ria De fato, percebe-se, mais uma vez, que o tem-
- \

.
*

neo e transitório do povo “perpétuo”, verdadeiro titular da soberania Dá-se, /2 po jurídico da operação dos textos é simultaneamente mais contínuo que o
assim, um sinal em direção a um poder sempre mais ou merios latente que Ç'£í tempo factual das revoluções políticas, e mais descontínuo, em todo caso mais
' não se esgota em nenhuma de suas realizações concretas e que permanece evolutivo, do que a aparente perenidade da letra dasdeis O tempo jurídico e .
sempre em instância de atualização, para além de suas manifestações Reen . -. institucional é “metamórfico”. Igualmente, será preciso distinguir curiosajn?n-
contrando uma linguagem quç não teria desautorizado Baldo, nem os cano - te as revoluções políticas das revoluções jurídicas, e admitir qué muitas normas
jurídicas continuam em vigor, apesar das perturbações revolucionais; mas, ao
'
nistas da Idade Média, Gauchet evoca esse povo jurídico que perdura identi- “
co a si mesmo através da sucessão das'gera ções”, “fantasmaçverbal”, como pu- inverso, será preciso reconhecer também, que determinadas revoluções jurídi-
^3
\ '
deram crer os espíritos pragmáticos^ ela é “a alma do regime*’147 É que um efeí . - *1 cas se operam fora de qualquer terremoto político, e, às vezes, mesmo sem mu-
r

to em ínentemente normativo decorre desta construção; pelo fato de ser rela - 1


(
*
dança aparente da normas O exercício progressivo de um controlé de constitu - '\

cionado com a vontade de um povo “ jurídico”; a vontade do povo “empírico” j cionalidade com base -no Preâmbulo da Constituição de 1958 pelo Conselho
é, por sua VeZ, limitada; é-lhe preciso, doravante, assim como a vontade deri- à Institucional Prancês constitui, sem dúvida, um exemplo de uma revolu çã o si-
\

vada dos representantes, estar à altura do princípio que a alicerça demagó


gico, antidemocrático e anti libertário, ela decairia de seu princípio e afunda
*

— -
- i
' 4
X
í
lenciosa deste tipo. Só poderemos, contudo, subscrever esta conclusão admitin-
do um postulado de importância maior:o de que o direito, decididamente, nãõ
se refere a uma soma de normas escritas, ilem a um conjunto -de vontades ex -
ria num tempo sem passado e sem futuro . >

V
Ê também nesta perspectiva' ja de um tempo transcendente à altura da Á plícitas, nem a um agenciamento de processos formais. É mais sob a forma de
- uma Constituição material, soma dos valores, de representações e das práticas *
1
í
promessa fundadora que é preciso situar a intervenção do juiz constitucio-
normativas em vigor na comunidade que ele se deixa apreender.-150
* » 4

i
.
nal Uma intervenção que, longe de'se prestar a todos ó$ ventos de uma opi- f * * v
nião versátil, deveria poder assumir, mais cedo ou mais tarde, a responsábili- <
dade de um decreto anti-majoritá río, se precisasse provar que a maioria aten- *
V
tava contra os princípios constitucionais, Assim, o^ juiz diria claramente que . ] O CONSTITUINTE E AS. SEREIAS . 4

r
uma maioria mesmo esmagadora pode não valer para um povo soberano . , *

Com as.Revoluções fraiicesa e americana, impôs-sè a idéia de que o re -


" Opondo-se a esta pressão, o juíz evita que o povo entre em contradição con-
(

sigo próprio, achincalhando os princípios qúe o‘ àpóiam em suas liberdàdes e


Vj

; gime político da nação:etodo o Seu direito podiam decorrer de um texto fun -


.
A

sua capacidade política Por outro lado, ele impede que o “povo atual usurpe - N
í I

* no presente, por sua vontade, um poder que só pertence ao povo transcenden- 148 GAUCHET, M / l à Révolution dés pouvoirs Paris: Gallimard, 1995 p. 46. . .
•/
. 149 Ibid , p 47 . . . /

V
146 GAUCHET, M. La Révolution des pouvoirs. Paris: Gallimard, 1995. p. 44, nota 1.
. .
150 Sur tout ceci, cf BELL, J Legal revolutions and the continiíity o£ public laW. In:
.
ATTWOOL, E Shaping revolutions. Aberdeen: Aberdeen Unjversity Press, 1994.
d 47 Ibid., p 45. . ' p, 119 etseq .
* *
v
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J .\ *
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4

f
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I 4

250 251
Gap( tulo $ Promessa. Ligar o futuro. f
f

K
' S

damental, a Constituição, que lhe promulgaria o espírito (uma “idéia de direi - Maá, advertirão os adversários deste sistema, as cadeias de Ulisses não
to” báseada nos direitos fundamentais do indivíduo), e garantiria a projeçã o são o próprio símbolo da alienação, a marca de um ser subjulgado e infantil,
duradoura no futuro. Receptáculo de todas as promessas que o corpo social .
pode fazer a si próprio, a Constituição é, por excelência, o instrumento jurídi- j
.
co de ligação com o futuro Este instrumento é, contudo, destinado à pereni I -
^ incapaz de dirigir suas ações? Ademais, ocorre ainda que Ulisses queira pren-
der-se a si mesmo, más de que direito poderia çle impor tais cadeias a seus fi-
lhos e sucessores? Não cabe a cada geração assumir seudestino e reescrever o
dade? Pelo fato de que ele regenera a nação e refunda seu direito devemos con- • a direito, à sua vontade?
^
cluir que está destinado a um modo de vida eterno? Esta questão, que, já agi- J Traduzidaem termos constitucionais, a questão é colocada como se se-
tava os Pais fundadores, tanto na Fran ça, quanto nos Estados.Unidos, não dei - gue: uma Constituição poderia ser revisada a tal ponto radicalmente que seus
• mais, orientar nossa re exão.151
-
xou de se apresentar, desde então, O reêurso à mitologia poderia, uma vez * princípios mais fundamentais fossem desnaturados? Podemos, ou não, na so ~
- -
^
Homero narra, no canto XII da Odisséia, que os ventos carregaram o vl
navio de Ulisses para perto da ilha das Sereias. Ò cantõ delas era tão melodio -
'1
beraniá última do povo, limitar o poder de revisão constitucional exercida pe-
los seus representantes? E, finalmente, a qúestão mais delicada: pode-se, em
\ nome de uma concepção transtemporal da soberania popular, frear as inicia-
so, dizia-se, que, enfeitiçados, os marinheiros se jogavam à água para juntar- - tivas constitucionais do pçvo atual?
- .
se a elas.. e nunca mais voltar. Curioso, Ulisses está bem decidido i ouvir este j
canto, mas, prudente, toma as medidas necessárias para resistir ao encanto j
maléfico: d,epois de ter tapado os ouvidos de seus marinheiros comtera, fez- í PARADOXOS CONSTITUCIONAIS
se amarrar ao mastro do barçò. Aparelhado, desse modo, ele poderia ouvir
*
1
.
4

sem se ehffregàr.
#
*

Qual a relação entre a lenda e um problema moderno de direito coiís- . 4


*
>
-. Mas, de início, o que é uma Constituição? Sabe-se que seu sentido rico V
e paradoxal entrecrhza duas tradições que não deixáram de se confrontar des-
'

Jitucional? A relação diz respeito à idéia de auto ligação: Ulisses, amarrado a


seu mastro, e os marinheiros surdos a seus apelos, assim como ao canto das
J de a “invenção da Constituição” em 1776 e 1789.152 De um lado, à Constitui-

Seíeias, sugerem a idéia de que a vontade pode, por fidelidade a um princípio


julgadb,.em um' momento certo, superior (prosseguir sua rota sem sucumbir
^í '
ção no sentido aristotélico depòliteía, de organização consuetudinária da so- ,
ciedade, produto da tradição, da história e da experiência, reflexo da natureza ^
das coisas; mais que produção deliberada da razão legisladora. Este modelo,
ao encanto das mulheres-peixe), antecipar desvios posteriores e proibir-se ab- 9
que é ainda hoje o da Constituição não escrita da Grã-Bretanha, caracteriza-
solutamepte de nisso sUcumbir. Do mesmo modo, questionavam-se os auto- 1
va as “leis fundamentais” do reino' durante o antigo regime è corresponde à
res de Constituições, não,é^uma imposição que se coloque ao,abrigo da maio- 1
concepção organicista e comunitá ria que faziam do direito autores como
ria de circunstâ ncias e dos movimentos passionais populares os prinôípios 1 « .
Montesquieu e Hegel Ao contrário, impõe-se a concepção moderna da Cons-
mais fundamentais nos qUais repousa o edif ício da vida coletiva? Nesta pers- ’
í
pectiva, não apenas a Constituição será uma norma mais difícil de revisar que
uma lei ordinária, mas ainda determinadas disposições serão declaradas in-
j
*

^-
* J

y
tituição, aquela que precisamente triunfa pela revolução: trata-$e, desta vez, de
unt texto fundador, inspirado no ideal progressista das luzes e na confian ça

tangíveis, não revisáveis e determinados direitos proclamados, inderrogáveis. } ^ .


da capacidade dalei adminístrar um futuro libertador. É também a concepção
compartilhada pelos jovens Estados, que, chegando à independência, preten-
\ ’- i

v . .
151 ELSTER, J Ulyssès and the Sirens:Studíes in rationality and irrationality Cambrid - 152 1789 etVinvention dela Constitutioni Sous ladirection deMicKel TrOper et Lucien
.
> ge: Cambridge University Press, 1993. p 93 et seq. .
41

> N .
Jaume Paris:1GDJ; Bruxelles: Bruylant, 1994,

252 253
Capítulo 3
*
Promessa. Ligar o futuro.
«t
*

uma nova ordem.153 \


-
dem marcar pela adoção de uma Constituição, sua firme vontade de instaurar i ria que seja, não escapa ao confronto das “idéias de direito prevalecentes no
* •* < j corpo social Com a revolução, sem dúvida, impôs-se a concepção da Consti-
-
f

Ninguém duvida que os revolucionários não tenham privilegiado estç | tuição como ordem, ato jurídico unilateral, norma imperativa. Mas esta nor ^
segundo sentido: fruto de umá insurreição, a Constituição' é, de início, e antes
ma procede ela mesma do pacto social: longe de' cair do céu, ela resulta do
1

de tudo, como o dizia Sieyés, um ato “desconstituinte”: uma r úptura irrever - acordo.que se estabeleceu inicialmente entre otpovo, o povo'eos dirigentes em
sível com a ordem constitucional anterior, uma inversão definitiva das insti
tuições herdadas do passado.154 Lembramo-nós, a este respeito, dos apelos’dos
- 4
ú
1 sequência, do que resulta a confiança,,será a qual nenhum texto pode preten -
robespierristas ao “homem” novo e à “regeneração do povo” 155 As- coisas, coh - -
der impor se duradouramente* Privadas desta referência á promessa social ,
-
fundadora, as constituições não surgem senão como a expressão de um direi-
d
tudo, não são tão simples: é qúe, se ela é, dè iníciò, um ato.“desconstituinte”, é i to descontínuo, aleatório e, resumindo, tão inexplicável quanto insensato.
preciso que a Constituição seja também “reconstituinte”: dito de outro modo, 1
,
Ora, nossas análises precedentes da promessa mostraram-nos que nã o há ne-
^ —
é preciso que invista na duração, engaje o futuro resumindo: instituir Da de
sordem insurrecional, a Constituição tem por vocação, dar naséimeiito. a- uma
. - J nhuma promessa qUe se mantenha fora de um quadro constitucional e de um
.
/ campo devalòres (fidelidade* lealdade, boa-fé.. ) previaménte estabelecidos.
j
nova ordem jurídica . o
.Estas primeiras observações deveriam colocar-nos em alerta: não nos li-
Pode-se daí perguntar-se se esta ordem se conforma com ujna mu-
, , JJ
dança permanente, e se se deixa traduzir somente pela expressão esporádica vramos tão facilmente da dialética' constitucional; atrás da ordem imperativa
de.yoritade e. de atos^ jurídicos. Estamos tão seguros, então, que se possa desli- não deixam de se fazer valer o pacto e os valores que o cimentam; para além da
inversão revolucionária perfíla-se a vontade de estabelecer uma ordem dura-
gar totalmente do sentido primeiro da Constituição, comb expressão dos cos ; - doura,., de sorte que temos baSe para pensar que através da
Y __ 9

ção-ato
tumes, das práticas e doS valores prevalecentes na comunidade? Acredita-se - Constitui
de vontade, nunca se deixou de fazer ouvir a Constituição-produto da história.
-
-
verdadeiramente - já nos deparamos com esta questão que entre duas cons-
tituições reine o vazio jurídico,“ que nenhum processo, nenhuma norma, ne- Este desvio, entre algumas das controvérsias constitucionais mais fun-
,
J ,

nhum grupo social garante a transição - por. mais movimentada que seja - de '. damentais, era necessário para voltarmos agora a Ulisses e à.questão da revi-
i uma figura constitucional a outra? são. É que não se pode abordar esta problemática sem fazer justiça à sua pro-,
Cl. Klein tem razão no sublinhar: é preciso “desdramatizar” b poder
„ »
fundidade dialética; quer dizer; a dualidade dos planos, que a cada passo nela
f *

• se manifesta No primeiro plano, perfilam -se com insistência as urgências po-


-
constituinte156 e deixar de conçebê lo como. uma autoridacle extra- jurídica , *
portàdora de um direito definido tábula rasa: sua ação, por mais revoluciojiá líticas do instante, a autoridade dos governantes, a soberania do corpo eleito -
ral atual, a disponibilidade de um texto constitucionàl, sempre suscetível à
153 Quanto a estçs dois sentidos do'termo “Constituição” conf* BÁSTlD, R VId éeJe 1 modificação. Neste plano, não se vê o que se oporia a uma modificação, mes * -
. .. .
Constitution aris: Économica, 1985 p 12 et seq ; COMMANDUCCI, P. Ordre or
1

\ mo radical, da Constituição.
^ .
' norme? Quelques jdées de Constitution au XYIÍIe siéclé In: 1789 et Vinvention de

Mas, se procuramos “ver mais longe”, será preciso ter em mente as rea -
* . .
Constitution Sous h direction dè Michel Troper et Lucien Jaume Paris: LGDJ; }
lidades de plano de fundo que menos visíveis, sem dúvida, não são menos im-
. .
Bruxèlles: Bruylant, 1994. p 29 et seq 11 , ’ \\
. .
154 Cl BEÃUD O La Puissance de V Êtat ParisT PUF, 1994 p 224 ,
*
, .. . portantes: as exigências delongo prazo, o fato de que num Estado de direito,
- .
. .
155 JAUME, L Constitution, intérêts et vertu civique In: 1789 ét Vinvention dê la Cons-
.
titution Sous la direction de Michel Troper etXucien Jaume Paris: LGDJ; Bruxelles:
« os governantes são eles mesmas obrigados a obedecer, à lei e á séus princípios
fundamentais, a idéía de que Q verdadeiro titular da soberania é ó “povo jurí-
" Bruylant, 1994 p 185 .. . dico” óu “perpétuo”» de que falava Gauchet. 'Neste segundo plano, a questão
„ . .
156 KLEIN, C Théorie et .pratique úu pouvoir constituant Paris: PUF, 1996 p 188.
.. *

. dos limites da revisão é perfeitamente legítima.


v
, »

\

' c

254 255
\
1 Capítulo 3 .
Promessa Ligar o futuro . \
^ i

\ »
i

s >
i
*
. J
• Resumindo, é questão de ajuste do olhar. Não é porque fixara o olhar
/

Acontece, entretanto, que desdè 14 de agosto de 1884 as Constituições


i na distante Itaca, que Ulisses, amarrado a seu mastro, pôde resistir ao intem- ^ francesas contêm uma disposição assim enunciada: “a forma republicana^de
pestiva chamado, das sereias? Distinguir o próximo e o distante, o Curto e o i
governo não pode se tornar objeto de uma> proposíção deVevisão” (atual arti-
longo prazo, será também, comò veremos distinguir o poder constituinte \
go .89, al » V da Constituição daO/ República , Confrontado a este téxto, que in-
,

^
(poder fundador originário) e o ppderde revisão (poder de administração de
rivado ), a Constituição e os princípios supra constitucionais, a Constituição ]
- 1
i ^
contestavelmente consagra uma limitação material do poder de revisão e re-

- .
no s.entido material e a Constituição no sèntido formal Assim, a questão dos - mete aos princípios fundadores da República, Carré deMalberg via nisSo uma

,.
limites da revisão constitucional é simultaneamente um desafio central para a • ;
filosofia do direito e para a filosofia do tempo, no que elá opõe de modo fron
tal os positivistas jurídicos, sustentadores de uma soberania sempre atual, aos v
- J
, ^ exceção limitada e ,sem interesse; outros autores negavam-lhe qualquer força
jurídica obrigatória em relação aos sucessores dos constituintes e às gerações
futuras.1 De resto, bastaria, dizia se no campo positivista, proceder, nas for
^ - -
,
/ *
partidários da instituição mais ciosos de constância na sua duração.< mas constitucionais,.à revisão deste artigo para superar o obstáculo: sem irn^

i f
j
- portar que a mudança poderia assim ser legalizada, desde qú e as regras pro-
cessuais fossem respeitadas .
i
.UM PODER DE REVíSãO LIMITADO?
" Este argumento da “revisão da revisão” destrói, como se constata, qual-
quer distinção entre o ato fundador e o ato de revisão transformador: qual-
\

O DEBATE POSITIVISTAS-INSTITUCIONALISTAS- '

. li
V
quer fiindação seriadritrinsecamente revisável e qualquer revisão, virtualmen-
te fundadora. Ulisses não poderia amarraras próprias mãos, e se ele acreditas-
-
Pode se limitar o poder de rèvisar a Constituição? Para um positivista, • j
*a questão só tem sentido num plano se tê-lo feito, sempre lhe seria possível libertar-se. A lei constitucional de 10 de
exclusivamente formal: só regras de com- j
petência e de procedimento podem limitar (enquadrar) o poder de revisão. S julho de 1940, pela qual “a assembléia nacional dava todo poder ao Governo
da República, sob a autoridade do marechal Pétain, com o fim de promulgar
Desde que estas regras sejam respeitadas, uma assembléia constituinte pode-
ria proceder a uma revisão total, materialmente ilimitada da carta fundamen- •
J • por um ou vários atos uma nova Constituição do Estado francês”, foi geral-

tal; era principalmente a tese de George Vedei que escrevia: “uma revisão cons- * mente justificada por esta teoria da revisão^ da revisão: “ houve perfeitamente”,
explica Veder, “modificação do processo de revisão da Constituição, politica-
*

* titucional podçria amanhã, sem irregularidade jurídica, contanto que um pro- 1


cesso apropriado seja Seguido, dotar-nos de um sistema americano, soviético ’ tf mente crit ícável, mas juridicamente correto”..,160 e eis Ulisses nos braços de
* *

ou iugoslavo”.157 Se é verdade que o poder constituinte é o poder supremo do tristíssimas Sereias!
^
Estado, não será preciso admitir que nada o liga, nem ele mesmo? Por outro Estaria o direito condenado a uma tal impotência? Sem dúvida, nin-
ladoy impõem-se os constitucionalistas de inspiração positivista (de fato a 1 * guém discorda disso, nada deter á um pbder de fato se ele se beneficia de, uma
' '

doutrina majoritária). Distinguir entre princípios essenciais não modificáveis, maior força; do rrfesmo modo que nenhum texto jurídico, por mais sagrado
j

que fosse, nunca impediu que um poder revolucionário vitorioso se impuses-


i
m porque fundadores, e disposições acessórias suscetíveis de modificação é en
gajar-se numa “ hermenêutica divinatória” e apelar para uma misteriosa su \
- se. Mas a questão não se coloca aqui nò terreno do fato, mas no do direito:será
*

- .
praconstitucionalidade de inspiração jusnaturalista.158 i possível, pergunta-se, que uma empresa visando inverter a ordem constitucio-
4 » •A
nal possa encontrar nessa mesma ordem uma caução formal que a legalize? Os
B
' » > i \ '
*
v

/157 Apud BEAUD, O. La Puissance de V Êtat. Paris: PUF, 1994. p. 335.


158 Aubert J.-F. e G. Vedei, apud BEAUD, Q. La Puissance de VÊtat, Paris: PUF, 1994. •
X
|
159 BEAUD, O. La Puissance de V Êtat. Paris: PUF, 1994. p. 335. y

. p. 345, 348.
x 160 VEDEL, G. Manuel é lé mentaire de droit constitutionnel . Paris: Dalloz, 1949 . p. 272..
v
/

256
257
\
Capítulo 3 -
*
Pròmessg, Ligar o futuro.
i


i
/ • \
t

adversários dps positivistas entre os quais, não nos espantemos com isso, . que Gauchet falava; e uma soberania ilimitada, que se1 traduz no exercício dos
V

. *

Hauriou e Burdeaxí recusam-se a isto, porque não se conformam com uma ,
concepção a tal ponto formal de seu objeto. Uma vez adotada a Cofistituição,
*
!
JI
poderes derivados e instituídos, como o poder de revisão Logo, há sentido, se-
gundo esta tese, em distinguir e hierarquizar a vontade de Ulisses que no, tem-
. 7

, V explicam eles, sua revisão deriva de um poder instituído, logo, limitado. Pro
ceder à “revisão da revisão” e, emseguida modificar o texto em seus princípiçs
- -
D 1 decide amarrar se ao mastro de seu navio, e a vontade de Ulisses que no
' po
j tempo 2, enfeitiçado pelo canto das sereias, suplica a seus marinheiros que o
fundamentáis, é tornar-se culpado de desvio de poder, é praticar uma fraude ,
contra a Constituição (senão em sua letra, pelo menos em seu espírito). Uma
í
.
desamarrem A questão poderia contudo, se tornar novamente complexa; li-
prática destas desnatura a própria noção de revisão. Uma revisão que deve ser
'
-
berdade para Ulisses determinar se como ele. o entende, mas com que direito
» 4 poderia engajar a sorte das futuras gerações? '
compreendida como podèr de transformar a Constituição, ao mesmo tempo l\
salvaguardando-a, isto. é, administrando suas bases mais essenciais, que por \
* f

*i i
sua vez derivam do poder constituinte, o único autenticamente soberano, r
SERá. QUE UM POVO PODè ACORRENTAR-SE PARA O. FUTURO? '
Sem dúvida, uma' modificação radical da ordem constitucional conti-
SERá. QUE OS-MORTOS TêM DIREITO?
*
\

nua sempre possível (fala-se, então., de abolição da Constituição), mas um ato \


t \
deste tipo deriva de uma ruptura que exige lucidez para qualificá-la “revolu-
Do plano jurídico o debate se desloca para o plano temporal, onde rece-
cionária” e não de uma transformação, conforme ao direito positivo. Enquan
to, para Kelsen e para os positivistas, é revolucionária qualquer mudança jurí-
- /

be uma amplitude particular, como se ele estivesse ligado desde a origem à pró-
\ pria idéia de Constituição, Será que um povo pode.acorrèntar-se para o futuro?
dica operada em violação das formas processuais, mas é lícita uma transfor - '*« v Qs Pais fundadores, em sua grande maioria, não 'aceitaram- esta ideia. Eles mes-
mação radical do regime que respeite os caminhos de direito, para os ínstitu- \ . *

cionalistas, ao contrário, uma revisão dos princípios fundamentais, mesmo


mosrevolucionários, e mais penetrados do que estavam pela crença na perfec -
operado nas formas, é revolucionária, ao passo que hâ violações das formas 1
J tibilidade dos homens e dos povos, só puderam conceber qúe um povo pudes * - n
se renunciar a exercer, mesmo por parte e por fidelidade a seu próprio ideal, ó
que, sob certas circunstâncias, como o notava Captant, revelam uma verdadei- ií
ra lealdade constitucional.161
poder constituinte e soberano que acabara de ab-rogar-se À seus olhos, a liber- .
dade era absolutamente inalienável e não existia princípio de perpetuidade dav
I

.. •i
Longe de derivar de uma “supra legalidade misteriosa* jusnaturalista,
este argumento pode hoje apoiar- e em inú meras disposições constitucionais
*k
.
pbrigação política Alista dos testemunhos é impressionante. Teórico do contra -
^
(como o artigo 89. al, 5, da Constituição francesa), que são, elas mesmas, o
fruto da experiência histórica. Os próprios positivistas não sucumbem, de res-
to social, Locke,. pòr exemplo, sustentará que “os homens podem estabelecer .
• v aquela forma de governo que bem lhes pareça”, tese que se apoia no fato de" que
'i ninguém poderia obrigar por contrato seus filhos ou sua posteridade 162 .
. to, através do que censuram a seus adversários, quando se permitem fazer a . .
triagem e considerar estes textos como desprovidos de força obrigatória?' "
. '
*

Um século piais tarde, Rousseau irá fazer-lhe eco em termos mais.cia ^ - *

/
ros: “é absurdo/ escreverá ele, que a vontade se acorrente para o futuro”, de
A tese institucionalista, que retomamos aqui por nossa conta, acarreta
modo que “ um povo é sempre senhor de mudar suas leis, mesmo as melho- *
*
-
mais esta consequência, a de que a soberania popular se prova relativa, ou
*
.
,

, res” E mais: “não existe no Estado nenhuma lei fundamental que rião se pos- ,
*

mais eXatamente, em dois graus; uma soberania absoluta que se manifesta no


v sa revogar, nem mesmo o pacto social, pois se tpdos os cidadãos se reunissem
plano fundador e constituinte - é a do povo “jur ídico” ou “transtemporal” de para romper o pacto, não se„pode duvidar que‘foi muito legitimamente rom-
* \
/
í*
s

V
'161 Apud BEÀUD, O. La Puissance de V Êtat. Paris: PUF, 1994. p. 375. t
* *

LOCKE, L. Secottd Traité du goií vernement civil-, ojp. cit, n. 106, p. 136.
V

‘ 162

258
259
t 1
Capítula 3
/ .
Promessa,tigúr o futuro

l
pido”.163 Essas tomadas de posição, sem clúvida, repousam em Rousseau, numa \

M
\
A argumentação, convenhamos, é impressionante Des4e logo, quatro
í
.
concdpção claramente instanjaneísta do tempo social: “cada ato de soberania, ( •
assim como cada instante de sua duração, é absoluto, independente daquele
*
-.
notas se impõem antes de tentar refutá la Obsefvamos d& início que as teses
t

, *
de que acabamos de fazer o resumo são as dos revolucionários que trabalham
'

que precede; jamais o soberano age porque quis, mas * i

porque quer” 164 da carta fundamental: não é absolutamente cer-


r
na vertente desconstituinte
Quanto,a Syeiès e Condorcet, é na consciência da falibilidade da razao /

to, em contra partida, que tivessem consentido em ver abolir o Estado de di-
humana e de sua necessária e constante perfectibilidade que eles extraiam ás *
i reito ou o regime republicano que eles chamavam por seus desejos. Segunda
razões para instaurar ujn mecanismo de revisão regular da Constituição.
*

observação: as disposições constitucionais da época, veremos, estão longe de


Opor-se a isto consistiria em renunciar às luzes da experiência e condenar toda * garantir uma revisibilidade á utomátíca da lei fundamental, como Condorcet
L

a sequência das gerações a ser vítima da ignorância de seus predécessores Do


-
mesmo modo, Condorcet teve o cuidado de introduzir na Declá raçã o dos di- • :
. OU Jefferson, pòr exemplo, o teriam desejado; e hoje, numerosas Constitui
168

.
-
ções contêm disposições subttaídas à revisão Terceiro reparo, em forma de
169
j * ,

reitos humanos e da cidadão be 1793 o artigo 28, assim enunciado: “um povo
lembrete:'a tese aqui defendida não pretende umà imutabilidade de fato dos
tem sempre o direito de rever, de reformar, e mudar a Constituição, Uma gera- í di -
*
*
princípios fundamentais do regime; trata-se, muito antes, de jima tese jur
ção não tem o direito de sujeitar às suas leis as gerações futuras”. De acordo j ca que insiste na normatividade reforçada do ideal regulador da Constitui -
-
r
H
com ele, convinha submeter leis e constituições à revisão iperiódica - a cada 20 .
, observa çã o: ao combater a tese positivista instanta
* *
( ção Enfim esta ltima
ú
anos exatamente - desde que o consentimento,^de que as leis se beneficiavam ; neísta.da mutabilidade absoluta das Constituições, não se pretende, com isso, «

na origem, não pudesse deixar de se iludir com o passar do tempo, a desapare- - ,


Ç

subscrever a idéia de uma imutabilidade radical destes textos* uma ideia tão
1
cimento dos mais antigos e a entrada em cena dos mais jovens: “alem deste * • absurda, que se opõe à inspiração dialética que atravessa toda está obra O .
tempo, seria tirânico estender a irrevogabilidade das leis constitucionais”.165 h /
t

• Por sua vez, estas teses receberam um eco entusiasta junto aos américa-
*
*
nos mais ligados à Revolução Francesa: Thomas Paine e Thomas Jefferson. J
J (

-
168 Aqui,.falta nos espaço para propor imi histórico das claúsulas constitucionais rela -
tivas à revisão do modo como são escalonadas de 1789 a 1958.0 exercício mostra -
-
*

Paine: “querer governar do além túmulo é a mais ridícula e a mais insolente * ria Uma curiosa progressã o em dentes de serra, reveladora da
qxitação dos constí
das tiranias [ u.]. À democracia é legítima somente graças ao consentimento » ^ tilintes e do caráter muito
*
político desta questãó Grosso.modo , pode-se acentuar
dos ivo .166 Jefferson, que foi o terceiro presidente dos Estados Unidos, de . que a Constituição de 1791 tornava à revisão muito.dif ícil (o processo praticamen -
^ ^ -
1801 a 1809, faz lhe eco: “os mortos não possuem direito Nada são”; é que,
'
;
. » , , \
t
e se desenrolaria em 10 anos), a de 1793, por Sua vez, facilitada ponto de parecer
deséjá-la. Em contrapartida, a Constituição de 1795.multiplica novamente os obs -
“devidó ao direito natural, uma géração é para uma outra, o que uma nação j f
.
táculos (desta vèz, o processo revisional levaria 9 anos) A exitação irá seguir-se ao
independente é para outra nação independente”/67 longo do século 19: enquanto a Constituição de 1848 facilita novamente a, revisão
-
(três, deliberações com 1 mês de intervalo bastarão), a de 14 de janeiro de 1852 pe -
.j
*
naliza “qualqt íèr discussão que tenha como objeto a Crítica ou a modificação da
Constituição*5 (senatus consulto de 18 de julho de 1866). Enfim', a Constituição de
-
-
163 ROUSSEAU, J. J. Da contrat social Des pr í ncipes du droit politique. Paris: Bordas, i 1875 quase não coloca obstáculo à sua revisão, mas uma lei de 14 de agosto de 1844
.
1972. II, 1, p. 386; II, 12, p 394 e IV, 18, p 430. ' . . ! wa
declara intangível forma republicana do governo”
164 , Apud BEAUD, O. La Puissance de V Êtat. Paris: PUF, 1994 p. 406. .
, ) .-
169 RIGAUX, M E La Théorie des limites matérielles à Vexercice de la fonction consti
'

. ..
, 165 CONDORCET, peuvrcs complè tes Paris: [s n ], 1847 t X, p 193 194; pour un .. . - tuante Brqxelles: Lacíejr, 1985, arrolou nada menos que 33 Cònstitulçpes (em iím
.
*
4» . .
cómmentaire, cf KLEIN, op cit., p. 136 et seq ' . .
total de 142/textos estudados) contendo disposições deste tipo A tipología propos --
.
166 Apud MANENT, P Les Libé raux. Paris: PUF, 1986..t 2, p. 46, 49 . . * * ta por ela, como síntese, contém 5 rubricas ;‘a proibição de revisar a natureza polí
.
167 JEFFERSON, Th. The Papers of Thomas Jefferson Prínceton: Princetõn University tica do regime, a estrutura política do Estado, os fundamentósideológicos (políti -
.
Press, 1958. t XV, p. 959, apud KLEIN, op cít., p 138. . . cos ou religiosos do Estado, os direitos do homem e do cidadão, a proibição desse
em atentar contra a integridade do território do Estado) .
\
260
/ 261
-
t
* Capínrfo 3 /

•V t
»
.
Promessa Ligar pfuttjró<
*
v
*
í- t

que visamos, aqui como alhures, é preparár o lugar para uma mudançà “me- não & exigência de uma maioria mais importante 'Como o notayá G. Ans- . s

-
* tam ó rfica” que, na linha da exigência fundadora que o leva (“a promessa” ),

não deixa de aprofundar seu sentido, de ampliar seu alcanêe e 'diversificar


s
> 1

chútz, publicista aiitòrizado da época: “A Constituição não está acima .do po -


der legislativo, mas à disposição deste”/171
suas manifestaçõês
<
. *

s
.
N 1

Estava, assim, aberto o caminho para uma remódelagem permanente


*
* *
- I
k]
da carta fundamental; um comentarista conta nada menos’ que nove formas
diferentes de revisão: complemento, ampliação por via legislativa, descarte de
/
A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL V
uma disposição constitucional, substituição, descarte, suspensão, derrogação,
O CONTRA-EXEMPLO DE WEIMAR superação das competências,177 Entre estas, uma das mais estranhas éra a “der-
V

*
r

. rogação à Constituição”: tratava-se de uma derrogação pontual, sem que as *

-
i
J
James Madison, Pai fundador da democracia americana, exprimira-se A normas constitucionais visadas fossem, ehtretanto, invalidadas, ou mesmo
nesse sentido. Em O Feâeralista reconhece, com Jefferson, que o povo,"única  suspensas. Adotada por maioria absoluta, necessária para emendar a Consti-
fonte legítima de poder, deve poder, nas ocasiões excepcionais, dar a conhecer J • tuição, a lei derrogatória poderia ser ela mesma ab-rogada por maioria sim-
sua decisão por via constitucional. Mas esta possibilidade deve continuar con- j ples. Assim, a confusão chegava ao seu limite. A lei de 24 de março de 1933, v
tida precisamente pela Constituição. Contra os inimigos da Constituiçãç, que > que permitia a Hitler legislar sem levar' em conta o Parlamento, foi precisa-
poderiam desviar o recurso ao povo, é preciso que o povo constituinte possa mente uma lei derrogatória deste tipo.
»
> *

conter a ação dé futuras maiorias eleitorais Tal é próprio de uma democracia . A k Doutrina e jurisprudência por outro lado precisavam: “para que uma
1
%
v

cqnstitucionak ela se exerce no quadro traçado pela Constituição. Assim, o *


1
-
i

•U modificação constitucional seja efetiva, não é necessário que ela tenha sido ex
povo se preserva dos perigos políticos da instabilidade e do transbordamento,
*

sempre possível, da razao pelas paixões: “aceitando uma Constituição preesta-


pressamente qualificada como tal pelo legislador ou mesmo que tenha sido in
*
^ ção”.173 Compreende-se que nestas
-
"
cluída na Constitui condições a Constitui-
belecida [ele escreve também ‘institucionalizada’], um povo ata as mãos, mas
ção da República de Weimar não tenha nunca conseguido superar a precarie-
libera-se de fardos consideráveis”.170
b
V

dade política e jamais tenha conseguido impor a estabilidade jurídica: entre


f O exemplo da Rep ública de Weimar, que Madison evidentemente não 'l
1919 e 1928, tornou-se objeto de nada menos que sete revisões formais e vin-
pudera conhecer, confirma a pertinência desta análise: sem ter nunca podido
impor sua superioridade à lei ordinária, a Constituição alemã de 11 de agosto
. /A
.
te e umà derrogações À luz desta experiência histórica, o bem fundado artigo »


de 1919, incessantemente revisada e manipulada, nunca chegou a estabilizar o
* *
#
^ * .
* 79, al 3, da Lei Fundamental da Repú blica federal de 1949, surge desde então, #

mais clarámenfe, ao dispor: ué inadmissível uma emenda da presente lei fun-


f
regime republicano e democrático que pretendia instituir, e acabou mesmo (

damental que afete a divisão da Federação ém Lânder, o princípio da partici-


A
por avalisar a famosa lei de 24 de março de 1933, pela qual o Reichstag trans- I

feria plenos poderes legislativos a Hitler, Chanceler. O artigo 76 desta Consti- „ pação dos Lânder na legislação ou nos princípios enunciados rios artjgos 1 e
tuição dizia, de fato, que “a Constituição pode ser emendada por via legislati
va”; dito de outro modo, .nada diferenciava lei constitucional e lei ordinária se-
- h 20 [as liberdades públicas].”
*
I
I
K

i
t

~> h
r

* V
V \ *
_
I

. . A

170 Le Fédéraliste. Paris: LGDJ, p 417, 651; cf igualmente p, 416 : “frequentes apelos v
’ > 4

tendenciam, em grande parte, a privar o governo deste respeito que o tempo im- t
. .
171 Apud KLEIN, op çit , p. 96 . y *
r
I

prime a todos e sem o qual o mais sábio e o mais liberal dos governos não possui- . . .
*
172 Ibid , p 98 b V

. .
\

ria a estabilidade necessária”.


)

N
I
A . 173 Ibíd , p, 96 4.
*

*
I
»

. 262 263
f
J * /
*
y Capítulo 3 * A *
.
Promessa Ligar o futuro. >
*

*
â
< *

“0 MORTO PEGA 0 VIVO” , 4

Argumentos de continuidade jurídica justificam, então, que Ulisses


possa ser mantido em t2 de compromissos subscritos em tl: a não ser que, a
cada instante a vontade, em. nome de sua permanente soberania, pudesse li-
*
Masf a tese da licítude das limitações materiais ao poder de revisão da
Constituiçã o não se apóia somente nas razões da prudência política. Argu vrar-se da obrigação contratada íío instante anterior, seria a própria idéia de -
mentos jurídicos fazem -se valer igualmente, sublinhando a continuidade da^ obrigação jurídica que perderia qualquer consistência, e a noçã o de vontade,
ordem jurídica estatal e a permanência dos compromissos (principalménte ’ .
toda utilidade Desprovido^de projeção estabilizada no futuro, o direito iria re-
internacionais), apesar das mudanças do governo e mesmo dè mudanças de V

ferir-se à expressã o mais òu menos solenizada do impulso imediato .


* regime^ Contrariamènté à tese de Lênin, que obrigou o governo bolchevique
a adotar, na dia 29 de dezembro de 1918, um decreto decidindo a cessação do
Mas,á nsistiremos talvez, em nomé de que deveríamos, entretanto, pri
*
--
*

vilegiar a vontade do indivíduo em tl sobre a que ele manifesta agora em t2?


\
pagamento dos recibos e dividendos dos empréstimos do Estado, o direito in - Em que Ulisses, implorando hoje a seus marinheiros para que o livrassem, de-
ternacional não aceita jamais o princípio da revçcabilidade dé tais compro-
,
.J .
veria ser sacrificado a Ulisses que ontem multiplicava a$ precauções para não
'

missos: todo governo é obrigado a honrar as dívidas contratadas por seus pre- sucumbir ao encanto das Sereias? Porque, poderíamos responder, em tl Ulis- '
>1
'
.
decessores O' princípio conduz a combater a idéia hiper individualista e - \/ ses se referia a uma imagem de si mesmo, ideal e transtemporal, à altura da
instantaneísta que Jefferson se fazia; lembramos bem da situação de cada ge- qual se comprometia a/ agir Conformar-se em t2 a esta imagem é menos ali-,
.
ração quê éra, dizia ele, c*tão independente das precedentes e das seguintes
+r

( -
íihar se de modo “cons'ervador” numa vontade antiga, que dar efeito a um
quanto uma.nação o é de uma outra” Como se o contrato social, e com ele \ ideal por vir, à realização do qual a própria existência de Ulisses, amanhã e de-
todo o edifício político constitucional, se identificasse a estes contratos con
cluídos “intuitu personae\ em consideração à personalidade singular dos con-
- ,.] <

*
.
pois de amanhã está subordinada Compreende-se, então, que a referência é
feita menos a um comprometimento passado e datado que a Uma promessa ,
tratantes, e que se extinguem necessariamente com sua morte. sempre por vir e que ainda não deu todos os seus frutos. Paradoxalmente, a fi-
O direito positivo, duvidamos disso; jamais se conformou com uma
concepção tão sincopada e sincrônica da soberania, nem com uma semelhan-
I

-
delidade a esta promessa analisar se-ia nestas condições, menos como respei -
to em relação ás gerações passadas, quanto como consideraçã o em relaçã o às
' te precariedade dos comprpmissos jurídicos. Inspirados pelo prindpio civilis- ‘ geraçõe futuras. N,

ta, segundo o qual o hercleiro que assume uma suc.essão aceita igualmente os ^
A mesma análise pode ser conduzida no plano coletivo: o >ovo empí-
-
encargos e as dívidas ( dizia se outrora: “o morto pega o vivo-”), os pensadores i rico atual, ao respeitar os princípios mais fundamentais da Constituição (E$; ^...
/ do contrato social eles mesmos foram justamente forçados a reintroduzir no.
centro do instituciònalismo uma dose de continuidade em Seu contratualis-
- tado de direito, liberdades públicas, forma republicana de Estado ), não é sa- t

crificado áos caprichos de um povo empírico de ontem; são antes, ambos, os


>
mo. Assim, Locke notava que Kse os homens querem desfrutar áa herança de dois povos - empíricos que se referem ao povo uitemporal; ú nico verdadeiro ti -
seus ancestrais, devem tomá-la sob as mesmas cláusulas e termqs que eles e sa- *
tular da soberania. Povo intemporal que inscreveu na carta fundamental um
tisfazer todas as condições anexas a uma tal posse”;174 Hugo Grotius, por sua conjunto de ideais políticos (“promessas” ) à altura das quais nenhum povo
vez, deduzia desta analogia: “desde quç eles aceitam governar, os soberanos * atual pode, sem dúvida, realmente se ater, mas que teve a sabedoria de çoiísi-
'

são Jigados pelas dívidas de seus predecessores” 175 . ><

i
i

*
derar como constitutivos, em sua própria exigência, de sua soberania política. ' "
r
-
« •

Como Ulisses, o.Constituinte sabia que teria que afrontar mil perigos 'políti-
/

. *
. .
174 LOCKE, J Sccond Traité du gouvernetrient civil> op cit , II, 6, p 114-115 . . .
cos Ele não ignorava que o mal, o conflito e a violência estão inscrifos no co .
*

-
ração da sociedade humana. Como Ulisses,- teve o mérito de não se desviar „
i’

175 GROTIUS, H. Lé Droit de la guerre et de la paix, Caen.* Reproduits par la Centre de


.
4

.
philosophie politique et juridique de Caen, 1984 livro II, cap 14, sect. 10. \ . disto, seja fingindo ignorá-lo (angelismo político), ou pretendendo, através de '
« *
\

"4

264 265
*
«
/
•#

*
í Capítulo 3
v *1 I PromcsscL Ligar o fiituro . *


* * 1
* *
\
\
W * * \

\ v
*

I

1 1
mèdidas sec,untarias, erradicar qualquer ameaça de perigo (Ulisses não toma *

i
f
* <
prerrogativas; não se imagina que ele desvie uma tal prerrogativa para fazer
medidas para combater e suprimir as Sereias) * Ainda como Ulisses, o Consti - ^ *
dela uma utilização oposta à"$ua finalidade.
tuinte teve a sabedoria de' autodimitar-se, inscrevendo a ação do povo intem- *

$ l
r
/
*

*
+ f
poral (a sucessão das gerações) nas vias que lhe pareciam de natureza a supe- 1
\

rar os obstáculos imprevistos . ^


t
ORDEM E DESORDEM *
*
San dúvida, não é impossível - é mesmo altamente desej ável - que as
*
*
^ ] i

gerações seguintes, por sua vez, contribuam para aprofundar o sentido dos FUNDAçãO CONSTITUCIONAL E INTERPRETAçãO EVOLUTIVA
-
ideais políticos atribuídos ao povo inté mporal: não há razã o para se pensar
• J, que a primeira geração tenha o monopólio desta intuição. Basta desenrolar a

K
* ,
Como conceber que se faça justiça simultaneamente à soberania do
4

história da criação progressiva der princípio de igualdade para se persuadir da V


povo intémporal, que inscreve na Constituição alguns princípios intangíveis
fecundidade de uma idéia de direito, inscrita num texto, de início de modo e, por outro ladò, a necessária atualização destes princípios pela via da prá ti-
- contra-factual (em um momento* em que, tanto na França quanto nos Esta-
dos Unidos, a escravidão ainda era legal) e logo estendida, ao preço de refor- /

V
ca e das jurisprudências constitucionais-principalmente? Como evitar fazer da
Constituição um “arquivo”,177 letra morta, logo esquecida, sem por isso trans-
*
mas e emendas,- a beneficiários cada vez mais diversificados.
*
f

^ formá-la em um “documento de trabalho”, incessantemente retíabalhado ao


Não existe razão para se pènsar, também, que as gerações anteriores J gosto das urgências e das paixões políticas? Como, uma vez mais, reconduzir
sempre tenham tido razão. Assim, artigo V da Constituição americana con-
^
tinha um parágrafo que proibia modificar a instituição da escravidão “pelo
o direito à função própria de regulador da tensão entre ordem e desordem?
No plano teórico, a resposta pode ser encontrada na teoria da fundação
menos até o ano de 1808'’ Foi preciso aguardar o voto da XIII emenda, em *

institucional já vista de Mauríce Hauriou e atualmente devolvida à luz por


1865, para que, enfim, a escravidão fosse abolida; sabe-se que o direito, con-
< .
Olivier Beaud 178 No plano prático; é na jurisprudência dos Tribunais consti-
-
tudo, não foi suficiente para isso, e que foi preciso uma guerra civil para atin - ;
*
tucionais, levados cada vez mais ffequentejnente a avaliar a validade dos atos
f
gir este resultado. Contudo, não seria falso sustentar que em Seu princípio esta
4

, ,»

abolição estava contida na exigência igualitária inscrita na Constituição origi- do poder de revisão e assim a interpretar as cláusulas constitucionais ditas in-
.
nária A revisão sucedida (de resto antecipada pela espécie de moratória reve- tangíveis, que encontraremos os alinhamentos do equilíbrio procurado.
\
lada na expressão “pelo menos até o ano de 1808”) inscrevia-se, então, mais Quanto à teoria*da fundação;17* nos contentaremos em lembrar qúe ela permi-
em continuidade que,em ruptura com as “promessas” dos Pais fundadores. te que se pense, ao mesmo tempo, na ruptura decisiva representada pela emer-
Certamente nossa tese Visa apenas legitimar determinados limites fun- gência e incorporação de uma idéia nova de direito ( por exemplo, a soberania t
•i ¥

damentais para o poder de revisão; aqueles que precisamente figuram hoje, • popular e os direitos fundamentais do indivíduo), e no movimento de criação
.
i

principalmente,176 em in úmeras constituições modernas e que visam garantir contínua que no futuro manterá e desenvolverá a existência da Constituição
-
os próprios fundamentos da ordem .jurídica no qual opera o poder de revisão . .
assim fundada O reconhecimento pelo juiz francês dos princípios fundamen - »

'n Poder “constituído” ( poder concreto, Ulisses atual), este poder de revisã p é tais da “tradição republicana”, ou, no caso do Tribunal europeu dos direitos
>
chamado para melhorar e atualizar o texto que ô institui em suas próprias > /
I

%
V
} 4
V 177 À expressão pertence a RIGAUX, op. cit.', p. 250. » *
\
y
í \
176 Nós dizemos “principalmente”, para preservar a questão dos limites materiais “im- « * i

r
178 Op. cit. p. 447'et seq. ^
, * *
< * I

plícitos” ou “imanentes” que não resultam explicitamente de uma cláusula escrita; (3


r* sobre esta questão conf, KLEIN, op. cit., p. 201 çt seq. k
• 179 Na segunda edição de seu Précis de droit constitutionnelj M. Hauriou aplica de for -

ma sistemática suas teorias da fundação e da instituição ao ato constituinte.
4

\
\ i

266 %

i -
4
267
%

ff
Capítulo 3 i
Promessa. Ligar o futuro.
> ' nH

: 1
V
. t * v
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f
\ i
»

humanos, a referência ao "património comum de liberdades” dos povos que . “ATODOS, PRESENTES E POR VIR , SALVE!” '
r
1

formam a Comissão eú ropéia, são testemunhos dessa "fundação continuada”. . \I


No plano prático, õ equilíbrio buscado entre uma perspectiva "fundar ;
cionista” que pretenderia ligar-se de modo rígido à letra da Constituição his-
É preciso meditar sobre esta saudação'através da qual o chefe de Estado -
4
i promulga a lei: "a todos, presentes e por vir, salve!” Toda autoridade prospecti-
tórica, e a perspectiva “monista” (para retomar os termos de Bruce Acker-
- .
va da lei está contida nesta fórmula A lei, diz o Código civil, "dispõe para o fu-

>
má n ),l é0 què confiaria uma soberania política ilimitada às maiorias eleitorais »
atuais, é atualmente confiado‘aos tribunais constitucionais cuja tarefa não se .
limita mais a proteger a Constituição contra b legislador, mas amplia-se ao
*
.

l
'
turo”; podemqs acreditar também - acreditou-se na época das Luzes que ela .
dispõe do "futuro”, Daí esta proclamação solene endereçada às gerações presen-
.
tes e futuras A lei, sob estas condições, não é a injunção endereçada, no fogo
— *

controle do próprio constituinte (entendido como constituinte "derivado”, 4 >& .da açãò, aos executantes e subordinados; elá não é a ordem mais oumenos im-
* I *

exercendo o poder de revisão). Este papel é, ao mesmo tempo, de censura e de S 1


provisada e revisada, imposta pélas circunstâncias sempre modificáveis; ela é

*
qbertura*' De censura4 quando se trata de invalidar, como aconteceu na índia e , J
ná África do Sul, por exèmplo, tentativas de revisão da Constituição, operadas j '
-
esta máxima de ação geral, impessoal e intemporal, que atravessará os séculos^
porque é marcada pelo selo da razão: a perpetuidade não reside no "voto das
com violaçã o destes princípios fundamentais enum contexto de manipulação 1 leis”? "Invenção maravilhosa”, escreve Jean Carbonnier, "esta possibilidade de
política.181 Como abertura, quando sé trata de interpretar noções tão abertas $ colocar ã vontadesoberana de reserva, de armazenar em palavras um pouco de
quanto "forma republicana”, que figura na Constituição francesa: se uma tál [í
'
poder, uma ordem que viverá perpetuamente uma virtude no imperativo,
referência opõe-se claramente a um retorno do regimè monárquico, ou para
a instauração de uma ditadura, será que ela visa também o respeito da liber- • í]
j * *

que não se dirige a ninguém particular é que interpela todo mundo”.182 -


V
O elo entre lei e tempo do futuro, lei e promessa, lei e projeto é, então,
dade de imprensa, va independência da magistratura, o controle do executivo
{

pelo Parlamento? Pode-sepensar, certamente, mas é preciso convir que estas \


absolutamente central. Os revolucionários sabiam no bem, pois colocavam a -
lei no centro de seu projéto político: não somente a lei domo instrumento de
1
questões e muitas outras ainda continuarão a derivar da interpretação e, as- ^ ' governo (trata-sje A de uftia concepção muito enfraquecida da lei que caracte-
sim, do tempo metamórfko, único suscetível de manter fecunda a tensão en-
f
tre ordem e desordem. Como sempre, é justamente ao presente que se trata de • W
M j ' ^ riza, antes, nossa atualidade), mas alei como expressão de valores superiores,
.
suscetíveis de regenerar p corpo social Longe de se contentar em gerai o so-~
fazer a triagem, nà herança do passado, do qufe ainda é liecessário para que o ,
* „
futuro tenna Sentido.
* V
-
*
-
cial. no dia a-dia, uma lei deste tipo tem esse duplo efeito, próprio a qualquer
i
ruptura revolucionária, de romper com um passado considerado corrompido
/

» V
\ , - f

e desencaminhado, e fundar uma ordem nova portadora dê umanova memó-


s

i
V
1

\
.
ria Chocando-se com os preconceitos e os abusos efetuados pelo antigo direi- r

. *
180 ACKERMANN, B La démocratie dualiste. In: 1789 etVinventwn c{ e la Constitution . f
to, cujos costumes e precedentes ainda trazem sua iíiarca, tem se a ambição de - i»

.
Sous la directiort de Michel Troper et Lucien Jaume Paris: LGDJ; Bruxelies: Bruy- 1
instituir um direito regenerado, fundador do projeto Ássim, localizado no .
lant, 1994. p. 192 et'seq. *
»

cruzamento do tempo, neste momento histórico em que parece possível redis-


* , *

. . . .
181 Cf igualmente KLEIN, dpi cit / p 176 et seq.;'FRÊMONT, J ; BOUDREAUER E Su
praconstitutionnalité canaâienne et sécession du Québec, no prelo, p. 9-11. Em sua
- ** tribuir as cartas, a lei é a própria expressão do projeto revolucionário: nela se
decisão de 2 de setembro de 1992, relativa à ratificação do Tratado cfe Maastricht, *
concentra a expressão da vontade popular racional (a vontade geral), através
„ 0 .Conselho constitucional francês admite pelaprimeira vez que, se o poder consti -. -j
tuinte fosse “soberano”, seria “sob reserva das"prescrições da 5a alínea do artigo 89”
-
V
4
* x
*

.
Então, estava aberta a porta para Uní controle do poder de revisão (contudo, com 182 J. Carbonnier, Essais sur les lois, Repert*ório do notariado de Defrénois, 1979, p. 9.
a’única exceção dàs revisões referendárias) . I
**
4 *

1
» >

* \
\ /
)

268 * 269
V

<
»
\

Capitulo 3 , ,
i
.
Prómcssa Ligar o futuro . t

i
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r * y *

/
*
*
/
\
*r

dela declinam-se as ordens intemporais da razão, com ela b povo garante sua Desejosos de ação, nossos nomógrafossabíam bem, por outro lado, que
auto -instituição. Daí, o legicentrismo tão característico da concepção france a pedagogia era a chave do sucesso: não somente a lei devia ser simples e cla-
;

sa das fontes do direito:183 colocado como o astro solar no centro da nebulosa
- ra e, se possível, seguida de um preâ mbulo explicativo, para ser compreendi-

\
- ,
t

normativa, a lei ordena o movimento de todas as outras normas


Um super investimento como este,*sobre a lei, não se explica somente
.
.
da' ( e, sobretudo, amada) por todos, mas melhor ainda o legislador seria, ele
mesmo, um pedagogo da nação. O “instituidor do povo”, escrevera Rous- *

péla confiança dada aos recursos do jurídico; a ação dos costumes, da moral e r sèáu.185 “Instituidor”: aquele que instituí e que instrui; já que a idéia de direi-
da pedagogia é igualmente mobilizado em apoio deste projeto. Ou, mais exa
/
- to está por vir, é preciso começar bemí por ensiná-la. b

tamenté, poder-se-ia dizer que o jurídico parece ter investido completamente Daí a urgência educativa, verdadeirò jifgar comum dos debates revolu-
nestes domínios, em benef ício do que não é muito forte denominai; de “pai- - í cionários. Que a educação cidadã fosse a prioridade absoluta do novo regime,
xão legislativa”. Entre o direito e os costumes, sob a inspiração da virtude e
V
era um ponto de acordo unânime, pois todos compreendiam que somente
pela interpretação da pedagogia, as Luze e a revolução estabeleceram os laços esfe tipo de pedagogia poderia resolver o espinhoso problema de antecedên-
r ^ ^
mais estreitos. Entre estes quatro termos: direito (íei), costumes, virtude e pe "jj - cia política, tão bem expresso por Rousseau: como fazer com que os membros -
-
dagogia, visa se estabelecer uma identificação cada vez mais estreita na pers -
l
- do corpo social fossem, antes das leis, o que se tornariam graças a elas: cida-
pectiva de um futuro necessariamente votado à perfectibilidade da nação. dãos responsáveis? Como fazer chegar este povo ideal, tão distante do povo
-
V

*
k real e, contudo, necessário à fabricação das leis? Só a educação poderia contri
* *
.
«fc
*
o
.
buir eficazmenfe para este efeito Condorcet não havia decretado que “não é
NOMóFUOS E PEDAGOGOS : quimérico acreditar que a cultura pode melhorar a$ gerações, elas mesmas, e
S
f *

' i
qUe o aperfeiçoamento das faculdades dos indivíduos é transmissível”? Cer
186
-
* Já em sua origem, a lei não é o produto de trabalhos especializados e 1 tamenfe, o direito à instrução irá figurar em lugar de destaque, num título pri-
técnicbs, mas o fruto de uma fervorosa elaboração coletiva queparece ter atra- Á meiro da Constituição de setembro de 1791 . t

vessado todo o século18; fazia-se alei nos salões era escrita nesses inúmera- /1
\ ,

^
veis círculos que, de Fénelon a Rousseau, passando pòr Mably e Òiderot, for-. '*1 \
*
r

I
mavam uma verdadeira corrente literária: o “gênero nomográfico” 184 Era a - Ò CÓDIGO CIVIL , VERDADEIRA CONSTITUIÇÃO DA NAÇÃO *
* época epi que as leis - estas leis em projeto, detentoras de todas a$ esperanças c t
\

~ tornam -se objeto de amor: Gilbert Romníe, o Convencional inventor do ca- J A paixão pelas leis só chegaria, contudo, ao sublime, se estas pr óprias
.
lendário revolucionário, não fundara.em Paris o Clube dos Nomófilosl a i - leis pudessem ordenar-se sob a forma do.Código Esta reivindicação já figura-
.
Amicale* da lei, em suma Longe de comprazer-se em uma ren úncia impoten- * * va nos cadernos de queixas endereçadas aos Estados gerais de 1789; a revolu-
te à ação, como o fizeram os autores do género utópico, nossos nomógrafos de 4 ção eo império farão delas sua primeira prioridade Reunir em um ú nico livro
»
.
i
salão ardiam, ao contrário, parapassar ao ato: Diderot acossava Catharina II o direito, de uma nação, enunciar em algumas centenas de artigos, redigidos
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.
* da Rússia com grandiosos projetos de legislação, entretanto, Rousseau legisla
*
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- numa linguagem clara e acessível, as soluções jurídicas outrora dispersas num •
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. va> inutilmente, para a Córsega e para a Polónia


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* 185 ROUSSEAU, J.-J. Du contrnt social Des .


prí ncipes ãu droitpolí tique Paris: Bordas, .
1972.1, 7.
t

\183 droit. Revue de droitpublic,n. 104, p. 322 et seq., 1988.


CHEVALLIER, J. L’État de è
x

184 J. CARBONNIER, Essaís sur les lais, Repertório do notariado de Defrénois, 1979, p. 186 Àpud LÁFORE R. Le droit
, à Pinstructkih dans les Déclaratí ons de Tan I . In: Les Dé -
208 et seq. , r V clarations de Van L Paris: PUF, 1995. p. 167.
*
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270 I 271
í *1
* / Capítulo 3 .
Promessa Ligar o futuro .
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emaranhado de costumes e decretos, era chegar átraVés de um mesmo movi- / substituí -los pelos modelos simples da propriedade e da convenção-rlei. Assim,
mento aos votos de unificação, de simplificação e de estabilização do direito.
' o Código penal imporiauma classificação tripartite das infrações e uma escala '

Como a Constituição, o Código representaria a forma mais realizada der tem- ,


das penas correspondentes, em substituição ao imbróglio das iiicriminaçoes e
po jurídico prometèico. De resto, nunca se deixçu de sustentar que o Código das penas, observado no final do Antigo regime. Fatores ideológicos contri-
:
< civil era a “verdadeira Constituição* da nação - sua constituição material, o re- \J buem igualmente para o sucesso das codificações: uma representação clara das
\
ceptáculo dos valores nos quais ela se reconheceria duradouramente, 187 necessidades, ao encontro da base de um modelo de sociedade; destacado das
A longevidade, ainda não desmentida do Código Napoleônico de 1804, J coerções do imediato e dos pesos partidários. No caso do Código civil, o direi-
»
contrasta efetivamente çom â extrema mutabilidade das constituições polí ti- | to natural e suas exigências “transtemporais” constituíram incontestavelmente
cas de que a França foi dotada no decorrer do mesmo período. Como se no a referência comum às sensibilidades opostas daqueles que bem teriam prefe-
momento de codificar a experiência do passado pudesse se concenfrar em um rido voltar ao antigo direito e aqueles que,ao contrário, pretendiam agarrar-se
*

“precipitado* homogéneo e que as exigências do futuro estivessem suficiente- 1


' às aquisições do direito revolucionário: de Çambacérès a Portalis, o direito na-
mente descobertas para que o Código pudesse apreendê-la em formas, senão ' tural servirá como linguagem comum, base de compromissos racionais,
*
intangíveis, pelo menos bastante abertas para que todas as modificações pos- ,
São, enfim, razões de técnicas jurídicas que garantem aos códigos ó in-
teriores pudessem nelas se integrar, sem desnaturar o conjunto. O Código, teresse periódico de que são objeto e, às vezes, seu sucesso duradouro. A todas
* *
• as qualidades reconhecidas na lei ( generalidade, impessoalidade, estabilida-
nestas condições, acede a esta espécie de “estagnação mágica” em que o tem-
'
:
po parece interromper-se ou, melhor aindà, se desenvolve fora do tempo or- de), o código empresta, de acréscimo, o efeito desmultiplicador que se liga à

dinário e escapa à lei ordinária do envelhecimento talyez porque acumula si- *
*j concentração de sua matéria; reunida em um único volume, a matéria codifi-
multaneamente os recursos do tempo das fundações, mobilizador de memó- cadá se convencionou referir-se ao essencial: dela são separados os textos re-
,
t
ria, e os do tempo pròmetêico, avalista das promessas para o futuro. À este res- dundantes, obscuros, caí dos em desuso; ambiguidades, latinismos e arcaísmos
peito, comparando o Código civil a alguns monumentos da literatura, Car- são, em princípio, banidos. Escrito tfuma linguagem compreensível por todos,
bonnier escreve: “cem leituras sinuosas puderam ser dadas dele, cem comen- o código é desde então destinado a ser conhecido por todos. Por ouWlado,
tários atormentados: eles se ehcontratm em estado de modernidade perpétua, 1
do código ideal espera-se ainda a coerência, a completude e a exclusividade:
de rejuvenescimento indefinido* 188 ' * ' 1 qualquer questão deve receber do código uma resposta-única e sem equívoco
I
tTm tal prodígio jurídico só explicado pela ação convergente de uma
^ ' *
1 e nenhuma fpnte concorrente pode pretender obscurecer-lhe os princípios.190
série de fatores.18 ® Inicialmente, fatores políticos: uma revolução beip sucedida, ' \ Um tal conceito de código, cujo ideal triunfa no final do século 18, tra-
uma independência novamerite conquistada, a afirmação de uni poder políti-
'
1 j duz a vitória da concepção qualitativa da codificação sobre sua rival, a concep-
co forte e esclarecido ( Justiniano, Frederico II, Napoleão. ,.) . Fatores sociais, em : çao quantitativa. Esta última estende-se ao sentido de compilação; simples reu-
Seguida: a capacidade, ao final de uma crise, de pacificar o jogo, fixatido-lhe no- ’
/ •
nião de soluçõès que permanecem justapostas, de sorte que o caráter casuístico
^
. vas regras sob a forma de um novo pacto social. Assim, o CódigoNãvil podia
.
* '
" de sua génese não é verdadeiramente superado. Em contrapartida, na concep-
abolir o emaranhado complexo dos direitos herdados da feudalidade, para ção qualitativa a niatéria codificada é, de algum modo, metamorfoseada: dedu-
s
/

. . .
187 CARBONNIER, J Le Code civil In: Les Lteux de tnémoire Sous la direction de P . 190 Quanto às perfeições atribuídas ao Código no pensamento clássico conf , VÁN-
^ .
v . .
Nora Paris: Gallimard, 1997. t. II: La riation, p. 309 . . *
DERLINDEN, J. Le concept de còde en Europa occidentale du XIII aoXDCsièâle Es- .
' - *
- 188 Ibi&rp. 308 . -
sai de définitiotu Bruxelles: Éditions de 1 Institut de sociologie de TUniversité libre
de Bruxelles, 1967. p. 163 et seq.
<

' , 189 OPPETIT, B. Essai sur la codificaiion. Paris: PUF, 1998. p. 8 et seq.
* • ^ '
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272 273
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Capítulo 3
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Promessa Ligaf o futuró . /

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zida de princípios gerais e racionais ela é, por acréscimo, abastecida com regras ’ 1
~ rista . O instrumento da grande reforma utilitarista, que ele denominava de
, * , , í»
de.aplicação, de interpretação e dè transformação, suscet íveis a resolver as am * - ^ seus desejos, conira à lentidão do. costume e do conservadorismo dos Parla-
.
I

bigílidades, antinomias e lacunas que pudessem surgir no futuro Compreende - mentos, era precisàmente o Código que teria transtornado radicalmente a

-
I

, se que, assim equipado para garantir sua própria programação, o có digo tenha ' jj
^ matéria jurídica:193 De início*questão de conteúdo, desde que o Código, apli-
i sido Concebido como um instrumento destinado a atravessar os séculos,191 .j cando os princípios de’uma legislação experimental, votada à busca do maior
^
Resta que um tal modelo jurídico deriva, no essencial, do ideal. Não há, * bem estar para o maior- nú mero, pelo viés de uma aritmética moral ç de um
certamente, nenhum código histórico que corresponda exatamente a esta ima , - equilíbrio dos prazeres e dasq>enas, apenas conteria princípios conformes à
gem , mesmo que alguns tenham tendido para isto. Por outro lado , este modelo , j . reforma"utilitarista. Questão de forma;em seguida, à medida que o código se -
‘ racionalizado de um código prometêico não deixou de tomar-se objeto de uma • ria a expressão de uma ciência do pifeito inteiramente renovada. A ambição
*

“alternância de feses de expansão e de letargia, de favor e de indiferença”.192 Mes- ;


*

i
de Bentham não tinha limites a.< esse respeito: “tudo aqui deve ser refeito”, es- ,
*

mo na charneira dos séculos 18 e 19, no momento em que a idéia de código afír- crevia ele, “uma língua pretensamente culta a desaprender, uma língua sim-
/

mou-se com mais força, seu conceito, e principalmente sua relação com o tem- $ 3 ^ ples e familiar a se ensinar”.194 Tudo seria reposto em obf as: ó léxico jurídico,
po, era objeto de controvérsias importantes Pode-se, a este respeito, opor as fi- _
. que seria preciso enriquecer com neologismos e tirar o lastro das ficções e dos
"
guras emblemáticas de três juristas que foram contemporâneos e que todos os arcaísmos que o abarrotam] as classificações a serem acertadas, em vista de um
três desenvolveram uma idéia de codificação que iria marcar duradouramente ' i quadro exaustivo que seria para o direito o que as nomenclaturas de Lavoisier
sua tradição jurídica respectiva o inglês Bentham, o alemão Savigny e o francês j eram para a química, e as de Lineu para a botâ nica; uma lógica normativa (es-
^
Portalis; Bentham, detentor de uma filosofia Utilitarista, que advogara por um
código,racional em transformação permanente, Savigny, que irá se Opor, com J
boço da futura lógica deôntica) que seria para as proposições normativas o
que a lógica aristotélica era para as proposições constativas, Levado por sua
todas as suas forças, à codificação em nome de uma concepção romântica e his-' : '
paixão reformadora, Bentham comprometeu-se mesmo à redação dos princí-
v , toricista do direito, concebido como Volksg éist Portalis, enfim , principal redator 1. pios de uma gramática universal, que proveria com bases puramente racionais
\

do Código civil e partidário He uma síntese tão espantosa quanto eficaz, entre “o j *

as regras e os conceitos» de qualquer linguagem possível195 onde se encontra * -


- espírito de sistema que tende a destruir tudo, e o espírito de superstição que ten r* - o elo íntimo, compreendido pelos maiores, entre direitox língua e tempo (Sa-
, de a tudo conservar”, São três maneiras diferentes de conjugar o tempo e'o di - '

vigny e.Portalis veremos, não demorarão em enunciar estes três termos numa
reito,.das quais apenas a última - sem dúvida porque é “metamórfiça”- concre- i
>
_
tízará o sonho prometêico de domínio do futuro através do código. 1
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#
ordem diferente).
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Compreende se que, fundando-se em bases tão radicais, Bentham nã o
-
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.
tenhá palavras muito severas para vilipendiar a Common Law e ps Statutes da
Inglaterra de seu tempo, incapazes de produzir ã menor segurança jurídica.
*

BENTHAM, TUDO ESTá POR REFAZER


^
1

*
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< * *
* v / \

í Lembramo-nos 3à concepção que Bentham fazia’ do tempo jurídico: 193 OST, F. Codif íçation et temporalité dans la pejisée de J. Bentham. In: Actuaiité de la
>•] pensée juridique, de Jererny Bentham. Sous la direction de P. Gérard, F, Ost etM , Van
- um tempo futurista, gradualista e continuísta, atribuído à sua filosofia utilita- »
de Kerchove. Bruxelles: Publicatiòns desFUSL, 1987. p.J 63 etseq.
/

n
k 194 BENTHAM, J. Vue généraled*un corps compiet de législation. In: Oeuvres de J. Ben- “
t
« j t
tham, jurisconsulte anglais, Édité par E. Dumont Bruxelles:,Coster, 1829.1. 1, p. 347C,
191 OST. F. La codification, une technique juridique pour aujour-d hui? In: U Étatpro - >
X

ptãslf Sous la direction de C.-A . Morand, Par ísr Publisud, 1991. p. 237 et seq. ^ 195 BENTHAM , J. Fragments on Universal Gramniar, The Works ofj: Bentham . Edin-
,

burgh: Bowring, 1778-1843. t. Vlir, p. 341 et seq.


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192 OPPETIT, B. Essãi sur la codification. Paris; PJJF, 1998. p. 8.
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Capítulo 3
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Prptnèssa.Ligar o futuro

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. oposto à fcodificação, era resposta^a um opúsculo de outro jurista alemão,
* Tudo issopara ele deve ser descartado em prol do Código perfeito, do qual de- r
igualnrente de origem francesa, Antpn Thibaut: Da necessidade de um direito '
senha o quadro Pannomion : Complete Bo'dy oflaw - um código completo e •u
^ i
. v
civil geral para a Alemanha 19* ,Neste texto, Thibaut pretendia se aproveitar do
*

racional feito para “comandar e instruir” ÍJm código do qual cada artigo será '
explicitainente justificado num comentário específico, o rationale pela contri- \ ^ • i *
• fato de que o imperialismo napoleônico acabava de transtornar as instituiçõ es
germânicas imemoraisvdo Santo Império romano germâ nico e da ordem po- - *

buição que traz para o ideal utilitarista.196 Monumento de razão utilitarista, o ’ V
lítica herdada* da sociedade feudal para propor à Alemanha uma codificação
-
Pannomion, contudo, não está destinado a tornar se uma relíquia histórica: ele '
.
deverá evoluir à vontade das necessidades e dos progressos, devidamente me-
' moderna, que traduziria as aspiraçõ es da burguesia esclarecida, em prol da

unidade nacional e de uma sociedade liberal. Ele1 denunciava, com Bentham


i

didos pelo cálculo sempre atualizado dos prazeres e das penas. Igualmente, o '
*
; »

trabalho de legislação é uma tarefa contínua, um processo permanente que se * Y


. no mesmo momento para o diréitò inglês, o estado deplorável do direito ale-
.
/

exercerá sem descanso, com 9 concurso de administradores e de estatísticos mão - o que ele denominava “mistura confusa do antigo caos” Nosso direito
Acontece que nenhuma das ofertas de serviço de Bentham foi coroada. civil, escrevia ele, “necessita de uma transformação rápida e total” Daí a ne-
de êxito: de Catarina da Rússia ao Presidente Madison, dos Estados Unidos, , .
^
1
cessidade de um “código simples que fortaleça o estado de nossas instituições #

civis” e cujos benefícios se façam sentir por todo o império “para a eternida-
todos recusaram tão ambiciosos projetos. Bentham estava condenado a traba - de dos tempos”.199 » •

lhar em segredo e para si mesmo, como testemunha este curioso manuscrito \

conservado no University College de Londres: “aqui começa o pannomiot } da ' Cabeça da Escola do direito histórito, Savigny opõe-se frontalmente a
,

*

r
.
nação francesa Eoi estabelecido por Nós, Louis, rei da nação, décimo sexto do este programa, ao qual repreende por ser inadaptado «ao gênio germ ânico de
nufrir-se de uma filosofia racionalista, em desnível total com a marcha pro-
nome, com o consentimento dos estados gerais reunidos em Versalhes? em l
|

funda da história e por proceder de uma concepção estatal positivista do di-


v de janeiro <íe 1800 ( sic) dà eraNcristã”.197 O Código e o tempo jurídico de Ben ' 1
tham são prometêicos seguramentè... mas de um Prometeu acorrentado, cuja J
- reito, rejeitada por ele. Os projetos de codificação não fazem justiça à história,
1
ação, sem se inscrever no tempo real da história, parece ter dificuldade em se escreve ele: o passado é desqualificado e o futuro, mantido em respeito, “tudo
o que torna a história salutar e fecunda desapareceu: tudo isso dá lugar a uma
transformar. . ^
X
.
/
f
expectativa desmedida do tempo presente, que se acredita chamado para nada
menos qUe representar realmente a perfeição”. Desta falta de tomada em con-
<*

SAVIGNY, A HSITóRIâ SALUTAR E FECUNDA . sideração da “fecundidade” da experiência ( da qual a tradição jurídica é o re -
-
V

.
*
í
jeito dos costumes, dos precedentes e da tradição em geral), resulta simulta
É precisamente em nome da história que Eriedrich Cari von Savigny neamente um fixismo e uma mutabilidade criticáveis (isso só é paradoxal na
v

(1779-1861) publicarem 1814 um mahifesto, sob o título: Sobre ayocação do aparência: já notamos que o positivismo implicava umà temporalidade “fora
nossô tempo para af legislação é a ciência do direito; este texto, violentamenté do tempo”,.cada norma sendo, por convenção, instantânea e eternamente vá-
4 *
&
*
*

.
196 BENTHAM, Promulgation des raisons 'des lois In: Oeuvres de / Bentham, juris-
*
. ' .
198 KRYSTUFEK, V 2. La querelle entre Savgny et Thibaut et son influence.sur la pen-
.
consulte angí ais. Édité pai: E. Dumont BruXelles: Coster, 1829.11, p 269; Codifica . - .
sée juridique européenne Revue historique du droitfrançais et é tranger, p. 59 et seq*
1

»
. .
tion proposal WThe Works of Jeremy Bentham Edjted by J. Bpwring, New York: 1966; DUFOUR, Á. Lidée de codification etsa critique dans lá pensée juridique al -
. . .
jRussell 8c Russell], 1962».t IV, p 538
*
- . .
lemande des XVIIIe XIXe siècles Droits, n 24, p 45 et seq , 1996. . .
*
.
, 197 Manuscrit conservé à FUC, no 100, apud HÀLÉVY, E La Formation du radicalism ] 199 Apud DUFOUR, Ai Lidée de codification et $a critique dahs la pensée juridique al -
>
.
philòsophique. Paris: PUF, 1995.1 1: La jeneusse de Bentham, p 367 . . 1
-
lemande des XVIIIe XIXe siècles. Droits, n. 24, p. 53-54, 1996 . t 1

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I
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Capftulo 3
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Promessa, Ligar o futuro \ i

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lida, mas nada se opondo à sua mudança frequente), Fixismo: “er ágem-se no- , * Para ser estudado mais de perto, e principalmente o Discours préliminaire de
s v
*

vos códigos que, por sua perfeição, devem garantir a administração da justiça, ,
Portalis, pode-se perguntar se uma boa parte de seu bom sucesso não é devida,
i

uma segurança mecânica; códigos que devem ser igualmente utilizáveis por \
»» V
ao contrário, à maneira de compromisso representada pela concepçã o do tem-
r
pura abstra ção por todos os povos e todos os tempos ” Mutabilidade;segundo 4
4

.
po que compartilhava seu principal autor Advogado sob o antigo regime, exi-
esta concepção, “todo direito positivo procede das leis, ou seja, das prescrições lado na Alemanha na época do Terror (lazer forçado que resolveu aproveitar
-
^ i

expressas do poder supremo [, .]. Em consequência, a legislação é de um teor J v


para/escrever uma obta de título evocador: De Vusage et de Vabus de Vespriiphi
totalmente fortuito e cambiante, e pode ser muito bem que o direito de ama - -
losQphique ãurantle dix huitième siècle), discípulo de Mofltesquieu, Jean-Étien-
• ne-Marie Portalis foi o principal encorajador de uma
nhã em nada se assemelhe ao direitò de hoje” 200 covmissão de quatro
A este direito codificado, abstrato er a-histórico, Sâvigny opõe, com o V níembros, encarregàda por Bonaparte de terminar a reda ção de um projeto de:

.
sucesso que sabemos, um direito consuetudinário moldado nas tradições na- i ' .
texto que iria tomar-se o Código civil de 1804 Combatendo com sucesso, em
N
.
cionais “É com a língua” escreve ele, “que é preciso comparar o direito. ^
v

duas frentes - à esquerda contra os ideólogos ligados ao direito intermediário


^

>
*
Como para a língua,' não há para o direito nenhum momento de partada to v
4

tal”.201 Bentham lembramo.-nos disso, pretendia escrever com ares novos uma •
)
- V
dã revolução, à direita contra os conservadores que apenas sonhavam com a
restauração - Portalis levará a empresa ao seu termo, não deixando em seus
*
"

* f *

gramática universal que seria a condição prévia para a reforma utilitarista.' " discursos e intervenções203 de desenvolver um pensamento revelador de um do-
- mimo profundíssimo das relações que o direito mantém com o tempo.
*
Sayigny e seus discípulos, ap contrário, jnspiravam se no desenvolyimento ,}
* espontâneo da língua, regida por ninguém, para pensar a transformação di- \ Trata-se, de início, de explicar o fracasso de dez anos de tentativas pre- -
í- V
fusa e coletiva do direito, assim como o desenvolvimento orgâ nico das inst cedentes de,codificação. Por que conseguiríamos hoje, no ponto em que Canr-*
tuições. “É tão igualmente impossível para o homem inventar unicamente ^ bacères e tantos outros fracassaram? É que, diz Portalis, "hoje a França respi-
ra”. No tempo da revolução, todò direito é político, e "a cada instante as mu-
*)>
pela razão Um direito que se desenvolva espontaneamente, quanto é ábsurdo
- ' querer jnventar uma língua ò u uma literatura própria”\, escrevia J, Grimm,
discípulo de Savigny.202 *
r
danças nascem das mudanças e as circunstâ ncias das circunstâncias. As insti-
tuições se sucedem com rapidez, sem que possamos fixar-yos em nenhuma” 204 .
'4
*
/
Hoje atualmente, tendo voltado a calma, é possível contentar-se com a.“sabe-
>
^ .
doria que preside aos estabelecimentos duradouros”205 Tranquilizador, Porta-
PORTALIS, -
\

OS CóDIGOS DOS POVOS FAZEM SE A


*
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%
,
lis dá seu aval ao clã conservador (no momento, não obstante, em que se
'
COM O TEMPO” i

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*

V -
apronta para fazê lo aceitar reformas tão profundas, como o cará ter civil do
.
>
casamento)! não será mais o caso, uma vez mais, de repor tudo em pbras
-
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*
1
^
s
Nestas querelas sobre a oportunidàde da codificação, o Códigò civil de
« , 1
$5 Pensaríamos estar lendo Monteçquieu: “Interroguemos a história ’, es
1804, que permanecerá o arqu étipo de Uma codificação de sucesso, passava , ‘
creve ele, “ela ê a í
v
\
4
-
f sica experimental da legislação”,206 será o caso de se aprovei-
modelo racionalistae~a-histórico de direito.
V

T
pela figura mais realizada de .um
I ^ r 4
4
* 4

i <» 203 PORTALIS, J. E,-M . Discours et rapports sur le Code civil Caen: Reproduits par la
. li Centre de philosophie politique et juridique de Caen, 1992.
200 DUFOUR, A. tidée de codification et sa critique dans la pensee juridique alleman- t
204 Discours préliminaire sur le pròjet de Çode civil (présenté le ler pluviose, an IX -
dè des XVI ÍIe -XIXe siècles. Drõits,n. 24, p. 54-55, 1996.
«
- ,
janvier 1801), op. cit„ p. 4. .
,

* 201 Ibid., p. 55. ; \

t
*
* 4
2ít 5 fbid., p. 3, 4.
•v ' 202 Apud DUFOUR, A. Droit et langage dans 1’École hisloriqtíe allemande. Archives de
philosophie du drçit, 1.13, p. 163, 1974. *
206 *
Discours de présentatiori du' Code

»
Civil (3 írimaire, an X) , op. cit., p. 96.
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*

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Promessa Ligar o futuro . *
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Capitulo'3 i

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i
tar do exercício do passado, desta tradição de bom senso, de regtas e de m áxi
4

] -
(I
.
equidade natural Confiado ao tenjpo, como p é uma mensagem lançada ao
213

l
mas que chegaram até nós e que folmam o espírito dos séculos” É que as leis J . mar e carregada por suas correntes, o'código se dá um futuro; a própria inde-
são atos de sabedoria e não de poder, “elas devem ser adaptadas ao caráter, aos ji terminação de seu projeto é o avalista mais seguro de *seu resultado, ou antes,
hábitos, à situação do povo para o qual são feitas” 207 Montesquieu escrevia: “é J . de sua progressão ininterrupta
^
. * •

necçssário respeitar o espírito geral de uma nação: o clima, a religião, as leis, \ *


Não pretenderemos, então, regrar txido na lei. Na falta de texto preciso, <

as máximas do Governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes ”208 J ... o que n ão poderfa deixar de se prpduzir mais ffequèntemente que o legislador
v Em seguida, esta afirmação assombrosa sob á pena daquele que a histó - imagina habitualmente, o juiz estará certo ao referir-se à “uma utilização
ria conhece como um de seus mais profundos reformadores: “é preciso ser só - constante, uma sequênciá ininterrupta de decisões semelhantes, a uma opi-
brio de novidades em matéria de legislação”; é que seria absurdo <centregar-se i * as - nião, ou a uma máxima recebida.” Na falta, ainda, os princípios de direito na-
4 »
*

idéias absolutas de perfeição em coisas que só são suscetíveis de uma bondade J tural farão o trabalho: “pois se a previdência do legislador é limitada, a natu-
relativa! Daí, mais do que “mudar as leis”, quase sempre é mais útil apresentar" reza é infinita!214 Precavenhamo-‘nos de acreditar, contudo, qpe tudo isso con-
5

i
.
aos cidadãos novos motivos para amá-las” 209 Montesquieu escrevia: “ o mal de vl %

duza à repetição cega dos precedentes: a mudança irá impor-se por si própria
mudar é sempre menor que o mal de sofrerí”210 Estas constatações, fortemente' b quando for levada “pelo progresso das luzes e pela força das circunstâncias”.
215

pinceladas de ceticismo, revelam uma consciência aguda da ação do tempo so -\ ; Homenagem discreta, notaremos, no campo progressista, que teria podido
-
bre as instituições humanas: “como acorrentar a ação do tempo? Comç o p o r-s e ‘ ^
acreditar-se perdedor; eis, então, Montesquieu e as Luzes, cada um à sua vez,
ao curso doá acontecimentos ou à fiiga inselisíyeLdos costumes? Como conhe
"cer e calcular de antemão aquilo que só a experiência nos pode revelar?”211 Esta-
- *
mobilizados peía formidável retórica do hábil Portalis. *
Sem dúvida, Portalis admitirá sobriamente què a comissão que ele
mos longe da ambiciosa “aritmética moral” de Bentham e de seus exércitos es- . . C '
I preside mudou ejnodificou as regras “que não eram mais adequadas à or-
*
.
H

tatísticos, ligados ao ajuste quotidiano da balança* dos prazeres e das penas

_\, dem atual das coisas,ou cuja experiência mostrara os inconvenientes”.216 De


'
J •
Contudo, e como um lutador que sabe tirar proveito da própria força
de seu adversário, Portalis conta perfeitamente poder colocar esta potência do • resto, nesta maté ria como nas outras, pode-se confiar no tempo, aqui enca-
rado sob sua faceTlestruidora. O tempo se encarregará das más leis; os juris -
tempo a serviço da lei: “Os códigos dos povos Se fazem com o' têmpof mas,
.
para falar propriamente, não os fazemos” 212 Eis, entãoj o segredo do sucesso: a
modéstia do legislador .que confere a seu texto flexibilidade suficiente para
< ^ tas falam, então, de “desuáo”. Sem d úvida, o Có digo não prevê explicitãmen-
te uma ab-rogação das lei$ por não-uso ou desuso talvez tivesse sido peri-
goso fazê-lo -, mas, concede Portalis em uma confissão deliciosa, “pode-se

permitir ao tempo que <fcfaça sua obra”, a sabedoria do codificador que, no 1

cômputo final, recolha aquilo que, do passado, passou pela “prova do tempo”, - dissimular a influência e a utilidade deste conceito não deliberado, desta po -
4
e como aval, dá confian ça aos intérpretes parã atualizá la, inspirando-se na
"
4
•4
r
-
*
<
tência invisível, pela qual, sem agitação e sem comoÇãó, os povos fazem jus
tiça às leis ruins?”217
^ *

*
-
\
* *

. -.
_ ^
207 Díscours préliminaire, p 4 5

.
XX, cap 4, g 461 .
. .
N
208 MONTESQUIEU De F ésprit des Jois Paris: Garnier: plammarion, 1979.1 1, livro .
9

213 Sobre a utilização do tempo pará consolidar a aquisição, conf. CABANIS, A. Uuti
lisation du temps par le rédacteurs du Code civil. In: Mélanges Pierre Hébraud.
-- 1
i

^ ^
„ Toulouse:Université deToulouse, 1981:I> p 171 etseq. .
, 209 Díscours préliminaire, p 5 .. 214 Díscours préliminaire, p. 9.
.
.
210 MONTESQUIEU DeFésprit desloiiParis: Garnier: Flammarion, 1979. livroXXIV,
. 215 Ibid., p. 10.
• , . .
cap 18, t. 2,' p 307 .
216 Ibid., p. 48.
f
*
211 Díscours préliminaire, p. 7-8
t
. i /

212 Ibid., p. 15 . X 217 Ibid ., . .


p 18
s f

280 281
\ t. , í!
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I - *
, .
Promessa Ligar o futuro. f

-f Capítulo 3 .
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*
*

Em seu memorial em resposta às objeções dirigidas ao projeto de Có


>

- ^J
> V
sas requisitava ou que reformava antigos abusos”. transações não repou-
221 Tais

sam, como poderíamos tentar acreditar; às,vezes, sobre medíocres comprome-


digo, Portalis e seus colegas retomam incansavelmente £ua argumentaçã o, O |
timentos, mas sob uma forte filosofia do tempo, do político e do jurídico. .
*
*
Código não seria, como o sustenta um crítico, “senã o uma simples coletânea
*
$
composta dos destroços do direito romano, das ordens dos reis, dos costumes * ;
,
Filosofia dó tempo: Portalis, melhor que ninguém tem consciência v de
que o tempo, e de início o presente, trabalha do interior (se reapropria, rein-
*

antigos e de novas leis? ” Resposta: “tanto melhor”; seria ter negligenciado '
%
/
*
tudo aquilo que seria criticável. Não é questão de “repudiar a rica herança ,que 4 terpreta), tanto o passado quanto o futuro: um passado que é preciso nem
a naçã o recebeu de seus antepassados” 218 Nem é o'çaso, entretanto, de um xtre- mumificar (ele é sempre “presente”), nem sacralizar (ele nã o deixou, igual -
torno absoluto aos costumes antigos”' como parecem desejá-lo um certo nu- '
& mente, de ser um tempo móvel), um futuro quèé preciso fevãr em considera -
mero de tribunais, aos quais o código em projeto é mandado para um pare- ção ( já é presente), sem erigi-lo, por isso, em norma absoluta da mudança por
cer. Portalis sabe perfeitamente que esta regressão é insustentável, pois a his ti mesma. Contra os tradicionalistas, que invocam o caráter imemorial de de-
tória íião deixou de avançar: “à que época de nossa história seria preciso re-
- '
3 terminadas instituições (a nobreza, o pátrio poder...), Portalis faz observar *

montar?”, pergunta ele com habilidade,2i9 r


friamente que “tudo o que é antigo foi novo”. Que importa que ignoremos %
y

hoje a data exata de seu aparecimento; o importante é que estas instituições, '

Logo, toda arte dó legislador consiste em acompanhar o tempo em sua


prova de triagem: será preciso conservar o que resistiu, rejeitar o resto e de vez t
conlò todas as outras, apareceram um dia. Assim, “pode-se dizer que não há
em quando preencher as lacunas que o presente fez surgir. O paralelo com o nada "de novo, porque o presente .sempre se liga muis ou menos ao passado,
a
trabalho operado pejo gramático sobre a língua impõe se novamente. “Sem - [ poderemos dizer igualménte que não há nada antigo, porque as instituições
d úvida, todos os filósofos reunidos não fariam uma língua [mas] aperfei- M ou os costumes mais antigos são, desde sua origem, constantemente e mais ou
/
.
çoam-na, quando ela existe Eles recolhem e combinam as regras para redigir <9
*
menos modificados pelas instituições ou pelos costumes atuais”.222 *

.
gramáticas Eles reformam expressões abusivas, retiram determinadas pala- 3 Esta concepção explicitamente metamórfica do tempo repousa, por sua
vras; propõem outras. Eles modificam, corrigem. A língua de Bossuet e de Fé- vez, sob uma idéia dó político que distingue entre governos, instituiçqes posi-
f
nelon não é a mesma de Montaigne e de Amyot ”220
Esclarecendo: os redatores do códigopraticaram explicitamente um tra-
..
^ *

tivas, e os povos “que não são instituídos por ninguém”:223 ainda aqui, um
equilíbrio dinâmico deverá ser instaurado entre projeto regulador deliberado
balho de “transação”: compromisso aceitável entre direito escrito e costumes, e tendências históricas que se exercem a longo prazo. Por sua vez, essa distin -
ção se repercute na diferença a ser estabelecida entre leis e regulamentos. As
entre direito antigo e “leis feitas desde a revolução que a nova ordem das coi
*
A'
^

- \
leis que, em cada matéria, “colocam as regras 'fundamentais e determinam as
* 4

218 Examen des divejses proposées contre la Projet de Code civil In: PORTALIS, J E " ' i . .- .-
- formas essenciais”, os regulamentos que determinam, por sua vez, “os detalhes
. .
M Discours et rapports sur le Code civil:Caen: Reproduíts par Ia Centre dê philosò de execução, as precau ções provisórias ou acidentais, os objetos instantâ neos .
- • • _»
. Por um lado, “a vigilância da autoridade que administra”, por
phie politique et juridique de Caen, 19921 p 68 *. . v > ou variaveis
/

- * outro, “a potência que institui”.


A

219 Ibid., p!69. * >


* X * * 1
224

. .
220 Tbid , p 75-76. E Portalis acrescenta: “as mesmas transformações operam-se com í \
K

maior ou menor rapidez nas práticas, nos costumes e na legislação de um povo” .


^ * Deve-se notar que estudos filológicos contemporâneos fizeram surgir, no vocabu
lá rio do Gódigo civil, uma hipertrofia dos termos significando o imprevisto e o
' - 221 -Examen des diverses proposées contre la Projet de Code civil. In: PORTALIS, J.-E.
M. Discours et rapports sur le Code civil Caen: Reproduits par la Centre de philoso-
-
.
descontínuo (BORDEA<UX, M La’grille du temps:approche lexicále du temps des , phie politique et juridique de Caen, 1992. p. 75.
*
*

.
(

< lois . . .
(Code civif 1804) Langa&e$> n 53, p 103 et seq , 1979; Id., Quand le temps dé s v - 222 Ibid., p. 73, 75* *
, vole 1’espace: temps- et espace, factéurs de normalisation dans le Code civil (1804) . 223 Ibid., p. 65.
x

.
*
i
.
In:'Relígion, société et politique M élangés en hommage à Jacques Ellul Paris: PUF, *
224 Ibid , p 17 . . .
\
*
X

.
1 83 p.185 et seq.). •

1 ^ \ 0
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282 283
. Promessa. Ligar o futuro.
*
Capítulo 3 ¥ c
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1
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lamento “do direito contemporâneo’1.227 Padronizando o estado presente do di-
V \
r
A CODIFICAÇÃO EM DIREITO CONSTANTE , OU O TONEL 'A
reito, numa espécie de instantâ neo codificado, espera-se limitar-lhe o curso *

DAS DANAIDES VI
/ »
« >
* descontrolado. , ~
\ ,
*
\
* V Contudo, nada é menqs seguro. E que um bô mn ú mero de tè xtos esca -
Administrar ou instituir, tudo está contido nesta alternativa: Portalis, >
pam, por natureza, à codificação, ou devido à sua natureza de disposições 1

porque'tinha ô
olhar voltado para as coisas antigas que desfilam lentamente, i
r
r transitórias ou de leis temporárias ou pelo fato da natureza de )Séus autores: i

foi autor de um código que “institui”, sem por is$o deixar, durante dois sécu - autoridades europ éias, autoridades locais, autoridades ádministrativas inde-
los, de sé transformar. ‘Mas nós que temos atualmente os olhos fixados em

pendentes (muito ativas, por exemplo, nos setores do áudiovísuâl e do direito


“objetos instantâ neos“~ou variáveis”, que desfilam em grande velocidade no ,
-
4

.
»

bursátil e bancário) 228 Às vezes, até os críticos visam o coração do projeto: co


primeiro plano, seríamos ainda capazes de codificação? Desde que nosso tem . , 4 - dificar 80.000 circulares? Seria codificar “leis imagifiárias”, já que elas conti -
' po jurídico parece sér, antes, de modo perfeito, tanto aquele do “questiona S - nuam desprovidas de efeitos jurídicos para os administrados Compilar 8.000 .
„ mento” quanto o da promessa, poderíamos duvidar disso. Contudo, não é que *jl
4
*
leis? “O excesso e a desmesura” condenam esta ambição que “conduziria ao
a ambição codificadora não tomasse, a intervalos regulares, os governos'. Na *

melhor dos mundos jurídicos”. Simplificar o direito numa segunda etapa? A


França, por exemplo, um decreto de 12 de dezembro de 1989 relançou o pro- 3j experiência prova que a produção de textos novos sempre conduziu à ampli-
cessou instituindo uma “Comissap superior da codificação” cuja presidência
fora confiada ao próprio primeiro-ministro. Em 1995, um seminário governa-
4
. •
ficação e não à simplificação. E R Drago, autor destas críticas, advoga resolu -
j tamente por uma desregulafnentação que, por sua vez, pelo menos é baseada
k

mental sobre a reforma do Estado fixou como objetivo a codificaçã o global do 1 numa doutrina que faltaria totalmente aos projetos em, obra.239 *

direito francês até o ano 2000 7 vontade concretizada numa circular do pfi- ' *
*
,
Por outço lado faremos notar a objeçãò é decisiva - que a codifica -
meiro-ministro datada de 30 de maio de 1996.225 ‘ tf -
ção contemporâ nea poderia provar se uma operação tão in útil quanto'o en -
A ambição é, simultaneamente, transbordante e limitada: transbprdan- »! chimento do Tonel das Danaides, já que a própria matéria codificada nãolpá ra
'

^
te, já que são nada menos que 8000 textos legislativos e 80000 decretos e cir- de escorrer, e de se transformar. Não é, então, falar por antífrase, evocar uma
culares que o Governo se propõe a codificar; limitada, pois não se trata, insis - *
codificação de “direito constante11? O que existe, de “constante”, de fato, num
íios, senão de codificação “de direito constante”: reagrupamento, classifica-
tit 1

direito afetado por inflação crónica e numa operação delrepresamento, ela


\

C ção e higienização das regras (inclusive eliminação daquelas que não são mais i mesma apresentada como “permanente”?230 Uma codificação incessantemen -
.
conformes à Constituição ou aos comprometimentos internaciçnais), sem re- A,
foriha de fundo. Mas, acrescentamos, uma tal ordenação è a preliminar neces- vr
\

te reposta em obras e portadora de códigos cada vez mais parcelados e espe -


. cializados,231 não se trataria definitivamente de um remédio que participa ele
\
s
á ria para um trabalho posterior de simplificação da matéria codificada Uma tf
V

N >
^ - \
codificação tal de direito constante; que “èe inscreve no^ presente” e é “despro
227 Circular de 3Ó de maio de 1996, loc. cit, p. 71.
vida de qualquer messianismo não pretende, assim, “instituir uma socieda-
^
1 26 4

228 »BRAIBANT, G : JJtilité ét difficultés de la codificatioil. Droits, n, 24, p", 69, 1996 .
* *
de”; mais modestamente, ela visa apenas a represar a “proliferáçao” ex> acava
i
*
' v
- *
A I

229 La codification en droit administratif français et comparé.' Droits, n. 24, p. 98-101,


*

1996.
é

V * V

4 .
225 Cf. BRAIBANT, G Utilité et difficultés de Ia codification. Droits, n. 24, p. 61 et seq., 230 SUEL, M. ESsai sur la codification à droit constant . 2. ed. Paris: Impressian des jour-
1996; na çircúlar de 30 de- níaio de 1996 é reproduzida integralmente em OPPBTIT, . . nauxofficieís, 1995. p. 256. *K
\

*
1 %
B. Essai sur la codification. Paris: PUF, 199 8 . p. 71 et seq.

231 Somente para o setor da cultura , 5 códigos çst ão em prepara o referindo-se, rés-
çã
226 OPPETJT, B. L’ayenir de la codification. Droits, n. 24, p. 75, 1996. pectivamente, à comunicação, à educação, ao património, à pesquisa e ao esporte.
*

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284 % tf
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Capítulo 3
* 1

Promessa, ligar o fuitiro


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*
*
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1 ;
A r ' N

-
mesmo do mal ou da do.ença diagrlosticadaí Não seria preciso, antes, se ver- Onde reencontramos a verdadeira inspiração de Portalis: confiança co- v

dàdelf amente buscamos limitar o fluxo dos textos, voltar à distinção que Por - . Tocáda pelo legislador nos outros poderes encarregados de fazer viver os.tex -
talis fazia entre a “lei que institui” e o “regulamento que administra”? E esta lei
i

tos, confiança dada ato futuro para desenvolver as promessas do presente. Tal -
não deveria ser buscada, atualmente, antes do lado dos “princípios gerais”, *
vez esteja nisto, definitivamente, a lição do Tonel das Panaides - cbmo a do
' transitoríais e tránstemporais, tal como o da boa-fé, qué doutrina e jurispru- rochedo de Sísifo, de resto: à pretensão semprç frustrada de parar o tempo, de
dência redescobrem atualmente?232 Um tal direito de princípios, não constitui- -
v prendê lo completamente no
momepto, e a certeza garantida, ao inverso, de
ria igualmente o início dé um futuro ius cómmune europeu, suscetível' de in - i
seu concurso efíóaz para aqueles que terão sabido integrá-lo em sua empresa .. .
»
j ^ se fazem com o tempo”,
“os códigos dos povos A

r troduzír, por sua vez, um pouço de otdpm no émaranhado do direito europeu \ t*\ *
*

(que buscamos, ele também, para codificar em direito constante)?233. í <* A


/
V
* I * \

Contudo, sejamos justos:a época contemporânea ainda produz, às ve-


*
-
zes, grandes códigos comovo Código civil qúe foi dado ao. Quebec em 1 de
>

\
*
\
4
CONTRAIO,.CONFIANÇA, CRÉDITO; ' I

.
janeiro de1994> volumoso corpus de 3 168 artigos, que inovam em in úmeros 0 FUTURO . VALORIZADO i

pontos, e qUe se pôde apresentai? como a expressã o de um “movimento de so- f

*
ciedade”, e, mais ainda, como “um novo contrato social” 234 Seria porque, mais 1 O que a lei, o Código e a Constituição realizam ampliadamente, na es-
j
)
que outras, a sociedade quebequense é sensível à sua soberania, de.que provou J calá do Estado, o contrato o realiza reduzidamente na escala das interações in -
ser capaz de “criar nação” em torno de um código que traduz sua escolha de r
,

v
dividuais, das associações, das empresas: nos dois casos, decorre de uma ten-
tativa de domínio do futuro pela promessa Dé resto, sabe-se bem, na base da .
-
- . "
valores essenciais, como se pode pensar Mas que não nós enganemos quanto


i,

lei há o contrato social assim como o contrato privado, que recebe sua força
a isso: as opções assim tomadas não saò analisadas como. uma adesão ao arre -
* . , f
obrigatória da lei “Contratar é prever” escrevia Georges Ripert. “O contrato é
pio de. opções intangíveis. Ao contrário, é uma interpretação ousada e evolu-
uma empresa sobre o futuro;”236 '

tiva a que apelam os redatores do Código: “nem o texto, nem lei nenhuma, de V

outro lado, substituem o uso da razão para interpretar os textos e abrir-lhes »


\ »
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novas avenidas”235 . 0 k
*

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Dois TU 0 “TERÁS- '


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. .Antes mesmo de implicar a confiança no co-cpntratante, o contrato
«
232 OPPETIT, B, Uavenir de la codification. Droits, n. 24, p. 80, 1996.
-
pressupõe confiança no futuro, uma espécie de “crédito de tempo” que leva.a
* * •
* " 1

233 Cf. o acordo institucional *de 20 dé dezembro 1994, instituindo um método de tra- *

.
4 I
u'
balho acelerado em vista de uma codificação oficial/dos textos legislativos ( JOCE, desmentir o adágio popular e preferir “dois tu o terás” áo ú nico “tens”, atual
no C43/41, 20 de fevereiro de 1995). Quanto aç papel dos princípios na elaboração
4
y

de um iuS commune europeu, cf. QST, F.; HOECKE, M. van. Legal doctrine in cri- ^ Esta projeção confiante no ‘faturo é, sem d úvida, na escala da história huma -
sis. Towardsa Europeari legal çtiençe. Legal Studies, v. 18, n. 2, p. 19? et seq„ jun. na, apenas uma conquista recente: é preciso, de fato, estar já desligado da evi- *

1998. V
-s . dência do presente imediato, e fazer-se uma representação da extensão e do
v
;234 NIORT, J.-E Le notiveau Code ciyil du Québec. Droitsy n. 24, p. 137, 1996. tempo no faturo (a “faturização” ), para renunciar a uma contrapartida .ime-
235 Le Code civil du Québec. Commentaires du ministre dela. Justice, Les Publications ( *

du Québec, 1993, t. I, p. VII. Esta tradição de uma Interpretação aberta dos códigos f, 1 ( • •
i

A
é igualmente a que era desenvolvida pêlos realistas americanos, e, principalmente, * 236 RIPERT, G, La Règle moràle dans les ohligations civiles. Paris:LGDJ, 1948. p. 144. Vér
K.Tlewdlyn, autor do Urtiform comrherdal Çode (cf. F. Michaut, Zes Réalistes cuné - ! * .
' também OST, F Temps et contrat. Critique du pacte
faustien. Anna í es du drolt de
l
.* *
ricains et la codification, no prelo) .
A
4
sr

í
\
* Louvain, p. 17 et seq., 1999/1. - »
4

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Promessa. Ligar o futuro.
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Capítulo 3
*

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.
^-
«íiaía Louis Gernet relata, a este respeito, que o direito grego antigo havia ape- '
do devedor. Onde encontramos a carga ética do compromisso linguístico, p r ^
nas imperfeitamente chegado a esta idéia, e que, quando das garantias, como , . ticularmente quando ele assume a forma da instituição da promessa .
as cauções, estavam previstas em apoio no contrato, estas tornavam-se objeto Crédito de tempo e crédito intersubjetivo, ajmtecipa ção contratual re-
de execução imediata.237 Foi apenas por um trabalho lento de abstraçã o que o presenta um desafio económico e jurídiço considerável. No planò económico,
t pensamento pôde representar a figura de um direito sóbre uma prestação'di- , a simples previsão das vantagens que o futuro trará, a perspectiva dos frutos e *

% feçida, assim como á


vantagem económica (“o interesse’7) que podia represen-
produtos que a cpisa engendrará representam um valor financeiro imediata-
tar uma tal confian ça. .
\ .
mente mobilizável Assim garantido, este futuro normativo é válorizado Às
Uma vez formada esta idéia, contudo, jua sorte foi imensa; o homem .. vezes, até recebe um valor superior a seu valor presente, desde que sè anteci-
dispunha doravante de um instrumento eficaz de mobilização do futuro: pela
pem (fala-se, então, de “especulação”) as perspectivas de desenvolvimento que ' •

, ,
outorga de Um crédito sobre um outro é como se parte do futiiro tivesse se \
lhe emprestamos,238 e graças ao crédito do qual se beneficiou, o comerciante
/
.
tornado imediatamente apropriável Extraído das áleas dos acontecimentos, ' jj
OU empresário deveria poder, pelo menos em princípio, desenvolver seus ne-
.1 subtraído às flutuações da duração, a confiança podia representar a certeza de / ‘j
* 4 t * *
gócios e gerar um benefício, logo, um aumento global de riquezas,,
qu ê tal coisa convencionada aconteceria necessariamente. É como se, de xe-
A

j Também no plano jurídico, a tomada em consideração das antecipa-


' pente, o futuro tomasse corpo, deixasse de ser um
horizonte vazio e tapado e
ções ou dás “virtualidades de díreito” não parou de se estender. Já o Código ci=-
j
que uma consistência normativa lhe era atribuída sob a forma da antecipação 1
.
confiante No limite, esta antecipação representaria mais peso, valor e duração '
vil não mais se opunha às transações (vendas, hipotecas, garantias, ..) sobre .
[
.
coisas futuras (art 1130), atestam antes que o podef de exigir representa sozi-
que o próprio presente, necessariamente transitório e fugaz. Carregado de es- , ""
^

peranças, lastreados de desejos m últiplos', o futuro assim creditado prova-se i


detentor de uma “mais-valia3* que não é somente económica, mas revelà um
rf 1
t

nho um valor patrimonial uni poder que é, de resto éle mesmo, transmissí-
vel (cessão ou penhor de crédito) *239 Depois, o direito atribui um lugar sempre
/

maior aos bens imateriais, cujo valor consiste nas perspectivas de pxodutivj -
dar à luz . /
*

-
tempo prenhe de possíveis - possíveis que, çom sua ajuda, as promessas irão
Uj
V
-
< *
dade e lucros futuros que eles representam. Imaginemos, pór exemplo, os fun -
dos' de comércio (cujo valor liga-se m ^nos ao estoque imobilizado qUe à clien-
Ainda, é preciso que à confiança nas virtualidades do futuro (o crédito J
V
tela), as explorações agrícolas, as empresas* as clientelas das profissões liberais,
de tempo) se junte a confiança no parceiro contratual, A etimologia dos ter- j ...
as licenças^ marca de direitos autorais , mesmo número de virtualidades de-
mos “confiança” e “crédito”, ámbas remetendo à creãere , prova-se aqui revela-
.
dora Confiança e crédito apóiam-se na confiança no outro: Uma confiança vidamente valorizadas e desde hoje comprometidas.
)
1
necessariamente intersubjetiva e recíproca, a partir do momento que os dtfe- '
'
Pela força aperfeiçoadora do contrato jurídicó, estas prestações, que só
existem ainda “em potência”, incorporam£se ao património do credor. Bem
• rentes sentidos da palavra “crédito” tanto revelam a confian ça que inspira'al-
"
4 • * ^
entendido, nelas .
reside uma parte de risco Puturô valorizado não é necessa-
guém, quanto a confian ça que lhe-atribuímos em troca: é porque o banquei- i
' ro tem confiança na solvabilidade do empresário, que ele lhe dá crédito. $ .
riamente um futuro jjarantido O risco até contribui para a valorizaçã o do de-
J
Quanto ao título jurídico representado pela “confiança”, repousa no fato de safio. A regra do jogo é, aqui, que os contratantes, PU um dos dois, assumam
v

que "se deu confiança” - “acrescentada a fé” “atribuído o crédito” - à'pâlavra f

238 HÉBRAUD, P. Obseryations sur la notion detemps dans le Code civil In: Êtuães of . -
. -
fertes à Pierre Kayser Aix-Marseillé: Presses de Puniversité d^Aix Marseilfe, 1979 .
- r
\

237s GERNET, L. Le temps dans les formes archaíques du droit. In: Anthropologie de Ja ’ .
JvII, p. 53 *

. .
Grècè ancienne Paris: Maspero, 1968 p. 278 et seq.; quanto ao direito judaico, cf.
.
239 SÉRIAUX, A Le futur contractuel In: AUSTRUY, J. .-f. et al. LcDroit et lefuhtr.Pa~-
f

.
DRAÍ, R. Le Mythe de la loi du talion Paris: Alinéa, 199 l. p. 154-155. /
*

. .-
ris: PUF, 1985 p 83 .
,

i.

288 289
I
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Capítulo 3
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PromesSa Ligar ó fiifitro,
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esta parte inevitável de risco que o futuro comporta. Assim, o credor de uma
1
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obrigação estipulada em divisas, deverá em princípio suportar os efeitos da
familiar, desde a análise da promessa: o que é que fundamenta o caráter obri -
gatório do contrato, como explicar que uma manifestaçã o concordante de t
depreciação monetária; o aumento dos custos de produção continuará a car-
vontades ligue duradouramente os parceiros? Antes de medir efetivamente a
\
V
go do empresário.* Às vezes, mesmo a aceitação de um risco 'confina com a * ação das circunstâncias externas sobre o contrato (sua mudança acarretaria
i

aposta, e o direito, que vê nisso uma utilidade social ou econômicá, não se


'

sua transformação), é preciso interrogar-se sobre este suplemento de norma-


*
opõe, necessariamente, como em matéria de seguro ou de venda com consti- i
tuição de renda vitalícia,.contentando-se em moderar-lhe os desafios ecepsu- tividade que liga a vontade a ela mesma através do tempo. Colocando já esta
, yJ
rar-lhe os excessos.240 questão a propósito da promessa, foi recursos da instituição e de suas regras
*
/
f
constitutivas que havíamos identificado as bases sobre as quais as vontades in-
divíduais podiam Se apoiar para $e auto-afetarem duradouramente.
. * ' * '*i N

4
POR OUTRO LADO, TODAS COISAS IGUAIS?
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A
1
A propósito 4o contrato, pode-se acentuar aqui, de uma parte, o papel
desempenhado pela lei (ontem os princípios do Código civil, hoje as inú me-
à de direção,que enquadram às
O problema dá atribuiçã o da carga dos riscos levanta a.questão, a bem j
ras normas constitutivas de uma ordem públic *
vezes de maneira muito detalhada as convenções, como em matéria de contra-
*
i
dizer central, em matéria contratual: devemos considerar, não se parou de j

perguntar, que os contratantes tenham se engajado somente rèbus sic stantibus ctos de aluguel de casas ou de contratos de trabalho/ por exemplo) e, por oixfro
/- (“todas as coisas iguais,.por outro lado”, preferem dizer os economistas), ou,
, lado, um conjunto de regras essencialmente jurisprudenciais que dão çorpo à
bem ao contrário, que su à convenção não é emendável aconteça o que for, ex- | exigência dehoa-fé, já encontrada, e apesar da qual (à falta de confiança) não
cetuada á forçâ maior, que torna a execução das obrigações ipipossível? Para l ' .
' haveria nem crédito, nem credibilidade Neste caso, aidéia de colaboração das
/ urts, o contrato n ão tem precisamente utilidade, a não ser como instrumento 3 partes sobressai sobre a busca da maximização do benefício pessoal. O êontra -
de ligação do futuro, instrumento de dominação do futuro, dos riscos inclusi- | to de associação ou de emprega poderia servir aqui como modelo, sendo que
ve. E invocar, além disso, o respeito que se deve ter à vontade dos contratan- 1
, a busca de um interesse comum constitui sua finalidade principal; cooperação
tes, segundo o princípio da Convenção-lei inscrito na alínea 1 do art. 1134 do e participação são suas regras, maia do que a estrita comutação de dívidas re -
Código civil,“Pacta suntserVanda” ( “acordos, devem ser cumpridos”) » dirão os j *

cíprocas. Qualquer forma de contrato representa, poderíamos dizer, um mo -


juristas. Erro, Responderão .outros: não poderíamos nos comprometer total- * 1
délo reduzido deste tipo de aliança voltado ao Interesse comum dos parcei-
mente às cegas e de maneira definitiva; logo, será sempre o caso de adaptar as 1 ros.241 A própria análise económica não desmente esta ariálíse de. inspira çã o *
k

- estipufaçoes contratuais às modificâçõçs circunstanciais, e isto em considera- ~ ] i


ética: os economistas também mostraram as vantagens, tanto individuais

-
ção ao próprio acordo, que é analisado como uma obra de colaboração, não
como uma loteria ou uma exploração. E estes juristas, a invocar a alínea3 do
i - * * *

,quanto coletivas, desta forma de colaboração duradoura, que busca manter a


1
* »

\ *

mesmo artigo 1134, que estipulava que as convençoes‘“devem ser executadas


utilidade económica do acordo (seu sentido para cada Unia das duas partes), -
p ganho jbmediato de um dos parceiros.
A
* 4 f *
* *
mais do que maximizar «

de boa-fé”. n
*'
^ \
* *
Para deslindar este emaranhado e decidir esta controvérsia, é preciso, \
i
»
w

»
contudo, colocar uma quesfão ainda mais fundamental que já nos é, de resto, i . .
241 ROUHETTE, G Yo Contrat In: Encydop. Universalis 472 Com toda razão, o au- . *
w
V

* tor ressalta que, a esta relativa moralização do contrato corresponde uma relativa *
i
m \ economia do cònípromisso, apresentado hoje, principalmeiítepelos antrop ólogos
240 SÉRI UX, A. Le futur contractuel. In: AUSTRUY, J. J. et al. Le Droit et lefutur. Pa
- - . .
(cf .M Mauss e suas análises do pptlatch), como tuna liberalidade sempre mais ou \

f
^
ris: PUF, 1985. p. 89-91.
/'
t
-
1 -
dade vivida ( p 470)
.
menos feita “a título de resposta”, desde que saibamos inseri-la em tuna continui
. .
-
% *

*
»

290
291
V ) \
Cap ítulo 3
Promessa. Ligar o futuro.
K
t
\

Se é, então, na instituição social, mais do que nas vontades individuais,


-‘ \
/
*• »

-
trar no par “iustantaneidade-perenidáde” (instantaneid.ade da génese da nor
'
que o contrato vai buscar sua força obrigatória, nós podemos reformular nos- ma, perenidade de seus efeitos até a nova manifestação instantânea de vonta- /

sa questão inicial: será que a instituição social entende que o contrato somen- ‘ , ~ de) uma maneira eficaz de subtrair as figuras jurídicas.às áleas das conjuntu-
,

te seja concluído por “todas as coisas iguais”, ou lhe impõe uma inflexível imu- ’• ‘ f ãs económicas ou das turbulências psicológicas. Esta tese se verifica no triplo
* 1

tabilidade? Nossa hipótese é que lei e jurisprudência sempre buscaram confe- \


rir duração ao contrato e garantir também a estabilidade .das relações priva-
- plano da formulação do contrato, de spa interpretação e de sua modifica ção
eventual.242
das. Mas os meios para atingir este objetivo continuam controversos e evoluí- i

Assim como Rousseau não considerava negocia ção ,ou deliberação pré-
e
«
\
' .
ram muito ) sem d úvida, desde o Código civil Pode-se opor a este respeito a o

vias na formação da vontade geral e do contrato social (é no instante”'gue o
teòria clássica que pretendendo dar pleno efeito à vontade subjetiva dos con- r contrato se fornia), do mesmo mòdo a teoria clássica dos contratos não lhé$
tratantes recusa-se a cumprir o acordo, tal como expresso no preciso momen- • I conhece a génese, tudo se passando como se caisseúi do céu. Daí, de. fato, que
to do compromisso, e, por outro lado, a teoria contemporânea que n ãò mais
,
/ uma oferta completa (incidindo sobre os elementos essenciais da convenção), *

ignora que o prolongamento da colaboração das partes no tempo supõ e uma *


*
é aceita pura e simplesmente, o contrato é dito “perfeito”; ele se forma, então,
interpretação suave e, às vezes, contínuos arranjos de suas convenções. instantaneamente e sem outra formalidade. Desde que as vontades não sejam
/
,

“viciadas”, o acordo, então, se cristaliza pelo simples encontro de duas vonta-


t

. • ’ des concordantes; à falta de acordo, só há discussões extra judiciais. -


i

EM CASO ALGUM, CABE AOS TRIBUNAIS LEVAR O TEMPO V


X Uma Vez concluído, o contrato deve ser executado, e assim, interpreta-
dõ. Para a teoria clássica, o ú nico princípio diretor dessa interpreta ção reside
*
EM CONSIDERAÇÃO ”
, . na “comum inten ção das partes” - a intenção “real” se entende, aguela que
s *
^
O direito clássico conjuga contrato e estabilidade: as partes são ligadas
*
para além mesmo de seu escrito, eventualmente desajeitado, era a dele no mo-
mento mágico da conclusão do contrato. f
*
\
. .
pelos termos de sua convenção (art 1134, al 1), as obrigações que resultam de ,
Pode ser, énfim, que no decorrer da execução do contrato aconteci -
:

um empréstimo em dinheiro continuam sempre aquelas da soma numérica ;


enunciàda no contrato ( art. 1895 - um franco continua sendo um franco, mentos imprevistos se manifestem, que modifiquem suas pqrspectivas, até
4

quaisquer que sejam as flutuações de.valor real da moeda ), as novas leis, em mesmo transtornem toda a economia. O, juiz poderá, neste caso* vir em soçor-
*

ró do devedor ameaçado, colaborando com a administração da convenção mi-
\
^ f

princípio, n ão afetam a execu ção dos contratos em curso ( teoria clássica do !) V

ciál? A teoria clássica se mostra, como se duvida, bastánte reticente. De fato,


direito transitório), e quando a álea futura parece excessiva, a lei proíbe o con-
ela não oferece senão duas saídas para as partes: ou elas se entendem e rene-
.
trato de alto risco que é, por isso, afetado (o art 1129 proíbe o compromisso
u -
gociam um‘ novo contrato, ou uma delas chega av demonstrar que uma força
cujo objeto é indeterminável) . jf

x maior torna a execução da convenção impossívele o juiz anularâ o contrato < * /

Mas, é preciso ir mais adiante: é em seu próprio fundamento que a teo-


Fora destas duas hipóteses extremas um “ tudo ou nada” dificilmente reali-
-
ria clássica dos contratos é marcada pelo estatismo; como, á seu ver, só há con-
zável na prática será a convenção inicial que continuará a sèr aplicada .
trato na "intenção real e comum das partes” e que ela só encara esta inten çã o
apenas no instante da formação do contrato, ela inscreve a vida inteira da con
Tal é a resposta, em forma de denegação, que a teòria clássica opõe à cé
. lebre teoria dita da “imprevisão”, que advoga, por sua vez, uma"administração
-
venção, desde sua negociação até seus incidentes de exçcução, num tempo pu-^
4

ramehte abstrato e fictício, um tempo jur ídico e formal, subtraído à vida eco - .
/
t

242 Cf. FRYDMAN, B. Le Droit des contraís à la lutniere de la philosophie de Vaction: in-
nômica concreta. Redescobrimos aqui o tempo positivista que acredita encon - décidabilité, coopération et révision, A publicar, p. 4 et seq.
V.
/

\
v
*
J
292 293
X

*
Capítulo 3 i

í Promessa,Ligar o futuro .
f * \

v » 1*

dos termos do contrato, quando uma circunstância imprevista torna a execu - '
cê ntimos pot mais ou menos 190 ares) j?or ocasião de cada irrigação. Sur-
i

çao não impossível, mas muito mais difícil ou onerosa para uma das partes »
preendidos por uma demanda de revisão destes preços pelos descendentes do
( por exemplo, quando uma alta das matérias primas, ou um nbvo imposto,
acua um devedor a vender ou perder, ou que uma desvalorização obrigue o
y .
• Sr Crappone, cujos lucros não pã raram de aumentar no decorrer dos anos, as

' jurisdições de Aix acederam a esta pretensão, sob argumento tirado do artigo
credor a contentar-se com o reembolso derrisóriõ).243 Se pm certo nú mero de 1
leis de exceção no pós-guerra, e hoje em matéria de arrendamentos, prevêem
- 1134, al. 1 è 2, que foi descartada devido ao caráter “sucessivo” do contrato e
>

um tal ajuste, e sè a revisão é igualmente adinitida nos contratos de serviço


tk
'
do desequilíbrio que o atingia .
* i

i *

público (devido ao princípio de continuidade: a ruína áo parceiro privado, ^ J


~ O Tribunal de Cassação, em contrapartida, cassou a sentença do Tribu -
concessionário desse serviço, acarretaria a interrupção do 'serviço), em contra- nal de Apelação de Aix à custa de uma dupla extensão no tempo do artigo
1134. Do lado do passado, o Tribunal não hesitou em dar uma interpretação
- partida, as jurisprudências francesa e belga, mostram-se extrémameiite reti
/ centes a consagrá r o princípio de revisão do contrato.244 Nãd cabe ao juiz,
- retroativa a esta disposição (tratava-se, de fato, de aplicar um texto de 1804 a )
como se diz, remodelar a convenção, pois a ãssunção do risco liga-se à própria um contrato de 1560!), arguindo o fato de que este artigo “ela apenas repro-
çssência do çontrato: é acrescentar a isso e comprometer a segurança jurídica, dução dos antigos princípios, constantemente seguidos em matéria de obriga -
* ções contratuàis”. Do lado do futuro, o Tribunal recusa qualquer suavização
pretender juntar-lhe a cláusula "todas as coisas iguais por outro lado”; é reco-
do princípio da convenção-lei. Pelo motivo mil vezes repetido, desde então, de
e

nhecer ao devedor que não se protegeu por uma fcláusula específica (por
exemplo, um mecanismo de indexação dos. preços), um "privilégio de segu-
/
que “em nenhum caso cabe aos tribunais, por mais' justa que lhes possa pare - I

rança*!em vista de uma neutralização indeVida dos efeitos do acaso.245 cer sua decisão, levar em consideração o tempo e as circunstâ ncias para mo -
Q Tribunal de Cassação francês sustentara esta tese no - célebre caso do -
' dificar as convenções das partes e substituir, por novas, cláusulas que foram li -
Gaçal ãe Crappone em que não pretendia consentir na revisão de uma obriga- ^£
1
vremente aceitas pelos contratantes”.246
Ção de soma resultante de uma convenção* concluída contudo... 316 anos an- V

*
f

tesl^ Na época (bu seja, em 1560), um, certo Adam de Crappone compromete- * r

ra-se a construire^ manter um canal destinado à irrigar pomares, vinhas e • I i


REVISAR PARA DURAR v

campos dos hãfritantes do município de Pélisanne; em contrapartida, os ribei- /

rinhos se comprometiam a pagar um aluguel de 3 xsols* por "carteirade” (15 Ao longo dç todo o século 20, e até numa data ainda recente, decisões
tanto francesas quanto belgas confirmaram esta "negação do tempo”, como se
í
.
v

- .
243 Sobre a teoria da imprevisão, cf igualmente PHILIPPE, Dl M Changement de cir
' .
constances et bouleversement de Veconomie contráctuelle Bruxelles: Bruylant, 1986;
-
I,

J
3
não houvesse segurança jurídica,senão na duração abstrata a eternidade vir-
-
tual, j/oder-se-iadizer de uma não encontrável “comum intenção” das par-

WÈR.Y, P. Lajustemer tes.247 E, contudo, o equilíbrio dos termos deste debate, que opõe segurança ju-'
/
.
ít des normes contracfuelles à de nouvelles circonstancés en
.
droit belge In: Let temps et le droit Sous ia direction de P. A. Côté et J Frémont Co
wansville (Québec): Yvori Blais, 1996. p. 261 et seq.
-
244' Pudemos falar de “desconfiança ancestral” da jurisprudência; PERRILEUX, J. Rap
. •»
. -
-
^
' {

rídica e equidade^ estabilidade e utilidade económica poderia bem modificar-
se hoje sob o peso das críticas eum deslize significativo da prática. No^plano
1
^

.
pqrt belge. In: La Bonne poí PaHs: Trabalhos da Associação Capitant, 1992. t. 43,
p. 248; GHESTIN, J. Traité de droit civil Les obligations. Paris: LGDJ, 1992. p. 337. •
246 Çass. fr., 6 de março de 1876, DP, 1876,1; p. 193 .et s.
' ‘ -
245 SÊRIAUX, A. Le íutuí contractuel. In: AUSTRUY, J. J. et aL Le Droit et kfutur, Pa
.
ris: PUF, 1985. p. 86-87 ( doutrina inspirada nas teses de F. A Hayek).
- 1 • '
^

, .
247 Cass.fr., 3l de maio dp 1988, RTD Çiv., 1989, p;71 et s( et obs 'Mestre; a Bélgica, cf.
% í

As decisões citadas porWÊRY, P. Dajustementdes normes,contractuelles à de nou-


.
f

' * Antiga medidaagraria correspondente, como se deprêende do texto, acerca de 2000 yelles circonstapces en droit belge In: Le temps et Je droit. Sous.lç direction de P.-A.
nr. (N.R.T.) x

.
Côté et T Frémont. Cowansville (Québec):Yvon Blàis* 1996. p 265, nota 14. .
* * 4

V
I

294 » *

4
295
f 1
1

*
Capítula 3
/
*
t
Pratncssa. Ligar o futuro. i
«>
J i
t
r
r
\
\

económico, faz-se entender que ninguém tem interesseem encurralar um dos 1

não será uma realidade evolutiva chamada a se inscrever na duração* aceitan-


parceiros^ até a falência: se é da èssência do contrato que as partes suportem os
do adaptar-se? O conceito evolutivo de “rela ções contratuais” (relações de ne-
^

»
íiscos ligados às mudanças de circunstâncias, não é aceitável que estes sejam
de tal maneira que não ofereçam mais que a certeza da ruína a um dos dois
* ‘
...
gócios, relações comerciais ) nao englobará aquele, írnsta, de convenção?
Sem duvida, temos razão de nos opor a uma renegociação permanente do *
.
parceiros O direito não poderia prestar o concurso de sua coerção para uma
^
contrato, que tiraria qualquer nprmatividade da obrigação combinada;, sem
r
operarão leonina. Âs vezes, é com referência à “comum intenção real das par- » »
dúvida, o direito não devo buscar, numa ótica finalista securitária, compensar t
tes” que se concentra os ataques: as ciênfcias cognitivas não ensinam, atual-
V < .
o desequilíbrio e evitar menos 'risco De resto, engajar-se apenas “tpdas as coi-
mente, que as intenções réais de cada um são decididamente pouco “decidi-
-
t j

sas iguais, de outro lado”, aliás, seria não se engajar de forma absoluta, pois,
, veis”? Que dizer, então, das pretendidas intenções “comuns”? Que dizer, so- ' ' ,
248

certamente, é impossível levar em consideração “todas as coisas” que se po-


i

.
bretudo, das içtenções comuns convencionadas estarem fixadas definitiva- 'S ’
,,

dem contar, nem medir, em que e até onde elas continuam “igiiais” . /

mente no instante do fechamento do contrato, como se a prá tica posterior não


contribuísse para fazer evoluir-lhes o sentido?
•'
Mas, não é de uma tal mutabilidade que aqui se trata: só uma mudan -
m

Sçm dúvida, a prática desprendeu-se progressivamente deste tempo


*
i.
ça milito importante dê circunstâncias.autorizaria uma iiítéryenção Por OU . - *

»
tro lado, e isso. nos parece essencial, a intervenção ora considerada, longe de
s
fictício e ficcionista para reintegrar-se àquele da duração vivida, sem por isso
.
se entregar a um mobilismo estranho à idéia de contrato Assim, acontece cada
> <
>

i
ser estranha à lógica contratual, remete-a, ao revés, a seu princípio Pois, en
*

fim, trata-se apenas de negociar uma cláusula no espírito de bo.â fé que .deve- -
. -
vez mais frequentemente que o legislador intervenha para autorizar o juiz a
ria ter encorajado as partes desde a origem. Sem dúvida, as intenções das par-
\

revisar ou rescindir o contrato afetado pela imprevisão; em .algumas legisla- A

ções estrangeiras uma cláusula atribui este poder ao juiz, de maneira geral, tes são amplamente não decidiveis, sua vontade comum e a continuidade
desde que a execução do contrato acarrete um encargo insensato para o deve- ' ' indefinida de suas intenções iniciais; mas precisamente mais que cristalizar
uma improvável vontade congelada no instante mágico do acordo inicial, tra-
-
dor (“ eccesiva onerosità” diz o artigo 1467 do Códigç civilitaliano ) Mas são . \
^
ta-se de desenvolver um espaço de delibera ção e um campo de práticas que,
príncipalmente os próprios contratantes que assumem atualmente a diantei- kV
ra, cóncebendo disposições suscetíveis de construir um contrato sem perde- ' 1:
*
tanto a montante quanto a jusante do acordo, contribuem f >ara precisar-lhe o
sentido - um sentido finalizado pelo espírito de .colaboração, que é a regrav
\

.
dor Será o caso, ou dê cláusulas de adaptação automática, permitindoI o rea-
fundamental da instituição contratual . \
<
juste periódico das obriga ções, sobretudo nos contratos com prestações suces- ‘
'

sivas ou diferidas, ou de disposições impondo às partes renegociar o acordo É neste espírito que é desenvplvido atualmente, um direito “pré-contra -
»
no caso em que se tenham produzido acontecimentos imprevistos, que trans- . tual”, que enquadra as negociações prévias .ao acordo: obrigações de informa-
tornam a economia. * /
ção e de diligência são postas a cargo das partes; para elas, trata-se de colabo -
. . rar com vistas a chegar à conclusão do contrato válido num prazo razoável.
24?
• * '

Instruída por estas exigências, a prática advoga hoje por uma flexibili-
É o mesmo espírito que deveria, segundo a doufrina e uma jurisprudênçia em
zação da rejeição tra;dicional, pela jurisprudência, da teoria da imprevisão
Coagir as partes a retomar o caminho da mesa de negociação, será, verdadei-
. vias de formação, presidir igualmente a resolução das dificuldades posteriores
' .
ramente, yiolar a lei do contrato? Mais que um arquivo imutável, o - contrato -
da execução.do contráfo: ora a referência à boa fé permitirá preepcher as la-
*r V

v. v
1 V,
249 Cf. FRYDMAN, B. Négociation ou marchandage? De Féthiquç de lá discussion au
*
,
248 Cf. LIVET, E la Communautè virtiíelle, Ãetion et coopération. Paris: Éditions de FÉ-
• (

clat, 1994. p. 70-89; FRYDMAN, B. Le Droit des contraís à la lumiere de la philoso- .


droit de la négociation In: Droit négoçièy droit imposé? Sous la direction de P* Gé -
rard, F. Ost et M. Van de Kerchóve. Bruxelles: Publications des FUSL, 1996. p. 231
V
; ~ .
/
s i
phie de Vaction: indécidabilité, coopération et révision. À publicar, p. 7 . \
i
y
.
et se;q '
*
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*V

• 296
297
V
X N I
*
t Capítulo 3 / \
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Promessa Ligar o futuro. *

\
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* *
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*
I
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• *
* / *
f

' cunas do acordo, obrigando as partes âs “saídas” que comportam as objiga - I


i
*
Nãò se trata somente de resistir, aqui, como fizemos no decorrer de
çoes segundo sua natureza (art. 1135 do Código civil), ora irá se opor
** )
a que- .todo este capítulo, ao tempo positivista, simultaneamente instantâ neo e pere -
< •
uma' das partes “abuse” de seu direito, tirando vantagem desproporcional,
com prgjúízqdnfligido ao co-contratante, ora, enfim, autorizará a renegocia-
. -nizado, o qual, se coloca a regra fora do tempo, não se opõe> entretanto, por
' que a questão lhe é estranha a uma mudan ça tão frequente quanto se deseja-
-
^
ção do acordo no caso da ocorrência de circunstâncias excepçionais. Assim, o ria. ViSa-se, muito mais, a louca pretensão que de vez em quando têm os cons-
** i

Tribunal de Apelação de Paris - não censurado pelo Tribunal de Cassação


pôde condenar uma companhia petrolífera pó j: não haver cooperado com seu
*•

— tituintes, legisladores e simples particulares, de subtrair absolutamente a açã o


- tempo à norma que ‘eles adotam, escrevendo-a num futuro intocável. Fan-
do
- distribuidor na renegociação do preçp de compra dos carburantes, quê não i

tasma de eternidade; desejos explícitos de perenizar sua vontade; “sofismas .


dos que pretendem acorrentar a posteridade”, dizia Bentham.
\
mais deixava margem àe Iucro a este último*250' \
%
^
A questão dos contratos, como a da lei e da Constituição, reencontra, Sabe-se bemj} que resulta, geralmente destes textos: recusando-se afa-
assim, o caminho do tempo metamórfico, que garante ao direito uma visão •í . zer do tempo um aliado, são, logo, vítimas dele. Congelando o direito em seus
sobre o futuro. Mais qye se agarrar a uma m ítica vontade comum inicial ou, estados de estabilidade, são levados em suas fases dejurbulêpcia, por não te-
ao contrá rio, de se entregar a uma ilusória adaptação permanente dos acor- t;
rem sabido administrar um lugar para a mudança.
*
dos, trata-se de manter os olhos fixados nas realidades do plano de fundo, que Às vezes, esta maneira de “cronofobiá” ganha o constituinte, que pre - »

dão ao contrato suas bases: uma vontade de colaboração, um conjunto de ges - tende subtrair a carta fundamental a qualquer espécie de discussão popular i .
tos e de práticas que fizeram nascer èxpectativas legítimas, uma exigência de
, 1 * Assim aquele senatus-cónsulto de Luis Napoleão Bonaparte, datado de 18 de
* V

boa-fé na construção das convenções. Entre o passado fictício do acordo ini


ciai e do futuro indefinidamente aberto de uma renegociação permanente, há
- V
I
julho de 1866 (modificando a Constituição de 14 dé janeiro de 1852), cujo ar-
tigo 2o dispunha:'“fica proibida qualquer discussão que tenha por objeto a
lugar para um futuro confiante - aquele do crédito e da confiança baseado
numa promessa de colaboração; í
*

%

modificação da CQnstituição, publicada ou reproduzida, ou pela imprensa ou


por cartazes” . lembremos também que em Hobbes o contrato social era abr
* t solutamente irrevogável e não passível de emenda: não era ele destinado a ga-
«
t rant ír uma “segurança perpétua”?
OS DESVIOS DO -FUTURO SIMPLES ^ -Outras vezes, é .o legislador, ciumento da integridade de sua obra, que
\
pretende reservar-se a exclusividade de sua interpretação, mesmo nos casos
Uma temporalidade que se absolutiza é perigosa. Do mesmo modo" l . particulares- crendo assim preservá-las da mudança. Tal era o caso das Cons- *

que a fixação exclusiva no passado da memória é portadora de desvio (cf. su - tituições de Justiniano^que reservavani “apenas ao imperador a interpretação
\
' pra: “Os desvios do passado simples” ), do mesmo modo o ir simplesmente j das dúvidas que.ocorressem sobre 0 sentido das leis”. Mesma técnica da orde ’ "
nação francesa de abrilde 1667 (artigo 7o, tit. I), aS disposiçõés de Frederico 1
-
rumo ao futuro é suspeito. EstaTuga para diante, esta fixação crispada em um
*

futuro intangível, e.ste futuro “simples” que desejaríamos livrar dos sedimen- *
'
II e Àllgemeines Landrecht> adotadas na Alemanha, Mas, de vez em quando,
tos do pasmado, subtrair as rupturas dó presente e preservar dos queStiona - também, os particulares são tentados pelo sonho fá ustico de eternidade: ren-
mentos posteriores é firialmente um futuro sem futuro , um tempo estéril e v das perpétuas, compromissos para a vida inteira, cláusulas de n ão concorrên -
sem amanhã.
* c*
cia ou de exclusividade ilimitádas no tempo,.o que não faríamos para garan- \

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*
tir essas conquistas? Até a morte não desencoraja esta ambição, desde que, por
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testamento ,.alguns só legavam com a condição expressa de qué o bem recebes
250 Cass. ff.> 3 de novembro de 1992, JCP, 1993, II, 22164 et obs. Virassamy;
. se esta ou aquela destinação exclusiva, ou não saísse da família. Mas, aqui, a
4 X
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Capitulo 3 «
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reação fica mais à vontade: o Código civil empresta da filosofia temporal evo-
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4

Capítulo 4
lutiva, como se disse, e penetrado de liberalismo económico, e' desconfiado )
*

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com a circulação* das riquezas, se esforça para impedir todas estas formas de • 1 )

alienação definitiva do futuro: as rendas e os arrendamentos perpétuos sãp •


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proibidos (artigo 1709), do mesmo modo que os contratos de trabalho fecha - 4
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.dos para a vida toda (artigo 1780), as doações e o testamento só são tolerados
quando limitados no tempo, enquanto que a mutabilidade é desde então re-
li
QUESTIONAMENTO.
conhecida às convenções matrimoniais. Pacificadora e onipresente, a prescri-
,. ção extintiva ‘libera* hoje o devedor ao fim de tempos cada vez mais curtos.251 ’;•]
(
*
\
DESLIGAR O FUTURO.
Assim, o direito, çomo o desejava Portalis,joga com o tempo e não contra ele. * 'v

Isto abre caminho para juma reflexão sobre a quarta temporalidade que ] * . *
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aguardamos: o tempo do queètionamentó. '
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AGITATO
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“Nossas folhas são tão móveis quanto^ a lei” aparecida na primeira pági-
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na do Le Monde, no dia 17 de novembro de 1998, esta publicidade de um editor
í dico fez-se acompanhar de um desenho ( um indivíduo agarrando em voo do
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ri cumentos carregados por um grande vendaval ), e de um comentário assim pan-
4

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flefado: “os regulamentos e a legislação deslocam-se. Apresentados sob um modo
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4
\
dinâmico da folha móvel, nossos dicionários e códigos permanentes são atualiza-
dos desde que a atualidade o exijai Vocês estão seguros de estar naponta da in-
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* V formação” 3
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r A publicidadepronunciafrequentemente a verdade sobre a época; quan


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do ela concorda com a lei de bronze da “atualidade”, a permanência do código ;


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significa, de fato, sua “mobilidade”; quanto à “legislação”, é entendida doravan '
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te conupuma “informação” unta informação de “ponta” que se deve levar em
consideração.
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Sem dúvida, o mundo emais complexo que no século 1J e não mais con -
^
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í amos que o legislador se embalasse com o sonho da perenidade 'das leis. .
ceber *

> "
Adaptar o texto às circunstâncias cambiantes, submetê-lo regularmente à avalia- . r
251 CABANIS, A Uutilisatión du temps' par les rédacteurs du Code Civil. In: Mélariges
Pierre Hébraud. Toulouse; Université de Toulouse, 1981. p. 174, 181, 182; P. HÉ -
* * ^
ção, enriquecê-lo com precisões jiitispruâenciais e doutrinais todas estás formas ,
BRAUD, P. Observations sur la notion de temps dans le Code rivil. In; Etudes offer - do “questionamento” sãoperfeítamente legítimas* Não estamos seguros, contudo, 4
\
. *
1
^
tes à Pierre Kayser Aix-Marseille: Pressés de 1’université dAix Marseille, 1979. p. 21
/

- ' de que a mutabilidade contemporânea da lei derive sempre desse cuidado deitar-
t V

l
et seq.
monizar as promessas; em casos demasiadamente numerosos, ela é, antes, expli
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*» »
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300 '
301
/
Capítulo 4 . .
í onanientò Desligar o futuro
Quest

.
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cada pela ação desinstituinte dos interesses particulares e a dificuldade de decidir nacional”7 Ê tomada como pretexto a adoção; em nível europeu, de uma pro-
*

nos regimes assediados pelas forças centrí fugas dos lobbies. *


1
'
posição ãe diretivas combinando a proibiçã o da publicidade para o tabaco com
' Esta história deyeriq nos convencer desta aceleração caótica da produção id êntico regime transitório.2
normativa que mistura diretiva europeia epublicidade para o tabaco, esporte au
tomobilístico e decreto valão, saúde pública e defesa dos inferesses regionais. No
- \
o
Na frente judiciária as coisas iriam rapidamente se esclarecer. O juiz dos
)

recursos pror í sórios, tanto em primeira instância ( no dia 30 de dezembro de


dia 27 de novembro de 1997, o Parlamento federal belga vota uma lei “proibin \ j
do a publicidade para os derivados do tabaco” Esta lei, que não prevê nenhum !
- 1997), como na apelação ( no dia 12 de fevereiro de 1998 ), declinará de sua com-
regime derrogatório, foi promulgada em 10 de dezembro e entrou em vigor no dia \
.
. petência e rejeitará o recurso O princípio da separaçãp dos poderes impede a sus- y

~ pensão de
uma lei por um juiz, lembra oportunamente o Tribunal de Apelação
1

1°’ de janeiro de 1999; parlamentares vàlões e flamengos mesclaram seus votos ' J
deLiège, “Nenhuniaregra dá direito a que uma legislação não evolua”, acrescen-
*

para fazefque fosse adotada. Não se contou, entretanto, com a reação dos meios /1 , fa o trií unal: só ao poder legislativo ê que cabe apreciar a oportunidade, ligada
do esporte automobilístico internacionais, organizadores da célebre competição
de fórmula 1 de Spa-Francorchamps, em território valão - competição ampla 3 -
a imperativos, de ordem pública, de promulgar eyentualmente apròibição de Uma
.
publicidade para os derivados do tabáco Quanto ao prejuí zo eventualmente su-
-
menté patrocinada por fabricantes de cigarros. No dia 5 de dezembro de 1997, M '1 . portado pelos organizadores do Grande\ Prémio e as infra-estruturas hoteleiros
Bemie Ecclestone, presidente da “Formula One Administration”, dirigia ao secre- 1
vizinhas, do mesmo modo que a urgência por eles invocada, resultam das “exi-
tário geral do circuito de Francorchamps .um telefax comunicando-lhe que o Kij
gências imperativas” das autoridades mundiais do esporte automobilístico, já que
Grande Prémio da Bélgica seria suprimido do calendário do Campeonato do |
mundo de 1998 em prol de um outro país se a Bélgica adotasse a legislação pro-
'
a lei só entrará em vigor um ano mais tarde? -
" jetada, sem prever alguma exceção para a Fórmula 1. . .
Restp uma segunda frente, o legislativo. Sem d úvida, consciente das pou -
« f
*
cas chances de sair-se bem de su'a proposição de lei alternativa de 12 de dezem-
Sete dias mais tarde, no dia: 12 de dezembro, o Conselho mundial do es-‘
bro ( ela será efetivamente rejejtada no início de dezembro de 1998 ), o mesmo \
porte automobilístico, da“Federação internacional do automóvel” ( FIA ), confir-
mava esta posição, concedendo, contudo, aos organizadores dõ grande prémio de ' '
4
‘ - grupo de parlamentares valões decide afravessar o Rubicão, apresentando na /
dia 16 de fevereiro de 1998, destcrvezr diante do Parlamento valão, um projeto
" s

-
1

Spa-Francorchamps um prazo que expiraria no dia 15 de fevereiro de 1998, para


de decreto “incidindo no patrocí nio das manifestações que se desenvolvehinas
permitir-lhes emendar a legislação belga em matéria de publicidade ou de patro-
infra-estruturas pertencentes - à Região Valã ou subsidiadas ela por”. Claramen-
cí nio, para ou pelo tabaco. A partir de que é preciso chamar uma chantagem, du-'
te, tratã-se de autorizar esta publicidade até outubro' de 2006, para as “mani - .
blê de ultimato, as coisas vão acelerar-se prodigiosamente. Um conjunto heteró
" dito de atores abf -angendo pessoas
- festaçoeè que tenham unta influência internacionar. Sem obter satisfação pe -
'
fí sicas, associações, intercomunais, e apropria
Região Valã, vai, terminados todos os trâmites, multiplicar às iniciativas jur rante ó Parlamento Federal ou perante o juiz, os autores do decreto passam
í di- j
para aJf éÒélião abtrta. *

cas com vistas a satisfazer os desejos da Federação automobilística.


Os trabalhos preparatórios deste texto que será adotado, finalmente, em de-
l

Julguemos: no dia 12 de dezembro ( opróprio dia do ultimato da FIA ) é


zembro de 1998, não deixam de ter interesse. Aos representantes da oposição, que
* i

apresentado um recurso provisório, tentando obter, com base na responsabili -


- dade do Estaão-legislador, a suspensão erga omnes e, subsidiariamehte, a re
cusa de aplicação da lei de 10 de dezembro de 1997. Neste mesmo 12 de dezem-
- . .
1 -Doe Pari , Sénat, 1997 1998, 811 (1)
- . , v

bro um projeto de lei é apresentado pelos parlamentares valões, tentando a mo


dificação da lei de 10 de dezembro, com a finalidade de prever‘um regime tran-
- 2 Proposição de diretiva de 4 de dézembro de 1997, que irá se tornar a diretiva 98/ 43/
CE de 6 de julho de'1998 . ' >
-
3 Liège, 12 de fevereiro de 1998, em Jurisprudence de Liège, Mons efBruxelles, 1998,
*
sitório em favor do iCpatrocí nio das manifestações tendo uma influência inter
*•
- .
p 509 et seq . '
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302
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Capitulo 4
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íonamento Desligar D fiituro.
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lamentam que a “urgência” tenha sido invocada para não solicitar a opinião do fj
*
laçào em rede. O conceito de regulação, importado" da ciência política, invade
*

Conselho de Estado, e qUe denunciam o excesso manifesto de competência da re- J todo o campo jurídico e caracteriza perfeitamente, no direito em rede, a gestão '
gião dos ValÕes, queusurpq aqui o domí nio da saúde, reservado ao poder federal, * suave e evolutiva de um conjunto indefinido de dados, em busca de um equilíbrio
o ministro-presidente da Região Valã responde invocando as competências econô- \ pelo menos provisório.8 \

*
micas da região e “o direito, para esta, de não ser penalizada por leis federais- que , .
f
\
Esta normatividude suavizada, a de um direito “mole, fluido, em estado
' ‘

não levam em consideração especificidades regionais”. O qué leva o ministro a «j gasoso”, de que fala o Conselho, de Estado da Franca,9 transforma a temporalida -
acrescentar: “certas legislqções, adotadas em nível federal, chocam-se com o senti- i - *
-
de das leis. È que no país das nuvens alei não ê mais um acontecimento, mas um- ^

mento compartilhado pela população de toda uma região”A Para um outro mem- J processo, não é mais uni ato, mas um programa, não trabalha màis através de ãis - «

bro da oposição que vê no decreto um.“perigoso precedente qúe pode dar lugar a I - ,
posições, mas através de previsão não estabelece mais instituições, elabora cená -
um desgaste das relações com o Estado federal”, responderemos que “o Parlamento • ,
- rios não impõe mais normas, abre opções. O que ela perde em segurança e nor-
*. / flamengo modifica ele mesmo regularmente leis federaise lembraremos - que f 1 , mativiâaãe, busca compensarem adaptabilidade e flexibilidade. Seu tempo tor -
confissão! - que“a Federação Internacional de Automobilismo representa cem paí- nou se reversível, desde quando não estabelece senão o rebus sic stantibus. Pro
- -
ses e que quarenta e quatro deles sê lançaram candidatos a um Grande Prémio de j meteu, doravante, navega à vista,•seu tempo tornou-se aleatório e contingente.
/ «.
V

Fórmula 1 enquanto dezessete competições são organizadas no mundo”6 *

Do tempo“meteorológico” aleatório, o melhor como o pior podem surgir, ou


í Evitaremos ironizar, comò o fará a imprensa, sobre um“direito que se des- ] “tempestades” e “intempéries”, ou horas bem “temperadas” O pior, quando a álea *
^
faz como fumaça”, epensaremos, tálvez, que, esse decreto poderia perfeitamente, da regulação significa desinstituição eperãa das referências: regulação rima, então, ^
i
por sua vezj ser anulado, por excesso de competência, pelo Tribunal de arbitra * - •
com desfiliação e exclusão nas sociedades de “risco”, onde afigura da vítima enco -
genu O que resta deste imbróglio jur í dico, cujo exemplo não é isolado, ê singular - bre a do cidadão. O melhçr, quando a incerteza do contexto abre espaços novos
-
\

mente revelador do que motiva às vezes a aceleração da produção jur í dica: a in ,


para a liberdade e o cidadão, que se torna outra vez ator, participa ativamente da *
t
capacidade de se ater a uma decisão tomada, quando se desencadeiam as forças I elaboração da lei comum. Neste .caso “o questionapiento”, que desata o futuro não
/ centrí fugas de interesses setoriais. *
* s
*1 terá feito esquecer a“promessa”, que o liga; simplesmente abre lhe caminhos novos. -
Sem dúvida, o exemplo e caracter í stico de um Estado, a Bélgica, xuja so \*
>

- Np escrita chinesa, o ideograma quesignifica“crise” representa também, pa-


, í erania é particularmente fraca, e há interesses econó micos, os da ind ústria do
*

recef “oportunidade” Na encruzilhada dos tempos,‘ainda uma vez o /cairos acena.


•» tabaco e do esporte automobilí stico\ que são particularmente bem estruturados. \ \

' Não importa, é urpa mudança de paradigma a que assistimos, nada menos que

uma transformação dos modos de produção do direito . • ' « UM FUTURO, DE FATO CONTINGENTE?
Retomando a metáfora de Karl Popper, poderemos dizer que passamos dos ,
“relógios” para as “nuvens”: do tempo que é ao tempo' que ,ele faz, de algum , 1

O teínpo do questíonamento - o tempo que desata o futuro exprime a\ 4

modo? Os “relógios” ou o modelo mecânico, linear e previsível de uma legislação radícalidade do gesto emancipatório da crítica; é, diz Bourdieu, “ o momentó
piramidal;“as nuvens”, ou o modelo interativo, recursivo e incerto de uma regu- } \

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v v 8 Quanto ao conceito de regulação, cf Les Transformatioris de, la régulation juridique.
. -
4 Doc. Pari , Parlentent wallon, 346 (1997 1998), n 3> . . . .
Sons la direction de J Ciam e G Martin Paris: LGDJ/1998, e a “Conclusion Géné-
/
5 Ibid. p. 5.
, * rale” por E OST, p. 423 et seq/ t
Ibid. a
9 “Rapport public” de 1991 reproduzido em La Sécurité juridique atas do colóquio


6 t

. organizado pela Confeçência livre do jovem foro de Liège, Liège, 1993, p 179 ^ . .
7 POPPER, K. La CoHnaissance objective. Paris: Aubier, [19 ?]* p. 319 et seq
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’ Capí futo 4 \
. .
Questionamento Desligar o futuro

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tarefa prioritária, tanto da ciência (livre dos dogmas), quanto do mercado (li-
crí tico em rupturá çom a experiência ordinária do tempo, como simples re- berado das coerções institucionais) , e da democracia ( privada das “grandes
condução do passado, ou de Um futuro inscrito no passado; tudo se torna poa- * < \
^ sig-
narrativas”, enfim adulta). No plano individual, a contingência do futuro
sívèl (pelo menos em aparência) , em que os futuros parecem, de fato, contin- ? )
í*
gentes, os futuros realmente indeterminados, o instante verdadeiramente ins — , nificaria a libertação do tempo vivido; recuo do tempo, pressão e revolução do
“tempo livre”.11 A nova flexibilidade-do trabalho permitiria o florescimento
tantâneo, suspenso, sem sequência previsível ou prescrita”. 10
>
E entretanto, por mais radical que seja o questionamento, não foi pre- /
- das iniciativas pessoais, enquanto que o ofuscámento daá socializações tradi-
ciso esperar a última parte desta 'obra, nem as últimas décadas do século 20, ; cionais fàvoreceria a emergência de sub culturas mais autênticas e conviviais. ' *

Mpara descobri-lo. Ele já estava operando no tempo da memória, do quallnos- 7 jj



E o direito de seguir o movimento, por sua vez; a multiplicação dos direitos
tramòs o caráter ativo, seletivo, criador. Ele inspirava diretamenté o tempo do . subjetivos e á colocação de uma massa de instrumentos processuais de con-
perdão que desata o passado, é ele, mais uma vez, que está na fonte do tempo ' fj trole e de composição esboçam o movimento geral de recómposição do cam-
'
das promessas, no geAsto rebelde de Prometeu que, para instituir uma sociedar ’ . J po jurídico, a partir da base oú do indivíduo, enquanto se enfraquecem os me-
_
4

de nova, teve primeiro que transtorhar a'ordem antiga. O questionamento,- canismos tradicionais de integração e de solidariedade, a começar pelo pró-
; digamos a suspensão do instante que autoriza aslniciativas - nutre a trama do s prio Estado. -
* f

tempo; ela não é nem seu apêndice, nem seu epílogo. É, desde tempos imemo- -
"
Entretanto, a tese geral destá obra é que toda temporalidade que se ab-
riais, a força do logos que suspende a evidência do mundo e, portanto, a sua ' ^ * solutiza é virtualmènte dêsinstituinte; isso é válido também para o tempo do

questionamento. Superada a dialética "que o liga à memória e à promessa, re-


própria. Nossa história desde as narrativas do xodo, fervilha de atos libertado- , j
res, c[ue abriram para os homens novas maneiras de estarem juntos, e nossa cai instantaneamente no vazio e encerra-se num instantâneo insignificante.
concepção ocidental da razão nunca deixou de entrecruzar os fios da tradição 7 JDe sorte que ele poderia, então, provar-se literalmente “seín futuro”. Nestaiai-
e da antecipação.
K va do presente e na cultura do “ no future” deixam-se ver os signos do pós-mo-
* * Eis, êntretanto, que nos impõem' a idéia de que tudo mudaria uma vez A dernismo e de todas as formações compostas ridiculamente çom este prefixo
*

'
v »
“pós” (pós-indusfrial, pós-metafísico, pós-convencional), que,' através deste
mais nosso futuro, desta vez, seria ‘Verdadeiramente contingente”, nosso fu-
^
turo “verdadeirqmênte indeterminado”. Nosso amanhã -seria de tal , maneira L
*

novo, que nossa bagagem, desta vez, não teriamais nenhuma utilidade, e que j
^
t
*
agarxantento paradoxal a um passadp que se pretende, contudo, recusar, tra -
duzem a dificuldade de imaginar um futuro crível. Como o angelus )novus, de
t
até nossos projetos e promessas (o impulso prometêico) perderiam qualquer * que fala W1 Benjamin, arrastado para diante, sempre voltando seus olhares de-
sesperados para o passado, parecemos entrar de fasto no futuro.12 ,
pertinência. Comò se' o questionamento, doravante reflexivo, incidisse sobre si LJ
mesmo; desligamento de desafâmento, ao quadrado, indecidibilida- . 1
.
Percebe-se, então, que a mutação darelaçãoxom a norma que vivemos— *

incerteza
de radical. Esta abertura radical do futuro, sua própria indeterminarão, cons- j ’
*
é portadora tanto de emancipação e de responsabilização quanto de desordem
,

tituiria um novo progresso qiie^marcaria, enfim, o acesso de todos ao merca- e angústia* Se o questionamento e a abertura do futuro, libertam das antigas


do livre, em uma sociedade aberta, livre da£ ideologias funestas, e das previ- >
Soes sempre enganosas que lhe entravam o curso. *
^ coerções, eles podem também significar desagregação de nossa capacidade co -
4
letiva de articular valores comuns, construir montagens simbólicas que distri-
* t

A incerteza do futuro seria, então, uma oportunidade a ser valorizada -e buam os papéis e os lugares, imaginar instituições portadoras de integração. ,
, .
hão o perigo contra o qual se precaver: garantir a abertura do futuro seria a
* *

*>
A * •> í1 SUE, R. Temps et ordre social Paris: PUF, 1994, p. 104 ét seq.
\
10 BOURDIEÚ, F. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984. p. 236-237. .
12 ANDRINI, S Le Miroir âju réel Paris; LGDJ, 1994.

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306 307
11
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* Capitulo 4
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Questionatifento Desligar ó filiuro,'
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E, com isso, o indivíduo se encontra só e desamparado num mundo que o CIêNCIAS: UMA EPISTEMOLOGIA DA INCERTEZA f

^
*4
manda que se institua a si mesmo, enquanto se sombreiam as marcas norma * ' - /

tivas que poderiam reatar p laço social. A interrogação fustiga o. direito com; Qualquer ciência começa éom uma recusa. Recusa da evidê ncia, recu -
*
todo o chicote: é sua capacidade de instituir o laço que é questionada mais sa do testemunho frequentemente enganador dos"sentidos, recusadas ideolo-
ainda que sua aptidão para gàrantir a segurança jurídica. * gias circundantes. O espírito científico mede-se por sua capacidade de ques- *

Como, então, dar lugar ao questionamento, sem comprometer nossa ' - A

tionar as certezas do senso comum - tudo o que Bachelard designava pelo


capacidade de fazer e cumprir promessas? Eis a questão que nos propomos a nome de “obstáculo epistemológico”.14 Sem dúvida, Descartes já colocara a dú-
' examinar . <
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»
vida no princípio de sua pesquisa, do mesmo modo que Galileu desafiara a
r
dogmática da Igreja, màs, a partir desta rupturá inicial, edificara-se o império ’ .
*

. t *
da ciência moderna,” garantido pela infalibilidade de seu métòdo, e conforta-

4
QUANDO O INDECIDÍVEL FAZ SENTIDO •••
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/

A modernidade repou$ava no triplo postulado de um futuro que seria


*
.
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*
do pela profusão de seus resultados. A razão via-se apta a traduzir, em lingua-
. gem matemática, os dados da experiência, e assim depreender as leis univer-
sais e imutáveis da natureza. Um'mundo ordenado, mecânico, cognoscível e
radicalmente novo, resolufamer íte melhor que o passado* e integralmente pro- dominável se deixava entrever, na conquista do qual lançara-se a razão cientí-
duzido pela vontade humana. Atualmente, estas certezas vacilam. Como se f fica. Entre o espírito e a matéria, o sujeito e o objeto, a cultura e a natureza a
duvidássemos da coerência de nossos conhecimentos e do bem fundado de ‘ , separação convencionara-se radical, de sorte que a ciência podia pretender a
.
nossos valores À objetividade científica é posta sob suspeita do mesmo modo , .í objetividade absoluta; intérprete das casualidades naturais reveladas pela prá-
que a universalidade de nõssas resoluções éticas. Nossas representações >do ) (
tica experimental, ela não devia nada aos interesses, às normas ç aos valores
mundo são tocadas pela relatividade, nossas certezas sacudidas* Nossa racio
nalidade põe à próva seus limites. No final da estrada, o ceticismo poderia pa- i
A - *
*
que caracterizam as relações entre os homens: a “grande divisão” de que fala
Bruno Latour confortava a empresa científica em seu projeta de domínio tec-.
v
£
falisar o trabalho do conhecimento, assim como o recuo para o privado po v
deria minar o comprometimento político. Mas o questionamento não desem- ’
- nocientífico sobre o mundo material.15 /

E eis que agora esta segurança é, por sua vez, colocada env dúvida. Não
bocanécessariamente neste cenário destrutivo. Podemos igualmente concebê-
que os resultados práticos da ciência denunciem suas premissas; justamente
lo cómo uma radicalização da modernidade, que continua sendo, como o es-
V
ao contrário, nunca foram tão edificantes. E do interior que vem o ataque,
crevia Habermas, um “projeto inacabado”.13 Longe de esterilizar a racíonalida-
como se, tornando-se reflexivo, o projeto científico aprendesse a duvidar de si
\ de, o indecidível, que se impõe em todos os domínios, poderia, ao contrário,
prová-lá como um recurso renovado de produção de sentido. Referindo-se às *
’mesmo. Estudando a <clógica da descoberta científica”, Popper demonstra que1
uma teoria nunca pode ser provada positivamente, nem definitivamente: do
promessas ainda não cumpridas do projeto moderno, o tempo do indecidível í
poderia contribuir para relanÇar o projeto de libertação dós homens., e das •
nosso recenseamento dos milhares de cisnes brancos, como poderíamos sus -
tentar com certeza que não existisse pelo menos um deles que fosse negro?
„ - idéias. Este é ò desafio da ‘'epistemologia da incerteza”, que caracteriza as ciên
, cias contemporâneas, e da “política da indeterminação”, que è doravante a
- ,1 ^
Certamente, a validade das leis científicas é somente provisória: estas leis e
teorias valerão enquaqto não tiverem sido falseadas por uma experiê ncia
f

*
marca de nossas demôcracias. *
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4
\
lá BACHELARD, G. La Formation âe Vespnt scientifique . Paris: Vrin, 1977.
13 HABERMAS, J. La modemité: un projet inachevé. Ctytique, n. 413, p. 228, out.
- A
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1981 / r
15 LATOUR, B. Nous í avons jamais é té tnoãernes* Paris: La DécouVerte, 1991.
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Capítulo 4
Questionawehto Desligar o futuro
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oposta, que vem ilustrar uma teoria rival “O ideal de um conhecimento abso f
*

- Ningu ém duvida que esta concepção nova do trabalho científico afete


em profundidade a visão do tempo a.ela associada. Não somente a produção
-
4

lutamente certo e demonstrável revelou-se ser um ídolo, explica Popper: qual u /


%

dos conhecirfientos é submetida ao movimento permanente do questionamen-


quer enunciado cient ífico continua sendo, necessariamente e para sempre,
dado a í ttulo detentativa” 16 i f
*
to, mas é o tempo do próprio mundo que se torna incerto O tempo das ciên
- . -
/
*
** * cias clássicas era imutável por definição, já qiie leis universais e eternas da'na-
Em substituição às verdades universais e imutáveis, é, então, antes de '
conjecturas, de hipóteses, de interpretações e de relatos, que é preciso falar; * * *
.
tureza podiam ser depreendidas A ciência contemporânea desmente esta cèr-
i *
« '

teza e faz ver, pelo contrário, a historicidade da matéria: a segunda lei dà ter-
longe de se garantir em fundamentos absolutos, a ciência parece cada vez mais modinâmicajevela a imagem dé um universo em expansão, ameaçado pela en-
em suspense: suspensa, mais que fundada; longe de se ampliar por um proces- •' j tropia crescente, ao mesmo tempò que, por reação neguentrópica, se reforça a
so cumulativo c(e ção de conhecimentos, elaxlá o espetáculo de uma XV
acumula “pirâmide da complexidade” que, das part|culas elementares, conduz aos orga-
paisagem em recomposição permànente/“Á episterqologia ,da incerteza”, que ; nismos vivos. Resumindo, o
universo tem uma história e o tempo uma flecha:
te
se instala, revelaíque havíamos extrapolado a racionalidade do universo, a par Y
tir de raras ilhotas de certezas; trabalhando a partir de sistemas Simples e or* -
- ele é irreversível como nosso saber e é vulnerável còmo nossos destinos .
<
á. Privado da segurança irrefutável, do lado do real experimental, a prô-
*
.
ganizados, a ciência clássica generalizou exceções As “leis universais da natu- , ; dução de conhecimentos não pode mais se apoiar senão no acordo provisório r i
'
reza” podem, sem dúvida, explicar o movimento dos pêndulos e prever a tra-
*

jetória das balas de canhão, mas elas continuam falhas quàndo se trata de * /
\ -
dos pares acordo obtido em termos de- processos, cujo caráter quase jurídi-
co e,polítieo desmente a “grande divisão” dos modernos. Thomas Kuhn mos-
aprender sistemas abertos, que se conduzem de modo complexo é dão prova V tram, a este respeito, que os paradigmas científicos tornam-se objeto de sus-
'
de auto organização,17 Só excepcionalmente o real sè revela racional 18 J . '

- peiçoes periódicas: aos per íodos de “ciência normal”, caracterizados péla una-
À ordem é, pois, excepcional: o caos é a regra*e quando surgem localmen- ^
nimidade propósito de um quadro .teórico dado, sucedem-se, de fato, os pe-
a
te ilhotas de informação e de ordè m no fundo de desordem e de <entropia, é o ríodos de crise, quando o paradigma dominante torna-se objeto de invalida-

*
\
acaso, mais que a causalidàde, é que é o princípio de emergência destas formas V;
.
de organização superior Comprèende-se, daí, que a ciência contemporânea de - —
ções cada vez maismumerosas até o momento em que se impõe um novo pa-
radigma, ao final de uma “revolução científica” bem sucedida. Quanto ao pró-
-
clma se doravante num modo aleatório, da indeterminaçãp e da incerteza Eins . - prio paradigma, elecombinahipóteses cientificas, valores comuns, revisões do X
tein pqe em dúvida o caráter absoluto do tempo efdo espaço do universo dese- i .
. mundo compartilhadas 21 É dizer se estamos longe doravante da pureza pre-
%

nhado por Newton; Heisenberg demonstra que o observador e suas técnica$ \


tendida dos modernos, que, entendiam separar radicalmente representação
perturbam o objdto óbservado*19 Prigogine constata “o fim das certezas” e enga - das coisas (questão de método científico) e representação dos homens ( ques-
t

f sica no estudo das éstruturas dissipativas e de sua desordem criadora /0


ja a í t
tão de contrato social) .
As coisas são “causas”, escreve M. Serres22 - entendendo com isso que
r \
i
) v \ V 1
/
*

„ .
16 POPPER, K La Logique de la découvcrte scientifique Paris: Payot, 1982 p 286 *
.. . /
v
‘ são produzidas pelas redes encavaladas de pesquisadores, industriais, milita
-
' *
.
17 GUTWIRTH, S Autour du cpntrathaturel. In: íhiages et usages de la natiire en res, políticos e usu á rios, e que elas n ã o se impõem com a naturalidade dos fa- te

i
.
droit,Sous lá direction de P. Géràrd; R Ost ét M Van de Kerchove Bruxelles: Publí
. .
. - tos cient íficos que, no final dos debates onde se confrontam, .confundem ar -
* * é

- cat íons des FUSL, 1993. p 84 /

. .
18 SERRES, M Hertnhy Lepassage du Nord ~Quest. Paris: Minuit, 1980 p. 157-160 . . I

21 KUHN, T. La Structure des révólutions scientifiques. Paris: Flammarion, 1972. p. 216


A
te

.
19 HEISENBERG, W. La Nature datis ta physique contempóraine Paris: Albin Michel, et seq.
.
1962 p. 19 . *
r

22 SERRES, M. Statutés. Paris: Bourin, 1987 p. 110..


te
t
\

.
20 PRIGOGINE, L La Fin des certitudes Paris: Odile Jacob, 1996 . •
vj

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i

#1 *

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310 I ft
311
*

* ‘ Capítulo 4
I
* .
Questionamento Deáligar õ fuiytp j .
A
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i
i \ *
V
f **
< *

%
gumentos científicos, interesses político -económicos, valores éticos e ontolo- ros”.25 Longe de desenvolver o programa a priori de uma Verdade ou de um va-
gias rivais* De resto, esses fatos què são “fatos” ( produtos), não sao mais, senão lor já dados, uma tal prática da revisão não cessa de construí-los no movimen-
muito parcíalmente, naturais: híbridos antes, artefatos dos quais nã o se sabe • 1 * to de sua própria efetivação. 4

mais verdadeiramente se são humanos ou não humanos, assim como esses ro - Evitaremos, contudo, radicalizar este propósito, sob pena de conferir
-
r
uma forma de absolutismo ao tempo do questionamento. Privada de qualquer :
bôs inteligentes e outros emhriões geneticamente modificados Não nos es- , \ .
pantaremos, nestas condições, que a pretendida objetividade do científico seja Antecipação de alguma coisa como uma verdade ( mesmo
* s
provisória), livre de
< *
4

* substituída pelo pluralismo das verdades,23 e quê a necessidade de “regras do V \ qualquer referência a valores ( mesmo interpretáveis), a racionalidade falível s i

' método” seja acrescentada à necessidade de uma mediação jurídico-política e . ^ í


iria se dissolver' na insignificâ ncia do absurdo. A própria ideia de revisão en- >
1

* da produção e usa dos híbridos - algo como um Parlamento das coisas”:24 um


“ ti tendida como “capacidade de corrigir seus erros”, revela, pelo contrário, que a
fórum para controlar a vida cada vez mais autónoma e aleatória destas coisas / verdade continua sendo o ideal regulador do processo científico. Do mesmo
(a “ tecnocracia”), que parecem ter uma vida própria . modo, no plano da cooperação social, a indecidibilidade das intenções de uns
r
Apenas sob esta condição, a nova prá tica científica poderá se inscrever ?| e de outros não impede que declarações em forma de promessas se provêm *

no projeto de liberação que os modernos tinham entrevisto* O desafio é de ' j necessá rias para relançar incessantemente comunicações e convenções. “As
grande dimensão, para a ciência, sem dúvidav, mas para o direito também, o j exigências éticas”, escreve P. Livet, assim como uma satisfação indemonstrável,
I
qual veremos quanto, na sociedade de risco em que se transformou a nossa, K
“não são menos formas coletivas eficazès”.26 Isto nos leva a abordar o tema do
dá lugar crescenfe aos fatos e aos dados científicos, O fim da “grande divisão5* . À ^ indecidíyel ná política. /
A

significa, de fato, igualmente, a politização da produção tecnocientífica que é


'

a “factualização” do direito, uma factualização cujo poder crescente dos espe


cialistas no seio dos pretórios ou dás comissões parlamentares é uni sinal entre
v - ^ *

DEMOCRACIA: UMA POLíTICA DA INDETERMINAçãQ.


< muitos outros v . *

O desafio que estas novás mediações político-científica devem afron- 1 Com o advento da democracia, o indecidível investiu o campo do po-
tar é que, longe de se apoiar em previsões garantidas, conhecimentos garanti-
*

j
^ lítico, do mesmo modo que o tempo do questionamento se instala no centro
, dos, valores estáveis, elas devem decidir em situação de indecisão, orientar-se i - .
de todos os dispositivos do poder Pode-se dizer, comuClaude Lefort, que a de -
num contexto de incerteza, preparar o futuro sobre o fundo de falibilidade, ^ <• mocracia é o regime que “se institui e se mantém na dissolução das marcas da
x

.
dorayante reconhecida Tudo se passa, então, como se em substituição às pre - .
cefteza” Com ela “se inaugura uma história na qual os homens fazem a prova

• visões, tão freqiientemente desmentidas, se precisasse contentar com revisões,


.
de uma indeterminação última” 27 Enquanto que o totalitarismo, que o século
4

*f
ou ajustes
/ \ V 1
* '
permanentes dàs soluções à vontade de um interminável processo
*
l
« ; 20 tentou se lhe opor, se vê cre$ter um partido que nutre a pretensã o de en -
-
v

de aprendizagem . . carnar ô povo inteiro, a democracia toma o poder, ao contrário, infigurável.


j

-
Pierre Livet demonstra t) bem: a ú nica racionalidade ainda praticável é -
Ninguém tem título natural para detê lo, ninguém podé pretender exercê lo -
v

uma racionalidade falível que se define como “capacidade de corrigir seus er- duradouramente: règularmente reposto em jogo, o poder democrático é um
^ *
l
t
k \
»

LIVET, P. La Communauté yirtuelle. Action et communication. Paris: Êditions de l’É~


4

' 25
f 23 GUTWIRTH, S. Waarheidsannspraken in recht eti wetenschnp.,Bruxelles: Maklu,
5
“ clat, 1994. p. 16.
‘ 1993. %

26 Ibid., p. 279.
24 LATOUR, B. Nous riavons jamais été modernes. Paris: La Découverter1991. p. 194
et seq. ^ , / 27 LEFORT, C. Essais sur le politique . Paris: Seuil, 1986. p. 29.

A
*
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3,12
4
313 *
I /

s. < Capítuh é
.
Questionatilento Desligar o futuro,

M rV
.^ '
* ,

lugar vazio que nenhuma força, nenhum partido, poderia se apropriar sem i
por exemplo, o eu é sempre anterior aos fins qúe ele afirma, elogo sempre sus -
1 cetível.de e superar. Daí, Wellmer nãò errou ao concluir que, “numa socieda-
.
abuso Em oposição, ainda, ao totalitarismo, que condensa as esferas do poder,
*

^
de liberal e democrática, nenhuma idéia relativa à boa vida, nenhuma orien-
V
do saber e da lei (se auto-proclamando acima do direito, e anunciador das fi - ;
taçao de valor, substancial ou nenhuma identidade cultural está garantida
nalidades últimas da sociedade, o partido-Estado não reconhece de fato, ne- \

v nhuma exterioridade que pudesse limitar sua empresà ), a democracia, ao con- ' .] J ..
contra a crítica e a revisão [ *,] Nesse sentido a democracia moderna é essen - *

* K

trárío, vê superarem-se estas três esferas que, por acréscimo, sê tornam objeto
"V
*
,
cialmente transgrèssiva e desprovida de base estável” 31 .
^
^

de remanejamentos constantes de seus acervos e de um incessantê questiona- • Contudo, o questionamento não poderia constituir-se na última pala- t
^t
'T í . 1
vra; a indeterniina ção não poderia , sem contradição, conduzir à subversão ra- '
mento de seus fundamentos» }

.
*
* < i

Finalmente - é um terceiro traço diferencial enquanto p totalitarismo dical das promessas contidas no projeto de liberação e de equalização, que se
to

.
esvazia o conflito e reduz qualquer tipo de oposição, a democracia, pelo contrá
rio, só se sustenta pelo pluralismo das opiniões e de sua oposição conflitual *8 .
- *
>

V*
.
anunciavam com a democracia Como escreve Ricoeur, “os homens têm razões
.
para preferir ao totálitarismourh regime tão ihcerto de sua legitimidade”.32 Os
Dorayante, a sociedade não é totalizável, nem representável de forma orgânica; paísés membros da Comissão européia compreenderam -no tão bem qué, ins-
seu bem comum não é mais suscetível de ser definido apriori, nem sem dissen-
.
(

J] truídos pelos erros políticos do èéculo 20, introduziram um artigo 17 na Con


venção Européia de Salva-guarda dos Direitos Humanos, que nega a qualquer
-
sao Igualmente, a democracia é este o regime que, pela primeirá vez, sem dúvi- .
da, na história, não se propõe mais a eliminar os conflitos: muito ao contrário, ilm o direito de reivindicar as liberdades consagradas por este texto (das liber-
ela os toma visíveis, instituindo a divisão social esforçán4 se somente por
° -
lhes garantir uma saída negociável com à ajuda de procedimentos aceitos A de
-
. - LS
dades de expressão e de associação, por exemplo) com o objetivo de perseguir
a destruição da democracia, do pluralismo e dos direitos f úndamentais .
liberação, portanto, é seu princípio, que nenhuma conclusão vem fèchâr Ne- . çj Assim, parece que a democracia deve permanentemente precaver-se de
'

nhuma conclusão, sem dúvida, mas nenhuma decisão pois é necessário deci - - > dois perigos opostos: ou a exacerbação do conflito, ou sua ocultação No pri- .
dir, mesmo em situação de indecidibilidade/ O px incípio de maioria revela este ' meiro caso, sem acordo sobre uma regra vde jogo comum, sem referencia ao
paradoxo que testemunha de que nos conformamos com um acordo somente v mínimo de valores compartilhado, a parte degenera e leva à exclusão ou à des-
/
\ . *
truição do adversá rio, tratado então como “inimigo”: privado do mínimo de
* J
'
parcial - e de resto muitas-vezes revisável - sobre Uma verdade aproximada.
t
A
H
Em regime democrático, portanto, o conflito é interminável, tanto na * confiança, pressuposto pela promessa quê ata o futuro, o jogo político se es- s '
hierarquia a se instaurar entre os bens primeiros, quanto sobre, os próprios
\ «
.
treita Áo inverso, quando, as divergências de interesse são ocultadas, e as opo- *

.
fundamentos do regime Melhor ainda: neste regime, é até o sujeito de mes- : . sições minimizadas, atrás cfe consensos de fachada, é grande o risco de que se
/
*

%
.
X
*
mo quê se encontra constantementé em situação depoder modificar sua pró-
pria ordem de prioridades; o sujeito democrático, como notaram bem os pen- ;'
4'

veja desenvolver futuros focos de violência. É, sem dúvida, um do$ riscos liga
dos atualmente à instauração, em todo o plane,ta, da “democracia de merca-
. -
sadores do liberalismo, sempre parece virtualmente “descomprometido”, sem- do” e do pensamento único que a acompanha. No plano propriamente teóri-
pre em vias de questionar “sua participa ção na§. pr áticas sodais existentes”, “li- co, os modelos racionalistas de Rawls e de Habermas, imaginando se encon - (

l \
* '
.
vr£ para rejeitar uma relação qualquerique seja” 30 Para um liberal como Rawft,

trar no exercício da “razão pública livre” ou numa “situação ideal de palavra” >
/

> J

'• 28 Sobre tudo isto, cf. LEFORT, C. Essais sur le politique. Paris: Seuil, 1986, p. 21- 19. 31 WELLMWER, A. Conditions d’une culture démocratique. In: Libé raux et commu-
29 RICOEUR, P. Soi - même comme uti autre. Paris: Seuil, 1990. p. 300. nautariens. Textes réunis et présentés par A. Berten, P. da Silveira et H, tourtois,
Paris: PUF, 1997. p. 382. \
30 KYMILCKA, W. Le sujet désengagé. In; Libé raux et communautariensv Textes réunis \
32 RICOEUR, P. Soi- même comme un autre. Paris: Seuil, 1990* p. 303.
*
et présentés par A. Berten, P, da Silveira, H. Pourtois. Paris: PUF,- 1997. p. 275.
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'314 315 .
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s i Capítulo 4 n
•r - V v t
Quest
í onawentOr Desligar o futuror
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* 1
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*
parece, ela mesma, bastante improvável. Precisamos, então, prosseguir nossa
i

as condições de um consenso racional, expõem-se ao mesmo risco de ocultar '

a natureza propriamente política? ou seja, conflitual, da interação social.33 - s


pesquisa no terreno dos fatos e interrogar-nos sobre as formas concretas por
*
-
Chantal Mouffe tem razão de lembrá lo: etimologicamente, "política • $ ela assumidas no decorrer das últimas décadas.
não remete somçnte à polis; a cidade e a ordem, que aí se instituem no desejo *
t

ui
de "viver junto”;"políticá\remfete também à pólemos: a guerra de modcTque o .
K

espaço político não é somente aqtiele reconciliado e harmónico da prdem


V
t

; - DE
DÒ ESTADO-PROVIDÊ NCIA À SOCIEDADE
RISCO .
f

consensual; é, também, o campo de confronto onde o adversário é sempre


^
«*
>
' ameaçado de ser tratado como, inimigo.34 Toda a arte consiste, então, em do-
V

* 4
t * t

minar esta violência sem por isso negá-la; transformar o antagonismo poten (> - O futuro, por ser desconhecido, assusta. É, pois', uma necessidade im-
cialmente destrutivo em agonismo democrático criar uma ordem política so- 4 periosa para qualquer sociedade, pelo menoS quando ela forja alguma idéia de
bre um fundo de desordem sempre ameaçador. Aceitar a idéia de que não há: i ^ futuro, dar estatuto e tratamento a este medo coletivo. Lembramo-nos de que
-
1

mais, nas democracias pluralistas, concepção unitá ria do bem comum de re- Hobbes fazia dele a instância principal da vida social e a explicação da passa-
/

presentaçãó substancial unânime e permanente da ordem social desejável,


'
^ gem do estado de natureza, sinónimo de guerra generalizada, ao estado civil,
mas ao mesmo tempo, pôr em cena todas as razões que temos para perseguir * * em que se ganhava uma segurança relativa, à sombra do Leviatã todo podero-

S
em comum a deliberação sobre estas questões, todas as razõés que temos
como escrevia Ricoeur para preferir este regime a todos os outros. Porque
f\
,\ — so. Com Locke, Kant, Rousseau, o modelo assumirá uma conotação mais po-
sitiva, o medo da insegurança desdobrando-se na confiança ( truste ) dos par -
promete a liberdade e a igualdade para todos, a democracia continua a pare- .
V

é
*
ceiros do contrato social e as autoridades por ele consagrada: sob as duas for -
- ^ r

I
cer nos o melhor projeto político; um consenso mínimo pode ser estabeleci- ié 4
mas contrastadas da desconfiança òu da cpnfiança, o risco está no princípio
do sobre estes valores reguladores comuns. Mas, porque ela se guarda de im- da sociedade moderna. * St

v
. por a priori uma interpretação definitiva destes princípios e privilegiar uma * A
tradução ú nica destes, nas escolhas socioeconòmicas concretas, a democracia >i
^ 4
S

É, portanto, como Estado protetor que é identificado o Estado moder-


no. No século 19 esta proteção assumirá a forma mínima da garantia genera-
abre um campo imenso para ào dissenso político, ao questionámento perma- % lizada da sobrevivência, com o Estado liberal deixando para a esfera privada a
.
nente das prioridades estabelecidas Parece que é nesta "tensão entre consen- .
. gestão das condições materiais de existência No século 20, em contrapartida,

, <

so - sobre os princípios - e dissenso - sobre sua interpretação que se insere - ' as missões do Estado ampliam-se, assim que assume o encargo para alémMa
simples sobrevivência, a garantia de uma determinada qualidade de vida: fa-
ve a dinâmica agonística da democracia pluralista”*35 «
J
*

lamos, então, de Estado-proyidência ou de Estado social. Cioso de uma reali-


4

O equilíbrio, convenhamos, é singularmente delicado. Desmembrada


r .)
entre cair na fragmentação irredutível, na divisão caótica, e o questionamen- zação efetiva das promessas de liberdade e de igualdade para todos? o Estado
to sem promessa, de um lado e, de outro, o retorno regressivo ao fantasma do social entende dominar os. principais riscos sociais, impondo a segurança ge-
povo ú nico, em comunhão numa identidade substancial, a democracia plural
i

. !j
neralizada Nunca a solidariedade voluntarista terá sido levada tão longe, nun-
4 +
u ca a confiança no futuro, um futuro balizado pela ciência, ligado pela lei e ga-
V \
9

\ 33 Nesse sentido, MOUFFE, C. Le Politique et ses erijeux. Pôtir. une dé mocratié pluriel-
rantido pelo contrato de segurança m útua, terá sido tão forte .
Mas este modelo afualmente entrou em crise: a sociedade assegurado-
, )

v i
* *
t le . Paris: La Découverte, 1994. p. 24.
.
4
k
* Vv
34 Ibid., p, 10-11. *
*

/
ra se decompõe, a ciência e a lei são tocadas -pela d úvida, o mercado e a priva- \*
/
35 Ibid., p. 2Q. 1 tização triunfam, ao mesmo tempo em que o medo retorna ^A "sociedade de
* , i / r ^
#

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i

316 317
A
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»
I
\ *
Questiónamento. Desligar o futura .
i Cdpítula 4' *
s
\ v

»
<;
I

risco”36 assUme assim o lugar de Estado-proyidência e é preciso falar nova-


'
.‘ 4
'i
, Alemã em 1948. É dado ao legislador um mandato para estabelecer uma regu-
mente de segurança em substituição á solidariedade. É que o risco assume
ii
, lamentação que garantisse o emprego e a proteção social. Pelo mesmo movi-
*

uma outra face euma 'outra escala, frustrando os instrumentos clássicos de *


mento, são consagrados os principais diçeitos económicos, sociais e culturais,
*

. ** * 2
os famosos “direitos de crédito” destinados a garantir a “dignidade” da existên-
-
A

prevenção E eis nos, unia vez mais, confrontados, com ã ambivalência do J|


/ questiónamento das promessas: será, ou bem o retorno do medo hobbesiano cia de cada um, enquanto são relativizados o' direito de própriedade, assim .
e oá reflexos securitários, ou o sobressalto de racionalidade inspirado pela \
* como as liberdades “liberais
»
”, de comércio e indústria.
, *
' Mas, não bastará ao Estado ser redistribuidor para honrar a promessa
.
“heurística do medo”, no sentido de H Jonas, o respeito ao princípio de pre ' - s
do bem estar social; ele prCcisa resolutamente conduzir a mudança social; in-
caução face aos riscos tecnológicos.maiores . . I

tervir em todas as frentes em que um impulso se prova necessário: criar em-


*
1 I *

prego e não somente repartir lucros, estimular a economia e não somente ar-
* I
i *
*
r »

LIBERAR O HOMEM DA NECESSIDADE '


%
bitrar os jogos, desenvolver o ensino, a cultura, a habitação, a saúde pública *..
,em breve, substituir a m ão invisível do mercado, muitas vezes em falta, pela
i
*
X

* *
O célebre relatório Beveridge de 1942, Social Insurance andAllied Ser * - 4 s
mão visível da Providência estatal. O Estado se torna, então, “propulsivo”.38 /
V ^
(Diz-se‘ também intervencionista, estratégico, dirigente, desenvolvimentista,
T

vices, que está na base dos sistemas de seguridade social ná maioria dòs países V
europeus, tinha como fio condutor a ambição de “liberar o homem da neces - de gestão...;) Edesenvolve, em todos os setores das políticas públicas, 4 progra-
*

* sídade” Adotando este programa, a sociál democracia se dava um objetivo por » 1 mas finalizados”, visando atingir os objetivos que lhe pareçam conforme à sua
I 1
assim dizer ilimitado, nada menos que a garantia da promessa inscrita na ,
visão construtivista do interesse geral.
'
i

Constituição dó 1793: “o objetivo da sociedade é o bem estar comum” Já an- ^ Das ambiciosas planificações dos anos de 1950 aos modestos “planos”
, de hoje ( “planos dé luta contra o desemprego e a pobreza”, “plano de.reforma
’ tecipado pelas primeiras garantias soçiais bismarqqianas dos anos de 1881- s
, 1883, o princípio de uma segurança generalizada e obrigatória, contra o con- d da seguridade social” “plano de resolução da poluição das águas subterrâ-
neas...”), o mecanismo é o mesmo que engaja os meios financeiros, jurídicos
junto dos riscos sociais, ligados a uma perda de rendas profissionais e co-fi M -
hanciada pelo Estado, o empregador e o trabalhador, iá se impor rapidamen- y e simbólicos dos poderes públicos na produção de um ftituro desejável. A -
-
te nos anos do pós guerra. O Estado refletia se, assim, na forma de um Esta J - - “construção” européia (o próprio termo é revelador) inscreve-se perfeitamen
te nesta lógica: que são os tratados europeus ‘senão ambiciosos programas de
-
do de prestações, gigantesca máquina de redistribuir as rendas em vista de i
*
0

uma progressiva equalização das condições; quanto à sociedade civil, ela assu 3
M

- J
ação a serem realizados num futuro próximo, segundo um calend ário cuída
• ^
-
-
i

mia a forma de uma “sociedade” secundária, exprimindo o laço social e en • J dosameiite fixado? \

contrando sua harmonia na mutualização generalizada dos, riscos, em vista da ' ' Jl * Certamente, este ativismo jurídico dos poderes públicos, e'principal-
* ^

realização de uma autêntica “seguridade social”.37 mente o fato de que a regra de direito seja sobredeterminada por políticas se-
* li

No plano jurídico, este programa social democrático se traduz pela / • toriais, evolutivas por natureza, acarreta uma insegurança jurídica, sobre a
ncia do Estado social, cujo princ qual voltaremos. Tudo se passa, de fato, como' se os programas sociais, redu-
' emergê
'
ípio está inscrito ao lado do Estado de‘
*
J j
zindo a incerteza das condições de existência, transferisse a indetermina çã o
direito, em algumas Constituições do pós-guèrrà, como a Lei Fundamental
.
* *
* 'para o coração do pr óprio direito Mas as demandas sempre crescentes de in -
4*
r \
V 1 *
I
c
4
.
36 BECK, U. Rislc Socíety Towards a new modernity. London: Sage, 1997,
( 4

V
rj

.
38 MORÁND, C. A. EÉtatpropulsif Paris: Publisud, 1991.
*
s
’37 .
EWALD, F. L?Êtat~ provh}ence Paris: GrasSçt, 1986. p. 10. -t ]
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1
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318 i .
* * 319
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' Capítulo 4
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Questionamento Desligar o futuro. d

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s . *

teryenção dirigidas ao Estado pelos beneficiários destas políticas mostram vamente o medo retorna, e do Estado social solidário passa se à sociedade do
risco securitário.
* *
- 1 1

que, a seus olhos, uma segurança acrescida de emprego, de habitação e deren-


»
/ ti
*
*

da vale perfeitamente uma perda da segurança jurídica, que no Estado liberal r

se pagava Com a insegurança de vidas expostas aos movimentos anárquicos do A


'
A SOCIEDADE DO RISCO -
% .
mercado Entre estes “dois modos de gestão do futuro”, ou a segurança do di- *
l
r
*

A discussão do Estado-providência e o declínio da sociedade securitá-


r
fc

reito e a insegurança de existência ou uma insegurança relativa a estes dois ní


<

- ria traduz.o retorno forçado do mercado e uma reprivatização das relações so -


veis, o estado social nãô teve dificuldade em escolher 39 . *
'
í> ciais. Novamente os indivíduos se encontram expostos às forças incontrolá-
-
Resta, atualmerite, que o Estado providência está em crise: o desempre- veis do mercado, como se a desinstitucionaliza ção das proteções sociais tradu- ‘ ,
go maciço, estrutural e de longa duração, minou seus fundamentos. Já em A
zisse a regressão ao Estado de natureza económica Isto é atestado pelas múl- .
^ » *

1942, Beveridge tinha consciência de que a nova política .de. seguridade social vi
, tiplas formas de .desregulamentação que, à insegurança económica, acrescen-
*

que preconizava só tinha sentido^se ligada ao pleno emprego. Hoje, de fato, a .


tam agora uma nova inseguran ça jurídica Isto é atestado principalmente
*
pelo í

sociedade ássistencial está mál, uma vez que, pelo. fato do desemprego estru- A; novo isolamento dos indivíduos que encontram, menos que ontem, na media-
*
*

tural, os contribuintes se jeduzem em proporção inversa dos interessados; ção de atores- coletivos, como os sindicatos, os prazos naturais capazes de re-
nestas condições o risco muda de natureza e de escala e perguntamo-nos se presentá-los. Os excluídos não formam mais uma classe homogénea que po-
ainda é ciírável . *
» T «
*
n
t,
deria ser representada e pesar por suas reivindicações sobre as escolhas políti -
Mas a crise não é somente financeira, ela é também, e mais profunda -
) i
r .
cas Em substituição a atores políticos coletivos, a exclusão deixa apenas indi -
mente sem dúvida, ideológica: trata-se da dúvida quanto às próprias finajida - * víduos atomizados, expostos, sem defesa ao risco social. Não há mais, entãó, ,

des do Estado social. Pierre Zavalon, que desde 198restúdava a crise do Esta
do-providência, vê nele algo como uma.crise de representação do futuro: “o
- ;
J .
senão trajetórias individuais específicas,-remetendo a histórias singulares: ruí
nas de economias superendividadas, isolamento dos desempregados a lohgo
.
• prazo, ruptura familiar das mães solteiras Impossível, sob estas condições,
-
futuro”, escreve ele, “hão pode mais ser pensado como a busca de uma tendên- i»

cia, realização de um movimento, desenvolvimento de um progresso cumula-


’• identificar uma categoria social estável, capaz de representação e proteção
.
tivo, realização de.uma prç messa primeira A dúvidasobre 0 Estado-providên- V
“abstraía e geral”, pela via,dó direito 41 .
* >

cia liga-se a uma espécie de pane da imaginação social. Ela recai atualmente ) <*

no vazio, Ninguém fala dos progressos sqciais do futuro, nem formula os ob


jetivos de uma nova etapa nem se arrisca a escrever utopias concretas. O que
- i
A figura da vítima 4

* ,
* V

" domina é a perspectivji de manter as aquisições”.41* O mecanismo jurídico de . ii * * d

Eica apenas a figura da vítima, isolada pelos golpes da sorte que a -to-
-
i

standstill ( “efeito de pausa”) que, na falta de coriságrar direitos novos, impede . cam, e reclamando justiça, apesar de poder ainda pretender um direito: quan
que 'se retomem as antigas proteções, ilustra pèrfeitamente esta situação de
v
do a justiça distributivaxieclina, permanece apenas a justiça comutativa Seni .
“tempo de pausa”. Mas, quando não se luta mais para que o futuro seja me- poder pretender a um título geral, um “direito social”, resta para a vítima gri -
lhor, somente para que ele não seja pior, é porque mudamos de sociedade. No- ti
.
tar contra a injustiça e requerer ao juiz xeparáção Donde o -crescimento em
5
•r *
*

39 MORAND, C. A. Le droit de rÊtat-providente. Revue de droltsulsse, p. 545, 1988. 41 ROSANYALLON, hLa Nouvélle Questiott socialè. Repenser V Êtat- providence. Paris:
Seuil, 1995. p. 197 et seq..
N

i 40 ROSANYALLON, P. La Crise de V Êtat- providence. Paris: Seuil, 1981. p. 35-36.

4 I *

#
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320 f
321
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*
Capitulo 4 /
4 Questionamento.Desligar o futuro . H

« \
«*


% \

poder co-relativo, na sociedade do risco, da vítima, em substituição ao ator so- mesma observação á propósito do trabalho dos juízes tanto no direito pe -
cial, e do juiz como substituto do político. A queixa (na justiça) é substituída, ': nal, quanto no direito familiar -r levados a exercer uma verdadeira ‘ magistra-
'

então, pela reivindicação (política), com o risco de transformar a instância ju-


"
tura do sujeito” empurrando para cada vez mais longe a tutela exercida por ele
< »

.
diciária em recurso ilusório contra todos os males sociais É nos Estados Uni- k
A
>
sobre os indivíduos. ,
"

*
dos que evoluiu mais longe esta alternativa individualista para o Estado social. i

Conhecemos o lugar que tem ali o direito da responsabilidade civil, pressu ' ^ - I
/ .
r

aposto de garantir a ind nização das vítimas* “É”, nota P. Rosanvallon, "‘diante
^ , A heurística do medo
do SupVemo Tribunal, e não no terreno da luta de classes, que se desenvolve \ ,
í
doravante a questão da justiça social nos Estados Unidos.” 42 Mas, longe de ga- • \A
^ Vimos que: a discussão do Estado social leva a colocar o medo e o ris-
„ rantir, para o futuro, o reconhecimento dos direitos abstratos e virtualmente - ' ,1
> co no centro das preocupações coletivas* Logo, é conveniente repensar a ques-
universais, esta yitimízação compensatória tem com efeito, ao contrário ligar
*
as transferências sociais para situações cada vez maisindividualizadas eneces- *
sariamente ligadas a situações passadas, das quais é necessá rio indenizar os .'•«
^ ^ j
tão do risço e correlativamente redefinir uma noVa figura da pr údênçia. Esta
reflexão se impõe porque tomamos consciênciá, atualmente, na “ sociedade do
%

danos. Longe de construir um futuro solidário,* esta mudança de paradigma - riscó\ de que èste mudou de natureza e de escala, como se, demasiadamente
própria à “sociedades de insegurança”, de que fala M. Gauchet43 - conserta, generalizado ( risco social), setõrnasse inassegurável, ou que, demasiado enor -
golpe a gõlpe/aS disfunções do passado . me (riseo tecnológico'maior), se tornaáse incalculável; como se, sobretudo ir -
reversível, ele constituísse uma ameaça absoluta, da qual importa se precaver
N f

Uma outra alternativa para a decomposição do JSstado social, igual- '1


absolutamente. Mas como se prevenir delà, já que invisível, ela frustra nossas
4

mente observável em nossos países, consiste num tratamento cada vez mais .
• individualizado da exclusão, da marginalidade e do desvio, hla falta de ainda capacidades de medida, ou, demasiado pesada, desencoraja nossas capacida -
des é tico-políticas de assumir responsabilidades?
poder abranger categorias coletivas, o trabalho social apreende comporta
mentos individuais, ao riscp de um acréscimo do controle social e de uma mo-
- Hans Jonas traça âqui o caminho, advogando por uma “ heurística do
f

ralização de vida das pessoas assistidas. Sem se apoiar sobre um título abstra- medo”: nã o p medo “patológico” e interessado de Hobbes, o medo por sua
j
to, a assistência não se arriscaria a recomeçar com a classificação dos pobres própria sobrevivência, que leva os povos á se lançarem nos bra ços do Leviatã,
em funçãq de seu mérito? “.Quem quer que tenha participado de uma comis- < ^ . mas antes o medo desinteressado pelo porvir das gerações futuras, que pode -
. -
1

são local de inclusão, que decide da prorrogação'ou da cessação da RMI àos ríamos comprometer de modo radical 45 Tamanho medo, que conduz a for
*
t *
>

<
beneficiá rios, escreve È Rosanvallon, não pode deixar de ficar chocado: pare- *
* mular, em determinados casos, o cenário do pior (ó avião que se esmaga no
cemos, às vezes, transportádos para o século' 19, no recinto de uma seção de ] ceritrò do reator nuclear ), é bom conselheiro: impõe, “para que o futuro seja”, X*

beneficê ncia, quandò se tratava de diferenciar os bons e os maus pobres.”44 A (


a obrígação 'de buscar saber (princípio de prevenção), em caso verossímil de
incerteza sobre a realidade\e a gravidade dq risco, a obrigação ou de se abater,.
,
%

.
42 ROSANVALLON, R La Nouvelle Question sociale Repetiser V État-providence. Paris:
4
*
) *
ou de redobrar de prudência (princípio de precaução ) O princípio de precau
'
. -
..
Seuil, 1995 p 66. *
ção, que recebe atualiiiente suas primeiras traduções jurídicas, surge
. »
diante de 1

. .
43 GAUCHET, M La société cTinsécunté Les. effets sociaiix de Tindividualisme de um risco transformado - a maneira contemporânea de assumir as promessas ,

.
masse In: Face à Vexclusioti. Le tnodèle fratiçais. Sons la direction de J Donzelot,
.
.
Paris: Esprit, 1991. p 169 etseq . »

. . . JONAS, H. Le Prí ncipe de responsabilité. Une éthique poiir la cmlisation technologU


.
SeuiU 995 p 211. . -
44 ROSANVALLON, P La Nouvelle Questionsociale Repenser V État providence Paris:
\
45
' que. Traduit par J. Greisch. Paris: Cerf, 1990. p. 49 et seq.
\

v
322 323
Capitulo 4 * < i-
*
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Questionamento Desligar 6 futuro . N
4

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•*

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do futuro, de manter a aposta do futtiro numa sociedade confrõntada com ris- ’ ,
da responsabilidade dos d,anos. Quanto ao dano causado a outrem, o direito
i cos maiores e irreversíveis. . i

o apreende, doravante, menos em termos de falta e de responsabilidade sub -


"

jetiva, quanto de risco e desresponsabilidade objetiva: pouco importa em de-


i

( V V
• fmitivo o erro, o importante é que a vítima seja indenizada por um .prejuízo,
*4 M

Três formas de. risco t


deste pu daquele comportamento, que um ator económico, mesmo sem cul-
pa, lhe causou. Já dissemos: nunca uma sociedade se aproximou a tal ponto da
4
4
f

\ Uma breve história do risco e da prudência' co-relativa irá permitir que


» * *
j promessa do bem estar social quanto esta sociedade “providencial” do risco
1
%

tomemos a exata medida destas transformações: três etapas marcam seu cur-
f

< so. Num primeiro tempo, o da sociedade liberal do século 19, o risco assume-
> ,
^ J
^ calculado.
Atualmeíite, contudo, este sonho parece se distanciar e entramos numa
4

a forma do acidenteracontecimento exterior e imprevisto, álea, golpe da sor- 1


te, ele é simultaneamente individual e, repentino;, Nos melhores dos casos, 3 —
terceira fase da história do risco a do risco enorme/(“catastrófico”), irrever-
sível, mais ou menos previsível; que frustra nossas capacidades de prevenção
-
pode-se tentar prevenir se dele, dando prova de “previdência”, virtude bur- . g e de domínio, levando, desta vez, a incerteza para o centro de nossos próprios 1
guesa por excelência, subscrevendo uma garantia individual, por exemplo. Por 1 *

saberes e poderes. É esta “colateralidade” , esta incerteza ao quadrado, afetando

i
outro lado, quando o acidente é causado a outro, pelo erro, de um terceiro, este K
-
será obrigado a rêparáxloy em virtude do mecanismo compensadpr e indivi-
dual, também ele, da responsabilidade civil. Diante deste rísco-acidente, a no-
L ^ I
de modo reflexivo nossa própria ação, que caracteriza a nova idade do risco,
*

submetendo nossa apreensão do futuro a um desafio sem precedente. Luh-


1 *

mann e Bçck, dois teóricos da sociedade do risco, concordam neste ponto:


?
"

ção é, então, ou curativa-retroativa (indenização a posteriori do dano ), ou 4

quando' o “perigo” vem de algum modo do exterior, o “risco” por sua vez, é
prudentemente prospectiva (segurança individual e previdência). r
tim produto derivado, um, efeito perverso ou secundário (como se fala dos
O segundo tempo da, historiando risco assiste à emergência da noção de ;
*

prevenção. Esta é entendida como uma atitude coletiva, racional e voluntaris-


“efeitos colaterais” indesejados dos medicamentos) de" nossas próprias deci -
sões.47 Assim, a sociedade do risco é uma sociedade que coloca a si mesma em
*

ta, que se propõe a reduzir a probabilidade da chegada e da gravidade do ris-


perigo: basta que se imagine no risco sanitário (sangue contaminado), ao ris-
*

co - um risco doravante objetivávehe mensurável. No início do século 20„


/

quando são lançadas as bases do Estado social e da sociedade previdenciãl a ' )


^
> '
* co alimentar (doença chamada da “vaca louca”), ou ainda, o risco tecnológi
co (centrais nucleares* aquecimento dó clima, buraco na camada de ozonio...)..
-
utopia científica e técnica de uma sociedade dona de si própria se confirma '\
Por outro lado, estes riscos, sendo simultaneamente globais transgera-
< por todos os lados: “prevenção de doenças (com a descoberta pasteuriana)”, * , cionais, fora dás normas (enormes), e por hipófese pouco ou nada conhecida /
^
*
escreve E Ewald, “prevenção dos crimes (com a política de defesa social)”, pre-
venção dos acidentes (com as ciências da seguridade), “prevenção da miséria
' e da insegurança social (com as previdências sociais) ”. A este domínio cien-
46
;r .
sua definição é. ela mesma, largamente, função do estado de nossos cònhed-
mentos científicos, assim como de uma determinação político-ética, desta vez
*
, - _
, t*
do limiar do quê nós consideramos como risco “aceitável” e “inaceitável”.
tífico do risco, se acrescenta õ domínio jurídico:cada um se vê reconhecer um
.
direito,generalizado à segurança O risco deixa de derivar da categoria dos gol - Logo, tal risco.é- duplamente reflexivo: produto de nossas escolhas tecnológi
*
-
cas, é igualmente o fruto de nossos modelos científicos e de nossos julgamen-* .
pes da sortepassume afigura do.acontfecimento estatístico objetivado pelo cál- ,
tòs normativos. Esta situação deincerteza reflexiva, ameaça que vem inenos . -
culo d âs» probabilidades e fornado socialmente suportável pela mutualização
\
/

4
J A

\ \
\

1
. da natureza do que de nossa própria ação reforça, não'se tenha d úvida, a ne-
N
— *
t
>
\

.
46 .EWÁLD, E Philosophíe de la précaution U Ànnée sociologique, v, 46, n 2, p 384, . . . > 4

, 47 ’ LUHMANN, N. Rish a Sociological Theory Serlin: Suhrkamp, 1993. p 25; BECK, .


K

.
*
x . 1996. \
(i

.
U Risk Society Towards a new moâernity. London:Sage, 1997. p. 20.
i *
^ %
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324 325
/
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»•
Capítulo 4
* i
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. .
QUestionamento Desligar o future
*
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1
* 4 A « A
r
.* > (

cessidade dé praticar a revisão, discutida na sessão' precedente, sob o fundo da


*
£<
*• *
*
antecipação. Virtual sem ser quimérico, improvável sem .ser fantasma, este ris- t

epistemologia da incerteza” e da “política da indeterminarão”


co se apresenta como uma ameaça invisível e, entretanto, hem real. Quem po-
*
*
r
Tocada pela dúvida, a ciência é desde então obrigada a- aplicar a $i prç-
~pria asTaculdades de crí

deria prever os efeitos dá ingestão moderada de dioxina ou da exposição pajv
tica que até agora Toram eficazmente voltadas para a ? Mas quem acredita poder, por isso ainda, minimi-
ciai às radiações nucleares
natureza. Mas, neste exercício, a ciência compreende que p.erdeu o monopó- h


» ,

zar os riscos? *
t V

lio do verédicto: o princípio de precaução doravante convida ao ceticismo. /


.
r
*
Então, instala-se uma crise de confiança, atingindo com toda força a
“Com a precaução”, escreve F. Ewald, “utiliza -sè a ciência como princípio de
. „ idéia de progresso; a inovação e o desenvolvimento São atacados pela suspei-.
v

suspeita”:48 é maispelas jdúyidas que pode suscitar, que pelas certezas que pro -
ta assim que o medo do risco irreversível se propaga, lylas como, cçrtamente,
duz, que ela daqui em diante nos interessa, A atenção será então dirigida para * á imobilidade é inconcebível e não pode deixar de agir, nossas sociedades, co-
além dos paradigmas dominantes, às hipóteses minoritárias e marginais, nin-
locadas sob ameaça cònstante dos riscos suscitados por suas próprias escolhas,
guém.mais tendo o direito de descartar a hipótese do gênio maligno mais en- • : são nbrigadas a revisar incessantemente suas opções * e preparar-se com a
ganador. Dispondo de poderes que ultrapassem doravante os nossos poderes,
maior pressa. “Is[a sociedade do risco escréve U. Beck, “ò Estado de urgência
V
^
os cientistas devem redescobrir a modéstia e o diálogo: cultivar a falibilidade
e aprender a partir de seus erros, visando evitar as irreversibilidades catastró-
^
ficas; aceitar, como o Tribunal de cassação transformou em dever, em séu ares-
,
l
'ú ^ 1
tende a tornar-sé o estado normal”,51

V
*
r

\
*
\

1
to de 8 de setembro de 1992, relativo ao . sangue contaminado, a responsabili-
dade ligada ao “risco de desenvolvimento”, aquele mesmo que, inevitável hoje,
só irá se manifestar mais tarde, num outro estágio da ciência.49 Contra a espe- '
^ • O TEMPO FORA. DE SEUS EIXOS
\

“O tempo saiu dè seus eixos” r a exclamação de Hamlet poderia intro-


*

cialização unilateral e o poder incontrolado dos tecnocratas, é preciso, então, \


V
* x
'
levar o debate aos nossos laboratórios é às empresas, no centro das escolhas
'
duzir nosso propósito e sugerir alguma coisa do espanto suscitado pelas mu
'
-
l
'
táçõês de nossas representações mais atuais, o tempo social. De fato, tudo se
tçcnociéntíficas.50 * A.
»
passa como se tivéssemos nos soltado do- eixo diacrônico que reata o presente
- E o que acontece, finalmente, com relação ao tempo que mantém a so- jj
1/

. ao passado e ao futuro, e que nosso presente, infinitamente dilafado, oçupas-


ciedade do risco, uma vez que este escapa tanto à previdência quanto à pre- i
*
sç doravante, qualquer espaço disponível. Seria o reinado do instante, ou an-
venção? O risco colateral, que introduz a incerteza no centro dos saberes e dos
tes, o da eternidade. Ninguém o sabe com exatidão. Uma coisa é certa: este
poderes , que faz da revisibilidade das escolhas o novo imperativo categórico, f

, tempo não é mais o da duração, da expectativa, do projeto paciente e da lou-


*
altera profundamente nossa capacidade de dominar o futuro, distanciando V
*
/ • i j • '
ga memória. Radicalmente acelerado, ele é remetido dó longo prazo ao curto '

cada vez mais ps efeitos danosos futuros das causas presentes presumidas, este
prazo e, deste, ao imediato. Ele se enuncia, daí em diante, em “tempo real” ou *

I risco incerto produz uma dilatação do tempo que engana nossas faculdades de
\ - *
*
\. seja, sobre o ?eíxo da simultaneidade absoluta, sem distância e sem exteriorida-
-
h

% de ( ao “mesmo” tempo). Nele, todos os tempos se misturam, as. sucessões se „

.
48 EWALD, F Philosophie de la précaution. LAnnée sociolàgiquey v 46, n.‘2, p 402, . . < confundem e as continuidades tornam-se aleatórias: entramos na.,era do efê-
1996.
A
*
*
.
«
49 Cf LASCOUMES, P. La précaution comme anticipation des risques résiduels et
^ , mero eterno. i
t

\
hybridatiõn de laresponsabilité. LAnnée sociologique,v. 46, n 2, p. 367, 1996, . * ‘
*
*

50 Ibid., p. 371 et seq; BECK, U. Risk Society. ToWards a new modernity London:Sage, . o
*
*
K

1997. p. 231 et seq.


4
/
I

. .
51 BECK, U. Risk Society Towards a tiew modernity London: Sage, 1997 .p. 79 . .
\
í
*
-
h
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• *
*
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4 4
*
0
326 t

327
*
N
M
Capítulo 4 i Questionamento. Desligar o futuro .
t

} »
)

< TEMPO REAL, VERDADEIRAMENTE.? chegamos antes de ter partido? Um mundo deste tipo não está mais “no mun-
do” mas “*fora do my ndo”; não há mais tempo, mas. “além-cronologia”.
• t 56

.
P Virilio, teórico da velocidade, explica que nosso mundo tornou-se o A -circula ção dás imagens e das informações nas redes multi-mídias,
da presença virtual, da telepresença: não apenas telecomunicação mas tam-
-
J
- ilustra bem esta nova relação com ,o mundo e com o tempo. Por um lado, a
bém tele ação ( trabalho e compra a distâ ncia, por exemplo) e logo, tele-sen
- i
contração dos espaços e dos intervalos temporais permite que se recebam as *
*•
mensagens “diretamente”, que se sigam os acontecimentos minuto a minuto,
*
sação (graças a dataiuit; combinação interativa de dados que permite sentir e •
tocar a distância).52 Fazendo isto, atingimos e,ultrapassamos a “velocidade de » em tempo real, onde quer que eles se desenvolvam no planeta. A atualidade
liberaçao” (28.000 km /h, velocidade necessá ria para nos tirar da gravidade ter- ' i tomada soberàna - só interessa o que se passá no momento desrealiza, as - -
restre)4 o mundo deixa de nos opor qualquer resistência; os. intervalos de tem- J
*
. sim, tanto o passado, mêsmo'próximo, quanto o futuro, sempre incerto .
po e de espaço remetem -se a zero ou quase;°o tempo ultracurto, o instante de J *
Pòr outro lado, de modo ainda mais significativo, as possibilidades infh
.
razão da conexão eletrónica Um “muro do tempo” é assim ultrapassado, | .
* A

nitas de comutação hjpertextual ou hipermediática oferecidas ao espectador -


transtornando nossos pontos de^ referência:53 escalas, grandezas, horizontes, p
dtiração, tudo é rebaixado no espaço-mundo da comunicação planetária em
interator - “zapping*' televisivo e “surf ” sobre as ondas da Net têm como efei - -
-
to misturar instantaneamente os tempos de todas as histórias: “todos os gêne
*

tempo real. chato, sem


•ros se confundem e seu ritmo torna-se sincrônico hum horizonte

-
/ »
A sucessão do dia e da noite (tempo cronológico) e a articulação vivi-
'

começo, sem fim e sem sequência” 57 Uma iritertempdralidade aleatória de -


Ma do passado, do presente e do futuro ( tempo histórico ) são como que ab-
sorvidos num < cdia infinito”, um “presente eterfto”, que é aquele do “instante -
preende se disto, aberta às reconstruções ilimitadas do espectador.O sentido e
o ritmo próprios a cada acontecimento;ficam como que suspensos, virfualiza -
v dilatado” da comunicação interativa.54 Os mercados financeiros que funcio- 3
^ dos, redefinidos, em função do contexto particular de cada
uso em representa -
nam sem parar, e os satélites de comunicação que irrigam a terra 24 horas por
ção. O mundo sob tais condições não tem sentido,, e a história, sem direção:
dia com ~suas imagens, as teleconferências e as “empresas virtuais” que se des-
..
locam. para lugar nenhum , são alguns exemplos, entre outros, deste “no •
cabe ao espectador recompô-los à sua vontade, a cada instante. Castells vê nis -
so a marcá de uma cultura do eterno efémero: eterno, pois é no reservatório
mar ,
í s time” deste tempo desapropriado, desligado do aqui e do agora de nos-
das expressões culturais universais que bebemos, efémero porque cada ,arranjó
.
sa vida.. real. TJma vez que tudo se inverte e que a simultaneidade informa - particular depende do contexto específico da interação. O eu conectado à rede
cional absoluta é apresentada como “real”, a menós que seja o nosso já vivido
^

é a ordem cronológica dissolvida na indiferenciação de todos os tempos, é o
quç se tornou “virtual”, simples possibilidade entre as inumer áveis vias ofere- J
cidas pela navegação tele-ótica na rede planetá ria . %

Um tal desligamento nao acarretaria o risco de uma. desrealização do "


• triuhfo do “efémero eterno” 8
^ * *

mundò e dos corpos próprios? Se interroga Virilio.55 A hipêrmobilidade virtual {


^ sedentários, mergulhados na^ inércia,

Ô IMPÉRIO DO EFÉMERO
não nos torna é w

fascinada da telepresença
4

\
absoluta, cidadãos de um mundo oíide nada acontece, já que, de certo modo, : 1

“O império do efémero”: é assim precisaxyente que o sociólogo Lipo-


• /

vetsky qualifica nossas sociedades do tempo f êal, devotadas à volatilidade do


* K
52 VIRILIO, P. LaVítesse de libération. Paris: Galilée, 1995. p/54.. *
_
i )

53 Ibid., p. 81.
% / 56 VIRILIO, P. La Vitèssé de libé ration. Paris: Galil ée, 1995. p. 27, 28, 56, 159.
54 Ibid., p. 162. '
* / 57 CASTELLS, M. La Socié té en réseaux. Paris: Fayard, 1998. p. 516.
55 Ibid., p. 27, 33. ’
58 Ibid., p, 516, 521. *

. 328 329
Capítúlo 4
- .
Questiomtnento Desligar o futuro .
\

*
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.
tempo e à variabilidade dós modos 59 Nossas sociedades, explica ele, torna
»

- Contudo, não é que o militantispio tenha desaparecido, mas ele incide


*

• *
-
ram se sociedades mpda,indexadas a uma nova orientação da temporalidade,, i
principalmente na urgência da emoção da m ídia para as grandes causas hU- #
aquela qlie, desde sempre, caracteriza a moda: o preàente. No mundo inteiro
manitá rias que ocupam a boca de cena. Mas, ainda aqui, o comprometimen -
se desenvolvem os “fenômenos de interesse e a lógica da inconstância” pelo
-
mundo inteiro manifestam se o gosto e o valor pelo novo:, “são normas flu
tuantes, incessantemente - reatualizadas, que nòs socializam e guiam nossos
- —
to tm ínimo engajamo-nos somente por um tempo, se possível, num modo
„ lúdico e principalmente sem filiação considerada
4
alienante. Assim, multipli-
comportamentos”.60 Vivemos, entã o, uma formidável inversão temporal que cãm-se as pequenas associações efémeras próximas das preocupações de base
,
* dos indivíduos, compondo um “tecido social em forma de mosaico . Defini n r
** 64
- í-

tivamente, é a coipunicação solitária como a praticada ontem pela CB e M,ini- .


nos teria simultaneamente desligado’da potênciã integradora do passado e » \
%
*
* *
distanciado da capacidade, mobilizadora de futuro (o projeto); nosso univer 1
0

-
5o é aquele dos programas curtos, das mudan ças perpétuas de normas e estí
tel e, atualmente pela Internet* , que traduz da melhor maneiraste “império
- do efêriíero”: trocas rápidas, anónimas, infinitamente frágeis.
i
65

mulos para experimentar, sem atingir qualquer sugestão nová.


Bastaria ela para instituir odndivíduo e atar o laço social? Alain Ehren-
* t

i
O político e o económico privilegiam, desde então, a flexibilidade sobre * j

o longo prazo, a pilotagem
* berg duvida disso e vê em todo mundo o “indivíduo incerto”, enchendo o va ~ , -
à vista sobre a ptospectiva * desde que estamos .
“em Estado de urgência permanente”. Emancipando-se de qualquerherança,
'
- „ zio cio sentido coletivo, pelo consumo de drogas e de imagem -
dupla depen-
dência em forma de substitutos ,à ausência de saídas políticas suscet íveis de re-
'
-
nossas sociedades “constituem se em sistemàs quase experimentais**, exerci-
"

tomar as energias sociais. E de evocar um retorno do político identificado aqui


tando-se em “auto pilotar sem ’preestabelecido”.61
-
#
r
modelo com aredescoberta d “duração e da distância”, únicas capazes de “ traçar” pers
Quanto ao dom ínio artístico, não permanece em descanso: não tende
ele a se aproximar cada vez mais do universo da moda, que produz obras fei
^
pectivas de ação, de “moderar** as buscas subjetivas e de “abrir o futuro” Mas,
' 66
.
- precisamente, mais que a moderação e a duração, é a aceleração e a urgência
tas para não durar, “canais”, diz-se, “de obsolescência incorporada”? Renun
ciando a escolher, ou incapaz de impor um estilo novo, à arte pós moderna os
- • que caracterizam o tempo político no momento da revisão generalizada .
i
combina todos, reciclando indistintamente o antigo e o recente.62
O império do efémero vence ele mesmo o conflito,' do qual chegou
*
«I
v
__ V

A * . . ESTADO DE URGêNGIA
'
" .
apagar as asperezas e a ocultar as dimensões sócio-políticas. No regime da *

V
moda, os litígios se individualizam, referem-se finalmeníe a variações margi- x ,
Os dicionários atestam: “urgência** - o que pressiona, o que não pode-
* *

nais e escolhas subjetivas. As grandes mobilizações políticas e sindicais substi- 18 e que só se disse-
, ria esperar - um termo que só aparecè a partir do século
tuem as reiviqdícáções individualistas, e os pesados confrontos ideológicos a
uma infiuidade de lapidações superficiais.63 Assim, a própria política tornou
*
Q
~ ^

v mina verdadéiramente a partir do século 2 * Seu contexto


• • •
.
de aparição é me-
*

- dicinal: fala-se do “atendimento de urgência’ do hospital, aquele onde se im-


*

se infinitamente ligeira, quase, frívola.


põe uma intervenção “imediatamente** A urgência, então, remeter em princí-
* \

pio, a um estado de coisas excepcional: a gravidade de uma situação intima
59 LIPOVETSKY, G. LEmpire de Véphémèret La mode et son destin datis les sociétés mo- 1j
*
para que se aja imediatamente, se for preciso, à margem ou mesmo em vidla
*
-
v derne$ Paris: Gallimard-Folio, 1987.
j
'

60 Ibid., p. 137. x
r*

61 Ibid., p. 319f
62 Ibid,, p. 321-322.
V .

*
í .
64 LIPOVETSKY, G VEmpire de V éphémère, La mode et son destin dans les sociétés mo
-
dernesf Paris: Gallimard Folio, 1987 p 335. ..
(
-
.
63 Ibid , p. 328.
. -
65 Ibid., p 336 337 * ,.
66 EHRENBERG, A. Llndividu incertain. Paris: Calmann-Lévy, 1995.
c
\ I
i
i
330 I

HéíéIÍJI
*
* ' Capítulo 4 * x
- m
I
. .
Qucstionamento Desligar o futuro

O
v \
çãp dos processos çrdináiios. Há perigo na demora, ecomo se diz nestes ca- ' lamentações nacionais, tem como efeito multiplicar, em proporções vertigino- ••
sos, necessidade (urgência, dita a lei). Então, a urgência cónota simultanea- sas, a massa e a velocidade de circulação dos capitais especulativos, desconeC -
^
mente uma idéia -dç inquietação face ao risco grave e iminente e uma idéia de 1
tados das operaçõ es de produção e de Consumo reais, das economiqs materiais
tfftnsgressão a respeito das instituições e das maneiras de fazer habituais. Lo j - e dosativos bancários concretos. Uma economia virtual, especulativa; trans-
gicamente, um registro como este deveria, pois, permanecer tão excepcional í nacional e imprevisível se desenvolve, ali, livre do presente e do concreto e,
i como as neçessidadés às quais pretende fazer face. E, contudo, podemos arris
'
- contudo, gerador de lucros fabulosos. i

car a hipótese, com Zaki Láidi, de que, doravante, a urgência não se constitui Desta especulação resultam.vários efeitos nefastos para reprodução do
mais numa categoria extraordiná ria, mas, antes, “ uma mòdalidade temporal ' Ú
elo social: a dificuldade acrescida por estes que investem na etonomia real
\

da ação em geral”.67 O crescimento em poder do iridecidível, implicando revi- J


6 LI para antecipar a ação, e, assim, o desencorajamento dos investimentos produ-
são permanente das escolhas (incerteza episítemológica e indeterminação de- " ,
' J tivos: a destruição de.empresas e empregos, contudo produtivos, devido a mu-
- mocrática), a desestabilização do Estado social e do crescimento relativo da
sociedade do risco,, a generalização do tempo real ultrácurto e do tempo efê-
1
i
danças. imprevisíveis em seu meio ambiente financeiro: a desqualificação no
comportamento, no esforço e o trabalhosa longo prazo em prol do dmheiró
mero da moda, todos estes temas por nós percorridos, deveriam ter preparado \ gânho rapidamente nos lances de póquer bolsistas;,e, finalmente, o questiona-
’ esta id éia
* : uma vez que se desacreditou a idéia de progresso e que se torna “ex- j mento do laço que se pode estabelecer entre produção e remuneração, traba-
tremamente difícil pensar o futuro no modo da promessa” 68 É o presente que .| . . lho e sentido, ética e riqueza.
concentra toda a carga de expectativa normalmente voltada para o futuro, e é
Ainda no capítulo económico, sublinharemos o novo imperativo cate-
>

nesta injunção imediata do distante - logo, na urgência - que aação é chama-


/
górico que se impõe à empresa: a gestão em “fluxo tenso”, a norma do “ justo a
da a se produzir. Põde-se ver nisto, ou uma reação aparentemente “natural” a
tempo”, a regra da flexibilidade máxima, Para dar lucro, trata-se de abreviar a
- um contexto em aceleração constante, ou um modo de legitimação novo,
auto-juátificador, que compensa, pela dramatização da conjuntura, a ausência
duração de cada operação e'acelerar a rotatividade dos recursos: é a regra do
,
de perspectivação e o déficit do projeto. Deste último ponto de vista, pode se
“justo a tempo”, que se aplica agora também ao comprometimento da mão-
dizer, com Jéróme Bindévque “não é a urgência dos problemas que impede a .
- 1 /
de-obraj que utilizaremos justo o que é preciso e que dispensaremos ao me-
• nor sinal de alteração da agenda de encomendas.
elaboração dos projetos a longo prazo, mas antes, a ausência de projetos que 1 O segundo exemplo é tomado de empréstimo ao dom ínio da política-
nos submete à tirania da urgência”.69 *
.1 internacional, mais particujarmente à questão das guerras, tema tabu que apa-
Dois exemplos para ilustrar a pregnâ ncia da urgência no conjunto do J rece em nossas sociedades lúdicas e aparentemente consensuais. Em que se
*

campo social. O primeiro é tomado de empréstimo ao dom ínio da economia. -


} transformaram as Guerras modernas, pelo meiíõs. aquelas que travam as po-
*
*
Que a economia seja marcada pela aceleração do tempo, ficaremos persuadi- í -.1
dos com facilidade invocando o “cassino planetário” formado pelas diferentes
*
téncias? A Guerra do Golfo, dita “cir úrgica”, serve aqui como arquétipo: quer-
se confrontos breves, até mesmo instantâneos, eficazes, limpos e sem derrama-
praças bolsistastinterconectadas e funcionando agorarem tempo real, dia-a- -
dia. Este enredamento dos mercados financeiros, aniplamente livres das regu-
' .
mento de sangue aparente. Como se tudo devesse se passar num universo vir
tual, a exemplo dos “ wargames” e jogos de computadores de nossos filhos*
*
'

-
Quanto à ação humanitá ria internacional, que muito freqiientemente assume
67 LAlDI, Z. Uurgence ou la dévalorisation de 1’avenir. Esprit, p. 12, fev. 1998. X
papel de substituto de uma política estrangeira e uma ajuda ao desenvolvinien-
68 Ibid., p. 9. . to carente, é marcado por sua vez - contra sua vontade pêlo signo da urgên,- . -

.
69 BÇvfDE, J Uéthique du futur, Pourquoi faut-il retrouver le temps perdu? Futuriblçs, ' cia e pelo curto prazo: como se, incapazes de erigir uma solidariedade interna-
p. 21, dez. 1997.
* ( cional duradoura, que nós nos condenamos a reagir ao ritmo de nossas emo -
s

332 333
\

Capítulo 4 t
.
V I
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I
.
Questionatpento Desligar o fiituró
X
" d yJ V* A

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r * V
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>

^
ções, quando as imagens de fome òu de genocídio, qúe nos inundam na hora
f
i

do telejornal da noite, são verdadeiramente demasiado insuportáveis.70


'
t
transiçãopor um bloqueio institucional, crití cável. O sentido da expectativa sai
'\ \

/
> r disso pròfundamente alterado, longe de ser, como “o horizonte de expectativa”
de que falavam Koselleck e Ricoéur, um tempo de preparação e umá fonte de
* t

v
*r
/
l
’• V * esperança, ela é, doravante, entendida como fonte de retardamento e de frus-
Os efeitos da urgência
^

• 7< *’
*
tração. É a idéiade percurso que não é mais integrada: o caminho que se faz e
o tempo que se leva para atingir um objetivo determinado, a maturação das
¥
v S
* r
' • Vários efeitos essenciais se destacam desta oscilação do tempo na ur- { . i
t
coisas e dasidéias que resulta nàs realizações bem sucedidas.
gência do presente. Inicialmente, uma formá de desvalorização, tanto do pas-
sado ( decididamente beni acabado), quanto do futuro (demasiado incertcPe k
1 Muito característica desta cultura da impaciência ( de resto compreensí -
distante para ser coerente ): para que serve, de fato, dedicar-se à prevenção, elà-t s
borar planos, fazer previsão, já que há urgência em decidir, de imediato, sef ô
horizonte temporal a levar em consideração se recompõe a cada instante?
^
*

^ *
'
vel, vistp as circunstâncias históricas), foi a atitude recente dosjpaíses do ex-im-
'pério soviético cpie mal liberados dos ideais promissores da “Grande Noite
acreditaram poder entrar instantaneamente e dé corpo inteiro na democracia

e no regime de mercado. Longe dever nisso o resultado de um encaminhamen-


imperativo de flexibilidade se substitui à capacidade de previsão, enquanto
. - to e de uma transformação progressiva das mentalidades, os habitantes do Blo-
que a virtude de adaptação é preferida à faculdade de antecipação. Num mun- ' • NI * co Qriental consideraram a democracia como umdébito, e a prosperidade li -

do em mudança permanente, onde as marcas da certeza se gastam, a a ão será


Vlft beral como um sistema de gratificação imediata das necessidades e dos desejos. '
tanto mais eficaz quanto for contextualizada e revisável , A perspectiva a lon-
go prazo atrapálharia, já que se espera dela o rendimento imediato, o resulta- :
^ J A idéia de transição, com seus çorrelatos de esforço e deprogressividade, esta-
vam totalmente ausentes aqui, acarretando ás desilusões que conhecemos. *
7

do tangível de momentõ, Á pressão da mídia prova-se aquideterminante, quey -


^
* >
*
Umá terceira característica do reino da urgência é que, longe de resol
* *

s
intima os políticos a agir imediatamente, com o risco, certamente, de priviler
giar o efeito de anúncio em detrimento da açãoeiii profundidade. São assim, * .5
* ver imediata e definitivamente uma situação problemática, ela parece engajar-
»
sp no caminho de um provisório permanente, como se nutrindo de alguma'
desqualificadas tanto a prospectiva voluntqrista (que não consiste.tanto em - -* a eguinte.
\
forma de si mesma, cada uma de suas intervenções determinasse _ ^
advinhar o futuro, Seiião em escolhê-lo), quanto a significação simbólica do ^a
»

^
*

VSem tomar os~problemas pela raiz e aplicar-lhes um tratamento em profundi-


s.entido de um futuro coletivo desejável , as duas atividades políticas por exce- ^ dade, sem uma real perspectiva das questões e da vontade ( ou da capacidade)
^ ' *
,

lência. “Ao impor que todos atuem em tempo real”, escreve Garapon, “as mí- . N
. política de resplvêJos duradouramente, as intervenções de urgência parecem J
dias [mas poderíamos escrever igualmente: a urgência] acabam por se tornar v ? • ' ' sempre chegar simultaneamente demasiado cedo e demasiado tarde: demasia- . '
*

o curto - circuito simbólico do tempo” " "

'
do cedo, porque o tratamento aplicado continua sempre superficial, demasia- x
Um segundo efeito da generalização do Estado de urgência é a desquà- do tarde porque, sem uma inversão da lógica, o mal não deixou de se dissemi-
, lificação que ele acarreta da expectativa, da ^duração e das transições. Ao pro- J V nar. As inumeráveis medidas, incessantemente readministradas, de luta contra \
meter o “imediato, imediatamente”, a urgência nutre uma cultura da impaciên- 1 *
o desemprego, ilustram maravilhosamente esta aporia dos planos de urgência:
cia que transforma qualquer prazo em prorrogação insuportável e qualquer , um investimento maciço .
i
*• f
V .
*
sem uma real alternativa social (como, por exemplo,
no setor educativo, uma redução generalizada do tempo do trabalho ou, uma
- i

reconvers
1

. ão industrial significativa), multíplicam-se as reconversões parciais e


-
4

70 GOEMAERE, E ; OST, F. Uaction humanitaire: qjuestions et enjeux. In: Hwnanité 1


.
humanitaire Bruxelles: Publications des FUSL, 1998 p 111 et seq .. . * - . S . < i

.
71 GARAPON, A. Le Gardien des promesses Justice et démocratie Paris: Odile Jacob, . . .
* .
«

1996 p 80 . . . \ -
72 ' BINDE, J L’éthique du futur Pourquoi faut il retrouver le temps perdu? piituribles,
v
p. 21 22, dez. 1997:
- *
k

»
% 4 o
XI

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334
1

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I . MJ i I i
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335
J
* Capitulo 4
V.
r
. .
Questionatnento Desligar o futuro
* X
.
*
1
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J i r -
I
<
os dispositivos transitórios. Robert Castel mostra-o bem: dispositivos como o der tornar críveis expectativas detentoras de sentido, a urgência deixa, então,
renda mínima áe inclusão, concebidos originalmente como paliativos tempo- " uma legitimaçã o de s.ubstituição com a qual nossas sociedades processuais
são
rários, instalaram-se progressivamente num “provisório-permanente”, contri - coagidas a se conformar.76 Como pensar uma processualização do direito que
buindo assim, se bem que involuntariamente, para a precariedade generaliza- se precavenha das irregularidades da urgência, e uma questão que ábordare-
da da condição salarial.73
j mos mais adiante. Mas antes precisamos, de início estudar a
, maneira pela
Assim, e não sem paradoxo, é, portanto da natureza da urgência gerar
*

qual a urgência invade igualmente o campo jurídico.


uma temporalidade de algum modo indeterminável, incessantemente reco - V

meçada de onde parecem ausentes, as noções de aquisição e de irrevogabilida


de. Pode-se tomar como exemplo a maneira pela qual as m ídias tratam as
- QUANDO O DIREITO COME ÇA A CORRER...
*

- \
questões judiciais ás quais decidem atribuir importância. Por oposição aos
,
• t
processos judiciais oficiais, *que são simultaneamente lentos (na medida da Insistir no caráter instável, efémero, aleatório da produ ção jurídica
«
min úcia da investigação) e irreversíveis (chega sempre o momento em que o contemporânea, tornqu-se uma banalidade.’ Quem ainda se assustaria com
julgamento se investe da autoridade da coisa julgada, ou uma decisã o irrevo - ‘
isso, já que estamos acostumados com a inflação legislativâ, Cuja obsolescên-
gável é tomada e uma página é virada), os processos dá m ídia são selvagens e , cia programada dos textos é, afinal de contas, apenas uma consequência pre-
' . imediatos (é preciso sabér tudo, imediatamente, qualquer protelação, qual- 1
/ visível? Sublinhar o ritmo cada yez mais acelerado da mudança jurídica, gera-
quer mistério, qualquer prazo é confissão de fraqueza ou duplicidade), e ao
dora de uma forma de “ansiedade”, como o escrevia Carbonnier, naa é smais,
y 77

mesmo tempo 'sempre suscetíveis a conhecer novos desafios, como se não co- então, verdadeiramente, uma novidade. Já em 1951, não era Savatier que con-
nhecessem virtuaímente nem começo, nem fim? Logo, é grande o risco de se > sagrava um estudo à aceleração do direito, notando, não sem um pouco de
meter no inferno Lafkiano do processo simultaneamente expedito e perpétuo; melancolia, que “os juristas de hoje traçam 4> uas linhas sobre a areia de ínsti-
Garapan vê nesta impossibilidade de conduzir um processo a seu fim, indo si
multaneamente bastante rápido,e bastante lentamente, um sinal da “dificulda-
- V
I
. *
i

tuições movediças?”78
Logo, não é argumentá ndo nâ via do “chega de mudança” que percebe-
i

'f

- de tipicamente contemporânea de tomar o tempo irrevogável”.75 *


- remos a radicalidade do fenômeno. Seria bom, antes, inverter .
a perspeçtiva e
Finalmente, pode ser permitido ver na urgência a forma caricatural ou . falar de “substituição de paradigma” . Se notarmos , por exemplo , que o estatu-
i

. a deriva da revisão, que já dissemos, caracterizavam o exercício contçmporâ


"

neo da racionalidade. Umâ vez que não parecemos mais aptos a formular pro-
- ! to da política dos estrangeiros tornou-se objeto de nove leis diferentes na
x < França, entre 1980 e 1993,79 enquanto que a mesma í jrança acreditou dever le-
* jetos, a traçar perspectivas ou rearticular promessas, resta-nos ajustar, quoti- J gislar por dezesseis vezes, no Setor do áudio visual, entre 1982 e 1991, de fato,
80

dianamente, as opções resultantes de nossos compromissos também frágeis e \ * \ ,

instáveis. Sem futuro mobilizador e exterioridade simbólica; resta-nos nego-


ciar entre nós, na imanência de nossas rela ções soâais imediatas, as figuras
-\ /•

76 LAlDI, Z. Lurgence ou la déyalorisation de l’avenir. Esprit, p. 18 et seq., feV. 1998.


,

provisórias de um bem comum incessantementé rediscutido. Na falta de po-


\
77 CARBONNIER, J. FlexibleDroit. 8. ed. Paris: LGDJ, 1995. p. 129: “o direito recente
— —
não ainda enraizado o direito que não tem trinta anos de data representa mais
*

da metade do direito aplicável”.


V
I
«
*

73 CASTEL, R. Les LÍé tamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1995. p, 422, 431. >
,
^
78, SAVATIER, R. Le drpit et faccélération de Uhistoire. Dalloz,> 1951, Chron., p. 30.
^
74 OST, F. Justice aveugle, médias vpyeurs. Juger. Justice et médias, n. 8/9/10, p. 107, 1995. t 79 DELMAS-MARTY, M. Pour un droit cotnmun. Paris: Seuil, 1994. p. 69.
* 75 GARAPQN, A. Le Garâien des promesses. Justice et dé mocratie . Paris: Odile Jacob,
N ’ 80 CHEVALLIER, J; Les lois expérimentales.Le cas françaís. In: Évfl í uatian íégislqtive et
V
V
. .
1996. p 81 lois expérimentales. Sous-la direction de C.-A. Morand.. Aix-en-Provence: Presses
universitaires d>Aix- Marseille, 1993. p. 123.
*
*-
\

336 337
4 A

\
* /
Capítulo 4
*
i

> QUtstbnatmnto, Desligar o futuro .


*
ti \
* i 9

•v > 4
# *

-.
/ i

temos do que nos interrogar. Num relatório recente, o Conselho de Estado de ¥

cia, autorizando-se o estado de necessidade ( necessidade que cria a lei), erige -


piora a “logorréia legislativa e regulamentar”: o estoque legislativo, cresceria •
-
se, assim, em “salvo conduto generalizado” Disso resulta um risco de tipo .
para mais de 7.500 leis, enquanto a extensão dos textos não pá ra de se alon - -
> gar: de 93 linhas em m édia, em 1950, para 220 linhas, em 1993.81 Com uma ^ . ‘
4

novò, a insegurança jurídiça: não insegurança económico social (perigo ex>


terno), mas risco “endógeno”, produto colateral e indesejável de uma engenha-
-
.produção legislativa elevando-ise a mais ou menos 1.000.000 de textos por r ria jur
*
ídiça cujo ritmo disparou • r
.
f
ano, um país como a França edita mais ou menos o equivalente ao que Roma . ' t < i

V. u
produziu em dois milénios 82 . ( *
.
'

Estes n ú meros e muitos outros que poderíamos alinhar aqui, mas que, *
* AS TOLERÂNCIAS DA URGÊNCIA *
de qualquer modo, supera por sua .pró pria virtude qualquer capacidade de íraj /
/
*
,
domínio, deveriam pelo menos nds persuadir de que é exatamente com uma ’ 28 Urgência: há pouco tempo a noç o só êra aceita no.direito apenas
*
( " \
- s

*
.4

• mudança de regime ou de paradigma que somos confrontados. Resumindo: o


1
*

transitório tornou-se o habitual, a urgência tornou-vse permanente. Há pouco < $


V '- ijflj •
com as mais extremas reservas, como' um mal necessário com o qual era
preciso conformar-se nas situações excepcionais. No máximo, ela podia
A #
^ 4
v

tempò o direito transitório era entendido como a regulação fina, que era con- ‘r ? . j
.conduzir a soluções derrogatórias de caráter 'provisório, que era preciso
veniente administrar entre duas longas praias de direito fixo, entre dois am- J
pios períodos de estabilidade' normativa. Mestre no assunto, Paul Roubier po- X
- anular *a partir do momento que findasse o estado de necessidade que lhe
*

.servira como justificativa: do mesmo modo, ocorria com o Estado de urgên-


dia propor uma teoria gera!conciliando o necessário respeito à segurança ju- cia, derrogató rio às liberdades fundamentais em direito público ou do par
ticular, que em direito privado formulavam um ato de justiça privada, a fim
-
rdica com a indispensável mudança,social, para a qual deve contribuir a lei Yy
í
^
*

.
moderna 83 O transitório era, afinal de contas, apenas a dobradiça chamada ' de evitar um dano inaceitável. Atualmente, a urgência parece subverter, e de
para articular dua$ sequências históricas caracterizadas por uma duraçã o sig- modo permanente, a produção dp direito por inteiro. Introduzindo sua tese
nificativa. Ora,, tudo se passa atualmente; como se as coisas se tivessem inver-
tido: a duração dissipou-se, tornando in úteis as administrações sutis do direi- 'Ç
^ sobre A Urgência ~em direito público> P. L. Frier escreve: “a urgência^está em
todo lugar, ela pode existir fora çie qualquer crise.” É que, de acojdo com o
*

* to transitório; é todo o direito que se colocou em movimento - o transitório autor, qualquer norma, mesmo constitucional, conteria uma cláusula der-
é, doravante, seu estado normal Nosso direito “está em trânsito” . \ rogatória para os casos em que, devido à urgência, seu prescrito entravaria?
íA
-
Deste modo, cónfirma-se, no campo jurídico, ahipótese formulada nas v 4
páginas precedentes: a urgência, temporalidade do exCepcional, tende a im-
^
'

< '
v
as;autoridades públicas no necessário exercício de suas competências, de
modo que “direito normal e direito de exceção” se misturam, “a derroga ção
. tornando-se parte integranfe da regra” (o ú nico limite do respeito ao prin-
4

por-se como tempo normal - a exceção que anula a~regra, de algum modo.
Provocando Curto-circuito nas formas, nos prazos, e nos processos, a urgên- ' v dpio de proporcionalidade).*84 *

#
O direito civil n ão está imóvel. Sem chegar a se perguntar, como o fa-
t
* . zia Michel Vasseur, se a urgência não permitiria que se fizesse exceção a todas *

V * •' 81 la Sécurité juridique. Rapport public 1991 du ConseH d’État de Fr*ance, reprodu- as regras, quaisquer que fossem,85 Philippe Jestaz, qúe dedicava sua tese à ur- *

zido em la .Sécurité juridique. Atas do colóquio organizado pelalConferência livre ^ V*


§

do Jovem Foro de Lt ége, Edições do Jovem Foro de Liège, 1993, p 163. . gê ncia no direito civil, notava, contudo, seu efeito derrogatório sobre muitos
.
82 MOCKLE, D. Crise et transfõrmation du modèle légicentrique In:VAmour des lots . t
>.
.
i
\ t
X
4 . . -
Sous la direction de J Boulad-Ayoub et al Montrea Paris: L’Harmattan, 1996. p.*33, /
. .
84 FRIER, P L.VUrgence paiis: LGDJ, 1987 p 2, 517, 531, 533/ .. *

nota 66 . .
.
83 ROUBIER, P. Le Droit transitoirey 2. ed Paris: Dalloz et Sirey, 1960 . c
.
. .
85 VASSEUR, M Úrgence et droit civil Revue trimestrielle de droit civil, n* 1?, p 405,
*
r
V 1954
*

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338 I
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Capítulo 4 QuestiúÁatmnto. Desligar o futuro
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princípios clássicos dê direito civil.86 Esta tendê ncia, amplámente confirmada ,
* * *

Tribunal de Cassação,' ela é “uma noção de fato deixada para a apreciação do


desde; então, como o que, prova principalmente o fato de .que o juiz de ações , I * juiz do mérito”.
-
cautelares juiz da urgência - parece ter adotado a jurisdição normal, conio $
^ Efetivamerite,.é característico da urgência fazer prevalecer o fato sobre ’
em muitas demandas ( no direito privado, e. mais recentemente no direito ad' . t,
- o direito: ela garante o “retorno do real”88 “sobre o formalismo (real ou pré-
ministratívo). Daí não ser exagerado sustentai que a urgência tornou-se b rè
*

. - r
tenso) dos textos”, ela marca o “triunfo do fato”, e instala se, assim, “no centro
1
-
das relações mantidas pelo direito com a realidade social” Fazendo isso, é
t « 89
gistro temporal corrente da produção jurídica contemporâ nea. Não somente *

todo direito se pôs em movimento ( o transitório-permanente), mas ele o faz | uma forma de argumentação pragmática e utilitarista que predomina sobre o
respeito das normas e a ligação às formas, como se o fim, presumido bom, jus-
t

num ritmolncèssantemente acelerado. O adjetivo “corrênte” pode aqui ser eh ' qjj -
tendido ém seu sentido primário. *
i
^ ‘c-
J\ > « - tificasse necessariamente os meios! Generalizando a exceção de urgência em
*

nome de uma necessidade nunca muito distinta da simples oportunidade, é


>

Esta invasão da urgência é ora legitimada por argumentos tradicionais, * jjj
‘ um campo virtualmente infinito que se abre à derrogação. No plano tempo-
%

r
ora por razões noyas ^Em apoio a medidas1 excepcionais impostas pela urgéfir *
cia, desde sempre fizemos prevalecer - diversas formas da razão de estado: a
proteção da ordem publica, a continuidade dos serviçps públicos,, a legítima M
_ ral, o efeito produzido não é somente de aceleração, mas também de inversão:
em muitos casos, a urgência permitirá ao imper
, í um (à força) que preçeda a ju-
risflictio (o enunciado da regra), imunizando o fato cumprido em relação a
defesa do Estado. Em todos estes casos, uma situação de crise, um perigo imi ~ v
I

um exame jurídico posterior.


nente, uma ameaça de prejuízo grave, dificilmente irreparável, impõe que sê ^\ t

*
V

lhe dê remédio (sempre o campo semântico da medicina) sem tergiversar um I

só instante. As intervenções em caso de “urgência humanitária” e o envio de >V


» • v

5 •'
» /

^ i
Uma noção invasora •••
*

“fórças de urgência” representam ilustrações contemporâneas. *


ir *
*

As manifestações das aplicações da urgência são legiões, tanto em nível


A 1 i
A estes motivos bem conhecidos e facilmente traiisponíveis nas rela -í
^
da tomada de decisão, quanto de sua execução, No plano da tomada de deci-
/ ‘K
,

çõ es de direito privado, acrescentam-se hoje argumentos


t * * *,

extraídos pura e, .
simplesmente da prioridade que têm, aos olhos de seus promotores, esta po
* -i - - . são, evocaremos inicialmente o artigo 16 da Constituição Francesa, que habi -
lítica pública ou aquele projeto de lei. Um texto que seja considerado urgente , <; lita o Presidente dá República a tomar medidas excepcionais “quando as íns- * #

e ú til irá revestir-se de formas da urgência para ser imposto “imediatamente”. , ; 1 tituições da República, a independência da nação, a integridade de seu terri-
Assim, por exemplo, nota-se a lei belga de 12 de janeiro de 1993 “contendo um .
tóriaf .. ] estão ameaçados de uma maneira grave e imediata” Faz eco a esta
- .
^
*

disposição a legislação quanto ao Estado de urgência, que confere poderes de


%

programa de urgência para uma sociedade mais solidária”. Que uma socieda- 1
de mais solidária seja uma prioridade, quem duvidaria disso? Nem por isso é
« -\ polícia consideravelmente extensos à administração civil, em casos de “perigo
iminente resultante de atentados graves quanto à ordem pública”, ou em caso
K

garanfido que sejam “programas de urgência” que abram os caminhos mais


*
de “calamidade pública” (uma transferência de poderes para as autoridades
promissores par levâr a isso. Longe de ser, como o preconizava Jfestaz, umá }
^
noção “objetiva” (consistindo na ameaça de um dano ligado ao escoamento

militares é prevista quando o Estado de urgência é substituído, ele mesmo, *
4

pelo estado de sítio).


*3 1 i
• *
do tempo), a urgência aparece como subjetivai política. Na terminolçgia do
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87
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88 VÁSSEUR, M. Urgence et droit civil. Revue trimèstrielle de âroit civil, ti 13, p. 407,
\ *
.
• 86 JESTAZ, P. ÊUrgencejet lespr
í ncipes classiques du- droit civil Paris: LGDJ, 1968, 1954;
..
87 Ibid , p 313. \
\
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*
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89 FRIER, P L tUrgence Paris: LGDJ, 1987 p 533 .. . t

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j 1 V
Capitulo 4
. .
Questionamento Dcslígaro futurú /
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*

Num contexto menos dramático, o Código dos municípios habilita 0


* /

do juiz ordinário ao juiz das .causas cautelares, do juiz ao particular, do Iegis


~ -

--
prefeito a “prover com urgência a todas as„ medidas de assistência e de socor lador e do juiz ao executivo. O executivo, principalmente devido à serenidade
* ro” e a tomar “as medidas de- segurança exigidas pelas circunstâncias” Nos ca
j
* presumida de sua áção, é o grande beneficiá rio destas transferências. No seio
do executivo, delegações de competência para as autoridades subalter -
.
sos de “urgência imperiosa”, o Código dos leilões públicos permite recorrer à . «
mesmo
— 4

nas, convencionadas a agir mais próximo do terreno, são igualmente observa


• I *
*

-
técnica do leilão negociado, mais que proceder a adjudicações de hábito pre
.
, vistas pela lei No processo legislativo, jpor uígência se entende as eircunstâ
nr
- .
das A urgência leva igualmente a simplificar de maneira consider ável os pro -
cessos, diminuir os prazos e contornar as formas: aqs exemplos já evocados,
1
cias prementes que o governo pode invocar para acelerar o' curso das delibe
rações parlamentares e a discussão entre as assembléias, ou abreviaryo prazo *
- i

. basta acrescentar a instrução acelerada e simplificada dos processos cautela -


t concedido ao Conselho constitucional, estatuindo sobre a conformidade dá >i ' res, assim como ç caráter executório das ordens tomadas pelo juizvde urg n
ê -
.
lei à Constituição (art 45. áL 2 e 61 al. 3 da Constituição). De modo absolu -
- « cia. Terceiro efeito, ainda
^ r
mais significativo: a urgência afetaria também a base
*
*

do direito, criando de algum modo novas competências à margem e além das


1
.
*

-
i

• tamente geral, a ^ *
» < \
jurisprudência invoca a urgência sob o título de “çircunstân •
\ cias prementes*’, para validar atos jurídicos que em tempo ordinário teriam' , v competências clássicas, validando, comd na jurisprudência das “circunstâ ncias
sido ilegais . V i'
excepcibnais”, atos jurídicos cuja ilegalidade seriarem outros tempos, consta-
tada; Os textos relativos ao Estado de urgência e ao estado de sítio, conferin-
S ‘

Acelerando a tomada de decisão, a urgência afetaigualmente sua execu- *



ção. Três graus de urgência, três formas crescentes de atentado contra a legali- ’*•
# «
do, de resto, habilitações nos mais vagos termos, permitem às autoridades ci -
- .
dade ordinária, podem ser distinguidos Primeiro grau: a entrada imediata em vis e militares atentados confira as liberdades públicas bem mais amplos que

vigor do texto: o privilégio da execução provis ria permite, neste caso, à admi- , em período normal."
ó
nistração, que tome decisões “executorjas” desde sua publicação, às vezes até Mas, novamente, o efeito desborda estas circunstâncias dramá ticas ú ni -
.
desde sua assinatura Segundo grau, em caso de resistência do administrado: o cas* Normalmente, a urgência (remédio em período de crise) só deveria apoiar
privilégio da execução forçada, que permite aos poderes públicos impor sua > medidas conservadoras de caráter provisório: seria o caso de somente preser -
i . * vontade, sem ter obtido previamente do juiz permissão para utilizar nleilOS x >] *
var um direito, de administrar um interesse, o tempo nçcessário para o retor -
no ao normal, e a adoção de uma decisão “baseada na verdade” e nas formas.
*

coercitivos. Enfim / terceiro grau de concentração do tempo jur^ ídico: a* execu-


*

ê
Na realidade, aconteõe de modo bem diferente: das medidas conservadoras
A

ção de função que permite à administra ção, em casos de, extrema urgênçia, re
^ * «

-
/ correr diretamente à força, sem qualquer mediação jurídica: faltarido-lhe tem- passa-se às medidas de execução (sobre o património do devedor, por exem-
pló), e estas apresentam naturalmente a tendência a se tornarem definitivas.
t # r 91
po para tomar uma decisão prévia, ela age por obrigação.90 Neste ponto, deci-
0

I
-
*
(
são e execução se confundem, e a relação do direita com o fato se inverte. A evolução do contencioso às ações cautelares é muito reveladora a esse res-
peito: outrora encurralado às medidas provisórias, presumindo-se de nãò afe-'
L J '

tar ao “mérito do litígio”, o juiz da urgência não mais hesita atualmente em en-
t
\ *
J
*
t *
...de efeitos. contestáveis
V

v contrar o mérito da demanda, desde què sua sentença seja posteriormente


, mas a experiência atesta que a decisão assim to-
** anulada pelo juiz. do mérito
mada em urgência facilità muitas vezès a economia do processo posterior. No
0
/ V • '
V v *
Os efeitos da urgência sobre o direito são m últiplos. Ela leva de início,
como perçebemos', a validar todos os tipos de transferência de competência: que diz réspeito à açãoNcautelar administrativa, uma lei belga de 19 de julho
/

_ .
*
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*
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JESTAZ, P.VUrgcnce et les prí ncipes classiques ãu droit civil Paris: LGDJ, 1968. p. 314.
90 Sobre tudp isto, cf. FRIER, p. L.VUrgehce Paris: . LGDJ, 1987. p. 351-381. 91
*

342 i
*
343
*
Capítillo 4
I
. .
Questionamento Desligar o futuro
/

t 1
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N
4 1
/

de 1991 habilita, desde então, o Conselhode Estado não apenas a suspender a « táveis, justificadas pela extrema urgência, de expulsão coletiva de estrangeiros*
execução de atos e regulamentos administrativos litigiosos, como também a o recurso excessivo ao processo dps leilões negociados, para contornar a regu - *

tomar medidas provisórias, eventualmente derivadas do dever, nos casos em lamentação relativa às adjudicações, ou ainda a utilização muito frequente do
que a execução imediata da decisão administrativa causasse um “risco de pre- processo parlamentar de urgência, permitindo a adoção de textos sem exame
juízo grave cjificilmente reparável ’ Como já vimos, a intervenção de urgência
5 .
real, e reduzindo a nada o poder de revisão da ’oposição Nestas hipóteses, a .
opera no coração mesmo da ação. 4 eficácia invocada poderia conduzir à erosão da ordem constitucional, ao es

,

»
-
Finalmente, a urgência acarreta um quartó efeito que poderíamos qua-
'
• queçimento completo de què o objetivo profundo de muitas regras jurídicas é
lificar como efeito geral de relaxamento da norma: autorizando todas as espé- o de retardar a tomada de decisão, ora para permitir a todos õs pontos de vis-
cies de acomodações com a legalidade, tantò processual quanto substancial, os ta que se exprimam e às paixões que se esfriem, ora para proteger os terceiros
textos que prevêem medidas de urgência tomam -se, por acréscimo, o objeto -
(cios quais, por exemplo, o património não poderá tornar se objeto de apreen -
de aplicaçõ es práticas, por suã vez relaxadas: interpretações judiciárias flexí ( sões imediatas), ora o interessado ele mesmo (diversas regras instaurando
, veis, modificaçõ es incessantes, prá ticas administrativas extensivas.92 Tudo se
- prazos de reflexão).
'

passa como se, uma vez aberta a dobradiça da juridicidade ejconsagrados di- De modo mqis hipócrita, parece freqiientemente que as reformas ado -
versos tipos de “poderes especiais”, o não-direito se afogaria, quase sem possi- tadas com urgência - muitas vezes em reação às hesitações precedentes - evi -
bilidade de parar, nas instruções e nos comportamentos. tando qyalquer forma de reflexão em profundidade, que permitiria a formu --
Que ilos compreendam bem: não pretendemos sugerir a idéia de que lação de verdadeiras alternativas, exçõem-se. a serem rapidamente modifica
,, toda legislação de urgência seja necessariamente criticável. Do
mesmo modo ^ das. O atentado à ordem jurídica é duplo neste caso: não contente em aparar
que em certos casos se.impõe uma intervenção cirúrgica (sempre a metáfora '
as arestas da juridicidade, a urgência atravanca, por acréscimo, qualquer refor -
ma séria; não contente com destruir a ordem jurídica, a urgência impede que
medicinal), aé situações de crises não deixam outros recursos senão a injer
venção ao mesmo tempo intrusiva e urgente..Por outro lado, é preciso reco-
- .
se a reconstrua Um termo surge, então, no espírito, para qualificar este abuso
nhecer que, em muitas hipóteses, é a lentidão sucessiva a fonte dè desperdício, 'da urgência: expediente. “Expediente”: meio de escapar
» de embaraço, escapa -
-
signo de impotê ncia e, às vezes, de má fé, njío deixando, então, outra escolha, tória para se safar de um mau passo; “utilizar expedientes hábeis”: sair-se db
senão a reação de urgência. Não, o que é preocupanté é a generalização da téc- negócio momentaneamente, sém resolver suas dificuldades. Sem mesmà in -
' nica derrogatória que provca a urgência,'como se qualquer questão de saúde ' sistir no aspecto financeiro do termo ( “ viver de expedientes” ), pode-se per-
*
devesse ser apreendida em termos de patologia, e toda patologia tratada por guntar se, ao abusar do recurso à urgência nossas ordens jurídicas não abqsem '
via cir ú rgica. dos “expedientes hábeis”, expondo, com isso, nossas democracias a um noyo
* ^
tipo de risco.
Acarretando uma retração do direito, a urgência pode significar um re -
*

-
cuo da liberdade Montesquieu não se enganava a propósito deste direito' de. *
*

exceção, quando falava em “lançar um véu sobre a liberdade, como esconde-


mos as estátuas dos deuses55.93 lembraremos, a este rêspeito, qs práticas contes- A INSE.GURANÇÀ, RISCÒ JURÍDICO \

t
Nos enganar íamos pensando que osvefeitos da urgência só se fazem
92 No que dizjespeito à prática do estado de sítio quando dos acontecimentos da Ar-
sentir nos casos em que ela é explicitamente visà da num texto; de fato, é na to-
/

gélia', cf. ERIER, P. t. VUrgence. Paris: LGDJ, 1987. p. 285.


93 MONTESQUIÉU.-De L’Esprit ães lois. Parisr Garnier: Flammarion, 1979. livro XII,
.
talidade do campo jurídico que ela se irradia O Conselho de Estado tomou a
cap* 19. exata medida do fenômeno quando notava, em 1991: “legislamos aos pedaci- ^

»
i 7
; 345
344
«
i
.
/

*1
Capítulo 4 i .
Questíonamento Desligar o futuro /

í ii
V
*
\

*
\
nhos, por pequenos toques, sob a pressão da urgência ou das mídias [..*]. Le- que são portadoras impõem retificações”.96 Mas, como estas, por sua vez, são
improvisadas, novas irregularidadés surgem.
gislamos sem visão de conjunto, sem filòsofia, sem perspetiva”.94 É que, espre
mido entre os interesses opostos de grupos de pressão conflitantes, o Estado
- , Dois exemplos, entre outros, escolhidos no domínio da aplicação da lei
se esforça para satisfazer uns e outros, engajando-se assim.; num incessante no tempo; a utilização de leis retroativas destinadas a cobrir erros anteriojes
»v
* tj
. e, áo inverso, a adoção de “derrogatórios antecipativos”, destinados à pre -
r
trabalho de reparação dos textos, sempre repostos em obra: uma reforma em
prol dos culpados suscita automaticamente uma reação em prol das vítimas;
" •
# ' *
f
^ caução de uma possível coerção futura. No primeiro caso, a garantia de poder
»«

recorrer á uma retificação retroativa no dia em quet a necessidade se fizer sen -


-
j

uma vantágem para ofr consumidores logo acarreta uma retribuição em favor' *
'
dos produtores aqui o interesse dos credores, acolá o dos falidos; “imprevisí- •i
-
' tir arrisca se a incitar o legisladora relaxar sua atenção - mais prosaicamen
té, o Conselho de Estado nota quanto a ele: “pode-se escrever qualquer coisa,
vel e precária, a norma deixa de ser uma fonte de coesão social, desde o mo-' * j
uma vez que compensaremos sempre seus erros”.97 No segundo caso, tal admi -
mento em que está em discussão permanente 95 nota um magistrado .
t
^
O.utras razões explicam ainda, sem por isso justificar essá volatilidade V?
dos textos* Inicialmente, a instabilidade ministerial, que obriga cada ministro
nistração ou tal ministro instituem uma exceção a um texto mais geral que
f

ainda não foi votado98 - caso, em suma, de estar sempre garantido de manter
*
%

as mãos livres,
. a dobrar sem atender à política jie seu departamento pela adoção de textos A leitura ào Diário Oficial resérva ainda muitas outras surpresas; lcisa
não chegados à maturidade, quando não são. leis de cartaz, proclamando in
tenções sem, de outro modo, preocupar-se com os meios necessários para sua
V - '
( ]

tabelas sem ordens de execução ou, ao inverso, ordens expedidas sem ld dc


* habilitação, confirmação por uma lei retroativa de ordens ilegais, modl íkilçAo
.
colocação em obra efetiva Às vezes, pelo contrário, é o perfecciohismo nor
*

- de artigos anteriormente ab-rogados," delegação de poder 'formulada em ler -


mativo, a vontade de prever todas as hipóteses no mínimo detalhe, que pbri
gá a administração a produzir, sém parar, novos textos, sob o risco de ser logo
X - mos excessivamente vagos, abuso da administração de contratos, disposições
transitórias perenizadas, contorno do controle pelo Conselho dc Estado» ele
.
- mesmo coagido a trabalhar na urgência..* as figuras da insegurança jurídica
t
confrontada com a aporia do “mapa tão grande quanto o território represen
tado”, de que falava Borges - instrumento tão impressionante quanto inútil. . y
. parecem inumeráveis .
Em outros casos ainda é o desconhecimento dos recursos do sistema
jur ídico que explica ã fugá para frente: subestimando os meios normativos já
disponíveis, ou renunciando a se interrogar sobre as razões de sua pouca efe- ,

Um sonho nostálgico?
tividade, o legislador se entrega à tarefa, legislando (provavelmente sem mais
-
N
<

.
r

sucesso ) em dom ínios já amplamente regulamentados Parece, então, que, Será preciso, a partir disso, tomar partido e não falar mais da |
M UHLn
, v
^
muito frequentemente, a principal
.razãó **
* . ça. jurídica, senão como a “virtude esquecida das leis, o sonho noilálflGQ (Ul
da modificação de um texto é pura e
simplesmente a má qualidade Ho sua redação,anterior.Aqui ainda, o Conselho sociedades envelhecidas”.100 Ou bem, ao contrário, será preciso lcmbrilM# df
. * s

de Estado faz.um julgamento lúcido: “a duração de vida das leis está em enco- N

u
y lhimento constante; e que, debatidas com uma pressa excessiva, os defeitos de Y
96 . .
Rapport public, op, cit., p 169 »
l
x \ N 97 . . .
Ibid , p 176
l
I
. ..
94 RapporfpUblic di Conseil d’État de France, op. clt ,x p l£5 Ver igualmente Élaborer
98 . . .
Ibid , p 186
.
la loi aujouãliuL Mission impossible? B Jadotet E Ost (Ed*) Bruxellest .Pubiicalioris 99 .
BOURS, J. P Sécurité juridique et droit fiscal. In: La Séamté juridlqtWt op, clU|p» i
t
des FUSL, 1999 . . , V
. .
100 MARTENS, P La sécurité juridique; rapport de synthèse In: La S écurit é JuifaltyÊh
* *
.
. '
95 MATRAY, C* Le CHagrin desjuges Bruxeiles: Complexe, 1997* p. 35 36 - .- . .
op cit , p. 258
A
. . I

y,

* i
i

346 i 347’
N Capítulo 4 - Niá
v .
Questionamento Desligar o futuro,
i -
>

\
,
que, no Estado de direito, a adoção da le j çombina-se com uma pròrríessa, que ;
*

assim cólocados, visando dominar um pouco a mutabilidade generalizada da


se chama precisamente segurança júrídica: a promessa de que as próprias au - A regulamentação. Assim, se exprimia o Tribunal de Cassação -da Bélgica numa
toridades terão que se conformar a esta lei e nunca aplicarão outra aos cida- questão fiscal: “os princípios gerais da boa administração comportam o direi-
dãos?101 Não dizemos que por esta auto-limitação o poder gera a confiança, 2 to à segurança jurídica e impõem-se igualmente à administração das finanças;
'
*
*
4J
r
- •
este direito implica principalmente que o cidadão deve poder confiar nos ser- *
fundadora do


Estado de direito; e que desta seguran ça depende fiabilidade
a
do direito que efetuar qualquer atentado contra ela equivale a minar a ade |
são à regta?102 Preocupados em equilibrar tempo da promessa e tempo do Cjj
- viços p úblicos e- acreditar que estès observam regras que seguirão uma- políti
ca bem estabelecida, quenão.saberia conceber de outra forma”.106
-
questfonamento, nós tomaremos partido da segurança jurídica, sempre tendo J * Não se deduz, em decorrência disto, o direito, para o cidadão, ao res-
em mente que se trata de um, valor e de um princípio suscetíveis de graus, em | j peito absoluto dos direitos adquiridos ou à manuten ção de umà regulamen-
nenhum caso absolutos, e que precisamente as trãnsformações da sociedade í
'
/
-
tação qualquer isso seria conferir ao princípio de seguran ça jur ídica uma
contemporâ nea podem, às vezes, conduzir à preferência de princípios e valo- 1 amplitude excessiva, incompatível com a necessária variabilidade do interes-
se geral. Do duplo princípio de segurança jurídica e de confiança legítima, o
j »
res concorrentes - voltaremos a isso. '<
*

t * ,
' >

Mas o que e importante acentuar de início é que a insegurança jurídi-


' Tribunal de Justi ça europeu deduziu, antes, a obrigação de não impor aos in- '
.S
. ca é mesmo um risco, no sentido em que q definimos mais acima: mal endó -*
f

-
T

^
divíduos uma mudança normativa demasiado brutal:107 por esta razão, a nova
geno produzido pelo próprio sistema, efeito perverso de um processo legisla- í regra deve, pelo menos, comportar medidas transitórias em proveito dos des-
tivo mal dirigido. Útil em pequenas doses para permitir a adaptação do jogo
, à
'
*
tinatários, podendo eximir-se de uma expectativa legítima.108 Mas este “direi v -
e estimular a criatividade dos jogadores, a imprevisibilidade torna-se con - to a medidas transitórias” está longe, contudo, de já ser aceito com unanimi -
- traprodutiva quando afeta as próprias regras do jogo.108 sob estas condições,
“o direitó não aparece mais como uma proteção, mas como uma ameaça” lb4
- ' d à de no direito interno.109 Pelo menos, temos o direito de exigir da adminis x
• tração e do legisladorque forneçam uma justificação razoável da mudança de
-
Mas se esta insegurança é um efeito da técnica jurídica, quer dizer tam
bém que o remédio que se pode tentar lhe opof é igualmente jurídico. Daí, |
- atitude que operam, o juiz, ao não hesitar mais, atualmente, em sancionar as
reviravoltas de atitudçs não motivadas. O Tribunal de arbitragem da Bélgica
não ser espantoso ver se desenvolver no decorrer dos últimos anos, diversos | - /
-
pronunciou se muito claramente neste sentido: “de acordo com o princípio
é

temperamentos para a precarização do direito, príncipalmente sob a forma de fundamental da segurança jurídica, o legislador não pode atentar, sem justi-
princípios gerais, consagrados pelos principais tribunais de justiça: princípio
de confiança legí tima, epi direito europeu;105 princípio de, respeito devido às
^ ’

«
.
106 Çass., 27 de março de 1992, em RCJB, 1995, p 53 et seq. e nota N, Geelhand, “Le
' antecipaçõ es legítimas de outrem, em direito civil; princípio de segurança ju

vr
ídica, em direito administrativo e em direito fiscal* Freios e contrapesos são
-
*
principe de la croyance legitime en droitadministratif et en droit fiscal”; cf igual
. --
mente Cass , 13 2 1997, in Tijdschrift voor bestuurswtenschappenen publiekrecht,
. -
. .
1998, 5, p 370 Mesmo ensinamento na jurisprudência do Conselho de Estado (CE,
.
23 de maio de 1985, n 25.355) e do Tribunal de arbitragem (CA, 5 de julho' de
101 DELNOY, P. Sécurité juridique et rédaction des testes, Ibid., p. 142. .
1990, n 25/90) .

" 102 FRANÇÕIS, L. La fíábilité du droit, dite sécurité juridique. Ibid., p. 10-11. .
107 FROMONT, M Le principe de sécurité juridique. A/DA, p 181, 20 jun. 1996 ' . .
*
.
103 Ibid., p 14-15 . . . .
108 CNTA cf Commission, aff n 74/74, Rec., 1975, p 533; Georg von Dectzen c/
.
104 Rapport public du Conseit d*État de France, op cit*, p 166. . Hauptzollamí Hamburg-Jonas, aff. n. 170/86, Rec ,1988, p 2355 . . .
109 Um decreto do Tribunal de arbitragem da Bélgica opõe-se expressamente a isso:
.
105 O Tribunàl de justiça europeu afirma que a segurança jurídica “faz parte dos prin- '
J
.
decreto n. 26/ 93, de 25 de março de 1993, p 275; para a França, cf FROMONT, M . .
cípios gerais dè direito comunitá rio dos quais o Tribunal garante o respeito” (16 de
junho de 1993, aff. C 325/90; Frarice cf Commission, R c., 1993,1/330) . . .
Le principe 4e sécurité juridique A/DA, p 181, 20 jun 1996 . .
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348 349
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\ Capítulo 4 *
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QuestionatucHto Desligar o faturo . \
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ficaçao objetiva e razoável, contra o .interesse possuído pelos sujeitos do di - doravante, que apresente todas as características do “questionam ento” e do ,
reito, de se acharem em condições de prever as consequências jur ídicas de ' j tempo aleatório que estudamos. Longe de se apoiar nas certezas da perícia
' seus atos” 110 científica infalível e nas ambiciosas planificações da década de 60, a gestão nova
\
Uma motivação razoável da mudança de atitude dos poderesp úblicos é marcada com o selo de uma racionalidade limitada: ela representa “o fim da
poderia seç a preocupação, legítima, de aniquilar» uma disposição irregular: -1 ' ilusão de
um mundo simples e ordenado onde se conjugassem hierarquia e
xcompetência”.112 Integrando o que dominamos incerteza do saber e indetermi-
N

t neste caso o interesse que este ou aquele particular pudesse ter na manuten - l
ção desta regulamentação se dobra ao princípio,lido como supremo, do res
peito à legalidade. Assim, um funcioná rio tendo se beneficiado com o aumen-
- ^ nação dos valores, ela trata a direção das condutas
como um problema a ser
construído è não um programa a ser executado. Ela assume o dará ter definiti-
to astronómico, em fun ção de uma circular ministerial, considerada mais tar- vamente problemático dos fins a serem buscados, os meiòs a serem mobiliza-
de como ilegal, seria obrigado a reembolsar o recebido a mais 111 '
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^ dos, assim como resultadost a* serem avaliados. Fazendo das técnicas de planifi
»

cação o seu luto, cia renuncia “ao velho esquema concepção/execução”,-Ique a


-
ciência administrativa clássica ainda compartilhava com o direito.
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Direito e gestão pública Inspirado no modelo das “anarquias organizadas”, a gestão pública privi-
i

.
Hlegia, doravante, a operacionalização em relação à decisão inicial:113 é apenas .
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Elaborando estes freios e contrapesos, a jurisprudência tenta senão res- 43 * *


neste estágio, de fato, que se determina realmente uma política pública. Doesta
~
*
tituir ao direito sua função de provedor de> certeza, pelo menos garantir1lhe inversão temporal completa da produção normativa deriva a operacionalização
.
um papel de fedutor de incerteza .Resta, contudo, que estes temperamentos
.
- esperada da norma: informados sobre as condições reais de contexto de opera- ^
são exclusivamente jurisdicionais, e que a ação dos poderes- públicos se torna cionaliiação, aqueles que decidem, poderão adaptar a regra em fimção de crité- v
simultaneamente objeto de coerções, sem d úvida muito mais consideráveis, rios de oportunidade. E isto não sem “negociação reguladora”,114 valorizada aqui ,
que se ligam às necessidades políticas è à sua racionalização, sob a forma de * sob o titula de “procésso de aprendizagem coletivo” cjos fatores de sucesso do
gestão pública. Isso significa que o direito perde, no Estado contemporâneo, o : objetivo perseguido.115 Esta téciiica seria recomendada tanto mais, atualmente,
*

monopólio da regulamentação; preocupado em guiar o comportamento dos. quanto os problemas a tratar se tenham tornado transversais (política da cida-
indivíduos e dos grqpos, os poderes públicos utilizam igualmente planos/ pro- de, proteção do meio ambiente...), quaáe não existem atores pré-constitu ídos,
'

** gramas, destinações orçamentá rias e campanhas de inforpação . hem desafios predeterminados com os quais bastaria se cófiformar: tudo está
i
Até melhor: imerso nas novas coerções da eficácia de gestão, o próprio para ser construído numa prática interativa de negociação e operacionalizaçã o
direito foi obrigado a operacionalizar suas,- disposições. Sob pena de ser senti- , de objetivos públicos, eles mesmos ffacamente determinados na origem.116
,

do como um freió da ação pública, ele se responsabilizou por testar performan- - ^


ces de gestão e de flexibilidade operacional. “Recusando-lhe qualquèr transcen- ‘
112 DURAN, P. Piloter Pactipn publique, avec ou sans le droit? Revue Politique et ma-
> dência” particúlar, o imperativo da gestão se lhe impõe como aos. outros ins-‘ ~ >
nagement public> v. 11, n. 4, p, 7, dez. 1993.
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trumentos de ação dos poderes públicos. Uma filosofia da gestão determina, 113 Ibid.s
c *
*
' 114 DUPUY, R;'THOENIG , J.-C. Le marchandage régulateuf. In: MENDRAS, H. La Sa-
N
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*
110 Decreto n. 10/93 de 11 de fevereiro de L993, p, 121fcfí igualmente decreto n. 59/93 ' gesse et le désordre. Paris: Gallimard, 1980.
*
í
de 15 de julho de 1993. * „ * 115 DURAN, P. Piloter l’action publique , avec ou sans Ie droit? Revue Politique et ma- „
^
nagementpiíblicy v. 11, n. 4/ p. 32', dez. 1993.
<
111 Resc. ( belga), 4 de setembro de 1995, em RCJB, 1998, p. 5 e nta R. ERGEC, “Le pr
cipe de légalité à Pépreuve des principes de bonnéádminisfration”
ín- -
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116 Ibid., p. 335. f

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t A Gapitulo 4
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Qúestionamento Desligar ô futuro
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» Esta concepção dà ação pública não faz, contudo, a unanimidade: vê-se TRÊS FIGURAS DA DESINSTITUIÇÃO
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bem o preço que ela concede à insegurança jurídica e o risco que a ameaça de
ser privatizadapêlos interesses dos atores maíspoderosos Avaliámos, sobre . - À. insegurança jurídica, ligada à regulação, é um risco endógeno, inter -
tudo, o quanto ela renuncia a instituir o social, contentando-se em pilotar à no de algum modo à maquinaria do direito. Mas o risco de precarização do
*
.
vista, sem perspectiva real Em sua obra O Senhor dos Relógios,117 Philippe Del - tempo e, pois, do desatamento das relações sociais, só se confirmará verdadei-
• *

-
4
*
maz lembra que o Estado, ao contrário do mercado, tem o privilégio do lon ramente se a própria substâ ncia das'regras de direito - as soluções por elas
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go prazo, e que, proyedor da lentidão necessária, ele “pode impedir que se es-
garce o tecido social no decorrer das mutações que o esquartejam” *18 Encon-
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. 4

consagradas conhecerem, por seu tuhjo, e desta vez sob a influencia de fa-
.
tores externos,' uma precarização igual Esta hipótese da “desinstituição”, pro-
*

tramos amesma mensagem no Relatório da Comissão do XI Plano (1993) que pomo-nos a testá-la em três setores sensíveis do sistema jurídico: o familiar,
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-

se pronuncia por um “Estado estratégia” utilizando a duração para praticar as teatro de uma privatização do elo, inicialmente conjugal, filial hoje em dia; o
v arbitragens e as antecipações necessárias à restauração dà coesão social 119 Na . social, em seguida, que com o retorno forçado do mercado revela uma preca- 4

mesma linha, alguns pedem a colocação de células prospectivas junto a cada rização da condição salarial, expondo os trabalhadores ao risco da “desfilia-
'

ministério: contra a “lógica dominante de curto prazo”, a “ditadura do instán- ção”; o penal, enfim, onde assiátimos ao declínio .dos ideais de reabilitação e à
- -
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r te” e a “cultura da urgência”, tratar se ia de restaurar uma capacidade prospec- tentação do recuo securitário - desenhando em negativo a figura de uma ins-
tiva, apoiada numa memória retrospectiva e suscetível de operar as arbitra '
- tituição por ausência da qual.só restariam as formas repressivas.
gens necessárias entre gerações 120 7
v
. O direito moderno', como nos lembramos, é baseado no relato funda-
“Transformamos o temporá rio num valor seguro*’: este slogan publi « - dor da passagem do estado de natureza ao estado civil “Deixemos o estado .
citário de uma firma iniciante é revelador do estado de espírito dé uma so* de natureza, fonte de insegurança permanente, se dizia. Confiemos uns nos
* ciedade que acredita poder se instalar, sem dano, no provisório Por sua ve?, . outros, multipliquemos nossos laços, cambiemos nossas promessas. Dote -
o direito é vencido por esta precarização das perspectiyas »Será que é por . mo-nos de instituições e façamos um pacto com aqueles que serão seus res-
isso um “vaíor seguro”? É esta questã o que precisamos aprofundar mais ponsáveis: nossa obediência contra sua conformidade aos princípios funda-
adiante.121
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*
dores” Assim, nascem coletivos que não eram por isso opressivos; assim atri-
buíam-se a liberdade e a lei, a autonomia e a responsabilidade, o privado e o
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.
público É bem exatamente este relato que atualmente é colocado sob suspei -
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ta, como se.demasiado e frequentemente repetido,1seu sentido se tivesse pro -
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1 X7 DELMAS, P. Le Maitre des horloger. Paris: Odile Jacob, 1991. s gressivamente gasto . *
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118 Ibid.» p. 27. Primeiro indício: a individualização cada vezmais pressionada pela re
v. .
119 Commlssion‘ du Xle Plan. Pour uri Êtat stratège, gararí t de Vintérêt géné rál . Paris: .
lações sociais A face sorjridente deste fenômeno significa autenticidade, áuto
’ . -
< 1993.
4
. ‘ 4

nomia, libera ção das coerções, realização de si, criatividade Sua face triste su -
-
1 V A

120 BELJIOUBET-PRIER, N.j TMSIT, G. Tadministration transfigurée: un nouveau


modèle d dministration? Revue internationale des Sciences administratives, v. LTVÍ põe angústia, desconfiança, solidão, vulnerabilidade. “Sejam autónomos, in
^
n. 4, p. 659 et seq., 1993. «
A
ventem suas vidas, escolham suas fam ílias, devolvam-nos um projeto”, tais são
121 Encontraremos maiores desenvolvimentos . sobre essa questão em um estudo que * as injunções paradoxais dirigidas pela nossa pós-modernidade aos indivíduos »

0
i /
cònsagramos à regulação, novo modo de produção de direito: OST, E. Le temps vir-
tuel des lois postmodernes . In: Les Transfortnations de la ré gulation juridique . Sous/
la -direction de J. Ciam e G. Martin. Paris: LGDJ, 1998. p. 423 et seq.
no mesmo instante em que êScondem as referências, suscetíveis de lhes indi
car um lugar na sociedade ( um “lugar”: um emprego, uma utilidade social,
-
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« 352 353
Capítulo 4
*
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Questicmánientor Desligar o futuro
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um papel na constelação familiar).' Os ganhadores, capazes.de mobilizar re- „


Disso resulta umaheterogèneização do tempo social, explodido C1X1 rlt
cursos financeiros, capital simbólicos redes de relações, irão surfar com faci- mos cada vez mais diversificados. Tempo conjugal e tempo parental d ÍS90°
lidade nestas vagas deprivatização: quanto aos outros, toxicómanos, soro-po- 7*. ciam-se, enquanto a organização fordist.a do trabalho é dá lugar a uma ílexi*

.
1

bilidade das ofertas, mas também a uma nova precariedade dos’ empregos A
V

, sitivos, desempregados de longa data, pais divorciados e excluídos, jovens com


-
r
^

dificuldade de inclusão, if á restar-lhes a prisão nos centros urbanos potencial- duração prometêifca dos códigos e da promessa das instituições dão, .então, lu
. . gar a um tempo em migalhas que se trata de reconquistar a cada instante. Di -
mente explosivos ,' ,
- Jjjj
. Segundo indício: o declínio das instituições e ò retorno do estado de na - jJj
^

- * reito de visita negociado ou arrancado, estágio consegifido com muita luta, *

I tureza. Sob a forma do mercado, por exemplo, do qual Alain Mine dizia que é al
.‘o estado de natureza da sbeiedade”, e que “sem normas jurídicas ele recai na *
selva, assimila-sç à lei do mais forte, e fàbric? n segregação e a violência”,122 Ape- :
sar de regras e inslituições estáveis, a sociedade do risco torna-s.e efetivamente. 5
JJ
»
emprego temporário, tudo se passa como se vqltasse à tona o antigo impera-
tivo imposto aos povos: “viver cadá jornada”.
Certamente, não se trata de nos encerrarmos nestas perspectivas sem
futuro. As experiências em curso, que traduzem também os transtornos ine-
rentes a toda mudança social,, qualquer que seja, não conduzem necessaria-
uma “sociedade de insegurança” (Gauchet), e o individualismo torna se “nega- - I
«

mente à dissocialização e à violência. A verdadeira questão consiste, desde en-


tivo”: ele sé expressa, então, em termos de falta -“falta de consideração, falta de r

tão, em saber como interpretar 'os signos de evoluções presentes, para neles
segurança, falta de bens garantidos e laços estáveis”.123 Quanto à vida privada, 3j
encontrar as condições de uma reinven ção da instituição àtribuída aos novos
que então triunfa, ela poderia bem marcar o apagamento do “mundo comum”, 4 [i

tempos. Na dupla certeza de que a história não repete os pratos (a nostalgia


no sentido em que o entendia Arendt: um universo de significações coletivas ) dos tempos .antigos nunca .se oferece) e que, sem duração nem promessa o
*

que religám o aqui e agora dás. existências concretas ao longo tempo da memó-
questionamento cai no vazio, ou antes, volta-se contra ele mesmo e se prova,
ria e das promessas transmitidas e a serem transformadas.124
''•portanto, (auto) destrutivo.
Trabalhado por estas evoluções sociais, o jurídico contribui, pôr sua S
vez, para este trabalho desinstituinte, Todos os traços formais do direito regu- $ \

lador já o deixavam pressentir: um direito instável, factual, pragmá tico, inspi


rado pelos especialistas e espremido entre os grupos de pressão rivais difícil-
- LMv - PENAL: O SECURITáRIO OU A INSTITUIçãO POR FALTA
>

mente pode trabalhar para a institucionalização do laçò social. A substância


/
A respeito do direito penal, que é, a seu modo, o guardião’ de todos osv
das regras que abordamos agora o confirma, desde que, edm muita frequ êh
cia? passa-se do estatuto ao contrato, e algumas vezes até do contrato para as
v - outros direitos, dois fenômenos prenderão nossa atenção: de um I ado o mo-
^
vimento de superpenalização,.observável em qualquer lugar; de outro, a mu-
relações sociais livres total ou párcialmente da mediação jurídica. Quando o w- dança de paradigma interno a este ramo, com o abandono dos objetivos de
^
recrutamento (engajamento precário para esta ou aquela tarefa pontual) *.! / tratamento e de reabilitaçãado condenado em prol
de uma política de gestão
t substitui o cçntrato de emprego,' e que mesmo os laços de filiação são apre- ~ i
de risco criminal,' com forte cheiro do mofo securitário.
sentados como eletivos, o direito se apaga, dando lugar á relações cara a cara,
' n
Superpenalização: fala-se, na França, de “ Rep ública penalizada”;125 nos
. ora fusionais, ora violentas, sempre incertas. Estados Unidos^nota-se a passagem do “Estado caridoso” ao “Estado penal” .
^
r 126
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.
. Í 22 MINC, à. LeNouveau Moyen Âge Paris: G àllimard, 1993. p. 220. 125 GARAPON, A.; SALAS, D. La ré publique pehalisé. Paris: Hachette, 1996.
123 CASTEL, R. LeàMétamorphoses de Iqtpiesúon sociale Paris: Fayard, 1995. p. 465, . t' 126 WACQUANT, L. De PÉtat charitable à Uétat pénal. Note sur le traitement çolitique
de la misère en Amérique. Regards?sociologiques, II, p. 30 et séq., mai 1996.
/
124 ARENDT, H. Condition deVhommemoderne Vms: Calmann-Lévy, 1983. . V
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* 4 4
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354 . 355
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Capítulo 4
. .
Queslionamento Desligar o faturo
* 1

-O fejiômeno tem motivo para surpreender, uma vez que em todo lugar é o %
/

de um recalcado da norma.128 A busca do sagrado, do indisponível e do prin - i

4
relaxamento das coerções e o apagamento da norma que se discute. E, com cípio encontrava uma abertura no vazio e'no negativo, significando a necessi- .
tudo . Ã formidável onda de emoção que arrebentou durante dois anos na dade de instituição, mesmo que fosse por falta.
»
^
Bélgica, depois da descoberta dos corpos das crian ça assassinadas, após te
^ - ^ i
De repente, o direito penal surge como a última expressão da moral co
mum, a última fonte de sentido num mundo em que as referências móveis e os
-
rem sido vítimas de abuso sexual, e a reivindicação de um reforçada repres - >

são que a acompanhou, servem aqui como reveladores 127 Â sociedade testava
seus limites, num mundo que se acreditara ilimitadoj e que tropeçavâ Tia
. '*2 quadros flutuantes aprofundam a inquietação e suscitam o mal estar na mes
.
ma quantidade que os liberam Aos olhos de indivíduos que se tornaram teme
--
7
proibição quando se pensava ter se livrado dela, ela redescobria o indisponí- " rosos, a poibição reafirmada e sancionada parece poder reforçar os laços sociais
.
vel, enquanto se acreditava tudo poder negociar Com as figuras do perverso ã
\
.
e garantir um pouco da segurança perdida De repente, também, os tribunais

-
sexual e do pai incestuoso, cujos crimes Criavam filhos mártires e transtorna-
v vam a ordem dos lugares na gertealogiara sociedade se confrontara com umá.
1
i
correcionais são erigidos em último lugar da palavra p ública ágora substitu —
tiva - onde a queixa social pode, enfim, Se exprimir, onde os “pequenos”, pos-
-
manifestação do mal radical, de que nos havíamos esquecido: sofrimento ab- j tos em pé de igualdade cóm os “grandes”, podem, enfim, reclamar justiça.
soluto e negação completa da ordem social, que fazia , de’ um filho (às vezes Esta super-sçdicitação da justiça penal, transformada em instância de
/ *

V .
“seu” filho) um parceiro sexual Amor, morte, e às vezes dinheiro, misturados . reconhecimento das vítimas, e este apelo redobrado à sansção, signo invertido
* «

Não mais adultos, nem crianças, mas somente grandes e pequenos, fortes e r4 da norma comum, dão assim uma resposta oca à questão de saber se, para
.
fracos, cara a cara numa relação mortífera Não mais sujeitos, nem objetos, 4
existir e se identificar, uma sociedade não tem necessidade de se apoiar em re-
mas seres coisificados, portanto, dejetos jogados após o consumo. Confron- ferências fundadoras e fazer a esperiência de seus limites. Eis, então, que se po -
tada com esta confusão inominável a sociedade se chocava com o centro deria explicar o movimento de repenalização da vida social, cujos signos sã o
* Av í

abundantes: multiplicação das incriminações, alimento dos custos repressi -


^ duro,Nindivisível e desfigurado da ordenvsocial; ela mergulhava em sua zonav *

cie sombra mais sombria, ela descobria sua face mais oculta: a violência .ab- vos, alongamento da duração média das penas, restrição de regimes de liber
* -
soluta, ainda prestes a.se desencadear - aquela que os atenienses souberam ? dade condicional, yigilância eletrónica a domicílio: o controle penal se expan -
* rememorar constantemente, levantando um templo, no centro da cidade, às * de e a repressão endurece .
Eumênides, ex-Erínias* que vingariam os parricidas e outros perturbadores Esta resposta, entretanto, é perigosa. Ao definir a instituição pela san -
. da genealogia. x ção, a superpenalização expõe-se ao risco da restauração da ordem moral e
\ Assim, se não se soubesse mais, no relativismo generalizado, onde pas- poderia sucumbir às tentações das nostalgias da idade de ouro fantasiada. Ao
*

sava a linha do permitido e dó interdito, se éramos incapazes de dizer positi- ç sustentar uma mentalidade vingativa, ela poderia, também, colher a violência
-
vamente o que estava bem, pelo menos agora sabia se o que era^absolutamen- ' que pretende exatamente combater. Enganamo-nos de projeto ao ligar o futu -
tè mau, A partir das figuras contrastadas do filho mártir iílocente e do viola- ro sob a forma de.ameaça, se ela fosse instituída, pois é somente sob a forma
-
dor monstruoso, tornava se novamente possível òrdenar o caos dos signos e a -
da promessa que o futuro é fecundo este era, como nos lembramos o “ tour
.
desordem simbólica Um mundo em preto e branco ( conhecemos a impor- de force” de Atena que libertava Atenas do ciclo sem fim da violência, apos -
tâ ncia do “branco” no movimento social de que se fala), opondo o puro ao
*
'
sando na confiança que transformava as Eú rias em Eumênides, Por outro
impuro, a inocência ao Crime, se redesenhava, traduzindo o retorno violento
r*s ' •
«
CARTUYVELS, Y. Délinquance sexuélle, question identitaire et réponse pénale, In:
\

/
128
Actes du colloque Biett deVenfant, Abus de Venfánt. UCL: Academia-Bruylant, 1999
,
127 OST, R Julie et Mélissa; la mémoire, et après? Juger n. 14/ 15; p: 12. et seq., hivet
t
. (a publicar).
1997-1998. >*

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*
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356
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357
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t Capítulokf /
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Qucstionametito Desligar o fiituro
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*
lado, há um segundo perigo, fica claro que hão se;edifica uma ordem social ex- é eficaz se temos um futuro e um objetivo. Ora, a doutrina de defesa social for-
i clusivamente baseada em interditos ê processos repressivos. Já havíamos subli - »
* nece aos nossos esforços um objetivo dignq, de ser perseguido”*
30

nhado: focalizando a violência real de. que as pessoas são vítimas, baseadas so- Na ótica da defesa social, a preocupação moral com a recuperação do
mente na queixa à justiça, contribuímos à despolitização da vidâ social; des-
viando a atenção para bodes expiatórios, criamos um impassevnas reformas
^^ condenado se duplica com preocupações médicas e psiquiátricas, bem na li
nha da confiança fundada na época, na capacidade dás ciências (criminologia,
-
em profundidade - longe de preparar o futuro mantemos, entãp, na urgência"
vR
.
estatísticas, psiquiatria criminal ..) paça identificar os indivíduos perigosos e
do presente, as desilusões do amanhã. - *
/

&
submetê los a um tratamento eficaz, através de medidas de custódia, de edu-
-
cação e de tratamento, simultaneamente individualizados e com duração in-
determinada Por outro lado, e sobretudo ho pós-guerra (falaremos, entãó, de
.
«

Gerar -o. risco criminal %

l '
“nova defesa social” ) /estas intervenções ambíguas a meio caminho entre in-
7
í tervenção filantrópica é controle social intensivo se.desdobrarão elas mesmas
*

num trabalho social em profundidá de nos setores sensíveis, suscetíveis de „


*

Corolá rio do movimento de superpenalização é a transformação inter- *

na, de tipo securitário, que atualmente afeta a lógica daantervenção penal 129 *a
. contribuir para- o aumento da delinquência. Na linha de um Estado social pre-
Permitam-nos um breve lembrete: no quadro do Estado social, a repressão
perseguia essencialmentè finalidades preventivas, segundo os desejos dos pre
cursores utilitaristas, tais como Bentham e Bétcaria.. Tratava-se, em um mo- * -vví
,

mento em que ainda sç tinha confiança no futuro, de operar com penas que
simultaneapiente dissuadam os delinquentes potenciais e garantam a correção
a
i

j
— '

l
. •

.
ventivo, multiplicam-se as políticas sociais suscet íveis de circunscrever a cri-
minalidade crescente: as questões da moradia, dos bairros difíceis, da-droga,
de evasão escolar, tornam-se objeto de uma atenção sustentada. A vagabunda-
gem é despenalizada, a política da juventude torna se objeto de um tratamen-
to mais social do que repressivo, a internação dos delinquentes anormais, dá
-
\

um lugar muito màis amplo aó respeito dos direitos•fundamentais. De modo


dos desviados, com culpa formada. Tratava-se, portanto, menos de punir a fal-
ta passada (lógica retributiva), dó que prevenir o mal futuro. A Uniã o interna -
«

,
geral, a preocupação com a socialização com a participação e a reabilitação >
*

cional de direito penal, fundada( em Berlinr eih ,1889, iria contribuir eficaz- acerta o passo', pelo menos nas intenções, sobre o controle ^ocial e a repressã o .
mente à difusão desta lógica finalista e utilitarista, que encontra sua expressão , ^ O sufoco do Estado social e a emergência da sociedade do risco logo
privilegiada hum movimento dito de “defesa social”.Um de seus principais re-, darão razão a estes ideais, de modo que, novamente, são préoçupações secun-
presentantes na Bélgica, Prins, estabeleceu de modo muito claro o laço entre dá rias que ocupam hoje em dia o primeiro plano da cena: é uma segurança *
i
imediata que é reclamada e não a redução da criminaliâade a longo prazo O .
,
interven çã o em vista da reabilitação do culpado e inscrição, num futuro vo
^
V.*

- V

4
luntarista: “sem a esperança e a possibilidade do melhor, o direito não tem ne~
.
nhuma razão de ser; a força basta. . Em direito penal, çspecialmente, imagine
J. *

vocabulá rio da desconfiança, que se exprime agora nos termos da ccgestão do
risco penal”, substitui as esperanças colocadas, ainda ontem, no tratamento e
t

um instante em quet tenhamos repentinamente a certeza de que tudo deve aca- .


na reabilitação Espera-se das autoridades que èlas garantam uma, necessidade -
bar, que 6 futuro não existe.,, que valoç prático teriàin ainda as leis promulga- * H de segurança, por um controle social reforçado e diversificado; prefere-se a in- ,
,
yt

das, os julgamentos decididos, as penas a serem cumpridas? A justiça penal só capacitação à -reabilitação, experimentanfcse sistemas cte vigilância eletrónica
4
4 ncr domicílio, cohstituem-se bancos de dados genéticos dos contraventores,
\
* K
i 4 alongam-se aspenas e reduzem-se as liberdades condicionais, multiplicam se - *

129 Retoma-se, aqui, as linhas gerais de uma síntese realizada por CARTUYYELS, Y r
. . V

.
OST, F Crise du liett social et crise du temps jnridique L’exemple da droitpéyuã Re . - * t

»

.
te dedicada ao direito penal foi escrito por Y Gartuyvels

\
.
.
lato realizado á pedido da Fundação Rol Baudoin, Bruxelas, 1998 p. 70- J 17, A par

t
-
I
4 *

I
%
130 PRINS, A La Défensejociale et les transformatioús du droit pértal Genève: Classi
que, Déviance et Société, 1986 p 43-44
r
.. . k

7

^ V
-

_
4

I
«
.358 J l
359
i < • A i
ji . i i
I
Capítulo 4
\
\
r
.
Questiottamertto Desligar o faturo .
V

os “diagnósticos de previsão”, visando reduzir o risco criminal. São alocadaà N

Como vimos, os dois movimentos, de superpenalização e de deslize


' políticas de prevenção integrada, que associam, desde o escalão nacional ao
escalão local, os afores mais diversos;cruzando os campos policial, sanitário e
securitá riò, convergem e $e reforçam para fazer da norma penal e da justiça re -
/ , pressiva o último escudo de unia sociedade de más referências Duvidamos, .
.
1
*
social, visando ampliar o controle social e reforçar-lhe a eficácias Aqui, como
« • contudo, que uma sociedade possa instituir se duradouramente, partindo -
. em outros lqgares, a lógica de ,gestão da eficácia sobredetermina processos e -

'

soluções. De um golpe, a lógica do projeto, típica das políticas penais do Esta .


., * .
unicamente da ameaça de repressão Seria conveniente, antes disso, refletir so
4
'
- • bre a recentrálização da política criminal, que‘deveria continuar sendo
a últi -
do social, dá lugar a intervenções de urgência, programas de curtíssimo pra
zo, suscetíveis de produzir resultados r ápidos, risíveis e, se possível, rentáveis
- ma malha dos processos de socializaçã o - o que, ao mesmo tempo /recoloca a
questão das outras instituições que faltaram antes. Por outro lado, poderia ser
-
' nos meios de comunicação. Objetivos
bem flexíveis são fixados, raramente ul-
trapassando' doze meses e permitindo uma reatribuição ágil dos recursos em;
'
*

desenhada uma via no próprio seio do penal que, dando um lugar mais am
, -
pio à vítima, que fora a grande ausente do processo clássico, poderia conduzir
1

/ função dos rèsultados obtidos.


a uma justiça restauradora, se, pelo‘menos, vítima e culpado, cada um, reco-
Aomesmo tempo, observa-se uma aceleração muito real de alguns pro-
nhecido^em sua situação, aceitassem conversar e atribuir-se uma chance para
4

cessos judiciários em resposta ao desejo de uma reação spcial imediata à de-


o futuro. Mas, precisamente esta justiça da reconciliação exige tempo e con -
%

linquência, se possível em tempo real; pensamos principalmente nós proces- v,


sos de flagrante delito na França, dzguiltyplea nos Estados Unidos, Htpatte fiança, os dois recursos que acabam por faltar quando o futuro é desligado.
giamento na Itália, assim como as diversas medidas derivadas de uma lei bel-
- f
%

' > ,
ga de 11 de julho de 1994, relativa precisamente à “aceleração da justiça pe- *

nal”.131 Se é verdade que um processo que se arrasta aparenta-se a uma dener


FAMLIA
/
: O DESCáSáMENTO OU O ELO PRIVATIZADO "

gação de justiça, seria precis.o não esquecer, ao Contrário, que o “prazò razoá-
^
vel” no qual a justiça deve ser feita entende-se também pela recusa de um pro-
Durante muito tempo;a família foi a instituição que, por excelência, re -
cesso demasiado expedito. Esquecediças de qUe o processo tem também por -
)
' sistia ao tempo:132 o alicerce estável.da dependência, baseado na natureza quê
j garantia a ipdissojubilidade da aliança e aperenidade do parentesco. Articulan-

vocação dar suas chances à dúvida e institucionalizar a prudência e o debate,


. estas reformas Apresentam o duplo risco de reduzir as garantias e deslocar
*
-I *

do a diferença dos sexos e das gerações, ela distribuía os lugares e os papçis, ofe-
,
\ recendo a cada um,.tempo estabilizado que poderià^significar sègurança e sa- \
#

para baixo (do juiz ao assoalho e deste último ao agente policial) a iniciativa
tisfação. D.e 1804 a 1960, ò Código civil c&nsagrou este modelo; um casamen-
j
da investigação e condução o processo. Mas estas considerações têm pouco
^
peso - do mesmo modo qu ç a colocação sob suspeita de uma justiça a várias
velocidades (ultra-rápida para os pequenos delinquentes, demorada, até mes-
9
«

}
to indissolúvel/ a que se ligava a presunção de paternidade do marido em rela-
ção aos filhos da mulher. Mas, se era instituinte e estabilizador, este modelo po-
dia, també m, provar-se desigualqdor e opressivo: os filhos naturais, nascidos
mo parada, para os mais poderosos, que podem aguardar a prescrição) des
de que o discurso securitáriò invadiu o imaginá rio social.
i
— -
* ‘
fora do casamento eram excluídos e seu estatuto continuava discriminatório;
^
a esposa era sujeita ao .marido e os filhos colocados sob o poder exclusivo do
r pai. Igualmente, uma cascata de reformas ocorridas a partir da década de 60
131 Cf. KERCHOVE, M. Van der. Accélération de la justice pênale et traitement en r
“temps réeh Journal de$ procés> n. 311, p. 10-13, 4 aoút. 1996; RUELLAN, F. Le juge * iria garantir progressivametlte a igualdade dos filhos nascidos dentro e fora do
+ j
,
.
et Turgence. Les M étiers de Vurgence, in Les Cahiers de lajsécurité intérieure, n 22,
p. 485, 1995; BRUNET, B., Le traitement en temps réel: la justice confrontée à Tur-
132 THÉRY, I. Familíe: une crise de Linstitutíoii» Nofa da Fundação Saint-Simor í, p. 40,
gence commev moyen habituei de résolution de la crise sociale. Droitet $ociété, n. 38,
<! set. 1996; cf. igualmente THÉRY, I. Différence de sexes et différence de générations. «
p. 91 etsèq., 1998.
s
# Uinstitution familiale en déshérence^ Esjprit, p. 65 et seq., déc, 1996.
/
't
v
I
/
360 361
i *
K ' Capítulo 4‘
*
>
s * *
. .
Questionamcnto Desligar o futuw
/
\

\ /
/

casamento, consagrar a autoridade parental conjunta sobre os


o divórcio a pedido conjunto dos esposos. Progressivamente
filhos, permitir i
Uma comunidader de fato ou de direito?
destacada do es- ' «9
' tatuto que a caracterizava, a família tornou-se contratual e repousa,
.tão, nas vontades livres* e iguais de seus protagonistas. De
desde en - A Traduzindo em linguagem jurídica; esta evolução leva à alteraçã
o do
repente, ela deixava 1 princípio de “indisponibilidadexlo estado das pessoas”, que
pretende que não
de desafiar o tempo, estava exposto u ele, como todo o resto. Por se
manifestar 1 se disponha mais, por simples vontade ou contrato de seu sexo
, de sua quali-
no espaço privado do afeio, livre doravante das coerções institucionais, ela se -
* descobriá vulnerável. Encarregada
de reinventar-se, na ausência de modelo
/ •
dade de esposo, de seu estado de filho ou de pai
' 135
-
todas coisas eminente.
público; político,
preestabelecido. Convocada para construir o tempo - aquele mente privadas, sem dúvida, mas cujo desafio é igualmente
negociável, da , pelo
aliança, e aquele incondicional, da parentalidade, e, em caso de divórcio mesmo,.no sentido de necessário à coesão da cidade - não seria porque
ou de tmpo
do é
fato da simetria dás posições, a criança não é capaz, a maior parte
'
separação, os da “antiga” e da “nova” fam ília na incerteza das ^
-* referências
Tantq quanto, como muitas vezes, os costumes.iam sobrecarregar rápi
. J
"
*

de exprimir uma vontade livre e igual quanto ao estabelecimento


de seu “es-
*

do demais os textos, mesmo reformados, e modificar


- '
tado”. Eis, então, o problema claramente posto: será concebível no
, plano an-
consideravelmente os .« de
tropológico, notadamente recondiizir a fam ília a uma simples comunidade.
«
dados sociológicos da vida familiar. Um relatório ministerial de junho de «
1998 tempo -
fato: alguns dados biológicos (família de sangue, dizia-se a pouco
, • ; pa
o confirma:133 mais de 1/3 dás crianças nascem hoje de pais não
em 1980), perto de 40% dos casamentos são suscetíveis a
casados 11%
(
terminar, em divór-
^
, trimônio genético, dizemos àtualmente)* ou um nó de relações afetivas tão in- *

tensas quanto ínovèdiças? Podemos resolver pensá-la exclusivamente


nos ter- '
-
*
cio (22% em 1980), a nupciálidade está em baixa, enquanto se
eleva ò n úme
mos, sempre contingentes, das “políticas familiares”, que se sucedem ou
ro de casais nao casados e multiplicam-se as “famílias”
, como
monoparentais e re- o estatutária?
compostas. É preciso render sé à evidência: de instituição garantindo
- o produto das trocas afetivas fora de qugJqUer predeterminaçã
missão dos patrimónios e garantindo a ordem simbólica dos lugares, a
a trans-
famí-
" ,
Parece claro que nenhuma cultura jamais tenha sido resolvida numa tal pre-
yerda-
-
- cariedade, nem a fazer da família uma questão puramente privada. Se é
t

lia transformou sè atualmente em uma “rede de relações afetivas e de solida


riedades”, da qual o desafio é a construção das identidades pessoais na troca
- ^
de que uma cultura tem precisamente como função construir simbolicamen-
\j
te a realidade comum, dar um sentido às coisas vividas, compreende-se
intersubjetiva. Articulação móvel e eletiva de trajetórias pessoais, encontro de
• que a
partes de vida colocadas sob o signo da sedução e do amor,, mais do
quç rea-
A
,í determinação de um lugar ú nico ^“ exclusivo para cada um na constelação fa ' t
-
miliar, dito de outro mõdo, a instituição da família como ò que liga a diferen-
'
lização.durável de um modelo instituído. Um mundo, em, suma, em que todas
as relações seriam escolhidas, queridas, desejadas:“um mundo em
que os pais
escolheriam seus filhos, os filhos escolheriam os pais, onde os cônjuges se es
colheriam entre si e se abandonariam sistematicamente, onde os filhos elege t
- J
I
:
,
*
_ ça dos sexos e das gerações,-.como o que articula a aliança e o parentesco
para ela, um desafio maior. *
\
.
Dito de outro modo, ainda, nenhuma sociedade passa sem precisar
, seja

de
riam o novo cônjuge de seus pais, adotariam seus novos irmãos e irmãs,
- • • • ficções fundadoras qúe, dizendo “quem é quem em
relação a quem”, poupam
aos indivíduos a tarefa delicada de ter que se fundar a si mesmos. Articulando
iriam
se constituir famílias substitutivas, escolheriam Suas famílias de *

acolhida, de-r os lugares


esta ordem simbólica no tempo estabilizado das promessas pois
' cidiriam sobre o pai que teria sua guarda”.134 (
), as ^
simbólicos fazem acompanhar-se de um regime de direitos e de deveres
montagens culturais liberam, também, os indivíduos da pior. das
; depend ê ncias :
.
133 í THÉRY, I Couplef filiation et parerttá aujourd hui Paris: Odile . ; a dependência relacional ou fusionai que faria depender a sobrevivência ape-
}

Jacob, juin 1998.


Rapport à la Ministre de1’Emploi et de la Solidarité et au Garde des Sceaux,
Minis- i
.
4

tre de la Justice, p. 13,

-
*

- .
134 Chalvon Demersay apud THÉRY, I Famille: une crise de L’
institution. Nota da - .
135- LABRUSSE RIOU, C La filiation en mal .
dinsfitutiori Fsprit, Malaise dans la. filia
- .
Fundação Saint Simon, p 31, set 1996.. .
tion, p. 94, déc 1996, • [
*•
362 363
Capitulo 4 ‘ 1* •*
"V * l \ Quesiioniwietito, Desligar o Juturp.
v ' i
t
s
* ' ^ :
.
.
nas da manutenção do afeto Tal é o sentido' antropológico da fic
ção da “indis- ^ ’ De um lado a aliança, a relação amorosa inscrita resolut mente
i
no tem -
^
*
,
ponibilidade de estado das pessoas”; ela lembra què os çomponentes
p

talidade não se reduzem ao n úmero de dois, mas de três: ao lado do pai


da paren- * *

po histórico, contingente e variável, de um duplo percurso


singular.Do pon -
gico (o genitor) e do pai doméstico (a pessoa que abriga e educa a
bioló -? ^
*

•v to de vista da aliança, o descasamento


pode se produzir como uma etapa, do -
a título de
^ é aqíiele que a lei désigna como tal, ligando
o pai genealógico, que
criança), há ?~p ' lorosa certamente, de uma aventura pessoal, contudo, valorizada
*

autenticidade, de autonomia e de igualdade. Do outro lado,.o parentesco


a isso um 4,,
« • , o elò
conjunto de responsabilidades.136 Ao instituir, de maneira diferenciada em aexpe-
cada > assimétrico entre pais e filhos, que no teste do descasamento se torna
1

*
cultura, este parentesco genealógico, o direito átribui à$ existências
um alcance que transcende suas detèrminações biológicas e domé
liga.com a comunidade social das gerações que se sucedem Como se,
individuais, 4o
sticas e as re- . è
. >
^ 4
> riência do que permanece do dado e do indisponível. Num contexto
tudo parece negociável, em que toda dependência é sentida como
em que
uma còetx
ão são nem cam-
referin- ção, é preciso render-se à evidência: os elos de intergerações n
do*o indivíduo a um corpo coletivo socialmente instituído, ela lhe.
biáveis, nem disponíveis. A este propósito se faz ainda
conferisse prevalecer uma grande
uma identidade mais forte e mais estável, fonte de reconhecimento e de
estatu- demanda 'de ificondicionalidade e de estabilidade. A esta primeira tens
ão en- -
to: diferente da cambiaiite dependência das trajetórias de vida
--
*
missas à sedução, mas também, á ameaça do olhar do outro.
f
. *
individuais sub- .
£
^ tre tempo conjugal horizontal e tempo intergeracional vertical
nado, junta-se frequentemente a tensão entre a história da primeira
e íncondicio
*
família-
à criança
' " i- descomposta e a da segunda, em vias de recompòsiçao:será possível
o das
virat a página, perguntamos, e senão é o caso, como gerir a superposiçã
/

Tempo dQ aliança e - tempo do parentesco '


objeto ? A estas ques -
. durações associadas à dupla parentalidade de qqe agora é
*
í
*
1
X

toes inéditas, n ão há mais resposta a pfiori, uma vez que a léi moderna
pá re -
A força do rqodelo matrimonial residia em ligar as três faces da paren
talidade: o mesmo homem e a mesma mulher eram simultaneamente os
- V.
V

. ce ter se freado• -
noriimiar da vida privada
i —
, atribuindo desde ent ã o a òs indiv í
yida ,
-
,140

biológicos, domésticos e genéalógicos. Não sublinhara Jean Carbonnier que
pais ‘4

duos a tarefa de instituir a fam ília na medida de suas vivências Sem


*

- a

*

os especialistas em normalidade familiar põem o pé no freio, mas é sabemos


, V

verdadeira finalidade dó casamento era a presunção de paternidade, que a ele ória


se ligava?137 Com o descasamento, que se generalizou, esta convergência não é j>em, para conduzir, por sua vez, pais^e filhos -à singularidade de sua hist
,
pessoal o importante é que as soluções imaginadas na mediaçã o familiar
mais evidente e recoloca, lancinante, a questão de saber o que é, - -
definitiva-
mente, uma família.138 Tudo se passa, de fato, como se o destasamento
principàlmente; sejam “psicologicamente aceitáveis”, ou seja, “ecoriomica
tivesse *
mente realistas”*141 as questões de justiça e de estatuto sendo colocadas visivel . -
desarticulado o elo entre aliança e parentesco e seus ‘tempos respectív s.139 *
mente fora de propósito Sem dúvida; permanece um critério nesta constru-
.
• ^
» õ >

, os direitos
Ção anômica: o interesse da criança; às vezes, mesmo atualmente
i
<
3
136 THÉRY, I. Les constellations familiales recomposées et le rapport da criança. Mais precisàmente, quem poderia dizer onde se situa o interesse
da '
au temps: une
question de culture et de socié té. In: Quel repères pour Jesfamiles recomposées? Sous
la direction de M.-T. Meulde Klein et I. Théry. Paris:
4
i criança, a fortiori seus direitos, desde que se esçamoteou previamente qual - \

^
137 J. Carbonnier, Conférènce sur le mariage, École nationale de
LGDJ, 1995, p. 29-30.
lamagistrature, 1 avril
\

a 1994, apud THÉRY, I. Famillerune crise de Linstitution. Nota da Funda o


çã Saint- * '
'T! i
140 LABRUSSE RIOU, C. La filiatíon en mal d’institution. Esprit, Malaise
- dà n$ la filia -
Simon, p. 31, set. 1996. ** tioriy p. 105, déc< 1996. \
i * 138 THÉRY, I. Le Démariage. Paris: Odile Jacob, .993. 141 DAVID-]OUGNEAU, M. La Médiation familiale:xtin art de la
dialectique. In: Mó-
J? , 1994. p. 41;
, - 139 THÉRY, L Les constellations familiales recortiposées) et le rapport
au temps: une diation familiales regards croisé es et perspectives. Paris: LHarmattan
D Le droit familial à la
question de culture et de société. In: Quel repères pour lesfatHiles
recomposé es? Sous para lima análise crítica da mediação familiar, cf SALAS .
, , ,

la direction de M.-T. Meulders’Klein et I. Théry. Paris: i recherche de références. In: Les Nutations du rapport lá nome. . Sous la direction i }

* / * LGDJ, 1995. p. 20 et seq. Verhoeven . Bruxelles : Dé Boeck , 1997 . p . 205 et -seq.


„ ‘ de A.Éerten, J. De Munck et M .
i V

364
/ t
) .
*
< A’
36
^
I

Çapltula 4
i ,
* * .
Questionamento Desligar o fitturo,

* J
.
*
/


t

quer montagem simbólica, qualquer quadro estatutário que. permitisse avaliá - Podemos, entretanto, repreender as‘ vontades, sem dúvida bem intencionadas,
\
S
los? Arrisquemos esta hipótese: o interesse, e mesmo o direito subjetivo, são o «

de transgredir a diferença das idades, já que a lei renunciou a dizer a priori o r


*

?
que permanece, o último decantado, quando o estatuto está ausente e que se ! '
- sentido destas relações? E o que pensar das demandas, muito numerosas, des-
encobriram a ordem cultural e as ficções jurídicas que teriam permitido ado- * ta vez dos padrastos que desejam proceder à adoção plena do filho
de seu côn-
tar a pessoa em sua totalidade . i
\ i v 4
- juge/ que.têm como conseq úência cortar qualquer laço jurídico com o outro
Apesar desta inscrição da criança na ordem plena de unia transmissão , ' pai do filho, assim como de sua linhagem: teríamos o direito, assim, de pôr ifm
^
*
I

assumida, restam-lhe apenas direitos esparsos e um interesse evanescente a que V fim .a todo um quadro da história pessoal da criança?
145
*
a lei renuncia ao dizer o conteúdo. Incapaz de.enunciar o sentido da instituição '. '
J Mas, precisamente onde se situa o direito, e a qual história, a qual tem
*
-
familiar, a norma se limita a remeter a outras instâ ncias a adoção, parcial e pro- po se ligar, desde que, como na peça de Pirandello, os indivíduos parecem ago-• /
visória, dos riscos sociais, médicos, psicológicos, económicos, aos.quais estão ex- *
* *
ra “personagens em.busca deautor”? Como repensar.a família ( desde que não
postos os indivíduos, pai, mãe, filhos, avós, padrastos, elétrons livres desta célir- x nós resolvemos a fazer dela uma simples comunidade de fato) como \ima ins-
la que se torna improváveL142 Encurralaclo por diversos lobbies, tais como as as-
J
tituição que constrói o tempo - um tempo que tenha sentido para cada um de
sociações de pais divorciados, cada um exigindo sua parte de compensação no seus parceiros? Observadora atenta das experiências de campo, Irèiie Théry ,
naufrágio coletivo, os legisladores remetem aos juízes, aos especialistas, aos po- • nota a esse respeito a emergência de duas figuras de compromissos originais:
líticos locais, o cuidado de gerir caso a caso a sequênciaxlas famílias em crise Á < . . a invenção de um tempo mais permanente, apesar e além da separa-
conjugal
^
'
*

lei de 10 de julho de 1983, relativa à infância mal tratada, é aqui exemplar, pois, ção, e a colocação de um tempo parental mais aberto, flex, ível e plural, devido
à recomposição familiar que muitas vezes irá acontecer.
*

focada sobre o maltrato (de resto não definido ) da infância, delega a uma rede <.r ,- i*
i
j
146

de atores a responsabilidade do problema, numa indiferença total com respeito Ufti tempo conjugal mais permanente: trata-se, neste casc* de “, refundir
• à família, e na esperança de que apenas a prática permitirá, no dia-a-dia, buscar
/> A "
s
* *

a filiação genealógica”, de dizer firmemente o sentido de que se reveste o pa


^ - t

soluções consensuais suscetíveis de restabelecer a paz social 143 . jív rentesco simbólico em relação à$ crianças, mesmo quando o laço conjugal foi
V 1
. rompido. Claramente, seria o caso de dizer à criança que a Responsabilidade *

i
>
v
• educativa dos dois cônjuges, (casados ou não, separados ou não) é incondicio -

4
Personagens em busca de autor . V nal e permanente. Dar testemunho de que o casal parental pode sobreviver ao. -
V V

„ casal conjugal, e que, se pode divorciar do cônjuge, não se divorcia de
seu$ fi-
i
Eis, então, a definição do elo familiar remetido à vontade dos indiví- . lhos. Concretamente, esta obrigação deveria principalmente levar a tomar /
mais efetiva a autoridade conjugal da qual o pai divorciado só se beneficia teo-
duos; tudo, então, seria permitido? Poderíamos às vezes acreditar nisso anali-
sando certas.demandas dirigidas aos tribunais: por exemplo, a dos avós desejQ-
- .1
/ ricamente, depois do. divórcio.147 De modo concreto, mais uma vez, isso impli - *

-
sos de adotar seu neto, expondo o assim a ttansformá-lo em irmão da mãe.144 t
\

* ••
t
*

>
• / ,
*
-
145 LABRUSSE-RIOU, C. La filíation en mal dlnstitution. Espritj Malaise dans la filia- ,
\

142 COMMAILLE, J. EEsprit sociologique des tois. Paris: PUF, 1994. p. 93 et seq. tion> p.1Ó7, déc. 1996 * .
-
*

143 SAÍAS, D. Lé droit familial ,à la recherche de références. In: Les Nutations du rap- 146 THÉRY, I. Les constellations familiàles recomposées et le rapport au temps: une ques
. , • tion de culturé et de société. In: Quel repèrês pour les fatttiles recompores? Sous la ]
.
>

port à la norme. Sous la direction .de A. Berten,J De Munck et.M. Verhoeven. . .


*
Bruxelles: De Boeck, 1997. p. 207 et seq. direction de M.-T. Meulders’Klein et L Théry. Paris:LGlbj, 1995 p.26 et seq ; Fatjiil -
le: une crise de Linstitution. Nota da Fundação Saint-Simon, p. 33 et seq., set. 1996.
?

144 ApudLABRUSSE-RIOU, G. La filiation en mal d’institution. Esprit Malaise dans la . 147’ GEORGE, M C 5 PERDRIOLLE, S. Le juge, le droit et la famille. Esprit, p. 114 et
-.
9
.
filiatiom p 95, déc. 1996.
)(

seq., déc. 1996^ *


*

»4
*
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Capítulo 4
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Questionamento. Desligara futuro
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\ > \ *
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\ '\ x
ca que os códigos educativos ensinados à criança por seus dóis pais (e e, para
vezes duas famílias recompostas) sejam tornados, pelo menos, compatíveis; !
niuitas “acarreta para alguns a falta de trabalho e a inutilidade para o mundo %

outros, o excesso de trabalho e a ipdisponibilidade para 0 mundo”.


i
149 ‘
, A
isso Implica também, para ò novo companheiro do pai ou da mãe, ,
O que está em jogo nas mutações do trabalho contemporâ neo são por-
4
^
respeitar ' 11
uma história do filho que começou antes e fora dele.
Ao contrário, tornar o tempo parental aberto e plural significa inventar
' V
M tanto, menos ás modâlidades concretas de seu exercício e de sua distribuiçã
o
que sua natureza jurídica, sua relação com o direito. Tudo se passa, a esse res-
*

as figuras da “pluriparentalidade”, correspondente às novas constela es fami anti-


çõ - peito, comp se, remontando o curso da história e regressando a figuras
liares entre as quais a criança doravante circula. O desafio essencial, aqui, signi - ,
fica dar um lugar ao padrasto que por não ser um lugár genealógico, não é
- * gas, o trabalho, como o laço familiar, passasse do estatuto ao contrato e em
certos casos, do contrato a formas pré- jurídicas- de relação social. Portanto
me- K ,é • *

-
nos geracional “nem parente, nem amigo”, o padrasto ou a madrasta'tê
m um 7 À
»

seu caráter instituído e sua inscrição no longo prazo de um futuro dominado


papel específico a desempenhar para o qual o texto jurídico precisa ser
escrito. '
que daí em diante está em causa. Õ desafio tem importância, garantidamente
t * ,
EstaS sugestões, que provêm da prática, traduzem a necessidade de or . % "p

- . a acreditar em Robert Castel, que concluía sua magistral “Crónica do assalá -


denar o magma relacional com palavras que definam ós lugares e atribuam
es - ^

riado” com a idéia de que, em definitivo, é o direito que assegura ao trabalho


tatutos; promessas se deixam adivinhar que, para fazer o teste do questiona
mento, não pretendem menos criar o longo prazo, ó único suscetível a instituir ) -'
*
- ^ valor e dignidade.150 Esta realidade já era observada sob o Antigo Regime,, que '
e indigno peja consagração jurí-
T •* t*
D
o humano. Recusando debuçar unicamente sòbre a vida privada, ção entre trabalho digno
*
. fazia passar a distin
separando se
do tempo de gestão de um direito de especialistas e da “paz sem princí ”,
- Y

dica: de um lado os “ jurados”, ou seja, as profissões “regradas”, de outro o tra-


• ^ *
,
pio que V $
balho bruto, sem qualidade, reservado “aos pobres e miseráveis”. À história
151
ele tenta impor, homens e mulheres experimentam, assim, fragmentos
de ins-
da conquista das relações sociais pela classe operá ria irá confirmá-lo em segui-
i

tituição que ilustram, uma vez mais a vontade de atração ao estado de nature
* - V. * da:é a mediaçã o, jurídica que arrasta o trabalho para o reino exclusivo do mer-
za, ao medo e à solidão, que é p quinhão dós indivíduos desfiliados.148 *

^ cado e somente ao face a face contratual.


4
\ .
\
*
, Assim, a lei de 1910 sobre as aposentadorias operárias e , campesinas
:
/

* . - - * /
*

TRABALHO: A EXCLUSãO OU O INDIVíDUO DESFILIADO *


pela primeir vez* ela consagra
«
a idéia de que uma parte do salário escapa à or -
,
r
S
\
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••r
~ r •
^
dem do mercado e remunera outra coisa algo , i

diferente da prestaçã o realizada


*
.
*

Um salário para a seguridade é descontado, o qual, por acréscimo, visa um ris-


4

-
W » .
Sinal dos tempos: às margens do lago Léman, em Genebra, a OMC (Or .
|

- s
,
ganização MundiaLdo Com ércio ) Instalou-se nos antigos locais da OIT (Orga co social que ultrapassa a relação de contrato, para falar propriamente, já que
nização Internacional do Trabalho): a lei de bronze do capital
- ^
:i «

aposentadoria que só. ocorrerá depois do per íodo de atividade.


garante uma
mundializado
transtorna as proteções do trabalho e suas organizações coletivas, suspeitas,
V; * < - ,
' Um longo prazo é considerado e assinala a dignidade do trabalhadòr reencon
*
-
trada. Logo, tais proteções e estenderão a outros riscos sociais e seu regime irá
if
comõ as corporações de ontem> de entravar a eficácia económica. Certamente,
o trabalho não desapareceu, e ainda se rarifica; o que se deteriora é o
estatuto
' . tf
t ^
tornar-se m útuo. Uma ordem pública de proteção irá interferir doravante com "
v
que o iústituía, o regime jurídico protetor qué transcendia a simples rela
ção in- *

dividual de contrato. “Esta deterioração do estatuto”, escreve Alain Supiot,


*
er
I
1

149 SUPIOT, A Le travail er .


í perspectives: une introduction In; Le Travail í perspecti-
r

ves Sous la direction de A Supiot. Paris: LGDJ, 1998. p 1. *


. . * .
.
t

148 TH ÉRY, I. Vie prívéejet monde commun. Réflexion sur fenlisement gestionnaire
4
150 CASTEL, R. Travail et utilité au monde. In: Le Trayail en perspectives Saús
la direc -
du droit. Le Débat, n. 85, p. 137 et seq., mai/aôút 1995 tion de A Supiot . .
Paris: LGDJ , 1998 p 15'
et seq. .. i
j #

. 151 Ibid., p, 17 . l
\

V \
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1

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368 «

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369
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% 11

Capítulo 4
. .
* 4

• V‘> Questióná mento Desligar o futuro

$j
* %
4
* i
t 1
4

o contrato privado de trabalho, ao-passo que a autonomia do empregador e do .


mente na aparência: ao legalizar-se, o trabalho é liberado de suas principais,
,
.
S

trabalhador passará pela mediação de seus respectivos coletivos, 152


coerções: exploração material, sem dúvida, mas sobretudo, sujeição pessoal . ^
4« * , s i

O “estatuto” do trabalhador se entende como .um conjunto de direitos


A
i

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r '
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e deveres independentemente da vontade da pessoa: pela lei ou pelas conven-
*
t • i
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Do estatuto ao contrato .\ v
1

' '

1

í» .
ções coletivas, por exemplo Como o estado das pessoas, ele é uma construção
*
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social “indisponível* remetendo ao Estado ou ao coletivo, que é seu arquiteto . %2
.
A
r \

Estas proposições devem ser, contudo, precisadas Ao invocar .a media- J ÍS


«
\
' „*

ção jurídica, ão visamos essencialmente as proteções concretas desde entã o !3


m . -
Longe de sujeitar, este dado libera etimologicamente “estatuto” remete aliás/
^ a statusy particípio passado do verbo latino stare, e designa “o^ que foi coloca-
i / N
A

garantidas pela lei: ou antes, esta melhoria das condições de vida do tràbalha-
dor, essas garantias novas, devem ser entendidas como a consequê ncia de uma
i %
dò em posição de se manter de pé” 15? O estatuto é o estado do homem ereto,
- 4 »
incidência m is fundamental da consagração jurídica. O que junta o estatuto
*

. K .
libertado da precariedade do imediato Ao garahtir este estatuto a um núme-
^
jurídico à rélação bruta de trabalho é, de fato, algo como o acesso ao espaço ro cada vez maior de beneficiários, o Estado social edificou progressivamente
público que, 'precisamente, confere dignidade e utilidade social o trabalha- uma “sociedade salarial”,154 feita de homens e mulheres em pé, em estado de ,
. ^ dirigir razoavelmente *seu futuro .
dor Como se este^trabalho adquirisse, daí em diante, uma utilidade geral e um
*i vy i

Ê esta socíedàde salarial que hoje é agitada pela desrêgulação do mer- /


estatuto p ú blico, além da realidade prática da, tarefa efetuada, dás particulari-
dades da profissão exercida, ou da utilidade doméstica que ele representa, por - *

J
cadó de trabalho, que acarreta novas coerções pela competiçã o mur ídializada.
-. . *
Progressivamente deciiplicam-se os laços pacientemente tecidos entre traba-
«
.
outro lado Assim “reconhecido”, o trabalhador tòrna-se sujeito de direito,
j

lho e proteçã o social; a trajetória se inverteu: do coiítrato qúe conduzia ao em -


dono de um esíatuto, geral e abstrato, que o inscreve num coletivo cujo lugar - g
prego, e do emprego ao estatuto. Uma vulnerabilidade nòva aparece, entqo,
*
»

^
social está consagrado, ób a égide da lei e de sua ordem p ública protetora, p > '
trabalhador pode doravante circular num território abstrato e jurídico, que o
4
.
H
* cujos signos abundam. O desemprego maciço e duradouro, sem dúvida, cujos
' numeros são bastante conhecidos. Mas além deste sintoma ( do qual a exclu-
,

-
livfa das coerções pessoais e das sujeições locais . . ' são é a forma mais críticaj, é sobre a precarização generalizada do trabalho
• ' *

O paralelo com a relaçã o faniiliar se impõe. Nos dois casos relação de V ojd
^ - * que RoberkCastèl chama a aten ção, pois é ela que alimenta a vulnerabilidade
* s

-
tlabalho, reláção familiar existe uma relação ,empírica que se faz valer em sua í- S
'

social e produz, no final do percurso, o desemprego e a exclusão Revelador .


evidência material, biológica, afetiva, económica: é o êstado de natureza das H
'

desta precarização é, por exemplo, a regressão constante dos contratos de tra-^


**

relações humanas imediatas, consideradas em estado bruto: rela ções ora


< i

opressivas, ora se fundindo, mas sempre precárias e, nos dois casos, é a inseri-
< \,
•» !
-
balho de duração indeterminada: dizendo respeito - a 80% da população atiya
. em 1975, caíram para 65% hoje. Este fenômeno acentua-se mais, se conside -
ção num estatuto jurídico qúe lhes confere proteção, mas principalmente uma
significação social ou cultural geral - um lugar na constelação social, um pa rarmos'os contratos novos ao invés do n úmero total de contratos: neste caso, ^
^
. - i
*

. í percebe-se que mais de 2/3 dos contratos anuais são feitos de âcordo com for-
« a

" pel que transcende o simples cara a cara interindividual. Ao se juridicizar, are - mas ditas “atípicas”: contratos com duração indeterminada, mterinos, traba-
/

- 1
lação se inscreve, daí em diante, éob o regime de um terceiro, o terceiro que
' 9

lho em tempo parcial e todas as formas de “empregos assistenc.íais”, ou seja,


*

triangula os litígios e que faz lei, e assim,1 libera os indivíduos da dependência . *


,
>
*
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/
-
pessoal do empregador, do esposo, ou do pai Isto, portanto, é pâradoxal so- i. »
i

i
*
\

153 SUPIOT, A, Critique díCdroit du travail Paris: PUF, -1594. p. 33.


4

.
A

154 PASTEL, R. Les. Métamorphoses de la question sociale Paris: Fayard, 1995. p. 323
r ’
152 SUPÍof, Á. Critique du droit du travail Paris; PUF, 1994. p. 33, 139 et seq. v

* i V
V .
etseq. - H

I
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370 I
*

371
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1 V

Capitulo 4 V
.
Questiotiamento Desligar o futuro .
V
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< i -
f

.
l

sustentados pelos poderes públicos no quadro de sua luta contta o desempre- zação dos empregos e, assim, uma fonte de realização para os trabalhadores
.
go ( Bicos, estágios, atividades de integração.. ).155
Este ponto é incontestável, mas fará apenas cavar as desigualdades entre os
Correspondendo aòs imperativos económicos de “gestão de fluxo tenso”
privilegiados, que já são capazes de se assumir como indivíduos e de construir
e de adaptação imediata às áleas do mercado, uma “flexibilidade” nova do em -
para si um futuro, e de todos os outros cuja perda destas ultimas ligações irá
prego traduz o ajuste exigido do trabalhador às coerções de slia tarefa, como nas
antigas formas de contrato. Menos suscetível a exercer, ainda,' uma função inte-
fragilizar ainda mais. Mas, talvez, dirão que os contratos de integração pro

-
» postos só têm de contrato o nome, e que basta, definitivamente, manifestar
grat íva, a empresa não parece mais capaz’de instituir a durabilidade dq empre-
um pouco de boa vontade para se ver reconhecer o estágio ou o trabalhb de-
go. A onda de choque parte do centro (o quadro superior, que do dia para a noi-
te pode perder seu emprego) e se difunde, por círculos sucessivos, até à perife- -
sejado. Sem dúvida; mas, então, perfila se o risco, já evocado, de moralização
do acesso ao trabalho ou à assistência social, apenas aos desfiliàdos meritórios,
ria (os que denominamos doravante os “excluídos” ) - de um pólo a outro da ca- •assim como aos bons pobres de outrora”, se forem levados emi conta.
155 E é as-
deia ameaça, daqui para frente, a “desfiliação” ou desligamento progressivo .dos *
“ '
1

sim que se reconstitui o clássiéo par eficácia /caridàde, que o acesso ao" direito
estatutos. Entre os dois extremos (o quadro ameaçado e o excluído duradouro),
*

. multiplicam-se as situações de “tràbalho aleatório” - as da maioria dos desem abstrato, em geral, tinha precisamente, como mérito, recusá-lo.

pregados ou ex-desempregados,colocados em trajetórias serrantes, feitas de al-


-
.
ternância de emprego e de não emprego Situação de “interinidade permanen-
O contrato de atividade
te”, feita de virações e “bicos”, e de incerteza sobre o amanhã, que é, segundo as r
t
estatísticas sociais disponíveis, cada vez mais, a dos jovens que tentam com mais
ott menos sucesso chegar ao mercado de trabalho. Compreèndé-se que sob es
i» Não é írienos certo que as mutações em causa são provavelmenteirrever-
tas condições dificilmente o trabalho pode representar, para camadas cada vez
^ r

síveis: os estatutos se gastam, os coletivos se dissolvem, os ritmos de trabalho se


mais amplas da população, um fator de integração social e uma condição de v particularizam - é preciso assumir o declínio da sociedade salarial e imaginar
identidade; no m áximo gera uma “cultura do' aleatório” sob ameaça de uma outras formas de coesão social, enquanto se aguarda 0 momento em que o tra-
„ balho não representará mais a principal fonte de segurança da existência e do
queda ainda pior, aquela que toca os desempregados de longo prazo, relegados }

estatuto social.159 Ainda aqui, a solução passa por uma articuláçãò dialética de *
em posição de excedentes numa espécie de no man's land social 154 . N
* duas temporalidades opostas: aquela fleixível*que demanda a permanente^adap -
Sem d úvida, o Estado multiplica os esforços de inclusão; mas, vimos
que tais dispositivos, como o RMI, originariamente concebidos como sólu-, tação económica, e a outra mais estável, implicada pela necessidade de proteção
ções de urgência e na expectativa da retomada económica, tornaram-se pro- / social. Para uns, que se beneficianfde umá seguridade de fato óu de qualquer
t

gressivamente mecanismos duradouros, condenando seus beneficiários a um outra renda de situação, é preciso fornecer estímulos à adaptação; para os ou-
estado de “inseridos na vida”, entre exclusão é inclusão real.157 . / tros, que arriscam e se estabelecem, é preciso garantir segurança e apoio da so-
„ ciedade.160 A proposta de “contrato de atividade” apresentada num relatório re- .
*
t
Sem d úvida;é preciso aihda reconhecer que a flexibilidade pode signi- * y

, ficar tamb ém uma flexibilizaçãó das coerções ^do trabalho, uma modificação çente pelo Comissariado geral junto ao Plçno inscreve-se nesta perspectiva: se-
-
1 \
cultural qqe pode ser sinónimo de mobilidade, de criatividade, de personali
1 \
r .
.
-
158 CASTEL, R les M étamorphoses de la,question sociále. Paris: Fayard, 1995 p 471
159 Quanto à. questão do valor "relativo” do traljãlho, tf MEDA, Une mise en perspecti
.. .
-
.
155 CASTEL, R. Les Métamorphoses de la question sociále Paris: Fayard, 1995 p. 400.
. ,. . .
ve de la valéur travail Revue Internationale du trdvail v 135, n 6, p 693 et seq., 1996.
.
. .
156 Ibid , p 411-412. 1
'
- . .
160 EOUCAULD, J -B. de Société post-industrielle et sécurité économique, In: le Tra -.
157 Ibid., p. 432-433. . . . .
vatl en perspectives Sous la direction de A Supiot Paris: LGDJ, 1998 p 583 et seq ..

372
373
* <
* \ f f
4
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\
Capítulo 4 t
* Questionamento.Desligar o faturo .
* i1 >• *
»
í •* i J
r
•• *

-
*
ria o caso de ligar a toda forma de atividade útil à sociedade; um conjunto de di-* I*

do, a .comunidade, o processo. Podemos tratá-los como “tipos ideais” mo sen


. *

reitos equivalentes*;quer se tratasse de voluntariado, de formação, de trabalho


independente ou de trabalho assalariado.161 Assim, a incidência das descontinui-
* * 4
- *


\ jj
t
tido em que Max Weber os utilizava: como reconstruções conceituais de uma
realidade múltipla e evolutiva, que podemos esacelerar à vontade c que se
^
>
dades de carreiras que se multiplicam átualmente seria atenuada, até mesmo va-
lorizada
na' medida em ,que oferecesse oportunidade para cada um segtiir uma
i •
.
emaranham no seu campo O modelo do mercado traduz, por excelência, o
„ tempo subdetermin àdo do questionamento. Valorizando a incerteza por ela
m
s •
forma ção ou entregar-se a esta ou aquela atividade útil, ainda que não assalaria-
* •p

mesma, o mercado desqúalifica qualquer política teleológica centrada ria rea-


*
>
vl
da. Quanto ao trabalho assalariado propriaménte dito recurso raro? tondicio-
*1

* * lização de um futuro desejado. Desqualificando, da mesma forma, a experiên


- -
-
* *

riando ainda de modo dominante o acesso à cidadania resta dividi-lo com mais
• r

equidade162 e harmonizar suas temporalidades cada vez mais discordantes.163 " 1


’ m sy
cia do passado, está completamente indexada ao kairó ò instante em detri >
- f

mento de KfonoSy a duração. Este modelo -seria anômico se, na realidade, n ão


A explosão do ‘modelo familiar clássico levava a( inventar a pluriparen-
! talidade e a pôr em concordância o tempo aleatório do laço conjugal com o
*<
V'
- vrepousasse sobre fortes coerções raramente explicitadas .
tempo incondicional da.filiação. Aqui, do mesmo modo, a explosão do mode- .
\ „
Ao contrário;omodelo da comunidade valoriza a dependência ao gru -
^^ -
* ••
*
A > »*

lo salarial clássico nos leva a pensar as condições da pluriatividade e a colocar V po de origem, que confere aos indivíduos simultaneamente uma identidade e
• um destina Fora desta comunidade as obrigações políticas se relaxam e os va-
k

èm concordância a flexibilidade do trabalho com a necessária estabilidade das


proteções. Ò acerto das fórmulas"de compromissos é .questão de imaginaçãp . .lores morais se diluem. Apenas o tempo sobredeterminado desta histdria co -
• A •
institucional, que nunca falta qu ndó se manifesta a vontade política de criar ^ \ >
mú m é suscetível a desfigurar um futuro portador de sentido. \

'sociedade. Mas, precisamente aquele compromisso “criar sociedade”-, será ^ - Entre estes dois modelos, o processo (formação processual da vontade
pública, ética, comunicacional) pretende traçar uma terceira via, atribuída às
i

que temos a desejo de assumi-lo? Eis que nossa enquete ressalta ainda uma vez f

mudanças de paradigma da racionalidade contemporânea. Mas, de uma ver-


-
mais; de ta vez no plano dos cenários do futuro, em modelos globais de socie
^
dade, que a nós se apresentam . r
- ?
*

1
)
; ^
*
, são a outra do modelo, e às vezes sob á pena dè um mesmo autor (assim Ha- -
.
s *
*
>
\
*

bermas, portarbandeira deste paradigma), as oscilações são frequentes entre a


rejeição de tçdò a* priori substancial e a dívida reconhecida em relação aos
*
*

' O MERCADO, A COMUNIDADE , O PROCESSO: ’ '


ideais emancipadores da modernidade. Mostraremos ç jue apenas esta última
' • versão escapa à ação desínstituinte do mercado e representa uma via possível
TRÊS CENÁRIOS DO FUTURO . *
»
c

de articulação do tempo das promessas e do"tempo dos questionamentos .


•\
. V
t

No que se refere a cenáriós de futuro, três mddelos*se apresentam com *


>
f A
% \

a ambição de fornecer uma grade de leitura global da situação atual: o rherca- '
.
4
V i
• O TEMPO SUBDETERMINÀDO DO MERCADO
> , '
I

>

161 Le Travail dans vingt ans, Rapport du ,Commi$sariat général au Plan. Paris: O. Ja-
*

cob, 1995; cf. igualmente GAUDU, F. Travail et activité. In: Le Travail en perspecti - Com o mercado, a desinstituição é explicitaniente erigida como proje-
*
*

>

ves. Sous la direction de A. Supíot. Paris: LGDJ, 1998. p. 597. N


[ to político; a desregulação que o acompanha faz dele umà figura arquetípica
^

. 162 Para uma bibliografia relativa a esta questão, cf. CÁSTEL, R. Les Métamorphóses de v A
*

do tempo do questionamento. O tempo do mercado é a ocasião propícia to -


la questiott sociale . Paris: Fayard, 1995. p. 453Lnotas 1 e 2. *

163 SUPIOT, Á. Temps de travail: pour une concordarice des temps. Droit social n. 12,
mada pelo investidor, pechincha de que se aproveita Q consumidor ou o pro -
p. 947 et seq. , déc. 1995. dutor racional, a conjuntura favorável esperada pelo observador atento das
¥

I
. .
transaçõ es O mercado é a indeterminação do.futuro Valorizado por ela mes-
N

x *
374
375
\
Cqpltuló 4 Quest
*
.
íonattjento Desligar o futuro.'
v <
*
^
M!
v pelo FMIV„ o Banco Mundial, que assumem Hoje o lugar de instâ ncias de go- -
i ^
ma, a-abertura necessária para o jogo económico, o espaço de desenvolvimen -
i


Í r
*
\ ’ * * +

to das estratégias lucratiyas do homo economicus. . s


i
verno mundial.
Este modelo triunfa por toda a parte atualmente: associado a certos tf a- : r í Que temporalidade seria associáda ao modelo do mercado? Que cená-
ços democráticos (pafa formar a “democracia de mercado”) e nutrindo o qué, , rio do futuro deriva dele? A leitura de Hayek, pensador do neoliberalismo, e à,
às vezes, denominamos “pensamento ú nico”, ele se traduz.por uma real trans-
ferência do poder.normativo dos Estados para os atores económicos mais po- ;/ J
$ ^ análfse de um projeto de Convenção mundial sobre os investimentos, ofere- .
cem um começo de resposta a estas questões. Dele se destacam um tempo
_ -
derosos. Segundo, o axioma fundamental da teoria económica neoclássica * v subdeterminado, descompromissado, entregue unicamente à vontade do ims
(dita “teoria Standard”) que o inspira, o mercado livre, e a concorrência per- * tante: o tempo de uma sociedade conduzida às dimensões de um / mercado.
* , * *.
feita que deveria poder aí sç desenvolver, permitindo garantir os hielhores y 'A•* i
*
*

equilíbrios económicos possíveis: o maior crescimento das riquezas e a mais..;/


Vi
. . Os rélógios do tempo
#
' '
equitativa divisão destas Por acréscimo, este modelo, elevado ao n íyel de úma*’j df
a (
r
/
j
“espécie de direito natural e.conómico”, torna potencialr
íiente inútil qualquerr xSi
’ oqtra forma de regulação: nele coincide.o fato e o direito, a pulsão que levâ lt
* h
t
í
9
' Para von Hayek, Prémio Nobel de Economia, o mercado representou ; ,
> cada um a maximizar seu ter e o direito de perseguir um tal objetivo conside- v > um progresso decisivo na história da humanidade: a ordem expontânea por
rado natural As regras que regem o mercadò e garantem a concorf ência são,; *.ú*
. . ele consagrada permitiu, de fato, universalizar a cooperação entre os homens,
f
V n i

abrindo caminho para uma sociedade verdadeirameiite livre, a Grande So-


*

pois, aqui apresentadas como as regras naturais da vida social, sendo qualquer ^ '
.

outra regulação considerada potencialmente parasitária 164 .
Este paradigma neoliberal acarreta a redefinição, para baixo, das fun-

^

briedade” (GreatSociety), que transforma potencialmente qualquer inimigo em
.
amigo 165 A Grande Sociedade, ou sociedade aberta, opõe se à sociedade tribal
apresentada como um grupo fechado (à qual regressa o socialismo) governa
-
-
ções do Estado ( que idealmente nã o deveria buscar outro objetivo político
^
*
^ ndo pelas emoções, grupo em cujo seio a solidariedade é posta e onde prevale-
além da proteção do livre jogo do mercado) e o desmantelamento progrès
sivo das proteções do social, ao mesmo tempo que se faz acompanhar
- .
ce uma forte hierarquia de valores comuils 166 A sociedade de mercado, ao con -
Estaco trário, não busca nenhum fim determinado; pluralista, abstrata, ela permite a
^
*

de, um pbderoso movimento de mundializaçao das. economias com estímu '


lo para as empresas transnacioriais que estão hoje em dia em condições dév ^
- 'V .
cada um perseguir sua própria concepção de yida boa Suas regras resultam de
\
,
disposições abstratas gerais ( os mecanismos jurídicos, a propriedade, o con- s
impor as regras do jogo que lhes convém, prilicipalmente a •supressão dosy
1
7

trato) que se precavérii de qualquer “comando específico”, que nã o deixaria de


.
entraves à circulação dos bens, dos serviços è dos capitais Por sua vez, arras- . Ç -perturbar o jogo económico, “como se”, explica.Hayek, “girássemos os ponfei -
tados para este jogo, os Estados reinvèstem o que lhes resta de soberania nas j .
* •
ros de uni relógio com a mão” 167
vias abertas por esta nova ordem das coisas: pensemos, por exemplo, na Mas, então, perguntaremos, de acordo com que lógica se regulam os re -
, construção européia, nova ordem jurídica construída explicltamente sobre
lógios do mercado? Resposta: uma lógica aleatória e imprevisível, a qual é pre-
“um grande mercado”, mais que sobre um projeto político (ou cujo projeto
político se convencionou se seguir e derivar do “mercado ú nico” ), ou ainda,
i•
^
:J
I '

ciso adaptar-se a toda hota, e que seria tão inú til quanto nefasto querer orien

*
-
as políticas ultraliberais inspiradas aos países em via de desenvolvimento 'i
)

* 165
1976. t. II, p. 108.
X *
-
HAYEK, F. vón. La\v, Législation and Liberty. London: Routledge and Kegan Paul,

164 - FRYDMÀN, B. Les transformat í ons ãu droit tnodeme, Rapport établi à la demande 166 Ibid., p. 133.
de la Fondation Roí Baudouin. Bruxelles, 1998. p. 41 et seq. 167 Ibid., p. 108, 128.
4
l

. 376 377 '


* A! ríÀ * è

Capítulo 4 *
I
.
Qucstionauiento Desligar o futuro*
*
4

A
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i
i

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V v m
* / \
V
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i / /
\ *

. Os dois pesos, duas medidas da AMI


l 4 %
A

tarou forçar Este tempo- é circunstancial, este universo é conjujitural - não


requer outra atitude além da adaptação tão rápida e coerente quanto pòssível. 4

Quando, incessantemente, as cartas são distribuídas, a experiência do passado


J Discutido sob maior segredo no seio da OCDE (Organização de Coo- ,
- peração -e de Desenvolvimento Económico) desde 1995, este tratado, que rea-
i

não têm, de fato, nenhuma utilidade 0‘ela nada nos ensina sobre o que é apro

^^
*
priado fazer hoje”), do mesmo modo que as programações a longo prazo, que grupa os ‘29 países mais ricos do planeta e que se'apresenta como para “pegar
y »* só teriam como resultado paralisar a ação.168 ou largar” pelos outrós, deveria representar “a Constituição de uma economia
*
O passado, contudo, não deixa de incidir sobre o jogo económico, des - mundial unificada” nas palavras de Renato Ruggiero, diretor geral da QMC
de que tem permitido aos mais previdentes capitalizar uma poupança que lhes (Organização Mundial do Comércio).172 Curiosa Constituição, na verdade, cu-
i

.
garanta hoje uma posição de força Hayek concordai “é verdade que um síste - jas cláusulas são > negociadas de maneira unilateral e secreta (foi um movimen- -
l
i

y
r*
M


ma deste'tipo dá aos que já têm* “é mais seu mérito que sua fraqueza”, acres- i
centa,169 En\ contrapartida, as discriminações .pqsitivas, que visam, como se
'
^ , to de consumidores americanos que
- , alertado por uma indiscrição, difundiu o
texto de 190 páginas pela Internet), e cujo objeto é concentrar todos os direi-
sabe, atribuir um "hattd capv aos membros de um grupo, vítimas" de uma disr tos no chefe dos investidores, todos os deveres sobre a cabeça dos Estados.
4
eliminação histórica, não são, de acordo com ele, incompatíveis com a neu
tralidade do mercado;!<sera preferível aceitar a situação atual como o fruto de /'j
- Prosseguindo o movimento geral de liberalização dps mercados, trata-se desv-
ta vez de atacar o último* setor onde áinda são exercidas as soberanias estatais:
um acidente”, escreve nosso autor, tce abster-se de qualquer medida visando
% **• aregulamentação dos investimentos. Não contente em prever a igualdade ab-
beneficiarindivíduos ou grupos particulares”»170 ‘
^& soluta fie tratamento entre investidores nacionais e estrangeiros (o que signi-

^
Quanto ao futuro, seU m érito principal é sua própria indeterminação.
fica, porexemplo, nivelar camponeses latino-americanos aos quais seriam re-
-
Querer prevê-lo, a fortiori orientá lo é o cúmulo da ubris : um progresso
“ ” distribuídas terras* euma multí-nacional de agro-alimentação), o Tratado em
'
guiado não é um progresso, apenas a evolução espontânea do mercado livre
pode dar à luz o melhor 171 .
- \
X

projeto prevê, principalménte, uma “proteção e uma segurança completas e


*

'

Hayèk, percebemos issò, nega ao Estado o direito.de acertar os relógios,


£ « constantes” dos investimentos operadoè. K

Está claro qUe a adoçãoTdesta Convenção teria significado que os ope-


r
fr - r

{
à hora, e de instituir ,o tempo social através de intervenções voluntaristas.
Cabe apenas à “mão invisível”,, de que falava A. Smith, dar corda nos relógios /
Hjj
jd
radores privados veriam reconhecer a si o direito absoluto de se levar adqui
:
-
.
sociais e regular o tempo coletivo Não nos separamos, contudo) da id rentes de qualquer coisa - terrenos, recursos naturais* serviços culturaisvsiste
éia de
que “há um 'truque”, e que à espontaneidade propalada do mecanismo oculta -
nias de telecomunicação e divisas sem que os^Estados respectivos pudessem

^
?

i
sequer subordinar tais investimentos a esta ou àquela obrigação de resultado
bastante mal uma normatividade bem real, e um tempo muito mais.determi
nado do que parece. A leitura do projeto de tratado multilateral sobre o inves
L

- l

n
r

(engajar uma determinada porcentagem de trabalhadores nacionais, reciclar


- os dejetos produzidos, contribuir para programas de formação...). Numerosas
timento (AMI), hoje felizmejite abandonado, pelo menos em sua forma atual, \
$ ' clá usulas preveem , por acréscimo, a indenização
das empresas em caso de in -
deveria *nos convencer disso." ri 4 ,

tervenções governamentàis, suscetíveis de restringir sua capacidade de lucrar


* » 4

/
< 8

*
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V\
t* com seu ilívestimento; Assimilando a expropriações qualquer medida com -
.
.168 HAYEK, F. von. Law, Législation ahd Liberty London: Routledge and Kegan Paul,
#

1976. p. 121.
I
prometedora da rentabilidade do investimento, a AMI deveria permitir que se
*
169 Ibid., p, 123 . 4

\ V *
F
*
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v

J.72 Apud WALLACH, L. M. Le nouveau manifeste du capitalisme mondial. Le Monde


r

170 lbid., p. 131.


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s
* * \

.
\

diplomatiquey p. 22, févr. 1998.


% i

171 Ibid., p. 169 r

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1
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378
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379
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4
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Capítulo 4 i
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Questionamento Desligar o futuro.
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contestasse mais ou menos qualquer política do meio ambiente, fiscal qu so- Íl


à sociedade; ao contrário, é dela que ele recebe os recursos para sua identida-
«

de, é nela que ele extrai suas faculdades de ação. Por sua vêz, esta comunida -
4

cial Sinal dos tempos: as empresas poderão representar os Estados diante das
jurisdições arbitrais transnacionais... Uma vez privados do direito de impor de não é a construção abstrata resultante das cláusulas racionais de um con-
sua regulamentação nacional, os Estados iriam se ver também despojados, trato'social deliberado; ela é, ela mesma, o, produto da história, ,o reflexo dos
\
ademais, do seu tradicional privilégio de júrisdição : . %
costumes e dòs valores dó povo. Cada uma de suas instituições (direito,'lín •
'
-
Enfim, esta questão:, o tempo da AMI seria aquele, espontâ neo e neu- gua, cultura...) é simultaneamente o fruto dessa tradição e o meib necessá rio
para sua constante revitalização.
V
tro, que Hayek associava aos relógios do mjícado? Julguemos: de um lado, a
rentabilidade do capital, esta deve sena mais rápida possível, comprometen- É fácil, no contexto de liberalismo ambiente, caricaturar esta posição
t
, do-se os Estados a que "todos os pagamentos relatívqs ao investimento rea-
T
còmunitarista; a história recente, é .verdade, oferece alguns sinistros exem -
k lizado em seu território sejáni livremente transferidos sem demora para seu , \ plos de desvio aos quais ela se expõe. Lembramo-nos de que Hayek escarne -
-
*

território oji fora deste”; de outro lado, o comprometimento dos Estados, \ cia dela ao falar de “sociedade tribal”; fechada, gúiada pela emoção, ela con
este, ao contrário, deve ser garantido alonguíssimo prazo; é previsto de fato, taria a si todo acesso ao universal modçrno. Em sua forma regressiva, a co-
'

* munidade se debru ça, de fato," sobre suas particularidades históricas ou na-


què só ao fim de um período de cinco anos é .que um Estado possa manifes
-
tar seu desejo de se retirar do mecanismo do trafado e neste caso, ele terá
- • N '
turais, ao preço, às vezes, da" exclusão violenta de tudo o que se diferencie
que, esperar ainda quinze anos (sic) para poder modificar o regime dos in - dela: a nação, então, e pensada em termos de uma comunidade natural, o
«
povo é definido com ,a ajuda de critérios raciais ou de privilégios histórico ,
)

vestimentos existentes na data da manifestação dá vontade de retirada Tra- . V,


^
ta-se perfeitamente de uma "seguran ça completa e constante” dos investi- as identidades não cedem mais lugar às diferenças, e o integrismo ( culto da
mento , que se coloca sob o título de uma das duas regras ^fundamentais do “inteireza”) prevalece. Geralmente estas regressões comunitárias traduzem -
^
tratadò; acreditaríamos reconhecer Hó bbes e a "segurança perpétua”? de que
.
o Leviatã estava destinado a garantir * O rèlógio dq mercàdó parece, então,
n

se por uma saída do tempo histórico: ora mergulha-se num passado fanta-
sista, (fundamentalismoS religiosos), ora projetamo-nos num futuro imagi-
comportar "dois pesos e duas medidas”. Não é verdadeiramente para todo .
nário ( o“Reich de mil anos”, a Grandé Noite ..), tantas recusas do tempo real
.
mundo querele é incerto e subdeterminado Duvida-se, sob estas condições, *
feito de cohtinuidades e de ruptUras. Particularidade sem exterior, a comu-
f
que este’ primeiro cenário de futuro possa permitir qué se construa, dura- , nidade regressiva torna-se, então, holista: pensando-se de chofre como a ú ni -
1

douramente, sociedade. * ca totalidade significativa, ela se pro


,
íbe ò acesso à alteridade e, assim, tam -
bém à universalidade.
c *

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4

i
%
: Mas o modelo comunitário não é, longe disso, necessariamente predes -
O TEMPO SOBREDETERMINADO DA COMUNIDADE -
J
tinado a estes desvios regressivos. É perfeitamente compatível com uma con-
\
*
t *
X cepção pluralista das comiinidades e uma tensão para o universal; ele pode
' o tempo comunitário, em contrapartida,.é sobredeterminado. Enraiza- provar ser a melhor garantia dos direitos ( principalmente culturais) das mi
¥

do no passadç, pensado , Como tradição, projetado no futuro, pensado cómo norias; o “patriotismo republicano” ou “constitucional” pode achar fálta dis -
-
i

missão histórica, ele assume a forma de um destino, isso significa que ele dr- so. De resto, os autores que nos Estados.Unidos se ligam, com variações im
. . senvolve
\
4
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-
os indivíduos, conferindo lhes uma identidade e uma história.'O
T

portantes de um para outro, à corrente còmunitarista oposta à corrente libe -


-
%
I

tempo da comunidade é constitutivo: ele não é o quadro externo das frajetó- r ral ou libertária tem menos por vocação valorizar uma “comunidade em esta
„ * rias individuais, mas antes, sua força interna. Isso significa que, na perspecti- do puro”, inexistente no mundo contemporâneo pluricultural e dedicada ao
tempo da mudança, do que submeter a concepção liberal à crítica e acentuar
t

và còmunitarista, o indivíduo deixa de ser pensado como tendo preyalecendo


í
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*
380 381
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* Capítulo 4 * * Questionamento, Desligar o futuro.


i ^
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o que permanece nela de implícito comunitário.173 Se excetuarmos determina - abstratas, é ígualmente uma construção do espírito, uma ‘‘sociedade associai”

-

.
das posições, tais como as de À Maclntyre que sustenta que hão sè ppde ser
>
>
criada ex nihilp ou saída de uma montagem a histórica, como a “posição ori
mofai senão dentro de uma comunidade dada (“a ligação com minha comu - ginal sob ô véu da ignorância”, de Rawls, Apoiando-se apenasoia “coopera çã o
... -
nidade [ ] è um pré requisito para qualquer moral” ),174 o essencial da argu-
;

-
voluntária de seus membros” (e não na instituição inerente a uma história
mentação reside na iluminação das aporias e contradições das teses liberais. )

com partilhada), está sémpre prestes a se desfazer. É verdade, reconhecem os


A sociedadè liberal pretende ser uma sociedade justa, prècisamente na comunitaristas, que a sociedade contemporânea, composta por indivíduos
>
medida em que não pretende privilegiar' nenhum pròjeto político particular,* que se distanciam continuamente uns dos outros, segundo movimentos soli -
nenhuma forma de vida determinada; é a esse preço querela acredita poder ga- /
i
*
tários e aleatórios” trajetórias que os í
*
f sicos denominariam “browniahas” -
evoca de algpns lados o modelo liberal. É o que acontece com a sociedade
176
rantir a seus cidadãos a busca de seus objetivos próprios, num sistema que ga- *

i
i
rante a cada um uma soma igual de liberdades. É por isso que ela consagra a
^ americana, caracterizada por pelo menos quatro formas de precariedade: mo -
. prioridade dò justo sobre o bem: dito de outra forma, os princípios proces-
"
bilidade geográfica, social, matrimonial e política nela conjugam seus efeitos
suais de justiça qUe ela adota se querem livres de qualquer concepção substan -
s
.
/

para tornar “volátil” a vida das pessoas, e pouco compatíveis os relatos que pu -
.
cial.( “particular”) do bem comum 175 De resto, o indivíduo liberal é pensado dessem dela fazer .
sobre o mesma modelo: também ele é radicalmente autônomò, também ele f
Nada impede. Para além desses fatores centrífugos operam as lógicas
nunca se reduz aos fins particulares por ele buscados; ao contrário, ejle lhes de integração, mais fortes do .que parece: os desacordos exprimem -se de
preexiste e, pode, portanto, a qualquer momentp, livrar:se deles Ainda unia .
,
forma mutuamente compreensível em discussões que testemunha a exis -
vez, tanto,o indivíduo quanto a sociedade não são constituídos por nada de
11

K tência de la ços entre os protagonistas, e os conflitos não sã o a tal ponto exa


* >

-
prévio; nada os predetermina; são apenas, a cada instante, o produto de seu li- cerbados que pudessem impedir a prá tica da negociação e a elabora ção de
\
vre comprometimento . V compromissos.177 Por outro lado, as teorias liberais são, sem dúvida, mais
' Mas, sublinham comf azão pS Comunitaristás, um modeló còmo este e
/ comunitaristas que suas premissas: o “princípio de diferença” de Rawls, por
exemplo, é intèfpretado como um princípio de partilha que pressupõe um
!
tão insustentável quanto são inexistentes osindivíduos e as sociedades por ele
i visados. Este homem sem qualidade particular, sempre pronto a revisar suas laço moral pf évio à negocia ção contratual.^ Em suas obras posteriores
8 ,
r) ^
escolhas (de resto, porque teria já escolhido?), este sujeito “descompromissa-
i

Rawls assumirá, aliás, tudo oque o modelo abstrato de sua Teoria da Justi -
ça deve às instituições do Estado de direito moderno e à social democracia
i

do” é uma visão do espírito, um .cidadão de lugar nenhupu puro agente racio- '

*
nal de um modelo económico abstrato, autor imparcial de uma teòria moral r *
v
contemporânea 179
. x
0
desencarnada. Quanto â sociedade, que resulta da justaposição destas figuras <
P

*
176 WALZER, M. ta critique cojnmunautarienne du libéralisme. In: Libé raux ct com
r

-
*
173 WALZER, M. ta Critique communautarienne du libéralisme. In: Libéraux et com munautariens. Texteç réunis et présentés par A. Berten, P. da Silveira, H. Pourtois.
- H
Paris: PUF, 1997«. p. 319 et seq.
% *
munautariens.‘Textes réunis et présentés par A. Berten, P. da Silveira, H. Pourtois. c

r
Paris: PUF, 1997. p. 325.
174 MACINTYRE, À*. te patriotismè esf - il une vertu? In: Libé raux et communautariens.
A

'
177 Ibid., p. 322 1 seq.
^
178 SANDEL, M. La République procédurale et lé moi déseqgagé. In: Libé raux
sent par A Berten, P. da Silveira , H .
ct com
Pourtois.
-
Textes réunis et présentés par A. Berten, P. da Silveira, H. Pourtois. Paris: PUF, 1997. 7
munautariens . Textes réunis et pré és .
. p. 298. 4
Paris: PUF, 1997. p. 267.
V
175 SANDEL, M. La République procédurale et le moi désengagé. In: Libé raux et com- .
179 Cf. RAWLS, J Justice et dé mocratie. Paris: Seuil, 1993; para um comentário
desta
*
atenuação da doutrina de Rawls, cf. RICOEUR, P. Segundo Théorie de la justice

munautariens. Textes réunis et présehtés par A. Berten, Ç, da Silveira, H. Pourtois.
* < K

Paris: PUF, 1997. p. 256 et seq. de John Rawls. In: . Le Juste. Paris: Éditions Esprit , 1995 . p. 99 et seq.
% T
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X
r
i *
382
*
383
* i
V

Capítulo 4 i
. .
Questionamento Desliga?o futuro
*
i t

71
Um cómunitarismo moderno
s

nossas certezas, é que inicialmente houve questão sobre elas; se se trata de re -


r x s negociar nossas promessas, é que inicialmente elas foram formuladas. A des -


Se está provado, então, quê tanto o.“mercado livre” (ou è “concorrên- continuidade do kairós só se exerce sobre o fundo da continuidade de chronos
cia perfeita”) quanto a “comunidade pura” são inexistentes» a questão perti- ' ou, apxontrário, a continuidade de chronos só se retoma sobre as descontinui -
nente se reformula nestes termos - nós os tomaremos de empréstimo a Jean , -
.
dades de kairós A diferença (descontinuidade) passa para o ceiitro das identi -
Marc Ferry: como dar umá forma moderna ao comunitaiismo?180 Se não de- dades melhor garantidas; é dando prova 'da fidelidade a um éthos determina -
sejamos nem uma sociedade atomizada, nem uma comunidade fechada, do, da lqáldade para com as instituições de sua comunidade e da solidarieda -
v
; de para com seus membros, que se toma também consciência da alteridade
como fazer justiça às comunidades de comunicação reais que nos detérmi
nam sem nada ceder por isso, da aspiração moderna ao universal? Em nossa
- t . que os atravessa. E esta prova, mais que engendrar um universal abstrato, fão
linguagem: como pensar juntos, promessa e questionamento, ligação e aber-
r.
pouco significativo quanto uma singularidade holística, dá acesso a um “para
além” concreto da comunidade. O tempo processual seria o instrumento des-
tura do futuro?
' > - . ta dialética? *
A resposta passa, sem d úvida, por uma reformulação da ideia, moder-
^
na se o for, de liberdade. O ffacássó do modelo liberal é a aporia da liberdade i

“negativa*; aquela que se, determina exclusívamente pela ausência de


coerções
A AMBIGUIDADE ©O TEMPO PROCESSUAL
em um quadro normativo destinado apenas a garantir a igual liberdade de ou
. -
trem Um modelo deste tipo fracassa simultaneamente em pensar o indivíduo
(mônada isolada, encarna ção apenas da racionalidade estratégica dó agente
- Habermas atribuiu ao paradigma processual uma audiência pouco co -
que procura maximizar sua satisfação), e a á ocíedade ( pensada como a am - mum; epígonos ou críticos, muito numerosos, de fato, sãp os autores que con -
pliação do sujeito racional, desaceleração dos atores imparciais mais do que sideram que, nos tempos em que Q indecidível tem sentido, não há mais ra-
um espaço público d& confronto de pontos de Vista divefsos). Ao contrá rio, cionalidade senão processual e legitimidade senão negociada. Quando o,pas -
pensar em termos de “liberdades positivas* é fazer justiça ao,conte&tp históri- sado não tem mais autoridade e o futuro não mobiliza mais as energias, a fon -
co-social ( “comunitário”, comu nacional”), que simultaneamente limita e
- .
te do valor (validade) se concentra na troca presente Num sentido, contudo,
.
*

permite o exercício dà autoiíomia individual. Ê tomar cuidado (em termos estas afirmações são triviais; é, de fato, da natureza do direito, ser processual
normativos, “cuidar” ) das instituições políticas e das convenções sociais que Desde sempre, a essência do jurídico (se ainda se permite falar assim) é o pro
*
-
enquadram e nutrem as trajetórias particulares: um conjunto de normas que cesso, ou a troca regrada dos argumentos em vistá da produção do justo. Sem
dúvida, e esta é a parte de coerência da tese da processualização do direito, esta
~
formam a Constituição efetiva.do gnipo, recursos desentido que inspiram sua
concepção da liberdade.
- v
.
natureza delibératiVa ou comunicacional do direito é verificada hoje melhor
. -
v
Privada deste alicerce ( éthos, Sittíichkeit, dizia Hegel), a pretensão mo- do que no passado, quà ndo o jurídico pôde assumir formas autoritárias No .
derna à universalidade"recai no vazio e a Moràliiàt (exigência de uma moral l' extremo; o direito podia se anular no comando unilateral que extrema com a
„ - racional, objetiva, universal, tensão para um socius abstrato) é pura e simples: 4 violência pura ^ Mas, e no outro lado do espectro? Não se pressente que o di -
r
, mente.impensável. Se~.se tráta, segundo ò voto moderno, de reporem questão reito poderia, também, desaparecer ha dissolução de qualquer marco norma -
-<
v

>
tivo, no jogo puramente imanente da negociaçã o privada de início, no presen -
*
te intempestivo de uma comunicação sem outro horizonte senão ela mesma?
180 FERRY, J.-M. Une idée moderne de la “Communauté” Linéaments d’un “commu-
.
. .
Jiautarisme méthodoltígique” In::La ^ Démocratie continue Sous la direction de D \ A “processualização” do regime internacional dos investimentos não nos ofe -
Roússeau. Paris: IGDJ, 1995. p 112 et seq-
. . receria um exemplo bastante real desta passagem, no limite? #
m

384 385
V * .
Quçstiottamento Desligar o futuro,
Capitulo 4

v
* K Paradigma dominante da filosofia política e jurídica contemporânea, a »« rio da razão que é posta sob suspeita. A “virada linguística” apoia doravante
processualizaçãó deverá explicai'sua relação com os dois riscos entre os quais esta conclusão que forinaliza a “pragmática universal”:o sentido dos enuncia -
.
se desenvolve Quanto à sua atitude em relação às posições de autoridade, das dos não parece mais tão obvio, nos quais não se $abe qual verdade a priori em
formas adquiridas de legitimidade ou de qualquer outro resíduo de tradição, um modelo ilusório a ser construído; elè resultaJtic et nunc de nossas conven -
ções linguageirasrDito de outro modo, será apénas do exercício em comum da
^
seq objetivo é claro: é de oposição frontal; é contra este ^í ,
f xismo que ela se
constrói* Em contrapartida, sua relação.com o risco de anomia parece muito . razão deliberativa que poderão se derivar princípios cuja validade, sempre
mais ambíguo, de modo que muitas de suas formulações não escapam ao pe- provisória, repousam na qualidade dó acordo do qual surgiram. As condições
rigo de subdeterminação do tempo, típica do modelo do mercado abrindo
— processuais da formação dà vontade pública pesam, assim, mais que a verda -
* assrim, o caminho para o risco de diluição do liame social, de desinstituição do ~ * de intrínseca das conclusões nas quais ela se detém. Em Moral' e Comutiicação,
! r sujeito e de domínio dos m àis poderosos. \ Habermas precisou as condições da “situação ideal dê palavra” da qual pode
Sem dúvid , nenhum desses autores que se ligam à coiTente da proceà- Vi * derivar uma norma válida: uma'proposiçao normativa será tida como verda -
^
sualizaçãó se conformaria com o cinismo ou a covardia de uma tal negociação-
demissão; mas nosso objetivo consistirá em mostrar que, sem explicação clara
ifi
deira quando reunir o acordo de todos os participantes em uma discussão
prática, ao final de um debate livre e transparente, conduzido segundo a lei do
dos pressupostos normativos em ação na comunicação cooperativa (pois é sem-
pre a ela que eles se referem e não a alguma Munich), às vezes eles se expõe ao
V'
^ r
melhor argumento.181
Sem dúvida, as condições desta deliberação ideal são contrafactuaís -
risco. de nada ter a opor à lógica dominante do mercado. Uma vez rompidos os trata-se de “requisitos ideais” para uma discussão justa; contudo, elas se pro -
elos que mantém, contudo, em relação à tradição, como em relação aos ideais vam coercitivas desde que, para convencer, os participantes da discussão pú -
> de emancipação dõ futuro, o pensamento processual não escapa mais ao ^perigo blica devam entrar no jogo deliberativo que elas regulam. Além disso, estas
de ser utilizado como uma racionalização bastante oportuna, de um modelo coerções receberam, nas Constituições dos Estados de direito democrático>
neoliberal em busca de legitimidade. JÉ, ao contrário, fazenda aparecer à plena
. V "

uma formação explícita das quais é precisò redescobrir o sentido. É o objeti -


luz o que o ideal processual do direito - que é de sempre e não fruto de uma vo ,de Direito e Democracia > cuja tese principal, destinada a superar tanto o
mutação contemporânea r-' deve às determinações comunitárias, às promessas * modelo do mercado (privilegiandd as liberdades privadas), quanto o modelo
, de ontem, que são principalmente fatores deliberação de amanhã, que podere
- comunitarista (centrado, por sua vez, nas liberdades políticas), consiste em ar -
mos ligar um alcance instituinte aó quesfionamento que ele pratica. Para nós, - ticular Estado de direito (liberal) e democracia (comunitá ria): longe de se
portanto, a alternativa é clara: ou a processualizaçãó acentuará sua rejeição mui- opor, os dois tipos de liberdade se embaralham e se condicionam reciproba -
to freqúentemente afixada de qualquer^razão substancial a priori, e ela irá se mente.182 As liberdades privadas só se desabrocham no Estado de direito, mas
confundir copi o jogo auto-referido e formal de estabelecer valores convencio- este, só pode estabelecer-se no quadro deruma cultura democrática que pres -
nais num mercado; ou ela reconhecerá os ideais de emancipação que a inspi- suponha o exercício das liberdades políticas de participação na coisa pública .
ram, mas, então, será coagida à revisão de algumas de suas formulações. E lhe
será preciso reconsiderar um n úmero , mais ou menos grande de suas proposi-
ções práticas. A última obra principal de Júrgen Habermas, Direito e Democra-
*

^
Esta revítalização da particip ão cidadã nas instituições públicas é tanto mais
necessária hoje, em que o Estado, que deixou de ser social, assume a figura de

cia, irá servir-nos como pedra de toque para a elucidação desta alternativa. '\
181 HABERMAS, J, De V é thique de la discussion. Traduit par M. Hunyadi . Paris: Cerf,
'

Nossa razão prática, explica Habermas, deve restringir suas ambições à * 1

1992. p:17.
\ idade pósmetaf ísica: não somente lhe escapa a Verdade de princípios jurídicos 182 HABERMAS, J. Dróit et d é mocratie . Traduit par R.. Rochlitz et C. Bouchindhomme,
i
ou morais fundamentais, mas, além dissó, é a legitimidade do exercício solitá-^ • Paris: Galjimard, 1997. pr 484 et seq.

386 387
%
*
V
*
* Capítulo 4
/
/
*

*

*
* A . .
Questíonamcnto Desligar o futuro
»
I

«
i
W
A %
1

\ uní estado securitá rio , responsável por riscos longínquos e complexos,183


5 ressados e nãosòmente á de uma elite; certamente, também, “esta concepção
, Neste contexto, a administração eXerce um poder cada vez maior, em detri- , conserva um n úcleo dogmático”:- a saber, a idéia de autonomia segundo a qual
os homens só agem enquánto sujeitos livres, à medida que obedecem às leis
mento da separação dos poderes e do controle democrática f portanto, ur '
gente estabelecer um novo espaço.público suscetível a democratizar a regula- ^ - que dão a si próprios.186 A igualdade e a autonomia .. convenhamos que a ex . -
« —
ção administrativa da vida sojdal uma vçz que a ação dos podçres públicos
funciona sempre em instância de ser instrumentalizada, por sua vez, pelos
lobbies que ela convencionou controlar. Estabelecer, em todos os níveis da so -
,
pectativa já está bem détefminada^ por um paradigma que quer se livrar de
qualquer concepçãç substancial da vida boa.
Para dizer a verdade, a oscilação percorre toda a obra, poderíamos mul-
ciedade ( inclusive até para-q controle das mídias e dofc tribunais constitucio - tiplicaras citações num sentido ou noutro, se com elas cavar sempre mais fun -
^
do a perplexidade. Do lado da autonomia, inicialmente, algumas afirmações
4

nais), as condições de uma participação cidadã, constitui, por isso, a tentativa


*
de realiza ção histórica concreta da ética comunicacioital a pouco definida; é fortes: “nas sociedades pluralistas, a moral pós-tradicional que subsiste só se
*

de se realizar as condições de uma ação da sociedade civil sobre ela mesma, se- baseia na consciência morai individual”, ao passo. que “num contexto pós-me -
H

gundo o desejo da Constituição, entendida como “projeto”.184 tafisico, a única fonte de legitimidade é o processo democrático pelo qual o di-
*
' reitò é gerado” 187 E mais isto: “as ordens jurídicas modernas só podem extrair
r suas. legitimaçõès da idéia de autodeterminação”.18* Estas teses são bastante co -
«

0 PROJETO CONSTITUCIONAL: PROMESSA OU PROCESSO?


,
' nhecidas; é inútil multiplicar as citações, pois são el s que, geralmente, os par -
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tidários daprocessualização retém.^ ^
E, contudo, embora muito mais raramente acentuadas, abundam tam-
<4 /

Eis-nos ao pé da obra: como, de fato, entender este projeto? Como uma


\ promessa ou como um simples processo? É neste ponto que se multiplicam as bém as observações que revelam os limites da autonomia - quer dizer: que
hesitações. Deinício e o mais ffequentemente, o projeto é definido em termos apontam o que a autodeterminação deve a um conjunto de “paradigmas de
formais e processuais: “diferentemente do paradigma liberal e do paradigma plano de fundo” .eníforma de pressuposições normativas. Acentuaremos, ini-
do Estado-providéncia, este paradigma (processual] do direito não antecipa cialmente, que Habermas considera que sua visão “exigente” do direito e da
democracia “não é concebida em fun ção de um povo de dem ónios”. Ficaría -
â

* 189
mais nenhum ideal determinado da sociedade, nem uma visão determinada
da vida boa, Hem mesmo uma opção política determinada. Ele é formal” con-
'
mos em dúvida: o processo se dirige a indivíduos de boa vontade, desejosos de
tinua Habermas, “no sentido que se contenta em designar as condições neces-
sárias, nas quais é possível aos sujeitos dè direito se entenderem, em .seupapel
^ '
estabelecer o laço social, numa base cooperativa. São, de fato, as pessoas de
“boa vontade”, somente que se deixarão convencer pela verdade do melhor ar -
gumento,190 elas apenas irão aceitar jogar o jogo da justificação, que pressupõe
i

de cidadãos, quanto aos problemas que são os seus e sobre as soluções qué
convém oforecer”.185 Eis, seguramente, uma afirmação que vai decididamente, a.qualidade rara de julgar sua própria situação e a de outrem, com o olho do
v no sentido do questionamento. Mas, em algumas linhas adiante surgem nuan- 4 terceiro, imparcial e desinteressado.
vças e uma espécie de hesitação; “certamente, o paradigma processual do direi-’

to liga-se a uma expetativa*: a que leva a considerar a visão de todos os inte- . - 186 HABERMAS, J. Droit et d é mocratie . Traduitpar R. Rochlitz et C. Bouchindhomme.
4 \ Paris: Gallimard ,’ 1997. p. 474- 475.
187 Ibid., p. 478.
\
* •
183 HABERMAS, J. Droit et dé mocratie. TVadukpar R. Ròchlitz et C. Bouchindhomme. *
188 Ibid.; p. 479.
\

Paris: Gallimard, 1997. p. 462 et seq. %


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184 Ibid., p. 473. \ 189 Ibid., p. 493.


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185 Ibid., p. 474. * 9
190 Ibid., p. 489. -
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Capitulo 4 Questionantento. Desligar o futuro.
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1
Ora, esta boa *
vontade, se o podemos dizer, n ão cai do céu, salvo para opor dialética histórica da promessa e do questionamento que liga, mas também li-
um detis eXmachina ao ‘ povo dos demónios”; é da história, muito evidentemen -. berta, o futuro. Mas, se isto for verdade,, nã o podemos mais, parece nos, falar -
te, que ela procede, uma' Mstória institucional que nos “ habituou à liberdade” como a pouco, de uma. autodeterminação radical, nem de um paradigma “que
Habermas precisa: “não se pode obrigar uma população à espontaneidade, mes- não antecipe nenhum ideal determinado da sociedade”. Nã o se pode sustentar
mo que fosse através do direito” (ora, está nisto, contudo, a pretensão paradoxal A
simultaneamente um e outro; será preciso escolher: ou o processualismo puro
de todos os contratualismos) - “é pelas tradições dá liberdade que ela se regene- ou a reabilitação dos paradigmas de pano de fundo.
ra e nas relações associativas de uma cultura política liberal que ela se conser- É uma conclusão em todos os pontos semelhantes a que Ricoeur che-
.
va” m Acreditaríamos ler, desta vez, linhas extraídas7da hermenêutica crítica de gara, a propósito da Teoria da Justiça do outro grande autor processualista de

- .
Gadamer, Na verdade, tudo se encontra/aí: a insistência na fecundidade dos
r

nòssa época: John Rawls. A seu respeito, Ricoeur colocava a questão: “seria
«

pressupostos da comunicação e o caráter radicalmente evolutivo (autotfansfor- possível uma teoria puramente processual da Justiça?” Pode se substituir uma-
.
mador) desta tradição Não é de uma reabilitação dos preconceitos fundadores justiça processual pura (e uma perspectiva exclusivamente deontológica), por
que se trata? Quando Habermas reconhece apoiar-se nos “duzentos anos de his- > qualquerforma de convicção prévia concernente ao bem público (concepção
tória constitucionaTna Europa”, que servem como modelos suscetíveis a “nutrir 'substancial e teleológica) ?
196
-
Não temos d úvida quanto àr resposta: um sentido
-
uma reconstrução desta compreensão que serve como guia à prática intersubjé-
tiva de uma autolégislação, empreendida com os meios do direito positivo”?192
_
moral da justiça baseada na Regra dê Ouro ( “não faça a outrem o que não qui
seres que te façam”), já está pressuposto na engenhosa construção, aparente-
mente formal, da posição original. A demonstração é circular e se contenta em
«

De modo que, no processo coletivo de determinação dos direitos, “ninguém pre- '
tende ter acesso a um -sistema dos direitos no singular mdepêndentemente das
* «
.
esclarecer o que ocorreu desde a origem 197 Em estudo mais antigo, confron-
interpretações que já lhes são oferecidas historicamente” 193 , . tando a hermenêutica de Gadamer com a crítica das ideologias de Habermas,
Iremos nos precaver, contudo, de pensarjque esta tradição teria como . Ricoeur já formulara observações do mesmo tipo: nenhuma crítica detém o
efeito paralisado processo de criatividade histórica; é Justamente do contrário privilégio da primeira palavra; na ocorrência, é do interior da tradição do Auf -
que se trata, desde que “qualquer Constituição é um projeto que só consegue klãrung que se fazem valer os argumentos críticos. Sem este apoio nas remi-
persistênciaao modo de uma interpretação permanente, operada em todos os, -
niscências de experiências anteriores de emancipação como se fosse, é sem-
níveis de instauração do direito”.194 Enfim esta última anotação: “o sistema dos pre o caso, das experiências embrionárias - a crítica seria incapaz de antecipar
i

*
‘direitos contenta-se em explicitar
uma comunidade »de comunicação sem obstáculo.
Í 9S
o que desde sempre pressupõem implicita-
mente todos os que participam da prática de auto-organização de uma comu- Acrescentemos ainda isto, que nos parece essencial: ao reatar com estes
/

nidade de sócios livres e iguais. À idéia^ de uma sociedade justa associa-se uma “paradigmas de plano de fundo” a deliberação processual não se contenta com
.
promessa de emancipação e de dignidade do homem” 195 Nenhuma palavra que lastrear-se num passado que lhe oferece, como acabamos de lembrar, uma rica
não pudéssemos subscrever; Habermas, percebe-se, formula com eficácia a ^ herança de significações e de promessas, de resto de nenhum mo o esgotadas;


1


*
ela é dotada, igualmente, de uma capacidade de futuriçãbrde uma faculdade de
/
^
' *» .
191 HABERMAS, J Droit etdêmocratic.Traduitpar R. Rochlitz et C Bouchindhomme
. .
.
Paris: Gallimard, 1997. p 149, 492 . 196 RICOEUR, P. Une théorie purement prqcéduralê de là justice est-elle possible? In:
, 192 Ibid., p. 147 . „ . le Juste, paris: Éditions Esprit, 1995. p. 72.
193 Ibid.
194 ' Ibid.
V
197 Ibid., p. 73, 88. -
198 RICOEUR, P. Herméneutique et critique des idéologies. In: DKémythisation et
*
idéo -

' 390
.
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195 Ibid , p. 446 .

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logte. Paris: Aubier -Montaigne , 1973 . p. 58.
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391
Capítulo 4
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Questbnamento. Desligar o futuro
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se deixar interrogar por um futuro virtualmente melhor - a esperança de um


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cesso” da comunicação.200 Logo, tudo deve ser refeito a partir da base: a partir da
v
“aplicação” da regra, indevidamente apresentada por Habermas de um modo
futuro deste tipo, o sentimento de que se poderia estar à sua altura, se o quisés-
*

semos suficientemente, É isso também, lembra Guillaume de Stexhe, colocar- t dedutivo, como se fosse o caso de aplicar uma norma predeterminada a uma si -
tuação igualmente conhecida previamente. Ora, a experiênciamostra, ao con-
/

se sob a lei do melhor argumento: é aceitar colocar-se em presença de um ou- ^

trário, que a incerteza, neste nível, é radical: a racionalidade e a eficiência da re-


tro fijturo possível por si mesmo, é expor-se ao risco ou à responsabilidade de
,

um horizonte de sentido, que transcendendo o estado presente dos disputan- grarão resultam de critérios a priori , do exercício de uma racionalidade prévia,
mas derivam, ao contrário, de umá “processualização contextuai” 201
.tes, apela para uma auto-superação de si mesmos.199 Referida a estas promessas * ,
Que se tratasse, para o juiz, de decidir à" vista de direitos fundamentais
fundadoras, a processualização está apta a desenvolver a visadade uma expe- ^
. equilibrados de acordo com o teste de proporcionalidade, ou que se tratasse,

riência boa ou melhor; cortada de suas raízes, em contrapartida, ela só remete , ti


'

para a administração? de aplicar uma política pública em estreito acordo com


*
* 5
a um-instantâneo desesperadamente contextualizado, em que teremos definiti- l
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grupos de usuários, trata-se cada vez de construir o contexto de aplicação da
'

vamente deixqdo de acreditar na possibilidade de nos tornarmos melhor do


norma, no decorrer de todo um processo de aprendizagem coletiva. Não é , en-
que sòmos. *

tão, de interpretação ou de adaptação da regra ao contexto que é preciso falar,


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mas antes, de construção da regra (provisória e local, é preciso dizê-lo? ) por
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baixo, à medida que os autores em questão seidentifiquem e suas preferências
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r se manifestem, que equilíbrios se definam. Nesta “remontada”, do ponto de
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( *
vista dos autores para a instância de formulação da regra, não deveríamos
A ambiguidade atravessa, portanto, a razão processual apresentada por mesmo falar mais de “revisão” de uma norma voluntariamente flexível, como
9

Habermas. Alguns, considerando perfeitamente idealistas as considerações ex-


'

ainda o faz Niklas Luhmann, pois seria, pressupor, ainda, a capacidade da re-
traídas dos pressupostos normativos que acabamos de evocar, só terão inces-'
-
santemente que lançar um véu pudico sobre estes, tentando salvar a teoria,
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A

gra de antecipar o futuro é no presente imediato que a norma é formulada:
esta é a garantia de súa eficiência e de sua racionalidade.202
* * . '

, amputando-a desta dimensão embaraçadora. Assim, resta apenas uma versão i


>1
»

É da deliberação dos atores, portanto, que se libera a ordem desejável, e


radicalizada da processualização — a de um contrato social sempre renegocia- . » *‘
~
nao de qualquer representação a priori ; quanto a esta deliberação, quanto mais
%

do, remetido à pura forma de sua permanente contratualizaçao. Contratos in- for desformalizada, melhores serão suas chances de se aproximar do equilíbrio
\
definidamente reduzidos, em Verdade, e tão efémeros quanto os instantes #
; procurado; ela cruzará, portanto, todos os êódigos e os saberes, como o vimos >
i
*
fragmentados aos quais se adequam. quanto ao tratamento das famílias em dificuldade, Ela evitará igualmente privi-
V
*
^
* Para Jacques Lenoble, por exemplo o modelo habermasiano continuaria
, 1 legiar os modos de representação formais (a dosvadvogados, dos juí zes), ficando
idealista à medida que Habermas fivésse parado no caminho: se se admite a in- 4 entendido que nenhum domínio de coerência normativa está definido a priori.203
' , decidibilidaae semântica (a verdade está sempre em suspenso, o sentido está
‘v
*
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1*
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sempre para ser definido), ele continuaria, em contrapartida, a se agarrar à de- , *
7 200' LENOBLE, J: Droit et Cbmtnunication. Paris: Cerf, L994 p. 33 et seq.
* ,
\ cidibilidade pragmática (uma comunicação ideal fornece QS critérios de elabo- .
201 LENOBLE, J Lá procéduralisation contextueile du droit. Les Carnets du Centre de
ração de uma norma válida) . Ora, nada garante, nesse nível também, o “bom su-J phiíosophie dtl droit, Louvain-la-Neuve, n. 46, 1997.
202 Ibid., p 14 . . v
.
203 MUNCK, J. de Normes et procéduresi les coordonées d’un débat In: La Mutatioil .
199 STEXHE, G. de. Négociation: le degré zéro et Tévénement. In: Droit négocié> droit
imposé, Sous la direction de P. Gérard, E Ost. et M. Van der ÍCerchove. Bruxelles: Pu-
V

V
r

.
du rapport à la norme Sous la direction de J. de Munck etM Verhoeven Bruxelles: . .
blications’des FUSL, 1996. p. 224 et seq. *
De Boeck, 1997 p 61 " .. . t
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* 392 I
393
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Capítulo 4 .
Quéstiomtnento. Desligar o futuro

Como já vimos: reinterpretada no sentido, de uma “processualizaçãò


* do de natureza sob a máscara sorridente da composição. Quando se apaga a
contextualizada”, a ética da comunicação de Habermas sè debruça definitiva - .* afirmação de objetivos normativos predeterminados e que se esquiva o terceiro
mente sobre um paradigma que “não antecipa mais um ideal *
/

determinado da -
investido da responsabilidade de garantir lhe o respeito, a processualização ar -
sociedade” (ou, mais exatamente, seu retrocesso torna-se mais agudo ainda)
Assim redefinido, parece-nos que se expõe a três objeções maiores. „
. risca-se muito a só engendrar direito de aparência enganadora. Tentamos mos-
trá lò a propósito da contratualização do direito do meio ambiente; Christiari
207

- -
Maroy chamou a atenção a propósito de certas negociações na empresa (nego

TRêS OBJEçõES
203
ciasse as modalidades do licenciamento coletivo, nUncâ seu princípio) Quan y . -
--
-
to aos “djreitos subjetivos”, tão facilmente reconhecidos hoje em dia a uns e ou
tros, e que freqiientemente dão acesso ao jogo processual, talvez não sejam
,
Inicialmente, ele subestima amplamente o conflito na vida social - isto t
j como já o fizemos observar, senão o .ersatz de um estatuto que se desfiou tra , -
é, o verdadeiro conflito violento que pode levar à destruição psíquica ou mo
ral do outro.. Do mesmo modo, calou-se o fato que o hómem é feito tanto de’ - \
< * pos jurídicos cada vez mais inconsistentes, que evitamos afirmar
positivamente
“o ideal determinado da sociedade”, que poderia lhes dar um conteúdo.
paixão quanto de razão. Eis, então, um universo político jurídico quase ange
- '
{v *A segunda objeção que desejaríamos dirigir a um módelo da “proces -
lical, procurando permanentemente àjustar as condições de uma cooperação *
sualização contextualizada” liga-se ao fato que ele desloca quase completa -
eficiente. Como se não fosse de vida e niorte, de dinheiro, de poder, de sexo, *

mente o debate do plano normativp para ò plano cognitivo. Tudo se passa > ^
m

de imagem de si que se tratasse: fervilhamento de paixões, violência sempre


como o temos notado, como st não se tratasse senão de racionalidade, de
prestes a se desencadear, à$ vezes ninho de víboras. Tal é o universo “que cabe
à política civilizar ” e ao direito moralizar - e não o mundo asséptico de atores aprendizagem, de informação, ejião de normas, de valores e de princípios No .
que se refere a convicções, só se retêm convenções (e é ainda dizer muito, pois
*

sociais sempre dispostos a normalizar seu comportamento, visando não se


.
sabe a qual adapta ção O domínio do político é o do agon , lembra com razão pretende-se situar num universo “pós convencional”); mais que de institui-
-
ções, fala-se de “dispositivos 'cognitivos coletivos”; quanto a normas, nós as
*
ChantalMoiíffe;204 o universo do jurídico é o do litigioso:em certos casos faz
- 9i, definimos como “heurísticos no seio de um processo de aprendizagem” De
i
.
209
se acompanhar do uso da força e da imposição de sanções. Subestimar a vio
lência potencial das relações sociais (inclusive, é claro, as relações familiares) é
,
- J
resto, será. preciso lembrar que o modelo da comunicaçãci ideal estava cons-
’’

-
expor se ao risco de vê-la reaparecer sob formas travestidas, inclusive na coer
- truído, por genèralização,a partir do exemplo da discussão científica, tal como
. Peirce a formalizou nos termos ideais de uma “República de sábios”. Irène
j 210
ção, às vezes perversa, das soluções “negociadas”
Acreditar que a “boa vontade” (à disposição para se negociar equitativa .
mente) é generalizada, que os recursos cognitivos e sociais que permitem deba
- ^] »
tèr em pé de igualdade são igualmente compartilhados,203 que as situações de
- ' 207 OST, F. La Nature hors Ia loirParis: La Découverte, 1995. p. 115 et seq.
ne - 208 MAROY, C. Rapport à la norme et transformation des. modes dbrganisation de la
*
J ^ * #
-
gociação são ecessariamente simétricas,206 é expor se ao retorno brutal do esta
- ®
j production et du travail dans 1’entreprise. In: La Mutation du rapport à Ia norme.
Sous la direction de J. de Munck et M. Verhoeven. Bruxelles; De Boeck, 1997. p. 120.
,
204 MOUFFE, C. Le Politique et ses enjeuz. Faris: Découverte, 1994. p. 11 et seq.
205 MUNCK, J. de; VERHOEVEN, M. Gonclusion, Les métamorphoses de la
’ ^
209 Estas duas xpressoes foram tomadas de empréstimo ao economista O. Favereau
citado favoravelmente por J. De Munck (Nornles et . procédures: les coordonées
%

d’un débat. In: La Mutation du rapport à h norme. Sous la direction de J. de Munck


* *
raison. In: j
-
La Mutation du rapport à la nortné. Sous la direction de J. de Munck et M. Verhoe
- ‘
?
et M. Verhoeven. Bruxelles: De Boeck, 1997. p. 54).
210 J.;HABERMAS ( Droitet d éinocratie. Traduit par R. Rochlitz et -C. Bouchindhomme.
ven. Bruxelles: De Boeck, 1997. p. 273.
206 ÍERTEN, A. Préface. In: La Mutation du rapport à Ia norme. Sous la
direction dc . Paris: Gallimard, 1997. p. 30): “O que vale para o acordo no interior da comunida-
de Munck et M. Verhoeven. Bruxelles: De Boeck, 1997. p.*10 (o autor cita o caso daJ

de de comunicação dos pesquisadores vale igualmente, um pouco de perto, para a


mediação no meio escolar). • ,*
comunicação de todos os dias”

394 r- 395
Capítíilo 4 .
Que$tiommento< Desligar o futuro |

Théry tem razão ao sublinhar: “o ideal de uma processuãlização do direito


tros,contjextos (mesmo se, é evidenté ainda, qualquer aplicação-interpreta
* ção
? deslegitima a priori qualquer idéia da referênqa, em nome da evolução das. ' contribuía para flexionar, enriquecer, afinar o sentido e o alcance da regra
) .-
ciências cognitivas ’211 Por força de separar as formas jurídicas de seu conteú
5

do e colocar ps valores entre parênteses, pensa-se o direito em termos de per


- \ Retirar da regra sua dupla qualidade de precedente (que dá sentido ao passa -
*

tinência das informações disponíveis e eficiência dos processos utilizados.


- do) e de modelo (que organiza o futuro) è pura e simplesmente dissolver a
a
própria regra. É, de resto, nesta extremidade que incide tendencialmente
*

Mas, é tempo de o relembrar, ó direito não procura de nenhum modo


processuãlização contextualizada; ao subestimar tantó o conflito quanto os
enunciar a verdade sobre p social - ele grocurà apenas enunciar-lhe o sentido,
„ mas, às vezes ajudado por ficções. Seu problema não é a
^
* valores, quanto a virtude instituinte da regra, é rumo a um universo pós-jurí -
verdade, e, apenas de ] dico que ela conduz. N*ão anômico, pois nenhuma sociedade é desprovida de
modo acessório, o da eficiência; suá ambição é a justiça, seu domínio, o per
formativo: fazer chégar instituições justas que amarrem o laço social e contri
- M normas mas um mundo em que a responsabilidade da definição da norma é,
- em teoria, remetida aos indivíduos e, na maioria das vezes, na prática, inspi-
buam para a identificação dos indivíduos. Destituir o* direito dó registro nor- fl rada pelo mercado e pêlos diversos especialistas em normalização.
mativo (ou, melhor ainda: performativo) que é o seu, no plano probatório
gerenciador da perícia, (mesmo negociada) é recalcar os valores e, portanto,
- 1
J
-
àrriscar se a privilegiar o acordo por plevmesmo, valorizar a “paz soçial sem '
0 SENTIDODOS JUSTOS; UM DOM COMPARTILHADO
'princípios55: a organização mais ou
menos espontaneamente consentida, mas

— desatrélada de qualquer significação preestabelecida e indisponível. É também


-
expor se, “apesar de interiorizar um certo número de exigências reguladoras
globais”, a raciocinar passo a passo (procedimento de tipo problem solving ) , e
assim a privilegiar compromissos pragmáticos, os quais, mais que reforçar o

<
Nossa insistência em discutir o paradigma da•
“processualização con-
.
textualizada” explica-se pelo fato de que ele é muito amplamente ateito, atual
\ t

mente, e que muito dos tràços empíricos da regulamentação jurídico-contem


porânea dão crédito às suas análises. A vigilância impõe-se tanto mais quanto
-
-
-
laço social, desaceleram ainda a fragmentação das significações.212 .
1 Isso nos leva a uma terceira objeção. Teremos notado a insistência pos-
*

\
^
v nós compartilhamos as premissas desta abordágem: ja o dissemos, o direito é
-
'

processual por natureza verdade quê se confirma ainda mais num contexto
ta sobre á “contextualização” da regra, maneira de relembrar que é exclusiva
- ,
j político em quê o “índecidíveltem sentido* (incerteza científica e indetermi
5
-
mente no hic et nunc de sua situação de aplicação que a norma toma consis-
' i nação política). Daí, a questão coerente não é saber se ô direito é processual
tência. Desta vez, é o tempo instituinte da regra que é desqualificado, a apti
- ‘ ou não; é, sobretudo, “saber qual versão no modelo processual nos parece mais
dão de seu texto, geral e abstrato, para transcender as situações particulares. A i fiel aos ideais de emancipação, que continuam a encorajar o projeto democrá -
bem dizer, não se sabe mais muito bem Q que resta da regra e do texto, desde
*

tico”.213 Trata-se precisamente da pergunta que dirigimos a Habermas, ao pro -


que se lhes negue a capacidade de se descontextualizarem:ou seja, a capacida
- - 1
por uma interpretação dov Estado mais recente de sua teoria: que faça justiça
de de resistir às necessá rais contextualizaÇões particulares (ligadas, é evidente, < .
aos “ideais de emancipa ção” que o inspiram Em referê ncia a estas promessas,
a qualquer interpretação-aplicação), para poder valer ainda amanhã em ou
- as de um tempo loqgo que institua o futuro comum, a participação cidada irá
' r
-
provar-se uma reinvenção bem vinda das instituições democráticâs; amputa --
211 THÉRY, I. Yie privée et monde commun. Réflexion sur Tenlisement gestionnaire das destas, encerrada no universo normalizado.de uma yida social sem confli
- du droit. Le Dé bat, n. 85, p. 154, mai/aoút 1995.
2l 2. MUNCK, J. de; VERHOEVEN> M. Conclusion, Les métamorphoses de la raison.
In: 213 MUNCK, J. de; VERHOEVEN, M. Conclusion, I,es métamorphosès de la raison. In:
La Mutation du rapport à Ia rtortne. Sous la direction de J. de Munck et M. Verhoe
ven. Eruxelles: De Boeck, 1997. p. 273.
- La Mutation du rapport à Ja nortne. Sous la direction de J. de Munck et M. Verhoe -
ven. Bruxelles: De Boeck, 1997. p. 274.

396
397
*•1 I
Capitula 4 i
%

>* «
/

.
5
*
*

to (aparente, sem princípio e sem Horizonte), a prócessualização faz o leito do V

tempo subdeterminado do mercado. } /

Para enunciar a dialética que o tempo processual poderia instituir en- ; è \


;
tre o tempo potencialmente subdeterminado do mercado e o potencialmente ' *
*

sobrèdeterminado da comunidade, o relato do dom da lei de Platão poderia


.
9
i
-
provar se esclarecedor Na origem, explica Platão, se bem que dotados das ar
- f

tes e das técnicas, os homens levavam uma vida precária e perigosa: “despro- Jfi• i
\ INTERLúDIO
-
vidos da ciê ncia política, faziam se mal uns aos outros” 214 Zeus fica inquieto
com isso e decide enviar 'Hermes para levar aos homens’ “o respeito e a justi
-
. - \t

d
x
N
4 J f

ça, para servir como regras para as cidades e unir os homens pêlos laço‘s da N »
-
^
J

.
amizade” Mas Hermes se pergunta: será preciso çonfiar respeito e justiça à al-
*

% À
*
, gunS peritos e especialistas, como foi o caso
das artes e das técnicas, ou será S/

preçiso, ao contrário, reparti-los entre todós? “Entre todos”, responde Zeus, o


t (
1

Principalmente, nada de final, nem de ponto ‘final. De preferência o


/
<<*

‘ que leva Platão a •s


f
acrescentar.: “quando sé delibera sobre a política, onde tudq,
repousa na justiça e no equilíbrio, temòs razão para admitir todo b mundo, - Vj

ponto de pausa, o interl údio, o intermédio, o intervalo - A pausa. O tempo de .


r
S

porque é preciso que todo mundo párticipe da virtude civil; de outro modo, ^ V , um balanço provisório, como um refrão para melhor delimitar o jogo do tem -
mão há cidade”.215 v po e do direito, pois esta dialética não tem síntese: nada de saber absoluto que
Eis, então, a grande regra das cidades democr áticas: todo o mundo está
*
enunciasse a palavra final. /

convidado a participar da deliberação pública. Mas esta deliberação, teremos / Somente três palavras de parada para balizar o caminho percorrido:
0 medida, presente e responsabilidade. Este livro dedicou-se a tomar a medida
\
notado, incide sobre o justo e o bem e não sobre os interesses particulares, pois
todos os tecebèram em partilha. Assim, o tempo do questionamento, próprio do direito: ele disse o direito como medida, ele avaliou sua força mensurante
'
.
i

à deliberação sempre retomeçada, ancora-se no tempo das promessas que é o „


ij
r

O tempo de que fala, ao mesmo tempo em que tratatodas suas outras dimen -
da instituição da leu “Tudo repousa, de fato”, coma na alegoria do bom e do sões > é o presente, pois é no presente que .se desenvolve a medida em quatro
tempos do direito.> Mas este presente é um desafio que nada tem de garantido:
V *
* mau governo, “na justiçai na
temperança”.
*
1

igualmente, ganhá-lo é questão de responsabilidade - uma questão ética e po -


•i
lítica mais que uma necessidade ontológica.
*
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1
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MEDIDA v
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O direito é medida pelo menos em quatro sentidos, que vão da norma
V
\

- .
ao tempo Em direito, tomam -^se “medidas”: decisões, regras de conduta; fala -
*
* tf
4

se de medidas de ordem pública, medidas de.segurança, medidas conservado -


1 , . ras... Num segundo sentido; mais fundamental, o direito é instrumento de
214 PLATÃO. Protagoras. Traduit E. Chambry. Paris: Flammarion, 1967. p. 53-54. \

\ 5í
medida, como o é a régua que* mede e a balança que pondera os interesses em

*
*
215 Ibid., O grifo é nosso.

\
conflito. Do direito e pera-se que avalie a justa proporção das relações, a im
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399
Interlúdio srv 1
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5
^
portância das prestações e dos prejuízos, a igualdade dos direitos e dos deve
res, como Aristóteles já sublinhava. Expressão dó justo meio termo, o diíeito
- »
que significa misturar, se entende também conlo “governar” e ^regrar”: Horá -
»
cio evoca até a idéia de “governar, terras e mares pela ordem variada das esta-
.
*
faz medição num terceiro sentido, que é o do equilíbrio, da moderação, da
ções” (“ quktnaria ac terras temperat horis”). E assim retorna o sentido norma-
V.’, * 2

.
prudência ( jurisprudentia) Expressão do limite, ele diz a “ justa proporção”
das coisas; assim fazendo, ele opõe a desmedida da ubrisyk qual ele prefere os
A
‘ tivo ( “regrari ), associado com a proporção de
* uma justa divisão temporal -
retomo operado, teremoá notado, sobre os auspícios das Horas, deusas gregas
^

temperamentos da paciência, as rêgulagens finas de um ajuste permanente. Fi


- \ das estações tanto quanto das virtudes cívicas. De resto, o kairós grego deriva
I
nalmente, o direito é medida num quarto sentido, já anunciado pela idéia de
^temperamento”: em seu trabálhó de ajuste permanente, a medida jurídica é „
- í
ele mesmo de kerantiumi, que significa “misturar” - o momento oportuno é
»* » **
%

%
aquele atendido pelo observador atento do céu: o marinheiro que embarca
ritmo - o ritmo conveniente, a harmonia de durações diversificadas, a escolha *
«

, quando “intempérjes” e “tempestades” se distanciaram, o camponês que se- I

do momento oportuno, o tempo atribuído à marcha do social. Lenta em de- > * .


meia e colhe quando a “temperatura” está propícia. Natural, em seguida, rapi- •
* t (

masia, esta medida provoca frustrações e nutre -as violências do futuro: rápida • ;-nn
/

damente cultural, o tempo é igual à temperança * E à temperança é mistura de -


em demasia, elá gera a insegurança e desencoraja a ação. Esta é, portanto, a
^1‘ elementos polícronos . r <

medida'
do direito: n órma , propor
. ção, limite e ritmo. *
^‘U ' 1 ,
Nela o reversível e o irreversível combinam suas forças respectivas *

ritmo eis-nos remetidos ao tempo: o ritmo é a escansão
» , u
jSera que o tempo corre, verdadeiramente, como õ Sena, sob a Ponte Mirar
%
Com a idéia *
de * i ji «•

do tempo - o “ retorno periódico de tempos fortes e de tempos íracos”, atesta o


dicionário áligação e o desligamento que não deixamos de perseguir por de-
^ . . beau? Certamente O marinheiro sabe bem, notaM. Serres, que em todo o rio
.
r -
formam se turbilhões que retêm um pouco dçsta onda; as contra correntes
trás de todas as figuras jurídicas?É o ritmo essencial ao tempo còmo a medida Vi
i

ritmam os fluxos e os refluxos das marés, enquanto que o sol faz evaporar. se • -
-
o é para o direito? Potde se pensá-lo, de fato, se, pelo menos, lhe atribuirmos, uma parte da água que as chuvas rapidamente lhe irão restituir. E a m úsica,
3
\

-
um breve desvio pela etimologia anamnésia sempre útil como se a história
* J£ . que seria se escorresse simplesmente? Para existir, diz’ainda M. Serres, ela “rê-
)
das palavras, sabedoria acumulada da língua.viésse em socorro do pensamen- * % i. • " ' ..
. „ quer o reversível que a retém; [ .] a medida incessantemente voltaponto -se sobre si
9

-
*

to hesitante: tempus, de fato, se dizia menos do tempo


*
*
mesma, como faz o ritmo”: canto é contra canto, ponto e contra- , câno
»
li
*
que das divisões do tem . ' s \ - f

po; de resto, o plural têmpora tinha um uso muito mais frequente que o singu .
- nes, fugas, e refrões, escandem seu tempo misturado. 4 í

11.

lar. Mas em que.sentido entender esta divisão de tempos plurais? Os compos- Mas voltemos ao rio ^
, s ímbolo do tempo entr ó pico que conduziria
'

J t
to -
*

das as coisas à morte. Eis justamente que lançamos nele a crian


\
qual de
- a
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tos de tempusy mais antigos que ele, parece, colocam nos no caminho certo: s , * ^ *
ç da
*
?
,
* *
temperantia, tè fnperatio, temperare referem-se todos à mistura dos tempos mis- sejaríamos nos livrar: no Egito, ele se chama Moisés, abandonado ao Nilo; na
*

turados.1 Temperare é cortar, no sentido em » que cortàmps o.vinho e em que A


Itália, são Rômulq e Remo, expostos ao Tibre. A corrente os leva, ei-los j..á da
5
-
dos como desaparecidos, e entretanto uni.turbilhão os retém, uma contracor-
(
K

. temperamos o metal; aqui, o “corte” é igualmente ^sangria”: traía-se de dividir, )


V •
ã

mas também de religar, de separar e misturar tudo simultaneamente. «J


/ .
rente arremessa-os para a margem Do reversível depreendeu-se o irreversível;
. uma outra história é inaugurada, duas nações, duas culturas/vão nascer.
V v , * f
Aqui, verdadeiramente, tudo se reúne e se aclara: pois a temperantia T ’ ‘ *

i
v não é apenas a sangria bem dosada e o clima “temperado”, é também a medi-
.
da, a moderação, a retenção E a temperatio é a justa distribuição, a proporção 2 FREUND, G» Grand Dictionmite de la langue latine. Paris : Librairie Firmin Didot, -
*
regular, a constituição conveniente, a organiza ção apropriada. E temperare, •
« \*
J
- -
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'
1865. t. 3, p. 419. / t

, 3 SERRES, M . Couler, Louvam , revista mèsal


*
^ ‘

da UCL, n. 77 p. 2Í
*
, , avril
r-
1997.
/

i 4 . Ibid.,p. 20. ,
1 SERRES, M. Couler, Louvam, revista mesal da UCL, n. 77, p. 25, avril 1997. f

5 Ibid„ p. 21. *

400 .
I 401
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Interlúdio interlúdio
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Temperança sentada ao. lado de Justiça, na Alegoria do bom e âo mau go- v cia; e sem iim mínimo de durabilidade, a norma jurídica mina a confiança que
verno , do Palazzo Pubblico de Siénà, representa, assim, a exata oposição da me- •
determina sua legitimidade* É, então, a figura da desfiliação que ameaça o elo
diocridade das posições médias: a medida que ela encarna é a 'expressão do social: regressão securitária de um direito penal derivado.de seus ideais de rea-
^
*

tempo mais criador. Este tempo misturado é o mais improvável portanto, o


^

mais cultural. Contraídas às inclinações do tempo natural, ele não pára de


inventar formas inéditas: o “tempo forte” que se arrasta à morna repetição do
^ bilitação, regressão ultraliberal de um direito do trabalho, que abandona os es-
tatutos protetores em prol do novo imperativo de flexibilidade. Ao contrá rio*
mesmo; a harmonia de tempos que se tornaram solidários, de encontro à ca-
/ quando ela busca;na promessa a força para reinventar as modalidades, o ques -
ii
* tíónamento processual é o complemento necessá rio dos tempos misturados
cofonia das durações cada vez mais singularizadas/ a reversibilidade què reli-
que procurámos.
ga o futuro ao passado, de encontro à monocronia do relógio de areia.
Cada um de nossos quatro tempos, cuja medida misturada constrói o
'

r
, .
ritmo do direito, é ele mesmo uma figura híbrida Nós dissemos que o passa- y *

PRESENTE
J

do era “composto”, e condenamos os desvios do. “futuro simples” A memória, .


seletiva e criadora, é tanto esquecimento quanto comemoração; a tradição é -
ela mesma evolutiva e histórica, e ó precedente judiciário, como o costume,
, Esta justa medida dos tempos misturados, é preciso salientar agora, ela
N

• são
reelaborados em função das necessidades do presente. Quanto à furídação,
'

se desenvolve no presente: é o segundo momento de nosso interlúdio. Á exem -


é no modo do futuro anterior que é declinada: como .um fundamento que se pio da “ausente de todos os buquês”, de que fala Maflarmé, b presente é o enig-
oculta, não se sabe com certeza,se está no passado ou no futuro, num passado ma central do tempo: sua presença farta apenas sublinha em demasia a eva
,
-
mais antigo qUe o passado ou num' futuro ainda por vir, que ela se deixa en-
' -
nescência também ele foi apenas questão indireta nesta obra* O que é, de
* fatQj o presente: o gargalo êstreito da ampulheta, o pònto infinitesimal através
’ '
.
trever O perdão, por sua vez, se se dèslíga do passado, nem por isso se aniqui-
la: se a ofensa é superada, ela não é esquecida, nem recalcada, e se acontece ao do qual escorrem dois nadas: um futuro que não é ainda e um passado q[ue
f 'juiz constitucional invalidar uma lei, é para restaurar o primado de uma nor-
não é mais? O instante, de que falava Zenão de Eléa, que cava um abismo in -
ma superior; às vezes também, já o vimos, essas anulações sabem administrar - transponível entre um estado e outro (Aquiles nunca irá alcançar a tartaruga),
-
'w

o p a s s a d o a segurança jurídica, salvando os efeitos de uma norma entretan- ou, ao contrário, a reunião de todos os tempos em um só .(“omniutn tempo
to inválida . >1 '
rum in unum collatio” ) , cara aos Estoicos? O buraco negro em que mergulha
\
Quanto à promessa, se ela rompe com o passado por um ato voluntá- um passado cada vez mais distante e se aspira um futuro cada vez mais pr óxi -
rio de comprometimento, ela não institui menos uma relação que se quer du - mo, ou ao contrário, o campo em que o passado e o futuro se desenrolam,6 a ^

* rável; de resto, a própria ruptura não é total, pois é, como vimos, com base atualidade em cujo.seio se realizairi todas as suas virtualidades? *
numa confiança prévia que o comprometimento toma cor Um tempo meta- . x * Uma certeza, entretanto: este presente não é nada sem a consciência
mórfico, que sabe se transformar sem' por isso se renegar, faz-se assim valer, e, que o sujeito toma"dele, que á partir dele - “tempo axial e gerador”, escreve
do qual nós marcamos a eficácia, tanto na economia das convenções, ‘quanto Benvéniste -,.organiza todos os acontecimentos em passados, contemporâ -
.
na fonte das instituições do direito público E, finalmente, o tempo do ques-
tionamento, sé afeta o próprio futuro com um coeficiente redobrado de incer-
-
neos e futuros/ Esta mediação 'reflexiva permanece, contudo, perfeitamente
imprevisível: òra, simples continuação do mesmò, ela pode apresentar a for -
teza, n ão poderia, contudo, conduzir este movimento- a seu termo extremo: ma da ruptura, da suspensão, da-volta atrás ou do turbilhão. Este momento
,

radicalizada, a revisão recai nb vazio e prova-se autodestrutiva Sem um mí-


4 V
I
. ‘o

/ riimd de consenso, o dissenso demoórático leva à paralisia ou remete à violên- . . .. .


6 , CHESNEAUX, J Habiter le ternps Paris: Bayard Presse, 1996 p 108

4 Õ2 403
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presente tem a riqueza de todos os possíveis: nele, se originam todas as histó-


XJm tal presente, mediador e paradoxal, jogo, terceiro e embrcador, sur
.
rias de que se nutre -a História Assim, esclarece-se a palavra, enigmática de"
*
ge agora como força, “força inaugural da história a contar”, escreve P Ri
Nietzscheí o presente,' escreve ele, é “intempestivo”, ele “escapa \à norma do ’ coeur.10 Força de integração do passado e de projeção do futuro: “ é em virtUr
,
4

.
tempo” 7 Simultaneamente, dentro e fora do tempo, o presente, nota desta vez
* \

* * d è da força suprema do presente”, escreve Nietzsche, “que se tem o direito' de


1

« .
W Benjamin, “mantém-se imóvel no limiar do tempo” 8 . V
4

?
-
interpretar o passado”11 e inventar o futuro, acrescentaremos,
De um tal presente, paradoxal, pode-se dizer, então, que elevé jogo - o - Mas, cuidado, esta energia neguentrópica do presente, a mobilidáde
que notava precisamente Heráclito, ao evocar o lance dos dados* que a criança da casa branca , que ele pode representar esta faculdade de mesclar todos os
* joga. Não apenas, a tal ponto, o acaso (este é apenas, como a necessidade, . ' tempos que lhe reconhecemos nada têm de garantido, elas continuam sen
^ -
metade do problema), senão este outro traço dó jogo, mais essencial: p movi-
*
do somente da ordem do possível. De fato, não se pode excluir que um ou -

^ . mento dentro de um quadro dado (a álea do lance ie dados no sistema con-
*
tro presente, totalmente diferente, se imponha àb final: urna atualidade sa -
vencional dos pontos).9 O jogo é inicialmente, *e sobretudo, isto: a casa vazia turante e imóvel que absorveria, em sua ^presença” maciça, tanto o passado
*

jjuê permite o movimento de todas as peças, a casa brancà que suscita o jogo
«<

quanto o futuro, um presente sem acontecimento, nem alternativa; homogé -


de todos os signos. Aqui, o intervalo que permite ao tempo humano que jo- . t
neo e perfeitamente síncrônico. Aquele mesmo de que fala R. Sue: “É o pfce
sente que investe todo o espáço social e Se dá como representação global do
-
„ gue, que se desenvolva, na mesma vez e noutra.
Poderíamos dizer ainda deste presente reflexivo, que ele é o “terceiro r tempo, em substituição à profundidade da duraçãp. O presente fugitivo, do
,

-
4 *

tm
qual se dizia que era apenas uma maneira de pensar a relação entre o passa
tempo”: ovterceiro;excluído de todas as lógicas bináriasTedqtoras, porém mo

- l do e o futuro, que se constitui conio o símbolo de ,uma sociedade que per -
tor de todas as dialéticas; o terceiro, propriedade emergente das interações que
deu sua crença na história” 12 »


<** *

se desenvolvem entre os pares de categorias opostas; aqui, o passado e o fiitu- ;


i *
* * Onde se vê que a construção .do presente, justa medida dos tempos
ro, a duração e o instante, a eternidade e o movimento, a sucessão e a simul-
-
'

, 'mesclados, é questão de responsabilidade. A responsabilidade; terceiro movi


'
'
* taneidade. “Excluído” de todas as oposições estéreis que caracterizam o pensa- mento de nosso interlúdio.
• * 4
4
,*
mento fechado, o presente retorna com força, desde que o pensamento aber- ’ r

to as coloca em tensão. Triangulando suas relações, o presente opera como


•> f

“grande embreagem” dó tempo, É ele que garante o acoplamento eficaz de RESPONSABILIDADE *4

.
suas forças, a tração dé umas pelas outras Graças ao presente, as ,enprgias em *
. *
>
4
n
4

- - -
* 4

i
germe no futuro rentabilizam as forças do passado; graças a ele, ainda, os re- \
Como, entretanto, ser responsável pelo tempo? Jk tarefa não sobre hu
cursos do acontecimento imprimem um curso novo às longas durações que mana, titâ nica? Cpmo Atlas carregando o mundo (o espaço) sobre seus lar -
pouco a pouco se acalmariam. -
*

gos ombros, precisaríamos, então, suportar o tempo que passa, aturá lo de


^ 4

\
v *
’ - qualquer maneira? Temporàlizã-lo, em todo caso, r construí-lo à nossa me
^ -
7 NIETZÇHE, F. Considèrations inactuelles . Traduit par R Rusch. Paris: Gallimard,
1990. p. 98 . ' •>
v ‘
10 R1COEUR, P. Temps et récit. Paris: Seull, 1985. t. 3, p/ 341 (Points Essais) .
8 BENJAMIN, W. Poésie et ré volutiò n. Traduit par M. deUardillac. Paris: Denoêl, . * » 11 NIETZÇHE, F. Considèrations inactuelles. Traduit par P. Rusch. Paris: Gallimard,
1966. p. 286*
4
I 4

y
%
4
/
1990. p. 134. * .
9 Quanto a este sentido da palavra “jogo”, çf. KERCHOVE, M. van de; OST, F. Le droit t
’ 12 SUE, R. Temps et ordresoda /. Paris: PUF, 1994. p. 209; cf. igualmente CHESNEAUX,
r
\
ou Jes paradoxes du ]eu. Paris: PUF, 1992. p. 10 et seq. A

.
/
J. Pour une culturepolitique du temps, Fufuribles, p 57 et seq., sept. 199.
\
* s
»
*
• 4
404 í
*
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^

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A

dida, a de nossa cultura. Hoje, por qxemplo; e$ta responsabilidade assume / a, e ser fiador de? Atender a um dado prévio: j5rómessa ou crime, herança ou
uma forma muito explícita: a preocupação com um futuro duradouro. Ins-
'

truídos pela experiência, não queremos mais engajar o futuro >em escolhas ir -
-
falta, dívida ou crédito qUalquer òoisa ou algu é m que já está comprometi-
do è espera uma resposta. A situação que assim se desenhá não é, eptão, a
1

reversíveis e devastadoras (o todo nuclear, por exemplo, ou a agricultura in- ‘ *


"que evoca a troca contratual: simetria de prestações recíprocas que se equi -

tensiva), que comprometem retroativamente o presente. Adentrando em tais


«

libram no instante presente;» trata-se, antes, de situações assimétricas entre


estradas sem saída, não somente bloqueamos o futuro, mas desqualificamos parceiros marcados pela desigualdade de suas posições respectivas (adultos
* o passado (é a política da “terra arrasada” ), e hipotecamos o presente (no
, sentido jurídico do termo: nós o privamos de seu valor subordinando-o a hi-
- e crian ças, ativos e inativos, poderosos e fracos, gerações presentes e gera-
.. .
ções futuras .) Num contexto desse tipo,-o “é dando que se recebe” contra-
poté ticos lucros futuros).13 tual, mostra-se de pouca utilidade (poderia até conduzir à negação de qual-'
Entretanto, de preferência a mobilizar a categoria ético- jurídica de res-
ponsabilidade, nãò teríamos podido, talvez nos perguntem, Utilizar a do con- *
-
quer espécie de obrigação em função de todos os' que não apareçam como
“parceiros”, na troca). É muito mais a idéia de transmissão que se* impõe: a
. trato e considerar as relações entre o direito e o tempo sbb as modalidades do - *
troca diferida no tempo entre pessoas diferentes,'situadas em pontos variá -
convenionado? O contrato temporaly este poderia ter sido o título desta obra. veis da cadeia intergeracional.
Depois do contrato social, que firma as relações políticas entre os homens, de- Enquanto, no contrato, A paga a B a exata contrapartida do que B lhe
pois do Contrato natilral de M. Serres, que estabelece as relações ecológicas en- .
tre a ^sociedade e a natureza,14 por que n ão o contrato temporal, para enunciar
entregou, na transmissão, A dá a B, que, por sua vez, dará a C A transitivida -
as relações jurídicas entre os homens e o tempo? Nós descartamos essa possi-
„ '
. *
de, poderíamos dizer, está para situações assimétricas (Seguramente as mais
bilidade., pois a categoria de contrato parece-nos demasiadamente ligada ao
frequentes), cortio a reciprocidade estampara situações simétricas. Nos dois ca -
instante (a troca simultânea de consentimentos entre.contemporâneos), para
- • sos, como se vê, uma certa igualdade é respeitada, mas é porque ela chega a


*
mobilizar a duração que a transitividadé^equilibra as prestações.15 Vê-se tam -
fazer justiça à perspectiva diacrônica na qual se coloca inicialmente a questão
ética do tempos do direito. Do ponto de vista é tico, que.é aqui o nosso, é pre- *
. bém que, ao evocara categoria de transmissão, não se opõe a lógica do con
trato à do dom; amplia-se muitõ mais um modelo contratual ao inscrevê lo -
-
ciso lembrar, de fato, que sempre houve o dado, um dadovsomente a partir do
qual se pensa a autonòmia do sujeito. Deste dado extraímos as diversas for-
numa perspectiva temporal, ú nica suscetível a colocar em termos éticos as re -
mas: herança, lei, promessa, crime, dívida - a partir das quais se edificam as
lações assimétricas entre parceiros distantes e diferentes .
*

.
* M. Mauss dizia, sem d úvida, a mesma coisa em seu Essai sur le donJ 6
identidades e se exercem as liberdades, sem que se possa fazer tábula rasa. Para
dizê-lo ainda de outro modo: é do seio de uma Humanidade diacrônica que - Longe de ser heróico e unilateral, o dom requer o contradom, a prestação sus -
cita a contraprestação. Mas, diferente da trocqrcomercial, no dom o equilíbrio
se destaca nossa humanidade singular; é no coração de uma comunidade
„ transtempojral que são vivenciados nossos direitos e nossos deveres; é a partir
não se quer instantâneo, ele á’ssume o risco do tempo - õ tempo para o par
ceiro “responder” pelo dom recebido. Como o diz de maneira excelente J Der . -
-
V
de uma perspectiva intergeracional que é colocada a questão do justo e dodi?
reito - tal ê, pelo menos, a convicção subentendida nesta obra.
- .
rida: “o dom não dá senão na inedida em que ele dá o tempo” 17 Se é verdade,

Reinserida nesta perspectiva diacrô nica, a idéia de responsabilidade


revela toda sua fecundidade. De fato, o que é ser responsável senão atender _
X 5 OST, E Du contrat à la transmission. Le simuítané et le successif. Revue philosophi
quedeLouyain, t. 96, p. 453 et seq., aoút 1998. ,
-
.
t

16 MAUSS, M. Essai sur le don In: Sociologie et anthropologie.Paris; PUF, 1968. p. 198:
K

. .
13 LIVET, P Hypothéquer Tavenir ou déployer le présent? Esprit, p. 60, mars 1980
'
“Em toda sociedade possível, é da natureza do compromisso obrigar a termo” .
.
"14 SERRES, M. Le Contrat naturel Paris: Bourin, 1990 . .
' ' 17 DERRIDA, J. Donner le temps Paris: Gálilée, 1991. p. 59.
*
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* como o pensamos, que sempre há o dado (herança ou falta, divida ou crédi- necessário, em contrapartida, que aquele que o herda reinvente sua utilização
to), este dado abre o tempo, dá ou empresta o tempo - o tempo necessário v a cada instante.
para o donatá rio decidir o que fará do dado, o modo que irá lhe responder. No ;
A/ :
*
Uma “ herança Sem testamento”, eis aí todo o tempo, e a responsabilida -
»
centro desta situação prevalece, mais estreito que nuncà, o elo entre tempo e de igualmente. A herança, ou a necessá ria liga ção do passado com o futuro; a
direito: “dar o tempo” é a condição para “dizer o direito”. E não será porquê o ausência.de testamento, ou a força de reinventar-lhe o sentido.
tempo é dado que se faz a justiça? Assim, uma duração é medida para permitir fazer justiça; é um tempo
Dá-se o mesmo com a responsabilidade. Mas responsável em que sen ' - » .
dado, para que o direito se enuncie.
* #f

tido? Responsável por um dom mais que por uma falta, já o vimos. Este pon - * * 4
V

,to é essencial, pois libera a responsabilidade de suas conotações passadistas e


4

culpabilizantés £ “ Qué fizeste com teu irmão?”). A esta concepção clássica da


*
4
jr '

v, responsabilidade por falta é preciso preferir, aqui, a responsabilidade positi- ; 4


*

va e voltada para o futuro, o que se espera da lição aceita, da tarefa assumi- <
da.18 Uma vez que .herdamos do passado instituições justas mas perfectíveis, \
/ 4

‘•um meio natural


diversificado, más sempre na expectativa de invenção, um
.-
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* ' V/ X »
> património cultural insondável, mas sempre no aguardo dé interpretaçã o, J
l

-
. resta nos transmitir este dado para reconstruí-lo sem cessar - esta ê a nossa
responsabilidade.
4
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\
1 »

* \ r
Múltiplos campos se abrem nesta perspectiva. Do lado da democracia,
A
, >/ / 4

iremos perguntar como arbitrar entre prioridades do presente, experiência do % V


%
K

passado e exigências do futuro. Do lado da jtistiça, começaremos a nos inter- )


/*
t

<

rogar sobre a durabilidade da herança que transmitimos às gerações futuras. *


* /
Po lado do direito positivo, iremos rios recolocar a questão de saber se, mais •v
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que gerir na urgência, não seria preciso, antes, instituir na confiança. \ «


T
i J /
*
P )

Uma palavra do poeta Rçné Char esclarece esta responsabilidade: “nos- *


*
sa herança não é precedida por nenhum testamento” Alguns irão lamentá-lo; 4

ao contrário, nós nos felidtamos, pois esta ausência de testamento, a própria *

. indeterminação da doação, preserva a liberdade do donatário* Sem esta liber


dade, nada de responsabilidade, com efeito. Do mesmomodo, a heteronomia
- \ p
/
r

V - « 4 l
do dado não sufoca a autonomia do benèficiá rio, Ele é livre para dilapidá-lo, K

Se o quiser - o tempo comporta este risco. Este risco e este potencial criador.
A

>
Pois o patrimó nio herdado não é mais que isso: um reservatório de possíveis.
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