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ESTRATÉGIAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS:

PARA ALÉM DE INTERPRETAÇÕES DUAIS

Olívia Cristina Perez 1


Sarah Luiza de Souza Moreira 2

Resumo: Certas interpretações sobre os movimentos sociais consideram que o estímulo para que
militantes ocupem cargos públicos leva à sua desmobilização. Outro tipo de interpretação aposta que
a atuação por dentro do Estado é uma das estratégias dos movimentos, definidas a partir dos diferentes
contextos. Todavia, a busca por padrões para explicar suas estratégias acaba reduzindo as diversas
possibilidades. Para problematizar tais interpretações, o texto retoma e analisa as pautas da Marcha
Mundial de Mulheres no Brasil e sua relação com o Estado por meio do exame de documentos
produzidos pelo movimento e entrevistas com algumas de suas militantes, que ocuparam ou ocupam
cargos públicos. Teoricamente, o texto retoma a literatura sobre o confronto político, destacando a
relação entre as conjunturas e as estratégias de movimentos sociais, sem, contudo, limitá-las. Os
resultados demonstram que a construção de estratégias políticas pelos movimentos sociais se dá com
base nos contextos locais e nacionais, considerando objetivos mais amplos, que dialogam com o
cenário internacional. Ademais, a institucionalização não se contrapõe ao trabalho de base. Por fim,
demonstra-se que a despeito da procura por padrões nas estratégias dos movimentos, elas são diversas
e coexistem em um mesmo contexto político. O trabalho contribui com os estudos sobre a inter-
relação entre movimentos sociais e Estado ao desmistificar certas interpretações duais sobre esta
relação.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Marcha Mundial das Mulheres; Confronto Político.

INTRODUÇÃO

Esse artigo examina o ativismo estatal (quando militantes de movimentos sociais atuam na
gestão pública) com foco nas tensões dessa função conforme seis militantes da Marcha Mundial das
Mulheres que trabalham ou trabalharam nos governos federal, estadual e/ou municipal.
Quanto à atuação dos movimentos sociais junto ao Estado, Abers, Serafim e Tatagiba (2014)
mostram quatro rotinas de interação entre ambas as esferas: (1) protestos e ação direta; (2)
participação institucionalizada em Instituições de Participação como Conselhos Gestores e

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Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Professora Adjunta na Universidade
Federal do Piauí (UFPI), vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em Ciência Política e ao programa de pós-
graduação (mestrado e doutorado) em Políticas Públicas. E-mail: 889oliviaperez@gmail.com
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Cientista Social, especialista em Educação Ambiental, Mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural. Integrante
do GT Mulheres e do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia - ANA. Militante da Marcha Mundial
das Mulheres.
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Conferências; (3) política de proximidade (quando há contatos pessoais entre atores/atrizes de
movimentos com o membros do Estado) e (4) ocupação de cargos na burocracia, também chamado
de ativismo estatal - objeto de reflexão do presente artigo.
O ativismo estatal gera discordâncias e desconfianças entre estudiosas/os e militantes. Para as
teorias consolidadas sobre os novos movimentos sociais europeus (cf. Melucci, 1989), os movimentos
sociais seriam organizações autônomos em relação ao sistema político, tendo como função revelar
projetos e dar visibilidade aos problemas sociais. Nesse sentido, a aproximação dos movimentos
sociais com o Estado era considerada uma forma de cooptação das lutas sociais, que diminuiria a
capacidade de mobilização e luta dos movimentos. A defesa da independência dos movimentos
sociais em relação ao Estado tem relação com o contexto da época em que esses estudos foram
retomados no Brasil: era um contexto de ditadura militar em que a aposta na mudança para a
democracia não recaía na possibilidade de relação entre movimentos sociais e Estado, mas sim no
enfrentamento àquela estrutura de Estado. Contemporaneamente, estudos sobre novas formas de
ativismo ou militância também tem destacado a autonomia dos movimentos (Augusto; Rosa;
Resende, 2016), que são considerados por essas/es mais genuínos e próximos da população, quando
comparados àqueles movimentos que se aproximaram do Estado.
Para outra parte das interpretações que constitui um campo de estudos sobre as chamadas
interações socioestatais, a atuação de militantes dos movimentos sociais dentro da estrutura do Estado
não leva obrigatoriamente à sua desmobilização, tampouco a perda de autonomia. Aliás, Estado e a
sociedade civil se influenciam mutuamente e, por isso, não devem ser estudados de forma separada
(Abers; Von Bülow, 2011; Carlos, 2015; Carlos, Dowbor, Albuquerque, 2017; Cayres, 2017; Gurza
Lavalle et all. 2017; Pismel, 2019). Parte dessa literatura destaca os efeitos da interação socioestatal
na burocracia estatal e nas políticas públicas, além de mostrar que a interação com o Estado pode
inclusive fortalecer os movimentos e suas reivindicações (Abers et al., 2019; Carlos, Dowbor,
Albuquerque, 2017; Pismel, 2019). A ênfase nas possibilidades da interação socioestatal dominaram
os estudos sobre o tema, principalmente depois das gestões petistas no governo federal, pois elas
foram responsáveis por impulsionar maiores interações e proposições mais próximas às demandas da
sociedade.
Contribuindo com essa literatura, o presente trabalho aborda outro aspecto das interações
socioestatais: a experiência de ser ativista/militante estatal. Destacamos as tensões que algumas
militantes de um movimento social feminista, a Marcha Mundial das Mulheres, enfrentaram ao fazer
parte de governos federal, estadual ou municipal. Dessa forma, o trabalho também aborda uma

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dimensão ainda pouco explorada nesse campo de pesquisas que é o impacto que a participação na
estrutura do Estado provocou nas dinâmicas internas dos movimentos (Pismel, 2019).
A pergunta que guia o trabalho é: quais as tensões vivenciadas por militantes de um
movimento social que exerceram cargos públicos no tocante às suas ligações com o movimento?
Tem-se como hipótese que as militantes não deixaram de ter ligação e impacto no movimento (ao
contrário da tese da cooptação) ainda que tenham assumido a pauta do governo enquanto gestoras.
Para explicar as contradições que uma militante se depara por ser de um movimento social ao
mesmo tempo em que faz parte do governo, este trabalho retoma como referencial teórico o conceito
de “estranhos no portão” desenvolvido por Tarrow (2012). Conforme o conceito, os movimentos
sociais “são estranhos no portão, na medida em que operam nos limites da política, em uma posição
desconfortável que explica muito das ambiguidades e contradições nas suas estratégias, composições e
dinâmicas” (Tarrow, 2012, p. 3). Tarrow é filiado à teoria do confronto político que tem uma
importante contribuição para a compreensão das relações entre Estado e movimentos sociais.
O objetivo, então, da presente pesquisa é analisar a experiência do ativismo estatal a partir de
mulheres que fizeram parte dessa experiência. A pesquisa possibilitou que as próprias mulheres
relatassem suas vivências, dificuldades e aprendizados, refletindo sobre estar no governo e ser
militante. Ao mesmo tempo, problematizamos algumas interpretações e sentidos dado a essa tarefa.
O trabalho contribui com os estudos da área sobre interações sociestatais ao propor uma explicação
para a relação entre ativistas e Estado, com base no conceito de “estranhos no portão”.

1 Procedimentos Metodológicos

Para entendermos os desafios de ser militante ao mesmo tempo em que se atua no governo
adotamos uma metodologia qualitativa. Especificamente, foram realizadas seis entrevistas, por meio
virtual (Skype), com militantes da Marcha Mundial das Mulheres, no mês de março de 2020.
Escolhemos a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) pela sua importância enquanto
movimento feminista internacional e com forte atuação em todo o território brasileiro. A MMM foi
criada nos anos 2000 como uma grande mobilização que reuniu mulheres do mundo todo em uma
campanha contra a pobreza e a violência sexista. Entre os princípios da MMM está a auto-organização
das mulheres urbanas e rurais, em toda sua diversidade de idades, raças, etnias, orientações sexuais,
na luta pela transformação de suas vidas e do sistema capitalista patriarcal, racista, LGBTfóbico e
destruidor do meio ambiente (Marcha Mundial das Mulheres, 2020). Em segundo lugar, a MMM foi

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escolhida pela sua relação de diálogo com os governos do Partido dos Trabalhadores, tanto através
da pressão política quanto pela atuação de feministas dentro do partido, o que proporcionou que
algumas das suas militantes fossem chamadas para atuar nas gestões petistas. Por fim, escolhemos a
MMM, porque uma das autoras desse trabalho é militante do Movimento e, por isso, seu
conhecimento agregaria ao trabalho, além de facilitar na coleta de dados.
As entrevistadas foram escolhidas com base em três critérios. Primeiramente, todas elas
trabalharam em algum período em gestões dos governos federal, estadual e/ou municipal. Em
segundo lugar, consideramos relevante ouvir mulheres de diversos estados e regiões do Brasil. Assim,
escolhemos entrevistadas de três regiões do país: Nordeste, Sudeste e Sul, sendo dos estados de Minas
Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Todas elas são
identificadas ao longo do texto pelo seu estado de origem. Essa escolha possibilitou a obtenção de
informações de militantes de perfis diferentes, jovens, idosas, brancas e negras. Por fim, as entrevistas
aconteceram com aquelas militantes que se disponibilizaram a contribuir com a pesquisa.
É importante ressaltar que nem todas as militantes trabalharam no governo federal, algumas
atuaram na gestão estadual e outras em municípios brasileiros. Ainda assim todas podem ser
entendidas como ativistas estatais na medida em que atuaram em prol dos feminismos no Estado e
em um movimento social.
O número de seis entrevistadas da MMM foi determinado pela repetição das informações
coletadas, com base na técnica da bola de neve: decorridas as primeiras quatro entrevistas, atentamos
para o fato de que as informações estavam se repetindo. Decidimos então realizar apenas mais duas
entrevistas, buscando contemplar diferentes representatividades.
As entrevistas versaram sobre a experiência de trabalho no governo com destaque para as
dificuldades e facilidades de ser militante da Marcha e estar no governo. Buscamos ideias em comum
nas entrevistas e tecemos uma narrativa tendo como fio condutor a ordem cronológica dos
acontecimentos. Para que as entrevistas fossem compreendidas, inserimos informações sobre o
contexto político e atos da Marcha citados nas entrevistas. Em diálogo com a literatura
problematizamos certas interpretações duais sobre a experiência de ser ativista estatal ao mesmo
tempo que apontamos as nuances dessa experiência.
Assume-se neste trabalho que as narrativas utilizadas pelos movimentos sociais ajudam a
compreender as tensões travadas com o poder público, embora saibamos dos seus limites. As
narrativas são recursos essenciais das/os ativistas que procuram através delas mobilizar mais pessoas,

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trazer apoiadoras/es, influenciar decisões políticas e manter as ações dos movimentos (Polletta &
Gardner, 2015). No entanto, tais resultados não devem ser adotados como retratos da realidade.

2 Resultados

2.1 A entrada no governo

O primeiro ano da gestão Lula (2003) é marcante para a construção de políticas públicas
relativas aos direitos das mulheres. Em 2003, o ex-presidente transferiu a então Secretaria de Estado
dos Direitos da Mulher, vinculada ao Ministério da Justiça, para a Presidência da República sob o
novo nome de Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM). A Secretaria passou a ter
status de ministério e orçamento próprio. Tratou-se, portanto, de uma ação que conferiu simbólica e
efetivamente uma situação de maior poder e abrangência às políticas públicas para as mulheres.
Nessa época militantes de movimentos sociais começaram a assumir cargos na gestão petista.
Conforme disse uma entrevistada de PE: “Eu militava no movimento estudantil e comecei a me
interessar pelo movimento de mulheres, isso está associado com a militância partidária no Partido dos
Trabalhadores, com a articulação das mulheres dentro do PT [...]”. A entrevistada explicou que a sua
inserção no Estado não era desejada. Essa informação é importante por apontar que nem sempre a
intenção dos movimentos sociais foi fazer parte do Estado; isso aconteceu pela relação orgânica entre
a militância e o Estado a partir das gestões petistas. Ao mesmo tempo, a ida para o governo expressa
um olhar estratégico que considera que ter mulheres feministas na institucionalidade pode contribuir
com a transformação concreta de suas vidas.
A assunção de cargos no Governo Federal aconteceu, no caso dela e de outras entrevistadas,
em virtude da relação orgânica entre o PT e algumas militantes integrantes dos movimentos sociais.
Inclusive várias das entrevistadas também trabalharam/trabalham em governos petistas tanto na esfera
municipal quanto estadual. Conforme Abers e Von Bülow (2011), as/os ativistas dos movimentos
sociais frequentemente cruzam a fronteira entre Estado e sociedade civil, já que em alguns momentos
atuam nas organizações da sociedade civil e em outros trabalham em cargos governamentais. As
autoras pontuam que, nessas posições, os movimentos sociais criam novas estratégias e práticas e se
reconstroem.
Mas houve tensões relacionadas ao fato de elas terem vindo da militância. Por exemplo,
conforme o relato da entrevistada de RS: “Então eu acho que essa era a minha dificuldade maior de

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não poder me colocar como eu queria me colocar, nem no tema e nem na forma.” Ou seja, em que
pese as vantagens de ser uma militante, essa experiência também colocava limites e um certo
incômodo para algumas delas que tiveram que adequar suas expectativas e o modo de atuar, já que
agora estavam trabalhando como gestoras de instâncias governamentais.
Em geral, as entrevistadas destacaram a importância de ter militantes de movimentos sociais
dentro do estado, acompanhando a construção e execução das políticas públicas. Mas elas também
reconheceram a importância de o movimento social atuar por fora do Estado, especialmente para
pressionar e cobrar dos governos. As entrevistadas entendem que é possível fazer estratégias de
diálogo, ao mesmo tempo em que o movimento precisa cobrar, tensionar os governos: uma tarefa não
exclui a outra. Nesse sentido a entrevistada de SP explica que:

A existência de uma militância organizada do movimento social organizado,


pressionando com reivindicações e com capacidade de pressionar o governo,
é uma ajuda e é muito importante, porque também permite para quem está no
governo, readequar as suas políticas, pensar e questionar as políticas que você
faz, se elas estão corretas ou não estão corretas, se elas atendem ou não
atendem, tentar mexer no que é prioridade.

A pressão vinda dos movimentos sociais não enfraqueceria o ativismo estatal, mas seria capaz
de fortalecê-lo, na medida em que suas pautas ganhariam legitimidade e se afinariam com os
interesses da sociedade civil organizada.
Por isso, a MMM continuou a fazer essa pressão, mesmo que algumas de suas militantes
fizessem parte do governo. Isso se explica em parte, porque a interação do movimento social com o
Estado “não é determinada somente pelo contexto político-institucional, mas é afetado pela gênese
do movimento e por sua rede de relações sociais pretérita.” (Carlos, 2015, p. 95).
E isso não era uma contradição, conforme explica a entrevistada de MG: “Acho que o fato
dos movimentos atuarem de forma participativa, da destinação das políticas públicas, isso não faz
com que deixem de ser críticos, que deixem de denunciar as incoerências”. Nesse sentido, o ativismo
estatal não pode ser entendido como uma dupla função, mas como uma única função, em um
determinado contexto, em que a sinergia da experiência de fazer parte de movimentos sociais conflui
com a atividade de gestão. Como já comprovaram outros estudos sobre a interação entre movimentos
sociais e Estado, o movimento social pode se fortalecer ao participar do Estado, pois passa a combinar
“práticas contenciosas e colaborativas no diálogo com os atores estatais” (Pismel, 2019, p. 12).

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De forma geral, pode-se afirmar que havia autonomia dentro do próprio movimento para tecer
críticas aos governos, inclusive direcionada às secretarias com membros da MMM que naquele
momento atuavam conforme a estratégia política do governo, mas sem esquecer do que haviam
aprendido no movimento social nem do que ainda se ouvia de lá. A importância para preservar a
autonomia do movimento levou, inclusive, que muitas dessas mulheres se afastassem do movimento
social enquanto eram gestoras. No entanto, mesmo que tenham se distanciado temporariamente da
MMM durante seus trabalhos como gestoras, as entrevistadas levavam o movimento para dentro do
Estado a partir de suas visões de mundo e desejos de transformação social.
Conforme Tarrow (2012), as ativistas são "estranhas nos portões", uma vez que operam nos
limites entre as políticas instituídas, os aspectos culturais e as instituições. A tensão deriva do fato de
que algumas militantes, ao menos no início, sentiam a confusão de não poder ser plenamente
pertencentes ao movimento social, nem apenas gestoras públicas, como foi descrito pela entrevistada
de RN:

Para mim foi uma confusão de identidade [...] porque a gente até então é sociedade
civil, tem as nossas pautas, e enfim, para a gente o governo sempre foi o outro lado
né, [..] o primeiro choque que eu tive, por exemplo, foi de eu estar em um espaço e
não poder representar a Marcha.

A dificuldade girava em torno da identidade e também de como fazer política em um espaço


diferente daquele que elas estavam acostumadas. Na perspectiva da entrevistada de CE: “Acho que
foi um processo para mim bastante difícil, porque eu tinha muita dificuldade em entender a dinâmica
de governo, a partir de uma estrutura diferente das regras, da lógica de como se organiza a política”.
Essa dificuldade de se enquadrar em uma dessas esferas, conforme mostram os relatos, foi
sendo superada e ao final elas passaram a assumir os compromissos como gestoras públicas, cientes
de que nem todas as pautas do movimento seriam atendidas. Conforme o relato da entrevistada de
MG, ela estava ali “por indicação da Marcha, eu não estava ali para atender exclusivamente a pauta
da Marcha”. Esse trecho foi também explicado pela entrevistada de PE: “O movimento não estava
dentro do governo. Pessoas com relações com os movimentos estavam dentro do governo.” E também
pela entrevistada de RN que declarou: “Mas ali você está sendo governo” e, decorrente disso, “por
mais que você seja de um movimento, você está naquele espaço como um gestor público e você é
passível de todas as diretrizes e sanções que um gestor público é”. Ou seja, quando as militantes
passaram a trabalhar nos governos elas deveriam atuar conforme o projeto político institucional, ainda
que a experiência de militância trouxesse visões e posicionamentos próprios dentro de suas atuações.
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Conforme a entrevistada do CE: “Então não era a partir do Estado que nós ‘ah, vamos fazer a grande
revolução’, mas ao mesmo tempo não cair naquele outro viés de ‘ah, a gente vai fazer apenas o que
pode dentro do Estado”. Logo, havia um terreno singular na atuação delas que deveriam ser gestoras
e seguir o projeto do governo, ao mesmo tempo em que a experiência da militância estava presente
enquanto expectativa, concepção e ação.
As entrevistadas também acreditavam que as ações que estavam desenvolvendo contribuiriam
para o alcance da igualdade, liberdade, autonomia das mulheres, que são buscas do movimento
feminista. Nesse sentido, ao atuarem como gestoras públicas estariam também contribuindo para as
lutas por emancipação. Então não se tratava de uma dupla tarefa (ser ativista e também gestora) mais
sim de uma tarefa única que era a construção de políticas públicas que garantissem um mundo melhor
para as mulheres, assim como para todas as pessoas. Esse objetivo estava na atuação delas como
militantes da MMM e continuou a ser o propósito delas como gestoras públicas, conforme relato da
entrevistada de CE: “Eu tinha a clareza de que era o meu papel contribuir para que, a partir dessas
ações do governo, a gente pudesse fortalecer as mulheres, enfim, em uma perspectiva da Marcha
Mundial das Mulheres”. Tratam-se, então, de mulheres compromissadas com uma transformação
social e que para alcançarem esse objetivo aceitaram participar da gestão pública, levando as
experiências adquiridas no movimento. Aceitar ser gestora tinha relação com o objetivo do
movimento que também era fazer com que as demandas feministas entrassem para agenda estatal e
contribuissem para melhorar a vida das mulheres. Ao atuarem como gestoras, essas militantes tiveram
a oportunidade de levar para o Estado uma perspectiva feminista, ainda que de forma limitada e
permeada de tensões.
Em geral, as entrevistadas relataram que o trabalho na gestão pública foi uma grande
oportunidade para concretizar não só as demandas do movimento, mas teve uma perspectiva mais
ampla de contribuir com políticas públicas que buscassem construir uma sociedade mais justa e
igualitária, em constante diálogo e negociação com diversos setores envolvidos nesse processo.
Conforme a entrevistada do CE, o convite para trabalhar na gestão pública petista: “Era uma
possibilidade muito grande da gente contribuir para melhorar a vida das mulheres.”
Logo, ser militante trazia benefícios e aprendizados como gestora, ao mesmo tempo em que
ser gestora era também uma forma de atender às expectativas e anseios delas como militantes.

Considerações finais

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O trabalho mostrou que ativistas/militantes estatais, ainda que atuando por dentro do Estado,
conseguem defender algumas pautas do movimento, ao mesmo tempo em que tecem relações com
suas bases. Logo, nem passam a ser burocratas e nem se distanciam totalmente dos movimentos
sociais. Nesse sentido a presente interpretação sobre o ativismo estatal destaca algumas nuances nessa
experiência.
Mostramos também, que as ativistas se entendem em um terreno dúbio entre o movimento
social e o Estado. Parte das ações dessas militantes na estrutura do estado foi promover mais
mobilização social e é para o movimento social que elas voltam a atuar quando saem do governo
federal.

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Marcha Mundial das Mulheres. 8 de março inicia jornada de atos contra governo Bolsonaro.
Reportagem publicada em 11 de março de 2019. Disponível em:
<http://www.marchamundialdasmulheres.org.br/8-de-marco-inicia-jornada-de-atos-contra-governo-
bolsonaro/>. Acesso em agosto de 2019s.
Marcha Mundial das Mulheres. Cem mil margaridas marcham em Brasília por terra, igualdade e
democracia. Reportagem publicada em 17 de agosto de 2019. Disponível em: <
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Tarrow, S. (2012). Strangers at the gates: movements and States in contentious politics. Cambridge:
Cambridge University Press.

SOCIAL MOVEMENT STRATEGIES: BEYOND DUAL INTERPRETATIONS

Abstract: Certain interpretations of social movements consider that the incentive for militants to
occupy public positions leads to their demobilization. Another type of interpretation is betting that
acting within the State is one of the strategies of the movements, defined from different contexts.
However, the search for patterns to explain their strategies ends up reducing the various possibilities.
To problematize such interpretations, the text resumes and analyzes the guidelines of the World
March of Women (Marcha Mundial das Mulheres) in Brazil and their relationship with the State
through the examination of documents produced by the movement and interviews with some of its
members, who held or occupy public positions. Theoretically, the text takes up the literature on
political confrontation, highlighting the relationship between the conjunctures and the strategies of
social movements, without, however, limiting them. The results demonstrate that the construction of
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political strategies by social movements takes place based on local and national contexts, considering
broader objectives, which dialogue with the international scenario. Furthermore, institutionalization
is not opposed to grassroots work. Finally, it is shown that, despite the search for patterns in
movement strategies, they are diverse and coexist in the same political context. The work contributes
to studies on the interrelationship between social movements and the State by demystifying certain
dual interpretations of this relationship.
Keywords: Social Movements; Marcha Mundial das Mulheres; Political Confrontation.

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