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Paul B. Preciado 2
No meio do fogo cruzado acerca das políticas sobre assédio sexual, eu gostaria
me manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o 'dos homens' e o 'das
mulheres' (dois mundos que poderiam muito bem não existir, mas que alguns se
empenham em manter separados por um tipo de muro de Berlim), para dar-lhe
notícias a partir da posição de 'objeto encontrado', ou melhor, de 'sujeito perdido'
durante a travessia.
Não falo aqui como um homem que pertenceria à classe dominante, daqueles
aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como
membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se
exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina.
Tampouco falo como mulher, visto que eu, voluntariamente e intencionalmente,
abandonei essa forma de encarnação política e social. Expresso-me aqui como um
homem trans. Portanto não reivindico, de forma alguma, a representação em qualquer
coletivo. Não falo nem posso falar como heterossexual, nem como homossexual,
embora conheça e viva ambas as situações, uma vez que, quando alguém é trans, tais
categorias tornam-se obsoletas. Falo como desertor de gênero, um fugitivo da
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Traduzido por Tatiana Bustamante. O texto original se encontra no site:
http://www.liberation.fr/debats/2018/01/16/lettre-d-un-homme-trans-a-l-ancien-regime-sexuel_1622879 .
Acessado dia 18 de janeiro de 2018.
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“Paul B. Preciado é filósofo, curador e ativista transgênero. Nascido Beatriz Preciado, realizou
experimentos de auto-intoxicação com o hormônio testosterona e outras drogas, o que, dentre outras
circunstâncias, levaram Preciado a efetivar a sua transição. A sua obra inaugural, Contra-Sexual
Manifesto (2000) foi publicado primeiramente na França e, sem seguida, na Espanha (2002). Autor
também de Testo Yonqui (2008) e Pornotopía (2010), Preciado se tornou reconhecido no cenário
mundial como um dos principais pensadores dos estudos de gênero, das políticas de identidade e da
sexualidade”
sexualidade, um dissidente (às vezes desajeitado, já que desprovido de códigos pré-
estabelecidos) do regime da diferença sexual. Como uma auto-cobaia da política
sexual que experimenta, ainda não tematizada, viver de cada lado do muro e que, ao
atravessá-lo diariamente, começa a cansar-se, senhoras e senhores, da rigidez
recalcitrante de códigos e desejos que impõe o regime hetero-patriarcal.
Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que
a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-
fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política)
consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará
seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os
tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas
heterodoxos embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se
juntaram vozes 'femininas' que desejam continuar a ser 'importunadas /perturbadas'.
Esta será a Guerra dos Mil Anos - a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e
processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito
soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não
é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.
Robocop e Alien
Faz anos que a cultura queer tem sido um laboratório de invenção de nova
estética da sexualidades dissidentes, face a técnicas de subjetivação e aos desejos da
heterossexualidade necropolitica hegemônica. Muitos de nós já abandonaram a
estética da sexualidade Robocop-Alien há muito tempo. Aprendemos com as culturas
butch-fem e BDSM, com Joan Nestle, Pat Califia e Gayle Rubin, com Annie Sprinkle e
Beth Stephens, com Guillaume Dustan e Virginie Despentes, que a sexualidade é um
teatro político em que desejo, não a anatomia, escreve o roteiro. É possível, dentro da
ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser
penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma
presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer
daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não-
naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do
poder.
Estética da heterossexualidade