Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Godelier O Enigma Do Dom
Godelier O Enigma Do Dom
O enigma do
dom
TRADUÇÃO DE
Eliana Aguiar
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Rio de Janeiro
2001
C OPYRIG H T €> Librairie Arthème Fayard, 1996.
CAPA
Evelyn Grumach
PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e Jo ã o de Souza Leite
CIP-BRASIL CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
CDD 306.3
01-0996 CDU 316.334.2
Impresso no Brasil
2001
Sumário
OAS COISAS QUE SE DEVEM OAR, DAS COISAS QUE SE DEVEM VENDER E DAQUELAS QUE
NÃO SE DEVEM DAR NEM VENDER, MAS GUARDAR 7
CAPÍTULO I
O legado de Mauss 19
CAPÍTULO II
Dos objetos-substitutos dos homens e dos deuses 163
CAPÍTULO III
O sagrado 257
CAPÍTULO IV
BIBLIOGRAFIA 319
DAS COISAS QUE SE DEVEM DAR, DAS COISAS QUE SE DEVEM VENDER
E DAQUELAS QUE NÃO SE DEVEM DAR NEM VENDER, MAS GUARDAR
Por que este livro? Por que empreender uma nova análise do dom, de
seu papel na produção e reprodução do laço social, de seu lugar e de
sua importância mutáveis nas diversas formas de sociedade que coe
xistem nos dias de hoje na superfície desta nossa terra ou que se suce
deram no decorrer do tempo? Porque o dom existe em todo lugar,
embora não seja o mesmo em toda parte. Mas o parentesco também
existe em todo lugar, assim como a religião, a política. Então, por que
o dom? Por que este livro?
Ele nasceu do encontro, da pressão convergente de dois contex
tos, um sociológico, uma análise efetiva da sociedade ocidental à qual
pertenço, e um outro que me é pessoal de outra maneira, aquele do
ofício que outrora escolhi exercer na vida, um contexto profissional,
uma situação dos problemas teóricos debatidos hoje em dia pelos an
tropólogos, entre os quais me incluo.
O contexto sociológico não me é próprio. Ele está presente sob os
olhos de todos, ao redor de cada um e, como muitos, se o partilho, não
o escolhi. De que se trata? E o contexto de uma sociedade ocidental na
qual se multiplicam os excluídos, de um sistema econômico que, para
permanecer dinâmico e competitivo, deve “enxugar” as empresas, re
duzir os custos, aumentar a produtividade do trabalho e, por isso, di
minuir o número daqueles que trabalham, jogá-los maciçamente no
desemprego — um desemprego que se espera provisório e que, para
7
MAURICE GODEtIER
8
O ENIGMA DO DOM
9
MAURICE GODELIER
‘Mareei Mauss, “Essai sur le don. Forme et raison de 1’échange dans les sociétés
archaiques”, UAnnée sociologique, nova série, 1, 1 9 2 5 , in id., Sociologie e
Anthropologie, Paris, PUF, 1950, p. 258.
1 0
O ENIGMA DO DOM
í 2Ibid., p. 270.
1 1
MAURICE GODELIER
1 2
O ENIGMA DO DOM
13
MAURICE GODELIER
1 4
O ENIGMA DO DOM
‘ Palavra inglesa originária de uma língua dos índios americanos. Dom de caráter
sagrado que constitui, para quem o recebe, um desafio a dar um presente equiva
lente (N. daT.).
1 5
MAURICE GODELIER
5Maurice Godelier, La production des Grands Hommes, Paris, Fayard, 1982. Nova
edição, 1996.
‘Annette Weiner, Inalienable Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving,
Berkeley, University of Califórnia Press, 1992.
1 6
O ENIGMA 00 DOM
17
CAPÍTULO I O legado de Mauss
0 BRILHO DE U M A GRANDE OBRA E SUAS SOMBRAS
Foi para responder a esta questão que ele reuniu todos aqueles
materiais presentes no livro e que estes, sob o impacto desta questão,
tinham começado a animar-se de um novo sentido. O que mais me
impressionara, como à maioria dos leitores do “Essai sur le don”, fora
ver Mauss apontar a existência, no seio das mais diversas formas de
trocas e prestações, de uma mesma força encarnando-se em três obri
gações, distantes mas encadeadas, e que precipitava as pessoas e as coisas
em um movimento que, cedo ou tarde, trazia as coisas de volta às pes
soas e fazia coincidir o ponto de chegada de todos estes dons e con-
tradons com seu ponto de partida.
MAURICE GODELIER
O d om , um a relação dupla
Para explicar por que se dá, Mauss avançava uma hipótese um pouco
menos “espiritual” e que está explícita em suas análises do potlatch. E
a hipótese de que o que obriga a dar é precisam ente o fa to d e que dar
obriga. Dar é transferir voluntariamente algo que nos pertence a al
guém de quem pensamos que não pode deixar de aceitar. O doador
pode ser um grupo ou um indivíduo que age sozinho ou em nome do
grupo. Assim como o donatário pode ser um indivíduo ou um grupo
ou uma pessoa que recebe o dom em nome do grupo que representa.
22
O ENIGMA DO DOM
2 3
MAURICE GODELIER
2 4
O ENIGMA DO DOM
25
MAURICE GODELIER
2 e
0 ENIGMA DO DOM
2 7
MAURICE GODELIER
o enigma assim criado lhe parece resolvido pelo fato de que há nas coisas
dadas uma força que as leva a circular e a voltar para seu proprietário. A
solução encontra-se na área dos “mecanismos espirituais”, das razões
morais e religiosas, das crenças que emprestam às coisas uma a lm a , um
espírito que as leva a voltar a seu lugar de nascimento:
“Ibid., p. 153.
’Ibid., p. 161. Grifo nosso. Elsdon Best escreve o nome de seu informante maori
“Tamati Ranapiri”, enquanto Mauss escreve sempre “Ranaipiri”. Decidimos manter
a versão de Mauss porque ela figura em muitas de nossas citações.
28
O ENIGMA 00 DOM
Pode-se levar ainda mais longe a análise e provar que nas coisas trocadas
no potlatch há uma virtude que força os dons a circular, a serem da
dos e a serem restituídos10.
10Ibid., p. 214.
nIbid., p. 224 e 225.
2 9
MAURICE GODEIIER
Lévi-Strauss escreveu:
3 0
0 ENIGMA DO DOM
"Ibid., p. XXXVIII.
“ Ibid., p. XLIV
3 1
MAURICE GODELIER
I 16Ibid., p. L.
3 2
O ENIGMA DO DOM
3 3
MAURICE GODELIER
3 4
O ENIGMA DO DOM
Ele procede em várias etapas que iremos percorrer com ele. No co
meço há esta crítica a Mauss que não podemos senão partilhar:
3 5
MAURICE GODELIER
3 6
0 ENIGMA 00 DOM
As concepções do tipo mana são tão freqüentes e difusas que seria con
veniente perguntar se não estamos diante de uma forma de pensamento
universal e permanente que, longe de caracterizar certas civilizações ou
pretensos estados arcaicos ou semi-arcaicos do espírito humano, seria
função de uma certa situação do espírito diante das coisas, devendo
aparecer para nós a cada vez que tal situação se apresenta27.
27Ibid., p. XLIII.
“Ibid., p. XXXI.
a i
MAURICE GODEUER
Estes tipos de noções {mana, hau) [...] intervém [...] para representar
um valor indeterminado de significação, vazio em si mesmo de senti
do e, portanto, suscetível de receber qualquer sentido, cuja única fun
ção é preencher um espaço entre o significante e o significado29.
"Ibid., p. XLIV
‘ Designam qualquer objeto cujo nome não importa, não se sabe ou não se quer
declinar. Equivalente, em português, a troço, treco (N. da T.).
30Ibid., p. L.
3 8
O ENIGMA DO DOM
"Ibid., p. XLIX.
32Ibid., p. XLIX.
3 9
MAURICE GODELIER
E finalmente:
“ Ibid., p. XXII.
34Ibid., p. XLVII-XLVIII.
3sIbid., p. XXXII.
4 0
O ENIGMA DO DOM
Não sei se Lévi-Strauss continua concordando com esta análise, mas hoje
em dia eu sei por que não mais concordaria com ela. Primeiramente, para
voltar aos polinésios, aos conceitos de hau e mana, porque mesmo que
estes conceitos indígenas sejam “falsos conhecimentos”, eles têm como
conteúdo as práticas nas quais estão implicados o dom, a criação de obri
gações duráveis, sagradas, a demarcação de diferenças, de hierarquias etc.
Em suma, mesmo se é evidente que a capacidade de elaborar símbolos e
de comunicar o conteúdo de uma experiência através de símbolos que a
exprimem não é um produto direto do desenvolvimento da sociedade, mas
um produto do desenvolvimento do cérebro, suporte material do espíri
to, é sempre necessário, não importa o que diga Lévi-Strauss, “elaborar
uma teoria sociológica do simbólico36” usada por uma sociedade determi
nada e numa época determinada para inventar e exprimir a si própria.
Se é legítimo pensar que o ser do homem não se reduz a seu ser cons
ciente e que existem, além do consciente, forças e princípios que não
param nunca de agir, talvez seja preciso tomar algumas precauções quan
do se invoca a ação de estruturas mentais inconscientes para explicar
fatos, comportamentos que não se encontram em todas as sociedades
nem em todas as épocas ou que podem ser encontrados, mas não têm o
mesmo sentido nem a mesma importância. É preciso, portanto, algo mais
que a ação das estruturas inconscientes do espírito para explicar as trans
formações e os desenvolvimentos dás produções conscientes do homem.
Esta é a dificuldade que o próprio Lévi-Strauss iria encontrar, uma vin
tena de anos mais tarde, quando invocou “a dormência da semente” para
explicar a aparição, na Grécia antiga, de formas de pensamento (cientí
ficas e filosóficas) que se distinguiam do discurso religioso e se opunham
à mitologia das antigas cosmogonias. Ali, mas foi também o caso em
3<Claude Lévi-Strauss: “Mauss ainda considera possível elaborar uma teoria socio
lógica do simbolismo, embora o necessário seja, evidentemente, buscar uma ori
gem simbólica da sociedade”, ibid., p. XXII.
41
MAURICE GODELIER
4 2
O ENIGMA DO DOM
das as línguas, ela falará apenas algumas delas e terá no pensamento não
“a totalidade do significante”, mas uma parte, mais ou menos estendida,
dos pensamentos, das “coisas significadas” e portadas por estas línguas.
Em suma, podemos nos perguntar quem é o mais mistificado: Mauss,
que crê no valor explicativo das crenças polinésias, ou Lévi-Strauss, que
acredita no big-bang da aparição da linguagem e na origem simbólica da
sociedade humana. Seria certamente interessante reconstituir o contexto
histórico e subjetivo destas duas visões e destas crenças, mas o que nos
interessa aqui é constatar que em Lévi-Strauss ocorria, assim como em
Lacan e outros pensadores dessa época, uma mudança geral d e perspecti
va na análise dos fatos sociais, um deslocamento do real e do imaginário
paira o simbólico e a afirmação do princípio de que, entre o imaginário e o
simbólico (que não podem existir separadamente), é o sim bólico que d o
mina e deve ser, portanto, o ponto de partida de todas as análises.
J7Jacques Lacan, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 825. Lacan,
em seu esforço constante para “afirmar a autonomia do simbólico” que Freud,
como ele nota com razão, “nunca havia formulado”, é bem menos prudente que
Lévi-Strauss quando este último postula o big-bang da emergência da linguagem.
Para Lacan, de fato, a ordem simbólica “é absolutamente irredutível àquilo.que
comumente denominamos experiência humana” (p. 383) e “não se pode deduzi-
la de nenhuma gênese histórica e psíquica”, um pouco como a idéia de Deus em
Descartes não pode ser produto do pensamento humano, pois, como o entendi
mento humano é limitado e a idéia de Deus supõe o infinito, somente Deus pode
ria colocar tal idéia na cabeça dos humanos. Aliás, o próprio Lacan, como sublinha
Jean-Joseph Goux, “multiplica as referências históricas e antropológicas que inci
tam a destacar certos momentos de emergências sócio-históricas privilegiadas desta
ordem simbólica [...] a troca de mulheres, os hieróglifos, a álgebra, o nome do
pai, as escrituras, a lei, as máquinas”. Jean-Joseph Goux, “Les médiateurs de
l’échange”, intervenção no seminário Psychanalyse et Sciences Sociales, Paris, 1994.
4 3
MAURICE GODELIER
38Lévi-Strauss: “Nós não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mi
tos, mas como os mitos se pensam nos homens e à sua revelia. E talvez [...] seja
conveniente ir ainda mais longe, fazendo abstração de qualquer sujeito, para con
siderar que, de uma certa maneira, os mitos se pensam entre eles” (Le Cru et le
Cuit, Paris, Plon, 1964, p. 20. Grifado por C. Lévi-Strauss).
4 4
O ENIGMA DO DOM
4 5
MAURICE GODEUER
4 6
0 ENIGMA DO DOM
4 7
MAURICE GODELIER
4 8
O ENIGMA DO DOM
4 9
MAURICE GODELIER
5 0
0 ENIGMA 00 DOM
5 1
MAURICE GODELIER
Um Mauss esquecido
Entre as notas preciosas de Mauss sobre os dons dos homens aos deuses,
encontram-se várias alusões ao fato de que nem todas as riquezas se tro
cam , de que há nas Trobriands, por exemplo, dois ti£>os de objetos pre
ciosos, de vaygu’a (braceletes e colares): “aqueles do kula e aqueles que
M. Malinowski chama pela primeira vez de ‘vaygu’a permanentes’, que
I 49Ibid„ p. 164.
5 2
O ENIGMA DO DOM
Parece que entre os kwakiutls havia dois tipos de cobres: os mais im
portantes, que não saem da família, que não se podem quebrar para
refundir, e outros que circulam intactos, de menor valor e que pare
cem servir de satélites para os primeiros. A posse destes cobres secun
dários, entre os kwakiutls, corresponde sem dúvida à posse de títulos
nobiliários e de categorias de segunda ordem, com os quais eles via
jam de chefe em chefe, de família em família, entre as gerações e os
sexos. Parece que os grandes títulos e os grandes cobres permanecem
fixos no interior dos clãs e das tribos. Seria aliás difícil que as coisas
acontecessem de outro modo51.
50Ibid., p. 216-217.
MIbid., p. 224.
53
MAURICE GODELIER
s2Mauss: “Parece que entre os kwakiutls havia dois tipos de cobres: os mais im
portantes que não saem da família [...] outros que circulam intactos, de menor
valor e que parecem servir de satélites aos primeiros.” E a propósito dos objetos
preciosos das Trobriands: “Os dois tipos de vaygu’a, aqueles do kula e aqueles
que M. Malinowski chama pela primeira vez de vaygu’a permanentes, aqueles que
não são objeto de troca obrigatória” (ibid., p. 224).
5 4
O ENIGMA 00 OOM
ss
MAURICE GODELIER
S3Ibid., p. 156. Cf. Annette Weiner, “Plus précieux que l’or: relations et échanges
entres hommes et femmes dans les sociétés d’Óceanie”, Annales ESC, n° 2 ,1 9 9 2 ,
p. 222-245.
O ENIGMA 00 DOM
5 7
MAURICE GODELIER
D o du plo fu n d am en to d a socied ad e
s 8
0 ENIGMA DO DOM
essas duas pernas, a repousar sobre estas duas bases que lhe são tão
necessárias uma quanto a outra e não podem existir uma sem a outra.
Portanto, há sempre no social humano coisas que escapam ao contra
to, que não são negociáveis, que se situam além da reciprocidade. Quer
no parentesco, quer na política, há sempre em todas as atividades hu
manas, para que se constituam, algo que precede a troca e onde a troca
vem se enraizar, algo que a troca altera e conserva alternadamente,
prolonga e renova ao mesmo tempo. Essa antecedência cronológica e
essa prioridade lógica só existem como m om entos de um movimento
perpétuo que tem sua fonte no modo de existência original do homem
como ser que não somente vive em sociedade (como os outros animais
sociais), mas produz sociedade para viver.
E se, para fechar este ponto, fosse preciso citar um filósofo, por que
não Aristóteles, que de um lado' afirmava em Ética a N icôm aco: “Se não
houvesse troca, não haveria vida social”, mas que, na Política, rejeitava a
idéia de que a sociedade humana pudesse ter nascido de um contrato. Na
polis, escreve ele, existe mais que um contrato, uma aliança, que uma
summachia. Senão, diz ele: “Os etruscos e os cartagineses, e todos os po
vos entre os quais existem sumbola mútuos, seriam todos cidadãos de uma
mesma cidade57.” Logo, não é por acaso que a maioria dos teóricos que
proclamam o primado do simbólico sobre o imaginário funda a origem da
sociedade em um contrato. Antes do símbolo nada havia, em seguida houve
tudo. Antes da emergência da linguagem, antes da proibição do incesto,
antes do contrato social originário, a sociedade não existia ou, se existia,
não tinha sentido. Depois, ela surgiu e se pôs a significar alguma coisa.
Ao chegar a esta questão da existência de uma ou várias origens da
sociedade, vamos nos abster de ir além destas poucas sugestões formu
ladas a título de uma primeira abordagem. Elas nos permitiram, contu
do, medir os mecanismos associados à análise do lugar e da importância
do dom no funcionamento e na evolução das sociedades humanas. Este
5 9
MAURICE GODELIER
lugar não pode ser definido, esta importância medida se não tivermos
uma visão mais preçisa das relações que existem entre a esfera das coi
sas sagradas que não se trocam e a dos objetos preciosos ou das moe
das que entram nas trocas de dons e nas trocas comerciais.
Para levar esta tarefa a cabo, vamos nos dedicar agora a um novo
exame dos materiais etnográficos que conhecemos melhor, o dos baruyas
da Nova Guiné. Há, no entanto, um paradoxo ao fazer tal escolha. En
tre os baruyas, com efeito, a prática do dom e do contradom das mulhe
res entre as linhagens é uma forma desgastada de prestação total; e mesmo
tendo uma enorme importância social, não pode ser encontrada em
outros domínios da vida social. Toda a esfera das relações políticas gira
efetivamente em torno da posse e do uso de objetos sagrados que cada
clã guarda preciosamente e não pode dar ou trocar. Aliás, os baruyas
produzem uma “quase-moeda”, o sal, com a qual conseguem toda uma
série de meios de subsistência e de bens preciosos, sem jamais acumulá-
los para utilizar em uma competição pelo poder. O paradoxo é que para
analisar a lógica da sociedades organizadas em torno do potlatch, parti
remos da análise de uma sociedade sem potlatch. Mas, como veremos,
este método é conforme às indicações de Mauss e permite que nos dote
mos dos meios para determinar as diferenças, as distâncias significativas
entre as sociedades com dom sem potlatch e as sociedades com potlatch.
Ele permite também que precisemos as transformações sociais e históri
cas que possibilitaram o nascimento e o desenvolvimento, a partir de
sociedades que praticam o dom sem rivalidade, de sociedades em que
este é praticado sistematicamente dentro de um espírito de rivalidade e
antagonismo, para ter acesso a posições de poder e renome.
eo
O ENIGMA DO DOM
6 1
MAURICE GODELIER
O tipo mais puro dessas instituições parece ser representado pela aliança
das duas fratrias nas tribos australianas ou norte-am ericanas em geral,
onde os ritos, os casam entos, as sucessões nos bens, os laços de direito
e de interesses, as categorias militares e sacerdotais, tudo é com p le
m entar e supõe a colab oração das duas m etades da tribo62.
A prestação total se traduz, no caso de dois clãs, pelo fato deles esta
rem sempre em estado de co n trato perpétuo, cada um devendo tudo a
tod os os outros de seu clã e a tod os aqueles do clã em frente. O cará
te r perpétuo e coletivo de tal con trato faz dele um verdadeiro tratad o
co m exposição necessária das riquezas em relação à ou tra parte83.
M uito mais difundida na origem, a prestação total ainda existe entre espo
sos, a menos que seja especificado o contrário no contrato de casamento64.
“ Ibid.
<3Id., Manuel d ’etbnographie, op. cit., p. 188.
MIbid., p. 185.
65Id., “Essai sur le don”, art. cit., p. 151.
6 2
O ENIGMA DO DOM
Segunda característica:
O que eles tro cam não são exclusivam ente bens e riquezas, [...] coisas
econom icam ente úteis, são sobretudo cortesias, festins, ritos, serviços
m ilitares, m ulheres, crianças, danças, feiras, nos quais o m ercad o é
apenas um m om ento e a circulação de riquezas som ente um dos ter
mos de um co n trato mais geral e mais perm anente6*.
E enfim:
6<Ibid.
67Ibid.
68Ibid., p. 152-153.
6 3
MAURICE GODELIER
6,Ibid., p. 153.
70Ibid., p. 154.
6 4
0 ENIGMA DO DOM
65
MAURICE GODELIER
kouré, que cresce a seus pés e, dizem os baruyas, a substitui depois que
a planta deu seus frutos.
Os baruyas conhecem também um outro tipo de casamento cha
mado apm wétsalairaveumatna, que quer dizer reunir (irata) sal (tsala)
para tomar (m atn a) uma mulher (apm w évo). Trata-se, portanto, de
uma fórmula de casamento que não repousa sobre a troca direta de
mulheres, mas sobre a troca de riquezas contra mulheres. Este tipo
de casamento, os baruyas não praticam jam ais entre si, mas com in
divíduos e linhagens que pertencem a tribos com as quais eles comer
ciam. Estas tribos não entram no ciclo de relações de guerra e paz
que caracterizam as relações dos baruyas com seus vizinhos. São tri
bos estrangeiras mas “amigas para sempre”. Voltaremos aos proble
mas causados por essa essa coexistência na mesma sociedade de duas
fórmulas distintas de casamento, a troca de mulheres contra mulhe
res e a troca de mulheres contra riquezas. Isto porque, conforme
demonstraremos, entre os baruyas existe dom e contradom, mas não
existe potlatch. O que já deixa perceber que o desenvolvimento do
potlatch pressupõe que o casamento no interior de uma sociedade
não repouse exclusiva ou principalmente no princípio da troca direta
de mulheres.
O interesse deste exemplo — que é um entre centenas de outros
semelhantes, com a diferença, no entanto, de que o observei pessoal
mente em campo enquanto que os outros, eu os conheço apenas atra
vés dos livros de meus colegas — é justamente no fato sociológico de
que o contradom de uma irmã não anula a dívida que cada um dos
homens contraiu em relação ao outro ao receber dele uma esposa. O
dom, bem entendido, assim como a dívida, não envolve apenas os in
divíduos, neste caso os dois homens e as duas irmãs (reais ou, às vezes,
classificatórias), mas também as duas linhagens às quais eles perten
cem, linhagens que, entre os baruyas, são grupos de parentesco orga
nizados segundo um princípio de descendência patrilinear, isto é, de
grupos compostos de homens e mulheres que afirmam descender, atra
vés dos homens, de um mesmo ancestral. Em suma, a troca de mulheres,
ee
O ENIGMA 00 DOM
6 7
MAURICE GODELIER
6 8
O ENIGMA DO DOM
Em nenhum lugar essa lógica está mais evidente do que quando o dom
de uma coisa é seguido imediatamente por um contradom que devolve
ao doador inicial a mesma coisa que ele tinha acabado de dar. Para um
observador ocidental, esta ida e volta da mesma coisa parece desprovi
da de sentido, pois, se a coisa é devolvida tão logo foi dada, parece que
foi trocada por nada. É então que o dom se transforma em um “enigma”.
De fato, a ida e volta quase imediata do mesmo objeto é talvez a
mais nítida ilustração da lógica implícita nos dons que criam dívidas
que um contradom não anula. Pois o objeto que retorna a seu proprie
tário inicial não é “devolvido72-”, ele é “dado de volta”. E no curso de
sua ida e volta o objeto não se deslocou por nada. Muitas coisas se
passaram graças a seu deslocamento. Duas relações sociais idênticas,
mas em sentido inverso, foram produzidas e encadeadas uma à outra,
ligando assim dois indivíduos ou dois grupos em uma dupla relação de
dependência recíproca. O dom e o contradom de um mesmo objeto
talvez sejam o menor deslocamento necessário para que uma presta
ção “total” se ponha em movimento. Ao cabo desta análise de um
6 9
MAURICE GODELIER
7 0
O ENIGMA DO DOM
71
MAURICE GODELIER
75Ibid„ p. 224.
7íIbid., p. 256, nota 2.
72
0 ENIGMA DO DOM
^Ler sobre este ponto Peter Gathercole, “Hau, Mauri and Utu: A Re-exami-
nation”, Mankind, n. 11, 1978, p. 3 3 4 -3 4 0 ; Grant MacCall, “Association and
Power in Reciprocity and Requital; More on Mauss and the Maori”, Oceania, 52
(4), 1982, p. 3 03-319; Geoffrey MacCormack, “Mauss and the ‘Spirit’ of the Gift”,
Oceania, 5 2 (4), 1982, 2 8 6-293; Luc Racine, “L’obligation de rendre les présents
et l’esprit de la chose donnée: de Mareei Mauss à René Maunier”, Diogène, n. 154,
1991, p. 69-94; Michel Panoff, “Mareei Mauss, the Gift Revisíted”, Man, n. 5 ,1 9 7 0 ,
p. 60-70.
7 3
MAURICE GODELIER
A grande distinção que dom ina nosso direito en tre d ireito pessoal e
d ireito real é um a distinção arbitrária que em larga m edida é ign ora
da p o r ou tras sociedades. D epois do d ireito ro m an o , realizam os um
esforço en orm e de síntese e u nificação; m as o d ireito, e p articu lar
jus utendi et abutendi não p arte
m ente o d ireito de p rop ried ad e, o
de um princípio ú n ico, ele chega até ele [...]Deixaremos completa
mente de lado a questão de saber se a propriedade é coletiva ou indi
vidual. Os term os que co lo cam o s sob re as coisas n ão ap resen tam
n enhum a im p ortân cia, p od em os en co n trar p rop ried ad es coletivas
adm inistradas p or um único indivíduo, o p atriarca, em um a família
indivisa etc. e tc .78.
74
O ENIGMA DO DOM
75
MAURICE GODELIER
7 6
O ENIGMA DO DOM
meras vezes. Desde 1929, Raymond Firth, em sua síntese Prim itive
Ecortom ics o f t h e N ew Z ealand M aori81, negava qualquer fundamen
to na interpretação “excessivamente religiosa” de Mauss para a no
ção de hau:
77
MAURICE GODELIER
Vou falar-lhe do hau [...]. O hau não é o ven to que sop ra. D e fo rm a
algum a. Faça de co n ta que possui um d eterm in ad o artig o ( taonga) e
que vai d á-lo a m im ; ele m e será dado sem p reço fixo . N ó s n ão ne
gociam os a tal p rop ósito. O ra, eu dou este artig o a um a te rc e ira pes
soa que, depois de passado um certo tem p o , decide d ar algum a coisa
em p agam ento ( utu) , d and o-m e de p resente algum a coisa (taonga).
O ra, este taonga que ele m e dá é o espírito (hau) d o taonga que eu
recebi de vo cê e que eu havia dado a ele. O s taonga que recebi p o r
estes taonga (vindos de v o cê), é preciso que eu os restitua. E n ão seria
justo (tika ) de m inha p arte gu ard ar estes taonga p ara m im , sejam eles
desejáveis (ratue) ou desagradáveis (kino). D evo dá-los a vo cê pois
eles são um hau d o taonga que você m e havia d ado. Se eu con servas
se o segundo taonga p ara m im , algo de ruim p od eria m e acon tecer,
seriam en te, até m esm o a m o rte. Assim é o hau, o hau da p rop ried a
de pessoal, o hau dos taonga, o hau da floresta. Kati ena (sobre este
assunto, basta).
7 8
O ENIGMA DO DOM
Vou lhe exp licar algum a coisa sobre o hau da floresta. O m a u ri foi
co lo cad o ou im plantado na floresta pelos to hu nga (os sacerd o tes). É
o m a u ri que faz sobejarem as aves nos bosques, a fim de que o h o
m em possa m atá-las e tom á-las. Estas aves são propriedade dos m auri,
dos tohunga e da floresta. E les p e rten ce m a eles. Assim , eles são um
equivalente desta coisa im p ortan te, o m au ri, e é p o r isso que se diz
que é preciso fazer oferendas ao hau da floresta. Os to hu nga com em
a oferen da p orq u e o m a u ri (a p edra sagrada) é deles. F o ram eles que
a co lo caram na floresta, que a fizeram ser. P or esta razão algum as
79
MAURICE GODELIER
das aves assadas n o fogo sagrad o são postas de lad o p ara serem c o
m idas pelos sacerd otes e apenas p o r eles, p ara que o h a u dos p rod u
tos da floresta e o m au ri voltem ou tra vez à floresta, isto é, ao m au ri.
Sobre isso, basta85.
8 0
O ENIGMA DO DOM
8 1
MAURICE GODELIER
I 87Ibid., p. 197.
8 2
O ENIGMA DO DOM
Sem dúvida o term o ‘lu cro’ é im próprio, tanto econ ôm ica quanto his
toricam ente. N o en tanto, aplicado aos m aoris ele trad u z m elhor que
‘espírito’ o sentido do hau em questão89.
Mais ainda porque Sahlins nos lembra que, no caso dos maoris,
estamos tratando com uma sociedade em que “a liberdade de ganhar
8 3
MAURICE GODELIER
I «“Ibid., p. 214.
8 4
O ENIGMA DO DOM
ria equivalente à de B. Mas três atores são suficientes para nosso exem
plo e, como Ranaipiri, paramos em C. Ora, o que faz C? Ele, por sua
vez, dá a B um objeto, do qual é o proprietário, em troca do objeto que
provinha de A e do qual A manteve-se proprietário. B não pode senão
restituir a A, em relação ao qual ele está em dívida, o objeto recebido
de C, que vai tomar o lugar do objeto recebido de A. A e C eram “pro
prietários” do objeto que deram, mas B, como intermediário, nunca
foi proprietário dos objetos que passaram por suas mãos.
Portanto, entre A e C, os dois extremos da corrente, estabeleceu-
se certamente uma reciprocidade, pois a propriedade de um veio to
mar o lugar daquela do outro. Quanto a B, ele serviu de intermediário
e, na passagem, beneficiou-se ele também com o objeto colocado em
circulação. O que significa que ele também está endividado entre os
dois. E exatamente esta lógica que encontraremos ilustrada pela circu
lação dos vaygu’a, os braceletes e os colares de conchas que circulam
no kula entre as populações das ilhas do nordeste da Nova Guiné.
Vejamos agora a interpretação de Mauss para as formulações de
Ranaipiri:
8 5
MAURICE GODELIER
E Mauss acrescenta em uma nota que “os taonga parecem ser d ota
dos de individualidade mesmo fora d o hau, que lhes confere a relação
I ,2Ibid., p. 159-160.
8 6
O ENIGMA DO DOM
que têm com seu proprietário93”. Este texto confirma nossa interpreta
ção de que finalmente, para Mauss, coexistem em uma só coisa dois
princípios espirituais: um que é a presença do proprietário na coisa, e
o outro que é a presença do espírito próprio desta coisa, independen
temente do proprietário. E seria este espírito, antes de tudo, o que le
varia a coisa a retornar para seu proprietário de origem, igualmente
presente na coisa através de uma parte de seu espírito. Portanto, a ex
plicação de Mauss destaca sobretudo as crenças e as razões “espirituais”,
ideológicas.
Mas com este exemplo já não estamos mais no universo dos dons e
contradons equivalentes, atravessamos a fronteira que leva ao potlatch94.
8 7
MAURICE GODELIER
8 8
O ENIGMA DO DOM
E mais adiante:
«Ibid., p. 201.
'“ Ibid., p. 209-210.
10lIbid., p. 202.
8 9
MAURICE GODELIER
102Ibid., p. 203.
lMIbid, p. 205-206. Grifo nosso.
I04lbid., p. 211-212. Grifo nosso.
9 0
0 ENIGMA DO DOM
l05Ibid., p. 269-270.
I(l<lbid., p. 212, nota 2.
9 1
MAURICE GODELIER
Podem os levar mais longe a análise e provar que nas coisas trocadas
no p otlatch há um a virtude que força os dons a circular, a ser dados, a
ser restituídos107.
O s m ais im po rta ntes, que não saem da fam ília, que não se podem
quebrar para refundir, e os outros, que circulam intactos, de m enor
valor e que parecem servir de satélites para os prim eiros. A posse des
ses cobres secundários entre os kwakiutls corresp on d e sem dúvida à
lü7Ibid., p. 214.
‘““Ibid., p. 222.
9 2
O ENIGMA DO DOM
Além dos cobres, existiam outras coisas preciosas que não saíam
das famílias. “Grandes conchas de madrepérola, os escudos cobertos
com elas [...] as cobertas, elas próprias blasonadas, revestidas de faces,
de olhos e de figuras animais e humanas tecidas, bordadas110.” Cada
uma dessas coisas preciosas “tem, como nas Trobriand, sua individua
lidade, seu nome, suas qualidades, seu poder111”. Entre as coisas precio
sas que têm um nome figuram igualmente os títulos dos nobres, homens
e mulheres, e seus privilégios, suas danças etc. Estas coisas sagradas
são transmitidas de geração em geração pelo casamento e por herança.
Elas deixam o clã para retornar a ele, pois os “privilégios” são cedidos
por um sogro a seu genro, que deve transmiti-los a seu filho. Por isso,
o privilégio cedido ao genro retorna com o neto ao clã de origem. Donde
a observação de Mauss:
9 3
MAURICE GODELIER
que parecem estar na origem direta das riquezas do clã. Não apenas as
produzem e em abundância, mas atraem outras.
Eles têm um a virtude atrativa, que cham a os outros cobres, assim com o
a riqueza atrai a riqueza, com o as dignidades atraem as honras, a pos
se dos espíritos e as belas alianças, e inversam ente114.
114Ibid., p. 224.
" 5Ibid., p. 225.
9 4
O ENIGMA DO DOM
9 5
MAURICE GODELIER
I 119Ibid., p. 227.
9 6
O ENIGMA DO DOM
9 7
MAURICE GODELIER
9 8
O ENIGMA DO DOM
9 9
MAURICE GODELIER
dades que não as nossas. Pois “são as sociedades do Ocidente que, muito
recentemente, fizeram do homem um ‘a n im a l e c o n ô m ic o [ . . . ] p o r m u it o
t e m p o o h o m e m f o i o u tr a c o is a ; n ã o fa z m u it o t e m p o q u e e le é u m a
m á q u in a , c o m p lic a d a p o r u m a m á q u in a d e c a l c u l a r ''17
Chega-se a uma situação em que
127Ibid., p. 272.
12*Ibid., p. 260.
u ,Ibid., p. 260-261.
100
O ENIGMA DO DOM
U0Ibid., p. 195. Grifo nosso. Aliás, Mauss acrescenta que “também os trabalhos
de etnógrafos profissionais mais antigos (Krause, Jacobsen) ou mais recentes (Sapir,
Hill Tont etc.) tomam a mesma direção”.
ulIbid., p. 195.
132Ibid.
U3Ibid., p. 20, nota 3. No entanto, ele aproxima os chefes kwakiutls de seus
homólogos celtas, germânicos etc., tais como deveriam ser antes do desenvolvi
mento do feudalismo no Ocidente. “A civilização germânica”, escreve ele, “res
tou essencialmente feudal e camponesa. Nela, a noção e mesmo as expressões preço
de compra e de venda parecem ser de origem recente. Anteriormente, ela havia
desenvolvido o sistema do potlatch, mas sobretudo todo o sistema de dons [de
prestações não-agonísticas]” (ibid., p. 251). Mauss cita Tácito como se deve. Depois
de Grimm, não mais se parou de fazê-lo na Europa.
1 0 1
MAURICE GODELIER
1 02
0 ENIGMA DO DOM
Vimos várias vezes o quanto toda esta econom ia de tro ca-d om estava
longe de encaixar-se nos quadros da econom ia dita natural [sem tro ca
e/ou sem m ercado], do utilitarismo [ou seja, limitando-se a tro car coi
sas m aterialmente úteis]. Todos estes fenôm enos tão consideráveis da
vida econôm ica de todos estes povos [...] e a considerável sobrevivência
de todas estas tradições nas sociedades próxim as de nós ou nos usos
dos nossos escapam aos esquem as dados, de ordinário, pelos raros eco
nomistas que tentaram com parar as diversas econom ias conhecidas139.
103
MAURICE GODELIER
E Mauss precisa que une seus esforços aos de Malinowski, que con
sagrou “todo um trabalho para derrubar as doutrinas correntes sobre a
economia ‘primitiva’140”. Mas Mauss não considerava suficiente o tra
balho de demolição crítica dessas doutrinas, nem verdadeiramente
satisfatória a análise teórica que ele mesmo desenvolveu como alternativa:
N o en tanto, pode-se ir ainda mais longe do que nós chegam os até aqui:
pode-se dissolver, m esclar, colorir e definir as n oções principais das
quais nos servim os: brinde, presente, dom não são, elas m esm as, p e r
feita m en te exatas. N ão p u dem os enco n tra r outras, eis tu do. O s co n
ce ito s de d ireito e de eco n o m ia , cuja o p o siçã o ta n to n os a p ra z :
liberdade e obrigação, liberalidade, generosidade, luxo — poupança,
interesse, utilidade [...] seria interessante revê-los141.
,40Ibid., p. 266.
I41lbid., p. 267. Grifo nosso.
10 4
O ENIGMA DO DOM
1 0 5
MAURICE GODELIER
1 o 6
O ENIGMA DO DOM
10 7
MAURICE GODELIER
I 145Ibid., p. 275.
10 8
O ENIGMA DO DOM
10 9
MAURICE GODELIER
110
0 ENIGMA DO DOM
H,Jean Lojkine (“Mauss et l’lEssai sur le don’”, art. cit., p. 153-154) foi também
um dos poucos a sublinhar que a reciprocidade “não comercial” não significava
transparência e que existia um “fetichismo não comercial”, do qual o podatch é
um exemplo perfeito. Jean Lojkine mostra claramente que M arx não viu isso
quando escreveu: “Cada servo sob corvéia sabe muito bem, sem precisar recorrer
a um Adam Smith, que é uma quantidade determinada de sua força de trabalho
pessoal que ele despende a serviço de seu senhor. O dízimo a fornecer ao padre é
mais claro que a bênção do padre.” E cabe a Lojkine acrescentar: “Como explicar
então a força da religião [...] assim como o caráter sagrado do poder real?”
111
MAURICE GODELIER
sociedade, indispensável para sua existência, algo que deve circular entre
eles para que todos e cada um possam continuar a existir.
Ora, este algo mais que os objetos dados devem ter, eles o parti
lham com os objetos sagrados que, estes, não circulam. Este algo mais,
Mauss o chamou de alma, espírito, fonte de riqueza e de abundância,
de vida. É aqui, portanto, que o problema se complica. Como inter
pretar os dons preciosos que circulam reconhecendo, ao mesmo tempo,
seu parentesco com os objetos sagrados que não circulam? Desenvol
veremos mais longamente este ponto na segunda parte da obra; aqui
nos contentaremos em apresentar nossa hipótese.
Os objetos preciosos que circulam nàs trocas de dons só podem
fazê-lo porque são duplos substitutos: substitutos dos objetos sagrados
e substitutos dos seres humanos. Como os primeiros, eles são inalie
náveis, mas, à diferença dos objetos sagrados que não circulam, eles
circulam. Não apenas nos potlatchs, nas trocas (competitivas) de ri
quezas contra riquezas, mas igualmente por ocasião dos casamentos,
dos falecimentos, das iniciações, em que funcionam como substitutos
dos seres humanos, dos quais “compensam” a vida (casamento) ou a
morte (de um guerreiro ou mesmo de um inimigo morto no campo de
batalha).
Substitutos das coisas sagradas e dos seres sobrenaturais que nelas
vivem, nelas estão presentes, eles também são substitutos dos seres
humanos, de sua substância, de seus ossos, de sua carne, de seus atri
butos, de seus títulos, de sua categoria, de suas posses materiais e
imateriais. É por isso que podem tom ar o lugar dos homens e das coi
sas em todas as circunstâncias em que for necessário desloca-los ou
substituí-los para produzir novas relações sociais de poder, de paren
tesco, de iniciação etc. entre os indivíduos e entre os grupos ou, mais
simplesmente, para reproduzir as antigas, prolongá-las, conservá-las.
É esta dupla natureza dos objetos preciosos que os torna difíceis de
definir, e logo de pensar, em um mundo em que as coisas são separa
das das pessoas. É ela também que nos permite compreender por que
esses objetos funcionam como moeda sem sê-lo plenamente e perceber
112
O ENIGMA DO DOM
150A moeda é, de certa maneira, um substituto tanto dos objetos sagrados quanto
dos objetos preciosos que originalmente são, eles mesmos, os primeiros, os subs
titutos dos deuses e os segundos, dos homens. O jogo dos substitutos pode seguir
até bem mais longe. Um exemplo notável é o das moedas de oferenda da religião
chinesa, papéis impressos como moedas e que se queimam em recipientes rituais
no interior da casa, em oferenda às divindades protetoras. As moedas de oferenda
são divididas em moedas de ouro (queimadas para as divindades celestes) e moe
das de prata (queimadas para os espíritos nefastos e os manes residentes no infer
no). Estas moedas são utilizadas pelos simples crentes por iniciativa própria. Além
disso, existem as “moedas de tesouraria” e as “moedas para solucionar as crises”.
Seu uso requer especialistas. Estas moedas foram objeto de um notável estudo de
Hou (Ching-Lang) (Monnaies d ’offrande et la notion de trésorerie dans la religion
cbinoise, Paris, PUF-Maisonneuve, 1975). Por trás dessas práticas, está a idéia de
um capital de vida e de felicidade, pelo qual o indivíduo fica em dívida, desde o
seu nascimento, para com a tesouraria, espécie de banco com duas contas — uma
celeste, outra infernal — que gerencia as relações dos humanos com os espíritos e
os deuses. Voltaremos a este tema na conclusão desta obra, quando aludiremos ao
Rig Veda e à noção de divida de vida na índia.
113
MAURICE GODELIER
1 14
O ENIGMA DO DOM
155Ibid., p. 269.
15<Ibid., p. 208, nota 3.
1 1 5
MAURICE GODELIER
116
0 ENIGMA 00 DOM
Para nós, foi o desejo de ver “de novo os ricos voltarem, livre e
também forçosamente, a se considerar como espécies de tesoureiros
de seus concidadãos165” que impediu um exame mais preciso das rela
ções que existiam entre as “classes feudais” das sociedades do Noroes
te americano e a massa das pessoas do povo.
A segunda crítica que foi feita a Mauss foi de não ter tido consciência
clara do caráter anormal do potlatch que Boas havia observado no
começo do século, um potlatch “enlouquecido”, cada vez mais agres
sivo depois dos abalos que a presença e as pressões dos europeus ti
nham gerado na sociedade índia da costa noroeste.
A hipótese de que o potlatch observado por Boas tenha sido com
pletamente alterado foi avançada há muito tempo por etnólogos como
Barnett166, antes dele por Curtis, e parece, hoje em dia, confirmada em
todos os pontos.
Vamos resumir brevemente os abalos conhecidos por estas socie
dades, em particular os kwakiutls. Seus primeiros contatos com os
europeus remontam ao fim do século XVIII, por volta de 1780. Na
época, os kwakiutls eram uma vintena de tribos que viviam da pesca,
da caça e da colheita. Sua economia e sua tecnologia eram caracteriza
das por um alto grau de produtividade. Cada tribo reunia-se no inver
no em uma aldeia dividida em bairros, habitados cada um por um
numaym, grupo de parentesco que Boas chamou, com reservas, de “clã”
1<4Ibid., p. 272.
'«Ibid., p. 262.
'“ Homer G. Barnett, “The Nature of the Potlatch”, American Anthropologist, n°
40, 1938, p. 349-358.
1 1 7
MAURICE GODELIER
l67De fato, um autor como Kirchoff já havia esboçado um modelo deste tipo de
organização social, aproximando-o dos grupos de parentesco dos reinos polinésios,
os kainga. O artigo de Marie Mauzé “Boas, les Kwakiutl et le potlatch: éléments
pour une réévaluation”, LHom m e, XXVI, n° 4, outubro-dezembro de 1986, re
sume com clareza o que sabemos sobre sua organização social.
118
O ENIGMA DO DOM
1 19
MAURICE GODELIER
170Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 223, nota 3: “O sr. Boas estudou
bem o modo como cada cobre aumenta seu valor com a série de potlatchs; assim,
o valor atual do cobre lesaxalayo era, por volta de 1906-1910, de 9.0 0 0 coberto
res de lã, valor de 4 dólares cada um, 50 canoas, 6.0 0 0 mantas com botões, 260
braceletes de prata, 60 braceletes de ouro, 70 brincos de ouro, 4 0 máquinas de
costura, 25 fonógrafos, 50 máscaras.”
120
0 ENIGMA DO DOM
12 1
MAURICE GODELIER
175Ibid.
17íIbid., p. 185.
177Ibid., p. 185, nota 2. Mauss presta, aliás, a mesma homenagem a Turnwald,
que havia trabalhado com os banaros da Nova Guiné e com os buins das ilhas
Salomão.
178Ibid„ p. 266.
17,Ibid., p. 175.
122
O ENIGMA 00 DOM
180Ibid., p. 176.
«'Ibid., p. 175.
182Ibid., p. 176.
183Ibid., p. 177.
1S4Ibid., p. 185.
1 2 3
MAURICE GODELIER
185Ibid., p. 177.
lí6Ibid., p. 178.
1,7Pelo menos na época de Malinowski, parece, pois hoje é o inverso, sem que se
saiba bem quando e por que se produziu tal mudança.
124
O ENIGMA 00 DOM
188Ibid„ p. 180.
I8,lbid., p. 183. Em outra ocasião, Mauss cita Malinowski, que se referia aos co
mentários sobre o kula feitos pelos habitantes de Dobu, comparando os bracele
tes e os colares a cães que “vinham se cheirar” e “brincar, nariz contra nariz”.
'""Ibid., p. 181.
w Ibid.
1 2 5
MAURICE GODELIER
192Ibid„ p. 179.
I,3Ibid., p. 186.
12 6
O ENIGMA DO DOM
1,4Ibid., p. 187.
m Ibid., p. 180.
I,(ílbid., p. 180.
12 7
MAURICE GODELIER
que não era possível com os dados fornecidos por Malinowski. E Mauss
teve consciência disso, o que é notável:
l,7Ibid., p. 184.
198Ibid., p. 191.
128
0 ENIGMA DO DOM
l9,“Em suma, todo o mundo das ilhas, e provavelmente uma parte do mundo da
Ásia meridional que lhe é aparentada, conhece um mesmo [?] sistema de direito e
de economia. A idéia que se deve fazer dessas tribos melanésias, ainda mais ricas
e comerciantes que os polinésios, é portanto muito diferente daquela que se faz
de ordinário. Essa gente tem uma economia extradoméstica e um sistema de tro
cas muito desenvolvido, com ritmos mais intensos e precipitados, quem sabe, do
que aquele que nossos camponeses e que as aldeias de pescadores em nossas cos
tas conheciam há talvez menos de cem anos, Eles têm uma extensa vida econômi
ca que ultrapassa as fronteiras das ilhas e dos dialetos e um comércio considerável.
Ora, eles substituem rigorosamente o sistema de compras e vendas por dons da
dos e restituídos.” Ibid., p. 192-193, grifo nosso. O que é muito interessante nes
te texto é o modo como Mauss avança a idéia de que, nessas sociedades, as trocas
de dons são economicamente mais importantes e dinâmicas que as relações co
merciais, que existem também.
200Ibid., p. 165.
12 9
MAURICE GODELIER
2(MIbid., p. 180.
202Ibid., p. 168. Mauss faz alusão aqui ao artigo de Malinowski publicado em 1917
no Journal o fthe Royal Anthropological Institute (n° 45): “Baloma, the Spirits of
the Dead in the Trobriand Islands”.
20'lbid., p. 176, nota 4.
130
O ENIGMA DO DOM
204Mauss cita uma fórmula do kula da ilha de Sinaketa que sublinha este espírito
de rivalidade: “Eu vou roubar meu kula, eu vou pilhar meu kula, eu vou fazer
kula até que meu barco afunde [...] minha fama é um trovão. Meu passo, um tre
mor de terra.” E Mauss acrescenta: “A conclusão da fórmula é interessante, mas
somente do ponto de vista do potlatch. A cláusula tem aparências estranhamente
americanas” (ibid., p. 182).
205Mauss destaca a famosa citação de Malinowski que Lévi-Strauss também reto
mou: “Toda a vida tribal não é senão um constante 'dar e receber’; toda cerimô
nia, todo ato legal e de costumes só se realiza com um dom material e um contradom
que o acompanha; a riqueza dada e recebida é um dos principais instrumentos da
organização social, do poder do chefe, dos laços de parentesco de sangue e dos
laços de parentesco por casamento” (Malinowski, Argonauts..., op. cit., p. 167;
Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 188).
13 1
MAURICE GODELIER
132
O ENIGMA DO DOM
13 3
MAURICE GODELIER
1 3 4
O ENIGMA DO DOM
pratica, para exaltar seu “eu”, para aumentar sua reputação bem além
dos limites de sua aldeia, de sua ilha. E como ele é praticado por uma
minoria de homens que já detêm o poder em sua sociedade e que exer
cem o kula como um privilégio de sua posição, em Kiriwina o kula é
voltado exclusivamente para o exterior, para outras terras, para o além-
mar. Por isso os objetos do kula não são utilizados, como acontece em
outras partes, nas trocas internas necessárias à reprodução da socieda
de local.
Ora, em Kiriwina, como em outros lugares, essas trocas existem e
marcam o nascimento, o casamento e a morte dos indivíduos. Elas as
sumem uma dimensão excepcional por ocasião das trocas cerimoniais
(sagalt) que se seguem ao falecimento de um homem e se repetem du
rante vários anos. As trocas de dons têm por objetivo “substituir” o
defunto, consolidar as relações de aliança fragilizadas pelo falecimen
to e, sobretudo, providenciar o retorno do corpo do defunto para seu
dala (subclã) de origem, junto com as terras, os nomes e as outras “pro
priedades” do d ala que ele havia cedido ainda vivo, “dando-as”
{mapula)in a seus filhos (sobretudo a terra dada aos filhos). E o chefe
do dala do defunto e suas irmãs que, em nome do d ala, reclamam a
volta dessas propriedades (inclusive os ossos do morto) para seu pro
prietário original. Mas o retorno só acontece se, por sua vez, os mem
bros do dala derem, àqueles que haviam recebido tais propriedades para
seu uso, riquezas que compensem suas perdas. Tudo isso exige muitos
anos e inúmeras trocas cerimoniais funerárias nas quais, para compensar
135
MAURICE GODELIER
2,JCf. Annette Weiner, op. cit., caps. 3 e 4 ; “Plus précieux que l’or: relations et
échanges entre hommes et femmes dans les sociétés d’Océanie”, Annales ESC, n° 2,
1992, p. 222-245.
2l4Frederick Damon, “The Kula and Generalized Exchange: Considering some
Unconsidered Aspects of the Elementary Structures of Kinship”, Man, n. 1 5 ,1 9 8 0 ,
p. 284.
215John Kasaipwalova e Ulli Beier, Yaulabuta; An Historical Poem from the Trobriand
Island, Port Moresby, Institute of Papua New Guinea Studies, 1978.
13 6
O ENIGMA DO DOM
I 37
MAURICE GODELIER
138
0 ENIGMA DO DOM
mw mw mw
k/mw A ------- > B ------- > C ------- > D
A < ------- < -------- < D k/s
s s s
1 3 9
MAURICE GODELIER
1 40
O ENIGMA DO DOM
É , p ortan to, realm ente uma propriedade o que se tem sobre o presen
te recebido, mas é uma propriedade de um certo gênero [...] É um a
propriedade e uma posse, um penhor e um a coisa alugada, um a coisa
vendida e com p rad a e ao m esm o tem p o reg istrad a, m an d atad a e
fideicom etida. Pois ela só lhe é dada com a condição de que vai usá-la
para um ou tro ou transm iti-la a um terceiro ‘parceiro distante’.218
14 1
MAURICE GODELIER
14 2
O ENIGMA DO DOM
É por esta razão, aliás, que o kula exige a presença de pelo menos
três parceiros e que sua natureza só se revela a partir do momento
em que uma “terceira pessoa” intervém como interm ediária. C om
efeito, assim que se introduz um terceiro, a dualidade das relações de
propriedade e de posse que se exercem sobre um objeto kula torna-
se manifesta. E por isso que Ranaipiri escolheu bem o seu exemplo.
Mauss pressentiu que havia uma razão para fazê-lo, mas ela perma
neceu obscura para ele.
Pois se houvesse apenas dois interessados na troca, face a face,
ambos proprietários de um kitoum que cada um desejaria trocar pelo
kitoum do outro, estaríamos simplesmente diante de uma troca não-
agonística de dons equivalentes. Um kitoum de igual categoria viria
ocupar o lugar de um outro kitoum , assim como uma mulher vem ocu
par o lugar de uma outra mulher nas trocas de irmãs praticadas entre
os baruyas. Sahlins já havia feito esta observação a propósito do hau.
De fato, o que interessa às pessoas da região massim quando praticam
o kula não é se encontrarem frente a frente para trocar bens equiva
lentes. O que elas querem é criar dívidas, e dívidas que durem o maior
tempo possível, a fim de acumular prestígio e engrandecer um nome.
Neste sentido, o kula é comparável ao potlatch.
Isto nos permite destacar a grande diferença que existe entre a
prática de dons e contradons não-agonísticos e o kula ou o potlatch.
No kula, quando um objeto de igual categoria e de valor equivalente
vem ocupar o lugar do dom inicial, a dívida é anulada. O contradom
apaga a dívida. Isso é completamente diferente, como vimos, com os
dons não-agonísticos. Nesse caso, os contradons não anulam os dons.
O objeto não é “devolvido”, ele é dado de novo. Os dons criam dívi
das de longo prazo que, muitas vezes, ultrapassam a duração da vida
dos doadores, e os contradons têm co m o motivo primeiro restaurar o
equilíbrio entre os parceiros, a equivalência de seus status — não a
anulação da dívida. Por outro lado, no potlatch ou no kula, as dívidas,
mesmo que a circulação dos objetos dure vários anos, são relativamen
te de curta duração. E os contradons equivalentes anulam as dívidas.
14 3
MAURICE GODELIER
Por isso é preciso recomeçar e dar ou devolver mais para criar novas
dívidas, o que é o objetivo dessas trocas.
Compreendemos agora por que dons e contradons não-agonísticos
podem se produzir simultaneamente ou praticamente ao mesmo tem
po. É porque a dívida não é anulada pelo contradom. Ao contrário, no
potlatch e no kula, porque um contradom equivalente anularia imedia
tamente a dívida, as trocas são sempre separadas no tempo. Logo, é
necessário deixar o tempo passar para acumular um contradom que
possa criar novas dívidas. Isso explica por que as pessoas das ilhas do
Massim partem em expedição de mãos vazias. Elas sabem que coisas
lhes serão dadas lá aonde estão indo. Mas elas também não levam nada
para dar de volta imediatamente. Um ano mais tarde, voltarão de mãos
cheias para, por sua vez, darem também.
Mas há um quarto aspecto do funcionamento do kula que foi muito
bem destacado por Annette Weiner. O kula é um jogo que implica uma
contradição entre o indivíduo e o sistema global do kula na qual pene
tra e que é por ele animado. Para que um indivíduo “ganhe” nesse jogo,
é preciso, como vimos, que ele possua um kitoum de grande valor e
que receba um outro equivalente. Mas seu “ganho” não está aí. Está,
antes de tudo, na reputação que ele ganha, mas também nos “presen
tes”, os “dons” suplementares que sua habilidade ao negociar angaria.
Portanto, ele está também nos suplementos de objetos kula que seu
sucesso lhe garante. Esse suplemento “material” nada mais é que o
“saldo” de todos os dons suplementares que ele teve de fazer para se
duzir e de todos aqueles que lhe foram presenteados para seduzi-lo, o
que significa que o sucesso de um indivíduo implica o insucesso de
outro. Bem entendido, cada um daqueles que se lançam na empresa
está animado pelo desejo e pela ilusão de que será ele o ganhador. Mas
ganhe ou fracasse um indivíduo, interrompa-se rapidamente ou dure
por muito tempo uma rota do kula, aos olhos dos protagonistas, tudo
se passa como se o kula-ring não fosse afetado por tais acidentes, pois
ele continua a girar por si mesmo, sobre si mesmo, parecendo repro
duzir-se por si só, como o mercado.
1 44
O ENIGMA DO DOM
14 s
MAURICE GODELIER
1 4 6
O ENIGMA 00 DOM
O moka
14 7
MAURICE GODELIER
220Andrew Strathern, The Rope o f Moka: Big Men and Cerimonial Exchange in
Mount-Hagen, New Guinea, Cambridge University Press, 1971, cap. 5.
14 8
O ENIGMA DO DOM
221Id., “Finance and Production: Two Strategies in New Guinea Highlands Exchange
Systems”, Oceania, n. 40, 1969, p. 42-67; “Finance and Production Revisited”, in
G. Dalton (ed.), Research in Economic Anthropology, JAI Press, 1978.
149
MAURICE GODELIER
222Id., “Tambu and Kina: “Profit”, Exploitation and Reciprocity in Two New
Guinea Exchange Systems”, Mankind, n. 11, 1978, p. 253-264.
21,Id., “By Toil or by Guile? The Use of Coils and Crescent by Tolai and Hagen
Big Men ”, Journal de la Société des océanistes, X X X I (49), 1975, p. 363-378.
1 5 0
O ENIGMA DO DOM
Primeira seqüência
X ------ > 4 shells -------- > Y
Y > 8 shells -------- > X
Segunda seqüência
Y > 4 shells -------- > X
X ------ > 8 shells -------- > Y
Mas isso não interessa às pessoas, pois o que elas buscam é demons
trar sua generosidade, ganhar prestígio e ter parceiros, mantê-los pelo
maior tempo possível, de sorte que o sistema encerra uma tendência
interna à expansão. O crescimento dos dons, no entanto, não é expo-
nencial. Pois se a diferença dos dons na prim eira seqüência entre X e Y
é de quatro unidades, recomeça-se a partir dessa diferença, isto é, qua
tro unidades, às quais acrescenta-se um certo número de outras. Logo,
há freios para a expansão.
De fato, o ápice para um Big Man é dar o máximo possível sem
exigir retorno. Desse ângulo, o m oka é m uito sem elhante a o potlatch:
o motivo dos parceiros do m oka não é fazer “lucro”, mas aumentar
os dons e criar dívidas. Assim, os porcos passam de mão em mão,
criando dividas e reencontrando outras, que eles anulam. Mas esses
porcos que circulam têm duas origens, como vimos: ou provêm “da
família” ou foram dados para ajudar. De maneira que, sobre este
ponto, é fácil para nós comparar o m oka e o kula porque, embora
não se possa identificar um porco da família com um kitoum , é claro
1 5 1
MAURICE GODELIER
1 5 2
O ENIGMA DO DOM
1 5 3
MAURICE GODELIER
1 54
0 ENIGMA DO DOM
1 s 5
MAURICE GODELIER
1 56
0 ENIGMA DO DOM
157
MAURICE GODELIER
158
O ENIGMA DO DOM
159
MAURICE GODELIER
1 6 o
0 ENIGMA DO DOM
16 1
MAURICE GODELIER
1 6 2
Dos objetos-substitutos dos
homens e dos deuses
Encontramo-nos, portanto, diante de um certo número de problemas
que nossa análise do trabalho de Mauss sobre o dom fez surgir de
maneira bastante inesperada.
De fato, pareceu-nos cada vez mais claro que, ao lado daquilo que
se dá ou que se troca, seria necessário examinar com urgência as coisas
que se guardam; e que o próprio dom ganharia muito se o examinásse
mos à luz daquilo que não se deve dar, mas guardar. Ora, as coisas que
se guardam são muitas vezes “sagradas” e, conseqüentemente, tornou-
se necessário que nos interrogássemos sobre aquilo que conferia uma
característica “sagrada” a esses objetos e, portanto, sobre o que é o
“sagrado”. Aliás, as divisórias não são tão estanques entre os objetos
sagrados e os objetos de valor produzidos para serem dados ou para
serem vendidos, alguns deles funcionando mesmo como “quase-moe-
das”. Os objetos não têm necessidade de ser diferentes para operar em
diferentes domínios e vale a pena examinar como, às vezes, um mes
mo objeto pode ser sucessivamente vendido, dado e terminar enfurnado
no tesouro de uma família ou de um clã. Não é o objeto que cria as
diferenças, são as diversas lógicas dos domínios da vida social que lhe
conferem sentidos diferentes na medida em que se desloca de um para
outro e troca de função e de emprego.
Mas colocava-se também um outro problema, aquele de analisar
um pouco mais de perto as condições sociológicas, logo históricas,
do aparecimento e do desenvolvimento dos dons antagonistas, do
potlatch e das sociedades de potlatch. Sobre este ponto, contentamo-
nos em ouvir Mauss quando sugeriu — sem que isso tenha suscitado
1 6 5
MAURICE GODELIER
4 C. C
0 ENIGMA DO DOM
Os baruyas são uma tribo que vive nos dois vales de uma cadeia de
montanhas do interior da Nova Guiné, as Eastern Highlands. Sua re
putação de produtores de sal fez com que fossem conhecidos por nu
merosas tribos que jamais os tinham encontrado antes, mas que
compravam o sal que produziam das tribos com as quais eles comercia
vam. Os ancestrais dos baruyas não habitavam onde seus descendentes
habitam agora: viviam na região de Menyamya, em Bravegareu-
baramandeuc, um local hoje deserto, onde os mestres das iniciações
voltavam a cada três ou quatro anos, por ocasião das cerimônias de
iniciação masculina, para colher as plantas mágicas e coletar os punha
dos de argila e de terra ancestral de propriedades igualmente mágicas,
isto é, cheias de poderes sobrenaturais e da força dos ancestrais.
De fato, os ancestrais dos baruyas faziam parte de uma tribo que
se chamava Yoyué e tinham então o nome de Baragayé. Eles tiveram
que deixar seu território — provavelmente por volta do fim do século
XVIII — depois que a aldeia foi incendiada por inimigos e uma parte
de seus habitantes foi massacrada. Os remanescentes fugiram e encon
traram finalmente asilo em Marawaka, entre os andjés, que habitavam
as encostas do monte Yelia, a cerca de quatro ou cinco dias de marcha.
Depois de algumas gerações, os refugiados, com a cumplicidade dos
ndeliés, um clã pertencente à tribo de seus hospedeiros, expulsaram
estes últimos de seu território e uma nova tribo surgiu, tomando o nome
de Baruya, do nome do clã que tinha a função ritual mais importante
nas iniciações masculinas: fazer os meninos passarem da infância à
adolescência, transformá-los em jovens guerreiros. Os baruyas conti
MAURICE GODELIER
4 f n
0 ENIGMA DO DOM
1 69
MAURICE GODELIER
2As noções de fogo aceso pelo Sol-Pai e dos sexos perfurados de súbito pela ex
plosão do sílex da pedra de fogo se assemelham muitíssimo ao big-bang do
surgimento da linguagem entre os homens segundo Lévi-Strauss ou da ordem sim
bólica em Lacan. Antes nada era possível, depois tudo o foi.
1 70
O ENIGMA 00 0 OM
1 7 1
MAURICE GODELIER
músicos jogam no mato assim que a caravana dos homens e dos iniciados
se aproxima das aldeias. Veremos o motivo um pouco mais adiante.
Mas notemos desde já, para não mais voltar ao assunto, que ao lado
desses objetos sagrados, duráveis ou não, colocados a serviço de todos os
baruyas no quadro das iniciações, cada clã ou linhagem possui outros ob
jetos dotados de uma “eficácia”, de um poder (imaginário e simbólico para
nós) mais limitado. Trata-se de certos cassetetes de pedra ou de madeira
que pertenceram a guerreiros ilustres e que seus descendentes conservam
preciosamente e também das pedras de fertilidade que cada linhagem possui
e que os homens desta linhagem enterram no solo dos jardins que abrem
nas florestas e que desenterram quando deixam de cultivá-los. Bem en
tendido, todos esses objetos não funcionam sem que sejam pronunciadas
as fórmulas, palavras secretas que acompanham seu uso.
Mais algumas palavras sobre os rombos: um rombo entre os baruyas
se apresenta com a forma de um pedaço negro de palma, fino e com
um comprimento que vai de 20 a 25cm, polido e trespassado em uma
ponta por um furo por onde passa um cordão de cortiça. Os rombos
são mostrados sob grande segredo aos jovens iniciados, quando eles
atingem o segundo estágio das iniciações. Então, é-lhes dito que jamais,
sob pena de morte, devem revelar às mulheres que são os homens que
tocam os rombos, fazendo-os girar acima de suas cabeças e produzin
do um mugido, um ronco enorme que não se parece com nenhum som
da natureza e que é tido como a voz dos espíritos com os quais os ho
mens conversam, comunicam-se na floresta, no momento das iniciações.
Os rombos são fabricados pelos homens e transmitidos preciosa
mente a seus filhos, mas na origem, dizem os baruyas, foram dados aos
homens (e somente a eles) pelos yim aka, os espíritos da floresta. Um
wandjinia, um “homem do tempo do sonho”, um ancestral dos tem
pos das origens que subiu ao topo de uma árvore, ouviu de repente
alguma coisa assobiando e enfiando-se no tronco acima de sua cabeça.
Ele olhou, viu uma espécie de flecha e soube que havia sido fabricada
e lançada pelos yim aka. Esta flecha é o ancestral dos rombos. Ao dar-
lhes os rombos, os yim akas, dizem os baruyas, deram aos homens po
1 7 2
O ENIGMA DO DOM
17 3
MAURICE GODELIER
ao Sol, antes de bater com ele no peito dos iniciados e fazer com que
sua força penetre seus corpos. Quando os eleva ao céu, o oficiante
invoca silenciosamente, dentro de si, o nome secreto do Sol (des
conhecido das mulheres) e a fórmula mágica que seus ancestrais lhe
transmitiram com o par de kw aim atnié. O objeto sagrado é, portan
to, o elemento visível, material, de um todo que comporta outros ele
mentos imateriais, uma fórmula secreta e um nome sagrado. Sem a
fórmula, o objeto perde grande parte de seus poderes. E por isso que
os mestres dos rituais, nesta sociedade guerreira, não vão à guerra:
por medo de que sejam mortos antes de transmitirem seu saber aos
filhos. E por isso também que os outros clãs lhes dão esposas com
facilidade, sem exigir nada em retorno ou sem fazê-lo imediatamen
te, pois o que se espera é que eles tenham filhos, filhos a quem trans
mitir o objeto e a fórmula.
Exteriormente, um kw aim atnié se apresenta como um objeto cu
rioso de se ver, cuja forma e aspecto não permitem adivinhar seu uso,
função, e cujo interior ninguém, entre os baruyas, deve ver, com exce
ção, bem entendido, do representante da linhagem que o possui e da
quela de seus filhos, que herdará suas funções rituais. Toda uma série
de questões se coloca, portanto, a esse respeito. De onde eles vêm,
segundo os baruyas? Por que nem todos os clãs dos baruyas possuem
um? O que se esconde no interior de um kw aim atn ié? O que seu
guardião vê quando, de tempos em tempos, abre o pacote para ajeitar
de novo o que está dentro dele e fechá-lo de novo?
Comecemos pela primeira questão: de onde vêm os kw aim atn ié?
A resposta dos baruyas é invariável: é o Sol, é a Lua ou são os espíritos
que os deram aos ancestrais dos baruyas do tempo dos wandjinia.
1 74
O ENIGMA DO DOM
17 5
MAURICE GODELIER
Voltaremos mais adiante aos objetos sagrados dos romanos que ape
nas os sacerdotes e as vestais tinham direito de contemplar. Servius fala
de louças de madeira e de mármore trazidas por Enéas, que evocam o
mobiliário enterrado nas tumbas dos chefes. Mas é sobretudo o Paládio
que merece comentário, pois, ao reivindicar sua posse, os romanos in
ventavam origens míticas que os faziam iguais aos heróis legendários dos
gregos e faziam de Roma uma cidade comparável a Atenas. Evidencia-se
a engrenagem política desta filiação, mas para estabelecê-la foi preciso
dedicar-se a certas contorções que Dênis de Halicarnasso nos reporta6.
Foi preciso, por exemplo, imaginar que Dardanos havia trazido da
Samotrácia dois escudos, um dos quais tinha sido roubado pelos gregos
17 8
O ENIGMA DO DOM
17 9
MAURICE GODELIER
i 8o
0 ENIGMA DO DOM
porque nunca os possuíram por não serem dignos e não serem seres
humanos como os baruyas. A divisão desigual dos kw aim atnié traduz
diretamente, portanto, as relações de poder, de lugares distintos em uma
hierarquia, na totalidade político-religiosa que é a sociedade dos baruyas.
Não é difícil compreender por que todos esses objetos, assim como
os saberes que os acompanham (fórmulas, nomes secretos etc.), são
bens inalienáveis que, em princípio, são excluídos das trocas, tanto das
trocas de dons quanto das trocas comerciais. Esses bens são inalienáveis
porque constituem uma parte essencial da identidade de cada clã7. Eles
os distinguem, marcam suas diferenças, diferenças estas que compõem,
aqui, uma hierarquia.
Pois todos os clãs dos descendentes dos refugiados de Bravega-
reubaramandeuc, assim como os ndelié, participam por certo dos traba
lhos de iniciação, mas não no mesmo lugar, não no mesmo estágio, não
através dos mesmos ritos. O conjunto dos estágios e dos ritos que os re
produzem se apresenta como uma estrutura que se desdobra entre dois
momentos cruciais e os une: a separação forçada dos meninos do mundo
feminino e a perfuração do nariz (passagem ao primero estágio) é tarefa
do clã dos tchatchés; a passagem, alguns anos mais tarde, dos meninos, do
mundo da adolescência ao mundo dos “homens jovens” (passagem do
segundo para o terceiro estágio) é trabalho do clã dos baruyas. No curso
da segunda passagem, no maior segredo, coloca-se acima da cabeça dos
rapazes um bico de calao que é, para os baruyas, o sím bolo do pênis que se
eleva sobre uma espécie de coroa, cingindo a fronte e terminando por dois
dentes de porco afiados como punhais, cujas pontas são enterradas na carne
da testa do iniciado. É o sím bolo da vagina das mulheres.
Parece-nos essencial lembrar que em uma totalidade hierarquizada
não existem relações verdadeiramente recíprocas. Existem apenas rela
ções não-simétricas de complementaridade e de interdependência. Em
uma hierarquia, mesmo se todos os clãs têm seu lugar, nenhum ocupa
18 1
MAURICE GODELIER
“Insistindo no fato de que os objetos sagrados são objetos que devem ser guarda
dos, que tendem a ser excluídos da troca de dons e das trocas comerciais, não
vamos pretender ignorar os vários testemunhos de venda e de compra de objetos,
ritos e fórmulas sagradas observados e descritos em numerosas sociedades pelo
mundo afora e em épocas diferentes. Encontram-se exemplos, na Nova Guiné
mesmo, de “compra” de ritos e de objetos sagrados associados aos cultos de uma
mulher-espírito senhora da fertilidade entre os engas e em outras culturas. O dom
de relíquias dos santos apóstolos pelos papas na Idade Média, que desfrutavam
do vasto tesouro das catacumbas, seu comércio por intermédio de profissionais
como Deusdona, que havia obtido a concessão para vender ao abade Hilduin de
Soissons as relíquias dos mártires enterrados em Roma, fazia circular em toda a
Europa fragmentos de ossos e outros vestígios, finalmente depositados nos alta
res das igrejas e conventos recém-construídos, que os conservavam. Essas relíquias
sagradas, dadas ou vendidas, eram objeto de cobiça, de roubos, de pilhagens ou
motivo de peregrinagens, atraindo aos lugares onde eram conservados milhares
de fiéis, fonte de riqueza para os abades e igrejas que delas se encarregavam. Mas
toda essa circulação, todo esse tráfico só tinha sentido em referência a “realida
des sagradas” invendáveis, intraficáveis, presentes apenas em Roma e em Jerusa
lém. Ver Patrick Guery, “Sacred Commodities: The Circulation of Medieval Relics”,
art. cit., p. 169-194. Ver também Lionel Rothkrug, “Popular Religion and Holy
Schrines”, in J. Obelkevitch (ed.), Religion and People, Chapei Hill, 1987.
MAURICE GODELIER
18 s
MAURICE GODELIER
18 e
O ENIGMA DO DOM
18 7
MAURICE GODELIER
com seu filho mais velho, com a idade entre dezesseis e dezoito anos,
honrar a promessa que me havia feito de mostrar um dia o que havia
“dentro” de seu kwaimatnié. O que aconteceu e o que havia no interior?
Antes mesmo que ele chegasse, eu tinha sentido que algo de insólito se
passava. Um silêncio pesado nos envolvia. A aldeia estava, de repente,
deserta. Todo mundo tinha partido com o boato de que algo de grave
era iminente. Depois o homem chegou. Seu filho — que vivia na casa
dos homens no alto da aldeia com os iniciados — o acompanhava. Eu
não esperava por isso. Os dois homens penetraram em minha casa e sen
taram-se cada um num extremo da mesa. Eu passei a cabeça pela porta
para me assegurar de que ninguém podia nos escutar e constatei que dois
ou três homens do clã dos bakias, armados de arcos e flechas, estavam
discretamente colocados ao redor de minha casa para impedir que qual
quer um se aproximasse. O homem retirou de sua bolsa um longo obje
to enrolado em uma tira de cortiça de cor vermelha. Pousou-o sem uma
palavra sobre a mesa, desfez o rolo e começou a abrir o pacote. Isso to
mou tempo. Seus dedos afastavam a cortiça com precaução, delicada
mente. Finalmente, ele retirou tudo e eu vi, estendidos lado a lado, uma
pedra negra, ossos longos e pontudos, alguns discos chatos e escuros.
E nada pude dizer, nada perguntar. O homem havia começado a
chorar, silenciosamente, evitando olhar aquilo que se oferecia a seus
olhos. Ele continuou assim por alguns minutos, a cabeça baixa, solu
çando, a fronte apoiada sobre as mãos pousadas nas bordas da mesa.
Depois ele levantou a cabeça, enxugou os olhos vermelhos, olhou o
filho e fechou com a mesma delicadeza, as mesmas precauções, o pa
cote, que envolveu com o ypm oulié vermelho. Estava acabado. Tive
então o direito de fazer algumas perguntas que me permitiram desco
brir que aquele kw aim atnié era tão poderoso, porque ele era fêmea,
pois os kw aim atnié existem em casais. Isso foi tudo. O homem levan
tou-se, seu filho depois dele, e eles partiram.
18 8
0 ENIGMA DO DOM
10Cf. Maurice Godelier, La Production des Grands Hommes, op. cit., p. 243-245.
189
MAURICE GODELIER
f "Ibid., p. 197.
1 9o
O ENIGMA DO DOM
19 1
MAURICE GODELIER
Depois de contar aos iniciados esse mito, o nome secreto das flau
tas lhes é revelado, nam boula-m ala. M ala quer dizer “luta”, “comba
te”. N am bou la quer dizer “girino”, mas utiliza-se também, entre
homens, para designar a vagina das mulheres. Por que esta alusão aos
girinos e à vagina? Um outro mito nos explica:
uIbid., p. 117-118.
uIbid., p. 118. Os jovens iniciados — meninos de nove a dez anos — , uma vez
separados de sua mãe e assim que têm o nariz perfurado, recebem vestimentas
novas, que testemunharão sua pertinência à categoria dos iniciados do primeiro
estágio. Estas vestimentas são meio femininas, meio masculinas, correspondendo
a esse estado de transição do mundo das mulheres àquele dos homens. Sobre as
nádegas eles portam, então, uma estreita tira de cortiça, que se chama precisa
mente “cauda de girino”.
192
O ENIGMA DO DOM
para deter os espíritos das mulheres e das crianças adormecidas que, por
descuido, atravessem a fronteira e caiam em território das tribos inimi
gas, com o risco de serem capturadas e devoradas por seus xamãs.
Mas, antes de tudo, o que é importante notar aqui é que, segundo
os baruyas, teriam sido as mulheres a inventar os arcos e as flechas, as
armas de caça e de guerra. Elas os teriam dado aos homens que, hoje,
detêm o monopólio de seu uso. Mas elas fizeram mais. Segundo um
mito recolhido em uma tribo vizinha dos baruyas, os watchakes, per
tencentes à mesma cultura, teria sido do corpo de uma mulher assassi
nada por seu marido e enterrada secretamente na floresta que saíram
as plantas cultivadas e as diversas variedades de bambu que servem como
“recipientes” para cozinhar os alimentos. No fundo, o que dizem e
repetem todos os mitos, são duas afirmações essenciais.
Primeiramente que as mulheres enquanto gênero possuem origi-
nariamente uma criatividade superior à dos homens, e que esta é du
pla: de um lado, o poder de dar a vida, a capacidade de carregar crianças
no ventre, pô-las no mundo e alimentá-las; de outro, a invenção de
elementos materiais da “civilização” — armas, vestimentas, plantas
cultivadas. Em suma, é a elas que a humanidade deve o fato de ter saí
do do estado selvagem14:
1 9 3
MAURICE GODELIER
lhe disseram: ‘O que fizeste para estares com uma pele assim tão bonita?’
Ele tinha mudado de aspecto, mas não disse nada. No dia seguinte,
retornou à floresta e comeu de novo das plantas. Sua pele foi ficando cada
vez mais bonita. Quando voltou à aldeia, os outros suplicaram-lhe que
dissesse como fazia para ter uma pele tão bonita. Isso se repetiu até
que um dia o homem disse aos outros que o seguissem. Levou-os até a
tumba e indicou as plantas boas para comer e aquelas que serviam para
cozinhar os alimentos. Depois disso os homens começaram a cultivar e a
comer as tais plantas. E suas peles mudaram15.
19 4
O ENIGMA DO DOM
A resposta, ainda uma vez, está nos mitos. Eles nos dizem, com efeito,
que as mulheres certamente inventaram o arco e a flecha, mas especifi
cam que elas serviam-se do arco segurando-o pelo lado errado. Dessa
maneira matavam demasiada caça. E os homens tiveram de intervir. Apo-
deraram-se do arco e viraram-no para o lado certo. Desde então, matam
a caça quando é necessário e na quantidade necessária, e as mulheres não
têm mais o direito de usar os arcos. A tese é clara. As mulheres com certe
za são dotadas de uma criatividade primeira que ultrapassa a dos homens,
mas esta criatividade é fonte de desordem, de excessos. Ela constitui uma
ameaça permanente para a vida em comum, não apenas dos humanos entre
eles, mas dos humanos com os seres que coexistem com eles no mesmo
universo— animais, plantas etc. Portanto, os homens se consideram infe
riores às mulheres em um certo plano, mas superiores quando se trata de
impor a ordem, de introduzir a medida na sociedade e no universo. É por
esta razão que a relação entre os homens e as mulheres não é concebida
apenas como uma relação de oposição entre dois termos complementa-
res, pois um dos termos se opõe ao outro subordinando e, de certo modo,
englobando-o. Aos olhos dos baruyas, é justamente porque o seu poder
subordina, engloba o das mulheres, que o direito dos homens de repre
sentar os dois sexos ao mesmo tempo, eles próprios e as mulheres, o direi
to, portanto, de dirigir a sociedade encontra seu fundamento16.
Mas para impor a ordem e governar a sociedade foi preciso que
eles interviessem e sujeitassem as mulheres pela violência física, psí
quica e social. Todas essas formas de violência não são, aos olhos dos
homens, senão conseqüências da violência primordial que seus ances
trais dos tempos do sonho exerceram contra as primeiras mulheres,
quando se apropriaram das flautas. O que se passou então? As flautas
deixaram definitivamente de tocar para as mulheres e começaram a
cantar apenas entre as mãos dos homens. O que quer dizer que os po
16Cf. id., “Du quadruple rapport entre les catégories du masculin e du feminin”,
in La Place des femmes. Les enjeux de 1’ideniité e de l’égalité au regard des sciences
sociales, Paris, La Découverte, 1995, p. 439-442.
19 5
MAURICE GODELIER
19 6
O ENIGMA DO DOM
l7É também a razâo pela qual os baruyas têm, em sua língua, um termo específico
para designar o sangue menstruai e distingui-lo do sangue que circula tanto no
corpo dos homens quanto no das mulheres, assim como no corpo dos animais.
19 7
MAURICE GODELIER
19 8
0 ENIGMA DO DOM
1 9 9
MAURICE GODELIER
200
O ENIGMA DO DOM
ao outro sexo e de tê-los ligado a seu próprio sexo pela violência. Por
um lado eles mutilaram, por outro eles se ligaram ao que tinham desli
gado pela violência, pela astúcia, do ser do outro. Esta mutilação, esta
disjunção forçada das mulheres de seus poderes originários, é um ato de
violência imaginária, realizado pelo pensamento no pensamento.
Mas é esta violência imaginária, ideal, que legitima, em primeira ins
tância, todas as violências reais impostas às mulheres: o fato de que elas
não herdam a terra de seus ancestrais; de que são excluídas da posse e do
uso dos kwaimatnié e, portanto, não têm acesso senão indiretamente ao
Sol e às forças que governam o universo; de que não têm acesso aos meios
2 0 1
MAURICE GODELIER
202
0 ENIGMA DO DOM
D o su blim e19
‘‘‘Nossa análise não trata do caráter “estético’ ou “artístico” dos objetos sagrados,
mas da emoção diante do caráter sagrado desses objetos. A separação entre objeto
sagrado e objeto precioso torna-se manifesta no caso de um ostensório em cujo cen
tro encontra-se conservado, por trás de uma placa de vidro, um pedaço do corpo ou
das vestes de um santo. O ostensório pode ser de ouro ou abundantemente decorado,
uma verdadeira obra de arte que simboliza a riqueza da Igreja e a vontade de dar
glória a Deus e seus santos. Mas, no centro, o objeto sagrado não tem outro caráter
senão o de ter sido parte do corpo de um “amigo do Cristo”. Nada de “belo” o dis
tingue. O sublime do qual falamos em nada se aproxima da arte. É por falta de outro
termo que empregamos este. Talvez o termo “numinoso” fosse mais conveniente, mas
discuti-lo nos levaria longe demais. Cf. Rudolf Otto, Le Sacré, Paris, Payot, 1949.
“ Claude Lévi-Strauss, “Introduction à 1’oeuvre de Mauss”, art. cit., p. XLIV
203
MAURICE GODELIER
I 21Ibid., p. L.
204
0 ENIGMA DO DOM
2 0 5
MAURICE GODELIER
206
O ENIGMA DO D OM
2 0 7
MAURICE GODELIER
O sal, “moeda” dos baruyas, é extraído das cinzas de uma planta culti
vada26, espécie de cana-de-sal, que eles transplantam para zonas
irrigadas natural ou artificialmente. As canas, uma vez cortadas, filtra
das e secas, são queimadas, suas cinzas misturadas em água, e a solução
salgada é lentamente liberada de sua água em fornos de sal. No fim
desse processo (que dura dois dias e uma noite), obtém-se uma quinzena
de barras de sal cristalizado de 2 a 3kg cada uma. A cristalização nos
fornos é confiada a um especialista, que alimenta o fogo, elimina as
impurezas que se depositam no sal etc. No decorrer de toda a duração
do trabalho, este homem não volta para casa e é proibido de manter
relações sexuais com uma mulher. Se ele não se conformasse a essas
proibições, o sal viraria água e o proprietário não poderia trocá-lo.
Todos os clãs dos baruyas têm campos de cana-de-sal dispostos nas
margens dos rios. O especialista, detentor de um saber mágico, é recom
pensado por seu trabalho com o dom de uma ou duas barras de sal.
O sal em questão não é sódio, mas potássio. Ele dá aos alimentos
um gosto salgado, mas em doses fortes é um poderoso veneno. E não
é usado no consumo corrente, mas exclusivamente nos contextos
ritualísticos (iniciações masculinas, iniciações femininas etc.). É por isso
que seu consumo é associado às etapas-chave da vida dos indivíduos,
ligadas elas mesmas a momentos-chave da reprodução da sociedade.
O sal é considerado como uma fonte de força que se acumula no
fígado, órgão cheio de sangue que, para os baruyas, é o lugar em que
se concentra toda a força contida nos indivíduos. Mais secretamente,
ele é associado ao esperma, à força masculina. É por esta razão que o
fabricante é um homem, e ele deve se privar de qualquer relação sexual
208
O ENIGMA 00 DOM
2 0 9
MAURICE GODELIER
veis que constituem seu “preço”. Uma barra média se troca por 4 gran
des capas de cortiça ou, outrora, por 2 lâminas de pedra polida para
fabricar enxós etc. De fato, o sal serve de unidade de medida também
porque pode ser partido em pedaços mais ou menos grandes, é divisí
vel sem perder seu valor de uso, o que não se pode fazer com uma capa
de cortiça ou com uma enxó de pedra.
Mas parece-nos que o sal pode servir como moeda também por
uma outra razão: porque, aos olhos das tribos vizinhas dos baruyas,
assim como para eles, ele contém uma força de vida mágico-religiosa,
algo do universo dos kwaimatnié, dos objetos sagrados. Tanto uns quan
to os outros, só se servem dele, aliás, em contextos ritualísticos, embo
ra seus ritos sejam diferentes e não derivem sempre da mesma cultura.
É preciso sublinhar, no entanto, que, quando o vendem, os baruyas não
se sentem ligados pessoalm ente àqueles com quem trocam seu sal por
utensílios ou capas de cortiça. Eles têm e devem ter laços pessoais com
o “correspondente” que os hospeda, os protege e espalha a nova de
que os baruyas chegaram com sal. Mas eles não sentem nenhuma obri
gação em relação àqueles que compram o seu sal: este, enquanto obje
to, desliga-se completamente de seu proprietário. As trocas mercantis
revestem-se, portanto, para os baruyas, de um caráter impessoal. Em
determinadas circunstâncias, excepcionais é verdade, o sal não é tro
cado como mercadoria entre os baruyas e as tribos vizinhas. Ele é dado
como garantia para selar um tratado de paz. As barras de sal oferecidas
nessas ocasiões não podem ser trocadas nem consumidas: elas ficam lá
para lembrar à memória dos homens um acordo político; elas contêm,
de fato, um juramento, e seu dom exige, por parte dos inimigos de
ontem, um contradom que sela a amizade e a igualdade entre eles,
recuperadas com a paz. Em suma, não servem mais para o consumo
nem para a troca. São dadas para serem guardadas e para que sirvam
de testemunho.
Cumpre, aliás, ressaltar que as tribos que compram o sal dos baruyas
não o usam como meio de pagamento privilegiado em suas próprias
trocas com as tribos mais distantes, que não comerciam com os baruyas.
2 1 o
O ENIGMA DO DOM
Além disso, estes últimos não produzem mais sal do que o necessário
para adquirir as coisas que eles mesmos não produzem ou não o fazem
çpi quantidade suficiente. Eles nunca produzem para estocar e adqui
rir mercadorias com o único objetivo de revendê-las e lucrar com isso.
Em outras palavras, se o sal é, de algum modo, uma mercadoria-moe-
da, trata-se de uma moeda que não funciona jamais como capital, como
dinheiro que se investe para obter lucro. O sal dos baruyas, embora
seja a única mercadoria que eles podem trocar por todas aquelas de
que necessitam, não deixa nunca de ser um objeto de troca, privilegia
do, é certo, mas cujo valor de troca ainda não se distingue suficiente
mente de seu valor de uso para que ele seja plenamente uma moeda27.
Existem, no entanto, objetos pelos quais se troca o sal e que têm, como
ele, a capacidade de trocarem-se por outros, mas de modo muito mais
limitado. São as grandes conchas chatas, nacaradas, as pearl-shells, que
ornam o peito dos homens iniciados, e as grandes conchas redondas,
brancas como leite, que enfeitam o colo das mulheres a partir do mo
mento em que elas têm sua primeira menstruação e são iniciadas. Es
ses objetos contêm igualmente um poder mágico-religioso ligado à
reprodução da vida28. Mas ninguém, entre os baruyas, os coleciona para
ofertar como dom nos potlatch.
27Este ponto foi levantado por Jean-Michel Servet em 1974, em sua obra Essai sur
les origines des monnaies, publicação da Universidade de Lyon-III, p. 74-79. J.M.
Servet critica aí nosso uso do termo “moeda”, em 1969, em nossa primeira publi
cação sobre o sal dos baruyas. Nós lhe damos razão de bom grado, tanto que aquilo
que hoje escrevemos sobre os objetos-substitutos dos homens e dos deuses con
verge com suas idéias sobre as origens não mercantis mas político-religiosas da
moeda.
28Os baruyas ignoravam sua origem, pois essas conchas provêm do mar e, até a
chegada dos europeus, eles não sabiam de sua existência. No entanto, seus mitos
falavam de uma grande extensão de água, de uma espécie de imenso lago...
211
MAURICE GODELIER
z,Cf. Andrew Strathern, “Finance and Production...”, art. cit., p. 42-67; id., The
Rope ofthe Moka..., op. cit.; James Weiner, The Heart ofthe Pearl-Shell, Berkeley,
University of Califórnia Press, 1988.
2 12
O ENIGMA DO DOM
2 13
MAURICE GODELIER
2 14
O ENIGMA DO DOM
2 1 5
MAURICE GODELIER
2 16
0 ENIGMA DO DOM
Podemos entrever aqui uma das razões pelas quais na cultura oci
dental os dons entre amigos continuam a existir e a ser valorizados, en
quanto outros tipos de dons, obrigatórios porque necessários para
reproduzir elementos fundamentais da sociedade, tais como as relações
de parentesco, não existem ou pelo menos não existem mais. O dom
entre amigos, que ocupa um lugar menor na cultura baruya, permanece
um paradigma forte no Ocidente individualista, pois se apresenta como
um ato individual, espontâneo, subjetivo, altruísta, não obedecendo a
nenhuma obrigação coletiva, a nenhuma coação social objetiva: que não
serve, portanto, para reproduzir em profundidade a sociedade. No Oci
dente, o dom entre amigos toma assento ao lado de um outro dom, for
temente privilegiado, este, pelo Ocidente cristão: o dom por Cristo, filho
de Deus, da própria vida para remir os pecados dos humanos e salvá-los
da danação eterna, exemplo supremo do dom gratuito, absoluto.
2 17
MAURICE GODELIER
2 18
O ENIGMA 00 DOM
“ Sublinhemos mais uma vez que, nesse sistema, restituir o equivalente daquilo
que se recebeu não interessa a ninguém. Não é o objetivo perseguido. O objetivo
é colocar aquele que recebe em situação de inferioridade permanente, substituir
relações recíprocas instáveis por relações hierárquicas mais ou menos estáveis.
Aqui também, mas de uma maneira completamente diferente dos dons e contradons
não-antagonistas, retribuir não é restituir.
2 1 9
MAURICE GODELIER
22 0
O ENIGMA DO DOM
3'Ver, sobre esse ponto, Jack Goody e Stanley Jeyarada Tambiah (ed.), Bridewealtb
and Dowry, Cambridge University Press, 1973, obra cuja publicação suscitou
múltiplas discussões.
32Andrew Strathern, “The Central and the Contingent: Bridewealth among the
Melpa and the Wiru”, in J. L. Komaroff (ed.), The Meaning ofM arriage Payments,
Londres, Academic Press, 1980, p. 49-66. Ver também, a propósito dos engas que
praticam um outro tipo de troca cerimonial, o tee, o artigo de Daryl K. Feil “The
Bride in Bridewealth: A Case from the New Guinea Highlands”, Ethnology, n°
20, 1981, p. 63-75, e seu livro Ways o f Exchange: The Enga Tee o f Papua New
Guinea, The University of Queensland Press, 1984.
22 1
MAURICE GODELIER
que se esconde por trás desses dons não é mais compensar com riquezas
o dom de uma mulher, mas se preparar para transformar os aliados
pelo casamento em parceiros no m oka.
De fato, entre os melpas o casamento só fica plenamente estabele
cido quando os grupos e os indivíduos ligados por ele se transformam
em parceiros nas trocas m oka e, sempre cooperando, rivalizam entre
si. Com este exemplo pode-se compreender muito bem por que, nas
sociedades com potlatch, o casamento não poderia repousar na troca
direta de mulheres: isto não “bloquearia” a competição na troca de
riquezas materiais? As alianças, os jogos do parentesco são subordina
dos aqui à perpetuação do m oka e ao alargamento de sua base em de
zenas e dezenas de clãs e milhares de indivíduos, em suma, em uma
base que deriva de uma outra ordem que não o parentesco, a ordem
do político.
Dito de outra forma, a prática do bridewealth, a inexistência ou a
presença sem importância social maior da troca direta de mulheres,
não basta para engajar a sociedade na ronda excitante mas perigosa
dos dons e contradons de riquezas, para subordinar a economia e o
universo moral dos indivíduos e dos grupos à transferência constante
de riquezas de mão em mão, de grupo a grupo, de indivíduo a indiví
duo. É preciso também que um certo número de posições de poder
seja acessível por com petição entre os grupos e entre os indivíduos, que
a condição para ter sucesso nessa competição seja a capacidade de acu
m ular riquezas e redistribuí-las, dá-las.
E dando riquezas que se adquirem poder e renome, assim como
é dando riquezas que se adquirem mulheres. Logo, os objetos que
constituem riqueza funcionam não apenas como substitutos de p es
soas, de seres humanos, mas também como substitutos de ob jeto s
sagrados que constituem a fonte última de todo poder entre os ho
mens e cuja posse testemunha relações privilegadas com os deuses
e os ancestrais.
Quando esses dois tipos de estrutura se encontram e se engre
nam um com o outro — relações de parentesco em que a aliança
222
O ENIGMA DO DOM
33Como acontece entre os melpas do interior da Nova Guiné, que proíbem a tro
ca direta de mulheres porque impede que aliados pelo casamento sejam rivais na
competição de dons e contradons. Cf. Rena Lederman, What Gifts Engender: Social
Relations and Politics in Mendi, Highlands Papua New Guinea, Nova York,
Cambridge University Press, 1986. Ver nossa análise deste exemplo em Big Men,
Great Men, Personifications o f Power in Melanesia, Cambridge University Press/
Maison des sciences de l’homme, 1991, p. 284.
2 2 3
MAURICE GODELIER
J4Em 1981, testemunhamos uma tentativa, por parte de um certo número de re
presentantes de linhagens baruyas, de substituir o sistema tradicional de troca direta
de mulheres, o ginamaré, por um sistema de dote. O fato deu ensejo a debates
muito acalorados, discussões políticas coletivas, no curso das quais os jovens sol
teiros afirmaram, em sua maioria, seu apego à tradição para evitar que apenas os
“ricos” pudessem se casar e “ter todas as mulheres”. Alguns deles acusaram publi
camente os velhos de desejarem “vender” suas filhas, embora não tivessem sido
obrigados a “comprar” suas mulheres. A história parou por aí, mas alguns desses
jovens que tinham partido para trabalhar nas plantações voltaram anos mais tarde
acompanhados de esposas que haviam “comprado” com seu dinheiro nas tribos
vizinhas das plantações ou entre os chimbus e outros grupos das terras altas, em
que a prática do bridewealth é tradicional e que estão sempre com pouco dinhei
ro, pois este é gasto nas trocas cerimoniais.
224
O ENIGMA DO DOM
35Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 202: “Assim, não somente se pro
gride, mas também se faz progredir a própria família na escala social.” O declínio
demográfico das sociedades índias da costa noroeste dos Estados Unidos criou
uma situação anormal caracterizada pelo fato de que cada vez mais títulos fica
vam vagos, enquanto a população ficava cada vez menos numerosa e mais rica em
moeda e bens europeus.
36Ibid., p. 203: “Como se vê, a noção de honra que age violentamente na Polinésia,
que está sempre presente na Melanésia, causa aqui [na América do Norte] uma
verdadeira devastação [...]. O próprio mana polinésio simboliza não apenas a força
mágica de cada ser, mas também sua honra, e uma das melhores traduções desta
palavra é: autoridade, riqueza.”
37Ibid., p. 200: “O princípio do antagonismo e da rivalidade fundamenta tudo. O
status político dos indivíduos, nas confrarias e nos clãs, as posições de toda espé
cie são obtidas pela ‘guerra de propriedade’, assim como pela guerra [de catego
ria] ou pela sorte, pela herança, pela aliança e pelo casamento. Mas tudo é
concebido como se fosse uma ‘luta de riquezas’.” P. 201: “O potlatch é uma guer
ra. Ele leva o título de ‘dança de guerra’ entre os tlingits.”
22 S
MAURICE GODELIER
2 2 6
O ENIGMA 00 DOM
2 2 7
MAURICE GODELIER
nos parecem muito jjrecisas. Seria preciso, como já dissemos, que, pelo
lado do parentesco, a troca direta de mulheres não existisse38 ou que
tivesse apenas uma importância menor, e que, em seu lugar, a aliança
entre linhagens e indivíduos proceda do dom de riquezas por mulhe
res. Seria preciso que, pelo lado do político-religioso, um número signi
ficativo de oposições e de funções de poder não fosse fixo e hereditário,
mas competitivo, e que o instrumento dessa competição fosse o dom
de riquezas.
Tomadas separadamente, cada uma dessas condições é necessá
ria mas não é suficiente para lançar as sociedades nesse caminho. Reu
nidas e encadeadas umas às outras, acumulando e multiplicando seus
efeitos, elas se transformam em condições estruturais, fundamento
social das sociedades de economia e de moral do dom-potlatch. Por
tanto, foram necessárias uma ou várias evoluções sociais e mentais
para que se pudesse substituir a identidade (pessoa = pessoa) pela
equivalência (riquezas = pessoa) e para que se chegasse a buscar a
não-equivalência de dons, mais que sua equivalência. Voltaremos a
este ponto.
Para concluir, vamos retornar uma última vez ao problema da equi
valência entre “realidades” de natureza diversa. Quando se troca ri
queza por uma mulher, não se troca apenas coisas por pessoas, não se
faz das coisas apenas substitutos das pessoas, faz-se também o inverso,
faz-se das pessoas substitutos das coisas e, sobretudo, quebra-se o ca
ráter estreito, rompe-se o limite imposto pela natureza das “coisas”
trocadas, uma mulher por uma mulher, um guerreiro morto por um
guerreiro morto. Institui-se uma relação de equivalência mais abstra
ta, pois de um lado está uma pessoa concreta, uma mulher, que não se
pode dividir, mesmo podendo “utilizar” de maneiras diversas, e, de
outro, temos porcos, pérolas etc., que se podem somar, diminuir, mul
tiplicar ou dividir. Mas essa relação abstrata entre um ser humano con
creto e as coisas particulares que lhe eqüivalem possui ela também os
2 2 8
O ENIGMA DO DOM
229
MAURICE GODELIER
■"James Sinclair, Behind the Ranges: Patrolling in New Guinea, Victoria, Melbourne
University Press, 1966. No cap. 3, Sinclair narra a chegada de sua patrulha, a
primeira, entre os batiyas (os baruyas), os saltmakers, em uma manhã de julho de
1951 (p. 24-75).
2 3 0
O ENIGMA DO DOM
2 3 1
MAURICE GODELIER
2 3 2
0 ENIGMA DO DOM
2 3 3
MAURICE GODELIER
234
O ENIGMA 00 DOM
235
MAURICE GODELIER
2 3 6
O ENIGMA DO DOM
50Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 171. Grifo nosso.
2 3 7
MAURICE GODELIER
slValerio Valeri, Kingship and Sacrifice: Ritual and Society in Ancient Hawaii,
Chicago, University of Chicago Press, 1985; Goldman, Irving, Ancient Polynesian
Society, Chicago, University of Chicago Press, 1970.
2 3 8
O ENIGMA DO DOM
do povo são, estas, descendentes dos caçulas. Mas essa relação de pa
rentesco entre aristocratas e pessoas do povo não se verifica na estru
tura dos grandes Estados e impérios que, desde a China antiga até os
impérios inca e asteca destruídos pela conquista espanhola, submete
ram a um poder central milhões de indivíduos pertencentes a tribos,
etnias de línguas e culturas diferentes. A oferenda de primícias das
colheitas aos chefes e aos deuses transformou-se em tributo obrigató
rio, recolhido e contabilizado aos cuidados de um aparelho burocráti-
co-militar. O trabalho voluntário dos membros de uma comunidade
local para servir aos interesses comuns transformou-se em trabalho
obrigatório para reproduzir o Estado e manter os grupos étnicos que o
controlavam e que tinham se transformado em espécies de castas ou
de classes-tribos, dominantes por deterem o monopólio das principais
funções religiosas, militares e burocráticas desses impérios52.
Em tais universos, o dom estava sempre presente e sua magni
ficência sempre tinha conseqüências políticas, mas o dom enquanto
meio para obter um título, uma função em uma hierarquia político-
religiosa, o dom enquanto potlatch, tinha ainda menos espaço do que
nos “reinos polinésios”53.
Mas o que poderia explicar por que, entre os baruyas da Melanésia
(que não têm aristocracia nem rei) e nas sociedades polinésias (que os têm),
o desenvolvimento da prática do potlatch é impossível, embora todas es
sas sociedades pratiquem o dom? É, a nosso ver, o fato de que nessas so
ciedades, não importa quão diferentes sejam, a hierarquia político-religiosa
entre os grupos de parentesco e os grupos locais tende a se apresentar como
um quadro, uma arquitetura fixa, imutável, herdada mas também heredi
tária. Os fundamentos das sociedades de podatch seriam, assim, a ausên
cia de uma hierarquia política definitivamente estabelecida e a presença
52John Murra, “On Inca Political Structure”, in Ray Vem (ed.), Systems ofPolitical
Control and Bureaucracy in Human Societies, Seattle, University of Washington
Press, 1958, p. 30-41.
ÍJPatrick V. Kirch, The Evolution o f the Polynesian Chiefdom s, Cambridge,
Cambridge University Press, 1984.
2 3 9
MAURICE GODELIER
O qu e é um o b jeto p recio so ?
2 40
O ENIGMA DO DOM
5,,Cf. Mauss, a propósito dos pratos e das colheres entre os kwakiutls e os haidas:
“Os pratos e as colheres com as quais se come solenemente, decorados e esculpi
dos, brasonados com o totem do clã ou da categoria, são coisas animadas. São
réplicas dos instrumentos inesgotáveis, criadores de alimento, que os espíritos de
ram aos ancestrais [...]. Também os pratos kwakiutls e as colheres haidas são bens
essenciais de circulação bastante restrita e são cuidadosamente repartidos entre
os clãs e as famílias dos chefes” (ibid., p. 221), grifo nosso. Sobre os machados de
pedra na Nova Guiné, ver a obra de Pierre e Anne-Marie Pétrequin, Ecologie d ’un
outil. La hache de pierre en Irian Jaya , Paris, CNRS, 1993.
55Cf. Michel Panoff, “Une figure de 1’abjection en Nouvelle-Bretagne: le rubbish
man ”, LH om m e, n° 94, janeiro-fevereiro de 1985, p. 57-72.
2 4 1
MAURICE GODELIER
que talvez tenham sido ancestrais dos cobres entre os chinooks, os salishs
etc., da costa Noroeste56. Mas o mesmo acontece com as “moedas” de
dentes de porcos machos, não-castrados, que foram forçados a crescer
em espiral e que são utilizados em Malekula, nas ilhas Salomão, no
curso das competições cerimoniais para a obtenção de títulos e posi
ções nas sociedades de iniciação57.
O caráter “abstrato” e a disjunção desses objetos em relação à vida
cotidiana parecem constituir as condições prévias para que eles possam
“incorporar” relações sociais e sistemas de pensamento para, em seguida,
re-presentá-los aos atores sociais sob uma forma material, abstrata e sim
bólica. Abstração e disjunção do universo da subsistência e do cotidiano
facilitam a projeção e o encerramento, no objeto, dos nós imaginários e
dos símbolos que fazem parte do aspecto ideal do funcionamento das re
lações sociais através das quais se tem acesso à riqueza e ao poder58.
' ‘ Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 2 19, nota 2.
57Arthur B. Deacon, Malekula: A Vanishirtg People in the New Hebrides, Londres,
Routledge, 1934, p. 196-197.
58Geza Roheim havia proposto, desde 1923, uma interpretação psicanalítica das moedas
da Melanésia em seu artigo, cujo título fora tomado emprestado de Laum, defensor
da tese da origem sagrada das moedas cunhadas: “Heiliges Geld in Melanesien”,
IntemationalesZeitschrift für Psychoanalyse, 9,1 9 2 3 , p. 384-401. Mais recentemen
te, A. Epstein, notável conhecedor dos tolais da Nova Bretanha, tribo que acumula
enormes quantidades de moedas de conchas para distribuí-las no curso das cerimônias
funerárias, tentou uma análise psicanalítica do simbolismo dessas moedas, que ele
associa ao erotismo anal: “Tambu: The Shell Money of the Tolai”, in Fantasy and
Symbol, Robert Hook (ed.), Londres, Academic Press, 1979, p. 144-205. Ele encon
tra suas referências em Freud, Abraham e Otto Fenichel, 1938, “The Drive to Amass
Wealth”, in C ollected Papers (1954), p. 89-108, Norton, Nova York. Os tolais ofere
cem um caso excepcional na Oceania, na medida em que adotaram muito rapidamen
te e desenvolveram a economia de mercado capitalista e estão entre os grupos mais
ricos da Nova Guiné. Ao mesmo tempo, continuaram a importar e a utilizar a moeda
de conchas em todos os seus rituais, funerários ou outros, pois a consideram mais
“pesada”, mais “moral” que a moeda nacional, a kina, baseada no dólar e que eles
não consideram suficientemente “moral”. Eles até lançaram o primeiro banco do
mundo onde são estocadas e trocadas moedas tradicionais de conchas. Cf. Frederick
Errington e Deborah Gewertz, Articulating Change in the Last Unknown, San Fran
cisco, Western Press, 1991, cap. 2 (“Dueling Currencies in East New Britain: The
Construction of Shell Money as National Cultural Property”), p. 49-76.
2 4 2
O ENIGMA DO DOM
2 4 3
MAURICE GODELIER
‘ 'Malinowski explica quanto tempo ele levou para compreender por que certos
“objetos inúteis e feios” eram, para as pessoas das Trobriand, “veículo de associa
ções sentimentais importantes e fonte de emoções que inspiravam a vida e prepa
ravam para a morte [...]” etc. Malinowski, Argonauts o f the Western Pacific, op.
cit., p. 89, 513-514. Ver também os comentários de Annette Weiner, Inalienable
Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving, op. cit.
“ Paul Bohannan, “The Impact of Money on an African Subsistance Economy”,
Journal ofE con om ic History, vol. 19, n° 4, 1959, p. 491-503. E sobretudo id. e
Laura Bohannan, Tiv Economy, Evanston, Northwestern, 1968.
2 44
O ENIGMA DO DOM
2 4 5
MAURICE GODELIER
“ Ver Pierre Maranda e Elli Kõngas Maranda, “Le crâne et 1’utérus. Deux théorèmes
nord-malaitais”, in Echanges et Communications, textos vários oferecidos a Lévi-
Strauss por ocasião de seu sexagésimo aniversário, op. cit., vol. II, p. 829-861.
Agradecemos a P. Maranda por essas informações ainda parcialmente inéditas e
pela sugestão que nos fez de comparar esses objetos sagrados com aqueles da re
ligião católica: o tabernáculo contendo o cibório consagrado, as hóstias que serão
distribuídas e o altar onde está oculta, em princípio, uma relíquia.
“ Maurice Leenhardt, Notes d ‘ethnologie néo-calédonienne, Paris, Institut d’ethno-
logie, 1930, cap. 4, p. 47-55. É interessante recordar que o valor dos cobres entre
os tlingits variava segundo sua altura e era cifrado em número de escravos. Cf.
Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 2 23, com referência a Boas e a
Swanton.
2 4 6
O ENIGMA DO DOM
67Serge Tcherkézoff chamou nossa atenção para um costume de Samoa que re
pousa no jogo de certas oposições que mencionamos aqui, a do divisível e do
indivisível, do profano e do sagrado. Em Samoa, quando um assassino se ofere
ce para pagar o preço de seu assassinato, ele se apresenta acocorado, segurando
pedras nas mãos, daquelas que se esquenta para cozinhar o alimento nos fornos
de terra. Ele se apresenta como um porco oferecido para ser morto, cozido,
dividido e comido. Mas está envolvido em uma esteira fina que contém alma,
mana, que representa a luz divina que, envolvendo as coisas, lhes dá vida. A
esteira é indivisível. O porco, quando está cozido, é dividido e comido. Cada
parte de seu corpo tem um nome e é atribuído a esta ou àquela pessoa segundo
sua posição. O porco faz parte da categoria dos oloa, a esteira daquela dos tonga.
Cf. S. Tcherkézoff, “La question du ‘genre’ à Samoa: de 1’illusion dualiste à la
hiérarchie des níveaux”, Anthropologie et Sociétés, vol. 16, n. 2, 1992, p. 91-
117, particularmente p. 101. Ver também Daniel De Coppet, “La monnaie,
présence des morts et mesure du temps”, in UHomme, X (l), 1979, p. 2-39. Cécile
Barraud, “Des relations et des morts. Analyse de quatre sociétés vues sous 1’angle
des échanges”, in J.-C. Galey (ed.), Différences, valeurs et hiérarchie. Textes offerts
à Louis Dumont, Paris, CNRS, 1984, p. 421-520.
2 4 7
MAURICE GODELIER
68James Carrier, “The Gift in Theory and Practice in Melanesia: A Note on the
Centrality of Gift Exchange”, Ethnology, 31(2), 1992, p. 185-193. Hoje, na Nova
Caledônia, as “moedas” de conchas pretas e brancas valem entre 1.500 e 1.800
francos Pacifico. Em Samoa, as esteiras mais finas valem milhares de dólares e
seu valor só faz crescer com a idade. Em um grande número de sociedades do
Pacífico, as pessoas não tiveram nenhuma dificuldade para entender o que se
podia fazer com a moeda européia, à parte o fato de alienar a terra de seus an
cestrais, de vendê-la por dinheiro. Para conseguir o dinheiro dos brancos, pre
cisavam vender (a preços muito baixos) sua força de trabalho — o que antes não
faziam entre eles — ou vender aos europeus os produtos que estes desejavam
comprar (coprah) e que muitas vezes eles mesmos haviam introduzido, como o
café ou o chá.
<9Bronislaw Malinowski, op. cit., p. 211.
70lbid., p. 187-188.
248
0 ENIGMA 00 DOM
2 4 9
MAURICE GODELIER
7,Bernhard Laum, em sua grande obra Heiliges Geld — eine historische Unter-
suchung über den Saktalen Ursprung des Geldes, Tübingen, Mohr, 1924, cita tra
balhos de Jeremias sobre o Oriente antigo (1913) que mostravam como os metais
simbolizavam os deuses na Babilônia: o ouro para o Sol, a prata para a Lua, o
cobre para Vênus etc. As teses de Laum não deixaram de suscitar reservas e corre-
ções, pois uma moeda cunhada com o selo de um Estado não se explica apenas
pelas referências a crenças religiosas tidas como sua principal origem. Foi neces
sário o desenvolvimento da cidade-Estado, de relações econômicas e sobretudo
políticas novas que mudaram o lugar da religião na sociedade, recentrando-a em
torno do político, da Lei, para que aparecessem no Ocidente as primeiras moedas
cunhadas com o selo de um Estado. Cf. Eric Will, “De 1’aspect éthique des origi
nes grecques de la monnaie”, Revue historique, out.-dez. de 1954, p. 209-231:
“Se Laum pecou por excesso ao voltar as costas às exigências de uma vida econô
mica mesmo que rudimentar, é certo que o racionalismo dos economistas moder
nos não saberia dar conta das características mais originais da civilização grega”,
op. cit., p. 214. Ver Alban Bensa, “Présentation de Bernhard Laum”, Genèses, n°
8, 1992, p. 60-64. Emile Benveniste, em L e Vocabulaire des institutions ittdo-
européennes, Paris, Ed. de Minuit, 1968, vol. 1, p. 132-133, mostrou que o verbo
“vender”, em inglês to sell, vem do gótico saljan, que significava “oferecer em
sacrifício a uma divindade”, e que a palavra “comprar”, to buy, vem do gótico
bugjan, que significava “comprar alguém para salvá-lo de uma condição servil”. A
moeda era, portanto, na Europa como na Melanésia, o equivalente a uma vida.
250
O ENIGMA DO DOM
Devemos a Michel Panoff uma bela análise desse processo, que ele
observou entre os maenges da Nova Bretanha. Lá, circulavam ou eram
^Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 178-179, respondendo a Malinowski
e a Simiand, que o haviam criticado por um uso “laxista” da noção de moeda, es
creveu: “A esse respeito, só há valor econômico quando há moeda e só há moeda
quando as coisas preciosas, riquezas condensadas em si mesmas e sinais de riqueza,
foram realmente monetarizadas, isto é, tituladas, impessoalizadas, destacadas de
qualquer ligação com qualquer pessoa moral, coletiva ou individual diversa da au
toridade do Estado que as cunha. Mas a questão assim colocada não é a do limite
arbitrário que se deve erguer para o emprego da palavra. Na minha opinião, apenas
um segundo tipo de moeda se define assim: o nosso” (p. 178). Ver id., “Origine de
la notion de monnaie”, Anthropologie, Institut français d’anthropologie, t. III, n° 1,
1914, p. 14-20. Nesta mesma perspectiva, Jean-Michel Servet, Numismata. Etat et
origines de la monnaie, Lyon, Presses universitaires, 1984.
73Nosso livro já estava terminado quando foi publicado o de Philippe Rospabé, La
Dette de vie. Aux origines de la monnaie, Paris, La Découverte-MAUSS, 1995, livro
de um sociólogo muito bem documentado, particularmente sobre a etnologia melanésia
e sobre os debates entre antropólogos. As conclusões desse trabalho concordam com
as nossas, mas lhe falta a análise dos objetos que não se podem dar, das coisas sagra
das que são, todavia, a fonte de onde tiram seu sentido os objetos preciosos que cir
culam em pagamento da vida ou da morte (bridewealtb , compensações etc.).
2 5 1
MAURICE GODELIER
2 5 2
O ENIGMA DO DOM
dem aos langa langas o uso de sua laguna contra 50% da produção.
Mas não vamos esquecer que são esses mesmos laus que conservam
em seu tesouro sagrado moedas que não podem, em circunstância al
guma, alienar...
Várias conclusões teóricas podem ser tiradas dessa série de fatos
convergentes. Malinowski, Armstrong, Mauss e muitos outros espan
taram-se com a complexidade das classificações estabelecidas por es
sas sociedades entre os diferentes tipos de trocas e os diferentes tipos
de objetos que nelas circulam75. Parece-nos que a fonte desta comple
xidade e desta complicação deve ser buscada nas razões que obrigam
tais sociedades a distinguir conscientemente e a manter voluntariamente
separadas a esfera das trocas comerciais e a dos dons, conservando-as,
todavia, associadas e separadas do domínio do sagrado. Essas razões se
situam, confoífne demonstramos, no campo das relações de parentes
co e das relações políticas. As coisas são tão complicadas que muitas
vezes o mesmo tipo de objeto pode funcionar sucessivamente como
mercadoria (de valor), como objeto de dom e contradom e como te
souro. Donde, a nossos olhos, a grande importância dos fatos maenges,
reportados e analisados por Michel Panoff, pois trazem diretamente à
baila processos sociais e mentais fundamentais.
Esses fatos mostram em que contextos e segundo quais mecanismos
sociais e mentais os objetos sem uso na vida cotidiana, inúteis quando se
trata apenas de sobreviver, incorporados à sociedade sem cerimônias,
mas como mercadorias de valor, revestem-se pouco a pouco de atributos
75É impossível não se espantar que Mauss, que conhecia esses fatos, tenha escrito,
a propósito do vocabulário das trocas nas ilhas Trobriand, por ele qualificado como
“linguagem jurídica um pouco pueril”: “Não é possível imaginar até que ponto
esse vocabulário é complicada por uma estranha inaptidão para dividir e definir e
por estranhos refinamentos de nomenclaturas” (art. cit., p. 191). Ele fala mesmo
da incapacidade dos sistemas de direito “do mundo das ilhas” de “abstrair e divi
dir seus conceitos econômicos e jurídicos” e os compara ao antigo direito
germânico, supostamente marcado pela mesma incapacidade (p. 193). Curiosa
mente, como se corrigisse um juízo de forte colorido eurocentrista, ele acrescen
ta: “eles não precisavam, aliás, [de tal capacidade]” (p. 191 e 193).
2 5 3
MAURICE GODELIER
2 5 4
O ENIGMA DO DOM
2 5 5
CAPÍTULO III O sagrado
O qu e é o sagrado?
2 5 9
MAURICE GODELIER
2 6 0
O ENIGMA DO DOM
2 6 1
MAURICE GODELIER
2 6 2
O ENIGMA DO DOM
tências do universo aos baruyas para que estes pautem por ela suas vi
das e a transmitam a seus descendentes.
Vê-se, portanto, para que servem os homens (e as mulheres) ima
ginários que tomam o lugar dos homens e das mulheres reais no tempo
das origens. Eles devolvem -lhes suas próprias leis, seus costumes, mas
sacralizados, idealizados, transmutados em Bem comum, em princípio
sagrado que não pode sofrer contestação, oposição, que só pode ser
objeto do consentimento de todos. Tudo isso que se encontra presente
nos objetos sagrados: os kw aim atnié elevados ao Sol antes de tocarem
o peito dos iniciados.
Os kw aim atnié — isto agora deveria ser evidente — não são sím
bolos puros, significantes vazios de sentido, são símbolos plenos,
significantes cheios de sentido, apresentando e dissimulando, a o m es
m o tem po, o conteúdo das relações sociais, enunciando a ordem que
deve reinar na sociedade, unificando e materializando em um objeto
— um fragmento de matéria, madeira, osso, pedra, não importa— tudo
que a sociedade deve dizer e deve esconder de si mesma. É justamente
porque ele é a síntese visível de tudo aquilo que uma sociedade quer
apresentar e dissimular de si mesma que o objeto sagrado unifica em si
o conteúdo — imaginário, simbólico e “real” — das relações sociais. E
é por ser o objeto cultural que condensa e unifica mais íntima e eficien
temente do que qualquer outro o imaginário e o real que compõem a
realidade social que ele é ao mesmo tempo o símbolo mais forte, o
significante mais pleno, o termo mais rico de sentido de uma língua
que ultrapassa a palavra, a língua falada na sociedade e que fala tam
bém através dos gestos, dos corpos e dos objetos, naturais ou fabrica
dos que os cercam. O objeto sagrado, porque diz o indizível, porque
representa o irrepresentável, é o objeto carregado do valor simbólico
mais forte. Nossa análise dos objetos sagrados dos baruyas nos levou
assim aos antípodas das teses de Lévi-Strauss e de Lacan, que dão ao
simbólico a primazia sobre o imaginário e sobre o real, que crêem no
simbólico puro e que, como Lévi-Strauss, nas noções de m ana, ou para
os baruyas koulié, de “espírito-poder” contido nas coisas, vêem con
2 6 3
MAURICE GODELIER
2 6 4
O ENIGMA DO DOM
2 6 5
MAURICE GODELIER
2 6 6
O ENIGMA DO DOM
2 6 7
MAURICE GODELIER
2 6 8
0 ENIGMA 00 DOM
2 6 9
MAURICE GODELIER
Todos os trabalhos que Lévi-Strauss consagrou à análise dos mitos dos índios
da América do Norte, e mais amplamente ao estudo das formas e dos procedi
mentos do “pensamento selvagem”, isto é, do pensamento “em estado selva
gem”, trouxeram resultados fundamentais, perspectivas inéditas que cada um
de nós, e não apenas os etnólogos, deve incorporar a seu próprio trabalho para
poder avançar. Mas não é difícil mostrar que estes trabalhos e estes resultados
não trazem com eles a prova de que as célebres teses da “Introduction à Poeuvre
de Mauss” sejam fundadas. Ao contrário, eles demonstram que os símbolos e os
conceitos indígenas não são significantes puros, que os procedimentos do pen
samento simbólico, o recurso à metafora e à metonímia estão a serviço de em
presas de totalização e de explicação imaginárias da ordem que reina no universo
e deve reinar na sociedade. Lévi-Strauss mostra, aliás, que estas empresas estão
ancoradas em uma realidade que não podem ultrapassar: a dos modos de exis
tência das sociedades paleolíticas e sobretudo neolíticas. Nossas críticas não se
dirigem, portanto, a estas análises e nunca farão com que negligenciemos ou
subestimemos os resultados já alcançados. Elas visam às fórmulas filosóficas que
pretendem fundamentá-las.
2 7 0
O ENIGMA DO DOM
píton de mestre das chuvas e trovoadas5. Mas deixo esta questão para
outros espaços. Meu propósito aqui é apenas trazer à luz a natureza
dos dons que estas potências fizeram aos homens e confrontá-los com
aquilo que os homens, por seu lado, oferecem aos deuses — e não ne
cessariamente “em troca”. Eis-nos, portanto, de novo diante da famosa
quarta obrigação de Mauss, aquela que os humanos têm de fazer dons
“aos deuses, aos espíritos da natureza e aos espíritos dos mortos”, pois
“são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo6”.
O que os homens lhes dão são preces, oferendas e muitas vezes sa
crifícios, isto é, a oferenda de uma vida, animal ou humana. Mas aten
ção. O sacrifício não é uma prática universal. Existem religiões que não
o praticam, como parece ser o caso de numerosas sociedades que vivem
principalmente da caça e da colheita. Este fato, que saibamos, foi subli
nhado pela primeira vez por James Woodburn, especialista em um dos
últimos povos caçadores da África, os hazdas, quando de uma conferên
cia consagrada por um certo número de teólogos e antropólogos ao exa
me da noção de sacrifício7. Esses caçadores, que vivem da carne, do
sangue, do corpo dos animais selvagens, esforçam-se para manter rela
ções de amizade respeitosa e de reconhecimento com “os mestres dos
animais” e de não matar estes últimos, “senão comedidamente”, para
suas necessidades.
Esses povos não consideram, necessariamente, os seres humanos
“superiores” aos animais que eles caçam e dos quais dependem. As
religiões com sacrifícios são as religiões em que os deuses dominam o
homem com toda a sua potência e fazem-se temer. Mas, como destaca
igualmente Alain Testart, para que haja sacrifício, é preciso haver vítimas
5É a mesma atitude prudente que Alain Testart adota nas primeiras páginas de sua
obra Des dons et des dieux, quando escreve que “a pior definição que se pode
encontrar da religião é provavelmente aquela que fazia dela uma crença em um
ou vários deuses” (op. cit., p. 17).
‘ Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 167.
7Michael Bourdillon e Meyer Fortes (eds.), Sacrifice, Nova York, Academic Press,
1980, p. 82.
27 1
MAURICE GODELIER
*Alain Testart, op. cit., p. 27-29. No entanto, não seguimos este autor quando
ele declara “estar impressionado com a correlação evidente entre a ausência de
sacrifício e o caráter não-estatal da sociedade”. Esta afirmação é excessivamen
te redutora. Assim como a afirmação de que a Melanésia jamais praticou o sa
crifício (p. 29).
''Ver os trabalhos de Jean-Pierre Vernant e Mareei Détienne, L a Cuisine du sacrifice
em paysgrec (Paris, Gallimard, 1979), e sobre o mito de Prometeu ladrão de fogo,
separando os homens dos deuses.
l0Muitos trabalhos de qualidade foram publicados sobre as sociedades que, na Nova
Guiné, celebram o culto de Afek. Elas estão localizadas na região das Star Mountains,
onde têm sua nascente os grandes rios Sepik e Fly. Ver notadamente Barry Craig e
David Hyndman (eds.), Children ofAlek: Tradition and Change among the Mountain-
Ok o f Central New Guinea, Sidney, Oceania Monograph, 1990. Particularmente o
capítulo 5, escrito por Robert Brumbaugh: “Afek Sang: The Old Woman’s Legacy
to the Mountain-Ok”, p. 54-87. Dan Jorgensen, Taro and Arrows: Order, Entropy
and Religion among the Telefomin, University of British Columbia, 1981.
272
O ENIGMA DO DOM
2 7 3
MAURICE GODELIER
"Agradecemos vivamente a Lorenzo Brutti por nos ter comunicado esses dados
recolhidos pela primeira vez em agosto de 1995. Apresentamos aqui um resumo
sucinto que não dá conta de sua complexidade, mas já demonstra sua grande im
portância para o conhecimento dessas sociedades e, em um plano mais geral, para
uma reflexão sobre as relações entre religião e sociedade.
274
O ENIGMA DO DOM
2 7 5
MAURICE GODELIER
2 7 6
O ENIGMA 00 DOM
ninos. Além disso, se é ela quem dá a vida, é ela também quem intro
duz a morte no universo.
Ela corta o pênis de seu irmão, que era longo demais, e copula com
ele pela primeira vez. Ela faz, portanto, emergir a sexualidade ao for
çar seu irmão a cometer com ela um incesto, ato que em seguida será
proibido aos humanos. Ela modela o corpo dos homens, adorna-os,
decora e os faz entrar no ciclo das iniciações. Ela institui, com “o Ve
lho”, a primeira forma de troca “comercial”. Enfim, ela morre e faz
dom de seus ossos, realidades duráveis que continuarão a proteger os
habitantes da região sob a condição de que lhe rendam culto. Ela con
tinua, portanto, presente entre eles, embora os oksapmins saibam que,
depois de sua morte, ela partiu para outra parte, atravessando outras
regiões, realizando ^utras proezas. Finalmente, antes de deixá-los, ela
confiou-lhes o segredo do rito a ser realizado em caso de catástrofe,
quando o taro não cresce mais e a terra se torna estéril, quando a fome
ameaça a humanidade de desaparecimento.
Assim, paradoxalmente — mas é nesse paradoxo que se encontra
todo o sentido do mito — , o mito parte de uma situação originária em
que é a mulher que contém em si ao mesmo tempo a feminilidade e a
masculinidade, que é um ser que não aceita a realidade tal como é, mas
a transforma, a civiliza: uma mulher superior ao homem e que o en
globava em si mesma antes de formá-lo e destacá-lo de si. Enfim, ao
termo do relato, o mito “junta-se” à realidade, pois ao desaparecer Afek
deixa atrás de si uma humanidade nova, idêntica à de hoje, em que os
homens caçam, iniciam os meninos, não criam porcos, não cozinham
etc., e são os únicos a ter acesso a Afek através de seu culto. No fim do
relato, portanto, são os homens que detêm todos os poderes, os dos
homens e os das mulheres. Desta vez a masculinidade engloba a femi
nilidade. A realidade se apresenta como o mito invertido e é ao mesmo
tempo habitada, atravessada pelo mito, pois os homens sabem que
devem seus poderes a Afek, mas não podem a preço algum revelar o
segredo às mulheres, que devem ser “mantidas na ignorância”. A rea
lidade não é, portanto, exatamente o inverso do mito, pois os homens
2 7 7
MAURICE GODELIER
2 7 8
O ENIGMA DO DOM
2 7 9
MAURICE GODELIER
12Marcel Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 169. Mauss acrescenta, referindo-
se a seu “Essai sur le sacrifice”: “Talvez não seja por puro acaso que as duas fór
mulas solenes do contrato, do ut des em latim e dadami se, dehi m e em sânscrito,
foram conservadas também através de textos religiosos.” Mas o fato de os contra
tos humanos serem sagrados, cobertos pela autoridade de uma religião, não signi
fica que as trocas dos homens com os deuses se reduzem a um contrato.
2 8 0
O ENIGMA DO DOM
l3James Fox, “The Movement of the Spirit in the Timor Area: Christian Traditions
and Ethnic Identities”, in James Fox (ed.), Indonésia: The Making o f a Culture,
Camberra, The Australian National University, 1980, p. 235-246.
l4Andrew MacWilliam, “Prayers of the Sacred Stone and Tree: Aspects of Invocation
in West Timor”, Canberra Anthropology, 14 (2), 1991, p. 49-59.
28 1
MAURICE GODELIER
2 8 2
O ENIGMA DO DOM
2 8 3
MAURICE GODELIER
Neste momento tenho-me diante desta pedra, esta pedra de meu ances
tral. Eis porque meu Senhor a Terra abaixo, meu Senhor o Céu acima.
Neste momento tenho-me de pé diante desta pedra colocada aqui por
meu ancestral. Trago estes animais para que orem à pedra sagrada, à
árvore sagrada de Polo, Esliu [... seguem-se os nomes de outras seis
comunidades].
Esta pedra, esta árvore, abaixo a cabeça em oração, Terra embaixo,
Céu no alto. Solicito a chuva, Céu no alto, para lavar a Terra embai
xo, para que eu e as gentes de Polo [...] comamos e bebamos, para
lavar toda a terra para que haja milho, para que possamos comer e
beber a nosso contento.
Por isso trazemos estes animais, por isso abaixamos nossas cabeças em
oração para a origem, a Terra abaixo, para que recebamos a chuva do
Céu acima.
2 84
O ENIGMA DO DOM
C o loco este p orco no cen tro [do altar] para que estejais sem pre em
nossa m em ória, para que estejais sempre contentes em Polo [...]. Que
este alim ento assado e cozido perm ita-m e servir-vos e dirigir-vos esta
oferenda para que em nossos corações com am os e bebam os satisfeitos
sobre esta terra.
2 8 5
MAURICE GODELIER
15No rito de Afek que descrevemos acima, em que se sacrificava um homem para
devolver fertilidade à terra, matavam-se às vezes os filhos (os meninos^ da vítima
para que, mais tarde, eles não vingassem seu pai.
2 8 6
O ENIGMA DO DOM
2 8 7
MAURICE GODELIER
igual e diante dele todos os humanos, mesmo aqueles que são investi
dos por ele das mais altas funções, são iguais, pois toda autoridade
procede dele.
É através dele que os contrários se equilibram, a vida cósmica se
reproduz, a justiça pode reinar entre os homens, e é em relação a ele que
cada um encontra lugar e função na sociedade. Ele reina sobre o Egito
como o Sol reina no cosmos. Ele é o eterno ponto fixo, o pivô em torno
do qual tudo gira. Mas Faraó não é o Sol. Ele descende do Sol. Na ori
gem de tudo há o Sol (Aton) incriado, mas criador. Aton fez sair de si
mesmo o ar e a água, e deste casal nasceram a Terra e o Céu, que pari
ram os quatro últimos deuses da Enéade, entre os quais Osíris e ísis, pai
e mãe de Hórus, de Faraó. Este último dá continuidade à obra fecun-
dante dos deuses primordiais. Todo ano ele se dirige na barca sagrada
para as fontes do Nilo até Silsileh, lá onde as águas são demasiado bai
xas para se navegar, e realiza o rito “que faz o Nilo correr fora de sua
fonte”, jogando na água o papiro em que estão inscritas as fórmulas
endereçadas ao grande rio que não é outro senão seu pai, Osíris. E a
Faraó que os camponeses devem o limo fértil, é ele quem “engorda o
país”. Ele é também “o touro poderoso”, o senhor do gado etc.
Estamos aqui bem distantes de Afek, que, depois de ter realizado
seus trabalhos, desapareceu deixando atrás de si os próprios ossos,
confiados aos mestres das iniciações de Telefolmin. Estamos distantes
também da divindade suprema dos metos, de seus mestres da Terra e
de seus sacerdotes. Estamos diante de um deus que vive permanente
mente entre os homens e os dirige, os apóia em permanência na existên
cia. Os homens lhe devem tudo, pois tudo devem aos deuses e Faraó
os representa entre eles. Faraó talvez seja o primeiro ser humano a ser
transformado em deus ainda vivo, homem transformado em deus, mas
que se pensa (e que é pensado por todos) como um deus feito homem.
Não um “pequeno” deus, um espírito da natureza, mas uma potência
assim como Afek, mas muito maior ainda por ter por trás dela todo o
Panteão, toda a cosmologia dos egípcios, todos os templos, todos os
ritos celebrados pela casta dos sacerdotes.
2 8 8
O ENIGMA DO DOM
Esta essência divina de Faraó nos confronta com dois fatos funda
mentais. De um lado, compreende-se que aqueles que tudo devem a
tál potência, sua própria existência e a de seus descendentes, subm e
tem-se voluntariamente a sua autoridade e que seu consentimento pesa
mais que a violência no exercício do poder. A violência repressiva existia
no Çgito e pesava como uma ameaça constante, mas, no curso dos
milênios de sua existência, o Impérjo Egípcio conheceu muito poucas
revoltas internas exprimindo a resistência dos camponeses e artesãos
às corvéias, tributos aos quais tinham de se submeter. E o segundo fato
fundamental, que lança luz, aliás, sobre o primeiro, é que este consen
timento era a expressão de uma dívida original dos humanos para com
os deuses, especialmente o deus que vivia entre eles, Faraó, uma dívida
que não poderia ser compensada, e muito menos anulada, nem por
todos os contradons que eles poderiam fazer de seu trabalho, de suas
colheitas e mesmo de suas pessoas, se Faraó exigisse suas vidas.
Contrariamente ao que muitos pensam e até ao que nós mesmos
escrevemos17, há nessa relação entre um soberano-deus e seus súditos
algo que ultrapassa a lógica da troca. Diante dos dons dos grandes
deuses, das potências do invisível — e Afek era uma delas — , não há
contradom possível. Nada de equivalente pode ser dado e, bem enten
dido, nenhum contradom mais importante, nenhum potlatch é possí
vel, pois os grandes deuses são senhores de todas as riquezas.
Faraó, é certo, “dava” tudo e nem tudo era “imaginário” em seus
dons. Mas estes sorviam de um poder que se confundia com ele, com
sua essência divina, e com os objetos e fórmulas sagradas dos quais ti
nha a guarda. É a partir desse ponto, situado além de qualquer troca
possível, que as trocas eram possíveis, entre ele e seus súditos e dos
súditos entre eles, súditos cujas relações passavam sempre por ele, re
feriam-se a ele. Mas retornemos ao fato de que nem tudo era imaginá-
2 8 9
MAURICE GODELIER
2 9 0
O ENIGMA DO DOM
2 9 1
MAURICE GODELIER
292
O ENIGMA 00 DOM
293
MAURICE GODELIER
2 9 4
0 ENIGMA DO DOM
ritos torna-se condição mesma do sucesso das demandas que seus fiéis
dirigem a Deus, pois foi o próprio Deus quem fixou os limites da aliança
e das trocas. Não foram os homens.
Abraão quis sacrificar Isaac, seu filho, a Deus, mas Javé deteve a
sua mão. O próprio Javé não se sacrificou pelos homens. O Cristo o
fez. Ele concordou em assumir forma humana, em viver e deixar-se
crucificar para salvar a humanidade de seus pecados, resgatá-la aos olhos
de Deus, seu pai, e assegurar àqueles que seguirão sua própria palavra
a salvação e a vida eterna depois da ressurreição dos mortos.
O Deus dos cristãos, um em três pessoas, parece ter algo de fami
liar com os grandes deuses tribais que encontramos até aqui. Ele é
onipresente, onisciente, onipotente. Mas o Novo Testamento fala so
bretudo do Filho de Deus e ocupa-se muito pouco desses tempos ori
ginais da criação do mundo. Ele destaca o homem, seus pecados, o mal
que nele está e vem dele, testemunhados pelas injúrias e pelo ódio que
voltaram contra Cristo, seu julgamento e crucificação. Mas esta cruci
ficação, foi o próprio Deus quem a quis para dar aos homens uma úl
tima chance de escapar à danação eterna.
Releiamos o primeiro “manifesto” da fé cristã, o credo redigido
por ocasião do primeiro Concilio de Nicéia, em 19 de junho de 325,
alguns meses depois da conversão ao cristianismo do imperador
Constantino (o que reforçou os laços selados entre o império e a Igre
ja), mas também em plena crise provocada pela heresia de Ario, padre
de Alexandria. Ele negava que a pessoa do Cristo, segunda pessoa da
Santíssima Trindade, fosse igual e consubstanciai à do Pai, pois o Cris
to havia sido engendrado. Vejamos qual foi a resposta da Igreja:
2 9 5
MAURICE GODELIER
terra; que, por nós, os homens, e por nossa salvação, desceu, encarnou-
se, fez-se homem, sofreu, ressuscitou no terceiro dia, subiu aos céus e
virá julgar os vivos e os mortos;
e no Espírito Santo.
E aqueles que dizem: ‘Houve um tempo em que ele não era’, e: ‘Antes
de nascer, ele não era’, e: ‘Ele foi criado do nada’, ou que declaram
que o Filho de Deus é de uma outra substância ou de uma outra essên
cia, ou que está submetido à mudança ou à alteração, a Igreja católica
e apostólica os anatematiza24.
2 9 6
O ENIGMA DO DOM
“O hom em nada pode dar a Deus que já não lhe deva. Ainda assim,
ele jamais quitará sua dívida2*. ”
“ Santo Tomás de Aquino, Somme théologique, Paris, Desclée & Cie, 1953, II, A,
questão 80, p. 12.
297
MAURICE GODELIER
2 9 8
O ENIGMA DO DOM
27Sigmund Freud: “Não devemos, portanto, nos espantar ao vermos o homem pri
mitivo exteriorizar as relações estruturais de sua própria psique e cabe a nós recolocar
na alma humana aquilo que o animismo nos ensina em relação à natureza das coi
sas” (Totem et Tabou, Paris, Payot, 1965, p. 107, trad. livre)*. Karl Marx: “É bem
mais fácil encontrar através da análise o conteúdo, o nó terrestre das concepções
nebulosas das religiões, do que desenvolver, de modo inverso, a partir das relações
reais da vida, as formas celestes que lhes correspondem” (O capital, Livro I, vol. 2).
"Na edição brasileira: “Estamos então preparados para descobrir que o homem
primitivo transpunha as condições estruturais de sua própria mente para o mun
do externo; e podemos inverter o processo e colocar de volta na mente humana
aquilo que o animismo acredita ser a natureza das coisas” (Totem e tabu, Rio de
Janeiro, Imago, 1996, p. 101). (N. da T.)
2 9 9
CAPÍTULO IV O dom des-encantado
Nossa viagem chega ao fim. A terra encantada dos objetos sagrados e
dos objetos dados afasta-se atrás de nós. Os objetos estão sempre lá,
mas as respostas que trouxemos às questões que Mauss se colocava a
seu respeito dissiparam o encantamento1.
Mais fundamentalmente, nossas análises nos levam a concluir que
não poderia haver uma sociedade sem dois domínios: o das trocas, não
importa o que se troque e qual seja a forma desta troca, do dom ao
potlatch, do sacrifício à venda, à compra, ao mercado; e aquele em
que os indivíduos e os grupos conservam preciosamente para eles mes
mos, e depois transmitem a seus descendentes ou àqueles que compar
tilham a mesma fé, coisas, relatos, nomes, formas de pensamento. Pois
o que se guarda sempre são “realidades” que arrastam os indivíduos e
os grupos para um outro tempo, que os remetem às suas origens, à
origem.
É a partir desses pontos de referência, dessas realidades “fixas na
natureza das coisas” que se constroem, se desdobram as identidades,
individuais e coletivas. São eles que fazem com que haja duração no
tempo. Medem-se as forças necessárias para destruir esses pontos de
referência, seja corroendo-os pouco a pouco, seja de um só golpe de-
cepando-os brutalmente. Não é indiferente para o futuro de uma socie
dade o fato de que as forças destruidoras de seus pontos de referência
tenham surgido do interior dos modos de vida e de pensamento por
I 'Ver p. 14.
3 0 3
MAURICE GODELIER
O m icad o acred ita que seria m uito prejudicial p ara sua dignidade e
p ara sua santidade to c a r o solo co m seus p és; assim , q uan d o quer
ir a algum lugar, ele deve ser levado sobre om b ros h um anos. Seria
ainda m enos su p ortável se expusesse sua sagrad a p essoa ao a r li
vre, e não se con sid era que o sol seja digno de b rilh ar sob re sua
cab eça. U m a tal santidade liga-se a tod as as p artes de seu c o rp o , de
m o d o que ele n ão ousa c o rta r os cab elo s, a b arba ou as unhas. N o
e n ta n to , p ara que ele não ten ha um a ap arên cia d em asiado suja, eles
p od em ser retirad o s durante o s o n o ; diz-se que o que se to m a de
seu c o rp o d uran te esse p eríod o lhe é ro u b ad o , e um tal ro u b o não
causa danos à sua santidade nem à sua dignidade. O u tro ra ele era
ob rig ad o a sentar-se sobre o tro n o a cad a m an h ã, p o r várias h o ras,
a c o ro a im perial em sua cab eça, e aí p erm an ecer c o m o um a está
tu a, sem m o ver os pés ou as m ãos, a cab eça ou os o lh os, nem qual
quer o u tra p arte de seu c o rp o ; supunha-se que p o r este m eio ele
con servava a p az e a tran q üilid ade de seu im p ério ; m as se, p o r in
2De fato, em “Tabou ou les périls de l’âme” (1911), que é a segunda parte do
Rameau d ’or, obra consagrada ao “rei mágico na sociedade primitiva”. Esta se
gunda parte é o desenvolvimento do artigo “Tabou”, escrito por Frazer para a
Enciclopédia Britânica a pedido de Robertson Smith.
3 0 4
O ENIGMA DO DOM
3Kaempfer, History o f Japan, citada por James Frazer em L e Ratneau d ’or, Paris,
Laffont, 1981, p. 487.
30 5
MAURICE GODELIER
“Ibid., p. 486-487.
5Em outras sociedades, como na África, o ponto de referência, a alavanca do mun
do, o rei é condenado, por sua vez, a permanecer totalmente invisível. No antigo
reino de Abomey havia dois reis. Um deles, visível, agia à luz do dia, cercado de
respeito, mas era um falso rei servindo de duplo a um verdadeiro rei que, este,
permanecia invisível. O verdadeiro rei, dizia um ditado de Abomey,
“não tem olhos, não vê [...]
não tem boca, não fala [...]
não percebe senão o bem”.
Marc Augé, que comenta este dito, acrescenta: “Tudo é feito para que o corpo
soberano, a aparência física do rei se identifique mais e mais com esta insensibili
dade da pedra” (in Le Dieu objet, Paris, Flammarion, 1982, p. 131). Ao fim e^ao
cabo, o verdadeiro rei poderia até mesmo não existir. Mas talvez seja pedir de
mais fazer repousar todo um reino apenas sobre a idéia de realeza, sem que reis
falsos ou verdadeiros jamais se manisfestem ao povo.
Por trás de todas estas escolhas culturais se apresenta o problema universal de
saber como representar o irrepresentável, o indizível. À diferença do cristianis
mo, que escolheu representar Deus Pai sob os traços de um majestoso velho bar
budo, o islã sempre recusou tal antropomorfismo. Cf. Jack Goody, “ícones et
iconoclasme en Afrique”, Annales, n° 6, 1991, p. 1235-1251.
3 0 6
O ENIGMA 00 DOM
3 0 7
MAURICE GODELIER
7Com o apoio de alguns antropólogos como Ruth Benedict, que nunca havia ido
ao Japão mas tinha pesquisado para o Office of War Information sobre “os mode
los japoneses de comportamento”, relatório 25, pesquisa que realizou junto aos
japoneses que viviam nos Estados Unidos. O relatório deu lugar ao livro Le
Chrysanthème et le Sabre (1946), que vem conhecendo imenso sucesso até hoje.
Ver a reedição da tradução francesa, Picquier Poche, 1996, com um prefácio de
Jane Cobbi que recorda este contexto e analisa as teses sustentadas por Benedict.
8Cf. Eric Seizelet, Monarchie et démocratie dans le Japon d ’après guerre, Paris,
Maisonneuve & Larose, 1990, p. 143-217.
3 0 8
O ENIGMA DO DOM
30 9
MAURICE GODELIER
nem moral nem imoral. Ele é neutro. Digamos que é útil. Ele se esten
de a tudo aquilo a que o mercado se estende. E este se estende impul
sionado pela necessidade, para a produção e para o comércio capitalistas
de se estender sempre mais.
Logo, o dinheiro e o lucro estão no próprio coração do sistema.
Eles são inseparáveis e não deveriam, portanto, servir como bodes
expiatórios quando se criticam as conseqüências negativas do funcio
namento desse sistema. Pois este, que é apresentado como o menos ruim
possível, exclui regular e necessariamente da produção — e portanto
do “mercado do trabalho” — centenas de milhares de indivíduos cuja
sobrevivência depende então da ajuda do Estado ou da generosidade
dos particulares, ou seja, de uma economia de redistribuição gerada
pelo Estado ou de uma economia do dom gerada por particulares.
Estamos tratando, portanto, com uma sociedade dividida em gru
pos cujos interesses e status não são os mesmos, e que em boa parte se
opõem, se contradizem. Esta divisão e esta oposição são estruturais, o
que não contradiz o fato de que um certo número de assalariados pode
se transformar em capitalistas, e que um certo número de capitalistas
pode perder seus capitais e recomeçar outra vida. Em suma, existe ine
gavelmente no coração do capitalismo uma fonte permanente de desi
gualdades sociais, e isto significa que nesse sistema, como em todos os
outros, há coisas a serem recalcadas, coisas sobre as quais “é preciso”
silenciar ou que “é preciso” travestir de “interesse comum”.
Mas, combinado a esse tipo de economia, pelo menos no Ociden
te, encontra-se um sistema político que repousa sobre o princípio de
que todos os indivíduos são livres e iguais em direito, livres para agir,
para pensar como quiserem com a condição de que seus atos não ateri^
tem contra os direitos dos outros e não ponham em perigo o interesse
geral, que o Estado tem por função representar e defender. Os indiví
duos, desiguais por seu lugar na economia, gozam, portanto, no plano
político, no quadro de um Estado democrático, da igualdade pelo di
reito.
3 1o
O ENIGMA DO DOM
3 1 1
MAURICE GODELIER
3 12
O ENIGMA DO DOM
3 1 3
MAURICE GODELIER
3 14
0 ENIGMA 00 DOM
'“Segundo a bela fórmula de André Petitat em “Le don: espace imaginaire, normatif
et secret des acteurs”, Antbropologie et Sociétés, vol. 19, nos 1 e 2, 1995, p. 18,
número especial intitulado “Retour sur le don”. André Petitat junta seus esforços
aos despendidos há anos por Alain Caillé e pelos colaboradores da revista Mauss
(esforços aos quais desejamos render homenagem aqui) para criticar o utilitarismo
e devolver um lugar na vida às relações, aos princípios de pensamento e de ação
não-comerciais.
"Mareei Mauss, “Essai sur le don”, art. cit., p. 270.
3 15
MAURICE GODELIER
parecem ter ressurgido da terra e subido aos céus das utopias, e o ve
lho mito do liberalismo econômico, da fé nas virtudes do mercado e
da concorrência como as únicas instituições capazes de regular os pro
blemas essenciais da sociedade, voltou à tona.
A eficácia do capitalismo não consegue impedi-lo de acumular
excluídos — indivíduos, nações — e de aumentar fraturas (sociais) e
fossos (entre as nações). O Estado deveria representar todas as partes
da sociedade e teria como missão governá-la de maneira que os confli
tos de interesse, as contradições que se desenvolvem entre algumas
destas partes, não a impeçam de se reproduzir como um todo e, menos
ainda, não excluam desse todo uma parte da sociedade. Ora, hoje o
Estado tenta desengajar-se não apenas da economia, mas também da
saúde, da educação, ou parece pelo menos ter cada vez mais pressa em
fazê-lo. É nesse contexto de fim de século que o dom generoso, o dom
“sem retorno”, é solicitado de novo, desta vez com a missão de ajudar
a resolver problemas de sociedade. As organizações caritativas multi
plicam-se, ao passo que Mauss, já no início do século, considerava a
caridade “ofensiva para quem a aceita12”. Mas a caridade de hoje ser
ve-se dos meios de hoje. Ela utiliza a mídia, burocratiza-se e, no Oci
dente, nutre-se, através das imagens da televisão, de todas as desgraças,
de todos os males, conjunturais ou duráveis, que surgem nos quatro
cantos do planeta.
O dom no Ocidente recomeça, assim, a ultrapassar a esfera da vida
privada e das relações pessoais em que estava encurralado na medida
em que se estendia a ascendência do mercado sobre a produção e as
trocas e aumentava o papel do Estado na gestão das desigualdades. Mas
hoje, diante da amplidão dos problemas sociais e da incapacidade
manifesta do mercado e do Estado de resolvê-los, o dom está em via
de voltar a ser uma condição objetiva, socialmente necessária, da re
produção da sociedade. Não será o dom recíproco de coisas equiva-
l2Ibíd., p. 258. Mauss retoma aqui as palavras de uma surata do Corão à qual ele
se refere: surata II, 265.
3 16
O ENIGMA DO DOM
lentes. Não será também o dom potlatch, pois aqueles a quem os dons
serão destinados terão muita dificuldade em “retribuir”, que dirá em
retribuir mais.
O dom caritativo está, portanto, em via de institucionalizar-se de
novo. Mas o dom não é a Terra Prometida. Ele pode servir para espe
rar, mas não podemos esperar tudo dele, pois apenas os deuses dão
tudo ou tudo deram, precisamente, porém, porque não eram homens13.
O dom há de servir, mas esperando o quê?
Nós estamos em uma sociedade cujo funcionamento mesmo sepa
ra os indivíduos uns dos outros, isola-os em suas famílias e só os pro
move opondo-os uns aos outros. Estamos em uma sociedade que libera,
como nenhuma outra o fez, todas as forças, todas as potencialidades
adormecidas no indivíduo, mas que também leva cada indivíduo a
dessolidarizar-se dos outros, servindo-se ao mesmo tempo deles. Nos
sa sociedade só vive e prospera, portanto, ao preço de um déficit per
manente de solidariedade. E ela só imagina novas solidariedades se
negociadas sob a forma de contrato. Mas nem tudo é negociável naquilo i
13Talvez esse desejo sublime tenha sido o que levou Jacques Derrida, em sua obra ’
Donner le temps (Paris, Galilée, 1991), a decretar: “A bem dizer, o dom como
dom não deveria aparecer como dom nem para o donatário, nem para o doador”
(p. 26). “Nesse sentido, o dom é o impossível. Não impossível, mas o impossível.
A própria figura do impossível” (p. 19). O verdadeiro dom seria o dom de alguém
que, sem razão, dá sem saber que dá a alguém que nunca ficaria devendo nada,
pois não saberia que lhe deram. Mesmo Cristo tinha uma razão para dar a vida.
Ele o fazia por amor dos homens. Compreende-se que Jacques Derrida, tendo
analisado o dom sob este ângulo, pense que sua abordagem afasta-se totalmente
da tradição e antes de tudo de Mauss, sobre o qual ele escreve: “Poderíamos até
dizer que um livro tão monumental quanto o “Essai sur le don” de Mareei Mauss
fala de tudo, exceto do dom: ele trata da economia, da troca, do contrato, da
oferta, do sacrifício, do dom e do contradom, ou seja, de tudo aquilo que na pró
pria coisa leva ao dom e a anular o dom” (p. 39). “Seria o mesmo que perguntar,
em suma, de que e de quem fala Mauss afinal” (p. 41) (grifado por J. Derrida). A
tarefa de desconstruir um objeto para torná-lo mais inteligível antes de recons
truí-lo com base em novas hipóteses é aqui levada ao absurdo, pois no fim do
empreendimento o objeto desconstruído encontra-se inteiramente diluído.
3 17
MAURICE GODELIER
3 1 8
Bibliografia
3 1 9
MAURICE GODELIER
3 2 0
O ENIGMA DO DOM
3 2 1
MAURICE GODELIER
3 2 2
O ENIGMA DO DOM
3 2 3
MAURICE GODELIER
3 2 4
O ENIGMA DO DOM
3 2 5
MAURICE GODELIER
3 2 6
O ENIGMA DO DOM
32 7
MAURICE GODELIER
32 8
O ENIGMA DO DOM
MURRA, John, “On Inca Political Structure”, in Ray Vem (ed.), Systems o f
Political Control and Bureaucracy in Human Societies, Seattle, University
of Washington Press, 1958, p. 30-41.
------ . “Cloth and its Function in the Inca State”, American Anthropologist,
64 (4), 1962, p. 710-728.
Nouveau Testament, Evangile selon saint Mathieu, nova tradução por E. Osty
e J. Trinquet, Paris, Siloé, 1974.
Novo Testamento, Evangelho segundo São Mateus.
OTTO, Rudolf, Le Sacré. Lélement irrationnel dans Vidée du divin et son
rapport avec le rationnel, Paris, Payot, 1949.
PANOFF, M ichel, “Marcel Mauss, the Gift Revisited”, Man, n° 5 , 1970,
p. 60-70.
------ . “Objets précieux et moyens de paiement chez les Maenge de Nouvelle-
Bretagne”, LHomme, X X (2), 1980, p. 6-37.
------ . “Une figure de Pabjection en Nouvelle-Bretagne: le rubbish man ”,
LHomme, n° 94, jan.-fev. de 1985, p. 57-72.
PETITAT, André, “Le don: espace imaginaire, normatif et secret des acteurs”,
Anthropologie et Sociétés, vol. 19, not 1-2, 1995, p. 18.
PETREQUIN, Pierre e Anne-Marie, Ecologie d ’un outil. La hache de pierre
en Irian Jaya, Paris, CNRS, 1993.
PITT-RIVERS, Julian, Mana, Londres, The London School of Economics,
1974.
POLANYI, Karl, Primitive, Archaic and Modem Economies, Nova York, Anchor
Books, Doubleday & Company, 1968.
QUIGGIN, Hingston A., A Survey o f Primitive Money, the Beginning o f
Currency, Londres, Methuen, 1963.
RACINE, Luc, “L’obligation de rendre les présents et 1’esprit de la chose
donnée: de Marcel Mauss à René Maunier”, Diogène, n° 154, 1991,
p. 69-94.
RAY, Vern (ed.), Systems o f Political Control and Bureaucracy in Human
Societies, Seattle, University of Washington Press, 1958, p. 30-41.
ROSPABÉ, Philippe, La Dette de vie. Aux origines de la monnaie, prefácio de
Alain Caillé, Paris, La Découverte-MAUSS, 1995.
ROTHKRUG, Lionel, “Popular Religion and Holy Shrines”, in J. Obelkevitch
(ed.), Religion and People, Chapei Hill, 1987.
329
MAURICE GODELIER
3 3 0
O ENIGMA DO DOM
3 3 1
MAURICE GODELIER
SUTTLES, Wayne, “Affinal Ties, Subsistence and Prestige among the Coast
Salish”, American Anthropology, n °62, 1960.
TCHERKÉZO FF, Serge, “La question du ‘genre’ à Samoa. De Pillusion
dualiste à la hiérarchie des niveaux”, Antbropologie et Sociétés, 16 (2),
1992, p. 91-117.
TESTART, Alain, Les Chasseurs-Cueilleurs ou Vorigine des inégalités, Paris,
Société d’ethnographie, 1982.
------ . De la nécessité d ’être initié, Nanterre, Société d’ethnologie, 1992.
------ . “Des rhombes et des tjurunga: la question des objets sacrés en Australie”,
UHomme, n" 125, 1993, p. 31-65.
------ . Des dons e des dieux, Paris, Armand Colin, 1993.
THOMAS, Yan, “L’institution de 1’origine: Sacra Principiorum Populi Romani”,
in Mareei Détienne, Tracés de fondation, Louvain, Paris, Peeters, 1990,
p. 143-170.
TITMUS, Richard, The Gift Relationship: From Human Blood to Social Policy,
Londres, George Allen 8c Unwin, 1971.
TOFFIN, Gérard, “Hiérarchie et idéologie du don dans le monde indien”,
UHomme, n° 114, X X X (2), 1990, p. 130-142.
TORT, Michel, “Le différend”, Psychanalystes, n° 33, 1989, p. 9-17.
TRAUTMANN, Thomas, The Gift in índia: Mareei Mauss as Indianist, comu
nicação apresentada na 36* conferência da Society of Asian Studies, 1986.
TURGOT, Jacques, Ecrits économiques, Paris, Calmann-Lévy, 1970.
VALERI, Valerio, Kingship and Sacrifice: Ritual and Society in Ancient Hawaii,
Chicago, University of Chicago Press, 1985.
VAYDA, Peter A., “A Reexamination of Northwest Coast Economic Systems”,
Trans. New York Academic Sciences, vol. II, n ° 23, 1961.
VILAR, Pierre, Or et monnaie dans Vhistoire, Paris, Flammarion, 1975.
WEINER, Annette, Women o f Value, Men o f Renown: New Perspectives in
Trobriand Exchange, Austin, University of Texas Press, 1976.
------ . “Inalienable Wealth”, American Ethnologist, 12 (2), 1985, p. 210-227.
------ . “Plus précieux que Por: relations et échanges entre hommes et femmes
dans les sociétés d’Océanie”, Annales ESC, n° 2, 1992, p. 222-245.
------ . Inalienable Possessions: The Paradox o f Keeping-while-Giving, Berkeley,
University of Califórnia Press, 1992.
3 3 2
O ENIGMA 00 DOM
3 3 3