Você está na página 1de 390

1

REVISTA BRASILEIRA
DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Tema Central:
TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO
Vol. 1

n. 7
JAN / JUN - 2006

A Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC) é uma publicação semestral


do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da
Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)

ISSN 1678-9547

ESDC SÃO PAULO Nº 7 - Vol.1 p./390 Jan/Jun - 2006

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


2

Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC): Revista do Programa de Pós-Graduação


Lato Sensu em Direito Constitucional. Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)
São Paulo: ESDC, 2006. N. 7

Periodicidade: Semestral
Janeiro/Junho
ISSN: 1678-9547

1. Direito. 2. Periódico. 3. Escola Superior de Direito Constitucional. 4. Direito Constitucional.


5. Teoria Constitucional do Direito.

CDD 340.05 CDU 34.5

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário da ESDC


João Vivaldo de Souza – CRB/8 – 6828

Indexação: Qualis – CAPES – “A” Local – Direito e Psicologia – “C” Local – Ciência Política

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


3

Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC


ISSN 1678-9547
Diretor
Marcelo Lamy (lamy@esdc.com.br)
Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Doutorando em Direito
do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Diretor da Escola Superior de
Direito Constitucional - ESDC. Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da
Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).

Coordenadora Geral
Elaine Parpinelli Moreno Vessoni (rbdc@rbdc.com.br)
Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Processual Penal pela Escola da Magistratura de Maringá (Para-
ná). Especializanda em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC). Pesquisadora
Jurídica da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC). Professora Assistente do Curso de Especialização Lato
Sensu em Direito Constitucional (ESDC). Coordenadora de Turma do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito
Civil Constitucional (ESDC).

Conselho Editorial Nacional


André Ramos Tavares – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Membro da Comissão de
Área de Direito da CAPES.
Dimitri Dimoulis – Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).
Dircêo Torrecillas Ramos – Universidade de São Paulo (USP).
Erik Frederico Gramstrup – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Fernando Fernandes da Silva – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).
Flávia Cristina Piovesan – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
George Augusto Niaradi – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).
Gilberto Bercovici – Universidade de São Paulo (USP).
Guido Fernando da Silva Soares – Universidade de São Paulo (USP).
Ingo Wolfgang Sarlet – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).
José Gabriel Perissé Madureira – Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa (IPEP) e Centro Universitário Nove de Julho.
Luis Jean Lauand – Universidade de São Paulo (USP).
Luiz Alberto David Araújo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Luiz Carlos de Souza Auricchio – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).
Luiz Guilherme Arcaro Conci – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Luiz Pinto Ferreira – Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino (SOPECE).
Maria Garcia – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Mauro de Medeiros Keller – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).
Paulo Bonavides – Universidade Federal do Ceará (UFC).
Pietro de Jesús Lora Alarcón – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Ragner Limongeli Vianna – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Sérgio Resende de Barros – Universidade de São Paulo (USP).
Wagner Balera – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Yara Maria Martins Nicolau Milan – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)

Conselho Editorial Internacional


Alfonso López Quintás – Universidad Complutense de Madrid (Espanha)
Diego Valadés Ríos – Universidad Nacional Autónoma de México
Luis Maria Díez-Picazo – Universidad de Castilla - La Mancha (Espanha)
Paulo Ferreira da Cunha – Universidade do Porto (Portugal)

Colaboradores desta edição


Revisão: Alessandro Thomé, Daiana Braga Botelho, Vanessa Leandro Manjon, Robson Ferreira Campos, Lucas Za-
rella Moreira, Carlos Roberto Machado Junior, Magda Nascimento Silva, Annette Therezinha Galvão Resende.
Diagramação: www.pixel-indesign.com
Tradução: Renata de Moraes Silva (inglês), Juliana Salvetti (italiano)

Publicação da
Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)
CNPJ. 03.849.248/0001-10

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


4

Revista Brasileira de
Direito Constitucional
N.7 janeiro/junho (2006)

Tema Central:
Teoria Constitucional do Direito - Vol. 1

Main Theme: Constitutional Right Theory


SUMÁRIO - SUMMARY
Artigos
Articles

Consideraciones sobre gobernabilidad y constitucionalismo


Considerations about governability and constitutionalism
Diego Valadés Ríos (México).......................................................................................................................8

Neoconstitucionalismo
Neoconstitutionalismo
Mauro Barberis (Itália).............................................................................................................................18

Significado Político-Constitucional do Direito Penal


Constitutional and Political meaning of Criminal Law
Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão.................................................................................................31

Teoria Econômica do Direito na Constitucionalidade Democrática


Economic Theory of Right inside the Democratic Constitutionality
André Del Negri.........................................................................................................................................46

“Balanceamentos” entre valores constitucionais e teoria das fontes.


“Bilanciamenti” tra valori costituzionali e teoria delle fonti
Antonio Ruggeri (Itália)..............................................................................................................................56

El Marco Constitucional del Derecho Administrativo (el Derecho Administrativo Constitucional)


The Constitutional Mark of Administrative Law (the Constitutional Administrative Law)
Jaime Rodríguez-Arana (Espanha)............................................................................................................76

A teoria da Constituição como teoria do direito do Estado Constitucional


The Constitution theory as a theory of the right’s constitutional State
Gustavo Ferreira Santos............................................................................................................................91

Constituição e Processo: a decisão em sede de controle de constitucionalidade vista a partir da constitucional-


ização do processo
Constitution and Process: the Judicial Review decision since the Constitutionalization of Process
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia..................................................................................................102

A Constituição e os direitos adquiridos na Teoria dos Direitos: entre o positivismo e o pós-positivismo


The Constitution and the Individual Rights in the Theory of Law: between Positivism and Pós-Positivism
Geovany Cardoso Jeveaux.......................................................................................................................134

Teoria Constitucional-Penal aplicada à luz dos Direitos Humanos. O Ministério Público na efetivação dos prin-
cípios gerais em prol das garantias fundamentais e individuais da cidadania, da segurança jurídica e do regime
democrático

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


5

Constitutional-Penal theory to hand on the torch of learning of the Human Rights. The Public Prosecution
Service of rendering effective of the general principles in favour of fundamental and individual guarantees of
citizenship, juridical security and democratic system
Cândido Furtado Maia Neto....................................................................................................................160

A vocação contemporânea para a constitucionalização do Direito: alguns aspectos da Constituição como suporte
interpretativo das leis e códigos – o caso da interpretação conforme a Constituição
The contemporary vocation for the Right constitutionalization: some aspects of Constitution as an interpretative
support of rules and codes – the interpretation case according to the Constitution
André Ramos Tavares...............................................................................................................................196

Certeza do Direito e Multiplicação das Fontes Normativas: uma reflexão sobre o contexto italiano.
Certezza del diritto e moltiplicazione delle fonti normative: una riflessione dal contesto italiano
Francesco Rimoli (Itália).........................................................................................................................205

Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da constituição?


Neocostituzionalismo: un modello costituzionale o una concezione della costituzione?
Susanna Pozzolo (Itália)..........................................................................................................................231

Uma Visão do Neoconstitucionalismo a partir de Dworkin


A vision of Neoconstitutionalism since Dworkin
Gisele Mascarelli Salgado.......................................................................................................................254

Hermenêutica Constitucional, Democracia e Reconhecimento: desafios da teoria da constituição contemporânea


Constitutional Hermeneutic, Democracy and Recognition: challenges of contemporary constitution theory
Giovani Agostini Saavedra......................................................................................................................265

A experiência constitucional como aspecto do condicionamento histórico-cultural das teorias do direito: o caso da
‘jurisprudência hermenêutica’ e do constitucionalismo juridista da República de Bonn
The constitutional experience as an aspect of historical – cultural conditioning of right theory: the case of “
hermeneutic case law” and the judicial constitutionalism from Bonn’s Republic
Gustavo Just.............................................................................................................................................291

Democracia, Direito e Legitimidade. A crise do sistema representativo contemporâneo e os novos desafios do


contrato social
Democracy, Right and Legality. The crisis of contemporary representative system and the new challenges of
social contract
Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha...........................................................................................315

A Constituição como paradigma hermenêutico da Teoria da Cidadania no Brasil e os desafios do ensino


The Constitution how hermeneutic paradigm of the Brazilian Citizenship Theory and the challenges of the school
Luciana Rodrigues Penna........................................................................................................................347

Proposta de Teoria Fundamental da Constituição (com uma inflexão processual)


Proposition of Fundamentals Constitution Theory (with a procedural inflection)
Willis Santiago Guerra Filho....................................................................................................................365

Conferências e Debates
Lectures and Debates

Lion in Winter – Tomás Moro na nossa estação. Diálogos com o Direito Constitucional, o Cristianismo e a
Utopia Social
Lion in Winter  - Tomás Moro in our station. Dialogue with Constitutional Right, the Christianity and the Social
Utopia
Paulo Ferreira da Cunha (Portugal).......................................................................................................379

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


6

EDITORIAL

A teoria da Constituição sofreu, por um longo período, uma séria


indiferença quanto aos seus postulados, pois a nossa história corroborava
a idéia de que suas proposições eram meras conjecturas sonhadoras de um
mundo futuro.
Com a reconstitucionalização, desta vez efetiva e não meramente for-
mal, operada no país pelo movimento democrático que consolidou a Consti-
tuição de 1988, presenciamos o despertar da realidade constitucional.
Embora parecia-nos, naquele momento, nada mais do que uma
renovação simbólica de esperanças, a conseqüente atuação do Supremo
Tribunal Federal, como verdadeiro guardião da Constituição, trouxe gra-
dativamente para o dia-a-dia jurídico a imperatividade dos dispositivos
constitucionais.
Passados 17 anos de sua promulgação, em que vivenciamos esta revolução
copérnica (sonho/realidade), a imposição da sua força normativa se faz
presente em decisões judiciais de todos os recantos de nosso país. Agora,
não é mais possível pensarmos o Direito sem a Constituição.
Frente a esta festejada realidade, é preciso voltar nossos olhos para
rever os postulados doutrinário-constitucionais construídos sob os influxos
do sonho do último século, para repensar a base teórica, os fundamentos
internos deste novo Direito Constitucional realidade, e imaginar o que nos
espera nos próximos tempos das comunidades regionais. A isto dedica-se
este número da RBDC.

Boa leitura!

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


O JURISDICIONADO E A APARENTE “CRISE” DO PRINCÍPIO DA COISA JULGADA 7

Artigos

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


8

Consideraciones sobre gobernabilidad y


CONSTITUCIONALISMO
Considerations about governability and constitutionalism

Diego Valadés*

Recebido para publicação em maio de 2005

Resumo: Os problemas da governabilidade foram estudados tradicionalmente pelas ciências eco-


nômicas e políticas. Neste artigo o autor apresenta o relacionamento entre a governabilidade e o
constitucionalismo, propondo um conceito normativo de governabilidade. Os elementos que in-
tegram esse conceito são relacionados com a justicialidade, racionalidade e eficácia das decisões
políticas e com a legitimidade das regras. O objetivo das decisões é garantir o exercício amplo do
direito, em um campo de liberdade e de estabilidade.
Palavras-chave: Governabilidade. Constitucionalismo. Legitimidade. Democracia. Autoritarismo.

Abstract: The governability problems have been traditionally studied by the economical and po-
litical sciences. In this paper the author presents the relationship between governability and cons-
titutionalism and he proposes a governability normative concept. The elements that integrate this
concept are related with the lawfulness, reasonability and effectiveness of political decisions and
with the legitimacy of the rulers. The object of those decisions is to guarantee the widest exercise
of their rights, in a field of freedom and stability.
Key words: Governability. Constitutionalism. Legitimacy. Democracy. Authoritarianism.

Aunque hay rasgos comunes en factores para valorar la situación de cada


cuanto a la valoración de la gobernabili- sistema deben corresponder al examen de
dad, también deben distinguirse los que sus propias circunstancias.
resultan propios de cada sociedad. Por Otro aspecto que resulta relevante
ejemplo, todo indica que el primero en es asociar la gobernabilidad con el siste-
utilizar la voz gobernabilidad fue el co- ma constitucional. Uno de los objetivos de
nocido constitucionalista británico Walter esta obra es explorar esa relación, para es-
Bagehot, quien identificaba al orden y a la tablecer hasta qué punto la gobernabilidad
obediencia como elementos de la cultura depende de una adecuada estructura cons-
política de su país y los asociaba con lo que titucional.
denominaba governability1. La gobernabi- La gobernabilidad ha sido un tema
lidad es parte del contexto constitucional y de interés para las ciencias económica y
político de un país. Los aspectos distinti- política,2 pero apenas se ha prestado aten-
vos corresponden a la etapa de desarrollo o ción a los nexos existentes entre el orden
de consolidación que viva cada democra- constitucional y la gobernabilidad. Cuando
cia, de suerte que el análisis comparativo se alude al Estado de derecho como uno
sólo nos ofrece algunos elementos para de los factores de la gobernabilidad, por lo
contrastar realidades diferentes; los demás general sólo se atiende al sentido anglosa-

* Universidad Nacional Autónoma de México e Instituto de Investigaciones Jurídicas (UNAM).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO 9

jón de rule of law. La independencia y la corresponde al imperium de los romanos,


funcionalidad de los órganos jurisdiccio- entendida como el poder supremo ejercido
nales del poder influyen, indudablemente, por los magistrados5; en cambio la acción
en las características de la gobernabilidad, de gobernar, en un sentido constitucional,
pero el Estado de derecho incluye otras involucra formas de responsabilidad y, por
muchas variables que también deben ser consiguiente, de control político.
consideradas. En la fase protodemocrática del cons-
Ahora bien, adoptando el concepto titucionalismo esos controles eran de or-
de Estado de derecho en su más amplia den recíproco entre los órganos del poder,
acepción, todavía tendremos que remon- conforme a la concepción de Montesquieu
tarnos a la base de todo el ordenamiento de que el poder controla al poder; en la
jurídico: la Constitución, que es el soporte etapa democrática del constitucionalismo,
de toda la estructura del Estado. El Estado el esquema de los controles se ha hecho
constitucional,3 por ende, guarda una rela- más complejo y, además de los que entre sí
ción directa e inmediata con la gobernabi- ejercen los órganos del poder, incluye a la
lidad, porque de esta última depende la po- ciudadanía (de manera individual y orga-
sitividad de la norma constitucional. Sin su nizada) y a los entes descentralizados: es-
aplicación efectiva, la Constitución es sólo tados, regiones, municipios y organismos
una declaración política. A su vez, el ejer- dotados de autonomía. La gobernabilidad
cicio del poder sin sujeción a lo preceptua- concierne a estas nuevas formas del poder,
do por su estatuto jurídico, no corresponde considerablemente más complejas que en
a un Estado constitucional, y por lo mismo sus orígenes.
tampoco pertenece al ámbito de estudio de Desde la perspectiva del gobernado,
la gobernabilidad democrática. la gobernabilidad adquiere el carácter de
El poder puede generar sus propias un derecho: el derecho al buen gobierno.
normas. La fuerza normativa de los hechos Para advertir este derecho es útil la teoría
es un fenómeno que ha sido ampliamen- del status elaborada por Jellinek. Con-
te analizado a partir de los estudios de G. forme a esta teoría existen tres formas de
Jellinek; pero en este caso no se produce relación de las personas con el Estado, de
el fenómeno identificado como gobernabi- orden negativo, positivo y activo. En el pri-
lidad; se trata simplemente de una forma mer caso la subordinación de los individu-
primaria de dominación ajena al frondoso os al Estado llega hasta donde el derecho
desarrollo del constitucionalismo moderno ordena, y la esfera de libertad de la perso-
y contemporáneo. na está integrada por todo lo substraído al
La gobernabilidad resulta de la es- dominio del Estado; el segundo caso con-
tructura constitucional de un sistema. El siste en el derecho que tienen los indivi-
imperio entendido como la capacidad de duos a utilizar los servicios ofrecidos por
hacerse obedecer por los destinatarios de el Estado, o a beneficiarse de las acciones
las decisiones, no es una forma de go- estatales de carácter prestacional; el tercer
bernabilidad, es una manera de ejercer el caso corresponde a la posibilidad del indi-
poder directo. Vale aquí la distinción clá- viduo de participar en las actividades del
sica entre poder y autoridad: el primero Estado, como votar o desempeñar cargos
como expresión de fuerza, y la segunda públicos.6
como resultado de la razón.4 La función de Pueden adoptarse otros enfoques di-
mandar, en su acepción preconstitucional, ferentes, particularmente en lo que atañe a

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


10 Diego Valadés

las esferas de libertad, pero conforme a la circunstancias desfavorables. Los órganos


teoría clásica esas tres situaciones o status del poder deben valorar el impacto de sus
enmarcan el ámbito de relaciones de los decisiones o de sus omisiones, de la misma
gobernados con el Estado (en sentido es- manera que debe hacerlo respecto de las
tricto). Ahora bien, la evolución del Esta- decisiones u omisiones que se tomen por
do constitucional contemporáneo permite otras instancias nacionales o internaciona-
identificar una cuarta forma de relación, en les. Cuado los acontecimientos sorprenden
este caso de orden pasivo: los gobernados a los gobernantes, reducen su capacidad
tienen derecho a un buen gobierno. Más de respuesta y por ende introducen un ele-
allá de lo que implica el Estado de dere- mento de imprevisión que desnaturaliza al
cho social y democrático, que ha sido la Estado constitucional. La positividad del
tendencia dominante en los sistemas cons- orden constitucional implica que los ór-
titucionales contemporáneos, las socieda- ganos del poder cumplan plenamente con
des tiene derecho a un gobierno razonable, sus cometidos y satisfagan las expectativas
eficaz, oportuno, equitativo, previsor y sociales que se desprendan de lo que la
preventivo. Constitución tenga establecido.
Esas notas del buen gobierno impo- Las decisiones y acciones de los ór-
nen a los órganos del poder la proscripción ganos del poder también deben ser oportu-
de la arbitrariedad, entendida como la obli- nas. La importancia del tiempo en la fun-
gación de aplicar el derecho de manera ción gubernativa es crucial. Las medidas
razonable; la solución de tantos problemas adoptadas de manera prematura o aplaza-
como resulte materialmente posible, sin la das sin una causa que lo justifique, produ-
generación a cambio de nuevas dificulta- cen daños evitables o dejan de generar los
des; la acción oportuna para eludir el sur- beneficios que en otras condiciones se ha-
gimiento o el agravamiento de problemas; bría esperado de ellas. Los ordenamientos
la promoción de condiciones sociales de constitucionales establecen, en algunos ca-
equidad, y el conocimiento anticipado de sos, los plazos dentro de los que se deben
los riesgos y de las opciones de solución. producir ciertas acciones, y también llegan
En este punto la idea de buen go- a fijar términos; pero de manera general la
bierno se enlaza con la de gobernabilidad. amplia función gubernativa queda sujeta,
La acción gubernamental debe tener un en cuanto a su oportunidad, a las faculta-
sentido previsor, en cuanto a anticipar las des y obligaciones que las normas estable-
situaciones que puedan afectar el funcio- cen respecto de los titulares de los órganos
namiento normal de las instituciones o el del poder.
desarrollo deseable de la sociedad, y una Por eficacia puede entenderse la uti-
vertiente de prevención, para evitar que lización razonable y satisfactoria de los re-
se produzcan hechos que perjudiquen la cursos del Estado (en este caso, en sentido
vida social o institucional, o para atenuar amplio). Es razonable aquello que permite
los efectos nocivos de los que sean inevi- alcanzar los máximos resultados para aten-
tables. der las necesidades colectivas, con el me-
Las acciones previsora y preventi- nor sacrificio (esfuerzo) social posible. Es
va son parte de las responsabilidades del satisfactorio aquello que permite la aten-
gobierno, e incluyen la valoración de sus ción de las demandas colectivas mediante
propias decisiones, para que no se con- la utilización transparente de los recursos
viertan en causa de acontecimientos o de disponibles. Entre estos recursos quedan

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO 11

comprendidos los humanos, los financie- La fórmula del óptimo de Pareto


ros, los organizativos, que básicamente ofrece un modelo adecuado para diseñar
conciernen a la función administrativa, y instituciones y políticas que garanticen la
los políticos. Estos últimos incluyen dos gobernabilidad democrática. En ese sen-
aspectos fundamentales: los instituciona- tido, habrá una situación constitucional-
les, que corresponden a las funciones legi- mente razonable cuando para definir la
ferante y jurisdiccional, y los de mediaci- estructura y el funcionamiento de las ins-
ón política, a través de los que se alcanzan tituciones se adopte el criterio de que una
acuerdos y compromisos que facilitan los situación es mejor que otra, si ninguna
cambios o generan estabilidad. institución resulta desproporcionadamen-
Las acciones de contenido preventi- te afectada y por lo menos alguna de ellas
vo pueden considerarse soluciones “pre- sí mejora, siempre que el costo político
coces”, porque se adoptan antes de que que representa este esfuerzo se vea com-
un problema emerja; la negociación cons- pensado por el mayor bienestar colectivo,
tructiva, que denota la existencia de una por la mejor garantía de los derechos de
cultura de gobierno que permite utilizar los gobernados, por una relación más si-
al máximo las posibilidades ofrecidas por métrica entre los órganos del poder y por
la estructura constitucional; el fortaleci- un ejercicio del poder más responsable y
miento de las instituciones, para conjurar mejor controlado.
la aparición de crisis y para que, cuando El diseño de las nuevas instituciones
surjan, puedan ser procesadas conforme a constitucionales no puede prescindir de la
procedimientos constitucionales. valoración que la sociedad hace de ellas y
Llegados a este punto conviene en- de los resultados que ofrecen en cuanto al
fatizar que, al hablar de gobernabilidad, se equilibrio entre los órganos del poder, de
está involucrando la responsabilidad que la prestación de satisfactores para las ne-
concierne a todos los órganos del poder. cesidades colectivas, de las acciones jurí-
Debe tenerse cuidado en no hacer recaer dicas y políticas para mantener la cohesión
la responsabilidad sólo en el órgano tra- social, y de las medidas para alcanzar y
dicionalmente conocido como ejecutivo o asegurar la justicia y la equidad en las rela-
de gobierno (stricto sensu). En un Estado ciones sociales, entre otras cosas. Además,
constitucional la tarea de gobernar, y el de- así como Mirkine-Guetzévitch advirtió, en
sempeño que estimamos característico de la primera posguerra, que el gran proble-
la gobernabilidad, corresponde a todos los ma del poder que debía resolver el Estado
órganos investidos de competencia para constitucional era construir un “parlamen-
ejercer actos de autoridad. tarismo racionalizado”,7 hoy, en América
Las consideraciones que asocian la Latina, la cuestión a resolver, en esa mate-
gobernabilidad sólo con los órganos de ria, consiste en estructurar y hacer funcio-
gobierno (stricto sensu), no se adecuan a nar un “presidencialismo racionalizado”.
la naturaleza del Estado constitucional; Los problemas de la gobernabilidad
obedecen, en cambio, a un concepto que tienen que ver con los múltiples temas
deriva de la tradición autoritaria, conforme concernidos con el Estado constitucional.
al cual las decisiones y las acciones del po- Debe tenerse en cuenta que la gobernabi-
der en su conjunto eran adoptadas por una lidad constitucional supone un proceso de
persona por un grupo cercano al titular del racionalización del ejercicio del poder. Los
órgano de gobierno. fundamentos del poder se encuentran en la

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


12 Diego Valadés

legitimidad, en cuanto a su origen, y en la derechos fundamentales y la certidumbre


racionalidad, en cuanto a su ejercicio. El de sus garantías, y acceso a la justicia.
poder que no resuelve conflictos y que, por Tercero, proteger el ambiente, me-
el contrario, los exacerba, no es racional. diante un marco normativo que facilite las
El Estado constitucional tiene que re- acciones nacionales e internacionales en la
solver las múltiples dificultades que plan- materia.
tea la vida de una sociedad abierta, plural Cuarto, ofrecer seguridad, física, pa-
y altamente competitiva que, si n o cuenta trimonial y jurídica, sin menoscabo de las
con un buen diseño constitucional, puede libertades.
propender a la fragmentación política y a Quinto, impulsar el desarrollo social,
la polarización social. Los sistemas consti- mediante la formación de capital humano,
tucionales contemporáneos deben proveer de capital social, y con la adopción de po-
un amplio abanico de soluciones para los líticas de investigación e innovación tec-
múltiples temas concernidos con la gober- nológica.
nabilidad, tales como la legitimidad de las El diseño de las nuevas instituciones
instituciones y de sus titulares; las relacio- constitucionales se debe hacer en función
nes entre los órganos del poder; los instru- de las necesidades de atender esos cinco
mentos de control político y jurisdiccional; rubros, y atendiendo a la valoración que la
el sistema representativo y de partidos, y sociedad hace de ellas y de los resultados
la opinión pública, por ejemplo. En tanto que ofrecen en cuanto al equilibrio entre
que corresponden a un proceso cultural, los órganos del poder, a la prestación de
las respuestas constitucionales para la go- satisfactores para las necesidades colec-
bernabilidad incluyen, por lo menos, cinco tivas, a las acciones jurídicas y políticas
grandes rubros: para mantener la cohesión social, y a las
Primero, superar el autoritarismo, medidas para alcanzar y asegurar la justi-
mediante la reforma del Estado. Ésta es cia y la equidad en las relaciones sociales,
una expresión polémica, y la utilizo aquí entre otras cosas. Una reforma concebida
para denotar los cambios constitucionales así, puede asegurar la estabilidad de las
que tengan por objeto la estructura, el fun- instituciones, de las relaciones sociales y
cionamiento y la relación entre sí de los de la economía.
órganos del Estado, y el régimen de las Con un sentido semejante al de go-
relaciones entre los gobernados y los órga- bernabilidad y de buen gobierno, se utiliza
nos del poder. también la expresión “calidad de la demo-
Segundo, establecer la equidad so- cracia”8. Con diferentes enfoques, pero
cial, para combatir y superar las condi- con un mismo objetivo, se está tratando
ciones de desigualdad, de exclusión, y de de identificar los elementos objetivos que
concentración de la riqueza; de la equidad ofrezcan indicadores objetivos de la gober-
cultural, para auspiciar el pluralismo y re- nabilidad. Los criterios, como se verá más
ducir a los mínimos posibles la violencia adelante, tienden a coincidir.
familiar; de la equidad económica, me- Entiendo por gobernabilidad el pro-
diante la regulación de los flujos financie- ceso de decisiones tomadas de manera
ros internacionales, la adopción de un sis- legal, razonable y eficaz, adoptadas por
tema crediticio responsable y eficiente, y autoridades legítimas, para garantizar a
la reforma fiscal; y la equidad jurídica, que la población el ejercicio de sus derechos
ofrezca a las personas la ampliación de los civiles, políticos, culturales y sociales, en

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO 13

un ámbito de libertades y de estabilidad consciente, y por ende informada, porque


política y para atender requerimientos in- guardan relación con lo establecido por el
formados de la sociedad mediante presta- sistema normativo vigente o con las políti-
ciones y servicios regulares, suficientes y cas de desarrollo adoptadas. Esto incluye
oportunos. las razonables expectativas del desarrollo
Deliberadamente subrayo que las generado por la inversión en materia de
decisiones además de legales, deben ser ciencia y de innovación tecnológica. La
razonables y eficaces, porque no basta con racionalización del ejercicio del poder in-
la mera legalidad. Si bien es el marco de la cluye a las demandas de la sociedad; no se
legalidad el que sirve de base para calificar puede esperar que sólo los órganos forma-
al Estado de Derecho, conforme al cual los les del poder actúen de manera racional y
órganos del poder quedan sujetos a diver- que la sociedad, que es el eje del Estado,
sas formas de control y evaluación, debe no haga otro tanto.
incluirse también la proscripción de la ar- Las prestaciones a que tiene acceso
bitrariedad, que corresponde a una actua- la sociedad contribuyen a generar condi-
ción a más de legal, razonable. Adicional- ciones de equidad, mediante políticas dis-
mente, como ya se ha dicho más arriba, es tributivas, prestacionales (vivienda, salud,
indispensable que por eficacia entendamos educación, etc.) y de servicios (transporte,
el proceder transparente que, sumando a seguridad, etc.). Éstos, a su vez, deben ser
los demás factores, asegure que los órga- regulares, suficientes y oportunos; de otra
nos del poder arreglen su conducta a una forma no se les podría considerar como
exitosa disminución de la corrupción. una respuesta adecuada. Si los órganos del
Esas decisiones, por otra parte, sólo poder no actúan de manera tal que puedan
pueden ser consideradas dentro del proceso proveer servicios con esas características,
de gobernabilidad si son tomadas por auto- denotarían un déficit en las condiciones de
ridades legítimas (por el origen y por el de- gobernabilidad.
sempeño). El origen de las autoridades es A más de lo anterior, es indispen-
legítimo cuando se observa especialmente sable ampliar tanto cuanto sea posible el
el principio electivo, único válido en las ejercicio de los derechos civiles, políticos
repúblicas democráticas; pero, como fenó- y sociales, para que a través de los órganos
meno cultural, también es relevante, para jurisdiccionales o de tutela de los derechos
los efectos de la legitimidad, la percepción fundamentales; de las instituciones de par-
que la sociedad tenga, así del origen como ticipación (partidos, sindicatos y otras or-
del desempeño de las autoridades. La per- ganizaciones) y de representación (en espe-
cepción social juega, en este punto en par- cial de los congresos), y de los organismos
ticular, un papel de enorme importancia.9 que aseguren una fiscalidad proporcional,
Ahora bien, la gobernabilidad no se equitativa, razonable y distributiva, y un
agota por el origen y la actuación apega- oportuno acceso a la justicia, la población
da a derecho de los titulares del poder; su esté en aptitud de ejercer las garantías que
finalidad es asegurar las condiciones para le provee el orden jurídico.
satisfacer las demandas de la sociedad. El conjunto de estas decisiones y ac-
Desde luego, no se trata de atender cual- ciones debe llevarse a cabo en un ámbito
quier tipo de requerimiento; los relevan- de libertades. Los contenidos tradiciona-
tes, para los efectos de la gobernabilidad, les, que permitieron distinguir entre las
son aquellos que se articulan de manera libertades de los antiguos y de los moder-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


14 Diego Valadés

nos, deben ser enriquecidos por los nuevos equilibrio entre la reforma y la permanen-
instrumentos de defensa que contrarrestan cia constitucional.
los también nuevos medios de intrusión Hay varias propuestas para medir el
en la vida de los individuos, y que por lo desempeño de los gobiernos democráticos.
mismo representan nuevos riesgos para su En 1993 Robert D. Putnam10 se interesó
libertad. Por eso deben considerarse cues- por evaluar los procesos para la formulaci-
tiones tan sensibles como el derecho a la ón, enunciación, y adopción de las políticas
autonomía informativa y a la privacidad, y gubernamentales en Italia. Sostenía que en
la defensa procesal de los derechos funda- tanto que se lleve a cabo esa evaluación,
mentales ante particulares, por ejemplo. será posible determinar qué tan efectivos
La estabilidad, por otra parte, no son los procesos internos para la toma de
equivale a estancamiento político. Por el decisiones; qué tan aptos son los gobiernos
contrario, para mantener estable la vida para identificar las necesidades sociales y
colectiva de una sociedad que experimenta proponer soluciones innovadoras, y qué
cambios culturales incesantes, es indispen- tipo de resultados alcanzan los gobiernos.
sable que el ordenamiento jurídico a su vez De este triple haz de preocupaciones se
sea permeable a esos cambios, e incluso, derivaron doce indicadores de desempeño
cuando sea posible, los induzca. Hay, por institucional: estabilidad del gabinete, dis-
otra parte, una capacidad autogenerativa ponibilidad del presupuesto, sistema de es-
de la norma; su fluidez y su flexibilidad tadísticas gubernamentales, reforma legis-
son una expresión de las incesantes adap- lativa, legislación innovadora, guarderías
taciones culturales a las que está sujeto. La infantiles, clínicas familiares, instrumentos
autopoiésis es una característica del Esta- de política industrial, capacidad de inversi-
do constitucional, altamente sensible a las ón agrícola, gasto en materia de atención
expresiones sociales a través de los meca- a la salud, vivienda y desarrollo urbano, y
nismos institucionales (sistema electoral) calidad (receptividad) de la burocracia. Es-
e informales (medios, encuestas, etc.) de tos indicadores permitieron al autor hacer
captación de decisiones y de representa- un balance cuantitativo de las condiciones
ciones colectivas. de gobernabilidad de Italia.
Habida cuenta de los componentes Tres años después, Daniel Kauf-
de la gobernabilidad, puede agregarse que mann, Aart Kraay y Máximo Mastruzzi11,
los factores que la hacen posible consisten basados en encuestas y reportes de percep-
en la disponibilidad de recursos, en bue- ciones, elaboraron para el Banco Mundial
na medida en función de una fiscalidad un conjunto de indicadores de gobernabi-
razonable y que opere sin fugas debidas lidad. En este caso el interés era de mayor
a la corrupción; en la capacidad de nego- amplitud, porque se trataba de diseñar ins-
ciación, que permite construir mayorías trumentos susceptibles de medir el nivel de
para legislar merced a acuerdos, alianzas desempeño de los diferentes sistemas, y de
y coaliciones de gobierno; en la actualiza- permitir contrastarlos entre sí y analizar su
ción de los instrumentos normativos (re- desempeño en el tiempo.
glas y procedimientos) que determinan el Para esos autores los principales indi-
funcionamiento de los órganos del poder, cadores fueron: el control social (rendición
y en una organización dinámica del poder, de cuentas), para determinar la calidad de
basada en procesos que permitan construir las elecciones e identificar los posibles ca-
el binomio mediante el que se mantiene el sos de manipulación e intimidación, o el

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO 15

grado de limpieza, de participación y de la protección horizontal de los derechos


abstención; la estabilidad, medida entre fundamentales; la uniformidad legislativa
otras formas a través de los índices delic- (problema que se presenta, sobre todo, en
tivos; la efectividad de los servicios, de el Estado federal); la receptividad y la apli-
acuerdo, entre otras cosas, con la satisfac- cación del ordenamiento internacional (es-
ción de usuarios; la calidad regulatoria, por pecialmente en materia de derechos fun-
sus efectos en el desarrollo del mercado fi- damentales); la cooperación internacional
nanciero; el Estado de derecho, con un én- para el desarrollo; el acceso a la justicia;
fasis especial en cuanto a los derechos de la calidad de los tribunales (incluyendo los
propiedad, y el control de la corrupción. de justicia cívica o municipal), y la natura-
Más tarde, Silvio Borner, Frank Bo- leza normativa de la Constitución.
dmer y Markus Kobler12 elaboraron, para La gobernabilidad democrática plan-
la Organización para la Cooperación y tea una alta carga de demandas al sistema
el Desarrollo Económico, otra batería de constitucional. La positividad de la Consti-
indicadores para calibrar el nivel de go- tución y su reforma han sido objeto de im-
bernabilidad. Ellos tuvieron en cuenta las portantes formulaciones en la teoría de la
instituciones económicas (derechos de Constitución; empero, no contamos con un
propiedad, expropiación, cumplimiento diseño para medir la efectividad de las nor-
de contratos); la estabilidad política (homi- mas constitucionales, en particular a través
cidios por millar de habitantes, cambios de de la forma como la aplican las autoridades
gabinete, cambios constitucionales, crisis y como la perciben los individuos. Los es-
de gobierno, golpes de Estado, terrorismo, tudios de campo, en la materia, apenas han
revoluciones, exclusión de minorías); la comenzado13. Ahora es necesario elaborar
forma de las instituciones políticas (siste- también una serie de indicadores que, más
mas electorales, control del gobierno, li- allá de la utilidad que puedan tener para las
bertades públicas); la fortaleza de las insti- instituciones financieras y de cooperación
tuciones (capacidad recaudatoria, combate internacionales, sirvan para evaluar el re-
al contrabando y a la evasión, distribución sultado de la aplicación de las normas para
de la carga fiscal); y el compromiso de las diseñar las reformas a las normas vigentes
instituciones (transparencia, responsabili- y para formular un método de reforma para
dad, libertad de competencia política, se- las sucesivas disposiciones que se integren
lectividad, capacidad y neutralidad de los al orden normativo.
gobernantes, concentración y desconcen- La actividad legiferante del Estado
tración del poder ejecutivo). está directamente vinculada a la goberna-
Por mi parte considero que, indepen- bilidad democrática, y no puede dejarse a
dientemente de la utilidad de los indicado- la mera “inspiración” de los agentes polí-
res mencionados, hay otro tipo de asuntos ticos. La adopción de indicadores más o
que mesurar, en el caso específico de Amé- menos confiables proveerá una orientación
rica Latina. Entre ellos deben considerarse razonable que podrá ser seguida o no, pero
los siguientes: la calidad del sistema repre- que en todo caso ofrecerá un referente para
sentativo (reelección, rotación de elites); apreciar los resultados de la sinergia que
el impacto normativo (en el desarrollo, resulta de la norma y de la acción de go-
en la equidad, en la igualdad), la situaci- bierno.
ón de grupos minoritarios (por razones de Una vez superada la etapa del mili-
raza, religión, preferencia sexual, etc.), tarismo y del autoritarismo que afectó al

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


16 Diego Valadés

hemisferio de manera endémica, las nue- constitucionales representa una respues-


vas democracias enfrentan el desafío de ta adecuada para dejar atrás los sistemas
consolidarse. De no conseguirlo, corren autoritarios, se incorporan a la Constitu-
el riesgo de una regresión autoritaria. Los ción instituciones que se neutralizan o se
casos que aquí se presentan muestran que excluyen recíprocamente. Los errores de-
las recaídas ya se han producido, aunque rivados de un insuficiente análisis de las
subsiste un ambiente colectivo que favore- interacciones institucionales conducen a
ce las soluciones democráticas. nuevas formas de frustración colectiva
A diferencia de las experiencias his- que, a su vez, propician la reaparición de
tóricas latinoamericanas, ahora se tiende a argumentos adversos al Estado constitu-
la utilización de instrumentos constitucio- cional. Es por esto que se pueden afirmar
nales para restaurar formas autoritarias del que, en la teoría constitucional contempo-
poder, pero con la apariencia de avances ránea debe darse especial relevancia a la
democráticos. Es por eso que se deben relación entre gobernabilidad y constitu-
construir modelos de análisis que permitan cionalismo.
corroborar que el aspecto constitucional
corresponda a la realidad institucional.
NOTAS
La consolidación del Estado cons-
titucional supone cambios culturales pro- 1
Bagehot, Walter, Physics and politics or thou-
fundos, para los cuales es necesario dispo- ghts on the application of the principles of the
ner de tiempo. Sin embargo, los apremios a “natural selection” and “inheritance” to poli-
los que están expuestos los estados latinoa- tical society, (1876) reedición: N. York, Colo-
nial Press, 1990, p. 16. Textualmente dijo: “Of
mericanos, por el sistemático diferimiento
Plato it might indeed be plausibly said that the
de las expectativas de mejora social y por adherents of an intuitive philosophy, being ‘the
la concentración de la riqueza, proyectan Tories of speculation’,have commonly been
una fuerte presión sobre las instituciones. prone to conservatism in government; but Aris-
De los partidos se exigen posiciones más totle, the founder of the experience philosophy,
combativas y de los congresos y de los ought, according to that doctrine, to have been
gobiernos se esperan acciones más deci- a liberal, if anyone ever was a liberal. In fact,
didas. Los procesos electorales han estado both of these men lived when men had not ‘had
acompañados de la siembra de numerosos time to forget’ the difficulties of government.
We have forgotten them altogether. We reckon,
compromisos de corto plazo que resultan
as the basis of our culture, upon an amount of
difíciles, cuando no imposibles, de cum- order, of tacit obedience, of prescriptive gover-
plir. Además, en términos generales los nability, which these philosophers hoped to get
cambios constitucionales no han estado as a principal result of their culture. We take
adecuadamente diseñados, por lo que se ha without thought as a datum what they hunted as
generado una situación institucional defi- a quœsitum.” En español la voz es mucho más
citaria de la que se tiende a responsabilizar reciente; su uso se generó a partir de la gene-
a los partidos y a los congresos. Esta es, ralización en inglés, y apenas fue aceptada por
la Academia de la Lengua Española en la 22ª
por lo menos, la salida habitual de los go-
edición del Diccionario (2001).
biernos, para trasladar a otras instancias la 2
El primer estudio sistemático sobre la materia
responsabilidad de sus desaciertos. fue el elaborado por Michel J. Crozier, Samuel
En ocasiones, impelidos por el apre- P. Huntington y Joji Watanuki, The crisis of de-
mio, o llevados por la convicción de que la mocracy, N. York, New York University Press,
adopción indiscriminada de instituciones 1975. Se trata de un reporte sobre la gobernabi-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO 17

lidad de las democracias, presentado a la Comi- de la racionalización del poder, pero centrándo-
sión Trilateral, con un claro enfoque compara- los en el parlamento, el federalismo, las liberta-
tivo en materia económica y política. Años más des individuales y el control de la constitucio-
tarde, la Comission on Global Governance ela- nalidad de las leyes.
boró otro reporte (Our global neighbourhood, 8
Véase Leonardo Morlino, Democracias y de-
N. York, Oxford University Press, 1995), en el mocratizaciones, México, Centro de Estudios
que ya fueron incluidos problemas jurídicos so- de Política Comparada, 2005, esp. pp. 257 y
bre la gobernabilidad, referidos al ámbito del ss.
derecho internacional. 9
En función de la percepción social, Guglielmo
3
Una obra clave de la doctrina contemporánea Ferrero distinguió entre legitimidad, preligiti-
sobre este tema es la de Peter Häberle, El Esta- midad y cuasilegitimidad. Véase El poder. Los
do constitucional, trad. por Héctor Fix-Fierro, genios invisibles de la ciudad, Madrid, Tecnos,
México, UNAM, 2001. 1988, esp. pp. 134 y ss., y 212 y ss.
4
Los conceptos de auctoritas, potestas, impe- 10
Making democracy work, N. Jersey, Princeton
rium y maiestas han sido objeto de extensas University Press, 1993, pp. 65 y ss.
reflexiones y precisiones desde la antigüedad. 11
Governance matters III: governance indica-
Cfr., p. e., García Pelayo, Manuel, “Auctoritas”, tors for 1996-2002. The World Bank, 2003.
en Idea de la política y otros escritos, Madrid, 12
Institutional Efficiency and its determinants.
Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. The role of political factors in economic gro-
135 y ss., y Domingo, Rafael, Auctoritas, Bar- wth, París, OECD, 2004.
celona, Ariel, 1999, pp. 51 y ss. 13
Véase H. Concha, H. Fix-Fierro, J. Flores y D.
5
Cfr. Gayo, Instituciones, III, 181; Paulo, Di- Valadés, Cultura de la constitución en México,
gesto, I, xviii, 3. México, UNAM, 2004. Se trata de una encues-
6
Georg Jellinek, Teoría general del Estado, ta que ya ha sido replicada, con las necesarias
Buenos Aires, Albatros, 1954, pp. 314 y ss. adecuaciones, en Argentina, por Antonio Ma.
7
Mirkine-Guetzévitch, B., Modernas tenden- Hernández y Daniel Zovatto (Cultura de la
cias del derecho constitucional, Madrid, Reus, constitución en Argentina, México, UNAM, en
1934, pp. 13 y ss. El autor aborda los problemas prensa).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


18

NeocoNstituCionalismo*
Neoconstitutionalismo

Mauro Barberis**

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: O artigo analisa o conceito de neo-constitucionalismo usado recentemente na teoria do


direito da Itália e da Espanha a fim de significar a teoria do direito característica do Estado Consti-
tucional e, frequentemente, o próprio Estado Constitucional. Em sua primeira parte conta a história
do surgimento do termo ‘neoconstitucionalismo’ – inventado, definido e aplicado especialmente
por Escolas de teóricos de Gênova. Em segundo lugar, o ensaio redefine ‘neoconstitucionalismo’
nos termos de uma teoria intermediária entre jusnaturalismo e juspositivismo, e critica as principais
teses neoconstitucionalistas. Na terceira parte, finalmente, aborda três típicos problemas neocons-
titucionais: o problema da distinção entre regras e princípios; o problema da ponderação judicial;
o problema dos direitos.
Palavras chave: Positivismo legal. Constitucionalismo. Jurisprudência. Direito. Moral.

Riassunto: L’articolo analizza il concetto di neocostituzionalismo (it. neocostituzionalismo,, cast.


neocostitucionalismo), usato nella recente teoria del diritto italiana e spagnola per indicare la teoria
del diritto caratteristica dello Stato costituzionale e, spesso, lo stesso Stato costituzionale. Nella
prima sezione del lavoro si racconta brevemente la storia dell’apparizione del termine, inventato,
definito e applicato soprattutto da teorici della Scuola di Genova; nella seconda, si fornisce una ri-
definizione di ‘neocostituzionalismo’ come teoria intermedia a giusnaturalismo e giuspositivismo,
e una critica delle principali tesi neocostituzionaliste; nella terza sezione, infine, si accenna a tre
problemi tipici del necostituzionalismo: il problema della distinzione fra regole e princìpi; il pro-
blema della ponderazione giudiziale; il problema dei diritti.
Parole Chiave: Positivismo giuridico. Costituzionalismo. Giurisprudenza. Diritto. Moral.

Abstract: The paper focuses on the concept of neo-constitutionalism (it. neocostituzionalismo,


cast. neocostitucionalismo) – a concept used in recent Italian and Spanish theory of law in order
to signify the theory of law typical of Constitutional State and, frequently, the Constitutional State
itself. In his first section, the paper tells the story of the term ‘neoconstitutionalism’ – a term in-
vented, defined and applied especially by School of Genoa’s theorists. In the second one, the paper
re-defines ‘neo-constitutionalism’ in term of a third theory of law between natural law and legal
positivism, and criticizes three important neo-constitutionalist theses. In the third section, finally,
the paper touches three typical neo-constitutionalist problems: the problem of distinction between
rules and principles; the problem of constitutional balancing; the problem of rights.
Key Words: Legal positivism. Constitutionalism. Jurisprudence. Law. Morals.

Na recente teoria do direito, italiana primeira seção desse trabalho será con-
e espanhola, surgiu um novo termo, que tada uma breve história, ainda não muito
talvez indica um novo conceito: respecti- conhecida, do surgimento tanto do termo
vamente, o termo ‘neoconstitucionalismo’, quanto do conceito; na segunda seção será
e o conceito de neoconstitucionalismo. Na fornecida uma redefinição de ‘neocons-

* Texto traduzido por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.
** Prof. ordinario di Filosofia del diritto presso la Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Trieste. Indirizzo: via Battisti
4/14, 16145 Genova (Italia), tel. 00.39.010. 3624101.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 19

titucionalismo’ - uma definição do termo conceito de constitucionalização; Paulo


mais rigorosa de muitos dos seus usos ha- Comanducci e Tecla Mazzarese por algu-
bituais - e uma crítica das principais teses mas das análises meta teóricas mais apro-
neoconstitucionalistas; na terceira seção, fundadas do argumento. É o caso de avisar
finalmente, serão indicados três exemplos desde já, contudo, que nenhum desses es-
de problemas típicos do neoconstituciona- tudiosos adere ao neoconstitucionalismo:
lismo: o problema do princípio; o proble- ao contrário, trata-se freqüentemente de
ma da ponderação judicial e o problema seus críticos mais ferozes.
dos direitos. Nos escritos dos teóricos genoveses,
todavia, o termo ‘neoconstitucionalismo’
1. Uma história do conceito faz a sua aparição nos fins de 1990, para
O termo ‘neoconstitucionalismo’ ori- indicar teorias (cognitivas) e doutrinas
gina-se evidentemente do ‘constituciona- (normativas), por um lado críticas do po-
lismo’: termo que por sua vez indica tanto sitivismo jurídico, por outro lado não in-
a doutrina (normativa) da limitação jurídi- teiramente redutíveis ao tradicional jusna-
ca do poder político, como as instituições turalismo. O termo talvez tenha sido usado
positivas - em particular as constituições pela primeira vez em uma comunicação
- funcionais para tal limitação. Essa ambi- de Suzana Pozzolo no XVIIIº Congresso
valência de significado de ‘constituciona- Mundial de Filosofia Jurídica y Social,
lismo’ é conservada nos usos prevalentes acontecido em Buenos Aires, em 1997, e
de ‘neoconstitucionalismo’, que indicam depois publicada em Doxa (POZZOLO,
como sempre doutrinas e instituições: ape- 1997). Nessa conversação, e no livro con-
sar de que, como veremos na próxima se- secutivo intitulado Neoconstitucionalis-
ção, enquanto ‘constitucionalismo’ indica mo e Positivismo Jurídico, a autora usa
tanto doutrinas quanto instituições, ‘neo- ‘neoconstitucionalismo’ para indicar, sem
constitucionalismo’ poderia ser redefinido compartilhá-las, uma série de teses inter-
para indicar somente doutrinas. ‘Neocons- mediárias ao jusnaturalismo e positivismo
titucionalismo’, mais precisamente, deve- jurídico apoiadas por autores como Robert
ria indicar teorias (cognitivas) e doutrinas Alexy, Carlos Nino e Gustavo Zagrebel-
(normativas) relativas ao direito constitu- sky.
cionalizado: o direito típico daquela forma O conceito de neoconstitucionalismo
de Estado que é o Estado constitucional. foi depois de definido e usado sistematica-
Se o próprio fato, a teoria ou doutri- mente por Barberis em trabalhos históricos
na neoconstitucionalista, é fruto de mui- e teóricos: especificamente em manuais de
tas contribuições, tanto anglo-americanas Filosofia del diritto. Un’introduzione stori-
(DWORKIN, 1977 e 1985), como latino- ca (BARBERIS, 2000), Breve storia della
americanas (NINO, 1999), e europeu-con- filosofia del diritto (BARBERIS, 2004)
tinentais (ALEXY, 1987; DREIER, 1991), e Filosofia del diritto. Un’introduzione
o termo e o conceito de neoconstituciona- teórica (BARBERIS, 2003 a, 2005). O
lismo são frutos, sobretudo, do trabalho de neo-constitucionalismo foi redefinido
alguns teóricos da escola de Gênova: Suza- pelo subscritor como teoria ou doutrina
na Pozzolo pela invenção do termo: Mau- do direito intermediária ao jusnaturalismo
ro Barberis pela sua redefinição; Riccardo e positivismo jurídico. O jusnaturalismo
Guastini pela elaboração de um conceito sustenta a tese da conexão necessária, o
intimamente interligado ao precedente, o juspositivismo a tese da separabilidade, o

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


20 Mauro Barberis

neoconstitucionalismo a tese da interliga- Barberis a fim de demonstrar a autocontra-


ção necessária entre direito e moral limi- ditoriedade, Guastini nem fala sobre isso,
tadamente aos Estados constitucionais, ou considerando-o evidentemente um concei-
constitucionalizados: Estados caracteriza- to inútil.
dos especialmente pela rigidez constitu- Contudo, o ceticismo de Guastini
cional pelo controle de legitimidade cons- acerca da utilidade do conceito de neocons-
titucional das leis. titucionalismo não impediu outros notá-
Essa tese pode ser atribuída a Ronald veis da escola de Gênova - particularmente
Dworkin: talvez o primeiro e o principal Comanducci e Mazzarese - de desenvolver
dos autores hoje batizados de neoconsti- minuciosas análises do termo ‘neoconsti-
tucionalistas. Aplicando ao direito, idéias tucionalismo’: análises até muito minucio-
provenientes da doutrina da justiça de John sas, ao invés disso, se considerarmos que
Rawls e do direito norte-americano, carac- o uso do próprio termo está decididamente
terizado pela constituição rígida e Corte não consolidado. Comanducci, especial-
suprema, Dworkin critica Herbert Hart e o mente, afirma que ‘neoconstitucionalis-
positivismo jurídico: expondo-se, porém, à mo’, como ‘constitucionalismo’, indicaria
réplica de prosseguir uma teoria do direito não só doutrinas, mas também instituições:
nem geral (válida para todo direito), nem assim correndo risco de confundir os dois
cognitiva (não normativa: HART, 1994). conceitos, ou de tornar inútil o primeiro
As teses Dworkin foram reformuladas por (COMANDUCCI, 2002; MAZZARESE,
Alexy e por Nino em relação à conexão 2002). E mais, retirar justamente a am-
necessária entre direito e moral nos Esta- bigüidade e a indeterminação do ‘neo-
dos constitucionais (seção 2): tese que o constitucionalismo’ facilitaram o sucesso
subscritor reputa autocontraditória, porque encontrado pelo conceito de neoconstitu-
uma conexão que vale somente para os Es- cionalismo na recente literatura italiana e
tados constitucionais não é absolutamente espanhola.
necessária (BARBERIS, 2003 b e 2005). Na Itália, com efeito, já são muitos
A virtude principal do neoconstitu- os trabalhos dos estudiosos mais jovens
cionalismo, em relação ao juspositivismo que usam o conceito de neoconstitucio-
tradicional, consiste ao contrário na aten- nalismo, e o termo relativo, como se tra-
ção dirigida à constitucionalização do di- tassem de igualmente dados adquiridos
reito: onde ‘constitucionalização’ indica (BONGIOVANNI, 2000; AMENDOLA,
o processo, enfatizado pela afirmação de 2003; GIORDANO, 2004, mas também,
rigidez constitucional e controle de legiti- em uma resenha, FARALLI, 2001). Além
midade constitucional das leis, que leva a dos mesmos Dworkin, Alexy e Nino, a
completude do direito a ser invadida por qualificação dos neoconstitucionalistas é
princípios e valores constitucionais. É essa freqüentemente ampliada por, pelo me-
a noção de constitucionalização elaborada nos, dois importantes autores italianos:
por Guastini (GUASTINI, 1998): o qual, Zagrebelsky já citado, docente de direito
contudo, não se exprime em termos de constitucional e Presidente da Corte cons-
neoconstitucionalismo, considerando esse titucional italiana, mas também autor de
último reduzível a uma das tantas formas Il diritto mite (ZAGREBELSKY, 1992),
de (neo)jusnaturalismo. Efetivamente, e, sobretudo, o Luigi Ferrajoli, teórico do
enquanto Pozzolo fala do neoconstitucio- direito muito conhecido também na Amé-
nalismo sem dele compartilhar as teses, e rica latina, e defensor de uma forma de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 21

positivismo jurídico efetivamente muito 2. Uma redefinição do conceito


próxima ao neoconstitucionalismo (FER-
RAJOLI, 1989). Por ‘neoconstitucionalismo’, como já
Na Espanha, o atual sucesso da noção adiantamos, não deveriam ser entendidas
de neoconstitucionalismo deve-se a muitos nem doutrinas e nem instituições, como
fatores: antes de qualquer coisa, ao retorno no caso de ‘constitucionalismo’, mas so-
da democracia, marcado pela constituição mente doutrinas: em especial a teoria ou
doutrina do direito, intermediária ao jusna-
de 1978 e pela entrada em vigor, três anos
turalismo e juspositivismo, pela qual entre
depois, do Tribunal constitucional (LA-
direito e moral existiria uma interligação
PORTA, 2003); depois, à atenção dada
necessária, ainda que limitada aos Estados
pela nova filosofia do direito espanhol ao
constitucionais. Segundo os neoconstitu-
debate teórico-jurídico internacional, e
cionalistas, em outros termos, a tese jus-
especialmente às obras de Dworkin, Ale-
positivista da separabilidade entre direito e
xy e Nino; afinal, para uma reflexão sobre
moral valeria no máximo para o direito do
constitucionalismo, paralela e antes prece-
Estado legislativo do século XIX: direito
dente à reflexão italiana sobre neoconstitu-
cuja fonte principal, se não única, era a lei.
cionalismo, exemplificada particularmente
A mesma tese não valeria mais, ao contrá-
pelas obras de Luis Prieto como Constitu- rio, para o Estado constitucional do século
cionalismo y positivismo (PRIETO, 1997). XX, onde não apenas a fonte principal do
O sucesso da noção de neoconstitucio- direito é a constituição, mas a totalidade do
nalismo, por último, foi consagrado pela direito é constitucionalizada, refreada por
cuidadosa antologia de Miguel Carbonell princípios e valores constitucionais.
Neoconstitucionalismo(s) (CARBONELL, As constituições do século XX, se-
2003). gundo os neoconstitucionalistas, incor-
Essa antologia pode ser considerada porariam a moral através das suas dispo-
atualmente, talvez, o texto referencial em sições de princípio (ALEXY, 1992); no
relação ao neoconstitucionalismo; junto Estado constitucional, de maneira especial,
aos trabalhos de autores que podemos cha- o direito injusto, discordando com a moral,
mar de neoconstitucionalistas, como Fer- não seria mais direito (válido), ao mesmo
rajoli, Alexy e Alfonso Garcia, ou que são tempo em que contrastaria com a consti-
contíguos ao neoconstitucionalismo, como tuição e poderia ser anulado pelas Cortes
José Juan Moreso, Juan Carlos Bayón e constitucionais. Os neoconstitucionalistas
Santiago Sastre, a antologia abriga também tendem a apresentar o Estado constitucio-
alguns textos dos inventores genoveses do nal como solução do milenar problema da
neoconstitucionalismo: Guastini, Coman- justiça: os tradicionais parâmetros externos
ducci, Pozzolo e Barberis. Como os livros de justiça, através da constituição, se torna-
já citados, contudo, também nos textos riam internos ao direito positivo do Estado
compreendidos na antologia de Carbonell constitucional (ZAGREBELSKY, 1992).
confirmam a tendência de dilatar excessi- Note-se que ‘Estado constitucional’ indica
vamente o conceito de neoconstitucionalis- justamente as instituições as quais muitos
mo: estendendo o seu uso pelas teorias das se referem com o mesmo termo ‘neocons-
mesmas instituições teorizadas (POZZO- titucionalismo’: termo, portanto, que pode
LO, 2003). A essa tendência reagiremos na ser reservado às simples doutrinas.
próxima sessão, operando uma redefinição De fato, especialmente entre os teóri-
do termo ‘neoconstitucionalismo’. cos, que se referem àquela inédita experiên-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


22 Mauro Barberis

cia constitucional que é a União Européia, dos constitucionais. Afirmado igualmente,


são muito comuns os usos do termo ‘neo- pelo menos em relação ao Estado constitu-
constitucionalismo’, ou de locuções como cional, no qual a moral seria nesse momen-
‘novo constitucionalismo’, para indicar as to incorporada na constituição, não se po-
instituições do Estado constitucional em deria mais distinguir entre direito e moral,
geral ou as instituições da União Européia sendo direito imoral oposto à constituição,
especificamente (WEILER, 1999; MAN- e, portanto, não-direito. Essa tese definitó-
CINI, 2000); e é provável que precisamen- ria, desenvolvida por Alexy (ver ALEXY,
te para esses usos da palavra pensem al- 1997), pode, contudo, ser considerada ver-
guns, como Comanducci e Mazzarese, em dadeira somente analiticamente, ou por
termos de doutrinas e de instituições. Mas definição: ou seja, somente sob a condição
usos de ‘neoconstitucionalismo’ para indi- de definir o direito constitucionalizado em
car qualquer progresso recente do constitu- termos de moral. Nino defende uma tese
cionalismo são muito genéricos: dispõe-se diferente e mais plausível: poderiam ser
de termos muito mais específicos - como dadas diversas definições do direito, algu-
‘Estado constitucional’ - para indicar os mas das quais reúnem, outras separam o
mesmos progressos. Mesmo por isso ‘ne- direito da moral (NINO, 1999).
oconstitucionalismo’ é usado aqui somente A tese da conexão definitória ne-
no significado de teoria ou doutrina. cessária entre direito e moral nos Estados
O neoconstitucionalismo, nesse sig- constitucionais, todavia, poderia até pa-
nificado, propõe-se como uma alternativa recer plausível (se não se tratasse de uma
mais atraente em relação ao jusnaturalismo contradição em termos): o termo ‘direito’
e ao juspositivismo. Em relação ao jusna- em relação aos Estados constitucionais,
turalismo, como já foi dito, o neoconstitu- deveria necessariamente definir-se em alu-
cionalismo oferece uma solução positiva - são à moral incorporada nas constituições:
a constituição, o Estado constitucional - ao o direito constitucionalizado seria necessa-
antigo problema da lei injusta; em relação riamente interligado à moral, reivindicaria
ao juspositivismo, o neoconstitucionalis- uma pretensão de correção moral e cessa-
mo se apresenta como uma ‘superação’ da ria de ser direito em caso de graves viola-
tese juspositivista da separabilidade en- ções da moral (ver ALEXY, 1992). Exceto
tre direito e moral, a tese que seria válida que, tudo aquilo que existe de premente,
no Estado legislativo, mas não no Estado ou analítico, ou necessário nessa tese é so-
constitucional. O neoconstitucionalismo, mente o que se define ‘direito’ assim, por
efetivamente, gira em torno da tese da co- conseguinte todas essas conseqüências se-
nexão necessária entre direito e moral no guem-no por definição; mas, como admite
Estado constitucional: tese que já implici- o próprio Nino, nada e ninguém podem
tamente Dworkin, e explicitamente Alexy nos obrigar a definir ‘direito’ exatamente
e Nino, prosseguem em relação a três dife- assim.
rentes problemas (NINO, 1999). Além disso, não é absolutamente ób-
vio que nos Estados constitucionais a moral
2.1. O primeiro problema é cogniti- seja incorporada no direito: a incorporação,
vo, ou mais precisamente definitório, rela- efetivamente, é admitida pelo juspositivis-
tivo à definição do direito: os neoconstitu- mo inclusivo, mas negada pelo juspositi-
cionalistas prosseguem na tese da conexão vismo exclusivo (ESCUDERO, 2004). O
definitória entre direito e moral nos Esta- subscritor, baseando-se em uma velha ob-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 23

servação do teórico institucionalista Santi uma conexão justificativa necessária, essa


Romano, sustenta que não se trata absolu- vale para qualquer direito, produzido em
tamente de incorporação, mas de simples qualquer Estado: justamente como preten-
restituição do direito à moral: o direito po- dia, desde sempre, o jusnaturalismo sem
sitivo pode contingentemente reconduzir à outras qualificações. Na realidade - como
moral, mas não se confunde por isso com observou por último Bulygin (BULYGIN,
ela (BARBERIS, 2005). Restituía à moral 2000), mas como já havia admitido o pró-
já o direito do Estado legislativo do século prio Alexy (ALEXY, 1992) - não existem
XIX, através das assim chamadas cláusu- conexões justificativas necessárias: as úni-
las gerais (Generalklauseln); que o direito cas conexões necessárias são definitórias.
do Estado constitucional restitua à moral Os neoconstitucionalistas prosseguem so-
através dos princípios constitucionais, na mente teses justificativas mais ou menos
sua essência, não introduz nenhuma dife- plausíveis, não decerto analíticas verda-
rença qualitativa entre Estado legislativo e deiras.
Estado constitucional.
2.2 O segundo problema é normativo, 2.3. O terceiro problema é interpre-
o mais precisamente justificativo, e é rela- tativo, relativo à atribuição de significados
tivo à justificação da aplicação (por parte às disposições jurídicas; os neoconstitu-
dos juízes) e da obediência (por parte dos cionalistas sustentam a tese da conexão
cidadãos) ao direito: os neoconstituciona- interpretativa necessária: o direito cons-
listas prosseguem na tese da conexão justi- titucionalizado deveria necessariamente
ficativa necessária entre direito e moral nos ser interpretado em conformidade com a
Estados constitucionais. No Estado consti- moral. É esse o conteúdo de várias doutri-
tucional, a aplicação do e a obediência ao nas de Dworkin, em particular das teses do
direito positivo seriam devidas somente se direito como interpretação (law as inter-
ele for idêntico à constituição, ou melhor, pretation), da única resposta correta (one
à moral incorporada na constituição; pelo right answer) e da interpretação moral
assim chamado Teorema fundamental de (moral reading) da constituição. O direi-
Nino, efetivamente, somente a moral, em to, para Dworkin, consiste em atividade de
última instância, poderia justificar ações interpretação, como investigação da única
ou decisões jurídicas (NINO, 1993). Nino solução juridicamente e moralmente corre-
fala sobre esse propósito de imperialismo ta; entre os vários significados lingüísticos
da moral: o direito poderia exigir aplicação e jurídicos atribuíveis a uma disposição, ou
e obediência não nessa tal qualidade, mas seja, deveria ser necessariamente escolhido
somente se conformado à moral (NINO, o significado juridicamente e moralmente
1999). mais justo (DWORKIN, 1977 e 1986).
A tese neoconstitucionalista da co- A tese da conexão interpretativa ne-
nexão justificativa necessária entre direito cessária entre direito constitucionalizado e
e moral nos Estados constitucionais pare- moral - as disposições jurídicas poderiam
ce plausível, e antes suscetível de receber cada vez mais exprimir diferentes normas,
formulações mais radicais. Efetivamente, como admite até Dworkin, mas entre es-
o direito positivo é moralmente justifica- sas os juristas e os juízes deveriam neces-
do somente se conformado à moral: sem sariamente escolher a ou as normas mais
nenhuma diferença entre Estados legisla- idênticas à moral - é talvez a menos plau-
tivos e Estados constitucionais. Se há aqui sível das três. Na realidade, mesmo a tese

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


24 Mauro Barberis

da conexão interpretativa necessária, longe que terminam em “...ismo” são de maneira


de ser analítica, é simplesmente uma tese especial expostos ao risco da indetermina-
normativa: tese muito óbvia do ponto de ção combinatória (BARBERIS, 2005). O
vista moral, mas igualmente opinável do neoconstitucionalismo poderia ser somen-
ponto de vista jurídico. Do ponto de vista te uma família de doutrinas concordadas
moral, é totalmente óbvio que mesmo a in- entre elas por teses (não comuns a todas,
terpretação, como o resto do direito, deva mas) simplesmente aparentadas, apresen-
perseguir a justiça; e é verdade que o Esta- tando meras semelhanças de família (fami-
do constitucional oferece aos juristas e aos ly resemblances).
juízes instrumentos para persegui-la muito A mesma tese da conexão necessária
mais eficazes do que o Estado legislativo. entre direito e moral nos Estados consti-
Permanece, porém, o fato que, mes- tucionais apresenta formulações sensivel-
mo no Estado constitucional, juristas e mente diferentes nos diversos autores; e
juízes devem aplicar o direito, não a jus- formulações ainda mais diferentes apre-
tiça; quando a Corte constitucional anula sentam três sub-teses que já vimos especi-
uma lei injusta, não a anula na qualidade ficar a primeira tese: as (sub)teses da cone-
de injusta - o controle de legitimidade, ou xão necessária respectivamente definitória,
seja, não se transforma em um controle justificativa e interpretativa. Que nenhuma
de justiça - mas porque inconstitucional. dessas três sub-teses específicas do neo-
As constituições, por sua vez, remetem a constitucionalismo seja sustentável, como
princípios e valores morais, de modo que de resto é insustentável também a tese ge-
controlem mais dificilmente algumas leis nérica (BARBERIS, 2005), não é, contu-
disposições injustas; mas a injustiça de do, uma razão para excluir a utilidade da
uma disposição constitucional não é abso- noção de neoconstitucionalismo: essa po-
lutamente excluída: pode até acontecer que deria convir, em última hipótese, para indi-
o juiz constitucional deva anular leis justas car uma série de erros. Como veremos na
com base em disposições constitucionais próxima e conclusiva seção, efetivamente,
injustas. O Estado constitucional pode ser se o neoconstitucionalismo é importan-
somente um aperfeiçoamento imperfeito te não o é tanto pelas teses que sustenta,
do Estado legislativo: não exatamente a quanto pelos problemas que levanta.
solução definitiva do secular problema da 3. A importância do Neoconstituciona-
injustiça das leis (BARBERIS, 2005). lismo.
Mesmo se baseando na redefinição
aqui proposta - como na base das defini- A maior parte das teses neoconsti-
ções habituais - o neoconstitucionalismo tucionalistas, como já foi visto, não é so-
aparece como uma noção nada unívoca: mente errada, mas desastrosamente errada:
existem aqui grandes diferenças, de fato, e desse ponto de vista entende-se - mas não
entre os seus três principais notáveis - se justifica - que muitos se recusem falar
Dworkin, Alexy, Nino - e diferenças ainda de neoconstitucionalismo, assimilando-o
maiores se considerarmos outros notáveis ao jusnaturalismo, como faz Guastini, ou
como Zagrebelsky e Ferrajoli. Por outro ao juspositivismo, como faz Moreso (ver
lado, essas diferenças não são maiores que MORESO, 2001). A importância do neo-
as diferenças que acontecem, respectiva- constitucionalismo, todavia, não consiste
mente, entre os expoentes do jusnaturalis- absolutamente nas teses que sustenta, mas
mo ou do juspositivismo: todos os termos nos problemas que levanta: que são, pois,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 25

os problemas principais do direito contem- di) da jurisprudência de common law, de-


porâneo. Que algo de semelhante ao neo- duzidos por universalização das decisões
constitucionalismo não tenha sido ainda particulares e concretas dos juízes anglo-
destacado na teoria do direito de língua in- americanos; os princípios constitucionais,
glesa, desse ponto de vista, depende prin- expressos nos documentos constitucionais
cipalmente da subestimação ou da simples ou elaborados pela jurisprudência consti-
ignorância, típica de grande parte da ju- tucional (BARBERIS, 2005).
risprudence, em especial a americana, por Admitindo que todas as normas se-
tudo o que não esteja escrito em inglês. jam enunciados condicionais da forma
Este comportamento chauvinista e de ‘se x então y’ - se verificarmos o caso x,
fundo provinciano nos confrontos da teo- então deve seguir a conseqüência y - qual
ria do direito não anglófona é ainda mais é a diferença entre regras (rules) e princí-
injustificável em teóricos do direito liberal pios (principles)? A distinção originária
como Dworkin. Mesmo sendo considera- de Dworkin, mas também as distinções
do o iniciador do neoconstitucionalismo, consecutivas de Alexy, Manuel Atienza e
e ainda tendo repetidamente cortejado Juan Ruiz Manero (ATIENZA, RUIZ MA-
as filosofias hermenêuticas continentais, NERO, 1996) são baseadas nas variantes
Dworkin declara que se interessa somente do critério da defectibilidade defeasibility:
pelo direito anglo-americano, ou melhor, denomina-se defectível uma norma pela
da jurisprudence inglesa ou americana: qual, mesmo se verificando o caso x, não
justamente aquilo que fazem comumen- lhe segue a conseqüência y, em conseqüên-
te os seus colegas de língua inglesa, sem cia da verificação de exceções implícitas,
afirmá-lo e repetidamente sem nem mesmo não previstas, e especialmente de conflitos
sabê-lo. Apesar disso, continuando, aqui com outros princípios. Os princípios se-
serão sinalizados os três problemas típicos riam distinguidos pelas regras justamente
do neoconstitucionalismo, e que exempli- na qualidade de defectíveis: verificando-se
ficam a sua importância: o problema dos o caso, não o seguiria necessariamente a
princípios e da sua distinção das regras; o conseqüência, porque um princípio pode
problema da ponderação entre princípios sempre conflitar com outros.
constitucionais; o problema dos direitos. Na realidade, o critério da defecti-
bilidade não funciona, como deixa pensar
3.1. O problema da distinção entre o próprio tácito abandono, por parte de
regras e princípios é relativo à nova apre- Dworkin, da distinção regras/princípios: as
ciação - operada por Dworkin ignorando regras, de fato, podem ser igualmente de-
toda a literatura continental sobre princí- fectíveis como os princípios (GUASTINI,
pios, e logo abandonando a distinção - de 2004). Concentrando-se nos princípios, re-
um tipo de norma diferente das regras da gras e defectibilidade, todavia, a discussão
tradição juspositivista: os princípios, exata- de teoria da norma iniciada pelo neocons-
mente. Com o termo ‘princípio’, no debate titucionalismo foi cada vez mais se desen-
moderno, nos referimos principalmente a volvendo na direção da teoria da interpre-
três tipos de norma: os princípios gerais (e tação e da argumentação, principalmente
abstratos) da doutrina europeu-continen- constitucional. Em especial, da idéia neo-
tal, deduzidos por universalização de nor- constitucionalista que os princípios podem
mas positivas menos gerais e abstratas; os sempre conflitar entre si, desenvolveu-se a
princípios de decisão (ou rationes deciden- teoria do balanceamento ou da ponderação

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


26 Mauro Barberis

dos princípios: ou seja, análise da técnica, para estabelecer qual deve exercer o papel
elaborada principalmente pelo Tribunal de parâmetro de constitucionalidade de
constitucional alemão, através dos quais uma lei; duas regras do caso, justificáveis
os juízes constitucionais escolhem o prin- com base nos dois diferentes princípios; a
cípio para aplicar ao caso. própria lei objeto de controle de constitu-
Veremos no próximo ponto do que cionalidade.
se trata; aqui é necessário ainda expor algo Na tradicional teoria do direito jus-
sobre o problema da distinção regras/prin- positivista, o equilíbrio deveria ser tratado
cípios. A falência do critério da defectibili- sob a denominação das antinomias entre
dade, nas versões tanto de Dworkin quanto normas: em especial, como antinomia en-
dos seus seguidores, abriu o caminho para tre princípios constitucionais. O problema
critérios distintivos mais frágeis: hoje mui- é, porém, que no conflito entre princípios
tos, como Prieto, pensam que podem ser não se aplicam os critérios habituais para
dados somente critérios distintivos quan- a solução das antinomias: não o critério
titativos, e não qualitativos, de modo que hierárquico, como os dois princípios têm
poderia bem acontecer o caso que uma ambos grau constitucional; não o critério
mesma norma fosse considerada uma re- cronológico, como os dois princípios são
gra ou um princípio. Talvez, porém, seja coetâneos; não o critério de especialidade,
necessário ainda considerar pelo menos o afinal, como - para usar o léxico de Ross
seguinte critério, mais forte: as regras são (1958) - não se trata de antinomia total-
normas prescritivas, que regulam direta- parcial, que permite estabelecer entre os
mente o comportamento; os princípios são dois princípios uma relação da regra a ex-
normas avaliadoras, que não regulam o ceção, mas de antinomia parcial-parcial,
comportamento diretamente, mas só indi- que permite somente estabelecer entre os
retamente, através das regras justificáveis dois princípios uma hierarquia de valor,
baseadas nos próprios princípios (RE- ou axiológica, estabelecendo qual dos dois
DONDO, 2005; BARBERIS, 2005). tenha maior peso ou importância (Guas-
tini, 2004).
3.2. O problema de balanceamento Certamente, a Corte poderia estabe-
(ou ponderação) dos princípios, geralmen- lecer uma hierarquia axiológica fixa entre
te ressalta o confronto entre dois princípios os dois princípios, decidindo de uma vez
a fim de estabelecer de qual deles deve ser por todas qual das duas deva prevalecer
extraída a regra que decide um caso; o ba- (MORESO, 2002); mas as Cortes, geral-
lanceamento ou ponderação constitucio- mente, se limitam em estabelecer uma hie-
nal, especialmente, consiste no confronto rarquia axiológica móvel, decidindo qual
entre dois ou mais princípios constitucio- dos dois deva prevalecer somente caso a
nais a fim de estabelecer qual deles deve caso (GUASTINI, 2001): em um caso po-
exercer o papel de parâmetro de legitimi- deria prevalecer o primeiro princípio, em
dade constitucional de uma lei submetida a um outro caso o segundo. Para os críticos
controle. O equilíbrio do qual se ocuparam do balanceamento, esse modo de proceder
imensamente na doutrina constitucional e serviria para as Cortes somente para ‘ter
na teoria do direito recente, não somente suas mãos livres’: os juízes não se vincula-
neoconstitucionalista, permite um con- riam a uma hierarquia estável entre os prin-
fronto entre pelo menos cinco normas: dois cípios constitucionais, a fim de permanecer
princípios constitucionais, confrontados árbitros de decidir caso a caso. Contudo,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 27

pelo menos no controle de legitimidade b). A diferença de quanto Alexy defendia


constitucional centralizado, ‘caso a caso’ originariamente, pois, subsunção e equilí-
significa, não ‘caso a caso específico’, mas brio não parecem absolutamente se excluir
‘caso a caso genérico’: a Corte não decide alternadamente.
sobre fatos, como os juízes de mérito, mas
sobre normas gerais e abstratas. 3.3. O problema dos direitos – es-
Além disso, se os princípios reme- pecialmente, dos direitos constitucionais
tem a valores morais, não parece possível (MAZZARESE, 2003) - é na verdade um
evitar o balanceamento caso a caso: segun- emaranhado de problemas, que o juspositi-
da a teoria (meta)ética chamada pluralis- vismo sempre teve dificuldade para resol-
mo ético, e defendida por Isaiah Berlin e ver. Se pensarmos nos direitos do homem,
Bernard Williams, os últimos valores mo- ou humanos, declarados nas constituições;
rais, cujos princípios recuperam, não se a tentativa juspositivista de reduzi-los às
prestam a hierarquias estáveis (BIN, 1992; mesmas normas constitucionais positivas,
CELANO, 2002). De qualquer modo, tan- como mero produto delas, desencontra-se
to os neoconstitucionalistas, e em especial com o notório fato que os direitos huma-
Alexy, têm freqüentemente sustentado que nos são sempre declarados, não colocados,
o equilíbrio seja uma técnica interpretati- e que, na jurisprudência das Cortes inter-
va e argumentativa alternativa à subsun- nacionais e constitucionais, não existe um
ção: enquanto a subsunção extrai de uma catálogo fechado de direitos fundamentais,
regra geral e abstrata a regra particular e mas somente catálogos mais ou menos
concreta que decide o caso, o equilíbrio abertos, e, todavia, sempre extensíveis por
escolhe o princípio aplicável. Mas, como meio da interpretação. Ainda para sair das
atualmente admite o próprio Alexy, equi- dificuldades encontradas pelo juspositi-
líbrio e subsunção não são absolutamente vismo, os neoconstitucionalistas elabora-
incompatíveis e alternativos: ao contrário, ram teorias dinâmicas dos direitos morais,
trata-se de raciocínios compatíveis e com- como razões para produzir normas e direi-
plementares. tos jurídicos.
A subsunção intervém no raciocínio A partir de Dworkin (DWORKIN,
do juiz - principalmente ordinário, mas 1977) - mas comparando também o jus-
até constitucional, - mais vezes, antes ou positivista Joseph Raz (RAZ, 1986) - os
depois do equilíbrio: em primeiro lugar, neoconstitucionalistas conceberam os di-
o juiz (ordinário) procura regra sob cujo reitos como razões morais justificadoras
caso poderia ser subsumido, encontrando de normas jurídicas: assim invertendo a
freqüentemente mais de uma, justificáveis relação entre normas e direitos típico do
com base em diversos princípios; depois, o juspositivismo. As tradicionais teorias
juiz (ordinário) aplica ao caso a regra justi- juspositivistas, inspiradas na tabela dos
ficável com base no princípio vencedor do oito conceitos jurídicos fundamentais e
equilíbrio (PRIETO, 2003). O equilíbrio, à assim chamada tese da correlatividade
ao invés, intervém no raciocínio do juiz entre direitos e obrigações de Wesley Ho-
- principalmente constitucional, mas tam- hfeld eram estáticas, faziam dos direitos o
bém ordinário - na fase intermediária às produto de normas jurídicas: teríamos um
duas fases de subsunção: o juiz escolhe en- direito humano somente quando uma carta
tre os princípios que justificam a aplicação internacional ou constitucional dispusesse
de diversas regras (ALEXY, 2003 a, 2003 as obrigações correlativas ao direito. As

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


28 Mauro Barberis

modernas teorias dos direitos, tanto neo- vismo não pode aceitar é a confusão entre
constitucionalistas quanto neo-juspositi- direitos morais e jurídicos e, antes ainda, a
vistas, são ao contrário dinâmicas: fazem confusão entre teoria (cognitiva) e doutri-
dos direitos morais as razões de normas e na (normativa) dos direitos, típica do neo-
obrigações jurídicas. constitucionalismo.
Os direitos morais, em outras pala- Uma teoria (cognitiva) juspositi-
vras, funcionariam dinamicamente como vista dos direitos, além disso, pode des-
razões ou valores últimos para produzir viar-se do wishful thinking das doutrinas
uma série não finita, ou precisamente in- neoconstitucionalistas acerca da harmo-
finita, de normas e obrigações jurídicas nização e não contraditoriedade dos di-
correspondentes (ver ainda RAZ, 1986): reitos fundamentais (FERRAJOLI, 2001
o que explicaria e justificaria junto aos e COMANDUCCI, 2002-2003). Sempre
fatos como a mera declaração de direitos a partir de Dworkin, e com base na teo-
pré-existentes, o ausente encerramento dos ria metaética chamada monismo ético,
vários catálogos dos direitos, e até a infla- os neoconstitucionalistas consideram de
ção dos direitos característica do discurso fato que os direitos morais, ou humanos,
jurídico moderno. Na realidade, o recurso ou fundamentais, sejam entre eles har-
a direitos morais típicos do neoconstitucio- mônicos: ou, pelo menos, que eles assim
nalismo não soluciona o problema da natu- se podem tornar através da interpretação
reza dos direitos, mas somente o desloca: (DWORKIN, 2001). Como sugere, ao
também os direitos morais, de fato, po- contrário, polemizando com Dworkin,
dem ser concebidos, estaticamente, como o já citado Williams, em base da teoria
o produto de normas, não jurídicas mais metaética chamada pluralismo ético os
morais. Por outro lado, o juspositivismo, direitos morais, ou humanos, ou funda-
como teoria da separabilidade entre direito mentais, não são necessariamente harmô-
e moral, não tem necessidade de negar os nicos: a mesma interpretação, se é capaz
direitos morais: basta distingui-los dos di- de torná-los compatíveis, é capaz também
reitos jurídicos. de torná-los incompatíveis (WILLIAMS,
Por esse ponto de vista, uma teoria 2001).
juspositivista dos direitos pode não só Essa sintética análise dos três princi-
aceitar a distinção entre direitos morais e pais problemas discutidos pelo neoconsti-
direito jurídicos, mas também fazer jus- tucionalismo permite talvez originar pelo
tamente o ponto de vista dinâmico típico menos três conclusões provisórias. A pri-
da teoria neo-constitucionalista: em espe- meira conclusão é que os neoconstitucio-
cial, pode ocupar-se dos processos de re- nalistas propuseram freqüentemente solu-
conhecimento, ou melhor, de elaboração ções insatisfatórias: mais insatisfatórias,
- doutrinal, judicial, legislativa, constitu- pelo menos, das soluções propostas pelos
cional e internacional - dos direitos morais teóricos juspositivistas a fim de responder
(BOBBIO, 1990). Como teoria (cognitiva) ao desafio do próprio neoconstitucionalis-
dos direitos, o juspositivismo não tem di- mo. A segunda conclusão é que os neo-
ficuldade de aceitar a idéia que direitos e constitucionalistas tiveram o mérito de le-
razões morais tornem-se, dinamicamente, vantar problemas importantes, forçando a
direitos e razões jurídicos, uma vez que tradicional teoria juspositivista a atualizar-
aceitos na lei, constituições e tratados in- se e a afinar-se. A terceira conclusão - úl-
ternacionais; a única coisa que o juspositi- tima, mas não menos importante - é que a

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO 29

despeito de falar de neoconstitucionalismo COMANDUCCI, Paolo (2002), Forme di


seja e permaneça problemático, como já foi (neo)costituzionalismo: una ricognizione meta-
visto, apesar de tudo, existe realmente algu- teorica, MAZZARESE, 2002, p. 71-94.
ma coisa que esperava somente ser chamado COMANDUCCI, Paolo (2002-2003), Problemi
di compatibilità fra diritti fondamentali, Analisi
com esse nome: ou até - por que não? - com
e diritto, 2002-2003, p. 317-330.
um nome melhor se alguém o encontrar. CRUZ, Luis (2005), La constitución como or-
den de valores. Problemas jurídicos y políticos.
Un estudio sobre los orígenes del neoconstitu-
REFERÊNCIAS cionalismo, Granada, Comares.
ALEXY, Robert (1987), Rechtssystem und DREIER, Ralf (1991), Konstitutionalismus und
praktischen Vernunft. Rechtstheorie, 18, p. (?). Legalismus. Zwei Arten juristischen Denkens
ALEXY, Robert (1997), Begriff und Geltung im demokratischen Verfassungstaat, in Archiv
des Rechts (1992), trad. it. Concetto e validità für Rechts- und Sozialphilosophie, Beiheft 40,
del diritto, Torino, Einaudi. p. (?).
ALEXY, Robert (2003a), Constitutional Rights, DWORKIN, Ronald (1977), Taking Rights Se-
Balancing, and Rationality, Ratio iuris, 16, 2, p. riously, Harvard U. P., Cambridge (Mass.).
131-140. DWORKIN, Ronald (1986), Law’s Empire,
ALEXY, Robert (2003b), On Balancing and Harvard U. P., Cambridge (Mass.).
Subsumption. A Structural Comparison, Ratio DWORKIN, Ronald (2001), Do Liberal Va-
iuris, 16, 4, p. 195-205. lues Conflict?, in LILLA, Mark, DWORKIN,
AMENDOLA, Adalgiso (2003), I confini del Ronald, SILVERS, Robert (eds.), The Legacy
diritto. La crisi della sovranità e l’autonomia of Isaiah Berlin, New York, New York Review
del giuridico, Napoli, Esi. Book, p. 73-90.
ATIENZA, Manuel, RUIZ MANERO, Juan ESCUDERO, Rafael (2004), Los calificativos
(1996), Las piezas del derecho. Teoría de los del positivismo jurídico. El debate sobre la in-
enunciados jurídicos, Barcelona, Ariel. corporación de la moral, Madrid, Civitas.
BARBERIS, Mauro (2000), Filosofia del diritto. FARALLI, Carla (2001), La filosofia giuridica
Un’introduzione storica, Bologna, Il Mulino. dei nostri giorni, appendice di aggiornamento a
BARBERIS, Mauro (2003a), Filosofia del diritto. G. Fassò, Storia della filosofia del diritto (1966-
Un’introduzione teorica, Torino, Giappichelli. 1970), Roma-Bari, Laterza, p. 318-423.
BARBERIS, Mauro (2003b), Diritto com’è/ FERRAJOLI, Luigi (1989), Diritto e ragione. Te-
come deve essere. Hart, Dworkin e la teoria del oria del garantismo penale, Roma-Bari, Laterza.
diritto, in “Ragion pratica”, 21, pp. 325-345. FERRAJOLI, Luigi (2001), Diritti fondamen-
BARBERIS, Mauro (2004), Breve storia della tali. Un dibattito teorico, Roma-Bari, Laterza.
filosofia del diritto, Bologna, Il Mulino. GIORDANO, Valeria, Il positivismo e la sfida
BARBERIS, Mauro (2005), Filosofia del di- dei princìpi, Napoli, Esi, 2004.
ritto. Un’introduzione teorica (2003), seconda GUASTINI, Riccardo (1998), La “costituziona-
edizione, Torino, Giappichelli. lizzazione” dell’ordinamento giuridico italiano,
BIN, Roberto (1992), Diritti e argomentii. Il Ragion pratica, 11, p. 185-206.
bilanciamento degli interessi nella giurispru- GUASTINI, Riccardo (2001), Lezioni di teoria
denza costituzionale, Milano, Giuffrè. costituzionale, Torino, Giappichelli.
BOBBIO, Norberto (1990), L’età dei diritti, GUASTINI, Riccardo (2004), L’interpretazione
Torino, Einaudi. dei documenti normativi, Milano, Giuffrè.
CARBONELL, Miguel (edición de) (2003), HART, Herbert, Postscript (1994) a Id., The
Neoconstitucionalismo(s), Madrid, Trotta. Concept of Law (1961), ed. P. Bullock, J. Raz,
CELANO, Bruno (2002), Come deve essere la Oxford, Clarendon, p. 238-276.
disciplina costituzionale dei diritti?, in S. Po- LAPORTA, Francisco (2003), (edición a cargo
zzolo (a cura di), La legge e i diritti, Torino, de), Constitución: problemas filosoficos, Madrid,
Giappichelli, p. 89-124. Centro de estudios políticos y constitucionales.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


30 Mauro Barberis

MANCINI, Giuseppe Federico (2000), Demo- POZZOLO, Susanna (2003), Metacritica del
cracy and Constitutionalism in the European neocostituzionalismo. Una risposta ai critici di
Union. Collected Essays, Oxford, Hart. Neocostituzionalismo e positivismo giuridico,
MAZZARESE, Tecla (2002), (a cura di), Neo- Diritto & questioni pubbliche, 3, p. 51-70.
costituzionalismo e tutela (sovra)nazionale dei PRIETO, Luis (1997), Constitucionalismo y
diritti fondamentali, Torino, Giappichelli. positivismo, México, Fontamara.
MORESO, José Juan (2001), In Defence of In- PRIETO, Luis, El juicio de ponderación consti-
clusive Legal Positivism, in Chiassoni, Pierluigi tucional (2003), in LAPORTA, Francisco (edi-
(ed.), The Legal Ought, Giappichelli, Torino, p. ción a cargo de) (2003), Constitución: proble-
37-64. mas filosoficos, cit., p. 221-252.
MORESO, José Juan (2002), Conflitti fra prin- RAZ, Joseph (1986), The Morality of Freedom,
cìpi costituzionali, Ragion pratica, 18, p. 201- Oxford, Clarendon.
222. REDONDO, Maria Cristina (2005), Legal Rea-
NINO, Carlos (1993), Una breve nota sulla sons: Between Universalism and Particularism,
struttura del ragionamento pratico, Ragion pra- Journal of moral philosophy, 2.1, p. 47-68.
tica, 1, p. 32-37. ROSS, Alf (1958), On Law and Justice, Lon-
NINO, Carlos (1999), Derecho, moral y políti- don, Stevens.
ca (1994), trad. it. Il diritto come morale appli- WEILER, J. H. H. (1999), The Constitution
cata, Milano, Giuffrè. of Europe, Cambridge, Cambridge University
POZZOLO, Susanna (1997), La especifidad de Press.
la interpretación constitucional, in Doxa, 21, WILLIAMS, Bernard (2001), Liberalism and
vol. II, p. 339-353. Loss, in LILLA, Mark, DWORKIN, Ronald,
POZZOLO, Susanna (2001), Neocostituzio- SILVERS, Robert (eds.), The Legacy of Isaiah
Berlin, cit., p. 91-104
nalismo e positivismo giuridico, Giappichelli,
ZAGREBELSKY, Gustavo (1992), Il diritto
Torino.
mite. Legge diritti giustizia, Torino, Einaudi.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


31

Significado Político-Constitucional
do Direito Penal
Constitutional and Political meaning of Criminal Law

Cláudio Brandão*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Através do Direito Penal o Estado ganha o poder de retirar da pessoa humana os direitos
constitucionalmente assegurados, quais sejam: vida, liberdade e patrimônio, configurados como
cláusulas pétreas da Constituição. O que se atinge no Direito Penal são os bens assegurados pela
Carta Política, cuja aplicação e interpretação devem ser feitas em consonância com os Princípios
Constitucionais. A discussão aqui empreendida quer demonstrar que, além do caráter técnico-dog-
mático, o Direito Penal tem um caráter político e este é o condicionante do objeto e do método do
Direito Penal, fazendo com que os mesmos apresentem uma relação substancial com os princípios
constitucionais.
Palavras-chave: Direto Penal. Direito Constitucional. Tutela dos bens jurídicos. O método do Di-
reito Penal. Princípios Constitucionais da Legalidade. Dignidade da Pessoa Humana.

Abstract: Through by Criminal Law the State gets the power to remove constitutional rights of hu-
man being, as follows: life, natural freedom and patrimony, assured as unchangeable clause of Con-
stitution. What’s reached in the Criminal Law is assured possessions by Political Charter, which
application and interpretation must have to be done with the Constitutional Principles. The discuss
wants to show that, besides the thecnical-dogmatic character, Criminal Law has a political character
and that is the quality of the object and the method of Criminal Law, succeeding in both, presented
a substantial relation with the constitutional principles.
Key Words: Criminal Law. Constitutional Right. Personal Estate Protection. Criminal Law’s meth-
od. Constitutional Principles of Legality. Human being dignity.

1. Delimitação do estudo e objeto de in- vamente na dogmática daquele direito. Se


vestigação o que se atinge no Direito Penal são bens
assegurados pela Carta Política, sua apli-
O Direito Penal é a mais gravosa cação e interpretação devem ser feitas em
forma de intervenção estatal. Isto se dá consonância com os Princípios Constitu-
porque, através dele, retiram-se da pessoa cionais.
humana direitos constitucionalmente asse- Isto importa reconhecer que, além do
gurados, quais sejam: vida, liberdade e pa- caráter técnico-dogmático, o Direito Penal
trimônio. Ressalte-se, inclusive, que ditos tem um caráter político. Ocorre que o ca-
direitos retirados são cláusulas pétreas da ráter político não é inócuo, ao contrário,
Constituição. ele condicionará o objeto e o método do
Isto posto, a interpretação e aplica- Direito Penal, fazendo com que os mes-
ção do Direito Penal não devem ser feitas mos tenham uma relação substancial com
de forma autista, isto é, encerradas exclusi- os Princípios Constitucionais.

* Doutor em Direito. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UFPE. Professor
do Centro de Ensino Superior do Extremo Sul da Bahia.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


32 Cláudio Brandão

Dita análise se constitui o objetivo Registre-se que é comum na doutrina


desta investigação. penal substituir-se o termo infração (que é
o gênero) pelo termo crime (que, enfatize-
2. Conceito de Direito Penal se, é uma das espécies de infração). Isto
2.1. Construção de uma definição norma- se dá por dois motivos: primeiramente, em
tiva termos quantitativos, o número de crimes
é muito superior ao número de contraven-
Para se conceituar o Direito Penal ções; segundamente, os elementos que
é imprescindível ter-se em menção dois foram construídos ao longo de mais de
pontos: em primeiro lugar, os institutos duzentos anos, desde o século XIX, para
que estruturam esse ramo do Direito; em o aperfeiçoamento conceitual do crime
segundo lugar, a significação destes referi- (quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e
dos institutos no contexto do Direito. culpabilidade), aplicam-se também ao con-
Como sabido, o Direito Penal – como ceito de contravenção. Destarte, no âmbito
qualquer outro ramo do Direito – é estru- deste trabalho, o termo infração doravante
turado em normas. Destarte, o referido será substituído pelo termo crime.
Direito Penal regula condutas através de O segundo instituto que conforma
enunciados gerais, os quais prescrevem o Direito Penal é a Pena. Consoante foi
abstratamente modelos de comportamen- consignado acima, a realização da conduta
tos que devem ser seguidos, porque, no proibida tem como conseqüência a sanção.
caso do comportamento prescrito não ser Pois bem, é propriedade exclusiva do Di-
seguido, será imputada, como conseqüên- reito Penal a mais grave sanção de todo o
cia, uma sanção ao sujeito. Ordenamento Jurídico: a Pena. Isto posto,
Pois bem, é das normas que se extra- se a norma define o crime como conduta
em os institutos do Direito Penal. proibida e traz como conseqüência da rea-
O primeiro instituto que conforma o lização desta conduta a pena, é imperioso
Direito Penal é a Infração. Consoante foi afirmar-se que a pena é a conseqüência ju-
dito, a norma prescreve um modelo abs- rídica do crime, neste sentido, o extraordi-
trato de comportamento proibido e esse nário Tobias Barreto afirmava que “a razão
modelo poderá ser qualificado pelo legis- da pena está no crime”.1 Esta conseqüência
lador de crime ou de contravenção. Isto é, inclusive, apontada como o marco dife-
posto, pode-se afirmar que infração é o rencial deste ramo do Direito, pois quando
gênero do qual crime e contravenção são ela está presente a norma obrigatoriamente
espécies. Todavia – é imperioso se ressal- pertencerá ao Jus Poenale.
tar – não existe, na essência, uma diferença O terceiro instituto que conforma o
substancial entre o crime e a contravenção, Direito Penal é a Medida de Segurança.
sendo as infrações classificadas de acor- De acordo com o que foi explicado, a pena
do com o primeiro ou com a segunda em somente poderá ser aplicada se sua causa
conformidade com o arbítrio do legisla- estiver realizada, isto é, se houver a reali-
dor. De modo geral, pode-se afirmar que o zação de um crime. Todavia, existem cer-
conceito de crime é imputado às infrações tas pessoas que não podem cometer crimes
consideradas mais graves pelo legislador, em virtude de não poderem compreender
enquanto que o conceito de contravenção é o significado de seu ato ou de não terem
imputado às infrações consideradas como capacidade de auto-determinação, em face
menos graves. de serem acometidas de doença mental ou

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 33

desenvolvimento mental incompleto ou re- to Penal, definia-o neste mesmo espeque.


tardado. Neste caso, o que se imputa a essas Para ele, o “Direito Penal é o conjunto de
pessoas não é uma pena, mas uma medida normas jurídicas que regulam o exercício
de segurança, que se traduz em tratamento do poder punitivo do Estado, associando
psiquiátrico ambulatorial obrigatório ou, ao delito, como requisito, à pena como
nos casos mais graves, em internação com- conseqüência jurídica”.4 Completando sua
pulsória em hospitais psiquiátricos. definição, diz Mezger que também é Di-
Deve-se salientar, desde logo, que reito Penal o conjunto de normas que as-
nos sistemas jurídicos dos Estados Demo- sociam ao delito outras medidas de índole
cráticos de Direito todos estes institutos diversa da pena, que tem por objeto a pre-
somente podem ser criados por uma Lei, já venção de delitos5.
que o Princípio da Legalidade é condição Não se apresentam conceitos que
necessária para que se constitua o Direito destoem muito deste padrão dentro dos
Penal. autores contemporâneos. Veja-se, a título
A definição de Direito Penal é feita, de exemplo, o conceito de Direito Penal
inicialmente, com base nos três institutos dado por Hans-Heinrich Jescheck: “O Di-
que foram elencados: Crime, Pena e Medi- reito Penal determina que ações contrárias
da de Segurança. à ordem social são crimes e como conseqü-
Deste modo, o “Direito Penal é um ência jurídica dos crimes impõe penas. Re-
conjunto de normas que determinam que lacionado ao crime prevê também medidas
ações são consideradas como crimes e lhes de correção e segurança”.6
imputa a pena – esta como conseqüência Na doutrina brasileira, também não
do crime –, ou a medida de segurança”. existe muito distanciamento da definição
Quer no Direito Penal estrangeiro, acima exposta. Por exemplo, Francisco de
quer no Direito Penal brasileiro, encon- Assis Toledo, coordenador da reforma pe-
tra-se um certo consenso nesta definição, nal de 1984, definiu o Direito Penal como
que formalmente se conserva através dos a “parte do Ordenamento Jurídico que
tempos. estabelece e define o fato-crime, dispõe
No tocante ao Direito estrangeiro, sobre quem deva por ele responder e, por
não se pode fechar os olhos à contribuição fim, fixa as penas e as medidas de seguran-
vinda da Alemanha, que influenciou gran- ça que devam ser aplicadas”.7
demente, boa parte dos sistemas jurídicos- A substância desta definição desvela
penais do ocidente, aí incluído o sistema o primeiro aspecto mencionado no início
brasileiro. Para Franz von Liszt, autor de do presente texto, qual seja: a necessidade
obras de referência datadas do final do sé- de conceituar-se o Direito Penal a partir
culo XIX e início do século XX, o Direito dos institutos que formam sua essência.
Penal é “o conjunto de normas estatais que A partir da definição de Direito Penal
associam ao crime enquanto tipo penal a chega-se à definição de Dogmática Penal.
pena como sua conseqüência legítima”.2 Esta última é o discurso e a argumentação
Na explicação de sua definição, von Liszt que se fazem a partir do próprio Direito
integra a este conceito a medida de segu- Penal e dos seus elementos constitutivos.
rança3. Não é incorreto afirmar-se que a Dogmáti-
No fim da primeira metade do século ca Penal é um método. Explique-se: o mé-
XX, Edmund Mezger, outro autor de refe- todo é o caminho para a investigação de um
rência na construção do conceito de Direi- objeto, constituído de cânones para a in-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


34 Cláudio Brandão

vestigação, conhecimento, interpretação e como também em harmonia com a realida-


crítica sobre o dito objeto. Pois bem, como de histórico-sócio-cultural do local que a
os institutos essenciais do próprio Direito recebe. Quando ocorre essa dupla relação
Penal e de sua Dogmática (crime, pena e de pertinência, dá-se a utilização crítica da
medida de segurança) são cânones para o dogmática comparada.
conhecimento da criminalidade, a citada Conforme dito, não se pode chegar à
Dogmática Penal pode também ser enca- correta idéia do que é o Direito Penal nem
rada como um método de conhecimento da dogmática penal sem a análise da sig-
daquela8. Assim, a dogmática “é uma ela- nificação dos institutos adiante menciona-
boração intelectual que se oferece ao poder dos (crime, pena e medida de segurança)
judiciário [e a todos os operadores do Di- perante o próprio Direito. Isto significa
reito] como um projeto de jurisprudência que a definição anteriormente dada, por
coerente e não contraditória, adequada às si só, muito pouco diz sobre a substância
leis vigentes”.9 Enquanto método, no dizer do conceito de Direito Penal. Os elemen-
de Zaffaroni, a dogmática procura fazer tos que formam o conceito dado, portanto,
previsíveis as decisões judiciais. somente podem revelar a verdadeira face
A dogmática penal, diferentemen- do Direito Penal se compreendidos de uma
te do Direito Penal, não se restringe a um ótica que transcende o formalismo da nor-
Estado determinado, mas tem um caráter ma, que – conforme se demonstrou – cria
universal. Recorde-se, ainda, que as leis pe- aqueles institutos. Dita ótica transcendente
nais estatais somente começaram a existir é a perspectiva política.10
a partir do século XIX, porque o Princípio
da Legalidade penal somente foi formulado 2.2. Significado político da definição de
no fim da Idade Moderna. Os institutos da Direito Penal.
dogmática penal (antijuridicidade, legítima
defesa, erro etc.) estão presentes em todos É subjacente à idéia de Direito Penal
os sistemas jurídicos ocidentais; o que di- a idéia de violência. Registre-se, inicial-
fere entre os sistemas, portanto, não são os mente, que o próprio senso comum já as-
institutos, mas a solução jurídica para a sua socia a ação criminosa à idéia de violência,
aplicação, que é variável segundo a lei de que se realiza de várias formas, tais como
cada país. Com efeito, uma situação reco- em homicídios, lesões corporais, estupros,
nhecida como legítima defesa no Brasil, por roubos.
exemplo, pode não ser reconhecida como Na seara penal propriamente dita, vê-
tal na Argentina; se em ambos os países há se que na elaboração conceitual de muitos
a dita legítima defesa, a aplicação dela po- crimes está presente o conceito de violên-
derá variar, pois dependerá dos requisitos cia física, que traduz a mais grave forma
das suas respectivas leis penais. de apresentação da referenciada violência.
Entretanto, a aplicação da dogmática Veja-se, por exemplo, o crime de constran-
penal comparada não pode ser feita de for- gimento ilegal, capitulado no art. 146 do
ma acrítica, através do simples encaixe de Código Penal: “Constranger alguém, me-
um conceito estrangeiro em um determina- diante violência ou grave ameaça, ou de-
do ordenamento. Ao contrário, a dogmática pois de haver reduzido, por qualquer outro
comparada deve sempre ser invocada com meio, a capacidade de resistência, a não
a devida atenção acerca da sua pertinên- fazer o que a lei permite, ou a fazer o que
cia com o ordenamento normativo-penal, ela não manda”. (Grifei)

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 35

Em outros delitos, ainda, a idéia de Neste sentido, o Direito Penal con-


violência está implícita, como, v.g., no ho- cretiza a face violenta do Estado, porque
micídio. ele monopoliza a aplicação da violência
Deste modo, o uso de uma energia da pena. Mas a sanção própria do Direi-
física contra um ser humano, capaz de al- to Penal (Pena) não será somente a mais
terar a sua conformação anatômica, capaz gravosa sanção que o Estado pode impor,
de danificar sua saúde ou, até mesmo, hábil o seu significado vai muito mais além. Na
para lhe ceifar a vida, é presente em muitos verdade, a possibilidade de aplicar a pena
dos crimes previstos pelo Direito Penal. é condição de vigência do próprio Direito,
Mas a presença da violência no nos- porque Direito sem pena é Direito sem co-
so ramo do Direito vai muito mais além ercitividade, é um Direito que não pode se
do crime. A pena, que é a conseqüência do utilizar de força em face de seus súditos,
crime, também é uma manifestação de vio- para efetivar os seus comandos. Sem pena,
lência. No ordenamento jurídico brasileiro, portanto, o Direito se transforma em um
existem as penas de morte (somente para mero conselho. Consoante mostra a expe-
os crimes militares próprios em tempo de riência, o Direito é, por sua vez, condição
guerra), de privação de liberdade, de res- de existência do próprio Estado, assim é
trição de direitos e de multa. O fato é que também a pena uma condição para a exis-
quaisquer destas penas atingem os bens tência do próprio Estado, “por isso mesmo
jurídicos protegidos pelo Direito Penal. Se existe entre pena e Estado, histórica e juri-
pelo crime de homicídio (art. 121 do Códi- dicamente, a mais íntima ligação. Ou antes
go Penal) incrimina-se a produção da mor- (...), Estado, Direito e pena são completa-
te de alguém, pela pena de morte também mente inseparáveis um do outro”12
se mata alguém; se pelo crime de seqüestro À luz do exposto, o Direito Penal
(art. 148 do Código Penal) incrimina-se a tem uma inegável face política, porque ele
violação da liberdade de locomoção de concretiza o uso estatal da violência. É o
uma pessoa, pela pena de privação de li- multi referido Direito Penal o mais sensí-
berdade se viola esta mesma liberdade; se vel termômetro para aferir a feição liberal
pelo crime de furto (art. 155 do Código Pe- ou totalitária de um Estado13, a saber: caso
nal) incrimina-se a violação do patrimônio a violência da pena seja utilizada pelo Es-
de alguém, pela pena de multa também se tado sem limites, sem respeito à dignidade
viola o patrimônio de uma pessoa. É por da pessoa humana, estaremos diante de um
isso que Carnelutti já afirmava que, na re- Estado totalitário, ou ao invés, se a violên-
lação de custo e benefício, crime e pena cia estatal for exercida dentro de limites
são a mesma coisa, são formas de produzir determinados pelo Direito, aí se guardando
um dano11. Portanto, a pena, assim como o o respeito à dignidade da pessoa humana,
crime, também é uma forma de manifes- estamos diante de um Estado Democrático
tação da violência. Todavia, a pena é uma de Direito. Por isso, já asseverou Bustos
reação, que somente se imputa em face da Ramírez que “a justiça criminal, por ser a
realização prévia de um crime; por isso o concreção da essência opressiva do Esta-
Estado, através do Direito Penal, a qualifi- do, é um indicador sumamente sensível no
ca como legítima, já que ela será uma con- reflexo das características do sistema polí-
seqüência em face do cometimento de uma tico-social imperante”.14
violência prévia – que é o crime – por parte Isto posto, o conceito de Direito
do agente que a sofre. Penal tem um duplo viés: um dogmático

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


36 Cláudio Brandão

e outro político. Atualmente, é recorrente Direito Subjetivo como duas faces de uma
falar-se da crise do Direito Penal. A preten- mesma moeda, sendo apenas pontos de
sa crise decorre da separação destes dois vista oriundos do mesmo fenômeno.
aspectos, isto é, a dogmática nua, despida Na seara penal, a distinção entre Di-
de sua significação traduzida no poder vio- reito Objetivo e Direito Subjetivo ressoou
lento do Estado, conduz a um autismo ju- de uma forma muito premente, inician-
rídico, que a encerra num mundo próprio, do-se já no século XIX. Identificava-se o
alheio à realidade dos fatos. Neste sentido, Direito Penal em sentido objetivo como a
diz Zaffaroni que “as mais perigosas com- norma penal e o Direito Penal em sentido
binações tem lugar entre fenômenos de subjetivo como o Direito do Estado de pu-
alienação técnica dos políticos com outros nir, chamado de Jus Puniendi.
de alienação política dos técnicos, pois Como dito, o Direito Penal em sen-
geram um vazio que permitem dar forma tido objetivo seria conceituado a partir da
técnica a qualquer discurso político”.15 norma. É definido como “um conjunto de
normas jurídicas que têm por objeto a de-
3. Direito Penal Objetivo e Subjetivo. terminação das infrações de natureza penal
Crítica da viabilidade da distinção. e suas respectivas sanções – penas e medi-
das de seguranças”.16
A divisão do Direito em Direito Ob- É correto afirmar-se que, desde o iní-
jetivo e Direito Subjetivo foi cunhada pelo cio do século XIX, encontra-se na Dogmá-
Positivismo Jurídico. Sua origem se dá, tica Penal referência à idéia de Direito Sub-
mais precisamente, na Alemanha, no decor- jetivo. Tal afirmativa pode ser comprovada
rer do século XIX. Nesta época, o Direito pela obra de Anselm von Feuerbach, que
naquele país gravitava em torno do Direito definia o crime como uma injúria prevista
Romano. Com efeito, o Digesto, também por uma lei penal, que se consubstancia-
chamado de Pandectas, originou a Esco- va numa ação violadora do direito alheio,
la dos Pandectistas e nela, pelas mãos de proibida mediante uma lei penal17.
Windscheid, encetou-se a dicotomia Direi- Segundo Feuerbach, o “crime é, no
to Objetivo e Direito Subjetivo. Não é sem mais amplo sentido, uma injúria contida
razão que a dicotomia em análise começou em uma lei penal, ou uma ação contrária
pelas mãos dos pandectistas. O Digesto ro- ao Direito de outro, cominada numa lei
mano recorreu com freqüência ao conceito penal”.18 Os crimes são sempre lesões ao
de facultas agendi, isto é, a faculdade de Direito, por exemplo, “a lesão do direito à
agir, que norteava a regulação das relações vida constitui o homicídio”.19
privadas. Foi a partir deste conceito que Deste modo, o crime não é somente
Windscheid definiu o Direito Objetivo, conceituado a partir de uma ofensa à lei pe-
que seria a norma, e o Direito Subjetivo, nal, já que para a sua existência será necessá-
que seria o poder da vontade de realizar o ria também a violação de um direito alheio,
comando da norma. Outro pandectista a isto é, a violação do Direito Subjetivo.
procurar precisar o conteúdo dos conceitos Todavia, apesar de Feuerbach vincu-
de Direito Objetivo e de Direito Subjetivo lar o conceito de crime ao conceito de vio-
foi Jhering, para quem enquanto o Direi- lação do Direito Subjetivo, não podemos
to Objetivo é a norma, o Direito Subjetivo afirmar que ele criou o conceito de Direito
é o interesse juridicamente protegido. No Penal Subjetivo. Isto se dá porque o con-
século XX, o positivismo normativo de ceito de Direito Penal Subjetivo é muito
Kelsen identificou o Direito Objetivo e o mais amplo que o próprio conceito de cri-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 37

me. Este último é o “direito que tem o Es- essa crítica, aos estudos que envolvem o
tado a castigar – jus puniendi –, impondo chamado Direito Alternativo.
as sanções estabelecidas pela norma penal, Mas não é este o fundamento da ine-
àqueles que tenham infringido os preceitos xistência desta dicotomia no Direito Penal.
da mesma”.20 Na verdade, não se pode falar em
O conceito de Direito Penal Subjeti- Direito Penal em sentido Subjetivo por-
vo foi desenvolvido por Karl Binding, que que não há o direito do Estado de punir
se utiliza do conceito de norma como co- ninguém com a retirada dos direitos fun-
mando de conduta extraído da lei para for- damentais à vida, à liberdade e ao patri-
mular um sistema geral acerca das mesmas mônio. Seria uma contradição reconhecer
e suas violações. É das normas que surge o o direito subjetivo do Estado de violar di-
Direito de Punir do Estado, isto é, o Direito reitos subjetivos constitucionais do sujeito.
Penal subjetivo. O que existe é, isto sim, um dever de pu-
No panorama atual, alguns penalistas nir em face do cometimento de um crime
ainda recorrem à dicotomia Direito Penal e todo dever supõe requisitos que tornam
Objetivo e Direito Penal Subjetivo. Mir obrigatória alguma prestação. O conceito
Puig, grande jurista espanhol, por exem- de Direito Subjetivo tem como elemento
plo, utiliza-se da noção de Direito Penal essencial a faculdade de dispor do deste
Objetivo para o estudo da norma penal, e direito, que é precisamente o que os roma-
do Direito Penal Subjetivo para a análise nos falavam: a facultas agendi, a faculdade
do Direito de castigar do Estado (Jus Pu- de agir. Por ter o Estado o dever de aplicar
niendi) que seria o Direito de criar e apli- a pena quando os seus pressupostos estive-
car o Direito Penal objetivo21. Neste últi- rem configurados, não há que se falar em
mo conceito, Mir Puig enfrenta o escorço Direito Penal Subjetivo. Com efeito, o de-
doutrinário acerca dos limites ao poder de ver de agir é conceitualmente incompatível
punir do Estado e seus limites22. Tais limi- com a essência do multi referido conceito
tes são de várias ordens e têm sempre, na de Direito Subjetivo.
substância, um fundamento constitucional, Outrossim, conclua-se afirmando que
traduzindo-se nos Princípios que limitam não existe uma utilidade prática desta dis-
a atividade punitiva23. Todavia os princí- tinção burilada no século XIX no estágio
pios constitucionais limitadores da ativi- atual da ciência penal. Isto se dá porque o
dade punitiva, deve-se consignar aqui, são estudo dos limites à aplicação da pena por
de extraordinária importância no sistema parte do Estado se faz na seara dos Prin-
de dogmática penal, devendo os mesmos cípios do Direito Penal e não no pretenso
serem cuidadosamente tratados no estudo
Direito Penal Subjetivo. Aceitar-se a con-
desta disciplina, mas eles não se situam no
tinuidade hodierna dessa dicotomia é assi-
campo do Direito Penal Subjetivo.
milar de modo acrítico o panorama penal
Não é viável, em uma interpretação
de dois séculos atrás, que possuem pontos
constitucional do Direito Penal, a recor-
de partida diferentes daqueles utilizados na
rência à dicotomia Direito Objetivo versus
dogmática contemporânea.
Direito Subjetivo. De início, registre-se
que, no panorama hodierno, do pós-positi- 4. Objeto do Direito Penal
vismo, a própria distinção entre eles é bas-
tante criticada, por conta da constatação de Segundo José Cerezo Mir, “o Direito
manifestações do Direito fora do Estado. Penal é um setor do ordenamento jurídico,
Refere-se o pós-positivismo, para efetuar segundo a opinião dominante na dogmáti-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


38 Cláudio Brandão

ca moderna, ao qual se lhe incumbe a tare- Todo bem ou valor que existe no
fa de proteger os bens vitais fundamentais mundo fático-social, cabe aqui ressaltar,
do indivíduo e da comunidade. Esses bens somente se converte em bem jurídico a
são elevados pela proteção das normas do partir de uma lei penal, que define a sua
Direito Penal à categoria de bens jurídicos. violação e comina a respectiva pena. Isto
(...) O substrato destes bens jurídicos pode posto, somente o legislador pode consti-
ser muito diverso. Pode ser, como assinala tuir um bem jurídico, daí se infere que o
Welzel, um objeto psíquico-físico (a vida, surgimento ou a manutenção de um bem
a integridade corporal), um objeto espiri- jurídico no Direito Penal é uma eleição po-
tual-ideal (a honra), uma situação real (a lítica do citado legislador. O bem jurídico,
paz do domicílio), uma relação social (o assim, corrobora a face política do Direito
matrimônio, o parentesco) ou uma relação Penal.
jurídica (a propriedade). Bem jurídico é Todavia, deve-se concluir com este
todo bem, situação ou relação desejado e alerta, a tutela de bens jurídicos não pode
protegido pelo Direito”.24 ser realizada de qualquer modo e a qual-
Ao conceituar o Direito Penal a partir quer preço. Em primeiro lugar, essa tutela
de sua missão, Cerezo Mir revela o próprio somente poderá ser realizada e considera-
objeto do referido Direito Penal. da como legítima se forem observados os
Quando se procura precisar o objeto requisitos impostos pelo Estado de Direito
do Direito punitivo, devemos aqui consig- (v.g. Legalidade. Culpabilidade, Interven-
nar, coloca-se o alicerce que permite justi- ção Mínima). Em segundo lugar, porque a
ficar racionalmente o poder de punir e, em pena retira direitos constitucionais da pes-
conseqüência dessa justificação, o Direito soa humana, somente haverá proporcio-
Penal tem condições de se legitimar. nalidade se o bem jurídico tutelado tiver
Toda norma penal que institui um cri- guarida constitucional, isto é, se se situar
me tutela um bem. Se observarmos a estru- entre aqueles bens protegidos pela Carta
tura do nosso Código Penal, veremos que Magna, quer sejam de natureza individual
todos os crimes estão gravitando em torno (vida, patrimônio etc.) ou supra-individual
de um bem, por exemplos: o homicídio (art. (meio-ambiente, ordem econômica etc.)
121), o induzimento, instigação ou auxílio ao
5. Método do Direito Penal
suicídio (art. 122), o infanticídio (art.123) e o
aborto (art. 124 usque 128) estão reunidos em 5.1. Escorço histórico sobre o Método Penal.
função do bem vida. Com efeito, o título que
os agrupa (Título I do Código Penal) é o dos Por método se entende o caminho
“Crimes contra a Vida”. No mesmo espeque para a investigação de um objeto. É, pois,
do exemplo dado, os demais crimes vigentes o método, o instrumental que se traduz nos
no nosso ordenamento também se agrupam cânones para possibilitar as investigações
em torno de bens, descritos nos títulos e/ou das evidências apreendidas sobre algum
capítulos do Código ou das leis penais espar- objeto e a conseqüente formulação de
sas. Pois bem, bem jurídico é o nome técnico enunciados que tornem o referido objeto
dado a esses ditos bens, protegidos através da conhecido.
lei penal, que comina uma pena em face de O Direito Penal que rompe com o ar-
sua violação. bítrio e se preocupa com a pessoa humana
O objeto do Direito Penal é, pois, a é relativamente recente. Foi somente com
tutela de bens jurídicos. o iluminismo, mais precisamente a partir

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 39

da obra de Beccaria, na segunda metade do acomodar situações desagradáveis aos de-


século XVIII, que foi aventada de forma tentores do poder político, protegendo o
sistemática a necessidade de limitar o jus homem do próprio Direito Penal.
puniendi do Estado; o primeiro instituto Como dito, a legalidade foi formula-
que o milanês apresentou para que tal de- da à época do iluminismo do século XVIII,
siderato fosse alcançado foi o Princípio da sendo o método defendido à essa época,
Legalidade25. No início do século XIX, em para o Direito Penal, o silogístico. Este era
1801, Anselm von Feuerbach sistematizou traduzido num processo de subsunção ló-
o Princípio da Legalidade, com a formula- gica onde a lei era a premissa maior, o caso
ção da teoria da coação psicológica, segun- era a premissa menor e a conclusão do pro-
do a qual a tutela de interesses, que é o fim cesso seria a adequação do caso à lei.
do Direito Penal, deve ser realizada a partir Tal método, que por força do positi-
de uma coação psicológica, feita a partir vismo jurídico, foi muito presente no sécu-
da publicização da pena que será imputada lo XIX e na primeira metade do século XX,
a cada crime, o que acarretaria a retração apresentou uma significação altamente be-
das condutas que violassem os interesses néfica no início de sua aplicação. A histó-
protegidos pelo Direito Penal. Como o ins- ria mostra inúmeros exemplos através dos
trumento adequado para dispensar tal co- quais se pode comprovar a aplicação do
nhecimento é a lei, esta última ocupará um Direito Penal como um instrumento para
papel exponencial neste ramo do Direito, acomodar as situações desagradáveis aos
pois não haverá crime sem lei (nullum cri- detentores do poder político, traduzindo-se
men sine lege), pena sem crime (nulla po- num instrumento de arbítrio estatal. Com
ena sine crime), e nem haverá crime sem a o silogismo, o que não estivesse previsto
tutela legal de um interesse (nullum crimen como crime na lei seria penalmente indi-
sine poena legali)26. Tais máximas foram ferente, não se podendo, destarte, aplicar-
consubstanciadas no brocárdio Nullum se retroativamente o Direito Penal, nem a
Crimen Nulla Poena Sine Lege. analogia para incriminar condutas.
Nesse panorama pode-se compre- Isto posto, a ideologia da lei e o mé-
ender o método inicialmente apregoado todo silogístico representaram a primeira
pelo iluminismo, onde a lei e a legalidade garantia do homem em face do poder de
tinham uma particular significação. Segun- punir. Dita garantia constitui-se, até hoje,
do Engisch: na base do Direito Penal liberal.
“Houve um tempo em que tranqüila- Deve-se aqui, antes de tudo, trazer-se
mente se assentou na idéia de que deve- à colação a advertência de Bettiol e Man-
ria ser possível uma clareza e segurança tovani sobre a conceituação anteriormente
jurídicas absolutas através de normas ri- posta. Sob a denominação Direito Penal
gorosamente elaboradas, e especialmente liberal não se encontram um conjunto ho-
garantir uma absoluta univocidade a todas mogêneo de doutrinas, mas sob um certo
as decisões judiciais e a todos os atos ad- aspecto se encontram mesmo doutrinas
ministractivos. Esse tempo foi o do Ilumi- contrastantes entre si, que são reunidas
nismo.”27 por possuírem um ponto em comum: a
Com efeito, a legalidade era e ainda limitação ao poder de punir do Estado.
é a mais importante limitação ao poder de Em contraposição ao Direito Penal liberal
punir do Estado. Ela evita que o Direito encontra-se o Direito Penal do terror, que
Penal seja aplicado retroativamente para tem por característica a não limitação do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


40 Cláudio Brandão

jus puniendi estatal e a não garantia, via de deveriam responder por casa de prostitui-
conseqüência, do homem em face do poder ção, diferente é a aplicação hodierna do
de punir.28 direito penal. O Tribunal de Justiça de São
Como sabido, desde a Declaração Paulo, por exemplo, tem decisão que não
Universal dos Direitos do Homem e do Ci- reconhece o crime em tela – no caso dos
dadão, a legalidade dos crimes de das pe- motéis – dentre outras coisas porque não se
nas é uma garantia fundamental, inserida pode fechar os olhos para a drástica modi-
em quase todas as constituições democrá- ficação dos costumes porque passou a so-
ticas ocidentais, donde se encontra a Cons- ciedade de 1940, época da lei, até os dias
tituição Federal de 1988 brasileira. Essa atuais29. Por óbvio, para dar tal decisão,
garantia fundamental traduzida na multi não se utilizou o silogismo, que conduziria
referida legalidade é a maior característica inevitavelmente à condenação.
do Direito Penal liberal. Com efeito. Com a crise do positivis-
Por conseguinte, infere-se que o si- mo, o seu método também entrou em crise
logismo legal integra o método do Direito por revelar-se insuficiente.
Penal liberal, posto que é através dele que Foi nos anos cinqüenta do século
se realiza a principal limitação do poder de vinte que um jusfilósofo alemão, chamado
punir, assegurando-se ao homem um ante- Teodore Viehweg, chama-nos atenção para
paro frente ao poder do Estado. a tópica. Tópica é a compreensão dos fa-
Todavia, a compreensão silogística, tos. Segundo a tópica, a decisão tem que
desde a crise do positivismo, mostrou-se ser tomada a partir de uma interpretação
como um elemento necessário, mas não universal da totalidade do acontecer, ou
suficiente, para se apreender o método do seja, de uma história compreendida.
Direito Penal. Para o método tópico, deve-se fazer
É que no Direito Penal muitos casos um processo semelhante ao dos romanos
se resolvem até mesmo contra a lei, o que para chegar-se a decisão jurídica: os roma-
comprova a insuficiência do método pro- nos consideravam o Direito uma arte, por-
posto. Por exemplo, traga-se à colação o que o pretor em caso concreto construiria
crime do art. 229 do Código Penal. Dito a decisão boa e justa. É essa a definição
crime – casa de prostituição – tipifica a de Celso: Ius ars boni et aequi. A tópica
conduta de manter por conta própria ou defende, pois, que a decisão deve brotar
de terceiro local especialmente destinado sempre do caso em si.
à manutenção de atos libidinosos, haja ou No último capítulo de sua obra,
não intuito de lucro, haja ou não mediação Viehweg aponta o papel fundamental da
direta de proprietário ou gerente. Ninguém retórica para a sua teoria. É a retórica que
que viva na nossa sociedade questiona que desenvolve a tópica, na medida que ela
os estabelecimentos conhecidos como mo- justifica a decisão. Por óbvio, os sinais
téis existem para proporcionar a realização lingüísticos são fundamentais para a argu-
de atos de natureza sexual, e que nesses mentação em face do caso, mas a retórica
locais existe, ademais, tanto o intuito de não é formada somente por eles, já que
lucro quanto a mediação de proprietário ela também leva em conta a semântica e
ou gerente. Se na década de setenta do sé- a pragmática. Por conseguinte, a retórica
culo passado, o Supremo Tribunal Federal que constrói a decisão a partir do caso se
decidiu, pelo método da subsunção lógica, assentará em três pilares: a sintaxe, a se-
que as pessoas que mantinham os motéis mântica e a pragmática.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 41

“Na sintaxe: se diz a relação dos si- tibilidade entre elas. Com efeito, são pos-
nais com os outros sinais, semântica: a re- síveis decisões não baseadas no silogismo,
lação dos sinais com os objetos, onde sua pela importância que deve ser dispensada
designação é afirmada, e a pragmática: a ao Homem. Isto, em verdade, representa o
relação situacional (der situativ Zusamme- cumprimento do Princípio Constitucional
nhang) onde os sinais são usados entre os da Dignidade da Pessoa Humana, porque
interessados”.30 só se valoriza o homem a partir da com-
preensão do caso, que traduz a sua história
5.2. O método atual: o pós-positivismo real, que é única e irrepetível.
Vejamos um exemplo da decisão a
Entretanto, a tópica em si mesma é partir do caso, isto é, da tópica, que ser-
tão radical quanto o positivismo. A ideo- ve para aumentar o âmbito de liberdade.
logia da lei trouxe um grande benefício à Como sabido, a lei somente prevê duas
aplicação do direito, conforme declinado causas legais de exclusão da culpabilida-
acima, e não pode ser simplesmente afas- de: obediência hierárquica e coação mo-
tada em favor da análise do caso concreto. ral irresistível (art. 22 do Código Penal).
Nesse sentido, a filosofia pós-positi- Entretanto, não se nega a existência das
vista busca um equilíbrio entre o silogismo causas supralegais de inexigibilidade de
e a tópica, reconhecendo que o Direito ad- outra conduta, que por óbvio não estão ba-
mite uma superposição entre duas esferas: seadas na lei, para afastar a culpabilidade
a esfera da compreensão da norma, de um do agente. Esta referida exclusão se realiza
lado, e a esfera da compreensão do fato, com base em um julgamento das circuns-
de outro, levadas a cabo pelo ser histori- tâncias do caso concreto que excluem a
camente presente, pelo procedimento ar- censurabilidade do autor da conduta, reco-
gumentativo. Esse método é chamado de nhecendo-se que elas afetaram a liberdade
tópico-hemenêutico. do agente entre se comportar conforme ou
Usa-se, portanto, no método penal, a contrário ao Direito. É o caso da jurispru-
lei e a compreensão do caso. dência abaixo transcrita:
A lei é o limite negativo, isto é, não “PENAL E CONSTITUCIONAL.
se admite a incriminação do que está fora NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRI-
dela, já que a mesma tem por função dar BUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART. 95,
a garantia do homem em face do poder “D”, § 1º, DA LEI 8.212/91. MATERIA-
de punir, conforme se apregoava desde o LIDADE COMPROVADA. FALÊNCIA
iluminismo. O limite negativo do método DA EMPRESA. INEXIGIBILIDADE DE
penal o harmoniza com o Princípio Consti- OUTRA CONDUTA.
tucional da Legalidade. I - Pratica o delito previsto no art. 95,
O caso dá o limite positivo, poden- “d”, da Lei 8.212/91 (hoje com redação
do ser utilizado como um meio para jus- dada pela Lei 9.983/00, que inseriu o art.
tificar uma decisão que aumente o âmbito 168-A no Código Penal Brasileiro), o em-
da liberdade, isto é, que seja pró-libertatis. pregador que desconta contribuição previ-
Como a finalidade da legalidade foi garan- denciária de seus empregados e deixa de
tir a liberdade do homem em face do po- recolhê-la aos cofres da Previdência.
der de punir, conforme discorrido acima, II - Dolo manifestado na vontade li-
a tópica é teleologicamente conforme a le- vre e consciente de não repassar as con-
galidade, não havendo nenhuma incompa- tribuições recolhidas dos contribuintes à

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


42 Cláudio Brandão

Previdência Social. Desnecessária a de- a de interpretação constitucional. O primeiro


monstração de dolo específico. O animus viés – aplicação constitucional – condiciona
rem sibi habendi é exigido na apropriação o objeto do Direito Penal, o segundo – inter-
indébita comum, mas não o é na apropria- pretação constitucional, o método.
ção indébita previdenciária. O objeto do Direito Penal é a prote-
III - A existência de provas cabais ção de bens jurídicos. Toda lei penal tutela
quanto à alegada dificuldade econômica um bem, que ela própria aponta. Os cri-
da empresa administrada pelos acusados, mes no nosso ordenamento jurídico estão
culminando com a decretação de falência, reunidos e sistematizados sob epígrafes,
possibilita o reconhecimento de inexigibi- as quais constituem os títulos e os capítu-
lidade de conduta diversa e justifica a ex- los tanto do Código Penal, quanto das leis
clusão da culpabilidade. especiais (Por exemplo, na epígrafe: “Cri-
IV - Apelação do Ministério Público mes contra a honra”, que está no capítulo
Federal desprovida.” V do Código Penal, reúnem-se os delitos
Relator: Des. Fed. CÂNDIDO de calúnia, difamação e injúria; todos ele
RIBEIRO. TRF 1ª Reg. Ap. Crim. nº representam uma violação ao bem jurídi-
199838000079575. Tereira Turma. DJ co honra, expresso na epígrafe). Pois bem,
18/3/2005 Pág.: 18. quando o legislador (leia-se, o político) ele-
Assim, o método do Direito Penal re- ge um bem jurídico ele efetua uma ativida-
side na síntese entre os Princípios Consti- de de natureza política, mas essa referida
tucionais da Legalidade, o qual norteia seu atividade política precisa ter também um
limite negativo e da Dignidade da Pessoa lado técnico: a coerência finalística e siste-
Humana, que norteia seu limite positivo. mática com o texto constitucional. Isto se
dá porque, se a pena atinge bens jurídicos
6. Síntese conclusiva
constitucionalmente assegurados (vida,
Porque o Direito Penal encerra em si liberdade e patrimônio), os bens jurídicos
o uso estatal da violência, sua compreen- protegidos através da definição legal do
são somente pode ser efetuada através da crime também precisarão ter um substrato
união de seus elementos técnicos-dogmá- constitucional. Caso contrário, a lei penal
ticos com o seu significado político. Com violará os ditames da Carta Política, mor-
efeito, o face política do Direito Penal aflo- mente o Princípio da Proporcionalidade.
ra tão fortemente que ele é apontado como De outro lado, o método do Direito
o mais sensível termômetro da feição polí- Penal conformará a aplicação das normas
tica do próprio Estado, isto é, se a violên- daquele Direito no caso concreto. Com
cia da pena for aplicada de forma ilimita- efeito, quando o aplicador das normas, o
da, sem resguardar a Dignidade da Pessoa juiz (leia-se, o técnico) realiza a decisão
Humana, estaremos diante de um Estado do caso, ele também realiza uma ativida-
arbitrário; de outro lado, se a violência da de política. Por isso o método de aplica-
pena for aplicada dentro de parâmetros de ção da norma penal não pode ser resumido
proporcionalidade (legalidade, culpabili- em um silogismo, onde a lei é a premissa
dade etc), de modo que se respeite a dita maior, o caso é a premissa menor e a sen-
Dignidade da Pessoa Humana, estar-se-á tença é a subsunção do caso à lei. Tal as-
ante a um Estado democrático. sertiva pode ser comprovada com relativa
Deste modo, não se pode desvincular o facilidade: quem poderá sustentar serem
Direito Penal de um duplo viés: a aplicação e as causas supra legais inexigibilidade de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 43

outra conduta, ou do reconhecimento da de Janeiro:Record/Governo de Sergipe. 1991


exclusão da antijuridicidade pelo consen- BETTIOL, Guissepe. MANTOVANNI, Lucia-
timento do ofendido, baseadas em silogis- no Petoelo. Diritto Penale. Pádua: CEDAM.
mos? Muito ao contrário, esses exemplos 1986.
BONECASA, Cesar. Marques de Beccaria.
afastam a lei – que fatalmente conduziria à
Tratado de los Delitos e de las Penas. Buenos
conclusão do caso a aplicação da pena – e Aires: Arengreen. 1945.
decidem o caso pela tópica. Esta última (a BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito
tópica) encontra sua legitimidade positiva Penal.Rio de Janeiro: Forense. 2002.
nos princípios constitucionais. O método BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Contol Social y
penal, assim, encontra na lei o seu sentido Derecho Penal. Barcelona:PPU. 1987.
negativo (não se pode punir fora da lei) e CARNELUTTI, Francesco. El Problema de la
no caso seu limite positivo (o caso pode Pena. Buenos Aires: Europa América. 1947.
ensejar uma argumentação racional para o CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal
Español. Madrid: Tecnos. 1993.
afastamento da lei, através de fundamen-
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento
tação constitucional). Este método repre- Jurídico.Lisboa:Calouste Gulbenkian. 2001.
senta, pois, a síntese dos Princípios Cons- FEUERBACH, Anselm von. Tratado de Dere-
titucionais da Legalidade e Dignidade da cho Penal. Buenos Aires: Hammurabi. 1989.
Pessoa Humana. FRANCO, Alberto Silva et alli. Código Penal
O fenômeno da alienação técnica dos e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo:
políticos somado à alienação política dos RT. 1993.
técnicos conduz à falta de norte do Direito HERNANDEZ, Cesar Camargo. Introducción
Penal. Com esse fenômeno, o Direito Penal al estudio del derecho penal. Barcelona: Bos-
ch. 1960.
se assemelha a um traje de arlequim, já que
JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des
suas normas nunca guardam harmonia, ora Strafrecht. Berlin: Duncker u. Humblot. 1988.
existindo leis extremamente severas, ora LISZT, Franz von. Lehrbuch des Strafrecht.
extremamente brandas, sem que se atinja Berlim und Lipzig: VWV. 1922.
um ponto de equilíbrio. A sua aplicação MEZGER, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbu-
concreta, por outra parte, fica assemelhada ch. Berlin und Munich:Duncker und Humblot.
a um lance de sorte, porque os julgamentos 1949.
variarão sempre entre a técnica autista do MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte
silogismo nu, vinculada que está à ideolo- Geral. Barcelona: Edição do Autor. 1998.
OUVIÑA, Guillermo. “Estado Constitucional
gia do século XVIII, de que a lei pode en-
de Derecho e Derecho Penal”. Teorías Actua-
cerrar em si toda a complexidade humana les en Derecho Penal. Buenos. Aires:Ad-hoc.
na regulação de condutas, ou estarão em 1998.
conformidade com um raciocínio mais ela- ROCCO, Arturo. El objeto Del delito y de la tu-
borado e trabalhoso, que se utiliza da tópi- tela jurídica penal. Contribuición a las teorías
ca e da hermenêutica, tendo a Constituição generales del delito y de la pena. Montevideo
como baliza entre a lei e o caso. – Buenos Aires: BdeF. 2001.
Essa falta de norte, ao que parece, é a TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Bá-
situação do Direito Penal brasileiro. sicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva.
1994.
VIEHWEG, Teodor. Topik und Jurisprudenz.
REFERÊNCIAS München: Beck. 1974.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. En torno de la
BARRETO, Tobias. “Prolegômenos ao Estudo cuestión penal. Montevideo - Buenos Aires:
do Direito de Punir”. Estudos de Direito II. Rio BdeF. 2005.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


44 Cláudio Brandão

NOTAS 12
Barreto, Tobias. “Prolegômenos do Estudo do
Direito Criminal”. Estudos de Direito II. Re-
1
Menezes, Tobias Barreto de. “Prolegômenos cord – Governo de Sergipe: 1991. P.102.
do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Di- 13
Ouviña, Guillermo. “Estado Constitucional
reito II. Record – Governo de Sergipe: 1991. de Derecho e Derecho Penal”. Teorías Actuales
P.102. en Derecho Penal. Buenos Aires:Ad-hoc. 1998.
2
Tradução livre de: „Strafrecht ist der Ingbegri- Pp. 56-57.
ffs derjening saatlichen Rechtgeleln, durch die 14
Bustos Ramírez, Juan. Contol Social y Dere-
an das Verbrechen als Tatbestand die Strafe als cho Penal. Barcelona:PPU. 1987. Pp. 584-585.
Rechtfolge genküpft wird“. Liszt, Franz von. 15
Zaffaroni, Eugenio Raul. En torno de la cues-
Lehrbuch des Strafrecht. Berlim und Lipzig: tión penal. Montevideo - Buenos Aires:BdeF.
VWV. 1922. P. 1. 2005. P.77.
3
Idem. Ibidem. P.1. 16
Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al
4
Tradução livre de: „Strfrecht ist der Inbegri- estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch.
ff der Rechtnormen, welche die Ausübung der 1960. P.9.
staatlichen Strafgewalt reglen, idem sie an das 17
Neste sentido: Rocco, Arturo. El objeto Del
Verbrechen als Voraussetzung die Strafe als Re- delito y de la tutela jurídica penal. Contribui-
chtsfolge knüpfen“. Mezger, Edmund. Strafre- ción a las teorías generales del delito y de la
cht. Ein Lehrbuch. Berlin und Munich:Duncker pena. Montevideo – Buenos Aires: BdeF. 2001.
und Humblot. 1949. P.3. Pp. 29-30.
5
Idem. Ibidem. P.3. 18
Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho
6
Tradução livre de: „Das Strafrecht bestimmt Penal. Buenos Aires:Hammurabi. 1989. P. 64.
welche Zuwiderhandlungen gegen die so- 19
Idem. Ibidem. P. 164.
ziale Ordnung Verbrechen sind, es droht als 20
Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al
Rechtfolge des Verbrechens die Strafe an. estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch.
Aus Anlaβ eines Verbrechens sieht es ferner 1960. P.45.
Maβreglen der Besserung und Sicherung und 21
Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte Ge-
andere Maβnahmen vor.“ Jescheck, Hans-Hein- ral. Barcelona: Edição do Autor. 1998. Pp.7-8.
rich. Lehrbuch des Strafrecht. Berlin: Duncker 22
Segundo Mir Puig, o estudo dos limites ao
u. Humblot. 1988. P.8. poder de punir são feitos no âmbito do Direito
7
Toledo, Francisco de Assis. Princípios Bási- Penal Subjetivo, verbis: “La alussión al Dere-
cos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva. 1994. cho penal em sentido subjetivo será oportuna
P.1. más adelante, cuando se trate de fijar los limites
8
Neste sentido veja-se a obra de Zaffaroni, que há de encontrar el derecho del Estado a in-
Eugenio Raul. En torno de la cuestión penal. tervir mediante normas penales”. Op. Cit. P.8.
Montevideo - Buenos Aires:BdeF. 2005. Pp. 23
Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte
72-73. 77 e ss. General. Op. Cit. Pp. 71 e ss.
9
Idem. Ibidem. P.74. 24
Cerezo Mir, José. Curso de Derecho Penal
10
Brandão, Cláudio. Introdução ao Direito Español. Madrid:Tecnos. 1993. P.15.
Penal.Rio de Janeiro: Forense. 2002. P.43.No
25
Cesar Bonecasa. Marques de Beccaria. Trata-
mesmo sentido veja-se a afirmação de Tobias do de los Delitos e de las Penas. Buenos Aires:
Barreto, o qual modera seu pensamento positi- Arengreen. 1945. P.47.
vista ao escrever que: “A aplicação legislativa
26
Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho
na penalidade é uma pura questão de política Penal. Buenos Aires:Hammurabi. 1989. P.63.
social”. “Prolegômenos do Estudo do Direito
27
Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento
Criminal”. Estudos de Direito II. Record – Go- Jurídico.Lisboa:Calouste Gulbenkian. 2001.
verno de Sergipe: 1991. P.116. P.206.
11
Carnelutti, Francesco. El Problema de la
28
Bettiol, Guissepe. Mantovanni, Luciano Pe-
Pena. Buenos Aires: Europa América. 1947. toelo. Diritto Penale. Pádua: CEDAM. 1986.
P.14. P.20.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL 45

29
AC 98.873. Rel. Des. Luiz Betanho. In: Fran- Zeichen mit Gegensatänden, deren Bezeich-
co, Alberto Silva et alli. Código Penal e sua nung behaupetet wird, und Pragmatik: der
Interpretação Jurisprudencial. São Paulo:RT. situativ Zusammenhang, in dem die Ziechen
1993. P. 2595.
von den Beteiligten jeweils benutzt werden“.
30
Tradução livre de: „ Syntax soll also heiβen:
der Zusammenhang von Zeichen mit anderen Viehweg, Teodor. Topik und Jurisprudenz.
Zeichen, Semantik: der Zusammenhang von München: Beck. 1974. P.111.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


46

TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA


CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA
Economic Theory of Right inside the Democratic
Constitutionality

André Del Negri*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Este trabalho abre espaço para discutir as políticas econômicas adotadas na constitucio-
nalidade democrática brasileira de 1988, a qual tem comprometimento com os direitos fundamen-
tais já acertados no plano constituinte.
Palavras-Chave: Constitucionalidade econômica. Democracia. Direitos fundamentais.

Abstract: This work makes way to discuss the economic policies accepted by the Brazilian de-
mocratic constitution in 1988, which involves well-founded fundamental rights accorded in the
constitutional level.
Key Words: Economic constitution. Democracy. Fundamental rights.

1. Introdução de direitos fundamentais que estabelecerá


a segurança almejada, mas da legitimidade
A Constituição brasileira é, atualmen- obtida pelo processo jurídico de fiscalidade
te, o alvo dos assuntos relativos à econo- incessante pelo discurso da instituição ga-
micidade e, também, objeto de tiranização rantidora do devido processo constitucio-
por parte da Administração Governativa nal e devido processo legislativo em todo o
por desconhecer os princípios elementares espaço-tempo da espacialidade brasileira.
dos estudos jurídicos-econômicos como
forma de garantias constitucionalmente 2. Legalidade e intervenção econômica
fundamentais da vida humana. Daí, a Teo- do Estado.
ria Constitucional do Direito, nos âmbitos Cedo se verificou que os problemas
(vertentes), da economia e da política, for- humanos eram mais nefastos do que se
necer uma rampa de decolagem para novas imaginava. Sabemos hoje, que o sujeito e a
Teorias sobre Constituição Econômica, identidade constitucional (ROSENFELD,
e Direitos Fundamentais, já acertados na 2003: 18) são complexos, pois a experiên-
constitucionalidade democrática de 1988. cia nos mostrou, e é óbvio que bem apren-
A reelaboração dos conceitos de li- demos com os erros. No entanto, essa mes-
quidez e certeza e intervenção do Estado, ma experiência constitucional levou-nos
assumiu novos contornos teóricos sob a a ver a tentativa de racionalização de um
ótica constitucional vigente, porque, no Direito que regulasse um estado de misera-
Estado de Direito Democrático, não é a bilidade social ao lado de uma riqueza com
intervenção em si, ou a liquidez e certeza raiz nos privilégios de nascimento.

* Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. Professor Universitário de Teoria da Constituição e
Direito Constitucional na Universidade de Uberaba. Assessor Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA 47

Vimos à atuação do liberalismo es- visto, a característica essencial desse Esta-


tatal voltada à proteção da propriedade do constitucional era a liberdade, principal-
privada e dos direitos individuais, onde o mente a liberdade econômica, marcada pela
direito político era o direito do proprietário não-intervenção do Estado na economia.
de terras. Assim, apenas a melhor socieda- Com a idéia do laissez-faire, laissez-
de podia participar dos direitos políticos, passez (não havendo essa intervenção), o
o que, aliás, pode ser depreendido, clara- Estado Liberal entrou em crise, com os qua-
mente, na França, em 1791, dros de exploração dos seres humanos como
“Cette élaboration est confiée à une os relatados à época da Revolução Industrial,
assemblée dont les membres sont élus au situação que gerou a pobreza, o descontenta-
suffrage censitaire seuls peuvent prendre mento e o aumento das desigualdades.
part au vote les «citoyens actifs», c’est-à- A este propósito, merece referência a
dire les hommes âgés de plus de vingt-cinq observação de Marx, a respeito da compe-
ans qui paient une contribution directe an- tição livre e igual para todos que, por exato,
nuelle au moins égale à la valeur de trois apontou o capitalismo irrestrito desse perí-
journees de travail dans les dsitrict où ils odo como o fato gerador de uma vida de
habitent. La faculté de voter n’est pas con- desolação e miséria. Em seu aspecto descri-
çue cmme un droit, mais cmme un rôle, tivo, Marx mostra sem dificuldades a indi-
une fonction, que la nation confère à ceux gência de mulheres e crianças como o caso
que les Constituants jugent les plus aptes à vivido por William Wood, (MARX,1976:
l’exercer.” (FAVOREAU, 2002: 449) 327) sem compleição física, 7 anos de ida-
Como resultado, a história das so- de que, ia para o trabalho todos os dias da
ciedades mostra antagonismos de classes, semana, às 6 hora da manhã, e saía às 9 da
e seus pontos de rupturas em que a velha noite; quinze horas de trabalho para uma
ordem jurídica é substituída por uma nova. criança, sem dúvida é uma incrível arro-
Foi assim que França (SIEYÈS, 1988: 32) gância, assim como, também o é, o caso de
ao teorizar acerca da atividade constituinte, Mary Anne Walkley (MARX, 1976: 339),
argumentava que o terceiro estado (gran- que depois de trabalhar, sem descanso, 26
des comerciantes, altos funcionários, la- horas e meia, morreu em conseqüência do
vradores) não deveria mais sustentar a alta excesso de trabalho.
nobreza e nem o alto clero. Daí, as análises Daí que o “século XIX conheceu
sobre revolução e a esperada evolução por desajustamentos e misérias sociais que a
intermédio de uma lei contendo princípios Revolução Industrial agravou e que o Li-
de igualdade e liberdade para todos. beralismo deixou alastrar em proporções
Evidente que o constitucionalismo crescentes e incontroláveis” (MAGA-
no século XIX tinha nítidas fragilidades. A LHÂES, 2000:44). Aqui necessário se faz
proteção da propriedade e a política como uma observação de José Luiz Quadros de
uma instituição para poucos fundamenta- Magalhães, a de que “o Estado Liberal
rem as práticas sociais desse período, em passou a admitir uma sensível mudança
que a liberdade econômica fomenta a livre de postura perante as questões socioeco-
concorrência acarretando, como conseqüên- nômicas”, (MAGALHÂES, 2000: 64) e o
cia, um impulso ao capitalismo o que acele- fato de as convicções serem determinantes
rou o abuso sobre os menos favorecidos e de mudança, é a Lei Sherman, a qual sur-
o surgimento do Estado como instrumento giu em 1890, nos Estados Unidos, como
de opressão política e econômica. Fácil é modelo de legislação anti-truste, visando
compreender por quê. Nesta época, como já combater a concentração econômica.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


48 André Del Negri

É bom lembrar que a Primeira Guer- maior importância que o individual e a so-
ra Mundial funcionou como um divisor de ciedade se fortalece surgindo os primeiros
águas entre o Estado Liberal e o Estado So- delineamentos de um Estado mais presente
cial (Welfare State). O primeiro, como vis- e atuante.
to, abstencionista, o derradeiro, conforme Embora o vigente sistema constitu-
será analisado, socializante e paternalista cional brasileiro acrescente inovações à
incentivado pela Encíclica Rerum Nova- proteção dos direitos dos cidadãos contra
rum do Papa Leão XIII a qual proclamou a administração governativa, está longe de
atenção ao lado social, refutando a idéia haver uma total garantia desses direitos.
de capitalismo selvagem. Como se sabe, o Isso significa que nenhuma das funções
constitucionalismo social acaba criando as (executivo, legislativo e judiciário), no Es-
chamadas Constituições Sociais. “É com tado de Direito Democrático, pode se recu-
a promulgação das Constituições mexica- sar a dar efeito auto-aplicável aos direitos
na, em 1917, e de Weimar em 1919, que fundamentais expressos no art. 5°, § 1° da
as questões econômicas se incorporaram à CB/88.
regulação constitucional, exercendo des- O que parece sempre difícil de-
de então considerável influência sobre a monstrar é que a intervenção do Estado
legislação de outros países”. (AGUILAR, no domínio econômico ainda é preferível
1999: 147). se comparado a um capitalismo irrestri-
Esse novo ordenamento jurídico to. Contudo, poderíamos parafrasear Karl
efetivou-se através de um Estado inter- Popper, (POPPER, 1987: 137) o qual sus-
vencionista, mais atuante e preocupado tentava que não há um argumento decisivo
em estimular o crescimento e desenvolvi- contra o intervencionismo, uma vez que o
mento das inúmeras atividades ligadas às poder do Estado deve sempre permanecer
áreas da saúde, educação, cultura, família como um mal necessário.
e previdência social. O Estado abandonou Não parece convincente o argumento
sua posição de espectador passando a in- de que com a intervenção a liberdade dos
terferir nesses movimentos com uma linha cidadãos não será salvaguardada. Posta em
de crescimento constante na economia, outros termos, a questão é saber se existem
nos empregos e nos impostos arrecada- meios e instituições para fiscalizar a atua-
dos, ocasionando, conseqüentemente, um ção do Estado para que ele não atue como
maior bem-estar à sociedade. Certamente um Estado absoluto, verticalista e, portan-
que o Estado Social, em sua concretude, to, ditatorial. O caminho para compreen-
foi privilégio de poucos países, principal- são é esquecer a “velha pergunta de Platão,
mente de alguns países europeus.
Hegel e Marx: Quem serão os governan-
Diante dessa fase estatal, as leis ela-
tes?”, por uma mais real: Como poderemos
boradas pelos parlamentos estabelecem
domá-los?” (POPPER, 1987: 140).
uma série de direitos sociais mínimos an-
tes ausentes, como, por exemplo, a jornada 3. Sociedade capitalista e o rótulo marxista
máxima de trabalho de oito horas, repouso
semanal remunerado, o amparo à criança Este é um bom momento para assi-
e ao adolescente, dentre outros. Com o nalar uma análise do determinismo eco-
início de uma nova era social, o Estado nômico. No entanto, a melhor maneira de
intervencionista toma corpo e em nome observar possíveis afastamentos teóricos é
da solidariedade substitui-se a individu- saber que “a ciência começa com proble-
alidade. O interesse coletivo passou a ter mas e termina com problemas” (POPPER,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA 49

1977: 141) frase exposta por um esquema Um problema que parece se revelar
que freqüentemente Popper usava em suas confuso na dialética marxista, e que nos re-
conferências: P1→TT→EE→P2. (PO- envia a uma análise sobre o argumento do
PPER, 1999: 263). aumento da miséria, é que se a revolução
É dessa forma que propomos por em social do proletariado é o nome do período
reflexão a debatida teoria marxista, sem a de transição da luta entre as duas classes
preocupação de um trabalho de fôlego. Marx até a vitória final dos trabalhadores, “a te-
conheceu muito bem as condições da classe oria da miséria crescente deve ser abando-
trabalhadora em 1863, período em que esta- nada se se admite a possibilidade de refor-
va escrevendo o Capital, a grande obra de ma gradual” (POPPER,1987: 163).
sua vida. Este, aliás, é o livro que traz a ex- Na base dessa objeção encontra-se
planação de sua teoria, quanto ao método da uma atrativa reflexão: o que é Estado para
produção capitalista, o aumento da produti- Marx? A denominação de que o Estado
vidade, a acumulação dos meios de produção é um órgão de dominação de classe para
e, conseqüentemente, uma riqueza cada vez oprimir a outra, ou seja, é “um comitê para
maior em número cada vez menor de mãos. gerenciar os assuntos comuns de toda a
Aí, afloram as duas idéias-forças: o acrésci- burguesia”, (MARX, 1996: 12) não é um
mo da riqueza e da miséria e a tensão entre as argumento justificador da seguinte e im-
duas classes, que levaria a uma revolução so-
portante conclusão: “todo governo, mes-
cial. Por sua vez, a vitória dos trabalhadores
mo o governo democrático, é uma ditadura
sobre a burguesia instauraria o surgimento de
da classe governante sobre os governados”
uma sociedade sem classes.
e, dessa forma, “como o Estado, sob o ca-
Reconhecidamente, Marx retratou
pitalismo, é uma ditadura da burguesia,
um fato importante de seu período histó-
assim, após a revolução social, será ele
rico, mas ao pedir que a luta de classes se
primeiramente uma ditadura do proletaria-
intensificasse, a fim de acelerar a implan-
tação do socialismo é necessário pensar do.” (POPPER,1987: 127)
“que a liberdade é mais importante do que Qualquer instituição que recorra a
a igualdade; que a tentativa de chegar à essa idéia para justificar uma política ide-
igualdade põe em perigo a liberdade e que, ológica vê-se diante de uma série de difi-
perdida esta, aquela nem chega a implan- culdades teóricas e práticas. Em primeiro
tar-se entre os não livres” (POPPER, 1977: lugar, “a liberdade, como vimos, derrota a
43). A tentativa de Popper é desmontar o si mesma, se for ilimitada”. Esse é o fa-
dogma marxista de que o poder econômi- moso paradoxo da liberdade de Popper,
co está na raiz de todo o mal e, portanto, (POPPER, 1987: 131), ou seja, a “liberda-
deve ser repelido. Dizia o filósofo da ci- de ilimitada significa que um forte é livre
ência que “o dinheiro, como tal, não é par- de agredir um fraco e roubar a liberdade
ticularmente perigoso”. Torna-se perigoso deste,” essa é a razão para referido autor
qualquer forma de poder não controlado, defender a existência de instituições le-
pois em uma “democracia, temos nas mãos gais, já que o poder econômico é depen-
as chaves do controle dos demônios. Pode- dente do poder político e físico. Isso não
mos domá-los. Devemos saber disso e usar é percebido em Marx, pois a política nada
as chaves; devemos construir instituições mais pode fazer do que “encurtar e minorar
para o controle democrático do poder eco- as dores do parto” (MARX, 1976: 1). Essa
nômico e para proteger-nos da exploração afirmação não se fundamenta; é como não
econômica” (POPPER, 1987: 135). pudéssemos fazer nada; é como não hou-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


50 André Del Negri

vesse meio para alterarmos à nossa vonta- lação fez com que houvesse a divinização
de a realidade econômica. Em termos ge- do princípio maioritário, o qual elevado
rais, na opinião de Marx, “é inútil esperar à categoria de fonte de verdade expressa
que qualquer mudança importante possa na lei, acabou “por fazer sucumbir às suas
ser realizada por uso dos meios legais ou próprias mãos a democracia, assistindo-se
políticos” (POPPER, 1987: 116). a instauração de um totalitarismo demo-
Os paradoxos parecem genuínos craticamente legitimado”, (OTERO, 2001:
quando se aprofunda na leitura de Karl 172) onde a democracia converteu-se em
Popper em sua Sociedade Aberta. Há em uma palavra vazia, originando um modelo
Marx, um outro ponto crucial, o que pode paradoxal de democracia antidemocrática.
até ser considerado uma imensa contradi- Portanto, já é tempo de pensar a quebra
ção, ao trabalhar uma idéia problemática de desse princípio majoritário, como defendi-
democracia. Se há um acréscimo de rique- do por Locke, (LOCKE, 2002: 76) onde “a
za em número cada vez menor de mãos, e maioria tem a prerrogativa de agir e resol-
um aumento da miséria para a classe traba- ver por todos”, pois vem propiciando a uti-
lhadora numericamente a crescer, se isto é lização de uma ideologia intencionalmente
verdade, assim como a que ele imaginava, falsificante, mascaradora e ocultadora da
de que o primeiro passo da revolução da realidade e, com isso, um retorno ao pen-
classe operária seria elevar o proletariado samento perturbador de enquadramento
à posição de classe dominante, então não teórico da decisão pela autoridade-vonta-
tem havido uma explicação plausível do de-maioria, o que não encontra guarida nas
que seja democracia em Marx. democracias da modernidade.
Há uma clara demonstração de que Parece que aí se demonstra o mal
os meios de produção se têm acumulado da concepção marxista sobre a Teoria do
e a produtividade do trabalho tem aumen- Estado e da Democracia, de nada valendo
tado desde o seu tempo, “a uma extensão a sua argúcia. Estado, hoje, como se pode
que mesmo ele dificilmente teria consi- notar, não é mais a representação unitária
derado possível. Mas o trabalho infantil, da nação concebida por Bodin e Hobbes,
as horas de tarefa, a agonia da fadiga e a o guardião que age limitando, anuncian-
precariedade da existência do trabalhador do e manifestando as mudanças de forma
não aumentaram: tudo isso declinou” (PO- unilateral, tomando e executando todas
PPER,1987: 193). as coisas. Trata-se dentro desse holismo
Assim, como acima exposto, esse de um Estado visto como um indivíduo
insólito raciocínio de similitude entre de- perfeito, de um super-indivíduo soberano
mocracia e maioria, como bem anota Pau- fundamentado numa concepção puramente
lo Otero, (OTERO, 2001:171) deve ser centrada no autoritarismo. É claro que isso
repudiado, pois a exacerbação do princípio corresponde a uma teoria anacrônica que,
revelador da vontade maioritária como cri- nos dias atuais, não mais pode ser aceita,
tério decisório de verdade, poderá levar a sob pena de se presenciar um retorno ao
um totalitarismo extremado, tal qual ocor- autoritarismo.
reu nas deliberações parlamentares na Ale- Certamente, toda a regulação norma-
manha nazita e na Rússia estalinista. tiva deve se desenvolver de acordo com a
De fato, na história pela conquista Constituição, que é a única fonte legitima-
do poder percebe-se que a necessidade de dora da ordem jurídico-política produzida
apelar a uma parte considerável da popu- pela atividade constituinte. O Estado, des-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA 51

sa forma, é uma instituição que se legitima Assim declinou Posner que o lucro,
na Constituição, não podendo ultrapassá- em si, tem que reservar uma partilha de si
la. Do contrário, se o Estado não se restrin- mesmo para reparar uma perda econômica,
ge a obedecer aos limites constitucionais uma vez que ele acredita na hipótese per-
haverá uma extrema arbitrariedade e tam- manente de que todo ganho pressupõe uma
bém uma superioridade do Estado sobre o perda que deva ser compensada.
indivíduo, tomando características de um Exemplifica-se: o problema das fave-
Estado hegeliano, o qual não obtém a so- las se agravou nos últimos anos. Apesar da
berania do povo, mas de si próprio, que via ocorrência, constata-se o aumento constan-
os cidadãos apenas como um componente te de edificações em áreas próximas àque-
de formação estatal (ABBGNANO, 2000: las localidades. Em um lance controverso,
109) o que do ponto de vista da sociedade podemos detectar que o edifício cresce, e
aberta, é algo que deve ser afastado para se a favela, ao lado, não muda; na verdade
evitar um retorno à sociedade fechada na a situação até pode piorar. O crescimento
qual o Estado é tudo e o indivíduo é nada. estimado da construção, de fato, ocorreu,
(POPPER, 1987: 205) pois o edifício cresceu, o que não significa
Verifica-se, portanto, que o Estado na que a situação econômica melhorou para
democracia é estabilizador dos atos produ- todos os moradores da favela; se houve
zidos no espaço democrático. Na sociedade crescimento, nesse exemplo, para um lado,
moderna, fundada na racionalidade comu- houve queda constante do outro. O cres-
nicativa, não se admite por parte do Estado cimento para os “favelados” foi zero, se
nenhum tipo de sobressaltos e afronta aos comparado aos proprietários construtores
direitos fundamentais, pois ele é, senão, o de edificações. O conhecido caso da inau-
próprio lugar de garantia jurídica da lega- guração da DASLU vizinha à favela Coli-
lidade e legitimidade. seu em São Paulo, faz coro a essa exempli-
ficação. Como corrigir essas distorções?
4. A teoria econômica do direito em Ri-
Percebe-se que a teoria de Posner é
chard Posner
capaz de desenvolver políticas econômicas
Richard Posner (POSNER, 2000: para que o ganho já incorpore uma indeni-
120) não é apenas um former professors da zação a ser recolhida para um determinado
Escola de Chicago, Estados Unidos. Ele é, fundo, pois todo ganho corresponde a uma
certamente, um dos maiores pensadores e perda. Observa-se que essa visão é com-
pode ser considerado um desmistificador. pletamente diferente de um tributo confis-
Para compreendê-lo, o primeiro ponto a catório, pois o recolhimento é do plus, é
ser analisado é que sua teoria está envolvi- do lucro; reserva-se um pedaço desse plus
da por um conceito de Moral, (POSNER, para o desenvolvimento de políticas eco-
2000: 249) o que, de logo, requer esclare- nômicas.
cer que não é nada ligado à Moral kantiana, Já que o lucro no capitalismo é ine-
pois não é axiomática, não é juízo como em vitável, e por um golpe de vontade não se
Kant; em outros termos, a questão Moral é pode erradicá-lo, Posner quer apenas dizer
um compromisso para com os perdedores, aos membros dessa sociedade complexa,
e Posner aplica sua Moral à questão da efi- enquanto jogadores do capitalismo, que há
ciência, (ALPA, 1997: 19) não a eficiência possibilidade de viabilizar um capitalismo
produtiva do trabalho, mas a eficiência do numa concepção democrática. À medida
sistema econômico. que se faz essa viabilização, o capitalismo

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


52 André Del Negri

é amenizado e a democracia entra no sis- democrática. Por isso, propõe demonstrar


tema. que os direitos fundamentais incorporam
Marx dizia que o capitalismo fica no os conceitos de liquidez e certeza no nível
lugar do mundo da vida, quer dizer, é um constituinte, a partir da decisão do legisla-
sistema que impede a ressimbolização do dor constituinte.
mundo da vida. A teoria de Posner, como Assim, a expressão direitos funda-
apresentada até aqui, não diz isso e, portan- mentais, para ser compreendida e não cair
to, também, não vai contra as concepções na vala banalizada passa, forçosamente,
de Habermas (HABERMAS, 1997: 10). pelas acepções do que seja liquidez e cer-
Nessas circunstâncias, pode-se concluir teza. O referido processualista ao questio-
que a grande proeza de Posner foi afastar ná-las, dá mostras que nada adianta dizer
o padrão dos escolásticos e seus dogmas: a um operacionalizador do direito, o qual
“não lesar ninguém”; “dar a cada um o que vai impetrar um instituto constitucional,
lhe é devido”. Há uma quebra de toda essa como o mandado de segurança, alegando
epsteme escolástica dizendo que o impor- liquidez e certeza, se não tem compreen-
tante, não é lesar a ninguém, mas uma vez são do alcance desses requisitos. Com
ocorrendo lesão, o importante é saber se base nesse estudo, também é inútil enfa-
essa lesão pode ser sancionada. tizar que a escolha de um procedimento
judicial ocorrerá por via do periculum in
5. Fundamentos de liquidez e certeza na
mora e de um fumus boni iuris, se o enten-
constitucionalidade democrática
dimento ocorrer num mundo onde a bem-
Até aqui, percebe-se uma sociedade aventurança do direito-de-ação (procedi-
extremamente complexa com uma série de mento), só é possível depois de o autor da
sistemas especializados como o mercado, ação, instintivamente, visualizar um sinal
o Direito e o Estado. Assim, se, enfocar- de fumaça (fumus boni iuris). A “fumaça
mos por esse ângulo, pode-se concluir que do bom direito” não é nenhuma fórmula,
o estudo de Direito Econômico torna-se nenhum rito, nenhum cerimonial de algo
imprescindível, pois abre espaço para dis- situado “acima da terra” de forma etérea,
cutir, teoricamente, as políticas econômi- aérea, sublime, pois essa plausibilidade do
cas adotadas pela Constituição de 1988, bom direito também tem comprometimen-
a qual tem comprometimento com os di- to com a concepção de liquidez e certeza.
reitos fundamentais já acertados no plano Para instaurar o procedimento do
constituinte. mandado de segurança e discutir a teoria
Rosemiro Leal (LEAL, 2005: 23) a dos direitos fundamentais, tem que passar
partir do pioneiro trabalhado de Celso Bar- pela compreensão do que seja direito liqui-
bi (BARBI, 2000: 12) em uma importantís- do e certo na fundamentação democrática.
sima pesquisa científica, possibilitou esto- No entanto, como dito, foi Celso Agrícola
que teórico em face do aspecto de liquidez Barbi (BARBI, 2000: 49), que primeiro deu
e certeza dos direitos fundamentais, sina- ênfase, no direito brasileiro, de forma escla-
lizando aos operacionalizadores jurídicos recedora, ao estudo da liquidez e certeza.
uma compreensão compatível com a teoria A expressão “direitos fundamen-
da democracia. Referido autor demonstra tais” na constitucionalidade democrática,
que o conceito de liquidez e certeza, no portanto, segundo Rosemiro Leal, pode
aviamento do mandado de segurança, é ser compreendida a partir de plataformas
muito banalizado na constitucionalidade de produção, porque teríamos o exemplo

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA 53

do plano constituinte que, ao racionalizar Outro ponto extremamente discu-


o Direito, automaticamente, esse direito tido é, sem dúvida, a definição de ganho
debatido e acordado teria sua garantia já de eficiência, que, aliás, não tem a mesma
acertada, não podendo ser levada a poste- compreensão no Estado Liberal e Social de
riores pela judicialidade, pois estão prote- Direito. No Direito Econômico de Estados
gidos pela coisa julgada constituinte (coisa de Direito Democráticos, como o Brasil,
julgada em razão da decisão do legislador onde, vivencia-se uma exclusão social in-
constituinte). tolerável, o ganho de eficiência não pode
Assemelha-se à coisa julgada consti- ser entendido tão-somente como compor-
tuinte a expressão coisa julgada constitucio- tamento individual (visão atomizada), pois
nal, sendo que esta última opera-se em uma tem que ser medido pelo volume de imple-
órbita diferente, por ser realizada em razão mentação dos direito à vida, à dignidade e
de decisão judicial, obviamente posterior à à liberdade.
criação do direito. Neste caso, a liquidez e O ganho de eficiência vai significar
a certeza não podem ser negadas ou erra- a atuação dos agentes econômicos no âm-
dicadas por uma decisão judicial, pois se o bito da estatalidade em uma relação custo-
plano constituinte já decidiu, não será uma benefício, o que deveria ser estudado pelo
decisão judicial que irá assegurá-los no- princípio da economicidade, que é traba-
vamente. A decisão judicial sobre direitos lhado pelo Prof. Washingnton Albino.
fundamentais, nesse parâmetro de liquidez Dessa forma, para Washingnton Al-
e certeza, não é constitutiva desses direitos bino (ALBINO, 1980: 3), o Direito Eco-
como se referia Carnelutti (CARNELUTTI, nômico tem por objeto regulamentar as
1942: 55) ao afirmar que “Existe jurisdicci- medidas de política econômica referentes
ón de mera declaración constitutiva cuan- às relações e interesses individuais e cole-
do la existência de la situación declarada tivos, harmonizando-as pelo princípio da
judicialmente depende de la declaración economicidade. Assim, referido autor diz
judicial, la cual es, por lo tanto, um hecho que “prefere o termo economicidade, como
constitutivo de la misma”. significando uma linha de maior vantagem
Em sendo pública a função do juiz, nas decisões da política econômica (...).”
é estranhável falar que ele irá, por inter- (ALBINO, 1980: 30) Percebe-se, nessa
médio de sentença, constituir direitos, vez versão, que a economicidade tenta afastar
que essa decisão judicial é declaradora- a questão delinqüente de lucro-benefício,
executiva, ou seja, ela declara apenas o preocupando-se com a implementação da
cumprimento, não o direito, pois este já foi qualidade de vida, e não com o perfil exi-
declarado no plano constituinte. Oportuna toso dos agentes econômicos.
a conclusão de Rosemiro Leal: Direito Econômico, estudado no pa-
O anúncio de direitos fundamentais radigma da Constituição brasileira de 1988,
e intocáveis pela decisão constituinte tor- põe em prática, gradualmente, políticas
na imperativa sua existência institucional, econômicas que devem orientar o Direito
uma vez que a liquidez e certeza desses di- Tributário para um melhor compromisso
reitos reclamam execução ininterrupta de de implementação dos direitos constitu-
mérito pressuposto já pré-julgado (decidi- cionalmente fundamentais. O problema
do) no horizonte instituinte do legislador está que, no Brasil, os tributos e as receitas
originário da constitucionalidade vigoran- tributárias por não rederem compromisso
te. (LEAL, 2005: 27) com o Direito Econômico do Estado de Di-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


54 André Del Negri

reito Democrático, são responsáveis pela prever acontecimentos.” (NEIVA, 1999:


grande totalidade de lesões a direito, e o 222). Em sendo assim, o capitalismo seria
Congresso Nacional não se dá ao trabalho simplesmente mais uma fase nesse progres-
nem tem a coragem de rejeitar liminar- so histórico inevitável. No entanto, como a
mente proposta de lei incompatível com história mostrou, o erro estava muito mais
essa discussão teórica aqui apontada. Daí nas pessoas que operavam o sistema e na
as lesões que são cometidas com freqüên- liberdade que lhes era concedida.
cia pela Função Legiferante e pela Admi- Dessa forma, o que Marx não fez, foi
nistração Governativa na gestão estatal. a crítica da crítica, ao esperar a destruição
Com efeito, seria curioso se, para a do capitalismo acreditando em uma espis-
efetividade do ganho de eficiência do sis- temologia. Ruptura rápida para este parto
tema, o Ministério Público estivesse em difícil, enigmático e estéril da revolução
permanente fiscalização desses ganhos do proletariado.
e dessas receitas, a fim de informar ao Somente após longo tempo de deter-
povo que há crescimento e atendimento minismo e decisionismo, é que se passou
aos direitos fundamentais. Eis, portanto, a à análise de um constitucionalismo volta-
relevância dessa instituição, pois se o Mi- do para uma regulamentação da atividade
nistério Público não fiscaliza, permanen- econômica até chegar à inovação impor-
temente, o ganho de eficiência e em não tante trazida pela Constituição brasileira
havendo a sua divulgação, é claro que essa de 1988.
instituição não está cumprindo o seu papel Por conseguinte, pode-se sintetizar,
constitucional, logo está na contra mão da que o Direito Econômico do Estado de
constitucionalidade democrática e, certa- Direito Democrático, na vigência consti-
mente, isso implica em exclusão social e tucional brasileira, preocupa-se com a im-
no aumento da miséria coletiva. plementação dos princípios fundamentais
(direito à vida e dignidade humana) e a ins-
6. Conclusões tituição do Processo (contraditório, ampla
A análise do Estado, em princípio, defesa e isonomia), como direito-garantia
foi feita ao arrimo de teorias com funda- constitucionalizada é total importância para
mentalidade no liberalismo. É perpassar a a fiscalização das políticas econômicas.
história é ver que o Estado Liberal viveu
permanente crise, por inaplicabilidade dos REFERÊNCIAS
mecanismos de defesa a uma massa de
desvalidos. ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia.
Mostra-se inquietante, ao nosso en- Lisboa: Editorial Presença, 2000. v. 8.
tender, o historicismo de Marx com o fim AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia
da ciência do direito. São Paulo: Max Limo-
de explicar a ditadura do proletariado à
nad, 1999.
medida que o tempo passa. Cresce, então,
ALPA, Guido. A análise econômica do direi-
de aspecto, o conceito de historicismo, to na perspectiva do jurista. Trad. João Bosco
doutrina filosófica que tem o propósito a Leopoldino da Fonseca. Belo Horizonte: Mo-
“explicação de acontecimentos presentes, vimento Editorial da Faculdade de Direito da
remetendo-os às determinações do passa- Universidade de Minas Gerais, 1997, p. 5-55.
do, além de estabelecer como inevitáveis BARBI, Celso Agrícola. Do mandado de segu-
as previsões futuras. Porque o destino his- rança. Forense: Rio de Janeiro: Forense, 2000.
tórico está definido de antemão, é possível CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA 55

nuevo proceso civil italiano. Trad. Jaime Guasp. Estado totalitário à sociedade totalitária. A
Editorial Bosch: Barcelona, 1942. influência do totalitarismo na democracia do
FAVOREAU, Louis. Droit Constitucionel. In: século XXI. Lisboa: Principia, 2001.
ROUX, André. Paris: Dalloz, 2002. POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimi-
HABERMAS, Jürgen.Direito e democracia: gos. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Edi-
entre facticidade e validade. Tradução de Flá- tora Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987, Tomo 2.
vio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo ______. Autobiografia intelectual. Trad. Leô-
Brasileiro, 1997. v.2. nidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.
LEAL, Rosemiro Pereria. Relativização in- São Paulo, Cultrix; Ed. da Universidade de São
constitucional da coisa julgada: temática pro- Paulo, 1977.
cessual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: ______. Conhecimento objetivo: uma aborda-
Del Rey, 2005. gem evolucionária. Tradução de. Milton Ama-
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Gover-
do. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
no. São Paulo: Martin Claret, 2002.
POSNER, Richard A. El análisis econômico
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito
del derecho. México: Fondo de Cultura Econô-
constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
mica, 2000.
2000, v.1.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifes- ROSENFELD, Michel. A identidade do sujei-
to comunista. São Paulo: Paz e Terra, 1996. to constitucional. Trad. Menelick de Carvalho
MARX, Karl. El capital: crítica de la economia Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
política. Trad. Vicente Romano García. Madrid: SIEYÈS, Emmanuel Joseph. O que é o Terceiro
Akal, 1976, Tomo I. Estado?. In. A Constituinte Burguesa. Rio de
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Janeiro: Liber Juris: 1988.
Popper. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999. SOUSA, Washington Peluso Albino de. Direito
OTERO, Paulo. A democracia totalitária: Do econômico. São Paulo, 1980.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


56

“BALANCEAMENTOS” entre valores constitucionais


e teoria das fontes*
“Bilanciamenti” tra valori costituzionali e teoria delle fonti

Antonio Ruggeri**

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Relevado que os “balanceamentos” entre valores constitucionais pertencem, ao mesmo tempo,
à teoria das fontes e à teoria da justiça constitucional, o escrito detém-se na contradição metodológica em
que incorre a doutrina usual que, por um lado, se faz portadora de uma idéia de Constituição de inspiração
axiológico-substancial e, por outro lado, reconstrói a total ordem das fontes na perspectiva formal-abstrata.
Pelo abandono de tal perspectiva provém a relativização dos critérios de composição do sistema das fontes
e, com ela, a necessidade do enquadramento das próprias fontes na perspectiva axiológico-susbstancial,
que dê atenção às “coberturas” de valor dos quais possam aproveitar (mais ainda que as singulares fontes)
as normas das próprias fontes produzidas. Percebemos então que os critérios ordenatórios (e, em especial,
aquele cronológico e aquele da competência) são todos reenviáveis ao critério hierárquico. Uma especial
consideração dispensa-se aos casos em que mais valores se aglomeram no mesmo campo, afirmando-se um
em detrimento do outro, para se determinar suas freqüentes manipulações por parte do tribunal constitu-
cional na condição de “balanceamento”... Passa-se, então, a examinar os casos de “balanceamento” não...
balanceados, que se resolvem na “colocação entre parênteses”, ou seja, no desvio momentâneo, (e, a saber,
na suspensão da eficácia) da norma constitucional expressiva de um valor recessivo. No quadro dos confli-
tos internos à própria Constituição, uma especial consideração faz-se àqueles entre normas expressivas de
valores fundamentais, até ao caso-limite de um valor que se rebela contra... si mesmo; e se releva o caráter
ideológico das operações de “balanceamento” realizadas pela Corte constitucional, desenvolvendo-se algu-
mas notas críticas a respeito da razão dos “balanceamentos” jurisprudenciais.
Palavras-chave: Critérios ordenatórios, fontes, balanceamentos, valores constitucionais e razão.

Riassunto: Rilevato che i “bilanciamenti” tra valori costituzionali appartengono, allo stesso tempo, alla
teoria delle fonti ed alla teoria della giustizia costituzionale, lo scritto si sofferma sulla contraddizione me-
todologica in cui incorre la dottrina corrente che, per un verso, si fa portatrice di una idea di Costituzione
d’ispirazione assiologico-sostanziale e, per un altro verso, ricostruisce l’intero ordine delle fonti in prospet-
tiva formale-astratta. Dall’abbandono di tale prospettiva discende la relativizzazione dei criteri di compo-
sizione del sistema delle fonti e, con essa, la necessità dell’inquadramento delle fonti stesse in prospettiva
assiologico-sostanziale, che tenga cioè conto delle “coperture” di valore di cui possono godere (più ancora
che le singole fonti) le norme dalle fonti stesse prodotte. Ci si avvede allora che i criteri ordinatori (e, in
particolare, quello cronologico e quello della competenza) sono tutti riconducibili al criterio gerarchico. Una
speciale considerazione è prestata ai casi in cui più valori si affollano sullo stesso campo, pretendendo di
affermarsi l’uno a discapito dell’altro, sì da determinarsi frequenti loro manipolazioni da parte del tribunale
costituzionale in sede di “bilanciamento”. Si passano, quindi, ad esaminare i casi di “bilanciamento” non…
bilanciati, che si risolvono cioè nella “messa tra parentesi” (e cioè nella sospensione della efficacia) della
norma costituzionale espressiva di un valore recessivo. Nel quadro dei conflitti interni alla stessa Costi-
tuzione, una speciale considerazione è fatta a quelli tra norme espressive di valori fondamentali, fino al
caso-limite di un valore che si rivolta contro… se stesso; e si rileva il carattere ideologico delle operazioni di
“bilanciamento” poste in essere dalla Corte costituzionale, svolgendosi alcune notazioni critiche a riguardo
della ragionevolezza dei “bilanciamenti” giurisprudenziali.
Palavras-chave: Criteri ordinatori fonti bilanciamenti valori costituzionali ragionevolezza.

* Traduzido do italiano para o português por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos Souza Auricchio.
** Professore Ordinario di Diritto Costituzionale nell’Università di Messina (Italia). – Direttore del Dipartimento di Scienze
Giuspubblicistiche “T. Martines” dell’Università di Messina. ruggant@unime.it.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 57

1. Cada um dos termos dos quais se joga uma ponte entre o mundo da reali-
compõe o título dessa minha reflexão exige dade e o mundo das normas, entre o ser
uma explicação preliminar e – principal- e o dever ser e, no final, determina-lhe a
mente – deve ser esclarecida a razão da sua recíproca compenetração e semelhança; 5.
reunião em uma única expressão lingüísti- todos os critérios com os quais as fontes
ca. É, todavia, claro que não posso agora, são sistematizadas deixam-se reconhecer
não digo retomar do princípio ao fim an- e apreciar através da razão e se revestem
tigas e ainda muito controversas questões de modo camaleônico das formas da razão,
de teoria geral, mas nem sequer tratá-las de até o ponto de se assimilar inteiramente
modo aproximativo e precipitado. Encon- por essa última, com a conseqüência que
tro-me, então, forçado a tirar de algumas 6. parece ser, sobretudo, apropriado dis-
premissas que aqui dou por adquiridas, correr de um sistema não agora das fontes,
enviando a outros momentos a sua justifi- mas das normas, na sua recíproca, móvel
cação. Tentarei, portanto, desenvolver um composição em relação às exigências dos
itinerário pessoal de pesquisa para trazer casos e segundo valor.
algumas conclusões que me parecem mere- Obviamente, trata-se de pontos que
cedoras de aprofundamentos posteriores. somente de modo artificial, por uma aná-
As teses que me proponho argumen- lise cômoda, podem ser consideradas re-
tar são as seguintes: 1. os assim chamados ciprocamente distintas, mas que, antes,
“balanceamentos” entre valores consti-
remetem-se continuamente um ao outro;
tucionais constituem um dos capítulos
tanto que, no decorrer dessa minha expo-
principais do livro das fontes, são, pois,
sição, não poucas vezes serei obrigado a
uma species de uma teoria geral do orde-
antecipar conceitos que serão, portanto,
namento, mas essa última, por sua vez e
retomados mais adiante, assim como, ao
circularmente, ressente do modo em que
inverso, rever o que já foi dito.
os balanceamentos são ambientados e re-
solvidos e, por isso, se renova com a re-
novação dos próprios ‘balanceamentos’; e, 2. A primeira das premissas aqui da-
já que os “balanceamentos” tomam corpo, das por certas aborda uma crucial questão
em última instância, em sede aplicativa (e, da teoria geral: o que é a Constituição, na
especialmente, na condição dos juízos de sua total caracterização. Suscito aqui uma
constitucionalidade), assim 2. a teoria das das concepções atualmente mais confirma-
fontes conflui e se converte na teoria da das entre os estudiosos, aquela segundo a
justiça constitucional e ambas se colocam qual a Constituição é, na sua essência, uma
como as duas faces de uma mesma moe- tabela de valores positivados (A. Baldas-
da, que é determinada por uma teoria da sare). Ninguém, obviamente, duvida que a
Constituição por valores; 3. verdadeiros e Constituição não se reduza somente nisso,
próprios “balanceamentos”, na maioria das mas que seja ainda fundamento e limite da
vezes, não existem, se por ele entendemos soberania (A. Spadaro). E, ainda que essa
uma satisfação autenticamente igualitária dilatação do conceito, se prestarmos aten-
(exatamente “balanceada”) entre valores ção, pode igualmente reportar ao primeiro,
constitucionais ocasionalmente em confli- para os nossos objetivos, especificamente
to, eles se resolvem antes no domínio de interessante.
um valor sobre um outro; 4. a técnica com Sobre a relação entre a Constituição
que os próprios “balanceamentos” são re- e soberania não falarei agora, a fim de não
alizados, a assim chamada razoabilidade, aumentar muito o raio de ação dessa mi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


58 Antonio Ruggeri

nha reflexão, que já é por demais extensa. ‘soberanos’, o povo e o Estado (porém, até
Limito-me somente a observar que, com essa difundida e tradicional opinião é mui-
específica referência aos ordenamentos de to artificial e forçada, testemunhado pelo
tradição liberal-democrática, a soberania fato de que o povo é o Estado, não um quid
popular é, ao mesmo tempo, fundadora da distinto do próprio Estado).
Constituição, mas também, circularmen- No sentido objetivo, todavia, o ‘ver-
te, por ela fundada. É fundadora, desde dadeiro’ soberano não é aquele que é pro-
o momento em que a Constituição é filha clamado pela própria Constituição, mas
da vontade popular, expressa por uma aquele que designa o soberano, é a Consti-
assembléia constituinte, livremente for- tuição. O artigo 1º da Constituição italiana
mada (sendo o documento constitucional afirma solenemente que “a soberania per-
submetido à ratificação popular mediante tence ao povo, que a exercita nas formas
referendum ou não). Uma vez, porém, que e nos limites da Constituição”. As modali-
a Constituição tenha entrado em vigor, o dades de manifestação da soberania, assim
povo repõe as armas utilizadas no decorrer como os limites por elas encontrados são,
do fato constituinte e se submete à Consti- portanto exclusivamente e soberanamente
tuição, deve a ela se submeter se quiser dar estabelecidos pela Constituição. E, uma
um sentido à própria Constituição, como vez que - como direi melhor adiante - a es-
lei fundamental (no significado de funda- sência indisponível da Constituição repou-
sa nos seus princípios fundamentais, in-
mento) do ordenamento.
tangíveis pelo próprio poder (constituído,
Soberano no significado subjetivo é,
e não constituinte) de revisão constitucio-
e em um ordenamento democrático está-
nal, se nele existe a essência da soberania
vel, o povo; soberano no significado obje-
constitucional, no sentido axiológico-nor-
tivo (ou melhor, axiológico-objetivo) é, ao
mativo, está nos seus valores fundamen-
contrário, somente a Constituição.
tais (G. Silvestri), valores necessariamente
Os dois conceitos não só não se ex-
pré-jurídicos quanto à sua origem e à sua
cluem alternadamente, mas exigem inte- íntima e completa natureza, mas que, tanto
grarem-se reciprocamente, apóiam-se um quanto necessariamente, exigem ser po-
no outro; e oferecem uma representação sitivados. Os princípios fundamentais da
inevitavelmente parcial (e, como tal defor- Constituição constituem, assim, a imagem
mante) seja da Constituição seja da sobera- normativa mais genuína e imediatamente
nia. Essa última tem, finalmente, um duplo expressiva dos valores em nome dos quais
vulto: existem os sujeitos ou os órgãos que o poder constituinte tem conduzido a sua
a encarnam e concretamente exprimem, batalha vitoriosa pela afirmação de uma
mas há também quem os reconhece e habi- nova ordem constitucional, em interrupção
lita para exercitá-la. Desse ponto de vista, em relação ao velho pelo mesmo derruba-
a antiga disputa se soberano é o povo ou do.
o estado, a meu ver não há nenhum sen- Como se vê, também fixando a aten-
tido, se conviermos a respeito do fato que ção, justamente, sobre a soberania popular
a Constituição conhece expressões de so- como fundamento da Constituição (e, por
berania direta por parte do povo (pensan- reflexo, de todo o ordenamento) e sobre a
do-se no referendum) junto de expressões própria Constituição como limite do poder
de soberania indireta (essencialmente a de- acaba-se do mesmo modo chegando-se a
mocracia representativa). No sentido sub- uma concepção axiologicamente orientada
jetivo, em suma, pareceriam existir dois da Constituição.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 59

Do meu ponto de vista (e diferente- a tese habitual que vê, de fato, reciproca-
mente dos outros), pois, não é de especial mente graduadas as normas constitucio-
relevo, com referência ao tema que hoje nais: um ordenamento hierárquico, que se
tratamos, se é mais apropriado raciocinar reflete ainda que sobre as modalidades de
sobre um ‘balanceamento’ entre valores ou desenvolvimento das operações de balan-
entre princípios ou, ainda, entre bens ou ceamento e nos seus relativos êxitos.
interesses constitucionalmente protegidos Não me detenho, agora, especifica-
(R. BIN, G. ZAGREBELSKY, O. CHES- mente no exame crítico da tese, que tem tido
SA). Considero, de fato, a disputa mais de nós nos últimos tempos um certo interes-
nominalística que real, se for conveniente se, segundo a qual a própria distinção entre
que a experiência jurídica não pode ser ob- poder constituinte e poderes constituídos
jeto de parciais ou unilaterais observações. mereceria ser revista e, até, deixada de lado,
Os valores - como acabamos de notar - ga- do momento em que a noção de ‘poder cons-
nham destaque juridicamente através das tituinte’ teria agora um mero valor histórico
normas, sejam elas regras como princípios e estaria exaurida com a vitória do ‘modelo’
(mas, principalmente, através desses últi- de Estado liberal-democrático. Uma tese
mos); as próprias normas fazem referência que, todavia, confunde os nossos desejos
a bens da vida, incorporam e exprimem en- com a realidade constitucional. Como a
tão interesses. Separar uns dos outros ele- experiência de muitos ordenamentos ensi-
mentos dos quais é feita a prática jurídica na, conhecem-se, de fato, não poucos casos
não pode, assim, ser feita se não em um de violento enfraquecimento das estruturas
modo absolutamente artificial e forçado. democráticas por obra de forças políticas
A segunda das premissas, direta e que não se fazem portadoras do patrimônio
imediatamente descendente da primeira e de valores herdado pelas sociedades libe-
à mesma intimamente ligada, é que as nor- rais. Aquilo que deve ser agora esclarecido
mas constitucionais, além da sua habitual é que, também seguindo a ordem de idéias
pertinência ao documento que está na base patrocinada por essa doutrina, confirma-se
do ordenamento, não são todas dotadas do posteriormente a existência de limites in-
mesmo relevo jurídico ou da mesma for- tangíveis à revisão: com a não secundária
ça. Não pretendo agora me empenhar em diferença segundo a qual os próprios limi-
uma qualificação que arriscaria, todavia, tes, pela opinião favorável à manutenção da
ser inadequada. Muitos estudiosos consi- distinção entre poder constituinte e poderes
deram os princípios fundamentais como constituídos, apresentam caráter normativo,
normas ‘superconstitucionais’: uma ex- enquanto segundo a tese aqui criticamente
pressão que seguramente dá a idéia exata exibida teria caráter meramente factual ou
de sua caracterização peculiar, mas que existencial, no sentido que não se consegui-
igualmente pode revelar-se enganosa, se ria imaginar como materialmente possível
considerarmos que os próprios princípios uma inversão dos princípios fundados so-
não estão, obviamente, acima, mas sobre- bre os valores de liberdade e democracia.
tudo dentro da Constituição. De um modo ou de outro, como se vê, os
Um ponto é certo, que somente al- princípios fundamentais estariam, todavia,
gumas normas constitucionais, expressi- protegidos de toda possível forma de inci-
vas de princípios fundamentais, resistam são operada em seu prejuízo.
até a mais vigorosa manifestação de po-
der constituído, ou seja, às leis de revisão 3. A existência de uma ordem hierár-
constitucional. Nesse sentido justifica-se quica das normas constitucionais baseadas

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


60 Antonio Ruggeri

no valor não permanece, como está claro, Para compreender a fundo como se
sem conseqüências aos graus inferiores da protegem as coisas, é necessário prelimi-
escala hierárquica e sobre os desenvolvi- narmente tomar consciência do fato que a
mentos completos das dinâmicas jurídicas, teoria dos limites para a revisão constitu-
sejam elas no grau das normas e da sua cional é ambientada na perspectiva axio-
sistematização, e sejam mesmo no grau (e lógico-substancial, enquanto o restante da
pelas exigências) da aplicação, em condi- teoria das fontes recebe estranhamente o
ções de ‘balanceamento’ entre normas ou seu enquadramento usual na perspecti-
valores, que se queiram. va formal-abstrata. Só que essa segunda
Realmente é singular e francamen- teoria não é, não pode ser artificialmente
te espantosa a contradição, metodológica mantida separada da primeira, mas se co-
antes ainda que teórico-dogmática, na qual loca (ou melhor, deveria colocar-se) como
na minha opinião cai a doutrina corrente, o prolongamento natural da mesma. Não
no momento em que dá lugar a uma siste- deveriam, portanto, existir duas teorias
matização das fontes de tipo formal-abstra- detentoras de uma inspiração e um desen-
ta, mas partindo das premissas apreciáveis volvimento metodologicamente incompa-
unicamente na perspectiva axiológico- tível, mas precisamente uma única teoria,
substancial. Rompe-se, de tal modo, o fio
qual seja, pois, o implante metodológico
que liga (e deve incessantemente unir) as
(axiologicamente fundado).
conclusões às próprias premissas.
A teoria dos limites para a revisão
Se, de fato, é correto o ponto de par-
constitucional não teria nenhum sentido
tida teórico, segundo o qual as normas
no momento em que o legislador pudesse
constitucionais não exprimem com a mes-
remover sem nenhum obstáculo ou san-
ma intensidade os valores fundamentais,
ção as normas que dão a primeira, direta
se definitivamente limitam-se de forma
absoluta e insuperável ao poder de revisão e imediata e, por isso mesmo, necessária
constitucional, pergunto-me como é possí- atuação aos princípios básicos do ordena-
vel deste ponto chegar à conclusão segun- mento. Isso vale tanto para as normas da
do cujas fontes têm um ‘lugar’ no sistema própria Constituição, que podem ser consi-
que permanece sempre o mesmo, exata- deradas ‘cobertas’ pelos princípios mesmo
mente como o sujeitos retratados em uma que elas não sejam princípios, quanto pelas
fotografia. Só que, justamente, como os normas de leis comuns, que se beneficiam
próprios sujeitos uma vez tirada a fotogra- igualmente de ‘cobertura’ constitucional
fia, voltem prontamente a se movimentar, axiologicamente qualificada.
fazem novas relações entre eles ou diluem Certamente, estabelecer quando uma
o modificam aqueles pré-existentes, enve- norma pode exibir uma tal proteção e em
lhecem, mudam (mesmo em certos limites) que medida efetivamente pode usufruí-la
escolhas e orientações, assim até as fontes é uma questão especialmente complexa,
não estão absolutamente em relação entre teorica e (também principalmente) prati-
elas em modos sempre idênticos, mas, de camente. Concluindo, somente a prática
fato, se renovam, e fazendo isso mudam de jurídica pode dar uma resposta satisfató-
lugar e fazem renovar sem pausa todo o or- ria para tal questão. Não existe e não pode
denamento, mesmo mantendo-lhe a com- existir um critério formal, como tal idôneo
pleta identidade, numa sólida ancoragem e para ser levado às aplicações uniformes e
na fidelidade incessantemente manifestada certas, com o qual resolver a questão das
aos valores fundamentais. ‘coberturas’ de valor: precisamente porque

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 61

os valores remetem a critérios de natureza dificações que devessem, mesmo indireta-


substancial para o seu reconhecimento (em mente, incidir sobre a norma superior de
última instância à ‘técnica’ da razão). Ali- cobertura. A relação entre as duas leis em
ás, não teria sentido afirmar primeiramente campo é apenas aparentemente bilateral;
a existência das ‘coberturas’ mencionadas na realidade, é trilateral, do momento em
e, portanto, admitir que, a relativa dinâmi- que sempre retorna ao modo com que cada
ca, se desenvolva no plano e com critérios uma das duas leis se coloca em relação à
formais. Constituição: pode-se dizer também que é
Um primeiro ponto pode se teorica- uma relação bilateral, mas da singular lei
mente fixado; e é que as ‘coberturas’ de (ou melhor, das suas normas) a respeito da
valor podem (e devem) ser pensadas, se Constituição.
quisermos dar um significado prático à Todas às vezes que a Corte constitu-
teoria dos limites à revisão constitucional, cional anula uma norma de lei (e o mes-
ou seja, à teoria de que existe um patri- mo vale, naturalmente, com as devidas
mônio de valores que dá a essência ou a adaptações, nos sistemas de jurisdição
identidade da Constituição e em que está constitucional difusa, por tudo que diz res-
fundamentado o inteiro ordenamento. De peito a desaplicação das normas inconsti-
outra forma, esvaziar e dispersar tal patri- tucionais), o parâmetro em nome do qual
mônio seria uma brincadeira de criança, a própria anulação é operada é unicamente
se fosse propriamente permitido agredi-lo aquele constitucional, por certo não a lei
e saqueá-lo, seja de maneira desleal e in- ordinária ab-rogada ou diversamente mo-
direta, através do ataque frontal às fontes dificada pela lei anulada, por sua vez ado-
(ou melhor, às normas) que dão a direta e tada a fim de dar atuação à Constituição.
imediata atuação. E, o mesmo parâmetro constitucional sem
a lei a ele funcionalmente interligada não
4. Percebemos assim rapidamente seria capaz de se manter: no plano inter-
que os critérios usuais de sistematização pretativo, em primeiro lugar, e, portanto,
dinâmica das fontes, daquele hierárquico naquele positivo.
(no sentido formal) àquele cronológico, No plano interpretativo, dizia-se, se
sofrem uma forte relativização da sua im- nos convém a tese, que é especialmente
portância e uma completa metamorfose, de lembrada (A. Ross), segundo a qual a pró-
fato, axiologicamente orientada, a ponto pria interpretação das disposições consti-
de ser - em alguns casos - tombados sobre tucionais em maior ou menor medida se
si mesmos (A. Ruggeri). alimenta das disposições de leis comuns
chamadas a dar especificação-atuação
4.1. Refletindo, por exemplo, no àquelas disposições. Aqui se posiciona,
modo em que habitualmente opera o câno- aliás, totalmente a ‘circularidade’ da expe-
ne cronológico. riência jurídica, dentro da qual cada norma
Nenhuma dúvida que, regularmen- faz o ‘sistema’ com as outras (não só com
te, as leis comuns possam livremente se- aquelas do mesmo plano, mas também com
guir-se uma após outra. Trata-se, porém, outras, tanto superiores quanto inferiores),
apenas de uma regra; e a exceção é deter- exatamente nesse seu continuo ‘dar e ter’
minada justamente pela subsistência de no plano semântico. Mas, depois, a verda-
uma cobertura de valor em vantagem da de é que, se por um lado todas as normas
fonte anterior, para que a proteja de mo- do qual se compõe um ordenamento, mais

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


62 Antonio Ruggeri

ou menos diretamente, mantêm-se pelos vezes o vulto que se teria com a anulação
princípios fundamentais, não é menos ver- é considerado ainda mais inconstitucional
dade que esses mesmos princípios se man- em relação à manutenção em vigor de nor-
têm por sua vez pelas normas inferiores: ma em essência inconstitucional. A Corte,
desmoronariam miseravelmente, no exato finalmente, é sensível às conseqüências
momento em que devessem ser privados que podem ocorrer em um caso e no ou-
do desenvolvimento e, por isso mesmo, tro: ‘balanceando-os’ reciprocamente. Seja
da sustentação que lhes é assegurada pelas quando anula, seja quando salva uma nor-
leis ordinárias e, diminuindo gradativa- ma de lei, a Corte opera sempre um ‘balan-
mente, pelos regulamentos, práticas admi- ceamento’ axiológico.
nistrativas e jurisdicionais, etc. Não é o momento de analisar meti-
Dá-se, por fim, que os princípios e culosamente os dois casos mencionados;
as normas constitucionais em geral fun- é importante somente evidenciar que não
dam e sustentam o ordenamento inferior, raramente a Corte anula uma lei que mo-
mas esse último também sustenta a Cons- dificou ou ab-rogou outra lei anterior em
tituição: a norma de lei tem significado, nome da sua inconstitucionalidade: uma
um seu sentido e uma sua ‘força’ no todo inconstitucionalidade que, nos fatos, se
peculiares, justamente graças à ‘cobertura’ traduz em uma proteção a favor da lei ve-
axiológica que ela é capaz de exibir; mas a lha, todas às vezes que, em seguida da anu-
própria norma constitucional de ‘cobertu- lação da lei nova, a disciplina precedente
ra’ adquire significado pelo trâmite das leis torna a se expandir e volta em vigor.
e das práticas em geral que a especificam e
atuam: aquela com essas é tudo, mas essas 4.2. O discurso é generalizável e en-
sem aquela não são nada. volve o próprio critério hierárquico segun-
A Corte constitucional, portanto, do forma.
anula uma norma de lei em nome da rigi- Pensando-se, por exemplo, no orde-
dez da Constituição; mas, a Corte, mesmo namento hierárquico, para nós como para
sem anunciá-la expressamente, tem sem- outros, em que estão as leis constitucionais
pre cautela do modo com que a norma e as leis ordinárias. As primeiras nascem
constitucional assumida como parâmetro com o procedimento especial e mais difi-
vive na experiência, pela atuação que a ela cultoso que o normal indicado no artigo
é dada por normas inferiores e pelo signi- 138 da Constituição e, exatamente por
ficado que, mesmo graças a essas últimas, isso, estão habilitadas a derrogar à própria
ela assume inteiramente. Constituição (protegendo-se os princípios
Aqui é o primeiro ‘balanceamento’, fundamentais); as outras, ao contrário, es-
que sempre é feito, e não somente - como, tão, todavia, sujeitas à observância integral
ao contrário, muitos acreditam - em alguns da Constituição e das outras leis constitu-
casos, em que são expressamente avalia- cionais.
dos valores constitucionais potencialmen- Ninguém duvida que as leis constitu-
te em conflito. A Corte pondera sempre cionais supervenientes em relação às leis
“a situação normativa” que se tem com a ordinárias possam ser dotadas de conteú-
manutenção em vigor da lei submetida ao dos contrastantes; discute-se, também, se
juízo de constitucionalidade com a “situ- as antinomias em palavras comporta a in-
ação normativa” que se teria conseqüen- validade das leis comuns, como tal neces-
temente pela sua anulação. E não poucas sitada de ser verificada em caráter judicial

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 63

(para nós, pela Corte constitucional), ou mente assim como as doenças fazem parte
a ab-rogação das próprias leis, como tal da vida de um ser humano. E o ordenamen-
relevável por qualquer um em sede apli- to é completamente salutar quando conse-
cativa. Com toda probabilidade, ambas as gue colocar em campo os instrumentos e
qualificações podem ser adequadamente os recursos do qual é dotado para vencer
utilizadas, dependendo da estrutura e da os fatos patológicos que ocasionalmente se
completa conformação lingüística das dis- manifestam no seu interior.
posições afrontadas, na prática, a própria As ‘coberturas’ de valor são o mais
jurisprudência constitucional, que mesmo eficaz desses recursos, sempre que este-
na sua primeira pronúncia (a número 1 de jam por sua vez sustentadas por técnicas
1956) havia esplanado o percurso tanto da aplicativas adequadas; e as ‘coberturas’
anulação por invalidez quanto da desapli- em palavras não podem ser, pela sua na-
cação por ab-rogação, havia feito de tudo tureza, contempladas por uma perspectiva
para atrair para si toda forma de antino- meramente formal, mas por uma axiologi-
mia. camente orientada.
E então, a solução da sistemática pre- Portanto, a colocação final das fontes
dominante, de um modo ou de outro, das (ou melhor, das normas) no sistema per-
leis constitucionais sobre as leis comuns é, cebe-se unicamente em caráter aplicativo,
entretanto, subordinada à condição da ob- não através da estática observação das pró-
servância escrupulosa por parte das primei- prias fontes e da estrutura hierárquica no
ras leis dos seus próprios limites. Deduz- qual interiormente se dispõe. A teoria das
se, então, que, enquanto isso não devesse fontes, em suma, conflui e se converte na
acontecer, poderia ser visto a anulação de teoria da justiça constitucional, sede privi-
norma constitucional que se traduza, nos legiada em que tomam corpo os ‘balancea-
fatos, na manutenção em vigor ou mesmo mentos’ axiológicos, e ambas constituem
na recuperação do vigor da norma ordiná- as duas faces de uma mesma medalha,
ria dotada da ‘cobertura’ a ela oferecida que é determinada pela teoria da Consti-
por um princípio fundamental. tuição: os dois perfis, a saber, necessaria-
É óbvio que, nos dois casos rapida- mente parciais e necessitados de recíproca
mente examinados, a presunção sempre integração, pela qual pode ser percebida a
joga, respectivamente, a favor do cânone essência da Constituição como tabela dos
cronológico e do cânone hierárquico. Um valores positivados.
ordenamento renova-se e transmite fisio-
logicamente no tempo somente quando no 5. É necessário dar um passo adiante
próprio interior formam-se e nascem atos e notar como as antinomias entre as nor-
(normativos ou não) válidos, respectiva- mas possam deslocar-se de um grau a ou-
mente conforme a parâmetros superiores; tro, na escala hierárquica: manifestar-se,
a invalidez, além disso, permanece sempre por exemplo, ao nível das leis ordinárias e
um fato excepcional, e assim deve ser, de refletir-se, portanto, em uma antinomia de
outra forma seria o sintoma de um mal in- grau constitucional, e vice-versa.
curável que afligiria o próprio ordenamen- Logo se explica a razão.
to e estaria pronto para devorá-lo. Mas os Até aqui, por razões de fluidez da
fatos patológicos, se também circunscritos, exposição, levantou-se a hipótese que, em
fazem parte do mesmo desenvolvimento ocasião da aplicação do critério cronológi-
fisiológico da vida do ordenamento, exata- co ou do critério de hierárquico, uma só das

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


64 Antonio Ruggeri

normas em campo usufrua de ‘cobertura’ casos em que, ao contrário, os parâmetros


constitucional; e isso, naturalmente, pode mencionados são mais de um. E isso pela
em algumas circunstâncias acontecer, as- razão elementar que, nesses últimos casos,
sim como pode acontecer que uma mesma a Corte constitucional dispõe de margens
norma possa exibir mais ‘coberturas’ de de manobra ainda mais extensas para com-
valor, simultaneamente convergentes a seu binar diversamente os próprios parâme-
favor. Mas, ainda mais freqüentes são os tros, fazendo-os convergir ou até divergir
casos em que ambas as normas em campo na qualificação final do caso: fazer com
podem invocar para sua proteção valores que se unam, afinal, em uma mesma parte
diversos ou, talvez, um mesmo valor. Em ou colocá-los um contra o outro. Também
tais casos, o conflito que tem origem no em referência aos precedentes judiciários,
grau primário da hierarquia, converte-se em tais circunstâncias, apresenta-se como
automaticamente em conflito entre valores especialmente livre ou criativo: combinan-
constitucionais ou mesmo em um conflito do de maneira sempre diversa os valores,
de um valor... consigo mesmo, enquanto a Corte têm um bom jogo para demonstrar
ambas as normas em conflito o invoquem que o caso que tem hoje é diferente em re-
legitimamente para sua tutela. E é então o lação a casos precedentes e, portanto, não
momento de estabelecer em que modo o merece ser tratado do mesmo modo.
próprio conflito possa ser superado. Não é verdade o que habitualmen-
te se pensa e que quanto mais o peso das
5.1. A formidável força expansiva dos normas constitucionais cresce sobre as leis
valores constitucionais faz que um mesmo ordinárias, tanto mais a rigidez constitu-
valor possa se distender até ‘cobrir’ toda a cional é salvaguardada: antes, o inverso
área material em que se dispõem normas é verdadeiro: que, mesmo nesses casos, a
de lei reciprocamente contrastantes, com a Corte manipula a arte da Constituição, na
conseqüência que encontrar uma solução dinâmica composição dos valores (e das
(não digo plenamente, mas suficientemen- normas) que a compõem, para extrair do
te) a contento é muito problemático, às ‘recipiente’ constitucional as suas ‘verda-
vezes realmente impossível: quero dizer des’ de direito constitucional: ‘verdades’
uma solução autenticamente ‘balanceada’ que, não poucas vezes, causam à absolvi-
do ponto de vista axiológico. E é também ção das normas suspeitas de inconstitucio-
para ser notado que, quanto mais se assis- nalidade.
te a um ajuntamento de valores no mesmo Com essas advertências, é necessário
campo, tanto mais crescem e se dilatam as agora ver mais de perto em quais modos
margens de manobra dos quais dispõem se apresentam as ‘coberturas’ de valor e
os operadores (especialmente, os juízes, e quais, portanto, podem ser as técnicas co-
entre esses, ainda mais os juízes constitu- locadas em campo pela jurisprudência para
cionais) para resolver o caso. sistematizá-las.
Uma observação sistemática da juris-
prudência constitucional leva-me a afirmar 5.2. Preliminarmente, deve ser dito
que, nos casos em que o parâmetro do juízo que, uma hierarquia entre valores é, em
de constitucionalidade é determinado por alguns casos, abstratamente feita pela pró-
um só valor, o próprio juízo é, em regra, pria Constituição: como tal é uma hierar-
menos expressivo de criatividade e, por quia estática e imutável, qualificada uma
isso mesmo, de politicidade em relação aos vez por todas, ainda que necessite de ser

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 65

reconhecida concretamente após uma aná- um conflito entre valores em sentido exato,
lise dificultosa da realidade. mas uma incerteza acerca da natureza de
Refiro-me ainda aos casos em que um fato ou de um ato, que, porém, uma vez
uma mesma norma constitucional dá lugar superada, conduz naturalmente à aplicação
a um ordenamento axiológico. Por exem- dessa ou aquela norma constitucional.
plo, a Constituição italiana (e, igualmente Ser por exemplo, escrevo um livro,
para outras cartas constitucionais) subor- pode ser muito importante que se estabele-
dina o exercício da liberdade de imprensa ça se o mesmo constitui uma mera expres-
(artigo 21) ou da liberdade religiosa (artigo são da ‘usual’ liberdade de imprensa, re-
19), em especial pelo que concerne às prá- conhecida pelo artigo 21 da Constituição,
ticas religiosas (aos rituais), ao limite do ou se é uma obra científica que, como tal,
bom costume. Eis que, com referência aos goza da liberdade privilegiada das quais se
casos respectivamente previstos pelos arti- beneficiam as obras artísticas e científicas
gos já mencionados, o valor do bom costu- com base no artigo 33 (os limites, de fato,
me é considerado, todavia, predominante das duas liberdades não são coincidentes).
sobre o valor da livre expressão do pensa- Uma vez anulado o dilema, a aplicação ao
mento por meio da imprensa ou da liberda- caso será de uma, e de uma única norma,
de religiosa. E ainda mais, a Constituição sem que se assista a algum conflito entre
solenemente afirma a igualdade moral e ju- as mesmas.
rídica entre os cônjuges no seio da família,
mas admite que a própria igualdade possa 5.4. Finalmente da reflexão que estou
ir de encontro a limites em nome do valor, fazendo agora, todavia, preocupa-me fixar
evidentemente considerado predominante, a atenção sobre os únicos casos de confli-
da unidade da família (artigo 29). tos entre valores no sentido restrito, que
Nesses e em outros casos, nenhuma - como indicava pouco antes - acontecem
dúvida teórica pode, portanto, existir acerca quando dois ou mais valores (e as relativas
da ordem axiológica estabelecida pela lei normas constitucionais) convergem sobre
fundamental; a dúvida, eventualmente, pode o mesmo caso e pretendem dar-lhe a única,
existir (e não poucas vezes é muito comple- absolutizante qualificação ou quando um
xo explicá-la) acerca da qualificação de um mesmo valor é chamado por duas normas
comportamento ou de um ato: por exemplo, em mútuo conflito.
se concretamente um certo ritual religioso Os dois casos devem ser estudados
ou um certo artigo na imprensa superam, ou separadamente, mesmo se a prática ensi-
não, o limite do bom costume. na que, na maioria das vezes, podem ser
Observa-se, como no exemplo aci- confundidos reciprocamente ou refluir um
ma, que o ponto crucial para a resolução no outro.
de um caso está justamente no reconheci- Suponhamos que sejam dadas duas
mento da natureza de um ‘fato’: na quali- normas de lei em conflito, a velha e a nova
ficação, em suma, dos caracteres materiais que, com base no cânone cronológico, pre-
do caso, antes mesmo que na interpretação tenda tomar o seu lugar, e que se reconheça
do parâmetro constitucional e, em geral, que ambas gozam de cobertura constitucio-
dos dados normativos (que, em todo caso, nal. Nesse caso, é necessário questionarmos
são às vezes muito difíceis). se as normas de cobertura são, ou não, do
5.3. Além disso, deve-se ter presen- mesmo grau. Se não o são, enquanto que
te que, ainda em outros casos, não se tem uma é regra e a outra um princípio, a so-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


66 Antonio Ruggeri

lução conduz naturalmente para dar a ante- campo. Quando, porém, chega-se ao teto
rioridade àquela norma dotada de proteção do ordenamento (das normas ‘superconsti-
mais forte (significado diferente é aquele do tucionais’), não é possível em tese ir além,
reconhecimento da estrutura e/ou da natu- porque além existe somente o direito natu-
reza de simples normas: problema muito ral (para aqueles que nele crêem) ou valo-
árduo, como se sabe, do momento em que res, todavia, não positivizados.
não se dispõe de uma medida segura para Temos que os conflitos no maior ní-
distinguir umas das outras, mas que deve vel da escala hierárquica não podem ser
ser enfrentado e resolvido toda vez). resolvidos aplicando-se a ‘pura’ lógica ju-
Ao contrário, no caso em que ambas rídica (digo: a lógica formal), que é em tais
as normas de cobertura sejam regras, tra- casos forçada a capitular, mas exigem ser
ta-se posteriormente de se questionar se enfrentados e resolvidos com técnicas de
uma das duas possa reivindicar para si, o outra natureza.
título de ser diretamente e imediatamente Por exemplo, pensando-se no con-
especificativa-atuativa de um princípio, di- flito que existe entre a liberdade religiosa
ferentemente da outra que não possui esse (artigo 19) e direito à saúde (artigo 32)
título: no qual caso, como se vê, voltaría- sempre que, em nome da primeira, exista
mos à hipótese logo acima descrita. um obstáculo que comprometa totalmen-
A questão, o contrário, complica-se te a realização do segundo (lembramos
terrivelmente quando ambas as regras de sobre a recusa das Testemunhas de Jeová
cobertura sejam atualizadoras de modo nos confrontos das transfusões de san-
imediato e direto de princípios e igualmen- gue). E então se pode ter uma hierarquia
te diferentes ou, quiçá, do mesmo princí- entre religião e saúde (ou, precisamente, à
pio. Nesse caso o conflito então se desloca vida)? Não podemos esquecer que, mesmo
de um grau e se coloca no teto do ordena- em nome da primeira, os mártires cristãos
mento jurídico. Assiste-se então, como se deram a sua vida; e não se deve esquecer,
fazia há pouco notar, aos casos mais dra- pois, o fato que tanto a liberdade quanto
máticos de conflito axiológico, que se têm o direito, podem ser considerados imedia-
quando dois princípios se rebelam um con- tamente e diretamente descendentes do
tra o outro, ou, precisamente, um mesmo valor do artigo 2 da Constituição, onde é
princípio volta-se contra si mesmo. solenemente afirmado que ‘a República
Essa última hipótese é, contudo, reconhece e garante os direitos invioláveis
muito mais freqüentes do que parece à pri- do homem, seja como indivíduo seja nas
meira vista e mostra os limites evidentes formações sociais onde desenvolve a sua
aos quais a lógica formal vai de encontro personalidade’. É verdade que constituem
no momento em que se tenta aplicá-la aos manifestações ou especificações diversas
conflitos máximos. do valor do reconhecimento dos direitos
Realmente, até quando é possível su- invioláveis, mas certamente - abstrata-
bir os degraus cada vez mais altos da esca- mente - não graduáveis. Além disso, uma
la hierárquica, na busca das coberturas de graduação deve ser feita concretamente: é
valor a favor das normas ou dos interesses uma imposição dada no caso da vida que
em campo? A lógica indutiva ou até aquela coloca em mútua oposição a liberdade e o
dedutiva, segundo a direção empreendi- direito mencionados.
da para reunir as normas ordinárias com Não são as normas ou os valores
as constitucionais, pode ser colocada em por elas expressos que se dirigem natural-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 67

mente uns contra os outros: considerados tudo, opor-se em nenhum caso a vontade
abstratamente, separadamente dos casos soberana do poder constituinte (e ao seu
da vida, os artigos 19 e 32 parecem estar produto normativo objetivado, a Constitui-
em perfeita harmonia. São os casos da vida ção), que, ao contrário, são mantidas para
que mais os constrangem - pode-se dizer servir e para serem observadas. E, todavia,
inaturalmente - a rebelar-se um contra o as próprias decisões podem momentanea-
outro. E os casos reivindicam, todavia, mente privar de efeitos normas da lei fun-
uma solução: uma solução que não será damental significativas de valores recessi-
‘jurídica’ ou, melhor, juridicamente ‘pura’, vos em sede de ‘balanceamento’. São os
no sentido de fruto de aplicação da lógi- casos da vida que obrigam a fazer isso, por
ca formal às dinâmicas da normação, mas mais doloroso que possa ser.
uma solução que, para um bom resultado, No caso das Testemunhas de Jeová,
deve ser dada. dando-se – como a legislação e a jurispru-
Em outros casos, o conflito de um dência finalmente concluíram por dar - a
valor em si mesmo apresenta-se na sua supremacia ao direito à saúde, coloca-se
forma mais genuína e dramaticamente ex- de lado a liberdade religiosa. Pode-se dizer
pressiva. que essa é a solução justa. Talvez. Não pre-
Pensando-se no aborto, onde é o tendo agora dar lugar a uma discussão in-
mesmo direito, aquele à vida, do qual se terminável sobre esse assunto. Apropriado,
fazem portadores diferentes sujeitos, que porém, é que a liberdade religiosa é, nesse
se rebela contra si mesmo (não discuto a modo, inteiramente sacrificada.
natureza do feto, que, todavia, a jurispru- O aborto. Consentir à sua realização,
dência constitucional reconheceu ser uma mesmo que só em certas condições rigoro-
pessoa humana). samente permitidas, não impede que uma
Nesses e em outros casos seme- vida humana vá, todavia, perdida; e, quan-
lhantes, se toca com as mãos verdadeiros do se perde uma vida ainda que única, so-
‘balanceamentos’, no sentido de soluções fre sempre a humanidade inteira.
compromissórias e equilibradas, igual- Onde está nos casos acima citados
mente adequadas para satisfazer, seja so- (mas em muitos outros também), o ‘balan-
mente em parte, ambos os valores em con- ceamento’ igualitário entre valores opos-
flito, que não podem acontecer. Tem-se a tos? Onde aquele direito ‘dúctil’ que prega
‘colocação entre parênteses’, seja ainda a uma doutrina sensível (G. Zagrebelsky), e
momentânea suspensão, em relação a um que todos gostaríamos de ver sempre re-
caso, da eficácia da norma constitucional alizado, mas que (temo), na maioria das
portadora do valor recessivo. A corte não vezes, é inatingível?
pode, obviamente, anular uma norma da
Constituição, enquanto pode anular uma 6. A razoabilidade, em uma das suas
norma de lei constitucional, pelo simples formas mais significativas, é adequação
fato, de todos conhecido, que a primeira da norma ao ‘fato’, às exigências dos bens
traz consigo impressa a imagem do poder da vida necessitados de satisfação (L.
constituinte: seria como se insensatamen- D’Andrea).
te pensasse em serrar o galho da árvore É interessante notar como a adequa-
sobre o qual está sentada! As decisões da ção das normas ao valor e a adequação das
Corte são realmente sempre significativas normas aos ‘fatos’ são apenas aparente-
de poder constituído, e não podem, con- mente distinguíveis entre elas, mas na re-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


68 Antonio Ruggeri

alidade, na viva experiência jurídica, são em suma, existem interesses nacionais ou


uma única ‘coisa’. supranacionais que exigem, todavia, ser
Um exemplo vale mais do que qual- protegidos, aí a competência é do estado,
quer outro discurso de ordem teórica geral assim como onde estão em jogo interesses
para esclarecer o conceito. locais a competência é das regiões.
Pensando-se, portanto, no outro crité- O ‘balanceamento’ entre o valor
rio de sistematização das fontes, aquele da de unidade e o valor de autonomia am-
competência ou da separação das compe- bos reconhecidos merecedores de tutela
tências (V. Crisafulli). As relações entre as pelo princípio fundamental pelo artigo 5
leis de Estado e Regiões constituem, para a da Constituição, deve ser então efetuado
doutrina usual, um dos mais visíveis e ex- concretamente com base na natureza dos
pressivos testemunhos: cada uma das duas interesses confiados à vigilância, respecti-
leis tem, de fato, seus próprios âmbitos de vamente, das leis estatais e das leis regio-
competência, com base nos catálogos de nais. Desse modo, a conformidade das leis
matérias contidos na Constituição. Tenha- ao valor ou, melhor, à síntese dos valores
se, todavia, presente que, enquanto em mencionados coincide com a concordância
relação a algumas matérias a competência das próprias leis da natureza dos interesses,
das Regiões parece ser exclusiva ou plena, ou seja, com a sua própria razoabilidade.
igualmente se pode assistir ao ingresso nos Ainda uma confirmação da possibi-
campos regionais de leis estatais adotadas lidade de reconduzir à razoabilidade todos
para garantia do bem da unidade-indivi- os critérios (aqui, aquele da competência)
sível do ordenamento e idôneas para vin- com cujas fontes (ou melhor, as normas)
cular diversamente a autonomia regional são compostas em sistema: uma razoabili-
(por exemplo, as leis estatais com as quais dade que se mostra no seu significado qua-
se determinam ‘os níveis essenciais’ das lificante de congruência da norma, simul-
prestações concernentes aos direitos civis taneamente, seja ao valor que ao ‘fato’.
e sociais, que devem ser uniformes no in- O exemplo dado é, pois, muito ins-
teiro território da República: artigos 117, trutivo ainda por um outro aspecto, co-
II parágrafo, letra m). Em outras matérias, mumente um tanto negligenciado também
o poder legislativo é repartido entre o Es- pela mais acreditada teoria das fontes; e é
tado e as Regiões (em um sentido, todavia, que os parâmetros constitucionais, particu-
diferente daquele que é próprio da konkur- larmente os parâmetros mais expressivos
rierende Gesetzgebung do ordenamento de valores (os princípios fundamentais),
alemão): um é, de fato, competente para remetem naturalmente aos ‘fatos’ ou aos
dar a disciplina de princípio (a pôr - como interesses por eles previstos ao final da ve-
diz o artigo 117, III parágrafo, os ‘princí- rificação da constitucionalidade das leis e
pios fundamentais’), as outras para dar a dos atos produtivos de normas em geral. A
disciplina pormenorizada ou de detalhe, análise da estrutura das disposições cons-
com regras. titucionais confirma que ela resulta com-
A jurisprudência constitucional tem posta não exclusivamente por ‘materiais’
afirmado repetidamente que a verificação normativos, mas ainda - e, principalmente
do respeito das competências por parte - por materiais ‘factuais’: no ‘recipiente’
das leis tanto do Estado quanto das Regi- constitucional se introduz, finalmente, ele-
ões deve ser cumprida com base nos inte- mentos extraídos da realidade que passam
resses em campo, da sua natureza: onde, a compor o parâmetro, regeneram-no se-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 69

manticamente sem pausa e desenvolvem, táveis. Trata-se antes de encontrar o modo


ao contrário, justamente o papel de maior para circunscrevê-las quanto maior possí-
relevo em sede de qualificação da constitu- vel é o alcance.
cionalidade. E, uma vez que os ‘fatos’ ou Disso acrescenta-se finalmente o mo-
os interesses estão em contínua transfor- mento de tratar com a necessária rapidez
mação (um mesmo interesse, por exemplo, essa reflexão.
em um primeiro momento pode parecer
como nacional e um segundo como local, 7. O problema, nesse ponto, deslo-
e vice-versa), eis que os mesmos parâme- ca-se sobre as técnicas que podem ser util-
tros são transpassados por um movimento mente colocadas em campo para dar lugar
incessante: transformam, ou antes, são, ou aos ‘balanceamentos’ e principalmente às
melhor, são enquanto se transformam. formas utilizadas para o controle do seu
A Constituição é, em suma, mais que uso correto.
um ato, um processo (A. Spadaro): seja A jurisprudência constitucional é fre-
pelo fato que a linguagem da Constituição qüente em afirmar que os conflitos entre
sofre contínuas mudanças de significado, valores recebem a sua composição graças
tal como a linguagem comum, também com à técnica da razoabilidade e acrescenta-se
base nas solicitações que derivam dos atos que a mesma, graças à sua flexibilidade
inferiores (G. Silvestri), e seja pelo fato que estrutural, é apropriada às sentenças axio-
mudam continuamente a natureza e as com- lógicas, de qualquer modo, adequada aos
binações dos interesses em campo, os seus casos, às exigências por elas expressas de
‘balanceamentos’ na realidade (F. Viola - G. um ‘balanceamento’ que não comporte o
Zaccaria, L. Mengini, A. Ruggeri). sacrifício de um valor em vantagem de um
Os valores, na sua formulação abstra- outro.
ta, permanecem sempre idênticos a si mes- Notou-se pelos exemplos dados que
mos (no exemplo citado, o valor de unida- esse sacrifício é, pelo menos em alguns
de-indivisibilidade da República e o valor casos, inevitável. A razoabilidade é exclu-
da promoção da autonomia); mas os modos sivamente a forma através da qual se torna
com os quais os próprios valores tomam demonstrada a vontade ou a ideologia da
corpo na experiência renovam-se continu- Corte. A razoabilidade é, em suma, uma
amente, exatamente enquanto experiência máscara ideológica, um tipo de deus ex
não é, mas transforma. A única técnica que machina, que vem do céu - como nas tra-
consegue dar uma ordem segundo valor às gédias gregas - para resolver situações es-
dinâmicas produtivas é a razoabilidade, que pecialmente embaraçadas que os homens
no momento em que é aplicada aos casos da por si sós não seriam capazes de encarar.
vida reúne fatos e normas, ser e dever ser, e E a Corte não pode dizer nada mais
ambos orienta para os valores. do que diz, senão renegaria a si mesma,
Nota-se então alguns riscos e algu- ou melhor, se privaria da legitimação da
mas incertezas que sempre acompanham qual tem constante necessidade. A Corte
à utilização da técnica da razoabilidade e não pode admitir que os ‘balanceamentos’
do enorme poder do qual é naturalmente operados sejam frutos da sua ideologia ou
dotado o juiz das leis que delas dispõe. E, cultura, e não apenas da ascética ou neutra
incertezas e riscos acima mencionados fa- aplicação de uma impossível lógica jurídi-
zem parte das habituais práticas jurídicas co-formal; não pode, certamente, impor à
e, pelo menos em certa medida, são inevi- força da própria concepção do mundo.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


70 Antonio Ruggeri

Retomando, ainda por um momento, vontade anteriormente expressa. O legisla-


um exemplo já dado, cada um de nós, se dor não é levado a explicar as razões pela
chamado para opinar sobre o aborto, pode qual dá lugar a um certo ‘balanceamento’
puramente e simplesmente declarar qual axiológico, mesmo se - naturalmente - nem
é o seu pensamento em relação a isso, é todos os efeitos lhe são permitidos, deven-
exatamente assim como faz em relação do-se a todos manter no interior da moldu-
a qualquer outra questão jurídica social. ra constitucional.
Mas, a Corte não pode certamente dizer ser A Corte constitucional e os juízes, ao
a favor ou contra o aborto, enquanto essa contrário, são levados a justificar as suas
é, puramente e simplesmente, a ideologia decisões. A Corte, em especial, apresen-
dominante no seu interno. ta os próprios ‘balanceamentos’ como as
Faz bem, portanto, a Corte em apre- únicas soluções possíveis nos singulares
sentar como demonstrações invencíveis os casos, como as únicas justas, adequadas
veredictos que entrega a cidadãos e ope- aos próprios casos, perfeitamente ‘balan-
radores para que façam uma escrupulosa ceadas’ de fato. E, como dizia, faz bem em
aplicação. Mas, as demonstrações pressu- fazer assim. E, todavia, mesmo enquanto
põem a supra-ordenação das normas, as a Corte é operadora jurisdicional, os seus
bases sobre as quais elas são conjugadas, ‘balanceamentos’ não dispõem da ampli-
a respeito dos antagonismos em campo; e tude de raio que é própria dos operadores
aqui, contudo, antagonistas são as próprias políticos. A Corte deve apresentá-los sem-
normas do ápice do ordenamento, os prin- pre como aplicações de normas superiores,
cípios fundamentais que se enfrentam sem mesmo quando não o é efetivamente.
intermediários e sem economia de golpes. A verdade é que, justamente pelo fato
Existe uma diferença fundamental que a lógica formal é aqui forçada muitas
entre os ‘balanceamentos’ que pode fazer vezes a ceder, devem socorrer-se de outros
cada um de nós ou que faz o próprio legis- recursos, adequados para garantir contra o
lador, por um lado, e aqueles que, ao con- arbítrio do próprio endossante máximo da
trário, faz a Corte ou fazem os juízos em legalidade constitucional.
geral, por outro lado. Há tempo com respeito a isso ponde-
Cada um de nós pode mudar até ra- ro sobre uma ‘dupla coerência’ da jurispru-
dicalmente de idéia sobre um mesmo pro- dência constitucional. Existe, de fato, uma
blema, sem nem ao menos dizer o porquê; coerência interna à simples pronúncia,
e do mesmo modo, o legislador pode, que- pela qual, fixadas algumas premissas (e –
rendo, rever do começo ao fim uma sua admita-se - na maioria das vezes livremen-
decisão política anterior, reescrevendo e te fixadas), descendem (devem descender)
variavelmente modificando um texto de algumas conseqüências, intimamente e ne-
leis, ab-rogando-o inteiramente, acrescen- cessariamente ligadas às mesmas premis-
tando-lhes novos, etc. O leque das possibi- sas. E existe, pois, uma coerência externa,
lidades que em consideração se oferecem que diferentemente da primeira é do tipo
ao legislador é praticamente muito amplo, diacrônico, pela qual as decisões que têm o
mesmo porque o legislador faz política e, mesmo objeto resultam (e devem resultar)
no respeito da Constituição (e do cânone uniformemente adotadas, a ponto de com-
da razoabilidade...), pode retornar nos pró- por um mesmo endereço jurisprudencial
prios passos, manifestando uma vontade que se renova somente no próprio interior
até profundamente divergente da outra (mas a pequenos passos), ficando em todo

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 71

modo sempre idêntico a si mesmo. A reno- E, ao fazer isso, a Corte faz, substancial-
vação pode ser às vezes até radical, dando mente, tudo o que faz o próprio legislador:
vida a verdadeiros e próprios revirement adota uma decisão política mascarada de
jurisprudenciais, mas à única condição que formas jurídicas. E, a Corte recupera e
resulte mudada a ‘situação normativa’ de (deve recuperar) a sua íntima e indisponí-
partida, vista no conjunto dos elementos vel natureza de operador jurisdicional pelo
normativos e factuais que a compõem. modo com que chega à própria decisão,
Neste caso, a mudança de jurisprudência ou seja, pelo procedimento no decorrer do
não só é lícita, mas até obrigatória, mesmo qual a decisão se aperfeiçoa, as técnicas
enquanto seja uma singular pronúncia ju- que permitem a formação, as formas das
dicial que a jurisprudência no seu comple- quais se reveste.
xo devem, como primeiras, aparecer como Releva nesse propósito a elaboração
racionais. Permanecendo ao contrário, não de alguns standards ou tests de juízo que
mudada a ‘situação normativa’ de partida, a a Corte é obrigada a aplicar de modo uni-
Corte não pode tratar um mesmo caso, que forme, mesmo como juiz, seja apenas um
apresente os mesmos objetivos, em modos juiz diferente dos outros. São os standar-
radicalmente diversos: seria irracional jus- ds mencionados que garantem a coerência
tamente se o fizesse, pelo fato que dessa da jurisprudência, nas suas duas projeções
maneira a Corte renegaria a sua própria na- ou manifestações mencionadas (como co-
tureza de órgão jurisdicional, convertendo- erência interna e como coerência externa).
se em um órgão puramente político: não Nesse plano a diferença entre as decisões
daria mais, em suma, certezas de direito políticas assumidas pelo legislador e as de-
constitucional, mas, ao contrário, daria de cisões políticas da Corte é substancial. Ou
si mesma a imagem do operador que se im- melhor, o é em teoria. Inclina-se, todavia,
põe com a força. Justamente pela razão que na prática a empalidecer com referência
os ‘balanceamentos’ efetuados pela Corte aos casos em que os próprios standards se
apresentam caráter concreto, em relação apresentam como excessivamente vagos e
às peculiares exigências totais dos casos conceitualmente indeterminados, presta-se
singulares, diferentemente dos ‘balancea- a fáceis manipulações da sua substância
mentos’ efetuados pelo legislador que são apresentadas, ao contrário, como fiéis e
abstratos, assim como abstratas são as dis- uniformes aplicações.
posições normativas que os incluem e ex-
primem, exige-se a implantação de certas 8. Aquilo que, em todo modo, é certo
‘constantes’, freqüentemente respeitadas é que a jurisprudência é obrigada a medir-
pela própria Corte, nas quais se reflete a se continuamente consigo mesma, disso
alma jurisdicional do juiz das leis. dependendo a sua razão. A Corte julga a
Prestemos atenção, somente por um razão das leis, submete-as ao controle de
momento, nesse ponto. constitucionalidade os ‘balanceamentos’
Viu-se que a Corte nos seus ‘balan- de valores incluídos nos textos de lei. Mas
ceamentos’ entre valores fundamentais não as suas pronúncias têm um sentido somen-
dá, pelo menos em alguns casos, lugar à te enquanto elas sejam em primeiro lugar
aplicação da lógica formal, mas deduz a razoáveis. No perfil dos efeitos, a diferen-
solução do caso exclusivamente por uma ça fundamental entre a posição do legisla-
ordenação hierárquica entre os próprios dor e aquela da Corte, entre os dois ‘tipos’
valores, que é fruto de escolha ideológica. de razoabilidade, é que aquela uma está

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


72 Antonio Ruggeri

sujeita ao controle de validade, enquan- norma de lei precedentemente anulada pela


to a outra é, ao contrário, expressamente segunda. Em tais circunstâncias, assiste-se
excluída de qualquer impugnação (assim, a uma violação (uma verdadeira e própria
expressamente, o artigo 137, último pará- fraude) nos confrontos do julgado consti-
grafo, da Constituição). tucional, que em essência deve ser julga-
A razoabilidade dos ‘balanceamen- da como ilegítima, mas que, justamente,
tos’ realizados pelo legislador é inferior a torna-se legítima enquanto realizado para
algumas verificações que, por sua natureza, enfrentar o veredicto da Corte irrazoável
permanecem excluídas da razoabilidade dos no sentido anteriormente afirmado. Ob-
‘balanceamentos’ da Corte. viamente, trata-se, pois de inquirir quem
É justo que seja assim. A jurisprudên- tenha o título para fazer tais avaliações.
cia constitucional é, de fato, o ‘lugar’ de É claro, porém, que em última instância
fechamento das dinâmicas do ordenamen- é o princípio de efetividade que estabele-
to, mesmo com as justificações que desen- ce qual parte é a que está com a razão ou
volverei a seguir. Se os veredictos da Corte não. Trata-se, em suma, de observar que se
pudessem ser voltar à discussão em outra implantem os verdadeiros e próprios cos-
situação jurisdicional, o ordenamento gira- tumes em um sentido ou em outro.
ria no vazio e não disporia de um ponto fixo Se, por exemplo, a Corte encontra
de unificação-integração interna. A Corte é, em si a força para anular até a lei que re-
portanto, o lugar em que se formam as ‘ver- produziu outra lei já anulada e o fato não
dades’ (no sentido processual) de direito determine uma reação posterior por parte
constitucional, em cujo direito constitucio- do legislador, confirmaremos o fato de
nal adquire certeza, estabilidade. que a própria reprodução era ilegítima,
Duas observações devem ser feitas a por violação do julgado constitucional. Se,
respeito. ao contrário, a Corte é forçada a se dobrar
A primeira, óbvia, é aquela que agora perante o fato reprodutivo, principalmente
volta à mente, simplesmente, para dar um enquanto ao mesmo tempo seja oferecido
mínimo de organicidade (se não de integri- um consenso difuso por parte da comuni-
dade) à reflexão que se fazia, é que também dade e dos outros operadores (administra-
as decisões da Corte, por mais que sejam dores e juízes comuns), afirmaremos que a
juridicamente não impugnáveis, sujeitam- violação do julgado constitucional era per-
se sempre à crítica difusa (da comunidade, feitamente lícita, exatamente como ilícito
dos estudiosos, dos operadores). Em última era o próprio julgado.
instância, na presença de decisões ‘mons- A segunda observação é que as di-
truosas’, já que irracionais, evidentemente, nâmicas institucionais, do qual se compõe
desperta o direito de resistência tanto dos ordenamento e através das quais incessan-
cidadãos quanto das outras instituições, temente esse se renova, não têm sempre e
como se pode manifestar na desaplicação só na Corte o lugar onde se aperfeiçoa uma
de um veredicto da Corte julgado não con- atividade de justiça constitucional.
forme aos princípios fundamentais e à sua Em relação a isso é necessário indi-
combinação segundo os casos. car que a distinção entre sistemas de jus-
Por exemplo, uma hipótese de re- tiça constitucional assim chamada difusa
sistência do Parlamento à Corte pode ser e sistemas de justiça centralizada, pelo
considerada aquela que se tem todas às ve- modo com que é comumente entendida e
zes que o primeiro reaprova tal e qual uma representada, é muitas vezes enganosa. A

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


“BALANCEAMENTOS” 73

realidade é, antes, muito mais complexa da: não poucas vezes, a Corte salva, em um
e internamente articulada, diríamos até: primeiro momento, um texto de lei, na cons-
‘fluida’. Em especial, no nosso ordena- ciência da maior nocividade do vazio que se
mento, existem traços muito marcantes e criaria, solicitando, todavia, uma imediata e
visíveis deixados por elementos usualmen- enérgica intervenção por parte do legisla-
te considerados próprios dos sistemas de dor; no caso desse último não acontecer, a
jurisdição difusa (E. Malfatti - R. Rombioli Corte reserva-se o direito de sancionar em
- E. Rossi, curr.). Não pude, todavia, tratar um momento sucessivo a inércia do legis-
desse assunto com a devida profundidade. lador com a anulação da lei não adequada-
Gostaria, contudo de indicar somente um mente reescrita pelo seu autor.
fenômeno que é ainda pouco estudado e Outras vezes a Corte dá lugar, desde
que apresenta um notável interesse teórico o início à anulação, no sentido que declara
e também um relevo prático. inconstitucional um texto de lei, mas so-
A fim de estabelecer em que medida mente enquanto omite-se em conter uma
ou objetivo o nosso sistema é realmente norma de princípio que deveria ter desde o
aquele próprio de uma justiça constitucio- início (C. Salazar). Em tais casos, a Corte
nal centralizada, é necessário questionar se em boa substância manipula o texto de lei,
todas as operações de justiça se cumprem reescreve-o, mas apenas em modo soft, não
e se exaurem somente na sede da Corte. o integra com regras, mas unicamente com
Assim, porém, no meu parecer, não é con- um princípio inexistente ilegitimamente. E
firmado, até por uma observação superfi- o próprio princípio é consignado, ao mes-
cial das questões de constitucionalidade mo tempo, tanto pelo legislador quanto pe-
levantadas perante a Corte e do modo em los juízes (e pelos administradores) a fim
que elas são resolvidas. A verdade é que, de que, cada um, segundo as próprias com-
não raramente, os ‘balanceamentos’ feitos petências, desenvolvam-no e apliquem-no:
pela Corte são incompletos, postergando- o legislador produzindo as regras atuativas
se, ao seu aperfeiçoamento completo, para do próprio princípio, o juiz extraindo as re-
futuros ‘balanceamentos’, que exigem ser gras para aplicar, mesmo provisoriamente
feitos ora pelo legislador, ora pelos juízes (na espera da obrigatória intervenção do
e pelos práticos em geral. Nesse modo, a legislador), aos casos.
dinâmica das relações entre a Corte e os A justiça constitucional apresenta-se,
operadores restantes não se fecha definiti- em circunstâncias tais, como uma espécie
vamente junto à própria Corte, mas se põe de work in progress, que se inicia durante
novamente em movimento, abrindo-se a a Corte constitucional (apesar disso, com
seus posteriores e imprevisíveis desenvol- base na solicitação proveniente dos juízes,
vimentos. que chamam em campo a própria Corte) e
Muitas vezes as decisões da Corte so- se aperfeiçoa, portanto, em situações diver-
licitam um ‘seqüência’ que só o legislador sas. E as atividades que em tais situações
pode dar a elas um caráter mais adequado: são realizadas estão, naturalmente, sujei-
exigem ser especificadas e atuadas legisla- tas a um eventual e posterior controle de
tivamente, ficando, em todo caso, a salvo constitucionalidade. E assim por diante: o
a possibilidade de submeter a um controle ‘círculo’ constitucional fecha-se, mas o seu
posterior a atividade realizada pelo legisla- interior caracteriza-se por um movimento
dor. Ainda a perdurante inércia no legislar incessante, que leva da Corte aos outros
pode, dentro de certos limites, ser sanciona- operadores, e desses para ela novamente.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


74 Antonio Ruggeri

Nós nos damos conta, dessa maneira, CHESSA, Omar, Principi, valori e interessi
que os ‘balanceamentos’ nunca têm fim, nel ragionevole bilanciamento dei diritti, in M.
que se reproduzem e multiplicam por si LA TORRE, Massimo - SPADARO, Antonino
mesmos, pouco a pouco o ‘jogo’ axioló- (curr.), La ragionevolezza nel diritto, Torino,
Giappichelli, 2002, p. 207 ss.
gico realizado nos vários níveis institucio-
CRISAFULLI, Vezio, Gerarchia e competenza
nais desenvolve-se durante os canais cons- nel sistema costituzionale delle fonti. Rivista
titucionalmente construídos. A afirmação trimestrale di diritto pubblico, Milano, 1960,
corrente segundo a qual a Corte é um órgão p. 775 ss.
de ‘fechamento’ do ordenamento, o órgão D’ANDREA, Luigi, Ragionevolezza e legitti-
que dá certezas do direito constitucional e mazione del sistema, Milano, Giuffrè, 2005.
coloca a palavra ‘fim’ às dinâmicas insti- MALFATTI, Elena – ROMBOLI, Roberto
tucionais que, de outro modo, resultariam – ROSSI, Emanuele (curr.), Il giudizio sulle
caracterizadas por uma taxa crescente de leggi e la sua “diffusione”. Verso un controllo
di costituzionalità di tipo diffuso?, Torino, Gia-
conflitualidade interna, deve ser, portanto,
ppichelli, 2002.
especificada e corrigida com base na indi- MENGONI, Luigi, Il diritto costituzionale
cação acima citada. come diritto per principi. Ars interpretandi, Pa-
A Corte, de fato, coloca-se, todavia, dova, 1996, p. 95 ss.
com os seus ‘balanceamentos’, como pon- ROSS, Alf, Theorie der Rechtsquellen, Lei-
to de integração e fator de orientação para pzig-Wien, Deuticke, 1929.
as dinâmicas que se implantam e desen- RUGGERI, Antonio, Fatti e norme nei giudizi
sulle leggi e le “metamorfosi” dei criteri ordi-
volvem com base nas pronúncias emitidas
natori delle fonti, Torino, Giappichelli, 1994.
pela própria Corte. Nenhum operador (nem RUGGERI, Antonio, Giurisprudenza costi-
mesmo a Corte), pode reivindicar para si o tuzionale e valori. Diritto pubblico, Padova,
título de único ou autêntico intérprete da 1/1998, p. 1 ss.
Constituição e dos seus valores, é conve- RUGGERI, Antonio, Principio di ragionevole-
niente que a interpretação da Constituição zza e specificità dell’interpretazione costituzio-
nale. Ars interpretandi, Padova, 2002, p. 261 ss.
e a sua realização seja fruto de um ‘jogo’ RUGGERI, Antonio, Metodi e dottrine dei
complexo ao qual, mesmo com diversida- costituzionalisti ed orientamenti della giuris-
de de papéis, todos são chamados, ao que prudenza costituzionale in tema di fonti e della
a própria doutrina jurídica não se mantém loro composizione in sistema. Diritto e società,
absolutamente estranha, com a sua obser- Padova, 1/2000, p. 141 ss.
SALAZAR, Carmela, Dal riconoscimento alla
vação crítica da experiência e as solicita-
garanzia dei diritti sociali. Orientamenti e tec-
ções que incessantemente dirige a uma niche decisorie della Corte costituzionale a
correta e crescente realização dos valores confronto, Torino, Giappichelli, 2000.
constitucionais. SILVESTRI, Gaetano, Linguaggio della Cos-
tituzione e linguaggio giuridico: un rapporto
complesso. Quaderni costituzionali, Bologna,
REFERÊNCIAS 1989, p. 229 ss.
SILVESTRI, Gaetano, Lo Stato senza principe.
BALDASSARRE, Antonio, Costituzione e te- La sovranità dei valori nelle democrazie plura-
oria dei valori. Politica del diritto, Bologna, liste, Torino, Giappichelli, 2005.
1991, p. 639 ss. SPADARO, Antonino, Contributo per una te-
BIN, Roberto, Diritti e argomenti. Il bilancia- oria della Costituzione, I, Fra democrazia re-
mento degli interessi nella giurisprudenza cos- lativista e assolutismo etico, Milano, Giuffrè,
tituzionale, Milano, Giuffrè, 1992. 1994.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


75

SPADARO, Antonino, Dalla Costituzione come F. VIOLA - G. ZACCARIA, Diritto e interpre-


“atto” (puntuale nel tempo) alla Costituzione tazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del
come “processo” (storico). Ovvero della conti- diritto, 2. ed., Roma-Bari, Laterza, 2004.
nua evoluzione del parametro costituzionale at- ZAGREBELSKY, Gustavo, Il diritto mite. Leg-
traverso i giudizi di costituzionalità. Quaderni ge diritti giustizia, Torino, Einaudi, 1992.
costituzionali, Bologna, 1998, p. 341 ss.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


76

EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO


ADMINISTRATIVO
( EL DERECHO ADMINISTRATIVO CONSTITUCIONAL)
The Constitutional Mark of Administrative Law
(the Constitutional Administrative Law)

Jaime Rodríguez-Arana*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Este texto tem como fio condutor de sua análise a caracterização do direito administrativo
na perspectiva constitucional, o que traz consigo a necessidade do afastamento dos dogmas e dos
critérios interpretativos do passado em face às demandas do novo Estado Social e Democrático de
Direito, bem diferente, em sua configuração, do antigo Estado-Providência. O pressuposto de que a
garantia do interesse geral é a tarefa principal do Estado o direito administrativo deve ter presente
esta realidade, adaptando-se institucionalmente aos tempos novos, ao conduzir o gerenciamento da
atividade pública de acordo com as novas perspectivas da justiça.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Marco constitucional. Estado social e democrático de Di-
reito. Constituição espanhola. Garantia dos poderes públicos.

Abstract: This essay has as focal point the administrative law in constitutional perspective, which
brings up the necessity of retirement for dogmas and the past interpretative criterion in view of
prosecution for the new Social and Democratic State of Law, quite different, in his configuration, of
the old Providence State. The purpose in order that the guarantee of general interest is the principal
work of the State, the administrative law must have present this reality, adjusting institutionally
to the new time, conducting the managing of public activity guiding for the new perspectives of
justice.
Key Words: Administrative Law. Constitutional Mark. Social and Democratic State of Law. Span-
ish Constitution. Guarantee of public powers.

1. Introduccion de influencia del Derecho Administrativo


como Ordenamiento matriz a partir del
En la década de los ochenta del siglo cuál debía regirse jurídicamente toda ac-
pasado, sobre todo, empezó a utilizarse por tuación del aparato público, sea cual sea
parte de la doctrina un término bien expre- su caracterización normativa. En el fondo,
sivo de un fenómeno que ciertamente había se añora la posición del Derecho Adminis-
producido una cierta confusión y no poca trativo como Derecho Unico sobre el que
inquietud en cuantos se dedican al estudio debe girar el régimen jurídico de la Ad-
de nuestra disciplina: la huida del Derecho ministración pública, olvidando, con más
Administrativo. Expresión, me parece, con o menos intensidad, que existe un núcleo
la que se pretendía, y todavía se pretende básico de principios constitucionales vin-
hoy, llamar la atención sobre la pérdida culados a las actividades administrativas y

* Catedrático de Derecho Administrativo y actual Presidente de la Sección Española del Instituto Internacional de Ciencias
Administrativas.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 77

a los fondos públicos vinculados al interés distinto del del siglo pasado en la medida
general, que con su manto trascienden la en que el sustrato político y social que le
naturaleza del Derecho de que se trate en sirve de base es bien distinto, como tam-
cada caso. bién es bien distinto el modelo de Estado
Las líneas que siguen, escritas en di- actual. El Derecho Constitucional pasa,
ferentes momentos, tienen, sin embargo, el Derecho Administrativo permanece
un hilo conductor: la caracterización del es una manida y reiterada frase acuñada
Derecho Administrativo desde la pers- según parece por Otto MAYER que nos
pectiva constitucional, lo que trae consigo ayuda a entender que las instituciones tí-
necesarios replanteamientos de dogmas picas de la función administrativa, de una
y criterios, que han rendido grandes ser- u otra forma, son permanentes, pudiendo
vicios a la causa y que, por tanto, deben variar obviamente la intensidad de la pre-
sustituirse de manera serena y moderada sencia de los poderes públicos de acuerdo
por los principios que presiden el nuevo con el modelo político del Estado en cada
Estado social y democrático de Derecho, momento. Claro está, cuando me refiero al
por cierto bien diferente en su configuraci- Estado, me refiero también “mutatis mu-
ón, y en su presentación, al del nacimiento tandis” a los diferentes Entes territoriales
del Estado-Providencia y de las primeras que disponen de autonomía para la gestión
nociones sobre la conformación y direc- de sus intereses.
ción de las tareas sociales como esencial Como veremos, el entendimiento
función de competencia del Estado. Hoy, que tengamos del concepto del interés ge-
en mi opinión, la garantia del interés ge- neral a partir de la Constitución de 1978 va
neral es la principal tarea del Estado y, por a ser capital para caracterizar el denomina-
ello, el Derecho Administrativo ha de tener do Derecho Administrativo Constitucional
presente esta realidad y adecuarse, institu- que, en dos palabras, aparece vinculado al
cionalmente, a los nuevos tiempos pues, de servicio objetivo al interés y a la promo-
lo contrario perderá la ocasión de cumplir ción de los derechos fundamentales de la
la función que lo justifica, cual es la mejor persona. Quizás, la perspectiva iluminista
ordenación y gestión de la actividad públi- del interés público, de fuerte sabor revo-
ca con arreglo a la justicia. lucionario y que, en definitiva, vino a con-
Tradicionalmente, cuando nos hemos sagrar la hegemonía de la entonces clase
enfrentado con el arduo problema de selec- social emergente que dirigió con manos
cionar una perspectiva central sobre la que de hierro la burocracia, hoy ya no es com-
montar todo el Derecho Administrativo, patible con un sistema sustancialmente
hemos acudido a la aproximación subje- democrático en el que la Administraci-
tiva, objetiva o mixta. Hoy me parece que ón pública, y quien la compone, lejos de
mantener una orientación única quizás sea plantear grandes o pequeñas batallas por
una pretensión que dificulta la comprensi- afianzar su “status quo”, debe estar a ple-
ón de un sector del Derecho Público que na y exclusivamente a disposición de los
trasciende sus fronteras naturales y que ac- ciudadanos, pues no otra es la justificación
túa sobre otras realidades, años ha vedadas constitucional de la existencia de la ente-
al Derecho Administrativo, precisamente ra Administración pública. En esta línea,
por la estrechez- de miras que surge del el Derecho Administrativo Constitucional
pensamiento único, cerrado o estático. plantea la necesidad de releer y repensar
Parece también fuera de dudas que el dogmas y principios considerados hasta no
Derecho Administrativo del siglo XXI es hace mucho como las señas de identidad

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


78 Jaime Rodriguez-Arana

de una rama del Derecho que se configu- demostrando que la tarea que tiene enco-
raba esencialmente a partir del régimen de mendada de garantizar y asegurar los de-
exorbitancia de la posición jurídica de la rechos de los ciudadanos requiere de una
Administración como correlato necesario suerte de presencia pública, quizás mayor
de su papel de gestor, nada más y nada me- en intensidad que en extensión, que hace
nos, que del interés público. Insisto, no se buena aquella feliz definición del Derecho
trata de arrumbar elementos esenciales del Administrativo como el Derecho del poder
Derecho Administrativo, sino repensarlos para la libertad.
a la luz del Ordenamiento constitucional. En fin, junto a la metodología que nos
Es el caso, por ejemplo, de la ejecutividad proporciona el acercamiento a las ciencias
del acto, que ya no puede entenderse como sociales desde los postulados del pensa-
categoría absoluta sino en el marco del miento abierto, plural, dinámico y comple-
principio de tutela judicial efectiva, como mentario, es menester trabajar en el marco
consecuencia de los postulados de un pen- constitucional para extraer toda la fuerza,
samiento compatible y complementario que no es poca, que la Norma fundamental
que facilita esta tarea. encierra en orden a configurar un Derecho
Lo que está cambiando es, insisto, Administrativo más democrático en el que
el papel del interés público que, desde los el servicio objetivo al interés general ayu-
postulados del pensamiento abierto, plural, de a redefinir todas aquellos privilegios y
dinámico y complementario, aconseja el prerrogativas que no se compadecen con la
trabajo, ya iniciada hace algunos años entre existencia de una auténtica Administraci-
nosotros, de adecuar nuestras instituciones ón pública cada vez más conscientes de su
a la realidad constitucional. Tarea que se posición institucional en el sistema demo-
debe acometer sin prejuicios ni nostálgicos crático.
intentos de conservar radicalmente concep-
tos y categorías que la hoy que encajan mal 2. Interes general y Derecho Adminis-
con los parámetros constitucionales. No se trativo
trata, de ninguna manera, de una sustituci-
ón “in toto” de un cuerpo de instituciones, De un tiempo a esta parte, observa-
conceptos y categorías, por otro; no, se mos notables cambios en lo que se refiere
trata de estar pendientes de la realidad so- al entendimiento del interés general en el
cial y constitucional pare detectar los nue- sistema democrático. Probablemente, por-
vos aires que han de alumbrar los nuevos que según transcurre el tiempo, la captura
conceptos, categorías e instituciones con de este concepto por la entonces emergente
que el Derecho Administrativo, desde este burguesía- finales del siglo XVIII- que en-
punto de vista, se nos presenta, ahora en contró en la burocracia un lugar bajo el sol
una nueva versión más en consonancia con desde el que ejercer su poder, lógicamente
lo que son los elementos centrales del Es- ha ido dando lugar a nuevos enfoque más
tado social y democrático de Derecho di- abiertos, más plurales y más acordes con
námico, o también denominado de segun- el sentido de una Administración pública
da generación. Ello no quiere decir, como que ,como señala el artículo 103 de nues-
se comentará en su momento, que estemos tra Constitución “sirve con objetividad los
asistiendo al entierro de las instituciones intereses generales”. Es decir, si en la de-
clásicas del Derecho Administrativo. Más mocracia los agentes públicos son titulares
bien, hemos de afirmar, no sin radicalidad, de funciones de la colectividad y ésta está
que el nuevo Derecho Administrativo está llamada a participar en la determinación,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 79

seguimiento y evaluación de los asuntos Frente a la perspectiva cerrada de un


públicos, la necesaria esfera de autonomía interés general que es objeto de conoci-
de la que debe gozar la propia Administra- miento, y casi del dominio de la burocracia
ción ha de estar empapada de esta lógica llegamos, por aplicación del pensamiento
de servicio permanente a los intereses pú- abierto, plural, dinámico y complementa-
blicos. Y éstos, a su vez, deben abrirse, tal rio, a otra manera distinta de acercarse a lo
y como ha establecido el Tribunal Consti- común, a lo público, a lo general, en la que
tucional en 1984 a los diversos interlocu- se parte del presupuesto de que siendo las
tores sociales, en un ejercicio continuo de instituciones públicas de la ciudadanía, los
diálogo, lo cual, lejos de echar por tierra asuntos públicos deben gestionarse tenien-
las manifestaciones unilaterales de la acti- do presente en cada momento la vitalidad
vidad administrativa, plantea el desafío de de la realidad que emerge de las aportacio-
construir las instituciones, las categorías y nes ciudadanas. Por ello, vivimos en un
los conceptos de nuestra disciplina desde tiempo de participación, quizás más como
nuevos enfoques bien alejados del autori- postulado que como realidad a juzgar por
tarismo y el control del aparato administra- las consecuencias que ha traído consigo un
tivo por los que mandan en cada momento Estado de Bienestar estático que se agotó
. No es una tarea sencilla porque la historia en si mismo y que dejó a tantos millones
nos demuestra que la tensión que el poder de ciudadanos desconcertados al entrar en
crisis el fabuloso montaje de intervención
político introduce en el funcionamiento
total en la vida de los particulares.
administrativo a veces socava la necesaria
Hace algunos años, más de los que
neutralidad e imparcialidad de la Adminis-
quisiera, cuando me enfrentaba al proble-
tración en general y de los funcionarios en
ma de la definición del Derecho Adminis-
particular.
trativo al calor de las diferentes y variadas
Instituciones señeras del Derecho
teorías que el tiempo ha permitido, lejos de
Administrativo como las potestades de
entrar en el debate sobre cuál de las dos
que goza la Administración para cumplir posiciones mayoritarias era la fetén, se me
con eficacia su labor constitucional de ser- ocurrió que quizás el elemento clave para
vir con objetividad los intereses generales la definición podría encontrarse en el mar-
(ejecutividad, “ejecutoriedad”, “potestas co de lo que debía entenderse en cada mo-
variandi”, potestad sancionadora…) re- mento por interés general. Más que en la
quieren de nuevos planteamientos pues presencia de una Administración pública,
evidentemente nacieron en contextos his- para mí lo verdaderamente determinante
tóricos bien distintos y en el seno de sis- del Derecho Administrativo es la existen-
temas políticos también bien diferentes. Y, cia de un interés general que regular en
parece obvio, la potestad de autotutela de el marco del modelo de Estado en vigor.
la Administración no puede operar de la Ahora, en el llamado Estado social dinámi-
misma manera que en el siglo XIX por la co, como me gusta caracterizar el Estado
sencilla razón de que el sistema democrá- social del presente, es precisamente la idea
tico actual parece querer que el ciudadano, del interés general desde los postulados del
el administrado, ocupe una posición cen- pensamiento abierto, plural, dinámico y
tral y, por tanto, la promoción y defensa de compatible, la matriz desde la cual se pue-
sus derechos fundamentales no es algo que den entender los profundos cambios que se
tenga que tolerar la Administración sino, están operando en el seno del Derecho Ad-
más bien, hacer posible y facilitar. ministrativo moderno como puede ser el

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


80 Jaime Rodriguez-Arana

alumbramiento del concepto del servicio de los derechos fundamentales. Está apro-
de interés general o la reconsideración de ximación doctrinal, que goza del respaldo
la autotutela y ejecutividad administrativa. de la jurisprudencia del Tribunal Cons-
Hasta no hace mucho, la sociología titucional, está permitiendo, sobre todo
administrativa relataba con todo lujo de en el Derecho Comunitario Europeo, que
detalles las diferentes fórmulas de apropia- auténticas contradicciones conceptuales
ción administrativa que distinguía tantas como la del servicio público y los derechos
veces el intento centenario de la burocracia fundamentales se estén salvando desde un
por controlar los resortes del poder. Afortu- nuevo Derecho Administrativo, me atre-
nadamente, aquellas quejas y lamentos que vería a decir que más relevante que antes,
traslucían algunas novelas de Pio Baroja desde el que este nuevo entendimiento del
sobre la actuación de funcionarios que dis- interés general está ayudando a superar es-
frutaban vejando y humillando a los admi- tas confrontaciones dialécticas a partir del
nistrados desde su posición oficial, hoy es equilibrio metodológico, el pensamiento
agua pasada. Afortunadamente, las cosas abierto y la proyección de la idea demo-
han cambiado y mucho, y en términos ge- crática, cada vez con más intensidad, sobre
nerales para bien. Siendo esto así, insisto, las potestades administrativas. Lo que está
todavía quedan aspectos en los que seguir ocurriendo es bien sencillo y consecuencia
trabajando para que la ciudadanía pudiera lógica de nuevos tiempos que requieren
afirmar sin titubeos que la Administración nuevas mentalidades, pues como sentenció
ha asumido su papel de organización al hace tiempo Ihering, el gran problema de
servicio y disposición de la ciudadanía. Y, las reformas administrativas se haya en la
para ello, quienes hemos dedicado años de inercia y la resistencia a los cambios que
nuestra vida profesional a la Administra- habita en la mentalidad de las gentes. Es
ción sabemos bien que es menester seguir decir, la caracterización clásica del servicio
trabajando para que siga creciendo la sen- público (titularidad pública y exclusiva) ha
sibilidad del aparato público en general, y ido adecuándose a la realidad hasta que se
la de cada servidor público en particular, ha llegado a un punto en el que la fuerza de
en relación con los derechos y libertades de la libertad y de la realidad han terminado
los ciudadanos. Hoy el interés general mu- por construir un nuevo concepto con otras
cho tiene que ver, me parece, con incrustar características, sin enterrar nada, y menos
en el alma de las instituciones, categorías y con intención de enarbolar la bandera del
conceptos del Derecho Administrativo, un triunfo de lo privado sobre lo público, por-
contexto de equilibrio poder-libertad que que el debate conceptual ni se plantea en
vaya abandonando la idea de que la expli- estos términos ni es verdad que el Derecho
cación del entero Derecho Administrativo Administrativo haya perdido su razón de
bascula únicamente sobre la persona jurí- ser. Más bien, lo que está ocurriendo es que
dica de la Administración y sus potestades, está emergiendo un nuevo Derecho Admi-
privilegios y prerrogativas. nistrativo desde otras coordenadas y otros
postulados diferentes a los de antes. Pero,
En este sentido, siempre me ha pare-
al fin y al cabo, Derecho Administrativo.
cido de clarividente y pionero un trabajo
del profesor Garcia de Enterria de 1981 3. El articulo 103 de la constitucion es-
sobre la significación de las libertades pañola
públicas en el Derecho Administrativo en
el que afirmaba que el interés general se El marco en el que debe explicarse
encuentra precisamente en la promoción el Derecho Administrativo Español, se

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 81

encuentra en la Constitución de 1978. El primero, que “La Administración pública


Derecho Constitucional pasa, el Derecho sirve con objetividad los intereses genera-
Administrativo permanece sentenció con les y actúa de acuerdo con los principios
su habitual perspicacia Otto Mayer, tal y de eficacia, jerarquía, descentralización,
como hemos recordado con anterioridad. desconcentración y coordinación, con so-
Y, como señalara el juez Werner, en esta metimiento pleno a la Ley y al Derecho”.
línea, el Derecho Administrativo es el De- La Administración pública (estatal,
recho Constitucional concretado. autonómica o local porque se usa delibera-
Un vez superadas las lógicas polé- damente el singular para referirse a todas),
micas iniciales que se produjeron entre sirve con objetividad el interés general. Me
nosotros tras la aprobación de la Constitu- parece que es difícil haber elegido mejor
ción entre el Derecho Administrativo y el la caracterización de la función adminis-
Constitucional, debe reconocerse que las trativa en el Estado social y democrático
líneas maestras sobre las que debe pivotar de Derecho. Primero, porque la expresi-
el Derecho Administrativo del presente se ón servicio indica certeramente el sentido
encuentran en el conjunto de criterios, pa- y alcance del papel de la Administración
rámetros, vectores y principios que están en relación con la ciudadanía. En sentido
reconocidos en nuestra Constitución. contrario, bien se puede afirmar que la Ad-
En el caso que nos ocupa, me parece ministración en una democracia no es, ni
que es menester citar, que no analizar dada mucho menos, ni la dueña del interés ge-
la naturaleza de este trabajo, los artículos neral, ni la dueña de los procedimientos,
9, 10, 24, 31 y 103, como los preceptos en ni la dueña de las instituciones públicas.
los que encontramos un conjunto de ele- Está a disposición de la mejor gestión de lo
mentos constitucionales que nos ayudan a común, de lo de todos. Segundo, porque la
reconstruir las categorías, conceptos e ins- instauración del sistema constitucional en
tituciones deudores de otros tiempos y de las democracias supone un paso relevante
otros sistemas políticos a la luz del marco en orden al necesario proceso de objeti-
constitucional actual. Cualquiera que se vización del poder que supone la victoria
asome a la bibliografía española del De- del Estado liberal sobre el Antiguo Régi-
recho Administrativo, encontrará un sinfín men. La referencia, pues,a la objetividad
de estudios e investigaciones sobre la ade- es capital. Tiene dos dimensiones según la
cuación a la Constitución de las principa- apliquemos a la organización administrati-
les instituciones que han vertebrado nues- va en general, a los empleados públicos o
tra disciplina, que a las claras demuestra funcionarios en particular. En todo caso, lo
como la doctrina tiene bien presente esta que me interesa destacar en este momento
tarea. y en estas circunstancias es que se preten-
Entre estos preceptos, ocupa un lu- de eliminar del ejercicio del poder públi-
gar destacado el artículo 103 que, en mi co toda reminiscencia de arbitrariedad, de
opinión, debe interpretarse en relación con abuso; en definitiva, de ejercicio ilimitado
todos los artículos de nuestra Carta mag- y absoluto del poder. Por eso, el poder debe
na que establecen determinadas funciones ser una función pública de servicio a la co-
propias de los poderes públicos en un Esta- munidad, en la que hay evidentes límites.
do social y democrático de Derecho, como Claro que al ser hombres y mujeres quie-
suelo apostillar, dinámico. Dicho artículo, nes ordinariamente son titulares del poder,
como bien sabemos, dispone, en su párrafo las grandezas y servidumbres de la condi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


82 Jaime Rodriguez-Arana

ción humana según la categoría moral de del principio de legalidad que sigamos, lo
quién lo ejerza arrojarán distintas posibili- cierto es que la Administración debe actuar
dades. Ahora bien, la objetividad entraña, en el marco de la Ley. Además, con buen
como hábito fundamental, la motivación criterio se consagra el principio de someti-
de la actuación administrativa, impidiendo miento total de la actividad administrativa
la existencia de espacios de oscuridad o de y, también, de proyección de todo el Or-
impunidad, áreas en las que normalmente denamiento en sentido amplio sobre dicha
florece la arbitrariedad, sorprendentemente actuación administrativa. Esto quiere decir,
“in crescendo” a juzgar por las estadísticas en mi opinión, que junto a las Leyes, tam-
de actuaciones administrativas merecedo- bién los jueces, al analizar la adecuación a
ras de tal calificación por los Tribunales de Derecho o no de la actividad administrati-
Justicia. va, pueden echar mano de otras fuentes del
Y, en tercer lugar, la referencia central Derecho que, como los principios genera-
al interés general me parece que ofrece una les, han ocupado, como sabemos, un lugar
pista muy pero que muy clara sobre cual destacado por derecho propio en la propia
pueda ser el elemento clave para caracteri- historia del Derecho Administrativo.
zar la Administración pública hoy y, en el Además, la alusión al Derecho he-
mismo sentido, el Derecho Administrativo. mos de interpretarla en el sentido de que
Entiendo que la tarea de servicio objetivo el Ordenamiento a que puede someterse la
a los intereses generales es precisamente Administración es el público o el privado.
la justificación esgrimida para comprender En realidad, y en principio, no pasa nada
los cambios que se están produciendo, pues porque la Administración pueda actuar en
no parece compatible la función constitu- cada caso de acuerdo con el Ordenamiento
cional por excelencia de la Administración que mejor le permita conseguir sus obje-
pública actual con los privilegios y prerro- tivos constitucionales. En unos casos será
gativas de una Administración autoritaria el Derecho Administrativo, el Laboral o
que vivía en un contexto de unlilateralidad el Civil o Mercantil. Eso sí, hay un límite
y de, escrito en castellano castizo, ordeno y que no se puede sobrepasar sea cuál sea el
mando. Por eso, como señalé en el epígrafe Derecho elegido, que no es otro que el del
anterior, el entendimiento abierto, plural, pleno respeto al núcleo básico de lo públi-
dinámico y compatible del interés gene- co que siempre está ínsito en la utilización
ral está ayudando sobremanera a construir de fondos de tal naturaleza para cuales-
nuevos espacios de equilibrio sobre los quiera actividades de interés general. Por
que hacer descansar este nuevo Derecho eso, aunque nos encontremos en el reino
Administrativo. del Derecho privado, la sociedad pública
Por otra parte, no podemos dejar o ente instrumental de que se trate deberá
sin considerar, tratándose del artículo 103 cumplir con los principios de mérito y ca-
de nuestra Constitución, que la Adminis- pacidad para la selección y promoción de
tración está sometida a la Ley y al Dere- su personal, así como con los principios de
cho. La llegada del Estado liberal, como publicidad y concurrencia para la contra-
sabemos, supone la victoria del principio tación.
de legalidad y la muerte del capricho y la Por tanto, la pretendida huida del
ilimitación como fundamentos de un puro Derecho Administrativo al Derecho Priva-
poder de dominio. El poder no es absolu- do no ha sido tal y, en todo caso, la nece-
to, está limitado y sea cual sea la versión sidad de servir objetivamente los intereses

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 83

generales también se puede hacer en otros narios que pongamos en danza estaremos
contextos siempre que la Administración perdiendo el tiempo derrochando el dinero
justifique racionalmente porqué en deter- del común. De ahí que este criterio consti-
minados casos acude al Ordenamiento pri- tucional que define la posición institucional
vado. de la Administración pública sea central en
El artículo 103, para terminar el epí- la reforma y modernización permanente de
grafe, debe ser el precepto de cabecera la Administración pública.
de los reformadores de la Administración La caracterización de objetivo de
pública. Cuestión que, en España, todavía ese servicio es otra nota constitucional de
precisa de nuevos impulsos pues, a pesar gran alcance que nos ayuda a encontrar un
de que todos los gobiernos han intentado parámetro al cuál acudir para evaluar la
mejorar el funcionamiento del aparato ad- temperatura constitucional de las reformas
ministrativo, la realidad, mal que nos pese, emprendidas. La objetividad supone, en
nos enseña que todavía la opinión de la alguna medida, la ejecución del poder con
ciudadanía en relación con la Administra- arreglo a determinados criterios encamina-
ción pública dista de ser la que cabía espe- dos a que resplandezca siempre el interés
rar del marco constitucional y del tiempo general, no el interés personal, de grupo
transcurrido desde 1978. o de facción. Lo cuál, a pesar del tiem-
La idea de servicio tiene mucho que po transcurrido desde la Constitución de
ver, me parece, con la crisis fenomenológi- 1978, no podemos decir que se encuentre
ca de este concepto en un mundo en el que en una situación óptima pues todos los go-
prima ordinariamente el éxito económico, biernos han intentado, unos más que otros,
la visualización del poder y el consumo abrir los espacios de la discrecionalidad y
impulsivo, que trae consigo esta especie reducir las áreas de control, por la sencilla
de capitalismo insolidario que aspira a ma- razón de que erróneamente se piensa tan-
nejar como marionetas a los ciudadanos. tas veces que la acción de gobierno para
Hoy, estar al servicio de los ciudadanos ser eficaz debe ser liberada de cuantos más
parece tantas veces algo ingenuo, que no controles, mejor. Es más, existe una ten-
reporta utilidad y que, por ello, es un mal dencia general en distintos países a que el
que hay que soportar lo mejor que se pue- gobierno vaya creando, poco a poco, es-
da. La inversión del problema, insisto, es tructuras y organismos paralelos a los de
una cuestión cultural en la que se trabaja la Administración clásica con la finalidad
poco porque requiere desarrollos de largo de asegurarse el control de las decisiones
plazo poco atractivos para el hoy y ahora que adoptan. En el fondo, en estos plante-
en el que vive sumida una clase política amientos late un principio de desconfianza
que renuncia normalmente a proyectos de ante la Administración pública que, en los
largo alcance. Promover el valor del ser- países que gozan de cuerpos profesionales
vicio público como algo positivo, incar- de servidores públicos, carece de toda ló-
dinado en el progreso de un país, como gica y justificación.
algo que merece la pena, como algo que Por otra parte, no se puede olvidar
dignifica a quien lo practica…constituyen que las reformas administrativas deben ins-
reflexiones que se deben transmitir desde cribirse en un contexto en el que la percep-
la educación en todos los ámbitos. Si estas ción ciudadana y, lo que es más importan-
ideas no se comparten, no sólo en la teo- te, la realidad, trasluzcan el seguimiento,
ría, por más normas, estructuras y funcio- siempre y en todo caso, del interés general

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


84 Jaime Rodriguez-Arana

como tarea esencial de la Administración atribuye a los poderes públicos su asegu-


pública, en general, y de sus agentes, en ramiento, reconocimiento, garantía y pro-
particular. Pero interés general no entendi- tección. En el mismo sentido, por lo que se
do en las versiones unilaterales y cerradas refiere a los principios rectores de la políti-
de antaño sino desde la consideración de ca económica y social, la Constitución uti-
que el principal interés general en un Es- liza prácticamente las mismas expresiones
tado social y democrático dinámico reside anteriores.
en la efectividad del ejercicio de los dere- Estos datos de la Constitución nos
chos fundamentales por parte de todos los permiten pensar que, en efecto, el Derecho
ciudadanos, especialmente los más desfa- Administrativo en cuanto Ordenamiento
vorecidos. El aseguramiento y la garantía regulador del régimen de los poderes pú-
de que tales derechos se van a poder re- blicos tiene como espina dorsal la contem-
alizar en este marco ayuda sobremanera a plación jurídica del poder para las liberta-
calibrar el sentido y alcance del concepto des.
del interés general en el nuevo Derecho Esta función de garantía de los dere-
Administrativo. chos y libertades define muy bien el senti-
do constitucional del Derecho Administra-
4. La funcion garantizadora y asegura-
tivo y trae consigo una manera especial de
dora de los poderes publicos
entender el ejercicio de los poderes en el
Siendo, como es, el interés general Estado social y democrático de Derecho.
el elemento clave para explicar la funcio- La garantía de los derechos, lejos de pa-
nalidad de la Administración pública en el trocinar versiones reduccionistas del inte-
Estado social y democrático de Derecho, rés general, tiene la virtualidad de situar
interesa ahora llamar la atención sobre la en el mismo plano el poder y la libertad, o
proyección que la propia Constitución atri- si se quiere, la libertad y solidaridad como
buye a los poderes públicos. dos caras de la misma moneda. No es que,
Si leemos con detenimiento nuestra obviamente, sean conceptos idénticos. No.
Carta Magna desde el principio hasta el fi- Son conceptos diversos, sí, pero comple-
nal, encontraremos una serie de tareas que mentarios. Es más en el Estado social y de-
la Constitución encomienda a los poderes mocrático de Derecho son conceptos que
públicos y que se encuentran perfectamen- deben plasmarse en la planta y esencia de
te expresadas en el preámbulo cuando se todas y cada una de las instituciones, con-
señala que la nación española proclama su ceptos y categorías del Derecho Adminis-
voluntad de “proteger a todos los españo- trativo.
les y pueblos de España en el ejercicio de En materia de derechos fundamenta-
los derechos humanos, sus culturas y tra- les, el artículo 27.3 dispone que “los po-
diciones, lenguas e instituciones”. Más deres públicos garantizarán el derecho que
adelante, el artículo 9.2 dispone que los asiste a los padres para que sus hijos reci-
poderes públicos remuevan los obstácu- ban la formación religiosa y moral que esté
los que impidan el ejercicio de la libertad de acuerdo con sus propias convicciones”.
y la igualdad promoviendo dichos valores Precepto que expresa la dimensión de la
constitucionales. En materia de derechos libertad educativa aplicada sobre los pa-
fundamentales, también la Constitución, dres. Garantizar el ejercicio de un derecho
como lógica consecuencia de lo dispues- fundamental, siguiendo el artículo 9.2 de
to en el artículo 10 de la Carta Magna, la Carta Magna, implica una disposición

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 85

activa de los poderes públicos a facilitar la proteger y promover estos principios, lo


libertad. Es decir, se trata de que la Admi- que, pensando en el Derecho Administra-
nistración establezca las condiciones nece- tivo, supone un protagonismo de nuestra
sarias para que esta libertad de los padres disciplina desde la perspectiva del Dere-
se pueda realizar con la mayor amplitud cho del poder para la libertad, insospecha-
posible, lo que contrasta, y no poco, con la do años atrás.
actividad de cierta tecnoestructura que to- En este capítulo interesa llamar la
davía piensa que el interés general es suyo, atención sobre el contenido del parágrafo
encomendando el ejercicio de dicha liber- tercero del artículo 53 de la Constitución,
tad a órganos administrativos. Promover, en materia de garantías de las libertades
proteger, facilitar, garantizar o asegurar y derechos fundamentales: “el reconoci-
las libertades constituye, pues, la esencia miento, el respeto y la protección de los
de la tarea de los poderes públicos en un principios reconocidos en el capítulo terce-
Estado social y democrático de Derecho. ro ( de los principios rectores de la política
Por ello, la actuación administrativa de los social y económica) informarán la legisla-
poderes públicos debe estar presidida por ción positiva, la práctica judicial y la actu-
estos criterios. ación de los poderes públicos”. Pienso que
Más intensa, todavía, es la tarea de para un profesor de Derecho Administra-
garantía y aseguramiento de los principios tivo no debe pasar inadvertido que dicho
rectores de la política económica y social. precepto está recogido bajo la rúbrica de la
En este sentido, el artículo 39 de la Cons- protección de los derechos fundamentales,
titución señala en su párrafo primero que lo cuál nos permite señalar que en la tarea
los poderes públicos aseguran la protecci- de promoción, aseguramiento y garantía
ón social, económica y jurídica de la fa- de los principios rectores de la política so-
milia. Es decir, el conjunto de los valores cial y económica, los derechos fundamen-
y principios rectores de la política social tales tienen una especial funcionalidad. Es
y económica, entre los que se encuentra decir, la acción de los poderes públicos en
la familia, deben ser garantizados por los estas materias debe ir orientada a que se
poderes públicos, ordinariamente a través ejerzan en las mejores condiciones posi-
de la actividad legislativa y, sobre todo, bles todos los derechos fundamentales por
desde la función administrativa pues la ley parte de todos los españoles.
está para lo que está, y no se puede pedir Esta reflexión empalma perfecta-
al legislador que contemple todos los su- mente con el sentido y alcance del interés
puestos habidos y por haber. Protección de general en el Estado social y democrático
la familia, promoción de las condiciones de Derecho, en la medida en que, como
favorables para el progreso social y eco- señalé con anterioridad, hoy el interés ge-
nómico y para una distribución de la renta neral tiene mucho que ver con los derechos
regional y personal más equitativa (artícu- fundamentales de las personas.
lo 40). Garantía de un sistema público de Como es sabido, los derechos fun-
Seguridad Social (artículo 41), protección damentales “constituyen la esencia misma
de la salud (artículo 43), derecho al medio del régimen constitucional”(sentencia del
ambiente(artículo 45), derecho a la vivien- Tribunal Constitucional de 21 de febre-
da (artículo 47)…En todos estos supuestos ro de 1986) y son “elementos esenciales
se vislumbra una considerable tarea de los del Ordenamiento objetivo de la comuni-
poderes públicos por asegurar, garantizar, dad nacional, en cuanto ésta se configura

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


86 Jaime Rodriguez-Arana

como marco de una convivencia humana sobre esta formulación, construir una nue-
justa y pacífica”(sentencia del Tribunal va funcionalidad desde su inserción en el
Constitucional de 14 de julio de 1981). Estado social y democrático de Derecho
Como nervio central de la Constitución entendido desde una perspectiva dinámica.
que son los derechos fundamentales, el Así, además de barreras a la acción de los
Tribunal Constitucional no duda en reco- poderes públicos, empezaron a entenderse,
nocer “el destacado interés general que también, como valores o fines directivos
concurre en la protección de los derechos de la acción de los poderes públicos como
fundamentales”(sentencia de 16 de octu- bien apuntara entre nosotros Pérez Luño.
bre de 1984), por lo que, lógicamente, la Quizás, como apuntaba antes, sea la conse-
acción netamente administrativa de los po- cuencia de la interpretación del artículo 53
deres públicos debe estar orientada a que de la Constitución en su aplicación diná-
precisamente los derechos fundamentales mica sobre la acción administrativa.
resplandezcan en la realidad, en la cotidia- Ahora, cuando la Administración
neidad del quehacer administrativo.. En actúa debe tener siempre presente que for-
este sentido, una parte muy considerable ma parte de su acervo profesional la sen-
del Derecho Administrativo que denomino sibilidad constitucional, por lo que debe
Constitucional debe estar abierto a proyec- acostumbrarse a asumir su papel de poder
tar toda la fuerza jurídica de los derechos comprometido en la efectividad de los pa-
fundamentales sobre el entero sistema del rámetros constitucionales, entre los que los
Derecho Administrativo: sobre todos y derechos fundamentales encuentran un lu-
cada uno de los conceptos, instituciones y gar muy destacado.
categorías que lo conforman. Obviamente, Los derechos fundamentales, ha
la tarea comenzó al tiempo de la promul- señalado el Tribunal Constitucional desde
gación de la Constitución, pero todavía el principio, “son los componentes estruc-
queda un largo trecho para que, en efec- turales básicos, tanto del orden jurídico
to, las potestades públicas se operen desde objetivo, como de cada una de las ramas
esta perspectiva. Ciertamente, las normas que lo integran, en razón de que son la ex-
jurídicas son muy importantes para luchar presión jurídica de un sistema de valores
por un Derecho Administrativo a la altu- que, por decisión del constituyente, han de
ra de los tiempos, pero las normas no lo informar el conjunto de la organización ju-
son todo: es menester que en el ejercicio rídica y política”(sentencia de 11 de abril
ordinario de las potestades, quienes son de 1985). Es decir, informan el conjunto
sus titulares estén embebidos de esta lógi- del Derecho Público y, por tanto, la cons-
ca constitucional, pues, de lo contrario, se trucción del nuevo Derecho Administrati-
puede vivir en un sistema formal en el que, vo debe partir de su consideración, lo que
en realidad, pervivan hábitos y costumbres trae consigo, como sabemos, la necesidad
propios del pensamiento único y unilateral de releer y replantear tantas y tantas ins-
aplicado al interés general. tituciones que, entre nosotros, se han ex-
Los derechos fundamentales, como plicado desde una perspectiva demasiado,
sabemos bien, han jugado un papel de pri- en ocasiones, pegada a la prerrogativa y al
mer orden en la configuración del constitu- privilegio.
cionalismo. En origen, cumplían su papel En este contexto, se entiende perfec-
como espacios exentos a la intervención tamente que el ya citado artículo 9.2 de la
del poder, lo cuál ha sido relevante para, Constitución implique, no sólo el recono-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 87

cimiento de la libertad e igualdad de las otro que la Constitución, de manera que las
personas o de los grupos en que se integran instituciones, categorías y conceptos que
sino que, y esto es lo relevante en este mo- configuran nuestra disciplina encuentran
mento, demanda de los poderes públicos la sus pilares y fundamentos en la Constituci-
tarea de facilitar el ejercicio de las liber- ón de 1978. Pilares y fundamentos que, en
tades, lo que poco tiene que ver con una mi opinión, se encuentran en el preámbulo
Administración que se permite, nada más y en los artículos 1, 2, 9, 10, 24, 31, 53 y
y nada menos, que interferir en el ejercicio 103.
de determinadas libertades públicas y de- Del preámbulo, pienso que podemos
rechos fundamentales. entresacar algunos conceptos jurídicos in-
Quizás algún lector podrá pensar que determinados que la soberanía nacional ha
aquí se mantiene una posición absoluta so- querido que quedaran para la posteridad,
bre los derechos fundamentales. En modo tales como “orden económico y social jus-
alguno. Los derechos fundamentales, sal- to”, “imperio de la Ley como expresión de
vo el derecho a la vida, pueden estar so- la voluntad popular”, “proteger a todos los
metidos, en determinados casos, a límites españoles y pueblos de España en el ejer-
derivados del orden público, porque aun- cicio de los derechos humanos, sus cultu-
que sean muy importantes , no pueden ser ras y tradiciones, lenguas e instituciones”,
el expediente para la comisión de delitos, o “asegurar a todos una digna calidad de
obviamente. También pueden delimitarse vida”. Se trata de que en el desarrollo del
por razones de interés general: es el caso, Derecho Administrativo moderno se tenga
dudoso, de la propiedad inmobiliaría y el bien presente que la economía esta mo-
plan urbanístico. Igualmente, expropiaci- dulada por la justicia, que el principio de
ón forzosa, puede ser que su ejercicio deba legalidad es columna vertebral del sistema
ceder ante relevantes exigencias de la de- sin que, por ello, los supuestos de deslega-
nominada utilidad pública o interés social. lización o la proliferación de reglamentos
Se puede afirmar, en este contexto, que ni independientes produzca una desnatura-
el interés general, ni los derechos funda- lización de la sustancia constitucional del
mentales son absolutos. A renglón seguido Derecho Administrativo. Igualmente, la
es menester matizar que lo que es abso- facultad de dictar Decretos-Leyes debe
luto, en la mejor tradición kantiana, es la operarse de forma extraordinaria, la urgen-
persona humana, que nunca puede tener la cia en las expropiaciones también debe ser
condición de medio porque no lo es; es una excepcional y, en general, el sometimiento
realidad a la que el Derecho Público debe de la Administración a los procedimientos
prestar atención para que el conjunto de la ordinarios establecidos en las Leyes ha de
acción administrativa esté dirigida precisa- ser el supuesto normal, evitando que la ur-
mente a hacer posible el ejercicio efectivo gencia trastoque el régimen ordinario de
de todos los derechos fundamentales por algunas instituciones (expropiación forzo-
todos los ciudadanos, especialmente los sa). También en el preámbulo se reconoce
más desfavorecidos. la protección de los derechos humanos,
5. El nuevo derecho administrativo elemento central del Ordenamiento jurí-
constitutional dico. Se prevé, en el mismo precepto, la
protección de los pueblos de España en el
El marco del Derecho Administra- ejercicio de su identidad colectiva expre-
tivo, ya lo hemos señalado, no puede ser sada en los hechos diferenciales derivados

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


88 Jaime Rodriguez-Arana

de la lengua, la cultura, la lengua o las ins- la actividad de los poderes públicos a la


tituciones propias. Llama la atención que Ley y al resto del Ordenamiento jurídico,
el parágrafo en que se trata de los derechos eliminando cualquier vestigio que pudiera
humanos es el mismo que el dedicado al quedar de la etapa preconstitucional en re-
reconocimiento de las singularidades de lación con la existencia de espacios opacos
los Entes autonómicos, como si el cons- al control judicial o exentos del mismo, tal
tituyente quisiera advertir la necesidad y como ha venido ocurriendo hasta la Ley
del pensamiento abierto y plural que hace de la jurisdicción contencioso-adminis-
compatible el derecho fundamental de la trativa en relación con los llamados actos
persona con los derechos derivados de las políticos. Sin embargo, lo más relevante a
identidades colectivas. Finalmente, por lo los efectos de este trabajo, se encuentra en
que se refiere al preámbulo, deberemos de el párrafo segundo pues establece el llama-
referirnos a esa magna tarea que la Consti- do principio promocional de los poderes
tución encomienda a los poderes públicos, públicos. Principio que tiene una dimen-
cuál es la de asegurar a todos una digna sión positiva y otra negativa. La negati-
calidad de vida. va se refiere a la remoción de obstáculos
Por lo que se refiere al artículo 1, que dificulten el ejercicio de la libertad y
debemos destacar que en él se recoge la la igualdad por los ciudadanos individual-
cláusula del Estado social y democrático mente considerados o en los grupos en que
de Derecho que, como queda señalado, se integren. Y la positiva alude a “promo-
debe entenderse, desde mi punto de vista, ver las condiciones para que la libertad y la
de acuerdo con los postulados del pensa- igualdad del individuo y de los grupos en
miento abierto, plural, dinámico y comple- que se integra sean reales y efectivas”.
mentario. De ahí que, en esta perspectiva, Ambas dimensiones, la positiva y la
la tendencia del Estado a apropiarse de la negativa, tienen tanta trascendencia, que,
sociedad a través de la interpretación uni- en alguna medida, puede decirse que ayu-
lateral y tecnoestructural del interés gene- dan a entender el sentido del nuevo Dere-
ral, debe superarse hacia planteamientos cho Administrativo que la propia realidad
en los que la función de los poderes públi- nos muestra cotidianamente. Primero, por-
cos asuman posiciones de búsqueda com- que el precepto encomienda al Derecho
partida del propio interés general teniendo Administrativo el establecimiento de las
presentes cuantas instituciones sociales se condiciones que hagan posible la liberta y
encuentran comprometidas por el bienes- la igualdad, comprometiéndose en la pro-
tar integral de los ciudadanos. Los tiempos moción de dichos valores constitucionales.
de las versiones autoritarias del interés ge- Y, de otra parte, el precepto establece un lí-
neral ya han pasado y, por ello, la cláusula mite a la acción de los poderes públicos en
del Estado social y democrático de Dere- cuanto manda a la Administración, y por
cho, entendida desde estos parámetros en- ende al Derecho Administrativo, impedir u
cuentra su lógico desarrollo, por lo que se obstaculizar a las personas y grupos en que
refiere a nuestro tema, en algunos de los se integren el ejercicio de la libertad y la
preceptos que comentaré a continuación, igualdad por parte de los ciudadanos. En
como el 9.2 o el 53 de la Constitución. otras palabras, el Derecho Administrativo
Por lo que se refiere al artículo 9, Constitucional debe, a través de sus fuen-
señalar que en el parágrafo primero se tes, facilitar el ejercicio de los derechos
consagra el sometimiento pleno y total de fundamentales, singularmente la libertad y

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO 89

la igualdad. A la misma conclusión llega- bien claros y requieren de la revisión de


remos a partir del artículo 53.3 de la Cons- algunos dogmas del Derecho Administra-
titución tal y como, en algún sentido, se ha tivo en que se confiere a la propia Admi-
comentado ya con anterioridad. nistración pública la condición simultánea
En el artículo 10.1 encontramos una de juez y parte. Ahora, la tutela más impor-
declaración solemne en la que el consti- tante está radicada en los tribunales y, por
tuyente señala, con toda solemnidad, cua- otra parte, la prohibición de la indefensión
les son los fundamentos del orden políti- nos plantea no pocos problemas con inter-
co y la paz social, conceptos obviamente pretaciones unilaterales de la ejecutividad
estrechamente vinculados a lo que puede y ejecutoriedad administrativa. De ahí,
entenderse por interés general constitucio- por ejemplo, el impacto que ha tenido este
nal: la dignidad de la persona, los derechos precepto en la construcción de una justicia
inviolables que le son inherentes, el libre cautelar que sitúe en un contexto de equili-
desarrollo de la personalidad, el respeto a brio estos principios.
la ley y a los derechos de los demás. Por El artículo 31.2 dispone “ el gasto
tanto, desde otra perspectiva, nos encon- público realizará una asignación equitativa
tramos con que, efectivamente, la dignidad de los recursos públicos y su programaci-
de la persona, el libre desarrollo de la per- ón y ejecución responderán a los criterios
sonalidad y los derechos fundamentales de de eficiencia y economía”. Traigo a cola-
la persona se nos presentan en el marco de ción este precepto porque desde el punto
lo que puede entenderse por interés general de vista jurídico establece algunos criterios
y, por ello, como componentes esenciales constitucionales que están muy conectados
de un Derecho Administrativo concebido con el funcionamiento de la Administraci-
como Derecho del poder para la libertad. ón pública, y por ello, del Derecho Admi-
Quizás, así pueda comprenderse mejor el nistrativo. La equidad en la asignación del
alcance de la jurisprudencia constitucional gasto público trae consigo muy importan-
citada así como algunas afirmaciones de la tes consideraciones en toda la teoría de
doctrina científica que no han dudado en la planificación. En el mismo sentido, los
destacar el interés general en la promoción criterios de eficiencia y economía ayudan
y defensa de los derechos fundamentales a entender el significado de determinadas
de la persona. políticas públicas instrumentadas a través
El artículo 24. 1 de la Constitución del Derecho Administrativo que descono-
española es, probablemente, uno de los pre- cen el contenido general de estos princi-
ceptos que más incidencia ha tenido y está pios o parámetros constitucionales.
teniendo en la transformación del Derecho Por su parte, el artículo 53.3 ya alu-
Administrativo a la Constitución. Esto dido anteriormente, como corolario nece-
es así porque un Derecho Administrativo sario de la cláusula del Estado social de
montado sobre la autotutela necesariamen- Derecho, dispone, en sede de garantías de
te choca, y a veces frontalmente, con una libertades y derechos fundamentales, nada
disposición que reza: “todas las personas menos que los principios rectores de la
tienen derecho a obtener la tutela efectiva política social y económica “ informarán
de los jueces y tribunales en el ejercicio la legislación positiva, la práctica judicial
de sus derechos e intereses legítimos, sin y la actuación de los poderes públicos”.
que, en ningún caso, pueda producirse in- Es decir, los poderes públicos, además de
defensión”. Los términos del artículo son estar vinculados por los derechos funda-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


90 Jaime Rodriguez-Arana

mentales (artículo 53.1 CE) deben tener reglamentaria y la legalidad de la actuación


presente en su actuación los principios rec- administrativa, así como el sometimiento
tores señalados en los artículos 39 a 52 de de ésta a los fines que la justifican”. Así,
la Constitución. puede decirse que, en efecto, el Derecho
Y, finalmente, el artículo 103. 1 dice, Administrativo bascula sobre el concepto
como bien sabemos, que la Administración del interés general que, además de definir
pública sirve con objetividad los intereses esencialmente lo que debe ser la actuaci-
generales y actúa de acuerdo con los prin- ón administrativa, constituye, igualmente,
cipios de eficacia, jerarquía, descentrali- un relevante patrón de enjuiciamiento de
zación, desconcentración y coordinación,
la función judicial en relación con la acti-
con sometimiento pleno a la Ley y al De-
vidad administrativa. No es baladí, pues,
recho. En este precepto se encuentran, a mi
que el interés general adquiera tal protago-
juicio, los elementos centrales que deben
integrar las matrices del Derecho Adminis- nismo porque, como veremos enseguida,
trativo Constitucional: instrumentalidad, el Derecho Comunitario Europeo acaba de
objetividad e interés general. Por lo que se alumbrar algunos nuevos conceptos rubri-
refiere al sometimiento a la Ley y al Dere- cados con esta metodología que vienen a
cho; esto es, al entero sistema jurídico, es ser, en alguna medida, conceptos deudores
menester traer a colación lo dispuesto en de una nueva interpretación y entendi-
el artículo 106. 1, también de la Constitu- miento de lo que está empezando a ser el
ción: “los tribunales controlan la potestad nuevo Derecho Administrativo.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 91

A teoria da Constituição como teoria do direito do


Estado constitucional
The Constitution theory as a theory of the right’s
constitutional State

Gustavo Ferreira Santos*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: A Constituição adquiriu, nos tempos atuais, um papel central na vida política e social.
Para isso, a revisão judicial da legislação contribuiu enormemente. Isso fez com que temas da
Teoria da Constituição e Temas da Teoria do Direito se superpusessem, transformando as questões
suscitadas no estudo da Constituição em questões relativas a todo o ordenamento. O artigo discute
essa transformação que a Constituição conheceu até os nossos dias, refletindo sobre algumas das
idéias principais do pensamento que deu suporte teórico à esse processo.
Palavras-chave: Constituição. Judicial Review. Jurisdição Constitucional. Supremacia Constitu-
cional. Poder de Reforma.

Abstract: The Constitution has acquired actually a central role in the social and political life. The
judicial revision of legislation has contributed strongly to this. This reality has turned the subjects
of the Constitutional Theory and of the Theory of Law in common subjects and it has transformed
the questions about the study of the Constitution in questions about the system of law. The article
argues the transformations in the role of the Constitution until our days, thinking about some of the
main ideas of the theory that gave theoretical support in this process.
Key Words: Constitution. Judicial Review. Constitutional Jurisdiction. Supremacy of Consitution.
Power of Constitutional Reform.

1. Nunca na História da humanidade lhe são incompatíveis, põe sob os holofo-


a Constituição exerceu um papel de des- tes a teoria da Constituição, que aparece no
taque como o que a ela é reservado nos Estado constitucional revitalizada.
nossos tempos. A ampliação dos catálogos Como se sabe, o constitucionalismo
de direitos fundamentais e a sua efetivação significou uma domesticação da política
por uma jurisdição constitucional atuante
com a imposição de limites ao Estado,
acabaram por submeter a política a parâ-
seja através de normas de organização das
metros substanciais rigorosos. A lei, por-
tanto, deixou de ser a protagonista, papel instituições, seja com as declarações de di-
que lhe era reservado no século XIX, para reitos que reconheciam posições jurídicas
viver tutelada pela Constituição. aos indivíduos. Hoje, quando vemos uma
O estudo da Constituição ganha, Constituição que cotidianamente se cons-
também, um novo impulso. A natureza trói na Jurisdição Constitucional, fala-se
normativa da Constituição, que fulmina de mesmo em uma nova versão do constitu-
invalidade os atos infraconstitucionais que cionalismo, o neoconstitucionalismo.

*Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito, Professor Adjunto de Direito Constitucional na UFPE e na UNICAP e Procura-
dor Judicial do Município do Recife.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


92 Gustavo Ferreira Santos

Neste texto, teceremos algumas con- O Estado de Direito não é apenas o


siderações sobre esse atual papel da Cons- Estado segundo a lei. Do surgimento des-
tituição e sobre alguns problemas que ele sa noção aos dias atuais ele passou a ser
suscita. Tocaremos, portanto, em alguns entendido como o Estado que se guia por
aspectos da crítica à supremacia da Consti- princípios da razão. Canotilho afirma que
tuição, ao judicial review fundadas na cha- ele deve ser tomado como um esquema
mada objeção contramajoritária. organizatório limitado pelo Direito3. Com
essa noção, não há, nas sociedades que
2. A Constituição conheceu um novo adotam essa fórmula, Estado fora do Di-
lugar com a evolução das primeiras for- reito.
mas liberais de Estado ao Estado que hoje Nesse caminho, Canotilho assenta
conhecemos. O liberal via o Estado como que só será um Estado considerado Estado
um mal necessário, ficando, portanto, res- de Direito quando: (1) está sujeito ao direi-
trito a poucas atividades e submetido a um to (“o Estado, os governantes, as autorida-
conjunto de limitações representadas pelos des, obedecem às leis, não estão colocados
direitos humanos. Para ele, a não atuação sobre as leis, mesmo que elas tenham sido
do Estado tinha uma marca positiva, já que criadas ou produzidas pelos órgãos do po-
os seus excessos violavam posições jurídi- der”); (2) atua através do direito (“só quem
cas fundamentais que garantiam a autono- esteja habilitado, só quem tenha uma com-
mia do indivíduo. Já o Estado que resulta petência previamente definida por regras
da constitucionalização da questão social jurídicas, está apto, num qualquer Estado
e das expectativas de solidariedade inter- de Direito, a desempenhar funções com o
geracional que o século XX construiu não selo de autoridade pública”); (3) positiva
pode se bastar na omissão, mas assume po- normas jurídicas informadas pela idéia de
sição de promotor de direitos econômicos, direito (“O Estado de direito é informado
sociais e culturais. e conformado por princípios radicados na
Evidentemente que no Estado libe- consciência jurídica geral e dotados de va-
ral o papel da desempenhado pela lei era lor ou bondade intrínsecos”)4.
central. Esse papel decorria das algumas O “Estado de não direito”, antítese
características que marcavam o chamado do Estado de Direito, poderia ser assim ca-
Estado de Direito. racterizado: “(1) é um Estado que decreta
A expressão “Estado de Direito” leis arbitrárias, cruéis e desumanas; (2) é
remete-nos a um amplo conjunto de sig- um Estado em que o direito se identifica
nificados e de experiências1. Nela está com a ‘razão de Estado’ imposta e ilumi-
resumida uma necessidade de compatibi- nada por ‘chefes’; (3) é um Estado pauta-
lização entre liberdade e ordem, pois, se- do por radical injustiça e desigualdade na
gundo Reinhold Zippelius, ele procura um aplicação do direito”.5
compromisso entre a necessidade de um A proeminência da lei no pensamento
poder do Estado homogêneo e suficiente- liberal decorre do fato de que os Parlamen-
mente forte para garantir a paz jurídica e a tos afirmaram-se, à época do absolutismo,
necessidade de prevenir um abuso do po- como instrumentos de defesa da liberdade
der estatal e de estabelecer limites a uma perante do poder. No conceito de Estado
expansão totalitária do poder do Estado, de Direito novecentista não está presente
assegurando na maior medida possível os o medo do Parlamento, mas sim o do arbí-
direitos individuais.2. trio da Administração. O próprio conceito

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 93

de Estado de Direito traz em si a idéia de funções. Como afirma Cass R. Sunstein, as


que só a lei é o instrumento adequado para normas constitucionais “podem ser liberais
a restrição de direitos individuais. ou não-liberais; diferentes Constituições, e
Veja-se, a esse respeito, a imagem diferentes partes da mesma Constituição,
que Otto Mayer tinha de Rechtsstaat, que protegem diferentes interesses”8.
se marcava pela (i) supremacia da lei sobre Nesse contexto, a interpretação cons-
a Administração; (ii) na subordinação à lei, titucional substitui, em muitos aspectos, o
e somente à lei, dos direitos do cidadão, debate político. A decisão que sairia do
não podendo poderes autônomos incidir embate entre propostas melhores ou piores
sobre tais direitos; (iii) a presença de juízes cede lugar muitas vezes à adoção de me-
independentes com competência exclusiva didas segundo a sua constitucionalidade.
para aplicar a lei, e somente a lei, nas con- As próprias forças políticas em luta incor-
trovérsias surgidas entre os cidadãos e en- poram o argumento da constitucionalida-
tre eles e a Administração6. de aos seus discursos. Esse argumento é
A posição de destaque no cotidiano evidentemente mais forte, pela autoridade
da Jurisdição Constitucional hoje observa- que contém, do que os argumentos sobre
do quanto aos direitos fundamentais é de as possíveis virtudes práticas das medidas
fácil explicação. Trata-se de um evidente propostas.
reflexo do câmbio do próprio conceito de Os principais problemas da atual Te-
Constituição, que caminhou de uma posi- oria da Constituição, não por coincidência,
ção privilegiadora de normas organizacio- correspondem a problemas colocados aos
nais para uma ênfase nas normas protetivas estudiosos da Teoria do Direito. A idéia
de indivíduos e grupos em face do poder. de supremacia constitucional, as teorias
O papel assumido pela Constituição de interpretação da Constituição, a nature-
reflete, ainda, a crise do Estado legislativo za das normas constitucionais, os limites
e do próprio conceito de lei. A coerência da racionalidade judicial no controle da
do ordenamento, criado sob os auspícios Constitucionalidade, dentre outros, são
de interesses de um grupo, que caracte- temas que indiferentemente colocam-se
rizou o Estado burguês, não comparece aos constitucionalistas e aos cultores da
no atual Estado constitucional. A caótica Teoria do Direito. Adiante, trataremos dos
inclusão de temas em leis, nos diversos problemas da supremacia da Constituição
acordos momentâneos de interesses que se e da revisão judicial da legislação, temas
verifica na atividade parlamentar da atu- que se apresentam como caros exemplos
al sociedade pluralista vai encontrar nos dessa centralidade dos problemas consti-
princípios constitucionais um mínimo con- tucionais. Apresentaremos, intencional-
teúdo referencial. Na Constituição encon- mente, essas reflexões com base em uma
tram-se termos de um acordo mais amplo, bibliografia majoritariamente de Teoria do
capaz de nortear os embates cotidianos de Direito.
interesses. A lei cede espaço à Constitui-
ção como elemento mediador7. O Estado 3. A Constituição, em sua suprema-
Constitucional representaria, assim, um cia, coloca o problema da relação entre
plus em relação ao Estado de Direito, que atualização e permanência das decisões
era marcadamente legislativo. políticas. Ao instituir-se como comunida-
Assim, há uma variedade de interes- de, um povo escolhe a forma e o conteú-
ses na Constituição, que exerce diferentes do de suas instituições. Exerce o poder de

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


94 Gustavo Ferreira Santos

dizer como o Estado e a sociedade se or- As Constituições, nesse processo de


ganizarão. Ao mesmo tempo, em razão do atualização, sofrem alterações tanto por
estabelecimento da rigidez constitucional, processos formais, como a revisão ou a
retira da atividade política cotidiana o po- emenda, como por processos informais,
der de alterar tais decisões9. como na chamada mutação constitucional.
Identifica-se, nessa seara, o que Hol- Num ou noutro momento, manifesta-se a
mes chamou de “paradoxo democrático”, tensão entre atualização e permanência.
ou seja, questiona-se como uma geração Num ou noutro, o que se busca é manter a
que suplanta a obra constitucional da ge- norma constitucional como parâmetro para
ração anterior pode impor às gerações fu- a solução dos problemas da vida.
turas a sua obra constitucional.10 Para Jon Ordinariamente, as Constituições
Elster, ao estabelecer o compromisso em regulam os processos a serem observados
um texto constitucional, a sociedade age para a sua própria alteração pelos membros
como Ulisses, que se atou ao mastro do da sociedade. Constituições rígidas trazem
navio, após tampar com cera os ouvidos formas especiais de processo legislativo
dos marinheiros e dar ordem para que não para que algo em seu texto seja mudado14.
fosse desamarrado, mesmo que pedisse. São momentos, atores ou quoruns especí-
Estabelecemos limites para momentos de ficos, acrescendo, portanto, ao princípio da
dificuldades, para não cairmos na tentação maioria, exigências que não são colocadas
das soluções mágicas – que aparecem com para a tomada das decisões políticas diá-
mais força em razão das difíceis circuns- rias. A existência desses processos visa dar
tâncias11. longevidade ao texto da Constituição, de
A imagem do Ulisses atado ao mas- um lado permitindo sua adaptação às mu-
tro é bastante criticada por não ser passível danças ocorridas no real e de outro lado
de aplicação a uma comunidade. Ulisses é protegendo matérias sensíveis dos proce-
o mesmo, quando decide amarrar-se, du- dimentos ordinários de fixação de normas
rante a travessia e após a superação dos pe- jurídicas.
rigos. Porém, as decisões constitucionais Nesse passo, quanto mais Consti-
que se pretendem definitivas não amarram tuição tiver um país, ou melhor, quanto
somente os que decidiram pelo congela- maior for o número de matérias incluídas
mento da cláusula, mas também atinge ge- na Constituição formal, maior será o con-
rações posteriores12. junto de temas submetidos a um processo
Como se sabe, não há Constituições político decisório mais complexo ou, o que
imutáveis. Uma Constituição que se pre- é pior, à imutabilidade15.
tendesse imutável seria indubitavelmente Essa supremacia/rigidez tem suscita-
uma Constituição breve. As alterações nas do objeções, fundadas na afirmação da de-
relações concretas na sociedade por ela mocracia. Questionam tais posicionamen-
regulada levariam à sua implosão, diante tos a necessidade de retirar da sociedade
da impossibilidade de adaptação do texto o poder de decidir seus rumos frente aos
à vida. Com Jorge Miranda podemos dizer problemas que a vida apresenta. O entrin-
que a “modificação das Constituições é um cheiramento de determinadas decisões tem
fenômeno inelutável da vida jurídica, im- evidente tensão com o elemento democrá-
posta pela tensão com a realidade consti- tico do Estado.
tucional e pela necessidade de efetividade A Constituição, ao dificultar ou vetar
que as tem de marcar”13. a alteração de alguns de seus dispositivos,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 95

estaria conduzindo um tipo paternalismo, Como o processo constituinte levou a uma


decorrente de uma desconfiança em rela- Constituição marcadamente conjuntural,
ção às gerações futuras. Seria um auto- uma nova situação na conjuntura política
reconhecimento de lucidez, concomitante ou econômica exige que se mexa no tex-
a uma proteção de suas iluminadas deci- to16.
sões. Mesmo assim, poucas foram as mu-
No caso brasileiro há um discurso danças exclusivamente principiológicas na
comum de condenação às diversas altera- Constituição. A maior parte cuidou de de-
ções impingidas ao texto constitucional. É talhes que não são facilmente justificáveis
evidente que alterar com freqüência abala como decisões fundamentais, mas que po-
a força normativa que se espera de uma deriam ter sido deixados pelo Constituinte
Constituição. No entanto, essa constatação à disciplina pelo legislador ordinário. Tra-
não pode ser o único móvel para a perma- tam, por exemplo, de limite de remunera-
nência do texto. A Constituição tem que se ção de servidores e agentes políticos, for-
mostrar apta a regular os problemas que a mas de aposentadoria, alíquotas de tributos
sociedade enfrenta. Se seus dispositivos ou contratação de professores estrangeiros
não mais correspondem às expectativas por universidades públicas. Mais do que
dos principais atores políticos, a mudança condenar o Administrador que lutou pelas
apresenta-se como uma saída recomendá- reformas, há que se questionar a atitude
vel. constituinte de elevar ao nível constitucio-
Da mesma forma, não podemos dei- nal um número muito grande de questões
xar de reconhecer que, quanto maior for o e, o que é pior, de detalhes.
plexo de matérias e quanto mais profunda Aquele desejo de colocar tudo no
em detalhes tiver sido a regulação, maior texto da Constituição, ao qual já fizemos
será também a possibilidade de que uma referência, revelava uma desconfiança em
necessidade de mudança de política leve relação às instituições e um certo medo da
a uma necessidade de intervenção no tex- política. Foram nutridas no período cons-
to da Constituição. Não se pode esperar tituinte esperanças de qualidades quase
de um governo democraticamente eleito, mágicas da Constituinte. Basta lembrar
muitas vezes com uma plataforma refor- o samba de enredo que dizia “espero da
mista, que se acomode na função de mero Constituinte na minha mesa muito pão,
executor das decisões tomadas em 1987 e uma poupança cheia de cruzados e um
1988. carnaval com muita paz no coração”17.
Ninguém pode desconhecer as pro- Por outro lado, no processo constituinte
fundas mudanças que atingiram o mundo não ficou caracterizada uma clara maioria
no período de tempo compreendido entre homogênea, o que permitiu a inclusão de
a elaboração de nossa atual Constituição interesses eventualmente majoritários18.
e os dias de hoje. Evidentemente que um No entanto, não são as decisões
governo tendente a integrar a economia constituintes revelações de deuses. Não
brasileira na nova ordem internacional são ontologicamente superiores a outras
deveria mexer nas normas constitucionais decisões humanas. Aliás, contaminam-se
que tocam a ordem econômica. Óbvio, com as mesmas práticas espúrias que con-
também, que os parâmetros da previdên- taminam as decisões políticas cotidianas.
cia social, diante dos graves problemas de Muitas das decisões de uma Assembléia
seu financiamento, mereceram mudanças. constituinte são tomadas em contextos de

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


96 Gustavo Ferreira Santos

negociatas e trocas de favores entre grupos não será passível de deliberação emenda
que colocam no texto constitucional seus tendente a abolir a separação de poderes, o
interesses incompatíveis com qualquer voto direto, secreto, universal e periódico,
idéia de interesse geral. a forma federativa de Estado e os direitos e
A decisão de tornar algo protegido garantias fundamentais.
no texto da Constitucional deve ser ex- No entanto, não se trata de uma cláu-
tremamente amadurecida, pois se trata de sula absoluta de imodificabilidade. A alte-
dificultar, enquanto durar a Constituição, a ração de tais matérias é possível, desde que
discussão política sobre aquele tema. O se- não identificada uma tendência à abolição
tor protegido deveria ter por objeto somen- daquelas decisões. Isso significa que alte-
te aquilo que seja considerado fundamental rações pontuais, que não desestruturem os
para a própria existência da comunidade19. esquemas traçados pelo Constituinte ou,
Em especial, direitos fundamentais, cuja até mesmo, que os reforce serão aceitas,
observância estaria acoplada ao próprio mesmo que alterem artigos devotados às
conceito de democracia. matérias ali definidas.
A democracia, aqui, é vista não sim- De 1988 aos nossos dias algumas
plesmente como governo da maioria. Al- alterações nesses campos foram levadas
guns elementos formam as condições para a cabo sem que tenha sido reconhecida
que seja aceitável a decisão da maioria. uma ofensa à proibição de alteração. Veja-
Esses elementos, via de regra, decorrem da se, por exemplo, a mudança, na Emenda
necessidade de garantir a autonomia dos Constitucional n. 32, da titularidade do
agentes que formam a comunidade. poder de organizar e estruturar Ministérios
As citadas objeções não comprome- e órgãos da Administração. Tal poder, até
tem no todo, ao nosso ver, a legitimidade então, estava nas mãos do Congresso Na-
da existência dos procedimentos mais di- cional, tendo passado à decisão do Poder
fíceis para alterar a Constituição. Abalam, Executivo. Ora, apesar de incidir sobre a
porém, a fundamentação de qualquer cláu- separação de poderes, já que altera limites
sula proibitiva de alteração. A incompati- na relação entre Legislativo e Executivo,
bilidade, portanto, não está entre rigidez e não se pode falar que houve tendência à
democracia, mas entre vedação de discus- abolição da cláusula protegida.
são e democracia20. Devemos nos lembrar que essas
A proteção por procedimentos mais “cláusulas pétreas” não impedem que se-
complexos reconhece a necessidade de que jam suprimidos os temas daquilo que é
decisões fundamentais, ou seja, que inci- o parâmetro constitucional do país, mas
dem sobre matérias de especial relevância apenas que sejam suprimidos daquela es-
para a comunidade, não podem ficar sujei- pecífica Constituição, já que é plenamente
tar a um processo aberto infinito de discus- possível uma ruptura e um novo exercício
são. A mudança freqüente de parâmetro do poder constituinte. O processo de subs-
para as atividades dos indivíduos, ditadas tituição de uma Constituição por outra não
por maiorias eventuais, levaria à deslegiti- é regulado pelo texto constitucional ou por
mação do próprio Estado. qualquer outra norma jurídica.
A Constituição da República Fe- Então, por que lançar a sociedade em
derativa do Brasil entroniza um largo rol uma situação de temporária de ausência de
de dispositivos no espaço protegido, com Constituição, com um novo exercício do
a regra contida no §4º do art. 60. Diz que poder constituinte, que ninguém sabe no

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 97

que vai dar, quando podemos mudar o tex- Ao povo, diretamente, caberá a úl-
to em um processo controlável? Um país tima palavra, após um sistemático ama-
sem Constituição está à deriva. Ninguém durecimento do debate, com os membros
sabe quem pode e até que ponto pode. O das Cortes assumindo o ônus da dissolu-
arbítrio pode resultar em qualquer arranjo ção, que se seguirá à decisão favorável à
institucional. O questionamento da cláu- mudança. Os debates nas eleições que en-
sula “X”, caso exista vedação constitucio- tremeiam as manifestações dos represen-
nal de sua alteração, poderia levar, em um tantes não desconhecerão o tema objeto
agravamento dos ataques ao preceito, os de análise nas Cortes, o que reforça, ainda
detentores do poder político ao poder de mais, a legitimidade da decisão final.
alterar qualquer cláusula constitucional, já A submissão de tais matérias a um
que resultaria no exercício do poder cons- novo processo legitimador, que envolva o
tituinte. Em um procedimento regulado, ou maior número possível de opiniões, pode
seja, em uma alteração na forma da Cons- até se mostrar uma estratégia positiva, já
tituição, como ocorre quando não há cláu- que renova na comunidade as razões que
sulas de alteração proibida, o foco é dado levaram à consagração da cláusula como
naquela matéria questionada, permanecen- elemento especial da Constituição. A so-
do estáveis todos os outros elementos da ciedade refletirá e renovará o compromisso
Constituição naquele momento não ques- assumido no período constituinte.
tionados. Aos críticos da supremacia consti-
Uma fórmula como a adotada pela tucional essa fórmula seria marcada pelos
Constituição da Espanha, na qual os repre- mesmos problemas verificados na imutabi-
sentantes do povo se manifestam, depois lidade, já que, apesar de permitida, as difi-
é renovada a representação com eleições culdades de se levar uma alteração a cabo
parlamentares, tendo nova manifestação tornariam praticamente impossível o exer-
dos representantes, e, por fim, há consul- cício do poder de reforma. Para tais posi-
ta direta ao povo, é muito mais compatí- ções, o máximo de concessão seria uma
vel com a necessidade de manutenção da fórmula como a adotada na Suécia, que
Constituição sem impedir a manifestação não exige quorum diferenciado para a ado-
da decisão democrática: ção de mudanças constitucionais, porém,
Art. 168. 1 – Quando for proposta a usa o instrumento das duas votações, entre
revisão total da Constituição ou uma revi- as quais deverá ser realizada uma eleição
são parcial que afete o título preliminar, a geral e se deverá aguardar, no mínimo,
seção I do capítulo II do título I ou o título nove meses21.
II, proceder-se-á à aprovação do princípio
da revisão por maioria de dois terços de 4. Concordamos com Jeremy Wal-
cada Câmara e à dissolução das Cortes. dron22 quando clama por um novo olhar
2 – As Cortes que vierem a ser eleitas sobre a função legislativa. A revaloriza-
deverão ratificar a decisão e proceder ao ção do papel da lei é também uma reva-
estudo do novo texto constitucional, que lorização da democracia. Muitas críticas
deverá ser aprovado por maioria de dois dirigidas ao legislador, questionando a sua
terços de ambas as Câmaras. legitimidade, geralmente deflagradas em
3 – Aprovada a reforma pelas Cortes razão de problemas cotidianos, tais como
Gerais, será submetida a referendo para ra- corrupção no Estado ou acordos espúrios,
tificação. atingiriam, se a ela dirigida, a própria as-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


98 Gustavo Ferreira Santos

sembléia que construiu a Constituição. protegidas como bases da vida sem socie-
Muitas dessas críticas, na verdade, tratam dade. Limitariam materialmente o poder
de um constituinte mítico, imaculado, ilu- de reforma e os poderes constituídos.
minado e distante dos conchavos que mar- Para Jeremy Waldron24, não há na
cam o dia a dia da política, ou seja, uma Constituição um procedimento com li-
entidade inexistente. mitações materiais. O que existe são pro-
É evidente que os instrumentos com- cedimentos limitando procedimentos. O
plexos das democracias atuais são imper- procedimento democrático da decisão por
feitos. Pior, ainda, é a prática que se verifica maioria, é limitado por outro procedimen-
na execução de tais instrumentos. Porém, to, que permite a afirmação das cláusulas
esses problemas não podem justificar o limitadoras pelo Poder Judiciário. Assim,
desprezo pela decisão democrática. É evi- diante dessa combinação de procedimen-
dente que, apesar dos problemas, a figura tos, ele manifesta preferência pelo proce-
da representação aporta uma legitimidade dimento da maioria que, diante dos outros,
ao representante que não encontramos no teria melhores características intrínsecas,
indivíduo isolado sentado numa cadeira na pois garantiria o direito do cidadão à igual
Universidade. Em nada o professor de di- participação na decisão – principal preocu-
reito constitucional será mais legítimo que pação de sua visão sobre a legitimidade - o
o parlamentar. Adiante, discutiremos com que não ocorre quando há a determinação
mais vagar esse problema da legitimação de um conteúdo por um tribunal.
democrática dos detentores do poder. Ele chama atenção para a necessidade
A atual noção de democracia não a de contemplarmos em nossa visão do pro-
reduz a um mero governo da maioria, mas cesso político a existência da discordância.
incorpora em sua definição a proteção de Afasta ele a necessidade de trabalharmos
determinadas posições mesmo diante da com o consenso como uma finalidade do
decisão majoritária. Os direitos fundamen- processo político. Nesse sentido, a decisão
tais representariam uma espécie de “terre- majoritária seria ao mesmo tempo eficaz e
no proibido”, garantido frente ao princípio respeitosa, uma vez que “não requer que a
da maioria. Para Dworkin, os direitos indi- posição de ninguém seja menosprezada ou
viduais são trunfos que protegem o indiví- silenciada por causa da importância imagi-
duo contra a maioria. Para ele, nada do consenso”25.
os indivíduos têm direitos quando, Apesar do brilhantismo da crítica de
por alguma razão, um objetivo comum não Jeremy Waldron, temos algumas resistên-
configura uma justificativa suficiente para cias à sua aceitação. É certo que o conteúdo
negar-lhes aquilo que, enquanto indivídu- dos direitos fundamentais não é de antemão
os, desejam ter ou fazer, ou quando não há determinado. É verdade, ainda, que o que se
uma justificativa suficiente para lhes im- faz, ao instituir o judicial review, é criar um
por alguma perda ou dano.23 procedimento para controlar outro procedi-
A convivência em sociedade e a mento. Porém, esse segundo procedimento,
submissão ao jogo democrático no coti- o adotado pelo Judiciário, é qualificado, gi-
diano dependeriam de um prévio acordo rando em torno de uma pauta mais rígida,
sobre um número específico de direitos, na qual as declarações de direitos não são
o que viabilizaria posições de indivíduos coleções de palavras soltas, mas contém ex-
e grupos. Seriam os direitos fundamentais pressões que designam certos “conteúdos”,
posições jurídicas a serem reconhecidas e pois carregados de história.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 99

A decisão do tribunal não pode ser da necessidade de qualquer controle. Para


comparada em arbítrio à decisão das maio- alguns dos autores incluídos na chama-
rias. Por mais que exista indeterminação da crítica contramajoritária da jurisdição
quanto ao conteúdo dos direitos funda- constitucional há uma necessidade de con-
mentais, as possibilidades de decisão são trole, mas que não deve ser feito pelo Ju-
mais restritas que aquelas existentes em diciário. Mark Tushnet29 analisa algumas
um processo político aberto e ilimitado. O experiências de afirmação da Constituição
que precisamos é que o Tribunal se conte- por instituições não-judiciais, que têm ob-
nha ao fixar o conteúdo das cláusulas limi- tido sucesso, e enxerga uma possibilidade
tadoras do poder de decisão da maioria. em tais experiências de criação de uma
Um forte argumento a favor da Cons- confiança popular a legitimá-las. Eviden-
tituição vem da tese da democracia dualista temente, clama por mais estudos sobre
de Bruce Ackerman26. Para ele, há uma di- essas instituições não-judiciais que podem
ferença fundamental entre a decisão tomada acrescer eficácia ao controle da constitu-
no momento constituinte e a decisão políti- cionalidade.
ca do dia a dia parlamentar. Na primeira, é
mais forte a legitimidade da decisão, pois
REFERÊNCIAS
há, diretamente ou acompanhando com
mais atenção e mobilização, a participação ACKERMAN, Bruce. The new separation of
popular, a quem a decisão é atribuída27. As- powers. Harvard Law Review. Vol 113, Janeiro
sim, o Judiciário funciona como um garante 2000, n. 3, pp. 632-727.
da primeira decisão, original e de legitimi- BAYÓN, Juan. Derechos, democracia y consti-
tución. In: CARBONELL, Miguel. Neoconsti-
dade reforçada, contra arroubos do legisla-
tucionalismo (s). Madri: Trotta, 2003.
dor ordinário, sendo, portanto, essencial à BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Estudios
própria democracia. Contrapõem-se alguns sobre el Estado de Derecho y la democracia.
a essa tese, dizendo inexistir garantias de Tradução Rafael Serrano. Madri: Trotta, 2000.
que o momento constituinte tenha sido um CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de direito.
momento de maior participação da socieda- Lisboa: Gradiva, 1999.
de, podendo a decisão constituinte maquiar ______. Direito constitucional e teoria da cons-
interesses escusos28. Concordamos com tituição. 2a Ed. Coimbra: Almedina, 1998.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
essa objeção. O momento constituinte não é
Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins
neutro. Ao contrário, digladiam-se interes- Fontes, 2002.
ses, que não são desconhecidos pelo autor ELSTER, Jon. Ulysses and the sirens. Cam-
da tese da democracia dualista. O resultado, bridge: Cambridge, 1984.
a Constituição, nem sempre é o melhor tex- ______. Ulysses unbound. Cambridge: Cam-
to que poderia ter sido feito. O que a tese bridge, 2000.
da democracia dualista quer fixar, porém, LAPORTA, Francisco. El ámbito de la constitu-
ción. Doxa, Alicante, n. 24, p. 459-484, 2001.
é uma espécie de ficção legitimadora. É a
GARZÓN VELDÉS, Ernesto. Representación
afirmação de que é possível identificar uma y democracia. Doxa, Alicante, n. 6, p 143-161,
diferença qualitativa, independentemente 1989.
das experiências contratas das sociedades, HOLMES, Stephen. Precommitment and the
entre a decisão constituinte e a decisão par- Paradox of Democracy. In: ELSTER, Jon; SLA-
lamentar cotidiana. GSTAD, Rune (orgs.). Constitutionalism and
Não que a objeção ao judicial re- Democracy. Cambridge: Cambridge, 1988.
view signifique nos críticos uma negação MOREIRA, Vital. Constituição e democracia

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


100 Gustavo Ferreira Santos

na experiência portuguesa. In: MAUÉS, An- 10


Stephen HOLMES, Pré-commitment and the
tônio.. Constituição e democracia. São Paulo: paradox of democracy, p. 198.
Max Limonad, 2001. 11
Cf. Ulysses and the sirens.
PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. Constitucio- 12
Juan BAYÓN, derechos, democracia y cons-
nalismo garantista y democracia. Revista Críti- titución, p. 224. Para uma justificação da analo-
ca Jurídica. Curitiba, n. 22, jul/dez 2003. gia em Elster, cf. Ulysses unbound, p. 88.
SUNSTEIN, Cass R. Constitutions and demo- 13
Manual de direito constitucional, tomo II, p.
cracies: an epilogue. In: ELSTER, Jon; SLA- 129.
GSTAD, Rune (orgs.). Constitutionalism and 14
Francisco LAPORTA considera como as for-
Democracy. Cambridge: Cambridge, 1988. mas mais comuns de proteção constitucional
TUSHNET, Mark. Non-judicial review. Har- contra alterações são o quorum qualificado (que
vard Journal Legislation, n. 40, n. 2, 2003, pp. é diferente do exigido para as leis), as “cláu-
453-492. sulas de esfriamento” (como a necessidade de
VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua mais de um turno de votação) e o plebiscito, El
Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros, ámbito de la constitución,p. 466.
1999 15
“Toda a discussão americana tradicional entre
WALDRON, Jeremy. A dignidade da legisla- constitucionalistas e democráticos roda à volta
ção. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Mar- deste ponto, como bem o sabemos. O problema
tins Fontes, 2003. consiste em saber até que ponto é que a exces-
______. The Core of the Case Against Judicial siva constitucionalização não se traduz em pre-
Review. Paper apresentado no “Colloquium in juízo do princípio democrático. Constituciona-
Legal and Social Philosophy”, da University of lizar é colocar fora do comércio político, que o
College, Londres, em março de 2005.Disponí- mesmo é dizer: fora do alcance da vontade da
vel em <http://www.ucl.ac.uk/spp/download/ maioria daquilo que é constitucionalizado” Vi-
seminars/0405/Waldron-Judicial.pdf> . Acesso tal MOREIRA, Constituição e democracia na
em 10/05/2005. experiência portuguesa, p. 273.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil.
16
“A imodéstia constituinte dificilmente fica
Trad. Marina Gascón. Madri: Trotta, 1999. impune e o poder constituinte evolutivo acaba
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. por ser a sanção da imodéstia e da arrogância
Trad. António Cabral de Moncada. 2.ed.- Lis- do poder constituinte, quando ele não é capaz
boa : Calouste Gulbenkian, 1984. de ousar acima da conjuntura da sua própria
época” Vital MOREIRA, Constituição e demo-
cracia na experiência portuguesa, p. 274.
NOTAS 17
Samba da “Caprichosos de Pilares”, do Rio
de Janeiro, para o carnaval de 1987.
1
Ernst BÖCKENFÖRDE, Estudios sobre el Es- 18
“O constituinte de 1987/1988, nesse sentido,
tado de Derecho y la democracia, p. 45. teria cometido excessos, constitucionalizando
2
Teoria geral do estado, p. 384. temas que poderiam ter ficado para o legisla-
3
Estado de direito, p.15. dor ordinário. O fato de a Constituinte não ter
4
Estado de direito, p. 49. realizado seu trabalho a partir de um projeto
5
Estado de Directo, p. 12. predeterminado, mas a partir de vinte e quatro
6
Apud Gustavo ZAGREBELSKY, El derecho subcomissões, criou sérios problemas de siste-
dúctil, p. 23. matização. Essas subcomissões, além de traba-
7
Cf. a respeito Gustavo ZAGREBELSKY, op. lhar isoladamente umas das outras – o que gerou
Cit., p. 40; dificuldades em sintonizar todas as perspectivas
8
Constitutions and democracies: an epílogue, num documento inicial – também atuaram, em
p. 327. muitos casos, de forma sobreposta. Somado a
9
Ernesto GARZÓN VELDÉS chama de “coto esse problema técnico, a Constituição foi o re-
vedado” a área não passível de discussão pela sultado de uma determinada conjuntura política
atividade parlamentar, Representación y demo- em que nenhum dos grupos conseguiu estabe-
cracia, p. 157. lecer hegemonicamente seu projeto político.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO... 101

Assim, diversos dispositivos constitucionais 25


A dignidade da legislação, p.192.
resultam da força de maiorias meramente even- 26
The new separation of powers, p. 664.
tuais, aglutinadas especialmente para a inserção 27
“The higher law track should be specially de-
de um tópico no texto constitucional” Oscar Vi- signed to identify those rare occasions when a
lhena VIEIRA, A constituição e sua reserva de political movement has earned the right to speak
justiça, p. 133. for a mobilized and decisive majority on a mat-
19
Francisco LAPORTA, El ámbito de la ter of central political importance. The normal
constitución,p. 474. track should instead be designed for use in the
20
Francisco LAPORTA, El ámbito de la cons- more typical case in which such a deep popular
titución, p. 482. mandate does not exist.” The new separation of
21
Juan BAYÓN, Derechos, democracia y cons- powers, p. 664.
titución, p. 234. 28
Antonio Manuel Peña Freire, Constituciona-
22
A dignidade da legislação, p. 2. lismo garantista y democracia, p. 44.
23
Levando os direitos a sério, p. XV. 29
Non-judicial review, p. 453.
24
The Core of the Case Against Judicial Review, p.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


102

Constituição e Processo: a decisão em sede de


controle de constitucionalidade vista a partir da
constitucionalização do processo*
Constitution and Process: the Judicial Review decision since
the Constitutionalization of Process

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Procura-se mostrar como as decisões em sede de controle de constitucionalidade das


leis, especialmente no Brasil, necessitam ser compreendidas a partir dos princípios do Processo
Constitucional.
Palavras-chave: Constituição. Processo. Controle de Constitucionalidade.

Abstract: Our intent is to show the judicial review decisions, especially in Brazil, need to be un-
derstood since the Constitutional Process principles.
Key Words: Constitution. Process. Judicial Review.

Introdução: o “Processo Constitucional” intérpretes vêem a jurisdição constitucio-


nal como objeto essencial das investiga-
“O Processo Constitucional visa a ções sobre Processo Constitucional”. Nes-
tutelar o princípio da supremacia constitu- se sentido, pretendemos mostrar a origem
cional, protegendo os direitos fundamen- e o desenvolvimento do controle de cons-
tais” (BARACHO, 1999a:118). Pretende- titucionalidade no Brasil e no mundo para
mos nesse breve ensaio resgatar as lições então chegarmos a discutir a correlação
acerca da importância do Processo Consti- entre proteção dos Direitos Fundamentais,
tucional no âmbito dos operadores e estu- a natureza das decisões (“sentenças consti-
diosos do Direito e mostrar a precedência tucionais”) em sede de controle de consti-
da Constituição sobre os demais ramos do tucionalidade.
Direito (aqui particularmente) apontando A conceituação da nova disciplina
os Direitos e Garantias afetos ao Processo (Processo Constitucional) deveu-se a vá-
e suas implicações sobre este e à garantia rios fatores históricos e sociais.
dos Direitos Fundamentais. Conforme mostraremos adiante,
Conseguiremos, assim, revisitar o o Processo Civil, ou “direito adjetivo”
controle de constitucionalidade (talvez um — costumeiramente tido como mera rea-
dos capítulos mais importantes do Proces- lização judicial dos “direitos substantivos”
so Constitucional), como lembra José A. — vai sofrer profunda mudança a partir do
de Oliveira Baracho (1999a:104), “alguns final do século XIX, quando num primeiro

* Este artigo foi inicialmente apresentado como monografia para a disciplina “Processo Constitucional”, ministrada pelo Prof.
Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho no curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da UFMG, cursada no segundo
semestre de 2002.
** Professor de Processo Civil na Faculdade Estácio de Sá – BH e de Processo Civil e Direito Constitucional na Faculdade ASA
– Brumadinho. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional - UFMG.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 103

momento se autonomiza para depois vir a se ao trabalho de Couture, nos dá notícia


sofrer influência dos preceitos constitucio- do nascimento de uma nova disciplina, o
nais. “derecho constitucional procesal”, surgido
Ele já não é mais mero apêndice do como “resultado de la confluencia de otras
Direito Civil, contudo sua autonomia tam- dos ramas de la ciencia jurídica: el dere-
bém não permanece absoluta, pelo menos cho constitucional y el derecho procesal”
no que toca à sua subordinação às Cons- (FIX-ZAMUDIO, 1977:315). O jurista
tituições que vão cada vez mais se preo- chama a atenção para a anterioridade e a
cupando em não apenas “elencar” direitos, repercussão dos trabalhos de Couture (es-
mas também construir instrumentos que pecialmente o seu “Las Garantías Consti-
garantam a efetividade destes e dela pró- tucionales del Proceso Civil”) no âmbito
pria. processual mostrando a transcendência
“Os estudos dos institutos do pro- constitucional dos institutos processuais
cesso não podem ignorar seu íntimo re- (FIX-ZAMUDIO, 1977:317).
lacionamento com a Constituição, princi- A constatação é clara, “ação, juris-
palmente tendo em vista os instrumentos dição e processo” devem ser repensados
indispensáveis à garantia e modalidades de desde uma perspectiva mais ampla: pro-
defesa dos Direitos Fundamentais do ho- cessual e constitucional.
mem” (BARACHO, 1980-82:59). “En otras palabras, se está desper-
Diante da ambivalência com a qual tando la conciencia entre constitucionalis-
têm sido estudados os institutos do proces- tas y procesalistas, sobre la conveniencia
so (tanto por constitucionalistas, como por de unir sus esfuerzos con el objeto de pro-
processualistas propriamente ditos, cada fundizar las instituciones procesales funda-
qual desde perspectivas diferentes e, por mentales, ya que no debe olvidarse, como
vezes, até mesmo contraditórias), mostra- ocurrió durante mucho tiempo, que poseen
se necessidade de unificar esses estudos una implicación político-constitucional, y
sob uma perspectiva comum. Nasce assim no de carácter exclusivamente técnico, y
uma nova disciplina, apreendida por auto- es en este sentido en que podemos hablar
res de renome em todo o mundo e no Bra- de la relatividad de los conceptos de ju-
sil com a já clássica obra de José A. de Oli- risdicción y de proceso, en el sentido en
veira Baracho: “Processo Constitucional”, que lo hiciera el inolvidable Calamandrei
que pode ser assim definido como: respecto de la acción”(FIX-ZAMUDIO,
“O Direito Constitucional Processual 1977:318)2.
é o ramo do Direito Constitucional que tem Outra não foi a conclusão do 1º Con-
o propósito essencial de estudar, de forma gresso Ibero-americano de Direito Consti-
sistemática, as instituições processuais re- tucional: “es necesaria una mayor aproxi-
guladas pelas disposições constitucionais, mación entre los constitucionalistas y los
qualificadas como garantias constitucio- cultivadores del procesalismo científico,
nais de caráter processual” (BARACHO, con el objeto de estudiar, con mayor pro-
1980-82:71)1. fundidad y en forma integral, las materias
Em um texto publicado pela “Re- que comprenden las zonas de confluencia
vista de Derecho Procesal” do Uruguai entre ambas disciplinas, y que tienen re-
(posteriormente republicado pelo “Boletín lación directa con la función del organis-
Mexicano de Derecho Comparado”, em mo judicial” (citado por FIX-ZAMUDIO,
1977), Héctor Fix-Zamudio, referindo- 1977:318).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


104 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

1. Constitucionalização do Processo interpretação constitucional, a latitude dos


conceitos é enorme, derivada ainda da co-
Tem-se falado muito hoje em dia em loquialidade oriunda de um processo dia-
“Direito Civil Constitucional”, “Direito Pe- lético e dialógico dos acertos e acordos do
nal Constitucional”, e outras combinações trabalho constituinte”.
entre os mais variados ramos do Direito e a Isso é ainda mais complexo em uma
Constituição (ou o Direito Constitucional). Constituição com um elenco tão longo de
Essa tendência nos parece bastante positi-
direitos e garantias fundamentais, como
va, haja vista um aparente reconhecimento
observa Alexy, referindo-se especifica-
da importância e da primazia da Consti-
mente à Constituição brasileira de 1988:
tuição sobre todo o Direito, nas suas mais
“Os problemas de interpretação jurí-
variadas manifestações.
dico-fundamentais que aparecem em toda
Um fator que também pode explicar
a parte são, por meio dessa regulação re-
a atual tendência, no Brasil, de se constitu-
lativamente detalhada, abafados em parte
cionalizar o Direito Comum, estaria no fato
ampla, mas não eliminados; em alguns ca-
de a nossa atual Constituição, mais do que
sos nascem até novos. Assim o artigo 5º,
qualquer outra anterior (e, provavelmente
IV, declara a manifestação dos pensamen-
mais do que qualquer outra no mundo),
além de tratar de matérias tradicionalmen- tos como livre. Isso quer dizer que todas as
te afetas a uma Lei Maior — organização manifestações de opinião são permitidas,
do Estado, dos poderes, da forma e regi- também tais que violam a honra de outros
me de governo, além de um extenso e ini- e tais com conteúdo racista?” (ALEXY,
gualável elenco de direitos e garantias —, 1999:63).
trouxe para o seio da Constituição dispo- No Direito Comparado, vamos en-
sições afetas ao Direito Civil, Comercial, contrar um desenvolvimento maior acerca
Tributário, Penal, Processual (e outros) de da “constitucionalização do Direito”, por
maneira extremamente pormenorizada. exemplo, com Favoreau (“La Constitutio-
Assim, quer se queira atualmente nnalisation du Droit”3).
trabalhar em juízo com o Direito ou quer A Constitucionalização do Processo
se queira simplesmente estudá-lo, dificil- é um capítulo à parte dentro da tendência
mente será possível fazê-lo sem se reportar apresentada. Inicia-se já quando as bases
à Constituição da República Federativa do profundamente privatistas e liberais do
Brasil de 1988. Processo Civil começam a ser questiona-
No entanto, se isso, por várias ra- das e este tem reafirmada a natureza de
zões é um ganho, por outro lado pode re- Direito Público (até então sua colocação
sultar em problemas quando o trato com didático-enciclopédica como de Direito
a Constituição é feito de maneira que não Público provinha muito mais para reforçar
considere a especificidade constitucional. o imperium do Estado na Administração da
Como defende Álvaro R. de Souza Cruz Justiça, do que propriamente para lhe apli-
(2000:27-28): car princípios constitucionais).
“[A] singularidade das normas cons- Essa mudança pode ser vista em Os-
titucionais se liga aos aspectos semântico/ car Von Bülow (“Teoria das Exceções e
sintáxico, vez que dotados de uma tessitu- dos Pressupostos Procesuais”), o precursor
ra extremamente aberta. Para tanto, basta da autonomização do processo como ramo
examinar o artigo primeiro da atual Carta específico do Direito (e sua classificação
Constitucional para se perceber que, na como de Direito Público)4; continua com

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 105

Carnelluti (transcendência constitucional permanecer isolado e privatista, mas, para


da ação), Calamandrei (relatividade do abarcar princípios de Direito Público e par-
conceito de ação e suas implicações polí- ticularmente princípios constitucionais. O
ticas), Niceto Alcalá-Zamora y Castillo e “Processo” apenas pode ser compreendido
Eduardo Couture (que, finalmente, estende hoje como “Processo Constitucional”.
as categorias constitucionais ao processo) É importante assinalar as conseqüên-
(cf. BARACHO, 1980-82:67-69). Assim, cias disso: a partir do momento em que o
apenas recentemente se vai considerar a Processo é visto como “Processo Constitu-
ação como um direito público-subjetivo de cional”, toda Justiça (e, pois, todo juiz/Tri-
natureza constitucional, um conceito ini- bunal) é Constitucional.
ciado com Carnelutti e desenvolvido en- Quando falamos, hoje, pois, em
tre nós por Couture (cf. FIX-ZAMUDIO, Controle de Constitucionalidade como si-
1977:316). nônimo de Jurisdição (ou Justiça) Consti-
Trata-se de uma mudança paradig- tucional, devemos explicitar os supostos
mática na interpretação do processo. Como a partir dos quais utilizamos os termos5;
definiram Andolina e Vignera (1990:13): principalmente se estivermos nos referin-
“[l]e norme ed i principi costituziona- do ao Brasil, onde todo e qualquer juiz
li riguardanti l’esercizio della funzione está autorizado a deixar de aplicar uma lei
giurisdizionale, se considerati nella loro que considere inconstitucional (cf. infra).
complessità, consentono all’interprete di De forma que “Jurisdição Constitucional”
disegnare un vero e proprio schema ge- pode significar o mesmo que “Controle de
nerale di processo, suscettbile di formare Constitucionalidade” caso estejamos fa-
l’oggetto di una esposizione unitaria”. lando de sistemas de controle concentrado
O Processo vem desde já há muito de normas (como o alemão): aí há uma
sofrendo modificações em sua estrutura e jurisdição propriamente “constitucional”
função social. Diante de seu desenvolvi- (executada exclusivamente por um “Tri-
mento, sua função já “não pode ser apenas bunal Constitucional”) e outra “ordinária”
aplicativa e conservadora, mas deve ser (executada pelos demais juízes). Sem em-
instrumento de mudança” (BARACHO, bargo, quer nos refiramos a países como o
1985:118). Brasil ou como a Alemanha, teremos que
Dessa forma que o processo — como considerar o Processo como “Processo
outros ramos do Direito, consoante dis- Constitucional”, pois este representa um
semos supra — também vai se tornando ganho do atual Estado de Direito.
“Processo Constitucional”, num desenvol-
vimento contínuo. 1.1. As Garantias Constitucionais do Pro-
“Apreciar o fenômeno da recepção cesso
das bases constitucionais do Direito Pro-
cessual, passou por diversos debates, in- A Constituição de 1988 consagrou
clusive sobre os aspectos da internaciona- inúmeros direitos e garantias especifica-
lização do tema e o lugar ocupado nestas mente processuais, confirmando a tendên-
questões pelos princípios gerais do direito, cia à constitucionalização do processo,
inclusive no que diz respeito à repartição de dando a este (seja processo civil, penal ou
competências” (BARACHO, 2000e:10). procedimentos administrativos) uma nova
Chega-se até os dias de hoje em que conformação adequada ao Estado Demo-
se lhe reconhece autonomia, mas não para crático de Direito (cf. BARACHO, 1985:

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


106 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

60 e 2000e:13-14). Só para citar alguns Os procedimentos judiciais podem variar


constantes do artigo 5º da Constituição: de acordo com as circunstâncias, porém,
direito à tutela jurisdicional ampla (5º, os procedimentos devidos seguem as for-
XXXV); proibição de tribunais de exce- mas estabelecidas no direito, através da
ção (5º, XXXVII); princípio da legalidade adaptação das formas antigas aos proble-
e anterioridade da norma penal (5º, XX- mas novos. (...) Com o tempo, a cláusula
XIX); devido processo legal (5º, LIV); di- do ‘due process’ passou a ter maior rele-
reito ao contraditório e à ampla defesa (5º, vo, alargando-se no âmbito da doutrina.
LV); princípio da presunção de inocência De uma garantia, em face do juízo, passa a
(5º, LVII); além das garantias do habeas assegurar igualdade de tratamento frente a
corpus (5º, LXVIII), mandando de segu- qualquer autoridade” (BARACHO, 1980-
rança (5º, LXIX), mandado de injunção 82:89-90).
(5º, LXXI), habeas data (5º, LXXII) e a Esta garantia, passada aos Estados
ação popular (5º, LXXIII). Unidos — primeiramente constante de al-
Como se percebe desse breve le- gumas Constituições das ex-colônias até
vantamento, a partir de 1988 toda a pro- ser consagrada na V e XIV6 Emendas da
cessualista brasileira deve mudar, já que Constituição Federal —, significou um
o “modelo constitucional do processo ci-
grande avanço na dogmática processual,
vil assenta-se [agora mais do que nunca]
significando não mais propriamente o law
no entendimento de que as normas e os
of the land, mas os usos e modos de proce-
princípios constitucionais resguardam o
dimento estabelecidos.
exercício da função jurisdicional” (BA-
Tal é a importância da garantia do
RACHO, 1999a:92.); garantias foram am-
due process nos Estados Unidos, que
pliadas (com a criação, por exemplo do
assim afirma Lêda Boechat Rodrigues
mandado de segurança coletivo), novas
garantias surgiram (como o mandado de (1958:92),
injunção, o habeas data). Vários dispositi- “Nos Estados Unidos, praticamente
vos dos Códigos de Processo Civil e Penal até 1895, foi ela entendida nesse sentido
simplesmente não foram recepcionados estrito [de garantia processual e não ma-
(por exemplo, as disposições desde último terial], com a única exceção do caso Dred
acerca das prisões provisórias sem fiança). Scott, julgado em 1857, nas vésperas da
Guerra de Secessão. Dando à cláusula do
1.1.1. O Devido Processo Legal ‘due process’, da 5a. Emenda Constitucio-
nal, o significado de direitos substantivos,
A Constituição, a exemplo das ante- declarou a Corte, pela segunda vez em sua
riores, resguarda os direitos ao princípio da história, a inconstitucionalidade de uma
inocência e ao devido processo legal (due lei do Congresso: a seção 8ª do Missouri
process of law). Compromise Act, de 1850, que proibira a
O devido processo legal, segundo a escravidão nos territórios”7.
doutrina, tem sua origem na Magna Car- A partir do momento em que, ao lado
ta inglesa, associado ao chamado “law of de se configurar em uma garantia proces-
the land”: “nullus liber homo capitur vel sual, passa a ser também uma garantia
imprisonetur (...) nisi per legale judicium material, o due process impõe a limitação
parium suorum vel per legem terrae”. dos poderes do Estado. O Judiciário não
“A expressão devido processo signi- pode julgar e condenar alguém sem que
fica o processo que é justo e apropriado. a este sejam garantidos voz e meios para

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 107

se defender. Doutro lado, o Legislativo (e na nature même d’un droit constitutionnel


o Executivo) não podem adotar medidas individuel d’entraîner la possibilité de re-
que venham a ferir o núcleo de direitos courir à la justice s’il est violé” (ROSEN-
fundamentais do cidadão — nessa época FELD, 2000:1329; no mesmo sentido BA-
circunscritos a direitos individuais contra RACHO JR, 2003:328-329).
a ingerência do Estado. O Devido Processo em sistemas de
Após esse primeiro momento, vários civil law encontrou inicialmente campo
paradigmas vão se suceder — o Estado é mais profícuo no âmbito do Processo Pe-
chamado a intervir e o elenco de direitos nal (garantia ampla de defesa, princípio da
se amplia — contudo, a garantia do devido inocência, valoração racional das provas,
processo permanece em seu duplo aspecto. juiz natural). De maneira geral, podemos
Como observa José Alfredo de O. falar nessa cláusula no que tange à “garan-
Baracho Jr., no que tange ao devido pro- tia da justiça”.
cesso substantivo, esta doutrina prevaleceu
na Suprema Corte até o caso Wet Coast 1.1.2. A Inafastabilidade da Jurisdição e o
Hotel v. Parrish (1937), estando voltada Contraditório
“para a proteção dos direitos fun-
damentais à propriedade e a liberdade, Permanece, outrossim, em nossa
especialmente de iniciativa e de contra- Constituição o princípio da inafastabilida-
to, contra a ação dos governos estaduais. de da Jurisdição. Ressalta aos olhos aqui
Por outro lado, como conseqüência des- a precisão técnica presente no supracitado
sa mesma doutrina, várias leis estaduais inciso XXV. Diferentemente do que ocorre,
que dispunham sobre direitos sociais, tais por exemplo, com a Constituição da Itália
como jornada máxima de trabalho, salário, — onde o artigo 24 diz que “todos podem
mínimo, proteção ao trabalho da mulher atuar em juízo para a defesa de seus direi-
e limites ao trabalho infantil foram decla- tos e interesses legítimos” —, nossa Cons-
radas inconstitucionais” (BARACHO JR, tituição assegura o acesso à Justiça como
2003:321). um direito constitucional-processual de
É importante observarmos como a qualquer indivíduo que alegue possuir um
Suprema Corte dos Estados Unidos vem direito (cf. GONÇALVES, 1992:45ss)8,
tratando o tema nos últimos tempos. Isso é isto é, o direito de submeter um (alegado)
particularmente importante para vermos os ilícito à apreciação do Judiciário não se
perigos e conseqüências que uma tal pos- condiciona à existência fática de direitos
tura poderia ter no Brasil. De fato, como subjetivos, bastando tão somente sua ale-
analisa Michel Rosenfeld, a Suprema Cor- gação para que qualquer pessoa receba a
te dos Estados Unidos tem vivido uma tutela jurisdicional do Estado.
virada no asseguramento do due process. O direito de ação é tema de funda-
Segundo ele, no período 1998-1999, deci- mental importância ao se tratar não apenas
sões extremamente divididas da Suprema da Teoria Geral do Processo, mas, a par-
Corte apontam “un recul de la protection tir da mencionada constitucionalização
des droits individuels”, isto porque, estas do Processo, passa a interessar a todos os
decisões “ébranlent un principe essentiel que se debruçam sobre as garantias cons-
du droit constitutionnel américain, consi- titucionais (cf. BARACHO, 1999a:118-
déré comme sacro-saint depuis le début du 119); afinal, é a possibilidade do acesso ao
dix-neuvième siècle, à savoir qu’il est dans Judiciário que possibilita partirmos para

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


108 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

todas as demais conquistas da modernida- cional”. Este é um ponto sobre o qual a Ju-
de, inclusive a concretização dos Direitos risprudência nem sempre se mantém firme,
Fundamentais, que, por vezes, apenas se isto é, que após a promulgação da Consti-
concretizaram a partir do momento em que tuição de 1988, todas as normas anteriores
se garantiu aos interessados o direito/poder apenas continuam vigendo se tiverem sido
de interpelar judicialmente. recepcionadas pela Constituição; da mes-
Por fim, de suma importância para ma forma, todas as normas processuais
o Processo Constitucional é a garantia do editadas após, têm de estar conformes os
contraditório (inciso LV). “O princípio da princípios da nova Carta.
contradição é da essência do processo ci- Logo, ao mesmo tempo em que a
vil, que pode ser definido como um debate Constituição serve de fundamento para a
entre duas partes” (BARACHO, 2000e:4). prática processual, o processo erigi-se em
Qualquer juiz ou Tribunal deve poder instrumento indispensável à atuação das
se colocar no lugar de cada parte, vendo a normas constitucionais. Da mesma forma,
questão por ambas as perspectivas, a partir ao mesmo tempo em que os órgãos de po-
da ampla oportunidade dada as elas para der estão submetidos à Justiça, esta tem de
não apenas apresentarem suas pretensões, ser acessível aos governados (é o princípio
mas reconstruir o “evento”, que de modo do acesso à jurisdição).
algum é auto-evidente ou “objetivo”. Cada Teríamos assim nas Constituições
parte deve ter o direito de ter his day in (surgidas a partir da 2ª Guerra), dois seto-
Court. É o que defende Aroldo P. Gonçal- res referentes à Justiça: as garantias consti-
ves (1992:171): “a estrutura do processo tucionais da organização jurisdicional, que
assim concebido permite que os jurisdicio- tratam da independência e organização dos
nados, os membros da sociedade que nele tribunais e os direitos constitucionais dos
comparecem, como destinatários do provi- jurisdicionados, isto é, os direitos de aces-
mento jurisdicional, interfiram na sua pre- so à prestação jurisdicional9.
paração e conheçam, tenham consciência Nestas Constituições o processo apa-
de como e por que nasce o ato estatal que rece como uma garantia constitucional. No
irá interferir em sua liberdade”. mesmo sentido a Declaração Universal dos
Esse direito constitucional de defesa Direitos do Homem (1948), dispõe em seus
está intimamente relacionado àquele direi- arts 8º e 10º que todo homem tem direito a
to de ação. São dois extremos da relação um recurso que o ampare contra atos que
triádica formada entre as partes e o julga- violem seus direitos protegidos pelas leis
dor (este acima e eqüidistante face àque- ou Constituição locais e que todos têm di-
las). reito de acesso em igualdade de condições
em face de um Judiciário independente e
1.2. As Garantias da Justiça e as Garantias imparcial.
os Indivíduos E ainda, a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem (1948), no
O Processo Constitucional consti- artigo XVIII garante a toda pessoa o direi-
tui-se em um instrumental indispensável à to de recorrer aos tribunais para fazer va-
compreensão tanto das garantias dos cida- ler seus direitos e dispor de um processo
dãos quanto, especificamente, da Justiça. acessível e breve pelo qual seja amparada
As normas processuais não podem ser li- pela justiça contra atos de autoridades que
das sem a necessária “filtragem constitu- violem seus direitos fundamentais10.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 109

A propósito dos dispositivos rela- modelo difuso, seja em sistemas mistos de


cionados às prerrogativas da Justiça, des- argüição de um Tribunal Superior para a
taca-se o princípio do juiz natural, o que Corte Constitucional, como ocorre com a
implica a necessidade da pré-constituição Itália). Após isso, teremos de pensar se, sen-
da ordem judiciária pela lei, instituindo a do uma atividade “jurisdicional”, o controle
competência daquele em aplicar a Consti- concentrado de constitucionalidade seria
tuição e as demais normas. também realizado em contraditório.
Outro princípio correlacionado é o Quanto ao primeiro problema, po-
da independência do Judiciário, “corolá- demos afirmar que, na apreciação da in-
rio do princípio da separação dos poderes” constitucionalidade há uma lide, resolvida
(BARACHO, 1999a:93). Os juízes apenas com o deslinde da questão, o juízo sobre
se submetem à lei, sendo por isso livres e a inconstitucionalidade da lei, para então
neutros ideologicamente no exercício de aplicá-la ou não ao caso.
suas funções. “Creemos que la disputa sobre la
Ademais, suas decisões têm de ser validez (legitimidad) de la ley con el fin
motivadas e, em regra, publicadas, sob de apartala de la aplicación a un caso
pena de nulidade. Essas duas exigências concreto (aun cuando luego, el efecto se-
derivam da necessidade, num Estado De-
cundario, llamémosle, aunque sea más
mocrático de Direito, de que as decisões
transcendente, sea otro [como sucede na
judiciais possam sofrer o crivo da opinião
Itália ou Alemanha]), el cual de esa ma-
pública; de outro lado, a publicidade e a
nera queda resuelto, no difiere, en esencia,
motivação são requisitos essenciais para
de cualquiera otra cuestión de derecho
controle da decisão por um órgão judicial
que se someta a la decisión de los jueces,
de recurso. “O juiz, como órgão terminal
con el fin de resolver, de este modo, una
de apreciação da Constituição, deve ser
objetivo e claro em garantir os direitos litis o conflicto de intereses” (VÉSCOVI,
fundamentais, como pressuposto de qual- 1975:1139)11.
quer outro direito ou interesse individual Quanto à segunda questão, digno de
ou coletivo, nos termos dos procedimentos nota a observação de Aroldo P. Gonçalves
consagrados” (BARACHO, 1999a:97). segundo o qual, com base no disposto no
art. 103, §3º da CF/88, não haveria dúvi-
1.3. Caráter Contraditório do Processo Cons- das de que no Brasil o procedimento de
titucional. Princípios da Nova Disciplina argüição concentrada de lei se realiza em
contraditório. “É, portanto, um verdadeiro
Há quem negue o caráter contradi- processo, e não um simples procedimento,
tório do Processo Constitucional (como ou um ‘processo de jurisdição voluntária’”
Cappelletti e Carnelutti) (cf VÉSCOVI, (GONÇALVES, 1992:118; ver também
1975:1142). VÉSCOVI, 1975:1147).
Ao se tratar especificamente do con- Logo, não é um processo diferen-
trole de constitucionalidade, muitos há que te dos demais, um processo objetivo sem
afirmam que nas ações diretas, ter-se-ia um partes como defende Gilmar Mendes
processo objetivo, sem partes, logo, sem (1998a:312)12.
contraditório propriamente dito. Gostaríamos de concluir este tópico
Uma primeira questão a ser posta é citando algumas premissas sobre as quais
quanto ao caráter propriamente judicial do se assenta o Processo Constitucional e que
incidente de inconstitucionalidade (seja no foram assim sintetizadas:

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


110 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

“a) A Constituição pressupõe a exis- série de direitos se não houvesse qualquer


tência de um processo, como garantia da controle sobre os atos do Legislativo (e
pessoa humana; mesmo do Executivo).
b) A lei, no desenvolvimento norma- O Controle judicial de constituciona-
tivo hierárquico desses preceitos, deve ins- lidade no Brasil surgiu com a Constituição
tituir esse processo; de 1891 (art. 59)14 e deve seu impulso ini-
c) A lei não pode conceber formas cial à valorosa contribuição de Rui Barbo-
que tornem ilusórias a concepção de pro- sa, influenciado pelo sistema americano
cesso consagrada na Constituição; que então se consolidava (o famoso caso
d) A lei instituidora de uma forma de Marbury vs. Madison data de 1803 e Dre-
processo não pode privar o indivíduo de dscott vs. Sanford, de 1857).
razoável oportunidade de fazer valer seu Segundo Rui Barbosa, considerando
direito sob pena de ser acoimada de in- a hierarquia das leis, o que o Judiciário fa-
constitucional; ria em caso de conflito seria apenas decla-
e) Nessas condições, devem estar em rar ou indicar a solução de que a lei mais
jogo os meios de impugnação que a ordem “fraca” deve ceder frente a mais “forte”. É
jurídica local institui, para fazer efetivo o o que ocorreria nos EUA, onde seria obri-
controle de constitucionalidade das leis” gação de qualquer juiz “tratar como nullo
(BARACHO, 1999a:89). qualquer acto legislativo inconsistente
com a Constituição” (BARBOSA, 1932-
2. Controle de Constitucionalidade
34:IV:36).
“O problema do conflito entre a lei Um ato legislativo é (absolutamente)
fundamental do Estado, que decorre da nulo quando o Legislativo ou o Executi-
superioridade das normas constitucionais vo exorbitam suas competências. Sendo
sobre as leis ordinárias, decretos e atos assim, esse ato “não é lei, não confere
administrativos que devem acomodar-se direitos, nem deveres, não cria proteção
aos limites traçados pelas Constituições, nem cargos; é como se nunca houvesse
e a defesa dos direitos individuais, contra existido” (BARBOSA, 1932-34:I:12). Se-
os excessos dos poderes públicos, cons- gundo Véscovi, os EUA puderam se valer
titui tema fundamental para corrigir os “de un Poder Judicial cuya majestad e
diversos excessos de atuação da ativida- independencia aparecen como indiscuti-
de estatal em nossos dias” (BARACHO, dos en doctrina y en el derecho positivo,
1985:1)13. la jurisprudencia, haciendo aplicación de
A questão sobre o controle de cons- los principios lógicos del derecho, espe-
titucionalidade das leis e atos normativos cialmente el de no contradicción, que a su
tem ocupado grande destaque nos estudos vez se sirve de otros, como el de jerarquia,
acerca do Processo Constitucional; não ha decidido que no debía darse primacía
sem alguma estranheza para alguns pro- a la ley, sino a la constitución, en caso
cessualistas clássicos em encontrar uma de oposición entre ambas” (VÉSCOVI,
fórmula jurídica caracterizar o controle. 1975:1130).
A efetivação de um controle de cons- Vamos rapidamente repassar este
titucionalidade começa — com exceção da sistema que foi o primeiro a pensar que a
prática jurisprudencial dos EUA — após a Constituição era não apenas a Lei Maior,
1ª Guerra, face a constatação de que não mas também que deveria ser defendida em
bastava à Constituição o elenco de uma face de outros atos normativos.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 111

2.1. Estados Unidos deveriam ter primazia sobre quaisquer ou-


tras leis. Isto contribuiu, segundo Mauro
Em matéria de controle de constitu- Cappelletti (1984:60), para formar a tese
cionalidade, os Estados Unidos eram, de da subordinação das leis ordinárias frente
fato, o referencial da época, até mesmo às Constituições dos Estados surgidas com
para seus adversários, como Kelsen, ao a Independência destes. Neste sentido a
se referir ao sistema difuso americano: precisa observação de José A. de Oliveira
“La ausencia de una decisión uniforme Baracho de que “a primeira Constituição
en torno de la questión sobre cuándo una que enfrentou o problema do controle de
ley es inconstitucional (...) es un gran pe- constitucionalidade, através de um órgão
ligro para la autoridad de la Constitución” especificamente criado, foi a da Pennsyl-
(KELSEN, [s/d]:83)15. vania, de 1776” (BARACHO, 1985:150).
Apesar de a Constituição norte-ame- Estas Constituições expressavam o
ricana não ter previsto tal competência ao princípio da soberania popular, que legi-
Judiciário, Marshall, Chief Justice da Su- timava, democraticamente, o Legislativo,
prema Corte, ao decidir o caso Marbury vs. o Executivo e o Judiciário. Carl Friedrich
Madison entendeu que, ou se considerava (1946:218) lembra que o desenvolvimen-
que a Constituição era a Lei Maior e todas to do poder de interpretar a Constituição,
a as leis lhe estavam sujeitas, ou ela pode- concedido aos Tribunais, possuiu íntima
ria ser alterada como qualquer lei ordiná- relação com certas leituras que a teoria da
ria: “An act of Congress repugnant to the separação dos poderes recebeu naquele
constitution is not law. When the constitu- País. Contribuiu também para a idéia de
tion and an act of congress are in conflict, supremacia da Constituição a previsão de
the constitution must govern the case to um procedimento especial para a reforma
which both apply”. da mesma.
Com Marshall assenta-se a idéia de Ainda, à época da Convenção de Fi-
que a Constituição não possui apenas uma ladélfia (1787), do embate entre “liberais”
supremacia política, mas também status de e “federalistas”, o Judiciário acabou por se
norma suprema do Direito Positivo. Antes beneficiar da “vitória” destes últimos, que
desse caso um dos primeiros precedentes deram grande suporte doutrinário ao Judi-
afirmando a superioridade das Constitui- ciário no sentido de lhe atribuir o poder de
ções locais se baseou no caso Holmes vs. controle dos atos legislativos. No capítulo
Walton em 1780, pela Corte Suprema de LXXVIII do “Federalista”, Alexander Ha-
New Jersey — além do caso Commonweal- milton disserta sobre aquele. Para Hamil-
th vs. Caton em 1782, pela Corte de Virgí- ton, se a Constituição limita o Legislativo
nia (cf. SNOWISS, apud DINIZ, 1995:112 (e.g., proibindo-lhe editar leis retroativas),
e CAPPELLETTI, 1984:62-63). logo, apenas os Tribunais podem garantir
Vale a pena frisar os pressupostos de que esses limites sejam respeitados, decla-
onde Marshall pôde se fundar para criar a rando nulos os atos que lhe sejam contrá-
judicial review. A compreensão da Cons- rios. A razão de ser dado ao Judiciário esta
tituição como uma Lei acima das outras função está em que: “a Constituição é e
pode ser explicada historicamente como deve ser considerada pelos juízes como a
uma lembrança das antigas “Cartas da lei fundamental e como a interpretação das
Coroa” impostas pela Monarquia inglesa leis é função especial dos tribunais judici-
aos colonos americanos. Estas ordenações ários, a eles pertence determinar o sentido

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


112 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

da Constituição, assim, como de todos os Dadas estas premissas podemos vol-


outros atos do corpo legislativo” (HAMIL- tar à decisão de Marbury vs. Madison.
TON, 1974:163). Marshall baseou sua decisão cláusula 2ª do
Havendo contradição, a vontade art. 6º da Constituição Federal:
maior do povo (refletida na Constituição) “This Constitution, and the laws of
deve ser preferida à de seus agentes. Ex- the United States which shall be made in
plica Hamilton que a questão não é que pursuance thereof; and all treaties made,
o Judiciário seja superior ao Legislativo, or which shall be made, under the authori-
mas que o poder do povo é superior a am- ty of the United States, shall be the supre-
bos, e, se uma lei vai contra este, é dever me law of the land; and the judges in every
do juiz obedecer à Constituição como lei state shall be bound thereby, anything in
fundamental. the Constitution or laws of any State to the
Bem antes de Marshall, as origens contrary notwithstanding”.
mais remotas da doutrina da judicial re- A partir desses dispositivos (e de
view e da supremacy of the judiciary, en- todo o pano de fundo mencionado aqui)
contram-se, na Inglaterra de James I Stuart, Marshall pode então argumentar:
com as teses (bem pouco aceitas à época, é “Between these alternatives there is
verdade) defendidas pelo Lorde Coke, que
no middle ground. The Constitution is ei-
proclamava que a garantia da supremacia
ther a superior paramount law, unchange-
da common law contra o absolutismo do
able by ordinary means, or it is on a level
Rei ou do Parlamento era função dos juí-
with ordinary legislative acts, and, like
zes. Coke entrou por várias vezes em con-
other acts, is alterable when the legislatu-
flito com o James I, por defender que os
re shall please to alter it.
juízes poderiam decidir se um ato do Parla-
In the former part of the alternative
mento era ou não “legal”. Outro preceden-
te sobre o papel da Constituição lembrado be true, then a legislative act contrary to
por Verdu é o jurista suíço Emer de Vattel the constitution, is not law; if the latter
(1714-1767), que defendia a Constituição part be true, then written constitutions are
contra atos do príncipe que lhe fossem absurd attempts, on the part of the people,
contrários. Estes atos “inconstitucionais” to limit a power in its own nature illimita-
não seriam outra coisa senão “um abuso ble. (...)
criminal do poder que lhe é confiado” (cf. If an act of the legislature, repugnant
VERDÚ, 1983:33). to the constitution, is void, does it, notwi-
Chegamos então ao Chief Justice thstanding its invalidity, bind the courts,
Marshall, que tornou a Suprema Corte e and oblige them to give it effect? Or, in
todo o Judiciário americano, guardiões other words, though it be not law, does it
perpétuos da Constituição. Sobre a impor- constitute a rule as operative as if it was
tância de Marshall no Constitucionalismo a law? (...)
americano, disse certa vez o Justice Cardo- It is emphatically the province and
zo: “[Marshall] dejó en la Constitución de duty of the judicial department to say what
E.U. el sello de su proprio pensamiento, y the law is. Those who apply the rule to par-
la forma de nuestro derecho constitucional ticular cases, must of necessity expound
es lo que es porque él la moldeió, cuan- and interpret that rule. (...)
do aún era plástica y maleable, al fuego If, then, the courts are to regard the
de sus proprias e intensas convicciones” constitution, and the constitution is supe-
(apud, WOLFE, 1991:62). rior to any ordinary act of the legislature,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 113

the constitution, and not such ordinary act, su capital importancia, es, además, el em-
must govern the case to which they both blema de un modo de razonar significativo
apply” (1 Cranch 137, 2L. Ed. 60, 1803). que sirvió para fortificar la estructura fede-
Segundo Pablo Lucas Verdú ral de los Estados Unidos según el modelo
(1983:22ss), a argumentação de Marshall socio-econômico querido por la burguesía
se estrutura, no recurso ao “direito original norteamericana” (VERDÚ, 1983:25; em
do povo americano”, como conseqüência, itálico no original)16.
os princípios aí estabelecidos seriam fun- O controle se dá por via incidental
damentais e permanentes, constituindo-se (sistema de controle difuso), como já dis-
em limites para os governos. semos, citando Rui Barbosa, qualquer juiz
E mais, em sua decisão podemos está legitimado a apreciar a conformida-
visualizar elementos do jusracionalismo: de de lei ou outro ato normativo frente à
quando usa expressões como “direito ori- Constituição.
ginal do povo”, “princípios fundamentais”, Sem embargo, o controle difuso nos
“princípios permanentes”, “autoridade e EUA é mais amplo do que “simplesmen-
vontade supremas”, “felicidade”. Isto é, te” atribuir-se a competência de interpretar
há uma clara influência da doutrina liberal a Constituição aos juízes. Segundo W. F.
anglo-francesa dos séculos XVII e XVIII Murphy, J. E. Fleming e W. F. Harris, “that
(o abstracionismo francês e o empirismo- all public officials, state and federal, from
pragmático inglês). Por outro lado, Verdú presidents, senators, and representatives,
também aponta a influência do iluminismo to governors, state legislators, local dis-
garantista (cf. VERDÚ, 1983: 25-36). trict attorneys and police, may often have
O poder dos juízes interpretarem as to interpret the Constitution”. Também os
leis, frente à proteção das liberdades vem cidadãos têm “the same rigth and obliga-
da tradição anglo-saxã do common law, tion” (de interpretar a Constituição), isto
que postulava que o direito comum pode porque, “when they cast their ballots can-
prevalecer sobre os statutes, como normas didates records and promises about how
puramente excepcionais que são, inseridas they will interpret the Constitution (...),
em um direito já constituído (supra). when they speak out on political issues,
À parte todas as influências, o certo lobby elected representatives, or utilize
é que foi uma demonstração sem compara- other means of advocating or opposing
ções de técnica e eruditismo jurídico-cons- public policies” (apud, BARACHO JR.,
titucional. Sua importância para a teoria 1995:61-62).
acerca do Controle de Constitucionalidade Nessa ordem de coisas, considera-
é imensa, é um precedente necessário para se que uma lei tida como inconstitucional
qualquer um que queira entender o funcio- nunca existiu, sendo, pois nula ab initio.
namento da judicial review americana. É Surgido um conflito de constitucionalidade
uma referência, ademais, inclusive para em um caso concreto, o juiz, ao considerar
aqueles que, a partir de Kelsen, teorizaram inconstitucional a lei, deixa de aplicá-la
sobre o controle concentrado de constitu- pois esta possui um vício que a torna invá-
cionalidade. lida desde o nascedouro, mas sua decisão
“La famosa sentencia en el caso Mar- apenas tem efeito entre as pessoas envolvi-
bury v. Madison no sólo inauguró e asentó, das naquela controvérsia específica. A lei
definitivamente, la instituición técnica del declarada inconstitucional não é destruída,
judicial review, lo cual basta para acreditar apenas vai perdendo aplicabilidade pouco

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


114 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

a pouco pela ação da jurisprudência (cf. com base na lei posteriormente declarada
TOCQUEVILLE, 1975:20417). inconstitucional pode ser tão danosa que
A doutrina vai mais além. Já que a inviabilize o sistema, não trazendo qual-
lei inconstitucional é “como se nunca hou- quer benefício. Um exemplo é o caso Link-
vesse existido” (as if it had never bichem), letter vs. Walker (1965), em que a Suprema
permite-se que os cidadãos, antes mesmo Corte negou aplicação da sentença para os
da declaração judicial, se insurjam contra casos anteriores definitivamente julgados
aquela, não podendo ser punidos por não que dissessem respeito à aplicação da nor-
obedecerem à mesma (cf. COOLEY, apud, ma processual penal considerada incons-
BARACHO JR., 1995:63). titucional. Adverte contudo Maria Del
A simplicidade do controle difuso é Carmen Blasco Soto (1995:50) que o caso
apenas aparente, pois dizer que os efeitos citado não tratou especificamente de re-
são somente inter partes importaria redu- solver o problema dos efeitos da sentença
zir em muito a engenhosidade do Sistema propriamente ditos, mas de estabelecer se
de Controle de Constitucionalidade daque- as normas processuais penais possuiriam
le país. De fato, se assim o fosse, o mesmo a mesma natureza das substantivas, para
juiz que decidiu pela inconstitucionalidade então aplicar-se ou não a mesma regra de
de uma lei em um caso, poderia considerá- benefício que a declaração de inconstitu-
la constitucional em outro caso análogo; cionalidade das normas penais possuem.
e ainda, alguns tribunais poderiam consi- Assim, firmou-se o entendimento segundo
derá-la inconstitucional e outros não. Essa o qual se considera que em matéria penal
foi inclusive uma das maiores críticas a devem os efeitos retroagir de forma abso-
este sistema, justamente a possibilidade de luta quando, com base na lei inconstitucio-
interpretações díspares diante da constitu- nal, haja pessoas cumprindo pena; mas, em
cionalidade da mesma lei. matéria civil (e às vezes em matéria admi-
O problema da disparidade de deci- nistrava), tem-se preferido preservar certos
sões resolve-se pelo instituto do stare de- “efeitos consolidados”, como a coisa jul-
cisis, que garante que um mesmo tribunal gada, em nome da segurança jurídica.
não venha a tomar decisões opostas e que, Uma novidade que de fato transfor-
pelo sistema das impugnações, permite à mou o tradicional controle difuso ameri-
Suprema Corte dar uma decisão definitiva cano inspirou-se na equity, como meio de
e vinculante sobre a constitucionalidade da suprir as deficiências daquele. Trata-se da
lei. Isso confere ao sistema uma “inespe- utilização de um “processo simulado” em
rada” eficácia erga omnes, e não simples- que é solicitada uma injunção ao Judiciá-
mente entre as partes do caso concreto. rio para analisar a constitucionalidade de
Dessa forma, não se trata apenas da uma lei antes de a mesma entrar em vigor.
não aplicação da lei, mas de verdadeira Se o Judiciário a considerar inconstitucio-
“eliminação” (definitiva), por força do sta- nal, torna-a inaplicável (cf. FERRARI,
re decisis, com eficácia erga omnes — nos 1992:104 e BLASCO SOTO, 1995:52).
termos acima — e retroativa. Seja lá como for, seguindo o balan-
Forçoso é reconhecer, todavia, que ço de Enrique Véscovi sobre a prática da
este efeito retroativo absoluto tem sido judicial review nos Estados Unidos per-
atenuado pela jurisprudência americana. cebe-se que, desde o seu início, a maior
Há casos em que se entende que a anula- parte dos casos diz respeito à defesa dos
ção de todas as relações jurídicas surgidas Direitos Fundamentais (e particularmente

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 115

dos direitos das minorias). Dessa forma, a 1998:109)18. Contudo, esta apreciação não
Suprema Corte por várias vezes se impôs pode ser feita por qualquer cidadão, mas
a certas normas discriminatórias de al- apenas pelo Judiciário; e mais, não por
guns Estados do Sul, inclusive limitando qualquer órgão do Judiciário. O controle
o Executivo na deportação de estrangeiros, deveria ser feito por um órgão especial
além de outras medidas de proteção, nota- (para que se evitassem decisões desiguais).
damente durante o chamado “governo dos Havia de fato em toda Europa Continental
juízes” (cf. BARACHO, 2000c; VÉSCO- uma grande desconfiança sobre a possibili-
VI, 1975:1133 e ainda GARCÍA DE EN- dade de um juiz apreciar a constitucionali-
TERRÍA, 1987:167ss). dade de uma lei (na França pós-revolucio-
nária a de um controle sobre o Legislativo
2.2. Áustria foi sempre muito combatida e apenas mais
tarde vai ser adotada uma forma de contro-
Após mais de 60 anos da adoção do le político).
controle difuso, o Brasil adota efetivamen- Assim, considerando que à época a
te uma ação visando direta e exclusiva- cúpula do Judiciário austríaco não possuía
mente o controle de constitucionalidade de condições de impor suas decisões a Tribu-
leis. nais inferiores e estando a cargo de Kelsen
A inspiração foi o sistema de con- o projeto do que veio a se tornar a Cons-
trole concentrado austríaco pensado e de- tituição austríaca de 1920, este acabou
senvolvido por Hans Kelsen (1998). Como por prever a criação do primeiro Tribunal
apresenta García de Enterría (1987:5), o Constitucional (o Verfassungsgerichtshof),
ponto de partida de Kelsen, era que “la ao qual foi dada a competência de anular
Constitución es una norma jurídica, y no leis que considerasse inconstitucionais19.
cualquiera, sino la primera entre todas, Este Tribunal era independente do
lex superior, aquella que sienta los valo- Governo e do Parlamento, seus membros,
res supremos de un ordenamiento y desde contudo, eram escolhidos por este último
esa supremacía es capaz de exigir cuentas, entre renomados juristas (Kelsen mesmo o
de erigir-se en el parámetro de validez de presidiu por anos).
todas las demás normas jurídicas del sis- A legitimidade para argüir da in-
tema”. constitucionalidade de uma lei perante
O Controle de Constitucionalidade, o Tribunal Constitucional, segundo esse
segundo Kelsen, assume o problema relati- modelo inicial, ficava restrita a algumas
vo a como tratar da regularidade da criação pessoas: o Governo Federal (sobre leis dos
do Direito, usando padrões estabelecidos Lander) e os Governos dos Lander (sobre
pelo próprio Direito, objeto do controle. É leis federais). Dessa forma, o controle vi-
importante notarmos a relação que Kelsen sava basicamente não permitir invasões de
estabelece entre Controle de Constitucio- competência entre os entes da Federação.
nalidade e a democracia, representada Não cuidava de outras possíveis normas
esta última pelos debates travados no Par- inconstitucionais que violassem, e.g., di-
lamento. reitos individuais ou coletivos.
Observe-se que Kelsen já aponta para Agindo como um “legislador negati-
a noção de que o controle não se dá “entre vo”, as decisões do Tribunal Constitucio-
lei e Constituição”, mas entre a Constitui- nal anulam a lei inconstitucional valendo,
ção e o processo legislativo (cf. KELSEN, em princípio, para o futuro, pois a lei é

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


116 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

anulada, cassada (aufhebt). Além disso, cionalidade e às agora consagradas em lei


esta decisão elaborada sem qualquer caso “interpretação conforme a Constituição” e
subjacente vale contra todos. “declaração parcial de inconstitucionali-
Com a reforma de 1929, o sistema dade sem redução de texto” (lei 9.868/99,
original foi modificado, sendo incluídos artigo 28, parágrafo único - de que trata-
entre os legitimados para propor o con- remos mais à frente) — o sistema alemão
trole a Corte Suprema para Causas Civis de controle de constitucionalidade merece
e Penais (Oberster Gerichtshof) e a Cor- um estudo à parte. Foi nesse sentido que
te Suprema para Causas Administrativas escreveu L. Carter, “o exercício dessa
(Verwaltungsgerichtshof). Estas duas úl- competência, passados mais de quarenta
timas não requereriam o controle por via anos, por um lado, revelou uma mudança
direta como os dois primeiros, em que há do papel da jurisdição constitucional (ale-
uma ação própria para argüir da inconstitu- mã) e, por outro, mostrou o Tribunal Cons-
cionalidade. No caso das Cortes Supremas, titucional Federal também como um fator
o requerimento para a apreciação do Tri- de desenvolvimento dos princípios consti-
bunal Constitucional basear-se-ia em um tucionais” (CARTER, apud BARACHO,
caso concreto, que elas tinham por decidir 1999a:102)20.
como instância recursal. Assim, o “sistema A Constituição de Weimar, resultado
austríaco puro” dá lugar a um modo “mis- de uma série de acordos entre várias forças
to”. sociais e políticas, foi palco de discussões
O sistema austríaco não aceitava que exaustivas quanto ao controle de consti-
uma lei inconstitucional fosse nula “desde tucionalidade. Havia dúvidas “acerca das
o início”, tal qual nos Estados Unidos, ou, condições do controle jurisdicional sobre
como disse Kelsen, um ato não é nulo, ape- a constitucionalidade formal, a título de
nas anulável, pois “no es posible caracteri- incidente, mencionando-se as dúvidas re-
zar como nulo a priori (nulo ab initio) um ferentes às condições sobre a constitucio-
acto que se presenta a sí mismo como un nalidade material das leis” (BARACHO,
acto jurídico” (KELSEN, [s/d]:84-86; ver 1999a:102). De fato, no plano teórico,
também 1987:300). Donde concluir-se que Anschütz, Thoma, Radbruch e Jellinek
este tipo de sentença é sobretudo constitu- eram contra a criação de mecanismos de
tiva. controle de constitucionalidade, enquanto
A eficácia da decisão que dispõe pela que Triepel, Nawinsky e Preuβ diziam que
inconstitucionalidade da lei começa com a Constituição deixara ao legislador a pos-
a data de sua publicação ou em até 1 ano sibilidade de atentar contra a mesma, daí a
da mesma, se assim decidir o Tribunal (é o necessidade do controle. Mesmo entre os
processo de Kundmachung, art. 140, § 3º, que eram a favor, não havia consenso so-
da Constituição austríaca). bre se o controle deveria ser apenas formal
ou se poderia alcançar os direitos funda-
2.3. Alemanha mentais, consagrados na Constituição (cf.
DINIZ, 1995:136). Segundo Márcio Diniz,
Pela sua peculiaridade e principal- dado o ambiente de discussões e incerte-
mente pela influência que tem exercido em zas, o Controle de Constitucionalidade não
nosso modelo de Controle de Constitucio- pôde se desenvolver. Não obstante, foram
nalidade — referimo-nos mais especifica- criados tribunais específicos para o con-
mente à Ação Declaratória de Constitu- trole de normas durante essa época (como

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 117

mostraremos à frente), ainda que se possa RACHO, 1999a:102; cf. também HECK,
admitir, em concordância com o autor, que 1995:101).
o controle de fato foi pouco exercido (cf. No ano seguinte este Tribunal afir-
DINIZ, 1995:134). mou seu status constitucional através do
De toda sorte, através de uma lei fe- “Memorial do Tribunal Constitucional
deral, datada de julho de 1921, é criado o Federal. A posição do Tribunal Constitu-
Tribunal Federal (o Reichsgericht), com cional Federal”, que foi enviado a todos
sede em Leipzig. A competência desse Tri- os órgãos federais superiores. Firma-se, a
bunal abrangia: os conflitos constitucio- partir daí, como órgão ao nível do Gover-
nais no interior dos Lander (com legitima- no e do Bundesrat; ao mesmo tempo, está
ção ampla para propor a ação, abrangendo à margem da estrutura dos demais órgãos
inclusive o cidadão); conflitos de natureza judiciais; possuindo ainda autonomia ad-
“não-jurídico-privada” entre o Reich e um ministrativa.
Lander e entre os Lander; acusação contra
Ministro e o exame judicial abstrato em 2.3.1. Dos vários controles na Alemanha
caso de dúvidas e controvérsias — sobre de hoje
a diferença entre “dúvida” e “controvér-
sia”, cf. Gilmar Mendes (1998a:94-95) —, Seguindo o artigo 93 e segs. da Lei
quanto à constitucionalidade do direito es- Fundamental, que trazem a competência
tatal que o órgão competente da União ou do Tribunal Constitucional, poderemos
do Estado considerassem relevantes (art. visualizar os vários tipos de controle (lato
13, II da Constituição de Weimar). sensu):
Segundo a lei que regulamentou o 1. Conflitos entre órgãos estatais: o
processo, as decisões do Reichsgericht e art. 93, I, n. 1 trata do conflito entre órgãos
do Tribunal da Fazenda (que decidia sobre estatais (Presidente, Parlamento, Conse-
leis tributárias estaduais) tinham “força de lho, Governo Federal e partidos políticos)
lei” e, além de possuírem eficácia erga om- sobre a extensão dos direitos e deveres
nes e ex tunc, valiam (segundo a opinião conferidos pela Lei Fundamental; o art. 93,
de alguns como Anshütz e Jellinek) como I, n. 3 e 4 dos conflitos federativos sobre
uma “interpretação autêntica” da Consti- direitos e deveres da Federação e dos Es-
tuição (cf. MENDES, 1998a:447). tados, principalmente sobre a execução do
Após a 2ª Guerra reuniu-se em Her- direito federal pelos Estados e intervenção
renchiemsee o “Congresso Constituinte” federal;
com o objetivo de elaborar um projeto para 2. Controle abstrato de normas: de
a nova Constituição. Desde essa época fora acordo com o art. 93, I, n. 2 o controle abs-
prevista a criação de um Tribunal Consti- trato de normas ocorre em caso de “dúvida
tucional Federal que seria o “guarda da ou controvérsia” sobre a compatibilidade
Constituição”. Este novo Tribunal, o Bun- do direito federal (ou estadual) com a Lei
desverfassungsgericht, foi previsto na Lei Fundamental, ou sobre a compatibilidade
Fundamental nos artigos 93 e 94, e regula- do direito estadual com disposições do di-
mentado pela lei publicada em 16 de abril reito federal. Possuem legitimidade para
de 1951, sendo sua sede a cidade de Karl- instaurar o processo, o Governo Federal, o
sruhe. Como observa José A. de Oliveira Governo de qualquer Lander e um terço do
Baracho, apenas com a Lei Fundamental Parlamento Federal21;
de Bonn, “surge a oportunidade de uma 3. Controle concreto de normas: além
jurisdição guardiã da Constituição” (BA- do controle abstrato, prevê-se também um

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


118 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

controle concreto (de “verificação” das nor- Nos processos de controle de nor-
mas): qualquer juiz ou tribunal pode em um mas propriamente ditos, têm as decisões
caso concreto e diante de uma lei que con- a mesma natureza, independentemente de
sidere contrária à Constituição, submeter a se tratar de controle abstrato, concreto ou
questão à Corte Constitucional; o processo de processo de recurso constitucional. E,
“principal” fica suspenso até que aquele in- como observa Gilmar F. Mendes, “em ne-
cidente seja decidido (art. 100, § 1º da Lei nhum sistema de controle de normas (...)
Fundamental). O fim de tal controle é con- logra-se identificar formas de decisão tão
centrar o exame relativo ao legislador fede- variadas como as desenvolvidas pela Corte
ral nas mãos de um só órgão; Constitucional” (MENDES, 1998a:189).
4. Recurso constitucional: por último, Seguindo o esquema proposto pelo
temos o Recurso Constitucional Individual autor, temos:
e Comunal (art. 93, I, 4a e 4b). O recurso A. Declaração de Nulidade (nos con-
constitucional tem sido um dos instrumen- troles abstrato, concreto ou de recurso cons-
tos mais importantes da jurisdição constitu- titucional): segue a fórmula tradicional, ou
cional alemã. De 1951 até o ano de 1993, seja, a lei é inconstitucional, e por isso, nula
das 77.183 sentenças do Tribunal Consti- (ex tunc e ab initio). Apesar de não constar
de forma clara nem na Lei Fundamental e
tucional Federal, mais de 98% foram deci-
nem na lei orgânica do Tribunal Constitu-
dindo recursos constitucionais (cf. HECK,
cional, é adotada pela doutrina dominante.
1995:118 e 140; ver também CAPPELLET-
A declaração de nulidade pode ser parcial, e
TI, 1984:110). É o Recurso Constitucional
nesse sentido desdobra-se em:
que confere uma face popular ao Tribunal
Declaração parcial de nulidade
Constitucional. Além da proteção aos direi-
“quantitativa”: a mais comum, já que rara-
tos fundamentais, exerce também a função mente toda a lei é inconstitucional. O que
de proteger e promover o desenvolvimento ocorre muitas vezes é que certas partes da
do Direito Constitucional. lei devem ser eliminadas. Do que fica, deve
O requerente terá de provar sua o Tribunal ponderar se ainda a lei é viável,
condição de titular de um direito que foi procurando, dentro do possível, conhecer
violado e ainda apenas poderá intentar o da vontade do legislador.
Recurso Constitucional após esgotar todas Declaração parcial de nulidade “qua-
as vias judiciais (§ 90 da Lei do Bundes- litativa” (sem redução do texto); refere-se
verfassungsgericht). a casos não mencionados expressamente
O recurso constitucional comunal é no texto da lei impugnada, que por estar
promovido pelos municípios ou união de formulada de forma genérica, contém “um
municípios contra leis que firam sua au- complexo de normas”. Esta declaração
tonomia administrativa (art. 28, II, da Lei assumiu grande importância no sistema
Fundamental). alemão. Para designá-la geralmente o Tri-
bunal Constitucional vale-se da expressão
2.3.2. As várias sentenças do Bundesver- “desde que” (soweit): a norma em apreço
fassungsgericht é constitucional, desde que se entendam
determinadas disposições em certo sentido
As sentenças — seja qual for o tipo tido como constitucional.
de controle (lato sensu) — são definidas B. Interpretação conforme a Consti-
pelo objetivo visado e não pelo tipo de pro- tuição: o Tribunal Constitucional declara
cesso. qual das possíveis interpretações se revela

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 119

compatível com a Lei Fundamental, bus- Faz-se mister procedermos a um bre-


cando com isso “negar o formalismo em ve histórico do desenvolvimento do nosso
nome da idéia de justiça material e segu- sistema de controle de constitucionalidade,
rança jurídica”. Apóia-se ainda no princípio mostrando mais detalhadamente seu surgi-
da unidade da ordem jurídica; na presunção mento e desenvolvimento (dada a contri-
de constitucionalidade das normas e na su- buição trazida com a inserção daqueles),
premacia do legislador como concretizador para então podermos concluir se é certo
da Constituição. O Tribunal Constitucional falarmos em uma “tradição” brasileira de
não pode alterar o conteúdo da norma, ape- controle de constitucionalidade e se afinal
sar de, na prática, tê-lo feito em alguns ca- o controle difuso atende melhor aos recla-
sos (cf. GARCÍA DE ENTERRÍA, 1987). mos de uma democracia que se quer par-
C. Apelo ao Legislador (Appellents- ticipativa.
cheidung): quando a Corte decide que a Falamos da Constituição de 1891 e
norma “não é ainda inconstitucional”, ela da importância de Rui Barbosa e de suas
chama o legislador para que corrija ou principais idéias. Rui Barbosa foi o grande
adapte a mesma. Isto pode ocorrer porque responsável não apenas pela recepção do
houve mudanças das relações jurídicas ou sistema americano entre nós, mas também
fáticas; devido a omissões do legislador
possui grande importância nesses primei-
(que, segundo a Lei Fundamental, tem o
ros anos da República, influenciando deci-
“dever” de legislar); e ainda por falta de
sivamente os juristas da época.
evidência da ofensa constitucional.
Sua defesa das liberdades individuais
D. Declaração de nulidade sem pro-
é digna de nota; principalmente porque nas
núncia de nulidade: a teoria da declaração
várias oportunidades em que atuou como
de nulidade/anulabilidade é eficaz quando
advogado no Supremo Tribunal Federal,
há ofensa a direitos fundamentais, mas
quando o que existe é uma omissão do le- insistia em fixar e defender as competên-
gislador ou uma norma que beneficia ape- cias daquele Tribunal, que não haviam res-
nas a alguns, contrariando o princípio da tado tão claras com a Constituição e que
igualdade (o que é também uma omissão, sofria ainda da pressão do Executivo da
só que parcial), o Tribunal Constitucional época; exemplo disso pode ser encontrado
tem declarado a inconstitucionalidade sem no Habeas Corpus n. 300, a favor de pes-
anular a lei; isto porque, no primeiro caso, soas desterradas em virtude de estado de
não se pode declarar nula a lacuna e no sítio declarado em 1892:
segundo, cassar a lei não trará o benefício “os casos, que, se por um lado toda
aos outros que também têm direito. Assim, a interesses políticos, por outro, envolvem
o Tribunal Constitucional, obriga o legisla- direitos individuais, não podem ser defe-
dor a fazer leis, suspende a aplicação da lei sos à intervenção dos tribunais, amparo
inconstitucional, ou permite que a mesma da liberdade pessoal contra as invasões
permaneça sendo aplicada provisoriamen- do executivo [...]. Onde quer que haja um
te (cf. MENDES, 1998a:195-200). direito individual violado, há de haver um
recurso judicial para a debelação da injus-
2.4. Brasil tiça. Quebrada a égide judiciária do direito
individual, todos os direitos desaparecem,
Mostramos aquelas que foram as ma- todas as autoridades se subvertem, a pró-
trizes para a construção do nosso modelo pria legislatura esfacela-se nas mãos da
de controle de constitucionalidade. violência; só uma realidade subsiste: a oni-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


120 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

potência do executivo, que a vós mesmos suspensão pelo Senado, criou-se um me-
vos devorará, se vos desarmardes da vos- canismo de atribuição de eficácia erga om-
sa competência incontestável em todas as nes. Procurava-se suprir a necessidade de
questões concernentes à liberdade” (citado tornar geral o efeito de uma decisão que,
por BARACHO JR., 2003:331-332). até então, cuidava apenas de resolver um
Assim é que, por mais de meio sécu- caso concreto (nos EUA, como já se disse,
lo, teve-se como “natural” não só o contro- não havia tal problema devido ao instituto
le de constitucionalidade exercido inciden- do stare decisis). Com isso nosso sistema
temente por todos os juízes, como também ganha novas proporções, passando suas
a carga ideológica inerente e que pode ser decisões a ter efeitos erga omnes. Disposi-
resumida no “dogma da nulidade”, de que ção semelhante encontra-se na atual Cons-
trataremos mais à frente. No Brasil — bem tituição: art. 102, III (que cuida do Recurso
como na Argentina, Colômbia, México, Extraordinário) e art. 52, X (que mantém
Panamá, Nicarágua, Peru e Paraguai — se a possibilidade do Senado suspender a efi-
desenvolveu inicialmente, cácia de lei declarada inconstitucional em
“la facultad de declarar inaplicables sede de Recurso Extraordinário).
las leys por inconstitucionales, dentro del A Constituição autoritária de 1937
Poder Judicial [ainda que tal faculdade não retrocede no desenvolvimento do controle
estivesse expressa nas respectivas Consti- de constitucionalidade no Brasil, violando
tuições]. (...) Si bien se adimite que la fun- a força da coisa julgada ao criar a possibili-
ción del órgano jurisdiccional, representa dade de que decreto legislativo suspendes-
un control de la actividad legislativa, esa se uma decisão judicial que declarou in-
no es la esencia del instituto, como pue- constitucional um ato normativo (art. 96).
de sostenerse en algunos países de Europa O Presidente (com o uso dos Decretos-lei)
sino simplemente el normal ejercicio de la acabou por exercer tal prerrogativa. Fran-
actividad del Poder Judicial con amplísi- cisco Campos defendia essa disposição,
mas facultades para aplicar la ley al caso levantando um pretenso “caráter antide-
concreto y anular toda clase de actos que mocrático da jurisdição” que permitiria
se opongan a los jurídicamente válidos o uso do controle de constitucionalidade
(VÉSCOVI, 1975:1133). como instrumento “aristocrático” de pre-
As Constituições posteriores foram servação do poder (CAMPOS, citado por
aos poucos retirando a “pureza” deste sis- MENDES, 1998a:30).
tema de controle difuso. A Constituição de A Constituição de 1946, ao tratar da
1934 mantém a possibilidade de o Judici- intervenção da União nos Estados, aperfei-
ário declarar inconstitucionais atos norma- çoa o sistema já existente na Constituição
tivos, mas inova ao atribuir ao Senado a de 1934 (ação direta de inconstitucionali-
competência de suspender discricionaria- dade interventiva), ou seja, agora o Supre-
mente a eficácia da lei declarada inconsti- mo Tribunal Federal não se pronunciaria
tucional em última instância pelo Supremo previamente sobre a constitucionalidade
Tribunal Federal (art. 91, IV). da lei de intervenção, mas sobre o ato es-
A possibilidade de a questão chegar tadual violador, antes que a intervenção
ao Supremo Tribunal Federal minimizaria ocorresse (art. 7º, VII, regulamentado pela
o risco de haver decisões contraditórias a lei 2.271/54).
respeito da constitucionalidade de uma Apenas na década de 60, numa épo-
mesma lei. Somado à possibilidade de ca em que a Europa criava ou (re)colocava

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 121

em funcionamento suas Cortes Constitu- constitucionais. No entanto, apesar de


cionais de controle concentrado, como a da constar do texto da Constituição, sabe-se
Itália em 1956, é que viríamos somar, no que o respeito àquela não foi a maior preo-
Brasil, o controle concentrado ao difuso. cupação dos dirigentes do País no período.
Foi através da Emenda Constitucional nº A profusão dos Decretos-lei e Atos Insti-
16/65, onde ficou prevista uma ação espe- tucionais, violando direitos e garantias in-
cial para defesa “em tese” da Constituição: dividuais e coletivos, poucas vezes encon-
a Representação de Inconstitucionalidade. trou no Judiciário a necessária barreira.
Apenas o Procurador-geral da República A Constituição de 1988, como já ti-
tinha legitimidade para propô-la. vemos oportunidade de frisar, manteve o
Esta Emenda, cujo objetivo, segun- sistema de controle difuso e, quanto ao
do sua Exposição de Motivos, era alcançar concentrado, foram criadas novas ações: a
maior economia processual pela decisão ação de inconstitucionalidade por omissão,
direta do Supremo Tribunal Federal, deu a ação declaratória de constitucionalidade
nova redação ao artigo 101 da Constitui- (esta última introduzida pela EC. 3/93),
ção de 1946, passando o mesmo a dispor e a ação de descumprimento de precei-
que o Procurador-geral poderia represen- to fundamental (regulamentada pela lei
tar ao Supremo Tribunal Federal quando 9.882 de 13 de dezembro de 1999). Além
leis/atos estaduais ou federais colidissem disso, a ADIN mereceu atenção especial,
com os princípios do art. 7º, VII, da Cons- principalmente no tocante à legitimidade
tituição. Desde então surgiu grande debate ad causam — basta vermos o longo rol do
doutrinário sobre se o Procurador-geral artigo 103.
teria discricionariedade quanto à conve- O Supremo Tribunal Federal acu-
niência e oportunidade de propor a ação, mula a posição de órgão revisor (em casos
ao ser interpelado por terceiro, ou se ele excepcionais) e exerce, por via principal,
estaria vinculado à requisição, já que não o controle concentrado de constitucionali-
defenderia interesses próprios, mas alheios dade de leis ou atos normativos. A introdu-
(cf. FERRARI, 1992:126). Desde já adian- ção do sistema concentrado no Brasil não
tamos que com a Constituição de 88, que ocorreu sem problemas (infra).
alargou a legitimidade ativa da ADIn, o Ocorre que, devido ao já consolida-
debate parece prejudicado, ou seja, como do “dogma da nulidade da lei inconstitu-
há várias entidades podem propor a ação, cional”22, de matriz americana, e devido à
o máximo que o Procurador-geral pode- omissão do constituinte ao não estabelecer
ria fazer é “opinar” contrariamente — art. quais seriam os efeitos da declaração de in-
103, § 1º. A discussão apenas teria lugar constitucionalidade pelo Supremo Tribunal
quando o pedido fosse feito por terceiro Federal, a jurisprudência e a doutrina, aca-
não legitimado. baram por somar à já consagrada eficácia
A Constituição de 1967 alarga for- erga omnes da decisão em tese, o efeito ex
malmente o alcance do controle de cons- tunc, próprio do controle difuso, ao argu-
titucionalidade, porque, enquanto a Cons- mento de que uma lei declarada inconstitu-
tituição de 1946 falava em proteção contra cional já surge inconstitucional ab ovo.
ofensa aos “princípios constitucionais”, a Mas essa não era a opinião domi-
Constituição autoritária estende a possi- nante a princípio. Apenas na década de 70
bilidade de Representação contra lei que é que o STF passou a se considerar com-
fosse de encontro a quaisquer disposições petente para anular com eficácia ex tunc

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


122 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

as leis consideradas inconstitucionais em Constituição; é com base em tal hierarquia


sede de controle concentrado, sem neces- que existe o próprio controle de constitu-
sidade da intervenção do Senado. Segundo cionalidade).
Gilmar F. Mendes (1998a:251-252), a atri- Podemos, pois, observar que o sis-
buição de efeitos erga omnes às decisões tema de controle difuso já estava consoli-
do Supremo Tribunal Federal nestes casos dado entre nós quando da adoção gradual
apenas se firmou na jurisprudência a par- de formas de ação direta. Nesse sentido a
tir de 1977, quando o Presidente do STF, lição de José A. de Oliveira Baracho Jr.
o Min. Thompson Flores dispensou da co- (1995:30): “esta adoção paulatina do sis-
municação ao Senado as representações de tema concentrado de controle de constitu-
inconstitucionalidade. Antes se confundia cionalidade ocorreu paralelamente a um
a decisão sobre representação de inconsti- sistema difuso que se consolidava já no
tucionalidade e a interventiva, entendendo- início do século”.
se que em ambas seria necessário submeter Dessa forma foi possível que, no Bra-
ao Senado a sentença para que valesse con- sil, o sistema de controle concentrado de
tra todos. Em 1976, por exemplo, podemos constitucionalidade pudesse adotar, o efei-
encontrar os Ministros Thompson Flores, to ex tunc (próprio do sistema difuso, como
de um lado, e Eloy da Rocha, de outro, dis- vimos) para suas decisões ao lado da eficá-
cutindo tal questão, sendo que o primeiro cia erga omnes. Mas como isso foi cons-
defendia a dupla competência do Supremo truído pela doutrina e pela jurisprudência?
Tribunal Federal: declarar e “suspender” a É o que vamos procurar desenhar, fazendo
lei inconstitucional (RTJ 76/346). um breve levantamento de alguns autores
Surge assim controvérsia doutrinária e algumas decisões centrais à configuração
e jurisprudencial sobre se e em que medida desse que se tornou o sistema brasileiro de
é válida a afirmação da nulidade total da controle de constitucionalidade.
norma inconstitucional. Se afirmarmos que Comecemos então por Alfredo Bu-
a norma já nasce inconstitucional e que o zaid: qualquer lei contrária à Constituição
Supremo Tribunal Federal simplesmente é absolutamente nula, não anulável, pois,
“declara” o vício, isto implica que todas as “a eiva de inconstitucionalidade a atinge no
relações jurídicas constituídas sob aquela berço, fere-a ab initio. Ela não chegou a vi-
lei vão ser tidas como nulas, o que gera- ver. Nasceu morta. Não teve, pois, nenhum
ria grande insegurança jurídica e violaria a único momento de validade” (BUZAID,
boa-fé de pessoas que, fundadas na presun- 1958:132-137). Mesmo uma sentença tran-
ção de validade de todas as normas, agiram sitada em julgado não poderia prevalecer,
conforme a lei inconstitucional. seria passível de ação rescisória.
Por outro lado, ao se defender que a Na esteira de tal entendimento, en-
decisão deva apenas produzir efeitos após contram-se autores como Ronaldo Poletti
sua publicação, garantem-se os princípios (1985:114) que, após apresentar a teoria
da segurança jurídica e da não-surpresa, discrepante, volta-se à corrente tradicio-
mas consolida-se também a validade de nal, em nome da necessidade de se evitar
uma lei inconstitucional sobre certo perí- que se sofram “prejuízos” na lógica jurídi-
odo, o que é o mesmo que inverter a su- ca e “subversão do sistema”.
premacia constitucional temporariamente Também a eles se inclina Themísto-
(nem é preciso lembrar o quão importante cles Cavalcanti. De notar, porém, que sob
é para nosso ordenamento a hierarquia da um ponto de vista já um pouco distancia-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 123

do do tradicional, Cavalcanti procura um so a afirmar que “a lei inconstitucional não


fundamento mais sólido para a nulidade tem eficácia derrogatória”, e mesmo as sen-
absoluta. Segundo o jurista, avaliar a cons- tenças ditadas com base naquela lei, podem
titucionalidade de uma lei não é apreciar se ser rescindidas (VELLOSO, 1996:794)23.
há confronto entre duas leis — afinal, se a E, de fato, é o que podemos constatar da
“lei” inconstitucional não é, como dizem, ADIn - 652-MA (DJU 02/04/93, p. 5615),
lei, não há como aceitar que o fundamen- que mostra bem o que tem significado tal
to do controle esteja na superioridade da teoria no controle de constitucionalidade
Constituição, já que não há como confron- brasileiro. Assim votou o Relator, Ministro
tar realidade e aparência — é sim “indagar Celso de Mello:
se um ato do Poder Legislativo, que se ofe- “Atos inconstitucionais são (...) nulos
rece como lei, tem, de fato, êste caráter”. e destituídos, em conseqüência, de qual-
Logo, se se declara que o ato é inconsti- quer carga de eficácia jurídica. A decla-
tucional, isto é porque ele na verdade não ração de inconstitucionalidade de uma lei
era uma lei (cf. CAVALCANTI, 1966:168) alcança, inclusive, os atos pretéritos com
— mais recentemente, Clèmerson Clève, base nela praticados, heis que o reconhe-
tem defendido que a retroatividade hoje cimento desse supremo vício jurídico, que
inquina de total nulidade os atos emanados
seria pacífica, sendo que a nulidade da lei
do Poder Público, desampara as situações
inconstitucional inserir-se-ia no ordena-
constituídas sob sua égide e inibe — ante
mento como um “princípio constitucional
sua inaptidão para produzir efeitos jurídi-
implícito” (CLÈVE, 1995:165).
cos válidos — a possibilidade de invoca-
Na Jurisprudência do STF a corrente
ção de qualquer direito” (grifos nossos).
predominante é a acima exposta, e hoje,
Apesar do que afirmamos e mos-
praticamente pacífica — pelo menos antes tramos, isto é, que predomina no Brasil a
da lei 9.868/99. Selecionamos algumas de- eficácia ex tunc da sentença que declara
cisões que nos dão a dimensão do quão só- a inconstitucionalidade, houve e há vo-
lido é (ou era) o entendimento do Supremo zes contrárias na doutrina e no Pretório
Tribunal Federal no sentido da nulidade Excelso. No campo dogmático, a posição
absoluta. Na Representação de Inconstitu- possivelmente mais radical é a defendida
cionalidade (Rp) nº 933-RJ, decidida em por Egas D. Moniz de Aragão. O Prof. da
1976, votou o Min. Xavier de Albuquer- UFPR critica A. Buzaid porque este teria
que, consagrando a doutrina clássica: “as confundido “nulidade” e “existência” da
normas serão tidas por inconstitucionais, norma: como pode uma norma inconsti-
com o que não se haverão constituído di- tucional ser inexistente, mas ao mesmo
reitos de nenhuma espécie com base nelas. tempo depender que o Judiciário declare
Se atos administrativos houveram sido a inexistência? Possuindo a norma o vício
praticados, poderão ser desfeitos, porque da inconstitucionalidade (e não de nuli-
fundados em lei declarada inconstitucio- dade, própria do direito privado) e sendo
nal” (RTJ 76/346; no mesmo sentido RTJ necessária a suspensão pelo Senado, “de-
95/999 e RTJ 97/1369). corre desse princípio que a decretação da
O STF parece não ter dúvidas quan- inconstitucionalidade opera ‘ex nunc’ e vá-
to à eficácia ex tunc: “o Supremo Tribunal lidos são os atos praticados na vigência da
Federal tem jurisprudência consolidada no lei, enquanto não impugnados e admitida
sentido, por exemplo, de que o ato incons- a procedência da impugnação [pelo Sena-
titucional é nulo”, o que leva o Min. Vello- do]” (ARAGÃO, 1961:365).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


124 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Em sentido convergente, Pontes de jurídico munido de presunção de validade,


Miranda, criticando os que dizem ter a sen- impondo-se, em razão disso, enquanto não
tença sobre inconstitucionalidade natureza declarado inconstitucional, à obediência
declaratória, afirma que, para que tal ocor- pelos destinatários dos seus comandos”
resse, seria preciso que a lei não existisse. (RE 79343 – RTJ 82/791).
Nesse caso o Tribunal simplesmente diria: Com base na Teoria Geral do Direi-
“a lei não existe”. Mas o que na verdade to e do Estado de Hans Kelsen, ele admite
ocorre é que a lei inconstitucional é, e não que a decisão possa ter efeitos retroativos,
só isso, ela é lei. Não chega, contudo, a fa- mas ainda assim, a sentença não diz que a
lar em anulabilidade, ao contrário, diz que lei é nula, mas estabelece que ela está sen-
a lei inconstitucional é nula. E conclui afir- do anulada com efeitos retroativos. Soma
mando que a sentença que nega a incons- a seus argumentos a boa-fé do que agiu na
titucionalidade de uma lei é declaratória, crença de ser regular a norma, principal-
mas a que a afirma, é desconstitutiva (cf. mente quando, por tais atos foram estabe-
PONTES DE MIRANDA, 1953:295). lecidas relações entre o particular e o Esta-
Sem chegar a tal extremo, Lúcio Bit- do e a declaração de inconstitucionalidade
tencourt, criticando a equiparação entre venha desfavorecer àquele (cf. o voto dado
“nulidade” e “inconstitucionalidade”, afir- no supracitado RE 79343).
mava que a adoção da doutrina americana Na atualidade defende tal posição,
não contribuiu para que se desenvolvesse entre outros, Márcio Diniz, partindo de um
uma “teoria da nulidade da lei inconstitu- pressuposto similar ao de Themístocles
cional”. Os defensores brasileiros da total Cavalcanti: para que a norma seja passível
anulação da norma inconstitucional tam- do juízo de inconstitucionalidade, deve ter
bém não conseguiram “apresentar funda- primeiro existido (não é possível reduzir
mento técnico, razoavelmente aceitável, nulidade à inexistência, sob pena de a ação
para justificar essa extensão”, se limitando ficar sem objeto), mas ele chega a con-
a repetir a doutrina e jurisprudência ame- clusões bem diferentes, pois conclui que
ricanas “sem buscar-lhes o motivo, a cau- então a natureza da sentença que declara
sa ou o fundamento” (BITTENCOURT, a inconstitucionalidade seria constitutivo-
1997:140-141). negativa, independente de seu alcance no
Mesmo nos EUA, como vimos aci- tempo (cf. DINIZ, 1995:39-40).
ma, não se tem feito aplicação absoluta do Regina M. Nery Ferrari (1992:49ss)
efeito ex tunc, principalmente quando de fez um grande estudo sobre a questão. An-
boa-fé os indivíduos agem segundo a lei tes de falar especificamente sobre os efeitos
inconstitucional. Apesar da mudança lá, ex tunc ou ex nunc, procura mostrar outras
continuou (e continua) nossa jurisprudên- questões de fundo, entre elas, a questão da
cia a afirmar o já superado “dogma da nu- retroatividade ou não das leis; isto é, deve
lidade”. Esquece-se nossa Corte Suprema a nova norma que substitui a declarada in-
que o Ministro Leitão de Abreu, naquele constitucional retroagir para alcançar as
mesmo Tribunal há muitos anos, já apon- relações jurídicas abrangidas pela norma
tava essa mudança. De fato a voz isolada inconstitucional? A autora resgata várias te-
do Ministro Leitão de Abreu soou durante orias sobre a irretroatividade da lei, desde
bom tempo no Supremo Tribunal Federal. a Constituição americana (que proíbe leis
“Se me afigura, também, o entendi- ex post facto) (cf. FERRARI, 1992:56-72)
mento de que não se deve ter como nulo ab e conclui que se a irretroatividade é um
initio ato legislativo que entrou no mundo princípio constitucional geral, tem de ser

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 125

respeitado pelo legislador ordinário. Nesse sentido semelhante, ARAGÃO, 1961:365).


sentido lembra que na Constituição de 1988 A sentença sobre inconstitucionalidade teria
há pelo menos uma referência ao princípio natureza constitutiva e retroativa.
da irretroatividade o art. 5º, XXXVI. Logo, Falar-se de nulidade de pleno direito,
se estes são os únicos empecilhos que a como quer a doutrina dominante, não faz,
Constituição impõe à retroatividade, forço- pois sentido, a anulação sempre provém de
so é concluir que situações outras que não pronunciamento do órgão competente24.
os envolvessem poderiam ser abrangidas Além dos já citados, que, como se
pela nova lei. Isso significa que — conclui pôde perceber exerceram (e ainda exer-
— jurista — no plano do controle de cons- cem) influência sobre a formação de nosso
titucionalidade, considerando que durante a sistema de controle judicial de constitucio-
vigência da lei inconstitucional, nalidade, é necessário destacar o trabalho
“direitos foram criados, litígios fo- de Gilmar Ferreira Mendes, cujas idéias
ram resolvidos com base em uma lei que têm inspirado vários doutrinadores, além
era válida, e, portanto obrigatória [não há das recentes inovações legislativas (a EC
como admitir uma nulidade absoluta, pois], 3/93 e as leis 9.868/99 e 9.882/99).
(...) admitir que esta declaração viesse es- De fato, nos últimos anos o sistema
tender seus efeitos ao passado de modo tem sofrido algumas modificações no Bra-
absoluto, anulando tudo o que se verificou sil, influenciado pelo complexo sistema
sob o império da norma agora reconhecida alemão — onde, como dissemos supra, o
como inconstitucional seria proporcionar Tribunal Constitucional, devido ao silên-
a insegurança jurídica, a instabilidade do cio da Constituição sobre os efeitos, criou
direito, pois não estaríamos nunca em con- uma série de tipos de decisões que pudes-
dição de apreciar se um ato lícito quando sem racionalizar e amenizar a aplicação ili-
realizado ou um contrato válido quando mitada da retroatividade das sentenças que
celebrado conservaria tal característica no declaram a inconstitucionalidade de lei ou
futuro” (FERRARI, 1992:77). ato normativo — Gilmar F. Mendes fez um
Quanto à dicotomia “nulo vs. anulá- estudo comparado entre os Tribunais Ale-
vel”, Regina Nery não acredita que a teoria mão e Brasileiro, procurando mostrar que
das nulidades seja aplicável à sentença que alguns daqueles novos modelos de senten-
declara a inconstitucionalidade; segundo ças do Bundesverfassungsgericht já eram,
a jurista, o que há em sede de controle de desde já algum tempo, proferidas no Brasil
constitucionalidade é um outro “grau”: o e que o Supremo Tribunal Federal, tal qual
“grau de inconstitucionalidade”. o Tribunal Constitucional alemão, diante
Dessa forma, ao invés de ficar discu-
do silêncio constitucional, para além de
tindo se há nulidade absoluta ou relativa,
ficar eternamente naquela discussão his-
entende que este critério do Direito Privado
tórica, procurou inovar o alcance de suas
não serve ao Direito Constitucional, pois
decisões em sede de controle concentrado
quando um órgão declara que certa norma
(cf. MENDES, 1998a:262ss).
possui o vício de não ser conforme a Cons-
tituição — sendo, pois inválida —, ele lhe Considerações Finais: a Proteção aos
impõe a sanção de inconstitucional; não ca- Direitos Fundamentais e a Natureza da
bendo, discutir se há nulidade absoluta ou Sentença Constitucional
relativa, porque tal norma “padece de um
só nível de invalidade, isto é, de inconsti- Após estudarmos as origens do Pro-
tucionalidade” (cf. FERRARI, 1992:86; em cesso Constitucional, suas relações íntimas

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


126 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

com a Teoria Geral do Processo e com o Repassamos as principais formas de


constitucionalismo em geral; mostramos controle judicial de constitucionalidade,
como a origem dessa disciplina vem suprir desde o surgimento do sistema de contro-
a lacuna gerada pela constitucionalização le difuso nos EUA, passando pelo contro-
do processo, o que forçou a uma releitura le austríaco, concentrado, e também pelo
nem sempre bem percebida pelos juristas. controle alemão, com suas especificidades.
Mostramos os desenvolvimentos doutriná- Observamos que o controle difuso influen-
rios produzidos nessa nova disciplina, pas- ciou nossa primeira Constituição Repu-
sando por Fix-Zamudio, Véscovi, Pablo blicana, com Ruy Barbosa à frente; que a
Verdú e José A. O. Baracho; que puderam partir de então o Brasil consolidou o poder
nos dar a dimensão dos desafios postos e geral de qualquer juiz de apreciar a incons-
as teorias que se debruçam a formar uma titucionalidade quando requerido como
doutrina constitucional-processual sólida e um princípio de nosso direito, e o efeito ex
constitucionalmente adequada a um Esta- tunc (e inter partes) da respectiva decisão.
do Democrático de Direito. Mostramos como todo esse arcabou-
O Controle de Constitucionalidade, ço moldou a construção de um sistema de
por outro lado, como um dos principais controle de constitucionalidade propria-
capítulos do Processo Constitucional, foi mente brasileiro e que aos poucos fomos
reconstruído aqui desde suas origens nos adotando elementos tipicamente de contro-
Estados Unidos e Áustria. Vimos os pres- le concentrado até que em 1965 adotamos
supostos teoréticos e culturais auxiliaram uma “ação direta”. Por fim, a Constituição
o Juiz Marshall a afirmar a superioridade de 1988 (e as Emendas que lhe sucederam)
da Constituição americana sobre quais- expressamente coloca o Supremo Tribunal
quer outros atos normativos; a partir disso, Federal como o Guardião da Constituição,
pudemos entender melhor os argumentos dando-lhe competências precipuamente
desenvolvidos por aquele ao decidir o fa- relacionadas com a Constituição e o con-
moso caso Marubury vs. Madison. trole de constitucionalidade.
Estudamos os trabalhos de Kelsen Se por um lado permaneceu como
sobre o sistema de controle concentrado órgão recursal extraordinário em matéria
das leis e a criação na Áustria do Tribunal de alegação incidental de inconstituciona-
Constitucional, inspirado nas idéias daque- lidade, por outro se fortaleceu como órgão
le e que acabou por se tornar modelo para exclusivo de julgamento de ações diretas
a maioria dos países da Europa e boa parte questionando a inconstitucionalidade (ou
do mundo. constitucionalidade) de normas federais e
Vimos o surgimento e os grandes estaduais, além do questionamento de des-
desdobramentos do Controle de Constitu- cumprimento de preceitos fundamentais.
cionalidade na Alemanha, a ponto de as Falta-nos, contudo, a partir da cons-
criações de seu Tribunal Constitucional tatação da formulação da nova disciplina,
influenciarem vários países atualmente, de sua importância e de seus desenvolvi-
entre eles o Brasil (Ação Declaratória de mentos in casu pelo Controle de Consti-
Constitucionalidade, efeitos vinculantes tucionalidade, mostrar como todos esses
nas decisões em sede de controle concen- institutos podem ser úteis em um Estado
trado, declaração de inconstitucionalidade Democrático de Direito na defesa dos Di-
sem redução de texto; interpretação con- reitos Fundamentais e, a partir disso, qual a
forme a Constituição, e outros institutos). natureza da sentença constitucional.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 127

“O Constitucionalismo processu- mativo”, isto é, determinavam a natureza


al contemporâneo preocupa-se, cada vez da sentença a partir de seu objeto (a lei),
mais, com as garantias dos direitos fun- retirando dela até mesmo seu caráter pro-
damentais, procurando efetivá-los pelo cessual. A sentença que declara a inconsti-
crescimento de novos instrumentos do tucionalidade é “ato final de um processo,
Processo Constitucional” (BARACHO, e a desconstituição da lei não se dá pelo
199a:124; ver também 1980-82:65). É a método usual da revogação, que é próprio
omnipresença dos Direitos Fundamentais da ação do PODER LEGISLATIVO, mas
em face de toda a jurisdição, trabalhada, pelo PODER JUDICIÁRIO, no exercício
por exemplo, pelo Tribunal Constitucional de sua função jurisdicional” (GONÇAL-
Alemão. VES, 1993:116; cf. também BLASCO
Como já esboçado anteriormente, SOTO, 1995:37-45). Apenas considerando
contudo, a simples declaração de direitos a sentença em sua real natureza de ato pro-
não é suficiente. Por isso, a necessidade de cessual, poderemos explicar como a mes-
institutos de defesa dos Direitos Fundamen- ma pode ter efeitos retroativos.
tais; pois, como observa Alexy (1999:63), A doutrina tem reduzido a sentença
“Constituições modernas dão aos direitos constitucional ao ato jurídico-material (a
fundamentais em gera, por conseguinte, a lei), que na verdade é seu objeto, fican-
força de concretização suprema e quando do os efeitos da sentença delimitados em
elas não o fazem deveriam ou ser inter- atenção ao vício da lei (nula ou anulável,
pretadas neste sentido ou, quando isso não dependendo da corrente aceita). A eficácia
fosse possível, modificadas”. da sentença tem sua origem no processo e,
Dessa forma, necessariamente, o como tal, possui em geral dois “conceitos
processo deixa de ser apenas instrumento de tempo”: um referente ao seu nascimen-
de aplicação do direito material em caso to, outro a seu âmbito de aplicação (qual-
de violação, para ser encarado a partir da quer sentença naturalmente tem eficácia
proteção e realização da Constituição. sobre fatos surgidos antes de sua existên-
A despeito dessa nova compreensão, cia, sobre a lide que ela atua).
José A. de Oliveira Baracho (1999a:129) Os Tribunais Constitucionais têm
alerta que alguns estudos de processo cons- procurado tornar mais complexa a questão
titucional não tratam de certas peculiarida- dos efeitos para além de meras construções
des especificamente processuais deste. De lógicas, atendendo às novas demandas que
fato, no tange ao Controle de Constitucio- lhes têm chegado. Têm surgido novas for-
nalidade, declarar a inconstitucionalidade mas de decidir, novos tipos de sentença,
não é só afirmar a congruência do ordena- que precisam ser mais bem estudadas; entre
mento, implica também verificarmos como elas, há uma tendência de limitar a retroa-
ficam as relações jurídicas realizadas sob a tividade das decisões. A afirmação de que
lei inconstitucional e, se o controle é difu- todas as relações jurídicas surgidas com o
so, há também a solução do caso concreto. advento da lei inconstitucional devem ser
No que tange ao âmbito processual anuladas tem comportado temperamentos.
da questão, gostaríamos de acrescentar, Espanha, Portugal, Alemanha, mesmo os
com Maria del Carmen Blasco Soto, que EUA e agora o Brasil são exemplos dessa
todas as doutrinas anteriores, que tentaram tendência.
explicar a natureza da sentença constitu- Buscam-se critérios que possam
cional, viam a mesma como um “ato nor- determinar em que casos certas relações,

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


128 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

mesmo tendo como base uma lei inconsti- a partir de seu objeto, pois, “es en la sen-
tucional, ainda assim possam ser convali- tencia donde hay que buscar la eficacia
dadas. Nesse sentido, Regina Nery aponta temporal y desde ella desde donde han de
um critério, a partir do artigo 5º, XXXVI, fijarse y disponer los efectos también tem-
isto é, a sentença não poderia atingir os porales normativos. La sentencia es la que
atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos introduce los cambios en el ordenamien-
e a coisa julgada (cf. supra). to jurídico y la que provoca el efecto de-
A recolocação da sentença constitu- moledor en el mismo” (BLASCO SOTO,
cional, no quadro das sentenças em geral, 1995:73).
depende, como se tem tentado demons- Ou, segundo o que temos afirmado,
trar, da superação de certas teorias que nas sentenças, pois ao contrário do que vai
procuravam estudá-la a partir da “teoria concluir a jurista espanhola, não pensamos
das nulidades”, o que fez surgir doutrinas que seja possível um Tribunal Constitu-
como a da nulidade absoluta de um lado cional prever todas as variáveis para então
(que entendia ser a sentença declaratória e dizer a partir de quando sua decisão entra
produzindo efeitos ex tunc) e a doutrina da em vigor, para então efetivar os direitos
nulidade relativa de outro (para os quais a fundamentais.
sentença era constitutiva e com efeitos ex “A efetividade ou eficácia dos di-
nunc) (supra). Os defensores de ambas te- reitos fundamentais opera-se pela sua
orias partiam da mesma confusão: atribuir aplicabilidade real e concreta. Com isso,
à sentença a mesma natureza de seu objeto ocorrem as possibilidades reais de concre-
(a lei). tização dos direitos fundamentais a todos
Se para a lei a teoria das nulidades os cidadãos, por meio da realização e oti-
é pertinente, não se pode, contudo, que- mização dos mesmos. As normas constitu-
rer que a sentença se mova pelos mesmos cionais são dirigidas à realidade, daí que
caminhos, porque se tomamos como refe- sua interpretação deve ser orientada para
rência o “dogma da nulidade”, chegamos sua efetividade, vigência prática e mate-
a um impasse: como pode um processo rial” (BARACHO, 1999a:125).
apreciar algo inexistente? Pode-se mesmo Tal preocupação é particularmente
dizer que uma lei, “nula desde o início”, interessante, pois, como mostra Marcelo
realmente não produziu nenhum efeito? Andrade Cattoni de Oliveira (2000:83),
Ou pelo menos nenhum efeito válido? É a legitimidade do processo de controle
válido o aforismo: quod nullum est, nullum concentrado de constitucionalidade passa
produxit effectum? pela análise do processo legislativo, onde
Apesar dos questionamentos, a orien- os cidadãos, destinatários das normas, de-
tação que vem desde Kelsen até os dias de vem ser também co-participantes em sua
hoje, mesmo por aqueles que lhe são con- formulação.
trários, ressaltam o vínculo entre o vício A partir desse elemento a discussão
do ato e a eficácia inerente à declaração sobre o que se entende por controle de
de inconstitucionalidade, como se entre constitucionalidade e por norma inconsti-
eles existisse uma conexão (cf. BLASCO tucional se densifica, pois há que se consi-
SOTO, 1995:70). derar o processo legislativo como um dos
A superação de tal condição passa, pressupostos à consideração do Judiciário,
como se tem afirmado, pela superação da quando da apreciação de constitucionalida-
atribuição de efeitos temporais à sentença de de alguma lei no controle concentrado.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 129

Por outro lado, percebe-se que a discussão ARAGÃO, Egas D. Poder de iniciativa e in-
jurisprudencial acerca da defesa dos Direi- constitucionalidade de lei. Revista de Direito
tos Fundamentais tem operado, muita vez, Administrativo. Rio de Janeiro, n. 64, p. 352-
no sentido de lhes ampliar o alcance (e até 367, abr./jun. 1961.
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco.
o número dos mesmos, como na decisão
Controle Concentrado de Constitucionalidade:
que proferiu a Suprema Corte americana o Guardião da Constituição no embate entre
em Roe vs. Wade). Hans Kelsen e Carl Schmitt. Revista de Infor-
“As garantias abstratas, a direta apli- mação Legislativa, Brasília, v.164, p.87-103,
cabilidade dos direitos fundamentais, as 2004.
cláusulas interpretativas, a defesa do con- BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo
teúdo essencial, as garantias concretas, a e Constituição: o devido processo legal. Revista
tutela judicial ordinária e a proteção espe- da Faculdade de Direito da UFMG, Nova Fase,
Belo Horizonte, a. XXX, n. 23-25, p. 59-103,
cífica dos direitos fundamentais, com os
1980-82.
processos e procedimentos constitucionais ______. Processo Constitucional. Rio de Janei-
consolidaram o Processo Constitucional, ro: Forense, 1985.
fornecendo-lhe conteúdo adequado e efe- ______. Teoria Geral do Processo Constitucio-
tivo” (BARACHO, 1999a:128). nal. Revista da Faculdade Mineira de Direito,
Para concluir, afirmamos que os Belo Horizonte, n. 3 e 4, v. 2, p. 89-154, 1º/2º
Tribunais devem ter em conta, ao profe- sem. 1999a.
rir suas decisões, a atuação de todos os ______. A Teoria da Igual Proteção (equal pro-
princípios constitucionais e as (possíveis) tection). Revista Logos Veritas, Santarém, n. 3,
p. 9-13, 1999b.
implicações de suas decisões. O Processo
______. A Constitucionalização do Direito: a
Constitucional tem de trabalhar hoje com constitucionalização do direito processual. Pro-
a certeza de que cada decisão no sentido cesso civil e direito constitucional. Direito Pro-
de eliminação de um problema contém cessual Comunitário. Jornal da Pós-graduação
uma componente de indeterminação que, em Direito da FD-UFMG, Belo Horizonte, a. 2,
por vezes, fará com que sejam gerados n. 11, p. 4-6, abril 2000a.
mais problemas que até então não se podia ______. O Valor Constitucional dos “Direitos
ver ou prever (cf. DE GIORGI, 1998:42). de Defesa”: jurisdição e constituição. Jornal da
Logo, se queremos “segurança”, esta ape- Pós-graduação em Direito da FD-UFMG, Belo
Horizonte, a. 2, n. 12, p. 5-6, maio 2000b.
nas poderá ser alcançada, como dissemos,
______. Argumentos e Práticas do Judicial Re-
na garantia de que a decisão judicial seja view: conflitos constitucionais. Jornal da Pós-
produto do contraditório estabelecido en- graduação em Direito da FD-UFMG, Belo Ho-
tre as partes. rizonte, a. 2, n.13, p. 4-5, junho 2000c.
———. O Ambiente Sistêmico da Função Ju-
dicial e o Espaço Político da Magistratura. Re-
REFERÊNCIAS vista de Processo, São Paulo, a. 25, p. 43-60,
abr./jun. 2000d.
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no ______. A Constitucionalização do Direito:
Estado Constitucional Democrático: para a re- a constitucionalização do direito processual.
lação entre direitos fundamentais, democracia Processo civil e direito constitucional. Direito
e jurisdição constitucional. Revista de Direito Processual Comunitário. Revista Logos Veritas,
Administrativo, n. 217, p. 55-66, jul./set. 1999. Santarém, n. 4, p. 9-14, 2000e.
ANDOLINA, Ítalo e VIGNERA, Giuseppe. Il BARACHO JÚNIOR, José Alfredo Oliveira.
Modello Costituzionale del Processo Civile Ita- Efeitos do Pronunciamento Judicial de Incons-
liano. Torino: G. Giappichelli, 1990. titucionalidade no Tempo. Cadernos da Pós-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


130 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

graduação. Belo Horizonte: Mov. Editorial da ______. Constituição e Hermenêutica Consti-


FD-UFMG, 1995. tucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 1998.
______. A Interpretação dos Direitos Funda- ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Jurispru-
mentais na Suprema Corte dos EUA e no Su- dência.
premo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José A. FERRARI, Regina Maria Nery. Efeitos da De-
Leite (org.), Jurisdição Constitucional e os Di- claração de Inconstitucionalidade. 3ª ed. ampl.
reitos Fundamentais, Belo Horizonte, Del Rey, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
2003, pp. 315-345. FIX-ZAMUDIO, Héctor. El pensamiento de
BARBOSA, Ruy. Commentarios á Constitui- Eduardo J. Couture y el Derecho Constitucional
ção Federal Brasileira. Vols. I e IV. Colligidos Procesal. Boletín Mexicano de Derecho Com-
e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Sa- parado, Ciudad Del México, a. X, vol. 30, p.
raiva, 1932-34. 315-348, 1977.
BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O FRIEDRICH, Carl J. Teoría y Realidad de la
Controle Jurisdicional da Constitucionalidade Organización Constitucional Democrática: en
das Leis. 2ª ed. atual. Brasília: Ministério da Europa e America. Ciudad del México: Fondo
Justiça, 1997. de cultura Economica, 1946.
BLASCO SOTO, Maria Del Carmen. La Sen- GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Tribunal
tencia en la Cuestión de Inconstitucionalidad. Constitucional e Supremacia da Constituição,
Barcelona: José M. Bosh, 1995. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 83, p.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Jurispru-
5-8, jul./set. 1987.
dência.
GARVEY, John H. e ALEINIKOFF, T. A. Mo-
BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta. São Paulo,
dern Constitutional Theory: a reader. 2ª ed., St.
1958.
Paul: West Publishing, 1991.
CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Proces-
Constitucionalidade das Leis no Direito Compa-
sual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide,
rado. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1984.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de An- 1992.
drade. Devido Processo Legislativo: uma jus- ______. Nulidades no Processo. Rio de Janei-
tificação democrática do controle jurisdicional ro: Aide, 1993.
de constitucionalidade das leis e do processo HAMILTON, Alexander. O Federalista (textos
legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, selecionados). São Paulo: Abril Cultural, 1974.
2000. Coleção “Os Pensadores”.
CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Do HECK, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional
Controle da Constitucionalidade. Rio de Janei- e o Desenvolvimento dos Princípios Constitu-
ro: Forense, 1966. cionais: contributo para uma compreensão da
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização da jurisdição constitucional federal alemã. Porto
Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Alegre: Sérgio A. Fabris, 1995.
Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêu- João B. Machado. São Paulo: Martins Fontes,
tica Constitucional e Democracia. Revista da 1987.
Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, ______. Chi Dev’essere il Custode della Cos-
v.3, n. 5 e 6, p. 27-28, 1º/2º sem. 2000. tituzione? In: La giustizia costituzionale. Trad.
CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Ainda o Efeito Carmelo Geraci. Milano: Giuffrè, 1991.
Vinculante. Revista Trimestral de Direito Pú- ______. La Garantía Jurisdiccional de la Cons-
blico, São Paulo, n. 18, p. 124-164, 1997. titución (la justicia constitucional). In: Ecritos
DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e sobre la democracia y el socialismo. Madrid:
Risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sér- Debate, 1998.
gio A. Fabris, 1998. ______. El Control de la Constitucionalidad de
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Con- las Leys: estudio comparado de las constitucio-
trole de Constitucionalidade e Teoria da Re- nes austriaca y norteamericana. Ius et Veritas,
cepção. São Paulo: Malheiros, 1995. Lima, año IV, n. 6, p. 81-90, [s/d].

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 131

MELLO, José Luiz de Anhaia. Da Separação VÉSCOVI, Enrique. Bases para un Teoría
dos Poderes à Guarda da Constituição: as Americana del Proceso de Inconstitucionalidad
Cortes Constitucionais. São Paulo: Revista dos (declaración de inaplicabilidad de las leys). Bo-
Tribunais, 1968. letín Mexicano de Derecho Comparado, Ciu-
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Cons- dad del México, a. VIII, vol. 24, p. 1129-1151,
titucional: o controle abstrato de normas no sept./dic. 1975.
Brasil e Alemanha. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, WOLFE, Chistopher. La Transformación de la
1998a. Interpretación Constitucional. Madrid: Civitas,
______. Direitos Fundamentais e Controle de 1991.
Constitucionalidade: estudos de direito cons-
titucional. São Paulo: Celso Bastos Editor,
1998b. NOTAS
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitu- 1
A doutrina ainda diferencia esse ramo em face
cional. 3ª ed. Tomo II. Coimbra: Coimbra Ed.,
do “Direito Processual Constitucional”, des-
1994.
tinado a estudar os instrumentos processuais
POLETTI, Ronaldo Rebello de Brito. Controle
de eficácia da Constituição; ambos, contudo,
da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janei-
se subsumem na grande categoria “Processo
ro: Forense, 1985.
Constitucional”.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcan- 2
Ver também BARACHO (2000d:43-60).
ti. Os Fundamentos Actuaes do Direito Consti- 3
Um estudo aprofundado do Direito Compa-
tucional. Rio de Janeiro: Technicas, 1932. rado à espécie encontra-se em BARACHO
______. Comentários à Constituição de 1946. (1985).
Vol. V. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1953. 4
Segundo Couture, a teoria da autonomia da
RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte Suprema ação representou para os estudos do processo
e o Direito Constitucional Americano, Forense, um fenômeno análogo ao que foi para a física a
1958. divisão do átomo (citado por FIX-ZAMUDIO,
ROSENFELD, Michel. Les Décisions Cons- 1977:316).
titutionnelles de la Cour Suprême Américaine 5
Essa confusão é recorrente no Brasil. Só para
pour la Session 1998-1999: redéfinir les limi- citar um exemplo mais conhecido, observe-se
tes du fédéralisme au détriment des droits in- o título de um dos livros de Gilmar F. Mendes
diviuels. Revue du Droit Public, Paris, n. 5, p. (1998a): “Jurisdição Constitucional: o controle
1329-1342, sept./oct. 2000. abstrato de normas no Brasil e na Alemanha”.
SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constituci- 6
Sobre a importância que teve nos Estados Uni-
ón. Madrid: Tecnos, 1983. dos as Reconstruction Amendments (como a ci-
SLERCA, Eduardo. Os Princípios da Razoabi- tada XIV), ver BARACHO (1999b).
lidade e da Proporcionalidade. Rio de Janeiro: 7
Ver também BARACHO (1999a:97-98) e
Lumen Júris, 2002. SLERCA (2002).
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na 8
Esse direito à ação, pode, pois ser definido
América (textos selecionados). São Paulo: Áti- como o direito “que todas as pessoas têm de
ca, 1975. Coleção “Os Pensadores”. obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais na
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Os Instru- concretização e exercício de seus direitos e in-
mentos Processuais de Defesa da Constituição: teresses legítimos” (BARACHO, 1999a:92).
ação de constitucionalidade. Boletim de Direito 9
Haveria ainda um terceiro setor, em decorrên-
Administrativo, São Paulo, p. 791-798, dezem- cia do segundo, referente às garantias consti-
bro 1996. tucionais do processo, ou, mais claramente, ao
VERDU, Pablo Lucas. Estado de Derecho y Jus- “devido processo” (a que já fizemos referên-
ticia Constitucional: aspectos históricos, ideoló- cia), como conclui FIX-ZAMUDIO (1977:330-
gicos y normativo-institucionales de su interrela- 331).
ción. Revista de Estudios Políticos, nueva epoca, 10
Esse direito foi explicitado pela Convenção
Madrid, n. 33, p. 7-48, may./jun. 1983. Americana sobre Direitos Humanos (1969) no

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


132 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

art. 8 (acesso à justiça, presunção de inocência, 1983:81ss). Ver ainda a resposta de KELSEN
contraditório, presença de advogado privado ou (1991:248). Sobre essa discussão ver Alexan-
público, não auto-incriminação, direito de re- dre Bahia (2004).
curso, publicidade do processo). Para garantir 19
Impende observarmos que, a despeito de a
a efetividade de seus postulados foram criados Corte Constitucional austríaca ser tida como
dois órgãos: a Comissão Interamericana de Di- a primeira no mundo, na verdade o Tribunal
reitos Humanos e a Corte Interamericana de Constitucional da Checoslováquia, instituído
Direitos Humanos (art. 33 e segs.). alguns meses antes pela Constituição daquele
11
Com o objetivo de reforçar o caráter juris- país possui a primazia temporal. De toda sor-
dicional, diz Véscovi (1975:1136): “También te, a Constituição da Áustria “transformou-
tendríamos que concluir que se trata de funci- se em modelo de um sistema de controle da
ón jurisdiccional si nos atenemos a los criterios constitucionalidade verdadeiramente original,
normativos que caracterizan la actividad por el que se opõe ao sistema americano, criando o
efecto jurídico (cosa juzgada), que se deriva del tipo de controle concentrado” (BARACHO,
acto jurisdiccional”. Contudo, como se perce- 1999a:101).
be, o jurista uruguaio está se referindo ao sis- 20
Poderíamos falar também da sistemática
tema difuso de controle de constitucionalidade. do controle espanhol, que vem desenvolven-
Admite, contudo, que o caráter judicial do con- do doutrina e jurisprudência bem peculiares
centrado não resulta claro, como cita posições no cenário mundial. Sobre os principais pon-
contrárias na Itália (ver idem, p. 1138 e 1139). tos deste inovador sistema, ver BARACHO
12
Ver também voto do Ministro Moreira Alves, (1999a:113ss) e GARCÍA DE ENTERRÍA,
para quem o controle “abstrato” possuiria um 1987). Outro sistema peculiar que alguma in-
“caráter excepcional com acentuada feição po- fluência exerce no Brasil é o português (vide,
lítica pelo fato de visar ao julgamento, não de e.g., a introdução entre nós da Ação Direta de
uma relação jurídica concreta, mas da validade Inconstitucionalidade por omissão). Sobre este
da lei em tese” (RTJ 95/993). E ainda Clèmer- último ver BARACHO (1999a:115ss) e MI-
son Clève (1995:112ss). Contra Sérgio S. da RANDA (1994).
Cunha (1997:154). 21
Segundo Gilmar Mendes a enumeração das
13
Ver também VÉSCOVI (1975:1129-1130) e pessoas, constante do art. 93, I, n.2 da Lei Fun-
ainda GARCÍA DE ENTERRÍA (1987). damental é taxativa, não admitindo ampliação;
14
Note-se que sob a Constituinte de 1823 já a Lei Fundamental apenas dá legitimidade para
havia quem defendesse que uma lei contrária à esse controle abstrato aos órgãos centrais do
Constituição não valia. Contudo, como mostra governo e à minoria parlamentar o que, segun-
Anhaia Mello (1968:182ss), a Constituição ou- do ele, acaba por retirar do Tribunal as questões
torgada não previu um dispositivo que positi- mais importantes (cf. MENDES, 1998a:89).
vasse tal posição; além disso, a sanção imperial 22
Tomamos a expressão na acepção dada por J.
foi um entrave a qualquer tentativa de constru- BARACHO JR. (1995:30ss). Com semelhante
ção em contrário. apropriação não queremos desmerecer a pro-
15
Sobre críticas ao sistema americano, vale digiosa criação americana, como se esta fosse
a pena ainda citar PONTES DE MIRANDA despida de cientificidade, mas apenas mostrar
(1932:162ss). que a crença absoluta em uma nulidade absolu-
16
Uma releitura contemporânea das implicações ta da lei inconstitucional não se conforma à re-
de Marbury vs. Madison pode ser encontrada alidade. Aliás, já dissemos, a própria Suprema
em GARVEY e ALEINIKOFF (1991). Corte dos EUA não aplica aquela regra de mais
17
Para Tocqueville o grande poder político dado absoluta hoje em dia.
ao Judiciário dos EUA, constitui uma necessi- 23
Vale a pena notar, entretanto, que em seminá-
dade real e constitui “uma das barreiras mais rio realizado em 1992, o mesmo Ministro afir-
poderosas que jamais foram erigidas contra a mara que: “casos há, entretanto, que seria ade-
tirania das assembléias políticas” (idem). quado o efeito ex nunc” (VELLOSO, 1994).
18
Schmitt havia feito aquela acusação ao sis- 24
Essa é também a doutrina de Aroldo Plínio
tema proposto por Kelsen (cf. SCHMITT, Gonçalves, seguindo a tradicional lição de Valle

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CONSTITUIÇÃO E PROCESSO... 133

Ferreira, que, criticando a expressão “nulidade a nulidade não é conseqüência inerente ao ato
de pleno direito”, dizia que “mesmo inquinado viciado. A nulidade é uma sanção, isto é, uma
do vício mais grave, o ato quase sempre conser- conseqüência prevista para o ato praticado em
va uma aparência de regularidade, que só pode desconformidade com a lei. Nulo é o ato assim
ser destituída pela declaração do juiz” (GON- declarado pelo Judiciário, que produz efeitos
ÇALVES, 1993:76). Aroldo Plínio enfatiza que até a manifestação daquele.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


134

A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA


DOS DIREITOS: ENTRE O POSITIVISMO E O PÓS-POSITIVISMO
The Constitution and the Individual Rights in the Theory of
Law: Between Positivism and Pós-Positivism.

Geovany Cardoso Jeveaux*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O tema dos direitos adquiridos em face da Constituição é normalmente tratado na dogmá-
tica jurídica constitucional como de resultado evidente: a sua inexistência perante Constituições no-
vas e o seu reconhecimento, via de regra, diante de Emendas Constitucionais. Todavia, no campo da
teoria do direito, esse mesmo tema não permite uma abordagem reducionista e evidente, podendo
ser encontrada uma coincidência no resultado de teorias tão diversas como as de KELSEN, HART
e DWORKIN, propósito final do presente trabalho.
Palavras-chave: Constituição. Direito adquirido. Teoria do direito.

Abstract: The individual rights theme is normaly treated in the dogmatic constitutional law as an
evidence result: they dont exist in face of the new Constitutions although they exist in face of the
amendments. However, in the field of theory of law, this same theme doesnt admit such reduccionist
and evidence result, because the conclusions of the KELSEN´s, HART´s and DWORKIN´s theo-
ries, although start from the different premises, seem to take the individual rights to the same place:
it´s protection against the law and even the Constitution.
Key Words: Constitution. Individual rights. Theory of law.

1. Introdução outrora afirmado como um elemento da li-


berdade individual e como o resultado do
No presente trabalho, pretendo re- trabalho do homem, tornando-se parte inte-
conhecer nos trabalhos positivistas de grante de seu corpo. Nessa noção lockeana,
KELSEN e de HART e pós-positivista de a propriedade é um direito individual que
DWORKIN as defesas que fizeram aos di- surgiu antes do estado de sociedade, sen-
reitos contra eventuais investidas de leis ou do, portanto, um limite natural ao poder do
constituições posteriores ao seu nascimen- estado constituído pelo consenso/contrato
to, partindo desde já da certeza de que não social (BOBBIO, 1997: pp. 192, 201-220).
se ocuparam diretamente desse assunto e As revoluções liberais do fim do Séc. XVIII
talvez nem teriam defendido qualquer pro- moldaram essa visão individualista no cha-
teção em face de mudanças constitucionais. mado estado de direito e, para a proteção do
O tema dos direitos adquiridos tem direito de propriedade, a dogmática tratou
correlação direta com a idéia de direitos de trabalhar a noção de direito subjetivo,
subjetivos que, por sua vez, relacionam-se como aquele que: 1) se deduz de um direito
com o direito de propriedade. Num rápido objetivo (criado pelo Estado); 2) a partir da
retrospecto, o direito de propriedade foi ocorrência de um fato jurídico previamente

*Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional-PUC/RJ, Doutor em Direito Público-UGF/RJ, Professor de Teoria da
Constituição no Curso de Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais-FDV/ES e Juiz do Trabalho-TRT 17ª Região.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 135

fixado e que se refira diretamente à esfera SEN enuncia seu propósito de teorizar o
jurídica de um titular determinado (indivi- direito purificado de qualquer “ideologia
dual); 3) que passa a ter o poder de exigir política” e de “elementos de ciência natu-
uma prestação de um titular passivo (objeto ral”, não no sentido de sua formação, mas
de uma obrigação legal ou contratual - as- de seu conhecimento “científico”. Essa
pecto material); 4) inclusive pela via judi- ciência tem pretensão de “objetividade e
cial (aspecto processual). Se uma lei (direito exatidão” ou de ser uma “instância obje-
objetivo de base) posterior à aquisição das tiva”, geradora de neutralidade (KELSEN,
condições de exercício desse direito subje- 1991, pp. 53 e 74)1.
tivo lhe modifica os contornos ou simples- Para isso, adota um “princípio meto-
mente o extirpa do ordenamento, afirma-se dológico fundamental”, destinado a “liber-
a sua continuidade, apesar de ainda não ter tar a ciência jurídica de todos os elementos
se concretizado, em nome da “estabilidade que lhe são estranhos”. Embora a teoria
das relações jurídicas” (leia-se: em nome do não ignore a conexão do direito com outros
direito de propriedade). Se, ao contrário, a campos do conhecimento, almeja tratá-lo à
mudança ocorre por uma nova constituição parte, a fim de evitar um “sincretismo me-
ou por uma emenda constitucional, costu- todológico” (ibidem, p. 1).
ma-se dizer que contra ela não existem di- O direito é encarado como uma
reitos adquiridos, o que contraria o ponto “ordem normativa da conduta humana”
de partida de todo o raciocínio: a retórica ou um “sistema de normas de regulam o
segundo a qual os direitos individuais pre- comportamento humano”. Como sistema,
cedem o estado e, portanto, a própria Cons- exige uma unidade lógica, conferida pela
tituição. derivação de uma norma a outra até uma
Enquanto o positivismo, grosso norma fundamental, sendo com isso, tam-
modo, confere prevalência ao direito cria- bém, uma teoria holística (ibidem, pp. 4,
do pelo Estado e, portanto, rejeita qualquer 51, 207 e 220)2.
precedência de um direito não positivo (na- É na norma fundamental que “...se
tural) e não estatal (individual), o pós-po- revela a Teoria Pura do Direito como te-
sitivismo pretende levar a sério mais uma oria jurídica positivista”, onde o direito
vez os direitos individuais, não mais com positivo é válido apenas objetivamente, ou
base num direito natural precedente, mas seja, como algo possível, e não necessário,
em princípios extraídos do próprio sistema e onde essa validade é “condicionada pela
positivo e embebidos de uma moral pre- pressuposição da norma fundamental”.
sente nas comunidades. Até que ponto es- Positivo, aí, refere-se a algo “posto” (con-
sas teorias respondem à pergunta sobre se creto) por alguém autorizado a fazê-lo por
existem ou não direitos adquiridos em face uma norma “pressuposta” (abstrata) (ibi-
de uma constituição nova, essa é uma con- dem, pp. 10 e 236).
clusão que deixo para examinar ao fim do
trabalho, após relatar e pôr em confronto 2.1.1 A norma fundamental pressuposta
as teorias do direito daqueles três autores.

2. O Positivismo de Kelsen A designação de fundamental alude


ao fundamento de validade do direito, en-
2.1 A teoria pura do direito quanto ordem ou sistema de normas. Cui-
da-se, portanto, de um imperativo, e não
Logo no Prefácio da primeira edição de um ato de vontade constituinte, como se
de seu livro Teoria Pura do Direito, KEL- passa com a constituição. Ela é pressupos-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


136 Geovany Cardoso Jeveaux

ta3 porque não pode ser posta no mundo Imaginando o mundo como uma
dos fatos concretos, vale dizer, não pode única ordem jurídica, KELSEN encontra
ser criada por uma autoridade. Ela tem a norma fundamental na pressuposição de
natureza hipotética, sendo “...apenas uma que as normas globalmente eficazes vincu-
norma pensada”. Sua função é dar natureza lam os Estados. No plano interno de cada
jurídica às normas e sustentar a validade Estado, a pressuposição é de obrigatorie-
da ordem jurídica (=direito), enquanto “or- dade da primeira constituição histórica,
dem normativa da conduta humana”, ou ou seja, daquela que dá seqüência às de-
“sistema de normas que regulam o com- mais, autorizando a criação de uma nova
portamento humano”, como seu “último constituição. Essa primeira constituição é
fundamento de validade”. Esse sistema a primeira no sentido jurídico-positivo, a
tem de ser uno, e essa unidade é adquiri- menos que haja uma revolução bem suce-
da pela derivação de uma norma inferior à dida, caso em que a primeira constituição
superior, até a norma fundamental, numa histórica passa a ser aquela criada pelo
“construção escalonada” e hierárquica de ato revolucionário (ibidem, pp. 213, 215 e
normas. Sendo um pressuposto lógico-te- 233-234).
órico, ela fundamenta a validade de qual- Esse monismo da ordem jurídica foi
quer ordem jurídica positiva, qualquer que resumido por KELSEN no livro Teoria
seja a sua coloração política, não sendo Geral do Direito e do Estado, na seguinte
portanto nem justa e nem injusta (ibidem, ordem de argumentos: a) o direito interno
pp. 4-5, 9, 25, 34, 50-51, 207, 213-214, exerce uma função meramente comple-
219, 223, 235-236 e 283)4 mentar em relação ao direito internacional
KELSEN diz, textualmente, que a (1990, p. 352-354); b) todas as matérias
norma fundamental é uma constituição são possíveis ao direito internacional, mas
no sentido lógico-jurídico, enquanto “fato não ao direito interno (ibidem, p. 354); c)
fundamental” da criação do direito. Difere há uma única ordem jurídica, precedida
da constituição no sentido jurídico-posi- por uma norma fundamental de validade:
tivo, enquanto texto criado por um poder c.1) a pressuposição de obrigatoriedade
constituinte. Esse poder constituinte pode do costume internacional; c.2) seguida do
ser desempenhado por um órgão especial aforismo pacta sunt servanda referente a
(assembléia constituinte) ou comum (poder tratados concretos; c.3) normas de órgãos
legislativo ordinário), derivando: 1) de um criados pelos tratados, como as cortes e os
costume; 2) da produção normativa de um conselhos (ibidem, pp. 358-359); d) visão
indivíduo ou de um pequeno grupo; ou 3) holística das ordens: lógica, e não histórica,
da produção normativa de uma assembléia porque tradicionalmente os Estados vieram
de indivíduos (autoridade legislativa). A antes de uma ordem internacional (ibidem,
norma fundamental tem uma “instância pp. 359-360); e) o direito internacional é
constituinte” que não recebe seu poder de aplicável de imediato aos Estados quando
outra norma concreta. Outrossim, ela se re- as suas constituições omitirem sobre a sua
fere: 1) imediatamente: a uma constituição prevalência ou afirmarem a prevalência do
concreta, produzida pelo costume ou por direito internacional, salvo se: e.1) exigi-
um estatuto; e 2) mediatamente: à ordem rem a transformação do direito internacio-
coercitiva criada a partir da constituição. nal em direito interno; e.2) exigirem, em
Portanto, não é de escolha livre, mas vin- determinados casos, que apenas as leis in-
culada (ibidem, pp. 50, 54, 211-212, 214, ternas sejam aplicadas (ibidem, p. 367); f)
224, 242). validade universal do direito internacional,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 137

independentemente do reconhecimento, fundamental, que não determina o conteú-


que é então presumido (reconhecimento do da norma a ser então criada, limitando-
tácito, contrário à teoria do reconhecimen- se a lhe fornecer o fundamento de validade
to) (ibidem, pp. 369-370); g) a soberania (1991: pp. 207-209).
dos Estados é “delegada” pelo direito in- Uma norma é válida, portanto, quan-
ternacional (ibidem, pp. 370-371); h) o do criada pela autoridade competente e
tratado “revoga” a lei interna, e é por ela pelo procedimento pré-determinado para
“revogado”, conforme a regra later in time esse mister. Assim, uma lei é válida quan-
rule (ibidem, p. 367). do o seu sentido objetivo for dado pela
Na estrutura das normas, há entre constituição que, por sua vez, pressupõe
elas um vínculo de validade que dirige a que todos se conduzam de acordo com
última norma à anterior, e assim sucessi- ela (ibidem, pp. 8-9, 147-148, 206, 212 e
vamente até uma norma fundamental hi- 215)6.
potética, que é pressuposta como condição A validade difere, contudo, da efi-
primeira de validade (existência). No âm- cácia, nos seguintes pontos: 1) a validade
bito interno, a norma fundamental é a pres- pertence ao mundo do “dever-ser”, ou seja,
suposição de validade e de obrigatoriedade diz respeito à simples existência objetiva
da primeira constituição, que “... prescreve da norma (por um ato de autoridade com-
que devemos nos conduzir como os ‘pais’ petente e pelo procedimento pré-estabe-
da constituição e os indivíduos autorizados lecido), enquanto que a eficácia alude ao
(delegados) - direta ou indiretamente - pela “ser”, isto é, ao fato real da norma “ser
constituição ordenam” (ibidem, p. 120). efetivamente aplicada e observada”; 2) a
No âmbito internacional, a norma pres- eficácia dependente da validade, mas um
suposta é a obrigatoriedade do costume mínimo de eficácia é condição da validade
internacional, sob a seguinte fórmula: “os da norma; 3) a validade vem cronologi-
Estados devem se conduzir como têm se camente antes da eficácia; 4) a validade é
conduzido de costume”. Somente a partir aplicada a um tempo e espaço determina-
dessas normas pressupostas é que as nor- dos, sendo tais circunstâncias indiferentes
mas podem ser concretamente considera- para a eficácia; 5) a validade é o dever de
das e hierarquizadas, nessa ordem: pacta uma conduta, enquanto que a eficácia é o
sunt servanda dos tratados internacionais; fato de efetivamente alguém se conduzir
normas emanadas pelos órgãos criados pe- de acordo (ibidem: pp. 11-13, 50 e 231) 7.
los tratados; constituições dos Estados, e A eventual desconformidade de uma
assim por diante. norma com outra superior, que lhe concede
validade, não implica em invalidade ime-
2.1.2 Estática e dinâmica da Ordem Jurídi- diata. A norma, nesse caso, é considerada
ca e a validade e eficácia das normas provisoriamente válida, até que seja anula-
da por uma autoridade competente, e me-
A recondução das normas ao seu diante um procedimento determinado para
imediato fundamento de validade repre- tanto. Isso explica porque as expressões de
senta o caráter estático da ordem jurídica5, norma “ilegal” ou “inconstitucional” são
enquanto que o poder/competência criado uma contradictio in adjecto, porque toda
pela norma fundamental para a geração norma é objetivamente válida até que seja
das normas representa o seu caráter dinâ- extirpada do ordenamento pelos meios por
mico. Este último é o conteúdo da norma ele previstos. Trata-se de uma anulabili-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


138 Geovany Cardoso Jeveaux

dade, e não de nulidade, porque a norma direito e do Estado, entendido como ordem
permanece válida até a tal decisão, que, social idêntica ao direito ou a “personifi-
por isso, tem natureza constitutiva, e não cação da ordem jurídica” (1991: pp. 7, 13,
declaratória, desde que a norma era válida 15, 27, 37 e 58; 1990: pp. 4-5).
até então e, portanto, não podia ser “nula A regulamentação da conduta, atra-
desde o início” (ex tunc), valendo aqui, vés das normas, ocorre de duas maneiras:
para o direito, a metáfora do Rei Midas: 1) positiva: a) no sentido de obrigar a uma
“da mesma forma que tudo o que este to- conduta; b) no sentido de conferir poder ou
cava se transformava em ouro, assim tam- competência para produzir ou intervir na
bém tudo aquilo a que o Direito se refere produção de normas; 2) negativa: condu-
assume o caráter de jurídico” (ibidem: pp. ta não regulada e nem proibida. Somente
55-56, 284-285 e 293-294)8. nesse sentido a norma atende a um valor:
A inconstitucionalidade, por isso, 1) positivo (ou “bom”): quando a conduta
significa a invalidade de um ato em seu está de acordo com a norma; 2) negativo
sentido subjetivo, por não se adequar ao (ou “mau”): quando não está de acordo
sentido objetivo da norma constitucional com ela. Assim, “a norma considerada
que lhe confere validade (ibidem: pp. 55- como objetivamente válida funciona como
56). medida de valor relativamente à conduta
real” (1991: pp. 16-18).
2.1.3 As Normas e o seu Conteúdo Esse valor é correlato ao conceito de
norma, mas diverso de sua ciência (TPD),
No sistema kelseniano, a norma con- que é objetiva, sendo de natureza humana,
fere significado jurídico objetivo a um ato, e não divina. Com ele apenas se quer dizer
enquanto “esquema de interpretação”, mas que a conduta de acordo com a norma é
ela é o produto de outro ato, que recebe o positiva (“boa”), e que a conduta contrária
seu significado de outra norma, até a nor- é negativa (“má”), como ponto de partida
ma fundamental. Sendo uma “ciência” para a sanção (ibidem, pp. 20, 23 e 71).
objetiva, a TPD, estruturada num sistema Sendo a conduta regulada tanto posi-
escalonado de normas, não admite que tiva quanto negativamente, não há espaço
elas tenham conteúdo, porque isso exige a para as lacunas no ordenamento jurídico.
mistura de direito e política e sugere um A conduta negativa, ou seja, “o que não
núcleo “justo” e, portanto, valorativo (ibi- é juridicamente proibido é juridicamente
dem: pp. 3-5, 11, 49, 53, 214 e 236). permitido”, exclui qualquer possibilidade
Mas a norma regula o comportamen- de o sistema de normas ser aberto a ausên-
to humano como um dever-ser, no sentido cias de normação da conduta (ibidem, pp.
de prescrever (comandar) ou permitir con- 200, 261-263).
dutas, e isso é o que faz do direito uma “or-
dem normativa da conduta humana”. Nesse 2.1.4 As Lacunas e a Discricionariedade
dever-ser da conduta é que está o conteúdo Judicial
das normas, acrescido de seus efeitos. Uma
conduta é prescrita ou permitida mediante Quando duas condutas não reguladas
coação estatal, que é exercida através da entram em conflito, entende-se que elas são
sanção. Esta última compreende prêmio e igualmente permitidas e, por isso, qualquer
castigo como o “motivo da conduta social- decisão a respeito deve rejeitar a pretensão
mente desejada”. Este é o elo de ligação do do autor da demanda, porque a ordem ju-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 139

rídica somente protege “interesses bem de- que é ele mesmo uma norma geral, porque
terminados” (ibidem, pp. 261 e 263). vinculante de decisões futuras e cujo ob-
Nesse caso, não se fala em lacuna, jetivo é unificar a jurisprudência (ibidem,
porque a ausência de uma norma geral so- pp. 216-268).
bre uma conduta positiva autoriza a condu-
ta negativa. Somente quando essa ausência 2.1.5 Direito Subjetivo e proteção da liber-
é considerada “indesejável” pelo tribunal, dade mínima
“do ponto de vista da política jurídica”, por
“não eqüitativa ou desacertada”, pode ele A atuação do tribunal ocorre, ordi-
criar uma norma individual, via decisão, a nariamente, para a solução de problemas
partir de uma norma geral que lhe pareça concretos, diante de “interesses bem de-
correta/satisfatória/adequada/desejável/ terminados”, conforme visto acima. Nesse
acertada. A isso KELSEN denomina de lugar comum, o tribunal está autorizado
função criadora de uma norma individual, a criar uma norma individual, específica
ou “margem de livre apreciação” na falta para o caso concreto.
de norma geral, porque ela mesmo, quando Esses “interesses” podem ser tidos
existente, não pode prever todas as “par- como direitos e, nessa qualidade, perten-
ticularidades do caso concreto”. A norma centes à esfera jurídica de algum sujeito
jurídica geral é uma “moldura”, tanto mais determinado? Em caso de resposta posi-
larga quando autoriza simplesmente ao tri- tiva, está-se diante de um direito subjeti-
bunal a criar a norma individual. vo? KELSEN responde a essas indagações
Portanto, somente existe discriciona- enumerando os sentidos usuais em que um
riedade judicial na falta de norma jurídi- direito é tido como subjetivo: 1) como con-
ca geral, quando o tribunal considera essa traposição a um dever; 2) como distinto de
ausência “injusta ou não eqüitativa”, “quer um “direito objetivo”; 3) como poder de
dizer, como não satisfatória”. Nesse caso, conduzir-se de algum modo. Para ele, to-
o tribunal recebe a competência para criar davia, um direito subjetivo é apenas a con-
uma norma jurídica individual “ex novo formação de uma conduta a uma norma, ou
de direito material”, que não tem índole o “simples reflexo de um dever jurídico”.
legislativa, precisamente por se referir a Nele não há um sujeito ativo, mas tão-so-
uma norma individual, e não geral. Apenas mente um sujeito passivo, porque o bene-
quando o tribunal cria uma norma também ficiário da conduta é apenas o objeto da
geral é que ocorre uma “concorrência com própria conduta. O dever9 tem prioridade
o órgão legislativo”, representando uma sobre o direito no positivismo, ao contrá-
“descentralização da função legislativa”. rio do direito natural, que afirma o oposto
Em resumo, o tribunal cria: 1) norma (ibidem, pp. 138-143 e 147).
individual (como “direito material novo”): Como decorrência, não existem di-
quando a norma geral prevê uma conduta reitos subjetivos, na qualidade de interes-
negativa, ou seja, não tem seu conteúdo ses pessoais, que possam ser extraídos da
predeterminado por uma norma geral; 2) norma (direito objetivo). O direito subjeti-
norma geral: quando a norma geral cria vo não é um interesse de direito material,
conduta positiva, ou seja, confere conteú- mas “...apenas a proteção ou tutela desse
do predeterminado a uma norma individu- interesse, por parte do Direito objetivo”,
al, mas de modo não unívoco. Em ambos porque, diante de ofensa, há uma sanção
os casos, o tribunal gera um precedente, que somente o Estado pode aplicar, através

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


140 Geovany Cardoso Jeveaux

de suas autoridades e seus procedimentos afirmá-lo como um direito contra tais de-
previamente estabelecidos. O direito sub- cisões, salvo um “mínimo de liberdade”.
jetivo, em resumo, é uma simbiose de um Essa “liberdade inalienável”, não inata
direito reflexo (reflexo de um dever jurí- ou natural, deriva da “limitação técnica”
dico favorável ao titular) com o direito de da ordem jurídica em condicionar toda a
agir, no qual este último e a sua “essência”. conduta humana: “fica sempre garantido,
Sem “ação” o direito é juridicamente irre- porém, um mínimo de liberdade, isto é, de
levante (ibidem, pp. 146-149). ausência de vinculação jurídica, uma esfe-
KELSEN, portanto, ignora não ape- ra de existência humana na qual não pene-
nas a existência de um direito no plano tra qualquer comando ou proibição”. Tra-
das relações materiais, chamando-o de ta-se das “liberdades constitucionalmente
“interesse”, como algo ainda incerto na garantidas”, que limitam a competência do
sua existência e titularidade, como se afas- órgão legislativo (ibidem, pp. 47 e 242).
Em resumo: 1) na ordem jurídica
ta das teorias imanentistas do direito de
positiva não existem direitos subjetivos,
agir, que encontram no direito material o
entendidos como posição jurídica material
próprio direito de ação: o objeto de toda
de vantagem desde sempre reconhecida;
obrigação é uma prestação de dar, fazer ou
2) existem interesses que somente se tor-
não-fazer alguma coisa, e o objeto dessa nam direito material através de uma norma
prestação é o poder que o credor tem de individual, criada por decisão judicial ou
exigir do devedor essa mesma prestação, “resolução administrativa” (ibidem, pp.
donde se segue que “a todo direito corres- 17, 21, 147 e 231); 3) tais direitos são reco-
ponde uma ação, que o assegura” (art. 75 nhecidos em caráter retroativo; 4) podendo
do CCB revogado). as normas gerais ser também retroativas,
O direito de ação é uma garantia pro- dando significado jurídico novo aos fatos
cessual de um interesse, e não de um direi- passados; 5) só existe direito subjetivo en-
to material insulado no patrimônio do autor quanto reflexo de um dever de conduta e
em relação ao patrimônio alheio. Por isso através do direito de ação, que é uma mera
as decisões criadoras de norma individual, garantia de um interesse “bem determina-
na discricionariedade dos tribunais, são a do”; 6) somente “o catálogo de direitos e
criação, elas mesmas, de um direito mate- liberdades fundamentais” (ibidem, p. 242)
rial novo, de eficácia retroativa. Quem cria previsto nas constituições é limite à atu-
um direito material é a norma individual, e ação normativa do Estado; 7) mas não é
não a simples ocorrência do fato jurídico limite a um poder constituinte, especial-
descrito no direito objetivo, porque aí se mente nos casos de revolução10.
tem apenas um interesse, reflexo de um de-
3. O Positivismo de Hart
ver de conduta (direito reflexo). Ao mesmo
tempo, uma norma geral pode ser também 3.1 As críticas a Austim e a Kelsen
retroativa, hipótese em que não muda os
fatos passados, limitando-se porém a mo- HERBERT L.A. HART publica o li-
dificar o seu significado normativo (ibi- vro O Conceito de Direito em 1961, diri-
dem, pp. 14, 154-155 e 263). gindo críticas a AUSTIM e a KELSEN.
Num quadro assim desenhado, ne- AUSTIM é da corrente teórica im-
nhum “interesse” se põe sob total prote- perativa, segundo a qual o direito é uma
ção contra as decisões políticas estatais, ordem de autoridade, definido por “co-
e nenhum titular desse “interesse” pode mandos” baseados numa ameaça. Em sua

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 141

teoria, “... nada pode ser direito, a não ser tia de obediência num sistema coercivo
se e quando tal tenha sido ordenado por de “cooperação voluntária”; 3) onde essa
alguém” (1986: p. 21, 25, 55 e 57). Já “cooperação voluntária” é que cria a auto-
KELSEN teria sustentado que a norma ridade (ibidem, pp. 27-29, 38-39, 41, 43,
tem qualquer conteúdo, e que a lei tem por 47 51, 53-54, 214-215, 217 e 294) .
conteúdo uma “cláusula condicionante” Em resumo, HART critica a teoria do
dirigida à autoridade para a aplicação da direito como ordem coercitiva nos seguin-
sanção (ibidem: pp. 44-45 e 223). tes pontos: 1) as ordens legais ou judiciais
Tais teorias correspondem a uma não são dadas exclusivamente aos destina-
concepção geral do direito, relativa à obri- tários, como também aos emitentes (ex.:
gatoriedade de uma conduta, diversa de norma criminal); 2) as normas que confe-
outras duas, quais sejam, do direito como rem poderes facultam a criação de direitos
obrigatoriedade moral, no sentido de jus- e deveres, sem coagir; 3) os costumes são
tiça, e do direito enquanto regra, isto é, regras de direito que não contém coerção
como comportamento geral, como de re- (ibidem, p. 57).
gra ocorre (costume). Essas concepções
suscitam, respectivamente, três questões: 3.2 As regras de Direito
1) sobre a diferença entre direito e ameaça;
2) sobre obrigações jurídicas e morais; 3) 3.2.1 Primárias e secundárias
sobre regra e regra de direito (ibidem, pp.
10-14 e 18). Para HART, as regras designam um
Para HART, diferentemente daqueles comportamento-padrão a ser seguido, mas
dois autores: I - a lei: 1) não é uma ordem o que confere autoridade a elas é uma “co-
ou se dirige a pessoas, senão genericamen- operação voluntária” daqueles que devem
te; 2) tem caráter permanente; 3) suscita aplicá-las (funcionários) e daqueles que
obediência geral; 4) é “operativa” quanto devem segui-las/obedecê-las (cidadãos), o
a direitos e deveres e, por isso, torna nu- que pressupõe uma sociedade organizada
los/ineficazes os atos contrários; II - as juridicamente.
normas: 1) criam deveres: a) diretamen- Numa sociedade sem regras oficiais
te: normas criminais; b) indiretamente: (costume), por exemplo, são encontrados
normas que conferem poderes, que são os seguintes defeitos: 1) incerteza: falta de
fórmulas para criar deveres; 2) têm uma texto escrito com autoridade e de proces-
“função primária”11, consistente em de- so para o julgamento; 2) caráter estático
signar comportamentos-padrão através de das normas: baixa e lenta mutabilidade; 3)
regras, que são aplicadas diretamente pe- ineficácia da pressão social difusa: falta de
los destinatários quando se conformam a instância para perseguir a violação da nor-
elas, por lhes ser inteligíveis; III - a sanção ma (vingança privada) (ibidem, pp. 102-
pode ser subtraída sem eliminar o padrão12 103). Para obviá-los, um sistema jurídico
inteligível de comportamento ou o que seja numa sociedade organizada deve dispor de
o próprio direito (diferentemente da teoria duas condições básicas: 1) a presença de
do direito como ordem baseada em amea- regras de comportamento, válidas e obede-
ças, que exige a vinculação de ambos); IV cidas em geral; e 2) a presença de regras
- a coerção é: 1) um termo de aproximação de reconhecimento, que especifiquem os
do direito e da lei, mas que é abalado pelo critérios de validade, alteração e de jul-
costume, que não a exige; 2) uma garan- gamento, aceitos como padrão público

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


142 Geovany Cardoso Jeveaux

comum de comportamento oficial pelos vador), sobre como aplicá-la (ibidem, p.


funcionários e seguidos/obedecidos pelos 114).
cidadãos (ibidem, p. 128). O primeiro erro de KELSEN, para
Na sua estrutura, as regras têm dois HART, foi encontrar o critério de vali-
aspectos, a saber: 1) interno: a) como com- dade no aspecto externo, negligenciando
portamento regular e uniforme observado o interno ou reduzindo-o ao primeiro. A
individualmente, em vista de um compor- norma pressuposta kelseniana encontra-se
tamento observado em geral por todos; b) fora, do ponto de vista externo do direito,
modo como o indivíduo interpreta o seu enquanto que a regra de reconhecimento
próprio comportamento; 2) externo: sinal está dentro do sistema, sendo que a vali-
possível de um castigo (ibidem, pp. 65-66, dade relaciona-se ao seu aspecto interno e
98, 100, 108, 151, 153 e 217-218). não admite dúvida quanto a sua existência.
Além disso, as regras têm dois níveis: Uma pressuposição representa a impossi-
1) primário: regras que impõem deveres, bilidade de provar essa existência, enten-
ações comissivas ou omissivas de movi- dida como uma constatação fática, externa,
mento ou mudança física; 2) secundário: de que há uma regra eficaz e passível de
regras que atribuem poderes, públicos ou identificação. O segundo erro foi acreditar
privados, para criar novas regras primá- na exclusividade da norma pressuposta,
rias, extinguir ou modificar outras antigas, enquanto que a regra de reconhecimento
determinar a sua incidência ou fiscalizar a admite a concomitância de outras equi-
sua aplicação, ou seja, criar ou alterar de- valentes, criando entre elas hierarquia,
veres ou obrigações. O direito, para HART, subordinação e/ou derivação. O terceiro
é a união das regras primárias de obrigação foi reduzir a eficácia à validade, quando
com as regras secundárias (ibidem, pp. 91, a validade depende da eficácia apenas sob
104, 169 e 217-218). a ótica de sua utilidade, sendo possível a
separação de ambas (ibidem, pp. 112, 115-
3.2.2 De reconhecimento 116, 120-121, 123 e 249).
Uma regra de reconhecimento tem,
A regra de reconhecimento é de na- assim, uma dupla perspectiva: 1) externa:
tureza primária, e é identificada (regra de existência (constatação fática) na prática
identificação) através de uma regra secun- efetiva do sistema; 2) interna: validade, do
dária, servindo para afastar as incertezas ponto de vista da identificação do direito,
típicas de uma sociedade sem regras ofi- ou seja, de um “padrão público comum”
ciais (costumes)13 do sistema jurídico, com de comportamento cooperativo (ibidem,
base em referências escritas/inscritas, com pp. 123 e 127).
poder de autoridade. Esta última surge de
uma “cooperação voluntária” (entre obedi- 3.2.3 Regras como necessidade social do
ência das regras pelo cidadão e aceitação sistema jurídico, lacunas e discricionarie-
delas pelos funcionários) e produz a idéia dade
de sistema (ibidem, pp. 104-105).
Nessas regras de reconhecimento es- As regras são necessárias para que
tão contidas duas afirmações: 1) interna: uma sociedade tenha um sistema jurídico
aceitação compartilhada de regras; 2) ex- organizado, a fim de superar os defeitos tí-
terna: interpretação, pela autoridade (que picos de sociedades baseadas no costume
se encontra em posição externa, de obser- (incerteza, imobilidade e ineficácia).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 143

Em sua aplicação, as regras são fe- 3.3 Direito e moral


chadas ou abertas. No primeiro caso, tem-
se as regras aplicadas pelos próprios par- Conforme visto acima, a interpreta-
ticulares, sem intermediação oficial. No ção pode criar o direito ao suprir as lacunas
segundo, tem-se as regras aplicadas pelos deixadas pela “textura aberta” das normas,
“funcionários”/autoridades, com mobi- mas essa criação há de ser razoável, no
lidade de escolha oficial. Tal mobilidade sentido de justa/eqüânime e moral.
existe por conta da “textura aberta” das Entre direito e moral, por conseguin-
regras, que podem conter “indeterminação te, há uma comunicação que HART não
de finalidade”, ou seja, uma lacuna de cir- rejeita, ao contrário de KELSEN, porque a
cunstâncias não previstas nas regras gerais moralidade residiria na própria origem da
(ibidem, pp. 141-144). sociedade regulada por regras. Nessa ori-
Enquanto KELSEN entende inexistir gem, as regras teriam sido criadas com o
lacunas no plano lógico-jurídico, embora fim de garantir a sobrevivência do homem,
admita que a norma geral não possa prever por intermédio de “arranjos sociais” para a
todas as “particularidades do caso concre- contínua obediência das regras mediante a
to”, HART afirma a lacunosidade das re- coerção aos recalcitrantes. Esses “arranjos
gras, concordando com a discricionarieda- sociais”, ao mesmo tempo em que permi-
de judicial, capaz de supri-las. Discordam, tem uma existência continuada da própria
portanto, não quanto à discricionariedade, sociedade, são um dos elos de ligação en-
mas quanto a sua origem: para o primeiro, tre direito e moral, ao lado de dois outros,
ela surge da competência do tribunal para a saber: 1) circunstâncias cotidianas da
criar a norma individual, até mesmo na sociedade sobre o seu conceito de certo e
falta de uma norma geral “satisfatória” ou errado; 2) compreensão dessas circunstân-
“adequada”; para o segundo, ela emerge da cias de forma simples a todos os adultos
lacuna propriamente dita da regra geral. (ibidem, pp. 185 e 208-210).
Nessa “textura aberta”, o direito pode HART não desconhece a diferen-
ser criado através da interpretação, como ça entre direito e moral, cujas distinções
no exemplo da ponderação constitucional enumera em quatro critérios formais, mas
de valores. De acordo com HART, “uma rejeita que direito e moral não possam ter
decisão judicial, especialmente em ques- eventualmente o mesmo conteúdo, como
tões de alta importância constitucional, KANT e KELSEN o fazem, ao separar o
envolve freqüentemente uma escolha entre direito e a moral, atribuindo o primeiro a
valores morais e não uma simples aplica- “comportamentos externos”, ou seja, in-
ção de um único princípio moral proemi- diferentes aos motivos e intenções de sua
nente...”. Tal interpretação, todavia, deve ocorrência e sujeitos a sanção, e o último a
ser razoável, assim entendida aquela que comportamentos internos, isto é, relativos
não cria injustiças ou ofende “princípios à boa-vontade, às intenções adequadas ou
morais assentes”. Discricionariedade, por- ao motivo apropriado pelos quais ocorrem,
tanto, não significa total liberdade de de- desprovidos de sanção. Onde eles realmen-
cidir, mas “imparcialidade e neutralidade te estão separados é na validade, porque o
ao examinar as alternativas; consideração direito, nesse ponto, não pressupõe a moral
dos interesses de todos os que serão afecta- (ibidem, pp. 187 e 230)14.
dos; e preocupação com a colocação de um Uma das relações entre direito e mo-
princípio geral aceitável como base racio- ral está presente da regra da irretroativida-
nal da decisão” (ibidem, pp. 220-221). de, porque a adequação a uma regra exige

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


144 Geovany Cardoso Jeveaux

prévio conhecimento e oportunidade de pretensamente a favor da “vontade geral”


obedecê-la, de modo que a regra retroati- rousseauniana (ibidem, pp. 77-81, 84 e
va revela-se amoral, por suprimir qualquer 86).
capacidade de obediência a ela (ibidem, Citando expressamente o caso dos
pp. 223-224 e 228). EUA, HART diz que tal limitação é ali de
ordem substantiva,
3.4 Direitos individuais / subjetivos cons- “... onde a divisão de poderes entre
titucionais. o governo central e os Estados membros,
e também certos direitos individuais, não
Sendo a regra da irretroatividade uma podem ser alterados pelos processos ordi-
das mais importantes conquistas do estado nários de legislação. Nestes casos, um acto
de direito e do estado constitucional con- legislativo, quer do órgão legislativo esta-
tra o arbítrio legislativo, pode-se dizer que dual, quer do federal, que pretenda alterar
ela se inscreve nos conceitos histórico de ou seja incompatível com a divisão federal
direito individual e dogmático de direito dos poderes ou com os direitos individu-
subjetivo. Tal regra diz, em essência, que: ais deste modo protegidos, é susceptível
1) nenhuma lei pode ser criada com efeito de ser considerado ´ultravire´ e declarado
retroativo, com o fim de prejudicar os titu- juridicamente inválido pelos tribunais, na
lares de direitos; 2) somente as retroações medida em que entre em conflito com as
benéficas aos indivíduos podem existir; 3) disposições constitucionais” (ibidem, pp.
as leis vigoram e são eficazes para o futu- 80-81).
ro; 4) por conseqüência, os direitos gera- Tudo isso tem relação com a idéia da
dos pela lei passada devem ser respeitados continuidade do poder, ou seja, com a tran-
pela lei nova. sição de um legislador /governante a outro,
Trata-se, evidentemente, de séria li- que deve começar antes mesmo da passa-
mitação ao poder legislativo ordinário de gem, a fim de se manter a obediência para
criar normas ex novo no ordenamento, que o futuro (ibidem, pp. 63 e 67). Logo, ocor-
HART atribui ao problema da titularidade rendo mudança da ordem, com eventual
do próprio poder nas democracias consti- ofensa a direitos passados, pode-se afirmar
tucionais. Nelas, diversamente da sobera- a ocorrência de descontinuidade, com vio-
nia absoluta e ilimitada, o poder legislativo lação do princípio, já que isso pode gerar
é limitado porque exerce sua competência desobediência e, com ela, ilegitimidade
em nome do eleitorado, de tal maneira que, das novas ordens.
acaso viole essa regra de capacidade, terá Sendo a norma de reconhecimento
exercido poder nulo e, portanto, inválido. aquela que confere validade à ordem jurí-
Mas o eleitorado não é, em si mesmo, uma dica de um país determinado, e derivando
“outra pessoa”, e tampouco os eleitores a validade de um “padrão público comum”
são “indivíduos na sua capacidade oficial”, de comportamento cooperativo voluntário,
sendo antes retórico dizer que alguém obe- no sentido do cidadão obedecer às regras e
dece a si mesmo ou às próprias ordens. dos funcionários aceitá-las na sua aplica-
Esse efeito retórico é dúbio, porque sugere ção, pode-se encontrar na regra da irretro-
simultaneamente que alterações legais em atividade uma regra de reconhecimento no
prejuízo do eleitorado representam uma plano infra-constitucional, na direção de
contradição racional, desde que ninguém limites hierárquicos entre a constituição,
legisla em seu próprio desfavor, ao mes- como salvaguarda de direitos, e o poder
mo tempo em que podem ser justificadas legislativo.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 145

Tal regra de reconhecimento, aqui Diante disso, a contra-crítica positi-


interpretada desse modo, coloca-se abaixo vista, de acordo com A. CASALMIGLIA,
da regra de reconhecimento última, que, chegou a dizer que a crítica era mais apa-
para HART, acha-se nas cláusulas de reser- rente do que real, pondo-se ao lado do
va ou limites ao poder de revisão constitu- positivismo; ou que uma pequena modi-
cional dirigidos à legislatura ordinária nas ficação na regra de reconhecimento seria
democracias constitucionais. Esses limites suficiente para superar a crítica; ou mesmo
seriam o critério supremo e exclusivo de que o pensamento crítico era neojusnatura-
validade do direito interno, como ocorre lista15. Mas DWORKIN não se perfila com
com os EUA (ibidem, pp. 118, 220 e 250). o positivismo, nem parece se contentar
Embora essa não seja a realidade da com uma simples maquiagem da regra de
Inglaterra (país de origem do autor em es- reconhecimento e tampouco se converte a
tudo), por não impor restrições formais à um novo jusnaturalismo. Destinando seu
competência do poder legislativo supremo, tempo às críticas ao positivismo e ao utili-
o caso americano autoriza uma analogia tarismo, ela retorna ao liberalismo político
muito próxima ao estado constitucional e reintroduz no direito o elemento moral,
brasileiro, de forma que tudo o que foi dito através de uma idéia sistemática que não
para os EUA serve em grande medida para põe os princípios do lado de fora do orde-
o caso do Brasil no pensamento harteano. namento. Se nesses traços não se pode ver
mais o positivismo, que propõe a separa-
4. O Pós-Positivismo de Dworkin
ção entre o direito e a moral, e tampouco
4.1 Localização do pensamento de o jusnaturalismo, que admite uma morali-
Dworkin dade extra e supra-ordenamento, a quali-
ficação de neopositivista parece ser mais
Na seqüência do positivismo de adequada a DWORKIN, ao menos até que
HART, DWORKIN empenha-se em criticar outra melhor lhe possa ser imputada.
não apenas o positivismo jurídico, em espe- J.W. HARRIS (1997: pp. 188-190),
cial na versão do poder discricionário dos por exemplo, chama DWORKIN de anti-
juízes, como também o utilitarismo, quanto positivista, e enumera o seu pensamento
ao privilégio dos interesses coletivos sobre em três fases. A primeira delas, presente na
os individuais. Essas duas versões teóricas edição original de Taking Rights Seriously,
do direito não levaram o direito a sério, quer destinou-se à crítica à HART, no sentido
dizer, o direito dos indivíduos, ao sobrepor de que o direito não é um sistema de re-
a ele a norma do estado ou a estrita obediên- gras determinadas por seu pedigree e que
cia às leis estatais. supostamente autoriza aos juízes a deci-
A sua proposta, em resumo, é a de direm discricionariamente nos casos não
apresentar o direito como uma integrida- regulados. Na segunda, contida na reedi-
de política, vale dizer, como um conjunto ção do mesmo livro em 1978, nasce o juiz
de princípios que a comunidade impõe à HÉRCULES, para a solução dos hard ca-
maioria no sentido de respeitar os direitos ses segundo uma perspectiva holística, ou
individuais, enquanto decisões políticas seja, conforme as melhores políticas. Na
passadas. Tais direitos assumem então uma terceira, com o livro Law´s Empire (1986),
natureza moral, que o governo deve res- DWORKIN introduz o holismo de HÉR-
peitar diante de seu compromisso também CULES a uma “interpretação construtiva”,
moral de agir conforme princípios. como num “romance em cadeia”, de deci-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


146 Geovany Cardoso Jeveaux

sões e leis passadas aos direitos que sejam a) o direito é um conjunto de normas co-
objeto de decisão atual. ercitivas de comportamento; b) identifi-
A edição aqui utilizada de Taking cadas por sua origem/competência para a
Rights é uma tradução espanhola de 1984, sua criação, e não com o seu conteúdo; c)
que condensa, portanto, as duas primeiras critério que determina a validade de uma
fases. Para a terceira fase será utilizada a norma em relação a outra; d) esse direito
tradução brasileira do livro Law´s Empire, é aplicado por funcionários/juízes com
da Editora Martins Fontes (1999), ao lado discricionariedade para interpretá-lo nos
da edição inglesa de 1998, da Hart Pu- casos de lacuna e nos quais as normas não
blishing (1998). Tal seqüência não exclui são claras; e)a obrigação traduz-se no res-
a introdução de outros textos do autor, nos peito que os terceiros devem ter em face do
pontos que sejam necessários para esclare- direito de alguém (ibidem, pp. 65-66).
cer melhor as suas idéias.
4.2.2 Princípios, diretrizes e normas
4.2 Levando os direitos a sério.
O positivismo jurídico afirma que as
4.2.1 A crítica ao Positivismo e ao Utili- normas são a via exclusiva do direito e que
tarismo ele se reduz a um comando condicionan-
te de comportamentos. Mas, em verdade,
De acordo com DWORKIN, o posi- na sua aplicação judicial, especialmente
tivismo jurídico, que tem início com AUS- nos casos difíceis (hard cases), as normas
TIN, no séc. XIX, e termina elaborado por funcionam como princípios ou diretrizes
HART, é a parte conceitual da teoria utili- políticas16, diante da necessária dimensão
tarista, sendo, portanto teorias dependen- moral que se põe diante da interpretação
tes. A primeira reduz a validade do direito jurídica, entre alternativas possíveis de
às normas positivas, rejeitando a idéia da decisão. DWORKIN lembra dois casos
“vontade geral” na sua criação, enquanto paradigmáticos em que as decisões foram
que a última confere ao direito a função de tomadas mais em vista de princípios do
“servir ao bem-estar geral e nada mais”, que de normas expressas, a saber: a) caso
rejeitando a existência de direitos indivi- Riggs v. Palmer - 1889, em que se negou
duais contra o Estado e prévios ao direito o direito de herança a um neto que assas-
legal (op. cit., pp. 31, 34, 36, 42, 64-65, sinou o avô para recebê-la antes da morte
164). natural do instituidor, onde foi aplicado o
Tal visão do direito não leva os direi- princípio conforme o qual “ninguém pode
tos a sério, porque não os considera como beneficiar-se de sua própria torpeza”; b)
fonte e limite da autoridade coletiva. Os caso Henningsen v. Bloomfield Motors
direitos individuais são não apenas a fonte Inc. - 1960, em que se reconheceu que a
e o limite dessa autoridade, simultanea- superioridade econômica de uma fábrica
mente, como trunfos políticos que não po- de veículos não pode impor aos consumi-
dem ser prejudicados por metas coletivas, dores uma limitação da responsabilidade
sendo derivados do direito abstrato à igual do fabricante apenas à troca de peças de-
consideração e respeito por parte do Esta- feituosas, como também a gastos médicos
do (ibidem, pp. 37 e 41). e outras indenizações, onde teve lugar o
Em resumo, as idéias positivistas princípio da proibição da lesão nos contra-
podem ser enumeradas do seguinte modo: tos (ibidem, p. 72).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 147

Para DWORKIN, os princípios são desconhece os standards da discrição; b)


standards de exigência de justiça, eqüida- frágil 2: a decisão não está sujeita a revi-
de ou qualquer outra dimensão moral, en- são; é a última palavra; c) forte: a decisão
quanto que as diretrizes são standards que não está vinculada a standard imposto por
propõem objetivos políticos, econômicos qualquer autoridade; trata-se de liberdade
ou sociais de uma comunidade (ibidem, p. sem limites (ibidem, pp. 84-85).
72). Quando os positivistas tratam a dis-
Princípios, portanto, são diferentes cricionariedade como algo que se aplica
das normas, nos seguintes pontos: a) os “por princípio” na falta de uma norma clara,
princípios não se excepcionam mutua- dão à discrição o segundo sentido. Quando
mente, como as normas podem ser umas dizem que os princípios são obrigatórios,
com as outras; b) os princípios não esta- dão o terceiro sentido. DWORKIN susten-
belecem as condições de sua aplicação, ta o primeiro sentido, a não ser que os prin-
como as normas; c) não definem deveres cípios sejam obrigatórios para o juiz. Se o
específicos, como as normas (ex.: reco- juiz modifica ou deixa de aplicar a norma
menda a conformidade de um negócio ao pela interpretação, é porque a própria nor-
justo ou não demasiadamente oneroso); d) ma não lhe é obrigatória, prevalecendo en-
princípios estão sujeitos a cálculo de im- tão o terceiro sentido. Para isso, o juiz po-
portância, quando um colide com outro, sitivista sustenta oportunisticamente que:
ao contrário das normas, cujo conflito é 1) a mudança favorece um princípio; 2) o
resolvido pela hierarquia ou pela regra la- que se põe no lugar são princípios standar-
ter in time. Como exemplo dessa distinção, ds que não se apartam do positivismo. Em
DWORKIN cita duas interpretações da todo caso, a escolha pelos juízes de “prin-
Primeira Emenda e da 1ª Seção da Sher- cípios” que substituam ou modifiquem as
man Act: a) Primeira Emenda: vista como normas representa a sua escolha caracterís-
norma, qualquer limitação à liberdade de tica (ibidem, pp. 87, 90-91 e 93).
expressão é inconstitucional; vista como O problema positivista é que, asso-
princípio, admite que outro princípio mais ciando o direito às normas ou a um sistema
importante a excepcione; b) 1ª Seção da normativo, não aceita um princípio como
Sherman Act: todo contrato que restringe o categoria à parte. Contraditoriamente re-
comércio é nulo. Tratada pela jurisprudên- cusa que seja um “direito superior” ao or-
cia como norma, mas, desde que a exceção dinário, admitindo que seja um standard
seja razoável, é tratada como princípio. Se extra-jurídico de livre escolha do juiz. Por
se tratasse de uma diretriz, admitiria limi- isso, entende DWORKIN que “a discri-
tação sem pesquisa e sua infração à razoa- ção...não existe, a não ser como a área que
bilidade (ibidem, pp. 77-80). deixa aberta um círculo de restrições que
a rodeia”. Ela só pode existir no contexto
4.2.3 Teoria da Discricionariedade Judi- de uma decisão (que envolve standards de
cial racionalidade, justiça e eficácia) sujeita a
normas estabelecidas para ela por uma au-
DWORKIN afirma que os princípios toridade (ibidem, pp. 83-84, 86 e 92-94).
podem ser tomados em três sentidos dife- Quando o positivismo aceita a discri-
rentes, a saber: a) frágil 1: uma autoridade cionariedade exsurgem de imediato duas
impõe standards de decisão a outra (pre- conseqüências: 1) na ausência de uma nor-
cedente), mas o sujeito passivo/auditório ma clara, o direito das partes é uma ficção;

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


148 Geovany Cardoso Jeveaux

2) então, o juiz cria novos direitos retroa- derechos genuinos de los hombres si no se
tivamente. DWORKIN assevera que isso ve obstaculizado por la intrusión artificial
não passa de retórica, porque, no caso de y racionalista de los tribunales”. A segunda
ausência de norma clara, os direitos das sustenta que os direitos devem passar pelo
partes é que fornecem os standards da de- crivo da aceitação social. A primeira ver-
cisão do juiz, e não a sua escolha arbitrária são afirma, na verdade, a inexistência de
da norma-tampão. Porque é um dever do direitos contra o Estado, sendo certo que:
juiz encontrar os princípios a partir dos di- “...los derechos en contra del Estado
reitos nos hard cases, e não de criá-los na son afirmaciones que, si se las acepta, exi-
ausência de norma clara (ibidem, pp. 146- gen que la sociedad se avenga a institucio-
147). nes que quizá no se adecuen tan cómoda-
mente a ella. Lo esencial de una afirmación
4.2.4 Teoria da Função Judicial e “Argu- de derecho, incluso en un análisis de los
mento da Democracia” derechos tan desmitologizado como el que
estoy haciendo, consiste en que un indivi-
Uma outra teoria positivista/utilita- duo tenga derecho a ser protegido contra
rista diz respeito à função judicial, segun- la mayoria incluso al precio del interés ge-
do a qual a lei subordina a ação do juiz neral”.
mediante a adjudicação de competências O único modo possível de se enten-
expressas. Tal teoria pretende afastar a der o “argumento da democracia”, confor-
discricionariedade judicial, com mais dois me DWORKIN, é concebê-lo como uma
argumentos retóricos: 1) numa democra- proibição aos detentores do poder político
cia, juízes não são eleitos e, não estando quanto a serem juízes exclusivos de suas
sujeitos à responsabilidade legislativa, não próprias decisões (ibidem, pp. 199, 225 e
podem criar a norma; 2) se criam o direito, 228-229).
o fazem então retroativamente, em detri- Os princípios teriam a virtude de
mento de uma das partes que, ao tempo de afastar aquelas duas objeções propostas
sua ação, não estava sujeita a qualquer nor- pela teoria em exame contra a discriciona-
ma (ibidem, pp. 147, 150 e 180). riedade, porque, no primeiro caso, podem
O primeiro argumento é chamado atendem aos interesses em jogo, indepen-
por DWORKIN de “argumento da demo- dentemente do contexto político de criação
cracia” e, embora esteja certo em limitar de uma lei, e, no segundo, porque os prin-
a discricionariedade, haja vista que o juiz cípios são compartilhados tacitamente e,
estaria dando suas próprias convicções em portanto, seria injusto o condenado tomá-
matéria de moralidade política, levado às los como surpresa. De modo que uma teo-
últimas conseqüências também surge como ria do direito tem de incluir os princípios, a
um modo de negar a existência de direitos fim de levar a sério os direitos das pessoas
contra o Estado. Subjazem a tal argumento (ibidem, p. 152).
duas versões, uma mais forte e outra mais
fraca. A primeira sustenta que o desacor- 4.2.5 A Teoria dos Direitos de Dworkin
do entre titulares de direitos concorrentes
seja resolvido pela sorte do processo po- Uma tal teoria considera que “as
lítico, com exclusão do judiciário; numa decisões judiciais impõem direitos políti-
frase: “...sostiene que el proceso político cos existentes”, colocando-se entre duas
orgánico asegurará com más certeza los moralidades: a pessoal e a institucional. A

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 149

norma (instituição) é um elemento do juízo po em que “...la Corte no tiene derecho a


político dos juízes (pessoa), e os direitos imponer a la nación su propria visión de
políticos são uma criação histórica e mo- lo que es el bien social” (ibidem, pp. 157-
ral, e dependem da prática das instituições. 159, 161-162, 184-185, 211-212, 223, 229,
O que se exige é que a decisão possa se 230, 232-233).
justificar razoável e coerentemente, sem
ter de se repetir em todas as ocasiões se- 4.2.6 O papel do Juiz Hércules
melhantes (ibidem, pp. 154-155)17.
Um direito político, conforme Para formular juízos de moralidade
DWORKIN, além de ser algo concreto, política sobre direitos individuais de índole
“...es una finalidad política individu- também moral, adequar com eqüidade os
alizada. Un individuo tiene derecho a cierta precedentes aos casos novos e reconhecer
expectativa, recurso o liberdad si [tal cosa] os princípios como manifestações morais
tiende a favorecer una decisión política [en da comunidade, DWORKIN resolve pa-
virtud de la cual] resultará favorecido o rir o juiz HÉRCULES, um “juiz filósofo”
protegido el estado de cosas que le permita capaz de “...elaborar teorías sobre qué es
disfrutar del derecho, aun cuando con esa lo que exigen la intención de la ley y los
decisión política no se sirva a ningún otro principios jurídicos”, e “...dotado de habi-
objetivo político, e incluso cuando se lo lidad, erudición, paciencia y perspicacia
perjudique...”. sobrehumanas...” (ibidem, p. 177).
Em resumo, “los individuos tienen Esse superjuiz (ou super-homem)
derecho a que se hagan respetar de manera deve, em resumo: 1) limitar a “força gravi-
coherente los principios en que se basan tacional” dos precedentes aos argumentos
sus instituciones” (ibidem, pp. 159, 171 e de princípios neles contidos; 2) supor que a
203). decisão precedente baseada no direito cos-
A teoria dos direitos apóia-se em três tumeiro incorpora princípios, sendo essa a
bases: 1) os direitos individuais são distin- “...enunciación metafórica de la tesis de los
tos dos objetivos sociais: os direitos são derechos”; 3) supor que o sistema é com-
descritos por princípios, enquanto finalida- pleto e “...construir un esquema de prin-
des políticas individualizadas e concretas, cipios abstractos y concretos que ofrezca
e os objetivos são descritos por políticas, una justificación coherente para todos los
enquanto finalidades genéricas e abstratas, precedentes de derecho consuetudinario
de tal modo que “de la definición de un de- e...para las estipulaciones constitucionales
recho se sigue que no todos los objetivos y legislativas”; 4) admitir que a história
sociales puden anularlo”; 2) os precedentes institucional pode se mostrar inadequada
judiciais estão ligados à história institucio- e, portanto, sujeita a mudança (ibidem, pp.
nal e podem ser alterados se injustos: eles 186-190 e 196).
são dotados de uma “força gravitacional” Na sua atividade, HÉRCULES resol-
sobre os casos posteriores, que exige eqüi- ve um hard case a partir de suas convicções
dade18 de tratamento entre casos semelhan- políticas e do direito posto em jogo. Tais
tes; 3) juízes formulam juízos de moralida- convicções pessoais somente são utiliza-
de política sobre os direitos dos litigantes: das se HÉRCULES puder justificá-las con-
os direitos individuais são direitos morais forme as “tradições populares”, ou seja, de
que podem ser opostos à maioria, inclusive acordo com a “...concepción particular de
contra o “interesse geral”, ao mesmo tem- la moralidad comunitaria...”, combinando

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


150 Geovany Cardoso Jeveaux

então as moralidades pessoal e institucio- ampliação o Estado deve escolher a últi-


nal (ibidem, pp. 202-203 e 205-206). ma alternativa, por gerar um custo social
Enfim, “la técnica de Hércules es- menor. Serve de exemplo o caso do pro-
timula al juez a que formule sus proprios cesso criminal, em que se prefere libertar
juicios sobre los derechos institucionales” um suspeito do que condenar um inocente
(ibidem, p. 208). (ibidem, pp. 295-296 e 299).
Os direitos são levados a sério a
4.2.7 Significado dos direitos levados a partir de duas idéias mínimas: dignidade
sério humana e igualdade política. Significa um
dever do Estado de seguir uma teoria co-
Para DWORKIN, direito e moral são erente sobre os direitos dos cidadãos e de
fundidos pela constituição. É o que ocorre, ser congruente com as ações que professa
por exemplo, com o controle de constitu- nesse sentido. Em resumo, levar os direitos
cionalidade de leis que violem o princípio a sério representa: 1) o respeito do Estado
da igualdade. Nesse contexto é que se diz ao direito de resistência dos cidadãos con-
que a constituição define os direitos indi- tra decisões que restrinjam direitos injusta-
viduais como direitos morais protegidos mente; 2) a impossibilidade de os direitos
da maioria, sejam as estipulações constitu- individuais serem anulados por razões de
cionais precisas ou vagas, porque “...hacer “bem geral”; 3) as normas básicas não de-
que la mayoría sea juez en su propia causa vem ser a lei do conquistador, ou da “clas-
parece incongruente e injusto. Es decir que se dominante” sobre a “classe dominada”,
los princípios de equidad no hablan en fa- como em MARX; 4) “la institución de los
vor del argumento de la democracia, sino derechos...representa la promesa que la
en su contra” (ibidem, pp. 211-212, 223 e mayoría hace a las minorías de que la dig-
230). nidad y la igualdad de éstas serán respeta-
Direitos morais são direitos funda- das” (ibidem, pp. 278, 295 e 302-303).
mentais que não podem de regra ser impe-
didos em seu exercício, nem mesmo a pre- 4.3 O império do Direito.
texto de se atender a uma “utilidade geral”,
isto é, de se atender a mais benefícios do 4.3.1 Crítica ao Convencionalismo e ao
que danos. Apenas em dois casos excep- Pragmatismo
cionais tais direitos podem ser limitados:
1) quando direitos constitucionais concor- Introduzindo em sua teoria do direito
rem entre si, isto é, onde há conflito entre a idéia da integridade (moral), DWORKIN
direitos individuais19, hipótese em que o enfrenta as correntes do direito america-
Estado pode limitar um dos dois em favor nas, por ele chamadas de convencionalis-
do mais importante; 2) quando o Estado se mo e de pragmatismo.
encontra em estado de guerra, circunstân- Em resumo, o convencionalismo en-
cia que autoriza a censura da liberdade de tende que as interpretações são convenções
expressão, desde que haja “autêntica emer- renováveis e, portanto, não há respeito pelo
gência” (ibidem, pp. 282-290)20. passado. Apresenta-se em duas formas, a
DWORKIN considera que entre os saber: a) moderado: a.1) o direito é tudo o
direitos individuais e os interesses cole- que estiver nas “extensões” implícitas de
tivos não existe equilíbrio propriamente uma comunidade; a.2) nega a lacuna, por
dito. Entre a restrição de direitos e a sua buscar na ambigüidade das convenções

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 151

incompletas uma resposta, ainda que po- dade de decidir conforme os seus pontos
lêmica; a.3) não promove o ideal das “ex- de vista, mas sem aceitar que um direito
pectativas asseguradas”, ou seja, padrões individual contravenha o interesse da co-
reconhecidos para o uso da força coletiva; munidade; e) exige contemporaneidade da
b) estrito: b.1) apenas a lei e o precedente lei e do precedente; f) em caso de lacuna
são convenções; b.2) pode ser aceito como ou falta de norma clara, uma decisão nova
concepção do direito, mas não o modera- é concebida, sem alusão ao passado (ibi-
do; b.3) não resolve o problema da lacu- dem, pp. 119, 185-187, 189, 194-195).
na ou da falta de norma clara, a não ser
através da discricionariedade, cujo poder 4.3.2 Direito como integridade
de alterar o direito já existente é limitado
pela necessidade de coerência entre o pas- Contraposto a tais correntes, o direito
sado e o futuro; b.4) o intérprete não deduz como integridade considera que: a) a vin-
do objeto concepções próprias; b.5) a for- culação ao direito beneficia a sociedade,
ça coletiva é usada contra um direito in- criando previsibilidade e eqüidade formal
dividual quando a própria decisão política e respeitando o direito e responsabilidades
passada (DWORKIN, 1999: p. 145)21 que como decisões políticas passadas; b) é ne-
o criou o autoriza, a partir da interpretação cessário combinar elementos do passado e
consensual sobre o que foi tal decisão; b.6) do futuro: “...começa no presente e só se
explica de que maneira o conteúdo de de- volta para o passado na medida em que seu
cisões políticas do passado pode tornar-se enfoque contemporâneo assim o determi-
explícito e incontestável. b.7) admite toda- na”; c) o presente, ou seja, é “presentista”
via a mudança da convenção; b.8) rejeita de parâmetros passados em seu status e
princípios morais presentes, ao afirmar que conteúdo; d) é construtivo no sentido do
o objetivo e o princípio estão nas conven- “presentismo” (“romance em cadeia”):
ções passadas; b.9) uma emenda à Cons- d.1) é contrário à “restrição temporal”,
tituição, no sistema dos EUA, pode alte- conforme a qual “o significado de uma lei
rar uma convenção firmada pela Suprema está fixado no ato inicial de criação”, por-
Corte; b.10) na falta de uma convenção o que HÉRCULES interpreta a história em
juiz pode criar/reconhecer direitos através movimento; d.2) a lei é uma “...decorrên-
de uma convenção nova, de acordo com cia do compromisso atual da comunidade
aquilo que o legislador faria ou em nome com o esquema precedente de moral polí-
do povo, com o mínimo de suas próprias tica”; e) os juízes são simultaneamente au-
convicções políticas e morais; b.11) um tores e críticos; f) na seqüência dos direitos
exemplo de convencionalista dessa jaez é associados a precedentes, o juiz deve dar
RAWLS (ibidem, pp. 118-119, 141, 145- continuidade ao “romance”, através de sua
147, 152-155, 157, 162, 170-171, 177, 254 opinião acerca da moral política23, e não
e 256). de sua opinião “estética” (para si, exclu-
Já o pragmatismo compreende, em siva) ou da opinião do legislador; g) esse
resumo, que: a) discricionariedade22 judi- é o papel de HÉRCULES24; h) o direito é
cial também não respeita o passado e pro- um conjunto coerente de princípios sobre
põe soluções para o futuro da comunidade; a justiça, a eqüidade e o devido processo
b) não há direito até que a decisão assim o legal formal= “comunidade de princípios”;
diga; c) decisões políticas do passado não “O direito é uma questão de direitos de-
justificam a jurisdição; d) juízes têm liber- fensáveis no tribunal”; i) envolve uma in-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


152 Geovany Cardoso Jeveaux

terpretação histórica substancial dos casos mulher de decidir sobre o aborto (“auto-
passados (ibidem, pp. 119-120, 164, 186, nomia procriativa”), DWORKIN desen-
274-276, 286-287, 291-294, 316, 380, 400, volve melhor a idéia de direitos implícitos
405, 413, 415-417, 419, 452, 473, 478, (DWORKIN, 1992).
482-483 ; 286, 293, 400 e 405). Para ele, o Bill é uma rede de princí-
pios concretos e mais ou menos abstratos
4.3.3 Direitos individuais como uma que tem por base os princípios da igual-
“questão de princípio” dade e da liberdade, e que não exclui os
direitos não enumerados, já que, do con-
Nos casos difíceis o juiz se põe entre trário, os juízes somente poderiam aplicar
o direito e a moral política, assim como em aqueles ali previstos, coisa que não ocorre.
casos novos, que são então decididos como Os direitos não enumerados são concreti-
uma “questão de princípio”. Os direitos in- zados por princípios políticos, deduzidos
dividuais são exemplo de uma “questão do texto.
de princípio”, quando se afirmam contra o No caso brasileiro, essa conclusão é
Estado e a nação. Eles são levados a sério confirmada expressamente pelo texto da
pela Constituição, tanto para aqueles direi- Constituição de 1988, no § 2º de seu art. 5º,
tos explícitos como, principalmente, para que assevera que “os direitos e garantias
os implícitos (ibidem, pp. 440-441, 450 e expressos nesta Constituição não excluem
455). A integridade se propõe a “descobrir outros decorrentes do regime e dos princí-
normas [e direitos - ibidem, p. 450] im- pios por ela adotados...”
plícitas” a partir das explícitas (ibidem, p. 5. O Direito humano como mediador en-
261). tre o individual e o coletivo.
Os direitos individuais “...são trunfos
capazes de influenciar...decisões políticas, O positivismo jurídico, em todas as
direitos que o governo é obrigado a res- suas variações, confere privilégio exagera-
peitar caso por caso, decisão por decisão”. do ao direito criado pelo Estado, colocando
São direitos essenciais que não sucumbem de lado os direitos individuais. O pós-po-
nem a pretexto de se contribuir para o sitivismo de DWORKIN resgata esse di-
bem-estar geral, como, por exemplo, o di- reito, colocando-o a salvo do coletivismo
reito de igualdade no voto, o direito a igual da maioria.
liberdade de expressão ou de consciência e Tais extremos realçam dois pólos
o direito a indenização por dano (ibidem, marcantes da teoria política moderna: o
p. 268). público e o privado. Esse bifrontismo é
A Constituição americana não outor- típico do período pós-revolucionário li-
ga a interpretação dos direitos constitucio- beral do final do séc. XVIII, porque, até
nais a qualquer instituição majoritária e, então, todo espaço político era ocupado
como resultado, tornou-se mais justa do pelo absolutismo e por sua estrutura de
que seria em caso contrário (ibidem, pp. privilégios. Na medida em que o poder
426-427). se despersonaliza, saindo da pessoa física
do Rei para a pessoa fictícia da “nação”25,
4.4 Direitos implícitos surgem com maior nitidez dois espaços de
interesses: o público, concentrado na “na-
Discutindo a célebre decisão da Su- ção” e figurado pela representação política
prema Corte que reconheceu o direito da e pelo conseqüente princípio da maioria;

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 153

o privado, expresso pela área econômica é a alternância exagerada entre os pólos.


em que o estado civil não devia de regra Assim, se o plano privado/individual foi
interferir, por não ser agente da economia exacerbado no liberalismo, o plano públi-
ou da riqueza, mas mero administrador da co/coletivo foi levado ao outro extremo
coisa pública. no estado social. Estando o estado social
No liberalismo clássico, essas esferas em crise de governabilidade, por desequi-
correspondiam a um amálgama contraditó- líbrio entre as demandas sociais (imput) e
rio de idéias, por conjugar duas noções an- a capacidade do governo em responder a
tagônicas a respeito do indivíduo e de seus elas (output) (BOBBIO, 1990: pp. 36, 60 e
direitos: a da “vontade geral” rousseaunia- 126), pergunta-se agora acerca da sobrevi-
na, que pressupunha a renúncia a todos os da daqueles binômios.
direitos, inclusive à vida, para o ingresso BOAVENTURA DE SOUZA SAN-
no estado de sociedade; e a da proteção TOS, manifestando-se sobre essas dicoto-
da propriedade, de LOCKE, que a elege mias da modernidade, diz que elas apresen-
como produto do trabalho humano e, por- tam duas características que as conduziram
tanto, como algo que está no homem in- para o declínio: a polarização entre um ou
dividual (in re ipsa), precedente ao estado outro extremo, de fases em fases históricas,
civil. Essa contradição não é nova, e levou e a falta de mediação entre esses extremos.
BENJAMIN CONSTANT a denunciá-la, Isso porque “...o déficit da capacidade de
ao dizer que a liberdade individual, isto é, mediação exacerba a polarização das dico-
a exploração dos interesses privados sem tomias e, inversamente, esta última agrava
a intervenção estatal, ocupava demasiada- o primeiro”. Como resultado, os pólos pas-
mente o homem, privando-o da participa- sam a se aproximar, “...a tal ponto que cada
ção política, o que teria como conseqüên- um dos pólos tende a transformar-se no du-
cias a renúncia a esse direito político e uma plo do pólo a que se opõe. Nesta medida,
nova cisão entre os titulares de direitos e os as dicotomias que subjazem ao projeto da
titulares do poder: “o perigo da liberdade modernidade tendem a colapsar e os movi-
antiga estava em que, atentos unicamente mentos de oscilação entre os seus pólos são
à necessidade de garantir a participação mais aparentes que reais”. Como exemplo,
no poder social, os homens não se preo- BOAVENTURA menciona as contradi-
cupassem com os direitos e garantias in- ções do binômio Estado e Sociedade, que
dividuais...O perigo da liberdade moderna demonstram essa aproximação, a saber: a)
está em que, absorvidos pelo gozo da in- o Estado é visto como inimigo da liberdade
dependência privada e na busca de interes- e, ao mesmo tempo, como agente de seu
ses particulares, renunciemos demasiado exercício; b) a separação entre economia
facilmente a nosso direito de participar do e política (princípio do laissez-faire) não
poder político” (1985: p. 23). é rígida, porque: b.1) o Estado deve zelar
Também o neoliberalismo, mais re- pelo desenvolvimento econômico e pela
centemente, acusou a mesma contradição, expansão do mercado; b.2) dependendo da
embora ele mesmo seja avesso a direitos ótica, o interesse envolvido pode não ser
imutáveis que emperrem uma ordem eco- estritamente privado ou público, como no
nômica verdadeiramente livre (catalaxia) caso das leis das SA´s inglesas do período
(HAYEK, 1980, p. 47-51). de 1825 a 1865, “...consideradas por uns
O grande problema desse bifrontis- como um bom exemplo do ‘laissez-faire’,
mo, além da contradição que ele carrega, por eliminar as restrições à mobilidade do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


154 Geovany Cardoso Jeveaux

capital, e por outros, como uma nítida vio- ricano; 2) globalismo localizado, no qual
lação desse mesmo ‘laissez-faire’, por con- determinadas práticas internacionais afe-
ceder às sociedades comerciais privilégios tam, condicionam ou modificam as condi-
que eram negados aos empresários indivi- ções locais, como as zonas francas, o uso
duais”; c) mesmo no período da economia dos recursos naturais para o pagamento da
liberal, “...o Estado teve que intervir para dívida externa e o uso turístico de tesou-
não intervir”, porque as práticas políticas ros históricos; 3) cosmopolitismo, no qual
afetam necessariamente a capacidade do outras entidades que não o Estado se co-
Estado de manter o seu desenvolvimento municam em torno de interesses comuns,
econômico (1991: ps. 268-282; ps. 269, como as ONG´s e as relações sindicais
271 e 272). internacionais; 4) “patrimônio comum da
Um mediador possível para a tensão humanidade”, no qual se reporta a temas
gerada por tais binômios, em especial do de interesse mundial, como a vida huma-
Estado/Sociedade, são os direitos huma- na saudável na Terra, o meio ambiente ou
nos, diante da capacidade de diálogo que a exploração do espaço. Neles, os direitos
eles favorecem. Isso exige, entretanto, que humanos são geralmente exemplo de um
não se pretenda dar a eles qualquer feição “localismo globalizado”, de imposição
universal que, em verdade, esconde a im- universal de cima para baixo, o que não
posição de uma cultura sobre outra. Se os respeita o pluralismo cultural e perpetua a
direitos humanos estiveram sob violação discórdia em torno do assunto (2001: pp.
no liberalismo e foram supostamente ga- 74-90).
rantidos no estado social, o maior risco que Conceitualmente, os direitos huma-
paira sobre eles, hoje, é a chamada globa- nos são o lado abstrato dos direitos chama-
lização, porque ela, em verdade, não pas- dos fundamentais ou, nas palavras de RO-
sa da “...história dos vencedores contada BERT ALEXY, “direitos fundamentais são
pelos próprios”, sendo que “...o discurso essencialmente direitos humanos transfor-
científico hegemônico tende a privilegiar a mados em direito positivo”. Consideran-
história do mundo na versão dos vencedo- do-se, então, esses direitos fundamentais
res”, de acordo com BOAVENTURA. Os positivos como expressão da proteção do
direitos humanos mantêm uma dimensão homem pelo direito positivo, segue-se que
nacional e cultural, porque as sociedades eles são assegurados no ambiente cultural
são multiculturais e, ao mesmo tempo, de cada Estado onde são concebidos, num
incompletas em suas culturas, de manei- movimento de via contrária àquela que até
ra que o único diálogo universal possível mesmo ALEXY segue: o da validade uni-
sobre os direitos humanos se faz através versal dos direitos humanos (1998: pp. 1 e
do reconhecimento de sua nacionalização 6). Essa validade deve ser entendida como
e da incompletude das culturas nacionais, exigência de um padrão universal de diá-
respeitando-se assim o pluralismo e o não logo, tal como proposto por BOAVENTU-
extremismo de pólos. RA, através da ampliação da reciprocidade
Para demonstrar tal alegação, BOA- cultural entre os Estados e da tolerância da
VENTURA indica quatro modos de globa- diferença entre as culturas (op. cit., p. 89),
lização: 1) localismo globalizado, no qual e não como um padrão a ser imposto aos
um fenômeno local é globalizado com Estados.
sucesso, como as multinacionais, o predo- Assim entendidos os direitos funda-
mínio da língua inglesa e o fast food ame- mentais, enquanto direitos humanos posi-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 155

tivados, eles continuam mediando os pólos transforma o direito em instrumento de do-


público e privado, em três relações possí- mínio estatal contra os indivíduos;
veis, indicadas por ALEXY: 1) de meio e 2) disso decorre que os direitos mate-
fim: 1.1) direitos individuais como meio riais nascem apenas de normas individuais
de um bem coletivo, como a propriedade e, portanto, do ato de uma autoridade;
como meio de obtenção de produtividade 3) isso explica que o direito subjeti-
e desenvolvimento econômico; 1.2) bem vo, em tal teoria, existe apenas como direi-
coletivo como meio de um direito indivi- to de ação, ou seja, de provocação da tutela
dual, como o direito penal encarado como jurisdicional do Estado, cuja decisão cria
a proteção do honesto/lícito contra o deso- ela mesma um direito material novo, no
nesto/ilícito; 2) de identidade: “un bien es sentido de que ele não existia antes, sendo
exclusivamente un medio para derechos”, pois retroativa;
hipótese em que o bem coletivo perde o 4) o positivismo de HART atenua o
sentido; 3) de independência: tratam de aspecto da dominação das regras estatais,
objetos distintos e, portanto, são compatí- ao prever uma cooperação de funcionários
veis com os anteriores (2001: p. 110). e cidadãos para a sua validade, mas man-
Trata-se do duplo dos pólos, naquela tém o predomínio do direito do Estado
aproximação dos extremos anunciada por sobre o direito individual, ao reconhecer
BOAVENTURA, já percebida no direito a discricionariedade judicial como instru-
constitucional por J.J. GOMES CANOTI- mento de criação do direito das partes e,
LHO, quando diz que, “se o direito priva- portanto, como algo que não pré-existia;
do deve recolher os princípios básicos dos 5) de qualquer modo, KELSEN e
direitos e garantias fundamentais, também HART são concordes em fazer ressalvas
os direitos fundamentais devem reconhecer a certos direitos de índole constitucional,
um espaço de auto-regulação civil, evitan- a saber: o primeiro, às “liberdades consti-
do transformar-se em ‘direito de não-liber- tucionalmente garantidas”, que limitam a
dade’ do direito privado” (CANOTILHO,
competência do órgão legislativo; o segun-
2001: p. 113).
do, às cláusulas de reserva ou limites ao
Qualquer solução entre o positivis-
poder de revisão constitucional dirigidos
mo e o pós-positivismo aqui analisados,
à legislatura ordinária nas democracias
portanto, será insuficiente, se se conside-
constitucionais (regra de reconhecimento
rar as posições extremas a que chegam e,
última);
portanto, apenas uma teoria dos direitos
6) DWORKIN, ao contrário, resgata
humanos nacionais, positivados em direi-
os direitos individuais da teoria positivista
tos fundamentais típicos da cultura de cada
e os põe a salvo da ditadura da maioria do
Estado, poderá dar resposta à relação dos
indivíduos, titulares de direitos privados, utilitarismo, levando-os a sério, ou seja,
e o Estado, enquanto titular do interesse defendendo que eles estejam presentes em
coletivo. princípios morais políticos que limitam o
poder do Estado;
6. Conclusões 7) nesse sentido, os direitos individu-
ais são vistos como trunfos contra a maio-
Em conclusão, pontua-se que: ria, no sentido de serem um compromisso
1) o positivismo kelseniano exclui da moral dela com os indivíduos contra con-
norma qualquer conteúdo que não seja o tingências futuras obviamente não prevista
condicionamento da conduta e, com isso, ao tempo de sua aquisição;

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


156 Geovany Cardoso Jeveaux

8) isso significa que os direitos são a atual Constituição de 1988, ao conceber


pré-existentes a qualquer decisão estatal a “prevalência dos direitos humanos” nas
sobre eles, de modo que a sua origem não relações internacionais do Brasil com os
está na decisão judicial, mas em decisão demais Estados (art. 4º, II);
política passada que os instituiu; 15) assim sendo, para o ambiente
9) o que explica que os juízes não po- cultural brasileiro, os direitos humanos
dem ter poderes discricionários, sob pena são: 1) a pressuposição de sua obrigatorie-
de violação de direitos que eles não devem dade em KELSEN, ou seja, a nossa norma
alterar, precisamente porque pré-existen- pressuposta; ou 2) a nossa regra última de
tes; reconhecimento de HART; ou 3) o nosso
10) apesar disso, DWORKIN con- compromisso moral da maioria com os
corda que os direitos individuais não são indivíduos em DWORKIN; e 4) o padrão
ilimitados, em dois pontos: 1) quando di- cultural de respeito aos direitos contra as
reitos constitucionais concorrem entre si, decisões políticas do Estado, como algo
isto é, onde há conflito entre direitos in- que é lhe prevalente.
dividuais, hipótese em que o Estado pode
limitar um dos dois em favor do mais im-
portante; 2) quando o Estado se encontra REFERÊNCIAS
em estado de guerra, circunstância que au- ALEXY, Robert. Colisão e Ponderação Como
toriza a censura da liberdade de expressão, Problema Fundamental da Dogmática dos Di-
desde que haja “autêntica emergência”; reitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Casa de
11) nas duas teorias, positivista e pós- Rui Barbosa, 1998;
positivista, os extremos coletivo/público e ______. Teoria de los Derechos Fundamen-
individual/privado são limitados, mas sem tales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2001;
qualquer mediação que os aproxime;
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural.
12) propõe-se que os direitos huma- Brasília: UnB, 1997;
nos, positivados em direitos fundamentais, ______. Estado, Governo, Sociedade. Para Uma
sejam os mediadores de um diálogo entre Teoria Geral da Política, Paz e Terra, 1990;
extremos que a cada dia se aproximam e CANOTILHO, J.J. Gomes. Civilização do Di-
se transformam no duplo pólo do outro, reito Constitucional ou Constitucionalização do
no sentido de que nem o coletivo e nem o Direito Civil? A Eficácia dos Direitos Funda-
individual merece prevalência, dado o alto mentais na Ordem Jurídico-Civil no Contex-
to do Direito Pós-Moderno. In: GRAU, Eros
grau de interdependência entre ambos;
Roberto e GUERRA FILHO, Willis Santiago
13) tais direitos fundamentais são, em (Org.). Direito Constitucional. Estudos em Ho-
essência, direitos individuais concebidos menagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Ma-
em um contexto histórico e em uma am- lheiros, 2001;
biência moral determinados e cambiantes, CHÂTELET, François, DUHAMEL, Olivier e
que somente podem ser alterados ou supri- PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das
midos em caso de alteração ou supressão Idéias Políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990;
dos elementos culturais de sua origem;
CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos An-
14) dentro deles, os direitos ínsitos tigos Comparada à dos Modernos. Revista Fi-
ao ser humano, em si considerado, que ne- losofia Política, n. 2, LCPM/UNICAMP/UFR-
nhum direito positivo criou ou meramente GS, 1985;
reconheceu, devem ser afirmados como DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio.
reserva de qualquer alteração, como prevê Barcelona: Ariel Derecho, 1999;

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 157

______. O Império do Direito. São Paulo: Mar- 3


KELSEN dá alguns exemplos do que seja a
tins Fontes, 1999; pressuposição: 1) p. 209: “Um pai ordena ao fi-
______. Law´s Empire. Londres: Hart Pu- lho que vá à escola. À pergunta do filho: por que
blishing, 1998; devo ir à escola, a resposta pode ser: porque o
______. Freedom´s Law. The Moral Reading pai assim ordenou e o filho deve obedecer às or-
of the American Constitution. Cambridge and dens do pai. Se o filho continua a perguntar: por
Massachusetts: Harvad University Press, 1996; que devo obedecer às ordens do pai, a resposta
______. Unenumerated Rights: Whether and pode ser: porque Deus ordenou a obediência
How Roe Should Be Overruled. In: STONE, aos pais e nós devemos obedecer às ordens de
Geoffrey R., EPSTEIN, Richard A. e SUNS- Deus. Se o filho pergunta por que devemos obe-
TEIN, Cass R. (Org.). The Bill of Rights in the decer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe
Modern State. Chicago: University of Chicago em questão a validade desta norma, a resposta
Press, 1992; é que não podemos sequer pôr em questão tal
HARRIS, J.W. Legal Philosophies. Londres: norma, quer dizer, que não podemos procurar o
Butterworths, 1997; fundamento de sua validade, que apenas pode-
HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito. mos pressupor”; 2) p. 209: “numa comunidade
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986; social, numa tribo, vale a norma segundo a qual
HAYEK, FRIEDRICH A. VON. Os Princípios um homem que toma uma mulher por esposa
de Uma Ordem Social Liberal. Ideologias Polí- tem de pagar ao pai ou ao tio da noiva um de-
ticas. Brasília: UNB, 1980; terminado dote. Se ele pergunta por que é que
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São ele deve fazer isto, a resposta é: porque nesta
Paulo: Martins Fontes, 1991; comunidade desde sempre se tem pago o preço
______. Teoria Geral do Direito e do Estado. da noiva, quer dizer, porque existe o costume de
São Paulo: Martins Fontes, 1990; pagar o preço da noiva e porque se pressupõe
______. Teoria Geral das Normas. Porto Ale- como evidente que o indivíduo se deve condu-
gre: SAFE, 1986; zir como se costumam conduzir todos os ou-
SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado e tros membros da comunidade”; 3) p. 215, como
o Direito na Transição Pós-Moderna: Para um exemplo de um silogismo: “devemos obedecer
Novo Senso Comum. Revista Humanidades, v. às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeça-
7, n. 3, 1991; mos às ordens de nossos pais. Logo, devemos
______. As Tensões da Modernidade. Revista obedecer às ordens de nossos pais”. Porque a
Cidadania e Justiça-AMB, ano 5, n. 10, 1º se- norma fundamental é o “último fundamento de
mestre/2001. validade da ordem jurídica” (p. 50), e porque “o
fundamento de validade de uma norma apenas
pode ser a validade de outra norma” (ps. 205,
NOTAS 215-219), ela não passa de um recurso lógico
e, portanto, a sua própria validade não pode ser
1
No Prefácio da segunda edição, KELSEN pas- posta em questão num esquema silogístico (p.
sa a tratar o direito não mais como uma teoria 215). Isso evita a recondução da validade de
pura, mas como uma teoria geral do direito, uma ordem normativa “...a uma norma superior
mediante o desenvolvimento de “princípios” de ordem metajurídica” (p. 219).
(?), admitindo que, com essa mudança, ela não 4
Na obra Teoria Geral das Normas, publica-
abrange todos os fenômenos possíveis de inves- da originalmente em 1979, KELSEN nega a
tigação. Sobre os tais princípios, todavia, não qualificação hipotética da norma fundamental,
se encontra desenvolvimento no livro, a não ser chamando-a agora de uma ficção, “... que se
o “princípio metodológico fundamental”, men- distingue de uma hipótese pelo fato de que é
cionado de forma simples na sua abertura. acompanhada pela consciência ou, então, deve
2
Sobre a perspectiva holística: “...o conheci- ser acompanhada, porque a ela corresponde a
mento do Direito - como todo conhecimento realidade” (1986: pp. 328-329).
- procura apreender o seu objeto como um todo 5
A isso KELSEN chama de princípio da infe-
de sentido...” (p. 221). rência. (1990:, p. 117).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


158 Geovany Cardoso Jeveaux

6
KELSEN diz que a pressuposição alude à obe- 9
Parece ficar à margem dessa consideração os
diência aos preceitos criados pelo “autor” da direitos chamados de potestativos, porque eles
constituição: “O ato criador da Constituição... não dependem de contraprestação alheia e são
tem sentido normativo, não só subjetiva como exercidos pela simples e direta iniciativa de seu
objetivamente, desde que se pressuponha que titular. Nesse caso, não se encontra nenhum
nos devemos conduzir como o autor da Consti- “dever” em sua conduta, porque o titular exerce
tuição preceitua” (ibidem: p. 9). Mais adiante, o direito se e quando quiser, como uma mera
diz que a norma pressuposta “...não prescreve faculdade. Tampouco existe, nesse caso, sujeito
que devemos obedecer às ordens do autor da passivo, mas apenas o ativo. Assim, o direito
Constituição” (ibidem: p. 219). Essa aparen- potestativo parece desmentir a versão da prio-
te contradição pode ser explicada da seguinte ridade do dever sobre o direito, em qualquer
forma: a norma pressuposta não determina o circunstância.
conteúdo de qualquer norma (seu conteúdo é 10
Fica a dúvida sobre se essa limitação é exten-
a dinâmica jurídica), mas a constituição, como siva ao poder de reforma, ou se também o poder
norma posta, pressupõe a obediência aos pre- de reforma não encontra limite naquele “catá-
ceitos de seu ato criador, o poder constituinte. logo”, que é todo ele, por definição, fator de li-
7
A tradução portuguesa, da editora Arménio mite a esse poder “delegado”, de acordo com a
Amado, utilizada pela Martins Fontes no Bra- teoria tradicional (p.ex.,art. 60, § 4º, IV).
sil, coloca as expressões validade e vigência 11
HART diz que o papel do direito é o de se diri-
como sinônimas. Entretando, parece ter havi- gir a um tipo geral de conduta e a uma categoria
do um defeito técnico de tradução. A eficácia geral de pessoas, chamando isso de “diretivas
não é a única condição da validade das normas, gerais primárias” (ibidem, pp. 26 e 137).
porque deve estar acompanhada de sua “fixação 12
“Padrão” significa o modo de apreciação con-
positiva” (ibidem: p. 230). Sendo a validade um
creta das ações humanas: “ter o dever de”, “ter
misto de competência e procedimento para a
de” ou “dever” chama a atenção para o padrão
edição das normas, a “fixação positiva” assu-
de comportamento (ibidem, pp. 40 e 95).
me o significado de um ato que põe a norma 13
Os outros defeitos são excluídos com regras
no ordenamento (no sentido de “posta” ou “po-
de alteração, que corrigem o estatismo das re-
sitiva”). Esse ato conclusivo do procedimento
gras, e com regras de julgamento/adjudicação,
de edição coincide com a publicação. Somente
que corrigem o defeito da ineficácia, atribuindo
com a publicação é que a norma se torna vigen-
ao juiz a autoridade para decidir sobre a viola-
te, no sentido de entrar em vigor, sendo apenas
ção de uma regra primária, através de um pro-
um aspecto, embora conclusivo, da validade,
mas não a mesma coisa que ela. Por isso não cesso determinado (ibidem, pp. 105-106).
cito a expressão “vigência”, como no livro, mas
14
Os critérios formais distintivos são: 1)quan-
apenas “validade”. to à importância: a perda de importância social
8
De acordo com o Autor, a decisão que reco- elimina de imediato a norma moral, mas não a
nhece a invalidade tem natureza constitutiva, e norma jurídica, que depende de revogação; 2)
não declaratória, porque na decisão declaratória quanto à imunidade à alteração: o direito legal
somente se declaram fatos passados, como uma está sujeito a alteração e revogação formais,
mera constatação, o que torna a decisão por si mas não a moral; 3) quanto ao caráter voluntá-
retroativa, enquanto que, em específico para a rio dos delitos morais: a violação moral exige
inconstitucionalidade, as leis tidas por incons- dolo, enquanto que a jurídica se contenta com a
titucionais “...devem valer na medida e pelo culpa e até mesmo a exclui em casos objetivos,
tempo em que não forem anuladas da forma como na responsabilidade objetiva/sem culpa;
constitucionalmente prevista”, o que equivale 4) quanto à forma de pressão moral: a pressão
dizer que a decisão sobre a inconstitucionali- moral se faz como algo importante em si mes-
dade é irretroativa, salvo no caso da norma ter mo, através da lembrança da ação moral com-
sido posta por órgão incompetente ou por in- partilhada, enquanto que a pressão jurídica se
divíduo que sequer seja um órgão (ibidem: pp. faz por ameaça ou por promessa de interesses
290 e 294). (ibidem, pp. 190-196).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA... 159

15
Prefácio (Ensayo Sobre Dworkin) ao livro 418), coincidentes com “alguma coisa com a
Los Derechos en Serio (DWORKIN, 1999: p. qual o conjunto da comunidade está compro-
10). metido” (p. 411). A isso DWORKIN chama de
16
De acordo com DWORKIN, a solução dos “comunidade de princípios” ou de “esquema
casos difíceis é orientada por princípios, e não coerente” (ibidem, p. 396) ou “sistema coeren-
por diretrizes (ibidem, pp. 150 e 166), sendo te de princípios” (ibidem, p. 403). Porque “as
que princípios adotados em casos difíceis dão leis [e também a Constituição - p. 474] preci-
margem à criação de uma nova norma determi- sam ser lidas de algum modo que decorra da
nada (ibidem, p. 80). melhor interpretação do processo legislativo
17
Coerência e congruência, nesse caso, signi- como um todo” (ibidem, pp 404 e 433). Aqui
ficam exigências de justiça (ibidem, pp. 156, reside o aspecto holístico de sua teoria. No
189-190 e 194), enquanto que a justificação livro Freedom´s Law. The Moral Reading of
alude à razões de reconhecimento ou negativa the American Constitution (Harvad University
de um direito que uma decisão devem conter Press, Cambridge and Massachusetts, 1996),
(ibidem, p. 175). DWORKIN chama isso de leitura moral da
18
Essa eqüidade exige a imposição congruente/ constituição, que pede a seus intérpretes que
justa dos direitos (ibidem, pp. 189-190 e 194), encontrem a melhor concepção dos princí-
incide sobre a história institucional (ibidem, p. pios morais constitucionais, e o melhor en-
197) e não se aplica aos objetivos sociais (ibi- tendimento da igualdade moral para homens
dem, p. 187). e mulheres (p. 11). Por leitura moral se deve
19
Sem a presença do Estado, portanto, já que a entender: 1) a proposta “...that we all - jud-
“maioria” não é propriamente titular de direi- ges, lawyers, citizens - interpret and apply
tos. Logo, daí não exsurge logicamente confli- these abstract clauses on the understanding
to entre interesses individuais e coletivos, sob that they invoke moral principles about poli-
pena de eliminação dos primeiros (ibidem, p. tical decency and justice” (p. 2); 2) a leitura
296). O conflito de direitos individuais contra o dos direitos e garantias em sua linguagem abs-
Estado é típico da crise entre ambos ou da falta trata e moral, ou seja, como limites ao poder
de cooperação a um objetivo comum (ibidem, estatal: “according to the moral reading, these
p. 276). clauses must be understood in the way their
20
A última hipótese de limitação foi vivenciada language most naturally suggests: they refer
nos EUA após os ataques terroristas do último to abstract moral principles and incorporate
dia 11.09.2001, quando se cogitou da restrição these by reference, as limits on government´s
temporária de liberdades civis e a própria im- power” (p. 7).
prensa impôs uma autocensura, com receio de 24
HÉRCULES tem sobrenome: chama-se
veicular manifestações que contivessem possí- DWORKIN. É o alterego de DWORKIN, que
veis mensagens codificadas para novas ações fala em seu nome, o defende das críticas e pro-
criminosas. põe as suas soluções mais “adequadas” (fit):
21
Pretensão de respeito à moralidade política “...Hércules nos mostra a estrutura oculta de
do passado, e não da moralidade presente do suas sentenças, deixando-as assim abertas ao
intérprete. estudo e à crítica” (ibidem, pp. 287, 294, 316
22
A discricionariedade ignora a existência de e 473).
direitos já estabelecidos por atos políticos an- 25
O Estado-Nação é uma “...representação polí-
teriores, ou seja, a ausência de norma clara não tica que implica o fato de que as populações que
significa que não existam previamente os direi- constituem uma sociedade no mesmo território
tos em questão (ibiidem, p. 158). reconhecem-se como pertencentes essencial-
23
Convicções amplamente difundidas na co- mente a um poder soberano que emana delas e
munidade (ibidem, pp. 297 e 305), ou “con- que as expressa...” (CHÂTELET, 1990: p. 85).
vicções predominantes na legislatura como Ele surge com a Restauração Inglesa de 1690
um todo” (ibidem, pp. 394 e 409) ou “decla- a afirma-se com as Revoluções Americana de
rações da própria comunidade” (ibidem, p. 1776 e Francesa de 1789.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


160

Teoria Constitucional-Penal aplicada à luz dos


Direitos Humanos.
O Ministério Público na efetivação dos princípios
gerais em prol das garantias fundamentais e
individuais da cidadania, da segurança jurídica e do
regime democrático
Constitutional-Penal theory to hand on the torch of
learning of the Human Rights. The Public Prosecution Service
of rendering effective of the general principles in favour
of fundamental and individual guarantees of citizenship,
juridical security and democratic system

Cândido Furtado Maia Neto*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O presente trabalho versa sobre o direito constitucional à luz da norma penal pátria e das
cláusulas pétreas constantes nos instrumentos internacionais de Direitos Humanos. Análise crítica
de alguns princípios constitucionais fundamentais da cidadania, assegurados na Carta Magna brasi-
leira, para a efetivação do Estado Democrático como instituído pela República Federativa do Brasil,
“ex vi” do art. 1º da “lex fundamentalis”, base para a concretização de uma sociedade justa e solidá-
ria. O Ministério Público é a instituição incumbida de promover e tutelar os direitos indisponíveis
da cidadania, nos termos do art. 127 da Constituição federal; em outras palavras a defesa do regime
democrático e dos Direitos Humanos de aceitação tácita universal, bem como aqueles aderidos
e/ou ratificados pelo governo nacional através do processo legislativo próprio. A importância da
aplicação e interpretação correta da lei para efetivar uma práxis policial-forense verdadeiramente
democrática, nos moldes da ordem jurídica legal constitucional e internacional positiva.
Palavras-chave: Constituição. Direito. Penal. Direitos Humanos. Cidadania. Princípios. Garantis-
mo Jurídico. Segurança Jurídica. Norma. Legislação. Justiça. Ministério Público. Defensoria Pú-
blica. Legalidade. Reserva legal. Isonomia. Presunção de inocência. Contraditório. Ampla defesa.
Onus probandi. Investigação. Ação penal pública. Tribunal de exceção. Juízo natural.

Abstract: This issue is concerned to constitutional Rights under the Criminal Law valid in Brazil and
it is based on the International Right. The theoretical base is found on the clauses referent to Human
Rights. The citizenship according its principles is here seen as the goal for analysis on the Principal
Norm in the Brazilian Right specially in terms of a democratic state like the National Republic of Bra-
zil “ex vi”, under the article Fisrt of “lex fundamentalis”. The present analysis confirms the bases for
a Nation with justice in human global perspective. The rights supposed for a complete disposition of
citizenship in this age is a responsibility of Public Jurists of the Public Ministry in terms of the article
127 of Brazilian Constitution what means, the defense of a democratic state and the Human Rights

* Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais. Especialista em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações
Unidas – MINUGUA 1995-96). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP-Grupo Brasileiro). Secretário de
Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Professor do Curso de Mestrado e Coordenador do Curso de
Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Paranaense – UNIPAR. Membro do Ministério Público do Paraná,
Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu. Autor de várias obras jurídicas, dentre elas: “Código de Direitos Humanos para a Justiça
Criminal Brasileira”. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2003. E-mail: candidomaia@direitoshumanos.pro.br
Viviane Dantas Machado. Acadêmica de direito colaboradora na pesquisa dos títulos e nas notas bibliográficas.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 161

in its Universal Declaration as well as the national fundaments referent those rules are essential in a
society named for democratic. In this study these perspectives are focused in order to confirm the de-
mocracy depends on the application of those norms and the public justice has to be the central power
for a positive intervention in the actual order based on Natural Judgment.
Key Words: Constitution. Right. Criminal. Human Rights. Citizenship. Principles. Legal Guaran-
tee. Legal security. Norm. Legislation. Justice. Public Ministry. Public Defender. Legality. Legal
reserve. Isonomy. Swaggerer of innocence. Contradictory. Legal defense. Onus probandi. Inquiry.
Public criminal action. Court of exception. Natural judgment.

1. Introdução Na democracia as leis são elaboradas


e aprovadas para o povo, são normas do
As cláusulas pétreas e os dispositivos cidadão e não de interesse do estado ou de
constitucionais que possuem estreito vín- governo; assim seria um sistema democrá-
culo com os instrumentos internacionais de tico puro e legítimo, longe das demagogias
Direitos Humanos e com as normas penais e do populismo político.
ordinárias, substantivas, adjetivas e executi- O direito natural é imutável, o positi-
vas vigentes na legislação doméstica, neces- vo não, o primeiro se conhece e reconhece
sitam de correta aplicação e de boa interpre- pela lógica e por seus critérios racionais,
tação à luz da teoria geral do ordenamento isto é, pela ética e pelos deveres morais,
jurídico. Os dispositivos do código penal, tudo aquilo que é bom; já o segundo - direi-
de processo penal e da lei de execução pe- to positivo - muitas vezes é inútil e é posto
nal, são obviamente inferiores às clausulas em vigência contra os interesses maiores
expressas na Carta Magna, como também da sociedade, do povo ou da população,
em relação àquelas estabelecidas nos Pactos serve apenas a grupos minoritários onde a
e Convenções de Direitos Humanos, ante a lei possui aparência de serviço e de valida-
vigência do princípio da soberania, validade de ao bem comum.
e hierarquia vertical das normas. O direito particular indisponível ou os
Este princípio e outros formam a interesse individuais fundamentais possuem
base do sistema penal democrático (acusa- preeminência sobre o geral, a exemplo do
tório), de acordo com o regime de governo que ocorre com o princípio “lex specialis
adotado, assim vigoram as leis penais no derogat generali”; do contrário não pode-
tempo e no espaço. Tanto na investigação ríamos falar em Constituição-Cidadã ou em
criminal – na esfera da atuação da polícia garantias fundamentais da cidadania, se as
judiciária – e como na instrução criminal regras de ordem geral prevalecessem sobre
– no âmbito judicial – se faz necessário o as individuais, não estaríamos diante de um
respeito aos princípios gerais, posto que Estado Democrático de Direito, mas frente
estruturam o devido processo legal. For- a um Estado Ditatorial, Estado de Polícia
mando um todo, por esta razão existem ou frente a um governo despótico. O direi-
princípios de direito que se adaptam ao re- to natural é considerado superior ao direi-
gime democrático e outros ao regime anti- to positivo, em nome da razão humana, da
democrático, assim é preciso conhecê-los, humanidade e dos princípios fundamentais
interpretá-los e aplicá-los corretamente, na que o compõem. Seria um absurdo jurídico
sintonia, em conexão ou adequadamente falarmos que o natural é um direito inferior,
para o asseguramento dos direitos funda- é sim superior ante o princípio da hierarquia
mentais da cidadania. e validade das normas e de acordo com a

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


162 Cândido Furtado Maia Neto

fonte principal, propriamente dita, o “direi- co, este obtêm valor ou força quando res-
to consuetudinário”. peitadas determinadas regras previamente
O direito de acesso à justiça ou de estabelecidas no texto constitucional, onde
prestação jurisdicional consagrado na somente se admite a quebra das garantias
Constituição e nos documentos de Direitos individuais com a declaração e instalação
Humanos, tem por objetivo resguardar os do Estado de Sítio ou de Defesa (arts. 136
valores primordiais do homem como indi- usque CF), pois as garantias fundamentais
víduo pertencente à coletividade, os valo- não são revogáveis sequer por emenda à
res, bens jurídicos e princípios da supre- Constituição, são imutáveis e auto-aplicá-
macia e da indisponibilidade dos interesses veis. Estado Social tem como concepção o
privados no contexto de um todo, isto é, o coletivo e suas necessidades básicas, já o
bem comum, mas este bem como somente Estado Democrático de Direito, o indivi-
se realiza com a efetividade e observância dual, onde as garantias da cidadania é seu
do Estado Democrático de Direito que pri- fundamento.
vilegia o interesse individual. No contexto do Estado Democrático
Não há como transacionar, transigir e da prevalência do interesse individual
ou desistir de nenhuma espécie de interes- surge o conceito de cidadania, este desde a
se individual, alegando necessidade ou em Grécia antiga tem sofrido mutações ao lon-
nome do direito público; porque quando se go dos tempos ante as necessidades histó-
trata de Direitos Humanos jamais se pode ricas da humanidade, visto que no Estado
ter a idéia de mitigação, uma vez que as Moderno os direitos civis e políticos foram
regras internacionais expressamente de- e estão sendo conquistados em nome dos
terminam a prevalência das cláusulas que cidadãos, de seus direitos fundamentais
orientam os direitos fundamentais indivi- indisponíveis, inalienáveis, irrevogáveis,
duais. indeclináveis, etc.
Quando o interesse público prevale- Somente com o enriquecimento do
ce ao direito individual estamos falando de “status cidadania” é que aumentam as li-
Estado Autoritário e não de Estado Demo- berdades individuais e se reduz o arbítrio
crático, este se fundamenta especialmente e as ações do Estado Despótico, onde o
nas garantias da cidadania, de outro lado, cidadão assume a condição de titular, no
os regimes despóticos, arbitrários, abu- exercício e jogo de poder estatal. Trata-se
sivos, intervencionistas, desprestigiam o de uma relação de equilíbrio e do devido
homem como ser único, independente e respeito aos princípios que norteiam o Es-
autônomo. Policiar, reprimir e impedir o tado Democrático de Direito. No sistema
desenvolvimento sagrado do direito à pri- político próprio o cidadão é a célula do
vacidade e à individualidade é a quebra do elemento político do Estado, povo, aquele
sistema republicano e democrático. – Estado – subordinado a este – cidadão
No Estado do Bem Estar Social te- – e não ao contrário.
mos o interesse público, como no regime O objetivo real do Estado Democrá-
socialista e comunista, primeiro as razões tico de Direito é ter o individuo vinculado
do Estado em nome de todos, do comum, a um sistema pré-estabelecido e legitimado
em prejuízo do individual; porém no Esta- por ele – pela cidadania -, ou seja, é a insti-
do Democrático de Direito prevalecem as tucionalização do poder estatal, com a se-
garantias individuais, quando estas se en- paração entre o público e o privado, como
contram em choque com o interesse públi- pré-requisito da visão democrática para a

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 163

construção dos direitos personalíssimos. do Brasil chamado de Estado Democrático


E qualquer desvio configura desrespeito a de Direito.
ordem institucional constituída e uma fla- Cidadão é aquele individuo que exer-
grante relação de interesses inadequados, ce na plenitude seus direitos fundamentais
pode ser chamado de um “caso de polí- individuais garantidos e assegurados pelo
cia”, um “estado de polícia”, um “estado ordenamento jurídico vigente, e fica longe
autoritário”, nunca de um “estado demo- dos abusos de poder e das arbitrariedades
crático de direito”. estatais.
Quando falamos em democracia e A manutenção da justiça ou de sua
cidadania, nos referimos a direitos indi- efetivação passa e depende da preservação
viduais indisponíveis e não em interesses dos direitos individuais que são pressu-
difusos ou coletivos, estes existem e se fa- postos do sistema democrático. Cidadania
zem presentes, porém em menor grau de depende de soberania e autonomia como
valoração. Os direitos da cidadania, do ci- elementos da universalidade e respeito aos
dadão frente ao outro e também frente ao Direitos Humanos, tudo em nome da jus-
Estado. tiça.
Cidadão é um ser com faculdade de Numa situação de crise, quando as
agir e de estar em determinado território garantias fundamentais individuais são
exercendo seus direitos personalíssimos suprimidas em nome da ordem pública
segundo as regras estabelecidas. Cidadania social, no combate a “todo custo” a delin-
implica em observância pela sociedade e qüência, são as próprias metas de política
por parte do Estado-administração pública, criminal que se encontram comprometidas.
às garantias fundamentais, dentre elas, os Foi exatamente no início da década de 90,
direitos civis individuais, privacidade, in- o reiniciou e o resgate da cidadania, ago-
timidade, liberdade, etc. ra vemos o desgaste e comprometimento
A cidadania é construída na base com o retrocesso e a destruição dos valores
constitucional, razão pela qual a norma historicamente conquistados, com o atro-
infraconstitucional não esta autorizada a pelo e menosprezo aos princípios gerais
destruir a ordem maior vigente. Cidadania que sustentam o direito e a justiça penal
moderna significa a concessão do “status” democrática, fazendo emergir por necessi-
de cidadão aos membros de uma coletivi- dade as teorias do minimalismo e do re-
dade, efetivando o modelo político-ideoló- ducionismo penal, garantismo e segurança
gico-jurídico que define o tipo de Estado jurídica necessária, para vermos instalar
e seu regime de governo, os limites e as o direito penal expansionista, globalizado
“regras do jogo”, do contrário temos ape- ou mundializado, via transnacionalização
nas “pseudo-democracia”, “cidadania de e policidadania, imprópria, criada pela
segunda classe” ou “democracia em peda- União Européia.
ços” nos dizeres de Dimenstein1. A construção de um mundo demo-
Democracia é muito mais do que um crático – justiça penal democrática – tem
modo de governo, são regras supremas que como base o combate da criminalidade e
limitam o exercício do Estado, controla ao mesmo tempo o respeito às regras do
ações de seus servidores e das autorida- devido processo legal, seja a onde for. A
des constituídas, para fomentar a liberdade imposição sem limites de “armas e da for-
individual como objetivo maior, este é o ça pública”, conduz ao aumento da violên-
sistema adotado pela República Federativa cia, por conseqüência da criminalidade. É

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


164 Cândido Furtado Maia Neto

dever do Estado, do Poder Judiciário e do Portalis (jurista integrante da comissão do


Ministério Público garantir os direitos da Projeto), ante o Conselho de Estado, na
cidadania e não violá-los sob o manto da presidência o próprio Napoleão Bonaparte
repressão necessária e dos interesses so- justificava o teor do artigo 4º (mantido no
ciais coletivos. texto legislativo original e aprovado), ante
Note-se que os direitos civis, no âm- a possibilidade da livre criação do direito
bito dos Direitos Humanos, são conside- por parte do juiz, que não se trata de sim-
randos de primeira geração, como essen- plificar ou de até reduzir as leis a poucos
ciais à existência da pessoa humana, são princípios gerais, visto que a redução se
direitos intransponíveis de cada indivíduo; verifica somente nos Estados despóticos,
já a proteção do Estado e os direitos difu- afirmando: “existem mais juízes e carras-
sos estão classificados como de segunda e cos do que leis”.
de terceira gerações, respectivamente. Os Cabe aos juízes penetrado pelo espí-
direitos do cidadão devem ser reconheci- rito geral das leis, da cidadania, do regime
dos em primeiro plano sem discriminação democrático, decidir, formando um verda-
alguma, isto é, para o estabelecimento e deiro santuário de sentenças e de doutrina
efetivação das garantias judiciais; do con- suplementar. Em todas as nações civiliza-
trário existe perseguição e negação de jus- das, obviamente que seria desejável que
tiça. as matérias fossem reguladas somente por
Não se pode suprimir, restringir o leis, porém é impossível posto que a previ-
exercício de direitos e liberdades nos regi- dência legislativa é infinita, assim remonta-
mes democráticos verdadeiros e Estados de se e aplica-se o caso concreto através dos
Direitos Humanos, onde as leis de interesse princípios gerais do direito, perfeitamente
geral passam primeiro pelo plano do indi- legal, legítimo e correto, quando tudo é in-
vidual, sendo o indivíduo-cidadão a célula terpretado à luz dos Direitos Humanos.
principal (art. 29 e 30 da Convenção Ame- “Quando a lei é clara, é necessário
ricana sobre Direitos Humanos – Pacto de segui-la; quando é obscura, é necessário
San José da Costa Rica – OEA/1969). aprofundar suas disposições. E tudo que
Cidadania plena é requisito indispen- não é proibido pela lei é permitido. O juiz
sável à democracia, somente com cidadãos não pode perder a capacidade criativa,
fortes, para a consolidação do Estado De- interpretando passiva e mecanicamente os
mocrático real aquele que preserva a digni- Códigos, o princípio da autoridade ante o
dade do homem como sujeito e não como raciocínio jurídico permite aplicar as leis
objeto; assim expressam as Convenções e administrar justiça inspirado nas garan-
internacionais. tias constitucionais do direito democráti-
Há que ser valorizado uma categoria co-liberal”.
de direitos constitucionais fundamentais No direito há um momento ativo ou
individuais e indisponíveis, para legiti- criativo (criação da legislação) e um mo-
mar a existência humana e o princípio de mento chamado de teórico ou cognoscitivo
hierarquização, validade e soberania das (aplicação e interpretação da lei ou criação
normas. jurisprudencial). O juiz, portanto, cria tam-
Na apresentação do Projeto do Códi- bém o direito, faz ajustes entre a letra da
go de Napoleão (Code Civil des Français, lei e seu espírito (mens legis), em outras
1807, com nome de Code Napoléon), no palavras a vontade expressa e a vontade
discurso proferido por Jean Etienne Marie presumida do legislador, para a devida e

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 165

auto-integração do direito, mediante recur- estadual e municipal, bem como proceder


sos de analogia (denominada interpretação à sua revisão ou cancelamento, na forma
extratextual) e princípios gerais. estabelecida em lei”.
Como leciona Norberto Bobbio, é São as hediondas e chamadas súmu-
preciso fazer ciência jurídica ou teoria las vinculantes que irão nortear a jurispru-
do direito, e não ideologia do direito; há dência pátria, castrar e tolher o pensamen-
que se dar importância ao direito científi- to dos magistrados. Trata-se de imposição
co – das academias e dos cursos de nível constitucional inadmissível.
superior – e não ao direito judiciário, onde As ciências criminológicas tem pro-
muitas vezes atende a interesses de grupos porcionado aos profissionais do direito,
políticos. Não podemos perder de vista a boas técnicas para argumentações legais,
noção pela qual o direito penal é disciplina modernas e avançadas, objetivando a devi-
de controle social, por esta razão as leis e da aplicabilidade dos dispositivos consti-
sua aplicação tendem a serem conduzidas tucionais e infraconstitucionais, na realiza-
pelo grupo que detêm o poder econômi- ção da Justiça via o exercício da prestação
co-social-político. A jurisprudência pura, jurisdicional em benefício da cidadania.
científica e verdadeiramente parcial, serve Há que se apresentar teses jurídicas
a interesses, não à finalidade real do direito e não meios de lingüísticas ou “jogos de
como instrumento eficaz para a prestação palavras” para aprovar, decidir sobre uma
jurisdicional individual. questão de direito, em outras palavras esta-
“Quando um erro cometido por um e mos presenciando que a lingüística – bem
sucessivamente adotado pelos outros - ju- ou mal empregada - está suplantando o ju-
risprudência do tipo ‘maria-vai-com-as-ou- rídico, propriamente dito. A práxis foren-
tras’, ‘pelego’, ou ‘carneirinho’, nossa in- se e a doutrina está se conduzindo muito
clusão -, se converterá em verdade ! Quando mais em base aos critérios de lingüística
uma série de preconceitos coletados pelos do que jurídico, conturbando assim a or-
compiladores, cegos ou servis – subservien- dem vigente com expressões deturpadas,
te -, violentará a consciência dos juízes e transformando a verdadeira intenção do
sufocará a voz do legislador” 2. legislador, sob o falso manto da correta in-
A Emenda constitucional nº 45 de terpretação legal, a vontade do legislador
2004, impôs no art. 103-A, o que era mui- resta reduzida aos interesses ideológicos
to discutido e temeroso para a garantia e momentâneos – do Judiciário - e não ori-
independência funcional do magistrado ginários, isto é, do Legislativo.
e de todos os profissionais do direito, no No contexto do ordenamento jurídico,
que diz respeito ao princípio do livre con- ao se pretender qualquer reforma eficiente
vencimento, da liberdade de raciocínio na administração da justiça criminal ou da
jurídico e criação de teses; assim “O Su- própria legislação, primeiro é preciso uma
premo Tribunal Federal poderá, de ofício análise global de todo o direito – de todo
ou por provocação, mediante decisão de o ordenamento -, isto é, de todos os ramos
dois terços dos seus membros, após reite- das ciências jurídicas, vez que ao descrimi-
radas decisões sobre matéria constitucio- nalizar e despenalizar condutas, estaremos
nal, aprovar súmula que, a partir de sua transformando um ilícito penal em ilícitos
publicação na imprensa oficial, terá efeito de natureza diversa, como: administrativa,
vinculante em relação aos demais órgãos civil, comercial, tributária, trabalhista, etc.
do Poder Judiciário e à administração pú- E ao criminalizar, criar mais tipos penais
blica direta e indireta, nas esferas federal, – penalizar – não é segundo a doutrina pe-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


166 Cândido Furtado Maia Neto

nal-criminlógica contemporânea o meio republicana, tendo fundamentos e princí-


mais eficiente para reduzir os índices de pios a soberania, o respeito a cidadania e
delinqüência, pelo contrário, tem servido a dignidade humana, destacando a preva-
apenas para aumentar a repressividade do lência dos Direitos Humanos, nas relações
governo, os abusos e excessos de poder, internas e internacionais.
ademais, transformar o discurso científi- O artigo 5º e seus incisos conforme
co acadêmico em demagógico e populista previstos na Constituição Federal da Re-
– cultura da prevenção, discurso da verda- pública Federativa do Brasil (08.10.88),
de versus cultura de repressão. estabelece os direitos e deveres individuais
De outro lado, a atuação dos opera- e coletivos, são as garantias fundamentais
dores do direito, inclua-se neste contexto da cidadania; em outras palavras, trata-se
os órgãos de segurança pública, deve estar do direito constitucional-penal aplicado.
voltada à prevenção e não à repressão de- A administração da justiça criminal
senfreada como acontece nos dias de hoje. no regime do Estado Democrático de Direi-
A polícia, por exemplo, volta suas forças to, “ex vi” do art. 1º da CF, adotou o siste-
contra os delinqüentes oriundos da classe ma acusatório, prevalecendo os princípios
baixa ou média, atuando repressivamente, que regem o devido processo legal e as
ao passo que contra a classe social e econo- garantias fundamentais individuais da ci-
micamente mais abastada, a sua ação é de dadania, de acordo com o estabelecido nos
orientação, respeito e prevenção, basta ver- incisos do artigo 5º da “lex fundamenta-
mos na prática o que ocorre nas chamadas lis”. E o pior, a práxis policial-jurídico-pe-
“blitz” ou operações contra a criminalidade nal ainda se norteia no sistema inquisitivo,
realizadas nas favelas e aquelas - quando em base a legislação infra-constitucional
raramente acontece - nos bairros de classe (Código de Processo Penal).
alta; disse Leauté “quando a polícia lança É preciso ressaltar que o governo
as suas redes, não são os peixes pequenos brasileiro ao longo do tempo, na qualida-
que escapam, mais os maiores” 3. de de Estado-Membro da Organização das
O governo brasileiro por intermédio Nações Unidas (ONU) e da Organização
de sua representação oficial na qualidade dos Estados Americanos (OEA), vem ade-
de Estado-Membro das Nações Unidas rindo e/ou ratificando documentos de Di-
(ONU) e da Organização dos Estados reitos Humanos, aprovados pelas respecti-
Americanos (OEA), aprovou nas respec- vas Assembléias Gerais das Organizações,
tivas Assembléias Gerais os instrumentos e respeitando aqueles de aceitação tácita
de Direitos Humanos, de acordo com o internacional, para citar alguns instrumen-
processo legislativo próprio - interno - se- tos básicos:
gundo prevê o Texto Maior pátrio (art. 59 - Declaração Universal dos Direitos
e sgts) e externo, em fulcro as regras de Humanos (ONU/1948),
direito público internacional. - Convenção de Viena ou Direito dos
Tratados (ONU / 1969),
2. Primeiramente devemos conside- - Pacto Internacional dos Direitos Ci-
rar a espécie de regime de governo ado- vis e Políticos (ONU/ 1966), e
tado pela República Federativa do Brasil - Convenção Americana sobre os Di-
(art. 1º), visto que a Assembléia Geral reitos Humanos (OEA / 1969).
Constituinte (de 1988) via Referendum do Tantos outros como, por exemplo:
texto da Carta Magna, instituiu o Estado Convenção contra a Tortura (ONU, 1984,
Democrático de Direito (Penal) e a forma e OEA, 1985), Convenção Internacional

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 167

para eliminação de todas as formas de dis- em relação à lei inferior, não a “contrario
criminação (ONU, 1965), etc. sensu”, visto que o princípio da hierarquia
Quanto a Declaração Universal dos vertical, validade e soberania das normas
Direitos Humanos é preciso ressaltar que assim proíbe.
não se trata de um documento com vali- Os tratados e convenções revogam
dade jurídica ordinária e específica, trata- a legislação interna, verbi gratia, a Lei nº
se como o próprio nome já diz, de uma 5.172/66, reza: “Os tratados e as conven-
Declaração e não de uma Convenção ou ções internacionais revogam e modificam
Pacto, posto que não foi celebrada na con- a legislação tributária interna e serão
formidade das regras do direito público in- observados pela que lhes sobrevenha”,
ternacional; porém possui reconhecimento especialmente no que se refere ao direito
moral universal, pois destaca os direitos da público.
pessoa humana, como afirma Rezek4. A Carta da ONU, em seu preâmbulo,
O Pacto Internacional dos Direitos diz: “Nós os Povos das Nações Unidas, re-
Civis e Políticos e a Convenção Americana solvidos... a estabelecer condições sob as
sobre Direitos Humanos, são documentos quais a justiça e o respeito às obrigações
que integram em alto nível de validade e decorrentes de tratados e de outras fontes
de hierarquia vertical das normas vigentes, do direito internacional possam ser man-
o ordenamento jurídico pátrio, posto que tidos...”.
foram ratificados via processo legislativo Depois de regularmente aprovados,
próprio, conforme Decretos nsº 592/92 e os tratados são leis que derrogam o direito
678/92, respectivamente. comum, garantindo a prevalência dos do-
É de ser observado ademais a Con- cumentos internacionais encontrando se
venção de Viena, quando dispõem: “Todo no plano de igualdade, posto que a Consti-
Tratado obriga as Partes e de ser execu- tuição federal não prevê nenhuma cláusula
tado por elas de boa-fé; e uma Parte não de preeminência dos dispositivos internos
pode invocar as disposições de seu direito sobre o direito internacional; ao contrário,
interno como justificativa para o inadim- expressa que seus princípios serão respei-
plemento de um Tratado” (arts. 26 e 27). tados sem prejuízo às normas internacio-
Neste diapasão a Convenção Pana- nais (art. 5º § 2º CF), por serem – normas
mericana sobre Tratados (Havana, 1928), - de natureza primária que determinam di-
estabelece: “Os tratados não são obriga- reitos e deveres do Estado.
tórios senão depois de ratificados pelos O tratado não se revoga por lei pos-
Estados contratantes, ainda que esta cláu- terior, há que se interpretar o conceito de
sula não conste nos plenos poderes dos parametricidade, onde a ordem global - o
negociadores, em que figure nos próprio Direito Público Internacional - é mais vas-
tratado” (art. 5º). ta que o direito interno, às garantias fun-
Deve-se compreender, como nos en- damentais contem princípios implícitos
sina o expert e renomado Prof. Borjas5, que e explícitos, os primeiros como parte do
o Direito internacional é equiparado ao Di- chamado bloco da constitucionalidade e
reito interno, à Constituição se nutre atra- os segundos da legalidade, assim temos a
vés do princípio da primazia do Direito In- presunção “iuris tantum” e depois a “iure
ternacional, trata-se de incorporação legal et irue”, ou seja, o direito constitucional
dos Direitos do Homem e das suas garan- plasmado, ou um “continuum jurídico”.
tias fundamentais, vigorando o princípio Esta regra é observada nos Estados
“lex posteriori derogat priori”; a lei maior Democráticos, no direito comparado do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


168 Cândido Furtado Maia Neto

Mercosul, por exemplo, o artigo 22 e 145, co, pois a Declaração dos Direitos do Ho-
das Cartas Magnas da República da Argen- mem e do Cidadão, proclamada em 26 de
tina e República do Paraguai, recepcionam agosto de 1789, no art. 16º consta: “toda
expressamente o direito internacional; “ex sociedade em que não estiver assegurada
vi” “aprobar tratados de integración que a garantia de direitos, nem determinada a
deleguem competencias y jurisdicción a separação dos poderes, não têm Constitui-
organizaciones supraestatales en condi- ção” e conseqüentemente não há Estado
ciones de reciprocidad e igualdad, y que de Direito Constitucional, mas Estado de
respeten el orden democrático y los dere- Polícia, Estado Autoritário, Estado Re-
chos humanos. Las normas dictadas en su pressivo, etc. Esta foi a regra básica e geral
consecuencia tienen jerarquia superior a da revolução francesa: “liberté”, “egalité”,
las leyes”, e “la República del Paraguay, e “fraternité” para a constituição de uma
en condiciones de igualdad con otros Esta- grande Federação Humana.
dos, admite un orden jurídico supranacio- O Estado é servidor da sociedade e
nal que garantice la vigencia de los dere- por ela é controlado via sistema jurídico
chos humanos de la paz, de la justicia…”. internacional e interno, princípio da lega-
Devemos entender “o homem como lidade e transparência dos Atos da Admi-
fim e o Estado como meio”, em outras pa-
nistração Pública, é obvio que a liberdade
lavras os direitos da cidadania anterior e
do indivíduo é limitada, mas a liberdade do
superior aos desejos do Estado, tratam-se
Estado é muito mais restrita, isto significa
dos direitos naturais e fundamentais do
que o verdadeiro Poder Soberano, reside
homem, do contrário haveria inversão de
nos direitos dos particulares (paráf. úni-
valores e não mais estaríamos vivendo ou
co, art. 1º CF), restringindo desta forma a
falando em Estado Democrático de Direi-
onipotência do Estado, vez que os Direitos
to. É a sociedade civil que justifica a exis-
tência e legitima a Administração Pública. Fundamentais do Homem é o núcleo do re-
No contexto jurídico os dispositivos gime democrático; do contrário os cidadãos
internacionais implementam e declaram estariam e continuariam hiposuficientes,
a ordem nacional, na chamada teoria da posto que seus direitos estariam em grau
incorporação (Heinrich Triepel, 1899 in de inferioridade aos interesses de suposta
“Volkerrecht und Landesrrecht”). A ordem ordem pública ou legalidade, camuflada
interna recepciona a ordem internacional e pela demagogia, ironia e hipocresia.
lhe dá valor superlativo, por osmose – pres-
são - ante os compromissos internacionais 3. Princípio jurídico é um enunciado
previamente assumidos para a existência, lógico, implícito ou explícito, preeminente
efetivação e manutenção de respeitos à no direito para a aplicação da norma, diz
dignidade da pessoa humana, como parte Carrazza6; a Constituição federal explici-
constitutiva da ordem jurídica do próprio tamente alicerçou os princípios de direito
Estado, predominando a lei externa sobre democrático, razão pela qual as regras –
a interna, e não a lei interna sobre a exter- dispositivos – incompatíveis considera-se
na. O direito natural estabelece a harmonia implicitamente revogadas, total ou parcial-
de relação entre o direito internacional e o mente, segundo cada caso “in concreto” 7.
doméstico, uma espécie de interseção bas- Os princípios gerais do direito consti-
tante profunda e íntima. tuem a base do ordenamento jurídico, com
Conceitua-se Estado Constitucional origem no direito natural, são também cha-
como aquele estado de direito democráti- mados de “norma princípio”, razão pela

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 169

qual contrato faz lei entre as partes, isto é Direitos Humanos, respeito à dignidade da
os Tratados e Convenções internacionais. pessoa humana, e a auto-aplicabilidade das
As regras de importância fundamen- cláusulas pétreas de garantia fundamental
tal – princípios – devem ser interpretadas da cidadania. Inclusive tal argumentação,
de boa-fé e com superioridade hierárquica ao nosso ver é incorreta e imperfeita, cau-
no ordenamento positivo; de outro lado, a sando a desestruturação e dificultando a
jurisprudência internacional tem sido unâ- efetivação do Estado Democrático de Di-
nime em consagrar a primazia do direito reito, bem como a instabilidade do Brasil
internacional sobre o direito interno. Ve- nas suas relações internacionais ante a fal-
jamos, é pacífico que o Tratado prevalece ta com os compromissos assumidos com a
ante a norma interna e anterior; também comunidade nacional e mundial.
nesse sentido, a norma doméstica posterior Diante do exposto devemos ressaltar
não pode alterar ou conflitar com Trata- a legislação infraconstitucional pátria que
do ou Pacto anterior ratificado e aderido, estabelece à luz do direito público e priva-
porque teríamos criado uma renúncia do do o seguinte, sendo importante a análise e
documento internacional por via ilegítima, o estudo do direito comparado:
isto é, interna e não por meio os órgãos e - Art. 1º e 3º, respectivamente do
sistema de proteção internacional legítimo, Código de Processo Penal (Dec-lei nº
estando o Estado passível e sujeito à san- 3.689/41): “O processo penal reger-se-á,
ções e responsabilidades da esfera interna- em todo o território brasileiro, por este
cional, ante o cometimento de um ilícito Código, ressalvados: I – os tratados, as
internacional. convenções e regras de direito internacio-
Sempre deve prevalecer a norma nal”; e “A lei processual penal admitirá
mais benéfica ao indivíduo, e os princípios interpretação extensiva – somente em be-
e cláusulas pétreas de Direitos Humanos, neficio do acusado - e aplicação analógica
são sempre elaboradas em nome da pre- – somente “in bonan partem”, bem como
servação da dignidade da pessoa humana, o suplemento dos princípios gerais de di-
portanto, em favor da cidadania. reito”
Há que se pensar em um único sis- - Art. 108 do Código Tributário Na-
tema jurídico, no ordenamento interno in- cional (Lei nº 5.172/66): “Na ausência de
tegram-se as regras de direito internacio- disposição expressa, a autoridade compe-
nal (teoria monista), e jamais se trata de tente para aplicar a legislação tributária
dualismo, com a existência de duas ordens utilizará sucessivamente, na ordem indi-
distintas, posto que impera a teoria inter- cada”:
nacionalista que defende a primazia da I- a analogia;
ordem internacional sobre o texto consti- II- os princípios gerais de direito tri-
tucional8. butário;
Qualquer argumentação que as nor- III- os princípios gerais de direito
mas do direito doméstico prevalecem sobre público;
os Tratados e instrumentos internacional, - Art. 4º Lei de Introdução ao Có-
no âmbito dos Direitos Humanos, conduz digo Civil (Dec-lei nº 4.657/42 – Lei nº
a quebra do sistema jurídico nacional, con- 10.406/02): “Quando a lei for omissa, o
forme instituído pela Carta Magna da Re- juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
pública Federativa do Brasil, que têm ex- logia, os costumes e os princípios gerais
pressamente estabelecida a prevalência dos de direito”; e

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


170 Cândido Furtado Maia Neto

- Art. 293 Código de Processo Civil da cidadania, onde tiveram as seguintes


(Lei nº 5.869/73): “Os pedidos são inter- previsões:
pretados restritivamente...”.
As garantias fundamentais da cida- 1)- A Constituição de 1824, no art.
dania prevalecem sobre qualquer outra 173 e sgts, “Das Disposições Gerais e Ga-
norma hierarquicamente inferior a Cons- rantias dos Direitos Civis e Políticos dos
tituição federal, os Tratados, Convenções, Cidadãos Brasileiros”;
Pactos, etc., bem como ante os próprios 2)- A Constituição de 1891, no art.
Códigos Penal, Processual e legislação cri- 72, Seção II “Declaração de Direitos” do
minal extravagante. Título IV “Dos Cidadãos Brasileiros”;
Importante é destacar as cláusulas 3)- A Constituição de 1934, no art.
auto-aplicáveis são imodificáveis e irrevo- 113, Capítulo “Dos Direitos e das Garan-
gáveis, por nenhuma lei ou emenda cons- tias Individuais”;
titucional, rezam os arts. 5º § 1º e 60 § 4º, 4)- A Constituição de 1937, no art.
inc. IV CF. 122, “Dos Direitos e Garantias Individu-
O Texto Maior e o Código de Proces- ais”;
so Penal prevêem nos art. 5º § 2º e arts. 1º 5)- A Constituição de 1946, no art.
e 3º CPP, respectivamente. 141, “Dos Direitos e das Garantias Indivi-
Na Constituição atual, o governo duais”; e
brasileiro se compromete a dar prevalência 6)- As Constituições de 1967/69 e
aos Direitos Humanos nas suas relações suas respectivas emendas, no art. 153 “Dos
internacionais e, obviamente, nas internas, Direitos e Garantias Individuais”.
buscando a integração econômica, política, Alguns conceitos de Constituição,
social e cultural dos povos da América La- na definição adotada pelo ilustre professor
tina, e a criação de um Tribunal Internacio- constitucionalista PEDRO CALMON: “A
nal de Direitos Humanos (art. 7º ADCT), Constituição é a lei suprema do país”; para
inclusive é signatário do Tribunal Penal o mestre DARCY AZAMBUJA: “Consti-
Internacional – TPI (Estatuto de Roma, tuição é o documento político que no re-
1998). gime democrático, é votado e promulgado
A Emenda Constitucional nº 45/2004, por uma Assembléia eleita pelo povo e no
no § 3º do art. 5º CF, expressa: “Os tra- qual são estabelecidas as bases do regime,
tados e convenções internacionais sobre a organização dos poderes, as garantias
direitos humanos que forem aprovados, fundamentais dos cidadãos, a ordem eco-
em cada Casa do Congresso Nacional, em nômica e social” 9.
dois turnos, por três quintos dos votos dos A nova Carta Magna brasileira traz
respectivos membros, serão equivalentes inúmeras e profundas garantias a nível só-
às emendas constitucionais”, por sua vez cio-jurídico-penal, onde grande parte da le-
o § 4º, reza: “O Brasil se submete à juris- gislação infraconstitucional foi tacitamente
dição de Tribunal Penal Internacional a revogada pelo princípio da hierarquia ver-
cuja criação tenha manifestado adesão.” tical das normas e pelo que se entende ou
Analisemos alguns aspectos jurídi- interpreta como a constitucionalidade das
co-penais contidos na nossa Carta Magna, leis no Estado Democrático de Direito.
promulgada em 5 de outubro de 1988, em Era e é enganoso pensar que ocorre-
relação às Constituições brasileiras ante- riam imediatas ou rápidas transformações
riores, enquanto as garantias fundamentais com a vigência da Carta Magna de 1988,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 171

primeiramente é preciso conscientizar os Também a doutrina especializada,


profissionais do direito para a correta apli- avançada e moderna contribuem subs-
cação e interpretação das leis e dos prin- tancialmente para a correta aplicação das
cípios basilares, somente assim tal deside- normas, através da leitura adequada para
rato acontecerá, para a urgente mudança a interpretação das leis ante os princípios,
de mentalidade e da práxis jurídico-penal discurso - oral ou escrito – da verdade, da
nacional. deslegitimação do Estado Ditatorial e da
Podemos dispor do melhor e mais legitimação do Estado Democrático, como
perfeito texto constitucional, que assegure asseveram E. Raúl Zaffaroni10, e Lola
de maneira ampla as garantias fundamen- Aniyar de Castro11.
tais, porém se não existir consciência ju- Estamos nos referindo de descrimi-
rídica e não houver vontade política dos nalização versus criminalização, cultura
profissionais do direito em aplicar as re- da repressão versus cultura da prevenção,
gras vigentes segundo os princípios demo- pena privativa de liberdade versus medidas
cráticos norteadores, nada acontecerá de alternativas à prisão, sistema acusatório
substancial ou modificador em benefício versus sistema inquisitivo.
da cidadania, teremos simplesmente uma Tudo em prol da segurança ou ga-
mera “lei de papel” e um “estado demo-
rantismo jurídico ante a teoria do redu-
crático eminentemente formal”.
cionismo penal ou do minimalismo penal,
Os Superiores Tribunais de Justiça
conforme prega o mestre italiano Luigi
através da jurisprudência nacional, espe-
Ferrajoli12.
cialmente o Pretório Excelso, Supremo
Também é necessário conceituali-
Tribunal Federal (STF), este último encar-
zar “norma penal”; em sentido estrito é a
regado do controle da constitucionalidade
norma incriminadora que comina sanções
das leis e guardião da própria Constituição,
tem por dever sentenciar em nome e a fa- de caráter penal. A norma penal, pode ser
vor das garantias fundamentais, em defesa material como formal, ou seja: de direito
da manutenção e efetivação real do Estado penal e de direito processual penal. Direi-
Democrático de Direito e dos interesses so- to penal na definição de VON LISZT “é
ciais e individuais indisponíveis da cidada- o conjunto de prescrições emanadas do
nia (art. 102, inc. I, letra “a” CF – ação di- Estado, que ligam ao crime como fato, a
reta de inconstitucionalidade (Adin), ação pena como conseqüência; para LUIZ JI-
declaratória de constitucionalidade (Adc), MÉNEZ DE ÁSUA, é o “Conjunto de
e ação de argüição de descumprimento de normas y disposiciones jurídicas que re-
preceito fundamental (Leis nsº 9.868/99, e gulam el ejercicio del Poder sancionador
9.882/99), e o § 2º do art. 102 da CF, via y preventivo del Estado, estabeleciendo el
Emenda nº 45/2004, dispõe que: “As deci- concepto del delito como presupuesto de lá
sões definitivas de mérito, proferidas pelo accíon estatal, así com lá respnsabilidad
Supremo Tribunal Federal, nas ações di- del sujeto activo, y asociando a la infrac-
retas de inconstitucionalidade e nas ações cion de la norma una pena finalista a una
declaratórias de constitucionalidade pro- medida aseguradora” 13, e para o Professor
duzirão eficácia contra todos e efeito vin- HELENO CLAUDIO FRAGOSO, é “o
culante, relativamente aos demais órgãos conjunto de normas jurídicas mediante as
do Poder Judiciário e à administração pú- quais o Estado proíbe determinadas ações
blica direta e indireta, nas esferas federal, ou omissões, sob ameaça de característica
estadual e municipal”. sanção penal” 14.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


172 Cândido Furtado Maia Neto

Vemos muito bem empregado o ter- 3.1. Assim, o princípio da isonomia,


mo “ameaça de sanção penal” pelo saudoso refere-se que todos são iguais perante a lei,
e renomado Prof. Heleno Cláudio Fragoso, sem distinção de qualquer natureza, (art. 5o
posto que o Estado ao colocar em vigên- incisos I, XXXIII, XXXIV, e XLI CF).
cia um Código ou uma Lei Penal, ameaça Constam na Constituição todos os
abstratamente todos os cidadãos que pra- direitos e garantias fundamentais do cida-
ticarem uma conduta típica com a sanção dão; a saber:
correspondente previamente cominada, Art. 1o. - Todos os homens nascem
razão pela qual a Norma Constitucional livres e iguais em dignidade e direitos;
de ordem penal adjetiva precisa obrigato- Art. 2o. - Todo homem tem direito à
riamente definir o devido processo legal, vida, à liberdade e segurança pessoal;
por meio de princípios fundamentais que Art. 6o. - Todo homem tem direito
assegurem à cidadania, a ampla defesa e o de ser, em todos os lugares, reconhecido
contraditório, bem como as regras sobre a como pessoa perante a lei;
publicidade dos atos do Poder Judiciário, Art. 7o. - Todos são iguais perante a
da Polícia e do Ministério Público, quanto lei e têm direito, sem qualquer distinção,
ao segredo de justiça, a incomunicabili- igual proteção da lei;
dade, as restrições de direitos ou benefí-
“Ex vi” dos documentos internacio-
cios, e assim por diante, sem obviamente
nais, art. 1º DUDH (Declaração Universal
esquecermos da presunção de inocência,
dos Direitos Humanos – ONU, 1948), art.
de impor o “onus probandi” ao Ministério
14 PIDC (Pacto Internacional dos Direitos
Público proibindo também a produção de
Civis e Políticos, ONU, 1966), e arts. 1º
provas ilícitas.
e 8º CADH (Convenção Americana sobre
Direito processual penal é definido
Direitos Humanos, OEA, 1969), para citar
como sendo “modos pelos quais a Lei re-
gula o andamento das ações criminais, e, alguns.
juntamente, os atos de Justiça pública, no A aplicabilidade da lei penal (mate-
juízo criminal, com o fim de conseguir o rial ou adjetiva) para homens ou mulheres,
descobrimento da verdade”, ou somente brasileiros ou estrangeiros com as mesmas
“um conjunto de atos”, nas conceituações obrigações e direitos, conforme determina-
de PIMENTA BUENO e GALDINO SI- da o princípio da isonomia de tratamento
QUEIRA, respectivamente. perante os Tribunais (leia-se também juízos
É através do direito processual pe- de 1a instância), assim reza o art. 5º “caput”,
nal que o Estado-Ministerial exerce o “ius e incisos I, XXXIII, XXXIV, e XLI CF; e
persequendi”, para fazer valer o “ius pu- os Direitos Humanos, art. 1º DUDH (De-
niendi” aos transgressores da lei penal. A claração Universal dos Direitos Humanos
norma penal, portanto, é um instrumento – ONU, 1948), art. 14 PIDC (Pacto Interna-
de política criminal do Estado que visa a cional dos Direitos Civis e Políticos, ONU,
garantia dos bens jurídicos penais funda- 1966), e arts. 1º e 8º CADH (Convenção
mentais dos cidadãos: a vida, o patrimô- Americana sobre Direitos Humanos, OEA,
nio, a honra, etc. 1969), por citar alguns.
Os princípios fundamentais e gerais Neste sentido a Lei nº 6.192/74, esta-
do direito penal e processual penal, inclu- belece como ilícito contravencional qual-
am-se também os princípios de direito pe- quer distinção entre brasileiros natos e na-
nal executivo, todos consignados na Carta turalizados, com sanção de prisão simples
Magna em vigor. e multa.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 173

Igualdade substancial é aquela que O conceito de igualitarismo ou ini-


se refere a mesma idade, mesma cidadania, gualitarismo é superior ou prevalente ao
mesma raça, de desiguais quanto as con- conceito meramente classificatório, ante as
dições sócio-econômicas, por exemplo ou desvantagens sociais e as necessidades de
quanto ao gênero - homem e mulher -, mas um determinado grupo, se aplica o princí-
para Leviatã “os homens são iguais em ca- pio da igualdade por ser menos inigualitá-
pacidade física e intelectual”, por sua vez rio, assim se faz mais justiça com a presta-
Hobbes acrescenta dizendo que “todos são ção e atenção judicial.
iguais e suas diferenças são insignifican- Por exemplo, o imposto geral seria
tes”, posto que a natureza humana é igual, igualitário e ao mesmo tempo inigualitário
na afirmação tautológica - por vícios de porque os que possuem menos recolheriam
linguagem - e não estoicamente falando a mesma quantia que os que possuem mais,
- com rigidez -. neste caso para ajustar o princípio da iso-
As regras aplicadas de modo im- nomia aparecem as regras de proporcio-
parcial, aos nacionais e estrangeiros, aos nalidade para igualar através de impostos
homens e mulheres, porém em ração da progressivos.
condição pessoal, existem critérios que A regra de proporcionalidade para
diferenciam, por exemplo o cumprimento ser mais igualitária precisa ter o mesmo
a pena privativa de liberdade com relação denominador - comum -, já Aristóteles
ao sexo (incs. XLVIII e L do art. 5º CF c.c. propõem a igualdade proporcional ao mé-
art. 89 117, incs. III e IV da LEP). rito, dando-se benefícios legais aos que
Tratam-se de regras de distribuição mais merecem.
que dizem respeito a certa classe de pesso- Há que se abolir ao máximo os pri-
as, e estas podem ser parciais e imparciais vilégios pessoais ou jurídicos, que não de-
para um tratamento análogo. Assim não é vem ser confundidos com as prerrogativas
possível estabelecer os mesmos critérios de cargos, funções ou postos públicos, que
para o recebimento de salários ou paga- em certas vezes, momentos ou situações se
mento de impostos, fala-se, então que a faz necessário para igualar os desiguais,
igualdade e a justiça devem ser distribuí- como as questões das imunidades, dos fo-
das; porém as regras predominantes ou as ros de julgamento diferenciados para de-
chamadas de direitos fundamentais sempre terminadas pessoas, ou em razão da natu-
se nortearem pela máxima imparcialidade reza do delito - juízo natural -, bem como
e igualdade. o direito de responder o processo penal em
A igual distribuição dos direitos ou liberdade - prisão especial - e o cumpri-
necessidades fundamentais, como à in- mento ou execução da pena privativa de
violabilidade à vida, à propriedade, à li- liberdade de modo diferenciado.
berdade, são substancialmente idênticas a As regras normativas de igualdade
todos. processual são compatíveis com as regras
Para Aristóteles o princípio da igual- de distribuição, quando nivela, tenta nive-
dade é numérico e quantitativo, dando-se lar ou reduzir as diferenças.
partes iguais aos iguais, segundo suas ca- As diferenças de características pes-
racterísticas específicas, já que as regras soais relevantes devem ser trabalhadas no
não igualitárias apresentam iguais com Estado Democrático de Direito através
partes desiguais, ou os não-iguais com das regras de distribuição para se chegar
partes iguais. Assim o injusto é desigual e a igualdade proporcional; ex. idade e cida-
o justo é igual. dania para realizar o direito ao voto, e a

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


174 Cândido Furtado Maia Neto

riqueza para o recolhimento de impostos; minação legal: nullum crimen, nulla poena
o sexo, a riqueza e a cor não são caracte- sine praevia lege (art. 5o. Inc. XXXIX CF),
rísticas relevantes para realizar o direito ao princípio também contido no Código Penal
voto. art. 1o. , da anterioridade da lei.
Tratar de modo desigual as pessoas Por sua vez, os Poderes Públicos são
que são diferentes sob aspectos relevantes harmônicos e independentes, onde todo
é base de critérios para igualar e são regras poder emana do povo e em seu nome será
justas. exercido, por meio de representantes le-
De um lado, o direito penal de ato gítimos (parágrafo único do art. 1º CF),
iguala e o direito penal de autor desiguala, princípio da representação popular e da
pois trabalha com juízos de valores distin- indelegabilidade de função, no contexto
tos, criando discriminações indevidas. A das atribuições e competências funcionais
igualdade deve ser objetivamente mensu- (arts. 69 e segts CPP, arts. 21 usque 24, art.
rada ou verificada e não subjetivamente. 44 e sgts, art. 76 e sgts, e art. 92 e segts,
São iguais para o direito penal mate- art. 127 e 129 CF), dos órgãos, instituições
rial, sem distinção alguma, aos nacionais, e Poderes Públicos (Executivo, Legislativo
estrangeiros, homens e mulheres, todos e Judiciário).
maiores de 18 anos a aplicação da norma No Estado Democrático de Direito,
as condutas ilícitas e as respectivas san-
segundo a tipicidade - crime – e a pena,
ções somente podem originar de lei crimi-
critério de reincidência, delito consumado
nal discutida, elaborada e aprovada pela
ou tentado, etc. As diferenciações existen-
União, “ex vi” do art. 22, inc. I CF.
tes dizem respeito a critérios jurídicos de
A vigência da norma deve ser ante-
distribuição, em base a princípios de direi-
rior ao fato ilícito praticado, definido em
to e não de características pessoais.
todas as suas características (tipicidade),
Toda e qualquer afirmação arbitrá-
toda conduta ilícita deve estar descrita
ria da vontade se fundamentam em com- em lei, taxativamente. A sansão obrigato-
promissos subjetivos. O que se opõem a riamente deve cominar um mínimo e um
igualdade é o tratamento desigual arbitrá- máximo de pena a ser aplicada, para coi-
rio, abusivo ou injustificável. Não se justi- bir abusos ou benevolências por parte da
ficam contradições entre princípios e sua autoridade. Compreende a palavra crime,
aplicação – antinomias -, e as dicotomias também a contravenção penal, e pena to-
sim – divisão lógica de conceitos em dois das as espécies reconhecidas pela norma
ou mais outros, compondo-se em “corpo e penal material positiva, isto é, privativas
alma”. de liberdade (reclusão, detenção, prisão
Russeau afirmou: “por igualdade simples), restritivas de direito (prestação
temos de entender, não que o grau de po- de serviços à comunidade, interdição tem-
der e de riqueza é absolutamente idêntico porária de direitos, e limitação de fim de
para todos, mas que...nenhum cidadão é semana), e ainda, as penas pecuniárias (de
bastante rico para comprar outro, nem há multa).
nenhum tão pobre que seja forçado a ven- O prof. Zaffaroni tem se posicionado
der-se a si mesmo”, in Contrato Social. no sentido de ser, nos Estados Democráti-
cos de Direito, perfeitamente admissível a
3.2. Já no princípio da legalidade ou aplicação de pena abaixo do mínimo legal,
da reserva legal, não há crime sem lei ante- cominado “in abstrato” para o tipo especí-
rior que o defina, nem pena sem prévia co- fico, se na hipótese “in concreto”, mesmo

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 175

sendo aplicada a menor pena, ainda assim en question; Paris, 1982”, contam para
torna-se desproporcional com a ofensa ou ilustrar a situação dos 5 estudantes que se
com o dano resultante do ato delituoso. encontravam vivendo juntos em uma “re-
Neste caso é justificável que o magistra- pública” e certa vez quando estavam assis-
do ao exarar a sentença faça menção aos tindo uma importante partida de futebol,
princípios da proporcionalidade, da huma- decisão de um campeonato, em um dado
nidade e de boa-fé ou “pro homine”, sem momento, um dos estudantes morador, re-
afetar o princípio da legalidade ou da re- pentinamente levanta-se da poltrona, toma
serva legal15. a televisão nas mãos e atira pela janela,
O Código Eleitoral (4.737/65) em espatifando-a na calçada enfrente ao pré-
alguns dispositivos, no tocante a previsão dio; todos sem entender o ocorrido, estu-
de pena “in abstrato”, no que se refere aos pefatos começam a procurar uma solução
possíveis crimes eleitorais, não estabelece para a situação problema: o primeiro fala
pena mínima, somente a sanção máxima, drasticamente e propõem a prisão, chamar
ex. detenção ou reclusão até ...anos, sendo a polícia porque se trata de crime de dano;
este é o limite legal para a aplicação judi- o segundo diz que prisão é cruel demais e
cial (arts 289 e segts); nesse sentido, pen- porque não procurar uma medida alternati-
samos ser um bom sistema de cominação va; o terceiro contemporiza afirmando que
de pena, posto que evita qualquer discus- não se trata de crime, mas sim de indeniza-
são ou má interpretação da lei, proporcio- ção e reparação, que o fato é da instância
nando a efetiva realização da justiça para civil e não penal, e por sua vez o quarto
cada caso “in concreto”. colega, argumenta analisando a situação
Jamais é permitido ou é possível o com mais calma, colocando a todos que o
contrário, ou seja, aplicar pena acima do autor estava abalado, passava por proble-
máximo legal cominado, visto que afetaria mas pessoais, econômicos e sociais, assim
princípios democráticos, onde não se ad- deveria ser entendida a causa de seu ato, e
mite agravar situação legal ou que na prá- como era conhecido, amigo e viviam jun-
tica venha acarretar prejuízo ao réu. tos, provavelmente não retornaria a fazer o
Também, quando se trata de consi- mesmo, assim todos, poderiam entender o
derar na aplicação do “quantum” da pena, corrido e perdoar.
as circunstâncias agravantes e atenuantes, Para o caso, apresentou-se 4 resolu-
estas últimas deve sempre prevalecer sobre ções distintas para o mesmo e único pro-
aquelas, são a base para o cálculo geral e fi- blema; a saber:
nal da sanção, esta é a fórmula que se deve 1- prisão, detenção e reclusão (prima
utilizar no Estado Democrático de Direito ratio)
e preservação das garantias fundamentais 2- possibilidade de aplicação de me-
da cidadania, no tocante a realização con- dida alternativa e substitutiva à prisão
creta da justiça, pois sempre se aplica e se 3- reparação e indenização no âmbito
interpreta a lei – norma - mais favorável, do juízo cível
isto é “pro homine” ou de boa-fé. 4- adoção do instituto do perdão (ju-
No direito penal ante um mesmo dicial e/ou informal, privado)
caso, pode-se dar diferentes resoluções, O principio da legalidade e da reser-
segundo a interpretação “pro homine” ou va Legal, deve ser considerado em termos
de boa-fé do operador, nesse sentido Louk das penas de prisão, e em relação as me-
Hulsman, e Jacqueline Bernart de Celis na didas de segurança, esta por ter um tempo
obra “Peines perdues. Lê système pénale indeterminado de internação em hospital

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


176 Cândido Furtado Maia Neto

psiquiátrico configura pena de prisão per- tituto da reincidência caracteriza verdadei-


pétua. É proibida no direito constitucional- ro “bis in iden”, visto que é um “plus” para
penal pátrio. Nunca a medida de segurança a 1ª condenação já inclusive transitada em
poderia ser superior ao máximo da pena julgado – firme -; onde a 2ª sentença recon-
cominado estabelecida e aplicada aos con- sidera o calculo da primeira, agregando um
denados que praticam crimes com dolo, e aumento de pena pelo segundo fato.
se assim for na pratica estará sendo mais “Non bis in idem” é a proibição de
gravosa do que a sanção imposta aos delin- duplo processamento e/ou julgamento
qüentes que intencionalmente agem. para o mesmo caso, proibição de dupla
sanção para a mesma imputação, ofensa o
3.3. Também é muito importante destacar o princípio da última ratio do direito penal,
princípio da presunção de inocência. colocando o ilícito criminal como “prima
ratio”, desconsiderando assim a doutrina
A inocência do cidadão não se pre- e a teoria geral do ordenamento jurídico.
sume, deve ser assegurada pelo Estado até No contexto mais amplo ou no conceito
decisão final firme – sentença penal conde- lato sensu, caracteriza “bis in idem” duplo
natória – desta forma reza o inciso LVII do processamento e dupla punição até mesmo
artº 5º da Carta Magna, taxativamente. quando se trata de processos e penas de
Impera a inocência até prova em
áreas distintas, mas pelo mesmo caso.
contrário e não a culpabilidade antecipada.
Em um Estado Democrático de Di-
A inocência é inerente ao cidadão, não se
reito, todos os atos do Poder Judiciário de-
presume, ela deve ser respeitada, observa-
vem ser públicos, assim expressa o art 93,
da nos termos da Carta Magna, somente
IX CF; porém devemos entender como pú-
após decisão firme condenatória no âmbi-
blicos os atos para assegurar principalmen-
to da justiça penal, é que a inocência não
persiste mais, e sim a culpa, pelo devido te o princípio da imparcialidade e transpa-
processo legal. rência das decisões do Poder Judiciário.
Os documentos internacionais de Dar publicidade e fazer sensaciona-
Direitos Humanos também, art. 11 da De- lismo gerando penas e condenações ante-
claração Universal; art. 14 – 2 do Pacto In- cipadas atenta contra o Estado Democrá-
ternacional dos Direitos Civis e Políticos, tico de Direito. A Lei Orgânica Nacional
e a Convenção Americana expressa a pre- do Ministério Público dos Estados (Lei nº
sunção de inocência no art. 8 – 2. 8.625/93), no artigo 26 inciso VI dispõem
O princípio da presunção de inocên- como dever do agente ministerial, dar pu-
cia diz respeito ao trânsito em julgado ma- blicidade de seus atos, isto que dizer e de-
terial - como questão de mérito - e formal ver ser interpretado, como sendo públicos
- referente aos prazos processuais -. E a os atos administrativos e jurisdicionais do
reincidência criminal, por sua vez somente “Parquet”, e não o dever de escancarar, vi-
deve ser aferida nos termos do art. 65 do lipendiar a honra e a privacidade do cida-
Código Penal, ou seja, após transcorrido dão processado ou preso.
5 anos entre a primeira condenação firme Note-se o que estabelece a Lei Or-
e a segunda sentença; jamais se admite o gânica Nacional da Magistratura (Lei
chamado “direito penal de autor” no siste- Complementar nº. 35/79): art. 36, inc. VI
ma democrático de justiça, quando se faz “É vedado ao magistrado manifestar-se
prejulgamento sobre a condição pessoal do publicamente sobre processo seu ou de ou-
acusado. Há também quem diga que o ins- trem...”.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 177

Hora, se o magistrado, como autori- reito de indenização pelo dano material ou


dade sentenciante, não pode se manifestar, moral decorrente de sua violação”.
ninguém mais pode. A imprensa e os meios de comunica-
O direito penal moderno (Lei nº ção de massa, também são regulados nas
7.209/84) revogou a pena acessória de suas atividades, há limites e limitações le-
publicidade de sentença prevista no art. gais que devem ser respeitadas, qualquer
67, inc. II do Código Penal (Dec-lei nº atentado contra o direito fundamental-
2.848/40). Nem mesmo a sentença é per- constitucional contra a imagem da pessoa
mitida ser divulgada pelos meios de co- humana poderá ser sancionada através do
municação, como antes da decisão judicial devido processo legal (Lei nº. 5.250/67),
final - de mérito - seria possível, permitido de indenização e reparação dos danos mo-
ou autorizado a afrontar o princípio da pre- rais e materiais.
sunção de inocência. Atos de verdadeira Justiça dispen-
Por sua vez, qualquer ofensa a honra sam qualquer espécie de publicidade ou
caracteriza ilícito penal e sujeita aos infra- propaganda16.
tores responsabilidade criminal, em face
aos crimes de calúnia, difamação e injúria 3.4. O princípio da retroatividade da
(arts. 138 a 145 CP). A responsabilidade lei penal mais benigna, é definido no art.
pessoal que deriva do exercício do cargo, 2o e parágrafo único do Código Penal (lei
onde informações inexatas ou agravantes penal no tempo), na Constituição vigente
que fere a reputação de alguém, a inti- consta no inciso XL art.5o, “a” lei penal
midade e a vida privada que ultrapasse a não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”,
conteúdo confidencial ou secreto de tais trata-se do chamado – “abolitio criminis”,
informações, visto que a integridade da quando lei nova deixa o fato anterior de
chamada presunção de inocência, como considerar crime; é também causa extin-
direito fundamental e verdadeira garantia tiva da punibilidade prevista no inciso III
penal deve ser preservada em favor do pro- art. 107 CP; e quando lei posterior benefi-
cessado. Como se diz: “há quem prefira a cia o agente, ainda que o fato esteja deci-
morte do que a desonra”. dido por força de sentença penal transitada
O Estado democrático, via adminis- em julgado.
tração de justiça criminal deve atuar por A interpretação mais benigna, ou
intermédio de seus agentes, instituições, seja, favorável ou em benefício do réu é a
órgãos ou Poderes, dentro dos limites do base do Direito Penal democrático, é regra
mínimo ético, só assim se garante o devido impositiva de hermenêutica jurídica, para
processo legal, e a integridade moral públi- a correta aplicação da norma vigente ao
ca do Estado, com vistas a garantir a vida caso “in concreto”. Não se trata de benevo-
privada e a integridade moral individual do lência à nenhuma espécie de delinqüente
cidadão, com o devido respeito à dignida- ou de tratamento desigual, mais de princí-
de inerente ao ser humano. pio mor que deve sempre ser seguido no
Art. 5º inciso V e X CF: “é assegura- regime acusatório, do contrário estaremos
do o direito de resposta, proporcional ao diante do sistema inquisitivo, este já, há
agravo, além da indenização por dano ma- muito tempo revogado.
terial, moral ou à imagem”; e “são inviolá- Exceto quando se tratar de lei penal
veis a intimidade, a vida privada, a honra temporária ou excepcional (art. 3º CP),
e a imagem das pessoas, assegurado o di- vale a norma vigente na época do fato,

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


178 Cândido Furtado Maia Neto

mesmo cessada as circunstâncias que a de- (inciso LXV art. 5o CF) e art. 9º da De-
terminaram. É uma exceção a regra geral, claração Universal dos Direitos Humanos
porque é conhecido por todos os cidadãos “Ninguém será arbitrariamente preso, de-
o período de sua vigência e revogação (ab- tido ou exilado”.
rogação), em vista a momentos especiais “O preso será informado de seus di-
ou circunstanciais. Se neste caso fosse per- reitos, entre os quais o de permanecer ca-
mitida aplicação do princípio geral – abo- lado, sendo-lhe assegurada a assistência
litio criminis – teríamos a impunidade con- da família e do advogado”.
sagrada, prevista e antecipada. O art. 186 do CPP já prevê desde
De outra parte, o princípio da ampla 1942 - ano em que entrou em vigor o esta-
defesa e do contraditório, encontra-se pre- tuto processual penal -, que o juiz observa-
visto no art. 5o incisos LIII, LXII, LXIII, rá ao réu que não está obrigado a responder
LXIV da CF, dispõem: “ninguém será pro- as perguntas que lhe forem formuladas, da
cessado nem sentenciado senão pela auto- mesma forma o § 3o do art. 302, reza que o
ridade competente” (autoridade competen- acusado não é obrigado a assinar o auto de
te, somente pode ser autoridade judiciária, prisão em flagrante delito, devendo então
isto é, Magistrado de 1o, ou de 2o instância, ser assinado por duas testemunhas.
o representante da oficialidade da ação e A Constituição federal (art. 5º inc.
processo penal, onde o “ius persequendi” LXIII) assegura o direito do preso em per-
só pode ser exercido pelo poder público e manecer calado, e que este direito não re-
princípio da indeclinabilidade, que proíbe sulta em seu prejuízo, assim a Lei nº 10.792,
ao Juiz delegar funções a pessoa estranha de 1º de dezembro de 2003, complementa
ao serviço). o direito constitucional, sendo na verdade
“Ex vi” dispensável, ou melhor desnecessário, pois
art. 11 item 1, letra “a” da DUDH se trata de redundância legislativa sem for-
art. 8, item 2 da CADH ça alguma, vez que a norma constitucional
art. 14 item 3 do PIDCP com maior valor já prescrevia o conteúdo
“A prisão de qualquer pessoa e o lo- da mencionada regra.
cal onde se encontra serão comunicados Por sua vez, o inciso LVIII art. 5o
imediatamente ao Juiz competente e à famí- CF reza: “o civilmente identificado não
lia do preso ou pessoa por ele indicada”. será submetido a identificação criminal”,
“O preso tem direito à identificação estando derrogada a Súmula n. 568 do Su-
dos responsáveis por sua prisão ou por seu premo Tribunal Federal que considerava
interrogatório policial”. não haver constrangimento ilegal à pessoa
Estes dois dispositivos constitucio- a identificação no inquérito policial.
nais estão expressos nos arts. 9o e 306 do
Código de Processo Penal, estabelecendo 3.5. O princípio da ampla defesa,
que todas as peças do Inquérito Policial como o próprio nome já diz, é muito am-
serão assinadas pela autoridade policial; plo, e mais amplo do que muitos juristas
e que dentro de 24 (vinte quatro) horas imaginam, por exemplo, a Corte Intera-
depois da prisão, será dado ao preso, nota mericana de Direitos Humanos, em uma
de culpa, declinando os motivos da prisão, de suas decisões exarou que se tratando
bem como comunicado o juiz competente. de réu estrangeiro, se faz necessário, para
Se ilegal a prisão está será imediata- não anular o ato judicial, no interrogatório
mente relaxada pela autoridade judiciária além do defensor constituído e habilitado

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 179

para atuar na justiça do País em que está sil e Argentina, onde os nacionais de cada
tramitando o processo-crime, é preciso a Estado-Parte (Brasil-Argentina) gozarão
presença física de agente da representação em igualdade de condições dos mesmos
diplomática de seu País (ver decisão da benefícios legais e judiciários previstos,
Corte Interamericana de Justiça da OEA, bastando a expedição de uma declaração
sobre a correta interpretação da cláusula fornecida pela representação diplomática.
8 da Convenção Americana sobre Direi- Emenda constitucional nº 45/2004,
tos Humanos (OEA/1969); cláusula 14 estipula no “Art. 134, § 2º, que: “Às Defen-
do Pacto Internacional de Direitos Civis e sorias Públicas Estaduais são asseguradas
Políticos (ONU/1966) San José 1969; e as autonomia funcional e administrativa e a
Convenções sobre Relações Diplomáticas iniciativa de sua proposta orçamentária
e Consulares). dentro dos limites estabelecidos na lei de
Também na hipótese de acusado na- diretrizes orçamentárias e subordinação
cional que esteja sendo processado pela ao disposto no art. 99, § 2º”.
justiça de seu próprio País, se faz necessá- De outro lado, destacamos que para
rio a presença física de defensor e do pró- ser efetivado o Estado Democrático de
prio réu, do contrário acarreta nulidade o Direito, se faz necessário o exercício com-
ato. É direito fundamental e indisponível pleto da prestação jurisdicional, em outras
da cidadania que a pessoa processada, pre- palavras, inclui-se no poder de jurisdição
sa ou não, presencie os atos de justiça, pos- a atuação de Poder Judiciário e dos órgãos
to que estão sendo realizados contra ela. É essenciais à função jurisdicional do Esta-
o mínimo ético que o Estado-Administra- do, ou seja, a instituição do Ministério Pú-
ção deve fazer no chamado sistema acusa- blico (art. 127 CF) e da Defensoria Pública
tório democrático. No passado julgava-se (art. 134 CF), cada qual com sua missão
e condenava-se à revelia, hoje não é mais constitucional. Inexistindo a Defensoria
possível em virtude do disposto no artigo Pública não há que se falar em jurisdição
366 do Código de Processo Penal. ou no poder de julgar com imparcialidade
A jurisprudência abaixo citada é fla- em busca da realização da Justiça plena17.
grantemente inconstitucional por ferir o O inciso LVI art. 5o da CF, prevê:
princípio da ampla defesa e normas inter- “São inadmissíveis no processo as provas
nacionais de Direitos Humanos, serve ape- obtidas por meio ilícito”; evidentemente
nas para se ter conhecimento sobre a atual que só se admitirá as provas previstas e
e indevida práxis-forense adotada, ante a lei, ou seja, aquelas cuja produção consta
flagrante e incorreta interpretação e aplica- no Código de Processo Penal art. 155 e se-
ção da norma penal vigente. guintes, exame de corpo de delito, provas
No contexto do princípio da ampla testemunhais, periciais, documentais, etc.
defesa encontra-se presente o disposto na Quanto às violações de privacidade
Lei nº 1.060/50, e inciso LXXIII, do ar- ou da intimidade do indivíduo como ga-
tigo 5º da Carta Magna, sobre assistência rantias constitucionais fundamentais, so-
judiciária gratuita aos presos e processa- bre a quebra do direito de inviolabilidade
dos que necessitarem, independentemen- do direito à comunicação, seja na forma de
te de nacionalidade, como obrigação do interceptação telefônica e sigilo bancário
Estado processante; assim o Decreto nº e fiscal é tema de extrema importância. A
62.978/1968, promulga a Convenção sobre práxis jurídico-policial vem violando cor-
Assistência Judiciária Gratuita entre o Bra- riqueiramente o texto constitucional18.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


180 Cândido Furtado Maia Neto

Outras garantias fundamentais indi- bação ao trabalho configura contravenção


viduais e coletivas foram mantidas na nova e delito, tipificado nos arts. 47 à 49 da
Constituição, estão expressas no art. 5o, Lei das Contravenções Penais (Dec-lei n.
entre elas podemos citar: 3.688/41), e arts. 197 à 207 do Código Pe-
a) inciso XI, “a casa é asilo invio- nal (Dec-lei n. 2.848/40).
lável do indivíduo”, o crime de violação Sobre a plenitude do direito ao traba-
de domicílio está previsto no CP art. 150 lho, associação, sindicalização, os instru-
e comina pena privativa de liberdade, es- mentos internacionais de aceitação tácita e
pécie detenção de um a três meses ou mul- expressa, definem regras básicas, como:
ta; existindo violência, pena até dois anos, Convênio relativo ao trabalho força-
além da pena correspondente à violência. do ou obrigatório (OIT/1930 – Convênio
b) inciso XXII, “é garantido o direi- n. 29).
to de propriedade”. Convênio relativo a abolição do
c) Inciso XXIV, “a lei estabelecerá trabalho forçado (OIT/ 1957 – Convênio
o procedimento para desapropriação por 105).
necessidade ou utilidade pública, ou por Convênio para a repressão do trata-
interesse social, mediante justa e prévia mento de pessoas e da exploração da pros-
tituição alheia (ONU/ 1949).
indenização em dinheiro,...”
Convenio relativo à discriminação
d) A Declaração Universal dos Di-
em matéria de emprego e ocupação (OIT/
reitos Humanos (ONU/1948) prevê no art.
1958 – Convênio n. 111).
17, que toda pessoa tem direito à proprie-
Convênio sobre a igualdade de se-
dade, individual e coletiva.
guridade social (OIT/1952 – Convênio n.
e) inciso XII, “é inviolável o sigilo
102).
da correspondência e das comunicações Convênio relativo aos trabalhadores
telegráficas, de dados e das comunica- migrantes (OIT/1949 – Convênio n. 97).
ções telefônicas” da mesma forma, o art. Convênio sobre as migrações em
151 § 1o inciso I, II, III e IV § 2o, 3o, e 4o condições abusivas e a promoção da igual-
do CP prevê penas que vão até seis meses dade de oportunidades e de tratamento dos
aumentadas até a metade, se há dano para trabalhadores migrantes (OIT/1975 – Con-
outrem, crimes de violação de correspon- vênio n. 143).
dência, sonegação ou destruição e violação Convênio relativo a liberdade sindi-
de comunicação telegráfica, radioelétrica cal e a proteção do direito de sindicaliza-
ou telefônica. ção (OIT/1958 – Convênio n. 87).
f) inciso IX, “é livre a expressão da Convênio relativo à aplicação dos
atividade intelectual, artística , cientifica, princípios de direito de sindicalização e de
independente de censura ou licença”, o di- negociação coletiva (OIT/1949 – Convê-
reito do material nos arts. 184 usque 207, nio n. 98).
tipifica os crimes da propriedade intelectu- Convênio sobre a política de empre-
al, bem como a norma extravagante” Lei go (OIT/1964 – Convênio n. 122).
5.988/73 de direitos autorais. Convênio sobre a organização de tra-
A liberdade do exercício do trabalho. balhadores rurais e sua função no desen-
O inc. XIII, do art. 5º da Carta Magna as- volvimento econômico e social (OIT/1975
segura o direito à criação e o de associação – Convênio n. 141).
de classe e sindicalização, desde que com Declaração Universal dos Direitos
fim legítimo e pacífico. Qualquer pertur- Humanos (ONU/1948).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 181

De outro lado, o Código Civil (Lei nº grafos 1º e 2º CF), assim o inc. VIII, prevê
10.406/2002), traz disposição que afronta que ninguém será privado por motivo de
o texto constitucional, quando estabelece crença religiosa, convicção e filosófica,
que o juiz pode censurar (art. 20), proibir política, além de dispor o inciso IX, que
divulgação de escrito, imagem, transmissão é livre a expressão da atividade intelectu-
de palavra, contrariando a Lei Maior que al, artística, científica e a comunicação em
assegura a liberdade de comunicação, ati- geral, tudo desde que não configure crime
vidade artística e profissional, independente contra a honra (calúnia - art.138 CP, que
de qualquer licença. O dispositivo afeta a significa fato definido como crime; difa-
inviolabilidade da intimidade, vida privada, mação - art.139 CP, que refere-se a ofensa
honra e a imagem das pessoas, ademais a a reputação de fato determinado; e a injú-
Carta Magna prevê que nenhuma lei conte- ria - art.140 CP, que caracteriza ofensa à
rá dispositivo que possa constituir embara- dignidade ou decoro de fato vago); sendo
ço à plena liberdade de informação, sendo inviolável a honra, e assegurado o direito à
vedada toda e qualquer censura de natureza indenização (inc. X art. 5º CF).
política, ideológica e artística (art. 5º IX, X, O art. 93 inciso IX da CF (Emenda
XIII e art. 220 §§ e incisos CF). constitucional nº 45/2004), prevê: “todos
Somente nas hipóteses de decretação
os julgamentos dos órgãos do Poder Ju-
de Estado de Defesa e de Sítio, nos termos
diciário serão públicos, e fundamentadas
da Constituição federal, permite-se res-
todas as decisões, sob pena de nulidade,
tringir direitos e/ou liberdades civis (arts.
podendo a lei limitar a presença, em de-
136 usque 139 CF), mediante ato do Presi-
terminados atos, às próprias partes e a seus
dente da República, ouvidos os Conselhos
advogados, ou somente a estes, em casos
da República e de Defesa Nacional, bem
nos quais a preservação do direito à intimi-
como necessita ainda autorização do Con-
gresso Nacional; entre os direitos que po- dade do interessado no sigilo não prejudi-
derão ser restringidos, citamos a liberdade que o interesse público à informação”.
de reunião, o sigilo de correspondência e
de comunicação (telegráfica, telefônica 3.6. O princípio de amplitude da li-
e a correspondência), poderá também ser berdade de crença (inc. VI do art. 5º CF),
tomadas medidas contra as pessoas, como através do livre exercício de culto religio-
buscas e apreensões, requisições de bens e so, garante a proteção devida em todos os
a obrigação de permanência em localidade locais de liturgia, como reza o inc. VII, so-
determinada. bre a prestação e assistência religiosa em
g) – Inciso IV - Liberdade de pen- locais de internação coletiva, a exemplo
samento e a crença religiosa. É um dos das escolas, hospitais, quartéis e presídios
princípios reitores do Estado Democrático (estabelecimentos penais). Qualquer aten-
de Direito, sendo livre a manifestação de tado a este direito fundamental configura
pensamento, sem qualquer distinção ou ilícito previsto no Código Penal, art. 208,
descriminação. como crime contra o sentimento religioso.
A Lei 5.250/67, regula a atividade da Do mesmo os instrumentos interna-
imprensa, e no artigo 5º inc. V assegura o cionais de Direitos Humanos garante a li-
direito de resposta, também o inc. VI do berdade de pensamento, cito a Declaração
mesmo dispositivo estabelece a inviolável Universal dos Direitos Humanos, o Pacto
da liberdade de consciência, não havendo Internacional de Direitos Civis e Políticos,
nenhuma espécie e censura (art. 220 pará- a Convenção Americana sobre Direitos

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


182 Cândido Furtado Maia Neto

Humanos, a Declaração sobre a elimina- ou a absolvição, não é legítimo ou legal


ção de todas as formas de intolerância e que o Poder Judiciário se oponha, visto
discriminação fundadas na religião ou nas que o autor da demanda estatal - Parquet
convicções, entre outros documentos de -, entende pela desnecessidade do próprio
igual importância. litígio criminal e ou em nome dos princí-
pios gerais de justiça que o réu deve ser
3.7. Por sua vez, o princípio da obri- absolvido ou declarado não culpado. Do
gatoriedade da ação penal pública, conti- contrário, com a insistência do Poder Ju-
do no art. 129 da Constituição reza que é diciário, pela continuidade da ação penal
função institucional privativa do Ministé- e condenação do acusado, resta quebrado
rio Publico a promoção da ação penal pú- o princípio da imparcialidade e do con-
blica; portanto, derrogado expressamente traditório, e até porque não dizer, não há
pela Magna Carta a possibilidade de ações mais que se fala no caso “sub judice” em
penais iniciarem mediante portarias da au- jurisdição.
toridade judiciária (juiz de direito), como, Jurisdição é poder de aplicar o di-
por exemplo ocorria no passado, nos casos reito objetivo, na forma pleiteado, obvia-
de homicídio culposo e lesão corporal cul- mente, para o caso concreto. A jurisdição
posa (lei n.4.611/65), nas contravenções
penal inicia e acaba quando o órgão estatal
penais que permitia o delegado de polícia,
incumbido da “persecutio criminis” ou de
excepcional função judiciária, sendo-lhe
solicitar o “ius puniendi”, conclui pela via-
facultado o procedimento de ofício, indo
bilidade ou inviabilidade da causa, por inú-
de encontro ao princípio “no judex ex offi-
meras e diversas razões, considerando que
cio”, posto que mediante portaria instaura-
o “onus probandi” é do Ministério Público
va ação penal.
e não do Poder Judiciário. A jurisdição não
Devemos compreender e interpretar o
princípio da titularidade exclusiva da ação poder ser exercitada quando o Ministério
penal pública de uma forma mais ampla, Público não provoca o Poder Judiciário,
daquela que vem sendo exposta pela dou- neste contexto temos as questões de ordem
trina e jurisprudência nacional. Quando a objetiva e subjetiva da causa, de direito
Carta Magna expressa que a instituição do material ou formal, em relação ao princípio
Ministério Público possui poder privativo do livre convencimento, da autonomia e
para a promoção da “persecuitio criminis”, independência do agente ministerial, como
quer dizer é o “dominus litis” da demanda, prerrogativa funcional, ante a garantia da
do início ao fim da ação penal, em outras inviolabilidade de suas opiniões, manifes-
palavras, desde a promoção do arquiva- tações ou resoluções processuais (art. 41 V
mento da investigação policial, passando da Lei nº 8.625/93); do contrário quebram-
pelo oferecimento da exordial – denúncia - se as garantias jurídicas e fundamentais da
, até as alegações finais, ou seja, antes dela cidadania e falece o Estado Democrático
propriamente dita, com a possibilidade do de Direito.
pleitear o trancamento da ação penal, pelas Veja-se. No sistema acusatório demo-
hipóteses previstas no art. 647/648 e segts. crático, puro e perfeito, a primeira e a últi-
do Código de Processo Penal, via habeas ma palavra são do Ministério Público, para
corpus, e com o pedido de absolvição, pre- iniciar o “ius persequendi” e para exercitar
visto no art.386 do mesmo “codex”. o “ius puniendi”. Sem denúncia e sem pe-
Quando o Ministério Público solicita dido de condenação o Poder Judiciário não
perante o juiz o trancamento da ação penal está autorizado, no Estado Democrático de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 183

Direito, a seguir com a ação penal ou con- mentos dentro do próprio Ministério Públi-
denar o acusado, é o mesmo que dizer, sem co, entre seus agentes de 1º e de 2º grau, o
“acussationis nullum judex”. que é lamentável e intolerável para a parte
No sistema antidemocrático de jus- processada, onde a mesma instituição plei-
tiça criminal, no sistema de direito penal teia uma coisa e ora outra.
autoritário ou ainda no sistema inquisitivo, De outro lado, diz o art. 5o inciso LIX
o “ius persequendi” e o “ius puniendi” é da CF “será admitida ação privada nos
do Poder Judiciário que tem concentrado o crimes de ação pública se esta não for in-
poder investigatório e punitivo. Porém, no tentada no prazo legal” – pelo Ministério
sistema acusatório – democrático – tanto Público - está contido no art. 29 do CPP,
o “ius peresquendi” como o “ius punien- a chamada ação privada subsidiária da pú-
di” está nas mãos do órgão acusador – do blica, quando o representante o agente do
Ministério Público -, se assim não fosse, “Parquet” não apresenta denúncia no prazo
jamais poderiamos falar em Estado Demo- de lei (acusado em liberdade 15 dias, preso
crático de Direito. É bom também ressal- 5 dias), pode assim o ofendido ou suces-
tar que não existe ou não pode admitir um sor legal apresentar queixa-crime; porém a
sistema misto, inquisitivo-acusatório; é um ação penal será retomada pelo Promotor
ou é outro. Nenhum “jeitinho brasileiro” é de Justiça, uma vez que é o “dominus litis”
capaz de inventar tal situação, considero da mesma.
um verdadeiro “aberratio iuris” dos maio- O art. 127 da Carta Magna estabele-
res e a mais inaceitável proposta proces- ce que o Ministério Público é instituição
sual penal. essencial à função jurisdicional do Estado,
Tanto é assim que no caso de delibe- incumbe-lhe a tutela dos direitos e interes-
ração pelo Ministério Público para o arqui- ses indisponíveis individuais e coletivos,
vamento das investigações criminais (art. em outras palavras, a defesa dos Direitos
28 CPP), na hipótese do Poder Judiciário Humanos e das garantias fundamentais da
não aceitar, a última palavra cabe ao Pro- cidadania expressas no art. 5º e incisos da
curador-Geral de Justiça, com decisão irre- “lex fundamentalis”.
corrível, porque não se admite ação penal No âmbito da Justiça penal é a ins-
de ofício “no judex ex officio”. tituição encarregada de definir na prática
Assim, desta forma, bem compreen- a política criminal do Estado, em base aos
dida, se o representante do Ministério Pú- princípios e regime adotado pela Lei Maior,
blico de 1º grau solicita o arquivamento e o isto é, aqueles que se vinculam ao Estado
juiz contraria, não está quebrando o princí- Democrático de Direito (art. 1º CF).
pio da imparcialidade está apenas exercen- Para citar alguns, por exemplo, o
do o controle jurisdicional a ele afeto, ao princípio da oportunidade, da significân-
encaminhar os autos ao Procurador-Geral cia do dano ou prejuízo ocorrido ao bem
de justiça; e quando o agente do “Parquet” jurídico-penal, a utilidade do movimento
pleiteia pela absolvição não cabe ao juiz da máquina judiciária, a economia proces-
contrariar, este tem o dever de assegurar e sual, etc.
manter a imparcialidade judicial, porque o O saudoso ministro e professor As-
contraditório somente se faz entre as partes sis Toledo é contundente ao ensinar que
litigantes no processo – acusação e defesa se não ocorrer efetivamente, no caso in
– e não pelo Poder Judiciário. Desta forma, concreto, dano ou prejuízo ao bem jurídico
acabam-se por vez, as incongruências, as penal tutelado in abstrato, não há que se
incoerências ou contradições de posiciona- falar em crime e por esta razão não moti-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


184 Cândido Furtado Maia Neto

vo para o exercício do “ius persequendi” mento das atividades da policia judiciária,


estatal; também se a ofensa for mínima, para a elucidação do crime, da materiali-
de bagatela ou pequena demais, por si só dade e autoria.
não se justifica a persecução criminal por Não se pode alegar que é dado direito
órgãos do Estado; neste caso deve imperar e é legitimo ao Ministério Público investi-
os princípios da lógica, da racionalidade, gar, porque se deve na atualidade ampliar
da proporcionalidade, da humanidade e o leque de combate à criminalidade, à cor-
outros. E não há que se falar em quebra do rupção, etc.; O Ministério Público não pode
princípio da legalidade ou da obrigatorie- investigar – no sistema atual - exatamente
dade, posto que não é total ou absoluto. porque é detentor do direito de controlar
No Estado Democrático de Direito, a investigação, de requisitar provas, de
não se acusa por acusar, não se denuncia denunciar e de pedir a condenação e a ab-
por denunciar, não se processa por proces- solvição, do contrário restaria quebrado o
sar19. sistema democrático e o Estado Judiciário,
Tudo porque as Nações Unidas re- bem como a isenção e a imparcialidade.
comenda aos Agentes do Parquet, de todo Ao nosso ver, o Ministério Público
o mundo que procurem renunciar e de- poderia investigar determinados crimes,
quando expressamente definido em lei;
clinar dos processos criminais e da pena
quais os ilícitos e em que casos, assim
de prisão, visto que são comprovados os
poder-se-ia ter uma investigação criminal
seus efeitos negativos; assim expressam as
sob a presidência do Ministério Público
cláusulas ns. 17 e 18, das Orientações Bá-
subsidiária do inquérito policial, propria-
sicas da ONU de 1990.
mente dito, como prevê a Constituição fe-
Por este motivo encontra-se discipli-
deral e a legislação penal, art. 5º inc. LIX
nado no art 129 e seus incisos da Consti- CF - código penal e de processo penal, § 3º
tuição federal, a privacidade e titularidade art. 100 CP e art. 29 CPP -, uma espécie de
da Ação Penal Pública, o controle externo ação penal privada subsidiária da pública;
da atividade policial, dentre outras atribui- exercendo assim o controle externo da ati-
ções institucionais. vidade policial, nos termos do art. 129, inc.
As investigações criminais pelo Mi- VII da Carta Magna.
nistério Público, têm gerado grande con- Somente se justificaria a investigação
trovérsia jurídica quanto a interpretação direta pelo Ministério Público quando a
legal de legitimidade para tal tarefa, vez polícia for declarada ou reconhecida como
que a Constituição federal e o Código de incompetente, irresponsável ou corrupta. A
Processo Penal (arts. 129, incisos I, VII e investigação ministerial subsidiária do in-
VIII CF; e arts. 4º e segts CPP) disciplinam quérito policial, poderá existir legalmente
e regulamentam a função ministerial e da nas hipóteses de:
polícia judiciária como órgão de seguran- a)- haver inércia quando os órgãos
ça pública para apurar as infrações penais, de segurança pública ou a polícia judici-
todas, exceto as de competência da polícia ária não agir de oficio, não cumprir atos e
federal (art. 144 § 4º CF). prazos legais;
Ao Ministério Público é atribuída a b)- quando a significatividade do
função de controle externo das investiga- caso exigir a atuação especial do Ministé-
ções policiais, isto é, na forma de requi- rio Público, por exemplo:
sições ou de ordens jurisdicionais, bem - nos crimes contra administração
como o controle completo do desenvolvi- pública e da justiça

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 185

- nos crimes contra instituições finan- criminal pelo Ministério Público, legiti-
ceiras, desfalques e lavagem de dinheiro mando a ação e suas atribuições legais, de-
- nos crimes de desvios de verbas pú- finindo assim quais os crimes de sua com-
blicas petência direta, a possibilidade de delegar
- nos crimes contra a criança, adoles- a função à polícia, bem como o direito de
cente e idoso assumir, tomar para si, a investigação mi-
- nos crimes contra o meio ambiente nisterial subsidiária do inquérito policial.
- nos crimes que envolvam o narco- Tudo perfeitamente previsto e disciplina-
tráfico do, o que não é admissível no Estado De-
- nos crimes organizados; e/ou mocrático e no sistema acusatório, é que
c)- quando em algum ilícito existir a o Ministério Público pretenda investigar
participação direta ou indireta envolvendo o que deseja e quando deseja, sem critério
policiais ou agentes de segurança pública. legal, única e exclusivamente segundo seu
Assim seria lógico e racional, nestes juízo ou interesse, longe de limites legais,
casos, que representam maiores danos aos isto é, escolhendo casos, o que no mínimo
direitos individuais e coletivos da cidada- indica, suspeita, para arquivar, absolver ou
nia, e também com motivo de preservar condenar indevidamente comprometen-
as instituições da Polícia Civil, Federal e do a lisura, a probidade e a honra pessoal
Militar, o Ministério Público toma as in- de seus membros e da instituição no seu
vestigações do caso “in concreto”, dando todo.
desta forma mais transparência e imparcia- Sem modificação no Texto Maior
lidade aos atos de persecução criminal do através de uma emenda constitucional
Estado. e sem a vigência de legislação federal, o
Só nestas hipóteses justificaria a in- Ministério Público investigando configura
vestigação policial-criminal pelo Ministé- indubitavelmente Promotoria de Exceção,
rio Público, do contrário configura interfe- proibida constitucionalmente.
rência, dupla função, intromissão indevida, Vários autores, professores e juris-
exercício arbitrário, abuso de poder e usur- tas renomados são contrários a investiga-
pação de função pública, no conceito “lato ção do criminal pelo Ministério Público
sensu”. (ex. Rogério Lauria Tucci; Flavio Borges
Nestes e em outros crimes o Ministé- D’Urso; Min. Nelson Jobin, e tantos ou-
rio Público não estaria restrito e obrigado tros penalistas ilustres) por inexistir lei no
a investigar, também a seu critério ou juízo presente momento que regulamente o pro-
de valor, segundo sua capacidade estrutu- cedimento investigatório ministerial; bem
ral ou interesse direto, teria o poder para como porque o nosso sistema inquisitivo
delegar a função investigatória ministerial (Código de Processo Penal) não possibilita
à polícia, através de requisições para ins- tal desiderato. Nos países em que o Minis-
taurações de inquéritos policiais e de dili- tério Público investiga, o sistema é outro,
gências específicas como estabelece o art. é acusatório, existe principalmente a figura
5º II do Código de Processo Penal, acom- do chamado “juiz de garantia”, indepen-
panhando o trabalho da policia via a atri- dente e desvinculado com a seqüência da
buição constitucional na forma de controle instrução e proibido de sentenciar; portanto
externo previsto na Carta Magna. é um magistrado taxativamente imparcial.
Ressaltamos que esta é a maneira No caso brasileiro, não é desta forma que
para regulamentar o poder de investigação ocorre, posto que o mesmo juiz atua na in-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


186 Cândido Furtado Maia Neto

vestigação, na instrução criminal e decide. trário o delegado de polícia e também o


Esta, portanto, é a questão de fundo que magistrado poderiam de igual forma. Esta
deve ser discutida cientificamente, e não proibição significa respeito aos princípios
o interesse da instituição ou da sociedade gerais do sistema acusatório democrático,
para que se combata a criminalidade orga- em nome das garantias fundamentais da
nizada, os crimes violentos ou a impunida- cidadania e para a realização da verdadeira
de. Trata-se de questão meramente formal justiça imparcial.
para garantia da cidadania e da ordem jurí- É de se lembrar que no passado tanto
dica, em outras palavras pela efetivação do a autoridade policial como a judiciária tam-
Estado Democrático de Direito. bém investigavam e iniciavam a acusação,
Todos os cidadãos possuem o direito dando seqüência através da “persecutio
de saber e de ser processado e julgado por criminis, era uma espécie “sui generis” de
promotores e juízes naturais da lide, res- procedimento criminal via Portaria, o que
pectivamente, sendo taxativamente proi- foi revogado pela Carta Magna de 1988.
bido a criação de Promotorias e Tribunais No Estado Democrático de Direi-
especiais para investigação e julgamento to não se admite que existam dois órgãos
de casos excepcionais. ou instituições com a mesma atribuição,
Na verdade se existisse a instituição a duplicidade de função não é possível
da defensoria pública, obviamente que no regime democrático, vez que todas as
seus membros ou representantes não iriam atribuições são perfeitamente divididas e
admitir a possibilidade de um Delegado de encarregada a cada Poder do Estado, para
Polícia vinculado diretamente à Promoto- que independente e harmonicamente se in-
ria de Investigações Criminais (PIC). Esta tegrem e desempenhem as missões e prer-
Promotoria de Justiça de Investigações rogativas constitucionais.
Criminais pode existir, porém com atri- Vejamos por exemplo, na ocorrên-
buições regulamentadas que não ofendam cia de retardo ou desinteresse de exercer
o princípio da imparcialidade e do “onus o papel determinado pela lei, e o agente
probandi” no Estado Democrático, garan- não o faz, por má-fé, não realiza o ato para
tindo-se de outra forma, também os prin- satisfazer vontade própria ou de terceiro,
cípios da ampla defesa e do contraditório, estaria cometendo o crime de prevarica-
indispensáveis à efetivação do devido pro- ção, definido no art. 319 do Código Penal;
cesso legal. porém havendo dois órgãos incumbidos da
O Ministério Público pode e deve mesma tarefa fica quase que impossível
investigar, mas na prática esta missão se e inviável caracterizar o ilícito e imputar
manifesta através das requisições ministe- responsabilidade criminal, pela da inércia,
riais, o que significa ordem de diligências à posto que um imputará a culpa ou a incum-
autoridade de polícia judiciária, via Inqué- bência a outro.
rito Policial e/ou Processo Crime, propria- Quando se concede a titularidade
mente dito, sempre sob controle da legali- para a propositura da Ação Penal Pública
dade, isto é em preservação das garantias ao Ministério Público, não se estende esta
fundamentais. para a investigação policial, são atribuições
No sistema acusatório o mesmo ór- distintas, com fases também distintas.
gão que produz a prova, centraliza e con- As legislações penais e processuais
trola a investigação não pode propor a vigentes em outros países que permitem o
Ação Penal o “ius persequendi”, do con- Ministério Público investigar, no caso de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 187

algumas na América Latina como na Eu- e instituições investigam e por que não é
ropa, são sistemas distintos, acusatórios e dado direito também ao Promotor de Justi-
não inquisitivos, onde se encontra previs- ça, ledo engano; pela única e simples razão
to os direitos fundamentais, dentre eles da de ser o agente do “Parquet” encarregado
ampla defesa e do contraditório, bem como exclusivo (art. 129, inc. I CF) da proposi-
os princípios da legalidade da prisão e do tura da Ação Penal, titular e “dominus li-
processamento – devido processo legal tis” da “persecutio criminis”.
– do ônus da prova, da presunção de ino- Por exemplo: os membros das CPIs
cência, tudo perfeitamente observado dire- – Comissões Parlamentares de Inquérito
tamente pela figura do juiz de garantias. – possuem poder para investigar, também
Sistema acusatório significa que o o Poder Judiciário quando da ocorrên-
Estado, ou melhor, o Ministério Público cia de ilícitos praticados por magistrado,
quando apresenta uma denuncia contra um ainda os repórteres investigativos, dentre
cidadão, o faz em base a provas sólidas e outras várias situações ou hipóteses; mas
robustas quanto ao dolo – conhecimento da em nenhum caso, repito, em nenhum caso,
proibição legal e intenção de praticar uma possuem o poder de oferecer denúncia no
conduta ilícita - sem prejuízo da ampla de- processo criminal, somente o Ministério
fesa e do princípio do contraditório, espe- Público, lhe é dado esta atribuição, e não o
cialmente no que se refere a garantia mor, poder de investigar.
a presunção de inocência e o dever maior Em excelente artigo publicado in MP
ministerial, o “onus probandi” (aquele que Notícias, de autoria do Prof. René Ariel
acusa tem o dever de provar). Não se ad- Dotti, intitulado “O Desafio da Investiga-
mite acusar, denunciar ou pleitear a con- ção Criminal”, assevera que é simplista a
denação amparada em indícios, como no afirmação generalizadora segundo a qual o
passado autoritário. Ministério Público não detêm poderes de
Note-se. No Estado Democrático de investigação, visto que o Delegado inves-
Direito e/ou no sistema acusatório (de jus- tiga; o agente policial investiga; o escrivão
tiça penal) o Ministério Público na verdade de Polícia investiga; o Advogado investi-
não acusa, porque a expressão “acusar” ou ga; o Juiz investiga; o perito investiga. Po-
“acusação” não é a mais correta ou ade- rém, é necessária uma reordenação consti-
quada a um sistema de garantias constitu- tucional-legal para estabelecer o concurso
cionais fundamentais, o agente do “Par- de funções. O inquérito policial ou melhor
quet”, no uso de suas atribuições legais criminal deve constituir um procedimento
quando oferece denúncia requer ao Poder único, não se admitindo uma investigação
Judiciário, simplesmente a instauração da paralela, a um Procedimento Administra-
ação penal pública correspondente, já o pe- tivo Investigatório pelo Ministério Públi-
dido de condenação dever ser feito somen- co. Se faz necessário um novo modelo de
te nas suas derradeiras alegações, quando investigação criminal, mantendo-se a ta-
efetivamente convencido da culpabilidade, refa policial, do Delegado de Polícia, ao
provada a autoria e a materialidade deliti- instaurar o inquérito produzirá as provas
va, tudo em base a elementos concretos e mínimas e necessárias que o acreditem, e
absolutos, do contrário impera o princípio posteriormente ao enviar ao Ministério Pú-
“in dúbio pro reo”. blico - não ao Poder Judiciário -, este pro-
A quem diga que o Ministério Públi- cedimento – caderno investigatório -não
co pode investigar porque muitos órgãos mais retornará à repartição policial, fica

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


188 Cândido Furtado Maia Neto

sob cuidados de continuidade para junta- do Estado legislar concorrentemente (§ 4º


da de provas complementares pelo agente art. 24 CF).
ministerial natural – promotor competen- No passado, a exemplo da época da
te, isto é de investigação criminal -, ante inquisição era dado direito ao juiz ou a au-
a indispensável supervisão de um juiz de toridade que sentenciava, investigar, acu-
garantia para o devido controle jurisdicio- sar e julgar, mas isto era no período da in-
nal, assegurando desta forma os princípios quisição ou dos Tribunais do Santo Ofício.
gerais da ampla defesa e do contraditório, Hoje na vigência do Estado Democrático
já que o “ônus da prova” compete ao ór- de Direito (art. 1º CF), não é mais possível
gão “acusador” (MP); porém, este não se admitir que órgãos encarregados de ofe-
encontra obrigado a acusar, pode e cabe recer denúncia possam antes também in-
pleitear o arquivamento das investigações vestigar e exercer sua função de acusador,
criminais “ex vi” do art. 28, 41, 43, 647 e pleiteando ao final a condenação.
648, todos do Código de Processo Penal. É óbvio que quem esta investiga e
Inclusive existindo um Procedimento oferece denúncia, conseqüentemente não
Investigatório sob a presidência do Delega- será outro a não ser o requerimento de con-
do de Polícia, que exerce sua função cons- denação, quebrando desta maneira o prin-
titucional-legal de polícia judiciária (arts. cípio da imparcialidade, da ampla defesa e
144, incis. I e VI, e 4º da Carta Magna e do do contraditório.
Código de Processo Penal, respectivamente) A investigação criminal pelo Minis-
em paralelo ou com participação direta pelo tério Público somente será possível legal-
Ministério Público, na hipótese de configu- mente quando for modificado o artigo 144
rar coação ou constrangimento ilegal, quem § 4º da Constituição Federal, via emenda
seria a autoridade co-atora?, contra quem se constitucional que define a atribuição de
impetraria ordem de habeas corpus? investigar à polícia judiciária, seja federal
Para René Ariel Dotti, o chamado ou civil, de acordo com a competência da
Procedimento Administrativo Investiga- justiça penal. Dizer que o Ministério Públi-
tório Criminal instaurado e presidido pelo co pode investigar porque é titular da ação
Ministério Público é inconstitucional, por- penal e porque tem poder para requisitar
que ofende o princípio do devido processo diligências policiais, é tentar confundir ou
legal, não existe prazo para o seu encerra- fazer imensa confusão entre institutos jurí-
mento, não existe previsão legal ou regula- dicos e atribuições dos órgãos e instituições
mentar para expedir notificação com força públicas, segundo reza a “lex fundamenta-
de expedir notificação e exigir o compare- lis” e a legislação infraconstitucional, isto
cimento coercitivo do notificado. Ofende a é, o Código de Processo Penal e a Lei Or-
ampla defesa porque não permite ao acu- gânica Nacional do Ministério Público dos
sado requerer diligências, o sigilo é regra Estados e da União (Leis nºs 8.625/93 e
e não exceção, fere portanto o princípio Complementar 75/93, respectivamente).
da legalidade, e não pode ser objeto de lei Não se pode alegar que é dado direito
estadual, visto que a competência para le- e é legitimo ao Ministério Público investi-
gislar em matéria penal e processual é ex- gar, porque se deve na atualidade ampliar
clusiva da União (art. 22, inc. I CF), assim, o leque de combate a criminalidade, à cor-
qualquer lei federal que estabeleça normas rupção, etc.; que as Comissões Parlamen-
gerais que contrarie lei estadual, suspende tares de Inquérito investigam, como a im-
sua eficácia, são os limites da competência prensa, o Poder Judiciário quando no fato

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 189

delituoso existe magistrado envolvido, Algumas pessoas (autoridades) pos-


etc. São todos exemplos que não afetam suem foro privilegiado para o julgamento,
o princípio da imparcialidade e da inércia, de acordo com o cargo que ocupam, trata-
porque não postulam a ação penal, não são se de competência ratione personae.
“dominus litis” da demanda judicial. O Mi- A competência para o julgamento
nistério Público não pode investigar exata- criminal está definida no art. 69, e seguin-
mente porque é detentor do direito de con- tes do CPP, combinado com o art. 92 re-
trolar a investigação, de requisitar provas, ferente ao Poder Judiciário, Capítulo III, e
de denunciar e de pedir a condenação, do seguintes da Carta Magna.
contrário restaria quebrado o sistema de- Qualquer designação de agente mi-
mocrático e o Estado Judiciário, bem como nisterial “a posteriori” ao fato ilícito, en-
a isenção e a imparcialidade. carregado para exercer a investigação e a
O princípio da transparência e da boa- acusação, caracteriza sem dúvida “Promo-
fé, deve reinar na administração pública, toria de Exceção”. As Nações Unidas em
essência de qualquer investigação criminal seu documento oficial destinado ao Mi-
ou ação penal, vinculando-se ao princípio nistério Público (Diretrizes Básicas, ONU
mor de justiça, diretamente entre o órgão – 1990), estabelece que seus agentes exer-
cem suas funções de maneira coerente e di-
“acusador” e o cidadão que se defende,
ligente, respeitam e protegem a dignidade
para a realização do devido processo, justo
humana, defendem os direitos da pessoa
e necessário, ante os princípios do “onus
humana, contribuindo, assim, para garan-
probandi” ministerial e especialmente o da
tir um procedimento criminal correto e o
“presunção de inocência”.
bom funcionamento do sistema de justiça
A Carta Magna garante no inciso
(cláusula 12); e ainda, dão prova de impar-
XXXVII do art. 5º, que não haverá Tribu- cialidade (cláusula 13).
nal de exceção, inclua-se Promotoria de Ao Ministério Público incumbe o
Justiça de exceção, aquelas designações “ônus da prova”, isto é “da acusação”,
especiais para agentes do Ministério Pú- razão pela qual a denúncia deve ser pro-
blico atuarem no feito, após o fato consu- duzida em base a elementos fortes de con-
mado. vicção, quanto a autoria, materialidade,
Promotor de Justiça (Natural) é todo tipicidade, sem olvidarmos o instituto da
aquele agente ministerial com poderes e legitima defesa, como excludente de an-
atribuições administrativas e jurisdicio- tijuridicidade; tudo em fulcro ao princí-
nais exclusivas, previamente estabeleci- pio do livre convencimento e ao “opinio
das na Constituição, em lei penal adjetiva delicti” do Ministério Público (art. 129,
e nas normatizações ou instruções supe- I CF). Para solicitar a condenação se faz
riores do Ministério Público devidamente necessário que existam provas concretas e
publicadas na imprensa oficial da União absolutas da culpabilidade, assim trilha a
ou dos Estados (ver Maia Neto, Cândido justiça no Estado Democrático de Direito,
Furtado, in “O Promotor de Justiça e os com respeito ao devido processo legal e as
Direitos Humanos”, ed. Juruá, Curitiba- provas lícitas (inc. LVI art. 5º CF); jamais
PR, 2003). a condenação poderá ser em base a hipó-
Todos os cidadãos deverão ser jul- teses, suposições, indícios, evidências ou
gados pelos juízes naturais da lide, sendo conjecturas, posto que o princípio “in du-
proibido a criação de Tribunais especiais bio pro reo” prevalece ante o chamado “in
para julgamento de casos excepcionais. dubio pro societat”.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


190 Cândido Furtado Maia Neto

Nesse sentido o ius persequendi possibilita a aplicação e interpretação mais


– persecutio criminis – esta para o órgão acertada das normas infraconstitucionais
que impulsiona a ação penal – Ministério ou da legislação vigente.
Público -, em outras palavras é o dominus Por certo, que estamos vivemos sob a
litis da Ação Penal, e também detêm o “ius égide da ilusão penal, como afirma Maurí-
puniendi” ante a impossibilidade do Poder cio Antonio Ribeiro Lopes, em razão da má
Judiciário de penalizar sem pedido, em aplicação da lei penal, via interpretações
nome do princípio mor da necessidade de equivocadas que flagrantemente ofendem
imparcialidade total da Justiça. princípios gerais e garantias fundamentais
individuais da cidadania.
4. Conclusão
O direito penal possui caráter frag-
A lei suprema do país não pode e não mentário e subsidiário do direito consti-
deve conter dispositivos de normas ordiná- tucional, ante as diretrizes universalmente
rias, mas sim única e exclusivamente re- consagradas pelos Direitos Humanos, as
gulamentos básicos e gerais de princípios ciências criminais, somente protegem bens
fundamentais, uma vez que a Constituição jurídicos relevantes para a convivência
tem por objetivo uma consistência geral, pacífica e social, qualquer intervenção do
para ser imutável e rígida quanto ao pro- direito penal material ou formal está con-
cesso de reforma. dicionada a importância ou a gravidade da
O que podemos notar e analisar é que lesão ao bem jurídico-penal tutelado pelo
a Constituição em vigor, traz um aglome- Estado.
rado de dispositivos referentes aos princí- Em face desse raciocínio existe uma
pios gerais de direito penal material, for- tendência doutrinária e jurisprudencial para
mal e executivo, e se por ventura alguma a não intervenção ou melhor para mínima
transformação ou modificação se fizer no intervenção das normas penais na resolu-
Código Penal ou no Código de Processo ção dos conflitos, evitando-se desta forma
Penal, os princípios básicos e gerais deve- a aplicação de leis penais de emergência.
rão ser observados obrigatoriamente; este No Estado Democrático onde se pre-
é o lado favorável da questão. serva o direito individual no âmbito do di-
É certo que nem toda política cria um reito público encontramos o direito penal e
direito, também é certo que criar um direi- as liberdades públicas civis vinculadas ao
to é a suprema verificação histórica a que direito constitucional e aos Direitos Huma-
se pode submeter uma política. Um regime nos. De outro lado, temos o direito coletivo
político que dá nascimento e força a um e o direito privado.
novo sistema de direito positivo (Renova- Lei em favor do povo e não em favor
ção do direito - San Tiago Dantas/Textos do rei, em outras palavras, cidadania versus
de aula Universidade de Brasília/ sessão de governo, ou ainda administração pública a
25.10.1941 - Faculdade Nacional de Direi- serviço das garantias fundamentais, sem-
to da Universidade do Brasil). pre em favor do mais fraco, na definição
A base do ordenamento jurídico é a de Luigi Ferrajoli.
teoria constitucional do direito penal e dos A prestação jurisdicional penal so-
Direitos Humanos, é impossível, nos dias mente se efetiva com o respeito aos prin-
atuais construir doutrina ou tese jurídica, cípios gerais de Direitos Humanos, obser-
sem amparo na mencionada teoria, pois se vando desta forma o devido processo legal,
trata do sustentáculo do sistema legal que assegurando ao processado e ao preso to-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 191

dos os direitos, bem como a devida aten- a segurança”, disse com propriedade Ben-
ção às vítimas de crime. jamin Franlkin. Mingúem deve abrir mão
Não podemos mais admitir que o de seus próprios direitos, objetivando a
direito penal converta a vítima real e con- prisão ou a condenação de outrem, trata-se
creta em um mero conceito, em mais uma de uma opção equivocada em fundamentar
abstração para o enfrentamento simbólico o sistema sobre tendências autoritárias e
com o infrator, para que o direito penal demagógicas.
não se distancie ainda mais das partes em Existem as normas constitucionais
conflito. “A vítima que acessa o sistema colocadas no mesmo plano de abstração
requerendo o julgamento de uma conduta das normas penais.Sempre que houver in-
definida como crime - a ação, regra geral é compatibilidade com uma norma da lei pe-
de iniciativa privada - acaba por ver-se ela nal, esta deve ser considerada totalmente
própria “julgada” (pela visão masculina revogada. A própria Constituição, na ver-
da lei, da polícia e da justiça), incumbin- dade, em sua estrutura, permite largo âm-
do-lhe provar que é uma vítima real e não bito de ação ao legislador ordinário, com
simulada” 20. dois limites: o formal, do processo de ela-
Por sua vez, como sabemos “a pena boração das leis, e o substancial, do con-
não intimida, não ressocializa e não casti-
teúdo não incompatível com os princípios
ga. Nem mesmo retribui. Ela perdeu a sua
constitucionais21.
utilidade. Só os pobres a cumprem”, muito
Sempre que houver norma e se torne
bem asseverado por César Barros Leal, e
inviável o exercício de um direito constitu-
eu direi mais, complementando: “nunca
cional, poder-se-á impetrar o novo institu-
teve utilidade humana a pena privativa de
to constitucional expresso no expresso no
liberdade ou a prisão propriamente dita,
sua existência e origem foi transformada inciso LXXI art. 5º CF (Mandado de injun-
de maneira camuflada para apresentar uma ção), na falta de norma regulamentadora
aparente solução aos problemas sociais não hierarquicamente inferior a suprema lei do
enfrentados politicamente pela causa”. país, com caráter complementadora neces-
É uma idéia muito equivocada pen- sária, com o fim de se colocar em prática
sar que o cárcere é reflexo de Justiça, pelo a Carta Magna, para decorativa, sem fazer
contrário representa a falência da adminis- valer o que ela própria assegura.
tração e a inutilidade dos fins da pena, inti- Necessário se faria a intervenção
midação e ressocialização. popular no processo constituinte nacio-
Existem aqueles que pensam que nal, uma vez que o povo deveria ter sido
estão trabalhando com um direito penal chamado para sancionar ou rejeitar o tex-
moderno, porém não nos distanciamos e to, ao todo ou em parte, aprovado pelos
muito menos evoluímos o necessário para representantes legislativos, isto chama-se
dizer que as premissas e as teorias aplica- Referendum constitucional, através de um
das na práxis jurídico-penal de hoje sejam plebiscito popular22.
inovadoras. Tudo se encontra em base a Tanto era necessária a intervenção
conceitos clássicos e ortodoxos ultrapas- do povo em geral na finalização do texto
sados, e o princípio moderno da mínima constitucional, que os próprios constituin-
intervenção é esquecido propositalmente tes previram uma revisão após cinco anos
ou demagogicamente. (art. 3º das disposições constitucionais
“Quem sacrifica a liberdade em nome transitórias - ADCT), ao meu ver um abu-
da segurança não merece a liberdade, nem so jurídico, pois a lei suprema é feita para

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


192 Cândido Furtado Maia Neto

ser duradoura e não estar constando em seu se agravaram os problemas da administra-


corpo sua reforma em um pequeno lapso ção dos Tribunais do Santo Ofício. Porém
temporal. a permissão de interrogatório sob tortu-
O inciso LXXV do art. 5º da Consti- ra oficialmente já acontecia desde 1252,
tuição federal reza sobre o direito de inde- por ordem do Papa Inocêncio IV através
nização por erro judiciário, e este ao nosso da bula “ad extirpanda” que autorizava o
ver deve ser analisado com mais profun- emprego da tortura nos interrogatórios ju-
didade e responsabilidade, trata-se de uma diciais.
importante ou se senão a maior garantia A aplicação de penas desumanas,
constitucional da cidadania para assegurar infamantes e degradantes era costumei-
a pronta e boa-fé atuação da administra- ra e prevista no direito penal na época do
ção da justiça. O cidadão não pode ficar a Brasil-Colônia, nas Ordenações do Reino
mercê do abuso de poder ou vulneráveis às Unido de Portugal - Afonsinas, Manueli-
arbitrariedades cometidas por agentes ou nas, Filipinas e o Código de Don Sebastião
servidores públicos, pois o crime de abuso -, quebra do princípio da inércia (“no judex
de autoridade (Lei nº 4.898/65) possui san- ex officio”) e da imparcialidade, existência
ção tímida em relação ou em proporção ao de juízos de exceção e a aceitação do prin-
dano causado contra as vítimas individuais cípio da culpabilidade; para não falarmos
ou coletivas desta espécie de ilícito23. da quebra das garantias fundamentais da
As Cartas Magnas de 1824 e de 1891, cidadania nos regimes militares, quando se
prescreviam taxativamente sobre o abuso cassa o direito de ir e vir (“ius libertatis”),
de poder, estabelecendo desta forma: “Os o direito a privacidade e da intimidade, de
empregados públicos são estritamente res- reunião e associação, entre tantos outros
ponsáveis pelos abusos e omissões prati- direito e garantias (Emendas Constitucio-
cadas no exercício das suas funções, e por nais nsº 01 à 27 e Atos Institucionais).
não fazerem efetivamente responsáveis os Definitivamente entendemos que é
seus subalternos” (inciso XXIX, art. 179), preciso de uma vez por todas, olvidar os
e “É permitido a quem quer que seja repre- conceitos ortodoxos e dogmas penais ul-
sentar, mediante petição, aos poderes pú- trapassados, dos tempos de outrora, da
blicos, denunciar abusos das autoridades época da abominável inquisição ou dos
e promover a responsabilidade dos culpa- períodos ditatoriais, antidemocráticos que
dos” (§ 9º, art. 72), respectivamente. vergonhosamente reinaram neste país e no
“Direito Penal do Terror” 24 e nunca mundo todo, para fazer valer as liberdade
mais Brasil25, é chegada a hora de efetivar civis e políticas dos cidadãos e ainda para
de uma vez por todas o sistema acusatório cada vez mais obrigar as autoridades pú-
democrático, e de dar adeus ao sistema in- blicas a se conscientizarem que estão onde
quisitivo, seja na práxis policial como no estão – desempenhando suas funções em
meio forense. Inquisição lembra autorita- seus postos - por que receberam um dele-
rismo, pratica usual dos Tribunais do Santo gação popular – um mandato -, e em nome
Ofício (séc. XIV; e em 1536, a Bula “cum do povo devem trabalhar, nada mais do
nihil magis” do Papa João III, ordenou a que isto, e simplesmente isto.
criação do Tribunal do Santo Ofício em Feitura das leis, administração pú-
Portugal), o pior período da inquisição foi blica e prestação jurisdicional em prol da
entre 1721-1730, com a unificação das Co- cidadania, é o que determina o Estado De-
roas Castelhana e Portuguesa (1580) onde mocrático de Direito.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 193

Note-se que a atual Carta Magna A ação estatal se compreende como certa
consagra de maneira firme e importante e justa, quando tem objetivo e visa o bem
todos os princípios reitores de um Estado comum no contexto macro do interesse in-
Democrático de Direito, assegurando na dividual, preferencialmente vinculado ao
sua plenitude as garantias fundamentais da interesse privado; visto que muitas vezes
cidadania no tocante aos seus direitos e in- o interesse privado deve prevalecer ante o
teresses indisponíveis sociais e individuais, interesse público, pois a administração es-
prevalecendo sempre os direitos humanos, tatal esta sujeita ao cometimento de equí-
seja a nível nacional ou internacional, isto vocos, e estes erros prejudica e desrespeita
é, no âmbito do direito público interno e norma asseguradora de direito fundamen-
externo, na forma da legislação pátria e do tal estritamente individual da cidadania.
ordenamento jurídico, ante as teorias mais Por esta razão que quando o Poder
modernas e avançadas de proteção e res- Judiciário exercita a prestação jurisdicio-
peito à dignidade da pessoa humana, em nal ao julgar uma causa não esta represen-
base a soberania e validade hierárquica das tando o Estado, mas fazendo valer uma
normas. decisão de Poder Público independente e
Aplicar e interpretar a legislação pe- autônomo, principalmente consagrando o
princípio da imparcialidade dos julgamen-
nal ordinária pura e simplesmente, é des-
tos, ou dos juízes, possuidores de prerroga-
conhecer os valores maiores das leis, seus
tiva funcional máxima, a guardada do prin-
princípios e fundamentos de inspiram o
cípio do livre convencimento. Entende-se
próprio sistema de justiça criminal demo-
assim que todo Poder emana do povo e em
crática. No passado, ou melhor, na vigência
seu nome dever exercido.
de regimes ditatoriais ou antidemocráticos
Os próprios servidores do Poder
era possível aplicar o direito penal pelo di- Executivo devem atuar em nome da cida-
reito penal, hoje não mais é possível tratar dania e não dos interesses do governo – da
das questões da prevenção e da repressão administração pública -, até os pareceres e
da delinqüência de maneira desconectada, pronunciamentos jurídicos dos Procurado-
separada ou sem atenção ao princípio da res do Estado – advogados da administra-
congruência dos textos legais. A primeira ção – podem ser no sentido favorável ao
análise que se deve fazer remete obrigato- cidadão quando amparado pelo direito. A
riamente o profissional do direito ao estu- Lei da Advocacia e da OAB (nº 8.906/94)
do da constitucionalidade das leis inferio- impõem como regra deontológica a liber-
res para a correta aplicação e interpretação dade profissional, a ética e o bom direito
da legislação, sim se exerce verdadeira e acima de tudo, principalmente quando se
eficientemente o encargo estatal da presta- tratar de questões políticas partidárias. Da
ção jurisdicional, para a plena realização mesma forma os representantes do Parla-
da justiça em nome e a serviços de todos os mento – Congresso Nacional, Assembléias
cidadãos que buscam através dos litígios Legislativas e Câmara de Vereadores –
judiciais uma solução adequada à pacificar quando propõem, discutem e aprovam leis,
seus interesses individuais ou sociais. esta devem ser em benefício da sociedade,
O Estado como ente jurídico se legi- em primeiro pleno; quando existem leis de
tima por intermédio da sociedade, via prin- interesse só do governo, estas são por sua
cípio da representação popular quando são própria natureza contra o povo.
outorgados às autoridades e servidores pú- Sociedade justa, solitária e democrá-
blicos à administração dos bens do erário. tica – direitos da vítima – assim é a rea-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


194 Cândido Furtado Maia Neto

lização da Justiça Plena, balança pratos características flagrantemente autoritária,


pender, dar a cada um o que é seu, sem dis- assim precisamos olvidar do chamado
criminações de qualquer espécie, interpre- “Brasil Nunca Mais” – com relação as tor-
tar e aplicar a lei corretamente, em nome turas, desaparições de pessoas, execuções
do Estado e do titular do bem jurídico-pe- extra-oficiais, e muito arbítrio no poder e
nal (vítima de crime). abuso de autoridade.
Nesta linha de raciocínio chegamos Violação dos Direitos Humanos per-
a conclusão que se respeitadas as garantias mite até o deslocamento de competência,
fundamentais na íntegra estaremos diante nos termos da Emenda Constitucional nº
do chamado Estado Democrático de Di- 45/2004 (art. 109, § 5º), quando o Procu-
reito (Constitucional-Penal ou de Direitos rador-Geral da República “ex officio” soli-
Humanos) onde os Poderes Executivo, cita ao Superior Tribunal de Justiça (STJ),
Legislativo e Judiciário exercem suas atri- para que o fato “sub judice” seja deslocado
buições e competências pró-cidadania e da Justiça Estadual para a Justiça Federal,
não versus sociedade, esta composta por ante a gravidade, significatividade e para
contribuintes e eleitores, verdadeiramente maior proteção e plenitude da devida apu-
legítimos como detentores do Poder. ração do abuso ou da ofensa às cláusulas
No passado a Constituição Imperial de Direitos Humanos, vigentes nos instru-
de 1824, outorgada por D. Pedro I, decla- mentos internacionais em que o governo
rava, entre outras coisas que: “A Dinas- brasileiro é parte por adesão e ratificação.
tia reinante é a do Senhor Dom Pedro I, Nesse sentido, infere-se ainda mais a ra-
atual Imperador e Defensor Perpétuo do zão da instituição do Ministério Público na
Brasil”, reconhecendo a existência de 4 tutela dos direitos individuais e nas garan-
Poderes, sendo o Executivo e o Modera- tias fundamentais da cidadania; posto que
dor exercido pelo Imperador. E mais re- qualquer violação aos Direitos Humanos,
centemente a Carta do chamado “Estado por intermédio de seus agentes, sujeita o
Novo”, também outorgada pelo Presidente Estado a responsabilidades internas e in-
da República Getúlio Vargas, dissolve o ternacionais graves.
Congresso, e com as justificativas de paz Já dizia “águia de Haia”, o eminente
política e social, sob a funesta iminência jurista pátrio, RUI BARBOSA: “a autori-
de guerra civil, pela infiltração comunista, dade investida de seu múnus, ante seu ju-
em nome da segurança e do bem-estar do ramento de servidor público, conhecedor
povo, fortalece o Executivo para reprimir de seu dever funcional, quando ultrapassa
as agitações internas, atribui ao Executi- os limites legais, isto é o circulo da lei, tor-
vo um papel preponderante na feitura das na-se o mais grave dos delinqüentes”.
leis – inclusive penais -, estabelecendo em
suma o primado do interesse público sobre
o interesse privado. NOTAS
Mais adiante as emendas constitucio- 1
DIMENSTEIN, Gilberto: in “Direitos Humanos do
nais nsº 1 a 25 de 1969 à 1985, que inspi- Brasil”, ed. Cia das Letras, São Paulo, 1996.
raram o regime militar, seguindo o sistema 2
BOBBIO, Norberto: in “O Positivismo Jurídico. Li-
de tipo facista de Getúlio Vargas, com as ções de Filosofia do Direito”; ed. Ícone; São Paulo,
1995.
supressões das garantias constitucionais 3
ANIYAR DE CASTRO, Lola: in “Criminologia da
fundamentais individuais da cidadania, Reação Social”; ed. Forense, RJ, 1983, trad. Ester
onde o direito e a justiça penal possuíam Kosoviski.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA... 195

4
REZEK, Francisco: in Maia Neto, Cândido Furta- Devido Processo no Estado Democrático”: Revista
do, “O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos”, Jurídica Consulex, Bsb-DF, ano VIII, no.171, 29 de
ed. Juruá, Curitiba, 2000, pg. 47. fevereiro/2004.
5
BORJAS, Sérgio Augusto Pereira de: in “Teoria 17
BRETÃS, José Bolívar: IN “A imperiosa necessi-
Geral dos Tratados” ed. Ricardo Lenz, Porto Alegre, dade da Defensoria Pública”, in Caderno Direito e
2001. Justiça, O Estado do Paraná, Domingo 16/12/03, pgs.
6
CARRAZA, Roque Antonio: in “Curso de Direito 8 e 9, Curitiba-PR.
Constitucional Tributário”, ed. Malheiros, 1996, SP. 18
MAIA NETO, Cândido Furtado, in Revista Prática
7
TOMASETTI JR., Alcides: in “Aspectos da Prote- Jurídica Consulex, julho/2002, pg. 20.
ção Contratual do Consumidor no Mercado Imobiliá- 19
MAIA NETO, Cândido Furtado: in “O Promotor de
rio Urbano”, Rev. Direito do Consumidor, Inst. Brás. Justiça e os Direitos Humanos”, ed. Juruá, Curitiba,
de Política e Direito do Consumidor, ed. RT, v. 2. 2000.
8
SCHUELTER, Cibele Cristiane: in Tratados Inter- 20
ANDRADE, Vera Regina Pereira de: in Revista Se-
nacionais e a Lei Interna Brasileira”, ed. OAB/SC, qüência p. 104/105 UFSC – Florianópolis.
Florianópolis, 2003. 21
NUVOLONE, Pietro: in “O Sistema do Direito Pe-
9
MAIA NETO, Cândido Furtado: in Revista de Juris- nal”/Capítulo II Estruturas constitucionais do Sistema
prudência Brasileira, n. 23, ed. Juruá, Curitiba, 1989. penal - - Ed. Revista dos Tribunais 1981 - São Paulo.
10
Zaffaroni, Eugenio Raúl: in “En Busca de las penas 22
MAIA NETO, Cândido Furtado: in “Constituição
perdidas”; ed. Temis, Bogotá, 1990; e “Derecho Pe- Federal: legítima ou ilegítima” – Emenda Constitu-
nal – Parte General; ed. Ediar, Buenos Aires, 2000. cional nº 26 de 27 de novembro de 1985 (artigo não
11
ANIYAR DE CASTRO, Lola: in “Criminologia da publicado, em preparo e revisão final).
Reação Social”, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1983; e 23
MAIA NETO, Cândido Furtado: in “Erro Judiciá-
“Criminologia de la Liberación”, ed. Univ. Del Zulia, rio, Prisão Ilegal e Direitos Humanos”; Revista Práti-
Maracaibo-Venezuela, 1987. ca Jurídica, Consulex, Brasília, abril/2003.
12
FERRAJOLI, Luigi: in “Derecho y razón”; ed. 24
DOTTI, René Ariel: in Tendências e Debates, jornal
Trotta. Madrid, 1995. Folha de São Paulo, 25.03.1991
13
ÀSUA, Luiz Geminaz: in “Tratado de Derecho Penal”. 25
Brasil: Nunca Mais; ed. Vozes, Petrópolis-RJ, 1986;
0
FRAGOSO, Heleno Cláudio: in “Lições de Direito organizado pela Arquidiocese de São Paulo.
Penal” Parte Geral 5o., Ed.Forense. Ver: “Inquisição e Justiça Penal Contemporânea”,
15
ZAFFARONI, E. Raúl: in “En Busca de las penas Maia Neto, Cândido Furtado, Revista Prática Jurídi-
perdidas”; ed. Temis, Bogotá, 1990; e “Derecho Pe- ca, ano III, nº 32, 30/11/2004, ed. Consulex, Brasí-
nal – Parte General; ed. Ediar, Buenos Aires, 2000. lia-DF.
16
MAIA NETO, Cândido Furtado in “Presunção de
Inocência e os Direitos Humanos - Justiça Penal e

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


196

A vocação contemporânea para a


constitucionalização do Direito: alguns aspectos
da Constituição como suporte interpretativo das
leis e códigos – o caso da interpretação conforme a
Constituição
The contemporary vocation for the Right
constitutionalization:
some aspects of Constitution as an interpretative support of
rules and
codes – the interpretation case according to the Constitution

André Ramos Tavares*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O presente trabalho pretende analisar a figura hodierna da Interpretação conforme. Seu
percurso abarca, é certo, questões triviais, como a de seu conceito, aplicação e distinção de outras
modernas formas “interpretativas’ do texto constitucional. Mas, mais do que isso, pretende suscitar
algumas ponderações, perturbações doutrinárias, acerca de sua relevância no momento chave em
que se encontra a figura da Constituição: a sua contestação pela doutrina democrática e o movimen-
to de constitucionalização do Direito.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Constitucionalismo. Hermenêutica Constitucional. Con-
trole de Constitucionalidade.

Abstract: The present essay intends to analyze the specific figure of the interpretation in accor-
dance to the Constitution. In order to do so, the essay will discuss about trivial aspects of the
interpretation in accordance to the Constitution, such as its concept, applicability and distinctions
with other forms of interpretation of the Constitution. Furthermore, the present paper will try to
instigate an academic debate about the relevance of the instrument hereby analyzed in the peculiar
moment that the Constitution lays: its contestation by the democratic doctrine and the process of
constitutionalization of the law.
Key Words: Constitutional Law. Constitutionalism. Constitution Interpretation. Judicial Review.

1. A idéia de supremacia cia (juntamente com a possibilidade de o


Judiciário realizar direta e imediatamente
Imprescindível se mostrou, desde a
o controle de constitucionalidade dos atos
concepção constitucional, a consubstan-
cial supremacia desse novel código escrito normativos infraconstitucionais, assegu-
em face das outras espécies normativas1. rando-se, assim, “concretamente”, a refe-
No exaustivamente mencionado case Mar- rida supremacia da Constituição):
bury vs. Madison, imputar-se-á à Consti- “The constitution is either a superior,
tuição, a inexorável nota de sua suprema- paramount law, unchangeable by ordinary

*Professor dos Programas de Doutorado e Mestrado em Direito da PUC/SP. Livre-Docente em Direito pela USP. Presidente do
Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A VOCAÇÃO CONTEMPORÂNEA PARA ... 197

means, or it is on a level with ordinary le- Nesse sentido, Celso Bastos, ao discorrer
gislative acts, and, like other acts, is alte- acerca da inicialidade fundante das normas
rable when the legislature shall please to constitucionais:
alter it. “De evidentes implicações a funda-
“If the former part of the alternative mentar o caráter distintivo da interpretação
be true, then a legislative act contrary to constitucional é o fato de ser a Constituição
the constitution is not law: if the latter part o fundamento de validade último de todas
be true, then written constitutions are ab- as demais normas do ordenamento jurídi-
surd attempts, on the part of the people, to co. Assim, mesmo que se trate de auferir
limit a power in its own nature illimitable. o sentido de uma norma da legislação or-
“Certainly all those who have framed dinária, proceder-se-á buscando elementos
written constitutions contemplate them as na Constituição” (Bastos, 1999: 52-53).
forming the fundamental and paramount Em outras palavras, a Constituição
law of the nation, and consequently, the apresentaria um papel de standard inter-
theory of every such government must be, pretativo. É nesse sentido que muitos dou-
that an act of the legislature, repugnant to trinadores, apressadamente, apresentam a
the constitution, is void. interpretação conforme como um método
“This theory is essentially attached to peculiar de interpretação constitucional
a written constitution, and is, consequently, (cf. Bastos, 1999: 171), inserindo-a den-
to be considered, by this court, as one of tre as modernas técnicas de interpretação
the fundamental principles of our society. constitucional.
It is not therefore to be lost sight of in the Tal raciocínio apresenta uma dupla
further consideration of this subject.”2. falha: a primeira, logo abaixo examinada,
Desnecessário dizer-se que o efeito residiria em considerar a denominada in-
imediato dessa concepção foi a submis- terpretação conforme como um caso puro
são das leis e atos do mundo normativo à de interpretação; a outra, analisada mais
verificação de sua compatibilidade com a adiante, está no fato de se associar a inter-
Constituição, no que se incluiriam todos pretação conforme à idéia clássica de su-
os códigos. Ato subseqüente, o modelo premacia constitucional.
do Estado legalista entra em crise, com a
lei perdendo a sua exclusividade enquanto 3. Onde há interpretação na “interpre-
fonte de produção do Direito. tação conforme a Constituição”?
Na concepção positivista, a Cons- A interpretação conforme à Cons-
tituição será, doravante, fonte do Direito tituição haveria de ser melhor entendida
(constitucional) e também conjunto nor- como um método de trabalho desenvolvido
mativo que disciplina as demais fontes do dentro da atividade de controle de consti-
Direito. tucionalidade, do que como, propriamente,
2. A interpretação conforme a Constitui- uma mera fórmula interpretativa (cf. Tava-
res, 2003: 234). Isto porque a sua ratio de
ção
utilização se dá no Tribunal Constitucional
Como consectário lógico do princí- (no caso de controle concentrado) e, até,
pio da supremacia da constituição, tem-se nos diversos tribunais e instâncias existen-
que a interpretação de toda e qualquer nor- tes no seio do Poder Judiciário (na hipótese
ma, ainda que infraconstitucional, have- de controle difuso), quando da verificação
rá de ter como parâmetro a Constituição. de eventual (in)constitucionalidade de de-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


198 André Ramos Tavares

terminado ato normativo, vale dizer, quan- engendrar, portanto, diversas significa-
do do exercício do que se pode chamar de ções, há de se respeitar, quando da reali-
vertente formal da Justiça Constitucional zação desta atividade, limites tão ou mais
(Tavares, 2005). É, assim, uma técnica de obscuros que os significados resultantes
decisão da Justiça Constitucional. da própria atividade interpretativa. Não há
Pela interpretação conforme a Cons- como negar-se que a tarefa interpretativa,
tituição enfatiza-se a supremacia desta, contrariando a idéia constante do positivis-
mas, de outra parte, reconhecem-se a le- mo formalista, não é meramente mecânica.
gitimidade das leis e a relevância demo- Em outras palavras, a interpretação não se
crática de sua origem, de forma que sua afigura, simplesmente, como um ato de
anulação só venha a materializar-se quan- conhecimento, mas sim como um irresis-
do única solução viável, vale dizer, como tível ato de vontade do próprio exegeta.
medida impositiva, última ratio. Portanto, Pela importância que assume a lição nas
a decisão que se utilizar desta técnica re- palavras de um autor como Kelsen, vale
sultará, formalmente falando, na declara- a referência:
ção de constitucionalidade (no Brasil) ou “A idéia, subjacente à teoria tradi-
na declaração de não-inconstitucionalida- cional da interpretação, de que a determi-
de (como ocorre nos demais países). nação do ato jurídico a pôr, não realizada
Mas como deve ocorrer a utilização pela norma jurídica aplicanda, poderia ser
desta preciosa técnica? obtida através de qualquer espécie de co-
Primeiramente, há de se dizer que nhecimento do direito preexistente, é uma
sua utilização parte de um pressuposto auto-ilusão contraditória, pois vai contra o
kelseniano, qual seja, de que cada enun- pressuposto da possibilidade de uma inter-
ciado normativo apresenta diversos signi- pretação” (Kelsen, 1995: 393).
ficados (moldura, cf. Kelsen, 1995: 388), Sem embargo, não se pode admitir
e não, apenas, um único, que imporia uma um ato de vontade absoluto, desenfreado,
apreciação maniqueísta de sua constitucio- ilimitado. Fazê-lo seria trilhar as veredas
nalidade, pois não se pode falar, como já da mais extremada subjetividade e, conse-
observava Savigny (p. 85), que só se de- qüentemente, da insegurança. Nesse senti-
mande interpretação quando houver obs- do, afigura-se essencial estabelecer deter-
curidade. minados limites, conforme já dito alhures:
Com efeito, cabe ao intérprete (no “A técnica, contudo, encontra limites,
caso, ao Judiciário) verificar quais sig- derivados tanto do âmbito literal da norma
nificados se encontram inseridos dentro quanto da vontade (objetiva) do legislador
da moldura, que é estipulada pela norma ao aprovar a lei. Existem, também, limites
constitucional, e quais se situam fora desta lógicos ao uso da interpretação conforme à
moldura. Desnecessário dizer que há, aí, Constituição, não se admitindo que o jul-
uma dupla tarefa, qual seja, a de estipular gador se substitua ao legislador, fugindo
o significado da própria norma constitu- da literalidade da lei. (...) deve-se afastar
cional e, posteriormente, o de estipular os a utilização desse recurso ‘quando, em lu-
diversos significados da norma ordinária. gar do resultado querido pelo legislador,
Ademais das próprias dificuldades se obtém uma regulação nova e distinta’”
que tal tarefa propicia, uma vez que a pró- (Tavares, 2003: 237).
pria norma constitucional tem como tônica Em outras palavras, não se pode pre-
a indeterminação, o que é suficiente para tender a inovação plena, quando da ativi-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A VOCAÇÃO CONTEMPORÂNEA PARA ... 199

dade exegética, distorcendo, de forma des- É nesse sentido que se torna preciso
compromissada e repudiável, o que consta o jogral semântico realizado pelo próprio
do enunciado normativo escrito. Esta é a Ministro, ao entender que a interpretação
lição clássica de Savigny (p. 105), ao afas- conforme não foi feita para conformar um
tar os intentos de corrigir o próprio pen- dispositivo infraconstitucional à norma
samento da lei, por meio da justificativa fundamental, mas, sim, para eliminar uma
não-aceitável do valor intrínseco do con- interpretação que lhe é desconforme.
teúdo resultante dessa interpretação, que Deixando de lado os limites a se-
consistiria, como lembra o autor, numa rem observados quando da utilização desta
tentativa de corrigir o próprio pensamento peculiar técnica de decisão, frise-se que a
do legislador3. sua realizabilidade tem como fundamento
No âmbito específico da interpreta- precípuo assegurar a mantença e eficácia
ção conforme, valem as ponderações ela- do ato normativo dentro do ordenamento
boradas por Carlos Ayres Britto, quando de jurídico, na medida em que se tem como
seu voto na ADPF 54, no sentido de que assente a idéia de que a declaração de in-
a interpretação conforme comporta duas constitucionalidade, embora seja um profí-
etapas. cuo remédio, apresenta-se, porém, repleto
Na primeira fase, alcunhada como de nefastos efeitos colaterais, dentre os
pressuposto de admissibilidade, deve-se quais se poderia, aqui, pinçar o problema
promover, única e exclusivamente, a inter- do vazio normativo decorrente da expulsão
pretação da lei, justamente para não forçar de um ato normativo do sistema, o qual
um conteúdo legal contra o próprio texto pode ser mais danoso do que a sua própria
da lei. manutenção, embora eivada de incons-
O desencadear da segunda etapa ou titucionalidade4. Assim, a falta de outras
fase processual da interpretação conforme alternativas pode, em muitas situações,
está, por sua vez, condicionado ao resultado compelir o S.T.F. a deixar de reconhecer a
da fase prévia. O cotejo do texto normati- inconstitucionalidade, como quando a fal-
vo infraconstitucional com a Constituição, ta da lei (pela declaração de sua nulidade)
que compõe a etapa derradeira da interpre- criaria um vazio normativo insuportável e
tação conforme, somente será cabível se, insuperável (Tavares, 2003: 230).
da atividade exegética da lei (fase inicial), Por fim, há que se consignar, aqui,
aferir-se, ao menos, duas compreensões que esta técnica, originariamente, foi uma
dúplices ou plúrimas, não redutíveis a uma construção jurisprudencial-doutrinária.
e única interpretação. Em outras palavras, A “chancela” de legalidade, no Brasil,
na decorrência de um entendimento único ocorreu com o advento da Lei 9.868, de
ou, até, de entendimentos semelhantes, de- 10/11/1999, a qual, em seu art. 28, § 1º,
ver-se-á descartar interpretação conforme, dispôs expressamente que:
em sua fase própria. “Art 28. Dentro do prazo de dez dias
Evidentemente que a fragmentação após o trânsito em julgado da decisão, o
intelectual completa dessa operação é inal- Supremo Tribunal Federal fará publicar
cançável, mas a idéia é valida no sentido de em seção especial do Diário da Justiça e do
alertar para que não se sucumba ao intento Diário Oficial da União a parte dispositiva
de tomar o lugar do legislador, fazendo-o do acórdão.
com pretenso suporte na Constituição, o Parágrafo único. A declaração de
que não é de ser admitido. constitucionalidade ou de inconstituciona-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


200 André Ramos Tavares

lidade, inclusive a interpretação conforme tante desta técnica é a declaração da cons-


a Constituição e a declaração parcial de titucionalidade do ato normativo.
inconstitucionalidade sem redução de tex- Na declaração parcial de inconstitu-
to, têm eficácia contra todos e efeito vincu- cionalidade com nulidade, sem redução do
lante em relação aos órgãos do Poder Ju- texto, ocorre o contrário. As significações
diciário e à Administração Pública federal, inconstitucionais decorrentes do enunciado
estadual e municipal.” normativo são terminantemente afastadas,
Há de se atentar para o fato de que por inconstitucionalidade. Isto é, declara-
o dispositivo em questão menciona dois se a inconstitucionalidade, sem que, contu-
instrumentos: (i) interpretação conforme a do, o enunciado normativo sofra qualquer
Constituição, e; (ii) declaração parcial de alteração formal, exógena.
inconstitucionalidade sem redução de tex- Em outros termos, a interpretação
to. Embora ambos apresentem efeitos se- conforme a Constituição tem em sua mira
melhantes, não se pode considerá-los como as leituras possíveis do enunciado textual,
sinonímias, como se procura demonstrar. afastando aquelas consideradas incompatí-
veis com a Constituição (esta, da mesma
3.1.1. Interpretação conforme e declaração forma e previamente, interpretada). Daí
que a decisão da Justiça Constitucional te-
de inconstitucionalidade sem redução de
nha de ser a de manter referido enunciado.
texto: elementos de distinção.
Na declaração parcial de inconstituciona-
lidade sem redução de texto, ao contrá-
Poder-se-ia considerar, na interpre-
rio, trata-se da incompatibilidade com a
tação conforme, embutida outra modalida-
Constituição de uma hipótese de aplicação
de, a declaração parcial de inconstitucio-
(Anwendungsfãlle) contida no texto (não
nalidade, sem redução do texto da norma em sua interpretação). É dizer, há uma re-
impugnada. É que na primeira modalidade, feribilidade expressa do texto que padece
conforme foi visto, eliminam-se as inter- de inconstitucionalidade. Daí que o afasta-
pretações possíveis da norma objeto da mento não seja de uma interpretação, mas
ação que sejam incompatíveis com o sen- sim de um dos casos hipotéticos referidos
tido constitucional, o que a aproximaria, pelo texto, o que demanda a declaração
enquanto técnica, da declaração parcial de inconstitucionalidade, e não de consti-
de inconstitucionalidade sem redução de tucionalidade (cf., nesse sentido: Mendes,
texto. Ademais, ambas produzem eficácia 2000: 54-55).
erga omnes e efeito vinculante5, como se A diferença, certamente, é sutil. Em
verificou. termos práticos, a diferença residiria no
Sem embargo, há diferenças entre resultado do controle de inconstitucionali-
elas, e a mais importante está na caracteri- dade. Em uma eventual ação direita de in-
zação e nos efeitos da declaração que cada constitucionalidade, se se adotasse a inter-
uma dessas modalidades engendra. A inter- pretação conforme à Constituição, ter-se-ia
pretação conforme à Constituição, embora a declaração de sua improcedência. Já, no
afaste as interpretações que se situam fora caso da declaração parcial de inconstitu-
da “moldura” constitucional, não finda por cionalidade sem redução de texto, ter-se-
declarar a inconstitucionalidade destas, ia a procedência parcial da ação direta de
mas, apenas, por considerar constitucional inconstitucionalidade.
aqueles sentidos alocados dentro do liame Nada obstante, a debilidade da dife-
constitucional. Em outras palavras, a resul- rença faz-se sentir nas decisões do STF,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A VOCAÇÃO CONTEMPORÂNEA PARA ... 201

nas quais, por vezes, se aglutinam ambos O devir histórico, porém, trouxe
os instrumentos. A título exemplificativo, questionamentos a este binômio suprema-
veja-se a ADIn n. 2.652: cia-controle. A violência com que se dá o
extirpamento de um corpo legal eivado de
“Ação Direta de Inconstitucionalida- inconstitucionalidade do sistema jurídico,
de julgada procedente para, sem redução por vezes, é tão ou mais nefasta à saúde
de texto, dar interpretação ao parágrafo jurídica do que a sua manutenção.
único do artigo 14 do Código de Processo Se não bastasse esta constatação,
Civil conforme a Constituição e declarar hodiernamente, há um levante acadêmi-
que a ressalva contida na parte inicial des- co, quiçá ocidental, contra o exercício do
te artigo alcança todos os advogados, com controle de constitucionalidade e, por con-
esse título atuando em juízo, independen- seguinte, à idéia de supremacia da Cons-
temente de estarem sujeitos também a ou- tituição.
tros regimes jurídicos”6. A bem da verdade, este levante, em
via de regra, dirige-se contra os “heréticos”
4. A correlação entre supremacia da Tribunais Constitucionais, cuja atuação,
Constituição e a interpretação confor- forma de composição, em muito destoam
me: ponderações contemporâneas da sistemática democrática (Cf. Tushnet,
1999: 194)7.
A idéia da supremacia da Constitui- Contudo, não se pode desconsiderar
ção, não apenas em sua formalidade, mas uma crítica recorrente à própria idéia de
também enquanto uma carta norteadora Constituição e sua rigidez, a qual cons-
dos valores do Estado (“neoconstitucio- trangeria as gerações futuras à vontade das
nalismo”), apresenta como contraparte a passadas, responsáveis (estas) pela elabo-
existência de um guardião, de um órgão ração da Constituição (Cf. Paine, s.d.: 42)8.
responsável pela realização do controle de Autores há que conclamam pela volta da
constitucionalidade (o judicial review nor- dignidade da legislação, ainda que esta
te-americano ou o defensor da Constitui- seja circunstancial, como Jeremy Wal-
ção nos moldes austríacos). dron (2003: 5):
A decantada natureza rígida de um “O pensamento parece ser que os
texto não é suficiente, por si só, para as- tribunais, com suas perucas e cerimônias,
segurar a uma mera folha de papel o seu seus volumes encadernados em couro e
trono normativo autoprometido. Deman- seu relativo isolamento ante a política par-
da-se, salutarmente, a existência de um tidária, sejam um local mais adequado para
órgão que seja capaz de reforçar a idéia solucionar questões desse caráter”.
de supremacia, atuando como um preciso “Não estou convencido disso; mas
fármaco contra corpos indesejáveis do sis- não é minha intenção argumentar aqui con-
tema normativo. tra a revisão judicial da legislação. Penso
É nesse sentido que se pode falar em que é imperativo, porém, que tal reforma
uma consubstancialidade entre supremacia não seja empreendida sem uma percepção
da constituição e controle de constitucio- clara do que é valioso e importante na idéia
nalidade. Apartado um do outro, tornam- de uma legislatura e da dignidade e autori-
se, isoladamente, corpos desfigurados, dade que a legislação pode angariar”.
estéreis. No máximo, meras elucubrações Evidentemente que a assunção de
teoréticas a servir para uma especulação uma teoria que afaste por completo os tri-
confusa e imprópria. bunais constitucionais deverá passar pela

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


202 André Ramos Tavares

construção, necessária, de uma nova teo- da supremacia constitucional conviva har-


ria da Constituição, que ofereça respostas moniosamente com a legislação democra-
satisfatórias aos princípios constitucionais ticamente forjada.
(valores sociais básicos), à inércia legisla- Verifica-se que a técnica da inter-
tiva e, sobretudo, às minorias. pretação conforme à Constituição promo-
No bojo desta panela de pressão, ve, parcialmente, o fenômeno da consti-
surgem, então, as modernas técnicas de tucionalização do Direito. Evidentemente
decisão no controle de constitucionalida- que não em sua versão “formal”, de incor-
de, dentre as quais se apresenta como a de poração das mais variadas regras jurídicas
maior importância, a interpretação con- ao corpo físico da Constituição. O que
forme à Constituição. Sua função é, pro- ocorre é a versão indireta dessa constitu-
priamente, a de um mediador, permitindo cionalização, pela qual o STF “emprega”
uma convivência entre a Constituição e a orientações constitucionais para fazer vi-
legislação. Entre o elemento supostamen- gentes e eficazes os atos normativos edita-
te9 rígido e o inovador. dos pelo legislador.
Supera-se, aqui, portanto, uma idéia Com isso a Constituição, longe
deveras leviana de que as modernas for- de passar impune, fica também compro-
mas, quer sejam de interpretação quer se- metida com o significado atribuído ao ato
jam de decisão, nada mais seriam do que normativo. Surge (é firmada) no conjunto
singelas saliências do controle de consti- normativo constitucional uma orientação
específica para o ato normativo infracons-
tucionalidade. Em outras palavras, decor-
titucional. Esse fenômeno, portanto, está a
rências naturais deste processo de revisão
demandar uma atenção maior por parte da
judicial, que assim carregariam todas as
doutrina. Parte do pressuposto de que qual-
mazelas a este processo atribuídas.
quer operação de controle de constituciona-
Muito pelo contrário. Trata-se de um
lidade passa previamente pelo controle da
elemento equacionador das novéis pres-
Constituição (desenvolvimento de seu sig-
sões produzidas pela sociedade jurídica,
nificado). Em outras palavras, a interpreta-
insatisfeita com as sendas que a clássica
ção conforme a Constituição é uma “via de
teoria da Constituição e do controle de mão dupla”, que acaba por compromissar e
constitucionalidade trilharam. Daí o termo comprometer sentidos e significados possí-
moderno, que não guarda relação com um veis de uma Constituição, numa tarefa que,
critério cronológico, mas sim com uma aparentemente, seria relacionada apenas à
mudança paradigmática. legislação infraconstitucional. Portanto,
Nesse sentido, a interpretação con- não se pode correr o risco de “forçar” uma
forme atua como um arrimo da idéia de interpretação da Constituição para adequar
supremacia da Constituição, pois, se não a lei (técnica que não seria de salvamento
agrada, plenamente, aos oposicionistas, é desta, mas de derrocada daquela), sob pena
capaz de manter uma sobrevida à idéia da de promover a indesejável interpretação da
supremacia da Constituição. Constituição conforme a lei.
5. Conclusões na esteira da constitucio-
nalização (informal) do Direito REFERÊNCIAS
Como já foi mencionado, a inter- BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e In-
pretação conforme apresenta uma função terpretação Constitucional, 2ª ed. São Paulo:
mediadora, pois permite que a concepção Celso Bastos Editor, 1999.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A VOCAÇÃO CONTEMPORÂNEA PARA ... 203

BODENHEIMER, Edgar. Teoria del Derecho, ______. Reforma do Judiciário no Brasil pós-
2ª ed. México: FCE, 1994, 88: (Des)estruturando a Justiça. São Paulo: Sa-
FASSÓ, Guido. “Jusnaturalismo”. In. BOB- raiva, 2005.
BIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAS- ______. Teoria da Justiça Constitucional. São
QUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Paulo: Saraiva, 2005.
Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, TUSHNET, Mark. Taking the Constitution
João Ferreira e Luís Pinto Cacais, 5ª ed.. Brasí- Away from the Courts. Princeton: Princeton
lia: UNB, 1986. University Press, 1999.
FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao Es- WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legisla-
tudo do Direito, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. ção. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Di-
reito, 3ª ed.. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 2001. NOTAS
GOEBEL Jr. Julius. History of the Supreme
Court of the United States: Antecedents and
1
Em outro prisma, pretendia-se a durabilidade
Beginnings to 1801, Vol. 1. New York: Mac- do texto constitucional, conforme se depreende
millan Company, 1971. da análise de Goebel: “That a constitution in
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito, the nature of things must embody matter basic
2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, to the governing of a polity and that its pres-
1994. criptions be enduring had become, so to speak,
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 4ª ed., articles of faith and, consequently, chief objec-
1ª reimp. São Paulo: Martins Fontes, 1995. tives in the process of constitution-making.”
KIRCHMANN, Julio Germán Von. “El Ca- (1971: 96).
rácter A-Científico de la Llamada Ciencia del 2
Retirado do site http://www.law.umkc.edu/fa-
Derecho”. In: SAVIGNY, KIRCHMANN, ZI- culty/projects/ftrials/conlaw/marbury.html, em
TELMANN, KANTOROWICZ. La Ciencia 24/10/2004
del Derecho. Buenos Aires: Editorial Losada, 3
Consigna-se, aqui, que a idéia de pensamen-
S.A.. Bibliografia: 251 a 286. to de Savigny ancora-se naquilo que se chama
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Consti- de interpretação histórica, em que se pretende
tucional, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. verificar a intenção do legislador. Sobre esta
______. Moreira Alves e o Controle de Consti- necessidade, Gilmar Ferreira Mendes (1999:
tucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bas- 282) bem apontou que “A prática demonstra
tos Editor, 2000. que o Tribunal não confere maior significado à
PADOVER, Saul K. A Constituição Viva dos chamada intenção do legislador, ou evita inves-
Estados Unidos. São Paulo: IBRASA, 1964. tigá-la, se a interpretação conforme à Consti-
PAINE, Thomas. Rights of Man. New York: tuição se mostra possível dentro dos limites da
Penguin Books. expressão literal do texto”
SAVIGNY, Fridrich Carl Von. Interpretación 4
É nesse sentido que Streck (2004: 572) bem a
de las leyes. In.: SAVIGNY, KIRCHMANN, alcunha de “mecanismo ‘corretivo’ da atividade
ZITELMANN, KANTOROWICZ. La Ciencia legislativa”.
del Derecho. Buenos Aires: Editorial Losada, 5
Que não sofreu um efeito revogatório implí-
S.A.. Bibliografia: 77 a 105. cito (como pretende Lenio Luiz Streck, 2005:
STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitu- 121-2) da EC 45/04. Essas técnicas são próprias
cional e Hermenêutica, 2ª ed. Rio de Janeiro: da Justiça Constitucional. Se o efeito vinculante
Forense, 2004. está, doravante, constitucionalizado, pelo me-
______. In: AGRA, Walber de Moura (coord.). nos para a ADI e para a ADC (com o esqueci-
Comentários à Reforma do Poder Judiciário. mento da ADPF), maiores são os motivos para
Rio de Janeiro: Forense, 2005. a incidência do mencionado art. 28, parágrafo
TAVARES, André Ramos. Curso de Direi- único, da Lei n. 9868/99. Não se pode descurar,
to Constitucional, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, especificamente para essa técnica da interpreta-
2003. ção conforme, de sua inclinação democrática.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


204 André Ramos Tavares

6
Min. rel. Maurício Correa, D.J. de 08/05/2003. any other period, has no more right to dispose
7
“Some think that the Supreme Court’s elabo- of the people of the present day, or to bind or
ration of constitutional law has given us a rich to control them in any shape whatever, than
vocabulary of practical political philosophy. It the parliament or the people of the present
has not. It may have given the Supreme Court day have to dispose of, bind or control those
and some constitutional lawyers such a voca- who are to live a hundred or a thousand years
bulary. The populist constitutionalist believes hence. Every generation is, and must be, com-
that the public generally should participate in petent to all the purposes which its occasions
shaping constitutional law more directly and require. It is the living, and not the dead, that
openly. The Declaration of Independence and are to be accommodated. When man ceases to
the Preamble to the Constitution give all of us be, his power and his want cease with him; and
that opportunity. As Lincoln said, the Constitu- having no longer any participation in the con-
tion belongs to the people. Perhaps it is time for cerns of this world, he has no longer any au-
us to reclaim it from the courts”. thority in directing who shall be its governors,
8
“The vanity and presumption of governing or how its government shall be organized, or
beyond the grave, is the most ridiculous and how administered”.
insolent of all tyrannies. Man has no proper- 9
Utiliza-se, aqui, supostamente, porquanto a
ty in man; neither has any generation a pro- natureza das normas constitucionais, em tese,
perty in the generations which are to follow. é aberta, mutável (trata-se da idéia de living
The parliament or the people of 1688, or of Constitution ou Constituição viva).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


205

CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO DAS FONTES


NORMATIVAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTEXTO
ITALIANO*
Certezza del diritto e moltiplicazione delle fonti normative:
una riflessione dal contesto italiano

Francesco Rimoli**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Sumário: 1. Certeza do direito: princípio ou valor? 2. A certeza como problema definitório. 3.


Clareza da norma, certeza das relações jurídicas e funções sistêmicas. 4. Certeza e interpretação. O
papel do juiz entre previsibilidade e justiça integrativa. 5. Estabilidade e mutação como problema
dos ordenamentos jurídicos. Princípio de certeza e certeza dos princípios. 6. Incerteza integrativa e
“direito dúctil”: ainda no sentido de um direito por princípios? 7. Certeza e confiança: a coerência
como limite para a nomopoiese (criação da lei)? 8. Incerteza sistêmica e multiplicação das fontes:
uma falsa perspectiva.

1. Certeza do direito: princípio ou valor? resposta, em medida escatológica, como


no âmbito das atividades rotineiras4. E,
O tema da certeza do direito não teve,
embora, como normalmente se observa,
na literatura jurídica italiana, a merecida
o tema da certeza torna-se cada vez mais
atenção; tratado incidentalmente em nu-
central na análise dos sistemas jurídicos
merosas análises de porte especialístico e
complexos, como momento de equilíbrio
em alguns artigos, foi, entretanto, aborda-
e harmonização da multiplicidade axioló-
do de forma completa principalmente por
gica dos modelos pluralistas; o princípio
duas famosas monografias, agora distantes
de certeza, unido ao princípio de confiança
no tempo e, seguidas mais recentemente de
pelo menos outros dois estudos de notável do cidadão nos confrontos da positivação
amplitude1. Em outro lugar, o tema foi de- do direito por obra do legislador, torna-se,
senvolvido por estudiosos de teoria geral pois, um princípio sistêmico de estabiliza-
com efeitos diversos, com base em uma ção. Ele opera, igualmente, em posterior e
colocação realística de porte radical2, ou estreita conexão com aqueles da igualda-
mesmo no âmbito de uma complexa teoria de, e para a obtenção de um fim-valor de
da argumentação do tipo pós-cognitivísti- justiça determinado de modo contingente,
co 3, e por outro lado, no mais amplo plano quando a necessária coexistência, e a mul-
da reflexão filosófica, incerteza, instabili- tiplicação de numerosas instâncias éticas,
dade e precariedade, são a fundamentação coletivas e individuais, própria dos mode-
da pós-modernidade, em uma dimensão los pluralistas, impõem a presença de ins-
do efêmero e do transitório os quais desde trumentos mínimos, mas indefectíveis, de
sempre equivalem temores e tentativas de homogeneização sistêmica5.

* Texto traduzido por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.
** Professore ordinario di Teoria dei sistemi giuridici nell’Università di Teramo. Traduzido do italiano para o português por
Juliana Salvetti.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


206 Francesco Rimoli

Quanto à doutrina constitucional a secular disputa entre modelos jurídicos


italiana, grande parte dela apontou a sua de common law e de civil law, e a conec-
atenção, essencialmente, aos perfis mais tada definição do papel do juiz em ambos
concretos do tema, nela examinando, so- os sistemas: se isso parece plausível que,
bretudo, as relações com os problemas mesmo com uma colocação um tanto radi-
inerentes à clareza e à perspicácia dos atos cal, pelos sistemas do primeiro tipo, tenha-
normativos, na sua redação e publicação, se extraído a leitura realística extrema de
mas também, obviamente, às ligações en- Jerome Frank, ou de qualquer modo uma
tre interpretação e aplicação do ditado nor- visão realistíco-comportamentista como
mativo6. aquela exposta por Alf Ross9, não parece
Contudo, parece que um princípio igualmente compartilhável que, em mode-
de tal importância deva ser estudado com los do segundo tipo continuou-se manten-
maior amplitude, especialmente em relação do, mesmo perante as profundas transfor-
aos aspectos funcionais que o conectam à mações do papel da lei e a fragmentação
mesma dimensão do direito compreendido das tradicionais categorias dogmáticas na
como medium intersistêmico; no tocante a reconstrução sistemática das fontes nor-
essa perspectiva, enfim, algumas das mais mativas, a idéia pela qual por uma drástica
freqüentes observações à cerca da impor- simplificação e redução do ordenamento e
tância da certeza poderiam assumir uma por uma melhor redação das disposições
nova colocação, justificando conclusões possa ipso facto originar, em uma corre-
que seriam de outra forma aparentemente lativa delimitação dos espaços confiados
intoleráveis. Em outros termos, é a certe- ao intérprete, uma verdadeira atuação do
za um valor em si, ou deve ser medida por princípio de certeza e, por ele, uma eficiên-
um modelo avaliador mais complexo de cia superior do ordenamento10. Esse breve
eficiência e eficácia do subsistema jurídi- estudo não pretende, obviamente, acres-
co, tornando-se um princípio, e, portanto centar a uma completa análise dos proble-
um instrumento, mais que um fim-valor7.
mas levantados, mas somente apresentar
E, antes ainda, pode ser afirmado realmen-
algumas observações sobre o tema, e sobre
te, com a convicção mostrada por Bobbio,
as conotações que a sua exposição parece
que a certeza “é um elemento intrínseco do
hoje assumir na doutrina liderante, a fim de
direito, mas sim que o direito ou é certo ou
induzir, se possível, a uma mais profunda
não é nem mais direito” 8.
reflexão futura.
Não poderia, além disso, refletir-se
no fato que, às vezes, uma absoluta (quan- 2. A certeza como problema definitório
to improvável) certeza das conseqüências
jurídicas de um comportamento concreto, Mas, antes de tudo, como se pode de-
mesmo colocando-se a priori como con- finir o conceito de certeza, e quais são os
siderável expressão da capacidade coer- seus limites? Uma atual síntese apanha o
citiva do ordenamento, ou mesmo da sua significado da certeza na “previsibilidade
eficácia, impeça, todavia, a esse assimilar das conseqüências jurídicas de atos ou fa-
realmente a sua função medianeira e, sob tos”, e mais especificamente em:
outra perspectiva, alcançar aquele fim de A) previsibilidade da intervenção, e,
justiça que lhe deveria permitir a assimi- portanto, também da não-intervenção, de
lação das tensões sociais? Na verdade, a órgãos de competência jurídica decisiva
solução parece muito mais complexa, co- ou meramente executiva em relação a um
locando-se por trás de tais interrogações, (a cada um) único caso concreto;

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 207

B) previsibilidade do efeito de uma ciência preditiva das decisões dos juízes


(de cada uma) eventual intervenção de um muda o objeto do seu estudo (não mais a
órgão de competência jurídica decisiva, ou lei, mas a jurisprudência das cortes), mas
seja, previsibilidade da decisão jurídica; não pode não prover, sob pena de uma per-
C) segurança das relações jurídicas da de sentido substancial, aos operadores
em virtude de uma presumível estabilida- e a todos consociados um instrumento de
de da regulamentação, ou coherence entre previsão, um modelo alternativo de certe-
normativas subseqüentes no tempo11. za probabilística dos quais esses possam, a
Esse último ponto consente subsistir fim de evitar conseqüências desagradáveis,
além de qualquer perplexidade, e em se- modelar os próprios comportamentos14.
guida será abordado; quanto aos dois pri- A certeza das relações jurídicas,
meiros, é certo que o elemento subjetivo portanto, antes ainda que a certeza (ou a
da previsibilidade das conseqüências da clareza, para ela instrumental) das normas,
própria ação concreta, de fundar, eviden- constitui exigência primária da vida social.
temente, em uma objetiva conseqüencia- E, todavia, o papel de estabilização das ex-
lidade causal dos verdadeiros efeitos da pectativas de comportamento cujo direito
própria ação, quase em forma de necessi- em fase de medium intersistêmico deve as-
dade, coloca-se por si mesma como forte similar, não poderia considerar-se realiza-
elemento de estabilização das expectativas do quando fosse, hipoteticamente, alcan-
comportamentais, e, portanto como instru- çada uma total previsibilidade das decisões
mento de assimilação de uma das funções assumidas, e, com essa, a total assimilação
primárias do sistema jurídico, na acepção entre lei jurídica e lei de casualidade.
feita por Luhmann12. Nesse sentido, o mo- O erro, nesse caso, seria evidente: um
delo da certeza inclina-se a colocar como direito - ou melhor, um ordenamento - que
ideal teleológico e tendencial uma mimese se colocasse como absolutamente iniludí-
entre a lei jurídica e a lei natural: a primeira vel e inalterável no caso individual, mas
terá tanto mais sucesso, eficácia e eficiente só, eventualmente, modificável por meio
quanto mais as conseqüências nela previs- de generalidade e abstração, seria prova-
tas serão confirmadas infalivelmente, como velmente totalmente inidôneo para desen-
que no processo causal natural, e com base volver o papel acima citado. Encobre-se
em um modelo de necessidade que, de cer- sob esse perfil o problema tradicionalmente
to modo, anularia a diferença entre o pres- posto por aqueles que se ocuparam desses
critivo e o descritivo, em total vantagem temas: a exigência de certeza, entendida
desse último; segundo a antiga concepção como necessidade sistêmico-funcional, co-
iluminista, a lei jurídica aspiraria assim ser lide, todavia com outra exigência, teleoló-
inviolável tanto quanto a lei natural13. Ob- gico-axiológica, de realização do fim-valor
servada sob esse perfil, a mesma colocação de justiça. Em outros termos, o excesso de
realística, na sua acepção americana como rigidez que se originaria de uma absoluta
naquela escandinava, usualmente criticada estabilidade das exauridas relações jurídi-
pelos sustentadores tradicionais do princí- cas, mas, sobretudo, pela absoluta previsi-
pio em questão, termina na verdade com bilidade dos efeitos das relações penden-
o ser, seja em uma decidida mutação das tes, terminaria com o comprometimento,
perspectivas de observação, uma substan- em muitos casos, a possibilidade de consi-
cial reafirmação das instâncias de certeza: deração das instâncias postas pela solução
uma ciência jurídica compreendida como do caso individual: aqui a tríade conceitual

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


208 Francesco Rimoli

certeza-igualdade-justiça revela totalmen- a recondução a mecanismos externos do


te à sua íntima natureza antinômica, ofere- alvéolo institucional, freqüentemente
cendo ao intérprete da realidade social (o ocultando-se, e tornando enfim o sistema
legislador) ou da norma (o juiz e qualquer jurídico incapaz, de fato, de desempenhar
outro operador jurídico) uma margem ine- as suas funções essenciais de controle e es-
vitável - e indispensável - de incerteza e de tabilização.
ambigüidade quanto aos possíveis efeitos O princípio de certeza revela-se, en-
das opções15. E por outro lado, no mesmo tão, absolutamente problemático, na sua
sistema do direito penal, onde, no grau natureza como nos seus contornos: não
máximo, se adverte a exigência de certeza, pode ser considerado um valor-fim, já que
expressa no plano do direito positivo dos tendencialmente colide com um outro ob-
princípios de taxatividade (e perspicácia) jetivo axiologicamente definido, aquele
do caso normativo e de irretroatividade da justiça (cujos conteúdos concretos são
da lei, dos quais nos artigos 25 Const. e 1 muito variáveis, e que, não obstante, se
c.p., o complexo mecanismo da determina- coloca como escopo essencial e fonte de
ção da entidade da pena e a existência de legitimação de todo ordenamento)18, em re-
uma sólida margem de discricionariedade lação ao qual pode colocar-se somente de
do juiz na quantificação da mesma entre forma instrumental, e finalmente subordi-
um mínimo e um máximo definidos pelo nada; e, todavia, mesmo se compreendido
legislador são a prova da impraticabilidade como instrumento, como os outros princí-
de um cânone absoluto de previsibilidade pios (e em estreita conexão com aquele da
do ordenamento positivo16. Não apenas. igualdade), surte efeitos muito diferentes
Uma absoluta (quanto hipotética) certeza baseados no contexto global do ordena-
dos efeitos de um confronto judicial de- mento onde é chamado para operar. Se,
senvolvido baseando-se nas disposições pois, em um sistema de tipo autoritário. ele
perfeitamente unívocas, poderia igualmen- pode coerentemente colocar-se como meio
te fragilizar a capacidade de assimilação de perpetuação do ordenamento, na cons-
do conflito, e de legitimação externa da tante afirmação da sua eficiência, eficácia,
decisão, do mesmo que, de outra forma, o coercitividade e iniludibilidade, dentro
procedimento, segundo a conhecida con- de um modelo mais complexo, informa-
cepção de Luhmann, possui: uma margem do a cânones de democracia e pluralismo,
de incerteza dos efeitos é, pois, necessário onde todos esses critérios são bem menos
para induzir os titulares dos diversos inte- definíveis abstratamente, a certeza não
resses em jogo a alcançar a satisfação des- pode ser assumida tout court como fator
ses no âmbito dos procedimentos institu- de eficiência e estabilização, podendo ao
cionalizados, permitindo então um melhor contrário, em certas condições, constituir
controle social das tensões e a conquista uma das causas da suspensão entre o orde-
final de um consenso (ou seja, de uma le- namento positivo na sua realização efetiva
gitimação) sobre a escolha do decisor (o e as dinâmicas que inspiram o agir social,
sujeito julgador), ou, pelo menos, de uma em um determinado contexto, e, portanto,
neutralização das reações dos sujeitos de- momento lesivo do próprio sistema. Será
siludidos pela mesma, limitando o recurso então oportuno examinar mais de perto
aos “sistemas de contato” externos17. os perfis tradicionalmente compreendidos
Raciocinando de outra forma, as li- como condições da realização do princípio
nhas de resolução dos conflitos tendem em questão. Com esse propósito, Guastini

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 209

caracteriza, circunscrevendo o discurso à desse, mas também, pelo menos em par-


lei e à sua aplicação, quatro condições para te, com aquele da plenitude tendencial do
garantir a previsibilidade das decisões, a mesmo, que poderia fornecer qualificações
seguir: e cânones orientadores de comportamento
1)- Conhecimento e compreensão da lei; para todo possível agir humano, segundo as
2)- Fidelidade à lei por parte dos juízes; modalidades deonticas fundamentais bem
3)- Estabilidade da jurisprudência, e conhecidas dos teóricos do direito. Assim,
finalmente, a produção hipertrófica e vertiginosa de
4)- Irretroatividade da lei; normas próprias dos ordenamentos con-
Para a estabilidade das relações exau- temporâneos é considerada, de modo qua-
ridas, as condições seriam duas, ou seja, se unânime, uma das principais causas de
novamente a irretroatividade da lei, o e a inadequação dos mesmos, que no excesso
intangibilidade da coisa julgada19. A subs- de complexidade e na superabundância de
tancial superfluidez da separação inicial disciplinas findam por perder toda a ho-
entre previsibilidade e estabilidade, essen- mogeneidade, impregnando-se de erros e
cialmente tautológica, justifica a repetição contradições, e não são, na grande maioria,
das condições acerca do segundo perfil, e capazes de serem nem eficientes nem efe-
conseqüentemente será conveniente de- tivas20. Isso enfraquece os fundamentos da
ter-nos somente sobre os quatro primeiros real possibilidade de conhecimento do di-
pressupostos, cuja evidente problemática reito vigente em um determinado momento
torna, por essência, tudo menos que unívo- por parte dos destinatários, fere a confian-
ca a individuação e a atuação da certeza. ça dos cidadãos na coerência do legislador
e, finalmente, na mesma coercitividade e
3. Clareza da norma, certeza das rela-
efetividade das determinações, entendidas
ções jurídicas e funções sistêmicas
muito freqüentemente, especificamente em
Segundo uma comum quanto óbvia um modelo não autoritário, como mero fla-
consideração, o direito não pode ser certo tus vocis; e isso produz, antes mesmo que
até que as normas, mediante as quais o or- desorientação e ansiedade, uma substancial
denamento se constrói, não estejam expres- anarquia do ordenamento. E o problema
sas claramente, ou seja, com enunciados da dificuldade de cognição das normas é
prescritivos perspícuos e não contraditórios, levado, como tal, a dar razão à tão conhe-
e não sejam igualmente de todo reconhe- cida quanto criticada sentença n. 364/88 da
cíveis (não necessariamente conhecidos) Corte constitucional italiana 21, com a qual
pelos destinatários, ou mesmo pelos conso- se refreou significativamente (ou talvez se
ciados, através de apropriados instrumentos desgastou) o princípio de imperdoabilida-
de cognição. O ausente conhecimento, ou de da ignorância da lei penal, tanto mesmo
melhor, o não conhecimento da lei, induz o com uma motivação cuja complexidade
indivíduo, e a inteira coletividade, na mais manifestava completamente a perturbação
desesperadora impossibilidade de previsão do juiz constitucional.
das conseqüências das próprias ações, crian- E, todavia, ainda mais uma vez, o
do situações de caos o de paralisia ao com- problema parece colocado de modo in-
pleto sistema. Como é óbvio, o problema da satisfatório: por um lado, observá-lo não
clareza conecta-se intimamente àquele da significa ainda com certeza resolvê-lo, e
coerência do ordenamento, ou seja, da eli- muitos dos remédios projetados aparecem
minação das antinomias internas e externas decididamente utópicos, como será visto

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


210 Francesco Rimoli

em breve; por outro lado, segundo o que onde a cooperação e a orientação no en-
já foi indicado pela outra doutrina, a exi- tender dos atores (usando ainda as catego-
gência de clareza e conhecimento, ou seja, rias de Habermas)23 representa um objetivo
antes de tudo, de escritura e codificação tão auspicioso quão infelizmente longe da
das normas, coloca-se de modo diretamen- realidade, pela capacidade de contratação,
te proporcional à crescente presença de pela negociação entre as partes em jogo,
elementos societários em oposição àqueles pela composição de interesses opostos se-
comunitários no contexto social, ou mesmo gundo relações de força cuja resultante é
na heterogeneidade do tecido conectivo da determinada pelo conjunto, institucional e
própria coletividade22. Em outras palavras, não, dos fatores que cada uma delas pode
aqui se revela um dos dilemas essenciais fazer intervir no processo em próprio fa-
dos modelos pluralísticos: a complexidade vor.
e a pluralidade das dimensões axiológicas Nesse âmbito, a função do direito,
impõem a determinação de mínimos inder- compreendido ainda como um medium
rogáveis e perspícuos de positivação das intersistêmico, não pode ser que aquela
normas de comportamento, pelo menos de impedir que a competição transforme-
para definir as regras basilares do proces- se em conflito aberto, ele, no melhor dos
so decisório, mesmo na perspectiva dis- casos, que através do procedimento, disci-
cursiva de Alexy e Habermas; nesse meio plinado juridicamente, obtenha-se aquele
tempo, todavia, as mesmas características grau de legitimação das escolhas do qual já
acabam com a determinação de uma mul- se falou anteriormente. A importância his-
tiplicação das instâncias, e, no plano ins- tórica de tal processo mede-se, em toda a
titucional, uma proliferação de centros de sua gravidade, observando, por exemplo, a
produção normativa que, mesmo sendo ex- tendência à nova recondução das mesmas
pressão imediata da natureza pluralista do relações de emprego público à dimensão
ordenamento, comprometem-lhe substan- privatizado-contratual; se por um lado isso
cialmente a homogeneidade, a coerência e, comporta em perspectiva, para a Adminis-
portanto, a eficácia. tração, de uma redução de custos e de obri-
Quanto ao perfil da clareza normati- gações, perseguida através de uma maior
va, uma excessiva confiança nas técnicas mobilidade da relação de emprego, por
legislativas sobre as quais boa parte da outro ela responde a exigências de mais
doutrina já há algum tempo vai se detendo ampla expressão institucional, evidencian-
e deixa alguma perplexidade: critérios de do a superação da capacidade efetiva, para
drafting, instrumentos de legimática, em- os poderes públicos, de definir pela autori-
prego de meios informáticos de “manuais dade estatal as formas e os modos da pró-
de legística”, tão sofisticados e completos, pria relação, que para legitimar-se deverá
colocam-se seguramente como úteis - e às surtir de uma negociação entre as partes.
vezes necessários - fatores de integração E isso pressupõe a equiparação inicial das
do ordenamento na sua dimensão evoluti- mesmas, e do sujeito público antes de tudo,
va, mas não são por si só suficientes para em um modelo cooperativo onde não seja
garantir o único caráter que pode atribuir, mais admissível uma posição privilegiada
por fim, efetividade (e com ela eficácia) à de um dos competidores em relação aos
determinação legislativa, ou seja, a força outros. Daqui, então, a consideração pela
integrativa. qual a eficácia, eficiência e efetividade do
Essa deriva ao mesmo tempo, em ordenamento não têm como pressuposto a
uma sociedade compósita e competitiva, perspicácia das normas, a clareza e o co-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 211

nhecimento das mesmas. Esses caracteres de cada um dos sujeitos contraentes: assim
colocam-se mais, de formas diversas, como nascem as primeiras cartas constitucionais,
instrumentos para garantir a certeza, e essa, assim se define, em formas muito variadas,
por sua vez, é meio (e, portanto, assumida a inteira função do ius scriptum, que não
como princípio) para os resultados acima por acaso inclina-se nesse momento em
mencionados: o pressuposto essencial é, adquirir espaços preponderantes mesmo
todavia, a respondência da única normati- nos sistemas de common law, onde, no en-
va - e do ordenamento no seu complexo tanto, o mesmo direito jurisprudencial, for-
- às exigências contingentes do complexo temente estabilizado pelo princípio do sta-
dos destinatários, a capacidade daqueles re decisis, acaba com a equivalência a um
que positivam o direito de compor em direito escrito. Esse último, mais, torna-se
unidade a diversidade das instâncias, me- realmente supérfluo ou no caso (hoje im-
diante compromissos que salvem ao mes- provável) de uma absoluta homogeneidade
mo tempo a natureza optativa da escolha de opções axiológicas no tecido social, tal
e a paz social; inteiramente verificável só que a norma de comportamento, preponde-
a posteriori. Em outras palavras, pode ser rantemente consuetudinária, seja capaz de
mostrada freqüentemente mais eficaz uma tornar-se efetiva sem a necessidade de ser
lei que, mesmo deixando uma margem de explícita, ou no caso (hoje menos impro-
ambigüidade interpretativa, permite a todas vável) de um poder exercitado em forma
as partes em jogo (ou a grande parte delas) autoritária e capilar, que ostente e produza
o reconhecimento dos próprios interesses, consenso aparente, mas reduza ao mínimo
em relação a uma outra que, na sua drásti- as necessidades de consenso real (e é o
ca univocidade, coloque-se como fator de caso dos sobreviventes regimes teocráti-
exclusão de alguns dos sujeitos em jogo e cos, mas também de algumas autocracias,
pré-constitua, então, as formas da própria desenvolvidas em forma de ditadura ou de
total elucidação por parte de um grupo so- democracia totalitária), ou finalmente na
cial consistente. Assim, por exemplo, a le- hipótese (hoje muito freqüente nos ordena-
gislação de um sistema autoritário, que se mentos democráticos), onde a diversidade
incline a recompor coativamente o conflito e a força dos interesses em jogo impeça a
social, será provavelmente clara nas suas obtenção de compromissos profícuos, so-
opções e na sua formulação, mas dificil- bre as questões de relevante importância e
mente poderá encontrar um consenso que complexidade (pensando-se, no contexto
a torne efetiva além da própria coação; em italiano, à substancial impossibilidade de
um modelo democrático integrativo isso reformas constitucionais executadas, ou,
será por fim intolerável. sobre um plano diferente, às dificuldades
Na realidade, na concreta experiência de disciplinar legislativamente fenômenos
histórica, a escritura e a codificação torna- socialmente e eticamente controvertidos,
ram-se necessárias, como já afirmado, toda como a fecundação assistida ou a experi-
vez que se manifestou um relevante grau mentação genética).
de contraste entre as diversas composições A perspicácia compreendida como
do tecido social: a mesma positivação, to- clareza lingüística, como fator de comuni-
davia, sempre apareceu como fruto de um cação intersubjetivo, e a imponente coloca-
objetivo alcançado, de um equilíbrio, tal- ção de regras de drafting que dela deriva,
vez até provisório, que havia permitido a podem, portanto, constituir um instru-
definição de satisfações recíprocas de inte- mento necessário, mas não exclusivo nem
resses, segundo a contingente possibilidade prevalente na atividade de positivação do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


212 Francesco Rimoli

direito; no plano social e no plano político, observância de normas malvistas somente


o qual mesmo do ponto de vista sistêmico de modo autoritário. Mas isso diz respeito
deve fazer referência o ordenamento, as- afinal ao juízo de natureza política que se
sume um papel eminente à capacidade da coloca bem adiante da banal e obrigatória
norma de tornar-se aceitável, de satisfazer aplicação de poucas regras sintáticas e ta-
em um determinado momento a maior par- xonômicas, ligadas à compreensibilidade
te dos interesses concorrentes, de produzir imediata dos enunciados, e que não poderia
equilíbrio contingente capaz de prevenir e de qualquer maneira caber aos órgãos téc-
assimilar os afastamentos extra-institucio- nicos (repartições legislativas ministeriais,
nais dos efeitos das desilusões sofridas pe- comissões de especialistas, e similares).
los consociados24. Nem parece que a análise acerca da “ela-
Nessa perspectiva, então, uma hipo- boração” das leis, especialmente compre-
tética (e improvável) univocidade absoluta endida sob o perfil da aceitabilidade social,
da norma seria provavelmente apreciável e possa ser suficiente para superar esse obs-
auspiciosa no plano lingüístico e comuni- táculo: desenvolveu-se fazendo prevalecer
cativo, mas ineficaz, se não inoportuna, no o plano estritamente técnico, de fato, essa
plano político sistêmico, onde a margem pode caber aos sujeitos recentemente men-
deixada ao intérprete, ou durante a redação cionados, mas não compreende a dimensão
das disposições (com o uso de conceitos política, que pode ser remetida somente ao
indeterminados ou fórmulas extensivas), sujeitos representativos, os quais poderiam
ou mesmo durante a definição do papel considerar perfeitamente oportuno contra-
do mesmo (aos quais sejam conferidos dizer os resultados da análise, aprovando
amplos espaços de discricionariedade, até leis não “elaboráveis”, mas politicamente
com um prudente emprego de instrumen- úteis (pensando-se nas freqüentes doações
tos de heterointegração do ordenamento) dos períodos pré-eleitorais) ou exatamen-
poderia representar, finalmente, a única te necessárias (é o caso de normas talvez
real garantia de efetividade. Nesse sentido irrealizáveis imediatamente, mas coloca-
o conjunto das regras da legística poderia das como fator tempestivo de pacificação
ser operado em um plano diferente, e su- social em momentos de tensão)25; se, ao
bordinado; o bom compilador de um texto contrário, faz prevalecer, no ano âmbito da
normativo (admitindo que seja realmente análise técnica, uma real avaliação política,
distinguível) deveria ser colocado como a atividade em exame inclui um ato decisó-
limite ao uso de tais instrumentos aquele rio implícito que induz, progressivamente,
da avaliação do impacto real da normativa a uma involução tecnocrática do sistema,
que está elaborando, às vezes privilegian-
com uma paradoxal transformação de
do a aceitabilidade em relação à clareza
instrumentos nascidos como garantia de
lingüística. Deveria, pois, aplicar as regras
transparência das decisões em fatores reais
de drafting, mas somente até que tal apli-
de encobrimento das mesmas, em relação
cação não torne o resultado desprovido do
à opinião pública.
grau de indeterminação (ou seja, de incer-
teza) necessário para torná-lo tolerável das 4. Certeza e interpretação. O papel do
partes as quais, de fato, está acreditada a juiz entre previsibilidade e justiça inte-
decisão, ou, ainda mais, a aceitação social grativa
e o respeito das normas elaboradas, até na
consciência do fato que, em um modelo es- Não é possível aqui abordar o vasto
tatal complexo, seria impossível garantir a perfil do papel do intérprete na aplicação

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 213

da lei: é, todavia, evidente que o processo pressão institucional, o papel do intérprete


de positivação do direito encontra no juiz não poderá de qualquer modo ser justifi-
uma coroação essencial (embora não defi- cado baseando-se em presumidas capaci-
nitivo, já que a própria pronúncia judicial dades sintéticas, nem, muito menos, com
será, por sua vez, suscetível, em certos li- base no reconhecimento de competências
mites, de interpretação na fase de execu- e capacidade técnica tais que tornam efe-
ção), e que a idéia iluminística pela qual, tivamente neutra a decisão no plano polí-
em um modelo de separação de poderes, a tico. Toda opção, na realidade, constitui
função jurisdicional coloca-se como mera o fruto de um julgamento de valor onde
aplicação, coloca-se hoje como mais ain- a assunção da norma, ou mesmo de uma
da insustentável de quanto já não fosse no entre as possíveis interpretações dela, co-
momento em que foi declarada26. Relevou- loca-se freqüentemente como elemento de
se já, mais, como a tradição dos países de justificação racional, perante o auditório
common law conhecidos, de fato, no mo- dos consociados, para a solução preferida,
mento da decisão judicial o ato da defini- através da decisão, pelo sujeito julgador 28;
ção concreta da norma, e nela do direito; e isso não só com base nos processos de
certamente a capacidade do juiz de colo- précompreensão bem evidenciados por
car-se em última instância como aquele Esser, mas igualmente segundo um mais
que, na multiplicidade das dimensões do consciente e instrumental mecanismo de
jurídico, legais e extralegais, sabe reconhe- persuasão finalizado na obtenção dos fins
cer o critério de solução do caso submetido (ou seja, fins-valores) essencialmente pró-
ao seu julgamento, depende restritamente prios do grupo ideológico e de interesses
da homogeneidade do tecido social do qual cujo decisor pertença29.
o próprio juiz é manifesto, pela relação do Em tal perspectiva, conseqüente-
único órgão julgador (e finalmente da pró- mente, no raciocínio argumentativo com
pria magistratura no seu conjunto) com a o qual, durante a motivação, o próprio su-
disposição ideológica da inteira sociedade. jeito entende tornar aceitável a própria op-
Na realidade, a idéia de um sujeito que, ção, não poderá ser conferida, nem no sen-
em modo variado, saiba sintetizar em si tido lógico, nem gnosiológico, nem muito
mesmo, a inteira gama das concepções e menos ético, alguma valência verídica; a
dos sentimentos mais profundos de uma subjetividade da solução - e a responsabi-
coletividade, une-se intimamente à dimen- lidade interligada - deverão firmar-se, e o
são comunitária da própria coletividade, e emprego dos espaços discricionais cujo,
desliza rapidamente na conotação caris- em maior ou menor medida, decisor pode
mática do intérprete, especificamente si recorrer, será exclusivamente ligada à sua
ele se coloca igualmente como chefe, no idoneidade para se apresentar como aceitá-
sentido weberiano do termo. Assim, por vel em relação ao auditório (esfera que cer-
exemplo, o Führerprinzip existente no tamente não se exaure com os destinatários
regime hitleriano constituía uma extrema diretos da mesma decisão)30.
acepção do papel carismático - em certos A interpretação da norma, e, prin-
ângulos, místico - do intérprete dos sen- cipalmente, o grau de aderência ao dado
timentos coletivos, também no plano da textual da mesma, ou à originária inten-
produção e da aplicação do direito27. Em ção do legislador - em outros termos o uso
uma sociedade fortemente compósita, e no concreto do dever ser jurídico na fase mais
modelo pluralístico que deveria ser-lhe ex- avançada da sua positivação - é, portanto,

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


214 Francesco Rimoli

nesse âmbito, um meio eminente, mas não pois, entre as várias possíveis, aquela op-
exclusivo, para perseguição do objetivo da ção que permita o máximo de satisfação da
legitimação final da escolha; legitimida- pluralidade dos interesses em jogo. Em ou-
de e legalidade, nas suas diversas formas, tros termos, salvos os casos liminares onde
são, pois, elementos da ação, traços fortes não se possa satisfazer nenhuma das partes
(e até necessários), mas não decisivos para (ou melhor, das suas instâncias objetivas e
o efeito conclusivo, ou seja, para a assi- das suas concepções) sem com isso excluir
milação dos deveres sistêmicos gerais do completamente as outras, deverá ser dever
sujeito “decidente”. Isso dependerá, subs- precípuo do sujeito decidente (cada vez, e
tancialmente, do grau de integração que o com formas e efeitos bem diferentes, legis-
subsistema jurídico, na sua dimensão inter- lador, Corte constitucional, juízes) tentar
sistêmica de medium, é capaz de alcançar descobrir e satisfazer não a vontade pre-
em um determinado contexto histórico: o ponderante - ou seja, a ideologia dominan-
conjunto dos conteúdos e das formas das te - no contexto social onde operam, mas a
decisões singulares constitui nesse meio linha de equilíbrio excelente para alcançar
tempo pressuposto e momento de averi- uma decisão integrativa, uma escolha que
guação de tal capacidade31. comporte, pois, o máximo um de satisfa-
Aliás, a legitimação de todo o siste- ção obtenível para alguns com o mínimo
ma jurídico fundamenta-se na perseguição prejuízo para todos os outros, segundo um
do fim-valor da justiça: esse deve ser en- critério eminentemente utilitário.
tendido, todavia, não somente como ab- Nessa perspectiva, o princípio de cer-
solutamente mutável, mas igualmente, em teza não pode operar como instrumento de
uma sociedade complexa, como compósito absoluta previsibilidade das decisões, já que
nos conteúdos, e, portanto, tendencialmen- essas deverão estar atentas a um contexto
te antinômico seja em relação ao princípio mutável, onde os parâmetros concretos da
de igualdade, seja em relação àquele de aceitabilidade serão cada vez avaliados
certeza. Em outros termos, seja o critério pelo decisor, que, por conseguinte, se mo-
distributivo, seja aquele comutativo encon- verá dentro dos espaços a sua disposição
tram, quando vão além da mera acepção visando, essencialmente, o objetivo da le-
abstrata e formal observada por Perelman. gitimação final da escolha, seja perante o
Um obstáculo aplicativo dificilmente su- auditório, seja, ao mesmo tempo, em rela-
perável quando se entenda o operar do juiz ção aos elementos concorrentes endógenos
(mas antes ainda do legislador, que inicia e exógenos, como as próprias convicções,
o processo de positivação através de uma o grupo de interesses ao qual está ligado, o
interpretação do real) como simples apli- código de comportamento ao qual quer ou
cação de esquemas silogísticos, e, sobretu- deve fazer referência no quadro dos pró-
do, como aquisição de opções axiológicas prios sistemas de contato. Isso acontecerá
objetivadas e estáveis. tanto para manter viva a motivação da par-
A multiplicidade das “esferas de ticipação nos mecanismos institucionais por
justiça” evidenciada por Walzer32, e a ne- parte dos sujeitos envolvidos, no sentido já
cessidade de tutela de cada uma delas no mencionado pelo qual um quid de incerteza
momento pluralístico, permitem, contudo, é necessário para evitar a rejeição do pro-
que toda a escolha deva, no possível, ser cedimento e a incontrolada fuga dos meca-
alterada pelo sujeito público um segundo nismos de assimilação das frustrações com
um tendencial fim integrativo, preferindo, relação aos modelos extra-institucionais,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 215

seja para realizar, vez ou outra, aquela fle- Perante isso, o sistema jurídico, e
xibilidade que se torna hoje indispensável nele a multiplicidade dos ordenamentos,
para o total sistema jurídico nas sociedades que se colocam como expressão positiva
modeladas pelo pluralismo. do Sollen, não pode, todavia, tornar-se ab-
Dessa perspectiva, também o tercei- solutamente rígido: evidentemente isso lhe
ro critério individuado por Guastini, rela- impediria qualquer concreta função sis-
tiva à estabilidade da jurisprudência, deve têmica, colocando-o na condição de uma
ser interpretado com cautela, já que parece substancial inutilidade. O tema da pesqui-
um tanto difícil conjugar as exigências de sa, cada vez mais árdua, de um equilíbrio
adequação dos critérios de justiça do caso entre estabilidade e mutação está hoje cons-
individual com a mutação do contexto so- tantemente presente para os estudiosos,
cial sem permitir – e, ao contrário, às ve- que com soluções muito variadas preten-
zes impor - aos juízes uma correspondente dem enfrentar o problema provavelmente
mudança de orientação. Por um lado retor- insolúvel do ponto de vista de princípio:
nam aqui as velhas disputas sobre a peri- a renovada discussão sobre os tradicionais
culosidade da colocação da escola do di- temas da rigidez das cartas constitucionais
reito livre de Jhering, Kirchmann, Heck e e sobre os limites do poder de revisão, ou
Kantorowicz, e sobre os riscos de uma in- aquela sobre o perfil interligado dos vín-
volução neojurisnaturalística cujo excesso culos do futuro legislador espelham um
de antiformalismos e colocação própria da transtorno profundo do jurista, que per-
Interessenjurisprudenz conduzem33, ainda dendo muitas das categorias habituais - e
além das intenções dos seus defensores: talvez a própria possibilidade de uma ta-
por outro, deve-se mencionar um dos per- xonomia - receia perder o próprio papel35.
fis mais profundos implicados pelo mesmo Não obstante, parece a todos evidente que
princípio de certeza, ou seja, a relação en- os modelos dominantes do século XX, e
tre a estabilidade e mutação, entre estática em modo particular aquele do Stufenbau
e dinâmica do ordenamento. de Merkl e de Kelsen, são hoje totalmente
5. Estabilidade e mutação como proble- insuficientes para compreender a evolução
ma dos ordenamentos jurídicos. Princí- real dos ordenamentos: as concepções gra-
pio de certeza e certeza dos princípios dualísticas e monísticas são nesse momen-
to incapazes de justificar a proliferação dos
O princípio de certeza coloca-se as- ordenamentos, a intersecção cada vez mais
sim, mesmo no sentido metajurídico, como problemática e complexa dos mesmos, e a
expressão de aspiração à estabilidade e à multiplicação das fontes internas, que são,
segurança, tanto no plano material (segu- contudo, uma conseqüência direta da in-
rança do modo organizado do viver civil), tegração supranacional por um lado e do
quanto naquele psicológico (segurança das pluralismo institucional do outro36.
relações humanas, na sua dimensão inter- Aliás, é igualmente claro que tal
subjetiva e temporal); exigência tão mais crescente complexidade não pode ser facil-
percebida quanto mais a realidade, como mente estigmatizada como uma patologia
acontece na pós-modernidade, inclina-se, do sistema; assumidos certos pressupostos
ao contrário, a evitar todo controle, em políticos e econômicos, antes mesmo que
uma contínua metamorfose que impede jurídicos, ela é mais a lógica, e antes tra-
qualquer controle efetivo e qualquer previ- dução obrigatória, em termos jurídicos, da
sibilidade concreta34. complicação do tecido social para as quais

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


216 Francesco Rimoli

exigências o ordenamento deve responder. údos a simples decisão desses, e circuns-


Pelo que concerne ao nosso tema, todavia, crevendo a importância e a aplicação dos
já se observou como a necessidade de co- princípios em questão à certeza dos princí-
dificação, de definição das regras jurídicas pios, determinados de forma instrumental
tanto, pelo menos tendencialmente, direta- pelo legislador em relação à obtenção dos
mente proporcional à heterogeneidade das fins-valores do próprio ordenamento, e an-
instâncias presentes; em outros termos, o tes de tudo daquele da segurança. Isso na-
direito, compreendido como conjunto de turalmente implica em um preço a ser pago
normas de comportamento claras e inadi- pelo cidadão, pelo qual se reduz fortemen-
áveis, afirma-se como indispensável quan- te a possibilidade de previsão dos efeitos
do, junto à multiplicação dos sujeitos e das de um determinado comportamento, dele
ideologias que os animam, acrescenta-se ou alheio; tal perda de específica certeza
a probabilidade do conflito, que deve ser deveria, porém, ser compensada por uma
prevenido, e eventualmente reprimido, maior garantia geral de respeito e atuação
pelo próprio direito. dos cânones fundamentais do ordenamen-
O princípio de certeza assim se to, e especificamente para evitar conflitos
orienta, e é constatação comum, antes de sociais que atormentem, enfim, o conjunto
tudo ao fim-valor da segurança apreendida dos direitos fundamentais interligados à
como paz social, como ordem pública ma- existência do modelo democrático38.
terial construída na confiabilidade das rela- Nessa perspectiva, deve ser relida,
ções jurídicas, em todo nível37. E, todavia, além da idéia da compatibilidade sistemá-
é justamente nessa perspectiva que ele se tica entre as normas entendida no sentido
revela como algo diferente da previsibili- hierárquico e sincrônico, (consistency),
dade concreta das decisões: se o fim fun- também a idéia da coherence, a qual se
cional do ordenamento, e dos princípios conecte diacronicamente, entre outro, o
que o modelam, deve ser aquele acima princípio de confiança do cidadão nos con-
mencionado, é evidente que, em um con- frontos do legislador e a possibilidade do
texto bastante complexo, dificilmente uma vínculo ao futuro legislador39. Mesmo aqui
certeza entendida como previsibilidade não se pode admitir tal princípio como ab-
seria realmente idônea para desenvolver o soluto, a menos que não lhe seja conferida
próprio papel teleológico; como já se ad- uma ampla importância: além das obvias
vertiu, uma hipotética previsibilidade ab- considerações sobre a dimensão diacrôni-
soluta seria antes a antítese da capacidade ca da sucessão de vontade dos órgãos re-
de integração dos interesses por parte dos presentativos, e da intima conexão entre
sujeitos que decidem, e se colocaria con- essa e o processo de integração política,
seqüentemente como obstáculo, em uma um vínculo desse tipo, implícito ou ex-
visão mais ampla, à realização dos fins do plícito, deve ser considerada, de qualquer
ordenamento. Assim, do ponto de vista do forma, subordinado à avaliação, efetuada
legislador (ordinário ou constitucional), a pelo legislador atual, relativamente à ido-
necessidade de redução dos espaços ocu- neidade contingente do princípio, tratan-
pados pela normalização, origina-se da do-se da obtenção dos fins acima citados;
oportunidade de aumentar o âmbito de enquanto se reconhece que uma drástica
discricionariedade, confiado aos outros su- mutação de orientações seja funcional-
jeitos (administradores e juízes), tornando mente mais profícua para tal objetivo, uma
então realmente mais incerta nos conte- correta ponderação dos custos e dos bene-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 217

fícios da escolha poderia legitimamente lador (constitucional e ordinário), desde


induzir o legislador a estatuir, também em que sujeito dotado de representatividade,
vivo contraste com tudo que foi exposto uma determinação consistente dos fins-va-
em um passado recente, colocando-se, se lores cujo ordenamento deverá ser orien-
for o caso, somente o problema da tutela tado. No âmbito dos conteúdos possíveis,
dos direitos procurados e da estabilidade todavia, tal ordenamento deverá ser colo-
das relações exauridas40. Também por es- cado em aptidão para desenvolver as suas
ses últimos, no entanto, as exceções não funções sistêmicas elementares: assim, tu-
faltam, já no ordenamento italiano vigente tela da segurança social e aspiração a um
(pensando-se ao disposto do último pará- objetivo de justiça formal constituem dois
grafo do artigo 30 da lei n. 87/53 acerca elementos fundamentais, antes de tudo um
dos efeitos das sentenças de aprovação da no plano da legitimação. Todavia, a obten-
Corte constitucional sobre as sentenças ção de tais fins, na complexa sociedade, e
penais de condenação tornadas irrevogá- na dimensão pós-moderna, não passa pelos
veis, ou aquela do artigo 2, parágrafo 2 do caminhos tradicionais: certeza do direito e
código penal), e são a prova do fato que, perspicácia da lei, compreendidas na acep-
quando existam exigências concorrentes ção comum, são agora caracteres não só
de tutela consideradas predominantes pelo tendenciais (o que sempre ocorreu), mas
legislador (naquele caso da tutela da liber- igualmente, em determinadas situações,
dade pessoal e o princípio do favor rei), o contraproducentes para obter a realização
mesmo cânone de certeza, entendido aqui do fim de assimilação dos conflitos; por
como imodificabilidade das relações exau- isso, é necessária talvez uma forma de
ridas, pode e deve ser superado. indeterminação controlada, de incerteza
programada que permita modular toda de-
6. Incerteza integrativa e “direito dúc-
til”: mais uma vez para um direito por cisão sobre a situação contingente, que se
princípios? apresenta em constante mutação, sem ter
de recorrer a uma contínua e impraticável
Por tudo que foi dito, deveria, con- modificação formal do direito vigente.
seqüentemente, entender-se o princípio Isso comporta uma redução da in-
de certeza como instrumento, dirigido à tervenção legislativa, em todo o nível;
obtenção do fim-valor da segurança, e uma legislação que opere essencialmente
em tendencial contraste com aquele, de por princípios uma deslegiferação e uma
definição assaz árdua, da justiça. É para simplificação que confiem à execução e à
ser ressaltado, entretanto, que tal relação interpretação de maneira aplicativa a defi-
de conflitos atenue-se, quando da certeza nição das soluções específicas, aparecem
seja adotada uma versão frágil que pode- comumente como a única via para evitar
ria aqui ser alterada em uma “incerteza a paralisia funcional do total sistema41. E,
integrativa”, onde a dimensão política da todavia, para tal redução quantitativa de-
pluralidade assume valência muito maior verá corresponder, justamente pela razão
de quanto aconteça na acepção mais tradi- da heterogeneidade das instâncias e da
cional do princípio. Apesar de tudo, as afir- complexidade da sociedade plural, uma
mações desenvolvidas impõem algumas maior rigidez e perspicácia dos próprios
especificações posteriores, mesmo para princípios, postos em intima relação ins-
reassumir o discurso até aqui conduzido. trumental com os fins-valores dos quais já
Nos modelos democráticos cabe ao legis- falamos. Aqui somente se pode - e deve-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


218 Francesco Rimoli

se - recuperar uma concepção gradualística ção ainda mais clara do primeiro do que
das fontes: reservando para a lei (constitu- o segundo). A redução da intervenção le-
cional e ordinária) a única determinação gislativa deverá ser compensada, no grau
das normas de escopo (as opções de valor) mencionado, na maior clareza possível:
e de princípio (as opções instrumentais, pri- a certeza, drasticamente reduzida no pla-
márias), segundo um critério de coerência no da aplicação individual, deverá ser no
(congruência) tradicionalmente entendido, máximo possível recuperada na dimensão
qualquer outra fonte normativa, qualquer teleológica, que fica de qualquer modo
outra modalidade negociada de solução heterônoma e inadiável em relação aos ór-
dos conflitos, no quadro de uma disciplina gãos de execução e da aplicação. A certeza
vinculante para o sujeitos que, de maneira torna-se então relativa à previsibilidade
procedimental e participativa, tenham con- dos fins obtidos e dos princípios para isso
tribuído para a composição dos interesses utilizados, não dos conteúdos específicos
em jogo (segundo um modelo já em plena da simples decisão, que somente no senti-
expansão: pensando-se na contratação cole- do probabilístico serão prefiguráveis pelas
tiva no emprego público), será por si mes- partes em jogo, como efeito possível das
ma avaliada segundo um cânone teleológi- avaliações subjetivas do decisor, por um
co e funcional, e para aceitar onde quer que lado em relação às próprias capacidades de
demonstre a sua idoneidade sistêmica42. preconcebimento, e pelo outro em relação
Em outros termos, o vínculo, amole- aos vínculos teleológicos a eles impostos
cido para baixo, fortalece -se para o alto; pelo ordenamento.
a escolha dos fins-valores e dos relativos Nesse sentido, a concepção aqui sus-
princípios instrumentais não pode ser que tentada, distancia-se tanto da famosa visão
definida pelos órgãos representativos, junto de Ronald Dworkin, seja, mesmo que em
aos quais somente pode ser concluído (pelo menor medida, pela mais prudente concep-
menos teoricamente) o processo inicial dá ção do “direito dúctil” afirmado na Itália
pré-interpretação integrativa que conduz à por Gustavo Zagrebelsky, no quadro de
formulação da norma: daqui para frente, as uma democracia “crítica” 44: da primeira,
adequações contingentes, desenvolvidas porque o papel que a ela é confiado ao juiz
dentro de espaços consistentes liberados em base da distinção entre rules e princi-
pelas normas de escopo ou de princípio, ples (e de inspiração da right thesis) não
deverá acontecer por obra dos outros sujei- pode que conduzir a efeitos de tipo neo-
tos que decidem do sistema, no quadro de júrisnaturalístico, absolutamente incom-
atividades programadas (discricionárias) patíveis com a dimensão pluralística, a
que somente em casos totalmente especí- despeito de quanto o autor americano de-
ficos (por exemplo, pelo que se refere ao monstra considerar45; da segunda, porque
papel dos juízes constitucionais) podem um jogo de equilíbrio entre os princípios,
assumir legitimidade de reprogramação43. legitimamente operado pelo legislador
Para tais sujeitos, todavia, não pode- parlamentar, ou eventualmente pela obra
rá pertencer uma função law finding nos de nomopoiese concorrente confiada ao
confrontos dos princípios: nesse sentido juiz constitucional, deixa mais perplexos
a diferença entre o modelo tradicional de onde quer que seja remetido por qualquer
common law e aquele da superioridade intérprete46.
do direito escrito deve permanecer clara Ainda, a idéia de certeza impõe ao
(e talvez seria desejável uma aproxima- legislador, constitucional e ordinário, a

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 219

determinação de princípios, definido, no assaz simplificativos - entre legislação


máximo possível, de forma expressa, com constitucional e legislação ordinária (pri-
a devida atenção, vigiando a homogenei- mária e concorrente, essa última cabendo
dade e a coerência, e evitando a sobrepo- ao juiz constitucional, e às vezes ao Gover-
sição; é verdade que aqui também deverá no), não se interrompe, mas procede na fase
vigiar o problema da ambigüidade com- de execução e de aplicação, onde, todavia,
preendido como compromisso integrativo, será o complexo de valores e princípios a
mas essa se obtém com um prudente uso dirigir a ação dos simples operadores, se-
dos conceitos indeterminados nos enuncia- gundo o modelo de adequação sistêmica:
dos sintéticos, e não com uma incontrolada será, pois, “corrigida” (não no sentido ló-
multiplicação das normas de princípio47. gico, mas teleológico) aquela decisão que
Além disso, é igualmente óbvio que demonstre o máximo de conseguibilidade
tal definição de princípios (e ainda mais de dos fins em relação aos meios escolhidos,
escopos, ou de fins-valores) deveria antes operando uma re-composição dos interes-
de tudo ser traduzido em normas consti- ses em jogo que reflete, na maior medida
tucionais, através de adequados e trans- possível, o modelo de composição que,
parentes procedimentos de revisão: se a de modo preliminar e geral, foi colocada
situação concreta impede de fato reformas à disposição pela legislação através da se-
completas para Constituição italiana, é leção, operada com método discursivo, dos
igualmente verdade que intervenções pon- fins e dos princípios49. Enquanto entre os
tuais e circunscritas podem de qualquer primeiros exista aquele da integração plu-
modo contribuir para um progressivo es- ralística, e da conexão tutela das minorias
clarecimento da disposição do ordenamen- e das diferenças, a decisão mais oportuna
to (embora, pois, modificações como aque- (que somente nesse sentido é a mais “ade-
la operada no artigo 111 da Carta sejam o quada”, do ponto de vista político e sistê-
mico) será, como foi dito, aquela que se
retorcido e confuso produto de medíocres
inclina a obter o máximo de satisfação de
compromissos, ao contrário de reais sínte-
uma das partes em conflito com o menor
ses integrativas)48.
dano possível para cada uma das outras;
No plano da legislação ordinária,
isso, no modelo da sociedade complexa,
além dessa individualização dos princípios,
pode ser considerado um cânone de certe-
deveria ser desenvolvida segundo critérios
za relativo aos princípios, e através desses,
de equilíbrio, dirigidos obviamente à atua-
aos fins-valores do ordenamento pluralis-
ção dos fins constitucionais, mas também
ta: se conduzido além, ou seja, nos conteú-
para a busca da harmonia entre generalida-
dos das decisões, para torná-las previsíveis
de e integratividade que permita aos outros
sob tal aspecto, um tal princípio pode ser
sujeitos que intervirão no processo de po- colocado em contraste com o fim-valor da
sitivação de encontrar, ao mesmo tempo, integração.
uma orientação para a própria decisão no
plano teleológico, e um espaço consisten- 7. Certeza e confiança: a coherence como
te para a adequação da simples decisão à limite para a nomopoiese?
realidade concreta (o caso) com a qual se
deparam. O último ponto a ser analisado, mes-
Em outros termos, a cadeia valores- mo nas dimensões permitidas nesse breve
fins / princípios-instrumentos, desenvolvi- estudo, é aquele da dimensão diacrônica da
da, sobretudo, - raciocinando em termos positivação, especificamente compreendi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


220 Francesco Rimoli

da na fase da normalização, nos diversos rence que se rememorou, especialmente se


planos do ordenamento. Já se falou como essa é compreendida no mais correto sen-
um dos aspectos próprios da certeza na tido restritivo. Na realidade, esconde-se
acepção predominante seja aquele da segu- aqui um erro de perspectiva; não é a cer-
rança das relações “em virtude de uma pre- teza que pressupõe a coherence, mas antes
sumível estabilidade da regulamentação, o o contrário: existe substancial estabilidade
coherence entre normativas subseqüentes de regulamentação, no sentido diacrônico,
no tempo”, isso, no entanto, especifica enquanto exista substancial estabilidade
que tal homogeneidade deve referir-se es- das opções axiológicas e teológicas do or-
sencialmente no tocante aos parâmetros denamento, ou enquanto (já) exista certeza
essenciais de uma determinada cultura ju- (e estabilidade) dos fins-valores nos quais
rídica, ou seja, na manutenção das opções esse se modela.
axiológicas fundamentais de um certo sis- E por outro lado, a mesma função in-
tema50. tegrativa e medianeira do direito impõe que
E efetivamente, somente nesse limi- aquele tipo de adequação já individualiza-
tado significado, poderia ser compartilhada do como necessária no plano da execução
uma tal acepção do princípio examinado, e aplicação, torne-se ainda mais evidente
embora, pois, ainda tal característica pos- sobre aquele da normalização, quando se-
sa ser preservada somente em referência a guramente não poderá mais operar na ca-
breves períodos, já que as transformações deia valores-fins / princípios-instrumentos,
sociais, nesse momento vertiginosas e radi- intervindo, portanto, precisamente sobre
cais, impedem qualquer estabilidade real, aquelas características da cultura jurídica
não só porque exige mutações inerentes à que, dados freqüentemente como deduzidos
disciplina material de simples fenômenos, em determinados âmbitos culturais, não o
mas mais ainda porque impõem, cada vez são absolutamente, nem no plano atual (já
mais freqüentemente, uma mudança de que, por exemplo, escolhas, como as rela-
perspectivas, também - e principalmente tivas à pena capital, são diferenciadas de
- do ponto de vista dos juízos (ou pré-juí- modo abissal, a moderna experiência jurídi-
zos) de valor. E essa consideração conduz ca européia daquela americana, também por
ao problema mais delicado, que aqui será alguns ângulos afins à primeira desde que
apenas apontado: a decisão relativa à exe- fruto da sociedade tecnologicamente evo-
cução ou à aplicação de uma norma coloca- luída e historicamente dela originada), nem
se como escolha e aplicação de princípios muito menos sobre aquele das perspectivas
instrumentais, por parte antes do legisla- futuras (enquanto é totalmente ilusória a
dor e dos outros órgãos decisivos, pois; previsão e em qual medida alguns valores
desde que o primeiro, na posição de legis- se sustentarão firmes perante a sociedade
lador constitucional, intervenha, segundo em contínua transformação) 51.
o quanto não só é possível, mas às vezes Sob essa perspectiva, portanto, a
necessário, para modificar os mesmos fins- mudança axiológica devido ao contínuo
valores, pelos quais deve o ordenamento desenvolvimento da evolução social não
se orientar, isso permitirá uma contempo- pode não se traduzir até em uma rápida
rânea transformação dos parâmetros teleo- modificação do ordenamento: nesse sen-
lógicos cujas sucessivas decisões deverão tido, contudo, deve ser reconhecido que o
ser informadas, e conseqüentemente uma âmbito de certeza, entendido como neces-
inevitável violação daquela idéia de cohe- sário, reduz-se posteriormente. Da certeza

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 221

dos princípios, passa-se, tendencialmente, constituições rígidas o seu paradigma mais


à certeza da função sistêmica do medium sofisticado, é aquele assistir e orientar a
jurídico, ou seja, do dever ser teleológico mutação, sobretudo, no plano do procedi-
do total subsistema constituído pelo direito; mento, garantindo as próprias opções axio-
nessa dimensão será, portanto, assegurada lógicas mediante a escolha de mecanismos
somente a idoneidade total do ordenamen- adequados: assim, no modelo democrático
to à obtenção contingente dos fins-valores pluralista, discursividade, abertura e parti-
ontologicamente necessários ao subsiste- cipação deverão garantir a presença da to-
ma, ou seja, como já citado, a assimilação talidade das instâncias, atuais e potenciais,
dos conflitos e a manutenção de uma or- no processo evolutivo54.
dem material que garanta a sobrevivência
8. Incerteza sistêmica e multiplicação
da coletividade em conexão com um fim
das fontes: uma falsa perspectiva
(relativo e contingente) de justiça, utiliza-
do em função legitimadora52. Por tudo que aqui foi dito, parece
Além desse limite, a evolução trans- evidente que as considerações normalmen-
forma-se em revolução, e qualquer critério te desenvolvidas pelos constitucionalistas
de certeza torna-se absolutamente incon- em relação às fontes normativas devam
gruente; enquanto a revisão das opções ser, em boa parte, revistas: perante a já
fundamentais seja efetuada através de completa constatação da fragmentação dos
meios extrajurídicos (e não somente ex- modelos gradualísticos, da insuficiência
tralegais), o mesmo princípio de certeza, evidente dos instrumentos de classificação
que - se repete - pressupõe as escolhas de derivados da colocação de Merkl e de Kel-
valor, em relação às quais opera como ins- sen, o comportamento mais profícuo pa-
trumento de garantia, não pode ser em ne- rece ser aquele da aceitação dos módulos
nhum modo descoberto, até que as novas negociados, e de uma correlativa redução
opções não se tenham estabilizado, tam- dos espaços confiados à normalização ins-
bém e, sobretudo, com base de um mínimo titucional.
de efetividade. Permanecendo a salvo, em outras
Superam-se nesse modo, e nem po- palavras, uma distinção elementar entre
deria ser diferente em uma sociedade pro- normalização constitucional primária e
teiforme como a atual, muitas das habitu- secundária, baseando-se em um critério
ais considerações dos juristas em relação hierárquico cada vez mais combinado com
à função das constituições: essas não po- aquele – derivado - de competência55, é evi-
dem mais ser entendidas como garantia de dente que, no plano dos âmbitos materiais,
estabilidade, no sentido tradicional, mas a amplitude cada vez maior ocupada por
devem ser modelo da mutação, direção da aquelas fontes que em outro momento te-
transição, no conhecimento do fato que a riam de ser definidas “atípicas”, e que são
própria transição, com paradoxo somente a normal variação tipológica de um mode-
aparente, da condição provisória (como lo teleológico, que se sintetiza não tanto
talvez nunca tenha sido) tornou-se agora na forma ou na respondência a modelos
permanente53. pré-ordenados, quanto na sua idoneidade
A metamorfose social não pode de funcional à obtenção de um fim-valor, me-
qualquer maneira ser impedida, e função diante a atuação de princípios, comporta
precípua do modelo constitucional, que uma revisão substancial do próprio concei-
encontra nas normas sobre a revisão das to de fonte normativa56.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


222 Francesco Rimoli

Não é possível aqui, obviamente, que permanece de fato ancorado aos tra-
analisar um problema tão árduo, mas é dicionais esquemas gradualísticos deveria
evidente que, em um sistema aberto, onde ser, portanto, drasticamente revisto: antes
o processo de positivação do direito, com- de recorrer à definição de categorias conti-
preendido acima de tudo como expressão nuamente in fieri, perseguindo uma estabi-
funcional de uma sociedade complexa e lidade totalmente ilusória por que antifun-
de um paradigma pluralístico, uma rígida cional, a acríbia dos estudiosos deveria ser
predeterminação de tudo o que esteja habi- orientada para o exame sistêmico dos no-
litado a produzir direito válido é cada vez vos modos da normalização, avaliando-lhe,
mais improvável. A “norma de reconheci- pois, a idoneidade potencial à assimilação
mento”, que o próprio Hart põe, entretan- dos deveres primários do sistema jurídico,
to, em estreita relação com uma “norma de e nele do ordenamento, naquele determi-
mutação” 57, identifica-se cada vez menos nado contexto. Em relação a eles, o modo
velozmente nos ordenamentos modernos, da positivação assume importância muito
não só pela pressão operada pela quanti- maior do lugar: nesse sentido, a definição
dade de relações que são de fato reguladas de procedimentos deverá ser concentrada,
pelos sistemas normativos externos (ou- ainda mais na predeterminação de exclusi-
tros ordenamentos, acordos de negócios
vas autoridades normativas, na posição da-
não formalizados, regras de comportamen-
queles princípios - abertura, participação,
to próprias de grupos sociais, e assim por
discursividade, inclusão - que, mantendo a
diante), mas para as mesmas mudanças in-
mais ampla liberdade e formas da inicia-
ternas que, de tempos em tempos, e de for-
tiva, sejam finalmente capazes de garantir
mas nem sempre homogêneas, a definição
(ou pelo menos de obter com eficácia) o
de novas modalidades de normalização
fim da composição dos interesses em jogo
introduz no processo nomopoiético e nos
atos nomotéticos. A incerteza do direito e a conseqüente assimilação das frustra-
torna-se extrínseca, portanto, em uma mul- ções e dos conflitos sociais60.
tiplicidade de planos: por um lado, a mo- Daqui, a coerente expansão da regu-
dalidade de produção das normas, ou seja, lamentação negociada, nos diversos níveis,
a existência e a combinação em sistema mas também a maior presença de uma le-
das simples fontes normativas, atos ou fa- gislação de princípio, a qual deve corres-
tos que sejam, mostrando-se em constante ponder, em base atuadora, uma conspícua
transformação, e é esse um produto neces- presença da intervenção da normalização
sário - não patológico, mas fisiológico - do do executivo e, principalmente, da autono-
pluralismo58; por outro lado, a obra herme- mia da negociação privada.
nêutica dos intérpretes na sociedade aberta Uma última consideração deve ser
introduz novamente e incessantemente ele- feita acerca do perfil da atuação dos direi-
mentos de variação, cuja amplitude poderá tos de liberdade: aqui parece totalmente
ser somente em parte moderada por fatores evidente que, na sociedade multicultural, a
semânticos derivantes do texto, que deverá posição de regras de convivência deve ser
ainda ser - até que possível - corroborada tão rigorosa no plano qualitativo, quanto
por referência teleológica externa, cujo ju- reduzido no plano quantitativo61; um poder
ízo de valor subentendido ao ato decisório público - local, estatal, ou supranacional
deverá finalmente ser comensurado59. - que se invista de papéis paternalísticos,
O objetivo classificatório que ainda invadindo esferas que se atenham essen-
agora anima grande parte da doutrina, e cialmente na escolha individual, com base

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 223

na defesa de presumíveis interesses públi- da um dos parâmetros teológicos primá-


cos (e que freqüentemente encobrem ainda rios dos quais comensurar toda avaliação
mais prosaicos interesses de grupos econô- política e sistêmica. Em outros termos, a
micos ou políticos bem individuáveis), re- funcionalização deverá sempre - até o mo-
tira o seu papel de responsável de todas as mento em que tais valores não serão mutá-
instâncias, e termina por funcionalizar as veis - ser concebida no sentido exclusivo
próprias liberdades, privando-as de gran- de uma orientação teleológica em que, na
de parte do seu efetivo conteúdo (pensan- dialética entre liberdade e autoridade, seja
do-se, em um pequeno, mas significativo de qualquer forma a primeira a prevalecer,
exemplo, algumas imposições, do capacete e toda escolha seja considerada oportuna
para os motociclistas ao uso obrigatório do e sistemicamente aceitável somente en-
cinto de segurança, justificadas em matéria quanto, como já foi dito, obtenha resul-
de saúde pública em base de considerações tados apreciáveis no plano da eficiência
de políticas e de despesa sanitária; assim não sacrificando (ou mesmo sacrificando
um direito individual está se transformando minimamente possível) os espaços reco-
em um dever ou mais precisamente em uma nhecidos e garantidos aos indivíduos e à
obrigação, freqüentemente em vantagem sociedade civil.
da grande indústria, aos quais interesses os Naturalmente, deve se levar em con-
órgãos normativos comunitários oferecem ta o fato que, no contexto atual, os ataques
cada vez maior atenção). Aqui se coloca, mais insidiosos contra a liberdade dos in-
conseqüentemente, um dos problemas cuja divíduos provêem, mais que dos aparatos
conclusão desse breve estudo deve dirigir públicos, da própria expansão das grandes
seu olhar: obviamente, em uma concepção concentrações oligopolistas que, quase em
funcionalística, como aquela aqui descrita todo o setor econômico, gerem agora o
em relação ao papel global do sistema ju- mercado: perante tudo isso, o papel do po-
rídico, o risco que a dimensão teleológica, der público, e da positivação que o meca-
compreendida como critério avaliador do nismo das fontes normativas, mesmo assim
agir jurídico acabe por revolver o núcleo transformado, mantém, não pode ser o de
das liberdades individuais, que represen- uma passiva e insensata abdicação, justifi-
tam sempre o sustento do constitucionalis- cadas por um liberismo tão radical quanto
mo moderno, não é descartável62. hipócrita, mas até aquele de uma positiva e
Não obstante, também na consciên- concreta obra de compensação, a tutela dos
cia que a existência e a vontade de tutela interesses dos grupos mais frágeis, em uma
de tal núcleo são a expressão direta e histo- renovada acepção dos tradicionais módu-
ricamente definida de um modelo cultural, los do estado social e, principalmente por
etnocentricamente definido entre muitos uma substancial e vital defesa da soberania
possíveis concorrentes63, até que esse será das instituições democráticas64.
colocado entre os caracteres essenciais do Aqui se pode, portanto, recuperar, fi-
ordenamento dos países ocidentais, e co- nalmente, o sentido restante do princípio
nectado aos fins-valores de justiça e igual- de certeza: na integração social, na tutela
dade neles recolhidos, os quais se corres- dos direitos fundamentais que devem mol-
pondem da mesma forma que as mesmas dar em si toda democracia, e, sobretudo,
opções relativas ao modelo democrático na obtenção de um fim de justiça, que,
e pluralista, é evidente que a garantia do mesmo na sua ontológica ambigüidade e
núcleo em questão, deverá ser considera- indeterminação, deve encontrar ainda uma

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


224 Francesco Rimoli

sua harmonização com aquela igualdade internazionale di filosofia del diritto, 1951,
substancial, distributivamente compreen- 146 ss. Sobre o tema e sobre a obra de Jerome
dida, que o segundo parágrafo do artigo Frank (do qual se pode ver também em Couros
3 Const. impõe como dever essencial da on Trial: Myth and Reality in American Justice,
Princeton, 1949), leia-se C.FARALLI, Certezza
República italiana. Toda outra acepção,
del diritto o diritto alla certezza?, em Materiali
daquela relativa à previsibilidade das de- per una storia della cultura giuridica, 1997, 89
cisões referidas ao conteúdo das mesmas, ss., mas especificamente 92 ss.
ou a estabilidade das instituições ou a co- 3
R.ALEXY, Teoria dell’argomentazione giu-
herence das decisões legislativas, não pode ridica (1978), tr.it. Milão, Giuffrè, 1998,
que ser avaliada em relação a esses fins- spec.107 ss. e 141 ss.; com perspectiva dife-
valores, e renunciada desde que constitua rente A.AARNIO, Argumentation Theory and
obstáculo para o seu alcance. Beyond. Some Remarks on the Rationality of
Legal Justification, in Rechtstheorie, 14, 1983,
385 ss.; sobre o conceito de certezza definido
NOTAS por esse autor pode-se ler P.COMANDUCCI,
Aarnio ed il problema della certezza del diritto,
1
F.LOPEZ de OÑATE, La certezza del di- em Analisi e diritto, 1994, 111 ss.
ritto (1942), de G.Astuti, Milão, Giuffrè, 4
Z.BAUMAN, La società dell’incertezza (cole-
1968, e de M.CORSALE, Certezza del dirit- ção de ensaios, 1999), tr.it. Bolonha, Il Mulino,
to e crisi di legittimità, II ed., Milão, Giuffrè, 2000,. 99 ss.; do mesmo A. leia-se La decaden-
1979; acrescentando-se a essas notas as de za degli intellettuali. Da legislatori a interpreti
C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore: sa- (1987), tr.it. Turim, Bollati Boringhieri, 1992,
ggio sulla certezza del diritto, Milão, Giuffrè, spec.13 ss. sobre o conceito de pós-modernida-
1999, e de E.DICIOTTI, Verità e certezza de. Sobre o tema também, por perfis diferentes,
nell’interpretazione della legge, Turim, Giappi- as considerações de G.P.PRANDSTRALLER,
chelli, 1999. M.CORSALE, Certezza del dirit- Relativismo e fondamentalismo, Roma-Bari,
to. I) profili teorici, em Enciclopedia giuridica, Laterza, 1996; J.-F. LYOTARD, La condizio-
VI, Roma, Ist.enc.it., 1988, a A.PIZZORUSSO, ne postmoderna (1979), tr.it. Milão, Feltri-
Certezza del diritto. II) profili applicativi, ibi- nelli, 1981; J.HABERMAS, Il discorso filo-
dem, e a L.GIANFORMAGGIO, Certezza del sofico della modernità. Dodici lezioni (1985),
diritto, in Digesto. Discipline privatistiche. tr.it. Roma-Bari, Laterza, 1987, I ed. BUL
Sezione civile, vol. II, Turim, UTET, 1988, 1997; A.TOURAINE, Critica della modernità
274 ss.; um estudo mais especifico é aquele de (1992), tr.it. Milão, Il Saggiatore, 1993 (I ed.
L.PEGORARO, Linguaggio e certezza della le- EST 1997), e di R.RORTY, Habermas e Lyo-
gge nella giurisprudenza della Corte costituzio- tard sulla postmodernità (1984), tr.it. in ID.,
nale, Milão, Giuffrè, 1988; mais recentemente, Scritti filosofici, II, Roma-Bari, Laterza, 1993,
sobre o tema, também P.DAMIANI, La certezza 221 ss.
del diritto come parametro nei giudizi di costi- 5
F. RIMOLI, Pluralismo e valori costituzionali.
tuzionalità. Le esperienze italiana e spagnola I paradossi dell’integrazione democratica, Tu-
a confronto, em Giurisprudenza costituziona- rim, Giappichelli, 1999, 245 ss.
le, 1999, 2347 ss., e ainda L.PEGORARO, La 6
M.SALERNO, La tecnica legislativa e la
tutela della certezza giuridica in alcune costi- chiarezza normativa nella giurisprudenza cos-
tuzioni contemporanee, em Scritti per Uberto tituzionale più recente, em Rassegna parlamen-
Scarpelli, Milão, Giuffrè, 1998, 705 ss. tare, 1997, 1034 ss.; também em M.AINIS, La
2
J.FRANK, Law and the Modern Mind (New legge oscura. Come e perché non funziona, II
York 1930, I ed. inglesa London 1949), Glou- ed., Roma-Bari, Laterza, 2001; na função da in-
cester, Mass., 1970; a obra deu na Itália a um de- certeza das normas leia-se C.LUZZATI, La va-
bite vivaz: a critica, muito dura, de N.BOBBIO, ghezza delle norme. Un’analisi del linguaggio
La certezza del diritto è un mito?, em Rivista giuridico, Milão, Giuffrè, 1990, spec. 13 ss.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 225

7
F.RIMOLI, op.cit.,. 176 ss.; a concessão te- um momento sucessivo, a conformidade das
leológica dos valores está esclarecida por escolhas particulares de um critério geral pré-
J.HABERMAS, Fatti e norme. Contributi a una constituído” (loc.cit., 274-275).
teoria discorsiva del diritto e della democrazia 12
N.LUHMANN, Sociologia del diritto (1972),
(1992), tr.it. Milão, Guerini e associados, 1996, tr.it. Roma-Bari, Laterza, 1977; as críticas mo-
302 ss.; uma crítica ao uso dos valores na juris- vidas à concepção funcionalística de Luhmann.
prudência constitucional do Bundesverfassun- J.HABERMAS, Diritto e morale (Tanner Lec-
gsgericht também em E.W.BÖCKENFÖRDE, tures) (1988), tr.it. em ID., Morale, diritto, poli-
Grundrechte als Grundsatznormen (1989), em tica, Turim, Einaudi, 1992, 5 ss., 45 ss.
ID., Staat, Verfassung, Demokratie. Studien zur 13
M.AINIS, op.cit., 27 ss.; G.TARELLO, Sto-
Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht ria della cultura giuridica moderna. Assolu-
(coleção de ensaios 1964-1990), II ed., Frank- tismo e codificazione del diritto, Bolonha, Il
furt a.M., Suhrkamp, 1992, 159 ss. O quesi- Mulino, 1976 (1988), 67 ss. e 223 ss.; sobre a
to sobre a natureza - de principio ou de valor certeza como conhecimento e previsibilidade
– da certezza do direito foi tratado também por da lei, por outro lado, insistiam, em diferen-
R.GUASTINI, La certezza del diritto come tes contextos e perspectivas, já Th.HOBBES,
principio di diritto positivo?, em Le Regioni, Elementa philosophica de cive (1646), XIII,
1986, 1090 ss. 16-17, e XIV, 11-13 (tr.it. di T.Magri, Roma,
8
BOBBIO, op.cit., 150. Ed.riuniti, 1979, 202 ss. e 210 ss.) e Leviathan
9
ROSS, Diritto e giustizia (1958), tr.it., Turim, (1651), XXVI (tr.it. di G.Micheli, Florença, La
Einaudi, 1965, I ed. PBE 1990, spec.62 ss. Nuova Italia, 1987, 259 ss. 265 ss.), e, um sé-
10
ALAMANDREI, La certezza del diritto e culo depois, Ch.L. de SECONDAT de MON-
la responsabilità della dottrina (1942), em TESQUIEU, De l’esprit des lois (1748), liv.
F.LOPEZ de OÑATE, cit., 167 ss., a recensão VI, cap.III. J.-J.ROUSSEAU, Du contrat social
do livro de Lopez, aparece compartilhada, mais (1762), liv. II, 12, a lei mais importante é aquela
simplificadas na sua linearidade: desenvolvida “gravada no coração do cidadão”, que dá lugar
no âmbito processual, na relação entre direito “à verdadeira constituição do Estado”, e o juiz
subjetivo e teoria da ação, a tese de Calaman- deve cobrir as lacunas do ordenamento na base
drei, para quem um conceito de ação no senti- da integridade e do bom senso (assim no cap.
do abstrato acabaria por frustrar toda a efetiva X delle Considerations sur le gouvernement
realização do direito reconhecido como único, de Pologne, de 1770. F. CAPRA, Il Tao della
aparece incontestável. fisica (1975)), Milão, Adelphi, 1980; é eviden-
11
GIANFORMAGGIO, Certezza, cit., 275. te que tal equação já foi superada também na
M.CORSALE, em Certezza del diritto, cit., perspectiva dos juristas, que estão conscientes
1, distingue uma certeza no sentido subjetivo, da absoluta impossibilidade de obter uma total
entendido como “sólida convicção da verdade previsibilidade da decisão aplicativa através
de uma afirmação”, e uma no sentido objetivo, de uma melhor redação da norma dos diversos
como “atitude de uma afirmação para garantir perfis técnicos, totalmente factíveis. M.AINIS,
a sua correspondência com um estado de coi- Attuazione di norme a mezzo di norme, em Giu-
sas”; R.GUASTINI, op.cit., 1094-95, distingue risprudenza costituzionale, 1996, 2015 ss., que
duas acepções lingüísticas da certeza, uma re- cita a propósito a idéia das “funções latentes”
ferida à “previsibilidade das decisões que serão do agir social do qual fala R.K.MERTON, Te-
adotadas pelos órgãos da aplicação”, a outra oria dell’agire sociale (1968, I ed.1949), tr.it.
pela “estabilidade das relações exauridas”. Bolonha, Il Mulino, VIII ed. 1992, 188 ss.
C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore, cit., 14
O.W.Holmes, para quem o direito é a “profecia
252 ss., o conceito de certeza como previsibi- de tudo que as Cortes farão de fato, e nada mais
lidade, entendida como relativa, e coligando-se pretensioso”, moldada por um behaviorismo
a essa uma idéia de certeza como controle das radical, segundo qual o direito não é aplicado
decisões, a certeza-controle acontece “quando em quanto valido, mas valido em quanto apli-
é possível avaliar, preventivamente ou até em cado. J.Frank sintetiza com o registro psicoló-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


226 Francesco Rimoli

gico, para quem o direito é valido se é aceito com os meios do cerimonial – por exemplo,
pela consciência popular, na teoria da validade mediante uma acentuada representação da inde-
de A.ROSS, op.cit., 70-71. A concepção do pendência e da imparcialidade do juiz, evitando
juiz Holmes está exposta nas suas decisões e prometer determinadas decisões e dissimulan-
nos seus escritos, uma coletânea de ambos está do aquelas que já foram tomadas”. Por outro
em O.W.HOLMES, Opinioni dissenzienti, obra lado, a legitimação mediante procedimento não
de C.Geraci, Milão, Giuffrè, 1975, 255 ss., em leva, necessariamente, “a um consenso real,
particular, o ensaio La via del diritto [1897]: à harmonia comunitária das opiniões”, já que
segundo “a gente quer saber em quais casos e “em geral a função social de um mecanismo de
até que ponto corre o risco de colidir-se com solução dos conflitos deverá ser vista não na
algo que é tão mais forte que ela (a força do ativação de determinados processos psíquicos
Estado), de modo que se torna necessário es- de aceitação, mas antes pela imunização do sis-
tabelecer quando tal perigo existe. Objetivo tema contra tais processos” (loc.cit., 115-116).
do nosso estudo é então a predição, ou seja, da Em outro plano, a factual indeterminação do
incidência da força pública através da ativida- êxito do processo é relevada e teorizada pelo
de dos tribunais” (loc.cit., 255). Sobre Holmes movimento americano dos Critical Legal Stu-
leia-se J.FRANK, Law and the Modern Mind, dies, sobre os quais fala, R.M.UNGER, The
cit., 253 ss. , para o qual as opinions e os es- Critical Legal Studies Movement, Cambridge
critos do juiz norte americano são “a treasury (Mass.), 1986; no sentido crítico, A.ALTMAN,
of adult consels, of balanced judgments as to Critical Legal Studies. A Liberal Critique, Prin-
the relation of the law to other social relations” ceton, Princeton University Press, 1990, mes-
(loc.cit., 253). Sobre a concepção realista de mo J.HABERMAS, op.cit., 51 ss.; ID., Fatti e
G.TARELLO, Diritto, enunciati, usi. Studi norme, cit., 254 ss.; G.MINDA, Teorie postmo-
di teoria e metateoria del diritto, Bolonha, Il derne del diritto (1995), tr.it. Bolonha, Il Muli-
Mulino, 1974, 51 ss. e em Il realismo giuridico no, 2001, 177 ss.
americano, Milão, Giuffrè, 1962; uma exposi- 18
Ch. PERELMAN, La giustizia (1945), tr.it.
ção sintética dos modelos de common law está Turim, Giappichelli, 1958. Por um quadro da
em M.G.LOSANO, I grandi sistemi giuridici, complexa evolução das teorias da justiça e do
Turim, Einaudi, 1978, 132 ss. estágio atual da reflexão sobre um perene pro-
15
M.CORSALE, Certezza del diritto e crisi di le- blema filosófico, até o debate vastíssimo reaber-
gittimità, cit., 15 ss. e 121 ss., e de C.LUZZATI, to pela famosa obra de J.RAWLS, Una teoria
L’interprete e il legislatore, cit., 321 ss. della giustizia (1971), tr.it. Milão, Feltrinelli,
16
F.CARNELUTTI, op.cit, 201, que criticando 1982. M.J.SANDEL, Il liberalismo e i limiti
Lopez afirma: “uma das chaves da justiça penal della giustizia (1982), tr.it. Milão, Feltrinelli,
é o poder discrecional do juiz, entre o máximo 1994; M.WALZER, Sfere di giustizia (1983),
e o mínimo e na aplicação da pena”; posto que Milão, Feltrinelli, 1987; A.MacINTYRE, Gius-
nenhum crime e nenhum réu são iguais a ne- tizia e razionalità (1988), tr.it. Milão, Anabasi,
nhum outro; da mesma forma C.LUZZATI, La 2 volumes, 1995; O.HOEFFE, Giustizia poli-
vaghezza, cit., 369 ss. tica. Fondamenti di una filosofia critica del
17
N.LUHMANN, Procedimenti giuridici e legit- diritto e deli Stato (1987), Bolonha, Il Mulino,
timazione sociale (1969, II ed. 1975, rist.1983), 1995; B.BARRY, Teorie della giustizia (1989),
obra de A. Febbrajo, Milão, Giuffrè, 1995, 112 Milão, Il Saggiatore, 1996; uma síntese das
ss. sobre o procedimento judiciário: “a função diferentes tendências em O.HÖFFE, Giustizia
do procedimento consiste, portanto, no especifi- (teorie della), em Enc. Novecento, Roma, 1998,
car a desilusão e na fragmentação e absorver os 854 ss.; H.KELSEN, Il problema della giusti-
protestos. Motor do procedimento é a incerteza zia (1960), Turim, Einaudi, 1975, para o qual
do êxito. É essa a força motriz do procedimento resultava especialmente problemática a com-
e o fator efetivamente legitimador. Durante o patibilidade entre o valor justiça e a ambicio-
procedimento tal incerteza deve, portanto, ser nada neutralidade da doutrina pura do direito
salvaguardada e mantida com todo cuidado e (Reine Rechtslehre). Sobre a ligação entre cer-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 227

teza e igualdade formal também C.LUZZATI, é: “a) relativa, b) do direito no sentido restrito
L’interprete e il legislatore, cit., 278 ss., para [scil. Usa como parâmetros modelos mais com-
quem “a exigência de ‘certeza’ resulta ser a pro- plexos de norma jurídica em relação à simples
jeção em grau epistêmico do princípio que quer proposições normativas] e c) diacrônica “.
assegurar a igualdade entendida como justiça 21
Giurisprudenza costituzionale, 1988, I, 1504
formal”. ss.; L.PEGORARO, Linguaggio e certezza
19
R.GUASTINI, op.cit., 1096 ss.; sobre a esta- della legge, cit., 19 ss.
bilidade das relações exauridas como caracte- 22
M.CORSALE, op. ult. cit., 127 ss., oferece in-
rizado pela certeza também C.LUZZATI, op. teressantes pontos de reflexão.
ult. cit., 284 ss.; sobre diversos perfis inerentes 23
J.HABERMAS, Teoria dell’agire comunicati-
à eficiência nos sistemas democráticos, o estu- vo. I: Razionalità nell’azione e razionalizzazio-
do de G.M.SALERNO, L’efficienza dei poteri ne sociale (III ed., 1984), Bolonha, Il Mulino,
pubblici nei principi dell’ordinamento costitu- 1986, 395 ss.
zionale, Turim, Giappichelli, 1999, spec. 19 ss. 24
C.ESPOSITO, em Decreto-legge (1962), em
e 187 ss. ID., Diritto costituzionale vivente (coletânea de
20
M.AINIS, La legge oscura, cit., 17 ss.; ensaios de D.Nocilla), Milão, Giuffrè, 1992,
G.M.SALERNO, La tecnica legislativa e la 183 ss. 194 ss.
chiarezza normativa nella giurisprudenza cos- 25
M.AINIS, Attuazione di norme a mezzo di
tituzionale più recente, em Raça. parl., 1997, norme, cit., 1996, 2015 ss.; sobre o Comitato,
1034 ss.; sobre o drafting, C.D’ORTA-V.DI E.BERARDUCCI-R.ALESSE, Comitato per
PORTO, L’attività di drafting nel procedi- la legislazione, em Enciclopedia giuridica,
mento legislativo: strutture, regele, strumen- Atualizações, VIII, Roma, I.E.I., 2000.
ti, em Rassegna parlamentare, 1995, 79 ss.; 26
H.KELSEN, Teoria generale del diritto e
R.DICKMAN, Il drafting come metodo della dello Stato, cit., 152 ss.; ID., Teoria generale
normazione, em AA.VV., Il Parlamento nella delle norme (post., 1979) tr.it. Turim, Einaudi,
transizione, Quaderni di Rassegna parlamen- 1990, 390 ss.; o pensamento de Kelsen, desde
tare, Milão, Giuffrè, 1998, ss. Sobre o tema é a primeira edição Reine Rechtslehre, evidencia
muito útil a Guida bibliografica al drafting le- sobre o tema traços diversos que são bem real-
gislativo, de M.Ainis e R.Pagano, em M.AINIS, çados por C.LUZZATI, op.ult.cit., 298 ss.
Le parole e il tempo della legge (coletânea de 27
E.FRAENKEL, Il doppio Stato. Contributo
ensaios), Turim, Giappichelli, 1996, 235 ss. alla teoria della dittatura (1974), tr.it. Turim,
uma síntese dos problemas em N.BOBBIO, Einaudi, 1983, 21 ss. e 98 ss.; F.NEUMANN,
Teoria dell’ordinamento giuridico, Turim, Gia- Behemoth. Struttura e pratica del nazionalso-
ppichelli, 1960; F.MODUGNO, Ordinamento cialismo (1942), Milão, B.Mondadori, 1999,
giuridico (dottrine generali), em Enciclopedia 95 ss M.WEBER, Economia e società (post.,
del diritto, XXX, Milão, Giuffrè, 1980, 680 ss.; 1922), Milão, Ed. di Comunista, 1961, I ed. Pa-
ID., Sistema giuridico, em L.MENGONI - F. perbacks 1995, I, 238 ss.
MODUGNO - F. RIMOLI, Sistema e proble- 28
F.RIMOLI, Pluralismo e valori costituzionali,
ma. Saggi di teoria dei sistemi giuridici, Turim, cit., 135 ss.
Giappichelli, 2003, 1 ss. Sobre o difícil tema 29-J.ESSER, Precomprensione e scelta del me-
das lacunas do ordenamento, A. G. CONTE, todo nel processo di individuazione del diritto
Saggio sulla completezza degli ordinamenti (1972), tr.it. Nápoles, ESI, 1983, spec.60 ss. e 121
giuridici, Turim, Giappichelli, 1962; ID., Nor- ss.; L.DE RUGGIERO, Sul concetto di precom-
ma generale esclusiva, em Novissimo Digesto prensione, em Politica del diritto, 1984, 577 ss.
italiano, XI, Turim, UTET, 1964, 329; ID., 30
Ch.PERELMAN, Logica giuridica nuo-
Norma generale negativa, ibidem, 330. F. MO- va retorica (1976), tr.it. Milão 1981, 163 ss.;
DUGNO, Antinomie e lacune, em Enciclopedia F.RIMOLI, op.cit., 255 ss.; C.LUZZATI,
giuridica, II, Roma, I.E.I., 1988. C. LUZZATI, op.cit., 418 ss.; G.TARELLO, Diritto, enuncia-
op.ult.cit., 291, a certeza não é necessariamente ti, usi (coletânea de ensaios), Bolonha, Il Muli-
incompatível com o dinamismo jurídico quando no, 1974, 425 ss.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


228 Francesco Rimoli

31
J.HABERMAS, Fatti e norme, cit., 316 ss. Fonti, norme, criteri ordinatori. Lezioni, III ed.
32
M.WALZER, Sfere di giustizia, cit., passim; Turim, Giappichelli, 2001. Sobre os problemas
Sulla tolleranza (1997), Milão, Feltrinelli, 1998. relativos à evolução dinâmica no modelo gra-
33
K.LARENZ, Storia del metodo nella scienza dualístico kelseniano C.LUZZATI, op.cit., 305
giuridica (1960), tr.it. Milão, Giuffrè, 1966, ss. e 399 ss.
58 ss.; R.TREVES, Sociologia del diritto , 37
M.CORSALE, Certezza del diritto e crisi di
Turim, Einaudi, 1993, 104 ss.; W.WILHELM, legittimità, cit., 258 ss.. N.LUHMANN, La di-
Metodologia giuridica nel secolo XIX (1958), fferenziazione del diritto. Contributi alla socio-
tr.it. Milão, Giuffrè, 1974, spec. 97 ss.; R. von logia e alla teoria del diritto (1981), tr.it. Bo-
JHERING, La lotta per il diritto (1872), tr.it. lonha, Il Mulino, 1990, 354 ss.. N.IRTI, L’età
em ID., La lotta per il diritto e altri saggi, Mi- della decodificazione, Milão, Giuffrè, 1979, 96
lão, Giuffrè, 1989, 1 ss.; J.KIRCHMANN, La ss.
mancanza di valore della giurisprudenza come 38
F.RIMOLI, op.cit., 274 ss.; P.P.PORTINARO,
scienza (1848), em J.KIRCHMANN-E.WOLF, Il grande legislatore e il custode della costituzio-
Il valore scientifico della giurisprudenza, Mi- ne, em AA.VV., Il futuro della costituzione, de
lão, Giuffrè, 1964, 4 ss. G.Zagrebelsky, P.P.Portinaro e J.Luther, Turim,
34
Z.BAUMAN, La società dell’incertezza, cit., Einaudi, 1996, 5 ss.; E.-W.BÖCKENFÖRDE,
55 ss. Grundrechte als Grundsatznormen (1989), em
35
J.BRYCE, Costituzioni flessibili e rigide ID., Staat, Verfassung, Demokratie. Studien zur
(1884), tr.it. Milão, Giuffrè, 1998 e A.V.DICEY, Verfasssungstheorie und zum Verfassungsre-
Introduction to the Study of the Law of the Cons- cht (coletânea de ensaios 1970-1990), Frank-
titution, London 1908 (X ed. de E.C.S.WADE, furt a.M., Suhrkamp, 1992, 159 ss.; sobre a
1962), o estudo profundo de A.PACE, La causa Abwägung, R.ALEXY, Theorie der Grundre-
della rigidità costituzionale. Una rilettura di chte, II ed., Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1996,
Bryce, dello Statuto albertino e di qualche al- 79 ss., 143 ss., 423 ss., 468 ss.; ID., Kollision
tra costituzione, II ed., Pádua, CEDAM, 1996, und Abwägung als Grundprobleme der Grun-
idem F.RIMOLI, Costituzione rigida, potere di drechtsdogmatik, em La ragionevolezza nel
revisione e interpretazione per valori, em Giur. diritto, de M.La Torre e A.Spadaro, Turim,
cost., 1992, 3712 ss..A.PACE, Leggi di incenti- Giappichelli, 2002, 9 ss.; A.PIZZORUSSO,
vazione e vincoli al futuro legislatore, em Scrit- Ragionevolezza e razionalità nella creazione e
ti in memoria di V.Bachelet, II, Milão, Giuffrè, nell’applicazione della legge, ibidem, 45 ss.
1987; mais recente P.CARNEVALE, Riflessioni 39
Sobre consistency e coherence N.Mac COR-
sul problema dei vincoli all’abrogazione futu- MICK, Legal Reasoning and Legal Theory,
ra: il caso delle leggi contenenti clausole di Oxford, Clarendon Press, 1978, cap.VII e
“sola abrogazione espressa” nella più recente VIII; ID., La congruenza nella giustificazio-
prassi legislativa, em Dir.soc., 1998, 407 ss.. ne giuridica (1984), em N.Mac CORMICK
S.HOLMES, Vincoli costituzionali e parados- - O.WEINBERGER, Il diritto come istituzione
so della democrazia (1988), tr.it. in AA.VV., Il (coletânea de ensaios), de M.La Torre, Milão,
futuro della costituzione, cit., 166 ss.; ID. Pas- Giuffrè, 1990, 335 ss.; J.HABERMAS, op.cit.
sioni e vincoli. I fondamenti della democrazia 303; M.LA TORRE, Norme, istituzioni, valo-
liberale (1995), tr.it. Milão, Ed. di Comunità, ri. Per una teoria istituzionalistica del dirit-
1998, spec. 192 ss. to, Roma-Bari, Laterza, 1999, spec. 239 ss.;
36
A.RUGGERI, Il sistema delle fonti tra vecchie R.DWORKIN, I diritti presi sul serio (1978),
esperienze e prospettive di riordino costituzio- tr.it.. Bolonha, Il Mulino, 1982, spec. ss., dis-
nale, em AA.VV., La riforma della costituzione tinção entre principles e rules.
(Atti del convegno dell’Associazione italiana 40
L.GIANFORMAGGIO, em Certezza del di-
dei costituzionalisti, Roma 6-7 novembre 1998), ritto, cit., 276, (sobre o tema também EAD.,
Pádua, CEDAM, 279 ss.; F.MODUGNO, Certezza del diritto, coerenza e consenso. Va-
Appunti dalle lezioni sulle fonti del diritto, riazioni su un tema di Mac Cormick, em Ma-
Turim, Giappichelli, 1999, e da A.RUGGERI, teriali per una storia della cultura giuridica,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO... 229

1988, 459 ss.). Uma coherence compreendida 46


G.ZAGREBELSKY, Il diritto mite, cit., 92 ss.
nesse sentido não poderia ser violada, a menos e 147 ss.
que não queira reduzir a cultura de referência a 47
Sobre a relação entre Unbestimmtheit de Kelsen
um esquema tendencialmente imóvel. e a open texture de Hart, C.LUZZATI, op.cit.,332
41
N.LUPO, in Gazzetta giuridica, 1999, n.22, 1 ss. G.TARELLO, Diritto, enunciati, usi, cit.,
ss. 135 ss.; P.DI LUCIA, Teorie dei rapporti tra
42
J.ELSTER, Argomentare e negoziare (1993), diritto e linguaggio, em Scritti per U.Scarpelli,
tr.it. Milão, Anabasi, 1993; ID., Lo studio dei de L.Gianformaggio e M.Jori, Milão, Giuffrè,
processi costituenti: uno schema generale 1998; R.GUASTINI, Produzione di norme a
(1991), tr.it. em AA.VV. Il futuro della costi- mezzo di norme. Un contributo all’analisi del
tuzione, cit.,209 ss., E.DE MARCO, La “nego- ragionamento giuridico, em AA.VV., Etica e
ziazione” legislativa, Pádua, CEDAM, 1984, diritto. Le vie della giustificazione razionale, de
234 ss.; A.PIZZORUSSO, The Law-Making L.Gianformaggio ed E.Lecaldano, Roma-Bari,
Process as a Juridical and Political Activity, Laterza, 1986, 173 ss.
em AA.VV., Law in the Making. A compara- 48
D.GRIMM, Il futuro della costituzione (1991),
tive Survey, Berlim-Heidelberg 1988, 62 ss.; tr.it. em AA.VV., Il futuro della costituzione,
E.TUCCARI, Per una teoria della negoziazio- cit., 129 ss.; N.LUHMANN, La costituzione
ne legislativa, em Rivista trimestrale di diritto come acquisizione evolutiva (1990), tr.it. ibi-
pubblico, 1986, 76 ss. dem, 83 ss.; M.DOGLIANI, Potere costituente
43
N.LUHMANN, op.cit., 129 ss.; J.ESSER, e revisione costituzionale nella lotta per la cos-
op.cit., 141 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 104 ss.; tituzione, ibidem, 253 ss.
L.FERRAJOLI, Diritto e ragione. Teoria del 49
J.HABERMAS, Sovranità popolare come
garantismo penale,VIII ed., Roma-Bari, Later- procedura. Un concetto normativo di sfera
za 2004, p.XXII; C.LUZZATI, op.cit., 321 ss. pubblica (1989), ora in tr.it. em ID., Morale, di-
44
G.ZAGREBELSKY, Il diritto mite. Legge ritto, politica (coletânea de ensaios), Turim, Ei-
diritti giustizia, Turim, Einaudi, 1992, passim; naudi,1992, 81 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 223 ss..
ID., Il “crucifige” e la democrazia, Turim, Ei- 50
L.GIANFORMAGGIO, Certezza del diritto,
naudi, 1995, spec.103 ss. cit., 275-277, adequando a tese de Mac Cor-
45
R.DWORKIN, op.cit., 90 ss.; ID., Princìpi, mick que, como foi dito, aparecem, todavia,
politiche, procedure (1981), tr.it. em Questioni orientadas oportunamente em um sentido mais
di principio, Milão, Il Saggiatore, 1985, 87 ss.; circunscrito.
ID., L’impero della legge (1986), tr.it. Milão, Il 51
Ch.Mc ILWAIN, Costituzionalismo antico
Saggiatore, 1990, spec. 373 ss.; S.BARTOLE, e moderno (1947), tr.it. Bolonha, Il Mulino,
In margine a “Taking Rights Seriously” di 1990; M.DOGLIANI, Introduzione al dirit-
Dworkin, em Materiali per una storia della cul- to costituzionale, Bolonha, Il Mulino, 1994;
tura giuridica, 1980, 1 ss.; R.BIN, Diritti e ar- G.ZAGREBELSKY, Storia e costituzione
gomenti. Il bilanciamento degli interessi nella (1993), em AA.VV., Il futuro della costituzio-
giurisprudenza costituzionale, Milão, Giuffrè, ne, cit., 35 ss.
1992, 13 ss.; J.HABERMAS, op.cit., 241 ss.; 52
N.LUHMANN, op.ult.cit.., 344 ss.
A.ALTMAN, op.cit., 35 ss.; F.MODUGNO, 53
N.LUHMANN, La costituzione come ac-
Princìpi generali dell’ordinamento, em Enc. quisizione evolutiva, cit., 95 ss.; F.RIMOLI,
giur., XXIV, Roma, 1991; N.BOBBIO, Prin- op.cit., 212 ss.; L.GIANFORMAGGIO, Tem-
cìpi generali di diritto, em Nss.Dig.it., XIII, po della costituzione, tempo della consolida-
Turim, Utet, 1966, 887 ss.; V.CRISAFULLI, zione, em Politica del diritto, 1997, 527 ss.;
Per la determinazione del concetto dei prin- G.ZAGREBELSKY, I paradossi della rifor-
cìpi generali del diritto, Milão, Giuffrè, ma costituzionale, em AA.VV., Il futuro della
1941; F.SORRENTINO, I princìpi genera- costituzione, cit., 293 ss.; R.GUASTINI, Rigi-
li dell’ordinamento nell’interpretazione e dità costituzionale e normatività della scien-
nell’applicazione del diritto, em Diritto e so- za giuridica, in Studi in onore di Gianni Fer-
cietà, 1987, 181 ss. rara, II, Turim, Giappichelli, 2005, 427 ss.;

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


230 Francesco Rimoli

F.MODUGNO, Qualche interrogativo sulla Ts., Athenaeum, 1980, spec. 79 ss.


revisione costituzionale e i suoi possibili limiti, 60
F.RIMOLI, op.cit., 181 ss.
ibidem, 615 ss. 61
Habermas (1992) e Charles Taylor (1996),
54
A.A.CERVATI-S.P.PANUNZIO-P.RIDOLA, em italiano no volume de J.HABERMAS-
Studi sulla riforma costituzionale. Itinerari e Ch.TAYLOR, Multiculturalismo. Lotte per
temi per l’innovazione costituzionale in Italia, il riconoscimento, Milão, Feltrinelli, 1998;
Turim, Giappichelli, 2001; A.PIZZORUSSO, A.HONNETH, Kampf um Anerkennung. Zur
La crisi costituzionale italiana, in Studi in ono- moralischen Grammatik sozialer Konflikte,
re di Gianni Ferrara,cit., III, 141 ss.. Sobre a II ed., Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1998, e
reforma citada no título V da parte II da cons- J.RAWLS, Liberalismo politico (1993), tr.it.
tituição de 1948 com a lei constitucional n.3 Milão, Ed. di Comunità, 1994.
de 2001, AA.VV., Nuovi rapporti Stato-Regio- 62
R.TREVES, Sociologia del diritto. Origini, ri-
ne dopo la legge costituzionale n.3 del 2001, cerche, problemi, III ed., Turim, Einaudi, 1993,
de F.Modugno e P.Carnevale, Milão, Giuffrè, 313 ss.; A.FEBBRAJO, La sociologia del dirit-
2003. to nell’opera di Niklas Luhmann, em Sociolo-
55
G.AMATO, Rapporti fra norme primarie e gia del diritto, 1974, 325 ss.; J.HABERMAS,
secondarie, Milão, Giuffrè, 1962; S.FOIS, em Diritto e morale (Tanner Lectures) (1988), tr.it.
Legalità (principio di), em Enc.dir., XXIII, Mi- em ID., Morale diritto politica, cit., 5 ss. 45 ss.
lão, Giuffrè, 1973, 679 ss.; A.RUGGERI, Ge- 63
R.RORTY, La filosofia dopo la filosofia. Con-
rarchia, competenza e qualità nel sistema costi- tingenza, ironia e solidarietà (1989), tr.it. Roma-
tuzionale delle fonti normative, Milão, Giuffrè, Bari, Laterza, 1998, spec. 9 ss.; M.WALZER,
1977; F.MODUGNO, L’invalidità della legge , Geografia della morale. Democrazia, tradizio-
I-II, Milão, Giuffrè, 1970; ID., voce Validità, em ni e universalismo (1994), tr.it. Bari, Dedalo,
Enc.dir., Milão, Giuffrè, 1993; C.ESPOSITO, 1999; S.P.HUNTINGTON, La terza ondata. I
La validità delle leggi (1934), rist. Milão, Giu- processi di democratizzazione alla fine del XX
ffrè, 1964, 59 ss. e 74 ss.; H.KELSEN, Teoria secolo (1993), tr.it. Bolonha, Il Mulino, 1995;
generale del diritto e dello Stato (1945), tr.it. L.FERRAJOLI, Diritti fondamentali. Un di-
Milão, Etas BPS, 1984, 61 ss.; H.L.A.HART, Il battito, de E.Vitale, Roma-Bari, Laterza, 2001;
concetto di diritto, cit., 95 ss. G.AZZARITI, Il futuro dei diritti fondamentali
56
V.CRISAFULLI, em Fonti del diritto (dir. nell’era della globalizzazione, em Politica del
cost.),em Enc.dir., XVII, Milão, Giuffrè, 1968, diritto, 2003, 327 ss.; F.RIMOLI, Universali-
925 ss.; G.ZAGREBELSKY, Il sistema costi- zzazione dei diritti fondamentali e globalismo
tuzionale delle fonti del diritto, Turim, Eges, giuridico: qualche considerazione critica, em
1984; F.MODUGNO, em Fonti del diritto Studi in onore di Gianni Ferrara,cit., III, 321
(I-dir.cost.), em Enc.giur., XIV, Roma, 1988; ss.
L.PALADIN, Le fonti del diritto italiano, Bo- 64
M.LUCIANI, L’antisovrano e la crisi delle
lonha, Il Mulino, 1996; A.RUGGERI, op.cit., costituzioni, em Rivista di diritto costituziona-
passim. le, n.1/1996, 124 ss.160 ss.; C.PINELLI, Cit-
57
H.L.A.HART, op.cit., 113 ss. tadini, responsabilità politica, mercati globali,
58
A.RUGGERI, Sistema delle fonti, ordinamen- ibidem, 1997, 43 ss.; a relação entre well-being
to pluralista e garanzie costituzionali, em Scrit- e representação recíproca das desigualdades é
ti in onore di G.Guarino, III, Pádua, CEDAM, também colocado em evidencia por A.K.SEN,
1998, 517 ss. La diseguaglianza. Un riesame critico (1992),
59
Sobre a offene Gesellschaft der Verfassun- tr.it. Bolonha, Il Mulino, 1994, 49 ss., 127 ss.
gsinterpreten a citação da obrigação está em e 145 ss.
P.HÄBERLE, Die Verfassung des Pluralismus.
Studien zur Verfassungstheorie der offenen Ge-
sellschaft (coletânea de ensaios), Königstein/

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


231

Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional


ou uma concepção da constituição?*
Neocostituzionalismo: un modello costituzionale o una
concezione della costituzione?

Susanna Pozzolo**
Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Apresentarei uma breve introdução sobre a noção de neoconstitucionalismo. A isso seguirá a análise
de alguns pontos especialmente interessantes e problemáticos sobre os quais se confrontam os opostos susten-
tadores do jurispositivismo e neoconstitucionalismo. No ponto 1.1 desenvolverei algumas considerações sobre
o modelo preceptivo e sobre sua relação entre direito e moral. No ponto 1.2 apresentarei algumas considerações
sobre o modelo preceptivo e sobre a tese da especificidade da interpretação constitucional. No ponto 1.3 de-
senvolverei algumas considerações sobre a ponderação dos princípios constitucionais. No ponto 2 apresentarei
algumas considerações conclusivas, argumentando a favor de uma diferente configuração do papel da jurisdição
no sistema das fontes (nos países de direito codificado). A tese que pretendo defender com essa análise afirma
que as exigências interpretativas perseguidas pela doutrina neoconstitucionalista são intimamente dependentes
da forma em que ela concebe a constituição, por nada objetivas. Em segundo lugar, os meus argumentos serão
dirigidos também à crítica da proposta neoconstitucionalista pela perspectiva do constitucionalismo garantista.
Palavras-chave: Interpretação. Constituição. Princípio.

Riassunto: Proporrò una breve introduzione sulla nozione di neocostituzionalismo. A ciò farà seguito l’analisi
di alcuni punti particolarmente interessanti e problematici sui quali si confrontano gli opposti sostenitori di
giuspositivismo e neocostituzionalismo. Nel punto 1.1. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo
e sul rapporto fra diritto e morale. Nel punto 1.2. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo e sulla
tesi della specificità dell’interpretazione costituzionale. Nel punto 1.3. svolgerò alcune considerazioni sulla
ponderazione dei principi costituzionali. Nel punto 2. svolgerò alcune considerazioni conclusive, argomentando
a favore di una diversa configurazione del ruolo della giurisdizione nel sistema delle fonti (nei paesi a diritto
codificato). La tesi che intendo suffragare con tale analisi afferma che le esigenze interpretative avanzate dalla
dottrina neocostituzionalista sono strettamente dipendenti dalla forma in cui essa concepisce la costituzione e
per nulla oggettive. In secondo luogo, i miei argomenti saranno diretti anche alla critica della proposta neocos-
tituzionalista dalla prospettiva del costituzionalismo garantista.
Parole chiave: Interpretazione. Costituzione. Principi.

Abstract: I will propose a short introduction on the knowledge of neoconstitutionalism. It will be followed by
the analysis of a few points particularly interesting and problematic which the opposites supportive of legal po-
sitivism and neoconstitutionalism are compared on. In the point 1.1. I will develop a few considerations on the
preceptive model and on the connection between law and moral. In the point 1.2. I will develop a few considera-
tions on the preceptive model and on the thesis of the specificity of the constitutional interpretation. In the point
1.3. I will develop a few considerations on the balancing (ponderazione) of the constitutional principles. In the
point 2. I will develop a few (partial) conclusive considerations, deducing in favor of a different configuration
of the role of the jurisdiction in the system of the sources of law (in civil law systems). The thesis I intend to
support with such analysis claims that the interpretative demands advanced by the neoconstitutionalism doctrine
are tight dependent from the form in which it conceives the constitution and for nothing objective. In second
place, my subjects will be directed also to the criticism of the neoconstitutionalist proposal by the perspective
of the constitutionalism as guarantor of liberties and rights.
Key Words: Interpretation. Constitution. Principles.

*Tradução do italiano para português por Juliana Salvetti, revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.
**Ricercatore in Filosofia del diritto presso la Facoltà di Giurisprudenza dell’Università degli Studi di Brescia (Indirizzo: via
del Camoscio 10/7, 16142 Genova (Italia), tel: 00 39 010 8376591-cellulare 0039 347 4140485; email:susanna.pozzolo@giuri.
unige.it; pozzolo@jus.unibs.it)

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


232 Suzanna Pozzolo

Introdução os mesmos podem ser isolados de modo a


reconstruir um modelo peculiar de sistema
O termo ‘neoconstitucionalismo’ jurídico. Dado que aos caracteres desse úl-
foi originariamente criado para identificar timo modelo pareceriam poder adequar-se
uma perspectiva jusfilosófica que se coloca em geral as constituições do segundo pós-
como intermediária entre positivismo jurí- guerra, o neoconstitucionalismo repre-
dico e jusnaturalismo: doutrinas das quais sentaria a doutrina do constitucionalismo
o neoconstitucionalismo teria, por assim contemporâneo. Por uma perspectiva dife-
dizer, eliminado os defeitos e reunidos os rente, ‘neoconstitucionalista’ seria aquele
méritos. O vocábulo neoconstitucionalis- ordenamento jurídico que tenha sofrido,
mo, todavia, sofreu quase imediatamente em qualquer medida, um processo de
algumas depreciações significativas, inter- ‘constitucionalização’, um processo que
ligadas à sua ampla difusão no vocabulário leva o ordenamento jurídico ser totalmente
dos jusfilósofos, que lhe permitiram indi- impregnado pela constituição (GUASTI-
car até outros fenômenos. Uma primeira NI, 1998).
modificação ampliou a sua capacidade de- O uso de neoconstitucionalismo para
notativa e reduziu as suas potencialidades indicar o modelo jurídico do estado cons-
conotativas: ‘neoconstitucionalismo’ foi titucional de direito gera uma espécie de
empregado também para indicar o cons- redundância e é fonte de confusão. Consi-
titucionalismo tout court. Uma segunda dero inapropriado esse uso porque o termo
modificação permitiu ao vocábulo indicar foi originariamente pensado para indicar e
não mais uma doutrina, mas o modelo continua indicando uma doutrina antijus-
de sistema jurídico dotado de específicas positivista que nega utilidade justamente
características (uma constituição longa e àquele tipo de ciência do direito que se
densa): o estado constitucional de direi- preocupa em individuar o modelo de esta-
to (MAZZARESE, 2002). Seguidamen- do o qual se decidiu recentemente denomi-
te, outras modificações, qualitativamente nar neoconstitucionalista. Parece-me, ao
diferentes, permitiram ao vocábulo ser contrário, interessante associar a perspec-
empregado para operar uma série de pará- tiva neoconstitucionalista com o fenômeno
frases da subdivisão de Bobbio de positi- da constitucionalização, já que nesse caso
vismo jurídico: individualizando assim um serão esclarecidas algumas características
neoconstitucionalismo como teoria, como peculiares e distintivas. Refiro-me à pa-
ideologia e como metodologia (COMAN- ráfrase bobbiana, de frente às vantagens
DUCCI, 2002). analíticas que dela derivam, ela finda por
Essas modificações, evidenciadas reconhecer um elevado grau de elaboração
ocasionalmente, criam também uma certa que o neoconstitucionalismo não possui.
confusão. Os vários sentidos, na realida- A tese que defendo nessas páginas
de, estão ligados entre si construindo um é dirigida à reafirmação da originalidade
mosaico cujas pastilhas são difíceis de se- do sentido atribuído ao termo ‘neoconsti-
parar, já que entre eles existe uma forte in- tucionalismo’ e é dirigida a oferecer argu-
terdependência e interligação. Creio que a mentos hábeis que sustentem as exigências
primeira modificação permitiu a segunda: interpretativas prosseguidas pelo neocons-
assumindo ‘neoconstitucionalismo’ como titucionalismo, em relação ao estado de
uma espécie de ‘exatidão’ do ‘constitucio- direito constitucional, são intimamente
nalismo’, uma vez individuados os carac- dependentes do modo em que tal doutrina
teres que determinam sua especificidade, concebe a constituição. Considero que o

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 233

modo de interpretar a constituição está in- reflexão e uma crítica que, às vezes, pro-
timamente ligado ao modo de concebê-la, vinha do mesmo positivismo jurídico e,
ou seja, a metodologia interpretativa e as outras vezes, de áreas teóricas aparente-
exigências interpretativas interligadas não mente próximas e não opostas. No mundo
dependem de uma configuração, por assim anglo-saxão, em especial, foi uma crítica
dizer, neutra, objetiva ou verdadeira, mas dworkiniana que colocou em dificuldade
sim da específica reconstrução neoconsti- o sofisticado positivismo hartiano, dando
tucionalista. Particularmente eles derivam vida a um intenso debate em torno da dico-
da adoção do modelo preceptivo da cons- tomia positivismo inclusivo - positivismo
tituição como norma. Não compartilho, exclusivo (ESCUDERO, 2004).
portanto, da tese daqueles que individua- Na área dos países de civil law as
lizam um modelo institucional essencial- vozes críticas são mais diversificadas, mas
mente neoconstitucionalista, se não como tudo somado convergem sobre uma tese
produto interpretativo-reconstrutivo com de fundo que consiste na afirmação da in-
base em certas assunções ideológicas-po- compatibilidade entre positivismo jurídico
líticas relativas à constituição. Ocorre, to- e constitucionalismo contemporâneo: essa
davia, lembrar-se que a afirmação de uma última crítica e a doutrina que a sustenta
concepção da constituição (no nosso caso
foi denominada neoconstitucionalismo
neoconstitucionalista) determina certas
(POZZOLO, 1997, 2001).
exigências interpretativas e o uso de téc-
A crítica neoconstitucionalista indi-
nicas particulares (por exemplo, a ponde-
vidualiza na teoria e na metodologia do
ração dos valores) que se tornam exercício
positivismo jurídico uma ligação incin-
compartilhado e nesse modo contribuem
dível com o estado de direito do século
para redesenhar ou reconfigurar o objeto
VIII, assim sendo, com a supremacia da
interpretado (a constituição). Nesse sen-
tido, tais práticas acabam conformando o lei ordinária do sistema das fontes, com a
estado de direito constitucional, tornando- supremacia da vontade do legislador sobre
o conforme as assunções das concepções a justiça. Essa ligação e tudo que a segue
de partida, ou seja, a concepção acaba de- tornariam inadequado o juspositivismo
terminando uma certa percepção da reali- para enfrentar o direito do estado constitu-
dade por parte dos operadores, portanto, cional. Direito que seria caracterizado:
endereçam-lhes as praxes, e, finalmente, 1 - Pela supremacia da constituição
reconfigura a própria realidade onde eles sobre a lei ordinária;
operam: os ordenamentos contemporâneos 2 - Pela subordinação da vontade le-
estão quase todos envolvidos em um pro- gislativa aos conteúdos de justiça constitu-
cesso de constitucionalização (no sentido cionalmente previstos (a constituição não
de Guastini). constitui um mero invólucro político e de
Diversos são os aspectos aptos para inspiração para o sistema e nem ao menos
caracterizar o neoconstitucionalismo como um simples grau superior de formalidade,
doutrina da interpretação constitucional. mas introduz um vínculo substancial à
Entre esses, aquele central que consiste na criação do direito positivo);
peculiar e específica crítica que os autores 3 - Pela rigidez;
subsumíveis, sob esse apelativo, retornem 4 - Pela garantia da constituição
ao positivismo jurídico. Esse último, mui- (PRIETO SANCHES, 2003, pp. 112-117).
tas vezes e em diversos modos criticado e A capacidade penetrante que caracteriza o
elogiado, viu em anos recentes surgir uma texto constitucional, permeado de princípios

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


234 Suzanna Pozzolo

e de conteúdos de valor, determina a cons- cessidade, mas uma escolha: um modo de


titucionalização do inteiro ordenamento conceber o papel e a função da constitui-
(Guastini, 1998) e, portanto, favorece: ção é tudo o que determina a reconstrução
5 - A aplicação direta da constituição neoconstitucionalista do direito do estado
às relações interparticulares, coisa que im- constitucional.
plica; Nas reflexões que se segue sinaliza-
6 - A exigência da obediência dire- rei alguns pontos críticos que, a meu ver,
tamente aos cidadãos: a constituição não podem contribuir para demonstrar como a
é mais só norma para os órgãos do estado doutrina neoconstitucionalista avança em
(GUASTINI, 2001, 63-67). pretensões e exigências interpretativas do
Para esse direito adequar-se-iam direito constitucionalizado que dependem
instrumentos conceituais mais moderados intimamente do modo em que a própria
e flexíveis do que aqueles positivistas. É doutrina concebe a constituição e não são,
apropriado, desde já, notar que atrás da ao contrário, exigências objetivas determi-
objeção descritivo-explicativa dirigida ao nadas pelo objeto constituição. No ponto
positivismo jurídico se oculta uma norma- 1.1 desenvolverei algumas considerações
tiva que se detém na impermeabilidade do sobre o modelo preceptivo e sobre a rela-
direito, juspositivisticamente compreendi- ção entre direito e moral. No ponto 1.2 de-
do, à crítica moral construída baseando-se senvolverei algumas considerações sobre
nos valores constitucionais. modelo preceptivo e sobre a tese da espe-
O neoconstitucionalismo, portanto, cificidade da interpretação constitucional.
afirma a arcaicidade do positivismo ju- No ponto 1.3 desenvolverei algumas con-
rídico, não por razões a ele internas, mas siderações sobre a ponderação dos princí-
porque, como um antigo instrumento de pios constitucionais.
relevância científica, uma vez conferida
a maior complexidade do fenômeno que 1.1 O ‘modelo preceptivo da constituição
deveria medir, então, constatada a sua im- concebida como norma’. Direito e moral.
precisão e ineficiência descritiva, é subs-
tituído por instrumentos mais atuais e so- Se o jurispositivismo afirma que o
fisticados, resultado da evolução científica. direito identifica-se com a lei e que essa
Substancialmente, o argumento neoconsti- pode ter qualquer conteúdo, o neoconstitu-
tucionalista sustenta que, determinada a cionalismo afirma que o direito do estado
mais complexa natureza do objeto ‘direito constitucional não se adapta a essa descri-
positivo’ no âmbito do estado constitu- ção ou, pelo menos, não completamente.
cional (em relação ao estado de direito), Se bem que ‘constituição’ seja termo
o instrumento ‘positivismo jurídico’ deve polissêmico, aos presentes fins podem ser
ser substituído porque obsoleto. Pode-se considerados somente dois tipos abstratos
duvidar dessa reconstrução ‘científico- de constituição: um tipo procedimental e
descritiva’, que torna necessária a escolha um tipo substantivo-preceptivo. As consti-
neoconstitucionalista, se não outra, porque tuições contemporâneas, longas e densas,
isso que o neoconstitucionalismo apresen- caracterizam-se por fundir esses dois tipos
ta como um objetivo modelo institucional juntos, apresentando meta-regras no sen-
corresponde mais a uma característica tido lato organizativas e meta-regras que
concepção da constituição. Para os teóri- estabelecem princípios e valores aos quais
cos do direito a adoção de uma concepção se deve conformar a legislação infraconsti-
preceptiva da constituição não é uma ne- tucional. Por isso são rígidas e garantistas.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 235

Depois de ter individuado nesse perspectiva, a constituição, caracteristica-


modo o objeto ‘constituição’ restam, to- mente situada acima das maiorias parla-
davia, possíveis diversas concepções da mentares e acima das vontades contingen-
constituição: pelo menos, uma concepção tes, constitui um acordo sobre os valores
descritiva de uma concepção preceptivo- fundamentais que irradia seus efeitos sobre
substantiva. todo o ordenamento, chamando o legisla-
Segundo a primeira, a constituição é dor ao seu desenvolvimento.
um conjunto de regras jurídicas positivas O estado de direito constitucional
consideradas superiores ou fundamentais impõe, efetivamente, uma profunda mu-
em relação às outras regras do sistema. A dança ao sistema das fontes: subordina a
constituição representa uma norma sobre o lei a critérios formais e materiais de vali-
exercício do poder e em particular sobre a dade. Tal mutação, porém, tem diversos
produção do direito: falaremos em primei- efeitos dependendo do modo em que se
ro lugar dos órgãos que exercitam o poder concebe a própria constituição. Adotando
jurídico nas suas várias formas, submete o uma concepção preceptivo-substantiva, a
juiz à restrita observância da lei e o legisla- constituição não é só a norma de grau jurí-
dor em relação ao princípio de legalidade. dico-hierárquico mais elevado, mas cons-
Essa concepção constitucional é di- titui a norma axiologicamente suprema. A
visionista, visa descrever fenômenos so- constituição então não exige só respeito,
ciais que pertencem ao mundo do dever não é só vínculo negativo para o legislador,
ser mantendo-os separados do ser e cor- ela impõe o próprio progresso e a própria
responde a uma leitura constitucionalística declinação positiva. A constituição repre-
liberal, baseada na confiança para com os senta o ponto de conexão entre a esfera
governantes e legisladores de quem procu- jurídica e a esfera moral veiculando uma
ra limitar o poder. concepção da justiça que avança preten-
A segunda também concebe, a con- sões universais. Nesse sentido o direito do
cepção preceptivo-substantiva, a constitui- estado constitucional não deve ser só legal,
ção como um conjunto de regras jurídicas mas também justo: avança pretensões de
positivas expressas e fundamentais, em justiça (“Direito injusto” e “Gelo fervente”
relação as outras regras, todavia, diferen- seriam ambos oxímoros).
temente da outra, afirma que tais regras As constituições contemporâneas têm
assumem o caráter constitucional em ra- efetivamente demonstrado uma notável e
zão do especial conteúdo que exprimem. geral força penetrante, que unida a uma
Não é qualquer disciplina fundamental dos concepção preceptivo-substantiva impôs
poderes públicos que pode ser qualificada a tendência à adequação do ordenamento
como ‘constituição’, mas só aquela que ex- (de modo positivo, não só a respeito dos)
prime certos valores, o que permite discri- aos princípios de justiça nelas expressas. A
minar as constituições verdadeiras daquela lei, contudo, não pode ter qualquer conte-
‘aparentes’. Essa concepção da constitui- údo, mas principalmente o direito não se
ção não distingue entre o plano do ser e o exaure na lei. Todavia, a introdução de um
plano do dever ser, a carta constitucional é mais elevado nível normativo e de limites
concebida como um documento normativo à legislação são fatos que não implicam na
que apresenta especificas características e adoção da perspectiva neoconstituciona-
conteúdos de valor pelos quais se distingue lista. Do ponto de vista de uma concepção
dos outros documentos jurídicos. Nessa positivística descritiva, tais eventos assi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


236 Suzanna Pozzolo

nalam a determinação de um duplo nível Não é a introdução da constituição


de legislação e de uma qualquer forma, que determina a constitucionalização, an-
mais ou menos acentuada, de necessária tes é a adoção de uma concepção subs-
compatibilidade entre os dois níveis nor- tancialística e da leitura que dela procede
mativos, ou seja, o necessário respeito ou o fator determinante. Mesmo aceitando
adequação do grau de legislação inferior uma concepção substancialística da cons-
(lei) àquele superior (constituição). Nesse tituição, de qualquer modo, os valores que
sentido, é claro que a lei não possa ter um ela exprime poderiam ser diferentemente
conteúdo qualquer: ela deve ser compatí- declinados, nesse sentido permaneceria
vel com a constituição. Nessa perspectiva uma ampla margem de discricionariedade
o direito certamente não se exaure na lei política para o legislador, e o juiz das leis
ordinária, mas poderia ser sustentado que poderia operar um julgamento de compati-
se exaure na lei constitucional. O conteúdo bilidade constitucional. Todavia, na medi-
do direito é, portanto, um dado contingente da em que se difunde uma concepção pre-
determinado pela vontade dos constituin- ceptivo-substantiva acentua-se o recurso
tes, do legislador e dos intérpretes. Nesse ao sindicato de constitucionalidade e dele
contexto modificado, a lei tendencialmente se espera um mero juízo de compatibili-
assumirá deveres de atuação, de progresso dade. Sendo nesse caso um desencontro
e de aplicação da constituição: o grau de sobre os valores e sobre a sua leitura, já
desenvolvimento dessa tendência reduzirá que são múltiplas as concepções do bem
de modo diferente o caráter de livre ex- que podem derivar dos princípios e dos
pressão do poder político da lei. valores aceitos no texto de modo amplo e
O processo de constitucionalização genérico, na medida em que se abandona a
demonstra como a organização estatal não postura descritiva (que torna tais concep-
é um mero árbitro, mas antes um jogador. ções entre elas compatíveis e, portanto,
Embora a simples introdução da constitui- torna legítima a escolha entre uma delas,
ção, mesmo do gênero longo e denso (so- escolha que nesse sentido envolve a liber-
bre os conceitos ‘densos’ ver CELANO, dade política do legislador), os diversos
2002, 1994), no sistema das fontes deixa sujeitos interessados recorrerão ao juízo
abertos muitos caminhos, em relação à de- das cortes (percebidas ainda, pelo menos
finição das relações entre órgãos constitu- idealmente, como meros lugares do saber
cionais (entre os quais estão divididas as jurídico objetivo) para ver afirmado a pró-
funções do poder) e à reconstrução do seu pria concepção ‘verdadeira’ do bem. Eis
sentido e da sua importância, representa que mudam e aumentam as competências
de qualquer modo um dos elementos cen- atribuídas à constituição: a ela é confiada
trais daquele processo de juridicização da a função específica de modelar as relações
política e de difusão do léxico dos direitos sociais através da aplicação dos princípios
que, evidenciando a exigência política de expressos; a constituição perde o caráter
recobrir com a neutralidade ou com a uni- de limite e garantia da atividade política,
versalidade certos valores, permite colocar perde o dever de preservar o mais alto grau
às claras, paradoxalmente, o caráter ativo de legalidade e torna-se programa ou ende-
e participativo da organização estatal, dis- reço que legislador deve perseguir.
tribuidora de políticas públicas que rema- Comparando a concepção descritiva
nejam a riqueza segundo uma concepção juspositivística e a concepção precepti-
qualquer da justiça ou do bem. vo-substantiva neoconstitucionalista deli-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 237

neiam-se mais claramente os dois modelos A essa primeira reutilização de ins-


constitucionais: trumentos hartianos segue-se à adoção de
1 - Um próprio do liberalismo ga- uma noção de normas jurídicas insepa-
rantista, enquanto a constituição represen- ravelmente ligada àquela de ‘razão para
ta uma moldura aberta, no qual interior, agir’, ou seja, de razão que justifica a ação
respeitando alguns limites, desenvolve-se (RAZ, 1999; REDONDO. 1996; BAYON,
livremente o jogo das forças políticas (por 1991): o ordenamento jurídico seria um
exemplo, a concepção kelseniana); sistema normativo que oferece razões para
2 - O outro próprio do neoconstitucio- agir (NINO, 1994). Para poder oferecer ra-
nalismo, enquanto a constituição é endere- zões capazes de justificar ações e decisões,
ço vinculante, é um ordenamento de valores o direito deve apresentar determinados
estruturados e dominantes do progresso da conteúdos moralmente corretos: um siste-
legislação (por exemplo: Zagrebelsky, ma separado por tais conteúdos não seria
1992, p. 209). Definitivamente, embora o es- um verdadeiro sistema jurídico, poderia
tado constitucional repouse na noção, torna- no máximo oferecer razões meramente de
da mais genérica, de ‘estado de direito’, na cautela, isto é, fundada no temor da sanção
perspectiva neoconstitucionalista distingue- cominada (mas uma razão de cautela não
se ou especifica-se pela substancialização e é uma razão para agir; por exemplo, RAZ,
a penetrabilidade da constituição e, sobretu- 1999). O direito do estado constitucional,
do, pela pretensão de justiça universalística de fato, não seria um mero sistema coer-
dos princípios constitucionais, e, portanto, citivo e teria, ao contrário, o dever funda-
do direito positivo (como na perspectiva mental de desenvolver o bem comum, por
jusnaturalista, um direito separado dos con- cujo exercício da força não lhe representa
teúdos de justiça não seria um ‘verdadeiro’ o elemento definitório, mas um elemento
direito, mas mera coerção). acessório e determinado por circunstân-
Para defender a pretensão de justiça cias contingentes. Em última instância,
do direito constitucionalizado, o neoconsti- para qualificar como ‘jurídico’ um sistema
tucionalismo paradoxalmente saqueia ins- normativo ou uma simples norma seria
trumentos conceituais positivísticos. Particu- necessário o conteúdo de justiça expresso
larmente, menciona-se a distinção hartiana (Alexy, 1994).
entre o ponto de vista interno e o ponto de Diferentemente das tradicionais for-
vista externo, reinterpretando-a como distin- mas de jusnaturalismo, das quais por essa
ção entre participantes e observadores exter- razão o neoconstitucionalismo delas se
nos ao direito. O direito do estado constitu- distingue, o conteúdo de justiça do orde-
cional colocaria em evidência a prioridade namento não seria um ideal externo ou na-
lógica do ponto de vista do participante sobre turalístico, mas um elemento constitutivo
aquele do observador, em razão da necessária intrínseco determinado por valores cons-
consideração que se deveria oferecer às ar- titucionalizados. Os princípios de justiça,
gumentações morais, que claramente emer- de fato, primeiramente relegados ao papel
gem da perspectiva interna (sobre o ponto e de proclamações políticas sem real força
as dificuldades que dela resultariam para o vinculante, seriam agora confirmados, en-
positivismo jurídico ver GOLDSWORTHY, riquecidos e generalizados, tanto que se
1990; PERRY, 1998; NAVARRO, 2000), tornariam deveres para serem alcançados
assim seria conferida a necessidade de uma pelos poderes públicos, cujo agir legítimo
interpretação moral do direito positivo. deve ser conforme. Nessa perspectiva, fa-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


238 Suzanna Pozzolo

lha aquela aspiração liberal que dirige a ou menos, coerentemente os princípios


atenção aos direitos em função da liber- constitucionais em questão. Trata-se de
dade, para adotar aquela outra perspectiva uma escolha política, baseada em uma
anti-individualística que pensa nos direitos certa reconstrução do conceito de justiça
em função da justiça (ver, por exemplo, e/ou de bem compatível com as diversas
ZAGREBELSKY, 1992, pp. 123-125). E, concepções veiculadas pelo texto consti-
de fato, o neoconstitucionalista afirma que tucional. Nesse sentido, porém, a justiça
com a positivação dos valores constitucio- e a moral não representam um critério de
nais começou a fazer parte dos critérios de validade, mas um sistema de valores exter-
validade o critério moral, de modo que o nos sobre o qual medir e criticar o direito
juízo externo ou ético sobre a justiça do positivo.
direito positivo (por exemplo, de uma lei) Ao contrário, asseverar que a justiça
transforma-se em juízo interno na sua va- (ou a moral) começa a fazer parte dos cri-
lidade (PRIETO SANCHIS, 2003, p. 133). térios de validade sugere que a tese argu-
Desse modo, a justiça (na verdade, uma mentativa como sustento da concretização
concepção do bem) começa a fazer parte escolhida, individua a única solução possí-
dos critérios de validade do sistema, come- vel ou aquela correta. Todavia, na medida
ça a fazer parte dos critérios da regra de em que a concretização corresponda a uma
reconhecimento. concepção do bem geral compartilhada,
Parece pacífico que as constituições ela simplesmente reflete uma concepção
incorporem uma visão ética qualquer, uma da moral positiva, uma moral difundida
concepção qualquer do bem. Todavia, as entre os participantes, mas nada autoriza a
constituições contemporâneas caracteri- atribuir-lhe uma objetividade transcenden-
zam-se por um certo grau de pluralismo, tal. O argumento neoconstitucionalista faz
ou seja, a visão ética acolhida, afortuna- colapsar a distinção entre normas jurídicas
damente, é mais genérica e ampla, para e normas morais: existe um só conceito de
permitir um número múltiplo de concre- norma, aquele moral, já que para ser juri-
tizações compatíveis com o ditado cons- dicamente justificada a norma deve apre-
titucional. Nesse quadro, a perspectiva sentar uma última justificação, ou seja, ba-
descritiva juspositivista permite verificar seada em um princípio que não se justifica,
a mera compatibilidade das concretizações mas que pode ser somente assumido. Nes-
interpretativas, de vez em quando propos- se sentido, aparentemente, é ainda menor
tas, com o ditado constitucional, sem que a a exigência da autoridade, já que tudo que
escolha de uma ou de outra, conservem-se tem valor, vale por méritos intrínsecos.
dentro desse pluralismo, incida sobre a va- Do ponto de vista positivista e descri-
lidade. Essa perspectiva permite e implica tivo não se nega que entre direito e moral
um juízo externo sobre a justiça ao menos existam algumas relações, nega-se que seja
da opção escolhida. A argumentação a fa- a bondade do princípio moral que lhe de-
vor de uma concretização particular, nesse termina a juridicidade, por isso ocorre um
sentido, oferece razões e critérios para in- ato de vontade autoritária: direito e moral
fluenciar o juízo externo, subjetivo, sobre continuam dois âmbitos separados. Aqui a
ela. Mas a tese argumentativa que sustenta distinção entre normas jurídicas e normas
a escolha conservar-se sempre uma opção morais é de caráter conceitual: mesmo se
entre mais teses e escolhas compatíveis, os conteúdos dos dois conjuntos de normas
capazes de declinar positivamente e, mais fossem co-extensivos permaneceriam dois

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 239

conceitos diferentes, já que são diversas as normas jurídicas. A transformação jurídica


definições das umas e das outras. É claro de um princípio moral depende de um ato
que nessa direção a descrição do direito de vontade dotado de autoridade. E, enfim,
positivo remete e exige um juízo externo os princípios constitucionais são parte de
sobre justiça e a bondade do direito positi- um documento jurídico autoritário, consi-
vo e é igualmente evidente que nessa pers- derado vinculante e observado pelos mem-
pectiva a investigação teórica em torno ao bros do grupo social, um documento que
direito positivo não responde ao quesito incorpora uma certa teoria política suscetí-
sobre a justiça, não oferece razões a favor vel de diferente concretização. É sobre essa
ou contra a obrigatoriedade do direito. Mo- última que se exercita a argumentação, que
ral e justiça são sistemas externos ao direi- é em grande parte uma prática persuasiva,
to positivo. sujeita às contingências que conformam o
O neoconstitucionalismo afirma que caso, o tempo histórico, o grupo social, as
a regra de reconhecimento pode incorporar ideologias dos juristas e dos participantes.
critérios morais, de tal modo defende a tese E, ainda, é uma decisão autoritária, aque-
da unidade do raciocínio prático. Como é la que determina o sentido específico dos
conhecida a regra de reconhecimento per- princípios. Com a adoção de uma perspec-
mite identificar ou determina os critérios tiva juspositivística, também para análise
de validade e de identificação das normas do direito do estado constitucional, não
do sistema. Embora, diferentemente do há nenhuma necessidade de estabelecer
neoconstitucionalismo, com uma perspec- um equivalente entre ‘norma jurídica’ e
tiva descritiva juspositivista, o processo de ‘norma obrigatória moralmente’, nem para
produção do direito não é necessariamente aqueles que afirmam nem para aqueles que
um processo de pesquisa da correção mo- negam a existência da moral objetiva.
ral, a eventual presença de critérios morais
entre aqueles da regra de reconhecimento 1.2 Modelo preceptivo da constituição e
não é coisa que falte à tese da separação especificidade da interpretação consti-
(NARVAEZ-POZZOLO, 2003). De fato, tucional.
mesmo se toda regra de reconhecimento
exigisse que o direito válido fosse moral- O problema determinado pela eleva-
mente correto isso não enfraqueceria a dis- da conflituosidade entre princípios consti-
tinção conceitual, já que a correção moral tucionais parece-me intimamente interli-
e aquela jurídica seriam de qualquer forma gada à concepção neoconstitucionalista da
definições diferentes e a sua coincidência constituição. De fato, pode considerar-se
seria um fato contingente: haveria co-ex- que um certo grau de conflituosidade entre
tensividade, mas não co-intencionalidade. princípios, direitos fundamentais e valores
A relação entre direito e a moral social constitucionais seja um dado ‘natural’ das
entendida como uma questão de fato, não constituições longas e densas, ou seja, não
é negada pelo positivismo jurídico: que se trata tanto de um vício de origem quanto
a criação e a modificação ou a manuten- de um elemento característico (CELANO,
ção de normas jurídicas esteja interligada 2002). Os direitos, especificamente, carac-
à adoção de certos valores não qualifica, terizam-se por serem formulados genérica
nem ao menos para aqueles que crêem em e amplamente, com expressões freqüente-
qualquer tipo de correção moral, como mente ‘absolutas’ que se não determinam
moralmente correto nem os valores nem as antinomias abstratamente quase sempre as

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


240 Suzanna Pozzolo

determinam concretamente. Bem, a deter- Observando os sujeitos da interpreta-


minação de tais conflitos e a procura por ção constitucional, a especificidade depen-
sua solução torna-se problema na medida derá da estrutura do ordenamento jurídico
em que seja aceita uma concepção precep- (GUASTINI, 1996 b, pp. 238-241; PRIE-
tivo-substantiva da constituição, já que ela TO SANCHIS, 1991, p. 176): se o orde-
pressupõe a compatibilidade necessária namento prevê um juízo constitucional
entre princípios ou direitos constitucionais concentrado em um órgão, pode-se indivi-
(COMANDUCCI, 2003). A adoção de uma dualizar uma especificidade da interpreta-
tal concepção pressupõe a possibilidade de ção da constituição em relação à interpre-
distinguir as ‘verdadeiras’ constituições tação da lei enquanto que a competência da
das ‘falsas constituições’, mas não existe interpretação/aplicação de uma e de outra
maneira, além da convenção significativa é atribuída pelo ordenamento a um sujei-
em relação ao termo ‘constituição’, de dis- to diferente. Todavia, se tal ordenamento
tinguir entre as primeiras e as outras: o dis- prevê um controle difuso de constitucio-
curso neoconstitucionalista, portanto, ten- nalidade, a especificidade não acontecerá,
de a fazer passar por uma descrição tudo o dado que diversificado será o sujeito com-
que se caracteriza como, no mínimo, uma petente pela interpretação/ aplicação de
sugestão estipuladora e, no máximo, uma
constituição e lei.
prescrição ou um discurso persuasivo.
Se observarmos os efeitos causados
A isso se une a tese da especificida-
pelas sentenças do juiz constitucional,
de da interpretação constitucional. Que é,
falaremos de especificidade, por exem-
se existe, a especificidade da interpretação
plo, em relação aos ordenamentos onde
constitucional? O que distingue a inter-
está previsto um controle concentrado de
pretação da constituição da interpretação
constitucionalidade, já que nesses casos as
de qualquer outro texto normativo? A in-
terpretação da constituição é diferente da sentenças de acolhimento do juiz constitu-
interpretação da lei? A minha tese sustenta cional têm efeitos erga omnes, mas não ra-
que as peculiares exigências persistidas ciocinaremos pelos ordenamentos, onde é
pelo neoconstitucionalismo resultam da previsto um controle difuso, já que as sen-
forma em que ele concebe a constituição, tenças têm validades inter partes. Especifi-
ou seja, pela conformação do objeto que cidades, pois, podem originar-se da maior
quer interpretar (POZZOLO, 1997). relevância político-social que as decisões
De interpretação específica do tex- constitucionais costumam apresentar.
to constitucional pode-se raciocinar em No tocante às técnicas interpretativas
diversos sentidos (PRIETO SANCHIS, é duvidoso que se possa falar de especi-
1991; GUASTINI, 1996; 2004), algumas ficidade se por atividades interpretativas
características peculiares da constituição entende-se atribuição de significado para
permitem falar de especificidade. Pode-se um texto. Todavia, com esse propósito,
individuar uma especificidade com base: o neoconstitucionalismo afirma que os
I) nos sujeitos peculiares da interpretação; enunciados constitucionais que exprimem
II) no uso de características técnicas inter- princípios não são interpretáveis da mesma
pretativas/aplicativas adotadas pelo texto maneira daqueles que exprimem regras:
constitucional; III) nos efeitos peculiares a operação que aqui atribui significado
causados pelas sentenças do juiz constitu- não se limitaria a uma análise lingüística
cional; IV) na rigidez ou flexibilidade da (aparentemente adaptada às regras), o sig-
constituição; V) no objeto ‘constituição’. nificado dos princípios deveria ser toma-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 241

do baseando-se nas concepções morais e A diversidade do objeto ‘constitui-


políticas que pressupõem. Esses standard ção’ baseia-se fundamentalmente na pre-
são conceitos que necessariamente re- sença de princípios que, uma vez caracte-
tornam às concessões, mas na linguagem rizados como valores morais positivados,
constitucional eles são convenientemente para serem compreendidos necessitam de
admitidos como indeterminados para que considerações morais, resolvendo o pro-
se adaptem às diversas concepções. Cabe blema interpretativo do direito constitucio-
ao legislador e em parte ao juiz (segundo nal em uma interpretação moral da consti-
o neoconstitucionalismo, em relação às tuição. Isso pressupõe que o intérprete aja
exigências do caso concreto) estabelecer, comparando um modelo ideal de consti-
a cada vez, a melhor concepção possível tuição com o modelo real e interprete esse
conforme e coerentemente com todo o último com base nas assunções de valores
sistema (DWORKIN, 1977). Pode-se in- originados pelo primeiro (NINO, 1996b);
dividuar uma especificidade em relação às obviamente, pressupondo que tudo isso
técnicas argumentativas no direito cons- aconteça concretamente e nunca abstrata-
titucional: freqüentemente o juízo consti- mente (ZAGREBELSKY, 1992, capítulo
tucional (principalmente se concentrado) VII, par. 4). Certamente, ainda que a hie-
motiva baseando-se em argumentos de rarquia axiológica que resolve o conflito
princípio e em argumentos de justiça. Es- seja colocada pelo juiz em razão do caso
sas peculiaridades, todavia, são de caráter concreto, colocando-se no ponto de vista
contingente, não necessário. E será contin- do ‘bom juiz’, as diferentes interpretações
gente também a especificidade da interpre- deverão ser argumentadas de modo a for-
tação constitucional em razão da rigidez mar um quadro coerente. Apesar disso a
ou da flexibilidade da constituição. hierarquia axiológica instituída mudará
Parece, portanto, que, querendo susten- continuamente em relação às exigências
tar uma tese da especificidade suficientemen- de justiça substancial que todo intérprete,
te forte, deva-se incentivar a especificidade a cada vez, considerará relevantes no caso
do objeto constitucional. E é isso o que faz concreto.
o argumento neoconstitucionalista. Aqui, de Assumindo uma concepção descriti-
fato, o objeto constituição está configurado va positivista, igualmente à lei, a interpre-
como um documento normativo que se espe- tação da constituição consiste na atribui-
cifica em relação à lei e que, portanto, deve ção de significado de um texto normativo:
ser tratado de modo distinto. A constituição a atribuição de significado no caso de um
não é moldura e garantia, mas constitui uma juiz ou levantamento de outras atribuições
espécie de ponte entre o discurso jurídico e o no caso de um observador. Nesse sentido,
discurso moral, para a qual sua interpretação se trata de especificidade será relativa a
e aplicação não podem prescindir de ava- outras características peculiares do orde-
liações éticas. O intérprete constitucional, namento examinado, mas não do objeto
para atribuir significado às disposições cons- ‘constituição’ (GUASTINI, 1996 b, PRIE-
titucionais, e em primeiro lugar àquelas de TO SANCHIS, 1991). Ela poderá ser de-
princípio, deve referir-se a uma tese moral: a terminada: a) pelo sujeito específico, se
linguagem constitucional não é interpretável aqui existe, destinado a interpretação da
com os instrumentos habitualmente utiliza- constituição; b) pelo uso específico ou par-
dos para a interpretação do direito infracons- ticular de técnicas argumentativas; c) pelos
titucional. efeitos específicos que possam determinar

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


242 Suzanna Pozzolo

a interpretação da constituição, e assim reito, posição de poder o qual correspon-


por diante. Todavia, nessa perspectiva, é de a responsabilidade política, enquanto o
evidente que não se possa distinguir entre poder jurisdicional tem deveres de garan-
‘verdadeiras’ e ‘falsas’ atribuições de sig- tia e tutela contra leis lesivas dos direitos.
nificado ao ditado constitucional, será pos- A constituição, desse ponto de vista, age
sível, porém, dar vida a uma crítica externa como barreira para as decisões políticas
de tais decisões com base em argumentos adotadas pelo legislador, limitando e cir-
de justiça. cunscrevendo a sua competência para
A tese da especificidade da interpre- produzir novo direito. O poder judiciário
tação constitucional é dirigida a sufragar se configura nesse quadro, mas, principal-
a necessidade da interpretação moral da mente, se auto-representa como um instru-
constituição que, por sua vez, é operacio- mento de contrapeso do poder legislativo
nal a escopos de política do direito e não que anula as decisões que ultrapassam os
exatamente a escopos cognoscitivos. Co- limites de tal competência legislativa.
locam-se, todavia, algumas dificuldades, A configuração neoconstitucionalis-
pelo menos do ponto de vista garantista. ta tolhe o dever das escolhas políticas das
Em primeiro lugar, a interpretação mãos do legislador aumentando o poder da
moral da constituição implica que ela não jurisdição, sem que lhe modifique as res-
possa mais ser assumida como norma mais ponsabilidades institucionais e continuando
elevada do ordenamento jurídico: a consti- a pressupô-lo como um poder de qualquer
tuição não fecha o sistema, pressupõe ser outro sentido, como o detentor do direito
interpretada com base em princípios su- objetivo. Nesse modo, possibilita-se o peri-
periores, supraconstitucionais (TROPER, go do chamado ‘governo dos juízes’ e, pelo
1996), da qual não está clara a sua natu- menos em parte, o perigo de um governo
reza. dos juristas, embora se dissolva o receio do
Em segundo lugar, coloca-se em perigo da ‘tirania da maioria’.
discussão o equilíbrio entre os poderes, Todavia, sempre do ponto de vista
oferecendo uma falsa solução. Se ao juiz constitucionalístico, o moderno estado de
constitucional que aparece como agente direito constitucional é uma democracia
consciente da mutação constitucional (ou o que implica, pelo menos: o princípio de
da necessária evolução da interpretação igualdade, aquele de autonomia e de auto-
constitucional), observa-se que do mesmo determinação dos membros da comunidade
dever é empossado também o juiz ordiná- política; a regra de maioria (pelo menos
rio, na medida em que o texto constitucio- como necessidade funcional), não só fecha-
nal está sujeito a uma interpretação dirigida da à mudança, mas restrita, da qual sejam
a deduzir normas diretamente aplicáveis às excluídos alguns âmbitos normativos. Nes-
controvérsias. se quadro os sujeitos delegados a cumprir
Embora esteja claro que a divisão as escolhas políticas têm, dentro da moldura
das funções do poder baseia-se em parte constitucional, liberdade de instituir hierar-
sobre o ideal somente regulador de uma quias axiológicas, das quais são considera-
jurisprudência neutra, além da sua dimen- dos politicamente responsáveis, em relação
são ideológica, ele oferece um instrumento aos objetivos sócios-políticos que eles con-
de garantia dos direitos individuais. Nesse sideram ter de perseguir. Nessa perspectiva,
esquema, de fato, é só o poder legislativo a interpretação moral da constituição des-
aquele legitimado para produzir novo di- perta grande perplexidade.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 243

Se a discussão intersubjetiva que ca- tabelecem as normas constitucionais. Mas


racteriza a democracia é um valor funda- se colocam ainda outros problemas. Um
mental (porque estimula a autonomia dos desses é do tipo garantístico institucional:
indivíduos, a sua participação à vida so- quem controla o controlador? (GUAS-
cial, e assim por diante); se considerarmos TINI, 1990). O outro é mais genérico: na
que o processo democrático e a discussão medida em que a tutela dos direitos não é
intersubjetiva sejam mais profícuos do que mais confiada às palavras do direito, mas à
a reflexão individual: a superioridade mo- interpretação moral do juiz, diminui a rele-
ral do juízo do juiz em relação à avaliação vância do próprio direito . Todavia, a his-
do legislador não se elucida. Isso não inva- tórica precariedade dos direitos encontrou
lida a utilidade de um controle de consti- um terreno mais sólido justamente na sua
tucionalidade das leis, porque as decisões afirmação jurídica e não meramente moral.
tomadas pela maioria poderiam apresentar Além de que, não tendo obtido atualmente
alguns vícios de forma e de conteúdos e nenhum acordo sobre um conjunto deter-
o controle de constitucionalidade é um minado de normas morais, a operação que
juízo de compatibilidade constitucional. para lá transfere os direitos, tolhendo-os do
Ao contrário, a interpretação moral con- plano jurídico, cria a ilusão da sua seguran-
fiada aos juízes enfraquece o princípio da ça, escondendo a sua intrínseca fragilidade
autodeterminação e confia deveres educa- (sobre esse ponto, consultar WALDROM,
tivos à aplicação do direito. Também essa 1993; contra MORESO, 1997; HOLMES,
objeção não invalida a utilidade do juízo 1988; BULYGIN, 1991; GUASTINI,
de constitucionalidade das leis, na medi- 1994).
da em que tenham sido os indivíduos (nas Finalmente, aplicação dúctil ( ZA-
autoridades do poder constituinte) a esta- GREBELSKY, 1992) do direito incide
belecer uma forma de autopaternalismo diretamente sobre a tutela dos direitos.
através do texto constitucional. Isso que se A perspectiva neoconstitucionalista fia-
atinge com a interpretação moral judicial se naquela do ‘bom juiz dotado de bom
da constituição são as mesmas razões em senso’. Todavia, do ponto de vista cons-
favor do processo democrático e aquelas titucionalístico-garantístico, seria melhor
em favor da persistência da constituição. adotar a perspectiva do ‘bad man’, já que
Nessa perspectiva, de fato, coloca-se o o direito apresenta duas faces: uma de ga-
sujeito politicamente mais irresponsável rantia e uma de opressão. Defender a prio-
e inamovível, para reformular as decisões ridade das exigências de justiça concreta e
políticas-valorativas adotadas através do substancial sobre as exigências de certeza,
processo democrático: se a reflexão moral determinação e legalidade, portanto, da in-
individual do único juiz (ou de alguns ‘en- terpretação moral sobre a dura aplicação
saios’) é considerada superior à discussão da lei, parece ir bem até quando nos en-
intersubjetiva, que sentido há em manter contrarmos perante o ‘bom juiz dotado de
um procedimento para a tomada das deci- bom senso’, mas deve estar claro que a di-
sões coletivas de tipo democrático? A per- mensão garantística do direito se dissolve,
sistência da constituição, se compreendida e assim permanece até quando não seja o
como documento auto-obrigatório estabe- bom juiz aquele chamado para julgar.
lecido pelos cidadãos, não teria razão de Em defesa da interpretação moral,
ser porque o juízo moral do juiz individual contra o duro positivismo jurídico, às ve-
seria cada vez mais justo daquilo que es- zes, é lembrada a tristemente conhecida

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


244 Suzanna Pozzolo

locução ‘a lei é lei’. Isso, porém, é somente ponderação, assumindo uma e outra como
um artifício retórico, é necessário de fato es- técnicas interpretativas. A primeira, consi-
clarecer a ambigüidade de tal locução, caso derada, com razão ou não, própria do jus-
venha ser retirada do contexto histórico em positivismo, seria refletida e concebida por
que nasceu. No âmbito de uma sociedade um direito formado exclusivamente por
constitucional-democrática-pluralista tal lo- regras; a segunda, não empregando ins-
cução pode ser interpretada pela perspectiva trumentos rigorosamente dedutivos, mas
positiva do garantismo legislativo. Se a au- somente instrumentos eqüitativos mais
tonomia e a liberdade são valores e o direito flexíveis, ou de raciocínio prático, seria
um ‘mal necessário’, a afirmação do valor aquela própria de um direito composto
da lei torna-se uma garantia contra as impo- (também) de princípios, seria, de fato, di-
sições morais de quem quer que seja. ‘A lei rigida a equilibrar os valores, levando em
é lei’, em suma, pode representar uma pres- conta as exigências de justiça erguidas por
crição restritiva da liberdade interpretativa cada caso concreto.
do juiz, uma interpretação que, fazendo re- Não está claro o que sejam os princí-
ferência ao significado comum das palavras, pios, o que denote e como conote o termo
restringe o âmbito dispositivo da interpreta- ‘princípio’ (para uma panorâmica sobre
ção judicial. Isso pode parecer um defeito esse ponto, consultar POZZOLO, 2001 e
quando a solução legislativa não satisfaz o
bibliografia indicada). Seguramente, são
senso de justiça, e freqüentemente nesses
um tipo de norma, mas distintos são os
casos os juízes configuram a existência de
modos para caracterizá-los. Nem ao me-
uma lacuna axiológica. Mas é necessário
nos está claro o que exija a ponderação (ou
fazer uma particularização. Existe diferença
balanceamento), ou seja, quais são as suas
entre o caso em que seja judicialmente pre-
características. Todavia, podem ser desen-
vista uma exceção ao ditado legislativo em
base de uma consideração abstrata da lei e volvidas algumas considerações sobre es-
o caso em que a exceção seja construída em ses aspectos.
base de uma consideração concreta da lei: Sobre a oposição subsunção/ponde-
no primeiro caso, a exceção permanecerá ração como técnicas interpretativas nota-
também para os casos futuros (satisfazendo se o que se segue.
o princípio de igualdade e de certeza), mas a) A ponderação (ou balanceamento)
não no segundo. tipicamente se aplica para conflitos entre
normas (princípios) não solucionáveis
1.3 Neoconstitucionalismo e ponderação através dos tradicionais critérios de so-
dos princípios. lução das antinomias: trata-se de normas
do mesmo nível hierárquico (quando não
A dimensão constitucionalística do é aplicável o critério da lex superior), en-
direito do estado constitucional derivaria tre as quais não se verifica uma relação
da introdução dos princípios no sistema de especialidade (quando não é aplicável
jurídico. E seria justamente a interpretação o critério da lex specialis), contemporâ-
dos princípios constitucionais a pretender nea entre elas (quando não é aplicável o
uma aproximação e uma metodologia dife- critério da lex priori), caracteristicamente
rentes daqueles positivísticos, em particu- normas ou princípios constitucionais (do
lar, seria diferente a sua interpretação. balanceamento constitucional faz parte
O argumento neoconstitucionalis- ainda um terceiro elemento, constituí-
ta opõe à técnica da subsunção aquela da do pela norma da qual deve ser julgada a

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 245

constitucionalidade). Os princípios, além equilibram os princípios e como realmente


disso, trazem dificuldades interpretativas resolvem os conflitos. Isso nos diz somente
porque freqüentemente são formulados que o intérprete deve procurar construir a
através de uma linguagem genérica, com melhor relação entre os princípios em con-
tom absoluto e o seu campo de aplicação flito, defendendo sua base de argumentos
tende constantemente a se sobrepor, ge- morais, que trazem seu sentido de justiça;
rando (no mínimo) antinomias do gênero a argumentação assim oferecida representa
parcial bilateral. É necessário notar que, de a justificação externa da decisão judicial,
qualquer modo, a técnica ponderativa não ou seja, é dirigida para oferecer argumen-
é exclusiva do juízo de constitucionalidade tos para suporte da interpretação adotada.
ou não exaure ali os seus efeitos; ela tem Nesse sentido poderia ser individuada uma
influências ou joga um papel também na acentuação das exigências argumentativas
atribuição do significado às normas infra- a cargo do intérprete, mas a técnica da sub-
constitucionais. A ponderação dos prin- sunção.
cípios, portanto, é algo com mais de um c) A argumentação neoconstitucio-
método de solução das antinomias. Obser- nalista, embora não seja unívoca a carac-
vando, por esse ponto de vista, a pondera- terização dos princípios, parece indicar
ção, pode-se notar que não se trata tanto de critérios eqüitativos ou de proporcionali-
uma técnica interpretativa quanto de uma dade para dar conteúdo, tornar compatí-
técnica aplicativa. De fato, para resolver o veis, resolver os conflitos entre princípios
conflito são comparadas (no mínimo) duas constitucionais. Também essa indicação
normas, ou seja, duas entidades às quais já deve ser esclarecida. A exigência em em-
foi conferido significado, a interpretação, pregar métodos eqüitativos deriva do tipo
portanto, já aconteceu: com a pondera- de consideração que se deva dar ao caso
ção escolhe-se qual norma dar aplicação. concreto objeto de juízo. Em particular, o
Também a subsunção acontece quando in- método eqüitativo parece indicar um com-
térprete já produziu a norma; poderia ser portamento do tipo particularista, ou seja,
então sustentado que, depois de ter pon- o quanto é relevante para individuar a so-
derado, o intérprete subsume o caso sob a lução, depende do contexto em que a ação
norma a qual decidiu dar aplicação (nesse deve se desenvolver: é o contexto da ação
significado, PRIETO, 2003). que faz a diferença prática e explica a dife-
b) O neoconstitucionalismo afirma rente importância que assumem as proprie-
que para dar conteúdo aos princípios, ou dades relevantes ao objeto de juízo (sobre
seja, para atribuir significado às disposi- particularismo e universalismo das razões
ções que expressam princípios, a fim de para agir, consultar REDONDO, 2005). A
resolver o conflito, é necessário recorrer a oposição com a subsunção, portanto, nesse
argumentos morais e sopesar as exigências caso se baseia no fato que essa última pare-
de justiça veiculadas pelo caso concreto, ce pressupor uma interpretação do gênero
escolhendo a melhor solução, avaliando literário, tal que não permita uma renúncia
todas as variáveis da situação específica, ao ditado normativo: a norma individua-
e particularmente o grau de satisfação do da deve ser aplicada. Ao contrário, o uso
princípio vencedor em relação à lesão do do critério equitativo incidiria justamente
princípio preterido (ALEXY, 1994). Isso, sobre a aplicação da norma individuada,
na verdade, não diz muito sobre o processo mas, ainda uma vez, não sobre sua inter-
de ponderação, não nos diz como os juízes pretação: seria consideração particular do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


246 Suzanna Pozzolo

caso concreto que conduziria a uma aplica- Nesse modo, a premissa maior da decisão
ção dúctil da normativa, ou seja, permitiria judicial seria constituída pela reformulação
também uma decisão contra legem. Nesse de um princípio que leva em conta uma
sentido, porém, a configuração do caso pa- normativa complexa, obtida para explicitar
receria determinar a construção da norma: condições de aplicação precedentemente
é necessário então notar que se é o caso implícitas. O resultado, portanto, é uma
individual que determina a identificação da nova norma ou um novo princípio solicita-
norma ou do princípio, ou seja, a sua for- do pelas circunstâncias do caso.
mulação ou o seu conteúdo, é difícil sus- No primeiro caso, na reconstrução da
tentar que seja aquela ou aquele que regule ponderação como hierarquização axiológi-
o caso, já que não preexistiriam à solução. ca entre princípios, a teoria ética com base
Sobre a natureza dos princípios e na qual, segundo o neoconstitucionalismo,
sobre a solução das antinomias daqueles deve operar o intérprete, incide sobre a
gerados observa-se o que se segue: aplicação: o sentido da norma, o sentido
a) Segundo uma certa reconstru- dos princípios é invariável e constante, não
ção (por exemplo, GUASTINI, 2004) a muda com as circunstâncias do caso; aqui-
ponderação daria lugar a uma hierarquia lo que muda é a sua relação de força ou de
axiológica móvel entre princípios. O intér- hierarquia com base em propriedades que
prete atribuindo significado aos princípios emergem do caso concreto.
em conflito daria a eles um certo peso ou No segundo caso, na reconstrução
valor instituindo entre eles uma relação de da ponderação como solução de um con-
precedência que vale para o caso concre- flito entre normas defectíveis, a teoria
to. Observada por essa perspectiva, a pon- moral com base na qual se encontraria a
deração incide ainda sobre a aplicação da operar o intérprete, parece incidir sobre o
norma, mas não sobre sua interpretação. significado da norma, sobre o sentido dos
Nesse caso, baseando-se em proprieda- princípios: se as normas jurídicas (os prin-
des relevantes externas à formulação dos cípios) são defectíveis e as razões morais
princípios, propriedades determinadas podem modificar o antecedente, então são
pelo caso concreto, o intérprete atribui as razões morais que serão universais e
maior peso ou valor ou força a um deles constantes, enquanto aquelas jurídicas são
que regulará o caso. A requisição de ope- somente auxiliares.
rar segundo eqüidade incide, justamente, O juízo de ponderação, que resolve
sobre a aplicação dos princípios que serão o conflito entre princípios constitucionais,
aplicados seguindo um critério de raciocí- representa metaforicamente o estabeleci-
nio eqüitativo. Nessa perspectiva, todavia, mento de pesos diferentes aos princípios
a formulação dos princípios não depende para determinar qual deles tem maior força
das circunstâncias do caso, desse depende (MORESO, 2002); esse juízo caracteriza-
a sua hierarquização. se por estender a uma antinomia concreta,
b) Segundo uma outra perspectiva ou seja, sobre uma contradição entre duas
(por exemplo: MORESO, 2002, 2002 b), normas entre cujas classes de ações regula-
a ponderação cairia sobre normas defectí- das não existe vínculo conceitual, mas que
veis; o conflito seria resolvido através da no caso específico mostram-se ambas apli-
introdução de novas condições de aplicação cáveis, regulando de modo distinto a ação
no antecedente, modificando o conteúdo do objeto de juízo. Os princípios são ambos
princípio e não somente a sua formulação. válidos, ocasionalmente as suas áreas de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 247

aplicação se sobrepõem e tal antinomia dos quais pode ceder frente ao outro. Seria
deve ser resolvida sem expulsar nenhum por isso um conflito prático sem solução.
deles do sistema. Enquanto que concebidos como normas
As dificuldades surgem porque nesse defectíveis, isso permite uma solução ra-
quadro não parece possível prever antecipa- cional dos conflitos entre direitos funda-
damente os casos de contradição de modo mentais” (COMANDUCCI, 2003, p. 328).
a definir um critério estável de solução ou Celano, todavia, destacou que somente de-
precedência. Isso obviamente determina monstrando a estabilidade das revisões dos
diversos problemas, mesmo institucionais, princípios defectíveis, conseqüentemente
colocando em discussão o conhecimento a sua definitiva transformação em deveres
ex ante do direito positivo, o equilíbrio en- condicionais indefectíveis, seria possível
tre as funções legislativa e jurisdicional, o refutar o particularismo (CELANO, 2002
papel próprio da jurisdição. É, de fato, o b). Mas se existem razões éticas-políticas
debate em torno do juízo de ponderação ou, para considerar defectíveis dois princípios
melhor ainda, em torno do modo de resol- constitucionais em conflito, por que essas
ver os conflitos entre princípios constitu- mesmas razões não deveriam ser consi-
cionais deriva do fato que aqui não parece deradas nos casos de conflitos entre prin-
ser oferecida uma solução razoavelmente cípios constitucionais revistos? Por que
fundamentada e controlável. O ponto, en- essas razões jogam um papel na primeira
tão, é como evitar a conclusão que o resul- revisão e não deveriam jogá-lo mais nas
tado da atividade ponderativa, seja para ser sucessivas?
considerado como meramente subjetivo e Seja concebida a ponderação como
particularista, ou seja, “não [possa] ser jus- instituição de uma hierarquia axiológica
tificado e, nessa acepção, que os conflitos móvel que resolve um conflito entre prin-
entre princípios constitucionais não [pos- cípios, seja concebida como reformulação
sam] ser resolvidos em um modo racional- de normas defectíveis, persiste o problema
mente controlável: [senão] a sua motivação do controle da motivação da decisão. Tal
não estaria sujeita a controle” (MORESO, controle poderá ser desenvolvido sobre a
2002, p.206). A idéia de Moreso é aquela congruência do raciocínio, da razão, mas
de tornar racionalmente controlável e pre- certamente isso torna palpável o poder
visível a solução do conflito entre princí- dispositivo em mão dos intérpretes e co-
pios através da sua revisão, que permane- loca em discussão o papel da jurisdição no
ce sujeita a múltiplos vínculos, para obter esquema tripartite do poder no estado de
como resultado a produção de duas normas direito constitucional.
compatíveis. Como explica Comanducci, A proposta de Moreso é interessante
“As razões, que parecem impelir Moreso também porque me parece indicar um per-
a configurar os princípios constitucionais curso, necessariamente jurisprudencial, de
que conferem direitos fundamentais como especificação e articulação daquelas pro-
normas defectíveis, são de ordem ética po- priedades relevantes, implícitas na formu-
lítica. Se concebêssemos (e aplicássemos) lação dos princípios, que poderiam consti-
os princípios constitucionais como normas tuir uma complexa grade de condições de
indefectíveis, seriam produzidos, na fase aplicação em grau de circunscrever, certo
da sua aplicação, conflitos práticos insaná- que sempre parcialmente, o poder disposi-
veis: no sentido que teríamos dois princí- tivo dos intérpretes, constituindo também
pios constitucionais em conflito, nenhum limite à argumentação interpretativa. A

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


248 Suzanna Pozzolo

proposta, em suma, registra de qualquer dade que deve ser considerada no momen-
maneira um movimento já em ato, mas to de decidir um caso, um quadro diferente
creio que sugira ainda a adoção de um ide- é obtido. Desse modo o princípio não res-
al regulador ao longo do qual se moveria ponde à pergunta sobre como se deva agir
a jurisprudência. Isso tudo que ela põe às em um determinado caso, mas indica uma
claras, realmente, é o papel mudado que se propriedade que invariavelmente deverá
encontra para desenvolver a jurisdição no ser levada em conta para definir qual o
direito contemporâneo. Voltarei ao assunto comportamento deve entrar em ação.
nas conclusões. Na hipótese que no caso C possam
Sobre princípios e as razões para ser aplicados os diferentes princípios A e
agir pode-se notar o que se segue. B, estaremos frente a um conflito se assu-
A noção de defectibilidade não é míssemos os princípios como tipo de re-
desprovida da ambigüidade (REDONDO, gra; a solução justificada será obtida com
2005): uma norma pode ser defeated em a revisão do princípio o qual será aplicado
duas maneiras diferentes e com diferen- tornando-o compatível com outro preteri-
tes implicações no plano da concepção do.
da norma. Uma norma pode ser defeated Mas se assumíssemos princípios
porque vem modificadas as suas condições como dois deveres incondicionais inde-
de aplicação: seja modificado o antece- fectíveis que indicam a relevância de duas
dente da norma e, portanto, o conteúdo da propriedades diferentes e contrastantes
própria norma; em tal caso nos encontra- pelas quais será necessário ter atenção,
ríamos dentro de uma concepção particu- não nos encontraríamos necessariamente
larista das razões para agir. Uma norma perante a um conflito. Os princípios pode-
pode ser defeated porque a ela é assinalado riam ser vistos como deveres que não indi-
um peso menor em relação a uma outra, cam o comportamento que deve ser man-
mas sem que se modifique o conteúdo de tido em um determinado caso, mas como
qualquer das duas normas; nesse caso nos deveres dirigidos ao intérprete que deverá,
encontraríamos dentro de uma concepção sempre e invariavelmente, considerar no
universalista das razões para agir. momento de solucionar o caso e do qual
Se concebermos os princípios como deverá ser responsável. Os princípios não
uma espécie de regras aptas para regular o indicariam a solução do caso, mas somente
caso concreto, pede-se a elas que respon- a exigência de considerar invariavelmente
dam a seguinte pergunta “Como devo agir o dever neles indicado; os princípios im-
nesse caso?”. A essa pergunta dá a resposta poriam, portanto, o dever ao intérprete de
Moreso, que parece ainda satisfazer exigên- oferecer uma justificação da relevância a
cias de garantia: transformando o princípio eles atribuída. É claro que nesse panorama,
em uma norma indefectível explicitam-se ao intérprete é explicitamente atribuído um
suas condições implícitas e determina-se notável poder dispositivo, mas ao mesmo
o direito. Todavia, isso funciona somente tempo ele é explícito e em uma certa me-
na medida em que o princípio reformulado dida controlável por se basear em critérios
não esteja efetivamente submetido a uma de racionalidade, razão e congruência. A
nova revisão. solução e a justificação produzidas serão e
Se concebermos os princípios como deverão ser sobrepostas a uma crítica ex-
normas pro tanto, ou seja, como normas terna baseada em argumentos de justiça, a
que indicam a relevância de uma proprie- pretensão de justiça será sempre meramen-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 249

te jurídica e a crítica externa será sempre colha significativa operada ou a hierarquia


ética. axiológica instituída.
Essa reformulação não soluciona as O neoconstitucionalismo reconstrói
dificuldades da ponderação, mas conside- essa exigência como uma modificação dos
ro que somente na medida em que as di- critérios de validade: o juízo externo ou
ficuldades não se resolvam, permaneça a ético sobre justiça de uma lei torna-se juí-
necessidade da ponderação ou do balance- zo interno sobre a sua validade (PRIETO
amento. Na medida em que fosse possível SANCHIS, 2003, p. 133). Desse modo a
transformar em regras os princípios se dis- justiça, uma concepção do bem, começa a
solveria a necessidade de ponderar e seria fazer parte dos critérios de validade do sis-
possível operar com mera racionalidade tema, começa a fazer parte dos critérios da
subsumida. Coisa que, no entanto, não so- regra de reconhecimento.
lucionaria absolutamente as problemáticas Como já foi indicado, parece pacífi-
interpretativas. Como já se notou, todavia, co que a constituição incorpore uma visão
uma estabilização da hierarquia axiológi- ética qualquer, coisa que já é a escolha de
ca entre princípios constitucionais, para um procedimento em relação a uma outra.
oferecer uma disciplina constitucional As constituições de contemporâneas são
racional que satisfaça um outro grau de pluralistas e permitem um diferente núme-
determinação, evitando as antinomias e ro de concretizações completáveis (nesse
reduzindo a discricionariedade interpreta- modo parecem quase implicar a idéia do
tiva, como colocou às claras Bruno Celano conflito).
(2002), não parece possível. Justamente Nesse quadro, a adoção de um com-
por essas razões parece necessário o juízo portamento positivista permite coerente-
de ponderação entre princípios (PRIETO mente verificar a mera compatibilidade da
SANCHIS,2003, pp. 199-203) que, defi- concretização interpretativa escolhida com
nitivamente pode ser representado como o princípio constitucional abstrato, abrin-
um procedimento argumentativo baseado do a possibilidade individuar multíplices e
na explicitação das razões que sustentam possíveis concretizações, ou seja, a escolha
a escolha do princípio e da sua formulação de uma ou de outra não tem repercussões
concreta. no plano da validade. A isso se sujeita a
tese da separação conceitual entre direito
2. Conclusões e moral que se revela útil ainda para subli-
nhar a autoridade que caracteriza o direito
Tudo que o tema da ponderação põe (do qual o neoconstitucionalismo parece
claramente é o emergir de uma exigência se esquecer): não é a bondade do princípio
argumentativa qualitativamente mais for- que lhe determinar a juridicidade, por isso
te em relação a outros sistemas jurídicos, ocorre um ato de vontade autoritário. E, fi-
diferentes daquele do estado constitucio- nalmente, os princípios constitucionais são
nalizado. Substancialmente, aquela área parte de um documento jurídico autoritá-
indeterminada do significado jurídico cuja rio, considerado vinculante pelos membros
determinação era reconstruída como resul- do grupo social observado. E é ainda uma
tado de uma atividade meramente discri- decisão autoritária aquela que determina
cionária, parece agora reconstituível como o significado específico dos princípios em
uma sagaz obra argumentativa apta a jus- conflito e soluciona-o construindo entre
tificar, através de bons argumentos, a es- eles uma hierarquia axiológica.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


250 Suzanna Pozzolo

Tudo que parece caracterizar o estado complexidade do fenômeno interpretativo:


constitucionalizado e que realmente muda, se não acontece em relação biunívoca en-
dissolvendo definitivamente o mito de uma tre disposição (enunciado jurídico, texto)
jurisdição mecanicista, é o papel do juiz. e norma (produto da interpretação, signi-
Trata-se de um processo de transformação, ficado), a intervenção da jurisdição é algo
provavelmente não previsto nesses termos, além de uma mera aplicação, trata-se então
em parte principiado pelo próprio modelo de encontrar novos ou mais sofisticados
constitucional que se afirma no segundo instrumentos de garantia. A ponderação
pós-guerra. Não é essa a focalização para dos princípios tornou evidente a deficiên-
ser percorrida novamente, nem mesmo as cia no plano institucional do controle juris-
características proeminentes dessa histó- dicional, parece difícil prever os casos de
ria, antes se trata de destacar a existência conflito e os critérios de precedência entre
de uma discrasia entre realidade e modelo princípios de modo a tornar o direito certo.
teórico que exige ou impõe ao constitu- Mas essas dificuldades não são exclusivas
cionalismo uma profunda reflexão acerca da interpretação dos princípios, eventual-
dos instrumentos de garantia à limitação mente aqui estão mais evidentes.
jurídica do poder. A tradicional divisão A proposta neoconstitucionalista
do poder concede (também na fórmula do sugere enfrentar essas dificuldades garan-
check and balances) uma função de garan- tísticas do constitucionalismo percorrendo
tia à jurisdição. E persistente é a idéia que
uma via jusnaturalística que, atribuindo
o direito possa ser aplicado ou, no mínimo,
validade moral ao direito positivo, para-
individuado em modo objetivo (como uma
doxalmente apresenta alguns riscos de
lei natural), que esse seja o dever da juris-
positivismo ideológico. Considero-a uma
dição, que meramente aplica uma vontade
falsa solução, mas principalmente uma so-
alheia, aquela do legislador, que tem o mo-
lução não constitucionalística, na medida
nopólio da produção jurídica e pela qual é
responsável politicamente. Esse sistema de em que se confia na mera boa vontade do
deveres e relações reflete-se na dogmática intérprete a cada vez dotado de autoridade;
das fontes do direito, todavia, na medida pensando em fortalecer o direito positivo,
em que a atividade jurisdicional mostra-se enfraquece-o, atribuindo-lhe uma pretensa
cada vez mais evidentemente construtiva correção moral; criando a ilusão de uma
do direito positivo, impõe-se uma profunda perfeita correspondência entre justo e le-
reflexão sobre os diversos dogmas, sobre gal, sacrifica a possibilidade de uma crítica
o sistema das fontes, sobre as funções do externa ao direito positivo.
poder, sobre seus papéis, sobre a estrutura Pela perspectiva positivista, é ne-
dos contrapesos para limitar juridicamente cessário, todavia, notar que, tudo somado,
o poder. Uma vez declinado aquele ideal propostas como aquela de Moreso buscam
jurisprudencial, uma vez que tenha sido in- reformular o problema dissolvendo-o, ou
troduzida a idéia que na passagem do texto seja, tão interessantes e úteis no plano da
à norma se desenvolvem algumas avalia- análise, não resolvem absolutamente as di-
ções, enfraquecendo a própria idéia de uma ficuldades constitucionalísticas.
aplicação teórica do direito. Se as coisas Creio que seja necessária ter em men-
estão assim, corre-se o risco de diminuir te que, na medida em que o processo de
também o papel de garantia da jurisdição e constitucionalização progride e amplia a
com ele o princípio de legalidade. aplicação direta dos princípios constitucio-
O tema da ponderação dos princípios nais, a ponderação é também uma técnica
colocou definitivamente às claras a geral para a aplicação elástica do direito infra-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 251

constitucional, dirigida a evitar a expulsão Isso mostra o papel necessariamente cria-


de normas inválidas que permaneçam pre- tivo da jurisdição e impõe o abandono de
teridas para o caso concreto. Nesse modo, um certo ideal jurisprudencial. A jurispru-
o direito se faz mais fluído, diminuem as dência aplica normas, mas certamente não
áreas de certeza e ao mesmo tempo pare- faz só isso: ela participa como co-autora da
cem crescer enormemente os deveres dis- criação das normas. Grande parte daquele
positivos da jurisprudência. background sobre o qual vão ser deposita-
É necessário notar, contudo, que tais das as palavras do legislador foi construído
deveres de dispositivos são em determinada pela jurisprudência e por ela continuamen-
medida conaturais a um discurso jurídico te modificado e renovado. A jurisprudên-
(por natureza?) substabelecido. Trata-se, cia então é, nesse sentido, fonte do direito,
então, de afinar os instrumentos de contro- não só em um geral e amplo sentido só-
le da obra de determinação dos intérpretes; cio-político, mas no sentido jurídico: sem
trata-se de observar como os intérpretes a mediação da jurisprudência o direito não
usam as fontes de direito e como os mesmos seria capaz de intervir onde existe o con-
contribuem para construí-las. Aceitar que a flito e desenvolver o seu papel. Em todo
decisão interpretativa seja considerada em caso, ainda se pode dizer que o juiz decide
todo caso uma escolha seja que se desen- segundo o direito, porque a jurisprudência
volva sobre princípios seja que se desen- é só um co-autor, no meu parecer necessá-
volva sobre regras, não implica considerar rio, das normas. O juiz decide o significado
os enunciados jurídicos como caixas vazias das disposições, produz em parte as nor-
(antes da interpretação). Trata-se, mais co- mas, mas só em parte, porque a sua obra
erentemente, de derivar as conseqüências interpretativa é redefinitória e não criativa
necessárias da tese interpretativa de parti- no sentido restrito. O assim chamado easy
da: se não há relação biunívoca entre texto case não desmente esse fato, mas o confir-
e norma, as disposições jurídicas veiculam ma. O caso claro, de fato, é um momento,
diversos significados e a interpretação (do- uma conclusão parcial, no âmbito de um
tada de autoridade) torna concreto um de- sistema de expectativas recíprocas. Ele,
les (POZZOLO, 2001 b). O intérprete, em porém não é easy em virtude da interpre-
suma, tem naturalmente à disposição multí- tação da única disposição, mas depende
plices normas, todas reconduzíveis ao mes- de um bom mecanismo de estabilização
mo texto, entre elas escolhe e decide; essa e de feedback, que, regenerando-se conti-
determinação é necessária à concretização nuamente, oferece a impressão que como
do direito positivo. autoritariamente estabilizado não seja fru-
A natureza substabelecida do discur- to de interpretação e não exija por sua vez
so jurídico não se reduz transferindo as interpretação (POZZOLO, 2001 b).
dificuldades interpretativas sobre o plano Quanto deve ser modificado da nos-
moral, que não é certamente mais deter- sa cultura jurídica a fim de que se admita
minado. Aliás, isso impõe ainda ao posi- que a jurisprudência faz tudo o que efeti-
tivismo jurídico uma reflexão, pois que vamente faz; não só integrar e manipular
parece claro que ficando assim as coisas, (segundo alguns), mas produzir o direito.
um operador competente não é capaz de Mas talvez ainda seja lícito questio-
responder oferecendo uma única solução narmos se isso seja útil, ou se, ao contrá-
jurídica para um caso na base da única rio, não seja melhor um direito em que “o
análise lingüística do texto. Mais de um mago-jurista cura os pacientes justamente
são os resultados juridicamente possíveis. porque os engana?” (JORI, 1995).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


252 Suzanna Pozzolo

REFERÊNCIAS GUASTINI, R. [1994], Diritti, in «Analisi e di-


ritto 1994», pp. 163-174.
ALEXY, R. [1994], El concepto y la validez del GUASTINI, R. [1990], Le garanzie dei diritti
derecho, Gedisa, Barcelona, 1994. costituzionali e la teoria dell’interpretazione,
BAYON Mohino, J. C. [1991], La normativi- in «Analisi e diritto 1990», pp. 99-114.
dad del derecho. Deber juridico y razones para HOLMES, S. [1988], Vincoli costituzionali e
la acción, Centro de Estudios Constitucionales, paradosso della democrazia, in G. Zagrebelsky,
Madrid. P. P. Portinaro, J. Luther (a cura di), Il futuro
BULYGIN, E. [1991], Sobre el status ontológi- della costituzione, Einaudi, 1996, pp. 167-208.
co de los derechos humanos, in C. E. Alchour- JORI, M. [1995], Definizioni giuridiche e prag-
rón e E. Bulygin, Análisis lógico y Derecho, C. matica, in «Analisi e diritto 1995», pp. 109-144.
E. C., Madrid, 1991, pp. 619-625. MAZZARESE, T. [2002], Diritti fondamentali e
CELANO, B. [2002], Come deve essere la dis- neocostituzionalismo: un inventario di problemi,
ciplina costituzionale dei diritti?, in S. Pozzolo, in T. Mazzarese (a cura di), Neocostituzionalis-
La legge e i diritti, Giappichelli, Torino, 2002, mo e tutela (sovra)nazionale dei diritti fonda-
pp. 89-123.
mentali, Torino, Giappichelli, 2002, pp. 1-69.
CELANO, B [2002b], ‘Defeseability’ e bilan-
MORESO, J.J. [2002], Conflitti tra principi costi-
ciamento. Sulla possibilità di revisioni stabili,
tuzionali, in «Ragion pratica», 18, pp. 201-221.
in «Ragion pratica», 18, pp. 223-239.
MORESO, J.J. [2002b], A proposito di revisio-
CELANO, B. [1994], Dialettica della giustifi-
ni stabili, casi paradigmatici e ideali regolativi:
cazione pratica. Saggio sulla legge di Hume,
replica a Celano, in «Ragion pratica», 18, pp.
Giappichelli, Torino.
241-248
COMANDUCCI, P. [2003], Problemi di com-
MORESO, J. J. [1997], Diritti e giustizia pro-
patibilità tra diritti fondamentali, in «Analisi e
cedurale imperfetta, in «Ragion pratica», 10,
diritto 2003-2004», pp. 317-329.
COMANDUCCI, P. [2002], Forme di 1998, pp. 13-39.
(neo)costituzionalismo: una ricognizione metate- NARVAEZ, M e S. POZZOLO [2003], Il con-
orica, in T. Mazzarese (a cura di), Neocostituzio- cetto di accettazione non è una minaccia…per il
nalismo e tutela (sovra)nazionale dei diritti fon- positivismo hartiano, relazione inedita, presen-
damentali, Torino, Giappichelli, 2002, pp. 71-94. tata al 2° Incontro dei Giovani Filosofi Analitici
DWORKIN, R. [1977], Taking Rights Serious- italiani, Università di Milano, 16 maggio 2003.
ly, Harvard UP, Cambridge. NAVARRO, P. E. [2000], On the self-destruc-
ESCUDERO ALDAY, RESCUDERO ALDAY. tion of Legal Positivism, in P. Chiassoni (a cura
R. (2204), Los calificativos del positivismo ju- di), The legal ought. Proceeding of the IVR
ridico: El debate sobre la incorporación de la Mid-Term Congress in Genoa (June 19-20,
moral, Civitas, Madrid. 2000), Giappichelli, Torino, 2001, pp. 83-101.
GOLDSWORTHY, J. D. [1990], The Self-Des- NINO, C. S. [1996b], The Constitution of Delibe-
truction of Legal Positivism, in «Oxford Journal rative Democray, Yale UP, New Haven-London.
of Legal Studies», vol. 10, n. 4, pp. 449-486. NINO, C. S. [1994], Derecho, moral y política,
GUASTINI, R. [2004], L’interpretazione dei Ariel, Barcelona.
documenti normative, Giuffrè, Milano. PERRY, S. R. [1998], Hart’s Methodological
GUASTINI, R [2001], Il diritto come linguag- Positivism, in «Legal Theory», n. 4, pp. 27-67.
gio, Giappichelli, Torino. POZZOLO, S. [2001], Neocostituzionalismo e
GUASTINI, R. [1998], La costituzionalizzazio- positivismo giuridico, Torino, Giappichelli.
ne dell’ordinamento giuridico italiano, in «Ra- POZZOLO, S. [2001b], Congetture sulla giu-
gion pratica», 11, pp. 185-206. risprudenza come fonte, in L. Triolo (a cura di),
GUASTINI,R.[1996],Specificità Prassi giuridica e controllo di razionalità, Gia-
dell’interpretazione costituzionale?, in «Anali- ppichelli, Torino, 2001, pp. 115-145.
si e diritto 1996», pp. 169-185. POZZOLO, S. [1997], La especificidad de la
GUASTINI, R. [1996b], Distinguendo, Giappi- interpretación constitutional, in Doxa, 21, vol.
chelli, Torino. II, pp. 339-353.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO... 253

PRIETO SANCHÍS, L. [2003], Justicia cons- REDONDO, M. C. [1996], La noción de razón


titucional y derechos fundamentales, Trotta, para la acción en el análisis jurídico, Centro de
Madrid Estudios Constitucionales, Madrid.
PRIETO SANCHÍS, L. [1991], Notas sobre la TROPER, M. [1996], La nozione di principio
interpretación constitucional, in “Revista del sovracostituzionale, in «Analisi e diritto 1996»,
Centro del Estudio Constitucionales”, 9, pp. pp. 255-274.
175-198. WALDROM, J. [1993], A Rights-Based Criti-
RAZ, J. [1999], Engaging Reason. On the The- que of Constitutional Rights, in «Oxford Jour-
ory of Value and Action, Oxford UP, Oxford. nal of Legal Studies», 13, pp. 18-51.
REDONDO, M. C. [2005], Legal Reasons: Be- ZAGREBELSKY, G. [1992], Il diritto mite, Ei-
tween Universalism and Particularism, in «Jour- naudi, Torino.
nal of Moral Philosophy», 2, 1, pp. 47-68.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


254

UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO


A PARTIR DE DWORKIN
A vision of Neoconstitutionalism since Dworkin

Gisele Mascarelli Salgado*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O Neoconstitucionalismo surge como um modo de pensar as questões constitucionais do


Estado na atualidade, na tentativa de solucionar problemas de uma teoria do Direito de complexida-
de proporcional à sociedade que está inserida. Dworkin é um dos que se propõe a pensar alguns des-
ses novos parâmetros do Direito, porém sua teoria enfrenta dificuldades inerentes ao descompasso
conceitual e metodológico. A grande dificuldade da obra de Dworkin, está em partir de um sistema
específico de Direito para pensar uma teoria que se pretende universalizante.
Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Teoria de Dworkin. Princípios.

Abstract: Neoconstitucionalismo appears as a way of thinking the constitutional questions of the


State, in the attempt of solving problems of a theory of Law that has a complexity, in the same
proportional of complexity to the society that is inserted. Dworkin intends to think of Law based
in some of those new parameters, however his theory faces inherent conceptual and methodologi-
cal difficulties. The higherest difficulty faced by Dworkin work´s, is dealing in his theory with a
specific system of Law to compose a theory that intend universal.
Key Words: Neoconstitutionalism. Dworkin Theory. Principles.

“Em questões constitucionais é um erro querer


distinguir entre o jurídico e o político”
Carl Schmitt

1. Introdução forte ênfase nas questões constitucionais.


A questão levantada por este artigo é se
O objetivo desse artigo é apresentar uma teoria neoconstitucionalista como a
a discussão sobre o Neoconstitucionalismo
de Dworkin, consegue ultrapassar as bar-
no âmbito de uma Teoria Geral do Direito
reiras de um direito positivado, para se
Constitucional a partir das obras de Ronald
efetivar como uma Teoria Geral de Direito
Dworkin. Adota-se como ponto de partida
Constitucional.
que não há um neoconstitucionalismo, mas
vários. Isto requer que se use a expressão 2. Papel da Teoria Geral do Direito
no plural e não no singular, quando não se
referir em caráter geral a um movimento. A O Neoconstitucionalismo está situ-
Teoria Constitucional estampada nas obras ado dentro do que se costuma chamar de
de Dworkin é uma das expressões das te- Teoria Geral do Direito. Esse locus ocupa-
orias neoconstitucionalitas, que tem como do pelo neoconstitucionalismo ajuda a en-
particularidade ter sido montado a partir de tender o seu caráter peculiar, que como a
um sistema jurídico norte americano, com face de Janus não pode ser apreendida em

* Doutouranda pela PUC-SP em Filosofia do Direito.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO... 255

um só golpe de vista. O Neoconstituciona- poder iniciar uma discussão, formados a


lismo apresenta como característica geral partir de um certo consenso entre os juris-
em quase todas suas variações, um pensar tas. Os trabalhos de Filosofia do Direito
sobre o direito positivo constitucional, mas também adotam pressupostos, porém estes
que não se limita à legislação vigente de podem ser colocados em questão, pois os
um local específico. Assim o neoconstitu- pressupostos de um autor podem ser derru-
cionalismo está intimamente ligado a uma bados por outros autores, uma vez que não
determinada situação histórica atual, que existe um padrão único ou mesmo um pa-
englobam: a mudança do papel do Estado, drão preponderante a ser obrigatoriamente
a globalização/mundialização, transforma- adotado. Porém a linha entre Teoria Geral
ções tecnológicas, etc.. Deste modo o neo- do Direito e Filosofia do Direito é muito
constitucionalismo se apresenta como um tênue, e não raras vezes é difícil saber o
fenômeno temporal, com um forte apelo lugar que uma começa e a outra termina.
universalizante. O Neoconstitucionalismo como ma-
A busca de uma teoria do Direito com téria que se insere na Teoria Geral do Di-
caráter universalizante, mas que ao mesmo reito também irá apresentar esse caráter
tempo ocupasse o lugar da Filosofia do Di- duplo de dogma e de especulação, que tem
reito, fez com que surgisse no século XIX como objetivo geral, o pensar sobre de-
a Teoria Geral do Direito (Allgemeine Re- terminados conceitos e padrões presentes
chtslehre). No auge do positivismo ocor- no Direito Constitucional. Acrescenta-se
re o desprestígio da Filosofia do Direito, com isso mais um fator temporal, que é
surgindo em seu lugar uma nova ciência a própria existência de um Direito Cons-
com caráter híbrido, pois não era um mero titucional nos padrões modernos. Desta
comentário das leis positivadas do Estado, maneira o neoconstitucionalismo vai ga-
nem possuía um caráter especulativo como nhando complexidade no seu tratamento,
a Filosofia do Direito. Como comenta Ra- que dificulta a utilização desse conceito,
dbruch a missão da Teoria Geral do Direito mas permite por outro lado dar conta de
era : “não só de investigar quais os concei- explicações que não cabem mais nas ve-
tos jurídicos mais gerais e comuns a todas lhas teorias do Direito.
as disciplinas jurídicas, como de expor,
3. Constitucionalismo e Neoconstitucio-
comparativamente, para além da ordem ju-
nalismo
rídica nacional, os conceitos entre si apa-
rentados das diferentes ordens jurídicas e A complexidade que gira em torno
até, inclusivamente perscrutar – para além do Neoconstitucionalismo apresenta mais
dos domínios do direito- as suas relações uma faceta, que é a derivação do termo
com outros domínios da cultura”1. Constitucionalismo. O constitucionalismo
O que diferencia inicialmente a Te- pode ser entendido como um conjunto de
oria Geral do Direito de uma abordagem estudos sobre o Direito Constitucional mo-
da Filosofia do Direito, é a busca de uma derno, sendo que esses estudos não apre-
solidificação de conceitos, formando pa- sentam um forte caráter positivista.
drões classificatórios, que poderiam ser Meirelles Teixeira chama esse Cons-
utilizados em diversos ramos do Direito. titucionalismo moderno, de Direito Cons-
Apesar de distanciar-se do direito positivo titucional Geral, e utilizando-se dos con-
a Teoria Geral do Direito admitia alguns ceitos de Santi Romano, entende que esse
pressupostos como fora de questão, para Direito Constitucional geral “consistiria

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


256 Gisele Mascarelli Salgado

numa série de princípios, preceitos, ins- foi a Constituição alemã de Weimar de


titutos, que aparecem nos vários Direitos 1919”5.
positivos dos diferentes Estados, ou em Canotilho também aponta para a mu-
grupos de Estados, e em cuja base poderí- dança de foco do constitucionalismo, que
amos classificá-los e sistematizá-los, numa “tem de lidar com problemas de comple-
visão unitária”2. Assim o Constitucionalis- xidade dinâmica, adaptabilidade, auto-or-
mo moderno é formado, pelo que o autor ganização, emergência e evolução”6. A di-
chama de “patrimônio jurídico-político ficuldade dessa tarefa, segundo Canotilho,
comum à generalidade dos países civiliza- levou a um esvaziamento e erosão da teo-
dos”3. Enfatiza Meirelles Teixeira o caráter ria da constituição, pela adoção de teorias
híbrido dessa ciência, ao afirmar: “O Di- da justiça e teorias sociológicas.
reito Constitucional Geral entendido nesta O Neoconstitucionalismo figura
última acepção, já não seria mera filosofia como uma teoria que busca explicar o Di-
jurídica, nem doutrina prática, no sentido reito a partir do âmbito jurídico, porém
próprio, mas teoria jurídica de relevante apresenta entraves decorrentes da própria
alcance prático e teórico”4. estrutura do Direito que não tem instru-
O Constitucionalismo também é um mentos que permitam, que inovações ocor-
estudo que pressupõe uma datação precisa, ridas no âmbito econômico-social-cultural,
pois o que se estuda são as Constituições sejam absorvidas prontamente pelo sistema
que foram fruto do Estado moderno no jurídico, sem provocar ruídos. Esse proble-
mundo ocidental. Deste modo o que a prin- ma decorre da estrutura estatal e jurídica,
cípio poderia ser tomado como uma teo- que ainda lida com padrões de um velho
ria universal fica restrita a alguns Estados, constitucionalismo, e não consegue en-
que tem como origens a Constituição dos quadrar a ampla gama de transformações
Estados Unidos da América ou de Estados nos velhos “standarts”.
europeus. Assim o Constitucionalismo está A superação do velho constituciona-
calcado diretamente em um Estado que
lismo pressupõe o abandono, pelo menos
tem como características fundamentais:
em parte, de um positivismo jurídico ex-
existência de um governo centralizado e
tremado. Assim o neoconstitucionalismo
altamente burocratizado, predominância
irá buscar formas alternativas a essa teoria
do monopólio estatal no âmbito legislativo
jurídica, para explicar uma outra realida-
e coercitivo e com um conceito de sobera-
de jurídica, que não tem mais como único
nia forte.
ponto fundamental a legislação estatal; po-
O foco dos estudos Constitucionalis-
rém admite a inclusão no âmbito jurídico,
tas está quanto ao sujeito no Estado e não
de princípios, valores morais ou de justiça;
propriamente o destinatário dessas normas
constitucionais; e quanto ao direito está relativizando conceitos clássicos como so-
na proteção Estatal como entidade polí- berania e território; ou mesmo proporcio-
tica-administrativa-jurídica. O ponto de nando um direito estatal ao cidadão para se
mudança do Constitucionalismo para um resguardar contra o próprio Estado.
Neoconstitucionalismo é controverso na 4. Diferentes Neoconstitucionalismos
doutrina. Meirelles Teixeira entende que o
novo constitucionalismo “vem se deline- Não se pode falar em apenas um
ando desde a Primeira Guerra Mundial, e Neoconstitucionalismo, mas sim em Neo-
cuja nota específica é o sentido social das constitucionalismos, pois não pode ser en-
Constituições, cujo padrão e marco inicial carado como uma teoria única, nem possui

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO... 257

um fio condutor que é comum a todas elas, Estado constitucional e democrático, dan-
que não seja a mera negativa genérica a um do ênfase a mecanismos institucionais de
constitucionalismo e a um positivismo ju- tutela dos direitos fundamentais. Por essas
rídico. Assim os diversos matizes dos ne- características Comanducci denomina essa
oconstitucionalismos não podem ser redu- espécie de neoconstitucionalismo, como:
zidos a uma teoria comum, na medida em “neoconstitucionalismo dos contra-pode-
que cada um dos neoconstitucionalismos é res” e “neoconstitucionalismo das regras”9.
fruto de uma resposta para os problemas O neoconstitucionalismo como ideologia
gerados pela realidade social e que devem reintroduz a questão da Moral para o âmbi-
ser enfrentados pelo direito. to do Direito, utilizando-a como um metro
Porém mesmo o termo Neoconsti- ou como um limite na aplicação do Direi-
tucionalismo não é unívoco, e é de fun- to. Desta maneira o neoconstitucionalismo
damental importância uma distinção para se apresenta frontalmente contra o projeto
saber de que fenômeno se fala. Comanduc- kelseniano, que propõe uma purificação da
ci propõe a distinção do Neoconstituciona- ciência do Direito de tudo aquilo quanto lhe
lismo, aos moldes da divisão que Bobbio fosse estranho, inclusive questões morais.
utiliza para o termo positivismo, em Ne- Porém o Neoconstitucionalismo como ide-
oconstitucionalismo como: uma teoria, ologia assume o problema levantado por
uma ideologia e um método de análise do Kelsen, ao tratar da aplicação do Direito,
Direito. Essa distinção apresenta um ca- que vê entrar no Direito outros elementos
ráter didático, uma vez que na obra de um (como valores, moral, força, poder), para
autor que trata do neoconstitucionalismo preencher a moldura legal10.
essas facetas encontram-se entrelaçadas. O Neoconstitucionalismo metodoló-
O Neoconstitucionalismo teórico é gico é um termo criado por Comanducci
definido por Comanducci, como aquele que para denominar o neoconstitucionalismo,
se caracteriza “por uma constituição ‘inva- que se contrapõe ao positivismo jurídico,
sora’, por uma positivação de um catálogo enquanto uma teoria que tenta não se uti-
de direitos fundamentais, pela presença da lizar da dicotomia do “ser” e “dever-ser”.
constituição de princípios e regras, e por Com isso o Neoconstitucionalismo irá afir-
algumas peculiaridades da interpretação mar “pelo menos a respeito de situações
e da aplicação das normas constitucionais de direito constitucionalizado, em que os
quanto a interpretação e aplicação da lei”7. princípios constitucionais e os direitos
Como teoria o Neoconstitucionalismo fundamentais constituiriam uma ponte en-
se apresenta como uma contraposição ao tre direito e moral, a tese da conexão ne-
positivismo jurídico, e geralmente centra cessária, identificativa e/ou justificativa,
sua análise na Constituição, adotando se- entre direito e moral”11. O que o neoconsti-
gundo Comanducci, dois modelos: modelo tucionalismo propõe é a análise do direito
descritivo da constituição e modelo axio- como um fenômeno, que engloba regras
lógico8. Ferrajolli e Gustavo Zagrebelsky de direito e da moral, que muitas vezes
são dois autores que defendem um neo- tem preceitos semelhantes; e propõe que
constitucionalismo, nos moldes do modelo as regras morais sejam a última ratio para
axiológico, atribuindo aos valores, grande decidir questões conflituosas no âmbito da
relevância no âmbito do Direito. aplicação do direito.
O Neoconstitucionalismo como uma Dworkin em suas obras defende um
ideologia, apóia a expansão do modelo de neoconstitucionalismo que se apresenta ao

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


258 Gisele Mascarelli Salgado

mesmo tempo como: uma teoria, um méto- seu método descritivo de abordar o Direi-
do e como ideologia. As obras de Dworkin to. Para superar os limites do positivismo
apresentam um modelo complexo de neo- Dworkin propõe que, o modo de aplicação
constitucionalismo, assim como também do Direito é mais complexo, sem lacunas e
são as de Alexy. Porém ao contrário de menos político.
Alexy que defende um neoconstitucio- A crítica feita por Dworkin ao positi-
nalismo com forte influência da teoria do vismo jurídico recai em diversos pontos, e
discurso, Dworkin baseia-se em uma abor- um deles é o de utilizar-se apenas da lei ao
dagem anti-Bentham e contrapõe-se for- aplicar o Direito. Para Dworkin o direito
temente ao positivismo jurídico de Hart, não é formado apenas de normas jurídicas,
afirmando a relação necessária do Direito mas também de princípios. O primeiro
com a Moral. passo dado por Dworkin é a distinção de
normas e princípios. No segundo passo, dá
5. Neoconstitucionalismo de Dworkin aos princípios um papel relevante no sis-
tema jurídico, e é isso que o diferencia de
Este capítulo apresenta o neoconsti- Hart.
tucionalismo presente nas seguintes obras São os princípios de direito que de-
de Ronald Dworkin: “Uma questão de vem pautar as decisões dos juízes na apli-
Princípios” e “Levando os Direitos à Sé- cação do Direito. Os princípios presentes
rio”. A crítica a obra de Dworkin é extensa explicitamente ou implicitamente no Di-
e coloca em xeque as premissas de seus reito, permitem a distinção de argumentos
argumentos, quando não levanta incon- de princípio e argumentos de política. “Os
sistências e problemas na obra do autor; argumentos de princípio são argumentos
porém esta nunca ficou inerte as propostas destinados a estabelecer um direito indivi-
de Dworkin para superar o positivismo ju- dual; os argumentos de política são argu-
rídico. mentos destinados a estabelecer um objeti-
Ao tratar do positivismo jurídico vo coletivo. Os princípios são proposições
Dworkin refere-se à Hart, que tem como que descrevem direitos; as políticas são
principal obra “The Concept of Law”. Esse proposições que descrevem objetivos”12.
é o positivismo combatido, ficando de lado Esses argumentos são utilizados na
outros teóricos do positivismo de tradi- aplicação do Direito indistintamente pelo
ção européia. Essa ausência é identificada positivismo jurídico. O que Dworkin pre-
como um dos fatores, que levaram a difi- tende é que sejam utilizados apenas os ar-
culdade de aceitação da obra de Dworkin. gumentos de princípio, que respeita o di-
Porém a ausência de um diálogo com a te- reito moral do indivíduo, mesmo quando
oria positivista, inclusive com autores que este colide com o interesse de uma maio-
escrevem a partir da tradição do “roman ria. O Direito aplicado se vê pautado a uma
law”, parece indicar mais do que a mera Moral, sem o que não pode ser levado a
falta de diálogo com a tradição do “com- sério.
mon law”. Os princípios pressupõem uma moral
Dworkin utiliza-se de um panorama que Dworkin chama de moral jurídica, que
para a sua teoria e para o seu neoconstitu- é formada a partir de um consenso entre
cionalismo, que pressupõe necessariamente os juízes da posição correta, partindo-se do
a adoção do Direito aos moldes que existe homem médio daquela população e não da
hoje em seu país de origem. Essa particula- própria moral do juiz ou de sua particular
ridade da obra de Dworkin é acentuada por visão do mundo. Nas palavras de Dworkin:

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO... 259

“Denomino princípio um padrão que deve O juiz não é um criador de normas.


ser observado, não porque deve ser obser- É uma pessoa que aplica o Direito com
vado, não porque vá promover ou assegu- base em critérios pré-estipulados, garan-
rar uma situação econômica, política ou tindo ao Direito uma certa segurança e cer-
social considerada desejável, mas porque teza. Essa segurança é reforçada quando
é uma exigência da justiça ou equidade ou Dworkin enfatiza que: “um juiz que adota
alguma outra dimensão da moralidade”13. um princípio em um caso deve atribuir-lhe
Assim definido, os princípios não são importância integral nos outros casos que
regras que pautam a aplicação das normas, decide ou endossa, mesmo em esferas de
como sugerem os positivistas na visão de direito aparentemente não análogas”14.
Dworkin. Os princípios não podem ser con- A preocupação com a segurança do
fundidos com as normas, pois tem natureza Direito tem como objetivo evitar o “juiz le-
lógica distintas. As regras se pautam pela gislador”. O positivismo entende que esse
lógica da validade ou do que Dworkin cha- juiz é perigoso, pois não é um juiz que foi
ma de “lógica do tudo ou nada”, enquanto eleito pelo povo e com isso não representa
os princípios possuem a dimensão do peso seus interesses. Porém para Dworkin o juiz
ou importância, e podem conviver com que cria normas para aplicá-las em casos
outros princípios conflitantes. Dworkin difíceis, está se utilizando de um poder que
entende que os princípios não são regras não tem. Nas palavras de Dworkin: “O juiz
válidas acima do direito, e essa é a diferen- continua tendo o dever, mesmo nos casos
ça entre o autor estudado e os positivistas, difíceis, de descobrir quais são os direitos
que também aceitam os princípios dentro das partes, e não inventar novos direitos
do sistema do direito. Por não serem re- retroativamente”15.
gras, os princípios são mutáveis e devem A tarefa proposta por Dworkin ao
levar em consideração aspectos históricos juiz não é menos do que heróica. Seu juiz
e temporais. A importância dos princípios bem nominado Hércules “aceita que as leis
é dar um padrão moral que proporciona o têm o poder geral de criar e distinguir di-
respeito aos direitos individuais, ou nas reitos jurídicos, e que os juízes têm o de-
suas palavras: “igual consideração e res- ver geral de seguir as decisões anteriores
peito”. de seu tribunal ou dos tribunais superiores
Os juízes ao aplicar o Direito ao cujo fundamento racional, como dizem os
caso concreto utilizam-se dos princípios, juristas, aplica-se ao caso em juízo”16.
porém esses são indispensáveis naqueles Hércules ao se deparar com um caso
casos em que não há solução fácil pela lei, difícil deve elaborar uma “teoria constitu-
nos “casos difíceis”, que não raro tratam cional na forma de um conjunto complexo
de questões constitucionais. Porém o juiz de princípios e políticas que justifiquem o
ao decidir os casos difíceis não tem amplo sistema de governo ... Hércules deve de-
poder de discricionariedade, como quer os senvolver essa teoria referindo-se alterna-
positivistas, pois está vinculado aos princí- damente à filosofia política e ao pormenor
pios. Dworkin elabora uma teoria que não institucional. Deve gerar teorias possíveis
é uma prescrição do que os juízes devem que justifiquem diferentes aspectos do sis-
fazer, mas sim, uma análise de como os tema e testá-las, contrastando-as com a es-
juízes agem. Nesse ponto Dworkin dife- trutura institucional mais ampla. Quando o
rencia-se quanto ao método de Kelsen e poder de discriminação desse teste estiver
também de Rawls. exaurido, ele deverá elaborar os conceitos

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


260 Gisele Mascarelli Salgado

contestados que a teoria êxitosa utiliza”17. sistema jurídico. Kelsen atribui essa juris-
A tarefa de Hércules compreende também dictio ao órgão aplicador do direito, que
a conciliação do princípio, para todo o sis- serão as autoridades do Estado. O que os
tema de Direito quanto à sua hierarquia. diferencia é que Kelsen entende que tal
Os trabalhos a que o juiz está obri- tarefa cria direitos, enquanto Dworkin não
gado a realizar para bem aplicar o direito, defende essa postura. Porém tanto para o
tornam a tarefa hercúlea, porém o juiz de positivista quanto para seu crítico, o Direi-
Dworkin está muito mais para Ulisses que to necessita de uma restrição/ampliação de
para Hércules. Atado aos princípios para sentidos que lhe é exterior.
poder proferir sua decisão, o juiz como Para Dworkin a tarefa de diminuir a
Ulisses não pode sucumbir ao canto das discricionariedade do juiz ao decidir é dada
sereias, que o chama para uma decisão que pelo método de sua leitura moral. Porém
leve em conta suas próprias concepções, ao delimitar quem faz a leitura, Dworkin
que seja uma decisão política/ discricioná- faz uma restrição dos tipos de interpreta-
ria. Os positivistas sucumbiram as sereias ções possíveis não a partir do método, mas
por não tamparem seus ouvidos, nem se sim na figura do juiz. A restrição propos-
atarem ao mastro dos princípios, ao ten- ta pelo método e pela Corte, aumentam
tar atravessar o perigoso mar do Direito. consideravelmente o grau de segurança de
O juiz como Ulisses também deve ter seus um sistema jurídico, porém pressupõe que
olhos vendados, para não criar visões de exista uma Corte constitucional instituída
seres fantásticos, ou seja, para não criar como órgão legitimado a dar o último pa-
direitos. recer sobre a Constituição.
O juiz assumindo esta postura pro- Utilizando-se da famosa imagem da
posta por Dworkin assegura a observância pirâmide hierárquica de competências das
à Constituição, pelo que ficou conhecido normas jurídicas, amplamente difundida
na teoria constitucionalista de “judicial re- pelo positivismo, a proposta de Dworkin
view”, oferecendo em última análise um está em garantir o sistema jurídico colo-
controle da constitucionalidade. A tarefa de cando a Corte Constitucional acima do
Hércules não é imposta a todos os juízes, topo da pirâmide, que do alto olharia por
mas especialmente àqueles que lidam com todo o sistema. Assim a Corte não deixa
casos difíceis, que geralmente são os juízes de atuar como portadora de argumento de
da Suprema Corte, pois coube a ela histo- autoridade, fornecendo os parâmetros de
ricamente velar pela Constituição. Deste como aplicar o Direito, através de uma ge-
modo a aplicação do Direito fica fadada neralização de sentidos.
em seu último grau às decisões de uma No Brasil a função do Supremo Tri-
corte constitucional, que tem forte compo- bunal Federal foi estabelecida de modo
nente político, uma vez que seus juízes são diferente da Corte Constitucional, adotan-
indicados pelo chefe de governo. do um sistema misto de controle da cons-
Ao restringir a interpretação do juiz titucionalidade, que migra da inspiração
Dworkin adota posição semelhante a de americana para a inspiração do modelo
Kelsen, quando este trata da interpretação austríaco18. José Afonso da Silva chega a
conforme/autência. Dworkin entende que afirmar que o S.T.F., por não ser o único
a Suprema Corte seria o órgão autorizado órgão a decidir questões constitucionais,
a dizer o Direito no seu último grau, fe- não o converte em Corte Constitucional19.
chando com isso as possíveis lacunas do O controle da constitucionalidade à bra-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO... 261

sileira concilia o controle concentrado e tornar o destino dos cidadãos sensível às


o controle difuso. Esse padrão misto tem opções que fizeram”21. Para fomentar esses
migrado paulatinamente para a predomi- princípios o governo necessita, portanto de
nância do controle concentrado, mas há uma meta governamental bem estruturada
ainda a presença do controle difuso, como e de uma boa estrutura econômica, social
aponta Gilmar Ferreira Mendes20. e cultural, para sua implementação. Des-
Nos padrões que Dworkin apresenta te modo Dworkin impõe mais uma tarefa
é difícil pensar o controle constitucional e hercúlea para os governantes.
o papel do S.T.F., pois ele não figura com Outro ponto da teoria de Dworkin
tamanha força de autoridade, assim como que apresenta dificuldades se pensado nos
é a Corte norte-americana, para fixar os termos do Direito brasileiro, é a leitura
sentidos do Direito. Isso porque o próprio moral. Isto porque na Constituição de 1988
sistema de Direito utilizado no Brasil, não há uma ampla gama de direitos protegidos,
utiliza em amplo espectro a decisão do inclusive coletivos, e os juízes levam isso
juiz vinculada a um precedente. A Cons- em consideração; não há uma predominân-
tituição brasileira é uma constituição que cia do direito individual. A leitura moral
principalmente normatiza e não uma cons- também pressupõe um consenso nas deci-
sões dos juízes, para que o juiz ao buscar
tituição de princípios, deste modo é difícil
pelos princípios, consiga estabelecer a mo-
aplicar a proposta de Dworkin de interpre-
ralidade jurídica.
tação moral dos princípios em um sistema
A concepção de Dworkin que as pes-
jurídico em que a importância dos princí-
soas têm direitos contra o Estado, é uma
pios começa a ganhar força.
concepção nova no Direito brasileiro, que
A proposta dos princípios de Dworkin
em geral é um direito que garante a pro-
não se restringe apenas aos juízes, mas teção do Estado. Porém essa é a base do
deve ser adotada também pelo governo. direito constitucional americano, como
Em obra mais recente Dworkin desenvolve afirma Dworkin: “Nosso sistema constitu-
como alguns dos princípios do individua- cional baseia-se em uma teoria moral es-
lismo ético garantem uma sociedade me- pecífica, a saber, a de que os homens tem
lhor através de uma teoria liberal, são eles: direitos morais contra o Estado”22. Fica
princípio da igual importância e princípio mais uma vez a questão de se essa teoria
da responsabilidade especial. Os princí- baseada em características tão particulares,
pios escolhidos por Dworkin pressupõem serviria para pensar um país com uma for-
o liberalismo e a democracia implantados mação diferente.
na sociedade. Há uma série de pressupostos da teo-
O governo tem papel fundamental na ria de Dworkin que não encontram respaldo
busca da igualdade e deve ter um papel ati- no sistema jurídico brasileiro, assim como
vo. “O primeiro princípio requer que o go- em outros sistemas de tradição romana.
verno adote leis e políticas que garantam Sem dúvida é possível realizar adaptações
que o destino de seus cidadãos, contanto e dentro de um âmbito genérico, pensar
que o governo consiga atingir tal meta, não alguns conceitos propostos por Dworkin
dependa de quem eles sejam – seu histórico para superar os problemas do positivismo
econômico, sexo, raça ou determinado con- jurídico. O que se coloca em questão é se
junto de especializações ou deficiências. essas necessárias adaptações, não corrom-
O segundo princípio exige que o governo periam a própria teoria de Dworkin, res-
se empenhe, novamente se conseguir, por tringindo a possibilidade de utilização.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


262 Gisele Mascarelli Salgado

6. Discussão sobre a possibilidade no Direito podem aumentar o grau de cer-


de uma Teoria Geral do Direito Consti- teza deste e reduzir a discricionariedade
tucional em Dworkin dos juízes. Porém a teoria de Dworkin ao
enfatizar o papel dos princípios no âmbito
A teoria de Dworkin como foi aponta- de uma hermenêutica jurídica, pode levar
da no item anterior pressupõe que se admita a busca de outros valores que não a certeza
o sistema da “common law” e de algumas jurídica, mas que tem importância igual ou
instituições, como a Corte Constitucional, maior, como a adequação do direito, ofe-
nos moldes estabelecidos historicamente recimento de critérios a órgãos inferiores,
nos Estados Unidos da América. Dworkin etc.24.
utiliza-se de um método de abordagem do As obras de Dworkin apresentam
direito através de uma crítica conceitual um núcleo baseado no direito americano
frente à prática do Direito, ou em outras moderno, restringindo assim a possibilida-
palavras, “Dworkin destrói o pressuposto de de se pensar em uma Teoria Geral do
metodológico positivista da separação ab- Direito Constitucional. Porém se analisa-
soluta entre a descrição e a prescrição”23. da aos olhos de uma Filosofia do Direito,
Assim descreve sua realidade jurídica e suas posturas e escolhas não prejudicam
acaba por prescrever as mudanças a partir sua teoria, pois esta área não pressupõe um
dessa mesma realidade. conhecimento que seja universalizante. O
A partir de uma Filosofia do Direito é que foi colocado em dúvida é precisão ao
possível aceitar com maior facilidade a pro- apontar a obra do autor estudado, como
posta de Dworkin, pois a sua regionalidade parte do movimento Neoconstitucionalis-
não compromete de ser uma boa teoria, nem ta. Dworkin pode ser entendido como um
que seja apenas para a sociedade e o mo- neoconstitucionalista em uma noção muito
mento indicados pelo autor. Porém ao tratar peculiar dessa expressão, ou seja, entender
da teoria de Dworkin dentro de uma Teoria que suas obras fazem parte dos estudos que
Geral, o aspecto da regionalidade entra em tratam da constituição norte-americana.
conflito diante da busca de universalidade Isso somente reforça a tese da necessida-
desse campo de estudo. O mesmo ocorre de de pensar o Direito juntamente com a
quando o campo é o da Teoria Geral do Di- Política, pois tratam de temas que são in-
reito Constitucional, mais especificamente dissociáveis.
do Neoconstitucionalismo.
7. Considerações Finais
Os problemas apontados aqui na obra
de Dworkin não invalidam toda sua obra, O Neoconstitucionalismo pode ser
nem pode levar para uma postura descon- entendido como um movimento que re-
sideração. As dificuldades enfrentadas não pensa o Direito Constitucional, trazendo
são pequenas e deve-se ter extremo respei- novos conceitos para um Direito que luta
to, por aquele que se aventurou na guerra para lidar com seus padrões conceituais.
para superar o positivismo. Dworkin pro- Valores, princípios, conceitos como jus-
põe uma teoria inovadora com soluções tiça, liberdade e igualdade; são utilizados
interessantes, que devem ser levadas em na tentativa de trazer para o Direito, uma
conta por qualquer jurista. espécie de freio ou de um contrapeso; em
Como aponta Comanducci, a teoria especial na interpretação.
de Dworkin apresenta dificuldades quando A dificuldade de um pensar sobre o
afirma que os princípios e a sua aplicação Direito atual está na necessidade crescente

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO... 263

de lidar com uma complexidade quase in- COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo)
controlável e com uma sociedade em mu- Constitucionalismo: un Análisis Metateórico
tação acelerada, quase volátil. A perda de (trad. Miguel Carbonell). Revista Isonomia n
16, 2002.
valores e bases em que estavam fundados a
DUARTE, Écio Oto Ramos. Metodologia do
sociedade e o Direito provoca uma falta de Direito e Neoconstitucionalismo. In: Teoria
adequação, e conseqüentemente um ruído do Discurso e Correção Normativa do Direito:
estridente nos ouvidos das pessoas. Boa- aproximação à metodologia discursiva do Di-
ventura Sousa Santos traduziu esse senti- reito. São Paulo, Landy, 2003.
mento em seu livro “Pela Mão de Alice”, DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princí-
pois como Alice, somos arrastados para pio. (trad. Luis Carlos Borges). São Paulo, Mar-
dentro de um buraco sem fim, em que a tins Fontes, 2000.
______. Levando os Direitos a sério. (trad. Nel-
lógica conhecida não ajuda entender o que
son Boeira). São Paulo, Martins Fontes, 2002.
ela experimenta. ______. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e
Esta busca em entender a nova re- liberdades individuais. (trad. Jefferson Luiz Ca-
alidade é uma das tarefas dos Neoconsti- margo). São Paulo, Martins Fontes, 2003.
tucionalismos. Enfrentar seus problemas ______. A Virtude Soberana: a teoria e a prática
é encarar o sentimento de angústia que da igualdade. (trad. Jussara Simões). São Paulo,
permeia o homem moderno, enredado em Martins Fontes, 2005.
teorias que não são adequadas a explicar FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filo-
sofia do Direito. São Paulo, Atlas, 2002.
sua realidade. “A longa experiência do
IKAWA, Daniela. Hart, Dworkin e discricionarie-
pensar ocidental parece dar-se conta, nesse dade. São Paulo, Revista Lua Nova n 61, 2004.
momento, de uma experiência irredutível, KENSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coim-
nem pensável nem impensável, de um ocul- bra, Armênio Amado, 1984.
to que não transparece nem como oculto, MENDES, Conrado Hübner. Controle de cons-
de um mistério que não se expressa nem titucionalidade e democracia. São Paulo, Dis-
como mistério, enfim que não fala, apenas, sertação de mestrado FFLCH da USP, 2003.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos funda-
angustia. E aí se esconderá o desafio e a in-
mentais e controle da Constitucionalidade. São
terrogação do século XXI”25. Esse desafio Paulo, Celso Bastos Editor, 1998.
foi enfrentado corajosamente por Dworkin MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Cur-
e por outros autores que propõe um novo so de Direito Constitucional. (texto revisto por
jeito de pensar o Direito. Maria Garcia). Rio de Janeiro, Forense Univer-
sitária, 1991.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito
REFERÊNCIAS (trad. Cabral Moncada). Coimbra, Armenio
Amado, 1979.
BOBBIO, Norberto. Positivismo Jurídico. São SILVA, José Afonso. Curso de Direito Consti-
Paulo, Ícone, 1995. tucional Positivo. 20 ed, Malheiros, 2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua
Constitucional e Teoria da Constituição. Coim- reserva de justiça: um ensaio sobre os limites
bra, Almedina, 1998. materiais ao poder de reforma. São Paulo, Ma-
CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucion lheiros, 1999.
alismo(s). Trotta, 2003.
CASAMIGLIA, Albert. Dworkin. In: Derechos
en Serio. Barcelona, Ariel, 1984. NOTAS
COHEN, Marshall. Ronald Dworkin and Con-
temporary Jurisprudence. New Jersey, Rowman 1
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. p.
& Allanheld, 1985. 73.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


264 Gisele Mascarelli Salgado

2
MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi- 14
DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. p, 204.
to Constitucional. p, 7. 15
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
3
MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi- sério. p, 127.
to Constitucional. p, 444. 16
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
4
MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi- sério. p, 165.
to Constitucional. p, 7. 17
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
5
MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi- sério. P, 167.
to Constitucional. p, 446. 18
MENDES, Conrado Hübner. Controle de
6
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitu- Constitucionalidade e democracia. p, 19.
cional e Teoria da Constituição. p, 1187. 19
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
7
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucional Positivo. P, 555.
Constitucionalismo. p, 97. 20
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Funda-
8
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) mentais e Controle da Constitucionalidade. P,
Constitucionalismo. p, 98. 253.
9
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) 21
DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e
Constitucionalismo. p, 100. a prática da igualdade. p, XVII.
10
KELSEN, Hans. Aplicação. In: Teoria Pura do 22
DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério.
Direito. p, 463-473. p, 231.
11
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) 23
CALSAMIGLIA, Albert. Introdução. In: De-
Constitucionalismo. p, 101. rechos en Serio. P, 8.
12 DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério. 24
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo)
p, 141. Constitucionalismo. p, 108.
13
DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério. 25
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Fi-
p, 36. losofia do Direito. p, 132.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


265

Hermenêutica Constitucional, Democracia e


Reconhecimento: desafios da teoria da constituição
contemporânea*
Constitutional Hermeneutic, Democracy and Recognition:
challenges of contemporary constitution theory

Giovani Agostini Saavedra**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Este artigo procura apresentar os desafios e as tarefas do Constitucionalismo Contempo-


râneo. Com base nas teorias de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Axel Honneth, o autor preten-
de demonstrar que a hermenêutica, a democracia e o reconhecimento não podem ser vistos como
conceitos ou áreas de estudo e pesquisa separadas e sim como interdependentes. Indiretamente,
portanto, procura-se mostrar que esta forma complexa de compreensão do fenômeno jurídico é o
desafio do constitucionalismo contemporâneo.
Palavras-chave: Democracia. Hermenêutica. Reconhecimento.

Abstract: This paper aims at presenting the challenges and tasks of contemporary constitutional-
ism. Based on Ronald Dworkin, Jürgen Habermas and Axel Honneth theories, the author intends
to show that hermeneutics, democracy and recognition can’t be seen as separate study and research
areas but as interdependent ones. Therefore, the author tries to show, indirectly, that this approach
to constitutional phenomenon is the main issue regarding contemporary constitutionalism.
Key Words: Democracy. Hermeneutics. Recognition.

1. Introdução ralismo estão centradas basicamente na


forma como essas posições concorrentes
O pano de fundo teórico do debate in- compreendem o processo democrático de
ternacional contemporâneo sobre constitu-
formação da vontade e da esfera pública.
cionalismo é formado basicamente a partir
Por outro lado Habermas procura mostrar
de dois confrontos teóricos em particular:
que o aparente conflito entre democracia e
(1) Comunistarismo e Liberalismo e (2)
Precommitment and the Paradox of Demo- constitucionalismo não passa de aparência
cracy que também é denominado com os de conflito. Na verdade ambos estão ins-
termos: Constitutionalism and Democracy trinsecamente interligados em função da
(Elster/Slagstad, 1988). Ao se posicionar conexão interna entre Estado de direito e
perante este debate Habermas mostra que democracia (Habermas, 1999: 277 e 293).
as diferenças entre comunitarismo e libe- As conseqüências de uma ousada posição

* Agradeço ao meu orientador prof. Dr. Phil. Axel Honneth, ao professor Dr. Christopher Zurn (University of Kentucky - USA)
e ao professor Dr. Heikki Ikäheimo (Univeristy of Jyväskylä - Finlândia) pelas valiosas sugestões que foram fundamentais para
a realização deste artigo.
** Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Atualmente recebeu uma licença temporária de suas atividades docentes, em função do recebebimento de uma
bolsa do órgão alemão de estímulo à pesquisa Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) e está na Alemanha desenvol-
vendo o seu doutorado na universidade Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main (Alemanha) sob orientação
do professor Dr. Dr. Phil. Axel Honneth.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


266 Giovani Agostini Saavedra

como essa não foram ainda adequada- pretação constitucional a idéia de um ju-
mente testadas na teoria da Constituição. rista de capacidade, sabedoria, paciência e
O presente artigo pretende, então, em um sagacidade sobre-humanas, a quem chama
primeiro momento (2 e 3) apresentar este de Hércules (Dworkin, 1978: 105). Hércu-
debate contemporâneo a partir da discus- les aparece pela primeira vez na obra de
são entre Dworkin e Habermas, princi- Dworkin, no artigo Casos Difíceis (“hard
palmente, procurando delimitar e atribuir cases”) (Dworkin, 1978: 81-130) tendo
novo papel e nova função à hermenêutica como rival o juiz Herbert, que aceita a teo-
constitucional e à democracia. ria da decisão judicial e se propõe a aplicá-
Parece-me, porém, que enquanto, por la em suas decisões (Dworkin, 1978: 125).
um lado, a teoria habermasiana avança no Hércules aparece novamente no livro “O
sentido de uma melhor compreensão do Império do Direito” (“Law’s Empire”) ten-
vínculo entre democracia e direito, por ou- do como rival o juiz Hermes que defende a
tro, ao centrar seus esforços nas condições
interpretação das leis conforme a intenção
de uma teoria procedimental comunicativa,
do legislador (Dworkin, 1986).
essa teoria esvazia de tal forma a sua com-
Dworkin utiliza este artifício para
preensão material e ética dos direitos fun-
explicar, passo a passo, como deveria
damentais que eles passam a não estar em
condições de proteger a formação da perso- acontecer toda a prática interpretativa. De
nalidade e da autonomia dos cidadãos. Com qualquer forma, Dworkin reconhece que
a intenção de suprir este déficit surgiu no um juiz real não poderia realizar sua tarefa
âmbito da filosofia social atual a teoria de da mesma forma que Hércules, mas pro-
reconhecimento que se tornou internacio- põe que ele seja um exemplo a ser seguido
nalmente conhecida principalmente pelos (Dworkin, 1978: 129-30). Dworkin supõe
trabalhos de Charles Taylor (Taylor, 2000) que Hércules seja juiz de alguma jurisdição
e das Tanner-Lectures de Axel Honneth norte-americana representativa. Considera
e Nancy Fraser (Fraser e Honneth, 2003). que ele aceita as principais regras não con-
Esta teoria parece levar a sério a crítica ha- troversas que constituem e regem o direito
bermasiana da visão liberal e comunitaris- em sua jurisdição. Em outras palavras, ele
ta de direito e democracia sem ao mesmo aceita que as leis têm o poder geral de criar
tempo abdicar de um pano de fundo ético. e extinguir direitos jurídicos, e que os juí-
De uma forma indireta, portanto, pretendo zes têm o dever geral de seguir as decisões
com este artigo sugerir um terceiro âmbito anteriores de seu tribunal ou dos tribunais
de pesquisa da Teoria da Constituição que superiores, cujo fundamento racional apli-
poderia trazer elementos teóricos adequa- ca-se ao caso em juízo (Dworkin, 1978:
dos para uma melhor compreensão do fenô- 105): “[Hércules] Utiliza seu próprio juízo
meno jurídico-consitucional a partir de uma para determinar que direitos têm as partes
análise imanente da teoria de Axel Honneth, que a ele se apresentam. Quando esse juízo
a saber, o estudo das relações sociais de re- é emitido, nada resta que se possa submeter
conhecimento e sua relação com os direitos a suas convicções ou à opinião pública.(...)
fundamentais (4). Contudo, quando Hércules fixa direitos ju-
2. O tipo de interpretação constitucional rídicos, já levou em consideração as tradi-
contemporâneo: o método Hércules ções morais da comunidade, pelo menos do
modo como estas são capturadas no conjun-
Dworkin usa como recurso argumen- to do registro institucional que é sua função
tativo para explicar a sua teoria da inter- interpretar” (Dworkin, 2002: 196).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 267

Para Hércules, o direito real con- que os tribunais de hierarquia comparável


temporâneo consiste nos princípios que tenham essa obrigação e a maioria dos ju-
proporcionam a melhor justificativa dis- ristas americanos pensa que os tribunais
ponível para as doutrinas e dispositivos do federais inferiores são absolutamente obri-
direito como um todo. Ele guia sua inter- gados a seguir as decisões já tomadas pela
pretação pelo princípio da integridade na Suprema Corte, mas esse ponto de vista é
prestação jurisdicional, que o força a ver, contestado por alguns; (b) doutrina atenu-
na medida do possível, o direito como ada: exige apenas que o juiz atribua algum
um todo coerente e estruturado (Dworkin, peso a decisões anteriores sobre o mesmo
1986: 373). Hércules deve descobrir a sé- problema, e que ele deve segui-las a menos
rie coerente de princípios capaz de justifi- que as considere erradas o bastante para
car a história institucional de um determi- modificar a presunção inicial a seu favor.
nado sistema de direitos, do modo como é As diferenças de opinião entre essas dou-
exigido pela eqüidade e deve ampliar sua trinas explicam por que certos processos
teoria de modo a incluir a idéia de que uma são polêmicos. Num mesmo caso, diferen-
justificação da história institucional pode tes juízes podem divergir sobre o ponto de
apresentar uma parte dessa história como serem, ou não, obrigados a seguir alguma
um erro (Dworkin, 1978: 121). decisão tomada no passado, envolvendo a
O caso “saiu darter” tem em sua ori- mesma questão de direito com que se de-
gem uma lei. A sua decisão depende da pararam no momento. Qualquer que seja o
melhor interpretação da lei, a partir de um ponto de vista dos advogados sobre a na-
texto legislativo específico. Entretanto, em tureza e a força do precedente, a doutrina
muitos casos, o direito dos E.U.A. não se somente se aplica a decisões passadas que
fundamenta em uma lei, mas em decisões apresentem suficiente semelhança com
anteriores tomadas por tribunais. Esses ca- o caso atual para serem consideradas, no
sos são chamados pela doutrina norte-ame- dizer dos advogados: “pertinentes” (“in
ricana de “common-law cases” (Dworkin, point”). O contrário de “pertinente” seria
1986: 238)1. Nesses casos, o pleiteante o tipo de caso chamado de “discriminável”
(“plaintiff”) do caso argumenta que o juiz (“distinguishable”), ou seja, um caso que
do seu caso deve seguir as normas estabe- seja diferente do caso atual em algum as-
lecidas nesses casos anteriores, os quais, se- pecto que isenta da aplicação da doutrina
gundo alega, exigem um veredicto que lhe do precedente. Às vezes o debate se limita
seja favorável (Dworkin, 1986: 23-24). a discutir se os casos são pertinentes (“in
Juristas britânicos e norte-ameri- point”) ou “discrimináveis” (Dworkin,
canos falam da doutrina do precedente 1986: 24-26).
(“doctrine of precedent”), segundo a qual O caso “McLoughlin” é um típico
decisões de casos anteriores muitos seme- “common-law case”. Para entender me-
lhantes a novos casos devem ser repetidas lhor os argumentos utilizados neste caso,
nestes últimos. Há, contudo, uma distinção é necessário saber que os juízes britânicos
entre os juristas (Dworkin, 1986: 24-25): e norte-americanos seguem um princípio
(a) doutrina estrita: obriga os juízes a se- jurídico (“common-law principle”) que
guir decisões anteriores de alguns outros considera as pessoas que agem com ne-
tribunais, em geral superiores, mesmo gligência responsáveis somente por danos
acreditando que essas decisões estão er- razoavelmente previsíveis, causados a ter-
radas. Os juízes norte-americanos negam ceiros, danos que uma pessoa sensata po-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


268 Giovani Agostini Saavedra

deria antever se refletisse sobre a situação se esse Tribunal decidisse favoravelmente,


(Dworkin, 1986: 26). O marido e os quatro haveria um incentivo a processos de dano
filhos da Sra. “McLoughlin” foram feridos moral; (c) câmara dos lordes (“House of
em um acidente de carro na Inglaterra. Ao Lords”): revogou a decisão do Tribunal de
ser avisada, foi ao hospital, teve um colap- Apelação e ordenou novo processo. Não
so, e mais tarde processou os envolvidos, foi considerado razoável o argumento de
exigindo indenização por danos morais. O política judiciária; Para Dworkin, o direito
seu advogado chamou a atenção para várias como integridade (“law as integrity”), num
decisões anteriores dos tribunais ingleses caso de direito consuetudinário (“common-
que sustentavam as suas teses. Em todos law case”) como o “McLoughlin”, pede ao
esse casos, porém, o pleiteante viu o aciden- juiz que se considere como um autor na ca-
te acontecer ou ali chegou logo em seguida. deia do direito consuetudinário (“as an au-
O advogado da Sra. “McLoughlin” utilizou thor in the chain of common law”). Deve
esses casos como precedentes, ou seja, de- considerar as decisões judiciais passadas
cisões que haviam incorporado ao direito a como parte de uma longa história que ele
norma jurídica segundo a qual pessoas na precisa interpretar e continuar, mesmo que
situação dela têm o direito a serem indeni- tratem apenas de problemas afins.
zadas (Dworkin, 1986: 23-24). Dworkin, como já vimos, traça uma
O caso em tela é um exemplo da si- distinção entre as duas dimensões princi-
tuação descrita anteriormente: o debate pais desse juízo interpretativo: (a) adequa-
se limitou em definir se o fato de a Sra. ção e (b) justificação. Assim, a atividade
“McLoughlin” não ter presenciado o fato pós-interpretativa do juiz (sentença) deve
tornava o precedente discriminável (“dis- ser extraída de uma interpretação que se
tinguishable”) ou não, e por conseqüência adapte aos fatos anteriores e os justifique.
se a doutrina do precedente se aplicava ao Porém, o direito, a exemplo da literatura,
caso (Dworkin, 1986: 26-29): (a) na pri- apresenta uma interação complexa entre
meira instância (“the trial judge”) o juiz foi essas duas dimensões. Hércules, então, é
obrigado, em virtude da doutrina do pre- chamado para executar a tarefa de expor
cedente, a admitir que dar indenização por essa complexa estrutura da interpretação
dano moral a parentes próximos que esta- jurídica (Dworkin, 1986: 238-39).
vam na cena do acidente era razoavelmen- Hércules deve formar sua própria
te previsível, porém entendeu que a Sra. opinião sobre o problema. O método Hér-
McLoughlin não tinha direito por ter visto cules começa por formular diversas hipó-
os resultados do acidente mais tarde, ou teses que correspondem à melhor interpre-
seja, ele julgou que poderia fazer uma dis- tação dos casos precedentes mesmo antes
tinção (distinguish) entre os supostos pre- de tê-los lido (Dworkin, 1986: 240): (1)
cedentes; (b) no tribunal de apelação (“the somente há direito à indenização nos casos
Court of Appeal”) foi confirmada a decisão de lesão corporal; (2) as pessoas somente
do juiz de primeira instância, mas com um têm direito à indenização por danos morais
argumento diferente: era razoavelmente sofridos na cena de um acidente; (3) as pes-
previsível que uma mãe, após incidente, soas devem ser indenizadas por danos mo-
fosse ao hospital e sofresse um colapso rais quando a prática de exigir indenização
emocional. Esse tribunal discriminou os beneficiasse o princípio utilitarista; (4) as
precedentes por uma razão diversa, por pessoas têm direito à indenização por qual-
uma razão de política judiciária, ou seja, quer dano que seja conseqüência direta de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 269

uma conduta imprudente, ainda que im- envolvem danos morais. O juiz que aceita
provável ou imprevisível que tal conduta o direito como integridade deve procurar
viesse a resultar em tal dano; (5) as pessoas argumentos que justifiquem a rede jurídica
têm direito moral à indenização por danos como um todo. Porém um juiz verdadeiro
morais ou físicos que sejam conseqüência só poderá imitar Hércules até certo ponto,
de uma conduta imprudente, apenas quan- pois sua possibilidade de pesquisa a pre-
do esse dano for razoavelmente previsível cedentes é limitada (Dworkin, 1986: 245).
pelo agente; (6) as pessoas têm direito mo- Hércules conclui seus trabalhos e declara
ral à indenização por danos razoavelmente que, após um minucioso exame de todos
previsíveis, desde que a sentença não im- os aspectos da questão, a melhor interpre-
ponha encargos financeiros pesados e des- tação é a (5). Entretanto, admite que se ba-
trutivos ao agente imprudente. seou em sua própria opinião de que esse
Hércules rechaça de plano a hipóte- princípio é melhor – mais eqüitativo e justo
se primeira (1) por ser flagrantemente in- – do que qualquer outro que seja aceitável
compatível com a história legislativa dos segundo o que ele considera ser o critério
precedentes. As hipóteses (2) e (3) não de adequação apropriado (Dworkin, 1986:
enunciaram nenhum princípio da justi- 258-59).
ça (“justice”), eqüidade (“fairness”) ou Dworkin utiliza uma série de exem-
devido processo legal (“procedural due plos para demonstrar o método Hércules
process”), exigência do direito como in- no caso de interpretação da lei. Como, po-
tegridade, portanto não devem ser aceitos rém, o objetivo do presente trabalho não
da mesma forma. Ademais, para Dworkin, é esgotar as categorias de interpretação da
os juízes devem tomar suas decisões sobre teoria de Dworkin e sim, apenas, situar a
o “common law” com base em princípios, questão da legitimidade, se apresentará o
não em “políticas” (“policies”). “método Hércules” com base em um único
Dworkin afirma que os juízes não exemplo o caso “Tenesse Valley Authority
têm liberdade para elaborar regras de res- vs. Hill”, também chamado: caso do “snail
ponsabilidade não reconhecidas anterior- darter” (Dworkin, 1986: 20-23 e 313-47).
mente por outros precedentes, esta é uma A escolha deste caso teve como argumento
prerrogativa do legislador. Não se adapta decisivo o fato de que neste, mais do que
à idéia de comunidade de princípios o ar- nos outros, fica clara a amplitude dos po-
gumento de que um juiz tenha autoridade deres que Dworkin entende que o juiz deve
para responsabilizar por danos pessoas que ter.
agem de modo que nenhum dever legal Em 1973, durante um grande período
impeça sua conduta. As demais interpreta- de preocupação nacional com a preserva-
ções (4), (5) e (6), em princípio, parecem ção das espécies, o Congresso dos Estados
aptas a passar muito bem nas provas ini- Unidos promulgou a lei das espécies ame-
ciais (Dworkin, 1986: 242-44). açadas. O ministro do Interior passou, com
Na próxima etapa, Hércules deve se a promulgação desta lei, a ter poderes para
perguntar se alguma dessas três deve ser designar as espécies que, em sua opinião,
excluída por incompatibilidade com a to- estariam correndo risco de extinção devido
talidade da prática jurídica de um ponto à destruição de seus “habitats”. Todos os
de vista mais geral. Deve confrontar cada órgãos e departamentos do governo esta-
interpretação com outras decisões jurídi- vam obrigados a tomar as medidas neces-
cas do passado, para além daquelas que sárias para assegurar que as ações autori-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


270 Giovani Agostini Saavedra

zadas, financiadas ou executadas por eles fletir sobre cada uma das escolhas que terá
não ponham em risco a continuidade de de fazer para colocar em prática a teoria da
tais espécies ameaçadas. intenção do autor” (Dworkin, 1999: 382).
Um grupo de defesa da ecologia do Dworkin se valerá de Hermes para
Tennessee vinha se opondo aos projetos de provar que a teoria da intenção do legis-
construção de uma barragem da adminis- lador não se sustenta, principalmente, sob
tração do vale do Tennessee, não devido um viés de análise realista do processo le-
a alguma ameaça às espécies, mas porque gislativo, que evidencia o fato de que não
esses projetos estavam alterando a geo- temos como identificar quem a representa.
grafia da área. Esse grupo descobriu que Devemos considerar como representantes
uma barragem quase concluída (que já da intenção do legislativo: os parlamen-
tinha consumido mais de cem milhões de tares que votaram a favor ou aqueles que
dólares) ameaçava destruir o único habi- votaram contra o projeto? Os lobistas, as
tat do “snail darter”, um peixe de 7,5 cm, pessoas que mandaram cartas aos parla-
que segundo Dworkin, “é destituído de mentares, o Presidente que assinou o pro-
beleza, interesse biológico ou importância jeto, ou os funcionários que elaboraram o
ecológica especiais” (Dworkin, 1999: 26). projeto inicial? Dworkin aprofunda essas
Conseguiram, então, convencer o ministro críticas com argumentos psicológicos que
a incluir este peixe entre as espécies amea- tornam a empreitada do juiz Hermes mais
çadas de extinção de forma que a barragem complexa, pois não temos como identificar
teve sua construção suspensa. A adminis- qual é realmente a intenção de uma pes-
tração do vale argumentou que a lei se re- soa. Hermes, então, acaba, por força des-
feria ao início de projetos e não a projetos cobrindo que deve aceitar os métodos que
que estão quase concluídos. inicialmente descartou, ou seja, aqueles
Antes de analisar o caso, segundo o elaborados e aplicados pelo juiz Hércules
método Hércules, Dworkin enfrenta o que (Dworkin, 1986: 317-337) e nesse ponto:
considera uma objeção fundamental con- “Podemos deixar Hermes. Seu novo méto-
tra a sua teoria: que Hércules não deve se do precisa de uma minuciosa elaboração,
guiar por suas opiniões pessoais pelo sim- mas ela não será feita por ele, uma vez que
ples fato de que esta conduta desconhece se tornou gêmeo de Hércules” (Dworkin,
o princípio de que o juiz deve se guiar pe- 1986: 337).
las opiniões, intenções do legislador. Para Hércules entende que as leis preci-
enfrentar essas objeções, Dworkin cria a sam ser lidas de algum modo que decorra
figura do juiz Hermes que: “[...] é quase da melhor interpretação do processo legis-
tão arguto quanto Hércules e igualmente lativo como um todo. Para ler a lei Hér-
paciente, e também aceita o direito como cules, usa, em grande parte, as mesmas
integridade assim como aceita a teoria da técnicas de interpretação que utiliza para
intenção do locutor na legislação. Acredita decidir casos de “common law”. Tratará
que a legislação é comunicação, que deve o Congresso como um autor anterior a ele
aplicar as leis descobrindo a vontade comu- na cadeia do direito, embora um autor com
nicativa dos legisladores, aquilo que eles poderes e responsabilidades diferentes dos
estavam tentando dizer quando votaram a seus e, fundamentalmente, vai encarar seu
favor da Lei das Espécies Ameaçadas, por próprio papel como o papel criativo de
exemplo. Já que Hermes é autoconsciente um colaborador que continua a desenvol-
em tudo que faz, irá dar-se tempo para re- ver, do modo que acredita ser o melhor,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 271

o sistema legal iniciado pelo Congresso profundo, naquilo que acredita” (Dworkin,
(Dworkin, 1986: 313). Ele irá se pergun- 1986: 314). A partir de Dworkin, se pode
tar qual interpretação da lei mostra mais observar que o juiz acaba decidindo ques-
claramente o desenvolvimento político tões de justiça social em função da juridi-
que inclui e envolve essa lei. Seu ponto de ficação das relações sociais. Porém essas
vista sobre como a lei deve ser lida depen- questões acabam sendo decididas pelo juiz
derá em parte daquilo que certos congres- de forma individual com base nas suas
sistas disseram ao debatê-la. Mas depen- concepções de forma de vida para uma
derá, por outro lado, da melhor resposta a determinada comunidade. Ainda que ele
dar a determinadas questões políticas, por procure reconstruir uma comunidade ideal,
exemplo: até que ponto o Congresso deve essa reconstrução é sempre a expressão da
submeter-se à opinião pública em questões opinião de um indivíduo.
do tipo do caso em tela, e se seria absurdo, Dworkin aplica este método, o mé-
em termos políticos, proteger uma espécie todo Hércules, ainda, à interpretação cons-
que, na opinião de Dworkin, é tão insigni- titucional. Em linhas gerais, o seu método
ficante à custa de tanto capital (Dworkin, aqui segue passos semelhantes àqueles
1986: 313). já explanados. Hércules é guiado por um
Esse é o ponto crucial da descrição senso de integridade constitucional. Ten-
do método Hércules que nos levou a esco- ta trazer o histórico constitucional em sua
lher este exemplo. Quando Dworkin fala melhor luz e seus argumentos se baseiam
da distinção entre princípio e “política” em suas próprias convicções sobre justiça
(“policy”), ele diz que o juiz não poderá se e eqüidade e na correta relação entre elas
guiar por argumentos de “política” somen- (Dworkin, 1986: 397-98). Hércules, po-
te de princípio (em sentido estrito). Porque rém, não é um historicista, nem defende
então, neste caso, Dworkin aceitou que alguma idéia de direito natural. Ele não
Hércules utilizasse um argumento de políti- acha que a Constituição é apenas o que de
ca para fundamentar sua decisão? Dworkin melhor produziria a teoria da justiça e da
responde da seguinte forma: “Como a de- eqüidade abstratas como uma teoria ideal.
cisão política que Hércules está agora in- Acredita, porém, que a Constituição norte-
terpretando é uma lei, e não uma série de americana consiste na melhor interpreta-
decisões judiciais do passado, as questões ção possível da prática e do texto constitu-
de política são pertinentes a sua decisão cionais norte-americanos como um todo, e
sobre quais direitos se devem considerar seu julgamento sobre qual é a melhor inter-
terem sido criados pela lei” (Dworkin, pretação é sensível à grande complexidade
1999: 378, nota de rodapé 1). Logo, quan- das virtudes políticas subjacentes a esta
do Hércules interpretar uma lei, ele poderá questão. No que são pertinentes à questão
utilizar argumentos de política para deter- da soberania, seus argumentos agregam a
minar quais os direitos devem ter sido cria- convicção popular e a tradição nacional
dos por lei. Inclusive ele precisa apoiar-se (Dworkin, 1986: 398-99). Hércules rejeita
em seu próprio julgamento ao responder a a idéia, que entende ser rígida, de que os
tais questões, sem dúvida, não por pensar juízes devem subordinar-se às autoridades
que suas opiniões sejam automaticamente eleitas, independentemente da parte do sis-
corretas, “mas porque ninguém pode res- tema constitucional em questão. Entende
ponder de modo conveniente a nenhuma que a interpretação de algumas disposições
questão, a menos que confie, no nível mais inclui a proteção da democracia, porém en-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


272 Giovani Agostini Saavedra

tende que outras disposições defendem o uma boa razão para se deixar essa decisão
indivíduo e a minoria da vontade da maio- ao encargo de instituições mais democrá-
ria. Ao decidir estas disposições, não irá ticas do que os tribunais, mesmo quando
ceder ao que os representantes da maio- essas instituições fizerem escolhas que os
ria considerarem o que é certo (Dworkin, próprios juízes detestem” (Dworkin, 2002:
1986: 398-99). Quando as questões em 219-20). Dworkin aplica então ao argu-
jogo forem, fundamentalmente, questões mento democrático as mesmas objeções
de políticas (“policies”) e não de princí- que fez aos métodos psicológicos e semân-
pios (“principles”), Hércules se recusa a ticos para então concluir que o juiz deve
substituir a decisão do legislador pela sua. se perguntar sobre quais princípios poderia
Se os argumentos tratarem das melhores presumir que um legislador endossou ao
estratégias quanto a satisfazer inteiramen- votar a favor da lei, de modo que a decisão
te o interesse coletivo por meio de metas, num caso controverso pudesse ser gover-
tais como prosperidade, a erradicação da nada por esses princípios: “Se apenas um
pobreza ou o correto equilíbrio entre eco- conjunto de princípios for compatível com
nomia e preservação. Nos momentos em a lei, então um juiz que siga a concepção
que Hércules declara a inconstitucionali- centrada nos direitos deve aplicar esses
dade de alguma lei ou ato o faz a serviço princípios. Se mais de um é compatível, a
de seu julgamento mais consciencioso so- questão de qual interpretação decorre mais
bre o que é a democracia e a Constituição, “naturalmente” da lei como um todo exige
levando em consideração que ela é a mãe uma escolha entre maneiras de caracteri-
e guardiã da democracia (Dworkin, 1986: zar a lei que reflita a própria moralidade
398-400). do juiz” (Dworkin, 2001: 25). Aqui não
Dworkin apresenta ainda um argu- fica claro o que Dworkin pretende afirmar
mento que rejeita a concepção que ele o com “mais naturalmente” ou ainda com a
chama de argumento da democracia. Este expressão “que reflita a própria moralidade
consiste na idéia de que as decisões políti- do juiz”. Entretanto Dworkin não fornece
cas devem ser tomadas por pessoas eleitas mais elementos para uma interpretação
pelo povo. Este argumento inclui no seu mais precisa. Dworkin critica ainda o ar-
conceito de decisão política tanto a idéia gumento democrático sob dois prismas
de princípio em sentido estrito quanto à (a) o da exatidão e (b) o da (eqüidade): (a)
de política (“policy”). Portanto não seriam ele se pergunta se é razoável que se pen-
consideradas corretas as decisões de um se que uma decisão legislativa tem maior
juiz que recorresse a argumentos de prin- probabilidade de ser mais exata que uma
cípio, muito menos aquelas que recorres- decisão judicial. E ele mesmo responde di-
sem a argumentos de política (“policy”). zendo que não. Segundo Dworkin há mais
Dworkin entende, porém, que o apelo à de- argumentos no sentido de se perceber que
mocracia somente vale se apelamos para a os juízes têm maiores técnicas e preparo
premissa cética: “Esse simples apelo à de- para dar respostas certas do que os legisla-
mocracia é bem-sucedido quando se aceita dores ou a massa de cidadãos que elegem
a premissa cética. Sem dúvida, se as pes- os legisladores. Os legisladores estão mais
soas não têm direitos contra a maioria e se vulneráveis a pressões que os juízes e, por-
a decisão política não vai além da questão tanto, gozam de uma posição institucional
de saber que preferências serão dominan- mais segura para fundamentar suas deci-
tes, então a democracia realmente oferece sões, questões sobre direitos (Dworkin,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 273

2001: 26-27). (b) há razões de eqüidade tação judicial monológica a partir da qual
além das razões de exatidão. O legislativo definir os princípios e as formas de vida de
dificilmente tomará uma decisão contrária uma comunidade não é tarefa de uma es-
a um setor influente politicamente, já o ju- fera pública, de um debate público em que
diciário não tem essa pressão direta, tendo todos os atingidos possam se manifestar e
em vista que os setores da sociedade não se entender ao mesmo tempo como desti-
podem “se vingar” do juiz, não votando natários e autores das leis2.
nele. Por decorrência, Dworkin entende
que se pode afirmar que há mais chances 3. Hermenêutica constitucional e o papel
de um juiz agir de forma equânime do que da democracia: a crítica habermasiana
o legislador. Dworkin sustenta finalmente ao método Hércules
que aqueles que defendem o argumento A tensão entre facticidade e valida-
democrático falham porque supõem que de é imanente ao direito e se manifesta no
o público faz distinção entre as decisões âmbito da jurisdição como tensão entre
políticas tomadas pelo legislativo e aque- o princípio da segurança jurídica e o da
las tomadas pelos tribunais, e acreditam pretensão de tomar decisões corretas. Ao
que as primeiras são legítimas e as outras princípio de segurança jurídica estão aco-
não. Ele entende que o senso público de plados os problemas de justificação ou va-
ilegitimidade desapareceria se os juristas e lidade e aplicação da ordem jurídica. Se,
outras autoridades reconhecessem que tais de um lado, ele exige que as decisões jurí-
decisões são compatíveis com a democra- dicas sejam tomadas de forma consistente
cia e o Estado de direito constitucional. no quadro da ordem jurídica estabelecida
Para Dworkin todos os temas são (aplicação), de outro, a pretensão à legiti-
propostos de acordo com o filtro de um midade da ordem jurídica implica decisões
procedimento argumentativo em que o juiz justificadas racionalmente (justificação ou
tem um papel central. A idéia luhmannia- validade). O problema está em como cor-
na de sistema autopoiético acaba tendo relacionar esses dois momentos da decisão
Dworkin como um grande aliado, pois, judicial, ou em outras palavras: garantir
a partir da teoria de Dworkin, se percebe simultaneamente a segurança jurídica e a
que direito é o que o juiz considera um correção.
meio adequado a um fim. Este meio, por Habermas reconstrói a opinião de
sua vez, somente é direito se o juiz realiza Dworkin como uma tentativa de solução
a sua determinação dentro da sua compe- deste problema. Em um primeiro momen-
tência, ou seja, somente enquanto juiz de to, Habermas tenta precisar a tese que
direito ele pode determinar no caso con- Dworkin sustenta acerca da relação do di-
creto o direito (Luhmann, 1997: 203 e ss.). reito com a moral. Dworkin entende que o
Hércules seria, portanto, o símbolo da ine- direito positivo assimilou inevitavelmente
vitabilidade da liberdade de interpretação conteúdos morais. Habermas aceita esta
judicial – quando não da geração do direito tese, mas a reconstrói segundo a teoria dis-
pelo juiz. Hércules é um exemplo de que, cursiva do direito, ou seja, o direito entra
na teoria de Dworkin, o juiz interpreta o em contato com a moral através do proces-
papel central. Mais do que isso, o juiz atua so de formação democrática da legislação.
como um intérprete, não só da lei, mas do Para melhor compreensão do argumento
“ethos” de uma comunidade de princípios. do autor, deve-se relembrar que Habermas
Dworkin sustenta uma espécie de interpre- sustenta o argumento de que na sociedade

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


274 Giovani Agostini Saavedra

moderna se atingiu o nível de fundamen- considerações de tipo pragmático, ético e


tação pós-tradicional, logo a separação to- moral, introduzindo-os em argumentos ju-
tal entre direito e moral deve estar sempre rídicos” (Habermas, 1997: 257).
pressuposta (Habermas, 1998: 250 e 256). A partir desse prisma Habermas
Nesse sentido sua posição se asse- sustenta que Dworkin captou “o nível de
melha muito com a de Niklas Luhmann. fundamentação pós-tradicional do qual
Os conteúdos morais são reconstruídos o direito positivo depende” (Habermas,
na forma de equivalentes funcionais para 1997: 259). Essa concepção que Habermas
o sistema jurídico (Neves, 1996: 95). No utiliza para caracterizar a fundamentação
caso de Dworkin, isso significa dizer que do direito moderno por vezes parece retor-
os conteúdos morais se transformam em nar à idéia luhmanniana de que na socie-
princípios. A diferença entre a posição de dade moderna o sistema jurídico se dife-
Luhmann e Habermas está no fato de que renciou por completo dos outros sistemas.
Habermas sustenta que a moral como me- De fato, no nível de aplicação do direito,
dida para o direito correto tem seu lugar Habermas e Luhmann não têm diferenças
“na formação política da vontade do legis- substanciais. As suas diferenças aparecem
lador e na comunicação política da esfera no âmbito da justificação dos critérios de
pública” (Habermas, 1997: 256). Logo, di- decisão. Luhmann sustenta que ambas as
ferentemente de Luhmann, Habermas es- tarefas foram subsumidas em um sistema
tabelece uma relação entre a formação dis- autopoiético: o sistema jurídico. Habermas
cursiva do direito e sua justificação como entende que o nível de justificação dos
critério para decisões. A legislação depen- critérios não está disponível ao sistema
de de uma produção legítima do direito. jurídico. Ele está vinculado a um proces-
Por isso que no âmbito da aplicação não se so complexo de formação democrática da
pode sustentar uma fundamentação “moral legislação que está situado “fora” do sis-
de decisões”. Na verdade, pouco “importa tema jurídico. Este processo depende de
o modo como Dworkin entende a relação uma esfera pública desenvolvida que não
entre direito e moral: sua teoria exige uma se diferenciou na forma de sistema. Por-
compreensão deontológica de pretensões tanto Habermas entende que o processo de
de validade jurídicas” (Habermas, 1997: diferenciação do sistema jurídico não é um
256). Ou seja, a teoria de Dworkin, na di- processo que aconteceu no sistema socie-
mensão de aplicação do direito, deve-se dade como sustenta Luhmann. Na verdade
curvar às exigências do código binário do ele faz parte de um processo de diferencia-
direito: “O discurso jurídico é independen- ção interna do sistema político. Este siste-
te da moral e da política, porém somente ma se diferenciou internamente na forma
no sentido de que também os princípios do princípio da divisão dos poderes. Assim
morais e as finalidades políticas podem a função de aplicação das leis foi relegada
ser traduzidos para a linguagem neutra ao sistema jurídico e o processo de justi-
do direito e engatadas no código jurídico. ficação e elaboração de critérios de deci-
Entretanto, por trás dessa uniformidade são não está a sua disposição (Habermas,
do código oculta-se um complexo senti- 1998: 285): “Ora, a prática de decisão está
do de validade do direito legítimo, o qual ligada ao direito e à lei, e a racionalidade
explica porque, no caso de decisões sobre da jurisdição depende da legitimidade do
princípios, os discursos jurídicos admitem direito vigente. E esta depende, por sua
argumentos de origem extralegal, portanto vez, da racionalidade de um processo de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 275

legislação, o qual, sob condições da divi- A sua teoria reconstrutiva deve ser
são de poderes no Estado de direito, não se suficiente para determinar a “única respos-
encontra à disposição dos órgãos da apli- ta correta para cada caso” conciliando re-
cação do direito” (Habermas, 1997: 297). construções do passado com pretensões à
Segundo a interpretação Haberma- aceitabilidade racional no presente. Haber-
siana da teoria de Dworkin, a utilização mas livra Hércules de uma conotação ide-
dos princípios no processo de aplicação do ológica a partir de sua reafirmação apenas
direito só é possível, porque eles foram in- da idéia reguladora nele incorporada “uma
seridos como critérios de decisão, a partir vez que no direito vigente são encontrá-
do processo democrático de formação da veis indícios históricos que permitem uma
legislação. Ao se transformarem em jurí- reconstrução racional” (Habermas, 1997:
dicos, esses critérios adquirem um caráter 266-67). Tomar Hércules como uma idéia
deontológico. A constitucionalização dos guia somente se torna factível no momen-
direitos humanos seria um exemplo deste to em que o inserimos em uma realidade
fato. Portanto Habermas não aceita que dada de um Estado de direito democráti-
surjam “novos” princípios extraídos uni- co em que existe um direito constitucional
camente da necessidade de um processo que delimita a atuação do juiz. Somente a
de aplicação (Habermas, 1998: 250, 256 e partir desta contextualização pressuposta,
ss.). Para chegar a uma tal conclusão, Ha- a teoria de Dworkin se despede de uma
bermas precisa “domesticar” e “corrigir” prática jurisdicional com pretensões meta-
alguns conceitos da teoria de Dworkin a físicas: “[...] as idealizações embutidas na
fim de que esta seja reconstruída no marco teoria de Hércules são deduzidas de uma
de uma teoria discursiva. Somente desta idéia reguladora que não é talhada direta-
forma a teoria de Dworkin se liberta de mente conforme o problema da raciona-
uma tendência à legitimação pelo proce- lidade, a ser solucionado pela jurisdição,
dimento. De fato sem estas modificações, uma vez que deriva de uma autocompre-
a teoria de Dworkin pode ser reconstruí- ensão normativa das ordens do Estado de
da a partir da teoria de Niklas Luhmann direito, inscritas na realidade constitucio-
como procurei demonstrar em outra oca- nal. A obrigação do juiz, de decidir o caso
sião (Saavedra, 2005), pois as dimensões singular à luz de uma teoria que justifique
de justificação e aplicação se fundem em o direito vigente como um todo a partir
um sistema (Habermas, 1998: 277). A pri- de princípios, é reflexo de uma obrigação
meira correção se direciona ao juiz mítico precedente dos cidadãos, confirmada atra-
de Dworkin: Hércules. Dworkin entrega o vés do ato de fundação da constituição, de
problema da segurança jurídica e da preten- proteger a integridade de sua convivência,
são de legitimidade do direito a uma teoria orientando-se por princípios de justiça e
reconstrutiva do direito com pretensões respeitando-se reciprocamente como mem-
fortes. Como já vimos, para realizar esta bros de uma associação de livres e iguais”
“empreitada” Dworkin deve apelar para (Habermas, 1997: 268).
um juiz irreal com as forças sobrenaturais Dessa forma, deve-se diferenciar en-
de um Hércules. Porém Hércules deve li- tre os discursos de fundamentação e discur-
mitar a sua tarefa a uma reconstrução do sos de aplicação. Enquanto que as regras
direito vigente e não a uma construção têm uma adequação direta, ou seja, dado
própria do legislador político (Habermas, o fato se dá a regra. Os princípios passam
1998: 260). a integrar um sistema de validade “prima

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


276 Giovani Agostini Saavedra

facie” de tal modo que, num discurso de juiz, em particular, o seu juiz Hércules.
aplicação, é preciso examinar se eles po- O princípio da integridade que Dworkin
dem encontrar aplicação numa situação sustenta é reinterpretado aqui a partir do
concreta ainda não prevista no processo de princípio do discurso e dessa forma liber-
fundamentação. O fato de a norma valer ta Hércules de sua vida de eremita. Com
“prima facie” significa que ela foi funda- esse passo Hércules rompe o “véu da ig-
mentada de modo imparcial. Para que se norância” e passa a enxergar que o prin-
chegue a uma decisão válida, ela deve ser cípio da integridade que ele sustenta em
aplicada de modo imparcial. O que passa suas decisões não aponta para si mesmo,
a valer como fundamentação neste caso é mas sim para “sociedade aberta dos intér-
a adequação de uma norma à determinada pretes da constituição”. Ele descobre que,
situação. Só sabemos qual a norma que é apesar dos poderes sobrenaturais, não tem
aplicável a determinado caso quando se um acesso privilegiado à verdade (e não
consegue referir todas as características poderia ser diferente! Hércules não é um
relevantes de uma descrição da situação a Deus, ele é um “semideus”). Logo ele deve
normas aplicáveis. Assim quando se fala se contentar em ter que depender do diálo-
de colisão de princípios, o que está em go e da ajuda de seus concidadãos para se
jogo não é a validade da norma, e sim a sua aproximar da verdade. Portanto Dworkin
adequação a uma circunstância de fato. Po- deve centrar as exigências feitas à teoria
rém aqui não se resolveu ainda o problema do direito neste ideal político “ao invés de
da segurança jurídica. Para solucionar este apoiá-las no ideal da personalidade de um
problema, Habermas novamente insere a juiz, que se distingue pela virtude e pelo
teoria de Dworkin dentro de um pano de acesso privilegiado à verdade” (Habermas,
fundo que garante uma determinação para 1997: 278).
a ação do juiz. Ao invés de um ideal a ser A “correção” ou “a verdade” de argu-
seguido, se adota um paradigma que será mentos para uma teoria procedimentalista
compartilhado pelos especialistas do direi- de matriz discursiva significa “aceitabili-
to e todos os demais parceiros do direito. dade racional”. Esta teoria aceita os pres-
O pano de fundo pode ser o Estado Liberal supostos do pensamento pós-metafísico e
burguês, ou o Estado social, por exemplo. se guia pela idéia de que a única resposta
Estes paradigmas fogem do risco de trans- correta não pode ser explicada com au-
formarem-se em ideologias se mantive- xílio de uma teoria, por melhor que seja
rem-se “abertos”. Habermas sustenta esta (Habermas, 1990). A prática da argumen-
abertura a partir da “compreensão proce- tação tem como característica principal a
dimentalista do direito”. Se esses paradig- intenção de conseguir o consenso, o assen-
mas se fecham à história, à possibilidade de timento de todos os possíveis atingidos.
mudança, eles se coagulam em ideologias. Esta deve ocorrer em um ambiente livre de
Os paradigmas fechados se estabilizam coerção que possibilite que venham à tona
através de “monopólios de interpretação, os melhores argumentos. Assim é preciso
judicialmente institucionalizados, e que que se assuma a perspectiva intersubjetiva
podem ser revistos internamente, somente ampliada no nível da primeira pessoa do
de acordo com medidas próprias” (Haber- plural. Isso só é possível a partir de uma
mas, 1997: 266-67). divisão de trabalho entre discursos de fun-
Essa concepção implode o princí- damentação e discursos de aplicação. Nos
pio monológico que Dworkin aplica ao discursos de aplicação, as normas “supos-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 277

tas como válidas, referem-se sempre aos ção volta a adquirir um posto fundamental
interesses de todos os possíveis atingidos”. na teoria do direito. Portanto discursos de
Porém as formas de argumentação que vão fundamentação e legitimidade do direito
sustentar qual norma é aplicável ao caso adquirem o mesmo sentido: “Quando nos
dependem apenas das partes envolvidas apoiamos numa teoria procedimental, a
no processo judicial. O processo de argu- legitimidade de normas jurídicas mede-se
mentação está organizado de forma que pela racionalidade do processo democrá-
“as interpretações de casos singulares, que tico da legislação política. [...] O sistema
são feitas à luz de um sistema coerente de dos direitos [...] é interpretado e configura-
normas, dependem da forma comunicativa do no processo democrático da legislação
de um discurso constituído de tal maneira e em processos de aplicação imparcial do
(...) que as perspectivas dos participantes direito. [...] O conteúdo da tensão entre a
e as perspectivas dos parceiros do direito, legitimidade e a positividade do direito é
representados através de um juiz impar- controlada na jurisdição como um proble-
cial, podem ser convertidas umas nas ou- ma da decisão correta e, ao mesmo tempo,
tras” (Habermas, 1997: 285). A teoria de consistente” (Habermas, 1997: 275).
Dworkin, portanto, revela grandes avan- Dessa forma Habermas fundamenta
ços, mas precisa ser “retificada” no marco o fato que no âmbito da aplicação, o direito
da teoria discursiva de Habermas. deve guiar-se apenas pelo direito. Ao inse-
Entretanto alguns pontos permane- rir sua teoria no âmbito processual de apli-
ceram obscuros de forma que é necessária cação do direito a sua teoria dos discursos
uma complementação dos resultados ob- de aplicação adquire feições características
tidos até agora. Habermas então passa a luhmanianas. A aplicação do direito deve
analisar a tese do caso especial de Robert ser imparcial, a “auto-reflexão institucio-
Alexy. Habermas entende que esta teoria nalizada do direito serve à proteção indivi-
advoga uma “falsa subordinação do direito dual do direito sob o duplo ponto de vista
à moral, porque ainda não está totalmente da justiça no caso singular, bem como da
liberta de conotações do direito natural” uniformidade da aplicação do direito e do
(Habermas, 1997: 291). Isso acontece em aperfeiçoamento do direito” (Habermas,
função de três motivos: (1) as partes podem 1997: 294). Portanto, à medida que o “dis-
perseguir seus próprios interesses; (2) Ale- curso jurídico nasce do próprio processo,
xy não consegue superar a tese da indeter- deve ficar isento de influências externas”
minação de discursos jurídicos; (3) “uma (Habermas, 1997: 295).
racionalidade ilimitada da decisão jurídica
4. Reconhecimento e Direitos Fundamen-
pressuporia a racionalidade da legislação”.
tais: a contribuição de Axel Honneth
Esta última objeção é fundamental para a
análise que estamos desenvolvendo. Ques- A crítica de Habermas a Dworkin
tões de validade dizem respeito à qualida- mostrou que a hermenêutica jurídica deve
de da norma e elas atuam de forma binária. reconhecer-se limitada por um processo
Não existe mais válido e menos válido. democrático de formação da legislação.
Dessa forma, para que Alexy consiga fugir Habermas procura mostrar que os discur-
dessa objeção, ele precisa enfrentar a tarefa sos de aplicação envolvem apenas a ade-
de reconstrução que Dworkin impôs à sua quação das normas jurídicas a casos con-
teoria. A divisão de tarefas entre discursos cretos. Definir quais devem ser as normas
de aplicação e discursos de fundamenta- válidas em uma determinada sociedade

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


278 Giovani Agostini Saavedra

envolve, por outro lado, um complexo Honneth. Nestes dois capítulos Honneth
processo de debate público que não pode procura explicar como, no seu entendi-
ser realizado pelo poder judiciário, pois os mento, surge e está constituída estrutura
discursos de justificação e legitimidade do tripartide das relações de reconhecimento.
direito são função de uma esfera pública Honneth, porém, não quer apresentá-la de
livre. Porém, o próprio Habermas sustenta forma puramente teórica e, portanto, pro-
que uma sociedade democrática depende cura conferir plausibilidade às suas afirma-
da efetividade dos direitos fundamentais ções teóricas comparando-as com os estu-
(Habermas, 2003: 369) e da existência de dos empíricos e pscicanalíticos de Donald
relações sociais de reconhecimento (Ha- W. Winnicott. Em um primeiro momento,
bermas, 1999: 237-276). Habermas, po- Honneth pretende apresentar a dimensão
rém, vincula o conceito de reconhecimento das relações de reconhecimento do amor,
de tal forma à sua ética do discurso que a que estão ancoradas estruturalmente na di-
simples participação livre na esfera públi- mensão da natureza afetiva e dependende
ca parece ser suficiente para que as pessoas da personalidade humana.
tenham preenchidas as suas expectativas Honneth encontra os primeiros ele-
de reconhecimento. Honneth entende que mentos da sua teoria do reconhecimento
a expectativa de reconhecimento envolve na categoria da Dependência Absoluta de
uma série de elementos morais e éticos que Winnicott. Esta categoria designa a pri-
não estão sendo levados em conta por Ha- meira fase do desenvolvimento infantil, na
bermas (Honneth, 2004: 102). qual tanto a mãe quanto o bebê se encon-
Honneth procura então, a partir da re- tram de tal forma ligados que surge uma
construção das idéias de Mead e do jovem espécie de relação simbiótica entre eles. A
Hegel, delimitar o pano de fundo teórico carência e a dependência total do bebê e
sobre o qual ele pretende desenvolver a sua o direcionamento completo da atenção da
própria teoria da sociedade. A interpreta- mãe para a satisfação das necessidades da
ção que Honneth faz da teoria destes au- criança fazem com que entre eles não haja
tores deixa claro que uma teoria da socie- nenhum tipo de limite de indivualidade e
dade como aquela que Honneth pretende ambos se sintam como unidade (Honneth,
desenvolver deve partir do princípio que 2003: 160 ss.). Aos poucos, com o retorno
as relações de reconhecimento contêm pre- gradativo aos afazeres da vida diária, este
tensões normativas na sua estrutura, que estado de simbiose vai se dissolvendo, a
possibilitam o esclarecimento da mudan- partir de um processo de amplicação da
ça social. Ambos os autores identificaram independência de ambos. Com a volta a
uma ligação entre auto-relacionamento e normalidade da vida, a mãe não está mais
reprodução da vida social, que está vin- em condições de satisfazer as necessidades
culada estruturalmente com as relações de da criança imediatamente.
reconhecimento. Por isso, a dinâmica do A criança, então em média com 6
desenvolvimento histórico moral da socie- meses de vida, precisa se acostumar com a
dade deve ser entendida como uma luta por ausência da mãe. Essa situação estimula na
reconhecimento (Honneth, 2003: 148). criança o desenvolvimento de capacidades
Porém somente nos capítulos 5 e 6 que tornam o bebê capaz de se diferenciar
do livro Kampf um Anerkennung o leitor do seu ambiente. Winnicott atribui a essa
encontra de forma explícita uma explica- nova fase o nome de Relativa Independên-
ção sistemática da teoria da sociedade de cia. Nesta fase, a criança reconhece a mãe

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 279

não mais como uma parte do seu mundo reconhecimento é responsável não só pela
subjetivo e sim como um objeto com direi- base de auto-respeito (Selbstachtung), mas
tos próprios. A criança trabalha esta nova também pela base de autonomia necessária
experiência por meio de dois mecanismos, para a participação na vida pública (Hon-
que Honneth chama de Destruição e Fe- neth, 2003: 174). Este primeiro e funda-
nômeno de Transição. O primeiro meca- mental nível de reconhecimento é, portan-
nismo é interpretado, por Honneth, a partir to, conditio sine qua non do segundo nível
dos estudos de Jessica Benjamin. Jessica do reconhecimento, a saber o jurídico.
Benjamin constata que os fenômenos de Duas perguntas guiam a análise de
expressão agressiva da criança nesta fase Honneth da segunda esfera do reconheci-
acontecem na forma de uma espécie de mento: (1) Qual é o tipo de auto-relação
luta, que ajuda a criança a reconhecer a que caracteriza a forma de reconhecimento
mãe como um ser independente com rei- do direito? (2) Como é possível que uma
vindicações próprias. A mãe precisa, por pessoa desenvolva uma consciência de ser
outro lado, aprender a aceitar o processo sujeito de direito? A estratégia utilizada
de amadurecimento que o bebê está pas- por Honneth consiste em apresentar o sur-
sando. A partir dessa experiência de recí- gimento do direito moderno de tal forma,
proco reconhecimento, os dois começam que, neste fenômeno histórico, também
a vivenciar também uma experiência de seja possível encontrar uma nova forma de
amor recíproco sem regredir a um estado reconhecimento. Neste ponto de sua argu-
simbiótico (Honneth, 2003: 164). mentação, Honneth entende ser necessária
A criança, porém, só estará em con- uma diferenciação entre a forma como
dições de desenvolver o segundo mecanis- Mead determina as relações jurídicas da-
mo se ela tiver desenvolvido com o primei- quela desenvolvida por Hegel. De forma
ro mecanismo uma experiência elementar muito curiosa, Honneth parece sustentar
de confiança na dedicação da mãe. Então, a hipótese de que a concepção jurídica de
com base nos estudos de Winnicott, Hon- Mead corresponderia a uma visão tradicio-
neth esboça os princípios fundamentais do nal de direito (pré-moderna) e aquela de
primeiro nível de reconhecimento. Quando Hegel seria uma espécie de concepção mo-
a criança experimenta a confiança no cui- derna de ordem jurídica (Honneth, 2003:
dado paciencioso e duradouro da mãe, ela 177).
passa a estar em condições de desenvolver Honneth pretende, portanto, demons-
uma relação positiva consigo mesma. Hon- trar que o tipo de reconhecimento caracte-
neth chama essa nova capacidade da crian- rístico das sociedades tradicionais é aquele
ça de autoconfiança (Selbstvertrauen). De ancorado na concepção de status: em so-
posse dessa capacidade, a criança está em ciedades desse tipo um sujeito só consegue
condições de desenvolver de forma sadia a obter reconhecimento jurídico quando ele
sua personalidade. Esse desenvolvimento é reconhecido como membro ativo da co-
primário da capacidade de autoconfiança é munidade e apenas em função da posição
visto por Honneth como a base das relações que ele ocupar nesta sociedade. Honneth
sociais entre adultos (Honneth, 2003: 168 reconhece transição para modernidade
ss.). Honneth vai além e sustenta que o ní- uma espécie de mudança estrutural na base
vel do reconhecimento do amor é o núcleo da sociedade, à qual corresponde também
fundamental de toda a moralidade (Hon- uma mudança estrutural nas relações de
neth, 2003: 172 ss.). Portanto, este tipo de reconhecimento: ao sistema jurídico não

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


280 Giovani Agostini Saavedra

é mais permitido atribuir exceções e pri- turalmente influenciado pelos escritos de


vilégios às pessoas da sociedade em fun- Marshall, para mostrar que a história do di-
ção do seu status. Pelo contrário o sistema reito moderno deve ser reconstruída como
jurídico deve combater estes privilégios e um processo direcionado à ampliação dos
exceções. O direito então deve ser geral o direitos fundamentais. Apesar de Honneth
suficiente para levar em consideração to- utilizar sempre, que ele trata do direito, um
dos interesses de todos os participantes da conceito problemático de direito subjetivo,
comunidade. A partir desta constatação, a sua correta intuição pode ser encontra-
a análise do direito que Honneth procura da claramente quando ele explicita a sua
desenvolver consiste basicamente em ex- interpretação da recontrução histórica de
plicitar o novo caráter, a nova forma do re- Marshall: os atores sociais só conseguem
conhecimento jurídico que surgiu na mo- ter a consciência de que elas são pessoas
dernidade (Honneth, 2003: 178 ss.). de direito, e agir conseqüentemente, no
Honneth procura mostrar que, junto momento em que surge historicamente
com o surgimento de uma moral ou de uma uma forma de proteção jurídica contra a in-
sociedade pós-tradicional, houve também vasão da esfera da liberdade, que proteja a
uma separação da função do direito e da- segura chance de participação na formação
quela do juízo de valor (Wertschätzung). pública da vontade e que garanta um míni-
Na teoria de Ihrering e na tradição pós- mo de bens materiais para a sobrevivência
kant de diferenciação de duas formas de (Honneth, 2003: 190). Honneth pretende
Respeito (Achtung), principalmente com sustentar, portanto, que as três esferas dos
base na pesquisa de Darwalls, encontra direitos fundamentais que foram diferen-
elementos para determinar a diferença en- ciadas historicamente são o fundamento,
tre direito e juízo de valor. Para o direito da forma de reconhecimento do direito, ou
a pergunta central é: como a propriedade seja, reconhecer-se reciprocamente como
constitutiva das pessoas de direito deve ser pessoas jurídicas significa hoje muito mais
definida; no caso do juízo de valor: como do que no início do desenvolvimento do
se pode desenvolver um sistema de valor direito. Hoje, a forma de reconhecimento
que está em condições de medir o valor do direito contempla não só as capacidades
das propriedades características de cada abstratas de orientação moral, mas tam-
pessoa (Honneth, 2003: 183 ss.). bém as capacidades concretas necessárias
Os sujeitos de direito precisam, por- para uma existência digna (Honneth, 2003:
tanto, estar em condições de desenvolver 190).
sua autonomia, a fim de que possam de- O direito deve ser visto, portanto,
cidir racionalmente sobre questões morais. como a forma de expressão simbólica que,
Aqui Honneth tem em mente a tradição dos através da potencial efetivação da sua fa-
direitos fundamentais liberais e do direito culdade de entrar em juízo, permite ao ator
subjetivo em condições pós-tradicionais, social demonstrar que é reconhecido. Po-
que indicam a direção do desenvolvimento rém, mesmo assim permanece sem respos-
histórico do direito (Honneth, 2003: 190 ta a pergunta sobre o tipo de auto-relação
ss.). A luta por reconhecimento deveria en- característico da forma de reconhecimento
tão ser vista como uma pressão, sob a qual do direito. No caso do direito, este tipo es-
permanentemente novas condições para a pecífico de auto-relação é o auto-respeito
participação na formação pública da von- (Selbstachtung) (Honneth, 2003: 194 ss.).
tade vêm à tona. Honneth esforça-se, na- No caso da forma de reconhecimento do

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 281

direito são postas em relevo as proprie- em comunidade que a capacidade e o de-


dades gerais do ser humano. No caso da sempenho dos integrantes da comunidade
valoração social, são postas em relevo as somente poderiam ser avaliadas intersub-
propriedades que tornam o indivíduo dife- jetivamente (Honneth, 2003: 197 ss.).
rente dos demais, ou seja, as propriedades Como no caso das relações jurídicas,
de sua singularidade. Portanto, Honneth Honneth analisa a transição da sociedade
parte do princípio que a terceira forma de tipo tradicional para a moderna como
de reconhecimento, a saber, a Comunida- uma espécie de mudança estrutural desta
de de Valores ou Solidariedade, deve ser terceira esfera de reconhecimento: assim
considerada um tipo normativo ao qual que a tradição hierárquica de valoração
correspondem as diversas formas prática social progressivamente vai sendo dissol-
de auto-relação valorativa (Selbstschät- vida, as formas individuais de desempenho
zung). Honneth não aceita aquilo que He- começam a ser reconhecidas. Honneth par-
gel e Mead consideram condição para este te do princípio de que uma pessoa desen-
padrão de reconhecimento, pois ambos os volve a capacidade de se sentir valorizado,
autores estão convencidos da existência de somente quando as suas capacidades indi-
um horizonte valorativo e intersubjetivo viduais não são mais avaliadas de forma
compartilhado por todos os membros da coletivista. Daí resulta que uma abertura
sociedade como condição da existência do horizonte valorativo de uma sociedade
da forma de relacionamento que Honneth às variadas formas de auto-realização pes-
chama de Solidariedade. Honneth procura soal somente se dá com a transição para
mostrar ao contrário que com a transição a modernidade. Em função dessa mudan-
da sociedade tradicional para a sociedade ça estrutural, por outro lado, no centro
moderna surge um tipo de individualiza- da vida moderna existe uma permanente
ção que não pode ser negado. A terceira tensão, um permanente processo de luta,
esfera do reconhecimento deveria ser vis- porque nesta nova sociedade há uma busca
ta, então, como um meio social a partir do individual por diversas formas de auto-re-
qual as propriedades diferenciais dos seres alização de um lado e por outro a busca de
humanos venham à tona de forma genéri- um sistema de avaliação social (Honneth,
ca, vinculativa e intersubjetiva (Honneth, 2003: 204 ss.). Essa espécie tensão social
2003: 197). que oscila permanentemente entre a am-
Honneth identifica, porém, um se- pliação de um pluralismo valorativo que
gundo nível desta terceira esfera do reco- permita o desenvolvimento da concepção
nhecimento (Solidariedade). No nível de individual de vida boa e a definição de um
integração social encontram-se valores e pano de fundo moral que sirva de ponto de
objetivos que funcionam como um sistema referência para avaliação social da mora-
de referência para a avaliação moral das lidade fazem da sociedade moderna uma
propriedades pessoais dos seres humanos espécie de arena na qual se desenvolve
e cuja totalidade constitui a autocompreen- ininterruptamente uma luta por reconheci-
são cultural de uma sociedade. A avaliação mento: os diversos grupos sociais precisam
social de valores estaria então permanen- desenvolver a capacidade de influenciar a
temente determinada pelo sistema moral vida pública a fim de que sua concepção de
dado por esta autocompreensão social. vida boa encontre reconhecimento social e
Esta esfera de reconhecimento estaria, por- passem então a fazer parte do sistema de
tanto, vinculada de tal forma em uma vida referência moral que constituem a auto-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


282 Giovani Agostini Saavedra

compreensão cultural e moral da comuni- tipologia tripartide negativa da estrutura


dade em que estão inseridos. Porém, com das relações de reconhecimento. Esta ti-
o processo de individualização das formas pologia negativa deveria cumprir duas
de reconhecimento surge nesta esfera de tarefas: (1) para cada esfera de relação de
reconhecimento a possibilidade de um tipo reconhecimento deve surgir um equivalen-
específico de auto-relação: auto-estima te negativo, com o qual a experiência de
(Selbstschätzung). Solidariedade está vin- desrespeito possa ser esclarecida seguindo
culada, portanto, nas condições da socie- a estrutura da forma de reconhecimento
dade moderna, à condição de relações so- correspondente; (2) a experiência de des-
ciais simétricas de estima entre indivíduos respeito deve ser ancorada de tal forma
autônomos. Simetria aqui significa que os em aspectos afetivos do ser humano, que
atores sociais adquirem a possibilidade de venha à tona a sua capacidade motivacio-
vivenciarem o reconhecimento de suas ca- nal de desencadeamento de uma luta por
pacidades numa sociedade não-coletivista. reconhecimento.
Nesse contexto está aberta a possibilidade À forma de reconhecimento do amor
que os indivíduos desenvolvam a sua auto- corresponde as formas de desrespeito de-
realização (Selbstverwirklichung) (Honne- finidas por Honneth como maus tratos
th, 2003: 209 ss.). (Mißhandlung) e violação (Vergewalti-
Para que os atores sociais possam, gung). Nesta forma de desrespeito o com-
portanto, desenvolver um auto-relaciona- ponente da personalidade que é atacado é
mento (Selbstbeziehung) positivo e saudá- aquele da integridade psíquica, ou seja, não
vel, eles precisam ter a chance simétrica de é diretamente a integridade física que é vio-
desenvolver a sua concepção de vida boa lentada, mas sim o auto-respeito (selbstver-
sem desenvolverem as patologias oriundas tändliche Respektierung) que cada pessoa
das experiências de desrespeito (Mißa- possui de seu corpo, que, como já foi visto,
chtung). O que significa uma experiência de é adquirido por meio do processo intersub-
desrespeito permanece ainda sem resposta. jetivo de socialização originado através da
Porque à experiência do reconhecimento dedicação afetiva (Winnicott) (Honneth,
corresponde sempre uma forma positiva 2003: 214 ss.). Exatamente por causa deste
de auto-relacionamento (Selbsterfahrung), complexo desenvolvimento psico-social do
Honneth precisa partir do princípio de que auto-respeito, ele e a sua forma correspon-
o conteúdo do que seja desrespeito deve dente de reconhecimento não podem ser es-
estar implicitamente vinculado nas reivin- clarecidos historicamente.
dicações individuais por reconhecimento: Eu interpreto aqui as idéias de Hon-
se e quando o sujeito social faz uma expe- neth no seguinte sentido: porque Honneth
riência de reconhecimento, ele adquire um sempre tem em mente uma específica for-
positivo entendimento sobre si mesmo; se ma de auto-relação e de identidade, que está
e quando, ao contrário, um ator social tem vinculada estruturalmente a uma pessoa
uma experiência de uma situação de des- humana; e como o conteúdo normativo da
respeito, conseqüentemente, a sua positiva sua teoria sempre é desenvolvido ex nega-
auto-relação, adquirida intersubjetivamen- tivo, ou seja, ele deve ser sempre deduzido
te, adoece. da destruição da respectiva forma de auto-
Para tornar a sua teoria plausível, relacionamento ou reconhecimento, fica
Honneth precisa, por conseqüência, en- claro que há sempre como pano de fundo
contrar na história social, traços de uma de sua análise um concepção antropofilosó-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 283

fica não explícita que de alguma forma está deve ser medido no grau de universaliza-
permanentemente presente quando Honne- ção e também no grau de materialização do
th tenta definir a estrutura das relações de direito (Honneth, 2003: 216).
reconhecimento 3. Na minha opinião fica À forma de reconhecimento da so-
claro também que, quando Honneth escla- lidariedade corresponde a forma de des-
rece a a forma de desrespeito correspon- respeito da degradação moral (Entwürdi-
dente à forma de reconhecimento do amor, gung) e da injúria (Beleidigung). Honneth
se delineia também de forma indireta uma entende que a dimensão da personalidade
espécie de núcleo antropo-ontológico da ameaçada é aquela da dignidade (Würde).
estrutura das relações de reconhecimento. Também aqui a experiência de desrespei-
Para esclarecer o que eu tenho em mente, to deve ser encontrada na degradação de
porém, seria necessário que a teoria da jus- uma forma de auto-relação, que no caso é
tiça de Honneth fosse exposta aqui neste aquela da auto-estima (Selbstschätzung).
ponto, o que claramente excede o propó- A pessoa aqui é privada da possibilidade
sito de um artigo de sociologia do direito. de desenvolver uma estima positiva de si
Apenas aceno para o fato de que eu enten- mesmo (Honneth, 2003: 217). Ao contrá-
do que estas idéias (não muito claras ainda rio da esfera do reconhecimento do amor,
em Kampf um Anerkennung) poderiam ser
tanto esta esfera e quanto aquela do direi-
desenvolvidas a partir das intuições antro-
to dependem de uma estrutura social que
pofilosóficas de Agnes Heller.
muda e evolui historicamente.
À forma de reconhecimento do direi-
Para esclarecer as formas de des-
to corresponde a forma de desrespeito inti-
respeito Honneth adota o conceito psica-
tulada privação de direitos (Entrechtung) e
nalítico de patologia. Todas essas formas
nesta esfera do reconhecimento o compo-
de desrespeito são, portanto, uma forma
nente da personalidade que é ameaçado é
aquele da integridade social. Também aqui de patologia. Assim, uma teoria do reco-
Honneth precisa encontrar a forma corres- nhecimento deveria ser capaz de indicar
pondente de desrespeito lá onde um tipo a classe de sintomas que os atores sociais
específico de auto-relação pode se encon- atingidos pela forma de desrespeito em
trado, a saber, o auto-respeito. Central para seu estado patológico deixam transparecer
a análise feita por Honneth das formas de (Honneth, 2003: 219). Os sinais corporais
desrespeito é o fato de que todo o tipo de do sofrimento psíquico devem ser vistos,
privação violenta da autonomia deve ser portanto, como expressões exteriores, ou
vista como vinculada a uma espécie de sen- melhor, como reações externas de senti-
timento. O sentimento de injustiça ocupa mentos patológicos interiores ou psíquicos.
um papel importante na análise que Hon- Dessa forma, somente as experiências de
neth faz do direito (Honneth, 2003: 216). injustiça que acarretam fenômenos patoló-
Porém, apesar de Honneth ressaltar em um gicos devem ser consideradas fenômenos
primeiro momento o papel do sentimento de desrespeito, quando o ponto de partida
de injustiça, logo em seguida a sua análise da análise é uma teoria do reconhecimento
passa a considerar um tipo de respeito cog- como a que Honneth está desenvolvendo
nitivo da capacidade de responsabilidade aqui (Honneth, 2003: 219 ss.).
moral, que um ator social vivencia numa As reações do sentimento de injusti-
situação de desrespeito jurídico. Portanto, ça devem ser vistas como o estopim par
o que significa ser uma capacidade para excellence da luta por reconhecimento.
responsabilidade moral de uma pessoa Com ajuda dos estudos desenvolvidos

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


284 Giovani Agostini Saavedra

por Dewey, Honneth procura mostrar que trate mais aqui de uma experiência isolada
uma experiência social de desrespeito atua de um indivíduo, mas sim de um círculo
como uma forma de freio social que pode intersubjetivo de sujeitos que sofrem da
levar à paralisia do indivíduo ou de um mesma patologia social (Honneth, 2003:
grupo social. Por outro lado, ela mostra o 262 ss.). Aqui Honneth está fazendo jus
quanto o ator social é dependente do reco- à crítica hegeliana do atomismo à medida
nhecimento social. Honneth sustenta que o que ele retira do indivíduo a capacidade
indivíduo está sempre vinculado em uma de explicar os problemas sociais. O indi-
complexa rede de relações intersubjetivas víduo só pode ser considerado como tal se
e que conseqüentemente ele é dependen- é considerada a existência anterior de uma
te estruturalmente do reconhecimento dos sociedade que lhe dá sentido.
outros indivíduos (Honneth, 2003: 224). Portanto, quanto mais forte for a in-
A experiência do desrespeito, então, deve fluência da luta por reconhecimento de um
ser tal que forneça a base motivacional da determinado grupo, ou quanto maior for o
luta por reconhecimento, porque essa ten- número de exigências sociais em função
são afetiva só pode ser superada quando o de uma mudança específica, haverá de
ator social estiver em condições de voltar surgir, por conseqüência, uma espécie de
ter uma participação ativa e sadia na socie- horizonte de interpretação subcultural que
dade (Honneth, 2003: 224). É exatamente explicará a relação motivacional entre sen-
porque os seres humanos nunca reagem de timento individual de injustiça e luta co-
forma neutra a esse tipo de enfermidade letiva por reconhecimento. O engajamento
social, que o sentimento de injustiça acaba político acaba por trazer com ele uma es-
sendo o estopim da luta por reconhecimen- pécie de efeito positivo de reconhecimento
to. Como todo o sentimento, o sentimento antecipado, pois na inserção em um grupo
de injustiça diz pouca coisa sobre o conte- social que busca um determinado tipo de
údo normativo das relações de reconheci- reconhecimento ele experimenta concomi-
mento. Em outras palavras, os sentimentos tantemente um tipo de reconhecimento an-
de injustiças podem indicar um problema, tecipado de uma sociedade futura em que
mas não a sua solução. Honneth entende a sua reivindicação social será reconhecida
que é necessária a articulação política de socialmente e, dessa forma, o indivíduo
um movimento social para que o sentimen- tem de volta um pouco do reconhecimento
to de injustiça do indivíduo passe a ter re- perdido.
levância política (Honneth, 2003: 224 ss.). A pergunta que surge logicamente
Aqui, porém, não fica muito claro desta opção teórica é: todos os conflitos so-
qual deve ser a ponte explicativa entre os ciais são passíveis de serem interpretados
objetivos impessoais dos movimentos so- pela lógica de uma luta por reconhecimen-
ciais e um privado sentimento de injusti- to? Para fundamentar sua resposta, Honneth
ça. Honneth sustenta que, ao contrário dos analisa primeiramente a pesquisa histórica
modelos atomísticos, utilitaristas ou inten- de E.P.Thompson e Barrington Moore, para
cionalistas de explicação dos movimentos mostrar que pesquisas históricas que não
sociais, o surgimento de um movimento assumem um ponto de vista moral correm
social deve ser explicado a partir da exis- sempre o risco de analisar os episódios de
tência de uma semântica coletiva que per- forma cega, ou seja, como se eles fossem
mita a interpretação das experiências indi- fatos passíveis de análise pura: aconteci-
viduais de injustiça, de forma que não se mentos históricos como revoltas, guerras...

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 285

são apresentados como se fossem apenas processo de formação moral que se dá por
fatos. Honneth procura com essa crítica meio do conflito e cuja direção é dada pela
mostrar que por trás dos acontecimentos idéia-guia da ampliação das relações de re-
históricos há um processo de desenvolvi- conhecimento (Honneth, 2003: 273).
mento moral que se deixa explicar somente Na introdução do presente artigo nós
pela lógica da ampliação das relações de nos propusemos a desenvolver uma teoria
reconhecimento. O modelo da luta por re- dos direitos fundamentais a partir da teoria
conhecimento deve, portanto, cumprir duas do reconhecimento de Axel Honneth. Não
tarefas: (1) ser um modelo de interpretação por acaso, porém, na mesma introdução
do surgimento das lutas sociais e (2) do nos impusemos a limitação de apenas es-
processo de desenvolvimento moral. Só clarecer de forma imanente as tarefas que
então esse modelo estará em condições de todo aquele intérprete que pretende desen-
realizar uma ordenação sistemática dos fe- volver essa tarefa precisa enfrentar.
nômenos históricos e sociais, que sem esse Porque Honneth está convencido que
modelo permaneceriam amorfos. o surgimento de pelo menos duas das es-
Dessa forma, os sentimentos morais feras do reconhecimento estão vinculadas
assumem a função de aceleração ou retar- a um determinado momento histórico geo-
damento da evolução moral e histórica da graficamente determinado, a saber, o sur-
sociedade e o modelo da luta por reconhe- gimento da sociedade moderna na forma
cimento passa a ser visto como o ponto de como esse processo aconteceu em países
vista normativo, a partir do qual é possível da Europa ocidental, parece óbvio que a
definir o estágio atual do desenvolvimento primeira tarefa, de um jurista que preten-
moral da sociedade (Honneth, 2003: 270 da desenvolver a sociologia do direito de
ss.). O ponto de partida de um tal processo Axel Honneth, precisa ser vista no esclare-
de formação moral precisa ser, portanto, cimento entre este vínculo: história situada
um momento histórico, em que o modelo geograficamente e teoria normativa. Fica
tripartide do reconhecimento ainda não se aberta a pergunta se o modelo do reconhe-
diferenciou. Honneth caracteriza tal pro- cimento teria capacidade de interpretação
cesso como um processo de aprendizagem suficiente para esclarecer os acontecimen-
que tem a capacidade de esclarecer ao tos históricos de luta de outros países que
mesmo tempo a diferenciação as esferas não experienciaram momentos compará-
do reconhecimento e o potencial interno veis com aquele europeu4.
que elas carregam internamente para o A necessidade e a importância de
desenvolvimento moral da sociedade. O uma solução para este problema aparente
modelo da luta por reconhecimento expli- parece óbvia: se o modelo do reconheci-
cita, então, uma gramática, uma semântica mento, tal como é desenvolvido por Hon-
subcultural, na qual as experiências de in- neth, somente tem capacidade de explicar
justiça encontram uma linguagem comum, um fenômeno específico da Europa oci-
que indiretamente oferece a possibilidade dental, isso implicaria na inutilidade, fal-
de uma ampliação das formas de reconhe- ta de capacidade interpretativa, talvez na
cimento (Honneth, 2003: 272). Com isso, falência do modelo do reconhecimento
Honneth pretende mostrar que a análise ou, simplesmente, a sua teoria se tornaria
dos acontecimentos sociais é uma tarefa da simplesmente desinteressante. Eu estou,
área da interpretação, que permite explicar porém, convencido que este é apenas um
esses acontecimentos como estágios de um problema aparente. Na minha opinião, a

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


286 Giovani Agostini Saavedra

chave de leitura adequada para entender ção. Esse conceito precisa, ao contrário,
a teoria de Honneth sem correr o risco de proteger de tal forma o atual pano de fun-
eurocentrismo é um desenvolvimento da do moral das relações de reconhecimento,
teoria da justiça implícita na antropologia que o horizonte de uma sociedade perma-
filosófica que está sempre no pano de fun- neça aberto, a fim de que os seus cidadãos
do do desenvolvimento da teoria do reco- tenham a liberdade de desenvolver as di-
nhecimento de Honneth. versas formas de realização do seu concei-
Quando Honneth explicita o pon- to de vida boa. Com essa precisação, que
to de vista normativo da sua teoria, fica fica sempre entre história e universalidade,
claro também que este aparente problema sempre caminha junto o perigo de que esse
não passa de uma aparência de problema. conceito seja apenas uma interpretação de
Como já foi visto, o modelo de luta por determinados ideais históricos de vida.
reconhecimento deve oferecer o ponto de Honneth acha que está em condições de
vista normativo a partir do qual o estágio evitar esse perigo, à medida que ele per-
atual do desenvolvimento moral seja expli- mite que da tradição do liberalismo ele
citado (Honneth, 2003: 274 ss.). Se isso é conserve uma pequena intenção kantiana
assim, então Honneth precisa fundamentar de formalidade. Por isso, o conceito de
filosoficamente este ponto de partida nor- eticidade por ele desenvolvido precisa ser
mativo da sua teoria. formal. Contra Kant, porém, este concei-
Honneth sustenta que a sua teoria do to deveria ser, por outro lado, de tal for-
reconhecimento não pode ser identifica- ma material ou substantivo que com a sua
da nem com a tradição liberal, nem com ajuda seja possível aprender mais sobre as
o Comunitarismo. A sua proposta teórica condições de realização da vida boa (Hon-
deve ser vista como uma terceira possibili- neth, 2003: 277 ss.).
dade que ele chama de Conceito Formal de Como já foi visto, à cada uma das for-
Vida Boa ou de Eticidade (Honneth, 2003: mas de reconhecimento correspondem uma
274 ss.). A fundamentação deste conceito forma positiva e negativa de auto-relação.
deveria esboçar formas pós-tradicionais Importante para as conclusões deste artigo
de reconhecimento, cujo conceito deveria é ressaltar que existe uma ligação entre a
conter todas as condições intersubjetivas experiência de reconhecimento e uma es-
que hoje precisam ser preenchidas a fim de pécie de relacionar-se-consigo (Sichzusi-
que os sujeitos possam realizar a sua con- chverhalten) que está ancorada estrutural-
cepção de vida boa (Honneth, 2003: 275 mente na identidade pessoal: os indivíduos
ss.). Com essa posição, Honneth pretende são de tal forma constituídos como pessoas,
salientar que o conceito formal de eticida- que eles aprendem a se dirigir a si mesmo a
de não deve abranger somente a autonomia partir da perspectiva do outro e a partir daí
dos seres humanos, mas também as condi- desenvolvem-se propriedades pessoais po-
ções qualitativas de realização da vida boa. sitivas ou negativas. A extensão de tais pro-
Honneth compartilha com a posição comu- priedades e, portanto, do grau de auto-rela-
nitarista a idéia de que é necessário sempre ção positiva cresce com o desenvolvimento
um conceito de vida boa como Telos, mas de cada forma de reconhecimento a partir
ele não pretende com este conceito formal da qual cada indivíduo pode relacionar-se
de eticidade desenvolver um tipo de Ethos consigo mesmo. Assim na experiência do
de uma concreta comunidade de valores amor surge a possibilidade da autoconfian-
que se insere em uma determinada tradi- ça (Selbstvertrauens), na experiência do

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 287

reconhecimento jurídico surge a forma do mente, quando analisamos a forma de reco-


auto-respeito (Selbstachtung) e, por fim, na nhecimento do amor. Apesar de ter ficado
terceira forma de reconhecimento, Solida- claro que a estrutura de reconhecimento do
riedade, vem à tona a auto-estima (Selbsts- amor não se deixa explicar por modifica-
chätzung) (Honneth, 2003: 277 ss.). ções históricas, Honneth procura salientar
Com estas precisações, Honneth que é perfeitamente possível que essas es-
torna as conseqüências de sua teoria mais truturas imutáveis se desenvolvam quanto
agudas: somente com a experiência do re- mais os envolvidos nesta relação compar-
conhecimento surge uma forma positiva tilharem direitos e estiverem protegidos os
de auto-relação e sem reconhecimento é seus respectivos direitos fundamentais. A
impossível desenvolver um conceito de experiência do amor representa, portanto, o
liberdade ou simplesmente viver em liber- núcleo interno de todas as formas de vida
dade, porque a proteção das relações de ética (den inneresten Kern aller als >>sit-
reconhecimento é uma condição da liber- tlich<< zu qualifizierenden Lebensformen)
dade e não vice-versa. Honneth vai mais e conseqüentemente o conceito formal de
além e afirma que somente as relações de eticidade pós-tradicional deve ser de tal
reconhecimento são, ao mesmo tempo, as forma desenvolvido que o radical iguali-
condições e a proteção da identidade, da tarismo da esfera de reconhecimento do
liberdade, da auto-realização, de uma re- amor seja protegido de influências violen-
alização plena da concepção de vida boa tas externas (Honneth, 2003: 282 ss.). As
dos seres humanos e de uma vida realizada formas de reconhecimento do direito são,
em geral (Honneth, 2003: 279 ss.). dessa forma, condições da auto-realização
Porém, a fim de que sua teoria não e da capacidade de desenvolvimento, por-
corra o risco de ser ahistórica, o conceito que somente com a sua ajuda os atores so-
formal de eticidade precisa estar herme- ciais conseguem definir a si mesmos como
neuticamente ancorado no presente: todo o pessoas (Honneth, 2003: 283 ss.). Por úl-
tipo de prognóstico sobre o futuro das rela- timo, foi visto que o direito delimita geral
ções sociais “não é mais tarefa da teoria e e normativamente a formação do horizonte
sim do futuro das lutas sociais” (Honneth, valorativo de uma comunidade.
2003: 287). Portanto, com esta frase de fe-
5. Conclusão
chamento do seu livro Kampf um Anerken-
nung, Honneth deixa claro que é necessária Se Dworkin, Habermas e Honneth
uma limitação histórica desse tipo, a fim apresentaram argumentos convincentes,
de que o conceito formal de eticidade seja então, por via dedutiva podem ser definidas
concebido. As condições de realização do as tarefas da Teoria da Constituição con-
conceito de vida boa estão sempre anco- temporânea: será necessário em primeiro
radas, portanto, nas condições oferecidas lugar esclarecer como é possível desenvol-
pelo presente de uma dada sociedade, que, ver uma hermenêutica constitucional que
ao mesmo tempo, já estabelecem o pano leve a sério o desafio da democracia e da
de fundo normativo a partir do qual se abre proteção das relações de reconhecimen-
a possibilidade para o desenvolvimento de to em uma dada sociedade e em segundo
novas formas de reconhecimento (Honne- lugar, será necessário que as questões do
th, 2003: 280 ss.). direito não sejam mais vistas apenas como
Lado a lado com a historicidade de questões de princípios ou de uma sim-
sua teoria, se desenvolve um núcleo ahis- ples ponderação de valores, mas o direito
tórico, que nós identificamos, principal- constitucional deverá assumir como tarefa

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


288 Giovani Agostini Saavedra

a compreensão da sociedade e o desen- Os motivos responsáveis por esse contra-


volvimento de mecanismos institucionais efeito não são difíceis de serem vislumbra-
que viabilizem uma espécie de “sociedade dos: direitos que garantem à mulher um
aberta dos intérpretes da Constituição”. tratamento diferenciado, como o direito
Os resultados do presente artigo já a afastamento do trabalho no período de
adiantaram quais são e quais devem ser gravidez, apesar de seu valor e corretude
as funções dos direitos fundamentais para moral, representam para o empregador
uma Teoria da Constituição que leve à sé- um aumento de custos que, em função da
rio a teoria do reconhecimento: (1) pro- lógica do mercado, só pode ser resolvido
teção das formas do reconhecimento; (2) de duas maneiras, a saber, ou ele contrata
condição sine qua non da realização do menos mulheres, ou ele é obrigado a pagar
projeto de vida boa ou da auto-realização; menos pelo trabalho feminino.
(3) facilitador do desenvolvimento moral Ao tentar esclarecer estes fenômenos
da sociedade; (4) Delimitação do horizonte sociais todo o jurista que quisesse levar a
valorativo de uma comunidade. sério a teoria do reconhecimento teria de
Uma das principais tarefas de pes- se confrontar com, pelo menos, três pro-
quisa que essa nova Teoria da Constitui- blemas: (1) como se pode entender que
ção deveria assumir seria o estudo do lado o mesmo direito moderno, que permite a
negativo do processo moderno de juridici- ampliação das relações de reconhecimen-
zação dos direitos sociais e de cidadania. to e que surgiu com este objetivo, gera, ao
Não por acaso Flickinger define esses di- mesmo tempo, experiências de desrespeito
reitos como uma faca de dois gumes. Com e privação de reconhecimento? (2) qual se-
esta analogia, ele pretende mostrar plasti- ria o critério a ser utilizado a fim de que
camente o duplo efeito da juridificação das a forma positiva de direito, o direito que
conquistas sociais na forma de direitos so- gera reconhecimento, fosse diferenciada
ciais e de cidadania: o lado positivo deste da forma de direito que gera desrespeito e
processo pode ser traduzido na linguagem privação de reconhecimento?
do reconhecimento, ou seja, ele pode ser Os limites de espaço de um artigo
considerado como um processo históri- me permitem somente trazer à discussão
co vitorioso de ampliação das formas de esta nova maneira de fazer direito consti-
reconhecimento, porém, com ele surgiu tucional que me parece estar um pouco à
também um processo negativo, a saber, a margem da discussão atual. Resolver estes
legalidade jurídica parece não ser capaz problemas e tentar levar à sério as relações
de efetivar essas reivindicações sociais de reconhecimento na sociedade como
(Flickinger, 2003: 153 ss.). Em seu livro condições sociais da existência de um di-
Die Einbeziehung dês Andere, Habermas reito justo deveriam ser as novas e futuras
analisa uma série de estudos feministas tarefas ou, pelo menos, deveriam importar
que mostram que a luta do movimento no surgimento de um terceiro âmbito de
feminista pela juridificação de suas rei- pesquisa da Teoria da Constituição con-
vindicações teve um efeito colateral inde- temporânea.
sejado: ao invés de fomentar igualdade ou
materialização destas reivindicações, esse REFERÊNCIAS
processo de juridificação gerou baixos sa- DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously.
lários, desemprego e aumento da pobreza Cambridge: Harvard University Press, 1978.
entre mulheres (Habermas, 1996: 303 ss.). 371 p.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 289

______. Law’s Empire. Cambridge: Harvard ______. Leiden an Unbestimmtheit. Eine Re-
University Press, 1986. 470 p. aktualisierung der Hegelschen Rechtsphiloso-
______. O império do direito. São Paulo: Mar- phie, Stuttgart: Reclam, 2001. 127 p.
tins Fontes, 1999. 513 p. ______. Kampf um Anerkennung. Zur moralis-
______. Uma questão de princípio. São Paulo: chen Grammatik sozialer Konflikte. Frankfurt:
Martins Fontes, 2001. 593 p. Suhrkamp, 2003. 341 p.
______. Levando os direitos à sério. São Paulo: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesells-
Martins Fontes, 2002. 568 p. chaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997. 598 p.
ELSTER, Jon/ SLAGSTAD, Rune (org.). NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität
Constitutionalism and Democracy. Cambridge: des Rechts in der peripheren Moderne: eine
Cambridge University Press, 1988. 359 p. theoretische Betrachtung und eine Interpreta-
FLICKINGER, Hans-Georg. Direito de cidada- tion des Falls Brasillien, Berlin: Duncker &
nia: uma faca de dois gumes. In: Em nome da Humboldt, 1992. 252p.
liberdade: elementos da crítica ao liberalismo ______. Luhmann, Habermas e o Estado de
contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, direito. Lua Nova, São Paulo, n. 37, 1996. p.
2003. p. 143-158. 93-106.
FRASER, Nancy e HONNETH, Axel. Umver- SAAVEDRA, Giovani Agostini. Jurisdição e
teilung oder Anerkennung. Eine politisch-phi- democracia: uma análise a partir das teorias
losophische Kontroverse. Frankfurt am Main: de Jürgen Habermas, Robert Alexy, Ronald
Suhrkamp, 2003. 305 p. Dworkin e Niklas Luhmann. Porto Alegre: Li-
HABERMAS, Jürgen. Kulturelle Gleichbehan- vraria dos Advogados, 2005. 115 p. (no prelo).
dlung – und die Grenzen des Postmodernen Li- TAYLOR, Charles. A política do reconheci-
beralismus. In: Deutsche Zeitschrift für Philo- mento. In: Argumentos filosóficos. São Paulo:
sophie. Berlin: Akademie Verlag GmbH, 2003. Loyola, 2000. p. 241-274.
n. 51 (3), p. 367-394.
______. Die Einbeziehung des Anderen: Studien
zur politischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, NOTAS
1999. 404 p.
______. Faktizität und Geltung: Beiträge zur 1
Para uma visão geral sobre o sistema jurídico
Diskurstheorie des Rechts und des demokratis- da Common Law ver: (SOARES, 2000), (DA-
chen Rechtssaats. Frankfurt: Suhrkamp, 1998. VID, 1996: 279-405). Vale acrescentar que não
704 p. é muito adequado traçar um paralelo entre o uso
______. Direito e democracia: entre facticidade dos casos de jurisprudência no Brasil e o uso
e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, dos precedentes nos Estados Unidos. No Brasil
1997. v. 1. 354 p. (Biblioteca Tempo Univer- os casos judiciais podem se apreciados pelos
sitário, 101). juízes como argumentos para solução da lide,
______. Pensamento pós-metafísico. Rio de Ja- mas não estão obrigados a considerá-los na sua
neiro: Tempo Brasileiro, 1990. 271 p. decisão. Nos Estados Unidos, em virtude da
HEIDEGREN, Carl-Göran. Anthropology, So- regra do “stare decisis”, os juízes estão vincu-
cial Theory, and Politics: Axel Honneth´s The- lados juridicamente aos precedentes, de forma
ory of Recognition. In: Inquiry, 2002, Vol. 45, que estes não são apenas argumentos, mas di-
No. 4, p. 433-446. reito legítimo. Esta é uma distinção importante
HONNETH, Axel/JOAS, Hans. Soziales Han- para as conclusões deste trabalho.
deln und menschliche Natur. Anthropologische 2
As teses do presente parágrafo, principalmente
Gruder Sozialwissenschaft, Frankfurt/New a interpretação do método Hércules desenvolvi-
York: Campus, 1980. 170 p. do por Dworkin a partir da teoria dos sistemas
HONNETH, Axel. Antworten auf die Beiträge de Niklas Luhmann, eu desenvolvi exaustiva-
der Kolloquiumsteilnehmer. In: Halbig, Chris- mente no meu livro Jurisdição e Democracia
toph; Quante, Michael. Axel Honneth: Sozial- (Saavedra, 2005) que está no prelo e que até o
philosophie zwischen Kritik und Anerkennung. final do ano deverá ser publicado pela editora
Münster: Lit Verlag, 2004. p. 99-121. Livraria dos Advogados.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


290 Giovani Agostini Saavedra

3
Essa parece ser também a interpretação de: assunto compare também: (Honneth/Joas, 1980).
(Heidegren, 2002) e a sua interpretação foi ex- 4
Sobre o caso brasileiro, dentre outros, ver:
plicitamente recepcionada por Honneth no seu (Neves, 1992).
Nachwort em: (Honneth, 2003: 307 ss.). Sobre o

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


291

A experiência constitucional como aspecto do


condicionamento histórico-cultural das
teorias do direito:
o caso da “jurisprudência hermenêutica” e do
constitucionalismo juridista da República de Bonn
The constitutional experience as an aspect of historical
– cultural conditioning of right theory: the case of “
hermeneutic case law” and the judicial constitutionalism
from Bonn’s Republic

Gustavo Just*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Este artigo esboça alguns elementos de uma compreensão contextual da jurisprudência
hermenêutica (isto é, a corrente teórica desenvolvida na Alemanha a partir dos anos sessenta sob a
influência direta da hermenêutica filosófica e no âmbito da nova “querela metodológica”), explo-
rando, sobretudo, a sua interação com o constitucionalismo juridista da República de Bonn.
Palavras-chave: Constitucionalismo. Teoria do direito. Filosofia hermenêutica. Contextualismo.
Historicidade.

Abstract: This article sketches some elements of a contextual understanding of the hermeneutical
jurisprudence (that is the theoretical stream developed in Germany since the 60’s under the direct
influence of the philosophical hermeneutics and in the frame of the new “methodological quarrel”)
by reference chiefly to its interaction with the “juridism” of the constitutionalist model first set up
by the so-called Republic of Bonn.
Key Words: Constitutionalism. Hermeneutical philosophy. Legal theory. Contextualism. Historicity.

1. Introdução dos condicionamentos que as precedem e


as envolvem, e em função dos quais uni-
O significado e o “valor” das teorias camente cada teoria se apresenta como
do direito não são independentes das cir- algo de inteligível — na medida em que
cunstâncias que formam a sua historici- extrapola o âmbito do puramente teoréti-
dade. A consideração da pertinência das co e se deixa apreender como um esforço,
teorias a determinados contextos históri- oriundo tanto da dúvida metódica quanto
co-culturais não é relevante apenas para da inquietação existencial, para atribuir
explicar o seu aparecimento ou reconsti- (ou reatribuir) um sentido a uma realidade
tuir a sua evolução; uma etapa necessária em crise (da legitimidade política, da inde-
da própria tentativa de compreensão, isto terminação do direito, da racionalidade do
é, de interpretação das idéias é a busca das saber dos juristas).
conexões de sentido entre as elaborações A idéia de contexto coloca proble-
teóricas e a contingência das questões e mas evidentes de extensão e generalidade:

* Doutor em Direito.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


292 Gustavo Just

no âmbito da discussão de uma episte- 2. Uma teoria do direito de inspiração


mologia hermenêutica e, por assim dizer, hermenêutica
“contextualista” das ciências sociais já se
advertiu (fazendo-se eco com isso a uma 2.1. Antiformalismo e circularidade
reflexão clássica de Heidegger) para o fato
de que a palavra “mundo” seria mesmo o O que se quer designar com a expres-
termo mais geral para designar a totalidade são “jurisprudência hermenêutica” (daqui
holística de significado cultural sugerida em diante: JH) é a ampla corrente teórica,
pela noção de contexto. Mas os trabalhos constituída principalmente ao longo das
de história das idéias jurídicas vêm refe- décadas de 1960 e 1970, em cujo âmbito
rendando, ao menos implicitamente, uma a teorização da interpretação e do raciocí-
solução que consiste em tentar apreender nio jurídicos foi reorientada sob influên-
a pertinência histórico-cultural do pensa- cia direta da filosofia hermenêutica, e em
mento jurídico a partir da referência, por especial do pensamento de Hans-Georg
um lado, às estruturas e à dinâmica da or- Gadamer. Essa corrente, que dominou am-
ganização política e jurídica e, por outro, plamente a “nova querela metodológica”
aos modelos intelectuais ou mais ampla- alemã e que conta entre seus protagonistas
mente culturais subjacentes ou explicita- os nomes de Josef Esser, Karl Larenz, Frie-
mente adotados — e nada impede que a drich Müller, Arthur Kaufmann, Winfried
leitura da teoria contemporânea do direito Hassemer, Martin Kriele, Reinhold Zippe-
também adote essa dupla referência como lius, Konrad Hesse, Peter Häberle e Horst
forma de acesso, parcial mas interrogati- Ehmke, insere-se no contexto de um vasto
vamente fecundo, ao “contexto próximo” movimento antiformalista que se configura
das elaborações mais teóricas dos juristas e se desdobra no segundo pós-guerra, e que
(Just, 2005 b). constitui um dos traços mais marcantes da
É por isso que uma tentativa de com- teoria e da filosofia do direito naquele perí-
preensão da chamada “jurisprudência her- odo, sobretudo na Alemanha. Um primeiro
menêutica” não pode deixar de levar em aspecto desse antiformalismo diz respeito
consideração o estreito condicionamento à concepção da práxis decisória e do ra-
dessa corrente pelo processo de reconstru- ciocínio que lhe corresponde, em que de-
ção, no segundo pós-guerra, da experiên- sempenha agora um papel central a crítica
cia político-constitucional da República da idéia de que a decisão judicial é ou pode
Federal da Alemanha, tanto no plano das ser obtida ou racionalmente fundamentada,
formas institucionais como no das corres- sempre ou como regra geral, segundo um
pondentes representações. É verdade que a raciocínio puramente dedutivo, axiologi-
conversão de muitas das teses da jurispru- camente neutro, a partir de um enunciado
dência hermenêutica em componentes dou- normativo contido na lei ou dela extraído.
trinários daquilo que alguns agora chamam Uma concepção “material” do raciocínio
de “neoconstitucionalismo” prolongou no e da prática jurídica já estava presente em
tempo e internacionalizou a sua influência, escolas mais antigas, mas agora aparece
o que faz com que a essa altura seja delica- associada a um ponto de vista axiológico:
do, mas finalmente de pouquíssima ou ne- rejeita o reducionismo sociológico que
nhuma relevância, saber se o que se propõe atribui valor explicativo ou mesmo norma-
aqui é um exercício de história (recente) tivo autônomo ao momento fático da ex-
das idéias ou de interpretação do horizonte periência jurídica e valoriza a idéia de que
contemporâneo do pensamento jurídico. a presença de valorações e, portanto a di-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 293

mensão criativa da aplicação do direito são dade, hierarquização e secionamento do


essenciais à práxis jurisdicional, ao passo processo decisório. É a essa ambição que a
que antes eram pensadas principalmente JH dedica suas considerações sobre os di-
com referência a situações excepcionais ferentes aspectos da dialética do processo
ou então relegadas, pelo positivismo lógi- de aplicação, e é na filosofia de Gadamer
co mais avançado de um Kelsen ou de um que ela encontra o essencial de seus fun-
Engisch, ao âmbito (de contornos vagos) damentos teóricos. Para a JH não se trata
do “quadro” das interpretações possíveis. simplesmente de reconhecer que o intér-
O segundo aspecto é o enquadramento prete elabora as premissas do seu raciocí-
dessa concepção axiológica da aplicação nio, mas de compreender o desenrolar dia-
por uma epistemologia de orientação an- lético dessa elaboração, superando dentre
tiformalista, que se traduz pelo abandono outras coisas a idéia de que a interpretação
do projeto de fundar uma ciência jurídica da lei e a qualificação dos fatos seriam dois
conforme ao paradigma lógico-empírico, e atos separados. Não existe uma espécie de
da qual decorre a introdução de eixos de construção paralela das duas premissas,
reflexão estranhos ao sentido geometrizan- que só se encontrariam no momento de
te do racionalismo próprio desse paradig- confrontar os resultados respectivos a fim
ma, tais como a tópica e o “pensamento de proceder à subsunção. Os dois planos
problemático”, o concreto e a concretiza- ou lados do raciocínio jurídico, como os
ção, a “lógica material”, o direito como chama Esser, o da previsão legal (Tatbes-
“saber prático”, os princípios etc. O livro tandseite) e o da qualificação das relações
de Viehweg publicado em 1953, Topik und fáticas (Sachverhaltseite), desenvolvem-se
Jurisprudenz, é muito representativo da simultaneamente, e não sucessivamente. A
convergência dessas duas dimensões do experiência do direito penal, marcada pela
antiformalismo e deflagrou uma série de busca de uma rigorosa “correspondência”
novas tendências — cujos desdobramentos entre o caso concreto e o tipo legal, inspira-
posteriores, um tanto heterogêneos, iriam va uma primeira visão dessa circularidade.
do ceticismo retórico de um Ballweg à te- Kaufmann, penalista e filósofo do direito,
oria do discurso jurídico racional de inspi- evoca o exemplo de um caso decidido pela
ração habermasiana, passando pela “nova justiça alemã, cujos fatos à primeira vista
retórica” de Perelman e pela própria JH —, pareciam muito simples: um homem joga-
sendo ainda revelador de seu amplo pano ra ácido clorídrico no rosto de uma opera-
de fundo filosófico e cultural: historicista, dora de caixa a fim de lhe roubar a bolsa.
relativista, perspectivista, “problemático”. A questão jurídica consistia em saber se o
A especificidade do ponto de vista ácido configura uma “arma” no sentido do
progressivamente elaborado no âmbito da § 250 do Código Penal que define o rou-
JH consiste então em considerar que o irre- bo qualificado. A análise do problema não
alismo metodológico somente poderia ser poderia ir muito longe caso se adotasse a
inteiramente corrigido caso se conseguisse visão tradicional da separação entre pre-
pensar a circularidade hermenêutica da in- missa normativa e premissa fática. Por um
terpretação jurídica, o que permitiria supe- lado, no sentido literal o ácido não é uma
rar, para além do dogma da determinação arma. Por outro lado, se se tratasse de qua-
do sentido e do modelo silogístico, uma lificar os fatos sem levar em consideração
implicação mais profunda da metodologia uma norma, a questão de saber se o ácido
formalista, qual seja a imagem de lineari- é uma arma não seria sequer colocada. Só

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


294 Gustavo Just

se pode deparar com essa questão caso se cisivo para se obter mais “realismo” meto-
pressinta (caso se “pré-compreenda”) es- dológico consiste exatamente em dissipar
ses acontecimentos com um caso possível a antinomia abstrato-concreto enquanto
de roubo qualificado. Se, ao contrário, são tal, e não apenas enquanto corolário dos
pressentidos de outro modo, por exemplo, dogmas da completude do direito legislado
como uma tentativa de homicídio, então e do automatismo da sua aplicação. A JH
a questão de saber se o ácido é uma arma procura então explorar a idéia de que não
não tem mais nenhuma relevância. Kauf- existe interpretação abstrata da norma, que
mann identifica aqui tanto a importância toda interpretação é aplicação, solução de
da pré-compreensão para o acesso ao pro- um caso, que a plenitude de sentido não é
blema jurídico pertinente quanto a circu- uma qualidade abstrata da norma em si e
laridade do processo de compreensão. “Só que esse sentido só pode ser buscado em
posso compreender o caso concreto como vista de uma situação concreta de aplica-
um caso de roubo qualificado quando eu ção (real ou imaginária, acrescentam al-
souber o que é um roubo qualificado; mas guns). Ao mesmo tempo, o secionamento
não posso saber o que é um roubo quali- entre interpretação da lei e qualificação
ficado sem uma análise adequada do caso dos fatos é agora substituído pela famosa
concreto. A interpretação que faz de uma imagem do “vaivém do olhar” (Hin- und
norma legal uma previsão normativa (Ta- Herwandern des Blickes)1 entre os possí-
tbestand) ocorre no caso concreto, e a veis significados da norma e as possíveis
construção que transforma o caso concreto qualificações da situação material. Um
(os fatos) num caso típico (Sachverhalt) movimento oscilatório do raciocínio que
ocorre dentro da norma legal” (Kaufmann, rompe também com a linearidade de sua
1994: 161-162). representação tradicional: em lugar de um
O reconhecimento dessa circulari- encadeamento ordenado e metódico de eta-
dade afeta imediatamente a imagem da pas fala-se agora numa alternância entre os
“estrutura” ou da “forma” do raciocínio dois planos e numa sucessão de hipóteses
desenvolvido pelo operador do direito. A provisórias referentes tanto aos respectivos
concepção tradicional da aplicação, mar- resultados (a fattispecie e a qualificação
cada pela visão de uma hierarquia entre o dos fatos) quanto à solução do litígio.
normativo abstrato e o fático concreto a lhe A condução dessas reflexões mostra-
ser “subsumido”, não se sustenta mais a se às vezes sensível ao problema, assim
partir do momento em que se compreende implicitamente colocado, da vinculação
que o conteúdo do “normativo” não pode da concepção metodológica tradicional ao
ser determinado abstratamente, mas uni- dualismo Sein-Sollen. A consciência dessa
camente em função da situação concreta a questão teórica mais abstrata pode orientar
ser decidida. Para se ter uma representação as investigações no sentido de tentar for-
realista do que os juízes fazem não basta mular uma teoria metodológica original
reconhecer a abertura e a indeterminação concentrada na exploração da relação en-
da regra jurídica. Essa indeterminação por tre “norma” e “realidade”.2 Tal parece ser
si só não compromete a hierarquia abstra- o caso da audaciosa “teoria estruturante”
to-concreto, apenas transfere do legislador de Müller, para quem o normativo — isto
para o juiz, no todo ou em parte, a tarefa é, “tudo aquilo que determina o caso con-
de determinar, sempre abstratamente, a creto, tudo o que orienta a solução desse
premissa maior do silogismo. O passo de- caso” (Muller, 1996: 106) — não se encon-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 295

tra apenas no texto da “norma” legislada, dições de possibilidade do processo deci-


mas também em aspectos da própria reali- sório enquanto processo de compreensão,
dade. A normatividade (no contexto de sua o que já corresponde a uma outra ordem de
concepção da Rechtsfindung Müller fala preocupações. Pois se estaria de fato dei-
em normatividade, mais do que em norma) xando escapar o significado propriamente
é construída no curso de um processo, dito filosófico da noção de pré-compreensão
de “concretização”, de que fazem parte caso nela não se visse mais do que uma
as “estruturas materiais” da realidade, na conjectura inicial ou uma antecipação glo-
medida em que alguns dos aspectos desse bal do sentido do texto a ser interpretado,
âmbito material geral (Sachbereich) são um momento inicial do processo interpre-
selecionados (recortados) pelo “programa tativo. Quanto ao círculo hermenêutico
normativo” (resultante da interpretação como mera imagem da dialética entre a
do texto da norma) e desse modo “alça- parte e o todo, não se trata de modo algum
dos” à normatividade a título de “âmbito de uma noção específica da hermenêu-
normativo” (Normbereich). Um estudo tica gadameriana, mas simplesmente de
dedicado exclusivamente à JH deveria ali- um velho topos da retórica retomado pela
ás demorar-se mais a respeito de Müller, hermenêutica romântica “pré-filosófica”.
porque com ele a concepção hermenêuti- Assim empregadas essas noções ajudam a
ca da estrutura dos processos decisórios expressar a visão que a JH propõe da estru-
assume ares mais “construtivistas”. Não tura da Rechtsfindung, mas não conduzem,
se trata mais simplesmente de “colocar” a enquanto tais, à tematização das suas con-
imagem de um vaivém do olhar no lugar dições de possibilidade.
da concepção hierarquizada e secionada da Na filosofia hermenêutica essas no-
aplicação, mas também de a explorar me- ções veiculam acima de tudo, indo com
todicamente: a concretização inclui tanto a isto muito além do plano metódico, a pro-
interpretação do texto quanto a análise do blemática da prévia estrutura ontológica da
âmbito normativo, passando o tratamento compreensão, transformada em questão fi-
metódico dessa análise a constituir todo losófica fundamental. O movimento circu-
um programa teórico (Muller, 1976: 246 lar da compreensão é então uma idéia deri-
e 255). vada desde Heidegger da temporalidade do
Dasein (Gadamer, 1996: 286), da qual não
2.2. Da circularidade às condições de pos- pode portanto ser dissociada. O fundamen-
sibilidade da interpretação to existencial do círculo hermenêutico im-
plica assim a superação não apenas do pla-
Todas essas idéias evocam imediata- no da relação formal da parte com o todo,
mente teses e temas muito conhecidos da mas também da cisão, própria da teoria
filosofia hermenêutica: o círculo herme- hermenêutica do século XIX, entre de um
nêutico da compreensão, a pré-compreen- lado o desenvolvimento circular da com-
são ou ainda a impossibilidade de disso- preensão e, de outro, o desaparecimento
ciar a interpretação da aplicação. Mas não dessa circularidade quando da compreen-
se referem apenas à estrutura ou à forma são plenamente acabada: a dissolução final
do raciocínio judicial: os elementos que o do círculo significaria a eliminação de tudo
compõem, seu desenrolar, seus objetivos, aquilo que há de estranho ou alheio no tex-
sua dinâmica. Veiculam também, e mais to, reconciliando a interpretação com a ob-
profundamente, uma reflexão sobre as con- jetividade das ciências. Ao contrário disso,

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


296 Gustavo Just

ao círculo se atribui agora um “significado preensão se produz sempre “algo como


ontológico positivo”, e a compreensão se uma aplicação do texto a ser compreendi-
considera “permanentemente determinada do à situação presente do intérprete”. Se
pelo movimento de antecipação da com- “compreender é sempre aplicar”, é porque
preensão”. O círculo corresponde a um o texto “para ser compreendido como o re-
“jogo em que se entrelaçam o movimento quer, ou seja, segundo a exigência que lhe
da tradição e o do intérprete”, e o objetivo é própria, deve a cada momento, isto é em
do intérprete não consiste em neutralizar cada situação concreta, ser compreendido
esse jogo para, fazendo “abstração de si”, de uma maneira nova e diferente” (Gada-
se transportar no autor, e sim em preser- mer, 1986: 330-335, 346). A aplicação pro-
var a relação de relativa alteridade e con- voca a tensão entre o presente e o passado,
tinuidade que mantém com este último, o entre duas situações hermenêuticas, entre
que encontra uma expressão na noção de dois horizontes, com suas diferentes ques-
compreensão como um processo de “fusão tões, suas diferentes expectativas. O tema
de horizontes”, que Gadamer desenvolve da aplicação serve então para introduzir
tendo em mente sobretudo a experiência outras duas teses fundamentais. A primei-
da interpretação histórica do passado. Se ra é a da pertinência à tradição como uma
a pré-compreensão continua sendo “a pri- condição do exercício da compreensão nas
meira de todas as condições hermenêu- ciências do espírito. Gadamer quer então,
ticas” do compreender, a antecipação de e este esforço atravessa diferentes partes
sentido que ela opera “não é um ato da de Verdade e método, substituir as preten-
subjetividade, determina-se na verdade sões da consciência histórica “estética”,
a partir da comunidade (Gemeinsamkeit) objetivista, da hermenêutica até Dilthey
que nos liga à tradição” (Gadamer, 1996: pela tomada de consciência da pertinên-
287, 315-316, 318). cia à tradição: para compreender o texto,
A problemática fundamental das con- o intérprete “não se pode (darf) propor a
dições de possibilidade da compreensão fazer abstração de si próprio e da situação
também está embutida na tese segundo a hermenêutica concreta em que se encon-
qual a interpretação é indissociável da apli- tra” (Gadamer, 1986: 346). A segunda é
cação, tese essa presente na referência que a da “primazia hermenêutica da questão”,
Gadamer fazia ao “significado exemplar mas dessa tese por enquanto cabe apenas
da hermenêutica jurídica”. É verdade que a registrar que ela destaca a “importância
afirmação de ordem “metódica” relativa ao do conceito de questão para a análise da
caráter necessariamente concreto ou cir- situação hermenêutica” (Gadamer, 1996:
cunstancial da busca do sentido faz parte 385) e que em conseqüência a alteridade
dessa tese: “(...) o discernimento do sentido de situações suscitada pela aplicação é,
de um texto jurídico e sua aplicação a um numa medida significativa, uma alteridade
caso concreto não são dois atos separados, de questões.
e sim um processo unitário”. Mas o grande É sobretudo em Esser — um autor
préstimo da noção de aplicação para o ra- emblemático, em muitos aspectos, da JH,
ciocínio de Gadamer consiste em eviden- em cujo âmbito sua obra fundamental Pré-
ciar a relação entre o presente e o passado compreensão e escolha do método, de 1970,
e a corresponde dualidade de situações, a se impôs rapidamente como uma referên-
do texto e a do intérprete. A aplicação é cia obrigatória e como a principal fonte te-
aplicação a uma situação: no seio da com- órica comum — que a crítica da visão hie-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 297

rarquizada, secionada e linear da estrutura questão de regulação (relativa ao proble-


e do desenrolar do processo de aplicação ma concreto) com vistas ao possível signi-
do direito se faz por meio de um esquema ficado das diretrizes do texto questionado
conceitual que põe imediatamente em jogo é assim o ato decisivo sem o qual o senti-
a problemática propriamente hermenêutica do regulador de uma expressão contida na
das condições de possibilidade da compre- linguagem da lei permanece simplesmente
ensão no direito, isto é, da interpretação. A inacessível (Esser 1970: 134-135). Todos
dialética dos dois planos da Rechtsfindung, os elementos de um plano são então re-
cuja complexidade Esser procura constan- lacionados com os do outro e referidos à
temente ressaltar, é encarada então como visão da decisão final adequada (mas tam-
uma forma de relação hermenêutica entre bém, como se verá adiante, à possibilidade
duas situações, o horizonte da norma e o de justificá-la), numa dialética incessante
da “situação de conflito”. A primazia da entre olhar retrospectivo dos problemas e
pergunta se manifesta tanto na forma como das necessidades e visão prospectiva das
cada horizonte é apreendido pelo intérprete expectativas e da solução, entre pertinên-
como no mecanismo de busca de um com- cia à tradição e busca de um compromisso
promisso que põe em marcha o processo com o horizonte alheio.
decisório. Assim, o raciocínio do intérpre-
te parte da constatação do problema atual, 2.3. Das condições de possibilidade às
passando imediatamente a vislumbrar a condições de validade
sua futura solução. É por isso que se alude
a uma precedência do caso relativamente A assimilação por Esser dessa pro-
ao texto normativo, enquanto elemento blemática é portanto essencial à sua radica-
deflagrador da interpretação. Kriele (1976: lização da visão da complexidade e da dia-
240), um autor cujas formulações geral- lética do raciocínio judicial. Mas o tema da
mente se aproximam das de Esser (razão pertinência à tradição como uma condição
pela qual são às vezes alvo das mesmas do exercício da compreensão se introduz
críticas) observa que muitas teorias da in- de tal forma em seu pensamento que reve-
terpretação pressupõem equivocadamente la, por outro lado, a implicação substancial
que o ponto de partida do processo inter- entre o projeto de revisar a concepção da
pretativo é a constatação pelo intérprete do condução efetiva dos processos interpre-
caráter equívoco ou lacunoso do texto que tativos e o de buscar os fundamentos da
acaba de ler, seguindo-se então a busca de controlabilidade racional desses mesmos
sua compreensão correta — uma pressupo- processos. (É importante lembrar aqui que
sição que dissocia a interpretação do texto o projeto teórico da JH nunca pretendeu
do problema jurídico concreto. Por outro ser puramente empírico ou descritivo, ain-
lado, o intérprete não pode conhecer a lei da que num primeiro momento a polêmica
sem ter acesso ao raciocínio prático que a contra a “metodologia tradicional” tenha
embasa, o que equivale a interrogar seus mobilizado uma grande parte de seus es-
objetivos (que precisam ser atualizados) forços para a afirmação e a descrição do
e seus fundamentos, suas razões de ser. poder criador do juiz, e ainda que a distin-
Enfim, é apenas a partir, e em função, da ção entre contexto de descoberta e contexto
prévia compreensão do problema concreto de justificação tenha sempre aqui um papel
que o intérprete pode interrogar o texto, de importante.) No pensamento e nos textos
modo que a transmissão de uma específica de Esser (eles próprios muitos circulares),

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


298 Gustavo Just

essas duas preocupações estão imbricadas ção do juiz (Freiheit des Richters zur Wer-
de tal forma que às vezes é impossível tung), que tem a necessidade de justificar
desvencilhar as respectivas passagens. Em o resultado obtido ou pelo menos torná-lo
todo caso, o ponto de partida consiste em plausível” (Esser, 1970: 116, 138).3 Mas,
definir a situação hermenêutica do intér- sobretudo, a esse âmbito assim definido
prete enquanto tomador de decisões — o do problema corresponde uma perspectiva
que inclui a pré-compreensão em sua du- a partir da qual Esser se propõe a pensar
pla dimensão de pré-decisão e de projeção positivamente a racionalidade dos proces-
de uma tradição — como o “âmbito” no sos decisórios: a perspectiva do condicio-
qual se deve elaborar o problema da racio- namento do intérprete e de sua posição de
nalidade: o método precisa “lidar com a mediador. Abordar a questão da racionali-
decisão, seus horizontes e suas perspecti- dade a partir da situação hermenêutica do
vas de escolha” antes de se preocupar com intérprete conduz à tentativa de fundamen-
as normas. “O acesso à racionalidade da tar o caráter racional das interpretações
decisão permanecerá obstruído enquanto precisamente no fato de que são situadas.
continuarmos a considerar a decisão como Se a interpretação enquanto aplicação, no
o produto, metodologicamente sem inte- sentido da hermenêutica, implica a dife-
resse, do trabalho com a norma e da sua renciação temporal, a tensão e a dualidade
compreensão...” (1970: 78, sem itálico no entre dois horizontes, o intérprete se define
original). não apenas pela função que exerce — a in-
Fazer da situação do intérprete o terpretação —, mas também pela posição
lugar do problema da racionalidade não que ocupa numa relação, uma posição es-
significa, todavia, reduzir o julgamento à sencialmente intermediária: entre o objeto
esfera de sua subjetividade. Desde logo, é interpretado e o destinatário ou benefici-
unicamente por meio da tomada de consci- ário da interpretação. Toda a reflexão de
ência das “condições fundamentais do seu Esser sobre as “garantias de racionalidade
trabalho” que o intérprete pode evitar os da práxis decisória dos juízes” (garantias
efeitos perversos da alternativa que consis- irredutíveis a um critério ou fator unitário)
tiria em neutralizar ou mesmo dissimular está de fato organizada em função dessa
o caráter político-jurídico do raciocínio dúplice idéia central da posição e do papel
judicial. (No âmbito da JH alude-se com de mediação implicados pela situação her-
freqüência à “consciência da pré-compre- menêutica do intérprete: o intérprete é um
ensão” como uma condição fundamental mediador entre os dois horizontes que ao
da racionalidade das interpretações.) Con- mesmo tempo o condicionam, o horizonte
tra aqueles que o acusam de abandonar a da “norma” e o do “conflito social” (Esser,
interpretação à política, em razão de sua 1970: 114-137). (É, aliás, essa organização
atitude pretensamente “antimetodoló- que garante alguma legibilidade a um tex-
gica”, Esser responde que o que abre as to desprovido de estrutura sistemática e às
portas à perversão do direito é na verdade vezes obscuro).
“a pretensa Wertungsfreiheit dos métodos No que diz respeito à situação de
jurídicos e da lógica conceitual, que já de- conflito, Esser evoca sua apreensão pelo
sempenhou diversas vezes esse papel po- intérprete enquanto situação típica, forma-
lítico. A suposta Wertfreiheit do raciocínio da “não pelas expectativas dos indivíduos
jurídico está necessariamente mais sujeita que procuram a proteção jurídica, e sim
às ideologias do que a liberdade de valora- por aquelas (em sua situação de conflito

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 299

com expectativas concorrentes) de qual- é aquele que teria sido imposto por uma
quer outro indivíduo potencialmente afeta- vontade legislativa entendida como impe-
do por interesses já reconhecidos alhures”. rativo “histórico”, e sim aquele que deriva
Mas como esse horizonte de expectativa é do sedimento sócio-axiológico do sistema,
geral e conflitual, o juiz só pode integrá- e ao qual o intérprete pode ter acesso ao
lo ao ato de obtenção do direito (Rechts- se interessar pelos princípios, pelas idéias
findungsakt) levando em consideração jurídicas gerais, pelos brocardos — esse
“o esperado consenso social em torno de conjunto de elementos daquilo que Esser
uma decisão ‘razoável’”. Assim, é a par- chama da infra-estrutura pré-positiva da
tir de uma tal expectativa de consenso que norma, e que inclui tanto os consensos
“o modelo de regulação se faz interrogar axiológicos recepcionados e controlados
quanto a seu sentido possível em vista do pelo direito como aqueles que permane-
conflito em questão” (Esser, 1970: 136- cem no estado de modelos pré-jurídicos
137). A interrogação do horizonte passado de ação, juridicamente determinantes de
da norma corresponde por sua vez à inter- uma forma indireta, ainda que apenas por
venção, na constituição da racionalidade ocasião dos atos críticos de controle da
dos processos decisórios, de fatores perti- adequação. Um sistema jurídico positivo
nentes à positividade do direito. Mas a pre- é, portanto inteligível porque as normas
sença do positivo e do sistemático não se que o compõem não são enunciados iso-
contrapõe ao caráter “jurídico-político” ou lados reunidos de uma forma arbitrária
“material” dos processos decisórios, uma ou aleatória, e sim um produto histórico e
vez que Esser defende (e isso remonta à provisório de um ciclo permanente no qual
época pré-gadameriana do seu pensamen- se sucedem a descoberta dos problemas,
to) uma concepção sócio-axiológica e anti- a formação dos princípios e a articulação
imperativista da positividade entendida de um sistema. O sistemático no direito
como um processo dinâmico e permanen- corresponde então no pensamento de Esser
te de positivação. A norma se apresenta não a uma propriedade lógico-formal, mas
como algo de inteligível na medida em que antes à idéia de uma “ordenação” entre ele-
não seja encarada como um ato imperativo mentos que formam a experiência jurídi-
da autoridade, estabelecido uma vez por ca: a inserção das normas numa totalidade
todas, e sim como um “modelo de regu- legislativa (a “superestrutura” da norma),
lação”, como um dos pólos de um diálo- mas sobretudo, no plano da infra-estrutura,
go, como uma injunção de atualizar uma a conexidade axiológica e teleológica entre
finalidade normativa que não se destina, e os diferentes bens e finalidades protegidos
que em todo caso não se prestaria, a uma e reconhecidos ou entre as representações
execução mecânica, e sim a uma aborda- axiológicas pré-positivas. A positividade,
gem interpretativa, a uma compreensão por sua vez, implica exatamente a abertu-
enquanto fusão de horizontes, que dá um ra ao mesmo tempo cognitiva e funcional
sentido atualizado ao modelo interrogan- entre o jurídico e o pré-jurídico. “A própria
do-o a partir do contexto de expectativas funcionalidade do direito enquanto siste-
da situação de conflito. Em seguida, para ma depende inteiramente da inclusão con-
que a norma possa funcionar como modelo trolada dos juízos de valor pré-jurídicos ou
de regulação, aberto a uma compreensão em todo caso pré-positivos” (Esser, 1970:
de sentido, é preciso poder conectá-la a um 165). O papel do sistemático (assim en-
“esquema interpretativo geral”, que não tendido) na racionalidade própria do pro-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


300 Gustavo Just

cesso decisório corresponde não apenas à — Rechtsredlichkeit) e, do outro, a “atra-


inclusão, na interrogação desse “horizonte ção de expectativa”, isto é, a consideração
alheio” que é a norma, da busca do seu se- da adequação concreta e geral da decisão à
dimento pré-positivo, mas também à toma- consciência social. Mas já permite mesmo
da de consciência, por parte do intérprete, assim entrever as razões pelas quais a vi-
das exigências ligadas à projeção geral e são esseriana é muitas vezes considerada
sistemática da decisão concreta. O sistema incapaz de submeter o processo decisório a
positivo é “preservado” na medida em que uma verdadeira instância crítica metódica,
o intérprete se mostre consciente do fato de baseada num critério concreto e operacio-
que a própria atividade judicial, e, portan- nal — frustrando com isso um anseio natu-
to a decisão por ele tomada, contribui para ralmente associado ao problema da racio-
transformar o sistema, e na medida em que nalidade das interpretações jurídicas.
leve em consideração a expectativa de uma Inicialmente, o caráter racional do
evolução coerente, expectativa que decor- relacionamento do juiz com o horizonte de
re da necessidade ao mesmo tempo formal expectativa da situação de conflito é forte-
e material de estabilidade e de continui- mente dependente de uma noção de con-
dade. “Os critérios [da decisão] não são senso que permaneça totalmente impreci-
apreciados levando-se em consideração sa. Essa noção às vezes parece sugerir uma
unicamente a admissibilidade da decisão forma de racionalidade discursiva, mas as
concreta do caso, mas também em consi- suas formulações sempre vagas não espe-
deração da admissibilidade e da utilidade cificam, dentre outras coisas, as condições
das representações jurídicas subjacentes próprias a esse consenso (apresentado qua-
com relação ao ‘sistema’, isto é, em con- se sempre como hipotético, e não efetivo)
sideração da possível ‘continuidade do tra- — a não ser com a referência à exigência
balho’ (Weiterarbeiten). As reflexões sobre fundamental da aptidão ao diálogo (Ges-
a aceitação de uma determinada solução prächfähigkeit) e da inteligibilidade dos
não levam em conta apenas sua utilidade interlocutores, “isto é, a sua capacidade de
concreta ou ocasional, mas também a ap- se deixarem persuadir pela força dos co-
tidão geral ao prosseguimento de uma cor- nhecimentos racionalmente transmitidos, e
respondente práxis jurisdicional” (1970: não, em todo caso não principalmente, pela
148). (Essa passagem lembra naturalmente autoridade e pela sugestão” (Esser, 1970:
as noções dworkinianas do direito como 25). Ignora-se ainda totalmente em que
integridade e do direito como um romance medida Esser imagina uma organização
em cadeia, escrito coletivamente.) institucional das condições favoráveis ao
desenvolvimento de uma prática argumen-
2.4. A controlabilidade da interpretação: tativa ou discursiva efetiva, organização
qual instância crítica? essa destinada a envolver o processo judi-
cial de obtenção do direito, ou se, muito
A apresentação que se acaba de ofe- ao contrário, tudo o que ele tem em men-
recer não relata todas as nuances de um te é apenas um diálogo hipotético (nesse
pensamento que quer explorar a fundo a último caso a Rechtsfindung estaria então
dialética incessante de um “ato de obten- destinada a ser essencialmente um proble-
ção do direito” entendido como um “vai- ma do juiz, e não a se tornar um processo
vém do olhar” entre, de um lado, a pres- aberto, plural, comunicacional).
são do sistema (ou, antes as necessidades Quando se examina em seguida a par-
de uma inviolável “integridade jurídica” cela de racionalidade que residiria na con-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 301

sideração, pelo intérprete, da positividade é, como antes observado, o representan-


e do sistema, já não é mais a capacidade de te mais venerado: não haveria finalmente
Esser de fundar uma controlabilidade me- uma tensão e mesmo uma profunda con-
tódica que se põe em dúvida, e sim, mais tradição entre os objetivos da JH, que quer
fundamentalmente, o seu próprio compro- ser uma teoria “metodológica” do direito,
misso (todavia sugerido em algumas de e a hermenêutica filosófica “relativista” e
suas afirmações) com essa aspiração. A “antimetodológica” na qual aquela preten-
despeito de algumas ambigüidades e tal- de estar apoiada?
vez de algumas incoerências, Esser parece A questão não é simples. A sedução
na realidade muito longe, quando evoca exercida pela filosofia de Gadamer junto à
a inteligibilidade que seria propiciada ao JH não se devia apenas ao fato de lhe for-
sistema pelo seu sedimento axiológico, necer os instrumentos teóricos necessários
de querer fazer da “reserva” de princípios ao desenvolvimento de uma fenomenolo-
e idéias jurídicas gerais a fonte ou o fun- gia dialética e “material” do ato interpre-
damento de um cognitivismo rigoroso ou tativo, mas também à perspectiva que a
metódico. Os princípios não são “objetos” hermenêutica filosófica pareceu oferecer
postos à disposição de um “sujeito” sobera- de uma saída para a crise da “racionalida-
no, o intérprete, com vistas a um conheci- de jurídica”, à qual estava ligada a crítica
mento entendido como apreensão objetiva da tradição positivista que desencadeia,
que permitiria, num segundo momento, a como se viu, a guinada antiformalista da
derivação da decisão a partir do conteúdo qual derivou a JH. É que a hermenêutica
normativo abstrato assim fixado. Formam gadameriana não era insensível às preocu-
apenas um “esquema interpretativo geral”, pações epistemológicas e metodológicas,
que aliás não apenas alimenta o sistema a despeito dos rótulos algo reducionistas
jurídico, como também participa do con- que lhe são atribuídos, inspirados sobre-
dicionamento hermenêutico da sua própria tudo no debate entre Gadamer e Betti e
compreensão, na medida em que faz parte apoiados numa distinção antagonista entre
de uma tradição cujos efeitos se projetam hermenêutica ontológica e hermenêutica
sobre a pré-compreensão do intérprete. metódica e crítica. A “guinada ontológica”
Dessa forma Esser evacua o voluntarismo da hermenêutica, embora seja sem dúvi-
subjetivista tanto, por um lado, como ex- da uma das grandes marcas distintivas do
plicação da produção do direito (a crítica pensamento de Gadamer, não se apresenta
do imperativismo) quanto, por outro, como como uma alternativa, uma superação ou
fundamento do seu conhecimento. Em ou- um abandono das questões epistemológi-
tras palavras, se não há um sujeito racio- cas, e sim como o seu prolongamento no
nal autônomo que por sua “vontade” cria sentido de um alargamento do campo de
o direito, sua interpretação também não é reflexão sobre a compreensão, que é assim
função de uma vontade racional de um au- elevada ao nível de problemática filosófica
tônomo “sujeito” conhecedor. autônoma e fundamental. O problema da
3. A JH e a filosofia hermenêutica: o di- epistemologia e da consciência metodoló-
lema gica das “ciências do espírito” é, como se
sabe, o ponto de partida e um tema sempre
Essas questões conduzem a uma dis- central de Verdade e Método. Por isso o pro-
cussão que vai além da obra de Esser e que jeto apresentado por Gadamer de legitimar
diz respeito a toda a corrente da qual ele filosoficamente a pretensão das ciências do

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


302 Gustavo Just

espírito de dispor não simplesmente de um seu exercício. Logo, se o apelo feito à her-
método próprio, mas de uma noção espe- menêutica filosófica pela teoria do direito
cífica de verdade, distinta daquela subja- às voltas com a crise da racionalidade da
cente às práticas das ciências exatas ou da operação intelectual dos juristas não tem
natureza, pôde parecer anunciar a solução na verdade nada de aberrante, uma dificul-
“pós-positivista” que se buscava no âmbito dade real reside mesmo assim na primazia
do novo Methodenstreit. Mais do que isso, que a perspectiva hermenêutica confere ao
no desenvolvimento desse projeto a her- relativismo e à reflexão sobre a historici-
menêutica jurídica, no sentido da prática dade do conhecimento em detrimento do
interpretativa dos juristas, é contemplada, desenvolvimento de uma instância crítica.
como já se indicou, com a atribuição de um Ocorre que no contexto mais geral da te-
“significado exemplar” (Gadamer, 1996: oria jurídica “pós-positivista” constitui já
347-363). Isto é, a filosofia hermenêutica um problema muito delicado a harmoni-
não apenas parecia anunciar a racionalida- zação entre de um lado as expectativas de
de pós-positivista reclamada pelos juristas, decidibilidade e não arbitrariedade, ligadas
como além disso os incitava a buscar em à prática dos juristas, e de outro a revisão
sua própria prática efetiva (e não, em todo para baixo das ambições epistemológicas
caso não principalmente, na elaboração de de objetividade e de certeza, produzida
um modelo contrafático) os elementos que pela crise do racionalismo. Nessas condi-
a constituem. ções, a vinculação à atitude racionalmente
Mas é na concepção concreta dessa “humilde” da hermenêutica, que se priva
controlabilidade que surge o problema. É de elementos críticos precisos e opera-
verdade que não cabe ver na recusa de Ga- cionais, pode produzir um sentimento de
damer em prescrever um método interpre- impotência que não contribui para atenuar
tativo ou em indicar as regras ou critérios esse incômodo. Ainda mais que à desesta-
da interpretação correta algo como um “ju- bilização epistemológica geral vem-se so-
ízo de inadmissibilidade” da pretensão de mar o problema específico da ausência de
se submeter a compreensão a uma instân- um “cognitivismo ético” tal como se torna
cia crítica. Apel (1994: 32) observa mes- urgente para uma Wertungsjurisprudenz
mo a esse respeito que “a fenomenologia que não tem a intenção de se deixar con-
hermenêutica só pode exercer sua função verter em realismo cético.
corretiva do estreitamento metodologista Trata-se para a JH de um verdadeiro
e cientificista da problemática da verda- dilema: manter-se coerente com a herme-
de caso ela mesma não se seja indiferente nêutica e precisar proceder a uma muito
de um ponto de vista metodologicamente hipotética reacomodação das expectativas
normativo”. Ocorre precisamente que uma e mesmo exigências imanentes à função do
tal “normatividade” não pode ser mais do intérprete do direito, ou então amparar es-
que potencial, uma vez que os esforços de tas expectativas e com isso assumir o risco
Gadamer se situam no plano mais abstra- de contrariar a teoria filosófica que lhe tor-
to da justificação filosófica da aptidão à na possível uma renovada reflexão sobre
racionalidade das ciências sociais, de sua os processos decisórios, imunizada contra
“pretensão à verdade”; em outras palavras, reducionismos e esquematismos.
situam-se no plano da definição do “lugar” Ainda que esse dilema não tenha sido
específico dessa racionalidade, mais do que explicitamente elaborado e enfrentado no
no da elaboração concreta das formas de âmbito da JH, a evolução dessa corrente

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 303

apresenta, às vezes num mesmo autor, os- mitação jurídica do poder, tal como legada
cilações e vacilações que traduzem exata- pela história do constitucionalismo liberal
mente a tensão entre sua matriz filosófica (inclusive pela tradição alemã, pioneira da
e as aspirações (ao mesmo tempo teoréti- doutrina publicista do Estado de direito), se
cas e pragmáticas) indissociáveis do seu projeta de uma maneira central e profunda,
próprio surgimento no mundo das idéias possivelmente sem precedentes, sobre a
jurídicas. Na seqüência se verá como o Lei Fundamental de 1949 (mas também
condicionamento da JH pelo contexto do sobre as constituições dos Estados-mem-
constitucionalismo “ambicioso” e “juridis- bros) e sobre o modo como foi em geral
ta” da Lei Fundamental favoreceu algumas compreendida. Em seguida acentua-se a
soluções por assim dizer “racionalistas” importância dessa idéia como princípio de
desse dilema, caracterizadas por uma es- legitimação na medida em que o advento
pecial sensibilidade às expectativas e às da noção de democracia constitucional
exigências jurídicas e políticas de decidi- reforça sua ascendência sobre o campo
bilidade e de controlabilidade das decisões político enquanto plano concorrente de le-
e portanto pela atribuição de uma impor- gitimidade.
tância primordial à necessidade de suprir o Embora o juridismo encontre di-
déficit crítico da hermenêutica. ferentes formas de expressão na expe-
riência jurídica do pós-guerra (pense-se
4. O constitucionalismo da Lei Funda-
por exemplo no “renascimento do direito
mental e a “racionalização” da jurispru-
natural” ou no sobressalto jusnaturalista
dência hermenêutica
da doutrina e da jurisprudência constitu-
4.1. Primazia do direito, juridismo e demo- cionais na década de 1950), é a Lei Fun-
cracia constitucional damental, “enquanto resposta à tirania
nacional-socialista” (Maunz e Zippelius,
As noções de Estado de direito e de 1994: V), que propicia ao Estado de direito
primazia do direito fazem evidentemente o seu apogeu como princípio de organiza-
referência a processos históricos político- ção constitucional. Além da declaração de
institucionais e a complexos de representa- princípio segundo a qual “a legislação está
ções e de valores que são indissociáveis da vinculada à ordem constitucional, o poder
caracterização geral da sociedade contem- executivo e a jurisdição estão vinculados
porânea de tipo ocidental ou liberal em seu à lei e ao direito” (artigo 20, III, sem itá-
conjunto. Apesar disso é comum evocar as lico no original), estão previstos diversos
idéias de juridismo ou de culto do direito mecanismos concretos de enquadramento
a propósito especificamente da República e de limitação jurídicos do exercício do po-
de Bonn4 na medida em que o Estado de der. Os mais importantes são a garantia dos
direito enquanto princípio de organização direitos fundamentais, que ocupa o título
e de legitimação encontra uma expressão primeiro da Constituição, a disposição de
particularmente acentuada e, num segun- um amplo sistema de controle de consti-
do momento, renovada no processo de tucionalidade e a instituição (artigo 79)
reconstrução da experiência político-cons- de limites da reforma constitucional. Esse
titucional alemã após o desmoronamento último ponto é particularmente inovador.
moral e institucional ocorrido ao término Por um lado inaugurou-se uma tendência,
do período nazista. Podem-se distinguir que se confirmaria nas décadas seguintes,
dois aspectos. Inicialmente, a idéia de li- a atribuir uma grande importância ao esta-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


304 Gustavo Just

belecimento de limites materiais ao poder processo de reconstrução da vida política


de reforma das constituições produzidas e constitucional da República Federal, o
democraticamente após a queda de um fardo do período hitleriano não produziu
regime autoritário e a incluir nesse núcleo apenas o paroxismo do Estado de direito
rígido o próprio princípio democrático e os motivado pela preocupação de evitar a vol-
elementos que compõem o Estado de direi- ta do Unrechtsstaat; provocaria também a
to. Por outro lado a Lei Fundamental criou contestação do substrato subjetivo da de-
o que a dogmática veio chamar de “obri- mocracia. A definição da noção de “povo”,
gação de modificação do texto” (artigo 79, cuja autonomia ou autolegislação caberia
I), um limite formal à reforma que proíbe à democracia realizar, é evidentemente
a prática, freqüente durante a República de dependente de um critério de pertinência.
Weimar, da “quebra constitucional” (Ver- Ocorre que o famoso “sentimento de cul-
fassungsdurchbrechung), isto é, a adoção, pa” dos alemães com relação aos crimes
com a maioria exigida para uma modifica- cometidos por seu Estado-nação histórico
ção da constituição, de uma medida con- deslegitimava como elemento de coesão
trária a um dispositivo constitucional mas a nação entendida como o conjunto de
que se aplica unicamente a uma ou várias dados “pré-políticos” tais como a etnia, a
situações especificadas e que tem assim um comunidade lingüística, a cultura e a histó-
caráter excepcional, de modo que a regra ria. A noção de patriotismo constitucional
constitucional contrariada não é revogada. aparece então para propor que se redefina
Se sob a vigência do texto de 1919 a doutri- a referência identitária — indispensável ao
na procedia sem maiores questionamentos funcionamento da democracia enquanto
à dogmática da quebra constitucional (por princípio de legitimação — sobre a base
exemplo: Schmitt, 1992: 115-116), depois da identificação com os princípios e as
da guerra considerou-se muitas vezes que instituições da constituição. Se a sua ela-
essa técnica havia tornado possível a pro- boração foi estimulada em duas ocasiões
gressiva substituição, sob os auspícios da pelas reflexões sobre as circunstâncias
legalidade, da democracia de Weimar pelo peculiares à história alemã, o pós-guerra
autoritarismo do Terceiro Reich, em razão (Sternberger, 1990) e, como o encerramen-
da incerteza que gerava quanto ao conteú- to deste, a reunificação (Habermas, 1990),
do do direito constitucional em vigor e da o conceito de patriotismo constitucional
conseqüente desvalorização do documento faz parte atualmente (graças sobretudo
constitucional (Loewenstein, 1961: 39-40). ao efeito universalizante de sua inserção
A instituição da obrigação de modificação por Habermas em sua concepção proce-
do texto ilustra assim a preocupação de dimental e discursiva da legitimidade) do
aperfeiçoar, inclusive nos detalhes, os me- amplo círculo de debates e controvérsias
canismos jurídicos destinados à “defesa da em torno da identidade pós-nacional e da
Constituição” e a evitar o reaparecimento cidadania comunitária.5 Na medida em que
do “Estado de não-direito”. a referência identitária é concebida sobre
Se o postulado da submissão da a base da adesão às instituições jurídicas
atividade do Estado a normas jurídicas (notadamente constitucionais), o Estado
traduz por si só uma juridicização da le- de direito se instala na própria definição
gitimidade, o advento da idéia de demo- da democracia. Nesse esquema represen-
cracia constitucional vem, por outro lado, tativo a ambição de absorção pelo jurídico
reforçar ainda mais o culto do direito. No do argumento político de legitimidade vai

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 305

ao ponto de fazer do direito um elemento por teóricos que figuram ao mesmo tempo
constitutivo da democracia, doravante dita entre os protagonistas da JH, como Hesse,
“constitucional”. Müller, Häberle, Kriele, Zippelius etc. Al-
O peso do argumento jurídico no guns deles integram ainda a dogmática e
conjunto dos princípios de legitimação dá mesmo a práxis constitucional, como é o
um salto qualitativo tão expressivo que até caso de Hesse, que foi juiz e presidente da
mesmo o paradoxo da jurisdição consti- Corte Constitucional Federal.
tucional, cuja legitimidade é questionada A propósito, é certamente a influente
devido à tensão entre o princípio do Esta- e muito difundida obra de Hesse que me-
do de direito e o princípio da democracia lhor ilustra a solidariedade entre a JH e as
representativa, parece sob controle: com a premissas fundamentais da teoria constitu-
noção de democracia constitucional o Es- cional da República de Bonn. Ela fornece,
tado de direito deixa de se opor à demo- antes de mais nada, a justificação teórica da
cracia ou de lhe fazer concorrência para se elevada pretensão à normatividade de uma
apresentar, ao contrário, como a solução da constituição à qual o juridismo confia não
crise da legitimidade democrática — uma apenas o papel mais defensivo de protetor
crise cujo eixo, nesse contexto, foi justa- da autonomia do campo jurídico, mas tam-
mente deslocado do problema do vínculo bém um complexo de funções mais amplo
de representatividade para o da referência e mais ambicioso. O próprio Hesse teoriza
identitária.6 Com tais premissas a legiti- essas diferentes funções: de estabilização
midade da justiça constitucional põe-se a e de conformação da vida da comunidade,
salvo de qualquer contestação: na medi- exercidas por meio da regulação do pro-
da em que o juiz constitucional garante o cesso de formação da unidade política e
“império da Lei Fundamental” e portanto a da ação estatal; de racionalização, na me-
primazia do direito, o culto do direito con- dida em que desse modo a constituição tor-
duz, em última instância, ao culto do seu na identificável e inteligível a conduta do
guardião. Estado e a formação da unidade política,
criando assim a possibilidade de uma par-
4.2. A JH e o constitucionalismo juridista: ticipação consciente e protegendo a vida
convergência e tensão política do retorno ao amorfo e ao indife-
renciado (Hesse 1993: 13). A teoria cons-
A JH interage intensamente com titucional viria então valorizar a classifica-
o constitucionalismo “juridista” que por ção das constituições à vista dos diferentes
essas vias se desenvolveu sob a vigência aspectos de suas relações com a realidade e
da Lei Fundamental, isto é, com a teoria, em especial de acordo com a sua pretensão
a dogmática e a práxis constitucionais que a regular o processo político, salientando
aspiram respectivamente a pensar, tornar ao mesmo tempo, como por exemplo Bry-
aplicável e efetiva, e que ao mesmo tem- de (1982: 27-37), que a Lei Fundamen-
po celebram, a constituição democrática tal é uma constituição “normativa” (por
e liberal e sua pretensão à normatividade. oposição às constituições “simbólicas”),
A teoria da interpretação constitucional “substancial” ou “material” (relevante
(um dos setores mais fecundos da JH) faz Verfassung, por oposição às constituições
parte da nova teoria constitucional, cujos “ritualistas”) e “pretensiosa” (por oposição
temas extra-metodológicos são além disso às constituições “descritivas”). Recusando
também eles desenvolvidos muitas vezes as concepções “politistas” do direito cons-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


306 Gustavo Just

titucional e a velha visão lassalliana de um de concretização. A primeira é a interpreta-


cotidiano sucumbir da constituição jurídica ção do texto da norma, no qual se contém
(a constituição “folha de papel”) diante da o essencial do “programa normativo” — é
constituição material (os fatores reais do aqui que intervêm os métodos interpreta-
poder), Hesse agrupa no conceito de “for- tivos tradicionais. A segunda consiste em
ça normativa da constituição” o conjunto definir “problematicamente” os pontos
de fatores dos quais depende a realização de vista do âmbito normativo (Normbe-
das normas constitucionais no mundo dos reich). E aos princípios da interpretação
fatos, e que dizem respeito por um lado à constitucional caberia a importante fun-
“possibilidade de realização” do seu conte- ção de orientar e de limitar o processo
údo (o que se traduz por sua vinculação às de relacionamento, coordenação e avalia-
forças espontâneas e às tendências de seu ção dos pontos de vista assim elaborados
tempo), e por outro à “vontade de consti- com vistas à solução do problema (Hesse,
tuição”, isto é, a vontade atual (e não a do 1993 : 26). É no conteúdo desses princí-
constituinte histórico) dos participantes da pios que se dá a convergência explícita
vida constitucional de realizar o conteúdo da teoria da interpretação constitucional e
da constituição, de considerá-lo vinculan- do constitucionalismo juridista: “unidade
te e de realizá-lo mesmo diante de resis- da constituição”, “harmonização prática”
tências ou em sacrifício dos seus próprios (praktischer Konkordanz), “proporciona-
interesses imediatos (Hesse, 1991: 18-22; lidade” (Verhältnismäßigkeit), “correção
1993: 13-17). Como se vê, esses pressu- funcional” (funktioneller Richtigkeit),
postos “praxiológicos” da força normativa “eficácia integradora” (integrierender Wi-
da Constituição aproximam essa idéia da rkung), “força normativa da constituição”
de patriotismo constitucional (surgida po- — todos esses princípios orientam a inter-
rém mais tarde, uma vez que as idéias de pretação no pressuposto de que a consti-
Hesse foram expostas pela primeira vez tuição está organizada de modo a realizar
em 1959), que pressupõe exatamente, além as ambiciosas funções de estabilização, ra-
da identificação com os princípios e as ins- cionalização, conformação e limitação dos
tituições da constituição, a disposição dos processos políticos, e na perspectiva de sua
cidadãos não apenas a obedecer voluntaria- máxima eficácia.7
mente às leis mas também ao engajamento Mas por trás dessa aparente comple-
ativo na defesa dos valores fundamentais mentaridade entre as idéias metodológicas
da sociedade (Zurbuchen, 1995: 117). da JH e os postulados da teoria constitu-
Paralelamente Hesse formula uma cional juridista se esconde uma tensão
concepção da interpretação constitucional fundamental. Engajando-se ativamente no
que de certo modo sintetiza e integra as constitucionalismo da República de Bonn,
grandes bandeiras teóricas da JH, aludin- às vezes até se confundindo com ele, a JH
do então a um processo de concretização fez sua a celebração da primazia do di-
da norma constitucional que seja “proble- reito. Isso conduziu naturalmente a uma
mático (problembezogenes), tópico (mas evolução “cognitivista” de sua teoria da
normativamente limitado e orientado) e interpretação, o que nessas condições cor-
consciente da importância da pré-compre- responde menos a uma superação do que a
ensão”. É adotando o esquema conceitual uma ocultação do dilema fundamental da
de Müller que Hesse imagina então uma JH, mencionado algumas linhas acima8. Se
distinção entre duas dimensões do processo o argumento jurídico de legitimação já era

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 307

historicamente solidário de um formalis- autor como Müller o caráter controlável e


mo que associa a aplicação do direito aos vinculado dos processos decisórios funcio-
ideais de neutralidade e objetividade, seu na muito claramente como um axioma, na
paroxismo implicava, mesmo num contex- medida em que a formulação dos métodos
to de crítica do formalismo, uma hipertro- está explicitamente subordinada ao princí-
fia das expectativas voltadas ao caráter não pio constitucional do Estado de direito: “...
arbitrário e publicamente controlável da os problemas da interpretação jurídica e da
aplicação. A “racionalidade” das decisões concretização normativa não são determi-
judiciais, em primeiríssimo lugar as da nados por considerações extraídas da her-
corte constitucional, é uma invariável num menêutica filosófica ou da hermenêutica
determinado esquema de legitimidade e geral das ciências do espírito, mas acima
corre o risco de se converter em axioma de de tudo pelas formas especificamente jurí-
uma determinada teoria da interpretação. dicas do raciocínio e pelas prescrições do
Naturalmente que a JH não podia renegar direito em vigor, dentre as quais cabe prin-
o seu antiformalismo radical, que comba- cipalmente incluir os imperativos constitu-
tia não apenas a idéia de submeter o co- cionais que gravitam em torno do princípio
nhecimento dos juristas ao modelo de uma do Estado de direito”. Da pretensão carac-
racionalidade instrumental e tecnicizada, terística do Estado de direito — “o juiz
mas também a persistência na consciência não pode engendrar o poder, pode apenas
dos aplicadores do direito da representa- ser o seu intermediário” — seria possível
ção de uma aplicação mecânica, hierarqui- deduzir uma série de prescrições dirigidas
zada, puramente reprodutora e axiologi- ao próprio direito e à metodologia de sua
camente neutra, de modo que a sobrevida interpretação, dentre elas a clareza e a sin-
da ilusão do objetivismo já não pode mais ceridade metodológicas, isto é, “a coinci-
ser encarada como algo de funcionalmente dência entre o modo de descoberta da de-
positivo. Por isso o que adquire status de cisão e a argumentação exposta”. Por essas
postulado é simplesmente, em detrimento mesmas vias Müller conclui pela inadmis-
do seu caráter eminentemente problemáti- sibilidade de determinados procedimentos
co, a própria possibilidade de fundar — em interpretativos, censurados por seu grau de
bases “pós-positivistas”, bem entendido irracionalidade e de insegurança. O condi-
— a controlabilidade racional dos proces- cionamento da problemática metodológica
sos decisórios. Seguindo essa tendência, pela ordem constitucional da Lei Funda-
as diretrizes elaboradas pela teoria da in- mental é expressamente reivindicado por
terpretação constitucional teriam valor de Müller (e também por Hesse), que para
prescrições metodológicas garantidoras da justificar a subordinação da metodologia
justeza das decisões — uma justeza que a jurídica às decisões do soberano político
JH bem se lembra de a haver considerado recorre ao caráter concreto das questões
relativa, ao mesmo tempo todavia em que metodológicas e a uma concepção não
dá a impressão de tratar essa relatividade universalista da ciência e da racionalidade
como uma solução conceitual, mais do que (Muller, 1996: 111, 153, 185-186, 229-
como a abertura de uma autêntica proble- 230, 236). A axiomatização da aptidão dos
mática. processos de concretização à controlabili-
Revendo os textos da JH a partir des- dade pública e a conseqüente exclusão de
sa hipótese de leitura, dois traços se sobres- sua autêntica problematização parecem
saem. Primeiramente, observa-se que num desse modo já decididas.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


308 Gustavo Just

O segundo traço que se destaca é a ainda mais as nuanças e reservas a respeito


tensão entre de um lado a afirmação de da pretensão à justeza das interpretações.
princípio do caráter aproximativo ou rela- O segundo aspecto, intimamente li-
tivo da racionalidade à qual podem aspi- gado ao primeiro, refere-se por assim di-
rar as interpretações (Hesse, 1993: 29) e, zer aos préstimos da teoria hermenêutica
de outro, a presença de uma dose às vezes da interpretação constitucional à causa,
acentuada de construtivismo metodológi- tanto política quanto metodológica, do
co, que se traduz pela articulação de um controle de constitucionalidade, isto é, de
discurso sistemático em torno de diretrizes seu domínio técnico e de sua legitimidade.
metódicas e de princípios de interpretação Seja por meio de suas teses mais abstra-
ou de concretização (Hesse, Müller), vei- tas relativas à “estrutura” dos processos e
culado numa linguagem por vezes concei- do raciocínio decisórios, seja através das
tualmente rigorosa e sofisticada (Müller), “diretrizes” formuladas para a interpreta-
mas também por uma referência insistente ção constitucional, a JH contribui de fato
e sem maiores explicações à objetividade decisivamente não apenas para a formação
enquanto valor metodológico (Larenz), e o desenvolvimento, mas também e tal-
em nome da qual aliás determinadas te- vez, sobretudo para a justificação teórica
ses defendidas dentro da própria JH são dos diferentes métodos ou técnicas empre-
freqüentemente descartadas em razão de gados pela Corte Constitucional Federal
seus insuficientes préstimos à causa da alemã quando do exercício de suas amplas
clareza e da sinceridade metodológicas. atribuições de jurisdição constitucional,
(Nesses momentos a JH toma realmente notadamente o controle abstrato ou con-
ares de uma nova “querela metodológica”, creto da constitucionalidade das normas
com o que esse tipo de contenda implica, (artigo 93, I, 2 e artigo 100, I da Lei Fun-
ao menos implicitamente, em termos de damental). O aparato conceitual da teoria
pretensão dos querelantes a uma verdade “estruturante” de Müller, por exemplo, é
exclusiva). freqüentemente empregado para explicar e
A hipótese de uma tendência à axio- mesmo para aplicar técnicas como a “de-
matização da racionalidade das interpre- claração de nulidade parcial sem redução
tações, franqueando as portas a uma me- de texto” (Teilnichtigkeitserklärung ohne
todologização da hermenêutica, se revela Normtextreduzierung), isto é, o reconhe-
porém interrogativamente mais fértil quan- cimento de uma inconstitucionalidade que
do se refere não às formulações teóricas da afeta determinados elementos do “âmbi-
JH enquanto tais, mas antes à sua pragmá- to normativo” em sua aptidão a integrar
tica. É possível distinguir dois aspectos. o “programa normativo”, razão pela qual
O primeiro diz respeito à leitura que das se diz então que a decisão tem o efeito de
teses da JH (de umas mais do que de ou- modificar este último ao mesmo tempo em
tras) fazem alguns de seus destinatários, que deixa intacto o texto da norma. Esse
constitucionalistas ou juristas práticos, mesmo embasamento teórico pode ser as-
que na reprodução dogmática ou prática (e sociado às técnicas praticadas pela Corte
eventualmente teórica) dessas teses muitas com base na idéia da “abertura temporal”
vezes acentuam, sob a evidente pressão da do conteúdo das normas constitucionais,
exigência de decidibilidade com que se resultado da dinâmica do respectivo âm-
defrontam diretamente, a tendência meto- bito normativo. É o caso de algumas das
dologizante ou objetivista, enfraquecendo decisões ditas “de exortação ao legislador”

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 309

(Appellentscheidungen), particularmente uma nova lei, enquanto que a declaração


daquelas que conclamam o legislador a de nulidade parcial sem redução de texto
modificar uma legislação que “se tornou diversifica as modalidades de intervenção
inconstitucional” em razão de transforma- do juiz constitucional sobre o conteúdo da
ções das relações materiais que alteraram obra legislativa já produzida.
o conteúdo da norma constitucional (uma Graças à trajetória “metodologizan-
legislação que em determinadas circuns- te” de sua pragmática, a JH se torna de cer-
tâncias a Corte se abstém de invalidar a to modo inseparável do constitucionalismo
fim de evitar quer um vazio jurídico quer ambicioso. E é nessa perspectiva que se
a invalidação de atos pretéritos às vezes pode falar de uma presença discreta porém
importantes como, por exemplo, um pro- sólida das suas teses no modo como os ju-
cesso eleitoral recentemente organizado de ristas (embora principalmente os não teó-
acordo com os termos de uma lei que “se ricos) encaram a interpretação constitucio-
tornou inconstitucional”). É ainda o caso nal, inclusive fora do espaço germanófono.
daquelas que advertem o legislador para a Isso se deve à propagação de diversos as-
necessidade de modificar rapidamente uma pectos desse constitucionalismo: a acentu-
legislação “ainda constitucional” mas que ação do Estado de direito como princípio
corre o risco de em breve se tornar incons- de organização; a representação juridista
titucional em decorrência de um processo da constituição, à qual corresponde uma
atual de evolução do âmbito normativo da determinada teoria constitucional; o apego
norma constitucional — um processo que à primazia do direito como argumento de
em determinado momento terá modificado legitimação (inclusive como resultado da
o conteúdo dessa norma.9 redefinição constitucional da democracia).
É, sobretudo propiciando esse tipo É aliás pensando na generalização desse
de subsídio teórico à práxis e à dogmática10 conjunto de formas constitucionais e de re-
que a JH contribui de modo significativo presentações que se fala hoje em dia, sem
para que a atividade da Corte Constitucio- nenhuma restrição à experiência alemã,
nal se dote de um enquadramento técnico, em “neoconstitucionalismo”, uma fórmula
de uma estabilidade e de uma sofisticação que alguns empregam como sinônimo de
(e mesmo de uma objetividade) conceitu- constitucionalismo contemporâneo (Prieto
ais que não podem deixar de reconfortá-la Sanchís, 2002: 169).
em sua pretensão a um exercício douto e A difusão desse modelo de consti-
enquanto tal legítimo da jurisdição cons- tucionalismo, no curso da qual a referên-
titucional.11 Prestando tais serviços à as- cia ao paradigma alemão desempenha um
piração a um domínio técnico do exercício papel permanente, generaliza uma teoria
da jurisdição constitucional (e conseqüen- constitucional marcada pela contribuição
temente à causa de sua legitimidade), a JH significativa da JH, especialmente quando
age por sua vez sobre o constitucionalismo se trata — e neste contexto isto se torna
ambicioso que a havia inicialmente in- uma parte central do direito constitucional
fluenciado. Observa-se, por exemplo que — de assimilar e controlar teórica e me-
as técnicas descritas acima ampliam ainda todologicamente o exercício da jurisdi-
mais as possibilidades da interferência da ção constitucional. É compreensível que
Corte na atividade normativa do Estado: a disseminação do constitucionalismo
as decisões de exortação ao legislador po- ambicioso tenha sido mais global e mais
dem fixar-lhe um prazo para a edição de precoce em países que vivenciaram uma

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


310 Gustavo Just

experiência análoga à da Alemanha, isto é, lista” ao dilema trazido pela tensão entre,
um retorno à democracia e ao Estado cons- de um lado, os postulados e os limites da fi-
titucional de direito após a queda de um losofia hermenêutica e, de outro, as expec-
regime autoritário: a Itália naturalmente, tativas com as quais se defronta a JH pode
mais tarde a Espanha, Portugal, diversos ainda tomar a forma de uma aproximação
países sul-americanos ao longo dos anos do modelo da racionalidade discursiva,
oitenta (especialmente o Brasil). A Lei como demonstra a teoria da interpretação
Fundamental converte-se então num pa- pluralista e procedimental da constitui-
radigma de constituição contemporânea e ção, apresentada por Häberle a partir de
exerce uma influência mais ou menos di- 1975 e muito conhecida nos espaços ger-
reta na elaboração dos novos documentos manófonos e germanófilos. O alargamento
constitucionais; a Corte de Karlsruhe, cuja do círculo dos intérpretes da constituição,
jurisprudência é acompanhada de perto, para incluir não apenas os intérpretes ha-
torna-se um modelo de tribunal constitu- bilitados como também todos aqueles que
cional; e os constitucionalistas alemães “vivem a norma”, é apresentado como
(dos quais muitos, como já se salientou, uma conseqüência imanente à lógica de
são também teóricos integrados à JH) pas- um conceito de normatividade entendida,
sam a constituir uma referência teórica nos termos da teoria estruturante, como
obrigatória. É significativo que a expansão uma fusão de textos normativos com o âm-
do constitucionalismo juridista tenha mais bito das relações materiais — todos os que
tarde atingido a cultura e a experiência contribuem para a conformação da reali-
jurídicas francesas, que não conheceram dade constitucional fazem assim parte do
aqueles traumas político-institucionais, e processo de interpretação das normas que
a despeito, além disso, do ambiente pouco se referem a essa realidade. Transformada
favorável formado pelo legicentrismo pre- em assunto de responsabilidade de uma
sente tanto na organização constitucional ampla “sociedade aberta dos intérpretes
(inicial, em todo caso) da Quinta Repú- da constituição”, a interpretação vê então
blica quanto na tradição que a precedia e a sua “justeza” submetida aos mesmos va-
a envolvia. Uma teoria constitucional ju- lores comunicacionais e deliberativos que,
ridista, convencida da necessidade (e da por outro lado, vinham progressivamente
possibilidade) de levar a sério a pretensão completar a idéia pós-representativa de le-
da constituição à normatividade e da im- gitimidade política, que aparecera com o
portância da jurisdição constitucional para advento da democracia constitucional.
a sua realização, veio inicialmente (na se- As idéias de Häberle tinham bem
qüência das transformações institucionais menos chance de conduzir, em suas for-
ocorridas no início dos anos setenta) fazer mulações como em sua pragmática, a essa
concorrência à perspectiva politista até espécie de perversão metodológica da he-
então hegemônica no direito francês. Em rança gadameriana que corre o risco de se
seguida se verifica uma influência direta da produzir quando da repercussão e da repro-
JH nos estudos metodologicamente “cons- dução das idéias da JH em determinados
trutivistas” destinados à assimilação e ao contextos. Elas podem aliás alimentar uma
enquadramento teóricos da agora intensa certa leitura contemporânea dessa corrente,
atividade do Conselho Constitucional. que enfatiza a sua incompletude (diante do
Além dessa progressiva metodologi- objetivo que lhe é atribuído) mas também
zação da hermenêutica, a reação “raciona- o seu caráter aberto e fundador, sobretudo

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 311

na perspectiva de sua complementação ou JH, que não veria a fraqueza da fundação


aperfeiçoamento pela teoria da argumen- hermenêutica de uma instância crítica con-
tação jurídica racional (Zaccaria, 1989: cretamente operacional das interpretações
356), portadora da instância crítica que lhe como uma insuficiência de uma teoria des-
faltava. Uma leitura como essa é sem dúvi- tinada a ser complementada, finalizada ou
da alguma plausível e fecunda, traduzindo ainda superada pela racionalidade comuni-
uma perspectiva interrogativa que coloca cacional, pragmático-transcendental, e sim
em primeiro plano o problema da aspira- como um indício daquilo que pode consti-
ção ao exercício público do controle da ra- tuir a especificidade e a autonomia de um
cionalidade ou justeza das interpretações. ponto de vista especificamente hermenêu-
tico no conjunto do panorama teórico con-
5. Considerações finais temporâneo. (Na formulação dessa conjec-
O constitucionalismo juridista não tura interpretativa a identificação de uma
condiciona apenas a evolução da JH, con- tendência imanente à JH e a elaboração da
diciona também o exercício de sua inter- resposta que ela possa inspirar à pergunta
pretação, na medida em que o seu leitor que lhe é dirigida, a da especificidade de
contemporâneo – seja ele um “consumi- um atual ponto de vista hermenêutico, não
dor” do seu acervo doutrinário-metodo- são duas operações rigorosamente separá-
lógico, seja um crítico mais distanciado veis).
– está ele próprio inserido num contexto Sintomaticamente, é explorando a
em que têm vigência aquelas expectativas obra de um não-constitucionalista, Josef
reforçadas de decidibilidade e racionali- Esser, que essa leitura da JH pode ser, em-
dade das decisões, inclusive no âmbito bora a muito custo, restaurada (Just, 2005b:
sempre e cada vez mais problemático da 134-138). Expor essa leitura já extrapola-
interpretação constitucional – e isso num ria dos objetivos deste texto, mas é impor-
universo que, como se viu, extrapola já há tante advertir para o fato de que com ela
algumas décadas os limites do mundo ger- não se pode chegar ao ponto de excluir o
manófono. Mas a tomada de consciência condicionamento do pensamento de Esser
desse condicionamento, embora obvia- pelos fundamentos políticos e culturais do
mente não permita fazer abstração de sua constitucionalismo da Lei Fundamental. O
própria situação hermenêutica, produz um projeto de converter o problema da “racio-
efeito de relativização que torna possível a nalidade” do direito no da reflexão sobre
articulação de outras perspectivas a partir as suas condições de inteligibilidade, e de
das quais a JH, como componente da tra- pensá-las a partir de sua “base” histórico-
dição recente da teoria do direito, também tradicional (num contexto em que tudo pa-
pode ser abordada. rece convergir para concebê-la do “alto”
Umas delas consiste em colocar em da adesão racional aos princípios e valo-
primeiro lugar, quando da interrogação da res constitucionais e dos parâmetros ideais
JH, não a ambição de um domínio norma- de validade) tira proveito da teorização da
tivo (contra-fático) ou mesmo conceitual autonomia funcional do campo jurídico e
dos processos interpretativos, e sim a ten- com isso revela a confiança em sua reali-
tativa de explorar a diversidade possível zação histórica. Pressupõe, por outro lado,
do horizonte contemporâneo da teoria do a eficácia da socialização profissional dos
direito. Adotando essa perspectiva, pode- juristas – aspecto particular de sua sujei-
se esboçar uma outra leitura possível da ção aos efeitos da tradição – no sentido de

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


312 Gustavo Just

orientar a formação das pré-compreensões ESSER, Josef (1970), Vorverständnis und Me-
segundo a preocupação de assegurar a con- thodenwahl in der Rechtsfindung. Rationali-
tinuidade ou a integridade de um comple- tätsgarantien der richterlichen Entscheidungs-
xo de princípios e de valores historicamen- praxis. Frankfurt am Main: Athenäum Verlag.
FORSTHOFF, Ernst (1976), “Die Umbildung
te construído e juridicamente articulado,
des Verfassungsgesetzes”, in: Ralf Dreier e Frie-
impedindo com isso a instrumentalização
drich Schwegmann (org.), Probleme der Verfas-
do direito pela política. Assim, se Köndgen sungsinterpretation. Dokumentation einer Kon-
(2001) tem razão ao dizer que a posição troverse. Baden-Baden: Nomos, p. 51-79.
de Esser não compartilha do Vernunftop- FROMONT, Michel (1990), “La Cour consti-
timismus da teoria do discurso haberma- tutionnelle fédérale et le droit”, Droits, n° 11,
siana, seria necessário acrescentar que ela 1990, p. 119-130.
demonstra em compensação uma espécie GADAMER, Hans-Georg (1993), El problema
de otimismo da cultura ou da história. Um de la conciencia histórica. Traduit par A. Mo-
otimismo de todo modo certamente esti- ratalla. Madrid : Tecnos.
mulado, é preciso reconhecer, exatamen- ______. (1996), Vérité et méthode. Les grandes
lignes d’une herméneutique philosophique. Edition
te pelas condições favoráveis propiciadas
intégrale revue et complétée par Pierre Fruchon,
pelo triunfo histórico de uma constituição Jean Grondin et Gilbert Melio. Paris : Seuil.
que celebra a primazia do direito. GOZZI, Gustavo (1999), Democrazia e diritti.
Germania: dallo Stato di diritto alla democra-
zia costituzionale. Editori Laterza: Roma-Bari.
REFERÊNCIAS HÄBERLE, Peter (1976),  “Zeit und Verfas-
sung. Prolegomena zu einem ‘zeit-gerechten’
APEL, Karl-Otto (1994), Transformation
der Philosophie I: Sprachanalytik, Semiotik, Verfassungsverständnis”, in: Ralf Dreier e Frie-
Hermeneutik. 5. Auflage. Frankfurt am Main: drich Schwegmann (org.), Probleme der Verfas-
Suhrkamp. sungsinterpretation. Dokumentation einer Kon-
ARNOLD, Rainer (2001), “Réflexions sur troverse. Baden-Baden: Nomos, p. 293-326.
l’argumentation juridique en Droit constitutio- ______. (1997), Hermenêutica constitucional.
nnel allemand”, in : Otto Pfersmann e Gérard A sociedade aberta dos intérpretes da consti-
Timsit (org.), Raisonnement juridique et inter- tuição: contribuição para a interpretação plu-
prétation. Paris : Publications de la Sorbonne, ralista e « procedimental » da constituição.
p. 49-63. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
BRYDE, Brun-Otto (1982), Verfassungsentwi- Alegre: Sergio Antonio Fabris.
cklung. Stabilität und Dynamik im Verfassungs- HABERMAS, Jürgen (1990), Die nachholen-
recht der Bundesrepublik Deutschland. Baden- de Revolution. Kleine politische Schriften VII.
Baden: Nomos. Suhrkamp: Frankfurt am Main.
______. (1993), Die Effektivität von Recht als ______. (1998), Die postnationale Konstella-
Rechtsproblem. Berlin/New York: Walter de tion. Politische Essays. Frankfurt am Main:
Gruyter. Suhrkamp.
COUTU, Michel (1998), “Citoyenneté et légi- ______. (2001), “Pourquoi l’Union européenne
timité. Le patriotisme constitutionnel comme a-t-elle besoin d’un cadre constitutionnel ?”, Cul-
fondement de la référence identitaire”, Droit et tures en mouvement, n° 35, mars 2001, p. 11-18.
Société, n° 40, 1998, p. 631-646. HESSE, Konrad (1991), A força normativa
DE VEGA, Pedro (1991), La reforma constitu- da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
cional y la problematica del poder constituyente. Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor.
Madrid: Editorial Tecnos (2a. Reimpresión). ______. (1992), “Límites de la mutación consti-
ENGISCH, Karl (1997), Einführung in das tucional”, in: Escritos de derecho constitucional,
juristische Denken, 9. Aufl., Stuttgart, Berlin, trad. Pedro Cruz Villalon, 2a. edición, Madrid:
Köln: W. Kohlhammer, 1997. Centro de Estudios Constitucionales, p. 79-104.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO... 313

______. (1993), Grundzüge des Verfassungsre- SCHMIDT, Walter (1990), “Die Kunst der Te-
chts der Bundesrepublik Deutschland. 19., übe- norierung. Zum Richterrecht bundesverfassun-
rarbeitete Auflage. Heidelberg: C. F. Müller. gsgerichtlicher Normenkontrollentscheidun-
JUST, Gustavo (2005a), “Cognitivisme et scepti- gen”, in: Gerhard Köbler/Meinhard Heinze/Jan
cisme dans la théorie de l‘interprétation: relativité Schapp (org.), Geschichtliche Rechtswissens-
et ambiguïté d‘une distinction”, Archives de phi- chaft. Freundesgabe für Alfred Söllner zum 60.
losophie du droit. Paris, v. 48, p.371-380, 2005. Geburtstag am 5.2.1990. Gießen: Brühlscher
______. (2005b), Interpréter les théories de Verlag, p. 505-523.
l’interprétation. Paris: L’Harmattan. SCHMITT, Carl (1992), Teoría de la Constitu-
KAUFMANN, Arthur (1994), “Problemgeschi- ción. Trad. F. Ayala. Madrid: Alianza Editorial.
chte der Rechtsphilosophie”, in : Arthur Kauf- SCHNAPPER, Dominique (2001), “De la di-
mann e Winfried Hassemer (org.), Einführung fficulté de la construction d’un espace public
in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der européen”, Cultures en mouvement, n° 35, mars
Gegenwart. 6. Auflage. Heidelberg: C. F. Mül- 2001, p. 19-21.
ler, p. 30-178. STARCK, Christian (1994), La constitution :
KÖNDGEN, Johannes (2001), “Josef Esser cadre et mesure du droit. Paris/Aix-en-Proven-
— Methodologe zwischen Theorie und Praxis”, ce: Economica/Presses Universitaires d’Aix-
Juristenzeitung (JZ), 56 Jahrgang, 15/16, 2001, Marseille.
p. 807-813. STERNBERGER, Dolf (1990), Verfassungspa-
KRIELE, Martin (1976), “Die Stadien der Re- triotismus. Frankfurt am Main: Insel Verlag.
chtsgewinnung” , in: Ralf Dreier e Friedrich VAN DE KERCHOVE, Michel (1993),  “Lacu-
Schwegmann (org.), Probleme der Verfassun- ne”, in : Dictionnaire encyclopédique de théo-
gsinterpretation. Dokumentation einer Kontro- rie et de sociologie du droit, deuxième édition,
verse. Baden-Baden: Nomos, p. 237-247. sous la direction de André-Jean Arnaud, Paris:
______. (1979), Recht und praktische Vernunft. L.G.D.J., p.335-338.
Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht. ZACCARIA, Giuseppe (1989), “L’apporto
LOEWENSTEIN, Karl (1961), Über Wesen, dell’ermeneutica alla teoria del diritto con-
Technik und Grenzen der Verfassungsänderung. temporanea”, Rivista di Diritto Civile, Anno
Berlin: Walter de Gruyter. XXXV, n° 3, maggio-giugno 1989, p. 323-356.
MAUNZ, Theodor e ZIPPELIUS, Reinhold ZURBUCHEN, Simone (1995), “Bedarf der
liberale Staat des Patriotismus?”, in: François
(1994), Deutsches Staatsrecht. 29., völlig neu-
Paychère (org.), Herausforderungen an das
bearb. Aufl., München : Beck.
Recht am Ende des 20. Jahrhunderts (ARSP
MÜLLER, Friedrich (1976), “Einige Leitsät-
Beiheft 62), p. 115-126.
ze zur Juristischen Methodik”, in: Ralf Dreier
e Friedrich Schwegmann (org.), Probleme der
Verfassungsinterpretation. Dokumentation einer NOTAS
Kontroverse. Baden-Baden: Nomos, p. 248-265.
______. (1996), Discours de la méthode juridi- 1
A metáfora provém ao que parece de Engisch
que. Traduit par Olivier Jouanjan. Paris : PUF. (1997), que a introduzira contudo no contexto
MUSSGNUG, Reinhard (1995),  “Zustan- de uma visão muito mais ortodoxa do que a da
dekommen des Grundgesetz und Entstehen JH, como ele mesmo teve a oportunidade de
der Bundesrepublik Deutschland”, in : Josef registrar.
Isensee/Paul Kirchhof (org.), Handbuch des 2
A percepção desse problema conduziu por
Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland. exemplo Kaufmann (1994:162-3) e Esser (1970:
Band I: Grundlagen von Staat und Verfassung. 31) a reforçar a crítica da visão de um automatis-
Zweite, unveräderte Auflage. Heidelberg: C.F. mo silogístico explorando a dialética entre norma
Müller, p. 219-258. e fato do ponto de vista de sua diferença “catego-
PRIETO SANCHIS, Luis (2002), “Neocostitu- rial”. Nunca poderia existir uma verdadeira “cor-
zionalismo e ponderazione giudiziale”, Ragion respondência” entre Tatbestand e Sachverhalt,
Pratica, anno X (2002), n° 18, p. 169-200. eles não podem ser mais do que “levados” à

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


314 Gustavo Just

correspondência por meio de um raciocínio ana- em 1969) e na vitória, quando do primeiro plei-
lógico. Em conseqüência, não se poderia mais to, em 1949, alguns meses após a entrada em
sustentar uma diferença propriamente qualita- vigor do texto constitucional, dos partidos que
tiva entre analogia, preenchimento de lacunas, haviam votado a favor do projeto no âmbito do
“aperfeiçoamento do direito”, interpretação etc. Conselho Parlamentar, em detrimento daqueles
Toda controvérsia jurídica seria nesse sentido que haviam votado contra. Esses fatos demons-
fruto de uma lacuna, de que se insinua então um trariam que o povo alemão se teria identificado
conceito amplo, tal como o formula por exemplo mais claramente com a Lei Fundamental do que
Kriele (1979: 67): « Eine Lücke in weiteren Sinn com a Constituição de Weimar, apesar da ela-
besteht immer dann, wenn eine juristische Strei- boração democrática desta última. (Mußgnug,
tfrage noch offen ist, weil verschiedene Ausle- 1995: 255-257; Starck, 1994: 54-55; Gozzi,
gungen technisch vertretbar wären - also in allen 1999: 119-122)
juristischen Streitfragen. Die Gesetzeslücke in 6
Simetricamente, Forsthoff (1976) veio expres-
diesem Sinne ist nicht die Ausnahme, sondern sar uma posição antitética à de Hesse, tanto no
die Regel ». Mas não é certo que essa tendência plano da teoria da interpretação, que o primei-
corresponda a uma orientação uniforme da JH ro pretendia manter atrelada essencialmente à
na discussão mais geral sobre a diferença entre “metodologia tradicional”, quanto no da teoria
o problema das lacunas e o da interpretação (van constitucional formulada sob a vigência da Lei
de Kerchove, 1993). Fundamental, notadamente no que diz respeito à
3
O trecho citado é o único de Pré-compreen- discussão sobre a normatividade do princípio do
são e escolha do método em que a dimensão Estado social e dos direitos fundamentais.
axiológica do processo decisório está associada 7
Sobre o sentido da distinção, todavia sempre
ao termo “liberdade”, e não ao de “responsabi- ambígua e relativa, entre teorias cognitivistas e
lidade” (ver também o título do capítulo VIII: teorias céticas da interpretação, ver: Just, 2005a.
Freiheit und Bindung des Richters in Reschts- 8
Fora do âmbito mais restrito da metodologia apli-
findungsprozeß). Essa forma excepcional de se cada ao controle de constitucionalidade, alguns
expressar desempenha nesse contexto uma ób- constitucionalistas consideram a teoria estruturante
via função estilística e retórica.(1990:120), por indispensável para a compreensão do fenômeno da
exemplo, fala nesse sentido dessa “superiorida- “mutação constitucional”, isto é a modificação do
de do direito sobre a política que é tão caracte- conteúdo das normas constitucionais sem transfor-
rística da República Federal da Alemanha”. mação do respectivo texto (por exemplo: De Veja,
4
Ver especialmente: Habermas, 1998 e 2001 ; 1991: 212-215; Hesse, 1992: 98-104).
Hermet, 1997: 75-85 ; Zurbuchen, 1995 ; Cou- 9
As técnicas do controle de constitucionalidade
tu, 1998 ; Schnapper, 2001. são exaustivamente estudadas pela doutrina, que
5
Pode-se recordar que a dificuldade de se res- chegou inclusive a elaborar uma minuciosa tipo-
paldar a legitimidade da Lei Fundamental na logia das decisões tomadas por ocasião do contro-
teoria clássica do poder constituinte, em razão le de constitucionalidade, uma tipologia que leva
das circunstâncias de sua elaboração (que inclu- em consideração a forma da proclamação da deci-
íam especialmente a aprovação do texto pelos são (especialmente em sua parte dispositiva) e os
governadores das zonas ocidentais de ocupação, efeitos jurídicos nela especificados — no jargão, a
além da eleição indireta do Conselho Parlamen- “arte do Tenorierung” (Schmidt, 1990).
tar encarregado de deliberar sobre o projeto) ha- 10
Muitos podem então chegar à tranqüilizadora
via já levado a doutrina constitucional (trata-se conclusão de que “de um modo geral a argu-
portanto de considerações situados num outro mentação da Corte Constitucional Federal é
plano) a procurar a justificação da legitimidade equilibrada, integra os fatores sociais e utiliza
democrática da constituição fora dos esquemas reflexões racionais” (Arnold, 2001: 63).
representativos clássicos. Nesse sentido evocou- 11
Muitos podem então chegar à tranqüilizadora
se com freqüência uma legitimação a posteriori conclusão de que “de um modo geral a argu-
que poderia ser reconhecida por exemplo na par- mentação da Corte Constitucional Federal é
ticipação cada vez mais expressiva do eleitorado equilibrada, integra os fatores sociais e utiliza
nas eleições parlamentares (chegando a 91,1% reflexões racionais”

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


315

Democracia, Direito e Legitimidade. A crise do


sistema representativo contemporâneo e os novos
desafios do contrato social
Democracy, Right and Legality. The crisis of
contemporary representative system and the new challenges
of social contract

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha*

Recebido para publicação em outubro de 2005

Resumo: Trata-se de análise sobre a crise do regime representativo e seus reflexos no Estado Con-
temporâneo. Para tanto, buscou-se discutir os novos contornos da democracia atual e suas premis-
sas, surgidas à ilharga das revoluções liberais e que se constituem, ainda hoje, em valores funda-
mentais para o constitucionalismo ocidental. Temas como a liberdade, a autonomia coletiva e o
sistema político-partidário são levantados, a fim de se avaliar a problemática da legitimidade na
ordem jurídica do século XXI.
Palavras-chave: Partidos políticos. Sistema representativo. Democracia.
������������������������������������
������������������������
Grupos de pressão. Esta-
do liberal. Crise política.

Abstract: A crisis in the representative regime is appointed, as well as its impact on the Contempo-
rary State. Focus is set in the outline of modern democracy and its premises, understood as those set
by the liberal revolutions, still standing for the fundamental values of the constitutionalism of the
Western World. The approach includes discussion on concepts such as freedom, political parties,
representative system, aimed at an appraisal of legitimacy under the XXI Century State.
Key Words: Political parties. Representative system. Democracy. Lobby. Liberal State. Political
crisis.

Introdução Do Estado absolutista, de estrutura


estamental rígida e divisão de classes mar-
O desenvolvimento do Estado De- cantes, ao Estado de Direito, foram elabo-
mocrático de Direito vincula-se, indisso- radas profundas redefinições nas relações
ciavelmente, às revoluções burguesas do de poder.
século XVIII. Contestatórias e transfor- A evolução da condição de súdito1
madoras, tais revoluções simbolizaram a para a de cidadão – síntese da ideologia
negação a um determinado modelo de so- iluminista - passou a atribuir ao Homem
ciedade ao proporem a articulação de te- papel central na dinâmica histórica e o
mas fundamentais tais como: a igualdade progresso a ser concebido como imanente
natural dos homens, a defesa do regime re- e não transcendente ao indivíduo, resulta-
presentativo e a limitação ao exercício da do de sua racionalidade e inteligibilidade.2
soberania fundada sobre os direitos subje- Sua representação na ordem social é, pois,
tivos individuais. ampliada e ao Estado cumpre promover o

* Mestra em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Católica Portuguesa. Doutora em Direito Constitucional pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais. Professora Universitária e Assessora Jurídica da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa
Civil da Presidência da República.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


316 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

bem-estar social, segundo os ditames le- e administrativa, mas também como um


gais.3 acordo entre governantes e governados,
As idéias iluministas justificaram a onde os primeiros aceitam a limitação de
contestação ao absolutismo monárquico e seus poderes em respeito a um conjunto de
a construção do liberalismo burguês. De- direitos e garantias reconhecidos àqueles
las resultaram a Revolução Americana de últimos.
1776, movimento de independência que re- Juridicamente, a democracia fun-
futava a estrutura colonialista; e a Francesa da-se na isonomia ao assegurar a todos a
de 1789, que se opunha à própria estrutura igualdade perante a lei e idênticos direi-
social do Estado absolutista. A liberdade tos aos cidadãos. No plano individual, o
era a característica tanto de um, quanto do regime democrático adquire significado a
outro movimento. No primeiro, destacava- partir da idéia de cidadania, enquanto no
se a liberdade de autodeterminação de um plano coletivo prevalece a idéia de povo,
povo no processo histórico de construção conforme se depreende da própria etimo-
de uma nação independente; no segundo, logia da palavra.8
a liberdade do indivíduo ante as arbitrarie- Neste diapasão, a definição de “povo”
dades do Estado, tendo na igualdade prin- para o Direito liberal somente adquire sen-
cípio contraposto aos privilégios gozados tido a partir do processo constituinte, base
pela nobreza.4 consensual do poder - consensus constitu-
A liberdade e a igualdade, surgidas tionis – a refletir-se na normatividade vi-
à ilharga das revoluções liberais do século gente. Liame entre a juridicidade, o políti-
XVIII, constituiriam-se em valores funda- co e a legitimidade, o processo constituinte
mentais do pensamento Ocidental. Daí a expressa uma decisão individualizada a
designação “Estado burguês de Direito”, partir dos valores implícitos no pacto.9
juridicamente estruturado por uma Cons- Ao traçar os parâmetros normativos
tituição que o controlará e imporá limites de sua existência, o povo constitui-se em
à atuação governamental.5 A Revolução nação una e indivisível. Entretanto, sua
Americana e, posteriormente, a Revolução existência como ser político antecede à
Francesa simbolizam, portanto, o marco Constituição, e seu papel de titular do Po-
inicial do constitucionalismo moderno, der Constituinte, elemento fundador da
embora alguns queiram ver essa origem na Carta Magna, tornou-se pressuposto fun-
Magna Carta inglesa de 1215.6 damental da democracia. Quanto maior
Visto sob este prisma, o constitucio- a participação popular na legislação e na
nalismo inaugurou uma determinada idéia organização do governo, mais efetiva a
de “poder” relacionada à necessidade de se democracia. Nesse sentido, democracia
assegurar as liberdades individuais e a au- é também a realização da vontade geral,
tonomia coletiva, que implicou a elabora- donde decorre o caráter de homogeneidade
ção de um verdadeiro aparato institucional implícito em sua definição.10
com o objetivo de equilibrar a relação de A concepção jurídica de povo abstrai
dominação do Estado.7 qualquer noção de divisão de classes no
Moldura do ordenamento normativo, interior da sociedade e desconsidera o fato
a Constituição merecerá ser vista não ape- de que o processo de elaboração de uma
nas como a lei fundamental responsável Constituição, ou de qualquer outra lei, é
pela formação do Estado, que, por meio permeado por um intenso jogo de forças
dela, adquire estrutura jurídico-política antagônicas. Na verdade, o pacto constitu-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 317

cional não elimina as diferenças e divisões na lei, esta última, resultado de um acordo.
reais existentes no seio de uma sociedade, Legalidade e legitimidade eram entendidas
apenas organiza o embate a partir dos valo- como sinônimos, atribuindo-se-lhes uma
res e princípios prevalecentes no contexto acepção exclusivamente legalista.14
social, institucionalizando o acordo.11 No Contemporaneamente o consensus no
caso das Constituições liberais burguesas, qual se apóia o poder, transcende o direito
os principais valores são a liberdade, a positivo, libertando-se da frieza da ratio
igualdade e a autonomia coletiva. Diante para almejar a justiça. Função primordial
de tal contexto, a Lei Fundamental legiti- da norma impessoalizar a potestas, todos
ma-se por meio de um procedimento que estão a ela subordinados. Desse modo, a
busca “conciliar os interesses antagônicos legalidade implica e resulta no estabeleci-
e evitar que as divergências se transfor- mento de uma situação de segurança nas
mem em conflitos insolúveis”12 relações dos indivíduos entre si e destes
Ao contrário da perspectiva hegelia- com o Estado.
na onde a oposição, no interior do Estado, Na realidade, o problema da legi-
é totalmente neutralizada pela preponde- timidade adquiriu um significado muito
rância da lei em detrimento da vontade relacionado aos valores partilhados pelos
particular que pode ser de um indivíduo membros da sociedade e que propiciam a
ou de um grupo determinado, na sociedade adesão e a fidelidade ao poder instituído. O
democrática não há consenso absoluto no sistema político alcança uma estabilidade
que concerne às preferências particulares, satisfatória quando é “capaz de criar e pre-
mas, sim, modos de institucionalização dos servar um consenso em torno de interesses
conflitos, sendo estes, também, intrínsecos públicos e de legitimar as normas opera-
à democracia.13 cionais que regulam os conflitos, permitin-
A relação progressiva entre conflito, do-o absorver mudanças sociais e adaptar-
consenso e legitimidade, exatamente nessa se as novas circunstâncias, sem perda de
ordem, encontra-se sempre presente quan- sua integridade.”15 Quanto menos o Estado
do se pretende entender as diversas formas precisar usar a força para garantir o res-
que assumem as sociedades humanas. Isso peito e a efetividade das normas jurídicas,
se deve à constatação da existência de um tanto maior será seu grau de legitimidade.
poder inerente a qualquer organização so- Como a legitimidade pressupõe con-
cietária. Desta circunstância decorre uma cordância de opiniões, urge indagar como
outra, a existência dos que governam e aferi-la. Segundo alguns teóricos volta-
dos que são governados. Mas, para além dos para a questão, a sociedade industrial
da violência e da força, o poder de mando, moderna em razão de sua complexidade,
apoiado no ordenamento jurídico, encontra depara-se com impasses que impõem a
sua razão de ser na consolidação, preser- necessidade de instituir-se novos mecanis-
vação ou alcance de determinados valores mos de legitimação das decisões do poder.
que são caros aos membros da comunidade Isso porque as funções do Estado se multi-
que almejam o consenso. plicam e se especializam de tal forma que
O surgimento da idéia de suprema- a consensualidade se torna mais difícil a
cia da lei no século XVIII, e a maneira cada dia. Por outro lado, a impossibilidade
como esta foi conceituada pela filosofia de permanência do modelo de democracia
positivista, inculcou nas mentalidades ser direta cria a necessidade de instauração de
legítimo o sistema político que se apoiava governos representativos. Nesse sentido,

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


318 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

José Eduardo Faria afirma: “o problema da mudança de expectativas não se esgotam


legitimidade aparece de forma mais con- no indivíduo, mas respondem a um impul-
creta à medida que as comunidades vão so exterior.19
perdendo as possibilidades de governos O Estado democrático de direito tem
diretos e imediatos, da mesma forma que no processo eleitoral, por exemplo, um im-
a escolha dos governantes vai deixando de portante mecanismo de legitimação. Ele
ser determinada por papéis sociais prepon- busca definir uma decisão, uma vez que
derantes.”16 todo o esforço feito para se chegar a um
Ora, considerando que os antagonis- acordo tem sua razão de ser na tomada de
mos brotam em todos os aspectos da vida decisão política.
social, e diante da impossibilidade de qual- No processo eleitoral, instaura-se o
quer forma de democracia direta a dificul- debate público em que todos os cidadãos
tar a concordância de opiniões e ameaçar a participam, consoante as regras que limi-
estabilidade das sociedades democráticas, tam e organizam a forma como as diver-
criou-se o consenso básico entre os cida- gências serão propostas e as expectativas
dãos. expressas. O seu resultado tem o caráter de
Segundo Luhmann, no sistema po- um consenso generalizado e estabilizador
lítico moderno, o consenso é estabelecido do sistema político.20
não sobre a decisão em si, mas em relação O conceito de povo adquire signifi-
às premissas sobre as quais se apóia. É o cado a partir da idéia de igualdade numa
procedimento que torna legítima a decisão determinada comunidade, fazendo parte
uma vez ser impossível a avaliação indi- dele todos os cidadãos indistintamente.21 A
vidualizada para obter-se sua aceitação. sociedade democrática funda-se na crença
A complexidade da sociedade moderna de que os homens são naturalmente se-
traduz-se na “generalização do reconheci- melhantes, supondo a existência de uma
mento das decisões.”17 igualdade intrínseca aos indivíduos, que
A legitimidade não se relaciona à não se restringe aos cidadãos integrantes
crença individual na autenticidade das de- de uma organização política individualiza-
cisões, mas a um processo de instituciona- da, mas alcança todos os seres humanos.
lização que se opera no âmbito da socieda- Seu sentido é universalista. Por outro lado,
de. Somente levando-se em conta esse fato a idéia de igualdade em si, somente se cor-
pode-se entender como se dá a aceitação porifica quando são estabelecidas as rela-
de uma decisão. Os indivíduos acatam as ções contratuais entre os homens, funda-
decisões quando as assumem “como pre- dores de uma determinada sociedade, pois
missas de seu próprio comportamento e ela se revela natural e intrínseca à condição
estruturam as suas expectativas de acordo humana.
com isso.”18 Nesse processo pode ocorrer, Admissível reconhecer, a partir de tal
até mesmo a recusa em aceitar a decisão, compreensão, que o poder provém do povo
que acaba sendo assimilada num aprendi- e deve ser exercido em seu interesse, don-
zado onde o indivíduo alcança uma manei- de emana o pressuposto básico da legitimi-
ra de conciliação entre as antigas e as no- dade democrática, baseada na autonomia
vas expectativas. Este aprendizado dá-se da vontade coletiva.22
no contexto social, pois somente nele pode A igualdade estabelecida pela ideo-
ocorrer a mudança estrutural das expecta- logia liberal relaciona-se com a desperso-
tivas. Assim, a aceitação e a conseqüente nalização do poder que não mais pode ser

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 319

exercido ao arbítrio do governante, cujas Historicamente, a necessidade de


ações são controladas pelo Parlamento. O afirmar e resguardar a liberdade perante o
poder e as relações sociais em geral deixa- Estado teve origem na ação de uma classe
ram, neste novo ideário, de ser entendidos organizada, a burguesia, que impôs uma
a partir de um fundamento transcendental, nova dinâmica às relações econômicas no
passando a ter sua legitimidade explicada século XVIII. Inevitável reconhecer que a
com base na dinâmica interna. Por outras liberdade individual, contraposta à inter-
palavras, o poder passou a ser legitimado venção e ao arbítrio estatal, correspondeu
pelo princípio da autonomia coletiva ou aos interesses do terceiro estado. Daí, o
soberania popular. regime democrático moderno ter forte co-
Segundo certos teóricos modernos notação burguesa, em face da conexidade
da democracia liberal, a soberania popular direta entre democracia e liberalismo.
não há de ser concebida como fora ante- O teor individualista da democracia
riormente pelos contratualistas clássicos. burguesa operou a substituição do Esta-
Tanto Rousseau como Kant, preconizavam do monopolista e interventor pelo Estado
a possibilidade de um consenso neutraliza- liberal limitado por direitos e garantias
dor de conflitos, consenso este, encarado individuais, dentre os quais se destacam
como instaurador da unidade. Assim, a le- a garantia de locomoção, a liberdade de
gitimidade democrática, para aqueles au- expressão, o devido processo legal e, so-
tores, repousava sobre a formação racional bretudo, o livre exercício de atividade
da vontade comum. econômica e o direito à propriedade sem a
Philippe Gerard avalia que, na de- interferência do poder público.
mocracia liberal, o poder está associado à O modelo liberal de democracia fun-
idéia de autoconstituição de um povo res- damentou-se na idéia de “liberdade nega-
ponsável por seu destino, o que gerou uma tiva”, também chamada, “democracia de
grande indeterminação sobre os conceitos proteção”. A ordem liberal pressupunha
que os indivíduos detinham o direito de
de legitimidade e ilegitimidade, posto esta
buscar a plena realização de suas necessi-
auto-instituição implicar uma situação de
dades, a traduzir-se na satisfação de seus
constantes conflitos.23
interesses econômicos privados. Ao Estado
O eixo central desta colocação pre-
cabia contê-los, quando a perseguição de
sume que o processo de legitimação demo-
tais interesses chegasse a níveis de compe-
crática conjectura com a autonomia coleti-
tição comprometedores da própria estabi-
va, mas esta não pode ser exercida sem a
lidade do sistema. Infere-se, portanto, que
explicitação das oposições e contradições
o Estado não se encontrava absolutamente
que lhe são inerentes em razão dos diferen-
impedido de intervir na liberdade do indi-
tes e conflitantes interesses individuais. víduo, mas sua intervenção deveria funda-
1. Liberdade e autonomia coletiva na mentar-se na lei. A concepção de liberda-
democracia liberal de dicotômica entre indivíduo e Estado24,
privado e público, esgotar-se-ia quando a
A dimensão axiológica do pensa- estabilidade do sistema estivesse em jogo,
mento liberal ateve-se, nomeadamente, a abrindo espaço à “publicização” da ordem
garantir a liberdade do indivíduo contra a privada que dava prioridade à realização
intervenção do Estado e a limitar a interfe- do “bem público”, ao invés de apenas fun-
rência da majestas pública na esfera priva- dar as conveniências e os interesses dos
da como mecanismo de proteção. indivíduos.25

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


320 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

A forma como a questão da liberda- da liberdade individual sobressai como


de individual se coloca na filosofia liberal, premissa fundamental, enquanto a parti-
critério central do seu sistema valorativo, cipação dos cidadãos decorre das pressões
tem implicações no próprio conceito de ao sistema. Pertinente a esta contradição,
cidadania. Na democracia moderna, a ne- certos teóricos da democracia denunciam,
cessidade de proteção nasce pelo meca- por um lado, a incompatibilidade deste re-
nismo de delegação do poder atribuído a gime com o liberalismo, e sustentam, por
uma minoria. Constitui-se uma separação outro, a interpretação de a liberdade indivi-
entre indivíduo e cidadão que, ao delegar dual constituir-se numa precondição para o
a gestão da coisa pública, fica livre para exercício da autonomia coletiva, devendo
perseguir seus interesses privados, mas, ao o Estado assegurar as condições necessá-
mesmo tempo, o indivíduo necessita sub- rias ao seu exercício.27
meter-se à ordem pública onde é elaborada Na sociedade liberal, a participação
a cooperação necessária para o viver em política do indivíduo é valorada não ape-
sociedade. Esse fracionamento não ocor- nas pela estrutura jurídica, característica
ria na democracia romana, por exemplo, do Estado de Direito, mas pelas condições
quando o exercício da cidadania era pleno, econômicas determinadas pelo livre jogo
permitindo a realização do público no pri- do mercado.28
vado. “Nessa transferência – seja pela ces- A conseqüência do estabelecimento
são tácita de direito ao soberano, como em dessa igualdade jurídica é o reconhecimen-
Hobbes, seja pela delegação real por meio to do direito de todos os cidadãos partici-
de um sistema de representação, como em parem do governo.29
Locke, Montesquieu e Benjamin Constant Determinante para a liberdade hu-
– distingüem-se, o público do privado, ca- mana, a despeito das críticas que se lhe
bendo àquele a constituição do Estado de possam opor, o ideário político burguês
Paz”26 constituiu-se num “poderoso instrumento
Com efeito, a democracia de prote- doutrinário de alteração das bases relativas
ção ou a liberdade negativa típica da so- à organização do Estado.”30 Contestando o
ciedade liberal limita o conceito de liber- absolutismo, teve como mérito principal,
dade democrática. Segundo esse modelo, haver prognosticado “o começo longínquo
a autonomia coletiva e a liberdade, embora do irreprimível diálogo democrático que
sejam elementos essenciais na caracteriza- impulsionou o progresso político e social”
ção da democracia moderna, estão, de cer- da Civilização Ocidental.31
ta forma, dissociadas. Dimensionam-se,
2. O sistema representativo
pois, duas realidades: aquela relacionada à
esfera privada, que corresponde à garantia Se for certo afirmar que do ponto de
dos direitos individuais, e aquela relacio- vista filosófico a democracia moderna se
nada à esfera pública, na qual a autonomia inspirou no pensamento liberal, no plano
coletiva se realiza segundo o modelo re- político ela é posta em evidência pelo sis-
presentativo. tema representativo. A exigência da parti-
A rigor, a democracia moderna nas- cipação do povo nas decisões políticas do
ceu atrelada, ou mesmo subordinada à Estado como garantia de efetivação do ide-
ideologia liberal, que orientou a elabo- al de cidadania, recupera a tradição da de-
ração das Constituições e a consolidação mocracia clássica, dando origem às teorias
do Estado de Direito. Nela, o princípio sobre esta forma de governo que se consti-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 321

tuiu numa versão moderna do exercício da ocidentais, guardadas as particularidades e


autonomia coletiva na sociedade.32 circunstâncias sócio-políticas de cada um.
Historicamente, a elaboração do sis- O fato é que, no século XIX, o siste-
tema representativo esteve relacionada à ma estava consolidado. Considerado como
dinâmica de desenvolvimento das institui- o único capaz de efetivar o ideal democrá-
ções políticas inglesas.33 “A propósito da tico da participação popular nos negócios
contenção ou limitação no que se refere à de governo, simbolizava ele, utilizando a
conduta do rei, basta consultar a “Magna terminologia de Burke, a união de um cor-
Carta”, assinada contra a vontade de João po de homens, a serviço de um interesse
Sem Terra, que significou a reação da no- nacional, fundado em um princípio ao qual
breza, do clero e da burguesia na defesa de todos aderem.
suas liberdades fundamentais.”34 Severa crítica sofreu o modelo de
É fato que desde o século XII o mo- democracia representativa até chegar a
narca inglês consultava uma espécie de se impor como a única forma possível de
concilium ou “parlamento”, composto por participação do cidadão na gestão da coi-
prelados e barões, embrião da célebre Câ- sa pública. A mais contundente delas foi
mara dos Lordes, sendo a Câmara dos Co- perpetrada por Rousseau. Para ele, a repre-
muns a porta voz dos interesses burgueses.
sentação da vontade geral não é possível
O “Parlamento Modelo”, integrado pelos
por não poder a soberania ser outorgada
três estados do reino - nobreza, clero e bur-
e, menos ainda, alienada. Nestes termos, a
guesia – pode ser considerado o embrião
lei que não for diretamente ratificada pelo
do sistema representativo, presente o fato
povo será inválida. Dessa forma, a repre-
de o desenvolvimento deste modelo ha-
sentação equivale à escravidão, pois “no
ver resultado efetivamente, da atuação das
momento em que um povo se dá represen-
duas Casas parlamentares.35
O desenvolvimento do sistema re- tantes, não é mais livre; não mais existe”.37
presentativo na Inglaterra há de ser com- A restrição rousseauniana ao sistema re-
preendido a partir da análise de suas pecu- presentativo limita-se ao poder legislativo,
liaridades culturais e vicissitudes políticas. uma vez que o poder executivo deve agir
Em princípio, as bases sobre as quais fo- de acordo com as determinações legais. O
ram erigidas as relações feudais resulta- poder executivo, portanto, reproduz a von-
ram numa centralização do poder, bastante tade dos cidadãos na exata dimensão da
peculiar à formação social inglesa. O rei aplicação da norma, o que, de certa forma,
conseguiu impor uma centralização polí- conduz à representação imperativa, em
tica precoce em relação à nobreza feudal. face da vinculação do governante e da li-
Em contrapartida, teve seu poder absoluto mitação de sua atuação à lei, condicionan-
abalado pela associação entre a nobreza e do-o a pôr em prática o que for determina-
os segmentos médios da sociedade que, or- do pela vontade geral.38
ganizados, foram conquistando, paulatina- Indo além, preconiza Rousseau que
mente, o poder de legislar.36 uma vez adotado o sistema representativo,
Cumpre ressaltar que, embora o sis- o povo, mesmo consciente da restrição em
tema representativo tenha se originado na sua liberdade democrática de expressão da
Inglaterra, não ficou restrito àquele país. vontade, deveria elaborar mecanismos de
A necessidade de limitação do poder real contenção da corrupção tais como, a pres-
tornou-se parte de uma dinâmica histórica tação de contas aos eleitores e a renovação
que envolveu todos os Estados absolutistas periódica dos mandatos.39

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


322 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Contrariamente a Rousseau, Stuart sociedade democrática, onde a igualdade


Mill vislumbrava na representação a me- é entendida como valor fundamental, deu
lhor forma de governo popular, vetor de origem a uma determinada concepção de
desenvolvimento da civilização. Para que bem comum, expressa pela suposta exis-
um povo estivesse em condições de adotar tência de uma vontade coletiva e pela
o governo representativo, imperativa a re- possibilidade de aferi-la. A escolha dos re-
alização das seguintes condições: “ (1) que presentantes do povo, embora deva ser efe-
o povo esteja disposto a recebê-lo; (2) que tivada respeitando-se a opinião individual
esteja disposto e seja capaz de fazer o que do cidadão, não deve resultar da imposi-
for necessário para preservá-lo; (3) que es- ção de seu interesse pessoal. Daí a rejeição
teja disposto e seja capaz de cumprir com ao modelo de representação subordinado
os deveres e desempenhar as funções que ao mandato imperativo. A ideologia libe-
lhe impõe”40 . ral, ao buscar na teoria clássica do con-
Embora reconhecesse que a demo- trato social a justificativa para a negação
cracia direta é a forma de governo ideal, da possibilidade do mandato imperativo,
Stuart Mill argumentava que, sendo “im- outorgou à concepção de coletividade um
possível a todos, em uma comunidade que sentido absoluto.43 Dessa forma, o manda-
exceda a uma única cidade pequena, par- to imperativo é encarado como a negação
ticiparem pessoalmente tão-só de algumas do interesse geral, à medida que rejeita a
porções muito pequenas dos negócios pú- relação de reciprocidade entre a coletivida-
blicos, segue-se que o tipo ideal de gover- de e o Estado e reduz o representante a um
no perfeito tem de ser o representativo”41 mero porta-voz das pretensões individuais
A despeito de o poder controlador de seus eleitores, obstando a realização do
pertencer ao povo que o exerce por seus interesse público.
representantes - os verdadeiros detentores Quando o parlamentar legisla, dá
da “supremacia prática no Estado” - 42 e, forma e realiza, ao mesmo tempo, a von-
conquanto exista o perigo de uma classe tade nacional. O eleitor influi apenas no
governar segundo os seus interesses, de momento da escolha de seu representante.
forma contrária ao bem geral da comuni- Este, uma vez eleito, adquire independên-
dade, existem meios de anular esse predo- cia decisória total em relação ao primeiro.
mínio, organizando-se o sistema de modo a Prevalece, portanto, a teoria da dualidade,
estabelecer um equilíbrio entre os interes- na qual dois estágios são demarcados no
ses parciais, o que resultará na prevalência processo de formação da vontade nacional:
da justiça e do interesse geral. o primeiro verifica-se no momento da elei-
Acorde a teoria democrático-liberal, ção quando o cidadão é chamado a partici-
a representação é um vínculo jurídico esta- par da formação da assembléia legislativa;
belecido entre eleitores e eleitos, estes últi- o segundo ocorre quando os representantes
mos portadores da vontade comum, tendo deliberam, consolidando uma concepção
por obrigação expressá-la. Os represen- determinada do bem comum. O represen-
tantes adquirem, por meio de um processo tante atuará, pois, como um catalizador da
de seleção de um procedimento eleitoral, vontade do povo. Na verdade, o exercício
legitimidade para agir em nome dos repre- de delegação da voluntas popular ao Par-
sentados, num ato típico de transferência lamento pressupõe a delegação da própria
e/ou delegação de poder. idéia de bem comum. Aí reside, em última
A faticidade do governo representati- análise, o fundamento da legitimidade no
vo como elemento de composição de uma contexto teórico da democracia liberal.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 323

O deslocamento da soberania do vela o esgotamento do modelo represen-


povo para a nação resolveria, até mesmo, tativo pela incapacidade de fornecer os
o problema jurídico da representação no elementos necessários à uma redefinição
âmbito dos poderes executivo e judiciário. dos conceitos estruturadores do instituto.
Uma vez que ao povo cabia apenas eleger A interveniência da vontade coletiva dian-
os membros da Assembléia Legislativa, te da contemporaneidade do Estado há de
impunha-se buscar novos conceitos que ser considerada, não apenas sob o enfoque
pudessem legitimar os demais poderes. A jurídico, mas levando em conta as dimen-
resposta encontrada foi a renúncia à cono- sões política e sociológica. Assim, mister
tação imperativa do mandato político e sua a superação da dicotomia mandato impera-
substituição pela idéia da representativida- tivo-mandato representativo.
de, na qual se incluem todos os poderes do Seguindo esta tendência, a análise de
Estado.44 Luhmann acerca do procedimento eleitoral
Na verdade, o problema central que como forma de legitimação da democracia
permeia a questão do sistema representati- representativa aponta para a superação da
vo está na sua origem, no ato de redefini- dicotomia acima identificada. Segundo ele,
ção do poder, marcado pelo deslocamento o processo de democratização da política
da soberania do monarca absolutista para o explica-se pelo mecanismo de positivação
povo. Ocorre que a concepção de povo não do direito que tornou o sistema político
se afigurava a mais apropriada para pro- muito complexo e estruturalmente indeter-
mover a estabilização do sistema político minado. Esta indeterminação deu abertura
liberal. Fez-se necessária a elaboração de ao sistema que, por isso, se encontra num
um conceito ainda mais abstrato - a nação processo permanente de legitimação. Por
- consolidada pelos processos constitucio- tal razão sustenta:
nais. “A titularidade do direito de sobera- “Instituições invariavelmente legi-
nia se deslocou do povo para a nação. Esta timadas como a coroa e o altar não são
entidade ideal passou a concentrar o poder complexas em si mesmas, e não são sufi-
do Estado. Estava operada a translação cientemente móveis para poderem apro-
que, por seus desdobramentos jurídicos veitar e ordenar de forma convincente as
garantia à burguesia o controle do poder novas possibilidades; elas não funciona-
político”45 riam como garantes do poder legítimo. São
Da noção da existência de duas von- substituídas pelo fato de o apoio político se
tades distintas, a do eleitor e a de seu re- converter em problema permanente a ser
presentante, procede a teoria da duplicida- resolvido pela organização e pelo trabalho
de, ponto de partida para a elaboração do cotidiano”47
moderno sistema representativo estatuído Na verdade, a questão central não é
nas Constituições liberais, por meio da a de se saber quem tem a soberania, mas,
qual se buscou impor a independência do sim, de se entender a complexidade adqui-
representante em relação ao representado. rida pelo poder, em razão da superação da
“Com efeito, toma-se o representante po- sociedade hierárquica.48
liticamente por nova pessoa, portadora de A indeterminação ou frouxidão dos
uma vontade distinta daquela do represen- papéis dos indivíduos nas sociedades
tado, e do mesmo passo, fértil de iniciativa mais complexas conduz à necessidade de
e reflexão e poder criador”46 reelaboração do processo de decisão que
Sem dúvida, o formalismo ao qual serve como garantia de apoio político. O
se encontra vinculada a teoria liberal re- processo deve ser visto como englobando

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


324 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

dois planos: o técnico operacional e o sim- que o processo eleitoral rejeita a possibili-
bólico, constituinte de sentido. A decisão dade do mandato imperativo: “a separação
reflete o resultado que envolve, ao mesmo entre eleição política e imposição direta
tempo, uma operação técnica e uma sim- de interesses absorve conflitos da seguinte
bolização do todo. forma: em primeiro lugar, na eleição são
O processo eleitoral, nas sociedades distribuídos apenas lugares e competên-
democratizadas, expressa esta permanente cias e não, simultaneamente, a satisfação
elaboração devido ao potencial de confli- das necessidades”53 O mandato imperati-
tos presentes na coletividade, onde os pa- vo, nesta contextura, torna-se impossível
péis não estão mais previamente definidos. em face da complexidade e variabilidade
A posição do governante, por exemplo, da organização social, que não está sujeita
não pode mais ser entendida em função de a influências tão individualizadas, já que o
outro papel. “Numa sociedade que evolui, próprio indivíduo mobiliza o sistema den-
nesse sentido, para uma maior complexi- tro de uma complexidade de papéis.
dade, processos dinâmicos de alistamento Luhmann conclui sua análise ressal-
substituem as antigas ligações estáticas tando que a eleição “é uma oportunidade
de papéis.”49 Portanto, tais processos são de expressão da insatisfação sem risco
elaborados de forma a realizar três condi- para a estrutura (...). Nessa medida ela
ções: “têm de ser especificáveis como fun- pertence aos mecanismos de absorção dos
cionais e separáveis das outras relações de protestos, tal como os processos judiciais
papéis; têm de poder produzir incerteza e também desempenham essa função”54
alternativas, de acordo com a complexida- O mesmo esforço em elaborar uma
de necessária; e têm de conter uma norma teoria sociológica da representação é en-
reguladora de apoio e controle, que permi- contrado em Sobolewsky. Ele estrutura
ta que esses problemas sejam resolvidos”50 suas avaliações acerca da representação
Os critérios estabelecidos para o processo política partindo dos conceitos desenvol-
eleitoral contêm todas as condições acima, vidos pela teoria marxista, situando o sis-
que podem ser identificadas na universali- tema representativo na esfera das relações
zação do direito de voto e na igualdade de entre governantes e governados.
seu peso. Tudo isso concorre para a indivi- A sociedade de classes referencia
dualização do papel de eleitor.51 sua concepção de Estado, expressão dos
A produção de incertezas e alternati- interesses do grupo dominante. Ao defi-
vas é outra condição presente no processo nir-se a representação como um processo
eleitoral. A decisão nunca é definitiva, uma organizado que funciona para perpetuar
vez que o seu resultado perdura até o es- as estruturas das relações de poder entre
tabelecimento de novas eleições, servindo governantes e governados, restringe-se
para solucionar o conflito naquele momen- sua atuação como um mero mecanismo de
to. A solução do conflito, contudo, expli- “acomodação contínua que se estabelece
cita o fato de que “a incerteza permanece entre as decisões políticas e as opiniões”.55
no primeiro plano como a dramaticidade Contudo, a despeito de o Estado ser con-
artificialmente organizada dum aconteci- trolado por uma elite, esta não impede que
mento desportivo”52 os cidadãos exerçam influência sobre de-
A eleição traduz-se, portanto, numa terminadas decisões.
etapa do processo político global de assimi- Como se pode inferir das conside-
lação de conflitos. Daí Luhmann entender rações acima expostas, para Sobolewsky,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 325

a representação deve ser entendida como riante, consoante o modelo ideológico sob
um processo inscrito numa dinâmica social o qual se alicerça a sociedade. Uma ordem
de relações de poder estabelecidas entre a legítima não constituiria, pois, pré-requisi-
classe dominante e as massas, cabendo a to necessário à atuação representativa dos
estas últimas a percepção das brechas apre- partidos, institucionalizados como estão,
sentadas pelo sistema de modo a favorecer “nos regimes autoritários, nos democrá-
o estabelecimento do socialismo. ticos, nos Estados em desenvolvimento e
nos industrializados.”60
3. Os Partidos Políticos Por tal razão, elaborar um conceito
O surgimento dos partidos políticos de partido político unívoco, que englobe as
esteve vinculado ao desenvolvimento da diferentes realidades sociais - fator deter-
democracia representativa - pressuposto minante para a explicitação de seu verda-
inquestionável do autogoverno do povo - deiro sentido - é tarefa árdua. Em termos
tornando-se um dos elementos caracteriza- gerais, “o partido político pode definir-se
dores do Estado de Direito.56 como um grupo de pessoas organizadas
No constitucionalismo moderno, com o fim de exercer ou influenciar o po-
as organizações político-partidárias inte- der do Estado para realizar total ou par-
gram-se à estrutura estatal, sistematizadas cialmente um programa político de caráter
pelas Constituições e leis regulamentado- geral.”61 Dito de outra forma, o partido
ras, compondo o quadro das instituições político pode ser compreendido como uma
democráticas.57 organização, cujos membros partilham
“A constitucionalização dos partidos determinadas idéias que os vinculam e os
políticos ou “incorporação constitucional identificam, levando-os a associarem-se
dos partidos” (Hesse) implica que eles com o objetivo de alcançar o poder e ad-
deixem de ser apenas uma realidade socio- ministrar a máquina estatal segundo suas
lógico-política (...),”58 para denotar a sua concepções ideológicas.62
primazia na organização governamental Considerado sob esta perspectiva, o
contemporânea. conceito acima exposto gera controvérsias
Três são, basicamente, os sistemas teóricas, mormente quando confrontado
partidários, identificados por José Alfre- com a vontade geral de Rousseau. Tal con-
do de Oliveira Baracho: o unipartidário, trovérsia, contudo, atenua-se ao se consi-
o bipartidário e o multipartidário, sendo derar a distinção estabelecida entre partido
possível ainda classificá-los pelo critério e facção, tendo como elemento diferencia-
da competitividade como: sistemas com- dor a defesa, pelo primeiro, dos interesses
petitivos e não competitivos. O sistema nacionais, enquanto a última patrocina
competitivo, por sua vez, comporta uma causas particulares e interesses individu-
subsistematização em sistemas multiparti- alizados. A idéia de facção reproduz, por
dários, bipartidários e sistemas de partidos assim dizer, a antítese, ou mesmo a ver-
dominantes.59 dadeira negação do partido político, que,
Submetida às realidades nacionais, num processo de degeneração, poderá ter
às ideologias e às estruturas sócio-econô- sua natureza transfigurada, esfacelando-se
micas, a situação partidária de um Estado em uma ou várias facções.63
encontra-se condicionada ao regime políti- O critério ideológico é fundamental,
co adotado. Neste contexto, a conceituação por revelar a filosofia político-partidária
de partido político adquire conotação va- adotada, inerente e imperativa à sua consti-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


326 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

tuição. “A criação de um partido ou a ade- to de que o sistema eleitoral exerce gran-


são a um partido não se pode conceber sem de influência sobre o sistema partidário,
um conjunto de idéias políticas.”64 embora seja destacada a assertiva de que
Fruto de um esforço de aglutinação, referida influência não se encontra isolada
o fato de ter como meta principal a con- de outros fatores relevantes, tais como, a
quista do poder objetivando implementar a realidade cultural e sócio-econômica. Efe-
concepção teórica que os animam, induz os tivamente, ambos os sistemas compõem o
partidos políticos a perquirir os interesses governo democrático e, por conseguinte,
nacionais. Para que uma organização par- asseguram a autenticidade da vontade polí-
tidária se imponha, cresça e se fortaleça, tica estatal. Verifica-se, tanto um processo
mister um programa de governo que sensi- de influências recíprocas, quanto um for-
bilize parte considerável dos eleitores.65 te vínculo de continuidade entre eles, em
Natural no sistema democrático de razão de o sistema partidário promover a
governo, o partido expressa o pluralismo mobilização e organização da sociedade
das soluções possíveis no exercício da di- de acordo com as concepções políticas de
mensão social, promovendo o equilíbrio do seus integrantes. Faz-se mister que o siste-
governo ao garantir a equânime represen- ma eleitoral propicie a expressão definitiva
tação das divergências.66Como instituição
deste posicionamento ao fixar as regras que
ligada ao desenvolvimento da democracia
orientam o exercício do direito de voto.
representativa, constitui-se num meio bas-
Os sistemas majoritário e proporcio-
tante eficaz para unir tanto eleitores quanto
nal, cada qual a seu modo, promoveram o
seus representantes.
fortalecimento dos partidos políticos. O
Do ponto de vista jurídico, a partir do
procedimento eleitoral estabelece o modus
século XX, a definição conceitual de par-
faciendi da realização do sufrágio, organi-
tido político não ofereceu mais problemas
uma vez que sua estrutura e limites foram zado de maneira a favorecer a composição
normatizados pelas Constituições.67 de um governo coerente e estável. Nesta
Sobre o tema, preleciona José Al- direção, quase unânime a postura favorá-
fredo Baracho: “Considerados hoje como vel aos sistemas proporcional e majoritário
essenciais à democracia representativa, em dois turnos por fomentar o multipar-
até há pouco tempo, a existência dos par- tidarismo, ao contrário do sistema majo-
tidos desenvolveu-se fora da Constituição ritário em um único turno, cuja atuação
e mesmo das leis (...)” entendidos “ como polariza os partidos, provocando o bipar-
produto dos costumes e da tradição (...)”68 tidarismo.71 Referida polarização implica
Deste momento em diante, não se uma representação insuficiente com rela-
questionou mais a necessidade ou legiti- ção às minorias que, conquanto participem
midade dos partidos, mas o âmbito de sua do processo de votação, ficam destituídas
atuação.69 de procuradores nas Assembléias. 72
A pretensão da presente análise é O regime democrático tem no plura-
avaliar a atuação dos partidos políticos no lismo político um dos seus mais importan-
Estado democrático, buscando apreender tes alicerces, e o partido político constitui-
aspectos relevantes da relação estabelecida se no mecanismo de expressão da vontade
entre os sistemas eleitorais e o conteúdo da popular na escolha dos governantes. Veí-
representação por eles determinados.70 culo de comunicação entre a sociedade e
Entre os teóricos que se debruçam o Estado, ele canaliza as reivindicações e
sobre o assunto é corrente o entendimen- anseios sociais, exercendo o importante

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 327

papel de inconsciente coletivo da nação.73 do direito de voto. Ocorre, contudo, que a


E mais, ao possibilitar que os indivíduos se interpretação deste instituto não há de ser
articulem em torno de uma ideologia de- vislumbrada, apenas, sob o aspecto formal.
finida, liberta-os de promessas de campa- Importa considerar o fato de que o sistema
nhas e qualidades pessoais dos candidatos representativo foi o mecanismo adotado
à medida que “o eleitor moderno não pode pelos ideólogos do liberalismo na tentativa
mais confiar nas promessas de candidatos de identificar as relações de poder, mor-
não comprometidos com a fidelidade a um mente no que tange à questão política, com
programa e a um partido.” 74 a democracia.76
Duverger assinala que o desenvolvi- A crise do sistema representativo
mento dos partidos redefiniu as questões deve ser entendida a partir de um proces-
correntes em torno da representação, pois so global de questionamento dos valores
estes vieram a participar da relação já insti- democráticos e das práticas políticas ne-
tuída entre representados e representantes. les fundamentadas. A democracia liberal,
Ele sustenta: “Antes de ser escolhido pe- quando posta em prática, torna-se uma
los eleitores, o deputado é escolhido pelo realidade de reestruturação do poder. Des-
partido: os eleitores só fazem ratificar essa velam-se, nessa dialética múltiplas inter-
escolha (...) Se se quer manter a teoria da pretações sociais.
representação jurídica, é necessário admi- A consolidação do sistema represen-
tir que o eleito recebe um duplo mandato: tativo, como foi dito, deu-se no interior
do partido e dos eleitores.”75 de uma dinâmica de contestação ao abso-
Em síntese, o Estado democrático de lutismo monárquico, num conflito que se
direito não pode prescindir dos partidos espraiou pelo corpo social, graças ao esfor-
políticos, sobretudo após o estabelecimen- ço burguês em universalizar seu discurso e
to do sufrágio universal, que incorporou apresentar seus interesses de classe como
as massas ao jogo político. A sociedade sendo o do homem ecumênico. Não é ca-
moderna adquiriu contornos de sociedade sual a Revolução Francesa ter tido como
organizacional, e a conquista de direitos referenciais ideológicos, a liberdade, a
ou mesmo a realização de certos objetivos igualdade e a fraternidade, engendrando a
político-governamentais dependem, inexo- destruição das referências simbólicas.77
ravelmente, da capacidade de organização Apresentado como a única possibili-
das forças populares. dade de efetivação de uma ordem política
democrática, o instituto da representativi-
4. A crise da democracia representativa
dade, desde os seus primórdios, enfrentou
A reflexão filosófica que intente defi- a contestação ao Estado Liberal.78
nir as razões e os fundamentos do sistema Paulo Bonavides identifica três mo-
representativo necessita, a priori, identifi- mentos demarcadores, nos quais a socie-
car as diversas possibilidades interpretati- dade tentou redefinir o sistema represen-
vas existentes: a jurídica, a sociológica e a tativo, tomando como base a tradicional
histórica. dicotomia: princípio da dualidade versus
Em sua expressão jurídica, o sistema princípio da identidade, segundo o critério
representativo cumpre satisfatoriamente a da realização da vontade popular. Enten-
exigência de igualdade democrática, que de o autor ter havido uma decomposição
pressupõe a participação de todos os ci- progressiva da vontade una e soberana do
dadãos nas decisões de governo, através povo, a ser observada nas seguintes fases:

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


328 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

a da representação proporcional, a da re- pondo termo a essa segunda fase, adveio


presentação profissional e a dos grupos de sem dúvida da vinculação ideológica com
pressão. a doutrina política do fascismo.”80
A representação proporcional, ca- A grande inovação do movimento
racterizada essencialmente pelo elemento operário, contudo, foi demonstrar que a tão
territorial, promoveu um esfacelamento propalada “vontade popular”, como ele-
da vontade geral, devido a expressão de mento formador do ideal de bem comum
variadas tendências políticas regionais no jamais se realizou historicamente no sen-
Parlamento. O representante eleito e vin- tido universalista que sempre lhe atribuí-
culado à uma determinada região do país, ram. Fez-se necessária a mobilização dos
de certa forma, contradizia o princípio da trabalhadores a fim de obterem o direito
dualidade.79 básico sobre o qual o sistema representati-
O declínio da teoria da duplicidade vo se assenta: o voto. O sufrágio censitário
no final do século XIX explicitou-se nos pôs à mostra o caráter aristocrático da de-
movimentos dos trabalhadores que, em- mocracia liberal.81
preendendo organizar a classe operária, Frustrado pelo voto censitário, pela
não contaram com o apoio do Estado li- exclusão da participação feminina, por um
beral neutro em relação aos conflitos entre Parlamento organizado em moldes aristo-
trabalhadores e patrões. A ação objetivava cráticos, o Estado liberal expor-se-ia à sua
a institucionalização de direitos, reinter- própria vulnerabilidade.82
pretando o significado da atuação daque- A luta pelo direito de votar foi a ma-
la classe na sociedade. Para o movimento neira encontrada pelos partidos ligados à
operário, cabia ao Estado criar mecanis- classe operária para minar o sistema re-
mos de compensação dos contrastes so- presentativo dentro das próprias regras do
ciais, promovendo o estabelecimento de jogo político. “Tal participação, ao mesmo
uma sociedade mais justa. Era o prenúncio tempo que reforçou o quadro institucional
do Estado social, cujo caráter supostamen- vigente, ao optar pela via reformista e não
te democrático implicava o abandono, pelo revolucionária, introduziu no sistema po-
menos em parte, da tradicional concepção lítico elementos geradores de conflito”83
do livre jogo do mercado. Seu estabeleci- Contudo, a incorporação das massas no
mento marcou a culminância de uma or- processo decisório do governo, tendo for-
dem de valores, denotando a inclusão das çado a abertura do sistema, não resolveu
massas no processo de decisão política. suas falhas.
A representação profissional viria
Conclusão
num segundo momento, introduzindo o
corporativismo.A oposição ao princípio da A crise contemporânea do sistema
duplicidade, aqui, revelar-se-ia pela preva- representativo desencadeada pela atuação
lência dos interesses de um segmento de- de grupos sociais que buscam perpetrar a
terminado da sociedade: os trabalhadores, defesa de interesses específicos tem ori-
dando origem à representação classista gem na pacificação do Estado, cuja conse-
nos Parlamentos. qüência foi a neutralização da cidadania e
A orientação fascista que determinou sua substituição por uma relação de clien-
a adoção da representação profissional no tela.84
Legislativo levaria à sua decadência. “O Os grupos de pressão constituem
descrédito da representação profissional, uma forma perniciosa de organização da

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 329

sociedade civil que desmobiliza o sistema Com efeito, apesar do enfraqueci-


representativo tradicional e as casas ele- mento da esfera pública pela tecnocracia,
tivas 85 por reivindicarem a adoção, pelo da desintegração ética e moral dos apare-
Parlamento, de medidas que favorecem lhos do Estado, da manipulação das opi-
determinados segmentos de classe, em de- niões pela sociologia da comunicação de
trimento do restante da sociedade.86 massas, quando o público posicionado co-
Na verdade, a ficção de identidade meça a vibrar, as relações de forças entre
que impregnou o sistema representativo sociedade civil e sistema político podem e
descortina a imperiosidade de proceder-se devem sofrer modificações.
a uma revisão crítica do próprio conceito Por esta razão, ao utilizarem-se con-
de Estado, cujos acréscimos - Estado libe- ceitos jurídicos como “povo” e “nação”,
ral, Estado social, Estado de partidos, Es- deve-se expurgar as ambigüidades e os ex-
tado de justiça, Estado corporativo, et ca- clusivismos reducionistas que encobertam
terva – restam insuficientes para abranger diferenças estruturais e impedem a distin-
toda a sua complexidade.87 ção entre a retórica ideológica e a demo-
Seu colapso patenteia a inobservân- cracia efetiva, na percuciente observação
cia de condição básica inerente à teoria da de Friedrich Muller.89
representação: o controle das ações dos Só assim, sob esta dimensão de revi-
governantes88, acarretando problemas que talização e aprofundamento das regras de
ameaçam seriamente as instituições demo- legitimidade política se concebe a Demo-
cráticas dentre os quais se destacam, a des- cracia Contemporânea. Uma democracia
crença e a desmobilização dos cidadãos. viva, que não se resume apenas ao voto,
Nessa perspectiva, não se pode mais mas à arena pública de discussão onde
reduzir a democracia somente ao sufrágio reside, de fato, a soberania de atitudes do
devendo-se estendê-la à efetiva participa- Homem-Cidadão.
ção do indivíduo no processo de constru-
ção do Estado. A mudança política de va- REFERÊNCIAS
lores e enfoques resulta de uma formação
construtiva de vontades. Para Habermas, AZAMBUJA, Darcy, Teoria geral do Estado.
o núcleo da sociedade civil forma uma Porto Alegre - Rio de Janeiro: Editora Globo,
1982, 21ª ed.
espécie de associação que institucionaliza
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria
os discursos capazes de solucionar pro- geral dos partidos políticos, In: Revista Bra-
blemas, transformando-os em questões de sileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte:
interesse geral no quadro das esferas pú- Universidade Federal de Minas Gerais, nº 50,
blicas. Por sua vez, esses “designs discur- janeiro de 1980.
sivos” formam uma caixa de ressonância ______. Regimes políticos. São Paulo: Resenha
que propicia um desatrelamento do código Universitária, 1977.
de poder, libertando o cidadão da política ______. A revisão da constituição francesa de
1958. A permanente procura de uma constitui-
simbólica.
ção modelar, In: Revista de Direito Compara-
E é justamente neste contexto de do, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da
atuação transformativa que os atores so- Universidade Federal de Minas Gerais, vol. 3,
ciais, negligenciados, assumem um papel 1999.
surpreendentemente ativo e pleno de con- BARTHÊLEMY, Joseph e DUEZ, Paul. Trai-
seqüências, quando tomam consciência da té élémentaire de droit constitutionnel, Paris:
situação de crise. Dalloz 1936.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


330 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

BONNARD, Roger, Précis élémentaire de droit KELSEN, Hans. A democracia, tradução de


public, Paris, Recueil Sirey, 1932, 2ª ed. Ivone Castilho Benedetti e outros, São Paulo:
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito consti- Martins Fontes, 1993
tucional, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, 2ª LAFERRIERE, Julien. Manuel de droit consti-
ed. tutionnel, Paris: 1947, 2ª ed.
______. Ciência política. São Paulo: Malhei- LEITÃO, Cláudia, A crise dos partidos políti-
ros, 1994, 10ª ed. cos brasileiros – Os dilemas da representação
______. Teoria do Estado. São Paulo: Malhei- política no Estado intervencionista. Fortaleza:
ros, 1995, 3ª ed. Gráfica Tiprogresso, 1989.
CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito cons- LOEWENSTEIN, Kart. Teoría de la constitu-
titucional, Coimbra: Almedina, 1991,5ª ed. ción, tradução de Alfredo Gallego Anabitarte,
Dicionário de Política de Norberto Bobbio, Barcelona: Editorial Ariel S.A, 1986.
Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, tra- LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo pro-
dução Carmem C. Varialle e outros, Brasília, cedimento, tradução de Maria da Conceição
Universidade de Brasília, 1991. Côrte-Real, Brasília: Editora Universidade de
DUVERGER, Maurice. Institutions politiques Brasília, 1980.
et droit constitutionnel, Paris: Presses Universi- MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direi-
taires de France, 1973, 13ª ed, vol. 2: Le syste- tos humanos na ordem jurídica interna, Dis-
me politique français. sertação de Mestrado apresentada à Faculdade
FALCON, Francisco José Calazans. A época de Direito da Universidade Federal de Minas
pombalina: política econômica e monarquia Gerais, 1991.
ilustrada, São Paulo: Ática, 1982. ______. Poder Municipal. Paradigmas para
FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade, o Estado constitucional brasileiro, Belo Hori-
São Paulo: Perspectiva, 1978. zonte: Del Rey, 1999.
FRIEDRICH, Carl J. Gobierno constitucional MILL, John Stuart. O governo representati-
y democracia. Teoría y práctica en Europa y vo, tradução de E. Jacy Monteiro, São Paulo:
América, Madrid: Instituto de Estudios Políti- IBRASA, 1983, 2ª ed.
cos, 1975, vol. II. MIRANDA, Jorge. Manual de direito consti-
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho consti- tucional, Coimbra: Coimbra Editora, 1988, to-
tucional comparado, Madrid: Alianza Editorial mos I , III e IV.
S.A, 1984. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A ques-
______. El Estado de partidos, Madrid, Alian- tão fundamental da democracia, tradução: Pe-
za Editoral S.A, 1996, 2ª ed. ter Naumann, São Paulo: Max Limonad, 2000.
GÉRARD, Philippe. Reflexions sur la legitimité NEUMANN, Franz. Estado democrático e Es-
du droit dans la société démocratique, Bruxel- tado autoritário, tradução de Luiz Corção, Rio
les: Facultés Universitaires Saint-Louis, 1995. de Janeiro: Zahar, 1969.
HANDLIN, Oscar. A verdade na história, São PAIVA, Maria Arair Pinto. Espaço público e
Paulo: Martins Fontes – Brasília: Editora Uni- representação, In: Direito, Estado e Sociedade-
versidade de Brasília, 1982. Revista do Departamento de Direito da PUC-
HAURIOU, André. Droit constitutionnel et ins- RJ, nº 7, julho/dezembro, Rio de Janeiro, 1995.
titutions politiques, Paris: Éditions Montchres- PRELOT, Marcel. Institutions politiques et
tien, 1972, 5ª ed. droit constitutionnel, Paris: Dalloz, 1969.
HECK, Luis Afonso. O Tribunal constitucio- ______. Précis de droit constitutionnel, Paris
nal federal e o desenvolvimento dos princípios Dalloz, 1952, 2ª ed.
constitucionais; contributo para uma compre- RADBRUCH, Gustav, Filosofia do direito,
ensão da jurisdição constitucional federal ale- tradução de L. Cabral de Moncada, São Paulo,
mã, Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1995. Saraiva & Cª, editores, 1937.
HIRST, Paul. A democracia representativa e ROMANO, Santi. Princípios de direito consti-
seus limites, tradução de Maria Luiza X. de A. tucional geral, tradução de Maria Helena Diniz,
Borges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 331

ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social, sava de algum outro termo para aplicar aos ho-
tradução de Vicente Sabino Júnior, São Paulo: mens livres que estavam em vias de fazer nas-
José Buskatsky, 1978. cer a República. Procurando pelo substantivo
RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Direito constitu- que mais de perto exprimisse sua compreensão
cional. Instituições de direito público, tradução do status dos colonos em rebelião, inseriu a pa-
de Maria Helena Diniz, São Paulo: Revista dos lavra “cidadão”, que em sua mente se vincula-
Tribunais, 1984. va vagamente aos antecedentes romanos. Mais
SARTORI, Giovanni, A política. Lógica e mé- tarde, durante a Revolução Francesa, os súditos
todo nas ciências sociais, tradução de Sérgio rebeldes de Luís XVI tomaram-na emprestada
Bath, Brasília: Editora Universidade de Brasí- e disseminaram-lhe o uso pelo mundo” HAN-
lia, 1997. DLIN, Oscar. A verdade na história. São Pau-
______. A teoria da representação no Estado lo: Martins Fontes- Brasília: Ed. Universidade
representativo moderno, In: Revista Brasileira de Brasília, 1982,pp. 159-160.
de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1962. 2
“(...) le monde est intelligible à un observateur
SAUTEL, Gerard. Histoire des institutions pu- sincère, qu’il est organisé rationnellement et
bliques, depuis de la révolution française, Pa- que, lorsqu’on détient les lois maîtresses gou-
ris: Balloz, 1978, 4ª ed. vernant une serie de phénomènes déterminés,
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución, Mé- on en peut déduire un certain nombre de consé-
xico: Editora Nacional, 1981. quences, qui se trouvent généralement vérifiées
SILVA, José Afonso da. Curso de direito cons- dans les faits”. In: HAURIOU, André, Droit
titucional positivo, São Paulo: Revista dos Tri- constitutionnel et institutions politiques. Pa-
bunais, 1990, 6ª ed. ris: Éditions Montchrestien, 1972, 5ª ed., pp.
TOLEDO, Gastão Alves de. Grupos de pressão 48.
no Brasil, In: Revista de Direito Constitucio- 3
“Hume, Helvetius, d`Holbach, Morelly, cada
nal e Ciência Política, Rio de Janeiro, Forense, qual à sua maneira, realizam o exame crítico do
1987, número especial. que existe, e propõem as soluções: leis melho-
VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sin- res, mais racionais, próprias para produzir a fe-
dicato no Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra, licidade dos homens.” In:FALCON, Francisco
1978, 2ª ed. José Calazans. A Época Pombalina: política
WAGNER, José Carlos Graça. Partidos políti- econômica e monarquia ilustrada. São Paulo:
cos: um estudo crítico, In: Revista de Direito Ática 1982, pp. 113.
Constitucional e Ciência Política, publicação 4
Ver, VIANNA, Luís Werneck. Liberalismo e
do Instituto Brasileiro de Direito Constitucio- sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Ter-
nal, Rio de Janeiro, 1987, número especial. ra, 1978, 2ª ed., p.12. Segundo este autor: “Sob
WEBER, Max, Economia e società, Milano, o feudalismo não se pode propriamente falar em
Comunitá, 1961, vol. II. direito e sim numa regulamentação do sistema
WITKER, Alejandro. Bibliografia latinoame- de desigualdades sociais existentes, face à au-
ricana de politica y partidos politicos, México: sência de um estatuto jurídico formal e comum
Centro Interamericano e Asesoría y Promoción a todos. A disciplina de uma hierarquia de pri-
Electoral (CAPEL), 1988. vilégios não consiste num sistema jurídico, uma
vez que se constitui numa forma de desigualar
pessoas. O direito implica na existência de uma
NOTAS unidade de medida comum, formal e impessoal,
não podendo subsistir igualdade formal entre
1
“Ao rascunhar o texto da Declaração de In- indivíduos sujeitos a relações de dependência
dependência, Thomas Jefferson lançou-se a e de mútua lealdade”. Ver também GÉRARD,
enumerar as queixas dos súditos de George III, Philippe. Réflexions sur la legitimité du droit
como o fizera na Constituição da Virgínia. Du- dans la société démocratique. Bruxelles: Fa-
rante o trabalho, porém, o revolucionário per- cultés Universitaires Saint-Louis, 1995, p. 114.
cebeu que a palavra“súdito” era imprópria para “L’ordre social inégalitaire, la hiérarchie des
descrever os habitantes da nova Nação. Preci- ordres et des ranges, se justifiait en dernière

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


332 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

instance par référence à un fondement externe suas manifestações iniciais na Magna Carta de
tel que la volonté divine ou, sous l’effet de la 1215, quando o Rei João Sem Terra, na Inglater-
sécularisation de la politique, les principes de ra, pressionado pelos proprietários ingleses, foi
justice émanant de la Raison.” obrigado a reconhecer um texto de compromis-
5
“C’est à la fin du XVIII ème siècle, au moment so com os interesses reconhecidos então como
des Révolutions américaine et française, que le direitos dos barões ingleses. Esse fato marca
mot “Constitution”, avec son sens moderne, um ponto inicial do Estado Constitucional, que
verra de jour, et que l’adjectif “constitutionnel” será a necessidade da limitação do poder do Es-
s’appliquera à des régimes tempérés, équilibrés, tado por um texto legal maior que todos os po-
dans lesquels autorité et liberté se limitent mu- deres do Estado, reconhecendo direitos de ou-
tuellement. L’expression “monarchie constitu- tros grupos no ordenamento legal. Um segundo
tionnelle” en particulier, signifie, par opposition marco importante para a afirmação do Estado
à celle de “monarchie absolue”, un régime dans constitucional serão as revoluções burguesas do
lesquel l’autorité du monarque est limitée grâce século XVIII, na América do Norte, em 1776,
aux libertés individuelles des citoyens et à la e na França, em 1789 (...) marcando a passa-
participation de ces derniers au gouvernement gem para um modelo de Estado liberal consti-
par l’intermédiaire d’assemblés représentati- tucional, em que o poder do Estado é limitado
ves”. ANDRÉ, Hauriou. Droit constitutionnel e os direitos fundamentais, na época apenas os
et institutions politiques , op. cit.,p. 28. direitos individuais e políticos, são declarados
Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, é nas Constituições (...).”MAGALHÃES, José
indispensável para entender-se o Estado con- Luiz Quadros de. Poder municipal. Paradig-
siderar seu relacionamento com o Direito. “Na mas para o Estado constitucional brasileiro,
evolução das instituições políticas ocidentais, a Belo Horizonte,:Del Rey, 1999, pp.31-32.
forma elaborada pela noção de Estado de Di- Sobre a discussão acerca do papel da Magna
reito é fundamental para que se compreenda a Carta inglesa de 1215, como originária do cons-
posição que o Estado adquiriu, desde que sua titucionalismo moderno ver SCHMITT, Carl.
conceituação é feita, tendo em vista certa or- Teoría de la constitución, México, Editora Na-
dem jurídica, com um sistema normativo. (...) cional, 1981. pp. 52-53.
“A locução Estado de Direito serviu para ex- 7
Nesse sentido, Hauriou afirma: “Si, en effet,
pressar a realidade do Estado Moderno, reflexo on prend comme points de départ l’Etat-Nation
de um ideal de racionalização jurídica da vida. et le dualisme “pouvoir-liberté” on s’aperçoit
“É de se convir que está aí um sistema concreto qu’un certain nombre de consèquences suivent
de legalidade normativa, assentado ideologica- logiquement, qui sont, en fait, les caractéristi-
mente nos pressupostos filosóficos-políticos da ques du Droit constitucionnel occidental, par-
democracia liberal. ticulièrement à l’époque classique: système
“Dentro dessa orientação, procurou-se caracte- représentatif, établissement des représentants
rizar o Estado de Direito, com certas exigências comme censeurs des gouvernants, limitation
básicas, sendo que a doutrina passou a eleger os dans le temps des fonctions représentatives,
seus elementos imprescindíveis, garantidos por élections disputées, procédures majoritaires
instituições que pretendem assegurar: (...)” In: Droit constitutionnel et institutions
- o império da lei; politiques, op cit. ,p. 49.
- a separação dos poderes; 8
Atente-se que, os conceitos de povo e de ci-
- a legalidade da administração e dadão considerados na presente análise, são os
- os direitos e liberdades fundamentais.” forjados na dinâmica de elaboração da demo-
In: Regimes políticos. São Paulo: Resenha cracia liberal burguesa.Portanto, as origens da
Universitária, 1977, p. 126. (grifos no original) democracia na Grécia e Roma Antigas, onde
6
“Partindo da idéia de um Estado Constitucio- a formulação de povo era, de acordo com as
nal, como aquele que limita os poderes do Esta- circunstâncias históricas, antagônica àquela
do, organiza sua estrutura, distribui competên- desenvolvida nas sociedades democráticas mo-
cias e declara e garante direitos fundamentais dernas, não será considerada. “O significado
da pessoa humana, vamos encontrar uma de original do termo “democracia”, cunhado pela

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 333

teoria política da Grécia antiga, era o de “gover- Paulo: Malheiros, 1995, 3ªed., p.215.
no do povo” (demos = povo, Kratein = gover- 12
FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade,
no). A essência do fenômeno político designado São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 47.
pelo termo era a participação dos governados 13
“Aussi bien les failles que nous avons repérées
no governo, o princípio de liberdade no sentido dans les théories étiques sur l’universalisation
de autodeterminação política; e foi com esse constituent autant d’indices de l’impossibilité
significado que o termo foi adotado pela teoria d’une conciliation absolue des préférences et
política da civilização ocidental.” In: KELSEN, des revendications individuelles, voire d’un
Hans. A democracia, tradução de Ivone Casti- consensus sur des prétentions de validité.” In:
lho Benedetti e outros, São Paulo: Martins Fon- GERARD, Philippe. Réflexions sur la legiti-
tes, 1993, p.140. mité du droit dans la société démocratique,
Na democracia liberal o povo é tomado como op.cit, p. 107.
o conjunto de cidadãos, responsável pela legi- 14
Estigmatizado por seu caráter demoníaco, o
timidade das instituições estatais. A cidadania, Poder tende a corromper-se. “Con el fin de evi-
nos termos jurídicos-liberais, pressupõe o direi- tar ese peligro siempre presente, que es inma-
to à participação política, reconhecido a todos nente a todo poder, el Estado organizado exige
igualmente. Daí, democracia querer dizer parti- de manera imperativa que el ejercicio del poder
cipação exercida pelo direito de voto, ato voli- político, tanto en interés de los detentadores
tivo de vontade política, que exprime a atuação como de los destinatarios del poder, sea restrin-
popular na tomada de decisão dos negócios do gido y limitado. Siendo la naturaleza humana
Estado. como es, no es de esperar que dichas limitacio-
9
“El poder constituynte presupone el Pueblo nes actúen automáticamente, sino que deberán
como una entidad política existencial; la pa- ser introducidas en el proceso del poder desde
labra “Nación” designa en sentido expresivo fuera. Limitar el poder político quiere decir li-
un Pueblo capaz de atuar, despierto a la cons- mitar a los detentadores del poder; esto es el
ciencia política”. Política existencial; la pala- núcleo de lo que en la historia antigua y moder-
bra “Nación” designa en sentido expresivo un na de la política aparece como el constituciona-
Pueblo capaz de atuar, despierto a la conscien- lismo. Un acuerdo de la comunidad sobre una
cia política” In: SCHMITT, Carl. Teoría de la serie de regla fijas que obligan tanto a los deten-
constitución, op cit, p. 57. tadores como a los destinatarios del poder, se há
10
Na democracia liberal burguesa, povo, na- mostrado como el mejor medio para dominar y
ção e Estado são conceitos interligados. “Un evitar el abuso del poder político por parte de
Estado democrático que encuentra los supues- sus detentadores.” LOEWENSTEIN, Carl. Te-
tos de su Democracia en la homogeneidad de oría de la Constitución, tradução de Alfredo
sus ciudadanos, se corresponde con el llamado Gallego Anabitarte, Barcelona: Editorial Ariel
principio de la nacionalidad, según el cual una S.A, SD, p. 29.
Nación forma un Estado y un Estado encierra 15
FARIA, José Eduardo, op. cit, p 51.
dentro de sí una Nación. Un Estado nacional- 16
Id.,p 62
mente homogéneo aparece entonces como lo 17
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo pro-
normal; un Estado al que esa homogeneidad cedimento, tradução de Maria da Conceição
falta, tiene algo de anormal que pone en peligro Côrte-Real, Brasília: Ed. Universidade de Bra-
la paz”SCHMITT, Carl, Teoría de la constitu- sília,1980, p.33.
ción, op. cit, p. 268. 18
Id., p.33.
11
Paulo Bonavides diria: “O problema da legiti- 19
Id., pp. 33-34.
midade é basicamente um problema de consen- 20
Nesse sentido, Faria afirma: “As campanhas
so: pelo menos em se tratando de estabelecer eleitorais, que se processam sob certos proce-
uma ordem democrática e pluralista, onde o dimentos constitucionais, possibilitam o debate
consenso aparece como a categoria central, o público e permitem (uma vez que o processo de
eixo da normatividade, o liame da juridicidade criação do direito é missão da comunidade em
com a facticidade, o traço de união do constitu- seu conjunto e força, em suas múltiplas formas,
cional com o real.” In: Teoria do Estado. São tanto quanto em sua unidade) descobrir a me-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


334 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

lhor maneira de agir em conjunto. FARIA, José 23


Vai daí a decisão coletiva não poder ser enca-
Eduardo, op cit. p. 66. rada como um consensus, pois “c’est seulement
É na supremacia da opinião pública que Roger à travers les conflits et les débats qui les divi-
Bonnard edifica sua doutrina de soberania na- sent que les membres de la société démocrati-
cional. Para ele, “Si on se place à un point de que peuvent exercer l’autonomie collective à
vue purement réaliste, la Souveraineté Nationa- laquelle ils sont destinés”.GERARD, Philippe,
le se conçoit de la façon suivante. op. cit. p 122
Elle consiste essentiellement dans la supréma- 24
Segundo Neumann: “Traduzido em política, o
tie de l’opinion publique. Elle est ainsi le pou- aspecto negativo da liberdade leva necessaria-
voir de l’opinion publique de faire sentir une mente à fórmula de cidadão versus Estado (...
action de direction sur l’exercice des fonctions ). Sua pressuposição básica é o individualismo
de l’Etat en vue d’assurer que cet exercice se filosófico, o ponto de vista de que o homem é
fera conformément aux tendances de l’opinion. uma realidade inteiramente independente do
Ainsi la Souveraineté Nationale implique sistema político dentro do qual vive(...) O po-
d’abord la liberté de formation de cette opi- der político, incorporado no Estado será sempre
nion. Il faut que tous les citoyens puissent ex- estranho ao homem; ele não pode nem deve,
primer leur propre opinion, la répandre, discu- se identificar plenamente com ele. Uma teoria
ter celle des autres, car c’est par ce jeu d’action política baseada numa filosofia individualista
et de réaction des opinions individuelles que deve necessariamente funcionar com o conceito
s’établit l’opinion publique. negativo-jurídico de liberdade, liberdade como
Puis la Souveraineté Nationale compor- ausência de restrições” NEUMANN, Franz.
te l’action de cette opinion publique sur Estado democrático e Estado autoritário,
l’exercice des fonctions de l’Etat. Cette action tradução de Luiz Corção, Rio de Janeiro: Zahar,
ne peut résulter évidemment que des manifes- 1969, p. 181.
tations de volonté émanant de la majorité des 25
VIANNA, Luís Werneck, Liberalismo e Sin-
citoyens. La règle de la majorité est à la base de dicato no Brasil, op.cit, p. 9.
l’idée de Souveraineté Nationale. 26
Id, p 10
Il résulte de cette conception que le problème 27
A propósito, Philippe Gérard pronunciaria-
de l’organisation de la Souveraineté Nationale se: “Ces conditions incluent la sauvergarde de
consistera essentiellement d’abord à assurer la l’intégrité physique et morale des personnes, la
liberté d’expression et de discussion des opi- satisfaction de leurs besoins élémentaires, ainsi
nions individuelles, puis à permettre à ce qui que la garantie de moyens suffisants d’existence.
est vraiment l’opinion publique de se dégager, Elles recouvrent non seulement des droits rela-
de se manifester et d’agir. Un régime qui ne tifs à la culture et à la enseignement, mais aussi
réaliserait pas ces conditions n’est pas un ré- les libertés de conscience et d’expression en
gime démocratique.”In: Précis élémentaire de matières religieuse, morale, scientifique ou po-
droit public. Paris: Recueil Sirey, 1932, 2ª ed., litique. Elles impliquent également des droits
pp.20-21. (grifos no original) d’association, de réunion et de communication
21
Na definição de Carl Schmitt, incluem-se na sans lesquels un espace public démocratique ne
definição de povo, “todos los que no son seña- saurait être établi. Elles requièrent enfin un en-
lados y distinguidos, todos los no privilegiados, semble des droits politiques au sens strict, tels
todos los que no se destacan por razón de pro- que les droits de voe et d’éligibité, qui permet-
priedad, posición social o educación.” In: Teo- tent aux personnes de participer au processus de
ría de la constitución, op. cit, p. 280. décision collective.” Op. cit., p.130.
22
“En concevant la loi comme l’expression de 28
A controvérsia mereceu a seguinte observa-
la volonté du peuple et en affirmant que la li- ção de Werneck Vianna: “A igualdade formal a
berté est obéissance à la loi qu’on s’est pres- todos estendida não decorre de uma igualdade
crit, Rousseau a donné dans le contrat social la real. A sociedade nacional moderna iguala desi-
formule la plus explicite de l’idée d’autonomie guais na única dimensão do direito formal – to-
collective qui fonde la légitimité démocrati- dos são iguais perante a lei.” In: op. cit.., p.13.
que”. GÉRARD, Philippe. op cit, p. 120. Acorde Paulo Bonavides: “A legitimidade de

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 335

um poder constituinte assentado sobre a vonta- culta a comunicação entre governantes e gover-
de dos governados e tendo por base o princípio nados. Assinala que o referendum e a iniciati-
democrático da participação apresenta uma ex- va popular são instrumentos “qui permettent
tensão tanto horizontal como vertical, que per- aux citoyens de prendre directement certaines
mite estabelecer a força e intensidade com que décisions, dans le domaine constitutionnel ou
ele escora e ampara o exercício da autoridade. législatif, ne sont que subsidiaires, par rapport
“A extensão horizontal se mede pela maior ou à la procedure représentative, et aussi qu’elles
menor amplitude do colégio de cidadãos que sont mises en oeuvre, non pas à l’initiative du
decide sobre matéria constituinte ou elege re- Pouvoir exécutif, mais à celle du corps électoral
presentantes a uma assembléia constituinte. 0 qui, par suite, prend de lui-même une attitude
sufrágio serve de critério e referência com que et une mentalité de censeur.” In: HAURIOU,
caracterizar e definir o grau de legitimidade de- André, op. cit., pp.198-199.
mocrática; quanto menores as restrições à par- 30
BONAVIDES, Paulo, Curso de direito cons-
ticipação, maior a legitimidade que se logra na titucional, op. cit., p. 138.
decisão constituinte. 31
BONAVIDES, Paulo, Teoria do Estado,
Quanto à extensão vertical, esta se colige de op.cit, p.76.
quanto se escreveu dantes com respeito às vias 32
As técnicas utilizadas para alcançar os valores
de exteriorização do poder constituinte como democráticos são variáveis, de acordo com pe-
manifestação de vontade soberana. A extensão ríodos históricos determinados e a experiência
vertical da legitimidade é a que permite mensu- política de cada Estado.
rar os distintos graus de participação dos gover- A emanação da soberania popular pode ser
nos; primeiro, o poder decisório sobre a Consti- exercida juridicamente por meio de três mo-
tuição, mediante referendum ou distintos meios delos: a democracia participativa ou direta, a
plebiscitários; segundo, a incumbência de esco- democracia representativa ou indireta e a de-
lher os membros da Assembléia Constituinte e, mocracia semi-direta.
terceiro, a faculdade de eleger um Congresso Na democracia direta, o povo participa direta-
ordinário, dotado de competência constituinte mente da vida política do Estado exercendo os
latente que é a forma mais branda, menos polí- poderes governamentais, fazendo leis, admi-
tica e mais jurídica, indireta e arredada de par- nistrando e julgando. É, pois, aquela em que o
ticipação do elemento popular.” In: Curso de povo exerce de modo imediato as funções pú-
direito constitucional. São Paulo: Malheiros, blicas.
1996, 6ªed., pp.138-139. Na democracia indireta ou representativa, o
29
Nas democracias modernas a participação povo não exerce seu poder de modo imediato,
popular se efetiva, dentre outras maneiras, pela mas pelos seus representantes, eleitos periodi-
eleição de um parlamento que representa o camente, a quem são delegadas as funções de
povo. Como se sabe, no regime representativo governo.
o povo não intervém cotidianamente nos assun- “A democracia representativa pressupõe um
tos do governo, ao contrário do que ocorria na conjunto de instituições que disciplinam a par-
Grécia e na Roma Antigas, exemplos de demo- ticipação popular no processo político, que vêm
cracia direta. a formar os direitos políticos que qualificam a
A sociedade moderna teve na industrialização cidadania tais como as eleições, o sistema elei-
e urbanização distintas particularidades. Do toral, os partidos políticos”, em suma, institui
desenvolvimento industrial, emergiu a chama- mecanismos disciplinadores para a escolha dos
da sociedade de “massa”, impossibilitando o representantes do povo. SILVA, José Afonso
exercício direto do povo sobre a gestão da coisa da. Curso de direito constitucional positivo.
pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, 6ª ed.,
Hauriou enumera vários motivos que justificam p.122.
a democracia representativa, destacando a am- Finalmente, na democracia semi-direta foram
plitude do Estado a impossibilitar um diálogo integrados institutos de participação direta do
direto com os cidadãos. Além da extensão do povo nas funções de governo. Foi a forma en-
Estado, o tamanho da população também difi- contrada pelo constituinte originário de conci-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


336 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

liar a participação direta e pessoal da cidadania de 1921 para cá, a intervenção do povo nesses
na formação dos atos de governo, utilizando-se assuntos tende a firmar‑se e generalizar­-se”.
mecanismos que mesclam instituições de parti- AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado.
cipação direta e indireta. Porto Alegre-Rio de Janeiro: Editora Globo,
Esse encontro do regime representativo com 1982, 21ªed., p. 225. Para um maior desenvol-
soluções da democracia direta tem raízes his- vimento do tema, consultar BARTHÊLEMY,
tóricas na França Revolucionária. Duas obras Joseph e DUEZ, Paul. Traité élémentaire de
constitucionais marcam a renovação política droit constitutionnel, Paris: Dalloz, 1936, pp.
daquele país, o projeto da Constituição Gi- 121 et seq.
rondina de fevereiro de 1793 que não chegou Por meio do regime semidireto, o “constitu-
a ser votado pela Convenção e a Constituição cionalismo democrático da Idade Contempo-
de Montagnarde, de 24 de junho de 1793. Elas rânea, mais intimamente ligado às inspirações
revelam a intenção de a soberania nacional não da doutrina da soberania popular, elegeu alguns
mais ser exercida inteiramente pelos represen- instrumentos de participação que dão ao povo,
tantes designados, mas por cada cidadão. Como conservadas embora em parte, as formas repre-
diz o artigo 7º da Constituição Montagnarde: “0 sentativas, a palavra final relativa a todo o ato
povo francês é a universalidade dos cidadãos governativo”. In: BONAVIDES, Paulo. Ciên-
franceses”. cia Política.,São Paulo: Malheiros,1994, 10ª
No projeto da Constituição Girondina é institu- ed., pp. 339‑340.
ído o veto popular às leis votadas pela Assem- Estes instrumentos de participação são enume-
bléia, denominado “censura do povo sobre os rados pela maioria dos tratadistas de direito pú-
atos da representação nacional”. blico como sendo o referendum, o plebiscito, a
Na Constituição Montagnarde, o controle é iniciativa e o direito de revogação, acrescendo
prévio. Acorde o artigo 10, o povo soberano
alguns autores, o veto popular, também chama-
“deliberava” sobre leis específicas, propostas
do referendo facultativo.
pelo corpo legislativo. SAUTEL, Gerard . His-
O referendum é a forma mais tradicional de in-
toire des institutions publiques, depuis de la
tervenção direta do povo na legislação. Trata-
révolution française. Paris: Dalloz, 1978, 4ª
se de um direito do corpo eleitoral de aprovar
ed., pp. 36‑38. Sobre o assunto consultar ain-
ou não as decisões das autoridades legislativas
da, DUVERGER, Maurice. Institutions poli-
ordinárias, “respeitando-se os princípios bási-
tiques et droit constitutionnel, Paris: Presses
cos do Estado de Direito democrático-consti-
Universitaires de France, 1973, 13.ª ed., v. 2:
tucional, tanto no procedimento como no seu
Le systeme politique français, pp. 146‑154.
Também na Suíça, desenvolveram‑se, na legis- conteúdo.”CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito
lação cantonal e federal, várias formas do go- constitucional. Coimbra: Livraria Almedina,
verno semidireto. “Das seis constituições que 1991, 5ªed., p.127.
a Suíça se deu, a contar de 1798, apenas uma, a “Com o referendum, o povo adquire o poder
de 1801, não foi submetida à ratificação popu- de sancionar as leis. Tudo se passa, segundo
lar. Pela Constituição de 1874, (...) toda matéria a ponderação de Barthélemy e Duez, como no
constitucional deve ser submetida a referen- sistema de governo representativo ordinário,
dum. Qualquer reforma ou revisão constitucio- em que o Parlamento normalmente elabora a
nal, tanto na esfera federal, como nos cantões, lei, mas esta só se faz juridicamente perfeita e
tem de ser proposta e aprovada pelo povo. obrigatória”, depois da aprovação popular, isto
“Em matéria de leis ordinárias, porém, a aplica- é, depois que o projeto oriundo do Parlamento
ção do referendum é muito menos ampla. Nem for submetido ao sufrágio dos cidadãos, “que
a Federação, nem os Cantões praticam o regi- votarão pelo sim ou pelo não, por aceitação ou
me representativo puro, mas algumas espécies por sua rejeição.” BONAVIDES, Paulo. Ciên-
de leis, as mais importantes como as de orça- cia política, op. cit., p. 340.
mento, não são submetidas ao referendum Os Nos ordenamentos jurídicos, o referendum
tratados internacionais, do mesmo modo, não apresenta diferentes modalidades, dentre as
dependiam da aprovação popular No entanto, quais se distingüem:

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 337

a) Quanto à matéria: em constituinte, legislativo mas sim, a um mero fato ou evento concernente
e administrativo, quando se trata de leis consti- à estrutura essencial do Estado ou do seu go-
tucionais, ordinárias e matéria administrativa, verno (por exemplo, a adjudicação de território,
respectivamente. a conservação ou modificação de uma forma de
b) Quanto ao tempo: em sucessivo ou post le- governo, tal qual ocorreu em 1860-70, no mo-
gem, quando se segue cronologicamente ao ato vimento de formação da unidade italiana, tendo
estatal para conferir-lhe ou tolher-lhe validade sido anexado ao Reino da Sardenha vários ex-
ou eficácia” In: RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Estados e Províncias da Península.
Direito constitucional. Instituições de direito Tal definição afigura-se doutrinariamente mais
público, tradução de Maria Helena Diniz, São exata do que a sustentada por outros autores
Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 373; e, como Batelli, Crosa, Laferriere, que caracte-
ainda, preventivo ou ante legem, também de- rizam o plebiscito como um pronunciamento
nominado consultivo ou programático, quando popular bastante em si mesmo, sem nenhuma
precede o ato legislativo e/ou administrativo, fi- ligação com outro órgão estatal, ou mesmo, a
xando para ele princípios gerais. Id., p.373. No concebida por Hauriou e Duverger, segundo a
referendo preventivo busca-se conhecer, aprio- qual o plebiscito é uma forma inferior de re-
rísticamente, o “pensamento da massa eleitora”, ferendum, “imperfeito” e “deteriorado”, inca-
acorde expressão de Paulo Bonavides, acerca paz de oferecer nenhuma alternativa ao corpo
do conteúdo de norma jurídica futura. eleitoral. Nesse sentido, vide: LAFERRIERE,
c) Quanto ao fundamento: em obrigatório, Julien. Manuel de droit constitutionnel, Pa-
quando a Constituição o imponha como neces- ris: 1947, 2ª ed., pp.436 et seq.; RUFFIA, Paolo
sário à formulação da norma jurídica, e faculta- Biscaretti di. op. cit, pp. 370 et seq.; DUVER-
tivo, “quando se confere a determinado órgão GER, Maurice. Institutions politiques et droit
ou uma parcela do corpo eleitoral, competência constitutionnel, op. cit., 1978, 4ª ed., 146 et
para fazer ou requerer consulta aos eleitores, seq.; HAURIOU, André. Droit constitution-
consulta esta que não representa (...) obrigação nel et institutions politiques, op.cit., 1972, pp.
constitucional”, In: BONAVIDES, Paulo. Ci- 258 et seq.; PRELOT, Marcel. Institutions po-
ência política, op. cit., p.341. litiques et droit constitutionnel, Paris: Dalloz,
d) Quanto aos efeitos ou eficácia: em constitu- 1969, pp. 642 et seq.
tivo e ab-rogativo. O primeiro visa a conferir Quanto aos seus efeitos, o plebiscito pode ter um
validade ou eficácia à norma legal; o segundo, caráter confirmatório ou resolutório, caso o povo
ao contrário, visa ab-rogar a norma vigente, fa- ratifique ou não o fato sobre o qual foi chamado
zendo-a expirar. a pronunciar-se. Outras vezes, ele constitui con-
Referendum e plebiscito distingüem-se, mal- dição suspensiva que terá ou não lugar, acorde a
grado a doutrina e a legislação, não raramente, manifestação da vontade popular.
assemelhá-los. A iniciativa popular é o mecanismo por meio do
Plebiscito é o mecanismo jurídico por meio do qual uma fração do corpo eleitoral está, consti-
qual o povo é chamado a aprovar ou não um tucionalmente habilitada a propor formalmente
fato, um acontecimento, concernente à estrutu- a legislação que, consoante seu entendimento,
ra do Estado ou de seu governo. In: ROMANO, atenda ao interesse público. Ela será “simples”
Santi. Princípios de direito constitucional ge- quando os seus promotores consignem, apenas,
ral, tradução de Maria Helena Diniz, São Pau- os traços gerais, o princípio da lei, cabendo à
lo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 316. autoridade legislativa ordinária legislar sobre
Trata-se de uma “decisão que, transcendendo a questão, ou formulada – “a iniciativa leva o
a normatividade constitucional e sem quais- projeto popular à assembléia num texto arti-
quer limites políticos e jurídicos, legitima em culado em forma de lei”, para ser discutido e
termos “democráticos-populares”, uma ruptura votado. BONAVIDES. Paulo, Ciência Política,
constitucional.” In: CANOTILHO, J.J. Gomes. op. cit, p. 351.
Direito constitucional, op. cit., p.127. A revogação ou recall adotada principalmente
O plebiscito deve referir-se não a um ato nor- nos Estados Unidos e Suíça consagra o direito
mativo ou administrativo (como o referendum), dos cidadãos de “solicitar a destituição de um

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


338 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

funcionário de natureza eletiva antes de expirar de la comunidad - hoy conocidos como “cla-
o seu mandato, o qual se levará a cabo median- ses” – estaban representados y eran mantenidos
te decisão tomada pelo corpo eleitoral.” GAR- unidos por el rey gracias a su “ministro”, con
CÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitu- la finalidad de asegurarse el consentimiento
cional comparado. Madrid: Alianza Editorial de aquéllos cuando se presentaban impuestos
S.A.,1984, p.184. o gabelas de carácter extraordinario. Ello era
O veto popular pressupõe uma lei já feita pelo necesario a causa del primitivo funcionamiento
Parlamento, que a Constituição não obriga a de los sistemas de la administración central y
ser referendada pelo povo. Se, no entanto, um de la carencia de métodos eficaces de coerción.
número determinado de cidadãos pede que ela De manera muy natural, y al reunirse entre sí,
seja submetida a referendum, e o povo a re- estos representantes se dedicaron al “regateo”
pudia, tem-se o veto popular. AZAMBUJA, de su consentimiento a esas autorizaciones para
Darcy, op. cit., p.224. imponer fiscalmente al pueblo. Solían presen-
Distingue-se do referendum esta modalidade tar quejas y petitiones que la Corona tenía que
de instituto uma vez que, no primeiro, a lei só conceder, para asegurarse lo que de veras le
se torna obrigatória após a aprovação popular, interesaba. Por lo tanto, aquéllos no eran re-
ao passo que no veto a norma será cogente se, presentantes a escala nacional, sino agentes de
dentro de prazo estipulado, o povo não vetá-la los poderes locales actuando según mandatos
expressamente. o instrucciones especiales. Esto era cierto, sin
33
A existência de instituições representativas na embargo, solamente mientras actuaran por se-
organização da Igreja Católica durante a Idade parado. Cuando el rey y las dos Cámaras del
Média é vista por alguns teóricos como o em- Parlamento actuaban juntos, tras haber solucio-
brião do sistema representativo moderno. A re- nado sus diferencias y alcanzado un compro-
presentação tinha como objetivo a eleição dos misso, se estimaba que representaban a todo el
membros de cúpula da Igreja. Nesse sentido, cuerpo político. Más particularmente, se supo-
ver PAIVA, Maria Arair Pinto. Espaço público nía que representaban a todo el organismo po-
e representação política, In: Direito, Estado e lítico del dominio de Inglaterra al actuar como
Sociedade – Revista do Departamento de Di- tribunal superior, lo cual era considerado como
reito da PUC-RJ, nº 7, julho/dezembro, Rio de su función solemne hasta el siglo XVII.” In:
Janeiro, 1995, p. 75. Gobierno constitucional y democracia. Teo-
34
LEITÃO, Claudia. A crise dos partidos po- ría y práctica en Europa y América. Madrid:
líticos brasileiros. Os dilemas da representa- Instituto de Estudios Políticos, 1975, Vol. II, pp.
ção política no Estado intervencionista, For- 21-22.
taleza, Gráfica Tiprogresso, 1989., p. 52. 36
Nesse sentido, Hauriou afirma “Les députés
35
Id, p.52. des comtés et des ordres privilégiés étaient con-
Enfocando a natureza da representação sob o voqués primitivement par le Roi pour lui don-
prisma histórico Carl Friedrich pondera: “ (...) ner aide et conseil. Mais le Parlament anglais
vemos que las asambleas se desarrollaron en la obteint, par la Charte de 1215, ainsi que nous
mayor parte de Europa durante la Baja Edad l’avons déjà noté, le droit de consentir l’impôt,
Media, formando una pieza decisiva del orden assorti du droit de présenter des bills ou péti-
constitucional en el Medievo. Muy a menudo tions. Le Parlament anglais sut se servir avec
aquellos tres “Estados” los componían, respec- beaucoup d’habilité de ces deux concessions
tivamente, la nobleza, el clero y los mercado- faites par le pouvoir royal pour conquérir le
res de las ciudades (los burgueses). Pero a este pouvoir législatif. Usant du droit de pétition,
respecto existían las mayores variantes imagi- le Parlament demande au Roi de prendre telles
nables. Las más importante de aquellas asam- ou telles dispositions législatives et il n’accorde
bleas es, sin duda, el Parlamento de Inglaterra, l’impôt que si le Roi promulgue le statute qui a
donde la alta nobleza se unía al alto clero en los été proclamé.
“Lores Espirituales y Temporales”, en tanto los A partir de 1462, les membres du Parlament
caballeros, junto com los burgueses, formaban prennent l’habitude de rédiger eux-memes les
los Comunes. Así, los grupos más importantes bills, c’est-à-dire les projets de loi. Lorsque

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 339

l’accord s’est fait ente la Chambre des Lords, 42


Id., p. 61.
le Roi n’a plus qu’a promulguer le texte de 43
Conforme já foi analisado no presente tra-
la loi, dont le contenu a été ainsi établi par le balho, essa concepção estabelece um liame de
Parlement” HAURIOU, André. Droit constitu- dependência entre representante e representado
tionnel et institutions politiques, op. cit., pp. de que o liberalismo se distanciou na tentativa
204-205. de forjar uma nova concepção de mandato polí-
37
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato tico. Nesse sentido, Claúdia Leitão afirma: “(...)
social, tradução: Vicente Sabino Júnior, José o mandato político busca se livrar da concei-
Buskatsky, 1978. Livro Terceiro, Capítulo XV, tuação de mandato no direito privado, em uma
p182. redefinição da expressão representação política,
38
Para Maria Arair Paiva, “Os ensinamentos de distanciada de uma postura jurídica contratua-
Jean-Jacques Rousseau sobre a soberania popu- lista.” op. cit., p 41.
lar, embora utilizados para atrair e conquistar 44
Ainda sobre a questão da localização da so-
o apoio do povo aos eventos revolucionários, berania dentro do trinômio povo-nação-estado
não eram perfilados pelas pessoas privadas que e, tomando como referência as análises de Mi-
compunham a esfera pública burguesa. Esses guel Reale, Maria Arair Paiva faz as seguintes
ensinamentos foram básicos e astutamente pos- considerações: “REALE remete-nos à alteração
tos de lado, por que não conseguiram ser acei- fundamental que se processou no âmbito da te-
tos como válidos e adequados à racionalidade oria do Estado e da teoria do Direito Público, no
moral prática.”op.cit, p.76. apogeu do século XIX, por obra sobretudo, de
39
“(...) foi nas Considerações sobre o governo mestres alemães. Eles concluíram que a nação é
da Polônia (Considérations sur le gouverne- uma entidade sociológica que se estrutura numa
ment de Pologne) que Rousseau, em face de personalidade que é o Estado. A soberania não
uma forma positiva de organização constitucio- é mais da nação, mas do Estado. A soberania é
nal, exarou parecer com os remédios concretos uma categoria histórica estatal. A atribuição da
apontados à solução ou atenuação dos incon- soberania ao Estado, visto como nação organi-
venientes que as instituições representativas zada e personalizada, iria apor novas críticas e
acarretam à plenitude de um poder soberano, suscitar novas dúvidas sobre a natureza jurídica
esteado no princípio daquela volonté générale, da representação. São apresentadas por REALE,
indivisível e inalienável. duas novas teorias: a teoria do querer nacional
Querendo, como sempre, guardar coerência e a teoria da representação como representação
com suas teses, não obstante o enorme teor de de interesses. As críticas em relação à primeira
contradições em que se enredam, Rousseau las- (trata-se de uma ficção, não é possível identi-
tima que nos grandes Estados, um de seus pio- ficar entre o querer do povo, da comunidade e
res inconvenientes seja o poder legislativo não o querer do representante), são semelhantes às
manifestar-se por si mesmo. Daí resultaria a que foram colocadas para o mandato imperati-
corrupção presente aos corpos representativos. vo. No nosso pensar, não se trata de nova teoria,
Contra ‘esse mal terrível da corrupção’, que porque sua pretensão é a mesma da teoria da
faz do órgão da liberdade um ‘instrumento de soberania popular, com a diferença de que esta
servidão’, indica Rousseu dois meios eficazes lidava com os conceitos de povo e nação, ao
de atalhá-lo: a renovação frequente das assem- invés de povo e Estado. A segunda teoria – a
bléias, encurtando-se o mandato dos represen- da representação de interesses, apareceu, diz
tantes e a submissão destes às instruções de seus REALE, quando se verificou a ficção da teoria
constituintes, a quem devem prestar estreitas da representação do querer. O representante,
contas de seu procedimento nas assembléias.” por ela, age por critérios próprios, mas não em
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, op.cit., função de seus próprios interesses e sim, dos
pp. 213-214. interesses do povo. A questão do interesse está,
40
MILL, John Stuart. O governo representa- desde o surgimento da representação política,
tivo, tradução de E. Jacy Monteiro, São Paulo: envolvida em sua problemática. Basta lembrar-
IBRASA, 1983, 2ªed., p, 50 mos o célebre discurso de BURKE, aos seus
41
Id., p 49. eleitores de Bristol e os Papéis dos Federalistas

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


340 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

(Hamilton, Jay e Madison), que remontam ao 55


SOBOLEWSKY, Marek. Politische repra-
século XVIII.” op cit., p. 79. esentation im modernen Staat der buerger-
45
LEITÃO, Claudia, op. cit, p. 77. linchen demokratie. In: Zur theorie und ges-
46
BONAVIDES, Paulo. Ciência política, op chichte der repraesentativverfassung, Apud:
cit, p. 203 BONAVIDES, Paulo. Ciência política, op. cit,
47
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo pro- p. 226.
cedimento, op. cit, p. 127. 56
Um excelente index enumerando a bibliogra-
48
“As sociedades primitivas conferem papéis fia sobre os partidos políticos foi realizado por
políticos e direitos de decisão, quando os prevê- WITKER, Alejandro na obra intitulada Biblio-
em assim, na maioria das vezes segundo crité- grafia latinoamericana de politica y parti-
rios atributivos, isto é, em estreita ligação com dos políticos. México: Centro Interamericano
outros papéis já atribuídos. Assim se assegura de Asesoría y Promoción Electoral (CAPEL),
automaticamente que os mais velhos, os atuais 1988.
chefes de uma determinada linha principal, os
57
Na prática política, contudo, a existência de
primogênitos duma determinada família, os partidos pode não estar, necessariamente, rela-
proprietários rurais e urbanos, os presidentes de cionada à concepção democrática. O uniparti-
associações de artistas, ou quaisquer outros, re- darismo, identificado como sistema típico dos
presentem as funções político-administrativas. regimes totalitários, admitia a presença dos par-
Esses agrupamentos de papéis revelam um grau tidos, a exemplo do Partido Nazista alemão ou
muito pequeno de diferenciação do sistema po- do Partido Fascista italiano.
lítico. A sua estabilidade é alcançada por meio Acorde o entendimento de José Alfredo de Oli-
de integração na sociedade, designadamente veira Baracho, no caso da Alemanha e Itália
por meio de apoio e ligação a outros papéis so- nazi-fascista, e ainda, da Rússia comunista, não
vigorou um sistema unipartidário mas um siste-
ciais de decisores. A soberania baseia-se pois,
ma competitivo, que se tornou não competitivo
no apoio mediante os outros papéis próprios
devido aos abusos do partido dominante. Para o
dos governantes em contexto de ação de acordo
autor: “Os sistemas não competitivos, que têm
com o status, contextos religiosos, econômicos,
no partido ultradominante o limite para diferen-
militares e familiares. E, correspondentemen-
ciá-lo dos sistemas competitivos, pode surgir
te, o controle social da soberania é transmitido
pelo abuso da posição dominante, que não pas-
pelo cuidado com os outros papéis próprios dos
sa de um partido único, tipo puro e não dissimu-
governantes.” LUHMANN, Niklas, Id, p. 132.
lado, que baseia-se na interdição e repressão de
49
Ibid., p. 133.
outras formações políticas.” In: Teoria geral
50
Id., p. 133. dos partidos políticos, Revista Brasileira de
51
Nesse sentido, Luhmann afirma “O acesso à Estudos Políticos, Belo Horizonte, Universida-
atuação política no papel de eleitor e os seus de Federal de Minas Gerais, nº 50, janeiro de
efeitos situam-se independentemente doutros 1980, p. 46. ( grifos no original)
papéis e o tipo de decisão como eleitor não pre- 58
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito constitu-
cisa ser justificado em outros contextos sociais, cional, op.cit, p.452.
pois goza da garantia do segredo. O contexto 59
Id, p. 46. Desde o século XVIII, a teoria polí-
político de decisão consegue, desta forma, uma tica busca proceder à classificação dos partidos
certa autonomia e indiferença perante outros políticos. A título informativo, alguns auto-
âmbitos da sociedade. Isso significa o não iso- res assim os esquematizaram: Hume: partidos
lamento da política dentro de si própria, o não pessoais e partidos reais; Bluntschli: partidos
estabelecimento dum novo poder de decisão mistos políticos-religiosos, partidos baseados
arbitrário, mas sim uma variabilidade determi- em oposições regionais ou nacionais, partidos
nada, independente da política em relação com de estamentos ou de classes, partidos constitu-
outros âmbitos da sociedade.” Id., p. 134. cionais, grupos governamentais e de oposição
52
Id., p 135. e partidos políticos puros; Treischke: partidos
53
Id., p.137. que mantêm uma concepção política do Estado
54
Id., p. 141. e aqueles que mantêm uma social do Estado;

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 341

Radbruch: partidos individualistas, supra-indi- político – comienzan a desarrollarse en Ingla-


vidualistas políticos e supra-individualistas cul- terra en el siglo XVIII con la germinación del
turais; Stahl: partidos da revolução e partidos da régimen parlamentario y se acentúan con el
legitimidade; Weber: partidos de patronagem e desenvolvimiento de ésto. La literatura de esta
partidos ideológicos; Burdeau: partidos de opi- primera época se caracteriza por el plantamien-
nião e partidos de massa; Nawiasky: partidos to del problema de la posibilidad o imposibili-
do movimento e partidos da conservação; Du- dad de distinguir entre los partidos y las faccio-
verger: partidos de quadros e partidos de mas- nes y por su posición polémica en favor o en
sas; Roger-Gehard Schwartzenberg: sistemas contra de los partidos. Como ejemplo - quizá el
competitivos e não competetitivos e Neuman: primero – de la distinción entre ambos términos
partidos de representação individual e partidos vale la estabelecida por Bolingbroke en 1749:
de integração social. un partido degenera cuando ‘el interés nacional
60
BARACHO, José Alfredo de Oliveira Bara- deviene un objetivo secundario o subordinado
cho, Teoria geral dos partidos políticos, op. y la causa (...) se apoya más en el beneficio del
cit., p.26. partido o facción que en el de la nácion.”In:
61
GARCÍA-PELAYO, Manuel, Derecho cons- GARCÍA-PELAYO, Manuel, El Estado de
titucional comparado,op.cit., p.192. partidos, Madrid, Alianza Editorial, 1996, 2ª
62
Segundo a famosa definição de Max Weber, o ed., pp.12-13.
partido político é “ uma associação (...) que visa 64
KHEITMI, Mohammed Rechid, Les partis
a um fim deliberado, seja ele ‘objetivo’ como a politiques et le droit positif français, Apud:
realização de um plano com intuitos materiais MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direi-
ou ideais, seja ‘pessoal’, isto é, destinado a ob- tos humanos na ordem jurídica interna, Dis-
ter benefícios, poder e, conseqüentemente, gló- sertação de Mestrado apresentada à Faculdade
ria para os chefes e sequazes, ou então voltado de Direito da Universidade Federal de Minas
para todos esses objetivos conjuntamente.” In: Gerais, 1991, p.404.
Economia e società. Milano: Comunitá, 1961, 65
“O partido busca o poder e tende, por isso mes-
Vol. II, pp.214-241. mo, a concentrá-lo tanto internamente quanto o
A conceituação weberiana carrega significativo poder do Estado, quando o alcança. Exatamente
conteúdo ideologizante. Acorde observa Nor- por isso, o partido tende a ampliar a presença do
berto Bobbio: “ Esta definição põe em relevo Estado para controlar, sempre mais, as fontes
o caráter associativo do partido, a natureza da do poder existentes na sociedade.
sua ação essencialmente orientada à conquista Em suma, o partido visa mobilizar uma parce-
do poder político dentro de uma comunidade, la da sociedade com suficiente densidade para
e a multiplicidade de estímulos e motivações assumir o poder, em condições de ( ...) pôr em
que levam a uma ação política associada con- execução as medidas legais e executivas que
cretamente à consecução de fins “objetivos” permitam a concretização de uma concepção
e/ou “pessoais”. Assim concebido, o partido da sociedade, com as prioridades determina-
compreende formações sociais assaz diversas, das pelo momento social, segundo o sentir da
desde os grupos unidos por vínculos pessoais parcela por ele mobilizada.”WAGNER, José
e particularistas, às organizações complexas Carlos Graça. Partidos políticos: um estudo
de estilo burocrático e impessoal, cuja carac- crítico, In: Revista de Direito Constitucional e
terística comum é a de se moverem na esfera Ciência Política, publicação do Instituto Brasi-
do poder político.”In: Dicionário de política, leiro de Direito Constitucional, Rio de Janeiro,
tradução: Carmem C. Varialle e outros, Brasí- Forense, 1987, número especial, p. 369.
lia: Universidade de Brasília, 1991, vol.2, pp. 66
Segundo Kelsen, os partidos políticos promo-
898-899. vem a formação da vontade geral ou da vontade
63
“Las consideraciones teóricas sobre los par- estatal no momento em que contrapõem suas
tidos políticos en el sentido moderno o, si se diferentes formulações políticas.
quiere, premoderno de la palabra - es decir, Impõe-se superar o conceito ideal de povo pre-
como distintos de las facciones que había sido sente em Rousseau, para apreender a dinâmica
tema de permanente atención en el pensamiento das forças antagônicas, na qual o povo real edi-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


342 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

fica a sociedade democrática. In: A democra- representação política: a majoritária, a repre-


cia, op. cit., pp. 35 et seq. sentação das minorias e a proporcional.
67
Para citar dois exemplos de inserção dos par- Acorde sua definição, “ le système majoritaire
tidos políticos na ordem constitucional demo- exige, pour une désignation valable que con-
crática, na Constituição da República Federati- verge sur le même nom la majorité absolue ou,
va do Brasil a estruturação jurídica dos partidos sous certaines conditions, la majorité relative
políticos encontra-se prevista no art. 17, Título des suffrages exprimés.
II “ Dos direitos e garantias fundamentais”, que La majorité absolue exige plus de la moitié des
determina: “ É livre a criação, fusão, incorpora- voix et non pas, comme on le dit souvent, la
ção e extinção de partidos políticos, resguarda- moité plus une (...).
dos a soberania nacional, o regime democrático, La majorité relative consiste simplesment dans
o pluripartidarismo, os direitos fundamentais un nombre de voix plus élevé que celui obtenu
da pessoa humana e observados os seguintes par un concurrent, ne fut-il qued’une unité.”
preceitos: I- caráter nacional; II- proibição de No tocante à representação das minorias, Prélot
recebimento de recursos financeiros de entida- assevera: “Assez généralement, le système uni-
de ou governo estrangeiro ou de subordinação a nominal donne aux minorités un certain nombre
estes; III- prestação de contas à Justiça Eleito- des sièges. Leur groupement géografique, joint
ral; IV – funcionamento parlamentar de acordo à la multiplication des circonscriptions interdit,
com a lei (...)” leur élimination (...).
Avaliando a posição dos partidos na lei funda- Mais cette représentation est empirique et aléa-
mental alemã Heck afirma: “Pelo art. 21, Alínea toire. La représentation des minorités, au con-
1, da Lei Fundamental, os partidos políticos são traire, a pour but d’assurer systématiquement
portadores da formação da vontade política do un minimum de sièges aux opinions de consi-
povo e estão integrados à Constituição. Essa dérations.
integração contém o reconhecimento de que os Les principaux procédés usités sont le vote li-
partidos políticos não são apenas organizações mité et le vote cumulatif:
relevantes no sentido político e sociológico, - Dans le vote limité, la majorité ne peut désig-
mas também no sentido jurídico. Eles tornaram- ner qu’une partie des élus. Ainsi, en Italie, la loi
se elementos integrantes da construção consti- Acerbo qui fut, en 1924, la fourrière du fascis-
tucional e da vida política constitucionalmente me, accordait a priori les deux tiers des sièges
ordenada.” HECK, Luís Afonso. O Tribunal à la majorité, mais réservait le tiers restant des
Constitucional Federal e o desenvolvimento mandats aux listes dites “de minorité”. 
dos princípios constitucionais: contributo - Dans le vote cumulatif, le électeur réunit tou-
para uma compreensão da jurisdição cons- tes les voix dont il dispose sur un ou deux noms
titucional federal alemã, Porto Alegre: Sérgio au lieu de les dispenser sur tous les candidats
Fabris Editor, 1995, p.245. d’une liste complète. La minorité en se grou-
68
In: Teoria geral dos partidos políticos, op. pant habilement peut, de la sorte, devenir
cit., p.35 majorité pour un ou plusieurs sièges.
69
“ Respecto a su orden interno, cabe afirmar La représentation proportionnelle est aussi la
que a una organización que tiene tanta impor- représentation des minorités, mais elle la dépas-
tancia en la vida coletiva (Gesamtleben) no se se en donnant à celles-ci leur part entière.
la puede dejar una libertad ilimitada de asocia- Por fim, no tocante à representação proporcio-
ción, y que parece contradictorio otorgar a los nal : “ L’object de la représentation propor-
partidos derechos jurídico-políticos sin estable- cionnelle est, en effet, d’assurer aux diverses
cer jurídicamente sus obligaciones políticas. opinions entre lesquelles se répartissent les
Los partidos necesitan de una regulación jurídi- électeurs un nombre de sièges correspondant au
ca cuyo contenido concreto debe depender del rapport de leurs forces respectives. Selon des
sistema de partidos de cada país” GARCIA-PE- métaphores bien connues, elle est tantôt le mi-
LAYO, Manuel, El Estado de partidos, op.cit., roir rapetissant mais fidèle où le pays retrouve
pp.36-37. son image, tantôt la carte en réduction des ten-
70
Marcel Prélot identifica três modalidades de dances qui partagent le peuple.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 343

Les modes assez divers d’application se ramè- outro faça com relação a um interesse alheio
nent tous à quelques opérations d’arithmétique o que faria se fosse o respectivo titular.”Apud:
élémentaire. SARTORI, Giovanni. A teoria da representa-
Les sièges s’attribuent au moyen: ção no Estado representativo moderno, In:
a) du quotient électoral; Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo
b) du nombre unique; Horizonte, 1962, p. 85.
c) du diviseur électoral ou de la plus forte 76
Falou-se em tentativa, porque o sistema li-
moyenne; beral não tardou a demonstrar sua contradição
d) du vote unique transférable.’’ In : Précis com os ideais democráticos. Nesse sentido,
de droit constitutionnel, Paris, Dalloz, 1952, ver Paulo Bonavides: “A crítica de juristas e
deuxième édition, pp. 370-373. (grifos no ori- sociólogos políticos mostrou com clareza que
ginal). longe de idênticos ou pelo menos análogos, o
71
Trata-se da conhecida posição de Duverger, liberalismo e a democracia na essência eram
adotada por outros autores, para quem o sistema distintos, senão opostos, oposição mais sentida
majoritário de escrutínio a um só turno tende ao e identificada na medida em que os princípios
bipartidarismo, enquanto o sistema majoritário liberais buscavam por objeto supremo atender
de escrutínio a dois turnos e o de representação à sustentação de privilégios de classe, numa so-
proporcional tende a multipartidarismo. A ma- ciedade classista, onde a burguesia empalmara
téria está tratada na obra Os partidos políticos, o poder político desde a Revolução Francesa.”
op. cit., pp.239 et. seq. Ciência Política, op cit, p. 216.
72
Por outro lado, embora promova, no geral, No mesmo sentido, pronuncia-se José Luiz
uma participação mais democrática, “ a repre- Quadros de Magalhães: “O modelo do Estado
sentação proporcional acarreta a multiplicidade liberal não funcionou. O crescimento econô-
de partidos, mas nem sempre estimula conflitos mico desordenado, a gigantesca concentração
programáticos definidos”, na observação per- econômica e a revolta social, que passa a ser
cuciente de José Alfredo de Oliveira Baracho. organizada pelos movimentos socialistas na se-
Teoria geral dos partidos políticos, op. cit, p. gunda metade do século XIX, desafiam a con-
50. tinuidade do modelo que começa a mudar, pri-
73
Diria José Afonso da Silva : “Uma das con- meiramente nas leis infra-constitucionais, com
seqüências da função representativa dos parti- as primeiras leis trabalhistas, previdenciárias e
dos é que o exercício do mandato político, que a lei antitruste, que marcam uma mudança de
o povo outorga a seus representantes, faz-se postura do Estado que de abstencionista passa a
por intermédio deles, que, desse modo, es- intervir nas questões sociais e econômicas, as-
tão de permeio entre o povo e o governo, mas sistindo aos economicamente excluídos ou ca-
não no sentido de simples intermediário entre rentes de um lado, e de outro lado intervindo no
dois pólos opostos ou alheios entre si ; porém, domínio econômico, no sentido de controlar o
como um instrumento por meio do qual o povo processo de concentração econômica, evitando
governa. Dir-se-ia em tese, ao menos - que o o fim do modelo liberal que se baseava na livre
povo participa do poder por meio dos partidos iniciativa e na livre concorrência, inviabiliza-
políticos. Deverão servir de instrumento para das pela concentração econômica e o domínio
atuação política do cidadão, visando influir na de mercados decorrente dessa concentração.”
condução da gestão dos negócios políticos do In: Poder municipal. Paradigmas para o Es-
Estado.” In : Curso de direito constitucional tado constitucional brasileiro, op. cit., p.32.
positivo, op.cit, p. 350. 77
Uma projeção do liberalismo no constitu-
74
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Di- cionalismo atual francês está contida na aná-
reitos humanos na ordem jurídica interna, lise realizada por BARACHO, José Alfredo
op. cit, p.394. de Oliveira, no artigo intitulado: A revisão da
75
DUVERGER, Maurice. Os partidos políti- Constituição francesa de 1958. A permanen-
cos, op. ci., p.387. te procura de uma Constituição modelar, In:
Outra finalidade não tem o instituto represen- Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte,
tativo, no dizer de Carnelutti, senão que “um Faculdade de Direito da Universidade Federal

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


344 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

de Minas Gerais, Volume 3, 1999, pp. 63-103. oposição se pode ver materializada na antítese
78
Hans Kelsen diria: “É importante ter consci- entre MONTESQUIEU e ROUSSEAU.
ência de que o princípio da democracia e o do O Liberalismo, por exemplo, acata a doutrina
liberalismo não são idênticos, de que existe até da divisão de poderes do primeiro, cujo intuito
mesmo certo antagonismo entre eles. Pois, de era, como se sabe, neutralizar em favor dos di-
acordo com o princípio da democracia, o poder reitos de liberdade do indivíduo as duas fôrças
do povo é irrestrito, ou, como formula a De- sociais, monarca e a vontade da maioria, opon-
claração Francesa dos Direitos do Homem e do do-se uma à outra. A Democracia, pelo contrá-
Cidadão: “ O princípio de toda a soberania resi- rio, rejeita, com o segundo, essa doutrina, por-
de essencialmente na Nação.” É essa a idéia de que precisamente aquilo que lhe é mais caro é
soberania do povo. O liberalismo, porém, im- o absolutismo dessa vontade da maioria que o
plica a restrição do poder governamental, seja primeiro combate.
qual for a forma que o governo possa assumir. “Portanto, dum lado a maioria, do outro, liber-
Também implica a restrição do poder democrá- dade. Por um lado, participação na formação
tico. Portanto, a democracia é essencialmente da vontade do Estado e conseqüentemente da
um governo do povo.” In: A democracia, op. maioria; pelo outro, liberdade perante o Esta-
cit., p. 143. do. Aqui “liberdade civil dentro do Estado”,
Para Gustav Radbruch, “ Foi sempre errónea a acolá, “liberdade civil contra o Estado”; aqui
designação que noutro tempo se dava à Demo- direitos de liberdade concedidos pelo Estado,
cracia, ao chamar-se-lhe um “liberalismo das acolá direitos de liberdade deixados intactos
esquerdas”, caracterizando-a assim como uma pelo Estado; para­uma, a igualdade de todos os
espécie mais acentuada de Liberalismo (...). direito conferidos, para o outro uma liberdade
“A Democracia, sabido é, quer antes de mais deixada a todos igualmente, a‑fim de poderem
nada o domínio incondicional da vontade ma- utilizar as suas aptidões naturais diferentes
joritária. O Liberalismo, pelo contrário, quer ‑ isto é, uma igualdade no ponto de partida, que
antes de mais nada a possibilidade de as von- logo se transforme numa desigualdade no pon-
tades individuais se afirmarem e até, em certos to de chegada. Para a Democracia o conceito
casos, a de se oporem à vontade da maioria. de igualdade sobrepuja o de liberdade; para o
Para o Liberalismo são ponto de partida de tôda Liberalismo, inversamente, é o de liberdade
a construção de filosofia política: os “direitos que sobreleva ao de igualdade. Além disso,
do homem”, os direitos fundamentais e origi- torna‑se também claro, depois do que fica dito,
nários do indivíduo, e entre êles o da liberdade, que esta diferenciação entre as duas concepções
como elementos do seu estado natural, que já tem como base,respectivamente, não uma total
existia antes do Estado, e que só foram trans- eliminação do elemento liberal pelo elemento
portados para dentro dêle sob a condição de democrático‑ou vice‑versa, do democrático
serem aí absolutamente respeitados.Este, como pelo liberal – mas sim apenas o predomínio que
se sabe, só tem a justificá-lo precisamente essa nelas é dado a um outro dêsses elementos na
missão de os respeitar. Com efeito, como se lia sua mútua combinação demo‑liberal, segundo
na Declaração de 1789: “o fim de tôda a so- a expressão fascista.
ciedade política consiste na conservação dos “Pois bem : isto pôsto, já podemos agora remon-
direitos naturais e imprescritíveis do homem.” tar até à o­posição das concepções filosóficas de
Pelo contrário, para a Democracia, é ponto de que brotam os contrastes que acabamos de pôr
partida a renúncia definitiva que o indivíduo em relêvo. Se empregarmos uma fórmula algé-
faz em favor da vontade do Estado, represen- brica podemos dizer que a Democracia atribui
tada pela vontade da maioria, da sua liberda- ao indivíduo valor finito; o Liberalismo, porém,
de prè-estadual, para receber em troca apenas um valor infinito. Para a primeira o valor do
a possibilidade de participar, êle, na formação indivíduo é multiplicável e o da maioria dos
dessa vontade. Ora, desta diversidade de con- indivíduos, portanto, maior que o da minoria.
cepções fundamentais derivam para o Libera- 0 valor infinito indivíduo, segundo o Liberalis-
lismo e para a Democracia certos princípios de mo, é, pelo contrário, necessàriamente inígua-
organização política totalmente diversos e cuja lável por qualquer outro valor correspondente

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE... 345

a uma maioria, por maior que esta seja. Esta sa de ciertas exigencias democráticas. Pero esto
diversa valoração do indivíduo nas duas con- es justamente uno de los supuestos de sua anti-
cepções funda‑se, por sua vez, numa diferente nomia. El outro es que, a pesar de esa necesidad
estrutura dos respectivos conceitos àcêrca dos mutua, ambos términos son contradictorios en
valores éticos. Para o Liberalismo o valor ético una serie de aspectos esenciales:
é susceptível de se realizar completamente num A) Como manifestaciones de esta contradicción
único indivíduo. Todo o indivíduo é chamado en el plano ideológico, pueden considerarse las
a realizar um valor ético que é o mesmo para seguintes:
todos e, por conseguinte, insuperável e infini- a) El liberalismo supone la división de poderes
to. Pelo contrário, para a Democracia o valor como recurso técnico para limitar los propios
ético só é susceptível de receber um conteúdo poderes. La democracia, en cambio, no admite
mediante a sua aplicação aos vários indivíduos, limitación alguna para los poderes del pueblo;
recebendo um conteúdo diferente a respeito de por eso su más característica expresión históri-
cada um dêles; por forma que só num número co-positiva há sido el gobierno convencional.
infinito de indivíduos é que a riqueza do mundo b) Para el liberalismo es esencial la salvaguar-
moral pode a‑final manifestar‑se em tôda a, sua dia de los derechos de las minorías, pues todo
plenitude.” In: Filosofia do direito, tradução individuo tiene una esfera intangible frente al
de L. Cabral de Moncada, São Paulo, Saraiva poder del Estado; para la democracia, la volun-
& C.ª, editores, 1937, pp. 92-94. (grifos no ori- tad de la mayoría no puede tener límite. El uno
ginal)
es intelectualista, la outra es voluntarista.
79
Ciência Política, op. cit., p. 222.
c) El liberalismo significa así libertad frente al
Igualmente, anota Carl Friedrich : “Se acuer-
Estado; la democracia, posibilidade de partici-
da generalmente que el método tradicional de
pación en el Estado.
basar la representación en subdivisiones terri-
d) El uno conduce a la afirmación de la persona-
toriales es un tanto artificial, dado que ninguna
lidad; la outra, a su relativización ante la masa.
comunidad genuina corresponde con ellas ya,
sobre todo en las grandes aglomeraciones ur- e) Forma extrema de los supuestos liberales se-
banas de hoy. Y con todo nadie há conseguido ría el anarquismo; forma extrema de los demo-
descrubrir un plan realmente factible de cam- cráticos, el comunismo.” In: Derecho constitu-
bio, que tuviera en cuenta la transformación de cional comparado, op. cit., pp.198-199.
los lazos comunales existentes.” In: Gobierno
82
Jorge Miranda, a propósito, escreve: “A
constitucional y democracia, op. cit., p.37. passagem para o Estado social irá reduzir ou
80
BONAVIDES, Paulo, Ciência Política, op mesmo eliminar o cunho classista que, por ra-
cit, p 223. zões diferentes, ostentavam antes uma e outra
81
Manuel García-Pelayo aponta as antinomias categoria de direitos. A transição do governo
existentes entre o liberalismo e a democracia, representativo clássico para a democracia re-
responsáveis, segundo ele, pela crise do Estado presentativa irá reforçar ou introduzir uma
democrático liberal: “La raíz fundamental de componente democrática, que tenderá a fazer
tal crisis radica en que el Estado democrático da liberdade tanto uma liberdade-autonomia
liberal se bas en la unidad de dos términos, que como uma liberdade-participação (fechando-se,
si durante cierto tiempo se han armonizado, sin assim, o ciclo correspondente à contraposição
embargo, representan en sí mismos algo anta- de CONSTANT).
gónico y de difícil convivencia cuando los prin- Por um lado, não só os direitos políticos são
cipios que los informan obtienen el adecuado paulatinamente estendidos até se chegar ao su-
despliegue. Tales términos son la democracia y frágio universal como os direitos económicos,
el liberalismo. sociais, culturais, ou a maior parte deles, vêm
“Cierto que ambos tienen una serie de notas a interessar sectores crescentes da sociedade.
comunes, y que ninguno puede vivir sin un mí- Por outro lado, o modo como se adquirem, em
nimum del outro; que la democracia, tal como regime político pluralista, alguns dos direi-
se há manifestado en Occidente, exige ciertas tos económicos, sociais e culturais a partir do
libertades liberales, y que el liberalismo preci- exercício da liberdade sindical, da formação de

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


346 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

partidos, da greve e do sufrágio mostra que os para los grupos de presión es lo accidental, es
direitos de liberdade se não esgotam no mero un mero instrumento para realizar outro tipo de
jogo de classes dominantes.”In: Manual de intereses materiales o espirituales.
direito constitucional, Coimbra Editora Ltda, “Para concluir, debemos aclarar ahora cúal es la
Tomo IV, 1988, p.23. relación dialéctica entre el grupo de presión y el
83
PAIVA, Maria Arair. Espaço público e re- partido político.
presentação, op. cit, p 80 d) En primer término, la relación entre ambos
84
Gastão Alves de Toledo define os grupos de es fluyente, de manera que puede haber orga-
pressão como; “ organizações ou entidades que nizaciones que formalmente tengan la configu-
procuram influenciar no processo de decisão ración de partido, pero que en realidade actúen
dos órgãos estatais, visando ao atendimento de como grupos de presión, sea que no les interes-
seus objetivos.” Grupos de pressão no Brasil. se ejercer el poder del Estado, sino simplemen-
In: Revista de Direito Constitucional e Ciência te influenciarlo, sea que, aun participando en el
Política, Rio de Janeiro: Forense, número espe- poder, permanezcan indiferentes para lo que no
cial , 1987, pp 412-413. sea un círculo limitado de problemas.
Os métodos por meio dos quais os grupos de e) Existe una relación compensatoria entre
pressão exercem influência são diversos, porém, ambos, pudiendo afirmarse que, mientras más
de maneira geral, cabe classificá-los observando fuertes y representativos de los intereses de los
as seguintes direções: “a) influencia en las elec- núcleos sociales sean los partidos, menos ex-
ciones; así, por ejemplo, los sindicatos obreros tensión tienen los grupos de presión.”GARCÍA-
americanos, normalmente indiferentes ante los PELAYO, Manuel. Derecho constitucional
partidos, apoyan electoralmente a aquel que les comparado, op. cit., pp.196-197.
promete llevar a cabo una determinada política; 86
“Cabría, pues, decir que, cuando los partidos
b) contacto directo con los legisladores, minis- son débiles, el poder social asciende al estatal
tros y funcionarios; c) propaganda frente a la a través de los grupos de presión.” GARCÍA-
opinión pública.”GARCÍA-PELAYO, Manuel. PELAYO, Manuel. Derecho constitucional
Derecho constitucional comparado, op. cit., comparado, op. cit., p.197.
p.196. 87
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regi-
85
HIRST, Paul. A democracia representativa e mes Políticos, op. cit., pp.127-128.
seus limites, tradução Maria Luiza X. de A. Bor- 88
Na esteira da definição de Carnelutti, Giovan-
ges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 41. ni Sartori acrescenta um novo elemento à teoria
A diferença entre os grupos de pressão e os par- da representação: a responsabilidade. Respon-
tidos políticos é clara: “a) Los partidos tienen sabilidade esta de caráter político, que deve ser
como finalidad la ocupación o participación en el cobrada do mandatário a cada eleição para efei-
poder político, buscan la investidura jurídico-pú- to de renovação ou revogação de mandatos. Nas
blica para sus miembros, mientras que los grupos suas palavras: “O apelo períodico ao corpo elei-
de presión no pretenden la ocupación del poder, toral obriga a seu modo e por seus caminhos, o
sino simplesmente condicionar las decisiones de eleito a comportar-se com relação aos eleitores
aquellos que lo ejercen jurídicamente. como estes fariam se estivessem em seu lugar.”
b) Los partidos tienen una concepción políti- In: A teoria da representação no Estado re-
ca total y se sienten responsables de los inte- presentativo moderno, op.cit, p. 84.
reses morales y materiales de la totalidad del 89
In: Quem é o Povo? A questão fundamen-
país; los grupos de presión sólo tienen interés tal da democracia. Tradução: Peter Naumann,
por un problema o por un círculo limitado de São Paulo: Max Limonad, 2ª ed, 2000.
problemas, permaneciendo indiferentes ante
los demás; sólo se sienten responsables de los
intereses de grupo.
c) En resumen: mientras que la política es lo
fundamental para los partidos y constituye el
fin y el sentido de su existencia, en cambio,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


347

A Constituição como paradigma hermenêutico da


Teoria da Cidadania no Brasil e
os desafios do ensino*
The Constitution how hermeneutic paradigm of the Brazilian
Citizenship Theory and the challenges of the school

Luciana Rodrigues Penna**

Recebido para publicação em outubro de 2005

Resumo: A Teoria da Cidadania no Brasil se transforma a partir da natureza aberta e transdisci-


plinar da Constituição, porém essa transformação demanda uma construção hermenêutica apta a
instrumentalizar o operador do Direito na re-significação de muitos caminhos teóricos e práticos
escolhidos para a solução de conflitos cada vez mais complexos.
Palavras-chave: Teoria da Cidadania. Constituição. Escola. Hermenêutica. Direitos fundamentais.
Complexidade.

Abstract: The Brazilian Citizenship Theory transforms itself up from the open and trans-disciplin-
ary nature of the Constitution, but this transformation demands a hermeneutic construction able to
instrument the Law operator in the re-signification of the chosen paths to solve conflicts each more
complex.
Key Words: Citizenship. Constitution. School. Hermeneutics. Elementary rights. Complexity.

Introdução uma cultura de cidadania, ou seja, de po-


der-se questionar se o conhecimento da
O tema que nesta abordagem se dis- experiência constitucional brasileira pode
cute, e que foi objeto de projeto de extensão ser interpretado como vetor de uma efetiva
universitária realizado no ano de 2004, vem formação cidadã para nosso país.
adquirindo cada vez maior relevância, so- Por meio de pesquisa de campo, bus-
bretudo neste momento da vida política bra- cou-se a obtenção de dados que permitis-
sileira, em face da necessidade de reflexão sem delinear o perfil, por amostragem, de
sobre o papel do Estado e do Direito na con- alunos de escolas de ensino médio, priva-
solidação da ética e da solidariedade como das e públicas, no município de Santa Ma-
valores supremos de nossa sociedade. ria, de modo a organizar as representações
Trata-se de indagar sobre a viabi- desses acerca da relação entre o conheci-
lidade ou inviabilidade de se creditar ao mento da trajetória político-jurídica que
conhecimento da história constitucional conduziu o país à Constituição Brasileira
do Brasil o principal caminho de acesso a de 1988 e as práticas de cidadania.

* Artigo científico elaborado a partir do desenvolvimento de projeto de extensão universitária, financiado pela UNIFRA (Centro
Universitário Franciscano), de acordo com a Linha Institucional de Pesquisa e Extensão: Teoria Jurídica, Cidadania e Globali-
zação, realizado no município de Santa Maria-RS, durante o ano de 2004.
** Graduada em Direito pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Gradua-
ção Mestrado em Integração Latino-Americana, pela mesma Instituição, Especialista em Direito Público pela UNIFRA. Exerce
a docência em ensino superior desde 1996, ministrando as disciplinas de: Teoria da Constituição, Ciência Política e Teoria Geral
do Estado. Foi a Coordenadora do Projeto Resgate da Memória Constitucional, em que participaram os professores e acadêmi-
cos dos Cursos de História e Direito da UNIFRA. É pesquisadora do CNPq.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


348 Luciana Rodrigues Penna

1. História política: a história constitu- Estado-Nação, a partir dos fins do século


cional XVIII.
Naquele momento, os mecanismos
Quando Joaquim Gomes Canotilho para a prática da cidadania ou para o exer-
nos fala da memória constitucional do cício de uma cidadania ativa, herança da
povo como uma das condições da efeti- construção filosófica ocidental, legada pe-
vidade da Constituição, ele nos remete los pensadores da Antigüidade1 e da Idade
ao conceito político de memória (1999, Média, passam a ter na Constituição Na-
p.17). O constitucionalista português frisa cional o seu locus jurídico privilegiado,
com muita ênfase o fato de que a memória
dentro da concepção individualista típica
política é indispensável para compreender
da cultura liberal.
os dilemas constitucionais, e que portanto,
Os destinatários da Constituição, já
falar de Direito Constitucional é falar de
no discurso das Revoluções Liberais dos
história.
séculos XVII e XVIII, são definidos como
Daí, impõe-se que falar de teoria da
“cidadãos” (lembre-se da Revolução Fran-
Constituição no Brasil é falar da história
cesa), e a partir desse contexto, o conceito
do Brasil, e falar de uma teoria geral da
de cidadania aparecerá renovado pelas ex-
Constituição é, necessariamente, falar da
história de outras sociedades, de outros pa- periências políticas de dois séculos inclui
íses, de outras épocas. também (com relação aos seus direitos e as
Memória política, no entender de suas responsabilidades) as organizações e
Ecléa Bosi, é aquela em que ”os juízos de associações, bem como os próprios pode-
valor intervém com mais insistência. O su- res estatais, pois todos são agora sujeitos
jeito não se contenta em narrar como teste- políticos que atuam no cenário nacional,
munha ”neutra”. Ele quer também julgar, sendo, portanto às suas ações sociais e
marcando bem o lado em que estava na- políticas que esta juridicização constitu-
quela altura da história, e reafirmando sua cional da ética deverá apresentar-se como
posição ou matizando-a”. (BOSI, 2004, elemento norteador e legitimador.
p.453). Como se referiu anteriormente, a tra-
Assim, percebe-se que a constitu- dição filosófica ocidental desencadeou a
cionalização dos fundamentos da política, recepção da cidadania no domínio do Di-
processo de longa sedimentação histórica, reito, colocando a lei como figura central
conduziu no Brasil, o sistema jurídico (o da consolidação da justiça na vida em so-
Direito) ao patamar de conceber a cidada- ciedade. Esta apreensão da cidadania pelo
nia como um dos fundamentos da socieda- Mundo Jurídico se reforça, de forma cada
de política, ou do Estado. Isto se fez muito vez mais nítida, com as Declarações de
significativo a partir do processo consti- Direitos que vão surgindo na Idade Média,
tuinte que culminou na promulgação da em vários cenários da Europa, aparecendo
Constituição Federal de 1988. também em colônias européias na América
Mas o renascimento do ideal da ci- do Norte, já em vias de se tornarem uma
dadania tem uma raiz, uma história mais Nação.
complexa. Sua constitucionalização se Porém, a mais ousada juridicização
inicia no plano político com as revoluções da idéia de cidadania na dimensão cons-
liberais, e no plano teórico com o pensa- titucional ocorre com o surgimento das
mento liberal clássico. Constituições Nacionais Dirigentes, que
O modo de ser, juridicamente, da documentam a reinvenção da política a
cidadania aparecerá na Constituição do partir do valor solidariedade e do valor to-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 349

lerância, reafirmando e consolidando o pa- mental do Estado, da sociedade e de cada


pel garantista do Estado-Nação, como uma cidadão (permitindo ela própria alterar a
das principais e mais significativas obras concepção de cidadania).
do racionalismo político. É a Constituição a Carta Política e
Desse modo, a Constituição enquan- Normativa, formalizadora, no pacto polí-
to lei fundamental da sociedade moderna tico que funda o Estado, do compromisso
possibilitou mudanças nas estruturas da de juridicização dos valores e dos funda-
organização política, tornando-se verda- mentos de legitimação para a ação de seus
deira feição jurídica do Estado-Nação, membros.
alterando a forma de exercício do poder É sugestiva a percepção de que a
pelos governos, a própria concepção dos Constituição já nasce no contexto da for-
direitos fundamentais dos indivíduos, ou mação de uma noção de Direito que enfa-
seja, consagrando o novo: a ética que o tiza o legislado, pois que este sistema ju-
corpo político formado pelo Estado-Nação rídico se apresenta como hierarquizado o
e pela sociedade civil deverão, a partir de que vem a atestar a especialização do papel
então, vivenciar e assegurar para garantir da Constituição, destacando-se das demais
o bem-estar das futuras gerações. Segun- espécies de normas jurídicas, como norma
do Bobbio2, a vida política se desenvolve superior ou dotada de supremacia formal
através de conflitos jamais resolvidos em e material.
definitivo, e cuja resolução acontece me- É, portanto, no contexto da teoria
diante acordos simultâneos, tréguas e es- constitucional moderna que se irá deposi-
ses tratados de paz mais duradouros são as tar na Constituição, além da função acima
constituições. mencionada de ser a Carta de Garantia dos
Mister é, entretanto, que ao aludir Direitos Fundamentais de um povo (ou a
à Constituição como o lugar privilegiado expressão jurídica maior de sua liberdade
da definição jurídica da cidadania na Mo- e da defesa de sua dignidade), também
dernidade, cidadania esta identificada nos uma função de ser o patamar ou a referên-
séculos XVIII e XIX com a liberdade, e cia mais importante da concepção da ética
liberdade esta concebida como autono- nestes novos tempos.
mia do indivíduo perante a sociedade e o Desse modo, e crê-se que não por
Estado, se indague e reflita com acuidade descuido, estabeleceu-se na Constituição
sobre a nova feição que a Carta Política, a o domínio eminentemente axiológico do
partir do século XX, vai adquirir. Isto por- sistema jurídico. E surpreendentemente,
que tanto a política como o Direito estarão, este domínio instituído/instituinte da ética
que deve imperar nas dimensões privada e
então, encarregados de desempenhar uma
pública da vida, é exatamente aquele que
nova função, algo que ocupará o centro do
ocupa o mais alto grau dentro da hierarquia
discurso e da prática jurídico-política na
normativa do Direito Moderno.
denominada pós-modernidade: reduzir as
Mas de que racionalidade e de que
desigualdades sociais e regionais.
axiologia se está tratando?
A Constituição como norma jurídica,
resultado de todo o significativo processo 2. Novas ou antigas indagações?
político de estatização e codificação do
Direito, impulsionado pelas Revoluções Afirma Immanuel Kant, na obra Crí-
Liberais dos séculos XVII e XVIII e pelo tica da Razão Prática, que:
Positivismo Normativista do século XIX, Segundo o epicurista, o conceito de
passou a ser concebida como a Lei Funda- virtude encontrava-se já na máxima de

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


350 Luciana Rodrigues Penna

promover sua própria felicidade; contraria- Observando a experiência política


mente, segundo o estóico, o sentimento de nacional do Ocidente nos séculos XIX
felicidade já estava contido na consciência e XX, tanto no contexto europeu, quan-
de sua virtude. (...) O estóico afirmava que to nas Américas, percebe-se uma grande
a virtude é o sumo bem total, e a felicidade contradição. De um lado, a evolução cons-
apenas a consciência da sua posse como titucional, no sentido da incorporação de
pertencente ao estado do sujeito. O epi- novos assuntos na dimensão normativo-
curista afirmava que a felicidade é o sumo constitucional, gerando maior abrangência
bem total e a virtude somente a forma da de direitos (constitucionalização de novas
máxima de concorrer a ela, a saber, no uso dimensões de direitos, novas formas e ins-
racional dos meios para a mesma (KANT, trumentos de garantia de direitos e do regi-
p. 183). me democrático, bem como as renovadas
Recorrendo-se, metaforicamente, a formas que o próprio Estado de Direito
tal discussão apresentada por Kant, poder- vem a assumir). De outro, (e ocorrendo
se-ia perguntar se ainda não foi decifrado simultaneamente a esses avanços), o ad-
o enigma filosófico moderno, qual seja, vento de regimes políticos autoritários, an-
aquele centrado na possível contradição tidemocráticos e, como o mais assustador,
entre liberdade e igualdade social. o advento da experiência real dos regimes
Talvez o problema não esteja ade- totalitários na Europa do século XX5.
quadamente posto, uma vez que ambos os
3. O paradoxo da constitucionalização
valores estão reconhecidos como funda-
de valores ético-econômicos e ético-so-
mentais na Constituição3, o locus jurídico
ciais versus a fragilização da efetividade
por excelência da ética individual e da éti-
da Constituição Social
ca pública na Era Moderna.
Porém, se constatamos que não vem Embora o Constitucionalismo denso
ela logrando a esperada efetividade jurí- do século XVIII, sobretudo o oriundo da
dica, não ostentando força normativa su- Revolução Francesa, tenha permanecido
ficiente para garantir o império da ética referência de hermenêutica e valores uni-
solidária e da justiça social, para o que o versalmente conhecidos até os dias atuais,
edifício constitucional fora instituído, en- constata-se que, nos países que adotam o
tão eis uma desconcertante constatação. Sistema da Civil Law, a Constituição so-
Será a liberdade incompatível com o res- mente passou a ocupar uma posição impor-
peito pelo outro? Ou melhor: que liberdade tante ou decisiva na aplicação do Direito a
é esta que não convive, na prática, com o partir da segunda metade do século XX.
respeito à dignidade humana? Nos países ditos desenvolvidos6 este
O problema central que se coloca, a fenômeno de alteração do significado da
seguir, é o de se saber por que a Consti- Constituição, no sentido do reconhecimen-
tuição, erigida a estatuto jurídico da cida- to de sua posição central no ordenamento
dania, a partir da Modernidade, sofreu/so- jurídico se deu de forma mais rápida do
fre a neutralização da sua força normativa que nos países ditos em desenvolvimento.
(efetividade), inclusive proporcionalmente No caso do Brasil, como será comentado
à elevação do grau de normatização dos adiante, somente a partir da promulgação
valores sociais postos como fundamentos da Constituição Federal de 1988 o Direito
da politicidade4. Eis uma inquietante inda- Constitucional conquistou a devida prima-
gação. zia na hermenêutica jurídica.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 351

Assim, revela-se ao olhar do jurista abertas, dirigentes, amplas, analíticas e


e do filósofo do século XXI, um paradoxo programáticas. Revelam então, o esforço
cuja visibilidade só se tornou possível na cada vez mais intenso dos poderes cons-
pós-modernidade, qual seja: quanto maior tituintes para alcançarem uma regulação o
a ênfase no domínio jurídico-constitucio- mais coerente possível com o valor demo-
nal, como o caminho mais adequado cami- cracia, e que faça da cidadania uma reali-
nho para a consolidação de uma cidadania dade social, política, jurídica e econômica.
ativa, adotado pela racionalidade moderna, A Constituição Democrática e dirigente
e quanto mais evidenciado o papel garan- aparece como o meio mais eficaz para do-
tista de direitos, assumido pela Constitui- minar a instável configuração política e
ção Normativa, maior também se torna a econômica da atualidade.
necessidade de afirmar, construir e defen-
der a efetividade das Constituições. 4.1. A sociedade aberta dos intérpretes da
Segundo ensina Streck7, esse fenôme- Constituição: a orientação doutrinária para
no de vulnerabilidade constitucional pode uma hermenêutica pluralista em Peter Hä-
ser denominado de “baixa constitucionali- berle e sua influência na Teoria Constitu-
dade”, isto é, pelo desconhecimento acerca cional de Paulo Bonavides
da importância da Constituição, de seu valor
político, jurídico e social, de sua relevância Quando Peter Häberle questiona
como instauradora da própria identidade do quem são ou quem deveriam ser os intér-
povo, e é apontado como um dos principais pretes da Constituição, na verdade denun-
problemas que levou e leva muitas socie- cia o modelo hermenêutico da sociedade
dades à redução, até mesmo à supressão da atual, “fechada”, tradicional, onde apenas
dimensão ética na vida política8. os operadores do Direito, e os órgãos ju-
dicantes (tribunais e juízes), possuem le-
4. O grande desafio do Constitucionalis-
gitimidade para a interpretação da Consti-
mo Contemporâneo: a efetividade dos
tuição.
direitos econômicos e sociais
Häberle sugere uma concepção teó-
O caráter complexo das sociedades rica, científica e democrática da interpre-
pós-modernas, convivendo com a Teoria do tação constitucional, onde os ritos e proce-
Estado Democrático de Direito, originária dimentos formais exercidos pelos Poderes
das transformações sofridas pelo Constitu- estatais para tal função competentes, não
cionalismo no pós-Segunda Guerra Mun- sejam vistos como o único veículo de
dial, coloca o paradoxo apontado acima transmissão de significações fundamen-
como gerador de um grande desafio. tais, ou seja, de valores constituintes.
Se de um lado, a ocorrência da Se- Desta forma, a interpretação aber-
gunda Guerra Mundial, pela ruptura que ta de Peter Häberle é aquela feita pela e
causou com a tradição do pensamento para a uma sociedade aberta de intérpre-
político e filosófico ocidental, implicou tes, onde é legítima a interpretação oficial
na busca pela construção, na maioria dos dos órgãos estatais, mas também há espaço
países ocidentais, de Estados Democráti- para que as forças sociais, potência públi-
cos, ela por outro lado engendrou modelos cas, grupos e todos os cidadãos manifes-
constitucionais bem mais complexos. tem-se sobre a constitucionalidade.
As denominadas Constituições de- Neste sentido, a Constituição sairia
mocráticas passam a ser concebidas como do “exílio” no plano normativo do de-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


352 Luciana Rodrigues Penna

ver-ser superior hierarquicamente, porém ência sobre os constitucionalistas pátrios,


quase que apenas formal , e adentraria o da experiência constitucional portuguesa e
mundo do ser, de uma existência constitu- espanhola de fins da década de 1970, con-
cional, preventiva, e não apenas reparatória cebida como referência de transformação
de lesão a direitos já constitucionalizados. social e política no caminho da efetiva re-
Assim, a Constituição aberta, traba- democratização e implementação da cida-
lhada por Paulo Bonavides, adquire o sen- dania ativa.
tido de uma experiência jurídica e ultraju- A Constituição Federal de 1988 nos
rídica, ou seja, a Constituição alcançaria o aponta, desde a sua entrada em vigor, para
patamar de um modus vivendi, pois presen- um caminho político e jurídico, onde a ci-
te estaria no cotidiano de uma sociedade, dadania é um fundamento do Estado De-
onde a cidadania fosse um valor fundamen- mocrático de Direito, ou seja, a República
tal, o Estado ideal fosse o Democrático de Federativa do Brasil.9
Direito, e a juridicidade da cidadania fosse No entanto, esse modelo de Consti-
dada pela realização dos valores da Cons- tuição conheceu e vem conhecendo, nas
tituição. Esse ideal de intérpretes-cidadãos duas últimas décadas do século XX e pri-
da Constituição, vincula as classes e os gê- meiros anos do século atual, uma constante
neros, vincula governantes e governados, e neutralização, uma vez que a cidadania no
todas as gerações em torno da materialida- Brasil vem sendo exercida com menos vi-
de constitucional. Parte da consciência de gor do que o esperado.
uma pré-compreensão da Constituição, da Alguns constitucionalistas brasilei-
cidadania e do próprio ser da pessoa huma- ros, na defesa da democracia participati-
na em suas dimensões públicas e privadas va, como um valor fundamental da ética
(como eu, como pessoa, como sujeito e política do presente, reconhecem a sua
como cidadão), tal como enuncia Marile- não implementação plena na trajetória do
na Chauí (2000, p.p. 117-119). Há que se Constitucionalismo brasileiro, iniciada
salientar a importância da obra de Paulo formalmente a partir da Constituição do
Bonavides para a compreensão da Teoria Império, de 1824, e estão perplexos10.
Material da Constituição no Brasil, uma Em face da acentuada ênfase na(s)
vez que o autor disponibiliza ao público crise(s) econômica(s), na(s) crise(s) do Es-
brasileiro vasto referencial teórico sobre a tado, na instabilidade do(s) mercado(s), na
compreensão material da Constituição. transnacionalização das empresas de gran-
de expressão econômica, na inevitabilida-
5. A trajetória constitucional do Brasil: de da adesão ao neoliberalismo, presen-
o porque do não atendimento das pro- ciamos a legitimação da privatização do
messas da Modernidade público através da redução dos domínios
do Estado-Nação.
O modelo constitucional democráti- Frente a isso, resta ao cidadão brasi-
co adotado no Brasil, em 1988, representa leiro uma espécie de posição out, ou seja,
o estatuto da cidadania para toda socieda- de permanecer fora do processo, inerte ou
de brasileira no presente. A Constituição impotente em vista da força dos desígnios
do Brasil, a partir do processo constituin- da política global liberalizante, que vem
te de 1987/1988, faz renascer a esperança transformando a política em um determi-
do povo brasileiro numa sociedade nova e nismo absoluto, e a perspectiva de futuro
mais justa. de cada cidadão em um destino pré-deter-
A adoção desse modelo constitucio- minado, inevitável e impassível de ques-
nal dirigente, que advém também da influ- tionamento.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 353

Nas palavras de Gisele Cittadino: enquanto sujeito vinculado à coletividade


De todos os ramos do direito, talvez na qual está inserido e á qual deve a sua
seja o constitucional o mais atingido pe- condição de cidadão (vida pública)? Desde
las transformações econômicas e políticas Heidegger se sabe que ser é ser-no-mun-
destas três últimas décadas. Fruto da enge- do.
nharia política liberal-burguesa do século A particularidade da condição huma-
XIX, que desenvolveu a idéia de consti- na requer a experiência da publicização da
tuição como “centro emanador do orde- ação, não no sentido da não diferenciação
namento jurídico”, o direito constitucio- das dimensões privada e pública da vida,
nal começou o século XX encarado como mas no sentido de que a anulação do hu-
sinônimo de segurança e legitimidade, mano no indivíduo procede da sua aliena-
delimitando o exercício dos mecanismos ção da coletividade, de seu isolamento, da
de violência monopolizados pela Estado, negação de sua identidade sendo, portanto,
institucionalizando seus procedimentos possível através da negação/dissolução de
decisórios, legislativos e adjudicatórios, seus vínculos com os outros seres huma-
estabelecendo as formas de participação nos, com a coletividade, com a dimensão
política e definindo o espaço soberano da pública da existência. (ARENDT, 2001).
palavra e da ação em contextos sociais A redução ou a neutralização da for-
marcados pelo relativismo ideológico e em ça normativa da Constituição, revelada no
cujo âmbito o poder do Estado depende processo de enfraquecimento do Estado
de critérios externos aos governantes para afeta, sobretudo, a possibilidade de con-
ser aceito como válido. No limiar do sé- cretização dos direitos econômicos e so-
culo XXI, contudo, a idéia de constituição ciais. Isto, aliado às reformas constitucio-
cada vez mais é apontada como entrave ao nais diretas (através de emendas ao texto
funcionamento do mercado, como freio da da Constituição), representa um entrave ao
competitividade dos agentes econômicos e projeto de edificação de um país mais cida-
como obstáculo à expansão da economia. dão, coerente com a Carta Política.
O que ocorreu ao longo desse período? O Vivencia-se, atualmente, além da
que explica a metamorfose sofrida pelas manutenção de uma normatividade não
constituições contemporâneas, deixando coerente com a Lei Maior (como é o caso
de ser aceitas como condição de legitimi- da legislação penal), a não-atualização da
dade da ordem jurídico-política para se Constituição, em respeito à materialidade
converter em objeto de um amplo processo do texto original. Veja-se, por exemplo, a
de reforma e enxugamento? O que levou Emenda n. 45, que alterou o disposto no
a esse refluxo do constitucionalismo e do artigo 5º, inserindo em um novo parágrafo
próprio direito público e a retomada das (parágrafo terceiro), exigência de maioria
pretensões hegemônicas do direito priva- qualificada para a internalização de trata-
do, especialmente o civil? (2000, p. XV). dos assinados pelo Brasil no que se refere
Portanto, se recoloca a pergunta à defesa dos direitos humanos.
proposta acima: o que pode a Constitui- Tal alteração vem a representar um
ção, enquanto estatuto da cidadania, se a retrocesso jurídico em termos de tutela de
cidadania adquire o seu sentido em face direitos humanos no Brasil, pois a Consti-
do exercício da ação política, ou seja, da tuição de 1988, em seu texto original, não
consciente experiência do indivíduo que estabelecera tal exigência, que apenas con-
poderá gerar uma memória (significados), tribui para reduzir a celeridade da interna-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


354 Luciana Rodrigues Penna

lização de tratados sobre direitos humanos, a prioridade passa da meta de consolida-


afastando cada vez mais os mesmos do ní- ção da sua identidade nacional, enquanto
vel constitucional, aproximando-os do ní- nação soberana, livre e independente para
vel infraconstitucional. o alcance de posição soberana na dinâmica
Ao tomar-se como o principal desafio política e econômica mundial.
da construção da efetividade constitucional Da posição da Teoria da Constituição,
no Brasil a realização dos direitos sociais este fato representa a convivência, lado a
e econômicos, opção de todo o constitu- lado, no texto das Constituições brasilei-
cionalista comprometido com a realidade ras, dos objetivos de um Estado de Direito
deste país, encontra-se um elo entre esse e da prioritária tutela constitucional dos di-
desafio e aquilo a que Paulo Bonavides reitos fundamentais, inclusive e sobretudo,
denominou de crise constituinte brasileira dos direitos econômicos e sociais.
(BONAVIDES, 2001, p. 165). Estes direitos, que por sua própria
Essa crise, que diferentemente da natureza, possuem um caráter geral, ou
crise constitucional, e mais grave do que a seja, são direitos públicos, titularizados
primeira, não pode ser solucionada apenas por todos os cidadãos brasileiros, vêm apa-
com a realização de reformas constitucio- recendo associados aos modelos de Estado
nais, é sem dúvida alguma a crise da (au-
que o país adotou nas diferentes etapas de
sência de uma) consciência sobre o valor
sua história política.
da Constituição11.
Não se deve esquecer a Constituição
Essa crise constituinte nasce da pró-
de 1934, em que se tem a presença da ins-
pria (de) formação jurídica do operador do
piração social advindo do Constituciona-
Direito, e este é o fator que levou Lênio
lismo de Weimar, na trajetória constitucio-
Streck a constatar que a Modernidade bra-
nal brasileira.
sileira é tardia, sendo que aqui as promes-
sas da Modernidade ainda não foram rea- A incorporação dos novos direitos,
lizadas. Salienta-se que uma das principais econômicos e sociais, ao elenco dos já
promessas não cumpridas da Modernidade tradicionais direitos fundamentais de natu-
no Brasil é justamente a da garantia do reza individual, e das liberdades públicas,
efetivo acesso e tutela jurídica aos direitos coloca o Constitucionalismo brasileiro na
sociais e econômicos para os cidadãos bra- atualidade das Constituições Sociais, for-
sileiros. jadas na associação entre a crise do Estado
Essa crise de interpretação do Di- Liberal mínimo e a decadência de um mo-
reito, que reflete um pensamento jurídico delo econômico baseado na acumulação
resistente ao reconhecimento do caráter individualista dos lucros e na especulação
eminentemente social do Ordenamen- econômica irrefreada.
to Jurídico brasileiro, como resultado da Para salvar o Capitalismo agonizante
opção política feita em 1988, decorre do e impedir o advento de Estados Socialistas
que Streck denomina “senso comum te- máximos, planificadores da vida pública
órico do jurista”, ou seja, a interpretação e privada, aparecem as Constituições So-
legal que inviabiliza, em grande medida, o ciais, típicas de Estados do tipo interven-
advento da “nossa” Modernidade, de um cionistas e com metas voltada à superação,
Estado Social e Democrático, voltado para ou pelo menos, à equalização das profun-
o povo. das desigualdades econômicas e sociais, já
O Brasil em sua história política reve- marcantes no século XIX e agravadas no
la complexa trajetória constitucional, onde início do século XX.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 355

Assim, os direitos relativos ao traba- República, com extrema concentração de


lho, ao salário mínimo, à saúde, ao bem- poderes nas mãos do Chefe do Poder Exe-
estar coletivo, isto é, os direitos de segunda cutivo.
geração, aparecem consagrados na Ordem A Constituição de 1937 é a Carta Po-
Social e na Ordem Econômica Constitu- lítica de uma nação “sem cidadãos”, onde
cional. estes não possuem acesso a direitos e ga-
Porém, tendo em vista que o Estado rantias fundamentais, caracterizando, pois,
Social, como Estado intervencionista e o Estado brasileiro como Estado de Exce-
promotor da igualdade, não se realiza em ção. Foi uma Constituição posta em vigor
sua plenitude no Brasil, o desenvolvimen- de forma antidemocrática, onde o modelo
to dos principais e grandes centros urbanos de estado passou a ser identificado com o
contrasta, ainda na atualidade, com o perfil de um Estado Unitário, sem nenhuma ga-
das periferias e dos subúrbios. rantia e defesa da autonomia federativa.
A cisão entre dois Brasis, um dos e A Constituição de 1946 não logra,
para os ricos e um dos e para os pobres, apesar da redemocratização política, uma
aliada àquela já tão aguda entre os traba- efetividade significativa dentro do contex-
lhadores urbanos e os do meio rural, iden- to de grande instabilidade ideológica, face
tificou e ainda identifica, na atualidade
ao advento da Guerra Fria, na reorganiza-
brasileira, face ao nosso modelo político e
ção bipolar da política internacional. No
econômico, as mazelas de um país onde a
Brasil, a situação se agrava e desencadeia
cidadania ainda está em construção.
o Golpe de 1964, que põem a baixo o edifí-
Ora, um Estado é Estado Social ou
cio constitucional anterior, rompendo com
não o é. Se as desigualdades regionais e
a Ordem Constitucional vigente e desem-
sociais ainda são gritantes, o Brasil ainda
bocando na outorga da Carta de 1967.
não possui um Estado Social.
Não se pode conceber um Estado Não há Estado Social a ser efetiva-
“relativamente social”, ou “parcialmente mente experimentado quanto o país se en-
social”. Também uma Constituição ou é contra em um contexto antidemocrático.
dirigente ou não é. Ou possui força norma- O caráter do Estado Social, ou seja, a sua
tiva ou não possui. E sua efetividade reside natureza essencial que incorpora a função
em sua materialidade ou não possui efeti- de promoção do bem-estar coletivo às já
vidade. Se a Constituição de 1988 repre- tradicionais funções do Estado, é incom-
senta a esperança de uma sociedade mais patível com um projeto autoritário, onde o
justa, ela ainda não é plenamente eficaz. interesse nacional é antitético ao exercício
Sem dúvida, a contraditória realidade das liberdades públicas, bem como a todos
social brasileira reflete a falácia da “nos- os direitos fundamentais da cidadania, in-
sa” Modernidade: estranha fórmula onde clusive os sociais e econômicos.
o crescimento econômico e o desenvolvi- É exatamente nesse contexto, mar-
mento científico-tecnológico não possibi- cado pela vigência de Atos Institucionais
litaram a inserção do país na condição de e de inúmeras outras medidas repressivas
um país socialmente justo. e autoritárias, que o Brasil permanecerá
Com a Constituição de 1937 não se inserido até a década de oitenta, com a
vivencia o reforçar do Estado Social, obra abertura política e o processo de redemo-
iniciada em 1934. Ao contrário, a experi- cratização, que deu ensejo à reunião da As-
ência será a de efetivo centralismo autori- sembléia Constituinte, e á promulgação da
tário em torno da figura do Presidente da Constituição Federal de 1988.12

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


356 Luciana Rodrigues Penna

De acordo com a lógica historicista vida social, a partir de uma reflexão sis-
apresentada na Teoria dos Direitos Funda- temática sobre valores (Filosofia) acom-
mentais13, o Brasil inverteu, com a baixís- panhada de uma prática social e política
sima efetividade das normas que estabele- orientadas para a igualdade e a justiça so-
cem os direitos sociais, todas as prioridades ciais, para o reconhecimento da dignidade
da tutela garantista constitucional. do outro ser humano.
Assim, a antiga sugestão se renova: Sem dúvida, estas propostas remetem
o Brasil precisa construir a efetividade dos a uma hermenêutica jurídica de natureza
direitos sociais e econômicos, resgatando filosófica, a uma hermenêutica ontológica
o significado do Estado Social e recupe- do Direito e da Constituição, ou seja, em se
rando, através de uma nova hermenêutica, poder pensar o Direito como um modo de
a força normativa da sua Constituição. ser. Tal idéia poderia ser aplicada perfei-
Isto ainda não foi possível, porque na tamente à Constituição, pois como ensina
cultura jurídica e política brasileiras ainda José Afonso da Silva “Nesse sentido é que
predomina uma concepção tradicional do se diz que todo o Estado tem Constituição,
Direito, vinculada ao Positivismo Norma- que é o simples modo de ser do Estado”
tivista. (1999, p.39).
Sendo esta seria uma das relevantes
Vivenciamos um Positivismo tardio,
acepções do termo Constituição, isto é, a
tornado inconseqüente e, por isso mesmo
sua tradução política, tem-se que o Direito
perigoso, pois na interpretação do Direito
acolhe a significação existencial da Consti-
se opta ainda por partir de uma percepção
tuição, como identificação político-jurídi-
legalista e formalista, o que muito freqüen-
ca de uma sociedade.
temente conduz somente a resultados do
Sempre o verbo constituir remete a
tipo reparatório, e muitas vezes a repara-
idéia de essência, ao que há de mais pri-
ções precárias, de lesões a direitos funda- mordial em uma existência e a exprime
mentais da cidadania. em termos de totalidade. Quando se per-
Isto porque a cidadania é uma atua- gunta: de que algo é constituído?, tal inda-
ção permanente e motivada por um thelos gação reflete a intenção de conhecer uma
definido: agir de forma ética, preventiva, essência, uma identidade concretizada em
respeitando a dignidade do outro como caracteres que integrados formam um ser,
sujeito de direito, e assim, evitar a canali- um ente, na linguagem de Heidegger, um
zação de todas as energias sociais para as dos mais expressivos filósofos da herme-
ações reparatórias, sempre insuficientes. nêutica moderna existencialista.
Somente a partir de uma nova com- Lembra-se, na linha da fenomeno-
preensão do Direito, de natureza predomi- logia de Maurice Merleau-Ponty, que em-
nantemente preventiva dos conflitos so- preende a (re)aproximação do pensamen-
ciais, desenvolvida por novos métodos de to (científico) humano com as essências,
conhecimento dos meios técnico-jurídicos que:
de defesa da cidadania, poderá conduzir Todo o universo da ciência é constru-
a resultados mais eficazes na solução dos ído sobre o mundo vivido, e se queremos
problemas da cidadania no Brasil. pensar a própria ciência com rigor, apre-
Em verdade, trata-se de ver no Direi- ciar exatamente seu sentido e seu alcance,
to um instrumento de defesa e de consoli- precisamos primeiramente despertar essa
dação da democracia, “conspirando” para experiência do mundo da qual ela é a ex-
que esta se realize em todas as esferas da pressão segunda. (1999, p.3)

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 357

Assim, também o universo do Di- ensina a encontrar, a navegar. A Constitui-


reito da compreensão do Direito, necessa- ção só pode ser a vivência dos direitos fun-
riamente parte de uma fenomenologia, ou damentais, em larga escala, onde os inte-
seja, de uma vivência do operador jurídico resses privados e públicos se encontrem de
e das partes envolvidas em uma questão. forma transparente e responsável, na atu-
A juridicidade, a partir de uma leitura fe- ação do Poder Público e da sociedade em
nomenológica, adequa-se mais do que a geral. É a Teoria Material da Constituição
perspectiva positivista ao desafio da cons- somada à noção de sistema constitucional
trução da cidadania na Era atual, era de (abertura material, integração dos ramos
globalizações (SANTOS, 2002, p.25). Isto do Direito, convergência de valores inse-
porque possibilita converter experiências ridos nas leis para a dimensão dos direi-
tidas como exclusivamente individuais, tos fundamentais, hermenêutica filosófica
em vivências e percepções que nascem de resgatando a feição preventiva e humanista
uma inserção da pessoa no mundo social, do Direito e dos sistemas jurídicos), é uma
econômico, político, jurídico, cultural e das mais densas contribuições que o pen-
ecológico. samento jurídico dos séculos XIX (com
A cidadania ativa, depende dessa Ferdinand Lassalle) e do século XX (com
recuperação: do ser como ser-no-mundo,
os constitucionalistas da Teoria Material)
do agir como um agir consciente de sua
pode oferecer à Teoria do Direito.
identidade (referência, situação, condição,
Voltando a Nietzsche, compreende-
classe) e da sua alteridade (dignidade hu-
se a sua inquietação com o Direito, quando
mana, sociedade, meio ambiente, mundo).
afirma que: “Estudar o código penal de um
A Ciência Jurídica, então, contribui
povo como se fosse uma expressão do seu
para o aperfeiçoamento da cidadania, na
caráter é equivocar-se gravemente; as leis
medida em que o Direito representa tam-
bém na sociedade uma dimensão de registro não revelam aquilo que um povo é, mas
da vida pública e privada, temporalizando- aquilo que lhe parece estranho, esquisito,
as, e permitindo que as ações individuais singular, exótico. A lei refere-se às exce-
e coletivas adquiram uma existência, uma ções à moralidade dos costumes (...)” , pois
forma, um sentido e um destino. o autor demonstra a necessidade (filosófi-
É o próprio ser humano, permeado ca) de trazer à tona a discussão sobre a es-
pela experiência social, que imprime ao sência da identidade social, e nisto volta-se
seu mundo uma temporalidade, uma me- para a seara jurídica, vendo-a radicada no
mória, uma significação, e neste aspecto, plano do dever-ser, onde a norma apenas
a Ciência do Direito (transversal, múltipla, contempla o desejo do que não se é, o futu-
renovada, atravessada pelo contato com ro incerto daquilo que não há, e portanto o
outros saberes, também múltiplos) regene- diferente, o questionável e até, como apon-
ra a memória e viabiliza a transformação tado por muitos, o impossível.
social, econômica, política. Neste ponto, a Constituição, enquan-
Confessa Nietzsche, em seu poema to dimensão jurídica e política, também
intitulado “A minha felicidade”: “Depois contempla uma face voltada para o futuro,
de sentir-me cansado em procurar aprendi a ou seja, uma certa projeção, que na lingua-
encontrar. Depois de um vento ter-me feito gem jurídica é denominada de dever ser.
resistência navego com todos os ventos.” Sabe-se, de fato, que mais do que em
(2004, p. 21). Assim, crê-se que a Ciência relação às demais espécies normativas, na
Jurídica, a partir da Teoria da Constituição, Constituição ficam muito visíveis as con-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


358 Luciana Rodrigues Penna

tradições sociais, a dialética que marca rário, por outro lado é correto afirmar que
uma sociedade, com suas identificações acabara transformando-se em realidade
projetivas, seus temores e seus ideais, nem permanente.
sempre conscientes, e nem todos talvez Apesar de na década de 1960 o Wel-
possíveis. A Constituição, sem dúvidas, fare State sofrer a crise que refletia a crise
existe também enquanto abstração, dever econômica mundial (STRECK, 2002, p.63),
ser, desejo de ser diferente do que já se foi, vê-se a sua colocação, a partir de 1988,
talvez do que se é hoje. como modelo a ser recuperado no Brasil,
No entanto, a própria dimensão do em face das conseqüências do projeto de
dever ser constitucional só é pensável a privatização e redução do espaço público
partir da consciência e das representações gerados com as políticas neoliberais.
do vivido, do experimentado, ou seja, do A arcaica modernidade brasileira
passado e do presente (OST, 2001, p.21). (STRECK, 2002, p. 69) não superada com
Entende–se, logo, como indispensá- o neoliberalismo das políticas nacionais
vel pensar a Constituição como atualidade, adotadas depois da promulgação da Consti-
como algo que é, como energia positiva e tuição Federal de 1988, só pode ser enfren-
construtiva de novas condições de vida. tada, através de um consistente investimen-
Para isso, se faz necessário atribuir à to na formação histórica, política e jurídica
mesma, na perspectiva da Teoria Material do brasileiro, o que requer um adentrar-se
da Constituição, aliada à hermenêutica fi- o universo das universidades e das escolas,
losófica de cunho ontológico, uma feição para construir com os sujeitos da educação
ontológica, um ser, uma existência, uma a sua própria condição de sujeitos.
atualidade. Onde se pode ver isso? Em
6. A relevância da memória política na
seus aspectos políticos e sociológicos, isto
formação do cidadão para a consolida-
é, onde se esboça na Constituição uma ra- ção da efetividade da Constituição: uma
dicalidade: nos dispositivos onde as tutelas pesquisa sobre a memória constitucio-
jurídicas se voltam aos direitos econômi- nal realizada no âmbito do ensino médio
cos e sociais. Esses dispositivos carac- no município de Santa Maria
terizam o Estado Social no Brasil, com a
feição atual da Carta de 1988, sintetizado Ao intentar-se uma investigação so-
no disposto nos artigos 205 e 214, inciso V bre a relação entre a memória constitucio-
da Constituição Federal. nal e a cidadania, chegou-se à necessidade
A educação para a cidadania e a edu- de pesquisar o universo das escolas parti-
cação humanística são indispensáveis para culares e públicas da rede de ensino local.
a consolidação do Estado Social e Demo- Assim, foram selecionadas nove escolas,
crático de Direito no país. aleatoriamente, para realizar a pesquisa
Não se pode olvidar, certamente, que desenvolvida no município de Santa Ma-
é ao Constitucionalismo Social de Wei- ria/RS, no ano de 2004.
mar (1919) que remonta a raiz histórica do Com esta investigação, foi possível
Estado Social, o Estado garantidor de um coletar dados significativos sobre a repre-
mínimo de padrão de vida digno. Mas esse sentação que um dos principais atores en-
modelo de Estado reaparece na Constitui- volvidos na dinâmica da aprendizagem, ou
ção de 1988. Se por um lado, tal modelo seja, o aluno do ensino médio, possui da
de Estado, em suas origens no início do relação entre a trajetória política brasileira,
século XX, fora pensado para ser tempo- a Constituição Federal e a cidadania14.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 359

Assim, a partir da aplicação de um c) Quanto ao nível de conhecimento


questionário aos alunos, contemplando sobre a Constituição Federal:
várias perguntas, cujo objetivo foi partin- c.1) Nas escolas particulares, tem-
do de um mapeamento da condição sócio- se que 51,9% dos alunos entrevistados
econômica do aluno (para isso verificou- responderam sim, conhecer um pouco a
se as condições dos pais), passando pelos Constituição; 28,9% disseram não, mas já
seus conhecimentos sobre a importância ter ouvido falar da mesma; 12,6% respon-
da Constituição de 1988 na história da de- deram não ter ouvido falar sobre a Consti-
mocracia brasileira, atentar-se para a sua tuição e 6,3% responderam que conhecem
inserção prática em ações voltadas para o muito bem a Constituição Federal.
exercício da cidadania. c.2) Nas escolas públicas: 48,7%
Passa-se às informações obtidas: dos alunos entrevistados responderam que
Descobriu-se15, por exemplo, quan- sim, conheciam um pouco a Constituição;
to aos alunos da segunda e terceira séries 34,7% responderam que não conheciam,
do segundo grau das escolas particulares mas já ouviram falar da mesma; 10,9%
pesquisadas, que 55,6% dos entrevistados responderam não ter ouvido falar e 5,3%
não são eleitores, contra 43,7% que já são responderam que sim, conheciam muito
eleitores, e 0,7% não responderam. Já nas bem a Constituição Federal.
escolas públicas pesquisadas, 60,4% dos d) Quanto à avaliação da importância
alunos entrevistados são eleitores, contra da Constituição na vida das pessoas:
39,6% de não eleitores. d.1) Nas escolas particulares 82,2%
Disto percebeu-se que, nas escolas dos pesquisados acredita que a Constitui-
públicas, o índice de alunos eleitores era ção é importante, contra 1,1% que respon-
maior do que nas particulares. deram não saber avaliar e 6,3% que res-
Também se obteve dados relevantes ponderam não acreditar na importância da
sobre as seguintes variáveis: Constituição.
a) Quanto ao grau de escolaridade do d.2) Nas escolas públicas 85,3%
pai: responderam acreditar na importância da
a.1) Nas escolas particulares: 51,5% Constituição, 10,6% respondeu não saber
dos pais possuem nível superior e 22,2% avaliar e 3,8% responderam não acreditar
dos pais possuem o segundo grau comple- que a Constituição seja importante.
to. e) Quanto ao acesso ao conhecimen-
a.2) Nas escolas públicas: 28,3% dos to sobre a Constituição Federal:
pais possuem somente o primeiro grau in- e.1) Nas escolas particulares 32,2%
completo e 25,7% dos pais possuem o se- responderam não ter acesso, 27,4% res-
gundo grau completo. ponderam que sim, mas de forma superfi-
b) Quanto ao grau de escolaridade da cial, 26,3% responderam não saber ou não
mãe: lembrar, e 12,6% responderam que sim,
b.1) Nas escolas particulares: 59,6% conheciam a Constituição de forma apro-
das mães possuem nível superior e 20% fundada.
possuem o segundo grau completo. e.2) Nas escolas públicas 30,6% dos
b.2) Nas escolas públicas: 27,5% das alunos entrevistados responderam que sim,
mães possuem o segundo grau completo mas conheciam superficialmente, contra
e 25,3% possuem apenas o primeiro grau 29,1% de alunos que responderam não sa-
incompleto. ber ou não lembrar, e 23% que responde-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


360 Luciana Rodrigues Penna

ram não ter acesso; já 15,5% dos alunos na importância efetiva da Constituição na
entrevistados responderam sim, conhecer a vida das pessoas. Onde radicam as razões
Constituição de forma aprofundada. dessa diferença?
Aqui, mais uma vez, nota-se a dife- Tanto na comparação das manifesta-
rença entre escola particular e escola pú- ções dos alunos da rede privada com os da
blica, onde o grau de informação sobre a rede pública de ensino, quanto no que tan-
existência da Constituição Federal é maior ge ao conflito entre a realidade econômica
no universo da escola pública. e os desafios do mundo cultural da adoles-
Os resultados obtidos nessa pesqui- cência contemporânea em geral, tem-se
sa sem dúvida oferecem matéria-prima na investigação científica uma fonte de
importante para a reflexão acadêmica e questionamentos e de especulação sobre as
científica, pois colocou-se luzes sobre con- relações entre a (ausência ou presença da)
tradições existentes na realidade escolar memória histórica e as (poucas ou signifi-
brasileira, ainda que no âmbito local. cativas) práticas de cidadania. Reafirma-se
Deduziu-se a partir dos dados, que o estabelecido na Carta de 1988, quanto ao
apesar de expressiva a quantidade de alu- papel da família, da sociedade e do Estado
nos que reconheceram a importância da na promoção da educação cidadã.
Constituição, como garantia de direitos e
Considerações Finais
de cidadania, é ainda modesta a quantidade
que a conhecem efetivamente (na rede pri- Para além das perplexidades que a
vada e na rede pública, o índice de alunos vida moderna engendrou, em suas próprias
que conhecem o conteúdo da Carta de 88 dinâmicas urbanistas, fabris e tecnológi-
não alcança 50%). cas que tornaram as sociedades de hoje
Entre os estudantes, percebeu-se informatizadas e extraordinariamente te-
a pouca capacidade de relacionar os co- lecomunicativas, a complexidade da vida
nhecimentos de História do Brasil com o humana colocou o indivíduo do século
advento da Constituição de 1988, e ma- XXI face a face com mais esse paradoxo:
terializar esta consciência em uma práti- o avanço tecnológico não somente não ha-
ca cidadã. Memória política desencadeia ver superado (promessa não cumprida pela
cidadania, e estas duas dimensões do co- Modernidade), como poder conviver (nem
nhecimento ainda aparecem dissociadas na sempre pacificamente!) com a miserabili-
vida dos estudantes do ensino médio local. dade, com situações em que se verifica a
Veja-se, por exemplo, quanto ao cadastra- total ausência de infra-estrutura mínima
mento eleitoral, atinge o índice de 55,6% para uma vida digna, ou seja, o avanço de
o número dos não-eleitores na rede privada uns com sub-desenvolvimento de outros
de ensino, demonstrando a baixa inserção que são muitos.
dos adolescentes nas decisões políticas que O modelo de desenvolvimento eco-
afetam o nosso quadro representativo, sen- nômico, hoje, neoliberalizado/neoliberali-
do portanto, indicativo de significativa de- zante, já demonstra possuir a capacidade
sarticulação cidadã, a ser questionada em de “escolher” onde haverá “prosperidade”
tempos de democracia representativa. (consumo?) e onde não haverá. Isto ser-
Saliente-se ainda, que a memória ve tanto no caso dos globalismos locais,
constitucional relatada é mais significativa quanto dos localismos globais16
nas escolas da rede pública, revelando a A conhecida divisão internacional/
rede privada um índice maior de descrença global do mundo em países de primei-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 361

ro mundo (centrais) e países de “outros” Com a pesquisa realizada junto às


mundos (segundo, terceiro, quarto mundo, escolas, crê-se ter aberto um caminho
ou subdesenvolvidos, ou em desenvolvi- promissor na investigação científica e na
mento, ou as periferias), construída com comunicação entre o ensino superior e o
base na divisão internacional do trabalho e ensino médio, no que diz respeito à trans-
dos Colonialismos e Imperialismos (século missão e à conservação dos valores essen-
XIX), acaba perpetuada na lógica instituí- ciais de um povo soberano afetos a sua me-
da pela Guerra Fria (século XX), e conti- mória constitucional, ou seja, a sua própria
nua a servir de referência para a identidade identidade: Constituição e cidadania.
de muitas sociedades, ainda quando se re- No entanto, se tem a plena consci-
conhece e representa a época atual como a ência de que o desafio de resgatar a me-
era da sociedade dita pós-moderna. mória constitucional das pessoas é uma
Constata-se que cabe a geração pós- empreitada de enorme envergadura, e que
moderna desconstruir a formulação de- o caminho dessa recuperação da memória
sigual da realidade política, social e eco- social e política passa, sem dúvida alguma,
nômica, resgatando o papel do Direito e por uma educação de feição integradora e
sobretudo da Constituição, não como or- transdisciplinar, comprometida com os va-
denação sancionadora e punitiva apenas,
lores éticos e sociais da Constituição.
mas, sobretudo, como elementos juridici-
Essa nova educação urge em nossos
zadores e construtores de uma nova cultu-
dias, uma vez que propõe a superação do
ra, uma cultura de cidadania, do respeito
velho paradigma moderno calcado no indi-
ao outro, da solidariedade humana, da tole-
vidualismo, um novo paradigma, capaz de
rância para com as diferenças raciais e reli-
atender a complexidade da sociedade atual.
giosas. Isto significa, sem dúvida, efetivar
Para tanto, sustenta-se a indispensabilidade
a Constituição.
Re-significar o princípio-valor da do encontro das diversas áreas do conheci-
Dignidade da Pessoa Humana é, certamen- mento humano, sobretudo no que se refere
te, um dos maiores desafios filosóficos e à cidadania, das áreas das ciências sociais
jurídicos da denominada Pós-Modernida- e sociais aplicadas, tais como o Direito, a
de, não só no Brasil. História, a Sociologia, a Antropologia e a
A dimensão constitucional represen- Psicologia. No caso do Brasil, é pungente a
ta a esfera jurídico-política e ético-social lacuna político-pedagógica ou cultural per-
mais importante de uma cultura que valo- cebida da fala dos estudantes, representada
riza o ideal de justiça, convivendo com um pela inconsistência do conhecimento sobre
Estado Democrático, em busca de igualda- a importância da história política do país e
de e de paz. de sua redefinição democrática a partir da
Seja na defesa da cidadania estabele- Constituição de 1988.
cida na dimensão axiológica constitucional A questão que se coloca é se a socie-
de teor mais abstrato (direitos e garantias, dade atual é saber se a educação está nos
e deveres individuais), seja naqueles dis- capacitando de fato, desde a nossa forma-
positivos em que se encontram a identi- ção média, a realizar em nosso país as pro-
dade e a possibilidade do bem-estar social messas não-cumpridas da Modernidade?
nos dias de hoje (normas interventivas, Seremos mesmo capazes de demons-
programáticas), a Constituição deve estar trar que a liberdade não é apenas individu-
associada ao papel da cidadania na trans- alismo e que a igualdade social não é ape-
formação social. nas submissão do indivíduo ao grupo? Mas

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


362 Luciana Rodrigues Penna

que se trata, em verdade e na prática, de certamente se inicia pela inserção da Teoria


valores compatíveis de serem vivenciados da Constituição já na formação escolar dos
simultaneamente? cidadãos, pois é indiscutível a relação entre
Seremos capazes de consolidar a ci- a memória político-constitucional e o com-
dadania através de uma educação social? prometimento com a prática da cidadania.
A cidadania assume rapidamente no-
vos contornos na atualidade. Ao olhar do
jurista do século XXI se revelam os pa- REFERÊNCIAS
radoxos e as contradições da experiência ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio
político-jurídica moderna, marcada pela de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
inserção da noção de cidadania, no decor- ______. As Origens do Totalitarismo. São Pau-
rer da trajetória constitucional do Estado- lo: Companhia das Letras, 2000.
Nação, na Constituição Federal. ______. Entre o Passado e o Futuro. São Pau-
Logo, se a Constituição foi, pela Mo- lo: Perspectiva, 2001.
dernidade, alçada ao patamar de norma ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília:
jurídica suprema dentro do Ordenamento UnB, 1999.
Jurídico, do ponto de vista formal e mate- BAUMAN, Zygmunt. Em busca da Política.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
rial, as práticas político-jurídicas modernas
______. . Modernidade Líquida. Rio de Janei-
efetivaram muito mais significativamente ro: Jorge Zahar, 2005.
valores individualistas. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria
Assim, é mister reconhecer que a Geral da Cidadania. São Paulo: Saraiva, 1995.
condição de possuírem uma Constituição BARRETTO, Vicente e PAIM, Antonio. Evo-
formal, concebida como paradigma her- lução do pensamento político brasileiro. Belo
menêutico da ação política, significando Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP,
acatá-la como domicílio jurídico de valo- 1989.
res fundamentais, não foi suficiente para BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de
defender a cidadania ativa. Janeiro: Campus.
______. O futuro da democracia. São Paulo:
Se essa compreensão houvesse an-
Paz e Terra, 2002.
gariado impedir as Nações ocidentais de BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta.
mergulharem freqüentemente, durante os São Paulo: Malheiros, 1996.
séculos XIX e XX, em regimes autoritários ______. Curso de Direito Constitucional. São
e totalitários, que negaram a força norma- Paulo: Malheiros, 2001.
tiva da Constituição, enquanto estatuto de BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade - Lembran-
uma cidadania política mas também social ças de Velhos. São Paulo: Companhia das Le-
e econômica, fundada na solidariedade e na tras, 2004.
tolerância pela diferença, não seria neces- CANOTILHO, José J. Gomes. Direito Cons-
titucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
sário, para os juristas da pós-modernidade,
Almedina, 2000.
dar continuidade ao processo de constru-
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e
ção de uma sociedade justa. Bastaria man- Justiça Distributiva - Elementos de Filosofia
ter-se o que já fora conquistado em termos Constitucional Contemporânea. Rio de Janei-
de interpretação constitucional do Direito. ro: Lúmen Júris, 2000.
Mas este não é o caso. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São
Crê-se, finalmente, como ação in- Paulo: Ática, 2000.
dispensável e urgente contribuir para o CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna:
compartilhamento da memória política e uma introdução às teorias do contemporâneo.
constitucional brasileira, um caminho que São Paulo: Loyola, 1992.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO... 363

DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-feita. Rio de


controle de constitucionalidade como garantia Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
da supralegalidade constitucional. Rio de Ja- ______. Ciência com Consciência. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 1996. neiro: Bertrand Brasil, 2001.
DEMO, Pedro. Cidadania Tutelada, Cidadania NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São
Assistida. Campinas: Autores Associados, 1995. Paulo: Martin Claret, 2004.
______. Metodologia do Conhecimento Cientí- NOGARO, Arnaldo. “Crise de Valores” ou
fico. São Paulo: Atlas, 2000. ausência da educação ética. In Revista Fi-
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao estado. Psi- losfofazer. Passo Fundo, RS: ANO VI, nº 10
canálise do Vínculo Social. Rio de Janeiro: Jor- – 01/1997, pp. 9 – 11.
ge Zahar Editor, 1999. NOGUEIRA, Octaciano. A Constituinte de
FARIA, José Eduardo (org.) Regulação, Direi- 1946 – Getúlio, o Sujeito Oculto. São Paulo:
to e Democracia. São Paulo: Editora Fundação Martins Fontes, 2005.
Perseu Abramo, 2002. OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa:
______. Retórica Política e Ideologia Demo- Instituto Piaget, 2001.
crática: a legitimação do discurso jurídico li- PONTY, Maurice-Merleau. Fenomenologia da
beral. Rio de Janeiro: Graal, 1984. Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FLEIG, Mario (org.). Psicanálise e Sintoma So- RUSSO, Eduardo Angel. Teoría general del
Derecho – En la modernidad y en la posmoder-
cial. Livro II. São Leopoldo: Ed. UNISINOS,
nidad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997.
1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) A Glo-
FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídi-
balização e as Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
ca. São Paulo: Saraiva, 1997.
Cortez, 2002.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucio-
SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fun-
nal – A sociedade aberta dos intérpretes da
damentais. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
Constituição: contribuição para a interpre-
do, 2000.
tação pluralista e “procedimental” da Cons- ______ (org.) O Novo Código Civil e a Cons-
tituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris tituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
Editor, 1997. 2003.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. SCHMITT, Carl. La defensa de la Constituci-
São Paulo: Martins Fontes, 2002. ón. Madrid: Editorial Tecnos, 1998.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Consti- SIEYÈS, Emmanuel. A Constituinte Burguesa.
tuição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2001.
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêu- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
ticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
2000. ______. Poder Constituinte e Poder Popular
LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. (Estudos sobre a Constituição). São Paulo: Ma-
Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. lheiros, 2000.
MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do In- STEIN, Ernildo. Aproximações sobre herme-
dividualismo Possessivo – de Hobbes a Locke. nêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
Rio de JAneiro: Paz e Terra, 1979. ______ Seminário sobre a verdade. Petrópolis:
MELO, Oswaldo Ferreira de. Sobre Política Vozes, 1993.
Jurídica. Ver. Seqüência, Ano I, 2º semestre de STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional
1980, pp. 27-32. e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Cons- Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
tituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito So- NOTAS
cial aos Interesses Transindividuais: O Estado
e o Direito na Ordem Contemporânea. Porto
1
Recomenda-se a consulta a ARISTÓTELES.
Alegre: Livraria do Advogado, 1996. Ética a Nicômacos.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


364 Luciana Rodrigues Penna

2
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. p. 146 tura de SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos
3
Ver na Constituição da República Federativa Fundamentais. Também BOBBIO, Norberto. A
do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, o inciso Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus.
XXXII colocado face a face com o disposto nos 14
Dados obtidos em projeto de pesquisa e ex-
Princípios Fundamentais, artigo 1º, inciso IV,( tensão universitária desenvolvido durante o ano
valor social da livre iniciativa). Da mesma for- letivo de 2004, no âmbito dos Cursos de Direito
ma, a possível contradição entre o valor social e História do Centro Universitário Franciscano
do trabalho e da livre iniciativa, ambos situa- (UNIFRA) de Santa Maria/RS, e por esta Ins-
dos no mesmo referido dispositivo. Ainda o dis- tituição financiado. A abordagem adotada nesta
posto nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º. pesquisa foi a fenomenológica, pois a meto-
4
Como o valor social do trabalho, o direito de dologia de aplicação de questionários escritos
associação, o direito à proteção do consumidor, a serem respondidos pelo próprio investigado,
o direito de greve, o direito à função social da resultou na coleta de dados e opiniões forneci-
propriedade, o direito á dignidade na condição das pelos próprios estudantes. As informações
de pessoa humana, dentre outros. foram obtidas por amostragem, com cerca de
5
Para aprofundar a discussão sobre os regimes 80 alunos entrevistados em cada uma das nove
totalitários recomenda-se a leitura da obra As escolas pesquisadas, perfazendo aproximada-
Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt. mente 700 estudantes entrevistados.
6
Ver HESSE, Konrad. A força normativa da 15
Resultados parciais obtidos em novembro de
Constituição.A obra foi escrita em 1959. 2004. Os dados estão registrados no relatório
7
STRECK, Lênio Luis. Jurisdição Constitucio- da pesquisa arquivado na Pró-Reitoria de Ex-
nal e Hermenêutica. tensão do Centro Universitário Franciscano
8
Conforme Arnaldo Nogaro a política ocupa o (UNIFRA).
espaço da transformação da situação vigente pela 16
As expressões são de Boaventura de Sousa
qual passa a sociedade, através da atuação de di- Santos. Ver: A Globalização e as Ciências So-
ferentes atores (classes ou grupos sociais, que ciais. Pp. 49-50.
agem através de partidos políticos, bem como di-
versos segmentos da sociedade civil). A falta de
paradigmas éticos, característica de nosso tem-
po, implica a vivência de uma crise de valores,
não propriamente de uma ausência dos mesmos,
mas de sua indefinição. Ver NOGARO, Arnal-
do. “Crise de Valores” ou ausência da educação
ética.In Revista Filosfofazer. Passo Fundo, RS:
ANO VI, nº 10 – 01/1997, pp. 9 – 11.
9
Ver CF/88, artigo 1º, inciso II.
10
Como José Afonso da Silva.
11
Sugere-se sobre o tema a consulta a DAN-
TAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do con-
trole de constitucionalidade como garantia da
supralegalidade constitucional.
12
Para um estudo sobre a trajetória constitucio-
nal brasileira recomenda-se consultar: SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito Constitucio-
nal Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. Re-
comenda-se também: NOGUEIRA, Octaciano.
A Constituinte de 1946 – Getúlio, o Sujeito
Oculto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
13
A característica da historicidade dos direitos
fundamentais pode ser aprofundada coma a lei-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


365

Proposta de Teoria Fundamental da Constituição


(com uma inflexão processual)
Proposition of Fundamentals Constitution Theory
(with a procedural inflection)

Willis Santiago Guerra Filho*

Recebido para publicação em novembro de 2005

Resumo: A presente proposta de Teoria Fundamental da Constituição baseia-se na constatação


de que os direitos fundamentais, no atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de
direito, representam a essência mesmo desta fórmula política, sendo em função deles que se passa
a organizar o Estado e, mesmo as relações sociais, ou seja, superando a tradicional relação entre
cidadão e Estado. Além de se apresentarem como parâmetros para a conduta política e social, os di-
reitos e garantias fundamentais fornecem também critérios para o conhecimento jurídico mais ade-
quado ao desenvolvimento daquela fórmula, o que se traduz em uma relevância prática também,
no encaminhamento pela via processual de soluções para casos concretos. Em circunstâncias em
que a aplicação de concepções tradicionais do Direito a tais casos concretos resulta em afronta aos
princípios maiores da Constituição de um Estado democrático comprometido com a garantia dos
direitos fundamentais em sua mais ampla configuração, verifica-se uma tensão entre princípios e
direitos fundamentais associados à legitimação democrática, com outros que seriam mais vincula-
dos à legalidade inerente a todo Estado de direito, na modernidade. Para a solução de tais conflitos,
com vista à preservação do princípio maior da dignidade humana, incide o princípio da proporcio-
nalidade, expressão da garantia que é de se esperar da cláusula do devido processo legal.
Palavras-chave: Estado Democrático. Direitos fundamentais. Princípio da proporcionalidade.
Abstract: The present proposal of a fundamental theory of Constitution is based upon the observa-
tion that constitutional rights, in the present stage of evolution of the democratic State, corresponds
to the very essence of such a political formula. It is according to them that the State is organized
and also social relationship, which means to overcome the traditional distinction between citizen
and State. Those right are not only parameters do political and social behavior, but also to legal
research more accurate to the development of that formula, which means also to have a practical
relevance, when it comes to the point of legal settlements through judicial proceeding. In such a
circumstance when the application of traditional conceptions of Law to those settlements turns
out to be a contempt to the major constitutional principles of the democratic State, engaged in the
defense of fundamental right in a most wide conception, we may verify a tension between those
principles and rights which are connected with democratic legitimation, at one side, and at the other
side the traditional principle linked to the rule of Law in modern State.  It is to solve such cases
that is needed the balancing principle embedded in the due process clause, in order to preserve the
major principle of human dignity.
Key Words: Democratic State. Constitutional rights. Balancing principle.

* Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO
– cedido para a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, UnB). Professor Titular de Filosofia do Centro de Ciências
Humanas da Universidade Estadual do Ceará (UECE- licenciado). Professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito
dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professor de
Filosofia Política do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Osasco, SP, e de Teoria da Ciência do Direito do
Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes (RJ).

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


366 Willis Santiago Guerra Filho

A proposta aqui avançada, de que se ticamente superada pela postulação da Te-


deve reconhecer a existência de uma nova oria Fundamental da Constituição, é aque-
matéria jurídica, a “Teoria Fundamental la entre Direito Natural, ou jusnaturalismo,
da Constituição”, advém de uma série de e Direito Positivo, ou juspositivismo, uma
constatações, dentre as quais merecem vez que no Direito fundamental positivam-
destaque as seguintes: se e se tornam direito objetivo pautas va-
1º) As situações jurídicas subjetivas lorativas universalizáveis, com as quais se
que correspondem à matéria, da Teoria busca fundamentar, do modo mais racional
Fundamental da Constituição, no direito e justo possível, o Direito.
objetivo, a saber, os direitos fundamen- 4º) Por fim, mas não menos importan-
tais, apesar de sua natureza constitucional, te – ao contrário -, merece reconhecimento
transbordam os limites desse campo do da Teoria Fundamental da Constituição por
Direito, irradiando seus efeitos e concre- haver uma norma de direito fundamental,
tizando-se em todas as matérias jurídicas, identificada no âmbito de uma teoria dos
sejam do direito público, sejam do direito direitos fundamentais, com características
privado, donde se poder afirmar que a Te- que a distinguem de normas jurídicas em
oria Fundamental da Constituição trata de geral, decorrentes basicamente de sua na-
matéria que melhor se caracterizaria como
tureza principiológica. O tratamento me-
pertencente àquele campo intermediário
todologicamente adequado dos problemas
entre o direito público e o direito privado,
atinentes à aplicação dessas normas de di-
que se vem denominando, recentemente,
reito fundamental vem resultando em uma
de direito difuso. O próprio Direito Cons-
verdadeira revolução no campo da herme-
titucional, para realizar aquilo que tradi-
nêutica e da epistemologia jurídica – e,
cionalmente lhe é mais próprio, que é a
logo, no paradigma da ciência do direito.
organização jurídica do Estado, precisa
pautar-se pelas determinações dos direitos Passemos ao desenvolvimento de
fundamentais. cada uma desses pontos.
2°) O objeto da Teoria Fundamental
da Constituição se situa, igualmente, para 1. Os direitos humanos – e os direitos
além da dicotomia entre o Direito Mate- fundamentais, no plano do direito posto,
rial e o Direito Processual, visto que nele positivo – vêm adquirindo uma configura-
se situam não somente os direitos funda- ção cada vez mais consentânea com os ide-
mentais em um sentido estrito, como tam- ais projetados pelas revoluções políticas
bém as garantias fundamentais, direitos da modernidade, tão bem representados
fundamentais em sentido amplo, em geral pela tríade “liberdade, igualdade e frater-
de natureza processual, tendo por escopo nidade”. Atualmente, já se pode perceber
a imprescindível tutela e efetivação dos com clareza a interdependência destes
primeiros. É assim que, da perspectiva jus- valores fundamentais: sem a redução de
fundamental, ações, princípios processuais desigualdades, não há liberdade possível
e garantias objetivas da jurisdição podem para o conjunto dos seres humanos, e sem
revelar uma dimensão subjetiva, justifi- fraternidade – ou melhor, “solidariedade”,
cando-se melhor enquanto projeções de para sermos mais, “realistas”, visto que
situações jurídicas subjetivas de direitos a fraternidade às vezes não existe sequer
fundamentais. entre verdadeiros irmãos -, sem o reconhe-
3°)Uma outra dicotomia, agora de cimento de nossa mútua dependência, não
natureza jusfilosófica, que vem a ser diale- só como indivíduos, mas como nações e

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 367

espécies naturais – também dependemos âmbito do Estado Democrático contem-


do ambiente natural -, não atinamos para porâneo, representado pela atualidade de
o sentido da busca de liberdade e igual- conflitos entre princípios constitucionais,
dade. Daí que, como defendem Morin & aos quais se deve igual obediência, por
Kern,1 temos de nos assumir como partíci- ser a mesma a posição que ocupam na
pes de uma “comunidade de destino”, que hierarquia normativa, é que se preconiza
envolve todo o planeta que habitamos, se o recurso a um “princípio dos princípios”,
aspiramos não só à correção ética, mas à que representa algo assim como “a prin-
própria salvação, individual e coletiva, não cipialidade dos princípios”, enquanto sua
podendo haver uma sem a outra. relatividade mútua. Trata-se do princípio
Pode-se dizer que o Direito, nessa da proporcionalidade,2 tal como concebido
conjuntura, há de assentar-se em uma or- no campo jurídico na tradição germânica,
dem constitucional que, em sendo aquela como um princípio, também, de “relativi-
própria de um Estado Democrático, impõe dade” (verhältnismäβig), o qual determina
deveres de solidariedade aos que com- a busca de uma “solução de compromis-
põem uma comunidade política, a fim de so”, respeitando-se mais, em determinada
minorar os efeitos nefastos da desigual- situação, um dos princípios em conflito,
dade entre eles em relação à sua liberdade
e procurando desrespeitar o mínimo ao(s)
e ao respeito à dignidade humana. A dig-
outro(s), sem jamais lhe(s) faltar minima-
nidade humana é ofendida, por exemplo,
mente com o respeito, isto é, ferindo-lhes o
quando um sujeito é tratado como objeto
“núcleo essencial”, onde se encontra entro-
por outro sujeito. A dignidade humana im-
nizado o valor da dignidade humana, prin-
plica em tratar desigualmente os desiguais
cípio fundamental e “axial” do contempo-
(isonomia comutativa) assim como tam-
râneo Estado Democrático. O princípio da
bém implica na igualdade de todos perante
a lei (isonomia distributiva). proporcionalidade, embora não esteja ex-
Considerando a ordem constitucio- plicitado de forma individualizada em nos-
nal do tipo antes mencionado como forma- so ordenamento jurídico, assim como o da
da, substancialmente, por princípios, tem- dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc.
se que o princípio fundamental do Estado III, CR), é uma exigência inafastável da
de Direito decorre da dignidade humana, própria fórmula política adotada por nosso
assim como dele decorre o princípio da constituinte, a do “Estado Democrático de
legalidade. Tal princípio consubstancia Direito”, pois sem a sua utilização não se
uma garantia fundamental, promovendo a concebe como bem realizar o mandamento
certeza nas relações jurídicas e, com isso, básico dessa fórmula, de respeito simultâ-
a paz social. Também o princípio funda- neo dos interesses individuais, coletivos
mental do Estado Democrático decorre da e públicos, o que nos remete ao Princípio
dignidade humana, sendo de se considerar Constitucional da Proporcionalidade.
um princípio de legitimidade. O respeito à A exata compreensão do significado
dignidade humana requer, por fim, o res- do princípio da proporcionalidade requer
peito do ser humano enquanto indivíduo, uma transformação do próprio modo de se
partícipe de diversas coletividades, inclu- conceber a tarefa da ciência jurídica, como
sive aquela maior, enquanto espécie plane- diversa da mera interpretação e aplicação
tária, natural e social. de normas jurídicas com a estrutura de re-
Para resolver o grande dilema que gras.3 As regras trazem a descrição de dada
aflige os que operam com o Direito no situação, formada por um fato ou uma

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


368 Willis Santiago Guerra Filho

espécie (a fattispecie a que se referem os princípio, é evidente que o princípio deva


italianos) deles, enquanto nos princípios prevalecer, embora aí, na verdade, ele pre-
há uma referência direta a valores. Daí se valece, em determinada situação concreta,
dizer que as regras se fundamentam nos sobre o princípio em que a regra se baseia
princípios, os quais não fundamentariam - a rigor, portanto, não há colisão direta en-
diretamente nenhuma ação, dependendo tre regra(s) e princípio(s).
para isso da intermediação de uma (ou O traço distintivo entre regras e prin-
mais) regra(s) concretizadora(s). Princí- cípios, por último referido, aponta para
pios, portanto, têm um grau incomensura- uma característica desses, já mencionada,
velmente mais alto de generalidade (refe- que é de se destacar: sua relatividade. Não
rente à classe de indivíduos à que a norma há princípio do qual se possa pretender seja
se aplica) e abstração (referente à espécie acatado de forma absoluta, em toda e qual-
de fato a que a norma se aplica) do que a quer hipótese, pois uma tal obediência uni-
mais geral e abstrata das regras. Por isso, lateral e irrestrita a uma determinada pauta
também, poder-se dizer com maior facili- valorativa - digamos, individual - termina
dade, diante de um acontecimento, ao qual por infringir uma outra - por exemplo, co-
uma regra se reporta, se essa regra foi ob- letiva. Daí se dizer que há uma necessidade
servada ou se foi infringida, e, nesse caso, lógica e, até, axiológica, de se postular um
como se poderia ter evitado sua violação. “princípio de relatividade” (Verhältnismäβ
Já os princípios trazem ínsitas “determina- igkeitsprinzip), que é o princípio da pro-
ções de otimização” (Optimierungsgebote, porcionalidade, para que se possa respei-
na expressão de ROBERT ALEXY),4 isto tar normas, como os princípios, tendentes
é, um mandamento de que sejam cumpri- a colidir, quando se opera concretamente
dos na medida das possibilidades, fáticas com o Direito.5
e jurídicas, que se oferecem concretamen- A marca distintiva do pensamento
te - o que já nos remete, de imediato, ao jurídico contemporâneo, que se faz notar
princípio da proporcionalidade, por ele ser em autores como JOSEF ESSER e RO-
a própria expressão deste mandamento e NALD DWORKIN, antes do já referido
contemplar tal idéia de gradação no cum- ROBERT ALEXY, repousa precisamente
primento de um princípio, aí incluindo-se na ênfase dada ao emprego de princípios
o próprio princípio da proporcionalidade, jurídicos, positivados no ordenamento
que também não se pode acatar em termos jurídico, quer explicitamente - em geral,
definitivos, de “tudo ou nada”, como as re- na constituição -, quer através de normas
gras. onde se manifestam de forma implícita,
E, finalmente, enquanto o conflito quando do tratamento dos problemas ju-
de regras resulta em uma antinomia, a ser rídicos. Com isso, dá-se por superado um
resolvida pela perda de validade de uma resquício de legalismo que permaneceu
das regras em conflito, ainda que em um no positivismo normativista de KELSEN,
determinado caso concreto, deixando-se HART e outros, para quem as normas do
de cumpri-la para cumprir a outra, que direito positivo se reduziriam ao que hoje
se entende ser a correta, as colisões entre se chama “regras” (rules, Regeln) na teo-
princípios resultam apenas em que se pri- ria jurídica anglo-saxônica e germânica,
vilegie o acatamento de um, sem que isso isto é, normas que permitem realizar uma
implique no desrespeito completo do ou- subsunção dos fatos por elas regulados
tro. Já na hipótese de choque entre regra e (operative facts, Sachverhalte), imputan-

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 369

do-lhes ou cometendo-lhes a sanção cabí- KELSEN, na segunda (e definitiva) edição


vel. Princípios, por sua vez, se encontram de sua Teoria Pura do Direito, registrara,
em um nível superior de abstração, sendo reservando para a proposição um lugar no
igualmente hierarquicamente superiores, campo das idéias, da ciência, e para a nor-
dentro da compreensão do ordenamento ma um lugar no campo da ação, da políti-
jurídico como uma “pirâmide normativa” ca, enquanto sentido de um ato de vontade
(Stufenbau), e se eles não permitem uma conformadora de outra(s), por associada a
subsunção direta de fatos, isso se dá indire- uma sanção.
tamente, colocando regras sob o seu “raio O princípio da proporcionalidade,
de abrangência”. Ao contrário dessas, tam- entendido como um mandamento de oti-
bém, se verifica que os princípios podem mização do respeito máximo a todo direito
se contradizer, sem que isso faça qualquer fundamental, em situação de conflito com
um deles perder a sua validade jurídica e outro(s), na medida do jurídico e fatica-
ser derrogado. É exatamente numa situa- mente possível, tem um conteúdo que, na
ção em que há conflito entre princípios, ou doutrina e jurisprudência alemãs,7 é repar-
entre eles e regras, que o princípio da pro- tido em três “princípios ou proposições
porcionalidade (em sentido estrito ou pró- parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da
prio) mostra sua grande significação, pois proporcionalidade em sentido estrito” ou
pode ser usado como critério para solucio- “máxima do sopesamento” (Abwägungs-
nar da melhor forma o conflito, otimizando gebot), “princípio da adequação” e “prin-
a medida em que se acata um e desatende cípio da exigibilidade” ou “máxima do
o outro. Esse papel lhe cai muito bem pela meio mais suave” (Gebot des mildesten
circunstância peculiaríssima de se tratar Mittels).
de um princípio extremamente formal e, a O “princípio da proporcionalidade
diferença dos demais, não haver um outro em sentido estrito” determina que se esta-
que seja o seu oposto em vigor, em um or- beleça uma correspondência entre o fim a
denamento jurídico digno desse nome, ou ser alcançado por uma disposição norma-
seja, democraticamente legitimado.6 tiva e o meio empregado, que seja juridi-
Para bem atinar no alcance do princí- camente a melhor possível. Isso significa,
pio da proporcionalidade faz-se necessário acima de tudo, que não se fira o “conteúdo
referir o seu conteúdo - e ele, à diferença essencial” (Wesensgehalt) de direito fun-
dos princípios que se situam em seu mes- damental, com o desrespeito intolerável da
mo nível, de mais alta abstração, não é tão- dignidade humana, bem como que, mesmo
somente formal, revelando-se plenamente em havendo desvantagens para, digamos,
apenas quando se há de decidir sobre a o interesse de pessoas, individual ou cole-
constitucionalidade de alguma situação ju- tivamente consideradas, acarretadas pela
rídica ou ato normativo, no âmbito próprio disposição normativa em apreço, as van-
do processo constitucional. Esse seu as- tagens que traz para interesses de outra or-
pecto concretizador, inclusive, já fez com dem superam aquelas desvantagens.
que se referisse a ele como uma proposição Os demais “subprincípios”, como
jurídica, à qual, como ocorre com normas se pode denominar as proposições nor-
que são regras, se pode subsumir fatos mativas derivadas do princípio da pro-
jurídicos diretamente. Não se confunda, porcionalidade (em sentido amplo), são
porém, a proposição jurídica com a nor- ditos da adequação e da exigibilidade ou
ma de que ela é a representação, como já indispensabilidade (Erforderlichkeit). O

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


370 Willis Santiago Guerra Filho

primeiro determina que, dentro do fatica- se vincula ao outro princípio estruturante


mente possível, se preste o meio escolhido de nossa ordem constitucional – e, logo, de
para atingir o fim estabelecido, mostran- toda a ordem jurídica - , que é o Princípio
do-se, assim, “adequado”. Além disso, Democrático, adotamos o posicionamento
pelo segundo, esse meio deve se mostrar que vincula o princípio da proporcionali-
“exigível”, o que significa não haver outro, dade à Cláusula do Devido Processo Le-
igualmente eficaz, e menos danoso a direi- gal (Constituição da República Federativa
tos fundamentais. do Brasil, art. 5º., inc. LIV), com o que se
Dessa circunstância, de ter seu con- evita este falso dilema, pois para se ter um
teúdo formado por subprincípios, passível Estado de Direito com respeito à dignidade
de subsumirem fato e questões jurídicas, humana, isto é, que seja também democrá-
não se pode, contudo, vir a considerar o tico, pressupõe-se uma compatibilização
princípio da proporcionalidade mera regra, de legalidade (Estado de Direito) com le-
ao invés de verdadeiro princípio, como re- gitimidade (Democracia), obtida, em úl-
centemente se afirmou entre nós,8 pois não tima instância, pela aplicação, no âmbito
poderia ser uma regra o princípio que é a de processos judiciais, administrativos e
própria expressão da peculiaridade maior outros, precisamente, do princípio da pro-
deste último tipo de norma em relação à porcionalidade. É certo que a idéia subja-
primeira, o tipo mais comum de normas ju- cente à “proporcionalidade”, Verhältniss-
rídicas, peculiaridade esta que RONALD mäßigkeit, noção dotada atualmente de um
DWORKIN refere como a “dimensão sentido técnico no direito público e teoria
de peso” (dimension of weight) dos prin- do direito germânicos, ou seja, a de uma
cípios,9 e ALEXY como a ponderação limitação do poder estatal em benefício da
(Abwägung) – justamente o que se contra- garantia de integridade física e moral dos
põe à subsunção nas regras.10 E também, que lhe estão sub-rogados, confunde-se em
pragmaticamente, caso a norma que con- sua origem, como é fácil perceber com o
sagra o princípio da proporcionalidade não nascimento do moderno Estado de direito,
fosse verdadeiramente um princípio, mas respaldado em uma constituição, em um
sim uma regra, não poderíamos considerá- documento formalizador do propósito de
la inerente ao regime e princípios adotados se manter o equilíbrio entre os diversos
na Constituição brasileira de 1988, dedu- poderes que formam o Estado e o respeito
zindo-a do sistema constitucional vigente mútuo entre este e aquele indivíduos a ele
aqui, como em várias outras nações, da submetidos, a quem são reconhecidos cer-
idéia de Estado democrático de Direito, tos direitos fundamentais inalienáveis.11
posto que não há regra jurídica que seja A questão que assim se coloca, de
implícita, mas tão-somente os direitos (e como melhor fundamentar a inscrição de
garantias) fundamentais, consagrados em um princípio de proporcionalidade no pla-
princípios igualmente fundamentais – ou, no constitucional, se, deduzindo-o da op-
mesmo, “fundantes” –, a exemplo deste ção por um Estado de Direito ou então, dos
princípio de proporcionalidade, objeto da próprios direitos fundamentais, inerentes a
presente exposição. este Estado, enquanto Estado Democrático
Quanto a saber donde se deriva o prin- de Direito, assume relevância mais dou-
cípio da proporcionalidade, se do princípio trinária, já que na prática, como evidencia
estruturante do Estado de Direito, ou da- reiterada jurisprudência do Tribunal Cons-
quele da dignidade da pessoa humana, que titucional, na Alemanha, não resta dúvida

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 371

quanto à sua inserção na “base” do orde- 2. À mudança de função das cons-


namento jurídico, como se pode referir tituições e do próprio Estado, que afinal
de maneira figurada à constituição. Além de contas é por elas instaurado, na época
disso, nosso princípio aparece relacionado contemporânea, resultante da forma como
àquele que se pode considerar o problema historicamente se desenvolveram as so-
maior a ser resolvido com a adoção de um ciedades em que aparecem, correspondem
regime constitucional pelo Estado, nomea- também, como não podia deixar de ser,
damente, o do relacionamento entre ele, a modificações radicais no plano jurídico.
comunidade a ele submetida e os indivídu- As normas jurídicas que passam a ser ne-
os que a compõem, a ser regulado de for- cessárias não possuem mais o mesmo ca-
ma eqüitativamente vantajosa para todas ráter condicional de antes, com um sentido
as partes. Para que o Estado, em sua ativi- retrospectivo, quando destinavam-se basi-
dade, atenda aos interesses da maioria, res- camente a estabelecer uma certa conduta,
peitando os direitos individuais fundamen- de acordo com um padrão, em geral fixado
tais, se faz necessário não só a existência antes essas normas e não, a partir delas,
de normas para pautar essa atividade e que, propriamente. A isso era acrescentado o
em certos casos, nem mesmo a vontade de sancionamento, em princípio negativo —
uma maioria pode derrogar (Estado de Di- i.e., uma conseqüência desagradável — a
reito), como também há de se reconhecer ser inflingido pelo Estado, na hipótese de
e lançar mão de um princípio regulativo haver um descumprimento da prescrição
para se ponderar até que ponto se vai dar normativa. A regulação que no presente é
preferência ao todo ou às partes (Princípio requisitada ao Direito assume um caráter
da Proporcionalidade), o que também não finalístico, e um sentido prospectivo, pois,
pode ir além de um certo limite, para não para enfrentar a imprevisibilidade das si-
retirar o mínimo necessário a uma existên- tuações a serem reguladas ao que não se
cia humana digna de ser chamada assim.12 presta o esquema simples de subsunção de
Essas considerações permitem con- fatos a uma previsão legal abstrata ante-
cluir claramente pela existência de um rior, precisa-se de normas que determinem
conteúdo intangível dos direitos funda- objetivos a serem alcançados futuramente,
mentais, que não pode ceder sob forma sob as circunstâncias que então se apresen-
alguma. Esse núcleo vem a ser o denomi- tem.
nado mínimo existencial, ou seja, aquele Em vista disto, tem-se salientado
conjunto de situações que caracterizam o bastante ultimamente a distinção entre
ponto limite a partir do qual não se pode normas jurídicas que são formuladas como
avançar sem ofender a dignidade do ho- regras e aquelas que assumem a forma de
mem, sem reduzi-lo a meio. um princípio. As primeiras possuem a es-
A dignidade da pessoa humana, por trutura lógica que tradicionalmente se atri-
conseguinte, presta-se ao mesmo tempo bui às normas do Direito, com a descrição
para limitar direitos fundamentais – na (ou “tipificação”) de um fato, ao que se
medida em que é buscando sua maior efe- acrescenta a sua qualificação prescritiva,
tivação que, no caso concreto, um princí- amparada em uma sanção (ou na ausência
pio que os veicule pode ter sua aplicação dela, no caso da qualificação como “fato
restringida em favor de outro – como para permitido”). Já os princípios fundamen-
coibir restrições excessivas,13 por meio da tais, igualmente dotados de validade posi-
configuração do mínimo existencial. tiva e de um modo geral estabelecidos na

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


372 Willis Santiago Guerra Filho

constituição, não se reportam a um fato es- aceitável, ao utilizar um meio tão pouco
pecífico, que se possa precisar com facili- preciso e vago de ordenação da conduta,
dade a ocorrência, extraindo a conseqüên- como são os princípios. Isso significa tam-
cia prevista normativamente. Eles devem bém que a determinação do que é confor-
ser entendidos como indicadores de uma me ao Direito passa a depender cada vez
opção pelo favorecimento de determinado mais da situação concreta em que aparece
valor, a ser levada em conta na apreciação esse problema, o que beneficia formas de
jurídica de uma infinidade de fatos e si- pensamento pragmáticas, voltadas para
tuações possíveis, juntamente com outras orientar a ação daqueles envolvidos na to-
tantas opções dessas, outros princípios mada de uma decisão. Procedimentos são
igualmente adotados, que em determinado séries de atos ordenados com a finalidade
caso concreto podem se conflitar uns com de propiciar a solução de questões cuja
os outros, quando já não são mesmo, in dificuldade e/ou importância requer uma
abstracto, antinômicos entre si. extensão do lapso temporal, para que se
Os princípios jurídicos fundamen- considerem aspectos e implicações possí-
tais, dotados também de dimensão ética e veis. Dentre os procedimentos regulados
política, apontam a direção que se deve se- pelo Direito, podem-se destacar aqueles
guir para tratar de qualquer ocorrência de que envolvem a participação e a influência
acordo com o Direito em vigor, caso ele de vários sujeitos na formação do ato final
não contenha uma regra que a refira ou que decisório, reservando-lhes a denominação
a discipline suficientemente. A aplicação técnica de “processo”.
desses princípios, contudo, envolve um es-
forço muito maior do que a aplicação de 3. De uma perspectiva estrutural,
regras, onde uma vez verificada a identi- partindo daquela distinção, já corriqueira,
dade do fato ocorrido com aquele previs- entre normas jurídicas que são regras da-
to por alguma delas, não resta mais o que quelas que são princípios, distinção essa
fazer, para se saber o tratamento que lhe elaborada em sede de teoria do direito a
é dispensado pelo direito. Já para aplicar partir de trabalhos de autores contemporâ-
as regras, é preciso haver um procedimen- neos como KARL LARENZ, JOSEF ES-
to, para que se comprove a ocorrência dos SER, RONALD DWORKIN e ROBERT
fatos sob os quais elas haverão de incidir. ALEXY, pode-se, então, afirmar, que
A necessidade de se ter um procedimento normas substancialmente constitucionais
tornar-se ainda mais aguda quando se trata têm a estrutura de princípios, com a qual
da aplicação de princípios, pois aí a discus- se consagra, explícita ou implicitamente,
são gira menos em torno de fatos do que valores, no plano positivo do direito, con-
de valores, o que requer um cuidado muito ferindo-lhes, assim, natureza deôntica di-
maior para se chegar a uma decisão funda- ferenciada daquela que possuem enquanto
mentada objetivamente. determinações absolutas, como o são, em
Em sendo assim, é de se esperar que, uma ordem ética, religiosa ou ideológica
na medida em que aumenta a freqüência qualquer, os valores. Assim, no modelo
com que se recorre a princípios para so- mais sofisticado de figuração da ordem
lução de problemas jurídicos, cresce tam- jurídica, proposto por ALEXY em sua
bém a importância daquele ramo do direito “Teoria dos Direitos Fundamentais”, dis-
ocupado em disciplinar os procedimentos, tingui-se três níveis, a saber, o dos princí-
sem os quais não se chega a um resultado pios, o das regras e o dos procedimentos.

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 373

É neste último nível em que os interesses e Mundial, que representou a falência tanto
bens da vida, traduzidos em valores, vêm do modelo liberal de Estado de Direito,
a ser consagrados positivamente enquanto como também das fórmulas políticas auto-
princípios, e qualificadores, ainda que em ritárias que se apresentaram como alterna-
graus diversos de generalidade e abstra- tiva. Se em um primeiro momento obser-
ção, dos fatos previstos normativamente vou-se um prestígio de um modelo social
pelas regras, resultam vertidos em novas e, mesmo, socialista de Estado, a fórmula
normas, aptas a incidirem em determina- do Estado Democrático se firma a partir de
das situações concretas, conformando-as uma revalorização dos clássicos direitos
juridicamente. individuais de liberdade, que se entende
Assim sendo, considerando serem os não poderem jamais ser demasiadamente
direitos fundamentais o conteúdo essencial sacrificados, em nome da realização de
de uma Constituição como, a exemplo da direitos sociais. O Estado Democrático
que temos atualmente, as que se apresen- de Direito, então, representa uma forma
tam para fundar um Estado Democrático de superação dialética da antítese entre os
de Direito, conteúdo este ao qual se agre- modelos liberal e social ou socialista de Es-
ga a condizente organização institucional tado. Nessa perspectiva, tem-se a influente
do Estado e da sociedade civil, para que obra de ELÍAZ DÍAZ, “Estado de Dere-
se tenha, tudo somado, a Constituição em cho y sociedad democrática”, bem como
sentido substancial, então tem-se que as a monografia, bem anterior, já clássica na
garantias constitucionais integrariam a literatura política e constitucional em nos-
Constituição em sentido processual. São so País, de Mestre PAULO BONAVIDES,
essas garantias tanto aquelas ditas garan- “Do Estado Liberal ao Estado Social”.
tias fundamentais, por garantirem direitos Em sendo assim, tem-se o compro-
igualmente fundamentais, seja do ponto misso básico do Estado Democrático de
de vista formal, seja daquele substancial, Direito na harmonização de interesses que
como também as chamadas garantias se situam em três esferas fundamentais: a
institucionais, aquelas denominadas na esfera pública, ocupada pelo Estado, a es-
doutrina alemã, em uma terminologia que fera privada, em que se situa o indivíduo, e
remonta a CARL SCHMITT, Einrichtun- um segmento intermediário, a esfera cole-
gsgarantien, as de ordem pública (insti- tiva, em que se tem os interesses de indiví-
tutionelle Garantien), e as garantias de duos enquanto membros de determinados
instituições (Institutsgarantien), da ordem grupos, formados para a consecução de
privada, a exemplo da família, do ensino, objetivos econômicos, políticos, culturais
da imprensa etc. ou outros.
Nossa compreensão do quanto o Es- Há quem veja na projeção atual des-
tado Democrático de Direito depende de ses grupos, no campo político e social,
procedimentos, não só legislativos e eleito- como um dos traços característicos da
rais, mas especialmente aqueles judiciais, pós-modernidade, quando então as ações
para que se dê sua realização, aumenta na mais significativas se deveriam a esses
medida em que precisemos melhor o con- novos sujeitos coletivos, e não a sujeitos
teúdo dessa fórmula política. individuais ou àqueles integrados na orga-
Historicamente, poder-se-ia localizar nização política estatal. Indubitavelmente,
o seu surgimento nas sociedades européias o problema básico a ser solucionado por
recém-saídas da catástrofe da II Guerra qualquer constituição política contempo-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


374 Willis Santiago Guerra Filho

rânea não pode mais ser captado em toda Nela se misturam criação (legislação) e
sua extensão por aquela formulação clás- aplicação (jurisdição e administração) do
sica, onde se tinha um problema de deli- Direito, tornando a linearidade do esquema
mitação do poder estatal frente ao cidadão de validação kelseneano pela referência à
individualmente considerado. Hoje entida- estrutura hierarquicamente escalonada do
des coletivas demandam igualmente um ordenamento jurídico em circularidade,
disciplinamento de sua atividade política com o embricamento de diversas hierar-
e econômica, de modo a que possam sa- quias normativas, as “tangled hierarchies”
tisfazer o interesse coletivo que as anima, da teoria sistêmica. Concretamente, isso
compatibilizando-o com interesses de na- significa que assim como uma norma ao
tureza individual e pública, com base em ser aplicada mostra-se válida pela remis-
um “princípio de proporcionalidade”, que são a princípios superiores, esculpidos na
se procurou indicar aqui propriedades teó- Constituição, esses princípios validam-se
ricas - e práticas – capazes de torná-lo uma por serem referidos na aplicação daquelas
espécie de ponto de Arquimedes para ala- normas. É o princípio da proporcionalida-
vancar o Estado Democrático de Direito. de, portanto, que permite realizar o que os
Nos estudos que realizamos anteriormen- norte-americanos chamam “balancing” de
te, evidenciou-se, por exemplo, que aquele interesses e bens. A mesma idéia de so-
princípio pode ser considerado algo assim pesamento, ponderação, é expressa pela
como o “princípio dos princípios”, de hus- “Abwägung” dos alemães. E isso porque,
serliana memória, uma vez que é a ele, para solucionar as colisões entre interes-
em última instância, que se recorre para ses diversos de certas coletividades entre
resolver, em “casos difíceis” (hard cases), si e com interesses individuais ou estatais,
o conflito entre diversos valores e interes- tão variadas e imprevisíveis em sua ocor-
ses, expressos em outros princípios fun- rência, não há como se amparar em uma
damentais da ordem jurídica. Isso porque regulamentação prévia exaustiva, donde
o princípio da proporcionalidade é capaz a dependência incontornável de procedi-
de dar um “salto hierárquico” (hierarchical mentos para fazer incidir o princípio da
loop), ao ser extraído do ponto mais alto proporcionalidade, regulando o conflito de
da “pirâmide” normativa para ir até a sua princípios, para atingir, assim, as soluções
“base”, onde se verificam os conflitos con- esperadas.
cretos, validando as normas individuais Compreende-se, então, como o cen-
ali produzidas, na forma de decisões ad- tro de decisões politicamente relevantes,
ministrativas, judiciais etc. Essa forma de no Estado Democrático contemporâneo,
validação é tópica, permitindo atribuir um sofre um sensível deslocamento do Le-
significado diferente a um mesmo conjun- gislativo e Executivo em direção ao Judi-
to de normas, a depender da situação a que ciário. O processo judicial que se instaura
são aplicadas. É esse o tipo de validação mediante a propositura de determinadas
requerida nas sociedades hipercomplexas ações, especialmente aquelas de natureza
da pós-modernidade – ou, se preferirmos, coletiva e/ou de dimensão constitucional -
para evitar o desgaste desse significante, o ação popular, ação civil pública, mandado
“pós-moderno”, podemos falar em “socie- de injunção etc. - torna-se um instrumen-
dades hipermodernas”, ou em uma só so- to privilegiado de participação política e
ciedade hipermoderna, a sociedade mun- exercício permanente da cidadania, com
dial, a sociedade da comunicação em rede. vista à necessária transformação social

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 375

emancipatória. A Teoria Fundamental da definido, primeiramente, como o conjunto


Constituição aqui proposta levanta a pre- de valores expressos em regras, tácita ou
tensão de servir como instrumento cog- explicitamente acordadas entre os membros
nitivo para essa transformação, enquanto da comunidade científica, para serem segui-
Teoria jurídica emanada do Direito Cons- das por aqueles que esperam ver os resulta-
titucional do Estado Democrático que, en- dos de suas pesquisas - e eles próprios - le-
quanto fundamental, é de todo o Direito, vados em conta por essa comunidade, como
desde que adequado a esta fórmula política contribuição ao desenvolvimento científico.
de vigência insuperável: donde ser “funda- Além disso, integra o paradigma uma deter-
mental”, ao invés de “geral”, pois se, por minada concepção geral sobre a natureza
um lado, uma teoria ou é geral ou não é dos fenômenos estudados por dada ciência,
teoria propriamente, de outro lado, não é bem como sobre os métodos e conceitos
possível uma teoria do Direito “em geral”, mais adequados para estudá-los - em suma:
de todo e qualquer um. uma teoria científica aplicada com sucesso,
paradigmaticamente. Por essa caracteriza-
4. A constituição é vista por PETER ção, percebe-se a conotação normativa que
HÄBERLE, em estudo já clássico, como tem a noção de paradigma, donde se explica
processo, aberto para a participação plura-
o fato, apontado por Kuhn, de que os pa-
lística dos representantes das mais diver-
radigmas, tal como outras ordens normati-
sas interpretações. A concepção da ordem
vas, entrem em crise, rompam-se por meio
constitucional como um processo, no qual
de “revoluções”, quando não se consegue,
se inserem os defensores de interpretações
a partir deles, explicar certas anomalias, o
diversas no momento de concretizá-la, e
que ocasiona sua substituição por algum
não como ordem já estabelecida, vem se
outro. O exemplo típico é o da substitui-
mostrando como uma nova orientação em
filosofia do direito, mais consentânea com ção, na física, no paradigma mecanicista
o modo atual de se conceber o próprio de COPÉRNICO, GALILEU, GIORDA-
conhecimento, de bases científicas. É que NO BRUNO, NEWTON etc., por aquele
estas bases foram abaladas e substituídas relativista de ALBERT EINSTEIN, MAX
pelas revoluções que superaram na mate- PLANCK, NIELS BOHR, WERNER HEI-
mática e na física o modo tradicional de SENBERG etc.
figuração do espaço, remontando à geo- Daí ter EDMUND HUSSERL, de sua
metria euclidiana, refinada pela analítica perspectiva fenomenológica, alertado para
cartesiana e corroborada pelos resultados o caráter restritivo do conhecimento obtido
obtidos de sua aplicação no estudo da na- pelo formalismo científico, apesar de sua
tureza, desde COPÉRNICO até culminar indubitável eficácia, consubstanciando-se
em NEWTON, passando por GALILEU, em ameaça ao “mundo comum da vida
o que suscitou a conhecida formulação de (Lebenswelt), assim como BACHELARD,
THOMAS KUHN, sobre a substituição de ao mesmo tempo em que, refletindo sobre
paradigmas científicos. a nova cientificidade oriunda dos avanços
Aqui, vem referida uma noção de im- da física relativística e quântica, apontava
portância capital na epistemologia contem- o seu caráter aproximativo, em um proces-
porânea: aquela de “paradigma”, cunhada so inesgotável de acercamento das desco-
por THOMAS S. KUHN, em sua obra “A bertas, alertando, também, para a neces-
Estrutura das Revoluções Científicas”, de sidade de se complementar os rigores do
1962. O paradigma de uma ciência pode ser método científico com a liberdade criativa

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


376 Willis Santiago Guerra Filho

da imaginação poética. É essa nova ciên- 2


O tema do princípio da proporcionalidade
cia, processual e, por isso também, aberta, vem sendo objeto de elaborações sucessivas,
que se nos afigura homóloga à concepção que são também em parte coincidentes, em
aqui esposada, sobre a importância de se WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, En-
saios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Im-
reconhecer um sentido também proces-
prensa Universitária da UFC, 1989, pp. 47 ss.;
sual à constituição, para que assim ela se id., Teoria Processual da Constituição, 2a. ed.,
preste, cada vez mais, a ser o fundamento São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp.
adequado, por dinâmico ao invés de está- 75 ss., 185 ss., passim; id., Processo Consti-
tico, para uma ordem jurídica que se faz tucional e Direitos Fundamentais, 3a. ed., São
e refaz a cada dia, com a possibilidade de Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2003, pp. 63
ir-se aperfeiçoando enquanto instrumento ss., e em diversos artigos, publicados no Brasil
de inclusão dos que a ela se sujeitam, per- e no exterior. De último, WILLIS SANTIAGO
manecendo sujeitos dotados da dignidade GUERRA FILHO, “O princípio da proporcio-
nalidade em Direito constitucional e em Direito
de seres autoconscientes.
privado no Brasil”, in: Aspectos Controvertidos
É de todo conveniente o emprego de do novo Código Civil. Escritos em homenagem
novas categorias em estudos que levam em ao Min. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES,
conta a complexidade da realidade estuda- ARRUDA ALVIM, JOAQUIM PORTES DE
da, considerando que a mesma não existe CERQUEIRA CÉSAR e ROBERTO ROSAS
para nós independentemente de nossa ob- (orgs.), São Paulo: RT, 2003, pp. 583/596; “So-
servação dela. Só assim poderemos, igual- bre o princípio da proporcionalidade”, in: Dos
mente, enfrentar melhor as questões éticas Princípios Constitucionais. Considerações em
e jurídicas com que nos defrontamos em torno das normas principiológicas da Consti-
tuição, GEORGE SALOMÃO LEITE (org.),
um mundo que a ciência vem, ao mesmo
São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 237/253.
tempo, revelando e tornando mais com- 3
Nesse sentido, MANFRED STELZER, Das
plexo. Isso quer dizer, em termos sucintos, Wesensgehaltsargument und der Grundsatz der
que se postula dever ser este um instru- Verhältnismäβigkeit, Wien/New York: Sprin-
mento de promoção do aperfeiçoamento ger, 1991, p. 22.
democrático do poder e do saber. Há, por- 4
Theorie der Grundrechte, Baden-Baden: No-
tanto, desta perspectiva aqui defendida, mos, 1985, pp. 75 e s.
uma epistemologia que favorece a adoção 5
Cf. ALEXY, ob. cit., p. 100, 143 e s., passim;
de valores mais condizentes com o plura- WILLIS S. GUERRA FILHO, Ensaios de Te-
lismo democrático, fórmula política mais oria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Uni-
versitária da UFC, 1989, pp. 47, 69 e s., passim;
respeitosa à dignidade dos seres humanos,
id., Teoria Processual da Constituição, 2a. ed.,
tendo tal epistemologia sua adoção favore- São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp.
cida, no campo jurídico, por uma concep- 75 ss., 185 ss. e id., Processo Constitucional
ção teórico-fundamental da Constituição e Direitos Fundamentais, 3a. ed., São Paulo:
– e, logo, também do Direito que nela se IBDC/Celso Bastos Ed., 2003, pp. 63 ss.
baseia -, assim como o desenvolvimento 6
Sobre a função legitimadora do princípio da
deste Direito é fomentado por semelhante proporcionalidade cf. RICARDO LOBO TOR-
teoria de ciência jurídica. RES, “A Legitimação dos Direitos Humanos e
os Princípios da Ponderação e da Razoabilida-
de”, in: Id. (Org.), A Legitimação dos Direitos
NOTAS Humanos, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp.
397 ss., esp. pp. 432 ss.
1
Terra-Pátria. 3ª ed., trad.: PAULO NEVES, 7
Cf. BVerfGE 23, 133 (= Entscheidungen des
Porto Alegre, Sulina, 2000, p. 186, passim. Bundesverfassungsgerichts, vol. 23, p. 133).

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL... 377

Em decisão anterior, o Verhältnissmäßigkeits- 11


Daí se referir ao princípio PAULO BONAVI-
prinzip já fora apresentado como resultante “no DES como “antiqüíssimo”. Cf. Curso de Direi-
fundo, da essência dos próprios direitos funda- to Constitucional, 5ª. Ed., São Paulo: Malhei-
mentais”, acrescentando, de forma assimilável ros, 1994, p. 362.
à referida formulação clássica de SVAREZ, que 12
Na constituição alemã, tendo em vista esse
se teria aí uma “expressão do anseio geral de li- fato, consagra o art. 19, 2a parte, o princípio
berdade dos cidadãos frente ao Estado, em face segundo o qual os direitos fundamentais ja-
do poder público, que só pode vir a ser limitada mais devem ser ofendidos em sua essência
se isso for exigido para proteção de interesses (Wesensgehaltsgarantie). Exatamente dessa
públicos. BVerfGE 19, 348/349.Uma reconstru- norma é que autores como LERCHE e DÜRIG
ção detalhada do caminho percorrido na doutri- deduzem, a contrario sensu, a consagração do
na pelo princípio ora estudado encontra-se na princípio da proporcionalidade pelo direito
monografia de LOTHAR HIRSCHBERG, Der constitucional, pois ela implica na aceitação de
Grundsatz der Verhaltnismäβigkeit, Göttingen: ofensa a direito fundamental “até um certo pon-
Tese, 1981. to”, donde a necessidade de um princípio para
8
Cf. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O Pro- estabelecer o limite que não se deve ultrapassar.
porcional e o Razoável”, in: Revista dos Tri- Cf. BVerfGE 34, 238; DÜRIG, em “Der Grun-
bunais, vol. 798, 2002, p. 26. Irretorquível, por dsatz von der Menschenwürde. Entwurf eines
outro lado, neste trabalho, é a distinção entre os praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus
princípios da proporcionalidade e razoabilida- Art. 1, Abs. I, in Verbindung mit Art. 19. Abs. II,
de, a qual constitui seu objeto central. des Grundgesetzes, in: Archiv für öffentliches
9
Cf. Taking Rights Seriously, Cambridge (Mass.): Recht, n. 81, 1956, pp. 117 ss., PETER LER-
Harvard University Press, 1978, p. 26 ss. CHE, Übermaβ- und Verfassungsrecht — Zur
10
O fato de ALEXY, na famosa “página 100” Bindung des Gesetzqebers an die Grundsätze
da edição original da Theorie der Grundrechte, der Verhältnissmäßigkeit und Erforderlichkeit,
com apoio o professor de Direito Constitucional Heidelberg: Müller, 1961.
na Universidade de Heidelberg, HAVERKATE,
13
Nesse sentido, INGO SARLET menciona a
referir à possibilidade dos “subprincípios da dupla função da dignidade da pessoa humana,
proporcionalidade” permitirem, tal como regras em Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
jurídicas, a subsunção, não implica, ipso facto, Fundamentais na Constituição Federal de
como pretende VIRGÍLIO AFONSO DA SIL- 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
VA, loc. ult. cit., ser o princípio da proporciona- 2001, p. 119-120.
lidade uma regra, pois o conteúdo de uma regra
é a descrição (e previsão) de um fato, acompa-
nhada da prescrição de sua conseqüência jurídi-
ca, e não outra regra. Também, pelo princípio
lógico da “navalha de OCKHAM”, pelo qual
não se deve multiplicar desnecessariamente os
termos, sem que haja entes diversos a serem
nomeados por eles, também não pensamos que
deixe de haver sinonímia entre o princípio da
proporcionalidade em sentido estrito e a proibi-
ção de excesso “de ação”, por implicar o prin-
cípio também em uma “proibição de (excesso)
de omissão” (Untermaβverbot). Em apoio de
nossos posicionamentos veio, recentemente,
FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO,
em Princípio da Proporcionalidade: signifi-
cado e aplicação prática, Campinas: Copola,
2002.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


378

CONFERÊNCIAS
E DEBATES

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)


379

LION IN WINTER
TOMÁS MORO NA NOSSA ESTAÇÃO
Diálogos com o Direito Constitucional, o
Cristianismo e a Utopia Social
LION IN WINTER
TOMÁS MORO IN OUR SEASON.
DIALOGUES WITH THE CONSTITUTIONAL LAW, THE CHRISTIANISM AND
THE SOCIAL UTOPIA

Paulo Ferreira da Cunha*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Sir ou Santo Tomás Moro foi sagrado “um homem para todas as estações” por um bem
conhecido filme. O mito (mito e não mentira) de More como homem recto e sábio impregna boa
parte da sua biografia. Contudo, contra este mito se foram levantando algumas vozes críticas. More
não teria sido digno de ser considerado exemplo para os estadistas, mas apenas um homem do seu
tempo, homem de uma única estação. Esta conferência deseja chamar a atenção para a referida
pluralidade de perspectivas sobre Tomas Moro, e para a riqueza de aspectos que a sua vida e obra
encerram. Moro pode ser ou não ser um homem para todas as estações: mas é certamente ainda um
leão no Inverno do nosso descontentamento…
Palavras-chave: Tomás Moro. Utopia. Cristianismo. Doutrina Social da Igreja. Filosofia Política.
Socialismo. Comunismo.

Abstract: A very well known film sacred Sir or Saint Thomas More as “a man for all seasons”. The
myth (not the lye) of More as a righteous, wise man is still the main part of his biography. Neverthe-
less, some critical voices begun to rise. He would be not an example to statesmen, but a man for one
only season. This conference intended to call the attention to the pluralism of views about More,
and the richness of aspects of his life and work. More may be or may be not a man for all seasons:
but he still is a lion in the winter of our discontent.
Key Words: Thomas More. �����������������������������������������������������������������������
Utopia. ���������������������������������������������������������������
Christianity. Catholic Church Social Theory. ������������������
Political Philoso-
phy. Socialism. Communism.

1. Introdução Os três tópicos que pareceram mais


adequados no anúncio da palestra podem
Propomo-nos, breve e perfunctoria- parecer não corresponder inteiramente ao
mente embora, evocar a figura emblemáti- que acabámos por desenvolver, mas sinte-
ca de Tomás Moro (Londres, 1478 - 1535): tizam as preocupações de uma leitura: an-
Jurista, Homem de Estado, Professor de tes de mais, o direito constitucional e a po-
Direito, Santo, e Santo mártir, autor da lémica constitucional que acabou em crime
utopia político-social que deu nome ao gé- político sob forma penal – a decapitação de
nero. Moro por traição; depois (mas apenas por

*Doutor das Universidades de Paris II e Coimbra. Professor Catedrático de Direito e Director do Instituto Jurídico Interdiscipli-
nar, Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1


380 Paulo Ferreira da Cunha

comodidade depois, porque está antes de uma nova díade (obviamente, sempre vá-
tudo em Moro), o cristianismo, mola pro- rios tipos de cotejo e de associação podem
pulsora da vida, do pensamento e da obra ser feitos, v. Amaral, 1992, 91 ss.) unida
desta figura; finalmente, a utopia social, pelo tempo, pelas preocupações, e simboli-
o seu contributo para a filosofia política, camente apartada pelo destino, como antes
numa clave que normalmente não é a da sucedera, nos tempos culturalmente mais
maioria dos expoentes recentes do pensa- difíceis dos primórdios da Idade Média,
mento cristão – e daí, também, a sua ori- com Boécio e Cassiodoro.
ginalidade.
Comecemos então pelo princípio, e 2. Biografia Mínima
o princípio pode ser dado pelo ambiente e
pelas afinidades. Limitemo-nos, brevitatis Se o próprio Erasmo, amigo de Moro
causa, a estas últimas, sinais daquele. ao ponto de subtilmente o elogiar no título
É difícil falar de Tomás Moro sem do próprio Elogio da Loucura, se confes-
aludir, ainda que rapidamente, aos estra- sava incompetente para biografar o protei-
nhos vínculos do Tempo que o fizeram ser forme humanista inglês, a tarefa é, na ver-
contemporâneo de Maquiavel, e de Eras- dade, muito árdua. Mas aqui não se trata de
mo. Com o Secretário de Florença, aparen- biografias. Atrevamo-nos, então, antes de
temente não ressaltam senão contrastes: mais, a apenas um sumário biográfico.
tudo parece afastar Moro de Maquiavel. E Moro Nasceu em Londres. Os bi-
contudo, nas suas vidas reais, que não nas ógrafos britânicos são precisos: foi em
suas obras e na fama póstera, são ambos Milk Street, na paróquia de Santa Maria
dois grandes perdedores históricos. Moro Madalena, numa casa de burguesia abas-
com a grandeza da condenação, mas após tada. O próprio Moro evoca uma infância
cativeiro doloroso; Maquiavel, caído em feliz e um pai honesto e afável, primeiro
desgraça e logo torturado, para depois vir a ligado ao comércio e depois ao Direito. É
ser parcialmente reabilitado, mas deixado também Direito que Tomás vai estudar, na
no limbo da latência ou da potência políti- Universidade de Oxford, onde se formará
ca que não se torna acto, humilhantemente em 1501. A influência do pai – uma for-
presenteado ao final da tarde com um par te personalidade – para esta opção parece
de garrafas de bom vinho pelo Príncipe a indesmentível, tanto mais que um grande
quem dedicara e oferecera de manhã a sua mentor de Moro, o futuro Cardeal Morton,
obra imortal homónima. O Príncipe é uma muito provavelmente teria preferido para
“manual do guerrilheiro político” (ou do o seu protegido a carreira eclesiástica, à
“gangster”, como diria Bertrand Russell), qual o jovem Tomás, de resto, não era nada
para os outros, mas é, para Maquiavel, insensível. Com efeito, esteve durante qua-
também uma utopia. Outra coincidên- tro anos em exercícios espirituais com os
cia significativa é o facto de as obras que monges de Charterhouse, procurando uma
imortalizaram Moro e Maquiavel terem sa- iluminação sobre o rumo da sua vocação.
ído no mesmo ano. Pedro Calmon afirma Embora plausivelmente tais exercícios
que tal “não é uma coincidência, mas um não o tivessem absorvido totalmente, nem
índice de plenitude” (Calmon, 1952, 174). distraído por completo das suas vocações
Já a relação entre Moro e Erasmo pa- jurídica, política e humanística (Martz,
rece mais próxima, foi pessoalmente pró- 1990, 14 ss.).
xima. Moro e Erasmo representam o rosto Decidido pela carreira secular, embo-
bifronte do Humanismo na política, como ra não abandonando a sua devoção, nem a

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)
LION IN WINTER 381

sua queda eclesiástica (tendo-se nomeada- 3. O Julgamento


mente também aplicado a escritos sobre as
heresias, ofício pouco comum para um lei- A reconstituição dos diálogos na ses-
go) subirá os degraus do cursus honorum são que o haveria de condenar é impres-
político: deputado desde 1504, ascende sionante, e pode reviver-se, de certa forma,
no parlamento à condição de Speaker em no clássico filme A Man for all Seasons.
1523. Seis anos mais tarde, torna-se Lor- Mas aqui fica um breve passo, para que
de-chanceler. Acusado injustamente pelo sintamos desde já o tom. Em julgamento,
seu exercício judicial, consegue provar a depois de várias acusações, entre as quais a
sua inocência. Mais tarde, apesar de tentar de ter negado que o rei, Henrique VIII, pu-
o compromisso pela reserva mental e pelo desse validamente ter sido declarado pelo
silêncio até ao limite da sua consciência, Parlamento chefe da Igreja em Inglaterra, e
Moro não poderá deixar de afrontar o po- de lhe ter sido oferecido o perdão se se re-
der arbitrário do rei Henrique VIII: opon- tratasse, Moro, após considerandos sobre a
do-se ao divórcio do rei do casamento com prolixidade das acusações e a escassez das
Catarina de Aragão, e ao cisma anglicano, suas forças para as contestar, afirmaria:
bem como às formas político-constitucio- “Não me declaro culpado (…) No
nais que os permitiram. concernente ao primeiro artigo, no qual se
Durante o longo processo, em que afirma que eu, para expressar e mostrar a
esteve encerrado na Torre de Londres, minha malícia contra o rei e o seu recen-
onde escreveu Dialogue of Comfort in Tri- te casamento, sempre censurei e resisti
bulation, 1534, além de cartas de grande ao mesmo, só posso dizer o seguinte: que
elevação e rara subtileza (para contornar nunca por malícia disse uma palavra contra
indiscretos olhares dos carcereiros), so- ele, e que aquilo que disse sobre o assun-
bretudo a uma filha predilecta, Margaret to, disse-o exclusivamente segundo o meu
Ropper, conta a lenda que jogava xadrez pensar, opinião e consciência. E por este
com o monarca, numa única partida (qua- meu erro (se lhe posso chamar erro, ou se
se) interminável (lembrando o “único con- a este respeito estou enganado) não esca-
to” de Shearazade nas Mil e Uma Noites) pei sem castigo, tendo os meus bens e ga-
e, naturalmente, o filme O Sétimo Selo, de dos sido confiscados, e eu próprio lançado
Bergman – simbolismo eloquente. para a prisão, onde ainda me encontro faz
Estavam em causa para Moro o poder já quinze meses. Respeitando, pois, a esta
espiritual do rei, o cisma com Roma (con- acusação, respondo que, por esta minha ta-
siderando o Papa simples “bispo de Roma” citurnidade e silêncio não pode a vossa lei,
sem jurisdição em Inglaterra). A questão nem nenhuma lei do mundo, justamente
poria em causa os próprios poderes do Par- castigar-me, a menos que possais além dis-
lamento, já que Moro não lhe reconheceu so acusar-me de qualquer palavra ou acção
autoridade para aprovar tudo. O mito de de facto.” (Ackroyd, 2003, 274-275).
que o Parlamento Inglês (ou o Rei em Par- Ao que o advogado da coroa ataca:
lamento) tudo pode, salvo transformar um “Esse mesmo silêncio é sinal e de-
homem em mulher ou vice-versa, já então monstração de uma natureza corrupta e
era um mito. Há limites, há coisas que estão perversa, que conspira e murmura contra o
acima do simples jogo parlamentar, e até Estatuto; sim, não houve súbdito leal e fiel
acima da mera democracia formal ou téc- que, tendo-lhe sido perguntado o que pen-
nica (Montoro, 1979). Grande lição para os sava e opinava sobre o dito Estatuto, não
nossos dias, grande lição para sempre. se tenha disposto a afirmar, sem qualquer

(Conferências
(Artigos) e Debates) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1
382 Paulo Ferreira da Cunha

dissimulação, que o considerava bom, jus- aqui na terra juízes da minha condenação,
to e legítimo” (Ackroyd, 2003, 275). e do mesmo modo desejo que Deus Todo-
Moro defende-se com armas de bom Poderoso preserve e defenda Sua Majesta-
jurista que era, invocando os princípios ge- de, e lhe mande bom conselho” (Ackroyd,
rais de Direito: 2003, 276-277).
“Em verdade, se as regras e máximas
do Direito civil são boas, admissíveis e 4. As Utopias e a Utopia de Moro
suficientes, então Qui tacet consentire vi- No plano da filosofia política, Moro
detur (“quem cala presume-se que consen- tem lugar sobretudo por algo que, à falta de
te”), e este meu silêncio implica e sugere mais cabal explicação, poderíamos grosso
mais uma ratificação e confirmação do que modo enunciar assim: foi não o criador do
qualquer condenação desse vosso Estatuto. género literário (tão político e em certa me-
Pois asseguro-vos que nunca, até este mo- dida constitucional) da “utopia”, mas com
mento, revelei e abri a minha consciência e o seu livro deu a definitiva palavra para
opinião a qualquer pessoa viva neste mun- uma “coisa”, um quid que vinha de mui-
do” (Ackroyd, 2003, 275). to antes, e tivera já na República de Platão
Segue o julgamento, melhor, a farsa uma altíssima floração. Detenhamo-nos
de julgamento, até que tem de ser o pró- um instante sobre a questão da utopia.
prio réu a lembrar que as regras de direito Com efeito, a palavra “utopia” deri-
em uso previam que a este fosse dada a pa- va do livro homónimo de Tomás Moro, e
lavra antes da sentença. Moro argumenta significa etimologicamente “o que não tem
então juridicamente, considerando a lei do lugar”. Referem-se às utopias (eutopias,
Parlamento em que se baseia o julgamento neste caso, pois também há distopias, uto-
absolutamente iníqua, por contrária às leis pias negativas, infernos fabricados) a ma-
de Deus. Depois de lida a sentença (que, ravilhosas terras em que os homens seriam
embora depois comutada pelo rei em deca- felizes mediante uma organização social
pitação, constava inicialmente de enforca- mais justa, na perspectiva do seu autor.
mento não total, extirpação das entranhas Por extensão, o termo passou para todo o
ainda em vida, decepação do corpo e sua sonho, impossível, irrealizável. Mas desig-
exposição pública – tal foi a vontade de na rigorosa­mente o mito da cidade ideal,
mostrar serviço por parte desses juízes que como sublinhou Roger Mucchieli. Hoje já
se tornaram simples lacaios), Moro termi- se sabe que o grande problema das utopias
na com estas palavras dignas de um santo, é que podem tornar-se realidade, como
e santo mártir (que a Igreja depois cano- acentuou Berdiaeff, e Huxley recordaria na
nizou): portada do seu Brave new world – uma das
“Nada mais tenho a dizer, meus lor- mais conhecidas distopias contemporâne-
des, excepto que como o abençoado após- as. A própria Utopia de Tomás Moro não
tolo São Paulo, como lemos nos Actos dos se ficou pelo renome literário, mas houve
Apóstolos, esteve presente e consentiu na mesmo quem a pretendesse pôr em práti-
morte de Santo Estêvão, e guardou as rou- ca: como o espanhol Vasco de Quiroga, no
pas do que o apedrejaram, e no entanto são México.
agora ambos santos no paraíso, e lá conti- Também muitas ideologias – se não
nuarão como amigos para sempre, assim eu todas – ­propõem mundos fantásticos, de
verdadeiramente espero, e por isso rezarei, algum modo se aproximando das utopias.
que apesar de vossas senhorias terdes sido As utopias, porém, são concretizações,

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)
LION IN WINTER 383

normalmente muito pormenorizadas, das livro segundo. Só nos referiremos mais


propostas de inovação social. As ideolo- detidamente adiante ao primeiro, que con-
gias são filosofias políticas vulgarizadas, substancia a parte principial basilar do seu
que não têm necessidade desse grau de sistema, aplicado depois no segundo livro.
pormenorização. O problema é que sempre As filosofias políticas (e até as ide-
que um tirano ou uma oligarquia, enfim, ologias) têm essa virtualidade que alguns
um grupo no poder, querem construir um ignorantes, e alguns puristas se obstinam
paraíso, uma sociedade perfeita, constro- em não querer ver: é que, por mais estra-
em um inferno. O perigo das utopias é que nho que tal resulte e pareça (e por mais
se realizem. E, aqui como noutras coisas, o estranho que realmente possa ser), todas
óptimo é inimigo do bom. as ideias se podem combinar com todas as
Diferente da utopia é aspiração utó- outras. E portanto nada há de espantar de
pica, utopismo ou “princípio esperança” um socialismo cristão, como o de Moro.
(desenvolvida por Bloch, 1979): trata-se Nem pela parte dos socialistas, nem pela
de não aceitar como uma fatalidade o statu parte dos cristãos (e menos ainda por parte
quo, de ousar e de sonhar. dos que se reclamem simultaneamente de
Enquanto a utopia é normalmente ambas as filiações)… Nem pelos observa-
enclausurante, geométrica e racionalista, dores nem socialistas nem cristãos. Muito
potenciando as prisões e as peias, o utopis- mais de admirar, pelo menos à primeira
mo deseja-se libertador, imaginativo e até, vista, são outros conúbios. Mas o que uns
por isso, mais “realista”. acham estranho, outros consideram apenas
Pelo seu carácter pioneiro, e pela união dos extremos ou atracção dos contrá-
justeza e sabedoria dos seus ensinamentos, rios. Um exemplo de escola é o chamado
vale a pena que nos detenhamos por mo- “nacional-bolchevismo”, associando prin-
mentos na Utopia de Tomás Moro, que na cípios do nacional-socialismo e do marxis-
edição latina de Lovaina, datada de 1516, mo-leninismo. E mesmo comunismos há
tem nome composto, eloquente sobre o seu muitos, e não apenas os leninistas e seus
conteúdo e escopo: Utopia ou O Tratado derivados (Vallauri, 1973, 181-211).
da melhor forma de governo. Embora, por razões de criação de
Nada substitui a importância e o pra- clima literário e de verossimilhança, Moro
zer de uma leitura integral e pessoal. Se- se atarde algumas páginas a contar como
guimos a tradução do filósofo português encontrou o navegador português Rafael
José Marinho. Por isso, não faremos um Hitlodeu, que lhe fará o relato da utopia,
resumo, mas apenas sublinharemos alguns logo no primeiro diálogo com ele coloca
aspectos que se nos afiguram mais interes- os primeiros problemas políticos, que são,
santes. Mas, tal como no geral dos autores antes de mais, a primacial importância da
clássicos, também aqui é muito difícil es- “filosofia do homem em geral”, e especial-
colher. mente da Política, superiores à “filosofia
A Utopia é ao mesmo tempo uma crí- natural”, e depois o da participação política
tica da política e da situação, sobretudo a individual. Essas eram já questões antigas,
partir da inglesa, do tempo do autor (mas que encontra uma interessante discussão,
em muitos aspectos permanecendo até aliás, em Aristóteles (Ética a Nicómaco, I,
hoje) – de que se ocupa principalmente o 1, (1094 a) e ss e 1998, 47).
primeiro livro – e a defesa pormenorizada Por isso, nas suas viagens, sem dúvi-
de uma sociedade de tipo socialista – no da fantásticas, não se preocupa Moro (na

(Conferências
(Artigos) e Debates) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1
384 Paulo Ferreira da Cunha

verdade, o narrador) ao questionar Rafael administração, e a imprestabilidade dos


com os monstros do bestiário fantástico conselhos dos soberanos, que assim retrata
que tanto comoveram os relatos dos que – usando, certamente, da sua experiência
o precederam, mas com as pessoas, a sua prática na matéria:
organização política, que pode fazer mais “Dos seus membros, uns calam-se
que tudo maravilha, porquanto por inépcia, e esses precisariam até de ser
“O que é mais raro e digno de inte- eles próprios aconselhados. Outros são
resse é uma sociedade sã e sabiamente or- mais dotados e sabem que o são, mas com-
ganizada” (Morus, 1972, 16). partilham sempre da opinião dos anteriores
E nesse mesmo passo se explicita a que estão em melhores graças, e aplaudem
função da utopia (quer na sua dimensão entusiasmados as tolices que estes têm por
distópica quer na eutópica) – no caso, bem propinar. Vis parasitas só têm uma fi-
transportada ficcionalmente para povos nalidade: alcançar por meio da lisonja mais
dos “novos mundos”: mesquinha e criminosa, a protecção do fa-
“Rafael observou que entre esses po- vorito do Rei. Há ainda escravos do amor-
vos há instituições tão más como as nossas, próprio, que ouvem apenas a sua própria
mas encontrou também um grande número opinião, coisa nada para admirar porque a
de leis capazes de esclarecer e regenerar
natureza leva cada homem a afagar amoro-
cidades, povos e reinos da velha Europa”
samente aquilo mesmo que cria.” (Morus,
(Morus, 1972, 16).
1972, pp.19-20).
Além do mais, note-se a ligação des-
A descrição é também demorada, mas
sa regeneração ao poder das leis…
dela se conclui que os conselhos são domi-
O outro tema liminar sintetiza-se
nados pela inveja, o interesse e a vaidade,
numa pergunta: “devemos ou não deve-
sendo freqüente a invocação da autoridade
mos entrar na vida pública?” No caso de
Moro, atenta a sua circunstância, a questão do passado para vetar as novidades e per-
não se põe tanto na medida do exercício sistir no imobilismo (nesse tempo ainda
livre, autónomo, de uma cidadania, mas na não havia o vício simétrico, de tudo querer
questão do serviço dos príncipes. E Moro revolucionar, mais próprio de tempos ul-
espanta-se (ou retoricamente finge espan- teriores). E, antes de começar o seu relato
tar-se) que Rafael nunca tenha entrado ao sobre a Inglaterra, Hitlodeu conclui que
serviço dos príncipes, permanecendo um por toda a parte por onde andou encontrou
livre marinheiro. O diálogo é longo e sa- esses tipos de conselheiros: “pusilânimes,
boroso. Hitlodeu, a quem Moro via como tontos e vaidosos” (Morus, 1972, 20).
ministro, considera que os príncipes pouca O relato e diálogo seguintes vão dar
distinção fazem entre ministros e lacaios oportunidade a Moro de criticar as causas
(entre servire e inservire), e depois consi- dos males sociais ingleses. Explicando o
dera assim a sua relação com o serviço da crime por razões de pauperismo, opon-
res publica: do-se às penas mais severas (desde logo
“ (…) mesmo quando fosse cem ve- à pena de morte para o roubo) como po-
zes mais dotado seria inútil fazer à repú- tenciadoras de mais crimes (Morus, 1972,
blica o sacrifício da minha tranqüilidade.” 33), discutindo quais as melhores penas (e
(Morus, 1972, 19). inclinando-se para o trabalho, que poderia
até ser livre), verberando o luxo e outros
As razões são o belicismo dos go- vícios (Morus, 1972, 29), etc. E vai Rafael
vernantes a par da sua negligência com a abonando as suas opiniões com exemplos

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)
LION IN WINTER 385

de outros povos por onde teria passado. Por “Os ricos diminuem todos os dias de
exemplo, os Macários, vizinhos dos Uto- uma ou de outra maneira o salário dos po-
pianos, obrigam o seu rei a um juramento, bres não só com fraudes de vária natureza,
na sua tomada de posse, que o impossibilita mas por meio de leis especiais. Tão mal re-
da avareza, porquanto promete não poder compensar aqueles que mais merecem da
guardar nos seus cofres mais de mil libras república afigura-se, antes de mais nada,
de ouro ou o equivalente em prata (Morus, crueldade evidente (…)
1972, 52). Fazendo assim jus àquela ideia Eis por que, quando considero e ob-
de que os príncipes ricos fazem os povos servo as mais florescentes repúblicas de
miseráveis, e os príncipes pobres podem hoje, não vejo nelas, assim Deus me per-
manter os seus povos na abastança. doe!, senão uma conspiração dos ricos,
Nas páginas finais do Livro I, avança que realizam o melhor possível os seus ne-
a ideia da comunidade dos bens (solução gócios acobertados sob o nome e faustoso
radical, porque os paliativos redistributivos título de república. (…) Estas maquinações
e de restrição aos abusos não funcionam, decretadas pelos ricos em nome do Estado
como discute (Morus, 1972, 59), lembran- e por conseguinte em nome dos pobres,
do entretanto que Jesus cometeu aos após- também, tornam-se finalmente em leis.”
tolos a missão de pregar alto e bom som (Morus, 1972, 169-170).
a Boa Nova. E estas máximas, avança o E quase a terminar o seu discurso,
jurista, governante e santo da Igreja Cató- Moro revela a sua fonte, que não é, obvia-
lica, Apostólica e Romana, Tomás Moro, mente, sequer Karl Marx, nesta significati-
e com elas se sintetiza o essencial do seu va passagem:
pensamento político; o Livro II – como “Creio até que há muito tempo o gé-
dissemos já – é só uma aplicação concreti- nero humano teria abraçado as leis da re-
zadora dos princípios: pública utopiana, quer no próprio interes-
“Muitas vezes até acontece que a se, quer para obedecer à palavra de Cristo,
sorte do rico devia caber ao pobre. Não porque a palavra do Salvador não podia
há ricos avaros, imorais e inúteis? Pobres ignorar o que há de mais útil aos homens, e
simples e modestos, cuja indústria e traba- a sua divina bondade deve ter-lhes aconse-
lho aproveitam ao Estado, sem vantagem lhado o que sabia ser bom e perfeito.
para eles próprios? Mas o orgulho, essa paixão feroz, rai-
Eis o que invencivelmente me con- nha e mãe de todas as chagas sociais, opõe
vence de que a única maneira de distribuir invencível resistência a essa conversão dos
os bens com equanimidade e justiça, ins- povos. Nem o orgulho seria o que é se não
tituindo a felicidade do género humano, é houvesse desgraçados a insultar e a tratar
a abolição da propriedade. Enquanto o di- como escravos, se o luxo e a felicidade não
reito de propriedade for o fundamento do fossem fruto das angústias da miséria, e
edifício social, a classe mais numerosa e se a exibição das riquezas não torturasse a
mais estimável só terá que partilhar misé- indigência e lhe acentuasse o desespero.”
ria, tormentos e desespero.” (Morus, 1972, (Morus, 1972, 172).
pp- 58-59). Com este pensamento, Moro repre-
Quase no final da pormenorizada senta ao mesmo tempo a liberdade e a
descrição da Utopia, volta Moro, pela voz igualdade (embora esta na sua versão mais
de Hitlodeu, ao seu tema da igualdade, de extrema – mas curiosamente de um iguali-
novo criticando as sociedades reais: tarismo quimérico baseado na comunidade

(Conferências
(Artigos) e Debates) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1
386 Paulo Ferreira da Cunha

cristã, proposta realmente rara): a integra- na questão da própria personalidade e do


lidade do homem livre, que se não verga “eu” mais profundo de Tomás Moro. Ha-
ante os poderes contra a sua consciência, bituamo-nos, na verdade, como salienta
e o teorizador de uma cidade nova, de ho- Martz (1990, 3 ss.), a uma personagem
mens iguais. Pagou com a cabeça a luta moldada pela clássica biografia de R. W.
pela primeira, e deixou sobre a segunda Chambers (1981), ou do filme não menos
um livro que o imortalizou. clássico de Robert Bolt A Man for all Se-
asons. Contudo, essa imagem seria abala-
5. Desafios Constitucionais da por uma polémica de grande impacto
e ecos protagonizada fundamentalmente
No plano da teoria constitucional, e
pelas novas visões do crítico G. R. Elton
vendo o seu tempo ao mesmo tempo de- (1974, 23-31), e do biógrafo contempo-
terminados pelos pré-juízos e pós-juízos râneo Richard Marius (1984). A que mais
do nosso tempo, assim como procurando recentemente James Wood empresta a sua
compreender a realidade e as circunstân- verve, sentenciando, no final de um muito
cias daquele que foi o seu, os mais clás- crítico ensaio (em que, além do mais, nem
sicos problemas que Moro nos coloca são o biógrafo Peter Ackroyd, muito mais pró-
os das ligações do Estado com a Igreja, e ximo do que Chambers da metodologia e
o dos limites dos poderes do monarca e do da deontologia historiográficas correntes,
legislativo, como sabemos. será poupado):
As recentes agruras da Teoria Cons- “On one of those sides was Sir Tho-
titucional e do Estado suscitadas pelo mas More, cruel in punishment, evasive in
empreendimento de uma Constituição argument, lusty for power, and repressive in
europeia codificada levam-nos a recordar politics. He betrayed Christianity when he
uma imagem como que “antecipadora” de led it so violently into court politics, and he
Tomás Moro, nesta sua inesgotavelmente betrayed politics when he surrendered it so
inspiradora Utopia, que etimologicamente meekly to the defence of Catholicism. Abo-
significa “sem lugar”: pois se a capital da ve all, he betrayed his humanity when he
ilha é Amaurota, cidade da bruma (sonho, surrendered it to the alarms of God.” (http://
ilusão), o rio que a banha é o Anidro – sem www.luminarium.org/renlit/wood.htm)
água. E por isso (interessante lição para E o mais decisivo anátema será o
a teoria do Estado europeia) o príncipe próprio título do texto que acabámos de
que governa a comunidade é Ademo: sem citar, propositadamente apontando ao co-
povo. Príncipe sem povo, Europa sem povo ração do mito: A Man for one Season.
Europeu… Mas seria efabular demais con- Já Louis L. Martz é um dos que pro-
vocar aqui seriamente Moro a depor nes- curam reabilitar a visão tradicional de Moro
ta questão, prejudicada pelo fogo da sua como um sereno letrado humanista e jurista,
candente actualidade. E, evidentemente, o pleno de sabedoria, honestidade, cuja única
facto de não haver povo europeu não quer inflexibilidade vai para o erro (e não para os
dizer que não haja cidadãos… Invocamos que erram), e que no limite prefere a morte
obviamente o exemplo cum grano salis. à afronta à verdade (e à religião que nela
Outra questão, também recente, inclui como ponto fundamental).
convocará, porém, a nossa atenção. É que Mas de que se trata, então?
emergiu não há muito um novo problema Fundamentalmente de uma acusação
constitucional (embora nem sempre se que hoje cala fundo. Uma acusação que re-
note que assim o é), que aliás se imbricou mete para aquilo a que hoje chamaríamos

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)
LION IN WINTER 387

violação dos direitos humanos, designa- Macular a memória e o mito de Moro


damente desrespeito pela liberdade reli- com a acusação de contrário aos direitos
giosa. Moro é acusado de inflexibilidade, humanos, e carniceiro que se comprazeria
intolerância, histeria no ataque não só teó- com o fogo e o fumo dos autos-de-fé, vi-
rico (nas suas polémicas, que atingem até braria um profundo golpe na nossa gale-
Lutero), como prático (estando compro- ria de retratos, no nosso álbum de glórias.
vada a sua participação em metade – mas Mas não podemos esquecer a ferocidade
realmente são três – dos casos de heresia dos costumes político-religiosos da época,
julgados em Inglaterra durante o tempo em e que nem mesmo o santo pode fugir à sua
que foi chanceler). Citam-se passagens em circunstância.
que se detecta fúria, ou sanha de inquisidor Seja como for, se o mito pode exce-
contra os hereges, para quem consideraria der o Homem, o autor certamente o redime
justo que fossem queimados vivos, mas de qualquer acusação de menor fervor an-
alega-se, de outra banda, constituírem tais tropodiqueu ou jushumanista. Porquanto,
expressões apenas a tradução desse som- no melhor governo possível, na sua Uto-
brio contentamento com a punição da jus- pia, não só há muitas religiões dentro da
tiça quando atinge quem a merece (ou se mesma cidade como parece comungarem
todas essencialmente de um deísmo ele-
julga merecê-la).
mentar – o que seria necessária fonte de
Abalar o mito de Tomás Moro é sério
acusações de “heresia”, se houvesse nessa
empreendimento. Tal como esses mártires
bela cidade ideal um tal conceito. No con-
da Justiça, como Antígona, ou António,
tacto com o Cristianismo, narra o viajante
do Mercador de Veneza shakespearea-
interlocutor de Moro que alguns utopianos
no (também atingido no recente filme de
se converteram, e outros não, vivendo con-
Michael Radford), para falar dos de fic- tudo em plena harmonia.
ção, ou Boécio, para de novo referir uma Apenas os materialistas ateus são na
personagem histórica, Moro faz parte do Utopia discriminados (designadamente
nosso imaginário como exemplo. No dia das magistraturas e dos lugares públicos),
em que as ideologias e as teorias “da sus- não em nome da religião, mas “da moral”
peita” (quando não da inversão de valores) (e realmente como forma de “prevenção”)
dinamitarem por completo os exempla, – pois tal negação da divindade parece a
perigam seriamente as muralhas da cidade Moro ser sinal de que, só tendo como freio
ética da política, isto é, a constituição mo- o código penal, teriam mais tendência a,
ral ou axiológica, que preside em boa parte podendo, ocultamente iludirem as leis e
a tudo o mais. praticarem actos condenáveis.
A verdade, e desde logo a verdade Ainda aqui, porém, se vê o ar do
histórica (que se não pode subsumir nas tempo, a que se não foge. Ainda durante
meras “leituras” ou “interpretações”), exi- muito tempo a própria “tolerância” será
ge que se apure realmente se Moro foi um “intolerante” para uns tantos. Desde logo
fanático fariseu, atirando primeiras pedras a de Althusius já o era (v. as interpretações
aos heréticos, ou se, pelo contrário, se deve de Touchard, 1970, III, 71-72, e Kamen,
levar a sua eloqüência e a sua participação 1968), e a de Locke também.
judicial contra eles à conta de ênfase da E será por estas e por outras que o
sua mestria de estilo e obrigação ex officio, mesmo Tomás Moro, diabolizado por uns
talvez excedida pelo zelo pela verdade re- como caçador de luteranos, será por outros
ligiosa em que firmemente acreditava. alçado a primeiro grande defensor da mo-

(Conferências
(Artigos) e Debates) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1
388 Paulo Ferreira da Cunha

derna liberdade religiosa e se, pelas suas rando, tendo tido como cume problemático
ideias económicas e sociais um socialista, a síntese de Gomes Canotilho, que decisi-
pelas suas vistas permissivas no mais alto vamente liberta, em Portugal, o universo
sentido, um precursor do liberalismo. constitucional da perspectiva definitório-
Neste último sentido vai a interpre- positivista dogmática:
tação de um Kessler (2002, 207 ss.), que “A Constituição é um estatuto refle-
afirma: xivo que, através de certos procedimentos,
“Thomas More advocated religious do apelo a auto-regulações, de sugestões no
freedom in Utopia to promote civic pe- sentido da evolução político-social permite
ace in Christendom and to help unify his a existência de uma pluralidade de opções
fractious Catholic Church. In doing so, he políticas, a compatibilização dos dissensos
set forth a plan for managing church-state e possibilidade de vários jogos políticos, a
relations that is a precursor to liberal ap- garantia da mudança através da construção
proaches in this area. Most scholars locate de rupturas.” (Canotilho, 1991, 14).
the origins of modem religious freedom in Ao mito mais ou menos unitário, seja
Protestant theology and its first mature arti- do Estado (de que falou Cassirer), seja do
culation in Locke’s A Letter on Toleration. herói-mártir, sucede, de facto, um plura-
This reading of Utopia shows that modem lismo interpretativo, que ainda não abala
religious freedom has Catholic, Renaissan- decisivamente o segundo, mas que já se
ce roots.” (Kessler, 2002, 207 ss.). não pode ignorar: assim como a crise do
Eis, pois, que Tomás Moro encontra Estado e as novidades na Constituição.
em definitivo, simbólica e analogicamen-
6. Conclusão
te, a situação singular da doutrina Cons-
titucional nos nossos dias. Na verdade, o O facto de Moro poder ser interpre-
conflito das interpretações era sobretudo tado como um liberal, um socialista, um
até aqui relacionado com o teor e a profun- católico, um humanista, e todos estes atri-
didade do Socialismo ou comunismo do butos juntos, ou alguns deles, torna-o sim-
autor, como sintetizaria um Peter Wenzel pático aos olhos de muitos, e recentemente
(http://webdoc.gwdg.de/edoc/ia/eese/ar- sobretudo, antipático aos olhos de alguns.
tic96/wenzel/10_96.html#Morus). Agora Independentemente dessas aversões de
alcançou, como vimos, o cerne do próprio cardápio, que, quais reflexos condiciona-
carácter de Moro, em relação com a ques- dos, imediatamente saltam por causa dos
tão da liberdade religiosa. rótulos e suas conotações, não esqueçamos
Recordemos entretanto o que se pas- que as utopias são utopias, mesmo a “uto-
sou da banda do Direito Constitucional, e pia” de Moro. M. Delcourt (apud Cheva-
para isso bastará que nos limitemos ao que lier, I, 1982, 283) agudamente se pergunta-
ocorreu em Portugal: se ainda há cinqüenta ria como um espírito folgazão como o do
anos, o conceito de constituição (mesmo já autor da Utopia se conseguiria haver com a
com Marcello Caetano, que a sensibilizou estrita disciplina da sua cidade ideal. A tal
para a Ciência e a Sociologia políticas) parece responder Marius, o biógrafo ico-
ainda eram a de uma doutrina da forma noclasta, com estas pesadas palavras:
jurídica do Estado, com muito de positi- “This was a man of stern tempera-
vismo e quase nula permeabilidade à ideia ment, and his Utopia suits the rest of his life.
de constituição natural e do seu conceito Nothing in Utopia is more like him than the
histórico-universal, a evolução foi-se ope- Utopian law that anyone convicted twice of

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)
LION IN WINTER 389

adultery will suffer the penalty of death. He REFERÊNCIAS


was a man who considered the monastery
but decided, as Erasmus said, to be a good ACKROYD, Peter — The Life of Thomas
husband rather than a bad priest. I have long More, 1998, trad. de Mário Correia, A Vida de
Tomás More / Thomas More. Biografia, Chiado,
maintained that the commonwealth of Uto-
Lisboa, Bertrand, 2003, pp. 274-275
pia has the look of a monastic compound
ARISTÓTELES — A Política, trad. port., São
where marriage is allowed but strictly con- Paulo, Martins Fontes, 1998
trolled so that conjugal relations relieve AMARAL, Diogo Freitas do — Para uma His-
sexual needs without creating any genuine tória das Ideias Políticas: Maquiavel e Erasmo
bonds of intimacy between husbands and ou as duas faces da luta entre o poder e a mo-
wives.” (Marius, 1995). ral, in “Direito e Justiça. Revista da Faculdade
Embora pessoalmente nos não seja de Direito da Universidade Católica Portugue-
simpático o empreendimento desmitifica- sa”, vol. VI, 1992, p. 91 ss.
dor de Moro, desde logo pelo símbolo de BLOCH, Ernst — Das Prinzip Hoffnung, trad.
luta contra o poder arbitrário que – seja cast. de Felipe Gonzales Vicen, El principio es-
como for – tem efectivamente representa- peranza, Madrid, Aguilar, 1979, 3 vols..
do, não podemos, contudo, deixar de dar CALMON, Pedro – História das Idéias Políti-
razão a este crítico. Há na Utopia, em toda cas, Rio de Janeiro/ S. Paulo, Livraria Freitas
a utopia, um dogmatismo e um raciona- Bastos, 1952
lismo geométricos ou geometrizantes que CANOTILHO, José Joaquim Gomes — Direito
são o contrário da certamente caótica mas Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991
contudo livre natureza dos homens reais. CHAMBERS, R.W. — Thomas More, nova ed.,
Brighton, The Harvester Press, 1981
E é essa luta contra a natureza, em que a
CHEVALIER, Jean-Jacques — Histoire de la
heresia é possível, que choca na mente su-
pensée politique, Paris, Payot, 1979, trad. port.
perior de Moro. de Roberto Cortes de Lacerda, História do Pen-
Mas o problema subsiste: não deve a samento Político, tomo 1. Da Cidade-Estado
cultura (o espírito, a humanidade) superar e ao apogeu do Estado-Nação monárquico, Rio
por vezes para isso opor-se à simples nature- de Janeiro, Zahar Editores, 1982
za? Não é o direito constitucional a clausura ELTON, G. R. — “Thomas More, Councillor”,
jurídica do feroz tigre da política? Não são in Studies in Tudor and Stuart Politics and Go-
o silício e o chicote de Moro o seu primeiro vernment, 2 vols., Cambridge, Cambridge Uni-
carrasco? Ou o seu primeiro libertador? São versity Press, 1974, I
questões demasiado complexas para serem KAMEN, Henri — O Amanhecer da Tolerân-
respondidas, juntas ou separadas. Mas são cia, trad. port. de Alexandre Pinheiro Torres,
questões para ir colocando. Porto, Inova, s/d (ed. orig., 1968)
No final desta demanda, fica decerto KESSLER, Sanford — Religious freedom in
a sensação de que, de tudo, do que menos Thomas More’s Utopia, in “The Review of Po-
se terá falado foi de Cristianismo: mas ele litics. Notre Dame”, Primav. 2002, Vol. 64, n.
é, quando falamos em Tomás Moro, o pano º  2,  p. 207 ss. - http://www.geocities.com/
de fundo de tudo o mais. E com aquela ca- yskretz/morekessler.html
MARTZ, Louis L. — Thomas More. The Sear-
racterística dupla, de ser de Cristo e de ser
ch for the Inner Man, New Haven e Londres,
ao mesmo tempo “-ismo”. Como se Cristo
Yale University Press, 1990
pudesse caber ou ser traduzido por “-is-
MONTORO BALLESTEROS, Alberto —
mos”, por melhores que sejam. Razones y Limites de al Legiti
E nessa oposição afinal se resume a MARIUS, Richard — Thomas More, Nova Ior-
dicotomia que perpassa todo o debate: os que, Knopf, 1984.mación Democrática del De-
“-ismos” são de uma estação só… recho, Murcia, Universidad de Murcia, 1979

(Conferências
(Artigos) e Debates) Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1
390 Paulo Ferreira da Cunha

MARIUS, Richard — Utopia as Mirror for a Mário Braga, História das Ideias Políticas, Lis-
Life and Times: http://www.shu.ac.uk/emls/ie- boa, Europa-América, 1970, vol. III,
mls/conf/texts/marius.html, 1995 VALLAURI, Luigi Lombardi — Communisme
MORUS, Tomás — A Utopia, trad. port. de matérialiste, communisme spiritualiste, com-
José Marinho, Lisboa, Guimarães, 1972 munisme concentrationnaire, in “Archives de
TOUCHARD, Jean — Histoire des Idées poli- Philosophie du Droit”, Paris, XVIII, 1973, pp.
tiques, Paris, PUF, 1959, trad. port. e notas de 181-211

Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Conferências e (Artigos)


Debates)

Você também pode gostar