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João Barreiros
O corpo de conhecimento disponível sobre esta matéria pode ser subdividido em três grandes
grupos: i) o conhecimento sobre a organização das acções, envolvendo domínios como as
neurociências ou a biomecânica, consoante se foque a atenção sobre os aspectos da
organização central ou da organização periférica, ii) o conhecimento sobre os mecanismos
perceptivos ou de apropriação de informação, incluindo àreas como a fisiologia ou a psicologia,
e iii) o conhecimento sobre a interacção entre os processos perceptivos e os processos
motores, incluindo, para além de àreas já referidas anteriormente, novos domínios como a
aprendizagem ou o desenvolvimento motor.
Esta abordagem, radicada num entendimento informacional do organismo com forte ligação à
analogia máquina-homem, tem como influências mais distantes a interpretação
comportamentalista do ser humano e o conjunto de teorias de base cognitivista, e, como
fundamentação mais recente, a evidência acumulada por ciências orientadas para o
processamento neurológico de informação. Perifericamente considera ainda a informação
disponibilizada pela psicologia da percepção – no que toca aos mecanismos envolvidos na
recolha sensorial e ao empenhamento perceptivo –, e pelas ciências do Controlo Motor, da
Biomecânica e da Fisiologia – no que diz respeito à organização propriamente dita da acção
efectora.
Identificação
Input Análise Acção
sensorial Elaboração motora
central da
resposta
Nesta visão da organização das acções é assumido que um conjunto alargado de operações
centrais tem que existir e que os organismos necessitam de construir representações sobre a
realidade para a tornar perceptível.
Hà aqui que salientar que esta visão muito particular sobre a percepção é essencialmente anti-
cognitivista ou, se quisermos simplificar, redutora quanto aos níveis de participação central nas
operações de percepção e organização das acções. Contudo, na sua simplicidade aparente,
levanta grandes questões. Haverá necessidade de invocar uma reconstrução mental da
imagem (recorde-se que Gibson dedicou a maior parte da sua vida ao estudo da percepção
visual) para justificar a rapidez e perfectibilidade das respostas animais ? Poderá o animal
detectar apenas informação não significante, carente de processos centrais de atribuição de
significado, ou pelo contrário, recolherá do ambiente informação já referenciada às suas
possibilidades de acção ? Em suma, terá toda a elaboração cognitivista, no que respeita à
percepção, exagerado na invocação de mecanismos desnecessários para a explicação da
percepção ?
Na ausência de uma expressão que cobrisse cabalmente a ideia de que o envolvimento, mais
do que informação dispersa, faculta ao animal possibilidades de acção, Gibson socorreu-se do
verbo “to afford” (proporcionar, oferecer) para construir a expressão, inexistente em língua
inglesa, “affordance”. Com este conceito, novo, o autor quis exprimir a ideia de que o que o
envolvimento oferece ao animal é um conjunto de possibilidades de acção, ou de limitações à
acção, e que como tal são directamente percebidas sem necessidade de esforço ou
empenhamento cognitivo. O seu estudo clássico sobre o “abismo visual” (Gibson & Walk, 1960)
demonstraram bem a ideia de que organismos muito jovens detectam possibilidades – no caso
impossibilidades ou ofertas negativas – as quais estão disponíveis numa forma directa de
percepção.
O conceito de “categoria de acção” é importante pois exprime tipos de resposta, isto é formas
básicas de resolução de problemas colocados ao organismo, distintos entre si e compatíveis
com ofertas do ambiente. Digamos que se trata de estabelecer um certo paralelismo: o
envolvimento oferece possibilidades de acção e os organismos dispõem de tipos de resposta
compatíveis com as ofertas percebidas. Por outro lado, as capacidades de resposta ou
categorias de acção determinam em grande parte as ofertas percebidas (affordances). Em
suma, os organismos estão predispostos a perceber no ambiente ofertas compatíveis com as
categorias de acção que têm disponíveis.
Esta compatibilidade é a base de toda a construção teórica que em alternativa foi colocada à
interpretação cognitiva do comportamento. Inúmeros estudos, engenhosamente desenhados,
foram desenvolvidos no sentido de suportar esta visão. A título de exemplo, refira-se os
estudos de Warren (1984) e de Warren e Whang (1987) que demonstraram que a passagem
por aberturas está constrangida pela compatibilidade entre a dimensão da abertura e as
dimensões morfológicas dos sujeitos, ou os estudos de Ulrich, Thelen e Niles (1986) e de
Konczak e colaboradores (1992) que demonstraram uma relação entre a morfologia humana e
a subida de degraus. Os sujeitos percebem nos degraus de uma escada a oferta de subida em
função de características morfológicas e funcionais específicas de cada indivíduo.
A percepção foi assim entendida numa base de métrica corporal ou funcional, intrínseca e não
extrínseca, de resto compatível com a noção de que o homem é a medida de todas as coisas.
Ilustrando de forma um pouco mais extensiva esta posição, considere-se ainda que Mark e
Vogele (1987) detectaram uma relação entre a morfologia, a percepção visual e a oferta de
“sentabilidade” de uma cadeira, Jiang e Mark (1994) sugeriram a existência de affordances
para a transponibilidade de abismos e Barreiros e Silva (1995) demonstraram a compatibilidade
entre o categorias de acções de agarrar, a morfologia e as dimensões dos objectos a agarrar.
Efeitos semelhantes podem ser encontrados em humanos, quer se trate de crianças quer de
adultos. Quando se procede a uma deslocação em tapete rolante e a velocidade do tapete é
incrementada progressivamente, há um ponto em que o executante escolhe transitar de
marcha para corrida, de forma a optimizar a sua resposta. Neste caso a transição não parece
ser determinada por características morfológicas, deixando em aberto a
possibilidade de existirem formas de percepção de esforço. Repare-se que esta transição
(Figura 3) ocorre a diferentes velocidades em adultos e crianças, muito embora não tenha sido
encontrada qualquer correlação com variáveis morfológicas.
Figura 3. A transição entre Andar e Correr ocorre a diferentes velocidades o que demonstra
que os organismos identificam estados do envolvimento favoráveis a um tipo de categoria de
acção (Redesenhado a partir de Vieira, Sardinha e Barreiros, 2000).
Muitos outros exemplos poderia ser dados desta compatibilidade, mas vamos apenas referir
um último. Barreiros e Neto (1995) detectaram uma transição na acção de agarrar bolas em
movimento, de acordo com a relação entre a altura da bola no momento de intercepção e a
altura dos olhos. Duas categorias de acção distintas (mão em pronação e mão em supinação)
foram seleccionadas a partir de um determinado valor de referência, muito embora a proporção
variasse com a idade. Este facto foi interpretado a partir na ideia de que, existindo pontos de
transição identificáveis, eles são modificados ao longo do desenvolvimento, provando que a
compatibilidade directa entre percepção e acção é mediada por um factor claro de
aprendizagem.
Em jeito de conclusão, vale a pena tentar resumir os aspectos mais importantes desta
comunicação. Em primeiro lugar, saliente-se que existe lugar para mais do que uma construção
teórica sobre o problema da relação entre percepção e acção. Em segundo lugar, essas
perspectivas podem ser compatibilizadas se atendermos à natureza da tarefa: para tarefas
básicas de locomoção e manipulação foi encontrado suporte para uma visão mais directa da
percepção e para uma efectividade do ciclo percepção-acção. Para tarefas mais sofisticadas
do ponto de vista estratégico, com sofisticação tecnológica, ou envolvendo antecipação mental,
deve ser reconsiderado o papel das representações e a construção de estruturas de memória.
Em terceiro lugar, o problema do desenvolvimento e da aprendizagem, interfere com a
natureza da relação entre percepção e acção e admite divergências teóricas em princípio
inconciliáveis. Assim, se se pode admitir a coexistência de modos perceptivos mais simples ou
mais elaborados de acordo com a tarefa, também se deve reconhecer que mesmo em acções
fundamentais da nossa espécie existe um efeito de aprendizagem, e de desenvolvimento que
obriga a recorrer a concepções de tipo cognitivista ou centralista.
Referências:
Barreiros, J. & Silva, P. (1995). Hand size and grasping in infants. In B.G.Bardy, R.J.Bootsma e
Y Guiard (Eds.), Studies in Perception and Action III (pp. 141-144). New Jersey: Lawrence
Erlbaum.
Barreiros, J. & Neto, C. (1996). Body scaled references for catching in adolescents and adults.
In P. Marconnet, J.Goulard, I. Margaritis e F. Tessier (Eds.) (pp. 28-31), Frontiers in Sport
Science. First Annual Congress of the European College of Sport Science. Nice, France.
Gibson, J.E. & Walk, R.D. (1960). The visual cliff. Scientific American, 202, 64-71.
Gibson, J.J. (1979). The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin.
Hoyt, D.F. & Taylor, C.R. (1981). Gait and the energetics of locomotion in horses. Nature, 262,
239-240.
Jiang, Y., & Mark, L.S. (1994). The effect of gap depth on the perception of whether a gap is
crossable. Perception & Psychophysics, 56, 691-700.
Konczak, J, Meeuwsen, H.J. & Cress, M.E. (1992). Changing affordances in stair climbing: the
perception of maximum climbability in young and older adults. Journal of Experimental
Psychology: Human Perception and Performance, 18, 691-697.
Mark, L.S. & Vogele, D. (1987). A biodynamic basis for perceived categories of action: a study
of sitting and stair climbing. Journal of Motor Behavior, 19, 367-384.
Ulrich, B.D., Thelen, E. & Niles, D. (1986). Perceptual determinantes of action: stair climbing
determinants of infants and toddlers. Unpublished Manuscript: Indiana University: Bloomington
IN
Vieira, A.C., Sardinha, E., & Barreiros, J. (2000). Determinantes morfológicas na transição
marcha/corrida em crianças e adultos. In J.Barreiros, F.Melo e E.Sardinha (Eds.) Percepção &
Acção III (p. 22-38). Lisboa: Edições FMH.
Warren, W.H. (1984). Perceiving affordances: visual guidance of stair climbing. Journal of
Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 10, 683-703.
Warren, W.H. & Whang, S. (1987). Visual guidance of walking through apertures: body-scaled
information for affordances. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and
Performance, 13, 371-383.