Você está na página 1de 6

Percepção e Acção:

perspectivas teórias e as questões do desenvolvimento e da aprendizagem.

João Barreiros

Faculdade de Motricidade Humana


Universidade Técnica de Lisboa

A presente comunicação centra-se sobre a adaptação motora, orientando-se mais


especificamente para a questão da integração entre a percepção e a acção numa visão
evolutiva, ou seja, no conjunto de transformações que ocorrem ao longo do desenvolvimento
humano. Adicionalmente serão abordadas questões relativas à aprendizagem, ou pelo menos
às diferentes formas de equacionar desenvolvimento e aprendizagem.

O comportamento humano, graças à sua enorme variedade, levanta enormes desafios em


termos de explicação. Como detectar princípios comuns a comportamentos heterogéneos ?
Como construir teoria sobre a evolução destes comportamentos ? Como explicar a capacidade
de adaptação evidenciada pelos humanos em tão variados contextos ?

O corpo de conhecimento disponível sobre esta matéria pode ser subdividido em três grandes
grupos: i) o conhecimento sobre a organização das acções, envolvendo domínios como as
neurociências ou a biomecânica, consoante se foque a atenção sobre os aspectos da
organização central ou da organização periférica, ii) o conhecimento sobre os mecanismos
perceptivos ou de apropriação de informação, incluindo àreas como a fisiologia ou a psicologia,
e iii) o conhecimento sobre a interacção entre os processos perceptivos e os processos
motores, incluindo, para além de àreas já referidas anteriormente, novos domínios como a
aprendizagem ou o desenvolvimento motor.

Tradicionalmente, o modo essencial de entender a produção de comportamentos considera


que:

a) o organismo recebe, intencionalmente ou não, informação interna e/ou externa;


b) um conjunto de estruturas nervosas altamente especializadas e muito bem articuladas
identifica, analisa e compara uma parte relevante dessa informação;
c) são preparadas ordens ou comandos de execução motora, com especial relevo para a
mobilização dos processos mnésicos;
d) uma estrutura musculo-articular periférica executa, com elevado grau de fiabilidade, essas
instruções centrais.

Esta abordagem, radicada num entendimento informacional do organismo com forte ligação à
analogia máquina-homem, tem como influências mais distantes a interpretação
comportamentalista do ser humano e o conjunto de teorias de base cognitivista, e, como
fundamentação mais recente, a evidência acumulada por ciências orientadas para o
processamento neurológico de informação. Perifericamente considera ainda a informação
disponibilizada pela psicologia da percepção – no que toca aos mecanismos envolvidos na
recolha sensorial e ao empenhamento perceptivo –, e pelas ciências do Controlo Motor, da
Biomecânica e da Fisiologia – no que diz respeito à organização propriamente dita da acção
efectora.

Identificação
Input Análise Acção
sensorial Elaboração motora
central da
resposta

Figura 1. Esquema básico do funcionamento perceptivo-motor.


Este modelo elementar pode ser desenvolvido, como de resto aconteceu nos últimos 30 anos,
incluindo inúmeros aspectos dentro de cada uma das três etapas enunciadas. Assim, por
exemplo, o input sensorial pode ser alargado ou diferenciado segundo o tipo de transdutor
envolvido nas operações de captação de informação, as etapas de comparação com reservas
de memória podem ser desdobradas em diversos tipos de memória ou de operações de
comparação, e a própria produção motora pode ser analisada de acordo com o tipo de
movimento, com o nível de controlo requerido, com as propriedades dos biomateriais, etc.

Nesta visão da organização das acções é assumido que um conjunto alargado de operações
centrais tem que existir e que os organismos necessitam de construir representações sobre a
realidade para a tornar perceptível.

Paralelamente a esta visão dominante, desenvolveu-se uma abordagem alternativa conhecida


como Psicologia Ecológica ou Abordagem Ecológica de Percepção, essencialmente
formalizada por J. Gibson (1979) na segunda metade do século XX, e que argumenta que:

a) a informação ambiental possui intrinsecamente um elevado nível de estruturação;


b) os organismos têm capacidade de detectar as principais invariantes informacionais em
função das suas próprias características biológicas;
c) existe uma compatibilidade (por vezes referida como reciprocidade) entre as capacidades de
resposta dos organismos e as inerências perceptivas dos mesmos;
d)não existe necessidade de invocar um conjunto de operações centrais para estruturar a
informação em informação coerente e útil;
e) a percepção ocorre de forma directa, constituindo com a acção correspondente um ciclo
indestrinçável.

Hà aqui que salientar que esta visão muito particular sobre a percepção é essencialmente anti-
cognitivista ou, se quisermos simplificar, redutora quanto aos níveis de participação central nas
operações de percepção e organização das acções. Contudo, na sua simplicidade aparente,
levanta grandes questões. Haverá necessidade de invocar uma reconstrução mental da
imagem (recorde-se que Gibson dedicou a maior parte da sua vida ao estudo da percepção
visual) para justificar a rapidez e perfectibilidade das respostas animais ? Poderá o animal
detectar apenas informação não significante, carente de processos centrais de atribuição de
significado, ou pelo contrário, recolherá do ambiente informação já referenciada às suas
possibilidades de acção ? Em suma, terá toda a elaboração cognitivista, no que respeita à
percepção, exagerado na invocação de mecanismos desnecessários para a explicação da
percepção ?

Para melhor compreender a posição da Psicologia Ecológica, precisamos de entender dois


conceitos fundamentais desta construção teórica: o conceito de “affordance” e o conceito de
“categoria de acção”.

Na ausência de uma expressão que cobrisse cabalmente a ideia de que o envolvimento, mais
do que informação dispersa, faculta ao animal possibilidades de acção, Gibson socorreu-se do
verbo “to afford” (proporcionar, oferecer) para construir a expressão, inexistente em língua
inglesa, “affordance”. Com este conceito, novo, o autor quis exprimir a ideia de que o que o
envolvimento oferece ao animal é um conjunto de possibilidades de acção, ou de limitações à
acção, e que como tal são directamente percebidas sem necessidade de esforço ou
empenhamento cognitivo. O seu estudo clássico sobre o “abismo visual” (Gibson & Walk, 1960)
demonstraram bem a ideia de que organismos muito jovens detectam possibilidades – no caso
impossibilidades ou ofertas negativas – as quais estão disponíveis numa forma directa de
percepção.

O conceito de “categoria de acção” é importante pois exprime tipos de resposta, isto é formas
básicas de resolução de problemas colocados ao organismo, distintos entre si e compatíveis
com ofertas do ambiente. Digamos que se trata de estabelecer um certo paralelismo: o
envolvimento oferece possibilidades de acção e os organismos dispõem de tipos de resposta
compatíveis com as ofertas percebidas. Por outro lado, as capacidades de resposta ou
categorias de acção determinam em grande parte as ofertas percebidas (affordances). Em
suma, os organismos estão predispostos a perceber no ambiente ofertas compatíveis com as
categorias de acção que têm disponíveis.

Esta compatibilidade é a base de toda a construção teórica que em alternativa foi colocada à
interpretação cognitiva do comportamento. Inúmeros estudos, engenhosamente desenhados,
foram desenvolvidos no sentido de suportar esta visão. A título de exemplo, refira-se os
estudos de Warren (1984) e de Warren e Whang (1987) que demonstraram que a passagem
por aberturas está constrangida pela compatibilidade entre a dimensão da abertura e as
dimensões morfológicas dos sujeitos, ou os estudos de Ulrich, Thelen e Niles (1986) e de
Konczak e colaboradores (1992) que demonstraram uma relação entre a morfologia humana e
a subida de degraus. Os sujeitos percebem nos degraus de uma escada a oferta de subida em
função de características morfológicas e funcionais específicas de cada indivíduo.

A percepção foi assim entendida numa base de métrica corporal ou funcional, intrínseca e não
extrínseca, de resto compatível com a noção de que o homem é a medida de todas as coisas.

Ilustrando de forma um pouco mais extensiva esta posição, considere-se ainda que Mark e
Vogele (1987) detectaram uma relação entre a morfologia, a percepção visual e a oferta de
“sentabilidade” de uma cadeira, Jiang e Mark (1994) sugeriram a existência de affordances
para a transponibilidade de abismos e Barreiros e Silva (1995) demonstraram a compatibilidade
entre o categorias de acções de agarrar, a morfologia e as dimensões dos objectos a agarrar.

No geral, e apesar destes exemplos parecerem promissores, algumas questões se colocam: i)


como explicar esta compatibilidade sem recorrer a uma tese inatista – ou seja, de que estas
compatibilidades estão disponíveis à nascença, qualquer que seja o mecanismo genético
envolvido -, ii) como explicar o processo, também amplamente documentado, de
aprendizagem, mesmo que esta seja reduzida ao mais simples afinamento entre percepção e
acção ?, iii) como explicar o comportamento adaptativo verificado, por exemplo, com
instrumentos tecnológicos recentes, em que a função do utensílio escaparia a toda e qualquer
argumentação evolucionista ? iv) como contemplar a noção de objectivo ou finalidade sempre
que estão em causa comportamentos sofisticados como os desportivos – só a título de
exemplo, como explicar a construção de pensamento táctico estruturado sem recorrer a uma
teorização prospectiva de tipo cognitivista, e recorrendo apenas a uma teoria de affordances ou
de percepção directa ?

A consideração distanciada e emocionalmente equilibrada destas duas grandes perspectivas


leva-nos a admitir que, se por um lado a argumentação de simplicidade associada à Psicologia
Ecológica parece interessante para explicar a compatibilidade organismo-meio no que respeita
a acções essenciais de locomoção ou de manipulação, a extensa investigação sobre o
aperfeiçoamento (aprendizagem) de novas acções complexas, como as desportivas ou de
utilização de instrumentos musicais para dar apenas dois exemplos, obriga-nos a considerar
que a aprendizagem motora e o desenvolvimento motor tem que ser bem mais do que isso.

A investigação sobre a compatibilidade organismo-meio (“fit”) explica razoavelmente o grau


com que organismos mais ou menos complexos parecem fazer uso de um conhecimento das
suas próprias capacidades para detectar possibilidades de acção na oferta ambiental. Esta
linha de pesquisa, maioritariamente centrada no problema das “referências de escala corporal”
parece corresponder à linha de argumentação da Psicologia Ecológica. Os estudos efectuados
com animais, em que o reconhecimento de uma consciência limitada ou pelo menos de uma
estrutura de acumulação de conhecimento será muito mais precária que a humana, abona em
favor de um tese orientada para a simplificação dos processos
perceptivos. A título de exemplo considere-se o estudo de Hoyt e Taylor (1981) em que foi
demonstrado que a transição entre categorias de acção de locomoção em cavalos (andar, trote
e galope) parece estar associada a uma “consciência” dos consumos de oxigénio
incrementados à medida que a velocidade aumenta. Quando certos limiares de eficiência são
atingidos, o animal transita para uma nova categoria de acção com ganhos de eficiência. Na
realidade, qualquer coisa de muito semelhante ao que nos acontece quando optamos por uma
velocidade mais adequada ao regime de rotações do motor, enquanto conduzimos um
automóvel.
Figura 2. Os cavalos transitam entre categorias de acção quando certas relações de eficiência
são ultrapassadas, mantendo uma compatibilidade entre a acção e as condições de
locomoção. (Redesenhado a partir de Hoyt e Taylor, 1981).

Efeitos semelhantes podem ser encontrados em humanos, quer se trate de crianças quer de
adultos. Quando se procede a uma deslocação em tapete rolante e a velocidade do tapete é
incrementada progressivamente, há um ponto em que o executante escolhe transitar de
marcha para corrida, de forma a optimizar a sua resposta. Neste caso a transição não parece
ser determinada por características morfológicas, deixando em aberto a
possibilidade de existirem formas de percepção de esforço. Repare-se que esta transição
(Figura 3) ocorre a diferentes velocidades em adultos e crianças, muito embora não tenha sido
encontrada qualquer correlação com variáveis morfológicas.

Figura 3. A transição entre Andar e Correr ocorre a diferentes velocidades o que demonstra
que os organismos identificam estados do envolvimento favoráveis a um tipo de categoria de
acção (Redesenhado a partir de Vieira, Sardinha e Barreiros, 2000).

Muitos outros exemplos poderia ser dados desta compatibilidade, mas vamos apenas referir
um último. Barreiros e Neto (1995) detectaram uma transição na acção de agarrar bolas em
movimento, de acordo com a relação entre a altura da bola no momento de intercepção e a
altura dos olhos. Duas categorias de acção distintas (mão em pronação e mão em supinação)
foram seleccionadas a partir de um determinado valor de referência, muito embora a proporção
variasse com a idade. Este facto foi interpretado a partir na ideia de que, existindo pontos de
transição identificáveis, eles são modificados ao longo do desenvolvimento, provando que a
compatibilidade directa entre percepção e acção é mediada por um factor claro de
aprendizagem.

Figura 4. O ponto de transição entre categorias de Agarrar em Pronação e em Supinação é


diferente em adultos e crianças sugerindo um efeito de aprendizagem na afinação da
compatibilidade entre percepção e acção (Redesenhado a partir de Barreiros e Neto, 1995).

Considerando as duas perspectivas atrás desenvolvidas questiona-se agora a forma como o


desenvolvimento e a aprendizagem devem ser conceptualizados. A aprendizagem poderá, no
mínimo, constituir um processo de afinamento e aperfeiçoamento das potencialidades de
resposta para ofertas ambientais detectadas. Neste quadro restrito, aprender significa ser
capaz de estruturar melhor as categorias de acção disponíveis para as compatibilizar melhor
com configurações ambientais melhor definidas. Contudo resta por esclarecer o modo como
novas categorias de acção surgem. Serão apenas copiadas de modelos externos, como a
aprendizagem simples por imitação ? Nesse caso como são conservadas sem recurso a
estruturas mnésicas ? Se existirem estruturas mnésicas, então como são construídas e
actualizadas ?

Para estas questões terá indubitavelmente que se recorrer a conceitos cognitivistas de


construção de representações mentais, algo que a visão mais radical de Gibson nega à partida.
Teorias de aprendizagem alternativas (a teoria de Esquema de Schmidt, por exemplo) propõem
soluções para este problema, com base na ideia que o organismo deriva esquemas novos de
outros existentes, reorganizando unidades funcionais de resposta. Neste modelo, o
desenvolvimento é um processo persistente de consolidação de representações, quer
perceptivas quer de resposta (programas motores) e está indissociavelmente ligado à
aprendizagem.
Infelizmente não existe nenhuma proposta abrangente e coerente para o problema do
desenvolvimento assente numa concepção minimalista como a Psicologia Ecológica.

Em jeito de conclusão, vale a pena tentar resumir os aspectos mais importantes desta
comunicação. Em primeiro lugar, saliente-se que existe lugar para mais do que uma construção
teórica sobre o problema da relação entre percepção e acção. Em segundo lugar, essas
perspectivas podem ser compatibilizadas se atendermos à natureza da tarefa: para tarefas
básicas de locomoção e manipulação foi encontrado suporte para uma visão mais directa da
percepção e para uma efectividade do ciclo percepção-acção. Para tarefas mais sofisticadas
do ponto de vista estratégico, com sofisticação tecnológica, ou envolvendo antecipação mental,
deve ser reconsiderado o papel das representações e a construção de estruturas de memória.
Em terceiro lugar, o problema do desenvolvimento e da aprendizagem, interfere com a
natureza da relação entre percepção e acção e admite divergências teóricas em princípio
inconciliáveis. Assim, se se pode admitir a coexistência de modos perceptivos mais simples ou
mais elaborados de acordo com a tarefa, também se deve reconhecer que mesmo em acções
fundamentais da nossa espécie existe um efeito de aprendizagem, e de desenvolvimento que
obriga a recorrer a concepções de tipo cognitivista ou centralista.

Referências:

Barreiros, J. & Silva, P. (1995). Hand size and grasping in infants. In B.G.Bardy, R.J.Bootsma e
Y Guiard (Eds.), Studies in Perception and Action III (pp. 141-144). New Jersey: Lawrence
Erlbaum.

Barreiros, J. & Neto, C. (1996). Body scaled references for catching in adolescents and adults.
In P. Marconnet, J.Goulard, I. Margaritis e F. Tessier (Eds.) (pp. 28-31), Frontiers in Sport
Science. First Annual Congress of the European College of Sport Science. Nice, France.

Gibson, J.E. & Walk, R.D. (1960). The visual cliff. Scientific American, 202, 64-71.

Gibson, J.J. (1979). The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin.

Hoyt, D.F. & Taylor, C.R. (1981). Gait and the energetics of locomotion in horses. Nature, 262,
239-240.

Jiang, Y., & Mark, L.S. (1994). The effect of gap depth on the perception of whether a gap is
crossable. Perception & Psychophysics, 56, 691-700.

Konczak, J, Meeuwsen, H.J. & Cress, M.E. (1992). Changing affordances in stair climbing: the
perception of maximum climbability in young and older adults. Journal of Experimental
Psychology: Human Perception and Performance, 18, 691-697.

Mark, L.S. & Vogele, D. (1987). A biodynamic basis for perceived categories of action: a study
of sitting and stair climbing. Journal of Motor Behavior, 19, 367-384.

Ulrich, B.D., Thelen, E. & Niles, D. (1986). Perceptual determinantes of action: stair climbing
determinants of infants and toddlers. Unpublished Manuscript: Indiana University: Bloomington
IN

Vieira, A.C., Sardinha, E., & Barreiros, J. (2000). Determinantes morfológicas na transição
marcha/corrida em crianças e adultos. In J.Barreiros, F.Melo e E.Sardinha (Eds.) Percepção &
Acção III (p. 22-38). Lisboa: Edições FMH.

Warren, W.H. (1984). Perceiving affordances: visual guidance of stair climbing. Journal of
Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 10, 683-703.

Warren, W.H. & Whang, S. (1987). Visual guidance of walking through apertures: body-scaled
information for affordances. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and
Performance, 13, 371-383.

Você também pode gostar