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Scarlett

Alexandra Ripley

Título original: Scarlett

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I

Perdida nas trevas


1
"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara."
Scarlett O'Hara Hamilton Kennedy Butler estava de pé, sozinha, um pouco
afastada dos outros, no funeral de Melanie Wilkers. Estava chovendo e os homens e
mulheres vestidos de preto erguiam guarda-chuvas negros por cima da cabeça.
Apoiavam-se uns nos outros e as mulheres choravam, partilhando o desgosto e o
abrigo.
Scarlett não partilhava nem o chapéu, nem a sua mágoa com ninguém. Rajadas
de vento empurravam a chuva para debaixo do chapéu, formando fios de água gelada,
que a picavam e lhe escorriam pelo pescoço, mas ela não se dava conta. Não sentia
nada, estava atordoada pela perda. Choraria mais tarde, quando fosse capaz de
suportar a dor. Mantinha-a afastada de si, a dor, os sentimentos, e os pensamentos. Só
não afastara as palavras que se repetiam uma e outra vez na sua cabeça, as palavras
que prometiam a cura da dor que estava para vir e força para sobreviver até estar
curada.
"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara."
"... as cinzas retornam às cinzas, o pó ao pó..." A voz do pastor penetrou a
concha do seu entorpecimento, e as suas palavras ficaram gravadas. "Não!", gritou
Scarlett para dentro. "Melly, não. Aquele não é o túmulo de Melly, é grande demais, ela
é tão pequenina, os seus ossos não são maiores que os de um passarinho. Não! Ela
não pode estar morta, não é possível."
Scarlett abanou a cabeça com força, negando a cova aberta e o caixão de pinho
sem ornamentos que estava sendo descido. Na madeira macia viam-se pequenos
semi-círculos, marcas deixadas pelos martelos que tinham pregado os pregos para
fechar a tampa sobre o rosto em forma de coração, suave e cheio de amor de Melanie.
"Não! Não podem, não devem fazer isto, está chovendo, não podem pô-la na
chuva, vai molhá-la. Ela é tão sensível ao frio, não podemos deixá-la no frio e na
chuva. Não consigo olhar, não agüento, não posso acreditar que ela se foi. Ela me
ama, é minha amiga, a minha única amiga verdadeira. Melly me ama, não ia me deixar
agora, exatamente quando mais preciso dela."
Scarlett olhou para as pessoas que rodeavam a sepultura e foi invadida por uma
cólera ardente. "Nenhum deles se importa como eu, nenhum deles perdeu tanto quanto
eu. Ninguém sabe como eu a amo. Mas Melly sabe, não sabe? Sabe, tenho de
acreditar que sim."
"No entanto, eles nunca acreditarão nisso. Nem Mrs. Merriwether, nem os
Meades, nem os Whitings, nem os Elsings. Olhem para eles, amontoados à volta de
índia Wilkes e Ashley, parecem um bando de corvos molhados nas suas roupas de
luto. É verdade que estão a confortar a tia Pittypat, embora todo mundo saiba que ela
chora horrores por tudo e por nada, até mesmo quando deixa queimar uma torrada.
Nem lhes passa pela cabeça que talvez eu também precise de um pouco de carinho,
que era mais chegada a Melanie que qualquer deles. Agem como se eu nem estivesse
aqui. Ninguém me ligou nenhuma vez. Nem sequer Ashley. Ele sabia que eu estive lá,
durante aqueles dois dias horríveis depois de Melanie morrer, quando precisou de mim
para arranjar as coisas. Todos sabiam, até índia, berrando para mim que nem uma
cabra. 'Como que é que havemos de fazer com o funeral, Scarlett? E a comida para as
pessoas? E o caixão? E os carregadores? E o talhão no cemitério? E a inscrição da
pedra tumular? E a notícia para o jornal?' Agora amparam-se uns aos outros, chorando
e gemendo. Bem, não lhes vou dar o prazer de me verem chorar, aqui sozinha, sem
ninguém em quem me encostar. Não posso chorar. Aqui não. Ainda não. Se começo a
chorar, talvez não seja capaz de parar. Quando chegar a Tara já posso chorar."
Scarlett ergueu a cabeça, cerrou os dentes para impedir que batessem de frio e
para agüentar os soluços que lhe subiam à garganta. "Isso vai acabar em breve e
depois já posso voltar para casa, para Tara."
Ali, no cemitério Oakland de Atlanta, Scarlett via-se rodeada pelos pedaços
quebrados que constituíam a sua vida desfeita. A alta espiral de granito, uma pedra
cinzenta coberta de água cinzenta, era um sombrio monumento a um mundo que
desaparecera para sempre, o mundo despreocupado da sua juventude, antes da
guerra. Era o Monumento da Confederação, símbolo orgulhoso da coragem impensada
que mergulhara o Sul na destruição, carregando os seus estandartes brilhantes.
Representava tantas vidas perdidas, os amigos da sua infância, os galãs que lhe
tinham implorado valsas e beijos, nos tempos em que o maior dos seus problemas era
saber qual dos vestidos de baile, com grandes saias rodadas, devia usar.
Representava o seu primeiro marido, Charles Hamilton, irmão de Melanie.
Representava os filhos, os irmãos, os maridos, os pais de todos os presentes, que,
encharcados, se juntavam na pequena colina onde Melanie estava sendo sepultada.
Havia outras sepulturas, outras marcas. Frank Kennedy, o segundo marido de
Scarlett. E o pequeno, terrivelmente pequeno, túmulo com uma pedra onde se lia
Eugenie Victoria Butler e, por debaixo, Bonnie. A sua última filha, e a mais amada.
Estava rodeada de vivos e de mortos, mas mantinha-se à parte. Parecia que
metade de Atlanta estava ali. A multidão não coubera na igreja e espalhara-se,
formando um largo círculo, irregular e sombrio, em volta daquela amarga mancha de
cor sob a chuva cinzenta, a sepultura aberta, cavada no barro vermelho da Geórgia
para o corpo de Melanie Wilkes.
Na primeira fila estavam aqueles que tinham sido mais íntimos. Brancos e negros,
todos, menos Scarlett, tinham o rosto coberto de lágrimas. O velho cocheiro, o tio
Peter, formava, juntamente com Dilcey e Cookie um negro triângulo protetor à volta de
Beau, o confuso filho de Melanie.
Estava lá a velha geração de Atlanta, com os poucos descendentes que
tragicamente lhe restava. Os Meades, os Whitings, os Merriwethers, os Elsings.
Estavam as suas filhas e genros, estava Hugh Elsing, o único filho vivo, aleijado,
estava a tia Pittypat Hamilton e o irmão, o tio Henry Hamilton, tendo esquecido a sua
zanga de anos no desgosto comum pela morte da sobrinha. Mais nova, mas parecendo
tão velha como os outros, índia Wilkers protegia-se no interior do grupo e observava o
seu irmão Ashley com uns olhos sombreados pelo desgosto e pela culpa. Como
Scarlett, ele estava sozinho. Tinha a cabeça descoberta, à chuva, sem se dar conta
dos chapéus que lhe estendiam para se abrigar, sem se aperceber da chuva gelada,
incapaz de aceitar a finalidade das palavras do pastor ou o estreito caixão que estava a
ser descido para a cova lamacenta e avermelhada.
Ashley, alto, magro e sem cor, o seu cabelo louro-pálido, agora quase grisalho, o
rosto pálido e marcado tão vazio como os olhos cinzentos, que olhavam em frente, sem
nada verem. Mantinha-se direito, numa atitude de saudação, a sua herança dos anos
em que usara a farda cinzenta de oficial da Confederação. Estava imóvel, sem sentir,
nem compreender.
Ashley. Ele era o centro e o símbolo da vida arruinada de Scarlett. Por amor a ele,
ignorara a felicidade que tivera à mão. Afastara-se do marido, sem ver o seu amor por
ela, sem admitir que o amava, porque o seu desejo por Ashley se metera sempre no
meio. E agora Rhett partira, marcando apenas a sua presença ali com um ramo de
flores, quentes e douradas como o Outono, um ramo entre os demais. Atraiçoara a sua
única amiga, desprezara o amor leal e persistente de Melanie. E agora Melanie partira.
E até mesmo o amor de Scarlett por Ashley desaparecera, pois compreendera - tarde
demais - que o hábito de amá-lo há muito que substituíra o próprio amor.
Não o amava, nem voltaria a amar. E, agora, quando ela já não o queria, Ashley
pertencia-lhe, a herança que Melanie lhe deixara. Prometera a Melanie que tomaria
conta dele e de Beau, o filho deles.
Ashley era a causa da destruição da sua vida. E a única coisa que lhe restava
dela. Scarlett mantinha-se à parte, sozinha. Entre ela e as pessoas que conhecia em
Atlanta só havia uma distância fria e cinzenta, distância essa que Melanie preenchera
em tempos, afastando-a do isolamento e do ostracismo. Sob o guarda-chuva, no local
onde Rhett devia estar para protegê-la com os seus ombros largos e o seu amor, havia
apenas um vento úmido e frio.
Manteve o rosto erguido, enfrentando o vento, aceitando a sua investida sem
senti-lo. Tinha todos os sentidos concentrados nas palavras que constituíam a sua
força e a sua esperança.
"Isso vai acabar em breve e depois já posso ir para casa, para Tara."
- Olhe para ela - sussurrou uma senhora com um véu negro para a companheira
que partilhava o seu chapéu. - Dura como pedra. Disseram-me que durante todo o
tempo em que esteve tratando do funeral, nem sequer verteu uma lágrima. Toda
negócios, a Scarlett. E sem coração.
- Sabe o que dizem as pessoas - respondeu-lhe um murmúrio. - Tem coração que
chegue para Ashley Wilkes.
- Acha que eles chegaram mesmo a...
As pessoas que estavam perto mandaram-nas calar, mas ambas pensavam a
mesma coisa. Todos pensavam. Ninguém conseguia ver a dor nos olhos ensombrados
de Scarlett ou o seu coração desfeito sob a luxuosa pelica de pele de foca.
O tenebroso som cavo da terra caindo na madeira fez Scarlett cerrar os punhos.
Tinha vontade de tapar os ouvidos, de gritar bem alto - qualquer coisa que a impedisse
de ouvir o terrível som da sepultura que se fechava sobre Melanie. Mordeu
dolorosamente os lábios. Não ia gritar, nunca.
O grito que estilhaçou a solenidade do ato veio de Ashley.
- Melly... Mell... eee! - E novamente: - Mell... ee. - Era o grito de uma alma
atormentada, cheia de solidão e medo.
Avançou aos tropeções para o fundo buraco lamacento, como um homem
subitamente cego, as mãos procurando a pequena e suave criatura que fora toda a sua
força. Mas não havia nada para agarrar a não ser a chuva fria, que caía em fios
prateados.
Scarlett olhou para Tommy Wellburn, para o Dr. Meade, para índia, para Henry
Hamilton. "Por que é que não fazem nada? Por que é que não o agarram? Alguém tem
de o fazer parar!"
- Mell... eee...
"Pelo amor de Deus! Vai partir o pescoço e eles estão ali de pé, olhando
estupidamente, vendo ele balançar na beira da cova.
- Ashley, pára! - gritou ela. - Ashley! - começou a correr, escorregando e
resvalando na erva molhada. O guarda-chuva, que atirara para o lado, rolou pelo chão,
empurrado pelo vento, até ficar preso no amontoado de flores. Agarrou Ashley pela
cintura e tentou afastá-lo do perigo. Ele lutou com ela. - Ashley, não faça isso. - Scarlett
lutava contra a força dele. - Agora Melly já não pode te ajudar. - A sua voz era dura,
tentando penetrar a dor surda e demente de Ashley.
Ele parou, deixando cair os braços. Gemeu baixinho e depois o corpo abateu-se
nos braços de Scarlett, que o amparou. Só quando estava quase a largá-lo, devido ao
peso, é que o Dr. Meade e índia seguraram os braços inertes de Ashley para o
erguerem.
- Já podes ir, Scarlett - disse o Dr. Meade. - Já não há mais nada para arruinares.
- Mas eu... - Olhou para os rostos que a rodeavam, os olhos ávidos de más
sensações. Depois voltou-se e afastou-se no meio da chuva. A multidão recuou, como
se receasse que as saias dela, ao tocar-lhe, a conspurcasse.
Eles não podiam saber que se importava, não deixaria que vissem como a
conseguiam magoar. Scarlett levantou o queixo num desafio, deixando que a chuva lhe
escorresse pela cara e pelo pescoço. Manteve as costas e os ombros direitos até
chegar aos portões do cemitério, ficando fora de vista. Então, agarrou-se a um dos
varões de ferro. Sentia-se tonta de cansaço, sem firmeza nos pés.
O cocheiro, Elias, correu para ela, abrindo um chapéu que ergueu sobre a sua
cabeça curvada. Scarlett caminhou até à carruagem, ignorando a mão que se
estendera para a ajudar. No interior da caixa forrada de felpa, deixou-se cair num canto
e puxou a coberta de lã. Estava gelada até aos ossos, horrorizada com o que tinha
feito. Como é que fora capaz de envergonhar Ashley daquela maneira em frente a todo
mundo, quando há apenas algumas noites tinha prometido a Melanie que tomaria
conta dele e o protegeria, como Melly sempre tinha feito? Mas que outra coisa poderia
ter feito? Deixá-lo atirar-se para dentro da cova? Tinha que detê-lo.
A carruagem oscilava de um lado para o outro, com as enormes rodas enterradas
nos profundos sulcos de lama barrenta. Scarlett quase caiu no chão. Bateu com o
cotovelo na janela, fazendo com que uma dor aguda lhe percorresse o braço.
Não passava de uma dor física. Isso podia ela suportar. A outra dor, uma dor
adiada, retardada, sombria e negada, é que ela não agüentava. Ainda não, não aqui,
não quando estava tão só. Tinha mesmo que ir para Tara. Mammy estava lá. Mammy
poria os seus braços escuros à volta dela, Mammy a abraçaria, embalaria a sua
cabeça, encostando-a no peito onde chorara todas as suas mágoas infantis. Nos
braços de Mammy podia chorar, chorar até ficar vazia, sem dor; podia descansar a
cabeça no peito de Mammy, podia descansar o seu coração ferido no amor de Mammy.
Mammy a abraçaria e lhe daria amor, partilharia a sua dor e a ajudaria a suportá-la.
- Depressa, Elias - disse Scarlett -, depressa. - Ajuda-me a tirar estas coisas
molhadas, Pansy - ordenou Scarlett à criada. - Rápido. - O seu rosto estava de uma
palidez mortal, fazendo que os olhos verdes parecessem mais escuros, mais
brilhantes, mais assustadores. Com o nervoso, a jovem negra atrapalhou-se. -
Depressa, eu disse. Se me fizeres perder o trem, te dou uma chicotada.
Não podia fazer isso, Pansy sabia que não podia. Os tempos da escravatura
tinham acabado. Miss Scarlett já não era dona dela, podia ir embora quando quisesse.
Mas o brilho febril e desesperado dos olhos verdes de Scarlett fez com que Pansy
duvidasse dos seus próprios conhecimentos. Scarlett parecia capaz de tudo.
- Põe na mala o merino de lã preta, vai esfriar - disse Scarlett. Examinou a mala
aberta. Lã preta, seda preta, algodão preto, sarja preta, veludo preto. Podia continuar
de luto até ao fim dos seus dias. Ainda estava de luto por Bonnie, e agora por Melanie.
"Devia arranjar alguma coisa ainda mais escura que o preto, alguma coisa mais
pesarosa, para pôr luto por mim mesma. Não vou pensar nisso, pelo menos agora, se o
fizer, enlouqueço. Penso nisso quando chegar a Tara. Lá, consigo agüentar." - Veste-
te, Pansy, Elias está esperando. E não te atrevas a esquecer-te do fumo para o braço.
Esta casa está de luto.
As ruas que se cruzavam em Five Points pareciam um pântano. Carroças,
charretes e carruagens estavam enterradas na lama. Os condutores amaldiçoavam a
chuva, as ruas, os cavalos e os outros condutores que lhes impediam o caminho.
Ouviam-se gritos, o som de chicotes a estalar e o barulho das pessoas. Em Five Points
havia sempre uma multidão, pessoas com pressa, que discutiam, se queixavam e riam.
Five Points fervilhava de vida, de dinamismo e de energia. Five Points era a Atlanta de
que Scarlett gostava.
Mas não naquele dia. Nesse momento, Five Points impedia-lhe o caminho,
Atlanta puxava-a para trás. "Tenho que apanhar aquele trem, se o perder, morro, tenho
de ir para Tara, para Mammy ou vou-me abaixo."
- Elias - gritou ela -, não quero saber se precisa chicotear os cavalos até a morte,
não me interessa se tiver que atropelar todo mundo desta rua. Chegue à estação.
Os seus cavalos eram os mais fortes, o seu cocheiro o mais hábil, a sua
carruagem a melhor que o dinheiro podia comprar. Era melhor que nada se
atravessasse no seu caminho, nada mesmo.
Apanhou o trem muito a tempo.
A chaminé do trem lançou uma baforada de vapor. Scarlett susteve a respiração
ao ouvir o barulho das rodas indicando que o trem estava em movimento. Ali ele ia.
Outra vez. E outra ainda. A vagão rodou sacudindo. Estava finalmente a caminho.
Tudo ia ficar bem. Ia regressar a Tara. Imaginou-a ensolarada e luminosa. A casa
branca e resplandecente; as cortinas brancas esvoaçando nas janelas abertas, por
cima das cintilantes folhas verdes dos arbustos de jasmim, cheios de rebentos muito
brancos.
Quando o trem deixou a estação, uma forte chuva negra escorria copiosamente
pela janela ao seu lado, mas não fazia mal. Em Tara haveria uma lareira acesa na sala
de estar. Ouvir-se-ia o crepitar das pinhas atiradas para junto dos troncos e as cortinas
estariam fechadas, impedindo a entrada da chuva, da escuridão e do mundo. Deitaria a
sua cabeça no largo e macio peito de Mammy e lhe contaria todas as coisas horríveis
que tinham acontecido. Estaria, então, em condições de pensar, de resolver tudo.
O silvar do vapor e o ruído agudo das rodas fizeram estremecer a cabeça de
Scarlett.
Seria já Jonesboro? Devia ter dormitado, o que não admirava, tal era o seu
cansaço. Não tinha sido capaz de dormir durante duas noites, nem mesmo com o
brande para lhe acalmar os nervos. Não, a estação era Rough and Ready. Faltava
ainda uma hora para Jonesboro. Pelo menos a chuva parara, havia mesmo sinais de
céu azul lá na frente. Talvez o sol estivesse brilhando em Tara. Imaginou o caminho
verde e a casa amada no topo do monte.
Scarlett suspirou profundamente. A sua irmã Suellen era agora a dona da casa.
Ah! Melhor seria chamar-lhe a choramingas da casa. Tudo o que Suellen fazia era
lamentar-se, era tudo o que sempre tinha feito desde que eram crianças. Agora ela
tinha as suas próprias crianças, tão choronas quanto ela costumava ser.
Os filhos de Scarlett também estavam em Tara. Wade e Ella. Tinha-os mandado
com Prissy, a ama deles, quando recebeu a notícia de que Melanie estava morrendo.
Provavelmente, deveria tê-los consigo no funeral de Melanie. Isso dera às bisbilhoteiras
de Atlanta mais um motivo de conversa. Era uma mãe desnaturada. Deixá-las dizer o
que quisessem. Não teria conseguido passar aqueles horríveis dias e aquelas
pavorosas noites depois da morte de Melanie se também tivesse tido que aturar Wade
e Ella.
Não pensaria neles, é tudo. Ia para casa, para Tara e para Mammy, e
simplesmente não se permitiria pensar em coisas que a aborrecessem. "Deus sabe
que já tenho coisas que me aborreçam o suficiente. Não preciso metê-los também
nisto. Estou tão cansada..." Inclinou a cabeça e fechou os olhos.
- Jonesboro, ma'am - disse o condutor. Scarlett pestanejou e endireitou-se.
- Obrigada. - Olhou em volta da cabine à procura de Pansy e das suas malas.
"Esfolo aquela rapariga viva se ela anda vagueando noutro vagão. Oh!, se ao menos
uma senhora não tivesse que andar acompanhada todas as vezes que põe o pé fora
de casa. Faria tudo muito melhor sozinha. Lá está ela." - Pansy! Tira essas malas da
rede. Já chegamos. - "Agora já só faltam cinco milhas para Tara. Em breve estarei em
casa. Em casa!"
Will Benteen, o marido de Suellen, estava à espera na plataforma. Ver Will foi um
choque; os primeiros segundos eram sempre um choque. Scarlett gostava de Will e
respeitava-o genuinamente. Se pudesse ter tido um irmão, como sempre desejara,
gostaria que fosse como Will. Sem a perna de pau e sem fazer tanto barulho, claro.
Não era possível confundi-lo com um cavalheiro; era manifestamente classe baixa. Ela
esquecia-se disso quando estava longe dele, e esquecia-o depois de estar com ele um
minuto, por ser um homem tão bom e tão gentil. Mesmo a Mammy tinha Will em grande
conta, e ela era o mais rigoroso juiz quando se tratava de ver quem era um cavalheiro
ou uma senhora.
- Will! - Ele caminhou na sua direção, naquele seu porte oscilante. Ela atirou os
braços em volta do pescoço dele e abraçou-o com força. - Oh, Will, estou tão contente
de te ver que quase choro de alegria.
Will aceitou o abraço sem emoção.
- Também estou contente de te ver, Scarlett. Já faz tanto tempo.
- Demais. É vergonhoso. Quase um ano.
- Parecem dois.
Scarlett estacou. Tinha passado tanto tempo? Não admirava que a sua vida
estivesse num estado tão lamentável. Tara sempre lhe tinha dado uma nova vida, uma
nova força quando precisava dela. Como podia ter passado tanto tempo longe dela?
Will fez sinal a Pansy e dirigiu-se à carroça do lado de fora da estação.
- E melhor irmos andando se queremos chegar antes que escureça - disse ele. -
Espero que não se importe com esta viagem incômoda, Scarlett. Já que vinha à cidade,
resolvi levar algumas provisões. - A carroça estava cheia de sacos e pacotes.
- Não me importo nada - disse Scarlett com sinceridade.
Estava de volta ao lar e qualquer coisa que a levasse lá era boa. - Sobe nesses
sacos de ração, Pansy.
Na longa viagem para Tara, permaneceu tão silenciosa quanto Will, absorvendo a
quietude do campo, refrescando-se com ela. O ar estava fresco, como se tivesse sido
lavado, e o sol da tarde batia quente nos seus ombros. Tinha feito bem em vir para
casa. Tara lhe daria a paz e a proteção de que precisava. E com a ajuda de Mammy
seria capaz de reconstruir o seu mundo em ruínas. Inclinou-se para a frente quando
viraram para o caminho familiar, sorrindo na expectativa.
Mas quando a casa apareceu, deixou sair um grito de desespero.
- Will, que aconteceu? - A fachada de Tara estava coberta de trepadeiras, com
longos e feios cordões de folhas mortas; quatro das janelas tinham portadas soltas, e
duas delas nem isso tinham.
- É o Verão, Scarlett. Trato dos reparos da casa no Inverno, quando não houver
colheitas para fazer. Começarei nas portadas daqui a algumas semanas. Ainda não
estamos em Outubro.
- Oh, Will, por que não me deixas lhe dar algum dinheiro? Poderia contratar
alguém para ajudá-lo. Pode ver-se o tijolo através do cal. Dá um aspecto tão miserável.
Will respondeu pacientemente.
- Não se arranja ninguém para trabalhar, nem por amor, nem por dinheiro.
Aqueles que querem trabalhar sempre arranjam que fazer, e quem não quer não me
serviria de nada. Eu e o Big Sam já nos arranjamos. O teu dinheiro não é preciso.
Scarlett mordeu o lábio e engoliu as palavras que queria dizer. Já antes tinha tido
que lidar freqüentemente com o orgulho de Will, e sabia que ele era irredutível. Estava
certo, as colheitas e o gado tinham que vir primeiro. Exigiam cuidados imediatos; e uma
nova aguada de cal podia esperar. Já podia ver os campos, estendendo-se atrás da
casa. Estavam sem ervas daninhas, aparados a pouco. Sentia-se o cheiro leve, mas
rico do estrume na terra, preparando-a para a próxima plantação. A terra vermelha
parecia quente e fértil, e ela descontraiu-se. Este era o coração de Tara, a sua alma.
-Tem razão - disse a Will.
A porta da casa abriu-se e o alpendre encheu-se de pessoas. Suellen estava à
frente, segurando o filho mais novo nos braços, acima da barriga inchada que repuxava
as costuras do seu desbotado vestido de algodão. O xale tinha caído sobre um dos
braços. Scarlett forçou uma alegria que não sentia.
- Meu Deus, Will, a Suellen vai ter outro bebê? Vais ter de construir mais quartos.
Will riu com prazer.
- Ainda estamos tentando ter um rapaz. - Levantou a mão para saudar a mulher e
as três filhas.
Scarlett acenou também, desejando ter se lembrado de comprar alguns
brinquedos para trazer às crianças. "Oh! Deus, olhem para eles." Suellen estava com
um ar carrancudo. Os olhos de Scarlett correram pelas outras faces, procurando as
faces negras... Prissy estava lá; Wade e Ella escondiam-se atrás das suas saias... e a
mulher de Big Sam, Delilah, segurava na mão a colher com que devia ter estado
mexendo o tacho... lá estava. Como era o nome dela? Ah!, sim, Lutie, a ama das
crianças de Tara. Mas onde estava Mammy? Scarlett chamou os filhos.
- Olá, queridos, a mãe está aqui - Depois voltou-se para Will e apoiou a mão no
braço dele.
- Onde está a Mammy, Will? Ela não está tão velha que não possa vir me receber.
- O medo oprimia as palavras na garganta de Scarlett.
- Está de cama, doente, Scarlett.
Scarlett saltou da carroça ainda em movimento, tropeçou, recompôs-se e correu
para a casa.
- Onde está a Mammy? - disse para Suellen, surda às saudações agitadas das
crianças.
- Que belo cumprimento, Scarlett, mas não é pior do que eu esperaria de ti. Em
que estavas pensando para mandares Prissy sem sequer uma palavra, quando sabe
que já tenho trabalho de sobra?
Scarlett levantou a mão pronta para esbofetear a irmã.
-Suellen, se não me disser onde está a Mammy, desato aos gritos.
Prissy puxou a manga de Scarlett.
- Eu sabe onde está a Mammy, Miss Scarlett, eu sabe. Ela está muito doente,
então arranjamos aquele quartinho perto da cozinha para ela, aquele que era onde
costumava estar todos os presuntos pendurados quando havia muitos presuntos. Está-
se lá bem quentinho, perto da chaminé. Ela já lá estava quando eu vim, por isso não
posso dizer que também arranjei o quarto, mas eu trazi uma cadeira para lá para haver
lugar para uma pessoa se sentar se ela quisesse levantar-se ou se houvesse visitas...
Prissy falava para o ar. Scarlett estava à porta do quarto de Mammy, apoiando-se
na ombreira.
Aquilo... aquela... coisa na cama não era a sua Mammy. A Mammy era uma
mulher grande, forte e farta de carnes, com uma quente pele castanha. Tinham
passado pouco mais de seis meses desde que Mammy deixara Atlanta, não era tempo
suficiente para a ter desgastado daquela maneira. Não podia ser. Scarlett não podia
suportar. Aquela não era a Mammy, não acreditava. Esta criatura estava cinzenta e
encarquilhada, mal se notando o seu vulto por debaixo da manta de retalhos que a
cobria. Os dedos retorcidos moviam-se lentamente entre as dobras. A pele de Scarlett
arrepiou-se toda.
Então ouviu a voz de Mammy. Estava fraca e vacilante, mas era a voz adorada da
Mammy.
- Missy, não disse à minina para não pôr o pé fora de casa sem usar um chapéu e
levar uma sombrinha? Disse e tornei a dizer...
- Mammy! - Scarlett caiu de joelhos ao lado da cama. - Mammy, é a Scarlett. A tua
Scarlett. Por favor, Mammy, não adoeças, eu não posso suportar, tu não. - Pousou a
cabeça na cama, ao lado dos ombros magros e chorou copiosamente, como uma
criança.
Uma mão sem peso acariciou a sua cabeça curvada.
Não chora, minina. Não há nada tão mau que não possa ser remediado.
- Tudo... - lamentou-se Scarlett. - Correu tudo mal, Mammy.
- Vá lá, é só uma xícara. E tem outro serviço de chá, tão bonito como esse. Ainda
podes dar a tua festa, como a Mammy prometeu.
Scarlett recuou, horrorizada. Olhou fixamente para Mammy e viu amor naqueles
olhos encovados, olhos que não viam a ela.
- Não - murmurou. Não conseguia agüentar. Primeiro Melanie, depois Rhett e
agora Mammy; todos os que amava a tinham deixado. Era cruel demais. Não podia ser.
- Mammy - disse em voz alta. - Mammy, me ouve. É a Scarlett. Agarrou a ponta
do colchão e tentou abaná-lo. - Olha para mim - suspirou. - Para mim, para o meu
rosto. Tem que me reconhecer, Mammy. Sou eu, Scarlett.
As grandes mãos de Will agarraram-lhe os pulsos.
- Não faça isso - disse ele. A sua voz era doce, mas segurava-a com mãos de
ferro. - Ela fica feliz quando está assim, Scarlett. Está outra vez em Savannah,
tomando conta da tua mãe quando ela era pequena. Esses foram tempos felizes para
ela. Era jovem; era forte; não tinha dores. Deixa estar.
Scarlett lutou para se libertar.
- Mas eu quero que ela me reconheça, Will. Eu nunca lhe disse o que ela significa
para mim. Tenho que lhe dizer.
- Vai ter a tua oportunidade. Muitas vezes ela está diferente, conhece todo
mundo. Sabe também que está morrendo. Assim é melhor. Agora vem comigo. Estão
todos à tua espera. A Delilah ouve a Mammy da cozinha.
Scarlett deixou Will ajudá-la a pôr-se de pé. Toda ela estava paralisada, até o
coração. Não sentia nada. Seguiu-o em silêncio até à sala de estar. Suellen começou
imediatamente a recriminá-la, retomando as suas queixas onde tinha parado, mas Will
mandou-a calar-se.
- Scarlett sofreu um duro golpe, Sue, deixa-a em paz. - Colocou uísque num copo
e o pôs na mão de Scarlett.
O uísque ajudou. A sensação familiar de ardor espalhou-se pelo seu corpo,
atenuando a dor. Estendeu o copo vazio a Will, e ele serviu-lhe um pouco mais.
- Olá, queridos - disse aos filhos -, venham dar um abraço na mãe. - Scarlett ouviu
a sua própria voz; soava como se pertencesse a outra pessoa qualquer; mas, ao
menos, estava dizendo o que devia.
Passou todo o tempo que podia no quarto de Mammy, ao lado dela. Depositara
todas as esperanças no conforto que os braços de Mammy lhe dariam, mas agora
eram os seus jovens e fortes braços que seguravam a velha negra moribunda. Scarlett
levantava aquela massa informe para dar banho a Mammy, para lhe mudar os lençóis,
para a ajudar quando lhe custava respirar, para persuadi-la a deixá-la meter-lhe
algumas colheres de caldo na boca. Cantava as canções de embalar que Mammy lhe
tinha cantado tantas vezes e quando ela, em delírio, falava à falecida mãe de Scarlett,
esta respondia-lhe com as palavras que pensava que a mãe teria dito.
Por vezes, os olhos úmidos de Mammy reconheciam-na, e os lábios gretados da
velha mulher sorriam com a visão da sua menina favorita. Depois, a sua voz trêmula
repreendia Scarlett, tal como tinha feito quando era criança. "O seu cabelo está todo
despenteado, Miss Scarlett, agora vá dar-lhe cem escovadelas como a Mammy lhe
ensinou"; ou: "Não devia vestir esse vestido todo amarrotado. Vá vestir alguma coisa
limpa e engomada antes que alguém a veja"; ou: "Tu parece pálida que nem um
fantasma, Miss Scarlett. Andaste pondo pó-de-arroz na cara? Vá já lavá-la
imediatamente."
O que quer que fosse que Mammy mandasse, Scarlett prometia fazer. Não havia
tempo suficiente para obedecer antes que Mammy ficasse de novo inconsciente ou
voltasse a esse outro mundo de que Scarlett não fazia parte. Durante o dia, e à noite,
Suellen ou Dilcey, ou mesmo Will partilhavam a vigília, e Scarlett podia dormir uma
meia hora de sono solto, enroscada na velha cadeira de balanço. Mas à noite fazia a
vigília sozinha. Baixou a chama do candeeiro a óleo e segurou nas suas as mãos
magras de Mammy. Enquanto a casa e Mammy dormiam, podia finalmente chorar, e as
suas lágrimas de sofrimento aliviavam-lhe um pouco a dor.
Uma vez, naquela hora calma antes do amanhecer, Mammy acordou.
- Por que está tu chorando, querida? - murmurou ela. - A velha Mammy está
pronta para pousar o seu fardo e repousar nos braços do Senhor. Não é preciso levar
as coisas assim. - A sua mão agitou-se na de Scarlett, libertou-se e bateu na cabeça
curvada de Scarlett. - Pára, vá. Nada é tão mau como você pensa.
- Desculpa - soluçou ela. - Não consigo parar de chorar.
Os dedos retorcidos de Mammy puxaram o cabelo embaraçado de Scarlett para
trás.
- Diga à velha Mammy o que está a perturbar o seu cordeirinho.
Scarlett olhou para aqueles queridos, sábios e velhos olhos e sentiu uma dor mais
profunda do que já tinha alguma vez sentido.
- Fiz tudo errado, Mammy. Não sei como pude fazer tantas asneiras, não
compreendo.
- Miss Scarlett fez o que tinha que fazer. Não pode ninguém fazer mais do que
isso. O bom Deus mandou-lhe alguns fardos pesados e você carregou. Não vale a
pena perguntar por que é que eles foram postos nos seus ombros ou o que lhe custou
carregá-los. O que 'tá feito 'tá feito. Não se aflija agora. - As pesadas pálpebras de
Mammy fecharam-se sobre as lágrimas que brilhavam na luz fraca, e a sua respiração
irregular abrandou, até que adormeceu.
"Como posso não me afligir?", quis Scarlett gritar. "A minha vida está destruída, e
não sei o que fazer. Preciso de Rhett, e ele se foi embora. Preciso de você, e está
também me deixando."
Levantou a cabeça, limpou as lágrimas na manga e endireitou os ombros
doloridos. As brasas do fogão estavam quase apagadas, e o balde do carvão estava
vazio. Tinha que voltar a enchê-lo, tinha que alimentar o fogo. O quarto estava
começando a gelar, e a Mammy tinha que estar sempre quente. Scarlett aconchegou a
manta de retalhos já desbotada sobre a frágil forma de Mammy. Depois pegou o balde
e saiu para a fria escuridão do pátio. Apressou-se em direção ao depósito do carvão,
desejando ter-se lembrado de pôr um xale.
Não havia luar, apenas um quarto crescente prateado e escondido por detrás de
uma nuvem. O ar estava pesado com a umidade da noite, e as poucas estrelas que
não estavam escondidas pelas nuvens pareciam muito longe e brilhavam como se
fossem gelo. Scarlett estremeceu. A escuridão à sua volta parecia sem forma, infinita.
Tinha corrido cegamente até o centro do pátio, e agora não conseguia distinguir as
formas familiares da casa do fumeiro e do celeiro, que deviam estar perto. Voltou-se,
subitamente em pânico, procurando a massa branca da casa que acabara de deixar.
Mas também ela estava negra e sem forma. Não se via luz em lado nenhum. Era como
se estivesse perdida num mundo deserto e silencioso. Nada mexia na noite, nem uma
folha, nem uma pena na asa de um pássaro. O terror abanou os seus nervos retesados
e quis fugir dali. Mas para onde? Tudo ali era escuridão desconhecida.
Scarlett cerrou os dentes. Que idiotice era aquela? "Estou em casa, em Tara, e o
vento escuro e frio irá embora logo que o Sol se levante." Tentou rir; o som agudo e
pouco natural a fez dar um salto.
"Dizem que sempre está mais escuro antes da madrugada", pensou ela. "Calculo
que isto seja prova disso. Estou com uma enxaqueca, é tudo. Não vou ceder, não há
tempo para isso, o fogão precisa de ser alimentado." Pôs uma mão à frente, apalpando
a escuridão, e caminhou em direção ao local onde o depósito do carvão deveria estar,
perto da pilha de lenha. Uma cova no chão a fez tropeçar e caiu. O balde caiu com
grande estrondo e se perdeu.
Cada átomo exausto e assustado do seu corpo gritava-lhe que devia desistir.
Devia ficar onde estava, abraçando a segurança do chão invisível debaixo de si, até
que o dia raiasse e pudesse ver. Mas Mammy precisava do calor e da luz amarela e
reconfortante das chamas que se viam através das janelas do fogão.
Scarlett pôs-se lentamente de joelhos e apalpou à sua volta, à procura do balde
do carvão. Com certeza nunca tinha havido uma tal escuridão no mundo. Nem mesmo
uma noite com um ar tão frio e úmido. Abria muito a boca para respirar. Onde estaria o
balde? Onde estaria a madrugada?
Os seus dedos esbarraram com um metal frio. Gatinhou pelo chão em direção a
ele. As mãos abraçaram as paredes enrugadas do balde. Sentou-se quieta e segurou-o
junto ao peito, num abraço desesperado.
"Oh, Senhor, estou completamente às avessas. Não sei onde está a casa, muito
menos a caixa do carvão. Estou perdida na noite." Olhou freneticamente em torno de
si, procurando uma luz qualquer, mas o céu estava negro. Até mesmo as frias e
distantes estrelas tinham desaparecido.
Por um momento, quis desatar a chorar. Gritar e gritar até acordar alguém na
casa, alguém que acendesse uma luz, que viesse procurá-la e a conduzisse para casa.
O orgulho proibia-lhe isso. Perdida no seu próprio quintal, apenas a alguns
passos da porta da cozinha! Nunca se esqueceria dessa vergonha.
Passou a asa do balde pelo braço e começou a rastejar desajeitadamente na
terra escura. Mais cedo ou mais tarde iria de encontro a alguma coisa - à casa, à pilha
de lenha, ao celeiro, ao poço e encontraria o caminho. Seria mais rápido levantar-se e
caminhar. Não se sentiria tão idiota, mas podia cair de novo, e desta vez torcer um
tornozelo, ou coisa do gênero. Então, ficaria desamparada até que alguém a
encontrasse. Não importava o que tivesse que fazer, qualquer coisa era melhor do que
ficar ali sozinha, desamparada e perdida.
- Onde haveria uma parede? Devia haver uma em algum lugar por ali. Parecia-lhe
que tinha rastejado quase até Jonesboro. O pânico tocou-a levemente. E se a
escuridão nunca mais levantasse, se ela continuasse a rastejar e a rastejar para
sempre, sem encontrar nada?
"Pára com isso!", disse a si própria. "Pára com isso já!" A sua garganta fazia uns
ruídos abafados.
Fez um grande esforço para se pôr de pé. Respirou lentamente e tentou que a
cabeça tomasse conta do seu coração sobressaltado. Era Scarlett O'Hara, disse a si
própria. Estava em Tara, e conhecia cada canto daquele lugar melhor que as suas
próprias mãos. Que mal fazia não conseguir ver dois palmos à sua frente? Sabia o que
lá estava, tudo o que tinha a fazer era encontrar qualquer coisa.
E faria isso pelos seus pés, não de gatas como um bebê ou um cão. Levantou o
queixo e endireitou os ombros magros... Graças a Deus ninguém a tinha visto
estendida ao comprido na lama, avançando palmo a palmo, com medo de se levantar.
Nunca em toda a sua vida tinha sido derrotada. Nem pelo exército do velho Sherman,
nem pelo pior que os carpetbaggers (palavra com sentido depreciativo que designava
pessoas vindas do Norte para tomar parte ativa na política no Sul dos Estados Unidos,
entre 1860 e 1870.) podiam fazer. Ninguém, nada poderia derrotá-la, a não ser que ela
o permitisse. Nesse caso, mereceria. A simples idéia de estar com medo, no escuro,
como uma qualquer choramingas covarde!
"Acho que deixei as coisas me abaterem mais do que alguém pode agüentar",
pensou com aversão, e o seu próprio desdém reconfortou-a. "Não deixarei que isto
aconteça de novo, nunca. Não importa o que aconteça. Uma vez que se foi até ao
fundo, o caminho apenas pode melhorar. Se fiz da minha vida uma grande confusão,
irei pôr tudo em ordem. Não vou ficar parada."
Scarlett segurou o balde junto a si e caminhou em frente com passos firmes.
Quase ao mesmo tempo o balde de lata bateu em qualquer coisa fazendo um barulho
estridente. Riu alto quando sentiu o odor forte da resina nos pinheiros cortados à
pouco. Estava perto da pilha de lenha e o depósito do carvão era mesmo ali ao lado.
Era exatamente o local onde tencionara ir.
A porta de ferro do fogão fechou-se sobre as chamas renovadas. O estrondo da
porta ao fechar fez Mammy agitar-se na cama. Scarlett apressou-se a aconchegar-lhe
novamente a manta. O quarto estava frio.
Mammy, por entre a sua dor, olhou de soslaio para Scarlett.
- Tu tem a cara suja, e as mãos também - murmurou com a voz enfraquecida.
- Eu sei - disse Scarlett. - Vou já lavá-las. - Antes que a velha mulher sucumbisse,
Scarlett beijou-lhe a testa . - Amo-te, Mammy.
- Não precisa me dizer o que eu já sabe... - Mammy caiu de novo no sono,
fugindo à dor.
- Sim, é preciso - disse-lhe Scarlett. Sabia que Mammy não podia ouvi-la, mas
falou alto, para si. - É necessário.
- Nunca disse a Melanie, e nunca disse a Rhett, até que foi tarde demais. Nunca
tive tempo para saber que os amava, nem a ti. Ao menos contigo não cometerei o erro
que fiz com eles.
Scarlett olhou fixamente para a cara cadavérica da velha mulher moribunda.
- Amo-te, Mammy! - sussurrou. - Que vai ser de mim quando não te tiver para me
amar?
2
A porta do quarto da doente abriu-se com estrondo e a cabeça de Prissy
espreitou de lado.
- Miss Scarlett? Mr. Will diz para eu vir ficar com a Mammy enquanto vai tomar o
café da manhã. Delilah diz que tu vai se esgotar com toda essa vigília, e ela arranjou-
lhe uma bela fatia de presunto com molho para as suas papas de milho.
- Onde está o caldo de carne para a Mammy? - perguntou Scarlett imediatamente
- A Delilah sabe que tem de trazer um caldo quente logo de manhã.
- Tenho aqui mesmo na mão. - Prissy empurrou a porta com o cotovelo, o
tabuleiro à sua frente. - Mas a Mammy está dormindo, Miss Scarlett. Vai acordá-la para
beber o caldo?
- Mantém tapado e põe o tabuleiro junto ao fogão. Dou-Ihe quando voltar. -
Scarlett sentiu-se esfomeada. O rico aroma que se evaporava do caldo deu-lhe cólicas
no estômago, de tão vazio que estava.
Lavou a cara e as mãos na cozinha. O vestido também estava sujo, mas servia
para agora. Vestiria um limpo depois de ter comido.
Will estava mesmo levantando-se da mesa quando Scarlett entrou na sala de
jantar. Os agricultores não podem perder tempo. O dourado sol da manhã, do lado de
fora da janela, prometia um dia radiante e quente.
- Posso ajudá-lo, tio Will? - perguntou Wade, esperançoso. Saltou da cadeira e
quase a derrubou. Viu então a mãe e o seu rosto perdeu o ar ansioso. Teria que ficar
sentado à mesa e usar as suas melhores maneiras, ou ela ficaria zangada.
Movimentou-se lentamente para puxar a cadeira a Scarlett.
- Que boas maneiras tens, Wade - disse Suellen, lisonjeira. - Bom dia, Scarlett,
não se sentes orgulhosa do seu jovem cavalheiro?
Scarlett olhou estupefata para Suellen e depois para Wade. Meu Deus, ele era
apenas uma criança! Que diabo quereria Suellen com aquela doçura forçada? Pela
maneira como falava, parecia que Wade era um parceiro de dança com o qual se podia
namoriscar.
Reparou com surpresa que ele era um belo rapaz. Era alto de mais para a sua
idade; parecia ter 13 anos, apesar de ainda não ter 12. Suellen não acharia isso tão
bom se tivesse que comprar as roupas que lhe deixavam de servir tão depressa.
"Meu Deus! Que vou eu fazer sobre das roupas de Wade? Rhett é que faz
sempre o que é preciso. Não sei o que os rapazes vestem, nem onde comprar essas
coisas. Os pulsos já saem fora das mangas, provavelmente, precisa de um tamanho
maior. E rápido. A escola deve esta começando, se é que não começou já. Nem sequer
sei qual a data de hoje."
Scarlett deixou-se cair na cadeira que Wade segurava. Esperava que ele fosse
capaz de lhe dizer tudo o que precisava saber. Mas primeiro tomaria o café.
- Me dá tanta água na boca que me parece que estou gargarejando. Obrigada,
Wade Hampton - disse de forma ausente. O presunto tinha ótimo aspecto. Era rosado e
suculento e a gordura que o envolvia estava tostada e estaladiça.
Deixou cair o guardanapo no colo sem se preocupar em desdobrá-lo e pegou a
faca e o garfo.
- Mãe? - disse Wade cautelosamente.
- Sim? - Scarlett cortou o presunto.
- Posso ir ajudar o tio Will nos campos, por favor?
Scarlett quebrou uma regra de ouro das boas maneiras à mesa e falou com
comida na boca. O presunto estava delicioso.
- Sim, podes ir. - As suas mãos estavam ocupadas cortando outro pedaço.
- Eu também - assobiou Ella.
- Eu também - ecoou Susie, filha de Suellen.
- Não foi convidada - disse Wade. - O campo é coisa de homens. As meninas
ficam em casa.
Susie desatou a chorar.
- Vê o que fez! - disse Suellen a Scarlett.
- Eu? Não é a minha filha que está fazendo essa barulheira toda. - Scarlett
procurava sempre evitar as discussões com Suellen, quando vinha a Tara, mas os
hábitos de uma vida inteira eram fortes demais. Tinham começado a brigar desde que
eram bebês e nunca tinham realmente parado.
"Não vou deixá-la arruinar a minha primeira refeição. Sabe Deus há quanto tempo
estou com fome", pensou Scarlett; e concentrou-se em espalhar manteiga sobre o
monte brilhante formado pelas papas de milho no prato à sua frente. Nem mesmo
levantou os olhos quando Wade seguiu Will porta afora e os lamentos de Ellen se
juntaram aos de Susie.
- Calem-se as duas! - gritou Suellen.
Scarlett deitou molho de presunto sobre as papas, amontoadas sobre outro
pedaço de presunto, e desfez o arranjo com o garfo.
- O tio Rhett deixava-me ir - resmungou Ella.
"Não vou dar-lhe ouvidos", pensou Scarlett. "Vou fechar os ouvidos e saborear o
meu café." Encheu a boca de presunto, papas e molho.
- Mãe... mãe, quando é que o tio Rhett vem para Tara? - A voz de Ella penetrava
de uma forma aguda nos seus ouvidos.
Scarlett ouviu as palavras dela, apesar de tudo, e a deliciosa comida tornou-se
serragem na sua boca. Que dizer? Como podia responder à pergunta de Ella? "Nunca!"
Era essa a resposta? Não podia, nem ela própria acreditaria nisso. Olhou com
repugnância para a face rosada da filha. Ella tinha estragado tudo. "Não podia ao
menos ter me deixado em paz até eu acabar o café?"
Ella tinha o cabelo ruivo e encaracolado do pai, Frank Kennedy. Os cabelos
espetavam-se à volta da sua face manchada pelas lágrimas como se fossem rolos de
arame enferrujado. Por mais que Prissy os acamasse com água, escapavam-se
sempre das apertadas tranças que lhe fazia. O corpo de Ella também parecia feito de
arame. Era muito magro e rígido. Era mais velha que Susie. Tinha quase sete anos,
enquanto Susie tinha seis e meio. Mas Susie já tinha um palmo a mais de altura e era
tão mais forte que podia brigar com Ella impunemente.
"Não admira que Ella queira que Rhett venha", pensou Scarlett. "Ele gosta mesmo
dela e eu não. Irrita-me, tal como Frank me irritava, e por mais que tente não consigo
amá-la."
- Quando é que o tio Rhett vem, mãe? - perguntou Ella, de novo. Scarlett arredou
a cadeira da mesa e levantou-se.
- Isso é coisa de gente crescida - disse. - Vou ver como está a Mammy. - Não
suportava pensar em Rhett agora. Pensaria em tudo isso mais tarde, quando não
estivesse tão aborrecida. Era mais importante, muito mais, fazer a Mammy engolir o
caldo.
- Só mais uma colherada, Mammy querida, vai fazer-me feliz.
A velha mulher afastou a cabeça da colher.
- Cansada... - suspirou.
- Eu sei - disse Scarlett -, eu sei. Dorme, então, não te incomodo mais.
Olhou para a tigela quase cheia. Mammy comia menos de dia para dia.
- Miss Ellen... - chamou Mammy debilmente.
- Estou aqui, Mammy - replicou Scarlett. Ficava sempre magoada de cada vez
que Mammy não a reconhecia, quando pensava que as mãos que a tratavam tão
carinhosamente eram as mãos da mãe de Scarlett. "Não deveria deixar que isto me
perturbasse", dizia-se Scarlett todas as vezes. "Foi sempre a mãe quem tratou dos
doentes, não eu. A mãe era delicada para todos, era um anjo, uma perfeita senhora. Eu
devia aceitar como um elogio o ser confundida com ela. Se calhar vou para o Inferno
por ter ciúmes de a mãe a ter amado mais... só que já não acredito muito no Inferno...
nem no Céu."
- Miss Ellen...
- Estou aqui, Mammy. Estou aqui, Mammy.
Mammy entreabriu os seus olhos velhos, velhos.
- Tu não é Miss Ellen.
- Sou a Scarlett, Mammy, a tua Scarlett.
- Miss Scarlett... Eu quer Mist' Rhett. Uma coisa para dizer...
Scarlett mordeu os lábios. Chorava silenciosamente.
- Eu também o quero muito. Mas ele foi-se, Mammy, Não posso dar o que tu
queres.
Reparou que Mammy tinha entrado de novo num estado próximo do coma e ficou
imensamente agradecida. Pelo menos, Mammy não tinha dores. O seu próprio coração
doía-lhe como se estivesse cravejado de facas. Como precisava de Rhett,
especialmente agora que a Mammy se encaminhava cada vez mais para a morte. "Se
ele estivesse aqui, comigo, sentindo a mesma mágoa que eu sinto..." Rhett amava
Mammy e ela também o amava. Rhett dizia que nunca tinha se esforçado tanto na vida
por ter alguém do seu lado, nem se tinha importado tanto com a opinião de alguém
quanto se importava com a dela. Ficaria desolado quando soubesse que Mammy tinha
partido, desejaria tanto ter podido dizer-lhe adeus...
Scarlett ergueu a cabeça e arregalou os olhos. Claro. Que parva estava sendo.
Olhou para aquela mulher velha e definhando, tão pequena e leve debaixo da colcha.
- Oh, Mammy, querida, obrigada - suspirou. - Vim para junto de ti em busca de
ajuda, porque tu pões tudo de novo em ordem, e vais ajudar-me, tal como sempre
fizeste.
Encontrou Will no estábulo escovando o cavalo.
- Oh, ainda bem que te encontrei, Will - disse Scarlett.
Os seus olhos verdes lançavam faíscas e as suas faces estavam naturalmente
ruborizadas, mais do que com o rouge que costumava usar. - Posso usar o cavalo e a
carruagem? Preciso ir a Jonesboro. A menos que estejas arrumando-a para ires a
Jonesboro tratar de alguma coisa... Estavas? - susteve a respiração enquanto
esperava pela resposta dele.
Will olhou para ela calmamente. Entendia Scarlett melhor que ela pensava.
- Há alguma coisa que possa fazer por ti? Isto no caso de eu estar planejando ir a
Jonesboro...
- Oh, Will, és tão adorável. Preferia ficar com a Mammy, mas preciso muito de
avisar Rhett do estado dela. Ela pergunta muito por ele e ele sempre gostou tanto dela,
que eu nunca me perdoaria se não lhe fizesse a vontade. - Scarlett brincava com a
crina do cavalo. - Ele está em Charleston tratando de negócios da família; a mãe mal
pode dar um passo sem pedir o conselho de Rhett.
Scarlett olhou para cima, para o rosto inexpressivo de Will, e virou a cara.
Começou a entrançar pedaços da crina, atenta a essa atividade como se fosse de
importância vital.
- Se pudesses mandar-lhe um telegrama... eu dou-te o endereço. E melhor seres
tu a enviá-lo, Will. Rhett sabe o quanto eu adoro a Mammy. É capaz de pensar que eu
estava a exagerar a gravidade da doença dela - Ergueu a cabeça e sorriu jovialmente. -
Ele acha que eu não tenho mais juízo que um besouro.
Will sabia que aquela era a maior de todas as mentiras.
- Acho que tens razão - disse lentamente. - Rhett deve vir o mais depressa que
possa. Vou já a cavalo; é mais rápido que de carruagem.
As mãos de Scarlett descontraíram-se.
- Obrigada - respondeu. - Tenho o endereço aqui no bolso.
- Estarei de volta na hora do jantar - disse Will. Tirou a sela do local onde estava.
Scarlett ajudou-o. Sentia-se cheia de energia. Estava certa de que Rhett viria. Poderia
estar em Tara dentro de dois dias se saísse de Charleston logo que recebesse o
telegrama.
Passaram dois dias e Rhett não chegou. Passaram três, quatro, cinco. Scarlett
deixou de esperar o som das rodas ou o bater dos cascos na entrada. Estava exausta
de tanto se esforçar por ouvir esse som. E agora havia outro som que chamava toda a
sua atenção, o som horrível do esforço feito por Mammy para respirar. Parecia
impossível que aquele corpo frágil e gasto pudesse arranjar força suficiente para fazer
entrar ar nos pulmões e fazê-lo sair de novo. Mas ela fazia-o, repetidamente. Os
tendões do pescoço engelhado estavam tensos e tremiam.
Suellen juntou-se à vigília de Scarlett.
- Ela também é a minha Mammy, Scarlett - Os ciúmes e crueldades amontoados
ao longo das suas vidas estavam agora esquecidos na necessidade conjunta de ajudar
a velha negra. Trouxeram todas as almofadas da casa para a apoiar e mantiveram a
chaleira sempre fervendo. Espalharam manteiga nos lábios gretados, meteram
colheradas de água entre eles.
Mas nada aliviava a luta de Mammy. Ela olhava para ambas com piedade.
- Não se esgotem - respirou com dificuldade. - Não podem fazer nada.
Scarlett pôs os dedos nos lábios de Mammy.
- Chiu! - implorou. - Não tentes falar. Guarda as tuas forças. - "Porquê, oh,
porquê?" Enfureceu-se com Deus em silêncio. "Por que não a pudeste deixar morrer
com calma, quando ela vagueava no passado? Por que tiveste que acordá-la e deixá-la
sofrer tanto? Foi boa toda a sua vida, fazendo sempre tudo pelos outros e nunca por si
própria. Merece melhor que isto, nunca mais curvo a cabeça perante Ti enquanto
viver."
Lia alto a Mammy passagens da Bíblia muito usada que estava na mesa-de-
cabeceira. Lia os salmos, e a sua voz não dava sinal da dor e da raiva do seu coração.
Quando a noite caiu, Suellen acendeu o candeeiro e substituiu Scarlett, lendo, virando
as finas páginas, lendo. Então, Scarlett tomava o seu lugar. E depois Suellen, até que
Will a chamou para descansar.
- Tu também, Scarlett - disse ele. - Eu fico com a Mammy. Não sou um grande
leitor, mas sei muitas passagens da Bíblia de cor.
- Recita, então. Mas eu não deixo a Mammy. Não posso.
Sentou-se no chão e encostou as costas cansadas à parede, escutando os
aterradores sons da morte. Quando a primeira luz do dia surgiu nas janelas, os sons
tornaram-se subitamente diferentes. Cada inspiração era mais ruidosa e maiores os
silêncios entre cada uma. Scarlett pôs-se imediatamente de pé. Will levantou-se da
cadeira.
- Vou chamar Suellen! - exclamou.
Scarlett retomou o seu lugar ao pé da cama.
- Queres que segure a tua mão, Mammy? Deixa-me pegar-lhe.
A testa de Mammy enrugou-se com o esforço.
- Tão... cansada.
- Eu sei, eu sei. Não te canses mais falando.
- Queria... esperar por... Mist' Rhett.
Scarlett engoliu em seco. Não podia chorar agora.
- Não precisas esperar Mammy. Podes descansar. Ele não pode vir. - Ouviu
passos apressados na cozinha. - Suellen vem a caminho. E Mister Will também.
Estaremos todos aqui contigo, querida. Todos te amamos.
Uma sombra caiu sobre a cama e Mammy sorriu.
- Ela quer a mim - disse Rhett. Scarlett ergueu os olhos para ele, incrédula. - Sai
daí - disse ele delicadamente -, deixa-me chegar perto de Mammy.
Scarlett pôs-se de pé. Os seus joelhos fraquejaram ao sentir a proximidade dele,
a sua grandeza, a força e a masculinidade. Rhett passou à sua frente e ajoelhou-se ao
pé de Mammy.
Ele viera. Tudo ia ficar bem. Scarlett ajoelhou-se ao seu lado. O ombro dela
tocava-lhe no braço e Scarlett sentiu-se feliz, apesar da tristeza por causa de Mammy.
Ele viera; Rhett estava ali. "Que idiota fui em ter perdido a esperança daquela
maneira."
- Quero que tu faça uma coisa para mim - dizia Mammy.
A voz dela era forte, como se tivesse guardado as suas forças para aquele
momento. A respiração era profunda e rápida, quase palpitante.
- Tudo, Mammy - disse Rhett. - Farei o que quiseres.
- Enterra-me com aquela combinação de seda vermelha que me deste. Trata
disso Eu sei que a Lutie já anda com o olho nela.
Rhett sorriu. Scarlett estava chocada. Como podia ele rir com a Mammy a morrer?
Então, percebeu que a Mammy também estava a rir, sem fazer qualquer som.
Rhett pôs a sua mão no peito.
- Juro-te que Lutie nunca lhe porá a vista em cima, Mammy. Vou fazer que ela vá
contigo para o céu.
Mammy esticou as mãos na direção dele, acenando-lhe para aproximar o ouvido
mais próximo dos seus lábios.
- Tome conta de Miss Scarlett - disse ela. - Precisa de carinho e eu não posso
dar-lhe mais.
Scarlett susteve a respiração.
- Tomarei conta dela, Mammy - respondeu Rhett.
- Jura isso - A ordem era tímida, mas firme.
- Eu juro - replicou Rhett. Mammy suspirou calmamente.
Scarlett deixou a sua respiração sair com um soluço.
- Oh, Mammy querida, obrigada - gritou. - Mammy...
- Ela não te pode ouvir, Scarlett, foi-se - Rhett passou a sua grande mão, com
delicadeza, pelo rosto de Mammy e fechou-lhe os olhos. - Foi todo um mundo que se
acabou, uma era. - Disse ele suavemente. - Que descanse em paz.
- Amém - disse Will da entrada.
Rhett pôs-se de pé e virou-se.
- Olá, Will e Suellen.
- O seu último pensamento foi para ti, Scarlett! - exclamou Suellen. - Sempre foste
a favorita dela. - Começou a chorar copiosamente. Will tomou-a nos braços e abraçou-
a contra o peito, dando-lhe pancadinhas nas costas.
Scarlett correu para Rhett e ergueu os braços para o abraçar.
- Senti muito a tua falta - disse ela.
Rhett pegou-lhe nos braços e puxou-os para baixo.
- Não, Scarlett - disse ele. - Nada mudou. - A voz dele era calma.
Scarlett era incapaz de tal constrangimento.
- Que queres dizer com isso? - gritou.
Rhett retraiu-se.
- Não me faças repeti-lo, Scarlett. Sabes muito bem o que quero dizer.
- Não sei. Não acredito em ti. Não podes deixar-me, não podes. Não numa altura
destas, em que preciso de ti tão desesperadamente. Eu amo-te. Oh, Rhett, não olhes
para mim assim. Por que não me abraças e me consolas? Prometeste à Mammy.
Rhett abanou a cabeça com um sorriso desmaiado nos lábios.
- És tão infantil, Scarlett. Já me conheces há tanto tempo e mesmo assim, quando
queres, esqueces tudo o que aprendeste. Era uma mentira. Menti para tornar felizes os
últimos momentos de uma pessoa querida. Lembra-te, meu tesouro, eu sou um
canalha, não um cavalheiro.
Rhett caminhou em direção à porta.
- Não vás Rhett, por favor - suplicou Scarlett. Colocou ambas as mãos sobre a
boca e calou-se. Nunca mais seria capaz de se respeitar se lhe implorasse de novo.
Voltou a cabeça decididamente, incapaz de suportar a visão da partida de Rhett. Viu
nos olhos de Suellen uma alegria triunfante e nos de Will viu pena.
- Ele vai voltar - disse ela, mantendo a cabeça bem erguida. - Ele volta sempre -
"Se o disser muitas vezes", pensou, "talvez consiga acreditar. Talvez se torne
verdade."
- Sempre - disse ela. Respirou fundo. - Onde está a combinação de Mammy,
Suellen? Quero ter certeza de que Mammy vai ser enterrada com ela.
Scarlett conseguiu manter o controle até que a penosa tarefa de dar banho e
vestir o corpo de Mammy terminou. Mas quando Will trouxe o caixão, começou a
tremer. Fugiu dali sem uma palavra.
Encheu metade do copo com uísque que tirou da garrafa de mesa, na sala de
jantar. Bebeu-o em três goles. O calor da bebida percorreu o seu corpo exausto e os
tremores cessaram.
"Preciso de ar", pensou. "Preciso de sair desta casa, para longe de todos eles."
Podia ouvir as vozes assustadas das crianças, na cozinha. Os nervos gelaram-lhe a
pele. Pegou nas saias, ergueu-as e correu para longe.
Lá fora, o ar da manhã era fresco e calmo. Scarlett respirou profundamente,
saboreando a frescura do ar. Uma brisa leve levantou o cabelo que se pegara ao seu
pescoço suado. Quando fora a última vez que escovara o cabelo cem vezes? Não se
lembrava. Mammy ficaria furiosa. Oh! Apertou os nós dos dedos contra a cabeça, para
conter o sofrimento, e tropeçou nas ervas altas da pastagem, indo pela colina abaixo
até aos bosques altos que marginavam o rio. Os pinheiros, com os seus altos picos,
exalavam um cheiro doce. Faziam sombra sobre um fofo e espesso tapete de agulhas
esbranquiçadas, caídas dos pinheiros ao longo de centenas de anos. Abrigada por
eles, Scarlett estava sozinha, sem que a pudessem ver da casa. Encolheu-se no chão
almofadado, fatigada. Depois instalou-se numa posição confortável, com as costas
contra o tronco de uma árvore. Tinha que pensar; devia haver alguma maneira de
salvar a sua vida da ruína. Recusou-se a pensar de forma diferente.
Não conseguia impedir a sua mente de vaguear. Estava tão confusa, tão
cansada.
Já antes se tinha sentido cansada. Mais cansada que agora. Quando teve que vir
de Atlanta para Tara, com o exército ianque por todos os lados, não deixou que o
cansaço a fizesse parar. Quando teve que roubar comida por todo o lado, não desistiu
por as suas pernas e braços serem como dois pesos mortos puxando por ela. Quando
apanhou algodão até as mãos ficarem em carne viva, quando se agarrou ao arado
como se fosse uma mula, quando teve que encontrar forças para continuar, apesar de
tudo, não desistiu por estar cansada. Não ia desistir agora. Desistir não estava na sua
natureza.
Olhou fixamente em frente, fazendo face a todos os seus demônios. A morte de
Melanie... a morte de Mammy... Rhett a deixá-la, dizendo que o seu casamento estava
morto.
Isso era o pior. A partida de Rhett. Era isso que tinha que encarar. Ouviu a sua
voz.
- Nada mudou.
Não podia ser verdade!... Mas era.
Tinha que arranjar maneira de o reconquistar. Sempre tinha sido capaz de ter
qualquer homem que quisesse, e Rhett era um homem como qualquer outro, não era?
Não, ele não era como outro homem qualquer, era por isso que o queria. Um
medo súbito fê-la estremecer. E se não ganhasse desta vez? Sempre tinha vencido, de
uma maneira ou de outra. Sempre tivera o que queria, de alguma maneira. Até agora.
Um pássaro gritou roucamente. Scarlett olhou para cima e ouviu um segundo grito
de escárnio.
- Deixa-me em paz - gritou. O pássaro voou para longe, num bater de asas azul-
garrido.
Tinha que pensar, lembrar o que Rhett tinha dito. Não nessa manhã ou na noite
anterior ou quando quer que Mammy morrera. "Que foi que ele disse em nossa casa,
na noite em que deixou Atlanta? Ele falou e continuou a falar, explicando as coisas.
Estava tão calmo, tão paciente quanto se pode ser com as pessoas com quem não nos
importamos o suficiente para nos zangarmos com elas."
A sua mente foi buscar uma frase quase esquecida, e alheou-se da sua exaustão.
Tinha encontrado o que precisava. Sim, sim, lembrava-o claramente. Rhett tinha-lhe
oferecido o divórcio. Então, depois da furiosa rejeição dela, tinha-o dito. Scarlett fechou
os olhos, imaginando ouvir a voz dele. "Voltarei com a freqüência suficiente para
impedir os mexericos." Ela sorriu. Não tinha vencido ainda, mas havia uma hipótese
disso acontecer. E isso era suficiente para continuar. Levantou-se, sacudiu as agulhas
dos pinheiros dos cabelos e do vestido. Devia estar toda suja e amarrotada.
As águas amarelas e barrentas do rio Flint corriam lenta e profundamente debaixo
da saliência em que se encontravam os pinheiros. Scarlett olhou para baixo e atirou
uma mão-cheia de agulhas de pinheiro. As agulhas foram corrente abaixo, fazendo
remoinhos.
- Sempre andando - murmurou. - Tal como eu. Não olhes para trás, o que está
feito, feito está. Vai em frente. - Olhou de soslaio para o céu. Uma fila de brilhantes
nuvens brancas estava passando. Pareciam todas cheias de vento. "Vai esfriar",
pensou automaticamente. "É melhor arranjar algo quente para usar esta tarde, no
funeral." Virou-se em direção à casa. Tinha que voltar para lá, para se arrumar. Estar
arrumada era uma coisa que devia a Mammy. Irritava-se sempre quando Scarlett
estava desarrumada.
3
Scarlett desequilibrou-se. Já devia ter estado assim tão cansada alguma vez na
vida, mas não se recordava. Estava cansada demais para se lembrar.
"Estou farta de funerais, estou farta de mortes, estou farta de ver a minha vida ir
por água abaixo, peça por peça, deixando-me completamente só."
O cemitério de Tara não era muito grande. O caixão de Mammy parecia grande,
muito maior que o de Melly, pensou Scarlett, sem nexo. Mas Mammy tinha encolhido
tanto que provavelmente já não era tão grande. Não precisava de um caixão assim.
O vento era cortante, apesar de o céu estar azul e o sol brilhar. Folhas
amarelecidas rolavam no chão, sopradas pelo vento. "O Outono está chegando, se é
que não chegou já", pensou. Costumava adorar o Outono no campo. Enquanto andava
a cavalo pelos bosques, a terra parecia coberta de ouro e o ar cheirava a cidra. "Já lá
vai tanto tempo. Não voltou a haver um cavalo como deve ser em Tara desde que o
papá morreu."
Olhou para as lápides. Gerald O'Hara, nascido em County Meath, na Irlanda.
Ellen Robillard O'Hara, nascida em Savannah, na Geórgia. Gerald O'Hara, Jr. Três
pedras minúsculas, todas semelhantes. Os irmãos que nunca tinha conhecido. Ao
menos Mammy estava sendo enterrada ali, perto de "Miss Ellen", o seu primeiro amor,
e não no pedaço de terra em que os escravos eram enterrados. "Suellen gritou que se
fartou, mas eu ganhei aquela briga, assim que Will se pôs do meu lado. Quando Will se
impõe, a vontade dele prevalece. É uma pena que ele seja tão obstinado e não me
deixe dar-lhe dinheiro. A casa tem um aspecto horrível. O mesmo se passa com o
cemitério. Há ervas daninhas por todo o lado, tem um aspecto desolador. Este funeral é
desolador, Mammy tê-lo-ia detestado. Aquele pregador negro não pára de falar, e
aposto que nem sequer a conhecia. Mammy não perderia tempo com as palavras dele.
Ela era católica romana, todos na casa Robillard o eram, exceto o avô, e esse não
tinha muito que dizer, a julgar pelas palavras de Mammy. Deveríamos ter arranjado um
padre, mas o mais próximo está em Atlanta e teria levado dias. Pobre Mammy. Pobre
mãe. Morreu e foi enterrada sem padre. O papá também, mas isso também não
importou muito a ele. Costumava dormitar enquanto a mãe fazia as orações todas as
noites." Scarlett olhou para o desleixado cemitério e depois para a desoladora fachada
da casa. "Ainda bem que a mãe não está aqui para ver isto", pensou, sentindo
subitamente dor e fúria ao mesmo tempo. "Isto destroçar-lhe-ia o coração." Scarlett
conseguiu, por um momento, ver a forma alta e graciosa da mãe tão claramente como
se Ellen O'Hara estivesse entre as pessoas que acompanhavam o funeral. A mãe
estava sempre impecavelmente arranjada, com as suas brancas mãos ocupadas
costurando, ou enluvadas, pronta para sair numa das suas visitas de misericórdia. A
voz dela era sempre suave e andava sempre ocupada na tarefa infindável que era
manter, sob a sua orientação, a ordem perfeita da vida em Tara. "Como é que ela fazia
isso?" Scarlett chorou silenciosamente. "Como conseguia tornar o mundo tão belo,
sempre que ali estava? Éramos todos tão felizes nessa altura. Não importava o que
acontecesse, a mãe conseguia que tudo estivesse bem. Queria tanto que ela ainda
estivesse aqui! A mãe me abraçaria e todos os problemas desapareceriam. Não, não.
Não queria que ela aqui estivesse aqui. Ver tudo o que aconteceu a Tara, o que me
aconteceu a mim, iria fazê-la muito triste. Ficaria desapontada comigo e eu não poderia
suportá-lo. Tudo, menos isso. Não vou pensar nisso, não devo. Pensarei em qualquer
outra coisa. Será que a Delilah teve o bom senso de arranjar alguma coisa para as
pessoas comerem depois do enterro? Suellen não teria pensado nisso, e de qualquer
modo é mesquinha demais para gastar dinheiro numa refeição leve."
"Não que isso lhe tivesse custado muito, não está aqui quase ninguém. No
entanto, o pastor negro tem ar de quem consegue comer por vinte. Se ele não pára de
falar em repousar no seio de Abraão e na travessia do rio Jordão, dou um grito.
Aquelas três mulheres raquíticas a que ele chama coro, são as únicas pessoas aqui
que não parecem embaraçadas. Que coro! Espirituais e pandeiros! A Mammy devia ter
algo solene, em latim, e não Climbing Jacob's Ladder. Oh! É tudo tão pobre. Ainda bem
que não está quase ninguém aqui, só Suellen, Will, eu, as crianças e os criados. Pelo
menos, todos nós amávamos realmente a Mammy e sofremos com a sua partida. Os
olhos de Big Sam estão vermelhos de tanto chorar. Olhem para o pobre Pork, chorando
muito também. Vejam só, o cabelo dele está quase branco; não o imaginava tão velho.
Dilcey não parece ter a idade dela, qualquer que seja; não mudou nem um pouco
desde que veio para Tara..."
A mente exausta e vagueante de Scarlett aguçou-se subitamente. O que estavam
Pork e Dilcey fazendo ali? Já não trabalhavam em Tara havia anos; desde que Pork se
tornara o criado de Rhett, e Dilcey, a mulher, fora para casa de Melanie, como ama de
Beau. "Como apareceram aqui em Tara? Não havia maneira de eles terem tido
conhecimento da morte de Mammy, a não ser que Rhett lhes tivesse dito."
Scarlett olhou por cima do ombro. Rhett teria voltado? Não havia sinais dele.
Assim que a cerimônia terminou, foi direita a Pork.
Suellen e Will que lidassem com o fastidioso pregador.
- É um dia triste, Miss Scarlett. - Os olhos de Pork estavam ainda cheios de
lágrimas.
- É sim, Pork - retorquiu Scarlett. Não devia precipitar-se, ou, então, nunca
descobriria o que queria saber.
Scarlett caminhou lentamente ao lado do velho criado negro, ouvindo as suas
lembranças de Mist' Gerald, de Mammy e dos primeiros dias em Tara. Esquecera-se
de que Pork tinha estado com o seu pai tanto tempo. Ele tinha vindo para Tara com
Gerald, quando aqui não havia mais do que um velho edifício queimado e os campos
tinham se tornado matagais. "Bom, Pork deve ter setenta anos, ou mais."
Aos poucos, foi arrancando as informações que queria. Rhett tinha voltado a
Charleston, para ficar. Pork tinha embalado e enviado todas as roupas de Rhett para a
estação, a fim de serem embarcadas.
Foi a sua última obrigação como criado de Rhett. Agora estava reformado, com
uma pensão que lhe dava para ter um pedaço seu, onde quisesse.
- Posso sustentar a minha família também - disse Pork com orgulho. Dilcey nunca
mais precisaria trabalhar e Prissy teria algo a oferecer a qualquer homem que quisesse
casar com ela. - Prissy não é nenhuma beleza, Miss Scarlett, e já vai fazer vinte e cinco
anos, mas com uma herança, pode arranjar marido tão facilmente como qualquer
rapariga bonita que não tenha dinheiro.
Scarlett sorriu e concordou com Pork que "Mist' Rhett" era um distinto cavalheiro.
Por dentro, Scarlett estava furiosa. A generosidade daquele distinto cavalheiro estava
estragando-lhe tudo. Quem ia tomar conta de Wade e Ella, quando Prissy fosse
embora? E como iria fazer para arranjar uma boa ama para Beau? Ele tinha acabado
de perder a mãe, o pai estava meio doido com o sofrimento, e a única pessoa com um
pouco de juízo naquela casa ia embora também. Desejou poder partir e recomeçar,
deixando tudo e todos para trás. "Mãe de Deus! Vim para Tara para descansar um
pouco, para pôr a minha vida em ordem, e só encontrei mais problemas para resolver.
Será que alguma vez terei paz?"
Calma e firmemente, Will providenciou a Scarlett esse descanso. Mandou-a para
a cama e deu ordens para que não fosse incomodada. Scarlett dormiu quase dezoito
horas e acordou com um plano claro por onde começar.
- Espero que tenhas dormido bem - comentou Suellen quando a irmã desceu para
o café da manhã. A voz dela era doentiamente adocicada. - Devias estar terrivelmente
cansada, depois de tudo o que passaste. - Agora que Mammy estava morta, as tréguas
tinham acabado.
Os olhos de Scarlett brilharam perigosamente. Sabia o que Suellen pensava da
cena vergonhosa que fizera, implorando a Rhett para não a deixar. Mas quando
respondeu a Suellen, as suas palavras foram igualmente doces.
- Mal pousei a cabeça na almofada, adormeci. O ar do campo é tão calmante e
revigorante - "Grande mazinha", acrescentou mentalmente. O quarto que ainda
considerava seu pertencia agora a Susie, a filha mais velha de Suellen, e Scarlett
sentiu-se uma intrusa. Tinha certeza de que Suellen também o sabia. Mas não
importava. Precisava ficar bem com ela para prosseguir o seu plano. Sorriu à irmã.
- Onde está a piada, Scarlett? Tenho uma mosca no nariz ou quê?
A voz de Suellen irritou Scarlett, mas manteve o sorriso.
- Desculpa, Suellen. Estava lembrando-me de um sonho idiota que tive a noite
passada. Sonhei que éramos todos crianças outra vez e que a Mammy estava me
açoitando as pernas com uma vara de pessegueiro. Lembras-te de como essas varas
machucavam?
Suellen sorriu.
- Claro que me lembro. Lutie usa-as com as meninas. Quase posso sentir a dor
nas minhas próprias pernas quando ela o faz.
Scarlett olhou para o rosto da irmã.
- Até me admira não ter um monte de cicatrizes - disse ela. - Era uma menina tão
má, não sei como é que tu e Careen conseguiam me aturar - espalhou manteiga num
biscoito como se isso fosse a sua única preocupação.
Suellen olhou-a com desconfiança.
- Tu atormentavas-nos realmente, Scarlett. E arranjavas sempre maneira de as
brigas parecerem ser provocadas por nós.
- Eu sei. Eu era impossível. Mesmo quando éramos mais velhas. Tratei-vos como
mulas quando tivemos que apanhar o algodão depois dos ianques terem roubado tudo.
- Quase nos mataste. Estávamos como mortas com a febre tifóide, e tu
arrastavas-nos da cama para nos mandares para os campos, à torreira do sol... -
Suellen ia ficando mais animada e mais veemente, à medida que repetia todas as
recriminações guardadas durante anos.
Scarlett assentiu, encorajando-a com murmúrios de contrição. "Como ela gosta de
se lamuriar", pensou. "Precisa disso como de pão para a boca." Esperou que a irmã
abrandasse, antes de dizer:
- Sinto-me tão mesquinha, mas não há nada que eu possa fazer para vos
compensar por tudo o que vos fiz passar. Will está sendo preverso não me deixando
dar-vos dinheiro. No fim de contas, é para Tara, e Tara também é a minha casa.
- Já lhe disse isso centenas de vezes - replicou Suellen.
"Aposto que sim", pensou Scarlett.
- Os homens são tão teimosos - retorquiu. - Suellen, acabo de me lembrar de uma
coisa. Diz que sim, era uma bênção para mim se o fizesses. Will não poderia
aborrecer-se com isso. E se eu deixasse a Ella e o Wade aqui e vos enviasse dinheiro
para o sustento deles? A vida na cidade tornou-os preguiçosos e o ar do campo lhes
faria maravilhas.
- Não sei, Scarlett. Quando o bebê nascer vamos ser demais aqui. - Suellen era
gananciosa, mas prudente.
- Eu sei - murmurou delicadamente. - Além disso, Wade Hampton come muito.
Mas seria tão bom para eles, pobres meninos da cidade. Acho que seriam precisos
cerca de cem dólares só para os alimentar e comprar calçado.
Duvidava de que Will conseguisse arranjar cem dólares em dinheiro só com o seu
duro trabalho em Tara. Notou com satisfação que Suellen estava sem palavras. Estava
certa de que a voz dela voltaria a tempo de aceitar a proposta que lhe fizera. "Depois
do café vou passar um cheque bem gordo."
- Estes são os melhores biscoitos que já provei - disse Scarlett. - Posso comer
outro?
Estava começando a sentir-se muito melhor. Tinha dormido bem, tomara uma
bela refeição e os filhos estavam entregues. Sabia que devia voltar para Atlanta - ainda
tinha que tratar de Beau. Também tinha que tratar de Ashley, como prometera a
Melanie. Mas pensaria nisso mais tarde; viera para Tara em busca da paz e do
sossego do campo e estava determinada a não partir sem os encontrar.
Após o café, Suellen saiu para a cozinha. Provavelmente, ia queixar-se de alguma
coisa, pensou com crueldade. Não se importava, isso permitia-lhe ficar sozinha e em
paz...
"A casa está tão calma. As crianças devem estar comendo na cozinha. Will já há
muito que deve ter ido para os campos, com Wade seguindo-o que nem um cão, tal
como costumava fazer desde que Will veio para Tara. Wade é muito mais feliz aqui do
que em Atlanta, principalmente agora que Rhett se foi. Não, não vou pensar nisso
agora. Fico maluca se o fizer. Vou é aproveitar a paz e o sossego, que foi por isso que
para cá vim."
Serviu-se de outra xícara de café, não se importando por este estar apenas
morno. A luz do sol entrava pela janela atrás de si, indo iluminar o quadro na parede
oposta, por cima do velho aparador. Will tinha feito um ótimo trabalho de recuperação
na mobília que os soldados ianques tinham partido. Mas nem mesmo ele conseguia
remover as profundas marcas deixadas pelas espadas, nem o buraco feito pelas
baionetas no retrato da avó Robillard.
O soldado que a golpeou devia estar bêbado, imaginou. Falhou o ar arrogante,
quase de escárnio, no rosto franzino da avó, assim como os peitilhos que rodeavam o
vestido barato que usava. Tudo o que fez foi cortar-lhe a orelha esquerda, e agora
parecia muito mais interessante só com uma.
A mãe da sua mãe era o único antepassado que interessava realmente a Scarlett
e sentia-se frustrada por ninguém lhe ter contado o suficiente sobre a avó. Tinha
casado três vezes, fora tudo o que conseguira saber pela mãe, nem mais um
pormenor. E Mammy cortava todas as histórias sobre Savannah, exatamente quando
começavam a tornar-se interessantes. Tinha havido duelos por causa da avó, e as
modas do tempo dela tinham sido escandalosas, com as senhoras a molharem
deliberadamente os finos vestidos de musselina para que estes se lhes colassem às
pernas. E a outros lugares também, a julgar pelo aspecto das coisas no retrato...
"Eu devia corar por pensar este tipo de coisas", disse Scarlett para si própria. Ao
sair da sala de jantar, olhou para o retrato, por cima do ombro. Como seria ela
realmente?
A sala de estar mostrava sinais de pobreza e uso constante por uma jovem
família. Scarlett mal podia reconhecer a poltrona forrada de veludo em que se sentara,
enquanto os galantes se declaravam. Tudo tinha sido mudado. Tinha de admitir que
Suellen tinha o direito de arranjar a casa como entendesse, mas estava cada vez pior.
Assim, não era realmente Tara.
Ficava mais desapontada à medida que ia de peça em peça. Nada estava na
mesma. De cada vez que vinha a casa havia mais mudanças e mais miséria. Por que
havia Will de ser tão obstinado? Toda a mobília precisava ser recuperada, as cortinas
estavam em farrapos, e podia ver-se o chão através das alcatifas. Podia arranjar coisas
novas para Tara, se Will a deixasse. Assim, não lhe doeria o coração ao ver as coisas
de que se lembrava, com um aspecto tão lamentavelmente gasto.
"Devia ser minha! Tomaria melhor conta dela. O papá sempre disse que me
deixaria Tara. Mas ele nunca fez testamento. Era mesmo dele, nunca pensava no
amanhã." Scarlett franziu o sobrolho, mas não conseguia zangar-se com o pai. Nunca
ninguém se tinha zangado com Gerald O'Hara. Ele era como uma amorosa criança
marota, mesmo quando já estava nos sessenta anos.
"A única com quem ainda estou zangada é Carreen. Irmã mais nova ou não, fez
mal em fazer o que fez, e nunca vou lhe perdoar. Nunca. Foi teimosa que nem uma
mula quando decidiu ir para o convento, e eu acabei por aceitar. Mas nunca me disse
que ia usar a sua terça parte de Tara como dote.
"Deveria ter me dito! Eu lhe teria arranjado o dinheiro de algum modo. Assim,
seria dona de dois terços. Não a totalidade, como deveria ser, mas pelo menos o
controle claro. Desse modo teria uma palavra a dizer. Em vez disso, tenho que ficar
calada enquanto vejo tudo ir por água abaixo e a Suellen dar-se ares de rainha. Não é
justo. Fui eu quem salvou Tara dos ianques e dos carpetbaggers. Não importa o que a
lei diz. É minha, e um dia será de Wade. Vou tratar disso e não me importa o que
custe."
No pequeno quarto a partir do qual Ellen O'Hara dirigira calmamente a plantação,
Scarlett descansou a cabeça na cobertura gasta do velho sofá de couro. Depois de
todos aqueles anos, parecia haver ainda um leve traço da água de colônia de limão e
verbena usada pela mãe. Era esta a quietude que tinha vindo procurar. Não
importavam as mudanças, a miséria. Tara ainda era Tara; ainda era o seu lar. E o
coração dela estava ali, no quarto de Ellen.
O bater de uma porta quebrou o silêncio.
Scarlett ouviu Ella e Susie atravessarem o átrio, discutindo sobre qualquer coisa.
Tinha que sair dali; não podia suportar barulhos e conflitos. Correu para a rua; queria
mesmo ver os campos. Estavam todos tratados, vermelhos e ricos, como sempre
tinham sido.
Caminhou rapidamente através do prado cheio de ervas e passou pelo telheiro
das vacas. Nunca ultrapassaria a sua aversão a vacas, nem que vivesse até os cem
anos; eram umas coisas horríveis com chifres aguçados.
Junto ao primeiro campo debruçou-se sobre a cerca e respirou o cheiro de
amônio emanado do estrume e da terra remexida. "É engraçado como o estrume da
cidade é tão malcheiroso e tão sujo, enquanto no campo é o perfume do agricultor.
"Will é com certeza um bom agricultor. Ele é a melhor coisa que já aconteceu a
Tara. O que quer que eu pudesse ter feito, nunca o conseguiríamos se ele não tivesse
parado aqui a caminho de casa, na Florida, e não tivesse decidido ficar. Apaixonou-se
por esta terra da mesma maneira que outros homens se apaixonam por uma mulher. E
nem sequer é irlandês! Até Will aparecer, pensava que só um irlandês, como o papá,
pudesse amar tanto a terra."
No lado oposto do campo viu Wade ajudando Will e Big Sam a consertarem um
pedaço de cerca que estava caído. Achou que era bom para ele estar aprendendo; era
a sua herança. Durante alguns minutos ficou olhando para eles, trabalhando juntos.
"Era melhor ir já para casa", pensou. "Esqueci-me de passar o cheque a Suellen."
A assinatura no cheque era típica de Scarlett. Clara e sem enfeites; sem borrões
ou linhas hesitantes, como os escritores experimentais. Uma assinatura direta, como as
usadas nos negócios. Olhou para ela por um momento antes de a secar com o mata-
borrão, e voltou a olhá-la depois disso.
Scarlett O'Hara Butler.
Quando escrevia mensagens pessoais nos convites, Scarlett seguia a moda da
altura, fazendo enfeites complicados em cada letra maiúscula e terminando com uma
parábola de remoinhos por debaixo do nome. Fê-lo agora num pedaço de papel de
embrulho castanho. Depois, olhou para o cheque que acabara de escrever. Estava
datado. Tivera que perguntar a data a Suellen e ficara surpresa com a resposta: 11 de
Outubro de 1873. Tinham passado mais de três semanas desde a morte de Melly.
Estava em Tara há vinte e dois dias, cuidando de Mammy.
A data tinha ainda outros significados. A morte de Bonnie ocorrera há mais de
seis meses. Scarlett podia já deixar a monotonia do preto usado em luto pesado. Podia
aceitar convites para acontecimentos sociais e podia convidar pessoas para sua casa;
podia voltar ao mundo.
"Quero voltar para Atlanta", pensou. "Quero alegria. Na minha vida tem havido
demasiada dor, mortes demais. Preciso de vida."
Dobrou o cheque para Suellen. "Também sinto falta da loja. Os livros de contas
devem estar numa confusão medonha. Além do mais, Rhett voltará a Atlanta 'para
impedir os mexericos'. Tenho que lá estar."
O único som que conseguia ouvir era o lento tique-taque do relógio por detrás da
porta fechada. O silêncio pelo qual ansiara durante tanto tempo estava agora,
subitamente, a enlouquecê-la. Levantou-se de repente.
"Darei o cheque a Suellen depois do almoço, assim que Will voltar para os
campos. Depois pego a charrete e vou fazer uma rápida visita aos amigos em Fairhill e
Mimosa. Nunca me perdoariam se não passasse lá para cumprimentá-los. À noite faço
as malas e amanhã apanho o trem da manhã."
"Volto para Atlanta. Por muito que ame Tara, já não é a minha casa. Chegou a
hora de partir."
A estrada para Fairhill estava cheia de ervas e de sulcos. Scarlett lembrou-se de
quando a estrada era alisada todas as semanas e borrifada com água para não
levantar pó. "Já lá vai o tempo...", pensou com tristeza. "Havia pelo menos dez
plantações a curta distância, e as pessoas visitavam-se a toda a hora. Agora só resta
Tara e as plantações dos Tarletons e dos Fontaines. Tudo o resto são chaminés
queimadas ou paredes caindo. Tenho mesmo de voltar à cidade. Tudo no campo me
põe triste." As molas da charrete e o velho e vagaroso cavalo eram quase tão ruins
como as estradas. Pensou na sua carruagem acolchoada, parelha a condizer, com
Elias para conduzindo. Precisava realmente voltar para casa, em Atlanta.
A ruidosa alegria que reinava em Fairhill tirou-a daquela disposição. Como de
costume, Beatrice Tarleton não parava de falar nos seus cavalos e nada mais lhe
interessava. Scarlett notou que os estábulos tinham um telhado novo. O telhado da
casa tinha remendos novos. Jim Tarleton parecia velho, o seu cabelo estava branco,
mas tinha tido uma boa colheita de algodão com a ajuda do genro maneta, o marido de
Betsy. As outras três raparigas continuavam velhas solteironas.
- Claro que passamos os dias e as noites chorando por causa disso - disse Hetty,
e todos se riram. Scarlett não os entendia de todo. Os Tarletons conseguiam rir de
tudo. Talvez isso tivesse algo a ver com os seus cabelos ruivos.
A inveja que sentiu não era nada de novo. Desde sempre desejara fazer parte de
uma família tão terna e brincalhona como os Tarleton. Abafou a inveja que sentia;
estava sendo desleal com a mãe. Ficou muito tempo ali; estar com eles era muito
divertido. Teria que visitar os Fontaine no dia seguinte. Era quase noite quando chegou
a Tara. Mesmo antes de abrir a porta, já podia ouvir o filho mais novo de Suellen
chorando por qualquer coisa. Era realmente hora de voltar para Atlanta.
Mas havia novidades que a fizeram logo mudar as suas decisões. Suellen pegou
a ruidosa criança e a fez calar-se mesmo quando Scarlett entrava pela porta. Apesar
do seu cabelo em desalinho e do seu corpo informe, Suellen estava mais bonita que
em criança.
- Oh, Scarlett! - exclamou. - Há grandes novidades, nem adivinhas... Vamos,
querido, vou-te dar um belo pedaço de osso ao jantar e podes mastigar à vontade, para
esse dente maroto não te machucar mais.
"Se um dente novo é uma grande novidade, nem quero sequer tentar adivinhar",
apeteceu-lhe dizer. Mas Suellen nem lhe deu tempo.
- Tony voltou! - disse Suellen. - Sally Fontaine veio aqui dizer-nos e acabou de
sair. Tony está de volta! São e salvo. Vamos todos jantar na casa dos Fontaine,
amanhã à noite, logo que Will acabe de tratar das vacas. Oh, Scarlett, não é
maravilhoso? - O sorriso de Suellen era radiante. - O condado está de novo enchendo-
se de gente.
Scarlett sentiu vontade de abraçar a irmã, um impulso que nunca sentira antes.
Suellen estava certa, era maravilhoso ter Tony de volta. Receara que nunca mais
ninguém o visse; agora, a terrível lembrança da última vez que o vira podia ser
esquecida para sempre. Estava tão exausto e preocupado, encharcado até os ossos e
a tremer. Quem não estaria gelado e cheio de medo? Os ianques estavam mesmo
atrás dele e ele corria, tentando salvar a vida, depois de ter morto o negro que
maltratara Sally. Depois matara o miserável que encorajara o idiota do negro a ir atrás
de uma branca.
Tony voltara! Mal podia esperar pela tarde do dia seguinte. O County estava a
voltar à vida.
4
A plantação dos Fontaine era conhecida por Mimosa por causa do pequeno
bosque que rodeava a casa de estuque amarelo-desmaiado. As flores cor-de-rosa,
parecidas com penas, tinham caído no fim do Verão, mas as folhas verdes como fetos
estavam ainda nos ramos. Ondulavam como dançarinas ao vento, fazendo manchas de
sombra, sempre a mudar, nas paredes sarapintadas da casa cor de manteiga. A luz
baixa e oblíqua do sol dava-lhe um ar quente e acolhedor.
"Espero que Tony não tenha mudado muito", pensou Scarlett um pouco nervosa.
"Sete anos é tanto tempo..." Os seus pés arrastaram-se quando Will a ajudou a descer
da charrete. E se Tony estivesse velho e cansado e derrotado, como Ashley? Isso era
mais do que conseguia suportar. Dirigiu-se devagar para a porta, atrás de Suellen e
Will.
A porta abriu-se de rompante e todas as suas apreensões se desvaneceram.
- Quem vem lá devagar, como se fosse para a igreja? Não sabem correr para dar
as boas-vindas a um herói acabado de chegar?
A voz de Tony era alegre, tal como antes; o cabelo preto como nunca; o sorriso
vivo e travesso.
- Tony! Estás na mesma - gritou Scarlett.
- És mesmo tu, Scarlett? Vem dar-me um beijo. Tu também, Suellen. Não eras
generosa com os beijos como a Scarlett, nos velhos tempos, mas o Will deve ter-te
ensinado umas coisas depois de terem casado. Agora que estou de volta, quero beijar
todas as mulheres com mais de seis anos do estado da Geórgia.
Suellen abafou o riso, nervosa, e olhou para Will. Um leve sorriso no seu plácido e
fino rosto mostraria a sua autorização, mas Tony não se deu ao trabalho de esperar.
Agarrou-a pela cintura delgada e pregou-lhe um beijo nos lábios. Estava rosada de
prazer e confusão quando ele a largou. Os arrogantes irmãos Fontaine tinham prestado
pouca atenção a Suellen nos anos anteriores à guerra, anos de galãs e belas meninas.
Will pôs o braço em volta dos ombros dela de uma forma forte e carinhosa.
- Scarlett, querida! - gritou Tonny, de braços abertos.
Scarlett deixou-se cingir e pôs os braços à volta do pescoço dele, num abraço
apertado.
-Ficaste muito mais alto, lá no Texas! - exclamou. Tony sorria à medida que
beijava os lábios que ela lhe oferecia. Depois levantou a perna das calças para lhe
mostrar as botas de tacão alto que tinha calçadas.
- Todo mundo fica mais alto no Texas - respondeu Tony. - Não me surpreenderia
se fosse lei.
Alex Fontaine sorriu por cima do ombro de Tony.
- Vais ouvir mais do que podes sobre o Texas - disse Alex lentamente. - Isto é, se
Tony te deixar entrar em casa. Ele esqueceu-se de coisas como essas. No Texas todos
vivem à volta de fogos-de-campo debaixo das estrelas, em vez de terem telhados e
paredes. - Alex resplandecia de felicidade. "Parece que ele próprio tem vontade de
abraçar e beijar Tony, e por que não? Enquanto cresciam eram unha com carne. Alex
deve ter sentido muito a falta dele." Subitamente, os olhos encheram-se de lágrimas. O
exuberante regresso de Tony era o único acontecimento feliz no condado desde que as
tropas de Sherman tinham devastado a terra e as vidas das pessoas que lá viviam. Mal
sabia como lidar com tão súbita felicidade.
A mulher de Alex, Sally, puxou-a pela mão quando entrou na decadente sala de
estar.
- Eu sei como te sentes, Scarlett - segredou-lhe Sally. - Quase nos tínhamos
esquecido como nos divertirmos. Houve mais sorrisos nesta casa hoje do que nos
últimos dez anos juntos. Esta noite vamos deitar a casa abaixo!
- Os olhos de Sally estavam também cheios de lágrimas.
A festa começou. Entretanto, os Tarletons chegaram.
- Graças a Deus voltaste inteiro, rapaz! - Foi assim que Beatrice Tarleton
cumprimentou Tony. - Podes atirar-te a qualquer uma das minhas três filhas. Só tenho
uma neta e estou ficando velha.
- Oh, mamã! -gemeram Hetty, Camilla e Miranda Tarleton em coro. Depois
desataram a rir. A preocupação da mãe em criar cavalos e pessoas era
suficientemente conhecida para fingirem embaraço. Mas Tony estava vermelho que
nem um pimentão.
Scarlett e Suellen vaiaram-nos.
Beatrice Tarleton insistiu em ver os cavalos que Tony trouxera do Texas antes
que a noite caísse. Instalou-se uma acalorada discussão acerca dos méritos dos puro-
sangue orientais contra os cavalos bravos da Califórnia, até que alguém pediu tréguas.
- E uma bebida - disse Alex. - Até consegui arranjar uísque de verdade para
celebrarmos.
Jim Tarleton deu umas pancadinhas no ombro da mulher.
- Beatrice, podes discutir isso com Tony durante os próximos meses. Anos até... -
Mrs. Tarleton franziu a testa e depois encolheu os ombros em sinal de derrota. Para
ela, nada era mais importante que os cavalos, mas não faltariam oportunidades, e esta
era a noite de Tony. Além disso, ele tinha ido embora, seguindo Alex em direção à
mesa onde estavam os copos e o uísque genuíno.
Scarlett desejou, não pela primeira vez, que tomar uma bebida não fosse um
prazer do qual as senhoras estivessem automaticamente excluídas. Teria gostado de
tomar uma. Ainda mais, teria preferido falar com os homens em vez de ficar desterrada
no outro lado da sala, falando de bebês e de economia doméstica. Nunca tinha
percebido, nem aceito a tradicional separação dos sexos. Mas esse era o modo como
as coisas eram feitas, sempre tinham sido, e resignou-se a isso. Pelo menos, podia
divertir-se vendo as meninas Tarleton fingir que não pensavam exatamente como a
mãe. Se ao menos Tony olhasse para elas, em vez de ficar embrenhado naquilo de
que os homens estavam falando!
- O pequeno Joe deve estar felicíssimo por ter o tio em casa - estava Hetty
Tarleton dizendo a Sally. Hetty podia dar-se ao luxo de ignorar os homens. O seu
marido, gordo e maneta, era um deles. Era a única das filhas dos Tarleton que
conseguira arranjar alguém para casar.
Sally respondeu a Suellen com pormenores acerca do filho, que aborreceram
Scarlett terrivelmente. Perguntou-se se ainda faltaria muito para o jantar. Não podia
faltar muito; todos os homens eram agricultores e tinham que se levantar de
madrugada no dia seguinte. Isso significava que a festa teria que acabar cedo.
Estava certa quando pensou que o jantar seria cedo; os homens anunciaram que
estavam prontos, depois de uma única bebida.
Mas enganara-se acerca do fim antecipado da festa. Todo mundo estava
divertindo-se demais para a deixar acabar. Tony fascinou-os com histórias das suas
aventuras.
- Faltava pouco menos de uma semana para me juntar aos Texas Rangers! -
exclamou com uma risada. - O estado estava sob o controle militar dos ianques, tal
como todo o Sul, mas com mil raios!... Desculpem minhas senhoras, aqueles casacas
azuis não sabiam o que fazer com os índios. Os Rangers tinham estado a combatê-los,
e a única esperança que os rancheiros tinham era de que os Rangers os continuassem
a proteger. E foi isso que fizeram. Soube logo que estava entre os meus, e alistei-me.
Foi magnífico! Não havia uniformes, não havia marchas com o estômago vazio, para
onde quer que um estúpido general quisesse que fôssemos, nada de exercícios, nada
de "Sim, senhor!". Juntávamo-nos a um grupo de camaradas e íamos em frente, à luta!
Os olhos pretos de Tony piscavam de entusiasmo. Os de Alex também. Os
Fontaines sempre tinham gostado de uma boa luta, e odiavam a disciplina.
- Como são os índios? - perguntou uma das meninas Tarleton. - Eles torturam
realmente as pessoas?
- Não vais querer ouvir isso - replicou Tony, com os olhos e o sorriso subitamente
tristes. Depois riu. - São espertos como raposas, quando é hora de lutar. Os Rangers
aprenderam depressa que se queriam derrotá-los, teriam que aprender o seu modo de
fazer as coisas. Podemos encontrar a pista de um homem ou animal nas rochas ou
mesmo na água, melhor que qualquer cão de caça. E viver de solas e ossos, se só
houver isso. Nada pode vencer ou fugir a um Texas Ranger.
- Mostra-nos o teu revólver de seis tiros, Tony - disse Alex.
-Agora não. Talvez amanhã, ou no dia seguinte. Sally não quer que eu lhe faça
buracos na parede.
- Eu não disse para disparares, pedi que o mostrasses - Alex arreganhou os
dentes para os amigos. - Tem o punho cravado de marfim, gabou-se. - Esperem até
que o meu irmãozinho vá visitar vocês, montado na sua grande sela do velho oeste.
Tem tanta prata nela que quase ficamos cegos com o brilho.
Scarlett sorriu. Já devia ter imaginado. Tony e Alex sempre tinham sido os
homens mais vaidosos de toda a Geórgia do Norte. Obviamente, Tony não mudara
nem um pouco. Botas janotas, de cano alto, prata na sela... Apostava que vinha com os
bolsos tão vazios como quando partira, fugindo do carrasco. Era um enorme disparate
ter prata na sela, quando a casa em Mimosa precisava de um telhado novo. Mas de
Tony estava bem isso. Isso significava que ainda era o mesmo. Alex estava orgulhoso
dele como se tivesse chegado com um vagão carregado de ouro. Como os adorava!
Podiam só ter ficado com uma quinta que eles próprios tinham que amanhar, mas os
ianques não tinham derrotado os Fontaines, não tinham sequer sido capazes de lhes
fazer mossa.
- Meu Deus, os rapazes teriam adorado andar cavalgando por aí, polindo a prata
com o traseiro! - exclamou Beatrice Tarleton.
Scarlett respirou fundo. "Por que razão Mrs. Tarleton tinha que estragar sempre
tudo? Por que arruinar uma noite tão feliz, lembrando a todos que todos os seus velhos
amigos estavam mortos?"
Mas nada estava perdido.
- Eles não seriam capazes de manter as selas por uma semana, Miss Beatrice,
sabe bem - respondeu Alex. - Teriam perdido num jogo de pôquer ou vendido para
comprar champanhe para uma festa precisando de animação. Lembra-se de quando
Brent vendeu toda a mobília do quarto na universidade e comprou cigarros a um dólar
para todos os rapazes que nunca tinham fumado?
- E quando Stuart perdeu o traje jogando as cartas e teve que se escapulir
daquela festa a rigor embrulhado num tapete? - acrescentou Tony.
- O melhor foi quando ele empenhou os livros de leis de Boyd, mesmo antes do
seu primeiro julgamento no tribunal do condado - acrescentou Jim Tarleton. - Julguei
que os esfolavas vivos, Beatrice.
- A pele acabaria sempre por lhes crescer de novo - disse Mrs. Tarleton,
sorridente. - Tentei partir-lhes as pernas quando colocaram fogo na casa do gelo, mas
eles corriam demais para que os pudesse apanhar.
- Foi dessa vez que vieram para Lovejoy e se esconderam no nosso celeiro -
retorquiu Sally. - As vacas ficaram sem leite durante uma semana, quando os gêmeos
tentaram tirar sozinhos um balde de leite para beberem.
Todos tinham uma história sobre os gêmeos Tarleton, e essas histórias levaram a
outras sobre os seus amigos e irmãos mais velhos - Lafe Munroe, Cade e Raiford
Calvert, Tom e Boyd Tarleton, Joe Fontaine -, todos rapazes que nunca tinham voltado
para casa. As histórias eram a riqueza partilhada da memória e do amor. À medida que
iam sendo contadas, os cantos da sala iam ficando cheios com a juventude sorridente
daqueles que estavam mortos. Mas, agora, finalmente, não mais perdidos, pois podiam
ser lembrados com ternas risadas em vez de desesperada amargura.
A geração mais velha também não estava esquecida. Todos à volta da mesa
tinham belas lembranças da velha Miss Fontaine, a avó de Tony e Alex, com a sua
língua afiada e coração doce. E da mãe deles, chamada Jovem Miss, até ao dia em
que morreu, no seu sexagésimo aniversário. Scarlett descobriu que podia partilhar o
terno divertimento provocado pelo inconveniente hábito do pai de cantar canções
rebeldes irlandesas, quando tinha, como ele dizia, "bebido um copinho". Podia até ouvir
falar na bondade da mãe sem a dor que tinha antes sido a sua resposta imediata, cada
vez que ouvia o nome de Ellen O'Hara.
A conversa continuou, hora após hora, muito depois dos pratos estarem vazios e
o lume reduzido a cinzas. Os doze sobreviventes ressuscitaram todos os entes
queridos que não podiam estar ali para dar as boas-vindas a Tony. Era uma ocasião
feliz, uma ocasião de conciliação. A luz tênue e trêmula do candeeiro de petróleo no
centro da mesa não mostrava nenhuma das cicatrizes deixadas na mobília pelos
homens de Sherman, nem as paredes da sala, manchadas pela fumaça. Os rostos em
volta da mesa não tinham rugas, as roupas não tinham remendos. Nestes momentos
de ilusão, era como se Mimosa tivesse sido transportada para um lugar e um tempo
sem história, onde não havia dor e nunca tinha havido uma guerra.
Muitos anos antes, Scarlett tinha jurado a si própria nunca olhar para trás.
Relembrar os calmos dias anteriores à guerra e suspirar por eles só poderia magoá-la.
Precisava de toda a sua força e determinação para sobreviver e proteger a sua família.
As memórias partilhadas na sala de jantar, em Mimosa, não eram todas uma fonte de
fraqueza. Deram-lhe coragem, eram a prova de que as pessoas boas podiam sofrer
qualquer perda e mesmo assim manter a capacidade de amar e sorrir. Sentia-se
orgulhosa de pertencer a esse grupo, orgulhosa de lhes poder chamar amigos,
orgulhosa por serem como eram.
No caminho de casa, Will caminhou à frente da charrete, segurando uma tocha e
conduzindo o cavalo. A noite estava escura e era já muito tarde. Por cima deles, as
estrelas brilhavam num céu sem nuvens, tão brilhante que a lua parecia quase
transparente. O único som que se ouvia era o das ferraduras do cavalo.
Suellen dormitava, mas Scarlett lutou contra o sono. Não queria que a noite
acabasse, queria que aquele doce conforto e felicidade durassem para sempre. Que
forte estava Tony! Tão cheio de vida, tão feliz com as suas engraçadas botas, consigo
próprio, com tudo... "As meninas Tarleton portaram-se como um bando de gatinhas
ruivas e faladoras a olharem para uma tigela de leite. Qual delas irá apanhá-lo?
Beatrice Tarleton vai certamente fazer tudo para que uma delas o consiga."
No bosque perto da estrada, uma coruja fez "uuuu... uuu..." e Scarlett riu para si
própria.
Estavam a mais de meio caminho de Tara quando reparou que não pensava em
Rhett há imenso tempo. Então, a melancolia e a preocupação abateram-se sobre ela e
só então percebeu que a noite estava fria e o seu corpo gelado. Embrulhou-se mais no
xale e, silenciosamente, pediu a Will que se apressasse.
"Não quero pensar em nada, esta noite não. Não quero estragar a bela noite que
passei. Rápido, Will, está frio e escuro."

Na manhã seguinte, Scarlett e Suellen levaram as crianças na carroça até


Mimosa. Quando Tony mostrou os seus revólveres de seis tiros, os olhos de Wade
brilharam, muito abertos, em adoração ao herói. Até Scarlett ficou deliciosamente
espantada ante a visão das pistolas girando, ao mesmo tempo, nos dedos de Tony.
Tony surpreendeu-os ainda, atirando as pistolas ao ar e deixando-as cair nos coldres,
suspensos nas ancas com um original cinto cravejado de prata.
- Elas também disparam? - perguntou Wade.
- Disparam, sim senhor. Quando fores um pouco mais velho, ensino-te a usá-las.
- E a girá-las como tu?
- Sim, claro. Não serve de nada ter um revólver destes se não se fizerem truques
com ele - Tony acariciou o cabelo de Wade. - Também te vou ensinar a montar à
maneira do Oeste, Wade Hampton. Acho que vais ser o único rapaz nesta região que
saberá como deve ser uma verdadeira sela. Mas não podemos começar hoje. O meu
irmão vai dar-me lições de agricultura. Vê como as coisas são, todo mundo tem sempre
que aprender coisas novas.
Tony despediu-se depois de plantar rápidos beijos nas bochechas de Scarlett e
Suellen e na testa das meninas.
- Alex está à minha espera lá em baixo, perto do riacho.
- Por que não vão encontrar a Sally? Acho que ela está lavando roupa lá atrás da
casa.
Sally pareceu feliz por as ver, mas Suellen recusou o convite para tomar uma
xícara de café.
- Tenho que voltar para casa e fazer o mesmo, não posso ficar. Só não queríamos
ir embora sem te dizer olá.
Suellen apressou Scarlett a voltar à carroça.
- Não vejo por que tens de ser tão descortês com Sally, Suellen. A tua roupa
podia esperar enquanto tomávamos uma xícara de café e conversávamos sobre a
festa.
- Scarlett, não sabes nada de como se orienta uma quinta. Se Sally se atrasasse
com a roupa, tudo o resto estaria atrasado. Aqui não conseguimos arranjar um monte
de criados, como tu tens em Atlanta. Temos que fazer grande parte do trabalho nós
próprias.
Scarlett levantou a cabeça orgulhosamente, ao perceber o tom de voz da irmã.
- Talvez o melhor seja voltar a Atlanta no trem da tarde - respondeu de mau
humor.
- Isso tornar-nos-ia as coisas muito mais fáceis - retorquiu Suellen. - Tu só dás
mais trabalho, e eu preciso daquele quarto para Susie e Ella.
Scarlett abriu a boca para retrucar, mas depois fechou-a. Preferia mesmo estar
em Atlanta. Se Tony não tivesse vindo, já estaria lá. As pessoas também ficariam
contentes por a ver. Tinha muitos amigos em Atlanta que tinham muito tempo para
tomar café, para um jogo de cartas ou uma festa. Forçou um sorriso para os filhos,
virando as costas a Suellen.
- Wade Hampton, Ella, a mãe tem de ir para Atlanta hoje, depois do almoço.
Quero que me prometam que vão ser bons e não vão dar trabalho nenhum à tia
Suellen.
Scarlett esperou pelos protestos e as lágrimas. Mas as crianças estavam
ocupadas demais falando do espantoso revólver de Tony para lhe prestarem atenção.
Assim que chegaram a Tara, Scarlett mandou Pansy fazer-lhe a mala. Foi então que
Ellen começou a chorar.
- A Prissy foi-se embora e não sei de ninguém aqui para me fazer as tranças -
soluçou.
Scarlett resistiu ao impulso de dar uma bofetada na filha. Não podia ficar em Tara,
agora que tinha tomado a decisão de partir; ficaria doida sem nada para fazer, nem
ninguém com quem falar. Mas não podia viajar sem Pansy. Era indigno de uma
senhora viajar sozinha. Que havia de fazer? Ella queria que Pansy ficasse com ela.
Podia levar tempo até que Ella se habituasse a Lutie, a ama da pequena Susie. E se
Ella continuasse a chorar dia e noite, Suellen podia mudar de idéia acerca de manter
as crianças em Tara.
- Tudo bem, então! - exclamou Scarlett abruptamente, - Pára com esse barulho
horrível, Ella. Vou deixar a Pansy aqui até o fim da semana. Ela pode ensinar Lutie a
arranjar-te o cabelo. - Vou ter que me juntar a alguma mulher na estação de Jonesboro.
Deve haver alguém suficientemente respeitável viajando para Atlanta com quem eu
possa partilhar o lugar.
"Volto para casa no trem da tarde, e é tudo. Will pode levar-me até à estação e
voltar a tempo de ordenhar as suas horríveis vacas."
A meio caminho de Jonesboro, Scarlett parou de conversar animadamente sobre
o regresso de Tony Fontaine. Ficou em silêncio por uns momentos, depois proferiu
abruptamente o que estava na sua cabeça há tempo.
- Will, sobre Rhett, sobre o modo brusco como ele partiu, quer dizer, espero que
Suellen não vá dar à língua por todo o condado.
Will olhou-a com os seus pálidos olhos azuis.
- Sabes muito bem que a família não diz mal da família.
- Sempre achei uma pena tu não conseguires ver o lado bom de Suellen. Ele
existe, mas de algum modo não aparece quando tu estás por perto. Vais ter que confiar
em mim. Não importa como ela te julga, Suellen nunca falará nos teus problemas
pessoais a ninguém. Ela não quer que falem por aí dos O'Haras mais do que tu.
Scarlett relaxou um pouco. Confiava cegamente em Will. A palavra dele era mais
certa do que dinheiro no banco. E era esperto, também. Não se lembrava de Will
alguma vez se ter enganado sobre qualquer coisa, exceto, talvez, sobre Suellen.
- Acreditas que ele voltará, não acreditas, Will?
Will não precisava perguntar a quem ela se referia. Sentia a ansiedade por detrás
das palavras dela; mastigou tranqüilamente a palha ao canto da boca, enquanto
decidia como replicar. Por fim disse pausadamente:
- Não posso dizer que sim, Scarlett, mas não sou eu quem sabe. Apenas o vi
quatro ou cinco vezes em toda a minha vida.
Ela sentiu-se como se tivesse sido esbofeteada. Depois, uma fúria súbita apagou
a dor.
-Tu não percebes nada, Will Benteen! Rhett está zangado, mas isso passa. Ele
nunca desceria tão baixo a ponto de partir e deixar a sua mulher desamparada.
Will abanou a cabeça. Scarlett podia considerar isso uma concordância, se o
quisesse. Mas ele não esquecera a sardônica descrição que Rhett fizera de si próprio.
Era um canalha. A julgar pelo que as pessoas diziam, sempre o fora e provavelmente
sempre o seria.
Scarlett olhou fixamente para a familiar estrada de barro vermelho à sua frente.
Mantinha o queixo erguido e a sua cabeça trabalhava furiosamente. Rhett voltaria.
Tinha que voltar, porque ela queria e estava habituada a ter o que desejava. Tudo o
que tinha a fazer era pôr isso na cabeça.
5
O barulho e o movimento em Five Points eram um tônico para o espírito de
Scarlett. Também a desordem na secretária em sua casa o era. Precisava de vida e
ação à sua volta depois da entorpecedora sucessão de mortes, precisava de ter
trabalho para fazer.
Na loja que possuía em Five Points, havia um monte de jornais para ser lido,
pilhas de contas da loja, uma imensidão de contas para pagar e circulares para serem
rasgadas e jogadas fora. Scarlett suspirou de prazer e puxou a cadeira para perto da
secretária.
Verificou a frescura da tinta no tinteiro e a provisão de bicos para a caneta.
Depois, acendeu o candeeiro. Antes que acabasse tudo, já estaria escuro; talvez até
trouxesse um tabuleiro com o jantar para ali, enquanto trabalhava.
Pegou avidamente nas contas da loja, e as suas mãos pararam a meio caminho
quando um grande sobrescrito, no topo dos jornais, chamou a sua atenção. Estava
simplesmente endereçado "Scarlett", e a letra era de Rhett.
"Não vou lê-lo agora", pensou imediatamente, "vai interferir com tudo o que tenho
para fazer. Não estou preocupada com o seu conteúdo, nem um pouco, só não quero
vê-lo agora. Vou guardá-lo", disse para consigo "como uma sobremesa." Pegou, então,
numa mão-cheia de folhas de caixa.
Mas não conseguia concentrar-se na aritmética que fazia mentalmente, e acabou
por pôr as contas de lado e abrir o sobrescrito selado.
"Acredita-me", assim começava a carta de Rhett, "quando digo que estou
profundamente solidário com o teu sofrimento. A morte de Mammy foi uma grande
perda. Estou grato por me teres avisado a tempo de a ver antes que partisse."
Scarlett, enraivecida, ergueu os olhos dos grossos traços pretos e falou alto.
"Grato uma ova! Como pudeste mentir a ela e a mim, seu canalha!" Desejou poder
queimar a carta e atirar as cinzas à cara de Rhett, gritando-lhe aquelas palavras.
Vingar-se-ia por ele a ter envergonhado à frente de Suellen e Will. Não importava
quanto tempo tinha para esperar e planejar, arranjaria uma maneira. Ele não tinha o
direito de tratar Mammy daquela maneira, de gozar assim com os seus últimos desejos.
"Vou já queimá-la, nem sequer vou ler o resto! Não tenho nada que pôr os olhos
em mentiras destas!" A sua mão procurou a caixa de fósforos, mas quando lhe pegou,
largou-a imediatamente. "Vou morrer de curiosidade por saber o que lá estava", admitiu
a si própria. Baixou a cabeça e continuou a ler.
Rhett afirmava que a vida dela não ficaria alterada. As contas da casa seriam
pagas pelos advogados dele, uma providência tomada muitos anos antes, e todos os
levantamentos feitos sobre a conta bancária de Scarlett seriam repostos
automaticamente. Podia dar indicações às novas lojas em que abrisse contas sobre o
procedimento a seguir: enviarem as contas diretamente aos advogados de Rhett.
Alternativamente, poderia pagar as contas em cheque, sendo a quantia reposta no seu
banco.
Scarlett leu tudo isto fascinada. Tudo o que tinha a ver com dinheiro a
interessava. Sempre lhe tinha interessado, desde o dia em que tinha sido forçada pelo
Exército da União a descobrir o que era a pobreza. Acreditava que o dinheiro era
segurança. Amealhava o dinheiro que ela mesma ganhava e ficou chocada com a
generosidade de Rhett.
"Que idiota que ele é, eu podia roubá-lo descaradamente, se quisesse.
Provavelmente, os advogados devem andar falsificando os livros de contas há anos.
"Rhett deve ser imensamente rico, para poder gastar sem se importar com quê.
Sempre soube que ele era rico, mas não sabia que era tanto. Gostaria de saber quanto
dinheiro tem. Então, ele ainda me ama, isto prova-o. Nenhum homem poderia mimar
uma mulher como Rhett fez durante todos estes anos a não ser que a amasse até à
loucura. E vai continuar a dar-me toda e qualquer coisa que eu queira. Ele deve ainda
sentir o mesmo, ou, então, faria restrições aos gastos. Oh! Eu sabia! Eu sabia! Ele não
sentia todas aquelas coisas que me disse. Ele pura e simplesmente não me acreditou
quando lhe disse que agora sei que o amo."
Scarlett encostou a carta de Rhett ao rosto como se estivesse segurando a mão
que a escrevera. Ela o provaria. Provaria que o amava com todo o seu coração, e,
então, seriam felizes, as pessoas mais felizes de todo o mundo!
Cobriu a carta de beijos antes de a pôr cuidadosamente numa gaveta. Depois
pegou nas contas da loja com entusiasmo. Os negócios revigoravam-na. Quando uma
criada assomou à porta e timidamente a inquiriu sobre o jantar, Scarlett mal levantou os
olhos.
- Traz-me qualquer coisa num tabuleiro - disse - e acende o fogo no fogão da
sala.
A medida que a noite caía, ia ficando mais frio e estava com uma fome de lobo.
Naquela noite dormiu muitíssimo bem. A loja tinha feito bom negócio na sua
ausência, e o jantar confortara-lhe o estômago. Era bom estar em casa, principalmente
com a carta de Rhett seguramente guardada debaixo da almofada.
Acordou e espreguiçou-se languidamente. O ruído do papel debaixo da almofada
fê-la sorrir. Depois de ter tocado a campainha, pedindo o café, começou a planejar o
seu dia. Primeiro, iria à loja. Devia estar com as reservas em baixa; Kershaw mantinha
os livros em ordem, mas não tinha jeito para os negócios. Devia ter deixado acabar a
farinha e o açúcar antes de pensar em reabastecer os barris e, provavelmente, não
tinha encomendado querosene nem acendalhas, embora estivesse mais frio de dia
para dia.
Não tinha visto os jornais na noite anterior, e a ida à loja poupava-lhe essa
maçante leitura. Kershaw e os empregados contavam-lhe o que valesse a pena saber
sobre Atlanta. Não havia melhor que uma loja para saber de todas as histórias que
circulavam. As pessoas adoravam falar enquanto esperavam que lhes embrulhassem
as compras. A maior parte das vezes já sabia o que estava na primeira página antes
que o jornal fosse impresso; podia até atirá-lo para cima da secretária e não perder
nada.
O sorriso de Scarlett desapareceu. Não, não podia. Devia haver uma nota sobre o
funeral de Melanie, e queria vê-la.
Melanie... Ashley...
A loja teria que esperar. Tinha outras obrigações a fazer primeiro.
"O que me fez prometer a Melanie que tomaria conta de Ashley e Beau?"
"Mas prometi. É melhor ir lá primeiro. E é melhor levar Pansy para limpar tudo.
Em toda a cidade não se deve falar de outra coisa senão daquela cena no cemitério.
Não faz sentido aumentar os mexericos indo visitar Ashley sozinha." Scarlett
atravessou a grossa alcatifa correndo em direção à campainha e puxou-a
vigorosamente. Onde estava o seu café da manhã?
"Oh, não, Pansy estava ainda em Tara. Teria que levar uma das outras criadas.
Aquela nova rapariga, Rebecca, servia. Esperava que Rebecca a pudesse ajudar a
vestir-se sem fazer muita confusão. Queria apressar-se; começar e acabar de uma vez
os seus deveres.
Quando a carruagem parou em frente à pequena casa de Ashley e Melanie, em
Ivy Street, Scarlett reparou que a coroa de luto tinha desaparecido da porta e as
janelas estavam todas fechadas.
"Índia", pensou de imediato. Claro. Ela tinha levado Ashley e Beau para irem viver
na casa da tia Pittypat. Deveria estar terrivelmente satisfeita consigo própria.
Índia, a irmã de Ashley, sempre tinha sido uma implacável inimiga de Scarlett.
Scarlett mordeu o lábio e pensou no seu dilema. Tinha certeza de que Ashley
tinha se mudado com Beau para casa da tia Pitty; era a coisa mais sensata a fazer.
Sem Melanie, e agora que Dilcey se tinha ido embora, não havia ninguém para cuidar
da casa e do filho de Ashley. Na casa da tia Pittypat havia conforto, uma vida
doméstica em ordem e constante carinho para o menino, vindo de mulheres que o
tinham amado toda a sua vida.
"Duas velhas solteironas", pensou Scarlett com desdém. "Estão sempre prontas
para adorar qualquer coisa que use calças, ou mesmo calções. Se ao menos Índia não
vivesse com a tia Pitty." Com a tia, entendia-se Scarlett. A tímida senhora não se
atreveria a discutir com um gatinho, quanto mais com Scarlett.
Mas a irmã de Ashley era outra coisa, Índia adoraria ter uma discussão, dizer
coisas pavorosas na sua fria e afiada voz, pôr Scarlett na rua.
Se ao menos não tivesse prometido a Melanie, mas tinha... "Leva-me a casa de
Miss Pittypat Hamilton", ordenou a Elias. "Rebeca, vai andando para casa. Podes ir a
pé."
Devia haver paus-de-cabeleira suficientes na casa de Pitty.
Índia abriu-lhe a porta. Olhou para o elegante traje de manhã, adornado com
peles, que Scarlett tinha vestido. Um leve sorriso de satisfação moveu-lhe os lábios.
"Ri-te quanto quiseres, minha velha", pensou Scarlett. O vestido de luto de Índia
era de crepe preto carregado, sem sequer um botão a enfeitá-lo.
- Vim ver como está Ashley - disse ela.
- Não és bem-vinda aqui - respondeu Índia, começando a fechar a porta.
Scarlett empurrou-a.
- Índia Wilkes, não te atrevas a bater-me com a porta na cara. Eu fiz uma
promessa a Melly, e vou mantê-la, nem que tenha que te matar.
Índia respondeu-lhe, empurrando a porta com o ombro em resistência à força das
mãos de Scarlett. A luta indigna de ambas prolongou-se apenas alguns segundos.
Então, Scarlett ouviu a voz de Ashley.
- É Scarlett, Índia? Eu queria falar com ela.
A porta abriu-se de rompante e Scarlett entrou, notando com prazer o rosto
vermelho de raiva de Índia.
Ashley veio até o átrio, para a cumprimentar, e os passos rápidos de Scarlett
vacilaram. Ele tinha um aspecto doente.
Os olhos, pálidos, estavam rodeados por círculos negros; rugas profundas
ligavam-lhe as narinas ao queixo. As roupas pareciam grandes demais para ele; o
casaco caía-lhe sobre o corpo enfraquecido como as asas partidas num pássaro.
O coração saltou-lhe no peito. Scarlett já não amava Ashley como tinha amado
todos aqueles anos, mas ele ainda fazia parte da sua vida. Tinham partilhado tantas
memórias, durante tanto tempo. Não conseguia suportar vê-lo naquela agonia.
- Querido Ashley - disse com delicadeza -, vem sentar-te. Pareces cansado.
Durante mais de uma hora permaneceram sentados num canto, na pequena,
desarrumada e barulhenta sala de visitas da tia Pitty. Scarlett quase não falou.
Escutava, enquanto Ashley falava, repetindo-se e interrompendo-se num confuso
zigue-zague de memórias. Recontou histórias da bondade, generosidade e nobreza da
sua falecida esposa; do seu amor por Scarlett, por Beau e por ele. Ashley falava em
voz baixa e inexpressiva, num tom desmaiado pelo sofrimento e pelo desespero. A sua
mão procurou cegamente a de Scarlett e agarrou-a com tamanha força que os ossos
dela se apertaram uns contra os outros dolorosamente. Apertou os lábios e deixou-o
abraçar-se a ela.
Índia estava de pé, na arcada da porta, como um inspetor mudo e imóvel.
Finalmente, Ashley interrompeu-se e começou a virar a cabeça de um lado para o
outro como se estivesse cego e perdido.
- Scarlett, não posso continuar sem ela - gemeu -, não posso.
Scarlett empurrou-o com a mão. Tinha que quebrar a concha de desespero que o
envolvia, ou isso o mataria, tinha certeza. Levantou-se e inclinou-se para ele.
- Escuta-me, Ashley Wilkes - disse ela -, tenho estado a ouvir-te desfiar as tuas
mágoas todo este tempo, agora vais ouvir as minhas. Achas que és a única pessoa
que amava Melly e dependia dela? Eu amava-a e precisava dela, mais do que eu
pensava, mais do que alguém pensava. Acho que muitas outras pessoas a amavam e
dela dependiam. Mas não vamos esconder-nos e morrer por causa disso. É isso que tu
estás fazendo. Envergonhas-me. E Melly também se sente envergonhada, se nos está
vendo lá do céu. Fazes alguma idéia do que ela passou para Beau nascer? Bom, eu
sei o que ela sofreu e digo-te que o seu sofrimento teria morto o homem mais forte que
Deus já criou. Agora, tu és tudo o que ele tem. É isso que queres que Melly veja? Que
o seu filho está sozinho, praticamente um órfão, porque o pai tem pena demais de si
mesmo para se preocupar com ele? Queres despedaçar-lhe o coração, Ashley Wilkes?
Porque é isso mesmo que estás fazendo. - Pegou-lhe no queixo com a mão e forçou-o
a olhar para ela. - Controla-te, estás me ouvindo, Ashley? Vais já marchar para a
cozinha dizer à cozinheira que te prepare uma boa refeição quente. E vais comê-la. Se
te fizer vomitar, comes outra. Procura o teu filho. Pega-lhe no colo e diz-lhe que não
tenha medo, que ele tem um pai para cuidar dele. Faz isso. Pensa em alguém além de
ti próprio.
Scarlett limpou a mão à saia, como se o abraço de Ashley a tivesse sujado.
Depois saiu da sala, empurrando Índia do seu caminho.
Enquanto abria a porta que dava para o alpendre, pôde ouvir Índia:
- Meu pobre Ashley, não prestes atenção às coisas horríveis que Scarlett disse.
Ela é um monstro!
Scarlett parou e virou-se para trás. Retirou um cartão de visita da carteira e
deixou-o sobre a mesa.
- Deixo-lhe o meu cartão, tia Pitty, já que tem medo de me receber pessoalmente
- gritou.
Saiu, batendo a porta atrás de si.
- Vamos, Elias - disse ao cocheiro. - Para um lugar qualquer.
Não suportava ficar naquela casa nem mais um minuto. Que ia fazer? Teria
conseguido convencer Ahsley? Tinha sido tão má, bem, tinha de ser, ele estava sendo
afogado em compaixão e carinho, mas isso tinha-lhe feito algum bem? Ashley adorava
o filho, talvez se recompusesse, para bem de Beau. "Talvez" não era suficiente. Ele
tinha que fazê-lo. Ela tinha que o obrigá-lo a isso.
- Leva-me ao escritório de advogado do Sr. Henry Hamilton - ordenou a Elias.
O "tio Henry" era assustador para a maior parte das mulheres, mas não para
Scarlett. Ela podia compreender que crescer na mesma casa com a tia Pittypat o
tivesse tornado um misógino. Sabia que ele gostava dela, dissera-lhe que não era tão
pateta como a maioria das mulheres. Era o seu advogado e bem sabia como era astuto
no que respeitava aos negócios dela.
Quando entrou no escritório, sem esperar por ser anunciada, pousou a carta que
estava lendo e riu por entre os dentes.
- Entra, Scarlett - disse, pondo-se de pé. - Estás com pressa de processar
alguém?
Ela andava de trás para a frente, ignorando a cadeira perto da secretária.
- Apetecia-me matar alguém - respondeu -, mas não sei se isso ajudaria. É ou não
verdade que quando Charles morreu me deixou todas as suas propriedades?
- Sabes bem que sim. Pára com essa inquietação e senta-te. Ele deixou-te os
armazéns perto da estação que foram queimados pelos ianques. E deixou um pedaço
de terreno agrícola fora da cidade. Mais cedo ou mais tarde, vai estar dentro dela, da
maneira que Atlanta tem crescido...
Scarlett empoleirou-se na borda da cadeira, fixando os seus olhos nos dele.
- E metade da casa da tia Pitty, em Peachtree Street - disse claramente. - Ele
também me deixou isso?
- Deus meu, Scarlett! Não me digas que queres mudar-te para lá!
- Claro que não. Mas quero Ashley de lá para fora. índia e a tia Pitty vão matá-lo
de compaixão. Ele pode voltar para a casa dele. Eu arranjo-lhe uma governanta.
Henry Hamilton olhou-a de uma forma indagadora e inexpressiva.
- Tens certeza de que é por isso que o queres de volta a casa, por ele estar a ser
vítima de demasiada compaixão?
Scarlett fez-se de todas as cores.
- Pelo amor de Deus, tio Henry! - exclamou. - Está tornando-se um negociante de
escândalos, com essa idade?
- Não me mostres as garras, minha jovem. Senta-te aí nessa cadeira, vais ouvir
umas verdades duras. Tens talvez a melhor cabeça para o negócio que eu conheço,
mas tens tão pouco juízo como o idiota da aldeia.
Scarlett fez um ar carrancudo, mas obedeceu.
- Bom, sobre a casa de Ashley - disse o advogado devagar -, já foi vendida. Fiz a
escritura ontem. - Ergueu a mão para parar Scarlett antes que ela pudesse falar. -
Aconselhei-o a mudar para casa de Pitty e vender a sua. Não por causa da dor das
associações e memórias da casa, e não por estar preocupado sobre quem ia tomar
conta dele e do rapaz, apesar de ambos serem motivos válidos. Aconselhei-o a mudar,
porque ele precisava do dinheiro da venda para impedir o seu negócio de madeiras de
ir ao fundo.
- Que quer dizer? Ashley não percebe patavina de como fazer dinheiro, mas não
pode ir à falência. Os construtores precisam sempre de madeira.
- Se estiverem construindo. Desce do teu pedestal por um minuto e escuta,
Scarlett. Eu sei que não estás interessada em nada que aconteça no mundo a não ser
que te diga respeito, mas houve um grande escândalo financeiro em Nova Iorque, há
dois ou três dias. Um especulador chamado Jay Cooke fez mal os cálculos e ficou
arruinado, levando consigo a sua companhia ferroviária, uma coisa chamada Northern
Pacific. Levou à ruína uma série de outros especuladores, pessoas que eram seus
sócios na estrada-de-ferro e em outros dos seus negócios. Ao falirem juntamente com
ele, arrastaram um grande número de outros negócios em que estavam metidos, além
do negócio com Cooke. Então, aqueles que estavam envolvidos com ele faliram,
fazendo ir à ruína ainda mais negócios e mais pessoas. Tal como um castelo de cartas.
Em Nova Iorque chamam a isto "o pânico". Já está se espalhando. Creio que vai
chegar a todo o país, antes de acabar.
Scarlett sentiu uma punhalada de terror.
- E a minha loja? - gritou. E o meu dinheiro? Os bancos são seguros?
- Aquele em que tens conta é. Também lá tenho o meu dinheiro, por isso procurei
certificar-me. O fato é que Atlanta não deve ser muito marcada. Ainda não somos
suficientemente grandes para negócios de tanta monta como os que estão a arruinar-
se. Mas os negócios estão parados em todo o lado. As pessoas têm medo de investir
seja no que for. E se ninguém está construindo, ninguém precisa de madeira. Scarlett
franziu a testa.
- Então, Ashley não vai fazer mais dinheiro com as serrações. Isso posso eu ver.
Mas se ninguém está investindo, por que é que a casa dele se vendeu tão depressa?
Parece-me que se há pânico, os preços das propriedades deviam ser os primeiros a
cair.
O tio Henry arreganhou os dentes.
- Em cheio. És esperta, Scarlett. Foi por isso que disse a Ashley que vendesse
enquanto pudesse. Atlanta ainda não sentiu o pânico, mas vai chegar aqui depressa.
Estes últimos oito anos foram muito prósperos, que diabo, há mais de vinte mil pessoas
vivendo aqui, neste momento, mas não pode haver prosperidade sem dólares.
Riu muito da sua própria piada.
Scarlett riu com ele, embora não achasse nada de engraçado no colapso
econômico. Sabia que os homens gostam de ser apreciados.
A risada do tio Henry interrompeu-se bruscamente, como a água numa torneira.
- Então, agora Ashley está com a irmã e a tia por boas e apropriadas razões e de
acordo com o meu conselho. E isso não te agrada.
- Não senhor, não me agrada mesmo nada. Ele tem um ar pavoroso, e elas estão
a pô-lo pior. O andar dele parece o de um homem morto. Eu tive uma conversa com
ele, tentei tirá-lo do estado em que está, gritando com ele. Mas não sei se isso lhe fez
algum bem. Sei que não vai durar, mesmo que lhe fizesse algum bem. Pelo menos,
enquanto ele estiver naquela casa.
Olhou para a expressão cética do tio Henry. A raiva avermelhou-lhe o rosto.
- Não me importa o que ouviu ou pensa, tio Henry. Eu não estou interessada em
Ashley. Prometi a Melanie, antes de ela morrer, que cuidaria dele e de Beau. Desejava
muito não o ter feito, mas fiz.
A sua explosão fez Henry ficar inseguro. Ele não gostava de emoções,
especialmente nas mulheres.
- Se vais começar a chorar, vou ter de te pôr na rua.
- Não vou chorar. Não sou tola. Tenho que fazer algo e o senhor não me ajuda.
Henry Hamilton recostou-se na sua cadeira. Juntou as pontas dos dedos,
descansando os braços no grande estômago. Tinha um ar de advogado, quase judicial.
- Tu és a última pessoa que pode ajudar Ashley, agora, Scarlett. Disse-te que te ia
dizer umas verdades e essa é uma delas. Houve uma grande especulação sobre ti e
Ashley, verdadeira ou falsa, não me importa, Miss Melly defendeu-te, e grande parte
das pessoas a seguiram, por amor a ela, nota bem, não porque gostassem muito de ti.
Índia pensou o pior e disse-o. Juntou a sua pequena banda de crentes. Não era uma
situação bonita, mas as pessoas acomodaram-se, como sempre fazem. As coisas
podiam ter continuado assim para sempre, mesmo depois da morte de Melanie.
Ninguém gosta de rompimentos e mudanças. Mas não podias ter partido sozinha.
Tinhas que fazer o teu espetáculo ao lado da cova de Melanie. Que idéia foi essa de
atirares os teus braços ao marido dela, puxando-o para longe da falecida esposa, que
muitos julgavam quase uma santa?
Ela levantou uma mão.
- Sei o que vais dizer, por isso não te incomodes a dizê-lo, Scarlett. - As pontas
dos dedos dele tocaram-se de novo. - Ashley quase que se atirava para a cova, talvez
partisse o pescoço. Eu estava lá, vi tudo. Mas isso não vem ao caso. És uma rapariga
tão esperta e não conheces nada do mundo.
"Se Ashley se tivesse atirado para o caixão, toda a gente teria dito que era
"tocante". Se ele se tivesse realmente morto ao fazê-lo, teriam sentido verdadeira pena,
mas há regras para lidar com o sofrimento. A sociedade precisa de regras, Scarlett,
para se manter unida. O que tu fizeste quebrou as regras. Fizeste uma cena em
público. Puseste as mãos num homem que não era teu marido. Em público. Levantaste
um escarcéu que interrompeu um funeral, uma cerimônia da qual toda a gente sabe as
regras. Quebraste os últimos ritos de uma santa. Não há uma única senhora na cidade
que não esteja do lado de Índia. Isso significa, contra ti. Não tens um único amigo,
Scarlett. E se tens alguma coisa a ver com Ashley, vais fazer que ele seja tão
desprezado quanto tu."
"As senhoras estão contra ti. Deus te ajude, Scarlett, porque eu não posso.
Quando as senhoras cristãs se voltam contra alguém, é melhor não esperar a caridade
e o perdão cristãos. Não está nelas. Não o permitiriam a mais ninguém, especialmente
aos seus homens. Elas possuem-nos de corpo e alma. Foi por isso que sempre me
mantive afastado do erroneamente chamado "belo sexo".
"Desejo-te todo o bem, Scarlett. Sabes que sempre gostei de ti. É tudo o que
posso oferecer, por agora; boa sorte. Fizeste uma grande confusão, e não sei se
alguma vez vais poder pôr tudo em ordem."
O velho advogado pôs-se de pé.
- Deixa Ashley onde está. Um destes dias aparece uma senhora de falinha
mansas e agarra-o. Depois, ela tomará conta dele. Deixa a casa da Pittypat tal como
está, incluindo a tua metade. E não pares de mandar dinheiro através de mim para
pagar a sua manutenção, tal como tens feito. Isso satisfará a tua promessa a Melanie.
Vem. Acompanho-te à tua carruagem.
Scarlett pegou-lhe no braço e caminhou mansamente ao lado dele. Mas,
interiormente, estava fervendo. Devia saber que não teria ajuda nenhuma do tio Henry.
Teria que descobrir por si própria se o que ele dissera era verdade, se havia um
pânico financeiro, sobretudo, se o seu dinheiro estava seguro.
6
"Pânico", chamara-lhe Henry Hamilton. A crise financeira que começara em Wall
Street, em Nova Iorque, estava espalhando-se por toda a América. Scarlett estava
aterrorizada, com medo de perder o dinheiro que tinha ganho e poupado. Quando
deixou o escritório do velho advogado, foi imediatamente ao banco. Estava tremendo
por dentro quando chegou ao escritório do gerente do banco.
- Compreendo a sua preocupação, Mrs. Butler - respondeu ele, mas Scarlett
podia ver que não compreendia nada.
Não gostara que ela questionasse a segurança do banco sob a sua gerência.
Quanto mais falava, mais confiante parecia e menos Scarlett acreditava nele.
Então, inadvertidamente, ele apaziguou todos os medos dela.
- Não apenas continuaremos a pagar os dividendos normais aos nossos
acionistas, como irão ser um pouco mais altos que o costume. - Olhou para ela pelo
canto do olho. - Eu próprio só esta manhã tive esta informação - disse, zangado. - E
gostaria muito de saber como é que o seu marido tomou a decisão de aumentar as
suas ações há um mês atrás.
Scarlett sentiu-se capaz de gritar de alívio. Se Rhett estava comprar ações do
banco, este deveria ser o mais seguro de toda a América. Sempre fizera dinheiro
quando o resto do mundo estava no caos. Não sabia como ele tinha descoberto tudo
sobre a posição do banco, e não se importava. Para ela, era suficiente saber que Rhett
tinha confiança naquele banco.
- Ele tem uma pequenina bola de cristal - disse com uma risada volúvel, que
enfureceu o gerente. Sentia-se um pouco bêbada.
Mas não tinha a cabeça nas nuvens o suficiente para se esquecer de converter
em ouro todo o dinheiro que tinha no cofre. Ainda podia ver as desvalorizadas
obrigações da Confederação, elegantemente gravadas, das quais o pai tinha
dependido tanto. Não tinha fé alguma no papel.
Ao deixar o banco, parou nos degraus para desfrutar o sol quente do Outono e o
bulício das gentes na rua, na zona comercial. "Reparem naquelas pessoas correndo,
estão com pressa porque há que fazer dinheiro, não porque estejam com medo de
alguma coisa. O tio Henry é tolo. Não há pânico nenhum."
A próxima paragem foi na loja. Kennedy's Emporium, estava escrito na frente do
edifício, num grande letreiro com letras douradas. Tinha sido a sua herança do curto
casamento com Frank Kennedy. Aquilo e Ella. O prazer que a loja lhe dava
compensava largamente o desapontamento com a filha. A montra estava
impecavelmente limpa e tinha um satisfatório mostruário da mercadoria. Havia de tudo,
desde machados brilhantes até novos e resplandecentes alfinetes de costura.
No entanto, teria de lá tirar o algodão, que em breve ficaria amarelecido pelo sol e
teria de reduzir o preço. Scarlett entrou de rompante pela porta, pronta para tirar a pele
a Willie Kershaw, o empregado principal.
Mas, afinal de contas, não havia razão para isso. O algodão na montra tinha
chegado danificado pela água no navio e já estava marcado a um preço inferior. A
tecelagem que o fizera tinha concordado em reduzir dois terços do custo, por causa do
prejuízo. Kershaw tinha encomendado novas remessas, também sem ter sido
mandado. O pesado cofre quadrado de ferro, na sala dos fundos, estava repleto de
maços de moedas e notas, cuidadosamente contadas, enroladas e ensacadas, o
produto das receitas diárias.
- Paguei aos empregados subalternos, Miss Scarlett - explicou Kershaw
nervosamente -, espero ter feito bem. A despesa está nas contas de sábado. Os
rapazes disseram que não podiam passar sem o pagamento semanal. Não tirei o meu,
pois não sabia como a senhora queria que eu fizesse. Mas ficaria muito agradecido se
pudesse fazer isso...
- Claro, Willie - exclamou Scarlett graciosamente -, assim que conferir o dinheiro e
os livros de contas. - Kershaw tinha se saído melhor do que esperara, mas isso não
significava que ia permitir-lhe tomá-la por tola. Quando terminou de conferir as contas e
o dinheiro, contou os doze dólares e setenta e cinco centavos, para lhe pagar as três
semanas. Decidiu dar-lhe um dólar extra, quando no dia seguinte lhe pagasse o salário
daquela semana. Ele merecia um bônus por ter orientado bem as coisas, enquanto ela
estivera fora.
Estava também pronta a aumentar os deveres dele.
- Willie - disse-lhe em particular -, quero que abras uma conta a crédito.
Os olhos salientes de Kershaw abriram-se de espanto. Nunca tinha havido crédito
prolongado na loja, depois de Scarlett ter começado a geri-la. Ouviu cuidadosamente
as instruções dela. Quando ela o fez jurar que nunca diria nada a ninguém acerca
daquilo, levou a mão ao coração e jurou. Era melhor não quebrar o juramento, pensou
ele, ou Mrs. Butler acabaria por o descobrir. Estava convencido de que Scarlett tinha
olhos na nuca e podia ler a mente das pessoas. Isso não fazia grande diferença.
Ninguém acreditaria se ele falasse.
Quando deixou a loja, Scarlett foi para casa almoçar. Depois de ter lavado as
mãos e a cara, atirou-se à pilha de jornais. A notícia sobre o funeral de Melanie era
exatamente o que podia esperar, um número mínimo de palavras, dando o nome, o
local de nascimento e a data da morte. O nome de uma senhora só podia aparecer três
vezes nos jornais: no seu nascimento, no casamento e na morte, e nunca com
pormenores. Scarlett tinha escrito a notícia ela própria, e acrescentara uma frase que
lhe parecera adequadamente dignificante sobre a tragédia que fora a morte dela e
sobre quanto a sua falta seria sentida pela família enlutada e pelos seus amigos em
Atlanta. "Índia deve tê-la tirado", pensou, irritada. Se o governo da casa de Ashley não
estivesse nas mãos de Índia, tudo seria muito mais fácil.
O assunto seguinte fez as mãos de Scarlett ficarem úmidas com suores frios. O
seguinte e todos os outros; virou as páginas rapidamente, cada vez mais alarmada.
- Deixa-o na mesa - disse, quando a criada lhe anunciou o almoço. Quando se
sentou à mesa, o peito de galinha estava imerso em molho coalhado, mas isso não a
incomodava.
Estava preocupada demais para comer. O tio Henry tinha razão. Havia pânico,
era verdade. O mundo dos negócios estava numa confusão terrível, mesmo a
sucumbir. A bolsa de Nova Iorque tinha estado fechada durante dez dias depois
daquilo a que os repórteres chamaram "Sexta-feira negra"; os preços das ações
despencaram, porque todos estavam vendendo e ninguém comprando. Na maioria das
cidades americanas os bancos estavam fechando porque os clientes queriam o seu
dinheiro e este tinha desaparecido, investido pelos bancos em ações "seguras" que
tinham ficado sem valor. Em zonas industriais, as fábricas tinham fechado à proporção
de quase uma por dia, deixando centenas de trabalhadores sem trabalho e sem
dinheiro.
O tio Henry tinha dito que isso não aconteceria em Atlanta, repetiu para si própria.
Tinha que refrear o impulso de ir ao banco e trazer para casa o seu cofre com ouro. Se
Rhett não tivesse comprado quotas do banco, ela o teria feito.
Pensou na tarefa que planejara para a tarde, desejou fervorosamente que isso
não lhe tivesse passado pela cabeça e decidiu que tinha de ser feito. Apesar de o país
estar em pânico. Sobretudo por isso.
Talvez devesse tomar um cálice de brande para acalmar o estômago às voltas. A
garrafa estava mesmo ali, no aparador. O brande também impediria os nervos de lhe
saltarem da pele... Não, podia sentir-se o cheiro no hálito, mesmo que mastigasse
salsa ou folhas de mentol em seguida. Respirou fundo e levantou-se da mesa.
- Corre à cocheira e diz ao Elias que vou sair - ordenou à criada que acorreu ao
toque da campainha.
Tocou a campainha da porta da tia Pittypat, mas ninguém respondeu. Scarlett
tinha a certeza de ter visto mexer uma das cortinas da sala de visitas. Rodou de novo a
campainha. Ouviu-se o som da campainha no átrio por detrás da porta e um abafado
som de movimentos. Scarlett tocou de novo. Tudo ficou em silêncio quando o toque da
campainha se calou. Esperou, contando até vinte. Atrás dela, um cavalo e uma
charrete passavam na rua.
"Se alguém me viu aqui especada em frente a uma porta fechada, nunca mais
serei capaz de os olhar na cara sem morrer de vergonha", disse para si. Parecia ter as
faces em chama. O tio Henry estava completamente certo. Ela não seria recebida.
Toda a sua vida tinha ouvido falar de pessoas que eram tão escandalosas que
nenhuma pessoa decente lhes abriria a porta, mas na sua imaginação isso nunca
poderia lhe acontecer. Era Scarlett O'Hara Butler, dos Robillards de Savannah. Isto não
podia estar a acontecendo.
"Estou aqui também para fazer o bem", pensou, confusamente magoada. Sentia
os olhos quentes e isso era sinal de lágrimas. Então, como acontecia freqüentemente,
foi abalada por uma torrente de fúria e ultraje. Que se dane! Metade desta casa
pertencia-lhe! Como é que alguém se atrevia a fechar-Ihe a porta na cara?
Bateu com o punho na porta e matraqueou a maçaneta da porta. Mas esta estava
seguramente fechada.
- Sei que estás aí, Índia Wilkes - gritou pelo buraco da fechadura. "Aí está. Espero
que tenha ouvido e fique surda."
"Vim para falar contigo, Índia, e não me vou embora enquanto o não fizer. Vou
sentar-me nos degraus do alpendre até abrires a porta ou até que Ashley volte para
casa com a chave, escolhe.
Scarlett virou-se e pegou na cauda das saias. Ouviu o estrondo dos ferrolhos
atrás de si, enquanto se movia e depois o chiar dos gonzos.
- Pelo amor de Deus, entra - suspirou Índia roucamente. - Vais pôr a vizinhança
toda a falar de nós.
Scarlett perscrutou Índia calmamente, por cima do ombro.
- Talvez devesses vir cá para fora e sentares-te nos degraus comigo, Índia. Um
mendigo cego pode passar por aqui e casar contigo em troca de alojamento e comida.
Logo que disse aquilo desejou ter antes mordido a língua. Não tinha vindo para
lutar com Índia. Mas a irmã de Ashley sempre tinha sido como uma pedra no sapato, e
a humilhação frente à porta trancada, agravara-o.
Índia empurrou a porta. Scarlett virou-se e correu para a impedir de se fechar.
- Desculpa - murmurou entre dentes. O seu olhar zangado encontrou o de Índia e
esta chegou-se finalmente para trás.
"Como Rhett teria adorado isto!", pensou Scarlett subitamente. Nos bons tempos
do casamento deles, Scarlett tinha-lhe freqüentemente contado os seus triunfos nos
negócios e na vida social de Atlanta. Isso fazia-o rir alto, durante muito tempo e
chamar-lhe a sua "interminável fonte de prazer". Talvez risse de novo quando lhe
contasse como Índia soprava como se fosse um dragão em retirada.
- Que queres? - A voz de Índia era gelada, apesar de estar tremendo de raiva.
- É muito simpático da tua parte convidares-me a sentar e a tomar uma xícara de
chá - respondeu-lhe Scarlett com suas mais airosas maneiras. - Mas mal acabei de
almoçar. - Na verdade, estava com fome. O prazer da batalha tinha feito o pânico
desaparecer. Esperou que o estômago não fizesse barulho, sentia-o tão vazio como
um poço seco.
Índia plantou-se contra a porta da sala de visitas.
- A tia Pitty está descansando - disse.
"Seria melhor dizer que está desmaiada", pensou, mas dessa vez refreou a
língua. Não estava zangada com a tia Pittypat. Além do mais, era melhor começar com
o que tinha vindo fazer. Queria ir embora antes que Ashley voltasse.
- Não sei se sabes, Índia, mas Melanie pediu-me, quase a morrer, que
prometesse tomar conta de Beau e Ashley.
O corpo de Índia saltou como se tivesse sido ferido por um tiro.
- Não digas uma palavra - avisou Scarlett -, porque nada do que possas dizer
significa alguma coisa perante as praticamente últimas palavras de Melly.
- Vais arruinar o nome de Ashley como tens arruinado o teu. Não te vou deixar
andar por aqui, atrás dele, trazendo desgraça para todos nós.
- Índia Wilkes, a última coisa que eu quero fazer nesta terra que Deus criou, é
passar nesta casa um minuto mais do que é preciso. Vim dizer-te que preparei as
coisas na loja para poderes ir buscar tudo o que precisares.
- Os Wilkes não aceitam caridade, Scarlett.
- Não estou falando de caridade, sua parva. Estou falando da promessa que fiz a
Melanie. Não imaginas com que rapidez um rapaz da idade do Beau deixa de caber
nos calções e nos sapatos. Queres que Ashley tenha que se preocupar com ninharias
dessas quando o seu coração está despedaçado por coisas mais importantes? Ou
queres que façam pouco de Beau na escola?
"Eu sei a quanto montam os rendimentos da tia Pitty. Costumava viver aqui,
lembras-te? É apenas o suficiente para manter o tio Peter e a carruagem, pôr comida
na mesa e pagar os sais de cheiro dela. E, depois, há também uma coisinha chamada
"o pânico". Metade dos negócios do país estão a ir por água abaixo. Provavelmente,
Ashley vai ter menos dinheiro que nunca. Se eu posso engolir o meu orgulho e bater à
porta da frente como uma louca, tu também podes engolir o teu e aceitar o que estou te
dando. Não tens o direito de recusar, porque se fosse só por ti, deixava-te morrer de
fome, sem sequer pestanejar. Refiro-me a Beau e Ashley. E a Melly, porque lhe
prometi o que me pediu. "Toma conta de Ashley, mas não o deixes saber disso", disse-
me ela. Não posso impedir que ele o saiba se tu me não ajudares, Índia."
- Como sei que foi isso que Melanie disse?
- Porque eu o digo, e a minha palavra vale ouro. Podes pensar o que quiseres de
mim, Índia, mas não encontras ninguém que diga que eu alguma vez quebrei uma
promessa feita ou voltei com a palavra atrás.
Índia hesitou e Scarlett sabia que estava ganhando.
- Não precisas ir tu mesma à loja - explicou. - Podes mandar uma lista por outra
pessoa.
Índia suspirou.
- Só para as roupas para Beau usar na escola - disse de má vontade.
Scarlett impediu-se de sorrir. Assim que Índia visse como era agradável ter coisas
sem pagar por elas, compraria muito mais que isso. Scarlett estava certa de que assim
seria.
- Agora, despeço-me, Índia. Mr. Kershaw, o empregado-chefe, é o único que sabe
disto, e não vai dar com a língua nos dentes. Põe o nome dele na parte de fora da tua
lista e ele se encarregará do resto.
Quando se reclinou na carruagem, o estômago de Scarlett fez um ruído
perfeitamente audível. Fez um sorriso de orelha a orelha. Graças a Deus, tinha
esperado.
De volta a casa, ordenou ao cozinheiro que aquecesse o almoço e a servisse
outra vez. Enquanto esperava ser chamada para a mesa, deu uma vista de olhos às
outras páginas dos jornais, evitando as histórias sobre o pânico. Havia uma coluna em
que nunca tinha reparado, mas que agora a estava fascinando. Continha notícias e
mexericos sobre Charleston, e Rhett, a mãe ou a irmã poderiam ser mencionados.
Não apareciam naquela coluna, mas também não tinha realmente esperado nada.
Se acontecesse alguma coisa interessante em Charleston, Rhett lhe contaria na
próxima vez que viesse para casa. Mostrar-se interessada na família dele e no local
onde crescera, seria uma prova de que o amava, mesmo que ele não acreditasse.
"Que freqüência seria suficiente para impedir os mexericos?", perguntou-se.
Naquela noite, Scarlett não conseguia adormecer. Cada vez que fechava os
olhos, via a grande porta da frente da casa da tia Pitty fechada e trancada à sua frente.
"Era coisa de Índia", disse a si própria. O tio Henry não poderia ter a certeza de que
todas as portas de Atlanta se iam fechar contra ela.
Mas também não pensara que ele estivesse certo quanto ao pânico. E isso até
que lera nos jornais, e descobrira que ainda era pior do que ele tinha dito.
A insônia não era uma coisa estranha para ela; já tinha aprendido antes que dois
ou três brandes a acalmariam e a ajudariam a adormecer. Desceu silenciosamente à
sala de jantar e foi até o aparador. A garrafa de cristal talhado refletia o arco-íris
provocado pela luz do candeeiro que tinha na mão.
Na manhã seguinte dormiu até mais tarde do que era costume. Não por causa do
brande, mas porque mesmo com a sua ajuda não tinha conseguido adormecer até de
madrugada. Não conseguia parar de pensar no que o tio Henry lhe tinha dito.
No caminho para a loja, parou na padaria de Mrs. Merriwether. A empregada
atrás do balcão olhou-a de alto abaixo e fez orelhas moucas quando Scarlett lhe falou.
"Tratou-me como se não existisse", percebeu, horrorizada. Enquanto atravessava
o passeio da loja para a carruagem, viu Mrs. Elsing e a filha aproximarem-se a pé.
Scarlett parou, pronta para lhes sorrir e dizer olá. As duas senhoras Elsing ficaram
petrificadas quando a viram. Então, sem uma palavra e sem voltarem a olhá-la,
viraram-se e voltaram para trás. Scarlett ficou paralisada por um momento. Depois
precipitou-se para a carruagem e escondeu o rosto no canto mais escuro. Durante um
horrível momento receou cair desmaiada no chão.
Quando Elias parou a carruagem em frente à loja, Scarlett permaneceu no abrigo
que esta representava. Mandou Elias lá dentro com os sobrescritos com o pagamento
para os empregados. Se dali saísse poderia ver alguém conhecido, alguém que faria
de conta que ela não existia. Só de pensar isso era insuportável.
Índia Wilkes deveria estar por detrás disto. "Depois de ter sido tão generosa com
ela! Não vou deixá-la ir para a frente com isto, não vou! Ninguém me pode tratar desta
maneira e ficar impune."
- Vamos para a serraria - ordenou a Elias quando ele voltou. O sol do Outono
dava uma tonalidade dourada e docemente resinosa às pilhas de madeira. Não se via
nenhuma carroça, nem nenhum carregador. Ninguém estava comprando.
Scarlett quis chorar. "O tio Henry disse que isto podia acontecer, mas não pensei
que fosse tão mau. Como podem as pessoas não querer esta bela e limpa madeira?"
Inalou profundamente. O aroma do pinho cortado de fresco era o mais doce perfume
do mundo para ela. Como tinha saudades da sua serraria! Nunca compreenderia como
tinha deixado Rhett convencê-la a vendê-la a Ashley. Se ainda estivesse à frente do
negócio, aquilo nunca teria acontecido. Teria vendido a madeira a alguém, de qualquer
maneira. O pânico tocou a sua mente de leve, mas afastou-o. À sua volta, as coisas
estavam muito más, mas não podia implicar com Ashley. Queria que ele a ajudasse.
- Ó pátio está lindo! - disse alegremente. - Deves ter a serraria trabalhando dia e
noite, para manteres um estoque assim, Ashley.
Ele levantou os olhos dos livros de contas na sua secretária e Scarlett sabia que
toda a alegria do mundo seria desperdiçada com ele. Ele não parecia melhor do que
quando lhe tinha dado aquele sermão.
Ashley levantou-se e tentou sorrir. A sua profunda cortesia era mais forte que a
exaustão, mas o desespero era maior que ambas.
"Não posso dizer-lhe nada sobre Índia, nem sobre o negócio", pensou Scarlett. "O
esforço que faz para respirar é tudo o que pode agüentar. É como se nada mais o
segurasse de pé senão as roupas."
- Scarlett, querida, que simpático da tua parte teres passado aqui. Não queres
sentar-te?
"Simpático... é mesmo? Meu Deus, Ashley parece uma caixa de música com
coisas delicadas para dizer. Não, não parece. Parece que não sabe o que lhe sai da
boca, acho que isso está mais próximo da verdade. Por que se deveria ele importar por
eu arriscar o que resta da minha reputação ao vir aqui sem companhia? Não se importa
com mais nada a não ser ele próprio, qualquer idiota pode ver isso, porque haveria de
se preocupar comigo? Posso sentar-me e conversar educadamente. Detesto isto, mas
tenho que fazer."
- Obrigada, Ashley - disse ela, sentando-se na cadeira que ele estava segurando.
Forçar-se-ia a ficar quinze minutos fazendo observações alegres e vazias sobre o
tempo, contar histórias divertidas sobre quanto se divertira em Tara. Não lhe podia
contar sobre Mammy, iria perturbá-lo demais. O regresso de Tony, contudo, era
diferente. Era uma boa notícia.
Scarlett começou a falar.
- Estive em Tara...
- Por que me impediste, Scarlett? - perguntou Ashley. A voz dele era monótona,
sem vida, sem uma real interrogação.
Scarlett não sabia o que dizer.
- Por que me impediste? - perguntou de novo. Desta vez, com emoção, raiva,
traição, dor. - Eu queria estar no túmulo. Num qualquer, não apenas no de Melanie. É a
única coisa para que sirvo... Não, não digas o que quer que ias dizer, Scarlett. Tenho
sido confortado e animado por tantas pessoas bem intencionadas, que já ouvi isso tudo
centenas de vezes. Esperava de ti mais do que as vulgaridades do costume. Ficaria
grato se dissesses o que deves estar pensando, que eu estou deixando a serraria
morrer. O teu negócio, em que investiste todo o teu coração. Sou um miserável
fracassado, Scarlett. Tu sabes. Eu sei. Todo o mundo sabe. Por que é que todos temos
que agir como se não fosse assim? Culpa-me, por que não o fazes? Não podes
certamente encontrar palavras mais duras do que aquelas que digo para mim mesmo,
não podes "ferir os meus sentimentos". Como se eu pudesse sentir mais alguma
coisa...
Ashley abanou a cabeça, lenta e pesadamente, de um lado para o outro. Era
como um animal ferido, derrotado por um bando de predadores. A sua garganta soltou
um soluço desesperado. Voltou-lhe as costas.
- Perdoa-me, Scarlett, te suplico. Não tinha o direito de te afligir com os meus
problemas. Agora tenho a vergonha desta minha explosão para acrescentar a todas as
minhas outras vergonhas. Sê piedosa, minha querida, e deixa-me. Ficaria grato se
fosses embora agora.
Scarlett fugiu sem uma palavra.
Mais tarde sentou-se à secretária com todos os registros legais cuidadosamente
empilhados à sua frente. Cumprir a promessa feita a Melly ia ser mais difícil do que
esperara. Roupas e coisas para a casa, não eram sequer suficientes.
Ashley não levantaria um dedo para se ajudar. Teria que o fazer bem sucedido,
quer ele cooperasse ou não. Prometera a Melanie.
Não poderia suportar ver ir-se abaixo o negócio que tinha construído.
Scarlett fez uma lista dos seus bens.
A loja, edifício e existências. Dava quase uma centena por mês de lucro, mas isso
ia quase com certeza baixar, quando o pânico chegasse a Atlanta e as pessoas não
tivessem dinheiro para gastar. Fez uma nota para encomendar artigos mais baratos e
parar de substituir artigos de luxo, como largas fitas de veludo.
O saloon no seu lote, perto da estação. Não era realmente seu, alugara a terra e
o edifício ao dono, por trinta dólares por mês.
Quando viessem tempos piores, as pessoas beberiam mais que nunca, talvez
aumentasse a renda. Mais uns quantos dólares a mais por mês não seriam suficientes
para afiançar Ashley. Precisava de muito dinheiro.
O ouro do cofre. Tinha muito dinheiro, mais do que vinte e cinco mil dólares. Era
uma mulher rica, na opinião da maior parte das pessoas. Mas não na sua. Ainda não
se sentia segura.
"Podia voltar a comprar o negócio de Ashley", pensou, e, por momentos, a sua
mente zuniu com a excitação, com as possibilidades. Depois suspirou. Isso não
resolveria tudo. Ashley era tão tonto, que insistiria em receber apenas o que receberia
no mercado, e isso era quase nada. Depois, quando ela tornasse o negócio mais
próspero, ele se sentiria um fracasso maior que nunca. Não, por muito que quisesse
pôr as mãos na serraria, tinha que fazer que Ashley fosse bem sucedido.
"Não acredito lá muito que não haja mercado para madeira. Com pânico ou sem
ele, as pessoas têm que construir alguma coisa, nem que seja um barracão para uma
vaca ou um cavalo."
Scarlett procurou na pilha dos livros de contas. Tinha uma idéia. Lá estava ele, o
terreno para cultivo que Charles Hamilton lhe deixara. As quintas não produziam quase
nada. De que lhe serviam uns cestos de milho e um fardo de mau algodão? A partilha
das culturas era um desperdício de boa terra a não ser que tivesse cerca de mil
hectares e uma dúzia de bons agricultores. Mas os seus cem hectares estavam agora
mesmo nos arredores de Atlanta, de tal modo as coisas estavam crescendo. Se
encontrasse um bom construtor, e eles deveriam estar sedentos de trabalho, poderia
construir uma centena de casas pequenas, talvez duzentas. Todos os que estavam
perdendo dinheiro teriam que reduzir os gastos e viver só com o essencial. As suas
grandes casas seriam a primeira coisa a ir, e teriam que encontrar um lugar onde
pudessem viver.
"Não vou ganhar dinheiro nenhum, mas pelo menos não perco muito. Vou fazer
que o construtor use apenas madeira de Ashley, e da melhor que ele tem. Ele ganhará
dinheiro, não uma fortuna, mas uma receita certa, e nunca saberá que veio de mim.
Posso tratar disso. Tudo o que preciso é de um construtor que saiba manter a boca
calada. E não roube muito."
No dia seguinte, Scarlett foi falar com os agricultores para lhes dizer que
deixassem a terra.
7
- Sim, senhora, Mrs. Butler, estou desesperado por trabalho - disse Joe Colleton.
O construtor era um homem baixo e magro, pelos seus quarenta anos; parecia muito
mais velho porque o cabelo espesso era completamente branco, e o rosto estava
enrugado devido às longas exposições ao sol e ao tempo. Tinha a testa franzida e as
fundas rugas entre as sobrancelhas escureciam-lhe ainda mais os olhos já escuros. -
Preciso de trabalho, mas não tanto que trabalhe para ti.
Scarlett quase deu meia volta para se ir embora; não era obrigada a engolir
insultos de um pobretão de um branco convencido. Mas precisava de Colleton. Era o
único construtor completamente honesto de Atlanta, aprendera isso quando vendia
madeira a todos eles, no período de expansão da reconstrução, depois da guerra.
Apeteceu-lhe bater o pé. A culpa era toda de Melly. Se não fosse por causa daquela
estúpida condição, em que Ashley não podia saber que ela o estava ajudando, podia
ter usado qualquer construtor, pois o observaria como um falcão e seria ela própria a
inspecionar todas as fases do trabalho. E como gostaria de o fazer.
Mas não podia deixar que a vissem. E não podia confiar em ninguém a não ser
em Colleton. Ele tinha que aceitar o trabalho, ela tinha que o convencer. Pôs a
mãozinha no braço dele. Parecia muito delicada, com a luva de pele muito esticada.
- Mr. Colleton, se me disser que não, fico despedaçada... Preciso de alguém
muito especial para me ajudar. - Olhou para ele com um desespero suplicante no olhar.
Que pena ele não ser mais alto. Era difícil fazer de mulherzinha frágil com alguém da
nossa altura. Contudo, muitas vezes, eram estes galos fracotes que eram mais
protetores em relação às mulheres. - Se recusar, não sei o que hei de fazer.
O braço de Colleton enrijeceu.
- Mrs. Butler, uma vez vendeu-me madeira verde, depois de me dizer que estava
curada. Não faço negócios duas vezes com alguém que já me enganou uma vez.
- Isso deve ter sido um engano, Mr. Colleton. Eu própria era verde, estava
aprendendo o negócio. Lembra-se como era naquele tempo. Os ianques andavam em
cima de nós, sem nos largarem um minuto. Eu andava sempre aterrorizada. - Os olhos
se encheram de lágrimas que não derramou e os lábios, pintados muito ligeiramente,
tremeram. Era uma figurinha perdida. - O meu marido, Mr. Kennedy, foi morto quando
os ianques desmantelaram uma reunião do clã.
O olhar direto e sabedor de Colleton era desconcertante. Os olhos dele estavam
ao mesmo nível que os dela, duros como pedras. Scarlett retirou a mão da manga dele.
Que havia de fazer? Não podia falhar, nisto não. Ele tinha que aceitar o trabalho.
- Fiz uma promessa à minha mais querida amiga no seu leito de morte, Mr.
Colleton. - Agora, as lágrimas eram verdadeiras. - Mrs. Wilkes pediu-me ajuda e agora
estou pedindo a ti. - Despejou a história toda, como Melanie sempre protegera Ashley...
A falta de jeito de Ashley para os negócios... a sua tentativa de se enterrar vivo com a
mulher... as pilhas de madeira por vender... a necessidade de segredo...
Colleton ergueu a mão para a fazer calar.
- Pronto, Mrs. Butler. Se é por Mrs. Wilkes, aceito o trabalho. - Baixou a mão e
estendeu-a. - Um aperto de mão, vai ficar com as casas mais bem construídas e com
os melhores materiais.
Scarlett pôs a sua mão na dele.
- Obrigada - disse ela. Sentia-se como se tivesse alcançado o maior triunfo da sua
vida.
Já tinham passado algumas horas quando se lembrou que não tencionara usar o
melhor de tudo, só a melhor madeira. A porcaria das casas ia custar uma fortuna e,
ainda por cima, do dinheiro que tanto lhe custara a ganhar. E também não ia ganhar
nada com a ajuda que estava dando a Ashley. Iam todos continuar a bater-lhe com a
porta na cara.
"Bem, nem todos. Tenho muitos amigos pessoais, e são muito mais divertidos que
a antiquada gente de Atlanta."
Scarlett empurrou para o lado o esquema que Joe Colleton tinha feito num saco
de papel para ela estudar e aprovar. Ficaria muito mais interessada quando ele lhe
desse números do seu orçamento; que diferença fazia o aspecto das casas ou o local
onde ele ia pôr as escadas?
Tirou de uma gaveta o seu livro de endereços, de capa de veludo, e começou a
fazer uma lista. Ia dar uma festa. Uma festa grande, com músicos e rios de
champanhe, e quantidades enormes da comida melhor e mais cara. Agora que acabara
o tempo de luto pesado, era hora de dar a conhecer aos amigos que podia ser
convidada para as festas deles, e a melhor maneira de o fazer era convidá-los para
uma festa sua.
Passou rapidamente o olhar pelos nomes das velhas famílias de Atlanta. "Todos
eles pensam que devia pôr luto pesado por Melanie, não vale a pena convidá-los. E
também não preciso de me embrulhar toda em crepes. Ela não era minha irmã, era só
minha cunhada e nem sequer tenho certeza se isso conta, uma vez que Charles
Hamilton foi o meu primeiro marido e depois dele já houve dois."
Scarlett deixou descair os ombros. Charles Hamilton não tinha nada que ver com
nada, e o luto também não. Ela estava de luto por Melanie da forma mais verdadeira de
todas; era um peso e uma preocupação perpétuos no seu coração. Sentia a falta da
amiga calma e dedicada, que fora muito mais importante para ela do que alguma vez
se apercebera; sem Melanie, o mundo ficara mais frio e mais sombrio. E tão solitário.
Scarlett só voltara do campo há dois dias, mas nessas duas noites sentira-se
suficientemente sozinha para que o coração se lhe enchesse de medo.
Podia ter contado a Melanie a partida de Rhett; Melanie era a única pessoa em
quem podia confiar no que tocava a um assunto tão vergonhoso. E Melanie também
lhe teria dito o que ela precisava de ouvir: "Claro que ele vai voltar, querida", teria ela
dito. "Ele ama-te tanto." Pronunciara estas mesmas palavras mesmo antes de morrer:
"Sê gentil com o capitão Butler, ele ama-te tanto."
Só de pensar nas palavras de Melanie, fez que Scarlett se sentisse melhor. Se
Melly disse que Rhett a amava, então, ele amava-a, não era só ela a desejar que assim
fosse. Scarlett sacudiu os pensamentos tristes, endireitou as costas. Não precisava
nada de estar sozinha. E não fazia mal nenhum que a velha Atlanta nunca mais lhe
falasse. Tinha muitos amigos. Então, a lista da festa já ia em duas páginas e ainda não
passara da letra G da agenda.
Os amigos que Scarlett estava pensando receber eram os mais extravagantes e
mais bem sucedidos da horda de oportunistas que descera sobre a Geórgia nos dias
do governo de Reconstrução. Muitos dos primeiros tinham partido quando o governo
fora banido em 1871, mas um grande número ficara, para gozar as suas grandes casas
e as fortunas tremendas que tinham feito apanhando os restos da falecida
Confederação. Não estavam nada tentados a ir para "casa". As suas origens estavam
melhor no esquecimento.
Rhett sempre os desprezara. Chamava-lhes "escória" e saía de casa quando
Scarlett dava as suas suntuosas festas. Scarlett pensava que ele era tolo e disse-lhe.
"Os ricos são sempre muito mais divertidos que os pobres. As suas roupas,
carruagens e jóias são melhores, e servem-te melhor comida e bebida quando vais a
casa deles."
Mas nada em casa de nenhum dos seus amigos era, nem de perto, tão elegante
como o serviço nas festas de Scarlett. Decidira que esta seria a melhor recepção de
todas. Começou a fazer uma segunda lista com o título "Coisas para recordar", com
uma nota para encomendar cisnes de gelo para as carnes frias e mais dez caixas de
champanhe. Um vestido novo, também. Tinha que ir imediatamente à casa da
costureira, depois de deixar a encomenda dos convites na tipografia.

Scarlett inclinou a cabeça para admirar os ondulados folhos brancos da touca à


moda de Maria Stuart. A ponta que caía sobre a testa ficava mesmo muito bem.
Realçava o arco negro das suas sobrancelhas e o verde brilhante dos olhos. O cabelo
parecia seda negra, caindo em caracóis de ambos os lados dos folhos. Quem é que
havia de pensar que roupa de luto lhe ficaria tão bem?
Virou-se para um lado e para outro, olhando por cima dos ombros para o seu
reflexo no grande espelho. Os enfeites de contas pretas e borlas sobre o vestido negro
brilhavam de um modo muito satisfatório.
O luto "vulgar" não era horrível como o luto pesado, tinha muito em seu favor, e
um vestido preto decotado deixava ver muita pele, se ela fosse branca como a neve.
Dirigiu-se rapidamente ao toalete e perfumou os ombros e o pescoço. Era melhor
apressar-se, os convidados deviam estar a chegar a qualquer minuto. Podia ouvir os
músicos lá em baixo, afinando os instrumentos. Regalou os olhos na pilha desordenada
de espessos cartões brancos que se viam por entre as suas escovas de cabo de prata
e espelhos de mão. Os convites tinham começado a chegar aos montes, assim que os
amigos souberam que ela ia voltar ao convívio social; ia estar ocupada durante
semanas e semanas, nos próximos tempos. E, depois, haveria mais convites, e, então,
ela daria outra recepção. Ou talvez um baile durante a época do Natal. Sim, as coisas
iam ficar mesmo bem. Estava tão excitada como uma rapariga que nunca tivesse ido a
uma festa. Bom, não era para admirar. Já tinham passado mais de sete meses desde
que fora a uma.
Sem contar com a festa do regresso de Tony Fontaine. Sorriu, lembrando-se.
Querido Tony, com as suas botas de cano alto e a sela de prata. Gostaria que ele
viesse nessa noite à sua festa. As pessoas ficariam com os olhos esbugalhados se ele
fizesse o seu truque de girar os revólveres!
Tinha de ir - os músicos já tocavam afinado, devia ser tarde.
Scarlett apressou-se a descer a escada coberta com uma alcatifa vermelha,
franzindo apreciativamente o nariz ao sentir o cheiro das flores de estufa, que enchiam
enormes jarras em todos as salas. Ao andar de sala em sala, verificando se tudo
estava em ordem, os olhos brilhavam-lhe de prazer. Estava tudo perfeito. Graças a
Deus, Pansy regressara de Tara. Ela era muito boa fazendo com que os outros criados
fizessem o seu dever, muito melhor que o novo mordomo, contratado para substituir
Pork. Scarlett tirou um copo de champanhe do tabuleiro que o novo homem lhe
estendia. Pelo menos, sabia servir, até tinha um certo estilo, e Scarlett gostava tanto
que as coisas tivessem estilo.
Exatamente nesse momento tocou a campainha da porta. Surpreendeu o criado
com o seu sorriso feliz, e depois dirigiu-se ao hall de entrada para cumprimentar os
seus amigos.
Foram chegando numa corrente contínua, durante quase uma hora, e a casa
encheu-se com o som de vozes altas, o intenso cheiro de perfume e pó-de-arroz, as
cores brilhantes das sedas e cetins, rubis e safiras.
Scarlett movia-se por entre a multidão, sorrindo e rindo, namoricando
preguiçosamente com os homens, aceitando os cumprimentos fastidiosos das
mulheres. Estavam tão felizes por a tornarem a ver, tinham sentido tanto a falta dela,
ninguém dava festas tão maravilhosas como ela, ninguém tinha uma casa tão linda,
nem vestidos tão elegantes, o cabelo dela era mais brilhante que o das outras, tinha
um corpo mais jovem, uma pele mais perfeita e mais suave.
"Estou divertindo-me... Uma festa maravilhosa."
Deu uma vista de olhos às travessas de prata e tabuleiros que estavam sobre a
longa mesa polida, para ver se os criados os mantinham cheios. Uma grande
quantidade de comida, um excesso de comida, era importante para ela, porque era
incapaz de esquecer completamente o que fora chegar tão perto de morrer de fome, no
fim da guerra. O olhar da sua amiga Mamie Bart cruzou-se com o dela e esta sorriu.
Um fio de molho amanteigado de um pastel de ostra meio comido, que Mamie
segurava, escorrera-lhe do canto da boca para o colar de diamantes que lhe rodeava o
pescoço gordo. Scarlett desviou o olhar, enojada. Um destes dias, Mamie ia ficar gorda
que nem um elefante. "Graças a Deus, posso comer tudo o que me apetece que nunca
engordo um quilo."
Sorriu encantadoramente a Harry Connington, marido da sua amiga Sylvia.
- Deve ter descoberto um elixir qualquer, Harry, parece dez anos mais novo do
que a última vez que o vi. - Ficou a olhar, maliciosamente divertida, enquanto Harry
encolhia a barriga. O rosto dele ficou vermelho, levemente roxo, antes de ele desistir do
esforço que estava fazendo. Scarlett riu em voz alta e afastou-se.
Uma explosão de gargalhadas chamou-lhe a atenção e dirigiu-se ao grupo de três
homens que estavam na sua origem. Gostava muito de ouvir uma graça qualquer,
mesmo que fosse uma dessas piadas que as senhoras têm de fingir que não
entendem.
- ...por isso, digo para mim próprio, Bill, o pânico de um homem é o lucro de outro,
e sei qual desses homens o velho Bill vai ser.
Scarlett começou a afastar-se. Nessa noite queria divertir-se, e falar do pânico
não era a sua idéia de divertimento. No entanto, talvez aprendesse alguma coisa. Era
mais esperta dormindo que Bill Weller no seu melhor dia, tinha certeza disso. Se ele
andava fazendo dinheiro com o pânico, ela queria saber como. Silenciosamente,
aproximou-se mais.
- ... Estes parvos destes sulistas, sempre foram um problema para mim, desde
que vim para cá - confessava Bill. - Que não se consegue fazer nada com um homem
que não é naturalmente ganancioso, portanto, todos os negócios com obrigações do
tipo "triplique o seu dinheiro" e certificados de minas de ouro que espalhei no meio
deles deram um resultadão. Eles estavam a trabalhar mais do que algum preto jamais
trabalhou e poupavam todos os tostões que ganhavam para uma necessidade.
Acontece que muitos deles já tinham uma caixa cheia de obrigações e coisas dessas.
Do governo da Confederação. - O riso bombástico de Bill puxou as gargalhadas dos
outros homens.
Scarlett estava furiosa. Com que então "parvos dos sulistas"! Até o seu querido
pai tinha uma caixa cheia de obrigações da Confederação. O mesmo se passava com
todas as pessoas de bem do condado de Clayton. Tentou afastar-se, mas estava
encurralada por pessoas atrás dela, que também tinham sido atraídas pelas
gargalhadas do grupo à volta de Bill Weller.
- Passado um tempo, topei o esquema - continuou Weller. - Eles não confiavam
muito em papéis. Nem em mais nada que eu tentasse. Experimentei curandeiros e
bruxarias e todos os modos seguros de fazer dinheiro, mas nenhum deu faísca. Digo-
vos, rapazes, fiquei ofendido. - Fez uma cara lúgubre, depois um grande sorriso, que
deixou ver três grandes dentes de ouro. - Não tenho que vos dizer que eu e Lula íamos
assim como que passar necessidades, se não me surgisse uma idéia qualquer. Nos
bons dias gordos, quando os Republicanos tinham a Geórgia na mão, amontoei o
suficiente com aqueles contratos das estradas-de-ferro que os rapazes me atribuíram,
de modo que podíamos ter vivido das economias, mesmo se eu tivesse sido
suficientemente estúpido para ter ido e construir mesmo a estrada-de-ferro. Mas gosto
de ficar por dentro, e Lula estava ficando nervosa por eu passar tanto tempo em casa,
uma vez que não tinha nenhum negócio para tratar. Então, aleluia, lá veio o pânico e os
rebeldes todos tiraram as poupanças do banco e puseram o dinheiro debaixo do
colchão. Todas as casas, até mesmo as barracas, eram uma oportunidade que não
podia deixar escapar.
- Pára lá de te gabares, Bill, de que é que te lembraste?
Estou a ficar cheio de sede de estar aqui à espera que pares de te congratulares
e vás direito ao assunto. - Amos Bart acentuou a sua impaciência com uma cuspidela
ensaiada que falhou a cuspideira em questão.
Scarlett também se sentia impaciente. Impaciente para sair dali.
- Agüenta aí, Amos, já lá vou. Qual era a maneira de chegar a esses colchões?
Não sou do tipo dos pregadores revivalistas. Gosto de estar sentado à minha secretária
e deixar os meus empregados fazer o servicinho. Era isso exatamente que eu estava a
fazer, sentado na minha cadeira de couro giratória, quando olhei pela janela e vi passar
um funeral. Foi como se tivesse sido atingido por um raio. Não há um lar na Geórgia
que não tenha um defunto querido que já lá tivesse vivido.
Scarlett ficou a olhar, horrorizada, para Bill Weller, enquanto ele descrevia a
fraude que o estava a fazer enriquecer ainda mais.
- As mães e as viúvas são as mais fáceis, e há mais do que tudo o resto junto.
Nem pestanejam quando os meus rapazes lhes dizem que os veteranos da
Confederação estão a erguer monumentos em todos os campos de batalha, e
esvaziam os colchões em menos de um ai, para pagar, para que o nome do seu rapaz
seja gravado no mármore. - Era pior do que Scarlett podia ter imaginado.
-Ah, Bill, velha raposa, essa é de gênio! - exclamou Amos e os homens do grupo
riram ainda ais alto do que antes. Scarlett sentiu-se com vontade de vomitar. Estradas-
de-ferro e minas de ouro não existentes nunca a tinham preocupado, mas as mães e
as viúvas que Bill Weller andava a enganar eram a sua própria gente. Podia muito bem
estar neste momento mandando os seus homens para Beatrice Tarleton, ou Cathleen
Calvert, ou Dimity Munroe, ou para qualquer outra mulher do condado de Clayton, que
tivesse perdido um filho, um irmão ou um marido.
A voz dela atravessou os risos como uma faca.
- Essa história é a mais ordinária e mais porca que já ouvi na minha vida. Metes-
me nojo, Bill Weller. Todos vocês me metem nojo. Que é que vocês sabem sobre os
sulistas... sobre gente decente, seja onde for? Nunca tiveram um pensamento decente
ou fizeram qualquer coisa decente em toda a vossa vida! - Com as mãos e os braços
estendidos, abriu caminho através dos espantados homens e mulheres que se tinham
juntado à volta de Weller e depois começou a correr, esfregando as mãos nas saias
para limpar a nódoa que era o toque deles.
Na frente dela estava a sala de jantar e os faiscantes pratos de prata cheios de
comida refinada; agoniou-se com o cheiro dos ricos e gordurosos molhos misturado
com o das cuspideiras cheias de escarros. No seu espírito, viu a mesa iluminada em
casa dos Fontaines, a refeição simples feita de presunto e pão caseiros e vegetais
criados na horta, o seu lugar era com eles; eles eram a sua gente, não estas mulheres
e estes homens ordinários, porcos e espalhafatosos.
Voltou-se para enfrentar Weller e o grupo dele.
- Escória! - gritou ela - É isso que vocês são. Ralé! Saiam da minha casa,
desapareçam da vista, enojam-me!
Mamie Bart cometeu o erro de a tentar acalmar.
- Vá lá, querida... - disse ela, estendendo a mão cheia de jóias.
Scarlett encolheu-se antes de lhe tocarem.
- Especialmente você, sua porca gorda.
- Bem, nunca... - A voz de Mamie Bart estremeceu. - ... claro que não vou admitir
que me falem deste modo. Não ficava nem que me pedisses de joelhos, Scarlett Butler.
Uma debandada tumultuosa e irada começou então, e em menos de dez minutos
as salas estavam vazias de tudo, com exceção dos restos. Scarlett passou pelo meio
da comida e champanhe entornados, pratos e copos partidos, sem olhar para o chão.
Tinha que manter a cabeça erguida, como a mãe lhe ensinara. Imaginou que estava de
novo em Tara, com um pesado volume dos romances de Waverley equilibrado em cima
da cabeça, e subiu as escadas com as costas tão direitas como uma árvore, o queixo
perfeitamente perpendicular aos ombros.
Como uma senhora. Como a mãe lhe ensinara. A cabeça andava-lhe à roda e
tremiam-lhe as pernas, mas subiu sem parar. Uma senhora nunca mostrava quando
estava cansada ou aborrecida.
- Era mais do que tempo de fazer isto, e até mais - disse o cornetista. Aquele
conjunto tocara valsas por detrás das palmeiras em muitas das recepções de Scarlett.
Um dos violinistas cuspiu com pontaria para um dos vasos com palmeiras.
- Demasiado tarde, na minha opinião. Deitas-te com os cães, acordas com
pulgas.
Por cima deles, Scarlett estava deitada de bruços na sua cama coberta de seda,
soluçando como se tivesse quebrado o coração. Pensara que ia divertir-se tanto.
Mais tarde, nessa noite, quando a casa estava em sossego e na escuridão,
Scarlett foi lá abaixo buscar uma bebida para a ajudar a dormir. Todos os sinais da
festa tinham desaparecido, com exceção dos complicados arranjos florais e das velas
meio queimadas nos candelabros de seis braços sobre a mesa vazia da sala de jantar.
Scarlett acendeu as velas e apagou o seu candeeiro. Por que é que havia de
andar por ali meio às escuras, como se fosse algum ladrão? A casa era sua e podia
fazer aquilo que lhe apetecesse.
Escolheu um copo, levou-o para a mesa juntamente com a garrafa e sentou-se na
cadeira de braços na cabeceira da mesa. A mesa também era dela.
O brande espalhou um calor calmante pelo seu corpo e Scarlett suspirou. "Graças
a Deus! Mais outra bebida e os meus nervos devem parar de andar aos saltos como
até agora." Encheu novamente o elegante copo de licor e engoliu o brande de um
trago, com um movimento preciso do punho. "Não é preciso apressar-me", pensou ela,
enchendo o copo. "Não é próprio de uma senhora."
Bebericou o terceiro copo. Que bonita estava a luz das velas, lindas chamas
douradas que se refletiam na superfície polida da mesa. O copo vazio também era
bonito. Quando o fazia rodar entre os dedos viam-se arcos-íris nos lados facetados.
Estava tudo sereno como um túmulo. Quando largou o brande, o barulho do vidro
batendo no vidro a fez dar um salto. Isso queria dizer que ela precisava de uma bebida,
não era? Ainda estava nervosa demais para dormir.
As velas estavam no fim e a garrafa esvaziou-se lentamente e o habitual controle
que Scarlett tinha sobre o seu espírito e sobre a sua memória dissipou-se. Fora nesta
sala que tudo começara. A mesa estava vazia, só com as velas em cima e um tabuleiro
de prata com a garrafa de brande e copos. Rhett estava bêbado. Nunca o vira assim
tão bêbado, ele agüentava bem a bebida. No entanto, nessa noite, estava bêbado e
cruel. Disse-lhe coisas tão horríveis, que a feriram tanto, e torceu-Ihe o braço até ela
gritar de dor.
Mas depois... depois levou-a no colo até ao quarto e obrigou-a a recebê-lo. Só
que ele não precisava a obrigar a aceitá-lo. Ficou como que renascida quando ele
começou a tocar-lhe, a beijá-la nos lábios, no pescoço, no corpo. O toque dele
queimava e gritou por mais, e o seu corpo arqueou-se, tenso, para ir ao encontro do
dele, uma e outra vez...
Não podia ser verdade. Devia ter sonhado aquilo, mas como é que podia ter
sonhado tais coisas quando nem sequer imaginava que existiam?
Nenhuma senhora sentiria jamais o desejo selvagem que ela sentira, nenhuma
senhora faria as coisas que ela fizera. Scarlett tentou empurrar os pensamentos para o
canto escuro do seu espírito, onde guardava o impensável e o insuportável. Mas
bebera demais.
"Aconteceu mesmo, gritava o seu coração, aconteceu. Não inventei nada."
E o seu espírito, ao qual a mãe ensinara tão cuidadosamente que as senhoras
não tinham impulsos animalescos, não conseguia controlar as exigências apaixonadas
do seu corpo, que ansiava por sentir novamente aquele êxtase e rendição.
As mãos de Scarlett tocavam os seios doloridos, mas não eram aquelas mãos
que o seu corpo desejava tanto. Deixou cair os braços na mesa e pousou a cabeça
neles. E abandonou-se às ondas de desejo e dor que a faziam retorcer-se, gritando
entrecortadamente para a sala vazia e silenciosa, iluminada pelas velas.
- Rhett, oh, Rhett, preciso de ti.
8
Aproximava-se o Inverno e Scarlett ficava mais nervosa a cada dia que passava.
Joe Colleton cavara o buraco da cave da primeira casa, mas chuvas contínuas
tornavam impossível enchê-lo de cimento para as fundações.
- Mr. Wilkes desconfiaria logo se eu comprasse madeira antes de estar pronto
para a usar - disse ele sensatamente, e Scarlett sabia que ele tinha razão. Mas isso
não fazia que a demora se tornasse menos frustrante.
Talvez toda aquela idéia de construir fosse um erro. Dia após dia, os jornais
noticiavam mais desastres no mundo dos negócios. Agora, havia sopa dos pobres e
filas para pão nas grandes cidades americanas, porque cada vez mais milhares de
pessoas perdiam os seus empregos todas as semanas, quando as companhias iam à
falência. Por que estava ela arriscando agora o seu dinheiro, no pior momento
possível? Por que é que fizera aquela tola promessa a Melly? Se ao menos a chuva
gelada parasse...
E os dias também iam parar de ficar mais pequenos. Conseguia manter-se
ocupada durante o dia, mas a escuridão fechava-a na casa vazia, só com os seus
pensamentos por companhia. E não queria pensar, porque não encontrava respostas
para nada. Como é que se metera nesta trapalhada? Nunca fizera nada
deliberadamente para voltar as pessoas contra ela, por que é que eram todos tão
odiosos? Por que é que Rhett estava levando tanto tempo para regressar a casa? Que
podia ela fazer para melhorar as coisas? Tinha que haver alguma coisa, não podia
continuar para sempre andando de sala em sala na grande casa, como uma ervilha
rebolando numa bacia de metal vazia.
Ficaria contente se Wade e Ella voltassem para casa, para lhe fazerem
companhia, mas Suellen escrevera dizendo que estavam em quarentena, enquanto
uma criança após outra passava pela tortura do comichão causada pela varicela.
Podia voltar a dar-se com os Barts e os amigos deles. Não tinha importância o
fato de ter chamado porca a Mammie, a pele dela era tão espessa como uma parede
de tijolo. Uma das razões por que Scarlett gostara de ter a "ralé" por amigos é que,
com eles, podia ser grosseira sempre que quisesse que eles voltavam sempre de
rastos, a pedir mais. "Graças a Deus que não desci tão baixo. Não vou rastejar até
eles, agora que sei como são ordinários."
"Mas é que fica escuro tão cedo. E as noites são tão longas e não consigo dormir
como deve ser. As coisas vão melhorar quando a chuva parar... quando o Inverno
acabar... quando Rhett voltar..."
Por fim, o tempo melhorou e os dias ficaram luminosos e frios, cheios de sol, com
farrapos de nuvens lá no alto de um céu azul e brilhante. Colleton bombeou a água
estagnada do buraco que cavara e o vento áspero secou o barro vermelho da Geórgia,
tornando-o duro como tijolo. Mandou vir cimento e madeira, para fazer as formas de
moldar as sapatas.
Scarlett mergulhou numa orgia de presentes. Estavam quase no Natal. Comprou
bonecas para Ella e para cada uma das filhas de Suellen. Bebês para as mais novas,
com corpos macios cheios de serragem e caras rechonchudas feitas de porcelana,
bem assim como os pés e as mãos. Susie e Ella iam ficar com umas senhorinhas
quase iguais, com malas de pele bem imaginadas, cheias de lindas roupas. Wade era
um problema; Scarlett nunca sabia o que havia de fazer com ele. Depois, lembrou-se
da promessa de Tony Fontaine de o ensinar a girar os revólveres, e comprou um par
para Wade, com as iniciais dele gravadas na parte de dentro dos punhos de marfim.
Suellen era fácil - uma bolsa de seda enfeitada com pérolas, luxuosa demais para usar
no campo, com uma moeda de ouro de vinte dólares lá dentro, que era boa em
qualquer lugar. Will era impossível. Scarlett procurou por todo o lado antes de desistir e
comprou-lhe outro casaco de pele de carneiro, igual ao que lhe dera no ano anterior e
no ano antes desse. "O que conta é a intenção", disse a si própria com firmeza.
Ponderou durante bastante tempo antes de decidir não dar um presente a Beau.
Índia era pessoa capaz de o devolver sem abrir. Além disso, Beau não tinha falta de
nada, pensou amargamente. A conta dos Wilkes no seu armazém aumentava todas as
semanas.
Comprou um corta-charutos de ouro para Rhett, mas não teve coragem para o
mandar. Em vez disso, os presentes que arranjou para as tias de Charleston foram
muito mais bonitos que o costume. Talvez elas dissessem à mãe de Rhett como ela se
lembrara delas e Mrs. Butler podia dizer a Rhett.
"Pergunto a mim mesma se ele me vai mandar alguma coisa. Ou trazer-me.
Talvez venha passar o Natal, para calar as más-línguas."
Essa possibilidade era suficientemente credível para lançar Scarlett numa grande
agitação, decorando toda a casa. Quando esta parecia um jardim, cheia de ramos de
pinheiro, azevinho e hera, levou os restos para o armazém.
- Sempre usamos a grinalda de ouropel na montra, Mrs. Butler. Não é preciso
mais nada - disse Willie Kershaw.
- Não me digas o que é e o que não é preciso. Enrola estes cordões de pinho em
volta dos balcões e põe a coroa de azevinho na porta. Fará que as pessoas se sintam
com espírito de Natal, e gastam mais dinheiro em presentes. Não temos coisinhas
bonitas para presentes em número suficiente. Onde está aquela caixa grande de
leques de papel encerado?
- Disse-me para a tirar daqui. Disse-me que não devíamos gastar o espaço útil
das prateleiras com ninharias, quando aquilo que as pessoas queriam era pregos e
tábuas de lavar.
- Tonto, isso era nessa época, agora é diferente. Vai buscá-la.
- Bem, não tenho bem a certeza de onde a pus. Foi há muito tempo.
- Santíssima Mãe de Deus! Vai ver o que é que aquele homem ali quer. Eu
própria a procurarei. - Scarlett entrou de rompante na sala das arrumações, por detrás
da área de vendas.
Estava no topo de uma escada, procurando no meio de pilhas poeirentas, numa
das prateleiras de cima, quando ouviu as vozes familiares de Mrs. Merriwether e da
filha Maybelle.
- Pensei que tinha dito que nunca mais ia pôr o pé dentro do armazém de Scarlett,
mãe.
- Chiu, o empregado pode ouvir-te. Procuramos em todo os locais da cidade e
não se consegue encontrar uma peça de veludo preto. Não posso acabar a minha
máscara sem isso.
- Quem é que já ouviu falar na rainha Vitória com uma capa colorida?
Scarlett franziu as sobrancelhas. De que raio estariam falando? Desceu a escada
em silêncio e foi na ponta dos pés encostar o ouvido à parede.
- Não, minha senhora - ouviu dizer o empregado. - Não temos muita procura de
veludo.
- Exatamente como esperava. Vamos embora, Maybelle.
- Já que aqui estamos, talvez consiga encontrar as penas que preciso para a
minha Pocahontas - dizia Maybelle.
- Que disparate. Vamos lá. Nunca devíamos ter vindo aqui. Supõe que alguém
nos viu. - O passo de Mrs. Merriwether era pesado mas rápido. Bateu com a porta ao
sair.
Scarlett voltou a subir a escada. Todo o espírito de Natal a abandonara. Alguém
ia dar um baile de máscaras e ela não fora convidada. Quem lhe dera que tivesse
deixado Ashley partir o pescoço no túmulo de Melanie! Encontrou a caixa de que
andava à procura e atirou-a ao chão, onde rebentou, espalhando os leques de cores
vivas num amplo arco.
- Agora apanha-os e limpa o pó de todos eles! - ordenou. - Vou para casa. -
Preferia morrer a começar a choramingar em frente dos seus próprios empregados.
O jornal do dia estava no banco da carruagem. Estivera tão ocupada com as
decorações que ainda não tivera tempo de o ler. E agora já não lhe interessava muito,
mas serviria para tapar o seu rosto de algum metido que se pusesse a olhar para ela.
Scarlett endireitou a dobra do jornal e abriu-o na página central para ler "A Nossa Carta
de Charleston". Só falava da pista de corridas de Washington, reaberta recentemente e
do próximo dia das corridas, em Janeiro. Scarlett leu de relance as descrições
extasiantes das semanas das corridas de antes da guerra, as pretensões do costume
de Charleston em como sempre tinham tido o melhor e o mais elaborado fosse do que
fosse e as previsões de que as próximas corridas iriam igualar as suas predecessoras,
ou até suplantá-las. De acordo com o correspondente, haveria festas durante todo o
dia, todos os dias e um baile todas as noites, durante semanas.
- E Rhett Butler em todas elas, aposto - murmurou Scarlett. Atirou o jornal no
chão.
Um cabeçalho da primeira página chamou-lhe a atenção. Desfile termina com
baile de máscaras. "Devia ser disto que o velho dragão e Maybelle estavam falando",
pensou ela. "Todo mundo vai a festas maravilhosas, exceto eu." Agarrou outra vez o
jornal.
Pode agora anunciar-se [dizia], uma vez que os planos e os preparativos já estão
prontos, que Atlanta será agraciada no próximo dia 6 de Janeiro com um desfile que
certamente rivalizará com a magnificência da famosa Terça-Feira Gorda de Nova
Orleães. Os "Foliões do Dia de Reis" é um corpo formado recentemente pelas figuras
de proa da nossa cidade, do mundo da sociedade e dos negócios, e os incentivadores
deste acontecimento fabuloso. O rei do desfile reinará em Atlanta, servido por uma
corte de nobres. Entrará na cidade e a atravessará no carro alegórico real, num desfile
que se espera venha a ultrapassar um quilômetro de comprimento. Todos os cidadãos,
seus súditos nesse dia, são convidados a ver o desfile e a maravilharem-se com ele. O
horário e o percurso serão anunciados numa posterior edição deste jornal.
As folias do dia terminarão com um baile de máscaras, para o qual a Ópera
DeGives será transformada num verdadeiro país das Maravilhas. Os foliões
distribuíram quase trezentos convites aos melhores cavaleiros e às mais belas damas
de Atlanta.
- Maldição! - disse Scarlett.
A desolação tomou conta dela e começou a chorar como uma criança. Não era
justo Rhett andar dançando e rindo em Charleston, e todos os seus inimigos em Atlanta
a divertirem-se, enquanto ela estava enfiada, sozinha, na sua enorme e silenciosa
casa. Nunca fizera nada de tão mau para merecer este tratamento.
"Mas também nunca foste tão mariquinhas para deixares que te façam chorar",
disse a si própria, zangada.
Scarlett limpou as lágrimas com as costas da mão. Não ia chafurdar na tristeza. Ia
procurar aquilo que queria. Ia ao baile, ia arranjar maneira disso.
Arranjar um convite para o baile não era impossível, até nem era difícil; Scarlett
descobriu que o anunciado desfile seria principalmente constituído por carros
decorados, anunciando produtos e lojas. Havia um pagamento para os participantes, é
claro, assim como o custo de decorar o carro alegórico, mas todos os negócios
representados no desfile receberiam dois convites para o baile. Mandou Willie Kershaw
com o dinheiro para inscrever Kennedy's Emporium no desfile.
Isto reforçou a sua crença de que praticamente tudo podia ser comprado. O
dinheiro conseguia tudo.
- Como é que vai decorar o carro, Mrs. Butler?- perguntou Kershaw.
A questão abria centenas de possibilidades.
- Vou pensar nisso, Willie. - Bom, ela podia gastar horas e horas, encher imensas
noites, a pensar como é que havia de fazer que todos os outros carros parecessem
dignos de dó ao pé do seu.
Também tinha que pensar no traje de máscara para o baile. Ia levar tanto tempo!
Tinha que ver outra vez todas as suas revistas de moda, tinha que descobrir o que as
pessoas iam levar, tinha que escolher tecidos, marcar as provas, escolher um
penteado...
Oh, não! Ainda estava de luto. Certamente, isso não significava que tinha que ir
de preto a um baile de máscaras. Nunca fora a nenhum, não sabia quais eram as
regras. Mas a idéia era enganar as pessoas, não era? Não parecer como era habitual,
disfarçar-se. Então, com certeza, que não devia ir de preto. O baile soava-lhe melhor a
cada minuto que passava.
Scarlett despachou rapidamente os seus afazeres no armazém e apressou-se a ir
à modista, Mrs. Marie.
A corpulenta Mrs. Marie, respirando ofegantemente, tirou um molho de alfinetes
da boca, para poder dizer que as senhoras tinham encomendado máscaras de
Rosebud, vestido de baile cor-de-rosa ornamentado com rosas de seda de Branca de
Neve, vestido de baile branco ornamentado com rendas brancas com goma e
lantejoulas de Noite, veludo azul-escuro bordado com estrelas prateadas de
Madrugada, saias de seda sobrepostas em dois tons de rosa de Pastora, vestido
riscado com um avental branco ornamentado de rendas brancas ...
- Está bem, está bem - disse Scarlett impacientemente.
- Já vi o que é que estão fazendo. Amanhã digo-lhe de que é que vou.
Mrs. Marie atirou as mãos ao ar.
- Mas não vou ter tempo de fazer o seu vestido, Mrs. Butler. Com tudo isto tive de
arranjar mais duas costureiras e mesmo assim não vejo como é que vou conseguir
acabar tudo a tempo... Não há maneira nenhuma de poder juntar outra máscara
àquelas com que já me comprometi.
Scarlett ignorou a recusa da mulher com um gesto da mão. Sabia que conseguia
forçá-la a fazer o que queria. O difícil era decidir o que é que havia de ser.
A resposta surgiu-lhe quando estava jogando paciência, enquanto esperava pela
hora de jantar. Espreitou para o baralho das cartas para ver se ia arranjar o rei de que
precisava para um espaço vazio. Não, antes do próximo rei havia duas rainhas. O jogo
não ia sair bem.
Uma rainha! Claro! Poderia usar um belíssimo traje, com uma grande cauda
enfeitada com peles brancas. E todas as jóias que quisesse.
Atirou o resto das cartas para cima da mesa e correu pelas escadas acima para ir
ver a sua caixa das jóias. "Porquê, oh, por que é que Rhett fora tão avarento
comprando-lhe jóias?" Comprava-lhe tudo o resto que ela queria, mas as únicas jóias
de que gostava eram pérolas. Tirou fiada após fiada e empilhou-as na cômoda. Ali! Os
seus brincos de diamante. Usaria esses com certeza. E podia usar pérolas no cabelo,
bem assim como no pescoço e nos pulsos. Que pena não se poder arriscar a usar o
seu anel de noivado, de esmeraldas e diamantes. Demasiadas pessoas iriam
reconhecê-lo, e se soubessem quem ela era podiam evitá-la. Contava com o seu traje
e com a máscara do rosto para a proteger de Mrs. Merriwether, de Índia Wilkes e das
outras mulheres. Tencionava divertir-se, dançar todas as danças e tomar novamente
parte nas coisas.
A 5 de Janeiro, o dia antes do desfile, Atlanta em peso estava de gala, com as
preparações. O gabinete do presidente da Câmara tinha ordenado que todas as lojas
fechassem no dia 6 e que todos os edifícios no percurso da parada fossem decorados
de vermelho e branco, as cores de Rex, rei do desfile.
Scarlett pensou que era um desperdício fechar o armazém num dia em que a
cidade ia estar cheia de pessoas do campo, que viriam para as celebrações. Mas
pendurou grandes rosáceas de fitas na fachada da loja e na vedação de ferro em frente
à sua casa e, exatamente como todo mundo, esbugalhou os olhos perante a
transformação de Whitehall e Marietta Street. Estandartes e bandeiras cobriam todos
os postes de iluminação e fachadas das casas, formando um verdadeiro túnel de
alegre e esvoaçante vermelho e branco para a estirada final do desfile de Rex até ao
trono.
"Devia ter ido buscar Wade e Ella em Tara para o desfile", pensou ela. "Mas,
provavelmente, ainda devem estar fracos da varicela", acrescentou o seu espírito
rapidamente. "E não tenho bilhetes do baile para Suellen e Will. Além disso, mandei-
lhes montes de presentes de Natal."
A chuva incessante no dia do desfile acalmou qualquer vestígio de remorso por
causa das crianças. De qualquer modo, não poderiam ter estado de pé à chuva e ao
frio para ver a parada.
Mas ela podia. Embrulhou-se num xale quente e ficou de pé, em cima de um
banco de pedra, perto do portão, protegida por um grande guarda-chuva, e com uma
boa visão por cima das cabeças e sombrinhas dos espectadores, que ocupavam o
passeio do lado de fora.
Como prometido, o desfile tinha mais de um quilômetro de comprimento. Era um
espetáculo corajoso e triste. A chuva tinha arruinado completamente os trajes de tipo
súdito medieval. Escorria tinta encarnada, as plumas de avestruz tombaram, chapéus
de veludo, outrora vistosos, abatiam-se sobre os rostos como alfaces murchas. Os
arautos e pajens que marchavam na frente pareciam encharcados e com frio, mas
cheios de determinação; os cavaleiros lutavam, os rostos rígidos, com os seus cavalos
salpicados, tentando avançar por entre a lama escorregadia e traiçoeira. Scarlett
juntou-se ao aplauso da multidão para o conde Marshal. Era o tio Henry Hamilton, que
parecia ser o único que estava se divertindo. Arrastava-se pela lama, descalço, levando
os sapatos numa mão e o chapéu sujo na outra, acenando à multidão, primeiro com
uma mão e depois com a outra, sorrindo de orelha a orelha.
Ela própria sorriu quando as damas da corte passaram lentamente por ali, em
carruagens abertas. As líderes da sociedade de Atlanta usavam máscaras, mas nos
seus rostos via-se claramente uma infelicidade estóica. A Pocahontas de Maybelle
Merriwether exibia umas penas desfeitas no cabelo que pingava água pela cara e pelo
pescoço abaixo. Mrs. Elsing e Mrs. Whiting reconheciam-se facilmente, tremendo e
encharcadas, mascaradas de Betsy Ross e Florence Nightingale. Mrs Meade,
espirrando, era a representação dos Bons Velhos Tempos, com um montão de saias
em arco de tafetá molhado. Só Mrs. Merriwether não fora afetada pela chuva. A rainha
Vitória segurava um grande guarda-chuva preto sobre a sua seca cabeça real. A sua
capa de veludo não tinha uma única mancha.
Quando as senhoras passaram houve um grande hiato e os espectadores
começaram a ir embora. Mas, nesse momento, ouviu-se o distante som de Dixie. Em
pouco tempo, a multidão dava vivas até ficar rouca e assim continuou até a banda
passar por eles, quando todos ficaram em silêncio.
Era uma banda pequena, só dois tambores e dois homens a tocarem apitos e um
homem que tocava um cornetim, com um timbre alto e doce. Mas estavam vestidos de
cinzento, com faixas douradas e brilhantes botões amarelos. E, na frente deles, um
homem só com um braço segurava na bandeira da Confederação com a mão que lhe
restava. A Stars and Bars estava honradamente gasta e desfeita e desfilava novamente
por Peachtree Street. Um nó de emoção dominava todas as gargantas, impedindo-as
de dar vivas.
Scarlett sentiu lágrimas no rosto, mas não eram lágrimas de derrota, eram
lágrimas de orgulho. Os homens de Sherman tinham queimado Atlanta, os ianques
tinham pilhado a Geórgia, mas não tinham conseguido destruir o Sul. Viu lágrimas
como as suas nos rostos das mulheres e dos homens que estavam à sua frente. Todos
tinham baixado os chapéus para honrar a bandeira de pé, com a cabeça descoberta.
Permaneceram ali, ao frio e à chuva, aprumados e orgulhosos, durante muito
tempo. À banda, seguia-se uma coluna de veteranos da Confederação, usando os
uniformes de guerra, tecidos à mão, com que tinham regressado ao lar. Marcharam ao
som de Dixie como se fossem novamente jovens, e os sulistas encharcados que os
viam passar, encontraram voz para os saudar e assobiar, e deixar sair o arrepiante e
crescente grito que era o Grito do Rebelde.
Os vivas duraram até os veteranos terem desaparecido. Depois, os guarda-
chuvas foram erguidos e as pessoas começaram a ir embora. Tinham-se esquecido de
Rex e do dia de Reis. O ponto alto da parada viera e passara, deixando-os molhados e
gelados mas exaltados.
- Maravilhoso! - ouviu Scarlett de dúzias de bocas sorridentes, enquanto as
pessoas passavam pelo seu portão.
-O desfile ainda não acabou - disse ela para alguns deles.
- Não pode ser melhor que Dixie, pois não? - retorquiam eles.
Ela abanava a cabeça. Até ela não estava interessada em ver os carros
alegóricos e trabalhara muito no seu. Também gastara muito dinheiro, em papel de
crepe e lantejoulas que a chuva estragara com certeza. Pelo menos, agora, podia
sentar-se para ficar vendo e isso já era alguma coisa. Não queria ficar toda cansada
quando nessa noite havia o baile de máscaras.
Dez longuíssimos minutos passaram antes de aparecer o primeiro carro. Scarlett
percebeu porquê quando este se aproximou. As rodas da carroça ficavam enterradas
na lama barrenta e remexida da rua a todo o momento. Suspirou e embrulhou-se mais
no xale. "Parece que tenho muito que esperar."
Levou mais de uma hora até todos os carros alegóricos terem passado por ela;
antes do fim, já os seus dentes batiam de frio. Mas, pelo menos, o seu era o melhor. As
alegres flores de papel que decoravam os lados do carro estavam encharcadas mas
permaneciam bonitas. E Kenned's Emporium, pintado com tinta dourada-cintilante
brilhava visivelmente através das gotas de chuva que se agarravam à tinta. Sabia bem
que os grandes barris, com etiquetas que diziam "farinha", "açúcar", "cereal", "melaço",
"café", "sal" estavam vazios, por isso, não havia prejuízos. E as bacias e tábuas de
lavar de folha de flandres não iam enferrujar. De qualquer modo, as chaleiras de ferro
já estavam estragadas; ela colara flores de papel nas amolgadelas. O único prejuízo
verdadeiro eram as ferramentas de cabo de madeira. Até os tecidos que enrolara tão
artisticamente sobre um pedaço de arame de galinheiro podiam ser aproveitados para
a caixa das pechinchas.
Se ao menos as pessoas tivessem esperado para ver o seu carro, tinha certeza
de que teriam ficado impressionadas.
Curvou os ombros e fez uma careta ao último carro. Estava rodeado por dúzias
de crianças que gritavam e pulavam. Um homem com uma máscara de elfo de diversas
cores atirava rebuçados para a esquerda e para a direita. Scarlett olhou para o nome
no cartaz por cima da cabeça dele. Rich's. Willie estava sempre falando deste novo
armazém de Five Points. Estava preocupado porque lá os preços eram mais baixos e
Kennedy estava perdendo alguns clientes. "Disparates", pensou Scarlett com desprezo.
"Rich's não vai ficar aberto o tempo suficiente para me prejudicar. Baixar os preços e
deitar fora mercadoria não é maneira de ter sucesso nos negócios. Estou contentíssima
por ter visto isto. Agora posso dizer a Willie Kershaw para não ser tão parvo."
Ainda ficou mais contente ao ver o carro grand finale atrás do de Rich's. Era o
trono de Rex. Havia uma abertura na cobertura às riscas brancas e vermelhas que o
encimava, e a água caía sem parar na cabeça coroada de dourado e nos ombros com
chumaços de algodão, enfeitados com pele do Dr. Meade. Este tinha um aspecto
infelicíssimo.
- Espero que apanhe uma pneumonia dupla e morra! - disse Scarlett por entre
dentes. Depois correu para dentro de casa para tomar um banho quente.
Scarlett ia mascarada de rainha de copas. Teria preferido ser a rainha de ouros,
com uma coroa de papel brilhante, colarinho alto e broches. No entanto, assim não
podia usar as suas pérolas, que o joalheiro lhe tinha dito serem "dignas da própria
rainha". E, além disso, encontrara umas boas imitações de rubis, grandes, para coser a
toda a volta do grande decote do seu vestido de veludo vermelho. Era tão bom vestir
uma coisa de cor!
A cauda do vestido estava orlada com raposa branca. Ficaria estragada antes de
o baile acabar, mas não fazia mal; tinha um aspecto elegante, quando a pendurasse no
braço para dançar. Tinha uma misteriosa máscara de cetim vermelho para os olhos,
que lhe cobria o rosto até à ponta do nariz, e pintara os lábios de vermelho, para
condizer. Sentia-se muito ousada e bastante segura. Nessa noite podia dançar até lhe
apetecer sem ninguém saber quem ela era, para a poderem insultar. Que idéia
maravilhosa era esta do baile de máscaras!
Mesmo com a máscara posta, Scarlett sentia-se nervosa por entrar na sala de
baile sem ir acompanhada, mas não valia a pena. Quando saiu da carruagem, ia entrar
no hall viu grande grupo de foliões mascarados e ela juntou-se a eles, sem que
ninguém comentasse o fato. Uma vez lá dentro, olhou à sua volta, espantada. A Ópera
DeGives fora de tal modo transformada que estava quase irreconhecível. O belo teatro
era agora um verdadeiro e convincente palácio de rei.
Fora construída uma área para dançar sobre a metade inferior do auditório,
fazendo que o grande palco aumentasse, parecendo agora uma sala de baile
gigantesca. Ao fundo, o Dr. Meade, representando Rex, estava sentado no trono,
ladeado por súbditos de uniforme, incluindo um porta Taça Real. No centro da platéia
via-se a maior orquestra que Scarlett jamais contemplara, e no recinto havia multidões
de dançarinos, de gente que olhava e de outros que andavam por ali. Havia um
sentimento tangível de alegria esfuziante, um atrevimento que provinha do anonimato
dado pelas máscaras e disfarces. Assim que entrou na sala, um homem vestido de
chinês, com um longo rabo de cavalo, pôs um braço sedoso à volta da sua cintura e
levou-a, volteando, para o recinto da dança. Podia ser um desconhecido total. Era
perigoso e excitante.
A música era uma valsa e o seu par um dançarino estonteante. Enquanto
rodopiavam, Scarlett via de relance máscaras de hindus, palhaços, arlequins,
pierrettes, freiras, ursos, piratas, ninfas e cardeais, todos a dançarem tão loucamente
como ela. Quando a música parou estava sem fôlego.
- Maravilhoso! - ofegou ela. - É uma maravilha. Tanta gente. Deve estar aqui a
Geórgia em peso a dançar.
- Não exatamente - disse o seu par. - Alguns não tiveram convites. - Fez um sinal
lá para cima com o polegar. Scarlett viu que as galerias estavam cheias de gente
vestida normalmente. Alguns não eram assim tão comuns. Mamie Bart estava lá, com
os diamantes todos, rodeada por outros da "ralé". "Que bom eu não ter voltado a dar-
me com aquele bando. São demasiado ordinários para serem convidados para onde
quer que seja." Scarlett conseguira esquecer a origem do seu convite.
O fato de haver um público fazia que o baile parecesse ainda mais desejável.
Atirou a cabeça para trás e riu. Os seus brincos de diamantes faiscaram; podia vê-los
refletidos nos olhos do mandarim, através dos buracos da máscara.
Nesse momento, ele desapareceu. Foi afastado por um monge com o capuz
puxado para a frente para tapar o rosto mascarado. Sem uma palavra, pegou a mão de
Scarlett e rodeou-lhe a cintura com o braço, no momento em que a orquestra
começava a tocar uma alegre polca.
Dançou como já não dançava há anos. Sentia-se tonta, contagiada pela loucura
excitante da mascarada, intoxicada pela estranheza de tudo aquilo, pelo champanhe
oferecido em tabuleiros de prata por pajens vestidos de cetim, pelo prazer de estar
novamente numa festa, pelo seu inquestionável sucesso. Estava sendo um sucesso e
acreditava ser desconhecida, invulnerável.
Reconheceu as viúvas da velha guarda. Traziam as mesmas máscaras que
tinham usado no desfile. Ashley estava mascarado, mas ela reconheceu-o assim que o
viu. Usava uma faixa à volta da manga do seu traje de arlequim branco e preto, "Índia
devia tê-lo arrastado para aqui, de modo a ter uma escolta", pensou Scarlett. "Que
maldade da parte dela. Claro que ela não se importa se é maldade ou não, desde que
não fique mal, e um homem de luto não precisa se abster de sair do mesmo modo que
uma mulher. Pode pôr uma faixa no seu melhor traje e começar a cortejar a sua
próxima amada, antes de a mulher ter tido tempo de esfriar no caixão. Mas qualquer
um pode ver que o pobre Ashley detesta estar aqui. Vejam só a maneira como está
todo curvado, metido na fantasia. Bem, não te rales, querido. Vai haver muitas mais
casas como aquela que Joe Colleton está construindo. Vinda a Primavera, vais estar
tão atarefado fazendo entregas de madeira que não terás tempo para estar triste."
À medida que a noite ia andando, o espírito de mascarada acentuou-se ainda
mais. Alguns dos admiradores de Scarlett perguntaram-lhe o nome; um até tentou
levantar-lhe a máscara. Evitou-os a todos sem problemas. "Não me esqueci de como é
que se tratam rapazes atrevidos", pensou ela, sorrindo. "E não passam de rapazes,
tenham a idade que tiverem. Até estão a espreitar pelos cantos, à procura de algo um
pouco mais forte que champanhe. Daqui a pouco, começam a lançar o Grito do
Rebelde."
- De que é que está rindo, minha rainha misteriosa? - perguntou o corpulento
cavaleiro que parecia estar fazendo o possível por lhe pisar os pés enquanto
dançavam.
- Ora, de si, é claro - respondeu Scarlett, sorrindo. Não, não se esquecera de
nada.
Quando o cavaleiro lhe largou a mão em favor do ansioso mandarim, que estava
de volta pela terceira vez, Scarlett implorou graciosamente uma cadeira e um copo de
champanhe. O cavaleiro tinha-a machucado muito num dos dedos do pé.
Mas quando a sua escolta a conduzia para a sala de estar, ao lado, declarou
subitamente que a orquestra estava tocando a sua música preferida e não podia deixar
de dançar.
Vira a tia Pittypat e Mrs. Elsing no seu caminho. Será que elas a tinham
reconhecido?
Uma mistura de raiva e medo enfraqueceu o sentimento de feliz excitação que a
dominava. Estava dolorosamente consciente do seu pé machucado e do hálito a
uísque do mandarim.
"Agora não vou pensar nisso, nem em Mrs. Elsing, nem no meu pé machucado.
Não vou deixar que nada estrague o meu divertimento." Tentou empurrar esses
pensamentos e entregar-se ao prazer da festa.
Mas, contra a sua vontade, os seus olhos olhavam muitas vezes para as partes
laterais da sala de baile e para os homens e mulheres que aí estavam, uns de pé,
outros sentados.
Tocaram de leve num pirata, alto e barbudo, que estava encostado a uma porta e
que lhe fez uma vênia. Scarlett suspendeu a respiração. Voltou a cabeça para olhar
novamente. Havia qualquer coisa... um ar insolente...
O pirata usava uma camisa branca de cerimônia e calças escuras. Não se podia
dizer que fosse uma fantasia, com exceção da larga faixa de seda vermelha que lhe
rodeava a cintura, com duas pistolas lá enfiadas. E laços azuis atados às pontas da
espessa barba. No rosto usava uma simples máscara preta, que lhe tapava os olhos.
Não era ninguém que ela conhecesse, pois não? Tão poucos homens usavam barbas
espessas naquela altura. No entanto, o seu porte... E o modo como parecia olhá-la,
como se atravessasse a máscara.
Quando Scarlett olhou para ele pela terceira vez, ele sorriu, com os dentes muito
brancos contrastando com a barba escura e a pele morena. Scarlett sentiu-se
enfraquecer. Era Rhett.
Não podia ser... devia estar a imaginar coisas... Não, não estava; não se sentiria
assim se fosse outra pessoa. Então não era mesmo dele? Aparecer num baile para o
qual a maioria das pessoas não conseguiu ser convidada. Rhett conseguia tudo!
- Desculpe-me, tenho de ir. Não, de verdade, estou falando a sério. - Afastou-se
do mandarim e correu para o pirata.
Rhett fez outra vênia.
- Edward Teach, ao seu serviço, minha senhora.
- Quem? - "Pensaria ele que ela não o reconhecera?"
- Edward Teach, normalmente conhecido por Barba Negra, o maior vilão que
alguma vez cruzou as águas do Atlântico. - Rhett puxou um caracol da barba, enfeitado
com um laço.
O coração de Scarlett deu um pulo. "Ele está divertindo-se", pensou ela, " fazendo
daquelas partidas dele que sabe que eu quase nunca compreendo. Exatamente como
era seu costume antes de... das coisas ficarem mal. Agora não posso fazer asneira.
Não posso. Que teria eu dito dantes, quando ainda não o amava tanto?"
- Surpreende-me que tenhas vindo a um baile em Atlanta quando há tantos
acontecimentos importantes na tua querida Charleston - disse ela.
Aí estava. Era mesmo isso. Não era precisamente mauzinho, mas também não
era muito amoroso.
As sobrancelhas de Rhett elevaram-se num arco negro por cima da máscara e
Scarlett suspendeu a respiração. Ele fazia sempre aquilo quando estava divertido. Ela
estava agindo mesmo bem.
- Como é que estás tão bem informada sobre a vida social de Charleston,
Scarlett?
- Leio o jornal. Uma tonta qualquer não se cansa de falar de uma corrida de
cavalos qualquer.
Maldita barba. Pensou que ele estava a sorrir, mas não conseguia ver-lhe os
lábios.
- Eu também leio os jornais - disse Rhett. - Até mesmo em Charleston, quando
uma cidade de província nova-rica como Atlanta decide fingir que é Nova Orleães, isso
é notícia.
Nova Orleães. Ele levara-a lá na lua-de-mel. "Leva-me lá outra vez", apetecia-lhe
dizer. "Começamos de novo e tudo será diferente." Mas não podia dizer isso. Ainda
não. O seu espírito saltava rapidamente de recordação em recordação. Estreitas ruas
calcetadas, salas de teto alto, sombrias, com grandes espelhos com feias molduras
douradas, comidas estranhas e maravilhosas...
- Admito que as bebidas não são tão chiques - disse ela de má vontade.
Rhett deu uma gargalhada.
- Uma grande meia verdade.
"Estou a fazê-lo rir. Há séculos que não o ouvia rir... há tempo demais. Deve ter
visto os homens fazerem fila para dançar comigo."
- Como é que soubeste que era eu?- perguntou ela. - Tenho uma máscara.
- Só precisei de procurar a mulher vestida mais ostensivamente, Scarlett. Com
certeza que eras tu.
- Oh, grande... patife. - Esqueceu-se de que estava tentando diverti-lo. - Não
estás lá muito bonito, Rhett Butler, com essa barba horrível. Mais valia teres enfiado
uma pele de urso pela cabeça abaixo.
- Foi o disfarce mais completo de que me consegui lembrar. Há um certo número
de pessoas em Atlanta que não desejo nada que me reconheça facilmente.
- Então por que é que vieste? Suponho que não foi só para me insultar.
- Prometi-te que me deixaria ver o suficiente para calar as más-línguas, Scarlett.
Esta era a ocasião perfeita.
- De que é que serve um baile de máscaras? Ninguém sabe quem é quem.
- À meia-noite tiram-se as máscaras. Ou seja, daqui a quatro minutos. Dançamos
uma valsa para todos verem e depois saímos. - Rhett tomou-a nos braços e Scarlett
esqueceu a sua fúria, esqueceu o perigo de tirar a máscara perante os seus inimigos,
esqueceu o mundo. Nada mais importava senão o fato de ele estar ali, abraçando-a.

Scarlett ficou acordada quase toda a noite, tentando compreender o que


acontecera. No baile, tudo se passara lindamente... "Quando soou a meia-noite, o Dr.
Meade disse que toda a gente devia tirar as máscaras e Rhett ria quando arrancou
também a barba. Era capaz de jurar que estava se divertindo. Fez uma espécie de
saudação ao doutor e uma vênia a Mrs. Meade e depois arrastou-me dali para fora sem
mais nada. Nem sequer se deu conta do modo como me viravam as costas, pelo
menos não o deu a entender. Tinha um sorriso de orelha a orelha."
"E na carruagem, a caminho de casa, estava demasiado escuro para lhe ver a
cara, mas a voz soava bem. Eu não sabia o que dizer, mas mal tive tempo de pensar
nisso. Perguntou como iam as coisas em Tara e se o seu advogado pagava as minhas
contas, e quando eu acabei de responder, estávamos em casa. Foi quando a coisa
aconteceu. Ele estava aqui, ao fundo das escadas, no hall. Então, limitou-se a dizer
boa noite, que estava cansado e foi para o seu quarto de vestir."
"Não foi odioso ou frio, só disse boa noite e subiu as escadas. Que significa isto?
Por que é que se deu ao trabalho de fazer todo este caminho? Não foi só para vir a
uma festa, quando em Charleston estão na época das festas. Também não foi por ser
um baile de máscaras, podia ir ao de Terça-Feira Gorda se quisesse. No fim de contas,
tem muitos amigos em Nova Orleães."
"Disse que era para 'calar as más-línguas'. Uma ova. Foi ele que causou tudo, ao
tirar aquela porcaria da barba do modo como o fez."
Voltou ao princípio, revendo a noite uma e outra vez, até lhe doer a cabeça. O
sono, quando chegou, foi breve e inquieto. Contudo, acordou a tempo de descer para o
café com o roupão que lhe ficava melhor. Hoje não queria que lhe trouxessem
nenhuma bandeja. Rhett tomava sempre o café-da-manhã na sala de jantar.
- De pé tão cedo, minha querida? - disse ele. - Que amável da tua parte. Assim,
não preciso escrever um bilhete de despedida. - Atirou o guardanapo para cima da
mesa. - Fiz uma mala com algumas coisas de que Pork se esquecera. Passarei para
buscá-la mais tarde, quando for apanhar o trem.
"Não me deixes", implorava o coração de Scarlett. Desviou o olhar, não fosse ele
ver a súplica nos seus olhos.
- Pelo amor de Deus, acaba o café, Rhett - disse ela. - Não vou fazer uma cena. -
Dirigiu-se ao aparador e serviu-se de café, observando-o pelo espelho. Tinha que ficar
calma. Então, talvez ele ficasse.
Ele estava de pé, com o relógio aberto na mão.
- Não tenho tempo - disse. - Tenho que ver algumas pessoas enquanto aqui
estou. Vou estar muito ocupado até ao Verão, por isso, vou espalhar a notícia de que
vou para a América do Sul em negócios. Ninguém se vai pôr a falar devido a uma tão
longa ausência. A maior parte das pessoas de Atlanta nem sequer sabe onde é que
fica a América do Sul. Sabes, minha querida, estou cumprindo a minha promessa de
preservar a pureza da tua reputação. - Rhett sorriu maldosamente, fechou o relógio e
enfiou-o no bolso. - Adeus, Scarlett.
- Por que é que não vais para a América do Sul e te perdes lá para sempre?
Quando a porta se fechou atrás dele, a mão de Scarlett estendeu-se para a
garrafa de brande. Por que é que dissera aquilo? Não era nada assim que sentia. Ele
sempre lhe fizera aquilo, levava-a a dizer coisas que ela não queria, já devia saber o
suficiente para não se deixar levar assim. "Mas ele não me devia ter insultado com
aquilo da minha reputação. Como é que ele terá descoberto que sou uma proscrita?"
Nunca se sentira tão infeliz em toda a sua vida.
9
Mais tarde, Scarlett ficou com vergonha de si própria. Beber de manhã! Só os
bêbedos da rua faziam tal coisa. Disse a si própria que, na verdade, as coisas não
estavam assim tão mal. Pelo menos, agora sabia quando Rhett ia voltar. Ainda faltava
muito tempo, mas era uma coisa certa. Agora já não ia perder tempo imaginando que
talvez naquele dia... ou no dia seguinte... ou no outro...
Fevereiro começou com um tempo quente, pouco habitual, que encorajou as
folhas novas das árvores, e encheu o ar com o cheiro da terra a despertar.
- Abram as janelas todas - disse Scarlett aos criados - para deixar sair o mofo. - A
brisa que lhe levantava as madeixas soltas da testa era deliciosa. De repente, sentiu
umas saudades terríveis de Tara. Lá, com o vento carregado de Primavera, trazendo o
cheiro da terra morna para dentro do quarto, seria capaz de dormir.
"Mas não posso ir. Colleton vai poder começar pelo menos mais três casas, assim
que este tempo amolecer a geada que cobre a terra. Mas só o fará se eu insistir com
ele. Nunca conheci um homem tão exigente em toda a minha vida. Tudo tem de estar
perfeito... capaz de esperar até a terra estar suficientemente quente para cavar até à
China sem encontrar geada.
"E se fosse só por uns dias? Uns dias não fariam muita diferença, não é?" Scarlett
lembrou-se da palidez de Ashley e dos seus ombros curvados no Baile de Carnaval e
soltou uma exclamação de desapontamento.
Se fosse para Tara, não seria capaz de se descontrair.
Mandou Pansy com um recado para Elias, para lhe trazer a carruagem. Tinha que
ir à procura de Joe Colleton.
Nessa noite, como se fosse uma recompensa por ter cumprido o seu dever, a
campainha da porta tocou logo a seguir ao anoitecer.
- Scarlett, querida - chamou Tony Fontaine quando o mordomo o mandou entrar -,
um velho amigo precisa de um quarto para passar a noite. Tens piedade dele?
- Tony! - Scarlett correu da sala de estar para o abraçar. Ele pousou a bagagem e
abriu os braços para lhe dar um abraço.
- Deus Todo-Poderoso, Scarlett, tens tratado bem de ti - disse ele. - Quando vi
este casarão pensei que um doido qualquer me tinha ensinado o caminho de um hotel,
- Olhou para o lustre cheio de ornamentos, para o papel de parede aveludado, para os
enormes espelhos dourados da entrada, e depois sorriu para ela. - Não admira que
tenhas casado com aquele tipo de Charleston em vez de esperares por mim. Onde
está Rhett? Gostaria de conhecer o homem que roubou a minha rapariga.
Uma sensação de medo, quais dedos gelados, percorreu a espinha de Scarlett.
Será que Suellen disse alguma coisa aos Fontaine?
- Rhett está na América do Sul - disse ela com vivacidade. - Imagina que coisa.
Santo Deus, pensava que só os missionários iam para locais tão distantes.
Tony riu.
- Eu também. Lamento não o ver, mas ainda bem para mim. Tenho-te toda só
para mim. E que tal uma bebida para um homem cheio de sede?
Tinha certeza de que ele não sabia que Rhett a deixara.
- Acho que uma visita tua exige uma garrafa de champanhe.
Tony respondeu que gostaria muito de champanhe mais tarde, mas, naquele
momento, apetecia-lhe um bom e velho uísque e um banho. Tinha certeza de que
ainda cheirava a estrume de vaca.
Scarlett preparou-lhe a bebida e depois mandou-o para cima, acompanhado pelo
mordomo, para um dos quartos de hóspedes que tinha vagos. Graças a Deus que os
criados viviam lá em casa; não haveria escândalo em Tony ficar o tempo que lhe
apetecesse. E teria um amigo com quem falar. Beberam champanhe ao jantar e
Scarlett pôs as suas pérolas. Tony comeu quatro grandes fatias do bolo de chocolate
que a cozinheira tinha feito às pressa para a sobremesa.
- Diz-lhes que embrulhem o que sobrar, para eu levar - implorou ele. - A única
coisa de que morro de saudades é deste bolo, com uma cobertura assim grossa. Fui
sempre um guloso.
Scarlett riu e mandou o recado para a cozinha. - Estás falando mal de Sally,
Tony? Ela não sabe fazer coisinhas boas?
- Sally? Por que pensas isso? Todas as noites faz uma sobremesa ótima, só para
mim. Alex não tem destas fraquezas. Scarlett ficou admirada.
- Queres dizer que não sabias? - disse Tony. - Calculei que Suellen te tivesse
escrito para contar. Vou voltar para o Texas, Scarlett, decidi-me por volta do Natal.
Falaram durante horas. A princípio, ela implorou-lhe que ficasse, até que o
embaraço desajeitado de Tony se transformou numa das célebres fúrias dos Fontaines.
- Caramba, Scarlett, cale-se! Eu tentei, Deus sabe como tentei, mas não consigo.
Por isso, é melhor parares de me aborrecer.
A sua voz alta fez que os prismas do lustre balançassem, falseando.
- Devias pensar em Alex - insistiu ela.
A expressão do rosto de Tony a fez parar.
Quando falou, a voz dele estava mais calma.
- Eu tentei mesmo - disse ele.
- Lamento muito, Tony.
- Eu também, querida. Por que não pedes ao teu finíssimo mordomo para abrir
outra garrafa e falamos sobre outra coisa qualquer?
- Conta-me sobre o Texas.
Os olhos negros de Tony brilharam.
- Não se vê uma cerca em quilômetros e quilômetros. - Riu e acrescentou: - É
porque não há muito que cercar, a não ser que gostes de pó e moitas secas. Mas uma
pessoa sabe quem é, quando se encontra ali sozinha, naquele enorme vazio. Não há
passado, nem estamos agarrados a farrapos, que são tudo o que nos resta. Tudo se
passa no minuto presente, ou talvez no amanhã, não no ontem. - Levantou o copo para
ela. - Estás linda como uma imagem, Scarlett. Rhett não deve ser muito esperto, senão
não te deixava ficar. Se soubesse que me safava, até fazia uns avanços.
Scarlett pôs a cabeça de lado, como uma coquete. Era divertido jogar os velhos
jogos.
- Tu até fazias avanços à minha avó, se ela fosse a única mulher presente, Tony
Fontaine. Quando bates esses olhos negros e pões esse sorriso brilhante, nenhuma
mulher fica em segurança na mesma sala que tu.
- Então, querida, sabes bem que não é assim. Sou o tipo mais cavalheiresco do
mundo... desde que a dama não seja tão linda que me faça esquecer as regras do
comportamento.
Gracejaram habilmente, deliciados com o seu próprio jeito, até o mordomo trazer
a garrafa de champanhe, e depois fizeram um brinde um ao outro. Scarlett estava
suficientemente tonta, só de prazer; não se importou que Tony acabasse a garrafa.
Durante esse tempo, ele contou-lhe histórias incríveis do Texas, que a fizeram rir até
lhe doer a barriga.
- Tony, gostaria tanto que ficasses uns tempos - disse ela, quando ele anunciou
que estava quase a deixar-se dormir em cima da mesa. - Há séculos que não me
divirto tanto.
- Quem me dera. Gosto de beber e comer bem, na companhia de uma mulher
bonita e divertida. Mas tenho que aproveitar este bom tempo. Amanhã apanho o trem
que vai para o oeste, antes que venha aí o frio. Sai muito cedo. Tomas café comigo,
antes de eu ir embora?
- Mesmo que quisesses, não te escapavas.
Elias conduziu-os à estação sob a luz cinzenta que antecede o amanhecer, e
Scarlett disse adeus com o lencinho enquanto Tony subia para o trem. Levava uma
pequena sacola de couro e um enorme saco de pano, onde guardava a sela. Depois de
os ter atirado para a plataforma da carruagem, voltou-se e acenou com o seu enorme
chapéu texano, enfeitado com uma faixa de pele de cobra. Ao fazer esse gesto, o
casaco abriu-se e ela viu o cinturão e os revólveres.
"Pelo menos, ficou lá o tempo suficiente para ensinar a Wade como fazê-los
girar", pensou ela. "Espero que não dê um tiro nos pés." Com os dedos, mandou um
beijo a Tony. Ele inclinou o chapéu para o apanhar, como se fosse um recipiente,
meteu a mão lá dentro, tirou o beijo e meteu-o no bolso do relógio do colete. Quando o
trem partiu, Scarlett ainda se estava rindo.
- Leva-me àqueles terrenos meus, onde Mr. Colleton anda trabalhando - disse a
Elias. O Sol ia nascer antes de lá chegarem e era melhor que os trabalhadores
andassem a cavar, ou teria que se aborrecer. Tony tinha razão. Era preciso aproveitar
o bom tempo.
Joe Colleton foi irredutível.
- Eu vim, como lhe prometi, Mrs. Butler, mas é tal e qual eu pensava. O degelo
não é, nem por sombras, suficientemente fundo para abrir uma cova. Ainda falta um
mês para se poder começar.
Scarlett lisonjeou-o, depois zangou-se, mas não serviu de nada. Um mês depois,
quando um recado de Colleton a levou ao local, ainda se sentia frustradíssima.
Só viu Ashley quando já era tarde demais para voltar atrás. "Que lhe vou dizer?
Não tenho desculpa nenhuma para estar aqui, e Ashley é tão esperto que perceberia
logo, se eu lhe pregasse alguma mentira." Tinha certeza de que o sorriso apressado
que afivelou era tão horrível como aquilo que sentia.
Se assim era, Ashley não pareceu dar conta de nada. Ajudou-a a descer da
carruagem com a sua cortesia habitual e inata.
- Fico muito contente por te encontrar, Scarlett; é bom ver-te. Mr. Colleton disse-
me que talvez aqui viesses e, por isso, demorei-me o mais possível. - Sorriu
tristemente. - Ambos sabemos que não sou lá muito bom nos negócios, minha querida,
por isso os meus conselhos não valem muito, mas quero dizer que se de fato vais
construir outro armazém aqui, é, com certeza, uma boa idéia.
Que conversa era aquela?... "Oh, é claro, já percebo. Que esperto que Joe
Colleton é, já arranjou uma desculpa para a minha presença aqui." Voltou a dar
atenção a Ashley.
- ...e ouvi dizer que é muito provável que construam uma linha de elétrico até
aqui, da saída da cidade. Não é espantosa a maneira como Atlanta está crescendo?
Ashley parecia mais forte. Muito cansado com o esforço que fazia para viver, mas
mais capaz de o fazer. Scarlett desejava ardentemente que isso quisesse dizer que o
negócio de madeiras estava melhor. Não poderia suportar se as fábricas e a serraria
também desaparecessem. E nunca seria capaz de perdoar a Ashley.
Ele pegou-lhe na mão e olhou para ela, com uma expressão preocupada no rosto
marcado.
- Pareces cansada, minha querida. Está tudo bem?
Apetecia-lhe encostar a cabeça no peito dele e gemer que estava tudo muito mal.
Mas sorriu.
- Que disparate, Ashley, não sejas tonto. Ontem à noite fui a uma festa e deitei-
me tarde, mais nada. Já devias saber que não se dá a entender a uma senhora que ela
não está com o seu melhor aspecto. - "Espero que isto chegue aos ouvidos de Índia e
de todas as suas amigas mesquinhas", acrescentou Scarlett para si própria.
Ashley aceitou a explicação sem problemas. Começou a contar-lhe sobre as
casas de Joe Colleton. Como se ela não soubesse de tudo, até o exato número de
pregos que era preciso para cada uma.
- São construções de qualidade - disse Ashley. - Por uma vez, os menos
afortunados são tratados tão bem como os ricos... uma coisa que nunca esperei ver
nestes tempos de oportunismo gritante. Parece que, afinal, não se perderam todos os
velhos valores. Sinto-me honrado por tomar parte disto. Não sei se sabes, Scarlett,
mas Mr. Colleton quer que seja eu a fornecer a madeira.
Ela pôs um ar espantado.
- Bem, Ashley, isso é maravilhoso!
E era. Ela sentia-se verdadeiramente feliz por o seu plano para ajudar Ashley
estar a resultar tão bem. Mas, pensou ela depois de falar em particular com Colleton, a
idéia não era que aquilo se transformasse numa espécie de obsessão. Joe disse-lhe
que Ashley tencionava passar um certo tempo no local todos os dias. A idéia dela era
fornecer a Ashley algum dinheiro, não um hobby, pelo amor de Deus! Assim, não
poderia sequer ir até lá.
Exceto no domingo, quando os trabalhos não estavam a decorrer, essa viagem
semanal tornou-se para ela quase uma obsessão. Já não pensava em Ashley quando
via a madeira fresca e forte nas vigas e estruturas, seguidas das paredes e do chão, à
medida que a casa crescia. Caminhava por entre as pilhas bem arranjadas de materiais
e entulho com o coração ansioso. Como gostaria de tomar parte em tudo aquilo, de
ouvir o martelar, de ver as aparas a saltar das plainas, de assistir aos progressos
diários. De estar ocupada.
"Só tenho que agüentar até o Verão", estas palavras eram como que uma litania e
o mote da sua vida. "Nessa altura, Rhett volta. A ele posso contar, é o único a quem
posso contar, é o único que se preocupa comigo. Não me vai fazer viver assim, posta
de parte e infeliz, quando souber como tudo é horrível. Que foi que correu mal? Tinha
tanta certeza de que se tivesse, pelo menos, dinheiro suficiente, me sentiria segura.
Agora sou rica e tenho mais medo do que em toda a minha vida."
Mas, quando o Verão chegou, não houve visita de Rhett, nem qualquer palavra
dele. Scarlett ia do armazém para casa correndo, todas as manhãs, para estar lá se ele
viesse no trem do meio-dia. À noite, vestia o vestido que lhe ficava melhor e usava as
pérolas ao jantar, caso ele viesse de outro modo qualquer. Na sua frente, estendia-se a
longa mesa, brilhando com pratas e pesados damascos, engomados até luzirem. Foi
nessa altura que começou a beber a sério para afastar o silêncio, enquanto esperava
ouvir o som dos passos dele.
Quando começou a tomar sherry à tarde não achou nada de especial - afinal de
contas, tomar um ou dois copos de sherry era próprio de uma senhora. E mal deu por
isso quando mudou de sherry para uísque.. ou quando precisou de uma bebida para
fazer as contas do armazém, porque ficava deprimida por o negócio estar decaindo
tanto... ou quando começou a deixar a comida no prato porque o álcool lhe tapava
melhor a fome... ou quando começou a beber um copo de brande assim que se
levantava de manhã...
Mal deu por isso quando o Verão deu lugar ao Outono.
Pansy trouxe o correio da tarde ao quarto, numa bandeja. Ultimamente, Scarlett
tentara dormir um pouco depois do almoço. Enchia, assim, uma parte do vazio da tarde
e descansava um pouco, alívio que lhe era negado durante a noite.
- Quer que eu traga um bule com café, ou qualquer coisa, Miss Scarlett?
- Não, faz o teu serviço, Pansy. - Scarlett pegou na carta de cima do monte e
abriu-a. Deitou uma rápida olhadela a Pansy, que estava a apanhar as roupas que ela
atirara para o chão. "Por que é que a estúpida da rapariga não sai do quarto?"
A carta era de Suellen, Scarlett nem se incomodou em tirar as páginas dobradas
de dentro do sobrescrito. Já sabia o que dizia. Mais queixas das maldades de Ella,
como se as filhas da própria Suellen fossem uma espécie de santas. Acima de tudo,
insinuaçõezinhas maldosas sobre o preço de tudo e sobre como Tara fazia pouco
dinheiro e como Scarlett era rica. Scarlett atirou a carta para o chão. Naquele
momento, não conseguia lê-la. Teria que lê-la no dia seguinte... "Oh, graças a Deus
que Pansy se foi embora."
"Preciso de uma bebida. Já está quase escuro. Não há mal nenhum em tomar
uma bebida à noite. Vou só tomar um pequeno brande, devagar, enquanto acabo de ler
o correio."
A garrafa escondida atrás das caixas de chapéus estava quase vazia. Scarlett
ficou furiosa. "Maldita Pansy! Se não fosse tão boa a pentear-me, despedia-a amanhã.
Deve ter sido ela que a bebeu. Ou outra das criadas. Não posso ter bebido assim tanto.
Só escondi ali a garrafa há poucos dias. Não interessa. Vou levar as cartas lá para
baixo, para a sala de jantar. Afinal de contas, que interessa que os criados vejam o
nível da garrafa?... É a minha casa, a minha garrafa e o meu brande, e posso fazer o
que me apetecer. Onde está o meu roupão? Está ali. Por que é que os botões estão
tão duros? Nunca mais o consigo vestir."
Scarlett sentou-se à mesa para ler o correio.
Uma circular a anunciar a chegada de um novo dentista. Ora... Os seus dentes
estavam ótimos, muito obrigada. Outra sobre a distribuição de leite. Um anúncio de
uma nova peça no DeGives. Scarlett deu uma vista de olhos pelos sobrescritos,
irritadamente. Não haveria nada de jeito? A mão parou quando tocou num sobrescrito
fino, que fazia um ruído semelhante a uma casca de cebola; a letra fazia lembrar
gatafunhos de aranha. A tia Eulalie. Engoliu o resto do brande e rasgou o sobrescrito.
Sempre odiara as missivas afetadas, com ar de sermão, da irmã da sua falecida mãe.
Mas a tia Eulalie vivia em Charleston. Talvez dissesse alguma coisa de Rhett. A mãe
dele era a sua maior amiga.
Os olhos de Scarlett moveram-se rapidamente, franzindo-os para perceber melhor
as palavras. A tia Eulalie escrevia sempre de ambos os lados do papel, que era fino, e
muitas vezes escrevia "atravessado", escrevendo na página e depois voltando-a,
escrevendo por cima das linhas já existentes. Tudo isto com muitas palavras que não
diziam quase nada.
- O Outono, tão invulgarmente quente... dizia aquilo todos os anos... a tia Pauline
andava com problemas no joelho... tinha problemas com o joelho desde que Scarlett se
lembrava... uma visita à irmã Mary Joseph... Scarlett fez uma careta. Não conseguia
pensar na irmã mais nova, Carreen, pelo seu nome religioso, apesar de ela estar no
convento em Charleston havia oito anos... a venda de bolos para o fundo da
construção da catedral estava atrasadíssima porque havia poucos donativos e seria
que Scarlett não poderia... Raios! Ela dava às tias um teto para viver, e agora ainda
tinha de ajudar a construir uma catedral? Virou a página, com a testa franzida.
O nome de Rhett saltou-lhe à vista, no meio das palavras entrecruzadas.
... uma bênção ver uma querida amiga como Eleanor Butler encontrar a felicidade,
depois de tantos desgostos. Rhett é muito atencioso para a mãe e a sua devoção tem
feito muito para melhorar a sua imagem aos olhos dos que lamentavam o
comportamento extravagante da sua juventude. Não consigo compreender, e a tia
Pauline também não, porque insistes em manter essa preocupação injustificada com os
negócios, quando não precisas continuar ligada ao armazém. Já muitas vezes no
passado lamentei o teu modo de agir a este respeito, e tu nunca deste ouvidos os
minhas súplicas para que abandonasses uma atitude tão pouco própria de uma
senhora. Por isso, deixei de me referir a isso há alguns anos. Mas, agora, quando isso
te afasta do teu lugar ao lado do teu marido, sinto que é meu dever falar novamente
sobre este assunto detestável.
Scarlett atirou a carta para cima da mesa. Era, então, essa a história que Rhett
andava espalhando! Que ela não queria deixar o armazém e ir com ele para
Charleston. Que descarado mentiroso ele era! Ela implorara-lhe que a levasse com ele
quando partira. Como se atrevia a espalhar tal calúnia? Ela tinha algumas palavrinhas
a dizer ao Sr. Rhett Butler, quando ele viesse para casa.
Foi ao aparador e despejou brande para dentro do copo. Uma parte caiu na
brilhante superfície de madeira. Limpou-o com a manga. Provavelmente, ia negar tudo,
o canalha. Bom, ela espetava-lhe com a carta da tia Eulalie debaixo do nariz. Ia ver se
ele era capaz de chamar mentirosa à melhor amiga da mãe!
De repente, a fúria abandonou-a e sentiu frio. Sabia o que ele ia dizer:
"Preferias que contasse a verdade? Que eu te deixei porque viver contigo era
insuportável?"
Que vergonha! Tudo era preferível a isso. Mesmo a solidão, enquanto esperava
que ele regressasse. Levou o copo aos lábios e bebeu demoradamente.
O movimento chamou-lhe a atenção, refletido no espelho que estava por cima do
aparador. Lentamente, Scarlett baixou a mão e pousou o copo. Olhou para os seus
próprios olhos. Abriram-se, chocados com aquilo que viram. Há meses que não olhava
a sério para si própria e não podia acreditar que aquela mulher pálida, magra, de olhos
encovados, tivesse alguma coisa a ver com ela. Até parecia que já não lavava o cabelo
havia séculos!
Que lhe acontecera?
Num gesto automático, estendeu a mão para a garrafa, dando assim a resposta.
Scarlett retirou a mão e viu como tremia.
- Oh, meu Deus - murmurou. Agarrou-se à ponta do aparador para se amparar, e
ficou a olhar para o seu reflexo.
- Louca - disse. Fechou os olhos e as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo,
mas limpou-as com uns dedos que tremiam.
Apetecia-lhe mais uma bebida do que qualquer outra coisa que já desejara na
vida. Passou a língua pelos lábios. A mão direita mexeu-se por vontade própria e
fechou-se à volta do copo, que brilhava como um diamante. Scarlett olhou para as suas
mãos como se pertencessem a um estranho, olhou para a bela e pesada garrafa de
cristal e para a promessa de fuga que continha. Lentamente, observando os seus
movimentos no espelho, levantou a garrafa e recuou, afastando-se do seu assustador
reflexo.
Depois, inspirou profundamente e balançou o braço com toda a sua força. Ao
estilhaçar-se no enorme espelho, a garrafa, iluminada pelo sol, lançou faíscas azuis,
vermelhas e violetas. Por um instante, Scarlett viu o seu rosto partir-se em pedaços, viu
o torcido sorriso de vitória. Depois, a superfície prateada fragmentou-se e minúsculos
pedacinhos espalharam -se sobre o aparador. Pareceu que a parte superior do espelho
se separava da moldura, e enormes bocados irregulares caíram, estatelando-se com
um som de disparos de canhões sobre o aparador, o chão e os pedaços que tinham
caído primeiro.
Scarlett chorava, ria e gritava perante a destruição da sua própria imagem.
- Covarde! Covarde! Covarde!
Não sentiu os pequenos cortes que os pedaços de vidro que saltaram lhe fizeram
nos braços, no pescoço e no rosto. A língua tinha gosto de sal; tocou numa gota de
sangue, no rosto, e olhou surpreendida para os dedos tingidos de vermelho.
Ficou a olhar para o local onde vira o seu reflexo, mas este desaparecera. Riu
desequilibradamente. Boa viagem.
Quando ouviram o barulho, os criados tinham acorrido à porta. Estavam muito
juntos, com medo de entrar na sala, olhando com medo a figura rígida de Scarlett. De
repente, ela virou a cabeça para eles, e Pansy lançou um grito de terror, ao ver a sua
cara coberta de sangue.
- Vão embora! - disse Scarlett calmamente. - Estou perfeitamente bem. Vão
embora. Quero ficar sozinha. - Obedeceram sem uma palavra.
Ela estava sozinha, quer quisesse ou não, e não havia brande que chegasse para
mudar a situação. Rhett não ia voltar, aquela casa já não era um lar para ele. Há muito
tempo que sabia isso, mas recusara-se a enfrentá-lo. Fora uma covarde e uma louca.
Não era para admirar que não tivesse reconhecido aquela mulher do espelho. Aquela
doida covarde não era Scarlett O'Hara. Scarlett O'Hara não... - como se costumava
dizer - ...não afogava as suas mágoas. Scarlett O'Hara não se escondia e ficava à
espera. Enfrentava o pior que o mundo tivesse para lhe dar. E ia ao encontro do perigo
para tirar o que desejava.
Scarlett estremeceu. Chegara tão perto de se derrotar a si mesma.
Acabou-se. Era tempo - e mais que tempo - de tomar a vida nas suas próprias
mãos. Acabou-se o brande. Atirara fora aquela muleta.
Todo o seu corpo gritava por uma bebida, mas ela recusou-se a ouvir. Já fizera
coisas mais difíceis, também podia fazer isto. Tinha que fazê-lo!
Acenou com o punho ao espelho partido.
- Traz lá os sete anos de má sorte, maldito sejas! - O seu riso soou áspero, num
desafio.
Encostou-se por momentos à mesa, enquanto recuperava as forças. Tinha tanto
que fazer.
Depois, caminhou sobre a destruição que a cercava, partindo com os calcanhares
o resto do espelho.
- Pansy! - chamou ela da porta. - Quero que me venhas lavar o cabelo. - Scarlett
tremia da cabeça aos pés, mas obrigou as pernas a levarem-na até a escada e a
subirem a longa escadaria. - A minha pele deve parecer lixa - disse em voz alta,
desviando a atenção do espírito dos desejos do corpo. - Vou precisar de litros de água
de rosas e glicerina. E tenho que arranjar roupas completamente novas. Mrs. Marie que
arranje mais ajudantes de costura.
Não devia levar mais do que algumas semanas até recuperar da sua fraqueza e
voltar a ter o seu melhor aspecto. Faria que assim fosse.
Tinha que estar bonita e forte e não havia tempo a perder. Já perdera muito.
Rhett não voltara para ela, por isso ela tinha que ir encontrar-se com ele. Ir a
Charleston.
II
Apostas Altas
10
Assim que tomou aquela decisão, a vida de Scarlett modificou-se radicalmente.
Agora tinha um objetivo e concentrava todas as suas energias em alcançá-lo. Mais
tarde pensaria em como faria para trazer Rhett de volta, depois de chegar a
Charleston. Por agora, tinha que se preparar para a partida.
Mrs. Marie atirou as mãos ao ar e declarou que era impossível fazer um guarda-
roupa completamente novo em apenas algumas semanas; o tio Henry Hamilton juntou
as pontas dos dedos e exprimiu o seu desagrado quando Scarlett lhe disse o que
precisava que ele fizesse. A oposição deles fez que os olhos de Scarlett brilhassem
com a alegria da batalha e, no fim, foi ela que ganhou. No princípio de Novembro, o tio
Henry tinha tomado conta da gerência financeira do armazém e do saloon, com a
garantia de que o dinheiro seria entregue a Joe Colleton. E o quarto de Scarlett era
uma confusão de cor e rendas - as suas roupas novas, espalhadas, à espera de serem
embaladas para a viagem.
Ainda estava magra e tinha olheiras fundas, uma vez que as noites tinham sido
um tormento de insônia e uma terrível luta da sua vontade para resistir ao descanso
que lhe prometia a garrafa de brande. Mas também ganhara aquela batalha, e o seu
apetite natural voltara. O rosto estava já suficientemente cheio, de modo a fazer
aparecer uma covinha quando sorria, e o seu peito estava atraentemente roliço. Com
uma aplicação sábia de rouge nos lábios e nas faces, tinha certeza de que quase
parecia de novo uma moça. Era tempo de partir.
"Adeus, Atlanta", disse Scarlett silenciosamente, quando o trem saiu da estação.
"Tentaste deitar-me abaixo, mas eu não deixei. Não quero saber se gostas de mim ou
não."
Disse a si própria que o frio que sentia devia ter origem numa corrente de ar. Não
estava com medo, nem um bocadinho. Ia passar um tempo maravilhoso em
Charleston. As pessoas não costumavam dizer que era a cidade com mais festas em
todo o Sul? E não tinha dúvidas de que ia ser convidada para todo o lado; a tia Pauline
e a tia Eulalie conheciam todo mundo. Deviam saber tudo sobre Rhett - onde ele vivia,
o que fazia - tudo o que precisava fazer era...
Não fazia sentido pensar agora nisso. Decidiria quando lá chegasse. Se pensasse
agora nisso, podia ficar nervosa com a idéia da viagem, e já decidira ir.
Céus! Era uma tolice imaginar que ia ficar nervosa. Até parecia que Charleston
era no fim do mundo. Então, Tony Fontaine não tinha ido para o Texas, que ficava tão
longe, tão simplesmente como se fosse dar um passeio até Decatur? E ela já estivera
em Charleston. Sabia para onde ia...
O fato de ter detestado a cidade não queria dizer nada. Afinal de contas, naquela
época era tão nova, só tinha 17 anos e, ainda por cima, era viúva há pouco tempo e
tinha um bebê. Ainda nem sequer tinham nascido os dentes de Wade Hampton. Isso
fora há mais de doze anos. Agora, tudo ia ser diferente. Ia resultar tudo bem,
exatamente como ela queria.
- Pansy, vai dizer ao condutor para mudar as nossas coisas, quero sentar-me
mais perto do fogão. Esta janela está fazendo corrente de ar.
Scarlett mandou um telegrama às tias da estação de Augusta, onde mudou para a
linha da Carolina do Sul.
chego 4 horas trem visita stop só uma criada stop beijos scarlett
Tinha pensado em tudo. Exatamente dez palavras e não corria o risco de que as
tias respondessem com alguma desculpa que a impedisse de ir, pois já ia a caminho.
Não que isso fosse provável. Eulalie andava sempre a pedir-lhe que as fosse visitar, e
a hospitalidade continuava a ser a lei das terras do Sul. Mas não valia a pena arriscar
quando se podia jogar pelo seguro e ela precisava da casa das tias para se proteger no
início. Charleston era uma cidade orgulhosa, muito convencida, e Rhett estava
obviamente tentando voltar as pessoas contra ela.
Não, ela não ia pensar nisso. Desta vez, ia adorar Charleston. Tinha certeza. Ia
ser tudo diferente. Toda a sua vida ia ser diferente. "Não olhes para trás", dissera
sempre a si própria. Agora, tencionava fazer isso mesmo. A sua vida inteira ficava para
trás, cada vez mais longe, a cada volta das rodas do trem. Todos os problemas dos
seus negócios estavam nas mãos do tio Henry, resolvera o problema da sua
responsabilidade para com Melanie, os filhos estavam instalados em Tara. Pela
primeira vez na sua vida adulta, era livre para fazer aquilo que queria e sabia muito
bem o que isso era. Ia provar a Rhett que estivera enganado quando se recusara a
acreditar que ela o amava. Ia mostrar-lhe que era verdade. Ele ia ver. E, depois, ia ficar
com pena de a ter deixado. Ia abraçá-la e beijá-la e iam ser felizes para sempre... Até
mesmo em Charleston, se ele insistisse em ficar lá.
Perdida no seu devaneio, Scarlett não deu pelo homem que entrara no trem em
Ridgville, até ele tropeçar no braço do seu assento. Então, encolheu-se como se ele lhe
tivesse batido. Vestia o uniforme azul do Exército da União.
Um ianque! Que faria ele ali? Aqueles tempos tinham acabado e ela queria
esquecê-los para sempre, mas a visão do uniforme fê-los regressar. O medo quando
Atlanta estivera cercada, a brutalidade dos soldados quando roubaram de Tara a sua
miserável reserva de comida e colocaram fogo na casa, a explosão de sangue quando
ela disparou contra o vagabundo antes de ele ter tempo de a violar... Scarlett sentiu
novamente o coração batendo de terror e quase gritou. Malditos fossem, malditos
fossem todos, por terem destruído o Sul. Malditos fossem, sobretudo, por a terem feito
sentir desesperada e com medo! Odiava essa sensação e odiava-os a eles!
"Não vou deixar que isto me incomode, não vou. Não posso aborrecer-me com
nada, agora que preciso de ter o melhor aspecto possível e estar pronta para
Charleston e Rhett. Não vou olhar para o ianque e não vou pensar no passado. Só o
futuro conta." Cheia de resolução, Scarlett olhou pela janela para a paisagem de
colinas, tão semelhante às terras que rodeavam Atlanta. Estradas de barro vermelho
atravessavam bosques de pinheiros escuros e campos de restolho queimado pela
geada, que restavam das colheitas. Já viajava há mais de um dia e até parecia que não
saíra de casa. "Depressa", incitava ela a locomotiva. "Depressa."
- Como é Charleston, Miss Scarlett? - perguntou Pansy pela centésima vez,
exatamente quando a luz começou a desaparecer lá fora.
- Muito bonita, vais ver que gostas - respondeu Scarlett pela centésima vez. - Ali! -
Apontou para a paisagem. - Vês aquela árvore com aquelas coisas penduradas?... A
tal árvore espanhola de que te falei, a árvore do musgo.
Pansy encostou o nariz na janela empoeirada.
- Oooh - gemeu ela. - Parecem fantasmas a mexer-se. Tenho medo de
fantasmas, Miss Scarlett.
- Não sejas medrosa! - Mas Scarlett estremeceu. Os longos fiapos cinzentos de
musgo que ondulavam tinham um aspecto fantasmagórico naquela luz cinzenta, e ela
também não gostava nada do aspecto deles. No entanto, isso queria dizer que estavam
entrando nas Terras Baixas, aproximando-se do mar e de Charleston. Scarlett deu uma
olhadela ao seu relógio de lapela. Cinco e meia. O trem estava atrasado mais de duas
horas. Tinha certeza de que as tias tinham esperado por ela. Mas, mesmo assim,
desejava não ter que chegar depois do escurecer. O escuro tinha qualquer coisa de
muito desagradável.
A estação de Charleston, que mais parecia uma caverna, estava pobremente
iluminada. Scarlett esticou o pescoço, procurando as tias ou um cocheiro que pudesse
ser criado delas e estivesse à sua espera. Mas, em vez disso, só viu outra dúzia de
soldados de uniforme azul, transportando armas aos ombros.
- Miss Scarlett... - Pansy puxou-lhe pela manga. - Há soldados por todo o lado. - A
voz da criadinha tremia.
O medo dela obrigou Scarlett a ser valente.
- Faz de conta que eles não estão ali, Pansy. Eles não te fazem mal, a guerra já
acabou há praticamente dez anos. Vá lá. - Com um gesto, chamou o carregador que
empurrava o carrinho com a sua bagagem.
- Onde posso encontrar a carruagem que me veio esperar? - perguntou
altivamente.
Ele conduziu-a ao exterior, mas o único veículo que se via era um carro muito
velho, com um cavalo esgotado e um condutor negro muito mal arranjado. O coração
de Scarlett caiu-lhe aos pés. E se as tias tivessem saído da cidade? Sabia que às
vezes iam a Savannah visitar o pai. E se o seu telegrama estivesse na varanda de uma
casa escura e vazia?
Inspirou profundamente. Não queria saber qual seria a história, tinha era de se
afastar da estação e dos soldados ianques. "Se for preciso, até parto um vidro para
entrar em casa. Por que não? Depois, pago para o mandarem arranjar, do mesmo
modo que paguei a reparação do telhado e tudo o mais." Mandava dinheiro às tias para
estas poderem viver, desde que tinham perdido tudo durante a guerra.
- Ponha as minhas coisas naquele carro - ordenou ao carregador - e diga ao
cocheiro para descer e ajudá-lo. Vou para casa de Mistress Carey Smith, em Battery.
A palavra mágica "Battery" teve exatamente o efeito que ela esperara. Tanto o
carregador como o cocheiro se tornaram logo respeitadores e ansiosos por ajudar.
Então, continua a ser o bairro chique em Charleston, pensou Scarlett com alívio.
"Graças a Deus! Seria horrível se Rhett soubesse que eu estava viver num bairro
pobre."
Assim que o carro parou, Pauline e Eulalie abriram a porta de par em par. Uma
luz dourada espalhou-se no caminho que ia dar ao passeio, e Scarlett correu em
direção ao santuário que se lhe deparava.
"Estão tão velhas", pensou Scarlett quando se aproximou das tias. "Não me
lembro de a tia Pauline ser assim um espeto e tão cheia de rugas. E como é que a tia
Eulalie ficou tão gorda? Parece um balão com um tufo de cabelo grisalho no alto."
- Olha para ti! - exclamou Eulalie. - Mudaste tanto, Scarlett, que eu mal te
reconheci.
Scarlett ficou desanimada. "Com certeza ela não envelhecera também, não é?"
Aceitou os abraços das tias e forçou um sorriso.
- Olhe para a Scarlett, mana - balbuciou Eulalie. - Está o retrato de Ellen.
Pauline fungou.
- Ellen nunca foi assim tão magra, sabe isso muito bem, mana, - Pegou no braço
de Scarlett e afastou-a de Eulalie. - Mas há uma semelhança nítida, não digo que não.
Scarlett sorriu, desta vez de felicidade. Não lhe podiam prestar um maior
cumprimento.
As tias azafamaram-se, discutindo como haviam de instalar Pansy nos quartos
dos criados, e qual era a melhor maneira de levar para cima os baús e as malas, para o
quarto de Scarlett.
- Não mexes um dedo, querida - disse Eulalie para Scarlett. - Depois de uma
viagem tão comprida deves estar completamente esgotada. - Cheia de gratidão,
Scarlett instalou-se num sofá na sala, longe da confusão. Agora que finalmente ali
estava, a energia febril que a agüentara durante os preparativos parecia ter-se
evaporado e percebeu que a tia tinha razão. Estava esgotada.
Durante o jantar, quase adormeceu. Ambas as tias tinham uma voz baixa, com o
sotaque característico daquela região, que alongava as vogais e abafava as
consoantes. Apesar de a conversa delas consistir quase exclusivamente de um
desacordo educado em todos os assuntos, o som era embalador. Além disso, não
estavam dizendo nada que a interessasse. Soubera o que queria quase assim que
entrara. Rhett vivia na casa da mãe, mas estava fora.
- Foi para o Norte - disse Pauline com uma expressão azeda.
- Mas por uma boa razão, mana - lembrou-lhe Eulalie.
- Está na Filadélfia comprando outra vez algumas das pratas da família que os
ianques roubaram.
Pauline cedeu.
- ... uma alegria ver como se dedica à felicidade da mãe, procurando tudo o que
ela perdeu.
Desta vez, foi Eulalie que criticou.
- Se queres saber, podia ter mostrado alguma dessa devoção muito mais cedo.
Scarlett não quis saber. Estava ocupada com os seus próprios pensamentos, que
se resumiam em imaginar dali a quanto tempo poderia ir para a cama. Nessa noite não
ia sofrer de insônia, tinha certeza disso.
E tinha razão. Agora que tomara o controle da sua vida e estava a caminho de ter
o que queria, podia dormir como uma criança. Acordou de manhã com uma sensação
de bem-estar que já não sentia há anos. Era bem-vinda na casa das tias, não se sentia
afastada e só como em Atlanta, e ainda nem sequer tinha de pensar no que havia de
dizer a Rhett quando o visse. Podia descontrair-se e deixar-se mimar um bocadinho,
enquanto esperava que ele voltasse da Filadélfia.
A tia Eulalie estragou-lhe os planos logo ao café-da-manhã, ainda antes de ter
acabado a primeira xícara de café.
- Sei como deves estar ansiosa por ver Careen, querida, mas ela só recebe visitas
às terças e sábados, por isso planejamos outra coisa para hoje.
Careen! Scarlett apertou os lábios. Não queria mesmo nada vê-la, a traidora. Dar
a parte dela de Tara, como se não significasse nada... Mas que havia de dizer às tias?
Nunca compreenderiam que uma irmã não estivesse mesmo mortinha por ver outra
irmã. "Então, elas, são tão íntimas que até vivem juntas. Tenho que fingir que não há
nada no mundo que deseje mais senão ver Careen e arranjar uma dor de cabeça
quando chegar a hora."
De repente, percebeu o que Pauline estava dizendo e a cabeça começou-lhe
mesmo a latejar dolorosamente.
- ... por isso mandamos a nossa criada Susie com um recado a Eleanor Butler.
Vamos visitá-la esta manhã. - Estendeu a mão para a manteigueira. - Scarlett, podes
passar-me o xarope?
Scarlett estendeu a mão automaticamente, mas deitou abaixo o jarro, entornando
o xarope. A mãe de Rhett. Ainda não estava preparada para ver a mãe de Rhett. Só se
encontrara com Eleanor Butler uma vez, no funeral de Bonnie, e quase não se
lembrava dela, a não ser que era uma mulher muito alta, digna e que impunha silêncio.
"Sei que tenho que vê-la", pensou Scarlett, "mas não agora, ainda não. Não estou
preparada." Batia-lhe o coração enquanto passava desajeitadamente com o
guardanapo sobre a substância pegajosa que se espalhava na toalha.
- Scarlett, querida, não esfregues a nódoa assim na toalha. - Pauline pôs a mão
no pulso de Scarlett. Scarlett afastou-a num gesto brusco. Como é que se podiam
preocupar com uma porcaria de uma toalha velha numa hora daquelas?
- Desculpe, titia - conseguiu dizer.
- Não faz mal, querida... é que quase fizeste um buraco, e restam-nos tão poucas
das nossas coisas bonitas... - A voz de Eulalie apagou-se tristemente.
Scarlett cerrou os dentes. Apetecia-lhe gritar. Que importância tinha uma toalha
quando teria de enfrentar a mãe que Rhett praticamente adorava? Suponhamos que
ele lhe dissera a verdadeira razão por que deixara Atlanta, por que tinha saído de
casa?
- É melhor ir ver as minhas roupas - disse Scarlett através do nó que lhe apertava
a garganta. - Pansy vai ter que tirar as rugas daquilo que vou vestir. - Tinha que se
afastar de Pauline e Eulalie, tinha que se controlar.
- Vou dizer a Susie para começar a aquecer os ferros - ofereceu-se Eulalie. Tocou
a campainha de prata que tinha junto do prato.
- ...é melhor ela lavar esta toalha antes de começar outra coisa qualquer - disse
Pauline. - Depois de a nódoa se entranhar...
- Talvez note, mana, que eu ainda não acabei de tomar o café. Com certeza não
espera que eu deixe esfriar tudo enquanto a Susie levanta a mesa.
Scarlett fugiu para o quarto.
- Não vais precisar dessa capa de peles tão pesada, Scarlett - disse Pauline.
- ...claro que não - disse Eulalie. - Hoje está um típico dia de Inverno de
Charleston. Eu nem levava este xale se não estivesse resfriada.
Scarlett desapertou a capa e deu-a a Pansy. Se Eulalie queria que todos ficassem
resfriados também, ela fazia-lhe a vontade. As tias deviam pensar que ela era parva.
Sabia por que razão as tias não queriam que ela levasse a capa. Eram exatamente
como a Velha Guarda de Atlanta. Para se ser respeitável, tinha que se ter um aspecto
miserável, como elas. Reparou como Eulalie olhava para o seu chapéu, orlado a penas
e muito na moda, e o rosto endureceu-lhe, numa atitude beligerante. Se tinha que
enfrentar a mãe de Rhett, ao menos o faria com estilo.
- Vamos sair - disse Eulalie, desistindo. Susie abriu a enorme porta e Scarlett
seguiu as tias, saindo para um dia magnífico. Quando desceu os degraus da entrada,
ficou de boca aberta. Parecia Maio, e não Novembro. O sol refletia o calor do caminho
esbranquiçado feito de conchas esmagadas e caía-lhe nos ombros como uma manta
invisível. Levantou o queixo para o sentir no rosto, e fechou os olhos num prazer
sensual.
- Oh, tias, isto é uma maravilha! - disse. - Espero que vossa carruagem tenha uma
capota de descer.
As tias riram.
- Querida menina - disse Eulalie -, já não há uma única alma em Charleston com
carruagem, exceto Sally Brewton. Vamos a pé... que é o que todo mundo faz.
- Há carruagens, mana - corrigiu Pauline. - Os carpetbaggers têm-nas.
- Não podemos chamar "almas" aos carpetbaggers, mana; desalmados é que eles
são, senão não seriam carpetbaggers.
- Abutres - concordou Pauline com uma fungadela.
- Nem mais - disse Eulalie. As irmãs riram de novo.
Scarlett riu com elas. O dia lindo fazia que ela se sentisse quase tonta de prazer.
Num dia como aquele, era impossível que alguma coisa corresse mal. De repente,
sentiu uma grande ternura pelas tias, apesar das suas discussões inofensivas. Seguiu-
as, atravessando a larga rua vazia em frente de casa, e subindo umas pequenas
escadas do outro lado. Ao chegar ao topo, a brisa fez abanar as penas do seu chapéu
e trouxe-lhe aos lábios um sabor de sal.
- Oh, meu Deus! - disse ela. Ao longe, do lado oposto da elevação, as águas
castanho-esverdeadas do porto de Charleston estendiam-se na sua frente até ao
horizonte. À sua esquerda, as bandeiras esvoaçavam nos altos mastros dos navios ao
longo dos portos de abrigo. Para a sua direita, as árvores de uma ilha comprida e baixa
irradiavam um verde-brilhante. O sol brilhava nas pontas de minúsculas ondinhas,
fazendo que parecesse que a água estava salpicada de diamantes. Um trio de
pássaros muito brancos elevava-se no céu azul e sem nuvens, para em seguida descer
a pique, a rasar a crista das ondas. Parecia que estavam jogando um jogo, uma versão
despreocupada e leve de um jogo de crianças. A brisa leve e com gosto de sal
acariciava-lhe o pescoço.
Agora tinha certeza de que fizera bem em vir. Voltou-se para as tias:
- Está um dia lindo! - disse Scarlett.
A avenida era tão larga que podiam caminhar as três ao lado umas das outras.
Por duas vezes encontraram outras pessoas: primeiro, um cavalheiro já velho, com
uma casaca fora de moda e chapéu de pele de castor, e depois uma senhora
acompanhada por um rapaz magrinho, que corou quando lhe falaram. De ambas as
vezes pararam e as tias apresentaram Scarlett.
- ... a nossa sobrinha de Atlanta. A mãe dela era a nossa irmã Ellen, e está
casada com o filho de Eleanor Butler, Rhett.
- O velho cavalheiro curvou-se e beijou a mão de Scarlett, a senhora apresentou-
lhe o neto, que ficou olhando para Scarlett como se tivesse sido atingido por um raio.
Para Scarlett, o dia ficava cada vez melhor a. cada minuto que passava. Então, reparou
que os transeuntes que se aproximavam eram homens de uniforme azul.
Tropeçou e agarrou o braço de Pauline.
- Tia - murmurou ela -, vêm aí soldados ianques na nossa direção.
- Continua a andar - disse Pauline com calma. - Têm que se desviarem do nosso
caminho.
Scarlett olhou para Pauline, chocada. Quem havia de pensar que a sua velha tia
esquelética conseguia ser tão valente? O seu próprio coração batia tão alto que tinha
certeza de que os soldados o conseguiam ouvir, mas obrigou os pés a mexerem-se.
Quando já só os separavam três passos, os soldados afastaram-se para o lado,
encostando-se à vedação de tubos de metal que ladeava a beira do passeio, do lado
da água. Pauline e Eulalie passaram por eles como se não existissem. Scarlett
levantou o queixo, imitando o jeito das tias, e acompanhou-as.
Em algum lugar à frente delas, uma banda começou a tocar Oh, Susana! A alegre
melodia, tão folgazona, era tão bela e quente como o dia. Eulalie e Pauline começaram
a andar mais depressa, acompanhando o ritmo da música, mas os pés de Scarlett
pareciam de chumbo. "Covarde!", acusava-se a si própria. Mas não conseguia deixar
de tremer por dentro.
- Por que é que há tantos malditos ianques em Charleston? - perguntou zangada.
- Também vi alguns na estação.
- Meu Deus, Scarlett - disse Eulalie -, não sabias? Charleston ainda está sob
ocupação militar. É provável que nunca mais nos deixem em paz. Odeiam-nos porque
os expulsamos de Fort Sumter e o defendemos contra toda a esquadra deles.
- E só Deus sabe quantos regimentos - acrescentou Pauline. Os rostos das irmãs
brilhavam de orgulho.
- Santíssima Mãe de Deus! - murmurou Scarlett. Que tinha ela feito? Fora meter-
se mesmo na boca do inimigo. Sabia o que queria dizer governo militar: impotência e
raiva, um medo constante de que eles confiscassem a casa das pessoas ou as
metessem na cadeia, ou lhes dessem um tiro se quebrassem uma das suas leis. O
governo militar era todo-poderoso. Ela vivera sob as suas ordens caprichosas durante
cinco duros anos. Como pudera ter sido tão louca ao ponto de se vir meter outra vez
nisso?
- Têm uma banda agradável - disse Pauline. - Anda lá, Scarlett, vamos atravessar
aqui. A casa dos Butlers é a que está pintada de fresco.
- Feliz Eleanor - disse Eulalie - por ter um filho tão amigo! Rhett adora
positivamente a mãe.
Scarlett ficou a olhar para a casa. Não era uma casa, era uma mansão. Brilhantes
colunas brancas elevavam-se a três metros de altura para suportar o telhado, que
avançava sobre os fundos alpendres que ladeavam a alta e imponente casa de tijolo.
Os joelhos de Scarlett amoleceram. Não conseguia entrar ali, não conseguia. Nunca
vira um lugar tão grandioso, tão impressionante. Como ia arranjar alguma coisa para
dizer à mulher que vivia num tal esplendor? A mulher que podia destruir todas as suas
esperanças, com uma só palavra a Rhett.
Pauline segurava-a pelo braço, apressando-a a atravessar a rua.
- ... com um banjo nos joelhos - cantava ela num murmúrio desafinado. Scarlett
deixou-se conduzir como se fosse sonâmbula. A seu tempo, deu por si do lado de
dentro de uma porta, a olhar para uma mulher alta e elegante, com brilhantes cabelos
brancos que coroavam um rosto belo e enrugado.
- Querida Eleanor - disse Eulalie.
- Trouxeram Scarlett - disse Mrs. Butler. - Minha querida filha - disse para Scarlett
-, estás tão pálida - pousou levemente as mãos nos ombros de Scarlett e inclinou-se
para a beijar.
Scarlett fechou os olhos. Cercava-a um leve aroma a verbena de limão, que
flutuava suavemente do vestido de seda de Eleanor Butler e do seu cabelo sedoso. Era
a fragrância que sempre envolvera Ellen O'Hara, um cheiro que significava para
Scarlett conforto, segurança, amor, a vida antes da guerra.
Scarlett sentiu lágrimas incontroláveis saltarem-lhe dos olhos.
- Vá lá, vá lá - disse a mãe de Rhett. - Está tudo bem, minha querida. O que quer
que seja, já passou. Finalmente, voltaste para casa. Tenho desejado tanto que viesses.
- Pôs os braços à volta da nora e abraçou-a com força.
11
Eleanor Butler era uma dama sulista. A sua voz suave e lenta e os seus
movimentos indolentes e graciosos disfarçavam uma energia e uma eficiência
formidáveis. As senhoras eram treinadas desde o berço para serem decorativas,
ouvintes compreensivas e fascinadas, que pareciam atraentemente impotentes, umas
cabecinhas ocas encantadoras. Eram também treinadas para arcar com a
responsabilidade, complicada e exigente, de gerir enormes casas e um grande número
de pessoal, muitas vezes conflituoso - ao mesmo tempo que davam a entender que a
casa, o jardim, a cozinha e os criados se governavam sozinhos sem problemas,
enquanto a dona da casa se concentrava em combinar sedas coloridas para os seus
delicados bordados.
Quando as privações da guerra reduziram o pessoal de trinta ou quarenta para
um ou dois criados, as exigências sobre as mulheres aumentaram proporcionalmente,
mas as expectativas mantiveram-se na mesma. As casas em ruínas tinham que
continuar a receber convidados, abrigar famílias, ter janelas limpas e brilhantes, os
cobres reluzentes e uma senhora dotada e bem arranjada descansando na sala de
estar. Não se sabe como, mas as mulheres do Sul conseguiram-no. Eleanor acalmou
Scarlett com palavras suaves e um chá aromático, lisonjeou Pauline, perguntando-lhe a
opinião sobre a secretária que fora recentemente instalada na sala, distraiu Eulalie,
pedindo-lhe que provasse o bolo de libra e dissesse se o extrato de baunilha era
suficientemente forte. Disse também em voz baixa a Manigo, o criado, que Celie o
devia ajudar, juntamente com a criada de Scarlett, a transferir as coisas de Scarlett da
casa das tias para o grande quarto que dava para o jardim, onde Mr. Rhett dormia.
Em menos de dez minutos, resolveu-se tudo o que era necessário para a
mudança de Scarlett, sem a oposição de ninguém, sem ferir sentimentos e sem
interromper o ritmo regular da vida tranqüila que se vivia sob o teto de Eleanor Butler.
Scarlett sentiu-se novamente uma moça, a salvo de todo o mal, protegida pelo amor
todo-poderoso de uma mãe.
Olhou para Eleanor com um olhar umedecido e cheio de admiração. Era assim
que gostaria de ser, como sempre deveria ter sido, uma senhora como a mãe, como
Eleanor Butler. Ellen O'Hara ensinara-a a ser uma senhora, tinha contado com isso e
assim o desejara. "Posso fazê-lo agora", disse Scarlett a si própria. "Posso compensar
todos os erros que cometi. Posso fazer que a mãe fique orgulhosa de mim."
Quando era criança, a Mammy tinha-lhe feito uma descrição do céu como uma
terra feita de nuvens que pareciam colchões de penas, onde os anjos descansavam,
divertindo-se a olhar para baixo, para o que se passava, através de frestas no céu.
Desde a morte da mãe, Scarlett tinha a convicção infantil e desconfortável de que Ellen
a estava observando, infeliz e preocupada.
"Vou fazer que tudo melhore", prometeu à mãe. As ternas boas-vindas de Eleanor
tinham, de momento, apagado todos os medos e recordações que lhe tinham enchido o
coração e o espírito quando vira os soldados ianques. Até conseguiram afastar a
ansiedade inconsciente de Scarlett no que se referia à sua decisão de seguir Rhett até
Charleston. Sentia-se segura, amada e invencível. Podia fazer tudo, o que quer que
fosse. E ia fazer. Ia reconquistar o amor de Rhett. Ia ser a senhora que Ellen sempre
quisera que ela fosse. Seria admirada e respeitada e adorada por todos, e nunca,
nunca mais ficaria sozinha.
Quando Pauline fechou a última gavetinha debruada a marfim da secretária de
pau-rosa e Eulalie se apressou a engolir a última fatia de bolo, Eleanor Butler levantou-
se, puxando por Scarlett.
- Tenho que ir buscar as minhas botas no sapateiro - disse ela. - Por isso vou
levar Scarlett e mostrar-lhe King Street. Uma mulher nunca se poderá sentir à vontade
sem saber onde são as lojas. Querem vir conosco?
Para grande alívio de Scarlett, as tias disseram que não. Ela queria Mrs. Butler só
para si.
O passeio até às lojas de Charleston foi um imenso prazer, sob o sol brilhante e
quente de Inverno. King Street foi uma revelação deliciosa. Sucediam-se os armazéns
por quarteirões sem fim; ferramentas, botas, tabaco e charutos, chapéus, jóias,
porcelanas, sementes, remédios, vinhos, luvas, doces - parecia que tudo se podia
comprar em King Street. Havia uma multidão de pessoas às compras e dúzias de
elegantes charretes e carruagens abertas com cocheiros de libré e ocupantes vestidos
na moda. Charleston não era nem um bocadinho tão enfadonha como ela se lembrava
e como temia. Era muito maior e mais animada que Atlanta. E não se via nenhum sinal
do Pânico.
Infelizmente, a mãe de Rhett comportava-se como se todo aquele colorido,
excitação e animação não existissem. Passava por montras cheias de penas de
avestruz e leques pintados sem olhar para lá e atravessava a rua sem sequer dizer
obrigado às mulheres da charrete que parara para não a atropelar. Scarlett lembrou-se
do que as tias lhe tinham dito: ninguém em Charleston tinha carruagem, exceto os
ianques, os carpetbaggers e os republicanos (termo scallywag, de difícil tradução,
refere-se aos sulistas que aderiram ao Partido Republicano depois da guerra civil, pois
o Sul é tradicionalmente democrata. Daí que tenha aqui sido traduzido por
"republicano". O termo adquiriu um sentido pejorativo, de mandrião e desonesto. N. da
T.). Sentiu uma onda de raiva escaldante contra os abutres que engordavam com a
derrota do Sul. Quando entrou com Mrs. Butler numa das sapatarias, foi bom para o
seu ânimo ver o dono passar o cliente ricamente vestido à sua jovem assistente para
se apressar a atender a mãe de Rhett. Era um prazer estar com um membro da Velha
Guarda em Charleston. Desejou ardentemente que Mrs. Merriwether ou Mrs. Elsing
estivessem ali para a ver.
- Deixei umas botas para pôr solas novas, Mr. Braxton - disse Eleanor - e também
quero que a minha nora saiba onde deve vir para ter o melhor calçado e o serviço mais
atencioso. Scarlett, querida, Mr. Braxton vai tomar tão bem conta de si como tomou de
mim durante todos estes anos.
- O privilégio é meu, minha senhora. - Mr. Braxton curvou-se elegantemente.
- Como está, Mr. Braxton? E obrigada - respondeu Scarlett, educadamente. -
Acho que também vou comprar hoje um par de botas. - Levantou a saia uns
centímetros para mostrar uns frágeis sapatos de pele fina. - Uma coisa mais própria
para andar na cidade - disse com orgulho. Ninguém a tomaria por uma republicana que
andava de carruagem.
Mr. Braxton tirou um imaculado lenço branco do bolso e limpou o forro limpíssimo
de duas cadeiras.
- Minhas senhoras, façam favor...
Quando ele desapareceu atrás de uma cortina no fundo da loja, Eleanor inclinou-
se para Scarlett e murmurou-lhe ao ouvido:
- Olhe com atenção para o cabelo dele quando ele se inclinar para lhe calçar as
botas. Pinta-o com pomada de calçado.
Scarlett precisou de todo o seu autocontrole para não rir quando viu que Mrs.
Butler tinha razão, e principalmente quando se pôs a olhar para ela com aquele
brilhozinho cúmplice nos olhos escuros. Quando saíram da loja, começou a rir.
- Não me devia ter contado aquilo, Miss Eleanor. Quase fiz uma cena ali dentro.
Mrs. Butler sorriu serenamente.
- Reconhecê-lo-á facilmente no futuro - disse ela. - Agora vamos ao Onslow
comer um gelado. Um dos criados faz o melhor "Luar" (Moonshine, bebida alcoólica
muito forte de fabrico ilegal. N. da T.) de toda a Carolina do Sul e quero encomendar
alguns litros para amolecer o bolo de frutas. Os gelados também são muito bons.
- Miss Eleanor!
- Minha querida, não se consegue arranjar brande, nem por amor, nem com
dinheiro. Temos que fazer o melhor que podemos, não é verdade? E os negócios do
mercado negro têm qualquer coisa de muito excitante, não acha?
O que Scarlett achava era que não censurava Rhett nem um bocadinho por
adorar a mãe.
Eleanor Butler continuou a iniciar Scarlett na vida de Charleston, indo a uma loja
de tecidos da moda para comprar uma peça de algodão branco (a mulher que estava
atrás do balcão matara o marido, espetando-lhe uma agulha de tricotar afiada no
coração, mas o juiz decidiu que ele caíra sobre ela quando estava bêbado, porque todo
mundo vira durante anos as nódoas negras na cara e nos braços dela), ao
farmacêutico para comprar loção de hamamélia (pobre homem, era tão curto de vista
que uma vez pagara uma pequena fortuna por um estranho peixe tropical preservado
em álcool e que ele estava convencido de que era uma sereia - para comprar remédios
a sério vá sempre a loja da Broad Street, já lhe indico onde é).
Scarlett ficou profundamente desapontada quando Eleanor disse que era hora de
irem para casa. Não se lembrava de alguma vez se ter divertido tanto e quase implorou
que fossem visitar mais algumas lojas. Mas Mrs. Butler disse:
- Acho que vamos, talvez, apanhar o carro público, que vai para o centro. Estou
um bocado cansada. - Scarlett ficou logo preocupada. Seria a palidez de Eleanor um
sinal de doença, em vez da pele clara tão apreciada pelas senhoras? Segurou no
cotovelo da sogra quando subiram para o carro, alegremente pintado de amarelo e
verde, e andou em roda dela, até Eleanor estar instalada no assento de verga. Rhett
nunca lhe perdoaria se ela deixasse que qualquer coisa horrível acontecesse à mãe. E
ela também nunca se perdoaria.
Pelo canto do olho, olhou para Mrs. Butler, enquanto o carro puxado por cavalos
avançava lentamente pelo caminho, mas não conseguiu ver qualquer sinal exterior de
problemas. Eleanor falava alegremente de outras compras que haviam de fazer juntas.
- Amanhã vamos ao Mercado e vais conhecer todo mundo que deves conhecer
aqui. É também o local tradicional para se saberem as novidades. O jornal nunca traz
as coisas realmente interessantes.
O carro oscilou e virou para a esquerda, depois avançou um quarteirão e parou
num cruzamento. Scarlett soltou uma exclamação. Mesmo ao lado da janela aberta de
Eleanor viu um soldado de azul, com a espingarda ao ombro, marchando à sombra de
umas colunas.
- lanques! - murmurou ela.
O olhar de Mrs. Butler seguiu o de Scarlett.
- Na verdade, a Geórgia já se livrou deles há algum tempo, não foi? A ocupação
já dura há tanto tempo que mal damos por eles. Faz dez anos no próximo Fevereiro.
Em dez anos, acostumamo-nos a tudo.
- Nunca me acostumarei a eles! - murmurou Scarlett. - Nunca.
Um ruído súbito a fez saltar. Depois, percebeu que era o carrilhão de um grande
relógio, em algum lugar acima delas. O carro avançou para o cruzamento e virou à
direita.
- Uma hora - disse Mrs. Butler. - Não admira que esteja cansada; foi uma manhã
muito longa. - Atrás delas, o carrilhão terminava o seu quarteto de notas e um sino
tocou uma só vez.
- São quem governa o tempo de todos os habitantes de Charleston - disse
Eleanor -, os sinos da Torre de Saint Michael. Assinalam os nossos nascimentos e as
nossas mortes.
Scarlett olhava as casas altas e os jardins murados por onde passavam. Sem
exceção, todos mostravam as cicatrizes da guerra. Todas as superfícies estavam
desfiguradas por buracos causados por estilhaços e a pobreza era visível em todo o
lado: tinta caindo, tábuas pregadas em janelas partidas que não podiam ser
substituídas, aberturas e ferrugem que desfiguravam varandas e portões de ferro-
forjado, cheios de elaborados rendilhados. As árvores que enfeitavam a rua tinham um
tronco fino; eram jovens substitutas dos gigantes deitados abaixo pelos
bombardeamentos. Malditos ianques.
E, contudo, o sol brilhava nas maçanetas das portas, de latão polido e brilhante, e
havia o cheiro de flores viçosas atrás dos muros dos jardins. "Esta gente de Charleston
tem energia", pensou. "Não cede."
Ajudou Mrs. Butler a descer na última parada, no fim de Meeting Street. Em frente
delas havia um parque, com a relva bem cortada e reluzentes caminhos que
convergiam e circundavam um coreto pintado há pouco tempo, com um telhado de
pagode, que rebrilhava. Mais ao longe estava o porto. Scarlett podia sentir o cheiro da
água e do sal. A brisa assobiava pelas folhas em forma de espada das palmeiras do
parque e fazia balançar os leves e longos pedaços de musgo que pendiam dos troncos
marcados dos castanheiros. Viam-se crianças a correr, empurrando arcos e jogando
bola na relva, sob os olhos atentos de amas negras, de turbante, que estavam
sentadas em bancos.
- Scarlett, espero que me perdoes; sei que não devo, mas tenho de perguntar... -
As faces de Mrs. Butler estavam coradas.
- Que é, Miss Eleanor? Sente-se mal? Quer que eu vá correndo buscar-lhe
alguma coisa? Venha sentar-se.
- Não, não, estou perfeitamente bem. Só que não agüento não saber... Tu e Rhett
já alguma vez pensaram em ter outro filho? Percebo que devem ter medo de repetir o
desgosto que tiveram quando Bonnie morreu...
- Um bebê... - A voz de Scarlett apagou-se. Teria Mrs. Butler lido o seu
pensamento? Ela estava contando ficar grávida o mais depressa possível. Desse
modo, Rhett nunca a mandaria embora. Ele era doido por crianças e a amaria para
sempre se ela lhe desse uma. A voz dela tinha um tom sincero quando falou:
- Miss Eleanor, desejo um bebê mais do que qualquer outra coisa no mundo.
- Graças a Deus! - disse Mrs. Butler. - Desejo tanto voltar a ser avó. Quando Rhett
trouxe Bonnie para me visitar, eu mal conseguia não a sufocar com abraços. É que,
sabes, Margaret... é a mulher do meu outro filho, vais conhecê-la hoje... a pobre
Margaret é estéril. E Rosemary... a irmã de Rhett... receio muito que nunca apareça
ninguém para casar com Rosemary.
A cabeça de Scarlett trabalhou furiosamente para encaixar as peças da família de
Rhett e o que significavam para si. Rosemary podia ser um problema. As solteironas
eram tão mazinhas... Mas o irmão... como é que ele se chamava? Ah, sim, Ross, era
isso. Ross era homem e ela nunca tivera qualquer problema para conquistar homens.
Não valia a pena preocupar-se com Margaret, sem filhos. Não era provável que tivesse
qualquer influência sobre Rhett. Que disparate, que importância tinham? A mãe é que
interessava, a mãe que ele tanto amava, e a mãe queria-os juntos, com um filho, dois
filhos, uma dúzia. Rhett tinha que a aceitar de novo.
Deu um beijo rápido na cara de Mrs. Butler.
- Estou ansiosa por ter um bebê. Nós as duas vamos convencer Rhett.
- Fiquei muito feliz, Scarlett. Agora vamos para casa, é já ali ao virar da esquina.
Acho que vou descansar um bocadinho antes de almoçar. O meu comitê encontra-se
aqui em casa esta tarde e tenho que recuperar as forças. Espero que nos faças
companhia, nem que seja para o chá. Margaret também vem. Não quero pressionar-te
a trabalhar, mas é claro que se estiveres interessada, fico muito satisfeita. Arranjamos
dinheiro com vendas de bolos e bazares de artesanato e coisas do gênero para o Lar
de Viúvas e Órfãos da Confederação.
"Santíssimo, estas senhoras sulistas serão todas iguais? É exatamente como em
Atlanta. Sempre a Confederação para aqui e a Confederação para ali. Não conseguem
aceitar que a guerra terminou e que têm que viver as suas vidas?" Ia arranjar uma dor
de cabeça. Falhou-lhe o passo, depois recuperou o ritmo, acompanhando Mrs. Butler.
Não, ia à reunião do comitê, até podia trabalhar se lhe pedissem. Não ia fazer aqui os
mesmos erros que fizera em Atlanta. Nunca mais ia ser excluída e ficar sozinha outra
vez, nem mesmo se tivesse que usar a bandeira bordada nos seus corpetes.
- Soa-me ótimo - disse. - Sempre tive pena de nunca ter tido tempo em Atlanta
para trabalhos extras. O meu segundo marido, Frank Kennedy, deixou um belo negócio
como herança para a nossa filha. Senti que era meu dever tomar conta dele, em nome
da criança.
Isso devia ser suficiente para justificar a história que Rhett andava contando.
Eleanor Butler acenou compreensivamente. Scarlett baixou as pálpebras para
esconder a satisfação que se via no seu olhar.
- Gostarias de tomar o café no terraço, Scarlett? - perguntou Eleanor Butler
quando ela e Scarlett estavam acabando a sobremesa. - É capaz de ser a nossa última
oportunidade durante uns tempos. Parece que o tempo está mudando.
- Oh, sim, gostaria muito.
O almoço fora muito bom, mas continuava a sentir-se inquieta, quase oprimida. Ir
lá para fora seria bom.
Seguiu Mrs. Butler para a varanda do segundo andar. "Incrível, esfriou desde que
estive aqui, antes do almoço", foi o seu primeiro pensamento. "O café quente vai cair
bem."
Bebeu a primeira xícara rapidamente e ia mesmo pedir outra quando Eleanor
Butler riu e fez um gesto em direção à rua.
- Aí vem o meu comitê - disse ela. - Seria capaz de reconhecer aquele som em
qualquer lugar.
Scarlett também ouviu um tinir de sinos minúsculos. Correu ao parapeito que
dava para a rua e olhou.
Uma parelha de cavalos corria na sua direção, puxando um belo carro verde-
escuro com os raios das rodas pintados de amarelo. Das rodas partiam clarões
prateados e também o alegre som dos sinos. A carruagem abrandou e depois parou
em frente da casa. Scarlett pôde, então, ver os sinos, sinos de trenó pregados numa
tira de cabedal que estava entrelaçada nos raios amarelos. Nunca vira uma coisa
assim. Também nunca vira ninguém como o cocheiro, que estava sentado no alto
assento na parte da frente da carruagem. Era uma mulher, que usava um traje de
montar castanho-escuro e luvas amarelas. Estava semierguida puxando as rédeas com
toda a sua força, com o rosto feio todo franzido de determinação; parecia mesmo um
macaco de feira.
A porta da carruagem abriu-se, e um jovem, a rir-se, desceu e pôs o pé na pedra
de montar, em frente da casa. Estendeu a mão. Uma senhora gorda agarrou-a e
desceu da carruagem. Também ela estava rindo. O jovem ajudou-a a descer da pedra
de montar e, em seguida, ocupou-se de uma mulher mais jovem, com um sorriso largo
no rosto.
- Venha para dentro, querida - disse Mrs. Butler -, e ajude-me com as coisas do
chá. - Scarlett seguiu-a ansiosamente, morta de curiosidade. "Que grupo de gente tão
esquisita. O comitê de Mrs. Butler é bem diferente do bando de velhotas que mandam
em tudo em Atlanta. Onde arranjaram aquela mulher-macaco para condutora? E quem
será o homem?" Os homens não faziam bolos para caridade. Além disso, era muito
bem-apessoado. Scarlett parou para arranjar o cabelo ao espelho, pois estava
despenteada pelo vento.
- Parece um pouco agitada, Emma - estava Mrs. Butler dizendo. Ela e a mulher
gorda beijaram-se na face, primeiro de um lado, depois do outro. - Tome uma xícara de
chá para acalmar, mas primeiro deixe-me apresentar-lhe a esposa de Rhett, Scarlett.
- Vai ser preciso mais do que uma xícara de chá para me reparar os nervos
depois desta corridazinha, Eleanor - disse a mulher. Estendeu a mão.
- Como está, Scarlett? Sou Emma Anson, ou melhor, o que resta de Emma
Anson.
Eleanor abraçou a mulher mais jovem e conduziu-a até Scarlett.
- Esta é Margaret, querida, a mulher de Ross. Margaret, esta é a Scarlett.
Margaret Butler era uma mulher jovem, pálida, de cabelo louro e uns belos olhos
de um azul-safira, que dominavam o seu rosto magro e descolorido. Quando sorria,
ficavam rodeados por uma rede de fundas rugas prematuras.
- Estou encantada por finalmente a conhecer - disse ela. Agarrou nas mãos de
Scarlett e beijou-a no rosto. - Sempre quis ter uma irmã, e uma cunhada é praticamente
a mesma coisa. Espero que venha com Rhett jantar na nossa casa em breve. Ross
também está ansioso por conhecê-la.
- Gostaria muito, Margaret, e tenho a certeza de que Rhett também - disse
Scarlett. Sorriu, esperando estar dizendo a verdade. Quem sabia se Rhett a ia
acompanhar a casa do irmão ou a outro local qualquer? Mas ia ser muito difícil para ele
dizer que não à sua própria família. Miss Eleanor, e agora Margaret, estavam do seu
lado. Scarlett correspondeu ao beijo de Margaret.
- Scarlett - disse Mrs. Butler -, vem conhecer Sally Brewton.
- E Edward Cooper - acrescentou uma voz masculina. - Não me prive da
oportunidade de beijar a mão de Mrs. Butler, Eleanor. Já estou enamorado.
- Espere pela sua vez, Edward - disse Mrs. Butler. - Vocês, os novos, não têm
boas maneiras.
Scarlett mal olhou para Edward Cooper e nem percebeu o cumprimento dele.
Estava tentando não ficar olhando, mas, apesar disso, foi mesmo o que fez; ficou
olhando para Sally Brewton, a condutora de cara de macaco da carruagem.
Sally Brewton era uma mulher pequenina, dos seus 40 anos. Tinha o corpo de um
rapazinho, magro e ativo, e a sua cara parecia-se mesmo com a de um macaco. Não
ficou nem um pouco aborrecida com a atitude pouco educada de Scarlett. Estava
habituada àquela reação: a sua fealdade notável - a que se adaptara há muito, muito
tempo - e o seu comportamento não convencional espantavam muitas vezes as
pessoas que não a conheciam. Dirigiu-se a Scarlett, com as saias arrastando atrás de
si como um rio castanho.
- Minha querida Mrs. Butler, deve pensar que somos loucos como a lebre de
Março (Referência a uma personagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carrol. N. da T.). A verdade é que, embora pareça aborrecido, há uma explicação
perfeitamente racional para a nossa... digamos, dramática chegada. Sou a única
possuidora de carruagem sobrevivente da cidade e me é impossível manter um
cocheiro. Opõem-se a transportar os meus amigos sem posses e eu insisto nisso. Por
isso, desisti de contratar homens que se vão despedir quase imediatamente. E... se o
meu marido está ocupado com qualquer outra coisa... sou eu própria que conduzo. -
Pôs a mãozinha no braço de Scarlett e olhou para a cara dela. - E agora pergunto-lhe,
será que não faz todo o sentido?
Scarlett arranjou voz para dizer que sim.
- Sally, não podes apanhar a pobre Scarlett desta maneira - disse Eleanor Butler.
- Que outra coisa podia dizer? Conta-lhe o resto.
Sally encolheu os ombros e depois sorriu.
- Suponho que a sua sogra está se referindo aos sinos. Que criatura cruel. A
verdade é que sou uma condutora terrível. Por isso, sempre que saio na carruagem, o
meu caridoso marido pede-me que a cubra de sinos, como aviso para as pessoas se
afastarem do meu caminho.
- Assim como um leproso - sugeriu Mrs. Anson.
- Vou fazer de conta que não ouvi - disse Sally com ar de dignidade ofendida.
Sorriu para Scarlett, um sorriso de boa-vontade tão verdadeiro que Scarlett sentiu o
seu calor.
- Espero que me peça sempre que precisar da carruagem, apesar daquilo que
acabou de ver - disse ela.
- Obrigada, Mrs. Brewton, é muito simpática.
- Não tem de quê. A verdade é que adoro andar por aí aos tombos, espalhando
republicanos e carpetbaggers aos quatro ventos. Mas estou a monopolizá-la. Deixe-me
apresentar-lhe Edward Cooper antes que ele morra...
Scarlett respondeu automaticamente aos cumprimentos de Edward Cooper,
sorrindo de modo a fazer aparecer a sedutora covinha no canto da boca e aparentando
um ar de embaraço fingido ao ouvir os cumprimentos dele, enquanto pedia mais com
os olhos.
- Bem, Mr. Cooper - dizia ela -, o que para aí vai! Digo-Ihe já que assim vai dar-
me a volta a cabeça. Não passo de uma moça do campo, de Clayton County, Geórgia,
e não sei lidar com os sofisticados homens de Charleston, como o senhor.
- Miss Eleanor, desculpe-me, por favor - ouviu uma nova voz a dizer. Scarlett
voltou-se e susteve a respiração. À porta estava uma jovem, uma jovem de brilhantes
cabelos castanhos, que se juntavam ao alto sobre os seus suaves olhos igualmente
castanhos.
- Lamento imenso vir atrasada - continuou a moça.
- A voz era suave, um pouco ofegante. Vestia um vestido castanho com uma gola
de linho branco e punhos e usava um chapéu atado debaixo do queixo, forrado de
seda castanha.
"Parece-se muito com Melanie, nos tempos em que a conheci", pensou Scarlett.
"Parece um passarinho castanho e gentil. Poderá ser prima dela? Nunca ouvi dizer que
os Hamilton tivessem família em Charleston."
- Não está nada atrasada, Anne - disse Eleanor Butler.
- Venha tomar um chá, parece estar gelada até aos ossos.
Anne sorriu com gratidão.
- Está ficando ventoso e as nuvens estão juntando-se depressa. Acho que me
livrei da chuva por pouco... Boa tarde, Miss Emma, Miss Sally, Margaret, Mr. Cooper -
Parou, com a boca entreaberta e os olhos postos em Scarlett. - Boa tarde, penso que
não nos conhecemos. Sou Anne Hampton.
Eleanor Butler apressou-se a juntar-se à moça. Segurava uma xícara fumegante.
- Que barbaridade a minha! - exclamou ela. - Estava tão ocupada com o chá que
me esqueci que não conhece Scarlett, a minha nora. Aqui está, Anne, beba isto
imediatamente. Está branca como a cal da parede... Scarlett, Anne é a nossa perita do
Lar da Confederação. Acabou a escola o ano passado e agora dá lá aulas. Anne
Hampton, Scarlett Butler.
- Como está, Mrs. Butler - Anne estendeu uma mãozinha gelada. Scarlett sentiu-a
tremer na sua, que estava quente, quando a apertou.
- Por favor, chame-me Scarlett - disse ela.
- Obrigada... Scarlett. Eu sou Anne.
- Chá, Scarlett?
- Obrigada, Miss Eleanor - apressou-se a pegar a xícara, satisfeita por escapar à
confusão que sentiu quando olhou para Anne Hampton. "A imagem viva de Melly. A
mesma fragilidade, a mesma doçura, o mesmo ar de ratinho, isso vê-se logo. Deve ser
órfã, se está no tal lar. Melanie também era órfã. Oh, Melly, como tenho saudades
tuas."
Lá fora, o céu escurecia. Eleanor Butler pediu a Scarlett para fechar as cortinas
assim que acabasse de beber o chá.
Ao correr as cortinas da última janela, ouviu o ribombar de um trovão ao longe e o
barulho da chuva no vidro.
- Vamos ao trabalho - disse Miss Eleanor. - Temos muito que fazer. Sentem-se
todos. Margaret, importa-se de ir passando os bolos e os sanduíches? Não quero
ninguém distraído por causa de um estômago vazio. Emma, vá servindo o chá, está
bem? Vou tocar, mandar vir mais água quente.
- Deixe-me ir busca- Ia, Miss Eleanor - disse Anne.
- Não, querida. Precisamos de ti aqui. Scarlett, puxe a corda daquela sineta, por
favor, querida. Muito bem, minhas senhoras e meu senhor, o primeiro assunto é muito
interessante. Recebi um grande cheque de uma senhora de Boston.
- Que vamos fazer com ele?
- Rasgue-o e devolva-lhe os pedaços.
- Emma! Está dormindo na parada? Precisamos de todo o dinheiro que
arranjarmos. Além disso, a doadora é Patience Bedford. Lembra-se dela?
Costumávamos vê-la, a ela e ao marido, quase todos os anos em Saratoga, nos velhos
tempos.
- Não havia um general Bedford no Exército da União?
- Não havia nada. Havia um general Nathan Bedford Forrest no nosso exército.
- O melhor homem de cavalaria que tivemos - disse Edward.
- Acho que Ross não ia concordar com isso, Edward. - Margaret Butler pousou
com força um prato de pão com manteiga. - No fim das contas, ele esteve na cavalaria
com o general Lee.
Scarlett puxou a campainha mais uma vez. "Raios! Então não é que os Sulistas
tinham de reviver a guerra toda de cada vez que se encontravam? Que diferença fazia
se o dinheiro viesse do próprio Ulysses Grant? Dinheiro era dinheiro, e aceitava-se,
viesse de onde viesse."
- Tréguas! - Sally Brewton acenou com um guardanapo branco. - Se derem uma
oportunidade a Anne, ela está tentando dizer qualquer coisa.
Os olhos de Anne brilhavam de emoção.
- Tenho nove meninas a quem estou ensinando a ler, e só tenho um livro por
onde ensinar. Se o fantasma de Abe Lincoln aparecesse e se oferecesse para nos
comprar livros, eu... eu dava-lhe um beijo!
"Ainda bem", saudou Scarlett em silêncio. Olhou para o espanto que se via nas
caras das outras mulheres. A expressão de Edward Cooper era totalmente diferente.
"Olha, ele está apaixonado por ela", pensou Scarlett. "Olhem só a maneira como ele
olha para ela. E ela nem dá por ele, nem sabe como ele a deseja, até parece um tolo.
Talvez eu deva dizer-Ihe. Para quem gosta do gênero, ele até é bastante atraente,
assim magro e sonhador. Se pensarmos bem, não é lá muito diferente de Ashley."
Sally Brewton também estava observando Edward, notou Scarlett. O olhar de
Sally cruzou-se com o seu e ambas trocaram sorrisos discretos.
- Então, estamos de acordo, não é verdade? - perguntou Eleanor. - Emma?
- Estamos de acordo. Os livros são mais importantes que o rancor. Estou sendo
emotiva demais. Deve ser da desidratação. Será que nunca mais trazem a água
quente?
Scarlett voltou a tocar a campainha. Talvez a campainha estivesse estragada;
talvez fosse melhor ela ir a cozinha dizer aos criados? Começou a levantar-se do seu
canto e depois viu a porta abrir-se.
- Tocou pedindo chá, Mrs. Butler? - Rhett abriu a porta toda com o pé. Segurava
nas mãos uma enorme bandeja de prata, carregada com um brilhante bule, uma taça,
um açucareiro, uma leiteira, um passador e três caixinhas de chá.
- Da índia, da China ou de camomila? - sorria, deliciado com a sua surpresa.
Rhett! Scarlett nem conseguia respirar. Que bonito estava. Apanhara sol, estava
bronzeado que nem um índio. Oh, Santo Deus, como ela o amava, o seu coração batia
tão alto que todo mundo o devia ouvir.
- Rhett! Oh, querido, receio bem que vá fazer uma cena. - Mrs. Butler agarrou
num guardanapo e limpou os olhos. - Disseste "alguma prata" em Filadélfia. Não fazia
idéia que era o serviço de chá. E intacto... milagre.
- E também muito pesado. Miss Emma, por favor, empurre essa porcelana de
imitação para o lado. Acho que as ouvi falarem em sede. Ficaria honrado se matassem
o desejo do vosso coração... Sally, meu amor, quando é que vais deixar-me defrontar o
teu marido num duelo mortal para te raptar? - Rhett colocou o tabuleiro na mesa,
debruçou-se sobre ela e beijou as três mulheres que estavam sentadas no sofá, por
detrás da mesa. Depois olhou em volta.
"Olha para mim", implorava Scarlett em silêncio do seu canto sombrio. "Beija-me."
Mas ele não a viu.
- Margaret, que bonita ficas com esse vestido. Ross não te merece. Olá, Anne, é
um prazer ver-te. Edward, já não digo o mesmo de ti. Não concordo com o fato de
organizares um harém em minha casa, quando eu ando lá fora, na chuva, na pior
carruagem da América do Norte, apertando a prata da família contra o peito, para a
proteger dos carpetbaggers. - Rhett olhou para a mãe com tanta ternura que Emma
Anson sentiu um nó na garganta. - Pare lá com esse choro, querida mamã - disse ele -,
ou vou pensar que não gostou da surpresa.
Eleanor levantou os olhos para ele, o rosto sorridente de amor.
- Abençoado sejas, meu filho. Fazes-me muito feliz.
Scarlett não agüentou nem mais um minuto. Correu para a frente.
- Rhett, meu querido...
Ele voltou a cabeça para ela e Scarlett parou. O rosto dele estava rígido, vazio, a
emoção controlada por uma vontade de ferro. Mas os olhos brilhavam, sem fôlego, e
enfrentaram-se por um momento. Depois, o canto da boca descaiu-lhe no sorriso
sardônico que ela conhecia tão bem e tanto temia.
- Um homem afortunado - disse ele lentamente e com clareza - aquele que recebe
uma surpresa maior que a que faz. - Estendeu-lhe as mãos. Scarlett pôs os seus
dedos, que tremiam, na palma das mãos dele, consciente da distância que os braços
esticados de Rhett mantinham entre eles. O bigode dele roçou-lhe a face direita e
depois a esquerda.
"Ele gostaria de me matar", pensou ela, e o perigo excitou-a de um modo
estranho. Rhett pôs os braços à volta dos ombros dela, a mão apertando-lhe o braço
como um torno.
- Tenho certeza de que as senhoras... e Edward nos desculpam se os deixarmos -
disse ele. A sua voz era uma encantadora mistura de infantilidade e malandrice. - Já
passou muito tempo desde que tive oportunidade de falar com a minha mulher. Vamos
lá para cima e deixamo-los a resolverem os problemas do Lar da Confederação.
Arrastou Scarlett pela porta fora, sem lhe dar oportunidade de se despedir.

1
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o
acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de
conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo
em nosso grupo.
12
Rhett não falou enquanto a apressava pelas escadas acima, até ao quarto.
Fechou a porta e encostou-se nela.
- Que diabo estás fazendo aqui, Scarlett?
Ela queria estender os braços para ele, mas a raiva escaldante nos olhos dele
avisou-a para não o fazer. Scarlett abriu muito os olhos de inocência, como se não
compreendesse. Quando falou, a voz saiu-lhe agitada e ofegante.
- A tia Eulalie escreveu-me e contou-me o que andavas dizendo, Rhett, que
querias que eu estivesse aqui, mas que eu não queria deixar o armazém. Oh, querido,
por que é que não me disseste? Estou-me nas tintas para o armazém, comparado
contigo. - Observou o olhar dele cuidadosamente.
- Não vai resultar, Scarlett.
- Que queres dizer?
- Isso tudo. Nem a apaixonada explicação, nem o ar de incompreensão inocente.
Sabes muito bem que não podes mentir-me e te saires bem.
Era verdade, e ela sabia-o. Tinha de ser honesta.
- Vim porque queria estar contigo. - A sua serena afirmação teve uma dignidade
simples.
Rhett olhou para as suas costas direitas e para a cabeça orgulhosamente erguida
e a voz suavizou-se.
- Minha querida Scarlett - disse ele -, podíamos ter sido amigos a seu tempo,
quando as recordações se tivessem transformado numa nostalgia amarga e doce.
Talvez ainda consigamos chegar aí, se formos ambos caridosos e pacientes. Mas mais
nada. - Atravessou o quarto, impacientemente. - O que tenho eu de fazer para que
entendas? Não quero ferir-te, mas tu obrigas-me. Não te quero aqui. Volta para Atlanta,
Scarlett, deixa-me estar. Já não te amo. Não posso ser mais claro que isto.
O sangue fugira do rosto de Scarlett. Os seus olhos verdes brilhavam,
contrastando com a palidez fantasmagórica do rosto.
- Eu também posso falar com clareza, Rhett. Sou tua mulher e tu és meu marido.
- Uma circunstância infeliz que me ofereci para corrigir.
As palavras dele eram como chicotadas. Scarlett esqueceu-se de que tinha de se
controlar.
- Divorciar-me de ti? Nunca, nunca, nunca. E nunca te darei razão para te
divorciares de mim. Sou tua mulher, e como uma boa e cumpridora mulher vim para o
teu lado, abandonando tudo o que me é querido. - Um sorriso de triunfo levantou-lhe os
cantos da boca, e ela jogou o seu trunfo. - A tua mãe está felicíssima por eu estar aqui.
Se me puseres fora, que lhe vais dizer? Eu conto-lhe a verdade e isso vai partir-lhe o
coração.
Rhett caminhou pesadamente de uma ponta à outra do grande quarto.
Praguejava baixinho, profanações e asneiras como Scarlett nunca ouvira. Era este o
Rhett que ela conhecia só de ouvir falar, o Rhett que fora para a Califórnia na Corrida
do Ouro e defendera os seus achados com uma faca e botas cardadas. Este era o
Rhett sempre em busca do fora do comum, habito das piores tabernas de Havana,
Rhett, o aventureiro sem lei, amigo e companheiro de renegados como ele próprio. Ela
olhava-o, chocada e fascinada, e excitada, apesar da ameaça que ele representava.
De súbito, parou de andar como um animal enjaulado e voltou-se para a encarar. Os
seus olhos negros brilharam, mas já não de raiva. Estavam divertidos, escuros,
amargos e cuidadosos. Era Rhett Butler, cavalheiro de Charleston.
- Xeque - disse, com um sorriso perverso e torcido. - Esqueci-me da imprevisível
mobilidade da rainha. Mas não é mate, Scarlett. - Estendeu as mãos, numa rendição
momentânea.
Ela não compreendeu o que ele estava dizendo, mas só um gesto e o tom de voz
disseram-lhe que ganhara... alguma coisa.
- Então, faço?
- Ficas até te apetecer partir. Penso que não será por muito tempo.
- Enganas-te, Rhett! Adoro isto aqui.
Uma velha expressão familiar passou-lhe pelo rosto. Estava divertido, cético e
parecia saber tudo.
- Há quanto tempo estás em Charleston, Scarlett?
- Desde ontem à noite.
- E já aprendeste a gostar disto... Trabalhas depressa, dou-te os parabéns pela
tua sensibilidade. Foste forçada a sair de Atlanta, milagrosamente sem alcatrão e
penas, e foste tratada decentemente por umas senhoras que não sabem receber as
pessoas de outro modo, e, por isso, pensas que encontraste um refúgio. - Riu com a
expressão da cara dela. - Oh, sim, continuo a ter conhecimentos em Atlanta. Sei tudo
sobre o modo como foste posta de lado. Já nem a escumalha com quem costumavas
dar-te quer ter alguma coisa a ver contigo.
- Isso não é verdade - gritou ela. - Eu os pus pra fora.
Rhett encolheu os ombros.
- Não é preciso continuar a discutir esse assunto. O que interessa é que agora
estás aqui, na casa da minha mãe, sob a sua asa. E porque me importo muito com a
felicidade dela, de momento não posso fazer nada contra isso. No entanto, nem é
preciso. Tu farás o que é preciso, sem qualquer intervenção da minha parte. Vais
revelar-te como na verdade és; então, todos terão pena de mim e compaixão pela
minha mãe. E eu faço-te as malas e despacho-te de volta para Atlanta, para receberes
as distintas ovações silenciosas de toda a comunidade. Pensas que podes fazer-te
passar por uma senhora, não é? Nem conseguirias enganar um cego surdo-mudo.
- Sou uma senhora, maldito sejas! Tu é que não sabes o que é ser uma pessoa
decente. Agradeço-te que te lembres de que a minha mãe era uma Robillard de
Savannah e que os O'Haras descendem dos reis da Irlanda!
O sorriso que Rhett lhe deu em resposta era de uma condescendência de
enlouquecer.
- Deixa pra lá, Scarlett. Mostra-me as roupas que trouxeste. - Sentou-se na
cadeira que tinha mais perto e estendeu as suas longas pernas.
Scarlett ficou olhando para ele, frustrada demais pela sua súbita calma para
conseguir falar sem se precipitar. Rhett tirou um charuto do bolso e o fez rolar entre os
dedos.
- Espero que não te importes se eu fumar no meu próprio quarto - disse ele.
- Claro que não.
- Obrigado. Agora, mostra-me as tuas roupas. Com certeza são novas; nunca te
lançarias numa tentativa de reconquistar os meus favores sem um arsenal de
casaquinhos e saias de seda, tudo do gosto execrável que te caracteriza. Não vou
permitir que faças da minha mãe motivo de chacota. Por isso, mostra-me, Scarlett, e
vou ver o que se pode salvar. - Tirou um canivete do bolso.
Scarlett resmungou, mas, apesar de tudo, dirigiu-se ao quarto de vestir para ir
buscar as suas coisas. Talvez fosse um bom sinal. Rhett sempre supervisionara o seu
guarda-roupa. Gostava de a ver usar roupas escolhidas por ele, orgulhava-se da sua
elegância e da sua beleza. Se queria ter outra vez alguma coisa a ver com a aparência
dela, orgulhar-se de novo dela, ela não se importava de cooperar. Ia experimentá-los
todos para ele. Desse modo, ele a veria com a roupa de baixo. Os dedos de Scarlett
apressaram-se a desapertar o vestido que trazia e a prisão acolchoada que lhe
suportava o busto. Saiu de dentro da pilha do belo tecido, agarrou uma braçada dos
seus novos vestidos e caminhou lentamente para o quarto, com os braços nus, o peito
meio coberto e as pernas envoltas em meias de seda.
- Atira-os em cima da cama - disse Rhett - e põe um roupão, antes que fiques
enregelada. Esfriou depois da chuva, ou será que não notaste? - Atirou a fumaça para
a esquerda, olhando para longe dela. - Não passes frio tentando ser atraente, Scarlett.
Estás perdendo o teu tempo. - O rosto de Scarlett ficou lívido de raiva. Os olhos
pareciam fogo verde.
- Mas Rhett não estava a olhar para ela. Examinava o espalhafato que estava em
cima da cama. - Arranca estas rendas todas - disse ele sobre o primeiro vestido - e
deixa ficar só um dos laços desta avalanche que vem por aqui abaixo. Desse jeito,
talvez fique menos mal... Podes dar este à tua criada, não há nada a fazer... Este
serve, se lhe tirares este debruado, substituíres os botões dourados por simples botões
pretos e encurtares a cauda... - Bastaram-lhe apenas uns minutos para os ver todos. -
Vais precisar de umas botas fortes, pretas - disse ele quando acabou de ver as roupas.
- Comprei umas esta manhã - disse Scarlett com a voz gelada. - Quando eu e a
tua mãe fomos às compras - acrescentou, acentuando cada palavra. - Já que a amas
tanto, não percebo por que não lhe compras uma carruagem. Ela cansou-se muito com
a caminhada.
- Não compreendes Charleston. É por isso que te vais sentir infelicíssima aqui
dentro de muito pouco tempo. Podia-lhe comprar esta casa, porque a nossa foi
destruída pelos ianques e todos os seus conhecidos continuam a ter grandes casas.
Até posso mobiliá-la mais confortavelmente do que as dos amigos, porque todas as
peças são coisas roubadas pelos ianques, ou são duplicados do que ela teve em
tempos, e os amigos ainda têm muitas das suas coisas. Mas não a posso afastar dos
amigos, comprando-lhe luxos que eles não se podem dar ao luxo de ter.
- Sally Brewton tem carruagem.
- Sally Brewton é diferente de todos os outros. Sempre foi. Sally é uma original.
Charleston respeita-a, até gosta da excentricidade. Mas não tolera a ostentação. E tu,
minha querida Scarlett, nunca conseguiste resistir a isso.
- Espero que estejas gostando muito de me insultar, Rhett Butler!
Rhett riu.
- Por acaso, estou. Agora podes começar a tornar decente um desses vestidos,
para usares esta noite. Vou levar o comitê em casa, para Sally não ter que o fazer com
esta tempestade.
Depois de ele sair, Scarlett vestiu o roupão de Rhett. Era mais quente que o dela
e ele tinha razão - estava muito mais frio e estava tremendo. Puxou a gola do roupão
até as orelhas e foi sentar-se na cadeira que ele ocupara. Ainda sentia a presença dele
no quarto e deixou-se envolver nela. Com os dedos, afagou o tecido macio que a
envolvia - que estranho, Rhett escolher um roupão tão leve, quase frágil ao toque, ele
que era tão sólido e forte. Mas também havia tantas coisas nele que ela não
compreendia. Não o conhecia bem, nunca o conhecera. Scarlett sentiu um momento de
terrível desespero. Afastou esse sentimento e levantou-se rapidamente. Tinha que se
vestir antes de Rhett voltar. Céus, há quanto tempo estava ali sentada sonhando
acordada? Já estava quase escuro. Tocou bruscamente chamando Pansy. Os laços e
a renda tinham que ser tirados do vestido cor-de-rosa, para ela o poder usar nessa
noite, e os ferros do cabelo tinham que se pôr a aquecer imediatamente. Queria ficar
especialmente bonita e feminina para Rhett... Scarlett olhou para a extensão de
acolchoado da enorme cama e os seus pensamentos fizeram-na corar.
O homem que acendia os candeeiros ainda não tinha chegado à parte alta da
cidade, onde Emma Anson vivia, e Rhett teve que guiar lentamente, dobrado para a
frente, para ver a rua escura através da chuva que caía com força. Atrás dele, na
carruagem coberta, já só restavam Mrs. Anson e Sally Brewton. Levara primeiro
Margaret Butler à casa minúscula de Water Street, onde ela e Ross viviam, e depois
dirigiu-se a Broad Street, onde Edward Cooper acompanhou Anne Hampton até a porta
do Lar da Confederação, tapando-a com o seu grande guarda-chuva.
- Vou a pé o resto do caminho - disse Edward a Rhett da beira do passeio -, não
vale a pena ir para junto das senhoras com este guarda-chuva encharcado. - Vivia em
Church Street, a um quarteirão de distância. Rhett tocou na orla do chapéu em
saudação e continuou.
- Acha que Rhett nos consegue ouvir? - murmurou Emma Anson
- Mal a consigo ouvir, Emma, e estou só a um palmo de ti - respondeu Sally
acidamente. - Pelo amor de Deus, fale mais alto. Esta chuvarada é ensurdecedora. -
Estava irritada com a chuva. Impedia-a de guiar a carruagem.
- Que acha da esposa? - disse Emma. - Não é nada como eu imaginava. Já
alguma vez viu alguma coisa tão grotescamente superornamentada como o traje de
sair que ela usava?
- Oh, é fácil remediar as roupas, e muitas mulheres têm um gosto terrível. Não, o
que é interessante é que ela tem possibilidades - disse Sally. - A única questão é: será
que as vai aproveitar? Pode ser uma grande deficiência ser bonita e ter sido uma belle.
Muitas mulheres nunca se recuperam disso.
- Foi ridícula a maneira como flertou com Edward.
- Automático, penso eu, não foi bem ridículo. Há muitos homens que esperam
exatamente esse tipo de coisa. Talvez agora precisem disso mais que nunca.
Perderam tudo o resto que em tempos os fazia sentir homens, toda a sua riqueza, as
terras e o poder.
As duas mulheres ficaram caladas durante um bocado, pensando em coisas que
era melhor nem serem admitidas por um povo orgulhoso sob o jugo de uma força de
ocupação militar.
Sally pigarreou, interrompendo aquela disposição sombria.
- Uma boa coisa - disse num tom positivo - é que a mulher de Rhett está
desesperadamente apaixonada por ele. Reparou como o rosto dela se iluminou como
um nascer do Sol quando ele apareceu à porta?
- Não, não reparei - disse Emma. - Quem me dera ter visto. Vi esse mesmo
olhar... mas foi no rosto de Anne.
13
Scarlett não tirava os olhos da porta. Por que é que Rhett se estava demorando
tanto? Eleanor Butler fingiu que não percebia, mas tinha um sorrisinho no canto da
boca. Os seus dedos faziam passar uma brilhante lançadeira de marfim rapidamente,
para um lado e para outro, tecendo uma complicada teia de laçadas na renda de bilros.
Devia ser um momento confortável. As cortinas da sala de estar estavam fechadas por
causa da tempestade e da escuridão, e nas duas belas salas contíguas viam-se
candeeiros acesos sobre mesas e um fogo dourado e crepitante afastava o frio e a
umidade. Mas os nervos de Scarlett estavam em franja e não conseguia sentir conforto
com a cena doméstica. Onde estava Rhett? Ainda estaria zangado quando voltasse?
Tentou concentrar-se no que a mãe de Rhett estava dizendo, mas não conseguiu.
Não queria saber do Lar da Confederação para Viúvas e Órfãos. Os seus dedos
tocaram no corpete do vestido, mas não havia cascatas de rendas para mexer. Com
certeza ele não ia se importar com as suas roupas se não quisesse saber dela, não
era?
- Por isso, a escola cresceu assim como que sozinha, porque não havia realmente
mais nenhum lugar para os órfãos irem - estava Mrs. Butler a dizer. - Tem tido mais
êxito do que nos atrevíamos a imaginar. Em Junho passado, seis acabaram o curso e
agora são todos professores. Duas das moças foram ensinar para Walterboro e uma
teve mesmo chance de escolher, ou Yemassee ou Camden. Uma outra, uma moça tão
doce, escreveu-nos, vou-lhe mostrar a carta...
Oh, onde estava ele? Que o estaria a demorar assim? "Se tiver de estar aqui
quieta mais tempo, desato aos gritos."
O relógio de bronze da lareira deu as horas e Scarlett sobressaltou-se. Duas...
três...
- Pergunto a mim mesma o que estará a demorar Rhett - disse a mãe dele.
Cinco... seis...
- Ele sabe que jantamos às sete e gosta sempre de tomar antes um ponche. E
também deve estar molhado até os ossos; vai ter de mudar de roupa. - Mrs. Butler
pousou a renda de bilros na mesa que estava ao seu lado. - Vou só ver se a chuva já
parou - disse ela.
Scarlett pôs-se de pé num salto.
- Eu vou.
Andou rapidamente, liberta, e puxou para trás uma ponta do pesado cortinado de
seda. Lá fora, uma densa neblina elevava-se do paredão do passeio. Rodopiava pela
rua e enrolava-se para cima, como uma coisa viva. O candeeiro da rua era uma
mancha brilhante e indefinida na brancura ondulante que o cercava. Scarlett afastou-se
daquela ausência de forma fantasmagórica e deixou cair a cortina sobre a cena.
- Está muito nevoeiro - disse ela -, mas não está chovendo. Acha que Rhett está
bem?
Eleanor Butler sorriu.
- Ele já passou por pior que um pouco de umidade e nevoeiro, Scarlett, sabes
disso muito bem. Claro que está bem. Vais ouvi-lo entrar não tarda nada.
Em resposta a estas palavras, ouviram a grande porta da frente abrir-se. Scarlett
ouviu o riso de Rhett e a voz profunda de Manigo, o mordomo.
- É melhor dar-me essas coisas molhadas, Mist' Rhett, as botas também. Tenho
outros sapatos aqui mesmo - dizia Manigo.
- Obrigado, Manigo. Vou subir para trocar de roupa. Diz a Mrs. Butler que vou ter
com ela daqui a um minuto. Ela está na sala?
- Sim, senhor, ela e a menina.
Scarlett ficou à escuta da reação de Rhett, mas só ouviu os seus passos rápidos
e firmes nas escadas. Pareceu-lhe que se passara um século até ele voltar. O relógio
da lareira devia estar mal. Cada minuto parecia uma hora.
- Tens um ar cansado, querido! - exclamou Eleanor Butler quando Rhett entrou na
sala.
Rhett pegou a mão da mãe e beijou-a. - Não seja uma mãe-galinha, mamã, tenho
mais fome que cansaço. Jantamos em breve?
Mrs. Butler começou a levantar-se.
- Vou à cozinha dizer para servirem agora mesmo.
Rhett tocou-lhe suavemente no ombro, para a impedir de continuar.
- Vou tomar uma bebida primeiro, não tenha pressa. - Dirigiu-se à mesa onde
estava a bandeja com as bebidas.
Enquanto servia uísque num copo, olhou para Scarlett pela primeira vez.
- Acompanhas-me, Scarlett? - A sua sobrancelha erguida desafiava-a. E o cheiro
do uísque também. Ela voltou-se, como se se sentisse insultada. Pois então, Rhett ia
jogar o gato e o rato? Ia tentar forçá-la ou levá-la a fazer alguma coisa que fizesse a
mãe dele voltar-se contra ela. Bom, ia ter que ser muito esperto para a apanhar.
Curvou os lábios e os olhos começaram a brilhar. Ela própria também tinha que ser
muito esperta para lhe levar a melhor. Sentiu o sangue a latejar-lhe no pescoço devido
à excitação. A competição sempre a excitara.
- Miss Eleanor, Rhett não é tão chocante? - riu ela. - Quando era pequeno
também era assim mauzinho? - Atrás de si, sentiu o súbito movimento de Rhett. Ah!
Esta tinha atingido o alvo. Há anos que ele se sentia culpado pela dor que causara à
mãe quando as suas escapadelas tinham feito que o pai o deserdasse.
- O jantar está servido, Miz Butler - disse Manigo da porta.
Rhett ofereceu o braço à mãe e Scarlett sentiu uma pontinha de ciúme. Depois,
lembrou a si própria que a devoção dele pela mãe era exatamente aquilo que lhe
permitia ficar ali e engoliu a raiva.
- Tenho tanta fome que era capaz de comer meia vaca - disse ela com uma voz
alegre. - E Rhett está mesmo a morrer de fome, não estás, querido? - Não podia
perder, ele próprio admitira isso; se perdesse a vantagem, perderia o jogo e nunca o
reconquistaria.
Afinal, Scarlett não precisava de se ter preocupado. Rhett conduziu a conversa a
partir do momento em que se sentaram. Voltou a contar a sua busca pelo serviço de
chá em Filadélfia, transformando-a numa aventura, pintando hábeis retratos da
sucessão de pessoas com quem falara, imitando os seus sotaques e idiossincrasias
com tanta habilidade que a mãe e Scarlett deram por si a rir até ficarem com dores.
- E depois de ter seguido aquela longa pista para o encontrar - concluiu Rhett com
um gesto teatral de desalento -, imaginem o meu horror quando o novo dono me
parece honesto demais para vender o serviço de chá por vinte vezes o seu valor, que
foi aquilo que eu ofereci. Por um momento, receei ter que roubá-lo outra vez, mas,
felizmente, ele concordou com a sugestão de nos divertirmos com um amigável jogo de
cartas.
Eleanor Butler tentou pôr um ar de desaprovação.
- Espero bem que não tenhas feito nada de desonesto, Rhett - disse ela, mas
havia riso por detrás das suas palavras.
- Mamã, fico chocado. Só dou por baixo quando jogo com profissionais. Este
miserável ex-coronel do exército de Sherman era tão amador que tive de fazer batota
para o deixar ganhar umas centenas de dólares, para o acalmar. Parecia o oposto de
um Ellinton.
Mrs. Butler riu.
- Oh, pobre homem. E a mulher... tenho pena dela. - A mãe de Rhett inclinou-se
para Scarlett. - São alguns dos esqueletos do meu lado da família - disse Eleanor
Butler num murmúrio fingido. Riu outra vez e começou a lembrar-se.
Os Ellintons, disseram eles a Scarlett, eram famosos em toda a costa Leste pela
fraqueza da família: faziam apostas sobre tudo. O primeiro Ellinton a instalar-se na
América colonial fazia parte da piada porque ganhara posse de um pedaço de terra
numa aposta com o dono sobre quem era capaz de beber mais cerveja e continuar de
pé.
- Quando ganhou - disse Mrs. Butler, concluindo - estava tão bêbado que pensou
que devia ir dar uma olhadela no seu prêmio. Dizem que nem sequer sabia para onde
ia até lá ter chegado, porque ganhou a maior parte da ração de rum dos soldados
jogando os dados.
- Que fez ele quando lhe passou a bebedeira? - quis saber Scarlett.
- Oh, querida, nunca lhe passou. Morreu passados apenas dez dias de o navio
aportar. Mas, entretanto, tinha apostado com outro jogador, nos dados, e ganhara uma
moça, uma das criadas contratadas do navio, e, como mais tarde se veio a descobrir
que ela estava grávida dele, houve uma espécie de casamento ex-pós fato na
sepultura dele, e o filho foi um dos meus trisavôs.
- Ele próprio era um jogador, não era? - perguntou Rhett.
- Oh, é claro. Está no sangue da família. - E Mrs. Butler continuou a contar
histórias da sua árvore genealógica.
Scarlett olhou para Rhett muitas vezes. Quantas surpresas esconderia este
homem que ela mal conhecia? Nunca o vira tão descontraído e feliz, sentindo-se
totalmente em casa. "Nunca fiz um lar para ele", percebeu ela, "Ele nem sequer
gostava da casa. Era minha, arranjada a meu gosto, um presente dele, mas não lhe
pertencia." Scarlett tinha vontade de interromper as histórias de Miss Eleanor para
dizer a Rhett que lamentava o passado, que o ia compensar de todos os seus erros.
Mas ficou calada. Ele estava feliz, divertindo-se com as recordações da mãe. Ela não
podia quebrar essa disposição.
As velas do grande candelabro de prata refletiam-se na madeira polida da mesa
de mogno e nas pupilas dos brilhantes olhos negros de Rhett. Banhavam a mesa e
eles três numa luz quente e serena, formando uma ilha de brilho suave no meio das
sombras da grande sala. O mundo exterior estava fechado lá fora pelas espessas
dobras das cortinas das janelas e pela intimidade da pequena ilha iluminada pelas
velas. A voz de Eleanor Butler era suave, as gargalhadas de Rhett eram calmas e
encorajadoras. O amor tecera uma teia irreal, mas inquebrável, entre mãe e filho.
Scarlett teve um súbito e ardente desejo de ser incluída nessa teia.
Então, Rhett disse:
- Conta a Scarlett sobre o primo Townsend, mamã - e ela sentiu-se segura no
calor da luz das velas, incluída na felicidade que rodeava a mesa. Desejou que
pudesse durar para sempre e pediu a Miss Eleanor para lhe contar sobre o primo
Townsend.
- Townsend não é um primo mesmo primo, sabe, é apenas um primo em terceiro
grau, mas descende em linha direta do trisavô Ellinton, filho único de um filho varão de
um filho varão. Assim, herdou a posse das terras originais e a febre do jogo dos
Ellintons e a sorte deles. Tinham sempre sorte, os Ellinton. Exceto numa coisa: há
outra característica da família: os rapazes são sempre estrábicos. Townsend casou
com uma moça lindíssima de uma excelente família de Filadélfia... a cidade chamou-
lhe o casamento da bela e do monstro. Mas o pai da moça era advogado e um homem
muito sensato no que diz respeito à propriedade, e Townsend era fabulosamente rico.
Townsend e a mulher instalaram-se em Baltimore. Depois, veio a guerra, é claro. A
mulher de Townsend foi correndo para casa da família assim que Townsend se juntou
ao exército do general Lee. Afinal de contas, ela era ianque e era mais que certo que
Townsend se ia deixar matar. Não acertava num celeiro, quanto mais na porta de um
celeiro, por causa dos olhos tortos. Contudo, continuava com a sorte dos Ellintons.
Nunca apanhou nada pior que frieiras, embora tenha estado no ativo mesmo até
Appomattox. Entretanto, os três irmãos e o pai da mulher foram todos mortos, lutando
pelo exército da União. Por isso, ela herdou tudo o que o seu cuidadoso pai e os seus
cuidadosos antepassados tinham acumulado. Townsend vive como um rei na Filadélfia
e não está nem aí por que todos os seus bens em Savannah tenham sido confiscados
por Sherman. Viste-o, Rhett? Como é que ele está?
- Mais vesgo que nunca, com dois filhos vesgos e uma filha que, graças a Deus,
saiu à mãe.
Scarlett mal ouviu a resposta de Rhett.
- Disse que os Ellintons eram de Savannah, Miss Eleanor? A minha mãe era de
Savannah - disse ansiosamente. O entrecruzar de relações familiares que era uma
parte tão integrante da vida do Sul estivera sempre ausente da sua, o que era uma
frustração. Todo mundo que ela conhecia tinha uma rede de primos, tios e tias que
cobria gerações e centenas de quilômetros. Mas ela não tinha. Pauline e Eulalie não
tinham filhos. Os irmãos de Gerald O'Hara, de Savannah, também não. Devia haver
ainda montes de O'Haras na Irlanda, mas isso não lhe servia de nada, e todos os
Robillards tinham ido embora de Savannah, com exceção do avô.
E agora, cá estava ela outra vez a ouvir histórias da família de outras pessoas.
Rhett tinha parentes em Filadélfia. Sem dúvida que também tinha laços com Charleston
inteira. Não era justo. Mas talvez estes Ellintons estivessem, de algum modo, ligados
aos Robillards. Nesse caso, ela faria parte da teia que incluía Rhett. Talvez fosse capaz
de encontrar uma ligação com o mundo dos Butlers e com Charleston, o mundo que
Rhett escolhera e no qual ela estava decidida a entrar.
- Lembro-me muito bem de Ellen Robillard - disse Mrs. Butler. - E da mãe dela. A
tua avó, Scarlett, foi provavelmente uma das mulheres mais fascinantes de toda a
Geórgia e da Carolina do Sul, também.
Scarlett inclinou-se para a frente, fascinada. Só ouvira bocadinhos dispersos de
histórias sobre a avó.
- É verdade que era escandalosa, Miss Eleanor?
- Era extraordinária. Mas quando a conheci melhor, não era nada escandalosa.
Estava ocupada demais tendo filhos. Primeiro, a tua tia Pauline, depois Eulalie, depois
a tua mãe. Na verdade, eu estava em Savannah quando a tua mãe nasceu. Lembro-
me do fogo-de-artifício. O teu avô contratava um italiano famoso de Nova Iorque e dava
um magnífico espetáculo de fogo-de-artifício, cada vez que a tua avó lhe dava um filho.
Tu não deves lembrar, Rhett, e também não deves ficar lá muito contente por eu te
lembrar, mas ficaste morto de medo. Levei-te lá para fora de propósito para veres, e
gritaste tão alto que eu quase morri de vergonha. Todas as outras crianças estavam
batendo palmas e gritando de alegria. Claro que eram mais velhas. Ainda andavas de
fraldas, tinhas pouco mais de um ano.
Scarlett ficou olhando para Mrs. Butler e depois para Rhett. Não era possível!
Rhett não podia ser mais velho que a sua mãe. Então, a sua mãe tinha... a sua mãe.
Sempre partira do princípio de que a mãe era velha, que ultrapassara a idade das
grandes emoções. Como é que Rhett podia ser mais velho? Como podia ela amá-lo tão
desesperadamente, se ele era assim tão velho?
Então, Rhett chocou-a ainda mais. Pousou o guardanapo na mesa, levantou-se,
foi até o lugar de Scarlett, beijou-a no alto da cabeça, aproximou-se da mãe, pegou-lhe
a mão, beijou-a e disse:
- Vou andando, mamã.
"Oh, Rhett, não!" Scarlett teve vontade de gritar. Mas estava espantada demais
para dizer fosse o que fosse, ou mesmo para perguntar onde ia.
- Gostaria que não fosses sair com esta escuridão e com esta chuva, Rhett -
protestou a mãe. - E Scarlett está aqui. Mal tiveste oportunidade de lhe falar.
- Parou de chover e está lua cheia - disse Rhett. - Não posso desperdiçar a
oportunidade de subir o rio com a maré, e tenho o tempo exato de a apanhar, antes de
mudar. Scarlett compreende que temos que ir controlar os nossos trabalhadores
quando vamos embora e os deixamos; ela é uma mulher de negócios. Não és, meu
amor? - Quando olhou para ela, os seus olhos brilharam com o reflexo da luz das
velas. Depois, dirigiu-se ao vestíbulo.
Ela afastou-se da mesa, quase derrubando a cadeira com a pressa. Depois, sem
uma palavra a Mrs. Butler, correu desvairadamente atrás dele.
Ele estava no vestíbulo abotoando o casaco, com o chapéu na mão.
- Rhett, Rhett, espera! - gritou Scarlett. Ignorou o aviso no olhar dele, quando se
voltou para olhar para ela. - Correu tudo tão bem ao jantar - disse ela. - Por que queres
ir embora?
Rhett passou por ela e abriu a porta que dava do vestíbulo para a varanda. Ao
fechar-se, a fechadura fez um ruído pesado e cavo, isolando-a resto da casa.
- Não faças cenas, Scarlett. Para mim, não têm qualquer efeito. - Como se
pudesse ver dentro da cabeça dela, atirou-Ihe umas palavras finais, arrastando a voz: -
E também não pense em partilhar a minha cama, Scarlett.
Abriu a porta da rua. Antes que ela pudesse pronunciar uma palavra,
desapareceu. A porta fechou-se lentamente atrás dele.
Scarlett bateu com o pé. Era um escape inadequado para a sua fúria e
desapontamento. Por que era que ele tinha que ser tão mau? Fez uma careta - meio
zangada, meio com vontade de rir a contragosto -, reconhecendo, de mau grado, a
esperteza de Rhett. Fora fácil para ele descobrir o que ela estava planejando. Bom,
tinha que ser mais esperta, só isso. Tinha que desistir da idéia de ter um bebê
imediatamente, tinha que pensar noutra coisa. Quando se foi juntar de novo a Mrs.
Butler, ia de testa franzida.
- Vá lá, querida, não fique preocupada - disse Eleanor Butler -, ele fica bem. Rhett
conhece o rio como a palma das suas mãos. - Ela estivera de pé, junto à lareira, sem
querer ir ao vestíbulo e arriscar-se a interromper a despedida de Rhett e da mulher. -
Vamos até à biblioteca, está aconchegado e, assim, os criados podem tirar a mesa.
Scarlett instalou-se numa cadeira de espaldar alto, protegendo-se das correntes
de ar. Não, não queria uma manta sobre os joelhos, estava muito bem, obrigada.
- Deixe-me aconchegá-la, Miss Eleanor - insistiu ela, tirando-lhe o xale de
caxemira. - Sente-se aí e ponha-se à vontade. - Obrigou Mrs. Butler a pôr-se
confortável.
- Que amor que és, Scarlett, tão parecida com a tua querida mãe. Lembro-me de
como tinha tanta consideração e tão boas maneiras. Todas as moças Robillards se
portavam bem, claro, mas Ellen era especial...
Scarlett fechou os olhos e aspirou o leve perfume de verbena de limão. Ia ficar
tudo bem. Miss Eleanor gostava dela, ela ia conseguir que Rhett voltasse para casa e
iam todos viver felizes para sempre.
Scarlett passou pelo sono, sentada na cadeira almofadada, embalada pelas
suaves reminiscências de tempos mais doces. Quando um distúrbio irrompeu no
vestíbulo, para lá da porta, acordou de um salto, voltando à realidade. De repente, não
sabia onde estava ou como fora ali parar e piscou os olhos, olhando sem ver bem o
homem que estava à porta. Rhett? Não, não podia ser Rhett, a não ser que tivesse
rapado o bigode.
O homem grande, que não era Rhett, deu um passo oscilante e entrou na sala.
- Vim conhecer a minha irmã - disse ele. As palavras entaramelavam-se.
Margaret Butler correu para Eleanor.
- Tentei detê-lo - gritou ela -, mas ele estava numa daquelas suas fases... não
consegui que me escutasse, Miss Eleanor.
Mrs. Butler levantou-se.
- Calma, Margaret - disse urgentemente, mas com calma. - Ross, estou à espera
de que me cumprimentes como deve ser. - A voz dela era invulgarmente alta, com as
palavras bem separadas.
O espírito de Scarlett já estava lúcido. Então, este era o irmão de Rhett. E
bêbado, a avaliar pelo aspecto dele. Bom, ela já vira bêbados antes, não eram
nenhuma novidade. Levantou-se, sorriu para Ross, com a covinha a tremer.
- Deixe que lhe diga, Miss Eleanor... Como é que uma senhora pode ter tido a
sorte de ter tido dois filhos, qual deles o mais belo? Rhett nunca me disse que tinha um
irmão tão bem-apessoado.
Ross aproximou-se dela, cambaleante. Os olhos dele varreram-lhe o corpo e
fixaram-se nos seus caracóis revoltos e na face pintada. Sorriu de esguelha.
- Com que então, esta é que é a Scarlett! - disse com voz grossa. - Devia ter
adivinhado que o meu irmão acabaria por arranjar uma pecinha destas. Vá lá, Scarlett,
dá um beijo amigável ao teu novo irmão. Tenho a certeza de que sabes como agradar
a um homem. - As suas grandes mãos subiram-lhe pelos braços como aranhas
enormes e agarraram-Ihe o pescoço nu. Depois, a boca aberta dele estava sobre a
dela, o seu hálito azedo entrando-lhe pelo nariz, a língua a forçar-se por entre os lábios
dela. Scarlett tentou levantar os braços para o empurrar, mas Ross tinha força demais
e o seu corpo estava comprimido contra o dela.
Conseguia ouvir a voz de Eleanor Butler e de Margaret, mas não conseguia
perceber o que diziam. Toda a sua atenção estava concentrada na necessidade de se
libertar daquele abraço nojento e na vergonha que eram os insultos de Ross. Ele
chamara-lhe prostituta! E estava a tratá-la como tal.
De súbito, Ross empurrou-a, fazendo-a cair contra as costas da cadeira.
- Aposto que não és assim fria para o meu querido irmão mais velho - grunhiu ele.
Margaret Butler soluçava, encostada ao ombro de Eleanor.
- Ross! - Mrs. Butler atirou o nome como uma faca. Ross voltou-se
desajeitadamente, atirando ao chão uma mesinha.
- Ross! - disse a mãe dele outra vez. - Chamei Manigo. Vai ajudar-te a chegar em
casa e acompanhar Margaret decentemente. Quando estiveres sóbrio, vais escrever
cartas pedindo desculpa à esposa de Rhett e a mim. Desgraçaste-te, desgraçaste
Margaret e a mim própria e não voltarás a ser recebido nesta casa até eu ter
recuperado da vergonha que me causaste.
- Lamento tanto, Miss Eleanor - chorava Margaret.
Mrs. Butler pôs as mãos nos ombros de Margaret.
- Também lamento, por ti, Margaret - disse ela. Depois, afastou-a de si. - Vá para
casa. Claro que será sempre bem recebida aqui.
Os velhos olhos sábios de Manigo avaliaram a situação num relance e levou
Ross, que, surpreendentemente, não disse nem uma palavra de protesto. Margaret
seguiu-os.
- Lamento tanto - repetia sem parar, até que o som da sua voz foi afastado pelo
fechar da grande porta da frente.
- Minha querida filha - disse Eleanor a Scarlett -, não sei o que dizer. Ross estava
bêbado, não sabia o que dizia. Mas isso não é desculpa.
Scarlett tremia dos pés à cabeça. De desgosto, de humilhação, de raiva. Por que
deixara aquilo acontecer, por que deixara o irmão de Rhett insultá-la e pôr as mãos e a
boca em cima dela? "Devia ter-lhe cuspido na cara, devia ter-lhe dado unhadas até o
cegar, devia ter-lhe dado murros naquela boca maldosa e porca. Mas não o fiz. Limitei-
me a aceitá-lo... como se o merecesse, como se fosse verdade." Scarlett nunca se
sentira tão envergonhada. Envergonhada pelas palavras de Ross e pela sua própria
fraqueza. Sentia-se desonrada, suja e humilhada para sempre. Teria sido melhor que
Ross lhe tivesse batido ou a tivesse ferido com uma faca. O seu corpo recuperaria de
uma nódoa negra ou de uma ferida. Mas o seu orgulho nunca se curaria da doença
que a atingira.
Eleanor inclinou-se sobre ela e tentou abraçá-la, mas Scarlett afastou-se do
contato.
- Deixe-me sozinha! - tentou ela gritar, mas apenas lhe escapou um gemido.
- Não o farei - disse Mrs. Butler -, pelo menos, até que me ouça. Tem que
compreender, Scarlett, tem de me escutar.
- Há tanta coisa que não sabe. Está ouvindo? - Puxou uma cadeira para perto de
Scarlett e sentou-se muito perto dela.
- Não! Vá embora! - Scarlett tapou os ouvidos com as mãos.
- Não te vou deixar - disse Eleanor. - E vou-te dizer, sem parar, mil vezes, se for
preciso, até que me ouças... - A voz dela continuou, suave mas persistente, enquanto a
mão acariciava a cabeça curvada de Scarlett, confortando-a, carinhosa, fazendo que a
sua bondade e o seu amor penetrassem a recusa de Scarlett em a ouvir. - O que Ross
fez foi imperdoável - disse ela -, não te devo pedir que lhe perdoes. Mas tenho que o
fazer, Scarlett. Ele é meu filho e conheço a dor que o levou a fazer isto. Ele não estava
a tentar magoar-te, minha querida. Era Rhett que ele atacava, através de ti; sabes, é
que ele está consciente de que Rhett é forte demais para ele, que nunca será capaz de
igualar Rhett em nada. Rhett estende a mão e colhe aquilo que quer, faz que as coisas
aconteçam, faz que façam coisas. E o pobre Ross é um fracasso em tudo.
"Esta tarde, Margaret disse-me, em particular, que quando Ross foi trabalhar hoje
de manhã lhe disseram que tinha sido despedido. Por causa da bebida, sabes?
Sempre bebeu, todos os homens bebem, mas não da maneira como anda a beber
desde que Rhett voltou para Charleston, há um ano. Ross estava tentando fazer andar
a plantação, trabalhava lá que nem um escravo desde que veio da guerra, mas havia
sempre qualquer coisa que corria mal, e nunca conseguiu uma colheita decente de
arroz. Estavam já para vender tudo para pagar os impostos. Por isso, quando Rhett se
ofereceu para lhe comprar a plantação, Ross teve que ceder. De qualquer modo, seria
sempre de Rhett, mas ele e o pai... mas isso é outra história."
"Ross conseguiu um lugar num banco, como caixa, mas receio que pensasse que
mexer em dinheiro era ordinário. Nos velhos tempos, os cavalheiros assinavam sempre
as contas, ou davam simplesmente a sua palavra, e os feitores tratavam de tudo. De
qualquer modo, Ross cometeu erros na caixa, as contas nunca davam certo e um dia
cometeu um grande erro e perdeu o emprego. Pior ainda, o banco disse que o iam
processar para recuperarem o dinheiro que ele pagara a mais. Rhett acertou tudo. Foi
como um punhal cravado no coração de Ross. Foi então que começou a beber a sério
e agora já lhe custou outro emprego. Ainda por cima, um tolo qualquer, ou um maldoso,
deixou escapar que fora Rhett que lhe arranjara o emprego. Ele foi para casa e
embebedou-se tanto que mal podia andar. E fica mau."
"Amo mais Rhett, que Deus me perdoe, sempre amei. Foi o meu primeiro filho e
entreguei-lhe o meu coração no momento em que o puseram no meu colo. Amo Ross e
Rosemary, mas não da mesma maneira que Rhett, e receio bem que eles o saibam.
Rosemary pensa que é por ele ter estado longe tanto tempo e depois ter voltado e,
como um gênio que saiu de dentro de uma garrafa, me ter comprado tudo o que há
nesta casa e lhe ter comprado os vestidos bonitos que ela desejava há tanto tempo.
Ela não se lembra de como era antes de ele partir, não passava de uma criança, não
sabe que, para mim, ele esteve sempre em primeiro lugar. Ross sabe, sempre soube,
mas era o preferido do pai e não se importava muito. Steven pôs Rhett na rua e fez de
Ross o seu herdeiro. Amava Ross, tinha orgulho nele. Mas agora Steven morreu, faz
este mês sete anos. E Rhett voltou para casa e a alegria encheu a minha vida, e Ross
não pôde deixar de perceber."
A voz de Mrs. Butler estava rouca, despedaçada pelo esforço de confessar os
grandes segredos do seu coração. Foi-se abaixo e começou a chorar amargamente.
- Meu pobre filho, meu pobre Ross, tão magoado!
"Eu devia dizer qualquer coisa", pensou Scarlett, "qualquer coisa que a faça
sentir-se melhor". Mas não foi capaz. Ela própria estava sofrendo demais.
- Miss Eleanor, não chore - disse ela, sem grande efeito. - Não fique assim. Por
favor, preciso lhe perguntar uma coisa.
Mrs. Butler respirou profundamente; limpou os olhos e compôs o rosto.
- Que é, minha querida?
- Tenho que saber - disse Scarlett com urgência na voz. - Tem de me dizer. De
verdade, eu... aquilo que ele disse... eu tenho esse aspecto? - Precisava de que a
sossegassem, tinha de ter a aprovação desta senhora amorosa, que cheirava a limão.
- Querida filha - disse Eleanor -, o teu aspecto não interessa para nada. Rhett
ama-te e, por isso, eu também te amo.
"Santíssima Mãe de Deus! Ela está dizendo que eu pareço uma prostituta, mas
que isso não faz mal. Estará doida?"
- Claro que faz, é mais importante que tudo o mais. Quero ser uma senhora, como
sempre devia ter sido!
Agarrou nas mãos de Mrs. Butler com uma força desesperada, sem saber que a
estava a machucando.
- Oh, Miss Eleanor, ajude-me! Por favor, preciso que me ajude.
- Claro, querida. Diz-me o que queres. - No rosto de Mrs. Butler só havia
serenidade e afeição. Há muitos anos que aprendera a esconder qualquer dor que
sentisse.
- Preciso saber o que é que faço mal, por que é que não pareço uma senhora.
Sou uma senhora, Miss Eleanor, sou mesmo. Conhecia a minha mãe, deve saber que
é verdade.
- É claro que é, Scarlett, e é claro que sei disso. As aparências são tão
enganadoras, na verdade, não é justo. Podemos arranjar tudo sem grandes problemas.
- Suavemente, Mrs. Butler libertou os seus dedos doloridos e inchados das mãos de
Scarlett. - Tens tanta vitalidade, querida filha, todo o vigor do mundo em que cresceu.
Isso é enganador para as pessoas daqui, desta região envelhecida e cansada. Mas
não a deves perder, é valiosa demais. Vamos, simplesmente, arranjar maneira de te
tornar menos visível, mais como nós. Nessa altura te sentirás mais confortável.
"E eu também", pensou Eleanor Butler para si. Defenderia até a morte a mulher
que Rhett amava, segundo acreditava, mas seria muito mais fácil se Scarlett deixasse
de pintar o rosto e de usar roupas caras e de mau gosto. Eleanor agradeceu a
oportunidade de refazer Scarlett mais ao jeito de Charleston.
Scarlett engoliu, cheia de gratidão, a diplomática avaliação que Mrs. Butler fizera
do seu problema. Era esperta demais para acreditar em tudo - tinha visto como Miss
Eleanor manobrava Eulalie e Pauline. Mas a mãe de Rhett ia ajudá-la e era isso que
contava, pelo menos por agora.
14
Charleston que moldara Eleanor Butler e fizera que Rhett voltasse, depois de
décadas de aventuras, era uma cidade antiga, uma das mais antigas da América.
Aglomerava-se numa estreita península triangular, situada entre dois rios sujeitos a
marés, que se juntavam num grande porto ligado ao Atlântico. Colonizada em 1862,
teve, desde os primeiros tempos, um langor romântico e uma sensualidade estranha ao
ritmo rápido e ao espírito de sacrifício puritanos das colônias da Nova Inglaterra. Brisas
salgadas agitavam as palmeiras e as glicínias e havia flores durante todo o ano. O solo
era preto, rico, livre de pedras que embotavam o arado de um homem; as águas
fervilhavam de peixe, caranguejos, camarões, tartarugas e ostras, e as florestas
estavam cheias de caça. Era uma terra rica, destinada a ser gozada.
Barcos de todo o mundo ancoravam no porto para carregarem o arroz que crescia
nas vastas plantações ao longo dos rios; descarregavam os luxos mundanos, para
prazer e adorno da pequena população. Era a cidade mais rica da América.
Abençoada por ter alcançado a maturidade na idade da razão, Charleston usou a
sua riqueza na busca da beleza e do conhecimento. Em resposta ao clima e à
abundância natural, também usava a sua riqueza para o prazer dos sentidos. Cada
casa tinha um chefe e um salão de baile, todas as senhoras tinham brocados da
França e pérolas da Índia. Havia sociedades da cultura e sociedades para música e
dança, escolas de ciência e escolas de esgrima. Era equilibradamente civilizada e
hedonista, tendo criado uma cultura de uma graça refinada e rara, na qual um luxo
incomparável era temperado por uma exigente disciplina do intelecto e da educação.
Os habitantes de Charleston pintavam as casas com todas as cores do arco-íris e
construíam frescos alpendres, por onde a brisa marítima levava o aroma das rosas
como uma carícia. Em todas as casas havia uma sala com um globo, um telescópio e
paredes cheias de livros em muitas línguas. A meio do dia sentavam-se para um
almoço de seis pratos, cada qual oferecendo variedades servidas em baixelas de prata,
velhas de gerações, e que brilhavam suavemente. A conversa era o molho da refeição;
a graça o tempero favorito.
Era este o mundo que Scarlett O'Hara, outrora uma belle de um condado rural da
terra vermelha e agreste da fronteira a norte da Geórgia, queria agora conquistar,
armada apenas com energia, teimosia e uma terrível necessidade. Dispunha de muito
pouco tempo.
Os habitantes de Charleston eram conhecidos pela sua hospitalidade há mais de
um século. Não era invulgar receberem-se mais de cem convidados, mais de metade
dos quais só eram conhecidos do dono e da dona da casa através de cartas de
apresentação. Durante a Semana das Corridas - o auge da temporada social da cidade
- donos de cavalos de Inglaterra, França, Irlanda e Espanha traziam muitas vezes os
seus cavalos com meses de antecedência para os habituar ao clima e às águas. Essas
pessoas ficavam na casa dos seus opositores de Charleston; os cavalos eram tratados
como convidados, ao lado dos que o anfitrião ia fazer correr contra eles. Era uma
cidade de braços e coração abertos.
Até ter chegado a guerra. Como não podia deixar de ser, os primeiros tiros da
guerra civil foram disparados em Fort Sumter, no porto de Charleston. Para grande
parte do mundo, Charleston era o símbolo do Sul misterioso e mágico, que cheirava a
magnólia e onde o musgo pendia das árvores. Para os habitantes da cidade também.
E para o Norte. "Orgulhosa e arrogante Charleston", era o refrão nos jornais de
Nova Iorque e Boston. Os oficiais do exército da União estavam decididos a destruir a
velha cidade pintada em tons de pastel e cheia de flores. Primeiro, bloquearam a
entrada do porto; mais tarde, plataformas com canhões colocadas nas ilhas mais
próximas dispararam morteiros para as estreitas ruas e para as casas, num cerco que
durou quase seiscentos dias; por fim, chegou o exército de Sherman com as suas
tochas e queimou as casas das plantações ao longo dos rios. Quando as tropas da
União entraram na cidade para ocupar o seu prêmio, deram com ruínas desoladas.
Ervas daninhas cresciam nas ruas e estrangulavam os jardins das casas sem janelas,
marcadas pelas bombas, destelhadas. Tiveram também que enfrentar uma população
dizimada, que se tornara tão orgulhosa e arrogante quanto a reputação de que gozava
no Norte.
Os forasteiros deixaram de ser bem-vindos a Charleston.
As pessoas repararam os telhados e as janelas o melhor que puderam e
trancaram as portas. Entre si, voltaram a ser joviais e alegres, o seu hábito mais
querido. Encontravam-se para dançar em salas vazias, onde faziam brindes ao Sul,
bebendo água por xícaras rachadas e coladas. Chamavam às suas festas "Festas da
Fome", e riam. Os dias de champanhe francês em copos de cristal talvez tivessem
passado, mas continuavam a ser a gente de Charleston. Tinham perdido as suas
fortunas, mas tinham quase dois séculos de tradição e estilo. Ninguém lhes podia
roubar isso. A guerra acabara, mas não estavam derrotados. Nunca seriam derrotados,
fizessem os malditos ianques o que fizessem. Nunca, desde que permanecessem
unidos! E desde que mantivessem todos os outros fora do seu círculo.
A ocupação militar e os ultrajes da reconstrução puseram à prova o seu ânimo,
mas agüentaram-se. Um por um, os outros estados da Confederação foram
readmitidos na União e os seus governos devolvidos à população do estado. Mas a
Carolina do Sul não. E Charleston, muito especialmente. Mais de nove anos depois do
fim da guerra, soldados armados patrulhavam as velhas ruas, impondo o recolher
obrigatório. Regulamentos que mudavam constantemente abrangiam tudo, desde o
preço do papel até as licenças de casamento e funerais. Charleston tornou-se cada vez
mais desleixada por fora, mas cada vez mais forte na sua determinação de preservar o
velho estilo de vida. Fizeram renascer o Baile dos Solteiros, com uma nova geração
para preencher as faltas causadas pela matança de Buli Run, Antietam e
Chancellorsville. Depois do seu horário de trabalho como empregados ou
trabalhadores, antigos donos de plantações apanhavam o transporte público ou iam a
pé até os arrebaldes da cidade, para reconstruir os três quilômetros do hipódromo de
Charleston ou para plantar sementes de relva na lama revolvida e encharcada em
sangue que o rodeava, compradas com as economias amealhadas pelas viúvas.
Pouco a pouco, conquistando símbolos e terreno, os habitantes de Charleston
recuperavam a essência do mundo amado que tinham perdido. Mas não havia espaço
para quem não lhes pertencesse.
15
Pansy não conseguiu esconder o espanto com as ordens que Scarlett lhe deu,
quando estava preparando-se para se deitar, na primeira noite na casa dos Butlers.
Leva o traje de sair verde que vesti hoje de manhã e dá-lhe uma boa escovadela.
Tira-lhe todos os ornamentos, incluindo os botões dourados, e põe-lhe uns botões
pretos comuns.
- Onde vou ir arranjar botões pretos, Miss Scarlett?
- Não me aborreças com perguntas parvas como essa. Pede à criada de Mrs.
Butler... como é que ela se chama? Celie. E acorda-me às cinco horas.
- Às cinco horas?
- És surda? Ouviste o que eu disse. Agora vai. Quero o traje verde pronto para
vestir quando me levantar.
Scarlett afundou-se com prazer no colchão de penas e nas almofadas da grande
cama. O dia fora cheio demais, emocional demais. Conhecer Miss Eleanor, ir às
compras, depois aquela tolice da reunião do Lar da Confederação, depois Rhett
aparecendo, vindo do nada, com o serviço de chá... Estendeu a mão para o espaço
vazio a seu lado. Queria-o ali, mas talvez fosse melhor esperar alguns dias, até ter sido
realmente aceita em Charleston. Aquele miserável do Ross! Não ia pensar nele nem
nas coisas horríveis que ele dissera e fizera. Miss Eleanor negara-lhe entrada na casa
e ela não ia ser obrigada a vê-lo, esperava que para sempre. Ia pensar noutra coisa
qualquer. Ia pensar em Miss Eleanor, que a amava e que a ia ajudar a reconquistar
Rhett, mesmo que não soubesse que o estava fazendo.
Miss Eleanor dissera que o Mercado era o melhor local para conhecer todo
mundo e saber as novidades. Portanto, era ao Mercado que iria no dia seguinte.
Scarlett teria ficado mais contente se não fosse preciso ir tão cedo, às seis. "Mas a
necessidade é que manda. Tenho que admitir que Charleston tem muita atividade",
pensou ela sonolentamente. Estava a meio de um bocejo quando adormeceu.
O Mercado era o local ideal para Scarlett começar a vida de uma senhora de
Charleston. O Mercado era a destilação visível, exterior, da essência de Charleston.
Desde os primeiros tempos da cidade, era o local onde os habitantes da cidade
compravam a comida. A dona da casa - ou, em casos raros, o dono - escolhia e
pagava, uma criada ou um cocheiro recebiam as coisas e colocavam-nas num cesto
que traziam pendurado no braço. Antes da Guerra, a comida era vendida por escravos
que a tinham trazido da plantação dos seus donos. Muitos dos vendedores ocupavam
os mesmos lugares de outros tempos, só que agora eram livres e os cestos eram
carregados por criados que eram pagos pelos seus serviços; à semelhança dos
vendedores, muitos deles eram as mesmas pessoas, transportando os mesmos cestos.
O que importava para Charleston era que os velhos costumes não tinham mudado.
A tradição era a pedra base da sociedade, o direito inato da gente de Charleston,
a herança inestimável que nenhum carpetbagger nem nenhum soldado podia roubar.
Isso via-se bem no Mercado. As pessoas de fora podiam parar por ali, era um lugar
público. Mas era uma frustração para eles. Sem saberem como, nunca conseguiam
chamar a atenção da mulher que vendia os legumes ou do vendedor de caranguejos.
Os cidadãos negros de Charleston eram tão orgulhosos como os brancos. Quando o
forasteiro ia embora, o Mercado inteiro desatava às gargalhadas. O Mercado era só
para a gente de Charleston.
Scarlett soergueu os ombros para levantar a gola, de modo a cobrir-lhe o
pescoço. Apesar dos seus esforços, os dedos gelados do vento penetravam lá dentro e
tremia violentamente.
Sentia os olhos cheios de cinzas e tinha certeza de que as botas deviam ter solas
de chumbo. Quantos quilômetros seriam cinco quarteirões? Não conseguia ver nada.
Os candeeiros não passavam de um círculo brilhante de névoa dentro da névoa,
naquela meia luz cinzenta e fantasmagórica que antecedia o amanhecer.
"Como é que Miss Eleanor pode estar tão horrivelmente bem-disposta? A
conversar para ali, como se não estivesse um frio de rachar e escuro como breu!" Via-
se uma luz à frente - bem longe. Scarlett prosseguiu em direção a ela, aos tropeções.
Quem lhe dera que o tremendo vento acalmasse. Que era aquilo? No vento. Cheirou o
ar. Era mesmo! Era café! Afinal de contas, talvez sobrevivesse. Os seus passos
acompanharam os de Mrs. Butler, num ritmo ansioso e acelerado.
O Mercado era como um bazar, um oásis de luz e calor, cor e vida, na névoa
informe e cinzenta da madrugada. Nos pilares de tijolo, que suportavam os altos e
largos arcos que davam para as ruas vizinhas, brilhavam tochas que iluminavam os
aventais e lenços coloridos de sorridentes mulheres negras, fazendo sobressair as
suas mercadorias dispostas em cestos de todos os tamanhos e feitios, colocados sobre
grandes mesas pintadas de verde. Estava cheio de gente, a maior parte andando de
mesa em mesa, falando - a outros clientes ou aos vendedores - num regatear divertido
e desafiador, ritual que era obviamente apreciado por todos.
- Café primeiro, Scarlett?
- Oh, sim, por favor.
Eleanor Butler levou-a para um grupo de mulheres ali perto. Seguravam canecas
de lata fumegantes com as mãos enluvadas, bebericando enquanto falavam e riam
umas com as outras, indiferentes à barafunda que as cercava.
- Bom dia, Eleanor... Eleanor, como está?... Chegue para lá, Mildred, deixe passar
a Eleanor... Oh, Eleanor, sabia que no Kerrison há meias de lã verdadeira em saldo?
Só sai no jornal amanhã. Quer vir comigo e com a Alice? Vamos hoje, depois do
almoço... Oh, Eleanor, estávamos agora mesmo a falar da filha de Lavinia. Perdeu o
bebê ontem à noite. Lavinia está desfeita de dor. Acha que a sua cozinheira podia fazer
um pouco da sua maravilhosa geléia de vinho? Ninguém a faz como ela. Mary tem uma
garrafa de clarete e eu dou o açúcar...
- Boas, Miz Butler, vi a senhora chegando, o seu café está prontinho.
- E outra caneca para a minha nora, por favor, Sukie. Minhas senhoras, gostaria
de lhes apresentar a esposa de Rhett, Scarlett.
As conversas pararam e todas as cabeças se voltaram para olhar para Scarlett.
Ela sorriu e inclinou a cabeça, num cumprimento. Olhou com apreensão o grupo
de senhoras, imaginando que já toda a cidade devia saber o que Ross dissera. "Não
devia ter vindo, não suporto isto." O rosto endureceu-lhe e ficou amuada. Estava à
espera do pior, e toda a sua hostilidade para com as pretensões aristocráticas de
Charleston voltou num ápice.
Mas sorriu e fez vênias a todas as senhoras que Eleanor lhe apresentou... sim,
adoro Charleston... sim, senhora, sou sobrinha de Pauline Smith... não, minha senhora,
ainda não visitei a galeria de arte, só cheguei antes de ontem à noite... sim, acho que o
Mercado é muito divertido... Atlanta, bom, mais de Clayton County, a minha gente tinha
lá uma plantação de algodão... oh, sim, o tempo é mesmo uma maravilha, estes dias
quentes de Inverno... não, minha senhora, não me parece que tenha conhecido o seu
sobrinho quando ele esteve em Valdosta, ainda fica longe de Atlanta... sim, senhora,
gosto muito de um jogo de whist... Oh, muito obrigada, tenho estado ansiosa por um
cafezinho...
Escondeu o rosto na caneca, com a missão cumprida. "Miss Eleanor não tem
mais miolos que uma galinha", pensou ela, revoltada. "Como é que ela teve coragem
de me atirar assim para o meio? Deve pensar que tenho uma memória de elefante.
Tantos nomes e já os confundi todos. E depois, estão todas olhando para mim como se
eu também fosse um elefante ou outro animal do jardim zoológico. Sabem o que Ross
disse, tenho certeza. Talvez Miss Eleanor se deixe enganar com os sorrisos delas, mas
eu não. Bando de velhas ranhosas!" Rangeu os dentes de encontro à borda da caneca.
Não ia revelar o que sentia, nem que ficasse cega tentando não chorar. Mas tinha
uma boa cor no rosto.
Quando acabou o café, Mrs. Butler pegou a caneca dela e entregou-a, juntamente
com a sua, à atarefada vendedora.
- Tens de me dar troco, Sukie - disse ela. Estendeu uma nota de cinco dólares.
Sem perder tempo, Sukie abaixou-se e passou as canecas num grande balde
cheio de água acastanhada, colocou-as na mesa ao seu lado, limpou as mãos ao
avental, pegou a nota e enfiou-a numa velha bolsa de cabedal, que tinha pendurada à
cintura.
- Aqui tá, Miz Butler, espero que estava bom.
Scarlett ficou horrorizada. Dois dólares por um café! Com dois dólares podia-se
comprar o melhor par de botas de King Street.
- Gosto sempre, Sukie, mesmo que tenha que me privar de comida para o pagar.
Nunca tens vergonha por seres uma ladra tão grande?
Os dentes brancos de Sukie brilharam, contrastando com a sua pele escura.
- Não, sinhora, é claro que não! - disse ela, estremecendo divertida. - Posso jurar
sobre o Bom Livro que não há nada que me perturbe o sono.
Os outros que bebiam café riram. Todos eles já tinham dito coisas parecidas a
Sukie muitas vezes.
Eleanor Butler olhou em volta, até localizar Celie e o cesto.
- Vamos andando, querida - disse para Scarlett -, hoje temos uma grande lista.
Temos de começar, antes que desapareça tudo.
Scarlett seguiu Mrs. Butler até ao fim do recinto do Mercado, onde as mesas
estavam cheias de recipientes de lavagem galvanizados contendo peixe e marisco, que
exalava um cheiro forte e ácido. Scarlett torceu o nariz perante o fedor e olhou para os
recipientes com desdém. Pensava que sabia muito bem como era o peixe. No rio que
corria perto de Tara havia muitos peixes-gato, horríveis, barbudos e cheios de
espinhas. Tiveram que os comer quando não havia mais nada. Não conseguia
compreender por que é que alguém havia de ir mesmo comprar daquelas horríveis
criaturinhas, mas havia muitas senhoras, sem uma das luvas, metendo o dedo nos
recipientes. Que chato! Miss Eleanor ia apresentá-la a cada uma delas. Scarlett
aprontou o sorriso.
Uma senhora pequenina, de cabelos brancos, levantou um monstro de um peixe
prateado de dentro da caixa que estava na sua frente.
- Adoraria conhecê-la, Eleanor. Que é que acha deste linguado? Tinha pensado
num sargo, mas ainda não chegaram e não posso esperar. Não entendo por que é que
os barcos de pesca não são mais pontuais, e não me venha falar que não há vento
para as velas. Hoje de manhã, o vento quase me levou o chapéu da cabeça.
- Eu até prefiro linguado, Minnie, fica muito melhor com um bom molho. Deixe-me
apresentar-lhe a esposa de Rhett, Scarlett... Esta é Mrs. Wentworth, Scarlett.
- Como está, Scarlett. Diga-me lá, acha que este linguado tem bom aspecto?
Para ela, tinha um aspecto horrível, mas Scarlett murmurou:
- Sempre fui pouco de fiar em relação ao linguado. - Esperava que todas as
amigas de Miss Eleanor não lhe fossem pedir a opinião. Nem sequer sabia o que era
um linguado, pelo amor de Deus, muito menos se era bom ou não.
Durante a hora seguinte, Scarlett foi apresentada a mais de vinte senhoras e uma
dúzia de variedades de peixe. Estava recebendo uma educação completa sobre peixe.
Mrs. Butler comprou caranguejos, tendo ido a cinco vendedores diferentes até juntar
oito.
- Devo parecer-te extremamente esquisita - disse, quando se considerou satisfeita
-, mas a sopa não fica com o mesmo sabor quando é feita com caranguejos machos. A
fêmea dá-lhe um sabor especial, sabes. É muito mais difícil arranjar fêmeas nesta
época do ano, mas acho que o esforço vale a pena.
Scarlett não estava nem aí para o sexo dos caranguejos. Estava horrorizada por
ainda estarem vivos, remexendo-se nas caixas, esticando as garras e fazendo uns
barulhos enervantes ao treparem por cima uns dos outros na tentativa de chegar ao
topo para saírem. E agora conseguia ouvi-los no cesto de Celie, empurrando o saco de
papel onde estavam metidos.
Com os camarões foi pior, embora estivessem mortos. Os olhos deles eram umas
horrendas bolas pretas em cima de uns paus e tinham uns enormes bigodes e antenas
e uns estômagos salientes. Não podia acreditar que tivesse alguma vez comido algo de
parecido, muito menos com prazer.
As ostras não a incomodaram; eram apenas parecidas com rochas sujas. Mas
quando Mrs. Butler pegou uma faca curva de cima de uma mesa e abriu uma, Scarlett
sentiu o estômago às voltas. "Parece um bocado de cuspe nadando em água de lavar
pratos", pensou ela.
Depois dos mariscos, as carnes eram reconfortantemente familiares, embora os
enxames de moscas à volta dos jornais empapados em sangue, que estavam por
baixo, a fizessem ficar enjoada. Conseguiu sorrir a um rapazinho negro que as estava
enxotando com um grande leque em forma de coração, feito de um material qualquer
parecido com palha seca. Quando chegaram às filas de aves de pescoço pendente, já
se tinha recomposto o suficiente para pensar em enfeitar um chapéu com algumas das
penas.
- Que penas, querida? - perguntou Mrs. Butler. - De faisão? É claro que podes
ficar com algumas. - Regateou vivamente com a mulher gorda, de um negro retinto,
que vendia as aves, acabando por comprar uma mão-cheia, que arrematou por uma
bagatela.
- Que raio é que Eleanor anda fazendo? - disse uma voz mesmo ao pé de
Scarlett. Olhou em volta e viu a cara de macaco de Sally Brewton.
- Bom dia, Mrs. Brewton.
- Bom dia, Scarlett. Por que é que Eleanor está comprando as partes do pássaro
que não se podem comer? Ou será que alguém descobriu uma maneira de cozinhar
penas? Tenho vários colchões que não estão em uso neste momento.
Scarlett explicou por que é que queria as penas. Sentia-se corar. Talvez só as
"coisinhas vistosas" usassem chapéus enfeitados em Charleston.
- Que bela idéia! - disse Sally, verdadeiramente entusiasmada. - Tenho um velho
chapéu de montar que podia ser ressuscitado com um arranjo de fitas e algumas penas
penduradas. Se o conseguir encontrar, já passou tanto tempo desde que o usei pela
última vez. Costuma montar, Scarlett?
- Há anos que não o faço. Desde... - Tentou lembrar-se.
- Desde antes da guerra. Eu sei. Eu também. Tenho umas saudades horríveis.
- De que é que tens saudades, Sally? - Mrs. Butler juntou-se a elas. Estendeu as
penas a Celie. - Ata um bocado de cordão à volta delas, em ambas as pontas, e toma
cuidado para não as machucares. - Depois soltou uma exclamação. - Desculpem-me -
disse com uma gargalhada -, vou ficar sem salsicha Brewton. Ainda bem que te vi,
Sally, tinha me esquecido completamente da idéia. - Afastou-se apressadamente,
seguida por Celie.
Sally sorriu perante a expressão admirada de Scarlett.
- Não se aflija, ela não endoideceu. As melhores salsichas do mundo só estão à
venda aos sábados. Esgotam-se depressa. O homem que as faz era nosso criado,
quando era escravo. Chama-se Lucullus. Depois de ser libertado, acrescentou Brewton
como apelido. Muitos dos escravos fizeram isso... no que diz respeito a nomes,
encontra aqui toda a aristocracia de Charleston. É claro que também há um bom
número de Lincolns. Venha comigo, Scarlett. Tenho que ir aos legumes. Eleanor
encontra-nos depois.
Sally parou em frente de uma bancada de cebolas.
- Onde diabo se meteu Lila?... ah, estás aí. Scarlett, esta criatura minúscula, se é
que vais acreditar, governa a minha casa inteira como se fosse Ivan, o Terrível. Esta é
Mrs. Butler, Lila, a mulher de Rhett.
A bonita e jovem criada fez uma vênia.
- Nós precisar de muitas cebolas, Miss Sally - disse ela -, para os picles que vou
fazer.
- Está ouvindo, Scarlett? Ela pensa que estou senil. Sei muito bem que
precisamos de muitas cebolas. - Sally agarrou um dos sacos de papel castanho de
cima da mesa e começou a enchê-lo de cebolas. Scarlett ficou vendo, desanimada.
Impulsivamente, tapou a boca do saco com a mão.
- Desculpe, Mrs. Brewton, mas essas cebolas não prestam.
- Não prestam? Como é que as cebolas não prestam? Não estão nem um pouco
podres.
- Estas cebolas foram arrancadas cedo demais - explicou Scarlett. - Têm bom
aspecto, mas não têm gosto de nada.
- Eu sei, porque cometi o mesmo erro. Quando tive que governar a nossa
propriedade, plantei cebolas. Uma vez que não sabia nada sobre plantas, arranquei
uma porção assim que a rama começou a ficar castanha, com medo que estivessem
morrendo e apodrecessem. Eram lindas como imagens e eu parecia um pavão, tão
orgulhosa estava, porque a maior parte das coisas que plantei não prestou para nada.
Comemo-las cozidas, guisadas e de fricassé, para ajudar a disfarçar o gosto dos
esquilos. Mas não tinham gosto de nada. Mais tarde, quando cavei o rego para plantar
outra coisa, encontrei uma que me escapara. Essa é que era uma cebola como deve
ser. Acontece que precisam de tempo para ganharem sabor. Eu mostro-lhe o que é
uma boa cebola. - Scarlett pôs-se a escolher com ar de entendida, cheirando e
mexendo nos cestos que cobriam a bancada. - Estas é que deve levar - disse
finalmente. - O queixo dela tinha um ar de desafio. "Pode pensar que não passo de
uma desmiolada", pensava ela, "mas não me envergonho de ter sujado as mãos
quando foi preciso. Vocês, emproados de Charleston, pensam que são o supra-sumo,
mas enganam-se."
- Obrigada - disse Sally. Os seus olhos tinham um ar pensativo. - Fico-lhe
agradecida. Fui injusta contigo, Scarlett. Não acreditava que alguém tão bonita como a
menina fosse tão sensata. Que mais é que plantou? Não me importava de aprender
qualquer coisa sobre os aipos.
Scarlett estudou o rosto de Sally. Viu um interesse honesto e correspondeu.
- Os aipos eram chiques demais para mim. Tinha que alimentar uma dúzia de
bocas. No entanto, sei tudo o que há para saber sobre batatas doces, cenouras,
batatas e nabos. Sobre algodão, também. - Não lhe interessava se estava a gabar-se
ou não. Era capaz de apostar que nunca nenhuma senhora de Charleston tinha jamais
suado ao sol, a apanhar algodão!
- Deve ter-se matado a trabalhar. - Lia-se a palavra respeito nos olhos de Sally
Brewton.
- Tínhamos que comer. - Encolheu os ombros para afastar o passado. - Graças a
Deus que isso já passou. - Depois sorriu. Sally Brewton fazia-a ficar bem-disposta. -
Mas tornei-me muito esquisita no que toca a colheitas de tubérculos. Uma vez, Rhett
disse que conhecia muitas pessoas capazes de recusarem um vinho, mas que eu era a
única que fazia o mesmo às cenouras. Estávamos no melhor restaurante de Nova
Orleães e causou um rebuliço!
Sally desatou às gargalhadas.
- Acho que conheço esse restaurante. Diga lá, o criado não arranjou o
guardanapo que trazia no braço e olhou com ar de desaprovação?
Scarlett deu uma risadinha.
- Deixou cair o guardanapo, que caiu numa daquelas frigideiras em que cozinham
a sobremesa.
- E pegou fogo? - Sally sorriu maliciosamente.
Scarlett acenou que sim.
- Oh, meu Deus - gritava Sally. - Dava tudo para ter lá estado.
Eleanor Butler interrompeu-as.
- De que é que estão falando? Também gostaria de rir.
Brewton já só tinha meio quilo de salsichas e tinha-as prometido a Minnie
Wentworth.
- Peça a Scarlett que lhe conte - disse Sally, ainda a rindo. - Esta sua menina é
um espanto, Eleanor, mas tenho que ir. - Pôs a mão no cesto de cebolas que Scarlett
indicara. -
- Levo estas - disse à vendedora. - Sim, Lena, o cesto todo. Despeje-as dentro de
um saco e dê-as a Lila. Como está o seu rapaz, continua com tosse? - Antes de se
envolver numa discussão sobre remédios para a tosse, voltou-se para Scarlett e olhou
para ela. - Espero que passe a chamar-me Sally e venha me visitar, Scarlett. Estou em
casa a primeira quarta-feira de cada mês, à tarde.
Scarlett não sabia, mas tinha acabado de avançar para o nível mais alto da
controlada e estratificada sociedade de Charleston. Portas que se teriam apenas
entreaberto educadamente para a nora de Eleanor Butler, se abririam de par em par
para uma protegida de Sally Brewton.
Eleanor Butler aceitou de bom grado o julgamento de Scarlett sobre as batatas e
cenouras que precisava comprar. Depois, abasteceu-se de cereais, angu de milho,
farinha e arroz. Por fim, comprou manteiga, leitelho, natas, leite e ovos. O cesto de
Celie estava transbordando.
- Temos que tirar tudo para fora e tornar a guardar as coisas - preocupava-se Mrs.
Butler.
- Eu levo alguma coisa - ofereceu-se Scarlett. - Estava impaciente por ir embora,
antes que fosse apresentada a mais amigas de Mrs. Butler. Tinham parado tantas
vezes que a travessia da seção de legumes e produtos lácteos levara mais de uma
hora. Não se importava de conhecer as mulheres que vendiam os produtos - queria
fixá-las com muita clareza no seu espírito, pois tinha a certeza de que, no futuro, teria
que lidar com elas. Miss Eleanor era branda demais. Ela tinha a certeza de que era
capaz de conseguir melhores preços. Seria divertido. Assim que estivesse mais a par
das coisas, ia oferecer-se para se ocupar de uma parte das compras. Mas não dos
peixes. Faziam-na ficar enjoada.
Ao contrário do que acontecia quando os comia, descobriu ela. O jantar foi uma
revelação. A sopa de caranguejo-fêmea era uma mistura aveludada de sabores que a
fizeram abrir muito os olhos. Nunca provara nada tão sutilmente delicioso, exceto em
Nova Orleães. É claro! Agora já se lembrava, Rhett identificara muitos dos pratos que
encomendava como uma ou outra espécie de marisco.
Scarlett repetiu a sopa e saboreou-a gota a gota e depois fez justiça ao resto do
generoso jantar, que incluía sobremesa, uma confecção de frutas e nozes, coberta de
natas, a que Mrs. Butler chamou Torta Huguenote.
Nessa tarde, teve indigestão pela primeira vez na vida. Mas não por comer
demais. Eulalie e Pauline puseram-na mal-disposta.
- Vamos visitar Carreen - anunciou Pauline quando chegaram -, e pensamos que
Scarlett havia de querer vir conosco. Lamentamos a interrupção, não sabia que tinham
acabado de comer agora mesmo. - Tinha os lábios apertados, numa desaprovação
muda de uma refeição que durara tanto. Eulalie deixou sair um pequeno suspiro de
inveja.
Carreen! Ela não queria nada ir ver Carreen. Mas não podia dizer isso, as tias
teriam um ataque.
- Adoraria ir, tia - exclamou ela -, mas, na verdade, não estou sentindo-me muito
bem. Vou só pôr um pano molhado na testa e deitar-me. - Baixou os olhos. - Sabem
como é. - Aí estava. Elas que pensassem que estava com problemas de mulher. São
virtuosas demais para fazerem perguntas.
Tinha razão. As tias despediram-se o mais depressa possível. Scarlett
acompanhou-as à porta, lembrando-se de andar como se tivesse dores de barriga.
Eulalie deu-lhe umas palmadinhas de simpatia no ombro quando a beijou à saída.
- Vai lá descansar agora - disse ela. Scarlett acenou que sim, humildemente. - E
vem ter a nossa casa amanhã, às nove e meia. É uma meia hora a pé até à Igreja de
St. Mary, para a Missa.
Scarlett ficou olhando de boca aberta, horrorizada. Nunca lhe passara pela
cabeça ir à Missa.
Nesse momento, uma pontada verdadeira quase a fez dobrar-se ao meio.
Durante toda a tarde, refugiou-se na cama com o espartilho desatado e uma botija
de água quente sobre o estômago. A indigestão era desconfortável e estranha, e, por
isso mesmo, assustadora. Mas muito mais assustador era o seu medo abjeto de Deus.
Ellen O'Hara fora uma católica devota e fizera o possível para que a religião
fizesse parte da vida de Tara. À noite havia orações, litania e terço e lembrava
constantemente às filhas, de um modo meigo, os deveres e obrigações delas como
cristãs.
O isolamento da plantação era um desgosto para Ellen, pois sentia falta da
consolação que lhe dava a Igreja. No seu jeito calmo, tentava dá-la à família. Quando
elas tinham 12 anos, os ensinamentos pacientes da mãe tinham implantado firmemente
os imperativos do catecismo em Scarlett e nas irmãs.
Agora, Scarlett torcia-se de culpa, pois negligenciara as observâncias religiosas
durante tantos anos. A mãe devia estar chorando no céu. Oh, por que é que as irmãs
da mãe haviam de viver em Charleston? Ninguém em Atlanta esperaria que ela fosse à
missa. Mrs. Butler não teria feito muito caso ou, na pior das hipóteses, esperaria que
ela a acompanhasse à Igreja episcopal. Isso não seria tão mau. Scarlett tinha a vaga
idéia de que Deus não ligava para aquilo que acontecia numa igreja protestante. Mas
assim que ela pusesse o pé na entrada de St. Mary, Ele saberia que ela era uma
pecadora amedrontada, que já não ia à confissão desde... desde... nem sequer
conseguia lembrar-se da última vez. Não poderia tomar a Comunhão, e todo mundo
saberia a razão. Imaginou os anjos da guarda invisíveis de que Ellen lhe falava quando
era criança. Todos franziam a testa; Scarlett puxou os cobertores por cima da cabeça.
Não sabia que o seu conceito de religião era tão supersticioso e mal-formado
como o de qualquer homem da Idade da Pedra. Só sabia que estava assustada, infeliz
e zangada e que estava presa num dilema. Que é que havia de fazer?
Lembrava-se do rosto da mãe, iluminado pelas velas, a dizer à família e aos
criados que Deus amava o cordeiro malhado acima de tudo, mas isso não servia lá
muito de conforto. Não conseguia pensar em nenhuma maneira de se livrar da Missa.
Não era justo! E logo agora, que as coisas começavam a correr tão bem. Mrs.
Butler dissera-lhe que Sally Brewton organizava umas partidas de whist muito
divertidas, e era mais que certo ela ser convidada.
16
Claro que Scarlett foi à Missa. Para sua surpresa, o antigo ritual e os responsos
foram estranhamente reconfortantes, como velhos amigos na nova vida que estava a
começar. Era fácil lembrar-se da mãe quando os seus lábios murmuravam o Padre
Nosso e as contas macias do terço eram tão familiares entre os dedos. Tinha a certeza
de que Ellen devia estar satisfeita por a ver ali, de joelhos, e isso fazia-a sentir-se
melhor.
Uma vez que não podia escapar, confessou-se e foi também visitar Carreen. O
convento e a irmã revelaram-se como mais duas surpresas. Scarlett sempre imaginara
os conventos como lugares parecidos com fortalezas, com portões trancados, onde as
freiras esfregavam chãos de pedra de manhã até à noite. Em Charleston, as Irmãs da
Piedade viviam numa magnífica mansão de tijolo e davam aulas no belo salão de baile.
Carreen estava radiosamente feliz com a sua vocação, tão diferente da rapariga
calma e tímida de que Scarlett se lembrava que nem parecia a mesma pessoa. Como é
que podia ficar zangada com uma desconhecida? Especialmente uma estranha que, de
certo modo, parecia mais velha que ela, em vez de a sua irmã mais nova. Carreen - a
Irmã Mary Joseph - também ficou contentíssima de a ver. Scarlett sentiu-se
aconchegada por aquela admiração e amor, expressos tão livremente. Se, ao menos,
Suellen tivesse metade da simpatia, pensou ela, não se sentiria tão excluída em Tara.
Foi um grande prazer visitar Carreen e tomar chá no lindo jardim formal do convento,
apesar de a irmã ter falado tanto sobre as rapariguinhas da sua classe de aritmética
que Scarlett quase adormeceu.
Num curto espaço de tempo, a Missa de domingo, seguida de café-da-manhã na
casa das tias e do chá de terça à tarde com Carreen, tornaram-se momentos serenos e
bem-vindos no ocupado dia-a-dia de Scarlett.
É que ela tinha muito que fazer.
Uma tempestade de convites caíra na casa de Eleanor Butler na semana que se
seguiu à lição que Scarlett deu sobre cebolas a Sally Brewton. Eleanor ficou
agradecida a Sally, pelo menos assim pensou. Conhecedora dos costumes de
Charleston, receava por Scarlett. Mesmo nas condições espartanas da vida do após-
guerra, a sociedade era uma ratoeira de regras de comportamento não especificadas,
um labirinto bizantino de refinamentos superelaborados, à espera de apanhar os
descuidados ou não iniciados.
Tentou aconselhar Scarlett.
Não precisas visitar todas estas pessoas que deixaram cartões, querida - disse
ela. - Basta deixares o teu próprio cartão, com o canto dobrado. Isso é uma forma de
reconhecer a visita e mostra o teu desejo de relacionamento, mas quer dizer que não
vais mesmo lá a casa, visitar a pessoa.
- E por isso que tantos cartões estavam todos dobrados?
Pensei que eram velhos e usados. Bom, vou visitar todas as pessoas. Estou
contente por quererem ser amigos; eu também quero.
Eleanor calou-se. Era verdade que a maioria dos cartões eram "velhos e usados".
Ninguém se podia dar ao luxo de comprar novos - quase ninguém. E os que podiam
não iam embaraçar os que não podiam, mandando-os fazer. Tornara-se um costume
aceito por todos deixar os cartões recebidos numa salva no hall de entrada, para serem
discretamente recuperados pelos donos. Decidiu que, de momento, não ia complicar a
educação de Scarlett com essa informação particular. A querida moça mostrara-lhe
uma caixa de cem cartões brancos, novos, que trouxera de Atlanta. Eram tão novos
que ainda estavam embrulhados em tecido. Iam durar para muito tempo. Ficou vendo
Scarlett partir com uma determinação bem-disposta e teve a mesma sensação de
quando Rhett, com 3 anos, a tinha chamado triunfantemente do último ramo de um
gigantesco carvalho.
Os receios de Eleanor Butler eram desnecessários. Sally Brewton fora muito
clara.
- A moça não tem quase educação nenhuma e tem um gosto horrível. Mas tem
vigor e energia, e é uma sobrevivente. Precisamos de gente como ela aqui no Sul, sim,
mesmo em Charleston. Talvez especialmente em Charleston. É minha protegida;
espero que todos os meus amigos a façam sentir-se bem-vinda aqui.
Em breve, os dias de Scarlett eram um vendaval de atividade. Começava com
uma hora, ou mais, no Mercado, depois um grande café-da-manhã em casa - que
incluía habitualmente salsichas Brewton - e às dez horas já estava saindo, vestida de
novo, seguida por Pansy, que levava a mala dos cartões e um fornecimento pessoal de
açúcar, que se esperava que todos os convidados levassem consigo em tempos de
racionamento. Havia tempo suficiente de fazer, pelo menos, cinco visitas, antes de
voltar a casa para almoçar. As tardes eram ocupadas com visitas a senhoras que
tinham marcado aquele dia para receberem, ou com reuniões de whist, ou excursões
com novas amigas a King Street para fazer compras, ou para receber visitas com Miss
Eleanor.
Scarlett adorava aquela atividade constante. Ainda mais, adorava a atenção que
lhe dispensavam. Acima de tudo, adorava ouvir o nome de Rhett na boca de toda a
gente. Algumas mulheres já velhas criticavam-no abertamente. Não tinham aprovado
as suas atitudes quando era novo e nunca mudariam de opinião. Mas a maioria
perdoara-lhe os pecados de juventude. Agora estava mais velho, mais disciplinado. E
adorava a mãe. Velhas senhoras que tinham perdido os filhos e netos na guerra
percebiam muito bem a felicidade radiante de Eleanor Butler.
As mulheres mais novas olhavam para Scarlett com uma inveja mal disfarçada.
Deliciavam-se a contar todos os fatos e boatos sobre o que Rhett andaria a fazer,
quando deixava a cidade sem explicações. Algumas diziam que os maridos sabiam de
fonte segura que Rhett andava financiando o movimento político destinado a expulsar o
governo dos carpetbaggers do capitólio estadual. Outras murmuravam que ele andava
recuperando os retratos e a mobília da família Butler com uma arma na mão. Todos
sabiam histórias das suas façanhas durante a guerra, quando o seu esguio e sombrio
navio atravessara, como uma flecha, a frota da União, que fazia o bloqueio, mais
parecendo uma sombra mortífera. Quando falavam dele punham uma expressão
especial, uma mistura de curiosidade e imaginação romântica. Rhett era mais mito que
homem. E era marido de Scarlett. Como é que não haviam de a invejar?
Scarlett estava no seu melhor quando se mantinha constantemente ocupada e
estes foram para ela bons tempos. As visitas sociais eram exatamente o que precisava,
depois da aterradora solidão de Atlanta, e depressa esqueceu o desespero que sentira.
Atlanta devia estar enganada, nada mais. Ela não fizera nada para merecer tal
crueldade, senão todo mundo de Charleston não havia de gostar tanto dela. E
gostavam, se não por que é que a convidariam?
Este pensamento era muito reconfortante. Pensava muito nisto. Sempre que fazia
as suas visitas, ou recebia pessoas com Mrs. Butler, ou ia visitar a sua amiga Anne
Hampton, especialmente escolhida, ao Lar da Confederação, ou dava à língua no
Mercado, enquanto tomava café, Scarlett desejava sempre que Rhett a pudesse ver.
Às vezes, até olhava rapidamente em volta, imaginando que ele estava ali, tão intenso
era o seu desejo. Oh, se ao menos ele voltasse para casa!
Parecia-lhe que ele estava mais perto de si nos calmos momentos depois do
jantar, quando se sentava com a mãe dele no estúdio e escutava, fascinada, enquanto
Miss Eleanor falava. Ela estava sempre disposta a lembrar-se de coisas que Rhett
fizera ou dissera quando era criança.
Scarlett também gostava das outras histórias de Miss Eleanor. Às vezes eram
maliciosamente divertidas. Eleanor Butler, como a maior parte dos seus
contemporâneos de Charleston, fora educada por governantas e viagens. Lera
bastante, mas não era uma intelectual, falava aceitavelmente as línguas latinas,
embora com uma pronúncia terrível, conhecia Londres, Paris, Roma e Florença, mas
apenas as atrações históricas famosas e as lojas de luxo. Era uma pessoa do seu
tempo e da sua classe. Nunca questionara a autoridade dos pais ou do marido, e
cumpria as suas obrigações em todos os aspectos, sem se queixar.
O que a distinguia da maior parte das mulheres do seu tipo era que ela tinha um
senso de humor, calmo mas irreprimível. Gozava o que quer que a vida lhe trouxesse e
achava a condição humana basicamente divertida, sendo também uma boa contadora
de histórias, com um repertório que ia de relatos de incidentes cômicos da sua própria
vida até o manancial de histórias típicas do Sul sobre esqueletos escondidos em
armários, comum a todas as famílias da região.
Se Scarlett conhecesse essa referência, podia muito bem ter chamado a Eleanor
a sua Scheherazade pessoal. Nunca percebeu que Mrs. Butler estava indiretamente
tentando abrir-lhe o espírito e o coração. Eleanor conseguia ver a vulnerabilidade e a
coragem que tinham atraído o seu querido filho para Scarlett. Também podia ver que
alguma coisa correra mal no casamento, tão mal que Rhett não queria ter mais nada a
ver com ele. Sabia, sem lhe terem dito, que Scarlett estava desesperadamente
decidida a reconquistá-lo, e, por razões particulares, ela própria ainda estava mais
ansiosa por essa reconciliação que Scarlett. Não tinha a certeza se Scarlett conseguiria
fazer Rhett feliz, mas acreditava do fundo do coração que outro filho faria do
casamento um sucesso. Rhett visitara-a com Bonnie; nunca se esqueceria da
felicidade desses momentos. Adorara a menina e gostara ainda mais de ver o filho tão
feliz. Desejava essa felicidade de novo para ele e para si própria. Estava disposta a
fazer o que estivesse ao seu alcance para o conseguir.
Por andar tão ocupada, passou mais de um mês sobre a sua chegada a
Charleston antes de Scarlett notar que estava aborrecida. Aconteceu na casa de Sally
Brewton, o local menos aborrecido da cidade, quando todo mundo estava a falar de
moda, um assunto que dantes era terrivelmente interessante para Scarlett. Ao
princípio, ficou fascinada por ouvir Sally e o seu círculo mencionar Paris. Uma vez,
Rhett trouxera-lhe um chapéu de Paris, o presente mais belo e mais excitante que
alguma vez recebera. Era verde - para combinar com os seus olhos, dissera ele - com
umas fitas de seda, largas e lindíssimas, para atar debaixo do queixo. Obrigou-se a
ouvir o que Alicia Savage estava dizendo - embora não conseguisse imaginar o que
uma trinca-espinhas velha como ela pudesse saber sobre vestidos. E, já agora, Sally
também não. Com a sua cara e o peito liso, não havia nada que a fizesse parecer
bonita.
- Lembra-se das provas no Worth? - dizia Mrs. Savage. - Pensei que desmaiava
por estar tanto tempo de pé em cima do estrado.
Meia dúzia de vozes falaram ao mesmo tempo, partilhando queixas sobre a
brutalidade dos costureiros parisienses. Outras discordaram, dizendo que era um
pequeno preço a pagar pela qualidade que só Paris conseguia fornecer. Várias
suspiraram, lembrando-se de luvas, botas e leques e perfumes.
Scarlett voltava-se automaticamente para a voz que estava falando, com uma
expressão de interesse no rosto. Quando ouvia risos, ria. Mas pensava noutras coisas -
se haveria um resto daquela torta do almoço, tão boa, para comer no jantar... o seu
vestido azul, que bem precisava de uma gola nova... Rhett... Olhou para o relógio, que
estava atrás de Sally. Tinha que ficar, pelo menos, mais oito minutos. E Sally vira-a
olhando. Tinha que prestar atenção.
Os oito minutos pareceram-lhe oito horas.
- Só falaram de roupas, Miss Eleanor. Pensei que endoidecia, de tão aborrecida
que estava. - Scarlett deixou-se cair na cadeira na frente de Mrs. Butler. As roupas
tinham perdido todo o fascínio quando se viu reduzida aos quatro vestidos "práticos" e
insípidos que a mãe de Rhett a ajudara a encomendar à costureira. Até os vestidos de
baile que estavam sendo feitos não tinham lá muito interesse. Só havia dois, para as
próximas seis semanas, em que havia bailes quase todas as noites. E também eram
insípidos - sobretudo as cores, um azul e um de veludo rosado -, com um corte também
insípido, quase sem nenhum ornamento. No entanto, até o baile mais aborrecido
significava música - e dança - e Scarlett adorava dançar. E Rhett também estaria de
volta da plantação, prometera-lhe Miss Eleanor. Se ao menos não tivesse que esperar
tanto para a temporada começar. De repente, as três semanas pareceram-lhe
insuportavelmente aborrecidas, sem nada para fazer, a não ser ficar sentada e falar
com mulheres.
Oh, como ela desejava que acontecesse algo de excitante!
O seu desejo foi-lhe concedido muito em breve, mas não da forma que queria. Em
vez disso, a excitação foi aterradora.
Começou com um boato malicioso, que pôs todo mundo da cidade a rir. Mary
Elizabeth Pitt, uma solteirona dos seus 40 anos, dizia que acordara no meio da noite e
vira um homem no seu quarto.
- Tal e qual - dizia ela -, com um lenço na cara, como Jesse James.
- Se alguma vez ouvi alguém desejar em voz alta - comentou alguém
desagradavelmente -, foi agora. Mary Elizabeth deve ser vinte anos mais velha que
Jess James. Os jornais tinham andado publicando uma série de artigos, dando uma
idéia romântica das façanhas dos irmãos James e da sua gang.
Mas, no dia seguinte, a história levou uma reviravolta desagradável. Alicia Savage
também andava na casa dos 40, mas tinha sido casada duas vezes e todo mundo
sabia que era uma mulher de natureza calma e racional. Também ela acordara e vira
um homem no quarto, de pé ao lado da cama, olhando para ela à luz da Lua. Segurava
no cortinado, para deixar entrar a luz, e espreitava por cima de um lenço que lhe
escondia a parte inferior do rosto. A parte superior estava escurecida pela sombra do
boné.
Vestia o uniforme de um soldado da União.
Mrs. Savage gritou e atirou-lhe um livro, que estava em cima da mesinha-de-
cabeceira. Ele passou pelas cortinas para a piazza, antes que o marido tivesse tempo
de chegar ao seu quarto.
Um ianque! De repente, todos ficaram com medo. Mulheres sozinhas tinham
receio por si próprias; mulheres com maridos tinham receio por si e ainda mais pelos
maridos, porque se um homem ferisse um soldado da União ia para a prisão ou podia
mesmo ser enforcado.
Na noite seguinte, e na outra, o soldado materializou-se no quarto de uma mulher.
Na terceira noite, o relatório era o pior de todos. Não foi o luar que acordou Theodosia
Harding, foi o movimento de uma mão quente na coberta que lhe tapava os seios.
Quando abriu os olhos, só viu escuridão. Mas conseguia ouvir uma respiração ofegante
e sentir uma presença esmagadora. Gritou e depois desmaiou de medo. Ninguém sabe
o que é que podia ter acontecido a seguir. Theodosia foi mandada para casa de primos
em Summerville. Todos disseram que estava em estado de choque. Quase idiota,
acrescentaram os maldosos.
Uma delegação de homens de Charleston foi ao quartel-general do Exército,
acompanhada do velho advogado Josiah Anson como porta-voz. Iam começar a
patrulhar as ruas da parte velha da cidade à noite. Se surpreendessem o intruso, eles
próprios lhe tratariam da saúde.
O comandante concordou com as patrulhas. Mas avisou que se algum soldado da
União fosse ferido, o homem, ou homens, responsáveis seriam executados. Não
haveria justiça vigilante ou ataques ocasionais a tropas nortistas sob a pretensão de
proteger as mulheres de Charleston.
Os medos de Scarlett - acumulados há anos - abateram-se sobre ela como uma
inundação. Adotara uma atitude desdenhosa para com as forças de ocupação; como
toda a gente em Charleston, ignorava-as, agia como se não estivessem ali, e eles
afastavam-se do seu caminho, quando ela caminhava energicamente pelo passeio
abaixo, para ir retribuir uma visita ou ir às compras. Agora, tinha medo de todos os
uniformes azuis que via. Qualquer deles podia ser o intruso noturno. Conseguia
imaginá-lo bem demais, uma figura saltando da escuridão.
O seu sono era percorrido por sonhos hediondos - memórias, na realidade. Uma e
outra vez, via o vagabundo ianque que fora a Tara, sentia-lhe o cheiro rançoso, via as
suas mãos sujas e peludas remexendo as jóias sem valor da caixa da mãe, os seus
olhos avermelhados, repletos de uma luxúria violenta, olhando para ela e a sua boca
molhada, cheia de dentes partidos, torcida num esgar de antecipação. Matara-o a tiro.
Destruíra a cara e os olhos numa explosão de sangue e bocados de osso e pedaços de
miolos viscosos, manchados de sangue.
Nunca fora capaz de esquecer a repercussão do tiro e os salpicos horrivelmente
vermelhos e o seu triunfo violento e avassalador.
Oh, se ao menos ela tivesse uma pistola para se proteger do ianque, a si e a Miss
Eleanor!
Mas não havia nenhuma arma em casa. Procurou em todos os armários e malas,
guarda-roupas e cômodas, até por detrás dos livros, nas prateleiras da biblioteca.
Estava indefesa, desesperada. Pela primeira vez na sua vida, sentia-se fraca, incapaz
de enfrentar e vencer qualquer obstáculo no seu caminho. Sentia-se paralisada.
Implorou a Eleanor Butler que mandasse uma mensagem a Rhett.
Eleanor foi condescendente. Sim, sim, ia mandar uma palavra. Sim, ia transmitir-
lhe o que Alicia tinha dito sobre o tamanhão do homem e o brilho fantasmagórico que o
luar projetava nos seus desumanos olhos negros. Sim, ia lembrar-lhe que ela e Scarlett
eram duas mulheres sozinhas na grande casa, à noite, que os criados iam todos para
as suas casas depois do jantar, com exceção de Manigo - um velho - e Pansy - uma
moça pequena e fraca.
Sim, ia mandar recado com urgência, seguiria imediatamente - na próxima viagem
do barco que trouxesse caça da plantação.
- Mas quando é isso, Miss Eleanor? Rhett tem que vir agora! Aquela magnólia é
praticamente uma escada do chão até a piazza do lado de fora dos nossos quartos! -
Scarlett agarrou com força no braço de Mrs. Butler, abanando-o para realçar as suas
palavras.
Eleanor deu-lhe umas palmadinhas na mão.
- Em breve, querida, deve chegar em breve. Há um mês que não temos pato, e
pato assado é um dos meus pratos favoritos. Rhett sabe disso. Além disso, agora tudo
vai correr bem. Ross e os amigos vão patrulhar todas as noites.
"Ross!", exclamou Scarlett para si própria. "Que é que um bêbado como Ross
Butler pode fazer? Ou qualquer dos cavalheiros de Charleston?" A maior parte deles
eram homens velhos, aleijados, ou jovens demais, senão não teriam perdido a estúpida
da guerra. Por que é que alguém havia de confiar agora neles para lutar contra os
ianques?
A sua urgência embateu no inquebrável otimismo de Eleanor Butler e ela perdeu.
Durante uns tempos, as patrulhas pareceram dar resultado. Não houve notícias
de intrusos e todo mundo se acalmou.
Scarlett teve o seu primeiro dia para receber, que foi tão concorrido que a tia
Eulalie se queixou de que não havia bolo suficiente para todos. Eleanor Butler rasgou o
recado que tinha escrito para Rhett. As pessoas foram à igreja, às compras, jogaram
whist, puseram os trajes de noite a arejar e fizeram reparações antes de a Temporada
começar.
Scarlett regressou da sua volta de visitas matutinas com as faces brilhantes, por
ter vindo andando depressa demais.
- Onde está Mrs. Butler? - perguntou a Manigo. Quando este respondeu que
estava na cozinha, Scarlett correu para os fundos da casa.
Eleanor Butler olhou, ao ouvir a entrada apressada de Scarlett.
- Boas notícias, Scarlett! Tive carta de Rosemary hoje de manhã. Volta para casa
depois de amanhã.
- É melhor mandar-lhe um telegrama dizendo que fique lá - atirou Scarlett. A sua
voz soou dura e desprovida de emoção. - O ianque apanhou Harriet Madison na noite
passada. Acabei de saber. - Olhou para a mesa que estava perto de Mrs. Butler. -
Patos? Está depenando patos! O barco da plantação chegou! Posso apanhá-lo e ir
buscar Rhett.
- Não podes ir sozinha naquele barco com quatro homens, Scarlett.
- Posso levar Pansy, quer ela goste ou não. Aqui está, dê-me um saco e algumas
destas bolachas. Estou com fome. Como pelo caminho.
- Mas, Scarlett...
- Não me venha com mas, Miss Eleanor. Dê-me só as bolachas. Vou partir.
"Que estou eu a fazer", pensou Scarlett, quase em pânico. "Nunca devia ter saído
assim, às pressas. Rhett vai ficar furioso comigo. E devo estar com um aspecto
horrível. Já é bastante mau aparecer de repente onde não devo, ao menos podia estar
bonita." Tinha planejado tudo de modo tão diferente. Pensara nisso milhares de vezes,
como seria quando visse Rhett outra vez.
Às vezes, imaginava que ele chegava em casa tarde; ela estava de camisola, a
que tinha uma fita no pescoço - não muito apertada - e estava escovando o cabelo,
antes de se ir deitar. Rhett sempre adorara o cabelo dela, dizia que era uma coisa viva;
às vezes - no princípio - era ele que o escovava, para ver os reflexos azuis da
eletricidade.
Muitas vezes, imaginava-se sentada à mesa de chá, segurando as pinças de
prata elegantemente entre os dedos, e deixando cair um torrão de açúcar na xícara.
Estava conversando comodamente com Sally Brewton, e ele via como ela se sentia em
casa, como era bem-vinda pelas pessoas mais interessantes de Charleston. Ele
agarrava-lhe na mão e beijava-a e as pinças caíam, mas não fazia mal...
Ou estava com Miss Eleanor, depois de jantar, as duas sentadas nas suas
cadeiras em frente do fogo, tão confortáveis, assim juntas, tão íntimas, mas com um
lugar à espera dele. Só uma vez imaginara ir à plantação, porque não sabia como
aquilo era, a não ser que os homens de Sherman a tinham queimado. A sua fantasia
começava bem - ela e Miss Eleanor chegavam carregadas de bolos e champanhe, num
lindo barco pintado de verde, encostadas a um monte de almofadas de seda,
segurando guarda-sóis claros e floridos.
- Piquenique - gritavam elas, e Rhett ria e corria para elas com os braços abertos.
Mas, depois, a imagem desfazia-se e tudo ficava vazio. Por um lado, Rhett odiava
piqueniques. Dizia que era melhor viver numa caverna, se fosse comer sentado no
chão, como um animal, em vez de usar uma cadeira e uma mesa, como um ser
humano civilizado.
Certamente, nunca pensara na possibilidade de aparecer assim, apertada entre
caixas e barris cheios sabia-se lá de quê, num barco miserável que cheirava
horrivelmente.
Agora que estava longe da cidade, estava mais preocupada com a fúria de Rhett
que com o intruso do ianque. E se ele se limita a dizer aos barqueiros para darem a
volta e me trazerem de volta?
Os barqueiros só metiam os remos na água verde-acastanhada para manter a
direção; a maré fazia uma corrente invisível, lenta e poderosa, que os levava. Scarlett
olhava impacientemente as margens do largo rio. Não lhe parecia nada que estivessem
avançando. Era tudo igual - grandes extensões de altas ervas castanhas que
ondulavam lentamente - oh, tão lentamente - na corrente da maré cheia, e, por detrás,
densos bosques cobertos de musgo espanhol, que na sua imobilidade fazia lembrar
uma grande cortina imóvel. O solo estava coberto de um emaranhado de enormes
arbustos verdes. Era tudo tão silencioso. Pelo amor de Deus, por que é que não se
ouviam uns pássaros cantando? E por que é que já estava ficando tão escuro?
Começou a chover.
Muito antes de os remos começarem a puxar com força em direção à margem
esquerda, ela já estava encharcada até os ossos e tremendo de frio, infeliz de corpo e
espírito. O encontrão do barco contra a doca despertou-a da desolação em que se
abatera. Olhou para cima, através da cortina de chuva que lhe fustigava a cara, e viu
uma figura envolta numa capa que escorria, iluminada por uma tocha a arder. O rosto
estava escondido sob um fundo capuz.
- Atirem-me uma corda. - Rhett inclinou-se para a frente, com um braço estendido.
- Boa viagem, rapazes?
Scarlett empurrou as caixas que estavam mais perto, para se levantar. Tinha as
pernas dormentes demais para a segurarem, e caiu para trás, derrubando a caixa de
cima com estrondo.
- Mas que diabo! - Rhett agarrou a corda com um nó que serpenteava na sua
direção, atirada pelo barqueiro, e enfiou o círculo num poste do ancoradouro. - Atira a
corda da popa - ordenou ele. - Que é que está causando essa confusão? Estão
bêbados, vocês aí?
- Não senhor, Mister Rhett - disseram os barqueiros em coro. Foi a primeira vez
que falaram, desde que tinham deixado a doca de Charleston. Um deles fez um gesto
em direção às duas mulheres que estavam na popa da embarcação.
- Meu Deus! - exclamou Rhett.
17
- Já te sentes melhor agora? - Rhett controlava cuidadosamente a voz.
Scarlett fez que sim com a cabeça, com um ar aparvalhado. Estava embrulhada
num cobertor, com uma áspera camisa de trabalho de Rhett por baixo, sentada num
banco perto de uma fogueira, com os pés nus numa bacia de água quente.
- Como vais, Pansy? - A criada de Scarlett, sentada noutro banco, com outro
cobertor, sorriu, concedendo que ia bem, só que estava morrendo de fome.
Rhett riu.
- Eu também. Quando secarem, vamos comer.
Scarlett aconchegou o cobertor mais a si. "Está simpático demais, já o vi assim
noutras ocasiões, todo sorrisos, quente como o sol. Depois, vem-se a ver que estava
tão danado que era capaz de cuspir pregos. É por Pansy estar aqui que ele está
representando esta cena. Quando ela se for embora, vira-se contra mim. Talvez eu
possa dizer que preciso dela ao pé de mim... mas para quê? Já estou despida, e não
posso voltar a vestir as minhas roupas até estarem secas, e só Deus sabe quando é,
com a chuva lá fora e o interior tão úmido. Como é que Rhett agüenta viver num lugar
destes tão horrível."
O quarto onde estavam só era iluminado pelo fogo. Era grande e quadrado, talvez
com seis metros de lado, com chão de terra batida e paredes manchadas, que tinham
perdido a maior parte da pintura. Cheirava a uísque barato e a tabaco de mascar,
realçado pelo cheiro de madeira e tecidos queimados. A única mobília era um
amontoado de bancos toscos, alguns pequenos, outros compridos, e várias cuspideiras
de metal amolgado, espalhadas por ali. A pedra que encimava a enorme lareira e as
molduras à volta das portas e das janelas pareciam estar ali por engano. Eram feitas de
pinho, lindamente trabalhado com um delicado desenho em relevo, e estavam oleadas
até atingirem um castanho dourado. Num dos cantos havia uma escada tosca com
degraus de madeira lascados e um corrimão abaulado e perigoso. As roupas de
Scarlett e de Pansy estavam penduradas ali. Os casaquinhos brancos esvoaçavam de
vez em quando, quando uma corrente de ar os apanhava, parecendo fantasmas
pairando na escuridão.
- Por que é que não ficaste em Charleston, Scarlett? - O jantar acabara e tinham
mandado Pansy dormir com a velha negra que cozinhava para Rhett. Scarlett
endireitou-se.
- A tua mãe não quis incomodar-te aqui, no teu paraíso. - Olhou em volta do
quarto com desdém. - Mas eu acho que devias saber o que se passa. Há um soldado
ianque que entra nos quartos à noite... nos quartos de mulheres... e trata delas. Uma
moça ficou completamente louca e tiveram que a mandar para fora. - Tentou ler o rosto
dele, mas este manteve-se sem expressão. Olhava para ela, em silêncio, como se
estivesse à espera de alguma coisa.
- E então? Não queres saber que eu e a tua mãe possamos ser assassinadas nas
nossas camas, ou ainda pior?
- A boca de Rhett descaiu, num sorriso zombeteiro.
- Estarei ouvindo bem? Timidez virginal na mulher que atravessou todo o exército
ianque conduzindo uma carroça, só porque estava no seu caminho. Vá lá, Scarlett. És
conhecida por dizer a verdade. Por que é que fizeste todo este caminho à chuva?
Estavas à espera de me apanhar nos braços de uma coisinha? Foi o teu tio Henry que
recomendou isso, como forma de me fazer começar a pagar outra vez as tuas contas?
- De que diabo é que estás falando, Rhett Butler? Que é que o tio Henry Hamilton
tem a ver com isto?
- Que ignorância tão convincente! Dou-te os meus cumprimentos. Mas não podes
esperar que eu acredite por um segundo que o teu velho advogado astucioso não te
escreveu quando eu cortei o dinheiro que mandava para Atlanta. Gosto demais de
Henry Hamilton para acreditar em tal negligência.
- Deixar de mandar dinheiro? Não podes fazer isso! - Os joelhos de Scarlett
perderam a força. Que lhe iria acontecer?
A casa de Peachtree Street... as toneladas de carvão que eram precisas para a
aquecer, os criados para limpar e cozinhar e lavar e manter o jardim e os cavalos, e
polir as carruagens, comida para todos eles... bem, custava uma fortuna. Como é que o
tio Henry ia pagar as contas? Ia usar o dinheiro dela!
Não, isso não podia ser. Ia arrastar-se por aí, sem comida, com os sapatos rotos,
as costas doloridas e as mãos sangrando, trabalhando nos campos para não morrer de
fome. Ela esquecera todo o seu orgulho, voltara as costas a tudo o que aprendera,
fizera negócios com gente inferior, que nem sequer eram dignas que se lhe cuspisse
em cima, planejara e fizera batota, trabalhara dia e noite pelo seu dinheiro. Não o ia
perder, não podia. Era dela. Era a única coisa que tinha.
- Não podes levar o meu dinheiro! - gritou para Rhett. Mas só se ouviu um
murmúrio alquebrado. Ele riu.
- Não te tirei nenhum, amorzinho. Só parei de o aumentar. Enquanto estiveres
vivendo na casa que eu mantenho em Charleston, não vejo razão para manter uma
casa vazia em Atlanta. É claro que se fosses voltar para lá, já não estaria vazia. Nesse
caso, sentir-me-ia na obrigação de começar a pagar outra vez. - Rhett dirigiu-se à
lareira, onde podia ver o rosto dela à luz das chamas. O seu sorriso desafiador
desapareceu e enrugou a testa, preocupado.
- Não sabias mesmo de nada, não é? Espera lá, Scarlett, vou-te buscar um
brande. Até parece que vais desmaiar.
Teve que lhe segurar nas mãos com as suas para conseguir que ela levasse o
copo aos lábios. Ela tremia incontrolavelmente. Quando o copo já estava vazio, ele
pousou-o no o chão e esfregou-lhe as mãos até aquecerem e pararem de tremer.
- Agora diz lá, com toda a verdade, há, de fato, um soldado entrando a força nos
quartos de dormir?
- Rhett, não estás a falar a sério, não é? Não vais deixar de mandar dinheiro para
Atlanta?
- O dinheiro que se lixe, Scarlett, fiz-te uma pergunta.
- Vai te lixar - disse ela -, eu fiz-te uma pergunta.
- Já devia saber que serias incapaz de pensar em qualquer outra coisa uma vez
que a palavra dinheiro fosse mencionada. Está bem, vou mandar algum a Henry. Agora
já me respondes?
- Juras?
- Juro.
- Amanhã?
- Sim! Sim, caramba, amanhã. Agora, de uma vez por todas, que história é essa
do soldado ianque?
O suspiro de alívio de Scarlett pareceu eterno. Depois, meteu ar nos pulmões e
contou-lhe tudo o que sabia acerca do intruso.
- Dizes que Alicia Savage viu o uniforme?
- Sim - respondeu Scarlett. Depois acrescentou desdenhosamente. - Ele não quer
saber da idade delas. Talvez esteja violando a tua mãe neste momento.
Rhett cerrou as suas grandes mãos.
- Devia estrangular-te, Scarlett. O mundo ficava um lugar melhor.
Interrogou-a durante quase uma hora, até ela ter deitado para fora tudo o que
ouvira.
- Muito bem - disse ele então -, partimos amanhã, assim que a maré mudar. - Foi
até uma porta e abriu-a. - Ótimo - disse -, o céu está claro. Vai ser uma corrida fácil.
Para lá da sua silhueta, Scarlett conseguia ver o céu noturno. A Lua estava em
quarto crescente. Levantou-se pesadamente. Depois reparou na neblina do rio que
cobria o chão, lá fora. O luar tornava-o branco, e durante um confuso momento
imaginou que nevara. Uma onda de névoa envolvia os pés e os calcanhares de Rhett,
e depois desfazia-se dentro do quarto. Ele fechou a porta e voltou-se. Sem a luz da
Lua, o quarto parecia muito escuro, até que um fósforo brilhou, iluminando o queixo e o
nariz de Rhett por baixo. Ele chegou-o à torcida de um candeeiro e ela conseguiu ver-
lhe o rosto. Scarlett sofria de desejo. Ele colocou a chaminé de vidro no candeeiro e
levantou-o.
- Vem comigo. Lá em cima há um quarto onde podes dormir.
Não era tão primitivo como o quarto lá de baixo. A grande cama de espaldares
tinha um colchão espesso e grossas almofadas e um coberto de lã alegre, que cobria
os ásperos lençóis de linho. Scarlett não olhou para o resto da mobília. Deixou cair o
cobertor dos ombros e subiu os degraus que levavam à cama, enfiando-se debaixo das
cobertas.
Ele debruçou-se sobre ela um momento antes de sair do quarto. Ela escutou o
som dos seus passos. Não, não ia lá para baixo, ia ficar ali perto. Scarlett sorriu e
adormeceu.
O pesadelo começou como sempre - com a neblina. Há anos que Scarlett não
tinha aquele sonho, mas o seu inconsciente lembrava-se, mesmo ao criar o sonho, e
ela começou a torcer-se e a dar voltas, gemendo baixinho, com pavor do que estava
para vir. Depois, lá estava ela outra vez correndo, sentindo o coração batendo nos
ouvidos, correndo, tropeçando, sem parar, através de um espesso nevoeiro branco que
entrelaçava um emaranhado gelado de gavinhas à volta da sua garganta, pernas e
braços. Tinha frio, um frio mortal, e estava esfomeada e aterrorizada. Era igual, era
sempre igual, e sempre pior que a última vez, como se o terror, a fome e o frio se
acumulassem e se tornassem mais fortes.
E, contudo, não era igual. No passado, ela corria, procurando alcançar algo que
não tinha nome e era impossível conhecer, e agora conseguia distinguir à sua frente,
através de aberturas na névoa, as largas costas de Rhett, sempre a afastarem-se. E
sabia que ele era aquilo que procurava, que quando o alcançasse o sonho perderia o
seu poder e se dissiparia, para nunca mais voltar. Correu e correu, mas ele estava
sempre muito distante, sempre com as costas voltadas para ela. Depois, o nevoeiro
tornou-se mais espesso e ele começou a desaparecer e ela gritou por ele:
- Rhett... Rhett... Rhett... Rhett...
Chiu... acalma-te. Estás sonhando, não é a sério.
- Rhett...
- Sim, estou aqui. Agora, acalma-te. Estás bem. - Uns braços fortes levantaram-
na e abraçaram-na e sentiu-se quente e segura.
De repente, Scarlett ficou meio acordada. Não havia neblina. Em vez disso, um
candeeiro numa mesa lançava uma luz brilhante e ela conseguiu ver o rosto de Rhett,
inclinado sobre o dela.
-
Oh, Rhett - chorou ela -, foi tão horrível.
- O velho sonho?
- Sim, sim.., bem, quase. Havia qualquer coisa diferente, não me lembro... Mas
estava com frio e com fome, e não conseguia ver por causa do nevoeiro, e estava tão
assustada, Rhett, foi horrível.
Ele abraçou-a e a sua voz vibrava no seu peito duro, encostado ao dela.
- É claro que tinhas fome e frio. O jantar não prestava e atiraste com os
cobertores. Vou puxá-los e vais dormir muito bem. - Deitou-a, encostando-a às
almofadas.
- Não me deixes. Vai voltar.
Rhett estendeu os cobertores sobre ela.
- Há bolachas para o café-da-manhã, e angu de milho e manteiga que chegue
para os fazer amarelos. Pensa nisso... e presunto do campo e ovos frescos... vais
dormir como um bebê. Sempre gostaste de comer, Scarlett. - A voz dele estava
divertida. E cansada. Ela fechou os olhos, pesadamente.
- Rhett? - O som era indistinto e arrastado.
Ele parou junto da porta, cobrindo o candeeiro com a mão.
- Sim, Scarlett?
- Obrigada por me vires acordar. Como é que adivinhaste?
- Gritavas suficientemente alto para partires o vidro das janelas. - O último som
que ouviu foi o riso dele, quente e suave. Foi como uma canção de embalar.
Confirmando a previsão de Rhett, Scarlett comeu um enorme café-da-manhã
antes de ir à procura dele. A cozinheira dissera-lhe que ele se levantara antes do
amanhecer. Levantava-se sempre antes de o Sol nascer. Olhou para Scarlett com uma
curiosidade mal disfarçada.
"Devia fazê-lo engolir o atrevimento", pensou Scarlett, mas estava tão contente
que não conseguia ficar verdadeiramente zangada. Rhett abraçara-a, confortara-a, até
rira dela. Exatamente como costumava fazer antes de as coisas piorarem. Fizera tão
bem em vir à plantação. Podia tê-lo feito antes, em vez de andar queimando tempo em
milhares de chás.
Quando saiu de casa, a luz do sol fê-la semicerrar os olhos. Era forte, já lhe
aquecendo a cabeça, apesar de ser ainda muito cedo. Pôs a mão sobre os olhos e
olhou em volta.
A sua primeira reação foi soltar um gemido fraco. Sob os seus pés, o terraço de
tijoleira continuava por mais cem metros. Partido, enegrecido e cheio de ervas, era a
moldura de uma monumental ruína chamuscada. Restos partidos de paredes e
chaminés era tudo o que restava do que fora uma mansão magnífica. Montículos de
tijolos manchados pelo fogo e pelo fumo, que se acumulavam desordenadamente
dentro do que restava das paredes, eram penosos vestígios da passagem do exército
de Sherman.
Doeu-lhe o coração. Este fora o lar de Rhett, a vida de Rhett - perdida para
sempre antes que ele pudesse voltar para a reclamar.
Nada na sua perturbada vida fora tão mau como isto. Nunca soubera o grau de
dor que ele devia ter sentido, que ainda devia sentir cem vezes por dia, quando olhava
para as ruínas da sua casa. Não admirava que estivesse decidido a reconstruir,
encontrar e recuperar tudo o que pudesse das antigas propriedades.
Ela podia ajudá-lo. Então ela não tinha já arado e feito colheitas nos campos de
Tara? Ora, era capaz de apostar que Rhett não sabia distinguir uma semente boa de
uma má. Teria orgulho em ajudar, porque sabia quanto significava, que vitória seria
sobre os que os tinham despojado quando a terra renascesse com novos e tenros
produtos. "Eu compreendo", pensou ela triunfantemente. "Consigo sentir o que ele
sente. Posso trabalhar com ele. Podemos fazer isto juntos. Não me importo com um
chão sujo. Não, se for com Rhett. Onde está ele? Tenho que lhe dizer!"
Scarlett afastou-se das ruínas da casa e deu consigo perante uma vista diferente
de tudo o que já vira na vida. O terraço de tijoleira em que estivera dava para um
canteiro coberto de erva, o primeiro de uma série de terraços relvados, que se
desdobravam num movimento ondulante, de contornos perfeitos, até um par de lagos
artificiais com a forma de asas de uma borboleta gigante. Por entre eles, um atalho
largo e cheio de ervas levava ao rio e ao ancoradouro. Aquela escala extravagante era
tão bem proporcionada que a enorme distância parecia menor, e o conjunto fazia
lembrar uma sala exterior atapetada. A erva viçosa escondia as cicatrizes da guerra,
como se nunca tivesse existido. Era uma cena tranqüila, cheia de sol, onde a forma da
natureza se harmonizava maravilhosamente com o homem. Ao longe, um pássaro
cantava, sem parar, uma melodia, como se estivesse celebrando.
- Oh, que bonito! - disse em voz alta.
Um movimento para a esquerda do terraço mais baixo chamou-lhe a atenção.
Devia ser Rhett. Começou a correr pelos terraços abaixo - a ondulação aumentando-
lhe a velocidade e fazendo-a sentir-se tonta, embriagada, cheia de uma alegria
libertadora; riu e abriu os braços, qual pássaro ou borboleta pronto a desaparecer nos
céus tão azuis.
Quando chegou ao local onde Rhett estava observando-la, estava sem fôlego.
Scarlett respirou pesadamente, com a mão no peito, até recuperar o fôlego.
- Nunca me diverti tanto - disse, ainda ofegante. - Que lugar maravilhoso, Rhett.
Não admira que o adores. Correste por aquele relvado abaixo quando eras rapazinho?
Sentiste que eras capaz de voar? Oh, querido, foi tão horrível ver a casa queimada!
Sofro por ti; tenho vontade de matar todos os ianques do mundo! Oh, Rhett, tenho tanta
coisa para te dizer. Estive a pensar. Tudo isto pode voltar, querido, tal como a relva. Eu
compreendo, compreendo mesmo, de verdade, aquilo que estás a fazer.
Rhett olhou para ela de um modo estranho, cautelosamente.
- Que é que tu "compreendes", Scarlett?
- A razão por que estás aqui, em vez de na cidade. Por que é que tens que dar
nova vida à plantação. Diz-me o que já fizeste, o que vais fazer. É tão excitante.
O rosto de Rhett iluminou-se e fez um gesto em direção às longas filas de plantas
por detrás de si.
- Arderam, mas não morreram - disse ele. - Até parece que talvez tenham ficado
mais fortes com o fogo. Talvez as cinzas lhes tenham dado algo de que precisavam.
Tenho que descobrir. Tenho tanto que aprender.
Scarlett olhou para os restos de restolho raso. Não conhecia aquelas brilhantes
folhas verde-escuras.
- Que espécie de árvore é? Tens aqui pessegueiros?
- Não são árvores, Scarlett, são arbustos. Camélias. As primeiras a chegarem à
América foram plantadas aqui, no Ancoradouro Dunmore. Estas são rebentos, mais de
trezentas ao todo.
- Queres dizer que são flores?
- Claro. A flor que está mais perto da perfeição. Os chineses adoram-nas.
- Mas não podemos comer flores. Que culturas estás semeando?
- Não posso pensar em culturas. Tenho cem acres de jardim para salvar.
- Isso é uma loucura, Rhett. Para que é que serve um jardim? Podias cultivar
qualquer coisa para vender. Sei que o algodão não se dá por aqui, mas deve haver
alguma boa colheita do gênero. Bem, em Tara utilizamos todos os pedacinhos de terra.
Podias plantar mesmo até as paredes da casa. Olha só que verde e viçosa está a
relva. O solo deve ser riquíssimo. Só precisarias o arar e deixar cair as sementes e,
provavelmente, crescia tão depressa que nem terias tempo de te afastares. - Olhou
para ele ansiosamente, pronta a partilhar o seu conhecimento, que tanto lhe custara a
ganhar.
- És uma bárbara, Scarlett - disse Rhett pesadamente. - Volta para a casa e diz a
Pansy para se aprontar. Encontro-me contigo na doca.
Que fizera ela de errado? Num momento, ele estava cheio de vida e entusiasmo,
depois, de repente, foi-se e ficou frio, como um desconhecido. Nunca o compreenderia,
nem que vivesse cem anos. Atravessou rapidamente os terraços verdejantes, cega
para a sua beleza, e entrou em casa.
O barco que estava atracado ao ancoradouro era muito diferente da balsa
vergonhosa que trouxera Scarlett e Pansy para a plantação. Era um pequeno e
elegante barco à vela, pintado de castanho, com aplicações de metal brilhante e uma
lista dourada à volta. Para além dele, havia outro barco no rio, um que ela teria
preferido, pensou Scarlett, zangada. Era cinco vezes maior que o barco à vela, tinha
dois convés com listas brancas e azuis, e uma roda de pá de um vermelho-vivo.
Bandeiras de cores alegres estavam penduradas das chaminés, e homens e mulheres
vistosamente vestidos enchiam os dois convés. Tinha um ar festivo e divertido.
"É mesmo de Rhett", lamentou-se Scarlett para si própria, "ir para a cidade neste
barquinho insignificante, em vez de fazer sinal ao vapor para nos apanhar." Chegou à
doca no momento em que Rhett tirava o chapéu e fazia uma vênia funda e
extravagante às pessoas do barco grande.
- Conheces aquela gente? - perguntou ela. Talvez se tivesse enganado. Talvez
ele estivesse fazendo sinal.
Rhett voltou as costas ao rio e pôs outra vez o chapéu.
- De fato, conheço. Individualmente, não, espero bem, mas no seu conjunto. O
barco da excursão semanal, de Charleston, que vem pelo rio acima e volta a descer.
Um negócio altamente lucrativo para um dos nossos carpetbaggers. Os ianques
compram bilhetes com muita antecedência para terem o prazer de ver os esqueletos
das casas queimadas das plantações. Quando posso, cumprimento-os sempre.
Diverte-me ver a confusão que causo. - Scarlett estava chocada demais para dizer o
que quer que fosse. Como é que Rhett podia gozar com um bando de ianques
desprezíveis, que riam com o que tinham feito à casa dele?
Obedientemente, sentou-se num banco almofadado na pequena cabina, mas,
assim que Rhett pôs o pé no convés, levantou-se de um salto para examinar o
complicado sistema de armários, prateleiras, fornecimentos e equipamento, cada coisa
ocupando um lugar que fora obviamente desenhado para a guardar. Ainda estava
ocupada satisfazendo a sua curiosidade quando o veleiro se deslocou suavemente ao
longo da margem numa curta distância, para ser novamente amarrado. Rhett gritava
ordens ásperas.
- Atira esses embrulhos e amarra-os na proa. - Scarlett enfiou a cabeça pela
escotilha para ver o que se passava.
Santíssimo sacramento, que era tudo aquilo? Dúzias de negros encostados a
picaretas e pás olhavam, enquanto uma série de volumosos sacos era atirada para um
membro da tripulação do veleiro. Onde diabo estariam eles? O local parecia o lado
escuro da Lua. Havia uma enorme clareira na floresta, com um grande poço cavado e
pilhas gigantescas de uma coisa que parecia bocados esbranquiçados de rocha de um
dos lados. Um pó branco enchia o ar e em breve entrou-lhe pelo nariz, fazendo-a
espirrar.
O espirro de Pansy, qual eco, que veio do convés traseiro, chamou-lhe a atenção.
"Não é justo", pensou ela. Pansy tinha uma boa vista de tudo.
- Vou subir - gritou Scarlett.
- Largar - disse Rhett nesse momento.
O veleiro avançou rapidamente, apanhado pela rápida corrente do rio, fazendo
com que Scarlett caísse pela curta escada, aterrando desamparadamente na cabina.
- Maldito sejas, Rhett Butler, podia ter partido o pescoço.
- Mas não partiste. Acalma-te. Já desço.
Scarlett ouviu o ranger das cordas e o veleiro ganhou velocidade. Gatinhou até
um dos bancos, agarrou-se e levantou-se.
Quase no mesmo instante, Rhett desceu a escada curvando a cabeça para evitar
a escotilha. Endireitou-se, tocando com a cabeça na madeira polida do teto. Scarlett
olhou para ele, furiosa.
- Que é que te aconteceu? - Abriu uma das portinholas e fechou a escotilha. -
Ótimo - disse então -, temos vento de feição e uma corrente forte. Chegaremos à
cidade em tempo recorde. - Deixou-se cair no banco em frente a Scarlett e encostou-
se. - Parto do princípio de que não te importas que fume. - Enfiou os longos dedos no
bolso interior do casaco e tirou um charuto com as pontas cortadas.
- Importo-me muito. Por que é que estou aqui fechada no escuro? Quero ir lá para
cima apanhar sol.
- Lá para fora - corrigiu Rhett automaticamente. - Esta embarcação é bastante
pequena, a tripulação é negra. Pansy é negra, tu és branca e mulher. Eles ficam com o
lugar do piloto, tu ficas com a cabine. Pansy pode fazer olhinhos aos dois homens, rir
das suas galanterias um bocado indelicadas e eles três passam um tempo agradável. A
tua presença ia estragar tudo.
- Então, ao mesmo tempo que a classe baixa está aproveitando a viagem, tu e eu,
a elite privilegiada, vamos sentir-nos horrivelmente infelizes, encurralados na
companhia um do outro, enquanto tu continuas amuada, a lamuriares-te,
- Não estou amuada nem a lamuriar-me! E agradeço-te que não fales comigo
como se eu fosse uma criança! - Scarlett encolheu o lábio inferior. Detestava quando
Rhett a fazia sentir-se idiota. - Que era aquela pedreira onde paramos?
- Aquilo, minha querida, foi a salvação de Charleston e o meu passaporte para
regressar ao seio dos meus. E uma mina de fosfato. Há dúzias delas, espalhadas ao
longo de ambos os rios. - Acendeu o charuto lentamente, saboreando o gesto, e o fumo
subiu em espiral, até à portinhola. - Vejo os teus olhos brilharem, Scarlett. Não é como
uma mina de ouro. Do fosfato não se fazem moedas nem jóias. Mas, moído, lavado e
tratado com certos químicos, faz o fertilizante de ação mais rápida do mundo. Há
clientes à espera de toda a quantidade que conseguirmos produzir.
- Portanto, estás ficando ainda mais rico.
- Sim, estou. Mas, ainda mais importante, este dinheiro é respeitável, de
Charleston. Posso gastar aquilo que quiser dos meus lucros suspeitos sem ser
condenado. Podem dizer a si próprios que vem do fosfato, embora a mina seja
insignificante.
- Por que é que não a aumentas?
- Não preciso. Tal como está, serve os meus objetivos. Tenho um capataz que
não me engana muito, duas dezenas de trabalhadores que trabalham quase tanto
como mandriam, e tenho respeito. Posso gastar o meu tempo, o meu dinheiro e o meu
suor naquilo que me interessa, e, neste momento, quero restaurar os jardins.
Scarlett estava tão aborrecida que mal agüentava. Então não era mesmo de Rhett
ter aquela oportunidade à mão e não aproveitar? Por muito rico que fosse, não lhe fazia
mal ficar mais rico. Dinheiro nunca era demais. Então, se assumisse o comando e
conseguisse que os homens trabalhassem decentemente, podia triplicar o lucro. Com
mais uma dúzia de trabalhadores, podia até duplicar...
- Perdoa-me se interrompo a construção do teu império, Scarlett, mas tenho uma
pergunta séria para te fazer. Que é que é preciso para te convencer que devias deixar-
me em paz e voltar para Atlanta?
Scarlett ficou olhando para ele. Estava verdadeiramente espantada. Não era
possível que ele quisesse mesmo dizer aquilo, não depois de a ter abraçado tão
ternamente na noite anterior.
- Estás me gozando - acusou ela.
- Não, não estou. Nunca falei tão a sério na minha vida, e quero que me leves a
sério. Nunca foi meu hábito explicar a ninguém o que estou fazendo ou o que estou
pensando; nem acredito lá muito que compreendas aquilo que vou te dizer. Mas vou
tentar. Estou trabalhando mais do que alguma vez o fiz na vida, Scarlett. Destruí todas
as minhas chances de ser readmitido em Charleston, completa e publicamente, de tal
modo que todos da cidade ainda sentem o fedor dessa destruição. E
incomensuravelmente mais forte que tudo o que Sherman pudesse fazer, porque eu
era um deles e desafiei tudo aquilo sobre que tinham construído as suas vidas.
Reconquistar a minha entrada nas boas-graças de Charleston é como subir uma
montanha coberta de gelo, na escuridão. Uma falha, e estou perdido. Até agora, tenho
sido muito cauteloso e lento, e ganhei um certo avanço. Não posso correr o risco de
destruíres tudo o que fiz. Quero que vás embora e estou perguntando o teu preço.
Scarlett riu, aliviada.
- É só isso? Podes ficar descansado, se é isso que te preocupa. É que, em
Charleston, todo mundo me adora. Sou literalmente invadida de convites para isto e
para aquilo e não passa um dia sem que alguém venha falar comigo no Mercado, para
me pedir conselho sobre o que deve comprar.
Rhett deu uma tragada no charuto. Depois, observou a brasa esfriar e
transformar-se em cinza.
- Já receava que estivesse falando para nada - disse por fim. - Eu tinha razão.
Admito que te agüentaste mais tempo e te contiveste mais do que eu esperava... oh,
sim, quando estou na plantação, recebo algumas notícias da cidade... mas tu és como
um barril de pólvora às minhas costas, na subida da tal montanha de gelo. És um peso
morto... inculta, sem maneiras, católica, expulsa de tudo o que é decente em Atlanta.
Podes explodir em mim a qualquer minuto. Quero que vás embora. Que é que é
preciso para isso?
Scarlett agarrou-se à única acusação de que se podia defender.
- Ficaria agradecida se me dissesses que mal é que tem ser católica, Rhett Butler!
Éramos tementes a Deus muito antes de vocês, anglicanos, se fazerem ouvir.
Não conseguiu perceber o súbito riso de Rhett.
- Pax, Henry Tudor - disse ele, o que ela também não compreendeu. Mas as suas
próximas palavras, de tão exatas, foram diretas ao alvo. - Não vamos perder tempo
discutindo teologia, Scarlett. A verdade é que... e tu sabes isso tão bem como eu... por
razões não justificáveis, os católicos romanos são mal vistos na sociedade sulista. Hoje
em dia, em Charleston, podes freqüentar a Igreja de St. Philip ou de St. Michael, ou a
Igreja Huguenote ou a Igreja Presbiteriana Escocesa.
Mesmo as outras igrejas anglicanas e presbiterianas são ligeiramente suspeitas e
qualquer outra denominação protestante é considerada uma amostra de individualismo
vulgar. Os católicos romanos estão além do limite. Não é razoável, e Deus sabe que
não é cristão, mas é verdade.
Scarlett ficou calada. Sabia que ele tinha razão. Rhett aproveitou a sua derrota
momentânea para repetir a pergunta anterior.
- Que tu queres, Scarlett? Pode me dizer. Nunca fiquei chocado com o lado mais
negro da tua natureza.
"Ele está falando sério", pensou, desesperada. "Todos aqueles chás a que tive
que ir, e as roupas horríveis que tive que usar, e as caminhadas pela escuridão gelada,
todas as manhãs, até o Mercado... foi tudo em vão." Ela viera a Charleston para
reconquistar Rhett e não tinha conseguido.
- Quero a ti - disse Scarlett com total honestidade.
Desta vez, foi Rhett que ficou calado. Ela só conseguia ver os contornos dele e o
fumo pálido do seu charuto. Estava tão perto; se mexesse o pé uns centímetros, tocava
no dele. Desejava-o tanto que sentia uma dor física. Queria dobrar-se para aliviar a dor,
mantê-la lá dentro, para não aumentar ainda mais. Mas ficou sentada, direita, à espera
que ele falasse.
18
Scarlett conseguia ouvir lá em cima o barulho de vozes, sublinhado pelas
gargalhadinhas agudas de Pansy. Fazia com que o silêncio dentro da cabina
parecesse ainda pior.
- Meio milhão em ouro - disse Rhett.
- Que disseste? - "Devo ter ouvido mal. Disse-lhe o que vai no meu coração e ele
não respondeu."
- Disse que te dou meio milhão de dólares em ouro se fores embora. Por muito
prazer que estejas tendo em Charleston, não pode ter tanto valor. Estou oferecendo-te
um belo suborno, Scarlett. É muito difícil que o teu coraçãozinho ganancioso prefira
uma tentativa inútil para salvar o nosso casamento a uma fortuna maior do que alguma
vez esperaste. Como bônus, se concordares, recomeço os pagamentos das despesas
daquela monstruosidade de Peachtree Street.
- Ontem à noite, prometeste que mandavas hoje o dinheiro ao tio Henry - disse
ela automaticamente. Quem lhe dera que ele ficasse quieto um pouco. Precisava
pensar. Era mesmo "uma tentativa inútil"? Recusava-se a acreditar nisso.
- As promessas fazem-se para serem quebradas - disse Rhett calmamente. - E
então a minha oferta, Scarlett?
- Preciso pensar.
- Então, pensa enquanto acabo o charuto. Depois, quero uma resposta tua. Pensa
no que será se tiveres que gastar o teu próprio dinheiro naquele horror de casa de
Peachtree Street que tanto adoras; não fazes idéia do custo. E, depois, pensa em ter
mil vezes mais dinheiro que tudo o que juntaste nestes anos todos, um resgate de rei,
Scarlett, todo de uma vez e todo teu. Mais do que alguma vez poderás gastar. Mais as
despesas da casa pagas por mim. Até te dou o título de propriedade. - A ponta do
charuto brilhou.
Scarlett começou a pensar, concentrando-se desesperada-mente. Tinha que
arranjar maneira de ficar. Não podia ir embora, nem por todo o dinheiro do mundo.
Rhett levantou-se e foi até à portinhola. Atirou fora o charuto e olhou um pouco
pela abertura, para a margem do rio, até ver um sinal. O sol refletia-se, brilhante, no
seu rosto. Como tinha mudado desde que deixara Atlanta! pensou Scarlett. Naquela
época, andava bebendo como se quisesse apagar o mundo. Mas agora era de novo
Rhett, com a sua pele bronzeada esticada sobre o belo rosto ossudo e os olhos
límpidos, escuros como o desejo. Sob o elegante traje, de bom corte, podiam ver-se os
músculos, que aumentavam visivelmente quando se mexia. Era tudo o que um homem
devia ser. Queria-o de volta e ia consegui-lo, custasse o que custasse. Scarlett inspirou
profundamente. Estava pronta quando ele se voltou e levantou uma sobrancelha, num
gesto interrogativo.
- Como é que vai ser, Scarlett?
- Disseste que querias negociar, Rhett. - Scarlett assumira um ar de negócios. -
Mas não estás discutindo, estás a atirando-me com ameaças que mais parecem
pedras. Além disso, sei que só estás blefando, quando dizes que vais cortar o dinheiro
que mandas para Atlanta. Estás muitíssimo preocupado com o fato de seres bem
recebido em Charleston, e as pessoas não têm lá muito boa opinião de um homem que
não toma conta da mulher. Se isso se espalhasse, a tua mãe não poderia andar de
cabeça erguida. Sobre a segunda coisa... o monte de dinheiro... tens razão. Gostaria
de o ter. Mas não, se isso significar ter que voltar imediatamente para Atlanta. Já agora
posso mostrar o meu jogo, porque já o conheces. Fiz uma quantidade de asneiras e
não tenho maneira de desfazer o que fiz. Neste preciso momento, não tenho um único
amigo em todo o estado da Geórgia.
"No entanto, estou fazendo amigos em Charleston. Podes não querer acreditar,
mas é verdade. E também estou aprendendo muita coisa. Assim que as pessoas de
Atlanta tiverem tempo suficiente para esquecer algumas coisas, acho que posso
compensar alguns dos meus erros."
"Por isso, tenho uma proposta a fazer-te. Pare de agir de um modo tão odioso
comigo, és simpático e ajudas-me a passar um bom bocado. Passamos a temporada
como um casal devoto e feliz. Depois, quando vier a Primavera, volto para casa e
recomeço a minha vida."
Susteve a respiração. Ele tinha que dizer que sim, tinha e pronto. A temporada
durava quase oito semanas, e eles estariam juntos todos os dias. Não havia homem
normal que ela não conseguisse pôr a comer na sua mão, se estivesse com ela tanto
tempo. Rhett era diferente dos outros homens, mas não era assim tão diferente. Nunca
houvera homem nenhum que ela não tivesse conseguido conquistar.
- Com o dinheiro, queres dizer.
- Bom, é claro que sim. Achas-me com cara de idiota?
- Essa não é exatamente a minha idéia de um negócio, Scarlett. Não ganho nada
com ele. Ficas com o dinheiro que estou disposto a pagar-te para te ires embora, mas
não vais. Qual é o meu benefício?
- Não fico para sempre, e não digo à tua mãe como és canalha. - Teve quase a
certeza de que o viu sorrir.
- Sabes como é que se chama este rio, Scarlett?
Que pergunta idiota. E ele ainda não tinha concordado com a proposta. Que é
que se estava a passar?
- É o rio Ashley. - Rhett pronunciou o nome com uma exatidão exagerada. - Faz
lembrar aquele estimável cavalheiro, Mr. Wilkes, cuja afeição cobiçaste em tempos. Fui
testemunha da tua capacidade de devoção canina, Scarlett, e a tua determinação
simplista é uma coisa terrível de se ver. Ultimamente, foste suficientemente amável
para mencionar que decidiste pôr-me no elevado lugar ocupado em tempos por Ashley.
Essa idéia alarma-me.
Scarlett interrompeu-o, tinha que o fazer. Estava mesmo a ver que ele ia dizer que
não.
- Ora, besteira, Rhett. Sei muito bem que não vale a pena andar atrás de ti. Não
és suficientemente simpático para aturares isso. Além disso, conheces-me bem
demais.
Rhett riu, sem humor.
- Se reconheces como estás falando certo, talvez possamos negociar - disse ele.
Scarlett teve o cuidado de não sorrir. "Era provável que ele conseguisse ver no
escuro", pensou ela.
- Estou disposta a negociar - disse. - Qual é a tua idéia?
Desta vez, o riso abrupto de Rhett foi genuíno.
- Acho que a verdadeira Miss O'Hara acabou de se juntar a nós - disse ele. - Os
meus termos são estes: dizes à minha mãe que eu ressono e, por isso, dormimos em
quartos separados; depois do baile de Santa Cecília, que encerra a Temporada,
exprimes um desejo urgente de voltares correndo para Atlanta; uma vez aí, designas
imediatamente um advogado, Henry Hamilton ou outro qualquer, para se encontrar
com os meus advogados para negociar um acordo e um compromisso de separação.
Além disso, nunca mais voltas a pôr o pé em Charleston. Nem escreves ou mandas
mensagens por qualquer outro meio para a minha mãe ou para mim.
O espírito de Scarlett corria. Tinha quase ganho. Com exceção dos "quartos
separados". Talvez devesse pedir mais tempo. Não, pedir não. Era suposto estar
negociando.
- Talvez concorde com os teus termos, Rhett, mas não com o teu calendário. Se
fizer as malas no dia seguinte ao fim dos bailes, todo mundo vai perceber. Depois do
Baile, voltas para à plantação. Faria sentido se eu começasse então a pensar em
Atlanta. Por que não dizer que vou em meados de Abril?
- Não me importo que te demores um pouco na cidade, depois de eu ter vindo
para o campo. Mas o primeiro de Abril é mais apropriado.
Melhor do que esperara! A Temporada e mais de um mês a seguir. E ela não
dissera nada sobre ficar na cidade depois de ele ir para a plantação. Podia segui-lo até
lá.
- Não quero saber qual de nós é que vai enfiar um barrete, Rhett Butler, mas se
jurares que vais ser simpático durante o tempo que antecede a minha partida, temos
negócio. Se te portares mal, então foste tu que faltaste à promessa e não vou embora.
- Mrs. Butler, a devoção do seu marido fará com que seja invejada por todas as
mulheres de Charleston.
Estava gozando, mas Scarlett não se importou. Tinha ganho.
Rhett abriu a escotilha, deixando entrar um brusco ar salgado, luz do sol e unia
brisa surpreendentemente forte.
- Enjoas, Scarlett?
- Não sei. Nunca tinha andado de barco até ontem.
- Vais descobrir depressa. O porto fica ali à frente, e a água está bastante agitada.
Tira um balde do armário que está atrás de ti, para o caso de ser preciso. - Apressou-
se a ir para o convés. - Vamos içar a vela da proa e corrigir o rumo. Estamos nos
desviando - gritou ele para o vento.
Um minuto mais tarde, o barco inclinara-se num ângulo assustador e Scarlett
descobriu que estava escorregando, sem conseguir agarrar-se. A lenta viagem rio
acima do dia anterior, na chata larga, não a tinha preparado para o comportamento de
um veleiro. A descida rio abaixo, a favor da corrente e com vento suave, que quase
estufava a vela toda, fora mais rápida, mas tão calma como a outra. Arrastou-se até à
pequena escada e içou-se, de modo a ficar com a cabeça acima do nível do convés. O
vento cortou-lhe a respiração e arrancou-lhe o chapéu de penas da cabeça. Olhou para
cima e viu-o rodopiar no ar, enquanto uma gaivota gritava furiosamente e batia as asas
para se desviar do objeto que parecia um pássaro. Scarlett riu, deliciada. O barco
inclinou-se mais e água e espuma cobriram o lado mais baixo. Era excitante! Através
do vento, ouviu Pansy gritar aterrorizada. Que covarde que aquela moça era!
Scarlett segurou-se e começou a subir a escada. O rugido da voz de Rhett a fez
parar. Virou o leme e o convés do veleiro regressou ao nível das águas, com a vela
batendo. A um gesto seu, um dos marinheiros pegou o leme. O outro estava segurando
Pansy enquanto ela vomitava por cima da amurada. Em dois passos, Rhett estava no
topo da escada, ralhando com Scarlett.
- Idiotazinha, o botaló podia ter te atingido na cabeça. Volta lá para baixo, que é o
teu lugar.
- Oh, Rhett, não! Deixa eu vir cá para cima, onde posso ver o que se passa. É tão
divertido. Quero sentir o vento e saborear os salpicos da água.
- Não estás enjoada? Nem assustada?
A resposta dela foi um olhar cheio de desprezo.

- Oh, Miss Eleanor, foi o tempo mais maravilhoso de toda a minha vida! Não sei
por que é que todos os homens do mundo não se tornam marinheiros.
- Ainda bem que te divertiste querida, mas foi muito maldoso de Rhett expor-te
assim ao sol e ao vento. Estás vermelha que nem um índio. - Mrs. Butler mandou
Scarlett para o quarto, pôr compressas de glicerina e água de rosas no rosto. Depois,
ralhou ao filho, alto e risonho, até ele baixar a cabeça, pretensamente envergonhado.
- Se eu pendurar as verduras de Natal que trouxe, deixa-me comer a sobremesa
depois do almoço ou tenho que ir para o canto? - perguntou ele, com humildade
fingida.
Eleanor Butler estendeu as mãos, rendida.
- Não sei o que fazer contigo, Rhett - disse ela, mas o seu esforço para não rir foi
um fracasso total. Amava o filho para lá de toda a razão.
Nessa tarde, enquanto Scarlett se submetia a um tratamento de loções para as
queimaduras do sol, Rhett levou uma das coroas de azevinho que trouxera da
plantação a Alicia Savage, como oferta da mãe.
- Que simpático de Eleanor, e de ti, Rhett. Obrigado. Queres tomar um uísque
com água, para abrir a temporada?
Rhett aceitou a bebida com prazer, e conversaram preguiçosamente sobre o
tempo, raro naquela altura, sobre o Inverno de há trinta anos, em que chegara mesmo
a nevar, do ano em que chovera durante trinta e oito dias sem parar. Conheciam-se
desde crianças. As suas famílias tinham casas com um muro de jardim em comum e
uma amoreira com amoras doces que manchavam os dedos e cujos ramos chegavam
quase ao chão, de ambos os lados do muro.
- Scarlett está assustadíssima com o invasor de quartos ianque - disse Rhett,
depois de ele e Alicia terem acabado com as recordações. - Espero que não te
importes de falar disso com um velho amigo que te espreitou pelas saias acima quando
tinhas 5 anos.
- Falo sem problemas se conseguires esquecer a minha antipatia infantil pela
roupa de baixo - riu Mrs. Savage de boa vontade. - Fui o desespero da família durante,
pelo menos, um ano. Agora é engraçado... Mas este caso do ianque não é piada
nenhuma. Alguém vai ficar doido por pôr o dedo no gatilho e vai atingir um soldado, e
depois temos que pagar com o inferno.
- Diz-me qual era o aspecto dele, Alicia. Tenho uma teoria sobre dele.
- Só o vi por um instante, Rhett...
- Isso deve bastar. Alto ou baixo?
- Alto, sim, na verdade, muito alto. A cabeça ficava só um palmo abaixo do topo
das cortinas, e aquelas janelas têm dois metros e tal de altura.
Rhett sorriu.
- Sabia que podia contar contigo. És a única pessoa que conheço capaz de
identificar o maior picolé numa festa de aniversário, do outro lado da sala.
Chamávamos-te "olho de águia" por trás das tuas costas.
- E pela frente, se não me engano, juntamente com outros ditos pessoais
desagradáveis. Eras um rapazinho horroroso.
- Eras uma menina detestável. Teria te amado, mesmo se usasses roupa de
baixo.
- E eu a ti, mesmo que não usasses. Olhei pelas tuas saias acima muitas vezes
mas nunca consegui ver nada.
- Tem piedade, Alicia. Pelo menos, chama-lhe um kilt.
Sorriram amigavelmente um para o outro. Depois, Rhett retomou o interrogatório.
Depois de ter começado a pensar, Alicia lembrou-se de muitos pormenores. O soldado
era jovem - mesmo muito jovem -, com os movimentos desajeitados de um rapaz que
ainda não se acostumou ao crescimento súbito. Também era muito magro. O uniforme
caía-lhe do corpo, muito largo. Viam-se claramente os pulsos a seguir ao punho; podia
muito bem ser que o uniforme nem fosse dele. Tinha o cabelo escuro - "não preto como
o teu, Rhett, e, a propósito, essa mancha grisalha fica-te muitíssimo bem, não, o cabelo
devia ser castanho e parecia mais escuro na sombra". Sim, bem cortado e quase com
certeza sem tratamento. Alicia teria sentido o cheiro do óleo de Macassar. Pedaço a
pedaço, juntou as recordações. Depois, faltaram-lhe as palavras.
- Sabes quem é, não sabes, Alicia?
- Devo estar enganada.
- Deve estar certa. Tens um filho dessa idade... cerca de 14 ou 15 anos, e com
certeza conheces os seus amigos. Assim que ouvi falar disto, pensei que tinha de ser
um rapaz de Charleston. Acreditas mesmo que um soldado ianque entraria à força no
quarto de uma mulher só para olhar para a forma dela debaixo do cobertor? Isto não é
um reino de terror, Alicia, é um rapaz infeliz que está confuso sobre o que o seu corpo
lhe está fazendo. Quer saber como é o corpo de uma mulher sem corpetes e
chumaços, quer tanto saber que foi levado a andar à espreita de mulheres
adormecidas. O mais provável é ter vergonha dos seus próprios pensamentos quando
vê uma toda vestida e acordada. Pobre diabo. Parto do princípio de que o pai morreu
na guerra, e não tem nenhum homem com quem falar.
- Tem um irmão mais velho...
- Oh? Então talvez esteja enganado. Ou tu estás a pensar no rapaz errado.
- Receio bem que não. Chama-se Tommy Cooper. É o mais alto do grupo deles, e
o mais limpo. Ainda por cima, quase que sufocou quando lhe disse olá no outro dia, na
rua, dois dias depois do incidente no meu quarto. O pai dele morreu em Buli Run.
Tommy nunca o conheceu. O irmão é dez ou onze anos mais velho.
- Referes-te a Edward Cooper, o advogado?
Alicia acenou que sim.
- Então, não é de admirar. Cooper pertence ao comitê da minha mãe do Lar da
Confederação; conheci-o lá em casa. Não passa de um eunuco. Tommy não vai ter
nenhuma ajuda dele.
- Não é nada eunuco, só está é apaixonado demais por Anne Hampton para ver
as necessidades do irmão.
- Como queiras, Alicia. Mas vou ter uma conversazinha com Tommy.
- Rhett, não podes. Vais pregar-lhe um susto de morte.
- O pobre rapaz anda a pregar sustos desses à população feminina de
Charleston. Graças a Deus ainda não aconteceu nada. Da próxima vez, ele pode
descontrolar-se. Ou pode levar um tiro. Onde é que ele vive, Alicia?
- Em Church Street, mesmo na esquina com a Broad. É a casa do meio, de tijolo,
do lado sul de St. Michael's Alley. Mas, Rhett, que é que vais dizer? Não podes
simplesmente entrar por ali dentro e arrastar Tommy cá para fora pelos colarinhos.
- Confia em mim, Alicia.
Alicia pôs ambas as mãos de cada lado do rosto de Rhett e beijou-o suavemente
nos lábios.
- É bom ter-te de novo em casa, vizinho. Boa sorte com Tommy.
Rhett estava sentado na varanda dos Coopers bebendo chá com a mãe de
Tommy quando o rapaz chegou em casa. Mrs. Cooper apresentou-lhe o filho, depois
mandou-o para dentro, arrumar as coisas da escola e lavar as mãos e a cara.
- Mr. Butler vai te levar ao seu alfaiate, Tommy. Tem um sobrinho em Aiken que
está crescendo tão depressa como tu e precisa de ti para provar algumas coisas, de
modo a arranjar um presente de Natal que lhe sirva.
Longe dos adultos, Tommy fez uma careta horrível. Depois, lembrou-se de
histórias que ouvira sobre a juventude extravagante de Rhett e decidiu que ficaria
contente de ir e ajudar Mr. Butler. Talvez até arranjasse coragem para fazer algumas
perguntas a Mr. Butler, sobre coisas que o andavam preocupando.
Tommy não precisou pedir. Assim que estavam bem distantes da casa, Rhett pôs
um braço em volta dos ombros do rapaz.
- Tom - disse ele -, estou aqui pensando em ensinar-te umas quantas lições. A
primeira é como mentir convincentemente a uma mãe. Enquanto formos no carro,
vamos conversar detalhadamente sobre o meu alfaiate, a sua loja e os seus hábitos.
Vais praticar com a minha assistência até saberes bem a história. É que eu não tenho
nenhum sobrinho em Aiken e não vamos nada ao alfaiate. Vamos até ao fim da linha
de Rutledge Avenue, e depois vamos dar um saudável passeio até uma casa, onde
quero que conheças alguns amigos meus.
Tommy Cooper concordou sem discussão. Estava acostumado a que os mais
velhos lhe dissessem o que devia fazer, e gostava do modo como Mr. Butler lhe
chamava "Tom". Antes
de a tarde acabar e Tom ser devolvido a casa da mãe, o rapaz olhava para Rhett
com uma tal adoração no olhar que Rhett soube que ia ficar ligado a ele por muitos
anos.
Também esperava que Tom não esquecesse os amigos que tinham ido visitar.
Entre as muitas "primeiras" famosas de Charleston, estava a primeira casa de
prostitutas "só para cavalheiros". Mudara de local muitas vezes nos quase dois séculos
da sua existência, mas nunca falhara um dia de negócio, apesar de guerras, epidemias
e furacões. Uma das especialidades da casa era a iniciação suave e discreta de
rapazinhos nos prazeres de ser homem. Era uma das tradições mais queridas de
Charleston.
Muitas vezes, Rhett imaginava como a sua vida podia ter sido diferente se o pai
tivesse respeitado aquela tradição como fazia com tudo o resto que era esperado de
um cavalheiro de Charleston... Mas o passado era o passado. Os lábios curvaram-se
num sorriso malicioso. Pelo menos, fora capaz de ocupar o lugar do falecido pai de
Tommy, que teria feito o mesmo pelo rapaz. As tradições sempre tinham os seus usos.
Com certeza agora já não ia haver mais nenhum intruso ianque noturno. Rhett foi para
casa, tomar uma bebida bem merecida, antes de serem horas de ir buscar a sua irmã a
estação de trens.
19
- E se o trem se adianta, Rhett? - Eleanor Butler olhou para o relógio pela décima
vez em dois minutos. - Seria horrível a Rosemary ficar na estação sem ter ninguém à
sua espera estando já anoitecendo. Sabes, a criada dela ainda só está semitreinada.
Não sei por que é que a Rosemary a suporta.
- Em toda a sua história, esse trem nunca chegou menos de quarenta minutos
atrasado, mamã, e mesmo que chegasse, ainda falta meia hora.
- Pedi-te para dares uma margem suficientemente grande para lá chegares. Eu
própria teria ido, conforme planejei antes de saber que estarias aqui.
Tente não se enervar, mamã. - Rhett repetiu o que já
tinha explicado à mãe. - Aluguei um trem que me virá buscar dentro de dez
minutos. São cinco minutos até a estação. Chegarei lá quinze minutos antes e o trem
terá um atraso de uma hora ou mais, portanto, a Rosemary chegará a casa pelo meu
braço a tempo do jantar.
- Posso ir contigo, Rhett? Adoraria apanhar ar. - Scarlett imaginou-se passando
uma hora na pequena cabine do trem.
Perguntaria a Rhett tudo sobre a irmã. Ele gostaria disso, pois era louco por
Rosemary. E se ele estivesse na disposição de falar, Scarlett ficaria sabendo o que
esperar. Estava aterrorizada com a possibilidade de Rosemary não gostar dela, de a
considerar um outro Ross. A rebuscada carta de desculpas do seu cunhado de nada
servira para que ela deixasse de o detestar.
- Não, minha querida, não podes ir comigo. Quero que fiques exatamente onde
estás, nesse sofá, com as compressas nos olhos. Ainda estão inchados do sol que
apanhaste.
- Queres que eu vá, querido? - Mrs. Butler enrolou a renda de bilros para a
guardar. - Receio que a espera seja grande.
- Não me importo nada de esperar, mamã. Tenho alguns planos sobre o plantio
de Primavera e quero pensar neles.
Scarlett voltou a recostar-se nas almofadas, desejando que a irmã de Rhett não
tivesse voltado para casa. Não tinha uma idéia clara sobre como Rosemary seria e
preferia não vir a saber. Sabia, sim, através de alguns mexericos que ouvira, que o
nascimento de Rosemary tinha provocado muitos sorrisos secretos. Era um bebê da
"mudança", nascida quando Eleanor Butler já tinha mais de 40 anos. Ela própria
também era solteirona, uma das baixas domésticas da guerra - nova demais para se
casar antes de a guerra começar, insignificante e pobre demais para atrair as atenções
dos poucos homens disponíveis quando acabou. O regresso de Rhett a Charleston e a
sua fortuna fabulosa tinham suscitado imenso falatório. Agora, Rosemary teria um dote
substancial. Mas ela parecia estar sempre fora, visitando uma prima ou uma amiga
noutra cidade. Teria ido lá à procura de marido? Os homens de Charleston não eram
suficientemente bons para ela? Há mais de um ano que todos estavam à espera da
notícia do seu noivado, mas nem sequer havia o menor indício de um compromisso,
quanto mais de casamento. "Excelentes bases para especulações", era como Emma
Anson descrevia a situação.
Scarlett especulava para si própria. Ficaria encantada se Rosemary se casasse,
por mais caro que isso custasse a Rhett. Não lhe agradava tê-la em casa. Não
interessava se Rosemary era tão insignificante como um muro de lama, pois não
deixava de ser mais nova que Scarlett, e sendo irmã de Rhett, não lhe podia dar um
pontapé. Receberia atenção demais dele. Ficou tensa quando ouviu a porta da frente
abrir-se, alguns minutos antes da hora de jantar. Rosemary tinha chegado.
Rhett entrou na biblioteca e sorriu à mãe.
- A sua filha errante voltou finalmente ao lar - disse ele. - Está com perfeita saúde
e parece uma leoa selvagem esfomeada. Assim que lavar as mãos, provavelmente,
entrará aqui e devorará a carne.
Scarlett olhou para a porta com apreensão. A jovem mulher que entrou passado
instantes tinha um sorriso agradável no rosto. O seu aspecto não tinha nada de
selvagem. Mas Scarlett ficou tão chocada como se ela tivesse juba e rugisse. "Ela é
igual a Rhett! Não, não é isso. Tem os mesmos olhos e cabelos pretos e dentes
brancos, mas não é isso que é igual. É mais o que ela é, parece que assume o
controle, como ele. Não gosto disto, não gosto nada disto."
Semicerrou os olhos verdes enquanto estudava Rosemary. "Não é tão
insignificante como as pessoas dizem, mas não faz qualquer esforço para parecer
melhor. Basta ver como usa o cabelo todo puxado para trás e preso num coque na
nuca. E nem sequer usa brincos, embora tenha as orelhas bem bonitas. É pálida. Acho
que a pele do Rhett ficaria assim se ele não andasse sempre ao sol. Mas um vestido
de uma cor bem viva resolveria isso. Aquele verde-acastanhado foi a pior escolha
possível. Talvez eu a possa ajudar."
- Então esta é que é a Scarlett. - Rosemary atravessou a sala em quatro
passadas.
"Ora esta, terei que ensiná-la a andar", pensou Scarlett. "Os homens não gostam
de mulheres que galopam dessa maneira." Scarlett pôs-se de pé antes de Rosemary
chegar junto dela, com um sorriso fraterno, erguendo o rosto para um beijo social.
Em vez de tocar de leve com a face na dela, como era considerado correto,
Rosemary olhou direta e francamente para o rosto de Scarlett.
- Rhett disse-me que eras felina - comentou ela. - Percebo o que ele quis dizer,
com esses teus olhos verdes. Espero que me ronrones e não bufes, Scarlett. Gostaria
que fôssemos amigas.
Scarlett ficou de boca aberta, sem conseguir dizer palavra. Estava espantada
demais para falar.
- Mamã, por favor, diga-me que o jantar está pronto - pediu Rosemary. - Disse ao
Rhett que ele tinha sido um bruto sem sentimentos por não me ter levado um boteco na
estação.
Os olhos de Scarlett encontraram-no e ficou furiosa. Rhett estava encostado à
ombreira da porta, com um sorriso divertido e sardônico. "Bruto!", pensou ela. "Foste tu
que a levaste a isto. Com que então sou 'felina'. Bem gostaria de te mostrar o que é ser
felina. Gostaria de te arranhar os olhos até esse riso desaparecer." Olhou rapidamente
para Rosemary. Estaria também rindo? Não, estava abraçando Eleanor Butler. - Jantar
- disse Rhett. - Manigo vem aí anunciá-lo.
Scarlett brincou com a comida no prato. As queimaduras do sol doíam-lhe e o tom
dominador de Rosemary estava dando-Ihe dor de cabeça. A irmã de Rhett era
apaixonada e sonoramente opiniosa e argumentativa. As primas que ela visitara em
Richmond eram umas idiotas impossíveis, declarou, e detestara cada minuto que lá
passara. Tinha certeza absoluta de que nenhuma delas alguma vez lera um livro, pelo
menos um livro que valesse a pena ler.
- Oh, que pena - disse Eleanor Butler baixinho, olhando para Rhett com uma
súplica muda.
- Os primos são sempre uma provação, Rosemary - disse ele com um sorriso. -
Deixa-me contar-te a última do primo Townsend Ellinton. Vi-o recentemente na
Filadélfia e esse encontro deixou-me com a visão nublada durante uma semana. Tentei
olhá-lo nos olhos e é claro que fiquei com vertigens.
- Prefiro ficar tonta do que aborrecida de morte! - interrompeu a irmã. - Imaginas-
me depois de jantar tendo que ficar sentada ouvindo a prima Miranda lendo novelas de
Waverly em voz alta? Essas babaquices sentimentais?
- Eu sempre gostei bastante de Scott, minha querida, e pensava que tu também
gostavas - disse Eleanor num tom contemporizador.
Rosemary não se acalmou.
- Mamã, eu sabia lá o que aquilo era. Foi há anos.
Scarlett pensou com saudade nas horas calmas depois do jantar que tinha
compartilhado com Miss Eleanor. Era evidente que com Rosemary em casa nunca
mais se repetiriam. Como é que Rhett podia gostar tanto dela? Agora parecia
determinada a discutir com ele.
- Se eu fosse homem, me deixarias ir - gritava Rosemary a Rhett. - Tenho lido
artigos sobre Roma, que Mr. Henry James está escrevendo, e sinto que morrerei de
ignorância se não a vir com os meus próprios olhos.
- Mas tu não és homem, minha querida - disse Rhett calmamente. - Onde diabo é
que arranjaste exemplares do The Nation? Podias ser enforcada por leres um pasquim
liberal como esse.
Scarlett arrebitou as orelhas e meteu-se na conversa.
- Porque não deixas a Rosemary ir, Rhett? Roma não é longe. E tenho certeza de
que devemos conhecer alguém que tenha família lá. Não pode ser mais longe que
Atenas, e os Tarletons têm um milhão de primos em Atenas.
Rosemary ficou olhando para ela, boquiaberta.
- Quem são esses Tarletons e que é que Atenas tem a ver com Roma? -
perguntou.
Rhett tossiu para disfarçar o riso. Depois pigarreou para limpar a garganta.
- Atenas e Roma são os nomes de cidades do campo na Geórgia, Rosemary -
disse na sua voz arrastada. - Queres visitá-las?
Rosemary levou as mãos à cabeça num gesto dramático de desespero.
- Não acredito no que estou ouvindo. Pelo amor de Deus, quem é que quereria ir
à Geórgia? Quero ir a Roma, à Roma verdadeira, à Cidade Eterna. Na Itália!
Scarlett sentiu-se corar. Devia ter percebido que ela estava se referindo à Itália.
Mas antes de ela poder responder tão alto como Rosemary, a porta da sala de
jantar abriu-se violentamente com um estrondo que silenciou todos eles com o choque,
e Ross entrou na sala iluminada a velas cambaleando e com a respiração ofegante.
- Ajudem-me - exclamou -, tenho a guarda atrás de mim! Matei a tiro o ianque que
tem andado assaltando os quartos.
Em segundos, Rhett estava ao lado do irmão, segurando-lhe no braço.
- A chalupa está na doca e não há lua; nós os dois conseguimos manobrá-la -
disse ele com uma autoridade tranqüilizadora. Ao sair da sala, virou a cabeça para
acrescentar, baixinho: - Digam-lhes que saí assim que trouxe a Rosemary, para
apanhar a maré no rio e que não sabem do Ross, que não sabem nada de nada.
Depois mando notícias.
Eleanor Butler levantou-se da cadeira sem pressa, como se aquela fosse uma
noite normal e tivesse acabado de jantar. Dirigiu-se para Scarlett e pôs-lhe o braço em
volta dos ombros. Scarlett estava tremendo. Os ianques vinham aí. Enforcariam Ross
por ter morto um dos seus e enforcariam Rhett por ter tentado ajudar Ross a fugir. Por
que é que ele não deixava Ross desenvencilhar-se sozinho? Não tinha o direito de
deixar as suas mulheres sem proteção e sozinhas com os ianques a caminho.
Eleanor falou e a sua voz era de aço, muito embora fosse baixa e arrastada como
sempre.
- Vou levar os pratos e os talheres de Rhett para a cozinha. É preciso que os
criados saibam o que devem dizer e não pode haver o menor vestígio de que ele
esteve aqui. Tu e a Rosemary importam-se de arranjar a mesa para três pessoas?
- Que vamos fazer, Miss Eleanor? Os ianques vêm aí. - Scarlett sabia que se
devia manter calma; sentia desprezo por si própria por estar tão assustada. Mas não
conseguia controlar o medo. Tinha passado a encarar os ianques como desdentados,
risíveis e incômodos. Era aterrorizador ter se lembrar que o Exército ocupante podia
fazer tudo o que queria e dizer que era lei.
- Vamos acabar de jantar - disse Mrs. Butler. Os seus olhos começaram a rir. -
Depois acho que vou ler Ivanhoé em voz alta.
- Não tem nada melhor para fazer do que atormentar uma casa de mulheres? -
Rosemary, de mãos cerradas nas ancas, olhou irada para o capitão da União.
- Senta-te e cala-te, Rosemary - disse Mrs. Butler. - Peço desculpa pela má
criação da minha filha, Sr. Capitão.
O oficial ainda não estava rendido ao tom educado e conciliatório de Eleanor.
- Revistem a casa - ordenou aos seus homens.
Scarlett estava passivamente deitada no sofá, com compressas de camomila no
rosto queimado pelo sol e nos olhos inchados. Sentia-se grata pela sua proteção;
assim não tinha que olhar para os ianques. Que cabeça tão fria tinha Miss Eleanor, ter-
se lembrado de encenar uma situação de doença ali na biblioteca. Mesmo assim, a
curiosidade quase a matava. Não percebia o que se estava passando, apenas com o
som para orientando. Ouviu passos e portas fechando e depois silêncio. O capitão já
teria ido embora? Miss Eleanor e Rosemary teriam ido também embora? Não
agüentava mais. Levou lentamente uma mão aos olhos e levantou uma ponta do pano
úmido que os tapava.
Rosemary estava sentada na cadeira perto da secretária, lendo calmamente um
livro.
- Pssst - murmurou Scarlett.
Rosemary fechou rapidamente o livro e tapou o título com a mão.
- Que é? - perguntou, também num murmúrio. - Ouviste alguma coisa?
- Não, não ouço nada. Que é que eles estão fazendo? Onde está Miss Eleanor?
Eles prenderam-na?
- Pelo amor de Deus, Scarlett, porque estás murmurando?
- A voz normal de Rosemary soou terrivelmente forte. - Os soldados estão
revistando a casa para ver se há aqui armas; estão confiscando todas as armas em
Charleston. A mamã foi com eles para se assegurar de que não confiscam mais nada.
Era apenas isso? Scarlett descontraiu-se. Não havia armas em casa; sabia-o
porque ela própria já procurara uma. Fechou os olhos e quase adormeceu. Tinha sido
um dia muito comprido. Lembrou-se da excitação da água rebentando em espuma ao
longo da chalupa rápida e, por instantes, invejou Rhett navegando sob as estrelas. Se
pudesse ter ido ela com ele em vez de Ross. Não estava preocupada por os ianques o
poderem apanhar; nunca se preocupava com Rhett. Ele era invencível.
Quando Eleanor Butler voltou para a biblioteca, depois de acompanhar os
soldados da União à porta, aconchegou com o seu xale de caxemira Scarlett, que tinha
adormecido profundamente.
- Não vamos acordá-la - disse, baixinho. - Ficará confortável aqui. Vamos para a
cama, Rosemary. Fizeste uma longa viagem e eu estou cansada e é provável que
amanhã tenhamos um dia agitado.
Sorriu para si própria ao ver o marcador do livro colocado bem mais à frente entre
as páginas de Ivanhoé. Rosemary lia depressa. E não era de todo tão moderna quanto
gostava de pensar que era.
Na manhã seguinte, o mercado estava em alvoroço com indignação e planos mal
engendrados. Scarlett escutou com desprezo as conversas agitadas à sua volta. Que é
que os charlestonianos esperavam? Que os ianques deixassem que as pessoas os
matassem a tiro e não fizessem nada? Apenas agravariam as coisas se discutissem ou
protestassem. Que diferença fazia, depois de tanto tempo, o fato do general Lee ter
convencido Grant a permitir que os oficiais conservassem as suas armas pessoais
depois da rendição em Appomattox? Continuava a ser o fim do Sul, e de que servia um
revólver se não se tinha dinheiro para comprar balas para ele? E as pistolas de duelo!
Quem diabo é que se incomodaria em salvá-las? Não serviam para nada a não ser
para os homens se vangloriarem de como eram corajosos e uma bala lhes rebentar
com a cabeça.
Conservou-se calada e concentrou-se nas compras, do contrário, nunca mais
acabaria. Até Miss Eleanor andava às voltas como uma galinha de cabeça cortada,
falando com todo mundo num tom urgente e quase inaudível.
- Dizem que todos os homens querem acabar aquilo que Ross começou - disse
ela a Scarlett ao dirigirem-se para casa a pé. - Não suportam ver as suas casas
invadidas pelas tropas. Nós, as mulheres, teremos que tratar de tudo; os homens estão
agitados demais.
Scarlett sentiu um arrepio de horror. Pensara que tudo aquilo não passava de
palavras. Decerto que ninguém iria agravar ainda mais as coisas!
- Não há nada a tratar! - exclamou ela. - A única coisa a fazer é não dar nas vistas
até tudo isto passar. Rhett deve ter conseguido dar fuga ao Ross, senão teríamos
sabido.
Mrs. Butler mostrou-se espantada.
- Não podemos permitir que o Exército da União fique impune, Scarlett, decerto
que entendes isso. Já revistaram as nossas casas e anunciaram que será imposto o
recolher obrigatório, e estão prendendo todos os que estão envolvidos no mercado
negro de bens racionados. Se os deixarmos levar adiante, não tardará que estejamos
como em 64, quando tinham as botas em cima do nosso pescoço e controlavam cada
passo da nossa vida. Não podemos, muito simplesmente, permitir isso.
Scarlett pensou se todo o mundo estaria enlouquecendo. O que é que um grupo
de senhoras de Charleston, habituadas a ir a chás e a fazer renda, pensava que podia
fazer contra um exército?
Soube-o duas noites depois.
O casamento de Lucinda Wragg estava marcado para 23 de Janeiro. Os convites
estavam endereçados, para serem entregues a 2 de Janeiro, mas nunca foram usados.
"Uma tremenda eficiência", foi o cumprimento de Rosemary Butler para os esforços da
mãe de Lucinda, da sua própria mãe e de todas as outras senhoras de Charleston. O
casamento de Lucinda realizou-se a 19 de Dezembro, na Igreja de Saint Michael, às
nove da noite. Os acordes majestosos da marcha nupcial soaram através das portas e
janelas abertas da igreja apinhada de gente e lindissimamente decorada, precisamente
à hora em que começava o recolher obrigatório. Ouviam-se claramente na Casa da
Guarda do outro lado da rua da Igreja de Saint Michael. Um dos oficiais contou mais
tarde à mulher, tendo a cozinheira ouvido, que nunca tinha visto os homens sob o seu
comando tão nervosos, nem sequer quando tinham marchado no deserto. Toda a
cidade ouviu a história no dia seguinte. Todos riram com gosto, mas ninguém ficou
admirado.
Às nove e trinta, toda a população de Old Charleston saiu da Igreja de Saint
Michael e percorreu a pé Meeting Street, até a recepção no South Carolina Hall.
Homens, mulheres e crianças, dos cinco aos noventa e sete anos, caminharam no ar
quente da noite de braços dados, rindo, violando a lei num flagrante desafio. Não havia
forma de o comando da União dizer que não tinha tido conhecimento da ocorrência;
realizou-se debaixo do seu próprio nariz. Tão pouco tinha forma de prender os
culpados. A Casa da Guarda tinha vinte seis celas. Mesmo que tivessem sido usados
os corredores e os gabinetes, não haveria espaço suficiente para deter a todos. Os
bancos de Saint Michael tiveram que ser levados para o seu calmo cemitério
circundante para haver espaço suficiente para todos lá dentro, ombro a ombro.
Durante a recepção, as pessoas tiveram que se revezar para ir ao alpendre de
colunas no lado de fora da sala de baile apinhada para apanhar ar e ver a patrulha
impotente marchando numa disciplina inútil ao longo da rua vazia.
Rhett tinha regressado à cidade nessa tarde com a notícia de que Ross estava a
salvo em Wilmington. Scarlett confessou-Ihe no alpendre que tinha tido medo de ir ao
casamento, mesmo acompanhada por ele.
- Não acreditava que um grupo de senhoras que não fazem mais do que dar chás
conseguissem vencer o exército ianque. Mas tenho de reconhecer, Rhett, que esta
gente de Charleston tem toda a energia do mundo.
Ele sorriu.
- Adoro todos estes arrogantes, cada um deles. Até o pobre Ross. Espero que
nunca venha a saber que nem sequer acertou no ianque, senão ficará extremamente
embaraçado.
- Não o atingiu? Imagino que estivesse embriagado. - A sua voz estava carregada
de desprezo. Depois tornou-se mais aguda de medo. - Então, o gatuno ainda está à
solta!
Rhett deu-lhe uma palmadinha no ombro.
- Não. Fica descansada, minha querida, não ouvirás falar mais do gatuno. O meu
irmão e o casamento apressado da pequena Lucinda pregaram um susto de morte aos
ianques. - E riu baixinho, profundamente divertido.
- Qual é a graça? - perguntou Scarlett, desconfiada.
Detestava quando as pessoas riam e ela não sabia porquê.
- Nada que possas entender - disse Rhett. - Eu tinha me congratulado por ter
resolvido um problema sem qualquer ajuda e depois o tonto do meu irmão superou-me;
inadvertidamente, deu a toda a cidade um motivo de divertimento e orgulho. Olha para
eles, Scarlett.
O alpendre estava mais apinhado que nunca. Lucinda Wragg, agora Lucinda
Grimball, estava atirando flores do seu ramo aos soldados lá embaixo.
- Ora! Eu por mim atirava-lhes cacos de tijolo!
- Claro. Sempre gostaste de coisas evidentes. A atitude da Lucinda requer
imaginação. - A sua voz nasalada e divertida tinha se tornado ferozmente incisiva.
Scarlett lançou a cabeça para trás.
- Vou voltar lá para dentro. Prefiro sufocar a ser insultada.
Oculta na sombra de uma coluna próxima, Rosemary estremeceu com a
crueldade que detectou na voz de Rhett e no tom magoado e zangado da de Scarlett.
Mais tarde, depois de todos se deitarem, bateu à porta da biblioteca onde Rhett estava
lendo, entrando e fechando a porta atrás de si.
Tinha o rosto vermelho e manchado de chorar.
- Pensei que te conhecia, Rhett - disse num rompante -, mas não te conheço de
todo. Ouvi-te falando com Scarlett no alpendre do Hall esta noite. Como podes ser tão
mau para a tua própria mulher? Contra quem irás virar a seguir?
20
Rhett levantou-se rapidamente da cadeira e dirigiu-se para a irmã, de braços
estendidos. Mas Rosemary ergueu as mãos à sua frente, com as palmas para fora, e
recuou. O rosto dele escureceu de dor, mas ficou muito quieto, de braços caídos.
Queria, acima de tudo, proteger Rosemary da dor, e agora era ele a causa da sua
angústia.
O seu espírito estava cheio da curta e triste história de Rosemary e do papel que
nela desempenhara. Rhett nunca tinha lamentado, nem explicado nada do que fizera
numa idade mais jovem e intempestiva. Não tinha nada de que se envergonhasse. A
não ser o efeito que causara na irmã mais nova.
Devido à sua rebeldia e atitude de desafio à família e à sociedade, o pai tinha-o
deserdado. O nome de Rhett era apenas uma linha riscada a tinta na Bíblia da família
Butler quando o nome de Rosemary foi registrado. Era mais nova que ele vinte e tantos
anos. Ele só a conheceu quando ela tinha treze anos, uma moça desajeitada, com
pernas compridas, pés grandes e seios desabrochando. A mãe tinha desobedecido ao
marido, uma das poucas vezes na sua vida, quando Rhett iniciou a sua perigosa vida
furando o bloqueio através da marinha da União até o porto de Charleston. Foi à noite
na doca onde o navio estava ancorado, levando Rosemary para o conhecer. A veia
profunda de ternura e amor em Rhett foi inelutavelmente tocada pela confusão e
necessidade que sentiu na irmã mais nova, e acolheu-a no seu coração com todo o
calor que o pai nunca conseguira dar. Por sua vez, Rosemary deu-lhe a confiança e a
lealdade que o pai nunca conseguira inspirar. Os laços entre irmão e irmã nunca
tinham sido cortados, apesar do fato de apenas se terem visto não mais de uma dúzia
de vezes desde esse primeiro encontro até Rhett voltar para casa em Charleston, onze
anos mais tarde.
Ele nunca tinha perdoado a si próprio por ter aceito a afirmação da mãe de que
Rosemary estava bem e era feliz, e estava protegida pelos rios de dinheiro que ele lhes
mandava, agora que o pai morrera e não o podia interceptar e devolver. Acusou-se
mais tarde de que devia ter estado mais atento. Talvez assim a irmã não tivesse
crescido sentindo tanta desconfiança em relação aos homens. Talvez tivesse amado,
casado e tido filhos.
Mas, quando regressou a casa, foi encontrar uma mulher de vinte e quatro anos,
tão desajeitada como a menina de treze que vira pela primeira vez. Não se sentia à
vontade junto de nenhum homem a não ser dele; utilizava as vidas distantes dos
romances como substituto da incerteza da vida no mundo; rejeitava as convenções da
sociedade sobre o aspecto que uma mulher devia ter, de como pensar e portar-se.
Rosemary era uma literata, embaraçosamente direta, com uma total ausência de
astúcia e de vaidade feminina.
Rhett amava-a e respeitava a sua independência agreste. Não podia compensar
os anos de ausência, mas podia dar-lhe a prenda mais rara de todas: ele próprio. Era
absolutamente honesto com Rosemary, falava com ela de igual para igual e, por vezes,
até lhe confidenciava os segredos do seu coração, como nunca fizera com qualquer
outra pessoa. Ela reconhecia a importância da sua dádiva e adorava-o. Durante os
catorze meses que Rhett esteve em casa, a solteirona alta demais, desajeitada e
inocente e o aventureiro excessivamente sofisticado e desiludido tinham-se tornado os
mais íntimos dos amigos.
Agora, Rosemary sentia-se traída. Tinha visto uma faceta de Rhett que
desconhecia existir, um traço de crueldade no irmão que sempre conhecera como
infalivelmente bom e terno. Estava confusa e desconfiada.
- Não respondeste à minha pergunta, Rhett. - Os olhos vermelhos de Rosemary
olhavam-no numa acusação.
- Desculpa, Rosemary - disse ele cautelosamente. - Lamento profundamente que
me tenhas ouvido. Era uma coisa que eu tinha que fazer. Quero que ela vá embora e
nos deixe a todos em paz.
- Mas ela é tua mulher!
- Eu deixei-a, Rosemary. Ela recusou divorciar-se como lhe propus, mas sabia
que o nosso casamento tinha terminado.
- Então, por que é que ela está aqui?
Rhett encolheu os ombros.
- Talvez seja melhor nos sentarmos. É uma história longa e cansativa.
Lenta e metodicamente, rigidamente sem emoção, Rhett contou à irmã sobre os
dois casamentos anteriores de Scarlett, sobre a sua proposta de casamento, e como
Scarlett concordara em casar-se com ele por causa do seu dinheiro. Também lhe
contou sobre o amor quase obsessivo de Scarlett por Ashley Wilkes durante todos os
anos que a conhecera.
- Mas se sabias isso, por que diabo casaste com ela? - perguntou Rosemary.
- Por quê? - Aboca de Rhett distendeu-se num sorriso. - Porque ela era cheia de
vida, e imprudente, e obstinadamente corajosa. Porque era uma criança por baixo de
todos os seus fingimentos. Porque era diferente de todas as mulheres que alguma vez
conheci. Fascinava-me, enfurecia-me, enlouquecia-me. Amei-a tão intensamente como
ela o amava. Desde o dia em que lhe pus a vista em cima. Era uma espécie de doença.
- A sua voz estava carregada de tristeza.
Escondeu o rosto nas mãos e riu, perturbado. A voz estava abafada e distorcida
pelos dedos.
- A vida é mesmo uma partida grotesca. Agora, Ashley Wilkes é um homem livre e
se casaria com a Scarlett de um dia para o outro, e eu quero me ver livre dela. É claro
que isso faz que ela esteja determinada a ter a mim. Ela só quer o que não pode ter. -
Rhett ergueu a cabeça. - Tenho medo - disse, baixinho -, tenho medo que tudo
recomece. Sei que ela é impiedosa e completamente egoísta, que é como uma criança
que chora por um brinquedo e depois o parte quando o tem. Mas há momentos,
quando ela inclina a cabeça num certo ângulo, ou sorri aquele seu sorriso jubiloso, ou
fica subitamente com um ar perdido, em que quase me esqueço do que sei.
- Meu pobre Rhett. - Rosemary pôs-lhe a mão no braço.
Ele cobriu-a com a sua. Depois sorriu-lhe e tornou-se novamente ele próprio.
- Estás vendo à tua frente, minha querida, o homem que foi outrora a maravilha
dos barcos do rio Mississipi. Toda a minha vida joguei e nunca perdi. Também ganharei
esta parada. Scarlett e eu fizemos um acordo. Eu não podia me arriscar a tê-la nesta
casa tempo demais. Ou voltava a me apaixonar por ela ou acabaria por a matar.
Portanto, acenei-lhe com ouro e a sua ganância por dinheiro suplantou o amor eterno
que professa por mim. Irá embora definitivamente quando a temporada terminar. Até lá,
apenas tenho que a manter à distância, sobreviver-lhe e ser mais astuto que ela. Estou
quase desejando que chegue a hora. Ela odeia perder e o mostra. Não tem graça
nenhuma perder com uma pessoa que sabe perder. - Os seus olhos riram para a irmã.
Depois, tornaram-se sérios. - A mamã ficaria destruída se soubesse a verdade sobre o
meu deplorável casamento, mas se envergonharia se soubesse que eu lhe tinha virado
costas, por mais infeliz que fosse. É um dilema terrível. Desta forma, Scarlett irá
embora, eu serei a parte ofendida, mas estoicamente corajosa, e não haverá a menor
vergonha.
- Nem te arrependerás?
- Só por uma vez ter sido idiota, há anos. Terei o consolo extremamente poderoso
de não ser idiota uma segunda vez. Isso ajuda muito a apagar a humilhação da
primeira.
Rosemary olhou-o fixamente, curiosa e sem vergonha.
- E se Scarlett mudasse? Pode ser que cresça.
Rhett teve um sorriu rasgado.
- Para citar a própria senhora, só "quando os porcos voarem".
21
- Vai embora. - Scarlett enterrou o rosto na almofada. - É domingo, Miss Scarlett,
não pode dormir até tarde. Miss Pauline e Miss Eulalie estão à sua espera.
Scarlett gemeu. Era o suficiente para uma pessoa se converter à Igreja Episcopal.
Pelo menos podem dormir até tarde; a missa na Igreja de Saint Michael era só às onze.
Suspirou e saiu da cama.
As tias não perderam tempo em fazer-lhe um sermão sobre o que seria esperado
dela na temporada que se avizinhava. Escutou-as impacientemente, enquanto Eulalie e
Pauline insistiam sobre a importância do decoro, discrição, deferência para com os
mais velhos e comportamento senhoril. Pelo amor de Deus! Ela sabia todas aquelas
regras desde que começara a ter dentes. A sua mãe e a Mammy tinham lhe martelado
desde que aprendera a andar. Scarlett cerrou os dentes num atitude rebelde e foi
olhando fixamente para os pés durante todo o caminho até a Igreja de Saint Mary.
Recusava-se simplesmente a ouvir.
No entanto, quando já estavam de novo na casa das tias tomando o café, Pauline
disse uma coisa que a forçou a prestar atenção.
- Não precisa me olhar com esse ar tão zangado, Scarlett. Só te estou contando o
que as pessoas dizem para o teu próprio bem. Corre um boato de que tens dois
vestidos de baile novos. É um escândalo, quando todos aceitam remediar-se com os
que já têm há anos. És nova na cidade e tens que ter cuidado com a tua reputação. E
também com a de Rhett. Sabes, as pessoas ainda não têm uma idéia formada sobre
ele.
Scarlett sentiu um horrível baque no coração. Rhett a mataria se lhe estragasse a
vida.
- Que há sobre Rhett? Por favor, diga-me, tia Pauline.
Pauline contou-lhe com toda a satisfação todas as histórias antigas.
Foi expulso de West Point, o seu próprio pai tinha-o deserdado devido ao seu
comportamento impróprio, sabia-se que tinha ganho dinheiro através de meios
vergonhosos, como jogador profissional nos barcos do rio Mississipi, nos campos de
ouro da Califórnia e, pior do que tudo, associando-se a malandros e aventureiros do
Norte. É certo que tinha sido um corajoso soldado da Confederação, tinha furado o
bloqueio e sido artilheiro no exército de Lee e dado a maior parte do seu dinheiro sujo
para a causa da Confederação...
"Ah!", pensou Scarlett. "Rhett é perito em espalhar histórias."
"No entanto, o seu passado era definitivamente moralmente condenável. Era
muito bonito ele ter voltado para casa para tomar conta da mãe e da irmã, mas só
voltou quando lhe conveio. Se o pai não tivesse morrido de fome para pagar um seguro
de vida substancial, a mãe e a irmã teriam provavelmente morrido por falta de
cuidados."
Scarlett cerrou os dentes para não gritar com Pauline. Aquilo do seguro não era
verdade! O Rhett nunca tinha deixado, nem por um minuto, de se importar com a mãe,
mas o pai não deixava que ela aceitasse nada dele! Só quando Mr. Butler morreu é que
Rhett pôde comprar aquela casa para Miss Eleanor e dar-lhe dinheiro. E até Mrs. Butler
teve que divulgar aquela história do seguro para justificar a sua prosperidade, pois o
dinheiro de Rhett era considerado sujo. Será que aqueles charlestonianos emproados
não viam que dinheiro era dinheiro? Que diferença fazia donde vinha, se servia para
que tivessem um teto por cima da cabeça e comida no estômago?
Por que é que a Pauline não parava de a seringar? De que diabo estava ela agora
falando? No estúpido negócio do adubo. Aquilo era outra anedota. "Não havia adubo
suficiente no mundo para justificar o dinheiro que Rhett estava jogando fora em
idiotices, como andar atrás das antigas mobílias e pratas e retratos de tetravôs e pagar
a homens perfeitamente saudáveis para tratar das suas preciosas camélias em vez de
produzir safras que davam bom dinheiro."
- Há uma série de charlestonianos que estão se saindo muito bem com fosfato,
mas não passam a vida a gabar-se. Tens que acautelá-lo contra esta tendência para a
extravagância e ostentação. Ele é teu marido e é teu dever avisá-lo. Eleanor Butler
acha que ele nunca faz nada de errado, mas sempre o mimou; todavia, não só para o
bem dela, como para o teu e o de Rhett, tens que assegurar que os Butlers não
chamem as atenções sobre si.
- Tentei falar com Eleanor - disse Eulalie num tom crítico -, mas tenho a certeza
de que ela não ouviu uma palavra do que eu disse.
Os olhos de Scarlett semicerraram-se e cintilaram perigosamente.
- Não tenho palavras para lhes dizer como estou grata - disse com exagerada
doçura. - E prestarei atenção a cada palavra. Agora tenho mesmo que ir. Muito
obrigada pelo delicioso café. - Levantou-se, deu um beijo apressado na face de cada
uma das tias e dirigiu-se para a porta. Se não fosse embora naquele preciso instante,
gritaria. Mesmo assim, era melhor falar com Rhett sobre o que as tias lhe tinham dito.
- Tu percebes, Rhett, por que razão eu achei melhor contar-te? As pessoas estão
criticando a tua mãe. Sei que as minhas tias são umas velhas intrometidas e maçantes,
mas são sempre as velhas intrometidas e maçantes que causam problemas. Lembras-
te de Mrs. Merriwether, e de Mrs. Meade, e de Mrs. Elsing?
Scarlett tivera esperança de que Rhett lhe agradecesse. Não estava de todo à
espera que risse.
- Deus abençoe os seus velhos corações intrometidos - disse ele rindo. -Vem
comigo, Scarlett, tens que contar à mamã.
- Oh, Rhett, não posso. Ela irá ficar muito abalada.
- Tens que vir. Isto é grave. É absurdo, mas as questões mais graves o são
sempre. Anda. E tira essa expressão de amor filial do teu rosto. Tu estás te lixando
para o que possa acontecer à minha mãe, desde que os convites para as festas
continuem a chegar e ambos sabemos.
- Isso não é justo! Eu amo a tua mãe.
Rhett ia já a meio caminho da porta, mas voltou-se e dirigiu-se para ela. Agarrou-
a pelos ombros e abanou-a de forma que a sua cabeça ficasse virada para cima. Os
seus olhos estavam frios, examinando a sua expressão como se a estivesse a julgar.
- Não me mintas acerca da minha mãe, Scarlett. Aviso-te: é perigoso.
Estava muito perto dela, a tocar-lhe. Scarlett entreabriu os lábios e sabia que os
seus olhos lhe deviam estar a dizer como desejava ser beijada por ele. Se ao menos
ele baixasse ligeiramente a cabeça, os lábios dela iriam ao encontro dos seus. Scarlett
tinha a respiração abafada na garganta.
As mãos de Rhett agarraram-na com mais força e ela sentiu-as; ele ia puxá-la
para si. Um leve soluço de alegria vibrou na sua respiração abafada.
- Maldita sejas! - disse Rhett, baixinho, afastando-se dela. - Vem comigo lá
abaixo. A mamã está na biblioteca.
Eleanor Butler deixou cair a renda de bilros no colo e pousou as mãos em cima
dela, uma sobre a outra. Era sinal de que estava levando a sério o relato de Scarlett,
dando-lhe toda a sua atenção. Quando terminou, Scarlett aguardou a reação de Mrs.
Butler com nervosismo.
- Sentem-se os dois - disse Eleanor serenamente. - Eulalie está completamente
enganada. Prestei-lhe toda a atenção quando ela me falou sobre eu gastar tanto
dinheiro. - Scarlett abriu muito os olhos. - E mais tarde refleti demoradamente sobre
isso - continuou Eleanor. - Sobretudo em relação a ter oferecido a Rosemary o Grand
Tour como presente de Natal, Rhett. Há muitos anos que ninguém em Charleston
consegue fazer isso, praticamente, desde a época em que tu terias ido se não te
tivesses portado tão mal e o teu pai te mandou para a escola militar.
"No entanto, decidi que não havia verdadeiro risco de ostracismo. A gente de
Charleston é pragmática; as civilizações antigas o são sempre. Reconhecemos que a
riqueza é desejável e que a pobreza é extremamente desagradável. E que quando se é
pobre é útil ter amigos ricos. As pessoas considerariam imperdoável, e não apenas
deplorável, se eu servisse vinho moscatel por champanhe.
Scarlett tinha a testa franzida. Estava tendo alguma dificuldade em entender. Não
que isso tivesse importância, o tom regular e sereno da voz de Mrs. Butler dizia-lhe que
estava tudo bem.
- Talvez tenhamos sido um pouco ostensivos - dizia Eleanor -, mas neste
momento, ninguém em Charleston se pode dar ao luxo de censurar os Butlers, pois
Rosemary pode decidir aceitar a corte de um filho ou irmão ou primo da família e o seu
dote de casamento poderia resolver uma série de problemas.
- A mamã é uma cínica descarada - disse Rhett rindo.
Eleanor Butler limitou-se a sorrir.
- De que estavas a rir? - perguntou Rosemary ao abrir a porta. O seu olhar
desviou-se rapidamente de Rhett para Scarlett e de novo para ele. - Ouvi as tuas
gargalhadas do outro lado do vestíbulo, Rhett. Conta-me a piada.
- A mamã estava a ser mundana - disse ele. Ele e Rosemary tinham-se há muito
unido num pacto para proteger a mãe das realidades do mundo, e sorriram um para o
outro como conspiradores. Scarlett sentiu-se excluída e voltou-lhes as costas.
- Posso sentar-me um pouquinho ao pé de si, Miss Eleanor? Quero pedir-lhe
conselho sobre o que levar ao baile.
"Ora vê lá se eu me importo, Rhett Butler, que trates a tua irmã solteirona como
se ela fosse a rainha de Maio. E se pensas que me consegues perturbar ou fazer
ciúmes, vais ter que pensar duas vezes."
Eleanor Butler observou, intrigada, enquanto Scarlett ficava boquiaberta de
surpresa e os seus olhos brilhavam de excitação. Eleanor olhou para trás, pensando no
que Scarlett teria visto.
Mas, embora Scarlett estivesse com o olhar fixo, não estava olhando para nada.
Estava encandeada pelo fulgor da idéia que lhe tinha ocorrido.
"Ciúmes! Que idiota que tenho sido! E claro que é isso. Explica tudo. Porque levei
tanto tempo para perceber? Rhett praticamente me esfregou isso na cara quando fez
tanto barulho por causa do nome do rio. Ashley. Ainda tem ciúmes do Ashley. Teve
sempre uns ciúmes loucos de Ashley, por isso é que me quis tanto. A única coisa que
preciso é voltar a fazer-Ihe ciúmes. Não com Ashley, santo Deus, não, bastaria que eu
sorrisse na sua direção para ele ficar com aquele ar que mete dó e me implorar para
casar com ele. Não, encontrarei outra pessoa, alguém aqui mesmo de Charleston. Não
será nada difícil. A temporada começa daqui a seis dias e haverá festas e bailes, e
danças e saídas para o jardim para comer bolo e beber punch. Posso estar na velha e
esnobe Charleston, mas os homens não mudam com a geografia. Terei um grupo de
homens atraentes à minha volta antes da primeira festa terminar. Mal consigo esperar."
Depois do almoço de domingo, toda a família foi ao Lar Confederado com cestos
de legumes da plantação e dois dos bolos de fruta ensopados em uísque que Miss
Eleanor fazia. Scarlett quase dançava pelo passeio, balançando o cesto e cantando
uma canção de Natal. A sua alegria era contagiosa e não tardou que os quatro
começassem a cantar canções de Natal à porta das casas por onde iam passando.
"Entrem", gritavam os donos de cada casa.
"Venham conosco", sugeria pelo contrário Mrs. Butler. "Vamos enfeitar o lar."
Havia mais de uma dezena de ajudantes quando chegaram à velha mas encantadora
casa de Broad Street.
Os órfãos guincharam de antecipação quando os bolos foram tirados dos cestos.
- São só para adultos - disse Eleanor com firmeza. - No entanto... - E tirou os
biscoitos com cobertura de açúcar que tinha levado para eles. Duas das viúvas que
viviam no lar apressaram-se a ir buscar canecas de leite e instalaram as crianças em
cadeiras à volta de uma mesa baixa na varanda. - Agora podemos pendurar os ramos
em paz - disse Mrs. Butler. - Rhett, se não te importas, sobes tu a escadinha.
Scarlett sentou-se ao lado de Anne Hampton. Gostava de ser especialmente
simpática com a jovem moça tímida, porque Anne era muito parecida com Melanie.
Isso fazia que Scarlett sentisse que, de certa forma, estava compensando todos os
pensamentos desagradáveis que tinha tido sobre Melly durante todos os anos em que
Melly fora tão resolutamente leal com ela. Além disso, Anne admirava-a tão
abertamente que a sua companhia era sempre um prazer. A sua voz suave era quase
animada quando congratulou Scarlett pelo seu cabelo.
- Deve ser maravilhoso ter um cabelo tão escuro, de uma cor tão rica - disse ela. -
Parece seda da mais negra. Ou um quadro que eu uma vez vi de uma linda pantera
negra de pêlo lustroso. - O rosto de Anne iluminou-se com uma expressão de inocente
adoração, depois corou com a sua ousadia em fazer um comentário tão pessoal.
Bondosamente, Scarlett deu-lhe uma palmadinha na mão. Anne não tinha a culpa
de ser um amoroso e tímido ratinho de campo castanho. Mais tarde, depois dos
enfeites estarem prontos e as salas altas terem ficado com um doce cheiro a resina das
ramadas de pinheiro, Anne desculpou-se e foi reunir as crianças para cantarem
canções de Natal. Como Melly teria gostado, pensou Scarlett. Sentiu um nó na
garganta ao olhar para Anne, que tinha os braços em volta de duas garotinhas
nervosas que cantavam um dueto. Melly era absolutamente louca por crianças. Por
instantes, Scarlett sentiu-se culpada por não ter mandado mais presentes de Natal a
Wade e Ella, mas depois o dueto terminou e foi hora de todos cantarem, e teve que se
concentrar para se lembrar dos versos do The First Noel.
- Foi tão divertido! - exclamou quando foram embora do lar. - Adoro o Natal.
- Eu também - disse Eleanor. - E uma época que dá para retemperar forças antes
da temporada. Embora este ano não vá ser tão calmo como de costume. O mais
provável é os pobres soldados ianques não nos deixarem em paz. O coronel não pode
deixar passar em branco o fato de termos violado o recolher obrigatório com tanto
espalhafato. - Deu uma risadinha, como uma menininha. - Foi bem divertido!
- Francamente, mamã! - disse Rosemary. - Como é que pode chamar "pobres
ianques" àqueles malvados dos casacas azuis?
- Porque preferiam estar nas suas casas, com as suas famílias, durante esta
semana do que aqui nos incomodando.
- Acho que se sentem embaraçados.
Rhett riu baixinho.
- Aposto que a mãe e as suas amigas têm alguma na manga.
- Só se formos forçadas a isso. - Mrs. Butler deu outra risadinha. - Achamos que
hoje foi um dia calmo apenas por que o coronel é muito cumpridor dos preceitos
bíblicos e não ordenaria qualquer ação no domingo. Veremos o que se passa amanhã.
Antigamente, costumavam importunar-nos revistando os nossos cestos à procura de
contrabando quando saíamos do mercado. Se voltarem a tentar, meterão as mãos em
coisas bastante interessantes por baixo das cebolas e do arroz.
- Tripas? - adivinhou Rosemary.
- Ovos partidos? - sugeriu Scarlett.
- Pó que provoca comichão? - sugeriu Rhett.
Miss Eleanor deu uma risadinha pela terceira vez.
- E mais algumas coisas - disse num tom complacente. - Desenvolvemos uma
série de táticas interessantes nessa época. Este lote de soldados não estava aqui; será
tudo novidade para eles. Aposto que a maioria destes homens nunca ouviu falar de
sumagre venenoso. Não gosto de ser tão pouco caridosa no Natal, mas eles têm que
aprender que há muito tempo deixamos de ter medo deles. Gostaria que o Ross
estivesse aqui - acrescentou abruptamente, já sem qualquer alegria.
- Quando achas que será seguro para o teu irmão voltar para casa, Rhett?
- Isso depende do tempo que a mãe e as suas amigas levarem para meter os
ianques em ordem, mamã. Decerto que a tempo de Santa Cecília.
- Então, está bem. Não faz mal ele perder todo o resto desde que esteja em casa
para o Baile. - Scarlett detectou o B maiúsculo na voz de Miss Eleanor.
Scarlett tinha a certeza de que as horas se iriam arrastar até o dia vinte seis e o
início da temporada. Mas, para sua surpresa, o tempo passou tão depressa que mal
conseguiu acompanhá-lo. A parte mais divertida foi a batalha com os ianques. O
coronel ordenou efetivamente uma retaliação pela humilhação sofrida com o recolher
obrigatório. E, na segunda-feira, o mercado ecoou de gargalhadas enquanto as
senhoras de Charleston enchiam os cestos com as armas da sua escolha. No dia
seguinte, os soldados tiveram o cuidado de não tirar as luvas. Enfiar a mão numa
substância de tato nojento ou ser subitamente atacado por uma terrível comichão e
inchaço, não eram experiências que estivessem na disposição de repetir.
- Os idiotas deviam ter percebido que nós estávamos à espera que eles fizessem
exatamente o que fizeram - disse Scarlett a Sally Brewton, durante um jogo de brídge
nessa tarde. Sally concordou, dando uma gargalhada ao recordar a cena.
- Eu tinha um frasco sem tampa cheio de negro-de-fumo no meio das minhas
compras - disse ela. - Que é que tinhas nas tuas?
- Pimenta de caiena. Estava morta de medo de começar a espirrar e denunciar a
jogada... A propósito de jogada, creio que esta é minha. - Tinha sido aprovado um novo
racionamento na véspera e as senhoras de Charleston jogavam agora a café, não a
dinheiro. Com o mercado negro temporária, mas efetivamente, fora da circulação,
aquele era o jogo de cartas com paradas mais altas em que Scarlett alguma vez
participara. Adorou-o.
Também adorava importunar os ianques. Continuava a haver patrulhas nas ruas
de Charleston, mas tinham-lhes sido puxadas as orelhas e voltariam a ser puxadas
outra e outra vez até reconhecerem a derrota. E ela era uma das pessoas que lhes
puxavam as orelhas.
- Dá as cartas - disse ela. - Sinto que estou com sorte. - Dali a meia dúzia de dias
estaria num baile, dançando com Rhett. Agora, ele mantinha distância, fazendo de
propósito para nunca ficarem sozinhos, mas no salão de baile estariam juntos, tocando-
se, e sozinhos, mesmo com muitos outros pares que estivessem dançando.
Scarlett levou as camélias brancas que Rhett lhe tinha mandado para pôr no
cacho de caracóis na nuca e virou a cabeça para se ver ao espelho.
- Parece um bocado de gordura num molho de salsichas - disse, aborrecida. -
Pansy, vais ter que me pentear o cabelo de uma maneira diferente. Puxa-o para cima. -
Podia prender as flores entre as ondas e não ficaria mal. Oh, por que era que Rhett
tinha que ser tão mau, dizendo-lhe que as flores da sua preciosa plantação eram as
únicas jóias que ela podia usar? Já bastava o vestido de baile ter que ser tão simples.
Mas não ter nada para o enfeitar, a não ser umas flores... mais valia enfiar um saco de
farinha com um buraco para a cabeça. Tinha contado usar as suas pérolas e brincos de
diamantes. - Não é preciso fazeres-me um buraco na cabeça - resmungou com Pansy.
- Sim, menina. - Pansy continuou a escovar os seus compridos cabelos escuros
com movimentos vigorosos, eliminando os caracóis que tinham levado tanto tempo a
arranjar.
Scarlett olhou para o seu reflexo com crescente satisfação. Sim, estava muito
melhor. O seu pescoço era bonito demais para ficar tapado. Era muito melhor usar o
cabelo para cima. E assim os seus brincos davam mais nas vistas. Os usaria, apesar
do que Rhett lhe tinha dito. Tinha que estar deslumbrante, tinha que ganhar a
admiração de todos os homens que estariam no baile e o coração de, pelo menos,
alguns. Isso levaria Rhett a reagir e a prestar-lhe atenção.
Prendeu os diamantes nos lóbulos das orelhas. "Pronto!" Inclinou a cabeça de um
lado para o outro, satisfeita com o efeito.
- Gosta assim, Miss Scarlett? - Pansy apontou para a sua obra.
- Não. Quero mais volume por cima das orelhas.
Graças a Deus Rosemary tinha recusado a sua oferta de lhe emprestar Pansy
para aquela noite. Embora fosse um mistério ela não ter agarrado imediatamente
aquela oportunidade; bem precisava de toda a ajuda que pudesse arranjar.
Provavelmente, prenderia o cabelo no mesmo coque de solteirona que usava sempre.
Scarlett sorriu. Entrar na sala de baile com a irmã de Rhett apenas chamaria a atenção
para o fato de ela ser tão mais bonita que a outra.
- Está ótimo, Pansy - disse, recuperando o bom humor. O seu cabelo brilhava
como a asa de um corvo. Afinal, as flores brancas ficavam-lhe muito bem. - Dá-me
alguns ganchos.
Meia hora mais tarde, Scarlett estava pronta. Olhou pela última vez para o
espelho alto. A seda de um azul profundo do vestido brilhava à luz do candeeiro e fazia
que os seus ombros e colo nus e empoados parecessem de alabastro. Os diamantes
cintilavam com fulgor, tanto como os seus olhos verdes. A cauda do vestido estava
enfeitada com voltas de fita de veludo preto e um laço largo, também de veludo preto,
forrado de seda azul mais clara, que tinha sido aplicado na parte de trás, acentuando-
lhe a cintura finíssima. Os sapatos eram de veludo azul com laços pretos, e tinha em
volta do pescoço e em cada um dos pulsos uma fita fina de veludo preto. Nos ombros
estavam presas camélias brancas com laços de veludo e enchiam um suporte de
bouquet de filigrana de prata. Nunca estivera tão bonita e percebeu isso. A excitação
dava às suas faces rosadas uma cor natural.
O primeiro baile de Scarlett em Charleston foi cheio de surpresas. Quase nada foi
como esperava. Primeiro, foi-lhe dito que teria que levar as botas e não os seus
sapatos de dançar. Iam a pé para o baile. Se tivesse sabido isso, teria alugado uma
carruagem, e não conseguia acreditar que Rhett não o tivesse feito. O fato de ser
suposto Pansy levar-lhe os sapatos numa invenção de Charleston chamada "bolsa de
sapatos" não ajudou nada, pois não tinha tal coisa, e a criada de Miss Eleanor levou
quinze minutos para descobrir um cesto que servisse para o efeito. Por que é que
ninguém lhe tinha dito que precisava de uma coisa absurda como essa? "Não
pensamos nisso", disse Rosemary. "Todo mundo tem bolsas de sapatos."
"Todo mundo em Charleston, talvez", pensou Scarlett, "mas não em Atlanta. Lá,
as pessoas não vão a pé para os bailes, vão de carruagem." A felicidade da sua
expectativa em relação ao seu primeiro baile em Charleston começou a transformar-se
em inquietação e apreensão. Que outras coisas seriam diferentes?
Tudo, conforme descobriu. Charleston tinha desenvolvido formalidades e rituais
ao longo dos anos da sua história que eram desconhecidos no mundo enérgico da
semifronteira do norte da Geórgia. Quando a queda da Confederação pôs termo às
imensas fortunas que tinham permitido o desenvolvimento dessas formalidades,
sobreviveram os rituais, a única coisa que restava do passado e que era acarinhada e
mantida inalterada por essa mesma razão.
Havia uma fila de cumprimentos do lado de dentro do salão de baile no topo da
casa dos Wentworth. Tinham todos que formar uma fila nas escadas e esperar para
entrar na sala, um a um, e cumprimentar e murmurar qualquer coisa a Minnie
Wentworth, depois ao marido, ao filho, à mulher do filho, ao marido da filha, à filha
casada, à filha solteira. Isto enquanto a música tocava, e os pares que tinham chegado
mais cedo dançavam; e os pés de Scarlett estavam ansiosos por dançar.
Na Geórgia, pensou impacientemente, as pessoas que dão a festa vão ao
encontro dos seus convidados. Não os fazem esperar em fila como uma leva de
forçados. Era uma cena bem mais acolhedora que aquela idiotice.
Antes de seguir Mrs. Butler para dentro da sala, um criado imponente ofereceu-
lhe uma bandeja. Esta continha uma pilha de papéis dobrados, presos por um fitilho
azul com um lápis minúsculo preso na ponta. Carnês de dança? Deviam ser carnets de
dança. Scarlett tinha ouvido a Mammy falar de bailes em Savannah quando Ellen
O'Hara era nova, mas nunca acreditara verdadeiramente que os bailes eram tão
pacíficos que uma moça olhava para o carnê para ver com quem era devia dançar.
Ora, os gêmeos Tarleton e os rapazes Fontaine teriam rebentado as calças rindo se
alguém lhes dissesse que tinham que escrever o nome num pedacinho de papel com
um lápis minúsculo que se partiria nos dedos de um homem a sério! Nem sequer tinha
bem a certeza de que queria dançar com um maricas qualquer que estivesse disposto
a fazer isso.
Sim, tinha! Tinha a certeza de que dançaria com o próprio demônio, com cornos e
rabo e tudo o mais, só para poder dançar. Parecia-lhe terem passado dez anos, e não
um, desde o baile de máscaras em Atlanta.
- Estou tão contente por ter vindo - disse Scarlett a Minny Wentworth, e a sua voz
vibrou de sinceridade. Sorriu aos outros Wentworth, a cada um por sua vez, e depois
chegou ao fim da linha. Virou-se para os pares que dançavam, com os pés movendo-
se já ao ritmo da música, e susteve a respiração. Oh, era tão belo, tão estranho e
contudo tão familiar, como um sonho que apenas recordasse vagamente. A sala
iluminada por velas estava viva com a música, com as cores e o restolhar de saias
rodopiando. Ao longo das paredes estavam sentadas as viúvas em frágeis cadeiras
douradas, como sempre acontecera, murmurando umas com as outras por detrás dos
leques as coisas sobre as quais sempre murmuraram: os jovens que estavam
dançando agarrados demais, a última história de horror sobre o parto prolongado da
filha de alguém, o novo escândalo sobre uma amiga querida. Criados de casaca iam de
grupo em grupo de homens e mulheres que não estavam dançando, com bandejas de
prata com copos cheios e taças de uísque com folhas de hortelã-pimenta gelado. Havia
um fundo de vozes harmoniosas, salpicado de risos, altos e graves, o barulho de
sempre e tão agradável de pessoas felizes e despreocupadas divertindo-se. Era como
se o velho mundo, o belo e despreocupado mundo da sua juventude, ainda existisse,
como se nada tivesse mudado, e nunca tivesse havido uma guerra.
O seu olhar perspicaz via a tinta descascando nas paredes e as marcas das
esporas no chão sob as camadas de cera, mas recusou-se a reparar. Era melhor entrar
na ilusão, esquecer a guerra e as patrulhas ianques na rua, lá fora. Havia música e
dança e Rhett tinha prometido ser simpático. Não era preciso mais nada.
Rhett foi mais que apenas simpático; foi encantador. E ninguém no mundo
conseguia ser mais encantador do que Rhett, quando queria. Infelizmente, foi tão
encantador com todas as outras pessoas como com ela. Sentiu alternadamente
orgulho por todas as outras mulheres a invejarem, e um ciúme feroz por Rhett estar dar
atenção a tantas outras pessoas. Foi atencioso com ela; não o podia acusar de a
negligenciar. Mas também foi atencioso com a mãe, e com Rosemary, e com dezenas
de outras mulheres que, na opinião de Scarlett, eram velhas matronas maçantes.
Scarlett disse a si própria que não devia se importar e conseguiu-o durante algum
tempo. Quando cada dança terminava, era imediatamente rodeada por homens que
insistiam com o seu par para os apresentar, a fim de lhe poderem pedir a dança
seguinte.
Não era apenas por ser recém-chegada à cidade, um rosto desconhecido numa
multidão em que todos se conheciam uns aos outros. Era compulsivamente fascinante.
A sua decisão de fazer ciúmes a Rhett tinha acrescentado um brilho imprudente aos
seus olhos verdes, já de si fascinantes e invulgares, e um rubor encalorado de
excitação coloria-lhe as faces como uma bandeira vermelha assinalando perigo.
Muitos dos homens que a disputavam para dançar eram os maridos de amigas
que tinha feito, mulheres que visitara, de quem tinha sido parceira em mesas de jogo,
com quem tinha trocado mexericos ao tomar café no mercado. Não se importava. Tinha
tempo mais que suficiente para remediar o mal depois de Rhett voltar a ser seu.
Entretanto, estava a ser admirada e elogiada e galanteada e estava no seu elemento.
Nada tinha realmente mudado. Os homens continuavam a corresponder da mesma
forma ao seu pestanejar e ao seu rosto com covinhas expressivas e à sua descarada
adulação. "Eles acreditam em qualquer mentira que se lhes diga desde que se sintam
heróis", pensou, com um sorriso malicioso e encantador que fez o seu par desacertar o
passo. Tirou o pé de cima do dele.
- Oh, por favor, diga que me desculpa! - implorou. - Devo ter prendido o salto na
bainha do vestido. Foi um erro terrível, sobretudo quando tenho a sorte de estar
valsando com um dançarino maravilhoso como o senhor.
Os seus olhos eram enganadores e o beicinho que acompanhou as suas
desculpas faziam que os seus lábios parecessem prontos para um beijo. Havia certas
coisas que uma mulher nunca esquecia como se faziam.
- Que festa maravilhosa! - disse ela, muito feliz, ao regressarem a pé para casa.
- Estou muito contente por te teres divertido - disse Eleanor Butler. - E estou
muito, muito, muito feliz por ti, Rosemary. Parecias estar divertindo-te.
- Ah! Detestei, mamã, e devia sabê-lo. Mas estou tão contente por ir à Europa,
que não me importei de ir a este estúpido baile.
Rhett riu. Ia atrás de Scarlett e Rosemary, com a mão esquerda da mãe sobre o
seu braço. O seu riso era caloroso na noite fria de Dezembro. Scarlett pensou no calor
do seu corpo, imaginando que o conseguia sentir nas suas costas. Porque não era ela
que ia pelo seu braço, perto desse calor? Sabia porquê. Mrs. Butler era velha, era
apropriado que o filho a ajudasse. Mas isso não diminuiu o desejo de Scarlett de ser
ela a ir ali.
- Podes rir tudo o que queiras, meu querido irmão - disse Rosemary -, mas eu não
acho graça nenhuma. - Estava agora andando para trás, pisando a cauda do vestido. -
Não consegui dizer duas palavras seguidas a Miss Julie Ashley durante toda a noite,
porque tive que dançar com todos aqueles homens ridículos.
- Quem é Miss Julie Ashley? - perguntou Scarlett. O nome chamou-lhe a atenção.
- É o ídolo de Rosemary - disse Rhett -, e a única pessoa de quem tive medo
durante a minha vida de adulto. Se a tivesses visto, te lembrarias de Miss Ashley,
Scarlett. Veste sempre de preto e parece que bebeu vinagre.
- Oh, tu... - exclamou Rosemary. Correu para Rhett e bateu-lhe no peito com os
punhos fechados.
- Pax! - exclamou ele, pondo-lhe o braço direito sobre os ombros e puxou-a para
junto de si.
Scarlett sentiu o vento frio vindo do rio. Ergueu o queixo contra ele, virou-se para
a frente e deu, sozinha, os poucos passos até a casa.
22
Outro domingo significava novo sermão de Eulalie e Pauline, Scarlett estava certa
disso. Na realidade, sentia-se mais que ligeiramente assustada por causa do seu
comportamento no baile. Talvez tivesse estado um pouco... animada demais. Era isso.
Mas já não se divertia assim há muito tempo e não tinha a culpa de atrair muito mais as
atenções do que as afetadas senhoras de Charleston, não é? Além disso, apenas o
fizera por Rhett, para ele deixar de ser tão frio e distante com ela. Ninguém podia
censurar uma mulher por tentar segurar o seu casamento.
Sofreu calada a pesada reprovação silenciosa das suas igualmente silenciosas
tias durante o caminho de e para a Igreja de Saint Mary. As fungadelas pesarosas de
Eulalie durante a missa puseram-lhe os nervos em frangalhos, mas conseguiu ignorá-
las pensando no momento em que Rhett abandonaria o seu obstinado orgulho e
admitiria que a amava. Porque a amava, não amava? Sempre que a tomava nos
braços para dançar, ela sentia os joelhos tremendo. Decerto que ela não podia sentir
os relâmpagos no ar quando se tocavam, a menos que ele também os sentisse, não é?
Em breve descobriria. Ele teria que fazer mais do que apenas pousar a mão
enluvada na sua cintura para dançar na véspera de Ano Novo. Teria que beijá-la à
meia-noite. Só faltavam cinco dias e os seus lábios se uniriam, e ele teria que acreditar
que ela o amava realmente. O beijo dela lhe diria mais que quaisquer palavras...
A beleza e o mistério antigo da missa desenrolaram-se perante o seu olhar
ausente enquanto Scarlett imaginava os seus desejos tornando-se realidade. O
cotovelo anguloso de Pauline tocava-lhe sempre que se atrasava nas respostas.
O silêncio continuou sem ser quebrado quando se sentaram para tomar o café.
Scarlett sentia como se todos os nervos do seu corpo estivessem expostos ao ar, ao
olhar fixo e gelado de Pauline, ao som das fungadelas de Eulalie. Não conseguiu
agüentar mais e lançou-lhes um ataque irado antes que a pudessem atacar a ela.
- Disseram-me que todo mundo vai a pé para todo o lado, e tenho os pés cheios
de bolhas rebentadas por ter feito o que me disseram. Ontem à noite, a rua em frente
ao baile dos Wentworth estava apinhada de carruagens!
Pauline ergueu as sobrancelhas e comprimiu os lábios.
- Vês o que eu quero dizer, minha irmã? - perguntou para Eulalie. - A Scarlett está
decidida a virar as costas a tudo o que Charleston representa.
- É difícil perceber qual é a importância das carruagens, minha irmã, comparada
com as coisas que concordamos que tínhamos que lhe falar.
- A título de exemplo, é um excelente sintoma da atitude que há por detrás de
todas as outras coisas.
Scarlett bebeu a xícara de café claro e fraco que Pauline lhe servira, e pousou-a
no pires com violência.
- Considerarei um favor se pararem de falar de mim como se eu fosse surda e
muda. Se quiserem, podem fazer-me um sermão até ficarem afônicas, mas, primeiro,
digam-me a quem pertenciam todas aquelas carruagens!
As tias ficaram olhando para ela atônitas.
- Ora essa, aos ianques, é claro - disse Eulalie.
- Aventureiros nortistas - acrescentou Pauline com precisão.
Fazendo correções e acréscimos a cada frase dita pela outra, as irmãs contaram
a Scarlett que os cocheiros continuavam fiéis aos seus amos de antes da guerra,
embora agora trabalhassem para os novos-ricos. Durante a temporada, manipulavam
os seus patrões de várias formas inteligentes para poderem levar a "sua gente branca"
aos bailes e recepções se a distância fosse demasiado grande, ou o tempo estivesse
excessivamente inclemente para irem a pé.
- E na noite de Santa Cecília, insistem claramente em estar de folga e terem as
carruagens para seu uso pessoal - acrescentou Eulalie.
- São todos cocheiros experientes e muito altivos - disse Pauline -, portanto, os
nortistas têm um medo horrível de os ofender - disse quase rindo. - Sabem que os
cocheiros os desprezam. Os criados foram sempre as criaturas mais esnobes da terra.
- Estes criados sem dúvida que são - disse Eulalie divertidíssima. - Afinal de
contas, são tão charlestonianos como nós. É por isso que se importam tanto com a
temporada. Os ianques levaram tudo o que puderam e tentaram destruir o resto, mas
ainda temos a nossa temporada.
- E o nosso orgulho! - anunciou Pauline.
"Com o seu orgulho e um tostão, podiam ir de transporte públicos para qualquer
lado", pensou Scarlett azedamente. Mas estava contente por se terem desviado do
assunto para histórias sobre os fiéis criados das velhas famílias que ocuparam o resto
da refeição. Teve mesmo o cuidado de apenas comer metade do café para Eulalie
poder comer o resto, assim que ela fosse embora. A tia Pauline governava a casa com
extrema austeridade.
Ficou agradavelmente surpreendida ao encontrar Anne Hampton na casa dos
Butlers quando lá chegou. Seria agradável deleitar-se um pouco com a admiração de
Anne, depois daquelas horas de fria reprovação das tias.
Mas Anne e a viúva do lar que fora com ela estavam quase totalmente ocupadas
com as braçadas de camélias que tinham sido mandadas da plantação.
E Rhett também.
- Foram queimadas até o chão - estava ele dizendo -, mas crescem mais fortes
que nunca assim que as ervas são arrancadas.
- Oh, olhem! - exclamou Anne. - Uma Reine dês Fleurs.
- E uma Rubra Plena! - A viúva idosa e magra pôs em concha as mãos pálidas
para segurar a flor de um vermelho-vibrante. - Costumava ter as minhas numa jarra de
cristal em cima do piano.
Anne pestanejou rapidamente.
- Nós também, Miss Harriett, e as Alba Plenas na mesa de chá.
- A minha Alba Plena não está tão vigorosa como eu esperava - disse Rhett. - Os
botões estão atrofiados. A viúva e Anne riram.
- Não terá nenhuma flor até Janeiro, Mr. Butler - explicou Anne. - A Alba Plena
floresce tarde.
A boca de Rhett distendeu-se num sorriso levemente embaraçado.
- E ao que parece em termos de jardinagem, eu também.
"Santo Deus!", pensou Scarlett. "Acho que a seguir se vão pôr a falar se o
excremento de vaca é melhor que o de cavalo como adubo. Que conversa mais
maricas para um homem como o Rhett!" Virou-lhes as costas e foi-se sentar numa
cadeira, perto do sofá onde Eleanor Butler estava fazendo a sua renda de bilros.
- Esta peça já quase chega para debruar o decote do teu vestido púrpura quando
precisar ser renovado - disse ela a Scarlett com um sorriso. - A meio da temporada, é
sempre agradável ter uma coisa diferente. Nessa altura já a terei acabado.
- Oh, Miss Eleanor, a senhora é sempre tão querida e atenta. Sinto a minha má
disposição desaparecer. Francamente, fico maravilhada por ser tão amiga da minha tia
Eulalie. Ela não é nada parecida consigo. Está sempre fungando, e queixando-se, e a
embirrando com a tia Pauline.
Eleanor deixou cair o seu bastidor de marfim.
- Scarlett, tu espantas-me! É claro que a Eulalie é minha amiga; considero-a
praticamente uma irmã. Não sabes que ela esteve para casar com o meu irmão mais
novo?
Scarlett ficou boquiaberta.
- Não consigo imaginar ninguém querendo casar com a tia Eulalie - disse,
francamente.
- Mas, minha querida, ela era uma moça encantadora, absolutamente
encantadora. Veio visitar a Pauline quando ela se casou com o Carey Smith e ficou
vivendo em Charleston. A casa onde estão era a casa de cidade de Smith; a plantação
ficava junto ao rio Wando. O meu irmão Kemper apaixonou-se. Todo mundo estava à
espera que eles se casassem. Depois, ele caiu do cavalo e morreu. Desde essa época
que a Eulalie se considera viúva.
- A tia Eulalie apaixonada! - Scarlett não conseguia acreditar.
- Eu estava convencida de que sabias - disse Mrs. Butler.
- Ela é da tua família.
"Mas eu não tenho família", pensou Scarlett, "pelo menos como a Miss Eleanor a
encara. Não é uma família unida, ativa, que sabe os segredos amorosos de todos. Só
tenho a horrível e velha Suellen e a Carreen, com o seu véu de freira e os seus votos
no convento." Subitamente, sentiu-se muito sozinha, apesar dos rostos alegres e das
conversas à sua volta. "Devo estar com fome", decidiu. "E por isso que sinto vontade
de desatar a chorar. Devia ter comido o café todo."
Estava fazendo plena justiça ao almoço quando Manigo entrou e falou em voz
baixa com Rhett.
- Desculpem-me - disse Rhett -, mas parece que temos um oficial ianque à porta.
- Que é que eles andarão preparando? - interrogou-se Scarlett em voz alta.
Rhett veio rindo quando voltou instantes depois.
- Só lhes falta trazerem uma bandeira branca de rendição - disse ele. - Ganhou,
mamã. Estão convidando todos os homens a irem à Casa da Guarda buscar as armas
que confiscaram.
Rosemary aplaudiu ruidosamente.
Miss Eleanor mandou-a calar.
- Não podemos assumir o mérito todo. Eles não podem correr o risco de terem
todas estas casas sem qualquer proteção no Dia da Emancipação. - E continuou,
respondendo à expressão interrogativa de Scarlett. - O dia de Ano Novo não é o que
costumava ser, um dia calmo para tratar as dores de cabeça dos excessos da véspera
de Ano Novo. Mr. Lincoln fez a Proclamação da Emancipação a 1o de Janeiro,
portanto, agora, é o principal dia de comemoração para todos os antigos escravos.
Invadem o parque ao fundo de Battery e lançam bombas de carnaval e disparam
pistolas durante todo o dia e toda a noite, enquanto se vão embriagando. Nós fechamo-
nos em casa, é claro, fechando inclusivamente todas as portas, exatamente como
fazemos quando há um furacão. Mas também é bom ter um homem armado em casa.
Scarlett ficou com uma expressão preocupada.
- Não há armas aqui em casa.
- Mas haverá - disse Rhett. - E mais dois homens. Vêm de Landing de propósito.
- E quando é que vais? - perguntou Eleanor a Rhett.
- Dia trinta. Tenho um encontro com Julia Ashley dia trinta e um. Precisamos fazer
planos para a nossa estratégia de frente unida.
Rhett ia embora. Ia à malvada e malcheirosa plantação! Não estaria lá para beijá-
la na véspera de Ano Novo. Scarlett tinha agora certeza de que ia chorar.
- Vou a Landing contigo - disse Rosemary. - Não vou lá há meses.
- Não podes ir a Landing, Rosemary. - Rhett teve o cuidado de se mostrar
paciente.
- Receio bem que Rhett tenha razão, minha querida - disse Mrs. Butler. - Ele não
pode estar sempre contigo, pois tem demasiados assuntos a tratar. E não podes estar
em casa ou seja onde for apenas com essa criança que tens como criada. Há agitação
demais, pessoas perigosas.
- Então, levo a tua Celie. A Scarlett empresta-te a Pansy para te ajudar a vestir,
não emprestas, Scarlett?
Scarlett sorriu. Não havia qualquer razão para chorar.
- Eu vou contigo, Rosemary - disse numa voz doce. - E a Pansy também. -
Também haveria véspera de Ano Novo na plantação. Sem um salão de baile cheio de
gente, apenas Rhett e ela.
- Como és generosa, Scarlett - disse Miss Eleanor. - Sei que vais senti falta dos
bailes da próxima semana. Tens mais sorte do que mereces, Rosemary, em teres uma
cunhada tão compreensiva.
- Acho que nenhuma delas deve ir, mamã. Não o permitirei - disse Rhett.
Rosemary abriu a boca para protestar, mas a mão semierguida da mãe deteve-a.
Mrs. Butler falou calmamente:
- Não estás sendo atencioso, Rhett; a Rosemary adora Landing tanto como tu, e
não tem a liberdade de ir e vir como tu tens. Acho que a deves levar, sobretudo por ires
falar com a Julia Ashley. Ela gosta muito da tua irmã.
Scarlett tinha a cabeça num turbilhão. Ralava-se de perder alguns bailes se
pudesse estar sozinha com Rhett. Arranjaria forma de se livrar de Rosemary - talvez
essa tal miss Ashley a convidasse para ficar na casa dela. Então, ficaria apenas
Rhett... e Scarlett.
No seu quarto, lembrou-se dele quando tinham estado em Landing. Tinha-a
abraçado, confortado, falado com tanta ternura...
- Verás a plantação de Miss Julie, Scarlett - disse Rosemary bem alto. - É aquilo
que uma plantação deve ser. - Rhett ia a cavalo, à frente, afastando ou arrancando as
trepadeiras de madressilva que tinham crescido até o outro lado do caminho através do
pinheiral. Scarlett ia atrás de Rosemary, momentaneamente desinteressada daquilo
que Rhett estava fazendo, com o pensamento ocupado com outras coisas. "Graças a
Deus que este cavalo é tão gordo e preguiçoso. Já não monto há tanto tempo, que um
animal vivo decerto me atiraria ao chão. Como eu gostava de montar... naquele
tempo... quando os estábulos de Tara estavam cheios. O papá orgulhava-se tanto dos
seus cavalos. E de mim. A Suellen tinha mãos como bigornas, e era capaz de dar cabo
da boca de um jacaré. E a Carreen tinha medo até do seu pônei. Mas eu costumava
fazer corridas com o papá, galopar à desfilada pelas estradas, e às vezes quase lhe
ganhava. 'Katie Scarlett', dizia ele, 'tens mãos de anjo e coragem de diabo. É o teu
sangue O'Hara; um cavalo reconhece sempre um irlandês e dá-lhe o seu melhor.'
Querido papá... Os bosques de Tara tinham um cheiro intenso, exatamente como
estes, e sinto o aroma dos pinheiros picando-me o nariz. E os pássaros cantando e as
folhas estalando ao serem pisadas, e toda esta paz... Quantos hectares terá Rhett?
Saberei pela Rosemary. Ela, provavelmente, sabe até os centímetros quadrados.
Espero que essa tal Miss Ashley não seja a fera que Rhett diz. Que fora que Rhett
tinha dito? Parece que bebeu vinagre. Ele é engraçado quando é desagradável, desde
que não seja comigo."
- Scarlett! Anda, estamos quase lá. - O grito de Rosemary veio de bastante mais
adiante. Scarlett deu um leve toque na garupa do cavalo com o pingalim e este
começou a andar ligeiramente mais depressa. Rhett e Rosemary já tinham saído do
pinheiral quando ela os alcançou. A princípio, só conseguiu ver Rhett, a sua silhueta
claramente recortada na luz intensa do sol. "Como ele é belo e como monta bem o seu
cavalo, que não é uma pileca preguiçosa como o meu, mas um verdadeiro cavalo bem
fogoso. Os músculos do cavalo estão tremendo sob a pele, e contudo está imóvel
como uma estátua, obedecendo à pressão dos joelhos e das mãos dele nas rédeas. As
mãos dele..."
Rosemary apontou e o seu gesto chamou a atenção de Scarlett, dirigindo-a para
a cena à sua frente. Scarlett susteve a respiração. Nunca dera importância à
arquitetura, nem costumava reparar. Até as imponentes casas que faziam que a
Battery de Charleston fosse famosa em todo o mundo eram para ela apenas casas. No
entanto, havia qualquer coisa na beleza austera da casa de Julia Ashley, em Ashley
Brony, que ela reconheceu como sendo diferente de qualquer coisa que alguma vez
vira, e era grandiosa de uma forma que não sabia definir. Estava isolada no meio de
uma enorme extensão de relva, sem estar adornada por um jardim, distante dos
enormes e antigos carvalhos que eram sentinelas bem espaçadas no perímetro do
relvado. Quadrada, feita de tijolo, com portas e janelas brancas, a casa era especial,
murmurou Scarlett. Não era de admirar ter sido a única a ser poupada aos archotes do
exército de Sherman. Nem sequer os ianques ousavam insultar a poderosa presença
perante os seus olhos.
Ouviram-se risos, seguidos de vozes cantando. Scarlett virou a cabeça. A casa
impressionava e intimidava-a. Ao longe, à sua esquerda, viu uma grande extensão de
verde completamente diferente da cor rica da erva que lhe era familiar. Dezenas de
mulheres e homens negros estavam trabalhando e cantando naquele verde estranho.
"Ora, são trabalhadores rurais que estão cuidando de uma safra qualquer. E são
tantos." O seu pensamento voou para os campos de algodão de Tara, que outrora se
estendiam até perder de vista, exatamente como aquele verde estridente fluía sem
limite ao longo do rio. "Oh, sim, Rosemary tem razão. Esta é uma verdadeira plantação,
tal como é suposto ser uma plantação. Nada foi queimado, nada mudou, nada mudará.
O próprio tempo respeitava a grandiosidade de Ashley Barony."
- É muito simpático da sua parte receber-me, Miss Ashley - disse Rhett. Fez uma
vênia sobre a mão que Julia Ashley lhe estendia; segurava as costas da sua mão sem
luva num gesto de respeito e os seus lábios detiveram-se acima dela os dois
centímetros de praxe, pois nenhum cavalheiro cometeria a impertinência de realmente
beijar a mão de uma senhora solteira, por mais idosa que fosse.
- É útil nós dois, Mr. Butler - disse Julia. - Como de costume, estás terrivelmente
mal vestida, Rosemary, mas estou contente por te ver. Apresenta-me a tua cunhada.
"Santo Deus, ela é mesmo uma fera", pensou Scarlett, nervosa. "Será que está à
espera que eu lhe faça uma vênia?"
- Esta é Scarlett, Miss Julia - disse Rosemary, sorrindo.
Não parecia nada incomodada pela crítica da mulher mais velha.
- Como está, Mrs. Butler?
Scarlett tinha a certeza de que Julia Ashley não tinha o menor interesse em saber
como ela estava.
- Como está? - respondeu, seguindo-lhe o exemplo. Inclinou ligeiramente a
cabeça, sendo o grau de inclinação uma réplica exata da frieza polida de Miss Ashley.
"Quem pensava aquela mulher que era?"
- Tenho chá pronto na sala de estar - disse Julia. - Podes servir a Mrs. Butler,
Rosemary. Toca, se precisares de mais água quente. Trataremos dos nossos assuntos
na biblioteca, Mr. Butler, e depois tomaremos chá.
- Oh, Miss Julia, posso ouvi-la a falar com Rhett? - implorou Rosemary.
- Não, Rosemary, não podes.
"E está tudo dito", pensou Scarlett para si própria. Julia Ashley já estava se
afastando com Rhett a segui-la obedientemente.
- Anda, Scarlett, a sala de estar é por aqui. - Rosemary abriu uma porta alta e fez
um gesto chamando Scarlett.
A sala onde entrou foi uma surpresa para Scarlett. Não tinha nenhuma da frieza
da sua proprietária e não era nada intimidante. Era muito grande, maior que o salão de
baile de Minnie Wentworh. Mas o chão estava coberto por um velho tapete persa com
um fundo vermelho-desbotado, e os cortinados nas janelas altas eram de uma cor
rosada quente e agradável. Havia um lume vivo aceso na grande lareira; o sol entrava
a jorros através dos vidros cintilantes, indo incidir no serviço de chá de prata bem
polida, no veludo azul, dourado e rosa dos estofados dos amplos sofás e cadeirões de
orelhas. E um enorme gato amarelo estava dormindo em frente à lareira. Scarlett
abanou ligeiramente a cabeça com admiração. Era difícil acreditar que aquela sala
alegre e acolhedora tivesse qualquer relação com a mulher emproada de vestido preto
que a recebera à porta. Sentou-se num sofá ao lado de Rosemary.
- Fala-me de Miss Ashley - disse, cheia de curiosidade.
- Miss Julia é maravilhosa! - exclamou Rosemary. - Dirige Ashley Barony ela
própria; diz que nunca teve nenhum supervisor que não precisasse ser supervisionado.
E tem praticamente tantos campos de arroz quantos tinha antes da guerra. Podia fazer
a exploração de fosfato como o Rhett, mas recusa-se a meter-se nisso. As plantações
são para plantar, diz ela, não para... - Rosemary baixou a voz para um murmúrio
chocado, mas deliciado - ...violar a terra para tirar o que está lá dentro. Conserva-a
como sempre esteve. Tem cana-de-açúcar e uma prensa para fazer melaço, e um
ferreiro para ferrar as mulas e fazer rodas para as carroças, e um tanoeiro para fazer
barris para o arroz e para o melaço, e um carpinteiro para arranjar as coisas, e um
curtidor para fazer arreios. Leva o arroz para a cidade para ser descascado e compra
farinha, café e chá, mas todo o resto vem daqui. Tem vacas, e carneiros, e aves e
porcos, e uma queijaria e um fumeiro e armazéns cheios de legumes enlatados e milho
descascado, e conservas de fruta da colheita do Verão. Também faz o seu próprio
vinho. Rhett diz que até tem um alambique no pinheiral, onde faz terebintina.
- Ela ainda tem escravos? - As palavras de Scarlett foram cortantemente
sarcásticas. O tempo das grandes plantações tinha acabado, e não havia forma de o
trazer de volta.
- Oh, Scarlett, às vezes pareces mesmo o Rhett. Dá-me vontade de os abanar
aos dois. Miss Julia paga ordenados, exatamente como todas as outras pessoas. Mas
faz que a plantação renda o suficiente para lhes pagar. Se algum dia tiver chance
disso, vou fazer a mesma coisa em Landing. Acho horrível Rhett nem sequer tentar.
Rosemary começou a mexer ruidosamente nas xícaras e nos pires que estavam
sobre a bandeja.
- Não me consigo lembrar se gostas de leite ou de limão no chá, Scarlett.
- O quê? Oh... leite, por favor. - Scarlett não estava nada interessada no chá.
Estava revivendo a fantasia que já tivera antes, de fazer renascer Tara, com os seus
campos cobertos de algodão branco até perder de vista, e os seus celeiros cheios, e a
casa como sempre fora quando a mãe era viva. Sim, naquela sala havia um certo
aroma há muito esquecido, de óleo de limão, e polimento de metal e cera do chão. Era
tênue, mas ela tinha certeza de que o sentia, apesar do perfume forte e resinoso dos
troncos de pinheiro na lareira.
A sua mão aceitou automaticamente a xícara de chá que Rosemary lhe estendia
e segurou-a, deixando-o esfriar, enquanto continuava sonhando acordada. "Por que
não transformar Tara no que tinha sido? Se esta velhota consegue gerir esta plantação,
eu posso gerir Tara. O Will não sabe o que é Tara, a verdadeira Tara, a melhor
plantação de Clayton County. 'Uma quinta de duas mulas', é como ele lhe chama
agora. Não, por todos os santos, Tara é muito mais que isso! Aposto que eu também
conseguiria fazê-lo. O papá não disse centenas de vezes que eu era uma verdadeira
O'Hara? Então, consigo fazer o que ele fez, fazer que Tara seja como ele a fez. Talvez
até melhor. Sei contabilidade, sei arrancar lucro onde mais ninguém vê qualquer
chance. Ora, praticamente, todas as plantações à volta de Tara voltaram a ser mato.
Poderia comprar terra quase de graça!"
O seu pensamento saltou de uma imagem para outra - campos ricos, gado gordo;
o seu antigo quarto com cortinas brancas engomadas ondulando com a brisa de
Primavera perfumada de jasmim; andar a cavalo pelos bosques, limpos de vegetação
rasteira, quilômetros de cerca de madeira de castanheiro delimitando a sua terra, que
se estendia cada vez mais pela região de terra vermelha... Mas teve de pôr de lado a
sua visão. Relutante, centrou a sua atenção na voz alta e insistente de Rosemary.
"Arroz, arroz, arroz! Será que a Rosemary não consegue falar de mais nada a não
ser de arroz? Que diabo é que Rhett terá a tratar com aquele susto da velha Miss
Ashley durante tanto tempo?" Scarlett voltou a mudar de posição no sofá. A irmã de
Rhett tinha o hábito de se inclinar na direção do seu interlocutor quando se
entusiasmava com o que estava dizendo. Rosemary tinha-a empurrado quase até o
canto do comprido sofá. Scarlett virou-se ansiosamente para a porta quando esta se
abriu. "Bolas para Rhett! De que estaria rindo com Julia Ashley? Ele podia achar graça
em deixá-la à espera durante uma eternidade, mas ela, não."
- Você foi sempre um malandro, Rhett Butler - dizia Julia -, mas não me lembro de
que a impertinência estivesse incluída na lista dos seus pecados.
- Miss Ashley, no meu entender, a impertinência é um rótulo aposto ao
comportamento de criados para com os seus amos e dos jovens para com os mais
idosos. Ao passo que eu sou, em tudo, um seu obediente criado, e decerto não estará
a sugerir que a senhora é idosa. Contemporânea, concedo com prazer, mas idosa está
fora de questão.
"Ora esta, está flertando com a velha criatura! Imagino que esteja muito
interessado em qualquer coisa para estar fazendo esta figura de idiota."
Julia Ashley fez um som que só podia ser descrito como um resfolegar digno.
- Muito bem - disse ela. - Concordo, na condição de pôr termo a este absurdo.
Agora, sente-se e deixe de ser tolo.
Rhett aproximou uma cadeira da mesa de chá, e curvou-se cerimoniosamente
quando Julia se sentou nela.
- Muito obrigado pela sua condescendência, Miss Julia.
- Não seja bobo, Rhett.
Scarlett olhou para ambos com a testa franzida. Que era aquilo? Tudo aquilo de
passar de "Miss Ashley" e "Mr. Butler" para "Rhett" e "Miss Julia"? Rhett era um bobo,
exatamente como a velha criatura tinha dito. Mas "Miss Julia" estava bem perto de se
armar ela própria em boba. Ora, estava praticamente ronronando com Rhett. A forma
como ele conseguia fazer o que queria das mulheres era simplesmente repugnante.
Uma criada entrou apressadamente na sala e tirou a bandeja do chá de cima da
mesa em frente do sofá. Uma segunda criada veio a logo a seguir e retirou
silenciosamente a mesa para a colocar em frente de Julia, e um criado com uma
bandeja de prata, com um outro serviço de chá de prata e pratos com sanduíches e
bolos. Scarlett tinha que reconhecer que por mais desagradável que Julia Ashley
pudesse ser, a velhota fazia as coisas com estilo!
- Rhett disse-me que vais fazer a volta, Rosemary - disse Julia.
- Sim, senhora! Estou tão excitada que podia morrer.
- Creio que isso seria bastante inconveniente. Diz-me, já começaste a planejar o
teu itinerário?
- Não, Miss Julia. Só há uns dias é que soube que ia. A única coisa de que tenho
a certeza é que quero passar o maior tempo possível em Roma.
- Tens que ter o cuidado de escolheres a melhor época. O calor de Verão é
insuportável, mesmo para um charlestoniano. Todos os romanos abandonam a cidade
e vão para as montanhas ou para a beira-mar. Ainda me correspondo com algumas
pessoas encantadoras de quem decerto gostarás. Vou te dar cartas de apresentação, é
claro. Se me permites uma sugestão...
- Oh, por favor, Miss Julia. Há tantas coisas que eu quero saber.
Scarlett deu um pequeno suspiro de alívio. Não tinha eliminado a chance de que
Rhett pudesse contar a Miss Ashley o engano dela em pensar que a única Roma era
na Geórgia, mas ele tinha deixado passar a oportunidade. Estava agora dando a sua
contribuição à conversa, falando animadamente com a velhota sobre pessoas com
nomes estranhos. E Rosemary escutava-os, deliciada.
A conversa não interessava nada a Scarlett. Mas não estava entediada.
Observou, fascinada, todos os movimentos que Julia Ashley fazia ao presidir à mesa
de chá. Sem a menor quebra na conversa sobre antiguidades romanas - a não ser para
perguntar a Scarlett se tomava o chá com leite ou limão e com quantos quadrados de
açúcar -, Julia encheu as xícaras e estendia cada uma, a uma altura ligeiramente
abaixo do seu ombro direito, para uma das criadas lhe pegar. Erguia-a, não esperava
mais de três segundos, e retirava a mão.
"Ela nem sequer olha!", maravilhou-se Scarlett. "Se a criada não estivesse ali ou
não fosse suficientemente rápida, a xícara cairia no chão." Mas uma das criadas estava
sempre lá e a xícara era silenciosamente entregue à pessoa certa sem se entornar
uma gota.
"De onde é que este apareceu?" Scarlett sobressaltou-se quando o criado
apareceu junto dela, oferecendo-lhe um guardanapo desdobrado e o suporte com três
pratos de sanduíches. Quando ia estender a mão para tirar uma, o homem pôs-lhe um
prato junto da mão.
"Oh, estou entendendo, há uma criada que dá as coisas para ele me passar!
Bem, é complicado para um sanduíche de pasta de peixe que se comia de uma só
dentada."
Mas ficou impressionada com a elegância de tudo aquilo, e ainda mais
impressionada ficou quando o homem pegou uma elaborada pinça de prata com a mão
de luva branca e colocou uma variedade de sanduíches no seu prato. O toque final foi
a pequena mesa com uma toalha orlada de renda que a segunda criada colocou junto
dos seus joelhos quando ela se interrogava como se iria desenvencilhar com uma
xícara e pires numa mão e um prato na outra.
Apesar de estar com fome e curiosa em relação aos sanduíches - que diabo de
comida fina exigia aquele serviço rebuscado? -, Scarlett estava mais interessada na
rotina silenciosa e eficaz dos criados, enquanto primeiro Rosemary, e depois Rhett,
receberam prato e sanduíches e mesa. Ficou quase decepcionada quando viu que
Miss Ashley não recebeu tratamento especial, tendo apenas o suporte com os pratos
dos sanduíches sido de novo colocado sobre a mesa à sua frente. Ora, ora! Ela até
está desdobrando o seu próprio guardanapo! Ficou positivamente decepcionada
quando deu uma dentada no primeira sanduíche e viu que era apenas pão com
manteiga, muito embora a manteiga tivesse mais qualquer coisa - salsa, pensou; não,
era uma coisa de sabor mais forte, talvez cebolinhas. Comeu com satisfação; todos os
sanduíches eram muito bons. E os bolos no outro suporte de pratos tinham ainda
melhor aspecto.
"Santo Deus! Ainda estão falando de Roma!" Scarlett olhou de relance para os
criados. Estavam de pé, imóveis como postes, ao longo da parede, por detrás de Miss
Ashley. Era óbvio que os bolos não iam ser servidos tão depressa. Pelo amor de Deus,
Rosemary só tinha comido metade de um sanduíche.
- Mas não estamos sendo atenciosos - disse Julia Ashley.
- Mrs. Butler, que cidade é que gostaria de visitar? Ou compartilha a convicção de
Rosemary de que todas as estradas vão para Roma?
Scarlett fez o seu melhor sorriso.
- Estou encantada demais com Charleston para sequer pensar em ir a qualquer
outro lado, Miss Ashley.
- Uma resposta elegante - disse Julia -, embora de certa forma ponha ponto final à
conversa. Posso oferecer-lhe mais chá?
Antes de Scarlett poder aceitar, Rhett falou:
- Lamento, mas temos que ir embora, Miss Julia. Ainda não tenho as trilhas
através dos bosques em condições para poderem serem percorridas de noite, e os dias
são muito curtos.
- Podia ter avenidas, e não trilhas, se pusesse os seus homens trabalhando a
terra em vez de naquela vergonhosa mina de fosfato.
- Então, Miss Julia, pensei que tivéssemos estabelecido tréguas.
-E assim fizemos. E eu honrá-las-ei. Mas, reconheço que deve ter o cuidado de
chegar em casa antes de anoitecer. Tenho estado me deliciando com recordações
felizes de Roma, e não prestei atenção às horas. Talvez a Rosemary queira passar a
noite aqui. Amanhã de manhã será acompanhada por Landing.
"Oh, sim!", pensou Scarlett.
- Infelizmente, não pode ser - disse Rhett. - Talvez tenha que sair esta noite, e
não quero que Scarlett fique sozinha em casa apenas com a sua criada da Geórgia.
- Não me importo, Rhett - disse Scarlett bem alto -, garanto-te que não me
importo. Achas que sou uma tolinha que tem medo do escuro?
-Acho que tem razão, Rhett - disse Julia Ashley. -E deve cultivar alguma
precaução, Mrs. Butler. Vivemos numa época incerta.
O tom de Julia era decisivo, bem como o seu movimento brusco. Levantou-se e
dirigiu-se para a porta.
- Acompanho-os. Hector trará os vossos cavalos.
23
Havia vários grandes grupos de negros com ar zangado, e um pequeno grupo de
negras na zona relvada, em forma de ferradura, nos fundos da casa de Landing. Rhett
ajudou Scarlett e Rosemary a descerem dos cavalos no bloco de desmontar junto aos
estábulos improvisados, e segurou-lhes os cotovelos, enquanto o moço de estrebaria
pegava as rédeas e levava os cavalos. Quando o rapaz se afastou o suficiente para
não poder ouvir, Rhett murmurou num tom urgente.
- Vou levá-las até a frente da casa. Entrem e vão imediatamente para um dos
quartos lá em cima. Fechem a porta e não saiam de lá até eu as ir buscar. Vou mandar
a Pansy para lá. Ela que fique convosco.
- Que se passa, Rhett? - A voz de Scarlett fraquejou-lhe.
- Depois conto, agora não há tempo. Façam o que eu disse.
- Continuou segurando as duas mulheres, forçando-as a acompanhar a sua
passada decidida, mas não apressada, até a casa que depois contornaram.
- Mist Butler! - gritou um dos homens. Meia dúzia de homens seguiram-no quando
começou a andar na direção de Rhett. "Isto não é bom", pensou Scarlett, "chamarem-
lhe Mr. Butler em vez de Mr. Rhett. Não estão nada amistosos, e devem ser perto de
cinqüenta."
- Fiquem onde estão - gritou-lhes Rhett. - Assim que as senhoras estiverem
instaladas, voltarei para falar com vocês.
Rosemary tropeçou numa pedra solta do caminho, e Rhett puxou-a para cima
antes de ela cair. - Não quero saber se tens a perna partida - disse entredentes -,
continua a andar.
- Estou bem - disse Rosemary. "Parece que está fria como gelo", pensou Scarlett.
Sentia desprezo por si própria por se sentir tão nervosa. Graças a Deus que já estavam
quase em casa. Mais alguns passos e a teriam já contornado. Não tinha consciência de
que estivera retendo a respiração até se aproximar da frente da casa. Quando viu os
terraços verdejantes que davam para os pequenos lagos e para o rio, deixou escapar
um imenso suspiro de alívio.
Mas voltou de imediato a suster a respiração. Ao virarem a esquina para o terraço
de tijolo, viu ali homens sentados, encostados à parede da casa. Eram todos magros,
raquíticos, com os tornozelos aparecendo entre os sapatos pesados e a bainha dos
macacões desbotados. Tinham espingardas ou rifles sobre os joelhos, e seguravam-
nas num gesto displicente, mas seguro. Velhos chapéus de abas puxados bem para a
testa escondiam-lhes os olhos, mas Scarlett sabia que estavam olhando para Rhett e
para as suas mulheres. Um deles expeliu uma cuspidela castanha de tabaco mascado
sobre a relva, que foi cair em frente às belas botas de montar de Rhett.
- Podes dar graças a Deus não teres sujo a minha irmã, Clinch Dawkins - disse
Rhett -, senão teria que te matar! Falarei com vocês daqui a alguns minutos, pois agora
tenho outras coisas a fazer. - Falou num tom solto e casual. Mas Scarlett sentia a
tensão na mão que lhe pegava no braço. Ergueu o queixo e caminhou com passos
firmes e fortes para acompanhar os de Rhett. Gente branca pobre, lixo, não iria
intimidar Rhett, nem tão pouco a ela.
Piscou os olhos ao enfrentar a súbita escuridão quando entrou na casa. Que
fedor! Os seus olhos habituaram-se rapidamente, e Scarlett viu qual era a razão dos
bancos e dos escarradores que havia na sala principal do térreo. Mais brancos pobres
de ar abatido e esfomeado estavam estiraçados nos bancos, enchendo todo o espaço.
Também eles estavam armados e as abas dos seus chapéus tornavam os seus olhos
um segredo. O chão estava salpicado de escarros, e os escarradores estavam
rodeados de manchas de tabaco mascado. Scarlett soltou o braço, levantou a saia
acima dos tornozelos e dirigiu-se para as escadas. Dois degraus acima largou a saia,
deixando a orla do traje de montar arrastar pelo pó. Era o que faltava se iria dar o
prazer àquele bando de maltrapilhos de verem o tornozelo de uma senhora. Subiu as
escadas como se não tivesse qualquer preocupação no mundo.
- Que é que está acontecendo, Miss Scarlett? Ninguém me diz nada! - Pansy
começou a chorar assim que a porta do quarto se fechou.
- Cala-te! - ordenou Scarlett. - Queres que todos na Carolina do Sul te ouçam?
- Não quero nada com a gente da Carolina do Sul, Miss Scarlett. Quero voltar
para Atlanta, para junto da minha gente. Não gosto de estar aqui.
- Ninguém liga minimamente com o que tu gostas ou deixas de gostar, portanto,
marcha para aquele canto, senta-te naquele banco e cala a boca. Se ouvir algum ruído
vindo de ti, garanto que te... que te farei qualquer coisa terrível.
Olhou para Rosemary. Se a irmã de Rhett também se fosse abaixo, não sabia o
que faria. Rosemary estava muito pálida, mas parecia bastante composta. Estava
sentada na beira da cama, olhando para o padrão da colcha como se nunca tivesse
visto uma colcha na sua vida.
Scarlett foi à janela que dava para o relvado dos fundos. Se se pusesse de lado,
ninguém lá em baixo a veria espreitando. Ergueu a cortina de musselina com dedos
cautelosos e espreitou. Rhett estaria ali fora? Meu Deus, estava! Conseguia distinguir o
contorno do seu chapéu, um círculo escuro no meio de um enorme grupo de cabeças
escuras e de mãos escuras gesticulando. Os grupos separados de negros tinham-se
juntado, formando uma massa ameaçadora.
"Podem espezinhá-lo até à morte apenas num minuto", pensou. "E não posso
fazer nada para o impedir." A sua mão levantou a cortina de musselina com dedos
cautelosos e espreitou lá para fora.
- E melhor afastares-te dessa janela, Scarlett - disse Rosemary. - Se Rhett
começa a preocupar-se contigo e comigo, se distrairá do que quer que tenha que fazer.
Scarlett reagiu imediatamente ao ataque.
- Não te importas com o que está acontecendo?
- Importo-me muito, mas não sei o que está acontecendo. Nem tu.
- Sei que Rhett está prestes a ser esmagado por um bando de negros
enfurecidos. Por que é que aqueles homens nojentos que mascam tabaco não usam as
armas que têm?
- Nessa altura, estaríamos mesmo arrumados. Conheço alguns dos negros;
trabalham na mina de fosfato. Não querem que aconteça nada ao Rhett, senão perdem
o emprego. Além disso, muitos deles são gente dos Butlers. Pertencem a aqui. É dos
brancos que tenho medo. Imagino que Rhett também.
- Rhett não tem medo de nada!
- Claro que tem. Seria louco se não tivesse. Eu estou muito assustada e tu
também estás.
- Não estou nada!
- Então, és idiota.
Scarlett ficou boquiaberta. O tom cortante de Rosemary chocou-a mais que o
insulto. "Ora, parece mesmo a Julia Ashley." Meia hora com aquela fera e Rosemary
tinha se transformado num monstro.
Virou-se rapidamente para a janela. Estava começando a escurecer. Que estava
acontecendo?
Não conseguia ver absolutamente nada. Apenas formas escuras num fundo
escuro. Seria Rhett uma delas? Não conseguia ver. Encostou o ouvido ao vidro da
janela e esforçou-se por ouvir. O único som era o choramingar abafado de Pansy.
"Se não fizer nada, enlouqueço", pensou ela, começando a andar de um lado
para o outro no pequeno quarto.
- Por que é que uma plantação tão grande como esta tem quartos tão pequenos?
- queixou-se. - Nos quartos de Tara, cabiam dois como este.
- Queres realmente saber? Então, senta-te. Há uma cadeira de balanço junto da
outra janela. Podes te balançar em vez de andar de um lado para o outro. Vou acender
o candeeiro, e se quiseres te falarei de Dunmore Landing.
- Não consigo ficar sentada! Vou lá abaixo ver o que se passa. - Scarlett procurou
às apalpadelas, no escuro, a maçaneta da porta.
- Se o fizeres, ele nunca te perdoará - disse Rosemary.
A mão de Scarlett imobilizou-se.
O fósforo acendendo-se soou tão forte como o tiro de uma pistola. Scarlett sentiu
os nervos saltarem sob a pele. Depois virou-se, ficando surpreendida ao ver que
Rosemary continuava exatamente na mesma. Estava no mesmo local, sentada na
beira da cama. O candeeiro a petróleo tornava a amálgama de cores da colcha
extremamente viva. Scarlett hesitou por instantes. Depois dirigiu-se para a cadeira de
balouço e deixou-se cair sobre ela.
- Está bem. Fala-me de Dunmore Landing. - Começou a balançar-se, empurrando
zangada com os pés. A cadeira foi rangendo enquanto Rosemary falava da plantação
que tanto significava para ela. Scarlett balançava-se com um prazer maldoso.
A casa onde estavam, começou Rosemary, tinha quartos pequenos por ter sido
construída apenas para servir de alojamento a convidados solteiros. No andar de cima
havia mais quartos pequenos, para os criados dos convidados. As salas no térreo onde
agora estava o escritório de Rhett e a sala de jantar, eram também como quartos para
convidados - onde se bebia uma última bebida tarde e se jogava cartas e se
confraternizava.
- Todas as cadeiras eram de couro verdadeiro - disse Rosemary baixinho. - Eu
costumava adorar ir para lá cheirar o couro e o uísque e o fumo do tabaco quando os
homens saíam para caçar. Foi dado a Landing o mesmo nome do sítio onde os Butlers
viviam antes do nosso tetra-avô deixar a Inglaterra e ir para Barbados. O nosso trisavô
veio de lá para Charleston há cerca de cento e cinqüenta anos. Construiu Landing e os
jardins. O nome de solteira da mulher dele era Sophia Rosemary Ross. Ross e eu
temos os nomes dela.
- De onde vem o nome de Rhett?
- Tem o nome do nosso avô.
- Rhett disse-me que o vosso avô era pirata.
- Disse? - Rosemary riu. - É mesmo dele. O avozinho furou o bloqueio inglês
durante a revolução, exatamente como Rhett furou o bloqueio ianque na nossa guerra.
Estava absolutamente decidido a vender a sua safra de arroz, e nada nem ninguém o
impediria. Imagino que fez bom negócio do lado de lá, mas acima de tudo, era
plantador de arroz. Dunmore Landing tem sido sempre uma plantação de arroz. E por
isso que fico furiosa com Rhett...
Scarlett balouçou-se mais depressa. "Se ela se põe outra vez a falar de arroz",
grito.
Os dois tiros de rifle estouraram na noite e Scarlett gritou mesmo. Saltou da
cadeira e correu para a porta. Rosemary levantou-se da cama de um salto e correu
atrás dela. Agarrou Scarlett pela cintura com os seus braços fortes, e deteve-a.
- Deixa-me, Rhett pode estar... - exclamou Scarlett numa voz rouca. Rosemary
estava a impedi-la de respirar.
Os braços de Rosemary apertaram-na com mais força. Scarlett esforçou-se por
se libertar. Ouviu a sua própria respiração estrangulada nos seus próprios ouvidos e -
estranhamente, mais distinto - o range-range da cadeira de balanço, abrandando ao
ritmo a que a sua própria respiração abrandava. O quarto iluminado parecia estar
escurecendo.
As suas mãos, que ainda se agitavam, mexeram-se num gesto débil, e a sua
garganta fez um leve ruído arquejante. Rosemary largou-a.
- Desculpa - pensou Scarlett ouvir Rosemary dizer. Não importava. A única coisa
que importava era fazer entrar grandes golfadas de ar nos pulmões. Nem sequer
importava que tivesse caído de quatro no chão. Assim, era mais fácil respirar.
Só passado muito tempo conseguiu falar. Quando olhou para cima, viu Rosemary
de pé, encostada à porta.
- Quase me mataste - disse Scarlett.
- Desculpa. Não era minha intenção machucar-te. Mas tinha que te impedir.
- Porquê? Eu ia para junto de Rhett. Tenho de ir para junto de Rhett. - Ele
significava mais para ela que tudo no mundo.
Aquela estúpida moça não entendia isso? Não, não entendia, nunca tinha amado
ninguém, nunca ninguém a tinha amado.
Scarlett tentou pôr-se de pé. "Oh, Santa Maria, Mãe de Deus, estou tão fraca." As
suas mãos encontraram o poste da cama. Lentamente, içou-se e conseguiu pôr-se de
pé. Estava branca como um fantasma, e os seus olhos verdes chispavam como
chamas frias.
- Vou procurar Rhett - anunciou ela.
Então, Rosemary atingiu-a. Não com as mãos, ou com os punhos. Isso Scarlett
entenderia.
- Ele não te quer - disse Rosemary em voz baixa. - Ele próprio me disse.
24
Rhett parou no meio da frase. Olhou para Scarlett, curioso, e perguntou:
- Que é isto? Não tens apetite? E ainda dizem que o ar do campo deixa as
pessoas famintas. Espantas-me, minha cara. Creio que é a primeira vez que te vejo
deixar comida no prato.
Ela ergueu os olhos do prato intacto e lançou-lhe um olhar irado. Como é que ele
ousava falar-lhe depois de ter falado dela pelas costas? Com quem mais é que teria
conversado além de Rosemary? Será que todos em Charleston saberiam que ele a
tinha abandonado em Atlanta, e que ela bancara a tola vindo atrás dele?
Baixou os olhos e continuou a brincar com a comida que tinha no prato.
- Afinal, o que aconteceu? - perguntou Rosemary. - Ainda não entendi.
- Exatamente o que Miss Julia e eu esperávamos. Os trabalhadores rurais dela e
os meus mineiros tinham armado uma conspiração. Sabes que os contratos de
trabalho são assinados no dia de Ano Novo para o ano que começa. Os homens de
Miss Julia iam dizer-lhe que eu pagava aos meus mineiros quase o dobro do que ela
lhes pagava, e que ela tinha que lhes aumentar os salários, senão vinham trabalhar
para mim. Os meus homens iam fazer o mesmo jogo, só que ao contrário. Nunca lhes
passou pela cabeça que Miss Julia e eu sabíamos o que se passava.
"Os boatos começaram a correr assim que fomos a Ashley Barony. Todos
perceberam que o jogo tinha sido descoberto. Viste como os trabalhadores de Barony
estavam trabalhando afincadamente nos campos de arroz. Não se queriam arriscar a
perder o emprego e têm todos um medo de morte de Miss Julia.”
"Aqui as coisas não estavam tão calmas. Correu o boato de que os negros de
Landing estavam planejando alguma coisa, e os meeiros do outro lado da estrada de
Summerville ficaram nervosos. Fizeram o que todos os brancos pobres fazem,
agarraram nas armas e prepararam-se para a luta. Vieram para cá, forçaram a entrada
e roubaram o meu uísque, distribuindo as garrafas para conseguirem aquecer ainda
mais os ânimos.”
"Depois de vocês estarem a salvo, disse-lhes que eu próprio resolveria os meus
assuntos, virei-lhes as costas e fui para os fundos. Os negros estavam assustados,
com toda a razão, mas eu convenci-os de que conseguia acalmar os brancos e que
deviam ir para casa.”
"Quando voltei para casa, disse aos meeiros que tinha resolvido tudo com os
mineiros e que eles também deviam ir para casa. Provavelmente fui demasiado
apressado. Estava tão aliviado por não ter tido problemas, que fui descuidado. Da
próxima vez serei mais esperto. Se, e Deus nos livre disso, houver próxima vez. De
qualquer forma, o Clinch Dawkins perdeu a cabeça. Estava ansioso por arranjar
discussão. Disse-me que eu não passava de um amigo dos negros, e apontou-me o
rifle que tinha na mão. Eu não esperei para ver se ele estava suficientemente
embriagado para disparar. Avancei e virei-a para cima. O céu ficou com dois buracos.”
- Foi só isso? - Scarlett quase gritou. - Podias ter nos avisado.
- Estava ocupado, minha queridinha. O orgulho de Clinch ficou ferido e sacou uma
navalha. Saquei a minha e passamos uns dez minutos bastante ativos até eu lhe cortar
o nariz.
Rosemary soltou uma exclamação abafada. Rhett deu-lhe uma palmadinha na
mão.
- Só a ponta. De qualquer forma era comprido demais. Ficou bem melhor assim.
- Mas, Rhett, ele virá atrás de ti.
Rhett abanou a cabeça.
- Não, garanto-te que não. Foi uma luta leal. E Clinch é um dos meus velhos
companheiros. Estivemos juntos no Exército da Confederação. Há entre nós laços que
não podem ser afetados por um pedaço de nariz.
- Tenho pena de que ele não te tenha morto - disse Scarlett distintamente. - Estou
cansada e vou para a cama.
Empurrou a cadeira para trás e saiu da sala com extrema dignidade.
As palavras de Rhett, deliberadamente arrastadas, seguiram-na.
- Um homem não pode ter maior bênção do que a dedicação da esposa
amantíssima.
O coração de Scarlett ficou cheio de ira.
- Espero que Clinch Dawkins esteja lá fora neste preciso momento - disse
entredentes -, à espera de dar um tiro certeiro.
Para ser honesta, não se mataria a chorar se o segundo tiro acertasse em
Rosemary.
Rosemary ergueu o seu copo de vinho a Rhett.
- Muito bem, agora já sei por que é que disseste que era um jantar de
comemoração. Por mim, estou comemorando este dia ter terminado.

- Scarlett está doente? - perguntou Rhett à irmã. - Estava apenas a brincando


sobre o apetite dela. Não é habitual nela não comer.
- Está aborrecida.
- Já a vi aborrecida vezes sem conta, e de cada uma dessas vezes comeu
sempre como um estivador.
- Não é só mau gênio, Rhett. Enquanto estavas a cortar narizes, eu e a Scarlett
fizemos o nosso próprio combate de luta livre. - Rosemary descreveu o pânico de
Scarlett e como estava determinada a ir procurá-lo. - Eu não sabia até que ponto é que
as coisas estavam perigosas lá em baixo, portanto, segurei-a para a impedir. Espero
que tenha feito bem.
- Fizeste muitíssimo bem. Sabe-se lá o que podia ter acontecido.
- Receio tê-la segurado com demasiada força - confessou Rosemary. - Quase
desmaiou, pois não conseguia respirar.
Rhett lançou a cabeça para trás e riu.
- Meu Deus, gostaria de ter visto. Scarlett O'Hara imobilizada no tapete por uma
garota. Deve haver umas cem mulheres na Geórgia que bateriam palmas até ficar sem
pele a aplaudir-te!
Rosemary pensou se havia de confessar o resto. Sabia que aquilo que tinha dito a
Scarlett tinha-a magoado mais que a luta. Decidiu não o fazer. Rhett ainda estava rindo
baixinho; não fazia sentido estragar-lhe a boa disposição.

Scarlett acordou antes de amanhecer. Ficou imóvel no quarto escuro, temendo


mexer-se. "Respira como se ainda estivesses a dormir", disse a si própria; "não
acordarias a meio da noite, a menos que tivesse havido um barulho ou qualquer coisa."
Escutou durante o que lhe pareceu ser uma eternidade, mas o silêncio era pesado e
contínuo.
Quando se apercebeu de que tinha sido a fome a acordá-la, quase chorou de
alívio. E claro que tinha fome! Não tinha comido nada desde o desjejum do dia anterior,
a não ser alguns sanduíches ao lanche em Ashley Barony.
O ar da noite estava frio demais para ela vestir o elegante roupão de seda que
trouxera consigo. Embrulhou-se na colcha da cama. Era de lã pesada e ainda
conservava o calor do seu corpo. Arrastou-se incomodamente em volta dos seus pés
descalços, enquanto ela percorreu silenciosamente o corredor às escuras e desceu as
escadas. Graças a Deus que a lareira quase extinta ainda dava algum calor e luz
suficiente para ver a porta da sala de jantar e, mais adiante, a cozinha. Não se
importava com o que iria encontrar, até arroz frio e guisado lhe serviriam. Com uma
mão segurando na colcha escura em que estava embrulhada, tateou em busca da
maçaneta da porta. Estaria do lado esquerdo ou direito? Não reparara.
- Pare imediatamente, senão enfio-lhe um tiro na barriga! - A voz ríspida de Rhett
fez que ela desse um salto. A colcha caiu, e o ar frio assaltou-a.
- Que raio! - Scarlett virou-lhe as costas e começou a pegar as dobras da colcha. -
Não bastou o que se passou ontem para me assustar de morte? É preciso
recomeçares tudo? Meu coração quase saiu pela boca!
- Por que andas por aqui a uma hora destas, Scarlett? Podia ter te dado um tiro.
- Por que andas por aí, a assustar as pessoas? - Scarlett pôs a colcha sobre os
ombros como se fosse um manto imperial de arminho. - Vou à cozinha comer alguma
coisa - disse com toda a dignidade que conseguiu reunir.
Rhett sorriu numa atitude absurdamente altiva.
- Vou acender o fogão - disse ele. - Eu também estava pensando em tomar café.
- A casa é tua. Acho que se queres, podes tomar café.- Scarlett deu um pontapé à
cauda da colcha que ia arrastando atrás de si como se fosse a cauda de um vestido de
baile. - Então? Vais ou não abrir a porta?
Rhett atirou algumas achas para a lareira. As brasas incendiaram um ramo de
folhas secas de um dos troncos. E antes de Scarlett poder ver, compôs a expressão do
rosto. Abriu a porta da sala de jantar e recuou. Scarlett passou por ele, altivamente,
mas teve que parar quase de imediato. A sala estava completamente escura.
- Se me permites... - Rhett acendeu um fósforo, levando-o ao candeeiro por cima
da mesa, e depois regulou cuidadosamente a chama.
Scarlett detectou o riso na voz dele, mas, estranhamente, não ficou zangada.
- Tenho tanta fome que era capaz de comer um cavalo - admitiu.
- Um cavalo, não, por favor - disse Rhett rindo. - Só tenho três, e dois não
prestam para nada. - Colocou a copa de vidro no candeeiro e sorriu-lhe. - Que tal ovos
e presunto?
- Duas fatias - disse Scarlett, seguindo-o até à cozinha, e sentando-se num banco
junto da mesa, com os pés tapados pela colcha, enquanto ele acendia o grande fogão
de ferro.
Quando as achas de pinheiro começaram a arder, estendeu os pés na direção do
calor.
Rhett levou um presunto e tigelas de manteiga e ovos da despensa.
- O moinho de café está na mesa atrás de ti - disse ele. - O café em grão está na
lata. Se o moeres enquanto eu corto o presunto, o desjejum ficará pronto muito mais
depressa.
- Porque não mói o café enquanto eu faço os ovos?
- Porque o fogão ainda não está quente, Miss Glutona. - Há uma frigideira com
pão de milho ao lado do moinho. Vai te entretendo com isso. Eu cozinho.
Scarlett virou-se rapidamente. A frigideira tapada com um guardanapo tinha
quatro quadrados de pão de milho, e ela deixou cair a colcha para tirar um pedaço.
Enquanto mastigava, pôs um punhado de grãos de café no moinho. Depois, deu
alternadamente dentadas no pão de milho e girou manivela. Quando já quase não
havia pão de milho, ouviu chiar quando Rhett pôs o presunto na frigideira.
- Tem um cheiro divino - disse num tom feliz. Acabou de moer o café, dando
várias voltas enérgicas à manivela. - Onde está a cafeteira?
Virou-se, viu Rhett e começou a rir. Tinha um pano da louça entalado no cinto das
calças, e um garfo comprido numa mão. Rhett abanou o garfo na direção de uma
prateleira ao pé da porta.
- Qual é a graça?
- Tu. Desviando-te dos salpicos de gordura. Tapa o buraco do fogão, senão
incendeias a frigideira. Eu já devia saber que não sabias o que fazer.
- Que disparate, minha senhora. Prefiro a aventura da chama aberta. Faz me
lembrar os dias encantadores em que assava bifes frescos de búfalo à fogueira. -
Deslizou a frigideira para um lado da abertura do topo do fogão.
- Comeste mesmo carne de búfalo? Na Califórnia?
- De búfalo, de cabra e de mula, e a carne do cadáver de uma pessoa que não fez
café quando lhe pedi.
Scarlett deu uma risadinha. Correu sobre o chão de pedra frio para ir buscar a
cafeteira.
Sentaram-se à mesa da cozinha em silêncio, ambos concentrados a comer com
apetite. A sala escura estava aconchegada e quente. O cheiro do café no fogão era
doce. Scarlett queria que o desjejum durasse para sempre. Rosemary devia ter
mentido. "Rhett não lhe podia ter dito que não me quer."
- Rhett?
- Hum? - Estava servindo o café.
Scarlett queria assegurar-se de que o conforto e a alegria durariam, mas estava
com medo de estragar tudo.
- Há leite? - perguntou ela.
- Na despensa. Vou buscar. Aquece os pés ao fogão.
Ele ausentou-se por alguns segundos.
Enquanto punha leite e açúcar no café e ia mexendo, ganhou coragem.
- Rhett?
- Sim?
As palavras de Scarlett saíram-lhe num rompante, tão rapidamente que ela não
as pode deter.
- Rhett, não podemos ter bons momentos como estes para sempre? Sabes, estes
são bons momentos. Porque tens que agir sempre como se me odiasses?
Rhett suspirou.
- Scarlett - disse ele num tom cansado -, qualquer animal ataca quando está
encurralado. O instinto é mais forte que a razão, mais forte que a vontade. Quando
vieste para Charleston, estavas encurralando-me. Forçando-me. Estás fazendo neste
momento. Sempre quererás interferir. Quero ser sério. Mas tu não me deixas.
- Deixo, claro que deixo. Quero que sejas simpático.
- Tu não queres simpatia, Scarlett, queres amor. Um amor indiscutível, absoluto,
inequívoco. Dei-te esse amor uma vez, quando tu não o querias. Gastei-o todo,
Scarlett. - O tom de Rhett estava tornando-se mais frio, marcado por uma impaciência
áspera. Scarlett encolheu-se, tocando instintivamente no banco ao seu lado, tentando
encontrar o calor da colcha posta de lado. - Deixa-me explicar-te de forma a que
entendas, Scarlett. Eu tinha no coração mil dólares de amor. Em ouro, não em notas. E
gastei-os em ti, até ao último centavo. Em termos de amor, estou falido. Levaste-me à
falência.
- Eu estava errada, Rhett, e lamento-o profundamente. Estou tentando remediar o
mal que fiz. - O pensamento de Scarlett estava trabalhando freneticamente. "Posso
dar-lhe os mil dólares de amor que tenho no coração", pensou. "Dois mil, cinco, vinte,
um milhão. Depois, conseguirá amar-me porque deixará de estar falido. Terá tudo de
volta, e mais. Basta que aceite. Tenho que fazer que ele aceite..."
- Scarlett - dizia Rhett -, não há "remédio" para o passado. Não destruas o pouco
que ainda resta. Deixa-me ser simpático. Sinto-me melhor se o for.
Ela agarrou-se desesperadamente às palavras dele.
- Oh, sim! Sim, Rhett, por favor. Seja simpático como eras antes de eu dar cabo
dos tempos felizes que vivíamos. Não te forçarei. Vamos nos divertir, ser amigos, até
eu voltar para Atlanta. Contentar-me-ei em apenas rirmos juntos; estive tão bem
durante o desjejum. Ficas mesmo divertido nessa espécie de avental - disse com uma
risadinha. Graças a Deus que ele não conseguia vê-la melhor do que ela o via.
- E só isso que queres? - O alívio fez desaparecer o tom cortante da voz de Rhett.
Scarlett bebeu um grande gole de café, enquanto pensava no que ia responder.
Depois, conseguiu dar uma gargalhada ligeira.
- Sim, é claro, meu tonto. Sei ver quando fui derrotada. Apenas achei que valia a
pena tentar. Não te voltarei a forçar, mas, por favor, faz que eu tenha uma boa
temporada. Sabes como gosto de festas. - E voltou a rir. - E se quiseres mesmo ser
simpático, Rhett Butler, podes servir-me outra xícara de café.

Depois do desjejum, Scarlett foi ao quarto vestir-se. Ainda estava escuro, mas
estava excitada demais para pensar em voltar a dormir. Tinha composto as coisas
bastante bem, pensou. Ele tinha deixado cair a sua defesa. Também tinha gostado do
desjejum, tinha certeza absoluta.
Vestiu o vestido castanho de viagem que usara no barco, escovou o cabelo
escuro para trás e pôs travessas para o segurar. Depois, esfregou um pouquinho de
água-de-colônia nos pulsos e na garganta, apenas uma leve sugestão de que era
feminina, suave e desejável.
Fez o mínimo barulho possível ao passar pelo corredor e ao descer as escadas.
Quanto mais tempo Rosemary dormisse, melhor. A janela que dava para leste no
patamar das escadas era distinta na escuridão. Estava quase amanhecendo. Scarlett
apagou a chama do candeeiro que levava na mão. "Oh, por favor, deixa que seja um
bom dia, deixa que eu faça tudo bem. Deixa que seja desjejum durante todo o dia. E
durante toda a noite. É véspera de Ano Novo."
A casa tinha a qualidade de quietude que envolve a terra imediatamente antes do
nascer do sol. Scarlett andou com cuidado para não fazer o menor barulho até chegar
à sala do meio no térreo. A lareira ardia vivamente; Rhett devia ter posto mais lenha
enquanto ela se vestia. Conseguia distinguir a forma escura dos seus ombros e cabeça
emoldurados pela meia luz acinzentada da janela à sua frente. Estava no escritório,
com a porta aberta, de costas para ela. Scarlett atravessou a sala na ponta dos pés e
bateu de leve, com as pontas dos dedos no umbral da porta.
- Posso entrar? - murmurou.
- Pensei que tinhas voltado para a cama - disse Rhett.
Parecia extremamente cansado. Ela lembrou-se de que ele tinha estado de pé
durante toda a noite guardando a casa. Gostaria de poder aconchegar-lhe a cabeça
contra o seu coração e de o acariciar até o cansaço passar.
- Não valia a pena voltar a adormecer, pois assim que o
sol nascer os galos põem-se a cantar como doidos. - Deu um passo em frente,
hesitantemente. - Importas-te que me sente aqui? No teu escritório não cheira tão mal.
- Entra - disse Rhett sem olhar para ela.
Silenciosamente, Scarlett foi se sentar numa cadeira logo à entrada do escritório.
Via, por cima do ombro de Rhett, a janela tornar-se mais distinta. "Porque estará ele
olhando tão fixamente para a janela? Aqueles malucos estarão de novo lá fora? Ou
será Clinch Dawkins?" Um galo cantou e todo o seu corpo estremeceu.
Depois, os primeiros raios fracos da alvorada vermelha tocaram na cena do outro
lado da janela. As ruínas da casa de tijolo de Dunmore Landing ficaram
dramaticamente iluminadas, vermelhas contra o céu escuro por detrás. Scarlett deu um
grito. Parecia que ainda fumegavam. Rhett estava observando a agonia do seu lar.
- Não olhes, Rhett - implorou ela -, não olhes. Só servirá para te cortar o coração.
- Eu deveria estar aqui, talvez os tivesse impedido. - A voz de Rhett soou lenta,
distante, como se não soubesse o que estava falando.
- Não poderia. Eles deviam ser centenas. Atirariam em ti e queimariam tudo de
qualquer maneira!
- Mas eles não dispararam sobre Julia Ashley - disse
Rhett e a sua voz era já diferente. Apesar de pesaroso, o seu tom tinha também
um certo humor por trás das palavras.
A luz vermelha no exterior da casa estava mudando, tornando-se mais dourada, e
as ruínas eram apenas tijolos enegrecidos e chaminés com o brilho do orvalho tocado
pelo sol.
A cadeira giratória de Rhett deu uma volta. Ele passou a mão pelo queixo, e
Scarlett quase conseguiu ouvir o raspar da barba por fazer. Estava com olheiras que
eram visíveis mesmo na sala escura, e o cabelo preto estava despenteado, com um
topete na parte de cima e uma madeixa descuidadamente caída sobre a testa. Rhett
levantou-se, bocejou e espreguiçou-se.
- Acho que já é seguro ir dormir um pouco. Tu e a Rosemary não saiam de casa
até eu acordar. - Deitou-se num banco de madeira e adormeceu de imediato.
Scarlett ficou observando-o enquanto dormia.
"Nunca mais posso dizer que o amo. Faz com que se sinta pressionado. E
quando ele é desagradável, eu sinto-me diminuída e rebaixada por tê-lo dito. Não,
nunca mais direi. Só depois que ele me disser primeiro que me ama."
25
Rhett esteve muito ocupado desde o momento em que acordou, depois de uma
hora de sono profundo, e disse peremptoriamente a Rosemary e a Scarlett para se
manterem afastadas dos pequenos lagos. Ia construir uma plataforma para os
discursos e a cerimônia da contratação no dia seguinte.
- Os trabalhadores não gostam da presença de mulheres. - Sorriu à irmã. - E eu
não quero de forma alguma que a mamã me pergunte por que é que eu permiti que
aprendeste um novo vocabulário tão pitoresco.
A pedido de Rhett, Rosemary levou Scarlett para dar uma volta pelos jardins
abandonados. Os caminhos tinham sido limpos, mas não tinha sido posto cascalho, e a
bainha de Scarlett não tardou a ficar preta do pó fino. Como tudo era diferente de
Tara... Até a terra. Não lhe parecia natural que os caminhos e o pó não fossem
vermelhos. Além disso, a vegetação era muito espessa, e muitas das plantas não lhe
eram familiares. Era luxuriante demais para o seu gosto.
Mas a irmã de Rhett adorava a plantação dos Butler com uma paixão que a
surpreendeu. "Ora, ela sente por este local o mesmo que eu sinto por Tara. Afinal de
contas, talvez eu consiga me entender com ela."
Rosemary não deu pelos esforços de Scarlett para encontrar um tema comum.
Estava perdida num mundo perdido: Dunmore Landing antes da guerra.
- Isto chamava-se o "jardim escondido", por causa das sebes altas que nos
impediam de o ver até subitamente estarmos lá dentro. Quando era pequena,
costumava esconder-me aqui quando se aproximava a hora do banho. Os criados eram
maravilhosos para mim... andavam de um lado para o outro no meio dos arbustos,
gritando que tinham a certeza de que nunca me encontrariam. Eu achava-me
extremamente inteligente. E quando a minha Mammy passava o portão, mostrava-se
sempre surpreendida por me ver... gostava tanto dela.
- Eu também tive uma Mammy. Ela...
Rosemary já recomeçara a andar.
- Por aqui chega-se a um açude. Havia cisnes negros e cisnes brancos. Rhett diz
que talvez voltem quando os juncos forem cortados, e todas aquelas algas nojentas
forem tiradas. Vês aqueles arbustos? Na realidade é uma ilha construída de propósito
para os cisnes. Era toda de erva, é claro que era cortada quando não era hora de
fazerem o ninho. E havia uma miniatura de um templo grego de mármore branco.
Talvez os pedaços estejam algum lugar no meio do mato. Muita gente tem medo dos
cisnes. Podem causar ferimentos perigosos com o bico e as asas. Mas os nossos
deixavam-me nadar com eles assim que as crias saíam dos ninhos. A mamã
costumava ler-me O Patinho Feio sentada no banco na varanda. Quando aprendi a ler,
lia-o aos cisnes.
"Este carreiro leva ao roseiral. Em maio, sentia-se o seu perfume a quilômetros de
distância no rio, antes de se chegar a Landing. Dentro de casa, em dias de chuva, com
as janelas fechadas, o perfume dos grandes arranjos de rosas faziam me sentir
completamente..."
"Lá embaixo, no rio, havia um grande carvalho com uma casa nos galhos. Foi
Rhett que a construiu quando era pequeno, e depois Ross ficou com ela. Eu costumava
ir para lá com um livro e biscoitos com compota, e ficava lá horas a fio. Era muito
melhor do que a casa de brincar que o papá mandou que os carpinteiros fizessem para
mim. Era extravagante demais, com tapetes no chão, e móveis do meu tamanho e
serviços de chá e bonecas..."
"Vem por aqui. O pântano dos ciprestes é além. Talvez ainda haja alguns jacarés
para observarmos. O tempo tem estado tão quente que não é provável que já estejam
nos seus esconderijos de Inverno.
- Não, muito obrigada - disse Scarlett. - As minhas pernas estão ficando
cansadas. Acho que vou me sentar naquela pedra grande por um tempo.
Afinal, a pedra grande era a base de uma estátua partida e caída de uma donzela
de vestes clássicas. Scarlett via o rosto manchado no meio de uns arbustos. Na
verdade, não estava cansada de andar, estava cansada de Rosemary. E não tinha o
menor desejo de ver nenhum jacaré. Sentou-se de costas para o sol e pensou no que
vira. Dunmore Landing estava começando a tornar-se vivo no seu espírito. Não tinha
sido nada parecido com Tara, pensou. A vida ali tinha sido vivida numa escala e num
estilo sobre os quais ela nada sabia. Não admirava que as pessoas de Charleston
tivessem a reputação de se considerarem o princípio e o fim de tudo. Tinham vivido
como reis.
Apesar do calor do sol, sentiu-se arrepiada. Se Rhett trabalhasse dia e noite
durante todo o resto da sua vida, nunca conseguiria transformar este lugar no que tinha
sido, e era exatamente isso que ele estava determinado a fazer. Não ia haver muito
tempo na vida dele para ela. Ter conhecimentos sobre cebolas e inhames também não
iria ajudá-la a compartilhar a vida dele.
Rosemary regressou decepcionada. Não tinha visto um único jacaré. Falou sem
parar no regresso à casa, dando os seus antigos nomes a jardins que agora não
passavam de extensões de ervas malcheirosas, entediando Scarlett com complexas
descrições das variedades de arroz que eram cultivadas nos campos e que se tinham
transformado em pântanos de ervas, perdendo-se em reminiscências sobre a sua
infância.
- Detestava quando chegava o verão! - queixou-se ela.
- Porquê? - perguntou Scarlett. Ela sempre adorara o verão, quando havia festas
todas as semanas, e muitas visitas e ruidosas corridas a cavalo em estradas
secundárias por entre campos de algodão a amadurecer.
A resposta de Rosemary afastou as apreensões que estavam começando a
assaltar-lhe o espírito. Naquela região, aprendeu Scarlett, o Verão era tempo de
cidade. Havia uma febre que se erguia dos pântanos para atacar os brancos. Malária.
Por causa dela, todos deixavam as plantações em meados de Maio e só regressavam
com a primeira geada de fins de Outubro.
- Então, afinal, Rhett iria ter tempo para ela. Também havia a temporada, que
ainda duraria mais dois meses. Ele tinha que estar lá para acompanhar a mãe e a
irmã... e ela. Scarlett teria todo o gosto em deixá-lo brincar com as suas flores durante
cinco meses por ano, se o pudesse ter durante os outros sete. Até aprenderia os
nomes das suas camélias.
- Que era aquilo? Scarlett olhou fixamente para um enorme objeto de pedra
branca. Parecia um anjo sobre uma grande caixa.
- Oh, é o nosso túmulo - disse Rosemary. - Um século e meio de Butlers, todos
em filas ordenadas. Quando eu bater as botas, será ali que também serei posta. Os
ianques partiram grandes pedaços das asas do anjo a tiro, mas tiveram a decência de
deixarem os mortos em paz. Ouvi dizer que houve locais em que abriram sepulturas à
procura de jóias.
Filha de um pai imigrante irlandês, Scarlett ficou abismada com a permanência do
túmulo. Todas aquelas gerações, e todas as gerações futuras, para todo o sempre,
amém.
"Vou voltar para um lugar cujas raízes são profundas", dissera Rhett. Agora,
compreendia o que ele tinha querido dizer. Sentiu pena por aquilo que ele perdera e
inveja por ela própria nunca o ter tido.
- Anda, Scarlett. Ficaste parada como se tivesses ganho raízes. Já estamos
quase em casa. Não podes estar cansada demais para andares esse bocadinho.
Scarlett lembrou-se por que tinha concordado em dar um passeio com Rosemary.
- Não estou absolutamente nada cansada! - insistiu ela. - Acho que devíamos
apanhar alguns ramos de pinheiros e coisas para enfeitarmos um pouco a casa. Afinal
de contas, estamos numa época festiva.
- Boa idéia. Disfarçarão o cheiro. Há muitos pinheiros e azevinho no bosque junto
ao local onde antigamente eram os estábulos.
- E visco - acrescentou Scarlett silenciosamente. Não ia correr qualquer risco com
o ritual da meia-noite da véspera do Ano Novo.
- Muito bonito - disse Rhett quando chegou em casa depois da plataforma estar
construída e enfeitada com bandeiras vermelhas, brancas e azuis. -Tem um ar festivo,
ótimo para a festa.
- Qual festa? - perguntou Scarlett.
- Convidei as famílias dos meeiros. Isso os fará sentirem-se importantes, e, se
Deus quiser, os homens estarão com ressaca demais de uísque para arranjarem
confusão quando os negros vierem. Tu, a Rosemary e a Pansy irão lá para cima antes
deles virem. É provável que os ânimos se exaltem.
Scarlett observou o arco de fogos-de-artifício no céu da janela do quarto. Os
fogos-de-artifício para comemorar o Ano Novo duravam desde a meia-noite até quase
uma da manhã. Lamentou de todo o coração não ter ficado na cidade. Amanhã iria ficar
fechada em casa todo o dia, enquanto os negros comemoravam, e, quando chegassem
à cidade no sábado, provavelmente, já não teria tempo de lavar e secar o cabelo a
tempo do baile.
E Rhett não chegara a. beijá-la.
Durante os dias que se seguiram, Scarlett recuperou toda a excitação estonteante
daquilo que se lembrava como sendo o melhor tempo da sua vida. Era uma beldade,
rodeada de homens nas recepções, com o seu carnê de dança cheio assim que
entrava no salão de baile, com todos os seus antigos jogos de sedução provocando a
mesma admiração de sempre. Era como se voltasse a ter dezesseis anos, sem mais
nada em que pensar senão na última festa, e nos elogios que lhe tinham sido feitos, e
na festa seguinte e como pentearia o cabelo.
Mas não tardou que o entusiasmo desaparecesse. Não tinha dezesseis anos, e
na realidade não queria um grupo de admiradores. Queria Rhett, e não estava mais
perto de o reconquistar do que estivera. Ele cumpriu a sua parte do trato: era atencioso
com ela nas festas, simpático sempre que estavam juntos na casa com outras pessoas.
No entanto, ela tinha certeza de que ele contava pelo calendário os dias que faltavam
para se ver livre dela. Começou a sentir momentos de pânico. E se perdesse?
O pânico gerava sempre ira. Centrou-o no pequeno Tommy Cooper. O rapaz
andava sempre atrás de Rhett com uma expressão de adoração pelo seu herói
estampada na cara. E Rhett correspondia-lhe. Isso enfurecia-a. Tommy tinha recebido
um pequeno barco à vela pelo Natal, e Rhett estava ensinando-o a andar nele. Havia
um belo telescópio de metal na sala de cartas no segundo andar e Scarlett corria para
lá sempre que podia nas tardes em que Rhett saía com Tommy Cooper. Os seus
ciúmes eram como tocar com a língua num dente que dói, mas não conseguia resistir à
compulsão de causar dor a si própria. "Não é justo! Eles estão a rindo e se divertindo, e
andando livres como pássaros. Por que é que ele não me leva para andar de barco?
Adorei andar daquela vez que viemos de Landing. Adoraria ainda mais naquele
pequeno barco do Cooper. Parece vivo, com o seu deslizar tão rápido e leve... e feliz!"
Felizmente, poucas tardes houve em que ficasse em casa e junto do telescópio.
Embora as recepções e os bailes à noite fossem os principais acontecimentos da
temporada, havia também outras coisas a fazer. Os dedicados jogadores de bridge
continuavam jogando, a comissão do Lar Confederado de Miss Eleanor fez reuniões
para tratar do recolhimento de fundos para comprar livros para a escola, e reparar uma
infiltração que aparecera subitamente no telhado, continuava a haver visitas a retribuir
e a receber. Scarlett tornou-se olheirenta e pálida de cansaço.
Tudo aquilo teria valido a pena se fosse Rhett sentindo ciúmes e não ela. Mas ele
parecia não ver a admiração que ela suscitava. Ou, pior, parecia estar desinteressado.
Tinha que fazer que ele reparasse, que se importasse! Decidiu escolher um
homem entre as suas dezenas de admiradores. Alguém bonito... rico... mais novo que
Rhett. Alguém de quem ele tivesse que sentir ciúmes.
Santo Deus, ela parecia um fantasma! Pôs pó-de-arroz e um perfume intenso, e a
sua expressão mais inocente, preparando-se para a caçada.
Middleton Courtney era alto e louro, com olhos pálidos e empapuçados, e uns
dentes extremamente brancos que mostrava num sorriso malandro. Era a epítome
daquilo que Scarlett considerava um homem vivido e sofisticado. E o que era melhor
ainda, era dono de uma mina de fosfato vinte vezes maior que a de Rhett.
Quando ele se curvou sobre a sua mão num cumprimento, Scarlett fechou os
dedos sobre os dele. Ele olhou para cima e sorriu.
- Ousarei ter esperança de que me dê a honra da próxima dança, Mrs. Butler?
- Se não me tivesse pedido, Mr. Courtney, teria ficado com o meu pobre coração
destroçado.
Quando a polca terminou, Scarlett abriu o leque num movimento lento conhecido
pela expressão "queda lânguida". Abanou-o junto do rosto para fazer esvoaçar as leves
e encantadoras madeixas de cabelo por cima dos seus olhos verdes.
- Meu Deus - disse quase sem fôlego. - Receio bem que se não apanhar um
pouco de ar acabarei por lhe cair nos braços, Mr. Courtney. Importa-se? - E Scarlett
apoiou-se ao braço que ele imediatamente lhe ofereceu, enquanto a levava para um
banco sob uma janela.
- Oh, por favor, Mr. Courtney, sente-se aqui ao meu lado. Ficarei com dores no
pescoço, de tanto olhar para cima.
Courtney sentou-se. Bem perto dela.
- Lamentaria profundamente ser a causa de qualquer mal que acontecesse a um
pescoço tão bonito - disse ele. O seu olhar percorreu-lhe lentamente a garganta até ao
colo alvo.
Era tão hábil quanto Scarlett naquele jogo que estavam jogando.
Ela manteve o olhar baixo, numa atitude recatada, como se não soubesse o que
Courtney estava fazendo. Depois, olhou de relance para cima através das pestanas, e
voltou a baixar rapidamente o olhar.
- Espero que a minha indisposição idiota não o esteja impedindo de dançar com a
senhora que tem mais perto do coração, Mr. Courtney.
- Mas a senhora a que se refere é a senhora que neste momento tenho mais
perto do coração, Mrs. Butler.
Scarlett olhou-o nos olhos e fez um sorriso encantador.
- Tem que ter cuidado, Mr. Courtney. Pode me virar a cabeça - prometeu ela.
- Garanto-lhe que tenciono tentar - murmurou-lhe ele ao ouvido, e ela sentiu a
respiração quente dele no pescoço.
Não tardou para que o romance público entre ambos fosse o tópico mais
comentado da temporada. O número de vezes que dançavam juntos em cada baile...
aquela vez que Courtney tinha tirado a taça de ponche da mão de Scarlett, levando-a
aos lábios onde ela tinha tocado com os seus... fragmentos de conversas das suas
brincadeiras carregadas de subentendidos...
A mulher de Middleton, Edith, tornou-se cada vez mais tensa e pálida. E ninguém
conseguia compreender como é que Rhett conseguia manter-se imperturbável.
"Porque ele não fazia alguma coisa?", interrogava-se o pequeno mundo da
sociedade de Charleston.
26
As corridas anuais só ficavam atrás do Baile de Santa Cecília, em termos de
acontecimento da Temporada. Na realidade, muitas pessoas - sobretudo homens
solteiros - consideravam-nas como sendo o único acontecimento.
- Não se pode apostar numa série de valsas - resmungavam, revoltados.
Antes da Guerra, a Temporada incluía uma semana de corridas e a Sociedade de
Santa Cecília organizava três bailes. Depois vieram os anos do cerco; uma carga de
artilharia abriu um trilho de fogo através da cidade, incendiando o edifício onde os
Bailes sempre tinham se realizado; e o comprido hipódromo oval, o clube e os
estábulos tinham sido utilizados como acampamento e hospitais para os feridos pelo
Exército Confederado.
Em 1865, a cidade rendeu-se. Em 1866, um ambicioso e empreendedor
banqueiro de Wall Street, chamado August Belmont, comprou os monumentais pilares
de pedra esculpida do velho Hipódromo e os enviou para o norte, para os colocar na
entrada do seu hipódromo de Belmont Park.
O Baile de Santa Cecília foi realizado num edifício emprestado apenas dois anos
após o final da Guerra e os habitantes de Charleston regozijaram-se por a Temporada
poder recomeçar. Levou mais tempo para recuperarem e tratarem a terra esburacada
do Hipódromo. As coisas nunca mais foram as mesmas - havia apenas um Baile, e não
três; a Semana das Corridas transformou-se no Dia das Corridas; os pilares da entrada
não podiam ser recuperados e o Clube tinha sido substituído por bancadas de madeira
semicobertas. Mas, na tarde límpida de fins de Janeiro de 1875, toda a população que
ainda restava da velha Charleston estava en fête para o segundo ano das corridas. Os
bondes das quatro linhas da cidade foram desviados para a linha da Rutledge Avenue
que terminava perto do Hipódromo, as carruagens foram enfeitadas com bandeiras
verdes e brancas, as cores do Clube, e os cavalos que as puxavam levavam fitas
verdes e brancas entrançadas nas caudas e nas crinas.
Rhett presenteou as suas três senhoras com sombrinhas verdes e brancas antes
de saírem de casa e pôs uma camélia branca na botoneira. O seu sorriso branco
brilhava-lhe no rosto bronzeado.
- Os lanques morderam a isca - disse ele. - O estimado Mr. Belmont em pessoa
mandou dois cavalos, e o Guggenheim tem um. Não sabem das éguas reprodutoras
que o Miles Brewton escondeu no pântano. Tornaram-se uma família corajosa, embora
um pouco mal cuidada por viverem no pântano, e nada bonita devido aos cruzamentos
com machos da extraviados da cavalaria - mas o Miles tem uma maravilha de três anos
que vai tornar muitas bolsos de quem tem dinheiro mais leves do que esperam.
- Queres dizer que há apostas? - perguntou Scarlett. Os seus olhos brilharam.
- Se não houvesse, para que se fariam corridas? - Rhett riu. Enfiou algumas notas
dobradas na bolsa da mãe, no bolso de Rosemary e na luva de Scarlett. - Apostem
tudo na Sweet Sally e comprem algo bonito com o que ganharem.
"Como está bem-disposto", pensou Scarlett. "Pôs as notas dentro da minha luva.
Podia ter se limitado a estender-me, não era obrigado a tocar na minha mão daquela
maneira - não, não na minha mão, no meu pulso nu. Ora, foi praticamente uma carícia!
Agora que pensa que estou interessada noutra pessoa, já repara em mim. Repara
mesmo, não estando apenas a dar-me educadamente atenção. Vai resultar!"
Tinha estado preocupada por achar que talvez estivesse indo longe de mais ao
conceder cada terceira dança a Middleton. Sabia que as pessoas já estavam fazendo
comentários. Bom, que falassem, se uns tantos mexericos fizessem com que Rhett
voltasse para ela.
Quando chegaram ao Hipódromo, Scarlett soltou uma exclamação abafada.
- Não fazia idéia de que era tão grande! Ou que haveria uma banda! E tantas
pessoas. - Olhou em volta, encantada.
Depois, agarrou na manga de Rhett. - Rhett... Rhett... há soldados ianques por
todo o lado. Que é que isso significa? Vão impedir as corridas?
Rhett sorriu.
- Achas que os ianques não apostam? Ou que nos devemos preocupar por os
aliviar de algum do seu dinheiro? Sabe Deus que eles não se importaram por tirar-nos
todo o nosso. Estou contente por ver o galante coronel e os seus oficiais
compartilhando os prazeres simples dos conquistados. Têm muito mais dinheiro para
perder que a nossa gente.
- Como podes estar tão seguro de que irão perder? - Os olhos de Scarlett
semicerraram-se numa expressão calculista. - Os cavalos dos ianques são de raça
pura e a Sweet Sally não passa de um pônei dos pântanos.
A boca de Rhett fez um trejeito.
- O orgulho e a lealdade não têm grande peso para ti quando se trata de dinheiro,
não é, Scarlett? Olha, minha cara, para ganhares, aposta na égua do Belmont. Dei-te o
dinheiro para fazeres o que quiseres dele. - E virou-lhe as costas, deu o braço à mãe e
apontou para a arquibancada. - Acho que terá melhor vista lá de cima, mamã. Vem,
Rosemary.
Scarlett começou a correr atrás dele.
- Eu não queria... - disse, mas as largas costas dele pareciam um muro. Zangada,
encolheu os ombros, olhando depois da esquerda para a direita. - Onde diabo se
faziam as apostas?
- Posso ajudá-la, minha senhora? - perguntou um homem ao seu lado.
- Sim, talvez possa. - O homem parecia um cavalheiro tinha um sotaque que
parecia da Geórgia. Scarlett sorriu-lhe com gratidão. - Não estou habituada a corridas
tão complicadas. Na minha terra, as pessoas se limitariam a gritar "Aposto cinco
dólares que te ganho daqui até ao cruzamento", e depois todos lhes gritariam a sua
resposta e partiriam à galope.
O homem tirou o chapéu e segurou-o contra o peito com ambas as mãos. "Está a
olhando para mim com uma expressão muito estranha", pensou Scarlett, inquieta.
Talvez não devesse ter-lhe falado.
- Desculpe, minha senhora - disse o homem num tom ansioso. - Não estou
admirado por não me estar reconhecendo, mas creio que a conheço. A senhora é Mrs.
Hamilton, não é? De Atlanta. Tratou de mim no hospital quando eu fui ferido. Chamo-
me Sam Forrest e sou de Moultrie, Geórgia.
O hospital! As narinas de Scarlett dilataram-se, numa reação involuntária à
recordação do fedor do sangue e da gangrena e dos corpos sujos e cheios de piolhos.
A expressão de Forrest era a imagem do embaraço e desconforto.
- Eu... peco-lhe desculpa, Mrs. Hamilton - gaguejou. - Não devia ter ousado dizer
que a conhecia. Não era minha intenção ofendê-la.
Scarlett afastou o hospital para o canto do seu espírito reservado para o passado
e fechou a porta. Pôs a mão no braço de Forrest e sorriu-lhe.
- Ora, Mr. Forrest, não me ofendeu. Fui apanhada desprevenida por me ter
chamado Mrs. Hamilton. Sabe, voltei a casar e há anos e anos que sou Mrs. Butler. O
meu marido é aqui de Charleston, e é por isso que estou aqui. E devo dizer que ouvi-lo
falar com esse sotaque da Geórgia me enche de saudades. O que o trás aqui?
- Cavalos - explicou Forrest. - Depois de quatro anos na cavalaria, não havia nada
sobre cavalos que não soubesse. Quando a Guerra terminou, poupei o dinheiro que
ganhei trabalhando e comecei a comprar cavalos. Agora tenho uma bela criação e um
bom negócio. Trouxe o melhor cavalo dos estábulos para correr pelo prêmio. Digo-lhe,
Mrs. Hamil... desculpe... Mrs. Butler, para mim foi um dia feliz quando soube que o
Hipódromo de Charleston tinha reaberto. Não há nada que se lhe compare no Sul.
Scarlett teve que fingir que estava prestando atenção a mais conversa sobre
cavalos enquanto ele a acompanhava à banca montada para receber as apostas, e
depois até às arquibancadas. Scarlett despediu-se dele com uma sensação de alívio.
As arquibancadas estavam quase cheias, mas não teve dificuldade em encontrar
o seu lugar. As sombrinhas verdes e brancas eram um farol. Scarlett acenou com o
dela a Rhett e começou a subir as escadas. Eleanor Butler retribuiu-lhe a saudação.
Rosemary desviou o olhar.
Rhett sentou Scarlett entre Rosemary e a mãe. Mal tinha se sentado, sentiu
Eleanor Butler ficar rígida. Middleton Courtney e a mulher, Edith, estavam sentando-se
na mesma fila, a pouca distância deles. Os Courtneys inclinaram a cabeça e sorriram
num cumprimento amistoso. Os Butlers retribuíram-no. Depois, Middleton começou a
apontar as portas de saída e a meta à mulher. Ao mesmo tempo, Scarlett disse:
- Nem imagina quem eu encontrei, Miss Eleanor, um soldado que estava em
Atlanta quando fui para lá viver. - Sentiu que Mrs. Butler se descontraía.
Um murmúrio de excitação percorreu a multidão. Os cavalos estavam chegando à
pista. Scarlett ficou olhando boquiaberta, com os olhos brilhando. Não estava
preparada para o oval de relva macia e para os quadrados e riscas e losangos de cores
vivas nas sedas dos jóqueis. Cintilantes e festivos, os jóqueis desfilaram em frente das
bancadas enquanto a banda tocava uma música alegre. Scarlett riu alto sem dar por
isso. Era o riso de uma criança, livre e irrefletido, que exprimia surpresa e alegria pura.
- Oh, olhem! - exclamou. - Oh, olhem! - Estava tão maravilhada que não percebeu
dos olhos de Rhett a observarem-na, em vez de os cavalos.
Houve um intervalo para tomar refrescos depois da terceira corrida. Numa tenda
enfeitada com fitas verdes e brancas, havia mesas compridas com comida e criados
circulavam por entre a multidão com bandejas cheias de taças de champanhe. Scarlett
tirou uma das taças de Emma Anson de uma das bandejas de brasão de Sally
Brewton, fingindo que não reconhecia o mordomo de Minnie Wentworth que estava
servindo. Tinha aprendido as várias formas como a gente de Charleston supria as
insuficiências e perdas. Todos compartilhavam os seus tesouros e os seus criados,
agindo como se pertencessem ao anfitrião ou anfitriã do acontecimento.
- É a coisa mais absurda que alguma vez ouvi - dissera quando Mrs. Butler lhe
explicara pela primeira vez a charada. Emprestar e pedir emprestado, isso ela
compreendia. Mas não fazia o menor sentido fingir que as iniciais de Emma Anson
condiziam com os guardanapos de Minnie Wentworth. Mas pactuou com o logro, se é
que era esse o termo. Era apenas mais uma das peculiaridades de Charleston.
- Scarlett! - virou-se rapidamente para quem a chamara. Era Rosemary. - Não
tardarão a tocar o sino. Vamos voltar antes de começar a confusão.
As pessoas começavam já a voltar às bancadas. Scarlett olhou para elas pelos
binóculos que pedira emprestados a Miss Eleanor. Estavam ali as tias; graças a Deus
que não as tinha encontrado na tenda onde serviam o lanche. E Sally Brewton com o
marido, Miles. Ele parecia quase tão excitado como ela. Santo Deus! Miss Julia Ashley
estava com eles. Imagina, ela apostar em cavalos.
Scarlett moveu os binóculos de um lado para o outro. Era divertido poder observar
as pessoas sem elas saberem que estavam sendo observadas. Ah! Lá estava o velho
Josiah Anson dormitando enquanto Emma falava com ele. Apanharia uma
descompostura se ela percebesse que estava dormindo! Ah! Ross! Era pena que
tivesse tido que voltar, mas Miss Eleanor tinha ficado satisfeita. Margaret parecia
nervosa, mas o que era certo era que parecia sempre. "Oh, está ali a Anne. Santo
Deus, parece a velha da bota com todas aquelas crianças à sua volta. Devem ser os
órfãos. Será que consegue me ver? Está virando-se para cá. Não, não está olhando
suficientemente para cima."
"Ora esta, está positivamente resplandecente. Será que o Edward Cooper
finalmente a pediu em casamento? Tem que ser isso; ela está olhando para ele como
se conseguisse caminhar sobre a água. Está praticamente derretendo-se."
Scarlett deslocou os binóculos ligeiramente para cima, para ver se Edward estava
sendo tão óbvio como Anne... um par de sapatos, umas calças, um casaco...
O coração deu-lhe um salto. Era Rhett. Deve estar falando com Edward. O seu
olhar fixou-se nele por instantes. Rhett estava tão elegante. Desviou os binóculos e
Eleanor Butler entrou no campo de visão. Scarlett ficou gelada, sem sequer respirar.
Não podia ser. Perscrutou a área perto de Rhett e da mãe. Ainda não estava lá
ninguém. Lentamente, voltou a focar Anne, depois Rhett, e novamente Anne. Não
havia qualquer dúvida. Scarlett sentiu-se indisposta. Depois, absolutamente furiosa.
"A sonsinha miserável! Tem andado me elogiando aos quatro ventos na minha
própria cara e está loucamente apaixonada pelo meu marido nas minhas costas. A
minha vontade era estrangulá-la com as minhas próprias mãos!"
Scarlett tinha as mãos suando e tinha quase deixado cair os binóculos quando
voltou a focar Rhett. Estaria olhando para Anne?... Não, estava a rindo com Miss
Eleanor... estavam conversando com os Wentworths... cumprimentando os Hugers... os
Halseys... os Savages... o velho Mr. Pinckney... Scarlett manteve os binóculos focados
em Rhett até ficar com o olhar turvo.
Ele não tinha olhado uma única vez na direção de Anne. Estava olhando
fixamente para ele e ele nem sequer dava por isso. Não havia qualquer razão para se
preocupar. Era apenas uma moça tonta com uma paixão por um homem adulto.
Por que Anne não se apaixonaria por ele? Por que não o fariam todas as
mulheres de Charleston? Ele era tão lindo e tão forte e tão...
Olhou para ele com uma expressão profundamente enternecida, com os
binóculos no colo. Rhett inclinou-se para ajeitar o xale de Miss Eleanor sobre os seus
ombros. O sol ia baixo no céu e um vento frio começara a fazer-se sentir. Ele pôs-lhe a
mão sob o cotovelo e começaram a subir as escadas até ao seu lugar, a imagem
perfeita de um filho zeloso com a mãe. Scarlett esperou ansiosamente que chegassem.

A cobertura parcial da arquibancada lançava uma sombra oblíqua sobre os


lugares. Rhett trocou de lugar com a mãe, para ela poder aquecer-se ao sol que ainda
havia, e Scarlett ficou finalmente ao seu lado. Esqueceu-se imediatamente de Anne.
Quando os cavalos foram para a pista para a quarta corrida, os espectadores
levantaram-se, primeiro dois, depois vários grupos de pessoas, depois todos, numa
onda de antecipação. Scarlett estava quase dançando de excitação.
- Estás te divertindo? - Rhett sorria.
- É maravilhoso! Qual é o cavalo do Miles Brewton, Rhett?
- Suspeito que o Miles engraxou o cavalo. é o número cinco, aquele preto
brilhante. O vencedor imprevisto, por assim dizer. O número seis é o de Guggenheim; o
Belmont conseguiu a posição de fora; o cavalo dele, que irá marcar o andamento, é o
número quatro.
Scarlett teve vontade de perguntar o que significava "posição de fora" e "marcar o
andamento", mas não havia tempo, pois estavam prestes a largar.
O jóquei do número cinco antecipou-se ao tiro de pistola e ouviram-se
exclamações nas bancadas.
- Que aconteceu? - perguntou Scarlett.
- Falsa partida; vão ter que voltar a alinhar - explicou Rhett. Inclinou a cabeça num
gesto. - Olha para a Sally.
Scarlett olhou. A cara de Sally Brewton assemelhava-se mais do que nunca à de
um macaco, contorcida de raiva, e estava brandindo o punho no ar. Rhett riu
afetuosamente.
- Se eu fosse o jóquei, saltava a cerca e não parava tão cedo - disse. - A Sally
está pronta a usar a pele dele como tapete.
- Não a censuro nem por um instante - declarou Scarlett -, e não acho que tenha a
menor graça, Rhett Butler.
Ele riu de novo.
- Será que posso ousar presumir que afinal apostaste o teu dinheiro na Sally?
- Claro que apostei. A Sally Brewton é uma grande amiga minha... e, além disso,
se eu perder, o dinheiro era teu, não meu.
Rhett olhou para Scarlett surpreendido. Ela estava sorrindo com uma expressão
marota.
- Muito bem, minha senhora - murmurou ele.
Voltou a soar um tiro de pistola e a corrida começou. Scarlett não notou que
estava gritando, saltando para cima e para baixo, batendo no braço de Rhett. Estava
surda até aos gritos das pessoas à sua volta. Quando a Sweet Sally ganhou por meio
comprimento, soltou um grito de vitória.
- Ganhamos! Ganhamos! Não é maravilhoso? Ganhamos!
Rhett esfregou os músculos.
- Acho que fiquei aleijado para toda a vida, mas concordo. É uma maravilha, uma
verdadeira maravilha. O rato do pântano venceu os melhores puros-sangues da
América.
Scarlett olhou-o com a testa franzida.
- Rhett! Queres dizer que afinal ficaste surpreendido? Depois do que disseste esta
tarde? Parecias tão confiante.
Ele sorriu.
Desprezo o pessimismo. E queria que todo mundo se divertisse.
- Mas não apostaste também na Sweet Sally? Não me digas que apostaste nos
ianques!
- Não apostei em nenhum. - Tinha o maxilar contraído numa expressão resoluta. -
Quando os jardins de Landing estiverem limpos e plantados, vou começar a recuperar
os estábulos. Já consegui reaver algumas das taças que os cavalos dos Butler
ganharam quando as nossas cores eram conhecidas em todo o mundo. Farei a minha
primeira aposta quando tiver o meu próprio cavalo em que apostar. - Voltou-se para a
mãe. Que vai comprar com os seus ganhos, mamã?
- Isso é para eu saber e não para tu descobrires - respondeu ela, sacudindo
garbosamente a cabeça.
Scarlett, Rhett e Rosemary riram em uníssono.
27
Scarlett recebeu pouco conforto espiritual da Missa no dia seguinte. Estava
completamente concentrada na sua própria disposição, que era má. Mal pusera a vista
em Rhett na grande festa dada pelo Jockey Club depois das corridas.
Ao voltar a pé da Missa, tentou arranjar uma desculpa para não ir tomar o
desjejum com as tias, mas Pauline recusou-se a dar-lhe ouvidos.
- Temos uma coisa muito importante a discutir contigo - dissera. O seu tom era
portentoso. Scarlett preparou-se para um sermão por andar dançando demais com
Middleton Courtney.
Mas aconteceu que o nome dele nem sequer foi referido. Eulalie estava
acabrunhada e Pauline crítica em relação a uma coisa completamente diferente.
- Soubemos que há anos que não escreves ao teu avô Robillard, Scarlett.
- Por que lhe escreveria? Não passa de um velho rabugento que nunca levantou
um dedo por mim em toda a minha vida.
Eulalie e Pauline ficaram boquiabertas de choque. "Ótimo!", pensou Scarlett. Os
seus olhos brilharam triunfantes por cima da xícara enquanto bebia o café. "Não têm
resposta para essa, não é? Ele nunca fez nada por mim, como também nunca fez nada
por vocês, não é? Quem é que vos deu dinheiro para se sustentarem quando esta casa
estava prestes a ser penhorada para pagar os impostos? Uma coisa é certa, não foi o
vosso adorado paizinho. Fui eu. E também fui eu que paguei para o tio Carey ter um
funeral decente quando morreu, e é o meu dinheiro que vos veste e alimenta - se a
Pauline consegue ter coragem de abrir a porta da despensa cheia das coisas que
guarda com tanto zelo. Portanto, podem ficar aí olhando para mim de boca aberta
como duas rãs, mas não podem dizer absolutamente nada!"
Mas Pauline, secundada por Eulalie, tinha muito que dizer. Sobre o respeito pelos
mais velhos, a lealdade para com a família, o dever e as boas maneiras e a boa
educação.
Scarlett pousou a xícara num gesto violento.
- Não se atreva a fazer-me um sermão, tia Pauline. Estou farta até os cabelos! E
quero lá saber do avô Robillard. Foi horrível com a mãe e tem sido horrível para mim, e
odeio-o. Não me importo que ele arda no inferno por tudo o que fez!
Fez-lhe bem perder a cabeça. Há tempo demais que vinha se controlando. Tinha
havido chás demais, filas de cumprimentos demais, visitas demais e visitantes demais.
Vezes demais em que tivera de morder a língua - ela, que sempre dissera o que
pensava sem olhar as conseqüências. Acima de tudo, tinha passado horas demais
ouvindo educadamente a gente de Charleston gabar-se dos feitos dos seus pais e avôs
e bisavôs, e assim sucessivamente, até a Idade Média. A última coisa que Pauline
devia ter referido era o respeito devido à sua família.
As tias retraíram-se face à explosão de Scarlett e os seus rostos assustados
deram-lhe uma inebriante e agradável sensação de poder. Tinha sempre sentido
desprezo pela fraqueza e, durante os meses que passara em Charleston, não tinha tido
poder, tinha sido ela a ser a fraca e tinha começado a sentir desprezo por si própria.
Agora descarregara sobre as tias toda a repulsa que sentia pelo seu próprio desejo
covarde de agradar.
- E não precisam ficar aí olhando para mim como se eu tivesse chifres na cabeça
e uma forquilha na mão! Sabem que eu tenho razão, mas são covardes demais para o
dizerem. O avô trata todo mundo como se fosse lixo. Aposto cem dólares que nunca
responde a todas as cartas que lhe escrevem para bajulá-lo. Provavelmente nem
sequer as lê. Eu, por mim, nunca consegui chegar ao fim de nenhuma. Nem precisava,
eram todas iguais... pechinchando mais dinheiro!
Scarlett tapou a boca com a mão. Tinha ido longe demais.
Tinha quebrado três das regras invioláveis do código de comportamento sulista:
dissera a palavra "dinheiro", lembrara aos seus dependentes a caridade que lhes fizera
e dera um pontapé a um inimigo por terra. Ao olhar para as tias chorosas, os seus
olhos estavam carregados de vergonha.
A louça colada e a toalha remendada na mesa eram uma censura. "Nem sequer
tenho sido muito generosa", pensou. "Podia ter lhes mandado muito mais sem sequer
sentir a sua falta."
- Desculpem - murmurou, começando a chorar.
Passaram-se alguns instantes antes de Eulalie limpar os olhos e assoar-se.
- Ouvi dizer que a Rosemary tem um novo pretendente - disse ela numa voz
aguada. - Já o viste, Scarlett? E uma pessoa interessante?
- É de boa família? - acrescentou Pauline.
Scarlett estremeceu, mas apenas ligeiramente.
- Miss Eleanor conhece a família dele - respondeu - e diz que são muito
simpáticos. A Rosemary nem quer ouvir falar dele. Sabem como ela é. - Scarlett olhou
para o rosto desgastado das tias com verdadeiro afeto e respeito. Tinham cumprido o
código. Sabia que continuariam a cumpri-lo até ao dia da sua morte e nunca se
refeririam à forma como ela o quebrara. Nenhum sulista envergonharia
deliberadamente um outro.
Scarlett endireitou os ombros e ergueu o queixo.
- O nome dele é Elliot Marshall - disse - e é a coisa mais engraçada que já se viu:
magro como um espeto e solene como uma coruja! - Forçou-se a falar num tom mais
ligeiro. - E deve ser muito corajoso. A Rosemary conseguiria pegar nele e parti-lo em
pedaços se se irritasse o suficiente. - Inclinou-se para a frente com os olhos muito
abertos. - Sabem que ele é um ianque?
Pauline e Eulalie soltaram uma exclamação abafada.
Scarlett assentiu rapidamente, acentuando o impacto da revelação.
- De Boston - disse lentamente, fazendo pesar cada palavra. - E acho que não se
pode ser mais ianque do que isso. Uma grande empresa de adubos abriu os escritórios
aqui e ele é o gerente...
Scarlett instalou-se mais confortavelmente na cadeira, pronta para se demorar.
Ao fim da manhã, espantou-se de como o tempo tinha passado e correu para o
átrio para ir buscar o seu casaco.
- Não devia ter demorado tanto tempo. Prometi a Miss Eleanor que iria almoçar -
disse, erguendo os olhos para o céu. - Espero que Mr. Marshall não nos faça uma
visita. Os ianques não têm o senso suficiente para perceber quando não são bem-
vindos.
À porta, Scarlett deu um beijo de despedida a Pauline e Eulalie.
- Obrigada - disse simplesmente.
- Se esse ianque estiver lá, volta imediatamente para almoçares conosco - disse
Eulalie com uma risadinha.
- Sim - disse Pauline. - E se puderes, tenta vir conosco a Savannah, à festa de
aniversário do pai. Vamos no dia 15, de trem, depois da Missa.
- Obrigada, tia Pauline, mas não posso de todo. Já aceitamos convites para todos
os dias e noites da Temporada.
Mas, minha querida, nessa altura já a Temporada acabou. O Baile de Santa
Cecília é na sexta-feira, dia 13. Eu acho que dá azar, mas mais ninguém parece
importar-se.
As palavras de Pauline soaram indistintas aos ouvidos de Scarlett. Como é que a
Temporada podia ser tão curta? Pensava que ainda tinha muito tempo para
reconquistar Rhett.
- Veremos - disse apressadamente. - Agora tenho que ir.

Scarlett ficou surpreendida por encontrar a mãe de Rhett sozinha em casa.


Julia Ashley convidou a Rosemary para almoçar na casa dela - disse-lhe Eleanor.
- E o Rhett teve pena do garoto dos Cooper. Está andando de barco.
- Hoje? Está tanto frio.
- Está. E exatamente quando eu tinha começado a pensar que este ano íamos
escapar por completo ao Inverno. Senti-o ontem nas corridas. O vento estava mesmo
frio. Acho que me resfriei. - Subitamente, Mrs. Butler sorriu de forma conspirativa. - Que
dizes de um almoço na mesa de jogo em frente à lareira, na biblioteca? Ofenderá a
dignidade de Manigo, mas eu agüentarei as conseqüências, se tu também agüentares.
Estaremos muito confortáveis, apenas nós as duas.
- Gostaria muito, Miss Eleanor, muito mesmo. - Subitamente, era o que mais
queria acima de todas as coisas. "Era tão agradável quando jantávamos calmamente
assim", pensou.
Antes da Temporada. Antes de Rosemary regressar ao lar.
Uma voz no seu espírito acrescentou: antes de Rhett voltar de Landing. Era
verdade, embora detestasse admiti-lo. A vida era muito mais fácil quando não estava
constantemente à escuta dos seus passos, observando as suas reações, tentando
adivinhar o que ele estava pensando.
O calor da lareira era tão acolhedor que Scarlett deu por si bocejando.
- Perdão, Miss Eleanor - disse apressadamente -, não é da companhia.
- Sinto exatamente o mesmo - disse Mrs. Butler. - Não é agradável? - E também
bocejou, o que foi contagioso para ambas, até que o riso incontrolável substituiu os
bocejos. Scarlett tinha se esquecido de como a mãe de Rhett podia ser divertida.
- Gosto muito de ti, Miss Eleanor - disse, sem pensar.
Eleanor Butler pegou-lhe na mão.
- Fico tão contente, Scarlett. Também gosto muito de ti - disse, suspirando
baixinho. - Tanto, que não te vou fazer perguntas ou fazer comentários indesejados.
Espero que saibas o que estás fazendo.
Scarlett contorceu-se interiormente. Depois reagiu à crítica implícita.
- Não estou a "fazendo" nada! - E retirou a mão.
Eleanor ignorou a ira de Scarlett.
- Como estão a Eulalie e a Pauline? - perguntou num tom natural. - Não vejo
nenhuma delas há praticamente uma eternidade. A Temporada desgasta-me.
- Estão ótimas. Mandonas como sempre. Estão a tentando obrigar-me a ir a
Savannah com elas para os anos do avô.
- Santo Deus! - O tom de Mrs. Butler era de incredulidade. - Queres dizer que ele
ainda não morreu?
Scarlett riu de novo.
- Essa foi também a primeira coisa de que eu me lembrei, mas a tia Pauline me
esfolaria viva se o tivesse dito. Deve ter uns 100 anos.
Eleanor franziu a testa enquanto pensava e murmurava baixinho ao fazer contas.
- Com certeza tem mais de 90 - disse finalmente. - Sei que tinha trinta e muitos
anos quando se casou com a tua avó em 1820. Eu tinha uma tia, que já morreu há
muito tempo, que nunca se recompôs disso. Era louca por ele e ele tinha se mostrado
muito atencioso com ela. Mas depois a Solange, a tua avó, decidiu reparar nele e a
minha pobre tia Alice não teve a menor chance. Eu só tinha 10 anos na época, mas já
nessa idade percebia o que estava se passando. Alice tentou matar-se e ficou tudo em
polvorosa.
Scarlett sentia-se bem acordada.
- Que foi que ela fez?
- Bebeu um frasco de calmante. Foi por um triz que não morreu.
- Por causa do avô?
Ele era um homem incrivelmente interessante. Muito bonito, com aquele porte
aprumado que os militares têm. E tinha um sotaque francês, é claro. Quando dizia
"bom dia", parecia o herói de uma ópera. Dezenas de mulheres estavam apaixonadas
por ele. Um dia ouvi o meu pai dizer que Pierre Robillard era o único responsável pelo
telhado da igreja Huguenote. De vez em quando, vinha de Savannah à Missa, por ser
em francês. As paredes da igreja quase se deformavam com a congregação cheia de
mulheres e a bandeja da coleta ficava transbordando - Eleanor sorriu ao recordar. -
Pensando bem, a minha tia Alice acabou por se casar com um professor de literatura
francesa em Harvard. Portanto, toda a prática da língua que porventura tivesse tido
acabou por ser proveitosa.
Scarlett recusou-se a permitir que Mrs. Butler se desviasse do assunto.
- Por favor deixe lá isso e fale-me mais do avô. E da avó. Um dia fiz-lhe perguntas
sobre ela, mas não me respondeu.
Eleanor abanou a cabeça.
- Não sei como descrever a tua avó. Não era parecida com mais ninguém no
mundo.
- Era muito bela?
- Sim, e não. É esse o problema quando se fala dela; estava sempre mudando.
Era muito... muito francesa. Os franceses têm um ditado que diz que nenhuma mulher
pode ser verdadeiramente bela se por vezes não for também verdadeiramente feia.
São um povo muito sutil, e muito sábio, é impossível um anglo-saxão compreender.
Scarlett não compreendia o que Miss Eleanor estava tentar lhe dizer.
- Há um retrato dela em Tara, e é muito bonita - insistiu obstinadamente.
- Sim, está muito bonita no retrato. Conseguia ser bonita ou não, conforme queria.
Conseguia tudo o que queria. Por vezes, tinha uma qualidade de absoluta quietude e
quase nos esquecíamos de que estava presente. Depois virava-nos os olhos negros
amendoados e sentíamo-nos irresistivelmente atraídos para ela. As crianças não a
largavam. Nem os animais. Todas as mulheres o sentiam. E enlouquecia os homens.
"O teu avô era um homem cem por cento militar, habituado a comandar. Mas
bastava a tua avó sorrir para ele se tornar escravo dela. Ela era bastante mais velha
que ele, mas isso não fez a menor diferença. Era católica, e isso não fez a menor
diferença; insistiu em ter um lar católico, em dar uma educação católica aos filhos, e ele
concordou com tudo, embora fosse um protestante convicto. Teria concordado em
deixá-los ser druidas, se fosse esse o desejo dela. Ela era tudo para ele."
"Lembro-me de quando ela decidiu que tinha que estar rodeada de luz rosada, por
estar envelhecendo. Ele disse que nenhum soldado viveria num quarto onde houvesse
uma copa cor de rosa. Era afeminado demais. Ela disse que muito cor-de-rosa a
tornaria feliz. O que aconteceu foi que não só as paredes interiores da casa, como
também a própria casa, foram todas pintadas de cor-de-rosa. Ele faria tudo para a fazer
feliz - Eleanor suspirou. - Foi tudo loucamente maravilhoso e romântico. Pobre Pierre.
Quando ela morreu, ele de certa forma também morreu. Conservou tudo na casa
exatamente como ela tinha deixado. Receio que tenha sido difícil para a tua mãe e para
as irmãs dela."
"No retrato, Solange Robillard estava com um vestido tão justo ao corpo que
sugeria que não tinha nada por baixo. Devia ser isso que fazia os homens perderem a
cabeça, incluindo o marido", pensou Scarlett.
- Tu me lembras dela muitas vezes - disse Eleanor, e Scarlett voltou a interessar-
se subitamente.
- Em quê, Miss Eleanor?
- Os teus olhos têm o mesmo desenho, os mesmos traços ascendentes nos
cantos. E tens a mesma intensidade que te faz vibrar. Ambas me parecem mais
verdadeiramente vivas que a maioria das pessoas.
Scarlett sorriu. Sentia-se muito contente. Eleanor Butler olhou para ela com
ternura.
- Agora acho que vou dormir a sesta - disse. Achava que tinha conduzido muito
bem a conversa. Não tinha faltado à verdade, mas tinha conseguido evitar dizer
demais. Não queria de forma alguma que a mulher do filho soubesse que a avó tinha
tido muitos amantes e que tinham sido travados dezenas de duelos por causa dela.
Não sabia que idéias Scarlett poderia meter na cabeça.
Eleanor estava profundamente abalada com os problemas evidentes entre o filho
e a mulher. Não era um assunto que pudesse discutir com Rhett. Se ele quisesse que
ela soubesse, lhe teria dito. E a reação de Scarlett à sua insinuação sobre a situação
desagradável com o tal Courtney tornara bem claro que ela também não queria entrar
em confidências.
Mrs. Butler fechou os olhos e tentou descansar. Depois de ter feito o que podia,
nada mais restava senão esperar que tudo corresse pelo melhor. Rhett era um homem
adulto e Scarlett uma mulher adulta. Muito embora, em sua opinião, estivessem
portando-se como crianças indisciplinadas.
Scarlett também estava tentando descansar. Estava na sala de jogo, com o
telescópio à mão. Não vira sinais do barco de Tommy Cooper quando olhara. Rhett
devia tê-lo levado rio acima, e não para o porto.
Talvez não devesse sequer procurá-los. Quando olhara através dos binóculos nas
corridas, perdera confiança em Anne e ainda sofria com isso. Pela primeira vez na sua
vida, sentia-se velha. E muito cansada. Que diferença é que estas coisas faziam? Anne
Hampton estava desesperadamente apaixonada pelo marido de outra mulher. Não lhe
acontecera o mesmo a ela quando tinha a idade de Anne? Tinha se apaixonado por
Ashley e destruído a sua vida com Rhett ao agarrar-se a esse amor sem esperança
muito depois de ter percebido - quem é que não perceberia - que o Ashley que ela
amava era apenas um sonho. Anne iria também desperdiçar a sua juventude da
mesma forma, sonhando com Rhett? Para que é que servia o amor se apenas destruía
as coisas?
Scarlett passou as costas das mãos pelos lábios. "Que é que se passa comigo?
Estou remoendo as coisas como uma galinha velha. Tenho que fazer qualquer coisa...
ir dar um passeio... libertar-me desta horrível sensação."
Manigo bateu levemente à porta.
- Se estiver em casa, tem uma visita, Missas Rhett.
Scarlett ficou tão contente por ver Sally Brewton que quase a beijou.
- Senta-te nesta cadeira, Sally, é a que está mais perto da lareira. Não é um
choque sentir que o Inverno realmente chegou?
Disse a Manigo para trazer o chá. Francamente, acho que ver a Sweet Sally
correr foi a coisa mais entusiasmante de toda a minha vida. - Scarlett estava
tagarelando de alívio.
Sally entreteve-a com um relato muito pitoresco de Miles beijando o seu cavalo e
também o jóquei. Isto durou até Manigo trazer a bandeja do chá, colocá-la na mesa à
frente de Scarlett e ir embora.
- Miss Eleanor está descansando, senão dizia-lhe que estás aqui - disse Scarlett.
- Quando ela acordar...
- Eu já terei ido embora - interrompeu Sally. - Sei que a Eleanor dorme a sesta à
tarde e que o Rhett foi andar de barco, e que a Rosemary está na casa da Julia. Foi por
isso que escolhi esta hora para vir aqui. Quero falar contigo sozinha.
Scarlett deitou as folhas de chá para dentro do bule. Estava intrigada. Sally
Brewton parecia pouco à vontade, e logo ela, a quem nada intimidava. Deitou água
quente sobre as folhas e pôs a tampa no bule.
- Scarlett, vou fazer uma coisa imperdoável - disse Sally num tom decidido. - Vou
meter-me na tua vida. Pior, vou dar-te conselhos sem me teres pedido. Tem um caso
com o Middleton Courtney, se quiseres, mas, pelo amor de Deus, faz a coisa
discretamente. O que estás fazendo é de um tremendo mau gosto.
Chocada, Scarlett abriu muito os olhos. Ter um caso? Só as mulheres levianas
faziam dessas coisas. Como é que a Sally Brewton se atrevia a insultá-la? Scarlett
endireitou-se.
- Tenho que lhe dizer, Mrs. Brewton, que sou uma senhora - disse com frieza.
- Então age como tal. Encontra-te com o Middleton à tarde e te diverte o que
quiseres, mas não faças com que o teu marido e a mãe dele e toda a gente da cidade
vos veja aos dois arfando nos bailes como um cão atrás de uma cadela com o cio.
Scarlett pensou que nada podia ser mais horrível que as palavras de Sally. Mas
as seguintes provaram que estava enganada.
- Mas devo avisar-te de que ele não é lá muito bom na cama. É um Don Juan no
salão de baile, mas é um idiota assim que tira os sapatos de verniz e a casaca.
Sally estendeu a mão e sacudiu o bule.
- Se o chá continuar em infusão durante mais tempo, poderemos curtir peles com
ele. Queres que eu sirva? - perguntou, olhando atentamente para o rosto de Scarlett.
- Meu Deus - disse depois lentamente -, és tão inocente como um recém-nascido,
não és? Desculpa, Scarlett, não percebi. Olha... deixa-me dar-te uma xícara de chá
com muito açúcar.
Scarlett encostou-se na cadeira. Tinha vontade de chorar, de tapar os ouvidos.
Admirara Sally, orgulhara-se de ser sua amiga, e afinal Sally não era melhor que lixo!
- Minha pobre criança - disse Sally -, se eu soubesse, teria sido mais branda
contigo. Assim sendo, considera isto como uma educação acelerada. Estás em
Charleston, casada com um homem de Charleston, Scarlett. Não te podes dar ao luxo
de te refugiares atrás desse teu ar de inocência campesina. Esta é uma cidade antiga
com uma civilização antiga. Uma parte essencial de se ser civilizado é ter consideração
pela sensibilidade dos outros. Podes fazer tudo o que quiseres, desde que o faças
discretamente. O pecado imperdoável é forçar os teus amigos a engolirem os teus
pecadilhos. Tens que dar oportunidade aos outros para fingirem que não sabem o que
andas fazendo.
Scarlett não acreditava no que estava ouvindo. Aquilo não era de todo como fingir
que os guardanapos com monograma pertenciam a outra pessoa. Aquilo era...
repugnante. Embora se tivesse casado três vezes estado apaixonada por outra pessoa,
nunca sequer pensara em trair fisicamente qualquer dos seus maridos. Podia ansiar
por Ashley, imaginar estar nos braços de Ashley, mas nunca teria ido às escondidas
passar uma hora na cama com ele.
"Não quero ser civilizada", pensou desesperada. Nunca mais conseguiria olhar
para qualquer mulher de Charleston sem pensar se ela e Rhett eram ou teriam sido
amantes.
Por que tinha ido para ali? Não pertencia ali. Não queria pertencer ao tipo de lugar
de que Sally Brewton estava falando.
- Acho que é melhor ires para casa - disse. - Não me sinto muito bem.
Sally assentiu com uma expressão de arrependimento.
- Peço-te desculpa por te ter perturbado, Scarlett. Talvez te sintas melhor se
souberes que há muitas outras mulheres inocentes em Charleston, minha querida; não
és tu a única. Nunca se conta às moças e às senhoras solteiras de qualquer idade
aquilo que elas preferem não saber. E também há muitas esposas fiéis. Eu tenho a
sorte de ser uma delas. Tenho certeza de que o Miles teve uma ou duas aventuras,
mas nunca me senti tentada a fazê-lo. Talvez também sejas assim; espero que sim, por
ti. Peço-te uma vez mais desculpa pela minha falta de tato, Scarlett. Vou-me embora.
Recompõe-te e bebe o chá... E porta-te melhor com o Middleton - Sally calçou as luvas
com gestos rápidos e experientes e dirigiu-se para a porta.
- Espera! - disse Scarlett. - Por favor, espera, Sally.
- Tenho de saber. Quem? Rhett e quem?
O rosto simiesco de Sally teve uma expressão condoída.
- Ninguém que conheçamos - disse brandamente. - Juro-te. Ele só tinha 19 anos
quando saiu de Charleston, e nessa idade os rapazes vão ao bordel ou a uma moça
branca pobre. Desde que regressou, tem mostrado grande delicadeza em recusar
todas as ofertas sem nunca ofender ninguém. Charleston não é um poço de iniqüidade,
minha querida. As pessoas não sentem qualquer pressão social para estarem
constantemente no cio. Tenho certeza de que o Rhett te é fiel. Não te incomodes em
acompanhar-me à porta.

Assim que Sally saiu, Scarlett correu para o quarto e fechou-se à chave. Atirou-se
em cima da cama e chorou descontroladamente.
Visões grotescas assaltaram o seu espírito, de Rhett com uma mulher... outra...
outra ainda, e outra e outra das senhoras que ela via todos os dias nas festas.
Que idiota tinha sido em pensar que lhe podia fazer ciúmes.
Quando já não podia suportar mais os seus pensamentos, tocou para chamar
Pansy, lavou-se e pôs pó de arroz no rosto. Não conseguiria ir sentar-se sorrindo e
falando com Miss Eleanor quando ela acordasse. Tinha que sair dali, pelo menos
durante algum tempo.
- Vamos sair - disse a Pansy. - Dá-me a minha pelica.

Scarlett andou quilômetros - rápida e silenciosamente, sem se importar se Pansy


a conseguia acompanhar. Ao passar pelas casas altas e belas de Charleston, não viu
as suas paredes de estuque de cores claras com a tinta descascando como orgulhosa
prova da sua sobrevivência, viu apenas que não se importavam do ar que tinham para
os transeuntes e que viravam as costas às ruas para olharem para dentro, para os
seus jardins privados e murados.
"Segredos. Guardavam os seus segredos", pensou. "Exceto uns dos outros. Todo
mundo finge sobre tudo."
28
Era quase noite quando Scarlett regressou e a casa parecia silenciosa e
intimidativa. Não se via nenhuma luz através das cortinas, que eram fechadas todos os
dias ao pôr do Sol. Abriu a porta cuidadosamente, sem fazer barulho.
- Diz ao Manigo que estou com dor de cabeça e que não quero jantar - disse a
Pansy enquanto ainda estavam no vestíbulo. - Depois, vem me desapertar o espartilho.
Vou direto para a cama.
Manigo teria que avisar a cozinheira e a família. Ela não conseguiria enfrentar
conversar com ninguém. Subiu as escadas silenciosamente, passando pelas portas
abertas da sala de estar iluminada e convidativa. A voz sonora de Rosemary estava
proclamando a opinião de Miss Julia Ashley sobre qualquer coisa. Scarlett apressou o
passo.
Apagou o candeeiro e enroscou-se sob as cobertas depois de Pansy a ter
despido, tentando esconder-se da sua própria infelicidade e desespero. Se ao menos
conseguisse dormir, esquecer Sally Brewton, esquecer tudo, fugir. A escuridão
envolvia-a, troçando dos seus olhos secos e sem sono. Nem sequer conseguia chorar;
esgotara as lágrimas no arrebatamento emocional que tivera depois das revelações
diabólicas de Sally.
O fecho da porta fez barulho e o quarto encheu-se de luz quando a porta se abriu.
Scarlett virou a cabeça na sua direção, sobressaltada pela súbita claridade.
Rhett estava à entrada da porta, com um candeeiro na mão erguida. A luz lançava
sombras sobre os ângulos do seu rosto queimado pelo vento e no seu cabelo negro
áspero do sal. Ainda estava com a roupa com que fora andar de barco; estava molhada
e colada ao peito duro e aos braços e pernas musculados. A sua expressão era
sombria, mostrando que mal controlava as suas emoções, e avançou, enorme e
perigoso.
O coração de Scarlett deu um salto de medo primitivo; no entanto, a sua
respiração ficou acelerada de excitação. Era o que tinha sonhado - Rhett entrando no
seu quarto, com a paixão sobrepondo-se ao seu frio autodomínio.
Rhett avançou para a cama, fechando a porta com um pontapé.
- Não podes te esconder de mim, Scarlett - disse ele. - Levanta-te. - Num
movimento, o seu braço varreu o candeeiro que estava em cima da mesa para o chão,
onde se estilhaçou ruidosamente, e a sua mão grande pousou o que trazia aceso com
tal força que este estremeceu perigosamente. Atirou as cobertas para trás, agarrou-lhe
os braços e arrastou-a da cama, forçando-a a pôr-se de pé.
O cabelo escuro de Scarlett caiu-lhe sobre o pescoço e os ombros e sobre as
mãos dele. A renda que rematava o decote aberto da sua camisola estremecia com as
batidas violentas do seu coração. O sangue escaldante tingia-lhe de vermelho as faces,
acentuando o verde dos olhos, fixos nos dele. Rhett atirou-a rudemente contra o poste
grosso da cama e recuou.
- Maldita sejas, minha idiota intrometida - disse ele numa voz rouca. - Devia ter-te
morto assim que puseste os pés em Charleston.
Scarlett agarrou-se ao poste da cama para não cair. Sentia um frêmito de medo
nas suas veias. Que tinha acontecido para o pôr naquele estado?
- Não me venhas com esse ar de donzela assustada, Scarlett. Conheço-te bem.
Não te vou matar, nem sequer te vou bater, embora Deus saiba quanto o mereces. - A
boca de Rhett contorceu-se num esgar. - Como estás encantadora, minha querida.
Com o peito arquejante e os olhos muito abertos, cheios de inocência. Pena é que
provavelmente estás inocente , de acordo com a tua definição deturpada. Não importa
a dor que causaste a uma mulher inocente ao lançares a tua rede ao idiota do marido.
Os lábios de Scarlett curvaram-se num sorriso incontrolável de vitória. Estava
furioso por ela ter conquistado Middleton Courtney! Tinha conseguido - tinha-o obrigado
a admitir que tinha ciúmes dela. Agora teria de admitir que a amava, ela o obrigaria a
dizê-lo... Mas, pelo contrário, Rhett disse:
- Quero lá saber da triste figura que fizeste. Na realidade, foi bastante divertido
ver uma mulher de meia-idade convencer-se de que ainda era uma jovem núbil
irresistível. Não consegues crescer mais que os 16 anos, não é mesmo, Scarlett? O
auge da tua ambição é seres eternamente a belle de Clayton County? Hoje a piada
deixou de ter graça - gritou. Scarlett retraiu-se com o barulho repentino. Ele cerrou os
punhos, controlando visivelmente a sua fúria. - Ao sair da igreja esta manhã - disse em
voz baixa -, um velho amigo, que é também um primo chegado, afastou-me para o lado
e ofereceu-se para ser meu padrinho quando eu desafiar Middleton Courtney para um
duelo! Não duvidou nem por instantes de que fosse essa a minha intenção.
Independentemente da verdade dos fatos, o teu bom nome tinha que ser defendido.
Pela família.
Os pequenos dentes brancos de Scarlett morderam o lábio inferior.
- Que lhe disseste?
- Exatamente o que te vou dizer a ti: "Não será necessário haver um duelo. A
minha mulher não está habituada à sociedade e agiu de uma forma suscetível de uma
interpretação errada por falta de entendimento. Eu a ensinarei como se deve portar."
O braço dele moveu-se tão rapidamente como uma cobra atacando e a mão
fechou-se cruelmente sobre o pulso dela.
- Lição número um - disse ele. Puxou-a repentinamente para si. Scarlett ficou
presa contra o peito dele, com o braço torcido atrás das costas. O rosto de Rhett
estava por cima do seu e tinha os olhos cravados nos dela. - Não me importo se o
mundo inteiro pensar que sou corno, minha querida, minha mulherzinha dedicada, mas
não serei forçado a bater-me contra o Middleton Courtney. - Scarlett sentia o hálito
quente e salgado de Rhett no seu nariz e lábios.
- Lição número dois - continuou ele. - Se eu matar o idiota, terei que fugir da
cidade, senão sou enforcado pelos militares e isso seria bastante inconveniente para
mim. E não tenho a menor intenção de me tornar um alvo fácil para ele. O imbecil podia
acidentalmente disparar direito e ferir-me, o que seria igualmente inconveniente.
Scarlett bateu-lhe com a mão que tinha livre, mas ele prendeu-a facilmente na sua
e torceu-a, puxando-a para junto da outra. Os braços dele eram uma jaula que a
segurava contra ele. Ela sentia a umidade da camisa dele repassar a camisola até a
pele. - Lição número três - disse Rhett. - Seria a ironia máxima para mim, ou mesmo
para um idiota como o Courtney, correr o risco de morrer para salvar a tua alma
desonesta da desonra. Assim... lição número quatro: seguirás as minhas instruções em
relação ao teu comportamento em todas as tuas presenças em público até a
Temporada terminar. Não te mostres cabisbaixa, minha querida. Não é o teu estilo, e
só iria jogar lenha para a fogueira dos mexericos. Manterás a tua cabeça encaracolada
bem erguida e continuarás a tua perseguição implacável à juventude perdida. Mas
distribuirás as tuas atenções mais eqüitativamente entre a população masculina que
cativaste. Terei todo o gosto em aconselhar-te sobre quais os cavalheiros que deverás
favorecer. Na realidade, insisto em aconselhar-te. - As mãos de Rhett largaram-lhe os
pulsos e cerraram-se sobre os seus ombros, empurrando-a.
- Lição número cinco: farás exatamente o que eu te disser. - Longe do calor do
corpo de Rhett, a camisola de seda molhada parecia gelo no peito e na barriga de
Scarlett. Cruzou os braços contra o peito para se aquecer, mas foi inútil. O seu cérebro
estava tão gelado como o seu corpo e as coisas que ele tinha dito ecoavam
claramente. Ele não se importava... tinha estado rindo dela... só se preocupava com as
suas "conveniências".
Como ousava? Como ousava rir dela em público e rebaixá-la perante a sua
família e atirar com ela como se fosse um saco de batatas no seu próprio quarto? Um
"cavalheiro de Charleston" era tão falso como uma "senhora de Charleston". Gente
com duas caras, mentirosa, trapaceira...
Scarlett ergueu os punhos para lhe bater, mas ele continuava segurando-lhe nos
ombros e as suas mãos fechadas caíram sobre o peito dele sem qualquer efeito.
Scarlett debateu-se e libertou-se. Rhett ergueu as mãos com as palmas para fora
para suster o ataque e um riso abafado saiu-lhe da garganta.
Scarlett ergueu as mãos - apenas para afastar para trás o cabelo que lhe caía
sobre o rosto.
- Podes poupar as tuas energias, Rhett Butler. Não precisarei dos teus conselhos,
pois não estarei aqui para os ignorar. Odeio a tua preciosa Charleston e desprezo toda
a gente que aqui vive, especialmente tu. Vou-me embora amanhã. - Enfrentou-o,
olhando-o nos olhos, com as mãos nos quadris, de cabeça erguida e de queixo
espetado. O seu corpo tremia visivelmente sob a seda que se colava a ele.
Rhett desviou o olhar.
- Não, Scarlett. - O tom era de chumbo. - Não irás embora. A tua fuga só serviria
para confirmar a tua culpa e eu continuaria tendo que matar o Courtney. Fizeste
chantagem comigo para eu permitir que passasses aqui a Temporada, Scarlett, e vais
passá-la. E farás o que eu te disser e fingirás que gostas. Senão, juro por Deus que te
parto todos os ossos do corpo, um a seguir ao outro.
Rhett dirigiu-se para a porta. Pondo a mão no ferrolho, olhou para trás, para ela, e
sorriu, zombeteiro.
- E não tentes dar uma de esperta, minha cara. Estarei atento a tudo o que
fizeres.
- Odeio-te! - gritou Scarlett à porta que se fechara.
Quando ouviu a chave rodando na fechadura, atirou contra a porta o relógio que
estava em cima da lareira, e depois o atiçador.
Quando pensou na varanda e nos outros quartos, era já tarde demais. Quando
correu para as outras portas, estas estavam já também fechadas à chave pelo lado de
fora. Voltou para o seu quarto e começou a andar de um lado para o outro até ficar
exausta.
Por fim, deixou-se cair numa cadeira e bateu debilmente com os punhos nos
braços da cadeira até lhe doerem as mãos.
- Vou embora - disse em voz alta - e ele não tem forma de me impedir. A porta
alta e espessa que estava fechada à chave denunciou silenciosamente a mentira.
Não adiantava lutar contra Rhett, tinha que conseguir enganá-lo de alguma forma.
Tinha que haver uma forma, e ela a descobriria. Não era necessário ir carregada de
bagagem, podia partir apenas com a roupa que tinha no corpo. Era isso que faria. Iria a
um chá ou a um jogo de brídge ou qualquer coisa, e iria embora no meio, direto para a
carruagem e depois para a estação. Tinha dinheiro suficiente para o bilhete - para
onde?
Como acontecia sempre que Scarlett estava triste, pensou em Tara. Lá
encontraria paz e novas forças... e Suellen. Se ao menos Tara fosse apenas sua, toda
sua... Voltou a ver os sonhos que inventara quando visitara a plantação de Julia
Ashley. Como tinha sido possível a Carreen desperdiçar a sua parte daquela maneira?
Scarlett ergueu repentinamente a cabeça como um animal do bosque que cheira
água. De que adiantava a parte dela em Tara no convento de Charleston? Não a
podiam vender, mesmo que tivessem comprador, porque Will nunca concordaria, nem
ela. Talvez recebessem um terço dos lucros da colheita do algodão, mas quanto seria
isso? Na melhor das hipóteses, trinta ou quarenta dólares por ano. Ora, agarrariam
com ambas as mãos a oportunidade de venderem a ela.
Rhett queria que ela ficasse, não era? Ótimo! Ficaria, mas apenas se isso a
ajudasse a conseguir o terço de Tara de Carreen. Depois, com dois terços na mão, se
ofereceria para comprar a parte de Will e Suellen. Se Will recusasse vender, os
expulsaria.
Um rebate de consciência travou os seus pensamentos, mas afastou-o. Que
importava se Will gostava de Tara? Ela gostava mais. E precisava de Tara. Era o único
lugar com que se importava e o único lugar onde alguma vez alguém se importara com
ela. Will compreenderia; entenderia que Tara era a sua última esperança.
Correu para a corda da campainha, junto da cama, e puxou-a violentamente.
Pansy foi à porta, tentou abri-la, rodou a chave e abriu-a.
- Diz a Mr. Butler que quero falar com ele, aqui no meu quarto - disse Scarlett. -E
traz-me uma bandeja com o jantar. Afinal, tenho fome.
Vestiu uma camisola seca e um roupão quente de veludo, escovou bem o cabelo
e prendeu-o com uma fita de veludo. Deparou com o seu próprio olhar desolado no
reflexo do espelho.
Tinha perdido. Não ia ter Rhett de volta. Não era para ser assim.
Coisas demais - depressa demais -, todo o seu mundo tinha ficado de pernas
para o ar em apenas poucas horas. Ainda estava estonteada com o choque do que
Sally Brewton lhe dissera. Não suportava ter de ficar em Charleston depois do que
ouvira. Era como tentar construir uma casa sobre areia movediça.
Scarlett comprimiu a testa com as mãos, como que para fazer parar o turbilhão de
pensamentos confusos. Não conseguia entender tantas coisas que giravam na sua
cabeça ao mesmo tempo. Tinha que haver uma coisa em que se pudesse concentrar.
Durante toda a sua vida tinha conseguido ser bem sucedida se centrasse toda a
atenção num único objetivo.
Tara...
Seria Tara. Depois de conseguir o controle total sobre Tara, então pensaria em
todo o resto...
- O seu jantar, Miss Scarlett.
- Põe a bandeja nessa mesa, Pansy, e deixa-me em paz. Quando acabar, toco.
- Sim, senhora. Mr. Rhett disse que vinha cá assim que acabasse de comer.
- Deixa-me sozinha.

A expressão de Rhett era indecifrável, à exceção da desconfiança no seu olhar.


- Queres falar comigo, Scarlett?
- Quero. Não te preocupes, não pretendo entrar em discussões. Quero propor-te
uma troca.
A expressão dele não se alterou. Não disse nada.
Scarlett manteve a voz fria e eficiente enquanto continuava.
- Tu e eu sabemos que podes me forçar a ficar em Charleston e a ir aos bailes e
às recepções. E ambos sabemos que no momento em que me levares ao primeiro, não
podes fazer absolutamente nada quanto ao que eu possa dizer ou fazer. Estou a
propor ficar aqui e comportar-me como tu queres que me comporte, se me ajudares a
obter uma coisa que quero e que não tem nada a ver contigo ou com Charleston.
Rhett sentou-se, tirou um charuto fino da algibeira, cortou-o e acendeu-o.
- Estou ouvindo - disse.
Ela explicou o seu plano, entusiasmando-se a cada palavra que dizia. Quando
acabou, esperou ansiosamente pela opinião de Rhett.
- Tenho que admirar a tua coragem, Scarlett - disse Rhett. - Nunca pus em causa
que podias agüentar contra o general Sherman e o seu exército, mas tentares levar a
melhor sobre a Igreja Católica talvez seja teres mais olhos que barriga.
Rhett estava rindo dela, mas era um riso amistoso, até mesmo de admiração.
Como se também ele tivesse voltado aos tempos em que tinham sido amigos.
- Não estou tentando levar a melhor sobre ninguém, Rhett, apenas tentando fazer
um negócio honesto, nada mais.
Rhett sorriu abertamente.
- Tu? Fazeres um negócio honesto? Estás me decepcionando, Scarlett Estás
perdendo o jeito?
- Francamente! Não sei porque tens que ser tão desagradável. Sabes muito bem
que eu não me aproveitaria da Igreja - A indignação empertigada de Scarlett fez com
que Rhett risse ainda mais.
- Quanto a isso, não sei absolutamente nada - disse ele. - Diz-me a verdade: é
por isso que tens ido à Missa todos os domingos a chocalhar o terço? Tens andado
planejando isto?
- Não, não tenho. E não imagino por que levei tanto tempo para pensar nisso. -
Scarlett tapou a boca com a mão. Como é que Rhett conseguia fazer aquilo?
Conseguia sempre surpreendê-la, fazendo com que contasse mais do que era sua
intenção. Baixou a mão e olhou para ele com uma expressão zangada. - Então? Vais
ou não ajudar-me?
- Estou na disposição de te ajudar, mas não estou a vendo como. E se a Madre
Superiora recusar? Ficarás até o fim da Temporada?
- Eu disse que ficava, não disse? Além disso, não há qualquer razão para ela
recusar. Vou lhe oferecer muito mais que o que o Will pode mandar. Tu podes utilizar a
tua influência. Conheces todo mundo e consegues sempre fazer as coisas.
Rhett sorriu.
- É comovente a confiança que tens em mim, Scarlett. Conheço todos os patifes e
políticos corruptos e homens de negócios desonestos num raio de mil quilômetros, mas
não tenho a menor influência no que respeita à boa gente deste mundo. O mais que
posso fazer é dar-te alguns conselhos. Não tentes enfiar o barrete à senhora. Diz-lhe a
verdade, se puderes, e concorda com tudo o que ela quiser. Não pechinche.
- Que tolo que tu és, Rhett Butler! Ninguém paga o preço que é pedido, a não ser
um idiota. De qualquer forma, o convento não precisa do dinheiro para nada. Têm
aquela casa bem grande e todas as irmãs trabalham gratuitamente e têm candelabros
e um grande crucifixo de ouro na capela.
"Embora eu fale com as línguas dos homens e dos anjos..." - murmurou Rhett,
dando uma risadinha.
- De que diabo estás falando?
- Estou apenas citando - Rhett forçou o rosto a assumir uma expressão séria, mas
os seus olhos escuros riam. - Desejo-te toda a sorte do mundo, Scarlett - disse. -
Considera este desejo como a minha bênção. - Saiu do quarto, com a compostura
intacta, mas depois desatou a rir com verdadeiro gosto. Scarlett cumpriria a sua
promessa, cumpria sempre as suas promessas. Com a ajuda dela atenuaria o
escândalo; depois, dali a duas semanas, a Temporada terminaria e Scarlett iria
embora. Ele ficaria livre da tensão que ela trouxera à vida que estava tentando
construir em Charleston e ficaria livre para voltar para Landing. Havia tanto que queria
fazer na plantação. A investida de Scarlett contra a Madre Superiora do convento de
Carreen seria um bom entretenimento para ele até a sua vida voltar a ser sua.
"Aposto na Igreja Católica", disse Rhett para si próprio. "Pensa no tempo em
termos de milênios, e não de semanas. Mas não apostaria muito. Quando Scarlett toma
o freio nos dentes, é uma força formidável para enfrentar." Rhett continuou a rir
baixinho durante bastante tempo.

Como Rhett já esperava, as relações de Scarlett com a Madre Superiora


estiveram longe de ser simples.
- Ela não diz que sim nem que não, e nem sequer me ouve quando lhe tento
explicar as vantagens da venda! - queixou-se Scarlett após a sua primeira visita ao
convento. E após a segunda, a terceira, a quinta visitas. Estava confusa e frustrada.
Rhett escutou-a com uma atenção bondosa e paciente, enquanto ela protestava,
guardando para si a sua vontade de rir. Rhett sabia que ele era a única pessoa com
quem ela podia falar.
Além disso, os esforços de Scarlett proporcionavam-lhe quase diariamente novos
motivos de divertimento, à medida que o assalto de Scarlett à Santa Madre Igreja
entrava em escalada. Scarlett começou a ir à Missa todas as manhãs, absolutamente
convencida de que a notícia da sua devoção chegaria ao convento. Depois, começou a
visitar Carreen com tanta freqüência que aprendeu os nomes de todas as outras freiras
e de quase metade das alunas. Depois de uma semana de respostas brandas e
evasivas da Madre Superiora, Scarlett ficou tão desesperada que até começou a
acompanhar as tias nas suas visitas a amigas suas que também eram senhoras idosas
católicas que viviam com dificuldades.
- Acho que as contas do meu terço estão tão gastas que estão pela metade, Rhett
- exclamou, zangada. - Como é que aquela horrível mulher pode ser tão má?
- Talvez ache que isto irá salvar a tua alma - sugeriu Rhett.
- Conversa! A minha alma está ótima, muito obrigada. Já ando nauseada com
tanto cheiro de incenso; é o que dá andar armada em beata. E pareço uma velha,
porque não durmo o suficiente. Gostaria que não houvesse festas todas as noites.
- Que disparate. As olheiras dão-te um ar espiritual. Devem impressionar muito a
Madre Superiora.
- Oh, Rhett, como podes dizer uma coisa tão horrível? Vou ter que ir já pôr pó de
arroz.
Na realidade, o rosto de Scarlett começava a acusar as poucas horas de sono. E
a frustração estava fazendo com que aparecessem pequenas rugas verticais entre as
sobrancelhas. Todo mundo em Charleston comentava aquilo que interpretava como
sendo uma espécie de fervor religioso. Scarlett era uma pessoa diferente. Nas
recepções e nos bailes era educada, mas parecia absorta noutras coisas. A belle
sedutora tinha desaparecido. Já não aceitava convites para jogar brídge e tinha
deixado de fazer visitas às senhoras cujas casas nos seus dias de receber se tinham
tornado um imperativo para ela.
- Sou toda a favor de louvar a Deus - disse Sally Brewton um dia. - Até renuncio a
qualquer coisa de que goste muito durante a Quaresma. Mas acho que a Scarlett está
indo longe demais. Está sendo extravagante.
Emma Anson discordou. - Faz com que eu pense muito melhor dela do que
pensava antes. Sabes, eu pensava que tu eras idiota por lhe dares a atenção que
davas, Sally. Era óbvio que ela era uma arrivista vaidosa e ignorante. Mas agora estou
disposta a engolir as minhas palavras. E admirável uma pessoa ter sentimentos
religiosos sérios. Até mesmo papistas.
A manhã de quarta-feira da segunda semana do cerco de Scarlett estava escura
e fria e chuvosa.
- Não posso ir a pé ao convento com esta carga de água - lamentou-se. - Vou dar
cabo do meu único par de botas. - Lembrou-se com saudade de Ezekie, o antigo
cocheiro dos Butlers. Tinha aparecido de surpresa, como um gênio saído de um frasco,
nas duas noites chuvosas em que iam sair. "Todo este fingimento que reina em
Charleston é de doidos e revoltante, mas hoje não me importaria nada de entrar no
jogo só para ir numa carruagem quente e seca. Mas não posso. E tenho que ir,
portanto irei."
- A Madre Superiora partiu de manhã cedo para a Geórgia, para ir a um encontro
da escola da Ordem - disse a freira que abriu a porta do convento. Ninguém sabia
exatamente quanto tempo duraria o encontro. Talvez um dia, ou vários, ou talvez uma
semana, ou mais.
"Eu não disponho de uma semana ou mais", gritou Scarlett para si. "Não posso
sequer desperdiçar um dia."
Voltou a pé para casa, na chuva.
- Joga fora estas malditas botas - ordenou a Pansy. - E vai me buscar roupa seca.
Pansy estava ainda mais encharcada do que ela. Com um tremendo ataque de
tosse, lá foi coxeando fazer o que Scarlett mandara. Devia dar de correia naquela
rapariga, disse Scarlett para si própria, mas estava mais envergonhada do que
zangada.
A chuva parou à tarde. Miss Eleanor e Rosemary decidiram ir às compras em
King Street. Scarlett nem sequer isso quis fazer. Ficou no quarto pensando, até as
paredes parecerem fechar-se sobre ela, e depois foi para a biblioteca, no térreo. Talvez
Rhett estivesse lá para a consolar. Não podia falar com mais ninguém sobre a sua
frustração, pois não dissera a ninguém o que estava fazendo.
- Como vai a reforma da Igreja Católica? - perguntou, erguendo uma sobrancelha.
Começou a fazer um relato irado da fuga da Madre Superiora. Ele fez uns ruídos
de compreensão enquanto cortava e acendia um charuto fino.
- Vou até a varanda fumar - disse ele quando o charuto já estava bem aceso. -
Vem comigo para apanhar ar. A chuvarada trouxe de volta o Verão; está calor, as
nuvens afastaram-se para o mar.
O sol era encandeante, em contraste com o interior obscurecido da sala de jantar.
Scarlett protegeu os olhos, inspirando o cheiro úmido e verde do jardim, o traço
salgado do porto e o cheiro de pungente masculinidade da fumaça do charuto.
Subitamente, teve viva consciência da presença de Rhett. Ficou tão perturbada que se
afastou alguns passos e, quando ele falou, a sua voz pareceu-lhe vir de muito longe.
- Creio que a escola que as freiras têm na Geórgia é em Savannah. Talvez seja
boa idéia ires ao aniversário do teu avô depois do baile de Santa Cecília. As tuas tias
não te largam com isso. Se for um encontro importante da Igreja, o bispo estará lá;
talvez tenhas mais sorte se falares com ele.
Scarlett tentou pensar na sugestão de Rhett, mas não conseguia se concentrar.
Não conseguia, com ele tão perto de si. Era estranho sentir aquela timidez quando
ultimamente se sentiam ambos tão à vontade um com o outro. Ele estava encostado a
uma das colunas, deleitando-se placidamente com o charuto.
- Verei - disse ela, indo embora precipitadamente antes que começasse a chorar.
"Mas que diabo se passa comigo?", pensou, enquanto as lágrimas lhe corriam
pelo rosto. "Estou transformando-me numa chorona sem força de vontade, exatamente
no tipo de criatura que desprezo. Que importa se levarei mais tempo para conseguir o
que quero? Terei Tara... e Rhett também, ainda que isso leve cem anos."
29
- Nunca me senti tão aborrecida em todos os longos anos da minha vida - disse
Eleanor Butler. As mãos tremiam-lhe ao servir o chá. Uma folha fina de papel
amarrotado estava caída no chão, aos seus pés. Tinha chegado um telegrama
enquanto ela e Rosemary andavam às compras: o primo Townsend Ellinton e a mulher
vinham da Filadélfia fazer-lhes uma visita.
- Com uma antecedência de dois dias! - exclamou Eleanor. - Acreditam? Até
parece que nunca ouviram falar da Guerra.
- Vão ficar numa suíte no Charleston Hotel, mamã - disse Rhett num tom
conciliatório -, e os levaremos ao Baile. Não será tão mau assim.
- Vai ser horrível - disse Rosemary. - Não vejo qualquer razão para termos que
nos esforçar para ser simpáticos com ianques.
- Porque são nossos parentes - disse a mãe severamente. - E irás ser
extremamente simpática. Além disso, o teu primo Townsend não é de forma alguma
um ianque. Combateu com o general Lee.
Rosemary franziu a testa e ficou calada. Miss Eleanor começou a rir.
- Tenho que parar de me queixar - disse. - Acabará por valer a pena ver o
encontro de Townsend com Henry Wragg. Townsend é estrábico e Henry tem
estrabismo divergente. Acham que conseguirão dar um aperto de mão?
Os Ellintons não eram tão maus assim, pensou Scarlett, muito embora uma
pessoa não soubesse para onde olhar quando falava com o primo Townsend. A
mulher, Hannah, não era tão bela como Miss Eleanor dissera, o que era agradável. No
entanto, o seu vestido de baile de brocado cor de rubi, bordado com pérolas, e a sua
gargantilha de diamantes, fizeram com que Scarlett se sentisse mal vestida no seu
vestido de veludo usado e camélias. Graças a Deus que aquele era o último baile e o
fim da Temporada.
"Teria chamado mentirosa a qualquer pessoa que dissesse que eu me cansaria
de dançar, mas já tive mais que a minha conta. Oh, se ao menos estivesse tudo
resolvido quanto a Tara!" Tinha seguido o conselho de Rhett e pensado na hipótese de
ir a Savannah. Mas a perspectiva de ter que estar dia após dia com as suas tias era
mais do que conseguia agüentar e tinha decidido esperar que a Madre Superiora
regressasse a Charleston. Rosemary ia visitar Miss Julia Ashley, portanto esse espinho
não estaria cravado na sua carne. E Miss Eleanor era sempre boa companhia.
Rhett ia a Landing. Não pensaria nisso agora. Se pensasse, não conseguiria
chegar ao fim da noite.
- Conte lá, primo Townsend - disse Scarlett animadamente -, conte-nos tudo
sobre o general Lee. É mesmo tão bonito como todos dizem?

Ezekiel polira a carruagem e escovara os cavalos até estarem dignos de


transportarem membros de uma família real. Estava junto do degrau da carruagem,
segurando a porta, pronto a auxiliar, enquanto Rhett ajudava as senhoras a subir para
a carruagem.
- Continuo a dizer que os Ellintons deviam vir conosco na carruagem - insistiu
Eleanor.
- Morreríamos apertados - resmungou Rosemary.
Rhett mandou-a calar.
- Não tem nada que se preocupar, mamã - disse ele. - Vão ali à nossa frente, na
melhor carruagem que o dinheiro de Hannah pôde alugar. Quando chegarmos a
Meeting Street passaremos para a frente, para chegarmos lá primeiro e os podermos
acompanhar à entrada. Não há qualquer razão para estar preocupada.
- Há razões mais que suficientes, e tu sabes bem, Rhett.
- Sim, são pessoas simpáticas e parentes de Townsend, mas isso não altera o
fato de Hannah ser ianque de gema. Receio que seja tratada com uma cortesia de
morte.
- Tratada com quê? - perguntou Scarlett.
Rhett explicou.
- Depois da Guerra, a gente de Charleston tinha desenvolvido um jogo
particularmente desagradável e astucioso. Tratavam os estranhos com tal simpatia e
consideração que a sua cortesia se tornava uma arma. Os visitantes acabam por
sentir-se como se estivessem usando sapatos pela primeira vez na sua vida. Diz-se
que apenas os mais fortes recuperam dessa experiência. Espero que não os tratem
assim esta noite. Os chineses não desenvolveram tortura que se lhe assemelhasse,
embora sejam um povo muito sutil.
- Rhett! Por favor, pára - implorou a mãe.
Scarlett não disse nada. "É isso que me têm feito", pensou aborrecida. "Podem
continuar a fazê-lo. Não vou ter que suportar Charleston durante muito mais tempo."
Depois da curva para Meeting Street, a carruagem entrou na longa fila de
carruagens. Uma a uma, paravam para os passageiros saírem e depois voltavam a
andar lentamente. "Por este andar, já terá terminado quando lá chegarmos", pensou
Scarlett. Olhou pela janela para as pessoas que iam a pé, seguidas pelas criadas que
lhes levavam as bolsas dos sapatos. Bem gostaria de ir também a pé. Devia ser
agradável sentir o ar quente em vez de ir ali fechada naquele pequeno espaço.
Sobressaltou-se ao ouvir o sino do bonde à sua esquerda.
"Como pode ser um bonde?", pensou. "As corridas terminam sempre às nove."
Ouviu os sinos da Igreja de St. Michael tocar duas vezes. Eram nove e meia.
- Não é agradável ver o bonde sem mais ninguém a não ser pessoas vestidas
para um baile? - disse Eleanor Butler. - Scarlett, sabias que os bondes deixam de
circular mais cedo na noite do Baile de Santa Cecília para serem limpos antes de
iniciarem as corridas especiais para levar as pessoas ao baile?
- Não sabia, Miss Eleanor. Como é que as pessoas voltam para casa?
- Oh, há outra corrida especial às duas, quando o baile termina.
- E se alguém que não vá para o baile quiser ir?
- Não pode, é claro. Ninguém pensaria numa coisa dessas. Todo mundo sabe que
as carruagens só circulam até as nove.
Rhett riu.
- Mamã, pareces a duquesa de Alice no País das Maravilhas.
Eleanor Butler começou também a rir.
- Acho que tens razão - exclamou por entre gargalhadas, rindo depois ainda mais.
Ainda se estava rindo quando a carruagem avançou, parou, e a porta foi aberta.
Scarlett olhou e viu uma cena que fez com que retivesse a respiração. Era assim que
um baile devia ser! Havia um par de enormes lanternas com meia dúzia de bicos de
gás no topo de dois grande postes de ferro pretos que iluminavam o amplo pórtico e as
altíssimas colunas brancas de um edifício com traça de templo recuado da rua, por
detrás de um gradeamento alto de ferro. Uma passadeira cintilando de branco protegia
o caminho desde o bloco de estacionamento das carruagens, de mármore branco e
brilhando de limpo, até os degraus do pórtico. A toda a extensão do passeio e do
estacionamento das carruagens, tinha sido montado um toldo de lona branca.
- Reparem - disse ela, maravilhada -, se chove cântaros podia-se ir da carruagem
até ao baile sem se apanhar uma única gota de água.
- A idéia é essa - concordou Rhett -, mas nunca foi posto à prova. Nunca chove
na noite de Santa Cecília. Deus não ousaria.
- Rhett! - Eleanor Butler ficou genuinamente chocada.
Scarlett sorriu a Rhett, contente por ele conseguir troçar de uma coisa que levava
tão a sério como aquele baile. Ele tinha Ihe contado tudo sobre o baile, como se
realizava há anos e anos - tudo em Charleston parecia existir há pelo menos cem anos
- como era totalmente organizado por homens. Só homens podiam ser membros da
Sociedade.
- Desce, Scarlett - disse Rhett. - Aqui deves sentir-te absolutamente à vontade.
Este edifício é o Hibernian Hall. Lá dentro verás uma placa com a harpa da Irlanda na
melhor tinta de ouro.
- Não sejas malcriado - ralhou a mãe.
Scarlett saiu com o seu queixo belicoso, muito parecido com o do seu pai
irlandês, bem erguido.
"Que estavam aqueles soldados ianques fazendo?" A garganta de Scarlett
contraiu-se momentaneamente de medo. Estariam planejando armar alguma confusão
por já terem sido derrotados pelas senhoras? Depois, viu a multidão por detrás deles,
rostos ansiosos a espreitar de um lado para o outro, tentando descortinar as figuras
que iam saindo das carruagens. Ora, os ianques estavam mantendo as pessoas
afastadas e abrindo caminho! "Exatamente como criados, como os rapazes dos
archotes ou os lacaios. É bem feito. Por que não desistem e vão embora? Já ninguém
lhes presta atenção."
Scarlett olhou por cima das cabeças dos soldados e lançou um sorriso cintilante à
multidão antes de descer da carruagem. Se ao menos pudesse ter ido com um vestido
novo, em vez daquele trapo velho. Teria que tirar o melhor partido daquilo. Deu três
passos em frente, e depois, num gesto experiente, atirou a cauda do vestido com o
braço, de forma a ir cair atrás dela. Esta espalhou-se pelo passeio branco, sem um
grão de pó lhe tocar, e foi arrastada majestosamente enquanto entrava no Baile da
Temporada.
Scarlett parou no átrio, à espera dos outros. O olhar foi atraído para cima,
seguindo o arco gracioso da escadaria até ao amplo patamar do andar de cima e ao
lustre de cristal que resplandecia suspenso no enorme espaço aberto. Era a jóia maior
e mais cintilante do mundo.
- Aqui estão os Ellintons - disse Mrs. Butler. - Venha por aqui, Hannah. Vamos
deixar os nossos agasalhos no vestiário das senhoras.
Mas Hannah Ellinton parou ao chegar à porta e recuou involuntariamente.
Rosemary e Scarlett tiveram que se afastar rapidamente para o lado para não
chocarem com a figura vestida de brocado cor de rubi à sua frente.
Que se passaria? Scarlett esticou o pescoço para ver. Aquela cena tinha se
tornado tão familiar durante a Temporada que não podia imaginar por que era que
Hannah estava tão chocada. Várias moças e mulheres estavam sentadas num banco
baixo, perto da parede. Tinham as saias arregaçadas até os joelhos e os pés em
bacias de água com espuma de sabão. Enquanto tagarelavam e riam umas com as
outras, as criadas lavavam e secavam e empoavam-lhes os pés, desenrolavam-lhes e
esticavam-lhes as meias remendadas e calçavam-lhes os sapatos de baile. Era a rotina
habitual de todas as mulheres que iam a pé pelas ruas poeirentas da cidade para os
bailes da Temporada. O que estava aquela mulher ianque esperando? Que as pessoas
dançassem de botas? Deu uma leve cotovelada a Mrs. Ellinton.
- Está impedindo a passagem - disse.
Hannah pediu desculpa e entrou. Eleanor Butler virou-se do espelho onde tinha
estado ajeitando os seus grampos.
- Ótimo - disse. - Por instantes, receei tê-la perdido. - Não tinha visto a reação de
Hannah. - Quero apresenta-la a Sheba. Ela tratará de tudo o que precise esta noite.
Sem protestar, Mrs. Ellinton foi levada ao canto da sala onde a mulher mais gorda
que ela alguma vez vira estava sentada numa ampla poltrona, de brocado desbotado,
sendo a sua pele castanho-dourado apenas ligeiramente mais escura que o brocado
dourado. Sheba levantou-se do seu trono para ser apresentada à convidada de Mrs.
Butler.
E à nora de Mrs. Butler. Scarlett dirigiu-se rapidamente para ela, ansiosa por
conhecer a mulher de quem tanto tinha ouvido falar. Sheba era famosa. Todo mundo
sabia que era a melhor costureira em toda a cidade de Charleston, tendo aprendido o
seu ofício, quando era escrava dos Rutledges, com a modista que Mrs. Rutledge
trouxera de Paris para fazer o enxoval da filha. Continuava a costurar para Mrs.
Rutledge, para a filha e para algumas senhoras por si selecionadas. Sheba conseguia
transformar trapos e sacas de farinha em modelos tão elegantes como os que vinham
no Godey's Lady's Book. Batizada com o nome Rainha de Sheba pelo seu pai,
pregador laico, era na realidade uma rainha no seu próprio mundo. Todos os anos
reinava no vestiário das senhoras no Baile de Santa Cecília, supervisionando as suas
duas criadas impecavelmente fardadas e as criadas que acompanhavam as senhoras,
numa ação rápida e eficaz para fazer face a toda e qualquer emergência feminina.
Bainhas rasgadas, nódoas e manchas, botões caídos, caracóis desfeitos, desmaios,
excesso de comida, pés doloridos, corações destroçados - Sheba e as suas favoritas
tratavam de tudo. Cada baile tinha uma sala reservada para as necessidades das
senhoras, e criadas para as servir, mas só o Baile de Santa Cecília tinha a Rainha de
Sheba. Recusava-se educadamente a fazer a sua magia em qualquer outro baile a não
ser o mais importante.
Podia dar-se ao luxo de ser seletiva. Rhett tinha contado a Scarlett o que a
maioria das pessoas sabia, mas não dizia em voz alta. Sheba era dona do mais
luxuoso e rentável bordel na famosa "Mulatto Alley", a parte de Chalmers Street, a dois
quarteirões apenas de Santa Cecília, onde oficiais e soldados das forças militares
ocupantes gastavam a maior parte do seu vencimento em uísque barato, roletas
viciadas e mulheres de todas as idades, todos os tons de pele e todos os preços.
Scarlett olhou para a expressão confusa de Hannah Ellinton. "Aposto que é uma
daquelas abolicionistas que nunca viu de perto um negro", pensou. "Que faria se
alguém lhe falasse do outro negócio de Sheba? O Rhett disse que Sheba tem mais de
um milhão de dólares em ouro no cofre de um banco na Inglaterra. Duvido que os
Ellintons tenham tanto."
30
Quando Scarlett chegou à entrada do salão de baile foi a sua vez de parar, sem
perceber que vinham pessoas atrás de si. Sentiu-se avassalada por uma beleza
mágica, bela demais para ser real.
O enorme salão de baile tinha uma iluminação deslumbrante, e contudo suave,
dada por velas. Caía de quatro cascatas de cristal que pareciam flutuar no alto. De
pares de apliques dourados e de cristal nas compridas paredes laterais. De altos
espelhos de molduras douradas que refletem as chamas repetidas vezes em imagens
opostas. De janelas altas, escuras como a noite, que funcionavam como espelhos. De
candelabros de prata com vários braços em compridas mesas de cada lado da porta,
onde estavam monumentais taças de prata com ponche e que nos seus lados curvos
captavam reflexos dourados. Scarlett riu encantada e entrou.
- Estás te divertindo-te? - perguntou-lhe Rhett muito mais tarde.
- Ah, sim! É de fato o melhor baile da temporada. - Estava dizendo a verdade;
aquela noite tinha sido tudo quanto um baile devia ser, cheia de música e risos, e
felicidade por todos os lados. Não tinha ficado nada satisfeita quando lhe deram o seu
carnê de danças, muito embora viesse acompanhado de um ramo de camélias envolto
em papel prateado. Ao que parecia, os administradores da Sociedade preenchiam
antecipadamente todos os carnês das senhoras. Mas depois viu que a regimentação
tinha sido magistralmente orquestrada. Os seus pares eram homens que ela conhecia,
homens que nunca vira, homens velhos, homens novos, homens que viviam há muito
em Charleston, convidados que estavam lá de visita, homens de Charleston que viviam
em muitos outros lugares, mas que vinham sempre ao Baile de Santa Cecília. Assim,
cada dança tinha um misterioso potencial de surpresa e a garantia de diversidade. Sem
embaraços. O nome de Middleton Courtney não constava do seu carnê. Não tinha
nada com que se preocupar, a não ser com o prazer de estar naquele salão magnífico,
dançando ao som de bela música.
E era igual para todos. Scarlett deu uma risadinha abafada quando viu as tias
dançarem todas as músicas; até o rosto habitualmente pesaroso de Eulalie estava
iluminado de prazer. Ali ninguém ficava no canto. E não havia situações embaraçosas.
As debutantes terrivelmente jovens, com os seus vestidos brancos, tinham como pares
homens que eram hábeis a dançar e a conversar. Viu Rhett pelo menos com três, mas
nunca com Anne Hampton. Scarlett pensou por instantes quanto os sensatos e velhos
administradores saberiam. Não se importou. Isso a fez feliz. E a fez rir ver os Ellintons.
Era evidente que Hannah se sentia a beldade do baile. Devia estar dançando com
os maiores lisonjeadores de Charleston, pensou Scarlett maliciosamente. Não, decidiu
ela, Townsend estava com o ar de estar se divertindo ainda mais que a mulher.
Decerto alguém o estava elogiando. Sem dúvida que nunca esqueceriam aquela noite.
Aproximava-se a décima sexta música. Era reservada, dissera-lhe Josiah Anson
enquanto valsavam, a namorados e pares casados. No Baile de Santa Cecília, os
maridos e as mulheres voltavam sempre a apaixonar-se, disse num tom solenemente
gozador. Era presidente da Sociedade, portanto sabia. Era uma das regras do Baile de
Santa Cecília. Ela dançaria com Rhett.
Portanto, quando ele a tomou nos braços e lhe perguntou se estava se divertindo,
disse que sim, de todo o coração.
À uma da manhã, a orquestra tocou a última frase da Valsa do Danúbio Azul e o
baile terminou.
- Mas eu não quero que termine - disse Scarlett -, nunca.
- Ótimo - respondeu Miles Brewton, um dos administradores -, é exatamente isso
que esperamos que todos sintam. Agora vão todos lá para baixo cear. A Sociedade
orgulha-se quase tanto das suas ostras como do seu ponche. Espero que tenha bebido
uma taça da nossa mistura famosa.
- Claro que bebi. Pensei que a cabeça ia saltar. - O ponche de Santa Cecília era
composto de excelente champanhe misturado com um brande de boa qualidade.
- Para nós, velhotes, é útil para uma noite de dança. Vai para os pés e não para a
cabeça.
- Conversa, Miles! A Sally disse sempre que era o melhor dançarino de
Charleston, mas eu achei que ela se estava apenas se gabando. Mas agora sei que
estava dizendo a pura verdade.
Estes gracejos extravagantes e risonhos eram tão automáticos para Scarlett que
nem sequer tinha que pensar no que estava dizendo. Por que estaria Rhett demorando
tanto? Porque estava falando com Edward Cooper em vez de a acompanhar à ceia?
Sally Brewton nunca lhe perdoaria por ela estar prendendo Miles daquela forma. Oh,
graças a Deus, Rhett vinha aí.
- Nunca lhe permitiria que reclamasse a sua encantadora mulher se não fosse tão
maior que eu, Rhett. - Miles curvou-se sobre a mão de Scarlett. - Foi uma enorme
honra, minha senhora.
- Um grande prazer - respondeu ela, fazendo uma vênia.
- Meu Deus - disse Rhett na sua voz arrastada -, mais vale eu ir implorar à Sally
que fuja comigo. Recusou já umas cinqüenta vezes, mas talvez a minha sorte tenha
mudado.
Foram os três rindo à procura de Sally. Estava sentada no parapeito de uma
janela, com os sapatos na mão.
- Quem disse que a prova de um baile perfeito é dançar até gastar as solas dos
sapatos? - perguntou num tom queixoso. - Foi o que eu fiz e agora tenho bolhas nos
pés.
Miles pegou-a no colo.
Eu levo-te lá para baixo, mulher chata, mas depois tapas os pés como uma
pessoa respeitável e vais mancando até a ceia.
- Bruto! - disse Sally.
Scarlett viu o olhar que ambos trocaram e sentiu o coração contrair-se de inveja.
- Que assunto fascinante estiveste a discutir com o Edward Cooper durante tanto
tempo? - Scarlett olhou para Rhett e a dor agravou-se. "Não pensarei nisso. Não irei
estragar esta noite perfeita."
- Informou-me que, graças à minha má influência, as notas de Tommy na escola
têm baixado. Como castigo, vai vender o barquito de que o rapaz tanto gosta.
- Isso é uma crueldade! - exclamou Scarlett.
- O rapaz o terá de volta. Comprei-o. Agora vamos cear, antes que as ostras
desapareçam todas. Uma vez na vida, Scarlett, irás ter mais comida que aquela que
conseguirás comer. Até as senhoras se empanturram. É tradição. A temporada
terminou e estamos quase na Quaresma.
Passava ligeiramente das duas quando as portas do Hibernian Hall se abriram.
Os rapazes negros que seguravam os archotes bocejaram ao irem para os seus
lugares para iluminar a saída dos foliões. Quando os seus archotes se acenderam, o
bonde em Meeting Street começou a andar nos trilhos. O condutor aumentou a
intensidade da chama do candeeiro de globo azul no teto e das lanternas de copa alta
junto às portas. Os cavalos batiam as patas e sacudiam a cabeça. Um homem de
avental branco varreu as folhas que se tinham acumulado na passadeira branca, e
depois fez deslizar o grande ferrolho de ferro e abriu os portões, desaparecendo nas
sombras quando o ruído de vozes irrompeu do edifício. Numa fila que se estendia por
três quarteirões, as carruagens esperavam a sua vez de avançarem para apanhar os
seus passageiros.
- Acordem, eles vêm aí - resmungou Ezekiel aos rapazes adormecidos fardados
de lacaios. Deram um salto ao sentirem o seu dedo espetado, sorriram e saltaram de
junto dos seus pés, onde tinham estado dormindo.
As pessoas saíram de roldão pelas portas abertas, falando, rindo, parando na
varanda, relutantes em dar a noite por terminada. Como acontecia todos os anos,
tinham dito que aquele fora o melhor Baile de Santa Cecília de sempre, a melhor
orquestra, a melhor comida, o melhor ponche, o baile em que mais se tinham divertido.
O condutor da carruagem acalmou os cavalos.
- Não se preocupem, eu levo-os para o estábulo, meus rapazes. - Puxou a
manivela junto da cabeça, e o sino de metal bem polido ao lado da luz azul tocou.
- Boa noite, boa noite - gritavam os passageiros obedientes às pessoas que ainda
estavam no alpendre, e, primeiro um, depois três casais, depois uma avalanche de
jovens correu pela passadeira de lona branca. Os mais velhos sorriram e comentaram
a energia infatigável dos jovens, deslocando-se a um passo mais lento, com mais
dignidade. Em alguns casos, essa dignidade não conseguia esconder uma certa
insegurança das pernas.
Scarlett puxou a manga de Rhett.
- Oh, por favor, vamos de bonde, Rhett. A noite está tão agradável e a carruagem
é abafada.
- Olha que ainda é preciso andar bastante do local onde saímos até casa.
- Não me importo. Adoraria andar um pouco a pé.
Ele respirou fundo o ar fresco da noite.
- Eu também - disse. - Vou dizer à mamã. Vai para o bonde e guarda os nossos
lugares.
Não andaram muito de carruagem, pois esta virou para leste em Broad Street, um
quarteirão mais adiante, e depois continuou majestosamente através da cidade
silenciosa até ao fim da Broad, em frente aos Correios. Era uma continuação alegre e
ruidosa da festa. Quase todos os que iam no bonde tomaram parte na canção iniciada
por três homens bem humorados quando a carruagem se inclinou ao fazer a curva. Oh,
the Rock Island Line, it is a mighty fine Une! The Rock Island Line it is the road to ride...
Musicalmente, a exibição deixava muito a desejar, mas os cantores não tinham
consciência disso, nem se importavam. Scarlett e Rhett cantaram tão alto quanto os
outros. Quando saíram da carruagem, ela continuou cantando sempre que o refrão era
repetido. Get your tickets at the station for the Rock Island Line. Rhett e mais três
voluntários ajudaram o condutor a tirar os arreios dos cavalos e a levá-los para a outra
extremidade do bonde, para a viagem de regresso ao longo de Broad, e depois
subindo Meeting Street até o terminal. Retribuíram acenos e gritos de "boa noite"
enquanto o bonde recomeçava a andar, levando consigo os cantores.
- Achas que eles conhecem alguma outra canção? - perguntou Scarlett.
Rhett riu.
- Nem sequer sabem aquela e, para te dizer a verdade, nem eu. Mas não pareceu
fazer grande diferença.
Scarlett deu uma risadinha. Depois, tapou a boca com a mão. A sua risada soara
muito alto agora que The Rock Island Line apenas se ouvia vagamente à distância.
Observou o bonde iluminado a ficar menor, depois parar, recomeçar a andar e
desaparecer numa esquina. O silêncio era absoluto e estava muito escuro fora da poça
de luz lançada pelo candeeiro em frente aos Correios. Uma leve brisa brincava com a
franja do seu xale. O ar estava cálido e suave.
- Está mesmo quente - murmurou para Rhett.
Ele articulou uma afirmativa indistinta e tirou o relógio da algibeira, erguendo-o à
luz do candeeiro.
- Escuta - disse baixinho.
Scarlett escutou. Estava tudo em silêncio. Reteve a respiração e voltou a escutar
mais atentamente.
- Agora! - disse Rhett. Os sinos de St. Michael tocaram uma, duas vezes. As
notas pairaram na noite cálida durante muito tempo. - Meia hora - disse Rhett num tom
de aprovação, voltando a colocar o relógio no bolso.
Tinham ambos bebido bastante ponche. Estavam naquele estado que se
classifica de "alegre", onde tudo de certa forma aumentava em termos de efeito. A
escuridão era mais escura, o ar mais quente, o silêncio mais profundo, a recordação de
uma noite agradável ainda mais agradável que o próprio baile. Cada um sentia um
sereno e luminoso bem-estar interior. Scarlett bocejou, feliz, e enfiou a mão sob o
cotovelo de Rhett. Sem dizerem palavra, começaram a andar pela escuridão em
direção à casa. Os seus passos ressoavam fortemente no passeio e faziam ricochete
nos prédios. Scarlett olhou inquieta de um lado para o outro e por cima do ombro para
o edifício dos Correios que se erguia gigantescamente atrás de si. Não conseguia
reconhecer nada. "Está tudo tão silencioso", pensou, "como se fôssemos as únicas
pessoas na face da terra."
A figura alta de Rhett fazia parte da escuridão, a frente branca da sua camisa
coberta pela pelerine. Scarlett agarrou-lhe o braço com mais força, por cima do
cotovelo. Era firme e forte, o braço poderoso de um homem poderoso. Chegou-se um
pouco mais a ele. Sentia o calor do seu corpo, tinha consciência do seu volume e força.
- Foi uma festa maravilhosa, não foi? - perguntou um pouco alto demais. A sua
voz ecoou, soando estranha aos seus ouvidos. - Tive medo de desatar a rir alto da
emproada da tua Hannah. Santo Deus, quando viu como os sulistas tratam as pessoas,
a cabeça deu-lhe tal volta que eu estava à espera que ela começasse a andar para trás
para ver para onde ia.
Rhett deu uma risadinha.
- Pobre Hannah - disse -, acho que nunca mais na sua vida se sentirá tão
encantadoramente sedutora e tão espirituosa. O Townsend não é tolo. Disse-me que
quer voltar para o Sul. Esta visita provavelmente fará que Hannah concorde. Há neve
de meio metro de altura nas ruas de Filadélfia. - Scarlett riu baixinho na escuridão
cálida e depois sorriu de satisfação. Quando ela e Rhett passaram pela luz do
candeeiro seguinte, viu que ele também estava sorrindo. Não havia necessidade de
continuarem a conversar. Bastava sentirem-se ambos bem, estarem ambos sorrindo,
andando juntos, sem pressa de estar em qualquer outro lugar.
O caminho levou-os pelas docas. Junto ao passeio havia uma longa sucessão de
companhias fornecedoras de navios, edifícios estreitos com lojas de velas entaipadas
ao nível da rua e janelas às escuras dos alojamentos por cima. Muitas das janelas
estavam abertas ao calor quase estival da noite. Um cão ladrou sem convicção ao som
dos seus passos. Rhett mandou-o calar-se, a sua própria voz baixa. O cão ganiu uma
vez e depois calou-se.
Continuaram a andar, passando pelos candeeiros muito espaçados. Rhett
adaptou automaticamente as suas passadas largas às passadas mais curtas de
Scarlett, e o ruído dos saltos no pavimento tornou-se um único claque, claque, claque -
testemunho da agradável unidade do momento.
Um dos candeeiros tinha se apagado. Na mancha de maior escuridão, Scarlett
reparou pela primeira vez que o céu parecia muito próximo e as estrelas que o
salpicavam mais brilhantes do que alguma vez se lembrava de ter visto. Uma das
estrelas parecia tão próxima que dava a impressão de poder tocar nela.
- Rhett, olha para o céu - disse ela baixinho. - As estrelas estão tão próximas. -
Ele parou de andar e pôs a mão sobre a dela para que ela também parasse.
- É por causa do mar - disse ele, e a sua voz era baixa e calorosa. - Já passamos
os armazéns e agora só há água. Escuta, podes ouvi-la respirar. - Ficaram ambos
imóveis.
Scarlett esforçou-se por ouvir. O chapinhar ritmado, o bater da água em
movimento contra as estacas invisíveis do paredão tornou-se audível. Gradualmente,
pareceu tornar-se mais forte, até ela ficar espantada por não ter estado sempre a ouvi-
lo. Depois, um outro som fundiu-se com a cadência da maré do rio. Era música, uma
lenta seqüência de notas. A sua pureza fez que os seus olhos se enchessem
inesperadamente de lágrimas.
- Ouves? - perguntou ela com medo. Estaria imaginando coisas?
- Sim. É um marinheiro com saudades de casa num barco ancorado ao largo. A
música é Across the Wide Missouri. Fazem eles próprios aquela espécie de flautas.
Alguns têm um verdadeiro dom para as tocar. Aquele deve estar de vigia. Olha, há uma
lanterna no cordame; é ali que está o barco. A lanterna é para avisar os barcos que
passam que ele está ali, mas além disso há sempre um homem de vigia, para estar
alerta a qualquer coisa que se aproxime. Talvez haja mesmo dois nesta parte do rio,
com tanto movimento. Há sempre barcos pequenos, pessoas que conhecem o rio e se
deslocam à noite quando ninguém os pode ver.
- Por que fazem isso?
- Por mil razões, nenhuma delas desonesta, nem nobre, dependendo de quem
conta a história. - Rhett parecia estar mais falando consigo próprio que com Scarlett.
Ela olhou para ele, mas estava escuro demais para lhe ver o rosto. Voltou a olhar
para a lanterna do barco que confundira com uma estrela, e escutou a maré e a música
do marinheiro saudoso e anônimo. Os sinos de St. Michael tocaram os três quartos de
hora.
Scarlett sentiu sal nos lábios.
- Sentes saudades de quando furavas o bloqueio, Rhett?
Ele deu uma gargalhada.
- Digamos que gostaria de ter menos dez anos. - Riu de novo, um riso
ligeiramente gozador, divertido consigo próprio.
- Brinco com barcos à vela sob o pretexto de estar sendo simpático para com
jovens confusos. Dá-me prazer estar na água e sentir o vento livre a soprar. Não há
nada como isso para fazer que um homem se sinta um deus. - Rhett recomeçou a
andar, puxando Scarlett consigo. O seu passo era ligeiramente mais rápido, mas
continuava acertado.
Scarlett sentiu o sabor do ar e pensou nas velas como asas dos pequenos barcos
que atravessavam o porto quase a voar.
- Quero fazer aquilo - disse ela. - Quero ir andar de barco, mais que qualquer
outra coisa no mundo. Oh, Rhett, levas-me? Está tanto calor como no Verão e não é
absolutamente necessário que vás para Landing amanhã. Por favor, diz que sim, Rhett.
Ele pensou durante alguns instantes. Muito em breve, ela estaria fora da sua vida
para sempre.
- Por que não? É pena não aproveitar o bom tempo - disse ele.
Scarlett puxou-lhe o braço.
- Anda, vamos depressa. Já é tarde e amanhã quero sair bem cedo.
Rhett reteve-a.
- Não poderei levar-te a andar de barco se partires o pescoço, Scarlett. Vê por
onde vais. Só faltam alguns quarteirões.
Ela voltou a acertar o passo com o dele, sorrindo para si própria. Era maravilhoso
poder antecipar uma coisa.
Já junto de casa, Rhett parou, fazendo que ela também parasse.
- Espera um segundo. - Tinha a cabeça erguida e estava à escuta.
Scarlett interrogou-se sobre o que ele estaria escutando. Oh, pelo amor de Deus,
era apenas o relógio de St. Michael de novo. Os carrilhões tinham acabado de tocar e o
único sino tocou três vezes. À distância, mas distinta na escuridão cálida, a voz do
guarda-noturno na torre da igreja gritou à cidade adormecida.
- Três... horas... e tudo em ordem!
31
Rhett olhou para o traje que Scarlett tinha composto com tanto cuidado e ergueu
uma das sobrancelhas enquanto uma sugestão de sorriso lhe aflorava à boca.
- Bom, não quero voltar a apanhar um escaldão - disse ela na defensiva. Estava
com um chapéu de palha de abas largas que Mrs. Butler tinha junto da porta do jardim
para se proteger do sol quando ia apanhar flores. Tinha envolvido a copa
do chapéu em metros e metros de tule azul, e atado as pontas sob o queixo num
laço que achara encantador. Tinha na mão a sua sombrinha de sol preferida, uma
sombrinha de seda azul-clara, de modelo ousado, em forma de pagode, com uma
franja azul-escura. Impedia que o seu vestido de sair de sarja castanha tivesse um
aspecto tão monótono, pensava.
E que direito tinha Rhett de estar sempre criticando todo mundo? "Parece um
trabalhador rural", pensou, "com aquelas calças puídas e a camisa lisa que nem
colarinho tem, e nem sequer está de gravata ou casaco." Scarlett cerrou os dentes.
- Disseste nove horas, Rhett, e está na hora. Vamos?
Rhett fez uma grande vênia, pegou num velho saco de lona e o pôs ao ombro.
- Iremos, sem dúvida - disse. Havia algo de suspeito na sua voz. "Está armando
alguma", pensou Scarlett, "mas não tenciono deixá-lo levar a melhor."
Ela não fazia idéia de que o barco fosse tão pequeno. Ou que estaria ao fundo de
uma comprida escada que parecia escorregadia e molhada. Olhou para Rhett com uma
expressão acusadora.
- Está quase maré vazia - disse ele. - Era por isso que tínhamos de cá estar às
nove e meia. Às dez, quando a maré virar, teríamos dificuldade em entrar no porto. E
claro que nos ajudará a trazer o barco de volta para a doca... isto é, se tens mesmo a
certeza de que queres ir.
- Claro que tenho, muito obrigada. - Scarlett pôs a mão de luva branca num dos
apoios da escada e preparou-se para se virar.
- Espera! - disse Rhett. Ela olhou para ele com uma expressão de firme
determinação no rosto. - Não estou disposto a deixar-te partir o pescoço para me
poupar ao trabalho de te levar a andar de barco durante uma hora. A escada é muito
escorregadia. Descerei um degrau à tua frente para evitar que escorregues com essas
tuas idiotas botas de cidade. Espera que eu me apronte. Rhett abriu os cordões do
saco de lona e tirou um par de sapatos de lona com sola de borracha. Scarlett
observou-o em silêncio, com uma expressão obstinada.
Rhett não se apressou a calçar os sapatos, a pôr as botas no saco, a apertar os
cordões e a dar-lhes um nó elaborado.
Olhou depois para ela com um súbito sorriso que lhe cortou a respiração.
- Deixa-te estar aqui, Scarlett. Um homem sensato sabe quando é derrotado. Vou
guardar estas coisas e voltarei para buscar-te. - Num instante, pôs o saco ao ombro e
ia já a meio da escada quando Scarlett percebeu o que ele tinha dito.
- Desceste e subiste essa coisa com a velocidade de um raio - disse ela, com
honesta admiração quando Rhett estava de novo junto de si.
- Ou de um macaco - corrigiu ele. - Vem, minha cara. O tempo e a maré não
esperam por nenhum homem, nem sequer por uma mulher.
Scarlett estava familiarizada com escadas e tinha boa cabeça para alturas.
Quando criança, tinha subido árvores, até os galhos mais altos, e o palheiro do celeiro,
como se a sua escada estreita fosse uma larga escadaria. Mas sentiu-se grata pelo
braço de Rhett em volta da sua cintura naqueles degraus cobertos de algas, e ficou
satisfeita ao chegar à relativa estabilidade do pequeno barco.
Sentou-se muito quieta no banco da ré, enquanto Rhett prendia eficientemente as
velas ao mastro e verificava as cordas. A lona branca estava em montes na proa
coberta e dentro da cabina aberta.
- Estás pronta? - perguntou ele.
- Oh, sim!
- Então, vamos largar. - Soltou as cordas que prendiam a minúscula chalupa à
doca e afastou o barco do píer incrustado de craca com um remo. A forte maré vazante
agarrou imediatamente o pequeno barco e puxou-o para o rio. - Fica sentada onde
estás e põe a cabeça sobre os joelhos - ordenou Rhett.
Içou a bujarrona, prendeu a adriça e a escota e a vela estreita enfunou-se
suavemente com o vento.
- Agora!
Rhett sentou-se no banco ao lado de Scarlett e enfiou o braço no leme entre
ambos. Com as duas mãos começou a içar a vela principal que rangeu e bateu
ruidosamente.
Scarlett olhou de soslaio sem erguer a cabeça. Os olhos de Rhett estavam
semicerrados contra o sol e tinha a testa franzida de concentração. Mas parecia feliz,
mais feliz do que ela alguma vez o vira.
A vela principal abriu-se com um fortíssimo estalido e Rhett riu.
- Bonita menina! - exclamou. Scarlett sabia que ele não estava se referindo a ela.

- Estás pronta para regressarmos?


- Oh, não, Rhett. Nunca estarei. - Scarlett estava arrebatada de encantamento
com o vento e o mar, indiferente à espuma que lhe manchava a roupa, à água que lhe
molhava as botas, as luvas e o chapéu de Miss Eleanor, que estavam completamente
estragados, ao fato de ter perdido a sombrinha de sol. Não tinha pensamentos, apenas
sensações. A chalupa tinha apenas uns cinco metros de comprimento, e por vezes o
casco estava apenas alguns centímetros acima da água. Montava as ondas e a
corrente como um jovem animal impaciente, subindo as cristas e depois deslizando
para os cavados num mergulho ousado, que fazia que o estômago de Scarlett ficasse
em algum lugar perto da garganta, e lançava um leque de gotas salgadas no seu rosto
e na sua boca aberta e exultante. Ela fazia parte daquilo - era o vento e a água e o sal
e o sol.
Rhett olhou para a expressão arrebatada dela e sorriu ao ver o ridículo laço de
tule ensopado por baixo do seu queixo.
- Abaixa-te - ordenou, puxando o leme para um curto movimento em zigue-zague
ao vento. Ficaram um pouco mais no mar. - Queres segurar o leme? - ofereceu ele. -
Ensino-te a navegá-lo.
Scarlett abanou a cabeça. Não tinha qualquer desejo de controlar o barco,
contentava-se apenas com o estar ali.
Rhett sabia que era digno de nota Scarlett recusar uma oportunidade para
dominar, compreendeu a profundidade da sua resposta à liberdade feliz de navegar no
mar. Ele próprio tinha freqüentemente sentido o mesmo arrebatamento na sua
juventude. Mesmo agora, tinha ocasionalmente breves momentos em que o sentia,
momentos que o levavam de novo a navegar vez após vez à procura de mais.
- Abaixa-te - voltou a dizer, pondo a pequena chalupa a navegar em uma ampla
curva. O aumento de velocidade fez que a água espumasse sobre a beira inclinada do
casco. Scarlett deu uma exclamação de alegria. No céu, o seu grito foi repetido por
uma gaivota de um branco cintilante contra o céu azul, alto e vasto, sem uma única
nuvem. Rhett olhou para cima e sorriu.
O sol aquecia-lhe as costas, o vento salgado fustigava-lhe o rosto. Era um dia
bom para estar vivo. Prendeu o leme e, com o corpo curvado, foi mais adiante buscar o
saco de lona. As suéteres que tirou de dentro dele eram velhas e deformadas, e
estavam duras do sal. Eram de lã grossa, de um azul tão escuro que parecia quase
preto. Rhett voltou para a ré andando de cócoras e sentou-se no caimento da cabina. A
inclinação do casco baixou sob o seu peso e o pequeno barco silvou bem equilibrado
através da água.
- Veste isto, Scarlett. - Rhett estendeu-lhe uma das suéteres.
- Não preciso. Hoje o dia parece de Verão.
- O ar está de fato quente, mas a água não. Estamos em Fevereiro, quer pareça
ou não Verão. A espuma acabará por te gelar sem dares por isso. Veste a suéter.
Scarlett fez uma careta, mas aceitou a mesma.
- Vais ter que segurar o meu chapéu.
- Eu seguro o chapéu. - Rhett vestiu a outra suéter que estava ainda mais suja.
Depois, ajudou Scarlett. A cabeça dela emergiu do decote e o vento assaltou-lhe o
cabelo despenteado, soltando-o dos ganchos e das travessas e libertando as longas
madeixas. Ela gritou e tentou agarrá-lo.
- Vê tu o que fizeste! - gritou ela. O vento lançou-lhe uma grossa madeixa para
dentro da boca aberta, fazendo que ela cuspisse e soprasse. Quando conseguiu tirar o
cabelo da boca, este soltou-se dos dedos e foi emaranhar-se nas outras madeixas. -
Depressa, dá o meu chapéu antes que fique careca - disse ela. - Santo Deus, estou
horrível.
Nunca estivera tão bela na sua vida. Tinha o rosto iluminado de alegria, rosado do
vento, resplandecente sob a nuvem escura de cabelo. Prendeu firmemente o chapéu
ridículo na cabeça e enfiou o cabelo despenteado na parte de trás da suéter.
- Será que tens alguma coisa para comer nesse teu saco? - perguntou, sem
grande esperança.
- Só rações de marinheiro - disse Rhett -, bolachas duras e rum.
- Parece delicioso. Nunca provei nenhuma das coisas.
- Pouco passa das onze, Scarlett. Vamos almoçar em casa. Controla-te.
- Não podemos ficar aqui o dia todo? Estou gostando tanto.
- Mais uma hora; tenho uma reunião com os meus advogados esta tarde.
- Malditos advogados - disse Scarlett, mas baixinho.
Recusava-se a ficar zangada e a estragar a sua alegria. Olhou para a água que
cintilava ao sol, e para os laços de espuma de cada lado da proa, abriu os braços e
arqueou as costas, espreguiçando-se como um gato. As mangas da suéter eram tão
grandes que lhe tapavam as mãos e batiam ao vento.
- Cuidado, minha cara - disse Rhett rindo -, o vento pode levar-te. - Depois soltou
o leme, preparando-se para virar, olhando automaticamente em volta para ver se havia
outros barcos na rota que se propunha tomar.
- Olha, Scarlett - disse num tom de urgência -, rápido. Ali a estibordo... à tua
direita. Aposto que nunca viste aquilo.
Scarlett perscrutou a margem pantanosa a certa distância. Depois... a meio, entre
o barco e a margem... uma forma cinzenta brilhante curvou-se acima da água por
instantes antes de desaparecer sob ela.
- Um tubarão! - exclamou ela. - Não, dois... três tubarões. Vêm direitos para nós,
Rhett. Querem comer-nos?
- Minha querida e tola criança, são golfinhos, não tubarões. Devem estar
dirigindo-se para o oceano. Agarra-te e abaixa-te. Vou virar o barco. Talvez possamos
ir com eles. É a coisa mais encantadora do mundo estar no meio de um cardume de
golfinhos. Adoram brincar.
- Brincar? Peixes? Deves pensar que sou muito simplória, Rhett - disse ela,
baixando-se sob o botaló em movimento.
- Não são peixes. Repara bem. Verás.
Havia sete golfinhos no cardume. Quando Rhett conseguiu manobrar a chalupa
para seguir o rumo dos elegantes mamíferos, os golfinhos já iam bastante mais
adiante. Rhett pôs-se de pé e protegeu os olhos do sol.
- Raios! - exclamou. Depois, imediatamente à frente da chalupa, um golfinho
saltou da água, arqueou-se e mergulhou, espadanando água.
Scarlett bateu na perna de Rhett com o punho tapado pela camisola.
- Viste aquilo?
Rhett sentou-se no banco.
- Vi. Veio dizer-nos para nos apressarmos. Os outros estão provavelmente à
nossa espera. Olha! - Dois golfinhos tinham saltado na água mais à frente. Os seus
saltos graciosos fizeram Scarlett bater palmas. Arregaçou as mangas da suéter e
voltou a bater palmas, desta vez com êxito. Dois metros à sua direita, o primeiro
golfinho veio à superfície, limpou o orifício de respiração com um esguicho de espuma
e depois rolou preguiçosamente para dentro de água.
- Oh, Rhett, nunca vi nada tão deslumbrante. Estava sorrindo para nós!
Rhett também sorria.
- Acho sempre que estão sorrindo e também lhes sorrio. Adoro golfinhos, sempre
adorei.
Os golfinhos proporcionaram a Rhett e Scarlett aquilo a que só se podia chamar
um jogo. Nadaram ao lado do barco, passando por baixo dele, em frente da proa, por
vezes um a um, outras aos dois e aos três. Mergulhando e vindo à superfície,
soprando, rolando, saltando, olhando-os com olhos que pareciam humanos, pareciam
estar rindo, com a boca rasgada num sorriso para o homem e a mulher dependentes
daquele barco desajeitado.
- Ali! - Rhett apontou quando um deles rompeu à superfície num salto, e - Ali! -
gritou Scarlett quando um outro saltou na direção oposta. - Ali! - e - Ali! - sempre que os
golfinhos saltavam da água. Era uma surpresa de cada uma das vezes, sempre num
local diferente daquele para onde Scarlett e Rhett estavam olhando.
- Estão dançando - insistiu Scarlett.
- Brincando - sugeriu Rhett.
- Exibindo-se - concordaram ambos. O espetáculo era encantador.
Por causa dele Rhett foi imprudente. Não viu a nuvem escura que estava se
alastrando pelo horizonte atrás deles. O primeiro alerta foi quando o vento, que tinha
soprado regularmente, subitamente parou. As velas ficaram lassas e os golfinhos
mergulharam abruptamente na água e desapareceram. Nessa hora ele olhou - tarde
demais - por cima do ombro e viu a tempestade varrendo a água e o céu.
- Deita-te de barriga para baixo no fundo do barco, Scarlett - disse calmamente -,
e agarra-te bem. Vai haver uma tempestade. Não te assustes, já naveguei em
situações muito piores.
Ela olhou para trás e abriu muito os olhos. Como é que o céu podia estar tão
cheio de sol e azul à sua frente e tão negro atrás? Sem dizer nada, deitou-se e
encontrou um local onde se agarrar debaixo do banco onde ela e Rhett tinham estado
sentados.
Ele ajustava rapidamente as velas.
- Vamos ter que correr à frente dela - disse, e depois sorriu. - Vais te molhar, mas
vai ser uma experiência dos diabos. - Nesse preciso instante, a tempestade abateu-se
sobre eles. O dia transformou-se em água e numa quase-noite enquanto as nuvens
escureciam o céu e lençóis de água caíam sobre eles. Scarlett abriu a boca para gritar
e ficou com ela imediatamente cheia de água.
"Meu Deus, estou me afogando", pensou. Curvou-se e cuspiu e tossiu até ficar
com a boca e a garganta limpas. Tentou erguer a cabeça para ver o que estava
acontecendo, para perguntar a Rhett o que era aquele barulho horrível. Mas o chapéu
já espatifado caiu-lhe sobre a cara e não conseguia ver nada. "Tenho que me livrar
disto, senão sufoco." Puxou o laço de tule com a mão que tinha livre. A outra mão
agarrava desesperadamente a pega de metal que encontrara. O barco estava sendo
violentamente sacudido, rangendo como se se estivesse se desfazendo. Sentia a
chalupa deslizar para baixo, para baixo, para baixo - devia estar quase na vertical. "Vai
entrar direto na água, até o fundo do mar. Oh, Doce Mãe de Deus, não quero morrer!"
Com um violento estremecimento, a chalupa parou de mergulhar. Scarlett puxou
com força o tule molhado sob o queixo, sobre a cara e libertou-se das abas sufocantes
de palha molhada. Conseguia ver!
Olhou para a água, depois para cima, outra vez para a água, depois para cima...
para cima... para cima. Havia uma parede de água mais alta que o mastro, pronta a
abater-se e esmagar a frágil casca de madeira em pedaços. Scarlett tentou gritar, mas
a sua garganta estava paralisada de medo. A chalupa estremecia e gemia; deslizou
num movimento nauseante pela face da parede, ficou equilibrada no topo,
estremecendo, durante um momento aterrorizante.
Os olhos de Scarlett estavam semicerrados contra a chuva que lhe caía
violentamente na cabeça com uma força terrível, escorrendo-lhe pela cara. De todos os
lados erguiam-se ondas montanhosas, iradas, com cristas de espuma branca que se
abriam em leque sob o vento e a chuva furiosos.
- Rhett - tentou gritar. Meu Deus, onde estava Rhett? Virou a cara de um lado
para o outro, tentando ver através da chuva. Depois, no preciso momento em que a
chalupa mergulhou furiosamente pelo outro lado da onda, descobriu-o.
"Maldita seja a sua alma!" Estava ajoelhado, com as costas e os ombros direitos,
de cabeça e queixo erguido; e estava rindo ao vento e à chuva e às ondas. A sua mão
esquerda agarrava o leme com força e tinha a mão direita estendida, agarrada à corda
que estava amarrada em volta do seu cotovelo e antebraço e pulso, a escota que
controlava a temível força da enorme vela principal enfolada pelo vento. Ele estava
adorando aquilo! A luta com o vento, o perigo de morte. "Ele adora isto."
"Odeio-o!"
Scarlett olhou para a portentosa ameaça da próxima onda e, durante um instante
selvagem e desesperante, esperou que ela caísse e a aprisionasse e destruísse.
Depois, disse a si própria que nada tinha a recear. Rhett conseguia controlar tudo, até
o próprio oceano. Ergueu a cabeça, como a dele estava erguida, e entregou-se à
perigosa e selvagem excitação.
Scarlett não conhecia o poder caótico do vento. Enquanto a pequena chalupa
deslizava pela face da onda de nove metros de altura, o vento parou. Apenas por
alguns segundos, um capricho no meio da tempestade, a vela principal ficou lassa e o
barco girou para a bordada, arrastado ao acaso apenas pela corrente, numa subida
perigosa. Scarlett percebeu que Rhett estava desprendendo rapidamente o braço da
corda, que estava fazendo uma coisa diferente com o leme, mas não tinha a menor
idéia de que qualquer coisa de mal acontecera até a crista da onda estar quase
debaixo da quilha e Rhett gritar:
- Vai virar! Vai virar! - e atirar o seu corpo para cima do dela.
Ela ouviu um ruído de ranger e abanar perto da sua cabeça e percebeu a
oscilação lenta, e depois rápida, do forte ribombar por cima dela. Aconteceu tudo muito
depressa; no entanto, parecia terrível e estranhamente lento, como se todo o mundo
estivesse parando. Olhou sem compreender para o rosto de Rhett, tão perto do dela,
que depois desapareceu, e viu que ele estava de joelhos fazendo qualquer coisa, não
sabia o quê, a não ser que as voltas da corda pesada estavam caindo sobre ela.
Não viu o vento transversal agitar e subitamente enfolar a lona da vela principal e
empurrá-la para o lado oposto da chalupa desgovernada com uma força crescente e
tão poderosa que se ouviu um craque com o ruído de um relâmpago a cair e o mastro
grosso partiu-se e foi arrastado para o mar pelo impulso e pelo peso da vela. O casco
do barco deu um solavanco, depois ergueu-se a estibordo e rolou lentamente, ao ser
puxado pelo cordame emaranhado, até ficar ao contrário. O barco virara-se no mar
gelado e varrido pela tempestade.

Scarlett nunca pensara que tal frio existisse. Era fustigada pela chuva fria, estava
rodeada por água ainda mais fria, que a puxava. Todo o seu corpo devia estar gelado.
Os dentes batiam-lhe incontrolavelmente, fazendo tal barulho na sua cabeça que a
impedia de pensar, de compreender o que estava acontecendo, a não ser que devia
estar paralisada, pois não se conseguia mexer. E, no entanto, estava movendo-se, em
movimentos estonteantes, indo acima e caindo, caindo, caindo de uma forma terrível.
"Estou morrendo. Oh, meu Deus, não me deixes morrer! Quero viver."
- Scarlett! - O som do seu nome foi mais forte que o dos dentes batendo e
penetrou na sua consciência.
- Scarlett! - Ela conhecia aquela voz, era a voz de Rhett.
E aquele era o braço de Rhett em torno dela, a segurá-la. Mas onde é que ele
estava? Não via nada através da água que não parava de lhe fustigar o rosto,
enevoando-lhe os olhos e fazendo-os arder.
Abriu a boca para responder, e esta ficou imediatamente cheia de água. Scarlett
esticou a cabeça o mais que pôde e cuspiu a água da boca. Se ao menos os seus
dentes deixassem de bater!
- Rhett - tentou dizer.
- Graças a Deus. - A voz dele soou de muito perto. Por detrás dela. As coisas
estavam começando a fazer algum sentido.
- Rhett - disse ela de novo.
- Escuta com atenção, minha querida, escuta com mais atenção do que alguma
vez escutaste na tua vida. Temos uma chance e vamos agarrá-la. A chalupa está
mesmo aqui; estou agarrado ao leme. Temos que nos meter debaixo dela e utilizá-la
como proteção. Isso significa que temos que mergulhar e voltar acima sob o casco do
barco. Entendeste?
Tudo dentro dela gritava: Não! Se mergulhasse na água se afogaria. A água já a
estava arrastando, puxando. Se mergulhasse, nunca mais viria à superfície! Foi
invadida pelo pânico. Não conseguia respirar. Queria agarrar-se a Rhett, queria gritar e
gritar e gritar...
"Pára com isso." As palavras eram claras. E a voz era a sua. "Tens que
sobreviver a isto e não conseguirás se te portares como uma idiota."
- Que-que-que-res-que-eu-fa-ça? - Malditos dentes, que não paravam de bater.
- Vou contar. Quando disser "três", respira fundo e fecha os olhos. Estou te
agarrando. Consigo pôr-nos a salvo. Não te acontecerá nada. Estás pronta? - Não
esperou pela resposta dela, começando imediatamente a gritar: - Um... dois... - Scarlett
respirou fundo com dificuldade. Depois, sentiu-se puxada para baixo, para baixo, e a
água invadiu-lhe o nariz e os ouvidos e os olhos e a consciência. Daí a segundos
terminara. Com um enorme alívio, respirou ar.
- Tenho segurado os teus braços, Scarlett, para não te agarrares a mim e irmos
ambos ao fundo. - Rhett deslocou as mãos para a sua cintura. Era maravilhoso estar
liberta. Se ao menos as suas mãos não estivessem tão frias. Começou a esfregá-las.
- Isso mesmo - disse Rhett. - E preciso ativar a circulação. Mas ainda não. Segura
neste chapuz. Tenho que te deixar por alguns minutos. Não entres em pânico. Não
demorarei. Vou voltar a mergulhar, para ir à superfície cortar o cordame emaranhado e
o mastro antes que arrastem o barco para o fundo. Também vou cortar os cadarços
das tuas botas, Scarlett. Não dês pontapés quando sentires uma coisa agarrar-te o pé.
Também terei que te tirar essas saias e saiotes pesados. Agarra-te com força. Não
demorarei.
Pareceu-lhe uma eternidade.
Scarlett aproveitou para avaliar a situação. As coisas não estavam tão más assim
- se conseguisse ignorar o frio. A chalupa virada formava um teto sobre a sua cabeça,
impedindo a chuva de a fustigar. Além disso, por qualquer razão, a água estava mais
calma. Não a conseguia ver; o interior do casco estava em escuridão absoluta; mas ela
sabia que estava. Embora o barco continuasse a erguer-se e a cair com o movimento
das ondas ao mesmo ritmo estonteante, a superfície da água abrigada era quase lisa,
sem pequenas ondas cavadas a baterem-lhe no rosto.
Sentiu Rhett tocar-lhe no pé esquerdo. "Ótimo! Não estou realmente paralisada."
Scarlett respirou fundo pela primeira vez desde que a tempestade os atingira. Sentiu
uma sensação muito estranha nos pés. Nunca tivera a noção de como aquelas botas
eram pesadas e apertadas. Oh! A mão na sua cintura provocou-lhe uma sensação de
estranheza. Percebia o movimento cortante da faca. Depois, subitamente, um enorme
peso deslizou-lhe pelas pernas abaixo e os seus ombros romperam à superfície. Soltou
uma exclamação de surpresa. O som do seu grito reverberou no espaço oco sob o
casco de madeira. Foi tão forte que, com o choque, quase largou o chapuz onde estava
agarrada.
Depois, Rhett irrompeu da água. Estava muito perto dela.
- Como te sentes? - perguntou ele. Parecia que estava gritando.
- Chhh - disse Scarlett. - Mais baixinho.
- Como te sentes? - perguntou ele mais baixo.
- Se queres mesmo saber, quase morta, de tão gelada.
- A água está fria, mas não suficientemente fria para isso. Se estivéssemos no
Atlântico Norte...
- Rhett Butler, se me contas mais uma das tuas aventuras do tempo em que
furavas o bloqueio, eu... afogo-te!
O riso dele encheu o ar à sua volta e pareceu de alguma forma torná-lo mais
quente. Mas Scarlett continuava furiosa.
- Seres capaz de rir numa hora destas ultrapassa a minha compreensão. Não é
nada divertido estar pendurada dentro da água gelada no meio de uma terrível
tempestade.
- Quando as coisas são o pior possível, Scarlett, a única coisa que há a fazer é
descobrirmos qualquer coisa da qual possamos rir. Faz que não percamos a sanidade
mental... e impede os dentes de baterem de medo.
Ela estava exasperada demais para falar. O pior era que ele tinha razão. Os
dentes tinham parado de bater quando ela deixou de pensar que ia morrer.
- Agora vou cortar os laços do teu espartilho, Scarlett. Não consegues respirar
direito dentro dessa armação. Fica quieta para eu não te cortar a pele. - Houve uma
intimidade embaraçosa no movimento das suas mãos por baixo da suéter, enquanto
lhe rasgava o espartilho e o corpete. Há anos que ele não lhe tocava no corpo.
- Agora respira fundo - disse Rhett, depois de puxar o espartilho e o corpete. -
Hoje em dia as mulheres não aprendem a respirar. Enche os pulmões até o fundo.
Estou fazendo um suporte com umas cordas que cortei. Quando acabar, poderás largar
o chapuz e massagear as mãos e os braços. Continua a respirar fundo. Vai te aquecer
o sangue.
Scarlett tentou fazer o que Rhett dizia, mas quando os ergueu, sentiu os braços
extremamente pesados. Era muito mais fácil deixar o corpo apoiado no suporte de
corda sob os braços e deixar-se erguer e cair com o movimento das ondas. Estava
sentindo-se muito sonolenta... Por que estaria Rhett falando tanto? Por que insistia em
que esfregasse os braços?
- Scarlett! - A voz dele soou muito forte. - Scarlett! Não podes adormecer. Tens
que continuar a mexer-te. Mexe os pés. Se quiseres, dá-me pontapés, mas mexe as
pernas. - Rhett começou a esfregar-lhe vigorosamente os ombros, e depois os braços
com movimentos bruscos.
- Pára com isso. Estás me machucando. - As suas palavras soaram fracas, como
o miar de um gatinho. Scarlett fechou os olhos e a escuridão tornou-se mais escura. Já
não sentia tanto frio; sentia-se apenas cansada, muito cansada, e sonolenta.
Sem qualquer aviso, Rhett deu-lhe uma bofetada com tanta força que a cabeça foi
atirada para trás e bateu no casco de madeira com um baque que ressoou no espaço
fechado. Scarlett ficou completamente acordada, chocada e zangada.
- Como te atreves?! Vais me pagar isto quando sairmos daqui, Rhett Butler,
garanto-te que vais!
- Assim é melhor - disse Rhett, continuando a esfregar-Ihe os braços
violentamente, embora Scarlett tentasse afastar-lhe as mãos. - Continua a falar que eu
massageio. Dá-me as tuas mãos para eu as poder esfregar.
- Nem penses! As minhas mãos ficam comigo e agradeço que faças o mesmo
com as tuas. Estás a arrancar-me a carne dos ossos.
- Mais vale eu arrancá-la do que os caranguejos comerem-na - disse Rhett
asperamente. - Escuta. Se cederes ao frio, Scarlett, morrerás. Sei que queres dormir,
mas esse é o sono da morte. E, por Deus, nem que tenha que te bater até ficares
negra, não deixarei que morras. Mantém-te acordada, respira e vai te mexendo. Fala;
não pares de falar; não me importo com o que digas, deixa-me apenas ir ouvindo o teu
timbre de peixeira rabugenta para saber que estás viva.
Scarlett voltou a ter consciência do frio paralisante quando Rhett lhe esfregou a
carne, revivificando-a.
- Vamos conseguir sair desta? - perguntou ela sem emoção, tentando mexer as
pernas.
- Claro que vamos.
- Como?
- A corrente está a arrastar-nos para terra; a maré está enchendo. Nos levará
para o local de onde partimos.
Scarlett assentiu na escuridão. Lembrou-se da preocupação de largarem antes de
a maré virar. Nada na voz de Rhett revelava o seu conhecimento de que a força dos
ventos ciclônicos podiam anular a atividade normal das marés. A tempestade podia
estar a arrastá-los para lá da entrada do porto, para a vasta extensão do Oceano
Atlântico.
- Quanto tempo falta para lá chegarmos? - O tom de Scarlett era rabugento.
Sentia as pernas como se fossem dois enormes troncos de árvore. E Rhett estava a
pôr-lhe os ombros em carne viva.
- Não sei - respondeu ele. - Vais precisar de toda a tua coragem, Scarlett.
"Está com um ar tão solene como um sermão! Rhett, que faz sempre troça de
tudo. Oh, meu Deus!" Scarlett forçou as pernas sem vida a mexerem-se e afastou o
terror com uma determinação férrea.
- Preciso mais de qualquer coisa para comer que de coragem - disse ela. - Por
que diabo é que não agarraste no teu sujo saco quando viramos?
- Está guardado na proa. Meu Deus, Scarlett, a tua gula talvez nos salve. Já me
tinha esquecido dele. Reza para que ainda lá esteja.
O rum espalhou tentáculos de calor revivificante pelas suas coxas, pelas suas
pernas e pelos seus pés e Scarlett começou a mexê-los para a frente e para trás. A dor
da restituição da circulação era intensa, mas aceitou-a de bom grado. Significava que
estava viva, toda ela. "Ora, rum talvez fosse ainda melhor que brande", pensou depois
do segundo gole. Não havia dúvida de que aquecia bem.
Era pena Rhett ter insistido em racioná-lo, mas sabia que ele tinha razão. Seria
horrível esgotar o calor na garrafa antes de estarem a salvo em terra. Entretanto, até
conseguiu tomar parte no tributo de Rhett ao seu prêmio. Yo, ho, ho, and a bottle of
rum cantou ela, quando ele acabava cada estrofe da canção de marinheiros.
E depois Scarlett lembrou-se de Little brown jug, howl love thee.
As suas vozes ecoaram tão alto dentro do casco que lhes foi possível fingirem
que não estavam enfraquecendo à medida que o frio lhes ia conquistando o corpo.
Rhett abraçou Scarlett e apertou-a contra o seu corpo para compartilhar o seu calor. E
cantaram todas as canções preferidas de que se lembravam, enquanto os goles de rum
se tornavam cada vez menos espaçados e com um efeito cada vez menor.
- Que tal The Yellow Rose of Texas? - sugeriu Rhett.
- Já cantamos essa duas vezes. Canta aquela canção de que o Papá tanto
gostava, Rhett. Lembro-me de ver os dois cambaleando pela rua em Atlanta, a berrar
como porcos na matança.
- Claro que parecíamos um coro de anjos - disse Rhett, imitando o sotaque
cerrado de Gerald O'Hara. - When first I saw Peggy, 't was on a market day... - Cantou
o primeiro verso de Peg in a Low-backed Car, depois admitiu que não sabia o resto. -
Deves saber a letra toda, Scarlett. Canta-me tu.
Ela tentou, mas não teve forças.
- Esqueci-me - disse, para disfarçar a fraqueza. Estava tão cansada... Se ao
menos pudesse encostar a cabeça ao calor de Rhett e dormir. Era maravilhoso sentir-
se nos seus braços.
A cabeça caiu-lhe. Estava pesada demais para a manter erguida.
Rhett abanou-a.
- Scarlett, ouves-me? Scarlett! Sinto que a corrente está mudando. Juro, estamos
muito perto da margem. Não podes desistir agora. Vá, minha querida, mostra-me um
pouco mais dessa tua coragem. Levanta a cabeça, minha linda, já está quase no fim.
*
- ... tanto frio...
-Maldita sejas por seres uma perdedora, Scarlett O'Hara! Devia ter deixado o
Sherman apanhar-te em Atlanta. Não valia a pena ter-te salvo.
As palavras foram lentamente registradas na sua consciência quase desaparecida
e produziram apenas uma leve reação de ira. Mas bastou. Os olhos dela abriram-se e a
cabeça ergueu-se para enfrentar o desafio de que tivera vagamente percepção.
- Respira fundo - ordenou Rhett. - Vamos mergulhar. - Pôs a sua grande mão
sobre o nariz e a boca de Scarlett, e mergulhou na água com o seu corpo que se
debatia fracamente apertado contra o dele. Vieram à superfície junto à parte exterior do
casco, perto de um renque de grandes ondas em rebentação.
- Estamos quase lá, meu amor - exclamou Rhett quase sem fôlego. Curvou um
braço em volta do pescoço de Scarlett e susteve a sua cabeça pesada enquanto ia
nadando com movimentos experientes através da rebentação e utilizava a força desta
para chegar à água menos funda.
Caía uma chuva fina, varrida quase horizontalmente pelo vento que soprava.
Ajoelhado na água orlada de espuma, já fora da rebentação, Rhett segurava o corpo
inerte de Scarlett junto ao peito, inclinando-se sobre ele. Uma onda ergueu-se ao longe
atrás dele e correu em direção à praia. Começou a curvar-se sobre si mesma, e a água
cinzenta manchada de espuma abateu ruidosamente, irrompendo em direção a terra e
indo bater nas costas de Rhett, rugindo sobre o seu corpo protetor.
Depois de a onda passar e a sua força se esgotar, pôs-se de pé, inseguro, e
cambaleou até à praia, apertando Scarlett contra si. Os pés descalços e pernas nuas
estavam cortados em dezenas de lugares pelos fragmentos de conchas que a onda
lançara contra ele, mas não se importou. Correu desajeitadamente através da areia
funda para uma abertura na linha de enormes dunas e continuou a subir até chegar a
uma zona protegida do vento. Aí, colocou suavemente o corpo de Scarlett na areia
macia.
A sua voz estava entrecortada ao dizer vezes sem conta o nome de Scarlett
enquanto tentava trazer de volta a vida à brancura gelada do corpo dela, esfregando
cada parte com ambas as mãos. O seu cabelo negro e brilhante, todo emaranhado,
estava caído em volta da cabeça e sobre os ombros, e as sobrancelhas e pestanas
negras eram duas manchas chocantes no rosto molhado e sem cor. Rhett bateu-lhe no
rosto suave e urgentemente, com a parte de trás dos dedos.
Quando os olhos dela se abriram, tinham uma cor que parecia tão forte como a
das esmeraldas. Rhett gritou num triunfo primitivo.
Os dedos de Scarlett tinham-se semicerrado sobre a solidez da areia endurecida
pela chuva.
- Terra - disse ela, começando a chorar num soluçar irregular.
Rhett pôs-lhe um braço sob os ombros e ergueu-a, protegendo-a com o seu corpo
curvado. Com a mão que tinha livre, tocou-lhe no cabelo, nas faces, na boca, no
queixo.
- Minha querida, minha vida. Pensei que te tinha perdido. Pensei que a tivesse
matado. Pensei... Oh, Scarlett, estás viva. Não chores, minha querida, já terminou tudo.
Estás salva. Está tudo bem. Tudo... - Beijou-lhe a testa, a garganta, as faces. A pele
pálida de Scarlett tornou-se rosada ao aquecer e ela virou a cabeça para corresponder
aos beijos dele.
E não havia frio, chuva, fraqueza - apenas os lábios de Rhett nos seus, no seu
corpo, o calor das suas mãos. E a força que ela sentia sob os dedos ao agarrar-lhe os
ombros. E o bater do seu coração na garganta sob os lábios dele, o bater forte do
coração dele sob as palmas das suas mãos quando ela enovelava os dedos nos
espessos pêlos encaracolados do seu peito.
"Sim! Lembro-me, não foi um sonho. Sim, este é o escuro turbilhão que me atrai e
exclui o resto do mundo e me torna viva, tão viva, e livre, a rodopiar até ao coração do
sol."
- Sim! - exclamou repetidas vezes, indo ao encontro da paixão de Rhett com a
sua própria paixão, as suas exigências iguais às dele. Até que, no encantamento
rodopiante, em espiral, deixou de haver palavras ou pensamentos, apenas uma união
para lá do espírito, para lá do tempo, para lá do mundo.
32
"Ele me ama! Que idiota que fui por duvidar do que sabia." Os lábios inchados de
Scarlett curvaram-se num sorriso indolente e saciado e abriu lentamente os olhos.
Rhett estava sentado ao seu lado. Tinha os braços em volta dos joelhos e o rosto
escondido na concavidade que estes formavam.
Scarlett espreguiçou-se languidamente. Sentiu pela primeira vez a areia áspera
contra a pele e reparou onde estava. "Ora, está chovendo muito. Arriscamo-nos a
apanhar alguma doença. Temos que encontrar abrigo antes de voltarmos a fazer
amor." As covinhas nas suas faces estremeceram enquanto abafava uma risadinha.
"Talvez não; o que é certo é que nem demos pelo mau tempo."
Estendeu a mão e passou as unhas ao longo da espinha de Rhett.
Ele esquivou-se repentinamente, como se ela o tivesse queimado, virando-se
bruscamente para olhar para ela e depois pondo-se de pé num salto. Ela não
conseguiu decifrar a sua expressão.
- Não te quis acordar - disse ele. - Tenta descansar um pouco mais, se
conseguires. Vou procurar um local para nos secarmos e fazer uma fogueira. Há
cabanas em todas estas ilhas.
- Vou contigo - disse Scarlett, esforçando-se por se pôr de pé. A suéter de Rhett
tapava-lhe as pernas e ainda tinha a dela vestida. Sentia-se presa pelo peso de
estarem ensopadas.
- Não. Tu ficas aqui. - Rhett afastou-se rapidamente, subindo as dunas íngremes.
Scarlett ficou de boca aberta, sem acreditar muito bem no que via.
- Rhett! Não podes me abandonar. Não deixarei.
Mas ele continuou a subir. Ela apenas via as suas costas largas com a camisa
molhada colada a elas.
Ao chegar ao topo da duna, ele parou. Virou a cabeça lentamente, de um lado
para o outro. Depois, os seus ombros curvados endireitaram-se. Virou-se e deslizou
imprudentemente pela face íngreme.
- Há ali uma casinha. Sei onde estamos. Levanta-te. - Rhett estendeu a mão para
ajudar Scarlett a levantar-se. Ela agarrou-a ansiosamente.
As casas que alguns dos habitantes de Charleston tinham construído nas ilhas
mais próximas destinavam-se a captar a brisa fresca do mar durante os dias úmidos do
longo Verão do Sul. Eram refúgios para a formalidade da cidade, pouco mais que
barracas, sem adornos, com varandas sombrias, revestidas com ripas de madeira,
empoleiradas em estacas tratadas com creolina para ficarem acima das areias
escaldantes do Verão. Sob a chuva fria e fustigada pelo vento, o abrigo que Rhett
encontrara parecia em ruínas e incapaz de se agüentar naquele vento ciclônico. Mas
ele sabia que aquelas casas das ilhas estavam ali há gerações e tinham lareira na
cozinha onde as refeições eram preparadas. Exatamente o tipo de abrigo necessário a
sobreviventes de um naufrágio.
Rhett arrombou a porta da casa de madeira com um único pontapé. Scarlett
entrou atrás dele. Por que estava ele tão calado? Mal lhe dirigira palavra, mesmo
enquanto a levara ao colo para atravessar uma zona de arbustos baixos no sopé das
dunas. "Quero que ele fale", pensou Scarlett, "quero ouvir a voz dele a dizer quanto me
ama. Deus sabe quanto tempo ele me obrigou a esperar por isso."
Ele descobriu uma manta de retalhos num dos armários.
- Despe essa roupa molhada e embrulha-te nisto - disse, atirando-lhe a manta
para o colo. - Não demorarei nada a acender a lareira.
Scarlett deixou cair os culotes rasgados em cima da camisola ensopada e secou-
se com a manta. Era macia e agradável. Embrulhou-se nela como um xale e voltou a
sentar-se na cadeira da cozinha. A manta fazia um envelope para os seus pés no chão.
Scarlett estava seca pela primeira vez em horas, mas começou a tremer.
Rhett foi buscar lenha seca numa caixa na varanda, junto à cozinha. Daí a
minutos, um pequeno lume ardia na grande lareira. Quase de imediato, alastrou à
pirâmide de achas e uma onda de chamas alaranjadas irrompeu a crepitar. Iluminou o
seu rosto sombrio.
Scarlett atravessou a sala coxeando para se aquecer ao lume.
- Por que não despes também essa roupa molhada, Rhett? Dou-te a colcha para
te secares; é uma ótima sensação - disse, baixando os olhos como se tivesse ficado
embaraçada com a sua ousadia. As pestanas espessas esvoaçaram-lhe nas faces.
Rhett não respondeu.
- Voltarei a ficar ensopado quando sair - disse ele. - Estamos muito perto de Fort
Moultrie. Vou buscar ajuda. - Rhett dirigiu-se para a pequena despensa ao lado da
cozinha.
- Quero lá saber de Fort Moultrie! - Scarlett queria que ele deixasse de vasculhar
a despensa daquela forma. Como é que podia falar com ele, estando ele noutra
dependência?
Rhett apareceu com uma garrafa de uísque numa mão.
- As prateleiras estão praticamente vazias - disse com um breve sorriso -, mas há
aquilo de que precisamos. - Abriu um armário e tirou duas xícaras. - Estão
suficientemente limpas - disse. - Vamos tomar uma bebida. - Pousou as xícaras e a
garrafa em cima da mesa.
- Não quero uma bebida. Quero...
Ele interrompeu-a antes de ela lhe poder dizer o que queria.
- Preciso de uma bebida - disse. Encheu meia xícara, bebeu-a com um longo
trago e abanou a cabeça. - Não admira que tivessem deixado ficar isto; é uma
verdadeira porcaria. Mesmo assim... - e deitou mais uísque na xícara.
Scarlett observou-o com uma expressão de indulgência divertida. "Pobre querido,
como está nervoso." Quando falou, a sua voz estava carregada de terna paciência.
- Não é preciso estares tão enervado, Rhett. Não me comprometeste, nem nada
de semelhante. Somos duas pessoas casadas que se amam, nada mais.
Rhett olhou para ela fixamente por cima da borda da xícara e depois a pôs
cuidadosamente em cima da mesa.
- Scarlett, o que aconteceu ali fora não teve nada a ver com amor. Foi uma
celebração da sobrevivência, nada mais. Acontece depois de cada batalha em tempo
de guerra. Os homens que não são mortos atiram-se para cima da primeira mulher que
vêem e provam que ainda estão vivos usando o seu corpo. Neste caso, tu também
usaste o meu, pois escapaste à morte por um triz. Não teve nada a ver com amor.
A rudeza das palavras dele cortou a respiração a Scarlett.
Mas depois lembrou-se da sua voz rouca ao ouvido, das palavras "minha
querida", "minha vida", "amo-te", repetidas dezenas de vezes. Por mais que Rhett
dissesse, ele amava-a. Ela sabia-o lá bem no fundo da sua alma, onde não havia
mentiras. "Continua a ter medo de que eu não o ame realmente! É por isso que não
admite o quanto me ama."
Scarlett começou a andar na direção dele.
- Podes dizer o que quiseres, Rhett, mas isso não irá alterar a verdade. Eu amo-te
e tu amas-me e fizemos amor para o provarmos um ao outro.
Rhett bebeu o uísque. Depois riu com rudeza.
- Nunca pensei que fosses uma idiotazinha romântica, Scarlett. Decepcionas-me.
Antes tinhas senso nessa cabeça dura. Uma cópula apressada não deve ser nunca
confundida com amor. Embora Deus saiba que acontece com freqüência suficiente
para encher as igrejas com cerimônias de casamento.
Scarlett continuou a andar.
- Podes falar até ficares roxo, mas isso não alterará nada. - Levou a mão à cara e
limpou as lágrimas que lhe caíam dos olhos. Estava muito perto dele. Sentia o cheiro
de sal na sua pele, o uísque no seu hálito. - Tu amas-me - soluçou ela -, amas mesmo,
mesmo. - A manta caiu no chão quando ela a largou para estender as mãos a Rhett. -
Abraça-me e diz-me que não me amas e eu acreditarei.
As mãos de Rhett agarraram-lhe bruscamente na cabeça e ele beijou-a com uma
força possessiva, machucando-a. Os braços de Scarlett envolveram-lhe o pescoço,
enquanto as mão dele lhe acariciavam a garganta e os ombros, e ela entregou-se com
abandono.
Mas os dedos de Rhett fecharam-se subitamente sobre os seus pulsos,
afastando-lhe os braços, afastando-a dele, e a sua boca deixou de procurar a dela e o
seu corpo afastou-se do dela.
- Porquê? - perguntou ela. - Tu desejas-me.
Ele largou-a, largando-lhe os pulsos, tropeçando para trás na primeira ação
descontrolada que ela o vira ter.
- Sim, por Cristo! Desejo-te e anseio por ti. És um veneno no meu sangue,
Scarlett, uma doença na minha alma. Conheci homens com tal desejo de ópio que era
como o meu desejo por ti. Eu sei o que acontece a um viciado. Torna-se escravo do
seu desejo e acaba por ser destruído. Isso quase aconteceu a mim, mas eu escapei.
Não voltarei a correr esse risco. Não me destruirei por ti. - E saiu intempestivamente
pela porta para o temporal.
O vento uivava através da porta aberta, gelado contra o corpo nu de Scarlett.
Apanhou a manta do chão e envolveu-se nela. Dirigiu-se para a porta escancarada
fazendo frente ao vento, mas não conseguiu ver nada através da chuva. Precisou de
toda a sua força para fechar a porta. Estava com muito pouca força.
Ainda sentia os lábios quentes do beijo de Rhett. Mas o resto do corpo tremia.
Encolheu-se em frente à lareira, muito embrulhada na manta. Estava cansada, muito
cansada. Dormiria um pouco até Rhett voltar.
Caiu num sono tão profundo que era quase um estado de coma.

- Exaustão - disse o médico do exército que Rhett levou consigo de Fort Moultrie -
e exposição. É um milagre a sua mulher não ter morrido, Mr. Butler. Esperemos que
não perca o uso das pernas; por pouco a circulação não deixou de se fazer. Embrulhe-
a naqueles cobertores e vamos levá-la para o forte. - Rhett embrulhou rapidamente o
corpo inerte de Scarlett e levantou-a em seus braços.
- Passe-a aqui ao sargento. O senhor não está em muito melhores condições.
Os olhos de Scarlett abriram-se. O seu espírito confuso registrou as fardas azuis
à sua volta; depois, voltou a revirar os olhos. O médico fechou-lhe as pálpebras com
dedos experientes em socorros de guerra.
- É melhor nos apresarmos - disse. - Ela está perdendo s forças.

- Beba isto, querida. - Era uma voz de mulher, suave, e contudo autoritária, uma
voz que ela quase reconheceu. Scarlett abriu os lábios obedientemente. - Linda
menina, agora beba outro gole. Não, não quero ver mais nenhuma careta. Não sabe
que se fizer essas caretas pode ficar com a cara assim? E depois que é que faz? Uma
garota tão bonita que se torna feia... Assim é melhor. Agora, abra a boca. Mais. Vai
beber todo este leite quente e o remédio, nem que demore uma semana. Vá lá, meu
cordeirinho, vou pôr-lhe mais açúcar.
Não, não era a voz de Mammy. Era parecida, quase igual, mas não era ela.
Algumas lágrimas fracas escorreram dos cantos dos olhos fechados de Scarlett. Por
instantes, pensou que estava em casa, em Tara, com a Mammy cuidando dela. Forçou
os olhos a abrirem-se, a focar. A mulher negra inclinada sobre ela sorriu. O seu sorriso
era lindo. Compadecido. Sábio. Terno. Paciente. Obstinadamente autoritário. Scarlett
retribuiu-Ihe o sorriso.
- Ora pronto, não foi exatamente isso que eu lhes disse? Do que esta moça
precisa, disse eu, é de uma boa cama aquecida com tijolos, e um cataplasma de
mostarda no peito e a velha Rebekah a esfregar-lhe o frio para fora dos ossos, de um
bom copo de leite quente e uma conversa com Jesus para rematar a cura. Falei com
Jesus enquanto a esfregava e Ele trouxe-a de volta como eu sabia que traria. Senhor,
disse-Lhe eu, este não é um trabalho a sério como o de Lázaro, é apenas uma moça
que não se sente bem. Não será preciso mais que um minuto do Teu tempo eterno
para lançares o Teu olhar para aqui e trazê-la de volta.
"Foi o que Ele fez e vou agradecer-Lhe assim que a menina acabar de beber esse
leite. Vá lá, querida, pus-lhe mais duas colheres de açúcar. Beba-o todo. Não quer
deixar o Jesus à espera que a Rebekah lhe diga muito obrigada, pois não? Isso não cai
lá muito bem no Céu.
Scarlett engoliu. Depois deu grandes goles. O leite adoçado tinha um gosto
melhor que qualquer coisa que provara nas últimas semanas. Depois de o beber todo,
limpou a boca com as costas da mão para limpar os bigodes de leite.
- Estou morrendo de fome, Rebekah; posso comer alguma coisa?
A grande mulher negra assentiu.
- Só um instante - disse. Depois fechou os olhos e uniu as mãos numa prece. Os
seus lábios moveram-se silenciosamente e ela abanava o corpo para a frente e para
trás a dar graças numa conversa íntima com o seu Senhor.
Quando terminou, puxou a colcha e tapou os ombros de Scarlett, aconchegando-
a bem. Scarlett adormecera. O remédio no leite era láudano.

Scarlett mexeu-se agitadamente enquanto dormia. Quando acabou por se


destapar, Rebekah voltou a tapá-la e acariciou-lhe a testa até as rugas de preocupação
desaparecerem. Mas Rebekah não podia fazer nada em relação aos sonhos.
Estes eram fragmentos isolados e caóticos das recordações e dos medos de
Scarlett. Havia fome, a desesperante e interminável fome dos dias maus em Tara. E
soldados ianques a aproximarem-se cada vez mais de Atlanta, a surgirem, enormes,
nas sombras da varanda junto à sua janela, mexendo-lhe e murmurando-lhe que
tinham que lhe cortar as pernas, caídos numa poça de sangue no chão de Tara, com o
sangue a esguichar, a espalhar-se, a tornar-se uma torrente vermelha que se erguia
numa gigantesca onda, cada vez maior, sobre uma Scarlett aos gritos. E havia frio,
com o gelo cobrindo as árvores e as flores murchas e formando uma crosta gelada em
volta dela e que a impedia de se mexer e de se fazer ouvir, embora estivesse gritando,
"Rhett, Rhett, Rhett, volta", dentro dos pingentes de gelo que lhe caíam dos lábios. A
sua mãe passou pelo sonho e Scarlett sentiu o cheiro de verbena de limão, mas Ellen
não falou. Gerald O'Hara saltou uma cerca, depois outra e depois cerca após cerca até
o infinito, montado num garanhão branco que cantava numa voz humana com Gerald
uma canção sobre Scarlett num Low Back'd Car. As vozes mudaram, transformando-se
em vozes de mulheres, e tornaram-se sussurrantes. Ela não conseguia ouvir o que
estavam dizendo. Scarlett passou a língua pelos lábios secos e abriu os olhos. Oh, é
Melly. Está com um ar tão cansado, pobrezinha.
- Não tenhas medo - disse Scarlett numa voz rouca. - Está tudo bem. Ele está
morto. Eu dei-lhe um tiro.
- Teve um pesadelo - disse Rebekah. Os sonhos maus já terminaram, Scarlett. O
médico disse que vai ficar boa rapidamente. - Os olhos escuros de Anne Hampton
brilhavam de convicção.
O rosto de Eleanor Butler surgiu por cima do seu ombro.
- Viemos buscá-la para ir para casa, minha querida - disse.

- Isto é ridículo - queixou-se Scarlett. - Posso muito bem andar. - Rebekah pôs-lhe
a mão pesadamente sobre o ombro e continuou a empurrar lentamente a cadeira de
rodas ao longo da estrada de cascas de ostra esmagadas. - Sinto-me idiota -
resmungou Scarlett, mas recostou-se na cadeira. A cabeça latejava-lhe com dores
fortes como facadas. A tempestade trouxera consigo o tempo adequado a Fevereiro.
O ar estava fresco e o vento que ainda soprava era frio. "Pelo menos Miss
Eleanor trouxe a minha capa azul", pensou. "Devo ter estado mesmo mal, para ela
permitir que eu use as peles que sempre achou serem tão ostentosas."
- Onde está o Rhett? Por que não é ele a levar-me para casa?
- Eu não deixei que voltasse a sair - disse Mrs. Butler num tom firme. - Mandei
chamar o nosso médico e disse ao Manigo para meter o Rhett na cama. Estava roxo de
frio.
Anne falou em voz baixa, junto ao ouvido de Scarlett.
- Miss Eleanor ficou alarmada quando a tempestade rebentou tão subitamente.
Fomos correndo do Lar à enseada de amarração, e quando nos disseram que o barco
não tinha regressado ela ficou aterrorizada. Duvido que se tenha sentado uma única
vez durante toda a tarde; não parava de andar de um lado para o outro na varanda a
olhar através da chuva.
"Abrigada da chuva", pensou Scarlett impacientemente.
"É muito bonito a Anne mostrar-se tão preocupada com Miss Eleanor, mas não
era ela que estava meio morta de frio!"
- O meu filho disse-me que fez um milagre cuidando da sua mulher - disse Miss
Eleanor a Rebekah. - Não sei como lhe poderemos agradecer.
- Não fui eu, Missus, foi o Senhor. Falei com Jesus por ela, a pobre coitadinha
que não parava de tremer. Disse-Lhe, não é como o Lázaro, Senhor...
Enquanto Rebekah repetia a sua história a Mrs. Butler, Anne respondeu às
perguntas de Scarlett sobre Rhett. Ele tinha esperado até o médico dizer que Scarlett
estava fora de perigo, depois apanhara a barca para Charleston, para ir descansar a
mãe, pois sabia como ela devia estar preocupada.
- Tivemos todos um choque quando vimos um soldado ianque entrar pelo portão.
- Anne riu. - Ele tinha pedido emprestada roupa seca ao sargento.
Scarlett recusou-se a sair da barca de cadeira de rodas. Insistiu que era
perfeitamente capaz de ir a pé até a casa e foi a pé que ela foi, caminhando como se
não tivesse acontecido nada.
Mas quando chegaram estava cansada, tão cansada, que aceitou a ajuda de
Anne para subir as escadas. E depois de comer uma sopa de feijão bem quente e
bolinhos de milho, já na cama, caiu num sono profundo.
Desta vez não teve pesadelos. Estava na cama que lhe era familiar, com o luxo
de ter lençóis de linho e colchão de penas, e sabia que Rhett se encontrava ali bem
perto. Dormiu um sono reparador de catorze horas.
Viu as flores assim que acordou. Rosas de estufa. Havia um grande sobrescrito
encostado à jarra. Scarlett agarrou-o avidamente.
A sua caligrafia ousada e livre era de um negro marcante sobre o papel bege.
Scarlett tocou-lhe com ternura antes de começar a ler.
"Não há nada que eu possa dizer sobre o que aconteceu ontem, a não ser que
estou profundamente envergonhado e que lamento ter sido o causador de tanto
sofrimento e perigo para ti."
Scarlett contorceu-se de prazer.
"A tua coragem e ânimo foram verdadeiramente heróicos e te olharei sempre com
admiração e respeito.
Lamento amargamente tudo o que ocorreu depois de escaparmos à longa
provação. Disse-te coisas que nenhum homem deve dizer a uma mulher e as minhas
ações foram repreensíveis.
Não posso, contudo, negar a verdade de nada que disse. Não devo voltar a ver-te
e não o farei.
Segundo o nosso acordo, tens o direito de ficar em Charleston, na casa da minha
mãe, até Abril. Para ser franco, tenho esperança de que não o faças, pois não visitarei
nem a casa da cidade, nem Dunmore Landing, até receber a informação de que
regressaste a Atlanta. Não conseguirás encontrar-me, Scarlett. Não tentes.
O montante que te prometi será imediatamente transferido em teu nome ao
cuidado do teu tio Henry Hamilton.
Peço-te que aceites as minhas mais sinceras desculpas por tudo relativo à nossa
vida juntos. Não era para ser assim. Desejo-te um futuro mais feliz.
Rhett"
Scarlett olhou fixamente para a carta, a princípio chocada demais para se sentir
magoada. Depois, zangada demais.
Por fim, agarrou-a com ambas as mãos e rasgou lentamente o papel grosso em
pedacinhos, falando enquanto destruía as palavras negras e pesadas.
- Não, desta vez não consegues, Rhett Butler. Fugiste de mim daquela vez em
Atlanta, depois de fazeres amor comigo. E eu fiquei lá, perdida de amor, à espera que
voltasses. Bom, agora sei muito mais do que sabia naquela altura. Sei que não
consegues tirar-me da cabeça, por mais que tentes. Não podes viver sem mim.
Nenhum homem pode fazer amor com uma mulher como tu fizeste amor comigo e
nunca mais a ver. Tu voltarás, exatamente como voltaste antes. Mas não vais
encontrar-me à tua espera. Vais ter que me encontrar. Onde quer que eu esteja.
Ouviu o sino de Saint Michael a bater as horas... seis... sete... oito... nove... dez.
Tinha ido todos os domingos à Missa das dez. Naquele domingo não iria. Tinha coisas
mais importantes a fazer.
Deslizou da cama e puxou o cordão da campainha. "É melhor que a Pansy
apareça depressa. Quero ter as malas feitas e estar na estação a tempo de apanhar o
trem para Augusta. Irei para casa, verificarei se o tio Henry tem o meu dinheiro e
começarei imediatamente o trabalho em Tara."
"...Mas ainda não tenho Tara."
- Bom dia, Miss Scarlett. É tão bom vê-la com tão bom aspecto depois do que
aconteceu...
- Pára de tagarelar e vai buscar as minhas malas. - Scarlett fez uma pausa. -Vou
a Savannah. É o aniversário do meu avô.
Encontraria as tias na estação. O trem partia para Savannah às dez para o meio-
dia. E no dia seguinte iria falar com a Madre Superiora e a obrigaria a falar com o
bispo. Não adiantava voltar para Atlanta sem levar consigo a escritura de Tara.
- Não quero esse vestido horrível - disse a Pansy. - Tira aqueles que trouxe
quando vim para cá. Vestirei o que quiser. Acabou-se a minha vontade de agradar.

- Estava intrigada com toda esta confusão - disse Rosemary, olhando para os
elegantes vestidos de Scarlett com curiosidade. - Também vais a algum lado? A mamã
disse que provavelmente dormirias durante todo o dia.
- Onde está Miss Eleanor? Quero despedir-me dela.
- Já foi para a igreja. Por que não lhe escreves um bilhete? Ou então, posso dar-
lhe eu o recado.
Scarlett olhou para o relógio. Não tinha muito tempo. O trem já estava à espera.
Correu para a biblioteca para ir buscar papel e caneta. Que é que diria?
- O seu trem está à espera, Missus Rhett - disse Manigo.
Scarlett rabiscou algumas frases, dizendo que ia ao aniversário do avô e que
lamentava não ter podido falar com Miss Eleanor antes de partir. "Rhett lhe explicará
tudo", acrescentou. "Gosto muito de ti."
- Miss Scarlett... - chamou Pansy, nervosa. Scarlett dobrou o bilhete e selou-o.
- Por favor dá isto à tua mãe - disse a Rosemary. - Tenho que ir. Adeus.
- Adeus, Scarlett - disse a irmã de Rhett. Ficou à porta vendo Scarlett, a criada e a
sua bagagem descerem a rua.
Rhett não tinha se organizado tão bem quando partira muito tarde na noite
anterior. Ela tinha-lhe implorado para não ir, pois não parecia estar nada bem. Mas ele
tinha-lhe dado um beijo de despedida e partido a pé, noite adentro. Não era difícil de
imaginar que de alguma forma Scarlett o estava obrigando a partir.
Com gestos lentos e deliberados, Rosemary acendeu um fósforo e queimou o
bilhete de Scarlett.
- Já vai tarde - disse em voz alta.
III
Vida Nova
33
Scarlett bateu palmas de contentamento quando o trem parou à porta da casa do
avô Robillard. Era cor-de-rosa, exatamente como Miss Eleanor tinha dito.
"E pensar que não reparei nisso quando estive aqui das outras vezes! Bom, não
importa, já foi há tanto tempo; o que conta é agora."
Subiu apressadamente um dos braços curvos das escadas com corrimão duplo
de ferro forjado e entrou pela porta aberta. As tias e Pansy tratariam da bagagem;
estava morta de curiosidade por ver o interior da casa.
Sim, era tudo cor-de-rosa - cor-de-rosa, branco e dourado. As paredes eram cor-
de-rosa, como os estofados das cadeiras e as cortinas. Com colunas e madeiramentos
interiores brancos, todos rematados a dourado brilhante. Tinha tudo um ar perfeito,
sem a tinta estar estalando e os tecidos puídos como na maioria das casas em
Charleston e Atlanta. Que lugar perfeito para estar quando Rhett fosse à sua procura.
Veria que a sua família era tão importante e impressionante como a dele.
E rica, também. Os seus olhos moveram-se rapidamente, calculando o valor das
mobílias meticulosamente conservadas, que via através da porta aberta que dava para
a sala de estar. Ora, poderia ter pintado todas as paredes de Tara, de dentro e de fora,
com o que devia ter custado dourar os cantos do teto.
"Velho avarento! Vovô nunca mandou um centavo para me ajudar depois da
Guerra, e também não faz nada pelas tias."
Scarlett preparou-se para a batalha. As tias tinham terror do pai, mas ela não. A
terrível solidão que sentira em Atlanta tinha-a tornado tímida, apreensiva e ansiosa por
agradar em Charleston. Agora tinha voltado a tomar a vida nas suas próprias mãos e
sentia-se vibrante e forte. Agora não havia homem ou animal que a incomodasse. Rhett
amava-a e ela era rainha do mundo.
Altiva, tirou o chapéu e a capa de peles e deixou-os cair em cima de uma mesa
de tampo de mármore no átrio. Depois começou a tirar as luvas verdes de pele. Sentia
as tias a olharem-na fixamente. Já estavam fartas de o fazer. Mas Scarlett estava muito
satisfeita por ter vestido o seu vestido de viagem de xadrez verde e marrom em vez
dos vestidos modestos que tinha usado em Charleston. Afofou o laçarote de tafetá
verde-escuro que tanto fazia brilhar os seus olhos. Depois de pôr as luvas junto do
chapéu e da capa, apontou e disse:
- Pansy, leva estas coisas lá para cima e as põe no quarto mais bonito que
encontrares. Deixa de te esconder pelos cantos dessa maneira; ninguém vai te morder.
- Scarlett, não podes...
- Tens que esperar ... - As tias estavam torcendo as mãos.
- Se o avô é tão mau que nem sequer nos vem esperar, temos que nos
desenvencilhar sozinhas. Caramba, tia Eulalie! A tia foi criada aqui, a tia e a tia Pauline;
não conseguem ficar à vontade?
As palavras e os modos de Scarlett eram efetivamente ousados, mas quando
uma voz de baixo gritou "Jerome!" do fundo da casa, sentiu as palmas das mãos
ficarem úmidas. O avô, lembrou-se subitamente, tinha um olhar que trespassava uma
pessoa e fazia que se desejasse estar em qualquer outro local, menos à sua frente.
O imponente criado negro que lhe abrira a porta indicou com um gesto a Scarlett
e às tias a porta aberta ao fundo do átrio. Scarlett deixou Eulalie e Pauline entrarem
primeiro. O quarto era uma dependência com teto extremamente alto, que tinha sido
uma espaçosa sala de estar. Estava cheio de móveis, todos os sofás e cadeiras e
mesas que havia na sala de estar, além de uma maciça cama de dossel com águias
douradas no topo dos postes. Num canto do quarto havia uma bandeira da França e
um manequim de alfaiate, sem cabeça, com o uniforme de dragonas douradas e cheio
de medalhas, que Pierre tinha usado quando jovem e oficial do exército de Napoleão.
O velho Pierre Robillard estava na cama, sentado muito direito contra uma massa de
enormes almofadas, olhando ferozmente para as visitantes.
"Ora, encolheu tanto que quase desapareceu. Era um velho tão grande, e agora
está praticamente perdido naquela cama grande, reduzido a pele e osso."
- Olá, avô - disse Scarlett. - Vim vê-lo no seu aniversário. Sou Scarlett, a filha de
Ellen.
- Não perdi a memória - disse o velho. A sua voz forte contradizia o seu corpo
frágil. - Mas aparentemente a tua memória é que te falha. Nesta casa, os jovens não
falam, a menos que lhes seja dirigida a palavra.
Scarlett mordeu a língua para ficar calada.
"Não sou uma criança para me comportar dessa forma, e devia estar grato por
alguém o vir ver. Não admira a mãe ter ficado tão contente por o pai a ter levado desta
casa!"
- Et vous, mês filies. Qu'est-ce que vous voulez cette fois? - rosnou Pierre
Robillard às filhas.
Eulalie e Pauline correram para junto da cama, falando as duas ao mesmo tempo.
"Santo Deus! Estão falando francês! Que diabo estou eu fazendo aqui?" Scarlett
sentou-se num sofá de brocado dourado, desejando estar noutro lugar - em qualquer
lugar - que não ali. "É melhor o Rhett vir buscar-me depressa, se não enlouqueço nesta
casa."
Lá fora estava já escurecendo e os cantos sombrios da sala eram misteriosos. O
soldado sem cabeça parecia prestes a mexer-se. Scarlett sentiu frio na espinha e disse
a si própria para não ser idiota. Mas ficou contente quando Jerome e uma mulher negra
possante entraram, trazendo um candeeiro. Enquanto a criada corria os cortinados,
Jerome acendeu os candeeiros a gás em cada parede. Pediu delicadamente a Scarlett
para se levantar, para poder ir atrás do sofá. Enquanto estava de pé, viu o olhar do avô
cravado nela e desviou os olhos. Deu por si a olhar para um grande retrato numa
moldura de talha dourada. Jerome acendeu um candeeiro, depois outro, e o retrato
pareceu vivo.
Era um retrato da avó. Scarlett reconheceu-a imediatamente pelo quadro que
havia em Tara. Mas aquele era muito diferente. O cabelo escuro de Solange Robillard
não estava apanhado em cima da cabeça, como no retrato de Tara. Caía-Ihe como
uma nuvem quente sobre os ombros e sobre os braços nus até o cotovelo, presos
apenas por um fio de pérolas cintilantes. O seu nariz fino e arrogante era igual, mas os
seus lábios tinham um leve sorriso, em vez de uma expressão de escárnio, e os olhos
escuros amendoados olhavam obliquamente para Scarlett com o mesmo ar de
intimidade risonha e magnética que desafiava e atraía todos os que a tinham
conhecido. Naquele quadro era mais nova, mas mesmo assim uma mulher, e não uma
garota. Os seios arredondados e provocantes que em Tara estavam seminus, ali
estavam cobertos por um fino vestido de seda branca. Coberta, mas visível através da
seda leve, um vislumbre de carne branca e de seios rosados. Scarlett sentiu-se corar.
"Ora, a avó Robillard nem parece uma dama", pensou, com a automática
desaprovação que tinha sido ensinada a sentir. Lembrou-se involuntariamente de si
própria nos braços de Rhett e do desejo selvagem das suas mãos. A avó devia ter
sentido o mesmo desejo, o mesmo êxtase, como se via nos seus olhos e no seu
sorriso. "Portanto, aquilo que eu senti não pode ser errado." Ou seria? Haveria alguma
mácula de despudor no seu sangue, herdada da mulher que lhe sorria do quadro?
Scarlett olhou fixamente para a mulher por cima dela na parede, fascinada.
- Scarlett - murmurou-lhe Pauline ao ouvido. - O père quer que nós vamos
embora. Diz-lhe boa noite baixinho e vem comigo.

O jantar foi escasso. Quase insuficiente, na opinião de Scarlett, para aqueles


pratos pintados com aves de plumagens de cores vivas onde fora servido.
Isso é porque a cozinheira está preparando a festa de aniversário do père -
explicou Eulalie num murmúrio.
- Com quatro dias de antecedência? - exclamou Scarlett em voz alta. - Que é que
ela está fazendo? A ver as galinhas crescerem?
"Santo Deus, se continuar assim, quando chegar a terça-feira estarei reduzida a
pele e osso como o avô Robillard", resmungou para si própria. Depois de já estarem
todos dormindo, foi silenciosamente à cozinha, no porão, e comeu pão de milho e
bebeu leite que estava na despensa, até ficar satisfeita. Os criados que passassem
fome para variar, pensou, contente por as suas suspeitas se terem confirmado. Pierre
Robillard podia continuar a contar com a lealdade das filhas, mesmo com o estômago
meio-cheio, mas os seus criados não ficariam a menos que tivessem bastante que
comer.
Na manhã seguinte, mandou Jerome trazer-lhe ovos com toucinho e biscoitos.
- Vi que havia muitos na cozinha - acrescentou. E levaram-lhe o que pediu. Isso
fez que se sentisse muito melhor em relação à sua docilidade da noite anterior. "Nem
parecia meu submeter-me daquela forma. Lá porque a tia Pauline e a tia Eulalie
tremiam como varas verdes, não há qualquer razão para que eu deixe que o velho me
assuste. Não deixarei que isso volte a acontecer."
Mesmo assim, ficou contente por serem os criados quem ela tinha que enfrentar,
e não o avô. Percebia que Jerome estava ofendido e isso agradou-lhe bastante. Há
muito que não tinha nenhum embate com ninguém e adorava ganhar.
- As outras senhoras também querem toucinho e ovos - disse a Jerome. - E não
há manteiga suficiente para os meus biscoitos.
Aborrecido, Jerome saiu em silêncio para dar ordens aos outros criados. As
exigências de Scarlett eram uma afronta para todos eles. Não por significarem mais
trabalho; na realidade, ela só estava pedindo aquilo que os próprios criados comiam
sempre no desjejum. Não, o que incomodava Jerome e os outros era a sua juventude e
energia. Era um elemento de perturbação na atmosfera silenciosa e quase de santuário
daquela casa. Os criados só podiam esperar que fosse embora depressa, sem causar
estragos demais.
Depois do café, Eulalie e Pauline levaram-na a todas as salas do térreo, falando
animadamente das festas e recepções a que tinham ido na sua juventude, corrigindo-
se uma à outra constantemente e discutindo sobre pormenores de há décadas atrás.
Scarlett parou durante muito tempo à frente do retrato de três moças, tentando ver as
feições compostas e adultas da mãe na garotinha rechonchuda de cinco anos do
retrato. Scarlett sentira-se isolada na teia de gerações que tinham casado dentro das
mesmas famílias de Charleston. Era bom estar na casa onde a mãe tinha nascido e
sido criada, numa cidade em que ela própria fazia parte da teia.
- Devem ter centenas de primos em Savannah - disse às tias. - Falem-me deles.
Posso conhecê-los? Também são meus primos.
Pauline e Eulalie mostraram-se confusas. Primos? Havia os Proudhommes, por
parte da família da mãe. Mas apenas um senhor muito, muito idoso vivia em Savannah,
que era viúvo da irmã da mãe. O resto da família tinha ido para Nova Orleães há
muitos anos.
- Todo mundo em Nova Orleães fala francês - explicou Pauline. Quanto aos
Robillards, eram as únicas. - O père tinha muitos primos na França, e também irmãos,
dois irmãos. Mas foi o único a vir para a América.
Eulalie atalhou:
- Mas temos muitos, muitos amigos em Savannah, Scarlett. Sem dúvida que os
podes conhecer. Se o père não precisar que fiquemos em casa com ele, a mana e eu
vamos hoje fazer visitas e deixar os nossos cartões.
- Tenho que estar de volta às três - disse Scarlett rapidamente. Não queria estar
ausente quando Rhett chegasse, e tampouco queria estar de outra forma do que com o
seu melhor aspecto. Precisava de bastante tempo para tomar banho e vestir-se antes
de o trem que vinha de Charleston chegar.

Mas Rhett não chegou, e quando Scarlett saiu do banco que escolhera
cuidadosamente no jardim imaculadamente tratado por detrás da casa, sentia-se
gelada até os ossos. Tinha recusado a sugestão das tias de as acompanhar nessa
tarde ao serão musical para que tinham sido convidadas. Se este se assemelhasse às
maçantes reminiscências das velhotas que tinham visitado de manhã, morreria de
tédio. Mas o olhar malévolo do avô quando recebeu a família durante dez minutos,
antes do jantar, fez que mudasse de idéia. Qualquer coisa seria melhor que ficar
sozinha em casa com o avô Robillard.

As irmãs Telfair - Mary e Margaret - eram as guardiãs culturais oficiais de


Savannah e o seu serão musical não se assemelhava em nada a qualquer outro a que
Scarlett já tivesse ido. Normalmente, apenas havia senhoras cantando, exibindo os
seus "dotes musicais", acompanhadas por outras senhoras ao piano. Era obrigatório
todas as senhoras cantarem um pouco, tocarem piano, desenharem ou pintarem
aquarelas e saberem bordar. Na casa dos Telfairs, em Saint James Square, o nível era
muito mais elevado. As elegantes salas de estar contíguas tinham filas de cadeiras
douradas colocadas ao meio, e na extremidade curva de uma das salas havia um piano
e uma harpa, e seis cadeiras com estantes de música à sua frente, prometendo
verdadeiras exibições. Scarlett tomou mentalmente nota de todos estes pormenores.
As salas de estar contíguas da casa dos Butlers podiam ser facilmente arranjadas
desta maneira e aquilo seria um tipo de festa diferente das que todas as outras
pessoas davam. Não tardaria que ficasse com a reputação de ser uma anfitriã
elegante. Além disso, não teria aquele ar antiquado e velho das irmãs Telfair. Nem
deselegante, como o das mulheres mais novas que ali estavam. Ora, por que razão
todo mundo do Sul achava que tinha que ter um aspecto pobre e remendado, só para
provar que era respeitável?
O quarteto de cordas entediou-a e achou que a harpista nunca mais acabaria de
tocar. Gostou de ouvir as cantoras, muito embora nunca tivesse ouvido falar em ópera;
pelo menos, havia um homem sentado com a mulher, em vez de duas moças juntas. E
depois das canções em línguas estrangeiras, cantaram um conjunto de canções que
ela conhecia. A voz do homem era maravilhosamente romântica em Beautiful Dreamer
e vibrou com emoção ao cantar Come Back to Erin, Mavourneen, Mavourneen. Scarlett
tinha que admitir que soava muito melhor do que Gerald O'Hara quando estava
embriagado.
Gostaria de saber o que o pai acharia de tudo aquilo. Scarlett quase deu uma
gargalhada. Provavelmente também cantaria e acrescentaria qualquer coisa do seu
frasco de bolso ao ponche. Depois pediria para cantarem Peg in a Low-backed Car.
exatamente como ela tinha pedido a Rhett para cantar.
A sala e as pessoas que lá estavam e a música desapareceram para Scarlett, e
ouviu a voz de Rhett a ribombar dentro da chalupa virada, sentiu os seus braços a
apertarem-na contra o seu calor. "Ele não pode passar sem mim. Desta vez virá ter
comigo. É a minha vez."
Scarlett não percebeu que estivera a sorrir durante um trecho comovente de
Silver Threads Among the Gold.

No dia seguinte, Scarlett mandou um telegrama ao tio Henry, dando-lhe o seu


endereço em Savannah. Hesitou, mas depois acrescentou uma pergunta. Rhett tinha
transferido algum dinheiro em nome dela?
E se Rhett voltasse a tentar fazer um jogo qualquer e deixasse de lhe mandar o
dinheiro para manter a casa de Peach-tree Street? Não, decerto não faria isso. Faria
exatamente o contrário. A carta dizia que lhe ia mandar o meio milhão.
Não podia ser verdade. Ele estava apenas blefando quando escrevera aquelas
coisas que tanto a tinham magoado. Como ópio, dissera. Não podia passar sem ela.
Viria atrás dela. Seria mais difícil para ele engolir o seu orgulho que para qualquer outro
homem, mas viria. Tinha que vir. Não podia passar sem ela. Especialmente depois do
que tinha acontecido na praia...
Scarlett sentiu uma fraqueza e um calor percorrerem-lhe o corpo e forçou-se a si
própria a lembrar-se onde estava. Pagou o telegrama e escutou atentamente enquanto
o operador do telégrafo lhe dava as indicações do Convento das Irmãs da Piedade.
Depois, dirigiu-se para lá a tal velocidade que Pansy quase teve que correr para a
acompanhar. Enquanto esperava que Rhett viesse, podia ainda ter tempo para
descobrir a Madre Superiora de Carreen e fazer que ela falasse com o bispo, como
Rhett sugerira.

O Convento das Irmãs da Piedade de Savannah era um grande edifício branco


com uma cruz sobre as portas altas fechadas, cercado por um gradeamento de ferro
com portões encimados por cruzes de ferro. Scarlett abrandou o passo rápido e depois
parou. Era muito diferente da bela casa de tijolo em Charleston.
- Vai lá dentro, Miss Scarlett? - A voz de Pansy tremeu ligeiramente. - É melhor eu
esperar aqui fora. Sou Batista.
- Não sejas tonta! - O temor de Pansy deu coragem a Scarlett. - Não é uma igreja,
apenas um lar para senhoras como Miss Carreen.
O portão abriu-se quando lhe tocou.

Sim, disse a freira idosa que abriu a porta quando Scarlett tocou à campainha,
sim, a Madre Superiora de Charleston estava lá. Não, naquele momento não lhe podia
pedir que recebesse Mrs. Butler. Estava decorrendo uma reunião. Não, não sabia
quanto tempo ia durar, nem se a Madre Superiora poderia receber Mrs. Butler quando
a reunião acabasse. Talvez Mrs. Butler gostasse de ver as salas de aula; o convento
orgulhava-se muito da sua escola. Ou talvez se pudesse arranjar uma visita ao edifício
da nova catedral. Depois disso, se a reunião já tivesse terminado, talvez pudesse ser
entregue um recado à Madre Superiora.
Scarlett forçou-se a sorrir. "A última coisa na terra que eu quero é admirar um
grupo de crianças", pensou, zangada. "Ou ir ver uma igreja." Estava prestes a dizer
que voltaria mais tarde, quando as palavras da freira lhe deram uma idéia. Estavam
construindo uma catedral nova, não estavam? Isso custava dinheiro. Talvez a sua
oferta para comprar a parte de Carreen em Tara fosse considerada de uma forma mais
favorável ali do que tinha sido em Charleston, exatamente como Rhett tinha dito. Afinal
de contas, Tara era uma propriedade na Geórgia, provavelmente controlada pelo bispo
da Geórgia. E se ela se oferecesse para comprar o vitral para uma das janelas da nova
catedral como dote de Carreen? O custo seria muito superior ao que valia a parte de
Carreen em Tara e ela deixaria ficar bem claro que o vitral era uma troca, não uma
doação. O bispo daria ouvidos à força da razão e depois diria à Madre Superiora o que
devia fazer.
O sorriso de Scarlett tornou-se mais rasgado e caloroso. - Sentir-me-ia muito
honrada em ver a catedral, Irmã, se acha que não é incômodo demais.
Pansy ficou boquiaberta ao olhar para as altíssimas torres gêmeas da bela
catedral de traçado gótico. Os operários nos andaimes que rodeavam as torres quase
acabadas pareciam pequenos e ágeis, como esquilos vestidos de cores vivas em duas
árvores lado a lado. Mas Scarlett não tinha olhos para a cena lá no alto. A sua pulsação
acelerou-se ao ver a agitação organizada no solo, o barulho de pregar, serrar, e
especialmente ao sentir o cheiro familiar e resinoso da madeira acabada de cortar. "Oh,
como tinha saudades das serrarias e dos depósitos de madeira." Sentiu uma
impressão nas palmas das mãos, tal era a sua vontade de as passar pela madeira
limpa, de estar ocupada, de ter qualquer coisa que fazer, de agir, de gerir - em vez de
beber chá por xícaras delicadas com velhotas elegantes, mas sem graça.
Scarlett mal ouviu uma palavra das maravilhas descritivas explicadas pelo jovem
padre que a acompanhava. Nem sequer reparou nos olhares sub-reptícios de
admiração dos operários rudes que se afastavam do seu trabalho para dar passagem
ao padre e à sua acompanhante. Estava preocupada demais para ouvir ou reparar.
Que árvores tão direitas teriam dado aquela madeira? Era a melhor madeira de pinho
que alguma vez vira. Pensou onde seria a serraria, que tipo de serras teria, que tipo de
energia. Oh, se ela fosse homem! Poderia perguntar, poderia ir ver a serraria em vez
de aquela igreja. Scarlett raspou os pés num monte de aparas de madeira recém-
cortadas e inspirou o seu revigorante cheiro forte.
- Tenho que voltar para a escola para almoçar - disse o padre acontrafeito.
- Claro, Padre, estou pronta para ir. - Não estava, mas que é que ela podia dizer?
Scarlett seguiu-o pela porta da Catedral até o passeio.
- Com a sua licença, Padre. - Quem falava era um homem enorme de rosto
vermelhusco, com uma camisa vermelha muito suja de pó de cimento. O padre parecia
pequeno e pálido junto dele.
- Importa-se de dar a sua bênção à obra, Padre? O lintel da Capela do Sagrado
Coração foi colocado há menos de uma hora.
"Ora, parece o pai no que tinha de mais irlandês." Scarlett baixou a cabeça para a
bênção do Padre, à semelhança dos grupos de operários. Os olhos arderam-lhe com o
cheiro da madeira de pinho recém-cortada e com as lágrimas pelo pai, que afastou
rapidamente.
"Irei visitar os irmãos do pai", decidiu. "Não faz mal terem uns cem anos; ele
gostaria que eu ao menos os fosse cumprimentar."
Voltou com o padre para o convento e recebeu nova recusa plácida da freira
idosa quando pediu para falar com a Madre Superiora.
Scarlett controlou o seu mau gênio, mas os seus olhos estavam perigosamente
brilhantes.
- Diga-lhe que voltarei aqui esta tarde - disse.
Enquanto o portão de ferro alto se fechava atrás de si,
Scarlett ouviu os sinos da igreja a alguns quarteirões de distância.
- Ora bolas! - exclamou. Ia chegar atrasada para o almoço.
34
Scarlett sentiu o cheiro de galinha assada assim que abriu a porta da grande casa
cor-de-rosa. - Leva estas coisas - disse a Pansy, e tirou a capa, o chapéu e as luvas a
uma velocidade recorde. Estava fomeada.
Quando entrou na sala de jantar, Eulalie olhou para ela com os seus enormes
olhos pesarosos.
- O père quer falar contigo, Scarlett.
- Não pode esperar até depois do almoço? Estou a morrendo de fome.
- Ele disse "assim que ela chegar".
Scarlett tirou do cesto do pão um pãozinho fumegante e deu-Ihe uma dentada
irada enquanto dava meia volta. Acabou de o comer enquanto marchava para o quarto
do avô.
O velhote olhou para ela com uma expressão carrancuda por cima da bandeja
que tinha pousada no colo na grande cama. No seu prato, reparou Scarlett, havia
apenas purê de batata e um monte de cenouras com um ar empapado.
"Santo Deus! Não admira que tenha um ar tão feroz. As batatas nem sequer têm
manteiga. Mesmo que não tenha um único dente, podiam alimentá-lo melhor do que
isso."
- Não tolero desrespeito pelo horário da minha casa - disse o velho.
- Desculpe, vovô.
- Foi a disciplina que tornou grandes os exércitos do imperador; sem disciplina,
apenas há caos.
A voz era profunda, forte, temível. Mas Scarlett viu os ossos salientes sob a
camisa de noite de linho grosso e não sentiu medo.
- Já pedi desculpa. Agora posso ir? Tenho fome.
- Não seja impertinente, jovem.
- Ter fome não é impertinência nenhuma, avô. Só porque não quer almoçar, isso
não significa que os outros não almocem.
Pierre Robillard empurrou a bandeja com um gesto zangado.
- Papas! - rosnou. - Nem para porcos serve.
Scarlett começou a esgueirar-se para a porta.
- Ainda não lhe dei licença para sair, Miss.
Ela sentiu o estômago fazer barulho. Aquela hora já os pãezinhos estariam frios, e
talvez até já não houvesse nenhuma galinha, sendo o apetite da tia Pauline como era.
- Pelo amor de Deus, vovô, não sou um dos seus soldados! E não tenho medo de
ti como as minhas tias têm. Que pensa que me pode fazer? Abater-me a tiro por
deserção? Se quer morrer de fome, o problema é seu. Eu tenho fome e vou comer o
que ainda restar do almoço. - Já ia passar pela porta quando um estranho barulho de
sufocação a fez voltar para trás. "Meu Deus, será que fiz com que tivesse uma
apoplexia? Não deixes que ele morra por minha causa."
Pierre Robillard estava rindo. Scarlett pôs as mãos nas ancas e lançou-lhe um
olhar irado. Tinha-lhe pregado um susto de morte.
Ele mandou-a embora com um aceno da mão ossuda de dedos compridos.
- Come - disse o velho -, come. - Depois recomeçou a rir.
- Que aconteceu? - perguntou Pauline.
- Será que ouvi mesmo gritos, Scarlett? - disse Eulalie.
Estavam sentadas à mesa, à espera da sobremesa. O almoço desaparecera.
- Não aconteceu nada - disse Scarlett entredentes. Pegou na pequena campainha
de prata que estava em cima da mesa e abanou-a furiosamente. Quando a gorda
criada negra apareceu com dois pratos pequenos de pudim, Scarlett dirigiu-se irada
para ela. Pôs as mãos nos ombros da mulher e virou-a.
- Agora vais marchar para a cozinha e é mesmo marchar, não é arrastares-te, e
vais-me trazer o meu almoço. Quente e bastante e depressa. Não quero saber quem
tencionava comê-lo, mas terá que se contentar com as asas. Quero uma coxa e um
peito e muito molho nas batatas e uma tigela de manteiga com pãezinhos bem
quentes. Mexe-te!
Sentou-se com um movimento altivo, pronta a enfrentar as tias, se dissessem
uma palavra que fosse. O silêncio encheu a sala até o seu almoço ser servido.
Pauline conteve-se até Scarlett ter comido metade da comida. Depois disse:
- Que te disse o père? - perguntou educadamente.
Scarlett limpou a boca com o guardanapo.
- Apenas tentou ser mandão comigo como é contigo e com a tia Lalie, e eu disse-
lhe o que pensava dele. E isso o fez rir.
As duas irmãs trocaram um olhar chocado. Scarlett sorriu e deitou mais molho
nas batatas que ainda tinha no prato. Que tontas eram as suas tias. Não sabiam o que
tinha que se fazer frente a mandões como o pai para não se ser pisado?
Nunca ocorreu a Scarlett que conseguia resistir a ser pisada por ela própria ser
mandona, ou que o riso do avô se deveu a ter reconhecido quanto ela se parecia com
ele.
Quando a sobremesa foi servida, as taças de tapioca tinham-se de alguma forma
tornado maiores. Eulalie sorriu à sobrinha com gratidão.
- A mana e eu estávamos dizendo como estamos contentes por te ter conosco na
nossa antiga casa, Scarlett. Não achas que Savannah é uma cidadezinha
encantadora? Viste a fonte em Chippewa Square? E o teatro? É quase tão antigo como
o de Charleston. Lembro-me como a mana e eu costumávamos olhar pela janela da
nossa sala de aula para vermos os atores entrarem e sairem. Não te lembras, mana?
Pauline lembrava-se. Também se lembrava de que Scarlett não lhes tinha dito
que ia sair de manhã, nem onde tinha estado. Quando Scarlett as informou de que
tinha ido à Catedral, Pauline levou o dedo aos lábios. Infelizmente, o père era
absolutamente contra o catolicisno. Era por qualquer coisa que tinha a ver com a
história francesa, não sabia bem o quê, mas zangava-se sempre muito com tudo o que
dizia respeito à igreja. Era essa a razão pela qual ela e Eulalie partiam sempre de
Charleston para Savannah depois da Missa e deixavam Savannah no sábado para
regressarem a Charleston. Naquele ano havia uma dificuldade acrescida; como a
Páscoa era muito cedo, estariam em Savannah na Quarta-Feira de Cinzas. É claro que
tinham que ir à Missa, e podiam sair de casa cedo e discretamente. Mas como fariam
para o pai não ver as manchas de cinzas nas suas testas ao regressarem a casa?
- Lavem a cara - disse Scarlett impacientemente, revelando assim a sua
ignorância e a sua recente conversão à religião. Deixou cair o guardanapo em cima da
mesa. - Tenho que ir - disse num tom decidido. - Vou... vou visitar os meus tios e tias
O'Hara. - Não queria que ninguém soubesse que estava tentando comprar a parte de
Tara pertencente ao convento. Em especial as tias, pois eram linguarudas demais. Ora,
podiam até escrever a Suellen. Sorriu docemente. - A que horas saímos de casa para a
Missa? - Preferiria isso à Madre Superiora. Não precisava dar a saber que tinha se
esquecido por completo da Quarta-Feira de Cinzas.
Que chato ter deixado o terço em Charleston. Bom, podia comprar um novo na
loja dos seus tios O'Hara. Se bem se lembrava, vendiam de tudo, desde chapéus a
arados.
- Miss Scarlett, quando vamos para casa em Atlanta? Não me sinto à vontade
com a gente na cozinha do seu avô. São muito velhos. E os meus sapatos estão todos
gastos de tanto andarmos. Quando é que vamos para casa onde tem as tuas lindas
carruagens?
- Pára de te queixar, Pansy. Iremos quando eu disser que vamos e para onde eu
disser que vamos. - A resposta de Scarlett não era verdadeiramente acalorada; estava
tentando lembrar-se onde era a loja dos tios, sem resultado. "Devo estar ficando
contagiada pela falta de memória dos velhos. A Pansy tem razão nessa parte. Todas
as pessoas que eu conheço em Savannah são velhas. O avô, a tia Eulalie, a tia Pauline
e todas as suas amigas. E os irmãos do pai ainda são mais velhos. Vou só dizer-lhes
olá e deixar que me dêem um horrível beijo de velho na cara e comprar o meu terço e
venho embora. Não há qualquer necessidade de visitar as mulheres. Se gostassem de
me ver, teriam feito qualquer coisa para manter o contato comigo durante todos estes
anos. Ora, eu até já podia estar morta e enterrada sem que elas tivessem sequer
mandado as condolências ao meu marido e filhos. Na minha opinião, é uma forma bem
desagradável de tratar um parente de sangue. Talvez decida não me dar ao trabalho
de ver nenhum deles. Não merecem uma visita minha depois da forma como me
desprezaram", pensou, ignorando as cartas de Savannah a que nunca respondera, até
finalmente deixar de as receber.
No seu espírito, já estava na disposição de remeter os irmãos e irmãs do pai ao
esquecimento permanente. Estava centrada em duas coisas: conseguir o controle de
Tara e levar a melhor com Rhett. Não importava serem dois objetivos contraditórios;
arranjaria forma de ter ambos. E exigiam que pensasse neles durante todo o tempo
que tinha. "Não vou andar por aí à procura da. velha loja poeirenta", decidiu Scarlett.
"Tenho que ver se apanho a Madre Superiora e o Bispo. Oh, muito eu gostaria de não
ter deixado o terço em Charleston." Olhou rapidamente para as montras das lojas do
outro lado de Broughton Street, o local das compras de Savannah. Decerto que ali
perto haveria uma joalheria.
As grandes letras a dourado que diziam O'HARA estendiam-se pela parede por
cima de cinco montras cintilantes quase diretamente em frente. "Ora bem, subiram na
vida desde a última vez que estive aqui", pensou Scarlett. "Não tem um ar nada
poeirento."
- Anda - disse a Pansy, metendo-se no meio do trânsito de carroças, trens e
carros de mão que enchia a rua movimentada.
A loja O'Hara cheirava a tinta recente e não a pó antigo. Um grande pano de
verde por cima do balcão, ao fundo, dava a razão em letras douradas: GRANDE
INAUGURAÇÃO. Scarlett olhou em volta com inveja. A loja tinha mais do dobro da sua
loja em Atlanta e via que o estoque era mais moderno e variado. Caixas com etiquetas
e peças de tecidos de cores vivas enchiam as prateleiras até o teto; barris de cereais e
farinha estavam alinhados no chão, perto de um grande fogão ao centro; e em cima do
balcão alto havia enormes frascos de doces. Não havia dúvida de que os tios estavam
subindo na vida. A loja que tinha visitado em 1861 não era na parte central e elegante
de Broughton Street, e era ainda mais escura e atulhada que a sua loja em Atlanta.
Seria interessante descobrir quanto aquela grande remodelação tinha custado aos tios.
Podia aproveitar algumas das idéias para o seu negócio. Scarlett dirigiu-se
rapidamente para o balcão.
- Gostaria de falar com Mr. O'Hara, se faz favor - disse ao homem alto, de avental,
que estava colocando óleo para candeeiro no jarro de vidro de um cliente.
- É só um instante, se tiver a bondade de esperar, minha senhora - disse o
homem, sem olhar para cima. A sua voz tinha um ligeiríssimo sotaque irlandês.
"Faz sentido", pensou Scarlett. "Contratar irlandeses para uma loja dirigida por
irlandeses." Olhou para as etiquetas das caixas nas prateleiras à sua frente enquanto o
homem embrulhava o recipiente com o petróleo em papel pardo e dava o troco. Ah, ela
também devia ter as luvas ordenadas daquela forma, por tamanhos, e não por cores.
As cores viam-se facilmente ao abrir a caixa, mas era uma difícil procurar o tamanho
certo numa caixa de luvas que eram todas pretas. Por que não tinha lembrado disso?
O homem atrás do balcão teve que voltar a falar antes de Scarlett o ouvir.
- Sou Mr. O'Hara - repetiu. - Em que lhe posso ser útil?
- Oh, não, afinal aquela não era a loja dos tios! "Devem ainda estar onde sempre
estiveram." Scarlett explicou apressadamente que se tinha enganado. Procurava um
Sr. O'Hara idoso, O Sr. Andrew ou o Sr. James.
- Pode-me indicar o caminho para a loja deles?
- Mas esta é a loja deles. Eu sou o sobrinho.
Oh... oh, Santo Deus. Então deve ser meu primo. - Sou Katie O'Hara, filha de
Gerald. De Atlanta - Scarlett estendeu as duas mãos. Um primo! Tinha um primo
grande e forte, que não era velho. Sentia-se como se tivesse recebido um presente
surpresa.
- Sou o Jamie - disse o primo, dando uma gargalhada, pegando-lhe nas mãos. -
Jamie O'Hara ao teu dispor, Scarlett O'Hara. E que prenda que és para um negociante
cansado. Bonita como uma surpresa caída do céu, como uma estrela cadente. Diz-me,
como é que estás aqui para a grande inauguração da nossa loja? Vem, vou arranjar-te
uma cadeira.
Scarlett esqueceu-se do terço que tencionava comprar. Também se esqueceu da
Madre Superiora. E de Pansy, que se sentou num banco baixo a um canto e
adormeceu imediatamente com a cabeça encostada a uma pilha de mantas de cavalo.
Jamie O'Hara murmurou qualquer coisa ao voltar de uma dependência nos fundos
com uma cadeira para Scarlett. Havia quatro clientes à espera de serem atendidos.
Durante a meia hora seguinte foram chegando outros, portanto não teve oportunidade
de dizer nada a Scarlett. De vez em quando olhava para ela com uma expressão
apologética, mas ela sorria e abanava a cabeça. Não era preciso desculpar-se. Estava
satisfeita apenas por ali estar, numa loja quente e bem organizada, que estava fazendo
bom negócio, com um primo recém-descoberto cuja competência e trato hábil com os
clientes era um encanto observar.
Por fim, houve um breve momento em que os únicos clientes eram uma mãe e as
suas três filhas, que escolhiam rendas de quatro caixas.
- Vou falar em torrente enquanto posso, Katie O'Hara - disse Jamie. - O tio James
vai ficar encantado por te ver. É velhote, mas ainda é muito ativo. Fica aqui todos os
dias até a hora do almoço. Talvez não saibas, mas a mulher dele morreu, Deus a tenha
em descanso, assim como a mulher do tio Andrew. O tio Andrew ficou inconsolável e
também morreu passado um mês. Deus queira que estejam todos em descanso nos
braços dos anjos. O tio James vive comigo e com a minha mulher e os meus filhos.
Não é longe daqui. Queres vir tomar chá conosco logo à tarde para os ver a todos?
Daniel, o meu rapaz, não tardará a chegar das entregas e irá contigo até minha casa.
Comemoramos hoje o aniversário da minha filha Patrícia. A família estará lá toda.
Scarlett disse que adoraria ir tomar chá. Depois tirou o chapéu e a capa e dirigiu-
se às senhoras que escolhiam rendas. Havia mais do que um O'Hara que sabia dirigir
uma loja.
Além disso, estava excitada demais para ficar sentada. O aniversário da filha do
primo! "Deixa-me ver, é minha prima em segundo grau." Embora Scarlett tivesse sido
criada sem a rede de várias gerações habitual no Sul, não deixava de ser sulista e
sabia o parentesco exato dos primos até ao décimo grau. Tinha estado encantada
observando Jamie a trabalhar, porque ele era a confirmação viva de tudo quanto
Gerald O'Hara lhe tinha dito. Tinha o cabelo escuro e encaracolado e os olhos azuis
dos O'Hara. E boca rasgada e nariz curto num rosto redondo e corado. Acima de tudo,
era um homem grande, alto e de costas largas, com pernas grossas como troncos de
árvore que aguentavam qualquer tempestade. Era uma figura impressionante.
- O teu pai é o nanico da ninhada - dissera-lhe Gerald sem vergonha de si, mas
com um enorme orgulho dos irmãos. - Oito filhos teve a minha mãe, e todos rapazes;
eu fui o último e o único a não sair tão grande como uma casa. - Scarlett pensou qual
dos irmãos seria o pai de Jamie. Não importava, saberia à hora do chá. Não, não seria
um chá, mas sim uma festa de aniversário! Da sua prima em segundo grau.
35
Scarlett olhou para o seu primo Jamie com uma curiosidade cuidadosamente
disfarçada. À luz do dia da rua, as rugas e os papos por baixo dos olhos não eram
disfarçados pela penumbra como no interior da loja. Era um homem de meia-idade,
com tendência para engordar e ficar flácido. Partiu do princípio de que, como era seu
primo, devia ser da sua idade. Quando o filho entrou, Scarlett ficou chocada por ser
apresentada a um homem feito e não a um rapaz que entregava encomendas. E ainda
por cima, um homem feito com cabelo ruivo. Levaria algum tempo a habituar-se.
O mesmo acontecia em relação a Jamie à luz do dia. Ele... ele não era um
cavalheiro. Scarlett não conseguia explicar como sabia aquilo, mas era-lhe
absolutamente evidente. Havia qualquer coisa de errado no seu vestuário; o traje era
azul-escuro, mas não suficientemente escuro, e estava apertado demais no peito e nos
ombros e largo demais noutros locais. Ela sabia que os trajes de Rhett eram resultado
de um trabalho de alfaiate excelente e, da sua parte, de um perfeccionismo exigente.
Não podia esperar que Jamie se vestisse como Rhett - nunca conhecera nenhum
homem que se vestisse como Rhett. Mas, mesmo assim, podia fazer alguma coisa - lá
o que os homens faziam - para não parecer tão... tão vulgar. Gerald O'Hara parecia
sempre um cavalheiro, por mais gasto ou amarrotado que o seu casaco estivesse. Não
ocorreu a Scarlett que a discreta autoridade e influência da mãe podiam ter contribuído
para a transformação do seu pai num cavalheiro proprietário rural. Scarlett só sabia que
tinha perdido grande parte da sua alegria de ter descoberto a existência do seu primo.
"Bom, só tenho que tomar uma xícara de chá e comer uma fatia de bolo e depois posso
ir embora." Sorriu encantadoramente a Jamie.
- Estou tão entusiasmada por conhecer a tua família que devo ter perdido o juízo,
Jamie. Devia ter trazido um presente pelo aniversário da tua filha.
- Não estou levando o melhor presente de todos ao entrar de braço dado contigo,
Katie Scarlett?
"Tem um certo brilho nos olhos, exatamente como o pai", disse Scarlett a si
própria. "E o sotaque trocista do pai. Se ao menos não usasse chapéu de coco.
Ninguém usa chapéu de coco."
- Vamos passar pela casa do teu avô - disse Jamie, trespassando de horror o
coração de Scarlett. E se as tias os vissem... e se ela tivesse que as apresentar?
Tinham sempre achado que a mãe tinha casado abaixo do seu nível social; Jamie seria
a melhor prova disso que alguma vez poderiam ter. Que é que ele estava dizendo?
Tinha que prestar atenção.
- ...deixar aqui a tua criada. Irá sentir-se deslocada junto de nós. Nós não temos
criados.
"Não têm criados? Todo mundo tem criados, todo mundo! Onde diabo viverão,
num andar?" Scarlett ergueu o queixo. "Este é o filho do irmão do meu pai, e o tio
James é irmão do pai. Não envergonharei a sua memória sendo covarde demais para
tomar uma xícara de chá com eles, nem que haja ratos correndo pelo chão."
- Pansy - disse -, quando passarmos por casa, tu entras. Eu não me demoro. Diz-
lhes... Depois vens me trazer em casa, não vens, Jamie? - Era suficientemente
corajosa para enfrentar um rato passando por cima do pé, mas não estava disposta a
arruinar a sua reputação para todo o sempre andando sozinha pelas ruas. Não era
coisa que uma senhora fizesse.
Para enorme alívio de Scarlett, passaram pela rua por detrás da casa do avô, não
pela praça na parte da frente, onde as tias gostavam de dar os seus "passeios
higiênicos", debaixo das árvores. Pansy foi de bom grado para casa, entrando pelo
portão do jardim, já bocejando, antecipando poder voltar a adormecer. Scarlett tentou
não se mostrar ansiosa. Tinha ouvido Jerome queixar-se às tias da degradação do
bairro. Alguns quarteirões mais adiante, as belas casas antigas tinham degenerado em
pensões ordinárias para os marinheiros que faziam a entrada e saída dos navios do
movimentado porto de Savannah. E para as ondas de imigrantes que chegavam em
alguns navios. A maioria, segundo o elegante e esnobe negro, eram irlandeses sujos.
James continuou a acompanhá-la, seguindo em frente, e ela suspirou de alívio.
Depois, passado pouco tempo, virou para a elegante e bem cuidada avenida chamada
South Broad e anunciou:
- Chegamos.
Estavam frente a uma casa de tijolo bastante grande.
- Que bonita! - disse Scarlett com toda a sinceridade.
Foi quase a última coisa que disse durante algum tempo.
Em vez de subir as escadas que davam para a grande porta de entrada, Jamie
abriu uma porta mais pequena ao nível da rua e levou-a para a cozinha onde uma onda
avassaladora de pessoas, todas elas de cabelo ruivo, se mostraram ruidosamente
acolhedoras quando ele gritou acima do burburinho de saudações:
- Esta é Scarlett O'Hara, a linda filha de Gerald O'Hara, que veio de Atlanta para
ver o tio James.
"São tantos", pensou Scarlett quando correram para ela. O riso de Jamie quando
a garota mais novinha e um rapazito se agarraram aos seus joelhos tornou impossível
ela compreender o que ele estava dizendo.
Depois, uma mulher forte, com cabelo ainda mais ruivo que o de qualquer um dos
outros, estendeu uma mão avermelhada a Scarlett.
- Seja bem-vinda a esta casa - disse num tom plácido. - Sou Maureen, mulher de
Jamie. Não ligue para estes selvagens; venha sentar-se junto do lume e beber uma
xícara de chá. - Agarrou firmemente o braço de Scarlett e levou-a para a sala.
- Calem-se, seus pagãos, não podem deixar o pai recuperar o fôlego? Depois vão
lavar a cara e cumprimentar Scarlett um a um. - Tirou a capa de pele dos ombros de
Scarlett. - Põe isto num lugar seguro, Mary Kate, senão o bebê ainda vai pensar que é
um gatinho ao qual pode puxar o rabo, de tão macia que é. - A garota mais crescida fez
uma breve vênia na direção de Scarlett e estendeu as suas mãos ansiosas para a
capa. Os olhos azuis estavam enormes de admiração. Scarlett sorriu-lhe; e para
Maureen, muito embora a mulher de Jamie a estivesse empurrando para uma cadeira
Windsor como se pensasse que Scarlett era um dos filhos, a quem podia dar ordens.
Num instante, Scarlett deu por si segurando numa mão a maior xícara de chá que
alguma vez vira, enquanto que com a outra apertava a mão a uma moça
espantosamente bela que murmurou: "Parece uma princesa" para a mãe e "Sou Helen"
para Scarlett.
- Devias tocar nas peles, Helen - disse Mary Kate numa voz importante.
- É a Helen que é a convidada, para estares te dirigindo a ela? - disse Maureen. -
É uma vergonha para uma mãe ter uma filha tão idiota. - A voz era calorosa, carregada
de afeição e riso reprimido.
As faces de Mary Kate ficaram marcadas pelo embaraço. Voltou a fazer uma
vênia e estendeu a mão.
- Prima Scarlett, peco-lhe perdão. Distraí-me olhando para a sua elegância. Sou
Mary Kate e tenho orgulho de ser prima de uma grande senhora.
Scarlett teve vontade de dizer que não era preciso pedir-lhe desculpa, mas não
teve oportunidade. Jamie tinha tirado o chapéu e o casaco do traje e desabotoara o
colete. Segurava debaixo do braço uma criança, um pequenito ruivo e rechonchudo
que guinchava enquanto se debatia, encantado com a brincadeira.
- E este demoniozinho é o Sean, que se chama John como um bom americano,
pois nasceu aqui mesmo em Savannah.
- Chamamos-lhe Jacky. Mostra que tens língua e diz olá à tua prima, Jacky.
- Olá! - gritou o rapazito, gritando de excitação quando o pai o pôs de cabeça para
baixo.
- Que se passa? - O barulho, à exceção dos guinchos de Jacky, cessou
imediatamente quando o tom agudo e forte cortou o pandemônio. Scarlett olhou para o
outro lado da cozinha e viu um velho alto que devia ser o seu tio James. A seu lado
estava uma garota bonita com cabelo escuro encaracolado.
Parecia alarmada e tímida.
- O Jacky acordou o tio James, que estava descansando - disse ela. - Será que se
machucou para estar gritando tanto e fazer com que o Jamie viesse cedo para casa?
- Nem perto - disse Maureen. Erguendo a voz, acrescentou: - Tem uma visita, tio
James. Veio especialmente para o ver. Jamie deixou o Daniel na loja para a trazer.
Venha para junto do fogo; o chá está pronto. Venha ver a Scarlett.
Scarlett levantou-se e sorriu.
- Olá, tio James, lembra-se de mim?
O velho olhou-a fixamente.
- Da última vez que te vi estavas de luto pelo teu marido. Já arranjaste outro?
O pensamento de Scarlett recuou velozmente no tempo. Santo Deus, o tio James
tinha razão. Tinha vindo a Savannah depois de o Wade nascer, quando estava de luto
por Charles Hamilton.
- Sim, já - disse. "E que acharias se eu te dissesse que arranjei dois maridos
desde então, meu velho intrometido?"
- Ótimo - declarou o tio. - Já há mulheres solteiras demais nesta casa.
A moça que estava ao seu lado deu um gritinho abafado, deu meia volta e saiu
correndo da sala.
- Tio James, não deve atormentá-la dessa maneira - disse Jamie severamente.
O velhote dirigiu-se para a lareira e esfregou as mãos uma na outra ao calor.
- Ela não devia ser tão chorona - disse o tio. - Os O'Haras não choram quando
têm problemas. Maureen, quero tomar o meu chá enquanto falo com a garota do
Gerald. - Sentou-se na cadeira ao lado de Scarlett. - Conta-me como foi o funeral.
Enterraste o teu pai em grande estilo? O meu irmão Andrew teve o melhor funeral que
esta cidade viu em muitos anos.
Scarlett viu mentalmente o pequeno grupo de acompanhantes em volta da
sepultura de Gerald em Tara. Eram tão poucos. Muitos dos que deviam estar lá tinham
morrido antes do pai, tinham morrido antes do seu tempo.
Scarlett fixou os seus olhos verdes nos olhos azuis desbotados do velhote.
- Teve uma carruagem funerária com lados de vidro e quatro cavalos pretos com
plumas pretas na cabeça, um lençol de flores no caixão e duzentos acompanhantes
que foram atrás da carruagem funerária nas suas carruagens. Está num túmulo de
mármore, não numa sepultura, e o túmulo tem a escultura de um anjo com dois metros
de altura em cima - A sua voz era áspera e fria. "Ora toma, velho", pensou, "e deixa o
pai em paz."
James esfregou as mãos secas.
- Deus tenha a sua alma em descanso - disse, num tom contente. - Eu sempre
disse que o Gerald era de todos nós o que tinha mais estilo; eu não te disse, Jamie? O
nanico da ninhada e o que mais depressa perdia a cabeça com um insulto. O Gerald
era um belo homem. Sabes como é que ele arranjou a plantação? Jogando pôquer
com o meu dinheiro, foi como foi. E não me ofereceu nem um cêntimo dos lucros. - O
riso de James era profundo e forte, o riso de um homem novo. Era cheio de vida e de
humor.
- Conte como ele saiu da Irlanda, tio James - disse Maureen, voltando a encher a
xícara do velhote. -Talvez a Scarlett nunca tenha ouvido essa história.
"Caramba! Será que vamos ter um velório?" Zangada, Scarlett mexeu-se na
cadeira.
- Já a ouvi dezenas de vezes - disse. Gerald O'Hara gostava de se gabar de ter
fugido da Irlanda com a cabeça a prêmio por ter morto um cobrador de rendas inglês
apenas com um murro. Todo mundo em Clayton County tinha ouvido essa história
dezenas de vezes e ninguém acreditava. Gerald era barulhento quando se zangava,
mas todos viam que por debaixo disso era brando.
Maureen sorriu.
- Um homem cheio de força, apesar de ser pequeno, foi o que sempre me
disseram. Um pai de quem uma mulher se pode orgulhar.
Scarlett sentiu a garganta entupida de lágrimas.
- Era isso mesmo - disse James. - Quando comemos o bolo de aniversário,
Maureen? E onde está a Patrícia?
Scarlett olhou em volta do círculo de rostos de cabelos ruivos. Não, tinha a
certeza de que não tinha ouvido o nome Patrícia. Talvez fosse a garota de cabelos
escuros, a que tinha fugido da sala.
- Está tratando da sua própria festa, tio James - disse Maureen. - Sabe como ela
é minuciosa. Vamos para o lado assim que o Stephen nos venha dizer que está pronta.
Stephen?
Patrícia? A casa ao lado?
Maureen viu as interrogações no rosto de Scarlett.
- O Jamie não lhe disse, Scarlett? Agora há aqui três famílias O'Hara. Ainda só
começou a conhecer os seus parentes, Scarlett.
"Nunca os conseguirei distinguir", pensou Scarlett, desesperada. Se ao menos
ficassem quietos num lugar!
Mas não havia a menor esperança disso. Patrícia ia dar a sua festa de aniversário
na sala de estar dupla da casa, com as portas de correr que havia entre ambas
completamente abertas. As crianças - e havia muitas - estavam jogando jogos que
exigiam muitas correrias e esconderijos e saltos por detrás de cadeiras e cortinados.
Os adultos corriam ocasionalmente atrás de uma que se tornara barulhenta demais, ou
baixavam-se rapidamente para apanhar uma das mais pequenas que tinha caído e
precisava ser reconfortada. Parecia não interessar de quem era a criança. Todos os
adultos faziam de pais de todas as crianças.
Scarlett sentiu-se grata pelo cabelo ruivo de Maureen. Todos os seus filhos - as
crianças que Scarlett conhecera na casa ao lado, mais a Patrícia, mais o Daniel, o filho
da loja, mais um outro rapaz crescido cujo nome ela não recordava - eram pelo menos
identificáveis. Os outros constituíam uma baralhada impossível.
O mesmo acontecia com os pais. Scarlett sabia que um dos homens se chamava
Gerald, mas qual? Eram todos homens grandes, com cabelo escuro encaracolado e
olhos azuis e sorrisos cativantes.
- E tudo muito confuso, não é? - disse uma voz ao seu lado. Era Maureen. - Não
se preocupe com isso, Scarlett, pois acabará por se orientar.
Scarlett sorriu e assentiu educadamente. Mas não tinha a menor intenção de se
"orientar". Ia pedir a Jamie que a acompanhasse para casa assim que pudesse. Havia
ali barulho demaiscom todos aqueles pirralhos à solta. A casa cor-de-rosa e sossegada
na praça parecia um refúgio. Pelo menos ali tinha as tias com quem conversar. Aqui
não podia dizer palavra a ninguém. Estavam todos ocupados demais correndo atrás
das crianças ou abraçando e beijando Patrícia. Perguntando-lhe pelo bebê, Santo
Deus! Como se não soubessem que a única coisa decente a fazer era fingir que não
percebiam que uma mulher estava grávida. Sentia-se uma estranha. Posta de lado.
Sem importância. Exatamente como em Atlanta. Exatamente como em Charleston. E
aqueles eram seus parentes, o que tornava as coisas mil vezes piores!
- Agora vamos cortar o bolo - disse Maureen, dando o braço a Scarlett. - Depois
haverá música.
Scarlett cerrou os dentes. "Santo Deus, já tive de aguentar um serão musical em
Savannah. Será que esta gente não pensa em mais nada?" Foi com Maureen para um
sofá de pelúcia vermelha e sentou-se na beirinha, muito direita.
Uma faca batendo contra um copo chamou a atenção de todos. Algo que se
assemelhava a silêncio recaiu sobre a multidão.
- Agradeço-lhes enquanto durar - disse Jamie. Agitou a faca ameaçadoramente
contra os risos. - Viemos comemorar o aniversário de Patrícia, muito embora só seja
para a semana. Hoje é terça-feira de Carnaval, uma hora melhor para festejar do que a
meio da Quaresma. - Voltou a ameaçar os risos. - E temos uma outra razão para
celebrar. Uma bela O'Hara que há muito andava perdida foi reencontrada. Ergo o meu
copo em nome de todos os O'Haras num brinde à prima Scarlett, dando-lhe as boas-
vindas aos nossos corações e aos nossos lares. - Jamie lançou a cabeça para trás e
despejou o conteúdo do copo pela garganta abaixo. - Vamos começar a festa! -
ordenou com um gesto largo. - Venha o violino!
Ouviu-se uma série de risadinhas vindas da porta e vozes abafadas pedindo
silêncio. Patrícia aproximou-se e foi se sentar ao lado de Scarlett. Depois, num dos
cantos, um violino começou a tocar. Helen, a linda filha de Jamie, entrou trazendo uma
travessa com empadinhas de carne fumegantes. Inclinou-se e mostrou-a a Patrícia e
Scarlett, levando-a depois com cuidado para a mesa redonda maciça no centro da sala
e pousando-a sobre a toalha de veludo que a cobria. Helen foi seguida por Mary Kate e
depois pela moça bonita que tinha acompanhado o tio James, depois a mais nova das
mulheres O'Hara. Todas mostraram a Scarlett e a Patrícia as travessas que traziam
antes de as juntar à comida que já estava em cima da mesa. Uma peça de carne
assada, um presunto salpicado de cravos-da-índia, um peru enorme. Depois Helen
voltou a aparecer com uma enorme taça com batatas fumegantes, seguida mais
rapidamente pelas outras com cenouras gratinadas, cebolas assadas, purê de batata
doce. A procissão continuou até a mesa estar cheia de comida e de petiscos de toda a
espécie. O violino - Scarlett viu que quem tocava era o Daniel da loja - tocou um
arpeggio floreado e Maureen entrou com um bolo em torre, enfeitado com enormes
rosas de açúcar cor-de-rosa vivo.
- Bolo de padeiro! - gritou Timothy.
Jamie pôs-se imediatamente atrás da mulher, erguendo os braços por cima da
cabeça. Trazia três garrafas de uísque em cada mão. O violino começou a tocar uma
música rápida e exuberante e todos riram e bateram as palmas. A encenação da
procissão era irresistível.
- Agora, Brian - disse Jamie. - Tu e o Billy. As rainhas do seu trono para a lareira.
- Antes de Scarlett perceber o que estava acontecendo, o sofá foi erguido e ela
segurou-se a Patrícia enquanto eram balançadas para a frente e para trás e
transportadas para perto das brasas incandescentes da lareira.
- Tio James! - ordenou Jamie, e o velho senhor foi levado, a rir, na sua cadeira de
espaldar, para o outro lado da lareira.
A moça que tinha acompanhado James começou a enxotar as crianças, como se
fossem galinhas, para a outra sala onde Mary Kate estendeu uma toalha de mesa no
chão para se sentarem à frente da segunda lareira.
Num espaço de tempo surpreendentemente curto, verificou-se a calma onde
outrora reinara o caos. Enquanto comiam e conversavam, Scarlet tentou "orientar-se"
em relação aos adultos.
Os dois filhos de Jamie eram tão parecidos que mal conseguia acreditar que
Daniel, que tinha vinte e um anos, era quase três anos mais velho que Brian. Enquanto
sorria a Brian e lhe dizia isso mesmo, ele corou como só um ruivo pode corar. O outro
único jovem começou a troçar dele impiedosamente, mas parou quando a moça de
faces rosadas que estava a seu lado pôs a mão sobre a dele e disse:
- Pára com isso, Gerald.
Então aquele era o Gerald. "O pai teria ficado tão contente por saber que aquele
rapaz bonito e grande tem o seu nome. Chamou Polly a moça e estão tão apaixonados
que devem ter casado há pouco tempo. E a Patrícia é tão mandona com aquele a
quem o Jamie chamou Billy que também devem ser marido e mulher."
Mas Scarlett não tinha tempo para tentar ouvir os nomes dos outros. Ao que
parecia, todo mundo queria falar com ela: e tudo o que ela dizia era causa de
exclamação, repetição, admiração. Deu por si a falar a Daniel e a Jamie da sua loja, a
Polly e a Patrícia da sua modista, ao tio James de como os ianques tinham incendiado
Tara. Falou sobretudo do seu negócio de madeiras e de como começara com uma
pequena serraria e tinha agora duas serrarias, depósitos de madeira e uma aldeia de
casas novas junto a Atlanta. Todos manifestaram ruidosamente a sua aprovação.
Finalmente Scarlett tinha encontrado pessoas que não achavam que falar de dinheiro
era tabu. Eram como ela, dispostos a trabalhar arduamente e determinados a ganhar
dinheiro com o seu trabalho. Ela já tinha ganho o dela e disseram-lhe que era
maravilhosa. Scarlett não conseguia imaginar por que tinha tido vontade de ir embora
daquela festa maravilhosa e voltar para o silêncio de morte da casa do avô.
- Se já acabaste de comer o bolo da tua irmã quase todo, importas-te de nos dar
alguma música? - disse Maureen quando Jamie abriu uma garrafa de uísque e
subitamente todos, à exceção do tio James, se tinham levantado e andavam de um
lado para o outro, ao que parecia numa rotina habitual. Daniel começou a tocar uma
música rápida e de notas agudas no violino e os outros gritaram as suas críticas,
enquanto as mulheres limpavam rapidamente a mesa e os homens afastavam os
móveis contra as paredes, deixando Scarlett e o tio sentados como se estivessem
numa ilha. Jamie deu um copo de uísque a James e aguardou, semi-inclinado, a
opinião do velhote.
- Serve - foi a decisão.
Jamie riu.
- Espero que sim, velhote, pois não temos outro.
Scarlett tentou chamar a atenção de Jamie com o olhar, falhou, e por fim chamou-
o. Tinha que ir embora. Estavam todos colocando as cadeiras num círculo à frente da
lareira e as crianças mais pequenas revezavam-se sentando no chão junto aos adultos.
Era evidente que estavam se preparando para o serão musical e seria uma terrível má-
criação ela levantar-se e ir embora.
Jamie passou por cima de um garotinho para chegar próximo à Scarlett.
- Ora aqui está - disse ele. - Para seu horror, Jamie deu-Ihe um copo com vários
dedos de uísque. Que tipo de pessoa pensaria que ela era? Ela não bebia nada mais
forte que chá, a não ser champanhe ou ponche numa festa, ou talvez um cálice muito
pequeno de xerez. Ele não podia ter conhecimento do brande que ela em tempos
costumava beber. Ora, estava a insultá-la! Não, não faria um coisa dessas, devia ser
uma brincadeira. Forçou-se a dar uma risada seca.
- É hora de ir embora, Jamie. Diverti-me muito, mas está ficando tarde...
- Não vais embora quando a festa está começando, Scarlett? - Jamie virou-se
para o filho. - Daniel, estás afugentando a tua prima recém-encontrada com todo esse
barulho. Toca-nos uma canção, não esses miados de gatos lutando.
Scarlett tentou falar, mas as suas palavras foram abafadas por gritos de "toca
como deve ser, Daniel" e "toca uma balada" e "uma escocesa, rapaz, queremos uma
escocesa".
Jamie sorriu abertamente.
- Não consigo te ouvir - gritou acima do barulho ensurdecedor. - Sou surdo como
uma porta para quem pede para ir embora.
Scarlett começou a ficar irritada. Quando Jamie voltou a oferecer o uísque, pôs-se
de pé, furiosa. Depois, antes de poder atirar o copo no chão, percebeu que Daniel tinha
começado a tocar. Era Peg in a Low-backed Car.
A música preferida do pai. Olhou para o rosto vermelhusco de irlandês de Jamie e
viu a imagem do pai. Oh, se ele pudesse ali estar, adoraria tudo aquilo. Scarlett sentou-
se. Abanou a cabeça à bebida que lhe era oferecida e fez um ligeiro sorriso para
Jamie. Estava quase chorando.
A música não permitia tristezas. O ritmo era contagiante, alegre demais, e tinham
todos começado a cantar e a bater as palmas. Involuntariamente, o pé de Scarlett
começou a bater o compasso sob a proteção das suas saias.
- Vá, Billy - disse Daniel, na realidade cantando ao ritmo. - Toca comigo.
Billy levantou o assento do vão de uma janela e tirou uma concertina. Os foles de
pele plissada abriram-se com um silvo. Depois, foi por detrás de Scarlett, levantou a
mão acima da sua cabeça e pegou algo brilhante que estava na prateleira por cima da
lareira.
- Vamos fazer música a sério, Stephen... - e atirou um tubo fino e cintilante de
metal ao homem moreno que estava em silêncio. Houve novo arco de prata pelo ar. - É
para ti, minha cara sogra... - e deixou cair algo no colo de Maureen.
Um rapazito bateu palmas animadamente.
- Os ossos! A prima Maureen vai tocar os ossos!
Scarlett ficou olhando, boquiaberta. Daniel tinha parado de tocar, e sem a música
voltou a sentir-se triste. Mas já não se queria ir embora. Aquela festa não tinha nada a
ver com o serão musical dos Telfair. Ali estavam todos à vontade, havia calor e riso. As
salas que tinham começado por estar tão bem arranjadas estavam agora
completamente desarrumadas, com os móveis afastados, as cadeiras de ambas as
salas numa espécie de semicírculo em volta da lareira. Maureen ergueu a mão com um
ruído e Scarlett viu que os "ossos" eram na realidade grossos pedaços de madeira lisa.
Jamie continuava a servir e a distribuir uísque. Ora, as mulheres também estão
bebendo! Não em segredo, envergonhadas. Estão divertindo-se tanto como os
homens. Também vou tomar uma bebida. Vou comemorar ter encontrado os O'Haras.
Quase gritou a Jamie, mas depois lembrou-se. "Não tardarei a ir para casa do avô. Não
posso beber. Alguém daria pelo cheiro. Não importa. Sinto-me tão quente por dentro
como se tivesse acabado de tomar uma bebida. Não preciso." Daniel passou o arco
pelas cordas do violino.
- The Maid Behind the Bar - disse. Todos riram.
Incluindo Scarlett, embora não soubesse porquê. Num instante, a grande sala
ecoou com a música irlandesa. A concertina de Billy ressoava vigorosamente, Brian
soprava no seu apito de metal, Stephen tocava o seu num contraponto vivo que se
entretecia na melodia de Brian. Jamie marcava o compasso com o pé, as crianças
batiam palmas, Scarlett batia palmas, todos batiam palmas, à exceção de Maureen.
Tinha erguido a mão com que segurava nos "ossos" e a batida forte em staccato
marcava um ritmo insistente que unia todo o resto. Mais depressa, exigiam os "ossos",
e os outros obedeciam. Os apitos soaram mais fortes, o violino tangia mais alto, a
concertina enfolava-se para os acompanhar. Meia dúzia de crianças levantaram-se e
começaram a saltar pelo chão no meio da sala. As mãos de Scarlett ficaram quentes
de bater tanto as palmas e os seus pés estavam mexendo-se como se quisesse saltar
com as crianças. Quando a música chegou ao fim, deixou-se cair para trás no sofá,
exausta.
- Vá lá, Matt, mostra a estes bebês como se dança - exclamou Maureen, batendo
tentadoramente os "ossos". O homem mais velho que estava perto de Scarlett
levantou-se.
- Deus nos ajude, espera um bocadinho - implorou Billy.
- Preciso descansar. Dê-nos uma canção, Katie. - E soltou algumas notas da
concertina.
Scarlett protestou. Não podia cantar ali. Não conhecia nenhuma canção
irlandesas a não ser Peg e a outra música preferida do pai, The Wearing o' the Green.
Mas depois percebeu: Billy não estava se referindo a ela. Uma mulher morena,
sem grande graça, com dentes grandes, estava dando o seu copo a Jamie e a pondo-
se de pé.
- There was a wild colonial boy - cantou num voz puríssima e doce. Antes de o
verso terminar, Daniel e Brian e Billy estavam a acompanhá-la. - Jack Duggan was his
name - cantava Katie. - He was born and raised in Ireland - e o apito de Stephen
entrou, uma oitava mais alta, com um tom de queixume prateado e arrebatador. -
...in a house called Castlemaine... - Começaram todos a cantar, à exceção de
Scarlett. Mas não se importou de não conhecer a letra. Continuava a fazer parte da
música. Estava rodeada de música. E quando a canção triste e corajosa terminou, viu
que todos os outros tinham lágrimas nos olhos como ela.
A seguir veio uma música alegre, começada por Jamie, que fez Scarlett rir e corar
simultaneamente quando percebeu o duplo sentido das palavras.
- Agora eu - disse Gerald. - Vou cantar Londonderry Air à minha doce Polly.
- Oh, Gerald! - Polly escondeu o rosto corado com as mãos.
Brian tocou as primeiras notas. Depois Gerald começou a cantar e Scarlett reteve
a respiração. Já tinha ouvido falar do tenor irlandês, mas não estava preparada para a
realidade. E aquela voz como a de um anjo vinha do chará do seu pai. O coração
jovem e apaixonado de Gerald estava exposto para todos verem no seu rosto e para
todos ouvirem nas notas altas e puras vindas da sua garganta forte e vibrante. A
própria Scarlett tinha um nó na garganta, tão bela era a voz, e sentiu uma profunda
ânsia de conhecer um amor como aquele, tão ingênuo e aberto. Rhett! - gritou o seu
coração, embora o espírito, pela sua natureza complexa e escura, troçasse da idéia de
poder ser tão simples e direto.
No final da canção, Polly lançou os braços em volta do pescoço de Gerald e
escondeu o rosto no seu ombro. Maureen ergueu os "ossos" acima do ombro.
- Agora uma irlandesa - anunciou firmemente. - Tenho os dedos mexendo. -
Daniel riu e começou a tocar.
Scarlett já tinha dançado a Virgínia Reel cem ou mais vezes, mas nunca tinha
visto dançar como ali se dançou na festa de aniversário de Patricia. Foi Matt O'Hara
quem começou. Com os ombros muito direitos e os braços rígidos junto ao corpo,
parecia um soldado quando se afastou do círculo de cadeiras. Depois, os seus pés
começaram a bater e a girar tão rapidamente que a visão de Scarlett ficou indistinta. O
chão tornou-se um tambor ressonante sob os seus calcanhares, parecia gelo polido
sob os seus passos impossíveis e intricados para a frente e para trás. Ele devia ser o
melhor dançarino do mundo, pensou Scarlett. E depois Katie foi enfrentá-lo, com as
saias um pouco levantadas em ambas as mãos de forma a que os pés ficassem livres
para acertar com os passos dele. Mary Kate foi a seguinte, depois Jamie juntou-se à
filha. E a bela Helen com um primo, um rapazinho que não podia ter mais de 8 anos.
"Não acredito", pensou Scarlett. "São mágicos, todos eles. A música também é
mágica." Os pés mexeram-se mais depressa do que alguma vez se tinham mexido,
tentando imitar o que estava vendo, tentando exprimir a excitação da música. "Tenho
que aprender a dançar assim, tenho mesmo que aprender. É como... é como girar até o
sol."
Uma criança que tinha adormecido debaixo do sofá acordou com o barulho dos
pés dançando e começou a chorar. Contagioso, o choro espalhou-se às outras
crianças. A dança e a música pararam.
- Façam colchões com cobertores dobrados na outra sala - disse Maureen
placidamente - e ponham-lhes os rabinhos secos. Depois fechamos as portas e eles
dormirão sem darem por nada. Jamie, a mulher dos "ossos" está com uma sede
terrível. Mary Kate, passa o meu copo ao teu pai.
Patrícia pediu a Billy para ir buscar o filho de 3 anos.
- Eu vou buscar a Betty - disse, estendendo a mão para debaixo do sofá. - Pronto,
pronto - murmurou, embalando a criança chorosa contra si. - Helen, fecha as cortinas lá
do fundo, minha querida. Hoje há muito luar.
Scarlett ainda estava meio em transe do enfeitiçamento da música. Olhou
vagamente para as janelas e o choque que apanhou trouxe-a à realidade. Estava
escurecendo. A xícara de chá que tinha vindo tomar tinha-se prolongado por horas.
- Oh, Maureen, vou chegar atrasada para jantar - exclamou. - Tenho que ir para
casa. O meu avô vai ficar furioso.
- Então que fique, o velho rabugento. Fique na festa. Ainda agora começou.
- Gostaria de poder ficar - disse Scarlett num tom fervoroso. - É a melhor festa em
que estive em toda a minha vida. Mas prometo que voltarei aqui.
- Ah, bom. Uma promessa é uma promessa. Volta?
- Adoraria. Convidam-me?
Maureen riu com vontade.
- Estão ouvindo a moça? - disse a todos os presentes.
- Aqui não há convites. Somos todos uma família e a Scarlett faz parte dela.
Venha quando quiser. A porta da minha cozinha não tem fechadura e a lareira está
sempre acesa. O Jamie também tem boa mão para o violino... Jamie! A Scarlett tem
que ir embora. Veste o casaco, homem, e dá-lhe o braço.
Antes de virarem a esquina, Scarlett ouviu a música recomeçar. Ouvia-se à
distância, devido às paredes espessas das casas e às janelas fechadas contra a noite
de Inverno. Mas percebeu que os O'Haras estavam de novo cantando. Era The
Wearing o' the Green.
"Dessa conheço a letra toda; oh, como tenho pena de ter vindo embora."
Os seus pés deram alguns pequenos passos de dança. Jamie riu e acompanhou-
a.
- Da próxima vez ensino-te a escocesa - prometeu.
36
Scarlett suportou a reprovação silenciosa das tias com fácil indiferença. Nem
sequer o fato de ter apanhado um raspanete do avô a incomodou. Lembrou-se de
como Maureen se tinha referido a ele. "Velho rabugento", pensou, dando uma risadinha
por dentro. Isso tornou-a suficientemente corajosa e impertinente para se saracotear
até a cama dele e lhe beijar a face depois de ele a ter mandado embora.
- Boa noite, avô - disse alegremente. - Velho rabugento - murmurou quando já
estava a salvo no átrio. Ia rindo quando se juntou às tias à mesa. O jantar foi-lhe
imediatamente levado. O prato estava tapado com uma tampa de prata polida, para a
comida se conservar quente. Scarlett teve certeza de que tinha sido recentemente
polida. Aquela casa podia funcionar realmente bem, pensou, se houvesse alguém para
manter os criados na linha. "O avô deixa-os fazer tudo. Velho rabugento."
- Que é que estás a achar tão divertido, Scarlett? - O tom de Pauline era frio como
gelo.
- Nada, tia Pauline. - Scarlett olhou para a montanha de comida que ficou visível
quando Jerome tirou cerimoniosamente a tampa de prata. Scarlett riu alto.
Excepcionalmente, não tinha fome; não podia ter, depois da festa dos O'Hara. E tinha à
sua frente comida suficiente para alimentar meia dúzia de pessoas. Devia ter lançado
verdadeiro terror na cozinha.

Na manhã seguinte, quarta-feira de Cinzas, Miss Scarlett ocupou o seu lugar ao


lado de Eulalie no banco da igreja preferido pelas tias. Era elegantemente discreto,
com acesso por uma coxia lateral, e localizado bastante atrás. Os joelhos estavam
começando a doer de estar ajoelhada no chão frio quando viu os primos entrarem na
igreja. Dirigiram-se - obviamente, pensou Scarlett - pela coxia central até quase à
frente, onde ocuparam dois bancos completos. Que pessoas tão grandes que eram, e
tão cheias de vida. As cabeças dos filhos de Jamie pareciam fogueiras quentes à luz
dos vitrais vermelhos, e nem sequer o chapéu conseguia esconder o cabelo flamejante
de Maureen e das garotas. Scarlett estava tão absorta em admiração e em
recordações da festa de aniversário que quase não deu pela chegada das freiras do
convento. E, ainda por cima, depois de ter feito que as tias se apressassem para
chegarem cedo à igreja. Queria assegurar-se de que a Madre Superiora de Charleston
continuava ainda em Savannah.
Sim, estava lá. Scarlett ignorou os murmúrios frenéticos de Eulalie, mandando-a
virar-se de frente para o altar. Estudou a expressão serena da freira quando ela
passou. Hoje a Madre Superiora a receberia. Scarlett estava determinada. Passou a
missa pensando na festa que daria depois de restaurar Tara com toda a sua antiga
beleza. Haveria música e dança, exatamente como na véspera à noite, e se prolongaria
por dias e dias a fio.
- Scarlett! - silvou Eulalie. - Pára de cantarolar dessa maneira.
Scarlett sorriu para dentro do missal. Não tinha percebido que estava
cantarolando. Tinha que reconhecer que Peg in a Low-backed Car não era exatamente
música sacra.

- Não acredito! - disse Scarlett. Os seus olhos claros estavam estupefatos e


desolados sob a testa manchada de cinzas, e os seus dedos cerraram-se como garras
em volta do terço que tinha pedido emprestado a Eulalie.
A freira idosa repetiu a mensagem com uma paciência isenta de emoção.
- A Madre Superiora estará em retiro durante todo o dia, em oração e jejum. -
Teve pena de Scarlett e acrescentou uma explicação: - Hoje é quarta-feira de Cinzas.
- Eu sei que é quarta-feira de Cinzas - quase gritou Scarlett. Depois refreou a
língua. - Por favor, diga-lhe que fiquei muito desapontada - disse baixinho - e que
voltarei amanhã.
Assim que chegou à casa dos Robillard, lavou o rosto.
Eulalie e Pauline estavam visivelmente chocadas quando desceu e foi falar com
elas na sala de estar, mas nenhuma disse nada. O silêncio era a única arma que
sentiam ser seguro utilizarem quando Scarlett estava de amu humor. Mas, quando
anunciou que ia pedir o desjejum, Pauline falou.
- Irás lamentar ter feito isso antes de o dia terminar, Scarlett.
- Não posso imaginar porquê - respondeu Scarlett. Tinha o queixo espetado.
Mas ficou de boca aberta quando Pauline explicou. A reapresentação de Scarlett
à religião era tão recente que ela pensava que jejuar era simplesmente à sexta-feira
comer peixe em vez de carne. Gostava de peixe e nunca levantava objeções à regra.
Mas aquilo que Pauline lhe disse era extremamente contestável.
Apenas uma refeição durante todos os quarenta dias da Quaresma e nenhuma
carne nessa refeição. Os domingos eram a exceção. Continuava a não se poder comer
carne, mas eram permitidas três refeições.
- Não acredito! - exclamou Scarlett pela segunda vez no espaço de uma hora. -
Nunca fizemos isso em casa.
- Eram crianças - disse Pauline -, mas tenho certeza de que a tua mãe jejuava
como deve ser. Não consigo entender por que não te ensinou a cumprir a Quaresma
quando deixaste a infância, mas o certo é que estava isolada no campo, sem a
orientação de um padre, e havia também a influência de Mr. O'Hara a enfrentar... - A
voz deixou de se ouvir.
Os olhos de Scarlett iluminaram-se para a batalha.
- Gostaria muito de saber exatamente o que é que quer dizer com "a influência de
Mr. O'Hara".
Pauline baixou o olhar.
- Todo mundo sabe que os irlandeses tomam certas liberdades com as leis da
Igreja. Não os podemos censurar, pois são uma pobre nação de analfabetos. - E
benzeu-se piamente.
Scarlett bateu o pé.
- Não vou ficar aqui ouvindo essas vaidades altaneiras de franceses. O meu pai
nunca foi outra coisa senão um bom homem, e a sua "influência" foi bondade e
generosidade, coisa que as tias não conhecem. Mais, se querem saber, ontem passei a
tarde com a família dele e são ótimas pessoas, todos eles. Garanto-lhes que prefiro ser
influenciada por eles que pela vossa beatice idiota.
Eulalie desatou a chorar. Scarlett olhou-a irada. "Agora vai ficar fungando durante
horas. Acho que não vou aguentar."
Pauline soluçava bem alto. Scarlett virou-se, espantada. Pauline nunca chorava.
Impotente, Scarlett olhou para as duas cabeças grisalhas curvadas e para os
ombros encolhidos. Pauline era tão magra e frágil!
"Santo Deus!" Dirigiu-se para Pauline e tocou nas costas nodosas da tia.
- Desculpe, tia. Não quis dizer isso.
Quando a paz já tinha sido restaurada, Eulalie sugeriu que Scarlett fosse com ela
e Pauline dar o seu passeio em volta da praça.
- A mana e eu achamos sempre que um passeio higiênico é extremamente
revigorante - disse ela numa voz animada. Depois, a boca tremeu-lhe pateticamente. -
E faz que não pensemos em comida.
Scarlett concordou de imediato. Tinha que sair daquela casa. Estava convencida
de que sentia o cheiro de toucinho fritando na cozinha. Caminhou com as tias em volta
do quadrado de relva em frente à casa e depois a curta distância até a praça seguinte,
e depois até a outra e em volta desta e depois a outra e a outra. Quando regressaram a
casa, estava quase a arrastando tanto os pés como Eulalie, e tinha certeza absoluta de
que tinha atravessado ou percorrido todas as vinte e tal praças espalhadas por
Savannah, que lhe conferiam o seu estatuto de encanto único. Tinha também certeza
absoluta de que estava meio morta de fome e entediada ao ponto de ter vontade de
gritar. Mas, pelo menos, era hora do almoço...
Não se lembrava de alguma vez ter provado vim peixe tão delicioso.
"Que alívio!", pensou Scarlett quando Eulalie e Pauline foram para o quarto fazer
a sesta. "Uma pequena dose das suas reminiscências de Savannah durava muito
tempo. Uma grande levava uma pessoa à loucura." Scarlett vagueou inquieta pela
grande casa, pegando peças de porcelana e prata que estavam em cima das mesinhas
e voltando a pô-las no lugar sem realmente as ver.
Por que a Madre Superiora estava sendo tão difícil? Por que não falava com ela,
ao menos? Por que diabo uma mulher como aquela tinha que passar um dia inteiro em
retiro, mesmo sendo um dia santo como a quarta-feira de Cinzas? Decerto que uma
Madre Superiora já era tão boa pessoa quanto se pode ser. Por que é que precisava
passar um dia orando e jejuando?
Jejuar! Scarlett correu para a sala de estar e olhou para o relógio de pêndulo. Não
podiam ser só quatro horas. E ainda nem quatro eram. Faltavam sete minutos para as
quatro. E não podia comer nada até ao almoço do dia seguinte. Não, não era possível.
Não fazia sentido.
Scarlett dirigiu-se para o cordão da campainha e puxou-o quatro vezes.
- Vai vestir o casaco - disse a Pansy, quando a garota apareceu correndo. -
Vamos sair.

-Miss Scarlett, por que é que vamos à padaria? A cozinheira diz que as coisas da
padaria não prestam para comer. Ela faz tudo em casa.
- Não quero saber o que a cozinheira diz. E, se disseres a alguém que estivemos
aqui, esfolo-te viva.
Scarlett comeu dois biscoitos e um pãozinho ainda na padaria. Levou dois sacos
de pão e biscoitos para casa, para o seu quarto, escondendo-os debaixo da capa.
Um telegrama tinha sido cuidadosamente colocado sobre a cômoda. Scarlett
deixou cair os sacos no chão e correu a buscá-lo.
"Henry Hamilton", era a assinatura. Raios! Pensara que era de Rhett, implorando-
lhe que voltasse para casa ou a dizendo que ia a caminho para ir buscá-la. Irada,
amassou o papel fino com a mão.
Depois, alisou-o. Era melhor ver o que o tio Henry tinha para dizer. Assim que leu
a mensagem, Scarlett começou a sorrir.

RECEBIDO TEU TELEGRAMA PT TAMBÉM GRANDE TRANSFERÊNCIA


BANCÁRIA DO TEU MARIDO PT QUE IDIOTICE É ESSA DE RHETT PEDIR-ME
PARA O AVISAR DO TEU PARADEIRO PT SEGUE CARTA PT
HENRY HAMILTON.
Então Rhett andava à sua procura. Tal como ela já esperava. Ah! Tinha feito bem
em ir para Savannah. Esperava que o tio Henry tivesse o senso de informar Rhett
imediatamente, e por telegrama, não por carta. Ora, ele podia muito bem estar lendo o
seu telegrama, como ela estava lendo o dela.
Scarlett cantarolou uma valsa e dançou pelo quarto, segurando o telegrama
contra o coração. Ele até podia vir a caminho. O trem de Charleston chegava mais ou
menos àquela hora do dia. Correu para o espelho para ajeitar o cabelo e beliscar as
faces para ficarem mais rosadas. Deveria mudar de vestido? Não, Rhett notaria e
poderia pensar que não tinha feito mais nada senão esperar por ele. Esfregou água de
colônia no pescoço e nas têmporas. Pronto. Estava pronta. Reparou que tinha os olhos
verdes brilhando como os de um gato. Teria que se lembrar de baixar as pestanas.
Levou um banco para junto da janela e sentou-se num local oculta pela cortina mas de
onde podia ver a rua.
Uma hora depois, Rhett ainda não tinha chegado. Os pequenos dentes brancos
de Scarlett morderam um pãozinho do padeiro. Que chata era aquela história da
Quaresma! Imagina, ter que se esconder no seu quarto para comer pãezinhos sem
sequer ter manteiga para pôr. Vinha com muito mau humor quando desceu.
E ali estava Jerome com a bandeja do jantar do avô. Era quase o suficiente para
ela se tornar huguenote ou presbiteriana como o velhote.
Scarlett deteve-o no hall.
- Esta comida tem um aspecto horrível - disse ela. - Leve-a de volta e ponha um
pouco de manteiga no purê de batata. E ponha também uma fatia grossa de presunto
no prato. Sei que têm lá um presunto, pois vi-o pendurado na despensa. E junte um
jarro com creme para despejar nesse pudim. E uma tacinha de compota de morango.
- Mr. Robillard não consegue mastigar presunto. E o médico não quer que ele
coma doces, nem creme, nem manteiga.
- O médico também não quer que ele morra de fome. E agora faça o que lhe
disse.
Scarlett ficou olhando irada para as costas muito direitas de Jerome até ele
desaparecer, escada abaixo.
- Ninguém devia passar fome - disse ela. - Nunca. - A sua disposição alterou-se
subitamente e deu uma risadinha.
- Nem sequer um velho rabugento.
37
Fortalecida pelos pãezinhos, Scarlett estava alegremente cantando baixinho
quando desceu na quinta-feira. Foi encontrar as tias num frenesi nervoso de
preparativos para o almoço de aniversário do avô. Enquanto Eulalie lutava com os
ramos de folhas verdes-escuras de magnólias para os arranjos dos aparadores e da
prateleira por cima da lareira, Pauline estava procurando nas pilhas de toalhas de linho
e guardanapos, tentando encontrar aquelas que se lembrava serem as preferidas do
pai.
- Que diferença é que isso faz? - perguntou Scarlett, impacientemente. Era o que
se dizia ser uma tempestade num copo de água. Do quarto, o avô nem sequer via a
sala de jantar. - Limite-se a escolher uma em que se veja menos o cerzido.
Eulalie deixou cair uma braçada de ramos.
- Não te ouvi entrar, Scarlett. Bom dia.
Pauline cumprimentou-a friamente com um aceno de cabeça. Tinha perdoado os
insultos de Scarlett, como era o dever de uma boa cristã, mas o mais provável era
nunca os esquecer.
- As toalhas de linho da mère não estão cerzidas - disse. - Estão em perfeitas
condições.
Scarlett olhou para as pilhas que cobriam a mesa comprida e lembrou-se das
toalhas gastas e cerzidas que as tias tinham em Charleston. Se dependesse dela,
embrulharia tudo aquilo e levaria para Charleston quando partissem no domingo. O avô
não daria pela falta e fariam imenso bem às tias. "Nunca na minha vida terei tanto
medo de alguém como elas têm daquele velho tirano. Mas, se dissesse o que penso, a
tia Eulalie começaria a fungar e a tia Pauline me daria um sermão de uma hora sobre o
meu dever para com os mais idosos."
- Tenho de ir comprar um presente - disse em voz alta. - Querem que lhes faça
algumas compras?
"E não se atrevam", disse em silêncio, "a oferecerem-se para vir comigo. Tenho
de ir ao convento falar com a Madre Superiora. Não pode continuar ainda em retiro. Se
tiver que ser, ponho-me ao portão e agarro-a quando ela sair. Estou farta de ser
mandada embora."
Estavam ocupadas demais, disseram as tias, para irem às compras, e estavam
espantadas por Scarlett ainda não ter escolhido e embrulhado o seu presente para o
avô. Scarlett foi embora antes de elas poderem descrever o quanto estavam ocupadas
e espantadas.
- Velhas rabugentas - disse entredentes. Bastava o som dessas palavras para a
fazer sorrir.
As árvores na praça pareciam mais espessas, a relva mais verde que no dia
anterior. O sol também estava mais quente. Scarlett sentiu o otimismo vibrante que
acompanhava sempre a primeira sugestão de Primavera. Aquele seria um bom dia,
tinha certeza, apesar da festa de aniversário do avô.
- Apressa-te, Pansy - disse automaticamente -, não te arrastes como uma
tartaruga - e começou a andar com passo rápido pelo passeio de areia e conchas
moídas.
O barulho de marteladas e de vozes de homens gritando no edifício da Catedral
ouvia-se claramente no ar calmo e claro. Scarlett desejou por instantes que o padre a
levasse para dar outra volta pelo local. Mas não era para isso que ia lá. E entrou pelo
portão do convento.
Foi a mesma freira idosa que lhe abriu a porta. Scarlett preparou-se para o
combate. Mas...
- A Madre Superiora está à sua espera - disse a freira. - Se quiser fazer o favor de
me acompanhar...
Scarlett estava quase em transe quando deixou o convento dez minutos depois.
Tinha sido tão fácil! A Madre tinha imediatamente concordado em falar com o bispo.
Mandaria recado, dissera, muito em breve. Não, não podia dizer quando, mas
certamente muito em breve. Ela própria ia regressar a Charleston na semana seguinte.
Scarlett estava eufórica. O seu sorriso e os seus olhos ficaram tão cintilantes que
o merceeiro da pequena loja em Abercorn Street quase se esqueceu de lhe cobrar a
caixa de chocolates enfeitada com um laço que ela escolheu como presente de
aniversário do avô.
A sua excelente disposição manteve-se durante os últimos preparativos para o
almoço de festa que a envolveram quando regressou à casa dos Robillard. Começou a
desvanescer ligeiramente quando soube que o avô estaria à mesa para o almoço de
seis pratos constituídos pela sua comida preferida.
Visitá-lo noquarto não era tão ruim, pois ele sempre a dispensava rapidamente.
Mas ela não poderia deixar a mesa.
A boa-disposição voltou a cair quando as tias a informaram de que ela não iria
poder comer muitas das iguarias que iam ser servidas.
- É proibido comer carne durante a Quaresma - disse Pauline, severamente. -
Assegura-te de que nem uma gota de molho toca no arroz ou nos legumes que
comeres. Mas tem cuidado, Scarlett. Não deixes que o père note - acrescentou Pauline
num murmúrio. - Ele não aprova o jejum - tinha os olhos lacrimejando de pena.
"Está roída de pena por não poder comer", pensou Scarlett, com maldade. "Mas...
não a posso censurar." Os aromas vindos da cozinha estavam de dar água na boca.
- Para nós haverá sopa. E peixe - disse Eulalie com súbita alegria. - E também
bolo, um magnífico bolo. Um verdadeiro festim, Scarlett.
- Lembra-te, mana - avisou Pauline -, a gula é um pecado.
Scarlett deixou-as; sentia que estava perdendo o controle do seu mau humor. "É
apenas um almoço", recordou a si própria; "acalma-te. Mesmo com o avô à mesa
conosco, não pode ser assim tão rium. Afinal de contas, que é que um velhote pode
fazer?"
Podia, verificou Scarlett de imediato, recusar-se a permitir que não fosse falado
senão francês. O seu "muitos parabéns, avô" foi ignorado como se não tivesse dito
nada. As saudações das tias foram aceitas com um aceno de cabeça frio do avô, que
foi sentar numa cadeira enorme, como um trono, à cabeceira da mesa.
Pierre Auguste Robillard já não era um velhote idoso e frágil de camisa de noite.
Impecavelmente vestido com um traje antiquado e camisa engomada, o seu corpo
magro parecia maior e o porte militar era ainda mais impressionante quando estava
sentado. O cabelo branco parecia a juba de um velho leão, os olhos pareciam os de um
falcão sob as sobrancelhas espessas e brancas, e o nariz grande e ossudo parecia o
bico de uma ave predadora. A convicção de Scarlett de que aquele seria um bom dia
começou a desaparecer. Desdobrou o enorme guardanapo de linho engomado e o pôs
no colo, preparando-se não sabia para quê.
Jerome entrou com uma grande terrina numa bandeja de prata do tamanho do
tampo de uma mesa pequena. Scarlett abriu muito os olhos. Nunca na sua vida vira
pratas como aquelas. Estavam encrustadas de enfeites. Toda uma floresta de árvores
rodeava a base da terrina, e os seus ramos e folhas curvavam-se para cima, indo
rodear a borda. Dentro da floresta havia aves e animais - ursos, veados, javalis, lebres,
faisões e até corujas e esquilos nos ramos das árvores. A tampa da terrina tinha a
forma de um tronco de árvore cortado e coberto de videiras grossas, cada uma com
miniaturas de cachos de uvas perfeitas e maduras. Jerome colocou a terrina à frente do
amo e levantou a tampa com a mão enluvada. O vapor soltou-se, embaciando a prata e
espalhando pela sala o delicioso aroma de bisque de camarão.
Pauline e Eulalie inclinaram-se para a frente, sorrindo ansiosamente.
Jerome tirou um prato de sopa do aparador e chegou-o à terrina. Pierre Robillard
pegou uma concha de prata e, em silêncio, encheu o prato. Depois, observou com os
olhos semicerrados enquanto Jerome levava o prato e o punha em frente de Pauline.
O ritual foi repetido para Eulalie e depois para Scarlett. Os seus dedos estavam
ansiosos por pegar a colher, mas manteve as mãos no colo enquanto o avô se servia a
si próprio e provava a sopa. Encolheu os ombros num gesto eloquente de reprovação e
deixou cair a colher no prato.
Eulalie deu um soluço abafado.
"Seu monstro velho!", pensou Scarlett. Começou a comer a sopa. Tinha um sabor
rico e aveludado. Tentou captar a atenção de Eulalie para lhe mostrar que estava
gostando da sopa, mas esta mantinha-se cabisbaixa. Acolher de Pauline estava no
prato, à semelhança da do pai. Scarlett deixou de sentir a menor pena das tias. Se se
deixavam aterrorizar tão facilmente, mereciam passar fome. Ela não ia deixar que o
velho a impedisse de almoçar!
Pauline pediu algo ao pai, mas como estava falando francês Scarlett não fazia
idéia do que a tia tinha dito. A resposta do avô foi tão curta e o rosto de Pauline ficou
tão pálido que ele devia ter dito alguma coisa muito insultuosa. Scarlett começou a
irritar-se. "Ele vai estragar tudo e de propósito. Oh, muito eu gostava de saber falar
francês. Não ficaria aqui sentada a sujeitando-me a que fosse desagradável."
Manteve-se em silêncio até Jerome tirar os pratos da sopa e os marcadores de
prata, e pôr pratos rasos e talheres de peixe. Isto pareceu levar uma eternidade.
Mas o peixe servido sobre uma tábua valeu a espera. Scarlett olhou para o avô.
Não ousaria fingir que não gostava daquilo. Comeu duas pequenas garfadas. Os garfos
e as facas a tocarem nos pratos fizeram um forte ruído. Primeiro Pauline, depois
Eulalie, desistiram com o peixe quase intacto no prato. Scarlett olhou para o avô com
uma expressão desafiadora a cada garfada que levava à boca. Mas mesmo ela estava
perdendo o apetite. O desagrado do velho azedava os ânimos.
O prato seguinte fez-lhe voltar o apetite. Os pombos pareciam tenríssimos e o
molho era um rio castanho sobre o purê de batata e os nabos moldados em ninhos
leves como o ar para a carne das minúsculas aves. Pierre Robillard molhou os dentes
do garfo no molho e tocou com eles na língua. Apenas isso.
Scarlett pensou que ia explodir. Só a súplica desesperada nos olhos das tias fez
com que ficasse calada. Como é que alguém podia ser tão odioso como o avô? Era
absolutamente impossível ele não gostar da comida. Não era difícil demais para ele
comer, mesmo tendo dentes ruins. Ou mesmo não tendo dentes. Sabia que ele
gostava de comida temperada. Quando mandou pôr manteiga e molho na papa que
normalmente lhe davam, o seu prato voltou para a cozinha tão limpo como se um cão o
tivesse lambido. Não, devia haver qualquer outra razão para ele não comer. E via-a nos
seus olhos. Estes brilhavam quando olhavam para a constrangedora decepção das
tias. Preferia fazê-las sofrer a comer o almoço. Mais, o seu almoço de aniversário.
Que diferença entre aquela festa de aniversário e a da sua prima Patrícia!
Scarlett olhou para o corpo esquelético e muito direito do avô e para o seu rosto
impassível e satisfeito consigo próprio, e desprezou-o pela forma como estava
atormentando as tias.
Mas ainda desprezava mais a elas por tolerarem aquela tortura. "Não têm o
menor brio. Como podem ficar ali sentadas aguentando isto?" Sentada em silêncio à
mesa do avô, na elegante sala cor-de-rosa, na bela casa cor-de-rosa, Scarlett destilava
ódio por tudo e por todos. Até por si própria. "Sou tão má como eles. Por que diabo não
abro a boca e lhe digo que está sendo extremamente desagradável? Não preciso falar
francês para fazê-lo, pois ele entende inglês tão bem como eu. Sou uma mulher adulta,
não uma criança que só pode falar quando lhe dirigem a palavra. Que se passa
comigo? Isto é uma perfeita idiotice."
Mas continuou sentada em silêncio, sem tocar com as costas na cadeira, com a
mão esquerda sempre pousada no colo. Exatamente como se fosse uma criança tendo
o melhor comportamento. A presença da sua mãe era invisível, nem sequer imaginada,
mas Ellen Robillard O'Hara estava ali, na casa onde crescera, na mesa onde tantas
vezes se sentara, como Scarlett estava sentada, com a mão esquerda pousada no
guardanapo de linho engomado sobre o colo. E, por amor a ela, por necessidade da
sua aprovação, Scarlett foi incapaz de desafiar a tirania de Pierre Robillard.
Ficou sentada durante o que lhe pareceu uma eternidade, observando o serviço
lento e majestoso de Jerome. Os pratos voltaram a ser substituídos por outros, e outros
ainda, as facas e os garfos substituídos por outros; pareceu a Scarlett que a festa
nunca mais terminaria. Pierre Robillard ia provando e recusando cada prato
cuidadosamente escolhido e preparado que lhe era oferecido. Quando Jerome trouxe o
bolo de aniversário, a tensão e infelicidade das tias de Scarlett era palpável e a própria
Scarlett mal conseguia ficar sentada quieta na cadeira, tão urgente era a sua ânsia de
fugir dali.
O bolo tinha uma cobertura brilhante de merengue, abundantemente salpicada de
confeitos prateados. No topo, um pequeno vaso de filigrana de prata continha novelos
de fios de ovos e bandeiras de seda em miniatura da França, do exército do imperador
Napoleão e do regimento em que Pierre Robillard tinha servido. O velho grunhiu, talvez
de agrado, quando este foi colocado à sua frente. Virou os olhos de pálpebras
semicerradas para Scarlett.
- Corta-o - disse-lhe em inglês.
"Está com a esperança de que eu deite abaixo as bandeiras", pensou ela, "mas
não lhe vou dar esse prazer." Ao aceitar a faca de bolo de Jerome com a mão direita,
levantou rapidamente com a esquerda o vaso de filigrana e pô-lo em cima da mesa.
Olhou o avô nos olhos e sorriu o seu sorriso mais doce.
Os lábios dele estremeceram.

- E ele comeu-o? - perguntou Scarlett com dramatismo. - Não comeu! O raio do


velho conseguiu não pôr mais que duas migalhas na ponta do garfo, depois de ter
raspado o merengue todo como se fosse bolor ou qualquer outra coisa horrível, e pô-
las na boca como se estivesse fazendo o maior favor do mundo. Depois, disse que
estava cansado demais para abrir os presentes e foi para o quarto. Tive vontade de lhe
torcer o pescoço escanzelado!
Maureen O'Hara balançou-se para a frente e para trás, rindo encantada.
- Não vejo qual é a graça - disse Scarlett. - Foi mau e malcriado. - Estava
decepcionada com a mulher de Jamie. Esperava a sua compreensão, e não as
gargalhadas.
- Mas é claro que vê, Scarlett. É a velhacaria de tudo isso. As suas pobres tias
virando-se do avesso para lhe agradarem e ele sentado na cama, de camisola, um
pobre bebê desdentado, maquinando contra elas. Velho malandro. Tive sempre um
fraquinho no meu coração pela velhacaria dos malandros. Consigo vê-lo, cheirando
antecipadamente o almoço e fazendo planos. E não sabe que ele manda o criado
levar-lhe às escondidas todos esses magníficos pratos para comer à porta fechada?
Velho malandro. A sua maldade inteligente faz-me rir. - O riso de Maureen era tão
contagiante que por fim Scarlett teve que ceder. Tinha feito bem em ir à cozinha de
Maureen, cuja porta nunca estava fechada à chave, depois daquela desastrosa festa
de aniversário.
- Vamos comer uma fatia de bolo, Scarlett - disse Maureen num tom acolhedor. -
Como tem prática, Scarlett, corte-nos as fatias; está por baixo daquele pano no
aparador. Corte mais algumas fatias para os pequenos, que não tardarão a chegar da
escola. Vou fazer mais chá.
Scarlett tinha acabado de se sentar junto à lareira com uma xícara e um prato,
quando a porta se abriu intempestiva e ruidosamente, e cinco jovens O'Hara invadiram
a cozinha calma. Ela reconheceu as filhas ruivas de Maureen, Mary Kate e Helen. O
rapazito, depressa veio a saber, era Michael O'Hara; as meninas mais novas eram as
irmãs, Clare e Peg. Todos eles tinham cabelos escuros encaracolados que precisavam
ser penteados, olhos azuis com grandes pestanas escuras e mãos sujas que Maureen
os mandou imediatamente lavar.
- Mas nós não precisamos de mãos limpas - argumentou Michael. - Vamos ao
estábulo brincar com os porcos.
- Os porcos vivem na pocilga - disse a pequena Peg, com um ar muito importante.
- Não é, Maureen?
Scarlett estava chocada. No seu mundo, as crianças nunca tratavam os adultos
pelo nome próprio. Mas Maureen parecia não achar isso nada de extraordinário.
- Vivem na pocilga se ninguém os soltar - disse, piscando o olho. - Não estavam
pensando em tirar os leitõezinhos da pocilga para brincarem com eles, não é?
Michael e as irmãs riram como se a piada de Maureen fosse a coisa mais
engraçada que alguma vez tinham ouvido. Saíram correndo da cozinha, dirigindo-se
para a porta dos fundos que dava para um grande pátio compartilhado por todas as
casas.
Os olhos de Scarlett fixaram-se nas brasas incandescentes da lareira, na cafeteira
de cobre brilhante, no tripé e nos tachos e panelas pendurados por cima da lareira. Era
engraçado, pensara que nunca poria um pé numa cozinha uma vez terminados os
maus tempos de Tara. Mas aquilo era diferente. Era um local para se viver, um local
feliz para se estar, não apenas onde a comida era preparada e os pratos lavados.
Gostaria de ficar ali. A beleza estática da sala de estar do avô fazia-a estremecer por
dentro quando pensava nela.
Mas o seu lugar era numa sala de estar, não numa cozinha. Era uma senhora,
habituada a criados e a luxo. Bebeu rapidamente a xícara de chá e pousou-a no pires.
- Salvou a minha vida, Maureen. Achei que enlouqueceria se tivesse que ficar
com as minhas tias. Mas agora tenho mesmo de ir.
- Que pena. Ainda não comeu a sua fatia de bolo. Dizem que vale a pena comer
os meus bolos.
Helen e Mary Kate aproximaram-se da cadeira da mãe, com os pratos vazios na
mão.
- Tirem lá um pedaço, mas não todo. Os mais pequenos não tardam aí.
Scarlett começou a calçar as luvas.
- Tenho que ir - repetiu.
- Se tem de ir, tem de ir. Espero que possa ficar mais tempo no sábado para
dançar, Scarlett. O Jamie disse-me que ia ensiná-la a dançar a escocesa. Talvez o
Colum já tenha voltado.
- Oh, Maureen! Vai dar outra festa no sábado?
- Não é uma festa. Mas há sempre música e dança quando o trabalho da semana
termina e os homens trazem para casa os seus ordenados. Vem?
Scarlett abanou a cabeça.
- Não posso. Adoraria vir, mas já não estarei em Savannah.
As tias estavam contando que ela as acompanhasse a Charleston no trem da
manhã de sábado. Ela achava que não iria, nunca pensara que iria. Decerto que Rhett
a iria buscar muito antes disso. Talvez estivesse naquele momento na casa do avô. Ela
não devia ter saído de casa.
Pôs-se de pé num salto.
- Tenho que ir. Obrigada, Maureen. Voltarei aqui antes de ir embora.
Talvez levasse Rhett para conhecer os O'Haras. Ele se enquadraria bem, um
outro homem de cabelos escuros no meio de todos os O'Haras de cabelos escuros.
Mas podia também encostar-se à parede daquela maneira irritantemente elegante que
ele tinha e rir de todos eles. Tinha sempre rido do seu sangue irlandês, troçado dela
quando repetia aquilo que o pai lhe tinha contado dezenas de vezes. Os O'Haras
tinham sido grandes e poderosos proprietários de terras durante séculos. Até a Batalha
do Boyne.
"Não sei por que é que ele achava tanta graça nisso. Praticamente todo mundo
que conhecemos perdeu as suas terras para os ianques; faz todo o sentido que a
família do pai tenha perdido as dela da mesma forma para quem quer que foi, os
ingleses , creio. Perguntarei a Jamie ou a Maureen, se tiver oportunidade. Se o Rhett
não vier me buscar antes disso."
38
A prometida carta de Henry Hamilton foi entregue na casa dos Robillard ao
anoitecer. Scarlett agarrou-a como se fosse uma corda atirada a uma pessoa que
estivesse se afogando. Há mais de uma hora que estava ouvindo as tias discutirem
sobre quem tinha a culpa da reação do pai ao seu aniversário.
- Isto refere-se à minha propriedade em Atlanta - disse Scarlett. - Por favor,
desculpem-me, mas vou lê-la no meu quarto.
Não esperou que elas concordassem. Fechou a porta do quarto à chave. Queria
saborear cada palavra em privado.
"Em que confusão te meteste desta vez?", começava a carta, sem qualquer
saudação. A caligrafia do velho advogado estava tão perturbada que ela teve
dificuldade em ler. Scarlett fez uma careta e ergueu-a mais perto do candeeiro.
"Em que confusão te meteste desta vez? Na segunda-feira fui visitado por um
velho idiota pomposo com quem normalmente evito falar. Apresentou-me uma
espantosa transferência bancária sobre o seu banco, pagável a ti. A quantia era meio
milhão de dólares, paga pelo Rhett.
Na terça-feira, fui abordado por um outro velho idiota, desta vez um advogado,
que me perguntou onde estavas. O cliente dele - o teu marido - queria saber. Não lhe
disse que estavas em Savannah."
Scarlett deu um gemido. Quem era tio Henry para chamar velho idiota a alguém,
quando ele próprio era um velho idiota? Não admirava que o Rhett não a tivesse vindo
buscar. Voltou a olhar para a caligrafia tortuosa de Henry.
"porque o teu telegrama chegou depois de ele ter ido embora e na época em que
ele me procurou eu não sabia onde estavas. Ainda não lhe disse, pois não sei o que
andas engendrando, e tenho certeza de que não quero tomar parte nisso.
Este advogado tinha duas perguntas de Rhett. A primeira era o teu paradeiro. A
segunda, se querias o divórcio.
Bom, Scarlett, não sei o que tens pendente sobre a cabeça do Rhett para
conseguires dele uma quantia daquelas, nem quero saber. Seja o que for que ele tenha
feito para te dar motivos para te divorciares dele, também não é da minha conta. Nunca
sujei as mãos com uma ação de divórcio, e não é agora que o farei. Além disso,
estarias desperdiçando o teu tempo e dinheiro. Não existe divórcio na Carolina do Sul,
que é agora a residência legal de Rhett.
Se persistires nesta tolice, te darei o nome de um. advogado em Atlanta que é
extremamente respeitável, muito embora, segundo sei, tenha tratado de dois divórcios.
Mas aviso-te de que terás que lhe entregar a ele ou a outro advogado todos os
assuntos referentes aos teus negócios. Nunca mais tratarei de nada teu. Se estás
pensando em divorciar-te do Rhett para ficares livre para te casares com o Ashley
Wilkes, deixa-me que te diga que seria melhor pensares duas vezes. O Ashley está
saindo-se muito melhor do que alguém poderia esperar. Tem uma casa confortável
governada por Miss Índia e pela tonta da minha irmã, onde vive como filho. Se te
intrometeres na vida dele, estragarás tudo. Deixa o pobre homem em paz, Scarlett."
"Francamente", pensou Scarlett, "deixar o Ashley em paz! Gostaria de saber se
estaria confortável e próspero se eu o tivesse deixado em paz. Quem diria, o tio Henry,
que devia ter mais senso do que censurar comigo como uma velha solteirona, e tirar
todo o tipo de conclusões apressadas e desagradáveis. Sabe tudo sobre a construção
das casas nos arredores da cidade." Scarlett estava profundamente magoada. O tio
Henry Hamilton era a pessoa mais próxima de um pai que ela tinha - ou um amigo, em
Atlanta - e as suas acusações feriam bem fundo. Leu rapidamente as poucas linhas
que faltavam e rabiscou uma resposta para Pansy levar aos Correios.
MORADA SAVANNAH NÃO É SEGREDO STOP DIVÓRCIO NÃO DESEJADO
STOP DINHEIRO EM OURO PONTO INTERROGAÇÃO
Se o tio Henry não tivesse parecido uma galinha velha cacarejando, ela o teria
encarregado de comprar ouro e o pôr no seu cofre no banco. Mas uma pessoa que não
tinha senso suficiente para dar a morada dela a Rhett talvez também não tivesse senso
em relação a outras coisas. Scarlett mordiscou o osso do polegar esquerdo,
preocupada com o seu dinheiro. Talvez devesse ir a Atlanta falar com Henry, com os
seus banqueiros e com Joe Colleton. Talvez devesse comprar mais terras nos
arredores da cidade e construir mais casas. As coisas nunca mais voltariam a ser tão
baratas como eram agora, com os efeitos do Pânico ainda provocando a depressão
nos negócios.
Não! Tinha que tratar do que era prioritário. Rhett estava tentando encontrá-la.
Scarlett sorriu para si própria, e os dedos da mão direita alisaram a pele avermelhada
do polegar esquerdo. "Não me engana com aquela conversa de divórcio. Nem com a
transferência do dinheiro, como se o nosso acordo estivesse sendo cumprido. O que
conta, a única coisa que conta, é que quer saber onde eu estou. Não resistirá a vir
assim que o tio Henry lhe diga."
- Não sejas ridícula, Scarlett - disse Pauline num tom frio -, é claro que vais voltar
para casa amanhã. Voltamos sempre para Charleston no sábado.
- Isso não significa que eu tenha que ir. Já lhes disse, decidi ficar algum tempo em
Savannah. - Scarlett recusava-se a deixar que Pauline a aborrecesse; nada a
aborreceria, agora que sabia que Rhett a estava procurando. Ela o receberia ali
mesmo, naquela elegante sala cor-de-rosa e dourada, e faria com que ele lhe
implorasse que voltasse. Depois de ter sido adequadamente humilhado, cederia, e a
tomaria nos braços e a beijaria...
- Scarlett! Queres ter a bondade de me responder quando te dirijo uma pergunta?
- Que é, tia Pauline?
- Que é que vais fazer? Onde vais ficar?
- Ora essa, aqui, é claro. - Não passara pela cabeça de Scarlett não poder ficar o
tempo que quisesse na casa do avô.
A tradição da hospitalidade continuava a ser ferozmente acarinhada no Sul, e
nunca acontecera pedir-se a um convidado que fosse embora até ele ou ela decidir que
era hora.
- O père não gosta de surpresas - disse Eulalie com tristeza.
- Creio que posso ensinar a Scarlett os hábitos desta casa sem a tua ajuda,
mana.
- Claro que podes, mana. Estou certa de que nunca sugeri o contrário.
- Vou pedir ao avô - disse Scarlett, levantando-se. - Querem vir?
"Estão completamente alvoroçadas, é o que é", pensou Scarlett. "Aterrorizadas
por pensarem que se eu ficar aqui sem um convite expresso o avô se enfureça.
Grandes tolas! Que maldade é que ele lhes pode fazer que não tenha já feito?"
Percorreu o corredor, seguida pelas tias, que murmuravam ansiosas, e bateu à porta
do velho.
- Entrez, Jerome.
- Não é o Jerome, avô, sou eu, Scarlett. Posso entrar?
Houve um instante de silêncio. Depois, a voz forte e profunda de Pierre Robillard
exclamou:
- Entra.
Scarlett atirou a cabeça para trás e sorriu triunfante às tias antes de abrir a porta.
A sua ousadia diminuiu ligeiramente quando olhou para o rosto severo,
semelhante ao de um falcão. Mas já não podia voltar atrás. Avançou com ar confiante
sobre a espessa carpete até meio do quarto.
- Avô, só lhe queria dizer que vou ficar aqui algum tempo depois da tia Eulalie e a
tia Pauline se irem embora.
- Porquê?
Scarlett ficou perplexa. Não queria explicar as suas razões. Não via por que razão
tinha de o fazer.
- Porque quero - disse.
- Porquê? - voltou a perguntar o velho.
Os olhos verdes e determinados de Scarlett fitaram os olhos azuis desconfiados.
- Tenho as minhas razões - disse. - Tem alguma objeção?
- E se tiver?
Aquilo era intolerável. Não podia, não queria voltar para Charleston. Equivaleria à
derrota. Tinha que ficar em Savannah.
- Se não me quiser aqui, irei para casa dos meus primos. Os O'Hara já me
convidaram.
A boca de Pierre Robillard fez um ligeiro trejeito, um sorriso disfarçado.
- Presumo que não te importes de dormir na sala com o porco.
As faces de Scarlett ficaram vermelhas. Sempre soubera que o avô reprovara o
casamento da mãe. Nunca tinha recebido Gerald O'Hara na sua casa. Queria defender
o pai e os primos do seu preconceito contra os irlandeses. Se ao menos ela não tivesse
aquela terrível suspeita de que as crianças levavam os leitõezinhos para dentro de
casa para brincarem com eles.
- Deixa pra lá - disse o avô. - Fica aqui, se quiseres. É uma questão que me é
completamente indiferente. - Fechou os olhos, afastando-a da sua vista e da sua
atenção.
Scarlett refreou com dificuldade a vontade que tinha de bater com a porta ao sair
do quarto. Que velho horrível! Mas tinha conseguido o que queria. Sorriu às tias.
- Está tudo bem - disse.
Durante o resto da manhã e durante toda a tarde, Scarlett acompanhou
alegremente as tias nas suas visitas para deixarem os cartões nas casas de todos os
amigos e conhecidos em Savannah. "P. P. C.", escreviam à mão no canto inferior
esquerdo: "Pour prendre congé", para se despedirem. Este hábito nunca tinha sido
observado em Atlanta, mas nas cidades mais antigas do litoral da Geórgia e da
Carolina do Sul era um ritual necessário. Scarlett achava que era uma enorme perda
de tempo informar que uma pessoa ia embora. Sobretudo quando, apenas alguns dias
antes, as tias se tinham estafado deixando os seus cartões nas mesmas casas
informando as mesmas pessoas de que tinham chegado. Scarlett tinha certeza de que
a maioria dessas pessoas não se tinha dado ao trabalho de deixar os seus cartões na
casa de Robillard. O que é certo é que não tinham tido visitas.
No sábado, insistiu em acompanhá-las à estação do trem e mandou Pansy pôr as
malas exatamente onde elas as queriam, bem à vista, para ninguém as poder roubar.
Beijou as faces enrugadas e finas como papel, voltou para a plataforma movimentada e
disse-lhes adeus enquanto o trem saía vagarosamente da estação.
- Vamos passar pela padaria de Broughton Street antes de voltarmos para casa -
disse ao condutor da carruagem alugada.
Ainda faltava muito para o almoço.
Mandou Pansy à cozinha mandar fazer café e depois tirou o chapéu e as luvas.
Como a casa estava encantadora e silenciosa, sem as tias! Havia definitivamente uma
leve camada de pó em cima da mesa do átrio. Teria que dar uma palavrinha com
Jerome. E também aos outros criados, se fosse necessário. Não ia ter a casa com mau
aspecto quando Rhett chegasse.
Como se tivesse lido os seus pensamentos, Jerome apareceu atrás dela. Scarlett
deu um salto. Por que diabo é que o homem não podia fazer barulho adequado quando
andava?
- Chegou esta mensagem para ti, Miss Scarlett - estendeu-lhe uma salva de prata
com um telegrama.
Rhett! Scarlett agarrou o papel fino com dedos ansiosos demais e desajeitados.
- Obrigada, Jerome. Por favor, trate do meu café. - Na sua opinião, o mordomo
mostrava curiosidade demais. Não queria que lesse por cima do ombro.
Assim que ele foi embora, ela abriu o telegrama, rasgando-o.
- Raios! - exclamou. Era do tio Henry.
O velho advogado, habitualmente poupado, devia estar profundamente agitado,
pois o telegrama era escusadamente palavroso.
NÃO TENHO E NÃO TEREI ABSOLUTAMENTE NADA A VER COM O
INVESTIMENTO OU COM OUTRO POSSÍVEL ENVOLVIMENTO COM O DINHEIRO
QUE FOI TRANSFERIDO PELO TEU MARIDO STOP ESTÁ NO BANCO NA TUA
CONTA STOP JÁ EXPRESSEI A MINHA REPUGNÂNCIA PELAS CIRCUNSTÂNCIAS
RELATIVAS A ESTA TRANSACÇÃO STOP NÃO CONTES COM QUALQUER AJUDA
DA MINHA PARTE STOP
Depois de ler, Scarlett deixou-se cair numa cadeira. Não tinha força nos joelhos e
o coração batia-lhe desordenadamente. Velho idiota! Meio milhão de dólares -
provavelmente, o banco já não via uma quantia tão grande desde antes da Guerra. O
que impediria os funcionários de a meterem no bolso e fecharem o banco? Havia
bancos fechando por todo o país e vinha nos jornais. Teria que ir imediatamente a
Atlanta, trocar o dinheiro em ouro, juntá-lo ao que tinha no cofre do banco. Mas isso
levaria dias. Mesmo que houvesse um trem naquele dia, só poderia ir ao banco na
segunda-feira, o que era tempo mais que suficiente para o dinheiro desaparecer.
Meio milhão de dólares. Mais dinheiro do que ela teria se vendesse duas vezes
tudo o que tinha. Mais dinheiro do que a sua loja e o seu saloon e as suas casas novas
fariam em trinta anos. Tinha de o proteger, mas como? Oh, queria matar o tio Henry!
Quando Pansy subiu trazendo orgulhosamente a pesada bandeja de prata com o
serviço de café muito polido, deparou com uma Scarlett pálida e de olhar perturbado.
- Pousa isso e vai buscar o teu casaco - disse Scarlett. - Vamos sair.
Conseguiu controlar-se; até tinha já alguma cor nas faces quando, com passo
estugado, se dirigiu à loja dos O'Hara. Primo ou não, não queria que Jamie ficasse
saber demasiado sobre os seus negócios. Assim, a sua voz soou encantadoramente
juvenil quando lhe pediu que lhe recomendasse um banqueiro.
-Tenho andado de cabeça tão tonta que não tenho prestado atenção ao dinheiro
que tenho gasto, e agora que decidi ficar aqui mais algum tempo preciso transferir
alguns dólares do meu banco para cá. Mas não conheço ninguém em Savannah. Como
és um próspero homem de negócios, achei que poderias intervir a meu favor.
Jamie sorriu abertamente.
- Terei a maior honra em acompanhar-te ao presidente do banco e respondo por
ele, pois o tio James faz negócios com ele há mais de cinquenta anos. Mas talvez
melhor que dizer que és prima dos O'Hara será dizer-lhe que és neta do velho
Robillard, Scarlett. Consta que ele é um velho senhor muito conceituado. Não foi
suficientemente esperto para mandar o seu dinheiro para França quando a Geórgia
decidiu sair da União, juntamente com a Carolina do Sul?
Mas isso significava que o seu avô era um traidor ao Sul! Não admirava que ainda
tivesse todas aquelas pesadas pratas e a casa intacta. Por que não tinha sido
linchado? E como é que o Jamie conseguia rir disso? Scarlett lembrou-se de que
Maureen também se rira ao falar do avô, quando o normal seria ficar chocada. Era tudo
muito complicado. Scarlett não sabia o que pensar. De qualquer forma, não tinha
tempo para pensar nisso agora, tinha que ir ao banco tratar do seu dinheiro.
- Não te importas de tomar conta da loja enquanto eu vou com a prima Scarlett,
Daniel? - Jamie estava ao seu lado, oferecendo-lhe o braço. Scarlett pôs a mão na
dobra do cotovelo e disse adeus a Daniel com um aceno. Esperava que o banco não
fosse muito longe. Era quase meio dia.
- A Maureen vai ficar encantada por ficares aqui mais algum tempo - disse Jamie,
enquanto percorriam a Broughton Street, com Pansy atrás. - Irás lá em casa logo à
noite, Scarlett? Posso ir buscar-te quando for para casa e acompanhar-te.
- Gostaria muito, Jamie - disse ela. Enlouqueceria na quele casarão sem mais
ninguém com quem conversar a não ser o avô, e só o podendo fazer durante dez
minutos. Se o Rhett viesse, podia sempre mandar a Pansy à loja a dizer que tinha
mudado de idéia.
Mas aconteceu que estava ansiosamente à espera no átrio quando Jamie
chegou. O avô tinha sido particularmente desagradável quando ela lhe dissera que ia
sair à noite.
- Esta casa não é um hotel onde possas entrar e sair quando queres, minha
menina. Vais adaptar a tua vida à rotina desta casa e isso significa estares na cama às
nove da noite.
- É claro, avô - dissera docilmente. Tinha a certeza de que estaria em casa muito
antes disso. Além disso, passara a olhá-lo com crescente respeito desde a sua visita
ao presidente do banco, O avô devia ser muito, muito mais rico do que ela imaginara.
Quando Jamie a apresentou como sendo neta de Pierre Robillard, o homem quase
rasgou as calças com tanta vênia e mesura. Scarlett sorriu, fixando isto. Depois, assim
que Jamie foi embora, quando lhe disse que queria alugar um cofre e transferir meio
milhão para lá, o homem quase desmaiou aos seus pés. "Não quero saber o que as
pessoas dizem; ter muito dinheiro é a melhor coisa do mundo."
- Não posso ficar até muito tarde - disse a Jamie quando chegou. - Espero que
não faça mal. Importas-te de me acompanhar a casa às oito e meia?
- Terei a maior honra em acompanhar-te onde quer que seja e a que horas for -
jurou Jamie.
Honestamente, Scarlett não fazia a menor idéia de que só regressaria quase ao
amanhecer.
39
O serão começou muito calmamente. Na realidade, tão calmamente que Scarlett
ficou decepcionada. Tinha estado à espera de música e de dança, e de algum tipo de
comemoração, mas Jamie levou-a para a cozinha que lhe era agora familiar. Maureen
cumprimentou-a com um beijo em cada face e com uma xícara de chá na mão,
voltando depois aos preparativos para o jantar. Scarlett sentou-se ao lado do tio James,
que estava a dormitando. Jamie tirou o casaco, desabotoou o colete, acendeu o
cachimbo e instalou-se numa cadeira de balanço a fumar calmamente. Mary Kate e
Helen estavam pondo a mesa na sala de jantar adjacente, tagarelando uma com a
outra acima do tilintar das facas e dos garfos. Era uma confortável cena de família, mas
não muito excitante. "Seja como for", pensou Scarlett, "pelo menos vai haver jantar. Eu
sabia que a tia Pauline e a tia Eulalie estavam completamente enganadas sobre essa
coisa do jejum. Ninguém pode viver apenas com uma refeição por dia, de propósito e
durante semanas e semanas a fio."
Passados alguns minutos, a moça tímida com a nuvem de belo cabelo escuro
veio do átrio com o pequeno Jacky pela mão.
- Ah, estás aí, Kathleen - disse Jamie. Scarlett tomou mentalmente nota do nome.
Era apropriado à moça, muito doce e jovem. - Trás o homenzinho ao pai. - Jacky soltou
a mão e correu para o pai, e a breve tranqüilidade terminou.
Scarlett estremeceu com os gritos de alegria do rapazinho. O tio James
resfolegou ao acordar subitamente. A porta da rua abriu-se e Daniel entrou com Brian,
o irmão mais novo. - Mamã, olhe o que eu encontrei cheirando a porta - disse Daniel.
- Oh, então decidiste honrar-nos com a tua presença, Brian - disse Maureen. -
Vou ter que comunicar ao jornal para porem a notícia na primeira página.
Brian agarrou a mãe pela cintura, abraçando-a.
- Não deixaria um homem morrer de fome, não é?
Maureen fingiu-se zangada, mas estava sorrindo. Brian beijou-lhe os caracóis
ruivos apanhados no topo da cabeça e largou-a.
- Vê o que me fizeste ao cabelo, meu índio selvagem - queixou-se Maureen. - E,
além disso, a envergonhaste-me por não cumprimentares a tua prima Scarlett. Tu
também, Daniel.
Brian inclinou-se e sorriu a Scarlett do alto da sua enorme figura.
- Perdoa-me? - disse. - És tão pequena e está aí tão elegantemente silenciosa
que nem dei por ti, prima Scarlett. - o cabelo ruivo brilhava à luz da lareira e os olhos
azuis estavam contagiantemente alegres. - Importa-se de interceder por mim junto da
minha cruel mãe para poder comer algumas migalhas da sua mesa?
- Pode te andar daqui, meu selvagem, e vai lavar as mãos - ordenou Maureen.
Daniel ocupou o lugar do irmão enquanto Brian se dirigia para a pia.
- Estamos todos muito contentes por estar aqui, prima Scarlett.
Scarlett sorriu. Mesmo com o barulho de Jacky fazendo cavalinho nos joelhos de
Jamie, também estava contente por lá estar. Aqueles grandes primos ruivos eram tão
cheios de vida que faziam com que a perfeição fria da casa do avô parecesse um
túmulo.
Enquanto estavam sentados à grande mesa da sala de jantar, Scarlett veio a
saber a história que estava por detrás da ira fingida de Maureen para com o filho. Há
algumas semanas, Brian tinha deixado o quarto que compartilhava com Daniel, e
Maureen ainda só estava semi-reconciliada com o seu rompante de independência. Era
certo que vivia a poucos passos dali, na casa da irmã Patrícia; mesmo assim, tinha
saído de casa. Dava enorme satisfação a Maureen o fato de Brian preferir os seus
cozidos aos menus mais sofisticados de Patrícia.
- Ah, bom, que se podia esperar? - disse Maureen num tom complacente. - A
Patrícia não deixa que as cortinas de renda fiquem com cheiro de peixe - continuou,
empilhando quatro filetes de peixe cobertos de manteiga no prato do filho.
- Tenho certeza de que é uma provação ser uma grande senhora durante a
Quaresma.
- Morde a língua, mulher - disse Jamie -, é a tua própria filha que estás
difamando.
- E quem mais que a sua própria mãe terá esse direito?
Nessa altura, o velho James falou.
- Maureen tem razão. Ainda me lembro bem da língua afiada da minha mãe... - e
desfiou com ternura uma série de recordações de infância, que Scarlett escutou
atentamente para ver se referiam o pai. - O Gerald - disse o velho, enquanto se
inclinava para ele -, o Gerald era a menina dos seus olhos, sendo o mais pequeno.
Escapava sempre sem mais do que uma repreensão. - Scarlett sorriu. Era mesmo do
pai ser o preferido da mãe. Quem podia resistir ao coração terno que tentava esconder
por debaixo das suas fanfarronadas? Oh, como ela desejava que ele pudesse ali estar
com toda a família.
- Vamos a casa do Matthew depois do jantar? - perguntou o velho James. - Ou
vêm todos para cá?
Vamos a casa do Matt - respondeu Jamie. Matt era aquele que tinha iniciado a
dança no aniversário de Patrícia, lembrou-se Scarlett. Os seus pés começaram a bater.
Maureen sorriu-lhe.
- Acho que há quem esteja pronta para uma escocesa - disse. Pegou a colher que
estava ao lado do prato, estendeu a mão e pegou na de Daniel; depois, colocando as
tigelas fundo contra fundo, ergueu os cabos das colheres juntos pelas pontas e bateu
com as colheres na palma da mão, no pulso, no braço, na testa de Daniel. O ritmo das
batidas era como o toque dos "ossos", mas mais leve, e a idiotice de fazer música com
um par de colheres diferentes foi causa de um riso encantado e espontâneo por parte
de Scarlett. Sem pensar, começou a bater na mesa com as mãos abertas,
acompanhando o ritmo das colheres.
- É hora de irmos andando - disse Jamie a rindo. - Vou buscar o meu violino.
- Nós levamos as cadeiras - disse Mary Kate.
- O Matt e a Katie só têm duas - explicou Daniel a Scarlett. - São os O'Haras que
mais recentemente vieram para Savannah.
Não importava de todo que a sala dupla de Matt e Katie O'Hara não tivesse
praticamente mobília nenhuma. Tinham lareiras para se aquecerem, globos a gás
como iluminação, e um amplo soalho de madeira polida para dançar. As horas que
Scarlett passou naquelas salas quase nuas nesse sábado foram das mais felizes da
sua vida.
Em família, os O'Haras compartilhavam amor e felicidade tão livre e
inconscientemente como compartilhavam o ar que respiravam. Scarlett sentiu crescer
dentro de si algo que perdera há tempo demais para se conseguir lembrar. Tornou-se
como eles, desafetada e espontânea, e aberta a uma alegria despreocupada.
Conseguiu despir os artifícios e calculismos que aprendera a usar nas suas batalhas
para conquistar e dominar, coisas que faziam parte de ser uma belle na sociedade
sulista.
Não precisava de charme para conquistar; era bem-vinda exatamente como era,
como um dos membros da família. Pela primeira vez na vida, estava disposta a
prescindir das luzes da ribalta para deixar outra pessoa ser o centro das atenções.
Achava os outros fascinantes, principalmente porque eram a sua família recém-
encontrada, mas também porque nunca conhecera ninguém como eles em toda a sua
vida.
Ou quase nunca. Scarlett olhou para Maureen, com Brian e Daniel fazendo
música atrás dela, para Helen e Mary Kate baterem palmas ao compasso do ritmo que
ela estava marcando com os "ossos" e, por instantes, foi como se os ruivos cheios de
vida fossem os jovens Tarletons regressados à vida. Os gêmeos, altos e bonitos, as
moças agitadas com juvenil impaciência para entrarem na próxima aventura que a vida
tinha para lhes oferecer. Scarlett sempre invejara as moças Tarleton pela sua relação
despreocupada com a mãe. Via agora a mesma despreocupação entre Maureen e os
filhos. E sabia que também ela era bem-vinda para rir com Maureen, para troçar e ser
alvo de troça, para compartilhar a imensa ternura que a mulher de Jamie cumulava
sobre todos à sua volta.
Nesse momento, a quase veneração que Scarlett tinha pela sua mãe serena e
reservada estremeceu e sofreu uma ligeira fissura, e ela começou a livrar-se do
sentimento de culpa que sempre tivera por não conseguir corresponder totalmente aos
ensinamentos da mãe. Talvez não fizesse mal ela não ser uma senhora absolutamente
perfeita. A idéia era complexa demais, complicada demais. Pensaria nisso depois.
Agora, não queria pensar em nada. Nem em ontem nem em amanhã. A única coisa
que importava era aquele momento, e a felicidade que encerrava, a música e as
canções e as palmas e a dança.
Depois dos rituais formais dos bailes de Charleston, os prazeres caseiros e
espontâneos eram intoxicantes. Scarlett respirou fundo a alegria e os risos à sua volta
e sentiu-se tonta.
Peggy, a filha de Matt, ensinou-lhe os passos mais simples da escocesa, e ela
sentiu de alguma forma que era certo aprender com uma criança de 7 anos. E que era
certo o encorajamento franco e até a troça dos outros, de adultos e crianças, porque
eram iguais para Peggy e para ela. Dançou até os joelhos tremerem e depois deixou-se
cair no meio do chão, aos pés do velho James, e ele fez-lhe cafuné na cabeça como se
ela fosse um cachorrinho e isso fez com que ela risse ainda mais, até mal conseguir
respirar, altura em que exclamou:
- Estou me divertindo tanto!
Não tinha havido muitos divertimentos na vida de Scarlett e ela queria que aquilo,
aquela alegria saudável e sem complicações, durasse para sempre. Olhou para os
primos, grandes e felizes, e orgulhou-se da sua força e vigor e talento para a música e
para a vida. "Somos gente ótima, nós, os O'Haras. Ninguém pode nos tocar." Scarlett
ouviu a voz do pai gabar-se, dizendo as palavras que tantas vezes lhe repetira, e
Scarlett percebeu pela primeira vez o que ele tinha querido dizer.
- Ah, Jamie, que noite maravilhosa - disse ela quando ele a acompanhou a casa.
Scarlett estava tão cansada que quase ia aos tropeções, mas não parava de tagarelar,
entusiasmada demais para aceitar o silêncio calmo da cidade adormecida. - Somos
ótima gente, nós, os O'Haras.
Jamie riu. As suas mãos fortes agarraram-na pela cintura e ergueram-na,
fazendo-a rodopiar num círculo estonteante.
- Ninguém nos pode tocar - disse, quando a voltou a pôr no chão.
- Miss Scarlett... Miss Scarlett! - Pansy acordou-a às sete com um recado do avô.
- Ele quer falar contigo imediatamente.
O velho soldado estava formalmente vestido e recém-barbeado. Da sua posição
imperial no grande cadeirão à cabeceira da mesa da sala de jantar, olhou com
reprovação para o cabelo de Scarlett apressadamente penteado e para o seu roupão.
- O meu desjejum não está bom - anunciou ele.
Scarlett olhou-o quase boquiaberta. Que é que o desjejum dele tinha a ver com
ela? Pensaria que tinha sido ela a cozinhá-lo? Talvez tivesse perdido o juízo. Como o
pai. Não, não como o pai. O pai tinha sofrido mais do que conseguira suportar, e
portanto tinha-se retirado para um tempo e um mundo onde as coisas terríveis não
tinham acontecido. Era como uma criança confusa. "Mas o avô não tem nada de
confuso ou de infantil. Sabe exatamente onde está e quem é e o que está fazendo.
Qual é a idéia dele de me acordar às sete da manhã, quando apenas dormi umas duas
horas, para se queixar do seu desjejum?"
A sua voz estava cuidadosamente calma quando falou.
- Que é que se passa com o seu desjejum, vovô?
- Está insípido e frio.
- Então por que é que não o manda de volta para a cozinha? Diga-lhes o que quer
e para vir bem quente.
- Faz tu isso. A cozinha é coisa de mulheres.
Scarlett pôs as mãos nas ancas. Olhou para o avô com olhos tão de aço como os
dele.
- Quer dizer que me fez sair da cama para eu dar um recado à cozinheira? Por
quem é que me toma, por uma espécie de criada? Mande o vovô vir o seu próprio
desjejum ou morra de fome, para mim é absolutamente igual. Vou voltar para a cama -
disse Scarlett, dando meia volta.
- Essa cama me pertence, minha menina, e tu a ocupas por minha benevolência e
favor. Conto que obedeças às minhas ordens enquanto estiveres sob o meu teto.
Scarlett estava agora absolutamente furiosa, já sem a menor esperança de poder
voltar a adormecer. "Vou imediatamente fazer a mala", pensou. "Não tenho que
suportar isto."
O aroma sedutor de café impediu-a de falar. Primeiro tomaria café, depois daria
uma descompostura ao velho... E refletiria um pouco. Ainda não estava pronta para
deixar Savannah. Rhett já devia saber onde ela estava. E ela estava à espera a
qualquer momento de um recado da Madre Superiora sobre Tara.
Scarlett dirigiu-se ao cordão da campainha ao lado da porta. Depois, sentou-se
numa cadeira ao lado do avô. Quando Jerome entrou, olhou para ele furiosa.
- Dê-me uma xícara para eu beber café. E leve este prato. O que é isto, vovô,
papas de milho? Seja o que for, Jerome, diga à cozinheira que o coma ela. Depois de
fazer ovos mexidos com presunto, bacon e biscoitos. Com bastante manteiga. E quero
já um jarro de creme para o meu café.
Jerome olhou para o velho senhor muito aprumado na sua cadeira, incitando-o a
pôr Scarlett no seu lugar. Pierre Robillard olhou diretamente em frente, sem cruzar o
seu olhar com o do mordomo.
- Não fique aí como uma estátua - disse Scarlett num tom irritado. - Faça o que
lhe mando. - Estava cheia de fome.
O avô também. Embora a refeição decorresse em silêncio, como acontecera com
o seu almoço de aniversário, desta vez ele comeu tudo o que lhe foi servido. Scarlett
olhou para ele pelo canto do olho, desconfiada. Que é que a velha raposa estaria
tramando? Não acreditava que não houvesse qualquer coisa por detrás daquela
charada. Pela sua experiência, era a coisa mais fácil do mundo conseguir tudo o que
se queria dos criados. Bastava gritar-lhes. "E sabe Deus como o avô é eficiente a
assustar as pessoas. Basta ver a tia Pauline e a tia Eulalie."
"Ou eu, para ser franca. Saltei imediatamente da cama quando ele me mandou vir
aqui. Não voltarei a fazer isso."
O velho deixou cair o guardanapo junto ao prato vazio.
- Futuramente, quero que venhas adequadamente vestida para todas as refeições
- disse a Scarlett. - Sairemos de casa daqui a precisamente uma hora e sete minutos
para irmos à igreja. Terás tempo mais que suficiente para te arranjares.
Scarlett não tinha a menor intenção de continuar a ir à igreja, agora que as tias
não estavam lá e ela tinha conseguido o que queria da Madre Superiora. Mas tinha que
travar a tirania do avô. Segundo as tias, ele era violentamente anticatólico.
- Não sabia que ia à Missa, avô - disse ela, num tom suave.
As espessas sobrancelhas brancas de Pierre Robillard uniram-se numa
expressão zangada.
- Espero que não subscrevas essa idiotice papista como as tuas tias.
- Sou uma boa católica, se é a isso que está se referindo. E vou à Missa com os
meus primos, os O'Haras, que, a propósito, me convidaram para ficar na sua casa em
qualquer hora que eu para lá queira ir. - Scarlett levantou-se e marchou triunfantemente
para fora da sala. la a meio das escadas quando se lembrou de que não devia ter
comido nada antes da Missa. Não importava. Se não quisesse, não tinha que
comungar.
E fizera frente ao avô. Quando chegou ao quarto, deu alguns passos da escocesa
que tinha aprendido na noite anterior.
Não acreditava que o velho a forçasse a cumprir o seu blefe sobre ir para casa
dos primos. Por muito que gostasse de ir a casa dos O'Haras dançar e ouvir música,
havia crianças demais para ser possível instalar-se lá como visita. Além disso, não
tinham criados e ela não conseguia se vestir sem a Pansy para lhe apertar o espartilho
e arranjar o cabelo.
"Que é que ele estará tramando?", pensou uma vez mais. Depois, encolheu os
ombros. Provavelmente não tardaria a saber. Não era realmente importante. Antes de
ele poder agir, o Rhett provavelmente já a teria vindo buscar.
40
Uma hora e quatro minutos depois de Scarlett ter ido para o quarto, Pierre
Auguste Robillard, soldado de Napoleão, deixou a sua bela casa-santuário para ir à
igreja. Vestia um pesado sobretudo e cachecol de lã, e o seu fino cabelo branco estava
coberto por um chapéu alto de zibelina que tinha pertencido a um oficial russo que
morrera em Borodino. Apesar do bonito sol e da promessa de Primavera no ar, o corpo
magro do velho senhor estava frio. Mesmo assim, caminhava muito direito, raramente
recorrendo à bengala de rotim que levava. Cumprimentava com um aceno de cabeça
abreviado as pessoas que o saudavam na rua. Era muito conhecido em Savannah.
Ao chegar à Igreja Independente Presbiteriana em Chippewa Square, ocupou o
seu lugar no quinto banco a contar da frente, o lugar que era seu desde a consagração
de gala da igreja há quase sessenta anos. James Monroe, então presidente dos
Estados Unidos, tinha assistido à consagração e pedido para ser apresentado ao
homem que tinha servido no exército de Napoleão, de Austerlitz a Waterloo. Pierre
Robillard fora simpático para com o homem mais velho, muito embora um presidente
não fosse nada de impressionante para um homem que tinha combatido ao lado de um
imperador.
Quando o serviço religioso terminou, trocou algumas palavras com vários homens
que responderam ao seu gesto e se apressaram a ir falar com ele às escadas da igreja.
Fez algumas perguntas, escutou variadíssimas respostas. Depois foi para casa, com o
rosto severo quase sorridente, para dormir um pouco antes de o almoço lhe ser servido
numa bandeja. A sua ida semanal à igreja estava tornando-se cada vez mais cansativa.
Dormiu com um sono leve, como só os velhos conseguem ter, e acordou antes de
Jerome lhe trazer a bandeja. Enquanto esperava por ele, pensou em Scarlett.
Não sentia a menor curiosidade quanto à sua vida ou à sua natureza. Não tinha
pensado nela durante muitos anos e quando ela lhe apareceu no quarto com as filhas,
não ficou nem satisfeito nem desagradado por vê-la. Ela só lhe chamara a atenção
quando Jerome se queixou dela. Estava causando perturbação na cozinha com as
suas exigências, dissera Jerome. E seria a causa da morte do Sr. Robillard se
continuasse a insistir em acrescentar manteiga e molho e doces às suas refeições.
Scarlett era a resposta às preces do velho senhor. Não tinha nada a esperar da
sua vida, a não ser mais alguns meses ou anos de rotina imutável de sono e refeições
e a excursão semanal à igreja. O fato de a sua vida ser tão incaracterística não o
perturbava; tinha a imagem da sua amada mulher à frente dos olhos e a certeza de
que, em devido tempo, se reuniria com ela depois da morte. Passava os dias e as
noites sonhando com ela quando dormia e revolvendo no seu espírito recordações dela
quando estava acordado. Bastava-lhe isso. Quase. Sentia a falta de boa comida e, nos
últimos anos, esta tinha sido insípida, fria, quando não estava queimada, e de uma
terrível monotonia. Queria que Scarlett alterasse isso.
As suspeitas dela quanto aos motivos do velho eram infundadas. Pierre Robillard
reconhecera imediatamente a mandona que era. Queria pô-la a funcionar em seu
proveito, agora que já não tinha força para ele próprio conseguir o que queria. Os
criados sabiam que ele estava velho demais e cansado para os dominar. Mas Scarlett
era nova e forte. Ele não queria a sua companhia nem o seu amor. Queria que ela
gerisse a sua casa da forma como ele próprio outrora gerira - o que significava em
consonância com os seus padrões e sujeita ao seu domínio. Precisava encontrar forma
de conseguir isso e portanto pensara nela.
- Diga à minha neta para vir aqui - disse ele quando Jerome entrou.
- Ainda não voltou para casa - respondeu o velho mordomo com um sorriso.
Estava antecipando com prazer a ira do velho. Jerome odiava Scarlett.

Scarlett estava no grande Mercado da Cidade com os O'Haras. Depois da


confrontação com o avô, tinha se vestido, mandado Pansy embora, e saído pelo jardim
para percorrer apressadamente e sem acompanhante os dois quarteirões até à casa de
Jamie.
- Gostaria de ter companhia para ir à Missa - disse a Maureen, mas a verdadeira
razão era estar em algum lugar onde as pessoas fossem simpáticas umas para com as
outras.
Depois da Missa, os homens foram todos numa direção e as mulheres e crianças
noutra.
- Vão cortar o cabelo e dar à língua no barbeiro no Pulaski House Hotel - disse
Maureen a Scarlett. - E muito provavelmente beber uma caneca de cerveja no bar. É
melhor que ler o jornal para saber o que se passa. Nós saberemos as nossas próprias
notícias no Mercado enquanto compro umas ostras para uma bela empada.
O Mercado de Savannah tinha o mesmo objetivo e o mesmo rebuliço que o
Mercado de Charleston. Scarlett só percebeu quanto sentira a falta daquilo quando
voltou a estar na familiar confusão de barganhar, comprar e de saudar amigos.
Lamentou não ter levado Pansy consigo; podia ter enchido um cesto com frutas
exóticas que chegavam ao movimentado porto de Savannah se tivesse a criada para
as levar. Mary Kate e Helen estavam fazendo essa tarefa para as mulheres O'Hara.
Scarlett deixou-as levar algumas laranjas suas. E insistiu em pagar o café e os
pãezinhos de caramelo que todos compraram numa das bancas.
Mas recusou quando Maureen a convidou para ir almoçar com elas. Não tinha
dito à cozinheira do avô que não ia almoçar. E queria recuperar algumas horas de
sono. Não queria parecer uma morta-viva se Rhett chegasse no trem da tarde.
Deu um beijo de despedida a Maureen à porta da casa dos Robillard e disse
adeus aos outros. Iam quase um quarteirão atrás, devido ao andar inseguro das
crianças e aos passos lentos de Patrícia, pesada devido à adiantada gravidez. Helen
correu para ela com um saco de papel abarrotado.
- Não se esqueça das suas laranjas, prima Scarlett.
- Eu levo isso, Miss Scarlett. - Era Jerome.
- Oh, está bem. Não devia ser tão silencioso, Jerome. Pregou-me um susto. Não
ouvi a porta a abrir.
- Tenho andado à sua procura. Mr. Robillard quer falar contigo.
Jerome olhou com indisfarçado desdém para o bando de O'Haras.
Scarlett ergueu o queixo. Tinha que fazer alguma coisa em relação à
impertinência do mordomo. E entrou altivamente no quarto do avô com uma queixa
irada nos lábios.
Pierre Robillard não lhe deu oportunidade para falar.
- Estás despenteada - disse friamente - e não cumpriste o horário da minha casa.
Enquanto estavas a confraternizando com esses camponeses irlandeses, passou a
hora do almoço.
Scarlett mordeu rapidamente a isca.
- Agradeceria se fosse cortês quando falar dos meus primos.
As pálpebras do velho quase ocultavam o brilho nos seus olhos.
- Que chamas a um homem que é comerciante? - disse em voz baixa.
- Se está se referindo a Jamie O'Hara, considero-o um homem de negócios bem
sucedido e trabalhador, e respeito-o por aquilo que conseguiu.
O avô estendeu-lhe o anzol.
- E sem dúvida que também admiras a sua disparatada mulher.
- Claro que sim! É uma mulher bondosa e generosa.
- Creio que é essa a impressão que a gente dessa laia tenta dar. Tens ou não
consciência de que ela era empregada num bar irlandês?
Scarlett soltou uma exclamação abafada. Não podia ser verdade! O seu espírito
encheu-se de imagens desagradáveis. Maureen erguendo o copo para beber outro
uísque... tocando os "ossos" e cantando animadamente todos os versos de canções
brejeiras... afastando da cara o seu cabelo ruivo despenteado sem tentar voltar a
prendê-lo... levantando as saias até os joelhos para dançar a escocesa...
Vulgar. Maureen era vulgar.
Todos eles eram vulgares.
Scarlett tinha vontade de chorar. Tinha-se sentido tão feliz com os O'Haras e não
os queria perder. Mas... ali, naquela casa onde a mãe crescera, o abismo entre os
Robillard e os O'Hara era grande demais para ser ignorado. "Não admira que o avô
sinta vergonha de mim. A mãe ficaria com o coração destroçado se me visse andar na
rua com um bando de gente como aquela com quem vim para casa. Uma mulher em
público sem sequer levar um xale para tapar-lhe a barriga de grávida, e mil crianças
correndo como índios selvagens e nem sequer uma criada para levar as compras.
Devo ter parecido tão vulgar como todos os outros. E a mãe esforçou-se tanto para me
ensinar a ser uma senhora. Ficaria feliz por estar morta se soubesse que a filha era
amiga de uma mulher que tinha trabalhado num bar."
Scarlett olhou ansiosamente para o velho senhor. Teria ele conhecimento do
edifício que ela tinha em Atlanta e que estava arrendado ao dono de um bar?
Pierre Robillard tinha os olhos fechados. Parecia ter caído naquele sono súbito
dos velhos. Scarlett saiu do quarto na ponta dos pés. Quando ela fechou a porta, o
velho soldado sorriu e depois adormeceu.

Jerome levou-lhe o correio numa bandeja de prata. Estava de luvas brancas.


Scarlett tirou os envelopes da bandeja, sendo um ligeiro aceno de cabeça o seu único
agradecimento. Se queria manter Jerome no seu lugar, não seria adequado mostrar-se
agradecida. Na noite anterior, depois de esperar por Rhett durante uma eternidade na
sala de estar, e ele afinal não viera, tinha pregado uma descompostura aos criados que
eles nunca esqueceriam. Sobretudo Jerome. Era uma dádiva dos céus o mordomo ser
tão impertinente; precisava de alguém em quem descarregar a sua ira e decepção.
O tio Henry Hamilton estava furioso por ela ter transferido o dinheiro para o banco
de Savannah. Paciência. Scarlett amassou a curta carta e deixou-a cair no chão.
O envelope volumoso era da tia Pauline. As intermináveis queixas podiam
esperar, certamente que fazia queixas na sua carta. Scarlett abriu a seguir o envelope
quadrado. Não reconhecera a caligrafia.
Era um convite. O nome não lhe era familiar e teve de fazer um esforço para se
lembrar. É claro, Hodgson era o nome de casada de uma daquelas velhas senhoras, as
irmãs Telfair. O convite era para uma cerimônia de consagração de Hodgson Hall,
seguida de uma recepção. "Nova Sede da Sociedade Histórica da Geórgia." Soava
ainda mais entediante que aquele terrível serão musical. Scarlett fez uma careta e pôs
o convite de lado. Teria que arranjar papel de carta e comunicar que lamentava não
poder ir. As tias gostavam de se entediar de morte, mas ela não.
As tias. Mais valia apressar aquilo. Rasgou o sobrescrito de Pauline.
" ...profundamente envergonhada pelo teu afrontoso comportamento. Se
soubéssemos que vinhas conosco a Savannah sem sequer uma palavra de justificação
a Eleanor Butler, teríamos insistido para saíres do trem e regressares."
Mas que diabo estava a tia Pauline dizendo? Seria possível que Miss Eleanor não
se tivesse referido ao bilhete que ela lhe deixara? Que não o tivesse recebido? Não,
não era possível. A tia Pauline estava só arranjando intrigas.
O olhar de Scarlett passou rapidamente por cima das queixas de Pauline sobre a
insensatez da viagem de Scarlett depois da provação por que passara quando o barco
se virara, e sobre a "reticência pouco natural" de Scarlett em não dizer às tias que tinha
estado envolvida no acidente.
Por que é que a Pauline não lhe dizia o que ela queria saber? Não havia uma
única palavra sobre Rhett. Passou página após página a caligrafia angulosa de
Pauline, à procura do seu nome. Santo Deus! A tia conseguia fazer sermões mais
inflamados que um pregador a clamar sobre as chamas do inferno. Ah, ali estava.
Finalmente.
" ... a pobre Eleanor está compreensivelmente preocupada por Rhett achar
necessário viajar até Boston para ir a uma reunião sobre as suas encomendas de
adubos. Não devia ter ido para o clima frio do norte imediatamente após a provação da
sua longa imersão em água fria quando o seu barco se virou..."
Scarlett deixou cair as folhas no colo. "É claro! Oh, graças a Deus." Era por isso
que Rhett ainda não a tinha ido buscar. "Por que é que o tio Henry não me disse que o
telegrama de Rhett tinha sido expedido de Boston? Assim não teria ficado ansiosa, à
espera que ele aparecesse à porta a qualquer hora. A tia Pauline dirá quando ele
volta?"
Scarlett procurou nas folhas de carta desordenadas. Onde tinha ficado?
Encontrou o local e leu ansiosamente até ao fim. Mas não havia qualquer referência
àquilo que ela queria saber. "E agora, que vou fazer? Rhett poderá estar ausente
durante semanas. Ou talvez venha a caminho daqui neste próprio momento."
Scarlett voltou a pegar o convite de Mrs. Hodgson. Pelo menos era um slocal
onde ir. Desataria a gritar se tivesse que ficar naquela casa dia após dia.
Se ao menos pudesse ir de vez em quando a casa de Jamie, só para tomar uma
xícara de chá. Mas não, isso era impensável.
No entanto, não conseguia deixar de pensar nos O'Haras. Na manhã seguinte, foi
com a cozinheira mal encarada ao Mercado da cidade para verificar o que ela
comprava e quanto gastava. Sem mais nenhuma outra ocupação, Scarlett estava
decidida a pôr a casa do avô em ordem. Enquanto tomava café, ouviu uma voz doce e
hesitante dizer o seu nome. Era a encantadora, tímida e jovem Kathleen.
- Não conheço todos os peixes americanos - disse ela. - Importa-se de me ajudar
a escolher os melhores camarões?
Scarlett ficou espantada até a garota apontar para os camarões.
- Os anjos devem tê-la mandado, Scarlett - disse Kathleen depois de a compra
estar feita. - Teria ficado perdida sem ti. A Maureen só quer o melhor. Sabe, estamos à
espera do Colum.
- Colum... devo conhecê-lo? - Maureen ou alguém tinha referido esse nome. - Por
que é que Colum é tão importante?
Kathleen abriu muito os olhos de espanto por aquela pergunta poder ser feita.
- Porquê? Bem... porque o Colum é o Colum, só isso. Ele é... - Não descobriu as
palavras que queria. - É o Colum, nada mais. Foi ele que me trouxe para cá, sabia? E
meu irmão, o Stephen.
Stephen. O rapaz alto e moreno e calado. Scarlett não se tinha percebido de que
ele era irmão de Kathleen. Talvez seja por isso que é tão calado. Talvez sejam todos
tímidos como ratos naquela família.
- Qual dos irmãos do tio James é o seu pai? - perguntou a Kathleen.
- Ah, mas o meu pai já morreu, Deus tenha a sua alma em descanso.
- Seria a moça idiota?
- Como é que ele se chamava, Kathleen?
- Oh, é o seu nome que quer saber! Patrick era o seu nome, Patrick O'Hara. A
Patrícia tem o nome dele, pois é a mais velha do Jamie e por o seu pai se chamar
Patrick.
Concentrando-se, Scarlett franziu a testa. Então o Jamie também era irmão de
Kathleen. E ela tinha pensado que toda a família era tímida.
- Tem mais alguns irmãos? - perguntou.
- Oh, sim - disse Kathleen com um sorriso de felicidade -, irmãos e irmãs. Somos
catorze. Vivos, isto é. - E benzeu-se.
Scarlett afastou-se da moça. Oh, Santo Deus, muito provavelmente a cozinheira
está ouvindo a conversa e o avô acabará por saber. Estou mesmo o ouvindo dizer que
os católicos se reproduzem como coelhos.
Mas na realidade Pierre Robillard não fez a menor referência aos primos de
Scarlett. Chamou-a para uma visita antes do jantar, anunciou que as refeições estavam
sendo satisfatórias e mandou-a embora.
Ela deteve Jerome para verificar a bandeja do jantar, examinou as pratas para ver
se estavam brilhando e sem digitais. Quando pousou a colher do café, esta tilintou
contra a colher de sopa. "Será que a Maureen me ensinaria a tocar as colheres?" Esta
ideia apanhou-a desprevenida.
Nessa noite sonhou com o pai. Acordou de manhã com um sorriso nos lábios,
mas com as faces manchadas de lágrimas.
No Mercado ouviu o riso característico e alegre de Maureen O'Hara e mal teve
tempo para se esconder atrás de um dos grossos pilares de tijolo para não ser vista.
Mas conseguia ver Maureen e Patrícia, enorme como uma casa, e um bando de
crianças atrás delas.
- O teu pai é o único que não está ansioso pela chegada do teu tio - ouviu
Maureen dizer. - Vai saboreando os pratos especiais que faço para o jantar todos os
dias na esperança de que Colum chegue.
"Eu própria gostaria de um prato especial", pensou Scarlett, rebeldemente. "Estou
ficando farta de comida suficientemente macia para o avô a poder comer." Virou-se
para a cozinheira.
- Compre também galinha - ordenou-lhe - e frite dois pedaços para o meu almoço.
Mas a sua má disposição desapareceu muito antes do almoço. Quando chegou
em casa, havia lá um bilhete da Madre Superiora. O bispo ia analisar o pedido de
Scarlett de comprar o dote de Carreen.
"Tara. Vou voltar a ter Tara!" Tinha o espírito tão ocupado com os seus planos
para fazer renascer Tara que não deu pelo passar do tempo, não tendo igualmente
consciência do que tinha no prato.
Via tudo claramente no seu pensamento. A casa, brilhando, recém-pintada de
branco, no topo da colina; o relvado bem cortado, muito verde e cheio de trevo; a
pastagem, cintilando de tão verde, com a sua erva aveludada ondulando à brisa,
desenrolando-se como um carpete, colina abaixo, até o sombrio e misterioso verde-
escuro dos pinheiros que ladeavam o rio e o escondiam da vista. A Primavera, com
nuvens de flores de corniso e o pesado perfume das glicínias; depois o Verão, com as
cortinas engomadas muito brancas ondulando com a brisa que entrava pelas janelas
abertas, a doçura inebriante da madressilva entrando em todas as salas, tudo
restaurado à sua perfeição calma, polida e sonhadora. Sim, o Verão era o melhor. Os
longos dias de preguiça do Verão da Geórgia, quando o crepúsculo durava horas e os
pirilampos ponteavam a escuridão que se tornava lentamente mais espessa. Depois as
estrelas, grandes e próximas no céu aveludado, ou a Lua, redonda e branca, tão
branca como a casa adormecida que iluminava no monte escuro de encostas suaves.
Verão... os olhos de Scarlett abriram-se mais. Era isso! Por que é que não
percebera isso antes? É claro. No Verão - quando ela mais amava Tara - no Verão,
quando Rhett não podia ir para Dunmore Landing por causa das febres. Era perfeito.
Passariam de Outubro a Junho em Charleston, com a Temporada para quebrar a
monotonia de todos aqueles entediantes chás, e a promessa do Verão em Tara para
quebrar a monotonia da Temporada. Conseguiria suportá-lo, sabia que conseguiria.
Desde que passasse o longo Verão em Tara.
"Oh, se ao menos o bispo se apressasse!"
41
Pierre Robillard acompanhou Scarlett à cerimônia de consagração em Hodgson
Hall. Era uma figura imponente, no seu traje de cerimônia antiquado, com calções de
cetim pelo joelho e casaca de veludo, com a minúscula roseta da Legião de Honra na
lapela e uma larga faixa vermelha colocada na diagonal sobre o peito. Scarlett nunca
tinha visto ninguém com um ar tão distinto e aristocrático como o avô.
Ele também podia se orgulhar dela, pensou Scarlett. As suas pérolas e diamantes
eram de primeira linha, e o seu vestido magnificente, uma coluna brilhante de brocado
de seda dourado com renda dourada e uma cauda de brocado de seda com quase um
metro e meio. Nunca tinha tido oportunidade de o usar, pois tinha que se vestir
modestamente em Charleston. Afinal, fora uma sorte ter mandado fazer aqueles
vestidos antes de ir para Charleston. Ora, tinha meia dúzia de vestidos que mal usara.
Mesmo sem os enfeites que Rhett a tinha convencido a tirar, eram muito mais bonitos
que quaisquer outros que já vira em Savannah. Scarlett estava toda vaidosa quando
Jerome a ajudou a subir para a carruagem alugada para se sentar em frente ao avô.
O percurso até à extremidade sul da cidade foi feito em silêncio. Pierre Robillard
cabeceava ligeiramente, semiadormecido. Ergueu bruscamente a cabeça quando
Scarlett exclamou:
- Oh, olhe! - Havia uma multidão junto ao gradeamento do edifício clássico para
ver a chegada da elite da sociedade de Savannah. Exatamente como no Baile de
Santa Cecília. Scarlett ergueu a cabeça arrogantemente, enquanto um criado fardado a
ajudava a descer da carruagem. Ouvia murmúrios de admiração da multidão. Enquanto
o avô descia lentamente para ir ao seu encontro, Scarlett mexeu a cabeça para que os
brincos faiscassem à luz do candeeiro, e atirou a cauda do vestido que tinha sobre o
braço de forma a espalhar-se atrás dela, preparando-se para subir pelas escadas de
tapetes vermelhos até à porta do Hall.
- Oooohhh - ouviu da multidão, e "aaahhh" e "que lindo", "quem é ela?". Ao
estender a mão de luva branca para a pousar na manga de veludo do avô, uma voz
familiar gritou distintamente:
- Katie Scarlett, querida, estás tão deslumbrante como a rainha de Sabá!
Olhou rapidamente, em pânico, para a esquerda e depois, ainda mais
rapidamente, desviou o olhar de Jamie e do seu bando, como se não os conhecesse,
continuando a andar ao passo lento e majestoso de Pierre Robillard para subir as
escadas. Mas a imagem ficou-lhe gravada no espírito. Jamie tinha o braço por cima
dos ombros da mulher de cabelo flamejante e aspecto desleixado que estava rindo, o
seu chapéu de coco estava descuidadamente inclinado para trás sobre a cabeça de
cabelo encaracolado. Um outro homem estava do seu lado direito, iluminado pelo
candeeiro da rua. Só chegava ao ombro de Jamie, e a sua figura de sobretudo era
entroncada, um bloco escuro. O seu rosto redondo e vermelhusco era animado, os
seus olhos de um azul faiscante e a cabeça descoberta tinha um halo de caracóis
prateados. Era a imagem viva de Gerald O'Hara, o pai de Scarlett.
Hodgson Hall tinha um interior muito bonito e austero, apropriado ao seu fim
escolástico. Painéis de madeira polida cobriam as paredes e emolduravam a coleção
de mapas e esboços antigos da Sociedade Histórica. Enormes lustres de vidro, com
bicos de gás com globos também de vidro, pendiam dos tetos altos, lançando uma luz
agressiva e viva sobre os pálidos e enrugados rostos aristocráticos sob eles. Scarlett
procurou instintivamente alguma sombra. Velhos. Tinham todos um ar tão velho.
Sentiu que estava entrando em pânico, como se estivesse envelhecendo
rapidamente, como se a velhice fosse contagiosa. O seu trigésimo aniversário tinha
ocorrido e passado despercebido enquanto estava em Charleston, mas agora tinha
uma consciência aguda dele. Todo mundo sabia que assim que uma mulher fazia trinta
anos mais valia morrer. Ter trinta anos era uma idade tão avançada que ela nunca
acreditara que pudesse acontecer a si mesma. Não podia ser verdade.
- Scarlett - disse o avô. Segurou-lhe no braço sob o cotovelo e conduziu-a na
direção da fila de recepção. Os seus dedos estavam frios como a morte; ela sentia o
frio através da pelica fina da luva que lhe cobria o braço quase até ao ombro.
À sua frente, os idosos membros da Sociedade Histórica estavam
cumprimentando convidados idosos um a um. "Não consigo!", pensou Scarlett em
pânico. "Não consigo apertar todas aquelas mãos frias, e sorrir, e dizer que estou
encantada por aqui estar. Tenho que ir embora."
Encostou-se ao ombro muito direito do avô.
- Não me sinto bem - disse. - Avô, sinto-me subitamente doente.
- Não é permitido sentires-te doente - disse ele. - Endireita-te e faz o que é
esperado de ti. Poderás ir embora depois da cerimônia de consagração, antes não.
Scarlett endireitou a coluna e deu um passo em frente. Que monstro que era o
avô! Não admirava que praticamente nunca tivesse ouvido a mãe falar dele; não havia
nada de bom a dizer dele.
- Boa noite, Mrs. Hodgson - disse ela. - Estou tão contente por ter vindo.
Pierre Robillard avançou muito mais devagar que Scarlett pela fila de recepção.
Ainda estava se curvando rigidamente sobre a mão de uma senhora quando Scarlett
chegou ao fim. Esta abriu caminho pelo meio de um grupo de pessoas e dirigiu-se
apressadamente para a porta.
Lá fora, respirou avidamente o ar frio com desespero. Depois, desatou a correr. A
cauda do seu vestido cintilava à luz do candeeiro das escadas, sobre a carpete
vermelha, estendendo-se atrás dela como se flutuasse livremente ao vento.
- A carruagem dos Robillard. Depressa! - pediu ao criado. Correspondendo à sua
urgência, ele correu até a esquina.
Scarlett correu atrás dele, sem se importar com a cauda do vestido arrastando
pelo pavimento irregular. Tinha que ir embora dali antes que alguém a impedisse.
Quando já estava a são e salvo dentro da carruagem, a sua respiração estava
ofegante.
- Leve-me para South Broad - disse ao condutor quando conseguiu falar. -
Indicarei a casa. - "A mãe tinha deixado aquela gente", pensou, "casou-se com o pai.
Não pode me censurar se eu também fugir."
Ouvia música e risos através da porta aberta da cozinha de Maureen. Bateu nela
com os punhos cerrados até Jamie a abrir.
- É a Scarlett! - disse ele num tom de agradável surpresa. - Entra, Scarlett,
querida, vem conhecer o Colum. Finalmente chegou o melhor de todos os O'Haras, à
exceção de ti.
Como a porta já se tinha fechado, Scarlett viu que Colum era alguns anos mais
novo que Jamie e que afinal não se parecia tanto com o seu pai, a não ser no rosto
redondo e estatura baixa entre os seus primos e sobrinhos bastante mais altos. Os
olhos azuis de Colum eram mais escuros, mais sérios, e o seu queixo redondo tinha
uma firmeza que Scarlett só vira no rosto do pai quando montava a cavalo, ao ordenar
à montaria que saltasse mais alto do que o bom senso aconselhava.
Colum sorriu quando Jamie os apresentou, e os seus olhos quase ficaram
escondidos no meio das inúmeras rugas. No entanto, o calor que irradiava deles fez
com que Scarlett sentisse que conhecê-la era o momento mais feliz da sua vida.
- Não somos a família mais afortunada da face da terra por haver nela uma
criatura tão bela? - disse ele. - Só precisas de uma tiara para completar o teu esplendor
dourado, minha querida Scarlett. Se a rainha das Fadas te visse, rasgaria em tiras as
suas asas cobertas de lantejoulas de inveja. Deixa as garotas olharem para ela,
Maureen, pois fará com que tenham algo a aspirar, crescerem tão belas como a sua
prima.
Scarlett sorriu de prazer, fazendo covinhas nas faces.
- Creio que estou ouvindo a famosa lisonja irlandesa - disse.
- Nem por sombras. Só gostaria de ter o dom da poesia para dizer o que estou
pensando.
Jamie deu uma palmada no ombro do irmão.
- Mesmo assim não estás te saindo nada mal, meu malandro. Afasta-te e deixa a
Scarlett sentar-se. Vou buscar um copo... Colum trouxe-nos um barril de cerveja
irlandesa verdadeira das suas viagens, Scarlett querida. Tens que provar. - Jamie
proferiu o nome e a expressão carinhosa da mesma forma como Colum fazia, como se
formassem uma única palavra: Scarlettquerida.
- Oh, não, muito obrigada - disse ela automaticamente.
Depois acrescentou: - E por que não? Nunca provei cerveja.
- Teria bebido champanhe sem pensar. A bebida escura e com espuma era
amarga e ela fez uma careta.
Colum tirou-lhe a caneca da mão.
- Ela aumenta a sua perfeição a cada segundo que passa - disse ele -, ao ponto
de deixar as bebidas para aqueles que têm mais sede que ela. - Os seus olhos
sorriram-lhe por cima da caneca enquanto bebia.
Scarlett retribuiu-lhe o sorriso. Era impossível não o fazer. À medida que a noite
avançava, reparou que todos sorriam muito a Colum, como se refletissem o seu prazer.
Era evidente que ele estava muitíssimo satisfeito. Estava recostado numa cadeira de
espaldar, inclinada de forma a ficar encostada à parede junto da lareira, gesticulando
com a mão direita como que para dirigir e encorajar Jamie que estava tocando violino e
o rat-tat-tat dos "ossos" de Maureen. Tinha descalçado as botas e os seus pés em
meias praticamente dançavam apoiados nas travessas da cadeira. Era a imagem de
um homem completamente à vontade; até tinha tirado o colarinho e tinha a camisa
aberta para o riso lhe poder vibrar na garganta.
- Fala-nos das tuas viagens, Colum - incitava alguém de tempos em tempos, mas
Colum adiava sempre. Precisava de música, disse, e de um copo, para refrescar o seu
coração e a sua garganta seca. Amanhã teria tempo para falar.
O coração de Scarlett também ficou refrescado pela música. Mas não podia ficar
muito tempo. Tinha que estar em casa, na cama, antes de o avô regressar. "Espero
que o condutor cumpra o que prometeu e não lhe diga que me trouxe aqui. O avô quer
lá saber de como eu precisava de me ver livre daquele mausoléu e de me divertir um
pouco."
Conseguiu por um triz. Jamie mal desaparecera da vista quando a carruagem
chegou à porta. Scarlett subiu as escadas correndo com os sapatos na mão e a cauda
do vestido debaixo do braço. Comprimiu os lábios para não rir. Era divertido dar uma
escapadela quando não era apanhada.
Mas acabou por ser apanhada. O avô nunca soube o que ela tinha feito, mas
Scarlett sabia e o conhecimento suscitou-lhe emoções que tinham estado em conflito
dentro dela durante toda a sua vida. A personalidade essencial de Scarlett era tanto a
sua herança do pai como o seu nome. Era impetuosa e tinha uma enorme força de
vontade e a mesma vitalidade e coragem rude e direta que o tinham feito ultrapassar as
perigosas águas do Atlântico e atingir o cume dos seus sonhos - ser proprietário de
uma grande plantação e marido de uma grande senhora.
O sangue da sua mãe tinha-lhe dado ossos finos e pele branca que indicavam
séculos de educação. Ellen Robillard também tinha instilado na filha as regras e os
princípios da aristocracia.
Agora os seus instintos e a sua educação estavam em conflito. Os O'Haras
atraíam-na como um ímã. O seu vigor simples e a sua felicidade feroz falava à parte
mais profunda e melhor da sua natureza. Mas não era livre para lhes corresponder.
Tudo o que lhe tinha sido ensinado pela mãe que ela venerava proibia essa liberdade.
Estava dilacerada pelo dilema e não conseguia perceber o que é que a estava
tornando tão infeliz. Vagueava inquieta pelas salas silenciosas da casa do avô, cega à
sua beleza austera, imaginando a música e a dança na casa dos O'Haras, desejando
de todo o coração estar com eles, enquanto pensava, como tinha sido ensinada, que
aquele divertimento tão ruidoso era vulgar e característico das classes mais baixas.
Na realidade, Scarlett não se importava que o avô desprezasse os seus primos.
Ele era um velho egoísta, pensou com toda a razão, que desprezava a todos, incluindo
as próprias filhas. Mas a suave influência da mãe a tinha marcado para toda a vida.
Ellen teria tido tanto orgulho dela em Charleston. Apesar das previsões trocistas de
Rhett, tinha sido reconhecida e aceita como uma senhora. E tinha gostado. Ou não?
Claro que tinha. Além disso era o que ela queria, o que era suposto ser. Então por que
é que lhe era tão difícil não invejar os seus parentes irlandeses?
"Não pensarei nisso agora", decidiu. "Pensarei nisso depois. Agora vou pensar
em Tara." E retirou-se para o idílio da sua Tara, como tinha sido e como ela a faria
voltar a ser.
Depois chegou uma mensagem do secretário do bispo, e o seu idílio explodiu-lhe
no rosto. Não acederia à sua pretensão. Scarlett nem pensou. Agarrou no bilhete
contra o peito e correu, impetuosamente, sem chapéu e sozinha, para a porta que
nunca estava fechada à chave da casa de Jamie O'Hara. Eles compreenderiam o que
ela sentia; os O'Haras compreenderiam. Foi o que o pai me disse, vezes sem conta.
- Para alguém que tenha uma gota de sangue irlandês nas veias, a terra onde
vivem é como a sua mãe. E a única coisa que perdura, pela qual vale a pena trabalhar,
pela qual vale a pena lutar...
Irrompeu pela porta com a voz de Gerald O'Hara nos ouvidos e deparou com o
corpo compacto e entroncado e a cabeça prateada de Colum O'Hara, tão parecido com
o seu pai. Pareceu-lhe certo ser ele, tendo a certeza de que ele sentiria o que ela
sentia.
Colum estava à porta, a olhando para a sala de jantar. Quando a porta da rua se
abriu com um estrondo e Scarlett entrou aos tropeções na cozinha, virou-se.
Vestia um traje escuro. Scarlett olhou para ele através da névoa da sua dor.
Olhou fixamente para a inesperada linha branca em volta do pescoço que era o seu
cabeção. Um padre! Ninguém lhe tinha dito que Colum era padre. "Graças a Deus.
Pode-se contar tudo a um padre, até os segredos mais profundos do nosso coração."
- Ajuda-me, Padre - exclamou. - Preciso que alguém me ajude.
42
- Pronto - concluiu Colum. - Agora, o que pode ser feito para remediar a situação?
É isso que temos de descobrir. - Estava sentado à cabeceira da comprida mesa na sala
de jantar de Jamie. Todos os adultos das três casas dos O'Haras estavam sentados à
volta da mesa. As vozes de Mary Kate e de Helen ouviam-se através da porta fechada
da cozinha, onde estavam dando de comer às crianças. Scarlett sentou-se ao lado de
Colum, com o rosto inchado e manchado das primeiras crises de choro.
- Queres dizer que na América a quinta não vai para o filho mais velho? -
perguntou Matt.
- É o que parece, Matthew.
- Bom, então o tio Gerald foi tolo em não deixar testamento.
Scarlett endireitou-se e olhou furiosa para ele. Antes de poder falar, Colum
interveio.
- O pobre homem não teve velhice, não teve tempo de pensar na sua morte e,
depois dela, Deus tenha a sua alma em descanso.
- Deus tenha a sua alma em descanso - ecoaram os outros, benzendo-se.
Scarlett olhou desesperada para os seus rostos solenes. Que é que eles podem
fazer? Não passam de imigrantes irlandeses.
Mas não tardou a perceber que estava enganada. À medida que a conversa se foi
desenrolando, Scarlett começou a sentir cada vez mais esperança. Havia muito que
aqueles imigrantes irlandeses podiam fazer.
Billy Carmody, marido de Patrícia, era capataz de todos os pedreiros que estavam
trabalhando na catedral. Conhecia muito bem o bispo.
- Para minha grande pena - queixou-se. - O homem interrompe o trabalho três
vezes por dia para me dizer que não está andando suficientemente depressa.
Havia verdadeira urgência, pois um cardeal de Roma ia visitar a América no
Outono e poderia ir a Savannah para a consagração da catedral.
- Se fosse construída de acordo com o seu programa.
Jamie assentiu.
- Dirias que o nosso bispo Gross é um homem ambicioso? Que não se importaria
de ser notado pela Cúria?
Olhou para Gerald. Billy, Matt, Brian, Daniel e o velho James também. Bem como
as mulheres - Maureen, Patrícia e Katie. E Scarlett também, embora não soubesse por
que é que os outros estavam olhando.
Gerald pegou na mão da sua jovem mulher.
- Não sejas tímida, minha doce Polly - disse -, tu agora és uma O'Hara,
exatamente como todos nós. Diz-nos qual de nós escolherias para falar ao teu pai.
- Tom MacMahon é o empreiteiro da obra toda - murmurou Maureen a Scarlett. -
Uma indicação do Tom de que o trabalho poderá atrasar-se faria com que o bispo
Gross prometesse qualquer coisa. Sem dúvida que tem um medo terrível do
MacMahon. Todos no mundo tem.
Scarlett falou.
- Deixem que seja o Colum a fazê-lo. - Não tinha a menor dúvida de que ele era o
melhor para fazer qualquer coisa que precisasse ser feita. Apesar da sua baixa
estatura e sorriso afável, Colum O'Hara tinha força e poder.
Um coro de assentimento soou de todos os O'Haras. Colum era quem devia fazer
o que precisava de ser feito.
Ele sorriu a todos os que estavam em volta da mesa e depois exclusivamente a
Scarlett.
- Então vamos ajudar-te. Não é ótimo ter família, Scarlett O'Hara? Especialmente
uma família com parentes por afinidade que também podem ajudar? Espera e verás
que vais ter a tua Tara.
- Tara? Que é que há com Tara? - perguntou o velho James.
- É o nome que o Gerald deu à sua plantação, tio James.
O velho riu até ter um acesso de tosse.
- Esse Gerald - disse quando conseguiu falar -, apesar ser um homem tão
pequeno teve sempre uma ótima opinião sobre si próprio!
Scarlett ficou tensa. Ninguém ia fazer troça do seu pai, nem sequer o irmão.
Colum disse-lhe muito baixinho.
- Shiu, ele não disse isso por mal. Eu explico-te depois.
E assim fez, enquanto a acompanhava a casa do avô.
- Tara é uma palavra mágica para todos os irlandeses, Scarlett, é um lugar
mágico. Era o centro de toda a Irlanda, o lugar dos Grandes Reis.
"Antes de existir Roma, ou Atenas, há muito, muito tempo, quando o mundo era
novo e cheio de esperança, reinavam na Irlanda grandes reis que eram justos e
bondosos como o Sol. Faziam leis de grande sabedoria e acolhiam e davam riquezas
aos poetas. E eram gigantes valorosos que puniam o mal com uma ira justa e
combatiam os inimigos da verdade e da beleza com espadas manchadas de sangue e
corações sem mácula. Durante centenas e milhares de anos, reinaram na nossa doce
ilha verdejante e havia música em toda a terra. Cinco estradas davam para a colina de
Tara, vindas de todos os cantos do país, e de três em três anos todo o povo vinha
festejar no salão de banquetes e ouvir os poetas cantar. Isto não é apenas uma
história, mas uma grande verdade, pois todas as histórias de outras terras a
registraram e as palavras tristes do fim estão escritas nos grandes livros dos mosteiros.
"No Ano da Graça de quinhentos e cinquenta e quatro realizou-se a última festa de
Tara."
A voz de Colum tornou-se inaudível com a última palavra e Scarlett sentiu os
olhos arderem. Estava fascinada pela história e pela voz.
Caminharam em silêncio durante algum tempo. Depois Colum disse:
- Foi um sonho nobre aquele que o teu pai teve para construir uma nova Tara
neste novo mundo da América. Deve ter sido um homem verdadeiramente espantoso.
- Oh, era, Colum. Eu amava-o muito.
- Quando eu voltar a Tara, pensarei nele e na sua filha.
- Quando lá voltares? Quer dizer que ainda existe? Que é um lugar verdadeiro?
- Tão verdadeiro como a estrada sob os teus pés. É uma colina suave e
verdejante, mágica, com ovelhas pastando, e do topo pode-se ver a grande distância
em volta do belo mundo que os Grandes Reis viam. Não fica longe da aldeia onde eu
vivo, onde o teu pai e o meu nasceram, em County Meath.
Scarlett ficou fulminada. O pai também deve ter ido lá, deve ter estado onde os
Grandes Reis estiveram! Imaginava-o enchendo o peito e andando todo emproado,
como fazia quando estava satisfeito consigo próprio. Isso a fez rir baixinho.
Quando chegaram à casa dos Robillard, ela parou, relutante. Gostaria de
continuar a andar durante horas a ouvir a voz suave de Colum.
- Não sei como agradecer-te por tudo - disse-lhe. - Sinto-me mil vezes melhor.
Tenho certeza de que conseguirás que o bispo mude de idéia.
Colum sorriu.
- Uma coisa de cada vez, prima. Primeiro, o feroz Mac-Mahon. Mas que nome é
que lhe devo dizer, Scarlett? Vejo a aliança no teu dedo. Para o bispo não és O'Hara.
- Não, é claro que não. O meu nome de casada é Butler.
O sorriso de Colum desapareceu, mas voltou.
- É um nome poderoso.
Na Carolina do Sul, sim, mas não vejo em que é que me tenha ajudado aqui. O
meu marido é de Charleston. Chama-se Rhett Butler.
- Estou admirado por ele não estar te ajudar nos teus problemas.
Scarlett sorriu animadamente.
- Se pudesse ajudaria, mas teve de ir ao Norte em negócios. É um homem de
negócios muito bem sucedido.
- Compreendo. Bom, sinto-me feliz por poder te ajudar.
Ela teve vontade de o abraçar, como costumava abraçar o pai quando lhe dava o
que ela queria. Mas tinha a idéia de que não se devia andar aos abraços com um
padre, mesmo sendo seu primo. Limitou-se a dar-lhe boa-noite e entrou em casa.
Colum afastou-se assobiando "Wearing o'the Green".

-Onde estiveste? - perguntou Pierre Robillard. - O meu jantar não foi satisfatório.
- Estive na casa do meu primo Jamie. Vou mandar vir outra bandeja.
- Tens visitado essa gente? - O velho senhor tremeu de indignação.
A ira de Scarlett cresceu para enfrentar a dele.
- Sim, tenho, e tenciono voltar a visitá-los. Gosto muito deles. - E saiu do quarto.
Mas mandou arranjar outra bandeja com outro jantar para o avô antes de ir para o
quarto.
- E o seu jantar, Miss Scarlett? - perguntou Pansy. - Quer que lhe traga uma
bandeja aqui em cima?
- Não, vem cá e tira-me esta roupa. Não quero jantar.
"É engraçado, não tenho fome e só bebi uma xícara de chá. Só quero dormir.
Fiquei exausta de tanto chorar. Mal consegui dizer as palavras para o Colum transmitir
ao bispo, tanto que chorava. Acho que conseguiria dormir durante uma semana. Nunca
me senti tão exausta na minha vida."
Sentia a cabeça leve, todo o corpo pesado e descontraído. Deixou-se cair na
cama macia e mergulhou de imediato num sono profundo e reparador.
Em toda a sua vida, Scarlett enfrentara as suas crises sozinha. Por vezes
recusara-se a admitir que precisava de ajuda mas, a maior parte das vezes, não tinha a
quem recorrer. Agora era diferente e o seu corpo reconheceu a diferença antes de o
espírito o fazer. Havia pessoas para a ajudar. A família tinha lhe tirado o fardo de cima
dos ombros de bom grado. Já não estava sozinha. Podia deixar-se ir.

Pierre Robillard pouco dormiu nessa noite. Tinha ficado perturbado com a atitude
de desafio de Scarlett. Exatamente como a mãe dela o tinha desafiado, há tanto anos
atrás, e ele a tinha perdido para sempre. Nessa época ficara com o coração
destroçado; Ellen era a sua filha preferida, a mais parecida com a mãe. Ele não amava
Scarlett. Todo o amor que tinha estava na sepultura com a sua mulher. Mas não
deixaria Scarlett ir sem lutar. Queria que os seus últimos dias fossem confortáveis e ela
asseguraria isso. Sentou-se muito direito na cama, enquanto a luz do candeeiro
empalidecia à medida que o petróleo se ia gastando, e planejou a sua estratégia como
se fosse um general enfrentando um exército com mais efetivos.
Depois de uma hora de sono agitado, pouco antes de amanhecer, acordou com a
decisão tomada. Quando Jerome lhe levou o desjejum, o velho senhor estava
assinando uma carta que escrevera. Dobrou-a e selou-a antes de arranjar espaço
sobre os joelhos para a bandeja.
- Entregue isto - disse ele, dando a carta ao mordomo. - E espere pela resposta.
Scarlett abriu ligeiramente a porta e meteu a cabeça no quarto.
- Mandou me chamar, avô?
- Entra, Scarlett.
Ela ficou surpreendida por estar outra pessoa no quarto. O avô nunca tinha
visitas. O homem curvou-se num cumprimento e ela inclinou a cabeça.
- Este é Mr. Jones, o meu advogado. Toca para chamar o Jerome, Scarlett. Ele o
levará para a sala de estar, Jones. Espere lá até eu o mandar chamar.
Scarlett mal tocara no cordão da campainha, e já Jerome estava abrindo a porta.
- Puxa essa cadeira para junto da cama, Scarlett. Tenho muito para te dizer e não
quero esforçar a voz.
Scarlett estava intrigada. O velho senhor só faltara dizer-lhe "por favor". E
também parecia estar fraco. Santo Deus, espero que não se esteja se preparando para
morrer. Não quero ter que enfrentar a Eulalie e a Pauline no seu funeral. Levou a
cadeira para junto da cabeceira da cama. Pierre Robillard estudou-a sob as pálpebras
semicerradas.
- Scarlett - disse ele em voz baixa depois de ela se sentar. - Tenho quase noventa
e quatro anos. Estou de boa saúde para a minha idade, mas não é provável, à luz da
simples matemática, que viva muito mais. Estou te pedindo-te, minha neta, para ficares
comigo durante o tempo que me restar.
Scarlett começou a falar, mas o velho senhor ergueu uma mão esguia para a
impedir.
- Ainda não acabei - disse ele. - Não estou apelando ao teu sentido de dever
familiar, muito embora saiba que tens agido de forma responsável em relação às
necessidades das tuas tias durante muitos anos.
"Estou disposto a fazer uma oferta justa, até mesmo generosa. Se ficares aqui
como dona da casa e assegurares o meu conforto e te submeteres aos meus desejos,
herdarás todos os meus bens quando eu morrer. E não são de desprezar.
Scarlett ficou sem palavras. Ele estava oferecendo-lhe uma fortuna! Pensou na
amabilidade do gerente do banco e interrogou-se sobre quanto é que o avô valeria.
Pierre Robillard interpretou erradamente a hesitação de Scarlett enquanto o seu
espírito trabalhava. Pensou que ela estava transtornada de gratidão. As suas
informações não incluíam um relatório do mesmo gerente do banco, e não tinha
conhecimento do ouro que ela tinha no cofre. Os seus olhos desbotados brilharam de
satisfação.
- Não sei - disse ele -, nem quero saber, que circunstâncias é que te levaram a
considerar a dissolução do teu casamento. - A sua postura e voz estavam agora mais
vigorosas, agora que acreditava que estava ganhando. - Mas abandonarás qualquer
idéia de divórcio...
- Tem lido o meu correio!
- Tudo o que se passa sob este teto diz-me respeito por direito.
Scarlett estava tão furiosa que não conseguia encontrar palavras para se
expressar. O avô continuou a falar. Com precisão. Com frieza. As suas palavras eram
como agulhas geladas.
- Desprezo a imprudência e a estupidez, e tu foste estupidamente imprudente ao
deixares o teu marido sem pensares na tua posição. Se tivesses tido a inteligência de
consultar um advogado, como eu fiz, terias sabido que a lei da Carolina do Sul não
considera o divórcio seja por que motivo for. É única nos Estados Unidos neste campo.
Fugiste para a Geórgia, é certo, mas o teu marido é legalmente residente na Carolina
do Sul. Não pode haver divórcio.
Scarlett ainda continuava concentrando-se na indignidade que era o fato de
estranhos lerem as suas cartas privadas.
"Deve ter sido aquele safado do Jerome. Pôs as mãos nas minhas coisas,
revistou a minha cômoda. E foi o meu próprio parente de sangue, o meu avô, que o
mandou." Scarlett levantou-se e inclinou-se para a frente, com os punhos assentes na
cama ao lado da mão cadavérica de Pierre Robillard.
- Como é que ousou mandar esse homem ao meu quarto? - gritou-lhe, dando
murros nas espessas camadas de edredões.
A mão do avô ergueu-se subitamente, como uma cobra atacando. Agarrou-lhe os
dois pulsos com os seus dedos compridos e ossudos.
- Nesta casa, não levantas a voz, minha menina. Detesto barulho. E terás um
comportamento adequadamente decoroso, como é de esperar de uma neta minha. Não
sou um dos teus parentes do bairro de lata.
Scarlett ficou chocada com a sua força e também um pouco assustada. Que tinha
acontecido ao velho fraco de quem tinha quase sentido pena? Os seus dedos pareciam
de ferro.
Ela soltou-se e recuou até a cadeira a impedir.
- Não admira que a minha mãe tenha deixado esta casa e nunca mais tenha
voltado - disse. Odiou que a sua voz tremesse ligeiramente de medo.
- Deixa de ser melodramática, rapariga. Isso cansa-me. A tua mãe foi-se embora
porque era voluntariosa e nova demais para dar ouvidos à razão. Tinha tido um
desgosto de amor e aceitou casar com o primeiro homem que a pediu em casamento.
Acabou por se arrepender, mas o que estava feito, estava feito. Tu não és uma garota
como ela era; tens idade suficiente para usares a cabeça. O contrato está sendo
redigido. Manda vir o Jones; o assinaremos e agiremos como se o teu inconveniente
rompante não tivesse existido.
Scarlett virou-lhe as costas. "Não vou acreditar nele. Não darei ouvidos a esse
tipo de conversa." Pegou a cadeira e voltou a pô-la no local de costume. Pousou-a com
muito cuidado, para que os pés ficassem exatamente sobre as marcas que tinham feito
no carpete ao longo dos anos. Já não sentia medo nem pena dele, e já nem sequer
estava zangada com ele. Quando se virou para voltar a olhar para ele, era como se
nunca o tivesse visto antes. Era um estranho. Um velho tirano, sonso e tedioso que ela
não conhecia e não queria conhecer.
- Não existe dinheiro suficiente para me manter aqui - disse, e estava mais a falar
consigo própria que com ele. - O dinheiro não consegue tornar suportável viver numa
sepultura. - Olhou para Pierre Robillard com olhos verdes faiscantes num rosto pálido
de morte. - O seu lugar é aqui... já está morto, exceto que se recusa a admiti-lo. Irei
embora amanhã bem cedo.
Dirigiu-se rapidamente para a porta e abriu-a.
- Achei que estaria à escuta, Jerome. Entre.
43
Não sejas chorona, Pansy, não te vai acontecer nada. O trem passa por Atlanta e
depois pára. Basta que não saias antes de ele lá chegar. Prendi algum dinheiro num
lenço, e prendi o lenço dentro da algibeira do teu casaco. O condutor já tem o teu
bilhete e prometeu olhar por ti. Mas que raio! Tens choramingado tanto dizendo que
querias ir para casa e, agora que vais, não paras com esse disparate.
- Mas, Miss Scarlett, nunca andei de trem sozinha.
- Fiddle-dee-dee! Não estás sozinha. Vai muita gente no trem. Basta olhares pela
janela e comeres esse cesto de comida que Mrs. O'Hara te arranjou, e antes de dares
por isso estarás em casa. Mandei-lhes um telegrama pedindo para te irem buscar na
estação.
- Mas, Miss Scarlett, que é que faço sem ter que cuidar de ti? Sou uma criada de
senhora. Quando é que vai voltar para casa?
- Quando lá chegar. Depende de muita coisa. Agora, sobe para o vagão; o trem
está quase partindo.
"Depende de Rhett", pensou Scarlett e era bom que o Rhett viesse depressa.
"Não sei se vou conseguir ou não viver com os meus primos." Virou-se e sorriu à
mulher de Jamie.
- Não sei como poderei agradecer-lhes por me acolherem, Maureen. Estou
encantada com a idéia, mas isso já vos causou muito transtorno. - Falou na sua
animada e juvenil voz social.
Maureen deu o braço a Scarlett e a fez afastar-se do trem e do rosto triste de
Pansy à janela suja de pó do vagão.
- Está tudo ótimo, Scarlett - disse ela. - O Daniel está encantado por ceder o
quarto porque assim vai para casa da Patrícia, para junto do Brian. Há muito que o
quer fazer, mas não se atrevia a dizer. E a Kathleen está quase nas nuvens de alegria
por ser a sua criada. É o que ela quer aprender a ser, e além disso venera o chão que
a Scarlett pisa. Pela primeira vez desde que chegou, aquela tonta está feliz. O seu
lugar é conosco, não às ordens daquele velho rabugento. Que atrevimento o dele,
esperar que a Scarlett lá ficasse para lhe governar a casa. Nós queremo-la conosco
pelo amor que lhe temos.
Scarlett sentiu-se melhor. Era impossível resistir aos modos calorosos de
Maureen. Mesmo assim, esperava que não fosse por muito tempo. Todas aquelas
crianças!
"Parece mesmo um potro prestes a fugir", pensou Maureen. Sob a ligeira pressão
da sua mão, sentia a tensão no braço de Scarlett. "Do que ela precisa", decidiu
Maureen, "é de abrir o coração, e muito provavelmente ter uma crise de choro à boa
moda antiga. Não é natural uma mulher nunca falar de si própria, e esta nunca fez uma
referência sequer ao marido. Dá que pensar..." Mas Maureen não perdeu tempo com
especulações. Tinha aprendido quando era nova e lavava copos no bar do pai que,
dando-lhe tempo suficiente, qualquer pessoa acabava, mais cedo ou mais tarde, por
falar dos seus problemas. Não conseguia imaginar que Scarlett fosse diferente.
As casas dos O'Hara eram três edifícios altos, de tijolo, em fila, com janelas na
parte da frente e de trás e compartilhando as paredes interiores. Lá dentro, a
disposição das salas era idêntica. Cada andar tinha duas dependências: cozinha e sala
de jantar ao nível da rua, salas duplas no primeiro andar, e dois quartos em cada um
dos dois andares de cima. Um corredor estreito com uma bonita escada corria ao longo
do comprimento de cada casa e, por detrás de cada um, havia um pátio amplo e uma
cocheira.
O quarto de Scarlett ficava no terceiro andar da casa de Jamie. Tinha duas camas
individuais - Daniel e Brian tinham compartilhado aquele quarto até Brian ter ido viver
na casa da Patrícia - e era muito modesto, como era adequado a dois homens jovens,
apenas com um guarda-roupa e uma secretária, e uma cadeira como mobiliário além
das camas. Mas havia colchas de retalhos de cores vivas nas camas e um grande
tapete de trapos, vermelho e branco, no soalho bem encerado. Maureen tinha
pendurado um espelho por cima da secretária e coberto esta com um pano de renda,
para Scarlett ter um toucador. Kathleen mostrou-se surpreendentemente habilidosa a
pentear-lhe o cabelo, e estava ansiosa por aprender a agradar e estava sempre ali à
mão. Dormia com Mary Kate e Helen no outro quarto do terceiro andar.
A única criança pequena na casa de Jamie era Jacky, que tinha quatro anos, mas
estava normalmente numa das outras casas brincando com os primos da sua idade.
Durante o dia, enquanto os homens trabalhavam e as crianças mais velhas iam à
escola, a fila de casas era um mundo de mulheres. Scarlett estava à espera de o
detestar. Mas nada na vida Scarlett a tinha preparado para as mulheres O'Hara.
Não havia entre elas segredos, nem reticências. Diziam o que pensavam,
confidenciavam intimidades que a faziam corar, zangavam-se quando estavam em
desacordo e abraçavam-se, chorando, quando faziam as pazes. Tratavam todas as
casas como se fosse uma só, entravam nas cozinhas umas das outras a qualquer hora
para beberem uma xícara de chá, compartilhavam a tarefa das compras e de cozinhar
pão e de cuidar dos animais no pátio, e das cocheiras que tinham sido transformadas
em barracões.
Mas, acima de tudo, divertiam-se, com risos, mexericos, confidências e
inofensivas, mas elaboradas conspirações contra os seus homens. Incluíram Scarlett a
partir do momento em que ela chegou, partindo do princípio de que era uma delas.
Passados poucos dias, Scarlett sentiu que era. Ia todos os dias ao Mercado da cidade
com Maureen ou Katie, à procura dos melhores alimentos aos melhores preços, e ria
com as jovens Polly e Kathleen dos truques com ferros de frisar e fitas, e estudava
montes de amostras de tecidos para estofados com Patrícia, que tinha muito orgulho
na sua casa, muito depois de Maureen e Katie se terem exasperado com a sua
esquisitice. Bebia inúmeras xícaras de chá e escutava relatos de triunfos e
preocupações e, embora não compartilhasse nenhum dos seus próprios segredos,
ninguém a pressionou ou calou as suas próprias confidências francas.
- Não sabia que aconteciam tantas coisas interessantes às pessoas - disse
Scarlett a Maureen com verdadeira surpresa.
Os serões tinham um padrão diferente. Os homens trabalhavam arduamente e
chegavam em casa cansados. Queriam uma boa refeição e fumar o seu cachimbo e
tomar uma bebida. E tinham-no sempre. Depois disso, o serão desenrolava-se por si
próprio. Muitas vezes toda a família acabava na casa de Matt, pois ele tinha cinco filhos
pequenos dormindo no andar de cima. Maureen e Jamie podiam deixar o Jacky e a
Helen com Mary Kate, e a Patrícia podia levar os seus filhos de dois e três anos,
dormindo, sem os acordar. A música não tardava em surgir. Mais tarde, quando Colum
chegasse, seria ele o condutor.
Da primeira vez que Scarlett viu o bodhran pensou que era uma gigantesca
pandeireta. O círculo de cercadura metálica de pele esticada tinha mais de meio metro
de diâmetro, mas era pouco fundo, como uma pandeireta, e Gerald segurava-a na
mão. Depois, sentou-se e pousou-o no joelho e bateu nele com um pau de madeira
seguro pelo meio, balançando-o para bater com uma extremidade e depois com a outra
na pele esticada, e percebeu que era na realidade um tambor.
Não que fosse lá grande tambor. Até Colum pegá-lo. Estendeu a mão esquerda
sob a pele esticada, com se a acariciasse, e o seu pulso direito tornou-se subitamente
tão fluido como água. O seu braço mexia-se de cima abaixo e ao centro do tambor,
enquanto com a mão direita fazia um curioso movimento que parecia descuidado e que
fazia com que o pau batesse um ritmo regular e que agitava o sangue. O tom e o
volume diferiam, mas a batida hipnótica e insistente nunca variava, enquanto o violino,
depois o apito e depois a concertina se juntavam. Maureen segurava os "ossos"
lassamente na mão, embrenhada demais na música para se lembrar deles.
Scarlett entregou-se ao toque do tambor. Fê-la rir, fê-la chorar, fê-la dançar como
nunca sonhara que podia dançar. Só quando Colum pousou o bodhran no chão ao seu
lado e exigiu uma bebida, dizendo:
- Toquei tambor até ficar completamente seco - é que viu que todos os outros
estavam tão enlevados como ela.
Olhou para a figura baixa, de nariz arrebitado e sorridente, com um frêmito de
espanto e respeito. Aquele homem não era como os outros homens.

-Scarlett, querida, conhece melhor as ostras que eu - disse Maureen quando


chegaram ao Mercado. - Importa-se de procurar as melhores? Hoje quero fazer um
belo caldo de ostras para o lanche de Colum.
- Para o lanche? Caldo de ostras é tão nutritivo que serve de refeição.
- E não será essa a razão? Esta noite ele vai falar numa reunião e precisa ir bem
alimentado.
- Que tipo de reunião, Maureen? Iremos todos?
- Será no Jasper Greens, o grupo de soldados voluntários americano-irlandeses,
portanto não haverá lá mulheres. Não seríamos bem-vindas.
- Que é que o Colum faz lá?
- Ah, bem, primeiro recorda-lhes que são irlandeses, não importando há quanto
tempo são americanos, depois leva-os às lágrimas com saudades e amor pelo Velho
País; depois faz com que esvaziem os bolsos para ajudarem os pobres na Irlanda. É
um belo orador, diz o Jamie.
- Posso imaginar. O Colum tem algo de mágico.
- Então descubra umas ostras mágicas.
Scarlett riu.
- Não terão pérolas - disse, imitando o forte sotaque de Maureen -, mas farão um
caldo glorioso.

Colum olhou para a tigela cheia e fumegante e ergueu as sobrancelhas.


- Maureen, estás servindo um chá magnífico.
- As ostras hoje tinham um aspecto particularmente bom no Mercado - disse ela
com um grande sorriso.
- Não imprimem calendários nos Estados Unidos da América?
- Shiu, Colum, come o caldo antes que esfrie.
- Estamos na Quaresma, Maureen e tu conheces as regras do jejum. Uma
refeição por dia, e já a tomamos ao meio-dia.
Então as tias tinham razão. Scarlett pousou lentamente a colher em cima da mesa
e olhou para Maureen com simpatia. Uma boa refeição desperdiçada. Teria que fazer
uma penitência horrível e devia sentir-se terrivelmente culpada. Por que é que o Colum
tinha que ser padre?
Ficou espantada por ver Maureen sorrir e mergulhar a colher no caldo para
apanhar uma ostra.
- Não estou preocupada com o Inferno, Colum - disse ela.
- Tenho a dispensa dos O'Haras. Tu também és um O'Hara, portanto come as
tuas ostras e saboreia-as.
Scarlett estava espantadíssima.
- Que é a despensa dos O'Haras? - perguntou a Maureen.
Foi Colum quem lhe respondeu, mas sem o bom humor de Maureen.
- Há mais ou menos trinta anos - disse - a Irlanda foi atingida pela fome. O povo
passou fome num ano e no ano seguinte. Não havia comida, portanto comiam erva e
depois já nem sequer erva havia. Foi uma coisa terrível, terrível. Morreu muita gente e
não havia forma de os ajudar. Aqueles que sobreviveram receberam uma dispensa
para futuros jejuns dos padres de algumas paróquias. Os O'Haras viviam numa dessas
paróquias. Não precisam jejuar, exceto em relação à carne. - Olhava fixamente para o
caldo espesso e cheio de manteiga que tinha na tigela.
Maureen olhou para Scarlett e levou o dedo aos lábios, pedindo silêncio, e depois
fez um gesto com a colher, incitando Scarlett a comer.
Passado bastante tempo, Colum pegou a colher. Não olhou para cima enquanto
comia as ostras suculentas e a sua prece de agradecimento foi dita mecanicamente.
Depois, saiu para ir a casa de Patrícia onde compartilhava um quarto com Stephen.
Scarlett olhou para Maureen com curiosidade.
- Viveu essa Fome? - perguntou, cautelosamente.
Maureen assentiu.
- Estava lá. O meu pai tinha um bar, portanto não passamos tão mal como os
outros. As pessoas arranjam sempre dinheiro para uma bebida e podíamos comprar
pão e leite. Os agricultores pobres é que passaram pior. Ah, foi terrível. - Cruzou os
braços sobre o peito e estremeceu. Tinha os olhos cheios de lágrimas e a sua voz
fraquejou quando tentou falar. - Só tinham batatas. O milho que cultivavam e as vacas
que criavam e o leite e a manteiga que vinha delas eram sempre vendidos para pagar a
renda das quintas. Guardavam para si apenas um pouco de manteiga, e o leite
desnatado e talvez algumas galinhas para terem um ovo de vez em quando no
domingo. Mas a maior parte dos dias só comiam batatas, apenas batatas, e faziam
com que isso chegasse. Depois, as batatas começaram a aprodrecer e ficaram sem
nada. - Maureen calou-se e balançava-se de trás para a frente abraçada a si própria.
Tinha a boca tremendo. Transformou-se num círculo tremendo e deu um grito áspero e
atormentado enquanto recordava.
Scarlett levantou-se de um salto e pôs os braços em volta dos ombros
arquejantes de Maureen.
Maureen chorou contra o peito de Scarlett.
- Não pode imaginar o que é não ter comida.
Scarlett olhou para as brasas incandescentes na lareira.
- Sei como é - disse. Abraçou Maureen contra si e contou-Ihe do seu regresso a
Tara depois de Atlanta ser incendiada.
Scarlett não tinha lágrimas nos olhos ou na voz enquanto contou a desolação dos
longos meses de fome constante e de quase inanição. Mas quando disse que ao
chegar a Tara tinha encontrado a mãe morta e o pai com o juízo seriamente afetado,
Scarlett não aguentou.
Depois Maureen abraçou-a enquanto ela chorou.
44
Parecia que os cornisos tinham florescido da noite para o dia. Uma manhã,
subitamemte, quando Scarlett e Maureen se dirigiam para o Mercado, havia nuvens de
flores no canteiro da avenida em frente à casa.
- Ah, não é um espetáculo maravilhoso? - disse Maureen, com um grande
suspiro. - A luz da manhã a brilhar sobre as pétalas tenras e tornando-as quase cor-de-
rosa. Ao meio-dia estarão tão brancas como o peito de um cisne. É magnífica, esta
cidade que planta beleza nas flores que florescem para todos verem! - Inspirou fundo. -
Faremos um piquenique no parque, Scarlett. Para provarmos o verde da Primavera no
ar. Vamos depressa, temos muitas compras a fazer. Esta tarde farei pão, e, amanhã,
depois da Missa, iremos passar o dia no parque.
Já era sábado? O espírito de Scarlett fez cálculos rápidos. Já estava em
Savannah há um mês! Sentiu um aperto no coração. Por que é que o Rhett não tinha
ido lá? Onde estava? Os seus negócios em Boston não podiam ter levado tanto tempo.
- ... Boston - disse Maureen, e Scarlett parou abruptamente. Agarrou o braço de
Maureen e olhou para ela desconfiada. "Como é que Maureen podia saber que Rhett
estava em Boston? Como é que podia saber alguma coisa a seu respeito? Não lhe
disse uma palavra."
- Que é que se passa, Scarlett, querida? Torceu o pé?
- Que é que estava dizendo sobre Boston?
- Disse que era uma pena o Stephen não nos acompanhar ao piquenique. Vai
hoje para Boston. Decerto que lá não haverá ainda árvores em flor. Mas terá
oportunidade de ver Thomas e a sua família e trazer-nos notícias deles. O velho James
ficará contente. É uma coisa maravilhosa pensar em todos os irmãos espalhados pela
América...
Scarlett caminhou em silêncio ao lado de Maureen. Sentia vergonha de si própria.
Como é que eu pude ser tão horrível? A Maureen é minha amiga, a amiga mais íntima
que alguma vez tive. Não me espiaria, não se meteria na minha vida privada. Só que já
passou tanto tempo e eu nem sequer dei por isso. Provavelmente é essa a razão por
que ando tão enervada, porque fui áspera com a Maureen. Por já ter passado tanto
tempo e o Rhett não ter vindo.
Sem pensar, murmurou a sua anuência às sugestões de Maureen quanto à
comida para o piquenique, enquanto várias perguntas lhe vinham ao espírito, como
pássaros presos numa gaiola. Teria cometido um erro em não voltar para Charleston
com as tias? Teria feito mal, logo de partida, em ter saído de lá?
"Isto está a enlouquecer-me. Não posso pensar nisso, senão grito!"
Mas o seu espírito não deixava de formular perguntas.
Talvez devesse falar nisso a Maureen. Maureen era tão compreensiva e era de
fato inteligente em relação a muitas coisas. Compreenderia. Talvez a pudesse ajudar.
"Não, falarei com o Colum! Amanhã, no piquenique, terei tempo para isso. Direi
que quero falar com ele, pedirei para irmos dar um passeio. O Colum saberá o que
fazer." À sua maneira, Colum era como o Rhett. Completo em si próprio, como Rhett, e
todo mundo parecia não ter importância ao seu lado, exatamente como os homens
parecem de certa forma tornar-se apenas rapazes, e Rhett parece o único homem na
sala. Colum também fazia as coisas, como Rhett, e ria disso, exatamente como Rhett.
Scarlett começou a rir da recordação de Colum falando do pai de Polly.
- Sim, é um homem magnífico, ousado, o poderoso empreiteiro MacMahon. Tem
braços que parecem malhos e que pareciam prestes a rebentar as costuras do seu
casaco caro, sem dúvida escolhido por Mrs. MacMahon para dar com o conjunto de
sofás da sala, de contrário por que é que seria tão aveludado? E é também um homem
temente a Deus, com a devida reverência pelo brilho que a sua alma ganha por estar
construindo a casa de Deus aqui em Savannah, na América. Abençoei-o por isso, à
minha própria maneira humilde. Ora, disse eu, estou convencido de que você é um
homem tão religioso que não está cobrando à paróquia nem mais um cêntimo acima de
quarenta por cento de lucro. E não é que os seus olhos faiscaram e os seus músculos
incharam como os de um boi e as suas mangas aveludadas deram uns estalidos ao
longo das costuras cosidas a seda? Estou convencido, mestre construtor, de que
qualquer outro teria cobrado cinquenta, ainda por cima o bispo não sendo irlandês. E
nessa altura o bom homem mostrou o seu mérito. "Infâmia!", rugiu ele, tendo eu temido
que as janelas voassem para a rua. "Que raio de nome é esse para um católico?"
Depois, contou-me histórias sobre as iniquidades do bispo às quais o meu cabeção me
impede de dar crédito. Compartilhei as suas mágoas e uma ou duas bebidas e depois
falei-lhe do sofrimento da minha pobre prima. Mostrou-se justamente indignado, o bom
homem. Quase não o consegui impedir de destruir a torre com as suas próprias mãos
fortes. Estou convencido de que não irá levar os seus homens à greve, mas não tenho
certeza absoluta. Disse-me que ia expressar ao bispo a sua preocupação pela paz de
espírito de Scarlett em termos tais que o nervoso homenzinho não poderá deixar de
compreender, e tantas vezes quantas forem necessárias para o convencer da
gravidade do problema.
Maureen disse:
- Gostaria de saber por que é que estás sorrindo.
Scarlett dirigiu o sorriso para a amiga.
- Porque estou feliz por ser Primavera e por irmos fazer um piquenique - disse. E
porque tinha a certeza de que ia ficar com Tara.
Scarlett nunca tinha visto Forsyth Park. Hodgson Hall ficava do outro lado da rua,
mas estava já escuro quando fora à cerimônia da consagração. Foi apanhada
desprevenida e ficou sem poder respirar. Duas esfinges de pedra flanqueavam a
entrada. As crianças olharam com pena para os animais aos quais estavam proibidos
de trepar, depois correram a alta velocidade ao longo do caminho central. Tiveram que
contornar Scarlett. Tinha ficado parada no meio do caminho olhar fixamente em frente.
A fonte estava a certa distância da entrada, mas era tão grande que parecia muito
perto. Arcos e esguichos de água erguiam-se e caíam como uma chuva de diamantes
em todas as direções. Scarlett estava enfeitiçada; nunca tinha visto nada de tão
espetacular.
- Vai andando - disse Jamie -, é ainda mais bonita vista de mais perto.
E era. O sol radioso lançava arcos-íris nas águas dançantes; faiscavam,
desapareciam, voltavam a aparecer a cada passo que Scarlett dava. Os troncos
caiados das árvores que ladeavam o caminho brilhavam na sombra matizada das
folhas, prolongando-se até o brilho encadeante da fonte. Quando ela chegou ao
gradeamento de ferro que contornava a base da fonte, teve que inclinar a cabeça para
trás até quase ficar tonta para olhar para a ninfa em cima da terceira parte, uma
estátua maior que ela, com o braço erguido, segurando um cajado que lançava uma
pluma de água muito alto, na direção do céu azul brilhante.
- Eu gosto particularmente dos homens-serpente - comentou Maureen. -
Parecem-me sempre que estão se divertinds. - Scarlett olhou para onde Maureen
estava apontando. Os tritões de bronze estavam ajoelhados na enorme bacia,
apoiados nas suas elegantes caudas enroladas, com uma mão no quadril e a outra
levando uma corneta aos lábios.
Os homens estenderam mantas sob o carvalho que Maureen escolheu, e as
mulheres pousaram os cestos. Mary Kate e Kathleen depositaram a garotinha de
Patrícia e o rapazito mais novo de Katie na relva para gatinhar. As crianças mais velhas
andavam correnco e saltando num jogo qualquer que tinham inventado.
- Vou descansar os pés - disse Patrícia, e Billy ajudou-a a sentar-se encostada ao
tronco da árvore. - Ora - disse ela, num tom irritado -, não é preciso passares o dia ao
meu lado.
- Ele beijou-lhe a face, fez deslizar as alças da concertina pelo ombro e pousou-a
junto dela.
- Logo toco-te uma música bonita - prometeu ele. Depois, dirigiu-se para o grupo
de homens que estava jogando basebol à distância.
- Vai meter em confusão com ele, Matt - sugeriu Katie ao marido.
- Sim, ponham-se andar - disse Maureen, fazendo gestos de enxotar com as
mãos. Jamie e os seus filhos altos afastaram-se correndo. Colum e Gerald seguiram-
nos andando, com Matt e Billy.
- Estarão mortos de fome quando voltarem. - A sua voz ressoava de prazer. -
Ainda bem que trouxemos comida para um exército.
"Que montanha de comida", pensou Scarlett a princípio. Depois, percebeu que
provavelmente desapareceria toda no espaço de uma hora. As famílias grandes eram
assim. Olhou com verdadeiro afeto para as mulheres da sua família e sentiria a mesma
ternura pelos homens quando voltassem com os casacos e os chapéus na mão, com
os colarinhos desapertados e as mangas enroladas. Tinha posto de parte as suas
pretensões de classe sem dar por isso. Já não se lembrava do seu desconforto quando
soube que os primos tinham sido criados na grande propriedade que havia perto de
onde viviam na Irlanda. Matt fora carpinteiro, Gerald trabalhara sob as suas ordens
fazendo arranjos nas dezenas de edifícios e quilômetros de cercas. Katie tinha sido
ordenhadora, Patrícia copeira. E não fazia diferença. Scarlett estava feliz por pertencer
aos O'Haras.
Ajoelhou-se ao lado de Maureen e começou a ajudá-la.
- Espero que os homens não demorem muito - disse. - Este ar puro está me
dando fome.
Quando apenas restavam dois pedaços de bolo e uma maçã, Maureen pôs água
a ferver sobre um candeeiro para fazer chá. Billy Carmody pegou a concertina e piscou
o olho a Patrícia.
- Que é que queres que toque, Patsy? Prometi-te uma canção.
- Shhh, ainda não, Billy - disse Katie. - Os pequeninos estão quase dormindo. -
Cinco corpinhos estavam deitados numa das mantas na parte com mais sombra. Billy
começou a assobiar baixinho, e depois continuou a música com a concertina, quase
em surdina. Patrícia sorriu-lhe. Afastou o cabelo da testa de Timothy e começou a
cantar a canção de embalar que Billy estava tocando.
"Nas asas de um vento sodre o mar escuro,
Os anjos já vêm para velar por seu sono,
Os anjos já chegam para velar por você.
Escute o vento que pelo mar se aproxima,
O vento que sopra amor, escute o vento soprar,
Baixe a cabeça, escute o vento soprar.
Os barcos navegam pelo mar azul,
Em busca do arenque prateado,
A prata do arenque e a prata do mar
Logo serão a prata para o meu amor.
Escute o vento soprar, amor, escute o vento,
Baixe a cabeça, escute o vento soprar."
Houve um momento de silêncio e depois Timothy abriu os olhos.
- Outra vez, por favor - disse, sonolento.
- Oh, sim, por favor, Miss, cante outra vez.
Olharam todos para cima, sobressaltados, para o jovem que estava de pé ali
perto. Segurava nas mãos sujas um boné esfarrapado à frente do casaco remendado.
Pareceria ter uns 12 anos, se não fosse a sombra da barba escura no queixo.
- Peco-lhes desculpa, minhas senhoras e meus senhores - disse num tom
ansioso. - Sei que estou a sendo atrevido ao intrometer-me em vosso grupo e tudo
mais. Mas a minha mãe costumava cantar essa canção a mim e as minhas irmãs, e
quando a ouvi o meu coração trouxe-me para cá.
- Senta-te, meu rapaz - disse Maureen. - Há aqui bolo e ninguém para o comer, e
há um belo queijo e pão no cesto. Como é que te chamas e de onde és?
O rapaz ajoelhou-se junto dela.
- Danny Murray, minha senhora. - Afastou uma madeixa de cabelo preto da testa
e limpou a mão na manga antes de a estender para aceitar o pão que Maureen tirara
do cesto. - Vivo em Connemara, quando lá estou. - Deu uma enorme dentada no pão.
Billy começou a tocar.
- Nas asas de um vento... - cantou Kate. O rapaz esfomeado engoliu e cantou
com ela.
- ...escute o vento soprar - terminaram depois de três repetições completas. Os
olhos escuros de Danny Murray cintilavam como jóias negras.
- Vai, come, Danny Murray - disse Maureen. A sua voz soou áspera de
sentimento. - Logo mais vais precisar ter força. Vou fazer um bule de chá e depois
queremos ouvir-te cantar mais. A tua voz de anjo é uma dádiva dos céus. - Era
verdade. A voz de tenor irlandês do rapaz era tão pura como a de Gerald.
Os O'Haras atarefaram-se a distribuir as xícaras de chá para o rapaz poder comer
à vontade.
- Aprendi uma canção nova de que talvez gostem - disse ele enquanto Maureen
servia o chá. - Estou num navio que parou na Filadélfia antes de vir para cá. Querem
que a cante?
- Como é que se chama, Danny? Talvez a conheça - disse Billy.
- Levarei você pra casa.
Billy abanou a cabeça.
- Terei muito gosto em aprendê-la contigo.
Danny Murray sorriu.
- Terei muito gosto em ensiná-la. - Sacudiu o cabelo da testa e respirou fundo.
Depois abriu os lábios e a música irrompeu como um fio de prata brilhante.
Scarlett também aplaudiu. Era uma linda canção.
- Foi de tal forma magnífica que me esqueci de aprender - disse Billy num tom
pesaroso. - Canta-a outra vez, Danny, para eu fixar a música.
- Não! - Kathleen O'Hara pôs-se de pé num salto. Tinha o rosto manchado de
lágrimas. - Não consigo ouvi-la outra vez, não consigo! - Limpou os olhos com a palma
das mãos.
- Desculpem-me - disse a soluçar. - Tenho que ir. - Passou com cuidado por cima
das crianças adormecidas e fugiu.
- Desculpem - disse o rapaz.
- Shiu, não tens a culpa, moço - disse Colum. - Deste-nos um enorme prazer. A
verdade é que aquela pobre rarota está morta de saudades da Irlanda e por acaso o
seu nome é Kathleen. Diz-me, conheces The Curragh ofKildare? É uma especialidade
do Billy, que é aquele com a caixa de música. Estarias fazendo um enorme favor se
cantasses com ele tocando, dando idéia de que ele é um músico.
A música continuou até o Sol desaparecer por detrás das árvores e a brisa se
tornar fria. Depois foram para casa. Danny Murray não pôde aceitar o convite de Jamie
para jantar. Tinha que estar de volta ao navio ao anoitecer.

- Jamie, tenho estado pensanco se devo levar a Kathleen comigo quando for -
disse Colum. - Já está aqui há tempo suficiente para não ter saudades, mas o coração
ainda lhe dói.
Scarlett quase derramou água fervente por cima de si em vez de no bule.
- Onde vais, Colum?
- Vou voltar para a Irlanda, querida. Só estou aqui de visita.
- Mas o bispo ainda não mudou de idéia em relação a Tara. E quero falar-te sobre
uma outra coisa.
- Bom, não vou embora já neste instante, Scarlett querida. Há tempo para tudo.
Que é que achas, com o teu coração de mulher? A Kathleen deve regressar?
- Não sei. Pergunta a Maureen. Tem estado com ela lá em cima desde que
voltamos. - Que diferença fazia o que Kathleen fazia. Coluna era quem interessava.
Como é que ele podia ir embora quando ela precisava dele. "Oh, por que é que eu
fiquei sentada cantando com aquele rapaz nojento? Devia ter feito com que o Colum
fosse dar um passeio comigo, conforme planejei."
Scarlett apenas provou a torrada de queijo e a sopa de batata que comeram no
jantar. Tinha vontade de chorar.
- Ufa! - gemeu Maureen quando a cozinha estava de novo arrumada. - Hoje vou
levar os meus velhos ossos para a cama bem cedo. Fiquei empenada por estar tantas
horas sentada no chão. Vocês também, Mary Kate e Helen. Amanhã é dia de escola.
Scarlett também se sentia doloride. Espreguiçou-se à frente da lareira.
- Boa noite - disse.
- Fica um pouco - disse Colum -, enquanto eu acabo de fumar o meu cachimbo. O
Jamie também já está a bocejar, portanto vejo que está prestes a abandonar-me
também.
Scarlett sentou-se numa cadeira em frente de Colum, e Jamie fez-lhe afagou sua
cabeça ao passar em direção às escadas.
Colum deu uma tragada no cachimbo. O cheiro de tabaco era docemente acre.
- Junto a uma lareira acesa é um bom local para se conversar - disse ele,
passados alguns instantes. - Que é que há no espírito e no coração, Scarlett?
Ela deu um suspiro profundo.
- Não sei que fazer sobre o Rhett, Colum. Tenho medo de ter estragado tudo. - A
cozinha estava quente e com uma luz difusa, o cenário perfeito para ela abrir o
coração. Além disso, Scarlett tinha uma noção embaralhada que de, pelo fato de
Colum ser padre, tudo o que lhe dissesse seria mantido em se gredo do resto da
família, como se estivesse se confessando no pequeno e apertado confessionário na
igreja.
Começou pelo princípio, contando a verdade sobre o seu casamento. Não o
amava, pelo menos não sabia se amava. Estava apaixonada por outra pessoa.
E, depois, quando soube que era Rhett quem eu amava, ele já deixara de me
amar. Pelo menos foi o que ele disse. Mas não acredito que seja verdade, Colum; não
pode ser.
- Ele deixou-te?
- Sim. Mas depois deixei-o a ele. É sobre isso que me interrogo, se terei feito mal.
- Deixa ver se eu entendo bem... - Com infinita paciência, Colum desemaranhou o
emaranhado da história de Scarlett. Passava já bem da meia-noite quando jogou fora
os restos do tabaco do seu cachimbo há muito frio e o meteu no bolso.
- Fizeste exatamente o que devias ter feito, minha querida - disse ele. - Porque
usamos o colarinho ao contrário, algumas pessoas pensam que os padres não são
homens. Estão enganados. Eu consigo entender o teu marido. Consigo sentir uma
compaixão ainda maior pelo seu problema. É mais fundo e mais doloroso que o teu,
Scarlett. Está lutando contra si próprio, e para um homem forte pode ser uma batalha
violenta. Virá buscar-te e tens que ser generosa com ele quando ele vier, pois virá
ferido da batalha.
- Mas quando, Colum?
- Isso não te sei dizer. Mas sei uma coisa. É ele que tem que te procurar; tu não
podes fazer isso por ele. Ele tem que lutar contra si próprio sozinho, até enfrentar e
reconhecer a necessidade que tem de ti.
- Tens certeza de que ele virá?
- Disso tenho certeza. E agora vou para a cama. E tu faz o mesmo.

Scarlett aninhou-se contra a almofada e tentou combater o peso que sentia nas
pálpebras. Queria prolongar aquele momento, desfrutar da satisfação que a certeza de
Colum lhe tinha dado. Rhett iria encontrar-se com ela... talvez não tão depressa quanto
queria, mas ela podia esperar.
45
Scarlett não se agradou que Kathleen a acordasse na manhã seguinte. Depois
de ter ficado sentada até tão tarde conversando com Colum, preferia dormir mais.
- Trouxe-te o chá - anunciou Kathleen em voz suave. - E a Maureen pergunta se
queres ir com ela ao mercado, esta manhã.
Scarlett virou a cabeça para o outro lado e voltou a fechar os olhos.
- Não, acho que vou continuar a dormir. - Sentia que Kathleen pairava por ali. "Por
que razão aquela tonta não ia embora, deixando-a dormir?" - Que queres, Kathleen?
- Peço desculpa, Scarlett, mas gostaria de saber se vais te vestir. A Maureen
quer que eu vá no teu lugar, se não fores, e não sei quando estaremos de volta.
- A Mary Kate pode ajudar-me. - Scarlett resmungou para a almofada.
- Não pode, não. Há tempos que saiu para a escola. Já são quase nove horas.
Scarlett obrigou-se a abrir os olhos. Sentia-se capaz de dormir eternamente... se
a deixassem.
- Está bem - suspirou -, tira as minhas coisas. Vou usar o vestido de xadrez azul e
vermelho.
- Ah, ficas tão bonita com esse! - exclamou Kathleen, alegremente. Dizia sempre
o mesmo, fosse o que fosse que Scarlett escolhesse. Kathleen considerava-a a mulher
mais elegante e bela do mundo.
Scarlett bebeu o chá enquanto Kathleen lhe armava o cabelo num oito deitado, de
um lado ao outro da nuca. "Pareço um susto", pensou ela. Tinha resquícios de olheiras.
"Talvez devesse pôr antes o vestido cor-de-rosa, condiz mais com o meu tom de pele,
mas nesse caso a Kathleen teria que me apertar o espartilho, o cor-de-rosa tem a
cintura mais estreita, e a atenção dela está me deixando doida."
- Está ótimo - afirmou, quando foi colocado o último grampo no cabelo -, podes ir
embora.
- Queres mais uma xícara de chá?
- Não. Vai lá. - "Gostaria era de café", pensou. "Afinal, talvez devesse ir ao
mercado... Não, estou cansada demais para andar para cima e para baixo, para cima e
para baixo, olhando para tudo." Disfarçou as olheiras com pó-de-arroz e fez uma careta
a si própria, ao espelho, antes de descer para improvisar um desjejum. - Raios! -
exclamou, ao ver Colum, que lia o jornal na cozinha. Pensara que não havia mais
ninguém em casa.
- Vim pedir-te um favor - informou ele. Queria uma ajuda feminina na escolha das
coisas que levaria no regresso à Irlanda. - Para os rapazes e respectivos pais, consigo
sozinho, mas as donzelas são um mistério. A Scarlett deve saber, disse para mim
mesmo, qual a última moda na América.
A interpelada riu da expressão perplexa dele:
- Terei todo o gosto em ajudar, Colum, mas vais ter qu e me pagar... com um café
e um bolo na padaria da Rua Broughton.
- Já não se sentia nada cansada.

- Não sei por que me pediste que te acompanhasse, Colum! Não gostas de uma
única das coisas que sugeri. - Scarlett olhou exasperada para os montes de luvas de
pelica, lenços de assoar com rendas, meias em seda trabalhada, carteiras de contas
enfiadas, leques pintados, e cortes de seda, veludo e cetim. As assistentes tinham
exposto toda a melhor mercadoria da loja mais moderna de Savannah, e Colum
abanara a cabeça perante tudo.
- Peço desculpa por todo o trabalho que dei - disse este às assistentes, cujos
sorrisos eram amarelos. Ofereceu o braço a Scarlett. - Também te peço desculpa,
Scarlett. Receio não ter esclarecido suficientemente o que pretendia. Anda, vou pagar-
te a minha dívida; a seguir, tentamos outra vez. Um café vai cair bem.
Ia ser preciso mais que um café para fazer que ela lhe perdoasse aquela caça a
exmo! Scarlett ignorou ostensivamente o braço que lhe era oferecido e saiu da loja,
muito direita e a passo rápido.
A sua disposição melhorou quando Colum sugeriu que fossem tomar o café na
Pulaski House. Este enorme hotel estava muito na moda, e Scarlett nunca fora lá.
Depois de terem se sentado num sofá acolchoado a veludo, num dos salões de
recepção profusamente ornamentados e com colunas de mármore, ela olhou em redor
com satisfação:
- Isto é agradável - comentou alegremente, enquanto um criado de luvas brancas
pousava o serviço, numa bandeja de prata, sobre a mesa de tampo de mármore à sua
frente.
Com todos os teus adereços elegantes enquadras-te perfeitamente no meio
destes mármores grandiosos e das palmeiras em vasos - afirmou Colum, sorrindo. -
Por isso é que os nossos caminhos se cruzaram, em vez de viajarmos juntos. - As
pessoas na Irlanda, explicou, tinham vidas mais simples que as que Scarlett conhecia.
Até talvez mais simples do que ela era capaz de imaginar. Viviam nas suas quintas, no
campo, sem qualquer cidade perto, só uma aldeia com igrej a, ferreiro e estalagem,
onde parava a diligência. A única loja era uma divisão num canto da estalagem, onde
se podia enviar uma carta pelo correio, e comprar tabaco e alguns produtos
alimentares. Ocasionalmente, passavam caixeiros, que vendiam fitas, bugigangas e
carteiras de alfinetes. As pessoas divertiam-se indo a casa umas das outras.
- Mas é tal e qual como a vida nas plantações! - exclamou Scarlett. - Olha, Tara
fica a oito quilômetros de Jonesboro, e quando lá se chega não há muito mais que uma
estação e uma minúscula loja de mercearias.
- Oh, não, Scarlett. Nas plantações as casas são autênticas mansões, não
simples residências caiadas de agricultores.
- Não sabes de que é que estás falando, Colum O'Hara! A mansão dos Doze
Carvalhos, pertencente aos Wilkes, era a única em todo o Clayton County. A maior
parte das pessoas tem casas que começaram com poucas divisões e uma cozinha, a
que foi sendo acrescentado o que se foi tornando necessário.
Colum sorriu e admitiu a derrota. Em todo o caso, disse, as ofertas para a família
não podiam ser coisas de cidade. As jovens se sairiam melhor com um corte de
algodão do que de cetim, e não saberiam que fazer com um leque pintado.
Scarlett pousou a xícara no pires com um tilintar decidido:
- Chita! - exclamou. - Aposto contigo em como vão adorar chita. Há em todas as
espécies de padrões vivos e faz vestidos bonitos. Todas nós tínhamos chita para as
roupas de andar diariamente em casa.
- E botas - acrescentou Colum. Extraiu da algibeira um espesso papel e
desdobrou-o. - Tenho aqui os nomes e os números.
Scarlett riu perante as dimensões do papel:
- Com certeza que todos trataram de aproveitar a tua vinda, Colum.
- Como?
- Não ligue. É uma expressão americana. - Todos os homens, mulheres e
crianças de County Meath deviam ter posto o nome na lista de Colum, pensou. Era tal
e qual como a tia Eulalie: "Já que vais às compras, não te importas de me trazer uma
coisa?" Fosse como fosse, nunca se lembrava de pagar o que encomendava, e
Scarlett era capaz de apostar que os amigos irlandeses de Colum se revelariam
igualmente esquecidos. - Fala-me mais da Irlanda - pediu. Ainda havia muito café na
cafeteira.
- Oh, é uma ilha de uma beleza rara - disse Colum baixinho. Na sua voz
melodiosa, falou com amor de colinas verdejantes coroadas de castelos, de rios com
correntes impetuosas, orlados de flores e povoados de peixes saltitantes, de passeios
entre sebes perfumadas, sob uma chuva miudinha, de música por todo o lado, de um
céu mais amplo e mais alto que qualquer outro céu, com um sol tão suave e cálido
como um beijo de mãe...
- Pareces estar com tantas saudades da terra como a Kathleen.
Colum riu de si próprio:
- É verdade que não vou chorar quando o navio partir. Ninguém admira mais a
América que eu, e gosto de vir em visita, mas não vou derramar uma única lágrima
quando o navio partir de regresso para casa.
- Talvez derrame eu. Não sei o que farei sem a Kathleen.
- Então, não passes sem ela. Vem conosco, ver a terra dos teus antepassados.
- É coisa que não posso fazer.
- Seria uma grande aventura. A Irlanda é sempre bela, mas na Primavera a sua
ternura te despedaçaria o coração.
- Não preciso de ficar com o coração despedaçado, obrigada, Colum. Do que
preciso é de uma criada.
- Mando-te a Brigid, ela está ansiosa por vir. Suponho mesmo que devesse ter
sido a Brigid a vir, não a Kathleen, só que queríamos afastar esta.
Scarlett sentiu o cheiro da bisbilhotice:
- Por que haviam de querer afastar uma tal doçura de moça?
Colum sorriu:
- As mulheres e as suas questões - comentou. - São todas iguais, dos dois lados
do oceano. O homem que queria cortejá-la não contava com a nossa aprovação. Era
soldado, e ainda por cima pagão.
- Queres dizer, protestante. Ela amava-o?
O uniforme deu-lhe volta à cabeça, mas não passou disso.
- Pobre moça. Espero que ele esteja à sua espera quando regressar.
- Graças a Deus, o regimento já regressou à Inglaterra! Ele não vai voltar a
incomodá-la.
O rosto de Colum adquirira a dureza do granito. Scarlett manteve-se em silêncio.
- Então essa lista? - acabou por perguntar, desistindo de esperar que fosse
Colum a retomar a palavra. - É melhor voltarmos às nossas compras. Sabes, Colum, o
Jamie tem tudo o que queres na sua loja. Por que não vamos até lá?
Não posso pô-lo em apertos. Ele se sentiria obrigado a fazer-me um preço que o
prejudicasse.
- Francamente, Colum, tens um cérebro de mosca para os negócios! Mesmo que
o Jamie te venda ao preço de custo, ficará mais bem visto perante os seus
fornecedores, e obterá um desconto maior na próxima encomenda. - Riu do espanto de
Colum. - Eu própria tenho uma loja, sei do que estou falando. Deixa-me explicar-te...
Falou pelos cotovelos, enquanto se encaminhava para a loja de Jamie. Colum
ficou fascinado e obviamente impressionado, fazendo perguntas umas atrás das
outras.
- Colum! - ressoou a voz de Jamie assim que entraram na loja. - Estávamos
precisamente desejando poder falar contigo. Tio James, o Colum está aqui.
O velhote saiu do armazém com os braços abarrotados de tecidos para
bandeiras:
- És a resposta à nossa oração, rapaz - afirmou. - Qual é a cor mais conveniente?
- Deixou cair os tecidos em cima de um balcão. Eram todos verdes, mas de quatro tons
muito próximos.
- Este é o mais bonito - disse Scarlett.
Jamie e o tio pediram a Colum que escolhesse.
Scarlett ficou ofendida. Já lhes dissera qual era melhor.
Que entendia um homem do assunto, mesmo o Colum?
- Onde querem pôr? - indagou ele.
Por cima da vitrine, do lado de fora e do de dentro - elucidou Jamie.
Então, vamos ver ali, por causa da luz - sugeriu Colum.
Parecia tão sério como se fosse escolher a cor para imprimir dinheiro, pensou
Scarlett aborrecida. Para que tanta confusão?
Jamie reparou no amuo dela:
- É para a decoração do dia de São Patrício, Scarlett, querida. O Colum é que
deve dizer qual o que se aproxima mais do verde da folha de trevo branco. Já passou
tempo demais desde que vimos pela última vez essas plantas, tanto o tio James como
eu.
Os O'Hara falavam do dia de São Patrício desde que ela os conhecia.
- Quando é? - inquiriu, mais por delicadeza que por estar verdadeiramente
interessada.
Os três homens fitaram-na, abrindo a boca de espanto:
- Não sabes? - O velho James fez a pergunta com incredulidade.
- Não perguntaria se soubesse, não é?
- É amanhã - esclareceu Jamie -, amanhã mesmo. E, querida Scarlett, vai ser o
dia mais bem passado da tua vida!

Os irlandeses de Savannah - tal como todos os irlandeses, onde quer que se


encontrem - celebraram sempre o 17 de Março. Era o dia de festa do santo patrono da
Irlanda, e dia de festa tinha tanto o sentido secular como o canônico. Embora ocorresse
durante a Quaresma, não havia jejum no dia de São Patrício. O que havia era mesmo
comida, bebida, música e dança. As escolas católicas fechavam, e os negócios
católicos também, à exceção dos bares, que esperavam e obtinham um dos seus
melhores dias do ano.
Havia irlandeses em Savannah desde os seus primeiros tempos - os Jasper
Green tinham começado por participar na Revolução Americana - e o dia de São
Patrício sempre fora para eles um feriado importante. Porém, durante a lúgubre década
de depressão que se seguira à derrota do Sul, toda a cidade começara a participar. Dia
17 de Março havia o Festival da Primavera de Savannah, e, por um dia, todos eram
irlandeses.
Em todas as praças havia quiosques alegremente decorados, vendendo comida e
limonadas, vinho, café e cerveja. Malabaristas e homens com cães amestrados
reuniam multidões às esquinas das ruas. Havia violinistas tocando nas escadarias da
Câmara Municipal e de orgulhosas casas com torreões por toda a cidade. Fitas verdes
esvoaçavam de ramos de árvores floridas, trevos feitos de papel ou seda eram
vendidos em caixas que homens, mulheres e crianças transportavam de praça em
praça. Broughton Street estava ornamentada com bandeiras verdes nas vitrines e
trepadeiras verdejantes ligando os candeeiros de um lado ao outro da rua, de modo a
constituírem um dossel para o desfile.
- Desfile?! - exclamou Scarlett quando foi informada.
Levou a mão às rosetas de fita de seda verde que Kathleen lhe prendera ao
cabelo. - Estamos prontas? Pareço bem? É hora de irmos?
Era. Primeiro à missa da manhã, e depois à celebração durante todo o dia e parte
da noite.
- Jamie disse-me que vai haver fogos-de-artifício com estrelinhas no céu por cima
do parque, até uma pessoa ficar tonta com tanto esplendor - contou Kathleen. Tinha a
cara e os olhos brilhantes de excitação.
Os olhos verdes de Scarlett, tornaram-se repentinamente calculistas:
- Aposto que não há desfiles e fogos-de-artifício na tua aldeia, Kathleen. Que
pena, se não ficares em Savannah.
A jovem sorriu radiosa:
- Vou recordar-me para sempre e contar a história a todas as lareiras de todas as
casas. Uma vez em casa, vai ser algo de grandioso ter visto a América. Uma vez em
casa.
Scarlett desistiu. Não conseguia convencer aquela tonta.
As pessoas, todas com algo verde, alinhavam-se nos passeios de Broughton
Street. Scarlett soltou uma gargalhada ao avistar certa família. Com tanta criança
lavada usando gravata, lenço ou pena no chapéu, tudo verde, assemelhava-se imenso
à família O'Hara. Só que era constituída por negros.
- Eu não te disse que hoje eram todos irlandeses? - comentou Jamie com um
sorriso.
Maureen deu-lhe uma cotovelada:
- Até os metidos a besta andam de verde - disse-lhe, inclinando a cabeça na
direção de um par que se encontrava nas proximidades. Scarlett estendeu o pescoço
para ver. Santo Deus! Era o convencido advogado do avô, na companhia de um rapaz
que devia ser seu filho. Ambos tinham gravatas verdes. Ela olhou com curiosidade rua
acima, rua abaixo, para as pessoas sorridentes, à procura de outras caras conhecidas.
Lá estava Mary Telfair com um grupo de senhoras, todas com fitas verdes nos
chapéus. E Jerome! Onde fora ele arranjar um casaco verde, santo Deus?! Com
certeza, o avô não estava ali; "oh, meu Deus, faz que não esteja!" Se estivesse, faria
que o sol deixasse de brilhar. Não, Jerome estava com uma preta que usava uma faixa
verde. Imagine-se, o velho Jerome de cara de ameixa com uma namorada! E ainda por
cima pelo menos vinte anos mais nova.
Um vendedor ambulante distribuía limonadas e bolos de coco a todos os O'Hara,
a começar pelas crianças ansiosas. Quando chegou a ela, Scarlett aceitou com um
sorriso e deu uma dentada no bolo. Estava comendo na rua! Nenhuma senhora o faria,
mesmo que estivesse morrendo de fome. "É para que saibas, vovô!", pensou ela,
deliciada com a sua própria travessura. O coco era fresco, húmido, doce. Scarlett
gostou muito, apesar de ter perdido a emoção do desafio ao ver que Miss Telfair
mordiscava algo que mantinha entre o polegar e o indicador enluvados.
- Continuo a dizer que o vaqueiro de chapéu verde foi o melhor - insistia Mary
Kate. - Fez todos aqueles truques com a corda, e era tão bonito.
Só dizes isso porque ele sorriu para nós - troçou Helen. Dez anos era muito
pouco para se identificar com os sonhos românticos dos quinze. - O melhor foi a
jangada com os leprechauns dançando em cima.
- Não eram leprechauns, tonta. Não há leprechauns na América.
- Dançavam em volta de um grande saco de ouro. Ninguém teria um saco de ouro
a não ser leprechauns.
- És tão criança, Helen. Eram rapazes mascarados, mais nada. Não viste que as
orelhas eram falsas? Uma até caíra.
Maureen interveio, antes que a discussão se tornasse incontrolável:
- Foi um grande desfile, todo ele. Vamos, meninas, e não larguem a mão de
Jacky.

Desconhecidos da véspera, desconhecidos de novo no dia seguinte, na festa de


São Patrício todos juntavam as mãos e dançavam, juntavam as vozes e cantavam.
Partilhavam o sol, o ar, a música e as ruas.
- Que maravilha! - exclamou Scarlett, ao provar uma perna de galinha de um dos
quiosques de comida. E que maravilha! - disse, ao ver os trevos de giz verde sobre os
tijolos dos passeios de Chatham Square. - Que maravilha! - Sobre a poderosa águia de
granito com uma fita verde em torno do pescoço, no monumento Pulaski. - Que
maravilha, que maravilha, que maravilha de dia! - gritou, e rodopiou vezes sem conta,
até se deixar cair exausta num banco que acabava de ficar vago, ao lado de Colum. -
Repara, Colum, tenho um buraco na sola da bota. Na minha terra todo mundo diz que
se pode saber quais são as melhores festas por serem aquelas em que se dança tanto
que se dá cabo de um par de sapatos numa só noite. E hoje nem sapatos tenho, tenho
botas. Esta deve ser a melhor festa de sempre!
- É um grande dia, claro, e a noite ainda está para vir, com fogos-de-artifício e
tudo. Vais ficar desfeita, tal e qual a tua bota, Scarlett querida, se não descansares um
pouco. São quase quatro horas. Vamos agora um bocadinho para casa.
- Não quero ir. Quero dançar mais, comer mais porco de churrasco e um daqueles
sorvetes verdes, e provar aquela horrível cerveja verde que o Matt e o Jamie estiveram
bebendo.
- E podes fazer tudo isso logo à noite. Já reparaste, ou não, que o Matt e o Jamie
desistiram há uma hora ou mais?
- Maricas! - proclamou Scarlett. - Mas tu não és. És o melhor dos O'Hara, Colum.
Foi o que o Jamie disse, e com toda a razão.
Colum sorriu perante as suas faces coradas e olhos cintilantes.
- Só quero que te poupes - afirmou. - Scarlett, agora vou tirar-te a bota, a que tem
o buraco, levanta o pé. - Desapertou os atacadores da elegante bota de senhora em
pelica preta, tirou-a e virou-a ao contrário, para fazer cair areia e fragmentos de
conchas esmagadas. Depois, pegou num cone de sorvete que alguém jogara fora e
dobrou o papel espesso de modo a adaptá-lo à bota. - Isto já deve chegar até em casa.
Suponho, que tenhas lá mais botas.
- Claro que tenho. Ah, assim sinto-me muito melhor. Obrigada, Colum. Sabes
sempre o que fazer.
- O que sei neste preciso momento é que vamos para casa, bebemos uma xícara
de chá e descansamos.
Scarlett não o queria confessar, nem a si própria, mas estava cansada. Caminhou
lentamente ao lado de Colum pela Drayton Street, sorrindo às pessoas sorridentes que
enchiam a rua.
- Por que é que São Patrício é o padroeiro da Irlanda? - perguntou. - É santo de
mais algum lugar?
Colum piscou os olhos, surpreendido pela ignorância dela: - Todos os santos são
santos para todas as pessoas e todos os lugares do mundo. São Patrício é especial
para os irlandeses porque nos levou o Cristianismo quando ainda éramos vítimas das
mentiras dos druidas, e expulsou todas as cobras da Irlanda, para a tornar semelhante
ao Jardim do Paraíso sem a serpente. Scarlett riu:
- Estás inventando isso.
- Não estou, não. Não há uma única cobra em toda a extensão da Irlanda.
- Que maravilha. Detesto verdadeiramente as cobras!
- Devias mesmo vir comigo quando eu regressar, Scarlett. Gostarias da Antiga
Pátria. O navio só leva duas semanas e um dia até Galway.
- É muito rápido.
- Tem razão. Os ventos sopram na direção da Irlanda e levam para casa os
passageiros saudosos, à velocidade de uma nuvem voando pelo céu. É uma visão
grandiosa a do grande navio com todas as velas desfraldadas, ele quase dança sobre
as águas do oceano. As gaivotas brancas acompanham-no em vôo, quase até
perderem a terra de vista, mas nessa hora voltam para trás, chorando por não poderem
fazer a viagem completa. Os golfinhos substituem-nas, então, na escolta, e por vezes
uma grande baleia, que jorra como uma fonte, de espanto por ter um tão belo
companheiro coroado de velas. É uma experiência maravilhosa andar num barco à
vela. Uma pessoa sente-se tão livre que até parece que pode voar.
- Eu sei - concordou Scarlett. - É isso mesmo. Uma pessoa sente-se livre.

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46
Scarlett entusiasmou Kathleen ao usar o seu vestido de seda verde-água para as
festividades dessa noite no parque Forsyth, mas horrorizou a jovem ao insistir em
calçar as sapatilhas verdes de couro, em vez de botas:
- Mas a areia e os tijolos são ásperos, Scarlett, vão estragar as solas dos teus
sapatos tão elegantes!
- É mesmo isso que quero. Pretendo, uma vez na vida, dançar numa festa até
inutilizar dois pares de sapatos. Por favor, Kathleen, escova-me só o cabelo, e põe a
fita de veludo verde para segurá-lo. Quero senti-lo solto e esvoaçante enquanto estiver
dançando. - Dormira vinte minutos e sentia-se capaz de dançar até de madrugada.
O baile era na vasta esplanada de blocos de granito que rodeava a fonte, com a
água cintilante como jóias e sussurrando sob os ritmos alegres e entusiasmantes da
escocesa e a beleza melodiosa das baladas. Dançou uma escocesa com Daniel, e os
pezinhos nos delicados escarpins brilhavam como pequenas chamas verdes ao
descreverem os intrincados padrões da dança.,
- És uma maravilha, querida Scarlett! - gritou ele. Pôs as mãos em redor da
cintura, ergueu-a acima da sua própria cabeça e rodou, rodou, rodou, com os pés a
marcando o mesmo ritmo insistente do tambor. Scarlett abriu os braços e ergueu o
rosto para a lua, rodando, rodando sob a névoa prateada da fonte.
- É como me sinto esta noite - disse aos primos, quando o primeiro foguete voou
em direção ao céu e estourou numa chuva de estrelas que fizeram que a lua parecesse
pálida.
Scarlett mancava na quarta-feira de manhã. Tinha os pés inchados e arranhados.
- Não se preocupe - disse, quando Kathleen soltou exclamações referentes à
condição em que tinha os pés -, passei momentos maravilhosos. - Mandou Kathleen
para baixo assim que ela lhe apertou o espartilho. Ainda não queria falar de todos os
prazeres do dia de São Patrício; desejava rever todas as recordações lentamente,
sozinha. De fato, não faria grande diferença se chegasse um pouco atrasada para o
desjejum; de qualquer forma, hoje não iria ao mercado. Nem calçaria meias, se limitaria
a usar as chinelinhas de feltro, de andar em casa, onde permaneceria.
Não havia dúvida que eram muitos os degraus desde o segundo andar até a
cozinha. Scarlett nunca reparara nisso quando os descia correndo. Agora cada um
equivalia a uma punhalada de dor, se não pisasse com cuidado. Paciência. Valia a
pena ficar em casa um dia (ou mesmo dois), tendo tido um baile tão prazeroso. Talvez
pudesse pedir à Katie que fechasse a vaca no estábulo. Scarlett tinha medo de vacas,
sempre tivera. Porém, se Katie a fechasse, podia sentar-se no pátio. O ar primaveril
tinha um cheiro tão fresco e doce, vindo através das janelas abertas, que ela desejou
sair para o apanhar.
Pronto... estava quase no andar da sala: "Já andei mais de meio caminho. Quem
me dera conseguir ir mais depressa. Tenho fome."
Quando baixava catelosamente o pé direito até ao primeiro degrau do último
lance de escadas que conduzia à cozinha, o cheiro de peixe frito subiu ao seu
encontro. "Raios", pensou, "volta a ser tempo de abstinência. O que queria
verdadeiramente era bacon bem espesso."
De súbito, sem pré-aviso, o estômago contraiu-se e a garganta encheu-se.
Scarlett virou-se em pânico e precipitou-se em direção à janela. Segurou-se aos
cortinados abertos, com as mãos agarrando freneticamente, enquanto se debruçava da
janela e vomitava nas espessas folhas verdes da jovem magnólia do jardim. Os
vômitos repetiram-se, até ela ficar fraca, com a cara molhada de lágrimas e de suor
pegajoso. Depois deixou-se escorregar, desamparada, até ficar num monte infeliz,
caído no chão do corredor.
Limpou a boca com as costas da mão, mas esse fraco gesto em nada contribuiu
para apagar o sabor acre, amargo do interior. "Se ao menos pudesse beber um pouco
de água", pensou. Em resposta, o estômago contraiu-se e ela engasgou-se.
Scarlett abraçou-se pela cintura e chorou. "Ontem devo ter comido alguma coisa
deteriorada pelo calor. Vou morrer aqui mesmo, como um cão." A sua respiração era
difícil e arquejante. Se ao menos conseguisse desapertar o espartilho; este comprimia-
lhe o estômago dolorido, impedindo-a de inalar o ar de que necessitava. As rígidas
barbas de baleia pareciam constituir uma cruel e férrea prisão.
Nunca em toda a sua vida se sentira tão mal.
Ouvia as vozes dos familiares em baixo, Maureen perguntando onde ela estava,
Kathleen informando que não tardaria a descer. A seguir foi o ruído de uma porta, e ela
ouviu Colum. Também este perguntava por ela. Scarlett cerrou os dentes. Tinha que se
levantar. Tinha que descer. Não podia ser encontrada assim, babada como uma
criança, por se ter excedido na festa. Limpou as lágrimas das faces, com a bainha da
saia, e fez um esforço para se levantar.
- Aí vem ela - anunciou Colum quando Scarlett apareceu à porta. Correu logo na
sua direção. - Pobrezinha, Scarlett querida, parece que vens caminhando sobre vidros
partidos. Pronto, deixa-me pôr-te à vontade. - Pegou-lhe antes que ela pudesse dizer
palavra e transportou-a para a cadeira que Maureen rapidamente aproximara da
lareira.
Todos se atarefaram, esquecidos dos respectivos desjejuns, e no espaço de
breves segundos, Scarlett deu por si com os pés numa almofada e uma xícara de chá
nas mãos. Pestanejou para reprimir as lágrimas dos olhos, lágrimas de fraqueza e de
felicidade. Era tão bom que tomassem conta dela, que a amassem. Já se sentia mil
vezes melhor. Bebeu um cauteloso golinho de chá, e caiu bem.
Bebeu uma segunda xícara, e ainda uma terceira, e comeu uma fatia de pão
torrado. Contudo, afastou os olhos das frituras, peixe e batatas. Ninguém pareceu
reparar nisso. Havia movimento demais na organização dos livros e lancheiras das
crianças e no envio delas para a escola.
Quando a porta se fechou atrás delas, Jamie beijou Maureen na boca, Scarlett na
testa, Kathleen na face.
- Vou já para a loja - anunciou. - A decoração tem que ser retirada e o remédio
para as dores de cabeça posto em cima do balcão, onde todos os sofredores lhe
possam chegar com facilidade. Celebrar é formidável, mas o dia seguinte pode ser um
pesadelo.
Scarlett baixou a cabeça, para esconder o rosto corado.

- Agora deixa-te ficar onde estás, Scarlett - ordenou Maureen. - Kathleen e eu


limpamos a cozinha num instante, e depois vamos ao mercado, enquanto tu descansas
um pouco. Colum O'Hara, fica também onde estás, não quero os tuas botinas no meu
caminho. E também te quero debaixo dos meus olhos, já bem pouco te vejo. Se não
fosse o aniversário da velha Katie Scarlett, te suplicaria que não partisses tão cedo
para a Irlanda.
- Katie Scarlett? - interveio Scarlett.
Maureen deixou cair o esfregão que segurava:
- E ninguém se lembrou de te dizer? - exclamou. - A avó, cujo nome recebeste,
vai fazer cem anos no mês que vem.
- E continua com a língua tão afiada como quando era garota - afirmou Colum
com uma risadinha. - É algo de que todos os O'Hara se devem orgulhar.
- Vou estar em casa para a festa - disse Kathleen. Transbordava de felicidade.
- Ah, quem me dera poder ir - desejou Scarlett. - O paizinho costumava contar
tantas histórias sobre ela.
- Mas podes ir, Scarlett querida. E pensa na alegria da velhota.
Kathleen e Maureen precipitaram-se para junto de Scarlett, insistindo,
encorajando, convencendo-a, até que ela ficou tonta. "Por que não?", interrogou-se.
Quando Rhett a fosse buscar, teria que regressar a Charleston. Por que não adiar
um pouco mais? Detestava Charleston. Os vestidos sem graça, as intermináveis visitas
e reuniões, as muralhas de delicadeza que não lhe permitiam a entrada, as paredes de
casas decadentes e os muros de jardins dilapidados, que não lhe permitiam a saída.
Detestava a maneira de falar dos nativos de Charleston: as vogais monocórdicas e
arrastadas, a linguagem particular de primos e antepassados; as palavras e
expressões em francês, em latim, e Deus sabe em que outras línguas, a maneira como
todos conheciam lugares onde ela nunca fora, pessoas de quem ela nunca ouvira falar,
livros que ela nunca lera. Detestava a sua sociedade, os cartões de baile, as filas para
cumprimentos, o direito consuetudinário que ela devia conhecer e não conhecia, a
imoralidade que aceitavam, e a hipocrisia que a condenava por pecados que nunca
cometera.
"Não quero usar vestidos sem cor e dizer 'sim, minha senhora' a velhas cujos
avós maternos foram heróis famosos de Charleston ou qualquer coisa assim. Não
quero passar todas as manhãs de domingo ouvindo as minhas tias discutirem entre si.
Não quero ter que pensar que o baile de Santa Cecília é o suprassumo da vida. Prefiro
o dia de São Patrício."
Scarlett soltou uma gargalhada:
- Vou mesmo! - decidiu. Sentiu-se de repente muitíssimo bem, até do estômago.
Levantou-se para abraçar Maureen e quase nem sentiu a dor dos pés.
Charleston podia esperar até que ela regressasse. Rhett também podia esperar.
Deus sabia que ela já esperara muitas vezes por ele. Por que não visitar o resto da
família O'Hara? Eram só duas semanas e um dia, num navio à vela, até essa outra
terra. E ainda seria irlandesa e feliz por algum tempo, antes de se instalar de acordo
com as regras de Charleston.
Os seus delicados pés doloridos acompanharam o ritmo de uma escocesa.

Apenas dois dias mais tarde, conseguiu dançar horas seguidas na festa em honra
do regresso de Stephen de Boston. E não muito tempo depois encontrava-se numa
carruagem aberta, na companhia de Colum e Kathleen, a caminho das docas do cais
de Savannah.
Os preparativos não tinham custado nada. Os americanos não precisavam de
passaportes para entrarem nas ilhas britânicas. Nem sequer precisavam de cartas de
crédito, mas Colum insistiu em que obtivesse uma no seu banco.
- Só para estares prevenida - dissera. Não especificara para quê. Scarlett nem
queria saber. Estava fora de si com toda aquela aventura.
- Tens certeza que não perdemos o barco, Colum? - afligia-se Kathleen. -
Chegaste atrasado para nos buscar. Jamie e os outros saíram há uma hora para irem a
pé.
- Tenho certeza, tenho - acalmou-a Colum. Piscou um olho a Scarlett. - E, se me
atrasei um pouco, não foi culpa minha, visto que o grande Tom MacMahon quis brindar
ao bispo com um ou dois copos, e eu não podia insultá-lo.
- Se perdermos o barco, morro - gemeu Kathleen.
- Chiu, não te preocupes mais, Kathleen, meu anjo. O comandante não parte sem
nós; Seamus O'Brien é um amigo de muitos anos. No entanto, não será teu amigo se
chamares o Brian Boru de barco. É um navio, e por sinal dos melhores. Já vais ver.
Nesse momento a carruagem fez uma curva por baixo de um arco, e
mergulharam, em derrapagem e aos saltos, numa rampa escura, escorregadia,
empedrada. Kathleen gritou. Colum soltou uma gargalhada. Scarlett ficou sem fôlego
com a emoção.
Logo chegaram à beira-rio. O tumulto, a cor e a confusão eram ainda mais
excitantes que a abrupta descida até lá. Navios de todos os tamanhos e espécies
estavam atracados a protuberantes molhes de madeira, mais navios de que ela alguma
vez vira em Charleston. Carroças cheias, puxadas por fortes cavalos de carga, faziam
ressoar as suas rodas de madeira ou ferro sobre a vasta calçada, num ruído constante.
Homens gritavam. Barris rolavam por pranchas para cobertas de madeira com um
estrondo ensurdecedor. Um navio a vapor emitiu o seu apito estridente; outro tocou a
campainha ressonante. Uma fila de carregadores descalços percorria uma prancha de
embarque transportando fardos de algodão e cantando. Bandeiras de cores brilhantes
e estandartes vistosamente decorados oscilavam ao vento. Gaivotas desciam em vôo
picado e guinchavam.
O condutor da carruagem em que eles seguiam levantou-se e fez estalar o
chicote. O veículo avançou, pondo em fuga uma multidão de peões de boca aberta.
Scarlett riu sob o impacto do vento forte. Rodearam a alta velocidade uma falange de
barris que aguardavam a sua vez de serem carregados, passaram ruidosamente por
uma carroça lenta, e detiveram-se com um safanão.
- Espero que não esteja a contar com um pagamento extra pelos cabelos brancos
que me fez aparecer na cabeça - disse Colum ao condutor. Saltou para o chão e
estendeu a mão a Kathleen, para a ajudar a descer.
- Não te esqueceste da minha caixa, Colum? - perguntou ela.
- Todas as bagagens estão aqui há tempo, querida. Agora vai lá dar um beijo de
despedida nos teus primos. - Apontou na direção de Maureen. - É impossível não
notares aquela cabeça ruiva, que brilha como um farol. - Quando Kathleen se afastou
correndo, ele falou baixinho para Scarlett: - Não vais esquecer do que te disse sobre o
nome, não é, querida Scarlett?
- Não esqueço, não. - Ela sorriu, divertida com a conspiração inofensiva.
- Serás Scarlett O'Hara e nenhuma outra coisa, nesta viagem e na Irlanda -
dissera-lhe ele com uma piscadela de olhos. - Não tem nada a ver contigo, nem com os
teus, Scarlett querida, mas Butler é um nome de poderosa fama na Irlanda, e toda ela
atroz.
Scarlett não se importava nada. Ia deleitar-se em ser uma O'Hara durante tanto
tempo quanto possível.
Tal como Colum garantira, o Brian Boru era um dos melhores navios. O casco era
branco-brilhante, com ornamentação de arabescos dourados. Eram também dourados
os ornamentos da cobertura cor de esmeralda para as gigantescas rodas de pás, sobre
a qual estava pintado o nome em letras douradas, com mais de meio metro de altura,
enquadradas por setas igualmente douradas. A bandeira britânica esvoaçava no
respectivo poste, mas uma outra, de seda verde, com uma harpa dourada, acenava
corajosamente do mastro da proa. Tratava-se de um luxuoso navio de passageiros,
correspondendo aos gostos caros de americanos ricos em viagem à Irlanda por razões
sentimentais (para verem as aldeias onde tinham nascido avós emigrantes), ou por
ostentação (para visitarem, com estilo, as aldeias onde eles próprios nasceram). Salas
e salões eram excessivamente grandes e estavam excessivamente decorados. A
tripulação fora treinada no sentido de satisfazer todos os caprichos dos passageiros. O
porão era desproporcionadamente grande, quando comparado com os habituais nos
navios de passageiros, porque os americanos de origem irlandesa transportavam
consigo presentes para todos os familiares e regressavam com recordações múltiplas
das suas visitas. Os estivadores tratavam todas as malas e caixotes como se
estivessem cheias de vidros. E até era frequente estarem. Eram conhecidos casos de
esposas americanas, pertencentes a prósperas terceiras gerações de emigrantes
irlandeses, que iluminavam todas as salas das suas novas casas com candelabros de
cristal de Waterford.
Sobre a roda de pás fora construída uma vasta plataforma, com uma forte
balaustrada, da qual Scarlett, na companhia de Colum e mais alguns passageiros
aventurosos, acenou uma última despedida aos primos. No cais só tinha havido tempo
para uns adeuses apressados, porque o Brian Boru tinha que aproveitar a vazante.
Excitada, ela soprava beijinhos aos O'Hara amontoados. Naquela manhã não houvera
escola para as crianças, e até Jamie fechara a loja por uma hora para ele e Daniel irem
se despedir.
Ligeiramente para trás e ao lado dos outros estava o calmo Stephen, que ergueu
a mão uma só vez, num sinal para Colum.
Queria dizer que as malas de Scarlett tinham sido abertas e refeitas no caminho
para o navio. Entre as camadas de lenços, roupa interior e todos os gêneros de
vestidos, encontravam-se as espingardas bem acondicionadas e oleadas, e as caixas
de munições que ele adquirira em Boston.
Tal como os pais, avós e gerações anteriores, Stephen, Jamie, Matt, Colum, e até
o tio James, opunham-se todos com militância ao domínio inglês sobre a Irlanda. Havia
mais de duzentos anos que os O'Hara arriscavam as vidas para lutarem, por vezes
mesmo para matarem os seus inimigos, em pequenas ações abortadas, de partida
condenadas ao fracasso. Só nos últimos dez anos tinha começado a desenvolver-se
uma organização. Disciplinados e perigosos, financiados a partir da América, os
Fenianos estavam tornando-se conhecidos por toda a Irlanda. Eram heróis para os
camponeses irlandeses, anátema para os proprietários ingleses e, para as forças
militares inglesas, revolucionários só merecedores da morte.
Colum O'Hara era o mais bem sucedido angariador de fundos, e um dos
principais chefes clandestinos da Irmandade Feniana.
47
A torre

O Brian Boru passava majestosamente entre as margens do rio Savannah,


rebocado por dois barcos a vapor. Quando por fim chegou ao Atlântico, o seu apito
profundo saudou os rebocadores que se afastavam e as suas grandes velas foram
desfraldadas. Os passageiros aplaudiram quando a proa do navio mergulhou nas
ondas de um verde-acinzentado, junto da foz do rio, e as enormes rodas de pás
começaram a movimentar-se.
Scarlett e Kathleen ficaram lado a lado, vendo a costa baixa desvanecer-se
rapidamente numa mancha verde, até desaparecer.
"Que eu fiz?", perguntou-se Scarlett, agarrando-se à amurada, num pânico
momentâneo. Depois olhou para a frente, para a vastidão ilimitada de oceano salpicado
de sol, e o seu coração bateu mais forte, com o entusiasmo da aventura.
- Oh! - exclamou Kathleen. A seguir: - Ai! - gemeu.
- Que tens, Kathleen?
- Ai, tinha-me esquecido do enjoo - arquejou a jovem.
Scarlett conteve o riso. Passou um braço em torno da cintura de Kathleen e
conduziu-a ao camarote que partilhavam. Nessa noite, a cadeira da jovem à mesa do
comandante ficou vazia. Scarlett e Colum fizeram plena justiça à refeição generosa que
foi servida. Depois, Scarlett levou uma tigela de caldo à sua infeliz prima e deu-lhe
algumas colheres à boca.
- Fico boa dentro de um dia ou dois - prometeu Kathleen em voz fraca. - Não vais
precisar de cuidar de mim para sempre.
- Cala-te e bebe mais um gole - disse-lhe Scarlett. "Graças a Deus não tenho o
estômago delicado", pensou. "Até a intoxicação do dia de São Patrício já passou, do
contrário, não teria apreciado tanto o jantar."
Acordou abruptamente, quando no horizonte surgia a primeira claridade da
manhã, e correu frenética e desajeitadamente para o toalete adjacente ao camarote. Aí
deixou-se cair de joelhos e vomitou no receptáculo de porcelana com decoração floral e
tampa de mogno da instalação sanitária.
Não podia estar enjoada, não ela. Ela que gostava tanto de andar de barco.
Então, em Charleston, quando o minúsculo barco à vela trepava as ondas da
tempestade, nem sequer se sentira tonta, nem mesmo quando ele deslizara para o
topo da onda. Em comparação com isso, o Brian Boru era firme como uma rocha. Não
fazia idéia do que estaria se passando com ela...
... Lentamente, muito lentamente, a cabeça inclinada de Scarlett ergueu-se da sua
fraqueza decaída. A boca e os olhos abriram-se muito com a descoberta. A excitação
percorreu-a, quente e fortalecedora, e ela deu uma gargalhada.
"Estou grávida. Estou grávida! Já me lembro: é assim que uma pessoa se sente."
Scarlett recostou-se para trás, contra a parede, e abriu os braços, espreguiçando-
se o mais possível. "Oh, sinto-me maravilhosamente bem. Não quero saber do
estômago, sinto-me maravilhosa. Agora já tenho Rhett. É meu. Estou ansiosa por lhe
dizer."
Escorreram-lhe pelas faces súbitas lágrimas de felicidade, e levou as mãos à
cintura, para embalar protetoramente a nova vida que crescia no seu interior. Ah, como
desejava aquele bebê. O filho de Rhett. Filho de ambos. Seria forte, sabia, já lhe sentia
a minúscula força. Uma coisinha indomável, destemida, como Bonnie.
A mente de Scarlett inundou-se de recordações: a cabecinha de Bonnie, pouco
maior que a de uma gatinha, coubera-lhe na palma da mão. Nas grandes mãos de
Rhett cabia toda ela, como uma boneca. Como ele a amara! Com as costas largas
inclinadas para o berço, a voz profunda a emitindo tontos ruídos de conversa de bebê...
nunca em todo o mundo houvera homem tão deslumbrado por uma criança. Ia ficar tão
feliz quando ela lhe dissesse. Já lhe via os olhos escuros brilharem de alegria, o sorriso
branco iluminar-lhe o rosto de pirata.
Scarlett também sorriu, ao pensar nisso. "Estou igualmente feliz", pensou. "É
assim que se deve estar quando se vai ter um bebê, foi o que a Melly sempre disse."
- Oh, meu Deus - murmurou. "A Melly morreu tentando ter um, e eu fiquei com o
interior revolvido, disse o Dr. Mea depois do aborto. Por isso é que não dei por estar
grávida, nem reparei na falta a certa altura do mês, porque há tanto tempo que tenho
irregularidades. E se morrer por ter este bebê? Oh, meu Deus, por favor, por favor,
meu Deus, não me deixes morrer precisamente quando consigo obter aquilo que me é
necessário para ser feliz." Persignou-se repetidas vezes, numa confusão de súplica e
de superstição.
Até que abanou furiosamente a cabeça. Que estava fazendo? Não mais que
figura de boba. Era forte e saudável. Nada como a Melly. Ora, a mãezinha sempre
dissera que era uma autêntica vergonha a maneira como ela tinha bebês, só com um
pouco mais de dificuldade do que uma gata sem dono. Ia correr tudo bem, e ao bebê
também. A vida também lhe iria correr bem, com Rhett a amá-la, amando o filho de
ambos. Seriam a família mais feliz, com mais amor em todo o mundo. Santo Deus, nem
sequer pensara em Miss Eleanor. Falando em amor por bebês! Miss Eleanor ia inchar
tanto de orgulho que os botões lhe saltariam das casas. "Já a estou vendo na praça,
contando a todos, até ao velhote curvado que varre o lixo. Este bebê vai ser tema de
conversa em Charleston ainda antes de começar a respirar."
"...Charleston... Era para lá que eu devia ir. Não para a Irlanda. Quero ver Rhett,
dizer-lhe."
"Talvez o Brian Boru possa lá parar. O comandante é amigo do Colum; este pode
convencê-lo a fazer isso."
Os olhos de Scarlett cintilavam. Pôs-se de pé e lavou a cara, depois bochechou
para tirar o sabor amargo da boca. Era cedo para ir falar com Colum, pelo que voltou
para a cama e se sentou encostada às almofadas, fazendo planos.
Quando Kathleen se levantou, Scarlett estava dormindo, com um sorriso de
satisfação nos lábios. Não havia pressa, decidira. Não valia a pena falar com o
comandante. Podia ir conhecer a avó e a família irlandesa. Podia viver primeiro a
aventura de atravessar o oceano. Rhett fizera-a esperar por ele em Savannah. Bem,
agora podia esperar algum tempo para saber do bebê. Ainda havia meses e meses
antes de este nascer. Ela tinha o direito de se divertir um pouco antes de regressar a
Charleston. Tão certo como o destino, uma vez aí nem lhe seria permitido pôr o nariz
fora da porta. As senhoras no estado interessante nem deviam mexer uma palha.
Não, iria primeiro à Irlanda. Nunca se depararia com outra oportunidade.
Também aproveitaria ao máximo o Brian Boru. Com os outros bebês, os seus
enjoos matinais nunca tinham durado muito mais de uma semana. Já deviam estar
quase passando. Tal como a Kathleen, dentro de um dia ou dois estaria ótima.

A travessia do Atlântico no Brian Boru era como uma contínua noite de sábado na
casa dos O'Hara em Savannah... só que ainda mais. A princípio Scarlett adorou.
O navio não tardou a ficar repleto de passageiros que entraram em Boston e
Nova Iorque, mas não pareciam nada ianques, pensava Scarlett. Eram irlandeses e
orgulhosos disso. Dispunham da vitalidade que era tão atraente nos O'Hara, e
aproveitavam tudo o que o navio tinha para oferecer. Havia atividades para todas as
horas do dia: torneios de damas, acalorados concursos de patinação, participação
entusiástica em jogos de azar, como apostas quanto ao número de milhas que o navio
percorreria no dia seguinte. À noite, cantavam com os músicos profissionais, e
dançavam animadamente todas as danças irlandesas e valsas vienenses.
Mesmo depois de acabado o baile, continuavam os divertimentos. Havia sempre
uma partida de Whist no salão de jogos de cartas para senhoras, e Scarlett era sempre
procurada para parceira. À exceção do café racionado em Charleston, as apostas eram
mais elevadas do que ela alguma vez vira, e cada jogada constituía uma excitação. O
mesmo acontecia com os seus ganhos. Os passageiros do Brian Boru eram a prova
viva de que a América correspondia a uma terra de oportunidades, e não se
importavam de gastar a riqueza recentemente adquirida.
Também Colum beneficiava com as suas mãos rotas. Enquanto as senhoras
jogavam cartas, os homens costumavam retirar-se para o bar do navio, a fim de
beberem uísque e fumarem charutos. Aí, Colum fazia chegar lágrimas de comiseração
e orgulho a olhos habitualmente astutos e secos. Falava da opressão da Irlanda sob
domínio inglês, invocava todo o conjunto de mártires da causa da liberdade irlandesa, e
aceitava contribuições consideráveis para a Irmandade Feniana.
Uma travessia no Brian Boru era sempre um empreendimento lucrativo, e Colum
fazia a viagem pelo menos duas vezes por ano, apesar de o luxo excessivo dos
camarotes e as refeições generosas o enojarem secretamente, quando pensava na
pobreza e necessidades dos irlandeses da Irlanda.
Ao chegar o fim da primeira semana, também Scarlett encarava os seus
companheiros de viagem com um olhar de desaprovação. Tanto os homens como as
senhoras mudavam de trajes quatro vezes por dia, para mostrarem melhor a extensão
dos seus dispendiosos guarda-roupas. Scarlett nunca vira tantas jóias na sua vida.
Tentava convencer-se de que era motivo de satisfação ter deixado as suas no cofre do
banco de Savannah; não brilhariam junto das que todas as noites eram exibidas na
sala de jantar. No entanto, a verdade é que não sentia satisfação alguma. Habituara-se
a ter mais de tudo do que todas as pessoas que conhecia: uma casa maior, mais
criados, mais luxo, mais coisas, mais dinheiro. Ficava decididamente frustrada ao ver
exibições mais vistosas do que as suas alguma vez tinham sido. Em Savannah,
Kathleen, Mary Kate e Helen tinham sido engenhosamente óbvias na sua inveja, e
todos os O'Hara haviam alimentado a necessidade que ela sentia de ser admirada.
Aquela gente no navio não a invejava, nem sequer a admirava assim muito. Scarlett
não estava nada satisfeita com tais pessoas. Não suportava a idéia de todo um país
cheio de irlandeses, se fossem assim. Se ouvisse Wearing o' the Green nem que fosse
só mais uma vez, desatava aos gritos.
- Trata-se simplesmente de os novos-ricos americanos não te agradarem, Scarlett
querida - acalmou-a Colum. - É que tu és uma grande dama. - Foi a melhor coisa que
ele podia ter dito.
Uma grande dama era o que Scarlett tinha de ser depois de estas férias
terminarem. Aproveitaria esta última oportunidade de ser livre e depois regressaria a
Charleston, vestiria as suas roupas monótonas, assumiria o comportamento social dela
esperado, e seria uma senhora para o resto da vida.
Pelo menos a partir de agora, quando Miss Eleanor e todas as outras pessoas de
Charleston falassem das suas viagens à Europa antes da guerra, não se sentiria tão de
fora. Também não diria que não lhe tinha agradado. As senhoras não diziam isso.
Inconscientemente, suspirou.
- Então, querida Scarlett, não é assim tão mau - continuou Colum. - Vê as coisas
pelo lado melhor: na mesa de jogo estás limpando-lhes os bolsos bem fundos.
Ela riu. Era verdade. Estava ganhando uma fortuna... havia noites em que
chegava aos trinta dólares. E quando contasse a Rhett!? O que ele riria! Afinal, fora
jogador nos barcos do Mississipi durante algum tempo. Vendo bem, até era positivo
ainda haver uma semana de viagem. Não teria que tocar num tostão do dinheiro de
Rhett.
A atitude de Scarlett para com o dinheiro era uma complexa mistura de avareza e
generosidade. Fora a sua medida de segurança durante tantos anos, que cada tostão
da fortuna que tanto lhe custara a ganhar era guardado com suspeitas iradas de quem
quer que lhe exigisse, real ou imaginariamente, um dólar que fosse. E, todavia,
aceitava a responsabilidade de sustentar as tias e a família de Melanie sem a pôr em
questão. Tomara conta delas mesmo quando ignorava onde encontraria os meios para
tomar conta de si própria. Se se desse alguma calamidade imprevista, continuaria a
tomar conta delas, mesmo que isso a obrigasse a passar fome. Não pensava no
assunto; era simplesmente assim que as coisas se passavam.
O que sentia em relação ao dinheiro de Rhett era igualmente incoerente. Como
mulher dele gastava livremente na casa de Peachtree Street, com as suas despesas
prodigiosas, e no seu próprio guarda-roupa e em artigos de luxo. Contudo, o meio
milhão que lhe dera era diferente. Inviolável. Tencionava restituir-lhe intacto quando
voltassem a ser verdadeiramente marido e mulher. Ele oferecera-lhe como pagamento
pela separação, e Scarlett não podia aceitá-lo porque não podia aceitar a separação.
Incomodava-a ter tido que tirar algum dos cofres do banco para o levar na
viagem. Tudo acontecera tão depressa que não tivera tempo de mandar vir de Atlanta
parte do seu próprio dinheiro. No entanto, pusera um vale na caixa onde ficara o ouro
restante, em Savannah, e estava disposta a gastar o menor número possível das
moedas de ouro que agora lhe mantinham as costas direitas e a cintura fina, enchendo
os espaços do espartilho onde antes tinham estado tiras de aço. Era muito melhor
ganhar no Whist e ter o seu próprio dinheiro para gastar. Bem, numa semana, com um
pouco de sorte, acrescentaria pelo menos mais cento e cinquenta dólares à sua bolsa.
Porém, não deixaria de ficar satisfeita quando a viagem terminasse. Mesmo com
todas as velas inchadas pelo vento, o Brian Boru era grande demais para ela sentir a
emoção que recordava de quando cavalgara a tempestade no porto de Charleston. E
nem um golfinho avistara, apesar das poéticas promessas de Colum.
- Lá estão, Scarlett, querida! - A voz de Colum, habitualmente calma e melodiosa,
elevou-se numa excitação; pegou o braço de Scarlett e arrastou-a para a amurada do
navio. - A nossa escolta chegou. Não tardaremos a ver terra.
Por cima, as primeiras gaivotas rodeavam o Brian Boru. Scarlett abraçou
impulsivamente Colum. E o fez de novo quando este apontou para as elegantes formas
prateadas, muito perto, no mar. Afinal sempre havia golfinhos.
Muito mais tarde, ficou entre Colum e Kathleen, tentando segurar o chapéu na
cabeça, sob o ataque de forte ventania. Estavam entrando no porto, usando a força do
vapor. Scarlett fitava atônita a ilha de rocha a estibordo. Parecia impossível que alguma
coisa, mesmo a imponente muralha de pedra escabrosa, conseguisse suportar o
ataque das ondas rebentando, batendo nela e atirando espuma branca a toda a sua
altura. Estava habituada às colinas arredondadas de Clayton County. Aquele penhasco
elevado era a visão mais exótica que alguma vez tivera.
- Ninguém tenta viver ali, não é? - perguntou a Colum.
Não há ponta de terra que seja desperdiçada na Irlanda - respondeu ele. -
Todavia, tem que se ser de uma raça corajosa para se viver em Inishmore.
- Inishmore. - Scarlett repetiu o belo e estranho nome. Tinha um som musical. E
não se assemelhava a nenhum outro nome que ela alguma vez tivesse ouvido.
A seguir ficou em silêncio; o mesmo aconteceu com Colum e Kathleen; cada um,
imerso nos seus pensamentos, olhava para a vasta extensão de cintilantes águas azuis
da baía de Galway,
Colum via a Irlanda à sua frente, e o coração enchia-se de amor por ela e de dor
pelos seus sofrimentos. Tal como fazia repetidamente, a cada dia que passava,
renovou o voto de destruir os opressores do seu país e de o restituir ao seu próprio
povo. Não estava preocupado com as armas escondidas nas malas de Scarlett. Os
funcionários da alfândega de Galway concentravam-se principalmente nas cargas dos
navios, assegurando-se de que eram pagos os direitos devidos ao governo britânico.
Olhariam com desprezo para o Brian Boru. Era o que sempre faziam. Os irlandeses
bem sucedidos na América gratificavam o sentimento de superioridade que tinham para
com ambos - os irlandeses e a América. Mesmo assim, fora uma sorte, pensava
Colum, ter conseguido convencer Scarlett a sair. A sua roupa de baixo era muito
melhor para esconder armas do que as dúzias de botas americanas e as chitas que
comprara. E ela até talvez abrisse um pouco os cordões da bolsa ao ver a pobreza do
seu próprio povo. As esperanças não eram muitas: Colum era realista, e logo
percebera o carácter de Scarlett. Não gostava menos dela por ser tão impensadamente
egoista. Era padre, e as fraquezas humanas eram perdoáveis... desde que os humanos
não fossem ingleses. De fato, mesmo quando estava manipulando Scarlett, gostava
dela, tal como gostava de todos os O'Hara.
Kathleen agarrava-se com força à amurada do navio. "Era capaz de saltar borda
fora e nadar, se não me agarrasse", pensava, "tal é a felicidade de estar me
aproximando da Irlanda, que sei ser capaz de nadar mais depressa que o navio. A
minha terra. A minha casa. Que maravilha!"
Scarlett respirou fundo, emitindo um guinchinho. Havia um castelo naquela ilhota
baixa. Um castelo! Não podia ser outra coisa, tinha uns dentes em cima. Que importava
que estivesse meio destruído? Era, realmente, verdadeiramente, um castelo, tal como
as gravuras dos livros para crianças. Estava ansiosa por descobrir como era aquela
Irlanda.
Quando Colum a ajudou a descer a prancha de desembarque, compreendeu que
entrara num mundo completamente diferente. Havia muito movimento nas docas, tal
como nas de Savannah, e elas eram barulhentas, cheias de gente, perigosas, com
carros apressados e estivadores a carregarem e descarregarem barris, caixotes e
fardos. Contudo, os homens eram todos brancos e gritavam uns para os outros numa
língua que nada lhe dizia.
- É gaélico, a antiga língua irlandesa - explicou Colum -, mas não precisas te
preocupar, Scarlett querida. O gaélico já quase não é conhecido em nenhum lugar da
Irlanda a não ser aqui no Ocidente. Todo mundo fala inglês; não terás problemas.
Como para o desacreditar, um homem falou para ele com uma pronúncia tão
acentuada que Scarlett a princípio nem percebeu tratar-se da língua inglesa.
Colum riu quando ela lhe contou.
- Tem um som esquisito, é, bem verdade - concordou -, mas garanto-te que é
inglês. E mesmo inglês tal como os ingleses o falam, todo o nariz, como se ele os
estivesse estrangulando. Tratava-se de um sargento do Exército de Sua Majestade.
Scarlett soltou uma risadinha:
- Pensei que fosse vendedor de botões. - O casaco do uniforme do sargento,
elaboradamente decorado, curto e estreito, tinha à frente mais de uma dúzia de
espessas tiras douradas, entre pares de botões de latão muito polido. Parecera-lhe
uma máscara. Enfiou a mão no braço de Colum. - Estou encantada por ter vindo -
afirmou. E estava. Tudo era tão diferente, tão novo. Não admirava que as pessoas
gostassem tanto de viajar.
- As nossas bagagens serão levadas para o hotel - anunciou Colum ao regressar
junto do banco onde deixara Scarlett e Kathleen sentadas. -Está tudo combinado.
Então, amanhã estaremos a caminho de Mullingar e de casa.
- Quem me dera que pudéssemos ir já - comentou Scarlett, esperançosamente. -
Ainda é cedo, pouco passa do meio-dia.
- Mas o trem partiu às oito, Scarlett querida. O hotel é bom, e também tem uma
boa cozinha.
- Recordo-me - disse Kathleen. - Desta vez vou fazer justiça a todos aqueles
doces especiais. - Estava radiante de felicidade, dificilmente reconhecível como a
jovem que Scarlett conhecera em Savannah. - Na viagem de ida sentia-me triste
demais para engolir fosse o que fosse. Oh, Scarlett, nem podes imaginar o que
significa para mim sentir a terra da Irlanda sob os meus pés. Tenho vontade de me pôr
de joelhos e beijá-la.
- Venham, as duas - chamou Colum. - Vamos ter concorrência para apanhar um
fiacreyy, porque hoje é sábado e dia de mercado.
- Dia de mercado? - repetiu Scarlett, qual eco.
Kathleen bateu palmas:
- Dia de mercado numa cidade grande como Galwayl Oh, Colum, deve ser uma
coisa grandiosa.
Ultrapassava a imaginação, era "grandioso", excitante e estranho para Scarlett.
Toda a praça relvada em frente do Hotel da Estação estava cheia de vida, uma vida
que se manifestava em cor. Quando o fiacre os deixou à porta do hotel, ela pediu logo
a Colum que fossem para lá, sem ligarem aos quartos, nem ao jantar. Kathleen fez-se
eco do mesmo desejo:
- Há muita comida nas barracas, Colum, e quero levar meias para oferecer às
pequenas. Não há parecidas na América, senão já as tinha comprado. A Brigid está
quase consumida por falta de meias, sei bem.
Colum sorriu.
- E a própria Kathleen O'Hara também deve estar um pouco consumida, não me
admiraria nada. Está bem, pronto. Vou tratar dos quartos. Tu te encarregas da prima
Scarlett, para que ela não se perca. Têm dinheiro?
- Algum, Colum. Jamie me deu.
- Isso é dinheiro americano, Kathleen. Não o podes gastar aqui.
Scarlett agarrou em pânico o braço de Colum. Que queria ele dizer? O seu
dinheiro não valia nada ali?
- Não é do mesmo gênero, é só, Scarlett querida. Vais achar o dinheiro inglês
muito mais confuso. Eu trato dos câmbios para todos nós. Quanto queres?
- Tenho todos os meus ganhos do Whist. Em notas verdes - disse estas últimas
palavras com desprezo e zanga. Todo mundo sabia que as notas verdes não valiam os
números nelas escritos. Devia ter obrigado as derrotadas a pagarem-lhe em prata ou
ouro. Abriu a bolsa e extraiu o maço de notas dobradas, de cinco, dez e um dólar. -
Troca-as, se puderes - pediu, entregando o dinheiro a Colum. Este ergueu a
sobrancelha.
- Tanto? Ainda bem que nunca me pediste que jogasse cartas contigo, querida
Scarlett. Deves ter aqui quase duzentos dólares.
- Duzentos e quarenta e sete.
- Olha para isto, Kathleen, meu anjo. Nunca mais verás uma tal fortuna toda junta.
Queres segurá-la?
- Oh, não, não me atreveria - recuou, de mãos atrás das costas, com os olhos
muito abertos fixos em Scarlett.
"Até parece que eu é que sou verde e não o dinheiro", pensou esta, pouco à
vontade. Duzentos dólares não era assim tanto. Pagara quase isso pela suas peles.
Com certeza Jamie devia fazer pelo menos duzentos dólares por mês na sua loja.
Kathleen estava exagerando.
- Tomem. - Colum estendia a mão. - Estão aqui uns xelins para cada uma. Podem
fazer umas compras enquanto eu vou ao banco, depois encontramo-nos naquela
barraca de empadas para comermos qualquer coisa. - Apontou para uma bandeira
amarela, que flutuava no centro da agitada praça.
Os olhos de Scarlett seguiram a direção do dedo e sentiu um baque no coração: a
rua entre a escadaria do hotel e a praça estava enchendo-se de gado em movimento
lento. Não ia conseguir atravessar!
- Eu trato disso, para as duas - assegurou Kathleen. - Aqui estão os meus
dólares, Colum. Vamos, Scarlett, me dá a mão.
A jovenzinha tímida que Scarlett conhecera em Savannah desaparecera.
Kathleen estava no seu ambiente. Tinha as faces e os olhos brilhantes. E o sorriso era
tão intenso como o sol, lá em cima, no céu.
Scarlett tentou dar uma desculpa, protestar, mas Kathleen manteve-se irredutível.
Passou por entre a manada, arrastando Scarlett atrás de si. Numa questão de
segundos, chegaram à relva da praça. Scarlett não teve tempo de gritar de medo, no
meio das vacas, nem de gritar de fúria, com Kathleen. E, uma vez na praça, ficou
fascinada demais para se lembrar do medo ou da fúria. Gostava dos mercados de
Charleston e Savannah pela sua atividade, cor e exibição de produtos. Porém, nada
era em comparação com um dia de mercado em Galway.
Para onde quer que olhasse, estava acontecendo alguma coisa. Homens e
mulheres regateavam, compravam, vendiam, discutiam, riam, louvavam, criticavam,
conversavam - tendo por objeto ovelhas, galinhas, galos, ovos, vacas, porcos,
manteiga, natas, cabras, burros, etc.
- Que fofos! - exclamou Scarlett ao ver cestos com leitõezinhos rosados,
guinchando... burrinhos peludos, com as orelhas compridas orladas de cor-de-rosa... e
(repetidas vezes) os vestidos coloridos usados pelas dúzias de mulheres jovens e
garotinhas. Ao ver a primeira, pensou que ela estava mascarada; depois viu outra, e
outra, e ainda outra, até perceber que estavam quase todas vestidas de maneira muito
semelhante.
Não admirava que Kathleen tivesse falado em meias! Para onde quer que
olhasse, Scarlett via tornozelos e pernas com riscas brilhantes: azuis e amarelas,
encarnadas e brancas, amarelas e encarnadas, brancas e azuis. As jovens de Galway
usavam sapatos de cabedal, recortados e com saltos baixos, não botas, e tinham as
saias dez a quinze centímetros acima dos tornozelos. E que saias! Largas, oscilantes,
de cores vivas como as meias, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas. As blusas eram
de tons mais escuros, mas também coloridas, com largas mangas abotoadas, e sobre
elas punham lenços de linho branco, engomados, que prendiam à frente com alfinetes
segurança. - Também quero meias, Kathleen! E uma das saias. E uma blusa e lenço.
Tenho que ter roupa assim. É encantadora!
Kathleen sorriu de prazer:
- Então, gostas da roupa irlandesa, Scarlett? Ainda bem. As tuas coisas são tão
elegantes que pensei que ririas das nossas.
- Quem me dera poder vestir-me assim todos os dias. É assim que te vestes
quando estás em casa? Moça de sorte, não admira que tivesses querido voltar.
- Estes são os melhores trajes, para virem ao mercado e atraírem os olhares dos
rapazes. Também vou te mostrar as coisas de todos os dias. Anda. - Kathleen agarrou
o pulso de Scarlett e conduziu-a por entre o amontoado de pessoas, tal como a
conduzira por entre as vacas. Perto do centro da praça havia mesas (tábuas sobre
tripés) cheias de adereços femininos. Scarlett arregalou os olhos. Queria comprar tudo
o que via. "Tantas meias... xales maravilhosos, tão suaves ao toque... Santo Deus, que
rendas! E na, a minha modista de Atlanta era capaz de vender a alma para colocar as
mãos em rendas tão ricas e pesadas como estas." Lá estavam elas, as saias! Ah, que
lindas, como ela ficaria bem com aquele tom de vermelho... e com a azul, também. Mas
atenção... havia outro azul na mesa ao lado, um azul mais escuro. Qual seria melhor?
Ah, vermelhos mais claros mais adiante...
Sentiu-se tonta com a fartura de opções. Tinha que tocar em todas; a lã era tão
macia, espessa, viva com calor e cor, sob a sua mão enluvada. Rapidamente, sem
querer saber das conveniências, descalçou uma luva, para poder sentir as lãs tecidas.
Não se assemelhavam a nenhum material que já tivesse tocado.
- Tenho estado à espera junto das empadas, com água na boca, devido à fome -
afirmou Colum. Pousou-lhe a mão no braço. - Não te aflijas, Scarlett querida, podes
voltar aqui. - Ergueu o chapéu e cumprimentou as mulheres vestidas de preto que se
encontravam por detrás das mesas: - Que o sol brilhe sempre sobre os vossos belos
trabalhos - disse. - Peco-vos desculpa em nome aqui da minha prima americana. Ela
ficou sem fala, de admiração. Agora vou dar-lhe de comer e, se aprouver a Santa
Erigida, no regresso já conseguirá falar com vocês.
As mulheres sorriram para Colum, deram mais umas olhadelas de lado a Scarlett
e disseram:
- Obrigada, reverendo - enquanto ele a afastava.
A Kathleen contou-me que tinhas ficado completamente atarantada - disse Colum
com uma risadinha. - Puxou-te uma dúzia de vezes pela manga, pobre menina, mas
nem para ela olhaste.
- Esqueci-a completamente - confessou Scarlett. - Nunca tinha visto tantas coisas
maravilhosas de uma só vez. Pensei em comprar umas roupas para me mascarar em
alguma festa. Mas não sei se consigo esperar para usar. Diz a verdade, Colum, achas
que enquanto estiver aquipoderei vestir-me como as jovens irlandesas?
- Não creio que devas fazer outra coisa, Scarlett querida..
- Que divertido! Que férias maravilhosas, Colum. Estou tão satisfeita por ter vindo.
- Todos nós estamos, prima Scarlett.
Ela não entendia nada do dinheiro inglês. A libra era de papel e pesava menos de
uma onça. O dinheiro era enorme, do tamanho de um dólar de prata, e a moeda de
dois dinheiros era mais pequena que a de um. Além disso, ainda havia moedas de
meio-dinheiro e outras chamadas xelins... Era tudo confuso demais. Em todo o caso,
também não tinha importância, era tudo de graça, dos ganhos do Whist. A única coisa
que contava era que as saias custavam dois desses xelins, os sapatos um. As meias
só valiam dinheiros. Scarlett passou a bolsa cheia de moedas para as mãos de
Kathleen:
- Faz que eu pare antes de esgotar o dinheiro - disse, e começou a fazer
compras.
Todos três iam carregadíssimos quando chegaram ao hotel. Scarlett comprara
saias de todas as cores e pesos - as mais finas também eram usadas por debaixo das
outras, dissera-Ihe Kathleen -, e dúzias de meias (para si própria, para Kathleen, para
Brigid, para todas as outras primas que ia conhecer). Também tinha blusas, e metros e
metros de rendas, largas, estreitas e transformadas em golas, lenços e capinhas muito
engraçadas. Havia uma capa azul, comprida, com capuz, mais uma vermelha, porque
não conseguira decidir-se, mais uma preta, porque Kathleen dissera que a maior parte
das pessoas usava preto todos os dias, e uma saia preta pela mesma razão, podendo
ser usada com outras coloridas por baixo. Lenços de pescoço, blusas e saiotes de
linho... um linho como ela nunca vira... e seis dúzias de lenços de assoar em linho.
Pilhas de xales; perdera-lhes a conta.
- Estou esgotada - gemeu Scarlett, feliz, deixando-se cair na poltrona estofada da
saleta, na suite que partilhava com Kathleen. Esta pôs-lhe no colo o dinheiro. Ainda
estava cheio até mais de metade. - Deus meu! - exclamou Scarlett -, vou mesmo gostar
da Irlanda!
Scarlett estava entusiasmada com as suas "máscaras" coloridas. Tentou
convencer Kathleen a "mascarar-se" com ela e voltarem à praça, mas a jovem foi
delicadamente firme na sua recusa:
- Vamos jantar tarde, Scarlett, conforme o hábito inglês do hotel, e amanhã temos
de partir cedo. Há muitos dias de mercado; temos um todas as semanas na vila, perto
da nossa aldeia.
- Mas não é como o de Galway, a julgar pelo que tu disseste - observou Scarlett,
desconfiada. Kathleen admitiu que a vila de Trim era muito, muito mais pequena.
Mesmo assim, não queria voltar à praça. Scarlett, de má vontade, deixou de insistir.
A sala de jantar do Hotel da Estação era conhecida pela ótima comida e pelo
excelente serviço. Dois criados de libré sentaram Kathleen e Scarlett a uma grande
mesa, junto de uma janela de sacada, protegida por numerosas cortinas, e depois
ficaram atrás das cadeiras, para as servirem. Colum tinha que se contentar com o
criado de casaca que se ocupava da mesa. Os O'Hara encomendaram um jantar de
seis pratos, e Scarlett estava fazendo todas as honras a um filé do famoso salmão de
Galway, com um molho muito delicado, quando ouviu música na praça. Afastou o
reposteiro de pesadas franjas, o cortinado de seda por baixo, e a espessa cortina de
renda ainda por baixo:
- Já sabia! - anunciou. - Bem que achei que devíamos voltar para lá. Estão
dançando na praça. Vamos imediatamente.
- Scarlett, querida, ainda agora começamos a jantar - argumentou Colum.
- Conversa fiada! Todos nós comemos quase até jogar fora no navio; a última
coisa de que precisamos é de outro jantar interminável. Quero vestir a minha roupa e ir
dançar.
Nada a dissuadiria.

- Não estou te compreendendo, Colum - comentou Kathleen. Os dois estavam


sentados num dos bancos da praça, perto do baile, para o caso de Scarlett se meter
em apuros.
Com uma saia azul sobre saiotes vermelho e amarelo, ela dançava a escocesa
como se tivesse nascido sabendo.
- Então, que é que não compreendes?
- Afinal, por que é que estamos neste grande hotel inglês, como reis e rainhas? E,
já que estamos, por que é que pudemos comer o nosso jantar especial? É o último que
teremos, bem o sei. Não podias ter dito à Scarlett: "Não, não vamos", como eu fiz?
Colum pegou-lhe na mão entre as suas:
- A questão, minha querida irmãzinha, é que a Scarlett ainda não está preparada
para a verdade da Irlanda, nem dos O'Hara de cá. Espero facilitar-lhe as coisas. É
melhor que considere o uso de roupas irlandesas como uma aventura alegre, do que
chore ao saber que as suas saias de boa seda vão ficar cheias de porcaria. Está ali
conhecendo verdadeiros irlandeses e os achando agradáveis na dança, apesar das
suas roupas ásperas e mãos sujas. É um grande acontecimento, embora eu preferisse
estar dormindo.
- Mas amanhã vamos para casa, não vamos? - A ansiedade de Kathleen
palpitava na pergunta.
Colum apertou-lhe a mão:
- Vamos para casa amanhã, prometo-te. No trem, porém, iremos em primeira
classe, e não deves fazer observações quanto a isso. Além disso, vou instalar a
Scarlett na casa da Molly e do Robert, e não deves dizer palavra sobre o assunto.
Kathleen cuspiu para o chão:
- Isto é para a Molly e o seu Robert. No entanto, desde que seja a Scarlett a ficar
com eles e não eu, estou disposta a manter a boca calada.
Colum franziu a testa, mas não para a irmã. O par de Scarlett naquele momento
estava tentando abraçá-la. Colum não tinha chance de saber que Scarlett era
especialista desde os quinze anos em atrair as atenções dos homens e lhes fugir. Ele
pôs-se rapidamente em pé e dirigiu-se para a zona do baile. Antes de lá chegar, já
Scarlett se libertara do seu admirador. Correu para Colum:
- Vieste finalmente dançar comigo?
Ele pegou-lhe nas mãos estendidas:
- Vim buscar-te. Já passa da hora de dormir.
Scarlett suspirou. As suas faces coradas pareciam de um vermelho-vivo sob a
lanterna de papel cor-de-rosa que estava pendurada por cima. Por toda a praça, luzes
de cores brilhantes oscilavam dos ramos de árvores altas e de copas largas. Com os
violinos tocando e a vasta multidão rindo e falando enquanto dançava, ela não ouvira
exatamente o que Colum dissera, mas a intenção era clara.
Também sabia que ele tinha razão, mas detestava a idéia de parar de dançar.
Nunca antes conhecera uma liberdade tão esfusiante, nem sequer no dia de São
Patrício. A roupa irlandesa não era feita para usar com espartilho, e Kathleen só lhe
apertara o suficiente para não lhe cair aos pés. Podia dançar eternamente e nunca
perder o fôlego. Parecia que nada a continha, absolutamente nada.
Colum estava com aspecto cansado, apesar do brilho cor-de-rosa do candeeiro.
Scarlett sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça. Haveria muito mais bailes.
Estaria na Irlanda durante duas semanas, até depois de a avó celebrar o seu
centésimo aniversário. A Katie Scarlett original. "Não perderia essa festa por nada
deste mundo!"

"Isto faz muito mais sentido do que os nossos trens", pensou Scarlett ao ver todas
as portas abertas para os compartimentos individuais. Que agradável ter uma salinha
própria, em vez de se ficar num vagão com um monte de passageiros estranhos.
Também não se andava sempre pelo corredor, para entrar e sair, nem havia pessoas
quase caindo no colo de outras, ao passarem pelos lugares destas. Sorriu alegremente
para Colum e Kathleen:
- Gosto dos trems irlandeses. Gosto de tudo na Irlanda. - Instalou-se
confortavelmente no assento fofo, ansiosa por sair da estação para poder ver a
paisagem. Com certeza seria diferente da americana. A Irlanda não a desiludiu.
- Céus, Colum - comentou, depois de uma hora de viagem -, este país está
positivamente polvilhado de castelos! Há praticamente um em cada colina, e também
alguns na planície. Por que é que estão todos a caindo? Por que é que as pessoas não
vivem neles?
- Na maior parte dos casos são muito antigos, Scarlett, querida, têm quatrocentos
anos ou mais. As pessoas arranjaram formas mais cômodas de viverem.
Ela concordou com um aceno de cabeça. Fazia sentido. Devia ter havido muitas
corridas escada acima, escada abaixo naquelas torres. Não deixavam porém de ser
extremamente românticos. Voltou a comprimir o nariz contra a janela:
- Ah! - exclamou. - Que pena! Acabou-se a minha observação de castelos. Está
começando a chover.
- Já pára - prometeu Colum.
O que aconteceu, antes de chegarem à estação seguinte.
- Ballinasloe - Scarlett leu o nome em voz alta. - Que lindos nomes que as vossas
vilas têm. Como se chama a terra onde vivem os O'Hara?
- Adamstown - respondeu Colum. Riu da expressão no rosto de Scarlett. - Não,
não é muito irlandês. Mudava-o para ti, se pudesse, mudava-o para todos nós, se
pudesse. Contudo, o dono é inglês e não gostaria.
- Uma pessoa é dona da vila inteira?
- Nem sequer é vila, o nome é só jactância inglesa. Até mal consegue ser aldeia.
Recebeu o nome do filho do inglês que a construiu, um presentinho para o Adam, foi o
que a propriedade constituiu. Desde então foi herdada pelo filho, neto, etc. O que a tem
agora nunca a vê. Vive quase sempre em Londres. O seu procurador que se ocupa de
tudo.
Havia algum azedume nas palavras de Colum. Scarlett decidiu ser melhor não
fazer perguntas. Contentou-se em procurar castelos.
Precisamente quando o trem começou a abrandar para a estação seguinte, viu
um enorme, que não estava nada em ruínas. Com certeza alguém lá vivia! Um
cavaleiro? Um príncipe? Longe disso, informou Colum; era o quartel de um regimento
do exército britânico.
"Oh, desta vez com certeza que falei besteira!", pensou Scarlett. As faces de
Kathleen estavam em chamas.
- Já arranjo chá para todos - disse Colum, quando o trem parou. Baixou o vidro da
janela e inclinou-se para fora. Kathleen tinha os olhos fitos no chão. Scarlett pôs-se em
pé ao lado de Colum. Era bom endireitar os joelhos. - Senta-te, Scarlett - ordenou com
firmeza. Ela obedeceu. No entanto, ainda conseguiu ver na plataforma grupos de
homens elegantemente uniformizados, e Colum abanando a cabeça quando lhe
perguntaram se havia lugares vagos no compartimento. Que esperteza! Ninguém podia
ver para além dele, porque os seus ombros enchiam a janela, e havia três grandes
lugares vagos, que ninguém ocupava. Teria que se lembrar, da próxima vez que
andasse num trem irlandês, no caso de Colum não a acompanhar.
Este passou para dentro canecas de chá e um volumoso embrulho de pano,
precisamente quando o trem começou a pôr-se outra vez em movimento.
- Experimenta uma especialidade irlandesa - disse-lhe, sorrindo agora -, chama-
se rosca com fermento. - O pano de linho rústico continha grandes fatias de um
delicioso pão leve, recheado de frutas. Scarlett comeu também o de Kathleen, e
perguntou a Colum se lhe podia comprar mais quando parassem na estação seguinte.
- Podes ficar com fome em cerca de meia hora? Nessa hora sairemos do trem e
já poderemos tomar uma refeição como deve ser. - Scarlett concordou, encantada. A
novidade do trem e da paisagem polvilhada de castelos já começava a esfumar-se.
Estava pronta para chegar onde quer que iam.
Porém, o letreiro na estação dizia "Mullingar", não "Adamstown". "Pobre
inocente", comentou Colum, "não a informara? Só podiam fazer parte do caminho de
trem. Depois de jantarem, fariam o resto da viagem por estrada. Eram só mais uns
trinta e dois quilômetros: Chegariam em casa antes que escurecesse.
Trinta e dois quilómetros? Mas essa era a distância de Atlanta a Jonesboro!
Levariam uma eternidade, e já estavam no trem há praticamente seis horas. Teve de
fazer um esforço de vontade para sorrir simpaticamente quando Colum lhe apresentou
o amigo Jim Daly. Este nem sequer era bonito. O seu carro, porém, era. Tinha rodas
altas, pintadas de vermelho-vivo e perfis azuis brilhantes, com J. DALY escrito em
letras de um dourado forte. "Seja qual for o seu negócio", pensou Scarlett, "está
saindo-se bem nele."
O negócio de Jim Daly era constituído por um bar e uma fábrica de cerveja.
Mesmo sendo dona de um bar, na América, Scarlett nunca entrara lá; o fato de entrar
na grande sala que cheirava a malte a fez sentir-se agradavelmente perversa. Olhou
com curiosidade para o comprido balcão de carvalho polido; todavia, não dispôs de
tempo para absorver os pormenores antes de Daly abrir outra porta e lhe dar
passagem para um corredor. Os O'Hara iam jantar com ele e a família, na residência
por cima da loja.
O jantar foi bom, mas bem podia estar em Savannah. Não havia nada de diferente
ou estrangeiro em perna de borrego com molho de hortelã e puré de batata. E toda a
conversa girou à volta dos O'Hara de Savannah, da sua saúde e do que faziam. A mãe
de Jim Daly, acabou Scarlett por saber, era mais uma prima O'Hara. Não se importava
por estar na Irlanda, muito menos por cima de um bar. Também nenhum dos Daly
parecia muito interessado na opinião dela, fosse sobre o que fosse. Estavam ocupados
demais conversando uns com os outros.
As coisas melhoraram depois do jantar. Jim Daly insistiu em lhe dar o braço para
um passeio por Mullingar, para ver as vistas. Colum e Kathleen seguiram-nos. "Não
que haja muito para se ver", pensou Scarlett. "É uma vilinha, só com uma rua e cinco
vezes mais bares que lojas, mas é agradável esticar as pernas." A praça da vila não
tinha metade das dimensões da de Galway, e nada estava acontecendo lá. Uma
garotinha com um xale negro sobre a cabeça e os ombros aproximou-se deles de mão
estendida em concha:
- Deus vos abençoe, excelências - gemeu. Jim deixou-lhe cair algumas moedas
na mão, e ela repetiu a bênção enquanto fazia uma vênia. Scarlett ficou atônita. Então
aquela menina pedia esmola, descaradamente?! Quem não lhe daria nada era ela; não
havia nenhuma razão para a garota não trabalhar para viver: parecia suficientemente
saudável.
Houve uma explosão de gargalhadas, e Scarlett virou-se, para ver o que a
provocara. Um grupo de soldados entrara na praça, vindo de uma rua lateral. Um deles
atormentava a pedinte, segurando uma moeda a altura superior à que ela conseguia
atingir. Brutamontes! No entanto, o que pode esperar uma pessoa que dá um
espetáculo assim, pedindo na rua... E ainda por cima a soldados. Todo mundo sabe
que são brutos e malcriados... Em todo o caso, tinha que admitir, dificilmente se podia
acreditar que aquele grupo era de soldados. Pareciam mais grandes bonecos, para um
rapazinho brincar, com aqueles uniformes esquisitos, cheios de complicações. Era
evidente que as suas únicas ações de soldados consistiam em marchar em paradas,
nos dias de festa. Graças a Deus, não havia na Irlanda verdadeiros soldados, como os
ianques. Nem cobras, nem ianques.
O soldado jogou a moeda numa poça imunda, com uma película de impurezas, e
voltou a rir com os colegas. Scarlett viu as duas mãos de Kathleen agarrarem o braço
de Colum. Este libertou-se, porém, e encaminhou-se para os soldados e para a
pedinte. Oh, Deus, iria começar um sermão acerca do comportamento de bons
cristãos? Colum arregaçou a manga e ela conteve a respiração: "Parece-se tanto com
o paizinho! Irá desencadear uma luta?"
Colum ajoelhou no empedrado e pescou a moeda da poça infecta. Scarlett
expirou, quase com um assobio de alívio. Nem por um minuto se preocuparia se Colum
fizesse frente a um daqueles efeminados soldados britânicos, mas cinco talvez fossem
demais, mesmo para um O'Hara. Afinal, por que havia ele de se incomodar tanto com
os problemas de uma pedinte?
Colum endireitou-se, de costas viradas para os soldados. Estes tinham ficado
visivelmente pouco à vontade com a evolução que a sua graça sofrera. Quando Colum
pegou o braço da mulher e a afastou, eles voltaram-se na direção oposta e
encaminharam-se rapidamente para a esquina seguinte.
"Pronto, e não houve danos", pensou Scarlett. "Exceto para os joelhos das calças
de Colum. Suponho que de qualquer modo tenham muito uso, já que ele até é padre.
Curioso, esqueço-me disso a maior parte do tempo. Se a Kathleen não me tivesse
arrastado para fora da cama logo de madrugada, nem me teria lembrado de que
tínhamos que ir à Missa antes de apanhar o trem."
O balanço do passeio pela vila foi muito sumário. Não havia barcos à vista no
Royal Canal, e Scarlett não se deixou minimamente influenciar pelo entusiasmo de Jim
Daly em viajar para Dublim por esse meio, e não de trem. Por que havia ela de se
interessar por ir a Dublim? Queria era pôr-se a caminho de Adamstown.
Não tardou muito que o seu desejo fosse satisfeito. Quando regressaram, estava
uma pequena carruagem, de aspecto pobre, à porta do bar de Jim Daly. Um homem de
avental e em mangas de camisa estava carregando as malas do porão para cima da
carruagem; as mais pequenas já estavam presas atrás. Se o malão de Scarlett pesava
muito menos agora que na estação, quando Jim Daly e Colum o tinham posto no carro
daquele, ninguém o referiu. Quando as malas ficaram presas, o homem em mangas de
camisa desapareceu no interior do bar. Voltou pouco depois, de casaco, capa e chapéu
alto de cocheiro:
- Também me chamo Jim - informou concisamente. - Vamos embora.
Scarlett subiu e sentou-se no lugar mais afastado. Kathleen instalou-se ao seu
lado, Colum em frente.
- Que Deus vos acompanhe - despediram-se os Daly.
Scarlett e Kathleen acenaram com os lenços, do lado de fora da janela. Colum
desabotoou o casaco e tirou o chapéu.
- Não posso falar por mais ninguém aqui, mas vou tentar dormir um pouco -
anunciou. - Espero que as senhoras não fiquem incomodadas com os meus pés. -
Retirou as botas e esticou-se, pousando no assento, entre Scarlett e Kathleen, os pés
calçados apenas com meias.
Elas olharam uma para a outra, logo se inclinando para desapertarem as botas.
Dentro de minutos, também estavam instaladas, com as cabeças sem chapéus
encostadas nos cantos da carruagem e os pés flanqueando Colum. "Ah, se tivesse o
meu traje de Galway, me sentiria no céu", pensou Scarlett. Um dos esteios do
espartilho, cheio de moedas de ouro, espetava-lhe nas costelas, fosse qual fosse a
posição que assumisse. Mesmo assim, adormeceu rapidamente e com facilidade.
Acordou uma vez, quando a chuva começou a salpicar a janela, mas o seu som
suave não tardou a embalá-la, fazendo-a adormecer de novo. Quando voltou a
acordar, o Sol brilhava:
- Já chegamos? - inquiriu, sonolenta.
- Não, ainda temos muito que andar - respondeu Colum. Scarlett olhou para fora e
bateu palmas perante aquilo que viu.
- Ah, reparem em tantas flores! Se estendesse a mão, poderia colher uma. Colum,
abre a janela, vai. Vou fazer um ramalhete.
- Abrimos quando pararmos. As rodas levantam poeira demais.
- Mas eu quero flores daquelas.
- É só uma sebe, querida Scarlett. Há iguais por todo o caminho até em casa.
- Deste lado também, vês? - interveio Kathleen. Era verdade, verificou Scarlett. A
trepadeira desconhecida e as suas brilhantes flores cor-de-rosa estavam igualmente ao
alcance de Kathleen. Que maneira maravilhosa de viajar, com paredes de flores dos
dois lados. Quando os olhos de Colum se fecharam, ela baixou devagar o vidro da
janela.
- Não tardaremos a chegar a Ratharney - disse Colum -, depois são só mais uns
quilômetros e estaremos em County Meath.
Kathleen suspirou de felicidade. Os Olhos de Scarlett cintilaram. County Meath.
"O paizinho falava como se fosse o paraíso, e parece-me que estou vendo porquê."
Cheirou a tarde doce através da janela aberta, um misto de ligeiro perfume das flores
cor-de-rosa, rico odor campestre da relva aquecida pelo Sol, vindo dos campos
invisíveis, para lá das sebes, e intenso traço de ervas, proveniente do interior das
próprias sebes. "Então se ele pudesse estar aqui comigo, seria perfeito. Assim, vou ter
que apreciar o dobro, por ele e por mim." Inalou profundamente e captou no ar
vestígios da frescura da água.
- Acho que vai voltar a chover - afirmou.
- Não é para durar - prometeu Colum -, e tudo cheira melhor depois.
Ratharney chegou e passou tão depressa que Scarlett mal viu fosse o que fosse.
Num minuto havia sebe, no seguinte esta desaparecera, ficando uma parede sólida no
seu lugar, e ela olhava pela janela da carruagem, com outra janela aberta, do mesmo
tamanho, em frente, onde uma cara a confrontava. Ainda estava tentando ultrapassar o
choque dos olhos estranhos, que aparecerem do nada, quando a carruagem passou
ruidosamente pelo último edifício da fila e a sebe voltou. Nem sequer tinham abrandado
a velocidade.
Não tardaram, porém, a ter que fazê-lo. A estrada começara a ondear, em curvas
apertadas. Scarlett tinha metade da cabeça de fora da janela, tentava ver o caminho
em frente.
- Já estamos em County Meath, Colum?
- Falta pouco.
Passaram por uma pequena casa de campo, quase na velocidade de passos,
pelo que Scarlett a viu bem. Sorriu e acenou à rapariguinha ruiva que se encontrava de
pé, do lado de dentro da porta. A criança sorriu também, correspondendo ao
cumprimento. Os dentes de leite da frente já tinham caído, e a falta deles dava um
encanto especial ao seu sorriso. Tudo na casa encantara Scarlett. Era feita de pedra,
com as paredes de um branco brilhante, com janelinhas quadradas cujos caixilhos
estavam pintados de vermelho. A porta também era vermelha, e dividida ao meio, com
a parte de cima aberta para dentro de casa. A cabeça da criança mal ultrapassava a
meia porta; para além desta, Scarlett viu a forte iluminação de uma lareira numa sala
obscura, O melhor de tudo era a casa ter teto de colmo, recortado nos beirais. Parecia
a ilustração de um conto de fadas. Virou-se para sorrir a Colum.
- Se aquela menina fosse loura, ficava à espera de a ver transformar-se em burro.
Percebeu pela expressão de Colum que ele não percebera a que se referia.
- A "Pele-de-Burro", tonto!
Ele abanou a cabeça.
- Santo Deus, Colum, é um conto de fadas. Não têm contos de fadas na Irlanda?
Kathleen desatou a rir. Colum sorriu.
- Scarlett querida - disse -, não sei nada dos teus contos de fadas nem dos teus
burros, mas se queres fadas podes ter certeza de que vieste ao lugar certo. A Irlanda
está abarrotada de fadas.
- Colum, sério.
- Estou falando sério. E vais ter que aprender tudo sobre fadas, para não te
meteres em complicações. Repara que quase todas constituem pequenos
inconvenientes, mas, por exemplo, com o leprechaun sapateiro todos gostariam de ter
um encontro...
A carruagem parara abruptamente. Colum pôs a cabeça para fora da janela.
Quando a voltou para dentro, já não sorria. Estendeu a mão para o lado de Scarlett e
pegou a correia que acionava o vidro da janela. Com um puxão rápido, o fez subir:
- Fiquem sentadas, sem se mexerem, e não falem com ninguém - ordenou em
tom ríspido mas baixo. - Faz com que ela fique sossegada, Kathleen. - Enfiou os pés
nas botas e os dedos foram velozes com os atacadores.
- Que houve? - interrogou Scarlett.
- Chiu - fez Kathleen.
Colum abriu a porta, agarrou o chapéu, desceu para a estrada e fechou
novamente a porta. Ao afastar-se tinha o rosto cinzento de pedra.
- Kathleen.
- Chiu. É importante, Scarlett. Fica calada.
Ouviu-se um baque surdo, que se repercutiu de tal modo que as paredes de
couro da carruagem vibraram. Mesmo através das janelas fechadas, Scarlett e
Kathleen ouviam as palavras gritadas às pressas por um homem algum lugar à frente.
- Eia! Cocheiro! Toca a andar. Isto não é nenhum divertimento para ficares de
boca aberta olhando. E você, Padre! Volte para o caixote e desapareça. - A mão de
Kathleen fechou-se em torno da de Scarlett.
A carruagem oscilou sobre as molas e moveu-se lentamente em direção ao lado
direito da estrada estreita. Os ramos espetados e os espinhos da sebe rasparam no
couro espesso. Kathleen afastou-se do ruído na janela e aproximou-se de Scarlett.
Houve outro estrondo, e ambas tiveram um sobressalto. A mão de Scarlett apertou a
de Kathleen. O que estava acontecendo?
Com a carruagem avançando com dificuldade, aproximaram-se de outra casa de
campo, idêntica à que Scarlett achara idílica para a princesa pele-de-burro. De pé à
porta aberta de par em par encontrava-se um soldado de farda negra com galões
dourados que colocava dois banquinhos de três pernas em cima de uma mesa, do lado
de fora da porta. À esquerda desta, um oficial uniformizado cavalgava um baio vivaz, e
à direita estava Colum, falando baixo com uma mulherzinha chorosa. O xale negro
desta escorregara-lhe da cabeça, e o cabelo ruivo espalhara-se pelos ombros e faces.
Tinha um bebê nos braços, Scarlett via-lhe os olhos azuis e a penugem arruivada na
cabecinha redonda. Uma menininha, que bem podia passar por gêmea da criança
sorridente da meia-porta, soluçava para o avental da mãe. Tanto esta como a filha
encontravam-se descalças. A meio da estrada havia um grupo de soldados dispersos,
junto de um enorme tripé constituído por troncos de árvores. Um quarto tronco pendia,
oscilante, de cordas atadas ao topo do tripé.
- Toca a andar, Patri! (Diminutivo de Patrick, usado pejorativamente para designar
os irlandeses. - N. da T.) - gritou o oficial. A carruagem guinchava e raspava na sebe.
Scarlett sentia Kathleen tremer. Algo de terrível estava acontecendo ali.
"Pobre mulher, parece prestes a desmaiar... ou a enlouquecer por completo.
Espero que Colum a possa ajudar."
A mulher caiu de joelhos.
"Meu Deus, vai desmaiar e deixar cair o bebê!" Scarlett estendeu a mão para o
fecho da porta e Kathleen agarrou-lhe o braço.
- Kathleen, deixa-me...
- Fica quieta, pelo amor de Deus, quieta e calada. - A desesperada urgência no
sussurro de Kathleen deteve Scarlett.
"O que há?", Scarlett observava, sem crer no que os seus próprios olhos viam. A
chorosa mãe agarrava-se à mão de Colum, beijando-a. Sobre a cabeça dela, este fez o
sinal da cruz. Depois ajudou-a a pôr-se em pé. Tocou na cabeça do bebê, na da
menininha e, com as duas mãos nos ombros da mãe, virou-a, para não ficar de frente
para a casa.
A carruagem continuou a avançar, lentamente, e por detrás deles recomeçaram
os fortes embates abafados. A carruagem voltou a afastar-se da sebe, para a estrada,
e depois mesmo para o centro desta.
- Cocheiro, pare! - gritou Scarlett antes de Kathleen a poder impedir. Estavam
deixando Colum para trás, e ela não podia permitir que isso acontecesse.
- Não, Scarlett, não - implorava Kathleen, mas a prima já tinha a porta aberta
antes de a carruagem cessar o seu movimento.
Afastou-se pela estrada, correndo na direção do barulho, esquecida de que a
cauda da sua saia à moda batia na fina camada de lama.
O espectáculo e o estrondo que se depararam aos seus olhos e ouvidos
detiveram-na, e ela gritou, chocada, o seu protesto. O oscilante tronco de árvore
embateu outra vez nas paredes da casa, e a fachada desta desmoronou-se para o
interior, esmigalhando janelas, numa chuva de brilhantes bocadinhos de vidro limpo e
polido. Os caixilhos vermelhos das janelas caíram no pó erguido pelo desmoronar das
pedras brancas, e as duas partes da porta vermelha dobraram-se uma sobre a outra. O
barulho foi horrendo: rangente... estrondoso... chiante como um ser vivo.
Por um momento, seguiu-se então o silêncio, até se ouvir outro som (um crepitar
que se transformou em ronco) e aparecer o cheiro espesso e sufocante da fumaça.
Scarlett viu os archotes nas mãos de três soldados, as chamas devorarem o colmo do
teto. Recordou-se do exército de Sherman, das paredes e chaminés tisnadas de
Twelve Oaks, de Dunmore, Landing, e gemeu de desgosto e terror. Onde estava
Colum? Oh, Deus do céu, que lhe teria acontecido?
A forma dele, vestida de escuro, saiu apressadamente da fumaça negra que
invadia a estrada.
- Vamos embora - gritou para Scarlett. - Volta para a carruagem.
Antes que ela conseguisse libertar-se do transe de horror que a mantinha fixa ao
chão, Colum estava ao seu lado, agarrando-lhe o braço com a mão.
- Vamos, Scarlett querida, não te demores - incitou, com urgência dominada. -
Agora temos de ir para casa.
A carruagem precipitou-se para a frente, a toda a velocidade que os cavalos
podiam dar na estrada serpenteante. Scarlett era atirada de um lado para o outro, entre
a janela fechada e Kathleen, mas quase nem dava por isso. Ainda tremia, devido à
estranha e terrível experiência. Só quando a carruagem abrandou para um movimento
calmo, o seu coração parou de bater aos pulos e ela conseguiu respirar normalmente.
- O que aconteceu ali atrás? - quis saber. A sua voz soou estranha a ela própria.
- A pobre mulher estava sendo despejada - explicou Kathleen vivamente -, e o
Colum foi confortá-la. Não devias ter interferido daquela maneira, Scarlett. Isso podia
ter causado problemas a todos nós.
- Calma, Kathleen, não deves ser tão brusca - interveio Colum. - A Scarlett não
podia saber, tendo acabado de vir da América.
Scarlett pensou em protestar que conhecia coisas piores, muito piores, mas
deteve-se. Tinha mais urgência em compreender.
- Por que razão estava sendo despejada? - perguntou.
- Não tinham dinheiro para pagar a renda - explicou Colum. - E o pior é que o
marido tentou deter o processo quando a milícia veio da primeira vez. Bateu num
soldado e levaram-no para a prisão, deixando-a com as crianças e ainda por cima
cheia de medo pelo que pudesse suceder a ele.
- Isso é muito triste. Ela parecia tão digna de compaixão. Que irá fazer, Colum?
- Tem uma irmã numa outra casa à beira da estrada, não muito longe. Mandei-a
para lá.
Scarlett descontraiu-se um pouco. Era lamentável. A pobre mulher ficara tão
perturbada. Em todo o caso, havia de ficar bem. A irmã devia ser a da casa da pele-de-
burro, e não era longe. E afinal as pessoas tinham a obrigação de pagar as rendas.
Também ela não se coibiria de arranjar um novo arrendatário para o bar, se o atual não
lhe pagasse. Quanto ao marido bater no soldado, isso era verdadeiramente
imperdoável. Devia saber que iria para a cadeia por isso. Devia ter pensado na mulher
antes de fazer uma coisa tão estúpida.
- Mas por que destruíram a casa?
Para impedir que os inquilinos voltem para lá.
Scarlett disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Que disparate! O dono podia arrendá-la a outra pessoa.
Colum parecia cansado.
- Ele não quer alugá-la. Há um pouco de terreno ligado à casa, e ele vai fazer
aquilo a que chamam "organizar" a propriedade. Vai transformar tudo em pasto, para
enviar para o Mercado o gado depois da engorda. Por isso é que subiu as rendas de tal
modo que nenhum inquilino as pode pagar. Já não está interessado em cultivar a terra.
O marido sabia que isso se aproximava; todos sabem, uma vez iniciado o processo.
Têm meses de espera, até não terem nada para vender, a fim de conseguirem o
dinheiro para a renda. São esses meses que fazem crescer a ira num homem e o
levam a tentar ganhar com os punhos... Quanto às mulheres, é o desespero que as
dilacera, ao verem a derrota dos seus homens. Aquela pobre criatura com o bebê ao
peito estava tentando pôr a fraqueza da sua carne e dos seus ossos entre o aríete e a
casa do marido. Esta era tudo o que ele tinha para o fazer sentir-se homem.
Scarlett não soube que dizer. Não fazia idéia de que coisas daquelas pudessem
acontecer. Era tudo tão mesquinho. Os ianques eram piores, mas isso fora na guerra.
Não se tratara de destruição para que uma manada de vacas pudesse ter mais erva.
Pobre mulher. Bem, e se fosse Maureen, com o Jacky ao colo, quando era bebê?
- Tem certeza de que ela vai para casa da irmã?
- Concordou em ir, e não é pessoa para mentir a um padre.
- Então vai ficar bem, não vai?
Colum sorriu.
- Não te preocupes, Scarlett querida. Vai ficar bem.
- Até a quinta da irmã ser organizada. - A voz de Kathleen soou rouca. A chuva
salpicou as janelas, antes de começar a cair com força. A água começou a empapar o
interior da carruagem, junto da cabeça de Kathleen, entrando por uma fenda rasgada
pela sebe. - Então, Colum, me dá o teu lenço grande, para tapar este buraco? - Pediu
ela com uma gargalhada. - E és capaz de fazer uma oração de padre, para o sol
voltar?
Como podia ela estar tão bem-disposta, depois de tudo aquilo, e ainda por cima
com um buraco enorme na carruagem? E, santo Deus, o próprio Colum ria com ela!
Estavam andando mais depressa, muito mais depressa. O cocheiro devia estar
louco. Era impossível que alguém visse através de uma chuvada daquelas, e além
disso a estrada era muito estreita e cheia de curvas. Ainda eram capazes de abrir dez
mil rasgões por onde entrasse a chuva.
- Não sentes a ansiedade a apoderar-se dos valentes cavalos de Jim Daly,
Scarlett querida? Pensam que estão numa corrida. Porém, eu sei que uma extensão
destas só se pode encontrar em County Meath. Com certeza nos aproximamos de
casa. É melhor informar-te sobre os seres minúsculos, antes que encontres um
leprechaun e não saibas com quem estás falando.
Subitamente, a luz do Sol entrou numa faixa oblíqua através das janelas
molhadas da chuva, transformando gotas de água em fragmentos do arco-íris. "Não é
natural haver chuva num minuto, Sol no seguinte e depois outra vez chuva", pensou
Scarlett. Desviou os olhos dos arcos-íris, na direção de Colum.
- No desfile de Savannah viste uma frouxa imitação deles - começou Colum -, e
devo dizer-te que ainda bem para todos os que viram que não há leprechauns na
América, porque a sua ira teria sido terrível e eles teriam convocado todos os seus
companheiros do maravilhoso para se vingarem. Na Irlanda, todavia, onde lhes é
atribuído o respeito adequado, não incomodam ninguém, se ninguém os incomodar.
Procuram um lugar agradável e instalam-se nele, para exercerem a sua atividade de
sapateiros. Não em grupo, repara, porque os leprechauns são solitários, mas um num
local, outro noutro, e assim por diante, até... se ouvires histórias suficientes... poderes
ficar à espera de encontrar um em cada riacho e pedregulho do país. Sabe-se que lá
está por se ouvir o tape-tape-tape do seu martelo batendo na sola e no salto do sapato.
Então, se a pessoa rastejar tão silenciosamente como uma lagarta, talvez o apanhe
desprevenido. Há quem diga que tem que o segurar por um braço ou tornozelo, mas é
convicção quase geral de que basta fixá-lo para o capturar. Ele implorará que o
libertem, mas tem que recusar. Prometerá satisfazer o maior desejo da pessoa que o
capturou, mas sabe-se que mente e não se pode acreditar nele. Ameaçará com uma
grande maldição, mas nada pode fazer de mal, pelo que se desdenha da sua
fanfarronada. E por fim será obrigado a comprar a liberdade com o tesouro que tem
escondido num lugar seguro, nas proximidades. E que tesouro! Um pote de barro cheio
de ouro, talvez sem grande aspecto para o olhar desprevenido, mas o pote é feito com
grande e enganadora esperteza de leprechaun, e não tem fundo, pelo que se pode
sempre tirar ouro, até ao fim da vida, e ele nunca se esgotará. O leprechaun dará tudo
isso só para se ver livre; não gosta de estar acompanhado. A sua natureza é solitária, a
todo o custo. Contudo, uma temível esperteza também faz parte dessa natureza, de tal
modo que consegue superiorizar a quase todos aqueles que o capturam, distraindo-
lhes a atenção. E, se a pessoa abranda a força ou olha para outro lado, ele desaparece
num instante, não ficando outra riqueza além da história da aventura para contar.
- Não me parece difícil uma pessoa agarrar ou manter os olhos fixos, se isso
corresponder à obtenção de um tesouro - comentou Scarlett. - Essa história não faz
sentido.
Colum riu.
- Prática e desempoeirada, querida Scarlett, és precisamente o tipo de pessoa a
quem os seres minúsculos gostam de pregar peças. Contam poder fazer o que
quiserem, porque nunca os considerarás como sendo a respectiva causa. Se fores
passear por uma vereda e ouvires bater, nem te darás ao trabalho de parar para ir ver
o que se passa.
- Eu o faria, se acreditasse nesses disparates.
- Estás vendo? Não acreditas e não pararias.
- Treta, Colum! Estou vendo onde queres chegar. Estás me criticando por não
apanhar uma coisa que para começar nem está lá. - Começava a irritar-se. Jogos de
palavras e de espírito eram escorregadios demais e não serviam para nada.
Nem reparou que Colum a distraíra da expulsão.
- Já falaste à Scarlett na Molly, Colum? - perguntou Kathleen. - Ela tem direito a
ser avisada, parece-me.
Scarlett esqueceu-se dos leprechauns. Entendia de bisbilhotices e gostava disso.
- Quem é a Molly?
- É a primeira O'Hara de Adamstown que vais conhecer - informou Colum -, irmã
da Kathleen e minha.
- Meia irmã - corrigiu Kathleen -, e essa metade está a mais, na minha opinião.
- Conta - encorajou Scarlett.
A história levou tanto tempo para ser contada que acabou quando a viagem
estava quase chegando ao fim, mas Scarlett nem deu pelo tempo ou os quiômetros
passarem. Estava sendo informada sobre a sua própria família.
Colum e Kathleen também eram meios irmãos, ficou ela sabendo. O pai, Patrick -
que era um dos irmãos mais velhos de Gerald O'Hara -, casara três vezes. Os filhos da
primeira mulher incluíam Jamie, que fora para Savannah, e Molly, que era, no dizer de
Colum, uma grande beleza.
Talvez quando nova, na versão de Kathleen.
Depois da morte da primeira mulher, Patrick casara com a segunda, a mãe de
Colum; e, depois da morte desta, casara com a mãe de Kathleen, que também era a
mãe de Stephen.
"O silencioso", comentou Scarlett para si.
Havia dez primos O'Hara para ela conhecer em Adamstown, alguns com filhos e
até netos. Patrick, Deus tivesse a sua alma em descanso, morrera havia quinze anos, a
perfazer no próximo dia 11 de Novembro.
Além disso havia o tio Daniel, ainda vivo, com os seus filhos e netos. Desses,
Matt e Gerald estavam em Savannah, mas seis tinham permanecido na Irlanda.
- Não vou conseguir diferenciá-los a todos - disse Scarlett com apreensão. Ainda
confundia algumas das crianças O'Hara de Savannah.
- O Colum te faz começar da maneira mais fácil - afirmou Kathleen. - Na casa de
Molly não há nenhum O'Hara a não ser ela, que até era capaz de negar o seu próprio
nome.
Colum, perante o comentário azedo de Kathleen, explicou o que se passava com
Molly. Esta era casada com um homem chamado Robert Donahue, "caloroso" em
termos materiais, com uma grande e próspera quinta de quarenta e tal hectares. Era
aquilo a que os irlandeses chamavam um "agricultor forte". Molly começara por
trabalhar como cozinheira na casa de Donahue. Quando a mulher dele morreu, Molly
tornou-se, depois do conveniente período de luto, a sua segunda mulher, e a madrasta
dos seus quatro filhos. Havia cinco filhos deste segundo casamento - o mais velho era
muito grande e saudável, apesar de ter nascido com quase três meses de
antecedência -, mas já eram todos adultos e tinham ido viver nas suas próprias casas.
Molly não era dedicada à sua família O'Hara, informou Colum com neutralidade, e
Kathleen resmungou, mas isso talvez se devesse ao fato de o marido ser o rendeiro
das terras que cultivavam. Além de ter a sua própria quinta, Robert Donahue alugava
terrenos, e era uma quinta mais pequena que subalugava aos O'Hara.
Colum começou a enumerar e nomear os filhos e netos de Robert, mas nessa
altura já Scarlett decidira catalogar a avassaladora maré de nomes e idades como "os
descendentes". Só voltou a prestar verdadeiramente atenção quando ele falou da sua
própria avó.
A velha Katie Scarlett ainda vive na casa que o marido construiu para ela quando
casaram, em 1789. Nada a convencerá a mudar-se. O meu pai, e da Kathleen, casou
pela primeira vez em 1815 e levou a noiva para viver nessa casa já cheia de gente.
Quando os filhos começaram a aparecer, construiu perto uma casa enorme, com
espaço para todos crescerem, e uma cama quente, junto à lareira, especialmente para
a mãe, para quando chegasse a uma idade avançada. No entanto, a velhota nem quer
ouvir falar nisso. Então o Sean vive com a avó e as pequenas, como a Kathleen, tratam
da casa.
- Quando não podemos fugir a isso - acrescentou Kathleen. - De fato, a avó não
dá trabalho nenhum, é só passar com a vassoura e o pano de pó, mas o Sean é capaz
de procurar lama num chão acabado de ser limpo. E a quantidade de coisas dele que
temos para coser! É capaz de dar cabo de uma camisa nova quase antes de os últimos
botões terem sido costurados. Sean é irmão da Molly e nosso meio irmão. É um
péssimo exemplo de homem, quase tão insignificante como Timothy, embora tenha
bem mais vinte anos.
O cérebro de Scarlett andava à roda. Não se atreveu a perguntar quem era
Timothy, com medo de lhe ser atirada mais uma dúzia de nomes.
Em todo o caso, nem teria tempo para isso. Colum abriu a janela e gritou para o
cocheiro.
- Detenha-se, Jim, se faz favor, para eu descer e ir reunir-me a ti, aí na boleia. Ali
à frente temos que fazer um desvio; terei que lhe indicar o caminho.
Kathleen prendeu-lhe a manga.
- Oh, Colum querido, diz que também posso descer e ir já para casa. Estou
ansiosa por lá chegar. A Scarlett não se importa de ir sozinha para casa da Molly, não
é, Scarlett? - Sorriu-lhe com tanta esperança que a interpelada teria concordado,
mesmo que não desejasse ficar uns minutos entregue a si própria.
Não ia para casa da beleza (por muito desvanecida que estivesse) da família
O'Hara sem primeiro cuspir num lenço e limpar o pó da cara e das botas. Depois um
pouco de água de colônia, do recipiente de prata que tinha na bolsa, pó-de-arroz, e
talvez um pouquinho de rouge.
O desvio para casa de Molly passava pelo meio de um pequeno pomar; o
crepúsculo tingia de malva os aerosos botõezinhos que se destacavam contra o céu
azul-escuro, baixo. Filas muito direitas de canteiros de primaveras debruavam os
ângulos da casa quadrangular. Estava tudo impecavelmente limpo.
No interior também. Na sala havia coberturas no jogo de sofás em rígida crina de
cavalo, cada mesa tinha uma toalha branca, engomada, com aplicações de renda, não
havia cinzas na lareira a carvão, com grade de latão brilhantemente polido.
A própria Molly era impecável no vestuário e nas maneiras. O vestido cor de vinho
estava ornamentado com dúzias de botões de prata, todos cintilantes; o cabelo escuro
era brilhante e estava muito bem penteado sob uma delicada touca branca com
trabalho em relevo e abas de renda. Ofereceu a face direita e depois a esquerda ao
beijo de Colum e exprimiu "um milhar de boas-vindas" a outra O'Hara, quando Scarlett
foi apresentada.
"E nem sequer sabia que eu vinha." Scarlett ficou favoravelmente impressionada,
apesar da inegável beleza de Molly. Esta tinha a pele mais aveludada e clara que ela
alguma vez vira, e os seus cintilantes olhos azuis eram destituídos de olheiras ou
papas. "Também quase não tem pés-de-galinha, nem uma ruga que valha a pena
mencionar, a não ser do nariz até à boca, e dessas até há jovens que as têm", resumiu
Scarlett numa apreciação rápida. Colum devia ter se enganado, Molly não podia de
maneira nenhuma estar na casa dos 50.
- Estou satisfeitíssima por te conhecer, Molly, e tão agradecida que até me faltam
as palavras por me acolheres na tua encantadora casa - disse Scarlett de um jato. Não
que a casa fosse grande coisa. Estava limpa como se tivesse sido acabada de pintar,
isso era verdade, mas a sala não era maior que o mais pequeno quarto da sua
residência de Peachtree Street.

- Santo Deus, Colum! Como pudeste ir embora e deixar-me lá sozinha? - queixou-


se no dia seguinte. - Aquele horrível Robert é o homem mais aborrecido do mundo, só
fala das suas vacas... pelo amor de Deus!... e de quanto leite cada uma delas dá. Tive
a impressão de que eu própria ia começar a mugir antes de acabarmos de comer. O
jantar, como disseram cinquenta e oito vezes, não a ceia. Afinal que diferença faz?
- Na Irlanda, os ingleses jantam ao fim do dia, os irlandeses ceiam.
- Mas eles não são ingleses.
- Têm aspirações. Robert bebeu uma vez um copo de uísque na Casa Grande,
com o procurador do conde, quando foi pagar as rendas.
- Colum! Estás brincando.
- Estou rindo, Scarlett querida, mas não estou brincando. Não te preocupes com o
assunto; o que interessa é se a tua cama era confortável.
- Acho que sim. Até era capaz de dormir em cima de maçarocas de milho, de tão
cansada que estava. Devo dizer que é agradável andar hoje a pé. Ontem foi uma
grande viagem. É longe até casa da avó?
- Menos de meio quilômetro, por esta senda.
- "Senda". Que palavras bonitas que vocês têm para as coisas. Nós chamaríamos
"vereda" a um caminho destes, que também não teria sebes. Acho que vou
experimentá-las em Tara, em vez de ter só vedações. Quanto tempo levam para ficar
assim espessas?
- Depende do tipo de planta utilizado na base. Que tipo de arbustos crescem em
Clayton County? Ou têm alguma árvore que possam podar bastante baixo?
"Colum está surpreendentemente bem informado sobre agricultura, para um
padre", pensou Scarlett, enquanto ele explicava e demonstrava a arte de criar uma
sebe. Porém, tinha muito que aprender sobre medidas. O estreito caminho
serpenteante tinha mais de meio quilômetro.
Surgiram repentinamente numa clareira. À sua frente encontrava-se uma casa
com teto de colmo, paredes brancas e janelinhas com caixilhos azuis, tudo muito fresco
e brilhante. Da chaminé baixa saía fumaça espessa, pintando uma pálida linha no céu
azul ensolarado, e um gatinho dormia no peitoril azul de uma das janelas abertas.
- É adorável, Colum! Como é que as pessoas mantêm as casas tão brancas? É
de toda a chuva que cai? - Scarlett dera por três aguaceiros durante a noite, e isso
apenas nas horas antes de adormecer. A lama da senda fazia-a pensar que talvez
tivesse havido mais.
- Isso ajuda um pouco - concedeu Colum com um sorriso. Estava satisfeito com
ela por não se queixar do que o caminho lhe fazia às bainhas e às botas. - Contudo, a
realidade é que vieste de visita em boa hora. Tratamos dos nossos edifícios duas
vezes por ano, sem falhar, para o Natal e para a Páscoa, por dentro e por fora, caiando
e pintando. Vamos ver se a avó está dormindo?
- Estou nervosa - confessou Scarlett. Não disse porquê.
De fato, receava o aspecto de uma pessoa que tinha quase 100 anos. E se lhe
desse volta ao estômago olhar para a sua própria avó? Que faria?
- Não ficamos muito tempo - disse Colum, como se lhe lesse o pensamento -, a
Kathleen está à nossa espera para uma xícara de chá. - Scarlett seguiu-o, dando a
volta à casa, até a frente. A parte de cima da porta azul estava aberta, mas ela não
conseguiu ver nada dentro a não ser sombras. E havia um cheiro esquisito, de terra e
algo azedo. Ela franziu o nariz. Seria aquele o cheiro da idade muito avançada?
- Então, estás aspirando o fogo de turfa, Scarlett querida? Estás cheirando o
verdadeiro coração caloroso da Irlanda. A lareira a carvão da Molly não passa de mais
uma imitação dos ingleses. É queimar turfa que corresponde ao lar. A Maureen contou-
me que às vezes sonha com isso e acorda cheia de saudades. Penso levar-lhe alguns
pedaços quando voltarmos a Savannah.
Scarlett inalou com curiosidade. Era um cheiro estranho, parecido com o de
fumaça, mas não muito. Seguiu Colum pela passagem baixa para o interior da casa,
pestanejando para ajustar os olhos à escuridão,
- E és finalmente tu, Colum O'Hara? Gostaria de saber por que é que trouxeste a
Molly para me ver, quando a Bridie me prometeu a dádiva da filha do meu querido
Gerald. - A voz era aguda e rabugenta, mas não apalermada ou fraca. O alívio e uma
espécie de encanto apoderaram-se de Scarlett: aquela era a mãe do paizinho, de
quem ele tantas vezes falara.
Afastou Colum e foi ajoelhar-se junto da velhota, que estava sentada numa
poltrona de madeira, perto da chaminé.
- Sou a filha de Gerald, avó. Ele deu-me o seu nome, Katie Scarlett.
A Katie Scarlett original era baixa e morena, com a pele escurecida por quase um
século de ar livre, sol e chuva. A cara era redonda como uma maçã, e murcha, como
uma maçã guardada tempo demais. No entanto, os desbotados olhos azuis não tinham
nuvens e eram penetrantes. Um espesso xale de lã azul-brilhante cobria-lhe os ombros
e o peito, caindo as franjas no colo. O fino cabelo branco estava coberto por uma touca
de malha vermelha.
- Deixa-me ver-te, rapariga - pediu. Os dedos que pareciam pergaminho ergueram
o queixo de Scarlett. - Por todos os santos do céu, ele contou a verdade! Tens olhos
verdes como os dos gatos! - Benzeu-se rapidamente. - Sempre quis saber de onde
vieram. Pensei que o Gerald devia estar bêbado quando me escreveu tal coisa. Diz-
me, pequena Katie Scarlett, a tua mãe era bruxa?
Scarlett riu.
- Parecia-se mais com uma santa, avó.
- Ah, sim? E casou com o meu Gerald? Que estranho! Ou talvez fosse o estar
casada com ele que a tornou santa, com todas as tribulações. Diz-me uma coisa, ele
ficou conflituoso até ao fim dos seus dias, Deus o tenha em descanso?
- Receio que sim, avó. - Os dedos afastaram-na.
- "Recebas", é isso? Pois eu estou grata. Rezei para que a América o não
estragasse, Colum, acende-me na igreja uma vela em ação de graças.
- Assim farei.
Os olhos envelhecidos perscrutaram outra vez Scarlett.
- Não tiveste má intenção, Katie Scarlett. Perdoo-te. - Sorriu de súbito, primeiro
com os olhos. Os pequenos lábios contraídos abriram-se num sorriso de comovente
ternura.
Não havia um único dente nas gengivas da cor de pétalas de rosa. - Vou
encomendar uma outra vela para agradecer a bênção que me foi concedida de te ver
com os meus próprios olhos antes de ir para a cova.
Os olhos de Scarlett encheram-se de lágrimas.
- Obrigada, avó.
- De nada, de nada - respondeu a velha Katie Scarlett. - Leva-a, Colum, já estou
precisando de descanso. - Fechou os olhos e o queixo pendeu-lhe para o peito quente,
protegido pelo xale.
Colum tocou no ombro de Scarlett.
- Vamos.
Kathleen saiu correndo pela vermelha porta aberta da casa próxima, fazendo com
que as galinhas dos pátios fugissem cacarejando.
- Bem-vinda aqui em casa, Scarlett - saudou alegremente. - O chá está no bule e
há rosca levedada que acabamos de fazer para ti.
Scarlett ficou de novo surpreendida com a mudança em Kathleen. Esta parecia
tão feliz. E tão forte. Vestia aquilo em que Scarlett ainda pensava como sendo fantasia:
saia castanha pelo tornozelo, sobre saiotes azul e amarelo. A saia estava levantada de
um lado e enfiada na parte de cima do avental de fabricação caseira que atara à
cintura, mostrando assim os saiotes coloridos. Scarlett não possuía nenhuma roupa
que lhe ficasse tão bem. "Mas por que razão", interrogou-se, "estaria Kathleen de
pernas e pés nus, quando meias de riscas tão bem completariam o conjunto?"
Pensara pedir a Kathleen que fosse ficar com ela na casa de Molly. Apesar de
não esconder que não gostava da meia-irmã, com certeza Kathleen conseguiria aturá-
la durante dez dias, e Scarlett precisava mesmo dela. Molly tinha uma criada de fora,
que também fazia de criada de quarto, mas essa moça não tinha jeito nenhum para
arranjar cabelos. Porém, aquela Kathleen, feliz por estar em casa e segura de si, não
era pessoa que se precipitasse para satisfazer os seus desejos, percebeu Scarlett
perfeitamente. Nem valia a pena fazer qualquer alusão à hipótese, teria simplesmente
que se contentar com um coque mal feito, ou usar uma fita. Engoliu um suspiro e
entrou na casa.
Era tão pequena! Maior que a da avó, mas mesmo assim pequena demais para
uma família. Onde dormiriam todos? A porta principal dava diretamente na cozinha,
divisão com o dobro das dimensões da correspondente na casa pequena, mas mesmo
assim só com metade das do quarto de Scarlett em Atlanta. O que dava mais na vista
era a grande lareira de pedra no meio da parece da direita. Escadas perigosamente
íngremes subiam até uma abertura quase no topo da parede à esquerda da chaminé;
uma porta à direita desta dava para outra divisão.
- Senta-te junto da lareira - convidou Kathleen. Havia uma pequena fogueira de
turfa no próprio chão de pedra, dentro da chaminé. A mesma pedra trabalhada
estendia-se para fora, constituindo o chão da cozinha. Tinha um brilho pálido, de ter
sido esfregada, e o cheiro do sabão misturava-se com o vivo odor da turfa ardente.
"Que tristeza", pensou Scarlett, "a minha família é mesmo muito pobre. Por que
razão terá a Kathleen chorado tanto para regressar a uma coisa destas?" Obrigou-se a
sorrir e sentou-se na cadeira Windsor que Kathleen aproximara do fogão.
Nas horas que se seguiram, Scarlett viu por si própria a razão de Kathleen ter
achado o espaço e luxo relativo da vida em Savannah substitutos inadequados para a
vida na casinha caiada e com teto de colmo de County Meath. Os O'Hara de Savannah
tinham criado uma espécie de ilha de felicidade, povoada por eles próprios,
reproduzindo a vida que tinham conhecido na Irlanda. Ali estava o original.
Na metade superior da porta aberta apareceram uma sucessão permanente de
cabeças e vozes, exclamando:
- Deus abençoe todos os presentes.
Seguia-se o convite para "entrar e sentar-se à lareira", e logo o ingresso dos
donos das vozes. Mulheres, moças, crianças, rapazes, homens, bebês entravam e
saíam, sobrepondo-se e cruzando-se. As vozes irlandesas, musicais, saudavam
Scarlett e davam-lhe as boas-vindas, cumprimentavam Kathleen e saudavam-na por ter
regressado, tudo com um calor tão sentido que Scarlett quase o podia agarrar. Era tão
diferente do mundo formal de fazer e receber visitas como o dia difere da noite. As
pessoas contavam-lhe que tinham uma relação familiar e qual ela era. Homens e
mulheres contavam-lhe histórias do pai - reminiscências no caso dos mais velhos,
acontecimentos contados por pais ou avós, repetidos pelos mais novos. Via o rosto de
Gerald O'Hara em tantos dos rostos à volta da lareira, ouvia a sua voz nas vozes deles.
"É como se o paizinho aqui estivesse", pensou, "vejo como ele deve ter sido quando
era jovem, quando vivia aqui."
Havia notícias da aldeia e da vila para pôr Kathleen a par, contadas e recontadas
à medida que as pessoas entravam e saíam, pelo que, passado pouco tempo, Scarlett
tinha a impressão de conhecer o ferreiro, o padre, o homem do bar e a mulher cuja
galinha punha quase todos os dias um ovo com duas gemas. Quando a cabeça calva
do padre Donaher surgiu à porta, pareceu-lhe a coisa mais natural deste mundo, e,
quando ele entrou, olhou automaticamente, tal como todos os outros, para ver se a
batina já tinha sido remendada no ponto em que um bico espetado do portão do
cemitério a rasgara.
"É como o County costumava ser", pensou, "as pessoas conhecem-se todas
umas às outras e sabem tudo umas das outras. Todavia, é tudo de certo modo mais
pequeno, mais íntimo, mais confortável." O que ouvia e sentia, sem o reconhecer, era
que o pequeno mundo que via era mais afável que qualquer outro que alguma vez
conhecera. Só sabia que gostava muito de dele participar.
"Estas são as melhores férias que uma pessoa pode ter. Vou ficar com tantas
coisas para contar ao Rhett. Talvez um dia voltemos aqui juntos; ele nunca pensou em
ir assim inopinadamente a Paris ou Londres. Claro que não poderíamos viver assim,
é... camponês demais. Mas é tão original, encantador, divertido. Amanhã vou usar as
minhas roupas de Galway quando vier visitar todo mundo, e não ponho espartilho.
Vestirei o saiote amarelo com a saia azul, ou o vermelho...?"
À distância, tocou um sino, e a jovem de saia vermelha que estava mostrando a
Kathleen os primeiros dentes do seu bebê saltou do banquinho de três pés em que
estava santada.
- Deus do céu! Quem havia de crer que eu deixasse o meu Kevin chegar em casa
sem ter o jantar ao fogo?
- Então leva uma parte do guisado, Mary Helen, temos de sobra. O Thomas não
me saudou no regresso a casa com quatro coelhos gordos que apanhara numa
armadilha? - Em menos de um minuto, Mary Helen ia a caminho, com o bebê na anca
e uma tijela coberta com um guardanapo no braço.
- Colum, me ajuda a puxar a mesa? Os homens devem estar chegando para o
jantar. Não sei onde se meteu a Bridie.
Um a um, quase atrás uns dos outros, os homens da casa chegaram do trabalho
nos campos. Scarlett conheceu o irmão do pai, Daniel, homem de 80 anos, alto,
vigoroso, angulosamente magro, e os seus filhos. Eram quatro, dos 20 aos 44 anos,
mais, lembrava-se ela, Matt e Gerald em Savannah. A casa devia ter sido assim
quando o paizinho era jovem, ele e os seus irmãos mais velhos. Colum parecia tão
espantosamente baixo, mesmo sentado à mesa, no meio dos grandes O'Hara.
A faltosa Bridie entrou correndo pela porta no preciso momento em que Kathleen
servia conchas de guisado em tijelas azuis e brancas. Bridie vinha molhada. A blusa
colava-se aos braços e o cabelo pingava-lhe pelas costas. Scarlett olhou para lá da
porta, mas o sol brilhava.
- Então caíste num poço, Bridie? - perguntou o irmão mais novo, aquele que se
chamava Timothy. Agradou-lhe distrair as atenções de si próprio. Os irmãos tinham
estado gosando por causa do seu fraquinho por uma jovem anônima, a quem
designavam apenas por "Cabelos Dourados".
- Estive me lavando no rio - respondeu Bridie. Começou logo a comer, ignorando
o tumulto provocado pela sua afirmação.
Até Colum, que raramente tecia críticas, ergueu a voz e bateu na mesa.
- Olha para mim e não para o coelho, Brigid O'Hara. Não sabes que o Boyne
todos os anos reclama uma vida por cada quilômetro do seu comprimento?
O Boyne.
- É o mesmo da Batalha do Boyne, Colum? - indagou Scarlett. Toda a mesa caiu
em silêncio. - O paizinho deve ter-me falado umas cem vezes nela. Dizia que os
O'Hara tinham perdido todas as suas terras por causa dela. - Tijelas e colheres
voltaram a fazer-se ouvir.
- É, e perdemos - informou Colum -, mas o rio continuou o seu percurso. Marca os
limites desta terra. Eu te mostro se o quiseres ver, mas não se pensas em usá-lo como
banheira. Brigid, costumas ser mais sensata. Que foi que se apoderou de ti?
- A Kathleen disse-me que a prima Scarlett vinha, e a Eileen que a criada de uma
senhora tem que se lavar todos os dias, antes de tocar nas roupas ou no cabelo da
senhora. Então, fui me lavar. - Olhou pela primeira vez direto para Scarlett. - Pretendo
agradar, para me levares contigo no regresso à América. - Os olhos azuis eram
solenes, e espetava com determinação o queixo suavemente arredondado.
Scarlett gostou do seu aspecto. Não haveria lágrimas de saudade em Bridie, tinha
certeza. Contudo, só a podia utilizar enquanto a viagem não terminasse. Nenhuma
sulista tinha alguma vez criada branca. Procurou as palavras apropriadas para dizer
isso à jovem.
Foi no entanto Colum quem o fez por ela.
- Já estava decidido que nos acompanharias a Savannah, Bridie, portanto podias
ter evitado arriscar a vida...
- Hurra! - gritou Bridie. A seguir corou intensamente. - Não serei tão desordeira
quando estiver ao teu serviço - garantiu seriamente a Scarlett. E a Colum: - Só estive
no vau, Colum, onde a água mal chega ao joelho. Não sou assim tão burra.
- Então, descobriremos exatamente até que ponto é que és burra - respondeu
Colum. Sorria de novo. - Scarlett terá a tarefa de te dizer quais podem ser as
necessidades de uma senhora, mas não lhe andes pedindo ensinamentos antes da
hora da partida. Haverá duas semanas e um dia para partilharem um camarote no
navio, tempo suficiente para aprenderes tudo de que fores capaz. Tem paciência até lá,
respeitando Kathleen como mais velha e cumprindo o teu dever na casa.
Bridie suspirou pesadamente.
- Que chato ser a mais nova.
Todo mundo a vaiou. À exceção de Daniel, que nada disse enquanto decorreu a
refeição. Uma vez terminada esta, empurrou a cadeira para trás e pôs-se em pé.
- A melhor hora para abrir valas é quando está seco - afirmou. - Acabem a
refeição e voltem aos vossos trabalhos. - Fez a Scarlett uma vênia cerimoniosa: -
Jovem Katie Scarlett O'Hara, honras a minha casa e dou-te as boas-vindas. O teu pai
era muito estimado e a sua ausência tem sido um peso no meu peito durante estes
mais de cinquenta anos.
Ela ficou surpreendida demais para dizer palavra. Quando se lembrou de algo, já
Daniel desaparecera por detrás do celeiro, a caminho dos seus campos.
Colum empurrou a sua cadeira para trás e depois levou-a para junto do fogão.
- Não o podias saber, Scarlett querida, mas causaste uma impressão nesta casa.
Foi a primeira vez que ouvi Daniel O'Hara gastar palavras com algo que nada tem a ver
com a quinta. É melhor te acautelares com o terreno que pisas, para que as viúvas e
solteironas da região não vão à bruxa para te porem feitiços. Daniel é viúvo, sabes, e
lhe faz falta uma mulher.
- Colum! Ele é um velho!
- E a mãe não continua robusta com 100 anos? Ele ainda pode viver muito tempo.
É melhor lhe lembrares que tens marido na tua terra.
- Talvez lembre ao meu marido que não é o único homem no mundo. Eu lhe direi
que tem um rival na Irlanda. - A idéia a fez sorrir: Rhett com ciúmes de um fazendeiro
irlandês. E por que não? Um dia talvez se referisse ao assunto, sem dizer que se
tratava do tio, e que era tão velho como os montes. Oh, ia divertir-se bastante quando
tivesse Rhett onde pretendia!
Um inesperado sentimento de saudade atingiu-a como uma dor física. Não o
arreliaria por causa de Daniel O'Hara nem por nenhuma outra razão. Tudo o que
pretendia era estar com ele, amá-lo, ter aquele bebê para ambos amarem.
- Colum tem razão numa coisa - interveio Kathleen. - Daniel deu-te a bênção do
dono da casa. Quando não suportares nem mais um minuto de Molly, tens aqui lugar
se quiseres.
Scarlett viu a sua oportunidade. Estava consumida de curiosidade.
- Onde arrumas tanta gente? - perguntou sem rodeios.
- Há o sótão, dividido em dois. Os rapazes têm o lado deles, Bridie e eu, o outro.
E o tio Daniel ficou com a cama junto da lareira, já que a avó não a quer. Vou te
mostrar. - Puxou a parte de trás de um assento de madeira colocado ao longo da
parede além da escada, e ele abriu-se e desceu, revelando um espesso colchão
coberto por um cobertor de lã aos quadrados. - Disse que vinha para cá para mostrar à
mãe que perdia uma boa coisa, mas sempre pensei que ele se sentia só no quarto de
cima depois de a tia Theresa ter morrido.
- No quarto de cima?
- Por ali. - Kathleen indicou a porta com um gesto. - Nós o adaptamos à sala, não
fazia sentido desperdiçá-lo. Mas a cama ainda lá está, para ti, em qualquer hora que te
apeteça.
Scarlett era incapaz de imaginar que alguma vez lhe apetecesse. De sete
pessoas numa casa pequena, pelo menos quatro ou cinco estavam a mais, na sua
opinião. Principalmente sendo pessoas tão grandes. "Não admira que o paizinho fosse
considerado o pequenote da ninhada", pensou ela, "nem que sempre se tivesse
comportado como se pensasse ter três metros de altura."
Foi com Colum visitar de novo a avó, antes de regressar a casa de Molly, mas a
velha Katie Scarlett dormia junto da lareira.
- Achas que ela está bem? - sussurrou Scarlett.
Colum limitou-se a acenar com a cabeça. Esperou até estarem na rua para dizer.
- Vi a panela do guisado em cima da mesa, e estava quase vazia. Desde que lá
estivemos ela deve ter feito o jantar para o Sean e comido com ele. Dorme sempre um
bocado depois das refeições.
As altas sebes que bordejavam a senda rescendiam com botões de espinheiro, e
o canto dos pássaros descia dos ramos superiores, meio metro acima da cabeça de
Scarlett. Era maravilhoso caminhar por ali, embora o terreno estivesse húmido.
- Há senda até o Boyne, Colum? Disseste que me levavas.
- Pois disse. Amanhã de manhã, se não te importares. Prometi à Molly levar-te
hoje cedo para casa. Ela oferece um chá em tua honra.
Uma festa! Em honra dela! Que boa idéia tinha sido, a de ir conhecer a família
antes de se instalar em Charleston.
"A comida era boa, mas essa é a única coisa positiva que posso dizer", pensava
Scarlett. Sorria simpaticamente e apertava a mão de todos os convidados de Molly, que
se despediam. "Ora bolas! Que dedos frouxos que estas mulheres têm, e falam todas
como se tivessem alguma coisa atravessada na garganta. Nunca vi tanta gente
peganhenta em todos os dias da minha vida."
A concorrência no exagero de refinamento entre candidatos provincianos da alta
sociedade era algo que nunca se deparara a Scarlett. Os proprietários de Clayton
County eram decididamente terra-a-terra, e havia verdadeiramente uma aristocracia
que desdenhava pretensões tanto em Charleston como no círculo que considerava dos
"amigos de Molly", em Atlanta. O dedinho espetado da mão que segurava a xícara de
chá e as niquentas mordiscadelas em scones e sanduíches que caracterizavam Molly e
as suas amigas pareceram-lhe tão ridículos como de fato eram. Consumira a excelente
comida com um apetite excelente e ignorara as sugestões a que deplorasse a
vulgaridade das pessoas que sujavam as mãos com o trabalho do campo.
- Que faz Robert, Molly? Tem sempre as luvas calçadas? - inquirira, encantada
por ver que apareciam rugas na pele perfeita de Molly quando ela se franziu.
"Calculo que vá ter umas palavrinhas a dizer a Colum por me ter trazido para cá,
mas não me incomodo. Foi bem feito, por falar de mim como se eu não fosse uma
O'Hara, nem ela. E onde terá ido buscar a idéia de que uma plantação é a mesma
coisa que... como é que lhe chamou?... um senhorio inglês? Talvez eu própria tenha
que dar umas palavrinhas ao Colum. As caras delas foram, porém, de antologia
quando lhes contei que todos os nossos criados e trabalhadores do campo eram
sempre negros. Não creio que alguma vez tenham ouvido falar em pele escura, muito
menos visto alguém com ela. Isto é um sítio estranho, todo ele."
- Que bela festa, Molly - disse em voz alta. - Garanto que comi quase até
rebentar. Acho que vou descansar um pouco no meu quarto.
- Claro que deves fazer como entenderes, Scarlett. Mandei o rapaz trazer a
carripana, para podermos dar um passeio, mas se preferires dormir...
- Oh, não, agrada-me a idéia de sair. Achas que podemos ir até ao rio? -
Planejara libertar-se de Molly, mas era uma oportunidade boa demais para ser perdida.
A verdade é que preferia ir ver o Boyne de carro do que a pé. Não confiava nem um
bocadinho em Colum quando ele dizia que não era longe.
E com razão, verificou. Usando luvas amarelas para condizer com os raios
amarelos das grandes rodas da carripana, Molly conduziu até a estrada principal,
atravessando depois a aldeia. Scarlett olhava com interesse para a fila de casas com
aspecto de desalento.
Até que a carripana passou os maiores portões que Scarlett alguma vez vira,
enormes criações em ferro forjado, encimadas por pontas de lança douradas e tendo
no centro de cada lado uma placa de desenho intrincado, brilhantemente colorida e
orlada a ouro.
- O brasão do conde - informou Molly, desvanecida. - Vamos até a Casa Grande e
vemos o rio do jardim. Não há problema, ele não está, e o Robert obteve autorização
do Sr. Alderson.
- Quem é esse?
- O procurador do conde. Dirige toda a propriedade. Robert o conhece.
Scarlett tentou fazer o ar de quem ficara impressionada. Era evidente ser isso o
que se esperava dela, embora não conseguisse perceber porquê. Que podia haver de
tão importante num capataz? Não passavam de empregados.
A sua pergunta obteve resposta depois de um longo caminho por uma estrada de
saibro, perfeitamente reta e larga, que atravessava grandes extensões de relva
aparada e que por momentos lhe recordaram os vastíssimos terraços de Dunmore
Landing. A idéia foi posta de lado pela primeira visão da Casa Grande.
Esta era imensa, não um único edifício, ao que parecia, mas sim um conjunto de
telhados, torres e paredes com ameias. Assemelhava-se mais a uma cidadezinha que
a qualquer casa que Scarlett tivesse alguma vez visto ou sequer ouvido falar.
Compreendeu a razão de Molly se sentir tão respeitosa perante o procurador. Gerir um
sítio daqueles ocuparia mais gente e daria mais trabalho que maior plantação alguma
vez existente. Estendeu o pescoço para olhar para cima, para as paredes de pedra e
as janelas com lambris de mármore rendilhado. A mansão que Rhett construíra para
ela era a maior e - na opinião de Scarlett - a mais impressionante residência de Atlanta,
contudo podia ser aninhada num canto daquela e ocuparia tão pouco espaço que mal
se daria por ela.
- Adoraria vê-la por dentro...
Molly ficou horrorizada por Scarlett se atrever sequer a perguntar.
- Temos autorização para passear pelo jardim. Vou prender o cavalo àquele poste
de armação e entramos ali pelo portão. - Apontou para uma entrada em arco
pronunciadamente ogival. O portão de ferro estava entreaberto. Scarlett saltou da
carripana.
O arco dava para um terraço de saibro. Era a primeira vez que Scarlett via saibro
raspado com ancinho de maneira a constituir um padrão. Sentiu-se quase tímida em
relação a caminhar sobre ele. As suas pegadas estragariam a perfeição das curvas em
S formadas pelo ancinho. Olhou apreensiva para o jardim que se estendia para além
do terraço. Sim, os caminhos eram em saibro. E este fora raspado. Não em curvas,
graças a Deus, mas continuava a não haver pegadas visíveis. "Como será que fazem
isto? O homem do ancinho tem de ter pés." Respirou fundo e calcou decididamente o
terraço, atravessando-o até os degraus de mármore que davam para o jardim. O ruído
das suas botas pisando o cascalho soou-lhe aos ouvidos com tanta violência como
tiros de armas de fogo. Lamentava ter ido.
Afinal, onde estava Molly? Scarlett virou-se com todo o cuidado de que foi capaz.
A prima caminhava cautelosamente, pondo os pés nas marcas que ela deixara. Scarlett
sentiu-se muito melhor por Molly (apesar de todos os seus ares) estar ainda mais
intimidada que ela. Ergueu os olhos para a casa, enquanto esperava que a sua
companheira a apanhasse. Vista daquele lado, a residência pareceu-lhe muito mais
humana. Havia portas de vidro que davam entrada do terraço para salas, fechadas e
com cortinas, mas não grandes demais, dando para entrar e sair, nem com a
imponência das portas da frente da casa. Era possível acreditar-se que pudessem viver
ali pessoas, não gigantes.
- Para que lado é o rio? - gritou Scarlett para a prima.
Não ia permitir que uma casa vazia a fizesse falar em murmúrios.
No entanto, também não estava disposta a atardar-se. Recusou a sugestão de
Molly de passearem por todos os caminhos de todos os jardins.
- Só quero ver o rio. Estou farta de jardins; o meu marido preocupa-se demais
com eles. - Evadiu a transparente curiosidade de Molly sobre seu casamento, enquanto
se guiam pelo caminho central, em direção às árvores que marcavam os limites do
jardim.
E então, de súbito, ali estava, através do espaço com aspecto natural mas
artificiosamente obtido entre dois conjuntos de árvores, castanho e dourado, como
nenhuma água que Scarlett já vira. A luz do Sol jazia sobre o rio como ouro derretido,
rodopiando em lentos remoinhos de água tão escura como brande.
- É lindo - comentou em voz suave. Não esperara encontrar beleza.
"A fazer fé no paizinho, devia ser vermelho, com tanto sangue derramado,
tempestuoso, violento. Porém, mal parece mover-se. Então este é que é o Boyne."
Toda a vida ouvira falar nele e agora estava suficientemente perto para se baixar e
tocar-lhe. Scarlett sentiu uma emoção que lhe era desconhecida, algo que não
conseguia caracterizar por palavras. Procurava uma definição, uma compreensão; era
importante, se conseguisse encontrá-la...
- Aí está a vista - pronunciou Molly na sua dicção mais afetada. - Todas as
melhores casas têm uma dos seus jardins.
Scarlett teve vontade de lhe bater. Agora já não encontraria o que procurava,
fosse o que fosse. Olhou para onde Molly indicava e viu uma torre do outro lado do rio.
Era como as que avistara do trem, feita em pedra e parcialmente a desmoronar-se. A
humidade manchava-lhe a base e as heras pegavam-se às paredes. Era muito maior
do que pensara que seriam quando as vira à distância; parecia poder ter uns nove
metros de lado e o dobro disso em altura. Tinha que concordar com Molly que se
tratava de uma visão romântica.
- Vamos - disse, depois de mais uma olhadela ao rio. De repente sentira-se muito
cansada.

- Colum, acho que vou matar a querida prima Molly. Se pudesses ter ouvido
ontem à noite ao jantar aquele horrível Robert dizer-nos como fomos privilegiadas por
passearmos nos estúpidos caminhos do jardim do conde. Deve tê-lo dito umas
setecentas vezes, e de cada uma Molly tagarelou por dez minutos sobre a emoção que
foi. E depois, esta manhã, quase desmaiou quando me viu com estas roupas de
Galway.
Então não foi nenhuma vozinha de senhora, deixa-me que te diga. Pregou-me um
sermão sobre lhe arruinar a posição e ser um embaraço para o Robert. Para o Robert!
Ele devia ficar embaraçado de cada vez que vê ao espelho a sua estúpida cara gorda.
Como se atreve a Molly a fazer sermões sobre envergonhá-lo?
Colum deu uma pancadinha na mão de Scarlett.
- Não é a melhor companhia que eu desejo para ti, Scarlett querida, mas a Molly
tem as suas virtudes. Não te esqueças de que nos emprestou a carripana para o dia
todo, e vamos dar um grande passeio sem que a lembrança dela o ensombre. Repara
nas flores de espinheiro negro nestas sebes, e nas ginjas tão maduras ali naquele
quintal. O dia está bonito demais para o desperdiçarmos com rancor. E tu pareces uma
encantadora garota irlandesa, com as tuas meias listradas e saiote vermelho.
Scarlett estendeu os pés e riu. Coluna tinha razão: por que havia ela de deixar
que Molly lhe estragasse o dia?
Foram a Trim, vila antiga, com uma história muito rica, que Colum sabia
perfeitamente não interessar nada a Scarlett. Então falou-lhe antes do Mercado todos
os sábados, tal como o de Galway, só que, tinha que confessar, bastante menor.
Porém, quase todos os sábados havia uma mulher que lia o destino, o que raramente
acontecia em Galway, e prometia uma sorte gloriosa a quem pagasse dois dinheiros,
felicidade razoável por um dinheiro, e só tribulações se a bolsa não desse para mais de
meio dinheiro.
Scarlett riu... Colum conseguia sempre fazê-la rir... e tocou na bolsinha que trazia
pendente entre os seios. Ficava escondida pela blusa e pela capa azul de Galway.
Nunca ninguém saberia que usava duzentos dólares em ouro em vez de espartilho.
Aquela liberdade era quase indecente. Não saía de casa sem espartilho desde os 11
anos de idade.
Colum mostrou-lhe o famoso castelo de Trim, e Scarlett fingiu interessar-se pelas
ruínas. A seguir mostrou-lhe a loja onde Jamie trabalhara desde os 16 anos até ir para
Savannah, com 42, e o interesse de Scarlett foi genuíno. Conversaram com o dono da
loja, e é claro que este não podia fazer menos que fechá-la e acompanhar os visitantes
ao andar de cima, para falarem com a esposa, que de certeza morreria de desgosto se
não pudesse ouvir as notícias de Savannah diretamente dos próprios lábios de Colum
e conhecer a O'Hara de visita, que já era tema de conversa em toda a região devido à
sua beleza e ao seu encanto americano.
Depois, os vizinhos tinham que ser informados de que aquele era um dia especial
e de quem eram as visitas, e apressaram-se a subir às salas por cima da loja, até ao
ponto de Scarlett ter certeza de que as paredes deviam estar dilatando.
Seguidamente:
- Os Mahoney ficarão ofendidos se viermos a Trim e não os formos ver - afirmou
Colum quando por fim deixaram a casa do antigo patrão de Jamie. Quem? A família de
Maureen, claro, que tem o maior bar de Trim; e Scarlett alguma vez provara cerveja
preta? O número de pessoas foi ainda maior desta vez, e chegavam mais a cada
minuto, não tardando a haver violinistas e viandas. As horas passaram correndo, e
instalava-se o prolongado crepúsculo quando iniciaram a breve viagem até
Adamstown. O primeiro aguaceiro do dia (era um fenômeno haver tanto Sol, no dizer
de Colum) intensificou o odor dos botões de espinheiro. Scarlett puxou para cima o
capuz da sua capa, e ambos cantaram durante todo o caminho até a aldeia.
- Vou parar aqui no bar para ver se há carta para mim - informou Colum. Enrolou
as rédeas do potro em torno da bomba da aldeia. Num instante, apareceram cabeças
nas meias-portas abertas de todos os edifícios.
- Scarlett - chamou Mary Helen -, o bebê tem mais um dente, vem beber uma
xícara de chá e vê-lo.
- Não, Mary Helen, vem tu com bebê, dente, marido e tudo - interveio Clare
O'Gorman, O'Hara de nascimento. - Então ela não é minha prima direta e o meu Jim
não está mortinho por a conhecer?
- E também é minha prima, Clare - gritou Peggy Monaghan. - E tenho rosca
levedada no fogão porque ouvi dizer que lhe agrada muito.
Scarlett não sabia o que fazer.
- Colum! - chamou.
Era fácil, disse ele. Iriam a todas as casas uma por vez, a começar pela próxima,
reunindo amigos à medida que avançassem. Quando toda a aldeia estivesse numa das
casas, aí ficariam durante algum tempo.
- Não demais, repara, porque tens que vestir as tuas roupas chiques para o jantar
da Molly. Ela tem imperfeições, como todos nós, mas não podes fazer-lhe desfeita sob
o seu próprio teto. A Molly esforçou-se demais para se libertar desse tipo de saiotes
para conseguir suportar vê-los na sua sala de jantar.
Scarlett pousou a mão no braço de Colum.
- Achas que posso ficar na casa do Daniel? - perguntou.
- Realmente detesto estar na da Molly... De que ri, Colum?
- Tenho pensado em como convencer a Molly a deixar-nos ficar com a campana
mais um dia. Agora acho que consigo persuadi-la a pô-la à nossa disposição para o
resto da tua visita. Vai lá ver o novo dente, que eu vou ter uma pequena conversa com
a Molly. Não te ofendas, Scarlett querida, mas é provável que ela prometa seja o que
for se eu lhe garantir que te levo para outro lado. Nunca se esquecerá do que disseste
das elegantes luvas de pelica do Robert para cuidar das vacas. É a história mais
apreciada em todas as cozinhas desde aqui até Mullingar.
A hora da ceia, Scarlett estava instalada no quarto "sobre" a cozinha. O tio Daniel
até sorriu quando Colum contou a história das luvas de Robert. Esta notável ocorrência
foi acrescentada à história, tornando-a ainda melhor para quando fosse recontada.
Foi supreendentemente fácil a adaptação de Scarlett à simplicidade da casa com
duas divisões de Daniel. Com quarto só para si, cama confortável e Kathleen em
permanente mas discreta atividade de limpeza e cozinha, Scarlett só tinha que gozar
as suas férias. E foi o que fez - o mais possível.
Durante a semana seguinte Scarlett esteve mais ocupada e, sob certos aspectos,
mais feliz do que nunca. Sentia-se mais forte fisicamente do que se lembrava de
alguma vez se ter sentido. Liberta da constrição da moda do espartilho apertado e com
armação metálica, conseguia movimentar-se mais depressa e respirar profundamente
pela primeira vez em muitos anos. Além disso, era daquelas mulheres cuja vitalidade
aumenta com a gravidez, como que em resposta às necessidades da vida crescendo
no seu interior. Dormia profundamente e acordava ao cantar do galo com um apetite
devorador para o desjejum e para o dia que se lhe deparava.
Este produzia sempre a confortável delícia de prazeres já conhecidos e o estímulo
de novas experiências. Colum estava sempre ansioso por a levar "à aventura", como
dizia, na carripana com potro da Molly. Contudo, tinha primeiro que a arrancar aos seus
novos amigos. Estes começavam a enfiar a cabeça pela porta de Daniel imediatamente
a seguir ao desjejum. Para uma visita, para a convidarem a visitá-los, com uma história
que ela talvez ainda não tivesse ouvido, ou uma carta da América que precisava da
explicação do sentido de algumas palavras ou expressões. Scarlett era a especialista
na América e era-lhe pedido repetidas vezes que contasse como era o país. No
entanto, também era irlandesa, embora, coitadinha, tivesse estado na ignorância desse
fato, havendo portanto dúzias de coisas a dizer-lhe, a ensinar-lhe e a mostrar-lhe.
Havia nas mulheres irlandesas uma simplicidade que a desarmava: era como se
pertencessem a outro mundo, tão estranho como aquele em que todas acreditavam e
em que duendes dos mais diversos tipos faziam coisas mágicas e encantadas. Ria
abertamente quando todas as noites Kathleen punha na soleira da porta um pires com
leite e um prato com pão esmigalhado para o caso de passar "gente pequena" com
fome. E, quando na manhã seguinte tanto o pires como o prato apareciam vazios e
limpos, Scarlett dizia com bom senso que algum dos gatos do celeiro por lá devia ter
passado. O seu ceticismo não incomodava minimamente Kathleen, e a ceia desta para
os duendes tornou-se, para Scarlett, uma das coisas mais encantadoras da vida com
os O'Hara.
Outra coisa encantadora era o tempo que passava com a avó. "É rija como couro
para sapatos", pensava Scarlett com orgulho, e imaginava que fora o sangue da avó
correndo-lhe nas veias que lhe permitira ultrapassar as épocas desesperadas da sua
vida. Era freqüente correr para a casinha e, se a velha Katie Scarlett estava acordada e
disposta a falar, sentava-se num banco e pedia histórias sobre o seu paizinho
crescendo.
Por fim, cedia às incitações de Colum e subia para a campana, para a aventura
do dia. Aquecida pelas saias de lã, protegida por capa e capuz, aprendeu em poucos
dias a não ligar ao forte vento de Oeste nem aos breves aguaceiros que tão
freqüentemente se seguiam.
Era uma chuva dessas que caía quando Colum a levou à "verdadeira Tara". A
capa de Scarlett enfunava à sua volta quando chegou ao topo da escadaria de pedras
irregulares que subia a encosta da pequena colina onde os reis da Irlanda tinham
governado e tocado música, amado e odiado, festejado e batalhado, e por fim sido
derrotados.
"Nem sequer há castelo." Scarlett olhou em seu redor e nada mais viu a não ser
algumas ovelhas dispersas, pastando. Os seus velos pareciam cinzentos, sob o céu
cinzento, na luminosidade cinzenta. Teve um arrepio, surpreendendo-se a si própria.
"Um ganso passou por cima da minha sepultura." A explicação da infância ocorreu-lhe,
fazendo-a sorrir.
- Agrada-te? - indagou Colum.
- Ah, sim, é muito bonito.
- Não mintas, Scarlett querida, e não procures nada bonitinho em Tara. Vem
comigo. - Estendeu a mão e Scarlett pôs nela a sua.
Juntos caminharam lentamente pelo espesso relvado, até chegarem a uma zona
irregular, com o que lhe pareceram montículos de erva sobre a terra. Colum passou por
cima de alguns deles e deteve-se.
- São Patrício em pessoa esteve onde nós estamos agora. Então era um homem,
um simples missionário, provavelmente não maior que eu. A santidade veio depois, e o
santo cresceu nos espíritos das pessoas até se tornar um gigante, invencível, armado
com a Sagrada Palavra de Deus. É melhor, creio, recordar que começou por ser um
homem. Deve ter tido medo... só, em sandálias e capa, enfrentando o Grande Rei e os
seus magos. Patrício nada mais tinha que a sua fé, a sua missão de verdade e a
obrigação de a partilhar. O vento devia ser frio. A sua necessidade de partilha devia ser
como uma chama a consumi-lo. Já infringira as leis do Grande Rei ao acender uma
enorme fogueira numa noite em que a lei impunha que todas as fogueiras fossem
extintas. Podia ter sido morto pela desobediência, sabia-o. Incorrera em tão grande
risco para atrair as atenções do rei e lhe provar a magnitude da mensagem que ele,
Patrício, transportava! Não temia a morte, só temia desiludir Deus. Tal não aconteceu.
O rei Laog-haire, do alto do seu antigo trono coberto de jóias, concedeu ao audaz
missionário o direito de pregar sem ser incomodado. E a Irlanda tornou-se cristã.
Havia, na voz calma de Colum, algo que obrigou Scarlett a escutar e a tentar
compreender o que ele dizia e ainda mais para além disso. Nunca pensara nos santos
como pessoas, passíveis de terem medo. De fato, nunca pensara muito nos santos;
eram apenas nomes de feriados. Agora, olhando para a figura atarracada de Colum,
para a sua cara vulgar e para o cabelo grisalho despenteado pelo vento, conseguia
imaginar a cara e a figura de outro homem de aspecto vulgar, na mesma disposição.
Ele não tinha medo de morrer. Como era possível que uma pessoa não tivesse medo
de morrer? Como seria? Sentiu-se humanamente dominada pela inveja de São
Patrício, de todos os santos, até, de certa forma, de Colum. "Não compreendo, nem
nunca compreenderei", pensou. O entendimento foi vagaroso e constituiu um forte
peso. Aprendera uma grande verdade, penosa e perturbadora. Há coisas profundas
demais, complexas demais, conflituosas demais para serem explicadas ou
compreendidas numa base quotidiana. Scarlett sentiu-se sozinha, exposta ao vento de
Oeste.
Colum continuou a caminhar, conduzindo-a. Foram só algumas dezenas de
passos até o lugar onde parou.
- Ali - chamou a atenção dela -, aquela fila de montículos, vês?
Scarlett disse que sim com um aceno de cabeça.
- Devias ter música e um copo de uísque para contrariar o efeito do vento e
abrires os olhos, mas nada disso tenho para te oferecer, portanto talvez seja melhor
fechá-los para veres. É tudo o que resta do salão de banquetes de mil castiçais. Os
O'Hara estavam lá, Scarlett querida, e as Scarletts, e todos os que conheces:
Monaghan, Mahoney, MacMahon, O'Gorman, O'Brien, Danaher, Donahue, Carmody...
e também outros que ainda não conheces. Todos os heróis lá estavam. A comida, essa
era formidável e em quantidade, e a bebida também. E música capaz de fazer saltar o
coração do peito. Havia um milhar de convivas, iluminados por um milhar de castiçais.
Consegues ver, Scarlett? As chamas brilharem duas, três, dez vezes, refletidas como
eram nas pulseiras de ouro que tinham nos braços e nas canecas de ouro que levavam
às bocas, e nos vermelhos, verdes e azuis profundos das grandes jóias com fechos de
ouro que lhes sustinham nos ombros as capas carmins. Que gloriosos apetites
tinham... para o veado, o javali e o ganso assado, cintilando na sua gordura... para o
hidromel e o uísque... para a música que lhes levava os punhos a baterem nas mesas,
com os pratos de ouro saltando e tilintando uns nos outros. Consegues ver o teu
paizinho? E Jamie? E aquele malandro do Brian, com os seus olhares de lado para as
mulheres? Oh, que festejos! Consegues vê-los, Scarlett?
Esta riu juntamente com Colum. Sim, o paizinho teria cantado a plenos pulmões
Peg in a Low-backed Car e exigido que lhe enchessem a caneca uma última vez,
porque o canto dava uma sede terrível a um homem. Como ele teria adorado!
- Haveria cavalos - garantiu. - O paizinho tinha sempre um cavalo.
- Cavalos tão fortes e belos como grandes ondas precipitando-se sobre a costa.
- E alguém com paciência para depois colocá-lo na cama.
Colum soltou uma gargalhada. Passou-lhe os braços em volta e abraçou-a, para
logo a largar.
- Sabia que sentirias como esses fatos foram gloriosos - afirmou. Havia orgulho
nas suas palavras, orgulho dela. Scarlett sorriu-lhe, com os olhos parecendo
esmeraldas vivas.
O vento fez cair o capuz para os ombros, e foi cálido o ar que sentiu na cabeça. O
aguaceiro passara. Ergueu os olhos para o céu azul recém-lavado: nuvens de um
branco ofuscante moviam-se quais bailarinas sob o efeito do forte vento. Pareciam tão
próximas, e o céu irlandês tão caloroso e protetor.
Foi então que o seu olhar recaiu sobre a Irlanda à sua frente, com os verdes
sucessivos dos campos cultivados, de tenras folhas novas, de sebes cheias de vida.
Podia ver até tão longe, até a nublada curvatura da Terra. Algo antigo e pagão
remexeu-se bem no fundo do seu interior, e a rudeza mal domesticada que
correspondia ao seu ser escondido invadiu-lhe fervorosamente o sangue. Ser rei era
isto, estar assim acima do mundo, assim perto do Sol e do céu. Abriu os braços para
abraçar a vida, naquela colina, com o mundo a seus pés.
- Tara - disse Colum.
- Senti-me tão estranha, Colum, nada como é habitual em mim. - Scarlett pôs um
pé num dos raios amarelos da roda e subiu para o assento da campana.
- É dos séculos, Scarlett querida. Toda a vida ali vivida, toda a alegria e toda a
tristeza, todas as festas e batalhas, tudo isso está no ar ao redor e na terra por baixo
de nós. É o tempo, anos para além da nossa possibilidade de contagem, pesam sem
peso sobre a Terra. Não se pode ver, não se pode cheirar, não se pode ouvir, não se
pode tocar, mas sente-se passar-nos pela pele e falar sem som. Tempo. E mistério.
Scarlett puxou a capa bem em torno de si, apesar do Sol quente.
- Foi como junto ao rio, também me fez sentir de certo modo estranha. Estive
quase a atribuir-lhe um nome, mas perdi-o. - Falou-lhe da ida ao jardim do conde, do
rio e da vista da torre.
- Com que então "as melhores casas têm vista"? - A voz de Colum estava terrível
de ira. - Foi o que a Molly disse?
Scarlett embrulhou ainda mais o corpo na capa. Que dissera de tão errado?
Nunca vira Colum assim, era um estranho, nada o Colum que conhecia.
Ele virou-se na sua direção e sorriu, e Scarlett viu que se enganara.
- Que tal se me encorajares na minha fraqueza, Scarlett querida? Os cavalos de
corrida vão ser hoje apresentados em Trim. Gostaria de lhes ir dar uma olhada, para
escolher aquele em que apostarei na corrida de domingo.
Ela ficou entusiasmada com a idéia.
Eram quase dezesseis quilômetros até Trim. "Não é longe", pensou Scarlett.
Porém, a estrada dava voltas e reviravoltas e mudava de sentido de vez em quando,
tomando direções que a afastavam da que eles pretendiam, para dar de novo voltas e
reviravoltas, até que por fim iam outra vez para onde queriam. Scarlett concordou
entusiasticamente quando Colum sugeriu que parassem numa aldeia para uma xícara
de chá e algo para comer. De regresso à carripana, percorreram um breve caminho até
uma encruzilhada, onde viraram para uma estrada mais larga e reta. Ele chicoteou o
cavalo para este seguir a trote. Passados poucos minutos, voltou a chicoteá-lo com
mais força e percorreram a galope uma aldeia grande, tão depressa que a carripana
vacilava sobre as suas rodas altas.
- Aquela terra parecia deserta - comentou ela, quando abrandaram novamente. -
Porquê, Colum?
- Ninguém quer viver em Ballyhara; tem uma história má.
- Que pena, parecia bem bonita.
- Já foste a alguma corrida de cavalos, Scarlett?
- A uma corrida a sério só uma vez, em Charleston, mas na terra estávamos
sempre tendo corridas por divertimento. O paizinho era o pior. Não suportava andar só
a cavalo e conversar com quem fosse ao lado. Tinha que transformar em corrida todos
os quilômetros do percurso.
- E por que não?
Scarlett riu. Às vezes Colum era tão parecido com o paizinho.
- Devem ter fechado tudo em Trim - disse, ao ver a multidão na pista de corridas. -
Todos estão aqui. - Viu muitas caras conhecidas. - Suponho que também tenham
fechado em Adamstown. - Os rapazes O'Hara acenavam e sorriam. Ela não os
invejaria se por acaso o velho Daniel os visse. A abertura das valas ainda não estava
completa.
A oval de terra batida tinha quase cinco quilômetros de extensão. Havia
trabalhadores completando a instalação do último obstáculo, pois a corrida seria com
barreiras. Colum prendeu o animal a uma árvores, a alguma distância da pista, e
abriram caminho por entre a multidão.
Todo mundo estava bem-disposto, e todos conheciam Colum; todos queriam
conhecer Scarlett, "a jovem senhora que inquirira sobre o hábito de Robert Donahue
usar luvas para a agricultura".
- Sinto-me a mais bela do baile - sussurrou a Colum.
- E quem melhor para o lugar? - Seguia à frente, com muitas paradas, até a zona
onde os cavalos estavam sendo conduzidos em círculos pelos seus cavaleiros ou
treinadores.
- Mas, Colum, são magníficos. Que fazem cavalos assim numa corrida numa
pequena vila tão singela?
Ele explicou que a corrida não era pequena nem "singela". Tinha um fundo de
cinquenta libras para o vencedor, mais do que muitos donos de lojas ou agricultores
ganhavam num ano. Além disso, os saltos eram um verdadeiro teste. Um vencedor em
Trim podia fazer frente a todos os outros em corridas mais famosas, como as de
Punchestown, Galway ou mesmo Dublim.
- Ou ganhar por dez comprimentos qualquer corrida na América - acrescentou
com um sorriso. - Os cavalos irlandeses são os melhores do mundo, é um saber
reconhecido em todo lugar.
- Tal como o uísque irlandês, suponho - comentou a filha de Gerald O'Hara.
Ouvira ambas as afirmações durante toda a sua vida. Os obstáculos pareciam-lhe altos
demais; talvez Colum tivesse razão. As corridas deviam ser excitantes. E antes seria
dia de Mercado em Trim. De fato, ninguém podia desejar melhores férias.
Uma espécie de ruído subterrâneo fazia-se ouvir através das conversas, risos e
exclamações da multidão.
- Luta! Luta!
Colum trepou o gradeamento para ver. Um grande sorriso espalhou-se pelo rosto,
e a mão direita em punho fechado foi bater na palma esquerda em concha.
- Então vais querer fazer uma pequena aposta, Colum? - desafiou o homem que
se encontrava ao seu lado no gradeamento.
- Vou. Cinco xelins nos O'Hara.
Scarlett quase fez desequilibrar Colum ao agarrar-lhe o tornozelo.
- Que se passa?
A multidão afastava-se do terreno ovalado e dirigia-se para o local dos distúrbios.
Colum saltou para baixo, pegou o pulso de Scarlett e correu.
Três ou quatro dúzias de homens, novos e velhos, gritavam e berravam numa
confusão de punhos, botas e cotovelos. A multidão descrevia em volta deles um vasto
círculo irregular, soltando exclamações de encorajamento. Duas pilhas de casacos a
um dos lados testemunhavam a repentina erupção da luta: muitos tinham sido despidos
tão às pressas que o forro das mangas ficara virado para fora. Dentro do círculo havia
camisas ficanco vermelhas de sangue derramado, do seu dono ou do homem que ele
atingia. Não havia padrão nem ordem estabelecida. Cada homem atingia o que lhe
estivesse mais próximo, depois olhava em redor, à procura de novo alvo. Quem caísse
era posto em pé sem delicadeza pela pessoa que estivesse mais próxima e atirado de
regresso à luta.
Scarlett nunca vira homens lutarem com os punhos. O som dos socos e o sangue
jorrando das bocas e dos narizes horrorizaram-na. Os quatro filhos de Daniel estavam
envolvidos e ela implorou a Colum que os obrigasse a parar.
- Para perder os meus cinco xelins? Nem pensar, minha amiga.
- É horrível, Colum O'Hara, simplesmente horrível.
Repetiu as palavras mais tarde, a Colum, aos filhos de Daniel e a Michael e
Joseph, dois dos irmãos de Colum que ainda não tinha encontrado. Estavam todos na
cozinha, na casa de Daniel. Kathleen e Brigid lavavam calmamente as feridas,
ignorando os gritos de dor e as acusações de tratamento descuidado. Colum distribuía
copos de uísque.
"Não acho graça nenhuma, independentemente do que eles dizem", comentou
Scarlett para si mesma. Não conseguia acreditar que as lutas de facções fizessem
parte do divertimento das feiras e acontecimentos públicos para os O'Hara e os seus
amigos. "Com que então 'só entusiasmo'?" E, se possível, as jovens ainda eram piores,
pelo modo como estavam atormentando Timothy por ele não ter nada pior que um olho
roxo.
No dia seguinte, Colum surpreendeu-a ao aparecer antes do café, a cavalo e
conduzindo outro pelas rédeas.
- Disseste que gostavas de andar a cavalo - recordou-lhe. - Pedi estas montarias
emprestadas. Contudo, têm que ser devolvidas até o meio-dia, por isso arrebanha o
que tenha sobrado do pão de ontem à noite e vem embora antes que a casa se encha
de visitas.
- Não há sela, Colum.
- Chiu, andas ou não a cavalo? Vai buscar o pão, Scarlett querida, que a Bridie
põe as mãos em concha para te ajudar a subir.
Desde pequena que não andava sem sela e escarranchada. Esquecera a
sensação de constituir com o cavalo uma única criatura. Tudo voltou, no entanto, como
se nunca tivesse deixado de cavalgar daquela maneira, e não tardou a quase nem
precisar das rédeas: a pressão dos joelhos dizia ao cavalo o que iam fazer.
- Onde vamos? - Estavam numa senda por onde nunca tinha passado a pé.
- Até o Boyne. Tenho uma coisa para te mostrar.
O rio. O pulso de Scarlett acelerou. Havia lá algo que a atraía e ao mesmo tempo
a repelia.
Começou a chover, e ela congratulou-se por Bridie a ter convencido a levar um
xale. Tapou a cabeça e continuou silenciosamente atrás de Colum, ouvindo a chuva
bater nas folhas da sebe e o lento clop-clop dos cascos dos cavalos a passo. Que
pacífico! Não sentiu qualquer surpresa quando a chuva parou. Então os pássaros
escondidos nas sebes podiam voltar a sair.
A senda terminou e o rio estava ali. As margens eram tão baixas que a água
quase se sobrepunha.
- É aqui o vau onde a Bridie faz as suas lavagens - disse Colum. - Quer tomar
banho?
Scarlett estremeceu exageradamente.
- Não sou assim tão corajosa. A água deve estar gelada.
- Já vais saber, mas só por uns pingos. Vamos atravessar. Segura as rédeas com
firmeza. - O seu cavalo entrou cautelosamente na água. Scarlett pegou as saias e
prendeu-as sob as coxas antes de o seguir.
Na margem oposta, Colum desmontou.
- Desce para tomar o café - disse. - Vou prender os cavalos a uma árvore. - Ali as
árvores cresciam muito perto do rio: o rosto de Colum ficava com manchas das suas
sombras. Scarlett deslizou para o chão e entregou-lhe as rédeas. Encontrou um local
ensolarado onde se sentar com as costas apoiadas a um tronco de árvore. Flores
amarelas com pétalas em forma de coração atapetavam a margem. Fechou os olhos e
escutou a voz calma do rio, o restolhar sibilante das folhas sobre a sua cabeça, o
cantar dos pássaros. Colum sentou-se ao seu lado e ela abriu lentamente os olhos. Ele
cortou o meio pão de soda em dois pedaços e deu-lhe o maior.
- Tenho uma história para te contar enquanto comemos - afirmou. - Esta terra em
que estamos chama-se Ballyhara. Há quase duzentos anos, era a terra da tua família,
da nossa família. Esta é terra O'Hara.
Scarlett endireitou-se, de súbito bem acordada. Aquilo? Aquilo era terra O'Hara?
E "Ballyhara"... não era o nome da aldeia deserta por onde tinham passado a toda a
velocidade? Virou-se ansiosamente para Colum.
- Agora, silêncio, e come o teu bom pão, Katie Scarlett. A história é um bocadinho
longa - disse ele. O seu sorriso silenciou as perguntas nos lábios de Scarlett. - Há
pouco mais de dois mil anos, os primeiros O'Hara instalaram-se aqui e tornaram sua
esta terra. Há mil anos (vês como os aproximamos?), os Vikings, a quem hoje
chamaríamos Normandos, descobriram a riqueza verde da Irlanda e tentaram ocupá-la
para si. Os irlandeses, como os O'Hara, vigiaram os rios por onde podiam vir as
invasões de barcos com proas de dragão e construíram fortes proteções contra o
inimigo. - Colum arrancou um canto de pão e o pôs na boca. Scarlett ficou impaciente,
aguardando que ele o mastigasse. Tantos anos... a sua mente não conseguia abarcar
tantos anos. Que se passara depois de há mil anos? - Os Vikings foram rechaçados -
prosseguiu Colum -, e os O'Hara trabalharam a terra e engordaram o gado durante
mais de duzentos anos. Construíram um castelo forte, com espaço para eles próprios e
para os seus servos, pois os irlandeses têm memória prolongada e, tal como tinham
vindo os Vikings, outros invasores se podiam seguir. E seguiram. Não normandos, mas
ingleses, que antes tinham sido franceses. Mais de metade da Irlanda foi perdida para
eles, mas os O'Hara conseguiram resistir além das suas fortes muralhas, e lavraram a
sua terra por mais quinhentos anos. Até a Batalha do Boyne, cuja triste história
conheces. Após dois mil anos de cuidados pelos O'Hara, a terra tornou-se inglesa. Os
O'Hara foram empurrados pelo vau, os que ficaram, as viúvas e os bebês. Uma destas
crianças cresceu e tornou-se rendeiro dos ingleses do outro lado do rio. O neto,
agricultor dos mesmos campos, casou com a nossa avó, Katie Scarlett. Ao lado do pai,
olhava para lá das águas castanhas do Boyne e via o castelo dos O'Hara deitado a
baixo, via uma casa inglesa erguer-se no seu lugar. Mas o nome permaneceu:
Ballyhara.
"E o paizinho viu a casa, sabia que esta era terra O'Hara." Scarlett chorou pelo
pai, compreendeu a raiva e a tristeza que vira na sua expressão e ouvira na sua voz
quando falava sobre a Batalha do Boyne. Colum foi ao rio e bebeu com as mãos em
concha. Lavou-as, voltou a aparar água e foi levar esta a Scarlett. Depois de ela beber,
limpou-lhe as lágrimas das faces com os suaves dedos molhados.
- Não foi meu desejo contar-te isto, Katie Scarlett...
Esta interrompeu-o iradamente.
- Tenho o direito de saber.
- Foi o que também pensei.
- Conta-me o resto. Sei que há mais. Vejo-o na tua cara.
Colum estava pálido, como um homem com um sofrimento insuportável.
- Sim, há mais. A Ballyhara inglesa foi construída para um jovem senhor. Este era
louro e belo como Apoio, dizem, e também se considerava como um deus. Estava
decidido a tornar Ballyhara a mais bela propriedade de toda a Irlanda. A sua aldeia
(uma vez que ele possuía Ballyhara até a última pedra e a última folha) devia ser mais
grandiosa que qualquer outra, mais grandiosa que a própria Dublim. E assim foi,
embora não tão grandiosa como Dublim, a não ser no caso da sua única rua, que era
mais larga que a rua mais larga da capital. Os seus estábulos eram como uma catedral,
as suas janelas tão transparentes como diamantes, os seus jardins um suave tapete
até o Boyne. Nos seus relvados, os pavões abriam os leques de jóias e belas
senhoras, cobertas de verdadeiras jóias, ornamentavam as suas festas. Ele era senhor
de Ballyhara. A sua única tristeza era só ter um filho, e ele próprio ser filho único.
Porém, viveu para assistir ao nascimento de um neto, antes de ir para o inferno. E esse
neto também não teve irmão nem irmã. Todavia, era belo e louro, e tornou-se senhor
de Ballyhara, dos seus estábulos semelhantes a uma catedral e da sua aldeia
grandiosa. O mesmo se passou com o filho que lhe sucedeu. Lembro-me dele, o jovem
senhor de Ballyhara. Eu não passava de uma criança, e ele parecia-me tudo o que há
de mais maravilhoso e formidável. Andava num alto cavalo ruão e, quando a gente bem
nos pisava o cereal com os cascos dos cavalos durante a caça à raposa, atirava-nos
sempre moedas, a nós, crianças. Ficava tão alto e elegante com o seu casaco rosado,
as calças brancas e as botas altas e brilhantes... Eu não compreendia a razão de o
meu pai nos tirar as moedas, as partir e amaldiçoar o senhor por nos dar.
Colum levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na margem do rio.
Quando continuou a sua história, tinha a voz fraca, da tensão de a dominar.
- Veio a Fome, e com ela as carências e a morte. "Não suporto ver os meus
rendeiros sofrerem tanto", disse o senhor de Ballyhara. "Vou comprar dois navios fortes
e dar-lhes passagem gratuita e segura para a América, onde há alimentos em
abundância. Não me importa que as minhas vacas se lamentem por não haver
ninguém para as mugir nem que os meus campos se encham de urtigas por não haver
ninguém para os cultivar. Importo-me mais com a gente de Ballyhara que com o gado
ou os cereais." Os agricultores e aldeões beijaram-Ihe a mão pela sua bondade, e
muitos prepararam-se para a viagem. Porém, nem todos conseguiam suportar a dor de
abandonar a Irlanda. "Ficaremos, mesmo que seja para morrermos de fome", disseram
ao jovem senhor. Este fez então saber em toda a região que qualquer homem ou
mulher só tinha que pedir, e os beliches livres seriam dados gratuitamente, com todo o
prazer. O meu pai voltou a amaldiçoá-lo. Enfureceu-se com os seus dois irmãos
Matthew e Brian, por aceitarem a oferta do inglês. Todavia, eles estavam decididos a
ir... Morreram afogados, como todos os outros, quando os navios aprodrecidos
naufragaram na primeira tempestade. Esses navios passaram a ser conhecidos pela
amarga designação de "caixões". Um homem de Ballyhara fez uma tocaia nos
estábulos, sem se incomodar que eles fossem tão belos como uma catedral. E, quando
o jovem senhor entrou para montar o seu alto cavalo ruão, apoderou-se dele e
enforcou o louro senhor de Ballyhara na torre junto ao Boyne, onde há tempos os
O'Hara mantinham vigias por causa dos barcos com proas de dragão.
A mão de Scarlett subiu-lhe à boca. Colum estava tão pálido, andando e falando
naquela voz que não era a sua. A torre! Devia ser a mesma. Manteve a mão agarrada
aos lábios. Não convinha que falasse.
- Ninguém sabe - dizia Colum - o nome do homem do estábulo. Uns dizem um
nome, outros dizem outro. Quando chegaram os soldados ingleses, os homens que
tinham ficado em Ballyhara não o denunciaram. Os ingleses enforcaram-nos a todos,
em represália pela morte do jovem senhor. - O rosto de Colum estava branco, na
sombra salpicada de Sol proporcionada pelas árvores. Um grito saiu-lhe da garganta.
Inarticulado e inumano.
Voltou-se para Scarlett, e esta encolheu-se perante o olhar desorientado e a
expressão atormentada.
- UMA VISTA? - gritou ele, e foi como um tiro de canhão. Caiu de joelhos sobre a
margem amarela de flores e inclinou-se para a frente, a fim de esconder a cara. O
corpo tremia-lhe.
As mãos de Scarlett estenderam-se para ele, mas acabaram por cair
desajeitadamente no próprio colo. Ela não sabia o que fazer.
- Perdoa-me, Scarlett querida - disse o Colum que ela conhecia, levantando a
cabeça. - A minha irmã Molly é a vergonha do mundo ocidental por dizer uma coisa
dessas. Ela sempre teve jeito para me irritar. - Sorriu, e esse sorriso foi quase
convincente. - Temos tempo de passar por Ballyhara, se a quiseres ver. Está deserta
há quase trinta anos, contudo não tem havido vandalismo. Ninguém se aproxima do
local. Estendeu a mão, e era verdadeiro o sorriso nas faces acinzentadas.
- Vem. Os cavalos estão mesmo aqui.
O cavalo de Colum abriu caminho por entre os espinheiros e o emaranhado de
arbustos, e Scarlett não tardou a ver à sua frente as enormes paredes de pedra da
torre. Ele ergueu a mão para lhe chamar a atenção e depois puxou as rédeas. Com as
mãos em concha, fez um tubo em torno da boca.
- Seachain - gritou -, seachain. - As estranhas sílabas ecoaram nas pedras.
Ele virou a cabeça, e tinha os olhos joviais. Havia cor nas suas faces.
- É gaélico, Scarlett querida, o irlandês antigo. Há uma cailleach, uma mulher
sábia, que vive numa gruta aqui perto. É uma bruxa tão velha como Tara, dizem uns, é
a mulher de Paddy O'Brien, de Trim, que lhe fugiu há uns vinte anos, se escutarmos
outros. Gritei para a avisar da nossa passagem. Talvez não goste de ser surpreendida.
Não estou dizendo que acredito em bruxas, repara, mas não faz mal nenhum ser
respeitoso.
Continuaram a cavalgar até a clareira ao redor da torre. Junto dela, Scarlett viu
que as pedras não tinham argamassa entre si, e no entanto não se tinham deslocado
nem um milímetro dos seus lugares. Quanto tempo dissera Colum que tinha? Mil anos?
Dois mil? Não interessava. Não tinha medo, tivera sim quando Colum falara daquela
maneira nada natural. A torre era apenas um edifício, com o melhor trabalho que ela
alguma vez vira. "Não mete medo nenhum. De fato, como que me convida."
Aproximou-se mais, passou os dedos pelas juntas.
- És muito corajosa, Scarlett querida. Eu te avisei de que há quem diga que a
torre é assombrada por um enforcado.
- Conversa! Não há fantasmas. Além disso, o cavalo não se aproximaria se aqui
estivesse algum. Todo mundo sabe que os animais sentem essas coisas.
Colum soltou uma risadinha.
Scarlett encostou a mão à pedra. Esta era macia, com uma pátina de milénios.
Sentia-se nela o calor do Sol, o frio da chuva e o vento. Uma paz pouco habitual
penetrou o coração de Scarlett.
- Vê-se que é velha - comentou, sabendo que as suas palavras eram
inadequadas, que não tinham importância.
- Sobreviveu - disse Colum. - Como uma árvore poderosa, com raízes tão
profundas que vão até o centro da Terra.
- Raízes profundas. - Onde já ouvira ela isso? Claro. Fora o que Rhett dissera de
Charleston. Scarlett sorriu, afagando as pedras antigas. Podia ensinar umas coisas ao
marido, sobre raízes profundas. Era só esperar a próxima vez em que ele começasse a
discursar sobre a antiguidade de Charleston.
A casa de Ballyhara também era construída em pedra, mas esta era granito
trabalhado, com cada pedra constituindo um retângulo perfeito. Parecia forte,
duradoura; as janelas partidas e os caixilhos sem tinta correspondiam a uma
incongruência discordante na intocada permanência da pedra. Era uma grande casa,
flanqueada por alas que eram elas próprias quase maiores que qualquer das casas
que Scarlett conhecia. "Construída para durar", disse de si para si. Era
verdadeiramente uma pena que ninguém lá vivesse, um desperdício.
- O senhor de Ballyhara não tinha filhos? - perguntou a Colum.
- Não. - Parecia satisfeito com o fato. - Havia sua mulher, creio, que voltou para a
sua gente. Ou foi para um manicômio. Há quem diga que enlouqueceu.
Scarlett sentiu ser melhor não fazer a Colum comentários que demonstrassem a
sua admiração pela casa.
- Vamos ver a aldeia - disse antes. Era mais uma vila, grande demais para aldeia,
e não havia em parte nenhuma uma janela inteira, nem uma porta que não estivesse
partida. Encontrava-se destruída, e abandonada, provocando arrepios na pele de
Scarlett. Fora o ódio que fizera aquilo.
- Qual é o melhor caminho para casa? - perguntou a Colum.

- O aniversário da velhota é amanhã - informou Colum ao deixar Scarlett na casa


de Daniel. - Um homem de juízo se ausentaria até lá, e eu quero fingir que o tenho. Diz
à família que regresso amanhã de manhã.
Por que ele estaria tão evasivo?, interrogou-se Scarlett. Não podia haver assim
tanto que fazer para o aniversário de uma velhinha. Um bolo, claro, mas que mais? Já
decidira oferecer à avó a linda gola de renda que comprara em Galway. Teria muito
tempo para comprar outra no caminho de regresso para casa. "Santo Deus, é já no fim
desta semana!"
Mal ultrapassou a porta, Scarlett descobriu que ia ter muito e árduo trabalho
manual. Tudo na casa da velha Katie Scarlett tinha que ser esfregado e areado,
mesmo que já estivesse limpo, e o mesmo tinha que acontecer na casa de Daniel. A
seguir, o pátio em frente da velha casa tinha que ser limpo de ervas daninhas e varrido,
ficando pronto para receber as cadeiras e bancos compridos e individuais em que se
sentariam todos aqueles que não coubessem na própria casa. E o celeiro tinha que ser
limpo, esfregado e coberto de palha nova, para quem lá passasse a noite. Ia ser uma
grande festa; não eram muitas as pessoas que chegavam aos 100 anos.
- Comam e vão embora - disse Kathleen aos homens, quando eles chegaram
para jantar. Pôs um jarro de soro de leite, quatro pães de soda e uma tijela de manteiga
em cima da mesa. Eles comportaram-se tão mansamente como cordeiros, comeram
mais depressa do que Scarlett alguma vez pensara que fosse possível uma pessoa
comer, e saíram, inclinando-se para passarem pela porta baixa, tudo sem uma palavra.
- Agora começamos nós - anunciou Kathleen, depois de eles terem ido embora. -
Scarlett, vou precisar de muita água do poço. Os baldes estão ali junto da porta. -
Scarlett, tal como os homens da família, nem pensou em discutir.
Depois do jantar, todas as mulheres da aldeia foram lá para casa, acompanhadas
dos filhos, para ajudarem. Tudo era barulhento, o trabalho fazia transpirar, Scarlett
ficou com bolhas nos sulcos de carne macia, na base dos dedos. E divertiu-se mais do
que supunha. Descalça como as outras, com as saias arregaçadas, um grande avental
em torno da cintura, as mangas enroladas até o cotovelo, sentia-se como se fosse
outra vez criança, brincando no pátio da cozinha, enfurecendo a mãe por se sujar e ter
tirado os sapatos e as meias. Só que agora tinha companheiras divertidas, em vez da
piegas Suellen e de Carreen, tão bebê que nem entrava nas brincadeiras.
"Há quanto tempo isso foi... não muito, se se pensar numa coisa tão antiga como
a torre, suponho. Raízes profundas... Colum estava assustador esta manhã... aquela
horrível história dos navios... Eram meus tios, irmãos do paizinho, morreram afogados.
Maldito senhor inglês. Ainda bem que o enforcaram."
Nunca tinha havido festa semelhante à celebração de aniversário da velha Katie
Scarlett. Membros da família O'Hara provenientes de todos os pontos de County Meath
e ainda de mais longe chegaram em carros e carroças puxadas por burros, a cavalo, a
pé. Estava lá metade da população de Trim, e todos os habitantes de Adamstown.
Levavam presentes, histórias e comida feita especialmente para o banquete, embora
Scarlett tivesse pensado que já havia alimentos suficientes para um exército. A carroça
de Mahoney chegou de Trim com barris de cerveja, e o mesmo aconteceu com a de
Jim Daly, vinda de Mullingar. Seamus, o filho mais velho de Daniel, foi a Trim no cavalo
de trabalho e regressou com uma caixa de cachimbos de cerâmica presa às costas,
qual corcunda enorme e angulosa, e tabaco em dois sacos pendentes como alforjes.
Numa ocasião tão importante, a cada homem - e também a muitas das senhoras -
devia ser oferecido um cachimbo novo.
A avó de Scarlett recebeu como uma rainha a corrente de convidados e dádivas,
sentada na sua cadeira de espaldar alto, com a gola nova de renda sobre o melhor
vestido de seda preta, dormitando quando lhe apetecia e bebendo uísque no chá.
Quando o sino tocou para o Angelus da tarde, havia mais de trezentas pessoas
dentro e fora da minúscula casinha, pessoas essas que ali se tinham deslocado para
honrar Katie Scarlett O'Hara por ocasião do seu centésimo aniversário.
Ela pedira para ser tudo "à maneira antiga", e havia um senhor idoso no lugar de
honra, em frente ao seu, junto da lareira. Com ternos dedos deformados, ele afastou
proteções de linho, que revelaram uma harpa; mais de trezentas vozes suspiraram de
alegria. Tratava-se de MacCormac, o único que podia verdadeiramente ser
considerado herdeiro da música dos bardos, agora que o grande O'Carolan morrera.
Falou, e a sua voz já era como música.
- Digo-vos as palavras do mestre Turlough O'Carolan:
"Passo o meu tempo na Irlanda feliz e satisfeito, bebendo com todo o homem
forte que seja um verdadeiro apaixonado pela música." E acrescento estas palavras da
minha própria autoria: bebo com todo o homem forte e com toda a mulher forte, como
Katie Scarlett O'Hara. - Fez-lhe uma reverência. - Quero dizer, quando me oferecem
uma bebida. - Duas dúzias de mãos encheram copos. Ele escolheu cuidadosamente o
maior, que ergueu à velha Katie Scarlett, e logo bebeu de um gole.
- Agora vou cantar a história da vinda de Finn MacCool - afirmou. Os seus dedos
gastos e contorcidos tocaram as cordas da harpa e o ar encheu-se de magia.
E houve música para sempre. Dois gaiteiros tinham levado as suas Pibs Willeann,
os violinistas eram incontáveis, havia harmônicas às dúzias, e concertinas, e mãos que
estalavam "ossos", e o perturbador incentivo do bater de bodhrans, de acordo com o
comando decidido de Colum O'Hara.
As mulheres enchiam pratos de comida, Daniel O'Hara presidia sobre pequenos
barris de uísque irlandês, a dança enchia o centro do pátio, e ninguém dormia, a não
ser a velha Katie Scarlett, sempre que lhe apetecia.
- Eu nem sabia que podia haver uma festa assim - comentou Scarlett. Respirava
por breves instantes, descansando um pouco antes de voltar para a dança, ao nascer
do sol rosado.
- Quer dizer que nunca celebraste as Maias? - exclamaram os primos chocados,
sem que ela soubesse porquê.
- Tens de ficar para as Maias, jovem Katie Scarlett - disse Timothy O'Hara. Um
coro de insistências lhe fez eco.
- Não posso. Temos que apanhar o navio.
- Haverão outros navios, não é ?
Scarlett saltou do banco. Já descansara o suficiente, e os violinistas começavam
uma nova dança. Enquanto se cansava de novo até ficar sem fôlego, a pergunta
cantava-lhe na cabeça ao ritmo da música. Devia haver outros navios. Porque não ficar
e divertir-se dançando durante mais algum tempo a escocesa, com as suas meias
listradas? Charleston ainda estaria lá quando ela chegasse... com os mesmos chás nas
mesmas casas, por detrás das mesmas paredes altas e sem calor.
Rhett também ainda lá estaria. Ela o deixaria esperar. Ela já o esperara tempo
suficiente em Atlanta, mas agora as coisas eram diferentes. O bebê no seu ventre fazia
com que Rhett fosse seu a qualquer momento, desde que ela desejasse reivindicá-lo.
"Sim", decidiu, "talvez ficasse para as Maias. Estava divertindo-se tanto."
No dia seguinte, perguntou a Colum se ele sabia de outra partida, depois das
Maias.
Havia de fato outra partida. De um ótimo navio, que parava primeiro em Boston,
onde ele tinha que ir enquanto estivesse na América. Ela e Bridie fariam muito bem
sozinhas o resto da viagem até Savannah.
- A partida é no dia nove à tardinha. Só terás meio dia para as tuas compras em
Galway.
Ela nem precisava de tanto: já pensara nisso. Ninguém em Charleston alguma
vez usaria meias de Galway ou saiotes de Galway. Eram vistosos e ordinários demais.
Só ia ficar com alguns dos que comprara para si própria. Seriam recordações
maravilhosas. Daria os outros a Kathleen e às suas novas amigas da aldeia.
- Nove de Maio. É muito mais tarde do que tínhamos planejado, Colum.
- É só uma semana e um dia depois das Maias, Katie Scarlett. Não é tempo
nenhum, para quem já estiver morto.
Era verdade! Ela nunca mais teria uma oportunidade daquelas. Além disso, seria
uma boa ação para com Colum. A viagem de Savannah a Boston e regresso
constituiriam algo de penoso para ele. Depois de ter sido tão simpático para ela, era o
mínimo que podia fazer por ele...
A 26 de Abril o Brian Boru partiu de Galway com dois camarotes por ocupar.
Chegara dia 24, sexta-feira, com passageiros e correio. Este foi separado em Galway,
no sábado; uma vez que domingo era domingo, a malinha para Mullingar partiu na
segunda-feira. Na terça feira, a diligência de Mullingar para Drogheda deixou uma mala
ainda mais pequena em Navan, e na quarta-feira um carteiro a cavalo partiu com um
pacote de cartas para a administradora dos correios em Trim. Havia um grande e
espesso envelope para Colum O'Hara, proveniente de Savannah, Geórgia. Recebia
muita correspondência, aquele Colum O'Hara, pois os O'Hara constituíam uma família
muito unida, e a festa de anos da velhota fora uma noite que ele não esqueceria tão
cedo. O carteiro deixou-a no bar de Adamstown.
- Pensei que não havia razão para esperar mais vinte e quatro horas - disse a
Matt O'Toole, que se ocupava do bar, da lojinha e do posto de Correio ao canto. - Em
Trim, limitavam-se a pôr num cacifo marcado com "Adamstown", e lá ficava até o dia
seguinte, para outro entregar. - Aceitou com vivacidade o copo de cerveja preta que
Matt O'Toole lhe ofereceu em nome de Colum. O bar de O'Toole podia ser pequeno e
precisar de uma pintura, mas servia uma óptima cerveja preta.
Matt foi chamar a mulher no pátio, onde ela estendia a roupa lavada.
- Toma conta da loja, Kate, que eu vou pela senda até casa do tio Daniel. - O pai
dele era irmão da falecida esposa de Daniel O'Hara, Theresa, que Deus tivesse a sua
alma em descanso.
- Colum! Que maravilha! - Incluída no envelope de Jamie para Colum vinha uma
carta de Tom MacMahon, o procurador da Sé. O bispo - após alguma persuasão -
concordara em permitir que Scarlett adquirisse a doação da irmã. "Tara. A minha Tara.
Vou fazer tantas coisas maravilhosas."
- Colum, viste isto? O interesseiro do bispo pede cinco mil dólares pelo terço de
Tara que pertencia a Carreen! Deus do Céu! Podia comprar-se Clayton County por
inteiro por cinco mil dólares. Vai ter que descer o preço.
Os bispos não entravam em discussões dessas, disse-lhe Colum. Se quisesse a
parte da irmã, e tivesse dinheiro para isso, devia pagar o que ele pedia. Estaria
também financiando a obra da Igreja, se é que isso tornava a transacção menos
desagradável.
- Sabes que não, Colum. Detesto ser explorada, seja por quem for, mesmo pela
Igreja. Desculpa se te ofendi. Em todo o caso, tenho que ficar com Tara, estou decidida
a isso. Oh, que tola fui em deixar que me convencesses a ficar mais tempo. Já
podíamos estar a meio caminho de Savannah!
Colum nem se deu ao trabalho de a corrigir. Deixou-a à procura de papel e
caneta.
- Tenho que escrever imediatamente ao tio Henry Hamilton! Ele pode tratar de
tudo; os assuntos já estarão todos resolvidos quando eu lá chegar.
Na quinta-feira, Scarlett foi sozinha a Trim. Era aborrecido que Kathleen e Bridie
estivessem ocupadas na quinta, e enfurecedor que Colum tivesse acabado de
desaparecer sem dizer a viv'alma onde ia, nem quando estaria de regresso. Portanto,
não havia nada a fazer, uma vez que ele fora embora. E Scarlett tinha tanto que fazer!
Queria algumas daquelas encantadoras tijelas de cerâmica que Kathleen usava na
cozinha, e muitos cestos - de todos os feitios, e havia tantos! - , e montes e montes das
espessas toalhas de linho, para todos os efeitos; não havia linho assim nas lojas da
América. Ia tornar a cozinha de Tara quente e agradável, como as irlandesas. Afinal o
nome Tara não era tão irlandês quanto possível?
Quanto a Will e Suellen, seria muito generosa com eles, pelo menos com Will,
que merecia. Na região havia muita terra boa, por autênticas pechinchas. Wade e Ella
iriam para Charleston, viver com Rhett e consigo própria. O Rhett gostava mesmo
deles. Ela lhes arranjaria uma boa escola, com pouco tempo de férias. Era provável
que Rhett franzisse a testa ao seu modo habitual, quanto à forma como ela tratava as
crianças, mas, quando o bebê nascesse e ele visse como o amava, deixaria de a
criticar constantemente. E no Verão iriam para Tara, uma Tara renascida e bela, a sua
casa.
Scarlett sabia que estava construindo castelos no ar. Talvez Rhett nunca saísse
de Charleston, e ela tivesse que se contentar com ocasionais visitas a Tara. Mas por
que não sonhar acordada com tudo o que queria, num belo dia de Primavera como
aquele, conduzindo uma elegante carripana puxada por um cavalo e calçando meias
listradas encarnadas e azuis? Porque não?
Soltou uma risadinha, tocou com o chicote no pescoço do animal. "Vejam só...
pareço mesmo irlandesa!"

A festa das Maias foi tal e qual como lhe tinha sido garantido. Havia comida e
dança em todas as ruas de Trim, mais quatro enormes mastros com flores no relvado
dentro das muralhas do castelo em ruínas. A fita de Scarlett era vermelha, tinha uma
coroa de flores para os cabelos, um oficial inglês convidou-a para descer até ao rio e
ela o despachou nos termos mais categóricos.
Voltaram para casa depois do nascer do Sol: Scarlett caminhou os quase seis
quilômetros e meio com o resto da família, porque não queria que a noite acabasse,
embora já fosse dia. E porque já começava a ter saudades dos primos, de todas as
pessoas que conhecera. Ansiava por regressar a casa, por resolver os pormenores
sobre Tara, por começar os respectivos trabalhos; porém, não deixava de estar
satisfeita por ter ficado para as Maias. Agora só faltava uma semana. Parecia tão
pouco tempo!
Na quarta-feira, Frank Kelly, o carteiro de Trim, parou no bar de Matt O'Toole para
uma cachimbada e uma cerveja.
- Há uma volumosa carta para Colum O'Hara - afirmou. - Sobre o que te parece
que seja?
Aventaram hipóteses, alegremente, e à toa. Na América, tudo era possível. E
podiam especular à vontade. O padre O'Hara era um homem simpático, como todos
concordavam, e um grande conversador. Todavia, bem vistas as coisas, não dizia
muito.
Matt O'Toole não foi entregar a carta de Colum. Não valia a pena. Sabia que
Clare O'Gorman iria nessa tarde visitar a avó. Podia levar a carta, se Colum não
passasse antes por lá. Matt tomou nas mãos o peso do envelope. Deviam ser notícias
excepcionalmente boas, para justificarem gastar tanto dinheiro enviando um tal peso.
Ou então seria algo de verdadeiramente desastroso.

- Há correio para ti, Scarlett. Colum o pôs em cima da mesa. E também há uma
xícara de chá quando quiseres. Foi agradável a visita à Molly? - A voz de Kathleen
estava cheia de interesse.
Scarlett não a desiludiu. Com risadinhas na voz, contou a visita.
- Molly tinha com ela a mulher do médico, e a xícara de chá estremeceu-lhe tanto
na mão quando eu entrei que quase se partia. Calculo que tenha ficado sem saber se
podia dizer que eu era a nova criada ou não. Só que então a mulher do médico disse
numa vozinha aflautada: "Ah, a prima rica da América. Que honra." E nem pestanejou
perante as minhas roupas. Ao ouvir isto, Molly saltou que nem um gato escaldado e
correu para me dar um dos seus beijos duplos na face. Garanto-te, Kathleen, ficou com
lágrimas nos olhos quando eu lhe disse que só ia buscar um vestido de viagem na
minha mala. Estava desejosa de que eu ficasse, independentemente do meu aspecto.
Dei-lhe os beijinhos quando me despedi. E também à mulher do médico. Fui até onde
podia.
Kathleen estava dobrada de riso, com a costura caída em um monte no chão.
Scarlett deixou cair ao lado o seu vestido de viagem. Tinha a certeza de que ia ser
preciso alargá-lo na cintura. Se o bebê não estivesse a tornando mais espessa no
meio, então a culpa era das roupas largas e da alimentação em excesso. Fosse qual
fosse a razão, não tencionava fazer a longa viagem tão apertada que não conseguisse
respirar.
Pegou o envelope e segurou-o junto da porta, para a luz lhe bater. Estava coberta
de escrita e de carimbos com datas. Francamente! O avô era o homem mais
desagradável do mundo. Ou então era o horrível Jerome o responsável. Era mesmo
esta a hipótese mais provável. O envelope era-lhe dirigido, ao cuidado do avô, e este
só o enviara para Maureen semanas depois. Rasgou-o com impaciência. Era de um
qualquer departamento governamental de Atlanta, originariamente endereçado para a
casa de Peachtree Street. Desejou não se ter esquecido de pagar um imposto ou
qualquer coisa assim. Entre o dinheiro para o bispo por causa de Tara e o custo das
casas que estava construindo, as suas reservas diminuíam demais para jogar dinheiro
fora em pagamentos atrasados, com os respectivos juros de mora. E ia precisar de
muito para os trabalhos em Tara. Já sem mencionar a compra de um terreno para Will.
Os seus dedos tocaram a bolsa por debaixo da blusa. Não, o dinheiro de Rhett era
dinheiro de Rhett.
O documento estava datado de 26 de Março de 1875. O dia em que partira de
Savannah no Brian Boru. Os olhos de Scarlett percorreram as primeiras linhas, para
logo se deterem. Não fazia sentido. Voltou ao princípio e leu mais devagar. Toda a cor
lhe fugiu do rosto.
- Kathleen, onde está Colum? - "Como? A minha voz está perfeitamente vulgar.
Curioso."
- Deve estar com a avó, suponho. A Clare veio buscá-lo. Não podes esperar um
pouco? Estou quase acabando de fazer as emendas neste meu vestido, para a Bridie
levar na viagem, e sei que ela quer prová-lo para tu veres e fazeres os teus
comentários.
- Não posso esperar. - Tinha que ver Colum. Algo correra terrivelmente mal.
Tinham que partir naquele dia, naquele momento. Tinha de regressar para casa.
Colum estava no pátio em frente à casa.
- Nunca houve uma Primavera com tanto Sol - afirmou. - O gato e eu estamos nos
aquecendo um pouco.
A calma artificial de Scarlett desapareceu quando o viu, e gritava ao chegar perto.
- Leva-me para a minha casa, Colum. Maldito sejas, e todos os O'Hara, e a
Irlanda. Nunca devia ter saído da minha terra.
Tinha a mão fechada com tanta força que as unhas se espetavam na carne.
Amarrotada nela estava uma declaração do estado soberano da Geórgia de que tinha
dado entrada nos seus arquivos permanentes o decreto irrevogável do divórcio
concedido a um certo Rhett Kinnicutt Butler, com motivo no abandono do lar pela
esposa, de seu nome Scarlett O'Hara Butler, pelo Distrito Militar da Carolina do Sul,
administrado pelo Governo Federal dos Estados Unidos da América.
- Não há divórcio na Carolina do Sul - garantiu Scarlett. - Foi o que dois
advogados me disseram. - Repetiu isto vezes sem conta, sempre com as mesmas
palavras, até a garganta lhe arder e já não ser capaz de emitir sons através dela.
Então, os seus lábios gretados passaram a formar as palavras em silêncio, enquanto
ela as dizia mentalmente. Uma e outra vez.
Colum conduziu-a para um canto afastado do quintal. Sentou-se ao seu lado e
falou, mas não conseguiu fazê-la escutar, pelo que segurou entre as suas as mãos que
ela mantinha fechadas, para tentar confortá-la, e permaneceu em silêncio, junto dela.
Durante o breve aguaceiro que acompanhou o crepúsculo. Durante o luminoso pôr do
Sol. Até à escuridão. Bridie foi à procura deles, quando a ceia ficou pronta, e Colum
mandou-a embora.
- A Scarlett está fora de si, Bridie. Diz lá em casa que não se preocupem, ela só
precisa de um pouco de tempo para lhe passar o choque. Vieram notícias da América:
o marido está gravemente doente. Ela ficou com medo de que ele morra sem a ter ao
seu lado.
Bridie voltou correndo para ir dar a notícia. Scarlett estava rezando. A família
rezou também; a ceia estava fria quando começaram finalmente a comer.
- Leva uma lanterna lá para fora, Timothy - ordenou Daniel.
A luz refletiu-se nos olhos vidrados de Scarlett.
- A Kathleen mandou também um xale - sussurrou Timothy. Colum esboçou um
aceno de cabeça, pôs o xale pelos ombros de Scarlett e despediu Timothy com um
gesto.
Passou mais uma hora. As estrelas brilhavam no céu quase sem luar; essas
estrelas tinham mesmo uma luz mais intensa que a da lanterna. Ouviu-se um breve
gritinho num campo de trigo próximo, seguindo-se um quase silencioso bater de asas.
Um mocho fizera uma presa.
- Que farei? - A voz áspera de Scarlett soou alta no meio da escuridão. Colum
suspirou baixinho e agradeceu a Deus. O choque pior já passara.
Regressamos conforme planejado, Scarlett querida. Não aconteceu nada que não
possa ser remediado. - A sua voz era calma, segura, reconfortante.
- Divorciada! - O som entrecortado evidenciava um alarmante aumento de
histeria. Colum esfregou-lhe vivamente as mãos.
- O que foi feito pode ser desfeito, Scarlett.
- Eu devia ter ficado. Nunca me perdoarei.
- Agora, chiu! Com "devia" não se resolve nada. É a próxima coisa a acontecer
que precisa de ser pensada.
- Ele nunca me receberá de volta. Não, se está com o coração tão endurecido a
ponto de se divorciar de mim. Fiquei sempre à espera que ele viesse atrás de mim,
Colum, tinha tanta certeza de que o faria. Como pude ser tão tola? Não sabes tudo.
Estou grávida, Colum. Como posso ter um bebê ser ter marido?
- Então, então - disse Colum baixinho. - Isso não resolve o problema? Só tens que
lhe dizer.
As mãos de Scarlett voaram até à sua barriga. Claro! Como podia ter sido tão
tola? Um riso entrecortado dilacerava-lhe a garganta. Nenhum papel alguma vez
escrito poderia fazer com que Rhett Butler desistisse do seu bebê. Ele podia fazer
cancelar o divórcio, apagá-lo de todos os registros. Rhett conseguia tudo. Acabara de o
provar uma vez mais. Não havia divórcio na Carolina do Sul. A não ser que Rhett Butler
decidisse obter um.
- Quero ir já, Colum. Deve haver um navio que parta mais cedo. Endoideço se
ficar à espera.
- Saímos daqui na sexta-feira de manhã, Scarlett querida, e o navio parte no
sábado. Se formos amanhã, ainda teremos de preencher um dia antes da partida do
navio. Não preferes passá-lo aqui?
- Oh, não, tenho que saber que vou a caminho. Mesmo que só parcialmente,
estarei me dirigindo para casa, ao encontro de Rhett. Tudo vai se resolver, farei com
que se resolva. Vai correr tudo bem... não vai, Colum? Diz que vai correr tudo bem.
- E vai mesmo, Scarlett querida. Agora tens que te alimentar, pelo menos com
uma xícara de leite. Talvez com uma pinguinha lá dentro. Também precisas dormir.
Tens que manter as forças, para bem do bebê.
- Ah, sim! Eu o farei. Vou tratar-me muito bem. Contudo, primeiro tenho que
arrumar o vestido, e preciso fazer as malas. E, Colum, como é que vamos conseguir
uma carruagem que nos leve até ao trem? - O tom de voz tornava-se de novo mais
agudo. Colum levantou-se e a pôs igualmente em pé.
- Ocupo-me de tudo, com a ajuda das pequenas para as malas. Mas só se
comeres alguma coisa enquanto vês o vestido.
- Sim, sim! É o que vamos fazer. - Estava um pouco mais calma, porém
continuava perigosamente à beira do ataque de nervos. Ele teria que se assegurar de
que ela bebia o leite e o uísque assim que chegassem à casa. Pobre criatura! Se ao
menos ele soubesse mais sobre mulheres e bebês, teria o espírito muito mais
descansado. Ultimamente Scarlett tinha passado noites sem dormir e dançado
loucamente. Isso poderia apressar o nascimento de um bebê? Se ela o perdesse,
temia pela sua razão.
Como muitas outras pessoas antes dele, Colum subestimara a força de Scarlett
O'Hara. Esta insistiu que a sua bagagem fosse trazida nessa noite da casa de Molly, e
deu ordens a Brigid para que lhe arrumasse as coisas enquanto Kathleen lhe arrumava
o vestido.
- Repara nos laços, Bridie - disse com vivacidade, ao pôr o espartilho. - Vais ter
que fazer isto no navio, e eu não vejo para trás, para te poder dizer como é. - Os seus
modos febris e voz entrecortada já tinham posto Bridie num estado de terror.
O agudo grito de dor que Scarlett soltou quando Kathleen puxou as fitas fez com
que a própria Bridie gritasse também.
"Não faz mal doer", lembrou Scarlett a si própria, "dói sempre, sempre doeu. Só
me tinha esquecido de quanto. Passado algum tempo, voltou a ficar habituada. Não
estou prejudicando o bebê. Quando grávida, sempre usei espartilho enquanto pude, e
sempre até muito mais tarde que isto. Ainda nem dez semanas passaram. Tenho que
caber na minha roupa, tenho mesmo. Vou no trem de amanhã, nem que morra."
- Puxa, Kathleen - arfou. - Puxa com mais força.
Colum foi a Trim contratar a carruagem para um dia mais cedo. Depois, deu uma
volta por vários locais, para comunicar a grande preocupação de Scarlett. Quando
acabou, era tarde e estava cansado. Contudo, assim não ficaria ninguém a interrogar-
se sobre a razão de a O'Hara americana ter partido como uma ladra, no meio da noite,
sem se despedir.
Saiu-se muito bem dizendo adeus à família. O choque do dia anterior tinha-a
protegido com uma carapaça de entorpecimento. Só uma vez é que perdeu o
autodomínio, ao despedir-se da avó. Ou melhor, quando a velha Katie Scarlett se
despediu dela.
- Que Deus te acompanhe - disse a velhota -, e os santos guiem os teus passos.
Estou mesmo feliz por teres cá estado para o meu aniversário, a filha do Gerald. Só
tenho pena que não estejas no meu velório... Por que estás chorando, filha? Não sabes
que não há festa para vivos que consiga ter metade da grandiosidade de um velório? É
uma pena perdê-lo.
Scarlett foi sentada em silêncio na carruagem até Mullingar e no trem até Galway.
Bridie estava nervosa demais para falar, mas a sua excitação de felicidade se via nas
faces coradas e nos grandes olhos fascinados. Nunca se afastara de casa mais de
dezesseis quilômetros, nos seus quinze anos de vida.
Quando chegaram ao hotel, Bridie ficou de boca aberta contemplando a sua
grandiosidade.
- Vou acompanhá-las até o quarto de vocês - afirmou Colum -, e depois estarei de
volta a tempo de descermos juntos para jantar. Só vou até o porto para tratar do
carregamento das malas de porão. Também gostaria de ver os camarotes que nos
reservaram. É esta a hora de mudar, se não forem os melhores.
- Vou contigo - disse Scarlett. Foi a primeira vez que falou.
- Não há necessidade, Scarlett querida.
- Há para mim. Quero ver o navio, para ter a certeza de que está mesmo lá.
Colum fez-lhe a vontade. E Bridie perguntou se também podia ir. O hotel era
imponente demais para ela. Não queria ficar lá sozinha.
A fresca brisa marítima do fim da tarde tinha um agradável odor salgado. Scarlett
inspirou profundamente, recordando que o ar de Charleston cheirava sempre a sal.
Nem deu pelas lágrimas que lhe rolavam lentamente pelas faces. Se ao menos
pudessem partir já, de imediato. O comandante estaria disposto a considerar essa
hipótese? Tocou na bolsa com o ouro, entre os seus seios.
- Procuro o Evening Star - disse Colum a um dos estivadores.
- Está ali - indicou o homem, com um gesto do polegar.
- Chegou há menos de uma hora.
Colum escondeu a sua surpresa. O navio devia ter aportado trinta horas antes.
Não valia a pena dar a perceber a Scarlett que o atraso podia implicar complicações.
Havia grupos em movimentos metódicos de e para o Evening Star. Este
transportava carga, além de passageiros.
- De momento, isto não é lugar para uma senhora, Scarlett querida. Voltemos
para o hotel e eu venho aqui mais tarde.
Os maxilares de Scarlett contraíram-se:
- Não. Quero falar com o comandante.
- Ele deve estar ocupado demais para falar seja com quem for, mesmo com uma
pessoa tão encantadora como tu.
Ela não estava com disposição para cumprimentos.
- Tu o conheces, não conheces, Colum? Conheces todo mundo. Trata de tudo
para eu poder falar com ele agora.
- O homem é um estranho para mim: nunca lhe pus a vista em cima, Scarlett.
Como havia de o conhecer? Isto é Galway, não County Meath.
Um homem de uniforme descia a prancha de desembarque do Star. Nem parecia
sentir o peso das duas grandes sacas de lona que transportava aos ombros; o seu
andar era ligeiro e rápido, o que não era habitual em homens da sua altura e
compleição.
- Então não é o padre Colum O'Hara em pessoa? - exclamou ao aproximar-se
deles. - Que o trouxe para tão longe do bar de Matt O'Toole, Colum? - Fez descer uma
das sacas até o chão e tirou o chapéu para Scarlett e Bridie. - Eu não disse sempre
que os O'Hara têm uma sorte do diabo com as senhoras? - roncou, rindo da sua
própria graça. - Disse-lhes que era padre, Colum?
O sorriso de Scarlett foi de circunstância ao ser apresentada a Frank Mahoney, e
não prestou a mínima atenção à linha de parentesco que o ligava à família de Maureen.
Queria falar com o comandante!
- Vou agora mesmo levar à estação o correio da América, para ser separado
amanhã - informou Mahoney. - Quer dar uma olhada, Colum, ou espera até estar outra
vez em casa para ler as suas perfumadas cartas de amor? - Soltou ruidosas
gargalhadas perante os seus próprios ditos espirituosos.
- É muito simpático da sua parte, Frank. Dou uma espreitadela, se me deixar. -
Coluna desatou a saca aos seus pés, puxou-a para mais perto do grande candeeiro a
gás que iluminava o cais. Encontrou com facilidade o envelope de Savannah. - Hoje
estou com sorte - comentou. - Sabia pela última carta do meu irmão que outra viria em
breve, mas já desesperava por a receber. Obrigado, Frank. Permite-me que lhe pague
uma cerveja? - Meteu a mão ao bolso.
- Não é preciso. Eu fiz pelo prazer de desobedecer aos regulamentos ingleses. -
Frank voltou a pôr o saco no ombro. - O maldito supervisor deve estar olhando para o
seu relógio de ouro, não posso demorar. Boa noite, minhas senhoras.
O envelope continha meia dúzia de cartas mais pequenas. Colum passou
rapidamente por elas, à procura da inconfundível letra de Stephen.
- Está aqui uma para ti, Scarlett - informou. Pôs-lhe na mão o envelope azul,
encontrou a carta de Stephen e abriu-a. Tinha começado a lê-la quando ouviu um grito
agudo, prolongado, e sentiu um peso deslizar encostado a ele. Antes de poder
estender os braços já Scarlett estava caída aos seus pés.
O sobrescrito azul e as folhas fininhas escorregavam da mão sem força, até que a
brisa espalhou tudo pelas pedras da calçada. Enquanto Colum erguia os ombros de
Scarlett e lhe levava os dedos ao pescoço, para sentir a pulsação, Bridie corria a
apanhando as folhas.
O fiacre dava saltos e oscilava, devido à velocidade da corrida de regresso ao
hotel. A cabeça de Scarlett rolava grotescamente de um lado para o outro, apesar de
Colum tentar ampará-la firmemente nos seus braços. Atravessou rapidamente com ela
o átrio do hotel.
- Chamem um médico - gritou para os criados de libré -, e saiam da minha frente.
- Uma vez no quarto de Scarlett, deitou-a em cima da cama. -Vamos, Bridie, ajuda-me
a despi-la - pediu. - Temos que fazer com que respire.
- Tirou de dentro do casaco uma faca com bainha de couro. Os dedos de Bridie
moviam-se com ligeireza pelos botões nas costas do vestido de Scarlett.
Colum cortou as fitas do espartilho.
- Agora - disse -, ajuda-me a pôr-lhe a cabeça nas almofadas e a tapá-la com
qualquer coisa quente. - Esfregou vigorosamente os braços de Scarlett, deu-lhe
palmadinhas suaves nas faces. - Tens algum frasquinho de sais?
- Não, Colum, nem ela, tanto quanto sei.
- O médico há-de ter. Espero que seja só um desmaio.
- Desmaiou, mais nada, Padre - informou o médico, ao sair do quarto de Scarlett
-, mas é um desmaio profundo. Entreguei um tônico à moça, para lhe dar quando ela
se recuperar. Estas senhoras! Impedem toda a circulação para andarem na moda.
Porém, não há motivo para preocupações. Vai ficar boa.
Colum agradeceu-lhe, pagou-lhe, acompanhou-o à porta. Depois, sentou-se
pesadamente numa cadeira, junto à mesa iluminada por um candeeiro, e pôs a cabeça
entre as mãos. Havia grandes motivos para preocupações, e duvidava de que Scarlett
O'Hara alguma vez voltasse a ficar "boa". As folhas da carta, amarrotadas e com
manchas de água, estavam espalhadas em cima da mesa, ao seu lado. No meio delas
encontrava-se um recorte de jornal, feito com todo o cuidado: "Ontem ao fim da tarde",
dizia, "em cerimônia privada, no Lar da Confederação para Viúvas e Órfãos, a Menina
Arme Hampton uniu-se em matrimônio ao Sr. Rhett Butler."

A mente de Scarlett subia, subia, em espiral, girando, rodopiando, para cima, para
cima, do negrume para a consciência, mas havia um instinto que a obrigava a descer
de novo, a deslizar, a escorregar de regresso à escuridão, para longe da insuportável
verdade que a aguardava. Isto sucedeu uma e outra vez, e a luta fatigou-a de tal
maneira que ela permaneceu exausta, imóvel e pálida sobre a grande cama, como se
estivesse morta.
Sonhou, e o sonho estava cheio de movimento e agitação. Encontrava-se em
Twelve Oaks, e a propriedade estava de novo inteira e bela, tal como fora antes dos
archotes de Sherman. A graciosa escadaria descrevia a sua curva no espaço como se
estivesse suspensa por magia, e ela pisava-lhe os degraus com leveza e agilidade.
Ashley subia à sua frente, sem ouvir os gritos dela para que parasse.
- Ashley - chamava -, Ashley, espera por mim - e corria atrás dele.
Que comprida era a escada! Não se lembrava de que atingisse uma altura tão
elevada; parecia estar sempre crescendo, à medida que ela corria, e Ashley estava
muito acima. Tinha de chegar até ele. Não sabia porquê, mas sabia tinha que ser, e
corria mais depressa, cada vez mais depressa, até o coração lhe saltar no peito.
- Ashley! - gritava. - Ashley! - Este parou, e ela conseguiu encontrar forças que
ignorava possuir: subiu, correndo ainda mais depressa.
O alívio inundou-lhe o corpo e a alma quando com a mão tocou na manga dele.
Então Ashley virou-se na sua direção, e ela gritou sem emitir qualquer som. Ele não
tinha cara; no seu lugar, só uma mancha pálida e sem feições.
Scarlett sentiu-se de imediato em queda livre no espaço, com os olhos
aterrorizados fixos na figura em cima, com a garganta esforçando-se por gritar. Porém,
o único som era o de gargalhadas, provenientes de baixo, que subiam como uma
nuvem a rodeá-la e a troçar do seu mutismo.
"Vou morrer", pensou ela. "Uma dor terrível vai destroçar-me, e morro."
Todavia, de súbito, uns braços fortes fecharam-se em redor dela e ampararam-na
suavemente na queda. Scarlett conhecia-os, conhecia o ombro que servia de almofada
à sua cabeça. Era Rhett. Rhett salvara-a. Estava em segurança no seu abraço. Voltou
a cabeça, ergueu-a para o fitar nos olhos. Um terror gelado paralisou-lhe todo o corpo.
A cara dele não tinha forma, parecia nevoeiro ou fumaça, como a de Ashley. Nesse
momento recomeçaram as gargalhadas, provenientes do vazio que devia ser o rosto de
Rhett.
A mente de Scarlett deu um salto para a consciência, fugindo do horror, e ela
abriu os olhos. Rodeava-a a escuridão e o desconhecido. O candeeiro apagara-se e
Bridie adormecera na sua cadeira, sem ser vista, num canto do enorme quarto. Scarlett
abriu os braços, na extensão da grande cama desconhecida. Os seus dedos tocaram
linho suave, nada mais. Os lados do colchão estavam distantes demais para que ela os
atingisse. Sentiu-se abandonada numa estranha vastidão de suavidade, indefinida.
Talvez se prolongasse até a escuridão silenciosa... A garganta contraiu-se de terror.
Estava sozinha e perdida no escuro.
"Acaba com isso!" A sua mente obrigou o pânico a recuar, exigindo que ela se
dominasse. Scarlett levantou cautelosamente as pernas, rodou sobre si própria e ficou
ajoelhada. Os seus movimentos foram lentos, de modo a não produzir qualquer som.
Sabia-se lá o que podia estar na escuridão, à escuta. Rastejou com um cuidado
agonizante até as mãos sentirem a beira da cama, e logo descerem até a dura solidez
da armação de madeira.
"Que burra que és, Scarlett O'Hara", disse a si própria, enquanto lágrimas de
alívio lhe escorriam pelas faces. "Claro que a cama é estranha, e o quarto. Desmaiaste,
como qualquer tola rapariguinha fraca, e o Colum e a Bridie trouxeram-te para o hotel.
Acaba com este disparate de jogo do rato e o gato."
Então, como um soco, a recordação atacou-a. Rhett estava perdido para ela...
divorciado dela... casado com Anne Hampton. Não conseguia acreditar, mas tinha que
acreditar, era a verdade.
Porquê? Por que fizera ele uma tal coisa? Tivera tanta certeza de que a amava.
Ele não podia ter feito uma coisa daquelas, não podia.
Contudo, fizera.
"Não cheguei a conhecê-lo." Scarlett ouviu as palavras como se as tivesse
pronunciado em voz alta. "Não cheguei a conhecê-lo de todo. Quem é que eu amei?
Quem é o pai da criança que trago comigo?"
"Que vai ser de mim?"
Nessa noite, na assustadora escuridão de um quarto de hotel que não via, num
país a milhares de quilômetros da sua pátria, Scarlett O'Hara fez a coisa mais corajosa
que alguma vez lhe fora exigido que fizesse: enfrentou o fracasso.
"É tudo culpa minha. Devia ter regressado a Charleston assim que soube estar
grávida. Decidi divertir-me, e estas semanas de divertimento custaram-me a única
felicidade que realmente me importa. Acontece que não pensei em como Rhett
interpretaria a minha fuga, não pensei para além do dia seguinte, da dança seguinte.
Não pensei rigorosamente nada. Nunca o fiz."
Todos os erros impetuosos, inconsiderados, da sua vida rodearam Scarlett no
negro silêncio da noite, e obrigou-se a enfrentá-los. Charles Hamilton - casara com ele
para despertar Ashley, nunca o amara. Frank Kennedy - fora horrível para ele, mentira-
lhe sobre Suellen, para que Frank casasse com ela e lhe desse dinheiro para salvar
Tara. Rhett - oh, cometera erros demais para ter em conta. Casara com ele sem o
amar, e não fizera qualquer esforço para lhe dar felicidade, nem nunca sequer se
preocupara com o fato de ele não ser feliz... até ser tarde demais.
"Oh, meu Deus, perdoa-me, nunca por um momento pensei no que lhes fazia, no
que sentiam. Magoei, magoei, magoei-os a todos, porque não parei para pensar."
"A Melanie também, principalmente a Melly. Nem consigo suportar a recordação
de como fui desagradável para ela. Nem por uma vez senti gratidão pela maneira como
ela gostava de mim e me defendia. Nem sequer uma vez lhe disse que gostava dela,
porque nunca pensei nisso, até o fim, e nessa altura, quando pensei, já não havia
oportunidade."
"Alguma vez na vida prestei atenção ao que estava fazendo? Alguma vez (nem
que fosse uma única vez) pensei nas consequências?"
O desespero e a vergonha apoderaram-se do coração de Scarlett. Como podia ter
sido tão tola? Desprezava os tolos.
Então as suas mãos enclavinharam-se, o maxilar enrijeceu e ela endireitou a
espinha. Não ia deliciar-se criticando o passado e tendo pena de si própria. Não ia
lamentar-se - nem a outra pessoa, nem a si própria.
Fitou a escuridão por cima dela com os olhos já secos. Não choraria, não naquele
momento. Teria o resto da vida para chorar. Naquele momento tinha que pensar, e
pensar com cuidado, antes de decidir o que faria.
Tinha de pensar no bebê.
Por um instante, odiou-o, odiou a sua cintura tornando-se mais larga e o corpo
desajeitado, pesado, que a esperava. Devia devolver-lhe o Rhett, e tal não acontecera.
Havia coisas que uma mulher podia fazer... ouvira falar em mulheres que se tinham
visto livres de bebês que não queriam...
... Rhett nunca lhe perdoaria se ela fizesse isso. Mas afinal que importância tinha?
Rhett fora embora, para sempre.
Um soluço proibido soltou-se dos lábios de Scarlett, apesar de toda a sua força de
vontade.
"Perdido. Perdi-o. Estou derrotada. Rhett ganhou."
Percorreu-a então uma ira repentina, cauterizando-lhe a dor, proporcionando
energias ao seu corpo e espírito exaustos.
"Estou derrotada, mas vou me vingar, Rhett Butler", pensou, amargamente
triunfante. "Eu te atingirei com mais força do que me atingiste a mim."
Scarlett pousou com suavidade as mãos na barriga. Oh, não, não ia ver-se livre
daquele bebê. Ela se ocuparia melhor dele do que alguém alguma vez se ocupara de
um bebê em toda a história do mundo.
A sua mente encheu-se de imagens e Rhett e Bonnie. Ele sempre amara Bonnie
mais do que amara a ela. Daria tudo... daria a vida para a ter de volta. "Vou ter uma
nova Bonnie, só minha. E quando ela tiver idade suficiente... quando me amar, e só a
mim, mais que a qualquer coisa ou a alguém na Terra, então deixarei que Rhett a veja,
veja o que perdeu..."
"Que estou pensando? Devo estar doida. Ainda há um minuto percebia o quanto o
magoei, e me odiei por isso. Agora estou odindo-o e planejando magoá-lo ainda mais.
Não serei assim, não vou permitir que a minha imaginação me leve até coisas assim,
não vou."
"Rhett foi embora; já o reconheci. Não posso deixar-me dominar por lamentações
nem pela vingança, quando o que tenho é que refazer a vida a partir do zero. Tenho
que encontrar algo de novo, algo de importante, algo para que viver. Eu o conseguirei,
se me decidir a isso."
Ao longo do resto da noite, a mente de Scarlett movimentou-se metodicamente
pelas avenidas das possibilidades. Encontrou becos sem saída, encontrou e
ultrapassou obstáculos, encontrou cantos surpreendentes de recordações, de
imaginação e de maturidade.
Recordou a sua juventude, a sua região e os tempos anteriores à Guerra. As
recordações eram de certa maneira destituídas de sofrimento, distantes, e
compreendeu que já não era a mesma Scarlett, que podia libertar-se de si própria e
permitir que os velhos tempos e os seus mortos descansassem.
Concentrou-se no futuro, nas realidades, nas consequências. As suas têmporas
começaram a palpitar, logo a latejar, até que toda a cabeça lhe doía abominavelmente,
mas ela continuava a pensar.
Foi precisamente quando começavam a ouvir-se os primeiros ruídos na rua que
todas as peças se enquadraram na sua mente, e Scarlett soube o que ia fazer. Assim
que as cortinas corridas filtraram luz suficiente para dentro do quarto, chamou:
- Bridie?!
A jovem saltou da cadeira, pestanejando para afastar o sono dos olhos.
- Graças a Deus te recuperaste! - exclamou. - O médico deixou este tônico. É só
encontrar a colher, está aqui em cima da mesa.
Scarlett abriu obedientemente a boca para tomar o amargo remédio.
- Pronto - disse com firmeza -, acabou-se a doença. Abre as cortinas, que já deve
ser dia. Preciso tomar o desjejum. Dói-me a cabeça e tenho que recuperar as forças.
Estava chovendo. Verdadeira chuva, e não os simples aguaceiros de costume.
Scarlett sentiu uma obscura satisfação.
- Colum quererá saber que estás melhor; ele ficou muito preocupado. Posso
dizer-lhe para entrar?
- Agora não. Diz-lhe que quero vê-lo depois, que quero falar com ele. Mas não é
já. Vai lá. Vai dizer-lhe. E pede-lhe que te ensine a encomendar o meu desjejum.
Scarlett obrigou-se a engolir pedaços de comida atrás uns dos outros, embora
nem tomasse consciência do que consumia. Tal como dissera a Bridie, precisava ter
forças.
Depois do desjejum, mandou a jovem embora, com instruções para regressar
duas horas mais tarde. Sentou-se então à secretária, junto da janela, e, franzindo-se
um pouco devido à concentração, preencheu rapidamente folha após folha de espesso
papel de carta creme, destituído de qualquer cabeçalho.
Uma vez escritas, dobradas e seladas duas cartas, fitou prolongadamente o papel
em branco à sua frente. Planejara tudo nas horas de escuridão da noite, sabia o que ia
escrever, porém não conseguia convencer-se a pegar na pena e começar. A sua
própria medula se contraía perante o que tinha que fazer.
Scarlett estremeceu e afastou o olhar da página. Recaiu-Ihe todavia num bonito
relogiozinho de porcelana que se encontrava sobre uma mesa próxima, o que a fez
inspirar, com o choque: Tão tarde! Bridie estaria de regresso dentro de apenas
quarenta e cinco minutos.
"Não posso adiar por mais tempo, isso não irá alterar seja o que for. Não tenho
alternativa. Tenho mesmo que escrever ao tio Henry, engolir o orgulho e pedir-lhe
docemente que me ajude. Ele é o único em quem posso confiar." Scarlett rangeu os
dentes e estendeu a mão para a pena. A sua caligrafia habitualmente nítida ficou
compacta e irregular devido à tensa determinação com que pôs no papel as palavras
que transferiam o domínio dos seus negócios de Atlanta e da sua preciosa quantia em
ouro, depositada no banco de Atlanta, para Henry Hamilton.
Era como ficar sem chão debaixo dos pés. Sentiu-se fisicamente mal, quase com
tonturas. Não tinha o mínimo temor de que o velho advogado a enganasse; contudo
não havia qualquer probabilidade de ele vigiar cada tostão da mesma forma que ela
sempre fizera. Era uma coisa pedir-lhe que recebesse e depositasse os lucros da loja e
a renda do bar. Era outra completamente diferente entregar-lhe o poder sobre os
produtos em armazém na loja e respectivos preços, e sobre a quantia a pagar como
renda pela pessoa que explorava o bar.
Poder. Cedia em relação ao seu dinheiro, à sua segurança, ao seu êxito.
Precisamente quando o poder lhe era mais necessário. A compra da parte de Carreen
em Tara ia fazer um grande buraco no ouro que tinha acumulado, mas já era tarde
demais para anular o acordo com o bispo, e Scarlett não o anularia mesmo que
pudesse. Finara-se o sonho de passar Verões em Tara com Rhett, mas Tara
continuava a ser Tara, e estava decidida a torná-la sua.
A construção das casas nos limites da cidade era outro sorvedouro de recursos,
porém tinha que ser feita. Se ao menos não tivesse certeza de que o tio Henry
concordaria com tudo o que Sam Colleton sugerisse, sem perguntar os preços.
E o pior de tudo era que ela ficaria na ignorância do que se passava, para bem ou
para mal. Tudo podia acontecer.
- Não posso fazer isto! - Scarlett gemeu alto. Continuou todavia a escrever. Tinha
que fazer. Ia tirar uma férias prolongadas, escreveu, para viajar. Não seria possível
estabelecer contato, pois não tinha endereço para onde o correio lhe pudesse ser
enviado. Olhou para as palavras. Estas tornaram-se uma mancha, e pestanejou para
afastar as lágrimas. Não podia admiti-las, tentou convencer-se. Era absolutamente
essencial cortar todos os laços, para que Rhett não conseguisse seguir-lhe a pista. E
ele não podia saber do bebê enquanto não fosse ela própria a decidir lhe dizer.
Contudo, como poderia suportar não saber o que o tio Henry fazia com o seu
dinheiro? Ou se o pânico aumentasse, ameaçando-lhe as poupanças? Ou se a casa
ardesse? Ou, pior, se ardesse a loja?
Tinha que suportar, portanto suportaria. A pena arranhou apressadamente as
páginas, pormenorizando instruções e conselhos que Henry Hamilton provavelmente
não levaria em conta.
Quando Bridie voltou, todas as cartas estavam sobre o mata-borrão, dobradas e
seladas. Scarlett sentara-se numa poltrona, como o espartilho destruído no colo.
- Ah, tinha me esquecido - lamuriou Bridie. - Tivemos que cortá-lo, para poderes
ter ar. Que queres que faça? Talvez haja alguma loja perto onde possa ir...
- Deixa pra lá, não é importante - acalmou-a Scarlett. - Podes alinhavar-me um
vestido, e uso capa para esconder os pontos das costas. Vamos então a isso, que já
está ficando tarde e tenho muito que fazer.
Bridie olhou para a janela. Tarde? Os seus olhos, com o hábito aquirido no
campo, viam que ainda não eram nove da manhã. No entanto, foi obedientemente
buscar na mala o conjunto de costura que Kathleen a ajudara a reunir para o seu novo
papel de criada de senhora.
Trinta minutos mais tarde, Scarlett batia à porta do quarto de Colum. Tinha
olheiras de falta de sono, mas estava imaculadamente ataviada e com uma compostura
perfeita. Não se sentia nada cansada. O pior já passara, agora tinha coisas para fazer.
Isso fazia-a recuperar as forças.
Sorriu ao primo quando este lhe abriu a porta.
- Mil vezes bem-vinda - saudou-a ele. - É bom ver-te sorrir, Scarlett querida.
- Espero ser capaz de rir dentro de pouco tempo... A carta da América perdeu-se?
- Não. Eu a tenho. Em particular. Compreendo o que aconteceu.
- Compreendes? - Scarlett sorriu de novo. - Então és mais sábio que eu. Eu sei,
mas é provável que nunca compreenda. De qualquer modo, não adianta. - Pôs em
cima de uma mesa as três cartas que escrevera. - Já te falo disto. Primeiro tenho que
te dizer que não vou contigo e com a Bridie.
- Fico na Irlanda. - Ergueu a mão: - Não, não digas nada. Já pensei em tudo.
Nada mais me resta na América.
- Oh, não, Scarlett querida, estás sendo precipitada. Eu não te disse que nada se
faz que não possa ser desfeito? O teu marido conseguiu um divórcio, conseguirá outro
quando regressares e lhe falares do bebê.
- Estás enganado, Colum. Rhett nunca se divorciará de Anne. Ela é o gênero
dele, da sua gente, de Charleston. E além disso é como a Melanie. Isto nada significa
para ti, porque nunca chegaste a conhecer a Melly. Porém, o Rhett conheceu.
Reconheceu-lhe a raridade muito antes de eu dar por isso. Ele respeitava a Melly. Foi a
única mulher que ele alguma vez respeitou, a não ser talvez a mãe, e admirava-a da
maneira que ela merecia. Esta jovem com quem casou vale dez de mim, como a Melly
valia, e Rhett sabe-o. Também vale dez do Rhett, mas ama-o. Ele que carregue essa
cruz. - Havia nas suas palavras uma amargura selvagem.
"Ah, o sofrimento", pensou Colum. "Tem que haver uma forma de a ajudar."
- Agora tens a tua Tara, Katie Scarlett, e tantos sonhos para ela. Isso não te
consola até o coração te sarar? Podes construir o mundo que desejas para a criança
que trazes em ti, uma grande plantação feita pelo avô e pela mãe. Se for rapaz, pode
chamar-se Gerald.
- Não estás a pensar nada que eu não tenha já pensado. Obrigada, mas não
consegues encontrar resposta, pois eu também não consegui, Colum, podes crer. Uma
coisa, já tenho um filho, uma criança de que nada sabes, para considerar em termos de
herança. Porém, o principal é este bebê. Não posso regressar a Tara para o ter, não
posso levá-lo para Tara depois do seu nascimento. As pessoas nunca acreditariam que
é produto do matrimônio. Sempre pensaram... no campo e em Atlanta... que eu não
prestava. E saí de Charleston no dia a seguir... a seguir ao começo do bebê. - O rosto
de Scarlett empalideceu com a dolorosa saudade. - Nunca ninguém acreditaria ser filho
do Rhett. Há anos que dormíamos em quartos separados. Eles me chamariam de
prostituta, e bastardo ao bebê, e o fariam estalando os lábios de prazer.
As palavras feias foram marcadas por contrações da sua boca.
- Tal não aconteceria, Scarlett, é impossível. O teu marido sabe a verdade.
Reconhecerá o bebê.
Os olhos de Scarlett flamejaram.
- Ah, sim, o reconheceria e o tiraria de mim. Colum, não podes imaginar como o
Rhett é quanto a bebês, aos seus bebês. É como um louco apaixonado. E tem que ter
a criança para si, ser o mais amado, ser tudo. Ele se apoderaria deste bebê assim que
ele tivesse o primeiro fôlego no seu corpinho. E não penses que não o conseguiria.
Obteve um divórcio que não podia ser obtido. Alteraria qualquer lei ou faria uma nova.
Nada há o que ele não possa fazer. - Sussurrava em voz rouca, como se estivesse
atemorizada. Tinha as feições contorcidas de ódio e de um terror selvagem, sem o uso
da razão.
Até que, de súbito, como se tivesse caído um véu, tudo mudou. A expressão
tornou-se calma, tranquila, excetuando os inflamados olhos verdes. Apareceu-lhe um
sorriso nos lábios, o que todavia fez gelar a espinha a Colum O'Hara.
- Este é o meu bebê - afirmou Scarlett. A sua voz calma, baixa, era como o
ronronar de um gato gigantesco. - Só meu. Ele só saberá da sua existência quando eu
quiser, quando já for tarde demais. Vou rezar para que seja menina. Uma linda menina
de olhos azuis.
Colum benzeu-se.
Scarlett soltou uma gargalhada feroz.
- Pobre Colum. Já deves ter ouvido falar no que acontece a uma mulher
desprezada, não fiques tão chocado. Não te aflijas, não te assusto mais. - Sorriu, e ele
estava quase capaz de acreditar que imaginara o que no momento anterior vira no seu
rosto. O sorriso de Scarlett era aberto e afetuoso. - Sei que tentas ajudar-me, e estou-
te grata, Colum, estou mesmo. Tens sido tão bom para mim, tão bom amigo,
provavelmente o melhor amigo que já tive, à exceção de Melly. És como um irmão.
Sempre desejei ter um irmão. Espero que sejas sempre meu amigo.
Colum garantiu-lhe que sim. Para si próprio, pensou que nunca vira uma alma tão
necessitada de auxílio.
- Quero que me leves estas cartas para a América, por favor, Colum. Esta é para
a minha tia Pauline. Quero que saiba que recebi a sua carta, para que extraia todo o
prazer possível do seu gosto em dizer às pessoas: "Eu bem te avisei." E esta é para o
meu advogado de Atlanta, porque há assuntos que tenho que deixar tratados. Ambas
devem ser postas no correio em Boston: não quero que ninguém saiba onde estou
realmente. Esta quero que entregues em mão. Vai obrigar-te a viajar mais, mas é
terrivelmente importante. É para o Banco, em Savannah. Tenho um monte de ouro e as
minhas jóias lá no cofre, e estou contando contigo para me trazeres de volta em
segurança. A Bridie deu-te o saquinho que eu trazia ao pescoço? Ótimo. Isso me
bastará para começar. Agora preciso que me arranjes um advogado em quem possa
confiar, se é que isso existe. Vou utilizar o dinheiro de Rhett Butler. Vou comprar
Ballyhara, onde os O'Hara começaram. Este bebê vai ter uma herança que ele nunca
poderia proporcionar. Vou mostrar-lhe uma ou duas coisas sobre raízes profundas.
- Scarlett querida, imploro-te. Espera um pouco. Podemos permanecer algum
tempo em Galway, com a Bridie e eu tomando conta de ti. Ainda não te recuperaste
dos choques. Um em cima do outro, da maneira que vieram, foi demais para já estares
tomando decisões tão importantes.
- Deves pensar que endoideci. E talvez tenha enlouquecido. Contudo, este é o
meu caminho, Colum, e tenciono seguir por ele. Com a tua ajuda ou sem ela. Também
não há razão para tu e Bridie ficarem. Planejo voltar amanhã para casa do tio Daniel e
pedir-lhes que me recebam novamente até Ballyhara me pertencer. Se receias que eu
precise de cuidados, com certeza confias em Kathleen e neles. Vai, Colum - prosseguiu
Scarlett -, confessa: te venci.
Ele abriu as mãos e admitiu-o.
Mais tarde acompanhou-a ao escritório de um advogado inglês que tinha a
reputação de completar com êxito todos os empreendimentos em que se metia, e foi
desencadeada a procura do dono de Ballyhara.
No dia seguinte, Colum foi ao Mercado assim que as primeiras mesas foram
montadas. No regresso ao hotel, levava as compras que Scarlett encomendara.
- Aqui está, Mrs. O'Hara - disse-lhe. - Saias, blusas, xale, capa e meias, tudo
preto, para a pobre viúva recente, e contei à Bridie ter sido essa a notícia que te fez
desmaiar. O teu marido foi arrebatado pela doença antes de teres tido tempo de chegar
à sua cabeceira. E aqui tens também... uma pequenina oferta minha. Acho que,
quando as roupagens de viúva te deprimirem, te sentirás melhor se souberes que os
tens vestidos. - Colum depositou no colo de Scarlett um monte de saiotes de cores
brilhantes.
Scarlett sorriu. Os olhos marejaram-se com a emoção.
Como é que adivinhaste que eu estava furiosa comigo mesma por ter dado todas
as minhas roupas irlandesas às primas de Adamstown? - Indicou com um gesto o
malão e asmalas mais pequenas: - Já não vou precisar mais destas coisas. Leva-as
contigo e entrega-as à Maureen para as distribuir.
- Isso é uma louca extravagância e impetuosidade, Scarlett.
- Tolice! Tirei as botas e camisinhas. Os vestidos não me servem para nada.
Nunca mais volto a ser apertada num espartilho, nunca. Sou Scarlett O'Hara, uma
mulher irlandesa com saia solta e secreto saiote vermelho. Livre, Colum! Vou fazer um
mundo para mim mesma de acordo com as minhas próprias regras, não com as de
qualquer outra pessoa. Não te preocupes comigo, vou aprender a ser feliz.
Colum afastou os olhos da expressão inflexível no rosto de Scarlett.

A partida do navio foi adiada por dois dias, de modo que Colum e Bridie puderam
acompanhar Scarlett à estação de trem, na manhã de domingo. Mas, primeiro, foram
todos à missa.
- Devias falar com ela agora, Colum - murmurou Bridie ao seu ouvido, quando se
encontravam no átrio. Ao dizer isto, dirigiu o olhar na direção de Scarlett.
Colum disfarçou o sorriso com uma tossidela. Scarlett estava como uma
camponesa viúva, usando um xale em vez de uma capa.
- Faremos como ela quer, Bridie - disse ele, com firmeza. - Ela tem o direito de
vestir o luto da maneira que melhor entender.
- Mas, Colum, neste grande hotel inglês, todos vão olhar e criticar.
- E não terão eles, também, esse direito? Deixa que olhem e que digam o que
quiserem. Não lhes daremos atenção - pegou com firmeza no braço de Bridie e
ofereceu a outra mão a Scarlett. Com elegância, esta pousou nela a sua mão, como se
ele a estivesse a conduzindo para um salão de baile.
Quando Scarlett se sentou no compartimento de primeira classe do trem, Colum
observou com deleite Bridie que, horrorizada, via grupos de viajantes ingleses, um
após outro, abrir a porta do compartimento para, logo de imediato, recuarem, fechando-
a.
- As autoridades não deviam permitir que esta gente comprasse bilhetes de
primeira-classe - disse uma mulher ao seu marido, em voz alta.
Scarlett segurou a porta com a mão, antes de o cavalheiro inglês a poder fechar.
Chamou por Colum, que estava na plataforma, ali perto.
- Santo Deus! Esqueci-me do meu cesto de batatas cozidas, padre. Por favor,
faça uma oração à bendita Virgem Maria para que apareça um vendedor ambulante
neste trem. - O seu sotaque era tão acentuado, que Colum mal pode compreender as
suas palavras. Ainda ria, quando um empregado da estação fechou a porta e o trem
começou a mover-se.
Foi com prazer que viu o casal inglês abandonar toda a dignidade, na sua
tentativa de entrar noutro compartimento.
Sorrindo, Scarlett fez adeus com a mão e, pouco depois, a sua janela perdeu-se
de vista. Depois, reclinou-se no assento e deixou que a sua cara se descontraísse,
derramando uma única lágrima. Estava muito cansada, receosa de regressar a
Adamstown. A cabana de duas divisões de Daniel parecera-lhe pequena e
deliciosamente diferente de tudo o que estava acostumada, quando em visita de férias.
Agora, era uma casa apertada, superlotada, sem luxos, e era o único lugar a que podia
chamar lar - só Deus sabia por quanto tempo. O advogado podia não encontrar o dono
de Ballyhara. Este poderia não estar disposto a vender. O custo poderia ser ainda mais
elevado do que todo o dinheiro que Rhett lhe dera.
O seu plano, tão cuidadosamente estudado, estava cheio de falhas, e não tinha
certeza de nada.
"Não vou pensar nisso agora, não há nada que eu possa fazer quanto a estes
assuntos. Pelo menos aqui ninguém vai aparecer para tagarelar comigo." Scarlett
cruzou os braços, acomodou-se no assento bem acolchoado, espreguiçou-se com um
sorriso e adormeceu, o bilhete atirado no chão, para que o condutor o visse. Tinha um
plano e tencionava levá-lo até onde pudesse. Seria muito mais fácil se não estivesse
meio morta de cansaço.
O primeiro passo do plano decorreu sem obstáculos. Em Mullingar, comprou um
pônei e um cabriolê e conduziu-o até Adamstown, o seu lar. Não era uma peça tão
moderna como a de Molly; tinha um aspecto miserável, mas o pônei era novo, grande e
forte.
Quando regressou a casa, a família ficou chocada, mas mostrou-se o mais
pesarosa possível pela perda que ela sofrera. Uma vez expressos os seus
sentimentos, nunca mais falaram no assunto; em vez disso, perguntaram-lhe se havia
algo que pudessem fazer por ela.
- Poderão ensinar-me - disse Scarlett. - Quero aprender tudo sobre uma quinta
irlandesa. - Depois, acompanhou Daniel e os seus filhos em todos os trabalhos de
rotina. Cerrando os dentes, até se esforçou por aprender a tratar do gado, a mungir
vacas. Depois de ter aprendido tudo o que pôde sobre a quinta de Daniel, Scarlett
resolveu agradar a Molly, e até ao seu detestável marido, Robert. A quinta deste era
cinco vezes maior que a de Daniel. A seguir a Robert, foi a vez do patrão deste, o Sr.
Alderson, administrador de toda a propriedade de Earl. Nem mesmo quando se propôs
seduzir todos os homens de Clayton County, fora Scarlett tão cativante. Nem nunca
trabalhara tanto. Nem nunca fora tão bem sucedida. Não tinha tempo para notar a
austeridade da cabana. Tudo o que importava era o colchão macio, ao fim de um
longo, longo dia de trabalho num dia de Verão.
Decorrido um mês, ela sabia quase tanto sobre Adamstown como o Anderson e
descobrira, no mínimo, seis outras maneiras de melhorar o trabalho. Foi nessa altura
que recebeu a carta do seu advogado de Galway.
A viúva do falecido proprietário de Ballyhara, voltara a casar-se um ano após a
morte do marido e ela falecera há cinco anos atrás. O seu herdeiro, e filho mais velho
do segundo casamento, agora com vinte e sete anos, vivia na Inglaterra, onde também
era herdeiro dos bens do seu pai, que ainda vivia. Dizia que tomaria em consideração
qualquer oferta acima de quinze mil libras. Scarlett analisou a cópia da planta de
Ballyhara, que viera anexa à carta. Era muito maior do que imaginara. A propriedade
compreendia ambos os lados da estrada para Trim. E havia outro rio. "Deste lado, o
limite é o Boyne e", esquadrinhou a letra miúda, "do outro lado é o Knightsbrook. Que
nome distinto. Knightsbrook. Dois rios. Tenho que a comprar. Mas... quinze mil libras!"
Através de Alderson já sabia que dez libras era um preço a pagar somente por
terreno produtivo de primeira e já era um alto preço.
Oito seria o mais justo, mas sete libras e meia seria um bom negócio.
Ballyhara também possuía uma grade área pantanosa. Útil para combustível,
havia bastante turfa para durar alguns séculos. Mas nada crescia no pântano, e os
campos à volta eram ácidos demais para o cultivo do trigo. A acrescentar, havia o fato
de que a terra há trinta anos que não era trabalhada. Precisava de ser toda limpa de
vegetação rasteira e de ervas daninhas. Não devia, pois, pagar mais de quatro libras e
meia. 1240 acres custariam £4.960 ou £5.580, no máximo. Claro que havia a casa; era
enorme. Não que lhe importasse. Os prédios da vila eram mais importantes. Existiam
ao todo quarenta e cinco deles e duas igrejas. Cinco das casas eram bastante grandes,
duas dúzias delas não passavam de cabanas.
Mas estavam todas desabitadas. E, por certo, assim continuariam, se não
houvesse alguém que cuidasse da propriedade. Bem vistas as coisas, dez mil libras
seria mais do que razoável. O dono estaria com sorte se a vendesse por esse preço.
Dez mil libras - eram cinquenta mil dólares! Scarlett ficou horrorizada.
"Tenho que começar a pensar no dinheiro a sério, do contrário me tornarei muito
descuidada. Dez mil não me soa muito dinheiro, mas cinquenta mil dólares é muito
diferente. Sei que é uma fortuna. Apesar de toda a sovinice, de toda a poupança e de
uma administração astuta das serrarias de madeira e da loja... e da venda súbita das
serrarias... e da renda da taverna... nunca despendendo um centavo a mais, ano após
ano, durante dez anos só consegui juntar apenas pouco mais de trinta mil dólares. E
não teria conseguido juntar nem metade disso, se Rhett não tivesse pago tudo durante
os últimos sete anos. O tio Henry diz que eu, com os meus trinta mil, sou a mulher mais
rica, e penso que ele tem razão. As casas que estou construindo não me vão custar
mais de uma centena de dólares. Quantas pessoas dariam cinquenta mil dólares por
uma cidade fantasma em ruínas e por terreno não cultivado?
"Pessoas como Rhett Butler, quem mais? E eu possuo quinhentos mil dos seus
dólares. Para tornar a comprar a terra roubada da minha gente." Ballyhara não era
apenas terra, era a terra dos O'Haras. Como podia ele sequer pensar quanto devia ou
não devia pagar por ela? Scarlett fez uma oferta firme de quinze mil libras - era pegar
ou largar. Depois de pôr a carta no correio, tremeu dos pés à cabeça. E se Colum não
regressasse a tempo com o ouro dela? Não havia meio de saber quanto tempo levaria
o advogado a agir, ou quando é que Colum regressaria. Mal se despediu de Matt
O'Toole, depois de lhe ter entregue a carta. Estava com pressa.
Andou tão depressa quanto lhe permitiu o chão desnivelado, desejando que
chovesse. As sebes altas e espessas absorviam todo o calor de Julho no estreito
carreiro entre as mesmas. Não trazia chapéu para lhe manter a cabeça fresca e para
proteger a pele do sol. Quase nunca usava chapéu; os frequentes aguaceiros e as
nuvens que os precediam e se seguiam aos mesmos, tornavam os chapéus
desnecessários.
Quanto aos guarda-sóis, não passavam de ornamentos na Irlanda.
Ao chegar ao vau do rio Boyne, arregaçou a saias e permaneceu dentro d'água
até refrescar o corpo. Depois, dirigiu-se à torre. No mês em que regressava à casa de
Daniel, a torre tornara-se muito importante para ela. Ia lá sempre que se sentia
preocupada com alguma coisa, aborrecida ou triste. As grandes pedras absorviam
tanto calor como a frescura; podia encostar nelas as suas mãos ou o rosto,
encontrando todo o consolo e conforto de que tanto precisava na solidez das suas
antigas paredes. Às vezes, falava com ela como se fosse seu pai. Menos
freqüentemente, estendia os braços sobre as pedras e chorava. Nunca ouvia outro som
senão o da sua própria voz, o chilrear da passarada e o murmúrio do rio. Nunca
pressentiu a presença dos olhos que a observavam.
Colum regressou à Irlanda a 18 de Junho. De Galway, enviou um telegrama:
chegarei entre 2 a 5 de junho com a mercadoria de savannah
A vila estava num tumulto. Nunca em Adamstown se tinha recebido um
telegrama. Nunca viera um cavaleiro de Trim, tão pouco interessado no portador de
Matt O'Toole, e nunca se vira um cavalo tão rápido.
Quando, duas horas mais tarde, um segundo cavaleiro chegou à vila, a galope
num cavalo ainda mais notável, a excitação das pessoas não teve limites. Outro
telegrama de Galway para Scarlett.
oferta aceita, seguem carta e contrato
Após uma pequena discussão, os aldeões decidiram fazer a única coisa sensata
a fazer. O'Toole e o ferreiro fechariam as portas.
O médico também. O padre Danaher usaria da palavra e todos se encaminhariam
para a casa de Daniel O'Hara, para indagar o que estava acontecendo.
Souberam que Scarlett partiria no seu cabriolê e nada mais, pois Kathleen não
sabia mais do que eles. Mas todos pegaram os telegramas e leram-nos. Scarlett tinha-
os deixado na mesa para que todos os vissem.
Com o coração pulando de alegria, Scarlett seguiu por caminhos tortuosos até
chegar a Tara. Agora, podia realmente começar. O seu plano estava bem definido,
cada passo seguindo com lógica o passo precedente. Esta viagem até Tara não estava
incluída nos passos a dar; viera-lhe à ideia, quando o segundo telegrama chegou, mais
como uma compulsão que como um impulso. Tornou-se forçosamente necessário,
neste dia de sol tão glorioso que, da colina de Tara, visse toda a extensão de terra
doce e verde que, a partir de agora, passaria a ser o lar que escolhera.
Nesse dia, havia muito mais carneiros pastando do que quando ali estivera antes.
Observou os seus lombos largos e pensou na lã. Ninguém em Adamstown pastoreava
carneiros, teria que aprender com alguém sobre os problemas e os lucros relativos à
criação de carneiros.
Scarlett parou. Havia gente nos morros onde antes se situara o grande salão de
banquetes de Tara. Esperara estar só. Ainda por cima eram ingleses, diabos levassem
os intrusos!
O ressentimento contra os ingleses fazia parte da vida de todos os irlandeses, e
Scarlett absorvera-o com o pão que comera e com a música ao som da qual dançara.
Estes passeantes não tinham o direito de estender os seus tapetes e as suas toalhas
onde os reis supremos da Irlanda tinham um dia jantado, ou de falar com as suas
vozes grasnantes, onde harpas tinham em tempo tocado.
Especialmente, quando esse lugar era o lugar onde Scarlett O'Hara tencionara
ficar de pé, olhando, solitária, para a terra que lhe pertencia. Olhou com frustração para
os homens aperaltados, com os seus chapéus de palha e para as mulheres com as
suas sombrinhas floridas.
"Não vou permitir que me estraguem o dia. Vou para um lugar onde não possa vê-
los." Caminhou para o morro que fora a casa murada do rei Cormac, construtor do
salão de banquetes. A Lia Fail estava aqui, a pedra do destino. Scarlett recostou-se
nela. Colum ficara chocado ao vê-la fazer isso, no primeiro dia que a trouxera até Tara.
A Lia Fail era o teste de coroação dos reis antigos, explicara-lhe ele. Se a pedra
soltasse um grito, o homem a ser testado seria aceite como rei supremo da Irlanda.
Naquele dia, ela estava tão estranhamente exaltada que nada a surpreenderia,
nem mesmo que o pilar de granito, roído pelo tempo, a chamasse pelo nome. Como,
de fato, não o fez. Era quase tão alto como ela; a parte superior daria um bom lugar de
descanso para a concavidade da sua cabeça. Olhou sonhadora para as nuvens que
por cima dela corriam, no céu azul, e sentiu o vento afastar da testa e das têmporas os
caracóis soltos do seu cabelo. As vozes inglesas faziam parte dum segundo plano
silencioso, onde só se ouvia o retinir das campainhas nos pescoços de alguns dos
carneiros. "Que sossego! Talvez seja essa a razão por que precisei regressar a Tara.
Tenho estado tão ocupada que me esqueci de ser feliz, e essa era a parte mais
importante do meu plano. Poderei ser feliz na Irlanda? Poderei fazer dela o meu
verdadeiro lar?
"Existe felicidade aqui, na vida livre que vivo. E quanta mais haverá quando o meu
plano estiver completo. A parte dura está realizada, a parte que os outros controlavam.
Agora, tudo depende de mim, do modo como pretendo fazer as coisas. E há tanto que
fazer!" Sorriu à brisa.
O sol brincava às escondidas por detrás das nuvens, e a relva alta e luxuriante
tinha um odor inebriante. As costas de Scarlett escorregaram pela pedra abaixo, até
ficar sentada na relva. Talvez encontrasse um trevo; Colum dissera-lhe que eles
cresciam aqui mais abundantemente do que em qualquer outro lugar da Irlanda. Ela já
o procurara entre a relva, mas ainda não encontrara o inconfundível trevo irlandês.
Num impulso, Scarlett enrolou as meias pretas e tirou-as. Como os seus pés eram
brancos. Ufa! Puxou a saia para cima dos joelhos e deixou que o sol lhe aquecesse as
pernas e os pés. As anáguas amarela e encarnada sob a saia fizeram-na sorrir de
novo. Colum tinha razão quanto a isso.
Scarlett agitou os dedos dos pés à brisa.
Que fora aquilo? Endireitou a cabeça.
E o pequeno foco de vida moveu-se de novo dentro do seu corpo.
- Oh! - sussurrou ela, repetindo mais uma vez. - Oh! - Delicadamente, colocou as
mãos sobre o pequeno volume sob a saia. A única coisa que sentiu foi o volume da lã.
Não foi surpresa verificar que não podia tocar no que se mexia dentro dela; Scarlett
sabia que se passariam muitas semanas antes de as suas mãos poderem sentir o bebê
espernear.
Ficou de pé, com o vento batendo no rosto, empinando o ventre. Tanto quanto a
sua vista podia alcançar, campos verdes e dourados e árvores de folhas verdes
enchiam o mundo.
- Tudo isto é teu, meu pequeno bebê irlandês - disse ela. - A tua mãe te dará tudo
isto. Sem a ajuda de ninguém!
Scarlett sentia a relva fresca sob os pés, e a terra quente por debaixo da relva.
Em seguida, ajoelhou-se e arrancou um tufo de relva. A expressão do seu rosto
não era deste mundo, quando cavou o chão com as unhas, quando esfregou a terra
húmida e fragrante, em círculos, no seu ventre, dizendo:
- Tua, a tua verde e maravilhosa Tara!

Na casa de Daniel, falavam de Scarlett. Não era nada de novo; Scarlett fora o
principal tópico de conversa dos aldeões, desde que chegara da América. Kathleen não
ficava nada ofendida com isso. Por que ficaria? Scarlett fascinava-a e intrigava-a, ao
mesmo tempo. Não lhe era difícil compreender a razão por que Scarlett decidira
permanecer na Irlanda.
- Afinal, não me senti eu própria assim saudosa - disse ela para quem a quisesse
ouvir -, com saudades das neblinas e da terra macia, da vila acolhedora e íntima?
Quando descobriu o que era melhor para si, não hesitou.
- Então era verdade, Kathleen, que o marido dela lhe batia tanto que ela teve que
fugir para salvar o bebê?
- De modo nenhum, Clare O'Gorman, e quem é que anda espalhando essas
terríveis mentiras?
Peggy Monaghan estava indignada.
- É fato bem conhecido que a doença que, por fim, o levou, já o consumia há
muito, e para que não a contaminasse, mandou-a embora.
- É uma coisa terrível ser viúva, com um bebê a caminho - suspirou Kate O'Toole.
- Não tão terrível como poderia ser - disse Kathleen, a sabichona. - Não quando
se é tão rica como a rainha da Inglaterra.
Todos se acomodaram melhor nas suas cadeiras, ao redor da lareira. Agora é
que se tocara no assunto principal. De toda a especulação acerca de Scarlett, a que
provocara maior excitação era a que se referia ao seu dinheiro.
E não era coisa importante ver, pela primeira vez, uma fortuna em mãos
irlandesas, em vez de na dos ingleses?
Nenhuma delas podia adivinhar que os melhores dias de bisbilhotice ainda
estavam por vir.
Scarlett sacudiu as rédeas nas costas do pônei.
- Para a frente - disse ela -, o bebê está com pressa de chegar em casa. - Por fim,
encontrou-se a caminho de Ballyhara. Até tudo estar seguro sobre a sua compra, não
se permitira ir mais longe que a torre. Agora, poderia ver mais em pormenor o que
possuía.
"As minhas casas na minha cidade... as minhas igrejas e os meus bares e a
minha estação de correio... o meu pântano e os meus campos e os meus dois rios...
Quanta coisa boa por fazer!"
Estava decidida a que o bebê nascesse no lugar que seria o seu lar. A Casa
Grande em Ballyhara. Mas todo o resto teria que ser feito, também. Os campos eram o
mais importante. E um ferreiro na cidade para reparar dobradiças e arados modernos.
E as goteiras remendadas, as janelas envidraçadas, as portas reforçadas. A
deterioração teria que parar de imediato, agora que a propriedade lhe pertencia.
E o bebê, claro. Scarlett concentrou-se na vida dentro dela, mas não sentiu
nenhum movimento.
- Criança esperta - disse ela, em voz alta. - Dorme enquanto podes. De agora em
diante vamos estar sempre ocupadas. - Tinha pela frente vinte semanas de trabalho
até o parto. Não era difícil calcular a data. Nove meses, a contar de 14 de Fevereiro,
dia de São Valentim. Scarlett torceu a boca.
Isso seria piada... Não iria pensar nisso agora... nem nunca.
Tinha que se concentrar no dia 21 de Novembro e no trabalho a fazer antes
daquela data. Sorriu e começou a cantar.
Quando, pela primeira vez, vi a doce Peggy, era dia de mercado.
Conduzia uma carroça de encosto baixo e estava sentada num fardo de palha.
Mas se essa palha se transformasse em erva verdejante, salpicada de flores da
Primavera.
Nenhuma delas se poderia comparar à moça viçosa a que me refiro.
Quando passava sentada na sua carroça de encosto baixo, o homem do posto da
rodovia nunca lhe cobrava a passagem, apenas acariciava o seu velho papagaio,
vendo partir a carroça de encosto baixo...
Que bom era ser feliz! Esta antecipação exaltada e esta boa disposição
contribuíam deveras para a felicidade. Em Galway, dissera uma vez que iria ser feliz, e
seria mesmo.
- Com toda a certeza - acrescentou Scarlett, em voz alta, rindo.

Colum ficou surpreendido ao ver Scarlett à sua espera, na estação de Mullingar.


Scarlett ficou surpreendida ao vê-lo descer do compartimento das bagagens e não da
carruagem de passageiros, seguido pelo companheiro.
- Este é o Liam Ryan, querida Scarlett, irmão do Jim Ryan. - Liam era um homem
grande, tão grande como os homens O'Hara, com exceção de Colum, e estava vestido
com o uniforme verde da Polícia Real Irlandesa. Como é que Colum podia
confraternizar com um deles?, pensou ela. A força policial era ainda mais desprezível
do que a milícia inglesa, visto policiarem, prenderem e castigarem o seu próprio povo,
sob as ordens dos ingleses.
Será que Colum trazia o ouro com ele? Scarlett gostaria de saber. Trazia, sim, e
também o Liam Ryan com a sua espingarda, para o proteger.
- Já transportei muitas encomendas na minha vida - disse Colum -, mas nunca
estive tão nervoso como agora.
- Trago homens do banco para o transportarem - disse Scarlett. - Como medida
de segurança, vou depositá-lo em Mullingar, pois possui a maior guarnição militar de
toda a região. - Aprendera a detestar os soldados, mas no que respeitava à segurança
do seu ouro, não se importava de os usar.
Poderia utilizar o banco de Trim por conveniência, para pequenas importâncias.
Assim que viu o seu ouro depositado em segurança no cofre do banco, os papéis
para a compra de Ballyhara assinados, Scarlett pegou o braço de Colum e apressou-se
a levá-lo para a rua.
- Trouxe um cabriolê, podemos partir imediatamente. Há tanto para fazer, Colum.
Tenho que descobrir já um ferreiro, para que ele comece o seu trabalho. O O'Gorman
não presta, é preguiçoso demais. Ajudas-me a descobrir um? Será bem pago para que
se mude para Ballyhara e bem pago depois para lá ficar, pois terá muito que fazer. Já
comprei foices, pás e enxadas, que vão precisar ser afiadas. Oh! Também preciso de
trabalhadores para limpar os campos, e de carpinteiros para consertar as casas, e de
vidraceiros e telhadores e pintores... tudo o que possas imaginar! - As suas faces
estavam coradas de excitação, os olhos brilhavam. Estava incrivelmente bela com a
sua roupa preta de camponesa.
Colum desprendeu-se do seu aperto, depois pegou-lhe o braço com uma mão
firme.
- Tudo será feito, Scarlett, querida, e quase tão depressa como desejas. Mas não
de estômago vazio. Vamos agora até a casa de Jim Ryan. É raro ele ver o seu irmão
de Galway, e é raro encontrar uma cozinheira tão boa como a Mrs. Ryan.
Scarlett fez um gesto impaciente. Depois esforçou-se por se acalmar. A
autoridade de Colum era discretamente impressionante. Por outro lado, ela tentava não
descuidar a sua alimentação, bebendo muito leite por causa do bebê. Várias vezes por
dia, sentia agora os seus movimentos sutis.
Mas depois do jantar, não conteve a sua ira, quando Colum disse que não iria
com ela já. Ela tinha tanto que lhe mostrar, tanto que lhe contar, tanto que planejar e
queria fazer tudo isso sem mais delongas!
- Tenho coisas a fazer em Mullingar - disse ele, com firmeza serena e irredutível. -
Dentro de três dias, estarei em casa, dou-te a minha palavra. Até posso marcar a hora.
Às duas da tarde, nos encontraremos na casa de Daniel.
- Nós nos encontraremos em Ballyhara - disse Scarlett. - Já me instalei lá. É a
casa amarela a meio caminho da rua. - Virou-lhe as costas e partiu zangada, em
direção ao seu cabriolê.
Mais tarde, nessa noite, depois do bar de Jim Ryan ter fechado, a porta do
mesmo ficou trancada para que os homens que, silenciosamente, chegavam um a um,
pudessem reunir-se no quarto do primeiro andar. Colum explicou-lhes em pormenor as
coisas que tinham a fazer.
- É uma oportunidade enviada por Deus - disse ele, com fervor incandescente -,
uma cidade inteira só para nós. Todos os fenianos, toda a sua capacidade concentrada
num só lugar, onde os ingleses nunca pensariam em procurar. Já todo o mundo pensa
que a minha prima é tola por ter pago o preço que pagou por uma propriedade que
poderia ter comprado por quase nada, só para poupar ao dono o pagamento de
impostos. Além disso, ela é americana, uma raça conhecida pela sua peculiaridade. Os
ingleses estão ocupados demais rindo dela, para suspeitarem do que se passa na sua
propriedade. Há muito que precisávamos de uma sede segura. Sem o saber, Scarlett
está suplicando que fiquemos com ela.

Às 2 horas e 43 minutos, Colum dirigiu-se à rua de Ballyhara, onde a erva


daninha crescia. Scarlett estava à porta, de pé, com as mãos nos quadris.
- Estás atrasado - acusou ela.
- Ah, lamento, mas vais perdoar-me, querida Scarlett, quando te disser que, atrás
de mim, na estrada, vem o teu ferreiro com a sua carroça, transportando a forja, os
foles e tudo o mais.
A casa de Scarlett era o retrato fiel dela, primeiro o trabalho, depois o conforto, se
este existisse. Colum observou tudo com os olhos enganadoramente preguiçosos. As
janelas partidas da sala de visitas, estavam cuidadosamente tapadas com pedaços de
oleado, colado sobre as vidraças. Os utensílios da quinta, de aço novo e brilhante
estavam empilhados nos cantos da sala. O assoalho estava varrido, mas não
encerado. A cozinha possuía uma cama de madeira com um colchão grosso de palha,
coberto por lençóis de linho e uma manta de lã. Havia um pequeno braseiro de turfa na
grande lareira de pedra. Os únicos utensílios de cozinha eram uma chaleira de ferro e
uma pequena panela. Por cima, numa prateleira, havia latas de chá e de farinha de
aveia, duas xícaras, colheres e uma caixa de fósforos. A única cadeira da sala estava
colocada perto de uma mesa grande, junto à janela. Na mesa, estava um grande livro
de contabilidade, aberto, contendo alguns registros na caligrafia bonita de Scarlett. Ao
fundo da mesa estavam duas grandes lamparinas, um frasco de tinta, uma caixa com
canetas, apagadores e uma resma de papel. Mais à frente, estava uma resma maior de
papel. As folhas estavam cobertas de anotações e cálculos, seguras por uma grande
pedra lavada. O mapa de Ballyhara estava pregado numa parede próxima.
Pendurados, também, estavam um espelho, por cima de uma prateleira que continha o
pente de prata e as escovas de Scarlett, assim como frascos com tampas de prata,
contendo ganchos de cabelo, pó, rouge, creme de glicerina e água-de-rosas. Colum
susteve um sorriso quando viu tudo aquilo. Mas quando viu a pistola, voltou-se para
ela, zangado:
- Podes ir parar na prisão por possuíres uma arma - disse ele, em voz muito alta.
- Bobagem - respondeu ela. - Foi o capitão da milícia que me deu. Ele disse que
uma mulher que todos sabem possuir muito ouro, devia ter alguma proteção. Até teria
destacado um dos seus soldados maricas para me guardar a casa, se eu o tivesse
permitido.
A gargalhada de Colum a fez erguer as sobrancelhas. Achava que o que dissera
não fora assim tão divertido.
As prateleiras da dispensa continham manteiga, açúcar, um suporte com dois
pratos, uma taça com ovos, um presunto pendurado do teto e um pedaço de pão. Num
canto, viam-se baldes com água, uma lata de óleo de lamparina e um lavatório
equipado com bacia, jarro, saboneteira com sabão e um toaIheiro com uma toalha. A
roupa de Scarlett estava suspensa por pregos na parede.
- Pelo que vejo não estás utilizando o andar de cima - comentou Colum.
- Por que o utilizaria? Aqui em baixo tenho tudo o que preciso.

- Tens feito um bom trabalho, Colum, estou realmente impressionada. - Scarlett


encontrava-se no centro da famosa e larga rua de Ballyhara e observava a atividade ao
longo da mesma. Ouvia-se martelar por todos os lados; havia o cheiro de tinta fresca,
janelas novas reluziam em dúzias de prédios; e, à sua frente, um homem num
escadote, estava colocando uma tabuleta com letras douradas, por cima da porta do
prédio que Colum, logo de início, escolhera para seu local de trabalho.
- Tínhamos mesmo que acabar o bar primeiro? - perguntou Scarlett. Fizera a
mesma pergunta desde que Colum anunciara a abertura do bar.
- Acharás trabalhadores mais dispostos a trabalhar, se houver um local onde
possam beber um trago, ao fim de um dia de trabalho - respondeu ele, pela milésima
vez.
- Assim o tens dito, todas as vezes que abres a boca, mas eu continuo sem
perceber por que é que esse fato não os tornará ainda piores. Ora, se eu não andasse
atrás deles, nada seria feito a tempo. Serão sempre os mesmos! -
Scarlett apontou um dedo na direção de alguns grupos de curiosos ao longo da
rua.
- Esses aí, deviam regressar ao lugar de onde vieram, fazendo o seu próprio
trabalho, e não ficarem olhando para quem trabalha.
- Querida Scarlett, faz parte do caráter nacional aceitar, primeiro, os prazeres que
a vida oferece e só depois preocupar-se com as obrigações. É o que dá aos irlandeses
o seu encanto e a sua felicidade.
- Ora, não acho que seja encantador, e não me faz nem um pouco feliz. Já
estamos praticamente em Agosto e nem um único campo foi ainda limpo. Como
poderei semear na primavera se os campos não estiverem limpos e estrumados no
outono?
- Querida Scarlett, ainda tens alguns meses à tua frente. Vê o que já fizeste em
apenas poucas semanas.
Scarlett olhou. Colum não lhe disse nada sobre a persuasão e a pressão que
tivera que exercer sobre os homens para que estes não depusessem as suas
ferramentas e fossem embora. Não gostavam nada de trabalhar sob as ordens de uma
mulher, especialmente uma tão exigente como Scarlett.
Se os laços clandestinos da Irmandade Feniana não os tivessem envolvido a
todos na ressurreição de Ballyhara, ele não saberia dizer quantos deles ainda
restariam, mesmo com os salários acima da média que Scarlett lhes pagava.
Ele também olhou ao longo da rua movimentada. Pensou que a vida seria boa
para estes homens, e para outros também, quando Ballyhara fosse restaurada. Havia
dois taberneiros que pediam para vir e um homem que possuía uma mercearia
lucrativa em Bective, queria mudar-se para Ballyhara. As casas, mesmo as mais
pequenas, eram melhor que os pardieiros ocupados agora pela maioria dos
trabalhadores do campo que ele escolhera. Estavam tão ansiosos quanto Scarlett para
que os telhados e as janelas fossem restaurados, a fim de poderem deixar os seus
senhorios e começarem a trabalhar nos campos de Ballyhara.
Scarlett entrou de súbito em casa, de onde regressou de luvas calçadas e um
jarro de leite na mão.
- Espero que mantenhas todos trabalhando e não celebrando a abertura do bar,
enquanto estou ausente - disse ela. - Vou até casa de Daniel comprar pão e leite. -
Colum prometeu vigiar os trabalhadores. Não disse nada sobre a loucura que era ela
mover-se aos solavancos, num pônei sem sela, no seu estado. Já o criticara por ele
sugerir que isso não era aconselhável.
- Pelo amor de Deus, Colum, só estou de cinco meses. Isso nem sequer é estar
grávida!
Scarlett estava mais preocupada do que deixara transparecer. Nenhum dos seus
bebês anteriores lhe tinham causado tantos problemas. Tinha dores ao fundo das
costas que nunca desapareciam e, ocasionalmente, havia manchas de sangue nas
suas roupas interiores ou nos lençóis, o que lhe apertava o coração. Lavava-as com o
sabão mais forte que tinha, o que se destinava aos soalhos e às paredes, como se
pudesse lavar a causa desconhecida do seu mal, juntamente com as manchas. O Dr.
Meade avisara-a, depois do aborto, que a queda a tinha afetado seriamente, e ela
levara um período, inconscientemente longo, para se recuperar, mas recusava-se a
admitir que podia haver algo de verdadeiramente errado. O bebê não espernearia tanto
se não fosse saudável. E ela não tinha tempo a perder com pessimismos.
Viagens frequentes tinham aberto um carreiro bem definido através dos campos
férteis até o baixio do rio, onde se podia atravessar para o outro lado. O pônei seguiu
por esse carreiro quase sem ajuda, e Scarlett teve tempo para pensar. Seria melhor
arranjar um cavalo depressa, pois já estava ficando muito pesada para o pônei. Aqui,
também, algo de diferente se passava. Antes, nunca estivera tão volumosa, quando
grávida. E se fossem gêmeos? Não seria uma maravilha? Isso iria realmente castigar
Rhett. Já possuía dois rios na sua propriedade, em relação ao único rio que ele possuía
em Dunmore Landing. Nada lhe agradaria mais do que dar à luz dois bebês, só para o
caso de Anne vir a ter um. Só pensar que Rhett podia dar um filho a Anne, era doloroso
demais para suportar. Scarlett dirigiu o olhar e o pensamento para os campos de
Ballyhara. Tinha que começar a trabalhá-los, era forçoso que o fizesse, fosse o que
fosse que Colum dissesse.
Como sempre, parou perto da torre, antes de seguir para o baixio do rio. Que
grandes construtores eram esses antigos O'Haras, e como eram inteligentes. O velho
Daniel falara durante quase uma hora, quando ela lhe dissera que tinha pena que a
escadaria tivesse desaparecido. Nunca houvera uma escadaria por fora, disse ele, só
por dentro. Um escadote dava às pessoas acesso à porta, situada a alguns metros do
chão. Quando o perigo surgia, as pessoas então corriam para a torre, retiravam o
escadote, e começavam a disparar setas, a atirar pedras ou a derramar óleo fervente
sobre os atacantes, através das estreitas janelas, a salvo do inimigo lá embaixo.
"Um dia destes vou trazer um escadote para poder espreitar para dentro da torre.
Espero que não haja morcegos. Odeio morcegos. Por que foi que São Patrício não se
livrou deles, também, quando escorraçou todas as cobras?"
Scarlett foi ver a avó, que encontrou dormindo. Depois, espreitou pela porta de
Daniel.
- Scarlett! Que bom é ver-te. Entra, e conta as últimas maravilhas que fizeste em
Ballyhara. - Dizendo isto, Kathleen pegou a chaleira. - Estava esperançada que
viesses. Fiz um pão doce. - Estavam presentes três das mulheres. Scarlett puxou um
banco e sentou-se.
- Como vai o bebê? - perguntou Mary Helen.
- Ótimo - disse Scarlett. Olhou à volta da cozinha familiar. Era acolhedora e
confortável, mas mal podia esperar que Kathleen tivesse a sua nova cozinha, a que
estava situada na maior casa de Ballyhara.
Mentalmente, Scarlett já tinha escolhido as casas que destinava à família. Todos
eles teriam lares imponentes e espaçosos. A de Colum era a mais pequena, apenas
uma das casas à saída da cidade, onde a sua propriedade se confinava com a mesma,
mas fora ele próprio que a escolhera, de modo que ela nem argumentara. De qualquer
maneira, ele, como padre, nunca constituiria família. Mas havia casas muito maiores na
cidade. Ela escolhera a melhor para o Daniel, porque Kathleen estava com ele e,
provavelmente, quereriam também que a avó vivesse com eles, e ainda por cima teria
que haver muito espaço para a família que Kathleen iria constituir quando se casasse,
o que ela facilmente faria, com o dote que Scarlett lhe daria, incluindo a casa. E depois
uma casa para cada um dos filhos de Daniel e de Patrick, até para o fantasmagórico
Sean, que vivia com a avó. Também lhes daria tanta terra de cultivo quanto eles
quisessem, a fim de que, por sua vez, também se pudessem casar. Pensou como era
terrível os jovens não poderem casar por não possuírem nem terra, nem dinheiro para
a comprar.
Os senhorios ingleses demonstravam não ter coração pelo modo como
mantinham o solo irlandês sob os seus tacões. Os irlandeses faziam todo trabalho para
cultivar o trigo e aveia, engordavam o gado e os carneiros e depois tinham que os
vender aos ingleses, aos preços que estes fixavam, a fim de poderem exportar os
cereais e o gado para a Inglaterra, onde ganhariam mais dinheiro, favorecendo assim
ainda mais os ingleses. Pouco sobrava aos agricultores irlandeses, depois de pagarem
a renda, a qual podia ser aumentada ao capricho dos ingleses. Era pior do que
plantação a meias, era como estar sob o domínio dos ianques após a guerra, quando
estes tiravam tudo o que queriam, para depois aumentarem os impostos sobre os
habitantes de Tara duma maneira escandalosa. Não admira, pois, que os irlandeses
odiassem tanto os ingleses. Ela odiaria os ianques até o dia da sua morte.
Mas cedo os O'Haras se livrariam de tudo aquilo. Ficariam tão surpreendidos
quando lhes contasse! Não ia levar muito tempo para isso acontecer. Quando as casas
estivessem prontas e os campos prontos - não lhes iria dar presentes inacabados, mas
sim tudo que fosse perfeito. Tinham sido tão bons para ela. E eram a sua família.
Os presentes eram um segredo seu muito precioso. Nem sequer ainda o revelara
a Colum. Vinha-o acalentando desde aquela noite em Galway, quando a idéia lhe
surgira. Aumentava-lhe o prazer, sempre que olhava para a rua de Ballyhara, saber
exatamente quais seriam as casas a habitar pelos O'Haras. Teria então muitos lugares
para visitar, muitas lareiras junto das quais se sentar, muitos lares com primos para o
seu bebê brincar e com quem ir à escola e muitos feriados para celebrar na Casa
Grande.
Porque, naturalmente, esse seria o lugar onde ela e o bebê ficariam. Na imensa e
fantástica Casa Grande. Maior que a casa em East Battery, maior que a casa em
Dunmore Landing, mesmo antes dos ianques terem queimado nove décimos dela. E
com terra que tinha pertencido aos O'Hara, antes de alguém ter ouvido falar de
Dunmore Landing ou de Charleston, Carolina do Sul ou de Rhett Butler. Como os olhos
dele se esbugalhariam, como o seu coração se partiria, quando visse a sua bela filha -
"Oh, tomara que seja uma menina!" - na sua bela casa, uma O'Hara e somente da sua
mãe.
Scarlett acalentava o sonho de uma doce vingança. Mas isso só aconteceria dali
a muitos anos, e as casas dos O'Hara pertenciam a um futuro próximo. Assim que
estivessem prontas.
No fim de Agosto, com o céu da alvorada ainda rosado, Colum apareceu à porta
de Scarlett, seguido por dez homens robustos, que se viam à média luz da pesada
neblina.
- Aqui estão os homens que irão limpar os teus campos - disse ele. - Estás
contente?
Deliciada, ela soltou um gritinho.
- Vou buscar o meu xale para me proteger da humidade - disse ela -, sairei já.
Leva-os para o primeiro campo, do outro lado do portão. - Ainda não acabara de se
vestir, o cabelo estava todo desalinhado e estava descalça. Tentou apressar-se, mas a
excitação tornou-a desastrada. Tinha esperado tanto tempo! Cada dia se tornava mais
difícil calçar as botas.
"Meu Deus, estou grande como uma casa! Se calhar, vou ter trigémeos.
"Que o diabo o leve!" Scarlett enrolou o cabelo não escovado e espetou-lhe
alguns ganchos para o segurar, depois pegou o xale e correu descalça pela rua abaixo.
Os homens, sombrios, estavam agrupados no carreiro repleto de erva espessa
por entre o portão aberto.
- Nunca vi uma coisa assim - disse um deles -, parecem mais árvores que ervas...
A mim, parecem urtigas... Um acre levaria uma vida inteira para limpar...
- Que belo grupo vocês me saíram! - disse Scarlett, com voz nítida. - Têm receio
de sujar as mãos?
Eles olharam-na com desdém. Todos tinham ouvido falar da pequenina mulher
com os seus ares autoritários e os modos pouco femininos.
- Estávamos discutindo a melhor maneira de começar o trabalho - disse Colum,
apaziguador.
Scarlett não estava disposta a ser apaziguada.
- Se levarem muito tempo discutindo, não vão começar nunca. Eu mostro-lhes
como se deve começar. - Colocou a mão esquerda sob o seu ventre saliente, a fim de
o proteger, depois inclinou-se, e a sua mão direita pegou pela base de uma mão-cheia
de urtigas. Com um gemido e um suspiro, arrancou-as da terra. - Aí está! - disse, com
desprezo - Agora podem continuar. - Atirou as plantas espinhosas aos pés dos
homens. O sangue espirrava das feridas da sua mão. Scarlett cuspiu-lhe em cima,
depois limpou-a na saia preta de viúva e foi-se embora, com andar pesado, os pés
pálidos e frágeis.
Os homens fixaram o olhar nas suas costas. Primeiro um, depois outro e a seguir
todos os outros tiraram os chapéus.
Não eram os únicos que tinham aprendido a respeitar Scarlett O'Hara. Os pintores
tinham descoberto que ela era capaz de subir pelo escadote mais alto, movendo-se
como um caranguejo para acomodar melhor a sua forma, e para lhes mostrar as
pinceladas imperfeitas. Os carpinteiros que se atreviam a utilizar tamanhos de pregos
inadequados encontravam-na martelando quando vinham trabalhar. Batia as portas
acabadas de fazer com uma pancada "que acordaria os mortos", a fim de experimentar
as dobradiças, e entrava nas chaminés com um molho de juncos incandescentes na
mão, à procura de fuligem e para verificar se funcionavam bem. Os telhadores
comentavam com admiração que "somente o braço forte do padre O'Hara a impedia de
andar pelos telhados contando as telhas". Dirigia todos com dureza, sendo ainda mais
dura consigo própria.
E quando estava escuro demais para se poder trabalhar, oferecia grátis três
canecas de cerveja no bar a todos aqueles que ficassem trabalhando até mais tarde e,
mesmo quando acabavam de beber, de se vangloriar e de se lamentar, podiam-na ver
através da janela da cozinha, debruçada sobre os seus papéis escrevendo à luz da
lamparina.
- Lavaste a mãos? - perguntou Colum, ao entrar na cozinha. - Sim, e pus-lhes
pomada, também. Estavam uma lástima. Às vezes fico tão furiosa, que não sei o que
faço. Estou preparando o café. Queres?
Colum aspirou o ar.
- Papa de aveia sem sal? Prefiro urtigas cozidas.
Scarlett sorriu
- Como queiras. Pus de lado o sal por uns tempos, para evitar que os meus
tornozelos inchem ainda mais do que têm inchado nos últimos tempos... Não que faça
alguma diferença de agora em diante. Já não consigo ver as botas para abotoar e
dentro de uma ou duas semanas já nem conseguirei tocá-las. Já descobri, Colum. Vou
ter um leitão e não um bebê.
- Eu também já "descobri", como tu dizes. Precisas de uma mulher para te ajudar.
- Esperava que Scarlett protestasse; automaticamente, ela transmitia a impressão de
que podia fazer tudo sozinha.
Mas não, concordou. Colum sorriu; tinha a mulher de que ela precisava para o
lugar, disse ele, alguém que a ajudaria em tudo, até na contabilidade, se necessário.
Uma mulher mais velha, mas não velha demais para aceitar as ordens de Scarlett, e
não tão covarde que a não confrontasse, sempre que necessário. Tinha também
prática em dirigir o pessoal, em lidar com pessoas e com dinheiro. De fato, ela era
governanta na Casa Grande de uma propriedade próxima de Laracor, do outro lado de
Trim. Tinha conhecimentos de partos, apesar de não ser parteira. Ela própria tivera seis
filhos. Podia vir trabalhar para Scarlett já, para tomar conta dela e da casa, até que a
Casa Grande estivesse restaurada. Depois contrataria as mulheres para o serviço da
casa e as dirigiria.
- Tens que admitir, Scarlett, querida, que na América não encontras nada
parecido com a Casa Grande irlandesa. É necessária uma mão prática. Vais precisar
de um administrador, também, para dirigir o mordomo e os criados e bem assim de um
capataz de estábulo para orientar os moços de estrebaria e uma dúzia ou mais de
jardineiros orientados por um jardineiro-chefe.
- Pára! - Scarlett sacudiu a cabeça, furiosa. - Não estou planejando estabelecer
um reino aqui. Preciso de uma mulher para me ajudar, admito-o, mas para começar,
vou apenas ocupar poucos quartos desse monte de pedras. Assim, terás que perguntar
a esse teu paradigma se está disposta a abdicar da sua posição toda-poderosa. Duvido
que ela concorde.
- Eu lhe perguntarei. - Colum estava certo que ela aceitaria, mesmo que tivesse
que esfregar os assoalhos. Rosaleen Mary Fitzpatrick era a irmã de um feniano que
fora executado pelos ingleses, e a filha e neta de homens que se tinham afundado nos
navios-caixão de Ballyhara. Era o membro mais fervoroso e dedicado do seu círculo
interno de insurrectos.
Scarlett retirou três ovos cozidos da água fervente da chaleira, depois colocou
água no bule.
- Podes comer um ovo ou dois, se não gostas da minha papa de aveia - ofereceu
ela. - Sem sal, claro.
Colum recusou.
- Bom, eu estou com fome. - Com uma colher, tirou a papa para o prato, partiu os
ovos e adicionou-os à mesma. As gemas ainda estavam líquidas. Colum desviou o
olhar.
Esfomeada, Scarlett comeu com apetite, falando rapidamente entre as
colheradas. Falou-lhe do seu plano para toda a família, do seu desejo de que todos os
O'Hara vivessem em Ballyhara, num luxo moderado.
Colum esperou até que ela acabasse de falar, antes de dizer.
- Eles não vão aceitar. Cultivam a terra onde vivem há quase duzentos anos.
- Claro que vão aceitar. Todo mundo deseja ter mais do que tem, Colum.
Em resposta, ele sacudiu a cabeça.
- Vou provar que estás enganado. Vou dizer-lhes já! Não, isso não está nos meus
planos. Primeiro, quero que tudo esteja pronto.
- Scarlett, já te trouxe os agricultores esta manhã.
- Esses preguiçosos!
- Não me tinhas dito nada sobre os teus planos. Já contratei esses homens. As
suas mulheres e filhos estão neste momento a caminho para cá, a fim de se instalarem
nas cabanas ao fundo da rua. Já se desligaram dos seus anteriores senhorios.
Scarlett mordeu os lábios.
- Muito bem - disse ela, passado um momento. - De qualquer modo, vou instalar a
família em casas, não em cabanas. Esses homens poderão trabalhar para os primos.
Colum abriu a boca e depois fechou-a. Não valia a pena argumentar. Tinha
certeza de que Daniel nunca se mudaria.

Colum chamou por Scarlett que, a meio da tarde, tinha subido um escadote para
inspeccionar o estuque acabado de colocar.
- Quero que vejas o que os teus "preguiçosos" acabaram de fazer - disse ele.
Scarlett sentiu-se tão feliz que as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Viu um carreiro
aberto, bastante largo para o seu cabriolê passar, onde antes passara montada no seu
pônei. Agora, poderia tornar a visitar Kathleen e comprar leite para o seu chá e a sua
papa de aveia.
Nas últimas semanas, sentira-se pesada demais para montar.
- Vou partir já - disse ela.
- Então, deixa-me abotoar-te as botas.
- Não, machucam-me os tornozelos. Vou descalça, agora que tenho um cabriolê
para guiar e uma estrada para passar. No entanto, podes atrelar o pônei ao cabriolê.
Colum observou-a enquanto ela partia, sentindo-se aliviado.
Voltou à sua casa e aos seus livros, ao seu cachimbo, e ao seu copo de um bom
uísque, com uma sensação de recompensa bem merecida. Scarlett O'Hara era a
pessoa mais cansativa que ele jamais conhecera, de qualquer sexo, idade ou
nacionalidade.
"Mas por que será que a minha mente acrescenta sempre 'pobre cordeiro' a cada
opinião que tenho dela?"
Na verdade, ela parecia-se com um pobre cordeiro, quando irrompeu na casa
dele, ao cair da tarde dum dia de Verão. A família, muito amável e repetidamente,
recusara o seu convite e os seus rogos para se mudarem para Ballyhara.
Colum quase acreditara que Scarlett se tornara incapaz de chorar. Não chorara
quando recebeu a notícia do divórcio, nem mesmo quando o último golpe se abateu
sobre ela ao saber que Rhett tornara a casar-se. Mas nesse dia quente de Agosto,
soluçou e chorou durante horas, acabando por adormecer num sofá confortável, um
luxo desconhecido na sua habitação espartana de duas divisões. Colum tapou-a com
uma colcha leve e foi para o seu quarto. Estava contente por ela ter encontrado alívio
para a sua dor, mas receava que não considerasse o seu desabafo do mesmo modo
que ele. De modo que a deixou só; possivelmente, ela não o queria ver durante dias.
Pessoas fortes não gostam de testemunhas dos seus momentos de fraqueza.
Estava enganado. Mais uma vez, pensou. Será que algum dia viria a conhecer
aquela mulher? Na manhã seguinte, encontrou Scarlett sentada à mesa da cozinha,
comendo os únicos ovos que ele tinha.
- Sabes, Colum, tu tens razão. Têm gosto muito melhor com sal... E podes já
começar a pensar em arranjar bons inquilinos para as minhas casas. Terão que ser
ricos, pois tudo o que está dentro delas é da melhor qualidade, e conto com uma boa
renda.
Scarlett estava profundamente magoada, apesar de nunca o demonstrar, nem
falar nisso. Continuou a ir de cabriolê até a casa de Daniel, algumas vezes por semana,
e trabalhava em Ballyhara tão duramente como sempre, não obstante a sua gravidez
se ter tornado bastante incômoda. No fim de Setembro, a cidade estava restaurada.
Todos os prédios estavam limpos, pintados por dentro e por fora, com portas
resistentes, boas chaminés e telhados seguros. A população crescia a grande ritmo.
Havia mais dois bares, uma loja de sapateiro para botas e arreios, a loja do
merceeiro que viera de Bective, um padre idoso para a pequena igreja católica, dois
professores para a escola, que começariam a dar aulas assim que viesse a autorização
de Dublin, um jovem advogado nervoso que esperava vir a adquirir boa clientela, com
uma jovem esposa ainda muito nervosa, que espreitava as pessoas na rua, entre as
suas cortinas de renda. Os filhos dos agricultores brincavam aos jogos na rua, as
mulheres sentavam-se à porta das suas casas e mexericavam, o carteiro vinha todos
os dias de Trim para deixar o correio com o cavalheiro erudito que abrira uma loja de
uma só divisão para a venda de livros, de papel e de tinta de escrever, num anexo da
mercearia. Havia a promessa de que seria instalada uma estação de correio, decorrido
que fosse um ano, e um médico arrendara uma das maiores casas, que ocuparia na
primeira semana de Novembro.
Esta última notícia foi a melhor que Scarlett recebeu. O único hospital naquela
área, ficava num asilo para pobres em Dunshauglin, a vinte e oito quilômetros de
distância. Nunca vira um asilo para pobres, o último refúgio dos miseráveis, e esperava
nunca ver um. Acreditava firmemente no trabalho em vez da mendicidade, mas preferia
não ter que ver os infelizes que acabavam por lá ir parar. E não era de modo algum o
lugar indicado para uma criança nascer.
Ter o seu próprio médico era mais do seu gênero. Estaria bem à mão, também,
para tratar do garrotilho e da varicela que os bebês costumam apanhar. Para já, o que
tinha que fazer era espalhar que iria precisar de uma ama em meados de Novembro.
E aprontar a casa.
- Colum, onde está essa tua perfeita Mrs. Fitzpatrick? Pensei que me disseras
que ela concordara em vir, há um mês atrás.
- Ela, de facto, concordou em vir há um mês. E deu também um mês de aviso
onde trabalhava, como qualquer pessoa responsável faria. Estará aqui no dia primeiro
de Outubro, isto é, na próxima quinta-feira. Ofereci-lhe a minha casa para se hospedar.
- Ah, fizeste isso? Pensei que ela vinha governar a minha casa. Por que não fica
comigo?
- Porque, querida Scarlett, a tua casa é a única de Ballyhara que não foi
restaurada.
Scarlett olhou com surpresa para a sua cozinha-escritório. Nunca antes reparara
no seu aspecto; afinal, era apenas um lugar temporário, um lugar conveniente para
poder acompanhar o trabalho feito na cidade.
- Está revoltante, não está? - disse ela. - É melhor que acabe depressa a Casa
Grande para me poder mudar. - Sorriu com dificuldade. - Colum, a verdade é que estou
quase exausta. Estou desejosa de que o trabalho termine depressa para poder
descansar um pouco.
O que Scarlett não disse foi que o trabalho se tinha tornado apenas trabalho,
depois dos primos lhe terem dito que não se mudariam. A alegria de reconstruir as
terras dos O'Hara tinha-lhe sido retirada pelo fato destes não as quererem desfrutar.
Vezes sem conta tentara descobrir a razão por que tinham recusado a sua oferta. A
única resposta que lhe fez sentido foi a de que não queriam viver perto dela, por não a
estimarem verdadeiramente, não obstante toda a bondade e afeto que lhe tinham
demonstrado. Passara a sentir-se só, mesmo quando estava com Colum. Acreditara
que ele era seu amigo, mas fora ele que lhe dissera que eles nunca aceitariam a sua
oferta. Conhecia-os, pois era um deles. As suas costas doíam-lhe agora sempre. As
pernas também, e os pés e os tornozelos estavam tão inchados que andar era um
tormento. Gostaria de não estar grávida. O fato estava a deixando doente e fora isso
que lhe dera a idéia de comprar Ballyhara. E ainda faltavam mais seis... não, seis
semanas e meia deste tormento.
"Se tivesse forças, daria um berro", pensou desanimada. Mas conseguiu ainda
sorrir fracamente para Colum.
"Parece que ele me quer dizer alguma coisa, mas não sabe como começar. Ora,
não o posso ajudar. Já esgotei a minha conversa."
Bateram à porta da rua.
- Eu vou abrir - disse Colum. "Isso mesmo, corre como um coelho."
Colum regressou à cozinha com um embrulho na mão e um sorriso indeciso na
cara.
- Era a Mrs. Flanagan, da mercearia. O tabaco que encomendaste para a avó já
chegou e ela trouxe-o. Vou entregá-lo à avó.
- Não - Scarlett levantou-se. - Ela pediu-me que o obtivesse. Foi a única coisa que
me pediu até agora. Atrela o pônei ao cabriolê e ajuda-me a subir. Quero ser eu a
entregá-lo.
- Vou contigo.
- Colum, no banco mal há lugar para mim, quanto mais para nós os dois. Traz-me
só o cabriolê e ajuda-me a subir, por favor.
E como sairia dele, só Deus sabia.

O "fantasmagórico Sean", como Scarlett lhe chamava mentalmente, estava na


casa da avó. Ajudou-a a descer e ofereceu-lhe o braço para a ajudar a entrar em casa.
- Não é necessário, eu me arranjo. - Sean conseguia sempre pô-la nervosa. Todo
o insucesso enervava Scarlett, e Sean era o O'Hara que tinha falhado. Era o terceiro
filho de Patrick. O mais velho morrera. Jamie trabalhava em Trim em vez de na quinta,
de modo que quando Patrick morreu, em 1861, Sean herdara a quinta. Na época, só
tinha trinta e dois anos, e esse "só" foi uma desculpa que ele achava adequada para
justificar todos os seus problemas. Geria tudo tão mal, que havia uma forte
possibilidade de perder o arrendamento.
Daniel, como mais velho, chamou todos os filhos de Patrick. Apesar de ter
sessenta e sete anos, Daniel tinha mais fé em si que em Sean ou no seu próprio filho
Seamus, que também tinha "só" trinta e dois anos. Trabalhara ao lado do irmão durante
toda a sua vida; agora que Patrick morrera, não ficaria calado vendo o trabalho das
suas vidas ir por água abaixo. Em vez disso, seria Sean que teria que sair.
Sean saiu. Mas não foi embora. Há doze anos que vivia com a avó, deixando que
esta tomasse conta dele. Recusava-se a fazer qualquer espécie de trabalho na quinta
de Daniel. Isto fazia eriçar os pêlos do pescoço de Scarlett. Afastou-se dele tão
depressa quanto os seus pés descalços o permitiam.
- A menina do Gerald! - disse a avó. - Estou contente por te ver, jovem Katie
Scarlett.
Scarlett acreditou nela. Sempre acreditara na avó.
- Trouxe-te o teu tabaco, velha Katie Scarlett - disse ela, com alegria genuína.
- Que boa que tu és. Queres fumar uma cachimbada comigo?
- Não, avó, obrigada. Ainda não me tornei tão irlandesa.
- Oh, que vergonha. Bem, eu sou tão irlandesa como Deus quer. Vá, enche-me o
cachimbo.
A pequenina cabana estava silenciosa, só se ouvindo o som macio das
chupadelas que a avó fazia na base do cachimbo. Scarlett colocou os pés num banco e
fechou os olhos. A paz que a rodeava era um bálsamo.
Quando ouviu gritos lá fora, ficou furiosa. Não podia ter meia hora de sossego?
Correu tanto quanto pôde para o quintal, pronta a gritar com quem quer que estivesse a
fazer aquele barulho.
O que viu era tão terrível que se esqueceu da sua fúria, da dor nas costas, do
tormento nos pés, tudo exceto o medo. Viu soldados no quintal de Daniel, polícias e um
oficial montado num cavalo rodopiante, com o sabre desembainhado na mão. Os
soldados formavam um tripé com três troncos. Coxeou até chegar junto de Kathleen,
que chorava à entrada da porta.
- Aqui está mais uma delas - disse um dos soldados. - Olhem para ela. Estas
miseráveis irlandesas parem como coelhas. Em vez disso, por que não aprendem a
usar sapatos?
- Na cama não são precisos sapatos - disse outro -, ou atrás de uma sebe. - O
oficial inglês riu. Os polícias olharam para o chão.
- Você aí! - Scarlett chamou em voz alta. - Você aí no cavalo. Que faz você e
essas criaturas vulgares nesta quinta?
- Está falando comigo, menina? - O oficial olhou para baixo.
Ela ergueu o queixo e fitou-o com os seus olhos verdes e frios.
- Não sou uma menina, senhor, e o senhor não é um cavalheiro, mesmo que
pretenda ser oficial.
Ele ficou de boca aberta. Quase não se via o nariz comprido. "Acho que é porque
os peixes não têm nariz, e parece mais um peixe em terra." A alegria quente do
combate enchia-a de energia.
- Mas você não é irlandesa - disse o oficial. - Será essa americana de que falam?
- O que eu sou não lhe diz respeito. O que você veio fazer aqui me diz respeito.
Explique-se.
O oficial lembrou-se de quem era. A sua boca fechou-se e as costas endireitaram-
se. Scarlett notou que os soldados estavam todos empertigados, fixando o olhar,
primeiro nela, depois no seu oficial. Os polícias olhavam pelo canto dos olhos. -
Executo uma ordem do Governo de Sua Majestade para expulsar as pessoas
residentes nesta quinta, por não pagamento de rendas. - Sacudiu no ar um rolo de
papel.
Tinha o coração na garganta. Levantou o queixo ainda mais alto. Atrás dos
soldados, podia ver Daniel e os filhos correndo, vindos do campo, com forcados e
cacetes, prontos para lutar.
- Decerto deve haver um engano - disse Scarlett. - Que quantia não foi paga? -
"Apressa-te", pensou ela, "pelo amor de Deus, apressa-te, seu parvalhão de nariz
comprido. Se qualquer dos homens O'Hara, ou todos eles, atingir um soldado, será
enviado para a prisão, ou até pior."
Tudo pareceu acalmar-se. O oficial levou uma eternidade desdobrando o
documento. Daniel e Seamus e Thomas e Patrick e Timothy moviam-se como se
estivessem debaixo de água. Scarlett desabotoou a camisa. Os seus dedos pareciam
salsichas, os botões pedaços de sebo incontroláveis.
- Trinta e uma libras, oito xelins e novepence - disse o oficial. Parecia a Scarlett
que ele estava levando uma hora para dizer cada palavra. A seguir ouviu a gritaria
vinda do campo, viu os enormes homens O'Hara correndo, sacudindo os punhos e as
armas. Em pânico, puxou pelo fio à volta do pescoço, trazendo à superfície uma bolsa
de dinheiro, que abriu.
Os seus dedos sentiram as moedas, as notas dobradas, e rezou uma oração de
graças. Trazia consigo os salários de todos os trabalhadores de Ballyhara. Mais de
cinquenta libras. Agora estava tão fria e calma como um sorvete a derreter-se.
Passou o fio de bolsa por cima da cabeça e sacudiu-a com a mão.
- Vou lhe dar um bônus pelo seu incômodo, seu malcriado grosseirão - disse ela.
O seu braço estava firme e a sua pontaria certeira. A bolsa bateu na boca do oficial. As
moedas espalharam-se pelo peito do oficial e foram parar no chão. - Limpe a porcaria
que fez - disse Scarlett -, e leve consigo esse lixo que o acompanha!
Voltou as costas aos soldados.
- Pelo amor de Deus, Kathleen - murmurou -, vai até os campos e manda parar os
nossos homens, antes que haja uma verdadeira confusão.
Mais tarde, Scarlett confrontou o velho Daniel. Estava lívida. E se ela não tivesse
trazido o tabaco? E se o tabaco não tivesse chegado hoje? Com olhos brilhantes, fitou
o tio, explodindo.
- Por que não me disse que precisava de dinheiro? Teria tido muito gosto em lhe
dar.
- Os O'Hara não aceitam caridade - respondeu Daniel.
- Caridade? Não é caridade, quando se trata da própria família, tio Daniel.
Daniel olhou-a com olhos velhos, muito velhos.
- O que não é ganho com as próprias mãos, é caridade - disse ele. - Já ouvimos a
tua história, jovem Scarlett O'Hara. Quando o meu irmão Gerald perdeu o juízo, por
que não chamaste os seus irmãos em Savannah? Se todos eles são família...
Os lábios de Scarlett tremeram. Ele tinha razão. Ela não pedira nem aceitara
ajuda de ninguém. Teve que suportar a perda sozinha. O seu orgulho não lhe permitira
ceder ao desespero nem à fraqueza.
- E durante a escassez de víveres? - perguntou ela. - O papá teria mandado tudo
o que tinha. O tio James e o tio Andrew também fariam o mesmo.
- Nós nos enganamos. Pensamos que a crise passasse depressa. Quando demos
conta da sua dimensão, já era muito tarde.
Scarlett olhou para os ombros magros e eretos do seu tio, para a orgulhosa
inclinação da sua cabeça. E compreendeu. Ela teria feito o mesmo. Também
compreendeu por que errara ao oferecer Ballyhara como substituto da terra que ele
tinha cultivado toda a vida. Todo o seu trabalho e o dos seus filhos, dos seus irmãos,
do seu pai, do pai do seu pai, teria sido inútil.
- Robert aumentou a renda, não aumentou? Foi porque fiz aquele comentário
gosador sobre as suas luvas? Quis vingar-se de mim através do senhor.
- Robert é um homem ganancioso. Nada diz que a sua atitude tenha a ver
contigo.
- Permite-me que o ajude? Seria uma honra.
Scarlett pôde ver aprovação nos olhos do velho Daniel. Depois, com um lampejo
de humor, disse:
- Há o filho de Patrick, Michael. Ele trabalha nos estábulos na Casa Grande.
Possui idéias importantes sobre a criação de cavalos. Poderia aprender na Curragh, se
tivesse dinheiro Para isso.
- Obrigada - disse Scarlett, formalmente.
- Alguém quer jantar ou atiro a comida aos porcos? - perguntou Kathleen,
fingindo-se zangada.
- Tenho tanta fome que quero chorar - disse Scarlett. - Sou uma péssima
cozinheira, como devem saber. - "Sinto-me feliz", pensou ela. "Estou dolorida da
cabeça aos pés, mas sinto-me feliz. Se o bebê que trago comigo não tiver orgulho em
ser um O'Hara, eu lhe torcerei o pescoço."
- Vai precisar de uma cozinheira - disse Mrs. Fitzpatrick. - Eu não cozinho bem.
- Eu também não - disse Scarlett. Mrs. Fitzpatrick fitou-a. - Eu também não
cozinho bem - repetiu Scarlett. Pensou que não iria gostar desta mulher, o que quer
que Colum dissesse. "Logo de princípio, quando lhe perguntei como se chamava,
respondeu Mrs. Fitzpatrick. Claro que ela sabia que eu lhe estava a perguntar pelo seu
primeiro nome. Mas o que é certo é que nunca tive uma criada de raça branca.
Kathleen, como camareira, não conta, ou mesmo Bridie. São minhas primas. Estou
contente por Mrs. Fitzpatrick não ser minha parente."
Mrs. Fitzpatrick era uma mulher alta, pelo menos meia cabeça mais alta que
Scarlett. Não era magra, mas não havia nenhuma gordura no seu corpo. A pele era
impecável, como a pele da maioria das irlandesas, resultado da constante humidade do
ar. Tinha o aspecto de creme espesso. A cor das faces era dramática, uma mancha de
rosa-forte em vez de um rosado total. O nariz era grosso, nariz de camponesa, mas
com o osso saliente, e os lábios eram um talho estreito e largo. Vestia um severo
vestido cinzento, com gola e punhos de linho branco. As suas mãos fortes e capazes
estavam cruzadas no colo. Scarlett sentiu vontade de esconder as suas ásperas mãos.
As de Mrs. Fitzpatrick eram macias, com unhas curtas e cutículas em forma de meia-
lua.
A sua voz irlandesa era temperada de um sotaque inglês. Continuava macia, mas
perdera o tom musical das consoantes não pronunciadas. "Já sei o que ela é", pensou
Scarlett, "é do gênero profissional." Este pensamento a fez sentir-se melhor. Sabia
como lidar com uma profissional, quer gostasse dela ou não.
- Estou certa de que os meus serviços lhe serão úteis, Mrs. O'Hara - disse Mrs.
Fitzpatrick, e não havia dúvida de que Mrs. Fitzpatrick estava segura de tudo o que
fazia e dizia. Scarlett sentiu-se irritada. Estaria esta mulher a desafiando? Tencionaria
governar tudo?
Mrs. Fitzpatrick continuava falando:
- Gostaria de exprimir o prazer que tenho em a conhecer e em trabalhar para ti.
Será uma honra para mim ser governanta dos O'Hara.
Que quereria ela dizer? Franziu as sobrancelhas escuras.
- Sabia que todo mundo não fala de outra coisa? - A boca fina de Mrs. Fitzpatrick
abriu-se num sorriso radioso. - Nenhuma mulher antes foi, e talvez nunca venha a ser,
chamada de a O'Hara, chefe da família O'Hara, da sua linhagem e ramificações. No
tempo dos Reis Supremos, cada família tinha o seu líder, representante ou campeão.
Algum antepassado seu foi o O'Hara, que personificava todo o valor e orgulho de todos
os outros O'Haras. Presentemente, a designação renasceu em ti.
- Não compreendo. Que devo fazer?
- Já o fez. É respeitada e admirada, digna de confiança e de honrarias. O título foi
concedido, não herdado. Só tem que ser o que é. A senhora é a O'Hara.
- Acho que vou tomar uma xícara de chá - disse Scarlett, em voz fraca. Não sabia
do que Mrs. Fitzpatrick falava.
Estaria gracejando? Gosando? Não, via-se logo que esta mulher não era para
graças. Que quereria dizer "a O'Hara"? Mentalmente, Scarlett repetiu as palavras. A
O'Hara. Era como o toque do tambor. Algo dentro dela, profundo, escondido, enterrado
e primitivo inflamou-se. A O'Hara. Uma luz acendeu-se nos seus pálidos e cansados
olhos, lançando um brilho de fogo verde-esmeralda. A O'Hara.
"Pensarei nisso amanhã... e em todos os dias da minha vida. Oh, sinto-me tão
diferente, tão forte... Seja apenas o que és..." disse ela para consigo. "Que significa a
O'Hara?"
- O seu chá, Mrs. O'Hara.
- Obrigada, Mrs. Fitzpatrick. - De repente, a intimidante autoconfiança daquela
mulher mais velha tornou-se admirável, não exasperante. Scarlett pegou a xícara e
fitou, diretamente, os olhos da outra mulher. - Por favor, tome uma xícara de chá
comigo - pediu ela. - Precisamos falar sobre uma cozinheira e outras coisas. Só
dispomos de seis semanas e temos muita coisa para fazer.
Scarlett nunca estivera na Casa Grande. Mrs. Fitzpatrick dissimulou o seu
espanto e a sua própria curiosidade sobre a casa. Já fora governanta de uma família
proeminente, numa casa muito grande, mas não se comparava em magnificência à
Casa Grande. Ajudou Scarlett a dar a volta à enorme chave de latão na grande
fechadura enferrujada, empurrando a porta com o peso do seu corpo.
- Míldio - disse ela, quando o cheiro as atacou. - Vamos precisar de um exército
de mulheres com baldes e escovas. Vamos primeiro dar uma olhadela na cozinha.
Nenhuma cozinheira que se preze concordará em trabalhar numa casa que não possua
uma cozinha de primeira classe. Esta parte da casa poderá ser tratada mais tarde.
Ignore o papel caído das paredes e os excrementos de animais espalhados pelo chão.
A cozinheira nem sequer olhará para estas salas.
Colunatas em arco ligavam duas alas ao bloco principal da casa. Seguiram
primeiro pela ala oriental e foram dar numa grande sala angular. Portas abriram-se
para corredores interiores que conduziam a outras salas e a uma escadaria que dava
para mais salas.
- Vamos instalar o seu administrador aqui - disse Mrs. Fitzpatrick, quando
regressaram à grande sala angular. - Os outros quartos servirão para os criados e para
as despensas. Os administradores não habitam a Casa Grande. A senhora terá que lhe
arranjar uma habitação na cidade, uma casa grande, digna da sua posição de
administrador da propriedade. Não há dúvida de que esta sala servirá para o escritório
da propriedade.
Scarlett não respondeu de imediato. Mentalmente, estava vendo outro escritório e
a ala de uma outra Casa Grande. Essa ala era utilizada pelos "Hóspedes Solteiros" em
Dunmore Landing, conforme Rhett determinara. Ora bem, ela não tencionava ter uma
dúzia de quartos para hóspedes solteiros ou para qualquer outra espécie de hóspedes.
Mas um escritório igual ao de Rhett poderia, de fato, agradá-la. Encomendaria uma
grande escrivaninha ao carpinteiro, duas vezes maior que a de Rhett, e penduraria o
mapa da propriedade na parede e olharia através das janelas, tal como ele costumava
fazer. Mas ela veria as pedras de Ballyhara, de contorno nítido, não um montão de
tijolos queimados, e teria campos de trigo, não uma paisagem de flores campestres.
- Sem desrespeito, Mrs. Fitzpatrick, a senhora não sabe o que está dizendo.
Trata-se de uma ocupação a integral. Não apenas para gerir os armazéns e os
fornecimentos, mas também para ouvir reclamações e resolver disputas entre os
trabalhadores e agricultores e as pessoas da cidade. Eu mesma farei isso.
Colocaremos bancos no hall da entrada para as pessoas se sentarem e ouvirei os seus
problemas, no primeiro domingo de cada mês, depois da missa. - O queixo firme de
Scarlett fez ver à governanta que não valia a pena argumentar. - E mais, Mrs.
Fitzpatrick... não quero escarradeiras, compreendeu?
Mrs. Fitzpatrick aquiesceu, mesmo que nunca tivesse ouvido aquela palavra
antes. Na Irlanda, o tabaco era fumado por um cachimbo e não mascado.
- Ora bem - disse Scarlett. - Agora vamos procurar essa cozinha que tanto a
preocupa. Deve estar situada na outra ala.
- Sente-se com forças para caminhar até lá? - perguntou Mrs. Fitzpatrick.
- Tem que ser feito - disse Scarlett. Andar era uma tortura para os seus pés e
costas, mas não havia outro remédio senão fazê-lo. Estava espantada com o estado da
casa. Como poderia ser reparada e limpa em seis semanas? "Terá que ser, e é tudo. O
bebê deverá nascer na Casa Grande."
- Magnífica - foi o comentário de Mrs. Fitzpatrick, ao entrar na cozinha. A divisão
era cavernosa e da altura de dois pisos, com clarabóias partidas no teto. Scarlett tinha
a certeza de nunca ter estado num salão de baile com metade daquele tamanho. Uma
imponente chaminé de pedra cobria quase toda a parede ao fundo da cozinha. Portas
em ambos os lados da mesma conduziam a um balcão em pedra para a lavagem da
louça, com escoadouro, no lado norte, e um quarto vazio, no lado sul.
- A cozinheira poderá dormir aqui, e aquilo ali - Mrs. Fitzpatrick apontou para cima
- é o mais inteligente sistema que jamais vi. - Havia uma galeria com corrimão ao longo
do comprimento da parede da cozinha, ao nível do segundo piso.
- Os quartos por cima do da cozinheira e do balcão lava-louças serão meus. As
criadas e a cozinheira nunca saberão quando as estarei vigiando. Isso as manterá
alerta. A galeria deve conduzir ao segundo andar da casa. A senhora também poderá
vir, para ver o que se passa na cozinha. Verá que o trabalho nunca sofrerá
interrupções.
- Por que é que não poderei entrar na cozinha para ver o que se passa?
- Porque as criadas interromperiam o trabalho para lhe fazer reverências,
aguardando ordens, enquanto a comida se queimaria no fogão.
- A senhora refere-se constantemente a "ela" e às "criadas", Mrs. Fitzpatrick, mas
onde está a cozinheira? Pensei que já tivesse arranjado uma.
Mrs. Fitzpatrick fez um gesto com a mão, abrangendo o chão, as paredes e as
janelas.
- Uma mulher só não poderá tomar conta disto tudo. Nenhuma mulher
competente o tentaria fazer. Gostaria de ver os armazéns e a lavandaria, que estão
provavelmente na cave. Quer descer comigo?
- Não. Vou sentar-me lá fora, longe do cheiro. - Descobriu uma porta, que ia dar a
um jardim murado, coberto de vegetação. Scarlett regressou à cozinha. Uma segunda
porta dava para a colunata. Deslizou para o chão pavimentado e encostou-se a uma
coluna. Sentia uma enorme fadiga. Não imaginara que a casa precisasse de tanto
trabalho. Do lado de fora, parecia quase intacta.
O bebê esperneou, e ela, distraidamente, empurrou o pé ou fosse o que fosse
para dentro.
- Eia, pequenino - murmurou -, que achas disto? Chamam à tua mãe "a O'Hara".
Espero que estejas impressionado. Eu estou. - Scarlett fechou os olhos.
Mrs. Fitzpatrick veio encotrá-la ela, sacudindo teias de aranha da roupa.
- Servirão - disse, sucintamente. - Agora do que ambas precisamos é de uma boa
refeição. Vamos até o bar do Kennedy.
- Ao bar? As senhoras não entram nos bares desacompanhadas.
Mrs. Fitzpatrick sorriu.
- O bar é seu, Mrs. O'Hara. Poderá lá entrar as vezes que quiser. A senhora é a
O'Hara.
Mentalmente, Scarlett reconsiderou. Isto não era Charleston ou Atlanta. Por que
não iria ao bar? Não tinha ela própria pregado metade das tábuas do assoalho? E não
diziam todos que Mrs. Kennedy, mulher do taberneiro, fazia uma massa para as suas
empadas de carne que se derretia na boca?
O tempo tornou-se chuvoso, não as chuvadas breves ou os dias nublados a que
Scarlett se habituara, mas autênticas torrentes de água que, às vezes, duravam três a
quatro horas. Os agricultores queixavam-se de que o solo se tornava compacto,
quando caminhavam pelos campos roçados, a fim de espalharem o estrume que
Scarlett comprara. Mas Scarlett, forçando-se diariamente a caminhar, a fim de verificar
o progresso dos trabalhos na Casa Grande, abençoava a lama no carreiro sem
pedregulhos, a qual lhe almofadava os pés inchados. Pôs completamente de lado as
botas e mantinha um balde de água à porta de casa para, no regresso, refrescar os
pés. Colum riu quando a viu fazer isso.
- A irlandesa que existe em ti está cada dia mais forte, querida Scarlett.
Aprendeste isso com Kathleen?
- Com os primos, quando eles regressavam dos campos.
Lavavam sempre a terra dos pés. Sempre pensei que o faziam para que Kathleen
não se zangasse, se eles lhe sujassem o assoalho.
- Nada disso. Faziam-no porque todos os homens irlandeses, e mulheres
também, o fazem desde que os bisavós de todos nós se lembram. Gritas seachain
antes de jogares a água fora?
- Não sejas bobo, claro que não. Também não coloco uma taça de leite à porta de
casa, todas as noites. Não acredito em matar a sede das fadas ou em dar-lhes o jantar.
Isso não passa de superstição infantil.
- Assim o dizes. Mas um dia destes um pooka vai te pegar, devido à tua
insolência. - Olhou nervosamente para debaixo da cama e da almofada.
Scarlett não pôde deixar de rir.
- Está bem, engulo essa, Colum. Mas que é um pooka? Primo em segundo grau
de um duende, suponho.
- Os duendes tremeriam a essa sugestão. Um pooka é uma criatura medonha,
maldosa e traiçoeira. Ele consegue azedar a tua nata num instante ou emaranhar-te o
cabelo na tua própria escova.
- Ou fazer inchar os meus tornozelos, suponho. Não pode haver maldade pior.
- Pobre cordeiro. Quanto tempo ainda te falta?
- Cerca de três semanas. Já pedi a Mrs. Fitzpatrick para mandar limpar um quarto
para mim e encomendar uma cama.
- Acha que ela é útil, Scarlett?
Admitiu que sim. Mrs. Fitzpatrick não estava tão orgulhosa da sua posição que se
importasse, ela própria, de trabalhar duramente. Scarlett vira-a muitas vezes esfregar o
chão de pedra e os escoadouros da cozinha, a fim de mostrar às criadas como se
fazia.
- Mas, Colum, ela tem gasto dinheiro como se este não tivesse fim. Já lá tenho
três criadas só para preparar as coisas de modo a que a cozinheira esteja disposta a
vir trabalhar. E um fogão como eu nunca vi antes, toda a espécie de fogareiros e fornos
e um reservatório para água quente. Custou tudo quase cem libras e mais dez para o
transporte no trem. Depois de tudo isto, ainda o ferreiro teve de fazer toda a espécie de
suportes e espetos e ganchos para a lareira, para o caso de a cozinheira não gostar
dos fornos do fogão para certas comidas. As cozinheiras parecem ser mais
paparicadas que a rainha.
- E são mais úteis, também. Vais gostar de te sentar à mesa na tua sala de jantar
e comer uma boa refeição.
- Assim o dizes. A mim bastam-me as empadas de carne de Mrs. Kennedy. A
noite passada comi três. Uma para mim e duas para este elefante dentro de mim. Oh,
não vejo a hora de isto terminar... Colum? - Ele estava distraído, e Scarlett não se
sentia tão à vontade com ele como costumava, mas, de qualquer modo, precisava lhe
perguntar uma coisa. - Já ouviste falar do "assunto O'Hara"?
Ouvira e tinha orgulho dela e achava que ela merecia.
- És uma mulher notável, Scarlett O'Hara. Ninguém que te conheça pensa o
contrário. Tens aguentado o que nenhuma outra mulher aguentaria... ou homem. E
nunca te lamentaste num pedido de ajuda. - Sorriu, malicioso. - O que fizeste foi quase
um milagre, também, fazendo que todos estes irlandeses trabalhem da maneira como
trabalham. E cuspir nos olhos do oficial inglês... ora bem, dizem que lhe tiraste um olho,
a cem passos de distância.
- Isso não é verdade!
- E por que seria uma história tão extraordinária estragada com a verdade? Foi o
próprio velho Daniel que te chamou a O'Hara, e ele estava lá.
- O velho Daniel? - Scarlett corou de prazer.
- Um destes dias vais trocar histórias com o fantasma de Finn MacCool, segundo
se diz. Toda esta parte do país está mais rica por tua causa. - O tom de voz de Colum
endureceu. - Há uma coisa, porém, de que te quero prevenir, Scarlett. Não faças pouco
das crenças do povo; se considerarão insultados.
- Nunca fiz isso! Vou à missa todos os domingos, mesmo que o padre Flynn
pareça estar dormindo.
- Não falo da Igreja. Refiro-me às fadas e aos pookas e a todo o resto. Uma das
muitas coisas que te gabam é a de teres regressado à terra dos O'Haras, quando todos
sabem que está assombrada pelo fantasma do jovem fidalgo.
- Não podes estar a falar a sério.
- Posso e estou. Não importa que acredites ou não. O povo irlandês acredita. Se
troçares do que eles acreditam, estarás cuspindo nos seus olhos.
Scarlett compreendeu, por muito estúpido que lhe parecesse.
- Prometo calar-me e não rir, a não ser de ti, mas não vou gritar cada vez que
esvaziar o meu balde de água.
- Não terás que o fazer. Todos dizem que és tão respeitadora que murmuras em
vez de gritar.
Scarlett riu tanto que incomodou o bebê, que começou a espernear com força.
- Vê o que fizeste, Colum. A minha barriga está num alvoroço. Mas valeu a pena.
Já não rio assim desde que foste embora. Fica comigo uns tempos, está bem?
- Vou fazer isso. Quero ser o primeiro a ver essa tua criança elefante. Espero que
me faças seu padrinho.
- Queres ser? Conto contigo, pois, para o batizar ou para os batizar.
O sorriso de Colum desapareceu.
- Não posso fazer isso, querida Scarlett. Podes pedir-me tudo, até que traga a
Lua, mas já não exerço os sacramentos.
- Mas por que não? É a tua função.
- Não, Scarlett, essa é a função do padre da paróquia ou, em ocasiões especiais,
do bispo ou do arcebispo. Eu sou um padre missionário que trabalha para aliviar o
sofrimento dos pobres. Não exerço os sacramentos.
- Podias abrir uma exceção.
- Não o posso fazer, e ponto final no assunto. Mas serei o melhor dos padrinhos,
se me pedires, e farei tudo para impedir que o padre Flynn deixe cair o bebê na pia
baptismal ou no chão, e lhe ensinarei o catecismo com tanta eloquência que ele irá
pensar que está a aprender versos de cinco linhas, em vez de catecismo. Por favor,
Scarlett querida, pede-me para ser o padrinho do teu bebê, caso contrário morrerei de
desgosto.
- Claro que te pedirei.
- Então, já consegui o que queria. Agora posso ir pedir uma refeição numa casa
onde usem sal.
- Vai, então. Vou descansar até a chuva parar, depois vou visitar a avó e
Kathleen, enquanto posso. O rio Boyne já subiu muito para que se possa atravessá-lo.
- Mais uma promessa, e depois deixarei de te importunar. No sábado à noite não
saias de casa, fecha bem as portas e as cortinas. É a véspera de Todos os Santos, e
os irlandeses crêem que as fadas de todos os tempos, desde que o mundo começou,
aparecerão. E bem assim os gnomos e fantasmas e espíritos, com as cabeças sob os
braços, e toda a espécie de coisas sobrenaturais. Segue os costumes e fecha-te bem,
para que não os vejas. Nada de empadas de Mrs. Kennedy. Cozinhe alguns ovos. Ou,
se te sentires mesmo irlandesa, bebe uísque com cerveja ao jantar.
- Não admira que vejam fantasmas! Mas farei como dizes. Por que não vens aqui
passar a noite?
- E ficar dentro de casa toda a noite com uma moça sedutora como tu? Me
cortariam o pescoço.
Scarlett mostrou-lhe a língua. "Imaginem só, sedutora. Como um elefante, talvez."

O cabriolê oscilou alarmantemente quando atravessou o baixio do rio, e Scarlett


prometeu a si própria não demorar muito na casa de Daniel. A avó estava sonolenta,
de modo que Scarlett resolveu não se sentar.
Só parei por um momento, avó, não quero perturbar a sua soneca.
- Então, vem dar-me um beijo de despedida, jovem Katie Scarlett. Não há dúvida
de que és uma linda moça. - Scarlett abraçou com gentileza o rijo e pequenino corpo,
beijando com firmeza a velha face. Quase de imediato, o queixo da avó descaiu sobre
o peito.
- Kathleen, não posso demorar, o rio está subindo muito. Quando tiver baixado,
duvido de que esteja em condições de subir no cabriolê. Já alguma vez viste uma
barriga tão grande?
- Sim, já, mas não vais querer ouvir-me falar sobre o assunto. Os bebês são todos
únicos aos olhos das suas mães. Tens tempo para um biscoito e para uma xícara de
chá?
- Não devia, mas arranjarei tempo. Posso sentar-me na cadeira de Daniel? É a
maior de todas.
- Com todo o prazer. Daniel nunca foi tão amigo de nenhuma de nós como é teu.
"A O'Hara", pensou Scarlett. Deu-lhe mais prazer ouvir aquilo que o chá e o cheiro
do fumo da lareira.
- Tens tempo de ir ver a avó, Scarlett? - Kathleen pôs o chá e o bolo num banco,
ao lado da cadeira de Daniel.
- Já fui vê-la. Está dormindo neste momento.
- Ainda bem. Seria uma pena se ela não se despedisse de ti. Já tirou a mortalha
da caixa onde guarda os seus tesouros. Não tarda a morrer.
Scarlett fitou a cara serena de Kathleen. Como podia ela dizer uma coisa
daquelas, no mesmo tom de voz com que falaria do tempo ou de outra coisa qualquer?
E depois beber chá e comer bolo com toda a calma!?
- Espero que deixe de chover por uns dias, antes que isso aconteça - continuou
Kathleen. - As estradas estão tão enlameadas que as pessoas teriam dificuldade em vir
ao velório. Mas temos de aceitar o que for. - Notou o horror de Scarlett, mas
interpretou-o mal.
- Todos vamos sentir a falta dela, Scarlett, mas ela está preparada para partir, e
todos aqueles que viveram tanto quanto ela têm uma maneira de saber quando é
chegada a sua hora. Deixa-me encher-te a xícara, o que restou deve estar frio.
A xícara bateu no pires quando Scarlett a pousou.
- Infelizmente, não posso demorar mais, Kathleen, tenho que partir para ainda ter
tempo de atravessar o rio.
- Avisarás quando as dores começarem? Irei logo para junto de ti.
- Avisarei, sim, obrigada. Ajudas-me a subir no cabriolê?
- Levas um pedaço de bolo para comeres mais tarde? Embrulho-o num instante.
- Não, não, obrigada, estou preocupada com a água do rio.
"Estou mais preocupada em não endoidecer", pensou Scarlett, quando partiu.
Colum tinha razão, os irlandeses eram todos supersticiosos. Quem diria que Kathleen
também o era? "E a minha própria avó, com a mortalha já pronta. Só Deus sabe o que
farão no dia de Todos os Santos. Vou fechar a porta com pregos. Este assunto está me
causando arrepios." Ao atravessar o baixio do rio, o pônei perdeu o pé durante um
momento assustador.
- Tenho que encarar a realidade, acabaram-se as viagens até o bebê nascer.
Estou arrependida de ter recusado o bolo.

Na Casa Grande, as três camponesas permaneciam de pé, à porta do quarto de


cama que Scarlett escolhera para si. Todas usavam grandes aventais, cujo tecido fora
fiado em casa, e toucas com folhos largos na cabeça, mas era tudo o que nelas era
igual. Annie Doyle era pequena e redonda como um cachorrinho, Mary Moran, alta e
desengonçada como um espantalho, Peggy Quinn, jeitosa e bonita como uma boneca
cara. Estavam de mãos dadas e muito juntas.
- Vamos embora agora, Mrs. Fitzpatrick, se não se importa, antes que comece a
chover - disse Peggy. As outras moças concordaram com energia.
- Muito bem - respondeu Mrs. Fitzpatrick -, mas na segunda-feira venham mais
cedo, para compensar o tempo.
- Com certeza, senhora - disseram em coro, fazendo reverências desajeitadas. Ao
descerem as escadas, os seus sapatos fizeram uma balbúrdia dos diabos.
- Às vezes, chego a me desesperar - suspirou Mrs. Fitzpatrick -, mas já fiz boas
criadas de um material pior que este. Pelo menos, parecem dispostas a aprender.
Mesmo a chuva não as teria preocupado se não fosse dia de Todos os Santos. -
Lançou um olhar ao relógio de ouro preso ao peito com um alfinete. - Passa um pouco
das duas... Retomemos o trabalho onde o deixamos. Receio que toda esta humidade
impeça que terminemos, Mrs. O'Hara. Gostaria que não fosse assim, mas não vou
mentir. Já arrancamos todo o papel velho das paredes e já esfregamos tudo. Mas
algumas partes precisam de estuque e isso significa paredes secas. Depois, tempo
para o estuque secar antes de a parede ser pintada ou o papel colado. Duas semanas
não vão chegar.
O queixo de Scarlett endureceu.
- Vou ter a criança nesta casa, Mrs. Fitzpatrick. Desde o princípio que lhe disse
isso.
A sua ira desvaneceu-se perante a polidez de Mrs. Fitz-patrick.
- Tenho uma idéia - disse a governanta.
- Desde que não seja eu ir para qualquer outro lugar.
- Pelo contrário. Tenho fé que com um bom fogo na lareira e umas cortinas
espessas e alegres nas janelas, as paredes nuas não terão qualquer importância.
Scarlett olhou com ar sombrio para o estuque cinzento, partido e manchado de
água.
- Está horrível - disse.
- Um tapete e a mobília farão uma grande diferença. Tenho uma surpresa para ti.
Achamos no sótão. Venha ver. - Abriu a porta de um quarto ao lado.
Pesadamente, Scarlett encaminhou-se para a porta, depois desatou a rir.
- Santo Deus! Que é isso?
- Chama-se uma cama estatal. Não é espantosa? - Riu juntamente com Scarlett,
enquanto olhavam para o objeto fenomenal ao centro do quarto. Era imensa, com pelo
menos dez pés de comprimento e oito de largura. Quatro colunas de carvalho espesso
e escuro, esculpidas de modo a parecerem-se com deusas gregas, serviam de suporte
a um baldaquim com a parte superior esculpida em grinaldas de folhas de louro.
Tanto a madeira da cabeceira como a dos pés era esculpida em relevo, com
cenas de homens vestidos de togas, em posturas heróicas, por debaixo de videiras e
flores entrelaçadas. No topo arredondado da alta cabeceira havia uma coroa
trabalhada em camadas de folhas douradas.
- Que espécie de gigante pensas que dormiu aqui? - perguntou Scarlett.
- Foi provavelmente feita para a visita do vice-rei.
- Quem é esse?
- O chefe do Governo da Irlanda.
- Bem, temos de reconhecer que é bastante grande para este bebê gigante que
trago em mim. Se o doutor lá puder chegar, quando ele nascer.
- Então, acha que devo encomendar o colchão? Há um homem em Trim que o
poderá fazer em dois dias.
- Sim, encomende-o. Lençóis, também, ou então cosa uns aos outros. Santo
Deus, podia dormir durante uma semana nessa cama sem tocar no mesmo lugar duas
vezes.
- Com um dossel e cortinas sobre ela, se assemelhará a um quarto.
- Quarto? Casa, quer dizer. E tem razão, uma vez lá dentro, não verei as paredes
encardidas. A senhora é uma maravilha, Mrs. Fitzpatrick, há meses que não me sentia
tão bem. Já imaginou o que representa para um bebê vir ao mundo numa coisa como
aquela? Decerto crescerá até três metros de altura!
Riram em boa camaradagem enquanto desciam vagarosamente pela escadaria.
"Ou então fecho o segundo piso completamente. Estes quartos são tão grandes que só
num piso terei uma casa enorme. Se Mrs. Fitzpatrick e a cozinheira o permitirem, claro.
Por que não? Não vale a pena ser a O'Hara, se não puder fazer as coisas à minha
maneira." Scarlett afastou-se para o lado, permitindo que Mrs. Fitzpatrick abrisse a
pesada porta da frente.
- Viram uma pesada cortina de chuva.
- Bolas - exclamou Scarlett.
- Isto é uma torrente, não um aguaceiro - disse a governanta. A este ritmo, não
pode durar. Quer uma xícara de chá? A cozinha está quente e seca; deixei o fogão
aceso todo o dia para o experimentar.
- Talvez seja melhor. - Seguiu os passos, propositadamente vagarosos, de Mrs.
Fitzpatrick, em direção à cozinna.
- Tudo isto é novo - disse Scarlett, desconfiada. Não gostava que fizessem gastos
sem a sua aprovação. E as cadeiras estofadas perto do fogão pareciam confortáveis
demais para cozinheiras e criadas, que era suposto estarem trabalhando. - Quanto é
que isto custou? - perguntou, batendo na pesada mesa de madeira.
- Umas quantas barras de sabão. Estava na arrecadação, toda suja. As cadeiras
são da casa de Colum. Ele sugeriu que aliciássemos a cozinheira com todo o conforto,
antes que ela visse o resto da casa. Já fiz uma lista de mobília para o quarto dela. Está
ali sobre a mesa, para que a senhora aprove.
Scarlett sentiu-se culpada. A seguir suspeitou que deveria sentir-se culpada, e
ficou furiosa.
- E que se passa com todas as outras listas que aprovei na semana passada?
Quando é que as coisas chegam?
- A maioria delas já chegou e está na copa. Tencionava desencaixotá-las na
próxima semana, com a ajuda da cozinheira. A maioria delas tem o seu próprio sistema
de arrumar os utensílios e outras peças.
Scarlett ficou de novo furiosa. As costas doíam-lhe mais do que era habitual.
Colocou as mãos sobre a parte dolorida. Depois, uma nova dor atacou-a de lado ao
longo da perna, tornando insignificante a dor das costas. Agarrou-se à mesa para se
apoiar e olhou com estupefacção para o líquido que lhe corria pelas pernas abaixo, até
chegar aos pés nus, formando uma poça no limpo chão de pedra.
- As águas rebentaram - disse, por fim -, e a cor é vermelha. - Olhou através da
janela, para a forte chuvada que caía lá fora. - Desculpe, Mrs. Fitzpatrick, mas vai ficar
muito molhada. Coloque-me sobre a mesa e traga-me uma toalha para ensopar a
água... ou o sangue. Depois, siga imediatamente para o bar ou para a mercearia e
peça a alguém que vá a cavalo, com urgência, chamar o médico. A criança está
prestes a nascer.
A dor dilacerante não se repetiu. Com as almofadas de cadeira sob a cabeça e
atrás das costas, Scarlett sentia-se quase confortável. Queria beber qualquer coisa,
mas achou que era melhor não se levantar da mesa. Se a dor voltasse, podia cair e
machucar-se.
"Talvez não devesse ter mandado Mrs. Fitzpatrick assustar as pessoas daquele
modo. Só tive dores três vezes desde que ela partiu, e não foram muito fortes. Até me
sentiria bem, se não houvesse tanto sangue. A cada dor, e todas as vezes que o bebê
esperneia, o sangue brota em profusão. Isso nunca me aconteceu antes. Quanto às
águas, costumavam ser claras, não sanguíneas."
"Algo de errado se passa."
"Onde está o doutor? Mais uma semana e teria um mesmo à porta de casa.
Suponho que agora vai ser algum estranho, vindo de Trim. Como passa, doutor, nunca
o saberá mas não devia acontecer isto, eu ia ter o meu filho numa cama com uma
coroa dourada na cabeceira, não numa mesa encontrada na arrecadação. Que raio de
começo é este para uma criança? Terei de lhe pôr o nome de 'Potro' ou 'Saltador' ou
qualquer outra coisa cavalar."
"Lá está o sangue de novo. Não gosto nada disto. Por que é que Mrs. Fitzpatrick
não regressou ainda... pelo menos, poderia beber um copo de água, estou seca que
nem um osso. Pára de espernear, bebê, não tens de agir como um cavalo, lá porque
estamos numa mesa tosca. Pára com isso! Estás fazendo que eu sangre. Espera até o
doutor chegar, depois poderás sair. A verdade é que ficarei contente quando me vir
livre de ti."
"Não há dúvida de que foi mais fácil fazer-te que ter-te... Não, não vou pensar em
Rhett, enlouquecerei se o fizer."
"Por que não pára de chover? É mais uma inundação que outra coisa. O vento
também aumenta. É uma tempestade das sérias. Bela hora que fui escolher para ter a
criança, para as águas rebentarem... por que será que são vermelhas? Oh, meu Deus,
será que vou sangrar até a morte nesta mesa de tábuas, sem sequer uma xícara de
chá? Oh, como adoraria uma xícara de café. Às vezes, sinto tanto a falta de café, que
quero gritar... ou chorar... Oh, Céus, mais sangue. Pelo menos não dói. Nem sequer
uma contração, é mais um repelão ou coisa parecida... Então, por que sai tanto
sangue? Que acontecerá quando chegar o verdadeiro trabalho de parto? Santo Deus,
vai haver um rio de sangue espalhado pelo chão. Todos terão que lavar os pés. Será
que Mrs. Fitzpatrick tem um balde de água para os pés? Será que ela dá gritos quando
a joga fora? Onde diabo estará ela? Logo que isto passar, vou despedi-la, e não lhe
darei referências, pelo menos nada que ela queira mostrar a alguém. Fugir e deixar-me
aqui sozinha morrendo de sede."
"Não esperneies dessa maneira. Mais pareces uma mula que um cavalo. Oh,
Deus, o sangue... Não vou me descontrolar agora. Não vou. A O'Hara não faz isso. A
O'Hara. Gosto muito deste nome... Que foi aquilo? O doutor?"
Mrs. Fitzpatrick entrou.
- Como se sente, Mrs. O'Hara?
- Bem - respondeu Scarlett.
-Trouxe comigo lençóis e mantas e almofadas macias. Estão chegando alguns
homens com o colchão. Quer alguma coisa?
- Gostaria de beber água.
- Trago-a já.
Scarlett levantou o dorso, apoiando-se num cotovelo, e bebeu lentamente.
- Quem é que foi buscar o doutor?
- Colum. Tentou atravessar o rio em Adamstown, mas não conseguiu. Foi até
Trim.
- Calculei isso. Quero mais água, por favor, e uma toalha limpa. Esta já está
completamente ensopada.
Mrs. Fitzpatrick tentou dissimular o horror patenteado na sua cara, quando viu a
toalha ensopada de sangue, entre as pernas de Scarlett. Retirou-a e levou-a correndo
para um dos lavatórios de pedra. Scarlett olhou para a pista de pingos vermelhos
caídos no chão. "Aquilo faz parte de mim", disse para consigo, mas não podia
acreditar. Em criança, fizera muitos cortes brincando, quando apanhava algodão em
Tara, até quando arrancava urtigas da terra. Todo junto, o sangue então derramado
não era tanto como o que estava na toalha.
O seu ventre contraiu-se e o sangue jorrou sobre a mesa.
"Estúpida mulher, disse-lhe que precisava de outra toalha."
- Que horas são no seu relógio. Mrs. Fitzpatrick?
- Cinco e dezesseis minutos.
- Suponho que a tempestade esteja dificultando a viagem.
- Queria mais água e outra toalha, por favor. Não, pensando melhor, gostaria de
beber chá com muito açúcar, - "Dar à mulher alguma coisa para fazer e talvez ela deixe
de se debruçar sobre mim como um guarda-chuva. Estou farta de fazer conversa fiada
e de me mostrar forte. Falando sério, estou apavorada e receio saber a verdade. Não
estou conseguindo nada. Pelo menos, o colchão é melhor que a mesa, mas que vai
acontecer quando ele também ficar ensopado? A tempestade está piorando ou é
apenas imaginação minha?"
A chuva batia agora nas janelas, impelida por um vento forte. Colum O'Hara foi
quase derrubado por um tronco arrancado de uma árvore, no bosque perto de casa.
Passou por cima dele e continuou o seu caminho inclinado contra o vento. Depois,
lembrou-se, deu uma volta, apanhou com um galho no rosto, lutou por firmar os pés na
lama pantanosa do carreiro, afastou o galho para o lado, lutou contra o vento e foi em
direção à casa.
- Que horas são? - perguntou Scarlett.
- Quase sete.
- Uma toalha, por favor.

- Querida Scarlett, sentes-te mal?


- Oh, Colum! - Scarlett esforçou-se por se sentar. -
- Trouxeste o doutor contigo? O bebê não esperneia tanto quanto antes.
- Descobri uma parteira em Dunshaughlin. Não há condições para se ir até Trim, o
rio já cobre a estrada. Deita-te, agora, como uma boa menina. Não te canses mais do
que deves.
- Onde é que ela está?
- A caminho. O meu cavalo é mais rápido, mas ela está perto. Já ajudou a vir ao
mundo centenas de bebês, estarás em boas mãos.
- Já tive outros filhos, Colum. Este é diferente. Há algo que não está correndo
nada bem.
- Ela saberá o que fazer, cordeiro. Tenta não te preocupares.
A parteira chegou pouco depois das oito. O seu uniforme engomado estava mole
com a humidade, mas os seus modos competentes eram tão seguros como se não
tivesse vindo numa emergência.
- Um bebê, não é verdade? Acalme-se, senhora, sei tudo o que há a saber sobre
a arte de trazer essas queridas criaturas a este vale de lágrimas. - Despiu a capa e
entregou-a a Colum. - Estenda-a ao pé da lareira, para que possa secar - disse numa
voz habituada a comandar. - Sabão e água morna para lavar as mãos. Isto aqui serve.
Caminhou com ar decidido para o lavatório de pedra. Quando viu as toalhas ensopadas
de sangue vacilou e gesticulou com desespero para chamar Mrs. Fitzpatrick. Tiveram
uma conversa em voz baixa.
O brilho que aparecera nos olhos de Scarlett desvaneceu-se. Baixou as pálpebras
para esconder lágrimas repentinas.
- Vejamos o que temos aqui - disse a parteira, com falsa vivacidade. Levantando
as saias de Scarlett, apalpou-lhe o ventre. - Um belo e forte bebê. Já me cumprimentou
com um pontapé. Vamos ver se o convidamos a vir aqui para fora, para dar um pouco
de descanso à sua mamãe. - Voltou-se para Colum. - É melhor que nos deixe
entregues ao nosso trabalho de mulheres. Eu o chamarei quando o seu filho tiver
nascido.
- Scarlett riu.
Colum despiu o seu sobretudo Balmacaan. O colarinho brilhou à luz da lamparina.
- Oh - exclamou a parteira. - Perdoe-me, padre.
- Por ter pecado - disse Scarlett, numa voz gritante.
- Scarlett - ralhou Colum, em voz baixa.
A parteira empurrou-o para perto do lavatório.
- É melhor ficar, padre - disse ela -, para os últimos ritos.
Falou alto de mais. Scarlett ouvira-a.
- Oh, meu Deus! - lamentou-se ela.
- Ajude-me - ordenou a parteira a Mrs. Fitzpatrick. - Vou lhe mostrar como lhe
deve segurar as pernas.
Scarlett gritou quando a mão da mulher lhe entrou no útero.
- Pare a dor, por Deus, faça que ela pare. - Quando o exame terminou, gemia de
dor. O sangue cobria o colchão e as suas coxas, estava espalhado pelo vestido de Mrs.
Fitzpatrick, pelo uniforme da parteira, no chão, dos dois lados da mesa. A parteira
arregaçou a manga do seu braço esquerdo. O braço direito estava vermelho até quase
o cotovelo.
- Vou ter que tentar com ambas as mãos - disse ela.
Scarlett gemeu. Mrs. Fitzpatrick saltou para a frente da mulher.
- Tenho seis filhos - disse ela. - Saia daqui. Colum, leva esta carniceira daqui
antes que ela mate Mrs. O'Hara ou eu a mate a ela. Que Deus me ajude, mas é isso
que vai acontecer.
O quarto foi iluminado de repente por um clarão que vinha de fora, através das
janelas, e uma torrente ainda mais forte de chuva bateu de encontro aos vidros.
- Não saio com esta tempestade - berrou a parteira. - Está completamente escuro.
- Põe-na no outro quarto, então, mas leva-a daqui. E quando ela se for embora,
Colum, vai buscar o ferreiro. Ele cuida dos animais; uma mulher não é muito diferente.
Colum pegou na bajuladora parteira pelo braço. Relâmpagos iluminaram o céu, e
ela gritou. Ele sacudiu-a como a um trapo.
- Acalme-se mulher. - Olhou para Mrs. Fitzpatrick com olhos embaciados e sem
esperança. - Ele não virá, Rosaleen, agora que está escuro, ninguém virá. Já te
esqueceste de que noite é esta?
Mrs. Fitzpatrick limpou as têmporas e as faces de Scarlett com um pano húmido.
- Se não o trouxeres, Colum, eu o farei. Tenho uma faca e uma pistola na
escrivaninha, na tua casa. Só é preciso que lhe mostres que há outras coisas a temer
além dos fantasmas.
Colum aquiesceu.
- Está bem, irei.
Joseph O'Neil, o ferreiro, fez o sinal da cruz. A sua cara brilhava de suor. O
cabelo preto estava colado à cabeça, por ter andado na chuva, mas o suor era recente.
- Já cuidei de uma égua, certa vez, mas a uma mulher não posso fazer tal
violência. - Olhou para Scarlett, sacudindo a cabeça. - É contra a natureza, não posso.
Havia algumas lamparinas ao longo das bordas de todos os lavatórios, e a luz dos
relâmpagos recortava o formato de umas e outras. A enorme cozinha estava mais clara
que o dia, à exceção os cantos escuros. A tempestade uivante lá fora parecia atacar as
grossas paredes da casa.
- Terá que o fazer, homem, senão ela morrerá.
- É o que lhe vai acontecer, e ao bebê também, se não estiver já morto há algum
tempo. Não sinto nenhum movimento.
- Não esperes então, Joseph. Pelo amor de Deus, homem, és a sua única
esperança. - Colum mantinha a voz firme, autoritária.
Febril, Scarlett mexeu-se no colchão ensanguentado. Rosaleen Fitzpatrick
passou-lhe uma esponja humidecida pelos lábios, espremendo algumas gotas entre
eles. As pálpebras de Scarlett estremeceram, depois abriram-se. Os olhos estavam
vidrados devido à febre. Gemia que fazia dó.
- Joseph! Ordeno-te que o faças.
O ferreiro estremeceu. Ergueu o grosso e musculoso braço sobre o ventre
redondo de Scarlett. A luz de um relâmpago fez brilhar a lâmina da faca que tinha na
mão.
- Quem está aí? - perguntou Scarlett, com nitidez.
- Que São Patrício me proteja! - gritou o ferreiro.
- Quem é essa linda senhora, Colum, de vestido branco?
Recuando, o ferreiro deixou cair a faca no chão. As suas mãos estavam
estendidas à sua frente, com as palmas voltadas para fora, tentando controlar o terror.
O vento redemoinhou, apanhou um galho e lançou-o de encontro à janela, que
estava por cima do lavatório, partindo um vidro. Fragmentos de vidro feriram os braços
de Joseph O'Neil, agora cruzados sobre a cabeça. Caiu ao chão, gritando, e através da
janela aberta o vento uivou por cima dele. Havia gritaria por todo o lado - fora, dentro,
acompanhada pelo vento uivante da tempestade e, para além desta, os gemidos que o
vento trazia.
As chamas das lamparinas saltaram e tremelicaram e algumas até se apagaram.
Silenciosamente, no meio daquela barulhada toda, a porta da cozinha abriu-se,
fechando-se de novo. Uma larga figura envolta num xale caminhou pela cozinha,
passando pelas pessoas aterrorizadas, até chegar à janela. Era uma mulher com uma
cara redonda e enrugada. Foi até o lavatório e torceu uma das toalhas, espremendo o
sangue.
- Que está fazendo? - perguntou Rosaleen Fitzpatrick, dominando o seu terror e
dirigindo-se à mulher. O braço estendido de Colum deteve-a. Ele reconhecera a
cailleach, a sábia mulher que vivia perto da torre. Uma sobre a outra, a sábia mulher
amontoou as toalhas ensopadas de sangue, até encher o buraco feito na janela.
Depois voltou-se.
- Acendam as lamparinas de novo - disse ela. A sua voz era rouca, como se
tivesse ferrugem na garganta.
Tirou o xadle preto, dobrou-o com cuidado e colocou-o numa cadeira. Por baixo,
trazia um xale castanho. Esse, também, foi retirado, dobrado e colocado na cadeira. A
seguir um azul-escuro com um buraco no ombro. E um vermelho com mais buracos
que lã.
- Não fizeste o que te pedi - disse, ralhando com Colum.
Depois, dirigiu-se ao ferreiro e deu-lhe um forte pontapé. - Estás atrapalhando,
ferreiro, volta para a tua forja. - Olhou de novo para Colum. Este acendeu uma
lamparina, foi à procura de outra, acendeu-a, até aparecer uma chama forte em cada
uma delas.
- Obrigada, padre - disse ela, delicadamente. - Manda O'Neil para casa, a
tempestade está passando. Depois, volta para segurar duas lamparinas bem alto, junto
da mesa. - Você aí - voltou-se para Mrs. Fitzpatrick -, faça o mesmo. Eu vou tratar da
O'Hara.
Um cordão à volta da sua cintura sustinha uma dúzia ou mais de bolsas feitas de
trapos de diversas cores. Pegou uma delas, de onde retirou um frasco com um líquido
escuro. Levantou a cabeça de Scarlett com a mão esquerda e, com a direita, derramou
o líquido para dentro da sua boca. Com a língua, Scarlett lambeu os lábios. A cailleach
cacarejou e pousou a cabeça de Scarlett na almofada.
A voz enferrujada começou a entoar uma melodia que não era uma melodia.
Dedos encardidos e torcidos tocaram o pescoço de Scarlett, depois a testa, depois
puxaram pelas pálpebras, levantando-as. A velha mulher tirou uma folha dobrada de
uma das suas bolsas e colocou-a sobre a barriga de Scarlett. Depois, extraiu uma lata
de rapé de outra bolsa e colocou-a ao lado da folha. Colum e Mrs. Fitzpatrick
permaneciam como estátuas, segurando as lamparinas, mas os seus olhos seguiam
todos os movimentos da velha.
A folha, desdobrada, continha um pó. A mulher espalhou-o sobre a barriga de
Scarlett. Depois, tirou uma pomada da lata de rapé e esfregou-a juntamente com o pó
na pele de Scarlett.
- Vou amarrá-la para que ela não se mexa - disse enquanto passava uma corda à
volta da cintura de Scarlett, dos joelhos e dos ombros, prendendo-os às robustas
pernas da mesa.
Os seus olhos pequenos e velhos fitaram primeiro Mrs. Fitzpatrick, depois Colum.
- Ela vai gritar, mas não sentirá dores. Vocês não devem se mexer. A luz é vital. -
Antes de eles poderem responder, retirou uma faca estreita, limpou-a com qualquer
coisa tirada de uma das bolsas e golpeou a barriga de Scarlett, de lado a lado. O grito
que esta deu parecia o de uma alma perdida.
Antes de o grito acabar, a cailleach, com as duas mãos, retirou o bebê coberto de
sangue. Cuspiu qualquer coisa que tinha na boca para o chão, depois soprou na boca
do bebê, uma, duas, três vezes. Os bracinhos do bebê estremeceram, depois as
pernas.
Baixinho, Colum rezou uma Ave Maria.
Com um movimento rápido, a mulher cortou o cordão umbilical, envolveu o bebê
em lençóis e voltou para junto de Scarlett.
- Aproximem mais as lamparinas - ordenou.
As mãos e os dedos moviam-se com rapidez, mostrando às vezes o lampejo da
faca, e bocados sangrentos de membrana caíram no chão, aos seus pés. Colocou mais
líquido escuro entre os lábios de Scarlett, depois um líquido sem cor para dentro da
horrível ferida da barriga. Murmúrios entrecortados acompanhavam todos os seus
movimentos rápidos e precisos, enquanto cosia os lábios da ferida.
- Embrulhem-na em lençóis de linho e depois em mantas de lã, enquanto lavo a
criança - disse ela. A faca cortou as cordas que prendiam Scarlett à cama.
Quando Colum e Mrs. Fitzpatrick acabaram, a mulher regressou com o bebê de
Scarlett envolto numa manta de lã branca e macia.
- A parteira esqueceu-se disto - disse a cailleach. A sua gargalhada provocou um
som rouco no bebê, como que em resposta, e a recém-nascida abriu os olhos. As íris
azuis pareciam-se com anéis matizados em redor das pupilas negras, desfocadas.
Tinha pestanas pretas compridas e duas linhas pequenas como sobrancelhas. Não
estava nem vermelha nem deformada, como a maioria dos recém-nascidos, pois não
tinha passado pelo canal do nascimento. O seu pequenino nariz e orelhas e boca e
cabeça pulsante eram perfeitos. A pele cor de azeitona era muito escura, em contraste
com a manta branca.

Scarlett lutava para ir de encontro às vozes e à luz que a sua mente acalmada por
sedativos percebia. Havia algo... algo importante... uma pergunta... Mãos firmes
pegaram-lhe na cabeça, dedos gentis afastaram-lhe os lábios, um líquido fresco e doce
inundou-lhe a língua, atravessou-lhe a garganta e ela adormeceu de novo.
Da segunda vez que lutou por recuperar a consciência, lembrou-se de qual era a
pergunta, uma pergunta vital e muito importante. O bebê. Estava morto? Com mãos
trêmulas tocou no abdômen e foi de imediato acometida por uma dor incandescente.
Mordeu os lábios, as mãos apalparam mais fundo, desviando-se para o lado. Não havia
pontapés, nenhuma área firme que representasse um pé. O bebê morrera. Scarlett
soltou um grito de desgosto, mais baixo que um gemido, e sentiu de novo na boca o
líquido doce e reconfortante. Mesmo meio adormecida, as lágrimas correram-lhe dos
olhos fechados.
Semiconsciente pela terceira vez, tentou agarrar-se à escuridão, continuar a
dormir, afastar o mundo de si. No entanto, a dor aumentou, dilacerante, fazendo-a
mover-se a fim de fugir dela, mas o movimento provocou-lhe uma dor tão profunda que
gemeu de sofrimento. O copo de vidro fresco tocou-lhe de novo nos lábios e sentiu-se
aliviada. Mais tarde, quando voltou a flutuar nas margens da consciência, abriu
prontamente a boca, ansiosa pela escuridão sem sonhos. Em vez disso, alguém com
um pano húmido limpou-lhe os lábios, e ouviu uma voz conhecida, mas da qual não se
lembrava.
- Querida Scarlett... Katie Scarlett O'Hara... abre os olhos...
A sua mente procurou, divagou, fixou-se. Colum, era a voz de Colum. O seu
primo. O seu amigo... Por que a não deixava dormir se era seu amigo? Por que não lhe
dava o remédio, antes que a dor voltasse?
- Katie Scarlett...
Entreabriu os olhos. A luz incomodava-os e ela baixou as pálpebras.
- Boa menina, querida Scarlett. Abre os olhos. Tenho uma coisa para ti. - O seu
tom persuasivo era insistente. Os olhos de Scarlett abriram-se. Alguém desviara a
lamparina e a obscuridade era suportável.
Ali estava o seu amigo Colum. Tentou sorrir, mas a recordação inundou-lhe a
mente, os lábios encresparam-se e soluçou como uma criança.
- O bebê morreu, Colum. Põe-me a dormir de novo. Ajuda-me a esquecer. Por
favor. Por favor, Colum.
O pano húmido afagou-lhe as faces, limpou-lhe a boca.
- Não, não, não, Scarlett, não, não, o bebê está aqui, o bebê não morreu.
Lentamente, percebeu. "Não está morto", disse-lhe a mente.
- Não está morto? - disse Scarlett.
Podia ver a cara de Colum, o sorriso de Colum.
- Não está morto, queridinha, não está morto. Aqui. Olha.
Scarlett voltou a cabeça na almofada. Por que era tão difícil virar a cabeça? Uma
trouxa pálida, nas mãos de alguém, estava ali.
- A tua filha, Katie Scarlett - disse Colum. Abriu as dobras da manta e ela viu a
minúscula carinha adormecida.
- Oh - suspirou Scarlett. "Tão pequena, tão perfeita e tão dependente. Olhem para
a pele, como pétalas de rosa, como creme, o rosa é apenas uma sugestão de rosa.
Parece bronzeada pelo sol, como... como um bebê pirata. É a cara escrita do Rhett!"
"Rhett! Por que não estás aqui para ver a tua filha? A tua bela e morena filha."
- Meu lindo bebê moreno. Deixa-me olhar para ti.
Scarlett sentiu uma fraqueza estranha e assustadora, um calor que lhe inundou o
corpo, como uma onda forte e suave de queimadura indolor.
A criança abriu os olhos e estes fitaram os de Scarlett diretamente. Scarlett sentiu
amor. Sem condições, sem exigências, sem motivação, sem perguntas, sem reserva,
sem ego.
- Olá, pequenina - disse ela.
- Agora, bebe o teu remédio - disse Colum. A minúscula carinha morena fora-se.
- Não! Não, quero a minha filha. Onde é que ela está?
- Da próxima vez que acordares, a terás ao teu lado.
- Abre a boca, querida Scarlett.
- Não abro - tentou dizer, mas as gotas já estavam na sua língua, e de repente a
escuridão fechou-se sobre ela. Dormiu, sorrindo, um brilho de vida sob a palidez
mortal.
Talvez o que sentira fosse por a criança se parecer com Rhett; talvez por ter
sempre dado mais valor às coisas por que mais lutara; ou talvez porque vivia há tantos
meses entre os irlandeses, que adoravam crianças.
- Manda-a embora! - disse Scarlett, quando a jovem e saudável ama trouxe a
criança nos braços. -Tive sempre que atar os meus seios e sofrer agonias à espera de
que o leite secasse, tudo para ser uma senhora e manter a minha figura. Eu a
alimentarei, a fortalecerei e a verei crescer.
Quando, pela primeira vez, a filha chupou o seu mamilo com sofreguidão,
franzindo ligeiramente a testa, Scarlett sorriu para ela, triunfante.
- És bem a menina da mamãe, esfomeada como um lobo e determinada a obter o
que queres.
A criança foi batizada no quarto de Scarlett, visto Scarlett estar fraca demais para
andar. O padre Flynn ficou ao lado da cama, onde se encontrava recostada em
almofadas com fronhas enfeitadas com rendas, pegando o bebê ao colo, até chegar a
hora de a entregar a Colum, que era o padrinho; Kathleen e Mrs. Fitzpatrick foram as
madrinhas. O bebê vestia um vestido de linho bordado, desgastado pelas lavagens,
que tinha sido usado por centenas de bebês O'Haras, geração após geração. Deram-
lhe o nome de Katie Colum O'Hara. Katie esbracejou e esperneou quando sentiu a
água tocar-lhe, mas não chorou.
Kathleen trazia vestido o seu melhor vestido azul, com gola de renda, apesar de
que devia estar de luto. A velha Katie Scarlett morrera. Contudo, todos tinham
concordado em nada dizer a Scarlett, até esta se sentir melhor.
Rosaleen Fitzpatrick observava o padre Flynn com olhos de águia, pronta a
arrancar-lhe o bebê se ele vacilasse por um segundo que fosse. Ficara sem fala por um
longo momento, depois de Scarlett lhe ter pedido que fosse madrinha.
- Como adivinhou o que sinto por esta criança? - perguntou ela, recuperando a
fala.
- Não adivinhei - disse Scarlett -, mas sei que não teria tido o bebê se não tivesse
impedido aquele monstro de mulher de me matar. Lembro-me de uma boa parte
daquela noite.
Colum tirou Katie do padre Flynn quando a cerimônia acabou e a pôs nos braços
estendidos de Scarlett. Depois, ofereceu uísque ao padre e aos padrinhos e fez um
brinde.
- À saúde e felicidade da mãe e da criança. À O'Hara e à mais nova dos O'Haras.
- A seguir, acompanhou o cambaleante e santo homem até o bar dos Kennedy, onde
pagou algumas rodadas a todos, em honra da ocasião. Esperava que esse gesto
acabasse com os rumores que corriam por todo o Condado de Meath.
Joe O'Neill, o ferreiro, tinha se refugiado covardemente num canto da cozinha de
Ballyhara até amanhecer, depois saíra correndo até a sua oficina para beber até
recuperar a coragem.
Naquela noite, o próprio São Patrício teria precisado de muito mais que orações
para o invocar - disse ele, a quem o quisesse ouvir, e havia muitos.
- Estava eu preparado para salvar a vida da O'Hara, quando a bruxa atravessou a
parede e me atirou ao chão com uma força incrível. Depois, deu-me pontapés, e senti
na minha carne que o pé não era humano, mas um casco fendido. Enfeitiçou a O'Hara
para depois lhe arrancar o bebê das entranhas. Estava todo ensanguentado, o chão e
as paredes manchadas de sangue. Um homem mais covarde teria tapado os olhos
para não ver uma cena tão horrível. Mas eu, Joseph O'Neill, não fiz isso, distingui o
corpo perfeito e robusto da criança, através do sangue, e digo-lhes que o que vi foi um
menino, com a sua masculinidade bem à vista entre as pernas.
"Vou lavar o sangue", disse o demônio, voltando as costas. Depois, apresentou
ao padre uma criatura frágil e semimorta... do sexo feminino e morena como a terra da
sepultura.
- Agora, digam-me, se o que eu vi não foi uma troca de crianças, que foi então
que aconteceu nessa fatídica noite? Nenhum bem virá daí nem para a O'Hara nem
para qualquer homem que tenha sido tocado pela sombra do bebê duende deixado em
lugar do menino roubado da O'Hara.
A história contada em Dunshaughlin chegou a Ballyhara uma semana depois. A
O'Hara estava morrendo, e só poderia ser salva se a livrassem do bebê morto no seu
ventre. Quem saberia destas coisas, por muito desgostantes que fossem, senão uma
parteira que já tinha visto tudo o que era preciso ver sobre nascimento? Subitamente, a
mãe sofredora sentou-se na cama, cheia de dores.
- Estou vendo - disse ela -, a fada! Alta e vestida de branco e bela como uma fada
deve ser.
Depois, os diabos atiraram uma lança do Inferno, através da janela, e a fada saiu,
voando e lamentando o chamamento à morte. Chamava pela alma do bebê perdido,
mas o bebê morto foi restituído aos vivos por ter sugado a alma da boa e velha mulher
que era a avó da O'Hara. Fora um trabalho do diabo, e não há dúvida de que o bebê
que a O'Hara pensa ser seu, não passa de um espírito mau.
- Acho que devia avisar Scarlett - disse Colum a Rosaleen Fitzpatrick -, mas que é
que lhe vou dizer? Que o povo é supersticioso? Que a véspera de Todos os Santos é
uma ocasião perigosa para uma criança nascer? Não sei que conselhos lhe dar, não há
maneira de proteger a criança das más-línguas.
- Eu zelarei pela segurança da Katie - disse Mrs. Fitzpatrick. - Ninguém e nada
entrará nesta casa, a menos que eu diga sim, e nenhum mal chegará junto da
pequenina. Com o tempo, as histórias serão esquecidas, Colum, sabes isso. Outra
coisa virá que tecerá outras histórias e todos verão que a Katie é apenas uma menina
como qualquer outra.
Uma semana mais tarde, Mrs. Fitzpatrick levou uma bandeja com chá e
sanduíches para o quarto de Scarlett e ouviu, com paciência, Scarlett bombardeá-la
com o mesmo queixume de há muitos dias.
- Não sei por que tenho que ficar fechada neste quarto para sempre. Já me sinto
bastante bem para poder me levantar e andar por aí. Olha o lindo sol que faz hoje,
quero levar a Katie para dar um passeio no cabriolê, mas a única coisa que me deixam
fazer é ficar sentada à janela, vendo as folhas cair. Estou certa de que ela já vê tudo.
Os seus olhinhos olham para cima e depois para baixo... Oh, veja! Venha ver! Veja os
olhos de Katie aqui à luz. Estão mudando de cor. Pensei que se tornariam castanhos,
como os de Rhett, pois ela é muito parecida com ele. Mas consigo ver as primeiras
pequenas manchas e estas são verdes. Vai ter os meus olhos!
Scarlett acariciou o pescoço da criança.
- És a menininha da mamãe, não és, Katie O'Hara? Não, não Katie. Qualquer
uma pode ser Katie. Vou-te chamar Kitty Cat, por causa dos teus olhos verdes. -
Levantou a solene criança para que esta encarasse a governanta.
- Mrs. Fitzpatrick, desejo apresentar-lhe a Cat O'Hara. - O sorriso de Scarlett era
radioso como o sol.
Rosaleen Fitzpatrick sentiu-se mais amedrontada do que alguma vez se sentira
na vida.

A ociosidade forçada da sua convalescença proporcionou a Scarlett muitas horas


para pensar, dado que o bebê passava a maior parte do dia e da noite dormindo,
exatamente como todos os outros recém-nascidos. Scarlett experimentou ler, mas
nunca se interessara por isso e não tinha mudado.
O que mudou foram os seus pensamentos.
Primeiro de tudo, havia o seu amor por Cat. Com apenas algumas semanas de
vida, o bebê era pequeno demais para reagir, exceto quando estava com fome, e à
satisfação que lhe proporcionava o leite morno dos seios de Scarlett. "É o amor que me
torna tão feliz", concluiu Scarlett. "Não tem nada a ver com o ser amada. Gosto de
pensar que a Cat me ama, mas a verdade é que do que ela gosta é de mamar."
Scarlett riu da sua própria piada. Scarlett O'Hara, que fizera os homens apaixonarem-
se por ela por desporto, por divertimento, nada mais era que uma fonte de alimento em
relação à única pessoa que amava mais do que alguma vez amara na vida.
Porque a verdade era que nunca amara Ashley; já o sabia há muito. Só quisera o
que não podia ter e chamara a isso amor. "Desperdicei dez anos com um amor falso e
perdi o Rhett, o homem que realmente amei."
"... Ou será que amei?"
Vasculhou a memória, apesar da dor. Doía sempre que pensava em Rhett, em tê-
lo perdido, e no seu fracasso. Aliviava um pouco a dor quando pensava no modo como
ele a tratara, e o ódio que sentia sobrepunha-se à dor. Mas, na maioria das vezes,
conseguia afastá-lo da memória; era menos perturbador.
Contudo, durante estes longos dias sem nada que fazer, a sua mente teimava em
regressar ao passado, e não pôde evitar pensar nele.
Será que de fato o amara?
"Acho que sim", pensou ela, "ainda o devo amar, senão o meu coração não
sangraria da maneira com sangra quando, mentalmente, revejo o seu sorriso e ouço a
sua voz."
Mas durante dez anos ela invocara Ashley da mesma maneira, imaginando o seu
sorriso e a sua voz.
"E quis mais o Rhett depois de ele me ter abandonado", lembrou Scarlett com
toda a honestidade.
Era tudo tão confuso. Fazia-lhe doer a cabeça, até mais que o coração. Não iria
pensar nisso. Era muito melhor pensar em Cat, pensar em como era feliz.
Pensar na felicidade?
"Eu era feliz mesmo antes de Cat nascer. Fui feliz desde o momento em que
cheguei a casa de Jamie. Não como agora, nunca imaginei que alguém se pudesse
sentir tão feliz como eu me sinto, todas as vezes que olho para a Cat, todas as vezes
que a pego, todas as vezes que a amamento. Mas, de qualquer modo, era feliz, porque
os O'Haras me aceitaram como eu era. Nunca esperaram que fosse igual a eles, nunca
me fizeram sentir como se eu tivesse que me mortificar, nunca me fizeram sentir que
estava enganada."
"Mesmo quando estava. Não tinha o direito de esperar que Kathleen me
penteasse o cabelo, cosesse a minha roupa e fizesse a minha cama. Estava portando-
me com afetação. Com pessoas que nunca me retribuíram com a sua própria afetação.
Mas nunca me disseram, 'Oh, pára de te exibires, Scarlett!'. Não, deixaram-me agir
como eu queria e aceitaram-me com toda a minha afetação. Tal como eu era."
"Errei no meu procedimento em relação a Daniel e à mudança de todos eles para
Ballyhara. O que eu queria era que eles me ficassem gratos. Queria que eles vivessem
em casas grandiosas e que fossem agricultores importantes, com muitas terras e muito
pessoal contratado para fazer a maioria do trabalho. Queria que se modificassem.
Nunca lhes perguntei o que queriam. Não os aceitei como eles eram."
"Oh, nunca farei isso a Cat. Nunca a tornarei diferente do que é. Eu amarei
sempre como a amo agora - com todo o meu coração, aconteça o que acontecer. A
minha mãe nunca me amou como eu amo a Cat. Nem à Suellen ou à Carreen. Ela
queria que eu fosse diferente do que era, queria que eu fosse igual a ela. Todas nós,
era isso o que ela queria de nós as três. Estava errada."
Scarlett afastou os pensamentos. Sempre acreditara que a mãe era perfeita. Era
impensável que Ellen O'Hara pudesse ter se enganado sobre fosse o que fosse.
Mas os pensamentos continuavam lá. Voltaram-lhe à mente mais de uma vez,
com insistência. Voltavam de maneiras diferentes, com diferentes adornos. Não a
deixavam em paz.
A mãe estivera enganada. Ser uma senhora, como ela, não era a única maneira
de ser. "Nem sequer é a melhor maneira de se ser. Não, se isso não nos tornar felizes.
Ser feliz é o melhor que há, pois só assim se pode fazer os outros felizes, também. À
maneira deles."
A mãe não era feliz. Era bondosa, paciente e interessada - em relação às filhas,
ao pai e aos negros. Mas não amorosa. Não feliz. "Oh, pobre mãe. Gostaria que
tivesse sentido o que eu sinto agora, gostaria que tivesse sido feliz."
Que fora que o avô dissera? Que a sua filha Ellen casara com Gerald O'Hara para
fugir a uma desilusão amorosa. "Seria por isso que ela nunca foi feliz? Sofreria por
alguém que não podia ter, como eu sofri pelo Ashley? Da maneira como sofro pelo
Rhett, quando o não posso evitar?"
Que perda! Que perda horrível e sem sentido. Sendo a felicidade tão maravilhosa,
como poderia alguém agarrar-se a um amor que o tornava infeliz? Scarlett prometeu
nunca fazer isso. Sabia o que era ser feliz, e não iria estragar as coisas.
Pegou o bebê adormecido ao colo e embalou-o. Cat acordou e sacudiu as mãos
em protesto.
- Oh, Kitty Cat, desculpa. Precisava te pegar ao colo só por um instante.
"Estavam todos enganados!" A idéia era tão explosiva que acordou Scarlett de um
sono profundo. "Estavam enganados! Todos eles - as pessoas que me destruíram em
Atlanta, a tia Eulalie e a tia Pauline, e quase todos em Charleston. Queriam que eu
fosse igual a eles, e porque não sou, não me aprovaram, fazendo-me sentir como se
houvesse algo de terrivelmente errado em mim, que eu era uma pessoa má, que
merecia o desprezo de todas elas."
"E nada do que eu fiz foi assim tão terrível. Castigaram-me porque eu não seguia
as suas regras. Trabalhei no campo mais que qualquer outro trabalhador - ganhando
dinheiro, mas a preocupação com o dinheiro não é digna de uma senhora. Não importa
que eu fizesse Tara progredir, mantendo as cabeças das tias fora da água e mantendo
o Ashley e a sua família e pagando quase toda a comida que aparecia na mesa da tia
Pitty, além de reparar o telhado e manter a lata de carvão cheia. Todos acharam que
eu não devia ter sujado as mãos com os livros de contabilidade, nem simular sorrisos
quando vendia madeira aos ianques. Houve de fato muitas coisas que fiz e que não
devia ter feito, mas trabalhar por dinheiro não foi uma delas, e foi por isso que fui mais
censurada. Não, não é bem isso. Censuraram-me por ter sido bem sucedida lidando
com dinheiro."
"Isso e o fato de ter impedido que Ashley partisse o pescoço, quando se atirou à
cova onde Melly ia ser enterrada. Se tivesse sido o contrário e tivesse salvo a Melly no
enterro de Ashley, estaria tudo bem. Hipócritas!"
"O que dá às pessoas, cuja vida é uma mentira total, o direito de me julgarem?
Que mal há em trabalhar além do que é possível? Por que é tão terrível intervir,
impedindo que o desastre aconteça a alguém, especialmente se se trata de um
amigo?"
"Estavam todos enganados. Aqui em Ballyhara trabalhei tanto quanto possível e
fui apreciada por esse fato. Impedi que o tio Daniel perdesse a sua quinta, e eles
começaram a chamar-me A O'Hara."
"É essa a razão por que ser A O'Hara me faz sentir estranha e feliz ao mesmo
tempo. É porque A O'Hara é respeitada pelas mesmas coisas que todos estes anos
pensei estarem erradas. A O'Hara teria ficado acordada até altas horas da noite
fazendo a contabilidade do armazém. A O'Hara teria agarrado Ashley, impedindo-o de
se atirar à cova."
"Que foi que Mrs. Fitzpatrick disse? 'A Senhora não precisa de fazer nada, tem
apenas de ser o que é.' Eu sou a Scarlett O'Hara que, às vezes, comete erros e outras
faz coisas certas, mas nunca me chamariam assim se eu fosse tão má como faziam de
mim em Atlanta. Não sou má. Mas Deus sabe que também não sou santa. Não desejo
modificar-me, desejo ser o que sou, não pretendo ser aquilo que não sou."
"Sou A O'Hara e tenho orgulho nisso. Faz-me sentir feliz e realizada."
Cat fez um ruído gorgolejante para indicar que estava acordada e pronta para ser
amamentada. Scarlett tirou-a do berço e colocou-a na cama. Com a mão sob a sua
pequenina e desprotegida cabeça, guiou-a até o seu seio.
- Cat O'Hara, prometo-te pela minha honra que, quando cresceres, serás o que
quiseres, mesmo que seja algo tão diferente de mim como o dia da noite. Se tiveres
vocação para ser uma grande dama, até te ensinarei a sê-Io, não importa a minha
opinião sobre o assunto. Afinal, conheço todas as regras, mesmo que não as siga.

- Vou sair e não se fala mais nisso - disse Scarlett, teimosamente, a Mrs.
Fitzpatrick. A governanta permaneceu de pé à entrada da porta, como uma montanha
irremovível.
- Não vai, não.
Scarlett mudou a sua tática.
- Por favor, deixe-me - pediu ela, com ar adulador, com o mais doce sorriso do
seu arsenal. - O ar fresco vai fazer-me muito bem. Vai me abrir o apetite e a senhora
sabe como tem insistido comigo para que coma mais.
- Isso vai mudar. A cozinheira já chegou.
Scarlett esqueceu-se de que estava tentando seduzi-la. -J á não era sem tempo!
Sua Alteza deu-se ao trabalho de explicar por que demorou tanto tempo para chegar?
Mrs. Fitzpatrick sorriu.
- Ela iniciou a viagem para cá a tempo, mas, devido às hemorróidas, sentiu-se tão
mal que teve que parar no caminho, para descansar, todos os vinte e cinco
quilômetros, até chegar aqui. Parece que não vamos ter que nos preocupar com o fato
de ela se espreguiçar numa cadeira de balanço, em vez de estar de pé trabalhando.
Scarlett tentou não rir, mas não o pôde evitar. E, de fato, não podia zangar-se
com Mrs. Fitzpatrick; tinham-se tornado íntimas demais para que isso acontecesse.
Mrs. Fitzpatrick mudara-se para o apartamento da governanta no dia em que Cat
nascera. Foi a companheira constante de Scarlett durante a sua doença. E sempre
disponível depois.
Muitas pessoas vieram visitar Scarlett durante as longas semanas de
convalescença, após o nascimento de Cat. Colum aparecia quase diariamente,
Kathleen de dois em dois dias, os seus grandes primos O'Hara depois da Missa de
domingo, Molly mais vezes do que Scarlett gostaria. Mas Mrs. Fitzpatrick estava
sempre presente. Trazia chá e bolos para as visitas, uísque e bolos para os homens e,
depois de as visitas partirem, permanecia junto de Scarlett para contar as notícias que
os visitantes tinham trazido e acabar de beber os refrescos. Ela própria trazia as suas
notícias - sobre os acontecimentos na cidade de Ballyhara e de Trim - e os boatos que
ouvira nas lojas. Fez que Scarlett se sentisse menos só.
Scarlett convidou Mrs. Fitzpatrick a tratá-la por "Scarlett" e perguntou "Qual é o
seu primeiro nome?"
Mrs. Fitzpatrick nunca lhe disse. Na sua opinião, não devia existir nenhuma
familiaridade entre ambas, disse com firmeza, explicando-lhe a rígida hierarquia de
uma Casa Grande irlandesa. A sua posição como governanta seria enfraquecida se o
respeito que lhe era inerente fosse diminuído pela familiaridade, fosse de quem fosse,
até mesmo da patroa. Especialmente da patroa.
Era tudo sutil demais para que Scarlett pudesse compreender, mas a agradável
teimosia de Mrs. Fitzpatrick fez-lhe ver que se tratava de uma questão importante e que
era inútil teimar. Concordou com os nomes que a governanta sugeriu. Scarlett lhe
chamaria "Mrs. Fitz", e esta chamaria a Scarlett "Mrs. O". Mas só quando estivessem a
sós. Na frente das pessoas, era necessário manter a formalidade.
- Até Colum? - quis Scarlett saber. Mrs. Fitz considerou, depois cedeu. Colum era
um caso especial.
Scarlett tentou tirar vantagem da parcialidade de Mrs. Fitz em relação a ele.
- Visitarei apenas o Colum - disse ela. - Há tempos que ele não me vem ver, e já
sinto a sua falta.
- Ausentou-se em negócios e a senhora sabe-o muito bem. Ouvi-o dizer-lhe que
ia partir.
- Pronto, ganhou! - murmurou Scarlett. Voltou à sua cadeira perto da janela e
sentou-se. - Vá falar com Mrs. Hemorroidal.
Mrs. Fitzpatrick deu uma gargalhada.
- Por falar nisso - disse ela ao sair -, o nome dela é Mrs. Keane. Mas poderá
chamá-la Mrs. Hemorroidal, se preferir. Provavelmente, nunca a verá. Essa função
cabe a mim.
Scarlett esperou até ter a certeza de que Mrs. Fitz não a apanharia, depois vestiu-
se para sair. Já fora obediente durante bastante tempo. Era um fato reconhecido que
depois do parto uma mulher levava um mês para se recuperar, a maior parte do tempo
na cama, e ela tinha-o feito. Não via razão para acrescentar mais três semanas só pelo
fato de o parto de Cat não ter sido normal. O médico de Ballyhara parecia-lhe um
homem bom, até lhe lembrava um pouco o Dr. Meade. Mas o próprio Dr. Devlin admitia
que não tinha experiência de bebês nascidos por meio da faca. Por que lhe daria ela
ouvidos? Especialmente, quando havia algo que ela precisava fazer. Mrs. Fitz contara-
lhe sobre a velha mulher que aparecera, como se por magia, a fim de trazer Cat ao
mundo, no meio da tempestade de Todos os Santos. Colum dissera-lhe quem era a
mulher - a cailleach que vivia na torre. Scarlett e Cat deviam a vida à sábia mulher.
Tinha que lhe agradecer.
O frio apanhou Scarlett de surpresa. O mês de Outubro tinha sido bastante
quente, como podia um mês só fazer tanta diferença? Tapou o bebê, que estava bem
embrulhado, com as dobras da sua capa. Cat estava acordada. Os seus grandes olhos
fitavam a cara de Scarlett.
- Minha coisinha preciosa - disse Scarlett, baixinho. - És tão boazinha, nunca
choras, não é? - Passou pelo estábulo, dirigindo-se para o caminho que costumava
tomar tantas vezes quando ia de cabriolê.
- Sei que está aí em algum lugar - gritou Scarlett em direção ao matagal que
crescia sob as árvores que bordejavam a clareira onde se encontrava a torre. - É
melhor vir aqui para fora e falar comigo, senão vou morrer aqui gelada, à sua espera. O
bebê, também, se quer saber. - Esperou confiantemente. A mulher que trouxera Cat ao
mundo não a deixaria exposta por muito tempo ao frio húmido provocado pela sombra
da torre.
Os olhos de Cat desviaram-se do rosto de Scarlett e moveram-se de um lado para
o outro, como se procurasse alguma coisa. Alguns minutos depois, Scarlett ouviu um
farfalhar na vegetação espessa de azevim, ao seu lado direito. A anciã apareceu entre
dois arbustos.
- Por aqui - disse ela, recuando. Havia ali um carreiro, Scarlett pôde ver quando
se aproximou. Nunca o teria encontrado se a mulher não tivesse afastado os
espinhosos ramos de azevim com um dos seus xales. Scarlett seguiu pelo carreiro até
este ir dar a um bosque de árvores baixas.
- Desisto - disse ela -, para onde vou agora?
Ouviu uma gargalhada rouca atrás de si.
- Por aqui - disse a anciã. Andou à volta de Scarlett, baixou-se sob os ramos.
Scarlett fez o mesmo. Dados alguns passos, pôde endireitar-se. Na clareira, ao centro
do bosque, estava uma cabana de terra batida com telhado de colmo. Da chaminé saía
uma coluna fina de fumaça cinzenta encaracolado.
- Entra - disse a mulher. Abriu a porta. - É uma bela criança - disse a mulher.
Examinara todo o corpinho de Cat, até às unhas dos seus pequeninos pés. - Que nome
lhe puseste?
- Katie Colum O'Hara. - Era a segunda vez que Scarlett falava. Uma vez
transposta a porta, começou a agradecer à mulher pelo que ela tinha feito, mas a velha
mandou-a calar.
- Deixa-me ver o bebé - disse, com os braços estendidos.
Scarlett passou-lhe Cat de imediato e manteve-se silenciosa enquanto a mulher a
examinava.
- Katie Colum! - repetiu a mulher. - É um som fraco e macio para esta criança tão
forte. O meu nome é Grainne. Um nome forte.
A sua voz rude fez que o nome galês parecesse uma ameaça. Scarlett remexeu-
se no banco. Não sabia como responder.
A mulher envolveu Cat no babador e nas mantas. Depois, levantou-a e murmurou,
baixinho, ao seu ouvido, algumas palavras que Scarlett não conseguiu entender,
mesmo que se tivesse esticado toda para poder ouvir. Os dedos de Cat agarraram os
cabelos de Grainne. A velha segurou Cat de encontro ao ombro.
- Não terias compreendido, mesmo que tivesses ouvido, O'Hara. Falei em irlandês
antigo. Foi um feitiço. Decerto que já ouviste dizer que eu entendo tanto de magia
como de plantas.
Scarlett anuiu.
- Talvez entendas mesmo. Tenho alguns conhecimentos das palavras e dos
costumes antigos, mas não digo que sejam mágicos. Olho, escuto e aprendo. Para
alguns pode parecer magia quando um cego vê ou quando um surdo ouve. Depende
muito daquilo em que se acredita. Não esperes que eu faça uma magia para ti.
- Não vim por essa razão.
- Só para agradecer? É tudo?
- Sim, é, e agora que já o fiz, tenho que ir embora, antes que dêem pela minha
falta em casa.
- Peço que me perdoes - disse a velha mulher. - São poucos os que se sentem
agradecidos quando entro nas suas vidas. Gostaria de saber se não ficaste zangada
com o que fiz ao teu corpo?
- Salvaste a minha vida e a do bebê, também.
- Mas tirei a vida a todos os outros bebês. Um médico teria sabido melhor o que
fazer.
- Ora, não consegui arranjar um médico, caso contrário, teria tido um junto de
mim! - Scarlett apertou com firmeza.
Viera para agradecer à velha mulher, não para insultá-la.
Mas por que estaria ela a falar enigmaticamente na sua voz áspera e
assustadora?
Até provocava arrepios na pele de uma pessoa.
- Desculpa - disse Scarlett -, fui grosseira contigo. Tenho a certeza de que
nenhum médico teria feito melhor que tu. Provavelmente, nem metade tão bem. E não
sei o que queres dizer quando te referes a outros bebês. Estás dizendo que tive
gêmeos e que o outro morreu? - Era uma possibilidade, pensou Scarlett. Em grávida,
tivera uma barriga tão grande.
Mas decerto que Mrs. Fitz ou Colum lhe teriam dito. Talvez não. Só comunicaram
a morte da velha Katie Scarlett duas semanas depois de esta ter falecido. Um
sentimento de perda irreparável apertou o coração de Scarlett.
- Havia outro bebê? Tem que me dizer!
- Chhh, estás a incomodar a Katie Colum - disse Grainne, a mulher sabia. - Não
havia outra criança no teu útero. Não sabia que ias entender mal as minhas palavras. A
mulher de cabelo branco parecia conhecedora, pensei que ela compreendera e te
dissesse. Retirei-te o útero juntamente com o bebê e não tinha conhecimentos para o
recolocar. Não poderás ter mais filhos.
Havia uma finalidade terrível nas palavras da mulher e na maneira como as dizia,
e Scarlett soube logo que eram verdadeiras. Mas não podia acreditar no que ouvia, não
podia ter mais filhos? Agora que, finalmente, descobrira a alegria inesquecível de ser
mãe, agora que aprendera - tão tarde - o que era amar? Não podia ser verdade. Era
demasiado cruel.
Scarlett nunca compreendera por que Melanie arriscara a vida para ter outro
bebê, mas agora podia compreender. Ela faria o mesmo. Passaria de novo pela
mesma dor e medo e por todo aquele sangue para sentir a felicidade de ver a carinha
do bebê pela primeira vez.
Cat emitiu um som baixo, parecido com um miado. Era o seu aviso de que estava
com fome. Em resposta, Scarlett sentiu o seu leite começar a brotar. "Por que estou
preocupada? Não tenho já o bebê mais maravilhoso do mundo? Não, vou perder o
leite, se me preocupar com bebês imaginários, quando a minha Cat é verdadeira e
precisa da sua mãe."
- Tenho que ir - disse Scarlett. - Está a chegar a hora de amamentar o bebé.
Estendeu as mãos para pegar a filha.
- Mais uma palavra - disse Grainne. - Um aviso.
Scarlett sentiu medo. Desejou não ter trazido a Cat. Por que é que a mulher a não
devolvia?
- Mantém o bebê junto de ti, há aqueles que dizem que ela foi trazida por uma
feiticeira e que, portanto, está enfeitiçada.
Scarlett sentiu um arrepio.
Os dedos manchados de Grainne abriram com gentileza os punhos fechados de
Cat. Beijou a sua cabecinha coberta de penugem, murmurando:
- Vai em paz, Dará. - Depois, entregou-a a Scarlett. - Eu a chamarei de Dará em
pensamento. Significa carvalho. Estou grata por a ter visto e pelos teus
agradecimentos. Mas não a tragas aqui. Não é prudente que ela tenha algo a ver
comigo.
Parte agora. Vem aí alguém e vocês não devem ser vistas... Não, o carreiro que
essa pessoa tomou não é o mesmo que o vosso. É o que está do lado norte e que é
usado por mulheres tontas que vêm comprar poções para o amor ou para a beleza ou
para prejudicar os que os odeiam. Vai. Olha pelo bebê. Scarlett obedeceu com prazer.
Caminhou com obstinação sob a chuva fria que começara a cair. A sua cabeça e
costas estavam inclinadas para proteger o bebê do mal. Abrigada sob a capa de
Scarlett, Cat emitia sons de sucção.
Mrs. Fitzpatrick olhou para a capa húmida atirada no chão, ao pé da lareira, mas
não fez nenhum comentário.
- Mrs. Hemorroidal parece ter boa mão com o batedor - disse ela. - Trouxe-lhe
scones com o chá.
- Muito bem, estou esfomeada. - Amamentara Cat e tirara uma soneca e o sol
brilhava de novo. Scarlett estava agora certa de que o passeio lhe fizera um grande
bem. Não aceitaria um não como resposta, da próxima vez que quisesse sair.
Mrs. Fitzpatrick nem sequer tentou impedi-la. Reconhecia a futilidade de uma
argumentação inútil.
Quando Colum regressou a casa, Scarlett foi visitá-lo para lhe pedir um conselho.
- Quero comprar um pequeno buggy fechado (carro de duas rodas puxado por um
cavalo. - N. da T.), de duas rodas, Colum. Está muito frio para andar de cabriolê e eu
preciso me mover. Ajudas-me a escolher um?
Claro que ajudaria, disse Colum, mas ela poderia fazer a sua própria escolha, se
preferisse. Os fabricantes desses carros lhe mostrariam modelos para ela poder
escolher. Como de resto o fariam todos os fabricantes de todas as coisas que ela
quisesse comprar. Ela era a Senhora da Casa Grande.
- Por que não pensei nisso? - disse Scarlett.
Uma semana depois, passou a conduzir um bonito buggy preto, com uma risca
amarela dos lados, puxado por um cavalo cinzento, que correspondia à palavra do
vendedor de que possuía um bom trote e que quase nunca precisava de chicote.
Também mandou preparar uma sala de estar, com mobília em madeira de
carvalho polido, estofada de verde, com dez cadeiras extra que podiam ser colocadas
juntas e uma mesa redonda com tampo de mármore, onde se podiam sentar seis
pessoas para comer. Tudo isto sobre um tapete Wilton, numa sala ao lado do seu
quarto. Não importa as histórias revoltantes que Colum contava sobre mulheres
francesas, que entretinham multidões, enquanto se espreguiçavam nas suas camas,
mas estava decidida a ter um lugar próprio para receber as suas visitas. E o que quer
que fosse que Mrs. Fitz dissesse, não via nenhuma razão para utilizar as salas de
baixo para entreter, quando havia muitas salas vazias no piso de cima disponíveis para
esse fim.
Ainda não tinha a grande escrivaninha e a cadeira que encomendara, porque o
carpinteiro de Ballyhara ainda as estava fazendo. Que valia ter uma cidade, se não
fosse suficientemente esperta para dirigir todos os negócios nela existentes? Podia ter
certeza de receber as rendas se todos estivessem ganhando dinheiro.
A berço almofadado de Cat estava sempre no assento, ao lado dela no buggy,
onde quer que fosse. Cat emitia sons borbulhantes que pareciam duetos cantantes,
enquanto seguia pela estrada. Scarlett exibia Cat em todas as lojas e casas de
Ballyhara onde parava. As pessoas benziam-se quando viam o bebê de pele morena e
olhos verdes e Scarlett ficava contente. Pensava que estavam abençoando a criança.
Quando o Natal se aproximou, Scarlett perdeu parte da exaltação que sentira
quando se libertara da prisão da convalescença.
- Não gostaria de estar em Atlanta, por nada deste mundo, mesmo que fosse
convidada para todas as festas, ou mesmo em Charleston, com os seus ridículos
cartões de convite para dançar - disse a Cat. - Mas gostaria de estar num lugar que
não estivesse sempre húmido.
Scarlett pensou que seria bom viver numa cabana, a fim de a poder caiar de
branco e decorá-la do modo como Kathleen e as primas faziam. E como faziam todos
os outros que viviam em cabanas, também, em Adamstown e à beira das estradas.
Quando, no dia 22 de Dezembro, entrou no bar Kennedy e viu as lojas e as casas a
serem caiadas e pintadas, apesar do seu aspecto novo, pulou de alegria. O prazer que
sentia em ser dona daquela cidade afastou a ligeira tristeza que se apoderara dela,
quando se dirigiu ao seu próprio bar, à procura de companhia. Às vezes, parecia que a
conversa se tornava desajeitada assim que ela entrava.
- Temos que decorar a casa para o Natal - comunicou a Mrs. Fitz. - Que é que os
irlandeses fazem?
- Pomos ramos de azevim sobre as cornijas das lareiras, nas portas e nas janelas
- disse a governanta. - E grandes velas, geralmente encarnadas, numa das janelas, a
fim de iluminar o caminho do Menino Jesus.
- Vamos colocar uma em cada janela - declarou Scarlett, mas Mrs. Fitz foi firme.
Só numa janela. Scarlett podia ter as velas que quisesse, mas só uma janela devia ter
uma vela. E essa só poderia ser acesa na Véspera do Natal, quando tocasse o
Angelus.
A governanta sorriu.
- Manda a tradição que a criança mais nova da casa acenda um junco retirado do
carvão da lareira, assim que se ouça tocar o Angelus, para depois acender a vela com
a chama do junco. Terá que lhe dar uma pequena ajuda.
Scarlett e Cat passaram o Natal na casa de Daniel. A admiração que Cat suscitou
foi tanta que satisfez até Scarlett. E muita gente entrando pela porta, o que manteve a
sua mente distante dos Natais em Tara, nos tempos passados, quando a família e a
criadagem da casa saíam para o vasto pórtico, depois do café, em resposta ao grito
"Presentes de Natal". Quando Gerald O'Hara oferecia um trago de uísque e uma bolsa
de tabaco a cada um dos trabalhadores do campo, entregando-lhes ao mesmo tempo
um casaco e um par de botas novas. Quando Ellen O'Hara dizia uma breve oração a
cada mulher e criança, entregando-lhe metros de chita e de flanela, juntamente com
laranjas e rebuçados. Por vezes, Scarlett sentia tanta falta da quente modulação das
vozes dos negros e dos seus sorrisos resplandecentes, que mal o podia suportar.
- Preciso voltar à terra, Colum - disse Scarlett.
- E não estás tu agora na tua terra, na terra dos teus antepassados, que fizeste
que se tornasse de novo a terra dos O'Haras?
- Oh, Colum, não te armes em irlandês comigo! Sabes o que quero dizer. Tenho
saudades das vozes das gentes do Sul e do sol do Sul e da comida do Sul. Quero
comer pão de milho, galinha frita e semolina. Ninguém na Irlanda sabe o que é milho.
Para eles é apenas uma palavra que define uma espécie de cereal.
- Compreendo, Scarlett, e lamento as saudades que sentes. Por que não vais até
lá, quando chegar o bom tempo para viajar? Podes deixar a Cat aqui. Mrs. Fitzpatrick e
eu tomaremos conta dela.
- Nunca! Nunca deixarei a Cat.
Não havia nada a dizer. Mas, de tempos em tempos, a idéia voltava-lhe à mente:
são apenas duas semanas e um dia para atravessar o oceano e, por vezes, os
golfinhos acompanham o navio horas a fio.
No Dia de Ano Novo, Scarlett teve a primeira amostra do que realmente era ser A
O'Hara. Mrs. Fitz entrou no quarto com o chá da manhã, em vez de mandar a Peggy
Quinn com a bandeja do café.
- A bênção de todos os santos para a mãe e filho no ano que aí vem - disse ela,
alegremente. - Tenho que lhe dizer o que tem a fazer antes do seu café.
- Feliz Ano Novo para ti também, Mrs. Fitz, e que quer dizer com isso?
- Uma tradição, um ritual, uma necessidade - respondeu Mrs. Fitz. - Sem isso, não
haverá sorte durante o ano. A primeira comida a comer na casa deverá ser o bolo de
levedura especial do Ano Novo. Devem ser dadas três dentadas, em nome da
Santíssima Trindade.
"Porém, antes de começar - disse Mrs. Fitz -, terá que entrar no quarto que já
aprontei. É que, depois de dar as três dentadas da Trindade, deverá atirar o bolo com
toda a sua força de encontro à parede, a fim de que ele se desfaça em pedaços. Para o
efeito, mandei ontem esfregar as paredes e o chão.
- Isso é a coisa mais louca que jamais ouvi. Por que vou desperdiçar um bolo
perfeitamente bom? E por que tenho de comer bolo no desjejum?
- Porque é assim que se costuma fazer. Faça a sua obrigação, Mrs. O'Hara, antes
que as outras pessoas desta casa morram de fome. Ninguém poderá comer sem a
Senhora partir primeiro o pão doce.
Scarlett vestiu um agasalho de lã e obedeceu. Bebeu um gole do chá para molhar
a língua, depois deu três dentadas no rico bolo de frutas, conforme as instruções de
Mrs. Fitz. Teve que o segurar com as duas mãos, tão grande ele era. Depois, repetiu a
oração contra a fome que Mrs. Fitz lhe ensinara e, levantando os dois braços, atirou o
bolo, que se partiu em pedaços, contra a parede. Pedaços voaram por todos os lados.
Scarlett riu.
- Que grande porcaria! Mas foi divertido atirar com o bolo à parede.
- Ainda bem que gostou - disse a governanta. - Tem mais cinco bolos para partir.
Todos os homens, mulheres e crianças de Ballyhara têm que ficar com um pedaço
para lhes trazer boa sorte. Estão lá fora à espera. As criadas distribuirão os pedaços de
bolo em bandejas, depois de a Senhora acabar de o partir.
- Santo Deus - disse Scarlett. - Devia ter dado dentadas mais pequenas.
Depois do desjejum, Colum acompanhou-a através da cidade, para o ritual
seguinte. Era sinal de boa sorte para todo o ano, se uma pessoa de cabelo escuro
visitasse uma casa no Dia do Novo Ano. Mas, segundo a tradição, a pessoa devia
entrar e sair acompanhada, depois voltar a entrar acompanhada.
- E não te atrevas a rir - ordenou Colum. - Qualquer pessoa de cabelo escuro dá
boa sorte. A chefe de um clã dá boa sorte dez vezes mais.
Scarlett estava cambaleante quando tudo terminou.
- Ainda bem que ainda há muitas construções vazias - disse, ofegante. - O meu
estômago está repleto de chá e de bolos. Era realmente necessário comer e beber
onde quer que entrássemos?
- Querida Scarlett, como se pode considerar uma visita se não houver
hospitalidade recíproca? Se fosses um homem, teria sido uísque e não chá.
Scarlett sorriu. "Cat teria gostado disto."
O primeiro dia de Fevereiro era considerado o princípio do ano agrícola na
Irlanda. Acompanhada por todos os que trabalhavam e viviam em Ballyhara, Scarlett
encontrava-se no centro de um grande campo e, depois de rezar uma oração pelo
sucesso das colheitas, cavou a terra com a pá, revolvendo o primeiro torrão. Agora, o
ano podia começar. Depois da festa do bolo de maçã - e leite, claro, visto o primeiro de
Fevereiro ser também o dia de festa de Santa Erigida, uma das santas padroeiras da
Irlanda, a qual também era santa padroeira dos laticínios.
Depois da cerimônia, quando todos comiam e falavam, Scarlett ajoelhou-se perto
da terra revolvida e, com a mão, pegou um bocado da rica argila.
- Isto é para ti, pai - murmurou ela. - Vês, a tua Katie Scarlett não se esqueceu do
que lhe disseste, que a terra de County Meath é a melhor do mundo, melhor ainda que
a terra da Geórgia, de Tara. Cuidarei dela o melhor que souber, pai, conforme me
ensinaste. É solo O'Hara, e é nosso de novo.
O sistema antigo de lavrar e de gradar, de semear e de regar, tinha uma
dignidade tão simples e laboriosa que conquistou a admiração e o respeito de Scarlett
em relação a todos os que viviam da terra. Sentira o mesmo quando vivera na cabana
de Daniel e sentia-o agora pelos agricultores de Ballyhara. Por ela própria, também,
pois, de certa maneira, ela era uma deles. Não tinha forças para conduzir o arado, mas
podia comprá-lo. E bem assim os cavalos para o puxarem. E a semente para plantar
nos sulcos que fazia.
O escritório da propriedade era o seu lar, mais que os seus quartos na Casa
Grande. Havia outro berço para Cat, ao lado da sua escrivaninha, idêntico ao que
estava no seu quarto, e podia embalá-la com o pé, enquanto trabalhava nos seus livros
de contabilidade. As disputas que causavam preocupação a Mrs. Fitzpatrick acabavam
por ser resolvidas sem problemas. Especialmente, quando se era A O'Hara e a sua
palavra era lei. Scarlett tivera sempre que ameaçar as pessoas para que fizessem o
que ela queria; agora, só tinha que falar calmamente, e não havia nenhum argumento.
Gostava muito do primeiro domingo do mês. Começou até a verificar que,
ocasionalmente, havia pessoas cujas opiniões valia a pena ouvir. Os agricultores
sabiam de fato mais sobre agricultura que ela, e podia aprender com eles. Precisava
aprender. Foram-lhes reservados trezentos acres da terra de Ballyhara que constituíam
a sua quinta. Os agricultores trabalhavam-na e pagavam apenas metade da renda
usual pelo terreno, que tomaram de arrendamento a Scarlett. Scarlett sabia o que
significava plantação a meias; era como se fazia no Sul. Ser dona de uma propriedade
ainda era novidade para ela. Estava decidida a ser a melhor senhoria em toda a
Irlanda.
- Os agricultores também aprendem comigo - disse ela a Cat. - Nunca tinham
ouvido falar de fertilizante com fosfato, até eu lhes entregar alguns sacos dele. Poderia
até devolver algum dinheiro ao Rhett, se tivermos uma melhor colheita de trigo.
Nunca murmurava a palavra "pai" ao ouvido de Cat. Quem sabia do que um bebê
percebia ou do que se lembrava? Especialmente um bebê que era claramente superior
a todos os outros bebês do mundo.
Quando os dias se tornaram mais compridos, as brisas e a chuva tornaram-se
mais brandas e quentes. Cat O'Hara cada dia se tornava mais cativante; estava
desenvolvendo a sua individualidade.
- Não há dúvida de que te dei o nome certo - disse-lhe Scarlett. - És a coisinha
mais independente que jamais vi. - Os grandes olhos verdes de Cat fitaram a mãe
atentamente, enquanto esta falava. Depois, retomaram a contemplação absorvente dos
próprios dedinhos. Cat nunca se aborrecia, tinha uma capacidade infinita de se distrair.
Desmamá-la foi mais difícil para Scarlett que para ela. Adorava examinar a sua papa
de aveia com os dedos e com a boca. Parecia achar todas as experiências
extremamente interessantes. Era um bebê robusto com umas costas direitas e cabeça
bem levantada. Scarlett adorava-a. E, de um modo especial, respeitava-a. Gostava de
pegar Cat ao colo para beijar o seu cabelo macio, o pescoço, as bochechas, as mãos e
os pés; ansiava por pegá-la ao colo e embalá-la. Mas Cat só tolerava alguns minutos
de embalo, libertando-se depois com os pés e os punhos. E a sua pequenina e morena
cara tinha uma expressão tão revoltada que Scarlett era obrigada a rir, mesmo quando
era rejeitada à força.
A hora mais feliz para ambas era ao fim do dia, quando Scarlett dava banho em
Cat. Esta acariciava a água, rindo quando a mesma salpicava, e Scarlett atirava-a para
cima e para baixo e cantava para ela. Depois, havia a doçura de secar os seus
pequenos e perfeitos membros, cada dedo dos pés e das mãos, individualmente,
polvilhando de pó a sua pele sedosa e todas as pregas do seu corpinho de bebê.
Aos vinte anos de idade, a guerra forçara Scarlett a desistir da sua mocidade, de
um dia para o outro. O seu caráter e resistência endureceram e bem assim a sua cara.
Nesta Primavera de 1876, com a idade de trinta e um anos, a suavidade da esperança
e da ternura da mocidade regressaram gradualmente. Não percebia isso; a
preocupação com a quinta e com a filha substituíam a concentração de uma vida inteira
na sua própria vaidade.

- A senhora precisa comprar roupas - disse Mrs. Fitzpatrick, certo dia. - Ouvi dizer
que há uma modista que deseja alugar a casa em que a Senhora viveu, se estiver
disposta a pintá-la por dentro. É viúva e bastante abonada para poder pagar uma renda
justa. As mulheres da cidade vão gostar e a senhora precisa dela, a menos que queira
procurar outra em Trim.
- Que mal há na maneira como eu me visto? Visto-me de preto como uma viúva
decente deve vestir. As minhas anáguas quase nunca se vêm.
- A senhora não se veste de luto, de modo algum. A senhora veste roupas de
camponesa, manchadas de terra, com mangas enroladas, e não parece nada a Dama
da Casa Grande.
- Ora, besteira, Mrs. Fitz. Como poderia eu montar a cavalo para ir ver se o
capim-de-rebanho está crescendo, se vestisse roupas de senhora de casa? Além
disso, gosto de me sentir confortável. Assim que puder voltar às saias e blusas de cor,
começarei a preocupar-me com as nódoas que possam ter. Detestei sempre o luto,
nunca vi motivo para tentar tornar o preto uma cor alegre. O que quer que se lhe faça,
será sempre preto.
- Então, não está interessada na modista?
- Claro que estou interessada. Outra renda é sempre interessante. E um dia
destes pretendo encomendar alguns vestidos. Depois da sementeira. Os campos
devem ficar prontos para o trigo esta semana.
- Há ainda a possibilidade de mais uma renda - disse a governanta,
cuidadosamente. Por mais de uma vez, ficara surpreendida com a astúcia inesperada
de Scarlett. - O Brendan Kennedy acha que faria bem se acrescentasse uma
estalagem ao seu bar. Há o prédio ao lado dele, que a senhora lhe podia alugar.
- Quem virá a Ballyhara para ficar numa estalagem? Isso é uma loucura. Além
disso, se o Brendan Kennedy pretende alugar um prédio, devia ele próprio vir ter
comigo, de chapéu na mão, e não incomodá-la a ti.
- Ora, provavelmente não passou de conversa. - Mrs. Fitz entregou a Scarlett o
livro de despesas da casa da semana anterior, abandonando de momento a conversa
sobre a estalagem. Colum teria que a convencer; ele era muito mais persuasivo que
ela.
- Temos já mais criados que a rainha da Inglaterra - disse Scarlett. Dizia a mesma
coisa todas as semanas.
- Se a Senhora vai ter vacas, vai precisar de mãos para as mungir - disse a
governanta.
Scarlett continuou o refrão
-... e para separar a nata e fazer a manteiga, eu sei. E a manteiga vende-se bem.
Acho que não gosto de vacas. Tratarei das contas mais tarde, Mrs. Fitz. Agora gostaria
de levar a Cat para ver os trabalhadores cortarem turfa no brejo.
- Acho melhor que veja as contas agora. Estamos sem dinheiro na cozinha e as
moças precisam de ser pagas amanhã.
- Que chatice! Vou ter de levantar dinheiro do banco. Vou até lá no buggy.
- Se eu fosse banqueiro, não daria dinheiro a uma criatura vestida como a
senhora.
Scarlett riu.
- Resmungue, resmungue muito. Diga à modista que vou mandar pintar a casa.
Mas quanto à estalagem, nada, pensou Mrs. Fitzpatrick. Teria que falar com o
Colum. Nessa noite.

Por toda a Irlanda os fenianos cresciam cada vez mais em força e em número.
Em Ballyhara, tinham agora o que mais precisavam: um local seguro onde os líderes
de todos os condados se podiam reunir, a fim de planejarem a sua estratégia; e onde
se podia refugiar com segurança alguém fugido da milícia, apesar de os estranhos
serem notados demais numa cidade que era pouco maior que uma vila. Patrulhas da
milícia e da polícia, vindas de Trim, eram poucas, mas um só homem com olhos
perspicazes era o suficiente para destruir os melhores planos.
- Precisamos realmente da estalagem - disse Rosaleen Fitzpatrick, com firmeza. -
Faz sentido que um homem com negócios em Trim alugue um quarto perto da cidade,
é mais barato.
- Tens razão, Rosaleen - sossegou-a Colum -, vou falar com a Scarlett. Mas não
já. Ela é muito esperta. Aguardemos um pouco. Depois, quando lhe falar no assunto,
ela não desconfiará de por que é que estamos os dois a pressioná-la.
- Mas, Colum, não podemos perder tempo.
- Nem podemos botar tudo a perder com a pressa. Farei quando achar que
chegou o momento.
Mrs. Fitzpatrick teve que se contentar com a resposta. Colum é que liderava.
Consolou-se com a lembrança de que, pelo menos, conseguira encaixar a Margaret
Scanlon. E nem teve que inventar uma história para o efeito. Scarlett precisava de fato
de roupas. Era chocante a maneira como teimava em viver - os vestidos mais baratos,
duas salas que ocupava no meio de vinte salas vazias. Se Colum não fosse Colum,
Mrs. Fitzpatrick duvidaria do que ele dissera, que não há muito tempo atrás Scarlett
tinha sido uma dama muito elegante e moderna.

-... e se esse anel de diamantes se tornar latão, a mamãe te comprará um


espelho - cantava Scarlett. Cat chapinhava vigorosamente na água ensaboada do
banho. - A mamãe vai comprar-te lindos vestidos, também - disse Scarlett -, e vai
comprar alguns para a ela. Depois, partiremos num grande navio.
Não havia razão para adiar a viagem. Tinha que ir à América. Se partisse logo
depois da Páscoa, estaria de regresso bem a tempo das colheitas.
Scarlett tomara essa decisão no dia em que vira a delicada neblina verde sobre o
campo onde escavara a terra pela primeira vez. Uma onda de violenta exaltação e
orgulho provocou-lhe uma vontade de gritar bem alto: "isto pertence-me, é a minha
terra, são as minhas sementes brotando para a vida". Olhou para o feno, visivelmente
pouco crescido e imaginou-o crescer cada vez mais alto e forte, depois florescer,
perfumar o ar, intoxicando as abelhas até estas mal poderem voar. Nessa altura, os
homens o cortariam, as foices flamejando no ar, formando altas medas do doce e
dourado feno. Ano após ano, o ciclo repetia-se - semear e ceifar -, o milagre anual do
nascimento e do crescimento. A erva cresceria transformando-se em feno. O trigo
cresceria e se transformaria em pão. A aveia cresceria, transformando-se em farinha.
Cat cresceria - engatinharia, andaria, falaria, comeria a papa de aveia e o pão e pularia
sobre e feno empilhado no sótão do celeiro, tal como Scarlett fizera quando criança.
Scarlett semicerrou os olhos ao olhar para o sol, vendo as nuvens correrem de
encontro ao mesmo, e sentiu que iria chover em breve, e logo depois desanuviaria de
novo, e o sol aqueceria os campos até à chuvada seguinte, seguida de um sol
abrasador.
"Vou sentir de novo o calor escaldante do sol da Geórgia", decidiu ela, tendo
direito a isso. "Às vezes, sinto muito a sua falta. Mas, por outro lado, Tara é mais um
sonho que uma recordação. Pertence ao passado, como a Scarlett que eu fui. Essa
vida e essa pessoa nada mais têm a ver comigo. Fiz a minha escolha. A Tara de Cat é
a Tara irlandesa. A minha também o será. Eu sou A O'Hara, de Ballyhara. Guardarei a
minha parte de Tara para Wade e Ella herdarem, mas venderei tudo em Atlanta,
cortando com todos os laços ali. Ballyhara é agora a minha terra. As nossas raízes aqui
são fundas, as de Cat, as minhas e as do pai. Quando partir, levarei comigo um pouco
de terra O'Hara, para misturar com o barro da Geórgia, na cova de Gerald O'Hara."
A sua mente pairou por instantes sobre o assunto que tinha a tratar. Tudo isso
podia esperar. Precisava se concentrar na melhor maneira de falar a Wade e a Ella
sobre o seu novo e maravilhoso lar. Eles não iriam acreditar que ela os queria - por que
acreditariam? A verdade é que nunca os quisera. Até ter descoberto o que era amar
uma criança, o que era ser uma verdadeira mãe.
"Vai ser difícil", disse Scarlett a si própria, muitas vezes, "mas vou conseguir."
Posso redimir o meu passado. Trago tanto amor em mim que até derrama. Quero dar
algum ao meu filho e à minha filha. Ao princípio, poderão não gostar da Irlanda, é tão
diferente, mas depois de irmos ao Dia do Mercado algumas vezes e às corridas e de
lhes comprar os seus próprios pôneis... Ella, também, deve ficar linda de saia e
anáguas. Todas as meninas gostam de vestir bem... Vão ter milhões de primos, com
todos os O'Haras ao redor e as crianças da cidade de Ballyhara com quem brincar...

- Só poderás partir depois da Páscoa, querida Scarlett - disse Colum. - Vai haver
uma cerimônia na Sexta-Feira Santa, a que só A O'Hara pode presidir. Scarlett não
argumentou. Ser A O'Hara era muito importante para ela, mas estava aborrecida. Que
diferença faz quem planta a primeira batata? Também a irritou o fato de Colum não
querer ir com ela. E o fato de ultimamente se ausentar tanto.
- Em negócios - respondia ele.
Muito bem, por que não obtinha ele os seus donativos em Savannah de novo, em
vez de onde quer que fosse?
A verdade era que tudo a irritava. Agora que se decidira a partir, queria partir já.
Tornou-se impaciente com Margaret Scanlon, a modista, reclamando que estava
levando muito tempo para acabar os vestidos que lhe encomendara. E porque Mrs.
Scanlon pareceu muito curiosa quando Scarlett encomendou vestidos em seda e linho
de várias cores, juntamente com vestidos pretos de luto.
- Vou visitar a minha irmã na América - disse Scarlett, alegremente, -, os vestidos
de cor são presente para ela. - "E não me importo que acredites ou não", pensou,
zangada. "Não sou de fato uma verdadeira viúva e não pretendo regressar a Atlanta
com aspecto pouco atraente e desleixado." Subitamente, a sua saia preta utilitária, as
meias, a blusa e o xale tornaram-se extremamente depressivos. Mal podia esperar o
momento de vestir o vestido de linho verde com os largos babados de renda cremosa.
Ou o de seda cor-de-rosa e azul-marinho listrado... Se Margaret Scanlon algum dia
acabasse de os fazer.
- Vais ficar surpreendida quando vires como a tua mamãe fica bonita nos seus
novos vestidos - disse Scarlett a Cat. - Também encomendei lindos vestidinhos para ti.
- O bebé sorriu, revelando a sua pequena coleção de dentes.
- Vais gostar do grande navio - prometeu-lhe Scarlett.
Reservara o maior e o melhor camarote no Brian Boru, a partir de Galway na
sexta-feira a seguir à Páscoa.
No Domingo de Ramos, o tempo ficou frio, com uma chuva oblíqua forte, que
durou até a Sexta-Feira Santa. Scarlett estava toda molhada e gelada até os ossos,
quando a longa cerimônia no campo aberto terminou.
Apressou-se até a Casa Grande, logo que pôde, ansiosa por um banho quente e
por uma xícara de chá. Mas nem sequer teve tempo de mudar de roupa. Kathleen
estava à sua espera com um recado urgente.
- O velho Daniel está te chamando, Scarlett. Está doente do peito e vai morrer.

Scarlett respirou fundo quando viu o velho Daniel. Kathleen fez o sinal da cruz.
- Está morrendo - disse ela, em voz baixa.
Os olhos de Daniel O'Hara estavam enterrados nas órbitas, as faces descarnadas
e a cara parecia-se com uma caveira coberta de pele. Scarlett ajoelhou-se junto da
cama austera, pegando-lhe a mão. Estava quente, seca e fraca.
- Tio Daniel, é a Katie Scarlett.
Daniel abriu os olhos. O tremendo esforço de vontade que isso representava fez
com que Scarlett tivesse vontade de chorar.
- Tenho um favor a pedir - disse ele. A sua respiração era entrecortada.
- Tudo o que quiser.
- Enterra-me em terra dos O'Hara.
"Não seja estúpido, não vai morrer", quis Scarlett dizer, mas não podia mentir ao
velho homem.
- Assim farei - disse ela, à maneira irlandesa de dizer sim.
Os olhos de Daniel fecharam-se. Scarlett começou a chorar. Kathleen conduziu-a
a uma cadeira, junto da lareira.
- Ajudas-me a fazer o chá, Scarlett? Vêm todos aí.
Scarlett aquiesceu, incapaz de falar. Até esse momento, não percebera quão
importante o tio se tornara na sua vida. Falava pouco, ela quase nunca lhe falava e ele
limitava-se a estar ali, sólido, calado, imperturbável e forte. O chefe da família. No seu
entender, o tio Daniel era o O'Hara.
Kathleen mandou Scarlett embora antes de escurecer.
- Tens que cuidar do teu bebê e nada mais há a fazer aqui. Volta amanhã.
No sábado, tudo continuou na mesma. Durante o dia, um fluxo constante de
pessoas apareceu para apresentar os seus respeitos. Scarlett preparou bules e mais
bules de chá, cortou em fatias os bolos que os visitantes traziam, pôs manteiga no pão
para as sanduíches.
No domingo, ficou sentada junto do tio, enquanto Kathleen e os homens foram à
Missa. Quando estes regressaram, foi até Ballyhara. A O'Hara deverá celebrar a
Páscoa na igreja de Ballyhara. Pensou que o padre Flynn nunca mais terminava o seu
sermão, pensou que nunca mais se via livre das pessoas da cidade, que lhe
perguntavam sobre o estado do seu tio e expressavam os seus desejos de melhoras.
Mesmo após quarenta dias do jejum mais rigoroso - não havia dispensa para os
O'Haras de Ballyhara - Scarlett não sentia apetite para o grande jantar da Páscoa.
- Leve o jantar para a casa do seu tio - sugeriu Mrs. Fitzpatrick. - Estão lá homens
fortes que ainda trabalham no campo. Vão precisar de comida e a pobre da Kathleen
está muito ocupada com o velho Daniel.
Scarlett abraçou e beijou Cat antes de partir. Com as suas mãozinhas, Cat
acariciou as faces húmidas de lágrimas da sua mãe.
- Que gesto tão carinhoso, querida Kitty Cat. Obrigada, querida. A mamãe logo
ficará boa, depois podemos brincar e cantar no banho. E depois partiremos num
grande navio. - Scarlett desprezou-se por estar a pensar nisso, mas esperava não
perder o Brian Boru.
Nessa tarde, Daniel espevitou um pouco. Reconheceu as pessoas e chamou-as
pelos nomes.
- Graças a Deus - disse Scarlett a Colum. Também agradecia a Deus por Colum
estar ali. Por que é que ele se ausentava tanto? Sentira a sua falta nesse longo fim-de-
semana.
Na segunda-feira de manhã, foi Colum que lhe disse que o tio Daniel morrera
durante a noite.
- Quando é o funeral? Gostaria de poder viajar na sexta-feira. - Era tão bom ter
um amigo como Colum; ela podia dizer-lhe tudo, sem ter que se preocupar se ele
compreendia ou se desaprovava.
Colum sacudiu a cabeça devagar.
- Não pode ser, querida Scarlett. Havia muita gente que respeitava o tio Daniel e
virão muitos O'Haras de longas distâncias, por caminhos enlameados. O velório durará,
pelo menos, três dias, talvez quatro. Depois, será o enterro.
- Oh, não, Colum! E se eu não for ao velório; é mórbido demais, acho que não iria
aguentar.
- Terás que ir, Scarlett. Estarei contigo.
Ouviam-se os cânticos fúnebres mesmo antes de se avistar a casa. Scarlett olhou
para Colum com desespero, mas a expressão dele era firme. Estava uma multidão de
pessoas em frente à porta baixa. Tinham vindo tantos prantear Daniel que não havia
lugar para todos. Scarlett ouviu as palavras "A O'Hara", viu abrir caminho para lhe dar
passagem. Desejou de todo o coração que essa honra não lhe fosse prestada. Mas
caminhou com a cabeça baixa, resolvida a fazer o que tinha que ser feito, ao lado de
Colum.
- O corpo está na sala - disse Seamus. Scarlett fez-se forte. O pranto lúgubre
vinha dali. Entrou.
Viam-se grossas velas acesas sobre as mesas, à cabeceira e aos pés da cama
grande. Daniel estava deitado sobre a coberta, vestido de branco debruado a preto. As
suas mãos desgastadas pelo trabalho estavam cruzadas sobre o peito, com um rosário
entre os dedos.
- Por que nos deixaste? Ochón! Ochón, Ochón, Ullagón!
Uma mulher balançava de um lado para o outro, enquanto se lamentava. Scarlett
reconheceu a sua prima Peggy, que vivia na vila. Ajoelhou-se à beira da cama para
dizer uma oração ao tio Daniel. Mas o pranto fazia-lhe tanta confusão à cabeça que
não conseguia pensar.
- Ochón, Ochón.
O grito primitivo e lamentoso apertava-lhe o coração, amedrontando-a. Levantou-
se e foi até à cozinha.
Olhou com estupefacção para a massa de homens e mulheres que enchiam a a
cozinha. Comiam e bebiam e falavam como se nada de insólito estivesse acontecendo.
O ar estava espesso de fumaça dos cachimbos de barro dos homens, não obstante a
porta e janelas estarem abertas. Scarlett aproximou-se do grupo do padre Danaher.
- Sim, ele acordou para chamar as pessoas pelos nomes e para chegar ao fim de
alma limpa. Ah, foi uma bonita confissão a que ele fez, nunca ouvi melhor. Daniel
O'Hara era um homem bom. Não veremos outro igual nos nossos tempos. - Scarlett
afastou-se.
- E, Jim, lembras-te da ocasião em que Daniel e o seu irmão Patrick, Deus tenha
a sua alma, pegaram o porco premiado do inglês e carregaram com ele até o brejo da
turfa para parir leitões? Doze pequeninos leitões e todos guinchando, e a porca tão
feroz como um javali selvagem? O agente da terra tremia e o inglês rogava pragas e
todos os outros riam do espectáculo.
Jim O'Gorman deu uma gargalhada, esmagando o ombro do contador de histórias
com a sua mão grande de ferreiro.
- Não me lembro, Ted O'Hara, e tu também não, e essa é a verdade. Nenhum de
nós tinha nascido quando se deu o caso da porca, e tu bem o sabes. Ouviste-o contar
do teu pai como eu ouvi do meu.
- Mas não seria bom que tivéssemos visto, Jim? O teu primo Daniel era um
grande homem, e essa é que é a verdade.
"Sim, era", pensou Scarlett. Andou de um lado para o outro, ouvindo várias
histórias da vida de Daniel. Alguém reparou nela.
- E conte-nos lá, Katie Scarlett, sobre o seu tio recusar-se a aceitar a quinta com
as cem cabeças de gado que lhe ofereceu.
Ela pensou depressa.
- Foi assim que se passou - começou.
Uma dúzia de ouvintes atentos inclinaram-se para a ouvir. "Que é que eu vou
dizer?"
- Eu... Eu disse-lhe, "Tio Daniel"... disse eu, "Gostaria de lhe dar um presente".
Era melhor que fosse bom. Eu disse-lhe, "Tenho uma quinta de... cem acres... com um
regato veloz e um brejo próprio e... cem bois e cinquenta vacas leiteiras e trezentos
gansos e vinte e cinco porcos e... seis parelhas de cavalos". - A audiência suspirou
perante aquela grandeza. Scarlett sentiu-se inspirada. - "Tio Daniel", disse eu, "isto é
tudo para ti e além disso um saco de ouro". Mas a sua voz trovejou aos meus ouvidos,
fazendo-me estremecer. "Não vou tocar em nada, Katie O'Hara."
Colum pegou-lhe o braço, puxando-a para fora de casa, através da multidão, para
trás do celeiro. Depois, desatou a rir.
- Cada vez me surpreendes mais, querida Scarlett. Fizeste de Daniel um
gigante... mas não sei dizer se se trata de um gigante louco ou de um gigante nobre
demais para se aproveitar de uma mulher louca.
Scarlett riu com ele.
- Estava me divertindo tanto, Colum, devias ter-me deixado ficar. - De repente
tapou a boca com a mão. Como podia estar rindo no velório do tio Daniel?
Colum pegou-lhe nos pulsos, baixando-lhe a mão.
- Não te aflijas - disse ele -, num velório é suposto celebrar a vida de um homem e
da sua importância perante todos os que comparecem. O riso faz parte disso, tanto
como o pranto.
Daniel O'Hara foi enterrado na quinta-feira. O funeral foi quase tão imponente
como o da velha Katie Scarlett. Scarlett conduziu a procissão à cova que os filhos dele
tinham cavado no velho cemitério murado de Ballyhara, que ela e Colum tinham
descoberto e mandado limpar.
Scarlett encheu uma bolsa com terra da cova de Daniel. Quando a espalhasse
sobre a cova do seu pai, seria como se ele estivesse enterrado perto do irmão.
Quando o funeral terminou, a família dirigiu-se à Casa Grande para uns refrescos.
A cozinheira de Scarlett estava encantada por ter ocasião de exibir os seus dons.
Mesas compridas em tripé foram colocadas a toda a largura da sala de visitas e da
biblioteca. Estavam cobertas de fiambres, ganso, galinhas, carne de vaca, montanhas
de pão e de bolos, galões de cerveja preta, barris de uísque, rios de chá. Apesar das
estradas lamacentas, centenas de O'Haras tinham feito a viagem.
Scarlett trouxe Cat para baixo, para a apresentar aos familiares. A admiração por
eles demonstrada foi tanta ou mais do que ela esperara.
Depois, Colum forneceu um violino e um tambor, e três dos primos, tocando
gaitas, deram início à música, que durou horas. Cat sacudiu as mãos ao som da
música até adormecer de cansaço no colo de Scarlett. "Ainda bem que perdi o navio",
pensou esta; "isto é maravilhoso. Se ao menos a morte de Daniel não fosse a razão
desta alegria."
Dois dos primos aproximaram-se e, da sua enorme estatura, debruçaram-se
sobre ela, falando baixinho.
- Precisamos da O'Hara - disse o filho de Daniel, Thomas.
- Podes ir lá em casa amanhã, depois do café? - perguntou Joe, o filho de Patrick.
- Para quê?
- Nós te diremos amanhã, quando houver sossego para tu poderes pensar.
A questão era: quem devia herdar a quinta de Daniel? Devido a uma disputa
muito antiga, quando o velho Patrick morreu, dois primos O'Hara reclamaram esse
direito. Tal como o seu irmão Gerald, Daniel nunca fizera testamento.
"É o mesmo que aconteceu em Tara", pensou Scarlett, e a decisão foi fácil. O
filho de Daniel, Seamus, trabalhara arduamente na quinta durante trinta anos,
enquanto que o filho de Patrick, Sean vivera com a velha Katie Scarlett e não fizera
nada. Scarlett deu a quinta a Seamus. "Como o pai me devia ter dado Tara."
Ela era A O'Hara, de modo que não houve argumentação. Scarlett sentiu-se
exaltada, na certeza de que procedera com mais justiça em relação a Seamus do que
jamais alguém procedera para com ela.
No dia seguinte, uma mulher nada jovem deixou um cesto de ovos à porta da
Casa Grande. Mrs. Fitz descobriu que se tratava da namorada de Seamus. Há quase
vinte anos que esperava que ele a pedisse em casamento. Uma hora após a decisão
de Scarlett, Seamus o fez.
- Foi muito amável - disse Scarlett -, mas espero que não se casem tão cedo. A
este ritmo, nunca mais chegarei à América. - Alugara uma cabine num navio que
partiria em 26 de Abril, precisamente um ano após a data em que, inicialmente,
pensara terminar as suas "férias" na Irlanda.
O navio não era luxuoso como o Brian Boru. Nem sequer era um navio de
passageiros. Mas Scarlett tinha as suas próprias superstições - se adiasse a partida
para depois do Dia das Maias, nunca mais partiria. Além disso, Colum conhecia o navio
e o seu capitão. Era um navio de carga, é verdade, mas só transportava fardos do
melhor linho irlandês, nada de sujo. E a mulher do capitão viajava sempre com ele, de
modo que Scarlett teria companhia feminina e uma chaperone. Melhor que tudo, o
navio não era propelido a rodas nem a motor a vapor. Navegaria sem parar.
Havia mais de uma semana que o tempo estava magnífico. As estradas estavam
secas, as cercas floridas, a noite febril que Cat passara significava apenas que um
novo dente estava rompendo. Na véspera da partida, Scarlett correu, meio dançando,
até à casa da modista, em Ballyhara, para levantar o último vestido de Cat. Tinha fé
que nada iria correr mal agora.
Enquanto Margaret Scanlon embrulhava o vestido em papel de seda, Scarlett
olhou para a cidade deserta, devido à hora do jantar, e viu Colum entrar na
abandonada Igreja Protestante da Irlanda, do outro lado da larga rua.
"Oh, bem", pensou ela, "ele sempre se decidiu. Julguei que nunca mais iria
escutar a voz da razão. Não faz qualquer sentido que toda a cidade fique apertada
dentro daquela pequena capela, para ouvir a Missa todos os domingos, quando existe
essa grande e vazia igreja. Só porque foi construída por protestantes, não é razão para
os católicos a não tomarem para si. Não sei por que ele tem sido tão teimoso todo este
tempo, mas não o vou importunar. Só lhe direi como me sinto feliz por ele ter mudado
de idéias."
- Volto já - disse para Mrs. Scanlon. Caminhou apressada pelo carreiro cheio de
erva daninha que ia dar à pequena entrada lateral, bateu à porta e abriu-a. Ouviu um
disparo, depois outro, e sentiu algo afiado tocar-lhe na manga, e ouviu cair uma
chuvada de seixos aos seus pés, o que causou uma reverberação retumbante dentro
da igreja.
Um veio de luz vindo da porta aberta caía direätamente sobre um homem que se
tinha voltado para a encarar. A sua cara por barbear estava retorcida num esgar, e os
olhos escuros e sombrios eram como os de um animal bravio.
Estava meio agachado e apontava-lhe uma pistola, que aparecia por entre a
roupa esfarrapada que lhe cobria o corpo, agarrada por mãos sujas e firmes como uma
rocha.
"Ele disparou contra mim." Esta constatação encheu a mente de Scarlett. "Já
matou o Colum e agora vai matar a mim. Cat! Nunca mais a verei." Uma raiva enorme
libertou Scarlett da paralisia física do choque. Ergueu os punhos e lançou-se para a
frente.
O som do segundo tiro foi uma explosão ensurdecedora, que ecoou no teto de
pedra abobadado por um momento que pareceu eterno. Scarlett atirou-se ao chão,
gritando.
- Peço-te que fiqui quieta, querida Scarlett - disse Colum. Ela reconheceu-lhe a
voz; no entanto, não parecia a sua voz. O timbre desta voz era de aço e gelo.
Scarlett levantou o olhar. Viu o braço direito de Colum à volta do pescoço do
homem, a mão esquerda à volta do seu pulso, com a pistola apontada para o teto.
Vagarosamente, Scarlett levantou-se.
- Que se passa aqui? - perguntou, cuidadosamente.
- Fecha a porta, por favor - pediu Colum. - Vem bastante claridade das janelas.
- Que... se... passa... aqui?
Colum não lhe deu resposta.
- Larga-a, Davey - ordenou ele ao homem. A pistola caiu no chão de pedra com
um som metálico. Vagarosamente, Colum baixou o braço do homem. Retirou com
rapidez o seu próprio braço do seu pescoço e, com os punhos fechados, bateu na
cabeça dele. O homem caiu, inconsciente, aos pés de Colum.
- Por agora, ele está quieto - disse Colum. Passando por Scarlett, caminhou com
firmeza em direção à porta, que fechou silenciosamente, travando-a. - Agora, querida
Scarlett, temos de falar.
Atrás dela, Colum pegou-lhe pela parte superior do braço. Scarlett
desenvencilhou-se, voltou-se e encarou-o.
- Não "Temos", Colum. Tu. Tu é que tens de me explicar o que se passa aqui.
A voz de Colum retomou o calor e a cadência habitual. - Trata-se de um
acontecimento infeliz, querida Scarlett.
- Não me trates por "querida Scarlett". Não tentes cativar-me, Colum. Esse
homem tentou me matar. Quem é ele? Por que é que te escondes para te encontrares
com ele? Que se passa aqui?
A cara de Colum era apenas uma mancha pálida na sombra. O seu colarinho
parecia surpreendentemente branco.
- Vem até onde há claridade - disse, calmamente, encaminhando-se para um
lugar junto das janelas, pregadas com tábuas, através das quais passavam estreitas
tiras de luz solar.
Scarlett não podia acreditar no que via. Colum sorria para ela.
- Ora, se tivéssemos a estalagem isto nunca teria acontecido. Quis manter-te
afastada de tudo isto, querida Scarlett, pois torna-se uma preocupação depois de
sabermos do que se trata.
Como podia ele rir? Como se atrevia ele? Estava horrorizada demais para poder
falar.
Colum contou-lhe tudo sobre a Irmandade Feniana.
Quando acabou de falar, Scarlett recuperou a voz.
- Judas! Traidor sujo e mentiroso. Confiei em ti. Julguei que fosses meu amigo.
- Disse-te que se tratava de um assunto preocupante.
Ela estava magoada demais para reagir à sua resposta sorridente e pesarosa.
Tudo aquilo era uma traição. Ele tinha-a usado e enganado desde o momento em que
se encontraram. Todos eles - Jamie e Maureen, todos os primos de Savannah e da
Irlanda, todos os agricultores de Ballyhara. Até Mrs. Fitz. A sua felicidade era uma uma
ilusão. Tudo era uma tremenda decepção.
- Vais me ouvir agora, Scarlett? - Ela odiou a voz de Colum, o seu tom musical, o
seu encanto. "Não ouvirei." Scarlett tentou tapar os ouvidos, mas as palavras dele
passavam por entre os seus dedos.
- Lembra-te do teu Sul, com as botas do conquistador pisando o seu solo, e pensa
na Irlanda, na sua beleza e no sangue das suas vidas nas mãos assassinas do inimigo.
Roubaram-nos a nossa língua. Ensinar uma criança a falar irlandês é um crime nesta
terra. Não compreendes, Scarlett, se os teus ianques falassem em palavras que não
compreendesses, palavras aprendidas à ponta de espada, pois "pára" devia ser uma
palavra que devias conhecer das profundezas do teu ser, caso contrário, serias morta
por não parares. E depois a tua filha aprender a sua língua com esses mesmos
ianques, e a língua da tua filha não ser a tua, de modo que não conhecesse as
palavras de amor que lhe dirigias, e tu não saberes o que lhe dizer na língua ianque,
não podendo, assim, aceder aos seus desejos. Os ingleses roubaram-nos a nossa
língua e com esse roubo tiraram-nos os filhos.
"Tiraram-nos a terra que é nossa mãe. Não nos deixaram nada quando perdemos
os nossos filhos e a nossa mãe. Conhecemos na alma a derrota."
"Pensa nisso agora, Scarlett, quando a tua Tara te foi tirada. Lutaste por ela,
conforme me contaste. Com toda a tua vontade, com todo o teu coração, com toda a
tua inteligência, com todas as tuas forças. Quando era preciso mentir, tu mentias, se
fosse preciso enganar, tu enganavas e até matarias. Assim se passa conosco, que
lutamos pela Irlanda."
"E, no entanto, somos mais felizes que tu. Porque temos ainda tempo para as
doçuras da vida. Para a música, para a dança, para o amor. Tu sabes o que é amar,
Scarlett. Eu acompanhei o crescimento e o desabrochar da tua filha. Não vês que o
amor se alimenta a si próprio, sem gulodice, não percebes que o amor é uma taça
sempre cheia, pela qual se bebe continuamente?"
"Assim acontece com o nosso amor pela Irlanda e pelo seu povo. Tu és amada
por mim, Scarlett, e por todos nós. Não deixamos de te amar por a Irlanda ser o mais
forte dos nossos amores. Será que não amas os teus amigos pelo fato de amares a tua
filha? Um amor não anula o outro. Pensaste que eu era teu amigo, teu irmão. E sou,
Scarlett, e serei sempre até ao fim. A tua felicidade alegra-me, a tua tristeza é a minha
dor. No entanto, a Irlanda é a minha alma; não poderá ser considerado traição o que for
feito para a libertar da escravatura. Mas ela não diminui o amor que sinto por ti, antes
pelo contrário, aumenta-o."
As mãos de Scarlett afastaram-se dos ouvidos até ficarem suspensas, flácidas, ao
longo do corpo. Como sempre, Colum fascinara-a, quando falava assim, apesar de ela
não compreender nem metade do que ele dizia. Sentia como se tivesse sido
embrulhada em teias de aranha que a aqueciam e a prendiam ao mesmo tempo.
O homem inconsciente no chão gemeu. Scarlett olhou para Colum com medo.
- Esse homem é um feniano?
- Sim. Anda fugido. Um homem que ele julgava seu amigo, denunciou-o aos
ingleses.
- Foste tu que lhe deste a pistola. - Não era uma pergunta.
- Sim, Scarlett. Vês, não guardo mais segredos de ti. Escondi algumas armas por
toda esta igreja inglesa. Eu sou o armeiro da Irmandade. Quando chegar o dia, seja
que dia for, muitos milhares de irlandeses estarão armados para a rebelião, e essas
armas virão deste lugar inglês.
- Quando? - Scarlett receava a resposta dele.
Não há data marcada. Precisamos de mais cinco carregamentos, seis se for
possível.
- É isso que fazes na América?
- É. Arranjo fundos, com a ajuda de amigos, depois os outros acham maneira de
comprar armas com o dinheiro, trazendo-as para a Irlanda.
- No Brian Boru.
- E noutros navios.
- Vão matar ingleses.
- Sim. No entanto, seremos mais piedosos. Eles mataram as nossas mulheres e
os nossos filhos, assim como os nossos homens. Nós mataremos soldados. Um
soldado é pago para morrer.
- Mas tu és um padre - disse ela -, não podes matar.
Colum ficou calado por alguns momentos. Partículas de pó volteavam
preguiçosamente nas résteas de luz, que vinha da janela e que lhe incidiam sobre a
cabeça inclinada. Quando a levantou, Scarlett viu que os seus olhos estavam
escurecidos pela tristeza.
- Quando eu era um menino de 8 anos - disse ele -, via as carroças de trigo e as
manadas de gado passando na estrada, que vai de Adamstown a Dublim. Nesta última
cidade, vi as mesas de banquete dos ingleses, também vi a minha irmã morrer de
fome, pois só tinha 2 anos de idade e não tinha forças para se aguentar sem comida. O
meu irmão de 3 anos também poucas forças tinha. Os mais pequenos eram sempre os
primeiros a morrer. Choravam porque tinham fome e eram novos demais para
compreenderem por que é que não havia comida. Eu compreendia, pois tinha 8 anos e
era mais sábio. E não chorava, pois sabia que chorar absorvia a força necessária para
sobreviver sem comida. Outro irmão meu morreu, tinha 7 anos, e depois o de 6 anos e
o de 5 e, para vergonha minha, já não me lembro qual era a menina e qual o menino. A
seguir morreu a minha mãe, mais devido à dor do seu coração despedaçado que à dor
do seu estômago vazio. São precisos muitos meses para se morrer de fome, Scarlett.
Não é uma morte piedosa. Durante todos aqueles meses, as carroças, cheias de
alimentos, continuavam a passar por nós. - A voz de Colum não tinha vida. Depois,
cobrou ânimo. Eu era um rapaz vivaço. Aos 10 anos, e os anos de crise passados, e
com comida no estômago, era esperto nos estudos, bom nos livros. O nosso padre
achava que eu tinha possibilidade de vir a ser alguém e disse ao meu pai que, se me
dedicasse aos estudos, poderia ser aceito no seminário. O meu pai dava-me tudo o
que podia. Os meus irmãos mais velhos faziam mais que a sua parte no trabalho do
campo para que eu não precisasse os ajudar e tivesse tempo para os estudos.
Ninguém me invejava, pois era uma grande honra possuir um padre na família. E eu
aproveitei-me da boa vontade deles sem pensar, pois tinha uma fé pura e inabalável na
bondade de Deus e na sabedoria da Santa Madre Igreja, e acreditava ter uma vocação
genuína para o sacerdócio. - A sua voz subiu de tom. - Acho que agora vou saber a
verdade. O seminário contém muitos livros sagrados e homens santos e toda a
sabedoria da Igreja. Estudei, rezei e procurei. Sentia êxtase na oração, conhecimento
nos estudos. Mas não o conhecimento que eu procurava. "Porquê?", perguntava aos
meus professores, "porque é que as crianças têm que morrer de fome?" Mas a única
resposta que me davam era, "confia na sabedoria de Deus e tem fé no seu amor". -
Colum levantou os braços acima da sua face atormentada, e quase gritou ao dizer: -
Deus, meu Pai, sinto a Tua presença e a Tua força poderosa. Mas não consigo ver a
Tua cara. Por que voltaste as costas ao povo irlandês? - Os braços caíram. - Não
há resposta, Scarlett - disse, em voz entrecortada -, nunca houve uma resposta. Mas
eu tive uma visão e tenho-a seguido. Nessa visão, as crianças esfomeadas juntaram-se
todas e a sua fraqueza tornou-se menos fraca. Aos milhares, levantaram os seus
bracinhos descarnados e derrubaram as carroças cheias de comida, deixando assim
de morrer. É minha intenção agora derrubar essas carroças, expulsar os ingleses das
suas mesas de banquete, para dar à Irlanda o amor e a compaixão que Deus lhe
negou.
Scarlett ficou espantada com a sua blasfêmia.
- Vais para o Inferno.
- No Inferno já eu estou! Quando vejo soldados ridicularizarem uma mãe, que tem
que mendigar comida para os seus filhos, é uma visão do Inferno. Quando vejo
homens velhos empurrados para a sujeira das ruas, para que os soldados fiquem com
os passeios livres, vejo o Inferno. Quando vejo despejos das casas, flagelamentos, as
carroças a passarem, sob o peso dos cereais, por uma família que morre de fome, eu
digo que toda a Irlanda é um Inferno, e será com alegria que morrerei sofrendo o
tormento por toda a eternidade se, com isso, puder evitar aos irlandeses uma hora de
Inferno na terra.
Scarlett ficou impressionada com a sua veemência. Procurou compreender. E se
ela não tivesse estado na casa de Daniel quando os ingleses chegaram com o aríete?
E se todo o seu dinheiro desaparecesse e Cat sentisse fome? E se os soldados
ingleses fossem realmente como os ianques e roubassem os seus animais e
queimassem os campos que tinha visto esverdearem?
Sabia o que era sentir-se impotente perante um exército. Conhecia a fome. Eram
recordações que nenhuma quantidade de ouro podia apagar.
- Como poderei ajudar-te? - perguntou a Colum. Ele lutava pela Irlanda, e a
Irlanda era o lar do seu povo e da sua filha.

A mulher do capitão do navio era uma mulher robusta, de cara vermelha, que, ao
ver Cat, lhe estendeu os braços.
- Acha que ela vem para mim? - Em resposta, Cat estendeu-lhe os bracinhos.
Scarlett tinha a certeza de que Cat estava interessada nos óculos que estavam
pendurados por uma corrente à volta do pescoço da mulher, mas não o disse. Gostava
de ouvir elogiar a sua Cat e a mulher do capitão não parava de o fazer. - Mas que linda
que ela é... não, queridinha, são para colocar no nariz não na boca... que linda pele cor
de azeitona. O pai dela era espanhol? Scarlett pensou depressa.
- A avó era - disse ela.
- Que bom. - Retirou os óculos dos dedos de Cat e substituiu-os por um biscoito.
- Sou avó quatro vezes, é a coisa mais maravilhosa do mundo. Comecei a viajar
com o capitão quando as crianças cresceram, pois não suportava o vazio da casa. Mas
agora há o prazer acrescido dos netos. Depois de Savannah, vamos até Filadélfia
buscar carga, e ali passarei dois dias com a minha filha e os seus dois filhos.
"Esta mulher vai falar comigo até a saturação, antes mesmo de deixarmos a
baía", pensou Scarlett. "Não vou aguentar duas semanas desta conversa."
Cedo descobriu que não precisava se preocupar. A mulher do capitão repetiu as
mesmas coisas tantas vezes, que Scarlett tinha só que abanar a cabeça e dizer, de vez
em quando, "Santo Deus", sem sequer a ouvir. Scarlett podia fazer o seu passeio pelo
convés sem ter de se preocupar com o bebê. Era nessa altura que pensava melhor,
com o vento salgado batendo no rosto. Mais que tudo, fazia planos. Tinha muito que
fazer. Precisava arranjar um comprador para a sua loja. E havia a casa em Peachtree
Street. Rhett pagava a respectiva manutenção, mas era ridículo mante-la vazia, quando
não fazia tenções de voltar a viver nela...
Sendo assim, venderia a casa de Peachtree Street e a loja. O bar dava um bom
lucro e nenhum trabalho. Mas ela decidira cortar os laços com Atlanta, e isso incluía o
bar.
E quanto às casas que mandara construir? Não sabia absolutamente nada sobre
o projeto das mesmas. Tinha que averiguar, a fim de se certificar de que o construtor
estava ainda utilizando a madeira fornecida por Ashley...
Tinha que se certificar de que Ashley estava bem. E o Beau. Prometera isso a
Melanie.
Depois, quando resolvesse tudo em Atlanta, iria até Tara. Mas isso seria a última
coisa a fazer, porque quando Wade e Ella soubessem que iriam para a Irlanda com ela,
ficariam ansiosos por partir. Não seria justo mantê-los nessa expectativa. E dizer adeus
a Tara seria a parte mais difícil de tudo o que tinha que fazer. Era melhor fazê-lo
depressa; assim, não custaria tanto. Oh, como ela ansiava por ver Tara.
As longas e vagarosas milhas ao longo do Rio Savannah, desde o mar até a
cidade, pareciam nunca mais ter fim. O navio teve que ser puxado por um rebocador
com motor a vapor, através do canal. Scarlett caminhava desassossegada, de um lado
para o outro do convés, com Cat nos braços, tentando distrair-se com a excitação da
filha ao levantar vôo dos pássaros do pântano, em erupções repentinas. Estavam já tão
perto. Por que não chegavam? Queria ver a América, queria ouvir vozes americanas.
Finalmente, chegaram. Lá estava a cidade. E as docas.
- Oh, escuta, Cat, escuta os cânticos. São canções dos negros, isto é o Sul,
sentes o sol? Vai durar dias e dias. Oh, minha querida, minha Cat, a mamãe chegou
em casa.

A cozinha de Maureen estava como sempre estivera, nada mudara. A família era
a mesma. O afeto também. Os bandos de crianças O'Hara. O bebê de Patrícia era um
menino de quase 1 ano de idade, e a Katie estava grávida. Cat adaptou-se logo ao
ritmo diário das três casas. Olhava para as outras crianças com curiosidade, puxava-
lhes o cabelo, deixava que elas puxassem o seu, tornou-se uma delas.
Scarlett estava com ciúmes. "Ela não sente nenhuma falta minha, e não suporto a
idéia de a deixar, mas terei que o fazer. Muitas pessoas em Atlanta conhecem o Rhett
e poderiam falar-lhe dela. Eu o mataria se tentasse tirá-la de mim. Não a posso levar
comigo. Não tenho alternativa. Quanto mais cedo for, mais depressa regressarei. E vou
lhe trazer de presente o seu irmão e a sua irmã."
Enviou telegramas ao escritório do tio Henry Hamilton, e a Pansy na casa de
Peachtree Street, e apanhou o trem para Atlanta no dia 12 de Maio. Estava ao mesmo
tempo excitada e nervosa. Há tanto tempo que partira - tudo podia ter acontecido. Não
iria preocupar-se com isso agora, cedo descobriria tudo. Entretanto, usufruiria do sol
quente da Geórgia e do prazer de estar bem vestida. Tivera que vestir luto no navio,
mas agora estava radiosa vestida de linho irlandês verde-esmeralda.
Mas Scarlett já se esquecera de como eram sujos os trems americanos. Os
escarradores de ambas as extremidades do trem depressa se encheram de tabaco
mascado malcheiroso. Antes de percorridas vinte milhas, o corredor ficou cheio de lixo.
Um bêbado passou cambaleante pelo seu banco e ela, de repente, percebeu que não
devia viajar sozinha. Santo Deus, qualquer pessoa se pode sentar ao meu lado. Na
Irlanda, as coisas são feitas de uma maneira muito melhor. Primeira classe, significa o
que as palavras querem dizer. Ninguém se mete conosco no nosso compartimento.
Abriu o jornal de Savannah para se proteger dos olhares. O seu lindo saia-e-casaco de
linho já estava amarrotado e cheio de pó.
A confusão na estação rodoviária de Atlanta e os condutores temerários, falando
alto, no redemoinho de Five Points, fez bater de excitação o coração de Scarlett, e
esqueceu-se da sugeira do trem. Como tudo era vivo, vital, e sempre em mutação.
Havia prédios que não tinha visto antes, nomes novos nas montras de lojas antigas,
barulho, pressa e empurrões.
Olhou com avidez pela janela da sua carruagem para as casas de Peachtree
Street, identificando mentalmente os donos, reparando nos sinais de tempos melhores.
Os Merriweathers tinham um novo telhado, Os Meades tinham pintado a casa noutra
cor. As coisas não pareciam tão gastas como eram, quando ela fora embora, há um
ano e meio atrás.
Lá estava a sua casa. "Oh! Não me lembro que estivesse tão junto das outras.
Quase não existe pátio. Esteve sempre assim tão perto da rua? Por Deus, estou sendo
boba. Que diferença faz? De qualquer modo, já decidi vendê-la."
Não era a hora apropriada para vender, disse o tio Henry Hamilton. A depressão
não melhorara, e o negócio era mau em todo o lado. O mercado mais difícil de todos
era o imobiliário, e as casas grandes, como a dela, eram as mais difíceis de vender. As
pessoas moviam-se no sentido descendente e não ascendente.
Quanto às pequenas casas, como as que ela construíra na extremidade da
cidade, vendiam-se muito facilmente. Tinha ali uma fortuna. Por que é que as queria
vender? A casa grande não lhe custava nada. Rhett pagava todas as despesas com o
dinheiro que restara.
"Ele está me olhando como se eu cheirasse mal ou coisa parecida", pensou
Scarlett. "Responsabiliza-me pelo divórcio." Por um momento, pensou em protestar,
contando a sua parte da história, o que tinha realmente acontecido. "O tio Henry é o
único que está do meu lado. Se não fosse ele, todos em Atlanta me olhariam com
desprezo."
"E não me importo com isso nem um pouco." A idéia se acendeu na mente como
uma vela romana. Henry Hamilton está errado em me julgar, tal como estão todos em
Atlanta. Eu não sou como eles e não quero ser. Sou diferente, eu sou eu. Eu sou A
O'Hara.
- Se o Senhor não se quer incomodar com a venda do meu imóvel, não lhe levarei
a mal, Henry. - disse ela. - Diga-me apenas que não quer. - Havia uma dignidade
simples na sua atitude.
- Sou um homem velho, Scarlett. Seria talvez melhor para ti se arranjasses um
advogado mais novo.
Scarlett levantou-se da cadeira, pegou-lhe a mão e sorriu com verdadeira
amizade.
Só depois de ela ter partido, ele conseguiu descobrir o que havia de diferente
nela.
- A Scarlett cresceu. Não me chamou "tio Henry"!
- Mrs. Butler está em casa?
Scarlett reconheceu imediatamente a voz de Ashley. Correu da sala de estar para
o vestíbulo; com um gesto rápido da mão, dispensou a criada que abrira a porta.
- Querido Ashley, estou tão feliz por te ver. - Estendeu-Ihe ambas as mãos.
Ele apertou-as fortemente nas suas, fitando-a.
- Scarlett, nunca estiveste tão bonita. O clima estrangeiro fez-te bem, Diz-lá, onde
tens estado, que tens feito? O tio Henry disse-me que tinhas ido para Savannah e que
depois perdeu contato contigo. Estávamos todos sem saber.
"Sim, aposto que todos gostariam de saber, especialmente a tua velha irmã
bisbilhoteira", pensou ela.
- Entra e senta-te - convidou -, estou desejosa de ouvir todas as novidades.
A criada aguardava ao lado. Scarlett disse-lhe em voz baixa:
- Traz-nos café e bolos.
Conduziu-o até à sala de visitas e sentou-se num sofá, apontando para o lugar ao
lado dela.
- Senta-te junto de mim, Ashley, senta-te. Quero olhar para ti. - "Graças a Deus, já
perdeu aquele olhar de gato pingado. Henry Hamilton devia ter razão quando disse que
Ashley estava saindo-se bem." Scarlett estudou-o com olhos semicerrados, enquanto
se ocupava em arranjar lugar na mesa para a bandeja do café. Ashley Wilkes era ainda
um belo homem. As suas feições finas e aristocráticas tinham-se tornado mais distintas
com os anos. Mas parecia mais velho do que era. "Não pode ter mais de 40 anos",
pensou Scarlett, "e o seu cabelo é mais prata que ouro. Deve passar mais tempo na
serraria do que costumava, está com um bonito tom de pele, não aquele tom cinzento
de escritório que tinha antes." Ela fitou-o com um sorriso. Era bom vê-lo.
Especialmente, com aquele ar saudável. A sua obrigação para com Melanie não lhe
parecia tão pesada agora.
- Como está a tia Pitty? E a Índia? E o Beau? Deve estar um homenzinho!
Pitty e Índia estavam na mesma, respondeu Ashley, com um trejeito dos lábios.
Pitty sempre deprimida e Índia muito ocupada com o seu trabalho da comissão para a
melhoria da moral de Atlanta. Estragavam-no com mimos, duas solteironas, tentando
ver qual era a melhor mãe galinha. Também tentaram estragar Beau com mimos, mas
ele não o consentira. Os olhos cinzentos de Ashley iluminaram-se de orgulho. Beau era
um homenzinho. Em breve faria 12 anos, mas parecia ter 15. Era presidente de uma
espécie de clube que os rapazes da vizinhança tinham formado. Tinham construído
uma casa numa árvore, no pátio traseiro de Pitty, feita da melhor madeira que a
serraria fornecia. Beau é que a escolhera; já entendia mais do negócio de madeiras
que o pai, disse Ashley, com um misto de tristeza e de admiração. E, acrescentou com
orgulho intensificado, o rapaz parecia ter as qualidades de um estudioso. Já tinha
ganho um prêmio escolar por uma composição em latim, e já lia livros para pessoas
mais velhas que ele.
- Mas deves estar aborrecida a ouvir isto tudo, Scarlett. Pais orgulhosos podem
ser muito maçantes.
- Nem um pouco, Ashley - mentiu Scarlett. Livros, livros, livros, era isso
precisamente que estava errado com os Wilkes. Viviam toda a sua vida à base de
livros, não da própria vida. Mas talvez o rapaz se saísse bem. Se já entendia de
madeiras, havia salvação para ele. Agora, se Ashley não se armasse em orgulhoso,
havia mais uma promessa que fizera a Melly que gostaria de cumprir. Scarlett colocou
a mão na manga de Ashley.
- Tenho um grande favor a pedir-te - disse ela. Os seus olhos pareciam implorar.
- O que quiseres, Scarlett, já devias saber. - Ashley cobriu a mão dela com a dele.
- Quero que me prometas que vais consentir que eu envie o Beau para a
Universidade e depois com o Wade numa grande viagem. Isso é importante para mim...
pois eu penso nele como um filho, também, visto ter estado presente quando ele
nasceu. E, ultimamente, tenho ganho muito dinheiro, portanto não há problema. Não
podes ser tão mesquinho que me vás negar isso.
- Scarlett. - O sorriso de Ashley desapareceu. Estava muito sério.
"Oh, céus, ele vai armar-se em difícil. Graças a Deus, vem aí essa moça de fala
arrastada com o café. Ele não poderá falar na frente dela e eu terei oportunidade de
fazer mais uma investida, antes que ele tenha oportunidade de dizer não."
- Quantas colheres de açúcar, Ashley? Eu preparo-te ocafé.
Ashley tirou-lhe a xícara da mão e colocou-a sobre a mesa.
- Deixa que o café espere um momento, Scarlett. - Pegou na mão dela. - Olha
para mim, querida Scarlett. - Os seus olhos estavam iluminados de ternura. A mente de
Scarlett vagueava. "Ora esta, ele quase parece o Ashley de outrora, o Ashley Wilkes,
de Twelve Oaks."
- Eu sei como o dinheiro te foi parar às mãos, Scarlett. O tio Henry sem querer,
revelou-o. Compreendo como te sentes. Mas não há necessidade. O Rhett nunca foi
digno de ti, fizeste bem em te livrares dele, não interessa como. Podes pôr isso tudo
para trás das costas, como se nunca tivesse acontecido.
"Santo Deus, o Ashley vai propor-me casamento!"
- Estás livre do Rhett. Diz que casarás comigo, Scarlett, e eu prometo que
dedicarei a minha vida a fazer-te feliz, da maneira como mereces ser.
"Houve uma época em que trocaria a alma por aquelas palavras", pensou
Scarlett, "e não é justo que ao ouvi-las agora, não sinta nada. Oh, por que é que o
Ashley teve que fazer isto?" Antes de a pergunta estar feita, já ela sabia a resposta.
"Foi por causa das más-línguas de então. Ashley estava decidido a redimi-la perante os
olhos da sociedade de Atlanta. Era típico dele! Procederá cavalheirescamente, mesmo
que isso signifique arruinar a própria vida."
"E, a propósito, a minha também. Acho que ele nem se preocupa em pensar
nisso." Scarlett mordeu os lábios para controlar a raiva. Pobre Ashley. Não tinha culpa
de ser como era. Rhett dissera: o Ashley pertence ao tempo de antes da guerra. Não
tem lugar no mundo de hoje. "Não me posso zangar com ele, nem ser maldosa. Não
quero perder ninguém que fez parte dos dias gloriosos de então. Tudo o que resta
desse mundo são as recordações e as pessoas que compartilharam dele."
- Querido Ashley - disse Scarlett -, não quero casar contigo. E não se fala mais
nisso. Não vou fazer jogos de amor contigo, nem mentir, nem ter-te arquejando atrás
de mim. Já sou muito velha e gosto demais de ti para isso. Foste sempre uma parte
importante do meu passado e serás sempre. Vamos manter as coisas assim, está
bem?
- Claro, querida. Sinto-me honrado por pensares assim. Não te vou incomodar
mais falando de casamento. - Sorriu e parecia tão jovem, tão parecido com o Ashley de
Twelve Oaks, que o coração de Scarlett se apertou. Querido Ashley. Nunca deveria
saber que ela percebera o alívio que adivinhara na sua voz. Tudo estava bem. Não,
melhor que bem. Agora, podiam de fato ser amigos. O passado acabara sem
problemas.
- Quais são os teus planos, Scarlett? Vieste para ficar, espero.
Ela estava preparada para esta pergunta, mesmo antes de partir de Galway.
Devia assegurar-se de que ninguém em Atlanta a encontrasse, caso contrário corria o
risco de se cruzar com o Rhett e de perder Cat.
- Vou vender tudo, Ashley, mas por enquanto não quero manter nenhuma ligação.
Depois de visitar Savannah, fiz uma visita a alguns familiares do pai, na Irlanda, e a
seguir viajei. - Tinha que ter cuidado com o que dizia. Ashley já viajara pelo estrangeiro
e descobriria logo que ela mentia se dissesse que tinha estado em lugares em que
nunca estivera. - Não sei bem porquê, mas não cheguei ir a Londres. Pensei que podia
me instalar lá por uns tempos. Dá-me um conselho, Ashley. Achas que Londres é uma
boa idéia? - Scarlett sabia, através de Melanie, que ele considerava Londres uma
cidade perfeita. Esperava que ele falasse no assunto e se esquecesse de fazer mais
perguntas.
- Gostei muito de passar a tarde contigo, Ashley. Virás me ver mais vezes?
Estarei aqui por uns tempos, para resolver uns assuntos.
- Tanto quanto puder. Será um grande prazer. - Ashley aceitou o chapéu e as
luvas que a criada lhe entregou. - Adeus, Scarlett.
- Adeus. Oh, Ashley, vais me fazer o favor que te pedi, não vais? Se não fizeres,
me sentirei muito infeliz.
- Não sei se...
- Juro-te, Ashley Wilkes, se não me deixares estabelecer um fundo para o Beau,
chorarei como um rio transbordante. E sabes tão bem como eu que um cavalheiro não
faz uma senhora chorar deliberadamente.
Ashley inclinou-se sobre a mão dela.
- Pensei que tinhas mudado muito, Scarlett, mas enganei-me. Consegues ainda
torcer um homem em volta do teu dedo mindinho e fazer com que ele goste. Seria um
mau pai se negasse a Beau um presente teu.
- Oh, Ashley, eu te amo e sempre te amarei. Obrigada. - "E agora corre para a
cozinha e vai contar tudo o que ouviste", pensou Scarlett, referindo-se à criada, que
acompanhou Ashley à porta. "Agora vou dar uma oportunidade às velhas
mexeriqueiras para terem o que falar. De resto, eu amo o Ashley e amarei sempre, de
um modo que ninguém poderá compreender."
Scarlett levou mais tempo do que pensara para finalizar os seus assuntos em
Atlanta. Só partiu para Tara em 10 de Junho.
Já há quase um mês que estava longe de Cat! Não aguentou mais. "Ela até pode
me esquecer. Provavelmente, já lhe nasceram mais um ou dois dentinhos, sem que eu
estivesse presente. E se ela estiver irritável e ninguém souber que ela se sentiria
melhor se pudesse chapinhar na água? Faz tanto calor. Pode ser que tenha apanhado
líquen. Um bebé irlandês não aguenta de tempo quente."
Durante a sua última semana em Atlanta, Scarlett estava tão nervosa que mal
podia dormir. Por que é que não chovia?
Um pó vermelho cobria tudo, meia hora depois de se limpar.
Mas, uma vez no trem para Jonesboro, conseguiu relaxar. Não obstante as
demoras, conseguira fazer tudo o que se propusera fazer, e melhor do que era possível
fazer, segundo a opinião do tio Henry Hamilton e do novo advogado.
Claro que a venda mais fácil fora a do bar. A depressão aumentara o volume do
negócio e o seu valor. Quanto à loja, fora uma pena. Valia mais pelo terreno onde
estava que como imóvel; os novos proprietários iam demolir o edifício e construir um
prédio de oito andares. Pelo menos, Five Points continua a ser Five Points, com
depressão ou sem depressão. Ganhara bastante com aquelas duas vendas e com o
dinheiro obtido comprara outros cinquenta hectares e mandara construir cem casas, na
extremidade da cidade. Isto faria com que Ashley se mantivesse próspero com a venda
da sua madeira durante alguns anos. O construtor também lhe dissera que os outros
construtores estavam começando a comprar madeira somente de Ashley. O mesmo
não se podia dizer das outras serrarias de Atlanta. Parecia realmente que ele viria a ser
um sucesso, mesmo sem querer ser.
E ela iria fazer uma fortuna. Henry Hamilton tinha razão quanto a isso. As suas
pequenas casas vendiam-se à medida que iam ficando prontas.
Com elas obtivera um bom lucro. Muito lucro. Ficou espantada quando viu quanto
dinheiro se acumulara na sua conta bancária. O suficiente para cobrir todas as
despesas que a tinham preocupado em Ballyhara todos estes meses, com dinheiro
saindo e pouco entrando. Agora tiraria a desforra. A colheita traria só lucro, sem
quaisquer despesas, e ainda providenciaria sementes para o ano seguinte. E as rendas
das casas da cidade com certeza subiriam, também. Antes da sua partida, um tanoeiro
mostrou-se interessado numa das cabanas vazias e Colum dissera-lhe que havia um
alfaiate interessado noutra.
Mesmo que não tivesse ganho tanto dinheiro, teria feito o mesmo, mas, com
dinheiro, tudo era mais fácil. O construtor recebera instruções para remeter todos os
lucros futuros para Stephen O'Hara, em Savannah. Este teria todo o dinheiro de que
precisava para levar a cabo as instruções de Colum.
Era engraçado o que se passava com a casa de Peachtree Street, pensou
Scarlett. "Pensei que fosse difícil separar-me dela. Afinal, foi ali que vivi com o Rhett, o
lugar onde Bonnie nasceu e viveu a sua vida terrivelmente curta. Mas a única coisa que
senti foi alívio. Quando aquela escola de moças fez uma oferta, quis beijar a cara de
ameixa seca da diretora. Foi como se tivesse me libertado de correntes. Agora estou
livre. Mais nenhuma obrigação em Atlanta. Mais nenhum laço."
Scarlett sorriu a si própria. Tal como os seus espartilhos. Nunca mais usaria,
desde que Colum e Kathleen a libertaram disso em Galway. A sua cintura tinha alguns
centímetros a mais, mas continuava sendo mais delgada que a da maioria das
mulheres que via na rua, que estavam de tal modo apertadas que mal podiam respirar.
E ela sentia-se bem - isto é, tão bem como qualquer pessoa se podia sentir com aquele
calor. Também podia se vestir sozinha e não estar dependente das criadas. E o grosso
chignon que fazia com o cabelo, não lhe dava trabalho para pentear sozinha. Era
maravilhoso ser auto-suficiente. Era maravilhoso não ter que se preocupar com o que
as outras pessoas faziam ou não faziam ou com o que aprovavam ou desaprovavam. E
o mais maravilhoso de tudo era regressar a uma Tara, para depois regressar com os
filhos a outra Tara, na Irlanda. Cedo estaria junto da sua preciosa Cat. E pouco depois
estaria de novo na fresca, doce e chuvosa Irlanda. A mão de Scarlett acariciou a bolsa
de pele no seu peito. A primeira coisa a fazer era levar a terra de Ballyhara para a
campa do seu pai.
"Onde quer que estejas, pai, podes me ver? Sabes uma coisa? Se pudesses,
sentirias muito orgulho da tua Katie Scarlett, pai. Eu sou A O'Hara."
Will Benteen estava à espera dela na estação ferroviária de Jonesboro. Scarlett
fitou a seu rosto gasto pelo tempo e o corpo enganadoramente mole, e sorriu de orelha
a orelha. Will devia ser o único homem que Deus fez que parecia estar espreguiçando-
se numa perna de pau.
- Pelo amor de Deus, Scarlett, quase me atiraste ao chão. É bom te ver.
- É bom te ver, Will. Estou mais contente por te ver que a qualquer outra pessoa
em toda a viagem. - Era verdade.
Will era-lhe mais querido que os O'Haras de Savannah. Talvez por ter passado os
maus tempos com ela, talvez por ele amar Tara tanto quanto ela. Talvez por ser
apenas um homem bom e honesto.
- Onde está a tua criada?
- Oh, já não preciso de criada, Will. Já não preciso de muitas coisas de que
costumava precisar.
Will mudou de lugar a palha que estava na sua boca.
- Já reparei nisso - disse ele, laconicamente. Scarlett riu. Antes nunca pensara o
que sentiria um homem ao abraçar uma mulher sem espartilho.
- Nada de prisões para mim, Will, nunca mais, de nenhuma espécie - disse ela.
Gostaria de poder lhe dizer por que estava tão feliz, falar-lhe sobre Cat, sobre
Ballyhara. Se fosse só por Will, ela lhe contaria tudo num minuto, pois confiava nele.
Mas ele era o marido de Suellen, e ela não confiava nada na sua irmã. E o Will podia
sentir-se no dever de contar à mulher tudo o que ela lhe contasse. Scarlett conteve a
língua.
Subiu para o banco da carroça. Nunca vira Will utilizar o buggy - Aproveitara a ida
à estação para comprar mantimentos.
A carroça estava carregada de sacos e de caixas.
- Conta-me todas as novidades, Will - disse Scarlett, quando estavam a caminho.
- Há muito que não sei de nada.
- Ora, deixa-me ver. Calculo que queiras primeiro ouvir notícias sobre os garotos.
Ella e a nossa Susie são amigas íntimas . O fato de Susie ser um pouco mais nova,
representa uma vantagem para Ella e isso tem-lhe feito muito bem. Mal vais
reconhecer o Wade, quando o vires. Começou a crescer. Apesar da aparência delgada,
é forte como uma mula. Trabalha como uma, também. Graças a ele, há mais vinte
hectares cultivados este ano.
Scarlett sorriu. Que grande ajuda ele seria em Ballyhara, e como iria gostar de o
ser. Um agricultor nato, e ela nunca pensara nisso. "Deve sair ao pai."
- A nossa Martha tem agora 7 anos e Jane, o bebê, fez 2 em Setembro último.
Suellen perdeu uma criança o ano passado, era uma menina.
- Oh, Will, lamento muito.
- Decidimos não tentar de novo - disse Will. - Foi muito duro para a Suellen e por
isso o doutor aconselhou que não tivéssemos mais filhos. Temos três meninas
saudáveis e isso é mais do que a maioria das pessoas têm para lhes dar felicidade.
"Claro que gostaria de ter um rapaz, qualquer homem gosta, mas não me queixo.
Além disso, o Wade tem sido como um filho que qualquer homem gostaria de ter. É um
óptimo rapaz, Scarlett.
Ela ficou feliz ao ouvi-lo dizer isto. E surpreendida. Will tinha razão, ela não iria
reconhecer o Wade. Não se ele fosse tudo aquilo que Will dizia dele. Lembrava-se de
um rapazinho tímido, amedrontado e pálido.
- Gosto tanto do Wade que concordei em falar por ele, apesar de não ter o
costume de meter o nariz nos assuntos dos outros. Ele teve sempre um pouco de
medo de ti , Scarlett, sabes disso. Seja como for, o que ele quer que eu te diga é que
não deseja estudar mais. Este mês acabará os estudos aqui, e a lei não o obriga a
estudar mais.
Scarlett sacudiu a cabeça.
- Não, Will. Podes tu lhe dizer ou então faço-o eu. O pai dele frequentou a
Universidade e o Will também o fará. Sem ofensa, Will, mas um homem não pode ir
muito longe sem uma boa educação.
- Não me ofendo, mas acho que estás errada. Wade sabe ler e escrever e fazer
contas tanto quanto qualquer agricultor precisa saber. E é isso que ele quer. Ser
agricultor. Cultivar Tara, melhor dizendo. Ele alega que o seu avô construiu Tara sem
mais escolaridade que ele e não vê razão para ser diferente. O rapaz não se parece
comigo, Scarlett. Bolas, eu pouco mais sei que escrever o meu nome. Ele tem quatro
anos daquela escola fina que lhe arranjaste em Atlanta e mais três aqui na escola
pública. Sabe tudo o que um camponês deve saber. E que é que ele é, Scarlett? Um
camponês, e sente-se feliz em o ser. Detestaria ver-te destruí-lo.
Scarlett ficou irritada. Com quem pensava Will Benteen que estava falando? Ela
era a mãe de Wade, sabia o que era melhor para ele.
- Já que estás enfurecida, talvez seja melhor acabar o que tenho a dizer -
continuou Will, no seu sotaque arrastado das gentes do Sul. Olhou diretamente para a
estrada poeirenta à sua frente. - No Tribunal do Condado, mostraram-me papéis
respeitantes a Tara. Parece-me que conseguiste pôr a mão na parte de Carreen. Não
sei quais os teus planos, Scarlett, e não te vou perguntar. Mas vou-te dizer o seguinte.
Se alguém me aparecer pela frente e abanar qualquer documento legal quanto à
aquisição de Tara, tenciono barrar-lhe o caminho com uma arma na mão.
- Will, juro sobre um monte de Bíblias que não tenho intenção de fazer nada com
Tara. - Scarlett sentiu-se grata por dizer a verdade. A fala anasalada e arrastada de
Will era mais ameaçadora que um grito podia ser.
- Ainda bem. No meu entender, acho que devia pertencer a Wade. Ele é o único
neto do teu pai, e a terra deve permanecer na família. Espero que o deixes ficar onde
ele está, Scarlett, para que seja o meu braço direito e um filho para mim, exatamente
como o é agora.
- Vou pensar nisso - prometeu Scarlett. A carroça rangeu ao longo da estrada
familiar e ela viu que a terra que ela conhecera como campo cultivado tinha regressado
ao estado de moitas e de ervas de raízes espessas. Quis chorar.
- Onde tens estado estes dois anos, Scarlett? Se não fosse a Carreen, não
saberíamos para onde tinhas ido, mas depois ela também perdeu o teu rastro.
Scarlett esforçou-se por sorrir.
- Tenho tido muitas aventuras, Will, viajando por todo o lado. Também visitei os
meus parentes O'Hara. Alguns deles estão em Savannah, as pessoas mais bondosas
que conheço. Fiquei com eles bastante tempo. E depois parti para a Irlanda, para
visitar outros parentes. Não imaginas quantos O'Haras existem. - As lágrimas vieram-
lhe aos olhos. Apertou a bolsa de cabedal de encontro ao peito. - Will, trouxe uma coisa
para o pai. Deixa-me ficar no cemitério e mantém todos afastados por uns momentos.
- Com todo o prazer.
Scarlett ajoelhou-se ao sol, junto da cova de Gerald O'Hara. A terra preta
irlandesa filtrava-se por entre os dedos, misturando-se com o barro encarnado da
Geórgia.
- Escuta, pai - murmurou ela, e o tom da sua voz era irlandês. - County Meath é,
na verdade, um grande lugar. Eu não sabia, pai, desculpa. Agora vejo que devias ter
tido uma vigília condigna ouvindo contar todas as histórias da tua juventude. - Ergueu a
cabeça e o sol iluminou a torrente de lágrimas que lhe corriam pelo rosto. A sua dor era
grande e a voz entrecortada de lágrimas, mas ela fez o melhor que pôde.
- Por que me deixaste? Ochón! Ochón, Ochón, Ullagón!
Scarlett estava satisfeita por não ter contado a ninguém em Savannah sobre o
seu plano de levar Wade e Ella para a Irlanda com ela. Agora, não teria que explicar
por que os deixara em Tara; seria muito humilhante contar-lhes a verdade, que os seus
próprios filhos a não queriam, que a consideravam uma estranha, e ela a eles. Não
podia admitir a ninguém, nem mesmo a si própria, quanto isso a magoava e quanto se
recriminava. Sentia-se pequena e mesquinha; dificilmente podia alegrar-se por Ella e
Wade serem tão obviamente felizes.
Tudo em Tara a magoara. Sentira-se como uma estranha. Se não fosse o retrato
da avó Robillard, dificilmente reconheceria alguma coisa na casa. Suellen utilizara o
dinheiro todos os meses para comprar novas mobílias e acessórios. A madeira sem
defeitos das mesas brilhava intensamente aos olhos de Scarlett, as cores dos tapetes e
das cortinas pareciam-lhe brilhantes demais. Detestava-as. E o calor vindo do forno, de
que ela tantas saudades tinha, provocara-lhe uma dor de cabeça que durara toda a
semana em que ali estivera.
Gostara de visitar Alex e Sally Fontaine, mas o novo bebê deles só lhe lembrava
quanta falta sentia de Cat.
Foi só na casa dos Tarletons que ela se divertiu. A quinta deles ia bem, e Mrs.
Tarleton falou sem parar da égua que ia ter cria e das suas expectativas quanto à égua
de três anos, a qual insistiu que Scarlett visse.
As visitas constantes e fáceis, sem necessidade de convites, tinham sido sempre
o que de melhor havia no Condado.
Mas ficara contente ao deixar Tara, e isso também a magoou. Se não soubesse
quanto Wade a amava, lhe teria partido o coração constatar que estava ansiosa por
partir. Pelo menos, o filho tomaria o seu lugar. Depois da visita a Tara, foi ver o seu
novo advogado em Atlanta, onde fez um testamento, deixando a sua parte de dois
terços de Tara ao filho. Não iria fazer o que o pai e o tio Daniel tinham feito, ao
deixarem uma série de problemas às suas costas. E se Will morresse primeiro, ela não
confiava nem um pouco em Suellen. Scarlett assinou o documento com um floreado e
depois sentiu-se livre.
Voltar para junto de Cat. Cat que sarava todas as suas feridas num segundo. A
sua carinha iluminou-se quando viu a mãe, e estendeu-lhe logo os braços, não se
importando de ser abraçada e beijada uma dúzia de vezes.
- Ela está tão bronzeada e saudável! - exclamou Scarlett.
- E não admira que esteja - disse Maureen. - Gosta tanto do sol que tira a touca
assim que lhe viramos as costas. O que ela é é uma pequena cigana e um verdadeiro
encanto todas as horas do dia.
- Do dia e da noite - corrigiu Scarlett, apertando a filha nos braços.
Stephen deu a Scarlett instruções para a viagem de regresso a Galway. Ela não
gostou dessas instruções. Para dizer a verdade, também não gostava muito de
Stephen. Mas Colum dissera-lhe que Stephen estava encarregado de todos os planos.
Vestiu a roupa de luto e guardou para si as reclamações.
O navio tinha o nome de The Golden Fleece e era a última palavra em luxo.
Scarlett não tinha razão de queixa com o tamanho ou o conforto da sua suíte. Mas o
navio não fez uma viagem direta. Levou uma semana mais do que devia, e ela estava
desejosa de regressar a Ballyhara para ver como iam as colheitas.
Só quando chegou à prancha é que viu o aviso de partida com o itinerário do
navio afixado, de contrário teria recusado partir, não interessava o que Stephen
dissesse. O Golden Fleece receberia passageiros em Savannah, Charleston e Boston,
desembarcando-os em Liverpul e Galway.
Scarlett voltou-se em pânico, pronta para regressar à doca. Não podia ir a
Charleston, não podia mesmo! Rhett saberia logo que ela estava no navio - Rhett
conseguia sempre saber tudo - e viria logo ao seu camarote para lhe tirar Cat.
"Eu o matarei, primeiro." A raiva afugentou o pânico, e Scarlett voltou-se de novo
para entrar no convés do navio. Toda a sua bagagem já estava a bordo, e ela tinha a
certeza de que Stephen escondera armas destinadas a Colum dentro das malas.
Dependiam dela. Ela também queria regressar a Ballyhara e não ia deixar que nada ou
ninguém se atravessasse no seu caminho.
Quando Scarlett chegou à suite, a sua fúria contra Rhett tornara-se avassaladora.
Já se passara mais de um ano desde que ele se divorciara, tendo imediatamente
casado com Anne Hampton. Durante esse ano, Scarlett estivera tão ocupada, sofrera
tantas mudanças na sua vida, que tinha conseguido bloquear a dor que ele lhe
causara. Agora, tinha o coração partido e um receio profundo do poder imprevisível de
Rhett. Transformou esses sentimentos em raiva. A raiva era revigorante.
Bridie viajou parte do caminho com Scarlett. Os O'Hara de Boston tinham lhe
arranjado uma boa posição como dama de companhia. Até saber que o navio pararia
em Charleston, Scarlett ficara contente com a perspectiva da companhia de Bridie.
Mas, só de pensar que ia parar em Charleston, ficava tão nervosa que o constante
paparico da sua jovem prima quase a punha maluca. Por que é que a Bridie não a
deixava em paz? Sob a tutelagem de Patrícia, Bridie aprendera todos os deveres das
suas funções e queria experimentá-las com Scarlett. Ficou muito incomodada quando
soube que Scarlett deixara de usar espartilho, e decepcionada por nenhum dos
vestidos de Scarlett precisar de arranjos. Scarlett estava morta por lhe dizer que o
primeiro requisito de uma dama de companhia era falar só quando lhe dirigissem a
palavra, mas gostava de Bridie, e não era culpa dela se o navio ia fazer uma paragem
em Charleston. Assim, forçou-se a sorrir e agir como se nada a preocupasse.
O navio prosseguiu viagem durante a noite, entrando no porto de Charleston de
madrugada. Scarlett não dormiu nada. Foi até o convés assistir ao nascer do Sol. Havia
uma neblina rosada sobre as vastas águas do porto. Mais além, a cidade aparecia
indistinta e imaterial, como uma cidade num sonho. O campanário branco da Igreja de
S. Miguel apresentava um tom rosa-pálido. Scarlett imaginou ouvir os sinos tocarem à
distância, entre as batidas vagarosas do motor do navio. "Devem estar agora
descarregando os barcos de pesca no Mercado, não, ainda é um pouco cedo, ainda
não devem ter chegado." Semicerrou os olhos, mas a neblina escondia os barcos, caso
estes estivessem ali à frente.
Concentrou-se na lembrança das diversas espécies de peixe, de vegetais, nos
nomes dos vendedores de café, no homem das salsichas - tudo o que mantivesse a
sua mente ocupada, para afastar as recordações que ela não se atrevia a confrontar.
Mas, quando o Sol se levantou no horizonte, atrás dela, a neblina rosada desfez-
se e ela pôde ver as paredes esburacadas de um dos lados do forte Sumter. O Fleece
estava navegando em águas onde antes ela viajara com Rhett e rira com ele vendo os
golfinhos e onde fora apanhada pela tempestade junto a ele.
"Maldito seja! Odeio-o e à sua maldita Charleston..."
Scarlett pensou consigo mesma que devia regressar ao camarote e fechar-se lá
dentro com Cat, mas continuou no convés, como se presa. Pouco a pouco, a cidade
tornou-se maior, mais nítida, resplandecente de branco, rosa e verde-pastel, no ar
tremeluzente da manhã. Podia ouvir os sinos de S. Miguel, cheirar a pesada doçura
tropical das flores que desabrochavam, ver as palmeiras de White Point Gardens, o
brilho opalescente dos carreiros de conchas de ostras esmagadas. A seguir, o navio
passou ao largo do passeio de East Battery. Do convés, Scarlett podia ver além do
passeio. Via as colunas da altura de árvores da casa dos Butler, aspiazzas, a porta
principal, as janelas da sala de estar, o seu quarto... As janelas! E o telescópio na sala
de jogos. Pegou nas saias e correu.
Pediu que o desjejum fosse servido no camarote e insistiu que Bridie ficasse com
ela e com Cat. A única esperança estava ali, fechada à chave, fora da vista. Onde
Rhett não pudesse descobrir nada sobre Cat nem levá-la consigo.
O criado estendeu uma toalha branca sobre a mesa redonda, na saleta de estar
do camarote, depois trouxe um carrinho com duas fileiras de pratos de prata,
abobadados. Bridie deu uma gargalhada. Enquanto colocava meticulosamente os
pratos e um centro floral, falava de Charleston. Tudo o que Scarlett pôde fazer foi não o
corrigir, tantas asneiras dizia. Mas ele era escocês, num navio escocês, por que se
esperaria que soubesse alguma coisa?
- Às cinco horas prosseguiremos a viagem - continuou o criado -, depois de
recebida a carga e os novos passageiros a bordo. As senhoras talvez queiram fazer
uma excursão pela cidade. - Começou a colocar os pratos e a abrir as tampas das
terrinas. - Há um bonito carro puxado a cavalo e conduzido por um condutor que
conhece todos os lugares dignos de se verem. Custa apenas cinquenta pence ou dois
dólares e cinquenta, americanos. Está à espera na extremidade da prancha. Ou, se
preferirem o ar fresco do mar, há um barco no cais a seguir, do lado sul, que sobe o rio.
Há dez anos, houve uma grande guerra civil na América. Poderão ver as ruínas de
grandes mansões queimadas pelo inimigo. Terão que se apressar, no entanto, pois
esse barco parte dentro de quarenta minutos.
Scarlett tentou comer um pedaço de torrada, mas este ficou-lhe entalado na
garganta. O relógio dourado sobre a escrivaninha ia marcando os minutos. A ela, o
ressoar parecia muito alto. Ao fim de meia hora, levantou-se de um salto.
- Vou sair, Bridie, mas não te atrevas a dar um passo. Abre as vigias, serve-te do
leque que está ali, mas tu e a Cat não podem sair daqui. Mantém a porta fechada, não
importa o calor que possa fazer. Encomenda o que quiseres, de comer ou de beber.
- Onde vais, Scarlett?
- Não interessa. Estarei de volta antes de o navio partir.
O barco de excursão era um pequeno barco propelido a rodas, pintado de
vermelho-vivo, branco e azul. O seu nome, em letras douradas, era Abraham Lincoln.
Scarlett lembrava-se bem dele. Tinha-o visto passar por Dumore Landing.
Julho não era o mês ideal para visitar o Sul. Ela era uma entre apenas uma dúzia
de passageiros. Sentara-se sob um toldo, no convés superior, abanava-se e
amaldiçoava o vestido de luto, com as suas mangas compridas, gola subida, no calor
do Verão sulista.
Um homem com um chapéu alto de listras encarnadas e brancas berrava uns
comentários, através de um megafone. Isso ainda a enfureceu mais.
"Olhem para todos estes ianques de cara gorda", pensou com ódio.
"Estão apenas obtendo vantagem de tudo isto. Cruéis proprietários de escravos,
não há dúvida! Vendemos o rio, pois sim! Nós amávamos os nossos negros como
família e alguns deles eram mais nossos donos que nós deles. A Cabana do Pai
Tomás. Ora bolas! Nenhuma pessoa decente deve ler essa porcaria."
Desejou não ter cedido ao impulso de vir. Só iria incomodar-se. Já estava
incomodada e nem sequer tinham deixado o porto em direção ao Rio Ashley.
Por sorte, o comentador esgotou o que tinha a dizer e por um bom tempo o único
som que se ouvia era o ruído dos pistons e o esguichar da água ao cair da roda. Em
ambas as margens do rio, a relva do pântano estava verde e dourada, com largos
carvalhos cobertos de musgo pendente, na ribanceira do rio. Libélulas pululavam no ar
cheio de mosquitos e sobre a relva; de vez em quando um peixe saltava fora da água e
voltava a mergulhar. Scarlett continuava sentada, muito quieta, distante dos outros
passageiros, acalentando o seu rancor. A plantação de Rhett estava destruída e ele
nada fazia para salvá-la. Camélias! Em Ballyhara, ela possuía centenas de hectares de
plantações saudáveis, onde antes encontrara ervas ásperas. E tinha reconstruído uma
cidade inteira, enquanto ele se limitava a ficar sentado observando as suas chaminés
chamuscadas.
Fora por isso que viera no barco propelido a rodas, disse para consigo. Sentiu-se
bem ao verificar quanto o ultrapassara. Scarlett ficava tensa antes de cada curva,
relaxada depois de a passar e a casa de Rhett não aparecer.
Tinha-se esquecido de Ashley Barony. A grande casa de tijolos quadrados de
Julia Ashley tinha um aspecto magnificamente proibitivo, no centro do seu relvado não
tratado.
- Esta é a única plantação que as forças heróicas da União não destruíram -
berrou o homem do chapéu absurdo. - O coração sensível do seu comandante não lhe
permitiu fazer mal à frágil solteirona que jazia doente lá dentro.
Scarlett deu uma gargalhada. "Frágil solteirona", na verdade! Miss Julia deve é tê-
lo assustado, forçando-o a fugir! Os outros passageiros olharam-na com curiosidade,
mas Scarlett não reparou neles. A mansão Landing seria a seguinte...
Sim, ali estava a mina de fosfato. Muito maior! Havia cinco chatas sendo
carregadas. Procurou sob o chapéu de aba larga do homem que estava na doca. Era
aquele soldado branco que não prestava - não se lembrava do seu nome, qualquer
coisa como Hawkins - "não interessa, depois daquela curva, depois daquele grande
carvalho..."
O ângulo da luz solar esculpiu os grandes tabuleiros de relva de Dunmore
Landing em degraus gigantescos de veludo verde e lantejoulas espalhadas sobre os
lagos de borboletas, ao lado do rio. O grito involuntário que Scarlett deu perdeu-se
entre as exclamações dos ianques agrupados à volta dela no parapeito. Por cima dos
terraços, as chaminés chamuscadas eram como sentinelas altas de encontro ao céu
azul, dolorosamente brilhante; um crocodilo apanhava sol na relva entre os lagos.
Dunmore Landing era como o seu dono: culto, ferido, perigoso. E inacessível. As
persianas estavam corridas na ala que restava, o lugar que Rhett utilizava como
escritório e como lar.
Os seus olhos percorreram com avidez todos os locais, comparando-os às suas
recordações. Uma grande parte do jardim estava desobstruída e tudo parecia
prosperar. Atrás da casa, erguiam-se algumas construções; o cheiro da madeira em
bruto chegava-lhe ao nariz e podia ver o cume de um telhado. As persianas da casa
tinham sido arranjadas, ou talvez fossem novas. Já não caíam, e brilhavam de tinta
verde. Não há dúvida que Rhett fizera muitas obras no Outono e no Inverno.
"Ou, por outra, fizeram." Scarlett tentou desviar o olhar. Não quis ver os novos
jardins. Anne ama aquelas flores tanto quanto o Rhett. E as persianas arranjadas
devem significar uma casa arranjada, onde os dois vivem juntos. Será que o Rhett lhe
prepara o desjejum?
- Sente-se bem, Miss? - Scarlett passou à frente do preocupado estranho.
- É o calor - disse ela. - Vou mais para ali, para a sombra. - Durante o resto da
excursão, olhou apenas para o convés desnivelado. O dia parecia nunca mais acabar.
Soavam as cinco quando Scarlett desceu em desorientada corrida a rampa do
Abraham Lincoln. Maldito barco. Parou no cais para recuperar o fôlego. Viu que a
prancha de acesso do The Golden Fleece ainda se encontrava no lugar. Nada estava
perdido. Mesmo assim, o dono do barco da excursão merecia ser chicoteado. Desde as
quatro horas que estava no maior desassossego.
- Agradeço-lhe ter esperado por mim - disse ao oficial de bordo no topo da
prancha de acesso.
- Oh, ainda não estão todos - respondeu-lhe, e Scarlett transferiu a sua raiva para
o comandante do Fleece. Se dissera cinco horas, deveria partir às cinco. Quanto mais
depressa saísse de Charleston, maior seria a sua felicidade. Era com certeza o lugar
mais quente da face da terra. Protegeu os olhos com a mão a fim de contemplar o céu.
Não havia uma nuvem. Nem chuva, nem vento, apenas calor. Avançou pelo convés em
direção ao seu camarote. Pobrezinha da Cat, devia estar praticamente assada. Assim
que deixassem o porto, a traria para o convés, a fim de apanhar a escassa brisa
provocada pelo movimento do navio.
A sua atenção foi despertada pelo bater de cascos e gargalhadas femininas.
Talvez estivessem à espera delas. Viu lá em baixo uma vitória (veículo ligeiro de quatro
rodas, puxado por cavalos e de capota removível. - N. da T.) aberta. Três fabulosos
chapéus nas mulheres que lá vinham. Não se assemelhavam em nada aos chapéus
que alguma vez vira, e, mesmo de longe, podia afirmar serem muito caros. De aba
larga, decorados com penas ou plumas, com jóias cintilantes e rodeados por uma fina
rede de tule; da perspectiva de Scarlett, os chapéus assemelhavam-se a magníficas
sombrinhas ou a fantásticas confecções de pastelaria em enormes bandejas.
"Como ficaria simplesmente maravilhosa com um chapéu daqueles." Inclinou-se
ligeiramente sobre a balaustrada para olhar as mulheres. Eram elegantes, mesmo com
o calor, vestindo organdim ou voile, de tom pálido enfeitado - parecia fita larga de seda,
ou seria uma guarnição de franzido? - nas frentes encorpadas e - Scarlett pestanejou -
sem armação ou qualquer indício e tão pouca cauda. Nunca vira nada de semelhante
em Savannah ou Atlanta. Quem eram aquelas pessoas? Os seus olhos devoravam as
luvas pálidas de pelica e as sombrinhas fechadas, de renda, supunha, mas não tinha a
certeza. Quem quer que fossem, decerto estariam divertindo-se muito e sem a menor
pressa de entrar no navio cuja a partida retardavam.
O homem do chapéu do Panamá que as acompanhava apeou-se. Tirou o chapéu
com a mão esquerda. A direita ergueu-se para ajudar a primeira dama a descer.
Scarlett firmou-se na balaustrada. "Santo Deus, é Rhett. Tenho que me esconder.
Não. Não. Se ele vai embarcar neste navio preciso tirar Cat, arranjar um esconderijo,
outro navio. Mas não o posso fazer. Trago duas malas no porão com vestidos
pregueados e as espingardas de Colum lá dentro. Mas, valha-me Deus, que vou
fazer?" Idéias impossíveis varriam-lha a mente umas atrás das outras enquanto olhava
vagamente o grupo lá em baixo.
Aos poucos, o seu cérebro foi registando o que via: Rhett fazia reverências,
beijando sucessivamente as mãos que se lhe estendiam com graciosidade. Os ouvidos
atentaram na repetição do adeus e obrigada das mulheres. Cat não corria perigo.
Mas Scarlett sim. A sua ira protetora desaparecera, e o seu coração estava
exposto. "Ele não me vê. Posso olhar para ele quando quiser. Por favor, por favor, não
voltes a pôr o chapéu, Rhett."
Como era atraente. A pele morena, o sorriso tão alvo quanto o seu lindo trajo de
linho branco. Era o único homem no mundo que não amarrotava o linho. Ah, e aquela
madeixa no cabelo, que tanto o aborrecia, voltava a pender-lhe para a testa. Rhett deu-
lhe um piparote com dois dedos num gesto que Scarlett conhecia tão bem que a
intensidade da recordação quase a fez desfalecer. Que dizia ele? Algo de extravagante
e encantador, tinha certeza, mas usava aquele tom de voz baixo e de intimidade que
guardava para as mulheres. Maldito! E malditas aquelas mulheres! Queria ouvir a voz
murmurar-Ihe, só para ela.
O comandante do navio desceu a prancha, compondo os galões dourados do
casaco. "Não os apresses", teve Scarlett vontade de gritar.
"Fiquem, fiquem mais um pouco. É a minha última oportunidade. Nunca mais o
verei. Deixem-me guardar a sua imagem.
"Devia ter cortado há pouco o cabelo, há uma pequena risca branca acima das
orelhas. Está mais grisalho nas têmporas? Fica tão elegante, o fio prateado no seu
cabelo negro como azeviche. Recordo a sensação dele sob os meus dedos, crespo e
ao mesmo tempo extraordinariamente macio. E os músculos dos ombros e braços,
deslizando tão suavemente debaixo da pele, esticando-a quando se retesavam.
Quero..."
A sirene do navio soou estrondosamente. Scarlett sobressaltou-se. Ouvia passos
apressados, o ruído da prancha de acesso, mas não tirava os olhos de Rhett. Este
sorria, olhando para a direita dela, para cima. Podia ver os seus olhos negros e as
sobrancelhas farfalhudas, e o bigode impecavelmente cuidado. Todo o seu forte,
másculo e inesquecível rosto de pirata.
- Meu querido - murmurou -, meu amor, Rhett voltou a curvar-se. O navio
afastava-se do cais. Pôs o chapéu e afastou-se. Com o polegar, inclinou o chapéu para
a nuca.
"Não vás!", exclamou o coração de Scarlett.
Rhett olhou para cima do ombro como se tivesse ouvido algo.
Os seus olhares cruzaram-se, e a surpresa conferiu rigidez ao seu corpo ágil. Por
um longo e imesurável instante, os dois olharam-se à medida que o espaço aumentava
entre eles. Depois, a malícia percorreu o rosto de Rhett ao levar dois dedos à aba do
chapéu para uma saudação. Scarlett ergueu a mão.
Permanecia ainda no cais quando o navio entrou no canal, rumo ao mar. Assim
que Scarlett deixou de o avistar, caiu como que paralisada numa cadeira de bordo.

- Não sejas tonta, Bridie, o camareiro se sentará à porta. Virá chamar-nos assim
que Cat se mexer. Não há motivo para não vires à sala de jantar. Não podes fazer aqui
a refeição todas as noites.
- Para mim é motivo suficiente, Scarlett. Não me sinto à vontade entre damas e
cavalheiros tão refinados, fingindo-me um deles.
- Vales o mesmo que eles, já te disse.
- E te ouvi dizê-lo, Scarlett, mas tu não me escutaste. Prefiro comer aqui com
todas as tampas de prata sobre as travessas e à minha maneira. Em breve terei que ir
para onde a senhora que servir me mandar, e fazer o que me disserem. Com certeza
que tomar uma excelente refeição no conforto da minha privacidade não será uma das
ordens que me vão dar. É aproveitar enquanto posso.
Scarlett tinha que entender a posição de Bridie. Mas era-lhe de todo impossível
jantar na suite. Não naquela noite. Precisava descobrir quem eram aquelas mulheres e
por que Rhett as acompanhara, ou enlouqueceria.
Eram inglesas, soube-o assim que entrou na sala de jantar. A sua pronúncia
característica dominava a mesa do comandante.
Scarlett informou o criado de mesa que gostaria de mudar o seu lugar para a
mesinha junto à parede. A mesa junto à parede era também a mais próxima da mesa
do comandante.
Eram catorze à mesa dele: uma dúzia de passageiros ingleses, o comandante e o
imediato. Scarlett tinha o ouvido apurado e logo pôde distinguir que a pronúncia dos
passageiros era diferente da dos oficiais de bordo, apesar de serem todos ingleses e,
por conseguinte, desprezavam quem tivesse uma gota de sangue irlandês.
Falavam de Charleston. Scarlett calculou que não tivessem boa impressão.
- Meus caros - soou a voz de uma das mulheres -, nunca na minha vida vi nada
tão desolador. Como pôde a minha querida mamãe dizer-me que era o único lugar
civilizado da América! O que me aflige pensar que ela ficou tolinha sem que nos
apercebêssemos.
- Ora, Sarah - disse o homem à esquerda dela -, tem que contar com a guerra
deles. Achei os homens muito honestos.
- Até à sua última moeda, tenho certeza, mas há exceções, e a bebida era de
primeira categoria. Malte puro, no bar do clube.
- Meu caro Geoffrey, se houvesse um clube com bom uísque, até diria que o Sara
é civilizado. Só não podia fazer mais calor. Que clima horrível.
- Seguiu-se um coro de anuência.
- Por outro lado - disse uma voz de mulher jovem -, aquele homem incrivelmente
atraente, o Butler, disse que os Invernos eram bastante amenos. Convidou-nos a
voltar.
- Claro que a convidou a voltar, Felicity - retorquiu uma senhora mais idosa. -
Portou-se vergonhosamente.
- Que grande mentira, Frances - protestou Felicity -, apenas me diverti um pouco
pela primeira vez nesta viagem maçante. Não entendo por que papai me mandou para
a América. É um lugar horrível.
Um homem soltou uma gargalhada.
- Mandou-a, querida mana, para a tirar das garras daquele caçador de dotes.
- Mas era tão atraente. Não sei de que serve ter fortuna, se depois é preciso
precavermo-nos contra os homens atraentes da Inglaterra só porque não são ricos.
- Pelos menos, deve precaver-se contra eles, Felicity - disse uma outra jovem. -
Isso é fácil de fazer. Pense no seu pobre irmão. Roger deve atrair as herdeiras
americanas como moscas e casar com uma fortuna para voltar a encher os cofres da
família. - Roger resmungou e todos riram.
"Falem de Rhett", implorou Scarlett em silêncio.
- Não existe pura e simplesmente mercado para os ilustres - disse Roger. - Não
consigo passar por cima do papai.
- As herdeiras querem tiaras.
A senhora idosa a quem chamavam Frances disse que achava que eram todos
infames e não conseguia compreender os jovens da época.
- Quando eu era moça... - começou ela.
Felicity riu.
- Minha querida Frances, quando era "moça" não havia jovens. A sua geração já
nasceu velha e reprovando tudo.
- A sua impertinência é intolerável, Felicity. Vou queixar-me a seu pai.
Fez-se um breve silêncio. "Mas por que diabo não diz aquela Felicity mais algo
sobre Rhett?", pensou Scarlett.
Foi Roger a referir o nome.
- Butler - disse ele - prometeu uma boa caçada se voltasse no Outono. Parece
que os seus arrozais são agora prados e que os patos quase vêm pousar no cano da
espingarda.
Scarlett partiu um pãozinho. Mas quem queria saber de patos?
Parecia que os outros ingleses estavam interessados, só falaram de caça durante
o prato principal do jantar. Começava a pensar que mais valia ter ficado com Bridie,
quando os seus ouvidos captaram uma conversa particular em tom baixinho, entre
Felicity e a irmã, cujo o nome veio a apurar ser Marjorie. Ambas achavam Rhett o
homem mais intrigante que alguma vez haviam conhecido. Scarlett escutava com misto
de curiosidade e orgulho.
- É uma pena ser tão dedicado à mulher - comentou Marjorie e o coração de
Scarlett caiu-lhe aos pés.
- É uma coisinha tão desenxavida, também - disse Felicity.
Scarlett sentiu-se um pouco melhor.
- Constou-me que é a segunda. Não lhe disseram? Já antes fora casado com
uma beldade muito impetuosa. Ela fugiu com outro homem e deixou Rhett Butler de
rastos. Nunca mais se recompôs.
- Santo Deus, Marjorie, consegue imaginar como não seria o outro homem, para
ela trocar Butler por ele?
Scarlett sorriu no seu íntimo. Como a reconfortava saber que corria o boato que
fora ela que abandonara Rhett e não o inverso.
Sentiu-se muito melhor do que no momento em que se sentara à mesa. Até talvez
fosse pedir uma sobremesa.

No dia seguinte, os ingleses descobriram Scarlett. Os três jovens concordavam


que era uma figura incrivelmente romântica, uma misteriosa viúva jovem.
- Extraordinariamente bela também - acrescentou Roger. As irmãs retorquiram-lhe
que devia estar vendo mal. Com o seu rosto alvo e o cabelo escuro e aqueles olhos
verdes, era de uma beleza arrasadora. O que faltava eram uns vestidos decentes, e
onde quer que fosse as cabeças se voltariam. Resolveram "aceitá-la". Marjorie fez a
abordagem, admirando Cat quando Scarlett a trouxe para o convés, a fim de apanhar
ar.
Scarlett não desejava senão ser "aceite". Queria ficar sabendo em pormenor cada
hora que haviam passado em Charleston. Não teria dificuldade em inventar uma
história trágica sobre o seu casamento e viuvez que satisfizesse as suas ânsias de
melodrama. Roger apaixonou-se por ela ao cabo de uma hora.
A mãe de Scarlett ensinara-lhe que a graciosa discrição em relação aos assuntos
familiares era um dos atributos de uma senhora. Felicity e Marjorie Cowperthwaite
chocaram-na com a despreocupada revelação dos segredos de família. A mãe, haviam
dito, era uma mulher bonita e inteligente que levara o pai a casar-se com ela.
Conseguira que o cavalo dele a derrubasse quando tinham ido dar um passeio.
- O pobre papai é tão crédulo - riu Marjorie -, que pensou que, provavelmente, a
desgraçara só porque o vestido dela se rasgara, deixando-lhe os seios a descoberto.
Estamos convencidos de que ela própria o rasgou antes de sair do vicariato. Casou
com ele tão às pressas que o pobre nem teve tempo de perceber as suas intenções.
Para grande perplexidade de Scarlett, Felicity e Marjorie eram senhoras. Não
apenas "senhoras" por oposição a "mulheres". Eram Lady Felicity e Lady Marjorie, e o
seu "crédulo papai" era conde.
Frances Sturbridge, o pau-de-cabeleira desaprovador, era também uma "lady",
explicaram-lhe, mas era Lady Sturbridge, e não Lady Frances, porque não nascera
"lady" e casara com um homem que "não passava de baronete".
- Ao passo que eu podia casar com um dos criados de Marjorie, fugir com o
engraxate, e continuaríamos a ser Lady Felicity e Lady Marjorie nas sarjetas imundas
de Bristol, onde os nossos maridos assaltariam as caixas das esmolas para nos
sustentar.
Scarlett não pôde deixar de rir.
- É complicado demais para mim - confessou.
- Oh, minha cara, mas nada pode ser mais complicado do que a nossa
familiazinha enfastiante. Quando se chega às viúvas e horrorosos viscondes e esposas
do terceiro filho e por aí afora, é como um labirinto. A mamãe tem que contratar
especialistas cada vez que dá um jantar ou quer ter certeza de não insultar alguém
extremamente importante. Não é de bom tom sentar a filha do filho mais novo de um
conde, como Roger, ao lado de alguém como a pobre Frances. É absurdo demais para
se descrever.
As Ladies Cowperthwaites eram mais que um pouco frívolas e desmioladas, e
Roger parecia ter herdado um pouco da credulidade do pai, mas eram sem dúvida um
trio alegre e prazeroso que gostava verdadeiramente de Scariett. Alegraram-lhe a
viagem e teve pena quando deixaram o navio em Liverpul.
Dispunha agora de quase dois dias completos antes de chegar a Galway, e não
podia retardar mais os pensamentos sobre o encontro com Rhett em Charleston, que
acabara por não ser sequer um encontro.
Teria ele sentido o mesmo choque ao reconhecerem-se quando os seus olhares
se cruzaram? Para ela, fora como se o resto do mundo tivesse desaparecido e se
encontrassem sozinhos em algum lugar e momento, separados de tudo e de todos.
Não era possível que tivesse ficado tão presa a ele só com um olhar e que com ele não
sucedesse o mesmo. Seria?
Refletiu e reviveu o momento até que começou a pensar que o teria sonhado ou
talvez imaginado.
Quando o Fleece entrou na baía de Galway estava já em condições de guardar a
recordação no repositório das outras recordações de Rhett. Ballyhara esperava-a, e
aproximava-se a época da ceifa.
Mas impunha-se primeiro sorrir e passar rapidamente os baús pelos inspetores da
alfândega. Colum estava contando com as armas.
Era difícil não esquecer que os ingleses eram tão maus, tendo conhecido os
encantadores Cowperthwaite.
Colum aguardava ao fundo da prancha de desembarque quando Scarlett deixou
oThe Golden Fleece. Não contava com ele, sabia apenas que alguém a viria esperar e
tratar dos baús. Ao avistar a sua figura entroncada, trajando vestes eclesiásticas
negras e puídas, com o seu rosto irlandês sorridente, Scarlett sentiu que regressava ao
lar. "E como vão as coisas pela América?", a que ela respondeu: "Incrivelmente
quentes", e: "Afinal, que idade tem aquele bebê grande e bonito?" A que Scarlett
retorquiu, orgulhosa: "Faltam três meses para completar um ano e já quer andar."
Levou quase uma hora para percorrer a breve distância do porto à estação de
trem. Scarlett nunca vira semelhantes confusões de tráfego, nem sequer em Five
Points.
Era por causa das corridas de Galway, disse Colum. Antes que Scarlett tivesse
tempo de se recordar do que acontecera no ano anterior em Galway, ele apressou-se a
acrescentar pormenores. Cinco dias de corridas de cavalos com obstáculos e planas,
todos os anos em Julho. Queria dizer que a milícia e a polícia estavam ocupadas
demais na cidade para perderem tempo patrulhando os cais. Queria também dizer que
não se acharia um quarto de hotel vago, fosse a que preço fosse. Iam apanhar o trem
da tarde para Ballinasloe e passar lá a noite. Scarlett gostaria que houvesse um trem
direto para Mulligan. Queria chegar a casa.
- Como vão os campos, Colum? O trigo está quase maduro? Ainda não ceifaram
o feno? Tem havido bastante sol? E a turfa que extraíram? Foi suficiente? Secou como
devia? É boa? Queima bem?
- Espera e verás, minha querida Scarlett. Tenho certeza de que vais ficar contente
com a tua Ballyhara.
Scarlett estava muito mais do que contente. Exultava. A população da cidade
construíra arcos cobertos com verdura fresca e fita dourada ao longo do caminho que
conduzia à cidade de Ballyhara. Faziam fila por detrás dos arcos, acenando com lenços
e chapéus, aclamando o seu regresso.
- Oh, obrigada, obrigada, obrigada! - exclamava repetidas vezes, com os olhos
marejados de lágrimas.
Na Casa Grande, Mrs. Fitzpatrick e as três criadas mal amanhadas e as quatro
leiteiras e os encarregados dos estábulos estavam alinhados para a cumprimentar.
Scarlett quase não se conseguiu conter para não abraçar Mrs. Fitz, mas respeitou as
regras da governanta e manteve a dignidade. Cat desconhecia o que fossem regras.
Riu e estendeu os braços para Mrs. Fitzpatrick, e viu-se imediatamente presa num
abraço movido pela emoção.
Menos de uma hora depois, Scarlett vestia as suas roupas de camponesa de
Galway, percorrendo rapidamente os campos, com Cat nos braços. Era tão bom
mexer-se, esticar as pernas. Havia passado horas, dias, semanas sentada. Em trems,
em navios, em escritórios e em poltronas. Agora queria caminhar, cavalgar, dobrar-se,
esticar-se, correr, dançar. Era a O'Hara, estava de volta ao lar, e o sol aquecia por
entre os suaves, refrescantes e passageiros aguaceiros irlandeses.
Odorosos molhos de feno dourados formavam medas de dois metros de altura
nos prados. Scarlett abriu uma cavidade num deles e enfiou-se lá dentro com Cat para
brincarem de casinha. Cat soltou gritinhos de prazer quando puxou parte do "telhado"
sobre elas, e depois quando o pó a fez espirrar. Apanhou flores secas e meteu-as na
boca. A expressão desconsolada quando as cuspiu fez Scarlett rir. E o riso de Scarlett
suscitou uma careta de Cat. O que levou Scarlett a rir ainda mais.
- E bom habituar-se a que se riam de ti, Miss Cat O'Hara - disse ela -, porque é
uma menininha deliciosamente tonta, e a sua mamãe fica muito feliz, e quando as
pessoas se sentem felizes riem muito.
Scarlett levou Cat para casa quando esta começou a bocejar.
- Tira-lhe o feno do cabelo enquanto ela estiver dormindo - disse a Peggy Quinn. -
Voltarei a tempo de lhe dar o jantar e um banho.
Interrompeu a lenta mastigação comtemplativa de um dos cavalos de trabalho,
que se encontrava no estábulo, para o montar sem sela e, escarranchada, percorrer
Ballyhara ao crepúsculo que diminuía lentamente. Os campos de trigo estavam
extraordinariamente amarelos, mesmo com a luz de um tom azulado. A colheita seria
generosa. Scarlett regressou à casa satisfeita. Provavelmente, Ballyhara nunca daria o
mesmo rendimento que ela auferira construindo e vendendo casas econômicas, mas
havia outras compensações além do lucro. A terra dos O'Hara era de novo rendável;
conseguira que se repetisse, pelo menos em parte, e no próximo ano seriam cultivados
mais hectares; e no ano seguinte, mais ainda.
- É tão bom estar de volta - disse Scarlett a Kathleen na manhã seguinte. - Trago
cerca de um milhão de mensagens de todos em Savannah. - Instalou-se, feliz, junto da
lareira e pousou Cat para que explorasse o chão. Não tardou que começassem a surgir
cabeças na parte de cima da meia porta, todos estavam ansiosos por ter notícias da
América e de Bridie e tudo o mais.
Na Angelus, as mulheres desceram apressadas o caminho até a aldeia e os
homens O'Hara vieram dos campos para o almoço.
Todos, à exceção de Seamus e, logicamente Sean, que faziam sempre as
refeições com a velha Katie Scarlett O'Hara. Scarlett não percebeu, na hora. Estava
ocupada demais cumprimentando Thomas, e Patrick e Timothy e convencendo Cat a
desistir da colher grande com que tentava comer.
Só depois dos homens terem voltado para o trabalho é que Kathleen lhe contou
que as coisas tinham mudado um pouco durante a sua ausência.
- Lamento ter que ser eu a dizê-lo, Scarlett, mas Seamus ficou muito ofendido por
não assistires ao casamento dele.
- Bem gostaria de ter assistido, mas não podia. E ele sabe-o bem. Tinha negócios
na América.
- Estou desconfiada de que é má-vontade da parte de Pegeen. Não reparaste que
não constava das visitas desta manhã?
A bem dizer, admitiu Scarlett, não dera por nada. Só vira Pegeen uma vez, não a
conhecia propriamente. Como era ela? Kathleen mediu as palavras. Pegeen era uma
mulher cumpridora, disse, que mantinha a casa limpa e cozinhava bem e procurava
que nada faltasse a Seamus e Sean na pequena cabana. Seria muito bom para toda a
família se Scarlett a fosse visitar e admirar a casa que estava construindo. Era tão
senhora do seu nariz que esperava que a visitassem antes de tomar a iniciativa de
fazer quaisquer visitas.
- Valha-me Deus - disse Scarlett -, que tonta. Tenho que ir acordar Cat da sua
sesta.
- Deixa-a estar, eu vigio-a enquanto passo a roupa. É melhor não te acompanhar.
Pelo visto, Kathleen não gostava muito da nova mulher do primo, pensou Scarlett
- que interessante. E Pegeen governava a casa à parte, em vez de dividir com Kathleen
na cabana maior, pelo menos para o almoço. Muito senhora do seu nariz, na verdade!
Que desperdício de energia preparar duas refeições em vez de uma. Estava
desconfiada que não iria gostar de Pegeen, mas resolveu ser simpática. Não seria fácil
entrar numa família unida há tantos anos, e sabia perfeitamente o que era sentir-se
uma intrusa.
Pegeen não deixou que Scarlett se mostrasse compreensiva. A mulher de
Seamus tinha um temperamento muito irritadiço. "E parece que bebeu vinagre", pensou
Scarlett. Pegeen serviu um chá tão forte que era quase intragável. "Presumo que
queira dar-me a entender que a fiz esperar demais."
- Gostaria de ter estado aqui para o casamento - disse Scarlett, enchendo-se de
coragem. Mais valia fazer frente à situação embaraçosa. - Trago votos de felicidade de
todos os O'Hara na América, a acrescentar aos meus. Espero que tu e Seamus sejam
muito felizes. - Estava satisfeita consigo mesma. "Dito de forma airosa", pensou.
Pegeen anuiu com afetação.
- Transmitirei a Seamus a tua gentileza - retorquiu. - Ele quer dar-te uma
palavrinha. Disse-lhe que não se afastasse. Vou chamá-lo.
"Eta!", disse Scarlett para com os seus botões. "Nunca fui tão bem recebida na
minha vida." Não tinha tanta certeza de querer que Seamus lhe "desse uma
palavrinha". Mal trocara uma dúzia de palavras com o filho mais velho de Daniel
durante todo o tempo que estivera na Irlanda.
Depois de ouvir a "palavrinha" de Seamus, Scarlett percebeu de que mais valia
não o ter feito. Contava que ela pagasse a renda que se vencia sobre a quinta, e
estava convencido de que só ele e Pegeen tinham direito à cabana maior porque se
encontrava agora substituindo Daniel na qualidade de proprietário.
- Mary Margaret está até na disposição de cozinhar e lavar para os meus irmãos,
tal como faz para mim. Kathleen não pode fazê-lo em relação ao Sean, visto que é seu
irmão.
- Tenho muito gosto em pagar a renda - disse Scarlett. Mas teria preferido que lhe
pedissem, em vez de lhe ordenarem. - Mas não entendo por que me falas de quem
vive onde. Tu e Pegeen, quer dizer, Mary Margaret, deveriam discutir isso com os teus
irmãos e Kathleen.
- Tu és a O'Hara - Pegeen quase gritou. - Tu é que tens que decidir.
- Ela foi bem clara, Scarlett - disse Kathleen quando Scarlett se queixou. - Tu és a
O'Hara. - Antes que Scarlett tivesse tempo de falar, Kathleen sorriu e disse que já não
tinha a menor importância. Não tardaria a abandonar a cabana de Daniel, ia-se casar
com um rapaz de Dunsany. Pedira-a no sábado anterior, o Dia do Mercado em Trim. -
Ainda não contei aos outros, estava à tua espera.
Scarlett abraçou Kathleen.
- Que bom! O casamento fica por minha conta, está bem? Vai ser uma festa
maravilhosa!

- Consegui escapar - disse a Mrs. Fitz nessa noite. - Mas foi por um triz. Não
tenho tanta certeza de que ser a O'Hara corresponda àquilo que pensei que fosse.
- E que foi que pensou ao certo, Mrs. O?
- Não sei. Mais divertido, talvez.
Em Agosto foi a colheita da batata. A melhor colheita de sempre, disseram os
agricultores. Depois, começaram a ceifar o trigo. Scarlett adorava assistir. As foices
brilhavam ao sol e os pés dourados caíam como seda rasgada. Às vezes, tomava o
lugar do homem que seguia o ceifeiro. Pedia emprestada a vara com a extremidade
curva a que os agricultores davam o nome de gadanha, e puxava o trigo cortado,
formando molhos. Não conseguia dominar o movimento rápido executado pelo homem
para atar cada molho com uma palha de trigo, mas tinha bastante jeito com a gadanha.
"Bate certamente a colheita do algodão", dissera a Colum. No entanto, havia
ainda momentos em que as pontadas agudas da saudade a apanhavam desprevenida.
Compreendia o que ela sentia, disse Colum, e Scarlett convenceu-se de que assim era.
Via nele o irmão que sempre desejara.
Colum parecia preocupado, mas disse não passar da sua impaciência por o trigo
ter precedência sobre o acabamento das obras na estalagem que Brandon Kennedy
estava fazends no edifício contíguo ao seu bar. Scarlett recordou o homem
desesperado na igreja, o homem que Colum dissera andar "fugido". Interrogou-se se
haveria mais, como os ajudaria Colum. Mas era melhor não saber, e não perguntou.
Preferiu pensar em coisas alegres, como o casamento de Kathleen. Kevin
O'Connor não era o homem que Scarlett teria escolhido para ela, mas como se
apaixonara perdidamente, e tinha uma boa quinta com vinte vacas no pasto, era
considerado um bom partido. Kathleen tinha um dote substancial, em dinheiro
amealhado com a venda de manteiga e ovos, e com os utensílios de cozinha
pertencentes à casa de Daniel. Não se fez de rogada em aceitar uma oferta de cem
libras de Scarlett. Não era necessário juntá-las ao dote, comentara, piscando
maliciosamente o olho.
Para enorme consternação de Scarlett, a festa do casamento não se pôde realizar
na Casa Grande. A tradição exigia que a boda tivesse lugar na casa onde os noivos
iriam morar. O melhor que Scarlett pôde fazer foi contribuir com vários gansos e meia
dúzia de barris de cerveja preta para a boda. Mesmo assim, excedera-se um pouco,
avisara-a Colum. A família do noivo era a anfitriã.
- Bem, já que vou me exceder, ao menos que seja muito - retorquiu-lhe Scarlett.
Avisou também para que não fosse também levantar objeções. - Vou tirar o luto. Estou
farta de andar vestida de preto.
Não perdeu uma só dança da boda, usando um saiote azul-vivo e vermelho
debaixo de uma saia verde-escura, e meias listradas amarelas e verdes.
Depois chorou todo o caminho até Ballyhara.
- Vou sentir tanto a falta dela, Colum. E da cabana também, e de todas as visitas.
Nunca mais volto lá, não com aquela horrorosa Pegeen servindo o seu horroroso chá
com gosto de mofo.
- Seis quilômetros não é o fim do mundo, minha querida Scarlett. Arranja um bom
cavalo de montar em vez de levares a charrete e estarás em Dunsany num abrir e
fechar de olhos.
Scarlett via a lógica da solução, apesar de seis quilômetros serem ainda uma
longa distância.
Recusava-se terminantemente a considerar a discreta sugestão de Colum de que
devia pensar em casar novamente.
Às vezes acordava de noite, e o escuro do quarto assemelhava-se ao escuro
mistério dos olhos de Rhett quando se haviam cruzado à partida do navio de
Charleston. Que teria ele sentido?
Sozinha no silêncio da noite, sozinha na vastidão da cama ornamentada, sozinha
no vazio do quarto às escuras, Scarlett pensava e sonhava com coisas impossíveis, e
às vezes chorava, doída de tanto lhe querer.
- Cat - disse Cat nitidamente quando viu o seu reflexo no espelho.
- Oh, meu Deus! - exclamou alto Scarlett. Chegara a temer que a bebé nunca
viesse a falar. Era raro Cat gorgolejar e pairar como fazem os outros bebês, e olhava
as pessoas que falavam com ela na linguagem de bebê com uma expressão de
profundo espanto. Começou a andar aos dez meses, o que foi prematuro, Scarlett
sabia, mas um mês depois continuava praticamente muda, à excepção do riso. "Diz
'mamã', pedia Scarlett. Era recusado.
- Diz "mamã" - insistiu Scarlett depois de Cat ter falado, mas a menina contorceu-
se para se libertar da mão que a agarrava e afastou-se com determinação. O seu andar
era ainda mais entusiástico que habilidoso.
- Monstrinho orgulhoso! - exclamou Scarlett atrás dela. - A primeira palavra que
todos os bebês dizem é "mamã", não o seu próprio nome.
Cat estacou. Olhou para Scarlett com um sorriso que esta disse mais tarde ser
"perfeitamente diabólico".
- Mamã - disse ela em tom despreocupado. Depois prosseguiu o seu andar
vacilante.
- Provavelmente, teria sido capaz de o dizer desde sempre, se assim quisesse -
gabou-se Scarlett ao padre Flynn. - Ela o fez como quem atira um osso a um cão.
O velho pároco sorriu com tolerância. Escutara ao longo dos anos muitas mães
orgulhosas.
- É um grande dia - anunciou com afabilidade.
- Um grande dia em muitos aspectos, padre! - exclamou Tommy Doyle, o mais
jovem dos agricultores de Ballyhara. - Sem dúvida esta foi a maior colheita de sempre.
- Voltou a encher o seu copo e o do padre Flynn. Um homem tinha o direito de se
descontrair e divertir na Festa das Colheitas.
Scarlett deixou que ele lhe desse também um copo de cerveja preta. Os brindes
não tardariam a começar e seria de mau agouro não comemorar com eles pelo menos
com um gole. Depois de a sorte ter bafejado Ballyhara o ano inteiro, não queria atrair o
azar.
Observou as mesas compridas cheias, postas em toda a extensão da rua mais
larga de Ballyhara. Cada uma estava decorada com um molho de trigo atado com uma
fita. Cada uma rodeada de gente sorridente e que se divertia. Era o lado melhor de ser
a O'Hara. Todos haviam trabalhado, cada qual à sua maneira, e agora estavam todos
reunidos, a população da cidade em peso, para comemorar os resultados desse
esforço.
Havia o que comer e beber, doces e um pequeno carrossel para as crianças, um
estrado de madeira para dançar depois, frente à estalagem inacabada. O ar tinha o tom
dourado da luz da tarde, o trigo dourado sobre a mesa, uma sensação de dourada
felicidade banhava todos na comunhão da abundância. Era exatamente o que se
pretendia com a Festa das Colheitas.
O som da chegada de cavalos levou as mães a procurar os filhos mais jovens. O
coração de Scarlett parou por um instante quando não achou Cat. Depois, viu-a
sentada no colo de Colum ao fundo da mesa. Este conversava com o homem a seu
lado. Cat acenava com a cabeça como se compreendesse cada palavra. Scarlett
esboçou uma careta. Como a sua filha era engraçada.
Um grupo da milícia aproximou-se do fim da rua. Três homens, três oficiais, os
botões das fardas mais dourados que o trigo. Fizeram estacar os cavalos e o barulho à
volta das mesas foi morrendo. Alguns homens ergueram-se.
- Pelo menos, os soldados têm a decência de não passar a galope, levantando
poeira - disse Scarlett ao padre Flynn.
Mas quando os homens firmaram as rédeas diante da igreja deserta, também ela
se calou.
- Qual é o caminho para a Casa Grande? - perguntou um dos oficiais. - Venho
falar com o dono.
Scarlett levantou-se.
- Sou eu a dona - disse. Surpreendeu-se ao sentir que a sua boca subitamente
seca conseguia emitir algum som.
O oficial olhou para o seu cabelo em desalinho e as roupas garridas de
camponesa. Os seus lábios esboçaram uma expressão de escárnio.
- Muito engraçada, moça, mas não estamos aqui para brincadeiras.
Scarlett sentiu uma emoção que quase desconhecia, uma fúria selvagem
exaltada. Subiu para o banco onde estivera sentada e levantou as mãos aos quadris.
Denotava insolência e sabia-o.
- Ninguém o convidou, soldado, para vir brincar ou qualquer outra coisa. Diga ao
que vem! Sou Mrs. O'Hara.
Um segundo oficial fez o cavalo dar alguns passos. Desmontou e aproximou-se a
pé, ficando defronte e abaixo da posição de Scarlett no banco.
- Viemos entregar isto, Mrs. O'Hara. - Tirou o chapéu e uma das luvas brancas e
entregou um rolo de pergaminho a Scarlett. - A guarnição vai enviar um destacamento
para a proteção de Ballyhara.
Scarlett sentia a tensão, qual tempestade, na atmosfera quente do final do Verão.
Desenrolou o papel e leu-o devagar, duas vezes. Sentiu as articulações dos ombros
relaxarem quando compreendeu todo o significado do documento. Ergueu a cabeça e
sorriu para que todos a pudessem ver. Depois, transferiu a força plena do seu sorriso
para o oficial que a olhava de baixo.
- É muito simpático da parte do coronel - disse -, mas, realmente, não estou
interessada e ele não pode enviar quaisquer soldados para a cidade sem o meu
consentimento. Faz o favor de lhe transmitir? Não temos nenhuma agitação aqui em
Ballyhara. Damo-nos todos muito bem. - Estendeu a folha de velino ao oficial. -
Parecem-me todos um pouquinho secos, não querem um copo de cerveja? - A
extraordinária expressão do seu rosto encantava os homens, tal como sucedera a este
oficial, desde que fizera quinze anos. Ele corou e balbuciou exatamente como dúzias
de jovens que ela seduzira em Clayton County, na Geórgia.
- Muito obrigado, Mrs. O'Hara, mas... bem... os regulamentos... isto é,
pessoalmente, não há nada que mais aprecie, mas o coronel não... hum... acharia...
- Entendo - disse Scarlett com bonomia. - Ficará para outra hora?
O primeiro brinde da Festa das Colheitas foi para a O'Hara. De qualquer forma,
teria sido o primeiro brinde, mas desta vez a saudação foi estrondosa.
O Inverno tornou Scarlett inquieta. À exceção de montar, não havia nada de ativo
para fazer, e sentia necessidade de estar ocupada. Os novos campos tinham sido
preparados e estrumados em meados de Novembro; e depois com que ia entreter o
seu pensamento? Não havia sequer muitas queixas e contendas que lhe fossem
comunicadas nos primeiros domingos. É certo que Cat conseguira atravessar sozinha a
sala para acender a vela do Natal e tiveram lugar as cerimônias do dia de Ano Novo
em que se atirava pão doce à parede; e Scarlett foi a visitante de cabelo negro da
cidade, mas, mesmo assim, os curtos dias pareceram-Ihe longos demais. Foi
calorosamente acolhida no bar de Kennedy, agora que era tida como apoiante dos
fenianos, mas em breve se fartou das cantigas sobre os mártires abençoados da
liberdade irlandesa e das ameaças em voz alta para expulsar os ingleses. Só se
deslocava ao bar quando ansiava por companhia. Exultou de alegria quando chegou o
dia de Santa Erigida, a primeiro de Fevereiro, e começou de novo o ano agrícola.
Revolveu o primeiro torrão com tanto entusiasmo que o solo foi projectado num largo
círculo em seu redor.
- Este ano vai ser ainda melhor que o anterior! - anunciou com arrebatamento.
Mas os novos campos eram um terrível fardo para os agricultores. O tempo nunca
chegava para fazer tudo o que era necessário. Scarlett insistiu com Colum para que
mandasse vir mais trabalhadores para a cidade. Havia muitas cabanas ainda vagas.
Ele não concordava com a vinda de estranhos. Scarlett retrocedeu. Compreendia a
necessidade de secretismo em relação aos fenianos. Por fim, Colum chegou a um
acordo. Podia contratar homens apenas durante o Verão. Ele a levaria ao mercado de
trabalho em Drogheda. Estaria também decorrendo a Feira do Cavalo, e assim poderia
adquirir os animais que julgasse necessários.
- Que "julgar", uma treta, Colum O'Hara. Também não sei onde estava com a
cabeça quando paguei bom dinheiro pelos cavalos de trabalho que temos. Não andam
mais depressa que uma tartaruga sobre uma estrada pedregosa. Não voltarei a deixar-
me ludibriar assim.
Colum sorriu para si. Scarlett era uma mulher maravilhosa, extraordinariamente
competente em muitos aspectos. Mas nunca iria conseguir levar a melhor sobre um
negociante de cavalos irlandês, disso tinha a certeza.
- Minha querida Scarlett, pareces uma moça da aldeia e não da nobreza rural.
Ninguém vai acreditar que tens dinheiro para dar uma volta no carrossel, quanto mais
para um cavalo.
O seu olhar severo destinava-se a intimidar. Não compreendia que parecia
mesmo uma moça vestida para ir à feira. A blusa verde conferia aos seus olhos verdes
um tom ainda mais vivo e a saia azul era da cor do céu primaveril.
- Queres me fazer o favor, padre Colum O'Hara, de pôr a charrete a andar? Sei o
que faço. Se tiver ar de rica, o negociante pensará que me pode impingir qualquer
porcaria que lá tiver. Eu me sairei muito melhor com estas roupas de camponesa.
Vamos lá. Há semanas e semanas que aguardo. Não vejo nenhum motivo para se
contratarem empregados no dia de Santa Brígida, que é quando começa a lavoura.
Colum sorriu-lhe.
- Alguns dos rapazes vão à escola, querida Scarlett - sacudiu as rédeas e
partiram.
- Muito bem lhes faz, a darem cabo dos olhos nos livros quando poderiam estar
ao ar livre e ganhando também um bom soldo. - A impaciência deixava-a insuportável.
O caminho ia sendo percorrido e das sebes vinha o odor das flores do espinheiro-
negro. À medida que avançavam, Scarlett começou a animar-se.
- Nunca estive em Drogheda, Colum. Achas que vou gostar?
- Creio que sim. É uma feira muito grande, maior que qualquer outra que tenhas
visto. - Sabia que Scarlett não se referia à cidade quando inquirira sobre Drogheda.
Adorava o ambiente de excitação das feiras. Não compreendia as intrigantes
possibilidades de uma tortuosa rua da velha cidade. Scarlett gostava das coisas óbvias
e facilmente compreensíveis. Era um aspecto que chegava a deixá-lo constrangido.
Sabia que ela não dimensionava verdadeiramente o perigo que corria com o seu
envolvimento com a Irmandade Feniana, e o desconhecimento podia levar à catástrofe.
Mas hoje ia tratar de assuntos dela, e não seus. Tencionava tirar tanto partido da
feira quanto Scarlett.
- Olha, Colum, é enorme!
- Receio que seja grande demais. Vais escolher primeiro os rapazes ou os
cavalos? Encontram-se em extremos opostos.
- Ora, adeus! Os melhores serão logo arrebanhados no começo, é sempre assim.
Sabes uma coisa... tu escolhes os rapazes e eu vou ver os cavalos. Quando acabares,
vens me encontrar. Tens certeza de que os rapazes irão para Ballyhara pelos seus
próprios meios?
Vieram aqui para ser contratados e estão acostumados a caminhar.
Provavelmente, alguns deles percorreram cem quilómetros para aqui chegar.
Scarlett sorriu.
- Nesse caso, é melhor olhares para os pés antes de assinares qualquer coisa. Eu
verei os dentes. Para que lado fica?
- Ali naquele canto, onde estão as bandeiras. Encontrarás na Feira de Drogheda
alguns dos melhores cavalos da Irlanda. Constou-me que já têm sido pagos mais de
cem guinéus.
- Ora, ora! As histórias que tu inventas, Colum. Vais ver que consigo três por
menos dessa quantia.
Havia enormes tendas de lona que serviam temporariamente de estábulos para
os cavalos. "Ah!", pensou Scarlett. "Ninguém me vai vender um animal com pouca luz."
Abriu caminho por entre a multidão que se aglomerava no interior da tenda.
"Valha-me Deus, nunca na minha vida vi tantos cavalos juntos! Como Colum foi
inteligente em trazer-me aqui. Tenho muito por onde escolher." Abriu caminho de um
lugar para o outro, inspecionou um cavalo após outro. "Ainda não", disse aos
negociantes. Não lhe agradava nada o sistema irlandês. Não se podia chegar junto de
um proprietário e perguntar-lhe quanto queria pelo seu animal. Não, assim era fácil
demais. Logo que fosse manifestado interesse, um dos negociantes se poria em pé de
um salto e indicaria o preço que, de uma maneira ou de outra, se afastaria da
realidade, acabando depois por levar o comprador e o vendedor a chegar a um acordo.
A experiência ensinara-a a contornar as suas artimanhas. Agarravam na mão e davam
palmadas com tanta força que doía, e se não se tivesse cuidado, isso podia querer
significar que se tinha acabado de adquirir um cavalo.
Gostou do aspecto de dois ruanos que o negociante anunciou alto terem ambos
exatamente três anos e custarem apenas sete libras o par. Scarlett pôs as mãos atrás
das costas.
- Leve-os até a luz para que eu os possa ver - disse.
O dono, o negociante e algumas pessoas mais próximas protestaram
furiosamente.
- Perde todo o interesse - disse um homem baixo que vestia calças de montar e
uma camisola.
Scarlett insistiu, com muita delicadeza. "Não é com vinagre que se apanham
moscas", lembrou a si mesma. Olhou o pêlo brilhante dos cavalos, esfregou nele a mão
e viu a pomada que lhe ficou na palma. Depois agarrou com ar experiente a cabeça de
um dos cavalos e examinou-lhe os dentes. Desatou às gargalhadas.
- Três anos, qual quê! Leve-os para dentro! - disse, piscando o olho ao
negociante. - Tenho um avô mais novo que eles. - Divertia-se muito.
No entanto, ao cabo de uma hora, encontrara apenas três cavalos de que
gostara, tanto pelo animal, como pelo achado. Em cada aquisição tivera que usar todo
o seu encanto e persuadir o dono a deixá-la examinar o cavalo à luz do dia. Olhava
com inveja para as pessoas que compravam cavalos de caça. Tinham sido montados
obstáculos ao ar livre, a fim de poderem ver bem aquilo que estavam comprando,
levando-os a executar habilidades para as quais os adquiriam. Eram também uns belos
exemplares. Num cavalo de trabalho, o aspecto não era importante. Afastou-se do
recinto de saltos. Precisava de mais três cavalos de trabalho. Enquanto os seus olhos
se acostumavam ao interior sombrio da tenda, Scarlett encostou-se a um dos seus
espessos suportes. Começava a ficar cansada. E ia apenas a meio.
- Onde está esse teu Pégasus, Bart? Não vejo nada voar por cima dos
obstáculos.
As mãos de Scarlett agarraram o grosso poste. "Estou perdendo a razão." Parecia
a voz de Rhett.
- Se me trouxeste aqui em vão...
"É! É! Não estou enganada. Mais ninguém tem a voz de Rhett." Voltou-se
rapidamente, olhando para o terreiro iluminado pelo sol, pestanejando.
"São as costas dele. Não são? São, tenho a certeza. Se ao menos ele dissesse
mais alguma coisa, virasse a cabeça. Não pode ser Rhett. Não há motivo para a sua
presença na Irlanda. Mas eu não iria me enganar a respeito daquela voz."
Ele voltou-se para falar com um homem de constituição franzina e cabelo louro a
seu lado. Era Rhett. Os nós dos dedos de Scarlett ficaram brancos de se agarrar com
tanta força ao poste. Tremia.
O outro homem disse qualquer coisa, apontou com o cabo do chicote, e Rhett
anuiu. Depois, o homem de cabelo louro afastou-se, saiu do seu campo de visão, e
Rhett ficou ali sozinho. Scarlett manteve-se na sombra, olhando para a claridade.
"Não te mexas!", ordenou a si mesma quando ele se começou a afastar. Mas não
conseguiu obedecer. Irrompeu da obscuridade e correu atrás dele.
- Rhett!
Parou bruscamente; Rhett, que nunca fora desajeitado, rodou sobre os
calcanhares. Estampou-se no rosto uma expressão que não conseguiu reconhecer, e
os seus olhos negros pareceram muito brilhantes por debaixo da pala do boné.
Esboçou, então, aquele sorriso trocista que ela tão bem conhecia.
- Surges nos lugares mais inesperados, Scarlett - disse.
"Está rindo de mim, mas não me importo. Nada me importa desde que ele diga o
meu nome e fique perto de mim." Ouvia o bater do seu próprio coração.
- Olá, Rhett - disse ela -, como estás? - Sabia que era algo de absurdo,
inadequado para dizer, mas tinha que falar alguma coisa.
A boca de Rhett contorceu-se.
- Sinto-me extraordinariamente bem para um homem que morreu - disse em tom
afetado -, ou estarei enganado? Pensei ter visto uma viúva no cais de Charleston.
- Bem, sim. Tinha que dizer alguma coisa. Não era casada, quero dizer, não tinha
marido...
- Não tentes explicar, Scarlett. Não é o teu forte.
- De que é que estás falando? - Estaria usando de sarcasmo? "Por favor, não
faças isso, Rhett."
- Não importa. Que te trás à Irlanda? Pensei que te encontrasses em Inglaterra.
- O que te levou a supor tal coisa? - "Por que estamos aqui com esta conversa?
Por que não consigo pensar? Por que digo tamanhos disparates?"
- Não abandonaste o navio em Boston?
O coração de Scarlett pulou ao captar o sentido das palavras dele. Dera-se
ao trabalho de descobrir o seu destino, preocupava-se com ela, não queria que ela
desaparecesse. O seu coração transbordou de felicidade.
- Devo presumir pelas tuas roupas garridas que já não choras a minha morte? -
disse Rhett. - Que vergonha, Scarlett, ainda não esfriei na sepultura.
Olhou horrorizada para as suas vestes de camponesa, depois para o casaco dele,
de corte impecável e gravata branca alta, de nó muito bem dado. Por que ele a fazia
sentir-se sempre mal? E por que não conseguia ficar pelo menos encolerizada?
Porque o amava. Talvez ele não acreditasse, mas era verdade.
Sem planejar ou pensar nas consequências, Scarlett olhou para o homem que
fora seu marido durante tantos anos de mentiras.
- Amo-te, Rhett! - disse com singela dignidade.
- Azar teu, Scarlett. Parece que te apaixonas sempre pelo marido de outra. -
Levantou cortesmente o boné. - Tenho outro compromisso, desculpa se te deixo neste
momento. Adeus. - Voltou-lhe as costas e foi-se embora. Scarlett ficou a vê-lo afastar-
se. Parecia tê-la esbofeteado no rosto.
Sem motivo. Não lhe fizera exigências, e até lhe oferecera aquilo que de mais
importante aprendera a dar. E ele espezinhara-o no esterco. Ridicularizava-a.
Não, ela é que se cobrira de ridículo.
Scarlett deixou-se ficar ali, como uma figura colorida, pequena e isolada no meio
do rebuliço da Feira do Cavalo por uma imensidão de tempo. Depois, o mundo voltou a
entrar nos eixos e viu Rhett e o amigo junto de outra tenda, numa roda de
espectadores interessados. Um outro homem com fato de tweed segurava um baio
inquieto pelas rédeas, e um homem de rosto congestionado, envergando um casaco de
xadrez, baixava o braço direito, nos movimentos familiares do negócio de cavalos.
Scarlett julgou ouvir as palmadas ao exortar o amigo de Rhett e o dono do cavalo a
fazerem negócio.
Os seus pés moveram-se sozinhos, percorrendo o espaço que a separava deles.
Haveria certamente pessoas no caminho, mas não tinha consciência delas, e de certa
forma dissipavam-se.
A voz do negociante assemelhava-se a um canto ritual, cadenciado e hipnótico:
- ...cento e vinte, cavalheiro, sabe que é um preço jeitoso, mesmo para um animal
deste tamanho..., e você, cavalheiro, pode dar mais vinte e cinco, para acrescentar um
animal nobre como este aos seus estábulos... Cento e quarenta? Certamente que terá
que pôr um pouco de moderação nas suas idéias, o cavalheiro chegou às cento e vinte
e cinco, é a única maneira que há de dar um passinho ao encontro dele; diga que
desce de cento e quarenta e duas para cento e quarenta e fecharemos negócio antes
de terminar o dia... Se forem cento e quarenta, demonstrará que o pode igualar, não
acha, então? Se disser cento e trinta em vez de cento e vinte e cinco, ficará cada um
na sua, sem proveito para ninguém...
Scarlett intrometeu-se no triângulo vendedor, comprador e negociante. A alvura
do seu rosto contrastava muito com a camisa verde, os olhos ainda mais verdes que
esmeraldas.
- Cento e quarenta - anunciou com nitidez. O negociante ficou perplexo, o seu
ritmo interrompido. Scarlett cuspiu na não direita e bateu sonoramente na dele. Depois
voltou a cuspir, olhando para o vendedor. Este ergueu a mão e cuspiu na palma,
depois bateu uma vez mais na dela, à velha maneira de fechar o negócio. O negociante
apenas pôde cuspir e firmar em aquiescência.
Scarlett olhou para o amigo de Rhett.
- Espero que não tenha ficado desapontado demas - disse em tom meloso.
- Ora, porquê? Quero dizer...
Rhett interrompeu.
- Bart, gostaria de te apresentar... - fez uma pausa.
Scarlett não olhou.
- Mrs. O'Hara - anunciou ao perplexo amigo de Rhett.
Estendeu-lhe a mão direita molhada de cuspe. - Sou viúva.
- John Morland - disse ele, e pegou-lhe a mão suja. Fez uma ligeira reverência,
beijou-a, depois sorriu pesarosamente para os olhos ardentes dela. - A senhora é uma
mulher decidida, Mrs. O'Hara. Quando quer uma coisa! Costuma caçar por aqui?
- Bem... eu... - "Santo Deus, que fizera? Que podia responder? Para que queria
um puro-sangue de caça no estábulo de Ballyhara?" - Confesso, Mr. Morland, que não
consegui resistir a um impulso feminino. Este cavalo tinha que me pertencer!
- Também senti o mesmo. Mas pelo visto fui mais lento - retorquiu a voz inglesa
aperfeiçoada. - Teria muito prazer se viesse um dia me encontrar, isto é, participar na
caçada que parte da minha propriedade. Fica próximo de Dunsany, se conhece aquela
região do país.
Scarlett sorriu. Ainda há pouco estivera naquela região, para o casamento de
Kathleen. Por isso o nome de John Morland lhe era familiar. Ouvira o marido de
Katheleen referir-se a "Sir John Morland". "É um homem generoso, e acima de tudo um
proprietário de terras", dissera Kevin O'Connor uma dúzia de vezes. "Pois não me
disse para abater cinco libras à renda como presente do meu casamento?"
"Cinco libras", pensou. "Quanta generosidade. Da parte de um homem que ia
pagar trinta vezes mais por um cavalo."
- Conheço Dunsany - disse Scarlett. - Fica próxima de uns amigos que vou visitar.
Adoraria ir caçar contigo. É só dizer-me o dia.
- No próximo sábado?
Scarlett sorriu com malícia. Cuspiu na palma da mão e ergueu-a.
- Combinado!
John Morland soltou uma gargalhada. Cuspiu na sua, bateu uma, duas vezes na
dela.
- Combinado! O último copo é bebido às sete, e o desjejum é depois.
Pela primeira vez desde que lhes impusera a sua presença, Scarlett olhou para
Rhett. Parecia que o olhar dele há muito se fixara nela. Os seus olhos tinham uma
expressão cômica, algo mais que não conseguia definir. "Com mil diabos, se diria que
nunca antes me viu, ou coisa assim."
- Mr. Butler, muito prazer em conhecê-lo - disse, com graciosidade. Agitou
elegantemente a mão suja diante dele.
Rhett descalçou a luva para lhe pegar.
- Mrs. O'Hara - disse, executando uma reverência.
Scarlett fez um sinal ao negociante espantado e ao antigo dono do cavalo, que
esboçava uma careta.
- O meu empregado não tardará a vir aqui para proceder às diligências
necessárias - disse em tom despreocupado, e levantou as saias para tirar um molho de
notas preso à liga, acima do joelho, às listras encarnadas e verdes. - Pode ser em
guinéus? - Contou o dinheiro na mão do vendedor.
As saias rodopiaram quando se virou e se afastou.
- Que mulher extraordinária! - disse John Morland.
Os lábios de Rhett contorceram-se num sorriso.
- Espantosa! - anuiu.

- Colum! Pensei que te tivesses perdido!


- Nem por isso, Scarlett, estava com fome. Já comeste?
- Não, esqueci-me.
- Estás satisfeita com os cavalos?
Scarlett baixou o olhar para ele do seu pouso no varão do recinto de saltos.
Começou a rir.
- Acho que comprei um elefante. Nunca na tua vida viste um cavalo tão grande.
Teve que ser. Não me perguntes porquê! - Colum colocou uma mão firme no braço
dela.
O riso morreu e os olhos brilharam-lhe de dor.
- Vai sair - disse a vozinha. - Não, minha querida, hoje não. Em breve, mas hoje
não. - Scarlett sentiu-se de uma tremenda vulnerabilidade. Como pudera ser tão
insensível? Como pudera ignorar o perigo que Cat corria? Dunsany não era assim tão
longe; não suficientemente longe, pelo menos, para ter a certeza de que as pessoas
não conheciam a O'Hara e a sua filha de pele trigueira. Mantinha Cat com ela dia e
noite, lá em cima, nos seus dois quartos, enquanto olhava com preocupação pela
janela que dava para o caminho.
Mrs. Fitz era a intermediária nos assuntos que havia a tratar, e a fazer enquanto o
diabo esfregava o olho. A costureira andava num rodopio para provar o traje de montar
de Scarlett, o sapateiro trabalhava nas botas dela feito um duende noite afora, os
moços de estrebaria afanavam-se a passar panos embebidos em óleo sobre a sela de
amazona estalada e seca, que estivera trinta anos a um canto da casa das alfaias
antes de Scarlett chegar, e um dos moços contratados na feira, que tinha mãos hábeis
e um bom traseiro, exercitava o grande e possante cavalo de caça baio. Ao raiar de
sábado, Scarlett estava mais pronta que nunca.
O cavalo era um baio castrado chamado HalfMoon. Era, como dissera a Colum,
muito grande: quase dezessete mãos travessas, com um tórax muito largo, dorso
comprido e coxas fortemente musculosas. Era cavalo para um homem grande; Scarlett
parecia minúscula, frágil e muito feminina montada nele. Temia parecer ridícula. E tinha
a certeza de que fizera uma triste figura. Desconhecia o temperamento ou as
particularidades de HalfMoon, e não houvera chance de as descobrir porque montava à
amazona, como todas as senhoras.
Quando menina, Scarlett adorava montar numa sela de amazona. Permitia que as
saias caíssem com graciosidade, o que salientava a sua cintura fina. Também nesses
tempos raramente andara mais depressa do que a passo, a melhor maneira de
namorar os homens que cavalgavam a seu lado.
Mas, agora, a sela de amazona constituía uma séria desvantagem. Não
conseguia comunicar com o cavalo através dos toques dos joelhos porque um dos
joelhos estava dobrado sobre a maçaneta da sela, o outro rígido, porque só através da
pressão do pé que estava no estribo é que uma senhora conseguia contrabalançar a
sua posição desequilibrada. "Provavelmente, cairei antes de chegar a Dunsany",
pensou desesperada. "E com certeza partirei o pescoço se conseguir chegar à primeira
sebe." Sabia pelo pai que saltar sebes e valas, cercas, degraus e muros era a parte
mais interessante da caçada. Colum também não facilitara as coisas ao dizer-lhe que
era frequente as senhoras evitarem a parte ativa da caçada. O desjejum era a parte
social e as roupas de montar eram muito apropriadas. São muito mais prováveis os
acidentes graves quando se monta numa sela de amazona, e ninguém culpava as
senhoras por serem sensatas.
Rhett teria prazer em a ver covarde e fraca, tinha certeza. E preferia partir a
espinha a dar-lhe essa satisfação. Scarlett bateu com o pingalim no pescoço de
HalfMoon.
- Vamos experimentar um trote, para ver como me equilibro nesta ridícula sela -
suspirou em voz alta.
Colum descrevera a Scarlett uma caça à raposa, mas não estava preparada para
o seu primeiro impacto. Morland Hall era uma construção mista com mais de dois
séculos, com alas, chaminés, janelas e paredes unidas na maior confusão umas às
outras à volta do pátio de paredes de pedra que fora a torre de menagem do castelo
fortificado, construído pelo primeiro baronete Morland em 1615. O pátio quadrado
estava cheio de cavaleiros montados e cães excitados. Perante aquilo, Scarlett
esqueceu as suas preocupações. Colum não lhe dissera que os homens vestiam
casacos vermelhos-vivos com abas, a que erradamente se dava o nome de "cor-de-
rosas". Nunca vira nada tão fascinante na sua vida.
- Mrs. O'Hara! - Sir John Morland cavalgou ao encontro dela, com o reluzente
chapéu alto na mão. - Seja bem-vinda. Não acreditei que viesse.
Scarlett semicerrou os olhos.
- Foi Rhett quem o disse?
- Pelo contrário. Ele disse que os cavalos selvagens não a afastariam. - Não havia
qualquer malícia em Morland. - Que tal se dá com HalfMoon? - O baronete acariciou o
pescoço lustroso do enorme cavalo de caça. - É uma beleza!
- Hum? Sim, não é? - disse Scarlett.
Os olhos dela moviam-se com rapidez em busca de Rhett. "Tanta gente! Maldito
véu, que vejo tudo esfumado." Envergava o mais conservador traje de montar permitido
pela moda. Todo de lã preta, com gola alta, e chapéu alto preto com um véu no rosto,
esticado e atado sobre o volumoso cabelo apanhado atrás. Era pior que vestir luto,
pensou, mas respeitável como toda a roupa de sair, a verdadeira antítese das saias de
cores vivas e meias listradas. Scarlett apenas se rebelara num aspecto: não quisera
vestir espartilho por debaixo do traje. Para tortura, já bastava a sela de amazona.
Rhett olhava-a. Desviou rapidamente o olhar quando finalmente o detectou. "Está
contando que eu faça triste figura. Vou mostrar a Mr. Rhett Butler. Talvez não fique
com um osso do meu corpo inteiro, mas ninguém rirá de mim, e muito menos ele."
"Segue devagar, bem atrás e vê o que os outros fazem", dissera-lhe Colum.
Scarlett começou como ele aconselhara. Sentia as mãos suadas por dentro das luvas.
Lá à frente, o ritmo começava a aumentar; depois, a seu lado, uma mulher soltou uma
gargalhada e chicoteou o cavalo, irrompendo num galope. Scarlett analisou
brevemente o panorama de costas vermelhas e pretas que desciam a encosta à sua
frente, os cavalos que saltavam sem o menor esforço o muro de pedra no sopé da
colina.
"É agora", pensou, "tarde demais para me preocupar." Transferiu o peso sem
saber o que deveria fazer e deixou que HalfMoon começasse a aumentar cada vez
mais o seu andar, veterano de cem caçadas. O muro ficou para trás sem que
percebesse o salto. Por isso John Morland tanto queria HalfMoon. Scarlett riu alto. Não
importava que nunca tivesse participado numa caçada, que há mais de quinze anos
não se sentasse numa sela de amazona. Sentia-se bem como nunca. Estava
divertindo-se. Por isso o pai nunca abria o portão. Para quê o incômodo, se podia saltar
a vedação?
Os espectros do pai e de Bonnie, que a haviam atormentado, tinham
desaparecido. O seu medo desvanecera-se. Ficara apenas o entusiasmo do ar
brumoso que lhe tocava a pele e a força do animal que controlava.
Isso e a nova determinação de ultrapassar e deixar bastante para trás Rhett
Butler.
A cauda enlameada do vestido de Scarlett pendia-lhe do braço esquerdo,
enquanto agarrava com a mão direita uma taça de champanhe. A pata da raposa que
lhe fora atribuída seria colocada numa base de prata, se ela permitisse, dissera John
Morland.
- Adoraria, Sir John.
- Por favor, trate-me por Bart. Todos os meus amigos o fazem.
- Por favor, trate-me por Scarlett. Todos o fazem, sejam meus amigos ou não. -
Estava aérea e afogueada com o entusiasmo da caçada e com o seu êxito pessoal. -
Nunca o dia me correu tão bem - disse a Bart. Era quase verdade. Outros cavaleiros a
felicitaram, viu a inconfundível admiração nos olhos dos homens, a inveja nos das
mulheres. Para onde quer que olhasse, havia homens atraentes e belas mulheres,
bandejas de prata com champanhe, criados, opulência; pessoas divertindo-se, gozando
a vida. Era como os tempos antes da guerra, só que agora crescera, podia fazer e dizer
o que quisesse, e era Scarlett O'Hara, a provinciana da Geórgia do Norte, no castelo
de um baronete, confraternizando com lady isto e lorde aquilo, e até uma condessa.
Era como uma história de um livro, e subira à cabeça de Scarlett.
Quase esqueceu a presença de Rhett, quase apagou a lembrança de ter sido
insultada e desprezada.
Mas apenas quase. A sua mente traiçoeira não parava de lhe lembrar coisas que
vira e ouvira ao voltar para casa após a caçada: Rhett fazendo de conta que não se
importava que ela o tivesse vencido na matança... provocando a condessa como se
fosse uma qualquer... mostrando-se tão à-vontade e confortável e nada
impressionado... sendo tão... tão Rhett. Que fosse para o diabo!
- Parabéns, Scarlett. - Rhett encontrava-se ao seu lado, e nem dera pela
aproximação dele. O braço de Scarlett estremeceu e entornou o champanhe na saia.
- Que raio, Rhett, tens de aparecer assim tão sorrateiramente às pessoas?
- Desculpa. - Rhett ofereceu-lhe um lenço. - E desculpa o meu comportamento
grosseiro na feira do cavalo. A única atenuante que tenho foi a surpresa de te ver ali.
Scarlett pegou o lenço e curvou-se para limpar a humidade da saia. Não valia a
pena; o vestido estava já salpicado de lama devido à fúria da perseguição a corta-mato.
Mas proporcionava-lhe o ensejo de coordenar as idéias e ocultar o rosto por um
instante. "Não vou mostrar o que sinto", jurou a si mesma em silêncio. "Não lhe vou
mostrar o quanto me magoou."
Ergueu a cabeça e os seus olhos brilhavam, os lábios formaram um sorriso.
- Ficaste chocado - disse ela. - Imagina como eu fiquei. Que fazes na Irlanda?
- Compro cavalos. Estou decidido a vencer as corridas no ano que vem. Os
estábulos de John Morland têm fama de produzir excelentes potros. Terça-feira vou
para Paris procurar mais alguns. Que te trouxe a Drogheda em trajes locais?
Scarlett soltou uma gargalhada.
- Oh, Rhett, sabes como adoro mascarar-me. Pedi aquelas roupas emprestadas a
uma das criadas da casa onde estou hospedada. - Olhou de um lado para o outro, à
procura de John Morland. - Tenho que cuidar da minha reputação e ir - disse por cima
do ombro. - Os meus amigos ficarão fulos se não regressar dentro em pouco. - Olhou
Rhett por um instante, depois saiu apressada. Não ousava ficar. Não assim próxima
dele. Nem sequer na mesma sala... na mesma casa.
Estava a cerca de oito quilômetros de Ballyhara quando a chuva começou a cair.
Scarlett atribuiu-lhe a culpa da humidade que sentia nas faces.
Na quarta-feira levou Cat para Tara. As velhas colinas tinham altura suficiente
para Cat se sentir vitoriosa ao subi-las. Scarlett observava a imprudência de Cat ao
descer a colina correndo e lutava para não a avisar de que poderia cair.
Falou a Cat sobre Tara, sobre a sua família e sobre os banquetes dos grandes
reis. Antes de se virem embora, ergueu a menina o mais alto que podia para que visse
bem a terra onde nascera.
Tens uma costela irlandesa, Cat, as tuas raízes estão aqui... Compreendes o que
te digo?
- Não - respondeu Cat.
Scarlett pôs no chão para que pudesse correr. As perninhas fortes agora nunca
caminhavam, corriam sempre. Cat caía com freqüência. Havia antigas irregularidades
do terreno sob a erva. Mas nunca chorava. Punha-se de pé e voltava a correr.
Era bom para Scarlett observá-la. Sentia-se novamente inteira.
- Colum, quem é este Parnell? As pessoas falavam dele durante o desjejum da
caçada, mas não compreendi nada do que diziam.
"Um protestante", dissera Colum, "e inglês." Ninguém que lhes interessasse.
Scarlett quis prosseguir a conversa, mas sabia que era uma perda de tempo.
Colum nunca discutia os ingleses, e muito menos com os proprietários de terras
inglesas da Irlanda, que eram conhecidos por anglo-irlandeses. Tinha conseguido
mudar facilmente de assunto, antes mesmo de ela se dar conta. Preocupava-a o fato
de ela não admitir sequer que alguns ingleses pudessem ser boas pessoas. Gostara
das irmãs no barco da América, e todos tinham sido gentis com ela na caçada. A
intransigência de Colum fazia-a sentir uma distância entre eles. Se ao menos falasse,
em vez de lhe cortar a palavra.
Fez a Mrs. Fitz a outra pergunta que não lhe saía do pensamento. Quem eram os
Butler irlandeses que todos odiavam tanto?
A governanta foi buscar um mapa da Irlanda.
- Está vendo isto? - passou a mão por todo o condado do tamanho de County
Meath. - E Kilkenny. Território Butler. São os duques de Osmonde. Provavelmente, a
família inglesa mais forte da Irlanda. - Scarlett olhou mais de perto. Não muito longe da
cidade de Kilkenny viu o nome "Dunmore Cave". E a plantação de Rhett chamava-se
Dunmore Landing. Tinha que existir uma ligação.
Scarlett desatou a rir. Sentira-se tão superior porque os O'Hara governavam mil e
duzentos acres, e aqui estavam os Butler com o seu próprio condado. Sem fazer nada,
Rhett voltara a ganhar. Era sempre assim. Como podia qualquer mulher ter culpa de
amar tal homem?
- Onde está a graça, Mrs. O?
- Em mim, Mrs. Fitz. Ainda bem que me deu para rir.
Mary Moran enfiou a cabeça pela porta sem bater. Scarlett não se deu ao trabalho
de dizer nada. A moça estouvada e nervosa agiria ainda pior durante semanas se
alguém a repreendesse. Um problema, quando quase nenhum havia.
- Que é, Mary ?
- Um cavalheiro para a ver. - A criada estendeu um cartão. Tinha os olhos mais
arregalados que o costume.
Sir John Morland, Bart.
Scarlett desceu as escadas correndo.
- Bart! Mas que surpresa. Entre, podemos sentar-nos nos degraus. Não tenho
mobília. - Estava verdadeiramente encantada por o ver, mas não o podia levar para a
sala de estar. Cat dormia ao lado.
Bart Morland sentou-se num dos degraus, como se não existir mobília fosse a
coisa mais natural do mundo. Tivera um trabalhão para a encontrar, disse, até lhe
aparecer o carteiro no bar. Era a única desculpa por tardar tanto em entregar-lhe o
trofeu da caçada.
Scarlett mirou a placa de prata com o seu nome e a data da caçada. A pata da
raposa já não estava ensanguentada, valesse ao menos isso, mas não tinha sido nada
de belo.
- Deplorável, não é? - disse Bart, animado.
Scarlett riu. Dissesse Colum o que dissesse, gostava de John Morland.
- Quer vir cumprimentar HalfMoon?
- Estava temendo que nunca mais perguntasse. Pensava na melhor maneira de o
sugerir. Como está ele?
Scarlett esboçou uma careta.
- Receio que faça pouco exercício. Sinto-me culpada, mas tenho tido muito que
fazer. É preciso tempo.
- Como vai a sementeira?
- Até aqui, tudo bem. Se não chover demais.
Percorreram a colunata e dirigiram-se ao estábulo. Scarlett preparava-se para o
passar a caminho do pasto e de Half Moon, mas Bart deteve-a. Poderia entrar? Os
seus estábulos eram famosos e nunca os vira. Scarlett ficou surpreendida, mas anuiu
prontamente. Os cavalos estavam no trabalho ou no pasto, pelo que não havia nada
para ver a não ser baias vazias, mas se era isso que ele queria...
As baias eram separadas por colunas para se virem juntar e cruzar, criando um
teto de pedra que parecia tão fino e leve como o ar e o céu.
John Morland estalou os nós dos dedos, depois desculpou-se. Quando ficava
deveras entusiasmado, fazia-o instintivamente.
- Não acha extraordinário ter um estábulo que parece uma catedral? Se fosse eu,
punha um órgão e tocava Bach para os cavalos o dia inteiro.
- Provavelmente, lhes daria o garrotilho.
O riso convulsivo de John Morland contagiou Scarlett; parecia tão engraçado.
Encheu um pequeno saco de aveia para ele dar a HalfMoon.
Ao caminhar ao lado de John Morland, Scarlett esforçava-se por achar uma forma
de interromper a sua maravilhosa conversa sobre os estábulos, algo de informal que
pudesse levá-lo a começar a falar de Rhett.
Não foi preciso.
- Veja só que sorte que tenho de ser amigo de Rhett Butler! - exclamou Bart. - Se
ele não nos tivesse apresentado, nunca teria podido ver os teus estábulos.
- Fiquei muito surpreendida por o encontrar inesperadamente - apressou-se
Scarlett a responder. - Como foi que o conheceu?
Não conhecia propriamente Rhett. Uns velhos amigos tinham-lhe escrito há um
mês, dizendo que iam enviar Rhett para ver os seus cavalos. Depois Rhett chegara,
trazendo uma carta de apresentação deles.
- É um sujeito extraordinário, muito interessado em cavalos. Sabe também muito.
Gostaria que se pudesse demorar mais. São velhos amigos? Nunca chegou a dizer-
me.
"Valha-me Deus", pensou Scarlett.
- Tenho família em Charleston - informo-o. - Conheci-o quando lá estive de visita.
- Então, deve ter conhecido os meus amigos, os Brewton! Quando estive em
Cambridge, fui a Londres no princípio do Verão, na esperança que Sally Brewton
pudesse ter vindo. Estava doido por ela, como todos, aliás.
- Sally Brewton! Aquela que tem cara de macaco? - explodiu Scarlett antes de
pensar.
Bart franziu a testa.
- Essa mesmo. Não é maravilhosa? É única.
Scarlett anuiu entusiasticamente, e sorriu. Mas na verdade nunca entenderia o
que viam os homens numa pessoa tão feia.
John Morland devia julgar que todos os que conheciam Sally certamente a
adorariam, e falou dela durante meia hora, enquanto se inclinava na vedação do pasto
tentando atrair HalfMoon a vir comer a aveia que lhe estendia na palma da mão.
Scarlett ouvia metade do que ele dizia enquanto ia ordenando as suas idéias.
Depois, o nome de Rhett atraiu toda a sua atenção. Bart riu entre dentes ao referir os
mexericos que Sally incluíra na sua carta. Rhett caíra, ao que parecia, na armadilha
mais antiga do mundo. Um orfanato organizara um passeio pela sua propriedade, e
chegado o momento de regressar faltava uma das crianças. Que podia ele fazer se não
ir à procura dela com a professora? Tudo acabou bem, a criança foi encontrada, mas já
depois de ter escurecido. O que queria dizer, logicamente, que a professora solteirona
ficara comprometida, e Rhett tivera que casar com ela.
Mas o melhor fora o ter sido expulso da cidade anos antes, ao recusar casar-se
com uma outra moça com quem entrara em intimidades.
- Seria de esperar que tivesse aprendido a ter cuidado depois da primeira vez - riu
alto Bart. - Deve ser muito mais distraído do que parece. Não acha hilariante, Scarlett?
Scarlett?
Dominou-se.
- Falando como mulher, diria que é bem feito para Mr. Butler. Tem todo o ar de
ser um homem que causou muitos problemas a muitas moças, e sabendo o que fazia.
John Morland irrompeu em gargalhadas. O som atraiu Half Moon, que se
aproximou com cautela da cerca. Bart sacudiu o saco de aveia.
Scarlett estava encantada, e no entanto queria chorar. Por isso Rhett se
divorciara tão rapidamente e voltara a casar. "Mas que velhaca me saiu Arme
Hampton, conseguiu enganar-me bem. Ou talvez não. Talvez fosse pouca sorte minha
terem levado tanto tempo a achar o órfão perdido. E essa Anne é a favorita especial de
Miss Eleanor. E parece-se tanto com Melly."
Half Moon afastou-se da aveia. John Morland levou a mão ao bolso do casaco e
achou uma maçã. O cavalo relinchou de gula.
- Ouça, Scarlett - disse Bart ao partir a maçã. - Queria falar-lhe de um assunto
algo delicado. - Estendeu a palma da mão com um quarto de maçã para Half Moon.
- Delicado! - Se ele pudesse adivinhar como a sua conversa fora já delicada.
Scarlett riu.
- Não me importo que estrague o animal com mimos, se é a isso que se refere -
disse ela.
"Santo Deus, não!" Os olhos cinzentos de Bart arregalaram-se. "Que lhe teria
sugerido semelhante idéia?"
- Era algo verdadeiramente delicado, explicou. Alice Harrington - era a loura
avantajada da caçada, que caíra numa vala - ia dar uma festa em sua casa no fim-de-
semana do São João, e queria convidar Scarlett, mas faltava-lhe a coragem. Fora
nomeado diplomata para a sondar.
Scarlett tinha mil perguntas. Essencialmente, resumiam-se a quando, onde e o
que vestir. Colum ficaria furioso, tinha certeza, mas não se importava. Queria aperaltar-
se, beber champanhe e correr veloz sobre riachos e sebes atrás dos cães e da raposa.
Harrington House era uma enorme casa maciça construída em pedra de Portland.
Não ficava longe de Ballyhara, logo depois de atravessar uma aldeia chamada Pike
Corner. Foi difícil dar com o acesso; não havia cancela ou casa de entrada, apenas
duas colunas de pedra sem adornos ou marcas. O caminho de cascalho contornava
um grande lago e depois abria-se numa ampla área coberta com areia, diante da casa
de pedra.
Ao ouvirem-se as rodas da charrete, saiu pela porta da frente um criado. Ajudou
Scarlett a descer, sendo depois entregue aos cuidados de um criado que esperava no
átrio.
- O meu nome é Wilson, miss - disse, fazendo uma reverência.
- Deseja recompor-se um pouco da viagem ou vai juntar-se aos outros? - Scarlett
preferiu ir juntar-se aos outros, e o criado acompanhou-a pelo átrio a uma porta aberta
que dava acesso a um relvado.
- Mrs. O'Hara! - exclamou Alice Harrington. Agora Scarlett lembrava-se
perfeitamente dela. "Caíra numa vala" não fora grande descrição, nem tão pouco
"avantajada". "Gorda e ruidosa" lhe teria permitido identificar de imediato Alice
Harrington. Avançou para Scarlett com um passo extraordinariamente ligeiro, retumbou
que muito lhe aprazia vê-la. - Espero que aprecie o críquete; jogo pessimamente e a
minha equipe não se importaria de me dispensar.
- Nunca joguei - respondeu Scarlett.
- Melhor assim! Terá toda a vantagem de principiante. - Estendeu-lhe o taco. -
Riscas verdes condizem contigo. Que olhos invulgares os teus. Venha conhecer as
pessoas e trazer alguma sorte à minha equipe.
A equipe de Alice - agora de Scarlett - era constituída por um sujeito idoso com
roupa de tweed, apresentado como o "general Smyth-Burns" e um casal que andaria
pelos vinte, usando ambos óculos, Emma e Chizzie Fulwich. O general apresentou-lhe
os adversários, Charlotte Montague, uma mulher alta e magra, de cabelo grisalho muito
bem penteado, o primo de Alice, Desmond Grantley, tão volumoso quanto ela, e um
elegante par chamado Genevieve e Ronald Bennett.
- Cuidado com Ronald - disse Emma Fulwich -, faz batota.
O jogo foi divertido, no entender de Scarlett, e o cheiro da relva recém-cortada era
melhor que o das flores. Os seus instintos competitivos haviam atingido o ponto
máximo antes de jogar pela terceira vez, e mereceu um "Muito bem!" e uma palmada
no ombro, por parte do general, quando bateu com força a bola de Ronald Bennett,
fazendo-a rolar pelo relvado.
Quando o jogo acabou, Alice Harrington lançou-lhes um convite para lanchar. A
mesa fora posta debaixo de uma enorme faia; a sombra era acolhedora. Também a
visão de John Morland. Escutava com atenção as palavras de uma jovem sentada a
seu lado no banco, mas agitou os dedos para saudar Scarlett. O resto dos convidados
também ali se encontrava. Scarlett foi apresentada a Sir Francis Kinsman, muito
atraente e com ar de libertino, e à esposa, e conseguiu convencer perfeitamente que se
lembrava do marido de Alice, Henry, da caçada organizada por Bart.
A interlocutora de Bart não ficou nada satisfeita que a interrompessem com
apresentações, mas revelou uma fria graciosidade.
- A ilustre Louisa Ferncliff - anunciou Alice com decidida jovialidade. Scarlett
sorriu, disse "Como está?", e ficou por ali. Estava convencida de que a ilustre não
gostaria que a tratassem logo por Louisa e certamente não se chama ilustre às
pessoas. Especialmente quando tinham o ar de estar à espera de que John Morland
tomasse a iniciativa de um beijo furtivo por detrás dos arbustos.
Desmond Grantley apresentou uma cadeira a Scarlett e perguntou se lhe dava a
honra de lhe trazer um sortido de sanduíches e bolos. Scarlett aceitou a oferta
generosa. Olhou a roda de pessoas a que Colum chamava desdenhosamente "a
pequena nobreza" e pensou novamente que não deveria ser tão obstinada. O grupo
era muito simpático. Estava certa de que se iria divertir.
Alice Harrington levou Scarlett até ao seu quarto, após o lanche. Ficava longe;
percorreu salas de recepção em mau estado, uma larga escadaria com uma
passadeira gasta e um átrio amplo sem qualquer alcatifa. O quarto era espaçoso, mas
a mobília muito dispersa, pensou Scarlett, e o papel de parede estava nitidamente
desbotado.
- Sarah desfez-lhe a mala. Virá tratar do seu banho e ajudá-la a vestir-se, às sete,
se achar bem. O jantar é às oito.
Scarlett assegurou a Alice que os preparativos estavam ótimos.
- Há papel de carta na escrivaninha, e alguns livros naquela mesa, mas se preferir
algo de diferente...
- Pelo amor de Deus, não, Alice. Não perca tempo comigo quando tem outros
convidados e tudo o mais. - Agarrou um livro ao acaso. - Estou ansiosa por o ler. Há
séculos que o queria fazer.
O que realmente mais ansiava era escapar ao ruidoso e incessante recital de
Alice sobre as virtudes do seu gordo primo Desmond. "Daí o seu nervosismo em
convidar-me", pensou Scarlett. Sabia que Desmond não tinha atrativos que fizessem o
coração de uma mulher bater acelerado. "Deve ter sabido que eu sou viúva e rica e
quer ajudá-lo a lamber-me primeiro as botas, antes que mais alguém saiba de mim. É
pena, Alice, não há a menor chance, nem daqui a um milhão de anos."
Assim que Alice se foi, a criada posta à disposição de Scarlett bateu à porta e
entrou. Fez uma reverência, sorrindo ansiosa.
- É para mim uma honra vestir A O'Hara - disse ela. - Afinal, quando chegam as
suas malas?
- Malas? Que malas? - perguntou Scarlett.
A criada levou a mão à boca e soltou um gemido por entre os dedos.
- É melhor te sentares - disse Scarlett. - Desconfio que tenho que te perguntar
umas quantas coisas.
A moça não se fez de rogada. O coração de Scarlett caía-lhe cada vez mais, à
medida que ia ficando sabendo aquilo que ignorava.
O pior era que não haveria caçada. Esta tinha lugar no Outono e Inverno. A única
razão por que Sir John Morland organizara a sua, fora para mostrar os seus cavalos ao
hóspede americano rico.
Quase tão mau foi saber que as senhoras se vestiam para o desjejum, mudavam
para o almoço, mudavam à tarde e mudavam para o jantar, e nunca usavam a mesma
roupa duas vezes. Scarlett tinha dois vestidos de dia, um de noite e o traje de montar.
Também não valia a pena mandar buscar mais em Ballyhara. Mrs. Scalon, a costureira,
não pregara olho até acabar a roupa que ela trouxera consigo. Todos os vestidos feitos
de novo para a viagem à América estavam completamen-te fora de moda.
- Acho que vou embora amanhã bem cedo - disse Scarlett.
- Oh, não! - exclamou a criada -, não deve fazer isso, A O'Hara. Que lhe importam
os outros? São apenas ingleses.
Scarlett sorriu à moça.
- Portanto, somos nós contra eles, Sarah, é isso que me estás dizendo? Como
soubeste que eu era A O'Hara?
- Todos em County Meath sabem de A O'Hara - disse a moça com orgulho -,
todos os irlandeses.
Scarlett sorriu. Já se sentia melhor.
- Agora, Sarah - disse -, fala-me dos ingleses que aqui se encontram. - Scarlett
estava convencida de que os criados da casa deviam saber tudo sobre todos. Era
sempre assim.
Sarah não a desiludiu. Quando Scarlett desceu para o jantar, estava preparada
para todo o esnobismo que se pudesse deparar. Sabia mais sobre todos os outros
convidados do que as suas próprias mães.
Mesmo assim, sentia-se uma camponesa aperaltada. E estava furiosa com John
Morland. Dissera apenas "vestidos leves durante o dia e algo mais decotado para o
jantar". As outras mulheres estavam vestidas e enfeitadas de jóias como rainhas,
pensou, e deixara as pérolas e os brincos de brilhantes em casa. E estava igualmente
convencida de que se via que o seu vestido fora feito por uma costureira de aldeia.
Rangeu os dentes e decidiu que mesmo assim não ia deixar de se divertir.
"Agora, como não devo voltar a ser convidada para mais lado nenhum..."
Na verdade, houve muitas coisas que lhe agradaram. Para além do críquete, um
passeio de barco no lago, mais competições de pontaria ao alvo com arco e flecha e
um jogo chamado tênis, qualquer destes dois a última moda, tinham-lhe dito.
Depois do jantar de sábado, todos revolveram enormes caixas com trajes de
fantasia que tinham sido trazidas para a sala. Houve riso desinibido e uma
descontração que Scarlett não pôde deixar de invejar. Henry Harrington colocou em
Scarlett um comprido manto de seda que brilhava com lantejoulas, e na cabeça uma
coroa de jóias falsas.
- Esta noite será Titânia! (a rainha das fadas na peça de Shakespeare,
Midsummer's Night Dream - Sonho de Uma Noite de Verão - N. da T.) - disse ele. Os
outros homens e mulheres cobriram-se ou vestiram-se com o que havia nas caixas,
anunciando em voz alta quem eram e correndo pela enorme sala numa brincadeira
muito desordenada, escondendo-se atrás das cadeiras e perseguindo-se. - Sei que é
tudo muito disparatado - disse John Morland como quem pede desculpa, através de
uma enorme cabeça de leão em pasta de cartão. - Mas é a noite de São João, e
podemos excedermo-nos um pouco.
- Estou tremendamente aborrecida contigo, Bart - disse-Ihe Scarlett. - Não tem o
menor préstimo para uma dama. Por que não me disse que eram precisas dúzias de
vestidos?
- Valha-me Deus, são? Nunca reparo no que vestem as mulheres. Não entendo
por que se dão a tanto trabalho.
Quando todos se fartaram da brincadeira, o longo, longo crepúsculo irlandês
desaparecera.
- Está escuro - gritou Alice. - Vamos ver a fogueira.
Scarlett sentiu uma pontada de culpa. Devia estar em Ballyhara. A noite de São
João era quase tão importante quanto o dia de Santa Erigida para a tradição agrícola.
A grande fogueira assinalava o momento decisivo do ano, a sua noite mais curta, e
conferia uma protecção mística ao gado e às sementeiras.

Quando o grupo veio até ao relvado escuro podia ver-se o clarão de uma fogueira
distante, ouvir-se o som de uma dança irlandesa. Scarlett calculou que fosse Ballyhara.
A O'Hara deveria estar presente à cerimónia da fogueira. E também quando o Sol
nascesse e o gado passasse pelas cinzas da fogueira. Colum aconselhara-a a que não
fosse a uma festa em casa de ingleses. Quer acreditasse nelas, quer não, as antigas
tradições eram importantes para os irlandeses. Zangara-se com ele. A sua vida não
seria governada pelas superstições. Mas naquele momento desconfiava de que se
enganara.
- Por que não está presente à fogueira de Ballyhara ? - perguntou Bart.
E por que não está presente à sua? - respondeu, furiosa, Scarlett.
- Porque não sou bem-vindo lá - disse John Morland. No escuro, a sua voz
denotava uma enorme tristeza. - Uma vez fui. Pensei que por detrás da passagem do
gado pelas cinzas estivesse uma daquelas coisas da tradição popular. Que fosse bom
para os cascos ou assim. Queria experimentar nos cavalos.
- E resultou?
- Nunca cheguei a descobrir. Desapareceu toda a alegria da festa quando
cheguei, de modo que vim embora.
- Devia ter ido embora - disse abruptamente Scarlett.
- Que absurdo. É a única pessoa decente aqui. E também americana. É a flor
exótica no meio das ervas daninhas, Scarlett.
Não pensava assim. Mas fazia sentido. As pessoas têm grande consideração
pelos convidados vindos de longe. Sentiu-se muito melhor, até ouvir a ilustre Louisa
dizer:
- Não são divertidos? Adoro os irlandeses quando se tornam assim pagãos e
primitivos. Se ao menos não fossem tão preguiçosos e estúpidos, não me importaria de
viver na Irlanda.
Scarlett prometeu a si mesma pedir desculpas a Colum assim que regressasse a
casa. Nunca deveria ter abandonado a sua casa e a sua gente.

- E não houve nunca uma alma viva que se enganasse, querida Scarlett? Tens
que apreender por ti própria como eles são; senão, como irás saber? Agora, enxuga os
teus olhos e vai ver como estão os campos. Os rapazes que contratamos começaram a
construir as medas de feno.
Scarlett deu um beijo na face do primo. Felizmente, não dissera: "Eu bem te
avisei."
Nas semanas que se seguiram, Scarlett foi convidada para mais duas festas, por
pessoas que conhecera na casa de Alice Harrington. Mandou cerimoniosas cartas a
ambas, recusando. Quando as medas de feno ficaram concluídas, destinou que os
rapazes começassem a tratar do relvado estragado nos fundos da casa. No Verão
estaria verdejante e Cat iria adorar jogar críquete. Essa parte fora divertida.
O trigo atingira a cor amarela da maturação, quase a postos para a ceifa, quando
um homem a cavalo lhe trouxe um bilhete, e se fez convidado a tomar chá na cozinha,
"ou algo mais masculino", enquanto aguardava a resposta que levaria de volta.
Charlotte Montague gostaria de a visitar, se não causasse incômodo. Mas quem
era Charlotte Montague? Scarlett fez um esforço de memória durante dez minutos até
se recordar da idosa senhora, simpática e discreta, na casa dos Harrington. Mrs.
Montague, recordava-se, não correra feita um índio selvagem na noite de São João.
Desaparecera depois do jantar. Não que por isso deixasse de ser inglesa.
Mas que queria? A curiosidade de Scarlett fora aguçada. O bilhete dizia: "Um
assunto de considerável interesse para ambas."
Foi pessoalmente à cozinha para entregar ao mensageiro de Mrs. Montague o
bilhete e convidá-la para o chá nessa mesma tarde. Sabia que estava invadindo o
território de Mrs. Fitz. A cozinha devia ser vista apenas da galeria tipo ponte em cima.
Mas era a sua cozinha, não era? E se Cat começara a passar ali horas todos os dias,
porque não podia ela?
Scarlett pôs diante de si o vestido cor-de-rosa para a visita de Mrs. Montague. Era
mais fresco que as saias de Galway e a tarde estava muito quente. Depois meteu-o
novamente no guarda-roupas. Não queria passar pelo que não era.
Mandou fazer pãezinhos doces para o lanche em vez dos scones, como era
normal.
Charlotte Montague vestia um saia-casaco de linho cinzento e com um folho de
renda que os dedos de Scarlett ansiavam apalpar. Nunca vira renda tão espessa e
trabalhada. A idosa senhora descalçou as luvas cinzentas de pelica e tirou o chapéu de
penas antes de se sentar na cadeira forrada de pelúcia junto à mesinha do chá.
- Agradeço-lhe ter-me recebido, Mrs. OHara. Duvido que queira delongas a falar
do tempo. Certamente, preferirá saber por que vim, não? - Mrs. Montague tinha uma
estranha maneira de falar e de sorrir.
- Morro de curiosidade - disse Scarlett. Agradava-lhe este começo.
Soube que é uma mulher de negócios bem sucedida, tanto aqui como na
América... Não se assuste. Aquilo que sei, guardo para mim, é um dos meus mais
valiosos tesouros. Outra coisa, como pode imaginar, é que disponho de meios para
saber coisas que não estão ao alcance dos outros. Também sou uma mulher de
negócios. Se me dá licença, gostaria de lhe falar do meu.
Scarlett só conseguiu acenar com a cabeça. Que sabia aquela mulher a seu
respeito? E como?
Falando muito sumariamente, tratava de assuntos, disse Mrs. Montague. Era a
filha mais nova de uma boa família, e casara com o filho mais novo de uma outra.
Mesmo antes de ele morrer num acidente de caça, já estava farta de contrariedades,
sempre tentando manter as aparências e a levar a vida condigna das damas e
cavalheiros bem-nascidos, e sempre com falta de dinheiro. Ao enviuvar, vira-se na
situação de parente pobre, uma posição que lhe era intolerável.
Inteligência, educação, gosto e entrada nas melhores casas da Irlanda não lhe
faltavam. Aproveitou-os e acrescentou a discrição e informação aos atributos com que
começara.
- Sou - por assim dizer -, uma convidada profissional e amiga. Dou gratuitamente
conselhos sobre vestuário, arte de receber, decoração de casas, organização de
casamentos e entrevistas amorosas. Recebo significativas comissões de modistas e
alfaiates, sapateiros e joalheiros, vendedores de mobílias e de tapetes. Sou habilidosa
e discreta, e duvido que alguém desconfie que sou paga. Mesmo que desconfiem, ou
não estão interessados em saber, ou ficaram tão satisfeitos com o resultado que não
se importam, em particular, porque não lhes custou nada.
Scarlett estava chocada e fascinada. Por que confessava a mulher tudo isto, e
sobretudo a ela?
- Estou contando-lhe tudo isto porque sei que não é tola, Mrs. O'Hara.
Estranharia, e bem, se lhe oferecesse ajuda, como se diz, a troco de nada. Não existe
tamanha bondade no meu coração, exceto na medida em que contribui para o meu
bem-estar. Quero propor-lhe um negócio. Merece mais que uma festinha desprezível
dada por uma mulherzinha desprezível como Alice Harrington. Tem beleza, miolos e
dinheiro. Pode ser original. Entregue-se nas minhas mãos, sob a minha tutela, e farei
de ti a mulher mais admirada e cobiçada de toda a Irlanda, em dois ou três anos.
Depois, todo o mundo lhe abrirá as portas, e fará dele o que quiser. Será famosa. Eu
terei dinheiro para me aposentar com todo o conforto. - Mrs. Montague sorriu. - Há
quase vinte anos que espero o aparecimento de alguém como a senhora.
Assim que Charlotte Montague saiu, Scarlett percorreu célere a ponte da cozinha
até os aposentos de Mrs. Fitzpatrick. Nem deu importância ao fato de dever mandar
chamar a governanta, em vez de ir falar com ela; precisava falar com alguém.
Mrs Fitz saiu do quarto antes que Scarlett tivesse tempo de bater à porta.
- Devia ter me mandado chamar, Mrs. O'Hara - disse em voz baixa.
-Eu sei, eu sei, mas leva tempo demais e aquilo que tenho a dizer não pode
esperar! - Scarlett estava extremamente agitada.
O olhar frio de Mrs. Fitzpatrick acalmou-a num instante.
- Terá que esperar - disse ela. - As criadas da cozinha escutarão tudo o que
disser e o repetirão aumentado. Caminhe devagar comigo, e faça o que eu fizer.
Scarlett sentiu-se como uma criança castigada. Obedeceu.
A meio da galeria sobre a cozinha, Mrs. Fitzpatrick estacou. Scarlett estacou
também e dominou a sua impaciência enquanto Mrs. Fitz falava dos melhoramentos
que haviam sido feitos na cozinha. A ampla balaustrada era suficientemente grande
para uma pessoa lá se sentar, pensou Scarlett futilmente, mas mantinha-se tão rígida
quanto Mrs. Fitz, olhando para a cozinha e as criadas com ar extremamente atarefado,
lá em baixo.
O avanço de Mrs. Fitzpatrick era solene, mas registrava-se. Quando chegaram à
casa, Scarlett começou a falar assim que a porta para a ponte se fechou atrás delas.
- Claro que é ridículo - comentou depois de relatar o que Mrs. Montague falara. -
Eu mesma também lhe disse. "Sou irlandesa", disse, "não quero que os ingleses
cuidem de mim." - Scarlett falava muito depressa e estava corada.
- Está coberta de razão, Mrs. O. A mulher não passa de uma ladra, pelas palavras
que saíram da sua própria boca.
A veemência de Mrs. Fitzpatrick silenciou Scarlett. Não repetiu a resposta de Mrs.
Montague.
"O teu carácter irlandês é um dos aspectos mais intrigantes da tua pessoa. Meias
listradas e batas cozidas num dia, perdiz e seda no outro. Pode ter ambas as coisas; só
contribuirão para a sua lenda. Escreva-me quando se tiver resolvido."
O relato de Rosaleen Fitzpatrick sobre a visita que Scarlett tivera deixou Colum
furioso.
- Mas por que permitiu Scarlett que ela entrasse sequer? - bramou.
Rosaleen procurou acalmá-lo.
- Ela sente-se só, Colum. Não tem amigos, além de nós dois. Um filho é tudo o
que há no mundo para a sua mãe, mas não faz companhia. Acho que um convívio
elegante poderia ser-lhe benéfico. E também para nós, se pensares bem. A Estalagem
de Kennedy está quase pronta. Em breve homens virão e partirão. Haverá algo melhor
que outras idas e vindas para distrair os ingleses? Bastou olhar para esta Montague e
vi logo a sua laia. É fria, gananciosa. Atente nas minhas palavras: a primeira coisa que
fará é dizer a Scarlett que a Casa Grande deve ser mobilada e restaurada. Esta
Montague jogará com o preço de tudo, mas Scarlett pode perfeitamente pagar. E
haverá estranhos passando por Trim a caminho de Ballyhara todos os dias do ano com
as suas tintas, veludos e modas francesas. Ninguém dará atenção a mais um ou dois
que se desloquem nesta direção.
"Muito se fala já da bela viúva americana. Por que não procura ela marido? Acho
que o melhor é mandá-la para as festas dos ingleses. Senão, os oficiais ingleses
podem começar a vir aqui fazer-lhe a corte."
Colum prometeu "ir pensar". Saiu nessa noite e percorreu quilômetros, tentando
decidir o que era melhor para a irmandade, como conciliar ambas as coisas.
Andava tão preocupado ultimamente que nem sempre pensava com clareza.
Tivera notícia de que alguns homens se haviam desligado do seu compromisso com o
movimento feniano. Também dois anos consecutivos de boas colheitas estavam dando
mais conforto aos homens, conforto esse que dificultava o risco. Também aos fenianos
que se haviam infiltrado na polícia chegavam boatos de um informante na irmandade.
Os grupos clandestinos corriam constantemente perigo por causa dos informantes.
Duas vezes no passado fora destruída uma subelevação por causa da traição. Mas
esta fora planejada com tanto cuidado e lentidão... Tomadas todas as precauções.
Nada deixado ao acaso. Não podia correr mal agora. Estavam tão próximos. Os
conselhos supremos haviam decidido dar o sinal de ação no Inverno seguinte, altura
em que três quartos da milícia inglesa estariam fora das guarnições para a caça à
raposa. Em vez disso, viera a mensagem: "Retardar até o informante ser identificado e
aniquilado." A espera o consumia.
Quando o Sol nasceu, percorreu o solo tingido de rosa e molhado da cacimba, até
a Casa Grande, abriu a porta com a chave e dirigiu-se ao quarto de Rosaleen.
- Acho que tens razão - disse-lhe. - Isso me dá direito a uma xícara da chá?
Mais tarde, naquele dia, Mrs. Fitzpatrick apresentou uma desculpa airosa a
Scarlett, admitindo que fora precipitada demais e preconceituosa. Instigou Scarlett a
começar a criar uma vida social com o auxílio de Charlotte.
- Decidi que é uma idéia absurda - retorquiu Scarlett. - Estou ocupada demais.
Quando Rosaleen contou a Colum, este soltou uma gargalhada. Bateu com a
porta ao sair de casa.
Colheitas, comemoração do fim das colheitas, dias dourados de Outono, folhas
douradas que começam a cair. Scarlett rejubilou com a riqueza das colheitas, chorou o
final do ano agrícola. Setembro era a hora de pagar metade das rendas anuais, e sabia
que os seus rendeiros ficariam com lucros. Era maravilhoso ser A O'Hara.
Deu uma grande festa de segundo aniversário de Cat. Todas as crianças com
menos de dez anos brincaram nas grandes salas vazias no térreo, provaram sorvete
(quem sabe se pela primeira vez), comeram pãezinhos doces com pequenos brindes lá
dentro, assim como corintos e passas. Cada uma delas foi para casa com uma moeda
reluzente. Scarlett certificou-se de que chegariam cedo por causa de todas as
superstições relativas à Noite das Bruxas. Depois levou Cat para cima, a fim de fazer a
sesta.
- Gostaste da tua festa de aniversário, querida?
Cat sorriu sonolenta.
- Sim. Soninho, mamã.
- Eu sei, meu anjo. Já passou a tua hora da sesta. Anda... para a cama... podes
dormir na cama grande da mamã, porque é um grande aniversário.
Cat sentou-se mal Scarlett a deitou.
- Onde está o presente de Cat?
- Vou buscá-lo, minha querida. - Scarlett tirou a enorme boneca de porcelana da
caixa onde Cat a deixara. Cat sacudiu a cabeça.
- O outro. - Voltou-se de bruços e deslizou pelo edredom até o chão, caindo com
um baque. Depois gatinhou até debaixo da cama. Recuou, trazendo nos braços um
gato amarelo.
- Pelo amor de Deus, Cat, de onde é que isso veio? Dá aqui, antes que te
arranhe.
- Depois dás?
- Claro, se o queres. Mas é um gato vadio, querida, pode não querer ficar dentro
de casa.
- Gosta de mim.
Scarlett cedeu. O gato não arranhara Cat, e ela parecia tão contente com ele.
Que mal podia haver em deixá-la ficar com o animal? Deitou os dois na sua cama.
"Naturalmente, vou ficar com a cama cheia de pulgas, mas um dia não são dias."
Cat aninhou-se nas almofadas. Os seus olhos mortiços abriram-se subitamente.
- Quando Annie trouxer o leite - disse ela -, o meu amigo pode beber o meu. - Os
seus olhos verdes fecharam-se e pegou no sono.
Annie bateu à porta, entrou com um copo de leite morno. Ao voltar à cozinha,
contou às outras que Mrs. O'Hara rira até mais não, sem saber porquê. Falou qualquer
coisa sobre gatos e leite. Se queriam saber o que ela achava, disse Mary Moran,
achava era muito mais apropriado que aquela criança tivesse um nome cristão, que os
santos a protegessem. As três criadas e a cozinheira benzeram-se três vezes.
Mrs. Fitzpatrick, na ponte, viu e ouviu. Também ela se benzeu e orou em silêncio.
Não tardaria que Cat fosse crescida demais para a protegerem sempre. As pessoas
tinham medo das crianças deixadas pelas fadas em substituição de outras roubadas, e
o que as pessoas temiam, procuravam destruir.
Lá embaixo, na cidade de Ballyhara, as mães esfregavam os filhos com água em
que estivera mergulhada todo o dia raiz de angélica. Sabia-se ser uma proteção contra
bruxas e espíritos.

A culpa foi da corneta. Scarlett exercitava HalfMoon quando ouviram ambos a


corneta e os cães. Em algum lugar ali perto, no campo, as pessoas caçavam. Tanto
quanto sabia, Rhett poderia encontrar-se entre elas. Fez HalfMoon saltar três valas e
quatro sebes em Ballyhara, mas não era o mesmo. Escreveu a Charlotte Montague no
dia seguinte.
Duas semanas depois, três carroças subiam pesadamente o acesso. Chegara a
mobília para as divisões de Mrs. Montague. A dama seguia numa elegante carruagem,
juntamente com a criada.
Orientou a disposição da mobília no quarto e na sala de estar próximos dos de
Scarlett, depois deixou a criada tratar da bagagem.
- Agora vamos começar - disse a Scarlett.
- Já agora, não queria aqui estar - queixou-se Scarlett. - A única coisa que posso
fazer é assinar cheques de vultuosas quantias de dinheiro. - Conversava com Ocras, o
gato de Cat. O nome queria dizer "esfomeado" em irlandês, e fora-lhe dado pela
cozinheira num momento de desespero. Ocras ignorou Scarlett, que não tinha ninguém
com quem falar.
Charlotte Montague e Mrs. Fitzpatrick raramente lhe perguntavam a sua opinião
sobre algo. Sabiam ambas o que devia ser uma Casa Grande, e ela não.
Também não estava interessada. Durante a maior parte da sua vida a casa em
que vivia sempre ali estivera, tal como estava, e nunca pensara no assunto. Tara era
Tara, a tia Pittypat era a tia Pitty, apesar de metade lhe pertencer. Scarlett apenas se
dedicara sobre a casa que Rhett construíra para ela. Comprara o mobiliário e as
decorações mais recentes e caros, e estava satisfeita com eles porque patenteavam a
sua riqueza. A casa em si nunca lhe dera prazer; mal olhava para ela. Tal como não
olhava propriamente para a Casa Grande de Ballyhara. Estilo Palladiano do século
XVIII (estilo considerado pseudoclássico em virtude de a escola do arquitecto italiano
Andrea Palladio - 1518-1560 - ter imitado a arquitectura romana clássica antiga,
ignorando os princípios clássicos. - N. da T.), referia Charlotte; e que tinha isso de tão
importante? O que interessava à Scarlett era a terra, pela sua riqueza, e as
sementeiras, e a cidade, pelas suas rendas e serviços e porque ninguém, nem mesmo
Rhett, era dono da cidade.
Contudo, entendia perfeitamente que aceitar convites lhe criava a obrigação de os
retribuir, e não podia convidar pessoas para uma casa que só tinha duas peças
mobiladas. Era, talvez, uma sorte para ela que Charlotte Montague quisesse
transformar a Casa Grande. Tinha formas bem mais interessantes de ocupar o seu
tempo.
Scarlett foi intransigente nos aspectos que lhe importavam: Cat devia ter um
quarto contíguo ao seu, e não uma ala reservada, com uma ama; e Scarlett é que
olharia pelas suas contas, em vez de as entregar a um beleguim. Quanto ao resto,
Charlotte e Mrs. Fitzpatrick poderiam resolver o que entendessem. As despesas
fizeram-na estremecer, mas decidira dar pulso livre a Charlotte e era tarde demais para
recuar, depois de terem feito o acordo. Além disso, o dinheiro não tinha agora para ela
a mesma importância.
Assim, Scarlett refugiava-se no escritório da propriedade e Cat assenhoreara-se
da cozinha, enquanto homens faziam coisas desconhecidas, caras, barulhentas e
malcheirosas à sua casa, por meses a fio. Pelo menos, tinha a quinta para orientar e as
suas obrigações como A O'Hara. Comprava também cavalos.
- Pouco ou nada sei sobre cavalos - disse Charlotte Montague. Foi uma afirmação
que fez as sobrancelhas de Scarlett arquearem-se. Começara a acreditar que não
havia nada no mundo em que Charlotte não se afirmasse perita. - Vai precisar pelo
menos de quatro cavalos de sela e seis de caça, talvez fosse melhor oito, e deve pedir
a Sir John Morland que a ajude a escolhê-los.
- Seis cavalos de caça! Pela túnica de Cristo, Charlotte, está falando de mais de
quinhentas libras! - exclamou Scarlett. - Está louca! - baixou a voz para o tom normal,
aprendera que gritar com Mrs. Montague era um desperdício de energia; nada a
demovia. - Eu lhe ensinarei um pouco sobre cavalos - disse em tom melífluo. - Só sabe
montar. As parelhas são para as carruagens e os arados.
Não tinha como argumentar. Como sempre. Por isso não se dera ao trabalho de
contestar o auxílio de John Morland, disse para com os seus botões. Mas Scarlett sabia
realmente que aguardava um motivo para ver Bart. Talvez tivesse notícias de Rhett. Foi
até Dunsany no dia seguinte. Morland ficou encantado com o pedido. Claro que a
ajudaria a arranjar os melhores cavalos de caça de toda a Irlanda.
- Costuma ter notícias do seu amigo americano, Bart? - Contava que a pergunta
parecesse natural, esperara muito tempo para a fazer. John Morland era capaz de falar
sobre cavalos mais tempo que o pai e Beatrice Tarleton.
- Refere-se a Rhett? - O coração de Scarlett sobressaltou-se ao ouvir pronunciar
o seu nome. - Sim, é muito mais organizado com a sua correspondência do que eu. -
John indicou o amontoado de cartas e contas na sua secretária.
Mas o homem não se ia apressar? E Rhett?
Bart encolheu os ombros, virou as costas à secretária.
- Está decidido a inscrever a poldra que me comprou nas corridas de Charleston.
Disse-lhe que fora preparada para obstáculos e não para a corrida plana, mas está
convencido que a sua rapidez irá compensar. Receio bem que vá ter uma desilusão.
Daqui a três ou quatro anos, talvez se prove que tinha razão, mas quando me lembro
que a mãe dela veio de...
Scarlett deixou de escutar. John Morland era capaz de falar de raças horas a fio!
Por que não lhe dizia o que ela queria saber? Rhett estava feliz? Falara nela?
Olhou para o rosto animado e expressivo do jovem baronete e perdoou-lhe. À sua
maneira um tanto excêntrica, era um dos homens mais encantadores do mundo.
A vida de John Morland girava em torno dos cavalos. Era um proprietário
consciencioso, interessado nas suas terras e nos seus rendeiros. A sua verdadeira
paixão eram os obstáculos, onde criava cavalos e os recintos de treino para os cavalos
de corrida, seguida de perto da caça à raposa no Inverno, nos magníficos cavalos de
caça que eram só seus.
Talvez compensassem a tragédia romântica da dedicação exclusiva de Bart à
mulher que lhe conquistara o coração quando ambos pouco mais eram que crianças.
Chamava-se Grace Hastings. Casara com Julian Hastings há quase vinte anos. John
Morland e Scarlett tinham em comum um amor impossível.
Charlotte dissera-lhe que "todos na Irlanda" sabiam - John estava relativamente
imune à caça de marido por parte das mulheres, porque tinha pouco dinheiro. O seu
título e a propriedade eram antigos, extraordinariamente antigos, mas não tinha outros
proventos à exceção das rendas, e gastava quase até o último xelim nos cavalos.
Mesmo assim, não se podia dizer que não fosse atraente, alto e louro, com olhos
cinzentos, meigos e interessados, e um sorriso doce de cortar a respiração, que
espelhava com rigor a sua natureza bondosa. Era extraordinariamente inocente para
alguém que passara quarenta anos nos círculos mundanos da sociedade britânica.
Esporadicamente, uma mulher com dinheiro, como a ilustre Louisa, apaixonava-se por
ele e empreendia uma perseguição obstinada que constrangia Morland e divertia os
demais. As suas excentricidades eram ainda mais pronunciadas; a sua distração raiava
da abstração, os coletes andavam frequentemente mal abotoados, o seu riso
convulsivo e contagiante tornava-se, às vezes, despropositado e mudava tão amiúde a
sua coleção de quadros de George Stubbs que as paredes da casa ficavam todas
esburacadas. Scarlett notou um belo retrato do famoso cavalo Elipse, precariamente
desequibrado em cima de uma pilha de livros. Era-lhe indiferente, queria saber de
Rhett. "Vou-me atirar de cabeça e perguntar-lhe", decidiu. "Bart é capaz de nem se
recordar."
- Rhett falou algo a meu respeito?
Morland pestanejou, o seu espírito ocupado com os progenitores da poldra.
Depois, registou a pergunta que lhe fora feita.
- Ah, sim, perguntou-me se haveria chance de lhe vender HalfMoon. Está
pensando participar de novo na caçada de Dunmore. Quer também que eu esteja
atento a mais cavalos como HalfMoon.
- Certamente, terá que voltar para os comprar - disse Scarlett, suplicando a
confirmação. A resposta de Bart lançou-a no desespero. - Não, terá que confiar em
mim. A mulher dele está grávida, sabe, e não a quer abandonar. Mas agora que a vou
orientar na escolha dos melhores, não poderei ajudar Rhett. Assim que tiver tempo, lhe
comunicarei por escrito.
Scarlett ficara tão apreensiva com as notícias de Bart, que este teve que lhe
sacudir o braço para conseguir a sua atenção. Quando é que queria começar a
procurar cavalos de caça, perguntara.
- Hoje, respondera.
Durante o Inverno, foi todos os sábados com John Morland a uma ou outra
caçada em County Meath, experimentar os cavalos de caça que estavam à venda. Não
era fácil encontrar as montadas adequadas, pois exigia que o cavalo tivesse a mesma
intrepidez que ela. Cavalgava como se demônios a perseguissem, e a atividade
acabava por a impedir de ver em Rhett o pai de outra criança que não fosse Cat.
Quando estava em casa, procurava dar à menina mais atenção e afeto. Como
sempre, Cat furtava-se aos abraços. Mas escutava as intermináveis histórias de
cavalos que Scarlett lhe contava.
Fevereiro chegou e Scarlett revolveu o primeiro torrão com o mesmo entusiasmo
feliz de anos anteriores. Conseguira relegar Rhett para o passado e raramente pensava
nele sequer.
Era um novo ano, em que as coisas boas viriam. Se Charlotte e Mrs. Fitz alguma
vez conseguissem concluir o que quer que faziam à casa, talvez pudesse dar uma
festa. Sentia saudades de Kathleen e do resto da família. Pegeen tornava as visitas tão
desagradáveis que quase deixara de ver os primos.
Podia esperar, tinha que ser. Tinha que plantar.
Era Junho, Scarlett teve um dia longo e esgotante tirando medidas com a modista
que Charlotte Montague mandara vir expressamente de Dublin. Mrs. Sims era
impiedosa. Scarlett teve que manter os braços esticados ao alto, para a frente, para o
lado, um para baixo, o outro para cima, um para a frente o outro para trás, em todas as
posições imagináveis e mesmo algumas que nunca imaginara, durante o que lhe
pareceram horas. Depois o mesmo, sentada. Depois, em todas as posições da
quadrilha, da valsa, do cotilhão.
- A única coisa a que não tirou medidas foi à minha mortalha - gemeu Scarlett.
Charlotte Montague esboçou um dos seus raros sorrisos.
- É capaz de o ter feito, sem que percebesse. Daisy Sims é muito meticulosa.
- Recuso-me a acreditar que o nome daquela mulher horrorosa possa ser Daisy -
disse Scarlett.
- Não ouse voltar a chamar-lhe isso, a menos que ela o peça. Ninguém abaixo da
categoria de duquesa se permitia a tamanhas intimidades com Daisy. É a melhor do
seu ofício, não ousariam correr o risco de ofendê-la.
Mas tratou-a por Daisy.
- Também eu sou a melhor do meu ofício.
Scarlett soltou uma gargalhada. Gostava de Charlotte Montague, e respeitava-a
igualmente. Embora não fosse propriamente a amiga ideal.
Voltou a vestir as suas roupas de camponesa e ceou - Charlotte recordou-lhe que
se dizia jantar - antes de se dirigir à colina próxima de Knightsbrook River para ver a
fogueira da noite de São João.
Ao dançar ao som da música familiar das rabecas, gaitas-de-foles e do bodhram
de Colum, percebeu a sua sorte. Se o que Charlotte prometera era verdade, iria ter os
dois mundos, o irlandês e o inglês. Pobre Bart, recordou-se, nem sequer era bem-vindo
à fogueira na sua propriedade.
Scarlett pensou de novo em toda a sua sorte, ao presidir o banquete da Festa das
Colheitas. Ballyhara tivera outro ano bom, não tão bom quanto os dois anteriores, mas
mesmo assim suficientemente bom para todos os homens terem dinheiro no bolso.
Todos em Ballyhara comemoravam a sua boa sorte. Todos, exceto Colum, percebeu
Scarlett. Tinha ar de quem não dormia há uma semana. Gostaria de lhe perguntar o
que sucedera, mas há semanas que não se falavam. E parece que já não ia ao bar,
segundo referiu Mrs. Fitz.
Bem, não ia deixar que o mau humor dele lhe estragasse a boa disposição. O fim
das colheitas era uma festa.
E, além disso, não tardaria a começar a época de caça e o seu novo traje de
montar era o modelo mais encantador que Scarlett alguma vez vira. Mrs. Sims era
exatamente tudo o que Charlotte dissera ser.
- Se já terminou, podemos dar uma volta pela casa - disse Charlotte Montague.
Scarlett pousou a xícara de chá.
Estava mais ansiosa do que gostaria de admitir.
- É muita bondade sua, Charlotte, considerando que todas as portas exceto as
das minhas divisões estiveram fechadas praticamente um ano. - Disse-o com o ar mais
enfastiado possível, mas desconfiou que Charlotte era esperta demais para se deixar
enganar. - Vou procurar Cat para que nos possa acompanhar.
- Como queira, Scarlett, mas ela viu tudo enquanto estava sendo feito. É uma
criança extraordinária, aparece assim que uma porta ou uma janela ficam abertas.
Deixou alguns dos pintores bastante nervosos quando foram dar com ela no topo dos
andaimes.
- Não me diga isso, que ainda me dá uma coisa. É uma macaquinha, trepa em
tudo. - Scarlett chamou Cat, e em vão a procurou. Às vezes, a autonomia daquela
criança exasperava-a, como naquele momento. Por norma, orgulhava-se. - Acho que,
se estiver interessada, virá - disse, por fim. - Vamos, estou mortinha por ver. - Mais
valia admiti-lo. Não enganava ninguém.
Charlotte conduziu-a escada acima até os compridos corredores onde se
sucediam os quartos de hóspedes. Depois voltou a descer àquilo que Scarlett tinha
dificuldade em chamar o primeiro andar, em vez de, à maneira americana, o segundo.
Charlotte levou-a até o fundo da casa, longe dos quartos que estivera ocupando.
- O seu quarto, e sua casa de banho, os seus aposentos privativos, o seu quarto
de vestir, o quarto de brinquedos e de dormir e da ama de Cat. - As portas abriram-se à
medida que Charlotte revelava os seus esforços. Scarlett estava encantada com a
mobília feminina verde-pálido e dourado nos quartos e frisa de quadros de animais em
ordem alfabética no quarto de brinquedos de Cat. As cadeiras e mesas em miniatura
levaram-na a aplaudir. Por que não se lembrara disso? Havia até um serviço de chá em
miniatura na mesa de Cat e uma cadeira de criança junto à lareira.
- Os seus aposentos privados são de estilo francês - disse Charlotte -, Luís XVI,
caso lhe interesse saber. Representam a sua faceta Robillard. A sua faceta O'Hara
domina as salas de receber no térreo.
A única sala que Scarlett conhecia no térreo era a que tinha chão de mármore.
Scarlett servia-se da sua porta para o acesso e da larga escadaria de pedra para os
andares superiores. Charlotte Montague conduziu-a rapidemente até lá. Abriu altas
portas duplas de um dos lados e introduziu Scarlett na sala de jantar.
- Uau! - exclamou Scarlett -, não conheço pessoas em número suficiente para
ocuparem todas aquelas cadeiras.
- Irá conhecer - disse Charlotte. Levou Scarlett pela longa sala até uma outra
porta alta. - Aqui é a sua sala do desjejum e da manhã. Pode também querer jantar
aqui, se as pessoas forem em número reduzido. - Atravessou a sala até atingir mais
portas. - O salão nobre e a sala de baile - anunciou. - Confesso que esta me agrada
particularmente.
Uma parede comprida era constituída por espaçosas portas francesas com altos
espelhos dourados entre elas. A parede em frente tinha ao meio uma lareira, e por
cima desta um outro espelho com moldura dourada. Todos os espelhos apresentavam
uma ligeira inclinação, para que refletissem não só a sala, mas também o teto alto.
Tinha pintadas cenas das lendas heróicas da história da Irlanda. Os edifícios dos
grandes reis na colina de Tara assemelhavam-se a templos romanos. Scarlett ficou
encantada.
- Toda a mobília deste piso é de fabricação irlandesa, e os tecidos também, tudo
lãs e linhos, e também as pratas, porcelanas, vidros, quase tudo. É aqui que A O'Hara
recebe. Venha, ainda falta ver a biblioteca.
Scarlett gostou das cadeiras e do canapé forrados de couro e admitiu que os
livros com encadernação em pele eram muito bonitos.
- Fez um excelente trabalho, Charlotte - disse com sinceridade.
- Bem, não foi tão difícil quanto receei à primeira vista. As pessoas que aqui
moraram devem ter usado o padrão Brown para os jardins, pelo que bastou podar e
limpar. Para o ano, a horta será muito produtiva, apesar de só daqui a dois anos virmos
a ter frutos no pomar. As árvores tiveram que ser todas podadas.
Scarlett não fazia a mais remota idéia daquilo de que Charlotte falava, nem tinha
o menor interesse. Como gostaria que o general O'Hara pudesse ter visto o teto do
salão de baile e Ellen O'Hara admirasse a mobília dos seus aposentos privados.
Charlotte abriu mais portas.
- Estamos de novo na entrada - disse. - Um excelente movimento circular para
grande festas. Os arquitectos Georgianos sabem exatamente aquilo que fazem...
Venha até a porta de entrada, Scarlett.
Acompanhou Scarlett até o topo dos degraus que conduziam ao acesso
recentemente coberto de areia grossa.
O seu pessoal, Mrs. O'Hara.
- Valha-me Deus! - disse Scarlett baixinho.
Duas longas filas de criados fardados estavam virados para ela. À sua direita,
Mrs. Fitzpatrick, muito rígida, à frente da cozinheira, quatro criadas de cozinha, duas
criadas de sala, quatro criadas de quarto, três leiteiras, a engomadeira e três
lavadeiras.
À sua esquerda viu um homem de ar altivo que só poderia ser um mordomo, oito
criados, dois moços de recado, o encarregado das cavalariças, que conhecia, e seis
moços de estrebaria e cinco homens que seriam jardineiros, a avaliar pelas suas mãos
sujas de terra.
- Acho que preciso de me sentar - murmurou.
- Sorria primeiro e dê-lhes as boas-vindas a Ballyhara - disse Charlotte. O seu tom
de voz não permitia protestos.
Scarlett obedeceu.
- Dentro de casa - que fora agora oficialmente instituída como tal -, Scarlett
começou a rir com nervosismo.
- Todos eles estão melhor vestidos que eu - disse. Olhou para o rosto
inexpressivo de Charlotte Montague. - Está à beira de irromper em gargalhadas,
Charlotte, não me consegue enganar. Você e Mrs. Fitz devem ter tido um trabalhão a
planejar tudo isto.
- Efetivamente, assim foi - admitiu Charlotte. Um sorriso foi o que Scarlett
conseguiu que mais se aproximasse de "irromper em gargalhadas".
Scarlett convidou todo mundo de Ballyhara e Adamstown para vir ver a Casa
Grande renovada. A comprida mesa da sala de jantar estava cheia de bebidas, e não
fazia senão andar de sala em sala, incitando-os todos a servirem-se, arrastando-os
para verem os grandes reis. Charlotte Montague mantinha-se em silêncio a uma canto
da enorme escadaria, reprovando semelhante atitude. Scarlett ignorou-a. Procurou
ignorar o desconforto e constrangimento dos seus primos e aldeãos, mas ao cabo de
meia hora da chegada deles, estava quase desfeita em lágrimas.
- Vai contra a tradição, Mrs. O - murmurou-lhe Mrs. Fitzpatrick -, não tem nada a
ver contigo. Nenhum agricultor chegou alguma vez a transpor o limiar de uma Casa
Grande na Irlanda. Somos um povo que segue as modas antigas, não estamos
preparados para a mudança.
- Mas eu julgava que os Fenianos quisessem mudar tudo.
Mrs. Fitz suspirou.
- Assim é. Mas a mudança é um retorno a costumes ainda mais antigos que
aqueles que não os deixam entrar numa Casa Grande. Gostaria de lhe poder explicar
melhor.
- Não se preocupe, Mrs. Fitz. Cometi apenas um erro, é tudo. Não se repetirá.
- Foi o erro de um coração generoso. Acredite.
Scarlett esboçou um sorriso forçado. Mas estava surpreendida e perturbada. De
que servia ter todas aquelas salas decoradas em estilo irlandês, se os irlandeses não
se sentiam à vontade nelas? E por que a tratavam até os seus primos como uma
estranha na sua própria casa?
Depois de todos se terem ido e os criados retirado todos os vestígios da festa,
Scarlett foi de sala em sala sozinha.
"Bem, agrada-me", decidiu. "Gosto bastante." Era, pensou, muito mais bonito de
se ver que Dunmore Landing alguma vez seria ou fora.
Quedou-se no meio das imagens refletidas dos grandes reis e imaginou Rhett ali
com ela, cheio de inveja e admiração. Seria dali a alguns anos, quando Cat tivesse
crescido, e ele se sentisse desgostoso de não ter visto a filha crescer e tornar-se a bela
herdeira da casa dos O'Hara.
Scarlett correu para as escadas, subiu-as rapidamente e percorreu também assim
o corredor que conduzia ao quarto de Cat.
- Olá - disse Cat. Estava sentada à sua mesinha, servindo cuidadosamente leite
numa xícara para o seu gato grande. Ocras observava com atenção da sua posição de
comando no meio da mesa. - Senta-te, mamãe - convidou Cat. Scarlett sentou-se
numa cadeirinha.
Se ao menos Rhett ali estivesse para participar do lanche. Mas não estava, nem
nunca iria estar, e tinha que aceitar. Teria muitos lanches com a sua outra filha, os seus
outros filhos - junto de Anne. Scarlett resistiu ao impulso de agarrar Cat nos braços.
- Queria dois torrões de açúcar, por favor, Miss O'Hara - disse ela.
Scarlett não conseguiu dormir naquela noite. Ficou sentada no meio da
requintada cama francesa com o edredom revestido de seda a envolvê-la e aquecê-la.
Mas o calor e o conforto porque ansiava era o dos braços de Rhett, ouvir a sua voz
cava ridicularizar a desastrosa festa, até conseguir rir também de si própria e do erro
que cometera ao dá-la.
Queria conforto para a sua desilusão. Queria amor, o carinho e a compreensão de
um adulto. O seu coração aprendera a amar, transbordava de amor e não tinha a quem
o dar.
"Maldito Rhett, que se lhe atravessava no caminho! Por que não conseguia amar
Bart Morland?" Era simpático, era atraente, Scarlett gostava da sua companhia. Se
realmente o queria, não poderia ter sequer a menor dúvida de que era capaz de o fazer
esquecer Grace Hastings.
Mas não o queria, era esse o problema. Não queria ninguém senão Rhett.
"Não é justo", pensou, qual criança. E, qual criança, também chorou até
adormecer.
Quando acordou, tinha mais uma vez o controle de si mesma. "Que importava
que todos tivessem detestado a sua festa? Que importava que Colum não ficasse mais
de dez minutos? Tinha outros amigos e ia fazer ainda mais." Agora, que a casa ficara
finalmente pronta, Charlotte azafamava-se, feita uma aranha que tece a sua teia, com
planos para o futuro. E, entretanto, o tempo estava perfeito para caçar e Mrs. Sims
fizera-lhe um traje de montar que lhe ficava tremendamente bem.
Scarlett fez sensação quando compareceu na caçada de Sir John Morland.
Montava um cavalo de sela e vinha acompanhada por dois moços de estrebaria que
conduziam HalfMoon e Comet, um dos seus novos cavalos de caça. As saias do seu
traje novo caíam com elegância sobre a sua nova sela de amazona, e estava muito
satisfeita consigo mesma. Tivera uma acesa discussão com Mrs. Sims, mas vencera.
Nada de espartilhos. Charlotte ficara surpreendida. Ninguém, dissera, discutira alguma
vez com Daisy Sims e saíra vencedora. "Até chegar a minha vez", pensou Scarlett.
"Ganhei também a questão com Charlotte."
A caçada de Bart Morland não era o lugar para Scarlett fazer a sua aparição no
mundo da sociedade irlandesa, dissera Charlotte. Nada se podia apontar e, à exceção
da falta de dinheiro, era um dos solteirões mais aceitáveis das redondezas. Mas não
tinha grande criadagem. Os criados que serviam os café eram, na verdade, os moços
de estrebaria, de libré por algumas horas. Charlotte conseguira um convite muito mais
importante para Scarlett. Corresponderia exatamente às necessidades inerentes à sua
verdadeira estréia na sociedade. Scarlett não podia de modo algum ir primeiro a
Morland Hall em vez de à escolha de Charlotte.
- Posso e quero - disse Scarlett com veemência. - Bart é meu amigo. - Repetiu-o
até Charlotte ceder. Não lhe contou o resto. Precisava ir a um local onde se sentisse
pelo menos um bocadinho à vontade. Agora que se aproximava, a perspectiva da
"sociedade" assustava-a mais do que a atraía. Não lhe saíam da cabeça umas
palavras que Mammy em tempos dissera: "Não passa de uma mula com arreios de
cavalo." Assim que Mrs. Sims enviou o guarda-roupa inspirado na moda de Paris,
Scarlett pensava cada vez mais no provérbio. Imaginara centenas de lordes e damas a
sussurrarem-no quando fosse à sua primeira festa importante.
- Que bom vê-lo, Bart.
- A ti também, Scarlett. HalfMoon parece estar a postos para uma boa corrida.
Venha aqui tomar uma bebida com o meu convidado especial. Fui caçar leões. Estou
extremamente orgulhoso.
Scarlett sorriu airosamente ao jovem deputado de County Meath. Era muito
atraente, pensou. Apesar de, por norma, não gostar de homens com barba, conquanto
bem aparada, como era a deste Mr. Parnell. Já tinha ouvido falar dele - "ah, sim, no
desjejum na casa de Bart". Lembrava-se agora. Colum detestava deveras este Parnell.
Teria que estar atenta para poder falar dele a Colum. Depois da caçada. Naquele
momento, HalfMoon estava tão ansioso por partir como ela.

- Não consigo entender a tua teimosia, Colum. - Passara do entusiasmo da


explicação à ira. - Nunca te deste ao incômodo de ir ouvir o homem falar. Pois eu ouvi,
é fascinante, todos lhe bebiam as palavras. E o que ele pretende é exatamente aquilo
de que tu sempre falas... a Irlanda para os irlandeses, e nada de expulsões, e nem
mesmo renda e proprietários. Que mais podes querer?
A paciência de Colum esgotou-se.
- Posso pedir-te que não sejas tonta e crédula! Acaso não sabes que o próprio Mr.
Parnell é proprietário rural? E protestante. E estudou na Universidade de Oxford. Quer
é votos, não justiça. O homem é um político e a sua política de Administração Interna,
que tomaste pela capa de açúcar dos seus modos sinceros e rosto atraente, não passa
de um pau que ele vai agitar aos ingleses e de uma cenoura para atrair o pobre burro
ignorante irlandês.
- É impossível falar contigo! Pois se ele disse diretamente que apoia os fenianos...
Colum agarrou o braço de Scarlett.
- Disseste alguma coisa?
Ela sacudiu-o.
- Claro que não. Tomas-me por tola e repreendes-me como tal, mas tola não sou.
E sei o seguinte: não existe motivo para o contrabando de armas e o começo de uma
guerra se for possível conseguires o que queres evitando-a. Já passei por uma guerra
empreendida por um bando de exaltados em defesa de princípios muito pouco dignos.
Só serviu para matar a maior parte dos meus amigos e destruir tudo. Em vão. Digo-te
agora, Colum O'Hara, que é possível devolver a Irlanda aos irlandeses sem matar nem
incendiar, e é o que defendo. Não dou mais dinheiro para Stephen comprar armas,
ouviste bem? E não quero mais armas escondidas na minha cidade. Quero-as fora da
igreja. Não me interessa o destino que lhe deres, até as podes jogar na fossa, tanto
faz. Mas quero livrar-me delas. Imediatamente.
- E de mim também, é isso que queres dizer?
- Se fazes questão, então... - Os olhos de Scarlett ficaram marejados de lágrimas.
- Mas que digo? Que dizes? Oh, Colum, não deixes que isto aconteça. És o meu
melhor amigo, quase meu irmão. Por favor, por favor, por favor, Colum, não sejas tão
obstinado. Não quero discutir. - As lágrimas extravazaram.
Colum pegou-lhe a mão e apertou-a com força.
- Oh, querida Scarlett, é o mau gênio irlandês em ambos que fala por nós, e não
Colum e Scarlett. Como é lamentável, nós os dois discutirmos e gritarmos. Perdoa-me,
aroon.
- Que quer dizer aroon? - perguntou-lhe entre soluços.
- Quer dizer "querida", como querida Scarlett em inglês. Em irlandês és a minha
aroon Scarlett.
- É bonito.
- E é também um belo nome para ti.
- Colum, estás de novo tentando iludir-me com as palavras, mas não vou deixar
que me faças mudar de idéia. Promete-me que te livras daquelas armas. Não te peço
que votes em Charles Parnell, promete-me apenas que não desencadearás uma
guerra.
- Prometo-te, aroon Scarlett.
- Obrigada. Sinto-me infinitamente melhor. Agora tenho que ir - Queres vir jantar
na minha casa, na elegante sala da manhã, apesar de ser noite?
- Não posso, aroon Scarlett. Vou encontrar-me com um amigo.
- Trás também. Com a cozinheira preparando a comida para o batalhão de
criados que me surgiu de repente, estou certa de que também chegará para o teu
amigo.
- Esta noite não. Fica para outra vez.
Scarlett não insistiu, conseguira o que pretendia. Antes de ir para casa, foi até a
pequena capela e fez a suas confissões ao padre Flynn. Irritar-se com Colum foi uma
delas, mas não a principal. Queria ser absolvida do pecado que lhe fizera gelar o
sangue. Dera graças a Deus quando John Morland lhe contara que, há seis meses, a
mulher de Rhett perdera o bebê.
Pouco depois de Scarlett sair, Colum O'Hara entrou no confessionário. Mentira-
lhe, um pecado grave. Depois de se penitenciar, dirigiu-se ao arsenal da igreja
anglicana a fim de se certificar de que as armas estavam bem escondidas, caso ela
resolvesse investigar.
Charlotte Montague e Scarlett partiram para a festa que seria a estréia de Scarlett
depois de terem assistido à primeira missa de domingo. A festa ia durar uma semana.
Não agradava a Scarlett ficar tanto tempo afastada de Cat, mas a sua festa de
aniversário tinha acabado de decorrer - Mrs. Fitz estava ainda furiosa com os estragos
que tantas crianças correndo tinham causado no revestimento do salão de baile -, e
estava convencida de que Cat não sentiria a sua falta.
Cat estaria muito ocupada com todas as mobílias novas para inspecionar e os
novos criados para investigar.
Scarlett, Charlotte e Evans, a criada de Charlotte, seguiam no elegante carro
fechado para a estação de trem de Trim.
A festa seria em County Monaghan, distante demais para se fazer o percurso por
estrada.
Scarlett estava mais excitada que nervosa. Fora boa idéia ir primeiro a casa de
John Morland. Charlotte tinha nervosismo que chegava para ambas, apesar de não o
demonstrar; o futuro de Scarlett no mundo da sociedade seria decidido pela impressão
que viesse a causar nas pessoas durante aquela semana. E o futuro de Charlotte
também. Olhou para Scarlett a fim de a tranquilizar. Sim, estava linda no seu vestido de
viagem de merino verde. Aqueles seus olhos eram um dom de Deus, tão peculiares e
inesquecíveis. E o seu corpo magro não espartilhado ia com certeza dar o que falar e
acelerar as pulsações dos homens. Tinha exatamente o aspecto que Charlotte
divulgara junto de amigos escolhidos: uma bela viúva americana não muito jovem, com
o ar e o encanto fresco das colônias; um pouco acanhada, mas o resultado era
revigorante; romanticamente irlandesa como só uma estrangeira podia ser;
substancialmente, talvez mesmo fenomenalmente, saudável, a tal ponto que se podia
permitir liberdade de espírito; bem nascida, com sangue aristocrático francês, mas
vigorosa e exuberante nos seus antecedentes americanos; imprevisível mas com boas
maneiras, ingênua e, no entanto, muito experiente; no conjunto, um contributo
intrigante e divertido para o círculo de pessoas que sabiam demais umas sobre as
outras e estavam ávidas de alguém novo sobre quem falar.
- Talvez lhe deva relembrar quem irá estar na festa - sugeriu Charlotte.
- Agradeço-lhe, mas não, Charlotte, de qualquer forma voltarei a esquecer-me.
Além disso, sei o principal. Um duque é mais importante que um marquês, depois vem
o conde e a seguir o visconde, barão e baronete. Posso tratar todos os cavalheiros por
"Senhor", tal como no sul, por isso não tenho que me preocupar com essa história do
"milorde" e "vossa senhoria", mas nunca devo tratar as senhoras por "minha senhora",
como fazemos na América, pois isso fica reservado para a rainha Vitória, e ela
certamente não irá estar presente. Portanto, a menos que me tratem pelo meu nome
de batismo, devo limitar-me a sorrir e evitar usar qualquer dos tratamentos. Não vale a
pena preocupar-me com o velho "senhor" ou "menina", a menos que sejam "ilustres".
Acho isto tudo muito engraçado. Por que não "respeitável" ou algo no gênero?
Charlotte estremeceu no seu íntimo. Scarlett estava segura demais, alegre
demais.
- Não prestaste atenção, Scarlett. Há aqueles nomes sem qualquer título, nem
sequer "ilustre", que são igualmente importantes, tanto quanto os duques não reais. Os
Herbert, os Burke, os Clark, os Lefroy, os Blennerhassett...
Scarlett soltou uma risada. Charlotte parou. O que fosse se veria.
A casa era uma imensa estrutura em estilo gótico com torreões e torres, janelas
com vitrais tão altas quanto as de uma catedral, corredores que se estendiam por mais
de cem metros. A confiança de Scarlett estremeceu ao vê-la.
"És a O'Hara", recordou a si mesma, e subiu os degraus de pedra da entrada com
o queixo de tal maneira erguido que instigava todos a desafiá-la.
Nessa noite, ao fim do jantar, já sorria para todos, até para o criado por detrás da
sua cadeira de espaldar. A comida era excelente, abundantemente, ricamente
apresentada, mas Scarlett mal lhe tocou. Alimentava-se da admiração. Havia quarenta
e seis convidados na festa, e todos a queriam conhecer.
- ... e no Dia de Ano Novo tenho que bater a todas as portas da cidade, entrar,
sair, voltar a entrar e beber uma xícara de chá. Devo dizer que não sei por que não fico
amarela como os chineses bebendo metade do chá da China como bebo - disse com
jovialidade ao homem à sua esquerda. Ele estava fascinado com as obrigações de
Scarlett. Quando a anfitriã deu por findo o jantar, Scarlett deliciou o general na reserva,
à sua direita, com a descrição, passo a passo, do cerco de Atlanta. A sua pronúncia de
sulista não era nada do que se esperaria de uma americana, comentou-se mais tarde
entre os que tinham escutado, e era uma mulher extraordinariamente inteligente.
Era também uma "mulher extraordinariamente atraente". O enorme anel de
noivado com esmeralda e brilhantes que recebera de Rhett refulgia no seu colo
despido, mas não em demasia. Charlotte mandara transformá-lo num pingente
suspenso de um fio de ouro branco tão fino que mal se via.
Após o jantar, Scarlett jogou whist com a sua tradicional habilidade. O seu
parceiro ganhou dinheiro suficiente para cobrir as despesas dela nas três anteriores
festas, e Scarlett tornou-se uma companhia solicitada tanto entre as damas como entre
os cavalheiros.
Na manhã seguinte, e nas outras subsequentes, teve lugar uma caçada. Mesmo
numa montaria pertencente aos estábulos do anfitrião, Scarlett revelava perícia e
intrepidez. O seu sucesso estava garantido. Toda a nobreza anglo-irlandesa tinha
enorme admiração por um exímio cavaleiro.
Charlotte Montague que se cuidasse, ou ainda viria a parecer um gato que
acabara de se lamber com uma tigela de natas.
- Divertiu-se? - perguntou a Scarlett no regresso a Ballyhara.
- Imensamente, Charlotte! Deus lhe pague por ter conseguido que me
convidassem. Estava tudo perfeito. Foi uma excelente idéia porem-me aqueles
sanduíches no quarto. Tenho sempre muita fome à noitinha, acho que isso acontece a
todos. - Charlotte riu até lhe virem as lágrimas aos olhos.
- Scarlett mostrou-se ofendida. - Não vejo o que tem de tão engraçado um apetite
saudável. Com o jogo de cartas que dura até altas horas, há um grande intervalo entre
o jantar e o momento de nos recolhermos.
Quando Charlotte teve oportunidade de falar, explicou-se.
Nas casas mais sofisticadas, era normal haver nos quartos das senhoras um
prato com sanduíches que poderiam ser usados como sinal para os admiradores.
Colocados no chão do corredor, do lado de fora do quarto, os sanduíches eram um
convite para o homem entrar.
Scarlett corou.
- Santo Deus, Charlotte, eu comi até as migalhas. Que as criadas irão pensar?
- Não apenas as criadas, Scarlett. Todas as pessoas da casa devem estar se
interrogando sobre o presumível felizardo. Ou felizardos. Claro que nenhum cavalheiro
reclamaria o título, senão não seria um cavalheiro.
- Nunca mais conseguirei olhar direito nenhuma daquelas pessoas. É a coisa
mais escandalosa que já ouvi. É revoltante! E julgava eu que eram uma simpatia.
- Mas, minha amiga, são exatamente as pessoas simpáticas que criam estas
discrições. Todos conhecem as regras e usam-nas. As pessoas divertem-se com os
seus próprios segredos, a menos que resolvam divulgá-los.
Scarlett preparava-se para argumentar que na sua terra as pessoas eram
honestas e decentes. Sally falara de mesma maneira sobre "discrição" e "diversões"
como se infidelidade e promiscuidade fossem algo de normal e aceito.
Charlotte Montague sorriu com complacência. Se algo podia contribuir para criar
uma lenda em torno de Scarlett O'Hara, era o equívoco dos sanduíches. Agora
passaria a ser conhecida como jovialmente colonial, mas razoavelmente sofisticada.
Charlotte começara a conceber mentalmente esquemas para o seu afastamento.
Só mais alguns meses, e nunca passaria pelo tédio de uma festa elegante de qualquer
espécie.
- Tratarei da distribuição diária do Irish Times - disse a Scarlett -, e deverá fixar
tudo o que nele se diz. As pessoas com quem se encontrar em Dublim estarão sempre
contando que se encontre a par das notícias relatadas.
- Dublim? Não disse que iríamos a Dublim.
- Não? Estava convencida de que sim. Peço desculpa, Scarlett. Dublim é o centro
de tudo, vai adorar. É uma cidade de verdade e não apenas uma daquelas de província
que cresceu demais, como Drogheda ou Galway. E o castelo é a coisa mais
emocionante que irá conhecer em toda a sua vida.
- Um castelo? Sem estar em ruínas? Não sabia que isso existia. E a rainha vive
lá?
- Não, felizmente. A rainha é uma ótima governante, mas uma mulher
extremamente aborrecida. Não, o castelo de Dublim é governado por um representante
de Sua Majestade, o vice-rei. Tu lhe serás apresentada, e à vice-rainha, na sala do
trono... - Mrs. Montague pintou a Scarlett um quadro de pompa e esplendor que
ultrapassava tudo o que ela alguma vez ouvira. Perto daquilo, Santa Cecília de
Charleston não era nada. E isso fez que Scarlett desejasse ardentemente o seu êxito
na sociedade de Dublim. Isso poria Rhett Butler no devido lugar. Deixaria de ter
importância para ela.
"Agora já lhe podia dizer", pensou Charlotte. Após o êxito daquela semana, o
convite viria com toda a certeza. "Já não há chance de perder o depósito da suite no
Shelbourne que reservei para a Temporada de Verão quando recebi a carta de Scarlett
no ano passado."

- Onde está a minha querida Cat? - chamou Scarlett ao precipitar-se para casa. -
A mamã voltou, querida. - Encontrou Cat, depois de meia hora de buscas, nos
estábulos, sentada em cima de HalfMoon.
Parecia incrivelmente minúscula sobre o cavalo grande. Scarlett baixou a voz,
para que HalfMoon não se espantasse.
- Vem à mamã, querida, e dá-me um abraço. - O seu coração bateu desordenado
enquanto via a filha saltar para a palha, próximo dos cascos fortes com ferraduras de
metal.
Scarlett perdeu Cat de vista até o seu rostinho moreno espreitar por cima da meia
porta da baia. Trepava-a, em vez de a abrir. Scarlett ajoelhou-se para a apanhar num
amplexo. - Oh, estou tão contente de te ver, meu anjo. Tive tantas saudades tuas!
Sentiste a minha falta?
- Sim. - Cat libertou-se dos braços dela. "Bem, pelo menos sentiu a minha falta,
nunca antes o dissera." Scarlett ergueu-se quando o doce acesso de amor de Cat se
desfez na total dedicação que era a sua emoção habitual.
- Não sabia que gostavas de animais, Kitty Cat.
- Gosto. Gosto de animais.
Scarlett fez um esforço para se mostrar animada.
- Gostarias de ter um pônei só teu? Com o tamanho próprio para uma menina? -
"Não vou pensar em Bonnie, não vou. Jurei a mim mesma não perder Cat ou envolvê-
la numa redoma só porque perdi Bonnie no acidente. Jurei quando Cat nasceu que a
deixaria ser o que ela se viesse a revelar. Que lhe daria todo o pulso que um espírito
livre precisa de ter. Ignorava que fosse tão difícil, que a fosse querer proteger a cada
instante, mas tenho de cumprir a minha jura. Sei que estava certa. Terá um pônei se o
quiser, e aprenderá a saltar e me obrigarei a assistir nem que isso me mate. Amo Cat
demais para a cercear."
Scarlett não podia saber que Cat descera à cidade de Ballyhara na sua ausência.
Agora com 3 anos, Cat começava a mostrar interesse por outras crianças e
brincadeiras. Fora à procura de alguns dos seus companheiros de brincadeira que
tinham estado na festa de aniversário. Um grupo de quatro ou cinco rapazinhos
brincava numa rua larga. Quando se aproximou deles, fugiram. Dois pararam
suficientemente longe para apanhar pedras e atirar-lhe.
- Cailleoch! Cailleach! - gritaram aterrorizados. Haviam aprendido a palavra com
as suas mães, o gaélico para bruxa.
Cat olhou para a mãe.
- Sim, gostaria de um pônei - disse. Os pôneis não atiravam coisas. Pensou
contar à mãe sobre os rapazes, perguntar-Ihe o que era a palavra. Cat gostava de
aprender palavras novas. Mas não aquela. Não perguntaria.
- Gostaria de um pônei hoje.
- Não posso arranjar um pônei hoje, querida. Vou começar a procurar amanhã,
prometo. Vamos para casa lanchar.
- Haverá bolos?
Certamente que sim.
Lá em cima, nos seus aposentos, Scarlett despiu o mais depressa que pôde o seu
belo vestido de viagem. Sentia uma vaga necessidade de vestir a sua camisa e a sua
saia e as garridas meias de camponesa.
Em meados de Dezembro, Scarlett caminhava de um lado para o outro nos
compridos corredores da Casa Grande, feito um animal enjaulado. Esquecera o quanto
abominava os dias escuros, curtos e chuvosos de Inverno. Várias vezes pensara ir até
o bar de Kennedy, mas, desde a malograda festa que dera a todos os concidadãos, já
não se sentia tão à vontade com eles como noutros tempos. Foi andar um pouco a
cavalo. Não era necessário, os moços mantinham todos os cavalos exercitados. Mas
precisava sair, mesmo com a chuva gelada. Quando havia algumas horas de sol, ficava
vendo Cat montar o pônei Shetland em grandes e alegres voltas pelo prado gelado.
Scarlett sabia que era prejudicial para a erva do próximo Verão, mas Cat estava tão
agitada quanto ela. Era o máximo que Scarlett podia fazer para a convencer a ficar
dentro de casa, mesmo na cozinha ou nos estábulos.
Na Noite de Natal Cat acendeu a vela do Menino Jesus e depois todas as velas
da árvore de Natal até onde conseguia chegar. Colum pegou-lhe no colo para alcançar
as mais altas.
- Um estranho costume inglês - comentou. - Provavelmente vais atear fogo à
casa.
Scarlett olhou para os enfeites coloridos e as velas acesas na árvore.
- Acho que fica muito bonita, mesmo que tenha sido a rainha da Inglaterra a
lançar a moda - disse ela. - Além disso, pus também azevinho em todas as janelas e
portas, Colum, portanto temos o costume irlandês por todo o lado em Ballyhara, exceto
nesta sala. Não sejas tão rabugento.
Colum riu.
- Cat O'Hara, sabias que o teu padrinho era rabugento?
- Hoje sim - respondeu Cat.
Desta vez, o riso de Colum não foi forçado.
- Já deixou de ser bebê - disse ele. - Quem me mandou perguntar?
Ajudou Scarlett a desembrulhar o presente de Cat depois de ela ter adormecido.
Era um pônei de balanço empalhado, em tamanho natural.
No Dia de Natal, Cat olhou-o com desdém.
- Não é verdadeiro.
- É um brinquedo, minha querida, para estar dentro de casa com este tempo
horrível.
Cat trepou nele e balançou-se. Admitiu que até nem era um mau brinquedo, para
um pônei não verdadeiro.
Scarlett suspirou de alívio. Já não se sentiria tão culpada quando fosse para
Dublim. Ela se encontraria lá com Charlotte no Hotel Gresham, no dia a seguir ao pão
doce e chá de Ano Novo.
Scarlett não imaginava que Dublim ficasse tão perto. Parecia que acabara de se
instalar no trem em Trim e já anunciavam Dublim. Evans, a criada de Charlotte
Montague, veio esperá-la e deu orientações a um carregador para trazer as suas
malas. Depois:
- Siga-me, por favor, Mrs. O'Hara - disse Evans, e afastou-se. Scarlett teve
dificuldade em a acompanhar em virtude das multidões apressadas na estação. Era o
maior edifício que Scarlett alguma vez vira, e o de maior movimento.
Mas verdadeiramente agitadas eram as ruas de Dublim. Com o entusiasmo,
Scarlett encostou o nariz ao vidro da carruagem. Charlotte tinha razão, ia adorar
Dublim. Não tardou que a carruagem parasse. Scarlett desceu, ajudada por um
empregado sumtuosamente fardado. Olhava fixamente para um carro elétrico puxado
por cavalos quando Evans lhe tocou no braço.
- Por aqui, se faz favor.
Charlotte aguardava-a na entrada, a uma mesinha de chá na sala de estar no
conjunto de divisões que formavam a suíte delas.
- Charlotte! - exclamou Scarlett. - Vi um carro elétrico com um andar em cima e
outro em baixo, e ambos apinhados.
- Muito boa tarde para ti, Scarlett. Fico satisfeita por Dublim lhe agradar. Dê os
agasalhos a Evans e venha tomar um chá. Temos muito que fazer.
Naquela noite, Mrs. Sims chegou com três ajudantes que transportavam trajes e
vestidos envoltos em musselina. Scarlett ficou parada e movimentou-se conforme lhe
foi ordenado, enquanto Mrs. Sims e Mrs. Montague discutiam cada pormenor de cada
peça de vestuário. Cada vestido de noite era mais elegante que aquele que o
precedera. Scarlett mirava-se e remirava-se ao espelho quando não estava sendo
picada ou beliscada por Mrs. Sims.
Quiando a modista e a empregada se foram embora, Scarlett percebeu
subitamente de que estava exausta. Concordou com prazer mal Charlotte lhe sugeriu
que jantassem na suíte, e comeu desalmadamente.
- Não ouse aumentar um milímetro que seja na cintura, Scarlett, ou terá que ser
tudo de novo ajustado - avisou Charlotte.
- Abaterei tudo quando for às compras - disse Scarlett.
Passou manteiga em outra fatia de pão. Vi pelo menos oito montras que me
pareceram maravilhosas durante o percurso da estação.
Charlotte sorriu com indulgência. Receberia uma boa comissão de todas as lojas
onde Scarlett fizesse compras.
- Poderá fazer todas as compras que quiser, isso lhe prometo. Mas só à tarde. De
manhã, posará para o seu retrato.
- Que disparate, Charlotte. Para que quero um retrato meu? Uma vez mandei
fazer um e ficou horroroso. Parecia má como uma cobra.
- Não ficará com ar de má neste, dou-lhe a minha palavra. Monsieur Hervé é um
perito em senhoras. E o retrato é importante. Tem que ser feito.
- Assim será, porque faço tudo o que me diz, mas não vou gostar, acredite no que
lhe digo.
Na manhã seguinte, Scarlett foi acordada pelo som do tráfego. Ainda estava
escuro, mas os candeeiros de rua mostraram-lhe quatro filas de carros, carroças e
carruagens de toda a espécie percorrendo a rua por debaixo da janela do seu quarto.
Por isso Dublim tinha umas ruas tão largas, quase tudo o que tem rodas na Irlanda se
encontra aqui. Inspirou uma, duas vezes. "Devo estar maluca. Ia jurar que me cheira a
caie."
Bateram suavemente à sua porta.
- O café está na sala, quando estiver pronta - disse Charlotte. - Mandei embora o
empregado, só precisa de um roupão.
Scarlett quase derrubou Mrs. Montague ao abrir a porta.
- Café! Se soubesse como tenho saudades de um café! Oh, Charlotte, por que
não me disse que bebiam café em Dublim? Apanharia todas as manhãs o trem para vir
tomar o desjejum.
O café tinha um sabor ainda melhor do que cheirava. Felizmente, Charlotte
preferia chá, porque Scarlett bebeu o conteúdo de toda a cafeteira.
Depois calçou obedientemente as meias de seda e a roupa de baixo que
Charlotte retirou de uma caixa. Sentiu-se um pouco imoral. A roupa de baixo leve e
escorregadia era totalmente diferente da de cambraia ou musselina que toda a vida
usara. Apertou firmemente o roupão de lã quando Evans entrou com uma mulher que
nunca vira.
- Esta é a Serafina - disse Charlotte. - É italiana, por isso não se preocupe se não
entender uma palavra do que ela diz. Irá tratar do seu cabelo. Só tem que ficar sentada
muito quieta e deixá-la falar sozinha.
"Está tendo um monólogo com cada cabelo da minha cabeça", pensou Scarlett ao
cabo de quase uma hora. Sentia o pescoço rígido, e não tinha a menor idéia do que a
mulher lhe iria fazer. Charlotte sentara-a perto da janela na sala de estar, onde a luz da
manhã era mais intensa.
Mrs. Sims e uma ajudante pareciam tão impacientes quanto Scarlett se sentia.
Tinham chegado vinte minutos antes.
- Ecco! - disse Serafina.
- Benissimo - disse Mrs. Montague.
- Pronto - disse Mrs. Sims.
A ajudante levantou a musselina que cobria o vestido que Mrs. Sims tinha nas
mãos. Scarlett tomou fôlego. O cetim branco brilhava com a luz, luz essa que fazia o
bordado prateado brilhar como se estivesse vivo. Era um vestido de sonho. Scarlett
ergueu-se, estendendo as mãos para lhe tocar.
- Primeiro as luvas - ordenou Mrs. Sims. - Qualquer dedo deixaria marca.
Scarlett reparou que a modista tinha calçadas luvas brancas de pelica. Pegou as
antigas luvas compridas que Charlotte lhe estendia. Estavam já dobradas e empoadas
para as calçar sem esticar.
Quando as endireitou todas até em cima, Charlotte serviu-se rápida e habilmente
de uma pequena abotoadeira de prata, Serafina colocou-lhe um lenço de seda sobre a
cabeça e despiu-Ihe o roupão e depois Mrs. Sims baixou o vestido sobre os braços
erguidos e sobre o corpo de Scarlett. Enquanto o abotoava atrás, Serafina retirou com
destreza o lenço e compôs delicadamente o cabelo de Scarlett.
Bateram à porta.
- Pontual - disse Mrs. Montague. - Deve ser Monsieur Hervé. Vamos querer Mrs.
O'Hara aqui, Mrs. Sims. Charlotte conduziu Scarlett até o meio da sala. Scarlett ouviu-a
abrir a porta e falar em voz baixa. "Calculo que fale francês e espere de mim o mesmo.
Não, nesta altura Charlotte já me conhece muito bem. Quem me dera ter um espelho,
quero ver como me fica o vestido."
Levantou um pé, depois o outro, quando a ajudante de Mrs. Sims lhe bateu nos
dedos. Não conseguiu ver os sapatos que a mulher lhe enfiou nos pés. Mrs. Sims
ajeitava-lhe o vestido nos ombros enquanto lhe segredava algo a respeito de se manter
direita. A ajudante compunha-lhe a saia.
- Mrs. O'Hara - disse Charlotte Montague -, permita-me que lhe apresente
Monsieur François Hervé.
Scarlett olhou para o homem gordo e calvo que se colocou diante de si e lhe
baixou a cabeça.
- Como está? - disse ela. Deveria apertar a mão a um pintor?
- Fantastique - disse o pintor. Estalou os dedos. Dois homens transportaram um
enorme trenó até o local entre as janelas. Quando se afastaram, Scarlett viu-se.
O vestido branco de cetim era ainda mais decotado do que imaginara. Olhou para
a ousada exposição de seios e ombros. Depois para o reflexo de uma mulher que mal
reconheceu. O cabelo fora puxado para o alto da cabeça num monte de caracóis e
arcos tão artísticos que pareciam quase naturais. O cetim tornava o seu corpo estreito
e longo, e uma cauda de cetim branco com ilustrações prateadas espalhava-se num
sinuoso semicírculo em volta dos sapatos de cetim, brancos com saltos prateados.
"Vejam só, pareço mais o retrato da avó Robillard que eu mesma."
Os anos de habituais atitudes menineiras tinham passado. Olhava para uma
mulher, e não para a beldade namoradeira de Clayton County. E gostava muito da
imagem que via. Esta estranha confundia-a e entusiasmava-a. Os seus dedos
delicados tremiam ligeiramente nos cantos, e os olhos rasgados assumiam a
expressão mais profunda e misteriosa.
O seu queixo erguia-se em absoluta autoconfiança, e fitou diretamente os seus
próprios olhos em desafio e aprovação.
- É isto mesmo - murmurou Charlotte Montague a si mesma. - É esta mulher que
irá arrasar toda a Irlanda. Todo o mundo, se quiser.
- O cavalete - pediu o artista em voz sussurrante. - Rapidamente, seus cretinos.
Vou pintar o retrato que me tornará famoso.

- Não compreendo - disse Scarlett a Charlotte depois da sessão. - É como se


nunca antes tivesse visto aquela pessoa na minha vida, no entanto, conheci-a... Estou
confusa, Charlotte.
- Minha filha, isso é o começo do amadurecimento.
- Charlotte, vamos andar num daqueles carros amorosos - suplicou Scarlett. -
Mereço uma recompensa depois de me fazer de estátua horas a fio.
Fora uma longa pose, concordou Charlotte; no futuro, seriam provavelmente mais
breves. Além disso, iria provavelmente chover, e sem boa luz M. Hervé não conseguiria
pintar.
- Concorda então? Vamos apanhar o elétrico? - Charlotte assentiu. Scarlett teve
vontade de a abraçar, mas Charlotte Montague não era pessoa para isso, E, de uma
forma um tanto vaga, também já nem ela mesma era, pensou Scarlett.
A sua imagem como mulher, em vez de moça, emocionara-a, mas também a
deixara desestabilizada. Seria preciso ir se habituando.
Subiram a escada de caracol em ferro até o primeiro piso do elétrico. Era
descoberto e fazia muito frio, mas a vista era magnífica. Scarlett olhava para todos os
lados da cidade, as ruas largas e cheias de carros, os passeios largos cheios de gente.
Dublim era a primeira cidade a sério que via. Tinha uma população de duzentas e
cinquenta mil pessoas. Atlanta era uma cidade em expansão, com vinte mil.
O elétrico deslocou-se nos carris através do tráfego com inexorável direito de
passagem. Peões e veículos afastaram-se apressadamente no último instante à sua
aproximação. Frenéticas e barulhentas, as fugas à tangente encantavam Scarlett.
Depois viu o rio. O elétrico parou na ponte e pôde ver o caudal do Liffey. Ponte
atrás de ponte atrás de ponte, todas diferentes, todas pululando de tráfego. Os cais
coincidiam com frentes das lojas e as multidões. A água brilhava com a luz do Sol.
O Liffey ficou para trás, o elétrico tornou-se repentinamente sombrio, havia
edifícios altos muito perto, de ambos os lados. Scarlett sentiu frio.
- É melhor descermos na próxima - disse Charlotte. - Saímos na que segue.
Tomou a dianteira. Depois de atravessarem um cruzamento muito confuso,
Charlotte indicou a rua lá à frente, que fazia uma curva. - Grafton Street - disse ela,
como se estivesse numa apresentação. - Deveríamos apanhar um carro para voltar ao
Gresham, mas a única maneira de ver as vitrines é a pé. Não gostaria de tomar um
café antes de começarmos? Ficaria conhecendo a Casa Bewley.
- Não sei, Charlotte. Já agora, acho que vou ver primeiro esta loja. Aquele leque
na vitrine... vê, aquele ali no canto, com as bordas cor-de-rosa... é a coisa mais
adorável. Oh, e aquele chinês, não o vi primeiro. E aquela belíssima bola de âmbar!
Repare, Charlotte, no bordado naquelas luvas! Já alguma vez viu? Valha-me Deus.
Charlotte baixou a cabeça ao empregado de libré que estava à porta. Ele abriu-a
e fez uma reverência.
Não referiu que haveria pelo menos mais quatro lojas em Grafton Street com
centenas de leques e luvas. Charlotte tinha certeza de que Scarlett iria descobrir por si
mesma que o atributo de uma grande cidade é o espectro infinito da tentação.
Após dias de poses, provas e compras, Scarlett regressou a Ballyhara com dúzias
de presentes para Cat, diversos presentes para Mrs. Fitz e Colum, dez libras de café e
uma cafeteira para si. Ficara encantada com Dublim, e mal conseguia aguardar o
momento de lá voltar.
A sua Cat esperava em Ballyhara. Assim que o trem deixou a cidade, Scarlett
ficou ansiosa por chegar em casa. Tinha tantas coisas para contar a Cat, tantos planos
para a hora em que a levaria à cidade, aquela macaquinha endiabrada da sua filha
criada no campo. Teria também que estar no escritório àquelas horas a seguir à missa.
Retardara-as já uma semana. E em breve seria o dia de Santa Erigida. Scarlett
considerava-o o melhor momento de todos, aquele em que o ano começava realmente
com o revolver do primeiro torrão. Como era afortunada! Tinha ambas as coisas -
campo e cidade, a O'Hara, e a ainda desconhecida refletida na tela.
Scarlett deixou Cat entretida com um livro com figuras de animais, os seus outros
presentes ainda por desembrulhar. Desceu o caminho até a casa de Colum com o
cachecol de caxemira que lhe comprara e todas as impressões de Dublim para
compartilhar.
- Oh, desculpa - disse ao ver que ele tinha uma visita. O homem bem vestido era-
lhe completamente desconhecido.
- Não faz mal, não faz mal - disse Colum. - Quero apresentar-te John Devoy.
Acaba de chegar da América.
Devoy foi cortês, mas não ficou nada satisfeito por o interromperem. Scarlett
desculpou-se, deixou o presente de Colum e, de regresso a casa, foi matutando. Ora,
qual é o americano que se desloca a um local desterrado como Ballyhara e não fica
satisfeito por encontrar outro americano? Devia ser um dos fenianos de Colum, era
isso! E ficou aborrecido porque Colum já não pertence àquela louca revolução.
A verdade era exatamente o oposto. John Devoy estava fortemente empenhado
no apoio a Parnell, e era um dos mais influentes fenianos americanos. Se deixasse de
contar com o apoio para a revolução, o golpe seria mortal. Colum opôs-se
veementemente à Autonomia até altas horas da noite.
- O homem quer o poder e usará todas as artimanhas para o conseguir - disse,
referindo-se a Parnell.
-Que acha, Colum? - retorquiu Devoy. - Quer me parecer que não conseguirá
arranjar um homem que faça o que pretende, nem melhor.
A resposta de Colum foi imediata.
- Ele se fartará de fazer discursos em Londres, e as suas frases serão notícias em
todos os jornais, mas continuaremos com os irlandeses passando fome sob o jugo dos
ingleses. O povo irlandês não lucrará nada. E quando se cansarem das frases de Mr.
Parnell, se rebelarão. Sem organização e sem esperança de triunfar. Digo-lhe, Devoy,
já esperamos demasiado, Parnell fala, você fala, eu falo... e no entanto os irlandeses
sofrem.
Depois de Devoy ir até a Estalagem de Kennedy, onde pernoitaria, Colum andou
de um lado para o outro na sua pequena sala até o óleo da lamparina se esgotar.
Depois, ficou sentado num banco, às escuras e ao frio, junto às cinzas da lareira que
se apagavam. Matutando sobre a explosão enfurecida de Devoy. Teria o homem
razão? Movia-o o poder e não o amor à Irlanda? Como era possível um homem saber o
que lhe ia na própria alma?

A fraca e pálida luz do Sol começara a brilhar quando Scarlett enterrou uma pá na
terra, no dia de Santa Erigida. Era um bom presságio para o ano que entrava. Para
comemorar, ofereceu a todos da cidade de Ballyhara cerveja preta e empadas de carne
no Kennedy. Ia ser o melhor de todos os anos, tinha certeza. No dia seguinte, partiu
para Dublim, para as seis semanas conhecidas como a Temporada do Castelo.
Desta vez, ela e Charlotte tinham uma suite com vários quartos no Hotel
Shelbourne, e não no Gresham. O Shelbourne era o local onde ficar em Dublim para a
temporada: Scarlett não entrara na imponente construção de tijolo no seu anterior
deslocamento a Dublim.
- Escolhemos a ocasião em que vamos ser vistas - dissera Charlotte. Agora ela
olhava com espanto para o enorme átrio lá dentro e compreendeu por que queria
Charlotte que ali ficassem. Era tudo de uma imponente graciosidade - o espaço, o
pessoal, os hóspedes, a atividade silenciosa e controlada. Ergueu o queixo, depois
seguiu o bagageiro pelo meio lance até o primeiro andar, o mais desejável dos
desejáveis. Embora Scarlett não o soubesse, correspondia exatamente à descrição que
Charlotte fizera dela ao porteiro.
- Tu a reconhecêrá logo. É extremamente bela e tem o porte de uma imperatriz.
Além da suite, estava reservada para uso de Scarlett uma sala de estar privada.
Charlotte mostrou-a antes de descerem para o chá. O retrato acabado estava sobre um
cavalete de latão a um canto da sala de brocado verde. Scarlett olhou-o com
admiração. Tinha realmente aquele aspecto? Aquela mulher não recuava perante
nada, e sentiu-se extremamente nervosa. Seguiu Charlotte até o piso térreo,
estupefata.
No sumtuoso salão, Charlotte identificou algumas das pessoas em outras mesas.
- Acabará por as conhecer a todas. Depois de ter sido apresentada, servirá café e
chá na sua própria sala. As pessoas trarão outras para a conhecer.
"Quem", teve Scarlett vontade de perguntar. "Quem trará pessoas e quem são as
pessoas que irão trazer?", mas não se incomodou. Charlotte sabia sempre o que fazia.
Scarlett só tinha que atentar na cauda do vestido, para não se embrulhar nela ao
recuar após a apresentação. Charlotte e Mrs. Sims iriam treiná-la todos os dias na
prática da apresentação com o vestido até o grande dia chegar.
O pesado envelope com o selo do camareiro-mor foi entregue no hotel no dia
seguinte a Scarlett ter chegado. A expressão de Charlotte não deixou de transparecer o
enorme alívio que sentiu. Nunca se tinha a certeza, por muito bem que fossem
concebidos os planos. Abriu-o com dedos firmes.
- A primeira recepção real - disse -, tal como esperava, depois de amanhã.

Scarlett aguardou entre um grupo de moças e senhoras vestidas de branco no


patamar do lado de fora das portas duplas fechadas que davam acesso à sala do trono.
Parecia-Ihe que não fizera nada a não ser esperar cem anos. Mas porque diabo
concordara com aquilo? Scarlett não tinha resposta para a sua própria pergunta, era
complexo demais.
Em parte, era a O'Hara, decidida a conquistar os ingleses. Em parte, era uma
moça americana deslumbrada com a grandiosidade de panóplia real do Império
britânico. No fundo, nunca na vida Scarlett recuara perante um desafio, e não era agora
que o fazeria.
Chamaram outro nome. Não o dela. Pela túnica de Cristo! Iam deixá-la para
último lugar! Charlotte não a avisara a esse respeito.
Charlotte nem sequer lhe dissera, senão no último instante, que estaria entregue
a si mesma.
- Nós nos encontraremos na sala de jantar, depois de concluída a recepção real. -
Rica forma de a tratar, atirá-la daquela maneira aos lobos! Lançou um olhar furtivo à
sua dianteira. Tremia só de pensar que pudesse acontecer algo com o vestido
escandalosamente decotado. Isso seria... o que dissera Charlotte...? "Uma experiência
inolvidável."
- Mrs. O'Hara, de Ballyhara.
"Oh, Deus, sou eu." Repetiu para si mesma a litania que Charlotte Montague lhe
ensinara. Avançar, parar do lado de fora da porta. Um criado pegará na cauda que lhe
pende do braço esquerdo e a compôrá atrás de ti. O porteiro-mor abrirá as portas.
Espere que ele a anuncie.
- Mrs. O'Hara, de Ballyhara.
Scarlett olhou para a sala do trono. "Bem, papá, que achas agora da tua Katie
Scarlett?", pensou. "Vou percorrer aquela passadeira vermelha com cinquenta
quilômetros ou mais de comprimento e beijar o vice-rei da Irlanda, primo da rainha de
Inglaterra." Olhou para o porteiro-mor majestosamente vestido, e a sua pálpebra direita
tremeu no que quase se teria afigurado uma piscadela conivente.
A O'Hara caminhou qual imperatriz ao encontro da magnificência da barba ruiva
do vice-rei e apresentou a face para o beijo cerimonial de boas-vindas.
"Vire-se depois para a vice-rainha e faça uma reverência. As costas direitas. Não
se curve demais. Endireite-se. Agora recue, recue, recue, três passos, não se
preocupe, o peso da cauda mantém-na afastada do seu corpo. Estenda agora o braço
esquerdo. Espere. Deixe que o criado lhe coloque a cauda no braço. Agora vire-se.
Saia."
Os joelhos de Scarlett aguardaram obedientemente até se sentar numa das
mesas de jantar para começarem a tremer.
Charlotte não fez qualquer esforço para ocultar a sua satisfação. Entrou no quarto
de Scarlett com os quadrados rígidos de cartão branco na mão, a formar um leque.
- Minha querida Scarlett, fez um tremendo sucesso. Estes convites chegaram
mesmo antes de eu estar levantada e vestida. O baile oficial é muito especial. Baile de
São Patrício, era de esperar. Segunda recepção real, poderá ver outras a passar pelo
que já passou. E um pequeno baile na sala do trono. Três-quartos dos pares da Irlanda
nunca foram convidados para um dos pequenos bailes.
Scarlett riu com nervosismo. O terror de ser apresentada Passara já, e fora um
êxito!
- Assim já não me vou importar de ter gasto o rendimento da colheita do ano
passado em todas aquelas roupas novas. Amanhã iremos às compras e gastaremos o
da colheita deste ano.
- Não vai ter tempo. Onze cavalheiros, incluindo o porteiro-mor, escreveram a
pedir autorização para a visitar. Mais catorze senhoras, com as suas filhas. A hora do
chá não chegará. Terá que servir também café e chá de manhã. As criadas vão à sua
sala agora mesmo. Mandei colocar flores cor-de-rosa, por isso ponha o seu vestido de
tafetá com xadrez castanho e rosa para de manhã e o vestido de veludo verde
guarnecido a cor-de-rosa para a tarde. Evans virá arranjar-lhe o cabelo assim que se
levantar.
Scarlett era a atração da temporada. Os cavalheiros afluíam para conhecer a
viúva rica que era também - mirabile dictu - extraordinariamente bela. As mães
aglomeravam-se na sua sala de recepção primitiva arrastando as filhas para
conhecerem os cavalheiros. Ao cabo do segundo dia, Charlotte deixou de encomendar
flores. Os admiradores enviavam tantas que já nem cabiam. Muitos ramos vinham
acompanhados de estojos do mais requintado joalheiro de Dublim, mas Scarlett
devolveu com relutância todos os alfinetes, pulseiras, anéis e brincos.
- Até uma americana de Clayton County, Geórgia, sabe que tem que retribuir as
amabilidades - disse a Charlotte. - Não quero dever favores a ninguém, não dessa
maneira.
As suas andanças eram fielmente, e às vezes até pormenorizadamente, relatadas
na coluna social do diário Irish Times. Os proprietários das lojas, vestindo fraque,
deslocavam-se pessoalmente para lhe mostrar os artigos que supunham vir a agradar-
lhe, e em tom de desafio comprou muitas peças de joalharia que se recusava a aceitar.
O vice-rei dançou duas vezes com ela no baile oficial.
Todos os convidados dos seus cafés e chás admiravam o seu retrato. Scarlett
olhava-o todas as manhãs e todas as tardes antes de chegarem as primeiras visitas.
Estudava-se. Charlotte Montague observou com interesse a metamorfose. O ar de
moça namoradeira desaparecera, substituído por uma mulher serena, algo divertida, a
quem bastava fixar os olhos verdes esfumados, fosse em homem, mulher ou criança,
para logo os atrair a si, hipnotizados.
"Costumava esforçar-se que nem uma mula para ser agradável", pensou Scarlett,
"agora não preciso fazer nada disso." Não entendia muito bem, mas aceitou o dom com
singela gratidão.
- Falou em duzentas pessoas, Charlotte? É o que se chama um pequeno baile?
- Relativamente. Há quase sempre quinhentas ou seiscentas no oficial e no de
São Patrício, e mais de mil nas recepções reais. Decerto já conhece pelo menos
metade das pessoas que lá estarão, provavelmente muito mais da metade.
- Mesmo assim, continuo a achar que foi uma desfeita não a convidarem.
- As coisas são assim mesmo. Não me ofendo. - Charlotte vivia antecipadamente
a noite, com prazer. Iria examinar as contas. O êxito de Scarlett e a sua extravagância
tinham ultrapassado em grande medida os cálculos mais otimistas de Charlotte.
Julgava-se um nababo e regozijava-se com a sua riqueza. Só as admissões à hora do
café estavam a trazer "presentes" de quase cem libras por semana. E a temporada iria
durar ainda mais duas semanas. Ela se despediria de Scarlett na sua noite privilegiada
com alegria no coração.
Scarlett parou à porta da sala do trono para apreciar o espectáculo.
- Sabe, Jeffrey, nunca me acostumo a este lugar - disse ao porteiro-mor. - Sinto-
me como a Cinderela no baile.
- Nunca a associaria à Cinderela, Scarlett - disse ele com adoração. A piscadela
de olho de Scarlett conquistara-o ao entrar na primeira recepção real.
- Ficará surpreendido - disse Scarlett. Anuiu distraidamente em resposta às
reverências e sorrisos de rostos conhecidos que estavam próximos.
Como era maravilhoso! Não podia ser real, não era verdade que estivesse ali.
Acontecera tudo tão depressa! Precisava de tempo para assimilar.
O ouro imperava na grande sala. Colunas douradas sustentavam o teto, pilastras
douradas enchiam as paredes entre as altas janelas adornadas com veludo carmesim
de franjas douradas. Poltronas douradas forradas de carmesim rodeavam as mesas de
jantar junto às paredes; em cada mesa, um candelabro dourado ao meio.
O ouro cobria os lustres a gás ricamente talhados e o dossel maciço sobre os
tronos em dourado e vermelho. Havia renda dourada a ornamentar as vestes de
serviço do pessoal da corte, casacas de seda brocada com aba e calças brancas de
cetim pelos joelhos. Fivelas douradas enfeitando os sapatos leves de cetim. Botões
dourados, dragonas douradas, cinturões dourados, galões dourados brilhavam nos
uniformes dos oficiais do regimento e nos uniformes dos oficiais da corte do vice-rei.
Muitos dos homens usavam faixas brilhantes em diagonal sobre o peito, presas
com jóias da ordem; as calças do vice-rei, pelo joelho, chegavam à jarreteira na perna.
Os homens tinham quase mais esplendor que as mulheres.
Quase, mas não tanto, pois as mulheres traziam jóias ao pescoço, no colo, nas
orelhas e pulsos; muitas usavam também tiaras. Os seus vestidos eram de tecidos
ricos - cetim, veludo, brocado, seda -, muitas vezes com bordados em fios de seda
brilhante ou fios dourados e prateados.
"Só de olhar até cega, pelo que é melhor entrar e ter modos."
Avançou pela sala para fazer uma reverência aos anfitriões vice-reais. Assim que
acabou, a música fez-se ouvir.
- Dá-me licença? - Um braço vermelho com galões dourados curvou-se para lhe
proporcionar apoio à mão. Scarlett sorriu. Era Charles Ragland. Conhecera-o numa
festa, e todos os dias a visitava desde que chegara a Dublim. Não escondia a sua
admiração. O rosto atraente de Charles corava cada vez que Scarlett falava com ele.
Era tremendamente simpático e atraente, apesar de ser um soldado inglês. Não eram
nada como os soldados federais americanos, dissesse Colum o que dissesse. Para
começar, vestiam se infinitamente melhor.
Pousou de leve a mão no braço de Regland, e este acompanhou-a até à
formação da quadrilha.
- Está muito bonita esta noite, Scarlett.
- Você também, Charles. Tinha acabado de pensar que os homens estão mais
alinhados que as senhoras.
- Valham-nos os uniformes. As calças pelo joelho são o diabo para usar. Um
homem sente-se perfeitamente ridículo com sapatos de cetim.
- Bem feito para eles. Há séculos que espreitam os tornozelos das senhoras,
agora vão ver como é ao comermos com os olhos as suas pernas.
- Deixa-me chocado, Scarlett. - A formação mudou e ele desapareceu.
"Sou muito capaz disso", pensou Scarlett. Às vezes, Charles chegava a ter a
inocência de um rapazinho. Olhou para o seu novo par.
- Meu Deus! - exclamou em voz alta. Era Rhett.
- Que lisonjeador - disse ele, com o seu sorriso meio torcido.
Mais ninguém sorria assim. Scarlett transbordou de alegria, sentiu-se leve.
Parecia que flutuava acima do chão envernizado, boiando de felicidade.
E depois, antes de conseguir voltar a falar, a quadrilha levou-o. Sorriu
instintivamente ao seu novo par. O amor que lhe brilhava nos olhos deixou-o
boquiaberto. A mente de Scarlett voava: "Por que se encontra Rhett aqui?" Será
porque me quer ver? Porque tinha de me ver, porque não se conseguia afastar?"
A quadrilha passou ao seu ritmo solene, o que deixou Scarlett verdadeiramente
impaciente. Quando terminou, tinha à sua frente Charles Ragland. Foi preciso recorrer
a todo o seu autodomínio para lhe sorrir e agradecer e murmurar uma desculpa
apressada antes de partir em busca de Rhett.
Os seus olhares cruzaram-se quase de imediato. Estava apenas à distância de
um braço.
O orgulho de Scarlett impediu-a de se aproximar. "Ele sabia que eu andava à sua
procura", pensou furiosa. "Mas afinal quem se julga ele, para surgir assim de repente
no meu mundo e ficar ali empacado à espera que eu lhe caia nos braços? Homens é o
que não falta em Dublim, mesmo nesta sala, que me cobrem de atenções, que
frequentam o meu salão, que me mandam flores todos os dias e bilhetes e jóias. Que
leva o orgulhoso Mr. Rhett Butler a pensar que lhe basta levantar um dedo e eu irei a
correr?"
- Mas que surpresa agradável - disse ela, e o tom frio da sua voz não deixou de
lhe agradar.
Rhett estendeu a mão e ela colocou a sua na dele sem pensar.
- Dá-me a honra desta dança, Mrs... Hum... O'Hara?
Scarlett susteve a respiração, alarmada.
- Rhett, não vais dizer nada a meu respeito, pois não? Todos pensam que sou
viúva!
Sorriu e tomou-a nos braços assim que a música começou.
- O teu segredo está seguro comigo, Scarlett. - Sentiu na sua pele a aspereza da
voz dele, e a sua respiração quente. Isso deixou-a vulnerável.
- Mas que diabo fazes aqui? - perguntou-lhe. Precisava saber.
Sentia o calor da mão dele na cintura, forte, a segurar, a conduzir o seu corpo
enquanto rodopiavam. Inconscientemente, Scarlett deliciou-se com a força dele e
insurgiu-se contra o seu controle sobre ela, apesar de recordar a alegria de seguir os
seus passos no movimento rodopiante e estonteante da valsa.
Rhett riu entredentes.
- Não consegui controlar a minha curiosidade - disse-Ihe. - Estava em Londres
tratando de negócios, e todo mundo falava de uma americana que estava fazendo furor
no Castelo de Dublim. "Seria a Scarlett das meias listradas?", perguntei-me. Tinha que
descobrir. Bart Morland confirmou as minhas suspeitas. Depois, não consegui que
parasse de falar de ti. Até me obrigou a passear com ele a cavalo pela tua cidade.
Segundo ele, reconstruíste-a com as tuas próprias mãos.
Os seus olhos miraram-na de alto a baixo.
- Mudaste, Scarlett - disse em voz baixa. - A moça encantadora tornou-se uma
mulher elegante e adulta. Tiro-te o chapéu, deveras.
A honestidade sincera e o calor da sua voz fizeram Scarlett esquecer os
ressentimentos.
- Obrigada, Rhett - disse ela.
- Sentes-te feliz na Irlanda, Scarlett?
- Sim, sinto.
- Fico satisfeito.
As suas palavras continham um significado muito mais profundo.
Pela primeira vez em todos os anos que o conhecera, Scarlett compreendia Rhett,
pelo menos em parte. "Veio ver-me, pensou em mim todo este tempo, preocupou-se
com o meu paradeiro e se eu estava bem. Nunca deixou de se interessar, dissesse o
que dissesse. Ama-me e sempre me vai amar, tal como eu sempre o amarei."
Aquela tomada de consciência encheu-a de felicidade, e saboreou-a como quem
saboreia o champanhe; sorveu-a em golinhos, para a fazer durar. Rhett estava ali com
ela, e naquele momento sentiam-se mais próximos que nunca.
Um ajudante-de-campo acercou-se deles quando a valsa terminou.
- Sua Excelência solicita a honra da próxima dança, Mrs. O'Hara.
Rhett arqueou as sobrancelhas na expressão zombeteira de que Scarlett tão bem
se recordava. Os lábios dela curvaram-se num sorriso exclusivo para ele.
- Diga a Sua Excelência que terei o maior prazer - retorquiu. Olhou para Rhett
antes de dar o braço ao ajudante. - Em Clayton County - murmurou a Rhett -, diríamos
que eu era algodão de primeira.
Ouviu atrás de si, ao afastar-se, as gargalhadas dele.
"É-me permitido", disse a si mesma, e olhou para trás por cima do ombro para o
ver rir. "É realmente demais", pensou, "e nada justo."
Até fica bem com as ridículas calças e sapatos de cetim. Os seus olhos verdes
brilharam de alegria antes de começarem a dançar.
Scarlett não se surpreendeu por Rhett já ali não se encontrar quando o procurou
novamente. Desde que o conhecia, Rhett aparecia e desaparecia sem dar explicações.
"Não me devia ter surpreendido de o ver aqui esta noite", pensou. "Se me sentia como
a Cinderela, por que não haveria o único príncipe encantado que eu amo de estar
aqui?"
A sensação dos braços dele a envolverem-na mantinha-se, como se tivesse
deixado uma marca; se não, seria fácil acreditar que inventara tudo - a sala dourada, a
música, a presença dele e até a dela.
Ao regressar aos seus quartos no Shelbourne, Scarlett acendeu o gás e colocou-
se diante de um comprido espelho para se ver e ver o que Rhett vira. Tinha beleza e
segurança, tal como o retrato, o retrato da sua avó.
O coração começou a apertar-se. Por que não conseguia ser como o outro retrato
da avó Robillard? Aquele em que se mostrava afável e cheia de amor dado e recebido.
Pois sabia que nas palavras atenciosas de Rhett sempre houve tristeza e
despedida.
No meio da noite, Scarlett O'Hara acordou no seu quarto luxuoso no melhor piso
do melhor hotel de Dublim e chorou em fortes soluços convulsivos. "Se ao menos...",
não parava de ecoar na sua mente, qual aríete. A angústia da noite não deixou marcas
visíveis em Scarlett. Na manhã seguinte, o seu rosto tinha a mesma suave serenidade,
e os seus sorrisos eram encantadores como sempre enquanto servia café e chá aos
homens e mulheres que enchiam a sua sala privativa. Em algum momento durante as
escuras horas da noite encontrara coragem para deixar partir Rhett.
"Se o amo", pensou, "não devo tentar prendê-lo a mim. Tenho que aprender a
restituir-lhe a liberdade, tal como procuro fazer em relação a Cat, porque a amo."
Gostaria de ter falado dela a Rhett. Como se orgulharia...! "Quem me dera que a
Temporada do Castelo tivesse acabado. Morro de saudades de Cat. Que andará
fazendo?"

Cat corria com o vigor do desespero pelos bosques de Ballyhara. A cacimba da


manhã formava ainda algumas poças no solo, e não via para onde ia. Tropeçou e caiu,
mas de imediato se ergueu. Tinha que continuar a correr, apesar de estar sem fôlego
de tanto correr já. Percebeu a proximidade de outra pedra e curvou-se, procurando
refúgio atrás do tronco de uma árvore. Os rapazes que a perseguiam gritavam e
escarneciam. Haviam-na apanhado, apesar de nunca se terem aventurado no bosque
próximo da Casa Grande. Agora era seguro. Sabiam que a O'Hara estava em Dublim
com os ingleses. Os seus pais não falavam de outra coisa.
- Ali está ela! - gritou um, e os outros ergueram as mãos para a apedrejar.
Mas a figura que saiu de detrás da árvore não era Cat. Era a cailleach, que
apontava com um dedo deformado. Os rapazes gritaram de medo e fugiram.
- Vem comigo - disse Grainne. - Vou dar-te chá.
Cat agarrou a mão da velha. Grainne saiu do esconderijo e caminhou muito
devagar, e Cat não teve qualquer dificuldade em acompanhar o seu ritmo.
- Haverá bolos? - perguntou Cat.
- Haverá - disse a cailleach.

Apesar de Scarlett estar com saudades de Ballyhara, manteve-se até o fim da


Temporada do Castelo. Dera a sua palavra a Charlotte Montague. "É exatamente como
a Temporada em Charleston. Por que será, pergunto-me, que as pessoas elegantes se
esforçam tanto por se divertir durante todo este tempo?" O seu sucesso era cada vez
maior, e Mrs. Fitz aproveitava sagazmente os parágrafos entusiásticos no Irish Time
que lhe faziam referência. Todas as noites levava o jornal para o bar de Kennedy, a fim
de mostrar às pessoas de Ballyhara como a O'Hara era famosa. A cada dia que
passava os comentários sobre a preferência que Scarlett dava aos ingleses cediam o
lugar ao orgulho por a O'Hara ser mais admirada que qualquer das inglesas.
Colum não aplaudiu a manobra de Rosaleen Fitzpatrick. A sua disposição era tão
péssima que não conseguia ver o lado cômico da situação.
- Os ingleses a seduzirão tal como fazem em relação a John Devoy - disse ele.
Por um lado, Colum tinha razão, mas não por outro. Ninguém em Dublim queria
que Scarlett fosse menos irlandesa. Residia aí grande parte do seu atrativo. A O'Hara
era original. Mas Scarlett descobrira uma inquietante verdade. Os anglo-irlandeses
consideravam-se tão irlandeses quanto os O'Hara de Adamstown.
- Estas famílias já viviam na Irlanda antes de a América ter sido colonizada - disse
um dia Charlotte Montague, num momento de irritação. - Como lhe pode chamar outra
coisa que não irlandesas?
Scarlett não conseguia desenredar as complexidades, por isso desistiu de tentar.
Também não tinha necessidade disso, decidiu. Podia ter os dois mundos - a Irlanda
das quintas de Ballyhara e a Irlanda do castelo de Dublim. Também Cat as teria,
quando crescesse. E isso era muito melhor que o que teria se tivesse ficado em
Charleston, disse Scarlett a si mesma com firmeza.
Ao terminar o Baile de São Patrício, às quatro da manhã, findara a Temporada do
Castelo. O acontecimento seguinte era a alguns quilômetros dali, em County Rildare.
Charlotte dissera que todos estariam presentes nas corridas de Punchestown.
Contavam com a presença dela.
Scarlett declinou.
- Adoro corridas e cavalos, Charlotte, mas agora quero ir para casa. Já estou
atrasada com as horas de atendimento deste mês. Pagarei as reservas que fez no
hotel.
- Não é necessário - disse Charlotte. Podia vendê-las pelo quádruplo do seu
custo. E ela mesmo não tinha qualquer interesse por cavalos.
Agradeceu a Scarlett tê-la tornado uma mulher independente.
- Já não precisa de mim. Fique com Mrs. Sims e deixe que ela a vista. O
Shelbourne reservou os seus quartos para a temporada do ano que vem. A sua casa
acomodará todos os convidados que quiser receber, e a sua governanta é a melhor
profissional que jamais conheci naquele posto. Agora está lançada. Aproveite como
quiser.
- E que vai fazer, Charlotte?
- O que sempre quis. Um pequeno apartamento num palácio romano. Boa
comida, bom vinho e dias e dias de sol. Detesto a chuva.

Nem mesmo Charlotte se podia queixar do tempo, pensou Scarlett. A Primavera


estava mais soalheira que qualquer outra de que tivesse memória. A erva crescia muito
verde, e o trigo plantado três semanas antes no Dia de São Patrício cobria já os
campos com um macio tapete verde. A colheita deste ano compensaria bastante a
desilusão do ano anterior. Era maravilhoso estar em casa.
- Como vai Ree? - perguntou a Cat. "Só mesmo a filha para chamar King ao
pequeno pônei Shetland", pensou Scarlett com indulgência. Cat prezava muito aquilo
que tinha. Era também curioso Cat ter usado a palavra gaélica. Gostava de pensar em
Cat como uma criança verdadeiramente irlandesa. Apesar de se assemelhar a uma
cigana. O seu cabelo preto não se domava em tranças, e o tempo soalheiro deixara-a
ainda mais morena. Assim que chegou aqui fora, Cat tirou o chapéu e descalçou-se.
- Ele não gosta quando o monto com sela. Eu também não. Em pêlo é melhor.
- Isso é que não, minha querida. Tens que aprender a montar com sela, e Ree
também. E dá graças por não ser uma sela de amazona.
- A que tens para caçar?
- Sim. Também tu um dia terás uma, mas só daqui a muito, muito tempo. - Cat
faria 4 anos em Outubro, não era muito mais nova que Bonnie quando esta dera a
queda. A sela de amazona podia esperar bastante. Se ao menos Bonnie estivesse
escarranchada em vez de aprender a montar a sela de amazona - não, não devia
pensar assim. "Se ao menos" só lhe despedaçava o coração.
- E se fôssemos até à cidade, Cat, gostarias? Podíamos ir ver Colum. - Scarlett
estava preocupada com ele, andava tão taciturno ultimamente.
- Cat não gosta da cidade. Podemos ir até o rio?
- Está bem. Há muito tempo que também não vou ao rio, é uma excelente idéia.
- Posso subir à torre?
- Não podes, não. A porta é alta demais e provavelmente estará cheia de
morcegos.
- E vamos visitar Grainne?
As mãos de Scarlett firmaram-se nas rédeas.
- Como é que conheces Grainne? - A bruxa dissera-lhe para manter Cat afastada,
guardá-la junto de casa. Quem levara Cat até lá? E porquê?
- Ela deu leite a Cat.
Scarlett não gostou da maneira como as palavras lhe soaram.
Cat só se referia a si mesma na terceira pessoa quando algo a deixava nervosa
ou zangada.
- Que é que não gostaste em Grainne, Cat?
- Ela pensa que Cat é outra menina chamada Dará. Cat disse-lhe, mas ela não
ouviu.
- Oh, querida, ela sabe que és tu. É um nome muito especial que ela te deu
quando eras bebezinha. É gaélico, como os nomes que deste a Ree e Ocras. Dará
significa carvalho, a melhor e a mais forte de todas as árvores.
- Que disparate. Uma menina não pode ser uma árvore. Não tem folhas.
Scarlett suspirou. Adorava quando Cat queria falar, a filha era tão calada a maior
parte das vezes. Mas nem sempre era fácil falar com ela. "É uma coisinha muito
voluntariosa, e sabe sempre quando a estão enrolando. A verdade, só a verdade, se
não fuzila-nos com o olhar."
- Olha, Cat, está ali a torre. Já te contei a história sobre a sua avançada idade?
- Já.
Scarlett teve vontade de rir. Era errado dizer a uma criança para mentir, mas às
vezes uma mentirazinha sem importância vinha mesmo a calhar.
- Gosto da torre - disse Cat.
- Eu também, minha querida. - Scarlett perguntou-se por que razão não vinha há
tanto tempo. Quase se esquecera da sensação que as velhas pedras lhe causavam.
Era simultaneamente misteriosa e tranqüila. Prometeu a si mesma não deixar
decorrerem tantos meses até a próxima visita.
Era, afinal, o verdadeiro coração de Ballyhara, onde começara a cidade.

O espinheiro negro florescia já nas sebes, e decorria ainda o mês de Abril. Que
rica Primavera! Scarlett abrandou o andamento da charrete para respirar fundo. Não
havia motivo para pressa, os vestidos que esperassem. Ia a Trim buscar uma
encomenda de roupa de Verão que Mrs. Sims enviara. Tinha na secretária seis
convites para festas em Junho. Não sabia ao certo se estaria apta a começar a ir a
festas, mas estava preparada para ver alguns adultos. Cat era o seu tesouro mais
querido, mas... E Mrs. Fitz andava tão ocupada orientando a Casa Grande que nunca
tinha tempo para uma amigável xícara de chá. Colum fora para Galway, ao encontro de
Stephen. Não sabia que pensar da vinda de Stephen para Ballyhara. O fantasmagórico
Stephen. Talvez fosse menos fantasmagórico na Irlanda. Talvez se mostrasse tão
estranho e silencioso em Savannah em virtude do seu envolvimento no negócio de
armas. Pelo menos isso acabara! O rendimento extra que auferia agora com as
pequenas casas em Atlanta era muito bem-vindo. Devia ter dado uma fortuna aos
fenianos. Era muito melhor aplicado em roupa; pelo menos esta não feria ninguém.
Stephen traria também notícias de Savannah. Ansiava saber como estavam
todos. Maureen era tão preguiçosa para escrever cartas quanto ela. Há meses que não
sabia nada dos O'Hara de Savannah, ou de outras pessoas. Fazia sentido que ao
tomar a decisão de vender tudo em Atlanta tivesse resolvido pôr a América para trás
das costas e não mais para lá olhar.
Mesmo assim, era bom ter notícias das pessoas de Atlanta. Sabia, pelos lucros
auferidos, que as pequenas casas estavam sendo vendidas, pelo menos os negócios
de Ashley deveriam correr bem. E, no entanto, a tia Pittypat? E Índia? Secara já tanto a
ponto de ficar reduzida a pó? E todas aquelas pessoas que há muito, muito tempo
tinham sido tão importantes para ela? "Gostaria de me ter mantido eu mesma em
contato com as tias, em vez de deixar dinheiro ao advogado para lhes enviar a renda.
Fiz bem em não lhes dar conhecimento do meu paradeiro, fiz bem em proteger Cat de
Rhett. Mas talvez ele agora não fizesse nada; vejam como ele agiu no castelo. Se
escrever a Eulalie, ficarei sabendo todas as novidades de Charleston. Saberei de
Rhett. Suportaria eu saber que ele e Anne são tremendamente felizes, criam cavalos
de corrida e bebês Butler? Acho que não. Vou deixar ficar as tias tal como estão.
"E, de qualquer forma, o mais provável era receber um milhão de páginas com
censuras, e de censuras já me bastam as de Mrs. Fitz. Talvez ela esteja certa ao
aconselhar-me a dar algumas festas; é pena ter a casa e todos aqueles criados sem
qualquer serventia. Mas está redondamente enganada a respeito de Cat. Não ligo nada
ao que fazem as mães inglesas, não quero uma ama orientando a vida de Cat. Já a
vejo tão pouco atualmente, pois está sempre nos estábulos ou na cozinha ou
passeando pela propriedade ou trepando numa árvore. E a idéia de a mandar para um
colégio de freiras é uma perfeita loucura! Quando chegar a idade, a escola de Ballyhara
servirá perfeitamente. Fará lá amigos também. Às vezes preocupa-me o fato de ela
nunca querer brincar com as outras crianças. Que diabo se passa? Não é dia de
mercado. Por que está a ponte assim apinhada de pessoas?"
Scarlett apeou-se da charrete e bateu no ombro de uma mulher que corria
apressada.
- Que se passa? - A mulher olhou para ela. Tinha os olhos brilhantes, a excitação
no rosto.
- Um castigo. É melhor apressar-se, ou já não verá.
Um castigo. Scarlett não estava interessada em ver um desgraçado de um
soldado ser chicoteado. Imaginava que o castigo para os militares era serem
chicoteados publicamente. Tentou virar a charrete, mas o aglomerado de pessoas a
empurrarem-se e a correr, ávidas para ver o espectáculo, impediu-lhe a manobra. O
cavalo levou alguns encontrões, a charrete foi sacudida e empurrada. Só lhe restou
apear e agarrar as rédeas, amansar o cavalo acariciando-o e falando-lhe baixo e
caminhar ao ritmo das pessoas em seu redor.
Quando o movimento de avanço parou, Scarlett ouviu o silvo do chicote e o
terrível som líquido ao bater. Quis tapar os ouvidos, mas precisava das mãos para
amansar o cavalo assustado. Parecia-lhe que aqueles sons iam continuar
indefinidamente.
- ... cem. Pronto. - Ouviu dizerem, e depois o coro de descontentamento do
populacho. Agarrou firmemente as rédeas; os encontrões e os empurrões pioraram
com o dispersar da multidão.
Só fechou os olhos tarde demais. Vira já o corpo mutilado, e a imagem queimava-
lhe o cérebro. Estava atado aos raios de uma roda vertical, os pulsos e os tornozelos
presos com tiras de couro. Uma camisa azul manchada de vermelho pendia da cintura
para baixo sobre as calças de lã áspera, deixando desnudadas o que deveriam ter sido
umas costas largas. Agora não passavam de uma gigantesca ferida vermelha com tiras
vermelhas de carne e pele a pender.
Scarlett escondeu o rosto na crina do cavalo. Sentiu-se agoniada. O cavalo
sacudiu a cabeça, empurrando-a. Pairava no ar um terrível cheiro adocicado.
Ouviu alguém vomitar e sentiu náuseas. Dobrou-se o melhor que podia sem
largar as rédeas e vomitou também para as pedras.
- Muito bem, rapaz, não é vergonha nenhuma perderes o desjejum depois de
assistires a um castigo. Vai então ali ao bar e toma um uísque grande. Marbury me
ajudará a soltá-lo.
Scarlett levantou a cabeça para ver quem falava: um soldado britânico com
uniforme de sargento da Guarda. Dirigia-se a um soldado-raso de rosto lívido. O
soldado caminhava aos tropeções. Um outro veio ajudar o sargento. Cortaram a tira de
cabedal na parte de trás da roda, e o corpo caiu para a lama ensanguentada por
debaixo.
"A semana passada havia aqui erva", pensou Scarlett. "Isto não pode ser. Devia
ter erva verdejante."
- E a mulher, sargento? - Dois soldados agarravam os braços de uma mulher
silenciosa, com um manto preto com capuz, que se debatia.
- Solta-a. Acabou. Vamos. A carroça virá depois buscá-lo.
A mulher correu atrás dos homens. Agarrou a manga com galões dourados do
sargento.
- O seu oficial prometeu que eu o podia sepultar - gritou. - Deu-me a sua palavra.
O sargento empurrou-a.
- As minhas ordens eram para o castigar, o resto não é comigo. Deixa-me em
paz, mulher.
A figura de manto negro ficou sozinha na rua, vendo os soldados encaminharem-
se para o bar. Emitiu um som, um suspiro entrecortado. Depois voltou-se e precipitou-
se para a roda, para o corpo coberto de sangue.
- Danny, oh, Danny, oh, meu querido. - Acocorou-se, depois ajoelhou-se na lama
imunda, tentando puxar os ombros dilacerados e a cabeça pendente para o seu colo. O
capuz caiu-Ihe, revelando um rosto pálido e de feições finas, cabelo louro apanhado
num coque, olhos azuis com carregadas olheiras de sofrimento. Scarlett ficou pregada
ao chão. Mexer-se, fazer descolar as rodas sobre as pedras seria uma afronta imoral à
tragédia da mulher.
Um rapazinho sujo correu descalço pela praça.
- Pode dar-me um botão ou qualquer coisa, senhora? A minha mãe quer uma
lembrança. - Sacudiu o ombro da mulher.
Scarlett correu pelas pedras, pela erva salpicada de sangue, pela beira da lama
espezinhada. Agarrou o braço do rapaz. Este olhou-a, surpreendido, boquiaberto.
Scarlett esbofeteou-o com toda a força do seu braço. O som assemelhou-se ao
estampilho de um tiro.
- Sai daqui, seu diabo nojento! Sai daqui! - O rapaz correu, gritando de medo.
- Obrigada - disse a mulher do homem que fora chicoteado até a morte.
Agora envolvera-se, Scarlett estava ciente disso. Tinha que fazer o pouco que
podia.
- Conheço um médico em Trim - disse. - Irei buscá-lo.
- Um médico? Acha que o vai querer sangrar? - As suas palavras cheias de
amargura e desespero denotavam a pronúncia inglesa, tal como as vozes nos bailes do
castelo.
- Ele preparará o corpo do seu marido para ser sepultado - disse rapidamente
Scarlett.
A mão ensanguentada da mulher agarrou a bainha da saia de Scarlett. Levou-a
aos lábios, num abjeto beijo de gratidão. Os olhos de Scarlett encheram-se de
lágrimas. "Meu Deus, não mereço isto. Se pudesse, teria virado o carro."
- Não - disse -, por favor, deixe disso.
A mulher chamava-se Harriet Stewart, o marido Danny Kelly. Foi tudo o que
Scarlett soube até Daniel Kelly estar no caixão fechado dentro da capela católica.
Depois a viúva, que respondera apenas às perguntas do padre, mirou em seu redor
com olhos esbugalhados e desorientados.
- Billy, onde está Billy? Devia estar aqui. - O padre apurou que havia um filho,
fechado num quarto do hotel, para não assistir ao castigo. - Foram muito generosos -
disse a mulher -, aceitaram a aliança de casamento como forma de pagamento, apesar
de não ser de ouro.
- Vou buscá-lo - disse Scarlett. - Padre? Encarrega-se de Mrs. Kelly?
- Fique descansada. Traga também uma garrafa de aguardente, Mrs. O'Hara. A
pobre senhora está quase desfalecendo.
- Não desfalecerei - disse Harriet Kelly. - Não posso. Tenho que cuidar do meu
filho. É um rapazinho, tem apenas oito anos. - A sua voz era fraca e estaladiça como o
gelo novo.
Scarlett apressou-se. Billy Kelly era um rapaz louro e robusto, grande para a
idade, cheio de raiva. Por estar fechado atrás da espessa porta. Pelos soldados
ingleses.
- Eu pego numa barra de ferro de um ferreiro e esmago-lhes as cabeças até me
matarem - gritou. O estalajadeiro precisou de toda a sua força e corpulência para
segurar o rapaz.
- Não sejas doido, Billy Kelly! - As palavras ríspidas de Scarlett tiveram o efeito de
água fria atirada à cara do rapaz.
- A tua mãe precisa de ti, e só lhe queres aumentar o desgosto. Mas que espécie
de homem és tu?
O estalajadeiro pôde então libertá-lo. O rapaz ficou quieto.
- Onde está a minha mãe? - perguntou numa voz jovem e assustada, adequada à
situação.
- Vem comigo - disse Scarlett.
A história de Harriet Stewart Kelly foi sendo revelada aos poucos. Ela e o filho
estiveram em Ballyhara mais de uma semana antes de Scarlett ficar sabendo a
verdade nua e crua. Filha de um sacerdote inglês, Harriet ocupava o cargo de
preceptora-auxiliar da família de Lorde Witley. Tinha uma boa educação, para uma
mulher, e não sabia nada da vida.
Uma das suas obrigações era acompanhar os filhos do dono da casa nos seus
passeios antes do desjejum. Apaixonara-se pelo belo sorriso e voz brincalhona e
melodiosa do moço de estrebaria que também os acompanhava. Quando lhe pediu
para fugirem juntos, achou que era a aventura mais romântica do mundo.
A aventura acabou na pequena quinta do pai de Daniel Kelly. Não havia
referências e, portanto, nada de empregos para um moço de estrebaria ou uma
preceptora fugitivos. Danny trabalhava com o pai e os irmãos os campos pedregosos,
Harriet executava o que a mãe dele lhe mandava, principalmente esfregar e cerzir.
Aprendera a fazer finos bordados, como um dos predicados necessários a uma
senhora. Billy era o seu único filho, o testemunho de um romance que acabara. Danny
Kelly sentia a falta do mundo dos cavalos puro-sangue em grandes estábulos e do
elegante casaco listrado, chapéu alto e botas altas de couro, que eram a farda de um
moço de estrebaria. Culpou Harriet pela sua queda em desgraça e refugiou-se no
uísque. A família dele odiava-a por ser inglesa e protestante.
Danny foi preso por atacar um oficial inglês num bar. A família não quis saber
mais dele ao ser condenado a cem chicotadas. Encontrava-se já detido quando Harriet
pegou a mão de Billy e um naco de pão e se predispôs a percorrer as vinte milhas até
Trim, o local onde estava aquartelado o regimento do oficial insultado. Suplicou pela
vida do marido. Seria entregue o corpo para sepultar.
- Vou levar o meu filho para Inglaterra, Mrs. O'Hara, se me emprestar o dinheiro
das passagens. Os meus pais morreram, mas tenho primos que talvez nos dêem
abrigo. Eu lhe pagarei com o meu salário. Arranjarei algum trabalho.
- Que disparate - disse Scarlett. - Não reparou que eu tenho uma filha que corre
por aí feita um potro selvagem? Cat precisa de uma preceptora. Além disso, já se
apegou a Billy como uma sombra. Necessita mais que nunca de um amigo. Tu me faria
um grande favor se ficasse, Mrs. Kelly.
Era verdade, pelo menos em parte. O que Scarlett não disse foi que não confiava
nada na capacidade de Harriet apanhar o barco certo para Inglaterra, muito menos de
ganhar lá a vida. Tinha muita coragem, mas pouca esperteza, concluiu Scarlett. "Só
sabe aquilo que aprendeu nos livros." Scarlett nunca tivera em grande conta as
pessoas letradas.
Não obstante menosprezar a falta de sentido prático de Harriet, Scarlett estava
satisfeita por a ter em casa. Desde que voltara de Dublim, Scarlett achara a enorme
casa angustiantemente vazia. Não contara sentir a falta de Charlotte Montague, mas
sentia. Harriet podia perfeitamente encher essa lacuna. De muitas maneiras, era até
melhor companhia que Charlotte, porque a mínima coisa que as crianças fizessem
deixava Harriet fascinada, e Scarlett tinha conhecimento de pequenas aventuras que
Cat não acharia dignas de menção.
Billy Kelly era também uma companhia para Cat, e a inquietação de Scarlett com
o isolamento de Cat deixou de ter sentido. O último obstáculo à presença de Harriet era
a hostilidade de Mrs. Fitzpatrick.
- Não queremos ingleses em Ballyhara, Mrs. O - dissera quando Scarlett trouxera
Harriet e o filho de Trim. - Já era bastante mau ter aqui Montague, mas pelo menos ela
tinha alguma utilidade para ti.
- Bem, é possível que não queira Mrs. Kelly, mas eu quero, e a casa é minha! -
Scarlett estava farta de lhe dizerem o que devia e não devia fazer. Primeiro fora
Charlotte, e agora Mrs. Fitz. Harriet nunca a criticava. Pelo contrário. Estava tão grata
pelo abrigo e pelas roupas que Scarlett lhe dera, que esta chegava a ter vontade de lhe
dar um grito para deixar de ser tão subserviente.
Aliás, Scarlett tinha vontade de gritar com todos, e envergonhava-se da sua
atitude, pois não havia motivo algum para aquele mau humor. Não havia memória de
um crescimento tão bom, diziam as pessoas. O trigo estava já com mais de metade do
tamanho normal, e os campos de batata eram um mar de verdura compacta. Os dias
de sol radioso sucediam-se, e as comemorações no dia semanal de mercado em Trim
duraram até a tépida noite. Scarlett dançou até romper sapatos e meias, mas a música
e o riso não conseguiram animá-la durante muito tempo. Quando Harriet suspirou
romanticamente a respeito dos jovens pares que caminhavam junto ao rio
entrelaçados, Scarlett virou-lhe as costas com um encolher de ombros impaciente.
Felizmente chegavam diariamente convites pelo correio, pensou. As festas não
tardariam a começar. Parecia que as festividades em Dublim e as tentações das lojas
haviam feito o Dia do Mercado de Trim perder quase todo o seu atrativo.
Nos finais de Maio, as águas de Boyne estavam tão baixas que se conseguia ver
as pedras colocadas séculos antes para a travessia a vau. Os agricultores olhavam
ansiosamente para as nuvens espalhadas pelo vento de Oeste no belo céu baixo. Os
campos precisavam de chuva. Os esparsos aguaceiros que refrescavam o ar
humedeciam apenas o solo, fazendo que as raízes do trigo e a erva-dos-prados
viessem à superfície, enfraquecendo os caules.
Cat comunicou que o caminho do Norte para a cabana de Grainne estava ficando
muito batido.
- Ela tem mais manteiga do que consegue comer - disse Cat, espalhando a sua
num muffin. (bolo redondo, chato e muito fofo, que se come quente com manteiga e
tostado. - N. da T.) - As pessoas estão comprando feitiços para a chuva.
- Decidiste ser amiga de Grainne?
- Sim. Billy gosta dela.
Scarlett sorriu. O que quer que Billy dissesse era lei para Cat. Felizmente o rapaz
tinha bom feitio; a adoração de Cat poderia ter sido uma experiência terrível. Ao invés,
tinha uma paciência de santo. Billy herdara do pai o "jeito para os cavalos". Ensinava
Cat a montar com perícia, muito melhor do que Scarlett teria conseguido. Assim que
Cat completasse mais alguns anos, montaria um cavalo em vez de um pônei. Dizia
pelo menos duas vezes por dia que os pôneis eram para as meninas pequeninas, e Cat
já era uma menina grande. Felizmente Billy é que dissera "ainda não muito grande".
Cat nunca o teria aceito da parte de Scarlett.
No começo de Junho, Scarlett foi a uma festa em Roscommon, convencida de
que não abandonava a filha. "Provavelmente até nem dará pela minha falta. Que
humilhação."
- O tempo não está esplêndido? - diziam todos na festa.
Jogaram tênis no relvado após o jantar, à suave claridade que durou até depois
das dez horas.
Scarlett estava satisfeita de se encontrar com tantas das pessoas de que mais
gostara em Dublim. A única que não cumprimentou com vivo entusiasmo foi Charles
Ragland.
- O seu regimento é que chicoteou aquele pobre homem até a morte, Charles.
Nunca esquecerei e nunca perdoarei. Lá porque traz roupas normais, isso não altera o
fato de ser um soldado inglês e de os militares serem uns monstros.
Para sua surpresa, Charles não se desculpou.
- Lamento muito que tivesse visto, Scarlett. Um castigo não é bonito de se ver.
Mas vemos coisas ainda piores a que se deve cobrar.
Recusou-se a exemplificar, mas Scarlett tinha conhecimento, através de
conversas, da violência contra os proprietários que grassava em toda a Irlanda. Os
campos eram incendiados, as vacas degoladas, um agente de uma grande
propriedade perto de Galway fora alvo de uma emboscada e esquartejado. Falava-se
em segredo e na maior ansiedade do aparecimento dos Whiteboys, bandos
organizados de saqueadores que, anos antes, haviam aterrorizado os proprietários de
terras. Não podia ser, diziam os mais sensatos. Estes últimos incidentes eram
dispersos e esporádicos, e normalmente obra de agitadores conhecidos. Mas
conseguiam causar alguma perturbação quando os rendeiros olhavam fixamente para
dentro de uma carruagem ao passar. Scarlett perdoou Charles. Mas, disse, não
contasse com o seu esquecimento.
- Até arcarei com toda a culpa do castigo se isso a impedir de se esquecer de
mim - disse ele com paixão. Depois corou, feito um rapaz. - Que diabo, invento
discursos dignos de Lorde Byron quando estou na caserna e depois só digo disparates
quando me encontro na sua presença. Sabe, não sabe, que estou perdidamente
apaixonado por ti?
- Sim, sei. Não faz mal, Charles. Também não creio que tivesse gostado de Lorde
Byron, e gosto muito de ti.
- Gosta, meu anjo? Poderia ter esperanças de...?
- Não creio, Charles. Não fique com esse ar de desespero. Não é só contigo. É
com qualquer um. - Durante a noite, os sanduíches no quarto de Scarlett ficaram
encarquilhadas.
- E tão bom estar em casa! Receio bem ser uma pessoa horrível, Harriet. Quando
me encontro longe, anseio sempre estar em casa, por mais que ande me divertindo.
Mas até aposto em como começarei a pensar na festa seguinte, a que aceitei ir ainda
antes do final da semana. Conte-me o que se passou durante a minha ausência. Cat
importunou Billy até mais não?
- Não demais. Inventaram uma nova brincadeira a que chamam "afundar os
viquingues", não sei de onde vem o nome. Cat disse que depois a mãe me poderia
explicar, só se lembrava do suficiente para inventar a brincadeira. Puseram uma
escada de corda na torre. Billy carrega as pedras lá para
cima, depois atiram-nas pelas ameias para o rio.
Scarlett riu.
- Grande atrevida. Há muito tempo que me pede para a deixar subir à torre. E vejo
que Billy é que faz o trabalho mais pesado. E ainda não completou 4 anos. Quando
chegar aos 6 será uma peste. Terá que lhe bater com um ponteiro para a fazer
aprender as letras.
- Talvez não. Já mostrou curiosidade pelo alfabeto de animais no quarto.
Scarlett sorriu ante a sugestão implícita de que a filha seria provavelmente quase
um gênio. Queria acreditar que Cat podia fazer tudo antes e melhor que qualquer
criança na história da humanidade.
- Não me vai contar da festa, Scarlett? - pediu Harriet, ansiosa. A experiência não
a fizera perder a mania dos sonhos românticos.
- Foi bonita - disse Scarlett. - Éramos... oh, cerca de duas dúzias, creio... e pelo
menos uma vez não estava aquele general na reserva, velho e chato, para falar do que
aprendera com o duque de Wellington. Organizamos um torneio de croquete a valer e
alguém recebia apostas e dava palpites como numa corrida de cavalos. Eu fazia equipe
com...
- Mrs. O'Hara! - As palavras foram gritadas, não faladas. Scarlett saltou da
cadeira. Uma criada entrou correndo, arquejante e afogueada. - Cozinha... - arfou. -
Cat... queimou-se... - Scarlett quase a derrubou ao passar por ela correndo.
Ouviu o choro de Cat quando ia a meio da colunata da casa para a ala da
cozinha. Scarlett correu ainda mais depressa. Cat nunca chorava.
- Ela não sabia que a panela estava quente... já lhe pus manteiga na mão...
largou-a assim que lhe pegou...
- Mamã... mamã... - Havia vozes por todo o lado. Scarlett só ouvia a de Cat.
- A mamã está aqui, querida. Cat vai ficar boa num instante. - Tomou nos braços
a criança que chorava e precipitou-se para a porta. Via a marca vermelha na palma da
mão de Cat. Estava tão inchada que mantinha os dedinhos afastados.
Quase era capaz de jurar que o caminho tinha o dobro do comprimento. Corria o
mais que podia sem arriscar uma queda. "Se o Dr. Develin não estiver em casa, não
terá onde se abrigar quando voltar. Destruirei toda a sua mobília e a família dele
também."
Mas o médico estava em casa.
- Pronto, pronto, não precisa ficar nesse estado, Mrs. O'Hara. As crianças não
estão sempre sofrendo acidentes? Deixe-me ver.
Cat gritou quando ele lhe apalpou a mão. Scarlett sentiu-se dilacerar.
- É uma queimadura profunda, lá isso é verdade - disse o Dr. Devlin. - Vamos
mantê-Ia untada até a bolha encher, depois cortamos a pele e extraímos o líquido.
- Ela está com dores, Doutor. Não pode fazer nada? - As lágrimas de Cat
ensopavam o ombro de Scarlett.
- A manteiga é o melhor. Com o tempo ajuda a acalmar.
- Com o tempo? - Scarlett virou-lhe as costas e saiu correndo. Pensou no líquido
na sua língua quando Cat nascera, a rápida e abençoada libertação da dor.
Levaria a sua menina à bruxa.
Tão longe - esquecera-se de como o rio e a torre ficavam longe. As pernas
começavam a acusar o cansaço, não podia ser. Scarlett correu como se os cães do
inferno a perseguissem.
- Grainne! - exclamou ao chegar ao avezinho. - Ajude-me! Pelo amor de Deus,
ajude-me.
A bruxa saiu de detrás de uma árvore.
- Vamos sentar-nos aqui - disse em voz baixa. - Não precisa correr mais. -
Sentou-se no chão e estendeu os braços. - Vem à Grainne, Dará. Vou fazer
desaparecer a ferida.
Scarlett deitou Cat no colo da bruxa. Depois, acocorou-se no chão, pronta a
arrebatar a filha e fugir para onde quer que pudesse haver ajuda. Se lhe ocorresse
algum local ou alguém.
- Quero que ponhas a tua mão na minha, Dará. Não lhe vou tocar. Coloca-a tu
mesma na minha mão. Irei falar com a queimadura e ela me escutará. Irá embora. - A
voz de Grainne era calma, segura. Os olhos verdes de Cat fitaram o rosto flácido e
enrugado de Grainne. Colocou as costas da mãozinha ferida contra a palma da mão de
Grainne, que continha uma mistura de ervas de tom castanho.
- A tua queimadura é muito grande e muito forte, Dará. Terei que a convencer. Vai
levar bastante tempo, mas depois te sentirás melhor. - Grainne soprou suavemente
sobre a carne queimada. Uma, duas, três vezes. Aproximou os lábios das duas mãos e
começou a murmurar para a palma da mão de Cat.
As palavras eram inaudíveis, a voz quase um murmúrio suave de folhas novas ou
água límpida e pouco profunda correndo sobre pedras à luz do Sol. Ao cabo de alguns
minutos, não mais de três, o choro de Cat parou e Scarlett caiu por terra, os músculos
frouxos do alívio. O murmúrio continuou, baixo, monótono, relaxante. A cabeça de Cat
acenou, depois tombou sobre o peito de Grainne. Os murmúrios prosseguiram. Scarlett
apoiou-se nos cotovelos. Depois a cabeça pendeu-lhe e deslizou para o chão, inerte,
não tardando a adormecer. E Grainne continuou a murmurar para a queimadura,
constantemente, enquanto Cat dormia e Scarlett dormia, e lenta, lentamente, o inchaço
baixou e o vermelho foi diminuindo até a pele de Cat ficar como se nunca se tivesse
queimado. Colocou a mão de Cat sobre a outra, depois cruzou os dois braços à volta
da criança adormecida e embalou suavemente para trás e para a frente, cantarolando
entredentes. Passado muito tempo, calou-se.
- Dará. - Cat abriu os olhos. - Está na hora de ires. Diz à tua mãe. Grainne ficou
cansada e agora vai dormir. Tens que a levar para casa. - A bruxa pôs Cat de pé.
Depois voltou-se e entrou na mata de avezinho gatinhando.
- Mamã, é hora de irmos.
- Cat? Como foi que adormeci daquela maneira? Oh, meu anjo, lamento muito.
Que aconteceu? Como te sentes, querida?
- Dormi o meu soninho. A minha mão está boa. Posso subir à torre?
Scarlett olhou para a palma da mão da filha, sem qualquer mácula.
- Oh, Kitty Cat, a tua mamã precisa mesmo de um abraço e um beijo, por favor. -
Atraiu Cat a si por um instante, depois soltou-a. Era o seu presente para Cat.
Cat encostou os lábios à face de Scarlett.
- Acho que preferia tomar chá e bolos em vez de ir agora à torre - disse. Era o
presente para a mãe. - Vamos para casa.
- A O'Hara esteve enfeitiçada e a bruxa e a criança roubada estavam falando
numa língua que nenhum homem conhecia. - Nell Garrity vira com os seus próprios
olhos, disse, e de tão assustada desatara a correr para Boyne, esquecendo-se
completamente de que precisava voltar ao vau. Teria se afogado na certa se o rio
estivesse com a sua profundidade normal.
- Estavam mas era fazendo bruxedos para as nuvens passarem por nós.
- E não secou naquele dia a vaca de Annie McGinty, e logo uma das melhores
leiteiras de toda a Trim?
Dan Houlihan, em Navan, padece tanto de verrugas nos pés que mal os
consegue assentar no chão.
A criança roubada cavalga um lobo disfarçado de pônei durante o dia.
- A sua sombra incidiu na minha batedeira e a manteiga talhou.
- Aqueles que sabem, dizem que ela vê no escuro, os seus olhos brilham como
fogo durante as suas andanças.
- E nunca ouviu a história do seu nascimento, Mr. Reilly? Foi na véspera do dia de
Todos os Santos, e o céu quase ficou retalhado com os cometas...
As histórias iam sendo levadas de casa em casa por todo o distrito.
Foi Mrs. Fitzpatrick que encontrou o gato de Cat no degrau da Casa Grande.
Ocras fora estrangulado e depois estripado. Embrulhou os restos num pano e
escondeu-os no seu quarto até poder ir sem ninguém ver ao rio para o jogar.
Rosaleen Fitzpatrick irrompeu pela casa de Colum sem bater. Este olhou-a, mas
deixou-se ficar sentado na cadeira.
- Exatamente aquilo que esperava encontrar! - exclamou. - Não és capaz de
beber no bar como um homem decente, tens que esconder aqui a tua fraqueza com
essa fraca amostra de homem. - Havia imenso desprezo na sua voz, tal como ao
empurrar com a bota as pernas inertes de Stephen O'Hara.
Ressonava em altos e baixos através da boca aberta e descaída. O cheiro a
uísque impregnava as suas roupas, saturava o seu hálito.
- Deixa-me em paz, Rosaleen - disse Colum em tom agastado. - Choro com o
meu primo a morte das esperanças da Irlanda.
Mrs. Fitzpatrick levou as mãos às ancas.
- E então as esperanças da tua outra prima, hem, Colum O'Hara? Queres afogar-
te noutra garrafa enquanto Scarlett chora a morte da sua querida filha? Tu a
acompanharás na sua dor quando a tua afilhada estiver morta? Pois uma coisa te digo,
Colum, a criança corre perigo de morte.
Rosaleen ajoelhou-se diante da cadeira dele. Sacudiu-lhe o braço.
- Pelo amor de Cristo, Colum, tens que fazer alguma coisa!
- Já tentei tudo o que sabia, mas as pessoas não me dão ouvidos.
- Talvez seja tarde demais para elas te escutarem. Não te podes isolar assim do
mundo. As pessoas sentem que as abandonaste, e o mesmo sucede com a tua prima
Scarlett.
- Katie Colum O'Hara - balbuciou Colum.
- O sangue dela manchará as tuas mãos - disse Rosaleen com fria lucidez.
Colum efetuou uma série de visitas ponderadas a cada casa, cabana e bar em
Ballyhara a Adamstwon no dia e noite seguintes. A primeira visita foi ao escritório de
Scarlett, onde a encontrou a analisar os livros de caixa da propriedade. Ao vê-lo à
porta, o seu semblante desanuviou-se, voltando a carregar-se quando lhe sugeriu que
desse uma festa para comemorar o regresso do primo Stephen à Irlanda.
Acabou por capitular, como ele sabia que sucederia, e depois Colum pôde
aproveitar o convite para a festa como motivo para todas as outras visitas. Procurou
indícios que sustentassem o aviso que Rosaleen lhe fizera, mas nada encontrou, para
seu grande alívio.
Depois da missa de domingo, todos os aldeões e O'Haras de County Meath se
deslocaram a Ballyhara para dar as boas-vindas a Stephen pelo seu regresso e saber
notícias da América. Havia no relvado compridas mesas assentes em cavaletes, com
pratos fumegantes de carne de vaca e couve cozidas, cestos cheios de batatas cozidas
e pipas de espumosa cerveja preta. As portas francesas foram abertas para a sala com
os heróis irlandeses pintados no teto, um convite a quem quisesse entrar na Casa
Grande.
Foi quase uma festa boa.
Scarlett consolou-se depois com a idéia de ter feito o melhor que podia e
conversado longamente com Kathleen.
- Tenho sentido tanto a tua falta, Kathleen - disse à prima. - Desde que partiste,
nada voltou a ser o mesmo. O vau pode muito bem ter menos de dez pés de água, mas
não suporto ir à casa de Pegeen.
- E se continua tudo na mesma, Scarlett, para quê te dares ao trabalho de gastar
o teu fôlego? - retorquiu Kathleen.
Era já mãe de um rapagão e carregava um irmão seu, assim contava, para dali a
seis meses.
"Não sentiu sequer a minha falta", percebeu Scarlett com amargura.
Stephen falava tão pouco na Irlanda quanto o fizera na América, mas a família
parecia não se importar.
- É um homem calado, e pronto.
Scarlett evitou-o. Para ela continuava a ser o fantasmagórico Stephen. Trouxera
uma notícia maravilhosa. O avô Robillard morrera e deixara a sua propriedade a
Pauline e Eulalie. Estavam as duas na casa cor-de-rosa, davam os seus pequenos
passeios a pé todos os dias e diziam ser ainda mais ricas que as irmãs Telfair.
Na festa dos O'Hara, ouviu-se ao longe uma trovoada. Todos pararam de falar,
pararam de comer, pararam de rir, para olharem esperançados para o céu azul e
brilhante que parecia zombar deles. O padre Flynn celebrava todos os dias uma Missa
especial e as pessoas acendiam velas fazendo as suas orações para pedir chuva.
No dia de São João, as nuvens arrastadas pelo vento de Oeste começaram a
acumular-se em vez de passarem rapidamente. Ao fim da tarde enchiam o horizonte,
meio negras e carregadas. Os homens e mulheres que preparavam a fogueira para as
comemorações daquela noite ergueram as cabeças para as rajadas sincopadas de
vento, pressentindo chuva. Seria efetivamente uma grande comemoração se as chuvas
voltassem e as colheitas se salvassem.
A tempestade irrompeu ao crepúsculo, com uma salva de ensurdecedores trovões
que iluminavam o céu com se fosse dia e uma chuva diluviana. As pessoas
estenderam-se no chão e taparam as cabeças. O granizo fustigava-as com pedras de
gelo de tamanho de nozes. Gritos de dor e medo enchiam os momentos de silêncio
entre os trovões.
Scarlett preparava-se para deixar a Casa Grande para a música e dança junto à
fogueira. Voltou a meter-se lá dentro, encharcada até os ossos em escassos segundos,
e subiu correndo as escadas para procurar Cat. Esta assistia pela janela, os seus olhos
verdes esbugalhados, as mãos nos ouvidos. Harriet Kelly encolhera-se a um canto,
espreitando Billy para o proteger. Scarlett ajoelhou ao lado de Cat para ver a natureza
em fúria.
Durou meia hora e depois o céu desanuviou, estrelado, com uma Lua a três
quartos que brilhava. A lenha da fogueira ficara ensopada e espalhada; não seria
acesa naquela noite. E os campos de erva e trigo haviam sido aplanados pelo granizo
que os cobria de bolas cinzentas-esbranquiçadas, irregulares. Soltou-se das gargantas
dos irlandeses um lamento. O seu som penetrante atravessou as paredes de pedra e
os vidros da janela do quarto de Cat. Scarlett estremeceu e espreitou a filha morena.
Cat soltou um gemido baixinho. As suas mãos não conseguiam impedir o som.
- Perdemos a nossa colheita - disse Scarlett. - Subira para uma mesa da rua larga
de Ballyhara, de frente para os habitantes da cidade. - Mas muita coisa pode ser salva.
A erva secará e dará feno, e com os caules do trigo teremos palha suficiente apesar de
não haver espigas para moer em farinha. Vou agora a Trim e Navan e Drogheda
comprar mantimentos para o Inverno. Não haverá fome em Ballyhara, isso vos
prometo. Têm a minha palavra como a O'Hara.
Saudaram-na então.
Mas à noite, junto às lareiras, falaram da bruxa e da criança roubada e da torre
onde essa criança suscitara no fantasma do fidalgo enforcado a sede de vingança.
O céu limpo e calor implacável voltaram, para ficar. A primeira página do Times
divulgava, na sua totalidade, previsões e especulações sobre o tempo. As segundas e
terceiras páginas estavam cheias de notícias sobre ataques a propriedades e seus
donos e agentes.
Todos os dias Scarlett dava uma vista de olhos ao jornal, depois punha-o de
parte. Pelo menos não tinha que se preocupar com os seus rendeiros, e dava graças a
Deus por isso. Sabiam que olharia por eles.
Mas não era fácil. Com frequência demais, ao chegar a uma outra cidade que
deveria ter reservas de farinha, descobria que esses mantimentos ou ficaram pelos
rumores, ou se tinham esgotado. No começo discutia acesamente os preços
inflacionados, mas, à medida que os víveres iam escasseando, ficava tão satisfeita por
encontrar qualquer coisa que pagava sem regatear, às vezes por gêneros de qualidade
inferior.
"A situação estava tão catastrófica como na Geórgia após a guerra", pensou.
"Não, é pior. Porque nessa altura lutava-se contra os soldados federais que roubavam
e incendiavam tudo. Agora luto pelas vidas de mais pessoas do que jamais tive
dependentes de mim em Tara. E nem sequer sei quem é o inimigo. Não acredito que
Deus tenha amaldiçoado a Irlanda."
Mas comprou velas no valor de cem dólares para o povo de Ballyhara acender em
súplica quando orasse na capela. E montava o cavalo ou conduzia com cuidado a
carroça por entre um amontoado de pedras que haviam começado a aparecer à beira
das estradas ou nos campos. Não sabia que antigas divindades eram apaziguadas,
mas, se trouxessem chuva, de bom grado lhes daria todas as pedras de County Meath.
Até as transportaria, se necessário fosse.
Scarlett sentia-se impossibilitada de ajudar, e era uma experiência nova e
assustadora. Pensara saber de agricultura porque crescera numa plantação. Os bons
anos em Ballyhara tinham correspondido, de fato, às suas expectativas, porque se
esforçara a trabalhar e exigira o mesmo dos outros. Mas que poderia fazer, agora que
a vontade de trabalhar não bastava?
Continuou a ir às festas que aceitara com tanta animação. Mas agora procurava
obter informações de outros proprietários e não divertir-se.
Scarlett chegou com um dia de atraso a Kilbawney Abbey, para a festa dos
Gifford.
- Lamento muito, Florence - disse a Lady Gifford -, se eu tivesse maneiras teria
pensado em enviar um telegrama. Mas a verdade é que andei de um lado para o outro
por causa dos contratos das farinhas e perdi completamente a noção do dia em que
era.
Lady Gifford ficou tão aliviada de Scarlett lá estar que se esqueceu da ofensa.
Todos os demais presentes na festa tinham aceito o convite dela em vez de outro
porque deitara a isca da presença de Scarlett.
- Tenho aguardado a oportunidade para lhe apertar a mão, minha jovem senhora.
- O cavalheiro com calças de golfe sacudia vigorosamente a mão de Scarllet. Era um
homem idoso e forte, o marquês de Trevanne, com uma barba indisciplinada e um
nariz adunco com preocupantes ramificações venosas purpúreas à superfície.
- Muito obrigada, cavalheiro - disse Scarlett. "Para quê?", interrogou-se.
O marquês explicou o motivo, na voz alta dos surdos. Contou a todos da festa,
quer quisessem ouvir, quer não. O seus gritos chegavam mesmo ao relvado do
croquete.
- Estava de parabéns, bradou, por ter salvo Ballyhara. Dissera a Arthur que não
fosse tolo, não gastasse o seu dinheiro comprando navios dos ladrões que o
roubavam, dizendo que as madeiras eram boas. Mas Arthur não lhe dera ouvidos,
estava decidido a arruinar-se. Pagara oitenta mil libras, mais de metade do seu
património, o suficiente para comprar toda a terra em County Meath. Era tolo, sempre o
fora, o homem nunca tivera o menor juízo, apesar de o saber desde o tempo em que
eram rapazes. Mas que diado, adorava Arthur como se fosse seu irmão, não obstante a
tolice. Nenhum homem fora alguma vez tão seu amigo como Arthur. Chorava, sim,
sentira a sua falta, chorara quando Arthur se enforcara. Sempre o tivera em conta de
tolo, mas nem por sombras sonhara que o fosse a esse ponto. Arthur adorava aquele
lugar, entregara-lhe o seu coração, e, no fim, a sua vida. Fora um gesto criminoso
Constance tê-lo abandonado daquela maneira. Deveria tê-lo preservado em memória
de Arthur.
O marquês estava grato a Scarlett por ter feito o que a própria viúva de Arthur não
tivera a decência de fazer.
- Gostaria de lhe apertar novamente a mão, Mistress O'Hara.
Scarlett estendeu-a. Que lhe dizia este velho? O jovem fidalgo de Ballyhara não
se enforcara, um homem da cidade arrastara-o até à torre e enforcara-o. Fora Colum
quem o dissera. O marquês devia estar equivocado. Os idosos às vezes misturam as
suas lembranças... Ou Colum estava enganado. Era apenas uma criança, só sabia o
que as pessoas diziam, não se encontrava sequer em Ballyhara na época, a família
estava em Adamstown... O marquês não estava em Ballyhara, só sabia o que as
pessoas diziam. Era tudo complicado demais.
- Olá, Scarlett. - Era John Morland. Scarlett sorriu amavelmente ao marquês e
soltou a mão. Enfiou-a no cotovelo de Morland.
- Que bom vê-lo, Bart. Procurei-o por todas as festas da Temporada e não o vi em
nenhuma.
- Este ano não fui. Duas éguas prenhes suplantam um vice-rei a qualquer hora.
Como é que tem passado?
Há uma eternidade que não o via, e tanta coisa acontecera. Scarlett nem sabia
por onde começar.
- Sei o que lhe interessa, Bart - disse ela. - Um dos cavalos de caça que me
ajudou a comprar salta melhor que Half Moon. O nome dela é Comei. Parece que um
dia se ergueu e decidiu que era diversão em vez de trabalho... - Afastaram-se para um
canto sossegado, a fim de conversarem. Scarlett acabou por saber que Bart não tinha
quaisquer notícias de Rhett. Soube também mais do que desejaria sobre o parto de
uma cria quando dava a volta no ventre de uma égua. Não importava. Bart era uma das
suas pessoas preferidas, e sempre assim seria.
A conversa girou toda em volta do tempo. Nunca na história da Irlanda se falara
de uma seca, e que mais chamar a esta sucessão de dias de sol? Quase não havia
uma parte do país que não necessitasse de chuva. Na altura de pagar as rendas, em
Setembro, haveria problemas sérios.
Ela não pensara nisso. O coração de Scarlett caiu-lhe aos pés. Logicamente que
os agricultores não conseguiriam pagar as rendas. E se não os obrigasse a pagar,
como poderia esperar que os da cidade o fizessem? As lojas e os bares, e até o
médico, dependiam do dinheiro que os agricultores gastavam com eles. Não ia ter
qualquer rendimento.
Era extremamente difícil manter a boa disposição, mas impunha-se. Oh, como
gostaria que o fim-de-semana passasse.
A última noite de festa foi a 14 de Julho, o Dia da Bastilha.
Os convidados tinham sido avisados para trazerem trajes de fantasia.
Scarlett vestiu os melhores e mais garridos trajes de Galway, com quatro saiotes
de cores diferentes por baixo de uma saia encarnada.
As meias listradas faziam-lhe comichão com o calor, mas causaram tamanho
furor que valeu o desconforto.
- Nunca pensei que, com o seu aspecto sujo, as camponesas tivessem uns
vestidos tão adoráveis - esclamou Lady Gifford. - Vou comprar um de cada para levar
para Londres no ano que vem. As pessoas irão pedir-me o nome da modista.
"Que mulher tão estúpida", pensou Scarlett. Felizmente era a última noite.
Charles Ragland apareceu para o baile depois de jantar. As festas a que fora
tinham acabado naquela manhã.
- Teria vindo embora de qualquer maneira - disse mais tarde a Scarlett. - Quando
soube que estava tão perto, não resisti.
- Tão perto estava a uma distância de cinquenta milhas.
- Nem que fossem cem.
Scarlett deixou que Charles a beijasse à sombra do grande carvalho. Há uma
eternidade que não era beijada, ou tinha os braços fortes de um homem a envolvê-la e
protegê-la. Sentiu-se derreter com o amplexo. Era maravilhoso.
- Minha querida senhora - disse Charles com voz rouca.
- Shhh. Beije-me apenas até eu entontecer, Charles.
E entontecida ficou. Agarrou-se aos seus ombros largos e musculosos para não
cair. Mas quando lhe disse que iria ao seu quarto, Scarlett afastou-o, perfeitamente
lúcida. Beijos era uma coisa, dividir a cama estava fora de questão.
Queimou o bilhete de arrependimento que ele lhe meteu por debaixo da porta
durante a noite, e partiu bem de manhãzinha para não ter que se despedir.
Quando chegou a casa foi logo procurar Cat. Não ficou surpreendida ao saber
que ela e Billy tinham ido à torre. Era o único lugar fresco em Ballyhara. Mas foi uma
surpresa encontrar Mrs. Fitzpatrick e Colum à sua espera debaixo de uma árvore
grande nos fundos da casa, com um abundante lanche espalhado por cima de uma
mesa à sombra.
Scarlett ficou encantada. Há muito que Colum se afigurava um estranho, evitando
vir à Casa Grande. Era maravilhoso ter de volta o seu quase irmão.
- Tenho uma história muito estranha para te contar - disse. - Deixou-me louca de
curiosidade quando a ouvi. Que achas, Colum? É possível que o jovem fidalgo se
tenha mesmo enforcado na torre? - Scarlett descreveu-lhe o marquês de Trevanne com
cômico e maldoso rigor e imitou a sua fala ao repeti-lo.
Colum pousou a sua xícara de chá com uma precisão controlada.
- Não tenho opinião, querida Scarlett - disse, e a voz era tão ligeira e alegre como
Scarlett gostava de recordar. - Tudo é possível na Irlanda, senão teríamos pragas de
serpentes como o resto do mundo. - Sorriu ao erguer-se.- E agora vou-me. Atrasei as
minhas obrigações diárias só para ver a tua beleza. Não ligues ao que esta mulher te
disser sobre a minha adoração pelos bolos que comi com o chá.
Afastou-se tão rapidamente que Scarlett não teve tempo de embrulhar alguns
bolos num guardanapo para ele levar.
- Volto já - disse Mrs. Fitz, e correu atrás de Colum.
- E esta! - disse Scarlett. Avistou Harriet Kelly mais adiante, ao fundo do relvado
amarelecido, e acenou-lhe. - Venha lanchar - gritou Scarlett. Sobrara muito.

Rosaleen Fitzpatrick teve que levantar a saia e correr para apanhar Colum que já
ia a meio da descida do longo acesso.
Caminhou em silêncio a seu lado para recuperar o fôlego suficiente para falar.
- E que vai acontecer agora? - perguntou. - Andas abusando da bebida, não é
verdade?
Colum estacou e voltou-se para ela.
- Não é verdade, coisa nenhuma, e é isso que me anima. Pois não a ouviste?
Citando as mentiras do inglês, acreditando nelas. Tal como Devoy e os outros
acreditam nas aldrabices de Parnell. Não podia ficar mais tempo, Rosaleen, sob pena
de partir todas as xícaras inglesas e começar a uivar de protesto como um cão
acorrentado.
Rosaleen viu a angústia nos olhos de Colum e a sua expressão endureceu.
Acalentara por tempo demais a ferida no seu espírito; de nada servira. Torturava-o a
sensação de fracasso e traição. Ao cabo de mais de vinte anos lutando pela liberdade
da Irlanda, do êxito da missão de que fora incumbido, de encher o arsenal na igreja
protestante, Colum fora informado de toda a sua inutilidade. As ações políticas de
Parnell tinham mais importância. Colum estivera sempre morrendo pelo seu país; não
suportaria viver sem acreditar que o estava ajudando.
Rosaleen Fitzpatrick comungava da desconfiança de Colum em relação a Parnell;
comungava da sua frustração de que os esforços de ambos haviam sido preteridos
pelos chefes do movimento feniano. Mas era capaz de pôr de lado os seus sentimentos
para obedecer às ordens.
O seu empenhamento era tão grande quanto o dele, talvez maior, pois ansiava
mais por vingança pessoal que por justiça.
Naquele momento, porém, Rosaleen pôs de parte a sua fidelidade ao fenialismo.
O sofrimento de Colum significava mais para ela que para a Irlanda, pois ela amava-o
de uma maneira que nenhuma mulher se devia permitir amar um padre, e não o ia
deixar destruir-se através da dúvida e da raiva.
- Mas que espécie de irlandês és tu, Colum O'Hara? - disse-lhe com aspereza. -
Vais deixar que Devoy e os outros governem sozinhos e de forma errada? Sabes o que
se passa. As pessoas lutam sozinhas e pagam caro a falta de um chefe. Não querem
Parnell. Assim como tu também não. Criaste meios para um exército. Por que não o
formas agora servindo-te desses meios, em vez de te embriagares para esquecer
como faz qualquer lutador cheio de bravura num bar de esquina?
Colum olhou-a, depois para lá dela, e os olhos foram-se enchendo de esperança.
Rosaleen pôs os olhos no chão. Não podia arriscar que ele visse a emoção que
neles brilhava.

- Não sei como suportas este calor - disse Harriet Kelly.


Debaixo da sombrinha, a transpiração fazia brilhar o seu rosto delicado.
- Adoro-o - disse Scarlett. - É como no meu país. Já alguma vez te falei no sul,
Harriet?
- Não - retorquiu Harriet.
- O Verão era a minha época preferida - disse Scarlett. - O calor e os seus dias
secos eram exatamente o mais necessário. Era tão belo, os algodoeiros verdes
preparando-se para abrir, todos enfileirados, estendendo-se até onde a vista podia
alcançar. Os trabalhadores nos campos cantavam enquanto iam sachando, ouvia-se a
música ao longe, ficava como que pairando no ar. - Escutou as suas próprias palavras
e ficou horrorizada. Que dizia? "O seu país?" Era ali que pertencia agora. À Irlanda.
Os olhos se Harriet devaneavam.
- Que bonito - suspirou.
Scarlett olhou-a com reprovação, depois fez esta incidir sobre si própria. Os olhos
mais românticos tinham levado Harriet Kelly a encrenca que chegavam e sobejavam, e
mesmo assim não aprendera.
"Mas eu sim. Não tive que deixar para trás o sul, o general Sherman encarregou-
se disso por mim, e estou velha demais para fingir que nunca aconteceu."
"Não sei que se passa comigo, estou completamente baralhada. Talvez seja do
calor, talvez esteja perdendo o jeito."
- Vou ver as contas, Harriet - disse Scarlett. As colunas alinhadas de números
conseguiam acalmá-la, e sentia-se quase fora de si. Os livros da escrita eram
incrivelmente deprimentes. O único que entrava era o rendimento de pequenas casas
que estava construindo na periferia de Atlanta. Bem, pelo menos esse dinheiro deixaria
de ir para o movimento revolucionário a que Colum custumava pertencer. Sempre o
ajudara um pouco - na verdade, muito. Gastara quantias fabulosas com a casa e a
aldeia. E Dublim. Não queria acreditar em toda a sua extravagância em Dublim, apesar
de as colunas ordenadas de números o provarem incontestavelmente.
Se ao menos Joe Colleton conseguisse economizar um pouco na construção
daquelas casas. Continuariam a ter enorme venda, mas o lucro seria muito maior. Não
o iria deixar comprar madeira inferior - o verdadeiro motivo de as construir era, antes de
mais, manter Ashley no negócio. Havia muitas outras maneiras de reduzir as despesas.
Os alicerces... as chaminés... os tijolos não precisavam ser de primeira qualidade.
Scarlett abanou a cabeça com impaciência. Joe Colleton nunca o conseguiria
sozinho. Era igualzinho a Ashley, extremamente honesto e cheio de ideais sem
aplicação prática. Recordou uma conversa que tinha tido no local. Não havia pessoas
mais iguais. Não se surpreenderia se deixassem a meio uma conversa sobre preços de
madeira para começarem a falar de um livro estranho que tivessem lido.
Os olhos de Scarlett ficaram pensativos.
Devia mandar Harriet Kelly para Atlanta.
Ela seria a esposa perfeita para Ashley. São muito iguais, agarrados aos livros,
sem qualquer utilidade no mundo real. Harriet era simplória em muitos aspectos, mas
cumpria as suas obrigações - ficara quase dez anos com aquele marido inútil - e tinha
um sentido prático muito seu. Fora preciso muita coragem para ir até o oficial de
comando com os sapatos esburacados, suplicar pela vida de Danny Kelly. Ashley
precisava daquele tipo de fibra a apoiá-lo. Precisava também de alguém com quem se
preocupar. De nada lhe serviria ter Índia e tia Pitty sempre à volta dele. A reação que
muito provavelmente suscitaria da parte de Beau é que era horrível demais de
imaginar.
Billy Kelly o meteria na ordem. Scarlett esboçou uma careta. Mais valia mandar
uma caixa de sais para a tia Pitty, juntamente com Billy Kelly.
O esgar desapareceu. Não, não resultaria. Cat ficaria pesarosa sem Billy. Andara
murcha mais de uma semana quando Ocras fugira, e o gato não tinha nem um décimo
da importância de Billy na sua vida.
Além disso, Harriet não suportava o calor.
Não, não resultaria. Mesmo nada.
Scarlett concentrou-se de novo nos livros de escrita.

- Temos que parar de gastar tanto dinheiro - disse Scarlett, zangada. Abanou o
livro de contas à frente de Mrs. Fitzpatrick.
- Não há razão nenhuma para andarmos alimentando um exército de criados
quando a farinha para o pão custa uma fortuna. Temos que pôr a andar pelo menos
metade deles. E também... para que servem? E não me venha com a história de serem
precisos para bater as natas com que se faz a manteiga, porque se hoje existe alguma
coisa em excesso, é a manteiga. Já nem se consegue vender.
Mrs. Fitzpatrick aguardou o final da explosão de Scarlett. Depois, retirou-lhe
calmamente das mãos o livro das contas e colocou-o sobre a mesa.
- Não lhe custaria mesmo nada pô-los na rua, não é? - perguntou. - Companhia
não lhes ia faltar porque muitas das Grandes Casas da Irlanda estão fazendo o
mesmo. Não há dia em que não apareça à porta da cozinha mais de uma dúzia de
pessoas pedindo uma tigela de sopa. Vai fazer aumentar esse número?
Scarlett dirigiu-se impacientemente para a janela.
- Não, claro que não, não seja ridícula. Mas deve haver uma forma de cortar nas
despesas.
- Fica mais caro alimentar os seus cavalos do que os criados - comentou Mrs.
Fitzpatrick, friamente.
Scarlett voltou-se para ela, furiosa.
- Não preciso de mais nada. Deixe-me só.
Agarrou o livro das contas e sentou-se à secretária. Mas sentia-se perturbada
demais para se concentrar na contabilidade. Como podia Mrs. Fitz ser tão má? Devia
saber que a coisa que mais gosto de fazer na vida é montar. A única idéia que me faz
suportar este Verão horrível é pensar que a seguir vem o Outono e começa a época da
caça.
Scarlett fechou os olhos e tentou lembrar-se das manhãs frias e orvalhadas e do
som da corneta a dar início à caçada. Um pequeno músculo latejou-lhe
involuntariamente na pele macia do pescoço contraído. O seu forte não era imaginar,
mas sim agir.
Abriu os olhos e começou a trabalhar aplicadamente nas contas. Sem cereais
para vender nem rendas para cobrar, ia perder dinheiro. Isso aborrecia-a porque
sempre ganhara dinheiro nos negócios, e começar a perdê-lo constituía uma mudança
muito desagradável.
Mas Scarlett crescera num mundo em que era natural falhar-se uma colheita, ou
uma tempestade devastar as plantações. Sabia que o próximo ano iria ser diferente e
certamente melhor. Não era um fracaço só por causa dos estragos provocados pela
seca.
Não era o mesmo que o negócio das madeiras ou o armazém, onde teria sido
responsável se não houvesse lucros. Além disso, os prejuízos não iam afetar a sua
fortuna. Podia dar-se ao luxo de ser extravagante durante o resto da vida; as colheitas
em Ballyhara podiam falhar todos os anos, que ainda assim continuaria a ter muito
dinheiro.
Scarlett suspirou inconscientemente. Trabalhara, privara-se e poupara durante
tantos anos, sempre pensando que se tivesse muito dinheiro seria feliz. Agora tinha-o,
graças a Rhett, mas isso perdera todo o seu significado. Já não havia por que
trabalhar, por que lutar.
Não era tão tola que quisesse voltar a ser pobre, mas necessitava de desafios, de
usar a sua inteligência rápida, de conquistar obstáculos. E começou a pensar com
nostalgia em saltar vedações e valas e fazer números arriscados com cavalos que
pudesse controlar com a sua vontade.
Depois de feitas as contas, Scarlett voltou-se com um resmungo silencioso para a
pilha do correio. Detestava escrever cartas. Adivinhava sempre o que vinha no correio.
Muitos convites. Colocou-os num monte. Harriet arranjaria desculpas delicadas,
ninguém saberia que não fora ela a responder, e Harriet gostava de se mostrar útil.
Havia mais duas declarações. Scarlett recebia pelo menos uma por semana.
Pretendiam ser cartas de amor, mas ela sabia muito bem que não as escreveriam se
não fosse uma viúva rica. Pelo menos, não lhe escreveriam a maior parte delas.
Respondeu à primeira com frases de conveniência como "muito honrada com o
seu interesse", e "impossível retribuir a afeição na medida dos seus méritos", e "tenho
a sua amizade em alta conta", expressões que o protocolo exigia.
A segunda não era tão fácil. Era de Charles Ragland. De todos os homens que
conhecera na Irlanda, Charles era o que lhe agradava mais. A adoração que sentia por
ela era convincente, nada semelhante à bajulação elaborada dos outros. Sabia que ele
não andava atrás do seu dinheiro. Pertencia a uma família de grandes proprietários da
Inglaterra. Era o filho mais novo e escolhera o Exército em vez da Igreja. Mas devia ter
algum dinheiro seu. Tinha certeza de que o uniforme dele custara mais do que todos os
seus vestidos de baile juntos. Que mais? Charles era atraente. Tão alto quanto Rhett,
só que louro em vez de moreno. Não louro-deslavado, como muita gente. O seu cabelo
era louro com um toque arruivado, em contraste com a pele bronzeada. Era mesmo
muito atraente. As mulheres olhavam-no como se o quisessem comer.
Então, por que razão não o amava ela? Pensara nisso, pensara até bastante. Mas
não conseguia amá-lo o suficiente.
"Quero amar alguém. Sei como é amar, é a melhor coisa do mundo. Não me
conformo por ter começado a amar tão tarde. Charles ama-me e eu quero ser amada,
preciso ser amada.. Sinto-me só. Por que não o posso amar?"
"Porque amo Rhett, é por isso. É por isso que não posso amar Charles nem
qualquer outro homem. Nenhum deles é Rhett."
"Nunca terás Rhett", disse-lhe uma voz interior.
E o seu coração gritou de dor. "Julgas que não sei? Julgas que o poderei
esquecer? Julgas que não me dói vê-lo cada vez que olho para Cat? Julgas que não
me lembro dele cada vez que penso na minha vida?"
Scarlett escreveu cuidadosamente, procurando as palavras mais gentis para dizer
não a Charles Ragland. Ele nunca entenderia se ela lhe dissesse que gostava
verdadeiramente dele, que, de certa forma, talvez até o amasse porque ele a amava, e
que a afeição que sentia por ele tornava impossível o casamento. Desejava-lhe melhor
sorte do que ter uma esposa que pertenceria sempre a outro homem.
A festa de fim de ano não era longe de Killbride, que por sua vez não era longe de
Trim. Scarlett podia ir a cavalo até lá em vez de apanhar o trem. Saiu de manhã muito
cedo, quando ainda estava fresco. Os cavalos sofriam com o calor apesar de serem
refrescados quatro vezes por dia. Também ela se ressentia; à noite, quando tentava
dormir, sentira o suor colar-se à pele. Graças a Deus era Agosto. O Verão estava
quase no fim. Ao menos que terminasse depressa.
O céu estava ainda tingido de cor-de-rosa, mas, ao longe, via-se a neblina
provocada pelo calor. Scarlett esperou ter calculado bem o tempo para a viagem.
Gostaria de se pôr à sombra, e ao cavalo, quando o Sol estivesse alto.
"Será que Nan Sutcliffe já estará levantada? Nunca me pareceu do gênero de se
levantar cedo. Não interessa. Não me importava de tomar um banho e mudar de roupa
antes de ver alguém. Espero que haja uma criada decente para me ajudar, que não
seja como aquela idiota de mãos desastradas que havia em Giffords. Quase me
arrancou as mangas dos vestidos quando os pendurou. Talvez Mrs. Fitz tenha razão,
quase sempre tem. Mas não quero uma criada particular que ande sempre à minha
volta. Peggy Quin faz tudo quanto preciso lá em casa, e se as pessoas querem que as
visite terão de compreender que não estou para andar com a criada atrás. Também
devia dar uma festa para pagar a hospitalidade. Têm sido todos tão simpáticos... Mas
ainda não. Fica para o próximo Verão. Posso sempre dizer que este ano esteve quente
demais, e depois que estava preocupada com a propriedade..."
Dois homens saíram das sombras, de cada lado da estrada. Um agarrou os freios
do cavalo; o outro apontou uma espingarda. O espírito de Scarlett deu um salto, o seu
coração outro. Por que não pensara em trazer o revólver? Talvez só lhe levassem o
cavalo e as malas e a deixassem regressar a Trim se prometesse não os denunciar.
Idiotas! Por que razão, pelo menos, não traziam aquelas máscaras de que os jornais
costumavam falar?
Pelo amor de Deus! Estavam de uniforme, não eram white-boys.
- Raios vos partam! Pregaram-me um susto!
Mal conseguia distingui-los. Os uniformes verdes da Royal Irish Constabulary
confundiam-se com as sombras das sebes.
- Tenho de lhe pedir a identificação, senhora - disse o homem, segurando o
cavalo. - Kevin, vê lá atrás.
- Não se atrevam a tocar nas minhas coisas. Quem pensam que são? Eu sou
Mrs. O'Hara de Ballyhara e vou a caminho de casa dos Sutcliffes em Kilbride. Mr.
Sutcliffe é um magistrado e vai tratar-vos da saúde.
Ela não sabia se Ernest Sutcliffe era mesmo magistrado, mas tinha ar disso, com
o seu bigode farfalhudo.
- Mrs. O'Hara, não é?
Kevin, a quem tinha sido dada ordem de inspecionar lá atrás, aproximou-se. Tirou
o boné.
- Já ouvimos falar de ti no quartel. Ainda aqui há semanas perguntei a Johnny se
não deveríamos ir ter consigo e apresentar-nos.
Scarlett olhou-os com incredulidade.
- Para quê?- perguntou.
- Dizem que é da América, Mrs. O'Hara, o que eu posso confirmar depois de a
ouvir falar. Também dizem que vem de um grande estado chamado Georgia. É um
lugar que ambos trazemos no coração, uma vez que estivemos lá no exército em
sessenta e três, e até depois.
Scarlett sorriu.
- Estiveram lá?
Imagine-se, encontrar alguém da terra na estrada para Kilbride.
- Onde estiveram? Em que parte da Geórgia? Estiveram com o general Hood?
- Não, senhora. Eu era um dos rapazes de Sherman. Ali o Johnny estava com os
Confederados, foi aí que lhe puseram o nome de Johnny Reb (Johnny Rebelde. - N. da
T.).
Scarlett abanou a cabeça para clarear as idéias. Não podia estar ouvindo bem.
Mas mais perguntas e mais respostas serviram para confirmar. Os dois homens,
ambos irlandeses, eram agora grandes amigos e partilhavam felizes recordações de
teram estado em lados opostos numa guerra selvagem.
- Não compreendo - admitiu, por fim. - Há quinze anos vocês tentavam matar-se e
agora são amigos. Nunca discutem sobre o Norte e o Sul e sobre quem tinha razão?
Johnny Reb riu.
- Afinal, que é para um soldado o certo e o errado? Está lá para lutar. Não
interessa por quê, desde que seja uma boa luta.
Quando Scarlett chegou a casa dos Sutcliffes começou por chocar com o
mordomo, que quase perdeu a compostura quando ela pediu um brande com o café.
Sentia-se baralhada demais.
Depois, tomou banho, vestiu roupa lavada e desceu as escadas, já recomposta.
Até que avistou Charles Ragland. Ele não devia estar naquela festa. Fez de conta que
não o viu.
- Nan, que bonita estás. E adoro a tua casa. O meu quarto é tão bonito que nem
me apetece sair de lá.
- Nada me agradaria mais, Scarlett. Já conheces John Graham?
- Só de nome. Tenho estado à espera de uma apresentação. Como vai, Mr.
Graham?
John Graham era um. homem alto e magro, com o à-vontade de um atleta. Era o
chefe da Caçada de Galway Blazer, talvez a mais famosa de toda a Irlanda. Todos os
caçadores de raposas da Grã-Bretanha ansiavam ser convidados para uma das
caçadas de Blazer. Graham sabia-o, e Scarlett sabia que ele sabia. Não valia a pena
estar com rodeios.
- Mr. Graham, está aberto ao suborno?
Por que raio Charles não deixava de olhar para ela? E que estava fazendo ali?
John Graham lançou para trás a cabeleira grisalha e soltou uma gargalhada. Os
seus olhos sorriam quando respondeu a Scarlett.
- Sempre ouvi dizer que vocês, as americanas, iam direto ao assunto, Mrs.
OHara. Agora vejo que é verdade. Diga-me, em que está pensando?
- Será que um braço e uma perna chegariam? Posso manter-me numa sela com
uma perna, é a única coisa boa que me ocorre em relação a uma sela para mulheres, e
só preciso de uma mão para as rédeas.
O chefe da Caçada sorriu.
- Que oferta extravagante. Também já ouvi dizer que as americanas têm
tendência para a extravagância.
Scarlett estava cansada de gracejar. E a presença de Charles punha-a nervosa.
- O que pode não ter ouvido, Mr. Graham, é que as americanas atravessam as
vedações, enquanto as irlandesas passam pelos portões e as inglesas entram
diretamente em casa. Se me deixar montar com os Blazers, prometo trazer pelo menos
uma pata de lebre ou de raposa e comer um bando de corvos à frente de todos... e
sem sal.
- Por Deus, senhora, com esse seu estilo será bem-vinda quando quiser.
Scarlett sorriu.
- Não me vou esquecer disso.
Cuspiu na mão. Graham sorriu abertamente e cuspiu na dele. A palmada que
deram na mão um do outro ecoou pela galeria.
Depois, Scarlett dirigiu-se a Charles Ragland.
- Disse-lhe na minha carta, Charles, que esta era a única festa em toda a região
onde você não devia estar presente. Foi mau da sua parte ter vindo.
- Não estou aqui para a embaraçar, Scarlett. Queria dizer-lhe pessoalmente e não
por carta. Não precisa se preocupar com a minha insistência. Sei compreender quando
um não é não. O regimento vai para Donegal na próxima semana; era a minha última
oportunidade de dizer o que queria. E, confesso, de a voltar a ver. Prometo não a
importunar nem me pôr a olhar com olhos de enterro. - Sorriu com ar pesaroso. - Estive
ensaiando este discurso. Que tal soou?
- Muito bem. Que se passa em Donegal?
- Problemas com os Whiteboys. Parece que ali estão mais concentrados do que
noutras regiões.
Dois soldados mandaram-me parar para revistarem as bagagens.
- As patrulhas andam todas nas ruas. Mas não quero falar de assuntos militares.
Que disse a John Granam? Já não o ouvia rir assim há anos.
- Conhece-o? ,
- Muito bem. É meu tio.
Scarlett riu até as faces lhe doerem.
- Vocês, ingleses... Isso é o que se chama ser acanhado. Se ao menos você
fosse mais tagarela, Charles, podia me ter poupado muitos esforços. Há um ano que
tento fazer parte dos Blazers, mas não conhecia ninguém.
- A única de quem vai gostar é da tia Letitia. É capaz de atirar o tio John ao chão
sem olhar para trás. Venha, vou apresentá-la.
Havia no ar ecos longínquos de trovões, mas não chovia. Ao meio-dia o ambiente
estava sufocante. Ernest Sutcliffe tocou o gongo do jantar para chamar a atenção de
todos. Ele e a mulher tinham planejado algo diferente para aquela tarde, explicou
nervosamente.
- Há o habitual jogo de croquete e tiro com arco e flecha. E dentro de casa há a
biblioteca ou os bilhares. Ou então o que cada um costuma fazer habitualmente. Que
tal?
- Vai direto ao assunto, Ernest - disse-lhe a mulher.
Com muitos recomeços e interrupções, Ernest lá foi direto ao assunto. Havia
trajes de banho para todos e cordas colocadas ao longo do rio para os aventureiros
que se quisessem arriscar a refrescar-se nas águas impetuosas.
- Não são propriamente impetuosas - corrigiu Nan Sutcliffe -, mas é uma corrente
muito jeitosa. Estarão lá criados para servir champanhe gelado.
Scarlett foi uma das primeiras a aceitar. Era quase como passar a tarde numa
banheira de água fresca.
Era muito mais agradável do que uma banheira de água fresca, apesar de a água
estar mais quente do que ela desejaria. Scarlett foi se movendo ao longo do rio com as
mãos agarradas à corda. De súbito, viu-se apanhada no meio da corrente. Estava fria,
tão fria que ficou com pele de galinha nos braços, e corria muito veloz. Empurrava-a
contra a corda, depois arrastava-lhe os pés. Agarrou-se com toda a força. Perdeu o
controle das pernas, e a corrente fez o corpo dela mover-se em semicírculos. Sentiu
uma perigosa tentação de se deixar ir ao sabor da corrente, para onde quer que esta a
levasse. Livre da terra sob os pés, livre dos muros e das estradas ou de tudo o que
controlasse ou fosse controlado. Durante alguns longos momentos imaginou-se
deixando-se levar...
Tremia devido ao esforço de se manter agarrada à corda. Lentamente, com
intensa concentração e firmeza, deslocou-se, uma mão de cada vez, agarrando a
corda, até se conseguir libertar da corrente. Voltou a cabeça aos outros que riam e
gritavam dentro d'água e chorou, sem saber bem porquê.
Havia pequenos redemoinhos, como dedos, no local onde a água era mais
quente. Scarlett tomou lentamente consciência das suas carícias, depois deixou-se
flutuar ao sabor da corrente. Cálidas gavinhas em movimento acariciaram-lhe as
pernas, as coxas, o corpo, os seios, enrolando-se à volta da cintura e dos joelhos sob a
túnica de lã e os calções.
Sentiu desejos que não conseguiu identificar, um vazio que ansiava ser
preenchido.
- Rhett - sussurrou contra a corda, ferindo os lábios, num convite a carícias mais
brutais.
- Não é divertido? - gritou Nan Sutcliffe. - Quem quer champanhe?
Scarlett fez um esforço para olhar em volta.
- Scarlett, valente, foste até o local mais perigoso. Tens que regressar daí.
Nenhum de nós tem coragem de te ir levar o champanhe.
"Sim", pensou Scarlett, "tenho que regressar." Depois do jantar aproximou-se de
Charles Ragland. Tinha as faces muito pálidas e os olhos muito brilhantes.
- Posso oferecer-lhe um sanduíche esta noite? - perguntou calmamente.
Charles era um amante experiente e conhecedor. As suas mãos eram gentis, os
seus lábios firmes e quentes. Scarlett fechou os olhos e deixou que a sua pele
recebesse as carícias dele da mesma forma que tinha recebido as do rio. Então ele
disse o nome dela, e ela sentiu que a sensação de êxtase desaparecia. "Não", pensou,
"não, não quero perder isto, não devo." Cerrou os olhos com mais força, pensou em
Rhett, imaginou que aquelas eram as mãos de Rhett, os lábios de Rhett, que a força
quente e forte que lhe preenchia o doloroso vazio era de Rhett.
Não valia a pena. Não era Rhett. E a tristeza desta constatação fê-la querer
morrer. Afastou o rosto da boca exigente de Charles e chorou até ele parar.
- Minha querida - disse ele. - Amo-a tanto!
- Por favor - soluçou Scarlett. - Oh, por favor, vá embora.
- Que é, querida, que se passa?
- Sou eu. Eu. Estava errada. Por favor, deixe-me sozinha.
A sua voz estava tão sumida, tão cheia de desespero que Charles estendeu a
mão para a confortar, e depois afastou-se, tendo percebido que só a poderia confortar
de uma única maneira. Calmamente, agarrou a roupa e saiu, fechando a porta atrás de
si, sem fazer qualquer ruído.

Fui juntar-me ao regimento. Sempre a amarei.


Charles

Scarlett dobrou cuidadosamente o bilhete e guardou-o debaixo das pérolas,


dentro do guarda-jóias. Se ao menos..
Mas no seu coração não havia espaço para outra pessoa. Rhett estava lá. Rindo
dela, desafiando-a, exasperando-a, dominando-a, protegendo-a.
Desceu para o desjejum com grandes olheiras, marca do choro desesperado que
substituíra o sono. Tinha um ar frio, enfiada no seu roupão verde-menta. Sentia-se
metida em gelo.
Viu-se obrigada a sorrir, conversar, ouvir, gargalhar. Os convidados tinham por
obrigação tornar as festas um êxito. Olhou para as pessoas sentadas à volta da mesa.
Sorrindo, conversando, ouvindo e gargalhando. Quantas delas, perguntou-se,
guardariam também feridas interiores? Quantas se sentiriam mortas e satisfeitas com
isso? "Que corajosas são as pessoas!"
Fez sinal ao criado que lhe segurava o prato junto ao aparador. Ele destapou as
travessas de prata, uma a uma, aguardando a aprovação dela. Scarlett escolheu umas
tiras de bacon e uma colher de ovos mexidos.
- Sim, e também um tomate grelhado - acrescentou. - Não, não quero nada frio.
Presunto, ganso defumado, ovos em geleia, carnes frias, peixe defumado, pudins,
frutas, queijo, pão, bolos, compotas, molhos, vinhos, cidra, café, a tudo disse que não.
- Tomo chá - pediu.
Sabia que conseguiria engolir um pouco de chá. Depois, poderia regressar ao
quarto. Felizmente aquele era um grupo muito grande e quase todas as pessoas
tinham vindo caçar. A maior parte dos homens já deveria ter saído com as suas armas.
Haveria almoço em casa e no local da caçada, onde quer que fosse. O chá também
seria servido dentro e fora de casa. Todo mundo escolheria entretenimentos. Não era
exigida a presença de ninguém até o jantar ser servido. O cartão que tinha no quarto
dizia que a reunião dos convidados seria no salão, às sete e quarenta e cinco, depois
do primeiro toque do gongo para o jantar. Este seria às oito.
Indicou ao criado uma cadeira junto a uma mulher que não conhecia. O criado
colocou o prato e um pequeno tabuleiro com o serviço de chá individual. Depois, puxou
a cadeira, deixou que ela se sentasse e desdobrou-lhe o guardanapo, colocando-o
sobre o colo. Scarlett cumprimentou a mulher com um aceno de cabeça.
- Bom dia - disse - o meu nome é Scarlett O'Hara.
A mulher tinha um sorriso encantador.
- Bom dia. Tenho estado ansiosa por a conhecer. A minha prima, Lucy Fane,
disse-me que a tinha conhecido na casa de Bart Mortland, quando Parnell lá estava
(Charles Stuart Parnell, líder político irlandês. - N. da T.). Diga-me, não acha delicioso
admitirmos que apoiamos o Governo local? A propósito, o meu nome é May Taplow.
- Uma prima minha disse-me que tinha certeza de que eu não apoiaria o Governo
local se Parnell fosse baixo e gordo e tivesse verrugas - disse Scarlett, servindo-se de
chá, enquanto May Taplow ria. Para ser mais exata, era Lady May Taplow. O pai de
May era duque, o marido, filho de um visconde. Era engraçado com se iam sabendo
estes pormenores à medida que o tempo e as festas passavam.
- A sua prima ficaria admirada se ele me acusasse da mesma coisa - confidenciou
May. - Perdi todo o interesse na sucessão quando Bertie começou a engordar.
Foi a vez de Scarlett fazer uma confissão.
- Não sei quem é Bertie.
- Que estupidez a minha-disse May -, claro que não sabe. Não costuma fazer a
temporada londrina, não é? Lucy contou que é você, sozinha, que dirige a sua
propriedade. Acho isso maravilhoso. Faz os homens que não podem passar sem
ajudantes parecerem frouxos, que é o que a maior parte deles são. Bertie é o príncipe
de Gales. É muito engraçado, embora goste de se armar em mau. Você adoraria a
mulher dele, Alexandra. Surda que nem uma pedra, não se pode dizer um segredo sem
ser por escrito, mas linda de morrer, e tão simpática como bonita.
Scarlett riu.
- Se fizesse alguma idéia do que estou sentindo, May, morreria de rir. Lá na terra,
quando eu era pequena, os mexericos mais importantes diziam respeito ao homem que
era dono do trem. Todo mundo queria saber quando é que ele tinha começado a usar
sapatos. Agora, mal posso acreditar que estou aqui conversando sobreo príncipe de
Gales.
- Lucy disse-me que eu ia gostar muito de ti, e acertou em cheio. Prometa-me que
fica conosco se alguma vez decidir ir a Londres. E, afinal, em que ficou a história do
homem do trem? Que tipo de sapatos usava ele? Coxeava de uma perna? Acho que
iria adorar a América.
Scarlett verificou, com surpresa, que tinha comido todo o desjejum e ainda se
sentia esfomeada. Ergueu a mão, e o criado que se encontrava atrás dela avançou.
- Desculpe-me por uns segundos, May - disse - Um pouco de kedgeree (Prato de
peixe, arroz e ovos. - N. da T.), por favor, e café com muito, muito creme. - A vida
continua. E uma ótima vida, já agora. Decidi que ia ser feliz e acho que sou. Só preciso
é me dar conta disso. Sorriu à sua nova amiga.
- Por acaso, o homem do trem era um Cracker...
Mary pareceu confusa.
- Oh, bem. Cracker é o que chamamos a um branco que nunca usou sapatos.
Não é a mesma coisa que um branco pobre...
E continuou a conquistar a filha do duque.
Nessa noite choveu, durante o jantar. Todo o grupo veio para fora comemorar.
Aquele Verão impossível em breve estaria no fim.
Scarlett foi para casa ao meio-dia. Estava frio, as sebes poeirentas tinham sido
limpas, e em breve a época da caça começaria. Os Galway Blazers! "Vou precisar dos
meus cavalos. Tenho que pensar em os mandar à frente, de trem. Acho que o melhor
seria metê-los em Trim, depois para Dublim, depois para Galway. De outra forma é o
longo caminho para Mullingar, depois descansá-los, depois trem até Galway. Será que
também devo mandar comida? Preciso saber como é quanto a estábulos. Amanhã
escrevo a John Graham..."
Quase sem dar por isso, chegou a casa.
- Tenho ótimas notícias, Scarlett.
Nunca vira Harriet tão excitada. "Mas ela é muito mais bonita do que eu pensava.
Com outras roupas..."
- Enquanto estiveste fora, chegou uma carta dos meus primos da Inglaterra. Eu
contei-te que lhes tinha escrito falando da minha sorte e da tua bondade, não contei?
Este meu primo que se chama Reginald Parsons, mas a quem a família trata por
Reggie, conseguiu que Billy fosse aceito na mesma escola onde anda o filho dele, quer
dizer, o filho de Reggie. Chama-se...
- Espera aí um minuto, Harriet. De que estás falando? Julguei que Billy ia para a
escola em Ballyhara.
- Naturalmente teria que ir se não houvesse alternativa. Por isso é que escrevi a
Reggie.
O rosto de Scarlett contraiu-se.
- Que há de errado com a escola daqui?, gostaria de saber.
- Não há nada errado, Scarlett. É uma boa escola irlandesa de aldeia. Eu quero
algo melhor para Billy, com certeza compreendes isso.
- Com certeza não compreendo.
Estava preparada para defender a escola de Ballyhara, as escolas irlandesas, a
própria Irlanda, até a exaustão, se necessário fosse. Depois olhou bem para o rosto
suave e indefeso de Harriet Kelly. Já não estava suave nem indefeso. Os olhos
cinzentos de Harriet andavam normalmente sonhadores; agora pareciam de aço.
Estava disposta a lutar contra tudo e contra todos por causa do filho. Scarlett já vira
aquele tipo de reação, o cordeiro tornado leão, quando Melanie Wilkes defendia
alguma coisa em que acreditava.
- E Cat? Vai se sentir muito só sem Billy.
- Desculpa, Scarlett, mas tenho de pensar no que é melhor para Billy.
Scarlett suspirou.
- Gostaria de sugerir uma alternativa diferente, Harriet. Tu e eu sabemos que na
Inglaterra Billy será sempre o filho irlandês de um moço de cavalariça irlandês. Na
América, poderá tornar-se no que tu quiseres que ele seja...
Nos princípios de Setembro, Scarlett foi com uma estoicamente silenciosa Cat
despedir-se de Billy e da mãe, que iam partir no Kingstown Harbor que se dirigia para a
América. Billy chorava; o rosto de Harriet tinha o brilho da determinação e da
esperança. Os seus olhos estavam povoados de sonhos. Scarlett desejava que pelo
menos parte deles se tornasse realidade. Escrevera a Ashley e ao tio Henry Hamilton,
falando-lhes de Harriet e pedindo-lhes para olharem por ela e para a ajudarem a
arranjar uma casa onde ficar e um local onde pudesse trabalhar como professora.
Tinha a certeza de que pelo menos isso eles fariam. O resto era com Harriet e as
circunstâncias.
- Vamos até o zoo, Kitty Cat. Há lá girafas e leões e ursos e um elefante muito,
muito grande.
- Cat gosta mais de leões.
- Pode ser que mudes de idéia quando vires os ursos bebês.
Ficaram em Dublim uma semana, indo todos os dias ao zoo, comendo bolos de
creme na pastelaria Bewley, indo depois ao teatro de marionetes, seguindo-se o chá no
Shelbourne, com os tabuleiros de prata cheios de sanduíches e scones, taças de
natas, pratos com éclairs. Scarlett ficou sabendo que a filha era insaciável e tinha um
sistema digestivo de ferro.
De regresso a Ballyhara, ajudou Cat a transformar a torre no refúgio privado da
miúda, onde se entrava unicamente por convite. Cat retirou as teias de aranha e o pó
acumulado durante séculos, depois Scarlett carregou inúmeros baldes de água do rio e
ambas esfregaram as paredes e o chão do quarto. Cat ria e chapinhava com a água,
enquanto esfregava. Fazia lembrar a Scarlett os banhos quando Cat era bebê. Não se
importou nada que tivessem levado uma semana para limpar o quarto. Nem se
importou que não tivessem limpo os degraus de pedra que davam para o nível
superior. Por vontade de Cat, teriam esfregado a torre de cima a baixo. Acabaram
mesmo a tempo do que teria sido a Festa das Colheitas num ano normal. Colum
dissera-lhe para não tentar fazer uma comemoração, pois não havia nada a
comemorar. Ajudou-a a distribuir os sacos de farinha, sal, açúcar, batatas e couves,
que chegavam à cidade em enormes vagões que Scarlett conseguira arranjar.
- Nem sequer disseram obrigado - comentou ela, amargamente, depois de a
odisséia ter chegado ao fim. - Ou, se disseram, parecia que não o sentiam. Podiam
lembrar-se que também me estou ressentindo da seca. O meu trigo também ficou
estragado como o deles, estou perdendo as rendas e fartei-me de comprar coisas.
Não conseguia expressar a sua mágoa mais profunda. A terra, a terra dos O'Hara
virara-se contra ela e o povo, o povo de Ballyhara, também.
Canalizou as energias para a torre de Cat. A mesma mulher que não se tinha
dado ao trabalho de espreitar por uma janela para ver o que estava acontecendo com a
sua casa passava agora horas de quarto em quarto, examinando cada peça de
mobiliário, cada tapete, cada cobertor, coberta e almofada, escolhendo o melhor. A Cat
cabia a decisão final. Analisou as escolhas da mãe e decidiu-se por um colchão de
praia florido, três colchas em patchwork, uma jarra de Sèvres para os seus pincéis. O
colchão e as colchas foram colocados num dos cantos, junto a uma das grossas
paredes da torre. Eram para a sesta, disse Cat. Depois, pôs-se a andar de casa para a
torre e da torre para casa, transportando os seus livros de pintura preferidos, a lata das
tintas, a coleção de folhas e uma caixa contendo migalhas secas de bolos que ela
apreciara particularmente. Tencionava atrair ao quarto pássaros e animais. Depois,
lhes pintaria o retrato na parede.
Scarlett ouvia os planos de Cat e observava com orgulho a determinação da filha
em criar um mundo que lhe agradasse, mesmo sem Billy. Pensou com tristeza que
bem poderia aprender com a miúda de 4 anos. No Dia das Bruxas ofereceu a Cat a
festa que a criança idealizara. Havia quatro pequenos bolos, cada um com quatro
velas. Comeram um deles, sentadas no chão limpo do santuário de Cat. O segundo,
ofereceram-no a Grainne, comendo-o com ela. Depois, foram para casa, deixando os
dois bolos restantes para os animais.
No dia seguinte não restava nem uma migalha, contou Cat, excitadamente. Não
convidou a mãe para ver. A torre pertencia-lhe, agora.
Tal como todos na Irlanda, Scarlett leu os jornais nesse Outono com um
sentimento de alarme que se transformou em raiva. O alarme devia-se ao número de
expulsões referidas. Do seu ponto de vista, os esforços dos lavradores para resistirem
eram perfeitamente compreensíveis. Atacar um oficial de diligências ou um par de
polícias com os punhos ou com a forquilha era uma reação humana normal, e ela só
lamentou que isso não tivesse impedido as expulsões. Os lavradores não tinham culpa
de as colheitas terem sido más, e não havia dinheiro da venda do grão. Ela sabia bem
disso. Nas caçadas que se realizavam nas redondezas falava-se sempre do mesmo, e
os proprietários eram muito menos tolerantes que Scarlett.
Estavam preocupados com a resistência dos lavradores.
- Que podem eles esperar, raios? Se não pagam as rendas, rua com eles. Já
sabem como é, sempre foi assim. Sublevação, é o que é...
Mas as reações de Scarlett foram as mesmas dos proprietários quando os
whiteboys chegaram.
Houvera incidentes ocasionais durante o Verão. Mas eles agora estavam mais
organizados e mais violentos. Noite após noite, celeiros e medas de feno eram
incendiados. O gado e as ovelhas eram mortos, os porcos chacinados, os burros e
cavalos de lavoura apareciam com pernas partidas e tendões cortados. As vitrines das
lojas eram partidas e lá para dentro atiravam tochas ardentes. E, à medida que o
Outono se transformava em Inverno, havia emboscadas contra os militares, soldados
ingleses e polícias irlandeses, assim como contra civis que seguiam em carruagens ou
a cavalo. Scarlett ia às reuniões acompanhada por dois criados.
Andava permanentemente preocupada com Cat. Ficar sem Billy afetara-a menos
do que receara. Cat nunca andava triste nem se queixava. Estava sempre entretida
com algum projeto ou jogo novo que ela própria inventava. Mas só tinha 4 anos, e
Scarlett estava decidida a não prender a filha, mas começou a desejar que Cat fosse
menos ágil, menos independente e menos timorata. Cat visitava estábulos e celeiros,
destilaria, vacaria, o jardim e a estufas. Passeava pelos bosques e campos como uma
criatura selvagem, sentindo-se ali no seu elemento, e a casa proporcionava-lhe a
oportunidade de brincar em salas que estavam limpas mas não eram usadas, sótãos
cheios de caixas e malas, caves com garrafeiras, caixotes com alimentos, quartos para
os criados, para as pratas, para o leite, manteiga, para o gelo, sala de engomados, de
costura, carpintaria, engraxadoria, toda uma miríade de atividades que mantinha a
Casa Grande.
Nunca valia a pena andar à procura de Cat. Podia estar em qualquer lado.
Aparecia sempre às horas das refeições e do banho. Scarlett não percebia como é que
a criança podia ter a noção das horas, mas a verdade é que Cat nunca chegava
atrasada.
Mãe e filha montavam a cavalo todos os dias após o desjejum. Mas Scarlett
começou a ter medo de sair por causa dos whiteboys e, como não queria perder a
intimidade dos passeios levando atrás alguns criados, passou a utilizar o caminho que
dava para a torre, passando pelo vau até a casa de Daniel. "Pegeen O'Hara pode não
gostar", pensou Scarlett, mas terá que me aguentar e a Cat, isto se quer que eu
continue a pagar a renda de Seamus." Desejou que o filho mais novo de Daniel,
Timothy, não demorasse tanto tempo a encontrar noiva. Passaria a viver naquela casa,
e a companhia de uma jovem só podia fazer bem a Pegeen. Scarlett sentia a falta da
intimidade que conhecera com a família antes de Pegeen se ter juntado.
De cada vez que saía para uma caçada, Scarlett perguntava a Cat se ela se
importava de ficar. A pequena testa morena enrugava-se de perplexidade.
- Por que é que as pessoas se importam? - perguntava.
Scarlett sentia-se melhor. Em Dezembro explicou a Cat que iria estar ausente por
mais tempo, pois ia para longe, de trem. A resposta de Cat foi a mesma.
Scarlett partiu a uma terça-feira para a tão desejada caçada com os Galway
Blazers. Queria ter um dia de descanso para ela e para os cavalos antes da caçada de
quinta-feira. Não que se sentisse cansada; pelo contrário, sentia-se excitada demais
para estar quieta. Não ia correr riscos. Tinha que estar no seu melhor. Se quinta-feira
fosse um sucesso, ficaria sexta e sábado.
Aí, o seu melhor já seria suficiente.
No final do primeirto dia de caçada, John Graham presenteou Scarlett com a pata
ensanguentada que ela ganhara. Aceitou-a com um cumprimento.
- Obrigada, excelência.
Todos aplaudiram.
O aplauso tornou-se ainda maior quando apareceram dois criados carregando
uma enorme bandeja onde se encontrava uma empada fumegante.
- Tenho falado a todos sobre a sua aposta, Mrs. O'Hara - disse Graham -, e
preparámos-lhe uma pequena brincadeira. Isto é uma empada de carne de corvo
picada. Vou dar a primeira dentada. Os restantes membros do grupo seguirão o meu
exemplo. Tinha esperado vê-la fazer isto sozinha.
Scarlett sorriu docemente.
- Deixe-me pôr-lhe um bocado de sal.
Conheceu o homem com cara de falcão e cabelo negro no terceiro dia da caçada.
Já reparara nele, era impossível não o ter feito. Montava com uma inquietude arrogante
que fazia que observá-lo fosse perigosamante fascinante. Scarlett quase caíra no dia
anterior, quando ele dera um salto arriscado à frente dela e ela puxara as rédeas do
cavalo para poder ver.
As pessoas rodeavam-no ao desjejum, sempre falando muito. O homem falava
pouco. Era suficientemente alto para ela observar o seu rosto aquilino, os olhos
escuros, o cabelo negro-azeviche.
- Quem é aquele homem alto com ar enfastiado? - perguntou a uma mulher sua
conhecida.
- Minha querida! - exclamou a mulher, com excitação -, não é fascinante? -
Suspirou com ar feliz. - Todo mundo diz que é o homem mais perverso da Grã-
Bretanha. Chama-se Fenton.
- Fenton quê?
- Só Fenton. É o conde de Fenton.
- Quer dizer que ele não tem nome próprio? - Scarlett pensou que nunca
entenderia aquela confusão tão inglesa.
A sua companheira sorriu. Pareceu a Scarlett que com um sorriso superior, e
ficou furiosa. Mas a mulher desarmou-a rapidamente.
- Não é um disparate? - perguntou. - O nome próprio é Luke, mas não sei qual é o
apelido. Só o conheço por Lorde Fenton. Ninguém, no meu círculo de amigos, é
suficientemente importante para se dirigir de outra forma, exceto Milorde ou Lorde
Fenton, ou Fenton.
Suspirou novamente.
- Ele é terrivelmente importante. E tão atraente!
Scarlett não fez nenhum comentário em voz alta. Para si, pensou que ele tinha ar
de quem precisava que lhe baixassem a crista.
Fenton colocou o cavalo ao lado do de Scarlett. Ela sentiu-se satisfeita por ter
montado o Half Moon; assim, ficava quase ao nível dos olhos dele.
- Bom dia - disse Fenton, tocando na aba do chapéu. -
- Parece que somos vizinhos, Mrs. O'Hara. Gostaria de a visitar para apresentar
cumprimentos.
- Terei muito prazer. Onde fica a sua casa?
Fenton franziu a testa.
- Não conhece? Fica do lado de Boyne, em Adasmstown.
Scarlett ficou satisfeita por não saber. Obviamente, ele esperara que ela
soubesse. Que convencido!
- Conheço bem Adamstown - disse ela. - Tenho alguns primos O'Hara que são
seus rendeiros.
- Sim? Nunca sei o nome dos meus rendeiros - respondeu ele, sorrindo. Os seus
dentes eram brilhantes e muito brancos. - É encantadora essa candura americana
sobre a sua origem humilde. Já foi até comentada em Londres, portanto está surtindo
os efeitos desejados.
Levou o pingalim ao chapéu e afastou-se.
"A desfaçatez do homem! E a falta de educação! Nem sequer me disse o nome."
Quando chegou a casa pediu a Mrs. Fitz que desse instruções ao mordomo: as
duas primeiras vezes que o conde de Fenton lá fosse, ela não estaria em casa.
Depois, concentrou-se nas decorações natalícias. Resolveu que esse ano iriam
ter uma árvore maior.
Scarlett abriu a encomenda de Atlanta logo que lhe entregaram no escritório.
Harriet Kelly enviara-lhe cereais, abençoada. "Acho que passo a vida a falar em pão e
nem me dou conta disso. E para Cat, um presente de Billy. Dou-lhe quando vier a casa
lanchar. Ah, e cá está uma carta enorme." Scarlett instalou-se confortavelmente com
uma xícara de café à frente. As cartas de Harriet estavam sempre cheias de surpresas.
A primeira que enviara quando chegara a Atlanta trazia, entre oito páginas de
obrigados consecutivos, a notícia inacreditável de que Índia Wilkes tinha um namorado
a sério. Nem mais nem menos do que o novo pastor da Igreja Metodista. Scarlett achou
graça à idéia, Índia Wilkes, Miss Confederação Causa Nobre. Bastava aparecer um
ianque a dizer-lhe as horas que já nem se lembrava de ter havido uma guerra.
Scarlett leu de relance as páginas relativas às proezas de Billy. Cat poderia estar
interessada, leria mais tarde em voz alta. Depois, encontrou o que procurava. Ashley
pedira Harriet em casamento.
"É o que eu queria, não é? É estúpido sentir ciúmes. Quando é o casamento? Vou
mandar um presente magnífico. Oh, pelo amor de Deus! A tia Pitty não pode ficar
vivendo com Ashley depois do casamento de Índia, não seria próprio. Não acredito.
Sim, acredito. É ela que pensa que a tia Pitty vai começar a ficar preocupada com as
aparências, uma velha solteirona vivendo com um homem solteiro. Pelo menos, isso
faz que Harriet case mais cedo. Não é propriamente uma proposta apaixonada, mas
estou certa de que Harriet ultrapassa isso, pensando em cetins e botões de rosa. É
pena o casamento ser em Fevereiro. Poderia sentir-me tentada a ir, mas não o
suficiente para perder a temporada do Castelo. Parece impossível ter alguma vez
pensado que Atlanta era uma grande cidade. Vou ver se Cat quer ir comigo a Dublim
depois do fim do ano. Mrs. Sims disse que as provas só demoram umas horas. Que
será que fazem aos pobres animais do zoo no Inverno?"
- Tem mais uma xícara, Mrs. O'Hara? Foi um passeio muito frio, este até aqui.
Scarlett ergueu os olhos e viu o conde Fenton. Soltou uma exclamação de
surpresa. "Meu Deus! Devo estar com um aspecto! Mal escovei o cabelo."
- Dei instruções ao mordomo para dizer que não estava em casa - disse ela.
- Mas eu vim pelos fundos. Posso sentar-me?
- Admiro-me que esteja pedinndo licença. Faça favor. Mas primeiro toque a
campainha. Só tenho uma xícara, visto que não estava contando com visitas.
Fentou tocou a campainha e sentou-se numa cadeira ao lado dela.
- Sirvo-me da sua xícara, se não se importa. Até chegar outra ainda passa uma
semana.
- Importo-me, sim. Pronto! - desabafou Scarlett e depois desatou a rir. - Já não
dizia "Pronto!" há vinte anos. Até me admiro de não ter posto a língua de fora. O senhor
é um homem muito irritante, milorde.
- Luke.
- Scarlett.
- Posso servir-me de café?
- A cafeteira está vazia... pronto.
Fenton pareceu um pouco menos empertigado quando desatou a rir.
Nessa tarde, Scarlett visitou a sua prima Molly, tendo esta criatura tão
socialmente ambiciosa ficado num estado tal de excitação que as perguntas
deslocadas de Scarlett sobre o conde de Fenton passaram completamente
despercebidas. A visita foi muito curta. Molly não sabia nada exceto que a decisão do
conde de passar algum tempo na sua propriedade de Adamstown tinha constituído
motivo de espanto para os seus criados e procurador. Mantinham a casa e os
estábulos em ordem, não fosse ele querer aparecer de um momento para o outro, mas,
em cinco anos, esta era a primeira vez que isso acontecia.
O pessoal estava agora preparando tudo para uma grande festa, contou Molly. Da
última vez tinham vindo quarenta convidados, todos com os seus criados e cavalos. Os
cães de caça do conde e seus tratadores também. Houvera duas semanas de caça
encerradas com um grande baile.
Na casa de Daniel, os homens da família O'Hara tinham comentado com humor
cáustico a chegada do conde. Diziam que Fenton escolhera mal a ahora. Os campos
estavam secos demais para serem arruinados pelos caçadores. A seca aparecera
antes dele e dos amigos.
Scarlett regressou a Ballyhara como de lá saíra. Luke Fenton não mencionara
nenhuma caçada nem nenhuma festa. Se ia dar alguma e ela não fora convidada, seria
uma bofetada terrível. Depois de jantar escreveu meia dúzia de bilhetes a amigos que
fizera durante aquela época.
- Por aqui há uma grande agitação (dizia) por causa de Luke Fenton ter aparecido
na propriedade. Está ausente há tantos anos que nem as empregadas de balcão têm
um bom mexerico para contar sobre ele.
Sorria enquanto fechava os envelopes. "Se isto não der resultado, não sei o que
dará."
Na manhã seguinte, vestiu com esmero um dos vestidos que usara em Dublim.
"Não me interessa nada arranjar-me para aquele homem irritante", disse para si
própria, "mas não vou deixar que ele me apanhe outra vez desprevenida."
O café esfriava na cafeteira.
Fenton encontrou-a nos campos, à tarde, a treinar Comei. Scarlett trazia vestidas
roupas irlandesas e montava à homem.
- Que sensata você é, Scarlett - disse ele. - Sempre pensei que as selas para
senhoras dão cabo de um bom cavalo, e esse parece ser um ótimo exemplar. Quer pô-
lo em competição com o meu numa pequena corrida?
- Encantada - respondeu Scarlett com voz doce. - Mas a seca deixou a terra tão
ressequida que provavelmente o pó que levantarei atrás de mim o fará sufocar.
Fenton franziu a testa.
- Quem perder oferece o champanhe para limpar as gargantas do pó - desafiou
ele.
- Combinado. Até Trim?
- Até Trim.
Fenton deu a volta com o cavalo e largou em corrida antes que Scarlett tivesse
tempo de perceber. Estava coberta de poeira quando o apanhou e tossia quando
atravessavam a ponte ao mesmo tempo.
Pararam no relvado junto às muralhas do castelo.
- Deve-me uma bebida - disse Fenton.
- Nem pense. Chegamos ao mesmo tempo.
- Então, também lhe devo uma. Abrimos duas garrafas, ou prefere desempatar
com outra corrida?
Scarlett picou Comet e arrancou. Ouviu Fenton rir atrás dela.
A corrida acabou no pátio de Ballyhara. Scarlett ganhou justamente. Sorriu, feliz,
satisfeita consigo mesma, satisfeita com Comet, satisfeita com Luke Fenton pelo que
se tinha divertido.
Ele tocou com o pingalim na aba do chapéu sujo de poeira.
- Trago o champanhe para o jantar - disse. - Espere-me às oito.
E partiu a galope.
Scarlett ficou olhando para ele. A desfaçatez do homem. Comet mostrou-se
inquieto, e ela reparou que tinha abrandado as rédeas. Agarrou-as e acariciou o
pescoço do cavalo.
- Tens razão - disse, em voz alta. - Precisas te refrescar e de uma boa
escovadela. Eu também. Acho que acabaram de me passar a perna.
E desatou a rir.
- Para que é isso? - perguntou Cat, observando, fascinada, a mãe a colocar os
brincos de diamantes.
- Para decoração - respondeu Scarlett. Abanou a cabeça, e os diamantes
resplandeceram-lhe no rosto.
- É como uma árvore de Natal - disse Cat.
Scarlett riu.
- Mais ou menos. Acho que nunca pensei nisso.
- Também me decoras para o Natal?
- Só quando fores muito mais crescida, Kitty Cat. As meninas pequenas podem
usar fios de pérolas ou pulseiras de ouro, mas os diamantes são para as senhoras
crescidas. Gostarias de ter alguma jóia pelo Natal?
- Não. Se não são para meninas pequenas, não. Por que te decoras? Ainda falta
muito para o Natal.
Scarlett percebeu com espanto de que Cat nunca a vira com vestido de noite. Em
Dublim tinham jantado sempre no quarto do hotel.
- Tenho um convidado para jantar - respondeu. - Um convidado de cerimônia.
O primeiro em Ballyhara, pensou. Mrs. Fitz tem razão, já devia ter feito isto há
mais tempo. É divertido arranjar-me e ter companhia.
O conde de Fenton era um companheiro de mesa agradável e delicado. Scarlett
deu por si falando muito mais do que tencionara - sobre caça, sobre como aprendera a
montar em criança, sobre Gerald O'Hara e o seu amor irlandês pelos cavalos. Era
muito fácil conversar com Luke Fenton. Tão fácil, que só no final do jantar se lembrou
do que lhe queria perguntar.
- Suponho que os seus convidados devem estar chegando - disse-lhe, quando
serviram a sobremesa.
- Que convidados? - perguntou Luke, erguendo o copo para examinar a cor do
champanhe.
- Os convidados para a festa da caça - respondeu Scarlett.
Fenton provou o vinho e fez um aceno de aprovação ao mordomo.
- Onde é que foi buscar essa idéia? Não vou fazer nenhuma caçada, nem tenho
convidados.
- Então, que fazes em Adamstown? Dizem que nunca vem aqui.
Os copos foram enchidos. Luke ergueu o seu num brinde a Scarlett.
- Brindamos a passar um bom tempo? - perguntou.
Scarlett sentiu-se corar. Sabia que ele lhe estava a fazer uma proposta.
- Brindamos ao fato de você ser um bom perdedor e de ter trazido um ótimo
champanhe - disse com um sorriso, olhando-o por entre as pestanas.
Mais tarde, quando se preparava para ir para a cama, relembrou as palavras de
Luke. Teria vindo a Adamstown só para a ver? E tencionaria seduzi-la? Se sim,
esperava-o uma grande surpresa. Ela ganharia esse jogo, tal como ganhara a corrida.
Também teria graça fazer que aquele homem arrogante e seguro de si se
apaixonasse por ela. Os homens não deviam ser nem tão atraentes nem tão ricos; isso
fazia-os pensar que levavam sempre a melhor.
Scarlett enfiou-se na cama e aconchegou-se sob os lençóis. Estava ansiosa por
montar a cavalo com Fenton, na manhã seguinte, tal como ficara combinado.
Fizeram nova corrida, desta vez até Pike Corner, e Fenton ganhou. Depois, no
regresso a Adamstown, Fenton voltou a ganhar. Scarlett quis mudar de cavalo e tentar
novamente, mas Fenton recusou com uma risada.
- Com essa determinação ainda partia o pescoço e eu não cobrava as vitórias.
- Que vitórias? Não fizemos nenhuma aposta desta vez.
Ele sorriu e não disse nada, mas os seus olhos percorreram-Ihe o corpo.
- Você é insuportável, Luke Fenton!
- Já me disseram mais de uma vez, mas nunca com tanta veemência. As
mulheres americanas costumam ser assim tão temperamentais?
"Por mim, nunca o descobrirás", pensou Scarlett, mas dominou a língua enquanto
dominava o cavalo. Fora um erro deixá-lo provocá-la ao ponto de perder a cabeça, e
ainda ficou mais aborrecida consigo mesma do que com ele. Já devia saber. "Rhett
costumava pôr-me fora de mim, e isso deixava-o a controlar a situação."
... Rhett... Scarlett olhou para o cabelo negro de Fenton, para os seus olhos
escuros e irônicos e para as roupas de corte impecável. Não admirava que os seus
olhos se tivessem fixado nele no meio de tanta gente. Dava uns ares de Rhett. Mas só
à primeira vista. Havia algo de muito diferente, mas ela não conseguia distinguir muito
bem o quê.
- Agradeço-lhe a corrida, Luke, mesmo sem ter ganho - disse. - Agora preciso ir,
tenho trabalho a fazer.
Ele mostrou uma surpresa momentânea e depois sorriu:
- Julguei que tomaria o desjejum comigo.
Scarlett retribuiu o sorriso.
- Também já estava à espera que julgasse isso.
Sentia o olhar dele enquanto se afastava. Quando um criado apareceu em
Ballyhara à tarde, com um ramo de flores e um convite de Luke para jantar em
Adamstown, não ficou surpreendida. Escreveu um bilhete recusando.
Depois, subiu as escadas, rindo, e vestiu novamente o traje de montar. Estava
colocando as flores numa jarra quando Luke entrou pela sala dentro.
- Você queria fazer outra corrida até Adamstown, se não estou enganado - disse
ele. Scarlett sorriu só com os olhos. - Em relação a isso não está enganado, não. -
respondeu.

Colum subiu para o balcão no bar dos Kennedy.


- Acabem lá com isso, vocês todos. Que mais podia a pobre mulher fazer,
pergunto-vos? Perdoou-vos as rendas ou não? Não vos deu mantimentos para o
Inverno? E tem mais grão e alimentos armazenados para quando se acabar o que
vocês lá têm. É uma vergonha ver homens crescidos comportarem-se como bebês e
inventarem ofensas só para terem uma desculpa para beber mais uma caneca. Bebam
até cair, se quiserem, mas não culpem os O'Hara das vossas fraquezas.
- Ela anda com os senhores da terra... saracoteou-se com os senhores e
senhoras durante todo o Verão... não se passa um dia que não ande em cavalgadas
com aquele demônio negro de Adamstown... - O bar enchia-se de comentários
furiosos.
Colum mandou-os calar.
- Que tipo de homens são vocês que se põem na quadrilhice como um grupo de
comadres, falando de roupas de mulheres, festas e romances? Metem-me nojo.
Cuspiu para o balcão.
- Quem quer lamber isto? Vocês não são homens, não são nada.
O silêncio súbito que se seguiu poderia ter provocado qualquer tipo de reação.
Colum abriu as pernas e esticou os braços à sua frente, punhos fechados.
- Ah, Colum, é que estamos inquietos e com vontade de queimar uma coisas e
dar uns tiros, como os rapazes estão fazendo nas outras cidades - disse um dos
lavradores mais velhos. - Sai mas é daí e saca do teu bodhran, que eu assobio e
Kennedy acompanha-te ao violino. Vamos cantar umas canções revolucionárias e
embebedar-nos juntos como bons fenianos.
Colum não perdeu a oportunidade de acalmar as coisas. Quando se pôs no chão
já cantava.
"Ali, junto ao rio, a massa compacta de homens foi vista Pois por cima das armas
brilhantes estava a terra verde amada.
Morte aos traidores e inimigos! Em frente! Entoemos a marcha E demos vivas,
rapazes, à liberdade, até o nascer da lua."

Era verdade que Scarlett e Luke faziam corridas com os cavalos nas estradas à
volta de Ballyhara e Adamstown. Saltavam sebes, valas, cercas e atravessavam o
Boyne. Quase todas as manhãs durante uma semana ele passou as águas frias do rio
e entrou pela sala adentro reclamando um café e desafiando-a para uma corrida.
Scarlett costumava aguardá-lo com uma compostura estudada, mas a verdade é que
Fenton a fazia andar com os nervos à flor da pele. O seu espírito era rápido, a sua
conversa imprevisível, e ela não podia abrandar a atenção ou as defesas durante um
único minuto. Luke a fazia rir, a fazia zangar-se, a fazia sentir-se viva da ponta dos pés
à ponta dos cabelos.
As corridas pelos campos ajudavam a abrandar a tensão que sentia quando ele
estava por perto. A guerra entre eles era clara, e a rudeza recíproca, indisfarçável. Mas
a excitação que experimentava quando forçava a coragem até os limites tinha tanto de
ameaçadora como de estimulante. Scarlett sentia algo poderoso e desconhecido,
oculto bem no fundo de si mesma, ameaçando soltar-se e libertar-se.
Mrs. Fitz avisou-a de que as pessoas da cidade estavam incomodadas com o
comportamento dela.
- Os O'Hara estão perdendo o respeito - disse, com ar compreensivo. - A sua vida
social com os ingleses é diferente, é distante. Agora esta relação com o conde de
Fenton, que mostra preferência pelo inimigo, é que os perturba.
- Não me interessa nada que os perturbe. A minha vida é comigo.
A veemência de Scarlett espantou Mrs. Fitzpatrick.
- Ai é assim? - perguntou, e o tom de voz já não tinha nada de compreensivo. -
Está apaixonada por ele?
- Não, não estou. E não vou estar. E agora deixe-me em paz e diga aos outros
que me deixem em paz também.
A partir daqui, Rosaleen Fitzpatrick não fez mais nenhum comentário. Mas os
seus instintos femininos adivinhavam perturbação nos olhos febrilmente brilhantes de
Scarlett.
"Estarei apaixonada por Luke?" A pergunta de Mrs. Fitzpatrick forçara Scarlett a
interrogar-se. "Não", respondeu de imediato.
- Então, por que razão fico tão aborrecida quando ele não aparece?
Não encontrou resposta convincente.
Pensou no que tinha ficado sabendo a partir das respostas dos amigos às
referências que a ele fizera. O conde de Fenton era muito importante, diziam todos.
Possuía uma das maiores fortunas da Grã-Bretanha, propriedades na Inglaterra e
Escócia, assim como a propriedade na Irlanda. Era íntimo do príncipe de Gales,
mantinha uma enorme casa em Londres, onde, segundo se dizia, alternava os
bacanais com reuniões sociais cujos convites eram disputados pela fina flor da
sociedade. Durante vinte anos fora o alvo preferido de pais casamenteiros, desde que
herdara o título e fortuna aos 18 anos, mas escapara a todos, até mesmo a algumas
belezas notórias com fortuna própria. Sussurravam-se histórias sobre corações
despedaçados, reputações destruídas, até mesmo suicídios, e mais de um marido o
defrontara em duelo. Era imoral, cruel, perigoso, e alguns diziam mesmo que era
diabólico. Por tudo isto, era, é claro, o homem mais fascinante do mundo.
Scarlett imaginou a sensação que seria se uma irlandesa-americana na casa dos
30 anos fosse bem sucedida onde as belezas inglesas tinham falhado, e os seus lábios
curvaram-se num sorriso secreto que logo desapareceu.
Fenton não mostrava indícios de ser um homem terrivelmente apaixonado.
Tencionava posssuí-la, não casar com ela.
Semicerrou os olhos. "Não vou deixar que o meu nome se junte ao rol de
conquistas dele."
Mas não pôde deixar de imaginar como seria ser beijada por ele.
Fenton picou o cavalo para aumentar a velocidade e ultrapassou Scarlett, rindo
em voz alta. Ela curvou-se para a frente gritando a HalfMoon para que andasse mais
depressa. Quase imediatamente, teve que puxar as rédeas. A estrada fazia uma curva
entre grossos muros de pedra, e Luke parara à frente, bloqueando-lhe o caminho.
- Está brincando ou quê? - perguntou ela. - Podia ter me esmagado contra ti.
- Era exatamente isso que eu tinha na idéia - respondeu Fenton. Antes que
Scarlett tivesse tempo de perceber, ele agarrou a crina de HalfMoon e aproximou os
dois cavalos. Com a outra mão, rodeou o pecoço de Scarlett e imobilizou-a, enquanto a
sua boca cobria a dela. O seu beijo foi violento, forçando-a a abrir os lábios, enfiando a
língua na sua boca. Com a mão, obrigou-a a ceder. O coração de Scarlett bateu com
surpresa, receio, e, depois, com sujeição à força dele. Quando a libertou, sentia-se
trêmula e fraca.
- Agora vai deixar de recusar os meus convites para jantar - disse Luke. Os seus
olhos brilhavam com satisfação.
Scarlett recuperou o controle.
- Você é convencido demais - disse ela, furiosa por se encontrar ofegante.
- Sou? Duvido.
O braço de Luke rodeou-a enquanto a beijava novamente. Com a mão, procurou-
lhe o seio e acariciou-o até o limiar da dor. Scarlett desejou sentir as mãos dele
percorrerem-lhe o corpo, e os lábios brutais contra a sua pele.
Os cavalos, nervosos, mexeram-se, desfazendo o abraço. Scarlett quase perdeu
o equilíbrio.Tentou equilbrar-se na sela e pôr em ordem o seu espírito. Não devia fazer
aquilo, não devia ceder, dar-se a ele. Se o fizesse, ele perderia o interesse logo que a
conquistasse, disso não tinha dúvidas.
E ela não queria perdê-lo. Desejava-o. Aquele não era nehum rapazinho
apaixonado como Charles Ragland, aquele era um homem. Até se poderia apaixonar
por um homem assim.
Scarlett acariciou HalfMoon, acalmando-o, agradecendo-Ihe interiormente por a
ter salvo daquela loucura. Quando se virou para Fenton, os seus lábios doloridos
alargaram-se num sorriso.
- Por que não me põe uma coleira e me arrasta pelos cabelos até a casa? -
perguntou. Havia a nota suficiente de humor e condescendência na sua voz. - Assim
não assustaria os cavalos.
Puxou HalfMoon e saiu a passo, depois a trote, voltando para trás.
Voltou a cabeça e falou por cima do ombro: - Não vou aparecer para jantar, Luke,
mas você pode seguir-me até Ballyhara para tomar um café. Se quiser mais do que
isso, posso oferecer-lhe almoço ou um desjejum tardio.
Scarlett murmurou suavemente a HalfMoon para que andasse mais depressa.
Não conseguira decifrar a expressão de Luke Fenton, mas o que vira fizera-a sentir
algo muito parecido com medo.
Já tinha desmontado quando Luke entrou pelos estábulos e desceu do cavalo,
entregando as rédeas a um criado.
Scarlett fingiu não reparar que Luke dera ordens ao único criado que se
encontrava à vista. Ela própria conduziu Half Moon até os estábulos, procurando outro.
Quando os seus olhos se adaptaram à penumbra, deteve-se, petrificada, com
receio de se mexer. Cat encontrava-se no estábulo em frente, descalça e em pé sobre
o dorso de Comei, os bracinhos esticados para se equilibrar. Trazia vestida uma grossa
camisola de lã pedida emprestada a um dos moços de estrebaria. Tapava-lhe as saias,
e as mangas cobriam-lhe as pontas dos dedos. Como habitualmente, o seu cabelo
negro escapara às tranças e era uma massa de caracóis. Parecia um diabinho ou uma
miúda cigana.
- Que estás fazendo, Cat? - perguntou Scarlett, calmamente. Conhecia bem o
caráter forte do cavalo. Um ruído mais forte podia perturbá-lo.
- Estou praticando para o circo - respondeu Cat. - Como aquele desenho no meu
livro de uma senhora num cavalo. Quando for para a pista vou precisar de um guarda-
sol.
Scarlett manteve a calma. Isto ainda era mais assustador do que fora com
Bonnie. Comet podia derrubar Cat e depois esmagá-la.
- Seria melhor se esperasses até ao próximo Verão. Os teus pés devem estar
frios.
- Oh! - Cat escorregou para o chão, para junto dos arreios de metal. - Não pensei
nisso.
A sua voz ecoou pelo estábulo. Scarlett susteve a respiração. Depois, Cat trepou
a vedação com as botas e as meias de lã nas mãos.
- Eu sabia que as botas machucavam.
Scarlett fez um esforço para não agarrar a criança. Cat levaria a mal tal
demonstração. Olhou para direita à procura de um criado que levasse HalfMoon. Viu
Luke, que observava calmamente Cat.
- Esta é a minha filha, Katie Colum O'Hara - disse. "E deduz daqui o que
quiseres", Fenton, pensou.
Cat, que estava concentrada a apertar as botas, ergueu os olhos.
- Chamo-me Cat - disse. - E tu, como te chamas?
- Luke - respondeu o conde de Fenton.
- Bom dia, Luke. Queres a gema do meu ovo? Vou agora tomar o desjejum.
- Gostaria muito - disse ele.
Formaram uma estranha procissão: Cat ia à frente com Fenton ao lado, ajustando
a sua passada larga às pernas curtas da menina.
- Já tomei o desjejum - disse-lhe Cat -, mas como estou com fome vou tomar
outro.
- Acho isso muito sensato - disse ele. Não havia ironia na sua voz.
Scarlett seguia-os. Ainda estava perturbada com o susto que apanhara, e tão-
pouco se recuperara dos momentos de paixão em que Luke a beijara. Sentia-se tonta e
confusa. Fenton era o último homem na face da terra que ela julgaria gostar de
crianças, e no entanto parecia fascinado por Cat. Tratava-a exatamente como devia,
levando-a a sério sem ser condescendente só porque ela era pequena. Cat não tinha
paciência para as pessoas que tentavam tratá-la como um bebê. De alguma forma,
parecia que Luke percebera isso e o respeitava.
Scarlett sentiu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos. Oh, sim, podia vir a amar
este homem. Que bom pai poderia ele ser para a sua filha bem-amada. Afastou
rapidamente as lágrimas. Não era hora para sentimentalismos. Por Cat e por si própria,
tinha que se manter forte e com as idéias claras.
Olhou para a cabeça escura e direita de Fenton, inclinado para Cat. Parecia muito
alto e grande e poderoso. Invencível.
Estremeceu interiormente, depois rejeitou a sua covardia. Levaria a melhor.
Agora, tinha de ser. Queria-o para si e para Cat.
Scarlett quase desatou a rir perante a cena que Luke e Cat apresentavam. Cat
estava completamente absorvida na delicada tarefa de cortar o topo do seu ovo sem o
partir; Fenton observava Cat com igual concentração.
Subitamente, sem aviso prévio, Scarlett foi tomada por uma dor profunda.
Aqueles olhos escuros observando Cat deveriam ser os de Rhett, e não os de Luke.
Rhett é que devia estar fascinado pela filha, Rhett é que devia partilhar o ovo com ela e
acompanhar-lhe o passinho miúdo.
A saudade esculpiu um buraco fundo no peito de Scarlett, no lugar onde devia
estar o coração, e a angústia, durante tanto tempo dominada, encheu-o por completo.
Sentia a falta de Rhett, da sua presença, da sua voz, do seu amor.
"Se eu lhe tivesse falado de Cat enquanto era tempo... Se eu tivesse ficado em
Charleston... Se..."
Cat agarrou a manga de Scarlett.
- Vais comer o teu ovo, mamãe? Eu abro para ti.
- Obrigada, querida - respondeu Scarlett à filha. "Não sejas tola, disse para
consigo." Sorriu para Cat e para o conde de Fenton. O passado era o passado, e ela
tinha que pensar no futuro.
- Suspeito de que vai ter outra gema para comer, Luke - disse, rindo.
Cat despediu-se e saiu correndo, mas Fenton ficou.
- Traz mais café - ordenou à criada, sem a olhar. - Fale-me da sua filha - pediu ele
a Scarlett.
- Só gosta da clara do ovo - respondeu Scarlett, sorrindo para disfarçar a
preocupação. Que lhe ia dizer sobre o pai de Cat? E se Luke perguntasse o seu nome,
como morrera, quem era?
Mas Fenton só fez perguntas sobre Cat.
- Quantos anos tem esta sua filha admirável?
Mostrou espanto quando soube que Cat só tinha 4 anos, perguntou se ela era
sempre tão segura de si, se sempre fora tão precoce, se era determinada... Scarlett
acolheu com satisfação este interesse genuíno e falou das proezas de Cat O'Hara até
ter a garganta seca.
- Devia vê-la no pônei, Luke. Monta melhor que eu, ou que você... e trepa em tudo
como um macaco. Os pintores tiveram que a arrancar do escadote. Conhece os
bosques tão bem como uma raposa, tem uma bússula dentro, nunca se perde.
Determinada? É tão destemida que às vezes chego a me assustar. E nunca se queixa
quando se machuca. Mesmo em bebê raramente chorava, e, quando começou a andar,
ficava muito admirada quando caía, e levantava-se logo a seguir.... Claro que é
saudável. Não viu como ela é direita e forte? Come como um cavalo e nunca fica
enjoada. Você nem acreditaria na quantidade de éclairs e bolos de creme que ela é
capaz de engolir sem pestanejar...
Quando Scarlett sentiu a secura na garganta, olhou para o relógio e riu.
- Meu Deus, estou a aborrecê-lo há séculos. A culpa é sua, Luke, você é que
insistiu. Devia ter me mandado calar.
- De forma nenhuma. Estou muito interessado.
- Cuidado, ou terei ciúmes. Parece que está se apaixonando pela minha filha.
Fenton franziu a testa.
- O amor é para empregadas de balcão e para os romances de cordel. Estou
interessado nela.
Levantou-se, fez uma pequena reverência, agarrou a mão de Scarlett e beijou-a
levemente.
- Parto para Londres de manhã, por isso despeço-me já.
Scarlett levantou-se e ficou junto a ele.
- Vou sentir falta das nossa corridas - disse. - Volta em breve?
- Eu a visitarei e a Cat quando regressar.
"Bem!" pensou Scarlett quando ele partiu. "Nem sequer me tentou beijar na
despedida." Não sabia se havia de considerar isso um cumprimento ou um insulto.
"Deve estar arrependido da forma como se comportou quando me beijou. Deve ter
perdido o controle. E não há dúvida de que a palavra amor o assusta."
Concluiu que Luke apresentava todos os sintomas de um homem que está se
apaixonando contra vontade. Isso a fez sentir-se muito feliz. "Seria um pai maravilhoso
para Cat..." Scarlett tocou levemente com a ponta dos dedos nos lábios doloridos. E
era um homem muito excitante.

Luke esteve muito presente no espírito de Scarlett durante as semanas que se


seguiram. Andava inquieta e, nas manhãs de sol, montava sozinha pelos caminhos que
tinham percorrido juntos. Quando ela e Cat decoraram a árvore, recordou o prazer de
se vestir para o jantar na noite em que ele estivera pela primeira vez em Ballyhara. E,
quando puxou a fúrcula do peru de Natal com Cat, desejou que ele regressasse
depressa de Londres.
Às vezes fechava os olhos e tentava lembrar-se como era sentir os braços dele à
sua volta, mas cada uma dessas tentativas deixava-a em lágrimas, pois nessas horas
era o rosto de Rhett, o abraço de Rhett e o riso de Rhett que lhe enchiam a memória.
Isso era porque conhecia Luke há pouco tempo, disse para si própria. Com o tempo a
sua presença apagaria as recordações de Rhett, parecia lógico.
Na véspera de Ano Novo houve uma grande algazarra, e Colum encabeçou uma
marcha cantando o bodhran, seguido por dois tocadores de violino e por Rosaleen
Fitzpatrick, que tocava ferrinhos. Scarlett gritou de surpresa e correu a abraçá-lo.
- Já tinha desistido de esperar que voltasses para casa, Colum. Com um começo
destes, promete ser um bom ano.
Acordou Cat, e viveram os primeiros minutos de 1880 com música e gente à volta.
O Dia de Ano Novo começou com boa disposição quando o pão doce foi lançado
contra a parede e se desfez, atirando com migalhas e passas sobre o corpo dançante
de Cat e sobre a sua boca aberta e virada para cima. Mas depois o céu escureceu com
nuvens e um vento gelado fustigou o xale de Scarlett quando esta fazia as visitas de
Ano Novo na cidade. Colum tomava uma bebida em cada casa, álcool, não chá, e falou
de política com os homens até Scarlett ficar com vontade de gritar.
- Então, Scarlett, minha querida, não queres vir até o bar fazer um brinde para um
Ano Novo cheio de força e nova esperança para os irlandeses? - perguntou Colum,
depois de terem visitado a última casa.
As narinas de Scarlett sentiram o cheiro do uísque.
- Não. Estou cansada, tenho frio e vou para casa. Vem comigo e ficaremos
calmamente junto à lareira.
- Calmamente é das palavras que mais receio, Scarlett querida. A calma leva a
obscuridade à alma de um homem.
Colum entrou vacilante no bar de Kennedy, e Scarlett começou lentamente a subir
o caminho que dava para a Casa Grande, aconchegando a si o xale. A saia vermelha e
as listras azuis e amarelas das suas meias pareciam pardas à luz cinzenta e fria.
"Café e banho quentes", prometeu a si mesma, enquanto empurrava a pesada
porta. Ouviu uma gargalhada abafada quando entrou, e o seu coração apertou-se. Cat
devia andar brincando às escondidas. Scarlett fingiu não ter percebido nada. Fechou a
porta, deixou cair o xale e olhou à volta.
- Feliz Ano Novo para a O'Hara - disse o conde de Fenton do fundo das escadas.
- Ou será a Maria Antonieta? E esse o trajo de camponesa que as melhores modistas
de Londres estão criando para os bailes este ano?
Scarlett olhou para ele. Estava de volta. Oh, por que a tinha apanhado com
aquele aspecto? Não fora nada disto que ela planejara. Mas não tinha importância.
Luke tinha regressado, e tão depressa, e ela já não se sentia cansada.
- Feliz Ano Novo - disse ela. E era.
Fenton deu um passo para o lado, e Scarlett viu Cat nas escadas, atrás dele.
Cat segurava com as duas mãos uma brilhante tiara que tinha sobre a cabeça
desgrenhada. Desceu as escadas em direção a Scarlett, os olhos verdes sorridentes, a
boca tentando não sorrir. Arrastava atrás de si uma longa cauda, um manto de veludo
carmim debruado a arminho.
- Cat traz as suas insígnias reais, condessa - disse Luke. - Vim para tratar do
nosso casamento.
Os joelhos de Scarlett cederam, e ela teve que se sentar nas escadas, no meio de
uma confusão de roupões e combinações vermelhas, verdes e azuis. Sentiu um misto
de fúria e triunfo. Não podia ser verdade. Era fácil demais. Retirava-lhe a graça toda.
- Parece que a nossa supresa foi um êxito, Cat - disse Luke. Desatou as pesadas
fitas de seda e retirou-lhe a tiara das mãos. - Agora podes ir. Tenho que falar com a tua
mãe.
- Posso abrir a minha caixa?
- Sim. Está no teu quarto.
Cat olhou para Scarlett, sorriu e desatou a correr pelas escadas acima. Luke
colocou o manto sobre o braço esquerdo, agarrou a tiara com a mão e estendeu a mão
direita a Scarlett. Parecia muito alto, muito grande, e tinha os olhos muito escuros. Ela
deu-lhe a mão e ele ajudou-a a erguer-se.
- Vamos para a biblioteca - disse Fenton. - Temos lá uma lareira e uma garrafa de
champanhe para selar o acordo.
Scarlett deixou-o conduzi-la. Ele queria casar com ela. Não podia acreditar.
Estava muda, sem fala. Enquanto Luke servia o vinho, aqueceu-se junto ao fogo.
Luke estendeu-lhe um copo. Scarlett agarrou-o. A sua mente começava a
perceber o que estava se passando, e conseguiu falar.
- Por que disse acordo, Luke?
Por que razão não dissera ele que a amava e queria que ela fosse sua mulher?
Fenton tocou no copo dela com o seu.
- Que é o casamento senão um acordo, Scarlett? Os nossos advogados redigirão
os contratos, mas é só uma formalidade. Com certeza sabe o que esperar. Não é nem
inocente, nem nenhuma mocinha.
Scarlett pousou o copo cuidadosamente sobre a mesa. Depois sentou-se numa
cadeira. Algo estava muito errado. Não havia ternura no rosto dele, nem nas suas
palavras. Nem sequer estava olhando para ela.
- Gostaria que me dissesse, por favor, o que devo esperar.
Fentou encolheu os ombros com impaciência.
- Muito bem. Vai achar-me terrivelmente generoso. Penso que será essa a sua
principal preocupação.
Era, segundo disse, um dos homens mais ricos da Inglaterra, embora calculasse
que ela já o soubesse. Admirava genuinamente a astúcia dela e a sua ambição social.
Podia ficar com o seu dinheiro. Ele pagaria naturalmente a roupa, carruagens, jóias,
criados, etc. Esperava que ela não o deixasse ficar mal. Já tinha observado que ela
tinha muito jeito.
Também podia ficar com Ballyhara para o resto da vida. Parecia agradar-lhe. E, já
agora, também podia brincar com Adamstown, se quisesse sujar as botas de lama.
Depois da morte dela, Ballyhara ficaria para o filho deles, tal como Adamstown também
lhe pertenceria após a morte de Luke. A junção de propriedades contíguas sempre fora
um dos principais motivos para casamentos.
- Porque, claro, o principal objetivo deste acordo é que você me dê um herdeiro.
Sou o último da família, e é meu dever dar-lhe continuidade. Depois de me ter dado um
filho, a sua vida pertence-lhe, desde que mantenha a dose habitual e conveniente de
aparências e discrição.
Voltou a encher o copo, que logo esvaziou. Scarlett podia agradecer a Cat a tiara,
disse Luke.
- Desnecessário será dizer que não tinha a mínima intenção de fazer de ti
condessa de Fenton. Você é o tipo de mulher com quem gosto de me divertir. Quanto
mais forte é o temperamento, mais prazer tenho em o dobrar à minha vontade. Teria
sido interessante. Mas não tão interessante como essa tua filha. Quero que o meu filho
seja como ela, destemido, com uma saúde indestrutível. O sangue dos Fenton tem sido
enfraquecido devido à consanguinidade. Uma infusão da sua vitalidade campestre
remediará isso. Já reparei que os meus rendeiros O'Hara vivem até muito tarde. Você é
uma aquisição valiosa, Scarlett. Vai dar-me um herdeiro de que me orgulharei e não
desonrará o meu nome em sociedade.
Scarlett estivera olhando para ele como um animal hipnotizado por uma serpente.
Mas quebrou o feitiço. Agarrou o copo.
- Isso só acontecerá quando o Inferno gelar! - gritou, atirando com o copo para a
lareira. O álcool provocou uma pequena explosão de chamas.
- Aqui está o brinde para selar o seu acordo, Lorde Fenton. Saia da minha casa.
Até me provoca arrepios.
Fenton riu. Scarlett ficou tensa, pronta a saltar, a agredir-lhe o rosto sorridente.
- Pensei que gostava da minha filha - disse, com fúria. - Devo ter me enganado.
As palavras impediam Scarlett de se mover.
- Você me desilude, Scarlett - disse ele. - Julguei-a mais perspicaz. Esqueça o
orgulho ferido e pense no que tem ao seu alcance. Uma posição indiscutível para si e
para a sua filha. Não é legal, mas eu tenho poderes para alterar isso. Tratarei da
adoção e Cat se tornará Lady Catherine. Katie, claro, está fora de questão, é nome de
criada de cozinha. Como minha filha, ela terá acesso imediato ao melhor de tudo que
precise ou queira. Amigos, casamento, só terá que escolher. Nunca lhe farei mal, é um
modelo precioso para o meu filho seguir. Terá o direito de lhe negar isto tudo devido a
essa sua ânsia, tão tipicamente de classe média, por romance? Acho que não.
- Cat não precisa dos seus títulos nem do melhor de tudo, Milorde, e eu também
não. Até agora passamos muito bem sem ti, e continuaremos a passar.
- Durante quanto tempo, Scarlett? Não confie demais no seu sucessso em
Dublim. É novidade, e as novidades tem um período de vida curto. Até um orangotango
despertaria a curiosidade em Dublim se se apresentasse bem vestido. Tem mais uma
temporada, duas no máximo, e depois será esquecida. Cat precisa da proteção de um
nome e de um pai. Eu sou um dos poucos homens com poder para lhe tirar esse
estigma de ser filha bastarda, não, não vale a pena protestar, não me interessa que
história vai inventar. Você não teria vindo para este canto da Irlanda se estivessem
bem na América.
"Chega. Está conseguindo aborrecer-me, Scarlett, e eu detesto ficar aborrecido.
Dê-me notícias quando recuperar o bom senso. Vai acabar por concordar comigo,
Scarlett. Consigo sempre o que quero.
Começou a dirigir-se para a porta.
Scarlett chamou-o. Precisava saber uma coisa.
- Não consegue tudo neste mundo, Fenton. Já lhe ocorreu que a sua fêmea pode
dar à luz uma menina e não um rapaz?
Fenton voltou-se para ela.
- Você é uma mulher forte e saudável. Acabaria por ter um rapaz. Mas, na pior
das hipóteses, se me desse só meninas, arranjaria forma de uma delas casar com um
homem que estivesse disposto a perder o seu nome e a tomar o dela. Assim, o meu
sangue continuaria a herdar o meu nome e a descendência estaria assegurada. E a
minha obrigação satisfeita.
- Pensa em tudo, não pensa? Suponha que eu sou estéril. Ou que você não pode
fazer filhos.
Fenton sorriu.
- A minha masculinidade está bem patente pelos ilegítimos que tenho espalhados
pelas cidades da Europa, por isso essa tentativa de insulto não me atinge. Quanto a ti,
temos Cat.
Esboçou uma careta surpreendido e dirigiu-se a Scarlett, fazendo-a recuar.
- Vamos lá, Scarlett, não seja dramática. Não lhe disse já que só despedaço
amantes e não esposas? Não tenho nenhum desejo de lhe tocar. Estava me
esquecendo da tiara, tenho que a guardar no cofre até o casamento. É um tesouro de
família que usarás a seu tempo. Mande notícias quando capitular. Vou para Dublim
abrir a casa e preparar a temporada. Pode mandar-me uma carta para Marrion Square.
Fez uma reverência e saiu, rindo.
Scarlett susteve orgulhosamente a respiração até ouvir a porta da frente fechar-
se. Depois, correu a fechar as portas da biblioteca. Livre dos olhares dos criados,
atirou-se para cima do espessa carpete e desatou a soluçar. Como podia ter se
enganado tanto? Como podia ter pensado que conseguia amar um homem que não
era capaz de amar? E que ia fazer agora? Não lhe saía do pensamento a imagem de
Cat, nas escadas, coroada, cheia de satisfação. Que devia fazer?
- Rhett - chorou deseperadamente. - Rhett, precisamos tanto de ti...
Scarlett não revelou exteriormente sinais de vergonha, mas recriminou-se
violentamente pelas emoções que experimentara por Luke Fenton. Quando estava
sozinha agarrava-se a essas recordações como se se tratasse de uma ferida mal
cicatrizada, castigando-se a si própria.
Que tola fora em ter imaginado uma vida familiar feliz, com Cat dividindo os ovos
pelos três pratos. E que presunção ridícula ter pensado que ele poderia amá-la. Todo
mundo riria dela se soubesse.
Pôs-se a imaginar vinganças: espalharia por toda a Irlanda que ele a pedira em
casamento e ela recusara; escreveria a Rhett, e ele mataria Fenton por ter chamado
bastarda à sua filha; riria na cara de Fenton, frente ao altar, e lhe diria que não podia
ter mais filhos, que ele fizera figura de bobo ao casar com ela; o convidaria para jantar
e envenenaria a comida...
O ódio queimava-lhe o coração. Scarlett estendeu-o a todos os ingleses e
renovou o seu apoio à Irmandade Feniana de Colum.
- Mas não preciso do teu dinheiro, Scarlett querida - disse-lhe ele. - O trabalho
agora está em planejar os movimentos da Liga da Terra. Ouviste-nos falar disso no
Ano Novo, não te lembras?
- Diz-me outra vez, Colum. Devo poder fazer alguma coisa...
Não havia nada a fazer. A Liga da Terra estava aberta unicamente a rendeiros, e
não haveria ações até o próximo pagamento das rendas, na Primavera. Um rendeiro
por cada propriedade pagaria, enquanto os outros se recusariam a fazê-lo, e se o
proprietário os expulsasse iriam viver na casa daquele que pagara a renda.
Scarlett não concordava. Assim o proprietário podia arrendar a terra a outros.
Não, disse Coium, aí é que entrava a Liga. Manteriam todos os outros rendeiros
afastados, e, sem rendeiros, os proprietários não só perderiam as rendas como
também as sementeiras, pois não haveria ninguém para tratar dos campos. Era uma
idéia genial. Só lamentava não ter sido ele a tê-la.
Scarlett foi ter com os primos e pressionou-os a juntarem-se à Liga da Terra.
Prometeu que poderiam ir para Ballyhara se fossem expulsos.
Os O'Hara recusaram todos, sem excepção.
Scarlett queixou-se amargamente a Coium.
- Não te culpes pela cegueira dos outros, Scarlett querida. Estás fazendo o que
podes. Tu fazes jus ao nome dos O'Hara. Sabes que em todas as casas de Ballyhara e
em metade das de Trim há recortes de jornais de Dublim sobre a O'Hara ser a estrela
brilhante no castelo do vice-rei? Guardam-nos dentro da Bíblia, juntamente com as
orações e os santinhos.

No dia de Santa Brígida choveu levemente. Scarlett disse com extremoso fervor
as orações rituais para um bom ano de lavoura, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces
quando agarrou o primeiro pedaço de terra. O padre Flynn benzeu-o com água benta,
e depois o cálice passou de boca em boca. Os lavradores saíram calmamente e de
cabeça baixa. Só Deus os podia salvar. Ninguém aguentaria outro ano como aquele.
Scarlett regressou a casa e descalçou as botas enlameadas. Depois, convidou
Cat a tomar um cacau com ela no quarto, enquanto organizava as coisas que iria levar
para Dublim. Partiria dentro de menos de uma semana. Não queria ir. Luke Fenton
estaria lá... e como poderia encará-lo? De cabeça erguida, não havia outra forma. Era o
que os seus esperavam dela.
A segunda temporada de Scarlett em Dublim foi ainda melhor que a primeira.
Todos os dias chegavam convites para todos os acontecimentos no castelo e para
cinco bailes e duas ceias nos aposentos reais. Também recebeu um envelope selado
com o convite mais cobiçado de todos: a sua carruagem seria admitida por uma
entrada especial nos fundos do castelo. Não teria que ficar horas numa fila em Dame
Street, esperando que as carruagens entrassem, quatro de cada vez, para largarem os
convidados.
Havia também cartões reclamando a sua presença em festas e jantares
particulares. Estas festas eram muito mais divertidas que as do castelo, com as suas
centenas de convidados. Scarlett riu. Com que então, um orangotango bem vestido,
não era? Não, não era, e a pilha de convites confirmava-o.
Era a O'Hara de Ballyhara, irlandesa e orgulhosa disso. Era genuína. Não fazia
diferença que Luke Fenton se encontrasse em Dublim. Ela o deixaria com os seus
sarcasmos. Podia olhá-lo de frente, sem ter medo nem vergonha, e o Diabo que o
carregasse.
Analisou os convites, escolhendo os que lhe interessavam, e sentiu uma onda de
satisfação. Era bom ser-se pretendida, usar bonitas roupas e dançar em bonitos
salões. E que tinha, se o mundo social de Dublim era inglês? Conhecia o suficiente
para saber distinguir os sorrisos, os franzir de testa, regras e transgressões da
sociedade, as suas honras e ostracismos, triunfos e perdas; era tudo parte de um jogo.
Nada disso era importante, nada disso importava para o mundo da realidade fora dos
salões de baile. Mas os jogos eram para ser jogados, e ela era uma boa jogadora.
Sentiu-se satisfeita por, afinal, ter vindo a Dublim. Gostava de ganhar.
Scarlett percebeu imediatamente que a presença de Luke Fenton em Dublim
provocara excitação e especulação.
- Minha querida - disse May Taplow -, em Londres não se fala noutra coisa. Todo
mundo sabe que Fenton considera Dublim uma cidade provinciana de terceira
categoria. A casa dele não é aberta há décadas. Por que razão estará ele aqui?
- Não faço idéia - repondeu Scarlett, imaginando qual seria a reação de May se
soubesse a verdade.
Fenton aparecia onde quer que ela estivesse. Scarlett cumprimentava-o com
educada frieza e ignorava o ar dele de confiante displicência. Após o primeiro encontro
já nem ficava furiosa por o ver. Ele já não conseguia magoá-la.
Ele não. Mas continuava a sentir o aguilhão da dor cada vez que avistava um
homem alto e moreno, vestido de veludo ou brocado, e depois percebia de que era
Fenton. Porque quem Scarlett procurava no meio da multidão era Rhett. Estivera no
castelo no ano anterior. Por que não este ano... nessa noite... nessa sala?
Mas era sempre Fenton. Para onde quer que olhasse, em todas as conversas, em
todos os jornais. Pelo menos podia dar graças por ele não lhe prestar especial atenção;
se assim não fosse, os mexericos também lhe diriam respeito. Mas desejou que o
nome dele não andasse tanto na boca das pessoas.
Os rumores foram-se resumindo gradualmente a duas teorias: estivera
preparando a casa para a visita não oficial do príncipe de Gales, ou então sucumbira
aos encantos de Lady Sophia Dudley, que causara sensação em Londres e agora
repetia o sucesso em Dublim. Era a história mais velha do mundo. Um homem resiste à
investida das mulheres durante anos e anos e, de repente, bang, aos 40 perde a
cabeça e o coração com a beleza e a inocência.
Lady Sophie Dudley tinha 17 anos. Os cabelos cor de feno, olhos azuis cor do céu
e pele branca rosada de fazer inveja à porcelana. Pelo menos era o que constava das
baladas que lhe tinham sido dedicadas e que eram vendidas por um penny em cada
esquina.
Era, na verdade, uma bela moça, muito influenciada por uma mãe ambiciosa, e
corava com frequência devido às atenções e galanteios de que era objeto. Scarlett via-
a muito. A sala dela ficava junto ao quarto de Scarlett. Era o segundo melhor quarto em
termos de decoração, mas o primeiro em termos de visitas. Não que Scarlett se
sentisse de alguma forma negligenciada; uma viúva rica e com olhos verdes teria
sempre procura.
"Por que razão ficaria surpreendida", pensou Scarlett. "Tenho o dobro da idade
dela, e o ano passado foi a minha vez." Mas às vezes, quando o nome de Sophia era
associado ao de Luke Fenton, custava-lhe conter a língua. Era do conhecimento geral
que um duque pedira Sophia em casamento, mas todos gente achava que ela fazia
melhor em escolher Fenton. Um duque tinha precedência sobre um conde, mas Fenton
era quarenta vezes mais rico que o duque e cem vezes mais atraente.
- E é meu, se eu quiser - era o que Scarlett tinha vontade de dizer. Seria que,
nesse caso, também lhe dedicariam baladas?
Reprovou-se pela sua impertinência e disse para consigo que era um disparate
pensar na previsão de Luke de que dali a um ou dois anos seria esquecida. E tentou
não se preocupar com as pequenas rugas que já tinha à volta dos olhos.
Scarlett regressou a Ballyhara para tratar de negócios, satisfeita por sair de
Dublim. As últimas semanas da temporada tinham custado a passar.
Era bom estar em casa, pensar em coisas reais como o pedido de Paddy O'Faolin
para um arrendamento maior de terra, em vez de se preocupar com a festa que se
seguia. E era delicioso sentir os bracinhos de Cat quase estrangularem-na num
caloroso abraço de boas vindas.
Quando a última questão foi resolvida e o último pedido considerado, Scarlett foi
para a sala tomar chá com Cat.
- Guardei-te metade - disse Cat, com a boca suja de chocolate dos éclairs que
Scarlett trouxera de Dublim.
- É engraçado, Kitty Cat, mas não tenho fome. Queres mais?
- Sim.
- Sim, obrigada.
- Sim, obrigada. Posso comê-los todos?
- Sim, Miss Pig, podes.
Os éclairs desapareceram antes de Scarlett ter tempo de esvaziar a xícara. Cat
era muito dedicada quando se tratava de éclairs.
- Onde vamos dar o nosso passeio? - perguntou Scarlett. Cat disse que gostaria
de ir visitar Grainne.
- Ela gosta de ti, mamã. Gosta mais de mim, mas também gosta de ti.
- Seria agradável - respondeu Scarlett. Gostaria de ir à torre. Dava-lhe uma
sensação de tranqüilidade, e havia pouca tranqüilidade no seu coração.
Scarlett fechou os olhos e encostou o rosto às velhas pedras macias. Cat
mostrou-se impaciente.
Então Scarlett encostou a escada de corda à porta alta para a experimentar.
Estava muito gasta, mas parecia suficientemente resistente. Ainda assim, pensou que
era melhor mandar fazer uma nova. Se aquela se partisse e Cat caísse... bem, nem
conseguia pensar nisso. Desejava tanto que Cat a convidasse para o seu quarto...
Agarrou-se novamente à escada.
- Grainne deve estar à nossa espera, mamã. Fizemos muito barulho.
- Está bem, querida. Já vou.
A anciã não parecia nem mais velha nem diferente do que da última vez que
Scarlett a vira. "Até apostava em como aqueles são os mesmos xales que ela trazia da
outra vez", pensou Scarlett. Cat, logo que entrou no casebre escuro, retirou umas
xícaras da prateleira e reuniu pedaços de carvão para a chaleira. Sentia-se
completamente à vontade.
- Vou à fonte encher a chaleira - disse, enquanto saía.
Grainne observava-a amorosamente.
- Dará visita-me muitas vezes - disse a anciã. - É muito boa para esta alma
solitária. Não tenho coragem de a mandar embora, pois a solidão reconhece a solidão.
Scarlett reagiu.
- Ela gosta de estar sozinha, mas não precisa se sentir só. Estou farta de lhe
perguntar se quer que arranje outras crianças para brincar, e ela diz sempre que não.
- É uma criança sábia. Eles bem tentam atirar-lhe pedras, mas ela é muito veloz.
Scarlett pensou que não estava ouvindo bem.
- Eles o quê?
As crianças dali, contou Grainne placidamente, corriam atrás de Dará pelos
bosques. No entanto, ela pressentia-os muito antes, e só os mais velhos se
conseguiam aproximar o suficiente para lhe atirarem pedras. E isto porque tinham
pernas mais compridas do que Dará e corriam mais depressa. Mas ela sabia bem
como escapar-lhes.
- Não se atrevem a persegui-la até a torre. Têm medo do fantasma do jovem
conde enforcado.
Scarlett estava atônita. A sua preciosa Cat atormentada pelas crianças de
Ballyhara! Chicotearia cada uma delas com as suas próprias mãos, expulsaria os pais
e reduziria a pó os seus haveres. Levantou-se de um salto.
- Vais fazer que sobre a criança caia o peso da destruição de Ballyhara? -
perguntou a anciã. - Senta-te, mulher. Outros fariam o mesmo. Receiam todos os que
são diferentes. E, quando os receiam, tentam afastá-los.
Scarlett deixou-se cair novamente na cadeira. Sabia que a mulher tinha razão. Ela
própria pagara várias vezes o preço de ser diferente. Só que em vez de pedras
conhecera a frieza, a crítica, o ostracismo. Mas superara tudo isso. Cat era uma
criança inocente. E corria perigo.
- Não posso ficar parada - gritou. - É intolerável. Tenho que os fazer parar.
- Oh, não se pode fazer parar a ignorância. Dará encontrou o caminho, e isso
chega. As pedras não lhe atingem a alma. Está a salvo no seu quarto da torre.
- Isso não chega. E se uma pedra a atinge? E se se machuca? Por que ela não
me disse que estava sozinha? Não posso suportar a idéia de que ela seja infeliz.
- Ouve o que te diz uma mulher velha, O'Hara. Ouve com todo o teu coração. Há
uma terra que os homens só conhecem das canções dos seachain. Chama-se Tir na
nOg e fica sob as colinas. Há homens e mulheres que descobriram o caminho para lá e
nunca mais foram vistos. Não há morte em Tir na nOg, nem decadência. Não há dor,
nem ódio, nem fome. Todos vivem em paz e não lhes falta nada.
"Isto é o que tu desejarias para a tua filha. Mas ouve-me bem. Em Tir na nOg não
há dor, por isso não há alegria. "Conheces o significado da canção dos seachain?
Scarlett abanou a cabeça.
- Então, não posso aliviar-te o coração. Dará tem mais sabedoria. Deixa-a ser
como é.
Como se a velha mulher tivesse chamado, Cat apareceu à porta. Transportava
compenetradamente a chaleira cheia de água e não olhou nem para a mãe nem para
Grainne. Ficaram as duas a observá-la, enquanto Cat colocava a chaleira na grade de
ferro sobre o carvão. Scarlett teve que virar a cabeça. Se continuasse a olhar sabia que
não resistiria a agarrar Cat e envolvê-la num abraço protetor. Cat detestaria isso.
"Também não devo chorar", pensou Scarlett. "Poderia assustá-la e perceberia que
também estou assustada."
- Olha para mim, mamã - disse Cat, vertendo cuidadosamente água fervendo para
um velho bule castanho. Sentiu-se um cheiro doce, e Cat sorriu.
- Pus lá as folhas como deve ser, Grainne - disse, com ar orgulhoso e feliz.
Scarlett agarrou-se ao xale da velha mulher.
- Diz-me o que fazer - pediu.
- Deves fazer o que te for dado fazer. Deus olhará por Dará.
"Não entendo nada do que ela diz", pensou Scarlett, mas sentiu-se mais aliviada.
Bebeu o chá de Cat no silêncio e calor do quarto sombrio que cheirava a ervas,
satisfeita por Cat ter a torre e aquele lugar para onde ir. Antes de regressar a Dublim,
Scarlett mandou fazer uma escada de corda nova e mais forte.
Nesse ano Scarlett foi às corridas a Punchestown. Fora convidada para
Bishopscourt, propriedade do conde de Clonmel, conhecido como Earlie. Para sua
grande satisfação, John Morland também lá estava. Para seu desagrado, verificou que
Luke Fenton também.
Scarlett aproximou-se de Morland logo que pôde.
- Bart, como está? Não conheço ninguém que passe tanto tempo em casa. Levo a
vida à sua procura, mas nunca o encontro em lado nenhum.
Morland irradiava satisfação e dava estalidos com os dedos.
- Tenho andado ocupado, muito ocupado, Scarlett. Acho que consegui um
vencedor, depois destes anos todos.
Não era a primeira vez que Bart dizia isto. Gostava tanto de cavalos que tinha
sempre a certeza de que cada um seria o próximo campeão nacional. Scarlett teve
vontade de o abraçar. Teria gostado de John Morland mesmo que ele não tivesse
nenhuma ligação a Rhett.
-... chamei-lhe Diana, por ser veloz, e depois John, por mim. Bem, sou
praticamente o pai dela, exceto na parte biológica. Depois vi que se chamava Dijon.
Soava a mostarda, não servia. Francês demais para uma égua irlandesa. Mas depois
pensei melhor. Quente, apimentada, tão forte que até faz doer os olhos. Como perfil
não é mau. Do tipo "saiam do caminho que aqui vou eu". E então ficou mesmo Dijon.
Vai fazer a minha fortuna. É melhor apostar uma nota de cinco nela, Scarlett, é uma
vencedora nata.
- Vou apostar dez libras, Bart - disse Scarlett, enquanto pensava num pretexto
para falar de Rhett. A princípio não relacionou o que John Morland estava dizendo.
-... Vou ficar mesmo aflito se estiver enganado. Os rendeiros estão fazendo
aquela greve que a Liga da Terra propôs. Isso deixa-me sem dinheiro para a aveia.
Pergunto-me agora como pude ter Charles Parnell em tão alta conta. Nunca pensei que
ele acabasse de braço dado com aqueles bárbaros dos fenianos.
Scarlett ficou horrorizada. Nunca lhe tinha ocorrido que a Liga da Terra pudesse
ser usada contra alguém como Bart.
- Custa-me a acreditar, Bart. Que vai fazer?
- Se ela ganhar aqui, a próxima corrida é em Galway e depois disso é Phoenix
Park, mas talvez lhe consiga arranjar umas corridas mais pequenas em Maio e Junho,
para não perder o treino.
- Não, não, Bart, não estou falando de Dijon. Que vai fazer quanto à greve das
rendas?
O rosto de Morland perdeu o brilho.
- Não sei - confessou. - Só tenho as rendas. Nunca expulsei ninguém, não me
passaria isso pela cabeça. Mas agora talvez tenha que o fazer. É uma vergonha.
Scarlett pensava em Ballyhara. Pelo menos, estava livre de confusão. Perdoara
as rendas até a época das colheitas.
- Já me ia esquecendo, Scarlett. Recebi notícias muito boas do nosso amigo
Rhett Butler.
O coração de Scarlett deu um salto.
- Ele vai aparecer aqui?
- Não. Estava a contar com ele. Escrevi-lhe falando de Dijon, mas ele respondeu
dizendo que não pode vir. Vai ser pai em junho. Desta vez tomaram muito cuidado, a
mulher ficou na cama durante meses, até desaparecer o perigo de acontecer o mesmo
que da outra vez. Mas agora está tudo ótimo. Ela já se levanta e está feliz. Ele também,
claro. Nunca vi nenhum homem tão preocupado e orgulhoso em ser pai como Rhett.
Scarlett apoiou-se a uma cadeira. Os sonhos e esperanças, quaisquer que
fossem, tinham agora desaparecido.
Earlie reservara uma bancada completa para os seus convidados. Scarlett estava
junto aos outros, observando a corrida através de binóculos de madrepérola. O relvado
era de um verde-brilhante, e a parte destinada ao público era uma massa de cor e
movimento. Havia gente em cima de vagões, nos assentos e telhados das carruagens,
pessoas passeando sozinhas ou em grupo, e comprimidas contra a vedação.
Começou a chover e Scarlett ficou satisfeita por haver outra bancada por cima,
pois assim estava mais abrigada.
- Ótimo espectáculo - comentou Morland.
- Dijon é uma grande corredora.
- Quer alguma coisa, Scarlett? - perguntou-lhe uma voz suave ao ouvido. Era
Fenton.
- Ainda não decidi, Luke.
Quando os corredores apareceram na pista, Scarlett aplaudiu, juntamente com os
outros. Concordou vinte vezes com John Morland que até a olho nu se via que Dijon
era o melhor cavalo em pista. Enquanto conversava e sorria, o seu espírito estava
ocupado analisando os prós e os contras da sua vida. Seria uma desonra casar com
Luke Fenton. Ele queria um filho e ela não lhe podia dar. Exceto Cat, mas essa estaria
segura. Nunca ninguém poria em questão quem era o verdadeiro pai. Não era bem
verdade, se perguntariam, mas não faria diferença. Acabaria por ser a O'Hara de
Ballyhara e a condessa de Fenton.
Que tipo de honra devo a Luke Fenton? Ele próprio não a tem, então, por que
razão terei que sentir que lhe devo?
Dijon ganhou. John Morland estava eufórico. Foi rodeado por uma multidão de
pessoas que o felicitavam.
No meio da confusão, Scarlett virou-se para Luke Fenton.
- Diga ao seu advogado para falar com o meu sobre os contratos - disse. -
Escolho o fim de Setembro para a data do casamento. Depois da Festa das Colheitas.
- Colum, vou casar com o conde de Fenton - disse Scarlett.
Ele riu.
- Pois, sim, e eu caso com Lilith. Vai ser uma festa com legiões de satãs como
convidados!
- Não estou brincando, Colum.
Ele ficou abruptamente sério e olhou para o rosto impassível e determinado de
Scarlett.
- Não o permitirei, Scarlett - gritou. - O homem é um diabo e é inglês.
O rosto de Scarlett ficou congestionado.
- Tu... não... permites? - disse, lentamente. - Quem pensas que és, Colum?
Deus?
Aproximou-se, de olhos brilhantes, e juntou o seu rosto ao dele.
- Ouve-me bem, Colum O'Hara. Nem tu nem ninguém pode me falar assim. Não o
permito.
O olhar dele enfrentou o dela, e ali ficaram em confrontação silenciosa durante
um tempo. Depois, Colum inclinou a cabeça para o lado e sorriu.
- Ah, Scarlett querida, este nosso temperamento O'Hara nos põe na boca
palavras que não queremos dizer. Peço-te desculpa. Vamos falar melhor.
Scarlett recuou.
- Não me venhas com conversas, Colum - disse, com tristeza. - Não acredito. Vim
falar com o meu amigo mais chegado e ele não está. Provavelmente nunca esteve.
- Não é bem assim, Scarlett querida, não é bem assim.
O ombros dela vergaram num gesto de desamparo e rejeição.
- Não interessa. Estou decidida. Vou casar com Luke Fenton e mudar-me para
Londres em Setembro.
- És a vergonha do teu povo, Scarlett O'Hara. - A voz de Colum soou como aço
cortante.
- É mentira - respondeu Scarlett com voz cansada. - Diz isso a Daniel, que está
enterrado em terra dos O'Hara que esteve perdida durante centenas de anos. Ou diz
aos teus preciosos fenianos que me têm usado durante este tempo todo. Não te
preocupes, Colum, não te abandonarei. Ballyhara se manterá como está, como abrigo
para os homens que andam fugidos e com os pubs para vocês poderem falar mal dos
ingleses. Nomeio-te meu procurador, e Mrs. Fitz manterá a Casa Grande como até
aqui. É isso que te importa, não eu.
- Não! - gritou Colum. - Estás redondamente enganada. És o meu orgulho e a
minha alegria, e Katie Colum tem o meu coração nas suas mãozinhas. Só que a Irlanda
é a minha alma e tem que vir primeiro.
Estendeu-lhe as mãos em gesto de súplica.
- Diz que acreditas em mim, pois estou falando a verdade.
Scarlett tentou sorrir.
- Acredito em ti. E tu tens que acreditar em mim
A anciã dissera: "Farás o que te for dado fazer."
- Farás o que tiveres que fazer com a tua vida, Colum, e eu farei o mesmo com a
minha.
Scarlett arrastava os pés enquanto caminhava pela Casa Grande. Era como se o
peso do seu coração lhe tivesse passado para os pés.
A cena com Colum magoara-a. Fora o primeiro cuja companhia procurara à
espera de compreensão, desejando que ele lhe indicasse um caminho diferente do que
ela escolhera. Desiludira-a, e agora sentia-se muito só. Receava dizer a Cat que ia
casar e que teriam que deixar os bosques de Ballyhara de que ela tanto gostava, assim
como a torre, que era o seu local preferido.
A reação de Cat foi como um bálsamo para o coração.
- Gosto de cidades - disse. - É onde está o zôo.
"Estou fazendo o que devo", pensou Scarlett. "Agora não tenho dúvidas."
Mandou vir de Dublim livros com imagens de Londres e escreveu a Mrs. Sims
para marcar um encontro. Tinha que encomendar o vestido de casamento.
Passados alguns dias apareceu um mensageiro de Fenton com um embrulho e
uma carta. Na carta dizia que ficaria na Inglaterra até à semana do casamento. Este
não seria anunciado antes do final da época em Londres. E Scarlett deveria
encomendar o vestido para complementar as jóias que ele enviava num embrulho pelo
mesmo portador. Ainda tinha três meses! Ninguém a pressionaria com perguntas ou
convites até ser divulgada a notícia do casamento.
Dentro do embrulho encontrou um estojo quadrado de pele com finas
incrustações de ouro. Levantando a tampa, Scarlett soltou uma exclamação. A caixa
estava forrada de veludo verde e dividida em compartimentos que continham um colar,
duas pulseiras e um par de brincos.
Os engastes eram de ouro pesado e antigo. As jóias eram rubis cor de sangue,
cada um do tamanho de um polegar. Os brincos eram rubis ovais que pendiam de uma
armação complicada. As pulseiras tinham doze pedras cada uma, e o colar era
constituído por duas fiadas de pedras unidas por correntes grossas. Pela primeira vez,
Scarlett compreendeu a diferença entre jóias e peças de joalheria. Ninguém se
referirira àqueles rubis como jóias. Eram raros demais e valiosos. Eram, sem dúvida,
peças de joalheria. Não conseguiu colocar o colar sozinha; teve que chamar Peggy
Quinn. Quando se viu ao espelho, Scarlett suspirou profundamente. A sua pele parecia
alabastro em contraste com o brilho dos rubis. O cabelo parecia mais escuro e mais
lustroso. Tentou lembrar-se como era a tiara. Sim, também tinha rubis. Pareceria uma
rainha quando fosse apresentada à rainha. Os seus olhos verdes semicerraram-se.
Londres ia ser um jogo muito mais excitante que Dublim. Até podia vir a gostar muito
de Londres.
Peggy Quinn não perdeu tempo em contar a novidade aos outros criados e à
família em Ballyhara. O magnífico conjunto de jóias, mais o manto debruado de
arminho, mais todos aqueles cafés matinais, só podiam querer dizer uma coisa. A
O'Hara ia casar com aquele canalha do conde de Fenton.
"E que vai ser de nós?" A pergunta, de mistura com muita apreensão, espalhou-
se por todas as casas.

Scarlett e Cat andaram a cavalo pelos campos de trigo em Abril. A criança franzia
o nariz devido ao cheiro intenso do estrume recém-espalhado. Os estábulos e os
celeiros nunca tinham este cheiro; eram limpos todos os dias. Scarlett riu dela.
- Nunca desdenhes da terra adubada, Cat O'Hara. Para um lavrador é um doce
perfume, e tu tens nas veias sangue de lavradores. Não quero que te esqueças disto.
Olhou com orgulho os campos arados e semeados. "Isto é meu. Dei-lhes vida."
Sabia que era desta parte da vida que ia sentir mais falta quando se mudasse para
Londres. Mas guardaria sempre a memória e a felicidade. No seu coração, seria
sempre a O'Hara.
E um dia Cat podia regressar, quando fosse crescida e se pudesse defender.
Então, ganharia por mérito próprio o nome de O'Hara.
- Nunca, mas nunca esqueças de onde vens - disse Scarlett à filha. - Orgulha-te
disso.
- Tem que jurar por cima de um monte de Bíblias que não conta a ninguém - disse
Scarlett a Mrs. Sims.
A modista mais exclusiva de Dublim deitou a Scarlett um olhar gelado.
- Nunca ninguém pôs em causa a minha discrição, Mrs. O'Hara.
- Vou me casar, Mrs. Sims, e quero que me faça o vestido. Retirou o estojo das
jóias e abriu-o.
- Estas jóias serão usadas com ele.
Os olhos e a boca de Mrs. Sims fizeram Scarlett sentir-se compensada das horas
de suplício passadas na sala de provas. A mulher devia estar deslumbrada.
- Também há uma tiara - disse Scarlett com ar desprendido -, e vou querer a
cauda debruada a arminho.
Mrs. Sims abanou vigorosamente a cabeça.
- Não pode fazer isso, Mrs. O'Hara. As tiaras e o arminho são só para as grandes
cerimônias da corte. Principalmente o arminho. Com toda a certeza não é utilizado
desde o casamento de sua Majestade.
Os olhos de Scarlett faiscaram.
- Então e eu não sei isso, Mrs. Sims? Não passo de uma americana ignorante que
se vai tornar condessa de um dia para o outro. As pessoas vão sempre condenar o que
eu fizer. Por isso, vou fazer o que quiser, e como quiser.
A infelicidade levou-a a imprimir à voz um tom imperioso.
Mrs. Sims acalmou imediatamente. No seu espírito passaram rapidamente os
mexericos sociais, tentando identificar o futuro marido de Scarlett. Pensou que haviam
de fazer um lindo par. Ignoravam a tradição e ainda eram admirados por isso. Onde ia
parar o mundo? Mas uma mulher tinha que fazer pela vida, e as pessoas falariam do
casamento durante anos. O seu trabalho ia ser exibido. Tinha que sair uma coisa
magnífica. Mrs. Sims recuperou a sua segurança altaneira.
- Só há um vestido que possa fazer justiça ao arminho e aos rubis - disse. -
Veludo de seda branca com rendas por cima. Galway será o melhor. Quanto tempo
tenho? E preciso fazer a renda, depois cosê-la ao veludo e à volta das pétalas de cada
flor. Leva tempo.
- Cinco meses chegam?
Mrs. Sims passou as mãos arranjadas pelo cabelo cuidadosamente penteado.
- Tão pouco tempo... deixe-me pensar... Se arranjar mais duas costureiras... se as
freiras fizerem isto... será o casamento mais falado na Grã-Bretanha, na Irlanda... tem
que se fazer, haja o que houver.
Percebeu que estava falando alto e tapou a boca com a mão. Tarde demais.
Scarlett apiedou-se dela. Levantou-se e estendeu a mão.
Deixo o vestido ao seu cuidado, Mrs. Sims. Tenho inteira confiança em ti. Avise-
me quando for preciso vir a Dublim para a primeira prova.
- Oh, eu vou à sua casa, Mrs. O'Hara. E gostaria que me tratasse por Daisy.
Em Country Meath o sol não fez ninguém feliz. Os lavradores estavam com medo
de ter outro ano como o anterior. Em Ballyhara abanavam a cabeça e previam
desgraças. Então Molly Keenan não vira a criança roubada pelas fadas sair da casa da
bruxa? E de outra vez não fora vista por Paddy Conroy, embora o que ele lá estivera
fazendo não contasse a ninguém, nem ao confessor. Também diziam que se tinham
ouvido mochos durante o dia em Pike Comer, e o bezerro de Mrs. MacGruder morrrera
de noite, sem razão aparente. A chuva, no dia seguinte, não diminuiu para os rumores.
Em Maio, Colum acompanhou Scarlett ao Mercado de Trabalho em Drogheda. O
trigo estava bem crescido, a erva das pastagens quase pronta para ser cortada, e as
batatas tinham uma folhagem saudável. Iam estranhamente calados, cada um entregue
aos seus pensamentos. Para Colum a preocupação devia-se ao aumento de milícias e
tropas por todo o County Meath. Os informadores diziam que vinha a caminho de
Navan um regimento inteiro. O trabalho da Liga da Terra fora bom; ele seria o último a
negar a vantagem da redução das rendas. Mas a greve às rendas agitara os
proprietários. Agora eram feitas expulsões sem aviso prévio, e o colmo começava a
arder antes que as pessoas tivessem tempo de retirar de casa os seus pertences.
Dizia-se que tinham morrido queimadas duas crianças. No dia seguinte foram feridos
dois soldados. Três fenianos tinham sido presos em Mullingar, incluindo Jim Daily. A
acusação fora incitação à violência, embora ele tivesse passado os dias e noites da
semana a servir bebidas no bar.
Scarlett só se lembrava da feira por um motivo. Rhett estivera lá com Bart
Morland. Evitou olhar para o local onde se vendiam os cavalos; quando Colum sugeriu
que dessem uma volta para apreciar a feira, quase lhe gritou que não, que queria era
voltar para casa. Havia uma certa distância entre eles desde que lhe dissera que ia
casar com Fenton. Não fora rude, não precisava ser. A acusação estava bem patente
nos seus olhos.
Passava-se o mesmo com Mrs. Fitz. Quem pensavam eles que eram para a
julgarem? Que sabiam dos seus desgostos e receios? Não chegava ficarem com
Ballyhara depois de ela partir? Era o que eles queriam. Não, não era justo. Colum era
quase seu irmão, e Mrs. Fitz sua amiga. Mais uma razão para serem compreensivos.
Não era justo. Scarlett começou a ver desaprovação em todo o lado, nos rostos das
empregadas de balcão de Ballyhara quando ela fazia um esforço especial para pensar
no que de compraria, naqueles meses magros antes das colheitas. "Não sejas tola",
disse para consigo mesma, "estás imaginando coisas porque não tens certeza do que
vais fazer. É o que devo fazer. Sim, por Cat e por mim." Andava irritável com todos
exceto com Cat, e a ela via-a pouco. Uma vez chegara a subir vários degraus da
escada de corda, mas voltara atrás. "Sou uma mulher adulta, não posso ir falar com
uma criança à procura de apoio." Trabalhava nos campos de feno dia após dia,
satisfeita por estar ocupada, satisfeita por lhe doerem os braços e as pernas após o
trabalho. Satisfeita, acima de tudo, pela boa colheita. Os seus receios desapareceram
gradualmente.
A noite de 24 de Junho completou a cura. A fogueira foi a maior de sempre e a
música e as danças constituíram o calmante de que ela precisava para pacificar os
nervos e melhorar a disposição. Quando, de acordo com a tradição, o brinde à saúde
da O'Hara foi gritado pelos campos de Ballyhara, Scarlett sentiu que estava bem com o
mundo.
No entanto, sentia-se um pouco arrependida por ter recusado tantos convites
durante o Verão. Não quisera deixar Cat sozinha. Mas sentia-se só e dispunha de
tempo demais para pensar e se preocupar.
Ficou quase feliz quando recebeu um telegrama meio histérico de Mrs. Sims,
dizendo-lhe que as rendas ainda não tinham chegado do convento em Galway, nem
sequer tinha obtido resposta às suas cartas e telegramas.
Scarlett sorria quando se dirigia para a estação de trem em Trim. Já estava
habituada a discutir com Madres Superioras e queria uma boa discussão.
Teve tempo, justo, de correr até a loja de Mrs. Sims, acalmá-la, agarrar o desenho
da renda encomendada e correr para a estação a fim de apanhar o primeiro trem para
Galway. Scarlett instalou-se confortavelmente e abriu o jornal.
Lá estava. O Irish Times imprimira na primeira página o anúncio do casamento.
Scarlett lançou olhares aos outros passageiros do compartimento para ver se algum
deles estava lendo o jornal. O desportista vestido de tweed lia um jornal desportivo; a
mãe bem vestida jogava com o filho. Leu novamente. O Times acrescentara alguns
comentários próprios à notícia do casamento. Scarlett sorriu quando leu a parte que
falava da "O'Hara de Ballyhara, um belo ornamento para os círculos mais chegados da
realeza" e "sofisticada e destemida cavaleira".
Só trouxera uma pequena mala para a sua estada em Dublim e Galway, por isso
só foi preciso um carregador para a acompanhar da estação ao hotel.
A recepção estava apinhada de pessoas.
- Mas que raio é isto? - perguntou Scarlett.
- São as corridas - respondeu o carregador. - Não veio a Galway sem saber disto,
não é? Não vai conseguir arranjar quarto.
"Impertinente", pensou Scarlett, "estás vendo se arranjas uma boa gorjeta."
- Espere aqui - ordenou. Chegando à recepção, disse:
Gostaria de falar com o gerente, por favor.
O homem de ar enervado olhou-a de cima abaixo e respondeu:
- Com certeza, minha senhora, é só um momento. - E desapareceu por detrás de
uma porta de vidro. Regressou com um homem careca de casaco preto e calças
listradas.
- Tem alguma queixa a apresentar, minha senhora? Receio bem que o serviço do
hotel diminua de qualidade nesta época das corridas. Mas o que quer que seja...
Scarlett interrompeu-o.
- Tenho a idéia de que o serviço é impecável. Por isso é que gosto de ficar no
Railway. Vou precisar de um quarto para esta noite - acrescentou, sorrindo.
A subserviência do gerente evaporou-se de imediato.
- Um quarto para esta noite? Nem pensar...
O recepcionista puxou-lhe pela manga. O gerente olhou-o, furioso. O empregado
falou-lhe ao ouvido, apontando para o Times que estava sobre a secretária.
O gerente fez uma grande reverência a Scarlett.
- É uma honra recebê-la, Mrs. O'Hara. Penso que aceitará uma suite muito
especial, a melhor em Galway, como convidada da gerência. Tem bagagem? Vou
mandar levá-la.
Scarlett apontou para o carregador. Na verdade, valia a pena casar com um
conde.
- Mande pôr isto no meu quarto. Subo mais tarde.
Na realidade, Scarlett não sabia se iria precisar dos quartos. Esperava poder
apanhar o trem da tarde para Dublim, e assim ainda teria tempo de apanhar outro para
Trim. Graças a Deus os dias eram longos. "Poderei ficar até as dez da noite se for
preciso. Agora, vejamos se as freiras ficam tão impressionadas com o conde de Fenton
como o gerente do hotel ficou. É pena ser protestante. Acho que não devia ter obrigado
Daisy Sims a jurar que guardaria o segredo."
Scarlett olhou para a praça. Que multidão malcheirosa. "Deviam ter apanhado
chuva nas roupas." Scarlett passou por dois homens de rosto congestionado que
gesticulavam. Tropeçou em Sir John Morland, e mal o reconheceu. Parecia
extremamente doente. Não havia cor no seu rosto, nem expressão nos seus olhos
habitualmente calorosos.
- Bart, meu caro. Está bem?
Ele pareceu ter dificuldade em olhar bem para ela.
- Oh, desculpe, Scarlett. Não estou lá muito bem. Já bebi um copinho a mais.
Àquela hora do dia? John Morland não costumava beber demais a nenhuma hora
do dia, muito menos antes do almoço. Agarrou-lhe o braço.
- Venha, Bart. Vai tomar café comigo e comer qualquer coisa.
Scarlett entrou na sala de jantar. Os passos de Morland eram vacilantes.
"Afinal, acho que vou precisar do quarto", pensou, "mas Bart é muito mais
importante que andar atrás de umas rendas. Que raio lhe pode ter acontecido?"
Após uma boa dose de café, ficou sabendo. John Morland foi-se abaixo e chorou
quando lhe contou.
- Queimaram-me os estábulos, Scarlett. Tinha levado Dijon às corridas a
Balbriggan, embora não seja uma grande corrida, pensei que ela havia de gostar de
correr na areia, e quando cheguei em casa os estábulos eram ruínas. Meu Deus, o
cheiro! Meu Deus!. Quando não consigo dormir ouço o relinchar dos cavalos.
Scarlett quase se engasgou. Pousou a xícara. Não podia ser. Ninguém faria uma
coisa tão horrível. Devia ter sido um acidente.
- Foram os meus rendeiros. Por causa das rendas, sabe? Como me podiam ter
tanto ódio? Tentei ser um bom senhorio, sempre tentei. Por que não me queimaram a
casa? Queimaram a casa de Edmund Barrow. Podiam ter queimado a minha comigo lá
dentro, não me importava. Se ao menos tivessem poupado os cavalos. Meu Deus,
Scarlett. Que mal lhes fizeram os meus pobres cavalos?
Não havia nada que ela pudesse dizer. O coração de Bart estava nos seus
estábulos... Bem, ele tinha estado fora com Dijon, o seu orgulho e alegria.
- Ainda tens Dijon. Podes começar tudo de novo, pô-la a procriar. É o cavalo mais
maravilhoso que já vi. Podes ficar com os estábulos de Ballyhara. Não te lembras?
Disseste-me que eram como uma catedral. Pomos lá um órgão. Podes criar potros ao
som de Bach. Não desanimes, Bart, tens que lutar. Eu sei, também já andei em baixa.
Mas não podes desistir, não podes.
Os olhos de John Morland tinham uma expressão mortiça.
- Vou para Inglaterra hoje à noite, no barco das oito. Nunca mais quero ver um
rosto irlandês ou ouvir uma voz. Pus Dijon em lugar seguro enquanto vendia o resto.
Ela vai entrar na corrida de hoje e, quando acabar, também se acaba a Irlanda para
mim.
Os seus olhos trágicos pelo menos estavam sóbrios. E secos. Scarlett quase
desejou que ele recomeçasse a chorar. Pelo menos, sentiria alguma coisa. Agora
parecia que nunca mais seria capaz de sentir nada. Parecia morto.
Então, subitamente, verificou-se uma transformação. Sir John Morland, baronete,
com esforço de vontade, ganhou vida. Os seus ombros endireitaram-se e a sua boca
esboçou um sorriso. Até os seus olhos ganharam um pouco de alegria.
- Pobre Scarlett, fiz-te passar um mau bocado. Perdoa-me. Eu aguento-me.
Aguentamo-nos sempre. Acaba o teu café e vem comigo à corrida. Aposto uma nota de
cinco em Dijon, em teu nome, e podes pagar o champanhe com o que ganhares
quando ela mostrar o que vale.
Scarlett nunca na vida respeitara alguém como respeitou John Morland nesse
momento. Sorriu-lhe também.
- Aposto também cinco libras e beberemos champanhe. Combinado?
Cuspiu na palma da mão e estendeu-a. Morland fez o mesmo, sorrindo.
- Linda moça - disse.
A caminho da corrida, Scarlett tentou lembrar-se do que ouvira dizer sobre as
corridas onde se compravam cavalos. Todos os cavalos em competição estavam à
venda, tendo os preços sido fixados pelos respectivos proprietários. No final das
corridas qualquer pessoa podia reclamar um dos cavalos, e o proprietário era obrigado
a vender pelo preço fixado. Ao contrário das habituais vendas de cavalos na Irlanda, ali
não havia regateio. Os cavalos que não fossem comprados teriam de ser reclamados
pelos seus proprietários. Scarlett não acreditava que os cavalos não pudessem ser
comprados antes de a corrida começar, quaisquer que fossem as regras. Quando lá
chegaram perguntou a Bart qual era o número do seu camarote. Disse que precisava
se refresccar.
Assim que ficou sozinha, perguntou onde se aceitavam as ofertas. Esperava que
Bart tivesse pedido um preço alto por Dijon. Tencionava comprá-la e enviá-la mais
tarde, quando ele já estivesse instalado na Inglaterra.
- Que quer isso dizer de Dijon já ter sido comprada? Isso só pode acontecer
depois da corrida.
O funcionário de chapéu alto esforçou-se por não sorrir.
- A senhora não é a única entendida. Deve ser dos americanos. O cavalheiro que
já fez uma oferta também é americano.
- Ofereço o dobro.
- Não pode ser, Mrs. O'Hara.
- Suponhamos que eu comprei Dijon a Sir John antes de a corrida começar.
- Impossível.
Scarlett ficou desesperada. Precisava conseguir aquele cavalo para Bart.
- Posso, no entanto, sugerir uma coisa...
- Sim, por favor. Que devo fazer? É terrivelmente importante.
- Pode perguntar ao novo proprietário se ele quer vender.
- Sim. Vou fazer isso.
Pagaria ao homem o resgate de um rei se preciso fosse. "Americano", dissera o
funcionário. Ótimo... Na América, o dinheiro fala.
- Quer me dizer quem ele é?
O homem do chapéu alto consultou uma folha de papel.
- Encontra-se no Jury Hotel. Chama-se Butler.
Scarlett já estava de saída. Cambaleou, quase perdendo o equilíbrio. Foi com a
voz sumida que perguntou:
- Não será, por acaso, Mr. Rhett Butler?
Pareceu-lhe demorar uma eternidade até o homem voltar a consultar a folha que
tinha na mão.
- Sim, é esse o nome.
Rhett! Ali. Bart devia ter-lhe escrito falando dos estábulos, da venda e de Dijon.
"Deve ter feito o que eu vinha fazer. Veio da América propositadamente para ajudar um
amigo. Ou para ter um vencedor nas próximas corridas de Charleston. Não interessa.
Nem o pobre do querido Bart interessa, Deus me perdoe. Vou ver Rhett."
Scarlett percebeu que corria empurrando as pessoas sem pedir desculpa. "Para o
diabo com todos, com tudo." Rhett estava ali, a alguns metros de distância.
- Camarote oito - disse para um empregado.
Ele apontou-o. Scarlett fez um esforço para respirar lentamente, tinha que
aparecer com um ar normal. Ninguém podia ver o seu coração bater, não é? Subiu os
dois degraus até o camarote. Cá em baixo, na pista oval, doze corredores de camisas
brilhantes esporeavam os cavalos em direção à meta. Todo mundo em volta de Scarlett
gritava, incitando os cavalos. Ela não ouviu nada.
Rhett observava a corrida através de uns binóculos. Mesmo a alguns metros de
distância ela sentiu o cheiro do uísque. Ele balançava-se para a frente e para trás.
Bêbedo? Rhett? Não. Aguentava sempre a bebida. Será que a desgraça de Bart o
afetara assim tanto?
"Olha para mim", implorou-lhe o coração. "Pousa os binóculos e olha para mim.
Deixa-me olhar-te nos olhos quando disseres o meu nome. Deixa-me ver nos teus
olhos que sentes alguma coisa por mim. Em tempos, amaste-me."
Gritos e exclamações festejaram o final da corrida. Rhett baixou os binóculos com
mão trêmula.
- Raios, Bart, é o meu sexto perdedor seguido - disse, rindo.
- Olá, Rhett - disse ela.
Ele voltou a cabeça, e ela viu os seus olhos escuros. Não pareciam sentir nada
por ela a não ser raiva.
- Olá, condessa. -Os olhos dele percorreram-na desde as botas até o chapéu
emplumado. - Não há dúvida de que estás com um ar... caro.
Voltou-se abruptamente para John Morland.
- Devias ter me avisado, Bart, para eu ter ficado no bar. Deixa-me passar.
Deixou Morland a cambaleando depois de o ter empurrado... e saiu.
Os olhos de Scarlett seguiram-no, impotentes. Depois, encheram-se de lágrimas.
John Morland tocou-lhe no ombro, desajeitadamente.
- Eia, Scarlett, peço desculpa por Rhett. Bebeu demais. Hoje já tiveste que
aguentar dois. Não é muito agradável.
- Não, não é muito agradável.
"Então é isto que Bart acha? 'Não é muito agradável' ser pisada? Não pedia
muito. Só que ele me dissesse olá e o meu nome. Que direito tem Rhett de estar
furioso e de me insultar? Será que não posso casar depois de ele me ter rejeitado?
Raios o partam. Por que é que para ele está bem divorciar-se de mim para casar com
uma charlestoniana decente e ter filhos decentes que se tornam em adultos ainda mais
decentes, e eu não me posso casar e dar à sua filha aquilo que devia ser ele a dar-
lhe?"
- Espero que tropece naqueles pés bêbados e parta o raio do pescoço - disse
para Bart Morland.
- Não sejas dura com ele, Scarlett. Passou por uma verdadeira tragédia. Até
tenho vergonha de estar preocupado com os estábulos quando há pessoas como Rhett
com problemas muito maiores. Falei-te do bebê, não falei? Pois aconteceu uma coisa
horrível. A mulher dele morreu ao dar à luz, e o bebê só resistiu quatro dias.
- Quê? Quê? Repete já isso. - Scarlett agarrou-se ao braço dele com tanta força
que lhe derrubou o chapéu.
Ohou para ela confuso, quase receoso. Havia nela algo de selvagem, algo mais
forte do que ele jamais conhecera. Repetiu que a mulher e o filho de Rhett tinham
morrido.
- Para onde foi ele? - gritou Scarlett. - Bart, deves ter alguma idéia para onde ele
possa ter ido.
- Não sei, Scarlett. O bar... o hotel... um pub qualquer.
- Ele vai contigo para Inglaterra esta noite?
- Não. Disse que tinha que visitar uns amigos. E um tipo incrível, tem amigos por
todo o lado. Sabias que ele uma vez foi a uma caçada com o vice-rei? Convidado por
um marajá qualquer. Devo dizer que estou surpreendido por ele se ter embebedado
tanto. Nem sequer me lembro de o ver beber comigo. Foi ele que me levou ao hotel a
noite passada e me meteu na cama. Estava com bom aspecto e deu-me uma boa
ajuda. Contava com ele hoje para me apoiar. Mas, quando desci esta manhã, o porteiro
disse-me que ele encomendou o café e o jornal, enquanto me esperava e, de repente,
saiu porta fora sem pagar. Fui para o bar esperar por ele. Scarlett, que é? Hoje não te
entendo... Estás chorando porquê? Fiz alguma coisa? Disse algo de errado?
Os olhos de Scarlett inundaram-se de lágrimas.
- Não, não, querido John Morland, Bart. Não disseste nada errado.
Ele me ama. Me ama. É a coisa mais bonita que eu poderia ter ouvido. Rhett veio
por minha causa. Por mim é que ele veio à Irlanda. Veio ter comigo logo que ficou livre.
Não foi pelo cavalo de Bart, pois poderia tê-lo comprado pelo correio. Luke Fenton não
o vai assustar. Deve querer-me tanto quanto o quero a ele. Preciso ir para casa. Não
sei onde o posso encontrar, mas ele pode encontrar a mim. Rhett Butler não se deixa
impressionar por títulos, arminhos e coroas. Ele me quer e irá me procurar. Sei que irá
a Ballyhara. Tenho que estar lá quando ele for.
- Adeus, Bart. Tenho que ir - disse Scarlett.
- Não queres ver Dijon ganhar a corrida? E as nossas apostas?
John Morlnad abanou a cabeça. Ela desparecera. Americanos! Uns tipos
fascinantes, mas nunca os entenderia.
Perdeu o trem para Dublim por dez minutos. O trem seguinte só partiria às quatro.
Scarlett mordeu os lábios, frustrada.
- Qual é o próximo trem em direção a leste? - O homem atrás do gradeamneto era
irritantemente lento.
- Pode ir até Ennis, se estiver para isso. Fica a leste de Atheny e depois segue
para sul. O trem até tem dois vagões novos, muito bonitos, dizem as senhoras... e
também há o trem para Kildare, mas esse não o pode apanhar pois já soou o apito... E
também há para Tuan, embora seja mais a norte que a leste, mas a máquina é a
melhor de toda a linha... Minha Senhora?
Scarlett debulhava-se em lágrimas junto ao homem da estação.
- Recebi o telegrama há dois minutos, o meu marido foi atropelado pela carroça
do leite, tenho que apanhar o trem para Kildare.
Ele a deixaria a mais de meio caminho do percurso de Trim e Ballyhara. Faria o
resto a pé, se fosse necessário.
Cada parada era uma tortura. Por que não se apressavam? Depressa, depressa,
sussurrava-lhe o espírito. Tinha a mala na melhor suite do Hotel Galway Railway, e, no
convento, as freiras de olhos inflamados davam os últimos pontos nas rendas
delicadas. Nada disso importava. Devia estar em casa, à espera, quando Rhett
chegasse. Se ao menos John Morland não tivesse levado tanto tempo para contar-lhe
tudo, poderia ter apanhado o trem para Dublim. Rhett poderia lá ir, podia ter ido para
qualquer lado depois de sair do camarote de Bart. Levou quase três horas e meia para
chegar a Moate, onde desceu. Passava das quatro, mas, pelo menos, já ia a caminho,
em vez de ter ficado à espera do trem que estava agora saindo de Galway.
- Onde posso comprar um bom cavalo? - perguntou ao chefe da estação. - Não
me interessa quanto custa desde que tenha uma sela, freios, e seja rápido.
Ainda tinha que percorrer vinte e cinco quilômetros.
O dono do cavalo queria regatear. Então não residia aí metade do prazer da
venda?, perguntou aos amigos, no Bar Rings Coach, depois de ter pago uma rodada a
todos. A maluca da mulher tinha-lhe atirado libras de ouro e partira como se o Diabo a
perseguisse. Nem queria contar a quantidade de rendas que vira e as partes da perna
sem cobertura decente.
Scarlett atravessou a ponte de Mulligan com o cavalo coxeando, antes das sete
horas. Na estrebaria entregou as rédeas a um moço.
- Ele não é coxo, só está cansado e fraco - disse. - Refresca-o com cuidado e
ficará como novo... não que seja grande coisa. Dou-te se me venderes um desses que
tens aí para os oficiais do forte. Não me digas que não tens, pois já cacei com alguns e
sei onde eles costumam alugar as montarias. Muda-Ihe a sela em menos de cinco
minutos e ganhas mais um guinéu.
Às sete e dez já ia a caminho com doze quilômetros para fazer e as indicações
para seguir por um atalho.
Passou por Trim Castle em direção a Ballyhara às nove horas. Doíam-lhe todos
os músculos do corpo e parecia que tinha os ossos partidos. Mas estava a pouco mais
de dois quilômetros de casa, e o crepúsculo era agradável e suave. Começou a cair
uma chuva miudinha. Scarlett inclinou-se para a frente e a cariciou o pescoço do
cavalo.
- Uma boa esfregadela e a melhor farinha quente de County Meath para ti, seja
qual for o teu nome. Aguentaste-te como um campeão. Agora, vamos a trote, bem
mereces descansar.
Semicerrou os olhos e deixou pender a cabeça. Essa noite dormiria como nunca
tinha dormido. Era difícil acreditar que ainda de manhã estava em Dublim e que
atravessara duas vezes a Irlanda, desde o desjejum.
Havia ainda a ponte de madeira sobre Knightbrook. "Quando passar a ponte
estou em Ballyhara."
Meio quilômetro para a cidade, trezentos metros para o cruzamento, subo o
caminho e já está. Cinco minutos, não mais." Endireitou-se na sela, deu um estalido
com a língua e esporeou o cavalo.
Passa-se algo de errado. A vila de Ballyhara é ali à frente e não há luzes nas
janelas. Habitualmente, a esta hora, os bares brilham que nem luas. Scarllet picou o
cavalo com os saltos das finas e delicadas botas. Passara pelas primeiras cinco casas
às escuras antes de avistar o grupo de homens frente ao caminho que dava para a
Casa Grande. Uniformes vermelhos. Milícia. Que pensavam eles estar fazendo na
cidade dela? Já lhes tinha dito que não os queria ali. Que chato, logo naquela noite em
que estava caindo de cansaço. "Claro, por isso é que as janelas estão às escuras, não
querem servir copos aos ingleses. Vou livrar-me deles e as coisas voltarão ao normal.
Quem me dera não estar tão descomposta. É difícil dar ordens quando se anda com a
roupa interior à mostra. É melhor ir a pé. Pelo menos, não fico com as saias pelo
joelho."
Puxou as rédeas. Foi difícil não gemer quando alçou a perna sobre o cavalo. Viu
um soldado, não, um oficial, dirigir-se ao seu encontro. Ótimo. Ela lhe diria o que
pensava, estava mesmo querendo. Os seus homens estavam na vila dela, no seu
caminho, impedindo-a de regressar à casa.
Ele deteve-se frente aos correios. Ao menos, podia ter tido a delicadeza de ir
encontrá-la ela. Scarlett encaminhou-se, hirta, até o centro da rua larga.
- Você aí, com o cavalo. Pare ou atiro.
Scarlett parou. Não devido à ordem do oficial, mas por causa da voz. Conhecia
aquela voz. Deus Todo Poderoso, aquela era a única voz no mundo que ela esperara
não ter que voltar a ouvir. Devia estar enganada, sentia-se tão cansada que só podia
estar imaginando coisas, a inventar pesadelos.
- Vocês aí nas casas. Não vos acontecerá nada se mandarem cá para fora o
Padre Colum O'Hara. Tenho um mandado de captura. Ninguém ficará ferido se ele se
entregar.
Scarlett teve vontade de rir. Aquilo não podia estar acontecendo. Ouvira bem,
conhecia aquela voz, ouvira-a bem junto ao ouvido dizer-lhe palavras de amor. Era
Charles Ragland. Uma vez, uma única vez na vida fora para a cama com um homem
que não era o marido, e agora ele viera do outro extremo da Irlanda para prender o seu
primo. Era um absurdo, uma loucura; era impossível.
Bem, pelo menos de uma coisa podia ter certeza, isto se não morresse de
vergonha à frente dele. Charles Ragland era o único oficial em todo o exército britânico
que faria o que ela lhe dissesse para fazer. Que fosse embora e a deixasse em paz e
ao primo.
Largou as rédeas do cavalo e avançou.
- Charles?
No momento em que ela o chamou, Charles Ragland gritou:
- Alto! - E disparou o revólver para o ar. Scarlett estremeceu.
- Charles Ragland! - gritou. - Você endoideceu?
Ouviu-se um estampido de um segundo tiro abafando-lhe as palavras, depois
Ragland pareceu dar um salto no ar e caiu no chão.
Scarlett desatou a correr.
- Charles! Charles!
Ouviu mais tiros, mais gritos, mas ignorou tudo.
- Charles!
- Scarlett! - Ouviu de um lado e depois do outro, e depois Charles chamou
"Scarlett" quando ela se ajoelhou ao lado dele. Sangrava horrivelmente do pescoço,
manchando a camisa encarnada.
- Scarlett, querida, baixa-te.
Colum encontrava-se ali perto, mas ela não olhou para ele.
- Charles, oh, Charles. Vou buscar um médico. Vou buscar Grainne, ela pode
ajudá-lo.
Charles ergueu a cabeça, e ela tomou-a entre as suas mãos. Sentiu as lágrimas
escorrerem-lhe pelo rosto abaixo, mas não se percebeu que chorava. Ele não podia
morrer. Charles não, era tão querido e tão gentil, fora tão meigo com ela. Não podia
morrer. Era um homem bom e gentil.
Ouviu-se um barulho terrível à volta. Algo assobiou sobre a sua cabeça. Por
Deus, que estava acontecendo? Aquilo eram tiros, havia gente aos tiros, ingleses,
estavam matando a sua gente. Não o permitiria. Mas tinha que ir buscar ajuda para
Charles, e ouviam-se botas correndo e Colum gritava e, "Oh, Meu Deus, por favor
ajuda-me, tenho de fazer parar isto, oh, Deus, Charles está ficando frio."
- Charles! Charles! Não morra.
- Ali vem o padre - alguém gritou.
Ouviram-se tiros de fusil vindos das janelas escuras das casas de Ballyhara. Um
soldado cambaleou e caiu. Um braço agarrou Scarlett por detrás, e ela lançou os
braços para se defender do atacante invisível.
- Mais tarde, minha cara, agora nada de luta - disse Rhett. - Esta é a melhor
oportunidade. Eu te carrego. Deixa-te cair.
Atirou-a para cima do ombro, segurando-a pelos joelhos, e correu, agachado
contra a sombra.
- Qual é o caminho por trás? - perguntou.
- Me põe no chão que eu mostro - disse Scarlett. Rhett colocou-a no chão. As
suas mãos fecharam-se sobre os ombros dela, e, puxando-a impacientemente para si,
beijou-a com firmeza, largando-a logo a seguir.
- Detestaria ser atingido sem conseguir aquilo por que vim aqui - disse, e ela
sentiu riso na voz dele. - Agora, Scarlett, tira-nos daqui.
Ela agarrou-lhe a mão e seguiu por uma passagem estreita entre duas casas.
- Segue-me. Isto vai dar num túnel. Depois de entrarmos, ninguém nos consegue
ver.
- Indica o caminho - disse Rhett. Largou-lhe a mão e deu-lhe um ligeiro empurrão.
Scarlett queria conservar a mão dele, nunca ter que a largar, mas o tiroteio ouvia-se ali
perto, e correu para a segurança do túnel.
As paredes eram altas e grossas. Logo que Scarlett e Rhett deram uns passos no
interior, o ruído da batalha tornou-se indistinto. Scarlett parou para recuperar fôlego,
para olhar para Rhett, para compreender que por fim estavam juntos. O seu coração
transbordava de felicidade.
Mas o aparentemente distante eco do tiroteio exigia a sua concentração e ela
lembrou-se. Charles Ragland estava morto. Vira um soldado ferido, talvez morto. A
milícia andava atrás de Colum, disparando contra o povo da sua vila, matando-os
talvez. Ela podia ter sido atingida e Rhett também.
- Temos que chegar à casa - disse. - Lá estaremos em segurança. Tenho que
avisar os criados para se manterem longe da cidade até isto acabar. Depressa, Rhett,
temos que nos apressar.
Ele agarrou-a pelo braço.
- Espera, Scarlett, talvez não devas ir para casa. Vim agora de lá. Está vazia e às
escuras, querida, e as portas estão todas abertas. Os criados fugiram.
Scarlett libertou-se. Gemeu aterrorizada, enquanto agarrava as saias e começava
a correr o mais depressa que podia. Cat. Onde estava Cat? Rhett falava, mas ela não
ouvia. Tinha que encontrar Cat.
Por detrás do túnel, na rua larga de Ballyhara, estavam quatro cadáveres vestidos
de encarnado e três cadáveres de camponeses. O livreiro jazia junto à sua janela
estilhaçada, e bolhas de sangue jorravam-lhe da boca, juntamente com as orações
sussurradas. Colum O'Hara rezou com ele, depois fez o sinal da cruz e o homem
morreu. O vidro partido refletia a luz da lua, que se tornara visível no céu escuro.
Parara de chover.
Colum atravessou o compartimento em três passadas. Agarrou o pau da vassoura
e enfiou-o na lareira. Ouviu-se um pequeno crepitar e viram-se chamas. Colum
regressou à rua com o archote. O seu cabelo branco estava mais brilhante que a Lua.
- Sigam-me, seus carniceiros ingleses - gritou, enquanto se dirigia para a igreja
protestante deserta -, e morreremos juntos pela liberdade da Irlanda.
Duas balas cravaram-se no peito, e caiu de joelhos. Levantou-se, cambaleante,
deu mais alguns passos hesitantes até que três outros tiros o atingiram, pela direita,
pela esquerda, novamente pela direita. Depois, caiu no chão.
Scarlett subiu os degraus da entrada com Rhett atrás.
- Cat! - gritou. - Cat! - As palavras ecoavam pela escadaria de pedra e pelo soalho
de mármore. - Cat!
Rhett agarrou-a pelos ombros. Só o seu rosto pálido e os olhos eram visíveis na
sombra.
- Scarlett - chamou em voz alta. - Scarlett, controla-te. Vem comigo. Temos que
sair daqui. Os criados deviam saber alguma coisa. Não é seguro ficar aqui.
- Cat!
Rhett abanou-a.
- Acaba com isso. O gato não é importante. Onde ficam os estábulos, Scarlett?
Precisamos é de cavalos.
- Oh, meu tonto - disse Scarlett. A sua voz tensa estava cheia de amor. - Não
sabes o que estás dizendo. Deixa-me ir. Preciso de encontrar Cat... Katie O'Hara, a
quem chamo Cat. É tua filha.
As mãos de Rhett fecharam-se dolorosamente sobre os braços de Scarlett.
- De que raio estás falando? - Olhou-a bem nos olhos, mas não conseguiu
decifrar a sua expressão no escuro. - Responde-me, Scarlett - insistiu, abanando-a.
- Deixa-me, raios! Agora não há tempo para explicações. Cat deve estar metida
em algum lado, mas está escuro e ela está sozinha. Deixa-me ir, Rhett, as perguntas
ficam para depois..
Scarlett tentou libertar-se, mas ele era muito forte.
- Para mim isto é muito importante - disse, com a voz embargada.
- Oh, está bem, está bem. Aconteceu quando íamos no barco e se deu a
tempestade. Tu lembras-te. Soube que estava grávida em Savannah, mas tu não foste
me ver comigo e eu não te disse nada na altura. Como ia adivinhar que te casarias com
Anne antes de saberes do bebê?
- Oh, meu Deus - gemeu Rhett, largando Scarlett. - Onde está ela? - perguntou. -
Temos que a encontrar.
- Vamos encontrá-la, Rhett. Há um candeeeiro sobre a mesa junto à porta. Risca
um fósforo para o encontrarmos.
A chama amarela do fósforo durou o suficiente para localizar um candeeiro de
cobre. Rhett segurou-o.
- Por onde começamos?
Ela pode estar em qualquer lado. Vamos.
Levou-o rapidamente até a sala de jantar e de estar.
- Cat - chamou. - Kitty Cat, onde estás?
A sua voz era forte mas não histérica. Não iria assustar a criança.
- Cat...

- Colum! - gritou Rosaleen Fitzpatrick. Correu do bar do Kennedy para o meio das
tropas britânicas, empurrando todos para poder chegar junto do corpo de Colum.
- Não disparem - gritou um oficial. - É uma mulher.
Rosaleen pôs-se de joelhos e colocou as mãos sobre as feridas de Colum.
- Ochon - gemeu, embalando-o.
O tiroteio parara; a intensidade da sua dor inspirava respeito, e os homens
desviaram o olhar. Fechou-lhe as pálpebras com dedos delicados, manchados de
sangue, e sussurrou-lhe adeus em gaélico.
Depois, agarrou na tocha e levantou-se, abanado-a e dando-lhe nova vida. O seu
rosto tinha um aspecto horrível. Foi tão rápida que não se ouviu nenhum tiro até chegar
à entrada da igreja.
- Pela Irlanda e pelo seu mártir, Colum O'Hara - gritou, triunfante, correndo para o
arsenal, brandindo a tocha. Durante um momento fez-se silêncio. Depois, a parede de
pedra da igreja explodiu para a rua numa cascata de chamas, e ouviu-se uma explosão
ensurdecedora.
O céu estava mais claro do que se fosse dia.

- Meu Deus! - exclamou Scarlett, sustendo a respiração.


Tapou os ouvidos com as mãos e correu, chamando por Cat à medida que as
explosões se sucediam e a vila de Ballyhara ia ficando em chamas. Subiu as escadas
correndo, com Rhett ao lado, até aos aposentos de Cat.
- Cat - chamou novamente, tentando afastar o medo. - Cat.
Os animais eram cor de laranja na parede, o chá estava servido sobre uma
bandeja, a colcha bem esticada sobre a cama.
- A cozinha - disse Scarlett. - Ela adora a cozinha. Vamos para baixo.
Saiu correndo, sempre com Rhett atrás. Passou pela sala com os livros de
ementas, os livros das contas, a lista de convidados para o casamento. Dali seguiram
para o quarto de Mrs. Fitzpatrick. Scarlett deteve-se a meio. Debruçou-se sobre a
balaustrada.
- Kitty Cat - chamou, suavemente. - Por favor, responde à mamã. É importante,
querida.
Uma luz laranja brilhou nas panelas de cobre penduradas por cima do fogão. O
carvão da lareira estava ainda em brasa. A sala enorme estava silenciosa, cheia de
sombras. Scalett apurou os ouvidos e os olhos. Preparava-se para sair quando ouviu
uma vozinha.
- Os ouvidos da Cat doem.
"Oh, Graças a Deus!", congratulou-se Scarlett. "Agora é preciso calma."
- Eu sei, querida, houve um barulho terrível. Tapa os ouvidos. Eu vou aí buscar-te.
Esperas por mim?
Falou descontraidamente, como se não houvesse nada a recear. A balaustrada
vibrou com a força das suas mãos.
- Sim. - Scarlett gesticulou. Rhett seguiu-a calmamente ao longo da galeria e até a
porta. Fechou-a cuidadosamente.
Depois, começou a tremer.
- Estava tão assustada. Tive medo que a levassem ou lhe fizessem mal.
- Ouve, Scarlett - disse Rhett. - Temos de nos apressar.
Pelas janelas abertas avistavam-se, ao longe, os archotes que se moviam em
direção à casa.
- Corre! - disse Scarlett. Viu o rosto de Rhett à luz cor de laranja do céu em fogo,
sólido e forte. Agora podia confiar nele. Cat estava salva. Ele rodeou-a com o braço,
amparando-a.
Embaixo, atravessaram correndo o salão de baile. Os heróis de Tara pareciam ter
vida sobre as suas cabeças. O corredor que dava para a ala da cozinha estava
fortemente iluminado, e ouviam-se gritos abafados. Scarlett fechou a porta da cozinha.
- Ajuda-me a trancá-la - pediu. Rhett tirou-lhe a barra de ferro das mãos e
colocou-a na porta.
- Como te chamas? - perguntou Cat, saindo da sombra, junto à lareira.
- Rhett - respondeu ele com a voz embargada.
- Vocês os dois podem fazer amizade mais tarde - disse Scarlett. - Temos que
chegar aos estábulos. Há uma porta que dá para o jardim, mas este tem umas paredes
muito altas e não sei se há outra porta. Tu sabes, Cat?
- Vamos fugir?
- Sim, Kitty Cat, as pessoas que aí vem a fazer muito barulho querem fazer-nos
mal.
- Trazem pedras?
- Sim. Pedras muito grandes.
Rhett encontrou a porta do jardim e olhou lá fora.
- Posso erguer-te nos ombros, Scarlett, e içar-te ao topo do muro. Depois, passo-
te Cat.
- Ótimo, mas talvez haja uma porta. Cat, temos que nos apressar. Há alguma
porta no muro?
- Sim.
- Ótimo. Dá a mão à mamã e vamos.
- Aos estábulos?
- Sim, vamos lá.
- Pelo túnel é mais rápido.
- Que túnel? - A voz de Scarlett estava trémula.
Rhett aproximou-se e rodeou-lhe os ombros com o braço.
- O túnel para a ala dos criados. Eles têm que o usar para não passarem à janela
quando estamos tomando o desjejum.
- Isso é horrível - disse Scarlett.-Se eu tivesse sabido...
- Cat, leva-me a mim e à tua mãe até o túnel, por favor - pediu Rhett. - Importas-te
que te leve ao colo, ou preferes caminhar?
- Se é para ir depressa é melhor levares-me ao colo. Não consigo correr tanto
como tu.
Rhett ajoelhou-se, estendeu os braços, e a filha aproximou-se dele,
confiantemente. Teve o cuidado de a não apertar com força demais.
- Então, trepa nas minhas costas e agarra-te ao meu pescoço. Indica lá o
caminho.
- Passa pela lareira. Aquela porta está aberta. E a copa. A porta do túnel também
está aberta. Abri-a para o caso de ter que fugir. A mamã estava em Dublim.
- Vamos lá, Scarlett, recriminas-te depois. Cat vai salvar as nossas indignas
cabeças.
O túnel tinha janelas altas e gradeadas. Quase não havia luz, mas Rhett movia-se
com facilidade e sem tropeçar. As suas mãos seguravam os joelhos de Cat. Começou
a fingir que galopava, e ela soltou exclamações de prazer.
"Meu Deus, as nossas vidas correm um perigo terrível e o homem está a brincar
de cavalos." Scarlett não sabia se havia de rir ou chorar. Haveria algum homem tão
doido por crianças como Rhett Butler?
Da ala dos criados, Cat conduziu-os diretamente para uma porta que dava para
os estábulos. Os cavalos estavam loucos de medo. Batiam com a cauda, relinchavam,
davam coices nas portas.
- Segura aí Cat enquanto os deixo sair - disse Scarlett com urgência na voz. A
história de Bart Morland estava fresca na sua memória.
- Segura-a tu, que eu faço isso.
Rhett colocou Cat nos braços de Scarlett.
Ela enfiou-se na segurança do túnel.
- Kitty Cat, ficas aqui um bocadinho enquanto a mamã ajuda com os cavalos?
- Sim, só um bocadinho. Não quero que Rhett se machuque.
- Eu mando-o já de volta. És uma menina corajosa.
- Sim - aquiesceu Cat.
Scarlett correu para junto de Rhett, e juntos libertaram os cavalos, exceto Comei e
HalfMoon.
- Não precisamos de sela - disse Scarlett. - Vou buscar Cat.
Agora já distinguiam os archotes dentro de casa. Subitamente, uma língua de
fogo subiu por um cortinado. Scarlett correu para o túnel enquanto Rhett acalmava os
cavalos. Quando regressou com Cat nos braços já ele tinha montado Comet e
segurava as rédeas de HalfMoon.
- Dá aqui Cat - disse.
Scarlett passou-lhe a filha e montou HalfMoon.
- Cat, ensina a Rhett o caminho para o vau. Vamos pela casa de Pegeen pelo
caminho de costume, está bem? Depois, apanhamos a estrada de Adamstown até
Trim. Não é longe. Depois, no hotel, haverá chá e bolinhos. Agora, ensina o caminho a
Rhett. Eu vou atrás.
Pararam na torre.
- Cat diz que nos convida para a torre - disse Rhett. Por cima do ombro dele,
Scarlett avistou chamas que lambiam o céu. Adamstown também estava ardendo. A
saída deles fora cortada. Saltou do cavalo.
- Não estão longe. - Agora sentia-se mais calma. O perigo estava próximo demais
para poder se sentir enervada.
- Salta daí, Cat, e trepa por aquela escada como se fosses um macaco.
Ela e Rhett mandaram os cavalos na direção do rio e depois seguiram Cat.
- Puxa a escada. Assim não nos apanham - disse Scarlett para Rhett.
- Mas saberão onde estamos - argumentou ele. - Posso impedi-los de subir.
Silêncio, estou os ouvindo.
Scarlett rastejou até o esconderijo de Cat e abraçou-a.
- Cat não tem medo.
- Chiu, querida. A mamã está assustada.
Cat tentou abafar uma risada.
As vozes e os archotes aproximavam-se. Scarlett reconheceu a voz de Joe
O'Neill, o ferreiro.
- Eu não tinha dito que matávamos todos os ingleses se se atrevessem a
aproximar-se de Ballyhara? Viram a cara dele quando levantei o braço?
- Se tens um deus - disse eu -, o que duvido, põe-te agora em paz com ele. - E
então dei-lhe com a picareta como se estivesse matando um porco enorme e gordo.
Scarlett tapou os ouvidos de Cat. "Como deve estar assustada a minha
pequenina! Nunca se chegou tanto a mim como agora." Scarlett sussurrou ao ouvido
de Cat aroon, aroon, e embalou a sua criança como se os seus braços fossem um
berço.
Outras vozes sobrepuseram-se à de O'Neill.
- A O'Hara estava feita com os ingleses, não vos tinha dito?... Pois disseste,
Brendan, e eu fui um tolo em discutir...
- Viram-na ajoelhada junto do casaca vermelha?... Matá-la é bom demais, vamos
mas é pendurá-la numa corda... Melhor é queimá-la... Temos é que queimar a criança,
foi ela que nos trouxe as desgraças... a bruxa disse o nome O'Hara... almaldiçoou os
campos... amaldiçoou a chuva das nuvens...
Scarlett susteve a respiração. As vozes estavam tão próximas, eram tão
desumanas, pareciam o rugir de bestas. Olhou para a silhueta de Rhett junto à escada.
Sentiu que ele estava alerta. Podia matar qualquer homem que se atrevesse a subir a
escada, mas que o impediria de levar um tiro se se mostrasse? "Rhett! Oh, Rhett! Tem
cuidado." Scarlett sentiu-se inundada por uma grande felicidade. Rhett viera. Amava-a.
A multidão enfurecida chegou junto da escada e parou.
- A torre... estão na torre.
Os gritos eram como o ladrar de cães face à morte da raposa. Scarlett sentia as
batidas do coração. Depois, a voz de O'Neill sobrepôs-se à dos outros.
- Não estão, não vêm que a escada ainda está aqui embaixo?
- A O'Hara é muito esperta, quer nos enganar - acrescentou outro, e todos
concordaram.
- Vai lá tu ver, Denny. Foste tu que fizeste a escada, deves saber se ela
aguenta... Sim, vai lá tu. Dave Kennedy, já que a idéia foi tua.. A criança fala com o
fantasma, segundo dizem... Ele está lá, de olhos abertos... a minha velha mãe viu-o
caminhar. .. sinto um arrepio na espinha, vou fugir deste lugar maldito... Mas e se a
O'Hara está lá em cima e a criança também? Temos de as matar, pelo mal que nos
fizeram... Ah, então e se morrerem de fome não é melhor que morrerem queimadas?
Botem fogo à corda, rapazes. Elas não conseguem descer sem partirem o pescoço.
Scarlett sentiu o cheiro da corda ardendo e teve vontade de gritar de alegria.
Estavam salvos. Agora ninguém podia subir. No dia seguinte faria uma corda com as
mantas que estavam no chão. Tinha acabado tudo. Com o amanhecer conseguiriam
chegar a Trim. Estavam salvos. Mordeu os lábios para não rir, para não chorar, para
não gritar o nome de Rhett, para o sentir na garganta, no ar, e ouvir o seu riso
profundo, a sua voz dizer o nome dela.
Demorou algum tempo até as vozes e o som das botas desaparecerem por
completo. Nem sequer Rhett falou. Aproximou-se dela e de Cat e envolveu-as num
longo abraço. Chegava. Scarlett pousou a cabeça no ombro dele. Não queria mais
nada.
Muito mais tarde, quando Cat já dormia profundamente, Scarlett pousou-a e
tapou-a com uma manta. Depois voltou-se para Rhett. Os seus braços rodearam-lhe o
pescoço, e os seus lábios procuraram os dele.
- Então é isso que quer dizer - sussurrou tremulamente quando o beijo acabou. -
Bem, Mr. Butler, você me tira literalmente a respiração.
Ele sorriu. Desfez o abraço e separou-se suavemente.
- Vem cá. Temos de falar.
As suas palavras calmas e baixas não fizeram Cat mover-se. Rhett aconchegou-
lhe a manta.
- Vem para aqui, Scarlett - disse. Saiu do nicho e aproximou-se da janela. O seu
perfil parecia o de um falcão contra o céu iluminado. Scarlett seguiu-o. Sentia-se capaz
de o seguir até o fim do mundo. Só precisava dizer o nome dela.
Nunca ninguém dissera o seu nome da mesma maneira que ele o fazia.
- Conseguiremos fugir - disse-lhe, confiante. - Há um caminho escondido junto à
casa da bruxa.
- De quem?
- Não é bem uma bruxa, pelo menos acho que não é, mas isso agora não importa.
Ela ensina-nos o caminho. Ou então Cat há-de conhecer algum, já que passa a vida
nos bosques.
- Haverá alguma coisa que Cat não saiba?
- Não sabe que és pai dela.
Scarlett viu que ele contraía os músculos do maxilar.
- Um dia vou dar-te uma surra por não me teres dito nada.
- Ia te dizer, mas depois não pude - disse Scarlett, acaloradamente. - Divorciaste-
te de mina quando parecia impossível, e, antes que eu pudesse fazer alguma coisa,
voltaste a casar. Que querias que eu fizesse? Que fosse para a tua porta com o bebê
nos braços, como uma desgraçada? Como pudeste fazer tal coisa, Rhett? Foste muito
mau.
- Eu? Mau? Depois de te teres posto a andar sabe Deus com quem, sem uma
palavra para ninguém? A minha mãe ficou doente de preocupação até a tua tia Eulalie
lhe ter dito que estavas em Savannah.
- Mas eu deixei-lhe um bilhete. Não iria preocupar a tua mãe por nada deste
mundo. Adoro Miss Eleanor.
Rhett agarrou-lhe o queixo e puxou-lhe o rosto para a luz da janela. De repente,
beijou-a e depois abraçou-a, puxando-a para si.
- Aconteceu outra vez - disse. - Minha Scarlett temperamental, teimosa,
maravilhosa. Já percebeste que já passamos por isto? Deixamos passar sinais,
perdemos oportunidades, houve equívocos que poderiam ter sido evitados.
- Temos que acabar com isto. Estou velho demais para estes dramas.
Ocultou os lábios e o riso no cabelo dela. Scarlett fechou os olhos e encostou-se
ao peito dele. Segura na torre, segura nos braços de Rhett, pôde dar-se ao luxo de
sentir o cansaço e o alívio. Lágrimas de exaustão correram-lhe pelo rosto, e deixou
pender os ombros. Rhett abraçou-a e acariciou-lhe as costas.
Passado um tempo os braços dele apertaram-na com desejo, e Scarlett sentiu
nas veias uma nova e excitante energia. Ergueu os olhos, e não havia repouso nem
desejo de proteção no êxtase que experimentou quando os seus lábios se uniram.
Passou os dedos pelo cabelo espesso dele, puxou-lhe a cabeça e pressionou a boca
dele contra a sua até se sentir tonta e ao mesmo tempo forte e cheia de vida. Só o
receio de acordar Cat impediu que um grito de alegria lhe saísse da boca.
Quando os beijos se tornaram mais frenéticos, Rhett afastou-se. Agarrou-se ao
parapeito da janela com mãos crispadas. Estava ofegante.
- Há limites para o controle de um homem, minha linda - disse. - E se há coisa
mais desconfortável do que uma praia molhada, é um chão de pedra.
- Diz que me amas - pediu Scarlett.
Rhett sorriu.
- Que te leva a pensar isso? Venho tantas vezes à Irlanda naqueles barcos
barulhentos só porque gosto do clima...
Ela riu. Bateu-lhe com os punhos no ombro.
- Diz que me amas.
Rhett prendeu-lhe os pulsos.
- Amo-te, moça atrevida. - A sua expressão endureceu. - E mato aquele canalha
do Fenton se tentar afastar-te de mim.
- Oh, Rhett, não sejas tolo. Nem sequer gosto de Luke.É um monstro horrível sem
coração. Só ia casar com ele porque não te podia ter a ti.
A testa franzida e cética de Rhett levou-a a continuar.
- Bem... também me agradou a idéia de Londres... e de ser condessa... e de o
fazer pagar por me ter insultado... e por Cat ficar com todo o seu dinheiro...
Os olhos de Rhett brilharam, divertidos. Beijou as mãos de Scarlett.
- Senti a tua falta - disse.
Conversaram durante toda a noite, sentados no chão frio, muito juntos, de mãos
dadas. Rhett não se cansava de saber coisas sobre Cat, e Scarlett deliciava-se em
contar-lhe, feliz pelo ar de orgulho com que ele a ouvia.
- Vou fazer o possível para ela me amar mais do que a ti - avisou.
- Não tens qualquer chance - respondeu Scarlett, confiante. - Entendemo-nos
perfeitamente, Cat e eu, e ela não vai suportar que a trates como um bebê e que a
estragues com mimos.
- E quanto a adorá-la?
- Oh, já está habituada. Sempre a adorei.
- Bem, veremos. Já me disseram que tenho um jeito especial com as mulheres.
- E ela tem um jeito especial com os homens. Em menos de uma semana fará de
ti o que quiser. Havia um rapazinho chamado Billy Kelly... Oh, Rhett, adivinha. Ashley
casou.. Fui eu quem provocou as coisas. Mandei a mãe de Billy para Atlanta...
A história de Harriet Kelly levou à notícia de que Rosemary ainda estava solteira.
- E estará - disse Rhett. - Vive em Dumore Landing, investe o dinheiro na
recuperação dos campos de arroz, e cada vez se parece mais com Julia Ashley.
- É feliz?
- Muito feliz. Se isso me fizesse apressar a partida, ela própria me teria feito as
malas.
Os olhos de Scarlett interrogaram-no. "Sim", disse Rhett. Deixara Charleston.
Fora um erro pensar que poderia se sentir bem lá.
- Mas vou voltar. Um charlestoniano nunca se liberta de Charleston. Irei de visita e
não para ficar.
Tentara, dissera para si mesmo que queria a estabilidade da família, a tradição.
Mas acabara por sentir as asas presas. Não podia voar. Estava preso à terra, aos
antepassados, a Santa Cecília, a Charleston. Gostava muito de Charleston, gostava
mesmo muito da sua beleza, da brisa de cheirar a maresia, da coragem com que a
cidade fizera face à perda e à ruína. Mas não chegava. Necessitava do desafio, do
risco.
Scarlett suspirou. Detestava Charleston e tinha a certeza de que Cat também
detestaria. Graças a Deus que Rhett não as ia levar para lá.
Com voz calma, perguntou por Anne. Rhett esteve calado durante o que pareceu
uma eternidade. Quando falou, a sua voz estava carregada de desgosto.
- Ela merecia melhor do que eu, melhor do que a vida lhe deu. Anne tinha uma
coragem e uma força calmas que fariam inveja a qualquer herói. Nessa altura eu
andava meio louco. Tu tinhas ido embora, ninguém sabia para onde. Achei que me
castigavas, e então, para te castigar também, e para te provar que não me importava
com a tua partida, pedi o divórcio. Foi uma amputação.
Rhett fixou o vazio. Scarlett aguardou. Esperava não ter magoado Anne, disse
ele. Procurava na memória e na alma, e não se sentia culpado. Ela era muito jovem, e
amava-o demais para perceber que a ternura e a afeição eram sombras do amor de um
homem. Nunca saberia se devia sentir-se culpado por ter casado com ela. Ela fora
feliz. Uma das injustiças do mundo é que era fácil fazer os inocentes felizes, dando-
lhes tão pouco. Scarlett pousou a cabeça no ombro dele.
- Já é muito, fazer alguém feliz - disse ela. - Só entendi isso depois de Cat nascer.
Não entendia muitas coisas. De alguma forma, aprendi com ela.
Rhett apoiou o rosto na cabeça dela.
- Mudaste, Scarlett. Cresceste. Tenho que te conhecer outra vez.
- E eu tenho de te conhecer, ponto final. Nunca te conheci quando estivemos
juntos. Desta vez vai ser melhor, prometo.
- Não te esforces muito se não dás cabo de mim - brincou ele, beijando-lhe a
testa.
- Pára de rir de mim, Rhett Butler. Não, não pares. Eu gosto, mesmo quando fico
irritada.
Cheirou o ar.
- Está chovendo. Isso deve acabar com os fogos. Quando o sol nascer,
poderemos ver se ficou alguma coisa. Agora, devíamos tentar dormir. Daqui a algumas
horas vamos ter muito que fazer. Aconchegou a cabeça ao pescoço dele e bocejou.
Enquanto ela dormia, Rhett agarrou-a nos braços, segurando-a como tinha
segurado Cat. A leve chuva irlandesa formou uma cortina de silêncio à volta da velha
torre de pedra.
Ao amanhecer, Scarlettt acordou. Quando abriu os olhos viu o rosto olheirento e
barbudo de Rhett, e sorriu, feliz. Depois, espreguiçou-se, gemendo baixinho.
- Estou toda dolorida - queixou-se. - E morro de fome.
- Consistência é o teu nome, mulher - murmurou Rhett.
- Levanta-te, meu amor, estás me partindo as pernas.
Dirigiram-se lentamente até o abrigo de Cat. Estava escuro, mas ouvia-se a
respiração.
- Quando dorme de costas, fica com a boca aberta - sussurrou Scarlett.
- É uma criança com muitos talentos - disse Rhett.
Scarlett abafou o riso. Agarrou Rhett pela mão e levou-o até a janela. O
espectáculo que se lhes deparou era elucidativo. Dezenas de colunas de fumo
erguiam-se, formando manchas escuras no céu rosado. Os olhos de Scarlett
encheram-se de lágrimas.
Rhett pôs-lhe o braço à volta dos ombros.
- Podemos construir tudo outra vez, querida.
Scarlett limpou as lágrimas.
- Não, Rhett, não quero. Cat não está segura em Ballyhara, e eu também não.
Não vou vender, pois isto é terra dos O'Hara, e não quero me desfazer dela. Mas não
quero mais nenhuma Casa Grande, nem outra Ballyhara. Os meus primos podem
arranjar alguns camponeses que trabalhem a terra. Por muito tiroteio e incêndios que
haja, os irlandeses sempre amarão a terra. O papai costumava dizer que a terra era
como uma mãe para um irlandês.
"Mas não pertenço aqui, nunca pertenci. Talvez nunca tenha pertencido mesmo,
se não, não estaria sempre pronta para ir para Dublim e para as festas e para as
caçadas. Não sei onde pertenço, Rhett. Já nem sequer me sinto em casa quando vou a
Tara.
Para surpresa de Scarlett, Rhett desatou a rir, um riso cheio de alegria.
- Tu pertences a mim, Scarlett, ainda não entendeste? E o mundo é onde
pertencemos, todos nós. Não somos pessoas caseiras. Somos aventureiros. Sem
desafios, só estamos meio-vivos. Podemos ir onde quer que seja, que isso nos
pertencerá. Mas, minha querida, nunca pertenceremos lá. Isso é para os outros, não
para pessoas como nós.
Olhou para ela, os cantos da boca num franzir divertido.
- Diz-me a verdade nesta primeira manhã da nossa nova vida juntos, Scarlett. Tu
me amas com todo o teu coração, ou só me queres porque não me podias ter?
- Oh, Rhett, que coisa horrível de dizer. Amo-te com todo o meu coração, e
sempre te amarei.
A pausa antes de Scarlett responder foi tão ínfima que só Rhett poderia ter
percebido. Atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.
- Meu amor - disse -, vejo que as nossas vidas nunca serão aborrecidas. Estou
ansioso por começar.
Uma mãozinha agarrou-lhe as calças. Rhett olhou para baixo.
- Cat vai contigo - disse a filha dele.
Ele pegou-a, os olhos brilhantes de emoção.
- Está pronta, Mrs. Butler? - perguntou a Scarlett. - Os obstáculos nos esperam.
Cat riu, deliciada. Olhou para Scarlett com olhos brilhantes de segredos
partilhados.
- A escada velha está debaixo das minhas mantas, mamã. Grainne disse-me para
a guardar.

Fim

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