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Alexandra Ripley - SCARLETT
Alexandra Ripley - SCARLETT
Alexandra Ripley
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I
1
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o
acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de
conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo
em nosso grupo.
12
Rhett não falou enquanto a apressava pelas escadas acima, até ao quarto.
Fechou a porta e encostou-se nela.
- Que diabo estás fazendo aqui, Scarlett?
Ela queria estender os braços para ele, mas a raiva escaldante nos olhos dele
avisou-a para não o fazer. Scarlett abriu muito os olhos de inocência, como se não
compreendesse. Quando falou, a voz saiu-lhe agitada e ofegante.
- A tia Eulalie escreveu-me e contou-me o que andavas dizendo, Rhett, que
querias que eu estivesse aqui, mas que eu não queria deixar o armazém. Oh, querido,
por que é que não me disseste? Estou-me nas tintas para o armazém, comparado
contigo. - Observou o olhar dele cuidadosamente.
- Não vai resultar, Scarlett.
- Que queres dizer?
- Isso tudo. Nem a apaixonada explicação, nem o ar de incompreensão inocente.
Sabes muito bem que não podes mentir-me e te saires bem.
Era verdade, e ela sabia-o. Tinha de ser honesta.
- Vim porque queria estar contigo. - A sua serena afirmação teve uma dignidade
simples.
Rhett olhou para as suas costas direitas e para a cabeça orgulhosamente erguida
e a voz suavizou-se.
- Minha querida Scarlett - disse ele -, podíamos ter sido amigos a seu tempo,
quando as recordações se tivessem transformado numa nostalgia amarga e doce.
Talvez ainda consigamos chegar aí, se formos ambos caridosos e pacientes. Mas mais
nada. - Atravessou o quarto, impacientemente. - O que tenho eu de fazer para que
entendas? Não quero ferir-te, mas tu obrigas-me. Não te quero aqui. Volta para Atlanta,
Scarlett, deixa-me estar. Já não te amo. Não posso ser mais claro que isto.
O sangue fugira do rosto de Scarlett. Os seus olhos verdes brilhavam,
contrastando com a palidez fantasmagórica do rosto.
- Eu também posso falar com clareza, Rhett. Sou tua mulher e tu és meu marido.
- Uma circunstância infeliz que me ofereci para corrigir.
As palavras dele eram como chicotadas. Scarlett esqueceu-se de que tinha de se
controlar.
- Divorciar-me de ti? Nunca, nunca, nunca. E nunca te darei razão para te
divorciares de mim. Sou tua mulher, e como uma boa e cumpridora mulher vim para o
teu lado, abandonando tudo o que me é querido. - Um sorriso de triunfo levantou-lhe os
cantos da boca, e ela jogou o seu trunfo. - A tua mãe está felicíssima por eu estar aqui.
Se me puseres fora, que lhe vais dizer? Eu conto-lhe a verdade e isso vai partir-lhe o
coração.
Rhett caminhou pesadamente de uma ponta à outra do grande quarto.
Praguejava baixinho, profanações e asneiras como Scarlett nunca ouvira. Era este o
Rhett que ela conhecia só de ouvir falar, o Rhett que fora para a Califórnia na Corrida
do Ouro e defendera os seus achados com uma faca e botas cardadas. Este era o
Rhett sempre em busca do fora do comum, habito das piores tabernas de Havana,
Rhett, o aventureiro sem lei, amigo e companheiro de renegados como ele próprio. Ela
olhava-o, chocada e fascinada, e excitada, apesar da ameaça que ele representava.
De súbito, parou de andar como um animal enjaulado e voltou-se para a encarar. Os
seus olhos negros brilharam, mas já não de raiva. Estavam divertidos, escuros,
amargos e cuidadosos. Era Rhett Butler, cavalheiro de Charleston.
- Xeque - disse, com um sorriso perverso e torcido. - Esqueci-me da imprevisível
mobilidade da rainha. Mas não é mate, Scarlett. - Estendeu as mãos, numa rendição
momentânea.
Ela não compreendeu o que ele estava dizendo, mas só um gesto e o tom de voz
disseram-lhe que ganhara... alguma coisa.
- Então, faço?
- Ficas até te apetecer partir. Penso que não será por muito tempo.
- Enganas-te, Rhett! Adoro isto aqui.
Uma velha expressão familiar passou-lhe pelo rosto. Estava divertido, cético e
parecia saber tudo.
- Há quanto tempo estás em Charleston, Scarlett?
- Desde ontem à noite.
- E já aprendeste a gostar disto... Trabalhas depressa, dou-te os parabéns pela
tua sensibilidade. Foste forçada a sair de Atlanta, milagrosamente sem alcatrão e
penas, e foste tratada decentemente por umas senhoras que não sabem receber as
pessoas de outro modo, e, por isso, pensas que encontraste um refúgio. - Riu com a
expressão da cara dela. - Oh, sim, continuo a ter conhecimentos em Atlanta. Sei tudo
sobre o modo como foste posta de lado. Já nem a escumalha com quem costumavas
dar-te quer ter alguma coisa a ver contigo.
- Isso não é verdade - gritou ela. - Eu os pus pra fora.
Rhett encolheu os ombros.
- Não é preciso continuar a discutir esse assunto. O que interessa é que agora
estás aqui, na casa da minha mãe, sob a sua asa. E porque me importo muito com a
felicidade dela, de momento não posso fazer nada contra isso. No entanto, nem é
preciso. Tu farás o que é preciso, sem qualquer intervenção da minha parte. Vais
revelar-te como na verdade és; então, todos terão pena de mim e compaixão pela
minha mãe. E eu faço-te as malas e despacho-te de volta para Atlanta, para receberes
as distintas ovações silenciosas de toda a comunidade. Pensas que podes fazer-te
passar por uma senhora, não é? Nem conseguirias enganar um cego surdo-mudo.
- Sou uma senhora, maldito sejas! Tu é que não sabes o que é ser uma pessoa
decente. Agradeço-te que te lembres de que a minha mãe era uma Robillard de
Savannah e que os O'Haras descendem dos reis da Irlanda!
O sorriso que Rhett lhe deu em resposta era de uma condescendência de
enlouquecer.
- Deixa pra lá, Scarlett. Mostra-me as roupas que trouxeste. - Sentou-se na
cadeira que tinha mais perto e estendeu as suas longas pernas.
Scarlett ficou olhando para ele, frustrada demais pela sua súbita calma para
conseguir falar sem se precipitar. Rhett tirou um charuto do bolso e o fez rolar entre os
dedos.
- Espero que não te importes se eu fumar no meu próprio quarto - disse ele.
- Claro que não.
- Obrigado. Agora, mostra-me as tuas roupas. Com certeza são novas; nunca te
lançarias numa tentativa de reconquistar os meus favores sem um arsenal de
casaquinhos e saias de seda, tudo do gosto execrável que te caracteriza. Não vou
permitir que faças da minha mãe motivo de chacota. Por isso, mostra-me, Scarlett, e
vou ver o que se pode salvar. - Tirou um canivete do bolso.
Scarlett resmungou, mas, apesar de tudo, dirigiu-se ao quarto de vestir para ir
buscar as suas coisas. Talvez fosse um bom sinal. Rhett sempre supervisionara o seu
guarda-roupa. Gostava de a ver usar roupas escolhidas por ele, orgulhava-se da sua
elegância e da sua beleza. Se queria ter outra vez alguma coisa a ver com a aparência
dela, orgulhar-se de novo dela, ela não se importava de cooperar. Ia experimentá-los
todos para ele. Desse modo, ele a veria com a roupa de baixo. Os dedos de Scarlett
apressaram-se a desapertar o vestido que trazia e a prisão acolchoada que lhe
suportava o busto. Saiu de dentro da pilha do belo tecido, agarrou uma braçada dos
seus novos vestidos e caminhou lentamente para o quarto, com os braços nus, o peito
meio coberto e as pernas envoltas em meias de seda.
- Atira-os em cima da cama - disse Rhett - e põe um roupão, antes que fiques
enregelada. Esfriou depois da chuva, ou será que não notaste? - Atirou a fumaça para
a esquerda, olhando para longe dela. - Não passes frio tentando ser atraente, Scarlett.
Estás perdendo o teu tempo. - O rosto de Scarlett ficou lívido de raiva. Os olhos
pareciam fogo verde.
- Mas Rhett não estava a olhar para ela. Examinava o espalhafato que estava em
cima da cama. - Arranca estas rendas todas - disse ele sobre o primeiro vestido - e
deixa ficar só um dos laços desta avalanche que vem por aqui abaixo. Desse jeito,
talvez fique menos mal... Podes dar este à tua criada, não há nada a fazer... Este
serve, se lhe tirares este debruado, substituíres os botões dourados por simples botões
pretos e encurtares a cauda... - Bastaram-lhe apenas uns minutos para os ver todos. -
Vais precisar de umas botas fortes, pretas - disse ele quando acabou de ver as roupas.
- Comprei umas esta manhã - disse Scarlett com a voz gelada. - Quando eu e a
tua mãe fomos às compras - acrescentou, acentuando cada palavra. - Já que a amas
tanto, não percebo por que não lhe compras uma carruagem. Ela cansou-se muito com
a caminhada.
- Não compreendes Charleston. É por isso que te vais sentir infelicíssima aqui
dentro de muito pouco tempo. Podia-lhe comprar esta casa, porque a nossa foi
destruída pelos ianques e todos os seus conhecidos continuam a ter grandes casas.
Até posso mobiliá-la mais confortavelmente do que as dos amigos, porque todas as
peças são coisas roubadas pelos ianques, ou são duplicados do que ela teve em
tempos, e os amigos ainda têm muitas das suas coisas. Mas não a posso afastar dos
amigos, comprando-lhe luxos que eles não se podem dar ao luxo de ter.
- Sally Brewton tem carruagem.
- Sally Brewton é diferente de todos os outros. Sempre foi. Sally é uma original.
Charleston respeita-a, até gosta da excentricidade. Mas não tolera a ostentação. E tu,
minha querida Scarlett, nunca conseguiste resistir a isso.
- Espero que estejas gostando muito de me insultar, Rhett Butler!
Rhett riu.
- Por acaso, estou. Agora podes começar a tornar decente um desses vestidos,
para usares esta noite. Vou levar o comitê em casa, para Sally não ter que o fazer com
esta tempestade.
Depois de ele sair, Scarlett vestiu o roupão de Rhett. Era mais quente que o dela
e ele tinha razão - estava muito mais frio e estava tremendo. Puxou a gola do roupão
até as orelhas e foi sentar-se na cadeira que ele ocupara. Ainda sentia a presença dele
no quarto e deixou-se envolver nela. Com os dedos, afagou o tecido macio que a
envolvia - que estranho, Rhett escolher um roupão tão leve, quase frágil ao toque, ele
que era tão sólido e forte. Mas também havia tantas coisas nele que ela não
compreendia. Não o conhecia bem, nunca o conhecera. Scarlett sentiu um momento de
terrível desespero. Afastou esse sentimento e levantou-se rapidamente. Tinha que se
vestir antes de Rhett voltar. Céus, há quanto tempo estava ali sentada sonhando
acordada? Já estava quase escuro. Tocou bruscamente chamando Pansy. Os laços e
a renda tinham que ser tirados do vestido cor-de-rosa, para ela o poder usar nessa
noite, e os ferros do cabelo tinham que se pôr a aquecer imediatamente. Queria ficar
especialmente bonita e feminina para Rhett... Scarlett olhou para a extensão de
acolchoado da enorme cama e os seus pensamentos fizeram-na corar.
O homem que acendia os candeeiros ainda não tinha chegado à parte alta da
cidade, onde Emma Anson vivia, e Rhett teve que guiar lentamente, dobrado para a
frente, para ver a rua escura através da chuva que caía com força. Atrás dele, na
carruagem coberta, já só restavam Mrs. Anson e Sally Brewton. Levara primeiro
Margaret Butler à casa minúscula de Water Street, onde ela e Ross viviam, e depois
dirigiu-se a Broad Street, onde Edward Cooper acompanhou Anne Hampton até a porta
do Lar da Confederação, tapando-a com o seu grande guarda-chuva.
- Vou a pé o resto do caminho - disse Edward a Rhett da beira do passeio -, não
vale a pena ir para junto das senhoras com este guarda-chuva encharcado. - Vivia em
Church Street, a um quarteirão de distância. Rhett tocou na orla do chapéu em
saudação e continuou.
- Acha que Rhett nos consegue ouvir? - murmurou Emma Anson
- Mal a consigo ouvir, Emma, e estou só a um palmo de ti - respondeu Sally
acidamente. - Pelo amor de Deus, fale mais alto. Esta chuvarada é ensurdecedora. -
Estava irritada com a chuva. Impedia-a de guiar a carruagem.
- Que acha da esposa? - disse Emma. - Não é nada como eu imaginava. Já
alguma vez viu alguma coisa tão grotescamente superornamentada como o traje de
sair que ela usava?
- Oh, é fácil remediar as roupas, e muitas mulheres têm um gosto terrível. Não, o
que é interessante é que ela tem possibilidades - disse Sally. - A única questão é: será
que as vai aproveitar? Pode ser uma grande deficiência ser bonita e ter sido uma belle.
Muitas mulheres nunca se recuperam disso.
- Foi ridícula a maneira como flertou com Edward.
- Automático, penso eu, não foi bem ridículo. Há muitos homens que esperam
exatamente esse tipo de coisa. Talvez agora precisem disso mais que nunca.
Perderam tudo o resto que em tempos os fazia sentir homens, toda a sua riqueza, as
terras e o poder.
As duas mulheres ficaram caladas durante um bocado, pensando em coisas que
era melhor nem serem admitidas por um povo orgulhoso sob o jugo de uma força de
ocupação militar.
Sally pigarreou, interrompendo aquela disposição sombria.
- Uma boa coisa - disse num tom positivo - é que a mulher de Rhett está
desesperadamente apaixonada por ele. Reparou como o rosto dela se iluminou como
um nascer do Sol quando ele apareceu à porta?
- Não, não reparei - disse Emma. - Quem me dera ter visto. Vi esse mesmo
olhar... mas foi no rosto de Anne.
13
Scarlett não tirava os olhos da porta. Por que é que Rhett se estava demorando
tanto? Eleanor Butler fingiu que não percebia, mas tinha um sorrisinho no canto da
boca. Os seus dedos faziam passar uma brilhante lançadeira de marfim rapidamente,
para um lado e para outro, tecendo uma complicada teia de laçadas na renda de bilros.
Devia ser um momento confortável. As cortinas da sala de estar estavam fechadas por
causa da tempestade e da escuridão, e nas duas belas salas contíguas viam-se
candeeiros acesos sobre mesas e um fogo dourado e crepitante afastava o frio e a
umidade. Mas os nervos de Scarlett estavam em franja e não conseguia sentir conforto
com a cena doméstica. Onde estava Rhett? Ainda estaria zangado quando voltasse?
Tentou concentrar-se no que a mãe de Rhett estava dizendo, mas não conseguiu.
Não queria saber do Lar da Confederação para Viúvas e Órfãos. Os seus dedos
tocaram no corpete do vestido, mas não havia cascatas de rendas para mexer. Com
certeza ele não ia se importar com as suas roupas se não quisesse saber dela, não
era?
- Por isso, a escola cresceu assim como que sozinha, porque não havia realmente
mais nenhum lugar para os órfãos irem - estava Mrs. Butler a dizer. - Tem tido mais
êxito do que nos atrevíamos a imaginar. Em Junho passado, seis acabaram o curso e
agora são todos professores. Duas das moças foram ensinar para Walterboro e uma
teve mesmo chance de escolher, ou Yemassee ou Camden. Uma outra, uma moça tão
doce, escreveu-nos, vou-lhe mostrar a carta...
Oh, onde estava ele? Que o estaria a demorar assim? "Se tiver de estar aqui
quieta mais tempo, desato aos gritos."
O relógio de bronze da lareira deu as horas e Scarlett sobressaltou-se. Duas...
três...
- Pergunto a mim mesma o que estará a demorar Rhett - disse a mãe dele.
Cinco... seis...
- Ele sabe que jantamos às sete e gosta sempre de tomar antes um ponche. E
também deve estar molhado até os ossos; vai ter de mudar de roupa. - Mrs. Butler
pousou a renda de bilros na mesa que estava ao seu lado. - Vou só ver se a chuva já
parou - disse ela.
Scarlett pôs-se de pé num salto.
- Eu vou.
Andou rapidamente, liberta, e puxou para trás uma ponta do pesado cortinado de
seda. Lá fora, uma densa neblina elevava-se do paredão do passeio. Rodopiava pela
rua e enrolava-se para cima, como uma coisa viva. O candeeiro da rua era uma
mancha brilhante e indefinida na brancura ondulante que o cercava. Scarlett afastou-se
daquela ausência de forma fantasmagórica e deixou cair a cortina sobre a cena.
- Está muito nevoeiro - disse ela -, mas não está chovendo. Acha que Rhett está
bem?
Eleanor Butler sorriu.
- Ele já passou por pior que um pouco de umidade e nevoeiro, Scarlett, sabes
disso muito bem. Claro que está bem. Vais ouvi-lo entrar não tarda nada.
Em resposta a estas palavras, ouviram a grande porta da frente abrir-se. Scarlett
ouviu o riso de Rhett e a voz profunda de Manigo, o mordomo.
- É melhor dar-me essas coisas molhadas, Mist' Rhett, as botas também. Tenho
outros sapatos aqui mesmo - dizia Manigo.
- Obrigado, Manigo. Vou subir para trocar de roupa. Diz a Mrs. Butler que vou ter
com ela daqui a um minuto. Ela está na sala?
- Sim, senhor, ela e a menina.
Scarlett ficou à escuta da reação de Rhett, mas só ouviu os seus passos rápidos
e firmes nas escadas. Pareceu-lhe que se passara um século até ele voltar. O relógio
da lareira devia estar mal. Cada minuto parecia uma hora.
- Tens um ar cansado, querido! - exclamou Eleanor Butler quando Rhett entrou na
sala.
Rhett pegou a mão da mãe e beijou-a. - Não seja uma mãe-galinha, mamã, tenho
mais fome que cansaço. Jantamos em breve?
Mrs. Butler começou a levantar-se.
- Vou à cozinha dizer para servirem agora mesmo.
Rhett tocou-lhe suavemente no ombro, para a impedir de continuar.
- Vou tomar uma bebida primeiro, não tenha pressa. - Dirigiu-se à mesa onde
estava a bandeja com as bebidas.
Enquanto servia uísque num copo, olhou para Scarlett pela primeira vez.
- Acompanhas-me, Scarlett? - A sua sobrancelha erguida desafiava-a. E o cheiro
do uísque também. Ela voltou-se, como se se sentisse insultada. Pois então, Rhett ia
jogar o gato e o rato? Ia tentar forçá-la ou levá-la a fazer alguma coisa que fizesse a
mãe dele voltar-se contra ela. Bom, ia ter que ser muito esperto para a apanhar.
Curvou os lábios e os olhos começaram a brilhar. Ela própria também tinha que ser
muito esperta para lhe levar a melhor. Sentiu o sangue a latejar-lhe no pescoço devido
à excitação. A competição sempre a excitara.
- Miss Eleanor, Rhett não é tão chocante? - riu ela. - Quando era pequeno
também era assim mauzinho? - Atrás de si, sentiu o súbito movimento de Rhett. Ah!
Esta tinha atingido o alvo. Há anos que ele se sentia culpado pela dor que causara à
mãe quando as suas escapadelas tinham feito que o pai o deserdasse.
- O jantar está servido, Miz Butler - disse Manigo da porta.
Rhett ofereceu o braço à mãe e Scarlett sentiu uma pontinha de ciúme. Depois,
lembrou a si própria que a devoção dele pela mãe era exatamente aquilo que lhe
permitia ficar ali e engoliu a raiva.
- Tenho tanta fome que era capaz de comer meia vaca - disse ela com uma voz
alegre. - E Rhett está mesmo a morrer de fome, não estás, querido? - Não podia
perder, ele próprio admitira isso; se perdesse a vantagem, perderia o jogo e nunca o
reconquistaria.
Afinal, Scarlett não precisava de se ter preocupado. Rhett conduziu a conversa a
partir do momento em que se sentaram. Voltou a contar a sua busca pelo serviço de
chá em Filadélfia, transformando-a numa aventura, pintando hábeis retratos da
sucessão de pessoas com quem falara, imitando os seus sotaques e idiossincrasias
com tanta habilidade que a mãe e Scarlett deram por si a rir até ficarem com dores.
- E depois de ter seguido aquela longa pista para o encontrar - concluiu Rhett com
um gesto teatral de desalento -, imaginem o meu horror quando o novo dono me
parece honesto demais para vender o serviço de chá por vinte vezes o seu valor, que
foi aquilo que eu ofereci. Por um momento, receei ter que roubá-lo outra vez, mas,
felizmente, ele concordou com a sugestão de nos divertirmos com um amigável jogo de
cartas.
Eleanor Butler tentou pôr um ar de desaprovação.
- Espero bem que não tenhas feito nada de desonesto, Rhett - disse ela, mas
havia riso por detrás das suas palavras.
- Mamã, fico chocado. Só dou por baixo quando jogo com profissionais. Este
miserável ex-coronel do exército de Sherman era tão amador que tive de fazer batota
para o deixar ganhar umas centenas de dólares, para o acalmar. Parecia o oposto de
um Ellinton.
Mrs. Butler riu.
- Oh, pobre homem. E a mulher... tenho pena dela. - A mãe de Rhett inclinou-se
para Scarlett. - São alguns dos esqueletos do meu lado da família - disse Eleanor
Butler num murmúrio fingido. Riu outra vez e começou a lembrar-se.
Os Ellintons, disseram eles a Scarlett, eram famosos em toda a costa Leste pela
fraqueza da família: faziam apostas sobre tudo. O primeiro Ellinton a instalar-se na
América colonial fazia parte da piada porque ganhara posse de um pedaço de terra
numa aposta com o dono sobre quem era capaz de beber mais cerveja e continuar de
pé.
- Quando ganhou - disse Mrs. Butler, concluindo - estava tão bêbado que pensou
que devia ir dar uma olhadela no seu prêmio. Dizem que nem sequer sabia para onde
ia até lá ter chegado, porque ganhou a maior parte da ração de rum dos soldados
jogando os dados.
- Que fez ele quando lhe passou a bebedeira? - quis saber Scarlett.
- Oh, querida, nunca lhe passou. Morreu passados apenas dez dias de o navio
aportar. Mas, entretanto, tinha apostado com outro jogador, nos dados, e ganhara uma
moça, uma das criadas contratadas do navio, e, como mais tarde se veio a descobrir
que ela estava grávida dele, houve uma espécie de casamento ex-pós fato na
sepultura dele, e o filho foi um dos meus trisavôs.
- Ele próprio era um jogador, não era? - perguntou Rhett.
- Oh, é claro. Está no sangue da família. - E Mrs. Butler continuou a contar
histórias da sua árvore genealógica.
Scarlett olhou para Rhett muitas vezes. Quantas surpresas esconderia este
homem que ela mal conhecia? Nunca o vira tão descontraído e feliz, sentindo-se
totalmente em casa. "Nunca fiz um lar para ele", percebeu ela, "Ele nem sequer
gostava da casa. Era minha, arranjada a meu gosto, um presente dele, mas não lhe
pertencia." Scarlett tinha vontade de interromper as histórias de Miss Eleanor para
dizer a Rhett que lamentava o passado, que o ia compensar de todos os seus erros.
Mas ficou calada. Ele estava feliz, divertindo-se com as recordações da mãe. Ela não
podia quebrar essa disposição.
As velas do grande candelabro de prata refletiam-se na madeira polida da mesa
de mogno e nas pupilas dos brilhantes olhos negros de Rhett. Banhavam a mesa e
eles três numa luz quente e serena, formando uma ilha de brilho suave no meio das
sombras da grande sala. O mundo exterior estava fechado lá fora pelas espessas
dobras das cortinas das janelas e pela intimidade da pequena ilha iluminada pelas
velas. A voz de Eleanor Butler era suave, as gargalhadas de Rhett eram calmas e
encorajadoras. O amor tecera uma teia irreal, mas inquebrável, entre mãe e filho.
Scarlett teve um súbito e ardente desejo de ser incluída nessa teia.
Então, Rhett disse:
- Conta a Scarlett sobre o primo Townsend, mamã - e ela sentiu-se segura no
calor da luz das velas, incluída na felicidade que rodeava a mesa. Desejou que
pudesse durar para sempre e pediu a Miss Eleanor para lhe contar sobre o primo
Townsend.
- Townsend não é um primo mesmo primo, sabe, é apenas um primo em terceiro
grau, mas descende em linha direta do trisavô Ellinton, filho único de um filho varão de
um filho varão. Assim, herdou a posse das terras originais e a febre do jogo dos
Ellintons e a sorte deles. Tinham sempre sorte, os Ellinton. Exceto numa coisa: há
outra característica da família: os rapazes são sempre estrábicos. Townsend casou
com uma moça lindíssima de uma excelente família de Filadélfia... a cidade chamou-
lhe o casamento da bela e do monstro. Mas o pai da moça era advogado e um homem
muito sensato no que diz respeito à propriedade, e Townsend era fabulosamente rico.
Townsend e a mulher instalaram-se em Baltimore. Depois, veio a guerra, é claro. A
mulher de Townsend foi correndo para casa da família assim que Townsend se juntou
ao exército do general Lee. Afinal de contas, ela era ianque e era mais que certo que
Townsend se ia deixar matar. Não acertava num celeiro, quanto mais na porta de um
celeiro, por causa dos olhos tortos. Contudo, continuava com a sorte dos Ellintons.
Nunca apanhou nada pior que frieiras, embora tenha estado no ativo mesmo até
Appomattox. Entretanto, os três irmãos e o pai da mulher foram todos mortos, lutando
pelo exército da União. Por isso, ela herdou tudo o que o seu cuidadoso pai e os seus
cuidadosos antepassados tinham acumulado. Townsend vive como um rei na Filadélfia
e não está nem aí por que todos os seus bens em Savannah tenham sido confiscados
por Sherman. Viste-o, Rhett? Como é que ele está?
- Mais vesgo que nunca, com dois filhos vesgos e uma filha que, graças a Deus,
saiu à mãe.
Scarlett mal ouviu a resposta de Rhett.
- Disse que os Ellintons eram de Savannah, Miss Eleanor? A minha mãe era de
Savannah - disse ansiosamente. O entrecruzar de relações familiares que era uma
parte tão integrante da vida do Sul estivera sempre ausente da sua, o que era uma
frustração. Todo mundo que ela conhecia tinha uma rede de primos, tios e tias que
cobria gerações e centenas de quilômetros. Mas ela não tinha. Pauline e Eulalie não
tinham filhos. Os irmãos de Gerald O'Hara, de Savannah, também não. Devia haver
ainda montes de O'Haras na Irlanda, mas isso não lhe servia de nada, e todos os
Robillards tinham ido embora de Savannah, com exceção do avô.
E agora, cá estava ela outra vez a ouvir histórias da família de outras pessoas.
Rhett tinha parentes em Filadélfia. Sem dúvida que também tinha laços com Charleston
inteira. Não era justo. Mas talvez estes Ellintons estivessem, de algum modo, ligados
aos Robillards. Nesse caso, ela faria parte da teia que incluía Rhett. Talvez fosse capaz
de encontrar uma ligação com o mundo dos Butlers e com Charleston, o mundo que
Rhett escolhera e no qual ela estava decidida a entrar.
- Lembro-me muito bem de Ellen Robillard - disse Mrs. Butler. - E da mãe dela. A
tua avó, Scarlett, foi provavelmente uma das mulheres mais fascinantes de toda a
Geórgia e da Carolina do Sul, também.
Scarlett inclinou-se para a frente, fascinada. Só ouvira bocadinhos dispersos de
histórias sobre a avó.
- É verdade que era escandalosa, Miss Eleanor?
- Era extraordinária. Mas quando a conheci melhor, não era nada escandalosa.
Estava ocupada demais tendo filhos. Primeiro, a tua tia Pauline, depois Eulalie, depois
a tua mãe. Na verdade, eu estava em Savannah quando a tua mãe nasceu. Lembro-
me do fogo-de-artifício. O teu avô contratava um italiano famoso de Nova Iorque e dava
um magnífico espetáculo de fogo-de-artifício, cada vez que a tua avó lhe dava um filho.
Tu não deves lembrar, Rhett, e também não deves ficar lá muito contente por eu te
lembrar, mas ficaste morto de medo. Levei-te lá para fora de propósito para veres, e
gritaste tão alto que eu quase morri de vergonha. Todas as outras crianças estavam
batendo palmas e gritando de alegria. Claro que eram mais velhas. Ainda andavas de
fraldas, tinhas pouco mais de um ano.
Scarlett ficou olhando para Mrs. Butler e depois para Rhett. Não era possível!
Rhett não podia ser mais velho que a sua mãe. Então, a sua mãe tinha... a sua mãe.
Sempre partira do princípio de que a mãe era velha, que ultrapassara a idade das
grandes emoções. Como é que Rhett podia ser mais velho? Como podia ela amá-lo tão
desesperadamente, se ele era assim tão velho?
Então, Rhett chocou-a ainda mais. Pousou o guardanapo na mesa, levantou-se,
foi até o lugar de Scarlett, beijou-a no alto da cabeça, aproximou-se da mãe, pegou-lhe
a mão, beijou-a e disse:
- Vou andando, mamã.
"Oh, Rhett, não!" Scarlett teve vontade de gritar. Mas estava espantada demais
para dizer fosse o que fosse, ou mesmo para perguntar onde ia.
- Gostaria que não fosses sair com esta escuridão e com esta chuva, Rhett -
protestou a mãe. - E Scarlett está aqui. Mal tiveste oportunidade de lhe falar.
- Parou de chover e está lua cheia - disse Rhett. - Não posso desperdiçar a
oportunidade de subir o rio com a maré, e tenho o tempo exato de a apanhar, antes de
mudar. Scarlett compreende que temos que ir controlar os nossos trabalhadores
quando vamos embora e os deixamos; ela é uma mulher de negócios. Não és, meu
amor? - Quando olhou para ela, os seus olhos brilharam com o reflexo da luz das
velas. Depois, dirigiu-se ao vestíbulo.
Ela afastou-se da mesa, quase derrubando a cadeira com a pressa. Depois, sem
uma palavra a Mrs. Butler, correu desvairadamente atrás dele.
Ele estava no vestíbulo abotoando o casaco, com o chapéu na mão.
- Rhett, Rhett, espera! - gritou Scarlett. Ignorou o aviso no olhar dele, quando se
voltou para olhar para ela. - Correu tudo tão bem ao jantar - disse ela. - Por que queres
ir embora?
Rhett passou por ela e abriu a porta que dava do vestíbulo para a varanda. Ao
fechar-se, a fechadura fez um ruído pesado e cavo, isolando-a resto da casa.
- Não faças cenas, Scarlett. Para mim, não têm qualquer efeito. - Como se
pudesse ver dentro da cabeça dela, atirou-Ihe umas palavras finais, arrastando a voz: -
E também não pense em partilhar a minha cama, Scarlett.
Abriu a porta da rua. Antes que ela pudesse pronunciar uma palavra,
desapareceu. A porta fechou-se lentamente atrás dele.
Scarlett bateu com o pé. Era um escape inadequado para a sua fúria e
desapontamento. Por que era que ele tinha que ser tão mau? Fez uma careta - meio
zangada, meio com vontade de rir a contragosto -, reconhecendo, de mau grado, a
esperteza de Rhett. Fora fácil para ele descobrir o que ela estava planejando. Bom,
tinha que ser mais esperta, só isso. Tinha que desistir da idéia de ter um bebê
imediatamente, tinha que pensar noutra coisa. Quando se foi juntar de novo a Mrs.
Butler, ia de testa franzida.
- Vá lá, querida, não fique preocupada - disse Eleanor Butler -, ele fica bem. Rhett
conhece o rio como a palma das suas mãos. - Ela estivera de pé, junto à lareira, sem
querer ir ao vestíbulo e arriscar-se a interromper a despedida de Rhett e da mulher. -
Vamos até à biblioteca, está aconchegado e, assim, os criados podem tirar a mesa.
Scarlett instalou-se numa cadeira de espaldar alto, protegendo-se das correntes
de ar. Não, não queria uma manta sobre os joelhos, estava muito bem, obrigada.
- Deixe-me aconchegá-la, Miss Eleanor - insistiu ela, tirando-lhe o xale de
caxemira. - Sente-se aí e ponha-se à vontade. - Obrigou Mrs. Butler a pôr-se
confortável.
- Que amor que és, Scarlett, tão parecida com a tua querida mãe. Lembro-me de
como tinha tanta consideração e tão boas maneiras. Todas as moças Robillards se
portavam bem, claro, mas Ellen era especial...
Scarlett fechou os olhos e aspirou o leve perfume de verbena de limão. Ia ficar
tudo bem. Miss Eleanor gostava dela, ela ia conseguir que Rhett voltasse para casa e
iam todos viver felizes para sempre.
Scarlett passou pelo sono, sentada na cadeira almofadada, embalada pelas
suaves reminiscências de tempos mais doces. Quando um distúrbio irrompeu no
vestíbulo, para lá da porta, acordou de um salto, voltando à realidade. De repente, não
sabia onde estava ou como fora ali parar e piscou os olhos, olhando sem ver bem o
homem que estava à porta. Rhett? Não, não podia ser Rhett, a não ser que tivesse
rapado o bigode.
O homem grande, que não era Rhett, deu um passo oscilante e entrou na sala.
- Vim conhecer a minha irmã - disse ele. As palavras entaramelavam-se.
Margaret Butler correu para Eleanor.
- Tentei detê-lo - gritou ela -, mas ele estava numa daquelas suas fases... não
consegui que me escutasse, Miss Eleanor.
Mrs. Butler levantou-se.
- Calma, Margaret - disse urgentemente, mas com calma. - Ross, estou à espera
de que me cumprimentes como deve ser. - A voz dela era invulgarmente alta, com as
palavras bem separadas.
O espírito de Scarlett já estava lúcido. Então, este era o irmão de Rhett. E
bêbado, a avaliar pelo aspecto dele. Bom, ela já vira bêbados antes, não eram
nenhuma novidade. Levantou-se, sorriu para Ross, com a covinha a tremer.
- Deixe que lhe diga, Miss Eleanor... Como é que uma senhora pode ter tido a
sorte de ter tido dois filhos, qual deles o mais belo? Rhett nunca me disse que tinha um
irmão tão bem-apessoado.
Ross aproximou-se dela, cambaleante. Os olhos dele varreram-lhe o corpo e
fixaram-se nos seus caracóis revoltos e na face pintada. Sorriu de esguelha.
- Com que então, esta é que é a Scarlett! - disse com voz grossa. - Devia ter
adivinhado que o meu irmão acabaria por arranjar uma pecinha destas. Vá lá, Scarlett,
dá um beijo amigável ao teu novo irmão. Tenho a certeza de que sabes como agradar
a um homem. - As suas grandes mãos subiram-lhe pelos braços como aranhas
enormes e agarraram-Ihe o pescoço nu. Depois, a boca aberta dele estava sobre a
dela, o seu hálito azedo entrando-lhe pelo nariz, a língua a forçar-se por entre os lábios
dela. Scarlett tentou levantar os braços para o empurrar, mas Ross tinha força demais
e o seu corpo estava comprimido contra o dela.
Conseguia ouvir a voz de Eleanor Butler e de Margaret, mas não conseguia
perceber o que diziam. Toda a sua atenção estava concentrada na necessidade de se
libertar daquele abraço nojento e na vergonha que eram os insultos de Ross. Ele
chamara-lhe prostituta! E estava a tratá-la como tal.
De súbito, Ross empurrou-a, fazendo-a cair contra as costas da cadeira.
- Aposto que não és assim fria para o meu querido irmão mais velho - grunhiu ele.
Margaret Butler soluçava, encostada ao ombro de Eleanor.
- Ross! - Mrs. Butler atirou o nome como uma faca. Ross voltou-se
desajeitadamente, atirando ao chão uma mesinha.
- Ross! - disse a mãe dele outra vez. - Chamei Manigo. Vai ajudar-te a chegar em
casa e acompanhar Margaret decentemente. Quando estiveres sóbrio, vais escrever
cartas pedindo desculpa à esposa de Rhett e a mim. Desgraçaste-te, desgraçaste
Margaret e a mim própria e não voltarás a ser recebido nesta casa até eu ter
recuperado da vergonha que me causaste.
- Lamento tanto, Miss Eleanor - chorava Margaret.
Mrs. Butler pôs as mãos nos ombros de Margaret.
- Também lamento, por ti, Margaret - disse ela. Depois, afastou-a de si. - Vá para
casa. Claro que será sempre bem recebida aqui.
Os velhos olhos sábios de Manigo avaliaram a situação num relance e levou
Ross, que, surpreendentemente, não disse nem uma palavra de protesto. Margaret
seguiu-os.
- Lamento tanto - repetia sem parar, até que o som da sua voz foi afastado pelo
fechar da grande porta da frente.
- Minha querida filha - disse Eleanor a Scarlett -, não sei o que dizer. Ross estava
bêbado, não sabia o que dizia. Mas isso não é desculpa.
Scarlett tremia dos pés à cabeça. De desgosto, de humilhação, de raiva. Por que
deixara aquilo acontecer, por que deixara o irmão de Rhett insultá-la e pôr as mãos e a
boca em cima dela? "Devia ter-lhe cuspido na cara, devia ter-lhe dado unhadas até o
cegar, devia ter-lhe dado murros naquela boca maldosa e porca. Mas não o fiz. Limitei-
me a aceitá-lo... como se o merecesse, como se fosse verdade." Scarlett nunca se
sentira tão envergonhada. Envergonhada pelas palavras de Ross e pela sua própria
fraqueza. Sentia-se desonrada, suja e humilhada para sempre. Teria sido melhor que
Ross lhe tivesse batido ou a tivesse ferido com uma faca. O seu corpo recuperaria de
uma nódoa negra ou de uma ferida. Mas o seu orgulho nunca se curaria da doença
que a atingira.
Eleanor inclinou-se sobre ela e tentou abraçá-la, mas Scarlett afastou-se do
contato.
- Deixe-me sozinha! - tentou ela gritar, mas apenas lhe escapou um gemido.
- Não o farei - disse Mrs. Butler -, pelo menos, até que me ouça. Tem que
compreender, Scarlett, tem de me escutar.
- Há tanta coisa que não sabe. Está ouvindo? - Puxou uma cadeira para perto de
Scarlett e sentou-se muito perto dela.
- Não! Vá embora! - Scarlett tapou os ouvidos com as mãos.
- Não te vou deixar - disse Eleanor. - E vou-te dizer, sem parar, mil vezes, se for
preciso, até que me ouças... - A voz dela continuou, suave mas persistente, enquanto a
mão acariciava a cabeça curvada de Scarlett, confortando-a, carinhosa, fazendo que a
sua bondade e o seu amor penetrassem a recusa de Scarlett em a ouvir. - O que Ross
fez foi imperdoável - disse ela -, não te devo pedir que lhe perdoes. Mas tenho que o
fazer, Scarlett. Ele é meu filho e conheço a dor que o levou a fazer isto. Ele não estava
a tentar magoar-te, minha querida. Era Rhett que ele atacava, através de ti; sabes, é
que ele está consciente de que Rhett é forte demais para ele, que nunca será capaz de
igualar Rhett em nada. Rhett estende a mão e colhe aquilo que quer, faz que as coisas
aconteçam, faz que façam coisas. E o pobre Ross é um fracasso em tudo.
"Esta tarde, Margaret disse-me, em particular, que quando Ross foi trabalhar hoje
de manhã lhe disseram que tinha sido despedido. Por causa da bebida, sabes?
Sempre bebeu, todos os homens bebem, mas não da maneira como anda a beber
desde que Rhett voltou para Charleston, há um ano. Ross estava tentando fazer andar
a plantação, trabalhava lá que nem um escravo desde que veio da guerra, mas havia
sempre qualquer coisa que corria mal, e nunca conseguiu uma colheita decente de
arroz. Estavam já para vender tudo para pagar os impostos. Por isso, quando Rhett se
ofereceu para lhe comprar a plantação, Ross teve que ceder. De qualquer modo, seria
sempre de Rhett, mas ele e o pai... mas isso é outra história."
"Ross conseguiu um lugar num banco, como caixa, mas receio que pensasse que
mexer em dinheiro era ordinário. Nos velhos tempos, os cavalheiros assinavam sempre
as contas, ou davam simplesmente a sua palavra, e os feitores tratavam de tudo. De
qualquer modo, Ross cometeu erros na caixa, as contas nunca davam certo e um dia
cometeu um grande erro e perdeu o emprego. Pior ainda, o banco disse que o iam
processar para recuperarem o dinheiro que ele pagara a mais. Rhett acertou tudo. Foi
como um punhal cravado no coração de Ross. Foi então que começou a beber a sério
e agora já lhe custou outro emprego. Ainda por cima, um tolo qualquer, ou um maldoso,
deixou escapar que fora Rhett que lhe arranjara o emprego. Ele foi para casa e
embebedou-se tanto que mal podia andar. E fica mau."
"Amo mais Rhett, que Deus me perdoe, sempre amei. Foi o meu primeiro filho e
entreguei-lhe o meu coração no momento em que o puseram no meu colo. Amo Ross e
Rosemary, mas não da mesma maneira que Rhett, e receio bem que eles o saibam.
Rosemary pensa que é por ele ter estado longe tanto tempo e depois ter voltado e,
como um gênio que saiu de dentro de uma garrafa, me ter comprado tudo o que há
nesta casa e lhe ter comprado os vestidos bonitos que ela desejava há tanto tempo.
Ela não se lembra de como era antes de ele partir, não passava de uma criança, não
sabe que, para mim, ele esteve sempre em primeiro lugar. Ross sabe, sempre soube,
mas era o preferido do pai e não se importava muito. Steven pôs Rhett na rua e fez de
Ross o seu herdeiro. Amava Ross, tinha orgulho nele. Mas agora Steven morreu, faz
este mês sete anos. E Rhett voltou para casa e a alegria encheu a minha vida, e Ross
não pôde deixar de perceber."
A voz de Mrs. Butler estava rouca, despedaçada pelo esforço de confessar os
grandes segredos do seu coração. Foi-se abaixo e começou a chorar amargamente.
- Meu pobre filho, meu pobre Ross, tão magoado!
"Eu devia dizer qualquer coisa", pensou Scarlett, "qualquer coisa que a faça
sentir-se melhor". Mas não foi capaz. Ela própria estava sofrendo demais.
- Miss Eleanor, não chore - disse ela, sem grande efeito. - Não fique assim. Por
favor, preciso lhe perguntar uma coisa.
Mrs. Butler respirou profundamente; limpou os olhos e compôs o rosto.
- Que é, minha querida?
- Tenho que saber - disse Scarlett com urgência na voz. - Tem de me dizer. De
verdade, eu... aquilo que ele disse... eu tenho esse aspecto? - Precisava de que a
sossegassem, tinha de ter a aprovação desta senhora amorosa, que cheirava a limão.
- Querida filha - disse Eleanor -, o teu aspecto não interessa para nada. Rhett
ama-te e, por isso, eu também te amo.
"Santíssima Mãe de Deus! Ela está dizendo que eu pareço uma prostituta, mas
que isso não faz mal. Estará doida?"
- Claro que faz, é mais importante que tudo o mais. Quero ser uma senhora, como
sempre devia ter sido!
Agarrou nas mãos de Mrs. Butler com uma força desesperada, sem saber que a
estava a machucando.
- Oh, Miss Eleanor, ajude-me! Por favor, preciso que me ajude.
- Claro, querida. Diz-me o que queres. - No rosto de Mrs. Butler só havia
serenidade e afeição. Há muitos anos que aprendera a esconder qualquer dor que
sentisse.
- Preciso saber o que é que faço mal, por que é que não pareço uma senhora.
Sou uma senhora, Miss Eleanor, sou mesmo. Conhecia a minha mãe, deve saber que
é verdade.
- É claro que é, Scarlett, e é claro que sei disso. As aparências são tão
enganadoras, na verdade, não é justo. Podemos arranjar tudo sem grandes problemas.
- Suavemente, Mrs. Butler libertou os seus dedos doloridos e inchados das mãos de
Scarlett. - Tens tanta vitalidade, querida filha, todo o vigor do mundo em que cresceu.
Isso é enganador para as pessoas daqui, desta região envelhecida e cansada. Mas
não a deves perder, é valiosa demais. Vamos, simplesmente, arranjar maneira de te
tornar menos visível, mais como nós. Nessa altura te sentirás mais confortável.
"E eu também", pensou Eleanor Butler para si. Defenderia até a morte a mulher
que Rhett amava, segundo acreditava, mas seria muito mais fácil se Scarlett deixasse
de pintar o rosto e de usar roupas caras e de mau gosto. Eleanor agradeceu a
oportunidade de refazer Scarlett mais ao jeito de Charleston.
Scarlett engoliu, cheia de gratidão, a diplomática avaliação que Mrs. Butler fizera
do seu problema. Era esperta demais para acreditar em tudo - tinha visto como Miss
Eleanor manobrava Eulalie e Pauline. Mas a mãe de Rhett ia ajudá-la e era isso que
contava, pelo menos por agora.
14
Charleston que moldara Eleanor Butler e fizera que Rhett voltasse, depois de
décadas de aventuras, era uma cidade antiga, uma das mais antigas da América.
Aglomerava-se numa estreita península triangular, situada entre dois rios sujeitos a
marés, que se juntavam num grande porto ligado ao Atlântico. Colonizada em 1862,
teve, desde os primeiros tempos, um langor romântico e uma sensualidade estranha ao
ritmo rápido e ao espírito de sacrifício puritanos das colônias da Nova Inglaterra. Brisas
salgadas agitavam as palmeiras e as glicínias e havia flores durante todo o ano. O solo
era preto, rico, livre de pedras que embotavam o arado de um homem; as águas
fervilhavam de peixe, caranguejos, camarões, tartarugas e ostras, e as florestas
estavam cheias de caça. Era uma terra rica, destinada a ser gozada.
Barcos de todo o mundo ancoravam no porto para carregarem o arroz que crescia
nas vastas plantações ao longo dos rios; descarregavam os luxos mundanos, para
prazer e adorno da pequena população. Era a cidade mais rica da América.
Abençoada por ter alcançado a maturidade na idade da razão, Charleston usou a
sua riqueza na busca da beleza e do conhecimento. Em resposta ao clima e à
abundância natural, também usava a sua riqueza para o prazer dos sentidos. Cada
casa tinha um chefe e um salão de baile, todas as senhoras tinham brocados da
França e pérolas da Índia. Havia sociedades da cultura e sociedades para música e
dança, escolas de ciência e escolas de esgrima. Era equilibradamente civilizada e
hedonista, tendo criado uma cultura de uma graça refinada e rara, na qual um luxo
incomparável era temperado por uma exigente disciplina do intelecto e da educação.
Os habitantes de Charleston pintavam as casas com todas as cores do arco-íris e
construíam frescos alpendres, por onde a brisa marítima levava o aroma das rosas
como uma carícia. Em todas as casas havia uma sala com um globo, um telescópio e
paredes cheias de livros em muitas línguas. A meio do dia sentavam-se para um
almoço de seis pratos, cada qual oferecendo variedades servidas em baixelas de prata,
velhas de gerações, e que brilhavam suavemente. A conversa era o molho da refeição;
a graça o tempero favorito.
Era este o mundo que Scarlett O'Hara, outrora uma belle de um condado rural da
terra vermelha e agreste da fronteira a norte da Geórgia, queria agora conquistar,
armada apenas com energia, teimosia e uma terrível necessidade. Dispunha de muito
pouco tempo.
Os habitantes de Charleston eram conhecidos pela sua hospitalidade há mais de
um século. Não era invulgar receberem-se mais de cem convidados, mais de metade
dos quais só eram conhecidos do dono e da dona da casa através de cartas de
apresentação. Durante a Semana das Corridas - o auge da temporada social da cidade
- donos de cavalos de Inglaterra, França, Irlanda e Espanha traziam muitas vezes os
seus cavalos com meses de antecedência para os habituar ao clima e às águas. Essas
pessoas ficavam na casa dos seus opositores de Charleston; os cavalos eram tratados
como convidados, ao lado dos que o anfitrião ia fazer correr contra eles. Era uma
cidade de braços e coração abertos.
Até ter chegado a guerra. Como não podia deixar de ser, os primeiros tiros da
guerra civil foram disparados em Fort Sumter, no porto de Charleston. Para grande
parte do mundo, Charleston era o símbolo do Sul misterioso e mágico, que cheirava a
magnólia e onde o musgo pendia das árvores. Para os habitantes da cidade também.
E para o Norte. "Orgulhosa e arrogante Charleston", era o refrão nos jornais de
Nova Iorque e Boston. Os oficiais do exército da União estavam decididos a destruir a
velha cidade pintada em tons de pastel e cheia de flores. Primeiro, bloquearam a
entrada do porto; mais tarde, plataformas com canhões colocadas nas ilhas mais
próximas dispararam morteiros para as estreitas ruas e para as casas, num cerco que
durou quase seiscentos dias; por fim, chegou o exército de Sherman com as suas
tochas e queimou as casas das plantações ao longo dos rios. Quando as tropas da
União entraram na cidade para ocupar o seu prêmio, deram com ruínas desoladas.
Ervas daninhas cresciam nas ruas e estrangulavam os jardins das casas sem janelas,
marcadas pelas bombas, destelhadas. Tiveram também que enfrentar uma população
dizimada, que se tornara tão orgulhosa e arrogante quanto a reputação de que gozava
no Norte.
Os forasteiros deixaram de ser bem-vindos a Charleston.
As pessoas repararam os telhados e as janelas o melhor que puderam e
trancaram as portas. Entre si, voltaram a ser joviais e alegres, o seu hábito mais
querido. Encontravam-se para dançar em salas vazias, onde faziam brindes ao Sul,
bebendo água por xícaras rachadas e coladas. Chamavam às suas festas "Festas da
Fome", e riam. Os dias de champanhe francês em copos de cristal talvez tivessem
passado, mas continuavam a ser a gente de Charleston. Tinham perdido as suas
fortunas, mas tinham quase dois séculos de tradição e estilo. Ninguém lhes podia
roubar isso. A guerra acabara, mas não estavam derrotados. Nunca seriam derrotados,
fizessem os malditos ianques o que fizessem. Nunca, desde que permanecessem
unidos! E desde que mantivessem todos os outros fora do seu círculo.
A ocupação militar e os ultrajes da reconstrução puseram à prova o seu ânimo,
mas agüentaram-se. Um por um, os outros estados da Confederação foram
readmitidos na União e os seus governos devolvidos à população do estado. Mas a
Carolina do Sul não. E Charleston, muito especialmente. Mais de nove anos depois do
fim da guerra, soldados armados patrulhavam as velhas ruas, impondo o recolher
obrigatório. Regulamentos que mudavam constantemente abrangiam tudo, desde o
preço do papel até as licenças de casamento e funerais. Charleston tornou-se cada vez
mais desleixada por fora, mas cada vez mais forte na sua determinação de preservar o
velho estilo de vida. Fizeram renascer o Baile dos Solteiros, com uma nova geração
para preencher as faltas causadas pela matança de Buli Run, Antietam e
Chancellorsville. Depois do seu horário de trabalho como empregados ou
trabalhadores, antigos donos de plantações apanhavam o transporte público ou iam a
pé até os arrebaldes da cidade, para reconstruir os três quilômetros do hipódromo de
Charleston ou para plantar sementes de relva na lama revolvida e encharcada em
sangue que o rodeava, compradas com as economias amealhadas pelas viúvas.
Pouco a pouco, conquistando símbolos e terreno, os habitantes de Charleston
recuperavam a essência do mundo amado que tinham perdido. Mas não havia espaço
para quem não lhes pertencesse.
15
Pansy não conseguiu esconder o espanto com as ordens que Scarlett lhe deu,
quando estava preparando-se para se deitar, na primeira noite na casa dos Butlers.
Leva o traje de sair verde que vesti hoje de manhã e dá-lhe uma boa escovadela.
Tira-lhe todos os ornamentos, incluindo os botões dourados, e põe-lhe uns botões
pretos comuns.
- Onde vou ir arranjar botões pretos, Miss Scarlett?
- Não me aborreças com perguntas parvas como essa. Pede à criada de Mrs.
Butler... como é que ela se chama? Celie. E acorda-me às cinco horas.
- Às cinco horas?
- És surda? Ouviste o que eu disse. Agora vai. Quero o traje verde pronto para
vestir quando me levantar.
Scarlett afundou-se com prazer no colchão de penas e nas almofadas da grande
cama. O dia fora cheio demais, emocional demais. Conhecer Miss Eleanor, ir às
compras, depois aquela tolice da reunião do Lar da Confederação, depois Rhett
aparecendo, vindo do nada, com o serviço de chá... Estendeu a mão para o espaço
vazio a seu lado. Queria-o ali, mas talvez fosse melhor esperar alguns dias, até ter sido
realmente aceita em Charleston. Aquele miserável do Ross! Não ia pensar nele nem
nas coisas horríveis que ele dissera e fizera. Miss Eleanor negara-lhe entrada na casa
e ela não ia ser obrigada a vê-lo, esperava que para sempre. Ia pensar noutra coisa
qualquer. Ia pensar em Miss Eleanor, que a amava e que a ia ajudar a reconquistar
Rhett, mesmo que não soubesse que o estava fazendo.
Miss Eleanor dissera que o Mercado era o melhor local para conhecer todo
mundo e saber as novidades. Portanto, era ao Mercado que iria no dia seguinte.
Scarlett teria ficado mais contente se não fosse preciso ir tão cedo, às seis. "Mas a
necessidade é que manda. Tenho que admitir que Charleston tem muita atividade",
pensou ela sonolentamente. Estava a meio de um bocejo quando adormeceu.
O Mercado era o local ideal para Scarlett começar a vida de uma senhora de
Charleston. O Mercado era a destilação visível, exterior, da essência de Charleston.
Desde os primeiros tempos da cidade, era o local onde os habitantes da cidade
compravam a comida. A dona da casa - ou, em casos raros, o dono - escolhia e
pagava, uma criada ou um cocheiro recebiam as coisas e colocavam-nas num cesto
que traziam pendurado no braço. Antes da Guerra, a comida era vendida por escravos
que a tinham trazido da plantação dos seus donos. Muitos dos vendedores ocupavam
os mesmos lugares de outros tempos, só que agora eram livres e os cestos eram
carregados por criados que eram pagos pelos seus serviços; à semelhança dos
vendedores, muitos deles eram as mesmas pessoas, transportando os mesmos cestos.
O que importava para Charleston era que os velhos costumes não tinham mudado.
A tradição era a pedra base da sociedade, o direito inato da gente de Charleston,
a herança inestimável que nenhum carpetbagger nem nenhum soldado podia roubar.
Isso via-se bem no Mercado. As pessoas de fora podiam parar por ali, era um lugar
público. Mas era uma frustração para eles. Sem saberem como, nunca conseguiam
chamar a atenção da mulher que vendia os legumes ou do vendedor de caranguejos.
Os cidadãos negros de Charleston eram tão orgulhosos como os brancos. Quando o
forasteiro ia embora, o Mercado inteiro desatava às gargalhadas. O Mercado era só
para a gente de Charleston.
Scarlett soergueu os ombros para levantar a gola, de modo a cobrir-lhe o
pescoço. Apesar dos seus esforços, os dedos gelados do vento penetravam lá dentro e
tremia violentamente.
Sentia os olhos cheios de cinzas e tinha certeza de que as botas deviam ter solas
de chumbo. Quantos quilômetros seriam cinco quarteirões? Não conseguia ver nada.
Os candeeiros não passavam de um círculo brilhante de névoa dentro da névoa,
naquela meia luz cinzenta e fantasmagórica que antecedia o amanhecer.
"Como é que Miss Eleanor pode estar tão horrivelmente bem-disposta? A
conversar para ali, como se não estivesse um frio de rachar e escuro como breu!" Via-
se uma luz à frente - bem longe. Scarlett prosseguiu em direção a ela, aos tropeções.
Quem lhe dera que o tremendo vento acalmasse. Que era aquilo? No vento. Cheirou o
ar. Era mesmo! Era café! Afinal de contas, talvez sobrevivesse. Os seus passos
acompanharam os de Mrs. Butler, num ritmo ansioso e acelerado.
O Mercado era como um bazar, um oásis de luz e calor, cor e vida, na névoa
informe e cinzenta da madrugada. Nos pilares de tijolo, que suportavam os altos e
largos arcos que davam para as ruas vizinhas, brilhavam tochas que iluminavam os
aventais e lenços coloridos de sorridentes mulheres negras, fazendo sobressair as
suas mercadorias dispostas em cestos de todos os tamanhos e feitios, colocados sobre
grandes mesas pintadas de verde. Estava cheio de gente, a maior parte andando de
mesa em mesa, falando - a outros clientes ou aos vendedores - num regatear divertido
e desafiador, ritual que era obviamente apreciado por todos.
- Café primeiro, Scarlett?
- Oh, sim, por favor.
Eleanor Butler levou-a para um grupo de mulheres ali perto. Seguravam canecas
de lata fumegantes com as mãos enluvadas, bebericando enquanto falavam e riam
umas com as outras, indiferentes à barafunda que as cercava.
- Bom dia, Eleanor... Eleanor, como está?... Chegue para lá, Mildred, deixe passar
a Eleanor... Oh, Eleanor, sabia que no Kerrison há meias de lã verdadeira em saldo?
Só sai no jornal amanhã. Quer vir comigo e com a Alice? Vamos hoje, depois do
almoço... Oh, Eleanor, estávamos agora mesmo a falar da filha de Lavinia. Perdeu o
bebê ontem à noite. Lavinia está desfeita de dor. Acha que a sua cozinheira podia fazer
um pouco da sua maravilhosa geléia de vinho? Ninguém a faz como ela. Mary tem uma
garrafa de clarete e eu dou o açúcar...
- Boas, Miz Butler, vi a senhora chegando, o seu café está prontinho.
- E outra caneca para a minha nora, por favor, Sukie. Minhas senhoras, gostaria
de lhes apresentar a esposa de Rhett, Scarlett.
As conversas pararam e todas as cabeças se voltaram para olhar para Scarlett.
Ela sorriu e inclinou a cabeça, num cumprimento. Olhou com apreensão o grupo
de senhoras, imaginando que já toda a cidade devia saber o que Ross dissera. "Não
devia ter vindo, não suporto isto." O rosto endureceu-lhe e ficou amuada. Estava à
espera do pior, e toda a sua hostilidade para com as pretensões aristocráticas de
Charleston voltou num ápice.
Mas sorriu e fez vênias a todas as senhoras que Eleanor lhe apresentou... sim,
adoro Charleston... sim, senhora, sou sobrinha de Pauline Smith... não, minha senhora,
ainda não visitei a galeria de arte, só cheguei antes de ontem à noite... sim, acho que o
Mercado é muito divertido... Atlanta, bom, mais de Clayton County, a minha gente tinha
lá uma plantação de algodão... oh, sim, o tempo é mesmo uma maravilha, estes dias
quentes de Inverno... não, minha senhora, não me parece que tenha conhecido o seu
sobrinho quando ele esteve em Valdosta, ainda fica longe de Atlanta... sim, senhora,
gosto muito de um jogo de whist... Oh, muito obrigada, tenho estado ansiosa por um
cafezinho...
Escondeu o rosto na caneca, com a missão cumprida. "Miss Eleanor não tem
mais miolos que uma galinha", pensou ela, revoltada. "Como é que ela teve coragem
de me atirar assim para o meio? Deve pensar que tenho uma memória de elefante.
Tantos nomes e já os confundi todos. E depois, estão todas olhando para mim como se
eu também fosse um elefante ou outro animal do jardim zoológico. Sabem o que Ross
disse, tenho certeza. Talvez Miss Eleanor se deixe enganar com os sorrisos delas, mas
eu não. Bando de velhas ranhosas!" Rangeu os dentes de encontro à borda da caneca.
Não ia revelar o que sentia, nem que ficasse cega tentando não chorar. Mas tinha
uma boa cor no rosto.
Quando acabou o café, Mrs. Butler pegou a caneca dela e entregou-a, juntamente
com a sua, à atarefada vendedora.
- Tens de me dar troco, Sukie - disse ela. Estendeu uma nota de cinco dólares.
Sem perder tempo, Sukie abaixou-se e passou as canecas num grande balde
cheio de água acastanhada, colocou-as na mesa ao seu lado, limpou as mãos ao
avental, pegou a nota e enfiou-a numa velha bolsa de cabedal, que tinha pendurada à
cintura.
- Aqui tá, Miz Butler, espero que estava bom.
Scarlett ficou horrorizada. Dois dólares por um café! Com dois dólares podia-se
comprar o melhor par de botas de King Street.
- Gosto sempre, Sukie, mesmo que tenha que me privar de comida para o pagar.
Nunca tens vergonha por seres uma ladra tão grande?
Os dentes brancos de Sukie brilharam, contrastando com a sua pele escura.
- Não, sinhora, é claro que não! - disse ela, estremecendo divertida. - Posso jurar
sobre o Bom Livro que não há nada que me perturbe o sono.
Os outros que bebiam café riram. Todos eles já tinham dito coisas parecidas a
Sukie muitas vezes.
Eleanor Butler olhou em volta, até localizar Celie e o cesto.
- Vamos andando, querida - disse para Scarlett -, hoje temos uma grande lista.
Temos de começar, antes que desapareça tudo.
Scarlett seguiu Mrs. Butler até ao fim do recinto do Mercado, onde as mesas
estavam cheias de recipientes de lavagem galvanizados contendo peixe e marisco, que
exalava um cheiro forte e ácido. Scarlett torceu o nariz perante o fedor e olhou para os
recipientes com desdém. Pensava que sabia muito bem como era o peixe. No rio que
corria perto de Tara havia muitos peixes-gato, horríveis, barbudos e cheios de
espinhas. Tiveram que os comer quando não havia mais nada. Não conseguia
compreender por que é que alguém havia de ir mesmo comprar daquelas horríveis
criaturinhas, mas havia muitas senhoras, sem uma das luvas, metendo o dedo nos
recipientes. Que chato! Miss Eleanor ia apresentá-la a cada uma delas. Scarlett
aprontou o sorriso.
Uma senhora pequenina, de cabelos brancos, levantou um monstro de um peixe
prateado de dentro da caixa que estava na sua frente.
- Adoraria conhecê-la, Eleanor. Que é que acha deste linguado? Tinha pensado
num sargo, mas ainda não chegaram e não posso esperar. Não entendo por que é que
os barcos de pesca não são mais pontuais, e não me venha falar que não há vento
para as velas. Hoje de manhã, o vento quase me levou o chapéu da cabeça.
- Eu até prefiro linguado, Minnie, fica muito melhor com um bom molho. Deixe-me
apresentar-lhe a esposa de Rhett, Scarlett... Esta é Mrs. Wentworth, Scarlett.
- Como está, Scarlett. Diga-me lá, acha que este linguado tem bom aspecto?
Para ela, tinha um aspecto horrível, mas Scarlett murmurou:
- Sempre fui pouco de fiar em relação ao linguado. - Esperava que todas as
amigas de Miss Eleanor não lhe fossem pedir a opinião. Nem sequer sabia o que era
um linguado, pelo amor de Deus, muito menos se era bom ou não.
Durante a hora seguinte, Scarlett foi apresentada a mais de vinte senhoras e uma
dúzia de variedades de peixe. Estava recebendo uma educação completa sobre peixe.
Mrs. Butler comprou caranguejos, tendo ido a cinco vendedores diferentes até juntar
oito.
- Devo parecer-te extremamente esquisita - disse, quando se considerou satisfeita
-, mas a sopa não fica com o mesmo sabor quando é feita com caranguejos machos. A
fêmea dá-lhe um sabor especial, sabes. É muito mais difícil arranjar fêmeas nesta
época do ano, mas acho que o esforço vale a pena.
Scarlett não estava nem aí para o sexo dos caranguejos. Estava horrorizada por
ainda estarem vivos, remexendo-se nas caixas, esticando as garras e fazendo uns
barulhos enervantes ao treparem por cima uns dos outros na tentativa de chegar ao
topo para saírem. E agora conseguia ouvi-los no cesto de Celie, empurrando o saco de
papel onde estavam metidos.
Com os camarões foi pior, embora estivessem mortos. Os olhos deles eram umas
horrendas bolas pretas em cima de uns paus e tinham uns enormes bigodes e antenas
e uns estômagos salientes. Não podia acreditar que tivesse alguma vez comido algo de
parecido, muito menos com prazer.
As ostras não a incomodaram; eram apenas parecidas com rochas sujas. Mas
quando Mrs. Butler pegou uma faca curva de cima de uma mesa e abriu uma, Scarlett
sentiu o estômago às voltas. "Parece um bocado de cuspe nadando em água de lavar
pratos", pensou ela.
Depois dos mariscos, as carnes eram reconfortantemente familiares, embora os
enxames de moscas à volta dos jornais empapados em sangue, que estavam por
baixo, a fizessem ficar enjoada. Conseguiu sorrir a um rapazinho negro que as estava
enxotando com um grande leque em forma de coração, feito de um material qualquer
parecido com palha seca. Quando chegaram às filas de aves de pescoço pendente, já
se tinha recomposto o suficiente para pensar em enfeitar um chapéu com algumas das
penas.
- Que penas, querida? - perguntou Mrs. Butler. - De faisão? É claro que podes
ficar com algumas. - Regateou vivamente com a mulher gorda, de um negro retinto,
que vendia as aves, acabando por comprar uma mão-cheia, que arrematou por uma
bagatela.
- Que raio é que Eleanor anda fazendo? - disse uma voz mesmo ao pé de
Scarlett. Olhou em volta e viu a cara de macaco de Sally Brewton.
- Bom dia, Mrs. Brewton.
- Bom dia, Scarlett. Por que é que Eleanor está comprando as partes do pássaro
que não se podem comer? Ou será que alguém descobriu uma maneira de cozinhar
penas? Tenho vários colchões que não estão em uso neste momento.
Scarlett explicou por que é que queria as penas. Sentia-se corar. Talvez só as
"coisinhas vistosas" usassem chapéus enfeitados em Charleston.
- Que bela idéia! - disse Sally, verdadeiramente entusiasmada. - Tenho um velho
chapéu de montar que podia ser ressuscitado com um arranjo de fitas e algumas penas
penduradas. Se o conseguir encontrar, já passou tanto tempo desde que o usei pela
última vez. Costuma montar, Scarlett?
- Há anos que não o faço. Desde... - Tentou lembrar-se.
- Desde antes da guerra. Eu sei. Eu também. Tenho umas saudades horríveis.
- De que é que tens saudades, Sally? - Mrs. Butler juntou-se a elas. Estendeu as
penas a Celie. - Ata um bocado de cordão à volta delas, em ambas as pontas, e toma
cuidado para não as machucares. - Depois soltou uma exclamação. - Desculpem-me -
disse com uma gargalhada -, vou ficar sem salsicha Brewton. Ainda bem que te vi,
Sally, tinha me esquecido completamente da idéia. - Afastou-se apressadamente,
seguida por Celie.
Sally sorriu perante a expressão admirada de Scarlett.
- Não se aflija, ela não endoideceu. As melhores salsichas do mundo só estão à
venda aos sábados. Esgotam-se depressa. O homem que as faz era nosso criado,
quando era escravo. Chama-se Lucullus. Depois de ser libertado, acrescentou Brewton
como apelido. Muitos dos escravos fizeram isso... no que diz respeito a nomes,
encontra aqui toda a aristocracia de Charleston. É claro que também há um bom
número de Lincolns. Venha comigo, Scarlett. Tenho que ir aos legumes. Eleanor
encontra-nos depois.
Sally parou em frente de uma bancada de cebolas.
- Onde diabo se meteu Lila?... ah, estás aí. Scarlett, esta criatura minúscula, se é
que vais acreditar, governa a minha casa inteira como se fosse Ivan, o Terrível. Esta é
Mrs. Butler, Lila, a mulher de Rhett.
A bonita e jovem criada fez uma vênia.
- Nós precisar de muitas cebolas, Miss Sally - disse ela -, para os picles que vou
fazer.
- Está ouvindo, Scarlett? Ela pensa que estou senil. Sei muito bem que
precisamos de muitas cebolas. - Sally agarrou um dos sacos de papel castanho de
cima da mesa e começou a enchê-lo de cebolas. Scarlett ficou vendo, desanimada.
Impulsivamente, tapou a boca do saco com a mão.
- Desculpe, Mrs. Brewton, mas essas cebolas não prestam.
- Não prestam? Como é que as cebolas não prestam? Não estão nem um pouco
podres.
- Estas cebolas foram arrancadas cedo demais - explicou Scarlett. - Têm bom
aspecto, mas não têm gosto de nada.
- Eu sei, porque cometi o mesmo erro. Quando tive que governar a nossa
propriedade, plantei cebolas. Uma vez que não sabia nada sobre plantas, arranquei
uma porção assim que a rama começou a ficar castanha, com medo que estivessem
morrendo e apodrecessem. Eram lindas como imagens e eu parecia um pavão, tão
orgulhosa estava, porque a maior parte das coisas que plantei não prestou para nada.
Comemo-las cozidas, guisadas e de fricassé, para ajudar a disfarçar o gosto dos
esquilos. Mas não tinham gosto de nada. Mais tarde, quando cavei o rego para plantar
outra coisa, encontrei uma que me escapara. Essa é que era uma cebola como deve
ser. Acontece que precisam de tempo para ganharem sabor. Eu mostro-lhe o que é
uma boa cebola. - Scarlett pôs-se a escolher com ar de entendida, cheirando e
mexendo nos cestos que cobriam a bancada. - Estas é que deve levar - disse
finalmente. - O queixo dela tinha um ar de desafio. "Pode pensar que não passo de
uma desmiolada", pensava ela, "mas não me envergonho de ter sujado as mãos
quando foi preciso. Vocês, emproados de Charleston, pensam que são o supra-sumo,
mas enganam-se."
- Obrigada - disse Sally. Os seus olhos tinham um ar pensativo. - Fico-lhe
agradecida. Fui injusta contigo, Scarlett. Não acreditava que alguém tão bonita como a
menina fosse tão sensata. Que mais é que plantou? Não me importava de aprender
qualquer coisa sobre os aipos.
Scarlett estudou o rosto de Sally. Viu um interesse honesto e correspondeu.
- Os aipos eram chiques demais para mim. Tinha que alimentar uma dúzia de
bocas. No entanto, sei tudo o que há para saber sobre batatas doces, cenouras,
batatas e nabos. Sobre algodão, também. - Não lhe interessava se estava a gabar-se
ou não. Era capaz de apostar que nunca nenhuma senhora de Charleston tinha jamais
suado ao sol, a apanhar algodão!
- Deve ter-se matado a trabalhar. - Lia-se a palavra respeito nos olhos de Sally
Brewton.
- Tínhamos que comer. - Encolheu os ombros para afastar o passado. - Graças a
Deus que isso já passou. - Depois sorriu. Sally Brewton fazia-a ficar bem-disposta. -
Mas tornei-me muito esquisita no que toca a colheitas de tubérculos. Uma vez, Rhett
disse que conhecia muitas pessoas capazes de recusarem um vinho, mas que eu era a
única que fazia o mesmo às cenouras. Estávamos no melhor restaurante de Nova
Orleães e causou um rebuliço!
Sally desatou às gargalhadas.
- Acho que conheço esse restaurante. Diga lá, o criado não arranjou o
guardanapo que trazia no braço e olhou com ar de desaprovação?
Scarlett deu uma risadinha.
- Deixou cair o guardanapo, que caiu numa daquelas frigideiras em que cozinham
a sobremesa.
- E pegou fogo? - Sally sorriu maliciosamente.
Scarlett acenou que sim.
- Oh, meu Deus - gritava Sally. - Dava tudo para ter lá estado.
Eleanor Butler interrompeu-as.
- De que é que estão falando? Também gostaria de rir.
Brewton já só tinha meio quilo de salsichas e tinha-as prometido a Minnie
Wentworth.
- Peça a Scarlett que lhe conte - disse Sally, ainda a rindo. - Esta sua menina é
um espanto, Eleanor, mas tenho que ir. - Pôs a mão no cesto de cebolas que Scarlett
indicara. -
- Levo estas - disse à vendedora. - Sim, Lena, o cesto todo. Despeje-as dentro de
um saco e dê-as a Lila. Como está o seu rapaz, continua com tosse? - Antes de se
envolver numa discussão sobre remédios para a tosse, voltou-se para Scarlett e olhou
para ela. - Espero que passe a chamar-me Sally e venha me visitar, Scarlett. Estou em
casa a primeira quarta-feira de cada mês, à tarde.
Scarlett não sabia, mas tinha acabado de avançar para o nível mais alto da
controlada e estratificada sociedade de Charleston. Portas que se teriam apenas
entreaberto educadamente para a nora de Eleanor Butler, se abririam de par em par
para uma protegida de Sally Brewton.
Eleanor Butler aceitou de bom grado o julgamento de Scarlett sobre as batatas e
cenouras que precisava comprar. Depois, abasteceu-se de cereais, angu de milho,
farinha e arroz. Por fim, comprou manteiga, leitelho, natas, leite e ovos. O cesto de
Celie estava transbordando.
- Temos que tirar tudo para fora e tornar a guardar as coisas - preocupava-se Mrs.
Butler.
- Eu levo alguma coisa - ofereceu-se Scarlett. - Estava impaciente por ir embora,
antes que fosse apresentada a mais amigas de Mrs. Butler. Tinham parado tantas
vezes que a travessia da seção de legumes e produtos lácteos levara mais de uma
hora. Não se importava de conhecer as mulheres que vendiam os produtos - queria
fixá-las com muita clareza no seu espírito, pois tinha a certeza de que, no futuro, teria
que lidar com elas. Miss Eleanor era branda demais. Ela tinha a certeza de que era
capaz de conseguir melhores preços. Seria divertido. Assim que estivesse mais a par
das coisas, ia oferecer-se para se ocupar de uma parte das compras. Mas não dos
peixes. Faziam-na ficar enjoada.
Ao contrário do que acontecia quando os comia, descobriu ela. O jantar foi uma
revelação. A sopa de caranguejo-fêmea era uma mistura aveludada de sabores que a
fizeram abrir muito os olhos. Nunca provara nada tão sutilmente delicioso, exceto em
Nova Orleães. É claro! Agora já se lembrava, Rhett identificara muitos dos pratos que
encomendava como uma ou outra espécie de marisco.
Scarlett repetiu a sopa e saboreou-a gota a gota e depois fez justiça ao resto do
generoso jantar, que incluía sobremesa, uma confecção de frutas e nozes, coberta de
natas, a que Mrs. Butler chamou Torta Huguenote.
Nessa tarde, teve indigestão pela primeira vez na vida. Mas não por comer
demais. Eulalie e Pauline puseram-na mal-disposta.
- Vamos visitar Carreen - anunciou Pauline quando chegaram -, e pensamos que
Scarlett havia de querer vir conosco. Lamentamos a interrupção, não sabia que tinham
acabado de comer agora mesmo. - Tinha os lábios apertados, numa desaprovação
muda de uma refeição que durara tanto. Eulalie deixou sair um pequeno suspiro de
inveja.
Carreen! Ela não queria nada ir ver Carreen. Mas não podia dizer isso, as tias
teriam um ataque.
- Adoraria ir, tia - exclamou ela -, mas, na verdade, não estou sentindo-me muito
bem. Vou só pôr um pano molhado na testa e deitar-me. - Baixou os olhos. - Sabem
como é. - Aí estava. Elas que pensassem que estava com problemas de mulher. São
virtuosas demais para fazerem perguntas.
Tinha razão. As tias despediram-se o mais depressa possível. Scarlett
acompanhou-as à porta, lembrando-se de andar como se tivesse dores de barriga.
Eulalie deu-lhe umas palmadinhas de simpatia no ombro quando a beijou à saída.
- Vai lá descansar agora - disse ela. Scarlett acenou que sim, humildemente. - E
vem ter a nossa casa amanhã, às nove e meia. É uma meia hora a pé até à Igreja de
St. Mary, para a Missa.
Scarlett ficou olhando de boca aberta, horrorizada. Nunca lhe passara pela
cabeça ir à Missa.
Nesse momento, uma pontada verdadeira quase a fez dobrar-se ao meio.
Durante toda a tarde, refugiou-se na cama com o espartilho desatado e uma botija
de água quente sobre o estômago. A indigestão era desconfortável e estranha, e, por
isso mesmo, assustadora. Mas muito mais assustador era o seu medo abjeto de Deus.
Ellen O'Hara fora uma católica devota e fizera o possível para que a religião
fizesse parte da vida de Tara. À noite havia orações, litania e terço e lembrava
constantemente às filhas, de um modo meigo, os deveres e obrigações delas como
cristãs.
O isolamento da plantação era um desgosto para Ellen, pois sentia falta da
consolação que lhe dava a Igreja. No seu jeito calmo, tentava dá-la à família. Quando
elas tinham 12 anos, os ensinamentos pacientes da mãe tinham implantado firmemente
os imperativos do catecismo em Scarlett e nas irmãs.
Agora, Scarlett torcia-se de culpa, pois negligenciara as observâncias religiosas
durante tantos anos. A mãe devia estar chorando no céu. Oh, por que é que as irmãs
da mãe haviam de viver em Charleston? Ninguém em Atlanta esperaria que ela fosse à
missa. Mrs. Butler não teria feito muito caso ou, na pior das hipóteses, esperaria que
ela a acompanhasse à Igreja episcopal. Isso não seria tão mau. Scarlett tinha a vaga
idéia de que Deus não ligava para aquilo que acontecia numa igreja protestante. Mas
assim que ela pusesse o pé na entrada de St. Mary, Ele saberia que ela era uma
pecadora amedrontada, que já não ia à confissão desde... desde... nem sequer
conseguia lembrar-se da última vez. Não poderia tomar a Comunhão, e todo mundo
saberia a razão. Imaginou os anjos da guarda invisíveis de que Ellen lhe falava quando
era criança. Todos franziam a testa; Scarlett puxou os cobertores por cima da cabeça.
Não sabia que o seu conceito de religião era tão supersticioso e mal-formado
como o de qualquer homem da Idade da Pedra. Só sabia que estava assustada, infeliz
e zangada e que estava presa num dilema. Que é que havia de fazer?
Lembrava-se do rosto da mãe, iluminado pelas velas, a dizer à família e aos
criados que Deus amava o cordeiro malhado acima de tudo, mas isso não servia lá
muito de conforto. Não conseguia pensar em nenhuma maneira de se livrar da Missa.
Não era justo! E logo agora, que as coisas começavam a correr tão bem. Mrs.
Butler dissera-lhe que Sally Brewton organizava umas partidas de whist muito
divertidas, e era mais que certo ela ser convidada.
16
Claro que Scarlett foi à Missa. Para sua surpresa, o antigo ritual e os responsos
foram estranhamente reconfortantes, como velhos amigos na nova vida que estava a
começar. Era fácil lembrar-se da mãe quando os seus lábios murmuravam o Padre
Nosso e as contas macias do terço eram tão familiares entre os dedos. Tinha a certeza
de que Ellen devia estar satisfeita por a ver ali, de joelhos, e isso fazia-a sentir-se
melhor.
Uma vez que não podia escapar, confessou-se e foi também visitar Carreen. O
convento e a irmã revelaram-se como mais duas surpresas. Scarlett sempre imaginara
os conventos como lugares parecidos com fortalezas, com portões trancados, onde as
freiras esfregavam chãos de pedra de manhã até à noite. Em Charleston, as Irmãs da
Piedade viviam numa magnífica mansão de tijolo e davam aulas no belo salão de baile.
Carreen estava radiosamente feliz com a sua vocação, tão diferente da rapariga
calma e tímida de que Scarlett se lembrava que nem parecia a mesma pessoa. Como é
que podia ficar zangada com uma desconhecida? Especialmente uma estranha que, de
certo modo, parecia mais velha que ela, em vez de a sua irmã mais nova. Carreen - a
Irmã Mary Joseph - também ficou contentíssima de a ver. Scarlett sentiu-se
aconchegada por aquela admiração e amor, expressos tão livremente. Se, ao menos,
Suellen tivesse metade da simpatia, pensou ela, não se sentiria tão excluída em Tara.
Foi um grande prazer visitar Carreen e tomar chá no lindo jardim formal do convento,
apesar de a irmã ter falado tanto sobre as rapariguinhas da sua classe de aritmética
que Scarlett quase adormeceu.
Num curto espaço de tempo, a Missa de domingo, seguida de café-da-manhã na
casa das tias e do chá de terça à tarde com Carreen, tornaram-se momentos serenos e
bem-vindos no ocupado dia-a-dia de Scarlett.
É que ela tinha muito que fazer.
Uma tempestade de convites caíra na casa de Eleanor Butler na semana que se
seguiu à lição que Scarlett deu sobre cebolas a Sally Brewton. Eleanor ficou
agradecida a Sally, pelo menos assim pensou. Conhecedora dos costumes de
Charleston, receava por Scarlett. Mesmo nas condições espartanas da vida do após-
guerra, a sociedade era uma ratoeira de regras de comportamento não especificadas,
um labirinto bizantino de refinamentos superelaborados, à espera de apanhar os
descuidados ou não iniciados.
Tentou aconselhar Scarlett.
Não precisas visitar todas estas pessoas que deixaram cartões, querida - disse
ela. - Basta deixares o teu próprio cartão, com o canto dobrado. Isso é uma forma de
reconhecer a visita e mostra o teu desejo de relacionamento, mas quer dizer que não
vais mesmo lá a casa, visitar a pessoa.
- E por isso que tantos cartões estavam todos dobrados?
Pensei que eram velhos e usados. Bom, vou visitar todas as pessoas. Estou
contente por quererem ser amigos; eu também quero.
Eleanor calou-se. Era verdade que a maioria dos cartões eram "velhos e usados".
Ninguém se podia dar ao luxo de comprar novos - quase ninguém. E os que podiam
não iam embaraçar os que não podiam, mandando-os fazer. Tornara-se um costume
aceito por todos deixar os cartões recebidos numa salva no hall de entrada, para serem
discretamente recuperados pelos donos. Decidiu que, de momento, não ia complicar a
educação de Scarlett com essa informação particular. A querida moça mostrara-lhe
uma caixa de cem cartões brancos, novos, que trouxera de Atlanta. Eram tão novos
que ainda estavam embrulhados em tecido. Iam durar para muito tempo. Ficou vendo
Scarlett partir com uma determinação bem-disposta e teve a mesma sensação de
quando Rhett, com 3 anos, a tinha chamado triunfantemente do último ramo de um
gigantesco carvalho.
Os receios de Eleanor Butler eram desnecessários. Sally Brewton fora muito
clara.
- A moça não tem quase educação nenhuma e tem um gosto horrível. Mas tem
vigor e energia, e é uma sobrevivente. Precisamos de gente como ela aqui no Sul, sim,
mesmo em Charleston. Talvez especialmente em Charleston. É minha protegida;
espero que todos os meus amigos a façam sentir-se bem-vinda aqui.
Em breve, os dias de Scarlett eram um vendaval de atividade. Começava com
uma hora, ou mais, no Mercado, depois um grande café-da-manhã em casa - que
incluía habitualmente salsichas Brewton - e às dez horas já estava saindo, vestida de
novo, seguida por Pansy, que levava a mala dos cartões e um fornecimento pessoal de
açúcar, que se esperava que todos os convidados levassem consigo em tempos de
racionamento. Havia tempo suficiente de fazer, pelo menos, cinco visitas, antes de
voltar a casa para almoçar. As tardes eram ocupadas com visitas a senhoras que
tinham marcado aquele dia para receberem, ou com reuniões de whist, ou excursões
com novas amigas a King Street para fazer compras, ou para receber visitas com Miss
Eleanor.
Scarlett adorava aquela atividade constante. Ainda mais, adorava a atenção que
lhe dispensavam. Acima de tudo, adorava ouvir o nome de Rhett na boca de toda a
gente. Algumas mulheres já velhas criticavam-no abertamente. Não tinham aprovado
as suas atitudes quando era novo e nunca mudariam de opinião. Mas a maioria
perdoara-lhe os pecados de juventude. Agora estava mais velho, mais disciplinado. E
adorava a mãe. Velhas senhoras que tinham perdido os filhos e netos na guerra
percebiam muito bem a felicidade radiante de Eleanor Butler.
As mulheres mais novas olhavam para Scarlett com uma inveja mal disfarçada.
Deliciavam-se a contar todos os fatos e boatos sobre o que Rhett andaria a fazer,
quando deixava a cidade sem explicações. Algumas diziam que os maridos sabiam de
fonte segura que Rhett andava financiando o movimento político destinado a expulsar o
governo dos carpetbaggers do capitólio estadual. Outras murmuravam que ele andava
recuperando os retratos e a mobília da família Butler com uma arma na mão. Todos
sabiam histórias das suas façanhas durante a guerra, quando o seu esguio e sombrio
navio atravessara, como uma flecha, a frota da União, que fazia o bloqueio, mais
parecendo uma sombra mortífera. Quando falavam dele punham uma expressão
especial, uma mistura de curiosidade e imaginação romântica. Rhett era mais mito que
homem. E era marido de Scarlett. Como é que não haviam de a invejar?
Scarlett estava no seu melhor quando se mantinha constantemente ocupada e
estes foram para ela bons tempos. As visitas sociais eram exatamente o que precisava,
depois da aterradora solidão de Atlanta, e depressa esqueceu o desespero que sentira.
Atlanta devia estar enganada, nada mais. Ela não fizera nada para merecer tal
crueldade, senão todo mundo de Charleston não havia de gostar tanto dela. E
gostavam, se não por que é que a convidariam?
Este pensamento era muito reconfortante. Pensava muito nisto. Sempre que fazia
as suas visitas, ou recebia pessoas com Mrs. Butler, ou ia visitar a sua amiga Anne
Hampton, especialmente escolhida, ao Lar da Confederação, ou dava à língua no
Mercado, enquanto tomava café, Scarlett desejava sempre que Rhett a pudesse ver.
Às vezes, até olhava rapidamente em volta, imaginando que ele estava ali, tão intenso
era o seu desejo. Oh, se ao menos ele voltasse para casa!
Parecia-lhe que ele estava mais perto de si nos calmos momentos depois do
jantar, quando se sentava com a mãe dele no estúdio e escutava, fascinada, enquanto
Miss Eleanor falava. Ela estava sempre disposta a lembrar-se de coisas que Rhett
fizera ou dissera quando era criança.
Scarlett também gostava das outras histórias de Miss Eleanor. Às vezes eram
maliciosamente divertidas. Eleanor Butler, como a maior parte dos seus
contemporâneos de Charleston, fora educada por governantas e viagens. Lera
bastante, mas não era uma intelectual, falava aceitavelmente as línguas latinas,
embora com uma pronúncia terrível, conhecia Londres, Paris, Roma e Florença, mas
apenas as atrações históricas famosas e as lojas de luxo. Era uma pessoa do seu
tempo e da sua classe. Nunca questionara a autoridade dos pais ou do marido, e
cumpria as suas obrigações em todos os aspectos, sem se queixar.
O que a distinguia da maior parte das mulheres do seu tipo era que ela tinha um
senso de humor, calmo mas irreprimível. Gozava o que quer que a vida lhe trouxesse e
achava a condição humana basicamente divertida, sendo também uma boa contadora
de histórias, com um repertório que ia de relatos de incidentes cômicos da sua própria
vida até o manancial de histórias típicas do Sul sobre esqueletos escondidos em
armários, comum a todas as famílias da região.
Se Scarlett conhecesse essa referência, podia muito bem ter chamado a Eleanor
a sua Scheherazade pessoal. Nunca percebeu que Mrs. Butler estava indiretamente
tentando abrir-lhe o espírito e o coração. Eleanor conseguia ver a vulnerabilidade e a
coragem que tinham atraído o seu querido filho para Scarlett. Também podia ver que
alguma coisa correra mal no casamento, tão mal que Rhett não queria ter mais nada a
ver com ele. Sabia, sem lhe terem dito, que Scarlett estava desesperadamente
decidida a reconquistá-lo, e, por razões particulares, ela própria ainda estava mais
ansiosa por essa reconciliação que Scarlett. Não tinha a certeza se Scarlett conseguiria
fazer Rhett feliz, mas acreditava do fundo do coração que outro filho faria do
casamento um sucesso. Rhett visitara-a com Bonnie; nunca se esqueceria da
felicidade desses momentos. Adorara a menina e gostara ainda mais de ver o filho tão
feliz. Desejava essa felicidade de novo para ele e para si própria. Estava disposta a
fazer o que estivesse ao seu alcance para o conseguir.
Por andar tão ocupada, passou mais de um mês sobre a sua chegada a
Charleston antes de Scarlett notar que estava aborrecida. Aconteceu na casa de Sally
Brewton, o local menos aborrecido da cidade, quando todo mundo estava a falar de
moda, um assunto que dantes era terrivelmente interessante para Scarlett. Ao
princípio, ficou fascinada por ouvir Sally e o seu círculo mencionar Paris. Uma vez,
Rhett trouxera-lhe um chapéu de Paris, o presente mais belo e mais excitante que
alguma vez recebera. Era verde - para combinar com os seus olhos, dissera ele - com
umas fitas de seda, largas e lindíssimas, para atar debaixo do queixo. Obrigou-se a
ouvir o que Alicia Savage estava dizendo - embora não conseguisse imaginar o que
uma trinca-espinhas velha como ela pudesse saber sobre vestidos. E, já agora, Sally
também não. Com a sua cara e o peito liso, não havia nada que a fizesse parecer
bonita.
- Lembra-se das provas no Worth? - dizia Mrs. Savage. - Pensei que desmaiava
por estar tanto tempo de pé em cima do estrado.
Meia dúzia de vozes falaram ao mesmo tempo, partilhando queixas sobre a
brutalidade dos costureiros parisienses. Outras discordaram, dizendo que era um
pequeno preço a pagar pela qualidade que só Paris conseguia fornecer. Várias
suspiraram, lembrando-se de luvas, botas e leques e perfumes.
Scarlett voltava-se automaticamente para a voz que estava falando, com uma
expressão de interesse no rosto. Quando ouvia risos, ria. Mas pensava noutras coisas -
se haveria um resto daquela torta do almoço, tão boa, para comer no jantar... o seu
vestido azul, que bem precisava de uma gola nova... Rhett... Olhou para o relógio, que
estava atrás de Sally. Tinha que ficar, pelo menos, mais oito minutos. E Sally vira-a
olhando. Tinha que prestar atenção.
Os oito minutos pareceram-lhe oito horas.
- Só falaram de roupas, Miss Eleanor. Pensei que endoidecia, de tão aborrecida
que estava. - Scarlett deixou-se cair na cadeira na frente de Mrs. Butler. As roupas
tinham perdido todo o fascínio quando se viu reduzida aos quatro vestidos "práticos" e
insípidos que a mãe de Rhett a ajudara a encomendar à costureira. Até os vestidos de
baile que estavam sendo feitos não tinham lá muito interesse. Só havia dois, para as
próximas seis semanas, em que havia bailes quase todas as noites. E também eram
insípidos - sobretudo as cores, um azul e um de veludo rosado -, com um corte também
insípido, quase sem nenhum ornamento. No entanto, até o baile mais aborrecido
significava música - e dança - e Scarlett adorava dançar. E Rhett também estaria de
volta da plantação, prometera-lhe Miss Eleanor. Se ao menos não tivesse que esperar
tanto para a temporada começar. De repente, as três semanas pareceram-lhe
insuportavelmente aborrecidas, sem nada para fazer, a não ser ficar sentada e falar
com mulheres.
Oh, como ela desejava que acontecesse algo de excitante!
O seu desejo foi-lhe concedido muito em breve, mas não da forma que queria. Em
vez disso, a excitação foi aterradora.
Começou com um boato malicioso, que pôs todo mundo da cidade a rir. Mary
Elizabeth Pitt, uma solteirona dos seus 40 anos, dizia que acordara no meio da noite e
vira um homem no seu quarto.
- Tal e qual - dizia ela -, com um lenço na cara, como Jesse James.
- Se alguma vez ouvi alguém desejar em voz alta - comentou alguém
desagradavelmente -, foi agora. Mary Elizabeth deve ser vinte anos mais velha que
Jess James. Os jornais tinham andado publicando uma série de artigos, dando uma
idéia romântica das façanhas dos irmãos James e da sua gang.
Mas, no dia seguinte, a história levou uma reviravolta desagradável. Alicia Savage
também andava na casa dos 40, mas tinha sido casada duas vezes e todo mundo
sabia que era uma mulher de natureza calma e racional. Também ela acordara e vira
um homem no quarto, de pé ao lado da cama, olhando para ela à luz da Lua. Segurava
no cortinado, para deixar entrar a luz, e espreitava por cima de um lenço que lhe
escondia a parte inferior do rosto. A parte superior estava escurecida pela sombra do
boné.
Vestia o uniforme de um soldado da União.
Mrs. Savage gritou e atirou-lhe um livro, que estava em cima da mesinha-de-
cabeceira. Ele passou pelas cortinas para a piazza, antes que o marido tivesse tempo
de chegar ao seu quarto.
Um ianque! De repente, todos ficaram com medo. Mulheres sozinhas tinham
receio por si próprias; mulheres com maridos tinham receio por si e ainda mais pelos
maridos, porque se um homem ferisse um soldado da União ia para a prisão ou podia
mesmo ser enforcado.
Na noite seguinte, e na outra, o soldado materializou-se no quarto de uma mulher.
Na terceira noite, o relatório era o pior de todos. Não foi o luar que acordou Theodosia
Harding, foi o movimento de uma mão quente na coberta que lhe tapava os seios.
Quando abriu os olhos, só viu escuridão. Mas conseguia ouvir uma respiração ofegante
e sentir uma presença esmagadora. Gritou e depois desmaiou de medo. Ninguém sabe
o que é que podia ter acontecido a seguir. Theodosia foi mandada para casa de primos
em Summerville. Todos disseram que estava em estado de choque. Quase idiota,
acrescentaram os maldosos.
Uma delegação de homens de Charleston foi ao quartel-general do Exército,
acompanhada do velho advogado Josiah Anson como porta-voz. Iam começar a
patrulhar as ruas da parte velha da cidade à noite. Se surpreendessem o intruso, eles
próprios lhe tratariam da saúde.
O comandante concordou com as patrulhas. Mas avisou que se algum soldado da
União fosse ferido, o homem, ou homens, responsáveis seriam executados. Não
haveria justiça vigilante ou ataques ocasionais a tropas nortistas sob a pretensão de
proteger as mulheres de Charleston.
Os medos de Scarlett - acumulados há anos - abateram-se sobre ela como uma
inundação. Adotara uma atitude desdenhosa para com as forças de ocupação; como
toda a gente em Charleston, ignorava-as, agia como se não estivessem ali, e eles
afastavam-se do seu caminho, quando ela caminhava energicamente pelo passeio
abaixo, para ir retribuir uma visita ou ir às compras. Agora, tinha medo de todos os
uniformes azuis que via. Qualquer deles podia ser o intruso noturno. Conseguia
imaginá-lo bem demais, uma figura saltando da escuridão.
O seu sono era percorrido por sonhos hediondos - memórias, na realidade. Uma e
outra vez, via o vagabundo ianque que fora a Tara, sentia-lhe o cheiro rançoso, via as
suas mãos sujas e peludas remexendo as jóias sem valor da caixa da mãe, os seus
olhos avermelhados, repletos de uma luxúria violenta, olhando para ela e a sua boca
molhada, cheia de dentes partidos, torcida num esgar de antecipação. Matara-o a tiro.
Destruíra a cara e os olhos numa explosão de sangue e bocados de osso e pedaços de
miolos viscosos, manchados de sangue.
Nunca fora capaz de esquecer a repercussão do tiro e os salpicos horrivelmente
vermelhos e o seu triunfo violento e avassalador.
Oh, se ao menos ela tivesse uma pistola para se proteger do ianque, a si e a Miss
Eleanor!
Mas não havia nenhuma arma em casa. Procurou em todos os armários e malas,
guarda-roupas e cômodas, até por detrás dos livros, nas prateleiras da biblioteca.
Estava indefesa, desesperada. Pela primeira vez na sua vida, sentia-se fraca, incapaz
de enfrentar e vencer qualquer obstáculo no seu caminho. Sentia-se paralisada.
Implorou a Eleanor Butler que mandasse uma mensagem a Rhett.
Eleanor foi condescendente. Sim, sim, ia mandar uma palavra. Sim, ia transmitir-
lhe o que Alicia tinha dito sobre o tamanhão do homem e o brilho fantasmagórico que o
luar projetava nos seus desumanos olhos negros. Sim, ia lembrar-lhe que ela e Scarlett
eram duas mulheres sozinhas na grande casa, à noite, que os criados iam todos para
as suas casas depois do jantar, com exceção de Manigo - um velho - e Pansy - uma
moça pequena e fraca.
Sim, ia mandar recado com urgência, seguiria imediatamente - na próxima viagem
do barco que trouxesse caça da plantação.
- Mas quando é isso, Miss Eleanor? Rhett tem que vir agora! Aquela magnólia é
praticamente uma escada do chão até a piazza do lado de fora dos nossos quartos! -
Scarlett agarrou com força no braço de Mrs. Butler, abanando-o para realçar as suas
palavras.
Eleanor deu-lhe umas palmadinhas na mão.
- Em breve, querida, deve chegar em breve. Há um mês que não temos pato, e
pato assado é um dos meus pratos favoritos. Rhett sabe disso. Além disso, agora tudo
vai correr bem. Ross e os amigos vão patrulhar todas as noites.
"Ross!", exclamou Scarlett para si própria. "Que é que um bêbado como Ross
Butler pode fazer? Ou qualquer dos cavalheiros de Charleston?" A maior parte deles
eram homens velhos, aleijados, ou jovens demais, senão não teriam perdido a estúpida
da guerra. Por que é que alguém havia de confiar agora neles para lutar contra os
ianques?
A sua urgência embateu no inquebrável otimismo de Eleanor Butler e ela perdeu.
Durante uns tempos, as patrulhas pareceram dar resultado. Não houve notícias
de intrusos e todo mundo se acalmou.
Scarlett teve o seu primeiro dia para receber, que foi tão concorrido que a tia
Eulalie se queixou de que não havia bolo suficiente para todos. Eleanor Butler rasgou o
recado que tinha escrito para Rhett. As pessoas foram à igreja, às compras, jogaram
whist, puseram os trajes de noite a arejar e fizeram reparações antes de a Temporada
começar.
Scarlett regressou da sua volta de visitas matutinas com as faces brilhantes, por
ter vindo andando depressa demais.
- Onde está Mrs. Butler? - perguntou a Manigo. Quando este respondeu que
estava na cozinha, Scarlett correu para os fundos da casa.
Eleanor Butler olhou, ao ouvir a entrada apressada de Scarlett.
- Boas notícias, Scarlett! Tive carta de Rosemary hoje de manhã. Volta para casa
depois de amanhã.
- É melhor mandar-lhe um telegrama dizendo que fique lá - atirou Scarlett. A sua
voz soou dura e desprovida de emoção. - O ianque apanhou Harriet Madison na noite
passada. Acabei de saber. - Olhou para a mesa que estava perto de Mrs. Butler. -
Patos? Está depenando patos! O barco da plantação chegou! Posso apanhá-lo e ir
buscar Rhett.
- Não podes ir sozinha naquele barco com quatro homens, Scarlett.
- Posso levar Pansy, quer ela goste ou não. Aqui está, dê-me um saco e algumas
destas bolachas. Estou com fome. Como pelo caminho.
- Mas, Scarlett...
- Não me venha com mas, Miss Eleanor. Dê-me só as bolachas. Vou partir.
"Que estou eu a fazer", pensou Scarlett, quase em pânico. "Nunca devia ter saído
assim, às pressas. Rhett vai ficar furioso comigo. E devo estar com um aspecto
horrível. Já é bastante mau aparecer de repente onde não devo, ao menos podia estar
bonita." Tinha planejado tudo de modo tão diferente. Pensara nisso milhares de vezes,
como seria quando visse Rhett outra vez.
Às vezes, imaginava que ele chegava em casa tarde; ela estava de camisola, a
que tinha uma fita no pescoço - não muito apertada - e estava escovando o cabelo,
antes de se ir deitar. Rhett sempre adorara o cabelo dela, dizia que era uma coisa viva;
às vezes - no princípio - era ele que o escovava, para ver os reflexos azuis da
eletricidade.
Muitas vezes, imaginava-se sentada à mesa de chá, segurando as pinças de
prata elegantemente entre os dedos, e deixando cair um torrão de açúcar na xícara.
Estava conversando comodamente com Sally Brewton, e ele via como ela se sentia em
casa, como era bem-vinda pelas pessoas mais interessantes de Charleston. Ele
agarrava-lhe na mão e beijava-a e as pinças caíam, mas não fazia mal...
Ou estava com Miss Eleanor, depois de jantar, as duas sentadas nas suas
cadeiras em frente do fogo, tão confortáveis, assim juntas, tão íntimas, mas com um
lugar à espera dele. Só uma vez imaginara ir à plantação, porque não sabia como
aquilo era, a não ser que os homens de Sherman a tinham queimado. A sua fantasia
começava bem - ela e Miss Eleanor chegavam carregadas de bolos e champanhe, num
lindo barco pintado de verde, encostadas a um monte de almofadas de seda,
segurando guarda-sóis claros e floridos.
- Piquenique - gritavam elas, e Rhett ria e corria para elas com os braços abertos.
Mas, depois, a imagem desfazia-se e tudo ficava vazio. Por um lado, Rhett odiava
piqueniques. Dizia que era melhor viver numa caverna, se fosse comer sentado no
chão, como um animal, em vez de usar uma cadeira e uma mesa, como um ser
humano civilizado.
Certamente, nunca pensara na possibilidade de aparecer assim, apertada entre
caixas e barris cheios sabia-se lá de quê, num barco miserável que cheirava
horrivelmente.
Agora que estava longe da cidade, estava mais preocupada com a fúria de Rhett
que com o intruso do ianque. E se ele se limita a dizer aos barqueiros para darem a
volta e me trazerem de volta?
Os barqueiros só metiam os remos na água verde-acastanhada para manter a
direção; a maré fazia uma corrente invisível, lenta e poderosa, que os levava. Scarlett
olhava impacientemente as margens do largo rio. Não lhe parecia nada que estivessem
avançando. Era tudo igual - grandes extensões de altas ervas castanhas que
ondulavam lentamente - oh, tão lentamente - na corrente da maré cheia, e, por detrás,
densos bosques cobertos de musgo espanhol, que na sua imobilidade fazia lembrar
uma grande cortina imóvel. O solo estava coberto de um emaranhado de enormes
arbustos verdes. Era tudo tão silencioso. Pelo amor de Deus, por que é que não se
ouviam uns pássaros cantando? E por que é que já estava ficando tão escuro?
Começou a chover.
Muito antes de os remos começarem a puxar com força em direção à margem
esquerda, ela já estava encharcada até os ossos e tremendo de frio, infeliz de corpo e
espírito. O encontrão do barco contra a doca despertou-a da desolação em que se
abatera. Olhou para cima, através da cortina de chuva que lhe fustigava a cara, e viu
uma figura envolta numa capa que escorria, iluminada por uma tocha a arder. O rosto
estava escondido sob um fundo capuz.
- Atirem-me uma corda. - Rhett inclinou-se para a frente, com um braço estendido.
- Boa viagem, rapazes?
Scarlett empurrou as caixas que estavam mais perto, para se levantar. Tinha as
pernas dormentes demais para a segurarem, e caiu para trás, derrubando a caixa de
cima com estrondo.
- Mas que diabo! - Rhett agarrou a corda com um nó que serpenteava na sua
direção, atirada pelo barqueiro, e enfiou o círculo num poste do ancoradouro. - Atira a
corda da popa - ordenou ele. - Que é que está causando essa confusão? Estão
bêbados, vocês aí?
- Não senhor, Mister Rhett - disseram os barqueiros em coro. Foi a primeira vez
que falaram, desde que tinham deixado a doca de Charleston. Um deles fez um gesto
em direção às duas mulheres que estavam na popa da embarcação.
- Meu Deus! - exclamou Rhett.
17
- Já te sentes melhor agora? - Rhett controlava cuidadosamente a voz.
Scarlett fez que sim com a cabeça, com um ar aparvalhado. Estava embrulhada
num cobertor, com uma áspera camisa de trabalho de Rhett por baixo, sentada num
banco perto de uma fogueira, com os pés nus numa bacia de água quente.
- Como vais, Pansy? - A criada de Scarlett, sentada noutro banco, com outro
cobertor, sorriu, concedendo que ia bem, só que estava morrendo de fome.
Rhett riu.
- Eu também. Quando secarem, vamos comer.
Scarlett aconchegou o cobertor mais a si. "Está simpático demais, já o vi assim
noutras ocasiões, todo sorrisos, quente como o sol. Depois, vem-se a ver que estava
tão danado que era capaz de cuspir pregos. É por Pansy estar aqui que ele está
representando esta cena. Quando ela se for embora, vira-se contra mim. Talvez eu
possa dizer que preciso dela ao pé de mim... mas para quê? Já estou despida, e não
posso voltar a vestir as minhas roupas até estarem secas, e só Deus sabe quando é,
com a chuva lá fora e o interior tão úmido. Como é que Rhett agüenta viver num lugar
destes tão horrível."
O quarto onde estavam só era iluminado pelo fogo. Era grande e quadrado, talvez
com seis metros de lado, com chão de terra batida e paredes manchadas, que tinham
perdido a maior parte da pintura. Cheirava a uísque barato e a tabaco de mascar,
realçado pelo cheiro de madeira e tecidos queimados. A única mobília era um
amontoado de bancos toscos, alguns pequenos, outros compridos, e várias cuspideiras
de metal amolgado, espalhadas por ali. A pedra que encimava a enorme lareira e as
molduras à volta das portas e das janelas pareciam estar ali por engano. Eram feitas de
pinho, lindamente trabalhado com um delicado desenho em relevo, e estavam oleadas
até atingirem um castanho dourado. Num dos cantos havia uma escada tosca com
degraus de madeira lascados e um corrimão abaulado e perigoso. As roupas de
Scarlett e de Pansy estavam penduradas ali. Os casaquinhos brancos esvoaçavam de
vez em quando, quando uma corrente de ar os apanhava, parecendo fantasmas
pairando na escuridão.
- Por que é que não ficaste em Charleston, Scarlett? - O jantar acabara e tinham
mandado Pansy dormir com a velha negra que cozinhava para Rhett. Scarlett
endireitou-se.
- A tua mãe não quis incomodar-te aqui, no teu paraíso. - Olhou em volta do
quarto com desdém. - Mas eu acho que devias saber o que se passa. Há um soldado
ianque que entra nos quartos à noite... nos quartos de mulheres... e trata delas. Uma
moça ficou completamente louca e tiveram que a mandar para fora. - Tentou ler o rosto
dele, mas este manteve-se sem expressão. Olhava para ela, em silêncio, como se
estivesse à espera de alguma coisa.
- E então? Não queres saber que eu e a tua mãe possamos ser assassinadas nas
nossas camas, ou ainda pior?
- A boca de Rhett descaiu, num sorriso zombeteiro.
- Estarei ouvindo bem? Timidez virginal na mulher que atravessou todo o exército
ianque conduzindo uma carroça, só porque estava no seu caminho. Vá lá, Scarlett. És
conhecida por dizer a verdade. Por que é que fizeste todo este caminho à chuva?
Estavas à espera de me apanhar nos braços de uma coisinha? Foi o teu tio Henry que
recomendou isso, como forma de me fazer começar a pagar outra vez as tuas contas?
- De que diabo é que estás falando, Rhett Butler? Que é que o tio Henry Hamilton
tem a ver com isto?
- Que ignorância tão convincente! Dou-te os meus cumprimentos. Mas não podes
esperar que eu acredite por um segundo que o teu velho advogado astucioso não te
escreveu quando eu cortei o dinheiro que mandava para Atlanta. Gosto demais de
Henry Hamilton para acreditar em tal negligência.
- Deixar de mandar dinheiro? Não podes fazer isso! - Os joelhos de Scarlett
perderam a força. Que lhe iria acontecer?
A casa de Peachtree Street... as toneladas de carvão que eram precisas para a
aquecer, os criados para limpar e cozinhar e lavar e manter o jardim e os cavalos, e
polir as carruagens, comida para todos eles... bem, custava uma fortuna. Como é que o
tio Henry ia pagar as contas? Ia usar o dinheiro dela!
Não, isso não podia ser. Ia arrastar-se por aí, sem comida, com os sapatos rotos,
as costas doloridas e as mãos sangrando, trabalhando nos campos para não morrer de
fome. Ela esquecera todo o seu orgulho, voltara as costas a tudo o que aprendera,
fizera negócios com gente inferior, que nem sequer eram dignas que se lhe cuspisse
em cima, planejara e fizera batota, trabalhara dia e noite pelo seu dinheiro. Não o ia
perder, não podia. Era dela. Era a única coisa que tinha.
- Não podes levar o meu dinheiro! - gritou para Rhett. Mas só se ouviu um
murmúrio alquebrado. Ele riu.
- Não te tirei nenhum, amorzinho. Só parei de o aumentar. Enquanto estiveres
vivendo na casa que eu mantenho em Charleston, não vejo razão para manter uma
casa vazia em Atlanta. É claro que se fosses voltar para lá, já não estaria vazia. Nesse
caso, sentir-me-ia na obrigação de começar a pagar outra vez. - Rhett dirigiu-se à
lareira, onde podia ver o rosto dela à luz das chamas. O seu sorriso desafiador
desapareceu e enrugou a testa, preocupado.
- Não sabias mesmo de nada, não é? Espera lá, Scarlett, vou-te buscar um
brande. Até parece que vais desmaiar.
Teve que lhe segurar nas mãos com as suas para conseguir que ela levasse o
copo aos lábios. Ela tremia incontrolavelmente. Quando o copo já estava vazio, ele
pousou-o no o chão e esfregou-lhe as mãos até aquecerem e pararem de tremer.
- Agora diz lá, com toda a verdade, há, de fato, um soldado entrando a força nos
quartos de dormir?
- Rhett, não estás a falar a sério, não é? Não vais deixar de mandar dinheiro para
Atlanta?
- O dinheiro que se lixe, Scarlett, fiz-te uma pergunta.
- Vai te lixar - disse ela -, eu fiz-te uma pergunta.
- Já devia saber que serias incapaz de pensar em qualquer outra coisa uma vez
que a palavra dinheiro fosse mencionada. Está bem, vou mandar algum a Henry. Agora
já me respondes?
- Juras?
- Juro.
- Amanhã?
- Sim! Sim, caramba, amanhã. Agora, de uma vez por todas, que história é essa
do soldado ianque?
O suspiro de alívio de Scarlett pareceu eterno. Depois, meteu ar nos pulmões e
contou-lhe tudo o que sabia acerca do intruso.
- Dizes que Alicia Savage viu o uniforme?
- Sim - respondeu Scarlett. Depois acrescentou desdenhosamente. - Ele não quer
saber da idade delas. Talvez esteja violando a tua mãe neste momento.
Rhett cerrou as suas grandes mãos.
- Devia estrangular-te, Scarlett. O mundo ficava um lugar melhor.
Interrogou-a durante quase uma hora, até ela ter deitado para fora tudo o que
ouvira.
- Muito bem - disse ele então -, partimos amanhã, assim que a maré mudar. - Foi
até uma porta e abriu-a. - Ótimo - disse -, o céu está claro. Vai ser uma corrida fácil.
Para lá da sua silhueta, Scarlett conseguia ver o céu noturno. A Lua estava em
quarto crescente. Levantou-se pesadamente. Depois reparou na neblina do rio que
cobria o chão, lá fora. O luar tornava-o branco, e durante um confuso momento
imaginou que nevara. Uma onda de névoa envolvia os pés e os calcanhares de Rhett,
e depois desfazia-se dentro do quarto. Ele fechou a porta e voltou-se. Sem a luz da
Lua, o quarto parecia muito escuro, até que um fósforo brilhou, iluminando o queixo e o
nariz de Rhett por baixo. Ele chegou-o à torcida de um candeeiro e ela conseguiu ver-
lhe o rosto. Scarlett sofria de desejo. Ele colocou a chaminé de vidro no candeeiro e
levantou-o.
- Vem comigo. Lá em cima há um quarto onde podes dormir.
Não era tão primitivo como o quarto lá de baixo. A grande cama de espaldares
tinha um colchão espesso e grossas almofadas e um coberto de lã alegre, que cobria
os ásperos lençóis de linho. Scarlett não olhou para o resto da mobília. Deixou cair o
cobertor dos ombros e subiu os degraus que levavam à cama, enfiando-se debaixo das
cobertas.
Ele debruçou-se sobre ela um momento antes de sair do quarto. Ela escutou o
som dos seus passos. Não, não ia lá para baixo, ia ficar ali perto. Scarlett sorriu e
adormeceu.
O pesadelo começou como sempre - com a neblina. Há anos que Scarlett não
tinha aquele sonho, mas o seu inconsciente lembrava-se, mesmo ao criar o sonho, e
ela começou a torcer-se e a dar voltas, gemendo baixinho, com pavor do que estava
para vir. Depois, lá estava ela outra vez correndo, sentindo o coração batendo nos
ouvidos, correndo, tropeçando, sem parar, através de um espesso nevoeiro branco que
entrelaçava um emaranhado gelado de gavinhas à volta da sua garganta, pernas e
braços. Tinha frio, um frio mortal, e estava esfomeada e aterrorizada. Era igual, era
sempre igual, e sempre pior que a última vez, como se o terror, a fome e o frio se
acumulassem e se tornassem mais fortes.
E, contudo, não era igual. No passado, ela corria, procurando alcançar algo que
não tinha nome e era impossível conhecer, e agora conseguia distinguir à sua frente,
através de aberturas na névoa, as largas costas de Rhett, sempre a afastarem-se. E
sabia que ele era aquilo que procurava, que quando o alcançasse o sonho perderia o
seu poder e se dissiparia, para nunca mais voltar. Correu e correu, mas ele estava
sempre muito distante, sempre com as costas voltadas para ela. Depois, o nevoeiro
tornou-se mais espesso e ele começou a desaparecer e ela gritou por ele:
- Rhett... Rhett... Rhett... Rhett...
Chiu... acalma-te. Estás sonhando, não é a sério.
- Rhett...
- Sim, estou aqui. Agora, acalma-te. Estás bem. - Uns braços fortes levantaram-
na e abraçaram-na e sentiu-se quente e segura.
De repente, Scarlett ficou meio acordada. Não havia neblina. Em vez disso, um
candeeiro numa mesa lançava uma luz brilhante e ela conseguiu ver o rosto de Rhett,
inclinado sobre o dela.
-
Oh, Rhett - chorou ela -, foi tão horrível.
- O velho sonho?
- Sim, sim.., bem, quase. Havia qualquer coisa diferente, não me lembro... Mas
estava com frio e com fome, e não conseguia ver por causa do nevoeiro, e estava tão
assustada, Rhett, foi horrível.
Ele abraçou-a e a sua voz vibrava no seu peito duro, encostado ao dela.
- É claro que tinhas fome e frio. O jantar não prestava e atiraste com os
cobertores. Vou puxá-los e vais dormir muito bem. - Deitou-a, encostando-a às
almofadas.
- Não me deixes. Vai voltar.
Rhett estendeu os cobertores sobre ela.
- Há bolachas para o café-da-manhã, e angu de milho e manteiga que chegue
para os fazer amarelos. Pensa nisso... e presunto do campo e ovos frescos... vais
dormir como um bebê. Sempre gostaste de comer, Scarlett. - A voz dele estava
divertida. E cansada. Ela fechou os olhos, pesadamente.
- Rhett? - O som era indistinto e arrastado.
Ele parou junto da porta, cobrindo o candeeiro com a mão.
- Sim, Scarlett?
- Obrigada por me vires acordar. Como é que adivinhaste?
- Gritavas suficientemente alto para partires o vidro das janelas. - O último som
que ouviu foi o riso dele, quente e suave. Foi como uma canção de embalar.
Confirmando a previsão de Rhett, Scarlett comeu um enorme café-da-manhã
antes de ir à procura dele. A cozinheira dissera-lhe que ele se levantara antes do
amanhecer. Levantava-se sempre antes de o Sol nascer. Olhou para Scarlett com uma
curiosidade mal disfarçada.
"Devia fazê-lo engolir o atrevimento", pensou Scarlett, mas estava tão contente
que não conseguia ficar verdadeiramente zangada. Rhett abraçara-a, confortara-a, até
rira dela. Exatamente como costumava fazer antes de as coisas piorarem. Fizera tão
bem em vir à plantação. Podia tê-lo feito antes, em vez de andar queimando tempo em
milhares de chás.
Quando saiu de casa, a luz do sol fê-la semicerrar os olhos. Era forte, já lhe
aquecendo a cabeça, apesar de ser ainda muito cedo. Pôs a mão sobre os olhos e
olhou em volta.
A sua primeira reação foi soltar um gemido fraco. Sob os seus pés, o terraço de
tijoleira continuava por mais cem metros. Partido, enegrecido e cheio de ervas, era a
moldura de uma monumental ruína chamuscada. Restos partidos de paredes e
chaminés era tudo o que restava do que fora uma mansão magnífica. Montículos de
tijolos manchados pelo fogo e pelo fumo, que se acumulavam desordenadamente
dentro do que restava das paredes, eram penosos vestígios da passagem do exército
de Sherman.
Doeu-lhe o coração. Este fora o lar de Rhett, a vida de Rhett - perdida para
sempre antes que ele pudesse voltar para a reclamar.
Nada na sua perturbada vida fora tão mau como isto. Nunca soubera o grau de
dor que ele devia ter sentido, que ainda devia sentir cem vezes por dia, quando olhava
para as ruínas da sua casa. Não admirava que estivesse decidido a reconstruir,
encontrar e recuperar tudo o que pudesse das antigas propriedades.
Ela podia ajudá-lo. Então ela não tinha já arado e feito colheitas nos campos de
Tara? Ora, era capaz de apostar que Rhett não sabia distinguir uma semente boa de
uma má. Teria orgulho em ajudar, porque sabia quanto significava, que vitória seria
sobre os que os tinham despojado quando a terra renascesse com novos e tenros
produtos. "Eu compreendo", pensou ela triunfantemente. "Consigo sentir o que ele
sente. Posso trabalhar com ele. Podemos fazer isto juntos. Não me importo com um
chão sujo. Não, se for com Rhett. Onde está ele? Tenho que lhe dizer!"
Scarlett afastou-se das ruínas da casa e deu consigo perante uma vista diferente
de tudo o que já vira na vida. O terraço de tijoleira em que estivera dava para um
canteiro coberto de erva, o primeiro de uma série de terraços relvados, que se
desdobravam num movimento ondulante, de contornos perfeitos, até um par de lagos
artificiais com a forma de asas de uma borboleta gigante. Por entre eles, um atalho
largo e cheio de ervas levava ao rio e ao ancoradouro. Aquela escala extravagante era
tão bem proporcionada que a enorme distância parecia menor, e o conjunto fazia
lembrar uma sala exterior atapetada. A erva viçosa escondia as cicatrizes da guerra,
como se nunca tivesse existido. Era uma cena tranqüila, cheia de sol, onde a forma da
natureza se harmonizava maravilhosamente com o homem. Ao longe, um pássaro
cantava, sem parar, uma melodia, como se estivesse celebrando.
- Oh, que bonito! - disse em voz alta.
Um movimento para a esquerda do terraço mais baixo chamou-lhe a atenção.
Devia ser Rhett. Começou a correr pelos terraços abaixo - a ondulação aumentando-
lhe a velocidade e fazendo-a sentir-se tonta, embriagada, cheia de uma alegria
libertadora; riu e abriu os braços, qual pássaro ou borboleta pronto a desaparecer nos
céus tão azuis.
Quando chegou ao local onde Rhett estava observando-la, estava sem fôlego.
Scarlett respirou pesadamente, com a mão no peito, até recuperar o fôlego.
- Nunca me diverti tanto - disse, ainda ofegante. - Que lugar maravilhoso, Rhett.
Não admira que o adores. Correste por aquele relvado abaixo quando eras rapazinho?
Sentiste que eras capaz de voar? Oh, querido, foi tão horrível ver a casa queimada!
Sofro por ti; tenho vontade de matar todos os ianques do mundo! Oh, Rhett, tenho tanta
coisa para te dizer. Estive a pensar. Tudo isto pode voltar, querido, tal como a relva. Eu
compreendo, compreendo mesmo, de verdade, aquilo que estás a fazer.
Rhett olhou para ela de um modo estranho, cautelosamente.
- Que é que tu "compreendes", Scarlett?
- A razão por que estás aqui, em vez de na cidade. Por que é que tens que dar
nova vida à plantação. Diz-me o que já fizeste, o que vais fazer. É tão excitante.
O rosto de Rhett iluminou-se e fez um gesto em direção às longas filas de plantas
por detrás de si.
- Arderam, mas não morreram - disse ele. - Até parece que talvez tenham ficado
mais fortes com o fogo. Talvez as cinzas lhes tenham dado algo de que precisavam.
Tenho que descobrir. Tenho tanto que aprender.
Scarlett olhou para os restos de restolho raso. Não conhecia aquelas brilhantes
folhas verde-escuras.
- Que espécie de árvore é? Tens aqui pessegueiros?
- Não são árvores, Scarlett, são arbustos. Camélias. As primeiras a chegarem à
América foram plantadas aqui, no Ancoradouro Dunmore. Estas são rebentos, mais de
trezentas ao todo.
- Queres dizer que são flores?
- Claro. A flor que está mais perto da perfeição. Os chineses adoram-nas.
- Mas não podemos comer flores. Que culturas estás semeando?
- Não posso pensar em culturas. Tenho cem acres de jardim para salvar.
- Isso é uma loucura, Rhett. Para que é que serve um jardim? Podias cultivar
qualquer coisa para vender. Sei que o algodão não se dá por aqui, mas deve haver
alguma boa colheita do gênero. Bem, em Tara utilizamos todos os pedacinhos de terra.
Podias plantar mesmo até as paredes da casa. Olha só que verde e viçosa está a
relva. O solo deve ser riquíssimo. Só precisarias o arar e deixar cair as sementes e,
provavelmente, crescia tão depressa que nem terias tempo de te afastares. - Olhou
para ele ansiosamente, pronta a partilhar o seu conhecimento, que tanto lhe custara a
ganhar.
- És uma bárbara, Scarlett - disse Rhett pesadamente. - Volta para a casa e diz a
Pansy para se aprontar. Encontro-me contigo na doca.
Que fizera ela de errado? Num momento, ele estava cheio de vida e entusiasmo,
depois, de repente, foi-se e ficou frio, como um desconhecido. Nunca o compreenderia,
nem que vivesse cem anos. Atravessou rapidamente os terraços verdejantes, cega
para a sua beleza, e entrou em casa.
O barco que estava atracado ao ancoradouro era muito diferente da balsa
vergonhosa que trouxera Scarlett e Pansy para a plantação. Era um pequeno e
elegante barco à vela, pintado de castanho, com aplicações de metal brilhante e uma
lista dourada à volta. Para além dele, havia outro barco no rio, um que ela teria
preferido, pensou Scarlett, zangada. Era cinco vezes maior que o barco à vela, tinha
dois convés com listas brancas e azuis, e uma roda de pá de um vermelho-vivo.
Bandeiras de cores alegres estavam penduradas das chaminés, e homens e mulheres
vistosamente vestidos enchiam os dois convés. Tinha um ar festivo e divertido.
"É mesmo de Rhett", lamentou-se Scarlett para si própria, "ir para a cidade neste
barquinho insignificante, em vez de fazer sinal ao vapor para nos apanhar." Chegou à
doca no momento em que Rhett tirava o chapéu e fazia uma vênia funda e
extravagante às pessoas do barco grande.
- Conheces aquela gente? - perguntou ela. Talvez se tivesse enganado. Talvez
ele estivesse fazendo sinal.
Rhett voltou as costas ao rio e pôs outra vez o chapéu.
- De fato, conheço. Individualmente, não, espero bem, mas no seu conjunto. O
barco da excursão semanal, de Charleston, que vem pelo rio acima e volta a descer.
Um negócio altamente lucrativo para um dos nossos carpetbaggers. Os ianques
compram bilhetes com muita antecedência para terem o prazer de ver os esqueletos
das casas queimadas das plantações. Quando posso, cumprimento-os sempre.
Diverte-me ver a confusão que causo. - Scarlett estava chocada demais para dizer o
que quer que fosse. Como é que Rhett podia gozar com um bando de ianques
desprezíveis, que riam com o que tinham feito à casa dele?
Obedientemente, sentou-se num banco almofadado na pequena cabina, mas,
assim que Rhett pôs o pé no convés, levantou-se de um salto para examinar o
complicado sistema de armários, prateleiras, fornecimentos e equipamento, cada coisa
ocupando um lugar que fora obviamente desenhado para a guardar. Ainda estava
ocupada satisfazendo a sua curiosidade quando o veleiro se deslocou suavemente ao
longo da margem numa curta distância, para ser novamente amarrado. Rhett gritava
ordens ásperas.
- Atira esses embrulhos e amarra-os na proa. - Scarlett enfiou a cabeça pela
escotilha para ver o que se passava.
Santíssimo sacramento, que era tudo aquilo? Dúzias de negros encostados a
picaretas e pás olhavam, enquanto uma série de volumosos sacos era atirada para um
membro da tripulação do veleiro. Onde diabo estariam eles? O local parecia o lado
escuro da Lua. Havia uma enorme clareira na floresta, com um grande poço cavado e
pilhas gigantescas de uma coisa que parecia bocados esbranquiçados de rocha de um
dos lados. Um pó branco enchia o ar e em breve entrou-lhe pelo nariz, fazendo-a
espirrar.
O espirro de Pansy, qual eco, que veio do convés traseiro, chamou-lhe a atenção.
"Não é justo", pensou ela. Pansy tinha uma boa vista de tudo.
- Vou subir - gritou Scarlett.
- Largar - disse Rhett nesse momento.
O veleiro avançou rapidamente, apanhado pela rápida corrente do rio, fazendo
com que Scarlett caísse pela curta escada, aterrando desamparadamente na cabina.
- Maldito sejas, Rhett Butler, podia ter partido o pescoço.
- Mas não partiste. Acalma-te. Já desço.
Scarlett ouviu o ranger das cordas e o veleiro ganhou velocidade. Gatinhou até
um dos bancos, agarrou-se e levantou-se.
Quase no mesmo instante, Rhett desceu a escada curvando a cabeça para evitar
a escotilha. Endireitou-se, tocando com a cabeça na madeira polida do teto. Scarlett
olhou para ele, furiosa.
- Que é que te aconteceu? - Abriu uma das portinholas e fechou a escotilha. -
Ótimo - disse então -, temos vento de feição e uma corrente forte. Chegaremos à
cidade em tempo recorde. - Deixou-se cair no banco em frente a Scarlett e encostou-
se. - Parto do princípio de que não te importas que fume. - Enfiou os longos dedos no
bolso interior do casaco e tirou um charuto com as pontas cortadas.
- Importo-me muito. Por que é que estou aqui fechada no escuro? Quero ir lá para
cima apanhar sol.
- Lá para fora - corrigiu Rhett automaticamente. - Esta embarcação é bastante
pequena, a tripulação é negra. Pansy é negra, tu és branca e mulher. Eles ficam com o
lugar do piloto, tu ficas com a cabine. Pansy pode fazer olhinhos aos dois homens, rir
das suas galanterias um bocado indelicadas e eles três passam um tempo agradável. A
tua presença ia estragar tudo.
- Então, ao mesmo tempo que a classe baixa está aproveitando a viagem, tu e eu,
a elite privilegiada, vamos sentir-nos horrivelmente infelizes, encurralados na
companhia um do outro, enquanto tu continuas amuada, a lamuriares-te,
- Não estou amuada nem a lamuriar-me! E agradeço-te que não fales comigo
como se eu fosse uma criança! - Scarlett encolheu o lábio inferior. Detestava quando
Rhett a fazia sentir-se idiota. - Que era aquela pedreira onde paramos?
- Aquilo, minha querida, foi a salvação de Charleston e o meu passaporte para
regressar ao seio dos meus. E uma mina de fosfato. Há dúzias delas, espalhadas ao
longo de ambos os rios. - Acendeu o charuto lentamente, saboreando o gesto, e o fumo
subiu em espiral, até à portinhola. - Vejo os teus olhos brilharem, Scarlett. Não é como
uma mina de ouro. Do fosfato não se fazem moedas nem jóias. Mas, moído, lavado e
tratado com certos químicos, faz o fertilizante de ação mais rápida do mundo. Há
clientes à espera de toda a quantidade que conseguirmos produzir.
- Portanto, estás ficando ainda mais rico.
- Sim, estou. Mas, ainda mais importante, este dinheiro é respeitável, de
Charleston. Posso gastar aquilo que quiser dos meus lucros suspeitos sem ser
condenado. Podem dizer a si próprios que vem do fosfato, embora a mina seja
insignificante.
- Por que é que não a aumentas?
- Não preciso. Tal como está, serve os meus objetivos. Tenho um capataz que
não me engana muito, duas dezenas de trabalhadores que trabalham quase tanto
como mandriam, e tenho respeito. Posso gastar o meu tempo, o meu dinheiro e o meu
suor naquilo que me interessa, e, neste momento, quero restaurar os jardins.
Scarlett estava tão aborrecida que mal agüentava. Então não era mesmo de Rhett
ter aquela oportunidade à mão e não aproveitar? Por muito rico que fosse, não lhe fazia
mal ficar mais rico. Dinheiro nunca era demais. Então, se assumisse o comando e
conseguisse que os homens trabalhassem decentemente, podia triplicar o lucro. Com
mais uma dúzia de trabalhadores, podia até duplicar...
- Perdoa-me se interrompo a construção do teu império, Scarlett, mas tenho uma
pergunta séria para te fazer. Que é que é preciso para te convencer que devias deixar-
me em paz e voltar para Atlanta?
Scarlett ficou olhando para ele. Estava verdadeiramente espantada. Não era
possível que ele quisesse mesmo dizer aquilo, não depois de a ter abraçado tão
ternamente na noite anterior.
- Estás me gozando - acusou ela.
- Não, não estou. Nunca falei tão a sério na minha vida, e quero que me leves a
sério. Nunca foi meu hábito explicar a ninguém o que estou fazendo ou o que estou
pensando; nem acredito lá muito que compreendas aquilo que vou te dizer. Mas vou
tentar. Estou trabalhando mais do que alguma vez o fiz na vida, Scarlett. Destruí todas
as minhas chances de ser readmitido em Charleston, completa e publicamente, de tal
modo que todos da cidade ainda sentem o fedor dessa destruição. E
incomensuravelmente mais forte que tudo o que Sherman pudesse fazer, porque eu
era um deles e desafiei tudo aquilo sobre que tinham construído as suas vidas.
Reconquistar a minha entrada nas boas-graças de Charleston é como subir uma
montanha coberta de gelo, na escuridão. Uma falha, e estou perdido. Até agora, tenho
sido muito cauteloso e lento, e ganhei um certo avanço. Não posso correr o risco de
destruíres tudo o que fiz. Quero que vás embora e estou perguntando o teu preço.
Scarlett riu, aliviada.
- É só isso? Podes ficar descansado, se é isso que te preocupa. É que, em
Charleston, todo mundo me adora. Sou literalmente invadida de convites para isto e
para aquilo e não passa um dia sem que alguém venha falar comigo no Mercado, para
me pedir conselho sobre o que deve comprar.
Rhett deu uma tragada no charuto. Depois, observou a brasa esfriar e
transformar-se em cinza.
- Já receava que estivesse falando para nada - disse por fim. - Eu tinha razão.
Admito que te agüentaste mais tempo e te contiveste mais do que eu esperava... oh,
sim, quando estou na plantação, recebo algumas notícias da cidade... mas tu és como
um barril de pólvora às minhas costas, na subida da tal montanha de gelo. És um peso
morto... inculta, sem maneiras, católica, expulsa de tudo o que é decente em Atlanta.
Podes explodir em mim a qualquer minuto. Quero que vás embora. Que é que é
preciso para isso?
Scarlett agarrou-se à única acusação de que se podia defender.
- Ficaria agradecida se me dissesses que mal é que tem ser católica, Rhett Butler!
Éramos tementes a Deus muito antes de vocês, anglicanos, se fazerem ouvir.
Não conseguiu perceber o súbito riso de Rhett.
- Pax, Henry Tudor - disse ele, o que ela também não compreendeu. Mas as suas
próximas palavras, de tão exatas, foram diretas ao alvo. - Não vamos perder tempo
discutindo teologia, Scarlett. A verdade é que... e tu sabes isso tão bem como eu... por
razões não justificáveis, os católicos romanos são mal vistos na sociedade sulista. Hoje
em dia, em Charleston, podes freqüentar a Igreja de St. Philip ou de St. Michael, ou a
Igreja Huguenote ou a Igreja Presbiteriana Escocesa.
Mesmo as outras igrejas anglicanas e presbiterianas são ligeiramente suspeitas e
qualquer outra denominação protestante é considerada uma amostra de individualismo
vulgar. Os católicos romanos estão além do limite. Não é razoável, e Deus sabe que
não é cristão, mas é verdade.
Scarlett ficou calada. Sabia que ele tinha razão. Rhett aproveitou a sua derrota
momentânea para repetir a pergunta anterior.
- Que tu queres, Scarlett? Pode me dizer. Nunca fiquei chocado com o lado mais
negro da tua natureza.
"Ele está falando sério", pensou, desesperada. "Todos aqueles chás a que tive
que ir, e as roupas horríveis que tive que usar, e as caminhadas pela escuridão gelada,
todas as manhãs, até o Mercado... foi tudo em vão." Ela viera a Charleston para
reconquistar Rhett e não tinha conseguido.
- Quero a ti - disse Scarlett com total honestidade.
Desta vez, foi Rhett que ficou calado. Ela só conseguia ver os contornos dele e o
fumo pálido do seu charuto. Estava tão perto; se mexesse o pé uns centímetros, tocava
no dele. Desejava-o tanto que sentia uma dor física. Queria dobrar-se para aliviar a dor,
mantê-la lá dentro, para não aumentar ainda mais. Mas ficou sentada, direita, à espera
que ele falasse.
18
Scarlett conseguia ouvir lá em cima o barulho de vozes, sublinhado pelas
gargalhadinhas agudas de Pansy. Fazia com que o silêncio dentro da cabina
parecesse ainda pior.
- Meio milhão em ouro - disse Rhett.
- Que disseste? - "Devo ter ouvido mal. Disse-lhe o que vai no meu coração e ele
não respondeu."
- Disse que te dou meio milhão de dólares em ouro se fores embora. Por muito
prazer que estejas tendo em Charleston, não pode ter tanto valor. Estou oferecendo-te
um belo suborno, Scarlett. É muito difícil que o teu coraçãozinho ganancioso prefira
uma tentativa inútil para salvar o nosso casamento a uma fortuna maior do que alguma
vez esperaste. Como bônus, se concordares, recomeço os pagamentos das despesas
daquela monstruosidade de Peachtree Street.
- Ontem à noite, prometeste que mandavas hoje o dinheiro ao tio Henry - disse
ela automaticamente. Quem lhe dera que ele ficasse quieto um pouco. Precisava
pensar. Era mesmo "uma tentativa inútil"? Recusava-se a acreditar nisso.
- As promessas fazem-se para serem quebradas - disse Rhett calmamente. - E
então a minha oferta, Scarlett?
- Preciso pensar.
- Então, pensa enquanto acabo o charuto. Depois, quero uma resposta tua. Pensa
no que será se tiveres que gastar o teu próprio dinheiro naquele horror de casa de
Peachtree Street que tanto adoras; não fazes idéia do custo. E, depois, pensa em ter
mil vezes mais dinheiro que tudo o que juntaste nestes anos todos, um resgate de rei,
Scarlett, todo de uma vez e todo teu. Mais do que alguma vez poderás gastar. Mais as
despesas da casa pagas por mim. Até te dou o título de propriedade. - A ponta do
charuto brilhou.
Scarlett começou a pensar, concentrando-se desesperada-mente. Tinha que
arranjar maneira de ficar. Não podia ir embora, nem por todo o dinheiro do mundo.
Rhett levantou-se e foi até à portinhola. Atirou fora o charuto e olhou um pouco
pela abertura, para a margem do rio, até ver um sinal. O sol refletia-se, brilhante, no
seu rosto. Como tinha mudado desde que deixara Atlanta! pensou Scarlett. Naquela
época, andava bebendo como se quisesse apagar o mundo. Mas agora era de novo
Rhett, com a sua pele bronzeada esticada sobre o belo rosto ossudo e os olhos
límpidos, escuros como o desejo. Sob o elegante traje, de bom corte, podiam ver-se os
músculos, que aumentavam visivelmente quando se mexia. Era tudo o que um homem
devia ser. Queria-o de volta e ia consegui-lo, custasse o que custasse. Scarlett inspirou
profundamente. Estava pronta quando ele se voltou e levantou uma sobrancelha, num
gesto interrogativo.
- Como é que vai ser, Scarlett?
- Disseste que querias negociar, Rhett. - Scarlett assumira um ar de negócios. -
Mas não estás discutindo, estás a atirando-me com ameaças que mais parecem
pedras. Além disso, sei que só estás blefando, quando dizes que vais cortar o dinheiro
que mandas para Atlanta. Estás muitíssimo preocupado com o fato de seres bem
recebido em Charleston, e as pessoas não têm lá muito boa opinião de um homem que
não toma conta da mulher. Se isso se espalhasse, a tua mãe não poderia andar de
cabeça erguida. Sobre a segunda coisa... o monte de dinheiro... tens razão. Gostaria
de o ter. Mas não, se isso significar ter que voltar imediatamente para Atlanta. Já agora
posso mostrar o meu jogo, porque já o conheces. Fiz uma quantidade de asneiras e
não tenho maneira de desfazer o que fiz. Neste preciso momento, não tenho um único
amigo em todo o estado da Geórgia.
"No entanto, estou fazendo amigos em Charleston. Podes não querer acreditar,
mas é verdade. E também estou aprendendo muita coisa. Assim que as pessoas de
Atlanta tiverem tempo suficiente para esquecer algumas coisas, acho que posso
compensar alguns dos meus erros."
"Por isso, tenho uma proposta a fazer-te. Pare de agir de um modo tão odioso
comigo, és simpático e ajudas-me a passar um bom bocado. Passamos a temporada
como um casal devoto e feliz. Depois, quando vier a Primavera, volto para casa e
recomeço a minha vida."
Susteve a respiração. Ele tinha que dizer que sim, tinha e pronto. A temporada
durava quase oito semanas, e eles estariam juntos todos os dias. Não havia homem
normal que ela não conseguisse pôr a comer na sua mão, se estivesse com ela tanto
tempo. Rhett era diferente dos outros homens, mas não era assim tão diferente. Nunca
houvera homem nenhum que ela não tivesse conseguido conquistar.
- Com o dinheiro, queres dizer.
- Bom, é claro que sim. Achas-me com cara de idiota?
- Essa não é exatamente a minha idéia de um negócio, Scarlett. Não ganho nada
com ele. Ficas com o dinheiro que estou disposto a pagar-te para te ires embora, mas
não vais. Qual é o meu benefício?
- Não fico para sempre, e não digo à tua mãe como és canalha. - Teve quase a
certeza de que o viu sorrir.
- Sabes como é que se chama este rio, Scarlett?
Que pergunta idiota. E ele ainda não tinha concordado com a proposta. Que é
que se estava a passar?
- É o rio Ashley. - Rhett pronunciou o nome com uma exatidão exagerada. - Faz
lembrar aquele estimável cavalheiro, Mr. Wilkes, cuja afeição cobiçaste em tempos. Fui
testemunha da tua capacidade de devoção canina, Scarlett, e a tua determinação
simplista é uma coisa terrível de se ver. Ultimamente, foste suficientemente amável
para mencionar que decidiste pôr-me no elevado lugar ocupado em tempos por Ashley.
Essa idéia alarma-me.
Scarlett interrompeu-o, tinha que o fazer. Estava mesmo a ver que ele ia dizer que
não.
- Ora, besteira, Rhett. Sei muito bem que não vale a pena andar atrás de ti. Não
és suficientemente simpático para aturares isso. Além disso, conheces-me bem
demais.
Rhett riu, sem humor.
- Se reconheces como estás falando certo, talvez possamos negociar - disse ele.
Scarlett teve o cuidado de não sorrir. "Era provável que ele conseguisse ver no
escuro", pensou ela.
- Estou disposta a negociar - disse. - Qual é a tua idéia?
Desta vez, o riso abrupto de Rhett foi genuíno.
- Acho que a verdadeira Miss O'Hara acabou de se juntar a nós - disse ele. - Os
meus termos são estes: dizes à minha mãe que eu ressono e, por isso, dormimos em
quartos separados; depois do baile de Santa Cecília, que encerra a Temporada,
exprimes um desejo urgente de voltares correndo para Atlanta; uma vez aí, designas
imediatamente um advogado, Henry Hamilton ou outro qualquer, para se encontrar
com os meus advogados para negociar um acordo e um compromisso de separação.
Além disso, nunca mais voltas a pôr o pé em Charleston. Nem escreves ou mandas
mensagens por qualquer outro meio para a minha mãe ou para mim.
O espírito de Scarlett corria. Tinha quase ganho. Com exceção dos "quartos
separados". Talvez devesse pedir mais tempo. Não, pedir não. Era suposto estar
negociando.
- Talvez concorde com os teus termos, Rhett, mas não com o teu calendário. Se
fizer as malas no dia seguinte ao fim dos bailes, todo mundo vai perceber. Depois do
Baile, voltas para à plantação. Faria sentido se eu começasse então a pensar em
Atlanta. Por que não dizer que vou em meados de Abril?
- Não me importo que te demores um pouco na cidade, depois de eu ter vindo
para o campo. Mas o primeiro de Abril é mais apropriado.
Melhor do que esperara! A Temporada e mais de um mês a seguir. E ela não
dissera nada sobre ficar na cidade depois de ele ir para a plantação. Podia segui-lo até
lá.
- Não quero saber qual de nós é que vai enfiar um barrete, Rhett Butler, mas se
jurares que vais ser simpático durante o tempo que antecede a minha partida, temos
negócio. Se te portares mal, então foste tu que faltaste à promessa e não vou embora.
- Mrs. Butler, a devoção do seu marido fará com que seja invejada por todas as
mulheres de Charleston.
Estava gozando, mas Scarlett não se importou. Tinha ganho.
Rhett abriu a escotilha, deixando entrar um brusco ar salgado, luz do sol e unia
brisa surpreendentemente forte.
- Enjoas, Scarlett?
- Não sei. Nunca tinha andado de barco até ontem.
- Vais descobrir depressa. O porto fica ali à frente, e a água está bastante agitada.
Tira um balde do armário que está atrás de ti, para o caso de ser preciso. - Apressou-
se a ir para o convés. - Vamos içar a vela da proa e corrigir o rumo. Estamos nos
desviando - gritou ele para o vento.
Um minuto mais tarde, o barco inclinara-se num ângulo assustador e Scarlett
descobriu que estava escorregando, sem conseguir agarrar-se. A lenta viagem rio
acima do dia anterior, na chata larga, não a tinha preparado para o comportamento de
um veleiro. A descida rio abaixo, a favor da corrente e com vento suave, que quase
estufava a vela toda, fora mais rápida, mas tão calma como a outra. Arrastou-se até à
pequena escada e içou-se, de modo a ficar com a cabeça acima do nível do convés. O
vento cortou-lhe a respiração e arrancou-lhe o chapéu de penas da cabeça. Olhou para
cima e viu-o rodopiar no ar, enquanto uma gaivota gritava furiosamente e batia as asas
para se desviar do objeto que parecia um pássaro. Scarlett riu, deliciada. O barco
inclinou-se mais e água e espuma cobriram o lado mais baixo. Era excitante! Através
do vento, ouviu Pansy gritar aterrorizada. Que covarde que aquela moça era!
Scarlett segurou-se e começou a subir a escada. O rugido da voz de Rhett a fez
parar. Virou o leme e o convés do veleiro regressou ao nível das águas, com a vela
batendo. A um gesto seu, um dos marinheiros pegou o leme. O outro estava segurando
Pansy enquanto ela vomitava por cima da amurada. Em dois passos, Rhett estava no
topo da escada, ralhando com Scarlett.
- Idiotazinha, o botaló podia ter te atingido na cabeça. Volta lá para baixo, que é o
teu lugar.
- Oh, Rhett, não! Deixa eu vir cá para cima, onde posso ver o que se passa. É tão
divertido. Quero sentir o vento e saborear os salpicos da água.
- Não estás enjoada? Nem assustada?
A resposta dela foi um olhar cheio de desprezo.
- Oh, Miss Eleanor, foi o tempo mais maravilhoso de toda a minha vida! Não sei
por que é que todos os homens do mundo não se tornam marinheiros.
- Ainda bem que te divertiste querida, mas foi muito maldoso de Rhett expor-te
assim ao sol e ao vento. Estás vermelha que nem um índio. - Mrs. Butler mandou
Scarlett para o quarto, pôr compressas de glicerina e água de rosas no rosto. Depois,
ralhou ao filho, alto e risonho, até ele baixar a cabeça, pretensamente envergonhado.
- Se eu pendurar as verduras de Natal que trouxe, deixa-me comer a sobremesa
depois do almoço ou tenho que ir para o canto? - perguntou ele, com humildade
fingida.
Eleanor Butler estendeu as mãos, rendida.
- Não sei o que fazer contigo, Rhett - disse ela, mas o seu esforço para não rir foi
um fracasso total. Amava o filho para lá de toda a razão.
Nessa tarde, enquanto Scarlett se submetia a um tratamento de loções para as
queimaduras do sol, Rhett levou uma das coroas de azevinho que trouxera da
plantação a Alicia Savage, como oferta da mãe.
- Que simpático de Eleanor, e de ti, Rhett. Obrigado. Queres tomar um uísque
com água, para abrir a temporada?
Rhett aceitou a bebida com prazer, e conversaram preguiçosamente sobre o
tempo, raro naquela altura, sobre o Inverno de há trinta anos, em que chegara mesmo
a nevar, do ano em que chovera durante trinta e oito dias sem parar. Conheciam-se
desde crianças. As suas famílias tinham casas com um muro de jardim em comum e
uma amoreira com amoras doces que manchavam os dedos e cujos ramos chegavam
quase ao chão, de ambos os lados do muro.
- Scarlett está assustadíssima com o invasor de quartos ianque - disse Rhett,
depois de ele e Alicia terem acabado com as recordações. - Espero que não te
importes de falar disso com um velho amigo que te espreitou pelas saias acima quando
tinhas 5 anos.
- Falo sem problemas se conseguires esquecer a minha antipatia infantil pela
roupa de baixo - riu Mrs. Savage de boa vontade. - Fui o desespero da família durante,
pelo menos, um ano. Agora é engraçado... Mas este caso do ianque não é piada
nenhuma. Alguém vai ficar doido por pôr o dedo no gatilho e vai atingir um soldado, e
depois temos que pagar com o inferno.
- Diz-me qual era o aspecto dele, Alicia. Tenho uma teoria sobre dele.
- Só o vi por um instante, Rhett...
- Isso deve bastar. Alto ou baixo?
- Alto, sim, na verdade, muito alto. A cabeça ficava só um palmo abaixo do topo
das cortinas, e aquelas janelas têm dois metros e tal de altura.
Rhett sorriu.
- Sabia que podia contar contigo. És a única pessoa que conheço capaz de
identificar o maior picolé numa festa de aniversário, do outro lado da sala.
Chamávamos-te "olho de águia" por trás das tuas costas.
- E pela frente, se não me engano, juntamente com outros ditos pessoais
desagradáveis. Eras um rapazinho horroroso.
- Eras uma menina detestável. Teria te amado, mesmo se usasses roupa de
baixo.
- E eu a ti, mesmo que não usasses. Olhei pelas tuas saias acima muitas vezes
mas nunca consegui ver nada.
- Tem piedade, Alicia. Pelo menos, chama-lhe um kilt.
Sorriram amigavelmente um para o outro. Depois, Rhett retomou o interrogatório.
Depois de ter começado a pensar, Alicia lembrou-se de muitos pormenores. O soldado
era jovem - mesmo muito jovem -, com os movimentos desajeitados de um rapaz que
ainda não se acostumou ao crescimento súbito. Também era muito magro. O uniforme
caía-lhe do corpo, muito largo. Viam-se claramente os pulsos a seguir ao punho; podia
muito bem ser que o uniforme nem fosse dele. Tinha o cabelo escuro - "não preto como
o teu, Rhett, e, a propósito, essa mancha grisalha fica-te muitíssimo bem, não, o cabelo
devia ser castanho e parecia mais escuro na sombra". Sim, bem cortado e quase com
certeza sem tratamento. Alicia teria sentido o cheiro do óleo de Macassar. Pedaço a
pedaço, juntou as recordações. Depois, faltaram-lhe as palavras.
- Sabes quem é, não sabes, Alicia?
- Devo estar enganada.
- Deve estar certa. Tens um filho dessa idade... cerca de 14 ou 15 anos, e com
certeza conheces os seus amigos. Assim que ouvi falar disto, pensei que tinha de ser
um rapaz de Charleston. Acreditas mesmo que um soldado ianque entraria à força no
quarto de uma mulher só para olhar para a forma dela debaixo do cobertor? Isto não é
um reino de terror, Alicia, é um rapaz infeliz que está confuso sobre o que o seu corpo
lhe está fazendo. Quer saber como é o corpo de uma mulher sem corpetes e
chumaços, quer tanto saber que foi levado a andar à espreita de mulheres
adormecidas. O mais provável é ter vergonha dos seus próprios pensamentos quando
vê uma toda vestida e acordada. Pobre diabo. Parto do princípio de que o pai morreu
na guerra, e não tem nenhum homem com quem falar.
- Tem um irmão mais velho...
- Oh? Então talvez esteja enganado. Ou tu estás a pensar no rapaz errado.
- Receio bem que não. Chama-se Tommy Cooper. É o mais alto do grupo deles, e
o mais limpo. Ainda por cima, quase que sufocou quando lhe disse olá no outro dia, na
rua, dois dias depois do incidente no meu quarto. O pai dele morreu em Buli Run.
Tommy nunca o conheceu. O irmão é dez ou onze anos mais velho.
- Referes-te a Edward Cooper, o advogado?
Alicia acenou que sim.
- Então, não é de admirar. Cooper pertence ao comitê da minha mãe do Lar da
Confederação; conheci-o lá em casa. Não passa de um eunuco. Tommy não vai ter
nenhuma ajuda dele.
- Não é nada eunuco, só está é apaixonado demais por Anne Hampton para ver
as necessidades do irmão.
- Como queiras, Alicia. Mas vou ter uma conversazinha com Tommy.
- Rhett, não podes. Vais pregar-lhe um susto de morte.
- O pobre rapaz anda a pregar sustos desses à população feminina de
Charleston. Graças a Deus ainda não aconteceu nada. Da próxima vez, ele pode
descontrolar-se. Ou pode levar um tiro. Onde é que ele vive, Alicia?
- Em Church Street, mesmo na esquina com a Broad. É a casa do meio, de tijolo,
do lado sul de St. Michael's Alley. Mas, Rhett, que é que vais dizer? Não podes
simplesmente entrar por ali dentro e arrastar Tommy cá para fora pelos colarinhos.
- Confia em mim, Alicia.
Alicia pôs ambas as mãos de cada lado do rosto de Rhett e beijou-o suavemente
nos lábios.
- É bom ter-te de novo em casa, vizinho. Boa sorte com Tommy.
Rhett estava sentado na varanda dos Coopers bebendo chá com a mãe de
Tommy quando o rapaz chegou em casa. Mrs. Cooper apresentou-lhe o filho, depois
mandou-o para dentro, arrumar as coisas da escola e lavar as mãos e a cara.
- Mr. Butler vai te levar ao seu alfaiate, Tommy. Tem um sobrinho em Aiken que
está crescendo tão depressa como tu e precisa de ti para provar algumas coisas, de
modo a arranjar um presente de Natal que lhe sirva.
Longe dos adultos, Tommy fez uma careta horrível. Depois, lembrou-se de
histórias que ouvira sobre a juventude extravagante de Rhett e decidiu que ficaria
contente de ir e ajudar Mr. Butler. Talvez até arranjasse coragem para fazer algumas
perguntas a Mr. Butler, sobre coisas que o andavam preocupando.
Tommy não precisou pedir. Assim que estavam bem distantes da casa, Rhett pôs
um braço em volta dos ombros do rapaz.
- Tom - disse ele -, estou aqui pensando em ensinar-te umas quantas lições. A
primeira é como mentir convincentemente a uma mãe. Enquanto formos no carro,
vamos conversar detalhadamente sobre o meu alfaiate, a sua loja e os seus hábitos.
Vais praticar com a minha assistência até saberes bem a história. É que eu não tenho
nenhum sobrinho em Aiken e não vamos nada ao alfaiate. Vamos até ao fim da linha
de Rutledge Avenue, e depois vamos dar um saudável passeio até uma casa, onde
quero que conheças alguns amigos meus.
Tommy Cooper concordou sem discussão. Estava acostumado a que os mais
velhos lhe dissessem o que devia fazer, e gostava do modo como Mr. Butler lhe
chamava "Tom". Antes
de a tarde acabar e Tom ser devolvido a casa da mãe, o rapaz olhava para Rhett
com uma tal adoração no olhar que Rhett soube que ia ficar ligado a ele por muitos
anos.
Também esperava que Tom não esquecesse os amigos que tinham ido visitar.
Entre as muitas "primeiras" famosas de Charleston, estava a primeira casa de
prostitutas "só para cavalheiros". Mudara de local muitas vezes nos quase dois séculos
da sua existência, mas nunca falhara um dia de negócio, apesar de guerras, epidemias
e furacões. Uma das especialidades da casa era a iniciação suave e discreta de
rapazinhos nos prazeres de ser homem. Era uma das tradições mais queridas de
Charleston.
Muitas vezes, Rhett imaginava como a sua vida podia ter sido diferente se o pai
tivesse respeitado aquela tradição como fazia com tudo o resto que era esperado de
um cavalheiro de Charleston... Mas o passado era o passado. Os lábios curvaram-se
num sorriso malicioso. Pelo menos, fora capaz de ocupar o lugar do falecido pai de
Tommy, que teria feito o mesmo pelo rapaz. As tradições sempre tinham os seus usos.
Com certeza agora já não ia haver mais nenhum intruso ianque noturno. Rhett foi para
casa, tomar uma bebida bem merecida, antes de serem horas de ir buscar a sua irmã a
estação de trens.
19
- E se o trem se adianta, Rhett? - Eleanor Butler olhou para o relógio pela décima
vez em dois minutos. - Seria horrível a Rosemary ficar na estação sem ter ninguém à
sua espera estando já anoitecendo. Sabes, a criada dela ainda só está semitreinada.
Não sei por que é que a Rosemary a suporta.
- Em toda a sua história, esse trem nunca chegou menos de quarenta minutos
atrasado, mamã, e mesmo que chegasse, ainda falta meia hora.
- Pedi-te para dares uma margem suficientemente grande para lá chegares. Eu
própria teria ido, conforme planejei antes de saber que estarias aqui.
Tente não se enervar, mamã. - Rhett repetiu o que já
tinha explicado à mãe. - Aluguei um trem que me virá buscar dentro de dez
minutos. São cinco minutos até a estação. Chegarei lá quinze minutos antes e o trem
terá um atraso de uma hora ou mais, portanto, a Rosemary chegará a casa pelo meu
braço a tempo do jantar.
- Posso ir contigo, Rhett? Adoraria apanhar ar. - Scarlett imaginou-se passando
uma hora na pequena cabine do trem.
Perguntaria a Rhett tudo sobre a irmã. Ele gostaria disso, pois era louco por
Rosemary. E se ele estivesse na disposição de falar, Scarlett ficaria sabendo o que
esperar. Estava aterrorizada com a possibilidade de Rosemary não gostar dela, de a
considerar um outro Ross. A rebuscada carta de desculpas do seu cunhado de nada
servira para que ela deixasse de o detestar.
- Não, minha querida, não podes ir comigo. Quero que fiques exatamente onde
estás, nesse sofá, com as compressas nos olhos. Ainda estão inchados do sol que
apanhaste.
- Queres que eu vá, querido? - Mrs. Butler enrolou a renda de bilros para a
guardar. - Receio que a espera seja grande.
- Não me importo nada de esperar, mamã. Tenho alguns planos sobre o plantio
de Primavera e quero pensar neles.
Scarlett voltou a recostar-se nas almofadas, desejando que a irmã de Rhett não
tivesse voltado para casa. Não tinha uma idéia clara sobre como Rosemary seria e
preferia não vir a saber. Sabia, sim, através de alguns mexericos que ouvira, que o
nascimento de Rosemary tinha provocado muitos sorrisos secretos. Era um bebê da
"mudança", nascida quando Eleanor Butler já tinha mais de 40 anos. Ela própria
também era solteirona, uma das baixas domésticas da guerra - nova demais para se
casar antes de a guerra começar, insignificante e pobre demais para atrair as atenções
dos poucos homens disponíveis quando acabou. O regresso de Rhett a Charleston e a
sua fortuna fabulosa tinham suscitado imenso falatório. Agora, Rosemary teria um dote
substancial. Mas ela parecia estar sempre fora, visitando uma prima ou uma amiga
noutra cidade. Teria ido lá à procura de marido? Os homens de Charleston não eram
suficientemente bons para ela? Há mais de um ano que todos estavam à espera da
notícia do seu noivado, mas nem sequer havia o menor indício de um compromisso,
quanto mais de casamento. "Excelentes bases para especulações", era como Emma
Anson descrevia a situação.
Scarlett especulava para si própria. Ficaria encantada se Rosemary se casasse,
por mais caro que isso custasse a Rhett. Não lhe agradava tê-la em casa. Não
interessava se Rosemary era tão insignificante como um muro de lama, pois não
deixava de ser mais nova que Scarlett, e sendo irmã de Rhett, não lhe podia dar um
pontapé. Receberia atenção demais dele. Ficou tensa quando ouviu a porta da frente
abrir-se, alguns minutos antes da hora de jantar. Rosemary tinha chegado.
Rhett entrou na biblioteca e sorriu à mãe.
- A sua filha errante voltou finalmente ao lar - disse ele. - Está com perfeita saúde
e parece uma leoa selvagem esfomeada. Assim que lavar as mãos, provavelmente,
entrará aqui e devorará a carne.
Scarlett olhou para a porta com apreensão. A jovem mulher que entrou passado
instantes tinha um sorriso agradável no rosto. O seu aspecto não tinha nada de
selvagem. Mas Scarlett ficou tão chocada como se ela tivesse juba e rugisse. "Ela é
igual a Rhett! Não, não é isso. Tem os mesmos olhos e cabelos pretos e dentes
brancos, mas não é isso que é igual. É mais o que ela é, parece que assume o
controle, como ele. Não gosto disto, não gosto nada disto."
Semicerrou os olhos verdes enquanto estudava Rosemary. "Não é tão
insignificante como as pessoas dizem, mas não faz qualquer esforço para parecer
melhor. Basta ver como usa o cabelo todo puxado para trás e preso num coque na
nuca. E nem sequer usa brincos, embora tenha as orelhas bem bonitas. É pálida. Acho
que a pele do Rhett ficaria assim se ele não andasse sempre ao sol. Mas um vestido
de uma cor bem viva resolveria isso. Aquele verde-acastanhado foi a pior escolha
possível. Talvez eu a possa ajudar."
- Então esta é que é a Scarlett. - Rosemary atravessou a sala em quatro
passadas.
"Ora esta, terei que ensiná-la a andar", pensou Scarlett. "Os homens não gostam
de mulheres que galopam dessa maneira." Scarlett pôs-se de pé antes de Rosemary
chegar junto dela, com um sorriso fraterno, erguendo o rosto para um beijo social.
Em vez de tocar de leve com a face na dela, como era considerado correto,
Rosemary olhou direta e francamente para o rosto de Scarlett.
- Rhett disse-me que eras felina - comentou ela. - Percebo o que ele quis dizer,
com esses teus olhos verdes. Espero que me ronrones e não bufes, Scarlett. Gostaria
que fôssemos amigas.
Scarlett ficou de boca aberta, sem conseguir dizer palavra. Estava espantada
demais para falar.
- Mamã, por favor, diga-me que o jantar está pronto - pediu Rosemary. - Disse ao
Rhett que ele tinha sido um bruto sem sentimentos por não me ter levado um boteco na
estação.
Os olhos de Scarlett encontraram-no e ficou furiosa. Rhett estava encostado à
ombreira da porta, com um sorriso divertido e sardônico. "Bruto!", pensou ela. "Foste tu
que a levaste a isto. Com que então sou 'felina'. Bem gostaria de te mostrar o que é ser
felina. Gostaria de te arranhar os olhos até esse riso desaparecer." Olhou rapidamente
para Rosemary. Estaria também rindo? Não, estava abraçando Eleanor Butler. - Jantar
- disse Rhett. - Manigo vem aí anunciá-lo.
Scarlett brincou com a comida no prato. As queimaduras do sol doíam-lhe e o tom
dominador de Rosemary estava dando-Ihe dor de cabeça. A irmã de Rhett era
apaixonada e sonoramente opiniosa e argumentativa. As primas que ela visitara em
Richmond eram umas idiotas impossíveis, declarou, e detestara cada minuto que lá
passara. Tinha certeza absoluta de que nenhuma delas alguma vez lera um livro, pelo
menos um livro que valesse a pena ler.
- Oh, que pena - disse Eleanor Butler baixinho, olhando para Rhett com uma
súplica muda.
- Os primos são sempre uma provação, Rosemary - disse ele com um sorriso. -
Deixa-me contar-te a última do primo Townsend Ellinton. Vi-o recentemente na
Filadélfia e esse encontro deixou-me com a visão nublada durante uma semana. Tentei
olhá-lo nos olhos e é claro que fiquei com vertigens.
- Prefiro ficar tonta do que aborrecida de morte! - interrompeu a irmã. - Imaginas-
me depois de jantar tendo que ficar sentada ouvindo a prima Miranda lendo novelas de
Waverly em voz alta? Essas babaquices sentimentais?
- Eu sempre gostei bastante de Scott, minha querida, e pensava que tu também
gostavas - disse Eleanor num tom contemporizador.
Rosemary não se acalmou.
- Mamã, eu sabia lá o que aquilo era. Foi há anos.
Scarlett pensou com saudade nas horas calmas depois do jantar que tinha
compartilhado com Miss Eleanor. Era evidente que com Rosemary em casa nunca
mais se repetiriam. Como é que Rhett podia gostar tanto dela? Agora parecia
determinada a discutir com ele.
- Se eu fosse homem, me deixarias ir - gritava Rosemary a Rhett. - Tenho lido
artigos sobre Roma, que Mr. Henry James está escrevendo, e sinto que morrerei de
ignorância se não a vir com os meus próprios olhos.
- Mas tu não és homem, minha querida - disse Rhett calmamente. - Onde diabo é
que arranjaste exemplares do The Nation? Podias ser enforcada por leres um pasquim
liberal como esse.
Scarlett arrebitou as orelhas e meteu-se na conversa.
- Porque não deixas a Rosemary ir, Rhett? Roma não é longe. E tenho certeza de
que devemos conhecer alguém que tenha família lá. Não pode ser mais longe que
Atenas, e os Tarletons têm um milhão de primos em Atenas.
Rosemary ficou olhando para ela, boquiaberta.
- Quem são esses Tarletons e que é que Atenas tem a ver com Roma? -
perguntou.
Rhett tossiu para disfarçar o riso. Depois pigarreou para limpar a garganta.
- Atenas e Roma são os nomes de cidades do campo na Geórgia, Rosemary -
disse na sua voz arrastada. - Queres visitá-las?
Rosemary levou as mãos à cabeça num gesto dramático de desespero.
- Não acredito no que estou ouvindo. Pelo amor de Deus, quem é que quereria ir
à Geórgia? Quero ir a Roma, à Roma verdadeira, à Cidade Eterna. Na Itália!
Scarlett sentiu-se corar. Devia ter percebido que ela estava se referindo à Itália.
Mas antes de ela poder responder tão alto como Rosemary, a porta da sala de
jantar abriu-se violentamente com um estrondo que silenciou todos eles com o choque,
e Ross entrou na sala iluminada a velas cambaleando e com a respiração ofegante.
- Ajudem-me - exclamou -, tenho a guarda atrás de mim! Matei a tiro o ianque que
tem andado assaltando os quartos.
Em segundos, Rhett estava ao lado do irmão, segurando-lhe no braço.
- A chalupa está na doca e não há lua; nós os dois conseguimos manobrá-la -
disse ele com uma autoridade tranqüilizadora. Ao sair da sala, virou a cabeça para
acrescentar, baixinho: - Digam-lhes que saí assim que trouxe a Rosemary, para
apanhar a maré no rio e que não sabem do Ross, que não sabem nada de nada.
Depois mando notícias.
Eleanor Butler levantou-se da cadeira sem pressa, como se aquela fosse uma
noite normal e tivesse acabado de jantar. Dirigiu-se para Scarlett e pôs-lhe o braço em
volta dos ombros. Scarlett estava tremendo. Os ianques vinham aí. Enforcariam Ross
por ter morto um dos seus e enforcariam Rhett por ter tentado ajudar Ross a fugir. Por
que é que ele não deixava Ross desenvencilhar-se sozinho? Não tinha o direito de
deixar as suas mulheres sem proteção e sozinhas com os ianques a caminho.
Eleanor falou e a sua voz era de aço, muito embora fosse baixa e arrastada como
sempre.
- Vou levar os pratos e os talheres de Rhett para a cozinha. É preciso que os
criados saibam o que devem dizer e não pode haver o menor vestígio de que ele
esteve aqui. Tu e a Rosemary importam-se de arranjar a mesa para três pessoas?
- Que vamos fazer, Miss Eleanor? Os ianques vêm aí. - Scarlett sabia que se
devia manter calma; sentia desprezo por si própria por estar tão assustada. Mas não
conseguia controlar o medo. Tinha passado a encarar os ianques como desdentados,
risíveis e incômodos. Era aterrorizador ter se lembrar que o Exército ocupante podia
fazer tudo o que queria e dizer que era lei.
- Vamos acabar de jantar - disse Mrs. Butler. Os seus olhos começaram a rir. -
Depois acho que vou ler Ivanhoé em voz alta.
- Não tem nada melhor para fazer do que atormentar uma casa de mulheres? -
Rosemary, de mãos cerradas nas ancas, olhou irada para o capitão da União.
- Senta-te e cala-te, Rosemary - disse Mrs. Butler. - Peço desculpa pela má
criação da minha filha, Sr. Capitão.
O oficial ainda não estava rendido ao tom educado e conciliatório de Eleanor.
- Revistem a casa - ordenou aos seus homens.
Scarlett estava passivamente deitada no sofá, com compressas de camomila no
rosto queimado pelo sol e nos olhos inchados. Sentia-se grata pela sua proteção;
assim não tinha que olhar para os ianques. Que cabeça tão fria tinha Miss Eleanor, ter-
se lembrado de encenar uma situação de doença ali na biblioteca. Mesmo assim, a
curiosidade quase a matava. Não percebia o que se estava passando, apenas com o
som para orientando. Ouviu passos e portas fechando e depois silêncio. O capitão já
teria ido embora? Miss Eleanor e Rosemary teriam ido também embora? Não
agüentava mais. Levou lentamente uma mão aos olhos e levantou uma ponta do pano
úmido que os tapava.
Rosemary estava sentada na cadeira perto da secretária, lendo calmamente um
livro.
- Pssst - murmurou Scarlett.
Rosemary fechou rapidamente o livro e tapou o título com a mão.
- Que é? - perguntou, também num murmúrio. - Ouviste alguma coisa?
- Não, não ouço nada. Que é que eles estão fazendo? Onde está Miss Eleanor?
Eles prenderam-na?
- Pelo amor de Deus, Scarlett, porque estás murmurando?
- A voz normal de Rosemary soou terrivelmente forte. - Os soldados estão
revistando a casa para ver se há aqui armas; estão confiscando todas as armas em
Charleston. A mamã foi com eles para se assegurar de que não confiscam mais nada.
Era apenas isso? Scarlett descontraiu-se. Não havia armas em casa; sabia-o
porque ela própria já procurara uma. Fechou os olhos e quase adormeceu. Tinha sido
um dia muito comprido. Lembrou-se da excitação da água rebentando em espuma ao
longo da chalupa rápida e, por instantes, invejou Rhett navegando sob as estrelas. Se
pudesse ter ido ela com ele em vez de Ross. Não estava preocupada por os ianques o
poderem apanhar; nunca se preocupava com Rhett. Ele era invencível.
Quando Eleanor Butler voltou para a biblioteca, depois de acompanhar os
soldados da União à porta, aconchegou com o seu xale de caxemira Scarlett, que tinha
adormecido profundamente.
- Não vamos acordá-la - disse, baixinho. - Ficará confortável aqui. Vamos para a
cama, Rosemary. Fizeste uma longa viagem e eu estou cansada e é provável que
amanhã tenhamos um dia agitado.
Sorriu para si própria ao ver o marcador do livro colocado bem mais à frente entre
as páginas de Ivanhoé. Rosemary lia depressa. E não era de todo tão moderna quanto
gostava de pensar que era.
Na manhã seguinte, o mercado estava em alvoroço com indignação e planos mal
engendrados. Scarlett escutou com desprezo as conversas agitadas à sua volta. Que é
que os charlestonianos esperavam? Que os ianques deixassem que as pessoas os
matassem a tiro e não fizessem nada? Apenas agravariam as coisas se discutissem ou
protestassem. Que diferença fazia, depois de tanto tempo, o fato do general Lee ter
convencido Grant a permitir que os oficiais conservassem as suas armas pessoais
depois da rendição em Appomattox? Continuava a ser o fim do Sul, e de que servia um
revólver se não se tinha dinheiro para comprar balas para ele? E as pistolas de duelo!
Quem diabo é que se incomodaria em salvá-las? Não serviam para nada a não ser
para os homens se vangloriarem de como eram corajosos e uma bala lhes rebentar
com a cabeça.
Conservou-se calada e concentrou-se nas compras, do contrário, nunca mais
acabaria. Até Miss Eleanor andava às voltas como uma galinha de cabeça cortada,
falando com todo mundo num tom urgente e quase inaudível.
- Dizem que todos os homens querem acabar aquilo que Ross começou - disse
ela a Scarlett ao dirigirem-se para casa a pé. - Não suportam ver as suas casas
invadidas pelas tropas. Nós, as mulheres, teremos que tratar de tudo; os homens estão
agitados demais.
Scarlett sentiu um arrepio de horror. Pensara que tudo aquilo não passava de
palavras. Decerto que ninguém iria agravar ainda mais as coisas!
- Não há nada a tratar! - exclamou ela. - A única coisa a fazer é não dar nas vistas
até tudo isto passar. Rhett deve ter conseguido dar fuga ao Ross, senão teríamos
sabido.
Mrs. Butler mostrou-se espantada.
- Não podemos permitir que o Exército da União fique impune, Scarlett, decerto
que entendes isso. Já revistaram as nossas casas e anunciaram que será imposto o
recolher obrigatório, e estão prendendo todos os que estão envolvidos no mercado
negro de bens racionados. Se os deixarmos levar adiante, não tardará que estejamos
como em 64, quando tinham as botas em cima do nosso pescoço e controlavam cada
passo da nossa vida. Não podemos, muito simplesmente, permitir isso.
Scarlett pensou se todo o mundo estaria enlouquecendo. O que é que um grupo
de senhoras de Charleston, habituadas a ir a chás e a fazer renda, pensava que podia
fazer contra um exército?
Soube-o duas noites depois.
O casamento de Lucinda Wragg estava marcado para 23 de Janeiro. Os convites
estavam endereçados, para serem entregues a 2 de Janeiro, mas nunca foram usados.
"Uma tremenda eficiência", foi o cumprimento de Rosemary Butler para os esforços da
mãe de Lucinda, da sua própria mãe e de todas as outras senhoras de Charleston. O
casamento de Lucinda realizou-se a 19 de Dezembro, na Igreja de Saint Michael, às
nove da noite. Os acordes majestosos da marcha nupcial soaram através das portas e
janelas abertas da igreja apinhada de gente e lindissimamente decorada, precisamente
à hora em que começava o recolher obrigatório. Ouviam-se claramente na Casa da
Guarda do outro lado da rua da Igreja de Saint Michael. Um dos oficiais contou mais
tarde à mulher, tendo a cozinheira ouvido, que nunca tinha visto os homens sob o seu
comando tão nervosos, nem sequer quando tinham marchado no deserto. Toda a
cidade ouviu a história no dia seguinte. Todos riram com gosto, mas ninguém ficou
admirado.
Às nove e trinta, toda a população de Old Charleston saiu da Igreja de Saint
Michael e percorreu a pé Meeting Street, até a recepção no South Carolina Hall.
Homens, mulheres e crianças, dos cinco aos noventa e sete anos, caminharam no ar
quente da noite de braços dados, rindo, violando a lei num flagrante desafio. Não havia
forma de o comando da União dizer que não tinha tido conhecimento da ocorrência;
realizou-se debaixo do seu próprio nariz. Tão pouco tinha forma de prender os
culpados. A Casa da Guarda tinha vinte seis celas. Mesmo que tivessem sido usados
os corredores e os gabinetes, não haveria espaço suficiente para deter a todos. Os
bancos de Saint Michael tiveram que ser levados para o seu calmo cemitério
circundante para haver espaço suficiente para todos lá dentro, ombro a ombro.
Durante a recepção, as pessoas tiveram que se revezar para ir ao alpendre de
colunas no lado de fora da sala de baile apinhada para apanhar ar e ver a patrulha
impotente marchando numa disciplina inútil ao longo da rua vazia.
Rhett tinha regressado à cidade nessa tarde com a notícia de que Ross estava a
salvo em Wilmington. Scarlett confessou-Ihe no alpendre que tinha tido medo de ir ao
casamento, mesmo acompanhada por ele.
- Não acreditava que um grupo de senhoras que não fazem mais do que dar chás
conseguissem vencer o exército ianque. Mas tenho de reconhecer, Rhett, que esta
gente de Charleston tem toda a energia do mundo.
Ele sorriu.
- Adoro todos estes arrogantes, cada um deles. Até o pobre Ross. Espero que
nunca venha a saber que nem sequer acertou no ianque, senão ficará extremamente
embaraçado.
- Não o atingiu? Imagino que estivesse embriagado. - A sua voz estava carregada
de desprezo. Depois tornou-se mais aguda de medo. - Então, o gatuno ainda está à
solta!
Rhett deu-lhe uma palmadinha no ombro.
- Não. Fica descansada, minha querida, não ouvirás falar mais do gatuno. O meu
irmão e o casamento apressado da pequena Lucinda pregaram um susto de morte aos
ianques. - E riu baixinho, profundamente divertido.
- Qual é a graça? - perguntou Scarlett, desconfiada.
Detestava quando as pessoas riam e ela não sabia porquê.
- Nada que possas entender - disse Rhett. - Eu tinha me congratulado por ter
resolvido um problema sem qualquer ajuda e depois o tonto do meu irmão superou-me;
inadvertidamente, deu a toda a cidade um motivo de divertimento e orgulho. Olha para
eles, Scarlett.
O alpendre estava mais apinhado que nunca. Lucinda Wragg, agora Lucinda
Grimball, estava atirando flores do seu ramo aos soldados lá embaixo.
- Ora! Eu por mim atirava-lhes cacos de tijolo!
- Claro. Sempre gostaste de coisas evidentes. A atitude da Lucinda requer
imaginação. - A sua voz nasalada e divertida tinha se tornado ferozmente incisiva.
Scarlett lançou a cabeça para trás.
- Vou voltar lá para dentro. Prefiro sufocar a ser insultada.
Oculta na sombra de uma coluna próxima, Rosemary estremeceu com a
crueldade que detectou na voz de Rhett e no tom magoado e zangado da de Scarlett.
Mais tarde, depois de todos se deitarem, bateu à porta da biblioteca onde Rhett estava
lendo, entrando e fechando a porta atrás de si.
Tinha o rosto vermelho e manchado de chorar.
- Pensei que te conhecia, Rhett - disse num rompante -, mas não te conheço de
todo. Ouvi-te falando com Scarlett no alpendre do Hall esta noite. Como podes ser tão
mau para a tua própria mulher? Contra quem irás virar a seguir?
20
Rhett levantou-se rapidamente da cadeira e dirigiu-se para a irmã, de braços
estendidos. Mas Rosemary ergueu as mãos à sua frente, com as palmas para fora, e
recuou. O rosto dele escureceu de dor, mas ficou muito quieto, de braços caídos.
Queria, acima de tudo, proteger Rosemary da dor, e agora era ele a causa da sua
angústia.
O seu espírito estava cheio da curta e triste história de Rosemary e do papel que
nela desempenhara. Rhett nunca tinha lamentado, nem explicado nada do que fizera
numa idade mais jovem e intempestiva. Não tinha nada de que se envergonhasse. A
não ser o efeito que causara na irmã mais nova.
Devido à sua rebeldia e atitude de desafio à família e à sociedade, o pai tinha-o
deserdado. O nome de Rhett era apenas uma linha riscada a tinta na Bíblia da família
Butler quando o nome de Rosemary foi registrado. Era mais nova que ele vinte e tantos
anos. Ele só a conheceu quando ela tinha treze anos, uma moça desajeitada, com
pernas compridas, pés grandes e seios desabrochando. A mãe tinha desobedecido ao
marido, uma das poucas vezes na sua vida, quando Rhett iniciou a sua perigosa vida
furando o bloqueio através da marinha da União até o porto de Charleston. Foi à noite
na doca onde o navio estava ancorado, levando Rosemary para o conhecer. A veia
profunda de ternura e amor em Rhett foi inelutavelmente tocada pela confusão e
necessidade que sentiu na irmã mais nova, e acolheu-a no seu coração com todo o
calor que o pai nunca conseguira dar. Por sua vez, Rosemary deu-lhe a confiança e a
lealdade que o pai nunca conseguira inspirar. Os laços entre irmão e irmã nunca
tinham sido cortados, apesar do fato de apenas se terem visto não mais de uma dúzia
de vezes desde esse primeiro encontro até Rhett voltar para casa em Charleston, onze
anos mais tarde.
Ele nunca tinha perdoado a si próprio por ter aceito a afirmação da mãe de que
Rosemary estava bem e era feliz, e estava protegida pelos rios de dinheiro que ele lhes
mandava, agora que o pai morrera e não o podia interceptar e devolver. Acusou-se
mais tarde de que devia ter estado mais atento. Talvez assim a irmã não tivesse
crescido sentindo tanta desconfiança em relação aos homens. Talvez tivesse amado,
casado e tido filhos.
Mas, quando regressou a casa, foi encontrar uma mulher de vinte e quatro anos,
tão desajeitada como a menina de treze que vira pela primeira vez. Não se sentia à
vontade junto de nenhum homem a não ser dele; utilizava as vidas distantes dos
romances como substituto da incerteza da vida no mundo; rejeitava as convenções da
sociedade sobre o aspecto que uma mulher devia ter, de como pensar e portar-se.
Rosemary era uma literata, embaraçosamente direta, com uma total ausência de
astúcia e de vaidade feminina.
Rhett amava-a e respeitava a sua independência agreste. Não podia compensar
os anos de ausência, mas podia dar-lhe a prenda mais rara de todas: ele próprio. Era
absolutamente honesto com Rosemary, falava com ela de igual para igual e, por vezes,
até lhe confidenciava os segredos do seu coração, como nunca fizera com qualquer
outra pessoa. Ela reconhecia a importância da sua dádiva e adorava-o. Durante os
catorze meses que Rhett esteve em casa, a solteirona alta demais, desajeitada e
inocente e o aventureiro excessivamente sofisticado e desiludido tinham-se tornado os
mais íntimos dos amigos.
Agora, Rosemary sentia-se traída. Tinha visto uma faceta de Rhett que
desconhecia existir, um traço de crueldade no irmão que sempre conhecera como
infalivelmente bom e terno. Estava confusa e desconfiada.
- Não respondeste à minha pergunta, Rhett. - Os olhos vermelhos de Rosemary
olhavam-no numa acusação.
- Desculpa, Rosemary - disse ele cautelosamente. - Lamento profundamente que
me tenhas ouvido. Era uma coisa que eu tinha que fazer. Quero que ela vá embora e
nos deixe a todos em paz.
- Mas ela é tua mulher!
- Eu deixei-a, Rosemary. Ela recusou divorciar-se como lhe propus, mas sabia
que o nosso casamento tinha terminado.
- Então, por que é que ela está aqui?
Rhett encolheu os ombros.
- Talvez seja melhor nos sentarmos. É uma história longa e cansativa.
Lenta e metodicamente, rigidamente sem emoção, Rhett contou à irmã sobre os
dois casamentos anteriores de Scarlett, sobre a sua proposta de casamento, e como
Scarlett concordara em casar-se com ele por causa do seu dinheiro. Também lhe
contou sobre o amor quase obsessivo de Scarlett por Ashley Wilkes durante todos os
anos que a conhecera.
- Mas se sabias isso, por que diabo casaste com ela? - perguntou Rosemary.
- Por quê? - Aboca de Rhett distendeu-se num sorriso. - Porque ela era cheia de
vida, e imprudente, e obstinadamente corajosa. Porque era uma criança por baixo de
todos os seus fingimentos. Porque era diferente de todas as mulheres que alguma vez
conheci. Fascinava-me, enfurecia-me, enlouquecia-me. Amei-a tão intensamente como
ela o amava. Desde o dia em que lhe pus a vista em cima. Era uma espécie de doença.
- A sua voz estava carregada de tristeza.
Escondeu o rosto nas mãos e riu, perturbado. A voz estava abafada e distorcida
pelos dedos.
- A vida é mesmo uma partida grotesca. Agora, Ashley Wilkes é um homem livre e
se casaria com a Scarlett de um dia para o outro, e eu quero me ver livre dela. É claro
que isso faz que ela esteja determinada a ter a mim. Ela só quer o que não pode ter. -
Rhett ergueu a cabeça. - Tenho medo - disse, baixinho -, tenho medo que tudo
recomece. Sei que ela é impiedosa e completamente egoísta, que é como uma criança
que chora por um brinquedo e depois o parte quando o tem. Mas há momentos,
quando ela inclina a cabeça num certo ângulo, ou sorri aquele seu sorriso jubiloso, ou
fica subitamente com um ar perdido, em que quase me esqueço do que sei.
- Meu pobre Rhett. - Rosemary pôs-lhe a mão no braço.
Ele cobriu-a com a sua. Depois sorriu-lhe e tornou-se novamente ele próprio.
- Estás vendo à tua frente, minha querida, o homem que foi outrora a maravilha
dos barcos do rio Mississipi. Toda a minha vida joguei e nunca perdi. Também ganharei
esta parada. Scarlett e eu fizemos um acordo. Eu não podia me arriscar a tê-la nesta
casa tempo demais. Ou voltava a me apaixonar por ela ou acabaria por a matar.
Portanto, acenei-lhe com ouro e a sua ganância por dinheiro suplantou o amor eterno
que professa por mim. Irá embora definitivamente quando a temporada terminar. Até lá,
apenas tenho que a manter à distância, sobreviver-lhe e ser mais astuto que ela. Estou
quase desejando que chegue a hora. Ela odeia perder e o mostra. Não tem graça
nenhuma perder com uma pessoa que sabe perder. - Os seus olhos riram para a irmã.
Depois, tornaram-se sérios. - A mamã ficaria destruída se soubesse a verdade sobre o
meu deplorável casamento, mas se envergonharia se soubesse que eu lhe tinha virado
costas, por mais infeliz que fosse. É um dilema terrível. Desta forma, Scarlett irá
embora, eu serei a parte ofendida, mas estoicamente corajosa, e não haverá a menor
vergonha.
- Nem te arrependerás?
- Só por uma vez ter sido idiota, há anos. Terei o consolo extremamente poderoso
de não ser idiota uma segunda vez. Isso ajuda muito a apagar a humilhação da
primeira.
Rosemary olhou-o fixamente, curiosa e sem vergonha.
- E se Scarlett mudasse? Pode ser que cresça.
Rhett teve um sorriu rasgado.
- Para citar a própria senhora, só "quando os porcos voarem".
21
- Vai embora. - Scarlett enterrou o rosto na almofada. - É domingo, Miss Scarlett,
não pode dormir até tarde. Miss Pauline e Miss Eulalie estão à sua espera.
Scarlett gemeu. Era o suficiente para uma pessoa se converter à Igreja Episcopal.
Pelo menos podem dormir até tarde; a missa na Igreja de Saint Michael era só às onze.
Suspirou e saiu da cama.
As tias não perderam tempo em fazer-lhe um sermão sobre o que seria esperado
dela na temporada que se avizinhava. Escutou-as impacientemente, enquanto Eulalie e
Pauline insistiam sobre a importância do decoro, discrição, deferência para com os
mais velhos e comportamento senhoril. Pelo amor de Deus! Ela sabia todas aquelas
regras desde que começara a ter dentes. A sua mãe e a Mammy tinham lhe martelado
desde que aprendera a andar. Scarlett cerrou os dentes num atitude rebelde e foi
olhando fixamente para os pés durante todo o caminho até a Igreja de Saint Mary.
Recusava-se simplesmente a ouvir.
No entanto, quando já estavam de novo na casa das tias tomando o café, Pauline
disse uma coisa que a forçou a prestar atenção.
- Não precisa me olhar com esse ar tão zangado, Scarlett. Só te estou contando o
que as pessoas dizem para o teu próprio bem. Corre um boato de que tens dois
vestidos de baile novos. É um escândalo, quando todos aceitam remediar-se com os
que já têm há anos. És nova na cidade e tens que ter cuidado com a tua reputação. E
também com a de Rhett. Sabes, as pessoas ainda não têm uma idéia formada sobre
ele.
Scarlett sentiu um horrível baque no coração. Rhett a mataria se lhe estragasse a
vida.
- Que há sobre Rhett? Por favor, diga-me, tia Pauline.
Pauline contou-lhe com toda a satisfação todas as histórias antigas.
Foi expulso de West Point, o seu próprio pai tinha-o deserdado devido ao seu
comportamento impróprio, sabia-se que tinha ganho dinheiro através de meios
vergonhosos, como jogador profissional nos barcos do rio Mississipi, nos campos de
ouro da Califórnia e, pior do que tudo, associando-se a malandros e aventureiros do
Norte. É certo que tinha sido um corajoso soldado da Confederação, tinha furado o
bloqueio e sido artilheiro no exército de Lee e dado a maior parte do seu dinheiro sujo
para a causa da Confederação...
"Ah!", pensou Scarlett. "Rhett é perito em espalhar histórias."
"No entanto, o seu passado era definitivamente moralmente condenável. Era
muito bonito ele ter voltado para casa para tomar conta da mãe e da irmã, mas só
voltou quando lhe conveio. Se o pai não tivesse morrido de fome para pagar um seguro
de vida substancial, a mãe e a irmã teriam provavelmente morrido por falta de
cuidados."
Scarlett cerrou os dentes para não gritar com Pauline. Aquilo do seguro não era
verdade! O Rhett nunca tinha deixado, nem por um minuto, de se importar com a mãe,
mas o pai não deixava que ela aceitasse nada dele! Só quando Mr. Butler morreu é que
Rhett pôde comprar aquela casa para Miss Eleanor e dar-lhe dinheiro. E até Mrs. Butler
teve que divulgar aquela história do seguro para justificar a sua prosperidade, pois o
dinheiro de Rhett era considerado sujo. Será que aqueles charlestonianos emproados
não viam que dinheiro era dinheiro? Que diferença fazia donde vinha, se servia para
que tivessem um teto por cima da cabeça e comida no estômago?
Por que é que a Pauline não parava de a seringar? De que diabo estava ela agora
falando? No estúpido negócio do adubo. Aquilo era outra anedota. "Não havia adubo
suficiente no mundo para justificar o dinheiro que Rhett estava jogando fora em
idiotices, como andar atrás das antigas mobílias e pratas e retratos de tetravôs e pagar
a homens perfeitamente saudáveis para tratar das suas preciosas camélias em vez de
produzir safras que davam bom dinheiro."
- Há uma série de charlestonianos que estão se saindo muito bem com fosfato,
mas não passam a vida a gabar-se. Tens que acautelá-lo contra esta tendência para a
extravagância e ostentação. Ele é teu marido e é teu dever avisá-lo. Eleanor Butler
acha que ele nunca faz nada de errado, mas sempre o mimou; todavia, não só para o
bem dela, como para o teu e o de Rhett, tens que assegurar que os Butlers não
chamem as atenções sobre si.
- Tentei falar com Eleanor - disse Eulalie num tom crítico -, mas tenho a certeza
de que ela não ouviu uma palavra do que eu disse.
Os olhos de Scarlett semicerraram-se e cintilaram perigosamente.
- Não tenho palavras para lhes dizer como estou grata - disse com exagerada
doçura. - E prestarei atenção a cada palavra. Agora tenho mesmo que ir. Muito
obrigada pelo delicioso café. - Levantou-se, deu um beijo apressado na face de cada
uma das tias e dirigiu-se para a porta. Se não fosse embora naquele preciso instante,
gritaria. Mesmo assim, era melhor falar com Rhett sobre o que as tias lhe tinham dito.
- Tu percebes, Rhett, por que razão eu achei melhor contar-te? As pessoas estão
criticando a tua mãe. Sei que as minhas tias são umas velhas intrometidas e maçantes,
mas são sempre as velhas intrometidas e maçantes que causam problemas. Lembras-
te de Mrs. Merriwether, e de Mrs. Meade, e de Mrs. Elsing?
Scarlett tivera esperança de que Rhett lhe agradecesse. Não estava de todo à
espera que risse.
- Deus abençoe os seus velhos corações intrometidos - disse ele rindo. -Vem
comigo, Scarlett, tens que contar à mamã.
- Oh, Rhett, não posso. Ela irá ficar muito abalada.
- Tens que vir. Isto é grave. É absurdo, mas as questões mais graves o são
sempre. Anda. E tira essa expressão de amor filial do teu rosto. Tu estás te lixando
para o que possa acontecer à minha mãe, desde que os convites para as festas
continuem a chegar e ambos sabemos.
- Isso não é justo! Eu amo a tua mãe.
Rhett ia já a meio caminho da porta, mas voltou-se e dirigiu-se para ela. Agarrou-
a pelos ombros e abanou-a de forma que a sua cabeça ficasse virada para cima. Os
seus olhos estavam frios, examinando a sua expressão como se a estivesse a julgar.
- Não me mintas acerca da minha mãe, Scarlett. Aviso-te: é perigoso.
Estava muito perto dela, a tocar-lhe. Scarlett entreabriu os lábios e sabia que os
seus olhos lhe deviam estar a dizer como desejava ser beijada por ele. Se ao menos
ele baixasse ligeiramente a cabeça, os lábios dela iriam ao encontro dos seus. Scarlett
tinha a respiração abafada na garganta.
As mãos de Rhett agarraram-na com mais força e ela sentiu-as; ele ia puxá-la
para si. Um leve soluço de alegria vibrou na sua respiração abafada.
- Maldita sejas! - disse Rhett, baixinho, afastando-se dela. - Vem comigo lá
abaixo. A mamã está na biblioteca.
Eleanor Butler deixou cair a renda de bilros no colo e pousou as mãos em cima
dela, uma sobre a outra. Era sinal de que estava levando a sério o relato de Scarlett,
dando-lhe toda a sua atenção. Quando terminou, Scarlett aguardou a reação de Mrs.
Butler com nervosismo.
- Sentem-se os dois - disse Eleanor serenamente. - Eulalie está completamente
enganada. Prestei-lhe toda a atenção quando ela me falou sobre eu gastar tanto
dinheiro. - Scarlett abriu muito os olhos. - E mais tarde refleti demoradamente sobre
isso - continuou Eleanor. - Sobretudo em relação a ter oferecido a Rosemary o Grand
Tour como presente de Natal, Rhett. Há muitos anos que ninguém em Charleston
consegue fazer isso, praticamente, desde a época em que tu terias ido se não te
tivesses portado tão mal e o teu pai te mandou para a escola militar.
"No entanto, decidi que não havia verdadeiro risco de ostracismo. A gente de
Charleston é pragmática; as civilizações antigas o são sempre. Reconhecemos que a
riqueza é desejável e que a pobreza é extremamente desagradável. E que quando se é
pobre é útil ter amigos ricos. As pessoas considerariam imperdoável, e não apenas
deplorável, se eu servisse vinho moscatel por champanhe.
Scarlett tinha a testa franzida. Estava tendo alguma dificuldade em entender. Não
que isso tivesse importância, o tom regular e sereno da voz de Mrs. Butler dizia-lhe que
estava tudo bem.
- Talvez tenhamos sido um pouco ostensivos - dizia Eleanor -, mas neste
momento, ninguém em Charleston se pode dar ao luxo de censurar os Butlers, pois
Rosemary pode decidir aceitar a corte de um filho ou irmão ou primo da família e o seu
dote de casamento poderia resolver uma série de problemas.
- A mamã é uma cínica descarada - disse Rhett rindo.
Eleanor Butler limitou-se a sorrir.
- De que estavas a rir? - perguntou Rosemary ao abrir a porta. O seu olhar
desviou-se rapidamente de Rhett para Scarlett e de novo para ele. - Ouvi as tuas
gargalhadas do outro lado do vestíbulo, Rhett. Conta-me a piada.
- A mamã estava a ser mundana - disse ele. Ele e Rosemary tinham-se há muito
unido num pacto para proteger a mãe das realidades do mundo, e sorriram um para o
outro como conspiradores. Scarlett sentiu-se excluída e voltou-lhes as costas.
- Posso sentar-me um pouquinho ao pé de si, Miss Eleanor? Quero pedir-lhe
conselho sobre o que levar ao baile.
"Ora vê lá se eu me importo, Rhett Butler, que trates a tua irmã solteirona como
se ela fosse a rainha de Maio. E se pensas que me consegues perturbar ou fazer
ciúmes, vais ter que pensar duas vezes."
Eleanor Butler observou, intrigada, enquanto Scarlett ficava boquiaberta de
surpresa e os seus olhos brilhavam de excitação. Eleanor olhou para trás, pensando no
que Scarlett teria visto.
Mas, embora Scarlett estivesse com o olhar fixo, não estava olhando para nada.
Estava encandeada pelo fulgor da idéia que lhe tinha ocorrido.
"Ciúmes! Que idiota que tenho sido! E claro que é isso. Explica tudo. Porque levei
tanto tempo para perceber? Rhett praticamente me esfregou isso na cara quando fez
tanto barulho por causa do nome do rio. Ashley. Ainda tem ciúmes do Ashley. Teve
sempre uns ciúmes loucos de Ashley, por isso é que me quis tanto. A única coisa que
preciso é voltar a fazer-Ihe ciúmes. Não com Ashley, santo Deus, não, bastaria que eu
sorrisse na sua direção para ele ficar com aquele ar que mete dó e me implorar para
casar com ele. Não, encontrarei outra pessoa, alguém aqui mesmo de Charleston. Não
será nada difícil. A temporada começa daqui a seis dias e haverá festas e bailes, e
danças e saídas para o jardim para comer bolo e beber punch. Posso estar na velha e
esnobe Charleston, mas os homens não mudam com a geografia. Terei um grupo de
homens atraentes à minha volta antes da primeira festa terminar. Mal consigo esperar."
Depois do almoço de domingo, toda a família foi ao Lar Confederado com cestos
de legumes da plantação e dois dos bolos de fruta ensopados em uísque que Miss
Eleanor fazia. Scarlett quase dançava pelo passeio, balançando o cesto e cantando
uma canção de Natal. A sua alegria era contagiosa e não tardou que os quatro
começassem a cantar canções de Natal à porta das casas por onde iam passando.
"Entrem", gritavam os donos de cada casa.
"Venham conosco", sugeria pelo contrário Mrs. Butler. "Vamos enfeitar o lar."
Havia mais de uma dezena de ajudantes quando chegaram à velha mas encantadora
casa de Broad Street.
Os órfãos guincharam de antecipação quando os bolos foram tirados dos cestos.
- São só para adultos - disse Eleanor com firmeza. - No entanto... - E tirou os
biscoitos com cobertura de açúcar que tinha levado para eles. Duas das viúvas que
viviam no lar apressaram-se a ir buscar canecas de leite e instalaram as crianças em
cadeiras à volta de uma mesa baixa na varanda. - Agora podemos pendurar os ramos
em paz - disse Mrs. Butler. - Rhett, se não te importas, sobes tu a escadinha.
Scarlett sentou-se ao lado de Anne Hampton. Gostava de ser especialmente
simpática com a jovem moça tímida, porque Anne era muito parecida com Melanie.
Isso fazia que Scarlett sentisse que, de certa forma, estava compensando todos os
pensamentos desagradáveis que tinha tido sobre Melly durante todos os anos em que
Melly fora tão resolutamente leal com ela. Além disso, Anne admirava-a tão
abertamente que a sua companhia era sempre um prazer. A sua voz suave era quase
animada quando congratulou Scarlett pelo seu cabelo.
- Deve ser maravilhoso ter um cabelo tão escuro, de uma cor tão rica - disse ela. -
Parece seda da mais negra. Ou um quadro que eu uma vez vi de uma linda pantera
negra de pêlo lustroso. - O rosto de Anne iluminou-se com uma expressão de inocente
adoração, depois corou com a sua ousadia em fazer um comentário tão pessoal.
Bondosamente, Scarlett deu-lhe uma palmadinha na mão. Anne não tinha a culpa
de ser um amoroso e tímido ratinho de campo castanho. Mais tarde, depois dos
enfeites estarem prontos e as salas altas terem ficado com um doce cheiro a resina das
ramadas de pinheiro, Anne desculpou-se e foi reunir as crianças para cantarem
canções de Natal. Como Melly teria gostado, pensou Scarlett. Sentiu um nó na
garganta ao olhar para Anne, que tinha os braços em volta de duas garotinhas
nervosas que cantavam um dueto. Melly era absolutamente louca por crianças. Por
instantes, Scarlett sentiu-se culpada por não ter mandado mais presentes de Natal a
Wade e Ella, mas depois o dueto terminou e foi hora de todos cantarem, e teve que se
concentrar para se lembrar dos versos do The First Noel.
- Foi tão divertido! - exclamou quando foram embora do lar. - Adoro o Natal.
- Eu também - disse Eleanor. - E uma época que dá para retemperar forças antes
da temporada. Embora este ano não vá ser tão calmo como de costume. O mais
provável é os pobres soldados ianques não nos deixarem em paz. O coronel não pode
deixar passar em branco o fato de termos violado o recolher obrigatório com tanto
espalhafato. - Deu uma risadinha, como uma menininha. - Foi bem divertido!
- Francamente, mamã! - disse Rosemary. - Como é que pode chamar "pobres
ianques" àqueles malvados dos casacas azuis?
- Porque preferiam estar nas suas casas, com as suas famílias, durante esta
semana do que aqui nos incomodando.
- Acho que se sentem embaraçados.
Rhett riu baixinho.
- Aposto que a mãe e as suas amigas têm alguma na manga.
- Só se formos forçadas a isso. - Mrs. Butler deu outra risadinha. - Achamos que
hoje foi um dia calmo apenas por que o coronel é muito cumpridor dos preceitos
bíblicos e não ordenaria qualquer ação no domingo. Veremos o que se passa amanhã.
Antigamente, costumavam importunar-nos revistando os nossos cestos à procura de
contrabando quando saíamos do mercado. Se voltarem a tentar, meterão as mãos em
coisas bastante interessantes por baixo das cebolas e do arroz.
- Tripas? - adivinhou Rosemary.
- Ovos partidos? - sugeriu Scarlett.
- Pó que provoca comichão? - sugeriu Rhett.
Miss Eleanor deu uma risadinha pela terceira vez.
- E mais algumas coisas - disse num tom complacente. - Desenvolvemos uma
série de táticas interessantes nessa época. Este lote de soldados não estava aqui; será
tudo novidade para eles. Aposto que a maioria destes homens nunca ouviu falar de
sumagre venenoso. Não gosto de ser tão pouco caridosa no Natal, mas eles têm que
aprender que há muito tempo deixamos de ter medo deles. Gostaria que o Ross
estivesse aqui - acrescentou abruptamente, já sem qualquer alegria.
- Quando achas que será seguro para o teu irmão voltar para casa, Rhett?
- Isso depende do tempo que a mãe e as suas amigas levarem para meter os
ianques em ordem, mamã. Decerto que a tempo de Santa Cecília.
- Então, está bem. Não faz mal ele perder todo o resto desde que esteja em casa
para o Baile. - Scarlett detectou o B maiúsculo na voz de Miss Eleanor.
Scarlett tinha a certeza de que as horas se iriam arrastar até o dia vinte seis e o
início da temporada. Mas, para sua surpresa, o tempo passou tão depressa que mal
conseguiu acompanhá-lo. A parte mais divertida foi a batalha com os ianques. O
coronel ordenou efetivamente uma retaliação pela humilhação sofrida com o recolher
obrigatório. E, na segunda-feira, o mercado ecoou de gargalhadas enquanto as
senhoras de Charleston enchiam os cestos com as armas da sua escolha. No dia
seguinte, os soldados tiveram o cuidado de não tirar as luvas. Enfiar a mão numa
substância de tato nojento ou ser subitamente atacado por uma terrível comichão e
inchaço, não eram experiências que estivessem na disposição de repetir.
- Os idiotas deviam ter percebido que nós estávamos à espera que eles fizessem
exatamente o que fizeram - disse Scarlett a Sally Brewton, durante um jogo de brídge
nessa tarde. Sally concordou, dando uma gargalhada ao recordar a cena.
- Eu tinha um frasco sem tampa cheio de negro-de-fumo no meio das minhas
compras - disse ela. - Que é que tinhas nas tuas?
- Pimenta de caiena. Estava morta de medo de começar a espirrar e denunciar a
jogada... A propósito de jogada, creio que esta é minha. - Tinha sido aprovado um novo
racionamento na véspera e as senhoras de Charleston jogavam agora a café, não a
dinheiro. Com o mercado negro temporária, mas efetivamente, fora da circulação,
aquele era o jogo de cartas com paradas mais altas em que Scarlett alguma vez
participara. Adorou-o.
Também adorava importunar os ianques. Continuava a haver patrulhas nas ruas
de Charleston, mas tinham-lhes sido puxadas as orelhas e voltariam a ser puxadas
outra e outra vez até reconhecerem a derrota. E ela era uma das pessoas que lhes
puxavam as orelhas.
- Dá as cartas - disse ela. - Sinto que estou com sorte. - Dali a meia dúzia de dias
estaria num baile, dançando com Rhett. Agora, ele mantinha distância, fazendo de
propósito para nunca ficarem sozinhos, mas no salão de baile estariam juntos, tocando-
se, e sozinhos, mesmo com muitos outros pares que estivessem dançando.
Scarlett levou as camélias brancas que Rhett lhe tinha mandado para pôr no
cacho de caracóis na nuca e virou a cabeça para se ver ao espelho.
- Parece um bocado de gordura num molho de salsichas - disse, aborrecida. -
Pansy, vais ter que me pentear o cabelo de uma maneira diferente. Puxa-o para cima. -
Podia prender as flores entre as ondas e não ficaria mal. Oh, por que era que Rhett
tinha que ser tão mau, dizendo-lhe que as flores da sua preciosa plantação eram as
únicas jóias que ela podia usar? Já bastava o vestido de baile ter que ser tão simples.
Mas não ter nada para o enfeitar, a não ser umas flores... mais valia enfiar um saco de
farinha com um buraco para a cabeça. Tinha contado usar as suas pérolas e brincos de
diamantes. - Não é preciso fazeres-me um buraco na cabeça - resmungou com Pansy.
- Sim, menina. - Pansy continuou a escovar os seus compridos cabelos escuros
com movimentos vigorosos, eliminando os caracóis que tinham levado tanto tempo a
arranjar.
Scarlett olhou para o seu reflexo com crescente satisfação. Sim, estava muito
melhor. O seu pescoço era bonito demais para ficar tapado. Era muito melhor usar o
cabelo para cima. E assim os seus brincos davam mais nas vistas. Os usaria, apesar
do que Rhett lhe tinha dito. Tinha que estar deslumbrante, tinha que ganhar a
admiração de todos os homens que estariam no baile e o coração de, pelo menos,
alguns. Isso levaria Rhett a reagir e a prestar-lhe atenção.
Prendeu os diamantes nos lóbulos das orelhas. "Pronto!" Inclinou a cabeça de um
lado para o outro, satisfeita com o efeito.
- Gosta assim, Miss Scarlett? - Pansy apontou para a sua obra.
- Não. Quero mais volume por cima das orelhas.
Graças a Deus Rosemary tinha recusado a sua oferta de lhe emprestar Pansy
para aquela noite. Embora fosse um mistério ela não ter agarrado imediatamente
aquela oportunidade; bem precisava de toda a ajuda que pudesse arranjar.
Provavelmente, prenderia o cabelo no mesmo coque de solteirona que usava sempre.
Scarlett sorriu. Entrar na sala de baile com a irmã de Rhett apenas chamaria a atenção
para o fato de ela ser tão mais bonita que a outra.
- Está ótimo, Pansy - disse, recuperando o bom humor. O seu cabelo brilhava
como a asa de um corvo. Afinal, as flores brancas ficavam-lhe muito bem. - Dá-me
alguns ganchos.
Meia hora mais tarde, Scarlett estava pronta. Olhou pela última vez para o
espelho alto. A seda de um azul profundo do vestido brilhava à luz do candeeiro e fazia
que os seus ombros e colo nus e empoados parecessem de alabastro. Os diamantes
cintilavam com fulgor, tanto como os seus olhos verdes. A cauda do vestido estava
enfeitada com voltas de fita de veludo preto e um laço largo, também de veludo preto,
forrado de seda azul mais clara, que tinha sido aplicado na parte de trás, acentuando-
lhe a cintura finíssima. Os sapatos eram de veludo azul com laços pretos, e tinha em
volta do pescoço e em cada um dos pulsos uma fita fina de veludo preto. Nos ombros
estavam presas camélias brancas com laços de veludo e enchiam um suporte de
bouquet de filigrana de prata. Nunca estivera tão bonita e percebeu isso. A excitação
dava às suas faces rosadas uma cor natural.
O primeiro baile de Scarlett em Charleston foi cheio de surpresas. Quase nada foi
como esperava. Primeiro, foi-lhe dito que teria que levar as botas e não os seus
sapatos de dançar. Iam a pé para o baile. Se tivesse sabido isso, teria alugado uma
carruagem, e não conseguia acreditar que Rhett não o tivesse feito. O fato de ser
suposto Pansy levar-lhe os sapatos numa invenção de Charleston chamada "bolsa de
sapatos" não ajudou nada, pois não tinha tal coisa, e a criada de Miss Eleanor levou
quinze minutos para descobrir um cesto que servisse para o efeito. Por que é que
ninguém lhe tinha dito que precisava de uma coisa absurda como essa? "Não
pensamos nisso", disse Rosemary. "Todo mundo tem bolsas de sapatos."
"Todo mundo em Charleston, talvez", pensou Scarlett, "mas não em Atlanta. Lá,
as pessoas não vão a pé para os bailes, vão de carruagem." A felicidade da sua
expectativa em relação ao seu primeiro baile em Charleston começou a transformar-se
em inquietação e apreensão. Que outras coisas seriam diferentes?
Tudo, conforme descobriu. Charleston tinha desenvolvido formalidades e rituais
ao longo dos anos da sua história que eram desconhecidos no mundo enérgico da
semifronteira do norte da Geórgia. Quando a queda da Confederação pôs termo às
imensas fortunas que tinham permitido o desenvolvimento dessas formalidades,
sobreviveram os rituais, a única coisa que restava do passado e que era acarinhada e
mantida inalterada por essa mesma razão.
Havia uma fila de cumprimentos do lado de dentro do salão de baile no topo da
casa dos Wentworth. Tinham todos que formar uma fila nas escadas e esperar para
entrar na sala, um a um, e cumprimentar e murmurar qualquer coisa a Minnie
Wentworth, depois ao marido, ao filho, à mulher do filho, ao marido da filha, à filha
casada, à filha solteira. Isto enquanto a música tocava, e os pares que tinham chegado
mais cedo dançavam; e os pés de Scarlett estavam ansiosos por dançar.
Na Geórgia, pensou impacientemente, as pessoas que dão a festa vão ao
encontro dos seus convidados. Não os fazem esperar em fila como uma leva de
forçados. Era uma cena bem mais acolhedora que aquela idiotice.
Antes de seguir Mrs. Butler para dentro da sala, um criado imponente ofereceu-
lhe uma bandeja. Esta continha uma pilha de papéis dobrados, presos por um fitilho
azul com um lápis minúsculo preso na ponta. Carnês de dança? Deviam ser carnets de
dança. Scarlett tinha ouvido a Mammy falar de bailes em Savannah quando Ellen
O'Hara era nova, mas nunca acreditara verdadeiramente que os bailes eram tão
pacíficos que uma moça olhava para o carnê para ver com quem era devia dançar.
Ora, os gêmeos Tarleton e os rapazes Fontaine teriam rebentado as calças rindo se
alguém lhes dissesse que tinham que escrever o nome num pedacinho de papel com
um lápis minúsculo que se partiria nos dedos de um homem a sério! Nem sequer tinha
bem a certeza de que queria dançar com um maricas qualquer que estivesse disposto
a fazer isso.
Sim, tinha! Tinha a certeza de que dançaria com o próprio demônio, com cornos e
rabo e tudo o mais, só para poder dançar. Parecia-lhe terem passado dez anos, e não
um, desde o baile de máscaras em Atlanta.
- Estou tão contente por ter vindo - disse Scarlett a Minny Wentworth, e a sua voz
vibrou de sinceridade. Sorriu aos outros Wentworth, a cada um por sua vez, e depois
chegou ao fim da linha. Virou-se para os pares que dançavam, com os pés movendo-
se já ao ritmo da música, e susteve a respiração. Oh, era tão belo, tão estranho e
contudo tão familiar, como um sonho que apenas recordasse vagamente. A sala
iluminada por velas estava viva com a música, com as cores e o restolhar de saias
rodopiando. Ao longo das paredes estavam sentadas as viúvas em frágeis cadeiras
douradas, como sempre acontecera, murmurando umas com as outras por detrás dos
leques as coisas sobre as quais sempre murmuraram: os jovens que estavam
dançando agarrados demais, a última história de horror sobre o parto prolongado da
filha de alguém, o novo escândalo sobre uma amiga querida. Criados de casaca iam de
grupo em grupo de homens e mulheres que não estavam dançando, com bandejas de
prata com copos cheios e taças de uísque com folhas de hortelã-pimenta gelado. Havia
um fundo de vozes harmoniosas, salpicado de risos, altos e graves, o barulho de
sempre e tão agradável de pessoas felizes e despreocupadas divertindo-se. Era como
se o velho mundo, o belo e despreocupado mundo da sua juventude, ainda existisse,
como se nada tivesse mudado, e nunca tivesse havido uma guerra.
O seu olhar perspicaz via a tinta descascando nas paredes e as marcas das
esporas no chão sob as camadas de cera, mas recusou-se a reparar. Era melhor entrar
na ilusão, esquecer a guerra e as patrulhas ianques na rua, lá fora. Havia música e
dança e Rhett tinha prometido ser simpático. Não era preciso mais nada.
Rhett foi mais que apenas simpático; foi encantador. E ninguém no mundo
conseguia ser mais encantador do que Rhett, quando queria. Infelizmente, foi tão
encantador com todas as outras pessoas como com ela. Sentiu alternadamente
orgulho por todas as outras mulheres a invejarem, e um ciúme feroz por Rhett estar dar
atenção a tantas outras pessoas. Foi atencioso com ela; não o podia acusar de a
negligenciar. Mas também foi atencioso com a mãe, e com Rosemary, e com dezenas
de outras mulheres que, na opinião de Scarlett, eram velhas matronas maçantes.
Scarlett disse a si própria que não devia se importar e conseguiu-o durante algum
tempo. Quando cada dança terminava, era imediatamente rodeada por homens que
insistiam com o seu par para os apresentar, a fim de lhe poderem pedir a dança
seguinte.
Não era apenas por ser recém-chegada à cidade, um rosto desconhecido numa
multidão em que todos se conheciam uns aos outros. Era compulsivamente fascinante.
A sua decisão de fazer ciúmes a Rhett tinha acrescentado um brilho imprudente aos
seus olhos verdes, já de si fascinantes e invulgares, e um rubor encalorado de
excitação coloria-lhe as faces como uma bandeira vermelha assinalando perigo.
Muitos dos homens que a disputavam para dançar eram os maridos de amigas
que tinha feito, mulheres que visitara, de quem tinha sido parceira em mesas de jogo,
com quem tinha trocado mexericos ao tomar café no mercado. Não se importava. Tinha
tempo mais que suficiente para remediar o mal depois de Rhett voltar a ser seu.
Entretanto, estava a ser admirada e elogiada e galanteada e estava no seu elemento.
Nada tinha realmente mudado. Os homens continuavam a corresponder da mesma
forma ao seu pestanejar e ao seu rosto com covinhas expressivas e à sua descarada
adulação. "Eles acreditam em qualquer mentira que se lhes diga desde que se sintam
heróis", pensou, com um sorriso malicioso e encantador que fez o seu par desacertar o
passo. Tirou o pé de cima do dele.
- Oh, por favor, diga que me desculpa! - implorou. - Devo ter prendido o salto na
bainha do vestido. Foi um erro terrível, sobretudo quando tenho a sorte de estar
valsando com um dançarino maravilhoso como o senhor.
Os seus olhos eram enganadores e o beicinho que acompanhou as suas
desculpas faziam que os seus lábios parecessem prontos para um beijo. Havia certas
coisas que uma mulher nunca esquecia como se faziam.
- Que festa maravilhosa! - disse ela, muito feliz, ao regressarem a pé para casa.
- Estou muito contente por te teres divertido - disse Eleanor Butler. - E estou
muito, muito, muito feliz por ti, Rosemary. Parecias estar divertindo-te.
- Ah! Detestei, mamã, e devia sabê-lo. Mas estou tão contente por ir à Europa,
que não me importei de ir a este estúpido baile.
Rhett riu. Ia atrás de Scarlett e Rosemary, com a mão esquerda da mãe sobre o
seu braço. O seu riso era caloroso na noite fria de Dezembro. Scarlett pensou no calor
do seu corpo, imaginando que o conseguia sentir nas suas costas. Porque não era ela
que ia pelo seu braço, perto desse calor? Sabia porquê. Mrs. Butler era velha, era
apropriado que o filho a ajudasse. Mas isso não diminuiu o desejo de Scarlett de ser
ela a ir ali.
- Podes rir tudo o que queiras, meu querido irmão - disse Rosemary -, mas eu não
acho graça nenhuma. - Estava agora andando para trás, pisando a cauda do vestido. -
Não consegui dizer duas palavras seguidas a Miss Julie Ashley durante toda a noite,
porque tive que dançar com todos aqueles homens ridículos.
- Quem é Miss Julie Ashley? - perguntou Scarlett. O nome chamou-lhe a atenção.
- É o ídolo de Rosemary - disse Rhett -, e a única pessoa de quem tive medo
durante a minha vida de adulto. Se a tivesses visto, te lembrarias de Miss Ashley,
Scarlett. Veste sempre de preto e parece que bebeu vinagre.
- Oh, tu... - exclamou Rosemary. Correu para Rhett e bateu-lhe no peito com os
punhos fechados.
- Pax! - exclamou ele, pondo-lhe o braço direito sobre os ombros e puxou-a para
junto de si.
Scarlett sentiu o vento frio vindo do rio. Ergueu o queixo contra ele, virou-se para
a frente e deu, sozinha, os poucos passos até a casa.
22
Outro domingo significava novo sermão de Eulalie e Pauline, Scarlett estava certa
disso. Na realidade, sentia-se mais que ligeiramente assustada por causa do seu
comportamento no baile. Talvez tivesse estado um pouco... animada demais. Era isso.
Mas já não se divertia assim há muito tempo e não tinha a culpa de atrair muito mais as
atenções do que as afetadas senhoras de Charleston, não é? Além disso, apenas o
fizera por Rhett, para ele deixar de ser tão frio e distante com ela. Ninguém podia
censurar uma mulher por tentar segurar o seu casamento.
Sofreu calada a pesada reprovação silenciosa das suas igualmente silenciosas
tias durante o caminho de e para a Igreja de Saint Mary. As fungadelas pesarosas de
Eulalie durante a missa puseram-lhe os nervos em frangalhos, mas conseguiu ignorá-
las pensando no momento em que Rhett abandonaria o seu obstinado orgulho e
admitiria que a amava. Porque a amava, não amava? Sempre que a tomava nos
braços para dançar, ela sentia os joelhos tremendo. Decerto que ela não podia sentir
os relâmpagos no ar quando se tocavam, a menos que ele também os sentisse, não é?
Em breve descobriria. Ele teria que fazer mais do que apenas pousar a mão
enluvada na sua cintura para dançar na véspera de Ano Novo. Teria que beijá-la à
meia-noite. Só faltavam cinco dias e os seus lábios se uniriam, e ele teria que acreditar
que ela o amava realmente. O beijo dela lhe diria mais que quaisquer palavras...
A beleza e o mistério antigo da missa desenrolaram-se perante o seu olhar
ausente enquanto Scarlett imaginava os seus desejos tornando-se realidade. O
cotovelo anguloso de Pauline tocava-lhe sempre que se atrasava nas respostas.
O silêncio continuou sem ser quebrado quando se sentaram para tomar o café.
Scarlett sentia como se todos os nervos do seu corpo estivessem expostos ao ar, ao
olhar fixo e gelado de Pauline, ao som das fungadelas de Eulalie. Não conseguiu
agüentar mais e lançou-lhes um ataque irado antes que a pudessem atacar a ela.
- Disseram-me que todo mundo vai a pé para todo o lado, e tenho os pés cheios
de bolhas rebentadas por ter feito o que me disseram. Ontem à noite, a rua em frente
ao baile dos Wentworth estava apinhada de carruagens!
Pauline ergueu as sobrancelhas e comprimiu os lábios.
- Vês o que eu quero dizer, minha irmã? - perguntou para Eulalie. - A Scarlett está
decidida a virar as costas a tudo o que Charleston representa.
- É difícil perceber qual é a importância das carruagens, minha irmã, comparada
com as coisas que concordamos que tínhamos que lhe falar.
- A título de exemplo, é um excelente sintoma da atitude que há por detrás de
todas as outras coisas.
Scarlett bebeu a xícara de café claro e fraco que Pauline lhe servira, e pousou-a
no pires com violência.
- Considerarei um favor se pararem de falar de mim como se eu fosse surda e
muda. Se quiserem, podem fazer-me um sermão até ficarem afônicas, mas, primeiro,
digam-me a quem pertenciam todas aquelas carruagens!
As tias ficaram olhando para ela atônitas.
- Ora essa, aos ianques, é claro - disse Eulalie.
- Aventureiros nortistas - acrescentou Pauline com precisão.
Fazendo correções e acréscimos a cada frase dita pela outra, as irmãs contaram
a Scarlett que os cocheiros continuavam fiéis aos seus amos de antes da guerra,
embora agora trabalhassem para os novos-ricos. Durante a temporada, manipulavam
os seus patrões de várias formas inteligentes para poderem levar a "sua gente branca"
aos bailes e recepções se a distância fosse demasiado grande, ou o tempo estivesse
excessivamente inclemente para irem a pé.
- E na noite de Santa Cecília, insistem claramente em estar de folga e terem as
carruagens para seu uso pessoal - acrescentou Eulalie.
- São todos cocheiros experientes e muito altivos - disse Pauline -, portanto, os
nortistas têm um medo horrível de os ofender - disse quase rindo. - Sabem que os
cocheiros os desprezam. Os criados foram sempre as criaturas mais esnobes da terra.
- Estes criados sem dúvida que são - disse Eulalie divertidíssima. - Afinal de
contas, são tão charlestonianos como nós. É por isso que se importam tanto com a
temporada. Os ianques levaram tudo o que puderam e tentaram destruir o resto, mas
ainda temos a nossa temporada.
- E o nosso orgulho! - anunciou Pauline.
"Com o seu orgulho e um tostão, podiam ir de transporte públicos para qualquer
lado", pensou Scarlett azedamente. Mas estava contente por se terem desviado do
assunto para histórias sobre os fiéis criados das velhas famílias que ocuparam o resto
da refeição. Teve mesmo o cuidado de apenas comer metade do café para Eulalie
poder comer o resto, assim que ela fosse embora. A tia Pauline governava a casa com
extrema austeridade.
Ficou agradavelmente surpreendida ao encontrar Anne Hampton na casa dos
Butlers quando lá chegou. Seria agradável deleitar-se um pouco com a admiração de
Anne, depois daquelas horas de fria reprovação das tias.
Mas Anne e a viúva do lar que fora com ela estavam quase totalmente ocupadas
com as braçadas de camélias que tinham sido mandadas da plantação.
E Rhett também.
- Foram queimadas até o chão - estava ele dizendo -, mas crescem mais fortes
que nunca assim que as ervas são arrancadas.
- Oh, olhem! - exclamou Anne. - Uma Reine dês Fleurs.
- E uma Rubra Plena! - A viúva idosa e magra pôs em concha as mãos pálidas
para segurar a flor de um vermelho-vibrante. - Costumava ter as minhas numa jarra de
cristal em cima do piano.
Anne pestanejou rapidamente.
- Nós também, Miss Harriett, e as Alba Plenas na mesa de chá.
- A minha Alba Plena não está tão vigorosa como eu esperava - disse Rhett. - Os
botões estão atrofiados. A viúva e Anne riram.
- Não terá nenhuma flor até Janeiro, Mr. Butler - explicou Anne. - A Alba Plena
floresce tarde.
A boca de Rhett distendeu-se num sorriso levemente embaraçado.
- E ao que parece em termos de jardinagem, eu também.
"Santo Deus!", pensou Scarlett. "Acho que a seguir se vão pôr a falar se o
excremento de vaca é melhor que o de cavalo como adubo. Que conversa mais
maricas para um homem como o Rhett!" Virou-lhes as costas e foi-se sentar numa
cadeira, perto do sofá onde Eleanor Butler estava fazendo a sua renda de bilros.
- Esta peça já quase chega para debruar o decote do teu vestido púrpura quando
precisar ser renovado - disse ela a Scarlett com um sorriso. - A meio da temporada, é
sempre agradável ter uma coisa diferente. Nessa altura já a terei acabado.
- Oh, Miss Eleanor, a senhora é sempre tão querida e atenta. Sinto a minha má
disposição desaparecer. Francamente, fico maravilhada por ser tão amiga da minha tia
Eulalie. Ela não é nada parecida consigo. Está sempre fungando, e queixando-se, e a
embirrando com a tia Pauline.
Eleanor deixou cair o seu bastidor de marfim.
- Scarlett, tu espantas-me! É claro que a Eulalie é minha amiga; considero-a
praticamente uma irmã. Não sabes que ela esteve para casar com o meu irmão mais
novo?
Scarlett ficou boquiaberta.
- Não consigo imaginar ninguém querendo casar com a tia Eulalie - disse,
francamente.
- Mas, minha querida, ela era uma moça encantadora, absolutamente
encantadora. Veio visitar a Pauline quando ela se casou com o Carey Smith e ficou
vivendo em Charleston. A casa onde estão era a casa de cidade de Smith; a plantação
ficava junto ao rio Wando. O meu irmão Kemper apaixonou-se. Todo mundo estava à
espera que eles se casassem. Depois, ele caiu do cavalo e morreu. Desde essa época
que a Eulalie se considera viúva.
- A tia Eulalie apaixonada! - Scarlett não conseguia acreditar.
- Eu estava convencida de que sabias - disse Mrs. Butler.
- Ela é da tua família.
"Mas eu não tenho família", pensou Scarlett, "pelo menos como a Miss Eleanor a
encara. Não é uma família unida, ativa, que sabe os segredos amorosos de todos. Só
tenho a horrível e velha Suellen e a Carreen, com o seu véu de freira e os seus votos
no convento." Subitamente, sentiu-se muito sozinha, apesar dos rostos alegres e das
conversas à sua volta. "Devo estar com fome", decidiu. "E por isso que sinto vontade
de desatar a chorar. Devia ter comido o café todo."
Estava fazendo plena justiça ao almoço quando Manigo entrou e falou em voz
baixa com Rhett.
- Desculpem-me - disse Rhett -, mas parece que temos um oficial ianque à porta.
- Que é que eles andarão preparando? - interrogou-se Scarlett em voz alta.
Rhett veio rindo quando voltou instantes depois.
- Só lhes falta trazerem uma bandeira branca de rendição - disse ele. - Ganhou,
mamã. Estão convidando todos os homens a irem à Casa da Guarda buscar as armas
que confiscaram.
Rosemary aplaudiu ruidosamente.
Miss Eleanor mandou-a calar.
- Não podemos assumir o mérito todo. Eles não podem correr o risco de terem
todas estas casas sem qualquer proteção no Dia da Emancipação. - E continuou,
respondendo à expressão interrogativa de Scarlett. - O dia de Ano Novo não é o que
costumava ser, um dia calmo para tratar as dores de cabeça dos excessos da véspera
de Ano Novo. Mr. Lincoln fez a Proclamação da Emancipação a 1o de Janeiro,
portanto, agora, é o principal dia de comemoração para todos os antigos escravos.
Invadem o parque ao fundo de Battery e lançam bombas de carnaval e disparam
pistolas durante todo o dia e toda a noite, enquanto se vão embriagando. Nós fechamo-
nos em casa, é claro, fechando inclusivamente todas as portas, exatamente como
fazemos quando há um furacão. Mas também é bom ter um homem armado em casa.
Scarlett ficou com uma expressão preocupada.
- Não há armas aqui em casa.
- Mas haverá - disse Rhett. - E mais dois homens. Vêm de Landing de propósito.
- E quando é que vais? - perguntou Eleanor a Rhett.
- Dia trinta. Tenho um encontro com Julia Ashley dia trinta e um. Precisamos fazer
planos para a nossa estratégia de frente unida.
Rhett ia embora. Ia à malvada e malcheirosa plantação! Não estaria lá para beijá-
la na véspera de Ano Novo. Scarlett tinha agora certeza de que ia chorar.
- Vou a Landing contigo - disse Rosemary. - Não vou lá há meses.
- Não podes ir a Landing, Rosemary. - Rhett teve o cuidado de se mostrar
paciente.
- Receio bem que Rhett tenha razão, minha querida - disse Mrs. Butler. - Ele não
pode estar sempre contigo, pois tem demasiados assuntos a tratar. E não podes estar
em casa ou seja onde for apenas com essa criança que tens como criada. Há agitação
demais, pessoas perigosas.
- Então, levo a tua Celie. A Scarlett empresta-te a Pansy para te ajudar a vestir,
não emprestas, Scarlett?
Scarlett sorriu. Não havia qualquer razão para chorar.
- Eu vou contigo, Rosemary - disse numa voz doce. - E a Pansy também. -
Também haveria véspera de Ano Novo na plantação. Sem um salão de baile cheio de
gente, apenas Rhett e ela.
- Como és generosa, Scarlett - disse Miss Eleanor. - Sei que vais senti falta dos
bailes da próxima semana. Tens mais sorte do que mereces, Rosemary, em teres uma
cunhada tão compreensiva.
- Acho que nenhuma delas deve ir, mamã. Não o permitirei - disse Rhett.
Rosemary abriu a boca para protestar, mas a mão semierguida da mãe deteve-a.
Mrs. Butler falou calmamente:
- Não estás sendo atencioso, Rhett; a Rosemary adora Landing tanto como tu, e
não tem a liberdade de ir e vir como tu tens. Acho que a deves levar, sobretudo por ires
falar com a Julia Ashley. Ela gosta muito da tua irmã.
Scarlett tinha a cabeça num turbilhão. Ralava-se de perder alguns bailes se
pudesse estar sozinha com Rhett. Arranjaria forma de se livrar de Rosemary - talvez
essa tal miss Ashley a convidasse para ficar na casa dela. Então, ficaria apenas
Rhett... e Scarlett.
No seu quarto, lembrou-se dele quando tinham estado em Landing. Tinha-a
abraçado, confortado, falado com tanta ternura...
- Verás a plantação de Miss Julie, Scarlett - disse Rosemary bem alto. - É aquilo
que uma plantação deve ser. - Rhett ia a cavalo, à frente, afastando ou arrancando as
trepadeiras de madressilva que tinham crescido até o outro lado do caminho através do
pinheiral. Scarlett ia atrás de Rosemary, momentaneamente desinteressada daquilo
que Rhett estava fazendo, com o pensamento ocupado com outras coisas. "Graças a
Deus que este cavalo é tão gordo e preguiçoso. Já não monto há tanto tempo, que um
animal vivo decerto me atiraria ao chão. Como eu gostava de montar... naquele
tempo... quando os estábulos de Tara estavam cheios. O papá orgulhava-se tanto dos
seus cavalos. E de mim. A Suellen tinha mãos como bigornas, e era capaz de dar cabo
da boca de um jacaré. E a Carreen tinha medo até do seu pônei. Mas eu costumava
fazer corridas com o papá, galopar à desfilada pelas estradas, e às vezes quase lhe
ganhava. 'Katie Scarlett', dizia ele, 'tens mãos de anjo e coragem de diabo. É o teu
sangue O'Hara; um cavalo reconhece sempre um irlandês e dá-lhe o seu melhor.'
Querido papá... Os bosques de Tara tinham um cheiro intenso, exatamente como
estes, e sinto o aroma dos pinheiros picando-me o nariz. E os pássaros cantando e as
folhas estalando ao serem pisadas, e toda esta paz... Quantos hectares terá Rhett?
Saberei pela Rosemary. Ela, provavelmente, sabe até os centímetros quadrados.
Espero que essa tal Miss Ashley não seja a fera que Rhett diz. Que fora que Rhett
tinha dito? Parece que bebeu vinagre. Ele é engraçado quando é desagradável, desde
que não seja comigo."
- Scarlett! Anda, estamos quase lá. - O grito de Rosemary veio de bastante mais
adiante. Scarlett deu um leve toque na garupa do cavalo com o pingalim e este
começou a andar ligeiramente mais depressa. Rhett e Rosemary já tinham saído do
pinheiral quando ela os alcançou. A princípio, só conseguiu ver Rhett, a sua silhueta
claramente recortada na luz intensa do sol. "Como ele é belo e como monta bem o seu
cavalo, que não é uma pileca preguiçosa como o meu, mas um verdadeiro cavalo bem
fogoso. Os músculos do cavalo estão tremendo sob a pele, e contudo está imóvel
como uma estátua, obedecendo à pressão dos joelhos e das mãos dele nas rédeas. As
mãos dele..."
Rosemary apontou e o seu gesto chamou a atenção de Scarlett, dirigindo-a para
a cena à sua frente. Scarlett susteve a respiração. Nunca dera importância à
arquitetura, nem costumava reparar. Até as imponentes casas que faziam que a
Battery de Charleston fosse famosa em todo o mundo eram para ela apenas casas. No
entanto, havia qualquer coisa na beleza austera da casa de Julia Ashley, em Ashley
Brony, que ela reconheceu como sendo diferente de qualquer coisa que alguma vez
vira, e era grandiosa de uma forma que não sabia definir. Estava isolada no meio de
uma enorme extensão de relva, sem estar adornada por um jardim, distante dos
enormes e antigos carvalhos que eram sentinelas bem espaçadas no perímetro do
relvado. Quadrada, feita de tijolo, com portas e janelas brancas, a casa era especial,
murmurou Scarlett. Não era de admirar ter sido a única a ser poupada aos archotes do
exército de Sherman. Nem sequer os ianques ousavam insultar a poderosa presença
perante os seus olhos.
Ouviram-se risos, seguidos de vozes cantando. Scarlett virou a cabeça. A casa
impressionava e intimidava-a. Ao longe, à sua esquerda, viu uma grande extensão de
verde completamente diferente da cor rica da erva que lhe era familiar. Dezenas de
mulheres e homens negros estavam trabalhando e cantando naquele verde estranho.
"Ora, são trabalhadores rurais que estão cuidando de uma safra qualquer. E são
tantos." O seu pensamento voou para os campos de algodão de Tara, que outrora se
estendiam até perder de vista, exatamente como aquele verde estridente fluía sem
limite ao longo do rio. "Oh, sim, Rosemary tem razão. Esta é uma verdadeira plantação,
tal como é suposto ser uma plantação. Nada foi queimado, nada mudou, nada mudará.
O próprio tempo respeitava a grandiosidade de Ashley Barony."
- É muito simpático da sua parte receber-me, Miss Ashley - disse Rhett. Fez uma
vênia sobre a mão que Julia Ashley lhe estendia; segurava as costas da sua mão sem
luva num gesto de respeito e os seus lábios detiveram-se acima dela os dois
centímetros de praxe, pois nenhum cavalheiro cometeria a impertinência de realmente
beijar a mão de uma senhora solteira, por mais idosa que fosse.
- É útil nós dois, Mr. Butler - disse Julia. - Como de costume, estás terrivelmente
mal vestida, Rosemary, mas estou contente por te ver. Apresenta-me a tua cunhada.
"Santo Deus, ela é mesmo uma fera", pensou Scarlett, nervosa. "Será que está à
espera que eu lhe faça uma vênia?"
- Esta é Scarlett, Miss Julia - disse Rosemary, sorrindo.
Não parecia nada incomodada pela crítica da mulher mais velha.
- Como está, Mrs. Butler?
Scarlett tinha a certeza de que Julia Ashley não tinha o menor interesse em saber
como ela estava.
- Como está? - respondeu, seguindo-lhe o exemplo. Inclinou ligeiramente a
cabeça, sendo o grau de inclinação uma réplica exata da frieza polida de Miss Ashley.
"Quem pensava aquela mulher que era?"
- Tenho chá pronto na sala de estar - disse Julia. - Podes servir a Mrs. Butler,
Rosemary. Toca, se precisares de mais água quente. Trataremos dos nossos assuntos
na biblioteca, Mr. Butler, e depois tomaremos chá.
- Oh, Miss Julia, posso ouvi-la a falar com Rhett? - implorou Rosemary.
- Não, Rosemary, não podes.
"E está tudo dito", pensou Scarlett para si própria. Julia Ashley já estava se
afastando com Rhett a segui-la obedientemente.
- Anda, Scarlett, a sala de estar é por aqui. - Rosemary abriu uma porta alta e fez
um gesto chamando Scarlett.
A sala onde entrou foi uma surpresa para Scarlett. Não tinha nenhuma da frieza
da sua proprietária e não era nada intimidante. Era muito grande, maior que o salão de
baile de Minnie Wentworh. Mas o chão estava coberto por um velho tapete persa com
um fundo vermelho-desbotado, e os cortinados nas janelas altas eram de uma cor
rosada quente e agradável. Havia um lume vivo aceso na grande lareira; o sol entrava
a jorros através dos vidros cintilantes, indo incidir no serviço de chá de prata bem
polida, no veludo azul, dourado e rosa dos estofados dos amplos sofás e cadeirões de
orelhas. E um enorme gato amarelo estava dormindo em frente à lareira. Scarlett
abanou ligeiramente a cabeça com admiração. Era difícil acreditar que aquela sala
alegre e acolhedora tivesse qualquer relação com a mulher emproada de vestido preto
que a recebera à porta. Sentou-se num sofá ao lado de Rosemary.
- Fala-me de Miss Ashley - disse, cheia de curiosidade.
- Miss Julia é maravilhosa! - exclamou Rosemary. - Dirige Ashley Barony ela
própria; diz que nunca teve nenhum supervisor que não precisasse ser supervisionado.
E tem praticamente tantos campos de arroz quantos tinha antes da guerra. Podia fazer
a exploração de fosfato como o Rhett, mas recusa-se a meter-se nisso. As plantações
são para plantar, diz ela, não para... - Rosemary baixou a voz para um murmúrio
chocado, mas deliciado - ...violar a terra para tirar o que está lá dentro. Conserva-a
como sempre esteve. Tem cana-de-açúcar e uma prensa para fazer melaço, e um
ferreiro para ferrar as mulas e fazer rodas para as carroças, e um tanoeiro para fazer
barris para o arroz e para o melaço, e um carpinteiro para arranjar as coisas, e um
curtidor para fazer arreios. Leva o arroz para a cidade para ser descascado e compra
farinha, café e chá, mas todo o resto vem daqui. Tem vacas, e carneiros, e aves e
porcos, e uma queijaria e um fumeiro e armazéns cheios de legumes enlatados e milho
descascado, e conservas de fruta da colheita do Verão. Também faz o seu próprio
vinho. Rhett diz que até tem um alambique no pinheiral, onde faz terebintina.
- Ela ainda tem escravos? - As palavras de Scarlett foram cortantemente
sarcásticas. O tempo das grandes plantações tinha acabado, e não havia forma de o
trazer de volta.
- Oh, Scarlett, às vezes pareces mesmo o Rhett. Dá-me vontade de os abanar
aos dois. Miss Julia paga ordenados, exatamente como todas as outras pessoas. Mas
faz que a plantação renda o suficiente para lhes pagar. Se algum dia tiver chance
disso, vou fazer a mesma coisa em Landing. Acho horrível Rhett nem sequer tentar.
Rosemary começou a mexer ruidosamente nas xícaras e nos pires que estavam
sobre a bandeja.
- Não me consigo lembrar se gostas de leite ou de limão no chá, Scarlett.
- O quê? Oh... leite, por favor. - Scarlett não estava nada interessada no chá.
Estava revivendo a fantasia que já tivera antes, de fazer renascer Tara, com os seus
campos cobertos de algodão branco até perder de vista, e os seus celeiros cheios, e a
casa como sempre fora quando a mãe era viva. Sim, naquela sala havia um certo
aroma há muito esquecido, de óleo de limão, e polimento de metal e cera do chão. Era
tênue, mas ela tinha certeza de que o sentia, apesar do perfume forte e resinoso dos
troncos de pinheiro na lareira.
A sua mão aceitou automaticamente a xícara de chá que Rosemary lhe estendia
e segurou-a, deixando-o esfriar, enquanto continuava sonhando acordada. "Por que
não transformar Tara no que tinha sido? Se esta velhota consegue gerir esta plantação,
eu posso gerir Tara. O Will não sabe o que é Tara, a verdadeira Tara, a melhor
plantação de Clayton County. 'Uma quinta de duas mulas', é como ele lhe chama
agora. Não, por todos os santos, Tara é muito mais que isso! Aposto que eu também
conseguiria fazê-lo. O papá não disse centenas de vezes que eu era uma verdadeira
O'Hara? Então, consigo fazer o que ele fez, fazer que Tara seja como ele a fez. Talvez
até melhor. Sei contabilidade, sei arrancar lucro onde mais ninguém vê qualquer
chance. Ora, praticamente, todas as plantações à volta de Tara voltaram a ser mato.
Poderia comprar terra quase de graça!"
O seu pensamento saltou de uma imagem para outra - campos ricos, gado gordo;
o seu antigo quarto com cortinas brancas engomadas ondulando com a brisa de
Primavera perfumada de jasmim; andar a cavalo pelos bosques, limpos de vegetação
rasteira, quilômetros de cerca de madeira de castanheiro delimitando a sua terra, que
se estendia cada vez mais pela região de terra vermelha... Mas teve de pôr de lado a
sua visão. Relutante, centrou a sua atenção na voz alta e insistente de Rosemary.
"Arroz, arroz, arroz! Será que a Rosemary não consegue falar de mais nada a não
ser de arroz? Que diabo é que Rhett terá a tratar com aquele susto da velha Miss
Ashley durante tanto tempo?" Scarlett voltou a mudar de posição no sofá. A irmã de
Rhett tinha o hábito de se inclinar na direção do seu interlocutor quando se
entusiasmava com o que estava dizendo. Rosemary tinha-a empurrado quase até o
canto do comprido sofá. Scarlett virou-se ansiosamente para a porta quando esta se
abriu. "Bolas para Rhett! De que estaria rindo com Julia Ashley? Ele podia achar graça
em deixá-la à espera durante uma eternidade, mas ela, não."
- Você foi sempre um malandro, Rhett Butler - dizia Julia -, mas não me lembro de
que a impertinência estivesse incluída na lista dos seus pecados.
- Miss Ashley, no meu entender, a impertinência é um rótulo aposto ao
comportamento de criados para com os seus amos e dos jovens para com os mais
idosos. Ao passo que eu sou, em tudo, um seu obediente criado, e decerto não estará
a sugerir que a senhora é idosa. Contemporânea, concedo com prazer, mas idosa está
fora de questão.
"Ora esta, está flertando com a velha criatura! Imagino que esteja muito
interessado em qualquer coisa para estar fazendo esta figura de idiota."
Julia Ashley fez um som que só podia ser descrito como um resfolegar digno.
- Muito bem - disse ela. - Concordo, na condição de pôr termo a este absurdo.
Agora, sente-se e deixe de ser tolo.
Rhett aproximou uma cadeira da mesa de chá, e curvou-se cerimoniosamente
quando Julia se sentou nela.
- Muito obrigado pela sua condescendência, Miss Julia.
- Não seja bobo, Rhett.
Scarlett olhou para ambos com a testa franzida. Que era aquilo? Tudo aquilo de
passar de "Miss Ashley" e "Mr. Butler" para "Rhett" e "Miss Julia"? Rhett era um bobo,
exatamente como a velha criatura tinha dito. Mas "Miss Julia" estava bem perto de se
armar ela própria em boba. Ora, estava praticamente ronronando com Rhett. A forma
como ele conseguia fazer o que queria das mulheres era simplesmente repugnante.
Uma criada entrou apressadamente na sala e tirou a bandeja do chá de cima da
mesa em frente do sofá. Uma segunda criada veio a logo a seguir e retirou
silenciosamente a mesa para a colocar em frente de Julia, e um criado com uma
bandeja de prata, com um outro serviço de chá de prata e pratos com sanduíches e
bolos. Scarlett tinha que reconhecer que por mais desagradável que Julia Ashley
pudesse ser, a velhota fazia as coisas com estilo!
- Rhett disse-me que vais fazer a volta, Rosemary - disse Julia.
- Sim, senhora! Estou tão excitada que podia morrer.
- Creio que isso seria bastante inconveniente. Diz-me, já começaste a planejar o
teu itinerário?
- Não, Miss Julia. Só há uns dias é que soube que ia. A única coisa de que tenho
a certeza é que quero passar o maior tempo possível em Roma.
- Tens que ter o cuidado de escolheres a melhor época. O calor de Verão é
insuportável, mesmo para um charlestoniano. Todos os romanos abandonam a cidade
e vão para as montanhas ou para a beira-mar. Ainda me correspondo com algumas
pessoas encantadoras de quem decerto gostarás. Vou te dar cartas de apresentação, é
claro. Se me permites uma sugestão...
- Oh, por favor, Miss Julia. Há tantas coisas que eu quero saber.
Scarlett deu um pequeno suspiro de alívio. Não tinha eliminado a chance de que
Rhett pudesse contar a Miss Ashley o engano dela em pensar que a única Roma era
na Geórgia, mas ele tinha deixado passar a oportunidade. Estava agora dando a sua
contribuição à conversa, falando animadamente com a velhota sobre pessoas com
nomes estranhos. E Rosemary escutava-os, deliciada.
A conversa não interessava nada a Scarlett. Mas não estava entediada.
Observou, fascinada, todos os movimentos que Julia Ashley fazia ao presidir à mesa
de chá. Sem a menor quebra na conversa sobre antiguidades romanas - a não ser para
perguntar a Scarlett se tomava o chá com leite ou limão e com quantos quadrados de
açúcar -, Julia encheu as xícaras e estendia cada uma, a uma altura ligeiramente
abaixo do seu ombro direito, para uma das criadas lhe pegar. Erguia-a, não esperava
mais de três segundos, e retirava a mão.
"Ela nem sequer olha!", maravilhou-se Scarlett. "Se a criada não estivesse ali ou
não fosse suficientemente rápida, a xícara cairia no chão." Mas uma das criadas estava
sempre lá e a xícara era silenciosamente entregue à pessoa certa sem se entornar
uma gota.
"De onde é que este apareceu?" Scarlett sobressaltou-se quando o criado
apareceu junto dela, oferecendo-lhe um guardanapo desdobrado e o suporte com três
pratos de sanduíches. Quando ia estender a mão para tirar uma, o homem pôs-lhe um
prato junto da mão.
"Oh, estou entendendo, há uma criada que dá as coisas para ele me passar!
Bem, é complicado para um sanduíche de pasta de peixe que se comia de uma só
dentada."
Mas ficou impressionada com a elegância de tudo aquilo, e ainda mais
impressionada ficou quando o homem pegou uma elaborada pinça de prata com a mão
de luva branca e colocou uma variedade de sanduíches no seu prato. O toque final foi
a pequena mesa com uma toalha orlada de renda que a segunda criada colocou junto
dos seus joelhos quando ela se interrogava como se iria desenvencilhar com uma
xícara e pires numa mão e um prato na outra.
Apesar de estar com fome e curiosa em relação aos sanduíches - que diabo de
comida fina exigia aquele serviço rebuscado? -, Scarlett estava mais interessada na
rotina silenciosa e eficaz dos criados, enquanto primeiro Rosemary, e depois Rhett,
receberam prato e sanduíches e mesa. Ficou quase decepcionada quando viu que
Miss Ashley não recebeu tratamento especial, tendo apenas o suporte com os pratos
dos sanduíches sido de novo colocado sobre a mesa à sua frente. Ora, ora! Ela até
está desdobrando o seu próprio guardanapo! Ficou positivamente decepcionada
quando deu uma dentada no primeira sanduíche e viu que era apenas pão com
manteiga, muito embora a manteiga tivesse mais qualquer coisa - salsa, pensou; não,
era uma coisa de sabor mais forte, talvez cebolinhas. Comeu com satisfação; todos os
sanduíches eram muito bons. E os bolos no outro suporte de pratos tinham ainda
melhor aspecto.
"Santo Deus! Ainda estão falando de Roma!" Scarlett olhou de relance para os
criados. Estavam de pé, imóveis como postes, ao longo da parede, por detrás de Miss
Ashley. Era óbvio que os bolos não iam ser servidos tão depressa. Pelo amor de Deus,
Rosemary só tinha comido metade de um sanduíche.
- Mas não estamos sendo atenciosos - disse Julia Ashley.
- Mrs. Butler, que cidade é que gostaria de visitar? Ou compartilha a convicção de
Rosemary de que todas as estradas vão para Roma?
Scarlett fez o seu melhor sorriso.
- Estou encantada demais com Charleston para sequer pensar em ir a qualquer
outro lado, Miss Ashley.
- Uma resposta elegante - disse Julia -, embora de certa forma ponha ponto final à
conversa. Posso oferecer-lhe mais chá?
Antes de Scarlett poder aceitar, Rhett falou:
- Lamento, mas temos que ir embora, Miss Julia. Ainda não tenho as trilhas
através dos bosques em condições para poderem serem percorridas de noite, e os dias
são muito curtos.
- Podia ter avenidas, e não trilhas, se pusesse os seus homens trabalhando a
terra em vez de naquela vergonhosa mina de fosfato.
- Então, Miss Julia, pensei que tivéssemos estabelecido tréguas.
-E assim fizemos. E eu honrá-las-ei. Mas, reconheço que deve ter o cuidado de
chegar em casa antes de anoitecer. Tenho estado me deliciando com recordações
felizes de Roma, e não prestei atenção às horas. Talvez a Rosemary queira passar a
noite aqui. Amanhã de manhã será acompanhada por Landing.
"Oh, sim!", pensou Scarlett.
- Infelizmente, não pode ser - disse Rhett. - Talvez tenha que sair esta noite, e
não quero que Scarlett fique sozinha em casa apenas com a sua criada da Geórgia.
- Não me importo, Rhett - disse Scarlett bem alto -, garanto-te que não me
importo. Achas que sou uma tolinha que tem medo do escuro?
-Acho que tem razão, Rhett - disse Julia Ashley. -E deve cultivar alguma
precaução, Mrs. Butler. Vivemos numa época incerta.
O tom de Julia era decisivo, bem como o seu movimento brusco. Levantou-se e
dirigiu-se para a porta.
- Acompanho-os. Hector trará os vossos cavalos.
23
Havia vários grandes grupos de negros com ar zangado, e um pequeno grupo de
negras na zona relvada, em forma de ferradura, nos fundos da casa de Landing. Rhett
ajudou Scarlett e Rosemary a descerem dos cavalos no bloco de desmontar junto aos
estábulos improvisados, e segurou-lhes os cotovelos, enquanto o moço de estrebaria
pegava as rédeas e levava os cavalos. Quando o rapaz se afastou o suficiente para
não poder ouvir, Rhett murmurou num tom urgente.
- Vou levá-las até a frente da casa. Entrem e vão imediatamente para um dos
quartos lá em cima. Fechem a porta e não saiam de lá até eu as ir buscar. Vou mandar
a Pansy para lá. Ela que fique convosco.
- Que se passa, Rhett? - A voz de Scarlett fraquejou-lhe.
- Depois conto, agora não há tempo. Façam o que eu disse.
- Continuou segurando as duas mulheres, forçando-as a acompanhar a sua
passada decidida, mas não apressada, até a casa que depois contornaram.
- Mist Butler! - gritou um dos homens. Meia dúzia de homens seguiram-no quando
começou a andar na direção de Rhett. "Isto não é bom", pensou Scarlett, "chamarem-
lhe Mr. Butler em vez de Mr. Rhett. Não estão nada amistosos, e devem ser perto de
cinqüenta."
- Fiquem onde estão - gritou-lhes Rhett. - Assim que as senhoras estiverem
instaladas, voltarei para falar com vocês.
Rosemary tropeçou numa pedra solta do caminho, e Rhett puxou-a para cima
antes de ela cair. - Não quero saber se tens a perna partida - disse entredentes -,
continua a andar.
- Estou bem - disse Rosemary. "Parece que está fria como gelo", pensou Scarlett.
Sentia desprezo por si própria por se sentir tão nervosa. Graças a Deus que já estavam
quase em casa. Mais alguns passos e a teriam já contornado. Não tinha consciência de
que estivera retendo a respiração até se aproximar da frente da casa. Quando viu os
terraços verdejantes que davam para os pequenos lagos e para o rio, deixou escapar
um imenso suspiro de alívio.
Mas voltou de imediato a suster a respiração. Ao virarem a esquina para o terraço
de tijolo, viu ali homens sentados, encostados à parede da casa. Eram todos magros,
raquíticos, com os tornozelos aparecendo entre os sapatos pesados e a bainha dos
macacões desbotados. Tinham espingardas ou rifles sobre os joelhos, e seguravam-
nas num gesto displicente, mas seguro. Velhos chapéus de abas puxados bem para a
testa escondiam-lhes os olhos, mas Scarlett sabia que estavam olhando para Rhett e
para as suas mulheres. Um deles expeliu uma cuspidela castanha de tabaco mascado
sobre a relva, que foi cair em frente às belas botas de montar de Rhett.
- Podes dar graças a Deus não teres sujo a minha irmã, Clinch Dawkins - disse
Rhett -, senão teria que te matar! Falarei com vocês daqui a alguns minutos, pois agora
tenho outras coisas a fazer. - Falou num tom solto e casual. Mas Scarlett sentia a
tensão na mão que lhe pegava no braço. Ergueu o queixo e caminhou com passos
firmes e fortes para acompanhar os de Rhett. Gente branca pobre, lixo, não iria
intimidar Rhett, nem tão pouco a ela.
Piscou os olhos ao enfrentar a súbita escuridão quando entrou na casa. Que
fedor! Os seus olhos habituaram-se rapidamente, e Scarlett viu qual era a razão dos
bancos e dos escarradores que havia na sala principal do térreo. Mais brancos pobres
de ar abatido e esfomeado estavam estiraçados nos bancos, enchendo todo o espaço.
Também eles estavam armados e as abas dos seus chapéus tornavam os seus olhos
um segredo. O chão estava salpicado de escarros, e os escarradores estavam
rodeados de manchas de tabaco mascado. Scarlett soltou o braço, levantou a saia
acima dos tornozelos e dirigiu-se para as escadas. Dois degraus acima largou a saia,
deixando a orla do traje de montar arrastar pelo pó. Era o que faltava se iria dar o
prazer àquele bando de maltrapilhos de verem o tornozelo de uma senhora. Subiu as
escadas como se não tivesse qualquer preocupação no mundo.
- Que é que está acontecendo, Miss Scarlett? Ninguém me diz nada! - Pansy
começou a chorar assim que a porta do quarto se fechou.
- Cala-te! - ordenou Scarlett. - Queres que todos na Carolina do Sul te ouçam?
- Não quero nada com a gente da Carolina do Sul, Miss Scarlett. Quero voltar
para Atlanta, para junto da minha gente. Não gosto de estar aqui.
- Ninguém liga minimamente com o que tu gostas ou deixas de gostar, portanto,
marcha para aquele canto, senta-te naquele banco e cala a boca. Se ouvir algum ruído
vindo de ti, garanto que te... que te farei qualquer coisa terrível.
Olhou para Rosemary. Se a irmã de Rhett também se fosse abaixo, não sabia o
que faria. Rosemary estava muito pálida, mas parecia bastante composta. Estava
sentada na beira da cama, olhando para o padrão da colcha como se nunca tivesse
visto uma colcha na sua vida.
Scarlett foi à janela que dava para o relvado dos fundos. Se se pusesse de lado,
ninguém lá em baixo a veria espreitando. Ergueu a cortina de musselina com dedos
cautelosos e espreitou. Rhett estaria ali fora? Meu Deus, estava! Conseguia distinguir o
contorno do seu chapéu, um círculo escuro no meio de um enorme grupo de cabeças
escuras e de mãos escuras gesticulando. Os grupos separados de negros tinham-se
juntado, formando uma massa ameaçadora.
"Podem espezinhá-lo até à morte apenas num minuto", pensou. "E não posso
fazer nada para o impedir." A sua mão levantou a cortina de musselina com dedos
cautelosos e espreitou lá para fora.
- E melhor afastares-te dessa janela, Scarlett - disse Rosemary. - Se Rhett
começa a preocupar-se contigo e comigo, se distrairá do que quer que tenha que fazer.
Scarlett reagiu imediatamente ao ataque.
- Não te importas com o que está acontecendo?
- Importo-me muito, mas não sei o que está acontecendo. Nem tu.
- Sei que Rhett está prestes a ser esmagado por um bando de negros
enfurecidos. Por que é que aqueles homens nojentos que mascam tabaco não usam as
armas que têm?
- Nessa altura, estaríamos mesmo arrumados. Conheço alguns dos negros;
trabalham na mina de fosfato. Não querem que aconteça nada ao Rhett, senão perdem
o emprego. Além disso, muitos deles são gente dos Butlers. Pertencem a aqui. É dos
brancos que tenho medo. Imagino que Rhett também.
- Rhett não tem medo de nada!
- Claro que tem. Seria louco se não tivesse. Eu estou muito assustada e tu
também estás.
- Não estou nada!
- Então, és idiota.
Scarlett ficou boquiaberta. O tom cortante de Rosemary chocou-a mais que o
insulto. "Ora, parece mesmo a Julia Ashley." Meia hora com aquela fera e Rosemary
tinha se transformado num monstro.
Virou-se rapidamente para a janela. Estava começando a escurecer. Que estava
acontecendo?
Não conseguia ver absolutamente nada. Apenas formas escuras num fundo
escuro. Seria Rhett uma delas? Não conseguia ver. Encostou o ouvido ao vidro da
janela e esforçou-se por ouvir. O único som era o choramingar abafado de Pansy.
"Se não fizer nada, enlouqueço", pensou ela, começando a andar de um lado
para o outro no pequeno quarto.
- Por que é que uma plantação tão grande como esta tem quartos tão pequenos?
- queixou-se. - Nos quartos de Tara, cabiam dois como este.
- Queres realmente saber? Então, senta-te. Há uma cadeira de balanço junto da
outra janela. Podes te balançar em vez de andar de um lado para o outro. Vou acender
o candeeiro, e se quiseres te falarei de Dunmore Landing.
- Não consigo ficar sentada! Vou lá abaixo ver o que se passa. - Scarlett procurou
às apalpadelas, no escuro, a maçaneta da porta.
- Se o fizeres, ele nunca te perdoará - disse Rosemary.
A mão de Scarlett imobilizou-se.
O fósforo acendendo-se soou tão forte como o tiro de uma pistola. Scarlett sentiu
os nervos saltarem sob a pele. Depois virou-se, ficando surpreendida ao ver que
Rosemary continuava exatamente na mesma. Estava no mesmo local, sentada na
beira da cama. O candeeiro a petróleo tornava a amálgama de cores da colcha
extremamente viva. Scarlett hesitou por instantes. Depois dirigiu-se para a cadeira de
balouço e deixou-se cair sobre ela.
- Está bem. Fala-me de Dunmore Landing. - Começou a balançar-se, empurrando
zangada com os pés. A cadeira foi rangendo enquanto Rosemary falava da plantação
que tanto significava para ela. Scarlett balançava-se com um prazer maldoso.
A casa onde estavam, começou Rosemary, tinha quartos pequenos por ter sido
construída apenas para servir de alojamento a convidados solteiros. No andar de cima
havia mais quartos pequenos, para os criados dos convidados. As salas no térreo onde
agora estava o escritório de Rhett e a sala de jantar, eram também como quartos para
convidados - onde se bebia uma última bebida tarde e se jogava cartas e se
confraternizava.
- Todas as cadeiras eram de couro verdadeiro - disse Rosemary baixinho. - Eu
costumava adorar ir para lá cheirar o couro e o uísque e o fumo do tabaco quando os
homens saíam para caçar. Foi dado a Landing o mesmo nome do sítio onde os Butlers
viviam antes do nosso tetra-avô deixar a Inglaterra e ir para Barbados. O nosso trisavô
veio de lá para Charleston há cerca de cento e cinqüenta anos. Construiu Landing e os
jardins. O nome de solteira da mulher dele era Sophia Rosemary Ross. Ross e eu
temos os nomes dela.
- De onde vem o nome de Rhett?
- Tem o nome do nosso avô.
- Rhett disse-me que o vosso avô era pirata.
- Disse? - Rosemary riu. - É mesmo dele. O avozinho furou o bloqueio inglês
durante a revolução, exatamente como Rhett furou o bloqueio ianque na nossa guerra.
Estava absolutamente decidido a vender a sua safra de arroz, e nada nem ninguém o
impediria. Imagino que fez bom negócio do lado de lá, mas acima de tudo, era
plantador de arroz. Dunmore Landing tem sido sempre uma plantação de arroz. E por
isso que fico furiosa com Rhett...
Scarlett balouçou-se mais depressa. "Se ela se põe outra vez a falar de arroz",
grito.
Os dois tiros de rifle estouraram na noite e Scarlett gritou mesmo. Saltou da
cadeira e correu para a porta. Rosemary levantou-se da cama de um salto e correu
atrás dela. Agarrou Scarlett pela cintura com os seus braços fortes, e deteve-a.
- Deixa-me, Rhett pode estar... - exclamou Scarlett numa voz rouca. Rosemary
estava a impedi-la de respirar.
Os braços de Rosemary apertaram-na com mais força. Scarlett esforçou-se por
se libertar. Ouviu a sua própria respiração estrangulada nos seus próprios ouvidos e -
estranhamente, mais distinto - o range-range da cadeira de balanço, abrandando ao
ritmo a que a sua própria respiração abrandava. O quarto iluminado parecia estar
escurecendo.
As suas mãos, que ainda se agitavam, mexeram-se num gesto débil, e a sua
garganta fez um leve ruído arquejante. Rosemary largou-a.
- Desculpa - pensou Scarlett ouvir Rosemary dizer. Não importava. A única coisa
que importava era fazer entrar grandes golfadas de ar nos pulmões. Nem sequer
importava que tivesse caído de quatro no chão. Assim, era mais fácil respirar.
Só passado muito tempo conseguiu falar. Quando olhou para cima, viu Rosemary
de pé, encostada à porta.
- Quase me mataste - disse Scarlett.
- Desculpa. Não era minha intenção machucar-te. Mas tinha que te impedir.
- Porquê? Eu ia para junto de Rhett. Tenho de ir para junto de Rhett. - Ele
significava mais para ela que tudo no mundo.
Aquela estúpida moça não entendia isso? Não, não entendia, nunca tinha amado
ninguém, nunca ninguém a tinha amado.
Scarlett tentou pôr-se de pé. "Oh, Santa Maria, Mãe de Deus, estou tão fraca." As
suas mãos encontraram o poste da cama. Lentamente, içou-se e conseguiu pôr-se de
pé. Estava branca como um fantasma, e os seus olhos verdes chispavam como
chamas frias.
- Vou procurar Rhett - anunciou ela.
Então, Rosemary atingiu-a. Não com as mãos, ou com os punhos. Isso Scarlett
entenderia.
- Ele não te quer - disse Rosemary em voz baixa. - Ele próprio me disse.
24
Rhett parou no meio da frase. Olhou para Scarlett, curioso, e perguntou:
- Que é isto? Não tens apetite? E ainda dizem que o ar do campo deixa as
pessoas famintas. Espantas-me, minha cara. Creio que é a primeira vez que te vejo
deixar comida no prato.
Ela ergueu os olhos do prato intacto e lançou-lhe um olhar irado. Como é que ele
ousava falar-lhe depois de ter falado dela pelas costas? Com quem mais é que teria
conversado além de Rosemary? Será que todos em Charleston saberiam que ele a
tinha abandonado em Atlanta, e que ela bancara a tola vindo atrás dele?
Baixou os olhos e continuou a brincar com a comida que tinha no prato.
- Afinal, o que aconteceu? - perguntou Rosemary. - Ainda não entendi.
- Exatamente o que Miss Julia e eu esperávamos. Os trabalhadores rurais dela e
os meus mineiros tinham armado uma conspiração. Sabes que os contratos de
trabalho são assinados no dia de Ano Novo para o ano que começa. Os homens de
Miss Julia iam dizer-lhe que eu pagava aos meus mineiros quase o dobro do que ela
lhes pagava, e que ela tinha que lhes aumentar os salários, senão vinham trabalhar
para mim. Os meus homens iam fazer o mesmo jogo, só que ao contrário. Nunca lhes
passou pela cabeça que Miss Julia e eu sabíamos o que se passava.
"Os boatos começaram a correr assim que fomos a Ashley Barony. Todos
perceberam que o jogo tinha sido descoberto. Viste como os trabalhadores de Barony
estavam trabalhando afincadamente nos campos de arroz. Não se queriam arriscar a
perder o emprego e têm todos um medo de morte de Miss Julia.”
"Aqui as coisas não estavam tão calmas. Correu o boato de que os negros de
Landing estavam planejando alguma coisa, e os meeiros do outro lado da estrada de
Summerville ficaram nervosos. Fizeram o que todos os brancos pobres fazem,
agarraram nas armas e prepararam-se para a luta. Vieram para cá, forçaram a entrada
e roubaram o meu uísque, distribuindo as garrafas para conseguirem aquecer ainda
mais os ânimos.”
"Depois de vocês estarem a salvo, disse-lhes que eu próprio resolveria os meus
assuntos, virei-lhes as costas e fui para os fundos. Os negros estavam assustados,
com toda a razão, mas eu convenci-os de que conseguia acalmar os brancos e que
deviam ir para casa.”
"Quando voltei para casa, disse aos meeiros que tinha resolvido tudo com os
mineiros e que eles também deviam ir para casa. Provavelmente fui demasiado
apressado. Estava tão aliviado por não ter tido problemas, que fui descuidado. Da
próxima vez serei mais esperto. Se, e Deus nos livre disso, houver próxima vez. De
qualquer forma, o Clinch Dawkins perdeu a cabeça. Estava ansioso por arranjar
discussão. Disse-me que eu não passava de um amigo dos negros, e apontou-me o
rifle que tinha na mão. Eu não esperei para ver se ele estava suficientemente
embriagado para disparar. Avancei e virei-a para cima. O céu ficou com dois buracos.”
- Foi só isso? - Scarlett quase gritou. - Podias ter nos avisado.
- Estava ocupado, minha queridinha. O orgulho de Clinch ficou ferido e sacou uma
navalha. Saquei a minha e passamos uns dez minutos bastante ativos até eu lhe cortar
o nariz.
Rosemary soltou uma exclamação abafada. Rhett deu-lhe uma palmadinha na
mão.
- Só a ponta. De qualquer forma era comprido demais. Ficou bem melhor assim.
- Mas, Rhett, ele virá atrás de ti.
Rhett abanou a cabeça.
- Não, garanto-te que não. Foi uma luta leal. E Clinch é um dos meus velhos
companheiros. Estivemos juntos no Exército da Confederação. Há entre nós laços que
não podem ser afetados por um pedaço de nariz.
- Tenho pena de que ele não te tenha morto - disse Scarlett distintamente. - Estou
cansada e vou para a cama.
Empurrou a cadeira para trás e saiu da sala com extrema dignidade.
As palavras de Rhett, deliberadamente arrastadas, seguiram-na.
- Um homem não pode ter maior bênção do que a dedicação da esposa
amantíssima.
O coração de Scarlett ficou cheio de ira.
- Espero que Clinch Dawkins esteja lá fora neste preciso momento - disse
entredentes -, à espera de dar um tiro certeiro.
Para ser honesta, não se mataria a chorar se o segundo tiro acertasse em
Rosemary.
Rosemary ergueu o seu copo de vinho a Rhett.
- Muito bem, agora já sei por que é que disseste que era um jantar de
comemoração. Por mim, estou comemorando este dia ter terminado.
Depois do desjejum, Scarlett foi ao quarto vestir-se. Ainda estava escuro, mas
estava excitada demais para pensar em voltar a dormir. Tinha composto as coisas
bastante bem, pensou. Ele tinha deixado cair a sua defesa. Também tinha gostado do
desjejum, tinha certeza absoluta.
Vestiu o vestido castanho de viagem que usara no barco, escovou o cabelo
escuro para trás e pôs travessas para o segurar. Depois, esfregou um pouquinho de
água-de-colônia nos pulsos e na garganta, apenas uma leve sugestão de que era
feminina, suave e desejável.
Fez o mínimo barulho possível ao passar pelo corredor e ao descer as escadas.
Quanto mais tempo Rosemary dormisse, melhor. A janela que dava para leste no
patamar das escadas era distinta na escuridão. Estava quase amanhecendo. Scarlett
apagou a chama do candeeiro que levava na mão. "Oh, por favor, deixa que seja um
bom dia, deixa que eu faça tudo bem. Deixa que seja desjejum durante todo o dia. E
durante toda a noite. É véspera de Ano Novo."
A casa tinha a qualidade de quietude que envolve a terra imediatamente antes do
nascer do sol. Scarlett andou com cuidado para não fazer o menor barulho até chegar
à sala do meio no térreo. A lareira ardia vivamente; Rhett devia ter posto mais lenha
enquanto ela se vestia. Conseguia distinguir a forma escura dos seus ombros e cabeça
emoldurados pela meia luz acinzentada da janela à sua frente. Estava no escritório,
com a porta aberta, de costas para ela. Scarlett atravessou a sala na ponta dos pés e
bateu de leve, com as pontas dos dedos no umbral da porta.
- Posso entrar? - murmurou.
- Pensei que tinhas voltado para a cama - disse Rhett.
Parecia extremamente cansado. Ela lembrou-se de que ele tinha estado de pé
durante toda a noite guardando a casa. Gostaria de poder aconchegar-lhe a cabeça
contra o seu coração e de o acariciar até o cansaço passar.
- Não valia a pena voltar a adormecer, pois assim que o
sol nascer os galos põem-se a cantar como doidos. - Deu um passo em frente,
hesitantemente. - Importas-te que me sente aqui? No teu escritório não cheira tão mal.
- Entra - disse Rhett sem olhar para ela.
Silenciosamente, Scarlett foi se sentar numa cadeira logo à entrada do escritório.
Via, por cima do ombro de Rhett, a janela tornar-se mais distinta. "Porque estará ele
olhando tão fixamente para a janela? Aqueles malucos estarão de novo lá fora? Ou
será Clinch Dawkins?" Um galo cantou e todo o seu corpo estremeceu.
Depois, os primeiros raios fracos da alvorada vermelha tocaram na cena do outro
lado da janela. As ruínas da casa de tijolo de Dunmore Landing ficaram
dramaticamente iluminadas, vermelhas contra o céu escuro por detrás. Scarlett deu um
grito. Parecia que ainda fumegavam. Rhett estava observando a agonia do seu lar.
- Não olhes, Rhett - implorou ela -, não olhes. Só servirá para te cortar o coração.
- Eu deveria estar aqui, talvez os tivesse impedido. - A voz de Rhett soou lenta,
distante, como se não soubesse o que estava falando.
- Não poderia. Eles deviam ser centenas. Atirariam em ti e queimariam tudo de
qualquer maneira!
- Mas eles não dispararam sobre Julia Ashley - disse
Rhett e a sua voz era já diferente. Apesar de pesaroso, o seu tom tinha também
um certo humor por trás das palavras.
A luz vermelha no exterior da casa estava mudando, tornando-se mais dourada, e
as ruínas eram apenas tijolos enegrecidos e chaminés com o brilho do orvalho tocado
pelo sol.
A cadeira giratória de Rhett deu uma volta. Ele passou a mão pelo queixo, e
Scarlett quase conseguiu ouvir o raspar da barba por fazer. Estava com olheiras que
eram visíveis mesmo na sala escura, e o cabelo preto estava despenteado, com um
topete na parte de cima e uma madeixa descuidadamente caída sobre a testa. Rhett
levantou-se, bocejou e espreguiçou-se.
- Acho que já é seguro ir dormir um pouco. Tu e a Rosemary não saiam de casa
até eu acordar. - Deitou-se num banco de madeira e adormeceu de imediato.
Scarlett ficou observando-o enquanto dormia.
"Nunca mais posso dizer que o amo. Faz com que se sinta pressionado. E
quando ele é desagradável, eu sinto-me diminuída e rebaixada por tê-lo dito. Não,
nunca mais direi. Só depois que ele me disser primeiro que me ama."
25
Rhett esteve muito ocupado desde o momento em que acordou, depois de uma
hora de sono profundo, e disse peremptoriamente a Rosemary e a Scarlett para se
manterem afastadas dos pequenos lagos. Ia construir uma plataforma para os
discursos e a cerimônia da contratação no dia seguinte.
- Os trabalhadores não gostam da presença de mulheres. - Sorriu à irmã. - E eu
não quero de forma alguma que a mamã me pergunte por que é que eu permiti que
aprendeste um novo vocabulário tão pitoresco.
A pedido de Rhett, Rosemary levou Scarlett para dar uma volta pelos jardins
abandonados. Os caminhos tinham sido limpos, mas não tinha sido posto cascalho, e a
bainha de Scarlett não tardou a ficar preta do pó fino. Como tudo era diferente de
Tara... Até a terra. Não lhe parecia natural que os caminhos e o pó não fossem
vermelhos. Além disso, a vegetação era muito espessa, e muitas das plantas não lhe
eram familiares. Era luxuriante demais para o seu gosto.
Mas a irmã de Rhett adorava a plantação dos Butler com uma paixão que a
surpreendeu. "Ora, ela sente por este local o mesmo que eu sinto por Tara. Afinal de
contas, talvez eu consiga me entender com ela."
Rosemary não deu pelos esforços de Scarlett para encontrar um tema comum.
Estava perdida num mundo perdido: Dunmore Landing antes da guerra.
- Isto chamava-se o "jardim escondido", por causa das sebes altas que nos
impediam de o ver até subitamente estarmos lá dentro. Quando era pequena,
costumava esconder-me aqui quando se aproximava a hora do banho. Os criados eram
maravilhosos para mim... andavam de um lado para o outro no meio dos arbustos,
gritando que tinham a certeza de que nunca me encontrariam. Eu achava-me
extremamente inteligente. E quando a minha Mammy passava o portão, mostrava-se
sempre surpreendida por me ver... gostava tanto dela.
- Eu também tive uma Mammy. Ela...
Rosemary já recomeçara a andar.
- Por aqui chega-se a um açude. Havia cisnes negros e cisnes brancos. Rhett diz
que talvez voltem quando os juncos forem cortados, e todas aquelas algas nojentas
forem tiradas. Vês aqueles arbustos? Na realidade é uma ilha construída de propósito
para os cisnes. Era toda de erva, é claro que era cortada quando não era hora de
fazerem o ninho. E havia uma miniatura de um templo grego de mármore branco.
Talvez os pedaços estejam algum lugar no meio do mato. Muita gente tem medo dos
cisnes. Podem causar ferimentos perigosos com o bico e as asas. Mas os nossos
deixavam-me nadar com eles assim que as crias saíam dos ninhos. A mamã
costumava ler-me O Patinho Feio sentada no banco na varanda. Quando aprendi a ler,
lia-o aos cisnes.
"Este carreiro leva ao roseiral. Em maio, sentia-se o seu perfume a quilômetros de
distância no rio, antes de se chegar a Landing. Dentro de casa, em dias de chuva, com
as janelas fechadas, o perfume dos grandes arranjos de rosas faziam me sentir
completamente..."
"Lá embaixo, no rio, havia um grande carvalho com uma casa nos galhos. Foi
Rhett que a construiu quando era pequeno, e depois Ross ficou com ela. Eu costumava
ir para lá com um livro e biscoitos com compota, e ficava lá horas a fio. Era muito
melhor do que a casa de brincar que o papá mandou que os carpinteiros fizessem para
mim. Era extravagante demais, com tapetes no chão, e móveis do meu tamanho e
serviços de chá e bonecas..."
"Vem por aqui. O pântano dos ciprestes é além. Talvez ainda haja alguns jacarés
para observarmos. O tempo tem estado tão quente que não é provável que já estejam
nos seus esconderijos de Inverno.
- Não, muito obrigada - disse Scarlett. - As minhas pernas estão ficando
cansadas. Acho que vou me sentar naquela pedra grande por um tempo.
Afinal, a pedra grande era a base de uma estátua partida e caída de uma donzela
de vestes clássicas. Scarlett via o rosto manchado no meio de uns arbustos. Na
verdade, não estava cansada de andar, estava cansada de Rosemary. E não tinha o
menor desejo de ver nenhum jacaré. Sentou-se de costas para o sol e pensou no que
vira. Dunmore Landing estava começando a tornar-se vivo no seu espírito. Não tinha
sido nada parecido com Tara, pensou. A vida ali tinha sido vivida numa escala e num
estilo sobre os quais ela nada sabia. Não admirava que as pessoas de Charleston
tivessem a reputação de se considerarem o princípio e o fim de tudo. Tinham vivido
como reis.
Apesar do calor do sol, sentiu-se arrepiada. Se Rhett trabalhasse dia e noite
durante todo o resto da sua vida, nunca conseguiria transformar este lugar no que tinha
sido, e era exatamente isso que ele estava determinado a fazer. Não ia haver muito
tempo na vida dele para ela. Ter conhecimentos sobre cebolas e inhames também não
iria ajudá-la a compartilhar a vida dele.
Rosemary regressou decepcionada. Não tinha visto um único jacaré. Falou sem
parar no regresso à casa, dando os seus antigos nomes a jardins que agora não
passavam de extensões de ervas malcheirosas, entediando Scarlett com complexas
descrições das variedades de arroz que eram cultivadas nos campos e que se tinham
transformado em pântanos de ervas, perdendo-se em reminiscências sobre a sua
infância.
- Detestava quando chegava o verão! - queixou-se ela.
- Porquê? - perguntou Scarlett. Ela sempre adorara o verão, quando havia festas
todas as semanas, e muitas visitas e ruidosas corridas a cavalo em estradas
secundárias por entre campos de algodão a amadurecer.
A resposta de Rosemary afastou as apreensões que estavam começando a
assaltar-lhe o espírito. Naquela região, aprendeu Scarlett, o Verão era tempo de
cidade. Havia uma febre que se erguia dos pântanos para atacar os brancos. Malária.
Por causa dela, todos deixavam as plantações em meados de Maio e só regressavam
com a primeira geada de fins de Outubro.
- Então, afinal, Rhett iria ter tempo para ela. Também havia a temporada, que
ainda duraria mais dois meses. Ele tinha que estar lá para acompanhar a mãe e a
irmã... e ela. Scarlett teria todo o gosto em deixá-lo brincar com as suas flores durante
cinco meses por ano, se o pudesse ter durante os outros sete. Até aprenderia os
nomes das suas camélias.
- Que era aquilo? Scarlett olhou fixamente para um enorme objeto de pedra
branca. Parecia um anjo sobre uma grande caixa.
- Oh, é o nosso túmulo - disse Rosemary. - Um século e meio de Butlers, todos
em filas ordenadas. Quando eu bater as botas, será ali que também serei posta. Os
ianques partiram grandes pedaços das asas do anjo a tiro, mas tiveram a decência de
deixarem os mortos em paz. Ouvi dizer que houve locais em que abriram sepulturas à
procura de jóias.
Filha de um pai imigrante irlandês, Scarlett ficou abismada com a permanência do
túmulo. Todas aquelas gerações, e todas as gerações futuras, para todo o sempre,
amém.
"Vou voltar para um lugar cujas raízes são profundas", dissera Rhett. Agora,
compreendia o que ele tinha querido dizer. Sentiu pena por aquilo que ele perdera e
inveja por ela própria nunca o ter tido.
- Anda, Scarlett. Ficaste parada como se tivesses ganho raízes. Já estamos
quase em casa. Não podes estar cansada demais para andares esse bocadinho.
Scarlett lembrou-se por que tinha concordado em dar um passeio com Rosemary.
- Não estou absolutamente nada cansada! - insistiu ela. - Acho que devíamos
apanhar alguns ramos de pinheiros e coisas para enfeitarmos um pouco a casa. Afinal
de contas, estamos numa época festiva.
- Boa idéia. Disfarçarão o cheiro. Há muitos pinheiros e azevinho no bosque junto
ao local onde antigamente eram os estábulos.
- E visco - acrescentou Scarlett silenciosamente. Não ia correr qualquer risco com
o ritual da meia-noite da véspera do Ano Novo.
- Muito bonito - disse Rhett quando chegou em casa depois da plataforma estar
construída e enfeitada com bandeiras vermelhas, brancas e azuis. -Tem um ar festivo,
ótimo para a festa.
- Qual festa? - perguntou Scarlett.
- Convidei as famílias dos meeiros. Isso os fará sentirem-se importantes, e, se
Deus quiser, os homens estarão com ressaca demais de uísque para arranjarem
confusão quando os negros vierem. Tu, a Rosemary e a Pansy irão lá para cima antes
deles virem. É provável que os ânimos se exaltem.
Scarlett observou o arco de fogos-de-artifício no céu da janela do quarto. Os
fogos-de-artifício para comemorar o Ano Novo duravam desde a meia-noite até quase
uma da manhã. Lamentou de todo o coração não ter ficado na cidade. Amanhã iria ficar
fechada em casa todo o dia, enquanto os negros comemoravam, e, quando chegassem
à cidade no sábado, provavelmente, já não teria tempo de lavar e secar o cabelo a
tempo do baile.
E Rhett não chegara a. beijá-la.
Durante os dias que se seguiram, Scarlett recuperou toda a excitação estonteante
daquilo que se lembrava como sendo o melhor tempo da sua vida. Era uma beldade,
rodeada de homens nas recepções, com o seu carnê de dança cheio assim que
entrava no salão de baile, com todos os seus antigos jogos de sedução provocando a
mesma admiração de sempre. Era como se voltasse a ter dezesseis anos, sem mais
nada em que pensar senão na última festa, e nos elogios que lhe tinham sido feitos, e
na festa seguinte e como pentearia o cabelo.
Mas não tardou que o entusiasmo desaparecesse. Não tinha dezesseis anos, e
na realidade não queria um grupo de admiradores. Queria Rhett, e não estava mais
perto de o reconquistar do que estivera. Ele cumpriu a sua parte do trato: era atencioso
com ela nas festas, simpático sempre que estavam juntos na casa com outras pessoas.
No entanto, ela tinha certeza de que ele contava pelo calendário os dias que faltavam
para se ver livre dela. Começou a sentir momentos de pânico. E se perdesse?
O pânico gerava sempre ira. Centrou-o no pequeno Tommy Cooper. O rapaz
andava sempre atrás de Rhett com uma expressão de adoração pelo seu herói
estampada na cara. E Rhett correspondia-lhe. Isso enfurecia-a. Tommy tinha recebido
um pequeno barco à vela pelo Natal, e Rhett estava ensinando-o a andar nele. Havia
um belo telescópio de metal na sala de cartas no segundo andar e Scarlett corria para
lá sempre que podia nas tardes em que Rhett saía com Tommy Cooper. Os seus
ciúmes eram como tocar com a língua num dente que dói, mas não conseguia resistir à
compulsão de causar dor a si própria. "Não é justo! Eles estão a rindo e se divertindo, e
andando livres como pássaros. Por que é que ele não me leva para andar de barco?
Adorei andar daquela vez que viemos de Landing. Adoraria ainda mais naquele
pequeno barco do Cooper. Parece vivo, com o seu deslizar tão rápido e leve... e feliz!"
Felizmente, poucas tardes houve em que ficasse em casa e junto do telescópio.
Embora as recepções e os bailes à noite fossem os principais acontecimentos da
temporada, havia também outras coisas a fazer. Os dedicados jogadores de bridge
continuavam jogando, a comissão do Lar Confederado de Miss Eleanor fez reuniões
para tratar do recolhimento de fundos para comprar livros para a escola, e reparar uma
infiltração que aparecera subitamente no telhado, continuava a haver visitas a retribuir
e a receber. Scarlett tornou-se olheirenta e pálida de cansaço.
Tudo aquilo teria valido a pena se fosse Rhett sentindo ciúmes e não ela. Mas ele
parecia não ver a admiração que ela suscitava. Ou, pior, parecia estar desinteressado.
Tinha que fazer que ele reparasse, que se importasse! Decidiu escolher um
homem entre as suas dezenas de admiradores. Alguém bonito... rico... mais novo que
Rhett. Alguém de quem ele tivesse que sentir ciúmes.
Santo Deus, ela parecia um fantasma! Pôs pó-de-arroz e um perfume intenso, e a
sua expressão mais inocente, preparando-se para a caçada.
Middleton Courtney era alto e louro, com olhos pálidos e empapuçados, e uns
dentes extremamente brancos que mostrava num sorriso malandro. Era a epítome
daquilo que Scarlett considerava um homem vivido e sofisticado. E o que era melhor
ainda, era dono de uma mina de fosfato vinte vezes maior que a de Rhett.
Quando ele se curvou sobre a sua mão num cumprimento, Scarlett fechou os
dedos sobre os dele. Ele olhou para cima e sorriu.
- Ousarei ter esperança de que me dê a honra da próxima dança, Mrs. Butler?
- Se não me tivesse pedido, Mr. Courtney, teria ficado com o meu pobre coração
destroçado.
Quando a polca terminou, Scarlett abriu o leque num movimento lento conhecido
pela expressão "queda lânguida". Abanou-o junto do rosto para fazer esvoaçar as leves
e encantadoras madeixas de cabelo por cima dos seus olhos verdes.
- Meu Deus - disse quase sem fôlego. - Receio bem que se não apanhar um
pouco de ar acabarei por lhe cair nos braços, Mr. Courtney. Importa-se? - E Scarlett
apoiou-se ao braço que ele imediatamente lhe ofereceu, enquanto a levava para um
banco sob uma janela.
- Oh, por favor, Mr. Courtney, sente-se aqui ao meu lado. Ficarei com dores no
pescoço, de tanto olhar para cima.
Courtney sentou-se. Bem perto dela.
- Lamentaria profundamente ser a causa de qualquer mal que acontecesse a um
pescoço tão bonito - disse ele. O seu olhar percorreu-lhe lentamente a garganta até ao
colo alvo.
Era tão hábil quanto Scarlett naquele jogo que estavam jogando.
Ela manteve o olhar baixo, numa atitude recatada, como se não soubesse o que
Courtney estava fazendo. Depois, olhou de relance para cima através das pestanas, e
voltou a baixar rapidamente o olhar.
- Espero que a minha indisposição idiota não o esteja impedindo de dançar com a
senhora que tem mais perto do coração, Mr. Courtney.
- Mas a senhora a que se refere é a senhora que neste momento tenho mais
perto do coração, Mrs. Butler.
Scarlett olhou-o nos olhos e fez um sorriso encantador.
- Tem que ter cuidado, Mr. Courtney. Pode me virar a cabeça - prometeu ela.
- Garanto-lhe que tenciono tentar - murmurou-lhe ele ao ouvido, e ela sentiu a
respiração quente dele no pescoço.
Não tardou para que o romance público entre ambos fosse o tópico mais
comentado da temporada. O número de vezes que dançavam juntos em cada baile...
aquela vez que Courtney tinha tirado a taça de ponche da mão de Scarlett, levando-a
aos lábios onde ela tinha tocado com os seus... fragmentos de conversas das suas
brincadeiras carregadas de subentendidos...
A mulher de Middleton, Edith, tornou-se cada vez mais tensa e pálida. E ninguém
conseguia compreender como é que Rhett conseguia manter-se imperturbável.
"Porque ele não fazia alguma coisa?", interrogava-se o pequeno mundo da
sociedade de Charleston.
26
As corridas anuais só ficavam atrás do Baile de Santa Cecília, em termos de
acontecimento da Temporada. Na realidade, muitas pessoas - sobretudo homens
solteiros - consideravam-nas como sendo o único acontecimento.
- Não se pode apostar numa série de valsas - resmungavam, revoltados.
Antes da Guerra, a Temporada incluía uma semana de corridas e a Sociedade de
Santa Cecília organizava três bailes. Depois vieram os anos do cerco; uma carga de
artilharia abriu um trilho de fogo através da cidade, incendiando o edifício onde os
Bailes sempre tinham se realizado; e o comprido hipódromo oval, o clube e os
estábulos tinham sido utilizados como acampamento e hospitais para os feridos pelo
Exército Confederado.
Em 1865, a cidade rendeu-se. Em 1866, um ambicioso e empreendedor
banqueiro de Wall Street, chamado August Belmont, comprou os monumentais pilares
de pedra esculpida do velho Hipódromo e os enviou para o norte, para os colocar na
entrada do seu hipódromo de Belmont Park.
O Baile de Santa Cecília foi realizado num edifício emprestado apenas dois anos
após o final da Guerra e os habitantes de Charleston regozijaram-se por a Temporada
poder recomeçar. Levou mais tempo para recuperarem e tratarem a terra esburacada
do Hipódromo. As coisas nunca mais foram as mesmas - havia apenas um Baile, e não
três; a Semana das Corridas transformou-se no Dia das Corridas; os pilares da entrada
não podiam ser recuperados e o Clube tinha sido substituído por bancadas de madeira
semicobertas. Mas, na tarde límpida de fins de Janeiro de 1875, toda a população que
ainda restava da velha Charleston estava en fête para o segundo ano das corridas. Os
bondes das quatro linhas da cidade foram desviados para a linha da Rutledge Avenue
que terminava perto do Hipódromo, as carruagens foram enfeitadas com bandeiras
verdes e brancas, as cores do Clube, e os cavalos que as puxavam levavam fitas
verdes e brancas entrançadas nas caudas e nas crinas.
Rhett presenteou as suas três senhoras com sombrinhas verdes e brancas antes
de saírem de casa e pôs uma camélia branca na botoneira. O seu sorriso branco
brilhava-lhe no rosto bronzeado.
- Os lanques morderam a isca - disse ele. - O estimado Mr. Belmont em pessoa
mandou dois cavalos, e o Guggenheim tem um. Não sabem das éguas reprodutoras
que o Miles Brewton escondeu no pântano. Tornaram-se uma família corajosa, embora
um pouco mal cuidada por viverem no pântano, e nada bonita devido aos cruzamentos
com machos da extraviados da cavalaria - mas o Miles tem uma maravilha de três anos
que vai tornar muitas bolsos de quem tem dinheiro mais leves do que esperam.
- Queres dizer que há apostas? - perguntou Scarlett. Os seus olhos brilharam.
- Se não houvesse, para que se fariam corridas? - Rhett riu. Enfiou algumas notas
dobradas na bolsa da mãe, no bolso de Rosemary e na luva de Scarlett. - Apostem
tudo na Sweet Sally e comprem algo bonito com o que ganharem.
"Como está bem-disposto", pensou Scarlett. "Pôs as notas dentro da minha luva.
Podia ter se limitado a estender-me, não era obrigado a tocar na minha mão daquela
maneira - não, não na minha mão, no meu pulso nu. Ora, foi praticamente uma carícia!
Agora que pensa que estou interessada noutra pessoa, já repara em mim. Repara
mesmo, não estando apenas a dar-me educadamente atenção. Vai resultar!"
Tinha estado preocupada por achar que talvez estivesse indo longe de mais ao
conceder cada terceira dança a Middleton. Sabia que as pessoas já estavam fazendo
comentários. Bom, que falassem, se uns tantos mexericos fizessem com que Rhett
voltasse para ela.
Quando chegaram ao Hipódromo, Scarlett soltou uma exclamação abafada.
- Não fazia idéia de que era tão grande! Ou que haveria uma banda! E tantas
pessoas. - Olhou em volta, encantada.
Depois, agarrou na manga de Rhett. - Rhett... Rhett... há soldados ianques por
todo o lado. Que é que isso significa? Vão impedir as corridas?
Rhett sorriu.
- Achas que os ianques não apostam? Ou que nos devemos preocupar por os
aliviar de algum do seu dinheiro? Sabe Deus que eles não se importaram por tirar-nos
todo o nosso. Estou contente por ver o galante coronel e os seus oficiais
compartilhando os prazeres simples dos conquistados. Têm muito mais dinheiro para
perder que a nossa gente.
- Como podes estar tão seguro de que irão perder? - Os olhos de Scarlett
semicerraram-se numa expressão calculista. - Os cavalos dos ianques são de raça
pura e a Sweet Sally não passa de um pônei dos pântanos.
A boca de Rhett fez um trejeito.
- O orgulho e a lealdade não têm grande peso para ti quando se trata de dinheiro,
não é, Scarlett? Olha, minha cara, para ganhares, aposta na égua do Belmont. Dei-te o
dinheiro para fazeres o que quiseres dele. - E virou-lhe as costas, deu o braço à mãe e
apontou para a arquibancada. - Acho que terá melhor vista lá de cima, mamã. Vem,
Rosemary.
Scarlett começou a correr atrás dele.
- Eu não queria... - disse, mas as largas costas dele pareciam um muro. Zangada,
encolheu os ombros, olhando depois da esquerda para a direita. - Onde diabo se
faziam as apostas?
- Posso ajudá-la, minha senhora? - perguntou um homem ao seu lado.
- Sim, talvez possa. - O homem parecia um cavalheiro tinha um sotaque que
parecia da Geórgia. Scarlett sorriu-lhe com gratidão. - Não estou habituada a corridas
tão complicadas. Na minha terra, as pessoas se limitariam a gritar "Aposto cinco
dólares que te ganho daqui até ao cruzamento", e depois todos lhes gritariam a sua
resposta e partiriam à galope.
O homem tirou o chapéu e segurou-o contra o peito com ambas as mãos. "Está a
olhando para mim com uma expressão muito estranha", pensou Scarlett, inquieta.
Talvez não devesse ter-lhe falado.
- Desculpe, minha senhora - disse o homem num tom ansioso. - Não estou
admirado por não me estar reconhecendo, mas creio que a conheço. A senhora é Mrs.
Hamilton, não é? De Atlanta. Tratou de mim no hospital quando eu fui ferido. Chamo-
me Sam Forrest e sou de Moultrie, Geórgia.
O hospital! As narinas de Scarlett dilataram-se, numa reação involuntária à
recordação do fedor do sangue e da gangrena e dos corpos sujos e cheios de piolhos.
A expressão de Forrest era a imagem do embaraço e desconforto.
- Eu... peco-lhe desculpa, Mrs. Hamilton - gaguejou. - Não devia ter ousado dizer
que a conhecia. Não era minha intenção ofendê-la.
Scarlett afastou o hospital para o canto do seu espírito reservado para o passado
e fechou a porta. Pôs a mão no braço de Forrest e sorriu-lhe.
- Ora, Mr. Forrest, não me ofendeu. Fui apanhada desprevenida por me ter
chamado Mrs. Hamilton. Sabe, voltei a casar e há anos e anos que sou Mrs. Butler. O
meu marido é aqui de Charleston, e é por isso que estou aqui. E devo dizer que ouvi-lo
falar com esse sotaque da Geórgia me enche de saudades. O que o trás aqui?
- Cavalos - explicou Forrest. - Depois de quatro anos na cavalaria, não havia nada
sobre cavalos que não soubesse. Quando a Guerra terminou, poupei o dinheiro que
ganhei trabalhando e comecei a comprar cavalos. Agora tenho uma bela criação e um
bom negócio. Trouxe o melhor cavalo dos estábulos para correr pelo prêmio. Digo-lhe,
Mrs. Hamil... desculpe... Mrs. Butler, para mim foi um dia feliz quando soube que o
Hipódromo de Charleston tinha reaberto. Não há nada que se lhe compare no Sul.
Scarlett teve que fingir que estava prestando atenção a mais conversa sobre
cavalos enquanto ele a acompanhava à banca montada para receber as apostas, e
depois até às arquibancadas. Scarlett despediu-se dele com uma sensação de alívio.
As arquibancadas estavam quase cheias, mas não teve dificuldade em encontrar
o seu lugar. As sombrinhas verdes e brancas eram um farol. Scarlett acenou com o
dela a Rhett e começou a subir as escadas. Eleanor Butler retribuiu-lhe a saudação.
Rosemary desviou o olhar.
Rhett sentou Scarlett entre Rosemary e a mãe. Mal tinha se sentado, sentiu
Eleanor Butler ficar rígida. Middleton Courtney e a mulher, Edith, estavam sentando-se
na mesma fila, a pouca distância deles. Os Courtneys inclinaram a cabeça e sorriram
num cumprimento amistoso. Os Butlers retribuíram-no. Depois, Middleton começou a
apontar as portas de saída e a meta à mulher. Ao mesmo tempo, Scarlett disse:
- Nem imagina quem eu encontrei, Miss Eleanor, um soldado que estava em
Atlanta quando fui para lá viver. - Sentiu que Mrs. Butler se descontraía.
Um murmúrio de excitação percorreu a multidão. Os cavalos estavam chegando à
pista. Scarlett ficou olhando boquiaberta, com os olhos brilhando. Não estava
preparada para o oval de relva macia e para os quadrados e riscas e losangos de cores
vivas nas sedas dos jóqueis. Cintilantes e festivos, os jóqueis desfilaram em frente das
bancadas enquanto a banda tocava uma música alegre. Scarlett riu alto sem dar por
isso. Era o riso de uma criança, livre e irrefletido, que exprimia surpresa e alegria pura.
- Oh, olhem! - exclamou. - Oh, olhem! - Estava tão maravilhada que não percebeu
dos olhos de Rhett a observarem-na, em vez de os cavalos.
Houve um intervalo para tomar refrescos depois da terceira corrida. Numa tenda
enfeitada com fitas verdes e brancas, havia mesas compridas com comida e criados
circulavam por entre a multidão com bandejas cheias de taças de champanhe. Scarlett
tirou uma das taças de Emma Anson de uma das bandejas de brasão de Sally
Brewton, fingindo que não reconhecia o mordomo de Minnie Wentworth que estava
servindo. Tinha aprendido as várias formas como a gente de Charleston supria as
insuficiências e perdas. Todos compartilhavam os seus tesouros e os seus criados,
agindo como se pertencessem ao anfitrião ou anfitriã do acontecimento.
- É a coisa mais absurda que alguma vez ouvi - dissera quando Mrs. Butler lhe
explicara pela primeira vez a charada. Emprestar e pedir emprestado, isso ela
compreendia. Mas não fazia o menor sentido fingir que as iniciais de Emma Anson
condiziam com os guardanapos de Minnie Wentworth. Mas pactuou com o logro, se é
que era esse o termo. Era apenas mais uma das peculiaridades de Charleston.
- Scarlett! - virou-se rapidamente para quem a chamara. Era Rosemary. - Não
tardarão a tocar o sino. Vamos voltar antes de começar a confusão.
As pessoas começavam já a voltar às bancadas. Scarlett olhou para elas pelos
binóculos que pedira emprestados a Miss Eleanor. Estavam ali as tias; graças a Deus
que não as tinha encontrado na tenda onde serviam o lanche. E Sally Brewton com o
marido, Miles. Ele parecia quase tão excitado como ela. Santo Deus! Miss Julia Ashley
estava com eles. Imagina, ela apostar em cavalos.
Scarlett moveu os binóculos de um lado para o outro. Era divertido poder observar
as pessoas sem elas saberem que estavam sendo observadas. Ah! Lá estava o velho
Josiah Anson dormitando enquanto Emma falava com ele. Apanharia uma
descompostura se ela percebesse que estava dormindo! Ah! Ross! Era pena que
tivesse tido que voltar, mas Miss Eleanor tinha ficado satisfeita. Margaret parecia
nervosa, mas o que era certo era que parecia sempre. "Oh, está ali a Anne. Santo
Deus, parece a velha da bota com todas aquelas crianças à sua volta. Devem ser os
órfãos. Será que consegue me ver? Está virando-se para cá. Não, não está olhando
suficientemente para cima."
"Ora esta, está positivamente resplandecente. Será que o Edward Cooper
finalmente a pediu em casamento? Tem que ser isso; ela está olhando para ele como
se conseguisse caminhar sobre a água. Está praticamente derretendo-se."
Scarlett deslocou os binóculos ligeiramente para cima, para ver se Edward estava
sendo tão óbvio como Anne... um par de sapatos, umas calças, um casaco...
O coração deu-lhe um salto. Era Rhett. Deve estar falando com Edward. O seu
olhar fixou-se nele por instantes. Rhett estava tão elegante. Desviou os binóculos e
Eleanor Butler entrou no campo de visão. Scarlett ficou gelada, sem sequer respirar.
Não podia ser. Perscrutou a área perto de Rhett e da mãe. Ainda não estava lá
ninguém. Lentamente, voltou a focar Anne, depois Rhett, e novamente Anne. Não
havia qualquer dúvida. Scarlett sentiu-se indisposta. Depois, absolutamente furiosa.
"A sonsinha miserável! Tem andado me elogiando aos quatro ventos na minha
própria cara e está loucamente apaixonada pelo meu marido nas minhas costas. A
minha vontade era estrangulá-la com as minhas próprias mãos!"
Scarlett tinha as mãos suando e tinha quase deixado cair os binóculos quando
voltou a focar Rhett. Estaria olhando para Anne?... Não, estava a rindo com Miss
Eleanor... estavam conversando com os Wentworths... cumprimentando os Hugers... os
Halseys... os Savages... o velho Mr. Pinckney... Scarlett manteve os binóculos focados
em Rhett até ficar com o olhar turvo.
Ele não tinha olhado uma única vez na direção de Anne. Estava olhando
fixamente para ele e ele nem sequer dava por isso. Não havia qualquer razão para se
preocupar. Era apenas uma moça tonta com uma paixão por um homem adulto.
Por que Anne não se apaixonaria por ele? Por que não o fariam todas as
mulheres de Charleston? Ele era tão lindo e tão forte e tão...
Olhou para ele com uma expressão profundamente enternecida, com os
binóculos no colo. Rhett inclinou-se para ajeitar o xale de Miss Eleanor sobre os seus
ombros. O sol ia baixo no céu e um vento frio começara a fazer-se sentir. Ele pôs-lhe a
mão sob o cotovelo e começaram a subir as escadas até ao seu lugar, a imagem
perfeita de um filho zeloso com a mãe. Scarlett esperou ansiosamente que chegassem.
Assim que Sally saiu, Scarlett correu para o quarto e fechou-se à chave. Atirou-se
em cima da cama e chorou descontroladamente.
Visões grotescas assaltaram o seu espírito, de Rhett com uma mulher... outra...
outra ainda, e outra e outra das senhoras que ela via todos os dias nas festas.
Que idiota tinha sido em pensar que lhe podia fazer ciúmes.
Quando já não podia suportar mais os seus pensamentos, tocou para chamar
Pansy, lavou-se e pôs pó de arroz no rosto. Não conseguiria ir sentar-se sorrindo e
falando com Miss Eleanor quando ela acordasse. Tinha que sair dali, pelo menos
durante algum tempo.
- Vamos sair - disse a Pansy. - Dá-me a minha pelica.
Scarlett nunca pensara que tal frio existisse. Era fustigada pela chuva fria, estava
rodeada por água ainda mais fria, que a puxava. Todo o seu corpo devia estar gelado.
Os dentes batiam-lhe incontrolavelmente, fazendo tal barulho na sua cabeça que a
impedia de pensar, de compreender o que estava acontecendo, a não ser que devia
estar paralisada, pois não se conseguia mexer. E, no entanto, estava movendo-se, em
movimentos estonteantes, indo acima e caindo, caindo, caindo de uma forma terrível.
"Estou morrendo. Oh, meu Deus, não me deixes morrer! Quero viver."
- Scarlett! - O som do seu nome foi mais forte que o dos dentes batendo e
penetrou na sua consciência.
- Scarlett! - Ela conhecia aquela voz, era a voz de Rhett.
E aquele era o braço de Rhett em torno dela, a segurá-la. Mas onde é que ele
estava? Não via nada através da água que não parava de lhe fustigar o rosto,
enevoando-lhe os olhos e fazendo-os arder.
Abriu a boca para responder, e esta ficou imediatamente cheia de água. Scarlett
esticou a cabeça o mais que pôde e cuspiu a água da boca. Se ao menos os seus
dentes deixassem de bater!
- Rhett - tentou dizer.
- Graças a Deus. - A voz dele soou de muito perto. Por detrás dela. As coisas
estavam começando a fazer algum sentido.
- Rhett - disse ela de novo.
- Escuta com atenção, minha querida, escuta com mais atenção do que alguma
vez escutaste na tua vida. Temos uma chance e vamos agarrá-la. A chalupa está
mesmo aqui; estou agarrado ao leme. Temos que nos meter debaixo dela e utilizá-la
como proteção. Isso significa que temos que mergulhar e voltar acima sob o casco do
barco. Entendeste?
Tudo dentro dela gritava: Não! Se mergulhasse na água se afogaria. A água já a
estava arrastando, puxando. Se mergulhasse, nunca mais viria à superfície! Foi
invadida pelo pânico. Não conseguia respirar. Queria agarrar-se a Rhett, queria gritar e
gritar e gritar...
"Pára com isso." As palavras eram claras. E a voz era a sua. "Tens que
sobreviver a isto e não conseguirás se te portares como uma idiota."
- Que-que-que-res-que-eu-fa-ça? - Malditos dentes, que não paravam de bater.
- Vou contar. Quando disser "três", respira fundo e fecha os olhos. Estou te
agarrando. Consigo pôr-nos a salvo. Não te acontecerá nada. Estás pronta? - Não
esperou pela resposta dela, começando imediatamente a gritar: - Um... dois... - Scarlett
respirou fundo com dificuldade. Depois, sentiu-se puxada para baixo, para baixo, e a
água invadiu-lhe o nariz e os ouvidos e os olhos e a consciência. Daí a segundos
terminara. Com um enorme alívio, respirou ar.
- Tenho segurado os teus braços, Scarlett, para não te agarrares a mim e irmos
ambos ao fundo. - Rhett deslocou as mãos para a sua cintura. Era maravilhoso estar
liberta. Se ao menos as suas mãos não estivessem tão frias. Começou a esfregá-las.
- Isso mesmo - disse Rhett. - E preciso ativar a circulação. Mas ainda não. Segura
neste chapuz. Tenho que te deixar por alguns minutos. Não entres em pânico. Não
demorarei. Vou voltar a mergulhar, para ir à superfície cortar o cordame emaranhado e
o mastro antes que arrastem o barco para o fundo. Também vou cortar os cadarços
das tuas botas, Scarlett. Não dês pontapés quando sentires uma coisa agarrar-te o pé.
Também terei que te tirar essas saias e saiotes pesados. Agarra-te com força. Não
demorarei.
Pareceu-lhe uma eternidade.
Scarlett aproveitou para avaliar a situação. As coisas não estavam tão más assim
- se conseguisse ignorar o frio. A chalupa virada formava um teto sobre a sua cabeça,
impedindo a chuva de a fustigar. Além disso, por qualquer razão, a água estava mais
calma. Não a conseguia ver; o interior do casco estava em escuridão absoluta; mas ela
sabia que estava. Embora o barco continuasse a erguer-se e a cair com o movimento
das ondas ao mesmo ritmo estonteante, a superfície da água abrigada era quase lisa,
sem pequenas ondas cavadas a baterem-lhe no rosto.
Sentiu Rhett tocar-lhe no pé esquerdo. "Ótimo! Não estou realmente paralisada."
Scarlett respirou fundo pela primeira vez desde que a tempestade os atingira. Sentiu
uma sensação muito estranha nos pés. Nunca tivera a noção de como aquelas botas
eram pesadas e apertadas. Oh! A mão na sua cintura provocou-lhe uma sensação de
estranheza. Percebia o movimento cortante da faca. Depois, subitamente, um enorme
peso deslizou-lhe pelas pernas abaixo e os seus ombros romperam à superfície. Soltou
uma exclamação de surpresa. O som do seu grito reverberou no espaço oco sob o
casco de madeira. Foi tão forte que, com o choque, quase largou o chapuz onde estava
agarrada.
Depois, Rhett irrompeu da água. Estava muito perto dela.
- Como te sentes? - perguntou ele. Parecia que estava gritando.
- Chhh - disse Scarlett. - Mais baixinho.
- Como te sentes? - perguntou ele mais baixo.
- Se queres mesmo saber, quase morta, de tão gelada.
- A água está fria, mas não suficientemente fria para isso. Se estivéssemos no
Atlântico Norte...
- Rhett Butler, se me contas mais uma das tuas aventuras do tempo em que
furavas o bloqueio, eu... afogo-te!
O riso dele encheu o ar à sua volta e pareceu de alguma forma torná-lo mais
quente. Mas Scarlett continuava furiosa.
- Seres capaz de rir numa hora destas ultrapassa a minha compreensão. Não é
nada divertido estar pendurada dentro da água gelada no meio de uma terrível
tempestade.
- Quando as coisas são o pior possível, Scarlett, a única coisa que há a fazer é
descobrirmos qualquer coisa da qual possamos rir. Faz que não percamos a sanidade
mental... e impede os dentes de baterem de medo.
Ela estava exasperada demais para falar. O pior era que ele tinha razão. Os
dentes tinham parado de bater quando ela deixou de pensar que ia morrer.
- Agora vou cortar os laços do teu espartilho, Scarlett. Não consegues respirar
direito dentro dessa armação. Fica quieta para eu não te cortar a pele. - Houve uma
intimidade embaraçosa no movimento das suas mãos por baixo da suéter, enquanto
lhe rasgava o espartilho e o corpete. Há anos que ele não lhe tocava no corpo.
- Agora respira fundo - disse Rhett, depois de puxar o espartilho e o corpete. -
Hoje em dia as mulheres não aprendem a respirar. Enche os pulmões até o fundo.
Estou fazendo um suporte com umas cordas que cortei. Quando acabar, poderás largar
o chapuz e massagear as mãos e os braços. Continua a respirar fundo. Vai te aquecer
o sangue.
Scarlett tentou fazer o que Rhett dizia, mas quando os ergueu, sentiu os braços
extremamente pesados. Era muito mais fácil deixar o corpo apoiado no suporte de
corda sob os braços e deixar-se erguer e cair com o movimento das ondas. Estava
sentindo-se muito sonolenta... Por que estaria Rhett falando tanto? Por que insistia em
que esfregasse os braços?
- Scarlett! - A voz dele soou muito forte. - Scarlett! Não podes adormecer. Tens
que continuar a mexer-te. Mexe os pés. Se quiseres, dá-me pontapés, mas mexe as
pernas. - Rhett começou a esfregar-lhe vigorosamente os ombros, e depois os braços
com movimentos bruscos.
- Pára com isso. Estás me machucando. - As suas palavras soaram fracas, como
o miar de um gatinho. Scarlett fechou os olhos e a escuridão tornou-se mais escura. Já
não sentia tanto frio; sentia-se apenas cansada, muito cansada, e sonolenta.
Sem qualquer aviso, Rhett deu-lhe uma bofetada com tanta força que a cabeça foi
atirada para trás e bateu no casco de madeira com um baque que ressoou no espaço
fechado. Scarlett ficou completamente acordada, chocada e zangada.
- Como te atreves?! Vais me pagar isto quando sairmos daqui, Rhett Butler,
garanto-te que vais!
- Assim é melhor - disse Rhett, continuando a esfregar-Ihe os braços
violentamente, embora Scarlett tentasse afastar-lhe as mãos. - Continua a falar que eu
massageio. Dá-me as tuas mãos para eu as poder esfregar.
- Nem penses! As minhas mãos ficam comigo e agradeço que faças o mesmo
com as tuas. Estás a arrancar-me a carne dos ossos.
- Mais vale eu arrancá-la do que os caranguejos comerem-na - disse Rhett
asperamente. - Escuta. Se cederes ao frio, Scarlett, morrerás. Sei que queres dormir,
mas esse é o sono da morte. E, por Deus, nem que tenha que te bater até ficares
negra, não deixarei que morras. Mantém-te acordada, respira e vai te mexendo. Fala;
não pares de falar; não me importo com o que digas, deixa-me apenas ir ouvindo o teu
timbre de peixeira rabugenta para saber que estás viva.
Scarlett voltou a ter consciência do frio paralisante quando Rhett lhe esfregou a
carne, revivificando-a.
- Vamos conseguir sair desta? - perguntou ela sem emoção, tentando mexer as
pernas.
- Claro que vamos.
- Como?
- A corrente está a arrastar-nos para terra; a maré está enchendo. Nos levará
para o local de onde partimos.
Scarlett assentiu na escuridão. Lembrou-se da preocupação de largarem antes de
a maré virar. Nada na voz de Rhett revelava o seu conhecimento de que a força dos
ventos ciclônicos podiam anular a atividade normal das marés. A tempestade podia
estar a arrastá-los para lá da entrada do porto, para a vasta extensão do Oceano
Atlântico.
- Quanto tempo falta para lá chegarmos? - O tom de Scarlett era rabugento.
Sentia as pernas como se fossem dois enormes troncos de árvore. E Rhett estava a
pôr-lhe os ombros em carne viva.
- Não sei - respondeu ele. - Vais precisar de toda a tua coragem, Scarlett.
"Está com um ar tão solene como um sermão! Rhett, que faz sempre troça de
tudo. Oh, meu Deus!" Scarlett forçou as pernas sem vida a mexerem-se e afastou o
terror com uma determinação férrea.
- Preciso mais de qualquer coisa para comer que de coragem - disse ela. - Por
que diabo é que não agarraste no teu sujo saco quando viramos?
- Está guardado na proa. Meu Deus, Scarlett, a tua gula talvez nos salve. Já me
tinha esquecido dele. Reza para que ainda lá esteja.
O rum espalhou tentáculos de calor revivificante pelas suas coxas, pelas suas
pernas e pelos seus pés e Scarlett começou a mexê-los para a frente e para trás. A dor
da restituição da circulação era intensa, mas aceitou-a de bom grado. Significava que
estava viva, toda ela. "Ora, rum talvez fosse ainda melhor que brande", pensou depois
do segundo gole. Não havia dúvida de que aquecia bem.
Era pena Rhett ter insistido em racioná-lo, mas sabia que ele tinha razão. Seria
horrível esgotar o calor na garrafa antes de estarem a salvo em terra. Entretanto, até
conseguiu tomar parte no tributo de Rhett ao seu prêmio. Yo, ho, ho, and a bottle of
rum cantou ela, quando ele acabava cada estrofe da canção de marinheiros.
E depois Scarlett lembrou-se de Little brown jug, howl love thee.
As suas vozes ecoaram tão alto dentro do casco que lhes foi possível fingirem
que não estavam enfraquecendo à medida que o frio lhes ia conquistando o corpo.
Rhett abraçou Scarlett e apertou-a contra o seu corpo para compartilhar o seu calor. E
cantaram todas as canções preferidas de que se lembravam, enquanto os goles de rum
se tornavam cada vez menos espaçados e com um efeito cada vez menor.
- Que tal The Yellow Rose of Texas? - sugeriu Rhett.
- Já cantamos essa duas vezes. Canta aquela canção de que o Papá tanto
gostava, Rhett. Lembro-me de ver os dois cambaleando pela rua em Atlanta, a berrar
como porcos na matança.
- Claro que parecíamos um coro de anjos - disse Rhett, imitando o sotaque
cerrado de Gerald O'Hara. - When first I saw Peggy, 't was on a market day... - Cantou
o primeiro verso de Peg in a Low-backed Car, depois admitiu que não sabia o resto. -
Deves saber a letra toda, Scarlett. Canta-me tu.
Ela tentou, mas não teve forças.
- Esqueci-me - disse, para disfarçar a fraqueza. Estava tão cansada... Se ao
menos pudesse encostar a cabeça ao calor de Rhett e dormir. Era maravilhoso sentir-
se nos seus braços.
A cabeça caiu-lhe. Estava pesada demais para a manter erguida.
Rhett abanou-a.
- Scarlett, ouves-me? Scarlett! Sinto que a corrente está mudando. Juro, estamos
muito perto da margem. Não podes desistir agora. Vá, minha querida, mostra-me um
pouco mais dessa tua coragem. Levanta a cabeça, minha linda, já está quase no fim.
*
- ... tanto frio...
-Maldita sejas por seres uma perdedora, Scarlett O'Hara! Devia ter deixado o
Sherman apanhar-te em Atlanta. Não valia a pena ter-te salvo.
As palavras foram lentamente registradas na sua consciência quase desaparecida
e produziram apenas uma leve reação de ira. Mas bastou. Os olhos dela abriram-se e a
cabeça ergueu-se para enfrentar o desafio de que tivera vagamente percepção.
- Respira fundo - ordenou Rhett. - Vamos mergulhar. - Pôs a sua grande mão
sobre o nariz e a boca de Scarlett, e mergulhou na água com o seu corpo que se
debatia fracamente apertado contra o dele. Vieram à superfície junto à parte exterior do
casco, perto de um renque de grandes ondas em rebentação.
- Estamos quase lá, meu amor - exclamou Rhett quase sem fôlego. Curvou um
braço em volta do pescoço de Scarlett e susteve a sua cabeça pesada enquanto ia
nadando com movimentos experientes através da rebentação e utilizava a força desta
para chegar à água menos funda.
Caía uma chuva fina, varrida quase horizontalmente pelo vento que soprava.
Ajoelhado na água orlada de espuma, já fora da rebentação, Rhett segurava o corpo
inerte de Scarlett junto ao peito, inclinando-se sobre ele. Uma onda ergueu-se ao longe
atrás dele e correu em direção à praia. Começou a curvar-se sobre si mesma, e a água
cinzenta manchada de espuma abateu ruidosamente, irrompendo em direção a terra e
indo bater nas costas de Rhett, rugindo sobre o seu corpo protetor.
Depois de a onda passar e a sua força se esgotar, pôs-se de pé, inseguro, e
cambaleou até à praia, apertando Scarlett contra si. Os pés descalços e pernas nuas
estavam cortados em dezenas de lugares pelos fragmentos de conchas que a onda
lançara contra ele, mas não se importou. Correu desajeitadamente através da areia
funda para uma abertura na linha de enormes dunas e continuou a subir até chegar a
uma zona protegida do vento. Aí, colocou suavemente o corpo de Scarlett na areia
macia.
A sua voz estava entrecortada ao dizer vezes sem conta o nome de Scarlett
enquanto tentava trazer de volta a vida à brancura gelada do corpo dela, esfregando
cada parte com ambas as mãos. O seu cabelo negro e brilhante, todo emaranhado,
estava caído em volta da cabeça e sobre os ombros, e as sobrancelhas e pestanas
negras eram duas manchas chocantes no rosto molhado e sem cor. Rhett bateu-lhe no
rosto suave e urgentemente, com a parte de trás dos dedos.
Quando os olhos dela se abriram, tinham uma cor que parecia tão forte como a
das esmeraldas. Rhett gritou num triunfo primitivo.
Os dedos de Scarlett tinham-se semicerrado sobre a solidez da areia endurecida
pela chuva.
- Terra - disse ela, começando a chorar num soluçar irregular.
Rhett pôs-lhe um braço sob os ombros e ergueu-a, protegendo-a com o seu corpo
curvado. Com a mão que tinha livre, tocou-lhe no cabelo, nas faces, na boca, no
queixo.
- Minha querida, minha vida. Pensei que te tinha perdido. Pensei que a tivesse
matado. Pensei... Oh, Scarlett, estás viva. Não chores, minha querida, já terminou tudo.
Estás salva. Está tudo bem. Tudo... - Beijou-lhe a testa, a garganta, as faces. A pele
pálida de Scarlett tornou-se rosada ao aquecer e ela virou a cabeça para corresponder
aos beijos dele.
E não havia frio, chuva, fraqueza - apenas os lábios de Rhett nos seus, no seu
corpo, o calor das suas mãos. E a força que ela sentia sob os dedos ao agarrar-lhe os
ombros. E o bater do seu coração na garganta sob os lábios dele, o bater forte do
coração dele sob as palmas das suas mãos quando ela enovelava os dedos nos
espessos pêlos encaracolados do seu peito.
"Sim! Lembro-me, não foi um sonho. Sim, este é o escuro turbilhão que me atrai e
exclui o resto do mundo e me torna viva, tão viva, e livre, a rodopiar até ao coração do
sol."
- Sim! - exclamou repetidas vezes, indo ao encontro da paixão de Rhett com a
sua própria paixão, as suas exigências iguais às dele. Até que, no encantamento
rodopiante, em espiral, deixou de haver palavras ou pensamentos, apenas uma união
para lá do espírito, para lá do tempo, para lá do mundo.
32
"Ele me ama! Que idiota que fui por duvidar do que sabia." Os lábios inchados de
Scarlett curvaram-se num sorriso indolente e saciado e abriu lentamente os olhos.
Rhett estava sentado ao seu lado. Tinha os braços em volta dos joelhos e o rosto
escondido na concavidade que estes formavam.
Scarlett espreguiçou-se languidamente. Sentiu pela primeira vez a areia áspera
contra a pele e reparou onde estava. "Ora, está chovendo muito. Arriscamo-nos a
apanhar alguma doença. Temos que encontrar abrigo antes de voltarmos a fazer
amor." As covinhas nas suas faces estremeceram enquanto abafava uma risadinha.
"Talvez não; o que é certo é que nem demos pelo mau tempo."
Estendeu a mão e passou as unhas ao longo da espinha de Rhett.
Ele esquivou-se repentinamente, como se ela o tivesse queimado, virando-se
bruscamente para olhar para ela e depois pondo-se de pé num salto. Ela não
conseguiu decifrar a sua expressão.
- Não te quis acordar - disse ele. - Tenta descansar um pouco mais, se
conseguires. Vou procurar um local para nos secarmos e fazer uma fogueira. Há
cabanas em todas estas ilhas.
- Vou contigo - disse Scarlett, esforçando-se por se pôr de pé. A suéter de Rhett
tapava-lhe as pernas e ainda tinha a dela vestida. Sentia-se presa pelo peso de
estarem ensopadas.
- Não. Tu ficas aqui. - Rhett afastou-se rapidamente, subindo as dunas íngremes.
Scarlett ficou de boca aberta, sem acreditar muito bem no que via.
- Rhett! Não podes me abandonar. Não deixarei.
Mas ele continuou a subir. Ela apenas via as suas costas largas com a camisa
molhada colada a elas.
Ao chegar ao topo da duna, ele parou. Virou a cabeça lentamente, de um lado
para o outro. Depois, os seus ombros curvados endireitaram-se. Virou-se e deslizou
imprudentemente pela face íngreme.
- Há ali uma casinha. Sei onde estamos. Levanta-te. - Rhett estendeu a mão para
ajudar Scarlett a levantar-se. Ela agarrou-a ansiosamente.
As casas que alguns dos habitantes de Charleston tinham construído nas ilhas
mais próximas destinavam-se a captar a brisa fresca do mar durante os dias úmidos do
longo Verão do Sul. Eram refúgios para a formalidade da cidade, pouco mais que
barracas, sem adornos, com varandas sombrias, revestidas com ripas de madeira,
empoleiradas em estacas tratadas com creolina para ficarem acima das areias
escaldantes do Verão. Sob a chuva fria e fustigada pelo vento, o abrigo que Rhett
encontrara parecia em ruínas e incapaz de se agüentar naquele vento ciclônico. Mas
ele sabia que aquelas casas das ilhas estavam ali há gerações e tinham lareira na
cozinha onde as refeições eram preparadas. Exatamente o tipo de abrigo necessário a
sobreviventes de um naufrágio.
Rhett arrombou a porta da casa de madeira com um único pontapé. Scarlett
entrou atrás dele. Por que estava ele tão calado? Mal lhe dirigira palavra, mesmo
enquanto a levara ao colo para atravessar uma zona de arbustos baixos no sopé das
dunas. "Quero que ele fale", pensou Scarlett, "quero ouvir a voz dele a dizer quanto me
ama. Deus sabe quanto tempo ele me obrigou a esperar por isso."
Ele descobriu uma manta de retalhos num dos armários.
- Despe essa roupa molhada e embrulha-te nisto - disse, atirando-lhe a manta
para o colo. - Não demorarei nada a acender a lareira.
Scarlett deixou cair os culotes rasgados em cima da camisola ensopada e secou-
se com a manta. Era macia e agradável. Embrulhou-se nela como um xale e voltou a
sentar-se na cadeira da cozinha. A manta fazia um envelope para os seus pés no chão.
Scarlett estava seca pela primeira vez em horas, mas começou a tremer.
Rhett foi buscar lenha seca numa caixa na varanda, junto à cozinha. Daí a
minutos, um pequeno lume ardia na grande lareira. Quase de imediato, alastrou à
pirâmide de achas e uma onda de chamas alaranjadas irrompeu a crepitar. Iluminou o
seu rosto sombrio.
Scarlett atravessou a sala coxeando para se aquecer ao lume.
- Por que não despes também essa roupa molhada, Rhett? Dou-te a colcha para
te secares; é uma ótima sensação - disse, baixando os olhos como se tivesse ficado
embaraçada com a sua ousadia. As pestanas espessas esvoaçaram-lhe nas faces.
Rhett não respondeu.
- Voltarei a ficar ensopado quando sair - disse ele. - Estamos muito perto de Fort
Moultrie. Vou buscar ajuda. - Rhett dirigiu-se para a pequena despensa ao lado da
cozinha.
- Quero lá saber de Fort Moultrie! - Scarlett queria que ele deixasse de vasculhar
a despensa daquela forma. Como é que podia falar com ele, estando ele noutra
dependência?
Rhett apareceu com uma garrafa de uísque numa mão.
- As prateleiras estão praticamente vazias - disse com um breve sorriso -, mas há
aquilo de que precisamos. - Abriu um armário e tirou duas xícaras. - Estão
suficientemente limpas - disse. - Vamos tomar uma bebida. - Pousou as xícaras e a
garrafa em cima da mesa.
- Não quero uma bebida. Quero...
Ele interrompeu-a antes de ela lhe poder dizer o que queria.
- Preciso de uma bebida - disse. Encheu meia xícara, bebeu-a com um longo
trago e abanou a cabeça. - Não admira que tivessem deixado ficar isto; é uma
verdadeira porcaria. Mesmo assim... - e deitou mais uísque na xícara.
Scarlett observou-o com uma expressão de indulgência divertida. "Pobre querido,
como está nervoso." Quando falou, a sua voz estava carregada de terna paciência.
- Não é preciso estares tão enervado, Rhett. Não me comprometeste, nem nada
de semelhante. Somos duas pessoas casadas que se amam, nada mais.
Rhett olhou para ela fixamente por cima da borda da xícara e depois a pôs
cuidadosamente em cima da mesa.
- Scarlett, o que aconteceu ali fora não teve nada a ver com amor. Foi uma
celebração da sobrevivência, nada mais. Acontece depois de cada batalha em tempo
de guerra. Os homens que não são mortos atiram-se para cima da primeira mulher que
vêem e provam que ainda estão vivos usando o seu corpo. Neste caso, tu também
usaste o meu, pois escapaste à morte por um triz. Não teve nada a ver com amor.
A rudeza das palavras dele cortou a respiração a Scarlett.
Mas depois lembrou-se da sua voz rouca ao ouvido, das palavras "minha
querida", "minha vida", "amo-te", repetidas dezenas de vezes. Por mais que Rhett
dissesse, ele amava-a. Ela sabia-o lá bem no fundo da sua alma, onde não havia
mentiras. "Continua a ter medo de que eu não o ame realmente! É por isso que não
admite o quanto me ama."
Scarlett começou a andar na direção dele.
- Podes dizer o que quiseres, Rhett, mas isso não irá alterar a verdade. Eu amo-te
e tu amas-me e fizemos amor para o provarmos um ao outro.
Rhett bebeu o uísque. Depois riu com rudeza.
- Nunca pensei que fosses uma idiotazinha romântica, Scarlett. Decepcionas-me.
Antes tinhas senso nessa cabeça dura. Uma cópula apressada não deve ser nunca
confundida com amor. Embora Deus saiba que acontece com freqüência suficiente
para encher as igrejas com cerimônias de casamento.
Scarlett continuou a andar.
- Podes falar até ficares roxo, mas isso não alterará nada. - Levou a mão à cara e
limpou as lágrimas que lhe caíam dos olhos. Estava muito perto dele. Sentia o cheiro
de sal na sua pele, o uísque no seu hálito. - Tu amas-me - soluçou ela -, amas mesmo,
mesmo. - A manta caiu no chão quando ela a largou para estender as mãos a Rhett. -
Abraça-me e diz-me que não me amas e eu acreditarei.
As mãos de Rhett agarraram-lhe bruscamente na cabeça e ele beijou-a com uma
força possessiva, machucando-a. Os braços de Scarlett envolveram-lhe o pescoço,
enquanto as mão dele lhe acariciavam a garganta e os ombros, e ela entregou-se com
abandono.
Mas os dedos de Rhett fecharam-se subitamente sobre os seus pulsos,
afastando-lhe os braços, afastando-a dele, e a sua boca deixou de procurar a dela e o
seu corpo afastou-se do dela.
- Porquê? - perguntou ela. - Tu desejas-me.
Ele largou-a, largando-lhe os pulsos, tropeçando para trás na primeira ação
descontrolada que ela o vira ter.
- Sim, por Cristo! Desejo-te e anseio por ti. És um veneno no meu sangue,
Scarlett, uma doença na minha alma. Conheci homens com tal desejo de ópio que era
como o meu desejo por ti. Eu sei o que acontece a um viciado. Torna-se escravo do
seu desejo e acaba por ser destruído. Isso quase aconteceu a mim, mas eu escapei.
Não voltarei a correr esse risco. Não me destruirei por ti. - E saiu intempestivamente
pela porta para o temporal.
O vento uivava através da porta aberta, gelado contra o corpo nu de Scarlett.
Apanhou a manta do chão e envolveu-se nela. Dirigiu-se para a porta escancarada
fazendo frente ao vento, mas não conseguiu ver nada através da chuva. Precisou de
toda a sua força para fechar a porta. Estava com muito pouca força.
Ainda sentia os lábios quentes do beijo de Rhett. Mas o resto do corpo tremia.
Encolheu-se em frente à lareira, muito embrulhada na manta. Estava cansada, muito
cansada. Dormiria um pouco até Rhett voltar.
Caiu num sono tão profundo que era quase um estado de coma.
- Exaustão - disse o médico do exército que Rhett levou consigo de Fort Moultrie -
e exposição. É um milagre a sua mulher não ter morrido, Mr. Butler. Esperemos que
não perca o uso das pernas; por pouco a circulação não deixou de se fazer. Embrulhe-
a naqueles cobertores e vamos levá-la para o forte. - Rhett embrulhou rapidamente o
corpo inerte de Scarlett e levantou-a em seus braços.
- Passe-a aqui ao sargento. O senhor não está em muito melhores condições.
Os olhos de Scarlett abriram-se. O seu espírito confuso registrou as fardas azuis
à sua volta; depois, voltou a revirar os olhos. O médico fechou-lhe as pálpebras com
dedos experientes em socorros de guerra.
- É melhor nos apresarmos - disse. - Ela está perdendo s forças.
- Beba isto, querida. - Era uma voz de mulher, suave, e contudo autoritária, uma
voz que ela quase reconheceu. Scarlett abriu os lábios obedientemente. - Linda
menina, agora beba outro gole. Não, não quero ver mais nenhuma careta. Não sabe
que se fizer essas caretas pode ficar com a cara assim? E depois que é que faz? Uma
garota tão bonita que se torna feia... Assim é melhor. Agora, abra a boca. Mais. Vai
beber todo este leite quente e o remédio, nem que demore uma semana. Vá lá, meu
cordeirinho, vou pôr-lhe mais açúcar.
Não, não era a voz de Mammy. Era parecida, quase igual, mas não era ela.
Algumas lágrimas fracas escorreram dos cantos dos olhos fechados de Scarlett. Por
instantes, pensou que estava em casa, em Tara, com a Mammy cuidando dela. Forçou
os olhos a abrirem-se, a focar. A mulher negra inclinada sobre ela sorriu. O seu sorriso
era lindo. Compadecido. Sábio. Terno. Paciente. Obstinadamente autoritário. Scarlett
retribuiu-Ihe o sorriso.
- Ora pronto, não foi exatamente isso que eu lhes disse? Do que esta moça
precisa, disse eu, é de uma boa cama aquecida com tijolos, e um cataplasma de
mostarda no peito e a velha Rebekah a esfregar-lhe o frio para fora dos ossos, de um
bom copo de leite quente e uma conversa com Jesus para rematar a cura. Falei com
Jesus enquanto a esfregava e Ele trouxe-a de volta como eu sabia que traria. Senhor,
disse-Lhe eu, este não é um trabalho a sério como o de Lázaro, é apenas uma moça
que não se sente bem. Não será preciso mais que um minuto do Teu tempo eterno
para lançares o Teu olhar para aqui e trazê-la de volta.
"Foi o que Ele fez e vou agradecer-Lhe assim que a menina acabar de beber esse
leite. Vá lá, querida, pus-lhe mais duas colheres de açúcar. Beba-o todo. Não quer
deixar o Jesus à espera que a Rebekah lhe diga muito obrigada, pois não? Isso não cai
lá muito bem no Céu.
Scarlett engoliu. Depois deu grandes goles. O leite adoçado tinha um gosto
melhor que qualquer coisa que provara nas últimas semanas. Depois de o beber todo,
limpou a boca com as costas da mão para limpar os bigodes de leite.
- Estou morrendo de fome, Rebekah; posso comer alguma coisa?
A grande mulher negra assentiu.
- Só um instante - disse. Depois fechou os olhos e uniu as mãos numa prece. Os
seus lábios moveram-se silenciosamente e ela abanava o corpo para a frente e para
trás a dar graças numa conversa íntima com o seu Senhor.
Quando terminou, puxou a colcha e tapou os ombros de Scarlett, aconchegando-
a bem. Scarlett adormecera. O remédio no leite era láudano.
- Isto é ridículo - queixou-se Scarlett. - Posso muito bem andar. - Rebekah pôs-lhe
a mão pesadamente sobre o ombro e continuou a empurrar lentamente a cadeira de
rodas ao longo da estrada de cascas de ostra esmagadas. - Sinto-me idiota -
resmungou Scarlett, mas recostou-se na cadeira. A cabeça latejava-lhe com dores
fortes como facadas. A tempestade trouxera consigo o tempo adequado a Fevereiro.
O ar estava fresco e o vento que ainda soprava era frio. "Pelo menos Miss
Eleanor trouxe a minha capa azul", pensou. "Devo ter estado mesmo mal, para ela
permitir que eu use as peles que sempre achou serem tão ostentosas."
- Onde está o Rhett? Por que não é ele a levar-me para casa?
- Eu não deixei que voltasse a sair - disse Mrs. Butler num tom firme. - Mandei
chamar o nosso médico e disse ao Manigo para meter o Rhett na cama. Estava roxo de
frio.
Anne falou em voz baixa, junto ao ouvido de Scarlett.
- Miss Eleanor ficou alarmada quando a tempestade rebentou tão subitamente.
Fomos correndo do Lar à enseada de amarração, e quando nos disseram que o barco
não tinha regressado ela ficou aterrorizada. Duvido que se tenha sentado uma única
vez durante toda a tarde; não parava de andar de um lado para o outro na varanda a
olhar através da chuva.
"Abrigada da chuva", pensou Scarlett impacientemente.
"É muito bonito a Anne mostrar-se tão preocupada com Miss Eleanor, mas não
era ela que estava meio morta de frio!"
- O meu filho disse-me que fez um milagre cuidando da sua mulher - disse Miss
Eleanor a Rebekah. - Não sei como lhe poderemos agradecer.
- Não fui eu, Missus, foi o Senhor. Falei com Jesus por ela, a pobre coitadinha
que não parava de tremer. Disse-Lhe, não é como o Lázaro, Senhor...
Enquanto Rebekah repetia a sua história a Mrs. Butler, Anne respondeu às
perguntas de Scarlett sobre Rhett. Ele tinha esperado até o médico dizer que Scarlett
estava fora de perigo, depois apanhara a barca para Charleston, para ir descansar a
mãe, pois sabia como ela devia estar preocupada.
- Tivemos todos um choque quando vimos um soldado ianque entrar pelo portão.
- Anne riu. - Ele tinha pedido emprestada roupa seca ao sargento.
Scarlett recusou-se a sair da barca de cadeira de rodas. Insistiu que era
perfeitamente capaz de ir a pé até a casa e foi a pé que ela foi, caminhando como se
não tivesse acontecido nada.
Mas quando chegaram estava cansada, tão cansada, que aceitou a ajuda de
Anne para subir as escadas. E depois de comer uma sopa de feijão bem quente e
bolinhos de milho, já na cama, caiu num sono profundo.
Desta vez não teve pesadelos. Estava na cama que lhe era familiar, com o luxo
de ter lençóis de linho e colchão de penas, e sabia que Rhett se encontrava ali bem
perto. Dormiu um sono reparador de catorze horas.
Viu as flores assim que acordou. Rosas de estufa. Havia um grande sobrescrito
encostado à jarra. Scarlett agarrou-o avidamente.
A sua caligrafia ousada e livre era de um negro marcante sobre o papel bege.
Scarlett tocou-lhe com ternura antes de começar a ler.
"Não há nada que eu possa dizer sobre o que aconteceu ontem, a não ser que
estou profundamente envergonhado e que lamento ter sido o causador de tanto
sofrimento e perigo para ti."
Scarlett contorceu-se de prazer.
"A tua coragem e ânimo foram verdadeiramente heróicos e te olharei sempre com
admiração e respeito.
Lamento amargamente tudo o que ocorreu depois de escaparmos à longa
provação. Disse-te coisas que nenhum homem deve dizer a uma mulher e as minhas
ações foram repreensíveis.
Não posso, contudo, negar a verdade de nada que disse. Não devo voltar a ver-te
e não o farei.
Segundo o nosso acordo, tens o direito de ficar em Charleston, na casa da minha
mãe, até Abril. Para ser franco, tenho esperança de que não o faças, pois não visitarei
nem a casa da cidade, nem Dunmore Landing, até receber a informação de que
regressaste a Atlanta. Não conseguirás encontrar-me, Scarlett. Não tentes.
O montante que te prometi será imediatamente transferido em teu nome ao
cuidado do teu tio Henry Hamilton.
Peço-te que aceites as minhas mais sinceras desculpas por tudo relativo à nossa
vida juntos. Não era para ser assim. Desejo-te um futuro mais feliz.
Rhett"
Scarlett olhou fixamente para a carta, a princípio chocada demais para se sentir
magoada. Depois, zangada demais.
Por fim, agarrou-a com ambas as mãos e rasgou lentamente o papel grosso em
pedacinhos, falando enquanto destruía as palavras negras e pesadas.
- Não, desta vez não consegues, Rhett Butler. Fugiste de mim daquela vez em
Atlanta, depois de fazeres amor comigo. E eu fiquei lá, perdida de amor, à espera que
voltasses. Bom, agora sei muito mais do que sabia naquela altura. Sei que não
consegues tirar-me da cabeça, por mais que tentes. Não podes viver sem mim.
Nenhum homem pode fazer amor com uma mulher como tu fizeste amor comigo e
nunca mais a ver. Tu voltarás, exatamente como voltaste antes. Mas não vais
encontrar-me à tua espera. Vais ter que me encontrar. Onde quer que eu esteja.
Ouviu o sino de Saint Michael a bater as horas... seis... sete... oito... nove... dez.
Tinha ido todos os domingos à Missa das dez. Naquele domingo não iria. Tinha coisas
mais importantes a fazer.
Deslizou da cama e puxou o cordão da campainha. "É melhor que a Pansy
apareça depressa. Quero ter as malas feitas e estar na estação a tempo de apanhar o
trem para Augusta. Irei para casa, verificarei se o tio Henry tem o meu dinheiro e
começarei imediatamente o trabalho em Tara."
"...Mas ainda não tenho Tara."
- Bom dia, Miss Scarlett. É tão bom vê-la com tão bom aspecto depois do que
aconteceu...
- Pára de tagarelar e vai buscar as minhas malas. - Scarlett fez uma pausa. -Vou
a Savannah. É o aniversário do meu avô.
Encontraria as tias na estação. O trem partia para Savannah às dez para o meio-
dia. E no dia seguinte iria falar com a Madre Superiora e a obrigaria a falar com o
bispo. Não adiantava voltar para Atlanta sem levar consigo a escritura de Tara.
- Não quero esse vestido horrível - disse a Pansy. - Tira aqueles que trouxe
quando vim para cá. Vestirei o que quiser. Acabou-se a minha vontade de agradar.
- Estava intrigada com toda esta confusão - disse Rosemary, olhando para os
elegantes vestidos de Scarlett com curiosidade. - Também vais a algum lado? A mamã
disse que provavelmente dormirias durante todo o dia.
- Onde está Miss Eleanor? Quero despedir-me dela.
- Já foi para a igreja. Por que não lhe escreves um bilhete? Ou então, posso dar-
lhe eu o recado.
Scarlett olhou para o relógio. Não tinha muito tempo. O trem já estava à espera.
Correu para a biblioteca para ir buscar papel e caneta. Que é que diria?
- O seu trem está à espera, Missus Rhett - disse Manigo.
Scarlett rabiscou algumas frases, dizendo que ia ao aniversário do avô e que
lamentava não ter podido falar com Miss Eleanor antes de partir. "Rhett lhe explicará
tudo", acrescentou. "Gosto muito de ti."
- Miss Scarlett... - chamou Pansy, nervosa. Scarlett dobrou o bilhete e selou-o.
- Por favor dá isto à tua mãe - disse a Rosemary. - Tenho que ir. Adeus.
- Adeus, Scarlett - disse a irmã de Rhett. Ficou à porta vendo Scarlett, a criada e a
sua bagagem descerem a rua.
Rhett não tinha se organizado tão bem quando partira muito tarde na noite
anterior. Ela tinha-lhe implorado para não ir, pois não parecia estar nada bem. Mas ele
tinha-lhe dado um beijo de despedida e partido a pé, noite adentro. Não era difícil de
imaginar que de alguma forma Scarlett o estava obrigando a partir.
Com gestos lentos e deliberados, Rosemary acendeu um fósforo e queimou o
bilhete de Scarlett.
- Já vai tarde - disse em voz alta.
III
Vida Nova
33
Scarlett bateu palmas de contentamento quando o trem parou à porta da casa do
avô Robillard. Era cor-de-rosa, exatamente como Miss Eleanor tinha dito.
"E pensar que não reparei nisso quando estive aqui das outras vezes! Bom, não
importa, já foi há tanto tempo; o que conta é agora."
Subiu apressadamente um dos braços curvos das escadas com corrimão duplo
de ferro forjado e entrou pela porta aberta. As tias e Pansy tratariam da bagagem;
estava morta de curiosidade por ver o interior da casa.
Sim, era tudo cor-de-rosa - cor-de-rosa, branco e dourado. As paredes eram cor-
de-rosa, como os estofados das cadeiras e as cortinas. Com colunas e madeiramentos
interiores brancos, todos rematados a dourado brilhante. Tinha tudo um ar perfeito,
sem a tinta estar estalando e os tecidos puídos como na maioria das casas em
Charleston e Atlanta. Que lugar perfeito para estar quando Rhett fosse à sua procura.
Veria que a sua família era tão importante e impressionante como a dele.
E rica, também. Os seus olhos moveram-se rapidamente, calculando o valor das
mobílias meticulosamente conservadas, que via através da porta aberta que dava para
a sala de estar. Ora, poderia ter pintado todas as paredes de Tara, de dentro e de fora,
com o que devia ter custado dourar os cantos do teto.
"Velho avarento! Vovô nunca mandou um centavo para me ajudar depois da
Guerra, e também não faz nada pelas tias."
Scarlett preparou-se para a batalha. As tias tinham terror do pai, mas ela não. A
terrível solidão que sentira em Atlanta tinha-a tornado tímida, apreensiva e ansiosa por
agradar em Charleston. Agora tinha voltado a tomar a vida nas suas próprias mãos e
sentia-se vibrante e forte. Agora não havia homem ou animal que a incomodasse. Rhett
amava-a e ela era rainha do mundo.
Altiva, tirou o chapéu e a capa de peles e deixou-os cair em cima de uma mesa
de tampo de mármore no átrio. Depois começou a tirar as luvas verdes de pele. Sentia
as tias a olharem-na fixamente. Já estavam fartas de o fazer. Mas Scarlett estava muito
satisfeita por ter vestido o seu vestido de viagem de xadrez verde e marrom em vez
dos vestidos modestos que tinha usado em Charleston. Afofou o laçarote de tafetá
verde-escuro que tanto fazia brilhar os seus olhos. Depois de pôr as luvas junto do
chapéu e da capa, apontou e disse:
- Pansy, leva estas coisas lá para cima e as põe no quarto mais bonito que
encontrares. Deixa de te esconder pelos cantos dessa maneira; ninguém vai te morder.
- Scarlett, não podes...
- Tens que esperar ... - As tias estavam torcendo as mãos.
- Se o avô é tão mau que nem sequer nos vem esperar, temos que nos
desenvencilhar sozinhas. Caramba, tia Eulalie! A tia foi criada aqui, a tia e a tia Pauline;
não conseguem ficar à vontade?
As palavras e os modos de Scarlett eram efetivamente ousados, mas quando
uma voz de baixo gritou "Jerome!" do fundo da casa, sentiu as palmas das mãos
ficarem úmidas. O avô, lembrou-se subitamente, tinha um olhar que trespassava uma
pessoa e fazia que se desejasse estar em qualquer outro local, menos à sua frente.
O imponente criado negro que lhe abrira a porta indicou com um gesto a Scarlett
e às tias a porta aberta ao fundo do átrio. Scarlett deixou Eulalie e Pauline entrarem
primeiro. O quarto era uma dependência com teto extremamente alto, que tinha sido
uma espaçosa sala de estar. Estava cheio de móveis, todos os sofás e cadeiras e
mesas que havia na sala de estar, além de uma maciça cama de dossel com águias
douradas no topo dos postes. Num canto do quarto havia uma bandeira da França e
um manequim de alfaiate, sem cabeça, com o uniforme de dragonas douradas e cheio
de medalhas, que Pierre tinha usado quando jovem e oficial do exército de Napoleão.
O velho Pierre Robillard estava na cama, sentado muito direito contra uma massa de
enormes almofadas, olhando ferozmente para as visitantes.
"Ora, encolheu tanto que quase desapareceu. Era um velho tão grande, e agora
está praticamente perdido naquela cama grande, reduzido a pele e osso."
- Olá, avô - disse Scarlett. - Vim vê-lo no seu aniversário. Sou Scarlett, a filha de
Ellen.
- Não perdi a memória - disse o velho. A sua voz forte contradizia o seu corpo
frágil. - Mas aparentemente a tua memória é que te falha. Nesta casa, os jovens não
falam, a menos que lhes seja dirigida a palavra.
Scarlett mordeu a língua para ficar calada.
"Não sou uma criança para me comportar dessa forma, e devia estar grato por
alguém o vir ver. Não admira a mãe ter ficado tão contente por o pai a ter levado desta
casa!"
- Et vous, mês filies. Qu'est-ce que vous voulez cette fois? - rosnou Pierre
Robillard às filhas.
Eulalie e Pauline correram para junto da cama, falando as duas ao mesmo tempo.
"Santo Deus! Estão falando francês! Que diabo estou eu fazendo aqui?" Scarlett
sentou-se num sofá de brocado dourado, desejando estar noutro lugar - em qualquer
lugar - que não ali. "É melhor o Rhett vir buscar-me depressa, se não enlouqueço nesta
casa."
Lá fora estava já escurecendo e os cantos sombrios da sala eram misteriosos. O
soldado sem cabeça parecia prestes a mexer-se. Scarlett sentiu frio na espinha e disse
a si própria para não ser idiota. Mas ficou contente quando Jerome e uma mulher negra
possante entraram, trazendo um candeeiro. Enquanto a criada corria os cortinados,
Jerome acendeu os candeeiros a gás em cada parede. Pediu delicadamente a Scarlett
para se levantar, para poder ir atrás do sofá. Enquanto estava de pé, viu o olhar do avô
cravado nela e desviou os olhos. Deu por si a olhar para um grande retrato numa
moldura de talha dourada. Jerome acendeu um candeeiro, depois outro, e o retrato
pareceu vivo.
Era um retrato da avó. Scarlett reconheceu-a imediatamente pelo quadro que
havia em Tara. Mas aquele era muito diferente. O cabelo escuro de Solange Robillard
não estava apanhado em cima da cabeça, como no retrato de Tara. Caía-Ihe como
uma nuvem quente sobre os ombros e sobre os braços nus até o cotovelo, presos
apenas por um fio de pérolas cintilantes. O seu nariz fino e arrogante era igual, mas os
seus lábios tinham um leve sorriso, em vez de uma expressão de escárnio, e os olhos
escuros amendoados olhavam obliquamente para Scarlett com o mesmo ar de
intimidade risonha e magnética que desafiava e atraía todos os que a tinham
conhecido. Naquele quadro era mais nova, mas mesmo assim uma mulher, e não uma
garota. Os seios arredondados e provocantes que em Tara estavam seminus, ali
estavam cobertos por um fino vestido de seda branca. Coberta, mas visível através da
seda leve, um vislumbre de carne branca e de seios rosados. Scarlett sentiu-se corar.
"Ora, a avó Robillard nem parece uma dama", pensou, com a automática
desaprovação que tinha sido ensinada a sentir. Lembrou-se involuntariamente de si
própria nos braços de Rhett e do desejo selvagem das suas mãos. A avó devia ter
sentido o mesmo desejo, o mesmo êxtase, como se via nos seus olhos e no seu
sorriso. "Portanto, aquilo que eu senti não pode ser errado." Ou seria? Haveria alguma
mácula de despudor no seu sangue, herdada da mulher que lhe sorria do quadro?
Scarlett olhou fixamente para a mulher por cima dela na parede, fascinada.
- Scarlett - murmurou-lhe Pauline ao ouvido. - O père quer que nós vamos
embora. Diz-lhe boa noite baixinho e vem comigo.
Mas Rhett não chegou, e quando Scarlett saiu do banco que escolhera
cuidadosamente no jardim imaculadamente tratado por detrás da casa, sentia-se
gelada até os ossos. Tinha recusado a sugestão das tias de as acompanhar nessa
tarde ao serão musical para que tinham sido convidadas. Se este se assemelhasse às
maçantes reminiscências das velhotas que tinham visitado de manhã, morreria de
tédio. Mas o olhar malévolo do avô quando recebeu a família durante dez minutos,
antes do jantar, fez que mudasse de idéia. Qualquer coisa seria melhor que ficar
sozinha em casa com o avô Robillard.
Sim, disse a freira idosa que abriu a porta quando Scarlett tocou à campainha,
sim, a Madre Superiora de Charleston estava lá. Não, naquele momento não lhe podia
pedir que recebesse Mrs. Butler. Estava decorrendo uma reunião. Não, não sabia
quanto tempo ia durar, nem se a Madre Superiora poderia receber Mrs. Butler quando
a reunião acabasse. Talvez Mrs. Butler gostasse de ver as salas de aula; o convento
orgulhava-se muito da sua escola. Ou talvez se pudesse arranjar uma visita ao edifício
da nova catedral. Depois disso, se a reunião já tivesse terminado, talvez pudesse ser
entregue um recado à Madre Superiora.
Scarlett forçou-se a sorrir. "A última coisa na terra que eu quero é admirar um
grupo de crianças", pensou, zangada. "Ou ir ver uma igreja." Estava prestes a dizer
que voltaria mais tarde, quando as palavras da freira lhe deram uma idéia. Estavam
construindo uma catedral nova, não estavam? Isso custava dinheiro. Talvez a sua
oferta para comprar a parte de Carreen em Tara fosse considerada de uma forma mais
favorável ali do que tinha sido em Charleston, exatamente como Rhett tinha dito. Afinal
de contas, Tara era uma propriedade na Geórgia, provavelmente controlada pelo bispo
da Geórgia. E se ela se oferecesse para comprar o vitral para uma das janelas da nova
catedral como dote de Carreen? O custo seria muito superior ao que valia a parte de
Carreen em Tara e ela deixaria ficar bem claro que o vitral era uma troca, não uma
doação. O bispo daria ouvidos à força da razão e depois diria à Madre Superiora o que
devia fazer.
O sorriso de Scarlett tornou-se mais rasgado e caloroso. - Sentir-me-ia muito
honrada em ver a catedral, Irmã, se acha que não é incômodo demais.
Pansy ficou boquiaberta ao olhar para as altíssimas torres gêmeas da bela
catedral de traçado gótico. Os operários nos andaimes que rodeavam as torres quase
acabadas pareciam pequenos e ágeis, como esquilos vestidos de cores vivas em duas
árvores lado a lado. Mas Scarlett não tinha olhos para a cena lá no alto. A sua pulsação
acelerou-se ao ver a agitação organizada no solo, o barulho de pregar, serrar, e
especialmente ao sentir o cheiro familiar e resinoso da madeira acabada de cortar. "Oh,
como tinha saudades das serrarias e dos depósitos de madeira." Sentiu uma
impressão nas palmas das mãos, tal era a sua vontade de as passar pela madeira
limpa, de estar ocupada, de ter qualquer coisa que fazer, de agir, de gerir - em vez de
beber chá por xícaras delicadas com velhotas elegantes, mas sem graça.
Scarlett mal ouviu uma palavra das maravilhas descritivas explicadas pelo jovem
padre que a acompanhava. Nem sequer reparou nos olhares sub-reptícios de
admiração dos operários rudes que se afastavam do seu trabalho para dar passagem
ao padre e à sua acompanhante. Estava preocupada demais para ouvir ou reparar.
Que árvores tão direitas teriam dado aquela madeira? Era a melhor madeira de pinho
que alguma vez vira. Pensou onde seria a serraria, que tipo de serras teria, que tipo de
energia. Oh, se ela fosse homem! Poderia perguntar, poderia ir ver a serraria em vez
de aquela igreja. Scarlett raspou os pés num monte de aparas de madeira recém-
cortadas e inspirou o seu revigorante cheiro forte.
- Tenho que voltar para a escola para almoçar - disse o padre acontrafeito.
- Claro, Padre, estou pronta para ir. - Não estava, mas que é que ela podia dizer?
Scarlett seguiu-o pela porta da Catedral até o passeio.
- Com a sua licença, Padre. - Quem falava era um homem enorme de rosto
vermelhusco, com uma camisa vermelha muito suja de pó de cimento. O padre parecia
pequeno e pálido junto dele.
- Importa-se de dar a sua bênção à obra, Padre? O lintel da Capela do Sagrado
Coração foi colocado há menos de uma hora.
"Ora, parece o pai no que tinha de mais irlandês." Scarlett baixou a cabeça para a
bênção do Padre, à semelhança dos grupos de operários. Os olhos arderam-lhe com o
cheiro da madeira de pinho recém-cortada e com as lágrimas pelo pai, que afastou
rapidamente.
"Irei visitar os irmãos do pai", decidiu. "Não faz mal terem uns cem anos; ele
gostaria que eu ao menos os fosse cumprimentar."
Voltou com o padre para o convento e recebeu nova recusa plácida da freira
idosa quando pediu para falar com a Madre Superiora.
Scarlett controlou o seu mau gênio, mas os seus olhos estavam perigosamente
brilhantes.
- Diga-lhe que voltarei aqui esta tarde - disse.
Enquanto o portão de ferro alto se fechava atrás de si,
Scarlett ouviu os sinos da igreja a alguns quarteirões de distância.
- Ora bolas! - exclamou. Ia chegar atrasada para o almoço.
34
Scarlett sentiu o cheiro de galinha assada assim que abriu a porta da grande casa
cor-de-rosa. - Leva estas coisas - disse a Pansy, e tirou a capa, o chapéu e as luvas a
uma velocidade recorde. Estava fomeada.
Quando entrou na sala de jantar, Eulalie olhou para ela com os seus enormes
olhos pesarosos.
- O père quer falar contigo, Scarlett.
- Não pode esperar até depois do almoço? Estou a morrendo de fome.
- Ele disse "assim que ela chegar".
Scarlett tirou do cesto do pão um pãozinho fumegante e deu-Ihe uma dentada
irada enquanto dava meia volta. Acabou de o comer enquanto marchava para o quarto
do avô.
O velhote olhou para ela com uma expressão carrancuda por cima da bandeja
que tinha pousada no colo na grande cama. No seu prato, reparou Scarlett, havia
apenas purê de batata e um monte de cenouras com um ar empapado.
"Santo Deus! Não admira que tenha um ar tão feroz. As batatas nem sequer têm
manteiga. Mesmo que não tenha um único dente, podiam alimentá-lo melhor do que
isso."
- Não tolero desrespeito pelo horário da minha casa - disse o velho.
- Desculpe, vovô.
- Foi a disciplina que tornou grandes os exércitos do imperador; sem disciplina,
apenas há caos.
A voz era profunda, forte, temível. Mas Scarlett viu os ossos salientes sob a
camisa de noite de linho grosso e não sentiu medo.
- Já pedi desculpa. Agora posso ir? Tenho fome.
- Não seja impertinente, jovem.
- Ter fome não é impertinência nenhuma, avô. Só porque não quer almoçar, isso
não significa que os outros não almocem.
Pierre Robillard empurrou a bandeja com um gesto zangado.
- Papas! - rosnou. - Nem para porcos serve.
Scarlett começou a esgueirar-se para a porta.
- Ainda não lhe dei licença para sair, Miss.
Ela sentiu o estômago fazer barulho. Aquela hora já os pãezinhos estariam frios, e
talvez até já não houvesse nenhuma galinha, sendo o apetite da tia Pauline como era.
- Pelo amor de Deus, vovô, não sou um dos seus soldados! E não tenho medo de
ti como as minhas tias têm. Que pensa que me pode fazer? Abater-me a tiro por
deserção? Se quer morrer de fome, o problema é seu. Eu tenho fome e vou comer o
que ainda restar do almoço. - Já ia passar pela porta quando um estranho barulho de
sufocação a fez voltar para trás. "Meu Deus, será que fiz com que tivesse uma
apoplexia? Não deixes que ele morra por minha causa."
Pierre Robillard estava rindo. Scarlett pôs as mãos nas ancas e lançou-lhe um
olhar irado. Tinha-lhe pregado um susto de morte.
Ele mandou-a embora com um aceno da mão ossuda de dedos compridos.
- Come - disse o velho -, come. - Depois recomeçou a rir.
- Que aconteceu? - perguntou Pauline.
- Será que ouvi mesmo gritos, Scarlett? - disse Eulalie.
Estavam sentadas à mesa, à espera da sobremesa. O almoço desaparecera.
- Não aconteceu nada - disse Scarlett entredentes. Pegou na pequena campainha
de prata que estava em cima da mesa e abanou-a furiosamente. Quando a gorda
criada negra apareceu com dois pratos pequenos de pudim, Scarlett dirigiu-se irada
para ela. Pôs as mãos nos ombros da mulher e virou-a.
- Agora vais marchar para a cozinha e é mesmo marchar, não é arrastares-te, e
vais-me trazer o meu almoço. Quente e bastante e depressa. Não quero saber quem
tencionava comê-lo, mas terá que se contentar com as asas. Quero uma coxa e um
peito e muito molho nas batatas e uma tigela de manteiga com pãezinhos bem
quentes. Mexe-te!
Sentou-se com um movimento altivo, pronta a enfrentar as tias, se dissessem
uma palavra que fosse. O silêncio encheu a sala até o seu almoço ser servido.
Pauline conteve-se até Scarlett ter comido metade da comida. Depois disse:
- Que te disse o père? - perguntou educadamente.
Scarlett limpou a boca com o guardanapo.
- Apenas tentou ser mandão comigo como é contigo e com a tia Lalie, e eu disse-
lhe o que pensava dele. E isso o fez rir.
As duas irmãs trocaram um olhar chocado. Scarlett sorriu e deitou mais molho
nas batatas que ainda tinha no prato. Que tontas eram as suas tias. Não sabiam o que
tinha que se fazer frente a mandões como o pai para não se ser pisado?
Nunca ocorreu a Scarlett que conseguia resistir a ser pisada por ela própria ser
mandona, ou que o riso do avô se deveu a ter reconhecido quanto ela se parecia com
ele.
Quando a sobremesa foi servida, as taças de tapioca tinham-se de alguma forma
tornado maiores. Eulalie sorriu à sobrinha com gratidão.
- A mana e eu estávamos dizendo como estamos contentes por te ter conosco na
nossa antiga casa, Scarlett. Não achas que Savannah é uma cidadezinha
encantadora? Viste a fonte em Chippewa Square? E o teatro? É quase tão antigo como
o de Charleston. Lembro-me como a mana e eu costumávamos olhar pela janela da
nossa sala de aula para vermos os atores entrarem e sairem. Não te lembras, mana?
Pauline lembrava-se. Também se lembrava de que Scarlett não lhes tinha dito
que ia sair de manhã, nem onde tinha estado. Quando Scarlett as informou de que
tinha ido à Catedral, Pauline levou o dedo aos lábios. Infelizmente, o père era
absolutamente contra o catolicisno. Era por qualquer coisa que tinha a ver com a
história francesa, não sabia bem o quê, mas zangava-se sempre muito com tudo o que
dizia respeito à igreja. Era essa a razão pela qual ela e Eulalie partiam sempre de
Charleston para Savannah depois da Missa e deixavam Savannah no sábado para
regressarem a Charleston. Naquele ano havia uma dificuldade acrescida; como a
Páscoa era muito cedo, estariam em Savannah na Quarta-Feira de Cinzas. É claro que
tinham que ir à Missa, e podiam sair de casa cedo e discretamente. Mas como fariam
para o pai não ver as manchas de cinzas nas suas testas ao regressarem a casa?
- Lavem a cara - disse Scarlett impacientemente, revelando assim a sua
ignorância e a sua recente conversão à religião. Deixou cair o guardanapo em cima da
mesa. - Tenho que ir - disse num tom decidido. - Vou... vou visitar os meus tios e tias
O'Hara. - Não queria que ninguém soubesse que estava tentando comprar a parte de
Tara pertencente ao convento. Em especial as tias, pois eram linguarudas demais. Ora,
podiam até escrever a Suellen. Sorriu docemente. - A que horas saímos de casa para a
Missa? - Preferiria isso à Madre Superiora. Não precisava dar a saber que tinha se
esquecido por completo da Quarta-Feira de Cinzas.
Que chato ter deixado o terço em Charleston. Bom, podia comprar um novo na
loja dos seus tios O'Hara. Se bem se lembrava, vendiam de tudo, desde chapéus a
arados.
- Miss Scarlett, quando vamos para casa em Atlanta? Não me sinto à vontade
com a gente na cozinha do seu avô. São muito velhos. E os meus sapatos estão todos
gastos de tanto andarmos. Quando é que vamos para casa onde tem as tuas lindas
carruagens?
- Pára de te queixar, Pansy. Iremos quando eu disser que vamos e para onde eu
disser que vamos. - A resposta de Scarlett não era verdadeiramente acalorada; estava
tentando lembrar-se onde era a loja dos tios, sem resultado. "Devo estar ficando
contagiada pela falta de memória dos velhos. A Pansy tem razão nessa parte. Todas
as pessoas que eu conheço em Savannah são velhas. O avô, a tia Eulalie, a tia Pauline
e todas as suas amigas. E os irmãos do pai ainda são mais velhos. Vou só dizer-lhes
olá e deixar que me dêem um horrível beijo de velho na cara e comprar o meu terço e
venho embora. Não há qualquer necessidade de visitar as mulheres. Se gostassem de
me ver, teriam feito qualquer coisa para manter o contato comigo durante todos estes
anos. Ora, eu até já podia estar morta e enterrada sem que elas tivessem sequer
mandado as condolências ao meu marido e filhos. Na minha opinião, é uma forma bem
desagradável de tratar um parente de sangue. Talvez decida não me dar ao trabalho
de ver nenhum deles. Não merecem uma visita minha depois da forma como me
desprezaram", pensou, ignorando as cartas de Savannah a que nunca respondera, até
finalmente deixar de as receber.
No seu espírito, já estava na disposição de remeter os irmãos e irmãs do pai ao
esquecimento permanente. Estava centrada em duas coisas: conseguir o controle de
Tara e levar a melhor com Rhett. Não importava serem dois objetivos contraditórios;
arranjaria forma de ter ambos. E exigiam que pensasse neles durante todo o tempo
que tinha. "Não vou andar por aí à procura da. velha loja poeirenta", decidiu Scarlett.
"Tenho que ver se apanho a Madre Superiora e o Bispo. Oh, muito eu gostaria de não
ter deixado o terço em Charleston." Olhou rapidamente para as montras das lojas do
outro lado de Broughton Street, o local das compras de Savannah. Decerto que ali
perto haveria uma joalheria.
As grandes letras a dourado que diziam O'HARA estendiam-se pela parede por
cima de cinco montras cintilantes quase diretamente em frente. "Ora bem, subiram na
vida desde a última vez que estive aqui", pensou Scarlett. "Não tem um ar nada
poeirento."
- Anda - disse a Pansy, metendo-se no meio do trânsito de carroças, trens e
carros de mão que enchia a rua movimentada.
A loja O'Hara cheirava a tinta recente e não a pó antigo. Um grande pano de
verde por cima do balcão, ao fundo, dava a razão em letras douradas: GRANDE
INAUGURAÇÃO. Scarlett olhou em volta com inveja. A loja tinha mais do dobro da sua
loja em Atlanta e via que o estoque era mais moderno e variado. Caixas com etiquetas
e peças de tecidos de cores vivas enchiam as prateleiras até o teto; barris de cereais e
farinha estavam alinhados no chão, perto de um grande fogão ao centro; e em cima do
balcão alto havia enormes frascos de doces. Não havia dúvida de que os tios estavam
subindo na vida. A loja que tinha visitado em 1861 não era na parte central e elegante
de Broughton Street, e era ainda mais escura e atulhada que a sua loja em Atlanta.
Seria interessante descobrir quanto aquela grande remodelação tinha custado aos tios.
Podia aproveitar algumas das idéias para o seu negócio. Scarlett dirigiu-se
rapidamente para o balcão.
- Gostaria de falar com Mr. O'Hara, se faz favor - disse ao homem alto, de avental,
que estava colocando óleo para candeeiro no jarro de vidro de um cliente.
- É só um instante, se tiver a bondade de esperar, minha senhora - disse o
homem, sem olhar para cima. A sua voz tinha um ligeiríssimo sotaque irlandês.
"Faz sentido", pensou Scarlett. "Contratar irlandeses para uma loja dirigida por
irlandeses." Olhou para as etiquetas das caixas nas prateleiras à sua frente enquanto o
homem embrulhava o recipiente com o petróleo em papel pardo e dava o troco. Ah, ela
também devia ter as luvas ordenadas daquela forma, por tamanhos, e não por cores.
As cores viam-se facilmente ao abrir a caixa, mas era uma difícil procurar o tamanho
certo numa caixa de luvas que eram todas pretas. Por que não tinha lembrado disso?
O homem atrás do balcão teve que voltar a falar antes de Scarlett o ouvir.
- Sou Mr. O'Hara - repetiu. - Em que lhe posso ser útil?
- Oh, não, afinal aquela não era a loja dos tios! "Devem ainda estar onde sempre
estiveram." Scarlett explicou apressadamente que se tinha enganado. Procurava um
Sr. O'Hara idoso, O Sr. Andrew ou o Sr. James.
- Pode-me indicar o caminho para a loja deles?
- Mas esta é a loja deles. Eu sou o sobrinho.
Oh... oh, Santo Deus. Então deve ser meu primo. - Sou Katie O'Hara, filha de
Gerald. De Atlanta - Scarlett estendeu as duas mãos. Um primo! Tinha um primo
grande e forte, que não era velho. Sentia-se como se tivesse recebido um presente
surpresa.
- Sou o Jamie - disse o primo, dando uma gargalhada, pegando-lhe nas mãos. -
Jamie O'Hara ao teu dispor, Scarlett O'Hara. E que prenda que és para um negociante
cansado. Bonita como uma surpresa caída do céu, como uma estrela cadente. Diz-me,
como é que estás aqui para a grande inauguração da nossa loja? Vem, vou arranjar-te
uma cadeira.
Scarlett esqueceu-se do terço que tencionava comprar. Também se esqueceu da
Madre Superiora. E de Pansy, que se sentou num banco baixo a um canto e
adormeceu imediatamente com a cabeça encostada a uma pilha de mantas de cavalo.
Jamie O'Hara murmurou qualquer coisa ao voltar de uma dependência nos fundos
com uma cadeira para Scarlett. Havia quatro clientes à espera de serem atendidos.
Durante a meia hora seguinte foram chegando outros, portanto não teve oportunidade
de dizer nada a Scarlett. De vez em quando olhava para ela com uma expressão
apologética, mas ela sorria e abanava a cabeça. Não era preciso desculpar-se. Estava
satisfeita apenas por ali estar, numa loja quente e bem organizada, que estava fazendo
bom negócio, com um primo recém-descoberto cuja competência e trato hábil com os
clientes era um encanto observar.
Por fim, houve um breve momento em que os únicos clientes eram uma mãe e as
suas três filhas, que escolhiam rendas de quatro caixas.
- Vou falar em torrente enquanto posso, Katie O'Hara - disse Jamie. - O tio James
vai ficar encantado por te ver. É velhote, mas ainda é muito ativo. Fica aqui todos os
dias até a hora do almoço. Talvez não saibas, mas a mulher dele morreu, Deus a tenha
em descanso, assim como a mulher do tio Andrew. O tio Andrew ficou inconsolável e
também morreu passado um mês. Deus queira que estejam todos em descanso nos
braços dos anjos. O tio James vive comigo e com a minha mulher e os meus filhos.
Não é longe daqui. Queres vir tomar chá conosco logo à tarde para os ver a todos?
Daniel, o meu rapaz, não tardará a chegar das entregas e irá contigo até minha casa.
Comemoramos hoje o aniversário da minha filha Patrícia. A família estará lá toda.
Scarlett disse que adoraria ir tomar chá. Depois tirou o chapéu e a capa e dirigiu-
se às senhoras que escolhiam rendas. Havia mais do que um O'Hara que sabia dirigir
uma loja.
Além disso, estava excitada demais para ficar sentada. O aniversário da filha do
primo! "Deixa-me ver, é minha prima em segundo grau." Embora Scarlett tivesse sido
criada sem a rede de várias gerações habitual no Sul, não deixava de ser sulista e
sabia o parentesco exato dos primos até ao décimo grau. Tinha estado encantada
observando Jamie a trabalhar, porque ele era a confirmação viva de tudo quanto
Gerald O'Hara lhe tinha dito. Tinha o cabelo escuro e encaracolado e os olhos azuis
dos O'Hara. E boca rasgada e nariz curto num rosto redondo e corado. Acima de tudo,
era um homem grande, alto e de costas largas, com pernas grossas como troncos de
árvore que aguentavam qualquer tempestade. Era uma figura impressionante.
- O teu pai é o nanico da ninhada - dissera-lhe Gerald sem vergonha de si, mas
com um enorme orgulho dos irmãos. - Oito filhos teve a minha mãe, e todos rapazes;
eu fui o último e o único a não sair tão grande como uma casa. - Scarlett pensou qual
dos irmãos seria o pai de Jamie. Não importava, saberia à hora do chá. Não, não seria
um chá, mas sim uma festa de aniversário! Da sua prima em segundo grau.
35
Scarlett olhou para o seu primo Jamie com uma curiosidade cuidadosamente
disfarçada. À luz do dia da rua, as rugas e os papos por baixo dos olhos não eram
disfarçados pela penumbra como no interior da loja. Era um homem de meia-idade,
com tendência para engordar e ficar flácido. Partiu do princípio de que, como era seu
primo, devia ser da sua idade. Quando o filho entrou, Scarlett ficou chocada por ser
apresentada a um homem feito e não a um rapaz que entregava encomendas. E ainda
por cima, um homem feito com cabelo ruivo. Levaria algum tempo a habituar-se.
O mesmo acontecia em relação a Jamie à luz do dia. Ele... ele não era um
cavalheiro. Scarlett não conseguia explicar como sabia aquilo, mas era-lhe
absolutamente evidente. Havia qualquer coisa de errado no seu vestuário; o traje era
azul-escuro, mas não suficientemente escuro, e estava apertado demais no peito e nos
ombros e largo demais noutros locais. Ela sabia que os trajes de Rhett eram resultado
de um trabalho de alfaiate excelente e, da sua parte, de um perfeccionismo exigente.
Não podia esperar que Jamie se vestisse como Rhett - nunca conhecera nenhum
homem que se vestisse como Rhett. Mas, mesmo assim, podia fazer alguma coisa - lá
o que os homens faziam - para não parecer tão... tão vulgar. Gerald O'Hara parecia
sempre um cavalheiro, por mais gasto ou amarrotado que o seu casaco estivesse. Não
ocorreu a Scarlett que a discreta autoridade e influência da mãe podiam ter contribuído
para a transformação do seu pai num cavalheiro proprietário rural. Scarlett só sabia que
tinha perdido grande parte da sua alegria de ter descoberto a existência do seu primo.
"Bom, só tenho que tomar uma xícara de chá e comer uma fatia de bolo e depois posso
ir embora." Sorriu encantadoramente a Jamie.
- Estou tão entusiasmada por conhecer a tua família que devo ter perdido o juízo,
Jamie. Devia ter trazido um presente pelo aniversário da tua filha.
- Não estou levando o melhor presente de todos ao entrar de braço dado contigo,
Katie Scarlett?
"Tem um certo brilho nos olhos, exatamente como o pai", disse Scarlett a si
própria. "E o sotaque trocista do pai. Se ao menos não usasse chapéu de coco.
Ninguém usa chapéu de coco."
- Vamos passar pela casa do teu avô - disse Jamie, trespassando de horror o
coração de Scarlett. E se as tias os vissem... e se ela tivesse que as apresentar?
Tinham sempre achado que a mãe tinha casado abaixo do seu nível social; Jamie seria
a melhor prova disso que alguma vez poderiam ter. Que é que ele estava dizendo?
Tinha que prestar atenção.
- ...deixar aqui a tua criada. Irá sentir-se deslocada junto de nós. Nós não temos
criados.
"Não têm criados? Todo mundo tem criados, todo mundo! Onde diabo viverão,
num andar?" Scarlett ergueu o queixo. "Este é o filho do irmão do meu pai, e o tio
James é irmão do pai. Não envergonharei a sua memória sendo covarde demais para
tomar uma xícara de chá com eles, nem que haja ratos correndo pelo chão."
- Pansy - disse -, quando passarmos por casa, tu entras. Eu não me demoro. Diz-
lhes... Depois vens me trazer em casa, não vens, Jamie? - Era suficientemente
corajosa para enfrentar um rato passando por cima do pé, mas não estava disposta a
arruinar a sua reputação para todo o sempre andando sozinha pelas ruas. Não era
coisa que uma senhora fizesse.
Para enorme alívio de Scarlett, passaram pela rua por detrás da casa do avô, não
pela praça na parte da frente, onde as tias gostavam de dar os seus "passeios
higiênicos", debaixo das árvores. Pansy foi de bom grado para casa, entrando pelo
portão do jardim, já bocejando, antecipando poder voltar a adormecer. Scarlett tentou
não se mostrar ansiosa. Tinha ouvido Jerome queixar-se às tias da degradação do
bairro. Alguns quarteirões mais adiante, as belas casas antigas tinham degenerado em
pensões ordinárias para os marinheiros que faziam a entrada e saída dos navios do
movimentado porto de Savannah. E para as ondas de imigrantes que chegavam em
alguns navios. A maioria, segundo o elegante e esnobe negro, eram irlandeses sujos.
James continuou a acompanhá-la, seguindo em frente, e ela suspirou de alívio.
Depois, passado pouco tempo, virou para a elegante e bem cuidada avenida chamada
South Broad e anunciou:
- Chegamos.
Estavam frente a uma casa de tijolo bastante grande.
- Que bonita! - disse Scarlett com toda a sinceridade.
Foi quase a última coisa que disse durante algum tempo.
Em vez de subir as escadas que davam para a grande porta de entrada, Jamie
abriu uma porta mais pequena ao nível da rua e levou-a para a cozinha onde uma onda
avassaladora de pessoas, todas elas de cabelo ruivo, se mostraram ruidosamente
acolhedoras quando ele gritou acima do burburinho de saudações:
- Esta é Scarlett O'Hara, a linda filha de Gerald O'Hara, que veio de Atlanta para
ver o tio James.
"São tantos", pensou Scarlett quando correram para ela. O riso de Jamie quando
a garota mais novinha e um rapazito se agarraram aos seus joelhos tornou impossível
ela compreender o que ele estava dizendo.
Depois, uma mulher forte, com cabelo ainda mais ruivo que o de qualquer um dos
outros, estendeu uma mão avermelhada a Scarlett.
- Seja bem-vinda a esta casa - disse num tom plácido. - Sou Maureen, mulher de
Jamie. Não ligue para estes selvagens; venha sentar-se junto do lume e beber uma
xícara de chá. - Agarrou firmemente o braço de Scarlett e levou-a para a sala.
- Calem-se, seus pagãos, não podem deixar o pai recuperar o fôlego? Depois vão
lavar a cara e cumprimentar Scarlett um a um. - Tirou a capa de pele dos ombros de
Scarlett. - Põe isto num lugar seguro, Mary Kate, senão o bebê ainda vai pensar que é
um gatinho ao qual pode puxar o rabo, de tão macia que é. - A garota mais crescida fez
uma breve vênia na direção de Scarlett e estendeu as suas mãos ansiosas para a
capa. Os olhos azuis estavam enormes de admiração. Scarlett sorriu-lhe; e para
Maureen, muito embora a mulher de Jamie a estivesse empurrando para uma cadeira
Windsor como se pensasse que Scarlett era um dos filhos, a quem podia dar ordens.
Num instante, Scarlett deu por si segurando numa mão a maior xícara de chá que
alguma vez vira, enquanto que com a outra apertava a mão a uma moça
espantosamente bela que murmurou: "Parece uma princesa" para a mãe e "Sou Helen"
para Scarlett.
- Devias tocar nas peles, Helen - disse Mary Kate numa voz importante.
- É a Helen que é a convidada, para estares te dirigindo a ela? - disse Maureen. -
É uma vergonha para uma mãe ter uma filha tão idiota. - A voz era calorosa, carregada
de afeição e riso reprimido.
As faces de Mary Kate ficaram marcadas pelo embaraço. Voltou a fazer uma
vênia e estendeu a mão.
- Prima Scarlett, peco-lhe perdão. Distraí-me olhando para a sua elegância. Sou
Mary Kate e tenho orgulho de ser prima de uma grande senhora.
Scarlett teve vontade de dizer que não era preciso pedir-lhe desculpa, mas não
teve oportunidade. Jamie tinha tirado o chapéu e o casaco do traje e desabotoara o
colete. Segurava debaixo do braço uma criança, um pequenito ruivo e rechonchudo
que guinchava enquanto se debatia, encantado com a brincadeira.
- E este demoniozinho é o Sean, que se chama John como um bom americano,
pois nasceu aqui mesmo em Savannah.
- Chamamos-lhe Jacky. Mostra que tens língua e diz olá à tua prima, Jacky.
- Olá! - gritou o rapazito, gritando de excitação quando o pai o pôs de cabeça para
baixo.
- Que se passa? - O barulho, à exceção dos guinchos de Jacky, cessou
imediatamente quando o tom agudo e forte cortou o pandemônio. Scarlett olhou para o
outro lado da cozinha e viu um velho alto que devia ser o seu tio James. A seu lado
estava uma garota bonita com cabelo escuro encaracolado.
Parecia alarmada e tímida.
- O Jacky acordou o tio James, que estava descansando - disse ela. - Será que se
machucou para estar gritando tanto e fazer com que o Jamie viesse cedo para casa?
- Nem perto - disse Maureen. Erguendo a voz, acrescentou: - Tem uma visita, tio
James. Veio especialmente para o ver. Jamie deixou o Daniel na loja para a trazer.
Venha para junto do fogo; o chá está pronto. Venha ver a Scarlett.
Scarlett levantou-se e sorriu.
- Olá, tio James, lembra-se de mim?
O velho olhou-a fixamente.
- Da última vez que te vi estavas de luto pelo teu marido. Já arranjaste outro?
O pensamento de Scarlett recuou velozmente no tempo. Santo Deus, o tio James
tinha razão. Tinha vindo a Savannah depois de o Wade nascer, quando estava de luto
por Charles Hamilton.
- Sim, já - disse. "E que acharias se eu te dissesse que arranjei dois maridos
desde então, meu velho intrometido?"
- Ótimo - declarou o tio. - Já há mulheres solteiras demais nesta casa.
A moça que estava ao seu lado deu um gritinho abafado, deu meia volta e saiu
correndo da sala.
- Tio James, não deve atormentá-la dessa maneira - disse Jamie severamente.
O velhote dirigiu-se para a lareira e esfregou as mãos uma na outra ao calor.
- Ela não devia ser tão chorona - disse o tio. - Os O'Haras não choram quando
têm problemas. Maureen, quero tomar o meu chá enquanto falo com a garota do
Gerald. - Sentou-se na cadeira ao lado de Scarlett. - Conta-me como foi o funeral.
Enterraste o teu pai em grande estilo? O meu irmão Andrew teve o melhor funeral que
esta cidade viu em muitos anos.
Scarlett viu mentalmente o pequeno grupo de acompanhantes em volta da
sepultura de Gerald em Tara. Eram tão poucos. Muitos dos que deviam estar lá tinham
morrido antes do pai, tinham morrido antes do seu tempo.
Scarlett fixou os seus olhos verdes nos olhos azuis desbotados do velhote.
- Teve uma carruagem funerária com lados de vidro e quatro cavalos pretos com
plumas pretas na cabeça, um lençol de flores no caixão e duzentos acompanhantes
que foram atrás da carruagem funerária nas suas carruagens. Está num túmulo de
mármore, não numa sepultura, e o túmulo tem a escultura de um anjo com dois metros
de altura em cima - A sua voz era áspera e fria. "Ora toma, velho", pensou, "e deixa o
pai em paz."
James esfregou as mãos secas.
- Deus tenha a sua alma em descanso - disse, num tom contente. - Eu sempre
disse que o Gerald era de todos nós o que tinha mais estilo; eu não te disse, Jamie? O
nanico da ninhada e o que mais depressa perdia a cabeça com um insulto. O Gerald
era um belo homem. Sabes como é que ele arranjou a plantação? Jogando pôquer
com o meu dinheiro, foi como foi. E não me ofereceu nem um cêntimo dos lucros. - O
riso de James era profundo e forte, o riso de um homem novo. Era cheio de vida e de
humor.
- Conte como ele saiu da Irlanda, tio James - disse Maureen, voltando a encher a
xícara do velhote. -Talvez a Scarlett nunca tenha ouvido essa história.
"Caramba! Será que vamos ter um velório?" Zangada, Scarlett mexeu-se na
cadeira.
- Já a ouvi dezenas de vezes - disse. Gerald O'Hara gostava de se gabar de ter
fugido da Irlanda com a cabeça a prêmio por ter morto um cobrador de rendas inglês
apenas com um murro. Todo mundo em Clayton County tinha ouvido essa história
dezenas de vezes e ninguém acreditava. Gerald era barulhento quando se zangava,
mas todos viam que por debaixo disso era brando.
Maureen sorriu.
- Um homem cheio de força, apesar de ser pequeno, foi o que sempre me
disseram. Um pai de quem uma mulher se pode orgulhar.
Scarlett sentiu a garganta entupida de lágrimas.
- Era isso mesmo - disse James. - Quando comemos o bolo de aniversário,
Maureen? E onde está a Patrícia?
Scarlett olhou em volta do círculo de rostos de cabelos ruivos. Não, tinha a
certeza de que não tinha ouvido o nome Patrícia. Talvez fosse a garota de cabelos
escuros, a que tinha fugido da sala.
- Está tratando da sua própria festa, tio James - disse Maureen. - Sabe como ela
é minuciosa. Vamos para o lado assim que o Stephen nos venha dizer que está pronta.
Stephen?
Patrícia? A casa ao lado?
Maureen viu as interrogações no rosto de Scarlett.
- O Jamie não lhe disse, Scarlett? Agora há aqui três famílias O'Hara. Ainda só
começou a conhecer os seus parentes, Scarlett.
"Nunca os conseguirei distinguir", pensou Scarlett, desesperada. Se ao menos
ficassem quietos num lugar!
Mas não havia a menor esperança disso. Patrícia ia dar a sua festa de aniversário
na sala de estar dupla da casa, com as portas de correr que havia entre ambas
completamente abertas. As crianças - e havia muitas - estavam jogando jogos que
exigiam muitas correrias e esconderijos e saltos por detrás de cadeiras e cortinados.
Os adultos corriam ocasionalmente atrás de uma que se tornara barulhenta demais, ou
baixavam-se rapidamente para apanhar uma das mais pequenas que tinha caído e
precisava ser reconfortada. Parecia não interessar de quem era a criança. Todos os
adultos faziam de pais de todas as crianças.
Scarlett sentiu-se grata pelo cabelo ruivo de Maureen. Todos os seus filhos - as
crianças que Scarlett conhecera na casa ao lado, mais a Patrícia, mais o Daniel, o filho
da loja, mais um outro rapaz crescido cujo nome ela não recordava - eram pelo menos
identificáveis. Os outros constituíam uma baralhada impossível.
O mesmo acontecia com os pais. Scarlett sabia que um dos homens se chamava
Gerald, mas qual? Eram todos homens grandes, com cabelo escuro encaracolado e
olhos azuis e sorrisos cativantes.
- E tudo muito confuso, não é? - disse uma voz ao seu lado. Era Maureen. - Não
se preocupe com isso, Scarlett, pois acabará por se orientar.
Scarlett sorriu e assentiu educadamente. Mas não tinha a menor intenção de se
"orientar". Ia pedir a Jamie que a acompanhasse para casa assim que pudesse. Havia
ali barulho demaiscom todos aqueles pirralhos à solta. A casa cor-de-rosa e sossegada
na praça parecia um refúgio. Pelo menos ali tinha as tias com quem conversar. Aqui
não podia dizer palavra a ninguém. Estavam todos ocupados demais correndo atrás
das crianças ou abraçando e beijando Patrícia. Perguntando-lhe pelo bebê, Santo
Deus! Como se não soubessem que a única coisa decente a fazer era fingir que não
percebiam que uma mulher estava grávida. Sentia-se uma estranha. Posta de lado.
Sem importância. Exatamente como em Atlanta. Exatamente como em Charleston. E
aqueles eram seus parentes, o que tornava as coisas mil vezes piores!
- Agora vamos cortar o bolo - disse Maureen, dando o braço a Scarlett. - Depois
haverá música.
Scarlett cerrou os dentes. "Santo Deus, já tive de aguentar um serão musical em
Savannah. Será que esta gente não pensa em mais nada?" Foi com Maureen para um
sofá de pelúcia vermelha e sentou-se na beirinha, muito direita.
Uma faca batendo contra um copo chamou a atenção de todos. Algo que se
assemelhava a silêncio recaiu sobre a multidão.
- Agradeço-lhes enquanto durar - disse Jamie. Agitou a faca ameaçadoramente
contra os risos. - Viemos comemorar o aniversário de Patrícia, muito embora só seja
para a semana. Hoje é terça-feira de Carnaval, uma hora melhor para festejar do que a
meio da Quaresma. - Voltou a ameaçar os risos. - E temos uma outra razão para
celebrar. Uma bela O'Hara que há muito andava perdida foi reencontrada. Ergo o meu
copo em nome de todos os O'Haras num brinde à prima Scarlett, dando-lhe as boas-
vindas aos nossos corações e aos nossos lares. - Jamie lançou a cabeça para trás e
despejou o conteúdo do copo pela garganta abaixo. - Vamos começar a festa! -
ordenou com um gesto largo. - Venha o violino!
Ouviu-se uma série de risadinhas vindas da porta e vozes abafadas pedindo
silêncio. Patrícia aproximou-se e foi se sentar ao lado de Scarlett. Depois, num dos
cantos, um violino começou a tocar. Helen, a linda filha de Jamie, entrou trazendo uma
travessa com empadinhas de carne fumegantes. Inclinou-se e mostrou-a a Patrícia e
Scarlett, levando-a depois com cuidado para a mesa redonda maciça no centro da sala
e pousando-a sobre a toalha de veludo que a cobria. Helen foi seguida por Mary Kate e
depois pela moça bonita que tinha acompanhado o tio James, depois a mais nova das
mulheres O'Hara. Todas mostraram a Scarlett e a Patrícia as travessas que traziam
antes de as juntar à comida que já estava em cima da mesa. Uma peça de carne
assada, um presunto salpicado de cravos-da-índia, um peru enorme. Depois Helen
voltou a aparecer com uma enorme taça com batatas fumegantes, seguida mais
rapidamente pelas outras com cenouras gratinadas, cebolas assadas, purê de batata
doce. A procissão continuou até a mesa estar cheia de comida e de petiscos de toda a
espécie. O violino - Scarlett viu que quem tocava era o Daniel da loja - tocou um
arpeggio floreado e Maureen entrou com um bolo em torre, enfeitado com enormes
rosas de açúcar cor-de-rosa vivo.
- Bolo de padeiro! - gritou Timothy.
Jamie pôs-se imediatamente atrás da mulher, erguendo os braços por cima da
cabeça. Trazia três garrafas de uísque em cada mão. O violino começou a tocar uma
música rápida e exuberante e todos riram e bateram as palmas. A encenação da
procissão era irresistível.
- Agora, Brian - disse Jamie. - Tu e o Billy. As rainhas do seu trono para a lareira.
- Antes de Scarlett perceber o que estava acontecendo, o sofá foi erguido e ela
segurou-se a Patrícia enquanto eram balançadas para a frente e para trás e
transportadas para perto das brasas incandescentes da lareira.
- Tio James! - ordenou Jamie, e o velho senhor foi levado, a rir, na sua cadeira de
espaldar, para o outro lado da lareira.
A moça que tinha acompanhado James começou a enxotar as crianças, como se
fossem galinhas, para a outra sala onde Mary Kate estendeu uma toalha de mesa no
chão para se sentarem à frente da segunda lareira.
Num espaço de tempo surpreendentemente curto, verificou-se a calma onde
outrora reinara o caos. Enquanto comiam e conversavam, Scarlet tentou "orientar-se"
em relação aos adultos.
Os dois filhos de Jamie eram tão parecidos que mal conseguia acreditar que
Daniel, que tinha vinte e um anos, era quase três anos mais velho que Brian. Enquanto
sorria a Brian e lhe dizia isso mesmo, ele corou como só um ruivo pode corar. O outro
único jovem começou a troçar dele impiedosamente, mas parou quando a moça de
faces rosadas que estava a seu lado pôs a mão sobre a dele e disse:
- Pára com isso, Gerald.
Então aquele era o Gerald. "O pai teria ficado tão contente por saber que aquele
rapaz bonito e grande tem o seu nome. Chamou Polly a moça e estão tão apaixonados
que devem ter casado há pouco tempo. E a Patrícia é tão mandona com aquele a
quem o Jamie chamou Billy que também devem ser marido e mulher."
Mas Scarlett não tinha tempo para tentar ouvir os nomes dos outros. Ao que
parecia, todo mundo queria falar com ela: e tudo o que ela dizia era causa de
exclamação, repetição, admiração. Deu por si a falar a Daniel e a Jamie da sua loja, a
Polly e a Patrícia da sua modista, ao tio James de como os ianques tinham incendiado
Tara. Falou sobretudo do seu negócio de madeiras e de como começara com uma
pequena serraria e tinha agora duas serrarias, depósitos de madeira e uma aldeia de
casas novas junto a Atlanta. Todos manifestaram ruidosamente a sua aprovação.
Finalmente Scarlett tinha encontrado pessoas que não achavam que falar de dinheiro
era tabu. Eram como ela, dispostos a trabalhar arduamente e determinados a ganhar
dinheiro com o seu trabalho. Ela já tinha ganho o dela e disseram-lhe que era
maravilhosa. Scarlett não conseguia imaginar por que tinha tido vontade de ir embora
daquela festa maravilhosa e voltar para o silêncio de morte da casa do avô.
- Se já acabaste de comer o bolo da tua irmã quase todo, importas-te de nos dar
alguma música? - disse Maureen quando Jamie abriu uma garrafa de uísque e
subitamente todos, à exceção do tio James, se tinham levantado e andavam de um
lado para o outro, ao que parecia numa rotina habitual. Daniel começou a tocar uma
música rápida e de notas agudas no violino e os outros gritaram as suas críticas,
enquanto as mulheres limpavam rapidamente a mesa e os homens afastavam os
móveis contra as paredes, deixando Scarlett e o tio sentados como se estivessem
numa ilha. Jamie deu um copo de uísque a James e aguardou, semi-inclinado, a
opinião do velhote.
- Serve - foi a decisão.
Jamie riu.
- Espero que sim, velhote, pois não temos outro.
Scarlett tentou chamar a atenção de Jamie com o olhar, falhou, e por fim chamou-
o. Tinha que ir embora. Estavam todos colocando as cadeiras num círculo à frente da
lareira e as crianças mais pequenas revezavam-se sentando no chão junto aos adultos.
Era evidente que estavam se preparando para o serão musical e seria uma terrível má-
criação ela levantar-se e ir embora.
Jamie passou por cima de um garotinho para chegar próximo à Scarlett.
- Ora aqui está - disse ele. - Para seu horror, Jamie deu-Ihe um copo com vários
dedos de uísque. Que tipo de pessoa pensaria que ela era? Ela não bebia nada mais
forte que chá, a não ser champanhe ou ponche numa festa, ou talvez um cálice muito
pequeno de xerez. Ele não podia ter conhecimento do brande que ela em tempos
costumava beber. Ora, estava a insultá-la! Não, não faria um coisa dessas, devia ser
uma brincadeira. Forçou-se a dar uma risada seca.
- É hora de ir embora, Jamie. Diverti-me muito, mas está ficando tarde...
- Não vais embora quando a festa está começando, Scarlett? - Jamie virou-se
para o filho. - Daniel, estás afugentando a tua prima recém-encontrada com todo esse
barulho. Toca-nos uma canção, não esses miados de gatos lutando.
Scarlett tentou falar, mas as suas palavras foram abafadas por gritos de "toca
como deve ser, Daniel" e "toca uma balada" e "uma escocesa, rapaz, queremos uma
escocesa".
Jamie sorriu abertamente.
- Não consigo te ouvir - gritou acima do barulho ensurdecedor. - Sou surdo como
uma porta para quem pede para ir embora.
Scarlett começou a ficar irritada. Quando Jamie voltou a oferecer o uísque, pôs-se
de pé, furiosa. Depois, antes de poder atirar o copo no chão, percebeu que Daniel tinha
começado a tocar. Era Peg in a Low-backed Car.
A música preferida do pai. Olhou para o rosto vermelhusco de irlandês de Jamie e
viu a imagem do pai. Oh, se ele pudesse ali estar, adoraria tudo aquilo. Scarlett sentou-
se. Abanou a cabeça à bebida que lhe era oferecida e fez um ligeiro sorriso para
Jamie. Estava quase chorando.
A música não permitia tristezas. O ritmo era contagiante, alegre demais, e tinham
todos começado a cantar e a bater as palmas. Involuntariamente, o pé de Scarlett
começou a bater o compasso sob a proteção das suas saias.
- Vá, Billy - disse Daniel, na realidade cantando ao ritmo. - Toca comigo.
Billy levantou o assento do vão de uma janela e tirou uma concertina. Os foles de
pele plissada abriram-se com um silvo. Depois, foi por detrás de Scarlett, levantou a
mão acima da sua cabeça e pegou algo brilhante que estava na prateleira por cima da
lareira.
- Vamos fazer música a sério, Stephen... - e atirou um tubo fino e cintilante de
metal ao homem moreno que estava em silêncio. Houve novo arco de prata pelo ar. - É
para ti, minha cara sogra... - e deixou cair algo no colo de Maureen.
Um rapazito bateu palmas animadamente.
- Os ossos! A prima Maureen vai tocar os ossos!
Scarlett ficou olhando, boquiaberta. Daniel tinha parado de tocar, e sem a música
voltou a sentir-se triste. Mas já não se queria ir embora. Aquela festa não tinha nada a
ver com o serão musical dos Telfair. Ali estavam todos à vontade, havia calor e riso. As
salas que tinham começado por estar tão bem arranjadas estavam agora
completamente desarrumadas, com os móveis afastados, as cadeiras de ambas as
salas numa espécie de semicírculo em volta da lareira. Maureen ergueu a mão com um
ruído e Scarlett viu que os "ossos" eram na realidade grossos pedaços de madeira lisa.
Jamie continuava a servir e a distribuir uísque. Ora, as mulheres também estão
bebendo! Não em segredo, envergonhadas. Estão divertindo-se tanto como os
homens. Também vou tomar uma bebida. Vou comemorar ter encontrado os O'Haras.
Quase gritou a Jamie, mas depois lembrou-se. "Não tardarei a ir para casa do avô. Não
posso beber. Alguém daria pelo cheiro. Não importa. Sinto-me tão quente por dentro
como se tivesse acabado de tomar uma bebida. Não preciso." Daniel passou o arco
pelas cordas do violino.
- The Maid Behind the Bar - disse. Todos riram.
Incluindo Scarlett, embora não soubesse porquê. Num instante, a grande sala
ecoou com a música irlandesa. A concertina de Billy ressoava vigorosamente, Brian
soprava no seu apito de metal, Stephen tocava o seu num contraponto vivo que se
entretecia na melodia de Brian. Jamie marcava o compasso com o pé, as crianças
batiam palmas, Scarlett batia palmas, todos batiam palmas, à exceção de Maureen.
Tinha erguido a mão com que segurava nos "ossos" e a batida forte em staccato
marcava um ritmo insistente que unia todo o resto. Mais depressa, exigiam os "ossos",
e os outros obedeciam. Os apitos soaram mais fortes, o violino tangia mais alto, a
concertina enfolava-se para os acompanhar. Meia dúzia de crianças levantaram-se e
começaram a saltar pelo chão no meio da sala. As mãos de Scarlett ficaram quentes
de bater tanto as palmas e os seus pés estavam mexendo-se como se quisesse saltar
com as crianças. Quando a música chegou ao fim, deixou-se cair para trás no sofá,
exausta.
- Vá lá, Matt, mostra a estes bebês como se dança - exclamou Maureen, batendo
tentadoramente os "ossos". O homem mais velho que estava perto de Scarlett
levantou-se.
- Deus nos ajude, espera um bocadinho - implorou Billy.
- Preciso descansar. Dê-nos uma canção, Katie. - E soltou algumas notas da
concertina.
Scarlett protestou. Não podia cantar ali. Não conhecia nenhuma canção
irlandesas a não ser Peg e a outra música preferida do pai, The Wearing o' the Green.
Mas depois percebeu: Billy não estava se referindo a ela. Uma mulher morena,
sem grande graça, com dentes grandes, estava dando o seu copo a Jamie e a pondo-
se de pé.
- There was a wild colonial boy - cantou num voz puríssima e doce. Antes de o
verso terminar, Daniel e Brian e Billy estavam a acompanhá-la. - Jack Duggan was his
name - cantava Katie. - He was born and raised in Ireland - e o apito de Stephen
entrou, uma oitava mais alta, com um tom de queixume prateado e arrebatador. -
...in a house called Castlemaine... - Começaram todos a cantar, à exceção de
Scarlett. Mas não se importou de não conhecer a letra. Continuava a fazer parte da
música. Estava rodeada de música. E quando a canção triste e corajosa terminou, viu
que todos os outros tinham lágrimas nos olhos como ela.
A seguir veio uma música alegre, começada por Jamie, que fez Scarlett rir e corar
simultaneamente quando percebeu o duplo sentido das palavras.
- Agora eu - disse Gerald. - Vou cantar Londonderry Air à minha doce Polly.
- Oh, Gerald! - Polly escondeu o rosto corado com as mãos.
Brian tocou as primeiras notas. Depois Gerald começou a cantar e Scarlett reteve
a respiração. Já tinha ouvido falar do tenor irlandês, mas não estava preparada para a
realidade. E aquela voz como a de um anjo vinha do chará do seu pai. O coração
jovem e apaixonado de Gerald estava exposto para todos verem no seu rosto e para
todos ouvirem nas notas altas e puras vindas da sua garganta forte e vibrante. A
própria Scarlett tinha um nó na garganta, tão bela era a voz, e sentiu uma profunda
ânsia de conhecer um amor como aquele, tão ingênuo e aberto. Rhett! - gritou o seu
coração, embora o espírito, pela sua natureza complexa e escura, troçasse da idéia de
poder ser tão simples e direto.
No final da canção, Polly lançou os braços em volta do pescoço de Gerald e
escondeu o rosto no seu ombro. Maureen ergueu os "ossos" acima do ombro.
- Agora uma irlandesa - anunciou firmemente. - Tenho os dedos mexendo. -
Daniel riu e começou a tocar.
Scarlett já tinha dançado a Virgínia Reel cem ou mais vezes, mas nunca tinha
visto dançar como ali se dançou na festa de aniversário de Patricia. Foi Matt O'Hara
quem começou. Com os ombros muito direitos e os braços rígidos junto ao corpo,
parecia um soldado quando se afastou do círculo de cadeiras. Depois, os seus pés
começaram a bater e a girar tão rapidamente que a visão de Scarlett ficou indistinta. O
chão tornou-se um tambor ressonante sob os seus calcanhares, parecia gelo polido
sob os seus passos impossíveis e intricados para a frente e para trás. Ele devia ser o
melhor dançarino do mundo, pensou Scarlett. E depois Katie foi enfrentá-lo, com as
saias um pouco levantadas em ambas as mãos de forma a que os pés ficassem livres
para acertar com os passos dele. Mary Kate foi a seguinte, depois Jamie juntou-se à
filha. E a bela Helen com um primo, um rapazinho que não podia ter mais de 8 anos.
"Não acredito", pensou Scarlett. "São mágicos, todos eles. A música também é
mágica." Os pés mexeram-se mais depressa do que alguma vez se tinham mexido,
tentando imitar o que estava vendo, tentando exprimir a excitação da música. "Tenho
que aprender a dançar assim, tenho mesmo que aprender. É como... é como girar até o
sol."
Uma criança que tinha adormecido debaixo do sofá acordou com o barulho dos
pés dançando e começou a chorar. Contagioso, o choro espalhou-se às outras
crianças. A dança e a música pararam.
- Façam colchões com cobertores dobrados na outra sala - disse Maureen
placidamente - e ponham-lhes os rabinhos secos. Depois fechamos as portas e eles
dormirão sem darem por nada. Jamie, a mulher dos "ossos" está com uma sede
terrível. Mary Kate, passa o meu copo ao teu pai.
Patrícia pediu a Billy para ir buscar o filho de 3 anos.
- Eu vou buscar a Betty - disse, estendendo a mão para debaixo do sofá. - Pronto,
pronto - murmurou, embalando a criança chorosa contra si. - Helen, fecha as cortinas lá
do fundo, minha querida. Hoje há muito luar.
Scarlett ainda estava meio em transe do enfeitiçamento da música. Olhou
vagamente para as janelas e o choque que apanhou trouxe-a à realidade. Estava
escurecendo. A xícara de chá que tinha vindo tomar tinha-se prolongado por horas.
- Oh, Maureen, vou chegar atrasada para jantar - exclamou. - Tenho que ir para
casa. O meu avô vai ficar furioso.
- Então que fique, o velho rabugento. Fique na festa. Ainda agora começou.
- Gostaria de poder ficar - disse Scarlett num tom fervoroso. - É a melhor festa em
que estive em toda a minha vida. Mas prometo que voltarei aqui.
- Ah, bom. Uma promessa é uma promessa. Volta?
- Adoraria. Convidam-me?
Maureen riu com vontade.
- Estão ouvindo a moça? - disse a todos os presentes.
- Aqui não há convites. Somos todos uma família e a Scarlett faz parte dela.
Venha quando quiser. A porta da minha cozinha não tem fechadura e a lareira está
sempre acesa. O Jamie também tem boa mão para o violino... Jamie! A Scarlett tem
que ir embora. Veste o casaco, homem, e dá-lhe o braço.
Antes de virarem a esquina, Scarlett ouviu a música recomeçar. Ouvia-se à
distância, devido às paredes espessas das casas e às janelas fechadas contra a noite
de Inverno. Mas percebeu que os O'Haras estavam de novo cantando. Era The
Wearing o' the Green.
"Dessa conheço a letra toda; oh, como tenho pena de ter vindo embora."
Os seus pés deram alguns pequenos passos de dança. Jamie riu e acompanhou-
a.
- Da próxima vez ensino-te a escocesa - prometeu.
36
Scarlett suportou a reprovação silenciosa das tias com fácil indiferença. Nem
sequer o fato de ter apanhado um raspanete do avô a incomodou. Lembrou-se de
como Maureen se tinha referido a ele. "Velho rabugento", pensou, dando uma risadinha
por dentro. Isso tornou-a suficientemente corajosa e impertinente para se saracotear
até a cama dele e lhe beijar a face depois de ele a ter mandado embora.
- Boa noite, avô - disse alegremente. - Velho rabugento - murmurou quando já
estava a salvo no átrio. Ia rindo quando se juntou às tias à mesa. O jantar foi-lhe
imediatamente levado. O prato estava tapado com uma tampa de prata polida, para a
comida se conservar quente. Scarlett teve certeza de que tinha sido recentemente
polida. Aquela casa podia funcionar realmente bem, pensou, se houvesse alguém para
manter os criados na linha. "O avô deixa-os fazer tudo. Velho rabugento."
- Que é que estás a achar tão divertido, Scarlett? - O tom de Pauline era frio como
gelo.
- Nada, tia Pauline. - Scarlett olhou para a montanha de comida que ficou visível
quando Jerome tirou cerimoniosamente a tampa de prata. Scarlett riu alto.
Excepcionalmente, não tinha fome; não podia ter, depois da festa dos O'Hara. E tinha à
sua frente comida suficiente para alimentar meia dúzia de pessoas. Devia ter lançado
verdadeiro terror na cozinha.
-Miss Scarlett, por que é que vamos à padaria? A cozinheira diz que as coisas da
padaria não prestam para comer. Ela faz tudo em casa.
- Não quero saber o que a cozinheira diz. E, se disseres a alguém que estivemos
aqui, esfolo-te viva.
Scarlett comeu dois biscoitos e um pãozinho ainda na padaria. Levou dois sacos
de pão e biscoitos para casa, para o seu quarto, escondendo-os debaixo da capa.
Um telegrama tinha sido cuidadosamente colocado sobre a cômoda. Scarlett
deixou cair os sacos no chão e correu a buscá-lo.
"Henry Hamilton", era a assinatura. Raios! Pensara que era de Rhett, implorando-
lhe que voltasse para casa ou a dizendo que ia a caminho para ir buscá-la. Irada,
amassou o papel fino com a mão.
Depois, alisou-o. Era melhor ver o que o tio Henry tinha para dizer. Assim que leu
a mensagem, Scarlett começou a sorrir.
-Onde estiveste? - perguntou Pierre Robillard. - O meu jantar não foi satisfatório.
- Estive na casa do meu primo Jamie. Vou mandar vir outra bandeja.
- Tens visitado essa gente? - O velho senhor tremeu de indignação.
A ira de Scarlett cresceu para enfrentar a dele.
- Sim, tenho, e tenciono voltar a visitá-los. Gosto muito deles. - E saiu do quarto.
Mas mandou arranjar outra bandeja com outro jantar para o avô antes de ir para o
quarto.
- E o seu jantar, Miss Scarlett? - perguntou Pansy. - Quer que lhe traga uma
bandeja aqui em cima?
- Não, vem cá e tira-me esta roupa. Não quero jantar.
"É engraçado, não tenho fome e só bebi uma xícara de chá. Só quero dormir.
Fiquei exausta de tanto chorar. Mal consegui dizer as palavras para o Colum transmitir
ao bispo, tanto que chorava. Acho que conseguiria dormir durante uma semana. Nunca
me senti tão exausta na minha vida."
Sentia a cabeça leve, todo o corpo pesado e descontraído. Deixou-se cair na
cama macia e mergulhou de imediato num sono profundo e reparador.
Em toda a sua vida, Scarlett enfrentara as suas crises sozinha. Por vezes
recusara-se a admitir que precisava de ajuda mas, a maior parte das vezes, não tinha a
quem recorrer. Agora era diferente e o seu corpo reconheceu a diferença antes de o
espírito o fazer. Havia pessoas para a ajudar. A família tinha lhe tirado o fardo de cima
dos ombros de bom grado. Já não estava sozinha. Podia deixar-se ir.
Pierre Robillard pouco dormiu nessa noite. Tinha ficado perturbado com a atitude
de desafio de Scarlett. Exatamente como a mãe dela o tinha desafiado, há tanto anos
atrás, e ele a tinha perdido para sempre. Nessa época ficara com o coração
destroçado; Ellen era a sua filha preferida, a mais parecida com a mãe. Ele não amava
Scarlett. Todo o amor que tinha estava na sepultura com a sua mulher. Mas não
deixaria Scarlett ir sem lutar. Queria que os seus últimos dias fossem confortáveis e ela
asseguraria isso. Sentou-se muito direito na cama, enquanto a luz do candeeiro
empalidecia à medida que o petróleo se ia gastando, e planejou a sua estratégia como
se fosse um general enfrentando um exército com mais efetivos.
Depois de uma hora de sono agitado, pouco antes de amanhecer, acordou com a
decisão tomada. Quando Jerome lhe levou o desjejum, o velho senhor estava
assinando uma carta que escrevera. Dobrou-a e selou-a antes de arranjar espaço
sobre os joelhos para a bandeja.
- Entregue isto - disse ele, dando a carta ao mordomo. - E espere pela resposta.
Scarlett abriu ligeiramente a porta e meteu a cabeça no quarto.
- Mandou me chamar, avô?
- Entra, Scarlett.
Ela ficou surpreendida por estar outra pessoa no quarto. O avô nunca tinha
visitas. O homem curvou-se num cumprimento e ela inclinou a cabeça.
- Este é Mr. Jones, o meu advogado. Toca para chamar o Jerome, Scarlett. Ele o
levará para a sala de estar, Jones. Espere lá até eu o mandar chamar.
Scarlett mal tocara no cordão da campainha, e já Jerome estava abrindo a porta.
- Puxa essa cadeira para junto da cama, Scarlett. Tenho muito para te dizer e não
quero esforçar a voz.
Scarlett estava intrigada. O velho senhor só faltara dizer-lhe "por favor". E
também parecia estar fraco. Santo Deus, espero que não se esteja se preparando para
morrer. Não quero ter que enfrentar a Eulalie e a Pauline no seu funeral. Levou a
cadeira para junto da cabeceira da cama. Pierre Robillard estudou-a sob as pálpebras
semicerradas.
- Scarlett - disse ele em voz baixa depois de ela se sentar. - Tenho quase noventa
e quatro anos. Estou de boa saúde para a minha idade, mas não é provável, à luz da
simples matemática, que viva muito mais. Estou te pedindo-te, minha neta, para ficares
comigo durante o tempo que me restar.
Scarlett começou a falar, mas o velho senhor ergueu uma mão esguia para a
impedir.
- Ainda não acabei - disse ele. - Não estou apelando ao teu sentido de dever
familiar, muito embora saiba que tens agido de forma responsável em relação às
necessidades das tuas tias durante muitos anos.
"Estou disposto a fazer uma oferta justa, até mesmo generosa. Se ficares aqui
como dona da casa e assegurares o meu conforto e te submeteres aos meus desejos,
herdarás todos os meus bens quando eu morrer. E não são de desprezar.
Scarlett ficou sem palavras. Ele estava oferecendo-lhe uma fortuna! Pensou na
amabilidade do gerente do banco e interrogou-se sobre quanto é que o avô valeria.
Pierre Robillard interpretou erradamente a hesitação de Scarlett enquanto o seu
espírito trabalhava. Pensou que ela estava transtornada de gratidão. As suas
informações não incluíam um relatório do mesmo gerente do banco, e não tinha
conhecimento do ouro que ela tinha no cofre. Os seus olhos desbotados brilharam de
satisfação.
- Não sei - disse ele -, nem quero saber, que circunstâncias é que te levaram a
considerar a dissolução do teu casamento. - A sua postura e voz estavam agora mais
vigorosas, agora que acreditava que estava ganhando. - Mas abandonarás qualquer
idéia de divórcio...
- Tem lido o meu correio!
- Tudo o que se passa sob este teto diz-me respeito por direito.
Scarlett estava tão furiosa que não conseguia encontrar palavras para se
expressar. O avô continuou a falar. Com precisão. Com frieza. As suas palavras eram
como agulhas geladas.
- Desprezo a imprudência e a estupidez, e tu foste estupidamente imprudente ao
deixares o teu marido sem pensares na tua posição. Se tivesses tido a inteligência de
consultar um advogado, como eu fiz, terias sabido que a lei da Carolina do Sul não
considera o divórcio seja por que motivo for. É única nos Estados Unidos neste campo.
Fugiste para a Geórgia, é certo, mas o teu marido é legalmente residente na Carolina
do Sul. Não pode haver divórcio.
Scarlett ainda continuava concentrando-se na indignidade que era o fato de
estranhos lerem as suas cartas privadas.
"Deve ter sido aquele safado do Jerome. Pôs as mãos nas minhas coisas,
revistou a minha cômoda. E foi o meu próprio parente de sangue, o meu avô, que o
mandou." Scarlett levantou-se e inclinou-se para a frente, com os punhos assentes na
cama ao lado da mão cadavérica de Pierre Robillard.
- Como é que ousou mandar esse homem ao meu quarto? - gritou-lhe, dando
murros nas espessas camadas de edredões.
A mão do avô ergueu-se subitamente, como uma cobra atacando. Agarrou-lhe os
dois pulsos com os seus dedos compridos e ossudos.
- Nesta casa, não levantas a voz, minha menina. Detesto barulho. E terás um
comportamento adequadamente decoroso, como é de esperar de uma neta minha. Não
sou um dos teus parentes do bairro de lata.
Scarlett ficou chocada com a sua força e também um pouco assustada. Que tinha
acontecido ao velho fraco de quem tinha quase sentido pena? Os seus dedos pareciam
de ferro.
Ela soltou-se e recuou até a cadeira a impedir.
- Não admira que a minha mãe tenha deixado esta casa e nunca mais tenha
voltado - disse. Odiou que a sua voz tremesse ligeiramente de medo.
- Deixa de ser melodramática, rapariga. Isso cansa-me. A tua mãe foi-se embora
porque era voluntariosa e nova demais para dar ouvidos à razão. Tinha tido um
desgosto de amor e aceitou casar com o primeiro homem que a pediu em casamento.
Acabou por se arrepender, mas o que estava feito, estava feito. Tu não és uma garota
como ela era; tens idade suficiente para usares a cabeça. O contrato está sendo
redigido. Manda vir o Jones; o assinaremos e agiremos como se o teu inconveniente
rompante não tivesse existido.
Scarlett virou-lhe as costas. "Não vou acreditar nele. Não darei ouvidos a esse
tipo de conversa." Pegou a cadeira e voltou a pô-la no local de costume. Pousou-a com
muito cuidado, para que os pés ficassem exatamente sobre as marcas que tinham feito
no carpete ao longo dos anos. Já não sentia medo nem pena dele, e já nem sequer
estava zangada com ele. Quando se virou para voltar a olhar para ele, era como se
nunca o tivesse visto antes. Era um estranho. Um velho tirano, sonso e tedioso que ela
não conhecia e não queria conhecer.
- Não existe dinheiro suficiente para me manter aqui - disse, e estava mais a falar
consigo própria que com ele. - O dinheiro não consegue tornar suportável viver numa
sepultura. - Olhou para Pierre Robillard com olhos verdes faiscantes num rosto pálido
de morte. - O seu lugar é aqui... já está morto, exceto que se recusa a admiti-lo. Irei
embora amanhã bem cedo.
Dirigiu-se rapidamente para a porta e abriu-a.
- Achei que estaria à escuta, Jerome. Entre.
43
Não sejas chorona, Pansy, não te vai acontecer nada. O trem passa por Atlanta e
depois pára. Basta que não saias antes de ele lá chegar. Prendi algum dinheiro num
lenço, e prendi o lenço dentro da algibeira do teu casaco. O condutor já tem o teu
bilhete e prometeu olhar por ti. Mas que raio! Tens choramingado tanto dizendo que
querias ir para casa e, agora que vais, não paras com esse disparate.
- Mas, Miss Scarlett, nunca andei de trem sozinha.
- Fiddle-dee-dee! Não estás sozinha. Vai muita gente no trem. Basta olhares pela
janela e comeres esse cesto de comida que Mrs. O'Hara te arranjou, e antes de dares
por isso estarás em casa. Mandei-lhes um telegrama pedindo para te irem buscar na
estação.
- Mas, Miss Scarlett, que é que faço sem ter que cuidar de ti? Sou uma criada de
senhora. Quando é que vai voltar para casa?
- Quando lá chegar. Depende de muita coisa. Agora, sobe para o vagão; o trem
está quase partindo.
"Depende de Rhett", pensou Scarlett e era bom que o Rhett viesse depressa.
"Não sei se vou conseguir ou não viver com os meus primos." Virou-se e sorriu à
mulher de Jamie.
- Não sei como poderei agradecer-lhes por me acolherem, Maureen. Estou
encantada com a idéia, mas isso já vos causou muito transtorno. - Falou na sua
animada e juvenil voz social.
Maureen deu o braço a Scarlett e a fez afastar-se do trem e do rosto triste de
Pansy à janela suja de pó do vagão.
- Está tudo ótimo, Scarlett - disse ela. - O Daniel está encantado por ceder o
quarto porque assim vai para casa da Patrícia, para junto do Brian. Há muito que o
quer fazer, mas não se atrevia a dizer. E a Kathleen está quase nas nuvens de alegria
por ser a sua criada. É o que ela quer aprender a ser, e além disso venera o chão que
a Scarlett pisa. Pela primeira vez desde que chegou, aquela tonta está feliz. O seu
lugar é conosco, não às ordens daquele velho rabugento. Que atrevimento o dele,
esperar que a Scarlett lá ficasse para lhe governar a casa. Nós queremo-la conosco
pelo amor que lhe temos.
Scarlett sentiu-se melhor. Era impossível resistir aos modos calorosos de
Maureen. Mesmo assim, esperava que não fosse por muito tempo. Todas aquelas
crianças!
"Parece mesmo um potro prestes a fugir", pensou Maureen. Sob a ligeira pressão
da sua mão, sentia a tensão no braço de Scarlett. "Do que ela precisa", decidiu
Maureen, "é de abrir o coração, e muito provavelmente ter uma crise de choro à boa
moda antiga. Não é natural uma mulher nunca falar de si própria, e esta nunca fez uma
referência sequer ao marido. Dá que pensar..." Mas Maureen não perdeu tempo com
especulações. Tinha aprendido quando era nova e lavava copos no bar do pai que,
dando-lhe tempo suficiente, qualquer pessoa acabava, mais cedo ou mais tarde, por
falar dos seus problemas. Não conseguia imaginar que Scarlett fosse diferente.
As casas dos O'Hara eram três edifícios altos, de tijolo, em fila, com janelas na
parte da frente e de trás e compartilhando as paredes interiores. Lá dentro, a
disposição das salas era idêntica. Cada andar tinha duas dependências: cozinha e sala
de jantar ao nível da rua, salas duplas no primeiro andar, e dois quartos em cada um
dos dois andares de cima. Um corredor estreito com uma bonita escada corria ao longo
do comprimento de cada casa e, por detrás de cada um, havia um pátio amplo e uma
cocheira.
O quarto de Scarlett ficava no terceiro andar da casa de Jamie. Tinha duas camas
individuais - Daniel e Brian tinham compartilhado aquele quarto até Brian ter ido viver
na casa da Patrícia - e era muito modesto, como era adequado a dois homens jovens,
apenas com um guarda-roupa e uma secretária, e uma cadeira como mobiliário além
das camas. Mas havia colchas de retalhos de cores vivas nas camas e um grande
tapete de trapos, vermelho e branco, no soalho bem encerado. Maureen tinha
pendurado um espelho por cima da secretária e coberto esta com um pano de renda,
para Scarlett ter um toucador. Kathleen mostrou-se surpreendentemente habilidosa a
pentear-lhe o cabelo, e estava ansiosa por aprender a agradar e estava sempre ali à
mão. Dormia com Mary Kate e Helen no outro quarto do terceiro andar.
A única criança pequena na casa de Jamie era Jacky, que tinha quatro anos, mas
estava normalmente numa das outras casas brincando com os primos da sua idade.
Durante o dia, enquanto os homens trabalhavam e as crianças mais velhas iam à
escola, a fila de casas era um mundo de mulheres. Scarlett estava à espera de o
detestar. Mas nada na vida Scarlett a tinha preparado para as mulheres O'Hara.
Não havia entre elas segredos, nem reticências. Diziam o que pensavam,
confidenciavam intimidades que a faziam corar, zangavam-se quando estavam em
desacordo e abraçavam-se, chorando, quando faziam as pazes. Tratavam todas as
casas como se fosse uma só, entravam nas cozinhas umas das outras a qualquer hora
para beberem uma xícara de chá, compartilhavam a tarefa das compras e de cozinhar
pão e de cuidar dos animais no pátio, e das cocheiras que tinham sido transformadas
em barracões.
Mas, acima de tudo, divertiam-se, com risos, mexericos, confidências e
inofensivas, mas elaboradas conspirações contra os seus homens. Incluíram Scarlett a
partir do momento em que ela chegou, partindo do princípio de que era uma delas.
Passados poucos dias, Scarlett sentiu que era. Ia todos os dias ao Mercado da cidade
com Maureen ou Katie, à procura dos melhores alimentos aos melhores preços, e ria
com as jovens Polly e Kathleen dos truques com ferros de frisar e fitas, e estudava
montes de amostras de tecidos para estofados com Patrícia, que tinha muito orgulho
na sua casa, muito depois de Maureen e Katie se terem exasperado com a sua
esquisitice. Bebia inúmeras xícaras de chá e escutava relatos de triunfos e
preocupações e, embora não compartilhasse nenhum dos seus próprios segredos,
ninguém a pressionou ou calou as suas próprias confidências francas.
- Não sabia que aconteciam tantas coisas interessantes às pessoas - disse
Scarlett a Maureen com verdadeira surpresa.
Os serões tinham um padrão diferente. Os homens trabalhavam arduamente e
chegavam em casa cansados. Queriam uma boa refeição e fumar o seu cachimbo e
tomar uma bebida. E tinham-no sempre. Depois disso, o serão desenrolava-se por si
próprio. Muitas vezes toda a família acabava na casa de Matt, pois ele tinha cinco filhos
pequenos dormindo no andar de cima. Maureen e Jamie podiam deixar o Jacky e a
Helen com Mary Kate, e a Patrícia podia levar os seus filhos de dois e três anos,
dormindo, sem os acordar. A música não tardava em surgir. Mais tarde, quando Colum
chegasse, seria ele o condutor.
Da primeira vez que Scarlett viu o bodhran pensou que era uma gigantesca
pandeireta. O círculo de cercadura metálica de pele esticada tinha mais de meio metro
de diâmetro, mas era pouco fundo, como uma pandeireta, e Gerald segurava-a na
mão. Depois, sentou-se e pousou-o no joelho e bateu nele com um pau de madeira
seguro pelo meio, balançando-o para bater com uma extremidade e depois com a outra
na pele esticada, e percebeu que era na realidade um tambor.
Não que fosse lá grande tambor. Até Colum pegá-lo. Estendeu a mão esquerda
sob a pele esticada, com se a acariciasse, e o seu pulso direito tornou-se subitamente
tão fluido como água. O seu braço mexia-se de cima abaixo e ao centro do tambor,
enquanto com a mão direita fazia um curioso movimento que parecia descuidado e que
fazia com que o pau batesse um ritmo regular e que agitava o sangue. O tom e o
volume diferiam, mas a batida hipnótica e insistente nunca variava, enquanto o violino,
depois o apito e depois a concertina se juntavam. Maureen segurava os "ossos"
lassamente na mão, embrenhada demais na música para se lembrar deles.
Scarlett entregou-se ao toque do tambor. Fê-la rir, fê-la chorar, fê-la dançar como
nunca sonhara que podia dançar. Só quando Colum pousou o bodhran no chão ao seu
lado e exigiu uma bebida, dizendo:
- Toquei tambor até ficar completamente seco - é que viu que todos os outros
estavam tão enlevados como ela.
Olhou para a figura baixa, de nariz arrebitado e sorridente, com um frêmito de
espanto e respeito. Aquele homem não era como os outros homens.
- Jamie, tenho estado pensanco se devo levar a Kathleen comigo quando for -
disse Colum. - Já está aqui há tempo suficiente para não ter saudades, mas o coração
ainda lhe dói.
Scarlett quase derramou água fervente por cima de si em vez de no bule.
- Onde vais, Colum?
- Vou voltar para a Irlanda, querida. Só estou aqui de visita.
- Mas o bispo ainda não mudou de idéia em relação a Tara. E quero falar-te sobre
uma outra coisa.
- Bom, não vou embora já neste instante, Scarlett querida. Há tempo para tudo.
Que é que achas, com o teu coração de mulher? A Kathleen deve regressar?
- Não sei. Pergunta a Maureen. Tem estado com ela lá em cima desde que
voltamos. - Que diferença fazia o que Kathleen fazia. Coluna era quem interessava.
Como é que ele podia ir embora quando ela precisava dele. "Oh, por que é que eu
fiquei sentada cantando com aquele rapaz nojento? Devia ter feito com que o Colum
fosse dar um passeio comigo, conforme planejei."
Scarlett apenas provou a torrada de queijo e a sopa de batata que comeram no
jantar. Tinha vontade de chorar.
- Ufa! - gemeu Maureen quando a cozinha estava de novo arrumada. - Hoje vou
levar os meus velhos ossos para a cama bem cedo. Fiquei empenada por estar tantas
horas sentada no chão. Vocês também, Mary Kate e Helen. Amanhã é dia de escola.
Scarlett também se sentia doloride. Espreguiçou-se à frente da lareira.
- Boa noite - disse.
- Fica um pouco - disse Colum -, enquanto eu acabo de fumar o meu cachimbo. O
Jamie também já está a bocejar, portanto vejo que está prestes a abandonar-me
também.
Scarlett sentou-se numa cadeira em frente de Colum, e Jamie fez-lhe afagou sua
cabeça ao passar em direção às escadas.
Colum deu uma tragada no cachimbo. O cheiro de tabaco era docemente acre.
- Junto a uma lareira acesa é um bom local para se conversar - disse ele,
passados alguns instantes. - Que é que há no espírito e no coração, Scarlett?
Ela deu um suspiro profundo.
- Não sei que fazer sobre o Rhett, Colum. Tenho medo de ter estragado tudo. - A
cozinha estava quente e com uma luz difusa, o cenário perfeito para ela abrir o
coração. Além disso, Scarlett tinha uma noção embaralhada que de, pelo fato de
Colum ser padre, tudo o que lhe dissesse seria mantido em se gredo do resto da
família, como se estivesse se confessando no pequeno e apertado confessionário na
igreja.
Começou pelo princípio, contando a verdade sobre o seu casamento. Não o
amava, pelo menos não sabia se amava. Estava apaixonada por outra pessoa.
E, depois, quando soube que era Rhett quem eu amava, ele já deixara de me
amar. Pelo menos foi o que ele disse. Mas não acredito que seja verdade, Colum; não
pode ser.
- Ele deixou-te?
- Sim. Mas depois deixei-o a ele. É sobre isso que me interrogo, se terei feito mal.
- Deixa ver se eu entendo bem... - Com infinita paciência, Colum desemaranhou o
emaranhado da história de Scarlett. Passava já bem da meia-noite quando jogou fora
os restos do tabaco do seu cachimbo há muito frio e o meteu no bolso.
- Fizeste exatamente o que devias ter feito, minha querida - disse ele. - Porque
usamos o colarinho ao contrário, algumas pessoas pensam que os padres não são
homens. Estão enganados. Eu consigo entender o teu marido. Consigo sentir uma
compaixão ainda maior pelo seu problema. É mais fundo e mais doloroso que o teu,
Scarlett. Está lutando contra si próprio, e para um homem forte pode ser uma batalha
violenta. Virá buscar-te e tens que ser generosa com ele quando ele vier, pois virá
ferido da batalha.
- Mas quando, Colum?
- Isso não te sei dizer. Mas sei uma coisa. É ele que tem que te procurar; tu não
podes fazer isso por ele. Ele tem que lutar contra si próprio sozinho, até enfrentar e
reconhecer a necessidade que tem de ti.
- Tens certeza de que ele virá?
- Disso tenho certeza. E agora vou para a cama. E tu faz o mesmo.
Scarlett aninhou-se contra a almofada e tentou combater o peso que sentia nas
pálpebras. Queria prolongar aquele momento, desfrutar da satisfação que a certeza de
Colum lhe tinha dado. Rhett iria encontrar-se com ela... talvez não tão depressa quanto
queria, mas ela podia esperar.
45
Scarlett não se agradou que Kathleen a acordasse na manhã seguinte. Depois
de ter ficado sentada até tão tarde conversando com Colum, preferia dormir mais.
- Trouxe-te o chá - anunciou Kathleen em voz suave. - E a Maureen pergunta se
queres ir com ela ao mercado, esta manhã.
Scarlett virou a cabeça para o outro lado e voltou a fechar os olhos.
- Não, acho que vou continuar a dormir. - Sentia que Kathleen pairava por ali. "Por
que razão aquela tonta não ia embora, deixando-a dormir?" - Que queres, Kathleen?
- Peço desculpa, Scarlett, mas gostaria de saber se vais te vestir. A Maureen
quer que eu vá no teu lugar, se não fores, e não sei quando estaremos de volta.
- A Mary Kate pode ajudar-me. - Scarlett resmungou para a almofada.
- Não pode, não. Há tempos que saiu para a escola. Já são quase nove horas.
Scarlett obrigou-se a abrir os olhos. Sentia-se capaz de dormir eternamente... se
a deixassem.
- Está bem - suspirou -, tira as minhas coisas. Vou usar o vestido de xadrez azul e
vermelho.
- Ah, ficas tão bonita com esse! - exclamou Kathleen, alegremente. Dizia sempre
o mesmo, fosse o que fosse que Scarlett escolhesse. Kathleen considerava-a a mulher
mais elegante e bela do mundo.
Scarlett bebeu o chá enquanto Kathleen lhe armava o cabelo num oito deitado, de
um lado ao outro da nuca. "Pareço um susto", pensou ela. Tinha resquícios de olheiras.
"Talvez devesse pôr antes o vestido cor-de-rosa, condiz mais com o meu tom de pele,
mas nesse caso a Kathleen teria que me apertar o espartilho, o cor-de-rosa tem a
cintura mais estreita, e a atenção dela está me deixando doida."
- Está ótimo - afirmou, quando foi colocado o último grampo no cabelo -, podes ir
embora.
- Queres mais uma xícara de chá?
- Não. Vai lá. - "Gostaria era de café", pensou. "Afinal, talvez devesse ir ao
mercado... Não, estou cansada demais para andar para cima e para baixo, para cima e
para baixo, olhando para tudo." Disfarçou as olheiras com pó-de-arroz e fez uma careta
a si própria, ao espelho, antes de descer para improvisar um desjejum. - Raios! -
exclamou, ao ver Colum, que lia o jornal na cozinha. Pensara que não havia mais
ninguém em casa.
- Vim pedir-te um favor - informou ele. Queria uma ajuda feminina na escolha das
coisas que levaria no regresso à Irlanda. - Para os rapazes e respectivos pais, consigo
sozinho, mas as donzelas são um mistério. A Scarlett deve saber, disse para mim
mesmo, qual a última moda na América.
A interpelada riu da expressão perplexa dele:
- Terei todo o gosto em ajudar, Colum, mas vais ter qu e me pagar... com um café
e um bolo na padaria da Rua Broughton.
- Já não se sentia nada cansada.
- Não sei por que me pediste que te acompanhasse, Colum! Não gostas de uma
única das coisas que sugeri. - Scarlett olhou exasperada para os montes de luvas de
pelica, lenços de assoar com rendas, meias em seda trabalhada, carteiras de contas
enfiadas, leques pintados, e cortes de seda, veludo e cetim. As assistentes tinham
exposto toda a melhor mercadoria da loja mais moderna de Savannah, e Colum
abanara a cabeça perante tudo.
- Peço desculpa por todo o trabalho que dei - disse este às assistentes, cujos
sorrisos eram amarelos. Ofereceu o braço a Scarlett. - Também te peço desculpa,
Scarlett. Receio não ter esclarecido suficientemente o que pretendia. Anda, vou pagar-
te a minha dívida; a seguir, tentamos outra vez. Um café vai cair bem.
Ia ser preciso mais que um café para fazer que ela lhe perdoasse aquela caça a
exmo! Scarlett ignorou ostensivamente o braço que lhe era oferecido e saiu da loja,
muito direita e a passo rápido.
A sua disposição melhorou quando Colum sugeriu que fossem tomar o café na
Pulaski House. Este enorme hotel estava muito na moda, e Scarlett nunca fora lá.
Depois de terem se sentado num sofá acolchoado a veludo, num dos salões de
recepção profusamente ornamentados e com colunas de mármore, ela olhou em redor
com satisfação:
- Isto é agradável - comentou alegremente, enquanto um criado de luvas brancas
pousava o serviço, numa bandeja de prata, sobre a mesa de tampo de mármore à sua
frente.
Com todos os teus adereços elegantes enquadras-te perfeitamente no meio
destes mármores grandiosos e das palmeiras em vasos - afirmou Colum, sorrindo. -
Por isso é que os nossos caminhos se cruzaram, em vez de viajarmos juntos. - As
pessoas na Irlanda, explicou, tinham vidas mais simples que as que Scarlett conhecia.
Até talvez mais simples do que ela era capaz de imaginar. Viviam nas suas quintas, no
campo, sem qualquer cidade perto, só uma aldeia com igrej a, ferreiro e estalagem,
onde parava a diligência. A única loja era uma divisão num canto da estalagem, onde
se podia enviar uma carta pelo correio, e comprar tabaco e alguns produtos
alimentares. Ocasionalmente, passavam caixeiros, que vendiam fitas, bugigangas e
carteiras de alfinetes. As pessoas divertiam-se indo a casa umas das outras.
- Mas é tal e qual como a vida nas plantações! - exclamou Scarlett. - Olha, Tara
fica a oito quilômetros de Jonesboro, e quando lá se chega não há muito mais que uma
estação e uma minúscula loja de mercearias.
- Oh, não, Scarlett. Nas plantações as casas são autênticas mansões, não
simples residências caiadas de agricultores.
- Não sabes de que é que estás falando, Colum O'Hara! A mansão dos Doze
Carvalhos, pertencente aos Wilkes, era a única em todo o Clayton County. A maior
parte das pessoas tem casas que começaram com poucas divisões e uma cozinha, a
que foi sendo acrescentado o que se foi tornando necessário.
Colum sorriu e admitiu a derrota. Em todo o caso, disse, as ofertas para a família
não podiam ser coisas de cidade. As jovens se sairiam melhor com um corte de
algodão do que de cetim, e não saberiam que fazer com um leque pintado.
Scarlett pousou a xícara no pires com um tilintar decidido:
- Chita! - exclamou. - Aposto contigo em como vão adorar chita. Há em todas as
espécies de padrões vivos e faz vestidos bonitos. Todas nós tínhamos chita para as
roupas de andar diariamente em casa.
- E botas - acrescentou Colum. Extraiu da algibeira um espesso papel e
desdobrou-o. - Tenho aqui os nomes e os números.
Scarlett riu perante as dimensões do papel:
- Com certeza que todos trataram de aproveitar a tua vinda, Colum.
- Como?
- Não ligue. É uma expressão americana. - Todos os homens, mulheres e
crianças de County Meath deviam ter posto o nome na lista de Colum, pensou. Era tal
e qual como a tia Eulalie: "Já que vais às compras, não te importas de me trazer uma
coisa?" Fosse como fosse, nunca se lembrava de pagar o que encomendava, e
Scarlett era capaz de apostar que os amigos irlandeses de Colum se revelariam
igualmente esquecidos. - Fala-me mais da Irlanda - pediu. Ainda havia muito café na
cafeteira.
- Oh, é uma ilha de uma beleza rara - disse Colum baixinho. Na sua voz
melodiosa, falou com amor de colinas verdejantes coroadas de castelos, de rios com
correntes impetuosas, orlados de flores e povoados de peixes saltitantes, de passeios
entre sebes perfumadas, sob uma chuva miudinha, de música por todo o lado, de um
céu mais amplo e mais alto que qualquer outro céu, com um sol tão suave e cálido
como um beijo de mãe...
- Pareces estar com tantas saudades da terra como a Kathleen.
Colum riu de si próprio:
- É verdade que não vou chorar quando o navio partir. Ninguém admira mais a
América que eu, e gosto de vir em visita, mas não vou derramar uma única lágrima
quando o navio partir de regresso para casa.
- Talvez derrame eu. Não sei o que farei sem a Kathleen.
- Então, não passes sem ela. Vem conosco, ver a terra dos teus antepassados.
- É coisa que não posso fazer.
- Seria uma grande aventura. A Irlanda é sempre bela, mas na Primavera a sua
ternura te despedaçaria o coração.
- Não preciso de ficar com o coração despedaçado, obrigada, Colum. Do que
preciso é de uma criada.
- Mando-te a Brigid, ela está ansiosa por vir. Suponho mesmo que devesse ter
sido a Brigid a vir, não a Kathleen, só que queríamos afastar esta.
Scarlett sentiu o cheiro da bisbilhotice:
- Por que haviam de querer afastar uma tal doçura de moça?
Colum sorriu:
- As mulheres e as suas questões - comentou. - São todas iguais, dos dois lados
do oceano. O homem que queria cortejá-la não contava com a nossa aprovação. Era
soldado, e ainda por cima pagão.
- Queres dizer, protestante. Ela amava-o?
O uniforme deu-lhe volta à cabeça, mas não passou disso.
- Pobre moça. Espero que ele esteja à sua espera quando regressar.
- Graças a Deus, o regimento já regressou à Inglaterra! Ele não vai voltar a
incomodá-la.
O rosto de Colum adquirira a dureza do granito. Scarlett manteve-se em silêncio.
- Então essa lista? - acabou por perguntar, desistindo de esperar que fosse
Colum a retomar a palavra. - É melhor voltarmos às nossas compras. Sabes, Colum, o
Jamie tem tudo o que queres na sua loja. Por que não vamos até lá?
Não posso pô-lo em apertos. Ele se sentiria obrigado a fazer-me um preço que o
prejudicasse.
- Francamente, Colum, tens um cérebro de mosca para os negócios! Mesmo que
o Jamie te venda ao preço de custo, ficará mais bem visto perante os seus
fornecedores, e obterá um desconto maior na próxima encomenda. - Riu do espanto de
Colum. - Eu própria tenho uma loja, sei do que estou falando. Deixa-me explicar-te...
Falou pelos cotovelos, enquanto se encaminhava para a loja de Jamie. Colum
ficou fascinado e obviamente impressionado, fazendo perguntas umas atrás das
outras.
- Colum! - ressoou a voz de Jamie assim que entraram na loja. - Estávamos
precisamente desejando poder falar contigo. Tio James, o Colum está aqui.
O velhote saiu do armazém com os braços abarrotados de tecidos para
bandeiras:
- És a resposta à nossa oração, rapaz - afirmou. - Qual é a cor mais conveniente?
- Deixou cair os tecidos em cima de um balcão. Eram todos verdes, mas de quatro tons
muito próximos.
- Este é o mais bonito - disse Scarlett.
Jamie e o tio pediram a Colum que escolhesse.
Scarlett ficou ofendida. Já lhes dissera qual era melhor.
Que entendia um homem do assunto, mesmo o Colum?
- Onde querem pôr? - indagou ele.
Por cima da vitrine, do lado de fora e do de dentro - elucidou Jamie.
Então, vamos ver ali, por causa da luz - sugeriu Colum.
Parecia tão sério como se fosse escolher a cor para imprimir dinheiro, pensou
Scarlett aborrecida. Para que tanta confusão?
Jamie reparou no amuo dela:
- É para a decoração do dia de São Patrício, Scarlett, querida. O Colum é que
deve dizer qual o que se aproxima mais do verde da folha de trevo branco. Já passou
tempo demais desde que vimos pela última vez essas plantas, tanto o tio James como
eu.
Os O'Hara falavam do dia de São Patrício desde que ela os conhecia.
- Quando é? - inquiriu, mais por delicadeza que por estar verdadeiramente
interessada.
Os três homens fitaram-na, abrindo a boca de espanto:
- Não sabes? - O velho James fez a pergunta com incredulidade.
- Não perguntaria se soubesse, não é?
- É amanhã - esclareceu Jamie -, amanhã mesmo. E, querida Scarlett, vai ser o
dia mais bem passado da tua vida!
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Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o
acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de
conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo
em nosso grupo.
46
Scarlett entusiasmou Kathleen ao usar o seu vestido de seda verde-água para as
festividades dessa noite no parque Forsyth, mas horrorizou a jovem ao insistir em
calçar as sapatilhas verdes de couro, em vez de botas:
- Mas a areia e os tijolos são ásperos, Scarlett, vão estragar as solas dos teus
sapatos tão elegantes!
- É mesmo isso que quero. Pretendo, uma vez na vida, dançar numa festa até
inutilizar dois pares de sapatos. Por favor, Kathleen, escova-me só o cabelo, e põe a
fita de veludo verde para segurá-lo. Quero senti-lo solto e esvoaçante enquanto estiver
dançando. - Dormira vinte minutos e sentia-se capaz de dançar até de madrugada.
O baile era na vasta esplanada de blocos de granito que rodeava a fonte, com a
água cintilante como jóias e sussurrando sob os ritmos alegres e entusiasmantes da
escocesa e a beleza melodiosa das baladas. Dançou uma escocesa com Daniel, e os
pezinhos nos delicados escarpins brilhavam como pequenas chamas verdes ao
descreverem os intrincados padrões da dança.,
- És uma maravilha, querida Scarlett! - gritou ele. Pôs as mãos em redor da
cintura, ergueu-a acima da sua própria cabeça e rodou, rodou, rodou, com os pés a
marcando o mesmo ritmo insistente do tambor. Scarlett abriu os braços e ergueu o
rosto para a lua, rodando, rodando sob a névoa prateada da fonte.
- É como me sinto esta noite - disse aos primos, quando o primeiro foguete voou
em direção ao céu e estourou numa chuva de estrelas que fizeram que a lua parecesse
pálida.
Scarlett mancava na quarta-feira de manhã. Tinha os pés inchados e arranhados.
- Não se preocupe - disse, quando Kathleen soltou exclamações referentes à
condição em que tinha os pés -, passei momentos maravilhosos. - Mandou Kathleen
para baixo assim que ela lhe apertou o espartilho. Ainda não queria falar de todos os
prazeres do dia de São Patrício; desejava rever todas as recordações lentamente,
sozinha. De fato, não faria grande diferença se chegasse um pouco atrasada para o
desjejum; de qualquer forma, hoje não iria ao mercado. Nem calçaria meias, se limitaria
a usar as chinelinhas de feltro, de andar em casa, onde permaneceria.
Não havia dúvida que eram muitos os degraus desde o segundo andar até a
cozinha. Scarlett nunca reparara nisso quando os descia correndo. Agora cada um
equivalia a uma punhalada de dor, se não pisasse com cuidado. Paciência. Valia a
pena ficar em casa um dia (ou mesmo dois), tendo tido um baile tão prazeroso. Talvez
pudesse pedir à Katie que fechasse a vaca no estábulo. Scarlett tinha medo de vacas,
sempre tivera. Porém, se Katie a fechasse, podia sentar-se no pátio. O ar primaveril
tinha um cheiro tão fresco e doce, vindo através das janelas abertas, que ela desejou
sair para o apanhar.
Pronto... estava quase no andar da sala: "Já andei mais de meio caminho. Quem
me dera conseguir ir mais depressa. Tenho fome."
Quando baixava catelosamente o pé direito até ao primeiro degrau do último
lance de escadas que conduzia à cozinha, o cheiro de peixe frito subiu ao seu
encontro. "Raios", pensou, "volta a ser tempo de abstinência. O que queria
verdadeiramente era bacon bem espesso."
De súbito, sem pré-aviso, o estômago contraiu-se e a garganta encheu-se.
Scarlett virou-se em pânico e precipitou-se em direção à janela. Segurou-se aos
cortinados abertos, com as mãos agarrando freneticamente, enquanto se debruçava da
janela e vomitava nas espessas folhas verdes da jovem magnólia do jardim. Os
vômitos repetiram-se, até ela ficar fraca, com a cara molhada de lágrimas e de suor
pegajoso. Depois deixou-se escorregar, desamparada, até ficar num monte infeliz,
caído no chão do corredor.
Limpou a boca com as costas da mão, mas esse fraco gesto em nada contribuiu
para apagar o sabor acre, amargo do interior. "Se ao menos pudesse beber um pouco
de água", pensou. Em resposta, o estômago contraiu-se e ela engasgou-se.
Scarlett abraçou-se pela cintura e chorou. "Ontem devo ter comido alguma coisa
deteriorada pelo calor. Vou morrer aqui mesmo, como um cão." A sua respiração era
difícil e arquejante. Se ao menos conseguisse desapertar o espartilho; este comprimia-
lhe o estômago dolorido, impedindo-a de inalar o ar de que necessitava. As rígidas
barbas de baleia pareciam constituir uma cruel e férrea prisão.
Nunca em toda a sua vida se sentira tão mal.
Ouvia as vozes dos familiares em baixo, Maureen perguntando onde ela estava,
Kathleen informando que não tardaria a descer. A seguir foi o ruído de uma porta, e ela
ouviu Colum. Também este perguntava por ela. Scarlett cerrou os dentes. Tinha que se
levantar. Tinha que descer. Não podia ser encontrada assim, babada como uma
criança, por se ter excedido na festa. Limpou as lágrimas das faces, com a bainha da
saia, e fez um esforço para se levantar.
- Aí vem ela - anunciou Colum quando Scarlett apareceu à porta. Correu logo na
sua direção. - Pobrezinha, Scarlett querida, parece que vens caminhando sobre vidros
partidos. Pronto, deixa-me pôr-te à vontade. - Pegou-lhe antes que ela pudesse dizer
palavra e transportou-a para a cadeira que Maureen rapidamente aproximara da
lareira.
Todos se atarefaram, esquecidos dos respectivos desjejuns, e no espaço de
breves segundos, Scarlett deu por si com os pés numa almofada e uma xícara de chá
nas mãos. Pestanejou para reprimir as lágrimas dos olhos, lágrimas de fraqueza e de
felicidade. Era tão bom que tomassem conta dela, que a amassem. Já se sentia mil
vezes melhor. Bebeu um cauteloso golinho de chá, e caiu bem.
Bebeu uma segunda xícara, e ainda uma terceira, e comeu uma fatia de pão
torrado. Contudo, afastou os olhos das frituras, peixe e batatas. Ninguém pareceu
reparar nisso. Havia movimento demais na organização dos livros e lancheiras das
crianças e no envio delas para a escola.
Quando a porta se fechou atrás delas, Jamie beijou Maureen na boca, Scarlett na
testa, Kathleen na face.
- Vou já para a loja - anunciou. - A decoração tem que ser retirada e o remédio
para as dores de cabeça posto em cima do balcão, onde todos os sofredores lhe
possam chegar com facilidade. Celebrar é formidável, mas o dia seguinte pode ser um
pesadelo.
Scarlett baixou a cabeça, para esconder o rosto corado.
Apenas dois dias mais tarde, conseguiu dançar horas seguidas na festa em honra
do regresso de Stephen de Boston. E não muito tempo depois encontrava-se numa
carruagem aberta, na companhia de Colum e Kathleen, a caminho das docas do cais
de Savannah.
Os preparativos não tinham custado nada. Os americanos não precisavam de
passaportes para entrarem nas ilhas britânicas. Nem sequer precisavam de cartas de
crédito, mas Colum insistiu em que obtivesse uma no seu banco.
- Só para estares prevenida - dissera. Não especificara para quê. Scarlett nem
queria saber. Estava fora de si com toda aquela aventura.
- Tens certeza que não perdemos o barco, Colum? - afligia-se Kathleen. -
Chegaste atrasado para nos buscar. Jamie e os outros saíram há uma hora para irem a
pé.
- Tenho certeza, tenho - acalmou-a Colum. Piscou um olho a Scarlett. - E, se me
atrasei um pouco, não foi culpa minha, visto que o grande Tom MacMahon quis brindar
ao bispo com um ou dois copos, e eu não podia insultá-lo.
- Se perdermos o barco, morro - gemeu Kathleen.
- Chiu, não te preocupes mais, Kathleen, meu anjo. O comandante não parte sem
nós; Seamus O'Brien é um amigo de muitos anos. No entanto, não será teu amigo se
chamares o Brian Boru de barco. É um navio, e por sinal dos melhores. Já vais ver.
Nesse momento a carruagem fez uma curva por baixo de um arco, e
mergulharam, em derrapagem e aos saltos, numa rampa escura, escorregadia,
empedrada. Kathleen gritou. Colum soltou uma gargalhada. Scarlett ficou sem fôlego
com a emoção.
Logo chegaram à beira-rio. O tumulto, a cor e a confusão eram ainda mais
excitantes que a abrupta descida até lá. Navios de todos os tamanhos e espécies
estavam atracados a protuberantes molhes de madeira, mais navios de que ela alguma
vez vira em Charleston. Carroças cheias, puxadas por fortes cavalos de carga, faziam
ressoar as suas rodas de madeira ou ferro sobre a vasta calçada, num ruído constante.
Homens gritavam. Barris rolavam por pranchas para cobertas de madeira com um
estrondo ensurdecedor. Um navio a vapor emitiu o seu apito estridente; outro tocou a
campainha ressonante. Uma fila de carregadores descalços percorria uma prancha de
embarque transportando fardos de algodão e cantando. Bandeiras de cores brilhantes
e estandartes vistosamente decorados oscilavam ao vento. Gaivotas desciam em vôo
picado e guinchavam.
O condutor da carruagem em que eles seguiam levantou-se e fez estalar o
chicote. O veículo avançou, pondo em fuga uma multidão de peões de boca aberta.
Scarlett riu sob o impacto do vento forte. Rodearam a alta velocidade uma falange de
barris que aguardavam a sua vez de serem carregados, passaram ruidosamente por
uma carroça lenta, e detiveram-se com um safanão.
- Espero que não esteja a contar com um pagamento extra pelos cabelos brancos
que me fez aparecer na cabeça - disse Colum ao condutor. Saltou para o chão e
estendeu a mão a Kathleen, para a ajudar a descer.
- Não te esqueceste da minha caixa, Colum? - perguntou ela.
- Todas as bagagens estão aqui há tempo, querida. Agora vai lá dar um beijo de
despedida nos teus primos. - Apontou na direção de Maureen. - É impossível não
notares aquela cabeça ruiva, que brilha como um farol. - Quando Kathleen se afastou
correndo, ele falou baixinho para Scarlett: - Não vais esquecer do que te disse sobre o
nome, não é, querida Scarlett?
- Não esqueço, não. - Ela sorriu, divertida com a conspiração inofensiva.
- Serás Scarlett O'Hara e nenhuma outra coisa, nesta viagem e na Irlanda -
dissera-lhe ele com uma piscadela de olhos. - Não tem nada a ver contigo, nem com os
teus, Scarlett querida, mas Butler é um nome de poderosa fama na Irlanda, e toda ela
atroz.
Scarlett não se importava nada. Ia deleitar-se em ser uma O'Hara durante tanto
tempo quanto possível.
Tal como Colum garantira, o Brian Boru era um dos melhores navios. O casco era
branco-brilhante, com ornamentação de arabescos dourados. Eram também dourados
os ornamentos da cobertura cor de esmeralda para as gigantescas rodas de pás, sobre
a qual estava pintado o nome em letras douradas, com mais de meio metro de altura,
enquadradas por setas igualmente douradas. A bandeira britânica esvoaçava no
respectivo poste, mas uma outra, de seda verde, com uma harpa dourada, acenava
corajosamente do mastro da proa. Tratava-se de um luxuoso navio de passageiros,
correspondendo aos gostos caros de americanos ricos em viagem à Irlanda por razões
sentimentais (para verem as aldeias onde tinham nascido avós emigrantes), ou por
ostentação (para visitarem, com estilo, as aldeias onde eles próprios nasceram). Salas
e salões eram excessivamente grandes e estavam excessivamente decorados. A
tripulação fora treinada no sentido de satisfazer todos os caprichos dos passageiros. O
porão era desproporcionadamente grande, quando comparado com os habituais nos
navios de passageiros, porque os americanos de origem irlandesa transportavam
consigo presentes para todos os familiares e regressavam com recordações múltiplas
das suas visitas. Os estivadores tratavam todas as malas e caixotes como se
estivessem cheias de vidros. E até era frequente estarem. Eram conhecidos casos de
esposas americanas, pertencentes a prósperas terceiras gerações de emigrantes
irlandeses, que iluminavam todas as salas das suas novas casas com candelabros de
cristal de Waterford.
Sobre a roda de pás fora construída uma vasta plataforma, com uma forte
balaustrada, da qual Scarlett, na companhia de Colum e mais alguns passageiros
aventurosos, acenou uma última despedida aos primos. No cais só tinha havido tempo
para uns adeuses apressados, porque o Brian Boru tinha que aproveitar a vazante.
Excitada, ela soprava beijinhos aos O'Hara amontoados. Naquela manhã não houvera
escola para as crianças, e até Jamie fechara a loja por uma hora para ele e Daniel irem
se despedir.
Ligeiramente para trás e ao lado dos outros estava o calmo Stephen, que ergueu
a mão uma só vez, num sinal para Colum.
Queria dizer que as malas de Scarlett tinham sido abertas e refeitas no caminho
para o navio. Entre as camadas de lenços, roupa interior e todos os gêneros de
vestidos, encontravam-se as espingardas bem acondicionadas e oleadas, e as caixas
de munições que ele adquirira em Boston.
Tal como os pais, avós e gerações anteriores, Stephen, Jamie, Matt, Colum, e até
o tio James, opunham-se todos com militância ao domínio inglês sobre a Irlanda. Havia
mais de duzentos anos que os O'Hara arriscavam as vidas para lutarem, por vezes
mesmo para matarem os seus inimigos, em pequenas ações abortadas, de partida
condenadas ao fracasso. Só nos últimos dez anos tinha começado a desenvolver-se
uma organização. Disciplinados e perigosos, financiados a partir da América, os
Fenianos estavam tornando-se conhecidos por toda a Irlanda. Eram heróis para os
camponeses irlandeses, anátema para os proprietários ingleses e, para as forças
militares inglesas, revolucionários só merecedores da morte.
Colum O'Hara era o mais bem sucedido angariador de fundos, e um dos
principais chefes clandestinos da Irmandade Feniana.
47
A torre
A travessia do Atlântico no Brian Boru era como uma contínua noite de sábado na
casa dos O'Hara em Savannah... só que ainda mais. A princípio Scarlett adorou.
O navio não tardou a ficar repleto de passageiros que entraram em Boston e
Nova Iorque, mas não pareciam nada ianques, pensava Scarlett. Eram irlandeses e
orgulhosos disso. Dispunham da vitalidade que era tão atraente nos O'Hara, e
aproveitavam tudo o que o navio tinha para oferecer. Havia atividades para todas as
horas do dia: torneios de damas, acalorados concursos de patinação, participação
entusiástica em jogos de azar, como apostas quanto ao número de milhas que o navio
percorreria no dia seguinte. À noite, cantavam com os músicos profissionais, e
dançavam animadamente todas as danças irlandesas e valsas vienenses.
Mesmo depois de acabado o baile, continuavam os divertimentos. Havia sempre
uma partida de Whist no salão de jogos de cartas para senhoras, e Scarlett era sempre
procurada para parceira. À exceção do café racionado em Charleston, as apostas eram
mais elevadas do que ela alguma vez vira, e cada jogada constituía uma excitação. O
mesmo acontecia com os seus ganhos. Os passageiros do Brian Boru eram a prova
viva de que a América correspondia a uma terra de oportunidades, e não se
importavam de gastar a riqueza recentemente adquirida.
Também Colum beneficiava com as suas mãos rotas. Enquanto as senhoras
jogavam cartas, os homens costumavam retirar-se para o bar do navio, a fim de
beberem uísque e fumarem charutos. Aí, Colum fazia chegar lágrimas de comiseração
e orgulho a olhos habitualmente astutos e secos. Falava da opressão da Irlanda sob
domínio inglês, invocava todo o conjunto de mártires da causa da liberdade irlandesa, e
aceitava contribuições consideráveis para a Irmandade Feniana.
Uma travessia no Brian Boru era sempre um empreendimento lucrativo, e Colum
fazia a viagem pelo menos duas vezes por ano, apesar de o luxo excessivo dos
camarotes e as refeições generosas o enojarem secretamente, quando pensava na
pobreza e necessidades dos irlandeses da Irlanda.
Ao chegar o fim da primeira semana, também Scarlett encarava os seus
companheiros de viagem com um olhar de desaprovação. Tanto os homens como as
senhoras mudavam de trajes quatro vezes por dia, para mostrarem melhor a extensão
dos seus dispendiosos guarda-roupas. Scarlett nunca vira tantas jóias na sua vida.
Tentava convencer-se de que era motivo de satisfação ter deixado as suas no cofre do
banco de Savannah; não brilhariam junto das que todas as noites eram exibidas na
sala de jantar. No entanto, a verdade é que não sentia satisfação alguma. Habituara-se
a ter mais de tudo do que todas as pessoas que conhecia: uma casa maior, mais
criados, mais luxo, mais coisas, mais dinheiro. Ficava decididamente frustrada ao ver
exibições mais vistosas do que as suas alguma vez tinham sido. Em Savannah,
Kathleen, Mary Kate e Helen tinham sido engenhosamente óbvias na sua inveja, e
todos os O'Hara haviam alimentado a necessidade que ela sentia de ser admirada.
Aquela gente no navio não a invejava, nem sequer a admirava assim muito. Scarlett
não estava nada satisfeita com tais pessoas. Não suportava a idéia de todo um país
cheio de irlandeses, se fossem assim. Se ouvisse Wearing o' the Green nem que fosse
só mais uma vez, desatava aos gritos.
- Trata-se simplesmente de os novos-ricos americanos não te agradarem, Scarlett
querida - acalmou-a Colum. - É que tu és uma grande dama. - Foi a melhor coisa que
ele podia ter dito.
Uma grande dama era o que Scarlett tinha de ser depois de estas férias
terminarem. Aproveitaria esta última oportunidade de ser livre e depois regressaria a
Charleston, vestiria as suas roupas monótonas, assumiria o comportamento social dela
esperado, e seria uma senhora para o resto da vida.
Pelo menos a partir de agora, quando Miss Eleanor e todas as outras pessoas de
Charleston falassem das suas viagens à Europa antes da guerra, não se sentiria tão de
fora. Também não diria que não lhe tinha agradado. As senhoras não diziam isso.
Inconscientemente, suspirou.
- Então, querida Scarlett, não é assim tão mau - continuou Colum. - Vê as coisas
pelo lado melhor: na mesa de jogo estás limpando-lhes os bolsos bem fundos.
Ela riu. Era verdade. Estava ganhando uma fortuna... havia noites em que
chegava aos trinta dólares. E quando contasse a Rhett!? O que ele riria! Afinal, fora
jogador nos barcos do Mississipi durante algum tempo. Vendo bem, até era positivo
ainda haver uma semana de viagem. Não teria que tocar num tostão do dinheiro de
Rhett.
A atitude de Scarlett para com o dinheiro era uma complexa mistura de avareza e
generosidade. Fora a sua medida de segurança durante tantos anos, que cada tostão
da fortuna que tanto lhe custara a ganhar era guardado com suspeitas iradas de quem
quer que lhe exigisse, real ou imaginariamente, um dólar que fosse. E, todavia,
aceitava a responsabilidade de sustentar as tias e a família de Melanie sem a pôr em
questão. Tomara conta delas mesmo quando ignorava onde encontraria os meios para
tomar conta de si própria. Se se desse alguma calamidade imprevista, continuaria a
tomar conta delas, mesmo que isso a obrigasse a passar fome. Não pensava no
assunto; era simplesmente assim que as coisas se passavam.
O que sentia em relação ao dinheiro de Rhett era igualmente incoerente. Como
mulher dele gastava livremente na casa de Peachtree Street, com as suas despesas
prodigiosas, e no seu próprio guarda-roupa e em artigos de luxo. Contudo, o meio
milhão que lhe dera era diferente. Inviolável. Tencionava restituir-lhe intacto quando
voltassem a ser verdadeiramente marido e mulher. Ele oferecera-lhe como pagamento
pela separação, e Scarlett não podia aceitá-lo porque não podia aceitar a separação.
Incomodava-a ter tido que tirar algum dos cofres do banco para o levar na
viagem. Tudo acontecera tão depressa que não tivera tempo de mandar vir de Atlanta
parte do seu próprio dinheiro. No entanto, pusera um vale na caixa onde ficara o ouro
restante, em Savannah, e estava disposta a gastar o menor número possível das
moedas de ouro que agora lhe mantinham as costas direitas e a cintura fina, enchendo
os espaços do espartilho onde antes tinham estado tiras de aço. Era muito melhor
ganhar no Whist e ter o seu próprio dinheiro para gastar. Bem, numa semana, com um
pouco de sorte, acrescentaria pelo menos mais cento e cinquenta dólares à sua bolsa.
Porém, não deixaria de ficar satisfeita quando a viagem terminasse. Mesmo com
todas as velas inchadas pelo vento, o Brian Boru era grande demais para ela sentir a
emoção que recordava de quando cavalgara a tempestade no porto de Charleston. E
nem um golfinho avistara, apesar das poéticas promessas de Colum.
- Lá estão, Scarlett, querida! - A voz de Colum, habitualmente calma e melodiosa,
elevou-se numa excitação; pegou o braço de Scarlett e arrastou-a para a amurada do
navio. - A nossa escolta chegou. Não tardaremos a ver terra.
Por cima, as primeiras gaivotas rodeavam o Brian Boru. Scarlett abraçou
impulsivamente Colum. E o fez de novo quando este apontou para as elegantes formas
prateadas, muito perto, no mar. Afinal sempre havia golfinhos.
Muito mais tarde, ficou entre Colum e Kathleen, tentando segurar o chapéu na
cabeça, sob o ataque de forte ventania. Estavam entrando no porto, usando a força do
vapor. Scarlett fitava atônita a ilha de rocha a estibordo. Parecia impossível que alguma
coisa, mesmo a imponente muralha de pedra escabrosa, conseguisse suportar o
ataque das ondas rebentando, batendo nela e atirando espuma branca a toda a sua
altura. Estava habituada às colinas arredondadas de Clayton County. Aquele penhasco
elevado era a visão mais exótica que alguma vez tivera.
- Ninguém tenta viver ali, não é? - perguntou a Colum.
Não há ponta de terra que seja desperdiçada na Irlanda - respondeu ele. -
Todavia, tem que se ser de uma raça corajosa para se viver em Inishmore.
- Inishmore. - Scarlett repetiu o belo e estranho nome. Tinha um som musical. E
não se assemelhava a nenhum outro nome que ela alguma vez tivesse ouvido.
A seguir ficou em silêncio; o mesmo aconteceu com Colum e Kathleen; cada um,
imerso nos seus pensamentos, olhava para a vasta extensão de cintilantes águas azuis
da baía de Galway,
Colum via a Irlanda à sua frente, e o coração enchia-se de amor por ela e de dor
pelos seus sofrimentos. Tal como fazia repetidamente, a cada dia que passava,
renovou o voto de destruir os opressores do seu país e de o restituir ao seu próprio
povo. Não estava preocupado com as armas escondidas nas malas de Scarlett. Os
funcionários da alfândega de Galway concentravam-se principalmente nas cargas dos
navios, assegurando-se de que eram pagos os direitos devidos ao governo britânico.
Olhariam com desprezo para o Brian Boru. Era o que sempre faziam. Os irlandeses
bem sucedidos na América gratificavam o sentimento de superioridade que tinham para
com ambos - os irlandeses e a América. Mesmo assim, fora uma sorte, pensava
Colum, ter conseguido convencer Scarlett a sair. A sua roupa de baixo era muito
melhor para esconder armas do que as dúzias de botas americanas e as chitas que
comprara. E ela até talvez abrisse um pouco os cordões da bolsa ao ver a pobreza do
seu próprio povo. As esperanças não eram muitas: Colum era realista, e logo
percebera o carácter de Scarlett. Não gostava menos dela por ser tão impensadamente
egoista. Era padre, e as fraquezas humanas eram perdoáveis... desde que os humanos
não fossem ingleses. De fato, mesmo quando estava manipulando Scarlett, gostava
dela, tal como gostava de todos os O'Hara.
Kathleen agarrava-se com força à amurada do navio. "Era capaz de saltar borda
fora e nadar, se não me agarrasse", pensava, "tal é a felicidade de estar me
aproximando da Irlanda, que sei ser capaz de nadar mais depressa que o navio. A
minha terra. A minha casa. Que maravilha!"
Scarlett respirou fundo, emitindo um guinchinho. Havia um castelo naquela ilhota
baixa. Um castelo! Não podia ser outra coisa, tinha uns dentes em cima. Que importava
que estivesse meio destruído? Era, realmente, verdadeiramente, um castelo, tal como
as gravuras dos livros para crianças. Estava ansiosa por descobrir como era aquela
Irlanda.
Quando Colum a ajudou a descer a prancha de desembarque, compreendeu que
entrara num mundo completamente diferente. Havia muito movimento nas docas, tal
como nas de Savannah, e elas eram barulhentas, cheias de gente, perigosas, com
carros apressados e estivadores a carregarem e descarregarem barris, caixotes e
fardos. Contudo, os homens eram todos brancos e gritavam uns para os outros numa
língua que nada lhe dizia.
- É gaélico, a antiga língua irlandesa - explicou Colum -, mas não precisas te
preocupar, Scarlett querida. O gaélico já quase não é conhecido em nenhum lugar da
Irlanda a não ser aqui no Ocidente. Todo mundo fala inglês; não terás problemas.
Como para o desacreditar, um homem falou para ele com uma pronúncia tão
acentuada que Scarlett a princípio nem percebeu tratar-se da língua inglesa.
Colum riu quando ela lhe contou.
- Tem um som esquisito, é, bem verdade - concordou -, mas garanto-te que é
inglês. E mesmo inglês tal como os ingleses o falam, todo o nariz, como se ele os
estivesse estrangulando. Tratava-se de um sargento do Exército de Sua Majestade.
Scarlett soltou uma risadinha:
- Pensei que fosse vendedor de botões. - O casaco do uniforme do sargento,
elaboradamente decorado, curto e estreito, tinha à frente mais de uma dúzia de
espessas tiras douradas, entre pares de botões de latão muito polido. Parecera-lhe
uma máscara. Enfiou a mão no braço de Colum. - Estou encantada por ter vindo -
afirmou. E estava. Tudo era tão diferente, tão novo. Não admirava que as pessoas
gostassem tanto de viajar.
- As nossas bagagens serão levadas para o hotel - anunciou Colum ao regressar
junto do banco onde deixara Scarlett e Kathleen sentadas. -Está tudo combinado.
Então, amanhã estaremos a caminho de Mullingar e de casa.
- Quem me dera que pudéssemos ir já - comentou Scarlett, esperançosamente. -
Ainda é cedo, pouco passa do meio-dia.
- Mas o trem partiu às oito, Scarlett querida. O hotel é bom, e também tem uma
boa cozinha.
- Recordo-me - disse Kathleen. - Desta vez vou fazer justiça a todos aqueles
doces especiais. - Estava radiante de felicidade, dificilmente reconhecível como a
jovem que Scarlett conhecera em Savannah. - Na viagem de ida sentia-me triste
demais para engolir fosse o que fosse. Oh, Scarlett, nem podes imaginar o que
significa para mim sentir a terra da Irlanda sob os meus pés. Tenho vontade de me pôr
de joelhos e beijá-la.
- Venham, as duas - chamou Colum. - Vamos ter concorrência para apanhar um
fiacreyy, porque hoje é sábado e dia de mercado.
- Dia de mercado? - repetiu Scarlett, qual eco.
Kathleen bateu palmas:
- Dia de mercado numa cidade grande como Galwayl Oh, Colum, deve ser uma
coisa grandiosa.
Ultrapassava a imaginação, era "grandioso", excitante e estranho para Scarlett.
Toda a praça relvada em frente do Hotel da Estação estava cheia de vida, uma vida
que se manifestava em cor. Quando o fiacre os deixou à porta do hotel, ela pediu logo
a Colum que fossem para lá, sem ligarem aos quartos, nem ao jantar. Kathleen fez-se
eco do mesmo desejo:
- Há muita comida nas barracas, Colum, e quero levar meias para oferecer às
pequenas. Não há parecidas na América, senão já as tinha comprado. A Brigid está
quase consumida por falta de meias, sei bem.
Colum sorriu.
- E a própria Kathleen O'Hara também deve estar um pouco consumida, não me
admiraria nada. Está bem, pronto. Vou tratar dos quartos. Tu te encarregas da prima
Scarlett, para que ela não se perca. Têm dinheiro?
- Algum, Colum. Jamie me deu.
- Isso é dinheiro americano, Kathleen. Não o podes gastar aqui.
Scarlett agarrou em pânico o braço de Colum. Que queria ele dizer? O seu
dinheiro não valia nada ali?
- Não é do mesmo gênero, é só, Scarlett querida. Vais achar o dinheiro inglês
muito mais confuso. Eu trato dos câmbios para todos nós. Quanto queres?
- Tenho todos os meus ganhos do Whist. Em notas verdes - disse estas últimas
palavras com desprezo e zanga. Todo mundo sabia que as notas verdes não valiam os
números nelas escritos. Devia ter obrigado as derrotadas a pagarem-lhe em prata ou
ouro. Abriu a bolsa e extraiu o maço de notas dobradas, de cinco, dez e um dólar. -
Troca-as, se puderes - pediu, entregando o dinheiro a Colum. Este ergueu a
sobrancelha.
- Tanto? Ainda bem que nunca me pediste que jogasse cartas contigo, querida
Scarlett. Deves ter aqui quase duzentos dólares.
- Duzentos e quarenta e sete.
- Olha para isto, Kathleen, meu anjo. Nunca mais verás uma tal fortuna toda junta.
Queres segurá-la?
- Oh, não, não me atreveria - recuou, de mãos atrás das costas, com os olhos
muito abertos fixos em Scarlett.
"Até parece que eu é que sou verde e não o dinheiro", pensou esta, pouco à
vontade. Duzentos dólares não era assim tanto. Pagara quase isso pela suas peles.
Com certeza Jamie devia fazer pelo menos duzentos dólares por mês na sua loja.
Kathleen estava exagerando.
- Tomem. - Colum estendia a mão. - Estão aqui uns xelins para cada uma. Podem
fazer umas compras enquanto eu vou ao banco, depois encontramo-nos naquela
barraca de empadas para comermos qualquer coisa. - Apontou para uma bandeira
amarela, que flutuava no centro da agitada praça.
Os olhos de Scarlett seguiram a direção do dedo e sentiu um baque no coração: a
rua entre a escadaria do hotel e a praça estava enchendo-se de gado em movimento
lento. Não ia conseguir atravessar!
- Eu trato disso, para as duas - assegurou Kathleen. - Aqui estão os meus
dólares, Colum. Vamos, Scarlett, me dá a mão.
A jovenzinha tímida que Scarlett conhecera em Savannah desaparecera.
Kathleen estava no seu ambiente. Tinha as faces e os olhos brilhantes. E o sorriso era
tão intenso como o sol, lá em cima, no céu.
Scarlett tentou dar uma desculpa, protestar, mas Kathleen manteve-se irredutível.
Passou por entre a manada, arrastando Scarlett atrás de si. Numa questão de
segundos, chegaram à relva da praça. Scarlett não teve tempo de gritar de medo, no
meio das vacas, nem de gritar de fúria, com Kathleen. E, uma vez na praça, ficou
fascinada demais para se lembrar do medo ou da fúria. Gostava dos mercados de
Charleston e Savannah pela sua atividade, cor e exibição de produtos. Porém, nada
era em comparação com um dia de mercado em Galway.
Para onde quer que olhasse, estava acontecendo alguma coisa. Homens e
mulheres regateavam, compravam, vendiam, discutiam, riam, louvavam, criticavam,
conversavam - tendo por objeto ovelhas, galinhas, galos, ovos, vacas, porcos,
manteiga, natas, cabras, burros, etc.
- Que fofos! - exclamou Scarlett ao ver cestos com leitõezinhos rosados,
guinchando... burrinhos peludos, com as orelhas compridas orladas de cor-de-rosa... e
(repetidas vezes) os vestidos coloridos usados pelas dúzias de mulheres jovens e
garotinhas. Ao ver a primeira, pensou que ela estava mascarada; depois viu outra, e
outra, e ainda outra, até perceber que estavam quase todas vestidas de maneira muito
semelhante.
Não admirava que Kathleen tivesse falado em meias! Para onde quer que
olhasse, Scarlett via tornozelos e pernas com riscas brilhantes: azuis e amarelas,
encarnadas e brancas, amarelas e encarnadas, brancas e azuis. As jovens de Galway
usavam sapatos de cabedal, recortados e com saltos baixos, não botas, e tinham as
saias dez a quinze centímetros acima dos tornozelos. E que saias! Largas, oscilantes,
de cores vivas como as meias, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas. As blusas eram
de tons mais escuros, mas também coloridas, com largas mangas abotoadas, e sobre
elas punham lenços de linho branco, engomados, que prendiam à frente com alfinetes
segurança. - Também quero meias, Kathleen! E uma das saias. E uma blusa e lenço.
Tenho que ter roupa assim. É encantadora!
Kathleen sorriu de prazer:
- Então, gostas da roupa irlandesa, Scarlett? Ainda bem. As tuas coisas são tão
elegantes que pensei que ririas das nossas.
- Quem me dera poder vestir-me assim todos os dias. É assim que te vestes
quando estás em casa? Moça de sorte, não admira que tivesses querido voltar.
- Estes são os melhores trajes, para virem ao mercado e atraírem os olhares dos
rapazes. Também vou te mostrar as coisas de todos os dias. Anda. - Kathleen agarrou
o pulso de Scarlett e conduziu-a por entre o amontoado de pessoas, tal como a
conduzira por entre as vacas. Perto do centro da praça havia mesas (tábuas sobre
tripés) cheias de adereços femininos. Scarlett arregalou os olhos. Queria comprar tudo
o que via. "Tantas meias... xales maravilhosos, tão suaves ao toque... Santo Deus, que
rendas! E na, a minha modista de Atlanta era capaz de vender a alma para colocar as
mãos em rendas tão ricas e pesadas como estas." Lá estavam elas, as saias! Ah, que
lindas, como ela ficaria bem com aquele tom de vermelho... e com a azul, também. Mas
atenção... havia outro azul na mesa ao lado, um azul mais escuro. Qual seria melhor?
Ah, vermelhos mais claros mais adiante...
Sentiu-se tonta com a fartura de opções. Tinha que tocar em todas; a lã era tão
macia, espessa, viva com calor e cor, sob a sua mão enluvada. Rapidamente, sem
querer saber das conveniências, descalçou uma luva, para poder sentir as lãs tecidas.
Não se assemelhavam a nenhum material que já tivesse tocado.
- Tenho estado à espera junto das empadas, com água na boca, devido à fome -
afirmou Colum. Pousou-lhe a mão no braço. - Não te aflijas, Scarlett querida, podes
voltar aqui. - Ergueu o chapéu e cumprimentou as mulheres vestidas de preto que se
encontravam por detrás das mesas: - Que o sol brilhe sempre sobre os vossos belos
trabalhos - disse. - Peco-vos desculpa em nome aqui da minha prima americana. Ela
ficou sem fala, de admiração. Agora vou dar-lhe de comer e, se aprouver a Santa
Erigida, no regresso já conseguirá falar com vocês.
As mulheres sorriram para Colum, deram mais umas olhadelas de lado a Scarlett
e disseram:
- Obrigada, reverendo - enquanto ele a afastava.
A Kathleen contou-me que tinhas ficado completamente atarantada - disse Colum
com uma risadinha. - Puxou-te uma dúzia de vezes pela manga, pobre menina, mas
nem para ela olhaste.
- Esqueci-a completamente - confessou Scarlett. - Nunca tinha visto tantas coisas
maravilhosas de uma só vez. Pensei em comprar umas roupas para me mascarar em
alguma festa. Mas não sei se consigo esperar para usar. Diz a verdade, Colum, achas
que enquanto estiver aquipoderei vestir-me como as jovens irlandesas?
- Não creio que devas fazer outra coisa, Scarlett querida..
- Que divertido! Que férias maravilhosas, Colum. Estou tão satisfeita por ter vindo.
- Todos nós estamos, prima Scarlett.
Ela não entendia nada do dinheiro inglês. A libra era de papel e pesava menos de
uma onça. O dinheiro era enorme, do tamanho de um dólar de prata, e a moeda de
dois dinheiros era mais pequena que a de um. Além disso, ainda havia moedas de
meio-dinheiro e outras chamadas xelins... Era tudo confuso demais. Em todo o caso,
também não tinha importância, era tudo de graça, dos ganhos do Whist. A única coisa
que contava era que as saias custavam dois desses xelins, os sapatos um. As meias
só valiam dinheiros. Scarlett passou a bolsa cheia de moedas para as mãos de
Kathleen:
- Faz que eu pare antes de esgotar o dinheiro - disse, e começou a fazer
compras.
Todos três iam carregadíssimos quando chegaram ao hotel. Scarlett comprara
saias de todas as cores e pesos - as mais finas também eram usadas por debaixo das
outras, dissera-Ihe Kathleen -, e dúzias de meias (para si própria, para Kathleen, para
Brigid, para todas as outras primas que ia conhecer). Também tinha blusas, e metros e
metros de rendas, largas, estreitas e transformadas em golas, lenços e capinhas muito
engraçadas. Havia uma capa azul, comprida, com capuz, mais uma vermelha, porque
não conseguira decidir-se, mais uma preta, porque Kathleen dissera que a maior parte
das pessoas usava preto todos os dias, e uma saia preta pela mesma razão, podendo
ser usada com outras coloridas por baixo. Lenços de pescoço, blusas e saiotes de
linho... um linho como ela nunca vira... e seis dúzias de lenços de assoar em linho.
Pilhas de xales; perdera-lhes a conta.
- Estou esgotada - gemeu Scarlett, feliz, deixando-se cair na poltrona estofada da
saleta, na suite que partilhava com Kathleen. Esta pôs-lhe no colo o dinheiro. Ainda
estava cheio até mais de metade. - Deus meu! - exclamou Scarlett -, vou mesmo gostar
da Irlanda!
Scarlett estava entusiasmada com as suas "máscaras" coloridas. Tentou
convencer Kathleen a "mascarar-se" com ela e voltarem à praça, mas a jovem foi
delicadamente firme na sua recusa:
- Vamos jantar tarde, Scarlett, conforme o hábito inglês do hotel, e amanhã temos
de partir cedo. Há muitos dias de mercado; temos um todas as semanas na vila, perto
da nossa aldeia.
- Mas não é como o de Galway, a julgar pelo que tu disseste - observou Scarlett,
desconfiada. Kathleen admitiu que a vila de Trim era muito, muito mais pequena.
Mesmo assim, não queria voltar à praça. Scarlett, de má vontade, deixou de insistir.
A sala de jantar do Hotel da Estação era conhecida pela ótima comida e pelo
excelente serviço. Dois criados de libré sentaram Kathleen e Scarlett a uma grande
mesa, junto de uma janela de sacada, protegida por numerosas cortinas, e depois
ficaram atrás das cadeiras, para as servirem. Colum tinha que se contentar com o
criado de casaca que se ocupava da mesa. Os O'Hara encomendaram um jantar de
seis pratos, e Scarlett estava fazendo todas as honras a um filé do famoso salmão de
Galway, com um molho muito delicado, quando ouviu música na praça. Afastou o
reposteiro de pesadas franjas, o cortinado de seda por baixo, e a espessa cortina de
renda ainda por baixo:
- Já sabia! - anunciou. - Bem que achei que devíamos voltar para lá. Estão
dançando na praça. Vamos imediatamente.
- Scarlett, querida, ainda agora começamos a jantar - argumentou Colum.
- Conversa fiada! Todos nós comemos quase até jogar fora no navio; a última
coisa de que precisamos é de outro jantar interminável. Quero vestir a minha roupa e ir
dançar.
Nada a dissuadiria.
"Isto faz muito mais sentido do que os nossos trens", pensou Scarlett ao ver todas
as portas abertas para os compartimentos individuais. Que agradável ter uma salinha
própria, em vez de se ficar num vagão com um monte de passageiros estranhos.
Também não se andava sempre pelo corredor, para entrar e sair, nem havia pessoas
quase caindo no colo de outras, ao passarem pelos lugares destas. Sorriu alegremente
para Colum e Kathleen:
- Gosto dos trems irlandeses. Gosto de tudo na Irlanda. - Instalou-se
confortavelmente no assento fofo, ansiosa por sair da estação para poder ver a
paisagem. Com certeza seria diferente da americana. A Irlanda não a desiludiu.
- Céus, Colum - comentou, depois de uma hora de viagem -, este país está
positivamente polvilhado de castelos! Há praticamente um em cada colina, e também
alguns na planície. Por que é que estão todos a caindo? Por que é que as pessoas não
vivem neles?
- Na maior parte dos casos são muito antigos, Scarlett, querida, têm quatrocentos
anos ou mais. As pessoas arranjaram formas mais cômodas de viverem.
Ela concordou com um aceno de cabeça. Fazia sentido. Devia ter havido muitas
corridas escada acima, escada abaixo naquelas torres. Não deixavam porém de ser
extremamente românticos. Voltou a comprimir o nariz contra a janela:
- Ah! - exclamou. - Que pena! Acabou-se a minha observação de castelos. Está
começando a chover.
- Já pára - prometeu Colum.
O que aconteceu, antes de chegarem à estação seguinte.
- Ballinasloe - Scarlett leu o nome em voz alta. - Que lindos nomes que as vossas
vilas têm. Como se chama a terra onde vivem os O'Hara?
- Adamstown - respondeu Colum. Riu da expressão no rosto de Scarlett. - Não,
não é muito irlandês. Mudava-o para ti, se pudesse, mudava-o para todos nós, se
pudesse. Contudo, o dono é inglês e não gostaria.
- Uma pessoa é dona da vila inteira?
- Nem sequer é vila, o nome é só jactância inglesa. Até mal consegue ser aldeia.
Recebeu o nome do filho do inglês que a construiu, um presentinho para o Adam, foi o
que a propriedade constituiu. Desde então foi herdada pelo filho, neto, etc. O que a tem
agora nunca a vê. Vive quase sempre em Londres. O seu procurador que se ocupa de
tudo.
Havia algum azedume nas palavras de Colum. Scarlett decidiu ser melhor não
fazer perguntas. Contentou-se em procurar castelos.
Precisamente quando o trem começou a abrandar para a estação seguinte, viu
um enorme, que não estava nada em ruínas. Com certeza alguém lá vivia! Um
cavaleiro? Um príncipe? Longe disso, informou Colum; era o quartel de um regimento
do exército britânico.
"Oh, desta vez com certeza que falei besteira!", pensou Scarlett. As faces de
Kathleen estavam em chamas.
- Já arranjo chá para todos - disse Colum, quando o trem parou. Baixou o vidro da
janela e inclinou-se para fora. Kathleen tinha os olhos fitos no chão. Scarlett pôs-se em
pé ao lado de Colum. Era bom endireitar os joelhos. - Senta-te, Scarlett - ordenou com
firmeza. Ela obedeceu. No entanto, ainda conseguiu ver na plataforma grupos de
homens elegantemente uniformizados, e Colum abanando a cabeça quando lhe
perguntaram se havia lugares vagos no compartimento. Que esperteza! Ninguém podia
ver para além dele, porque os seus ombros enchiam a janela, e havia três grandes
lugares vagos, que ninguém ocupava. Teria que se lembrar, da próxima vez que
andasse num trem irlandês, no caso de Colum não a acompanhar.
Este passou para dentro canecas de chá e um volumoso embrulho de pano,
precisamente quando o trem começou a pôr-se outra vez em movimento.
- Experimenta uma especialidade irlandesa - disse-lhe, sorrindo agora -, chama-
se rosca com fermento. - O pano de linho rústico continha grandes fatias de um
delicioso pão leve, recheado de frutas. Scarlett comeu também o de Kathleen, e
perguntou a Colum se lhe podia comprar mais quando parassem na estação seguinte.
- Podes ficar com fome em cerca de meia hora? Nessa hora sairemos do trem e
já poderemos tomar uma refeição como deve ser. - Scarlett concordou, encantada. A
novidade do trem e da paisagem polvilhada de castelos já começava a esfumar-se.
Estava pronta para chegar onde quer que iam.
Porém, o letreiro na estação dizia "Mullingar", não "Adamstown". "Pobre
inocente", comentou Colum, "não a informara? Só podiam fazer parte do caminho de
trem. Depois de jantarem, fariam o resto da viagem por estrada. Eram só mais uns
trinta e dois quilômetros: Chegariam em casa antes que escurecesse.
Trinta e dois quilómetros? Mas essa era a distância de Atlanta a Jonesboro!
Levariam uma eternidade, e já estavam no trem há praticamente seis horas. Teve de
fazer um esforço de vontade para sorrir simpaticamente quando Colum lhe apresentou
o amigo Jim Daly. Este nem sequer era bonito. O seu carro, porém, era. Tinha rodas
altas, pintadas de vermelho-vivo e perfis azuis brilhantes, com J. DALY escrito em
letras de um dourado forte. "Seja qual for o seu negócio", pensou Scarlett, "está
saindo-se bem nele."
O negócio de Jim Daly era constituído por um bar e uma fábrica de cerveja.
Mesmo sendo dona de um bar, na América, Scarlett nunca entrara lá; o fato de entrar
na grande sala que cheirava a malte a fez sentir-se agradavelmente perversa. Olhou
com curiosidade para o comprido balcão de carvalho polido; todavia, não dispôs de
tempo para absorver os pormenores antes de Daly abrir outra porta e lhe dar
passagem para um corredor. Os O'Hara iam jantar com ele e a família, na residência
por cima da loja.
O jantar foi bom, mas bem podia estar em Savannah. Não havia nada de diferente
ou estrangeiro em perna de borrego com molho de hortelã e puré de batata. E toda a
conversa girou à volta dos O'Hara de Savannah, da sua saúde e do que faziam. A mãe
de Jim Daly, acabou Scarlett por saber, era mais uma prima O'Hara. Não se importava
por estar na Irlanda, muito menos por cima de um bar. Também nenhum dos Daly
parecia muito interessado na opinião dela, fosse sobre o que fosse. Estavam ocupados
demais conversando uns com os outros.
As coisas melhoraram depois do jantar. Jim Daly insistiu em lhe dar o braço para
um passeio por Mullingar, para ver as vistas. Colum e Kathleen seguiram-nos. "Não
que haja muito para se ver", pensou Scarlett. "É uma vilinha, só com uma rua e cinco
vezes mais bares que lojas, mas é agradável esticar as pernas." A praça da vila não
tinha metade das dimensões da de Galway, e nada estava acontecendo lá. Uma
garotinha com um xale negro sobre a cabeça e os ombros aproximou-se deles de mão
estendida em concha:
- Deus vos abençoe, excelências - gemeu. Jim deixou-lhe cair algumas moedas
na mão, e ela repetiu a bênção enquanto fazia uma vênia. Scarlett ficou atônita. Então
aquela menina pedia esmola, descaradamente?! Quem não lhe daria nada era ela; não
havia nenhuma razão para a garota não trabalhar para viver: parecia suficientemente
saudável.
Houve uma explosão de gargalhadas, e Scarlett virou-se, para ver o que a
provocara. Um grupo de soldados entrara na praça, vindo de uma rua lateral. Um deles
atormentava a pedinte, segurando uma moeda a altura superior à que ela conseguia
atingir. Brutamontes! No entanto, o que pode esperar uma pessoa que dá um
espetáculo assim, pedindo na rua... E ainda por cima a soldados. Todo mundo sabe
que são brutos e malcriados... Em todo o caso, tinha que admitir, dificilmente se podia
acreditar que aquele grupo era de soldados. Pareciam mais grandes bonecos, para um
rapazinho brincar, com aqueles uniformes esquisitos, cheios de complicações. Era
evidente que as suas únicas ações de soldados consistiam em marchar em paradas,
nos dias de festa. Graças a Deus, não havia na Irlanda verdadeiros soldados, como os
ianques. Nem cobras, nem ianques.
O soldado jogou a moeda numa poça imunda, com uma película de impurezas, e
voltou a rir com os colegas. Scarlett viu as duas mãos de Kathleen agarrarem o braço
de Colum. Este libertou-se, porém, e encaminhou-se para os soldados e para a
pedinte. Oh, Deus, iria começar um sermão acerca do comportamento de bons
cristãos? Colum arregaçou a manga e ela conteve a respiração: "Parece-se tanto com
o paizinho! Irá desencadear uma luta?"
Colum ajoelhou no empedrado e pescou a moeda da poça infecta. Scarlett
expirou, quase com um assobio de alívio. Nem por um minuto se preocuparia se Colum
fizesse frente a um daqueles efeminados soldados britânicos, mas cinco talvez fossem
demais, mesmo para um O'Hara. Afinal, por que havia ele de se incomodar tanto com
os problemas de uma pedinte?
Colum endireitou-se, de costas viradas para os soldados. Estes tinham ficado
visivelmente pouco à vontade com a evolução que a sua graça sofrera. Quando Colum
pegou o braço da mulher e a afastou, eles voltaram-se na direção oposta e
encaminharam-se rapidamente para a esquina seguinte.
"Pronto, e não houve danos", pensou Scarlett. "Exceto para os joelhos das calças
de Colum. Suponho que de qualquer modo tenham muito uso, já que ele até é padre.
Curioso, esqueço-me disso a maior parte do tempo. Se a Kathleen não me tivesse
arrastado para fora da cama logo de madrugada, nem me teria lembrado de que
tínhamos que ir à Missa antes de apanhar o trem."
O balanço do passeio pela vila foi muito sumário. Não havia barcos à vista no
Royal Canal, e Scarlett não se deixou minimamente influenciar pelo entusiasmo de Jim
Daly em viajar para Dublim por esse meio, e não de trem. Por que havia ela de se
interessar por ir a Dublim? Queria era pôr-se a caminho de Adamstown.
Não tardou muito que o seu desejo fosse satisfeito. Quando regressaram, estava
uma pequena carruagem, de aspecto pobre, à porta do bar de Jim Daly. Um homem de
avental e em mangas de camisa estava carregando as malas do porão para cima da
carruagem; as mais pequenas já estavam presas atrás. Se o malão de Scarlett pesava
muito menos agora que na estação, quando Jim Daly e Colum o tinham posto no carro
daquele, ninguém o referiu. Quando as malas ficaram presas, o homem em mangas de
camisa desapareceu no interior do bar. Voltou pouco depois, de casaco, capa e chapéu
alto de cocheiro:
- Também me chamo Jim - informou concisamente. - Vamos embora.
Scarlett subiu e sentou-se no lugar mais afastado. Kathleen instalou-se ao seu
lado, Colum em frente.
- Que Deus vos acompanhe - despediram-se os Daly.
Scarlett e Kathleen acenaram com os lenços, do lado de fora da janela. Colum
desabotoou o casaco e tirou o chapéu.
- Não posso falar por mais ninguém aqui, mas vou tentar dormir um pouco -
anunciou. - Espero que as senhoras não fiquem incomodadas com os meus pés. -
Retirou as botas e esticou-se, pousando no assento, entre Scarlett e Kathleen, os pés
calçados apenas com meias.
Elas olharam uma para a outra, logo se inclinando para desapertarem as botas.
Dentro de minutos, também estavam instaladas, com as cabeças sem chapéus
encostadas nos cantos da carruagem e os pés flanqueando Colum. "Ah, se tivesse o
meu traje de Galway, me sentiria no céu", pensou Scarlett. Um dos esteios do
espartilho, cheio de moedas de ouro, espetava-lhe nas costelas, fosse qual fosse a
posição que assumisse. Mesmo assim, adormeceu rapidamente e com facilidade.
Acordou uma vez, quando a chuva começou a salpicar a janela, mas o seu som
suave não tardou a embalá-la, fazendo-a adormecer de novo. Quando voltou a
acordar, o Sol brilhava:
- Já chegamos? - inquiriu, sonolenta.
- Não, ainda temos muito que andar - respondeu Colum. Scarlett olhou para fora e
bateu palmas perante aquilo que viu.
- Ah, reparem em tantas flores! Se estendesse a mão, poderia colher uma. Colum,
abre a janela, vai. Vou fazer um ramalhete.
- Abrimos quando pararmos. As rodas levantam poeira demais.
- Mas eu quero flores daquelas.
- É só uma sebe, querida Scarlett. Há iguais por todo o caminho até em casa.
- Deste lado também, vês? - interveio Kathleen. Era verdade, verificou Scarlett. A
trepadeira desconhecida e as suas brilhantes flores cor-de-rosa estavam igualmente ao
alcance de Kathleen. Que maneira maravilhosa de viajar, com paredes de flores dos
dois lados. Quando os olhos de Colum se fecharam, ela baixou devagar o vidro da
janela.
- Não tardaremos a chegar a Ratharney - disse Colum -, depois são só mais uns
quilômetros e estaremos em County Meath.
Kathleen suspirou de felicidade. Os Olhos de Scarlett cintilaram. County Meath.
"O paizinho falava como se fosse o paraíso, e parece-me que estou vendo porquê."
Cheirou a tarde doce através da janela aberta, um misto de ligeiro perfume das flores
cor-de-rosa, rico odor campestre da relva aquecida pelo Sol, vindo dos campos
invisíveis, para lá das sebes, e intenso traço de ervas, proveniente do interior das
próprias sebes. "Então se ele pudesse estar aqui comigo, seria perfeito. Assim, vou ter
que apreciar o dobro, por ele e por mim." Inalou profundamente e captou no ar
vestígios da frescura da água.
- Acho que vai voltar a chover - afirmou.
- Não é para durar - prometeu Colum -, e tudo cheira melhor depois.
Ratharney chegou e passou tão depressa que Scarlett mal viu fosse o que fosse.
Num minuto havia sebe, no seguinte esta desaparecera, ficando uma parede sólida no
seu lugar, e ela olhava pela janela da carruagem, com outra janela aberta, do mesmo
tamanho, em frente, onde uma cara a confrontava. Ainda estava tentando ultrapassar o
choque dos olhos estranhos, que aparecerem do nada, quando a carruagem passou
ruidosamente pelo último edifício da fila e a sebe voltou. Nem sequer tinham abrandado
a velocidade.
Não tardaram, porém, a ter que fazê-lo. A estrada começara a ondear, em curvas
apertadas. Scarlett tinha metade da cabeça de fora da janela, tentava ver o caminho
em frente.
- Já estamos em County Meath, Colum?
- Falta pouco.
Passaram por uma pequena casa de campo, quase na velocidade de passos,
pelo que Scarlett a viu bem. Sorriu e acenou à rapariguinha ruiva que se encontrava de
pé, do lado de dentro da porta. A criança sorriu também, correspondendo ao
cumprimento. Os dentes de leite da frente já tinham caído, e a falta deles dava um
encanto especial ao seu sorriso. Tudo na casa encantara Scarlett. Era feita de pedra,
com as paredes de um branco brilhante, com janelinhas quadradas cujos caixilhos
estavam pintados de vermelho. A porta também era vermelha, e dividida ao meio, com
a parte de cima aberta para dentro de casa. A cabeça da criança mal ultrapassava a
meia porta; para além desta, Scarlett viu a forte iluminação de uma lareira numa sala
obscura, O melhor de tudo era a casa ter teto de colmo, recortado nos beirais. Parecia
a ilustração de um conto de fadas. Virou-se para sorrir a Colum.
- Se aquela menina fosse loura, ficava à espera de a ver transformar-se em burro.
Percebeu pela expressão de Colum que ele não percebera a que se referia.
- A "Pele-de-Burro", tonto!
Ele abanou a cabeça.
- Santo Deus, Colum, é um conto de fadas. Não têm contos de fadas na Irlanda?
Kathleen desatou a rir. Colum sorriu.
- Scarlett querida - disse -, não sei nada dos teus contos de fadas nem dos teus
burros, mas se queres fadas podes ter certeza de que vieste ao lugar certo. A Irlanda
está abarrotada de fadas.
- Colum, sério.
- Estou falando sério. E vais ter que aprender tudo sobre fadas, para não te
meteres em complicações. Repara que quase todas constituem pequenos
inconvenientes, mas, por exemplo, com o leprechaun sapateiro todos gostariam de ter
um encontro...
A carruagem parara abruptamente. Colum pôs a cabeça para fora da janela.
Quando a voltou para dentro, já não sorria. Estendeu a mão para o lado de Scarlett e
pegou a correia que acionava o vidro da janela. Com um puxão rápido, o fez subir:
- Fiquem sentadas, sem se mexerem, e não falem com ninguém - ordenou em
tom ríspido mas baixo. - Faz com que ela fique sossegada, Kathleen. - Enfiou os pés
nas botas e os dedos foram velozes com os atacadores.
- Que houve? - interrogou Scarlett.
- Chiu - fez Kathleen.
Colum abriu a porta, agarrou o chapéu, desceu para a estrada e fechou
novamente a porta. Ao afastar-se tinha o rosto cinzento de pedra.
- Kathleen.
- Chiu. É importante, Scarlett. Fica calada.
Ouviu-se um baque surdo, que se repercutiu de tal modo que as paredes de
couro da carruagem vibraram. Mesmo através das janelas fechadas, Scarlett e
Kathleen ouviam as palavras gritadas às pressas por um homem algum lugar à frente.
- Eia! Cocheiro! Toca a andar. Isto não é nenhum divertimento para ficares de
boca aberta olhando. E você, Padre! Volte para o caixote e desapareça. - A mão de
Kathleen fechou-se em torno da de Scarlett.
A carruagem oscilou sobre as molas e moveu-se lentamente em direção ao lado
direito da estrada estreita. Os ramos espetados e os espinhos da sebe rasparam no
couro espesso. Kathleen afastou-se do ruído na janela e aproximou-se de Scarlett.
Houve outro estrondo, e ambas tiveram um sobressalto. A mão de Scarlett apertou a
de Kathleen. O que estava acontecendo?
Com a carruagem avançando com dificuldade, aproximaram-se de outra casa de
campo, idêntica à que Scarlett achara idílica para a princesa pele-de-burro. De pé à
porta aberta de par em par encontrava-se um soldado de farda negra com galões
dourados que colocava dois banquinhos de três pernas em cima de uma mesa, do lado
de fora da porta. À esquerda desta, um oficial uniformizado cavalgava um baio vivaz, e
à direita estava Colum, falando baixo com uma mulherzinha chorosa. O xale negro
desta escorregara-lhe da cabeça, e o cabelo ruivo espalhara-se pelos ombros e faces.
Tinha um bebê nos braços, Scarlett via-lhe os olhos azuis e a penugem arruivada na
cabecinha redonda. Uma menininha, que bem podia passar por gêmea da criança
sorridente da meia-porta, soluçava para o avental da mãe. Tanto esta como a filha
encontravam-se descalças. A meio da estrada havia um grupo de soldados dispersos,
junto de um enorme tripé constituído por troncos de árvores. Um quarto tronco pendia,
oscilante, de cordas atadas ao topo do tripé.
- Toca a andar, Patri! (Diminutivo de Patrick, usado pejorativamente para designar
os irlandeses. - N. da T.) - gritou o oficial. A carruagem guinchava e raspava na sebe.
Scarlett sentia Kathleen tremer. Algo de terrível estava acontecendo ali.
"Pobre mulher, parece prestes a desmaiar... ou a enlouquecer por completo.
Espero que Colum a possa ajudar."
A mulher caiu de joelhos.
"Meu Deus, vai desmaiar e deixar cair o bebê!" Scarlett estendeu a mão para o
fecho da porta e Kathleen agarrou-lhe o braço.
- Kathleen, deixa-me...
- Fica quieta, pelo amor de Deus, quieta e calada. - A desesperada urgência no
sussurro de Kathleen deteve Scarlett.
"O que há?", Scarlett observava, sem crer no que os seus próprios olhos viam. A
chorosa mãe agarrava-se à mão de Colum, beijando-a. Sobre a cabeça dela, este fez o
sinal da cruz. Depois ajudou-a a pôr-se em pé. Tocou na cabeça do bebê, na da
menininha e, com as duas mãos nos ombros da mãe, virou-a, para não ficar de frente
para a casa.
A carruagem continuou a avançar, lentamente, e por detrás deles recomeçaram
os fortes embates abafados. A carruagem voltou a afastar-se da sebe, para a estrada,
e depois mesmo para o centro desta.
- Cocheiro, pare! - gritou Scarlett antes de Kathleen a poder impedir. Estavam
deixando Colum para trás, e ela não podia permitir que isso acontecesse.
- Não, Scarlett, não - implorava Kathleen, mas a prima já tinha a porta aberta
antes de a carruagem cessar o seu movimento.
Afastou-se pela estrada, correndo na direção do barulho, esquecida de que a
cauda da sua saia à moda batia na fina camada de lama.
O espectáculo e o estrondo que se depararam aos seus olhos e ouvidos
detiveram-na, e ela gritou, chocada, o seu protesto. O oscilante tronco de árvore
embateu outra vez nas paredes da casa, e a fachada desta desmoronou-se para o
interior, esmigalhando janelas, numa chuva de brilhantes bocadinhos de vidro limpo e
polido. Os caixilhos vermelhos das janelas caíram no pó erguido pelo desmoronar das
pedras brancas, e as duas partes da porta vermelha dobraram-se uma sobre a outra. O
barulho foi horrendo: rangente... estrondoso... chiante como um ser vivo.
Por um momento, seguiu-se então o silêncio, até se ouvir outro som (um crepitar
que se transformou em ronco) e aparecer o cheiro espesso e sufocante da fumaça.
Scarlett viu os archotes nas mãos de três soldados, as chamas devorarem o colmo do
teto. Recordou-se do exército de Sherman, das paredes e chaminés tisnadas de
Twelve Oaks, de Dunmore, Landing, e gemeu de desgosto e terror. Onde estava
Colum? Oh, Deus do céu, que lhe teria acontecido?
A forma dele, vestida de escuro, saiu apressadamente da fumaça negra que
invadia a estrada.
- Vamos embora - gritou para Scarlett. - Volta para a carruagem.
Antes que ela conseguisse libertar-se do transe de horror que a mantinha fixa ao
chão, Colum estava ao seu lado, agarrando-lhe o braço com a mão.
- Vamos, Scarlett querida, não te demores - incitou, com urgência dominada. -
Agora temos de ir para casa.
A carruagem precipitou-se para a frente, a toda a velocidade que os cavalos
podiam dar na estrada serpenteante. Scarlett era atirada de um lado para o outro, entre
a janela fechada e Kathleen, mas quase nem dava por isso. Ainda tremia, devido à
estranha e terrível experiência. Só quando a carruagem abrandou para um movimento
calmo, o seu coração parou de bater aos pulos e ela conseguiu respirar normalmente.
- O que aconteceu ali atrás? - quis saber. A sua voz soou estranha a ela própria.
- A pobre mulher estava sendo despejada - explicou Kathleen vivamente -, e o
Colum foi confortá-la. Não devias ter interferido daquela maneira, Scarlett. Isso podia
ter causado problemas a todos nós.
- Calma, Kathleen, não deves ser tão brusca - interveio Colum. - A Scarlett não
podia saber, tendo acabado de vir da América.
Scarlett pensou em protestar que conhecia coisas piores, muito piores, mas
deteve-se. Tinha mais urgência em compreender.
- Por que razão estava sendo despejada? - perguntou.
- Não tinham dinheiro para pagar a renda - explicou Colum. - E o pior é que o
marido tentou deter o processo quando a milícia veio da primeira vez. Bateu num
soldado e levaram-no para a prisão, deixando-a com as crianças e ainda por cima
cheia de medo pelo que pudesse suceder a ele.
- Isso é muito triste. Ela parecia tão digna de compaixão. Que irá fazer, Colum?
- Tem uma irmã numa outra casa à beira da estrada, não muito longe. Mandei-a
para lá.
Scarlett descontraiu-se um pouco. Era lamentável. A pobre mulher ficara tão
perturbada. Em todo o caso, havia de ficar bem. A irmã devia ser a da casa da pele-de-
burro, e não era longe. E afinal as pessoas tinham a obrigação de pagar as rendas.
Também ela não se coibiria de arranjar um novo arrendatário para o bar, se o atual não
lhe pagasse. Quanto ao marido bater no soldado, isso era verdadeiramente
imperdoável. Devia saber que iria para a cadeia por isso. Devia ter pensado na mulher
antes de fazer uma coisa tão estúpida.
- Mas por que destruíram a casa?
Para impedir que os inquilinos voltem para lá.
Scarlett disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Que disparate! O dono podia arrendá-la a outra pessoa.
Colum parecia cansado.
- Ele não quer alugá-la. Há um pouco de terreno ligado à casa, e ele vai fazer
aquilo a que chamam "organizar" a propriedade. Vai transformar tudo em pasto, para
enviar para o Mercado o gado depois da engorda. Por isso é que subiu as rendas de tal
modo que nenhum inquilino as pode pagar. Já não está interessado em cultivar a terra.
O marido sabia que isso se aproximava; todos sabem, uma vez iniciado o processo.
Têm meses de espera, até não terem nada para vender, a fim de conseguirem o
dinheiro para a renda. São esses meses que fazem crescer a ira num homem e o
levam a tentar ganhar com os punhos... Quanto às mulheres, é o desespero que as
dilacera, ao verem a derrota dos seus homens. Aquela pobre criatura com o bebê ao
peito estava tentando pôr a fraqueza da sua carne e dos seus ossos entre o aríete e a
casa do marido. Esta era tudo o que ele tinha para o fazer sentir-se homem.
Scarlett não soube que dizer. Não fazia idéia de que coisas daquelas pudessem
acontecer. Era tudo tão mesquinho. Os ianques eram piores, mas isso fora na guerra.
Não se tratara de destruição para que uma manada de vacas pudesse ter mais erva.
Pobre mulher. Bem, e se fosse Maureen, com o Jacky ao colo, quando era bebê?
- Tem certeza de que ela vai para casa da irmã?
- Concordou em ir, e não é pessoa para mentir a um padre.
- Então vai ficar bem, não vai?
Colum sorriu.
- Não te preocupes, Scarlett querida. Vai ficar bem.
- Até a quinta da irmã ser organizada. - A voz de Kathleen soou rouca. A chuva
salpicou as janelas, antes de começar a cair com força. A água começou a empapar o
interior da carruagem, junto da cabeça de Kathleen, entrando por uma fenda rasgada
pela sebe. - Então, Colum, me dá o teu lenço grande, para tapar este buraco? - Pediu
ela com uma gargalhada. - E és capaz de fazer uma oração de padre, para o sol
voltar?
Como podia ela estar tão bem-disposta, depois de tudo aquilo, e ainda por cima
com um buraco enorme na carruagem? E, santo Deus, o próprio Colum ria com ela!
Estavam andando mais depressa, muito mais depressa. O cocheiro devia estar
louco. Era impossível que alguém visse através de uma chuvada daquelas, e além
disso a estrada era muito estreita e cheia de curvas. Ainda eram capazes de abrir dez
mil rasgões por onde entrasse a chuva.
- Não sentes a ansiedade a apoderar-se dos valentes cavalos de Jim Daly,
Scarlett querida? Pensam que estão numa corrida. Porém, eu sei que uma extensão
destas só se pode encontrar em County Meath. Com certeza nos aproximamos de
casa. É melhor informar-te sobre os seres minúsculos, antes que encontres um
leprechaun e não saibas com quem estás falando.
Subitamente, a luz do Sol entrou numa faixa oblíqua através das janelas
molhadas da chuva, transformando gotas de água em fragmentos do arco-íris. "Não é
natural haver chuva num minuto, Sol no seguinte e depois outra vez chuva", pensou
Scarlett. Desviou os olhos dos arcos-íris, na direção de Colum.
- No desfile de Savannah viste uma frouxa imitação deles - começou Colum -, e
devo dizer-te que ainda bem para todos os que viram que não há leprechauns na
América, porque a sua ira teria sido terrível e eles teriam convocado todos os seus
companheiros do maravilhoso para se vingarem. Na Irlanda, todavia, onde lhes é
atribuído o respeito adequado, não incomodam ninguém, se ninguém os incomodar.
Procuram um lugar agradável e instalam-se nele, para exercerem a sua atividade de
sapateiros. Não em grupo, repara, porque os leprechauns são solitários, mas um num
local, outro noutro, e assim por diante, até... se ouvires histórias suficientes... poderes
ficar à espera de encontrar um em cada riacho e pedregulho do país. Sabe-se que lá
está por se ouvir o tape-tape-tape do seu martelo batendo na sola e no salto do sapato.
Então, se a pessoa rastejar tão silenciosamente como uma lagarta, talvez o apanhe
desprevenido. Há quem diga que tem que o segurar por um braço ou tornozelo, mas é
convicção quase geral de que basta fixá-lo para o capturar. Ele implorará que o
libertem, mas tem que recusar. Prometerá satisfazer o maior desejo da pessoa que o
capturou, mas sabe-se que mente e não se pode acreditar nele. Ameaçará com uma
grande maldição, mas nada pode fazer de mal, pelo que se desdenha da sua
fanfarronada. E por fim será obrigado a comprar a liberdade com o tesouro que tem
escondido num lugar seguro, nas proximidades. E que tesouro! Um pote de barro cheio
de ouro, talvez sem grande aspecto para o olhar desprevenido, mas o pote é feito com
grande e enganadora esperteza de leprechaun, e não tem fundo, pelo que se pode
sempre tirar ouro, até ao fim da vida, e ele nunca se esgotará. O leprechaun dará tudo
isso só para se ver livre; não gosta de estar acompanhado. A sua natureza é solitária, a
todo o custo. Contudo, uma temível esperteza também faz parte dessa natureza, de tal
modo que consegue superiorizar a quase todos aqueles que o capturam, distraindo-
lhes a atenção. E, se a pessoa abranda a força ou olha para outro lado, ele desaparece
num instante, não ficando outra riqueza além da história da aventura para contar.
- Não me parece difícil uma pessoa agarrar ou manter os olhos fixos, se isso
corresponder à obtenção de um tesouro - comentou Scarlett. - Essa história não faz
sentido.
Colum riu.
- Prática e desempoeirada, querida Scarlett, és precisamente o tipo de pessoa a
quem os seres minúsculos gostam de pregar peças. Contam poder fazer o que
quiserem, porque nunca os considerarás como sendo a respectiva causa. Se fores
passear por uma vereda e ouvires bater, nem te darás ao trabalho de parar para ir ver
o que se passa.
- Eu o faria, se acreditasse nesses disparates.
- Estás vendo? Não acreditas e não pararias.
- Treta, Colum! Estou vendo onde queres chegar. Estás me criticando por não
apanhar uma coisa que para começar nem está lá. - Começava a irritar-se. Jogos de
palavras e de espírito eram escorregadios demais e não serviam para nada.
Nem reparou que Colum a distraíra da expulsão.
- Já falaste à Scarlett na Molly, Colum? - perguntou Kathleen. - Ela tem direito a
ser avisada, parece-me.
Scarlett esqueceu-se dos leprechauns. Entendia de bisbilhotices e gostava disso.
- Quem é a Molly?
- É a primeira O'Hara de Adamstown que vais conhecer - informou Colum -, irmã
da Kathleen e minha.
- Meia irmã - corrigiu Kathleen -, e essa metade está a mais, na minha opinião.
- Conta - encorajou Scarlett.
A história levou tanto tempo para ser contada que acabou quando a viagem
estava quase chegando ao fim, mas Scarlett nem deu pelo tempo ou os quiômetros
passarem. Estava sendo informada sobre a sua própria família.
Colum e Kathleen também eram meios irmãos, ficou ela sabendo. O pai, Patrick -
que era um dos irmãos mais velhos de Gerald O'Hara -, casara três vezes. Os filhos da
primeira mulher incluíam Jamie, que fora para Savannah, e Molly, que era, no dizer de
Colum, uma grande beleza.
Talvez quando nova, na versão de Kathleen.
Depois da morte da primeira mulher, Patrick casara com a segunda, a mãe de
Colum; e, depois da morte desta, casara com a mãe de Kathleen, que também era a
mãe de Stephen.
"O silencioso", comentou Scarlett para si.
Havia dez primos O'Hara para ela conhecer em Adamstown, alguns com filhos e
até netos. Patrick, Deus tivesse a sua alma em descanso, morrera havia quinze anos, a
perfazer no próximo dia 11 de Novembro.
Além disso havia o tio Daniel, ainda vivo, com os seus filhos e netos. Desses,
Matt e Gerald estavam em Savannah, mas seis tinham permanecido na Irlanda.
- Não vou conseguir diferenciá-los a todos - disse Scarlett com apreensão. Ainda
confundia algumas das crianças O'Hara de Savannah.
- O Colum te faz começar da maneira mais fácil - afirmou Kathleen. - Na casa de
Molly não há nenhum O'Hara a não ser ela, que até era capaz de negar o seu próprio
nome.
Colum, perante o comentário azedo de Kathleen, explicou o que se passava com
Molly. Esta era casada com um homem chamado Robert Donahue, "caloroso" em
termos materiais, com uma grande e próspera quinta de quarenta e tal hectares. Era
aquilo a que os irlandeses chamavam um "agricultor forte". Molly começara por
trabalhar como cozinheira na casa de Donahue. Quando a mulher dele morreu, Molly
tornou-se, depois do conveniente período de luto, a sua segunda mulher, e a madrasta
dos seus quatro filhos. Havia cinco filhos deste segundo casamento - o mais velho era
muito grande e saudável, apesar de ter nascido com quase três meses de
antecedência -, mas já eram todos adultos e tinham ido viver nas suas próprias casas.
Molly não era dedicada à sua família O'Hara, informou Colum com neutralidade, e
Kathleen resmungou, mas isso talvez se devesse ao fato de o marido ser o rendeiro
das terras que cultivavam. Além de ter a sua própria quinta, Robert Donahue alugava
terrenos, e era uma quinta mais pequena que subalugava aos O'Hara.
Colum começou a enumerar e nomear os filhos e netos de Robert, mas nessa
altura já Scarlett decidira catalogar a avassaladora maré de nomes e idades como "os
descendentes". Só voltou a prestar verdadeiramente atenção quando ele falou da sua
própria avó.
A velha Katie Scarlett ainda vive na casa que o marido construiu para ela quando
casaram, em 1789. Nada a convencerá a mudar-se. O meu pai, e da Kathleen, casou
pela primeira vez em 1815 e levou a noiva para viver nessa casa já cheia de gente.
Quando os filhos começaram a aparecer, construiu perto uma casa enorme, com
espaço para todos crescerem, e uma cama quente, junto à lareira, especialmente para
a mãe, para quando chegasse a uma idade avançada. No entanto, a velhota nem quer
ouvir falar nisso. Então o Sean vive com a avó e as pequenas, como a Kathleen, tratam
da casa.
- Quando não podemos fugir a isso - acrescentou Kathleen. - De fato, a avó não
dá trabalho nenhum, é só passar com a vassoura e o pano de pó, mas o Sean é capaz
de procurar lama num chão acabado de ser limpo. E a quantidade de coisas dele que
temos para coser! É capaz de dar cabo de uma camisa nova quase antes de os últimos
botões terem sido costurados. Sean é irmão da Molly e nosso meio irmão. É um
péssimo exemplo de homem, quase tão insignificante como Timothy, embora tenha
bem mais vinte anos.
O cérebro de Scarlett andava à roda. Não se atreveu a perguntar quem era
Timothy, com medo de lhe ser atirada mais uma dúzia de nomes.
Em todo o caso, nem teria tempo para isso. Colum abriu a janela e gritou para o
cocheiro.
- Detenha-se, Jim, se faz favor, para eu descer e ir reunir-me a ti, aí na boleia. Ali
à frente temos que fazer um desvio; terei que lhe indicar o caminho.
Kathleen prendeu-lhe a manga.
- Oh, Colum querido, diz que também posso descer e ir já para casa. Estou
ansiosa por lá chegar. A Scarlett não se importa de ir sozinha para casa da Molly, não
é, Scarlett? - Sorriu-lhe com tanta esperança que a interpelada teria concordado,
mesmo que não desejasse ficar uns minutos entregue a si própria.
Não ia para casa da beleza (por muito desvanecida que estivesse) da família
O'Hara sem primeiro cuspir num lenço e limpar o pó da cara e das botas. Depois um
pouco de água de colônia, do recipiente de prata que tinha na bolsa, pó-de-arroz, e
talvez um pouquinho de rouge.
O desvio para casa de Molly passava pelo meio de um pequeno pomar; o
crepúsculo tingia de malva os aerosos botõezinhos que se destacavam contra o céu
azul-escuro, baixo. Filas muito direitas de canteiros de primaveras debruavam os
ângulos da casa quadrangular. Estava tudo impecavelmente limpo.
No interior também. Na sala havia coberturas no jogo de sofás em rígida crina de
cavalo, cada mesa tinha uma toalha branca, engomada, com aplicações de renda, não
havia cinzas na lareira a carvão, com grade de latão brilhantemente polido.
A própria Molly era impecável no vestuário e nas maneiras. O vestido cor de vinho
estava ornamentado com dúzias de botões de prata, todos cintilantes; o cabelo escuro
era brilhante e estava muito bem penteado sob uma delicada touca branca com
trabalho em relevo e abas de renda. Ofereceu a face direita e depois a esquerda ao
beijo de Colum e exprimiu "um milhar de boas-vindas" a outra O'Hara, quando Scarlett
foi apresentada.
"E nem sequer sabia que eu vinha." Scarlett ficou favoravelmente impressionada,
apesar da inegável beleza de Molly. Esta tinha a pele mais aveludada e clara que ela
alguma vez vira, e os seus cintilantes olhos azuis eram destituídos de olheiras ou
papas. "Também quase não tem pés-de-galinha, nem uma ruga que valha a pena
mencionar, a não ser do nariz até à boca, e dessas até há jovens que as têm", resumiu
Scarlett numa apreciação rápida. Colum devia ter se enganado, Molly não podia de
maneira nenhuma estar na casa dos 50.
- Estou satisfeitíssima por te conhecer, Molly, e tão agradecida que até me faltam
as palavras por me acolheres na tua encantadora casa - disse Scarlett de um jato. Não
que a casa fosse grande coisa. Estava limpa como se tivesse sido acabada de pintar,
isso era verdade, mas a sala não era maior que o mais pequeno quarto da sua
residência de Peachtree Street.
- Colum, acho que vou matar a querida prima Molly. Se pudesses ter ouvido
ontem à noite ao jantar aquele horrível Robert dizer-nos como fomos privilegiadas por
passearmos nos estúpidos caminhos do jardim do conde. Deve tê-lo dito umas
setecentas vezes, e de cada uma Molly tagarelou por dez minutos sobre a emoção que
foi. E depois, esta manhã, quase desmaiou quando me viu com estas roupas de
Galway.
Então não foi nenhuma vozinha de senhora, deixa-me que te diga. Pregou-me um
sermão sobre lhe arruinar a posição e ser um embaraço para o Robert. Para o Robert!
Ele devia ficar embaraçado de cada vez que vê ao espelho a sua estúpida cara gorda.
Como se atreve a Molly a fazer sermões sobre envergonhá-lo?
Colum deu uma pancadinha na mão de Scarlett.
- Não é a melhor companhia que eu desejo para ti, Scarlett querida, mas a Molly
tem as suas virtudes. Não te esqueças de que nos emprestou a carripana para o dia
todo, e vamos dar um grande passeio sem que a lembrança dela o ensombre. Repara
nas flores de espinheiro negro nestas sebes, e nas ginjas tão maduras ali naquele
quintal. O dia está bonito demais para o desperdiçarmos com rancor. E tu pareces uma
encantadora garota irlandesa, com as tuas meias listradas e saiote vermelho.
Scarlett estendeu os pés e riu. Coluna tinha razão: por que havia ela de deixar
que Molly lhe estragasse o dia?
Foram a Trim, vila antiga, com uma história muito rica, que Colum sabia
perfeitamente não interessar nada a Scarlett. Então falou-lhe antes do Mercado todos
os sábados, tal como o de Galway, só que, tinha que confessar, bastante menor.
Porém, quase todos os sábados havia uma mulher que lia o destino, o que raramente
acontecia em Galway, e prometia uma sorte gloriosa a quem pagasse dois dinheiros,
felicidade razoável por um dinheiro, e só tribulações se a bolsa não desse para mais de
meio dinheiro.
Scarlett riu... Colum conseguia sempre fazê-la rir... e tocou na bolsinha que trazia
pendente entre os seios. Ficava escondida pela blusa e pela capa azul de Galway.
Nunca ninguém saberia que usava duzentos dólares em ouro em vez de espartilho.
Aquela liberdade era quase indecente. Não saía de casa sem espartilho desde os 11
anos de idade.
Colum mostrou-lhe o famoso castelo de Trim, e Scarlett fingiu interessar-se pelas
ruínas. A seguir mostrou-lhe a loja onde Jamie trabalhara desde os 16 anos até ir para
Savannah, com 42, e o interesse de Scarlett foi genuíno. Conversaram com o dono da
loja, e é claro que este não podia fazer menos que fechá-la e acompanhar os visitantes
ao andar de cima, para falarem com a esposa, que de certeza morreria de desgosto se
não pudesse ouvir as notícias de Savannah diretamente dos próprios lábios de Colum
e conhecer a O'Hara de visita, que já era tema de conversa em toda a região devido à
sua beleza e ao seu encanto americano.
Depois, os vizinhos tinham que ser informados de que aquele era um dia especial
e de quem eram as visitas, e apressaram-se a subir às salas por cima da loja, até ao
ponto de Scarlett ter certeza de que as paredes deviam estar dilatando.
Seguidamente:
- Os Mahoney ficarão ofendidos se viermos a Trim e não os formos ver - afirmou
Colum quando por fim deixaram a casa do antigo patrão de Jamie. Quem? A família de
Maureen, claro, que tem o maior bar de Trim; e Scarlett alguma vez provara cerveja
preta? O número de pessoas foi ainda maior desta vez, e chegavam mais a cada
minuto, não tardando a haver violinistas e viandas. As horas passaram correndo, e
instalava-se o prolongado crepúsculo quando iniciaram a breve viagem até
Adamstown. O primeiro aguaceiro do dia (era um fenômeno haver tanto Sol, no dizer
de Colum) intensificou o odor dos botões de espinheiro. Scarlett puxou para cima o
capuz da sua capa, e ambos cantaram durante todo o caminho até a aldeia.
- Vou parar aqui no bar para ver se há carta para mim - informou Colum. Enrolou
as rédeas do potro em torno da bomba da aldeia. Num instante, apareceram cabeças
nas meias-portas abertas de todos os edifícios.
- Scarlett - chamou Mary Helen -, o bebê tem mais um dente, vem beber uma
xícara de chá e vê-lo.
- Não, Mary Helen, vem tu com bebê, dente, marido e tudo - interveio Clare
O'Gorman, O'Hara de nascimento. - Então ela não é minha prima direta e o meu Jim
não está mortinho por a conhecer?
- E também é minha prima, Clare - gritou Peggy Monaghan. - E tenho rosca
levedada no fogão porque ouvi dizer que lhe agrada muito.
Scarlett não sabia o que fazer.
- Colum! - chamou.
Era fácil, disse ele. Iriam a todas as casas uma por vez, a começar pela próxima,
reunindo amigos à medida que avançassem. Quando toda a aldeia estivesse numa das
casas, aí ficariam durante algum tempo.
- Não demais, repara, porque tens que vestir as tuas roupas chiques para o jantar
da Molly. Ela tem imperfeições, como todos nós, mas não podes fazer-lhe desfeita sob
o seu próprio teto. A Molly esforçou-se demais para se libertar desse tipo de saiotes
para conseguir suportar vê-los na sua sala de jantar.
Scarlett pousou a mão no braço de Colum.
- Achas que posso ficar na casa do Daniel? - perguntou.
- Realmente detesto estar na da Molly... De que ri, Colum?
- Tenho pensado em como convencer a Molly a deixar-nos ficar com a campana
mais um dia. Agora acho que consigo persuadi-la a pô-la à nossa disposição para o
resto da tua visita. Vai lá ver o novo dente, que eu vou ter uma pequena conversa com
a Molly. Não te ofendas, Scarlett querida, mas é provável que ela prometa seja o que
for se eu lhe garantir que te levo para outro lado. Nunca se esquecerá do que disseste
das elegantes luvas de pelica do Robert para cuidar das vacas. É a história mais
apreciada em todas as cozinhas desde aqui até Mullingar.
A hora da ceia, Scarlett estava instalada no quarto "sobre" a cozinha. O tio Daniel
até sorriu quando Colum contou a história das luvas de Robert. Esta notável ocorrência
foi acrescentada à história, tornando-a ainda melhor para quando fosse recontada.
Foi supreendentemente fácil a adaptação de Scarlett à simplicidade da casa com
duas divisões de Daniel. Com quarto só para si, cama confortável e Kathleen em
permanente mas discreta atividade de limpeza e cozinha, Scarlett só tinha que gozar
as suas férias. E foi o que fez - o mais possível.
Durante a semana seguinte Scarlett esteve mais ocupada e, sob certos aspectos,
mais feliz do que nunca. Sentia-se mais forte fisicamente do que se lembrava de
alguma vez se ter sentido. Liberta da constrição da moda do espartilho apertado e com
armação metálica, conseguia movimentar-se mais depressa e respirar profundamente
pela primeira vez em muitos anos. Além disso, era daquelas mulheres cuja vitalidade
aumenta com a gravidez, como que em resposta às necessidades da vida crescendo
no seu interior. Dormia profundamente e acordava ao cantar do galo com um apetite
devorador para o desjejum e para o dia que se lhe deparava.
Este produzia sempre a confortável delícia de prazeres já conhecidos e o estímulo
de novas experiências. Colum estava sempre ansioso por a levar "à aventura", como
dizia, na carripana com potro da Molly. Contudo, tinha primeiro que a arrancar aos seus
novos amigos. Estes começavam a enfiar a cabeça pela porta de Daniel imediatamente
a seguir ao desjejum. Para uma visita, para a convidarem a visitá-los, com uma história
que ela talvez ainda não tivesse ouvido, ou uma carta da América que precisava da
explicação do sentido de algumas palavras ou expressões. Scarlett era a especialista
na América e era-lhe pedido repetidas vezes que contasse como era o país. No
entanto, também era irlandesa, embora, coitadinha, tivesse estado na ignorância desse
fato, havendo portanto dúzias de coisas a dizer-lhe, a ensinar-lhe e a mostrar-lhe.
Havia nas mulheres irlandesas uma simplicidade que a desarmava: era como se
pertencessem a outro mundo, tão estranho como aquele em que todas acreditavam e
em que duendes dos mais diversos tipos faziam coisas mágicas e encantadas. Ria
abertamente quando todas as noites Kathleen punha na soleira da porta um pires com
leite e um prato com pão esmigalhado para o caso de passar "gente pequena" com
fome. E, quando na manhã seguinte tanto o pires como o prato apareciam vazios e
limpos, Scarlett dizia com bom senso que algum dos gatos do celeiro por lá devia ter
passado. O seu ceticismo não incomodava minimamente Kathleen, e a ceia desta para
os duendes tornou-se, para Scarlett, uma das coisas mais encantadoras da vida com
os O'Hara.
Outra coisa encantadora era o tempo que passava com a avó. "É rija como couro
para sapatos", pensava Scarlett com orgulho, e imaginava que fora o sangue da avó
correndo-lhe nas veias que lhe permitira ultrapassar as épocas desesperadas da sua
vida. Era freqüente correr para a casinha e, se a velha Katie Scarlett estava acordada e
disposta a falar, sentava-se num banco e pedia histórias sobre o seu paizinho
crescendo.
Por fim, cedia às incitações de Colum e subia para a campana, para a aventura
do dia. Aquecida pelas saias de lã, protegida por capa e capuz, aprendeu em poucos
dias a não ligar ao forte vento de Oeste nem aos breves aguaceiros que tão
freqüentemente se seguiam.
Era uma chuva dessas que caía quando Colum a levou à "verdadeira Tara". A
capa de Scarlett enfunava à sua volta quando chegou ao topo da escadaria de pedras
irregulares que subia a encosta da pequena colina onde os reis da Irlanda tinham
governado e tocado música, amado e odiado, festejado e batalhado, e por fim sido
derrotados.
"Nem sequer há castelo." Scarlett olhou em seu redor e nada mais viu a não ser
algumas ovelhas dispersas, pastando. Os seus velos pareciam cinzentos, sob o céu
cinzento, na luminosidade cinzenta. Teve um arrepio, surpreendendo-se a si própria.
"Um ganso passou por cima da minha sepultura." A explicação da infância ocorreu-lhe,
fazendo-a sorrir.
- Agrada-te? - indagou Colum.
- Ah, sim, é muito bonito.
- Não mintas, Scarlett querida, e não procures nada bonitinho em Tara. Vem
comigo. - Estendeu a mão e Scarlett pôs nela a sua.
Juntos caminharam lentamente pelo espesso relvado, até chegarem a uma zona
irregular, com o que lhe pareceram montículos de erva sobre a terra. Colum passou por
cima de alguns deles e deteve-se.
- São Patrício em pessoa esteve onde nós estamos agora. Então era um homem,
um simples missionário, provavelmente não maior que eu. A santidade veio depois, e o
santo cresceu nos espíritos das pessoas até se tornar um gigante, invencível, armado
com a Sagrada Palavra de Deus. É melhor, creio, recordar que começou por ser um
homem. Deve ter tido medo... só, em sandálias e capa, enfrentando o Grande Rei e os
seus magos. Patrício nada mais tinha que a sua fé, a sua missão de verdade e a
obrigação de a partilhar. O vento devia ser frio. A sua necessidade de partilha devia ser
como uma chama a consumi-lo. Já infringira as leis do Grande Rei ao acender uma
enorme fogueira numa noite em que a lei impunha que todas as fogueiras fossem
extintas. Podia ter sido morto pela desobediência, sabia-o. Incorrera em tão grande
risco para atrair as atenções do rei e lhe provar a magnitude da mensagem que ele,
Patrício, transportava! Não temia a morte, só temia desiludir Deus. Tal não aconteceu.
O rei Laog-haire, do alto do seu antigo trono coberto de jóias, concedeu ao audaz
missionário o direito de pregar sem ser incomodado. E a Irlanda tornou-se cristã.
Havia, na voz calma de Colum, algo que obrigou Scarlett a escutar e a tentar
compreender o que ele dizia e ainda mais para além disso. Nunca pensara nos santos
como pessoas, passíveis de terem medo. De fato, nunca pensara muito nos santos;
eram apenas nomes de feriados. Agora, olhando para a figura atarracada de Colum,
para a sua cara vulgar e para o cabelo grisalho despenteado pelo vento, conseguia
imaginar a cara e a figura de outro homem de aspecto vulgar, na mesma disposição.
Ele não tinha medo de morrer. Como era possível que uma pessoa não tivesse medo
de morrer? Como seria? Sentiu-se humanamente dominada pela inveja de São
Patrício, de todos os santos, até, de certa forma, de Colum. "Não compreendo, nem
nunca compreenderei", pensou. O entendimento foi vagaroso e constituiu um forte
peso. Aprendera uma grande verdade, penosa e perturbadora. Há coisas profundas
demais, complexas demais, conflituosas demais para serem explicadas ou
compreendidas numa base quotidiana. Scarlett sentiu-se sozinha, exposta ao vento de
Oeste.
Colum continuou a caminhar, conduzindo-a. Foram só algumas dezenas de
passos até o lugar onde parou.
- Ali - chamou a atenção dela -, aquela fila de montículos, vês?
Scarlett disse que sim com um aceno de cabeça.
- Devias ter música e um copo de uísque para contrariar o efeito do vento e
abrires os olhos, mas nada disso tenho para te oferecer, portanto talvez seja melhor
fechá-los para veres. É tudo o que resta do salão de banquetes de mil castiçais. Os
O'Hara estavam lá, Scarlett querida, e as Scarletts, e todos os que conheces:
Monaghan, Mahoney, MacMahon, O'Gorman, O'Brien, Danaher, Donahue, Carmody...
e também outros que ainda não conheces. Todos os heróis lá estavam. A comida, essa
era formidável e em quantidade, e a bebida também. E música capaz de fazer saltar o
coração do peito. Havia um milhar de convivas, iluminados por um milhar de castiçais.
Consegues ver, Scarlett? As chamas brilharem duas, três, dez vezes, refletidas como
eram nas pulseiras de ouro que tinham nos braços e nas canecas de ouro que levavam
às bocas, e nos vermelhos, verdes e azuis profundos das grandes jóias com fechos de
ouro que lhes sustinham nos ombros as capas carmins. Que gloriosos apetites
tinham... para o veado, o javali e o ganso assado, cintilando na sua gordura... para o
hidromel e o uísque... para a música que lhes levava os punhos a baterem nas mesas,
com os pratos de ouro saltando e tilintando uns nos outros. Consegues ver o teu
paizinho? E Jamie? E aquele malandro do Brian, com os seus olhares de lado para as
mulheres? Oh, que festejos! Consegues vê-los, Scarlett?
Esta riu juntamente com Colum. Sim, o paizinho teria cantado a plenos pulmões
Peg in a Low-backed Car e exigido que lhe enchessem a caneca uma última vez,
porque o canto dava uma sede terrível a um homem. Como ele teria adorado!
- Haveria cavalos - garantiu. - O paizinho tinha sempre um cavalo.
- Cavalos tão fortes e belos como grandes ondas precipitando-se sobre a costa.
- E alguém com paciência para depois colocá-lo na cama.
Colum soltou uma gargalhada. Passou-lhe os braços em volta e abraçou-a, para
logo a largar.
- Sabia que sentirias como esses fatos foram gloriosos - afirmou. Havia orgulho
nas suas palavras, orgulho dela. Scarlett sorriu-lhe, com os olhos parecendo
esmeraldas vivas.
O vento fez cair o capuz para os ombros, e foi cálido o ar que sentiu na cabeça. O
aguaceiro passara. Ergueu os olhos para o céu azul recém-lavado: nuvens de um
branco ofuscante moviam-se quais bailarinas sob o efeito do forte vento. Pareciam tão
próximas, e o céu irlandês tão caloroso e protetor.
Foi então que o seu olhar recaiu sobre a Irlanda à sua frente, com os verdes
sucessivos dos campos cultivados, de tenras folhas novas, de sebes cheias de vida.
Podia ver até tão longe, até a nublada curvatura da Terra. Algo antigo e pagão
remexeu-se bem no fundo do seu interior, e a rudeza mal domesticada que
correspondia ao seu ser escondido invadiu-lhe fervorosamente o sangue. Ser rei era
isto, estar assim acima do mundo, assim perto do Sol e do céu. Abriu os braços para
abraçar a vida, naquela colina, com o mundo a seus pés.
- Tara - disse Colum.
- Senti-me tão estranha, Colum, nada como é habitual em mim. - Scarlett pôs um
pé num dos raios amarelos da roda e subiu para o assento da campana.
- É dos séculos, Scarlett querida. Toda a vida ali vivida, toda a alegria e toda a
tristeza, todas as festas e batalhas, tudo isso está no ar ao redor e na terra por baixo
de nós. É o tempo, anos para além da nossa possibilidade de contagem, pesam sem
peso sobre a Terra. Não se pode ver, não se pode cheirar, não se pode ouvir, não se
pode tocar, mas sente-se passar-nos pela pele e falar sem som. Tempo. E mistério.
Scarlett puxou a capa bem em torno de si, apesar do Sol quente.
- Foi como junto ao rio, também me fez sentir de certo modo estranha. Estive
quase a atribuir-lhe um nome, mas perdi-o. - Falou-lhe da ida ao jardim do conde, do
rio e da vista da torre.
- Com que então "as melhores casas têm vista"? - A voz de Colum estava terrível
de ira. - Foi o que a Molly disse?
Scarlett embrulhou ainda mais o corpo na capa. Que dissera de tão errado?
Nunca vira Colum assim, era um estranho, nada o Colum que conhecia.
Ele virou-se na sua direção e sorriu, e Scarlett viu que se enganara.
- Que tal se me encorajares na minha fraqueza, Scarlett querida? Os cavalos de
corrida vão ser hoje apresentados em Trim. Gostaria de lhes ir dar uma olhada, para
escolher aquele em que apostarei na corrida de domingo.
Ela ficou entusiasmada com a idéia.
Eram quase dezesseis quilômetros até Trim. "Não é longe", pensou Scarlett.
Porém, a estrada dava voltas e reviravoltas e mudava de sentido de vez em quando,
tomando direções que a afastavam da que eles pretendiam, para dar de novo voltas e
reviravoltas, até que por fim iam outra vez para onde queriam. Scarlett concordou
entusiasticamente quando Colum sugeriu que parassem numa aldeia para uma xícara
de chá e algo para comer. De regresso à carripana, percorreram um breve caminho até
uma encruzilhada, onde viraram para uma estrada mais larga e reta. Ele chicoteou o
cavalo para este seguir a trote. Passados poucos minutos, voltou a chicoteá-lo com
mais força e percorreram a galope uma aldeia grande, tão depressa que a carripana
vacilava sobre as suas rodas altas.
- Aquela terra parecia deserta - comentou ela, quando abrandaram novamente. -
Porquê, Colum?
- Ninguém quer viver em Ballyhara; tem uma história má.
- Que pena, parecia bem bonita.
- Já foste a alguma corrida de cavalos, Scarlett?
- A uma corrida a sério só uma vez, em Charleston, mas na terra estávamos
sempre tendo corridas por divertimento. O paizinho era o pior. Não suportava andar só
a cavalo e conversar com quem fosse ao lado. Tinha que transformar em corrida todos
os quilômetros do percurso.
- E por que não?
Scarlett riu. Às vezes Colum era tão parecido com o paizinho.
- Devem ter fechado tudo em Trim - disse, ao ver a multidão na pista de corridas. -
Todos estão aqui. - Viu muitas caras conhecidas. - Suponho que também tenham
fechado em Adamstown. - Os rapazes O'Hara acenavam e sorriam. Ela não os
invejaria se por acaso o velho Daniel os visse. A abertura das valas ainda não estava
completa.
A oval de terra batida tinha quase cinco quilômetros de extensão. Havia
trabalhadores completando a instalação do último obstáculo, pois a corrida seria com
barreiras. Colum prendeu o animal a uma árvores, a alguma distância da pista, e
abriram caminho por entre a multidão.
Todo mundo estava bem-disposto, e todos conheciam Colum; todos queriam
conhecer Scarlett, "a jovem senhora que inquirira sobre o hábito de Robert Donahue
usar luvas para a agricultura".
- Sinto-me a mais bela do baile - sussurrou a Colum.
- E quem melhor para o lugar? - Seguia à frente, com muitas paradas, até a zona
onde os cavalos estavam sendo conduzidos em círculos pelos seus cavaleiros ou
treinadores.
- Mas, Colum, são magníficos. Que fazem cavalos assim numa corrida numa
pequena vila tão singela?
Ele explicou que a corrida não era pequena nem "singela". Tinha um fundo de
cinquenta libras para o vencedor, mais do que muitos donos de lojas ou agricultores
ganhavam num ano. Além disso, os saltos eram um verdadeiro teste. Um vencedor em
Trim podia fazer frente a todos os outros em corridas mais famosas, como as de
Punchestown, Galway ou mesmo Dublim.
- Ou ganhar por dez comprimentos qualquer corrida na América - acrescentou
com um sorriso. - Os cavalos irlandeses são os melhores do mundo, é um saber
reconhecido em todo lugar.
- Tal como o uísque irlandês, suponho - comentou a filha de Gerald O'Hara.
Ouvira ambas as afirmações durante toda a sua vida. Os obstáculos pareciam-lhe altos
demais; talvez Colum tivesse razão. As corridas deviam ser excitantes. E antes seria
dia de Mercado em Trim. De fato, ninguém podia desejar melhores férias.
Uma espécie de ruído subterrâneo fazia-se ouvir através das conversas, risos e
exclamações da multidão.
- Luta! Luta!
Colum trepou o gradeamento para ver. Um grande sorriso espalhou-se pelo rosto,
e a mão direita em punho fechado foi bater na palma esquerda em concha.
- Então vais querer fazer uma pequena aposta, Colum? - desafiou o homem que
se encontrava ao seu lado no gradeamento.
- Vou. Cinco xelins nos O'Hara.
Scarlett quase fez desequilibrar Colum ao agarrar-lhe o tornozelo.
- Que se passa?
A multidão afastava-se do terreno ovalado e dirigia-se para o local dos distúrbios.
Colum saltou para baixo, pegou o pulso de Scarlett e correu.
Três ou quatro dúzias de homens, novos e velhos, gritavam e berravam numa
confusão de punhos, botas e cotovelos. A multidão descrevia em volta deles um vasto
círculo irregular, soltando exclamações de encorajamento. Duas pilhas de casacos a
um dos lados testemunhavam a repentina erupção da luta: muitos tinham sido despidos
tão às pressas que o forro das mangas ficara virado para fora. Dentro do círculo havia
camisas ficanco vermelhas de sangue derramado, do seu dono ou do homem que ele
atingia. Não havia padrão nem ordem estabelecida. Cada homem atingia o que lhe
estivesse mais próximo, depois olhava em redor, à procura de novo alvo. Quem caísse
era posto em pé sem delicadeza pela pessoa que estivesse mais próxima e atirado de
regresso à luta.
Scarlett nunca vira homens lutarem com os punhos. O som dos socos e o sangue
jorrando das bocas e dos narizes horrorizaram-na. Os quatro filhos de Daniel estavam
envolvidos e ela implorou a Colum que os obrigasse a parar.
- Para perder os meus cinco xelins? Nem pensar, minha amiga.
- É horrível, Colum O'Hara, simplesmente horrível.
Repetiu as palavras mais tarde, a Colum, aos filhos de Daniel e a Michael e
Joseph, dois dos irmãos de Colum que ainda não tinha encontrado. Estavam todos na
cozinha, na casa de Daniel. Kathleen e Brigid lavavam calmamente as feridas,
ignorando os gritos de dor e as acusações de tratamento descuidado. Colum distribuía
copos de uísque.
"Não acho graça nenhuma, independentemente do que eles dizem", comentou
Scarlett para si mesma. Não conseguia acreditar que as lutas de facções fizessem
parte do divertimento das feiras e acontecimentos públicos para os O'Hara e os seus
amigos. "Com que então 'só entusiasmo'?" E, se possível, as jovens ainda eram piores,
pelo modo como estavam atormentando Timothy por ele não ter nada pior que um olho
roxo.
No dia seguinte, Colum surpreendeu-a ao aparecer antes do café, a cavalo e
conduzindo outro pelas rédeas.
- Disseste que gostavas de andar a cavalo - recordou-lhe. - Pedi estas montarias
emprestadas. Contudo, têm que ser devolvidas até o meio-dia, por isso arrebanha o
que tenha sobrado do pão de ontem à noite e vem embora antes que a casa se encha
de visitas.
- Não há sela, Colum.
- Chiu, andas ou não a cavalo? Vai buscar o pão, Scarlett querida, que a Bridie
põe as mãos em concha para te ajudar a subir.
Desde pequena que não andava sem sela e escarranchada. Esquecera a
sensação de constituir com o cavalo uma única criatura. Tudo voltou, no entanto, como
se nunca tivesse deixado de cavalgar daquela maneira, e não tardou a quase nem
precisar das rédeas: a pressão dos joelhos dizia ao cavalo o que iam fazer.
- Onde vamos? - Estavam numa senda por onde nunca tinha passado a pé.
- Até o Boyne. Tenho uma coisa para te mostrar.
O rio. O pulso de Scarlett acelerou. Havia lá algo que a atraía e ao mesmo tempo
a repelia.
Começou a chover, e ela congratulou-se por Bridie a ter convencido a levar um
xale. Tapou a cabeça e continuou silenciosamente atrás de Colum, ouvindo a chuva
bater nas folhas da sebe e o lento clop-clop dos cascos dos cavalos a passo. Que
pacífico! Não sentiu qualquer surpresa quando a chuva parou. Então os pássaros
escondidos nas sebes podiam voltar a sair.
A senda terminou e o rio estava ali. As margens eram tão baixas que a água
quase se sobrepunha.
- É aqui o vau onde a Bridie faz as suas lavagens - disse Colum. - Quer tomar
banho?
Scarlett estremeceu exageradamente.
- Não sou assim tão corajosa. A água deve estar gelada.
- Já vais saber, mas só por uns pingos. Vamos atravessar. Segura as rédeas com
firmeza. - O seu cavalo entrou cautelosamente na água. Scarlett pegou as saias e
prendeu-as sob as coxas antes de o seguir.
Na margem oposta, Colum desmontou.
- Desce para tomar o café - disse. - Vou prender os cavalos a uma árvore. - Ali as
árvores cresciam muito perto do rio: o rosto de Colum ficava com manchas das suas
sombras. Scarlett deslizou para o chão e entregou-lhe as rédeas. Encontrou um local
ensolarado onde se sentar com as costas apoiadas a um tronco de árvore. Flores
amarelas com pétalas em forma de coração atapetavam a margem. Fechou os olhos e
escutou a voz calma do rio, o restolhar sibilante das folhas sobre a sua cabeça, o
cantar dos pássaros. Colum sentou-se ao seu lado e ela abriu lentamente os olhos. Ele
cortou o meio pão de soda em dois pedaços e deu-lhe o maior.
- Tenho uma história para te contar enquanto comemos - afirmou. - Esta terra em
que estamos chama-se Ballyhara. Há quase duzentos anos, era a terra da tua família,
da nossa família. Esta é terra O'Hara.
Scarlett endireitou-se, de súbito bem acordada. Aquilo? Aquilo era terra O'Hara?
E "Ballyhara"... não era o nome da aldeia deserta por onde tinham passado a toda a
velocidade? Virou-se ansiosamente para Colum.
- Agora, silêncio, e come o teu bom pão, Katie Scarlett. A história é um bocadinho
longa - disse ele. O seu sorriso silenciou as perguntas nos lábios de Scarlett. - Há
pouco mais de dois mil anos, os primeiros O'Hara instalaram-se aqui e tornaram sua
esta terra. Há mil anos (vês como os aproximamos?), os Vikings, a quem hoje
chamaríamos Normandos, descobriram a riqueza verde da Irlanda e tentaram ocupá-la
para si. Os irlandeses, como os O'Hara, vigiaram os rios por onde podiam vir as
invasões de barcos com proas de dragão e construíram fortes proteções contra o
inimigo. - Colum arrancou um canto de pão e o pôs na boca. Scarlett ficou impaciente,
aguardando que ele o mastigasse. Tantos anos... a sua mente não conseguia abarcar
tantos anos. Que se passara depois de há mil anos? - Os Vikings foram rechaçados -
prosseguiu Colum -, e os O'Hara trabalharam a terra e engordaram o gado durante
mais de duzentos anos. Construíram um castelo forte, com espaço para eles próprios e
para os seus servos, pois os irlandeses têm memória prolongada e, tal como tinham
vindo os Vikings, outros invasores se podiam seguir. E seguiram. Não normandos, mas
ingleses, que antes tinham sido franceses. Mais de metade da Irlanda foi perdida para
eles, mas os O'Hara conseguiram resistir além das suas fortes muralhas, e lavraram a
sua terra por mais quinhentos anos. Até a Batalha do Boyne, cuja triste história
conheces. Após dois mil anos de cuidados pelos O'Hara, a terra tornou-se inglesa. Os
O'Hara foram empurrados pelo vau, os que ficaram, as viúvas e os bebês. Uma destas
crianças cresceu e tornou-se rendeiro dos ingleses do outro lado do rio. O neto,
agricultor dos mesmos campos, casou com a nossa avó, Katie Scarlett. Ao lado do pai,
olhava para lá das águas castanhas do Boyne e via o castelo dos O'Hara deitado a
baixo, via uma casa inglesa erguer-se no seu lugar. Mas o nome permaneceu:
Ballyhara.
"E o paizinho viu a casa, sabia que esta era terra O'Hara." Scarlett chorou pelo
pai, compreendeu a raiva e a tristeza que vira na sua expressão e ouvira na sua voz
quando falava sobre a Batalha do Boyne. Colum foi ao rio e bebeu com as mãos em
concha. Lavou-as, voltou a aparar água e foi levar esta a Scarlett. Depois de ela beber,
limpou-lhe as lágrimas das faces com os suaves dedos molhados.
- Não foi meu desejo contar-te isto, Katie Scarlett...
Esta interrompeu-o iradamente.
- Tenho o direito de saber.
- Foi o que também pensei.
- Conta-me o resto. Sei que há mais. Vejo-o na tua cara.
Colum estava pálido, como um homem com um sofrimento insuportável.
- Sim, há mais. A Ballyhara inglesa foi construída para um jovem senhor. Este era
louro e belo como Apoio, dizem, e também se considerava como um deus. Estava
decidido a tornar Ballyhara a mais bela propriedade de toda a Irlanda. A sua aldeia
(uma vez que ele possuía Ballyhara até a última pedra e a última folha) devia ser mais
grandiosa que qualquer outra, mais grandiosa que a própria Dublim. E assim foi,
embora não tão grandiosa como Dublim, a não ser no caso da sua única rua, que era
mais larga que a rua mais larga da capital. Os seus estábulos eram como uma catedral,
as suas janelas tão transparentes como diamantes, os seus jardins um suave tapete
até o Boyne. Nos seus relvados, os pavões abriam os leques de jóias e belas
senhoras, cobertas de verdadeiras jóias, ornamentavam as suas festas. Ele era senhor
de Ballyhara. A sua única tristeza era só ter um filho, e ele próprio ser filho único.
Porém, viveu para assistir ao nascimento de um neto, antes de ir para o inferno. E esse
neto também não teve irmão nem irmã. Todavia, era belo e louro, e tornou-se senhor
de Ballyhara, dos seus estábulos semelhantes a uma catedral e da sua aldeia
grandiosa. O mesmo se passou com o filho que lhe sucedeu. Lembro-me dele, o jovem
senhor de Ballyhara. Eu não passava de uma criança, e ele parecia-me tudo o que há
de mais maravilhoso e formidável. Andava num alto cavalo ruão e, quando a gente bem
nos pisava o cereal com os cascos dos cavalos durante a caça à raposa, atirava-nos
sempre moedas, a nós, crianças. Ficava tão alto e elegante com o seu casaco rosado,
as calças brancas e as botas altas e brilhantes... Eu não compreendia a razão de o
meu pai nos tirar as moedas, as partir e amaldiçoar o senhor por nos dar.
Colum levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na margem do rio.
Quando continuou a sua história, tinha a voz fraca, da tensão de a dominar.
- Veio a Fome, e com ela as carências e a morte. "Não suporto ver os meus
rendeiros sofrerem tanto", disse o senhor de Ballyhara. "Vou comprar dois navios fortes
e dar-lhes passagem gratuita e segura para a América, onde há alimentos em
abundância. Não me importa que as minhas vacas se lamentem por não haver
ninguém para as mugir nem que os meus campos se encham de urtigas por não haver
ninguém para os cultivar. Importo-me mais com a gente de Ballyhara que com o gado
ou os cereais." Os agricultores e aldeões beijaram-Ihe a mão pela sua bondade, e
muitos prepararam-se para a viagem. Porém, nem todos conseguiam suportar a dor de
abandonar a Irlanda. "Ficaremos, mesmo que seja para morrermos de fome", disseram
ao jovem senhor. Este fez então saber em toda a região que qualquer homem ou
mulher só tinha que pedir, e os beliches livres seriam dados gratuitamente, com todo o
prazer. O meu pai voltou a amaldiçoá-lo. Enfureceu-se com os seus dois irmãos
Matthew e Brian, por aceitarem a oferta do inglês. Todavia, eles estavam decididos a
ir... Morreram afogados, como todos os outros, quando os navios aprodrecidos
naufragaram na primeira tempestade. Esses navios passaram a ser conhecidos pela
amarga designação de "caixões". Um homem de Ballyhara fez uma tocaia nos
estábulos, sem se incomodar que eles fossem tão belos como uma catedral. E, quando
o jovem senhor entrou para montar o seu alto cavalo ruão, apoderou-se dele e
enforcou o louro senhor de Ballyhara na torre junto ao Boyne, onde há tempos os
O'Hara mantinham vigias por causa dos barcos com proas de dragão.
A mão de Scarlett subiu-lhe à boca. Colum estava tão pálido, andando e falando
naquela voz que não era a sua. A torre! Devia ser a mesma. Manteve a mão agarrada
aos lábios. Não convinha que falasse.
- Ninguém sabe - dizia Colum - o nome do homem do estábulo. Uns dizem um
nome, outros dizem outro. Quando chegaram os soldados ingleses, os homens que
tinham ficado em Ballyhara não o denunciaram. Os ingleses enforcaram-nos a todos,
em represália pela morte do jovem senhor. - O rosto de Colum estava branco, na
sombra salpicada de Sol proporcionada pelas árvores. Um grito saiu-lhe da garganta.
Inarticulado e inumano.
Voltou-se para Scarlett, e esta encolheu-se perante o olhar desorientado e a
expressão atormentada.
- UMA VISTA? - gritou ele, e foi como um tiro de canhão. Caiu de joelhos sobre a
margem amarela de flores e inclinou-se para a frente, a fim de esconder a cara. O
corpo tremia-lhe.
As mãos de Scarlett estenderam-se para ele, mas acabaram por cair
desajeitadamente no próprio colo. Ela não sabia o que fazer.
- Perdoa-me, Scarlett querida - disse o Colum que ela conhecia, levantando a
cabeça. - A minha irmã Molly é a vergonha do mundo ocidental por dizer uma coisa
dessas. Ela sempre teve jeito para me irritar. - Sorriu, e esse sorriso foi quase
convincente. - Temos tempo de passar por Ballyhara, se a quiseres ver. Está deserta
há quase trinta anos, contudo não tem havido vandalismo. Ninguém se aproxima do
local. Estendeu a mão, e era verdadeiro o sorriso nas faces acinzentadas.
- Vem. Os cavalos estão mesmo aqui.
O cavalo de Colum abriu caminho por entre os espinheiros e o emaranhado de
arbustos, e Scarlett não tardou a ver à sua frente as enormes paredes de pedra da
torre. Ele ergueu a mão para lhe chamar a atenção e depois puxou as rédeas. Com as
mãos em concha, fez um tubo em torno da boca.
- Seachain - gritou -, seachain. - As estranhas sílabas ecoaram nas pedras.
Ele virou a cabeça, e tinha os olhos joviais. Havia cor nas suas faces.
- É gaélico, Scarlett querida, o irlandês antigo. Há uma cailleach, uma mulher
sábia, que vive numa gruta aqui perto. É uma bruxa tão velha como Tara, dizem uns, é
a mulher de Paddy O'Brien, de Trim, que lhe fugiu há uns vinte anos, se escutarmos
outros. Gritei para a avisar da nossa passagem. Talvez não goste de ser surpreendida.
Não estou dizendo que acredito em bruxas, repara, mas não faz mal nenhum ser
respeitoso.
Continuaram a cavalgar até a clareira ao redor da torre. Junto dela, Scarlett viu
que as pedras não tinham argamassa entre si, e no entanto não se tinham deslocado
nem um milímetro dos seus lugares. Quanto tempo dissera Colum que tinha? Mil anos?
Dois mil? Não interessava. Não tinha medo, tivera sim quando Colum falara daquela
maneira nada natural. A torre era apenas um edifício, com o melhor trabalho que ela
alguma vez vira. "Não mete medo nenhum. De fato, como que me convida."
Aproximou-se mais, passou os dedos pelas juntas.
- És muito corajosa, Scarlett querida. Eu te avisei de que há quem diga que a
torre é assombrada por um enforcado.
- Conversa! Não há fantasmas. Além disso, o cavalo não se aproximaria se aqui
estivesse algum. Todo mundo sabe que os animais sentem essas coisas.
Colum soltou uma risadinha.
Scarlett encostou a mão à pedra. Esta era macia, com uma pátina de milénios.
Sentia-se nela o calor do Sol, o frio da chuva e o vento. Uma paz pouco habitual
penetrou o coração de Scarlett.
- Vê-se que é velha - comentou, sabendo que as suas palavras eram
inadequadas, que não tinham importância.
- Sobreviveu - disse Colum. - Como uma árvore poderosa, com raízes tão
profundas que vão até o centro da Terra.
- Raízes profundas. - Onde já ouvira ela isso? Claro. Fora o que Rhett dissera de
Charleston. Scarlett sorriu, afagando as pedras antigas. Podia ensinar umas coisas ao
marido, sobre raízes profundas. Era só esperar a próxima vez em que ele começasse a
discursar sobre a antiguidade de Charleston.
A casa de Ballyhara também era construída em pedra, mas esta era granito
trabalhado, com cada pedra constituindo um retângulo perfeito. Parecia forte,
duradoura; as janelas partidas e os caixilhos sem tinta correspondiam a uma
incongruência discordante na intocada permanência da pedra. Era uma grande casa,
flanqueada por alas que eram elas próprias quase maiores que qualquer das casas
que Scarlett conhecia. "Construída para durar", disse de si para si. Era
verdadeiramente uma pena que ninguém lá vivesse, um desperdício.
- O senhor de Ballyhara não tinha filhos? - perguntou a Colum.
- Não. - Parecia satisfeito com o fato. - Havia sua mulher, creio, que voltou para a
sua gente. Ou foi para um manicômio. Há quem diga que enlouqueceu.
Scarlett sentiu ser melhor não fazer a Colum comentários que demonstrassem a
sua admiração pela casa.
- Vamos ver a aldeia - disse antes. Era mais uma vila, grande demais para aldeia,
e não havia em parte nenhuma uma janela inteira, nem uma porta que não estivesse
partida. Encontrava-se destruída, e abandonada, provocando arrepios na pele de
Scarlett. Fora o ódio que fizera aquilo.
- Qual é o melhor caminho para casa? - perguntou a Colum.
A festa das Maias foi tal e qual como lhe tinha sido garantido. Havia comida e
dança em todas as ruas de Trim, mais quatro enormes mastros com flores no relvado
dentro das muralhas do castelo em ruínas. A fita de Scarlett era vermelha, tinha uma
coroa de flores para os cabelos, um oficial inglês convidou-a para descer até ao rio e
ela o despachou nos termos mais categóricos.
Voltaram para casa depois do nascer do Sol: Scarlett caminhou os quase seis
quilômetros e meio com o resto da família, porque não queria que a noite acabasse,
embora já fosse dia. E porque já começava a ter saudades dos primos, de todas as
pessoas que conhecera. Ansiava por regressar a casa, por resolver os pormenores
sobre Tara, por começar os respectivos trabalhos; porém, não deixava de estar
satisfeita por ter ficado para as Maias. Agora só faltava uma semana. Parecia tão
pouco tempo!
Na quarta-feira, Frank Kelly, o carteiro de Trim, parou no bar de Matt O'Toole para
uma cachimbada e uma cerveja.
- Há uma volumosa carta para Colum O'Hara - afirmou. - Sobre o que te parece
que seja?
Aventaram hipóteses, alegremente, e à toa. Na América, tudo era possível. E
podiam especular à vontade. O padre O'Hara era um homem simpático, como todos
concordavam, e um grande conversador. Todavia, bem vistas as coisas, não dizia
muito.
Matt O'Toole não foi entregar a carta de Colum. Não valia a pena. Sabia que
Clare O'Gorman iria nessa tarde visitar a avó. Podia levar a carta, se Colum não
passasse antes por lá. Matt tomou nas mãos o peso do envelope. Deviam ser notícias
excepcionalmente boas, para justificarem gastar tanto dinheiro enviando um tal peso.
Ou então seria algo de verdadeiramente desastroso.
- Há correio para ti, Scarlett. Colum o pôs em cima da mesa. E também há uma
xícara de chá quando quiseres. Foi agradável a visita à Molly? - A voz de Kathleen
estava cheia de interesse.
Scarlett não a desiludiu. Com risadinhas na voz, contou a visita.
- Molly tinha com ela a mulher do médico, e a xícara de chá estremeceu-lhe tanto
na mão quando eu entrei que quase se partia. Calculo que tenha ficado sem saber se
podia dizer que eu era a nova criada ou não. Só que então a mulher do médico disse
numa vozinha aflautada: "Ah, a prima rica da América. Que honra." E nem pestanejou
perante as minhas roupas. Ao ouvir isto, Molly saltou que nem um gato escaldado e
correu para me dar um dos seus beijos duplos na face. Garanto-te, Kathleen, ficou com
lágrimas nos olhos quando eu lhe disse que só ia buscar um vestido de viagem na
minha mala. Estava desejosa de que eu ficasse, independentemente do meu aspecto.
Dei-lhe os beijinhos quando me despedi. E também à mulher do médico. Fui até onde
podia.
Kathleen estava dobrada de riso, com a costura caída em um monte no chão.
Scarlett deixou cair ao lado o seu vestido de viagem. Tinha a certeza de que ia ser
preciso alargá-lo na cintura. Se o bebê não estivesse a tornando mais espessa no
meio, então a culpa era das roupas largas e da alimentação em excesso. Fosse qual
fosse a razão, não tencionava fazer a longa viagem tão apertada que não conseguisse
respirar.
Pegou o envelope e segurou-o junto da porta, para a luz lhe bater. Estava coberta
de escrita e de carimbos com datas. Francamente! O avô era o homem mais
desagradável do mundo. Ou então era o horrível Jerome o responsável. Era mesmo
esta a hipótese mais provável. O envelope era-lhe dirigido, ao cuidado do avô, e este
só o enviara para Maureen semanas depois. Rasgou-o com impaciência. Era de um
qualquer departamento governamental de Atlanta, originariamente endereçado para a
casa de Peachtree Street. Desejou não se ter esquecido de pagar um imposto ou
qualquer coisa assim. Entre o dinheiro para o bispo por causa de Tara e o custo das
casas que estava construindo, as suas reservas diminuíam demais para jogar dinheiro
fora em pagamentos atrasados, com os respectivos juros de mora. E ia precisar de
muito para os trabalhos em Tara. Já sem mencionar a compra de um terreno para Will.
Os seus dedos tocaram a bolsa por debaixo da blusa. Não, o dinheiro de Rhett era
dinheiro de Rhett.
O documento estava datado de 26 de Março de 1875. O dia em que partira de
Savannah no Brian Boru. Os olhos de Scarlett percorreram as primeiras linhas, para
logo se deterem. Não fazia sentido. Voltou ao princípio e leu mais devagar. Toda a cor
lhe fugiu do rosto.
- Kathleen, onde está Colum? - "Como? A minha voz está perfeitamente vulgar.
Curioso."
- Deve estar com a avó, suponho. A Clare veio buscá-lo. Não podes esperar um
pouco? Estou quase acabando de fazer as emendas neste meu vestido, para a Bridie
levar na viagem, e sei que ela quer prová-lo para tu veres e fazeres os teus
comentários.
- Não posso esperar. - Tinha que ver Colum. Algo correra terrivelmente mal.
Tinham que partir naquele dia, naquele momento. Tinha de regressar para casa.
Colum estava no pátio em frente à casa.
- Nunca houve uma Primavera com tanto Sol - afirmou. - O gato e eu estamos nos
aquecendo um pouco.
A calma artificial de Scarlett desapareceu quando o viu, e gritava ao chegar perto.
- Leva-me para a minha casa, Colum. Maldito sejas, e todos os O'Hara, e a
Irlanda. Nunca devia ter saído da minha terra.
Tinha a mão fechada com tanta força que as unhas se espetavam na carne.
Amarrotada nela estava uma declaração do estado soberano da Geórgia de que tinha
dado entrada nos seus arquivos permanentes o decreto irrevogável do divórcio
concedido a um certo Rhett Kinnicutt Butler, com motivo no abandono do lar pela
esposa, de seu nome Scarlett O'Hara Butler, pelo Distrito Militar da Carolina do Sul,
administrado pelo Governo Federal dos Estados Unidos da América.
- Não há divórcio na Carolina do Sul - garantiu Scarlett. - Foi o que dois
advogados me disseram. - Repetiu isto vezes sem conta, sempre com as mesmas
palavras, até a garganta lhe arder e já não ser capaz de emitir sons através dela.
Então, os seus lábios gretados passaram a formar as palavras em silêncio, enquanto
ela as dizia mentalmente. Uma e outra vez.
Colum conduziu-a para um canto afastado do quintal. Sentou-se ao seu lado e
falou, mas não conseguiu fazê-la escutar, pelo que segurou entre as suas as mãos que
ela mantinha fechadas, para tentar confortá-la, e permaneceu em silêncio, junto dela.
Durante o breve aguaceiro que acompanhou o crepúsculo. Durante o luminoso pôr do
Sol. Até à escuridão. Bridie foi à procura deles, quando a ceia ficou pronta, e Colum
mandou-a embora.
- A Scarlett está fora de si, Bridie. Diz lá em casa que não se preocupem, ela só
precisa de um pouco de tempo para lhe passar o choque. Vieram notícias da América:
o marido está gravemente doente. Ela ficou com medo de que ele morra sem a ter ao
seu lado.
Bridie voltou correndo para ir dar a notícia. Scarlett estava rezando. A família
rezou também; a ceia estava fria quando começaram finalmente a comer.
- Leva uma lanterna lá para fora, Timothy - ordenou Daniel.
A luz refletiu-se nos olhos vidrados de Scarlett.
- A Kathleen mandou também um xale - sussurrou Timothy. Colum esboçou um
aceno de cabeça, pôs o xale pelos ombros de Scarlett e despediu Timothy com um
gesto.
Passou mais uma hora. As estrelas brilhavam no céu quase sem luar; essas
estrelas tinham mesmo uma luz mais intensa que a da lanterna. Ouviu-se um breve
gritinho num campo de trigo próximo, seguindo-se um quase silencioso bater de asas.
Um mocho fizera uma presa.
- Que farei? - A voz áspera de Scarlett soou alta no meio da escuridão. Colum
suspirou baixinho e agradeceu a Deus. O choque pior já passara.
Regressamos conforme planejado, Scarlett querida. Não aconteceu nada que não
possa ser remediado. - A sua voz era calma, segura, reconfortante.
- Divorciada! - O som entrecortado evidenciava um alarmante aumento de
histeria. Colum esfregou-lhe vivamente as mãos.
- O que foi feito pode ser desfeito, Scarlett.
- Eu devia ter ficado. Nunca me perdoarei.
- Agora, chiu! Com "devia" não se resolve nada. É a próxima coisa a acontecer
que precisa de ser pensada.
- Ele nunca me receberá de volta. Não, se está com o coração tão endurecido a
ponto de se divorciar de mim. Fiquei sempre à espera que ele viesse atrás de mim,
Colum, tinha tanta certeza de que o faria. Como pude ser tão tola? Não sabes tudo.
Estou grávida, Colum. Como posso ter um bebê ser ter marido?
- Então, então - disse Colum baixinho. - Isso não resolve o problema? Só tens que
lhe dizer.
As mãos de Scarlett voaram até à sua barriga. Claro! Como podia ter sido tão
tola? Um riso entrecortado dilacerava-lhe a garganta. Nenhum papel alguma vez
escrito poderia fazer com que Rhett Butler desistisse do seu bebê. Ele podia fazer
cancelar o divórcio, apagá-lo de todos os registros. Rhett conseguia tudo. Acabara de o
provar uma vez mais. Não havia divórcio na Carolina do Sul. A não ser que Rhett Butler
decidisse obter um.
- Quero ir já, Colum. Deve haver um navio que parta mais cedo. Endoideço se
ficar à espera.
- Saímos daqui na sexta-feira de manhã, Scarlett querida, e o navio parte no
sábado. Se formos amanhã, ainda teremos de preencher um dia antes da partida do
navio. Não preferes passá-lo aqui?
- Oh, não, tenho que saber que vou a caminho. Mesmo que só parcialmente,
estarei me dirigindo para casa, ao encontro de Rhett. Tudo vai se resolver, farei com
que se resolva. Vai correr tudo bem... não vai, Colum? Diz que vai correr tudo bem.
- E vai mesmo, Scarlett querida. Agora tens que te alimentar, pelo menos com
uma xícara de leite. Talvez com uma pinguinha lá dentro. Também precisas dormir.
Tens que manter as forças, para bem do bebê.
- Ah, sim! Eu o farei. Vou tratar-me muito bem. Contudo, primeiro tenho que
arrumar o vestido, e preciso fazer as malas. E, Colum, como é que vamos conseguir
uma carruagem que nos leve até ao trem? - O tom de voz tornava-se de novo mais
agudo. Colum levantou-se e a pôs igualmente em pé.
- Ocupo-me de tudo, com a ajuda das pequenas para as malas. Mas só se
comeres alguma coisa enquanto vês o vestido.
- Sim, sim! É o que vamos fazer. - Estava um pouco mais calma, porém
continuava perigosamente à beira do ataque de nervos. Ele teria que se assegurar de
que ela bebia o leite e o uísque assim que chegassem à casa. Pobre criatura! Se ao
menos ele soubesse mais sobre mulheres e bebês, teria o espírito muito mais
descansado. Ultimamente Scarlett tinha passado noites sem dormir e dançado
loucamente. Isso poderia apressar o nascimento de um bebê? Se ela o perdesse,
temia pela sua razão.
Como muitas outras pessoas antes dele, Colum subestimara a força de Scarlett
O'Hara. Esta insistiu que a sua bagagem fosse trazida nessa noite da casa de Molly, e
deu ordens a Brigid para que lhe arrumasse as coisas enquanto Kathleen lhe arrumava
o vestido.
- Repara nos laços, Bridie - disse com vivacidade, ao pôr o espartilho. - Vais ter
que fazer isto no navio, e eu não vejo para trás, para te poder dizer como é. - Os seus
modos febris e voz entrecortada já tinham posto Bridie num estado de terror.
O agudo grito de dor que Scarlett soltou quando Kathleen puxou as fitas fez com
que a própria Bridie gritasse também.
"Não faz mal doer", lembrou Scarlett a si própria, "dói sempre, sempre doeu. Só
me tinha esquecido de quanto. Passado algum tempo, voltou a ficar habituada. Não
estou prejudicando o bebê. Quando grávida, sempre usei espartilho enquanto pude, e
sempre até muito mais tarde que isto. Ainda nem dez semanas passaram. Tenho que
caber na minha roupa, tenho mesmo. Vou no trem de amanhã, nem que morra."
- Puxa, Kathleen - arfou. - Puxa com mais força.
Colum foi a Trim contratar a carruagem para um dia mais cedo. Depois, deu uma
volta por vários locais, para comunicar a grande preocupação de Scarlett. Quando
acabou, era tarde e estava cansado. Contudo, assim não ficaria ninguém a interrogar-
se sobre a razão de a O'Hara americana ter partido como uma ladra, no meio da noite,
sem se despedir.
Saiu-se muito bem dizendo adeus à família. O choque do dia anterior tinha-a
protegido com uma carapaça de entorpecimento. Só uma vez é que perdeu o
autodomínio, ao despedir-se da avó. Ou melhor, quando a velha Katie Scarlett se
despediu dela.
- Que Deus te acompanhe - disse a velhota -, e os santos guiem os teus passos.
Estou mesmo feliz por teres cá estado para o meu aniversário, a filha do Gerald. Só
tenho pena que não estejas no meu velório... Por que estás chorando, filha? Não sabes
que não há festa para vivos que consiga ter metade da grandiosidade de um velório? É
uma pena perdê-lo.
Scarlett foi sentada em silêncio na carruagem até Mullingar e no trem até Galway.
Bridie estava nervosa demais para falar, mas a sua excitação de felicidade se via nas
faces coradas e nos grandes olhos fascinados. Nunca se afastara de casa mais de
dezesseis quilômetros, nos seus quinze anos de vida.
Quando chegaram ao hotel, Bridie ficou de boca aberta contemplando a sua
grandiosidade.
- Vou acompanhá-las até o quarto de vocês - afirmou Colum -, e depois estarei de
volta a tempo de descermos juntos para jantar. Só vou até o porto para tratar do
carregamento das malas de porão. Também gostaria de ver os camarotes que nos
reservaram. É esta a hora de mudar, se não forem os melhores.
- Vou contigo - disse Scarlett. Foi a primeira vez que falou.
- Não há necessidade, Scarlett querida.
- Há para mim. Quero ver o navio, para ter a certeza de que está mesmo lá.
Colum fez-lhe a vontade. E Bridie perguntou se também podia ir. O hotel era
imponente demais para ela. Não queria ficar lá sozinha.
A fresca brisa marítima do fim da tarde tinha um agradável odor salgado. Scarlett
inspirou profundamente, recordando que o ar de Charleston cheirava sempre a sal.
Nem deu pelas lágrimas que lhe rolavam lentamente pelas faces. Se ao menos
pudessem partir já, de imediato. O comandante estaria disposto a considerar essa
hipótese? Tocou na bolsa com o ouro, entre os seus seios.
- Procuro o Evening Star - disse Colum a um dos estivadores.
- Está ali - indicou o homem, com um gesto do polegar.
- Chegou há menos de uma hora.
Colum escondeu a sua surpresa. O navio devia ter aportado trinta horas antes.
Não valia a pena dar a perceber a Scarlett que o atraso podia implicar complicações.
Havia grupos em movimentos metódicos de e para o Evening Star. Este
transportava carga, além de passageiros.
- De momento, isto não é lugar para uma senhora, Scarlett querida. Voltemos
para o hotel e eu venho aqui mais tarde.
Os maxilares de Scarlett contraíram-se:
- Não. Quero falar com o comandante.
- Ele deve estar ocupado demais para falar seja com quem for, mesmo com uma
pessoa tão encantadora como tu.
Ela não estava com disposição para cumprimentos.
- Tu o conheces, não conheces, Colum? Conheces todo mundo. Trata de tudo
para eu poder falar com ele agora.
- O homem é um estranho para mim: nunca lhe pus a vista em cima, Scarlett.
Como havia de o conhecer? Isto é Galway, não County Meath.
Um homem de uniforme descia a prancha de desembarque do Star. Nem parecia
sentir o peso das duas grandes sacas de lona que transportava aos ombros; o seu
andar era ligeiro e rápido, o que não era habitual em homens da sua altura e
compleição.
- Então não é o padre Colum O'Hara em pessoa? - exclamou ao aproximar-se
deles. - Que o trouxe para tão longe do bar de Matt O'Toole, Colum? - Fez descer uma
das sacas até o chão e tirou o chapéu para Scarlett e Bridie. - Eu não disse sempre
que os O'Hara têm uma sorte do diabo com as senhoras? - roncou, rindo da sua
própria graça. - Disse-lhes que era padre, Colum?
O sorriso de Scarlett foi de circunstância ao ser apresentada a Frank Mahoney, e
não prestou a mínima atenção à linha de parentesco que o ligava à família de Maureen.
Queria falar com o comandante!
- Vou agora mesmo levar à estação o correio da América, para ser separado
amanhã - informou Mahoney. - Quer dar uma olhada, Colum, ou espera até estar outra
vez em casa para ler as suas perfumadas cartas de amor? - Soltou ruidosas
gargalhadas perante os seus próprios ditos espirituosos.
- É muito simpático da sua parte, Frank. Dou uma espreitadela, se me deixar. -
Coluna desatou a saca aos seus pés, puxou-a para mais perto do grande candeeiro a
gás que iluminava o cais. Encontrou com facilidade o envelope de Savannah. - Hoje
estou com sorte - comentou. - Sabia pela última carta do meu irmão que outra viria em
breve, mas já desesperava por a receber. Obrigado, Frank. Permite-me que lhe pague
uma cerveja? - Meteu a mão ao bolso.
- Não é preciso. Eu fiz pelo prazer de desobedecer aos regulamentos ingleses. -
Frank voltou a pôr o saco no ombro. - O maldito supervisor deve estar olhando para o
seu relógio de ouro, não posso demorar. Boa noite, minhas senhoras.
O envelope continha meia dúzia de cartas mais pequenas. Colum passou
rapidamente por elas, à procura da inconfundível letra de Stephen.
- Está aqui uma para ti, Scarlett - informou. Pôs-lhe na mão o envelope azul,
encontrou a carta de Stephen e abriu-a. Tinha começado a lê-la quando ouviu um grito
agudo, prolongado, e sentiu um peso deslizar encostado a ele. Antes de poder
estender os braços já Scarlett estava caída aos seus pés.
O sobrescrito azul e as folhas fininhas escorregavam da mão sem força, até que a
brisa espalhou tudo pelas pedras da calçada. Enquanto Colum erguia os ombros de
Scarlett e lhe levava os dedos ao pescoço, para sentir a pulsação, Bridie corria a
apanhando as folhas.
O fiacre dava saltos e oscilava, devido à velocidade da corrida de regresso ao
hotel. A cabeça de Scarlett rolava grotescamente de um lado para o outro, apesar de
Colum tentar ampará-la firmemente nos seus braços. Atravessou rapidamente com ela
o átrio do hotel.
- Chamem um médico - gritou para os criados de libré -, e saiam da minha frente.
- Uma vez no quarto de Scarlett, deitou-a em cima da cama. -Vamos, Bridie, ajuda-me
a despi-la - pediu. - Temos que fazer com que respire.
- Tirou de dentro do casaco uma faca com bainha de couro. Os dedos de Bridie
moviam-se com ligeireza pelos botões nas costas do vestido de Scarlett.
Colum cortou as fitas do espartilho.
- Agora - disse -, ajuda-me a pôr-lhe a cabeça nas almofadas e a tapá-la com
qualquer coisa quente. - Esfregou vigorosamente os braços de Scarlett, deu-lhe
palmadinhas suaves nas faces. - Tens algum frasquinho de sais?
- Não, Colum, nem ela, tanto quanto sei.
- O médico há-de ter. Espero que seja só um desmaio.
- Desmaiou, mais nada, Padre - informou o médico, ao sair do quarto de Scarlett
-, mas é um desmaio profundo. Entreguei um tônico à moça, para lhe dar quando ela
se recuperar. Estas senhoras! Impedem toda a circulação para andarem na moda.
Porém, não há motivo para preocupações. Vai ficar boa.
Colum agradeceu-lhe, pagou-lhe, acompanhou-o à porta. Depois, sentou-se
pesadamente numa cadeira, junto à mesa iluminada por um candeeiro, e pôs a cabeça
entre as mãos. Havia grandes motivos para preocupações, e duvidava de que Scarlett
O'Hara alguma vez voltasse a ficar "boa". As folhas da carta, amarrotadas e com
manchas de água, estavam espalhadas em cima da mesa, ao seu lado. No meio delas
encontrava-se um recorte de jornal, feito com todo o cuidado: "Ontem ao fim da tarde",
dizia, "em cerimônia privada, no Lar da Confederação para Viúvas e Órfãos, a Menina
Arme Hampton uniu-se em matrimônio ao Sr. Rhett Butler."
A mente de Scarlett subia, subia, em espiral, girando, rodopiando, para cima, para
cima, do negrume para a consciência, mas havia um instinto que a obrigava a descer
de novo, a deslizar, a escorregar de regresso à escuridão, para longe da insuportável
verdade que a aguardava. Isto sucedeu uma e outra vez, e a luta fatigou-a de tal
maneira que ela permaneceu exausta, imóvel e pálida sobre a grande cama, como se
estivesse morta.
Sonhou, e o sonho estava cheio de movimento e agitação. Encontrava-se em
Twelve Oaks, e a propriedade estava de novo inteira e bela, tal como fora antes dos
archotes de Sherman. A graciosa escadaria descrevia a sua curva no espaço como se
estivesse suspensa por magia, e ela pisava-lhe os degraus com leveza e agilidade.
Ashley subia à sua frente, sem ouvir os gritos dela para que parasse.
- Ashley - chamava -, Ashley, espera por mim - e corria atrás dele.
Que comprida era a escada! Não se lembrava de que atingisse uma altura tão
elevada; parecia estar sempre crescendo, à medida que ela corria, e Ashley estava
muito acima. Tinha de chegar até ele. Não sabia porquê, mas sabia tinha que ser, e
corria mais depressa, cada vez mais depressa, até o coração lhe saltar no peito.
- Ashley! - gritava. - Ashley! - Este parou, e ela conseguiu encontrar forças que
ignorava possuir: subiu, correndo ainda mais depressa.
O alívio inundou-lhe o corpo e a alma quando com a mão tocou na manga dele.
Então Ashley virou-se na sua direção, e ela gritou sem emitir qualquer som. Ele não
tinha cara; no seu lugar, só uma mancha pálida e sem feições.
Scarlett sentiu-se de imediato em queda livre no espaço, com os olhos
aterrorizados fixos na figura em cima, com a garganta esforçando-se por gritar. Porém,
o único som era o de gargalhadas, provenientes de baixo, que subiam como uma
nuvem a rodeá-la e a troçar do seu mutismo.
"Vou morrer", pensou ela. "Uma dor terrível vai destroçar-me, e morro."
Todavia, de súbito, uns braços fortes fecharam-se em redor dela e ampararam-na
suavemente na queda. Scarlett conhecia-os, conhecia o ombro que servia de almofada
à sua cabeça. Era Rhett. Rhett salvara-a. Estava em segurança no seu abraço. Voltou
a cabeça, ergueu-a para o fitar nos olhos. Um terror gelado paralisou-lhe todo o corpo.
A cara dele não tinha forma, parecia nevoeiro ou fumaça, como a de Ashley. Nesse
momento recomeçaram as gargalhadas, provenientes do vazio que devia ser o rosto de
Rhett.
A mente de Scarlett deu um salto para a consciência, fugindo do horror, e ela
abriu os olhos. Rodeava-a a escuridão e o desconhecido. O candeeiro apagara-se e
Bridie adormecera na sua cadeira, sem ser vista, num canto do enorme quarto. Scarlett
abriu os braços, na extensão da grande cama desconhecida. Os seus dedos tocaram
linho suave, nada mais. Os lados do colchão estavam distantes demais para que ela os
atingisse. Sentiu-se abandonada numa estranha vastidão de suavidade, indefinida.
Talvez se prolongasse até a escuridão silenciosa... A garganta contraiu-se de terror.
Estava sozinha e perdida no escuro.
"Acaba com isso!" A sua mente obrigou o pânico a recuar, exigindo que ela se
dominasse. Scarlett levantou cautelosamente as pernas, rodou sobre si própria e ficou
ajoelhada. Os seus movimentos foram lentos, de modo a não produzir qualquer som.
Sabia-se lá o que podia estar na escuridão, à escuta. Rastejou com um cuidado
agonizante até as mãos sentirem a beira da cama, e logo descerem até a dura solidez
da armação de madeira.
"Que burra que és, Scarlett O'Hara", disse a si própria, enquanto lágrimas de
alívio lhe escorriam pelas faces. "Claro que a cama é estranha, e o quarto. Desmaiaste,
como qualquer tola rapariguinha fraca, e o Colum e a Bridie trouxeram-te para o hotel.
Acaba com este disparate de jogo do rato e o gato."
Então, como um soco, a recordação atacou-a. Rhett estava perdido para ela...
divorciado dela... casado com Anne Hampton. Não conseguia acreditar, mas tinha que
acreditar, era a verdade.
Porquê? Por que fizera ele uma tal coisa? Tivera tanta certeza de que a amava.
Ele não podia ter feito uma coisa daquelas, não podia.
Contudo, fizera.
"Não cheguei a conhecê-lo." Scarlett ouviu as palavras como se as tivesse
pronunciado em voz alta. "Não cheguei a conhecê-lo de todo. Quem é que eu amei?
Quem é o pai da criança que trago comigo?"
"Que vai ser de mim?"
Nessa noite, na assustadora escuridão de um quarto de hotel que não via, num
país a milhares de quilômetros da sua pátria, Scarlett O'Hara fez a coisa mais corajosa
que alguma vez lhe fora exigido que fizesse: enfrentou o fracasso.
"É tudo culpa minha. Devia ter regressado a Charleston assim que soube estar
grávida. Decidi divertir-me, e estas semanas de divertimento custaram-me a única
felicidade que realmente me importa. Acontece que não pensei em como Rhett
interpretaria a minha fuga, não pensei para além do dia seguinte, da dança seguinte.
Não pensei rigorosamente nada. Nunca o fiz."
Todos os erros impetuosos, inconsiderados, da sua vida rodearam Scarlett no
negro silêncio da noite, e obrigou-se a enfrentá-los. Charles Hamilton - casara com ele
para despertar Ashley, nunca o amara. Frank Kennedy - fora horrível para ele, mentira-
lhe sobre Suellen, para que Frank casasse com ela e lhe desse dinheiro para salvar
Tara. Rhett - oh, cometera erros demais para ter em conta. Casara com ele sem o
amar, e não fizera qualquer esforço para lhe dar felicidade, nem nunca sequer se
preocupara com o fato de ele não ser feliz... até ser tarde demais.
"Oh, meu Deus, perdoa-me, nunca por um momento pensei no que lhes fazia, no
que sentiam. Magoei, magoei, magoei-os a todos, porque não parei para pensar."
"A Melanie também, principalmente a Melly. Nem consigo suportar a recordação
de como fui desagradável para ela. Nem por uma vez senti gratidão pela maneira como
ela gostava de mim e me defendia. Nem sequer uma vez lhe disse que gostava dela,
porque nunca pensei nisso, até o fim, e nessa altura, quando pensei, já não havia
oportunidade."
"Alguma vez na vida prestei atenção ao que estava fazendo? Alguma vez (nem
que fosse uma única vez) pensei nas consequências?"
O desespero e a vergonha apoderaram-se do coração de Scarlett. Como podia ter
sido tão tola? Desprezava os tolos.
Então as suas mãos enclavinharam-se, o maxilar enrijeceu e ela endireitou a
espinha. Não ia deliciar-se criticando o passado e tendo pena de si própria. Não ia
lamentar-se - nem a outra pessoa, nem a si própria.
Fitou a escuridão por cima dela com os olhos já secos. Não choraria, não naquele
momento. Teria o resto da vida para chorar. Naquele momento tinha que pensar, e
pensar com cuidado, antes de decidir o que faria.
Tinha de pensar no bebê.
Por um instante, odiou-o, odiou a sua cintura tornando-se mais larga e o corpo
desajeitado, pesado, que a esperava. Devia devolver-lhe o Rhett, e tal não acontecera.
Havia coisas que uma mulher podia fazer... ouvira falar em mulheres que se tinham
visto livres de bebês que não queriam...
... Rhett nunca lhe perdoaria se ela fizesse isso. Mas afinal que importância tinha?
Rhett fora embora, para sempre.
Um soluço proibido soltou-se dos lábios de Scarlett, apesar de toda a sua força de
vontade.
"Perdido. Perdi-o. Estou derrotada. Rhett ganhou."
Percorreu-a então uma ira repentina, cauterizando-lhe a dor, proporcionando
energias ao seu corpo e espírito exaustos.
"Estou derrotada, mas vou me vingar, Rhett Butler", pensou, amargamente
triunfante. "Eu te atingirei com mais força do que me atingiste a mim."
Scarlett pousou com suavidade as mãos na barriga. Oh, não, não ia ver-se livre
daquele bebê. Ela se ocuparia melhor dele do que alguém alguma vez se ocupara de
um bebê em toda a história do mundo.
A sua mente encheu-se de imagens e Rhett e Bonnie. Ele sempre amara Bonnie
mais do que amara a ela. Daria tudo... daria a vida para a ter de volta. "Vou ter uma
nova Bonnie, só minha. E quando ela tiver idade suficiente... quando me amar, e só a
mim, mais que a qualquer coisa ou a alguém na Terra, então deixarei que Rhett a veja,
veja o que perdeu..."
"Que estou pensando? Devo estar doida. Ainda há um minuto percebia o quanto o
magoei, e me odiei por isso. Agora estou odindo-o e planejando magoá-lo ainda mais.
Não serei assim, não vou permitir que a minha imaginação me leve até coisas assim,
não vou."
"Rhett foi embora; já o reconheci. Não posso deixar-me dominar por lamentações
nem pela vingança, quando o que tenho é que refazer a vida a partir do zero. Tenho
que encontrar algo de novo, algo de importante, algo para que viver. Eu o conseguirei,
se me decidir a isso."
Ao longo do resto da noite, a mente de Scarlett movimentou-se metodicamente
pelas avenidas das possibilidades. Encontrou becos sem saída, encontrou e
ultrapassou obstáculos, encontrou cantos surpreendentes de recordações, de
imaginação e de maturidade.
Recordou a sua juventude, a sua região e os tempos anteriores à Guerra. As
recordações eram de certa maneira destituídas de sofrimento, distantes, e
compreendeu que já não era a mesma Scarlett, que podia libertar-se de si própria e
permitir que os velhos tempos e os seus mortos descansassem.
Concentrou-se no futuro, nas realidades, nas consequências. As suas têmporas
começaram a palpitar, logo a latejar, até que toda a cabeça lhe doía abominavelmente,
mas ela continuava a pensar.
Foi precisamente quando começavam a ouvir-se os primeiros ruídos na rua que
todas as peças se enquadraram na sua mente, e Scarlett soube o que ia fazer. Assim
que as cortinas corridas filtraram luz suficiente para dentro do quarto, chamou:
- Bridie?!
A jovem saltou da cadeira, pestanejando para afastar o sono dos olhos.
- Graças a Deus te recuperaste! - exclamou. - O médico deixou este tônico. É só
encontrar a colher, está aqui em cima da mesa.
Scarlett abriu obedientemente a boca para tomar o amargo remédio.
- Pronto - disse com firmeza -, acabou-se a doença. Abre as cortinas, que já deve
ser dia. Preciso tomar o desjejum. Dói-me a cabeça e tenho que recuperar as forças.
Estava chovendo. Verdadeira chuva, e não os simples aguaceiros de costume.
Scarlett sentiu uma obscura satisfação.
- Colum quererá saber que estás melhor; ele ficou muito preocupado. Posso
dizer-lhe para entrar?
- Agora não. Diz-lhe que quero vê-lo depois, que quero falar com ele. Mas não é
já. Vai lá. Vai dizer-lhe. E pede-lhe que te ensine a encomendar o meu desjejum.
Scarlett obrigou-se a engolir pedaços de comida atrás uns dos outros, embora
nem tomasse consciência do que consumia. Tal como dissera a Bridie, precisava ter
forças.
Depois do desjejum, mandou a jovem embora, com instruções para regressar
duas horas mais tarde. Sentou-se então à secretária, junto da janela, e, franzindo-se
um pouco devido à concentração, preencheu rapidamente folha após folha de espesso
papel de carta creme, destituído de qualquer cabeçalho.
Uma vez escritas, dobradas e seladas duas cartas, fitou prolongadamente o papel
em branco à sua frente. Planejara tudo nas horas de escuridão da noite, sabia o que ia
escrever, porém não conseguia convencer-se a pegar na pena e começar. A sua
própria medula se contraía perante o que tinha que fazer.
Scarlett estremeceu e afastou o olhar da página. Recaiu-Ihe todavia num bonito
relogiozinho de porcelana que se encontrava sobre uma mesa próxima, o que a fez
inspirar, com o choque: Tão tarde! Bridie estaria de regresso dentro de apenas
quarenta e cinco minutos.
"Não posso adiar por mais tempo, isso não irá alterar seja o que for. Não tenho
alternativa. Tenho mesmo que escrever ao tio Henry, engolir o orgulho e pedir-lhe
docemente que me ajude. Ele é o único em quem posso confiar." Scarlett rangeu os
dentes e estendeu a mão para a pena. A sua caligrafia habitualmente nítida ficou
compacta e irregular devido à tensa determinação com que pôs no papel as palavras
que transferiam o domínio dos seus negócios de Atlanta e da sua preciosa quantia em
ouro, depositada no banco de Atlanta, para Henry Hamilton.
Era como ficar sem chão debaixo dos pés. Sentiu-se fisicamente mal, quase com
tonturas. Não tinha o mínimo temor de que o velho advogado a enganasse; contudo
não havia qualquer probabilidade de ele vigiar cada tostão da mesma forma que ela
sempre fizera. Era uma coisa pedir-lhe que recebesse e depositasse os lucros da loja e
a renda do bar. Era outra completamente diferente entregar-lhe o poder sobre os
produtos em armazém na loja e respectivos preços, e sobre a quantia a pagar como
renda pela pessoa que explorava o bar.
Poder. Cedia em relação ao seu dinheiro, à sua segurança, ao seu êxito.
Precisamente quando o poder lhe era mais necessário. A compra da parte de Carreen
em Tara ia fazer um grande buraco no ouro que tinha acumulado, mas já era tarde
demais para anular o acordo com o bispo, e Scarlett não o anularia mesmo que
pudesse. Finara-se o sonho de passar Verões em Tara com Rhett, mas Tara
continuava a ser Tara, e estava decidida a torná-la sua.
A construção das casas nos limites da cidade era outro sorvedouro de recursos,
porém tinha que ser feita. Se ao menos não tivesse certeza de que o tio Henry
concordaria com tudo o que Sam Colleton sugerisse, sem perguntar os preços.
E o pior de tudo era que ela ficaria na ignorância do que se passava, para bem ou
para mal. Tudo podia acontecer.
- Não posso fazer isto! - Scarlett gemeu alto. Continuou todavia a escrever. Tinha
que fazer. Ia tirar uma férias prolongadas, escreveu, para viajar. Não seria possível
estabelecer contato, pois não tinha endereço para onde o correio lhe pudesse ser
enviado. Olhou para as palavras. Estas tornaram-se uma mancha, e pestanejou para
afastar as lágrimas. Não podia admiti-las, tentou convencer-se. Era absolutamente
essencial cortar todos os laços, para que Rhett não conseguisse seguir-lhe a pista. E
ele não podia saber do bebê enquanto não fosse ela própria a decidir lhe dizer.
Contudo, como poderia suportar não saber o que o tio Henry fazia com o seu
dinheiro? Ou se o pânico aumentasse, ameaçando-lhe as poupanças? Ou se a casa
ardesse? Ou, pior, se ardesse a loja?
Tinha que suportar, portanto suportaria. A pena arranhou apressadamente as
páginas, pormenorizando instruções e conselhos que Henry Hamilton provavelmente
não levaria em conta.
Quando Bridie voltou, todas as cartas estavam sobre o mata-borrão, dobradas e
seladas. Scarlett sentara-se numa poltrona, como o espartilho destruído no colo.
- Ah, tinha me esquecido - lamuriou Bridie. - Tivemos que cortá-lo, para poderes
ter ar. Que queres que faça? Talvez haja alguma loja perto onde possa ir...
- Deixa pra lá, não é importante - acalmou-a Scarlett. - Podes alinhavar-me um
vestido, e uso capa para esconder os pontos das costas. Vamos então a isso, que já
está ficando tarde e tenho muito que fazer.
Bridie olhou para a janela. Tarde? Os seus olhos, com o hábito aquirido no
campo, viam que ainda não eram nove da manhã. No entanto, foi obedientemente
buscar na mala o conjunto de costura que Kathleen a ajudara a reunir para o seu novo
papel de criada de senhora.
Trinta minutos mais tarde, Scarlett batia à porta do quarto de Colum. Tinha
olheiras de falta de sono, mas estava imaculadamente ataviada e com uma compostura
perfeita. Não se sentia nada cansada. O pior já passara, agora tinha coisas para fazer.
Isso fazia-a recuperar as forças.
Sorriu ao primo quando este lhe abriu a porta.
- Mil vezes bem-vinda - saudou-a ele. - É bom ver-te sorrir, Scarlett querida.
- Espero ser capaz de rir dentro de pouco tempo... A carta da América perdeu-se?
- Não. Eu a tenho. Em particular. Compreendo o que aconteceu.
- Compreendes? - Scarlett sorriu de novo. - Então és mais sábio que eu. Eu sei,
mas é provável que nunca compreenda. De qualquer modo, não adianta. - Pôs em
cima de uma mesa as três cartas que escrevera. - Já te falo disto. Primeiro tenho que
te dizer que não vou contigo e com a Bridie.
- Fico na Irlanda. - Ergueu a mão: - Não, não digas nada. Já pensei em tudo.
Nada mais me resta na América.
- Oh, não, Scarlett querida, estás sendo precipitada. Eu não te disse que nada se
faz que não possa ser desfeito? O teu marido conseguiu um divórcio, conseguirá outro
quando regressares e lhe falares do bebê.
- Estás enganado, Colum. Rhett nunca se divorciará de Anne. Ela é o gênero
dele, da sua gente, de Charleston. E além disso é como a Melanie. Isto nada significa
para ti, porque nunca chegaste a conhecer a Melly. Porém, o Rhett conheceu.
Reconheceu-lhe a raridade muito antes de eu dar por isso. Ele respeitava a Melly. Foi a
única mulher que ele alguma vez respeitou, a não ser talvez a mãe, e admirava-a da
maneira que ela merecia. Esta jovem com quem casou vale dez de mim, como a Melly
valia, e Rhett sabe-o. Também vale dez do Rhett, mas ama-o. Ele que carregue essa
cruz. - Havia nas suas palavras uma amargura selvagem.
"Ah, o sofrimento", pensou Colum. "Tem que haver uma forma de a ajudar."
- Agora tens a tua Tara, Katie Scarlett, e tantos sonhos para ela. Isso não te
consola até o coração te sarar? Podes construir o mundo que desejas para a criança
que trazes em ti, uma grande plantação feita pelo avô e pela mãe. Se for rapaz, pode
chamar-se Gerald.
- Não estás a pensar nada que eu não tenha já pensado. Obrigada, mas não
consegues encontrar resposta, pois eu também não consegui, Colum, podes crer. Uma
coisa, já tenho um filho, uma criança de que nada sabes, para considerar em termos de
herança. Porém, o principal é este bebê. Não posso regressar a Tara para o ter, não
posso levá-lo para Tara depois do seu nascimento. As pessoas nunca acreditariam que
é produto do matrimônio. Sempre pensaram... no campo e em Atlanta... que eu não
prestava. E saí de Charleston no dia a seguir... a seguir ao começo do bebê. - O rosto
de Scarlett empalideceu com a dolorosa saudade. - Nunca ninguém acreditaria ser filho
do Rhett. Há anos que dormíamos em quartos separados. Eles me chamariam de
prostituta, e bastardo ao bebê, e o fariam estalando os lábios de prazer.
As palavras feias foram marcadas por contrações da sua boca.
- Tal não aconteceria, Scarlett, é impossível. O teu marido sabe a verdade.
Reconhecerá o bebê.
Os olhos de Scarlett flamejaram.
- Ah, sim, o reconheceria e o tiraria de mim. Colum, não podes imaginar como o
Rhett é quanto a bebês, aos seus bebês. É como um louco apaixonado. E tem que ter
a criança para si, ser o mais amado, ser tudo. Ele se apoderaria deste bebê assim que
ele tivesse o primeiro fôlego no seu corpinho. E não penses que não o conseguiria.
Obteve um divórcio que não podia ser obtido. Alteraria qualquer lei ou faria uma nova.
Nada há o que ele não possa fazer. - Sussurrava em voz rouca, como se estivesse
atemorizada. Tinha as feições contorcidas de ódio e de um terror selvagem, sem o uso
da razão.
Até que, de súbito, como se tivesse caído um véu, tudo mudou. A expressão
tornou-se calma, tranquila, excetuando os inflamados olhos verdes. Apareceu-lhe um
sorriso nos lábios, o que todavia fez gelar a espinha a Colum O'Hara.
- Este é o meu bebê - afirmou Scarlett. A sua voz calma, baixa, era como o
ronronar de um gato gigantesco. - Só meu. Ele só saberá da sua existência quando eu
quiser, quando já for tarde demais. Vou rezar para que seja menina. Uma linda menina
de olhos azuis.
Colum benzeu-se.
Scarlett soltou uma gargalhada feroz.
- Pobre Colum. Já deves ter ouvido falar no que acontece a uma mulher
desprezada, não fiques tão chocado. Não te aflijas, não te assusto mais. - Sorriu, e ele
estava quase capaz de acreditar que imaginara o que no momento anterior vira no seu
rosto. O sorriso de Scarlett era aberto e afetuoso. - Sei que tentas ajudar-me, e estou-
te grata, Colum, estou mesmo. Tens sido tão bom para mim, tão bom amigo,
provavelmente o melhor amigo que já tive, à exceção de Melly. És como um irmão.
Sempre desejei ter um irmão. Espero que sejas sempre meu amigo.
Colum garantiu-lhe que sim. Para si próprio, pensou que nunca vira uma alma tão
necessitada de auxílio.
- Quero que me leves estas cartas para a América, por favor, Colum. Esta é para
a minha tia Pauline. Quero que saiba que recebi a sua carta, para que extraia todo o
prazer possível do seu gosto em dizer às pessoas: "Eu bem te avisei." E esta é para o
meu advogado de Atlanta, porque há assuntos que tenho que deixar tratados. Ambas
devem ser postas no correio em Boston: não quero que ninguém saiba onde estou
realmente. Esta quero que entregues em mão. Vai obrigar-te a viajar mais, mas é
terrivelmente importante. É para o Banco, em Savannah. Tenho um monte de ouro e as
minhas jóias lá no cofre, e estou contando contigo para me trazeres de volta em
segurança. A Bridie deu-te o saquinho que eu trazia ao pescoço? Ótimo. Isso me
bastará para começar. Agora preciso que me arranjes um advogado em quem possa
confiar, se é que isso existe. Vou utilizar o dinheiro de Rhett Butler. Vou comprar
Ballyhara, onde os O'Hara começaram. Este bebê vai ter uma herança que ele nunca
poderia proporcionar. Vou mostrar-lhe uma ou duas coisas sobre raízes profundas.
- Scarlett querida, imploro-te. Espera um pouco. Podemos permanecer algum
tempo em Galway, com a Bridie e eu tomando conta de ti. Ainda não te recuperaste
dos choques. Um em cima do outro, da maneira que vieram, foi demais para já estares
tomando decisões tão importantes.
- Deves pensar que endoideci. E talvez tenha enlouquecido. Contudo, este é o
meu caminho, Colum, e tenciono seguir por ele. Com a tua ajuda ou sem ela. Também
não há razão para tu e Bridie ficarem. Planejo voltar amanhã para casa do tio Daniel e
pedir-lhes que me recebam novamente até Ballyhara me pertencer. Se receias que eu
precise de cuidados, com certeza confias em Kathleen e neles. Vai, Colum - prosseguiu
Scarlett -, confessa: te venci.
Ele abriu as mãos e admitiu-o.
Mais tarde acompanhou-a ao escritório de um advogado inglês que tinha a
reputação de completar com êxito todos os empreendimentos em que se metia, e foi
desencadeada a procura do dono de Ballyhara.
No dia seguinte, Colum foi ao Mercado assim que as primeiras mesas foram
montadas. No regresso ao hotel, levava as compras que Scarlett encomendara.
- Aqui está, Mrs. O'Hara - disse-lhe. - Saias, blusas, xale, capa e meias, tudo
preto, para a pobre viúva recente, e contei à Bridie ter sido essa a notícia que te fez
desmaiar. O teu marido foi arrebatado pela doença antes de teres tido tempo de chegar
à sua cabeceira. E aqui tens também... uma pequenina oferta minha. Acho que,
quando as roupagens de viúva te deprimirem, te sentirás melhor se souberes que os
tens vestidos. - Colum depositou no colo de Scarlett um monte de saiotes de cores
brilhantes.
Scarlett sorriu. Os olhos marejaram-se com a emoção.
Como é que adivinhaste que eu estava furiosa comigo mesma por ter dado todas
as minhas roupas irlandesas às primas de Adamstown? - Indicou com um gesto o
malão e asmalas mais pequenas: - Já não vou precisar mais destas coisas. Leva-as
contigo e entrega-as à Maureen para as distribuir.
- Isso é uma louca extravagância e impetuosidade, Scarlett.
- Tolice! Tirei as botas e camisinhas. Os vestidos não me servem para nada.
Nunca mais volto a ser apertada num espartilho, nunca. Sou Scarlett O'Hara, uma
mulher irlandesa com saia solta e secreto saiote vermelho. Livre, Colum! Vou fazer um
mundo para mim mesma de acordo com as minhas próprias regras, não com as de
qualquer outra pessoa. Não te preocupes comigo, vou aprender a ser feliz.
Colum afastou os olhos da expressão inflexível no rosto de Scarlett.
A partida do navio foi adiada por dois dias, de modo que Colum e Bridie puderam
acompanhar Scarlett à estação de trem, na manhã de domingo. Mas, primeiro, foram
todos à missa.
- Devias falar com ela agora, Colum - murmurou Bridie ao seu ouvido, quando se
encontravam no átrio. Ao dizer isto, dirigiu o olhar na direção de Scarlett.
Colum disfarçou o sorriso com uma tossidela. Scarlett estava como uma
camponesa viúva, usando um xale em vez de uma capa.
- Faremos como ela quer, Bridie - disse ele, com firmeza. - Ela tem o direito de
vestir o luto da maneira que melhor entender.
- Mas, Colum, neste grande hotel inglês, todos vão olhar e criticar.
- E não terão eles, também, esse direito? Deixa que olhem e que digam o que
quiserem. Não lhes daremos atenção - pegou com firmeza no braço de Bridie e
ofereceu a outra mão a Scarlett. Com elegância, esta pousou nela a sua mão, como se
ele a estivesse a conduzindo para um salão de baile.
Quando Scarlett se sentou no compartimento de primeira classe do trem, Colum
observou com deleite Bridie que, horrorizada, via grupos de viajantes ingleses, um
após outro, abrir a porta do compartimento para, logo de imediato, recuarem, fechando-
a.
- As autoridades não deviam permitir que esta gente comprasse bilhetes de
primeira-classe - disse uma mulher ao seu marido, em voz alta.
Scarlett segurou a porta com a mão, antes de o cavalheiro inglês a poder fechar.
Chamou por Colum, que estava na plataforma, ali perto.
- Santo Deus! Esqueci-me do meu cesto de batatas cozidas, padre. Por favor,
faça uma oração à bendita Virgem Maria para que apareça um vendedor ambulante
neste trem. - O seu sotaque era tão acentuado, que Colum mal pode compreender as
suas palavras. Ainda ria, quando um empregado da estação fechou a porta e o trem
começou a mover-se.
Foi com prazer que viu o casal inglês abandonar toda a dignidade, na sua
tentativa de entrar noutro compartimento.
Sorrindo, Scarlett fez adeus com a mão e, pouco depois, a sua janela perdeu-se
de vista. Depois, reclinou-se no assento e deixou que a sua cara se descontraísse,
derramando uma única lágrima. Estava muito cansada, receosa de regressar a
Adamstown. A cabana de duas divisões de Daniel parecera-lhe pequena e
deliciosamente diferente de tudo o que estava acostumada, quando em visita de férias.
Agora, era uma casa apertada, superlotada, sem luxos, e era o único lugar a que podia
chamar lar - só Deus sabia por quanto tempo. O advogado podia não encontrar o dono
de Ballyhara. Este poderia não estar disposto a vender. O custo poderia ser ainda mais
elevado do que todo o dinheiro que Rhett lhe dera.
O seu plano, tão cuidadosamente estudado, estava cheio de falhas, e não tinha
certeza de nada.
"Não vou pensar nisso agora, não há nada que eu possa fazer quanto a estes
assuntos. Pelo menos aqui ninguém vai aparecer para tagarelar comigo." Scarlett
cruzou os braços, acomodou-se no assento bem acolchoado, espreguiçou-se com um
sorriso e adormeceu, o bilhete atirado no chão, para que o condutor o visse. Tinha um
plano e tencionava levá-lo até onde pudesse. Seria muito mais fácil se não estivesse
meio morta de cansaço.
O primeiro passo do plano decorreu sem obstáculos. Em Mullingar, comprou um
pônei e um cabriolê e conduziu-o até Adamstown, o seu lar. Não era uma peça tão
moderna como a de Molly; tinha um aspecto miserável, mas o pônei era novo, grande e
forte.
Quando regressou a casa, a família ficou chocada, mas mostrou-se o mais
pesarosa possível pela perda que ela sofrera. Uma vez expressos os seus
sentimentos, nunca mais falaram no assunto; em vez disso, perguntaram-lhe se havia
algo que pudessem fazer por ela.
- Poderão ensinar-me - disse Scarlett. - Quero aprender tudo sobre uma quinta
irlandesa. - Depois, acompanhou Daniel e os seus filhos em todos os trabalhos de
rotina. Cerrando os dentes, até se esforçou por aprender a tratar do gado, a mungir
vacas. Depois de ter aprendido tudo o que pôde sobre a quinta de Daniel, Scarlett
resolveu agradar a Molly, e até ao seu detestável marido, Robert. A quinta deste era
cinco vezes maior que a de Daniel. A seguir a Robert, foi a vez do patrão deste, o Sr.
Alderson, administrador de toda a propriedade de Earl. Nem mesmo quando se propôs
seduzir todos os homens de Clayton County, fora Scarlett tão cativante. Nem nunca
trabalhara tanto. Nem nunca fora tão bem sucedida. Não tinha tempo para notar a
austeridade da cabana. Tudo o que importava era o colchão macio, ao fim de um
longo, longo dia de trabalho num dia de Verão.
Decorrido um mês, ela sabia quase tanto sobre Adamstown como o Anderson e
descobrira, no mínimo, seis outras maneiras de melhorar o trabalho. Foi nessa altura
que recebeu a carta do seu advogado de Galway.
A viúva do falecido proprietário de Ballyhara, voltara a casar-se um ano após a
morte do marido e ela falecera há cinco anos atrás. O seu herdeiro, e filho mais velho
do segundo casamento, agora com vinte e sete anos, vivia na Inglaterra, onde também
era herdeiro dos bens do seu pai, que ainda vivia. Dizia que tomaria em consideração
qualquer oferta acima de quinze mil libras. Scarlett analisou a cópia da planta de
Ballyhara, que viera anexa à carta. Era muito maior do que imaginara. A propriedade
compreendia ambos os lados da estrada para Trim. E havia outro rio. "Deste lado, o
limite é o Boyne e", esquadrinhou a letra miúda, "do outro lado é o Knightsbrook. Que
nome distinto. Knightsbrook. Dois rios. Tenho que a comprar. Mas... quinze mil libras!"
Através de Alderson já sabia que dez libras era um preço a pagar somente por
terreno produtivo de primeira e já era um alto preço.
Oito seria o mais justo, mas sete libras e meia seria um bom negócio.
Ballyhara também possuía uma grade área pantanosa. Útil para combustível,
havia bastante turfa para durar alguns séculos. Mas nada crescia no pântano, e os
campos à volta eram ácidos demais para o cultivo do trigo. A acrescentar, havia o fato
de que a terra há trinta anos que não era trabalhada. Precisava de ser toda limpa de
vegetação rasteira e de ervas daninhas. Não devia, pois, pagar mais de quatro libras e
meia. 1240 acres custariam £4.960 ou £5.580, no máximo. Claro que havia a casa; era
enorme. Não que lhe importasse. Os prédios da vila eram mais importantes. Existiam
ao todo quarenta e cinco deles e duas igrejas. Cinco das casas eram bastante grandes,
duas dúzias delas não passavam de cabanas.
Mas estavam todas desabitadas. E, por certo, assim continuariam, se não
houvesse alguém que cuidasse da propriedade. Bem vistas as coisas, dez mil libras
seria mais do que razoável. O dono estaria com sorte se a vendesse por esse preço.
Dez mil libras - eram cinquenta mil dólares! Scarlett ficou horrorizada.
"Tenho que começar a pensar no dinheiro a sério, do contrário me tornarei muito
descuidada. Dez mil não me soa muito dinheiro, mas cinquenta mil dólares é muito
diferente. Sei que é uma fortuna. Apesar de toda a sovinice, de toda a poupança e de
uma administração astuta das serrarias de madeira e da loja... e da venda súbita das
serrarias... e da renda da taverna... nunca despendendo um centavo a mais, ano após
ano, durante dez anos só consegui juntar apenas pouco mais de trinta mil dólares. E
não teria conseguido juntar nem metade disso, se Rhett não tivesse pago tudo durante
os últimos sete anos. O tio Henry diz que eu, com os meus trinta mil, sou a mulher mais
rica, e penso que ele tem razão. As casas que estou construindo não me vão custar
mais de uma centena de dólares. Quantas pessoas dariam cinquenta mil dólares por
uma cidade fantasma em ruínas e por terreno não cultivado?
"Pessoas como Rhett Butler, quem mais? E eu possuo quinhentos mil dos seus
dólares. Para tornar a comprar a terra roubada da minha gente." Ballyhara não era
apenas terra, era a terra dos O'Haras. Como podia ele sequer pensar quanto devia ou
não devia pagar por ela? Scarlett fez uma oferta firme de quinze mil libras - era pegar
ou largar. Depois de pôr a carta no correio, tremeu dos pés à cabeça. E se Colum não
regressasse a tempo com o ouro dela? Não havia meio de saber quanto tempo levaria
o advogado a agir, ou quando é que Colum regressaria. Mal se despediu de Matt
O'Toole, depois de lhe ter entregue a carta. Estava com pressa.
Andou tão depressa quanto lhe permitiu o chão desnivelado, desejando que
chovesse. As sebes altas e espessas absorviam todo o calor de Julho no estreito
carreiro entre as mesmas. Não trazia chapéu para lhe manter a cabeça fresca e para
proteger a pele do sol. Quase nunca usava chapéu; os frequentes aguaceiros e as
nuvens que os precediam e se seguiam aos mesmos, tornavam os chapéus
desnecessários.
Quanto aos guarda-sóis, não passavam de ornamentos na Irlanda.
Ao chegar ao vau do rio Boyne, arregaçou a saias e permaneceu dentro d'água
até refrescar o corpo. Depois, dirigiu-se à torre. No mês em que regressava à casa de
Daniel, a torre tornara-se muito importante para ela. Ia lá sempre que se sentia
preocupada com alguma coisa, aborrecida ou triste. As grandes pedras absorviam
tanto calor como a frescura; podia encostar nelas as suas mãos ou o rosto,
encontrando todo o consolo e conforto de que tanto precisava na solidez das suas
antigas paredes. Às vezes, falava com ela como se fosse seu pai. Menos
freqüentemente, estendia os braços sobre as pedras e chorava. Nunca ouvia outro som
senão o da sua própria voz, o chilrear da passarada e o murmúrio do rio. Nunca
pressentiu a presença dos olhos que a observavam.
Colum regressou à Irlanda a 18 de Junho. De Galway, enviou um telegrama:
chegarei entre 2 a 5 de junho com a mercadoria de savannah
A vila estava num tumulto. Nunca em Adamstown se tinha recebido um
telegrama. Nunca viera um cavaleiro de Trim, tão pouco interessado no portador de
Matt O'Toole, e nunca se vira um cavalo tão rápido.
Quando, duas horas mais tarde, um segundo cavaleiro chegou à vila, a galope
num cavalo ainda mais notável, a excitação das pessoas não teve limites. Outro
telegrama de Galway para Scarlett.
oferta aceita, seguem carta e contrato
Após uma pequena discussão, os aldeões decidiram fazer a única coisa sensata
a fazer. O'Toole e o ferreiro fechariam as portas.
O médico também. O padre Danaher usaria da palavra e todos se encaminhariam
para a casa de Daniel O'Hara, para indagar o que estava acontecendo.
Souberam que Scarlett partiria no seu cabriolê e nada mais, pois Kathleen não
sabia mais do que eles. Mas todos pegaram os telegramas e leram-nos. Scarlett tinha-
os deixado na mesa para que todos os vissem.
Com o coração pulando de alegria, Scarlett seguiu por caminhos tortuosos até
chegar a Tara. Agora, podia realmente começar. O seu plano estava bem definido,
cada passo seguindo com lógica o passo precedente. Esta viagem até Tara não estava
incluída nos passos a dar; viera-lhe à ideia, quando o segundo telegrama chegou, mais
como uma compulsão que como um impulso. Tornou-se forçosamente necessário,
neste dia de sol tão glorioso que, da colina de Tara, visse toda a extensão de terra
doce e verde que, a partir de agora, passaria a ser o lar que escolhera.
Nesse dia, havia muito mais carneiros pastando do que quando ali estivera antes.
Observou os seus lombos largos e pensou na lã. Ninguém em Adamstown pastoreava
carneiros, teria que aprender com alguém sobre os problemas e os lucros relativos à
criação de carneiros.
Scarlett parou. Havia gente nos morros onde antes se situara o grande salão de
banquetes de Tara. Esperara estar só. Ainda por cima eram ingleses, diabos levassem
os intrusos!
O ressentimento contra os ingleses fazia parte da vida de todos os irlandeses, e
Scarlett absorvera-o com o pão que comera e com a música ao som da qual dançara.
Estes passeantes não tinham o direito de estender os seus tapetes e as suas toalhas
onde os reis supremos da Irlanda tinham um dia jantado, ou de falar com as suas
vozes grasnantes, onde harpas tinham em tempo tocado.
Especialmente, quando esse lugar era o lugar onde Scarlett O'Hara tencionara
ficar de pé, olhando, solitária, para a terra que lhe pertencia. Olhou com frustração para
os homens aperaltados, com os seus chapéus de palha e para as mulheres com as
suas sombrinhas floridas.
"Não vou permitir que me estraguem o dia. Vou para um lugar onde não possa vê-
los." Caminhou para o morro que fora a casa murada do rei Cormac, construtor do
salão de banquetes. A Lia Fail estava aqui, a pedra do destino. Scarlett recostou-se
nela. Colum ficara chocado ao vê-la fazer isso, no primeiro dia que a trouxera até Tara.
A Lia Fail era o teste de coroação dos reis antigos, explicara-lhe ele. Se a pedra
soltasse um grito, o homem a ser testado seria aceite como rei supremo da Irlanda.
Naquele dia, ela estava tão estranhamente exaltada que nada a surpreenderia,
nem mesmo que o pilar de granito, roído pelo tempo, a chamasse pelo nome. Como,
de fato, não o fez. Era quase tão alto como ela; a parte superior daria um bom lugar de
descanso para a concavidade da sua cabeça. Olhou sonhadora para as nuvens que
por cima dela corriam, no céu azul, e sentiu o vento afastar da testa e das têmporas os
caracóis soltos do seu cabelo. As vozes inglesas faziam parte dum segundo plano
silencioso, onde só se ouvia o retinir das campainhas nos pescoços de alguns dos
carneiros. "Que sossego! Talvez seja essa a razão por que precisei regressar a Tara.
Tenho estado tão ocupada que me esqueci de ser feliz, e essa era a parte mais
importante do meu plano. Poderei ser feliz na Irlanda? Poderei fazer dela o meu
verdadeiro lar?
"Existe felicidade aqui, na vida livre que vivo. E quanta mais haverá quando o meu
plano estiver completo. A parte dura está realizada, a parte que os outros controlavam.
Agora, tudo depende de mim, do modo como pretendo fazer as coisas. E há tanto que
fazer!" Sorriu à brisa.
O sol brincava às escondidas por detrás das nuvens, e a relva alta e luxuriante
tinha um odor inebriante. As costas de Scarlett escorregaram pela pedra abaixo, até
ficar sentada na relva. Talvez encontrasse um trevo; Colum dissera-lhe que eles
cresciam aqui mais abundantemente do que em qualquer outro lugar da Irlanda. Ela já
o procurara entre a relva, mas ainda não encontrara o inconfundível trevo irlandês.
Num impulso, Scarlett enrolou as meias pretas e tirou-as. Como os seus pés eram
brancos. Ufa! Puxou a saia para cima dos joelhos e deixou que o sol lhe aquecesse as
pernas e os pés. As anáguas amarela e encarnada sob a saia fizeram-na sorrir de
novo. Colum tinha razão quanto a isso.
Scarlett agitou os dedos dos pés à brisa.
Que fora aquilo? Endireitou a cabeça.
E o pequeno foco de vida moveu-se de novo dentro do seu corpo.
- Oh! - sussurrou ela, repetindo mais uma vez. - Oh! - Delicadamente, colocou as
mãos sobre o pequeno volume sob a saia. A única coisa que sentiu foi o volume da lã.
Não foi surpresa verificar que não podia tocar no que se mexia dentro dela; Scarlett
sabia que se passariam muitas semanas antes de as suas mãos poderem sentir o bebê
espernear.
Ficou de pé, com o vento batendo no rosto, empinando o ventre. Tanto quanto a
sua vista podia alcançar, campos verdes e dourados e árvores de folhas verdes
enchiam o mundo.
- Tudo isto é teu, meu pequeno bebê irlandês - disse ela. - A tua mãe te dará tudo
isto. Sem a ajuda de ninguém!
Scarlett sentia a relva fresca sob os pés, e a terra quente por debaixo da relva.
Em seguida, ajoelhou-se e arrancou um tufo de relva. A expressão do seu rosto
não era deste mundo, quando cavou o chão com as unhas, quando esfregou a terra
húmida e fragrante, em círculos, no seu ventre, dizendo:
- Tua, a tua verde e maravilhosa Tara!
Na casa de Daniel, falavam de Scarlett. Não era nada de novo; Scarlett fora o
principal tópico de conversa dos aldeões, desde que chegara da América. Kathleen não
ficava nada ofendida com isso. Por que ficaria? Scarlett fascinava-a e intrigava-a, ao
mesmo tempo. Não lhe era difícil compreender a razão por que Scarlett decidira
permanecer na Irlanda.
- Afinal, não me senti eu própria assim saudosa - disse ela para quem a quisesse
ouvir -, com saudades das neblinas e da terra macia, da vila acolhedora e íntima?
Quando descobriu o que era melhor para si, não hesitou.
- Então era verdade, Kathleen, que o marido dela lhe batia tanto que ela teve que
fugir para salvar o bebê?
- De modo nenhum, Clare O'Gorman, e quem é que anda espalhando essas
terríveis mentiras?
Peggy Monaghan estava indignada.
- É fato bem conhecido que a doença que, por fim, o levou, já o consumia há
muito, e para que não a contaminasse, mandou-a embora.
- É uma coisa terrível ser viúva, com um bebê a caminho - suspirou Kate O'Toole.
- Não tão terrível como poderia ser - disse Kathleen, a sabichona. - Não quando
se é tão rica como a rainha da Inglaterra.
Todos se acomodaram melhor nas suas cadeiras, ao redor da lareira. Agora é
que se tocara no assunto principal. De toda a especulação acerca de Scarlett, a que
provocara maior excitação era a que se referia ao seu dinheiro.
E não era coisa importante ver, pela primeira vez, uma fortuna em mãos
irlandesas, em vez de na dos ingleses?
Nenhuma delas podia adivinhar que os melhores dias de bisbilhotice ainda
estavam por vir.
Scarlett sacudiu as rédeas nas costas do pônei.
- Para a frente - disse ela -, o bebê está com pressa de chegar em casa. - Por fim,
encontrou-se a caminho de Ballyhara. Até tudo estar seguro sobre a sua compra, não
se permitira ir mais longe que a torre. Agora, poderia ver mais em pormenor o que
possuía.
"As minhas casas na minha cidade... as minhas igrejas e os meus bares e a
minha estação de correio... o meu pântano e os meus campos e os meus dois rios...
Quanta coisa boa por fazer!"
Estava decidida a que o bebê nascesse no lugar que seria o seu lar. A Casa
Grande em Ballyhara. Mas todo o resto teria que ser feito, também. Os campos eram o
mais importante. E um ferreiro na cidade para reparar dobradiças e arados modernos.
E as goteiras remendadas, as janelas envidraçadas, as portas reforçadas. A
deterioração teria que parar de imediato, agora que a propriedade lhe pertencia.
E o bebê, claro. Scarlett concentrou-se na vida dentro dela, mas não sentiu
nenhum movimento.
- Criança esperta - disse ela, em voz alta. - Dorme enquanto podes. De agora em
diante vamos estar sempre ocupadas. - Tinha pela frente vinte semanas de trabalho
até o parto. Não era difícil calcular a data. Nove meses, a contar de 14 de Fevereiro,
dia de São Valentim. Scarlett torceu a boca.
Isso seria piada... Não iria pensar nisso agora... nem nunca.
Tinha que se concentrar no dia 21 de Novembro e no trabalho a fazer antes
daquela data. Sorriu e começou a cantar.
Quando, pela primeira vez, vi a doce Peggy, era dia de mercado.
Conduzia uma carroça de encosto baixo e estava sentada num fardo de palha.
Mas se essa palha se transformasse em erva verdejante, salpicada de flores da
Primavera.
Nenhuma delas se poderia comparar à moça viçosa a que me refiro.
Quando passava sentada na sua carroça de encosto baixo, o homem do posto da
rodovia nunca lhe cobrava a passagem, apenas acariciava o seu velho papagaio,
vendo partir a carroça de encosto baixo...
Que bom era ser feliz! Esta antecipação exaltada e esta boa disposição
contribuíam deveras para a felicidade. Em Galway, dissera uma vez que iria ser feliz, e
seria mesmo.
- Com toda a certeza - acrescentou Scarlett, em voz alta, rindo.
Colum chamou por Scarlett que, a meio da tarde, tinha subido um escadote para
inspeccionar o estuque acabado de colocar.
- Quero que vejas o que os teus "preguiçosos" acabaram de fazer - disse ele.
Scarlett sentiu-se tão feliz que as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Viu um carreiro
aberto, bastante largo para o seu cabriolê passar, onde antes passara montada no seu
pônei. Agora, poderia tornar a visitar Kathleen e comprar leite para o seu chá e a sua
papa de aveia.
Nas últimas semanas, sentira-se pesada demais para montar.
- Vou partir já - disse ela.
- Então, deixa-me abotoar-te as botas.
- Não, machucam-me os tornozelos. Vou descalça, agora que tenho um cabriolê
para guiar e uma estrada para passar. No entanto, podes atrelar o pônei ao cabriolê.
Colum observou-a enquanto ela partia, sentindo-se aliviado.
Voltou à sua casa e aos seus livros, ao seu cachimbo, e ao seu copo de um bom
uísque, com uma sensação de recompensa bem merecida. Scarlett O'Hara era a
pessoa mais cansativa que ele jamais conhecera, de qualquer sexo, idade ou
nacionalidade.
"Mas por que será que a minha mente acrescenta sempre 'pobre cordeiro' a cada
opinião que tenho dela?"
Na verdade, ela parecia-se com um pobre cordeiro, quando irrompeu na casa
dele, ao cair da tarde dum dia de Verão. A família, muito amável e repetidamente,
recusara o seu convite e os seus rogos para se mudarem para Ballyhara.
Colum quase acreditara que Scarlett se tornara incapaz de chorar. Não chorara
quando recebeu a notícia do divórcio, nem mesmo quando o último golpe se abateu
sobre ela ao saber que Rhett tornara a casar-se. Mas nesse dia quente de Agosto,
soluçou e chorou durante horas, acabando por adormecer num sofá confortável, um
luxo desconhecido na sua habitação espartana de duas divisões. Colum tapou-a com
uma colcha leve e foi para o seu quarto. Estava contente por ela ter encontrado alívio
para a sua dor, mas receava que não considerasse o seu desabafo do mesmo modo
que ele. De modo que a deixou só; possivelmente, ela não o queria ver durante dias.
Pessoas fortes não gostam de testemunhas dos seus momentos de fraqueza.
Estava enganado. Mais uma vez, pensou. Será que algum dia viria a conhecer
aquela mulher? Na manhã seguinte, encontrou Scarlett sentada à mesa da cozinha,
comendo os únicos ovos que ele tinha.
- Sabes, Colum, tu tens razão. Têm gosto muito melhor com sal... E podes já
começar a pensar em arranjar bons inquilinos para as minhas casas. Terão que ser
ricos, pois tudo o que está dentro delas é da melhor qualidade, e conto com uma boa
renda.
Scarlett estava profundamente magoada, apesar de nunca o demonstrar, nem
falar nisso. Continuou a ir de cabriolê até a casa de Daniel, algumas vezes por semana,
e trabalhava em Ballyhara tão duramente como sempre, não obstante a sua gravidez
se ter tornado bastante incômoda. No fim de Setembro, a cidade estava restaurada.
Todos os prédios estavam limpos, pintados por dentro e por fora, com portas
resistentes, boas chaminés e telhados seguros. A população crescia a grande ritmo.
Havia mais dois bares, uma loja de sapateiro para botas e arreios, a loja do
merceeiro que viera de Bective, um padre idoso para a pequena igreja católica, dois
professores para a escola, que começariam a dar aulas assim que viesse a autorização
de Dublin, um jovem advogado nervoso que esperava vir a adquirir boa clientela, com
uma jovem esposa ainda muito nervosa, que espreitava as pessoas na rua, entre as
suas cortinas de renda. Os filhos dos agricultores brincavam aos jogos na rua, as
mulheres sentavam-se à porta das suas casas e mexericavam, o carteiro vinha todos
os dias de Trim para deixar o correio com o cavalheiro erudito que abrira uma loja de
uma só divisão para a venda de livros, de papel e de tinta de escrever, num anexo da
mercearia. Havia a promessa de que seria instalada uma estação de correio, decorrido
que fosse um ano, e um médico arrendara uma das maiores casas, que ocuparia na
primeira semana de Novembro.
Esta última notícia foi a melhor que Scarlett recebeu. O único hospital naquela
área, ficava num asilo para pobres em Dunshauglin, a vinte e oito quilômetros de
distância. Nunca vira um asilo para pobres, o último refúgio dos miseráveis, e esperava
nunca ver um. Acreditava firmemente no trabalho em vez da mendicidade, mas preferia
não ter que ver os infelizes que acabavam por lá ir parar. E não era de modo algum o
lugar indicado para uma criança nascer.
Ter o seu próprio médico era mais do seu gênero. Estaria bem à mão, também,
para tratar do garrotilho e da varicela que os bebês costumam apanhar. Para já, o que
tinha que fazer era espalhar que iria precisar de uma ama em meados de Novembro.
E aprontar a casa.
- Colum, onde está essa tua perfeita Mrs. Fitzpatrick? Pensei que me disseras
que ela concordara em vir, há um mês atrás.
- Ela, de facto, concordou em vir há um mês. E deu também um mês de aviso
onde trabalhava, como qualquer pessoa responsável faria. Estará aqui no dia primeiro
de Outubro, isto é, na próxima quinta-feira. Ofereci-lhe a minha casa para se hospedar.
- Ah, fizeste isso? Pensei que ela vinha governar a minha casa. Por que não fica
comigo?
- Porque, querida Scarlett, a tua casa é a única de Ballyhara que não foi
restaurada.
Scarlett olhou com surpresa para a sua cozinha-escritório. Nunca antes reparara
no seu aspecto; afinal, era apenas um lugar temporário, um lugar conveniente para
poder acompanhar o trabalho feito na cidade.
- Está revoltante, não está? - disse ela. - É melhor que acabe depressa a Casa
Grande para me poder mudar. - Sorriu com dificuldade. - Colum, a verdade é que estou
quase exausta. Estou desejosa de que o trabalho termine depressa para poder
descansar um pouco.
O que Scarlett não disse foi que o trabalho se tinha tornado apenas trabalho,
depois dos primos lhe terem dito que não se mudariam. A alegria de reconstruir as
terras dos O'Hara tinha-lhe sido retirada pelo fato destes não as quererem desfrutar.
Vezes sem conta tentara descobrir a razão por que tinham recusado a sua oferta. A
única resposta que lhe fez sentido foi a de que não queriam viver perto dela, por não a
estimarem verdadeiramente, não obstante toda a bondade e afeto que lhe tinham
demonstrado. Passara a sentir-se só, mesmo quando estava com Colum. Acreditara
que ele era seu amigo, mas fora ele que lhe dissera que eles nunca aceitariam a sua
oferta. Conhecia-os, pois era um deles. As suas costas doíam-lhe agora sempre. As
pernas também, e os pés e os tornozelos estavam tão inchados que andar era um
tormento. Gostaria de não estar grávida. O fato estava a deixando doente e fora isso
que lhe dera a idéia de comprar Ballyhara. E ainda faltavam mais seis... não, seis
semanas e meia deste tormento.
"Se tivesse forças, daria um berro", pensou desanimada. Mas conseguiu ainda
sorrir fracamente para Colum.
"Parece que ele me quer dizer alguma coisa, mas não sabe como começar. Ora,
não o posso ajudar. Já esgotei a minha conversa."
Bateram à porta da rua.
- Eu vou abrir - disse Colum. "Isso mesmo, corre como um coelho."
Colum regressou à cozinha com um embrulho na mão e um sorriso indeciso na
cara.
- Era a Mrs. Flanagan, da mercearia. O tabaco que encomendaste para a avó já
chegou e ela trouxe-o. Vou entregá-lo à avó.
- Não - Scarlett levantou-se. - Ela pediu-me que o obtivesse. Foi a única coisa que
me pediu até agora. Atrela o pônei ao cabriolê e ajuda-me a subir. Quero ser eu a
entregá-lo.
- Vou contigo.
- Colum, no banco mal há lugar para mim, quanto mais para nós os dois. Traz-me
só o cabriolê e ajuda-me a subir, por favor.
E como sairia dele, só Deus sabia.
Scarlett lutava para ir de encontro às vozes e à luz que a sua mente acalmada por
sedativos percebia. Havia algo... algo importante... uma pergunta... Mãos firmes
pegaram-lhe na cabeça, dedos gentis afastaram-lhe os lábios, um líquido fresco e doce
inundou-lhe a língua, atravessou-lhe a garganta e ela adormeceu de novo.
Da segunda vez que lutou por recuperar a consciência, lembrou-se de qual era a
pergunta, uma pergunta vital e muito importante. O bebê. Estava morto? Com mãos
trêmulas tocou no abdômen e foi de imediato acometida por uma dor incandescente.
Mordeu os lábios, as mãos apalparam mais fundo, desviando-se para o lado. Não havia
pontapés, nenhuma área firme que representasse um pé. O bebê morrera. Scarlett
soltou um grito de desgosto, mais baixo que um gemido, e sentiu de novo na boca o
líquido doce e reconfortante. Mesmo meio adormecida, as lágrimas correram-lhe dos
olhos fechados.
Semiconsciente pela terceira vez, tentou agarrar-se à escuridão, continuar a
dormir, afastar o mundo de si. No entanto, a dor aumentou, dilacerante, fazendo-a
mover-se a fim de fugir dela, mas o movimento provocou-lhe uma dor tão profunda que
gemeu de sofrimento. O copo de vidro fresco tocou-lhe de novo nos lábios e sentiu-se
aliviada. Mais tarde, quando voltou a flutuar nas margens da consciência, abriu
prontamente a boca, ansiosa pela escuridão sem sonhos. Em vez disso, alguém com
um pano húmido limpou-lhe os lábios, e ouviu uma voz conhecida, mas da qual não se
lembrava.
- Querida Scarlett... Katie Scarlett O'Hara... abre os olhos...
A sua mente procurou, divagou, fixou-se. Colum, era a voz de Colum. O seu
primo. O seu amigo... Por que a não deixava dormir se era seu amigo? Por que não lhe
dava o remédio, antes que a dor voltasse?
- Katie Scarlett...
Entreabriu os olhos. A luz incomodava-os e ela baixou as pálpebras.
- Boa menina, querida Scarlett. Abre os olhos. Tenho uma coisa para ti. - O seu
tom persuasivo era insistente. Os olhos de Scarlett abriram-se. Alguém desviara a
lamparina e a obscuridade era suportável.
Ali estava o seu amigo Colum. Tentou sorrir, mas a recordação inundou-lhe a
mente, os lábios encresparam-se e soluçou como uma criança.
- O bebê morreu, Colum. Põe-me a dormir de novo. Ajuda-me a esquecer. Por
favor. Por favor, Colum.
O pano húmido afagou-lhe as faces, limpou-lhe a boca.
- Não, não, não, Scarlett, não, não, o bebê está aqui, o bebê não morreu.
Lentamente, percebeu. "Não está morto", disse-lhe a mente.
- Não está morto? - disse Scarlett.
Podia ver a cara de Colum, o sorriso de Colum.
- Não está morto, queridinha, não está morto. Aqui. Olha.
Scarlett voltou a cabeça na almofada. Por que era tão difícil virar a cabeça? Uma
trouxa pálida, nas mãos de alguém, estava ali.
- A tua filha, Katie Scarlett - disse Colum. Abriu as dobras da manta e ela viu a
minúscula carinha adormecida.
- Oh - suspirou Scarlett. "Tão pequena, tão perfeita e tão dependente. Olhem para
a pele, como pétalas de rosa, como creme, o rosa é apenas uma sugestão de rosa.
Parece bronzeada pelo sol, como... como um bebê pirata. É a cara escrita do Rhett!"
"Rhett! Por que não estás aqui para ver a tua filha? A tua bela e morena filha."
- Meu lindo bebê moreno. Deixa-me olhar para ti.
Scarlett sentiu uma fraqueza estranha e assustadora, um calor que lhe inundou o
corpo, como uma onda forte e suave de queimadura indolor.
A criança abriu os olhos e estes fitaram os de Scarlett diretamente. Scarlett sentiu
amor. Sem condições, sem exigências, sem motivação, sem perguntas, sem reserva,
sem ego.
- Olá, pequenina - disse ela.
- Agora, bebe o teu remédio - disse Colum. A minúscula carinha morena fora-se.
- Não! Não, quero a minha filha. Onde é que ela está?
- Da próxima vez que acordares, a terás ao teu lado.
- Abre a boca, querida Scarlett.
- Não abro - tentou dizer, mas as gotas já estavam na sua língua, e de repente a
escuridão fechou-se sobre ela. Dormiu, sorrindo, um brilho de vida sob a palidez
mortal.
Talvez o que sentira fosse por a criança se parecer com Rhett; talvez por ter
sempre dado mais valor às coisas por que mais lutara; ou talvez porque vivia há tantos
meses entre os irlandeses, que adoravam crianças.
- Manda-a embora! - disse Scarlett, quando a jovem e saudável ama trouxe a
criança nos braços. -Tive sempre que atar os meus seios e sofrer agonias à espera de
que o leite secasse, tudo para ser uma senhora e manter a minha figura. Eu a
alimentarei, a fortalecerei e a verei crescer.
Quando, pela primeira vez, a filha chupou o seu mamilo com sofreguidão,
franzindo ligeiramente a testa, Scarlett sorriu para ela, triunfante.
- És bem a menina da mamãe, esfomeada como um lobo e determinada a obter o
que queres.
A criança foi batizada no quarto de Scarlett, visto Scarlett estar fraca demais para
andar. O padre Flynn ficou ao lado da cama, onde se encontrava recostada em
almofadas com fronhas enfeitadas com rendas, pegando o bebê ao colo, até chegar a
hora de a entregar a Colum, que era o padrinho; Kathleen e Mrs. Fitzpatrick foram as
madrinhas. O bebê vestia um vestido de linho bordado, desgastado pelas lavagens,
que tinha sido usado por centenas de bebês O'Haras, geração após geração. Deram-
lhe o nome de Katie Colum O'Hara. Katie esbracejou e esperneou quando sentiu a
água tocar-lhe, mas não chorou.
Kathleen trazia vestido o seu melhor vestido azul, com gola de renda, apesar de
que devia estar de luto. A velha Katie Scarlett morrera. Contudo, todos tinham
concordado em nada dizer a Scarlett, até esta se sentir melhor.
Rosaleen Fitzpatrick observava o padre Flynn com olhos de águia, pronta a
arrancar-lhe o bebê se ele vacilasse por um segundo que fosse. Ficara sem fala por um
longo momento, depois de Scarlett lhe ter pedido que fosse madrinha.
- Como adivinhou o que sinto por esta criança? - perguntou ela, recuperando a
fala.
- Não adivinhei - disse Scarlett -, mas sei que não teria tido o bebê se não tivesse
impedido aquele monstro de mulher de me matar. Lembro-me de uma boa parte
daquela noite.
Colum tirou Katie do padre Flynn quando a cerimônia acabou e a pôs nos braços
estendidos de Scarlett. Depois, ofereceu uísque ao padre e aos padrinhos e fez um
brinde.
- À saúde e felicidade da mãe e da criança. À O'Hara e à mais nova dos O'Haras.
- A seguir, acompanhou o cambaleante e santo homem até o bar dos Kennedy, onde
pagou algumas rodadas a todos, em honra da ocasião. Esperava que esse gesto
acabasse com os rumores que corriam por todo o Condado de Meath.
Joe O'Neill, o ferreiro, tinha se refugiado covardemente num canto da cozinha de
Ballyhara até amanhecer, depois saíra correndo até a sua oficina para beber até
recuperar a coragem.
Naquela noite, o próprio São Patrício teria precisado de muito mais que orações
para o invocar - disse ele, a quem o quisesse ouvir, e havia muitos.
- Estava eu preparado para salvar a vida da O'Hara, quando a bruxa atravessou a
parede e me atirou ao chão com uma força incrível. Depois, deu-me pontapés, e senti
na minha carne que o pé não era humano, mas um casco fendido. Enfeitiçou a O'Hara
para depois lhe arrancar o bebê das entranhas. Estava todo ensanguentado, o chão e
as paredes manchadas de sangue. Um homem mais covarde teria tapado os olhos
para não ver uma cena tão horrível. Mas eu, Joseph O'Neill, não fiz isso, distingui o
corpo perfeito e robusto da criança, através do sangue, e digo-lhes que o que vi foi um
menino, com a sua masculinidade bem à vista entre as pernas.
"Vou lavar o sangue", disse o demônio, voltando as costas. Depois, apresentou
ao padre uma criatura frágil e semimorta... do sexo feminino e morena como a terra da
sepultura.
- Agora, digam-me, se o que eu vi não foi uma troca de crianças, que foi então
que aconteceu nessa fatídica noite? Nenhum bem virá daí nem para a O'Hara nem
para qualquer homem que tenha sido tocado pela sombra do bebê duende deixado em
lugar do menino roubado da O'Hara.
A história contada em Dunshaughlin chegou a Ballyhara uma semana depois. A
O'Hara estava morrendo, e só poderia ser salva se a livrassem do bebê morto no seu
ventre. Quem saberia destas coisas, por muito desgostantes que fossem, senão uma
parteira que já tinha visto tudo o que era preciso ver sobre nascimento? Subitamente, a
mãe sofredora sentou-se na cama, cheia de dores.
- Estou vendo - disse ela -, a fada! Alta e vestida de branco e bela como uma fada
deve ser.
Depois, os diabos atiraram uma lança do Inferno, através da janela, e a fada saiu,
voando e lamentando o chamamento à morte. Chamava pela alma do bebê perdido,
mas o bebê morto foi restituído aos vivos por ter sugado a alma da boa e velha mulher
que era a avó da O'Hara. Fora um trabalho do diabo, e não há dúvida de que o bebê
que a O'Hara pensa ser seu, não passa de um espírito mau.
- Acho que devia avisar Scarlett - disse Colum a Rosaleen Fitzpatrick -, mas que é
que lhe vou dizer? Que o povo é supersticioso? Que a véspera de Todos os Santos é
uma ocasião perigosa para uma criança nascer? Não sei que conselhos lhe dar, não há
maneira de proteger a criança das más-línguas.
- Eu zelarei pela segurança da Katie - disse Mrs. Fitzpatrick. - Ninguém e nada
entrará nesta casa, a menos que eu diga sim, e nenhum mal chegará junto da
pequenina. Com o tempo, as histórias serão esquecidas, Colum, sabes isso. Outra
coisa virá que tecerá outras histórias e todos verão que a Katie é apenas uma menina
como qualquer outra.
Uma semana mais tarde, Mrs. Fitzpatrick levou uma bandeja com chá e
sanduíches para o quarto de Scarlett e ouviu, com paciência, Scarlett bombardeá-la
com o mesmo queixume de há muitos dias.
- Não sei por que tenho que ficar fechada neste quarto para sempre. Já me sinto
bastante bem para poder me levantar e andar por aí. Olha o lindo sol que faz hoje,
quero levar a Katie para dar um passeio no cabriolê, mas a única coisa que me deixam
fazer é ficar sentada à janela, vendo as folhas cair. Estou certa de que ela já vê tudo.
Os seus olhinhos olham para cima e depois para baixo... Oh, veja! Venha ver! Veja os
olhos de Katie aqui à luz. Estão mudando de cor. Pensei que se tornariam castanhos,
como os de Rhett, pois ela é muito parecida com ele. Mas consigo ver as primeiras
pequenas manchas e estas são verdes. Vai ter os meus olhos!
Scarlett acariciou o pescoço da criança.
- És a menininha da mamãe, não és, Katie O'Hara? Não, não Katie. Qualquer
uma pode ser Katie. Vou-te chamar Kitty Cat, por causa dos teus olhos verdes. -
Levantou a solene criança para que esta encarasse a governanta.
- Mrs. Fitzpatrick, desejo apresentar-lhe a Cat O'Hara. - O sorriso de Scarlett era
radioso como o sol.
Rosaleen Fitzpatrick sentiu-se mais amedrontada do que alguma vez se sentira
na vida.
- Vou sair e não se fala mais nisso - disse Scarlett, teimosamente, a Mrs.
Fitzpatrick. A governanta permaneceu de pé à entrada da porta, como uma montanha
irremovível.
- Não vai, não.
Scarlett mudou a sua tática.
- Por favor, deixe-me - pediu ela, com ar adulador, com o mais doce sorriso do
seu arsenal. - O ar fresco vai fazer-me muito bem. Vai me abrir o apetite e a senhora
sabe como tem insistido comigo para que coma mais.
- Isso vai mudar. A cozinheira já chegou.
Scarlett esqueceu-se de que estava tentando seduzi-la. -J á não era sem tempo!
Sua Alteza deu-se ao trabalho de explicar por que demorou tanto tempo para chegar?
Mrs. Fitzpatrick sorriu.
- Ela iniciou a viagem para cá a tempo, mas, devido às hemorróidas, sentiu-se tão
mal que teve que parar no caminho, para descansar, todos os vinte e cinco
quilômetros, até chegar aqui. Parece que não vamos ter que nos preocupar com o fato
de ela se espreguiçar numa cadeira de balanço, em vez de estar de pé trabalhando.
Scarlett tentou não rir, mas não o pôde evitar. E, de fato, não podia zangar-se
com Mrs. Fitzpatrick; tinham-se tornado íntimas demais para que isso acontecesse.
Mrs. Fitzpatrick mudara-se para o apartamento da governanta no dia em que Cat
nascera. Foi a companheira constante de Scarlett durante a sua doença. E sempre
disponível depois.
Muitas pessoas vieram visitar Scarlett durante as longas semanas de
convalescença, após o nascimento de Cat. Colum aparecia quase diariamente,
Kathleen de dois em dois dias, os seus grandes primos O'Hara depois da Missa de
domingo, Molly mais vezes do que Scarlett gostaria. Mas Mrs. Fitzpatrick estava
sempre presente. Trazia chá e bolos para as visitas, uísque e bolos para os homens e,
depois de as visitas partirem, permanecia junto de Scarlett para contar as notícias que
os visitantes tinham trazido e acabar de beber os refrescos. Ela própria trazia as suas
notícias - sobre os acontecimentos na cidade de Ballyhara e de Trim - e os boatos que
ouvira nas lojas. Fez que Scarlett se sentisse menos só.
Scarlett convidou Mrs. Fitzpatrick a tratá-la por "Scarlett" e perguntou "Qual é o
seu primeiro nome?"
Mrs. Fitzpatrick nunca lhe disse. Na sua opinião, não devia existir nenhuma
familiaridade entre ambas, disse com firmeza, explicando-lhe a rígida hierarquia de
uma Casa Grande irlandesa. A sua posição como governanta seria enfraquecida se o
respeito que lhe era inerente fosse diminuído pela familiaridade, fosse de quem fosse,
até mesmo da patroa. Especialmente da patroa.
Era tudo sutil demais para que Scarlett pudesse compreender, mas a agradável
teimosia de Mrs. Fitzpatrick fez-lhe ver que se tratava de uma questão importante e que
era inútil teimar. Concordou com os nomes que a governanta sugeriu. Scarlett lhe
chamaria "Mrs. Fitz", e esta chamaria a Scarlett "Mrs. O". Mas só quando estivessem a
sós. Na frente das pessoas, era necessário manter a formalidade.
- Até Colum? - quis Scarlett saber. Mrs. Fitz considerou, depois cedeu. Colum era
um caso especial.
Scarlett tentou tirar vantagem da parcialidade de Mrs. Fitz em relação a ele.
- Visitarei apenas o Colum - disse ela. - Há tempos que ele não me vem ver, e já
sinto a sua falta.
- Ausentou-se em negócios e a senhora sabe-o muito bem. Ouvi-o dizer-lhe que
ia partir.
- Pronto, ganhou! - murmurou Scarlett. Voltou à sua cadeira perto da janela e
sentou-se. - Vá falar com Mrs. Hemorroidal.
Mrs. Fitzpatrick deu uma gargalhada.
- Por falar nisso - disse ela ao sair -, o nome dela é Mrs. Keane. Mas poderá
chamá-la Mrs. Hemorroidal, se preferir. Provavelmente, nunca a verá. Essa função
cabe a mim.
Scarlett esperou até ter a certeza de que Mrs. Fitz não a apanharia, depois vestiu-
se para sair. Já fora obediente durante bastante tempo. Era um fato reconhecido que
depois do parto uma mulher levava um mês para se recuperar, a maior parte do tempo
na cama, e ela tinha-o feito. Não via razão para acrescentar mais três semanas só pelo
fato de o parto de Cat não ter sido normal. O médico de Ballyhara parecia-lhe um
homem bom, até lhe lembrava um pouco o Dr. Meade. Mas o próprio Dr. Devlin admitia
que não tinha experiência de bebês nascidos por meio da faca. Por que lhe daria ela
ouvidos? Especialmente, quando havia algo que ela precisava fazer. Mrs. Fitz contara-
lhe sobre a velha mulher que aparecera, como se por magia, a fim de trazer Cat ao
mundo, no meio da tempestade de Todos os Santos. Colum dissera-lhe quem era a
mulher - a cailleach que vivia na torre. Scarlett e Cat deviam a vida à sábia mulher.
Tinha que lhe agradecer.
O frio apanhou Scarlett de surpresa. O mês de Outubro tinha sido bastante
quente, como podia um mês só fazer tanta diferença? Tapou o bebê, que estava bem
embrulhado, com as dobras da sua capa. Cat estava acordada. Os seus grandes olhos
fitavam a cara de Scarlett.
- Minha coisinha preciosa - disse Scarlett, baixinho. - És tão boazinha, nunca
choras, não é? - Passou pelo estábulo, dirigindo-se para o caminho que costumava
tomar tantas vezes quando ia de cabriolê.
- Sei que está aí em algum lugar - gritou Scarlett em direção ao matagal que
crescia sob as árvores que bordejavam a clareira onde se encontrava a torre. - É
melhor vir aqui para fora e falar comigo, senão vou morrer aqui gelada, à sua espera. O
bebê, também, se quer saber. - Esperou confiantemente. A mulher que trouxera Cat ao
mundo não a deixaria exposta por muito tempo ao frio húmido provocado pela sombra
da torre.
Os olhos de Cat desviaram-se do rosto de Scarlett e moveram-se de um lado para
o outro, como se procurasse alguma coisa. Alguns minutos depois, Scarlett ouviu um
farfalhar na vegetação espessa de azevim, ao seu lado direito. A anciã apareceu entre
dois arbustos.
- Por aqui - disse ela, recuando. Havia ali um carreiro, Scarlett pôde ver quando
se aproximou. Nunca o teria encontrado se a mulher não tivesse afastado os
espinhosos ramos de azevim com um dos seus xales. Scarlett seguiu pelo carreiro até
este ir dar a um bosque de árvores baixas.
- Desisto - disse ela -, para onde vou agora?
Ouviu uma gargalhada rouca atrás de si.
- Por aqui - disse a anciã. Andou à volta de Scarlett, baixou-se sob os ramos.
Scarlett fez o mesmo. Dados alguns passos, pôde endireitar-se. Na clareira, ao centro
do bosque, estava uma cabana de terra batida com telhado de colmo. Da chaminé saía
uma coluna fina de fumaça cinzenta encaracolado.
- Entra - disse a mulher. Abriu a porta. - É uma bela criança - disse a mulher.
Examinara todo o corpinho de Cat, até às unhas dos seus pequeninos pés. - Que nome
lhe puseste?
- Katie Colum O'Hara. - Era a segunda vez que Scarlett falava. Uma vez
transposta a porta, começou a agradecer à mulher pelo que ela tinha feito, mas a velha
mandou-a calar.
- Deixa-me ver o bebé - disse, com os braços estendidos.
Scarlett passou-lhe Cat de imediato e manteve-se silenciosa enquanto a mulher a
examinava.
- Katie Colum! - repetiu a mulher. - É um som fraco e macio para esta criança tão
forte. O meu nome é Grainne. Um nome forte.
A sua voz rude fez que o nome galês parecesse uma ameaça. Scarlett remexeu-
se no banco. Não sabia como responder.
A mulher envolveu Cat no babador e nas mantas. Depois, levantou-a e murmurou,
baixinho, ao seu ouvido, algumas palavras que Scarlett não conseguiu entender,
mesmo que se tivesse esticado toda para poder ouvir. Os dedos de Cat agarraram os
cabelos de Grainne. A velha segurou Cat de encontro ao ombro.
- Não terias compreendido, mesmo que tivesses ouvido, O'Hara. Falei em irlandês
antigo. Foi um feitiço. Decerto que já ouviste dizer que eu entendo tanto de magia
como de plantas.
Scarlett anuiu.
- Talvez entendas mesmo. Tenho alguns conhecimentos das palavras e dos
costumes antigos, mas não digo que sejam mágicos. Olho, escuto e aprendo. Para
alguns pode parecer magia quando um cego vê ou quando um surdo ouve. Depende
muito daquilo em que se acredita. Não esperes que eu faça uma magia para ti.
- Não vim por essa razão.
- Só para agradecer? É tudo?
- Sim, é, e agora que já o fiz, tenho que ir embora, antes que dêem pela minha
falta em casa.
- Peço que me perdoes - disse a velha mulher. - São poucos os que se sentem
agradecidos quando entro nas suas vidas. Gostaria de saber se não ficaste zangada
com o que fiz ao teu corpo?
- Salvaste a minha vida e a do bebê, também.
- Mas tirei a vida a todos os outros bebês. Um médico teria sabido melhor o que
fazer.
- Ora, não consegui arranjar um médico, caso contrário, teria tido um junto de
mim! - Scarlett apertou com firmeza.
Viera para agradecer à velha mulher, não para insultá-la.
Mas por que estaria ela a falar enigmaticamente na sua voz áspera e
assustadora?
Até provocava arrepios na pele de uma pessoa.
- Desculpa - disse Scarlett -, fui grosseira contigo. Tenho a certeza de que
nenhum médico teria feito melhor que tu. Provavelmente, nem metade tão bem. E não
sei o que queres dizer quando te referes a outros bebês. Estás dizendo que tive
gêmeos e que o outro morreu? - Era uma possibilidade, pensou Scarlett. Em grávida,
tivera uma barriga tão grande.
Mas decerto que Mrs. Fitz ou Colum lhe teriam dito. Talvez não. Só comunicaram
a morte da velha Katie Scarlett duas semanas depois de esta ter falecido. Um
sentimento de perda irreparável apertou o coração de Scarlett.
- Havia outro bebê? Tem que me dizer!
- Chhh, estás a incomodar a Katie Colum - disse Grainne, a mulher sabia. - Não
havia outra criança no teu útero. Não sabia que ias entender mal as minhas palavras. A
mulher de cabelo branco parecia conhecedora, pensei que ela compreendera e te
dissesse. Retirei-te o útero juntamente com o bebê e não tinha conhecimentos para o
recolocar. Não poderás ter mais filhos.
Havia uma finalidade terrível nas palavras da mulher e na maneira como as dizia,
e Scarlett soube logo que eram verdadeiras. Mas não podia acreditar no que ouvia, não
podia ter mais filhos? Agora que, finalmente, descobrira a alegria inesquecível de ser
mãe, agora que aprendera - tão tarde - o que era amar? Não podia ser verdade. Era
demasiado cruel.
Scarlett nunca compreendera por que Melanie arriscara a vida para ter outro
bebê, mas agora podia compreender. Ela faria o mesmo. Passaria de novo pela
mesma dor e medo e por todo aquele sangue para sentir a felicidade de ver a carinha
do bebê pela primeira vez.
Cat emitiu um som baixo, parecido com um miado. Era o seu aviso de que estava
com fome. Em resposta, Scarlett sentiu o seu leite começar a brotar. "Por que estou
preocupada? Não tenho já o bebê mais maravilhoso do mundo? Não, vou perder o
leite, se me preocupar com bebês imaginários, quando a minha Cat é verdadeira e
precisa da sua mãe."
- Tenho que ir - disse Scarlett. - Está a chegar a hora de amamentar o bebé.
Estendeu as mãos para pegar a filha.
- Mais uma palavra - disse Grainne. - Um aviso.
Scarlett sentiu medo. Desejou não ter trazido a Cat. Por que é que a mulher a não
devolvia?
- Mantém o bebê junto de ti, há aqueles que dizem que ela foi trazida por uma
feiticeira e que, portanto, está enfeitiçada.
Scarlett sentiu um arrepio.
Os dedos manchados de Grainne abriram com gentileza os punhos fechados de
Cat. Beijou a sua cabecinha coberta de penugem, murmurando:
- Vai em paz, Dará. - Depois, entregou-a a Scarlett. - Eu a chamarei de Dará em
pensamento. Significa carvalho. Estou grata por a ter visto e pelos teus
agradecimentos. Mas não a tragas aqui. Não é prudente que ela tenha algo a ver
comigo.
Parte agora. Vem aí alguém e vocês não devem ser vistas... Não, o carreiro que
essa pessoa tomou não é o mesmo que o vosso. É o que está do lado norte e que é
usado por mulheres tontas que vêm comprar poções para o amor ou para a beleza ou
para prejudicar os que os odeiam. Vai. Olha pelo bebê. Scarlett obedeceu com prazer.
Caminhou com obstinação sob a chuva fria que começara a cair. A sua cabeça e
costas estavam inclinadas para proteger o bebê do mal. Abrigada sob a capa de
Scarlett, Cat emitia sons de sucção.
Mrs. Fitzpatrick olhou para a capa húmida atirada no chão, ao pé da lareira, mas
não fez nenhum comentário.
- Mrs. Hemorroidal parece ter boa mão com o batedor - disse ela. - Trouxe-lhe
scones com o chá.
- Muito bem, estou esfomeada. - Amamentara Cat e tirara uma soneca e o sol
brilhava de novo. Scarlett estava agora certa de que o passeio lhe fizera um grande
bem. Não aceitaria um não como resposta, da próxima vez que quisesse sair.
Mrs. Fitzpatrick nem sequer tentou impedi-la. Reconhecia a futilidade de uma
argumentação inútil.
Quando Colum regressou a casa, Scarlett foi visitá-lo para lhe pedir um conselho.
- Quero comprar um pequeno buggy fechado (carro de duas rodas puxado por um
cavalo. - N. da T.), de duas rodas, Colum. Está muito frio para andar de cabriolê e eu
preciso me mover. Ajudas-me a escolher um?
Claro que ajudaria, disse Colum, mas ela poderia fazer a sua própria escolha, se
preferisse. Os fabricantes desses carros lhe mostrariam modelos para ela poder
escolher. Como de resto o fariam todos os fabricantes de todas as coisas que ela
quisesse comprar. Ela era a Senhora da Casa Grande.
- Por que não pensei nisso? - disse Scarlett.
Uma semana depois, passou a conduzir um bonito buggy preto, com uma risca
amarela dos lados, puxado por um cavalo cinzento, que correspondia à palavra do
vendedor de que possuía um bom trote e que quase nunca precisava de chicote.
Também mandou preparar uma sala de estar, com mobília em madeira de
carvalho polido, estofada de verde, com dez cadeiras extra que podiam ser colocadas
juntas e uma mesa redonda com tampo de mármore, onde se podiam sentar seis
pessoas para comer. Tudo isto sobre um tapete Wilton, numa sala ao lado do seu
quarto. Não importa as histórias revoltantes que Colum contava sobre mulheres
francesas, que entretinham multidões, enquanto se espreguiçavam nas suas camas,
mas estava decidida a ter um lugar próprio para receber as suas visitas. E o que quer
que fosse que Mrs. Fitz dissesse, não via nenhuma razão para utilizar as salas de
baixo para entreter, quando havia muitas salas vazias no piso de cima disponíveis para
esse fim.
Ainda não tinha a grande escrivaninha e a cadeira que encomendara, porque o
carpinteiro de Ballyhara ainda as estava fazendo. Que valia ter uma cidade, se não
fosse suficientemente esperta para dirigir todos os negócios nela existentes? Podia ter
certeza de receber as rendas se todos estivessem ganhando dinheiro.
A berço almofadado de Cat estava sempre no assento, ao lado dela no buggy,
onde quer que fosse. Cat emitia sons borbulhantes que pareciam duetos cantantes,
enquanto seguia pela estrada. Scarlett exibia Cat em todas as lojas e casas de
Ballyhara onde parava. As pessoas benziam-se quando viam o bebê de pele morena e
olhos verdes e Scarlett ficava contente. Pensava que estavam abençoando a criança.
Quando o Natal se aproximou, Scarlett perdeu parte da exaltação que sentira
quando se libertara da prisão da convalescença.
- Não gostaria de estar em Atlanta, por nada deste mundo, mesmo que fosse
convidada para todas as festas, ou mesmo em Charleston, com os seus ridículos
cartões de convite para dançar - disse a Cat. - Mas gostaria de estar num lugar que
não estivesse sempre húmido.
Scarlett pensou que seria bom viver numa cabana, a fim de a poder caiar de
branco e decorá-la do modo como Kathleen e as primas faziam. E como faziam todos
os outros que viviam em cabanas, também, em Adamstown e à beira das estradas.
Quando, no dia 22 de Dezembro, entrou no bar Kennedy e viu as lojas e as casas a
serem caiadas e pintadas, apesar do seu aspecto novo, pulou de alegria. O prazer que
sentia em ser dona daquela cidade afastou a ligeira tristeza que se apoderara dela,
quando se dirigiu ao seu próprio bar, à procura de companhia. Às vezes, parecia que a
conversa se tornava desajeitada assim que ela entrava.
- Temos que decorar a casa para o Natal - comunicou a Mrs. Fitz. - Que é que os
irlandeses fazem?
- Pomos ramos de azevim sobre as cornijas das lareiras, nas portas e nas janelas
- disse a governanta. - E grandes velas, geralmente encarnadas, numa das janelas, a
fim de iluminar o caminho do Menino Jesus.
- Vamos colocar uma em cada janela - declarou Scarlett, mas Mrs. Fitz foi firme.
Só numa janela. Scarlett podia ter as velas que quisesse, mas só uma janela devia ter
uma vela. E essa só poderia ser acesa na Véspera do Natal, quando tocasse o
Angelus.
A governanta sorriu.
- Manda a tradição que a criança mais nova da casa acenda um junco retirado do
carvão da lareira, assim que se ouça tocar o Angelus, para depois acender a vela com
a chama do junco. Terá que lhe dar uma pequena ajuda.
Scarlett e Cat passaram o Natal na casa de Daniel. A admiração que Cat suscitou
foi tanta que satisfez até Scarlett. E muita gente entrando pela porta, o que manteve a
sua mente distante dos Natais em Tara, nos tempos passados, quando a família e a
criadagem da casa saíam para o vasto pórtico, depois do café, em resposta ao grito
"Presentes de Natal". Quando Gerald O'Hara oferecia um trago de uísque e uma bolsa
de tabaco a cada um dos trabalhadores do campo, entregando-lhes ao mesmo tempo
um casaco e um par de botas novas. Quando Ellen O'Hara dizia uma breve oração a
cada mulher e criança, entregando-lhe metros de chita e de flanela, juntamente com
laranjas e rebuçados. Por vezes, Scarlett sentia tanta falta da quente modulação das
vozes dos negros e dos seus sorrisos resplandecentes, que mal o podia suportar.
- Preciso voltar à terra, Colum - disse Scarlett.
- E não estás tu agora na tua terra, na terra dos teus antepassados, que fizeste
que se tornasse de novo a terra dos O'Haras?
- Oh, Colum, não te armes em irlandês comigo! Sabes o que quero dizer. Tenho
saudades das vozes das gentes do Sul e do sol do Sul e da comida do Sul. Quero
comer pão de milho, galinha frita e semolina. Ninguém na Irlanda sabe o que é milho.
Para eles é apenas uma palavra que define uma espécie de cereal.
- Compreendo, Scarlett, e lamento as saudades que sentes. Por que não vais até
lá, quando chegar o bom tempo para viajar? Podes deixar a Cat aqui. Mrs. Fitzpatrick e
eu tomaremos conta dela.
- Nunca! Nunca deixarei a Cat.
Não havia nada a dizer. Mas, de tempos em tempos, a idéia voltava-lhe à mente:
são apenas duas semanas e um dia para atravessar o oceano e, por vezes, os
golfinhos acompanham o navio horas a fio.
No Dia de Ano Novo, Scarlett teve a primeira amostra do que realmente era ser A
O'Hara. Mrs. Fitz entrou no quarto com o chá da manhã, em vez de mandar a Peggy
Quinn com a bandeja do café.
- A bênção de todos os santos para a mãe e filho no ano que aí vem - disse ela,
alegremente. - Tenho que lhe dizer o que tem a fazer antes do seu café.
- Feliz Ano Novo para ti também, Mrs. Fitz, e que quer dizer com isso?
- Uma tradição, um ritual, uma necessidade - respondeu Mrs. Fitz. - Sem isso, não
haverá sorte durante o ano. A primeira comida a comer na casa deverá ser o bolo de
levedura especial do Ano Novo. Devem ser dadas três dentadas, em nome da
Santíssima Trindade.
"Porém, antes de começar - disse Mrs. Fitz -, terá que entrar no quarto que já
aprontei. É que, depois de dar as três dentadas da Trindade, deverá atirar o bolo com
toda a sua força de encontro à parede, a fim de que ele se desfaça em pedaços. Para o
efeito, mandei ontem esfregar as paredes e o chão.
- Isso é a coisa mais louca que jamais ouvi. Por que vou desperdiçar um bolo
perfeitamente bom? E por que tenho de comer bolo no desjejum?
- Porque é assim que se costuma fazer. Faça a sua obrigação, Mrs. O'Hara, antes
que as outras pessoas desta casa morram de fome. Ninguém poderá comer sem a
Senhora partir primeiro o pão doce.
Scarlett vestiu um agasalho de lã e obedeceu. Bebeu um gole do chá para molhar
a língua, depois deu três dentadas no rico bolo de frutas, conforme as instruções de
Mrs. Fitz. Teve que o segurar com as duas mãos, tão grande ele era. Depois, repetiu a
oração contra a fome que Mrs. Fitz lhe ensinara e, levantando os dois braços, atirou o
bolo, que se partiu em pedaços, contra a parede. Pedaços voaram por todos os lados.
Scarlett riu.
- Que grande porcaria! Mas foi divertido atirar com o bolo à parede.
- Ainda bem que gostou - disse a governanta. - Tem mais cinco bolos para partir.
Todos os homens, mulheres e crianças de Ballyhara têm que ficar com um pedaço
para lhes trazer boa sorte. Estão lá fora à espera. As criadas distribuirão os pedaços de
bolo em bandejas, depois de a Senhora acabar de o partir.
- Santo Deus - disse Scarlett. - Devia ter dado dentadas mais pequenas.
Depois do desjejum, Colum acompanhou-a através da cidade, para o ritual
seguinte. Era sinal de boa sorte para todo o ano, se uma pessoa de cabelo escuro
visitasse uma casa no Dia do Novo Ano. Mas, segundo a tradição, a pessoa devia
entrar e sair acompanhada, depois voltar a entrar acompanhada.
- E não te atrevas a rir - ordenou Colum. - Qualquer pessoa de cabelo escuro dá
boa sorte. A chefe de um clã dá boa sorte dez vezes mais.
Scarlett estava cambaleante quando tudo terminou.
- Ainda bem que ainda há muitas construções vazias - disse, ofegante. - O meu
estômago está repleto de chá e de bolos. Era realmente necessário comer e beber
onde quer que entrássemos?
- Querida Scarlett, como se pode considerar uma visita se não houver
hospitalidade recíproca? Se fosses um homem, teria sido uísque e não chá.
Scarlett sorriu. "Cat teria gostado disto."
O primeiro dia de Fevereiro era considerado o princípio do ano agrícola na
Irlanda. Acompanhada por todos os que trabalhavam e viviam em Ballyhara, Scarlett
encontrava-se no centro de um grande campo e, depois de rezar uma oração pelo
sucesso das colheitas, cavou a terra com a pá, revolvendo o primeiro torrão. Agora, o
ano podia começar. Depois da festa do bolo de maçã - e leite, claro, visto o primeiro de
Fevereiro ser também o dia de festa de Santa Erigida, uma das santas padroeiras da
Irlanda, a qual também era santa padroeira dos laticínios.
Depois da cerimônia, quando todos comiam e falavam, Scarlett ajoelhou-se perto
da terra revolvida e, com a mão, pegou um bocado da rica argila.
- Isto é para ti, pai - murmurou ela. - Vês, a tua Katie Scarlett não se esqueceu do
que lhe disseste, que a terra de County Meath é a melhor do mundo, melhor ainda que
a terra da Geórgia, de Tara. Cuidarei dela o melhor que souber, pai, conforme me
ensinaste. É solo O'Hara, e é nosso de novo.
O sistema antigo de lavrar e de gradar, de semear e de regar, tinha uma
dignidade tão simples e laboriosa que conquistou a admiração e o respeito de Scarlett
em relação a todos os que viviam da terra. Sentira o mesmo quando vivera na cabana
de Daniel e sentia-o agora pelos agricultores de Ballyhara. Por ela própria, também,
pois, de certa maneira, ela era uma deles. Não tinha forças para conduzir o arado, mas
podia comprá-lo. E bem assim os cavalos para o puxarem. E a semente para plantar
nos sulcos que fazia.
O escritório da propriedade era o seu lar, mais que os seus quartos na Casa
Grande. Havia outro berço para Cat, ao lado da sua escrivaninha, idêntico ao que
estava no seu quarto, e podia embalá-la com o pé, enquanto trabalhava nos seus livros
de contabilidade. As disputas que causavam preocupação a Mrs. Fitzpatrick acabavam
por ser resolvidas sem problemas. Especialmente, quando se era A O'Hara e a sua
palavra era lei. Scarlett tivera sempre que ameaçar as pessoas para que fizessem o
que ela queria; agora, só tinha que falar calmamente, e não havia nenhum argumento.
Gostava muito do primeiro domingo do mês. Começou até a verificar que,
ocasionalmente, havia pessoas cujas opiniões valia a pena ouvir. Os agricultores
sabiam de fato mais sobre agricultura que ela, e podia aprender com eles. Precisava
aprender. Foram-lhes reservados trezentos acres da terra de Ballyhara que constituíam
a sua quinta. Os agricultores trabalhavam-na e pagavam apenas metade da renda
usual pelo terreno, que tomaram de arrendamento a Scarlett. Scarlett sabia o que
significava plantação a meias; era como se fazia no Sul. Ser dona de uma propriedade
ainda era novidade para ela. Estava decidida a ser a melhor senhoria em toda a
Irlanda.
- Os agricultores também aprendem comigo - disse ela a Cat. - Nunca tinham
ouvido falar de fertilizante com fosfato, até eu lhes entregar alguns sacos dele. Poderia
até devolver algum dinheiro ao Rhett, se tivermos uma melhor colheita de trigo.
Nunca murmurava a palavra "pai" ao ouvido de Cat. Quem sabia do que um bebê
percebia ou do que se lembrava? Especialmente um bebê que era claramente superior
a todos os outros bebês do mundo.
Quando os dias se tornaram mais compridos, as brisas e a chuva tornaram-se
mais brandas e quentes. Cat O'Hara cada dia se tornava mais cativante; estava
desenvolvendo a sua individualidade.
- Não há dúvida de que te dei o nome certo - disse-lhe Scarlett. - És a coisinha
mais independente que jamais vi. - Os grandes olhos verdes de Cat fitaram a mãe
atentamente, enquanto esta falava. Depois, retomaram a contemplação absorvente dos
próprios dedinhos. Cat nunca se aborrecia, tinha uma capacidade infinita de se distrair.
Desmamá-la foi mais difícil para Scarlett que para ela. Adorava examinar a sua papa
de aveia com os dedos e com a boca. Parecia achar todas as experiências
extremamente interessantes. Era um bebê robusto com umas costas direitas e cabeça
bem levantada. Scarlett adorava-a. E, de um modo especial, respeitava-a. Gostava de
pegar Cat ao colo para beijar o seu cabelo macio, o pescoço, as bochechas, as mãos e
os pés; ansiava por pegá-la ao colo e embalá-la. Mas Cat só tolerava alguns minutos
de embalo, libertando-se depois com os pés e os punhos. E a sua pequenina e morena
cara tinha uma expressão tão revoltada que Scarlett era obrigada a rir, mesmo quando
era rejeitada à força.
A hora mais feliz para ambas era ao fim do dia, quando Scarlett dava banho em
Cat. Esta acariciava a água, rindo quando a mesma salpicava, e Scarlett atirava-a para
cima e para baixo e cantava para ela. Depois, havia a doçura de secar os seus
pequenos e perfeitos membros, cada dedo dos pés e das mãos, individualmente,
polvilhando de pó a sua pele sedosa e todas as pregas do seu corpinho de bebê.
Aos vinte anos de idade, a guerra forçara Scarlett a desistir da sua mocidade, de
um dia para o outro. O seu caráter e resistência endureceram e bem assim a sua cara.
Nesta Primavera de 1876, com a idade de trinta e um anos, a suavidade da esperança
e da ternura da mocidade regressaram gradualmente. Não percebia isso; a
preocupação com a quinta e com a filha substituíam a concentração de uma vida inteira
na sua própria vaidade.
- A senhora precisa comprar roupas - disse Mrs. Fitzpatrick, certo dia. - Ouvi dizer
que há uma modista que deseja alugar a casa em que a Senhora viveu, se estiver
disposta a pintá-la por dentro. É viúva e bastante abonada para poder pagar uma renda
justa. As mulheres da cidade vão gostar e a senhora precisa dela, a menos que queira
procurar outra em Trim.
- Que mal há na maneira como eu me visto? Visto-me de preto como uma viúva
decente deve vestir. As minhas anáguas quase nunca se vêm.
- A senhora não se veste de luto, de modo algum. A senhora veste roupas de
camponesa, manchadas de terra, com mangas enroladas, e não parece nada a Dama
da Casa Grande.
- Ora, besteira, Mrs. Fitz. Como poderia eu montar a cavalo para ir ver se o
capim-de-rebanho está crescendo, se vestisse roupas de senhora de casa? Além
disso, gosto de me sentir confortável. Assim que puder voltar às saias e blusas de cor,
começarei a preocupar-me com as nódoas que possam ter. Detestei sempre o luto,
nunca vi motivo para tentar tornar o preto uma cor alegre. O que quer que se lhe faça,
será sempre preto.
- Então, não está interessada na modista?
- Claro que estou interessada. Outra renda é sempre interessante. E um dia
destes pretendo encomendar alguns vestidos. Depois da sementeira. Os campos
devem ficar prontos para o trigo esta semana.
- Há ainda a possibilidade de mais uma renda - disse a governanta,
cuidadosamente. Por mais de uma vez, ficara surpreendida com a astúcia inesperada
de Scarlett. - O Brendan Kennedy acha que faria bem se acrescentasse uma
estalagem ao seu bar. Há o prédio ao lado dele, que a senhora lhe podia alugar.
- Quem virá a Ballyhara para ficar numa estalagem? Isso é uma loucura. Além
disso, se o Brendan Kennedy pretende alugar um prédio, devia ele próprio vir ter
comigo, de chapéu na mão, e não incomodá-la a ti.
- Ora, provavelmente não passou de conversa. - Mrs. Fitz entregou a Scarlett o
livro de despesas da casa da semana anterior, abandonando de momento a conversa
sobre a estalagem. Colum teria que a convencer; ele era muito mais persuasivo que
ela.
- Temos já mais criados que a rainha da Inglaterra - disse Scarlett. Dizia a mesma
coisa todas as semanas.
- Se a Senhora vai ter vacas, vai precisar de mãos para as mungir - disse a
governanta.
Scarlett continuou o refrão
-... e para separar a nata e fazer a manteiga, eu sei. E a manteiga vende-se bem.
Acho que não gosto de vacas. Tratarei das contas mais tarde, Mrs. Fitz. Agora gostaria
de levar a Cat para ver os trabalhadores cortarem turfa no brejo.
- Acho melhor que veja as contas agora. Estamos sem dinheiro na cozinha e as
moças precisam de ser pagas amanhã.
- Que chatice! Vou ter de levantar dinheiro do banco. Vou até lá no buggy.
- Se eu fosse banqueiro, não daria dinheiro a uma criatura vestida como a
senhora.
Scarlett riu.
- Resmungue, resmungue muito. Diga à modista que vou mandar pintar a casa.
Mas quanto à estalagem, nada, pensou Mrs. Fitzpatrick. Teria que falar com o
Colum. Nessa noite.
Por toda a Irlanda os fenianos cresciam cada vez mais em força e em número.
Em Ballyhara, tinham agora o que mais precisavam: um local seguro onde os líderes
de todos os condados se podiam reunir, a fim de planejarem a sua estratégia; e onde
se podia refugiar com segurança alguém fugido da milícia, apesar de os estranhos
serem notados demais numa cidade que era pouco maior que uma vila. Patrulhas da
milícia e da polícia, vindas de Trim, eram poucas, mas um só homem com olhos
perspicazes era o suficiente para destruir os melhores planos.
- Precisamos realmente da estalagem - disse Rosaleen Fitzpatrick, com firmeza. -
Faz sentido que um homem com negócios em Trim alugue um quarto perto da cidade,
é mais barato.
- Tens razão, Rosaleen - sossegou-a Colum -, vou falar com a Scarlett. Mas não
já. Ela é muito esperta. Aguardemos um pouco. Depois, quando lhe falar no assunto,
ela não desconfiará de por que é que estamos os dois a pressioná-la.
- Mas, Colum, não podemos perder tempo.
- Nem podemos botar tudo a perder com a pressa. Farei quando achar que
chegou o momento.
Mrs. Fitzpatrick teve que se contentar com a resposta. Colum é que liderava.
Consolou-se com a lembrança de que, pelo menos, conseguira encaixar a Margaret
Scanlon. E nem teve que inventar uma história para o efeito. Scarlett precisava de fato
de roupas. Era chocante a maneira como teimava em viver - os vestidos mais baratos,
duas salas que ocupava no meio de vinte salas vazias. Se Colum não fosse Colum,
Mrs. Fitzpatrick duvidaria do que ele dissera, que não há muito tempo atrás Scarlett
tinha sido uma dama muito elegante e moderna.
- Só poderás partir depois da Páscoa, querida Scarlett - disse Colum. - Vai haver
uma cerimônia na Sexta-Feira Santa, a que só A O'Hara pode presidir. Scarlett não
argumentou. Ser A O'Hara era muito importante para ela, mas estava aborrecida. Que
diferença faz quem planta a primeira batata? Também a irritou o fato de Colum não
querer ir com ela. E o fato de ultimamente se ausentar tanto.
- Em negócios - respondia ele.
Muito bem, por que não obtinha ele os seus donativos em Savannah de novo, em
vez de onde quer que fosse?
A verdade era que tudo a irritava. Agora que se decidira a partir, queria partir já.
Tornou-se impaciente com Margaret Scanlon, a modista, reclamando que estava
levando muito tempo para acabar os vestidos que lhe encomendara. E porque Mrs.
Scanlon pareceu muito curiosa quando Scarlett encomendou vestidos em seda e linho
de várias cores, juntamente com vestidos pretos de luto.
- Vou visitar a minha irmã na América - disse Scarlett, alegremente, -, os vestidos
de cor são presente para ela. - "E não me importo que acredites ou não", pensou,
zangada. "Não sou de fato uma verdadeira viúva e não pretendo regressar a Atlanta
com aspecto pouco atraente e desleixado." Subitamente, a sua saia preta utilitária, as
meias, a blusa e o xale tornaram-se extremamente depressivos. Mal podia esperar o
momento de vestir o vestido de linho verde com os largos babados de renda cremosa.
Ou o de seda cor-de-rosa e azul-marinho listrado... Se Margaret Scanlon algum dia
acabasse de os fazer.
- Vais ficar surpreendida quando vires como a tua mamãe fica bonita nos seus
novos vestidos - disse Scarlett a Cat. - Também encomendei lindos vestidinhos para ti.
- O bebé sorriu, revelando a sua pequena coleção de dentes.
- Vais gostar do grande navio - prometeu-lhe Scarlett.
Reservara o maior e o melhor camarote no Brian Boru, a partir de Galway na
sexta-feira a seguir à Páscoa.
No Domingo de Ramos, o tempo ficou frio, com uma chuva oblíqua forte, que
durou até a Sexta-Feira Santa. Scarlett estava toda molhada e gelada até os ossos,
quando a longa cerimônia no campo aberto terminou.
Apressou-se até a Casa Grande, logo que pôde, ansiosa por um banho quente e
por uma xícara de chá. Mas nem sequer teve tempo de mudar de roupa. Kathleen
estava à sua espera com um recado urgente.
- O velho Daniel está te chamando, Scarlett. Está doente do peito e vai morrer.
Scarlett respirou fundo quando viu o velho Daniel. Kathleen fez o sinal da cruz.
- Está morrendo - disse ela, em voz baixa.
Os olhos de Daniel O'Hara estavam enterrados nas órbitas, as faces descarnadas
e a cara parecia-se com uma caveira coberta de pele. Scarlett ajoelhou-se junto da
cama austera, pegando-lhe a mão. Estava quente, seca e fraca.
- Tio Daniel, é a Katie Scarlett.
Daniel abriu os olhos. O tremendo esforço de vontade que isso representava fez
com que Scarlett tivesse vontade de chorar.
- Tenho um favor a pedir - disse ele. A sua respiração era entrecortada.
- Tudo o que quiser.
- Enterra-me em terra dos O'Hara.
"Não seja estúpido, não vai morrer", quis Scarlett dizer, mas não podia mentir ao
velho homem.
- Assim farei - disse ela, à maneira irlandesa de dizer sim.
Os olhos de Daniel fecharam-se. Scarlett começou a chorar. Kathleen conduziu-a
a uma cadeira, junto da lareira.
- Ajudas-me a fazer o chá, Scarlett? Vêm todos aí.
Scarlett aquiesceu, incapaz de falar. Até esse momento, não percebera quão
importante o tio se tornara na sua vida. Falava pouco, ela quase nunca lhe falava e ele
limitava-se a estar ali, sólido, calado, imperturbável e forte. O chefe da família. No seu
entender, o tio Daniel era o O'Hara.
Kathleen mandou Scarlett embora antes de escurecer.
- Tens que cuidar do teu bebê e nada mais há a fazer aqui. Volta amanhã.
No sábado, tudo continuou na mesma. Durante o dia, um fluxo constante de
pessoas apareceu para apresentar os seus respeitos. Scarlett preparou bules e mais
bules de chá, cortou em fatias os bolos que os visitantes traziam, pôs manteiga no pão
para as sanduíches.
No domingo, ficou sentada junto do tio, enquanto Kathleen e os homens foram à
Missa. Quando estes regressaram, foi até Ballyhara. A O'Hara deverá celebrar a
Páscoa na igreja de Ballyhara. Pensou que o padre Flynn nunca mais terminava o seu
sermão, pensou que nunca mais se via livre das pessoas da cidade, que lhe
perguntavam sobre o estado do seu tio e expressavam os seus desejos de melhoras.
Mesmo após quarenta dias do jejum mais rigoroso - não havia dispensa para os
O'Haras de Ballyhara - Scarlett não sentia apetite para o grande jantar da Páscoa.
- Leve o jantar para a casa do seu tio - sugeriu Mrs. Fitzpatrick. - Estão lá homens
fortes que ainda trabalham no campo. Vão precisar de comida e a pobre da Kathleen
está muito ocupada com o velho Daniel.
Scarlett abraçou e beijou Cat antes de partir. Com as suas mãozinhas, Cat
acariciou as faces húmidas de lágrimas da sua mãe.
- Que gesto tão carinhoso, querida Kitty Cat. Obrigada, querida. A mamãe logo
ficará boa, depois podemos brincar e cantar no banho. E depois partiremos num
grande navio. - Scarlett desprezou-se por estar a pensar nisso, mas esperava não
perder o Brian Boru.
Nessa tarde, Daniel espevitou um pouco. Reconheceu as pessoas e chamou-as
pelos nomes.
- Graças a Deus - disse Scarlett a Colum. Também agradecia a Deus por Colum
estar ali. Por que é que ele se ausentava tanto? Sentira a sua falta nesse longo fim-de-
semana.
Na segunda-feira de manhã, foi Colum que lhe disse que o tio Daniel morrera
durante a noite.
- Quando é o funeral? Gostaria de poder viajar na sexta-feira. - Era tão bom ter
um amigo como Colum; ela podia dizer-lhe tudo, sem ter que se preocupar se ele
compreendia ou se desaprovava.
Colum sacudiu a cabeça devagar.
- Não pode ser, querida Scarlett. Havia muita gente que respeitava o tio Daniel e
virão muitos O'Haras de longas distâncias, por caminhos enlameados. O velório durará,
pelo menos, três dias, talvez quatro. Depois, será o enterro.
- Oh, não, Colum! E se eu não for ao velório; é mórbido demais, acho que não iria
aguentar.
- Terás que ir, Scarlett. Estarei contigo.
Ouviam-se os cânticos fúnebres mesmo antes de se avistar a casa. Scarlett olhou
para Colum com desespero, mas a expressão dele era firme. Estava uma multidão de
pessoas em frente à porta baixa. Tinham vindo tantos prantear Daniel que não havia
lugar para todos. Scarlett ouviu as palavras "A O'Hara", viu abrir caminho para lhe dar
passagem. Desejou de todo o coração que essa honra não lhe fosse prestada. Mas
caminhou com a cabeça baixa, resolvida a fazer o que tinha que ser feito, ao lado de
Colum.
- O corpo está na sala - disse Seamus. Scarlett fez-se forte. O pranto lúgubre
vinha dali. Entrou.
Viam-se grossas velas acesas sobre as mesas, à cabeceira e aos pés da cama
grande. Daniel estava deitado sobre a coberta, vestido de branco debruado a preto. As
suas mãos desgastadas pelo trabalho estavam cruzadas sobre o peito, com um rosário
entre os dedos.
- Por que nos deixaste? Ochón! Ochón, Ochón, Ullagón!
Uma mulher balançava de um lado para o outro, enquanto se lamentava. Scarlett
reconheceu a sua prima Peggy, que vivia na vila. Ajoelhou-se à beira da cama para
dizer uma oração ao tio Daniel. Mas o pranto fazia-lhe tanta confusão à cabeça que
não conseguia pensar.
- Ochón, Ochón.
O grito primitivo e lamentoso apertava-lhe o coração, amedrontando-a. Levantou-
se e foi até à cozinha.
Olhou com estupefacção para a massa de homens e mulheres que enchiam a a
cozinha. Comiam e bebiam e falavam como se nada de insólito estivesse acontecendo.
O ar estava espesso de fumaça dos cachimbos de barro dos homens, não obstante a
porta e janelas estarem abertas. Scarlett aproximou-se do grupo do padre Danaher.
- Sim, ele acordou para chamar as pessoas pelos nomes e para chegar ao fim de
alma limpa. Ah, foi uma bonita confissão a que ele fez, nunca ouvi melhor. Daniel
O'Hara era um homem bom. Não veremos outro igual nos nossos tempos. - Scarlett
afastou-se.
- E, Jim, lembras-te da ocasião em que Daniel e o seu irmão Patrick, Deus tenha
a sua alma, pegaram o porco premiado do inglês e carregaram com ele até o brejo da
turfa para parir leitões? Doze pequeninos leitões e todos guinchando, e a porca tão
feroz como um javali selvagem? O agente da terra tremia e o inglês rogava pragas e
todos os outros riam do espectáculo.
Jim O'Gorman deu uma gargalhada, esmagando o ombro do contador de histórias
com a sua mão grande de ferreiro.
- Não me lembro, Ted O'Hara, e tu também não, e essa é a verdade. Nenhum de
nós tinha nascido quando se deu o caso da porca, e tu bem o sabes. Ouviste-o contar
do teu pai como eu ouvi do meu.
- Mas não seria bom que tivéssemos visto, Jim? O teu primo Daniel era um
grande homem, e essa é que é a verdade.
"Sim, era", pensou Scarlett. Andou de um lado para o outro, ouvindo várias
histórias da vida de Daniel. Alguém reparou nela.
- E conte-nos lá, Katie Scarlett, sobre o seu tio recusar-se a aceitar a quinta com
as cem cabeças de gado que lhe ofereceu.
Ela pensou depressa.
- Foi assim que se passou - começou.
Uma dúzia de ouvintes atentos inclinaram-se para a ouvir. "Que é que eu vou
dizer?"
- Eu... Eu disse-lhe, "Tio Daniel"... disse eu, "Gostaria de lhe dar um presente".
Era melhor que fosse bom. Eu disse-lhe, "Tenho uma quinta de... cem acres... com um
regato veloz e um brejo próprio e... cem bois e cinquenta vacas leiteiras e trezentos
gansos e vinte e cinco porcos e... seis parelhas de cavalos". - A audiência suspirou
perante aquela grandeza. Scarlett sentiu-se inspirada. - "Tio Daniel", disse eu, "isto é
tudo para ti e além disso um saco de ouro". Mas a sua voz trovejou aos meus ouvidos,
fazendo-me estremecer. "Não vou tocar em nada, Katie O'Hara."
Colum pegou-lhe o braço, puxando-a para fora de casa, através da multidão, para
trás do celeiro. Depois, desatou a rir.
- Cada vez me surpreendes mais, querida Scarlett. Fizeste de Daniel um
gigante... mas não sei dizer se se trata de um gigante louco ou de um gigante nobre
demais para se aproveitar de uma mulher louca.
Scarlett riu com ele.
- Estava me divertindo tanto, Colum, devias ter-me deixado ficar. - De repente
tapou a boca com a mão. Como podia estar rindo no velório do tio Daniel?
Colum pegou-lhe nos pulsos, baixando-lhe a mão.
- Não te aflijas - disse ele -, num velório é suposto celebrar a vida de um homem e
da sua importância perante todos os que comparecem. O riso faz parte disso, tanto
como o pranto.
Daniel O'Hara foi enterrado na quinta-feira. O funeral foi quase tão imponente
como o da velha Katie Scarlett. Scarlett conduziu a procissão à cova que os filhos dele
tinham cavado no velho cemitério murado de Ballyhara, que ela e Colum tinham
descoberto e mandado limpar.
Scarlett encheu uma bolsa com terra da cova de Daniel. Quando a espalhasse
sobre a cova do seu pai, seria como se ele estivesse enterrado perto do irmão.
Quando o funeral terminou, a família dirigiu-se à Casa Grande para uns refrescos.
A cozinheira de Scarlett estava encantada por ter ocasião de exibir os seus dons.
Mesas compridas em tripé foram colocadas a toda a largura da sala de visitas e da
biblioteca. Estavam cobertas de fiambres, ganso, galinhas, carne de vaca, montanhas
de pão e de bolos, galões de cerveja preta, barris de uísque, rios de chá. Apesar das
estradas lamacentas, centenas de O'Haras tinham feito a viagem.
Scarlett trouxe Cat para baixo, para a apresentar aos familiares. A admiração por
eles demonstrada foi tanta ou mais do que ela esperara.
Depois, Colum forneceu um violino e um tambor, e três dos primos, tocando
gaitas, deram início à música, que durou horas. Cat sacudiu as mãos ao som da
música até adormecer de cansaço no colo de Scarlett. "Ainda bem que perdi o navio",
pensou esta; "isto é maravilhoso. Se ao menos a morte de Daniel não fosse a razão
desta alegria."
Dois dos primos aproximaram-se e, da sua enorme estatura, debruçaram-se
sobre ela, falando baixinho.
- Precisamos da O'Hara - disse o filho de Daniel, Thomas.
- Podes ir lá em casa amanhã, depois do café? - perguntou Joe, o filho de Patrick.
- Para quê?
- Nós te diremos amanhã, quando houver sossego para tu poderes pensar.
A questão era: quem devia herdar a quinta de Daniel? Devido a uma disputa
muito antiga, quando o velho Patrick morreu, dois primos O'Hara reclamaram esse
direito. Tal como o seu irmão Gerald, Daniel nunca fizera testamento.
"É o mesmo que aconteceu em Tara", pensou Scarlett, e a decisão foi fácil. O
filho de Daniel, Seamus, trabalhara arduamente na quinta durante trinta anos,
enquanto que o filho de Patrick, Sean vivera com a velha Katie Scarlett e não fizera
nada. Scarlett deu a quinta a Seamus. "Como o pai me devia ter dado Tara."
Ela era A O'Hara, de modo que não houve argumentação. Scarlett sentiu-se
exaltada, na certeza de que procedera com mais justiça em relação a Seamus do que
jamais alguém procedera para com ela.
No dia seguinte, uma mulher nada jovem deixou um cesto de ovos à porta da
Casa Grande. Mrs. Fitz descobriu que se tratava da namorada de Seamus. Há quase
vinte anos que esperava que ele a pedisse em casamento. Uma hora após a decisão
de Scarlett, Seamus o fez.
- Foi muito amável - disse Scarlett -, mas espero que não se casem tão cedo. A
este ritmo, nunca mais chegarei à América. - Alugara uma cabine num navio que
partiria em 26 de Abril, precisamente um ano após a data em que, inicialmente,
pensara terminar as suas "férias" na Irlanda.
O navio não era luxuoso como o Brian Boru. Nem sequer era um navio de
passageiros. Mas Scarlett tinha as suas próprias superstições - se adiasse a partida
para depois do Dia das Maias, nunca mais partiria. Além disso, Colum conhecia o navio
e o seu capitão. Era um navio de carga, é verdade, mas só transportava fardos do
melhor linho irlandês, nada de sujo. E a mulher do capitão viajava sempre com ele, de
modo que Scarlett teria companhia feminina e uma chaperone. Melhor que tudo, o
navio não era propelido a rodas nem a motor a vapor. Navegaria sem parar.
Havia mais de uma semana que o tempo estava magnífico. As estradas estavam
secas, as cercas floridas, a noite febril que Cat passara significava apenas que um
novo dente estava rompendo. Na véspera da partida, Scarlett correu, meio dançando,
até à casa da modista, em Ballyhara, para levantar o último vestido de Cat. Tinha fé
que nada iria correr mal agora.
Enquanto Margaret Scanlon embrulhava o vestido em papel de seda, Scarlett
olhou para a cidade deserta, devido à hora do jantar, e viu Colum entrar na
abandonada Igreja Protestante da Irlanda, do outro lado da larga rua.
"Oh, bem", pensou ela, "ele sempre se decidiu. Julguei que nunca mais iria
escutar a voz da razão. Não faz qualquer sentido que toda a cidade fique apertada
dentro daquela pequena capela, para ouvir a Missa todos os domingos, quando existe
essa grande e vazia igreja. Só porque foi construída por protestantes, não é razão para
os católicos a não tomarem para si. Não sei por que ele tem sido tão teimoso todo este
tempo, mas não o vou importunar. Só lhe direi como me sinto feliz por ele ter mudado
de idéias."
- Volto já - disse para Mrs. Scanlon. Caminhou apressada pelo carreiro cheio de
erva daninha que ia dar à pequena entrada lateral, bateu à porta e abriu-a. Ouviu um
disparo, depois outro, e sentiu algo afiado tocar-lhe na manga, e ouviu cair uma
chuvada de seixos aos seus pés, o que causou uma reverberação retumbante dentro
da igreja.
Um veio de luz vindo da porta aberta caía direätamente sobre um homem que se
tinha voltado para a encarar. A sua cara por barbear estava retorcida num esgar, e os
olhos escuros e sombrios eram como os de um animal bravio.
Estava meio agachado e apontava-lhe uma pistola, que aparecia por entre a
roupa esfarrapada que lhe cobria o corpo, agarrada por mãos sujas e firmes como uma
rocha.
"Ele disparou contra mim." Esta constatação encheu a mente de Scarlett. "Já
matou o Colum e agora vai matar a mim. Cat! Nunca mais a verei." Uma raiva enorme
libertou Scarlett da paralisia física do choque. Ergueu os punhos e lançou-se para a
frente.
O som do segundo tiro foi uma explosão ensurdecedora, que ecoou no teto de
pedra abobadado por um momento que pareceu eterno. Scarlett atirou-se ao chão,
gritando.
- Peço-te que fiqui quieta, querida Scarlett - disse Colum. Ela reconheceu-lhe a
voz; no entanto, não parecia a sua voz. O timbre desta voz era de aço e gelo.
Scarlett levantou o olhar. Viu o braço direito de Colum à volta do pescoço do
homem, a mão esquerda à volta do seu pulso, com a pistola apontada para o teto.
Vagarosamente, Scarlett levantou-se.
- Que se passa aqui? - perguntou, cuidadosamente.
- Fecha a porta, por favor - pediu Colum. - Vem bastante claridade das janelas.
- Que... se... passa... aqui?
Colum não lhe deu resposta.
- Larga-a, Davey - ordenou ele ao homem. A pistola caiu no chão de pedra com
um som metálico. Vagarosamente, Colum baixou o braço do homem. Retirou com
rapidez o seu próprio braço do seu pescoço e, com os punhos fechados, bateu na
cabeça dele. O homem caiu, inconsciente, aos pés de Colum.
- Por agora, ele está quieto - disse Colum. Passando por Scarlett, caminhou com
firmeza em direção à porta, que fechou silenciosamente, travando-a. - Agora, querida
Scarlett, temos de falar.
Atrás dela, Colum pegou-lhe pela parte superior do braço. Scarlett
desenvencilhou-se, voltou-se e encarou-o.
- Não "Temos", Colum. Tu. Tu é que tens de me explicar o que se passa aqui.
A voz de Colum retomou o calor e a cadência habitual. - Trata-se de um
acontecimento infeliz, querida Scarlett.
- Não me trates por "querida Scarlett". Não tentes cativar-me, Colum. Esse
homem tentou me matar. Quem é ele? Por que é que te escondes para te encontrares
com ele? Que se passa aqui?
A cara de Colum era apenas uma mancha pálida na sombra. O seu colarinho
parecia surpreendentemente branco.
- Vem até onde há claridade - disse, calmamente, encaminhando-se para um
lugar junto das janelas, pregadas com tábuas, através das quais passavam estreitas
tiras de luz solar.
Scarlett não podia acreditar no que via. Colum sorria para ela.
- Ora, se tivéssemos a estalagem isto nunca teria acontecido. Quis manter-te
afastada de tudo isto, querida Scarlett, pois torna-se uma preocupação depois de
sabermos do que se trata.
Como podia ele rir? Como se atrevia ele? Estava horrorizada demais para poder
falar.
Colum contou-lhe tudo sobre a Irmandade Feniana.
Quando acabou de falar, Scarlett recuperou a voz.
- Judas! Traidor sujo e mentiroso. Confiei em ti. Julguei que fosses meu amigo.
- Disse-te que se tratava de um assunto preocupante.
Ela estava magoada demais para reagir à sua resposta sorridente e pesarosa.
Tudo aquilo era uma traição. Ele tinha-a usado e enganado desde o momento em que
se encontraram. Todos eles - Jamie e Maureen, todos os primos de Savannah e da
Irlanda, todos os agricultores de Ballyhara. Até Mrs. Fitz. A sua felicidade era uma uma
ilusão. Tudo era uma tremenda decepção.
- Vais me ouvir agora, Scarlett? - Ela odiou a voz de Colum, o seu tom musical, o
seu encanto. "Não ouvirei." Scarlett tentou tapar os ouvidos, mas as palavras dele
passavam por entre os seus dedos.
- Lembra-te do teu Sul, com as botas do conquistador pisando o seu solo, e pensa
na Irlanda, na sua beleza e no sangue das suas vidas nas mãos assassinas do inimigo.
Roubaram-nos a nossa língua. Ensinar uma criança a falar irlandês é um crime nesta
terra. Não compreendes, Scarlett, se os teus ianques falassem em palavras que não
compreendesses, palavras aprendidas à ponta de espada, pois "pára" devia ser uma
palavra que devias conhecer das profundezas do teu ser, caso contrário, serias morta
por não parares. E depois a tua filha aprender a sua língua com esses mesmos
ianques, e a língua da tua filha não ser a tua, de modo que não conhecesse as
palavras de amor que lhe dirigias, e tu não saberes o que lhe dizer na língua ianque,
não podendo, assim, aceder aos seus desejos. Os ingleses roubaram-nos a nossa
língua e com esse roubo tiraram-nos os filhos.
"Tiraram-nos a terra que é nossa mãe. Não nos deixaram nada quando perdemos
os nossos filhos e a nossa mãe. Conhecemos na alma a derrota."
"Pensa nisso agora, Scarlett, quando a tua Tara te foi tirada. Lutaste por ela,
conforme me contaste. Com toda a tua vontade, com todo o teu coração, com toda a
tua inteligência, com todas as tuas forças. Quando era preciso mentir, tu mentias, se
fosse preciso enganar, tu enganavas e até matarias. Assim se passa conosco, que
lutamos pela Irlanda."
"E, no entanto, somos mais felizes que tu. Porque temos ainda tempo para as
doçuras da vida. Para a música, para a dança, para o amor. Tu sabes o que é amar,
Scarlett. Eu acompanhei o crescimento e o desabrochar da tua filha. Não vês que o
amor se alimenta a si próprio, sem gulodice, não percebes que o amor é uma taça
sempre cheia, pela qual se bebe continuamente?"
"Assim acontece com o nosso amor pela Irlanda e pelo seu povo. Tu és amada
por mim, Scarlett, e por todos nós. Não deixamos de te amar por a Irlanda ser o mais
forte dos nossos amores. Será que não amas os teus amigos pelo fato de amares a tua
filha? Um amor não anula o outro. Pensaste que eu era teu amigo, teu irmão. E sou,
Scarlett, e serei sempre até ao fim. A tua felicidade alegra-me, a tua tristeza é a minha
dor. No entanto, a Irlanda é a minha alma; não poderá ser considerado traição o que for
feito para a libertar da escravatura. Mas ela não diminui o amor que sinto por ti, antes
pelo contrário, aumenta-o."
As mãos de Scarlett afastaram-se dos ouvidos até ficarem suspensas, flácidas, ao
longo do corpo. Como sempre, Colum fascinara-a, quando falava assim, apesar de ela
não compreender nem metade do que ele dizia. Sentia como se tivesse sido
embrulhada em teias de aranha que a aqueciam e a prendiam ao mesmo tempo.
O homem inconsciente no chão gemeu. Scarlett olhou para Colum com medo.
- Esse homem é um feniano?
- Sim. Anda fugido. Um homem que ele julgava seu amigo, denunciou-o aos
ingleses.
- Foste tu que lhe deste a pistola. - Não era uma pergunta.
- Sim, Scarlett. Vês, não guardo mais segredos de ti. Escondi algumas armas por
toda esta igreja inglesa. Eu sou o armeiro da Irmandade. Quando chegar o dia, seja
que dia for, muitos milhares de irlandeses estarão armados para a rebelião, e essas
armas virão deste lugar inglês.
- Quando? - Scarlett receava a resposta dele.
Não há data marcada. Precisamos de mais cinco carregamentos, seis se for
possível.
- É isso que fazes na América?
- É. Arranjo fundos, com a ajuda de amigos, depois os outros acham maneira de
comprar armas com o dinheiro, trazendo-as para a Irlanda.
- No Brian Boru.
- E noutros navios.
- Vão matar ingleses.
- Sim. No entanto, seremos mais piedosos. Eles mataram as nossas mulheres e
os nossos filhos, assim como os nossos homens. Nós mataremos soldados. Um
soldado é pago para morrer.
- Mas tu és um padre - disse ela -, não podes matar.
Colum ficou calado por alguns momentos. Partículas de pó volteavam
preguiçosamente nas résteas de luz, que vinha da janela e que lhe incidiam sobre a
cabeça inclinada. Quando a levantou, Scarlett viu que os seus olhos estavam
escurecidos pela tristeza.
- Quando eu era um menino de 8 anos - disse ele -, via as carroças de trigo e as
manadas de gado passando na estrada, que vai de Adamstown a Dublim. Nesta última
cidade, vi as mesas de banquete dos ingleses, também vi a minha irmã morrer de
fome, pois só tinha 2 anos de idade e não tinha forças para se aguentar sem comida. O
meu irmão de 3 anos também poucas forças tinha. Os mais pequenos eram sempre os
primeiros a morrer. Choravam porque tinham fome e eram novos demais para
compreenderem por que é que não havia comida. Eu compreendia, pois tinha 8 anos e
era mais sábio. E não chorava, pois sabia que chorar absorvia a força necessária para
sobreviver sem comida. Outro irmão meu morreu, tinha 7 anos, e depois o de 6 anos e
o de 5 e, para vergonha minha, já não me lembro qual era a menina e qual o menino. A
seguir morreu a minha mãe, mais devido à dor do seu coração despedaçado que à dor
do seu estômago vazio. São precisos muitos meses para se morrer de fome, Scarlett.
Não é uma morte piedosa. Durante todos aqueles meses, as carroças, cheias de
alimentos, continuavam a passar por nós. - A voz de Colum não tinha vida. Depois,
cobrou ânimo. Eu era um rapaz vivaço. Aos 10 anos, e os anos de crise passados, e
com comida no estômago, era esperto nos estudos, bom nos livros. O nosso padre
achava que eu tinha possibilidade de vir a ser alguém e disse ao meu pai que, se me
dedicasse aos estudos, poderia ser aceito no seminário. O meu pai dava-me tudo o
que podia. Os meus irmãos mais velhos faziam mais que a sua parte no trabalho do
campo para que eu não precisasse os ajudar e tivesse tempo para os estudos.
Ninguém me invejava, pois era uma grande honra possuir um padre na família. E eu
aproveitei-me da boa vontade deles sem pensar, pois tinha uma fé pura e inabalável na
bondade de Deus e na sabedoria da Santa Madre Igreja, e acreditava ter uma vocação
genuína para o sacerdócio. - A sua voz subiu de tom. - Acho que agora vou saber a
verdade. O seminário contém muitos livros sagrados e homens santos e toda a
sabedoria da Igreja. Estudei, rezei e procurei. Sentia êxtase na oração, conhecimento
nos estudos. Mas não o conhecimento que eu procurava. "Porquê?", perguntava aos
meus professores, "porque é que as crianças têm que morrer de fome?" Mas a única
resposta que me davam era, "confia na sabedoria de Deus e tem fé no seu amor". -
Colum levantou os braços acima da sua face atormentada, e quase gritou ao dizer: -
Deus, meu Pai, sinto a Tua presença e a Tua força poderosa. Mas não consigo ver a
Tua cara. Por que voltaste as costas ao povo irlandês? - Os braços caíram. - Não
há resposta, Scarlett - disse, em voz entrecortada -, nunca houve uma resposta. Mas
eu tive uma visão e tenho-a seguido. Nessa visão, as crianças esfomeadas juntaram-se
todas e a sua fraqueza tornou-se menos fraca. Aos milhares, levantaram os seus
bracinhos descarnados e derrubaram as carroças cheias de comida, deixando assim
de morrer. É minha intenção agora derrubar essas carroças, expulsar os ingleses das
suas mesas de banquete, para dar à Irlanda o amor e a compaixão que Deus lhe
negou.
Scarlett ficou espantada com a sua blasfêmia.
- Vais para o Inferno.
- No Inferno já eu estou! Quando vejo soldados ridicularizarem uma mãe, que tem
que mendigar comida para os seus filhos, é uma visão do Inferno. Quando vejo
homens velhos empurrados para a sujeira das ruas, para que os soldados fiquem com
os passeios livres, vejo o Inferno. Quando vejo despejos das casas, flagelamentos, as
carroças a passarem, sob o peso dos cereais, por uma família que morre de fome, eu
digo que toda a Irlanda é um Inferno, e será com alegria que morrerei sofrendo o
tormento por toda a eternidade se, com isso, puder evitar aos irlandeses uma hora de
Inferno na terra.
Scarlett ficou impressionada com a sua veemência. Procurou compreender. E se
ela não tivesse estado na casa de Daniel quando os ingleses chegaram com o aríete?
E se todo o seu dinheiro desaparecesse e Cat sentisse fome? E se os soldados
ingleses fossem realmente como os ianques e roubassem os seus animais e
queimassem os campos que tinha visto esverdearem?
Sabia o que era sentir-se impotente perante um exército. Conhecia a fome. Eram
recordações que nenhuma quantidade de ouro podia apagar.
- Como poderei ajudar-te? - perguntou a Colum. Ele lutava pela Irlanda, e a
Irlanda era o lar do seu povo e da sua filha.
A mulher do capitão do navio era uma mulher robusta, de cara vermelha, que, ao
ver Cat, lhe estendeu os braços.
- Acha que ela vem para mim? - Em resposta, Cat estendeu-lhe os bracinhos.
Scarlett tinha a certeza de que Cat estava interessada nos óculos que estavam
pendurados por uma corrente à volta do pescoço da mulher, mas não o disse. Gostava
de ouvir elogiar a sua Cat e a mulher do capitão não parava de o fazer. - Mas que linda
que ela é... não, queridinha, são para colocar no nariz não na boca... que linda pele cor
de azeitona. O pai dela era espanhol? Scarlett pensou depressa.
- A avó era - disse ela.
- Que bom. - Retirou os óculos dos dedos de Cat e substituiu-os por um biscoito.
- Sou avó quatro vezes, é a coisa mais maravilhosa do mundo. Comecei a viajar
com o capitão quando as crianças cresceram, pois não suportava o vazio da casa. Mas
agora há o prazer acrescido dos netos. Depois de Savannah, vamos até Filadélfia
buscar carga, e ali passarei dois dias com a minha filha e os seus dois filhos.
"Esta mulher vai falar comigo até a saturação, antes mesmo de deixarmos a
baía", pensou Scarlett. "Não vou aguentar duas semanas desta conversa."
Cedo descobriu que não precisava se preocupar. A mulher do capitão repetiu as
mesmas coisas tantas vezes, que Scarlett tinha só que abanar a cabeça e dizer, de vez
em quando, "Santo Deus", sem sequer a ouvir. Scarlett podia fazer o seu passeio pelo
convés sem ter de se preocupar com o bebê. Era nessa altura que pensava melhor,
com o vento salgado batendo no rosto. Mais que tudo, fazia planos. Tinha muito que
fazer. Precisava arranjar um comprador para a sua loja. E havia a casa em Peachtree
Street. Rhett pagava a respectiva manutenção, mas era ridículo mante-la vazia, quando
não fazia tenções de voltar a viver nela...
Sendo assim, venderia a casa de Peachtree Street e a loja. O bar dava um bom
lucro e nenhum trabalho. Mas ela decidira cortar os laços com Atlanta, e isso incluía o
bar.
E quanto às casas que mandara construir? Não sabia absolutamente nada sobre
o projeto das mesmas. Tinha que averiguar, a fim de se certificar de que o construtor
estava ainda utilizando a madeira fornecida por Ashley...
Tinha que se certificar de que Ashley estava bem. E o Beau. Prometera isso a
Melanie.
Depois, quando resolvesse tudo em Atlanta, iria até Tara. Mas isso seria a última
coisa a fazer, porque quando Wade e Ella soubessem que iriam para a Irlanda com ela,
ficariam ansiosos por partir. Não seria justo mantê-los nessa expectativa. E dizer adeus
a Tara seria a parte mais difícil de tudo o que tinha que fazer. Era melhor fazê-lo
depressa; assim, não custaria tanto. Oh, como ela ansiava por ver Tara.
As longas e vagarosas milhas ao longo do Rio Savannah, desde o mar até a
cidade, pareciam nunca mais ter fim. O navio teve que ser puxado por um rebocador
com motor a vapor, através do canal. Scarlett caminhava desassossegada, de um lado
para o outro do convés, com Cat nos braços, tentando distrair-se com a excitação da
filha ao levantar vôo dos pássaros do pântano, em erupções repentinas. Estavam já tão
perto. Por que não chegavam? Queria ver a América, queria ouvir vozes americanas.
Finalmente, chegaram. Lá estava a cidade. E as docas.
- Oh, escuta, Cat, escuta os cânticos. São canções dos negros, isto é o Sul,
sentes o sol? Vai durar dias e dias. Oh, minha querida, minha Cat, a mamãe chegou
em casa.
A cozinha de Maureen estava como sempre estivera, nada mudara. A família era
a mesma. O afeto também. Os bandos de crianças O'Hara. O bebê de Patrícia era um
menino de quase 1 ano de idade, e a Katie estava grávida. Cat adaptou-se logo ao
ritmo diário das três casas. Olhava para as outras crianças com curiosidade, puxava-
lhes o cabelo, deixava que elas puxassem o seu, tornou-se uma delas.
Scarlett estava com ciúmes. "Ela não sente nenhuma falta minha, e não suporto a
idéia de a deixar, mas terei que o fazer. Muitas pessoas em Atlanta conhecem o Rhett
e poderiam falar-lhe dela. Eu o mataria se tentasse tirá-la de mim. Não a posso levar
comigo. Não tenho alternativa. Quanto mais cedo for, mais depressa regressarei. E vou
lhe trazer de presente o seu irmão e a sua irmã."
Enviou telegramas ao escritório do tio Henry Hamilton, e a Pansy na casa de
Peachtree Street, e apanhou o trem para Atlanta no dia 12 de Maio. Estava ao mesmo
tempo excitada e nervosa. Há tanto tempo que partira - tudo podia ter acontecido. Não
iria preocupar-se com isso agora, cedo descobriria tudo. Entretanto, usufruiria do sol
quente da Geórgia e do prazer de estar bem vestida. Tivera que vestir luto no navio,
mas agora estava radiosa vestida de linho irlandês verde-esmeralda.
Mas Scarlett já se esquecera de como eram sujos os trems americanos. Os
escarradores de ambas as extremidades do trem depressa se encheram de tabaco
mascado malcheiroso. Antes de percorridas vinte milhas, o corredor ficou cheio de lixo.
Um bêbado passou cambaleante pelo seu banco e ela, de repente, percebeu que não
devia viajar sozinha. Santo Deus, qualquer pessoa se pode sentar ao meu lado. Na
Irlanda, as coisas são feitas de uma maneira muito melhor. Primeira classe, significa o
que as palavras querem dizer. Ninguém se mete conosco no nosso compartimento.
Abriu o jornal de Savannah para se proteger dos olhares. O seu lindo saia-e-casaco de
linho já estava amarrotado e cheio de pó.
A confusão na estação rodoviária de Atlanta e os condutores temerários, falando
alto, no redemoinho de Five Points, fez bater de excitação o coração de Scarlett, e
esqueceu-se da sugeira do trem. Como tudo era vivo, vital, e sempre em mutação.
Havia prédios que não tinha visto antes, nomes novos nas montras de lojas antigas,
barulho, pressa e empurrões.
Olhou com avidez pela janela da sua carruagem para as casas de Peachtree
Street, identificando mentalmente os donos, reparando nos sinais de tempos melhores.
Os Merriweathers tinham um novo telhado, Os Meades tinham pintado a casa noutra
cor. As coisas não pareciam tão gastas como eram, quando ela fora embora, há um
ano e meio atrás.
Lá estava a sua casa. "Oh! Não me lembro que estivesse tão junto das outras.
Quase não existe pátio. Esteve sempre assim tão perto da rua? Por Deus, estou sendo
boba. Que diferença faz? De qualquer modo, já decidi vendê-la."
Não era a hora apropriada para vender, disse o tio Henry Hamilton. A depressão
não melhorara, e o negócio era mau em todo o lado. O mercado mais difícil de todos
era o imobiliário, e as casas grandes, como a dela, eram as mais difíceis de vender. As
pessoas moviam-se no sentido descendente e não ascendente.
Quanto às pequenas casas, como as que ela construíra na extremidade da
cidade, vendiam-se muito facilmente. Tinha ali uma fortuna. Por que é que as queria
vender? A casa grande não lhe custava nada. Rhett pagava todas as despesas com o
dinheiro que restara.
"Ele está me olhando como se eu cheirasse mal ou coisa parecida", pensou
Scarlett. "Responsabiliza-me pelo divórcio." Por um momento, pensou em protestar,
contando a sua parte da história, o que tinha realmente acontecido. "O tio Henry é o
único que está do meu lado. Se não fosse ele, todos em Atlanta me olhariam com
desprezo."
"E não me importo com isso nem um pouco." A idéia se acendeu na mente como
uma vela romana. Henry Hamilton está errado em me julgar, tal como estão todos em
Atlanta. Eu não sou como eles e não quero ser. Sou diferente, eu sou eu. Eu sou A
O'Hara.
- Se o Senhor não se quer incomodar com a venda do meu imóvel, não lhe levarei
a mal, Henry. - disse ela. - Diga-me apenas que não quer. - Havia uma dignidade
simples na sua atitude.
- Sou um homem velho, Scarlett. Seria talvez melhor para ti se arranjasses um
advogado mais novo.
Scarlett levantou-se da cadeira, pegou-lhe a mão e sorriu com verdadeira
amizade.
Só depois de ela ter partido, ele conseguiu descobrir o que havia de diferente
nela.
- A Scarlett cresceu. Não me chamou "tio Henry"!
- Mrs. Butler está em casa?
Scarlett reconheceu imediatamente a voz de Ashley. Correu da sala de estar para
o vestíbulo; com um gesto rápido da mão, dispensou a criada que abrira a porta.
- Querido Ashley, estou tão feliz por te ver. - Estendeu-Ihe ambas as mãos.
Ele apertou-as fortemente nas suas, fitando-a.
- Scarlett, nunca estiveste tão bonita. O clima estrangeiro fez-te bem, Diz-lá, onde
tens estado, que tens feito? O tio Henry disse-me que tinhas ido para Savannah e que
depois perdeu contato contigo. Estávamos todos sem saber.
"Sim, aposto que todos gostariam de saber, especialmente a tua velha irmã
bisbilhoteira", pensou ela.
- Entra e senta-te - convidou -, estou desejosa de ouvir todas as novidades.
A criada aguardava ao lado. Scarlett disse-lhe em voz baixa:
- Traz-nos café e bolos.
Conduziu-o até à sala de visitas e sentou-se num sofá, apontando para o lugar ao
lado dela.
- Senta-te junto de mim, Ashley, senta-te. Quero olhar para ti. - "Graças a Deus, já
perdeu aquele olhar de gato pingado. Henry Hamilton devia ter razão quando disse que
Ashley estava saindo-se bem." Scarlett estudou-o com olhos semicerrados, enquanto
se ocupava em arranjar lugar na mesa para a bandeja do café. Ashley Wilkes era ainda
um belo homem. As suas feições finas e aristocráticas tinham-se tornado mais distintas
com os anos. Mas parecia mais velho do que era. "Não pode ter mais de 40 anos",
pensou Scarlett, "e o seu cabelo é mais prata que ouro. Deve passar mais tempo na
serraria do que costumava, está com um bonito tom de pele, não aquele tom cinzento
de escritório que tinha antes." Ela fitou-o com um sorriso. Era bom vê-lo.
Especialmente, com aquele ar saudável. A sua obrigação para com Melanie não lhe
parecia tão pesada agora.
- Como está a tia Pitty? E a Índia? E o Beau? Deve estar um homenzinho!
Pitty e Índia estavam na mesma, respondeu Ashley, com um trejeito dos lábios.
Pitty sempre deprimida e Índia muito ocupada com o seu trabalho da comissão para a
melhoria da moral de Atlanta. Estragavam-no com mimos, duas solteironas, tentando
ver qual era a melhor mãe galinha. Também tentaram estragar Beau com mimos, mas
ele não o consentira. Os olhos cinzentos de Ashley iluminaram-se de orgulho. Beau era
um homenzinho. Em breve faria 12 anos, mas parecia ter 15. Era presidente de uma
espécie de clube que os rapazes da vizinhança tinham formado. Tinham construído
uma casa numa árvore, no pátio traseiro de Pitty, feita da melhor madeira que a
serraria fornecia. Beau é que a escolhera; já entendia mais do negócio de madeiras
que o pai, disse Ashley, com um misto de tristeza e de admiração. E, acrescentou com
orgulho intensificado, o rapaz parecia ter as qualidades de um estudioso. Já tinha
ganho um prêmio escolar por uma composição em latim, e já lia livros para pessoas
mais velhas que ele.
- Mas deves estar aborrecida a ouvir isto tudo, Scarlett. Pais orgulhosos podem
ser muito maçantes.
- Nem um pouco, Ashley - mentiu Scarlett. Livros, livros, livros, era isso
precisamente que estava errado com os Wilkes. Viviam toda a sua vida à base de
livros, não da própria vida. Mas talvez o rapaz se saísse bem. Se já entendia de
madeiras, havia salvação para ele. Agora, se Ashley não se armasse em orgulhoso,
havia mais uma promessa que fizera a Melly que gostaria de cumprir. Scarlett colocou
a mão na manga de Ashley.
- Tenho um grande favor a pedir-te - disse ela. Os seus olhos pareciam implorar.
- O que quiseres, Scarlett, já devias saber. - Ashley cobriu a mão dela com a dele.
- Quero que me prometas que vais consentir que eu envie o Beau para a
Universidade e depois com o Wade numa grande viagem. Isso é importante para mim...
pois eu penso nele como um filho, também, visto ter estado presente quando ele
nasceu. E, ultimamente, tenho ganho muito dinheiro, portanto não há problema. Não
podes ser tão mesquinho que me vás negar isso.
- Scarlett. - O sorriso de Ashley desapareceu. Estava muito sério.
"Oh, céus, ele vai armar-se em difícil. Graças a Deus, vem aí essa moça de fala
arrastada com o café. Ele não poderá falar na frente dela e eu terei oportunidade de
fazer mais uma investida, antes que ele tenha oportunidade de dizer não."
- Quantas colheres de açúcar, Ashley? Eu preparo-te ocafé.
Ashley tirou-lhe a xícara da mão e colocou-a sobre a mesa.
- Deixa que o café espere um momento, Scarlett. - Pegou na mão dela. - Olha
para mim, querida Scarlett. - Os seus olhos estavam iluminados de ternura. A mente de
Scarlett vagueava. "Ora esta, ele quase parece o Ashley de outrora, o Ashley Wilkes,
de Twelve Oaks."
- Eu sei como o dinheiro te foi parar às mãos, Scarlett. O tio Henry sem querer,
revelou-o. Compreendo como te sentes. Mas não há necessidade. O Rhett nunca foi
digno de ti, fizeste bem em te livrares dele, não interessa como. Podes pôr isso tudo
para trás das costas, como se nunca tivesse acontecido.
"Santo Deus, o Ashley vai propor-me casamento!"
- Estás livre do Rhett. Diz que casarás comigo, Scarlett, e eu prometo que
dedicarei a minha vida a fazer-te feliz, da maneira como mereces ser.
"Houve uma época em que trocaria a alma por aquelas palavras", pensou
Scarlett, "e não é justo que ao ouvi-las agora, não sinta nada. Oh, por que é que o
Ashley teve que fazer isto?" Antes de a pergunta estar feita, já ela sabia a resposta.
"Foi por causa das más-línguas de então. Ashley estava decidido a redimi-la perante os
olhos da sociedade de Atlanta. Era típico dele! Procederá cavalheirescamente, mesmo
que isso signifique arruinar a própria vida."
"E, a propósito, a minha também. Acho que ele nem se preocupa em pensar
nisso." Scarlett mordeu os lábios para controlar a raiva. Pobre Ashley. Não tinha culpa
de ser como era. Rhett dissera: o Ashley pertence ao tempo de antes da guerra. Não
tem lugar no mundo de hoje. "Não me posso zangar com ele, nem ser maldosa. Não
quero perder ninguém que fez parte dos dias gloriosos de então. Tudo o que resta
desse mundo são as recordações e as pessoas que compartilharam dele."
- Querido Ashley - disse Scarlett -, não quero casar contigo. E não se fala mais
nisso. Não vou fazer jogos de amor contigo, nem mentir, nem ter-te arquejando atrás
de mim. Já sou muito velha e gosto demais de ti para isso. Foste sempre uma parte
importante do meu passado e serás sempre. Vamos manter as coisas assim, está
bem?
- Claro, querida. Sinto-me honrado por pensares assim. Não te vou incomodar
mais falando de casamento. - Sorriu e parecia tão jovem, tão parecido com o Ashley de
Twelve Oaks, que o coração de Scarlett se apertou. Querido Ashley. Nunca deveria
saber que ela percebera o alívio que adivinhara na sua voz. Tudo estava bem. Não,
melhor que bem. Agora, podiam de fato ser amigos. O passado acabara sem
problemas.
- Quais são os teus planos, Scarlett? Vieste para ficar, espero.
Ela estava preparada para esta pergunta, mesmo antes de partir de Galway.
Devia assegurar-se de que ninguém em Atlanta a encontrasse, caso contrário corria o
risco de se cruzar com o Rhett e de perder Cat.
- Vou vender tudo, Ashley, mas por enquanto não quero manter nenhuma ligação.
Depois de visitar Savannah, fiz uma visita a alguns familiares do pai, na Irlanda, e a
seguir viajei. - Tinha que ter cuidado com o que dizia. Ashley já viajara pelo estrangeiro
e descobriria logo que ela mentia se dissesse que tinha estado em lugares em que
nunca estivera. - Não sei bem porquê, mas não cheguei ir a Londres. Pensei que podia
me instalar lá por uns tempos. Dá-me um conselho, Ashley. Achas que Londres é uma
boa idéia? - Scarlett sabia, através de Melanie, que ele considerava Londres uma
cidade perfeita. Esperava que ele falasse no assunto e se esquecesse de fazer mais
perguntas.
- Gostei muito de passar a tarde contigo, Ashley. Virás me ver mais vezes?
Estarei aqui por uns tempos, para resolver uns assuntos.
- Tanto quanto puder. Será um grande prazer. - Ashley aceitou o chapéu e as
luvas que a criada lhe entregou. - Adeus, Scarlett.
- Adeus. Oh, Ashley, vais me fazer o favor que te pedi, não vais? Se não fizeres,
me sentirei muito infeliz.
- Não sei se...
- Juro-te, Ashley Wilkes, se não me deixares estabelecer um fundo para o Beau,
chorarei como um rio transbordante. E sabes tão bem como eu que um cavalheiro não
faz uma senhora chorar deliberadamente.
Ashley inclinou-se sobre a mão dela.
- Pensei que tinhas mudado muito, Scarlett, mas enganei-me. Consegues ainda
torcer um homem em volta do teu dedo mindinho e fazer com que ele goste. Seria um
mau pai se negasse a Beau um presente teu.
- Oh, Ashley, eu te amo e sempre te amarei. Obrigada. - "E agora corre para a
cozinha e vai contar tudo o que ouviste", pensou Scarlett, referindo-se à criada, que
acompanhou Ashley à porta. "Agora vou dar uma oportunidade às velhas
mexeriqueiras para terem o que falar. De resto, eu amo o Ashley e amarei sempre, de
um modo que ninguém poderá compreender."
Scarlett levou mais tempo do que pensara para finalizar os seus assuntos em
Atlanta. Só partiu para Tara em 10 de Junho.
Já há quase um mês que estava longe de Cat! Não aguentou mais. "Ela até pode
me esquecer. Provavelmente, já lhe nasceram mais um ou dois dentinhos, sem que eu
estivesse presente. E se ela estiver irritável e ninguém souber que ela se sentiria
melhor se pudesse chapinhar na água? Faz tanto calor. Pode ser que tenha apanhado
líquen. Um bebé irlandês não aguenta de tempo quente."
Durante a sua última semana em Atlanta, Scarlett estava tão nervosa que mal
podia dormir. Por que é que não chovia?
Um pó vermelho cobria tudo, meia hora depois de se limpar.
Mas, uma vez no trem para Jonesboro, conseguiu relaxar. Não obstante as
demoras, conseguira fazer tudo o que se propusera fazer, e melhor do que era possível
fazer, segundo a opinião do tio Henry Hamilton e do novo advogado.
Claro que a venda mais fácil fora a do bar. A depressão aumentara o volume do
negócio e o seu valor. Quanto à loja, fora uma pena. Valia mais pelo terreno onde
estava que como imóvel; os novos proprietários iam demolir o edifício e construir um
prédio de oito andares. Pelo menos, Five Points continua a ser Five Points, com
depressão ou sem depressão. Ganhara bastante com aquelas duas vendas e com o
dinheiro obtido comprara outros cinquenta hectares e mandara construir cem casas, na
extremidade da cidade. Isto faria com que Ashley se mantivesse próspero com a venda
da sua madeira durante alguns anos. O construtor também lhe dissera que os outros
construtores estavam começando a comprar madeira somente de Ashley. O mesmo
não se podia dizer das outras serrarias de Atlanta. Parecia realmente que ele viria a ser
um sucesso, mesmo sem querer ser.
E ela iria fazer uma fortuna. Henry Hamilton tinha razão quanto a isso. As suas
pequenas casas vendiam-se à medida que iam ficando prontas.
Com elas obtivera um bom lucro. Muito lucro. Ficou espantada quando viu quanto
dinheiro se acumulara na sua conta bancária. O suficiente para cobrir todas as
despesas que a tinham preocupado em Ballyhara todos estes meses, com dinheiro
saindo e pouco entrando. Agora tiraria a desforra. A colheita traria só lucro, sem
quaisquer despesas, e ainda providenciaria sementes para o ano seguinte. E as rendas
das casas da cidade com certeza subiriam, também. Antes da sua partida, um tanoeiro
mostrou-se interessado numa das cabanas vazias e Colum dissera-lhe que havia um
alfaiate interessado noutra.
Mesmo que não tivesse ganho tanto dinheiro, teria feito o mesmo, mas, com
dinheiro, tudo era mais fácil. O construtor recebera instruções para remeter todos os
lucros futuros para Stephen O'Hara, em Savannah. Este teria todo o dinheiro de que
precisava para levar a cabo as instruções de Colum.
Era engraçado o que se passava com a casa de Peachtree Street, pensou
Scarlett. "Pensei que fosse difícil separar-me dela. Afinal, foi ali que vivi com o Rhett, o
lugar onde Bonnie nasceu e viveu a sua vida terrivelmente curta. Mas a única coisa que
senti foi alívio. Quando aquela escola de moças fez uma oferta, quis beijar a cara de
ameixa seca da diretora. Foi como se tivesse me libertado de correntes. Agora estou
livre. Mais nenhuma obrigação em Atlanta. Mais nenhum laço."
Scarlett sorriu a si própria. Tal como os seus espartilhos. Nunca mais usaria,
desde que Colum e Kathleen a libertaram disso em Galway. A sua cintura tinha alguns
centímetros a mais, mas continuava sendo mais delgada que a da maioria das
mulheres que via na rua, que estavam de tal modo apertadas que mal podiam respirar.
E ela sentia-se bem - isto é, tão bem como qualquer pessoa se podia sentir com aquele
calor. Também podia se vestir sozinha e não estar dependente das criadas. E o grosso
chignon que fazia com o cabelo, não lhe dava trabalho para pentear sozinha. Era
maravilhoso ser auto-suficiente. Era maravilhoso não ter que se preocupar com o que
as outras pessoas faziam ou não faziam ou com o que aprovavam ou desaprovavam. E
o mais maravilhoso de tudo era regressar a uma Tara, para depois regressar com os
filhos a outra Tara, na Irlanda. Cedo estaria junto da sua preciosa Cat. E pouco depois
estaria de novo na fresca, doce e chuvosa Irlanda. A mão de Scarlett acariciou a bolsa
de pele no seu peito. A primeira coisa a fazer era levar a terra de Ballyhara para a
campa do seu pai.
"Onde quer que estejas, pai, podes me ver? Sabes uma coisa? Se pudesses,
sentirias muito orgulho da tua Katie Scarlett, pai. Eu sou A O'Hara."
Will Benteen estava à espera dela na estação ferroviária de Jonesboro. Scarlett
fitou a seu rosto gasto pelo tempo e o corpo enganadoramente mole, e sorriu de orelha
a orelha. Will devia ser o único homem que Deus fez que parecia estar espreguiçando-
se numa perna de pau.
- Pelo amor de Deus, Scarlett, quase me atiraste ao chão. É bom te ver.
- É bom te ver, Will. Estou mais contente por te ver que a qualquer outra pessoa
em toda a viagem. - Era verdade.
Will era-lhe mais querido que os O'Haras de Savannah. Talvez por ter passado os
maus tempos com ela, talvez por ele amar Tara tanto quanto ela. Talvez por ser
apenas um homem bom e honesto.
- Onde está a tua criada?
- Oh, já não preciso de criada, Will. Já não preciso de muitas coisas de que
costumava precisar.
Will mudou de lugar a palha que estava na sua boca.
- Já reparei nisso - disse ele, laconicamente. Scarlett riu. Antes nunca pensara o
que sentiria um homem ao abraçar uma mulher sem espartilho.
- Nada de prisões para mim, Will, nunca mais, de nenhuma espécie - disse ela.
Gostaria de poder lhe dizer por que estava tão feliz, falar-lhe sobre Cat, sobre
Ballyhara. Se fosse só por Will, ela lhe contaria tudo num minuto, pois confiava nele.
Mas ele era o marido de Suellen, e ela não confiava nada na sua irmã. E o Will podia
sentir-se no dever de contar à mulher tudo o que ela lhe contasse. Scarlett conteve a
língua.
Subiu para o banco da carroça. Nunca vira Will utilizar o buggy - Aproveitara a ida
à estação para comprar mantimentos.
A carroça estava carregada de sacos e de caixas.
- Conta-me todas as novidades, Will - disse Scarlett, quando estavam a caminho.
- Há muito que não sei de nada.
- Ora, deixa-me ver. Calculo que queiras primeiro ouvir notícias sobre os garotos.
Ella e a nossa Susie são amigas íntimas . O fato de Susie ser um pouco mais nova,
representa uma vantagem para Ella e isso tem-lhe feito muito bem. Mal vais
reconhecer o Wade, quando o vires. Começou a crescer. Apesar da aparência delgada,
é forte como uma mula. Trabalha como uma, também. Graças a ele, há mais vinte
hectares cultivados este ano.
Scarlett sorriu. Que grande ajuda ele seria em Ballyhara, e como iria gostar de o
ser. Um agricultor nato, e ela nunca pensara nisso. "Deve sair ao pai."
- A nossa Martha tem agora 7 anos e Jane, o bebê, fez 2 em Setembro último.
Suellen perdeu uma criança o ano passado, era uma menina.
- Oh, Will, lamento muito.
- Decidimos não tentar de novo - disse Will. - Foi muito duro para a Suellen e por
isso o doutor aconselhou que não tivéssemos mais filhos. Temos três meninas
saudáveis e isso é mais do que a maioria das pessoas têm para lhes dar felicidade.
"Claro que gostaria de ter um rapaz, qualquer homem gosta, mas não me queixo.
Além disso, o Wade tem sido como um filho que qualquer homem gostaria de ter. É um
óptimo rapaz, Scarlett.
Ela ficou feliz ao ouvi-lo dizer isto. E surpreendida. Will tinha razão, ela não iria
reconhecer o Wade. Não se ele fosse tudo aquilo que Will dizia dele. Lembrava-se de
um rapazinho tímido, amedrontado e pálido.
- Gosto tanto do Wade que concordei em falar por ele, apesar de não ter o
costume de meter o nariz nos assuntos dos outros. Ele teve sempre um pouco de
medo de ti , Scarlett, sabes disso. Seja como for, o que ele quer que eu te diga é que
não deseja estudar mais. Este mês acabará os estudos aqui, e a lei não o obriga a
estudar mais.
Scarlett sacudiu a cabeça.
- Não, Will. Podes tu lhe dizer ou então faço-o eu. O pai dele frequentou a
Universidade e o Will também o fará. Sem ofensa, Will, mas um homem não pode ir
muito longe sem uma boa educação.
- Não me ofendo, mas acho que estás errada. Wade sabe ler e escrever e fazer
contas tanto quanto qualquer agricultor precisa saber. E é isso que ele quer. Ser
agricultor. Cultivar Tara, melhor dizendo. Ele alega que o seu avô construiu Tara sem
mais escolaridade que ele e não vê razão para ser diferente. O rapaz não se parece
comigo, Scarlett. Bolas, eu pouco mais sei que escrever o meu nome. Ele tem quatro
anos daquela escola fina que lhe arranjaste em Atlanta e mais três aqui na escola
pública. Sabe tudo o que um camponês deve saber. E que é que ele é, Scarlett? Um
camponês, e sente-se feliz em o ser. Detestaria ver-te destruí-lo.
Scarlett ficou irritada. Com quem pensava Will Benteen que estava falando? Ela
era a mãe de Wade, sabia o que era melhor para ele.
- Já que estás enfurecida, talvez seja melhor acabar o que tenho a dizer -
continuou Will, no seu sotaque arrastado das gentes do Sul. Olhou diretamente para a
estrada poeirenta à sua frente. - No Tribunal do Condado, mostraram-me papéis
respeitantes a Tara. Parece-me que conseguiste pôr a mão na parte de Carreen. Não
sei quais os teus planos, Scarlett, e não te vou perguntar. Mas vou-te dizer o seguinte.
Se alguém me aparecer pela frente e abanar qualquer documento legal quanto à
aquisição de Tara, tenciono barrar-lhe o caminho com uma arma na mão.
- Will, juro sobre um monte de Bíblias que não tenho intenção de fazer nada com
Tara. - Scarlett sentiu-se grata por dizer a verdade. A fala anasalada e arrastada de
Will era mais ameaçadora que um grito podia ser.
- Ainda bem. No meu entender, acho que devia pertencer a Wade. Ele é o único
neto do teu pai, e a terra deve permanecer na família. Espero que o deixes ficar onde
ele está, Scarlett, para que seja o meu braço direito e um filho para mim, exatamente
como o é agora.
- Vou pensar nisso - prometeu Scarlett. A carroça rangeu ao longo da estrada
familiar e ela viu que a terra que ela conhecera como campo cultivado tinha regressado
ao estado de moitas e de ervas de raízes espessas. Quis chorar.
- Onde tens estado estes dois anos, Scarlett? Se não fosse a Carreen, não
saberíamos para onde tinhas ido, mas depois ela também perdeu o teu rastro.
Scarlett esforçou-se por sorrir.
- Tenho tido muitas aventuras, Will, viajando por todo o lado. Também visitei os
meus parentes O'Hara. Alguns deles estão em Savannah, as pessoas mais bondosas
que conheço. Fiquei com eles bastante tempo. E depois parti para a Irlanda, para
visitar outros parentes. Não imaginas quantos O'Haras existem. - As lágrimas vieram-
lhe aos olhos. Apertou a bolsa de cabedal de encontro ao peito. - Will, trouxe uma coisa
para o pai. Deixa-me ficar no cemitério e mantém todos afastados por uns momentos.
- Com todo o prazer.
Scarlett ajoelhou-se ao sol, junto da cova de Gerald O'Hara. A terra preta
irlandesa filtrava-se por entre os dedos, misturando-se com o barro encarnado da
Geórgia.
- Escuta, pai - murmurou ela, e o tom da sua voz era irlandês. - County Meath é,
na verdade, um grande lugar. Eu não sabia, pai, desculpa. Agora vejo que devias ter
tido uma vigília condigna ouvindo contar todas as histórias da tua juventude. - Ergueu a
cabeça e o sol iluminou a torrente de lágrimas que lhe corriam pelo rosto. A sua dor era
grande e a voz entrecortada de lágrimas, mas ela fez o melhor que pôde.
- Por que me deixaste? Ochón! Ochón, Ochón, Ullagón!
Scarlett estava satisfeita por não ter contado a ninguém em Savannah sobre o
seu plano de levar Wade e Ella para a Irlanda com ela. Agora, não teria que explicar
por que os deixara em Tara; seria muito humilhante contar-lhes a verdade, que os seus
próprios filhos a não queriam, que a consideravam uma estranha, e ela a eles. Não
podia admitir a ninguém, nem mesmo a si própria, quanto isso a magoava e quanto se
recriminava. Sentia-se pequena e mesquinha; dificilmente podia alegrar-se por Ella e
Wade serem tão obviamente felizes.
Tudo em Tara a magoara. Sentira-se como uma estranha. Se não fosse o retrato
da avó Robillard, dificilmente reconheceria alguma coisa na casa. Suellen utilizara o
dinheiro todos os meses para comprar novas mobílias e acessórios. A madeira sem
defeitos das mesas brilhava intensamente aos olhos de Scarlett, as cores dos tapetes e
das cortinas pareciam-lhe brilhantes demais. Detestava-as. E o calor vindo do forno, de
que ela tantas saudades tinha, provocara-lhe uma dor de cabeça que durara toda a
semana em que ali estivera.
Gostara de visitar Alex e Sally Fontaine, mas o novo bebê deles só lhe lembrava
quanta falta sentia de Cat.
Foi só na casa dos Tarletons que ela se divertiu. A quinta deles ia bem, e Mrs.
Tarleton falou sem parar da égua que ia ter cria e das suas expectativas quanto à égua
de três anos, a qual insistiu que Scarlett visse.
As visitas constantes e fáceis, sem necessidade de convites, tinham sido sempre
o que de melhor havia no Condado.
Mas ficara contente ao deixar Tara, e isso também a magoou. Se não soubesse
quanto Wade a amava, lhe teria partido o coração constatar que estava ansiosa por
partir. Pelo menos, o filho tomaria o seu lugar. Depois da visita a Tara, foi ver o seu
novo advogado em Atlanta, onde fez um testamento, deixando a sua parte de dois
terços de Tara ao filho. Não iria fazer o que o pai e o tio Daniel tinham feito, ao
deixarem uma série de problemas às suas costas. E se Will morresse primeiro, ela não
confiava nem um pouco em Suellen. Scarlett assinou o documento com um floreado e
depois sentiu-se livre.
Voltar para junto de Cat. Cat que sarava todas as suas feridas num segundo. A
sua carinha iluminou-se quando viu a mãe, e estendeu-lhe logo os braços, não se
importando de ser abraçada e beijada uma dúzia de vezes.
- Ela está tão bronzeada e saudável! - exclamou Scarlett.
- E não admira que esteja - disse Maureen. - Gosta tanto do sol que tira a touca
assim que lhe viramos as costas. O que ela é é uma pequena cigana e um verdadeiro
encanto todas as horas do dia.
- Do dia e da noite - corrigiu Scarlett, apertando a filha nos braços.
Stephen deu a Scarlett instruções para a viagem de regresso a Galway. Ela não
gostou dessas instruções. Para dizer a verdade, também não gostava muito de
Stephen. Mas Colum dissera-lhe que Stephen estava encarregado de todos os planos.
Vestiu a roupa de luto e guardou para si as reclamações.
O navio tinha o nome de The Golden Fleece e era a última palavra em luxo.
Scarlett não tinha razão de queixa com o tamanho ou o conforto da sua suíte. Mas o
navio não fez uma viagem direta. Levou uma semana mais do que devia, e ela estava
desejosa de regressar a Ballyhara para ver como iam as colheitas.
Só quando chegou à prancha é que viu o aviso de partida com o itinerário do
navio afixado, de contrário teria recusado partir, não interessava o que Stephen
dissesse. O Golden Fleece receberia passageiros em Savannah, Charleston e Boston,
desembarcando-os em Liverpul e Galway.
Scarlett voltou-se em pânico, pronta para regressar à doca. Não podia ir a
Charleston, não podia mesmo! Rhett saberia logo que ela estava no navio - Rhett
conseguia sempre saber tudo - e viria logo ao seu camarote para lhe tirar Cat.
"Eu o matarei, primeiro." A raiva afugentou o pânico, e Scarlett voltou-se de novo
para entrar no convés do navio. Toda a sua bagagem já estava a bordo, e ela tinha a
certeza de que Stephen escondera armas destinadas a Colum dentro das malas.
Dependiam dela. Ela também queria regressar a Ballyhara e não ia deixar que nada ou
ninguém se atravessasse no seu caminho.
Quando Scarlett chegou à suite, a sua fúria contra Rhett tornara-se avassaladora.
Já se passara mais de um ano desde que ele se divorciara, tendo imediatamente
casado com Anne Hampton. Durante esse ano, Scarlett estivera tão ocupada, sofrera
tantas mudanças na sua vida, que tinha conseguido bloquear a dor que ele lhe
causara. Agora, tinha o coração partido e um receio profundo do poder imprevisível de
Rhett. Transformou esses sentimentos em raiva. A raiva era revigorante.
Bridie viajou parte do caminho com Scarlett. Os O'Hara de Boston tinham lhe
arranjado uma boa posição como dama de companhia. Até saber que o navio pararia
em Charleston, Scarlett ficara contente com a perspectiva da companhia de Bridie.
Mas, só de pensar que ia parar em Charleston, ficava tão nervosa que o constante
paparico da sua jovem prima quase a punha maluca. Por que é que a Bridie não a
deixava em paz? Sob a tutelagem de Patrícia, Bridie aprendera todos os deveres das
suas funções e queria experimentá-las com Scarlett. Ficou muito incomodada quando
soube que Scarlett deixara de usar espartilho, e decepcionada por nenhum dos
vestidos de Scarlett precisar de arranjos. Scarlett estava morta por lhe dizer que o
primeiro requisito de uma dama de companhia era falar só quando lhe dirigissem a
palavra, mas gostava de Bridie, e não era culpa dela se o navio ia fazer uma paragem
em Charleston. Assim, forçou-se a sorrir e agir como se nada a preocupasse.
O navio prosseguiu viagem durante a noite, entrando no porto de Charleston de
madrugada. Scarlett não dormiu nada. Foi até o convés assistir ao nascer do Sol. Havia
uma neblina rosada sobre as vastas águas do porto. Mais além, a cidade aparecia
indistinta e imaterial, como uma cidade num sonho. O campanário branco da Igreja de
S. Miguel apresentava um tom rosa-pálido. Scarlett imaginou ouvir os sinos tocarem à
distância, entre as batidas vagarosas do motor do navio. "Devem estar agora
descarregando os barcos de pesca no Mercado, não, ainda é um pouco cedo, ainda
não devem ter chegado." Semicerrou os olhos, mas a neblina escondia os barcos, caso
estes estivessem ali à frente.
Concentrou-se na lembrança das diversas espécies de peixe, de vegetais, nos
nomes dos vendedores de café, no homem das salsichas - tudo o que mantivesse a
sua mente ocupada, para afastar as recordações que ela não se atrevia a confrontar.
Mas, quando o Sol se levantou no horizonte, atrás dela, a neblina rosada desfez-
se e ela pôde ver as paredes esburacadas de um dos lados do forte Sumter. O Fleece
estava navegando em águas onde antes ela viajara com Rhett e rira com ele vendo os
golfinhos e onde fora apanhada pela tempestade junto a ele.
"Maldito seja! Odeio-o e à sua maldita Charleston..."
Scarlett pensou consigo mesma que devia regressar ao camarote e fechar-se lá
dentro com Cat, mas continuou no convés, como se presa. Pouco a pouco, a cidade
tornou-se maior, mais nítida, resplandecente de branco, rosa e verde-pastel, no ar
tremeluzente da manhã. Podia ouvir os sinos de S. Miguel, cheirar a pesada doçura
tropical das flores que desabrochavam, ver as palmeiras de White Point Gardens, o
brilho opalescente dos carreiros de conchas de ostras esmagadas. A seguir, o navio
passou ao largo do passeio de East Battery. Do convés, Scarlett podia ver além do
passeio. Via as colunas da altura de árvores da casa dos Butler, aspiazzas, a porta
principal, as janelas da sala de estar, o seu quarto... As janelas! E o telescópio na sala
de jogos. Pegou nas saias e correu.
Pediu que o desjejum fosse servido no camarote e insistiu que Bridie ficasse com
ela e com Cat. A única esperança estava ali, fechada à chave, fora da vista. Onde
Rhett não pudesse descobrir nada sobre Cat nem levá-la consigo.
O criado estendeu uma toalha branca sobre a mesa redonda, na saleta de estar
do camarote, depois trouxe um carrinho com duas fileiras de pratos de prata,
abobadados. Bridie deu uma gargalhada. Enquanto colocava meticulosamente os
pratos e um centro floral, falava de Charleston. Tudo o que Scarlett pôde fazer foi não o
corrigir, tantas asneiras dizia. Mas ele era escocês, num navio escocês, por que se
esperaria que soubesse alguma coisa?
- Às cinco horas prosseguiremos a viagem - continuou o criado -, depois de
recebida a carga e os novos passageiros a bordo. As senhoras talvez queiram fazer
uma excursão pela cidade. - Começou a colocar os pratos e a abrir as tampas das
terrinas. - Há um bonito carro puxado a cavalo e conduzido por um condutor que
conhece todos os lugares dignos de se verem. Custa apenas cinquenta pence ou dois
dólares e cinquenta, americanos. Está à espera na extremidade da prancha. Ou, se
preferirem o ar fresco do mar, há um barco no cais a seguir, do lado sul, que sobe o rio.
Há dez anos, houve uma grande guerra civil na América. Poderão ver as ruínas de
grandes mansões queimadas pelo inimigo. Terão que se apressar, no entanto, pois
esse barco parte dentro de quarenta minutos.
Scarlett tentou comer um pedaço de torrada, mas este ficou-lhe entalado na
garganta. O relógio dourado sobre a escrivaninha ia marcando os minutos. A ela, o
ressoar parecia muito alto. Ao fim de meia hora, levantou-se de um salto.
- Vou sair, Bridie, mas não te atrevas a dar um passo. Abre as vigias, serve-te do
leque que está ali, mas tu e a Cat não podem sair daqui. Mantém a porta fechada, não
importa o calor que possa fazer. Encomenda o que quiseres, de comer ou de beber.
- Onde vais, Scarlett?
- Não interessa. Estarei de volta antes de o navio partir.
O barco de excursão era um pequeno barco propelido a rodas, pintado de
vermelho-vivo, branco e azul. O seu nome, em letras douradas, era Abraham Lincoln.
Scarlett lembrava-se bem dele. Tinha-o visto passar por Dumore Landing.
Julho não era o mês ideal para visitar o Sul. Ela era uma entre apenas uma dúzia
de passageiros. Sentara-se sob um toldo, no convés superior, abanava-se e
amaldiçoava o vestido de luto, com as suas mangas compridas, gola subida, no calor
do Verão sulista.
Um homem com um chapéu alto de listras encarnadas e brancas berrava uns
comentários, através de um megafone. Isso ainda a enfureceu mais.
"Olhem para todos estes ianques de cara gorda", pensou com ódio.
"Estão apenas obtendo vantagem de tudo isto. Cruéis proprietários de escravos,
não há dúvida! Vendemos o rio, pois sim! Nós amávamos os nossos negros como
família e alguns deles eram mais nossos donos que nós deles. A Cabana do Pai
Tomás. Ora bolas! Nenhuma pessoa decente deve ler essa porcaria."
Desejou não ter cedido ao impulso de vir. Só iria incomodar-se. Já estava
incomodada e nem sequer tinham deixado o porto em direção ao Rio Ashley.
Por sorte, o comentador esgotou o que tinha a dizer e por um bom tempo o único
som que se ouvia era o ruído dos pistons e o esguichar da água ao cair da roda. Em
ambas as margens do rio, a relva do pântano estava verde e dourada, com largos
carvalhos cobertos de musgo pendente, na ribanceira do rio. Libélulas pululavam no ar
cheio de mosquitos e sobre a relva; de vez em quando um peixe saltava fora da água e
voltava a mergulhar. Scarlett continuava sentada, muito quieta, distante dos outros
passageiros, acalentando o seu rancor. A plantação de Rhett estava destruída e ele
nada fazia para salvá-la. Camélias! Em Ballyhara, ela possuía centenas de hectares de
plantações saudáveis, onde antes encontrara ervas ásperas. E tinha reconstruído uma
cidade inteira, enquanto ele se limitava a ficar sentado observando as suas chaminés
chamuscadas.
Fora por isso que viera no barco propelido a rodas, disse para consigo. Sentiu-se
bem ao verificar quanto o ultrapassara. Scarlett ficava tensa antes de cada curva,
relaxada depois de a passar e a casa de Rhett não aparecer.
Tinha-se esquecido de Ashley Barony. A grande casa de tijolos quadrados de
Julia Ashley tinha um aspecto magnificamente proibitivo, no centro do seu relvado não
tratado.
- Esta é a única plantação que as forças heróicas da União não destruíram -
berrou o homem do chapéu absurdo. - O coração sensível do seu comandante não lhe
permitiu fazer mal à frágil solteirona que jazia doente lá dentro.
Scarlett deu uma gargalhada. "Frágil solteirona", na verdade! Miss Julia deve é tê-
lo assustado, forçando-o a fugir! Os outros passageiros olharam-na com curiosidade,
mas Scarlett não reparou neles. A mansão Landing seria a seguinte...
Sim, ali estava a mina de fosfato. Muito maior! Havia cinco chatas sendo
carregadas. Procurou sob o chapéu de aba larga do homem que estava na doca. Era
aquele soldado branco que não prestava - não se lembrava do seu nome, qualquer
coisa como Hawkins - "não interessa, depois daquela curva, depois daquele grande
carvalho..."
O ângulo da luz solar esculpiu os grandes tabuleiros de relva de Dunmore
Landing em degraus gigantescos de veludo verde e lantejoulas espalhadas sobre os
lagos de borboletas, ao lado do rio. O grito involuntário que Scarlett deu perdeu-se
entre as exclamações dos ianques agrupados à volta dela no parapeito. Por cima dos
terraços, as chaminés chamuscadas eram como sentinelas altas de encontro ao céu
azul, dolorosamente brilhante; um crocodilo apanhava sol na relva entre os lagos.
Dunmore Landing era como o seu dono: culto, ferido, perigoso. E inacessível. As
persianas estavam corridas na ala que restava, o lugar que Rhett utilizava como
escritório e como lar.
Os seus olhos percorreram com avidez todos os locais, comparando-os às suas
recordações. Uma grande parte do jardim estava desobstruída e tudo parecia
prosperar. Atrás da casa, erguiam-se algumas construções; o cheiro da madeira em
bruto chegava-lhe ao nariz e podia ver o cume de um telhado. As persianas da casa
tinham sido arranjadas, ou talvez fossem novas. Já não caíam, e brilhavam de tinta
verde. Não há dúvida que Rhett fizera muitas obras no Outono e no Inverno.
"Ou, por outra, fizeram." Scarlett tentou desviar o olhar. Não quis ver os novos
jardins. Anne ama aquelas flores tanto quanto o Rhett. E as persianas arranjadas
devem significar uma casa arranjada, onde os dois vivem juntos. Será que o Rhett lhe
prepara o desjejum?
- Sente-se bem, Miss? - Scarlett passou à frente do preocupado estranho.
- É o calor - disse ela. - Vou mais para ali, para a sombra. - Durante o resto da
excursão, olhou apenas para o convés desnivelado. O dia parecia nunca mais acabar.
Soavam as cinco quando Scarlett desceu em desorientada corrida a rampa do
Abraham Lincoln. Maldito barco. Parou no cais para recuperar o fôlego. Viu que a
prancha de acesso do The Golden Fleece ainda se encontrava no lugar. Nada estava
perdido. Mesmo assim, o dono do barco da excursão merecia ser chicoteado. Desde as
quatro horas que estava no maior desassossego.
- Agradeço-lhe ter esperado por mim - disse ao oficial de bordo no topo da
prancha de acesso.
- Oh, ainda não estão todos - respondeu-lhe, e Scarlett transferiu a sua raiva para
o comandante do Fleece. Se dissera cinco horas, deveria partir às cinco. Quanto mais
depressa saísse de Charleston, maior seria a sua felicidade. Era com certeza o lugar
mais quente da face da terra. Protegeu os olhos com a mão a fim de contemplar o céu.
Não havia uma nuvem. Nem chuva, nem vento, apenas calor. Avançou pelo convés em
direção ao seu camarote. Pobrezinha da Cat, devia estar praticamente assada. Assim
que deixassem o porto, a traria para o convés, a fim de apanhar a escassa brisa
provocada pelo movimento do navio.
A sua atenção foi despertada pelo bater de cascos e gargalhadas femininas.
Talvez estivessem à espera delas. Viu lá em baixo uma vitória (veículo ligeiro de quatro
rodas, puxado por cavalos e de capota removível. - N. da T.) aberta. Três fabulosos
chapéus nas mulheres que lá vinham. Não se assemelhavam em nada aos chapéus
que alguma vez vira, e, mesmo de longe, podia afirmar serem muito caros. De aba
larga, decorados com penas ou plumas, com jóias cintilantes e rodeados por uma fina
rede de tule; da perspectiva de Scarlett, os chapéus assemelhavam-se a magníficas
sombrinhas ou a fantásticas confecções de pastelaria em enormes bandejas.
"Como ficaria simplesmente maravilhosa com um chapéu daqueles." Inclinou-se
ligeiramente sobre a balaustrada para olhar as mulheres. Eram elegantes, mesmo com
o calor, vestindo organdim ou voile, de tom pálido enfeitado - parecia fita larga de seda,
ou seria uma guarnição de franzido? - nas frentes encorpadas e - Scarlett pestanejou -
sem armação ou qualquer indício e tão pouca cauda. Nunca vira nada de semelhante
em Savannah ou Atlanta. Quem eram aquelas pessoas? Os seus olhos devoravam as
luvas pálidas de pelica e as sombrinhas fechadas, de renda, supunha, mas não tinha a
certeza. Quem quer que fossem, decerto estariam divertindo-se muito e sem a menor
pressa de entrar no navio cuja a partida retardavam.
O homem do chapéu do Panamá que as acompanhava apeou-se. Tirou o chapéu
com a mão esquerda. A direita ergueu-se para ajudar a primeira dama a descer.
Scarlett firmou-se na balaustrada. "Santo Deus, é Rhett. Tenho que me esconder.
Não. Não. Se ele vai embarcar neste navio preciso tirar Cat, arranjar um esconderijo,
outro navio. Mas não o posso fazer. Trago duas malas no porão com vestidos
pregueados e as espingardas de Colum lá dentro. Mas, valha-me Deus, que vou
fazer?" Idéias impossíveis varriam-lha a mente umas atrás das outras enquanto olhava
vagamente o grupo lá em baixo.
Aos poucos, o seu cérebro foi registando o que via: Rhett fazia reverências,
beijando sucessivamente as mãos que se lhe estendiam com graciosidade. Os ouvidos
atentaram na repetição do adeus e obrigada das mulheres. Cat não corria perigo.
Mas Scarlett sim. A sua ira protetora desaparecera, e o seu coração estava
exposto. "Ele não me vê. Posso olhar para ele quando quiser. Por favor, por favor, não
voltes a pôr o chapéu, Rhett."
Como era atraente. A pele morena, o sorriso tão alvo quanto o seu lindo trajo de
linho branco. Era o único homem no mundo que não amarrotava o linho. Ah, e aquela
madeixa no cabelo, que tanto o aborrecia, voltava a pender-lhe para a testa. Rhett deu-
lhe um piparote com dois dedos num gesto que Scarlett conhecia tão bem que a
intensidade da recordação quase a fez desfalecer. Que dizia ele? Algo de extravagante
e encantador, tinha certeza, mas usava aquele tom de voz baixo e de intimidade que
guardava para as mulheres. Maldito! E malditas aquelas mulheres! Queria ouvir a voz
murmurar-Ihe, só para ela.
O comandante do navio desceu a prancha, compondo os galões dourados do
casaco. "Não os apresses", teve Scarlett vontade de gritar.
"Fiquem, fiquem mais um pouco. É a minha última oportunidade. Nunca mais o
verei. Deixem-me guardar a sua imagem.
"Devia ter cortado há pouco o cabelo, há uma pequena risca branca acima das
orelhas. Está mais grisalho nas têmporas? Fica tão elegante, o fio prateado no seu
cabelo negro como azeviche. Recordo a sensação dele sob os meus dedos, crespo e
ao mesmo tempo extraordinariamente macio. E os músculos dos ombros e braços,
deslizando tão suavemente debaixo da pele, esticando-a quando se retesavam.
Quero..."
A sirene do navio soou estrondosamente. Scarlett sobressaltou-se. Ouvia passos
apressados, o ruído da prancha de acesso, mas não tirava os olhos de Rhett. Este
sorria, olhando para a direita dela, para cima. Podia ver os seus olhos negros e as
sobrancelhas farfalhudas, e o bigode impecavelmente cuidado. Todo o seu forte,
másculo e inesquecível rosto de pirata.
- Meu querido - murmurou -, meu amor, Rhett voltou a curvar-se. O navio
afastava-se do cais. Pôs o chapéu e afastou-se. Com o polegar, inclinou o chapéu para
a nuca.
"Não vás!", exclamou o coração de Scarlett.
Rhett olhou para cima do ombro como se tivesse ouvido algo.
Os seus olhares cruzaram-se, e a surpresa conferiu rigidez ao seu corpo ágil. Por
um longo e imesurável instante, os dois olharam-se à medida que o espaço aumentava
entre eles. Depois, a malícia percorreu o rosto de Rhett ao levar dois dedos à aba do
chapéu para uma saudação. Scarlett ergueu a mão.
Permanecia ainda no cais quando o navio entrou no canal, rumo ao mar. Assim
que Scarlett deixou de o avistar, caiu como que paralisada numa cadeira de bordo.
- Não sejas tonta, Bridie, o camareiro se sentará à porta. Virá chamar-nos assim
que Cat se mexer. Não há motivo para não vires à sala de jantar. Não podes fazer aqui
a refeição todas as noites.
- Para mim é motivo suficiente, Scarlett. Não me sinto à vontade entre damas e
cavalheiros tão refinados, fingindo-me um deles.
- Vales o mesmo que eles, já te disse.
- E te ouvi dizê-lo, Scarlett, mas tu não me escutaste. Prefiro comer aqui com
todas as tampas de prata sobre as travessas e à minha maneira. Em breve terei que ir
para onde a senhora que servir me mandar, e fazer o que me disserem. Com certeza
que tomar uma excelente refeição no conforto da minha privacidade não será uma das
ordens que me vão dar. É aproveitar enquanto posso.
Scarlett tinha que entender a posição de Bridie. Mas era-lhe de todo impossível
jantar na suite. Não naquela noite. Precisava descobrir quem eram aquelas mulheres e
por que Rhett as acompanhara, ou enlouqueceria.
Eram inglesas, soube-o assim que entrou na sala de jantar. A sua pronúncia
característica dominava a mesa do comandante.
Scarlett informou o criado de mesa que gostaria de mudar o seu lugar para a
mesinha junto à parede. A mesa junto à parede era também a mais próxima da mesa
do comandante.
Eram catorze à mesa dele: uma dúzia de passageiros ingleses, o comandante e o
imediato. Scarlett tinha o ouvido apurado e logo pôde distinguir que a pronúncia dos
passageiros era diferente da dos oficiais de bordo, apesar de serem todos ingleses e,
por conseguinte, desprezavam quem tivesse uma gota de sangue irlandês.
Falavam de Charleston. Scarlett calculou que não tivessem boa impressão.
- Meus caros - soou a voz de uma das mulheres -, nunca na minha vida vi nada
tão desolador. Como pôde a minha querida mamãe dizer-me que era o único lugar
civilizado da América! O que me aflige pensar que ela ficou tolinha sem que nos
apercebêssemos.
- Ora, Sarah - disse o homem à esquerda dela -, tem que contar com a guerra
deles. Achei os homens muito honestos.
- Até à sua última moeda, tenho certeza, mas há exceções, e a bebida era de
primeira categoria. Malte puro, no bar do clube.
- Meu caro Geoffrey, se houvesse um clube com bom uísque, até diria que o Sara
é civilizado. Só não podia fazer mais calor. Que clima horrível.
- Seguiu-se um coro de anuência.
- Por outro lado - disse uma voz de mulher jovem -, aquele homem incrivelmente
atraente, o Butler, disse que os Invernos eram bastante amenos. Convidou-nos a
voltar.
- Claro que a convidou a voltar, Felicity - retorquiu uma senhora mais idosa. -
Portou-se vergonhosamente.
- Que grande mentira, Frances - protestou Felicity -, apenas me diverti um pouco
pela primeira vez nesta viagem maçante. Não entendo por que papai me mandou para
a América. É um lugar horrível.
Um homem soltou uma gargalhada.
- Mandou-a, querida mana, para a tirar das garras daquele caçador de dotes.
- Mas era tão atraente. Não sei de que serve ter fortuna, se depois é preciso
precavermo-nos contra os homens atraentes da Inglaterra só porque não são ricos.
- Pelos menos, deve precaver-se contra eles, Felicity - disse uma outra jovem. -
Isso é fácil de fazer. Pense no seu pobre irmão. Roger deve atrair as herdeiras
americanas como moscas e casar com uma fortuna para voltar a encher os cofres da
família. - Roger resmungou e todos riram.
"Falem de Rhett", implorou Scarlett em silêncio.
- Não existe pura e simplesmente mercado para os ilustres - disse Roger. - Não
consigo passar por cima do papai.
- As herdeiras querem tiaras.
A senhora idosa a quem chamavam Frances disse que achava que eram todos
infames e não conseguia compreender os jovens da época.
- Quando eu era moça... - começou ela.
Felicity riu.
- Minha querida Frances, quando era "moça" não havia jovens. A sua geração já
nasceu velha e reprovando tudo.
- A sua impertinência é intolerável, Felicity. Vou queixar-me a seu pai.
Fez-se um breve silêncio. "Mas por que diabo não diz aquela Felicity mais algo
sobre Rhett?", pensou Scarlett.
Foi Roger a referir o nome.
- Butler - disse ele - prometeu uma boa caçada se voltasse no Outono. Parece
que os seus arrozais são agora prados e que os patos quase vêm pousar no cano da
espingarda.
Scarlett partiu um pãozinho. Mas quem queria saber de patos?
Parecia que os outros ingleses estavam interessados, só falaram de caça durante
o prato principal do jantar. Começava a pensar que mais valia ter ficado com Bridie,
quando os seus ouvidos captaram uma conversa particular em tom baixinho, entre
Felicity e a irmã, cujo o nome veio a apurar ser Marjorie. Ambas achavam Rhett o
homem mais intrigante que alguma vez haviam conhecido. Scarlett escutava com misto
de curiosidade e orgulho.
- É uma pena ser tão dedicado à mulher - comentou Marjorie e o coração de
Scarlett caiu-lhe aos pés.
- É uma coisinha tão desenxavida, também - disse Felicity.
Scarlett sentiu-se um pouco melhor.
- Constou-me que é a segunda. Não lhe disseram? Já antes fora casado com
uma beldade muito impetuosa. Ela fugiu com outro homem e deixou Rhett Butler de
rastos. Nunca mais se recompôs.
- Santo Deus, Marjorie, consegue imaginar como não seria o outro homem, para
ela trocar Butler por ele?
Scarlett sorriu no seu íntimo. Como a reconfortava saber que corria o boato que
fora ela que abandonara Rhett e não o inverso.
Sentiu-se muito melhor do que no momento em que se sentara à mesa. Até talvez
fosse pedir uma sobremesa.
- Consegui escapar - disse a Mrs. Fitz nessa noite. - Mas foi por um triz. Não
tenho tanta certeza de que ser a O'Hara corresponda àquilo que pensei que fosse.
- E que foi que pensou ao certo, Mrs. O?
- Não sei. Mais divertido, talvez.
Em Agosto foi a colheita da batata. A melhor colheita de sempre, disseram os
agricultores. Depois, começaram a ceifar o trigo. Scarlett adorava assistir. As foices
brilhavam ao sol e os pés dourados caíam como seda rasgada. Às vezes, tomava o
lugar do homem que seguia o ceifeiro. Pedia emprestada a vara com a extremidade
curva a que os agricultores davam o nome de gadanha, e puxava o trigo cortado,
formando molhos. Não conseguia dominar o movimento rápido executado pelo homem
para atar cada molho com uma palha de trigo, mas tinha bastante jeito com a gadanha.
"Bate certamente a colheita do algodão", dissera a Colum. No entanto, havia
ainda momentos em que as pontadas agudas da saudade a apanhavam desprevenida.
Compreendia o que ela sentia, disse Colum, e Scarlett convenceu-se de que assim era.
Via nele o irmão que sempre desejara.
Colum parecia preocupado, mas disse não passar da sua impaciência por o trigo
ter precedência sobre o acabamento das obras na estalagem que Brandon Kennedy
estava fazends no edifício contíguo ao seu bar. Scarlett recordou o homem
desesperado na igreja, o homem que Colum dissera andar "fugido". Interrogou-se se
haveria mais, como os ajudaria Colum. Mas era melhor não saber, e não perguntou.
Preferiu pensar em coisas alegres, como o casamento de Kathleen. Kevin
O'Connor não era o homem que Scarlett teria escolhido para ela, mas como se
apaixonara perdidamente, e tinha uma boa quinta com vinte vacas no pasto, era
considerado um bom partido. Kathleen tinha um dote substancial, em dinheiro
amealhado com a venda de manteiga e ovos, e com os utensílios de cozinha
pertencentes à casa de Daniel. Não se fez de rogada em aceitar uma oferta de cem
libras de Scarlett. Não era necessário juntá-las ao dote, comentara, piscando
maliciosamente o olho.
Para enorme consternação de Scarlett, a festa do casamento não se pôde realizar
na Casa Grande. A tradição exigia que a boda tivesse lugar na casa onde os noivos
iriam morar. O melhor que Scarlett pôde fazer foi contribuir com vários gansos e meia
dúzia de barris de cerveja preta para a boda. Mesmo assim, excedera-se um pouco,
avisara-a Colum. A família do noivo era a anfitriã.
- Bem, já que vou me exceder, ao menos que seja muito - retorquiu-lhe Scarlett.
Avisou também para que não fosse também levantar objeções. - Vou tirar o luto. Estou
farta de andar vestida de preto.
Não perdeu uma só dança da boda, usando um saiote azul-vivo e vermelho
debaixo de uma saia verde-escura, e meias listradas amarelas e verdes.
Depois chorou todo o caminho até Ballyhara.
- Vou sentir tanto a falta dela, Colum. E da cabana também, e de todas as visitas.
Nunca mais volto lá, não com aquela horrorosa Pegeen servindo o seu horroroso chá
com gosto de mofo.
- Seis quilômetros não é o fim do mundo, minha querida Scarlett. Arranja um bom
cavalo de montar em vez de levares a charrete e estarás em Dunsany num abrir e
fechar de olhos.
Scarlett via a lógica da solução, apesar de seis quilômetros serem ainda uma
longa distância.
Recusava-se terminantemente a considerar a discreta sugestão de Colum de que
devia pensar em casar novamente.
Às vezes acordava de noite, e o escuro do quarto assemelhava-se ao escuro
mistério dos olhos de Rhett quando se haviam cruzado à partida do navio de
Charleston. Que teria ele sentido?
Sozinha no silêncio da noite, sozinha na vastidão da cama ornamentada, sozinha
no vazio do quarto às escuras, Scarlett pensava e sonhava com coisas impossíveis, e
às vezes chorava, doída de tanto lhe querer.
- Cat - disse Cat nitidamente quando viu o seu reflexo no espelho.
- Oh, meu Deus! - exclamou alto Scarlett. Chegara a temer que a bebé nunca
viesse a falar. Era raro Cat gorgolejar e pairar como fazem os outros bebês, e olhava
as pessoas que falavam com ela na linguagem de bebê com uma expressão de
profundo espanto. Começou a andar aos dez meses, o que foi prematuro, Scarlett
sabia, mas um mês depois continuava praticamente muda, à excepção do riso. "Diz
'mamã', pedia Scarlett. Era recusado.
- Diz "mamã" - insistiu Scarlett depois de Cat ter falado, mas a menina contorceu-
se para se libertar da mão que a agarrava e afastou-se com determinação. O seu andar
era ainda mais entusiástico que habilidoso.
- Monstrinho orgulhoso! - exclamou Scarlett atrás dela. - A primeira palavra que
todos os bebês dizem é "mamã", não o seu próprio nome.
Cat estacou. Olhou para Scarlett com um sorriso que esta disse mais tarde ser
"perfeitamente diabólico".
- Mamã - disse ela em tom despreocupado. Depois prosseguiu o seu andar
vacilante.
- Provavelmente, teria sido capaz de o dizer desde sempre, se assim quisesse -
gabou-se Scarlett ao padre Flynn. - Ela o fez como quem atira um osso a um cão.
O velho pároco sorriu com tolerância. Escutara ao longo dos anos muitas mães
orgulhosas.
- É um grande dia - anunciou com afabilidade.
- Um grande dia em muitos aspectos, padre! - exclamou Tommy Doyle, o mais
jovem dos agricultores de Ballyhara. - Sem dúvida esta foi a maior colheita de sempre.
- Voltou a encher o seu copo e o do padre Flynn. Um homem tinha o direito de se
descontrair e divertir na Festa das Colheitas.
Scarlett deixou que ele lhe desse também um copo de cerveja preta. Os brindes
não tardariam a começar e seria de mau agouro não comemorar com eles pelo menos
com um gole. Depois de a sorte ter bafejado Ballyhara o ano inteiro, não queria atrair o
azar.
Observou as mesas compridas cheias, postas em toda a extensão da rua mais
larga de Ballyhara. Cada uma estava decorada com um molho de trigo atado com uma
fita. Cada uma rodeada de gente sorridente e que se divertia. Era o lado melhor de ser
a O'Hara. Todos haviam trabalhado, cada qual à sua maneira, e agora estavam todos
reunidos, a população da cidade em peso, para comemorar os resultados desse
esforço.
Havia o que comer e beber, doces e um pequeno carrossel para as crianças, um
estrado de madeira para dançar depois, frente à estalagem inacabada. O ar tinha o tom
dourado da luz da tarde, o trigo dourado sobre a mesa, uma sensação de dourada
felicidade banhava todos na comunhão da abundância. Era exatamente o que se
pretendia com a Festa das Colheitas.
O som da chegada de cavalos levou as mães a procurar os filhos mais jovens. O
coração de Scarlett parou por um instante quando não achou Cat. Depois, viu-a
sentada no colo de Colum ao fundo da mesa. Este conversava com o homem a seu
lado. Cat acenava com a cabeça como se compreendesse cada palavra. Scarlett
esboçou uma careta. Como a sua filha era engraçada.
Um grupo da milícia aproximou-se do fim da rua. Três homens, três oficiais, os
botões das fardas mais dourados que o trigo. Fizeram estacar os cavalos e o barulho à
volta das mesas foi morrendo. Alguns homens ergueram-se.
- Pelo menos, os soldados têm a decência de não passar a galope, levantando
poeira - disse Scarlett ao padre Flynn.
Mas quando os homens firmaram as rédeas diante da igreja deserta, também ela
se calou.
- Qual é o caminho para a Casa Grande? - perguntou um dos oficiais. - Venho
falar com o dono.
Scarlett levantou-se.
- Sou eu a dona - disse. Surpreendeu-se ao sentir que a sua boca subitamente
seca conseguia emitir algum som.
O oficial olhou para o seu cabelo em desalinho e as roupas garridas de
camponesa. Os seus lábios esboçaram uma expressão de escárnio.
- Muito engraçada, moça, mas não estamos aqui para brincadeiras.
Scarlett sentiu uma emoção que quase desconhecia, uma fúria selvagem
exaltada. Subiu para o banco onde estivera sentada e levantou as mãos aos quadris.
Denotava insolência e sabia-o.
- Ninguém o convidou, soldado, para vir brincar ou qualquer outra coisa. Diga ao
que vem! Sou Mrs. O'Hara.
Um segundo oficial fez o cavalo dar alguns passos. Desmontou e aproximou-se a
pé, ficando defronte e abaixo da posição de Scarlett no banco.
- Viemos entregar isto, Mrs. O'Hara. - Tirou o chapéu e uma das luvas brancas e
entregou um rolo de pergaminho a Scarlett. - A guarnição vai enviar um destacamento
para a proteção de Ballyhara.
Scarlett sentia a tensão, qual tempestade, na atmosfera quente do final do Verão.
Desenrolou o papel e leu-o devagar, duas vezes. Sentiu as articulações dos ombros
relaxarem quando compreendeu todo o significado do documento. Ergueu a cabeça e
sorriu para que todos a pudessem ver. Depois, transferiu a força plena do seu sorriso
para o oficial que a olhava de baixo.
- É muito simpático da parte do coronel - disse -, mas, realmente, não estou
interessada e ele não pode enviar quaisquer soldados para a cidade sem o meu
consentimento. Faz o favor de lhe transmitir? Não temos nenhuma agitação aqui em
Ballyhara. Damo-nos todos muito bem. - Estendeu a folha de velino ao oficial. -
Parecem-me todos um pouquinho secos, não querem um copo de cerveja? - A
extraordinária expressão do seu rosto encantava os homens, tal como sucedera a este
oficial, desde que fizera quinze anos. Ele corou e balbuciou exatamente como dúzias
de jovens que ela seduzira em Clayton County, na Geórgia.
- Muito obrigado, Mrs. O'Hara, mas... bem... os regulamentos... isto é,
pessoalmente, não há nada que mais aprecie, mas o coronel não... hum... acharia...
- Entendo - disse Scarlett com bonomia. - Ficará para outra hora?
O primeiro brinde da Festa das Colheitas foi para a O'Hara. De qualquer forma,
teria sido o primeiro brinde, mas desta vez a saudação foi estrondosa.
O Inverno tornou Scarlett inquieta. À exceção de montar, não havia nada de ativo
para fazer, e sentia necessidade de estar ocupada. Os novos campos tinham sido
preparados e estrumados em meados de Novembro; e depois com que ia entreter o
seu pensamento? Não havia sequer muitas queixas e contendas que lhe fossem
comunicadas nos primeiros domingos. É certo que Cat conseguira atravessar sozinha a
sala para acender a vela do Natal e tiveram lugar as cerimônias do dia de Ano Novo
em que se atirava pão doce à parede; e Scarlett foi a visitante de cabelo negro da
cidade, mas, mesmo assim, os curtos dias pareceram-Ihe longos demais. Foi
calorosamente acolhida no bar de Kennedy, agora que era tida como apoiante dos
fenianos, mas em breve se fartou das cantigas sobre os mártires abençoados da
liberdade irlandesa e das ameaças em voz alta para expulsar os ingleses. Só se
deslocava ao bar quando ansiava por companhia. Exultou de alegria quando chegou o
dia de Santa Erigida, a primeiro de Fevereiro, e começou de novo o ano agrícola.
Revolveu o primeiro torrão com tanto entusiasmo que o solo foi projectado num largo
círculo em seu redor.
- Este ano vai ser ainda melhor que o anterior! - anunciou com arrebatamento.
Mas os novos campos eram um terrível fardo para os agricultores. O tempo nunca
chegava para fazer tudo o que era necessário. Scarlett insistiu com Colum para que
mandasse vir mais trabalhadores para a cidade. Havia muitas cabanas ainda vagas.
Ele não concordava com a vinda de estranhos. Scarlett retrocedeu. Compreendia a
necessidade de secretismo em relação aos fenianos. Por fim, Colum chegou a um
acordo. Podia contratar homens apenas durante o Verão. Ele a levaria ao mercado de
trabalho em Drogheda. Estaria também decorrendo a Feira do Cavalo, e assim poderia
adquirir os animais que julgasse necessários.
- Que "julgar", uma treta, Colum O'Hara. Também não sei onde estava com a
cabeça quando paguei bom dinheiro pelos cavalos de trabalho que temos. Não andam
mais depressa que uma tartaruga sobre uma estrada pedregosa. Não voltarei a deixar-
me ludibriar assim.
Colum sorriu para si. Scarlett era uma mulher maravilhosa, extraordinariamente
competente em muitos aspectos. Mas nunca iria conseguir levar a melhor sobre um
negociante de cavalos irlandês, disso tinha a certeza.
- Minha querida Scarlett, pareces uma moça da aldeia e não da nobreza rural.
Ninguém vai acreditar que tens dinheiro para dar uma volta no carrossel, quanto mais
para um cavalo.
O seu olhar severo destinava-se a intimidar. Não compreendia que parecia
mesmo uma moça vestida para ir à feira. A blusa verde conferia aos seus olhos verdes
um tom ainda mais vivo e a saia azul era da cor do céu primaveril.
- Queres me fazer o favor, padre Colum O'Hara, de pôr a charrete a andar? Sei o
que faço. Se tiver ar de rica, o negociante pensará que me pode impingir qualquer
porcaria que lá tiver. Eu me sairei muito melhor com estas roupas de camponesa.
Vamos lá. Há semanas e semanas que aguardo. Não vejo nenhum motivo para se
contratarem empregados no dia de Santa Brígida, que é quando começa a lavoura.
Colum sorriu-lhe.
- Alguns dos rapazes vão à escola, querida Scarlett - sacudiu as rédeas e
partiram.
- Muito bem lhes faz, a darem cabo dos olhos nos livros quando poderiam estar
ao ar livre e ganhando também um bom soldo. - A impaciência deixava-a insuportável.
O caminho ia sendo percorrido e das sebes vinha o odor das flores do espinheiro-
negro. À medida que avançavam, Scarlett começou a animar-se.
- Nunca estive em Drogheda, Colum. Achas que vou gostar?
- Creio que sim. É uma feira muito grande, maior que qualquer outra que tenhas
visto. - Sabia que Scarlett não se referia à cidade quando inquirira sobre Drogheda.
Adorava o ambiente de excitação das feiras. Não compreendia as intrigantes
possibilidades de uma tortuosa rua da velha cidade. Scarlett gostava das coisas óbvias
e facilmente compreensíveis. Era um aspecto que chegava a deixá-lo constrangido.
Sabia que ela não dimensionava verdadeiramente o perigo que corria com o seu
envolvimento com a Irmandade Feniana, e o desconhecimento podia levar à catástrofe.
Mas hoje ia tratar de assuntos dela, e não seus. Tencionava tirar tanto partido da
feira quanto Scarlett.
- Olha, Colum, é enorme!
- Receio que seja grande demais. Vais escolher primeiro os rapazes ou os
cavalos? Encontram-se em extremos opostos.
- Ora, adeus! Os melhores serão logo arrebanhados no começo, é sempre assim.
Sabes uma coisa... tu escolhes os rapazes e eu vou ver os cavalos. Quando acabares,
vens me encontrar. Tens certeza de que os rapazes irão para Ballyhara pelos seus
próprios meios?
Vieram aqui para ser contratados e estão acostumados a caminhar.
Provavelmente, alguns deles percorreram cem quilómetros para aqui chegar.
Scarlett sorriu.
- Nesse caso, é melhor olhares para os pés antes de assinares qualquer coisa. Eu
verei os dentes. Para que lado fica?
- Ali naquele canto, onde estão as bandeiras. Encontrarás na Feira de Drogheda
alguns dos melhores cavalos da Irlanda. Constou-me que já têm sido pagos mais de
cem guinéus.
- Ora, ora! As histórias que tu inventas, Colum. Vais ver que consigo três por
menos dessa quantia.
Havia enormes tendas de lona que serviam temporariamente de estábulos para
os cavalos. "Ah!", pensou Scarlett. "Ninguém me vai vender um animal com pouca luz."
Abriu caminho por entre a multidão que se aglomerava no interior da tenda.
"Valha-me Deus, nunca na minha vida vi tantos cavalos juntos! Como Colum foi
inteligente em trazer-me aqui. Tenho muito por onde escolher." Abriu caminho de um
lugar para o outro, inspecionou um cavalo após outro. "Ainda não", disse aos
negociantes. Não lhe agradava nada o sistema irlandês. Não se podia chegar junto de
um proprietário e perguntar-lhe quanto queria pelo seu animal. Não, assim era fácil
demais. Logo que fosse manifestado interesse, um dos negociantes se poria em pé de
um salto e indicaria o preço que, de uma maneira ou de outra, se afastaria da
realidade, acabando depois por levar o comprador e o vendedor a chegar a um acordo.
A experiência ensinara-a a contornar as suas artimanhas. Agarravam na mão e davam
palmadas com tanta força que doía, e se não se tivesse cuidado, isso podia querer
significar que se tinha acabado de adquirir um cavalo.
Gostou do aspecto de dois ruanos que o negociante anunciou alto terem ambos
exatamente três anos e custarem apenas sete libras o par. Scarlett pôs as mãos atrás
das costas.
- Leve-os até a luz para que eu os possa ver - disse.
O dono, o negociante e algumas pessoas mais próximas protestaram
furiosamente.
- Perde todo o interesse - disse um homem baixo que vestia calças de montar e
uma camisola.
Scarlett insistiu, com muita delicadeza. "Não é com vinagre que se apanham
moscas", lembrou a si mesma. Olhou o pêlo brilhante dos cavalos, esfregou nele a mão
e viu a pomada que lhe ficou na palma. Depois agarrou com ar experiente a cabeça de
um dos cavalos e examinou-lhe os dentes. Desatou às gargalhadas.
- Três anos, qual quê! Leve-os para dentro! - disse, piscando o olho ao
negociante. - Tenho um avô mais novo que eles. - Divertia-se muito.
No entanto, ao cabo de uma hora, encontrara apenas três cavalos de que
gostara, tanto pelo animal, como pelo achado. Em cada aquisição tivera que usar todo
o seu encanto e persuadir o dono a deixá-la examinar o cavalo à luz do dia. Olhava
com inveja para as pessoas que compravam cavalos de caça. Tinham sido montados
obstáculos ao ar livre, a fim de poderem ver bem aquilo que estavam comprando,
levando-os a executar habilidades para as quais os adquiriam. Eram também uns belos
exemplares. Num cavalo de trabalho, o aspecto não era importante. Afastou-se do
recinto de saltos. Precisava de mais três cavalos de trabalho. Enquanto os seus olhos
se acostumavam ao interior sombrio da tenda, Scarlett encostou-se a um dos seus
espessos suportes. Começava a ficar cansada. E ia apenas a meio.
- Onde está esse teu Pégasus, Bart? Não vejo nada voar por cima dos
obstáculos.
As mãos de Scarlett agarraram o grosso poste. "Estou perdendo a razão." Parecia
a voz de Rhett.
- Se me trouxeste aqui em vão...
"É! É! Não estou enganada. Mais ninguém tem a voz de Rhett." Voltou-se
rapidamente, olhando para o terreiro iluminado pelo sol, pestanejando.
"São as costas dele. Não são? São, tenho a certeza. Se ao menos ele dissesse
mais alguma coisa, virasse a cabeça. Não pode ser Rhett. Não há motivo para a sua
presença na Irlanda. Mas eu não iria me enganar a respeito daquela voz."
Ele voltou-se para falar com um homem de constituição franzina e cabelo louro a
seu lado. Era Rhett. Os nós dos dedos de Scarlett ficaram brancos de se agarrar com
tanta força ao poste. Tremia.
O outro homem disse qualquer coisa, apontou com o cabo do chicote, e Rhett
anuiu. Depois, o homem de cabelo louro afastou-se, saiu do seu campo de visão, e
Rhett ficou ali sozinho. Scarlett manteve-se na sombra, olhando para a claridade.
"Não te mexas!", ordenou a si mesma quando ele se começou a afastar. Mas não
conseguiu obedecer. Irrompeu da obscuridade e correu atrás dele.
- Rhett!
Parou bruscamente; Rhett, que nunca fora desajeitado, rodou sobre os
calcanhares. Estampou-se no rosto uma expressão que não conseguiu reconhecer, e
os seus olhos negros pareceram muito brilhantes por debaixo da pala do boné.
Esboçou, então, aquele sorriso trocista que ela tão bem conhecia.
- Surges nos lugares mais inesperados, Scarlett - disse.
"Está rindo de mim, mas não me importo. Nada me importa desde que ele diga o
meu nome e fique perto de mim." Ouvia o bater do seu próprio coração.
- Olá, Rhett - disse ela -, como estás? - Sabia que era algo de absurdo,
inadequado para dizer, mas tinha que falar alguma coisa.
A boca de Rhett contorceu-se.
- Sinto-me extraordinariamente bem para um homem que morreu - disse em tom
afetado -, ou estarei enganado? Pensei ter visto uma viúva no cais de Charleston.
- Bem, sim. Tinha que dizer alguma coisa. Não era casada, quero dizer, não tinha
marido...
- Não tentes explicar, Scarlett. Não é o teu forte.
- De que é que estás falando? - Estaria usando de sarcasmo? "Por favor, não
faças isso, Rhett."
- Não importa. Que te trás à Irlanda? Pensei que te encontrasses em Inglaterra.
- O que te levou a supor tal coisa? - "Por que estamos aqui com esta conversa?
Por que não consigo pensar? Por que digo tamanhos disparates?"
- Não abandonaste o navio em Boston?
O coração de Scarlett pulou ao captar o sentido das palavras dele. Dera-se
ao trabalho de descobrir o seu destino, preocupava-se com ela, não queria que ela
desaparecesse. O seu coração transbordou de felicidade.
- Devo presumir pelas tuas roupas garridas que já não choras a minha morte? -
disse Rhett. - Que vergonha, Scarlett, ainda não esfriei na sepultura.
Olhou horrorizada para as suas vestes de camponesa, depois para o casaco dele,
de corte impecável e gravata branca alta, de nó muito bem dado. Por que ele a fazia
sentir-se sempre mal? E por que não conseguia ficar pelo menos encolerizada?
Porque o amava. Talvez ele não acreditasse, mas era verdade.
Sem planejar ou pensar nas consequências, Scarlett olhou para o homem que
fora seu marido durante tantos anos de mentiras.
- Amo-te, Rhett! - disse com singela dignidade.
- Azar teu, Scarlett. Parece que te apaixonas sempre pelo marido de outra. -
Levantou cortesmente o boné. - Tenho outro compromisso, desculpa se te deixo neste
momento. Adeus. - Voltou-lhe as costas e foi-se embora. Scarlett ficou a vê-lo afastar-
se. Parecia tê-la esbofeteado no rosto.
Sem motivo. Não lhe fizera exigências, e até lhe oferecera aquilo que de mais
importante aprendera a dar. E ele espezinhara-o no esterco. Ridicularizava-a.
Não, ela é que se cobrira de ridículo.
Scarlett deixou-se ficar ali, como uma figura colorida, pequena e isolada no meio
do rebuliço da Feira do Cavalo por uma imensidão de tempo. Depois, o mundo voltou a
entrar nos eixos e viu Rhett e o amigo junto de outra tenda, numa roda de
espectadores interessados. Um outro homem com fato de tweed segurava um baio
inquieto pelas rédeas, e um homem de rosto congestionado, envergando um casaco de
xadrez, baixava o braço direito, nos movimentos familiares do negócio de cavalos.
Scarlett julgou ouvir as palmadas ao exortar o amigo de Rhett e o dono do cavalo a
fazerem negócio.
Os seus pés moveram-se sozinhos, percorrendo o espaço que a separava deles.
Haveria certamente pessoas no caminho, mas não tinha consciência delas, e de certa
forma dissipavam-se.
A voz do negociante assemelhava-se a um canto ritual, cadenciado e hipnótico:
- ...cento e vinte, cavalheiro, sabe que é um preço jeitoso, mesmo para um animal
deste tamanho..., e você, cavalheiro, pode dar mais vinte e cinco, para acrescentar um
animal nobre como este aos seus estábulos... Cento e quarenta? Certamente que terá
que pôr um pouco de moderação nas suas idéias, o cavalheiro chegou às cento e vinte
e cinco, é a única maneira que há de dar um passinho ao encontro dele; diga que
desce de cento e quarenta e duas para cento e quarenta e fecharemos negócio antes
de terminar o dia... Se forem cento e quarenta, demonstrará que o pode igualar, não
acha, então? Se disser cento e trinta em vez de cento e vinte e cinco, ficará cada um
na sua, sem proveito para ninguém...
Scarlett intrometeu-se no triângulo vendedor, comprador e negociante. A alvura
do seu rosto contrastava muito com a camisa verde, os olhos ainda mais verdes que
esmeraldas.
- Cento e quarenta - anunciou com nitidez. O negociante ficou perplexo, o seu
ritmo interrompido. Scarlett cuspiu na não direita e bateu sonoramente na dele. Depois
voltou a cuspir, olhando para o vendedor. Este ergueu a mão e cuspiu na palma,
depois bateu uma vez mais na dela, à velha maneira de fechar o negócio. O negociante
apenas pôde cuspir e firmar em aquiescência.
Scarlett olhou para o amigo de Rhett.
- Espero que não tenha ficado desapontado demas - disse em tom meloso.
- Ora, porquê? Quero dizer...
Rhett interrompeu.
- Bart, gostaria de te apresentar... - fez uma pausa.
Scarlett não olhou.
- Mrs. O'Hara - anunciou ao perplexo amigo de Rhett.
Estendeu-lhe a mão direita molhada de cuspe. - Sou viúva.
- John Morland - disse ele, e pegou-lhe a mão suja. Fez uma ligeira reverência,
beijou-a, depois sorriu pesarosamente para os olhos ardentes dela. - A senhora é uma
mulher decidida, Mrs. O'Hara. Quando quer uma coisa! Costuma caçar por aqui?
- Bem... eu... - "Santo Deus, que fizera? Que podia responder? Para que queria
um puro-sangue de caça no estábulo de Ballyhara?" - Confesso, Mr. Morland, que não
consegui resistir a um impulso feminino. Este cavalo tinha que me pertencer!
- Também senti o mesmo. Mas pelo visto fui mais lento - retorquiu a voz inglesa
aperfeiçoada. - Teria muito prazer se viesse um dia me encontrar, isto é, participar na
caçada que parte da minha propriedade. Fica próximo de Dunsany, se conhece aquela
região do país.
Scarlett sorriu. Ainda há pouco estivera naquela região, para o casamento de
Kathleen. Por isso o nome de John Morland lhe era familiar. Ouvira o marido de
Katheleen referir-se a "Sir John Morland". "É um homem generoso, e acima de tudo um
proprietário de terras", dissera Kevin O'Connor uma dúzia de vezes. "Pois não me
disse para abater cinco libras à renda como presente do meu casamento?"
"Cinco libras", pensou. "Quanta generosidade. Da parte de um homem que ia
pagar trinta vezes mais por um cavalo."
- Conheço Dunsany - disse Scarlett. - Fica próxima de uns amigos que vou visitar.
Adoraria ir caçar contigo. É só dizer-me o dia.
- No próximo sábado?
Scarlett sorriu com malícia. Cuspiu na palma da mão e ergueu-a.
- Combinado!
John Morland soltou uma gargalhada. Cuspiu na sua, bateu uma, duas vezes na
dela.
- Combinado! O último copo é bebido às sete, e o desjejum é depois.
Pela primeira vez desde que lhes impusera a sua presença, Scarlett olhou para
Rhett. Parecia que o olhar dele há muito se fixara nela. Os seus olhos tinham uma
expressão cômica, algo mais que não conseguia definir. "Com mil diabos, se diria que
nunca antes me viu, ou coisa assim."
- Mr. Butler, muito prazer em conhecê-lo - disse, com graciosidade. Agitou
elegantemente a mão suja diante dele.
Rhett descalçou a luva para lhe pegar.
- Mrs. O'Hara - disse, executando uma reverência.
Scarlett fez um sinal ao negociante espantado e ao antigo dono do cavalo, que
esboçava uma careta.
- O meu empregado não tardará a vir aqui para proceder às diligências
necessárias - disse em tom despreocupado, e levantou as saias para tirar um molho de
notas preso à liga, acima do joelho, às listras encarnadas e verdes. - Pode ser em
guinéus? - Contou o dinheiro na mão do vendedor.
As saias rodopiaram quando se virou e se afastou.
- Que mulher extraordinária! - disse John Morland.
Os lábios de Rhett contorceram-se num sorriso.
- Espantosa! - anuiu.
Quando o grupo veio até ao relvado escuro podia ver-se o clarão de uma fogueira
distante, ouvir-se o som de uma dança irlandesa. Scarlett calculou que fosse Ballyhara.
A O'Hara deveria estar presente à cerimónia da fogueira. E também quando o Sol
nascesse e o gado passasse pelas cinzas da fogueira. Colum aconselhara-a a que não
fosse a uma festa em casa de ingleses. Quer acreditasse nelas, quer não, as antigas
tradições eram importantes para os irlandeses. Zangara-se com ele. A sua vida não
seria governada pelas superstições. Mas naquele momento desconfiava de que se
enganara.
- Por que não está presente à fogueira de Ballyhara ? - perguntou Bart.
E por que não está presente à sua? - respondeu, furiosa, Scarlett.
- Porque não sou bem-vindo lá - disse John Morland. No escuro, a sua voz
denotava uma enorme tristeza. - Uma vez fui. Pensei que por detrás da passagem do
gado pelas cinzas estivesse uma daquelas coisas da tradição popular. Que fosse bom
para os cascos ou assim. Queria experimentar nos cavalos.
- E resultou?
- Nunca cheguei a descobrir. Desapareceu toda a alegria da festa quando
cheguei, de modo que vim embora.
- Devia ter ido embora - disse abruptamente Scarlett.
- Que absurdo. É a única pessoa decente aqui. E também americana. É a flor
exótica no meio das ervas daninhas, Scarlett.
Não pensava assim. Mas fazia sentido. As pessoas têm grande consideração
pelos convidados vindos de longe. Sentiu-se muito melhor, até ouvir a ilustre Louisa
dizer:
- Não são divertidos? Adoro os irlandeses quando se tornam assim pagãos e
primitivos. Se ao menos não fossem tão preguiçosos e estúpidos, não me importaria de
viver na Irlanda.
Scarlett prometeu a si mesma pedir desculpas a Colum assim que regressasse a
casa. Nunca deveria ter abandonado a sua casa e a sua gente.
- E não houve nunca uma alma viva que se enganasse, querida Scarlett? Tens
que apreender por ti própria como eles são; senão, como irás saber? Agora, enxuga os
teus olhos e vai ver como estão os campos. Os rapazes que contratamos começaram a
construir as medas de feno.
Scarlett deu um beijo na face do primo. Felizmente, não dissera: "Eu bem te
avisei."
Nas semanas que se seguiram, Scarlett foi convidada para mais duas festas, por
pessoas que conhecera na casa de Alice Harrington. Mandou cerimoniosas cartas a
ambas, recusando. Quando as medas de feno ficaram concluídas, destinou que os
rapazes começassem a tratar do relvado estragado nos fundos da casa. No Verão
estaria verdejante e Cat iria adorar jogar críquete. Essa parte fora divertida.
O trigo atingira a cor amarela da maturação, quase a postos para a ceifa, quando
um homem a cavalo lhe trouxe um bilhete, e se fez convidado a tomar chá na cozinha,
"ou algo mais masculino", enquanto aguardava a resposta que levaria de volta.
Charlotte Montague gostaria de a visitar, se não causasse incômodo. Mas quem
era Charlotte Montague? Scarlett fez um esforço de memória durante dez minutos até
se recordar da idosa senhora, simpática e discreta, na casa dos Harrington. Mrs.
Montague, recordava-se, não correra feita um índio selvagem na noite de São João.
Desaparecera depois do jantar. Não que por isso deixasse de ser inglesa.
Mas que queria? A curiosidade de Scarlett fora aguçada. O bilhete dizia: "Um
assunto de considerável interesse para ambas."
Foi pessoalmente à cozinha para entregar ao mensageiro de Mrs. Montague o
bilhete e convidá-la para o chá nessa mesma tarde. Sabia que estava invadindo o
território de Mrs. Fitz. A cozinha devia ser vista apenas da galeria tipo ponte em cima.
Mas era a sua cozinha, não era? E se Cat começara a passar ali horas todos os dias,
porque não podia ela?
Scarlett pôs diante de si o vestido cor-de-rosa para a visita de Mrs. Montague. Era
mais fresco que as saias de Galway e a tarde estava muito quente. Depois meteu-o
novamente no guarda-roupas. Não queria passar pelo que não era.
Mandou fazer pãezinhos doces para o lanche em vez dos scones, como era
normal.
Charlotte Montague vestia um saia-casaco de linho cinzento e com um folho de
renda que os dedos de Scarlett ansiavam apalpar. Nunca vira renda tão espessa e
trabalhada. A idosa senhora descalçou as luvas cinzentas de pelica e tirou o chapéu de
penas antes de se sentar na cadeira forrada de pelúcia junto à mesinha do chá.
- Agradeço-lhe ter-me recebido, Mrs. OHara. Duvido que queira delongas a falar
do tempo. Certamente, preferirá saber por que vim, não? - Mrs. Montague tinha uma
estranha maneira de falar e de sorrir.
- Morro de curiosidade - disse Scarlett. Agradava-lhe este começo.
Soube que é uma mulher de negócios bem sucedida, tanto aqui como na
América... Não se assuste. Aquilo que sei, guardo para mim, é um dos meus mais
valiosos tesouros. Outra coisa, como pode imaginar, é que disponho de meios para
saber coisas que não estão ao alcance dos outros. Também sou uma mulher de
negócios. Se me dá licença, gostaria de lhe falar do meu.
Scarlett só conseguiu acenar com a cabeça. Que sabia aquela mulher a seu
respeito? E como?
Falando muito sumariamente, tratava de assuntos, disse Mrs. Montague. Era a
filha mais nova de uma boa família, e casara com o filho mais novo de uma outra.
Mesmo antes de ele morrer num acidente de caça, já estava farta de contrariedades,
sempre tentando manter as aparências e a levar a vida condigna das damas e
cavalheiros bem-nascidos, e sempre com falta de dinheiro. Ao enviuvar, vira-se na
situação de parente pobre, uma posição que lhe era intolerável.
Inteligência, educação, gosto e entrada nas melhores casas da Irlanda não lhe
faltavam. Aproveitou-os e acrescentou a discrição e informação aos atributos com que
começara.
- Sou - por assim dizer -, uma convidada profissional e amiga. Dou gratuitamente
conselhos sobre vestuário, arte de receber, decoração de casas, organização de
casamentos e entrevistas amorosas. Recebo significativas comissões de modistas e
alfaiates, sapateiros e joalheiros, vendedores de mobílias e de tapetes. Sou habilidosa
e discreta, e duvido que alguém desconfie que sou paga. Mesmo que desconfiem, ou
não estão interessados em saber, ou ficaram tão satisfeitos com o resultado que não
se importam, em particular, porque não lhes custou nada.
Scarlett estava chocada e fascinada. Por que confessava a mulher tudo isto, e
sobretudo a ela?
- Estou contando-lhe tudo isto porque sei que não é tola, Mrs. O'Hara.
Estranharia, e bem, se lhe oferecesse ajuda, como se diz, a troco de nada. Não existe
tamanha bondade no meu coração, exceto na medida em que contribui para o meu
bem-estar. Quero propor-lhe um negócio. Merece mais que uma festinha desprezível
dada por uma mulherzinha desprezível como Alice Harrington. Tem beleza, miolos e
dinheiro. Pode ser original. Entregue-se nas minhas mãos, sob a minha tutela, e farei
de ti a mulher mais admirada e cobiçada de toda a Irlanda, em dois ou três anos.
Depois, todo o mundo lhe abrirá as portas, e fará dele o que quiser. Será famosa. Eu
terei dinheiro para me aposentar com todo o conforto. - Mrs. Montague sorriu. - Há
quase vinte anos que espero o aparecimento de alguém como a senhora.
Assim que Charlotte Montague saiu, Scarlett percorreu célere a ponte da cozinha
até os aposentos de Mrs. Fitzpatrick. Nem deu importância ao fato de dever mandar
chamar a governanta, em vez de ir falar com ela; precisava falar com alguém.
Mrs Fitz saiu do quarto antes que Scarlett tivesse tempo de bater à porta.
- Devia ter me mandado chamar, Mrs. O'Hara - disse em voz baixa.
-Eu sei, eu sei, mas leva tempo demais e aquilo que tenho a dizer não pode
esperar! - Scarlett estava extremamente agitada.
O olhar frio de Mrs. Fitzpatrick acalmou-a num instante.
- Terá que esperar - disse ela. - As criadas da cozinha escutarão tudo o que
disser e o repetirão aumentado. Caminhe devagar comigo, e faça o que eu fizer.
Scarlett sentiu-se como uma criança castigada. Obedeceu.
A meio da galeria sobre a cozinha, Mrs. Fitzpatrick estacou. Scarlett estacou
também e dominou a sua impaciência enquanto Mrs. Fitz falava dos melhoramentos
que haviam sido feitos na cozinha. A ampla balaustrada era suficientemente grande
para uma pessoa lá se sentar, pensou Scarlett futilmente, mas mantinha-se tão rígida
quanto Mrs. Fitz, olhando para a cozinha e as criadas com ar extremamente atarefado,
lá em baixo.
O avanço de Mrs. Fitzpatrick era solene, mas registrava-se. Quando chegaram à
casa, Scarlett começou a falar assim que a porta para a ponte se fechou atrás delas.
- Claro que é ridículo - comentou depois de relatar o que Mrs. Montague falara. -
Eu mesma também lhe disse. "Sou irlandesa", disse, "não quero que os ingleses
cuidem de mim." - Scarlett falava muito depressa e estava corada.
- Está coberta de razão, Mrs. O. A mulher não passa de uma ladra, pelas palavras
que saíram da sua própria boca.
A veemência de Mrs. Fitzpatrick silenciou Scarlett. Não repetiu a resposta de Mrs.
Montague.
"O teu carácter irlandês é um dos aspectos mais intrigantes da tua pessoa. Meias
listradas e batas cozidas num dia, perdiz e seda no outro. Pode ter ambas as coisas; só
contribuirão para a sua lenda. Escreva-me quando se tiver resolvido."
O relato de Rosaleen Fitzpatrick sobre a visita que Scarlett tivera deixou Colum
furioso.
- Mas por que permitiu Scarlett que ela entrasse sequer? - bramou.
Rosaleen procurou acalmá-lo.
- Ela sente-se só, Colum. Não tem amigos, além de nós dois. Um filho é tudo o
que há no mundo para a sua mãe, mas não faz companhia. Acho que um convívio
elegante poderia ser-lhe benéfico. E também para nós, se pensares bem. A Estalagem
de Kennedy está quase pronta. Em breve homens virão e partirão. Haverá algo melhor
que outras idas e vindas para distrair os ingleses? Bastou olhar para esta Montague e
vi logo a sua laia. É fria, gananciosa. Atente nas minhas palavras: a primeira coisa que
fará é dizer a Scarlett que a Casa Grande deve ser mobilada e restaurada. Esta
Montague jogará com o preço de tudo, mas Scarlett pode perfeitamente pagar. E
haverá estranhos passando por Trim a caminho de Ballyhara todos os dias do ano com
as suas tintas, veludos e modas francesas. Ninguém dará atenção a mais um ou dois
que se desloquem nesta direção.
"Muito se fala já da bela viúva americana. Por que não procura ela marido? Acho
que o melhor é mandá-la para as festas dos ingleses. Senão, os oficiais ingleses
podem começar a vir aqui fazer-lhe a corte."
Colum prometeu "ir pensar". Saiu nessa noite e percorreu quilômetros, tentando
decidir o que era melhor para a irmandade, como conciliar ambas as coisas.
Andava tão preocupado ultimamente que nem sempre pensava com clareza.
Tivera notícia de que alguns homens se haviam desligado do seu compromisso com o
movimento feniano. Também dois anos consecutivos de boas colheitas estavam dando
mais conforto aos homens, conforto esse que dificultava o risco. Também aos fenianos
que se haviam infiltrado na polícia chegavam boatos de um informante na irmandade.
Os grupos clandestinos corriam constantemente perigo por causa dos informantes.
Duas vezes no passado fora destruída uma subelevação por causa da traição. Mas
esta fora planejada com tanto cuidado e lentidão... Tomadas todas as precauções.
Nada deixado ao acaso. Não podia correr mal agora. Estavam tão próximos. Os
conselhos supremos haviam decidido dar o sinal de ação no Inverno seguinte, altura
em que três quartos da milícia inglesa estariam fora das guarnições para a caça à
raposa. Em vez disso, viera a mensagem: "Retardar até o informante ser identificado e
aniquilado." A espera o consumia.
Quando o Sol nasceu, percorreu o solo tingido de rosa e molhado da cacimba, até
a Casa Grande, abriu a porta com a chave e dirigiu-se ao quarto de Rosaleen.
- Acho que tens razão - disse-lhe. - Isso me dá direito a uma xícara da chá?
Mais tarde, naquele dia, Mrs. Fitzpatrick apresentou uma desculpa airosa a
Scarlett, admitindo que fora precipitada demais e preconceituosa. Instigou Scarlett a
começar a criar uma vida social com o auxílio de Charlotte.
- Decidi que é uma idéia absurda - retorquiu Scarlett. - Estou ocupada demais.
Quando Rosaleen contou a Colum, este soltou uma gargalhada. Bateu com a
porta ao sair de casa.
Colheitas, comemoração do fim das colheitas, dias dourados de Outono, folhas
douradas que começam a cair. Scarlett rejubilou com a riqueza das colheitas, chorou o
final do ano agrícola. Setembro era a hora de pagar metade das rendas anuais, e sabia
que os seus rendeiros ficariam com lucros. Era maravilhoso ser A O'Hara.
Deu uma grande festa de segundo aniversário de Cat. Todas as crianças com
menos de dez anos brincaram nas grandes salas vazias no térreo, provaram sorvete
(quem sabe se pela primeira vez), comeram pãezinhos doces com pequenos brindes lá
dentro, assim como corintos e passas. Cada uma delas foi para casa com uma moeda
reluzente. Scarlett certificou-se de que chegariam cedo por causa de todas as
superstições relativas à Noite das Bruxas. Depois levou Cat para cima, a fim de fazer a
sesta.
- Gostaste da tua festa de aniversário, querida?
Cat sorriu sonolenta.
- Sim. Soninho, mamã.
- Eu sei, meu anjo. Já passou a tua hora da sesta. Anda... para a cama... podes
dormir na cama grande da mamã, porque é um grande aniversário.
Cat sentou-se mal Scarlett a deitou.
- Onde está o presente de Cat?
- Vou buscá-lo, minha querida. - Scarlett tirou a enorme boneca de porcelana da
caixa onde Cat a deixara. Cat sacudiu a cabeça.
- O outro. - Voltou-se de bruços e deslizou pelo edredom até o chão, caindo com
um baque. Depois gatinhou até debaixo da cama. Recuou, trazendo nos braços um
gato amarelo.
- Pelo amor de Deus, Cat, de onde é que isso veio? Dá aqui, antes que te
arranhe.
- Depois dás?
- Claro, se o queres. Mas é um gato vadio, querida, pode não querer ficar dentro
de casa.
- Gosta de mim.
Scarlett cedeu. O gato não arranhara Cat, e ela parecia tão contente com ele.
Que mal podia haver em deixá-la ficar com o animal? Deitou os dois na sua cama.
"Naturalmente, vou ficar com a cama cheia de pulgas, mas um dia não são dias."
Cat aninhou-se nas almofadas. Os seus olhos mortiços abriram-se subitamente.
- Quando Annie trouxer o leite - disse ela -, o meu amigo pode beber o meu. - Os
seus olhos verdes fecharam-se e pegou no sono.
Annie bateu à porta, entrou com um copo de leite morno. Ao voltar à cozinha,
contou às outras que Mrs. O'Hara rira até mais não, sem saber porquê. Falou qualquer
coisa sobre gatos e leite. Se queriam saber o que ela achava, disse Mary Moran,
achava era muito mais apropriado que aquela criança tivesse um nome cristão, que os
santos a protegessem. As três criadas e a cozinheira benzeram-se três vezes.
Mrs. Fitzpatrick, na ponte, viu e ouviu. Também ela se benzeu e orou em silêncio.
Não tardaria que Cat fosse crescida demais para a protegerem sempre. As pessoas
tinham medo das crianças deixadas pelas fadas em substituição de outras roubadas, e
o que as pessoas temiam, procuravam destruir.
Lá embaixo, na cidade de Ballyhara, as mães esfregavam os filhos com água em
que estivera mergulhada todo o dia raiz de angélica. Sabia-se ser uma proteção contra
bruxas e espíritos.
- Onde está a minha querida Cat? - chamou Scarlett ao precipitar-se para casa. -
A mamã voltou, querida. - Encontrou Cat, depois de meia hora de buscas, nos
estábulos, sentada em cima de HalfMoon.
Parecia incrivelmente minúscula sobre o cavalo grande. Scarlett baixou a voz,
para que HalfMoon não se espantasse.
- Vem à mamã, querida, e dá-me um abraço. - O seu coração bateu desordenado
enquanto via a filha saltar para a palha, próximo dos cascos fortes com ferraduras de
metal.
Scarlett perdeu Cat de vista até o seu rostinho moreno espreitar por cima da meia
porta da baia. Trepava-a, em vez de a abrir. Scarlett ajoelhou-se para a apanhar num
amplexo. - Oh, estou tão contente de te ver, meu anjo. Tive tantas saudades tuas!
Sentiste a minha falta?
- Sim. - Cat libertou-se dos braços dela. "Bem, pelo menos sentiu a minha falta,
nunca antes o dissera." Scarlett ergueu-se quando o doce acesso de amor de Cat se
desfez na total dedicação que era a sua emoção habitual.
- Não sabia que gostavas de animais, Kitty Cat.
- Gosto. Gosto de animais.
Scarlett fez um esforço para se mostrar animada.
- Gostarias de ter um pônei só teu? Com o tamanho próprio para uma menina? -
"Não vou pensar em Bonnie, não vou. Jurei a mim mesma não perder Cat ou envolvê-
la numa redoma só porque perdi Bonnie no acidente. Jurei quando Cat nasceu que a
deixaria ser o que ela se viesse a revelar. Que lhe daria todo o pulso que um espírito
livre precisa de ter. Ignorava que fosse tão difícil, que a fosse querer proteger a cada
instante, mas tenho de cumprir a minha jura. Sei que estava certa. Terá um pônei se o
quiser, e aprenderá a saltar e me obrigarei a assistir nem que isso me mate. Amo Cat
demais para a cercear."
Scarlett não podia saber que Cat descera à cidade de Ballyhara na sua ausência.
Agora com 3 anos, Cat começava a mostrar interesse por outras crianças e
brincadeiras. Fora à procura de alguns dos seus companheiros de brincadeira que
tinham estado na festa de aniversário. Um grupo de quatro ou cinco rapazinhos
brincava numa rua larga. Quando se aproximou deles, fugiram. Dois pararam
suficientemente longe para apanhar pedras e atirar-lhe.
- Cailleoch! Cailleach! - gritaram aterrorizados. Haviam aprendido a palavra com
as suas mães, o gaélico para bruxa.
Cat olhou para a mãe.
- Sim, gostaria de um pônei - disse. Os pôneis não atiravam coisas. Pensou
contar à mãe sobre os rapazes, perguntar-Ihe o que era a palavra. Cat gostava de
aprender palavras novas. Mas não aquela. Não perguntaria.
- Gostaria de um pônei hoje.
- Não posso arranjar um pônei hoje, querida. Vou começar a procurar amanhã,
prometo. Vamos para casa lanchar.
- Haverá bolos?
Certamente que sim.
Lá em cima, nos seus aposentos, Scarlett despiu o mais depressa que pôde o seu
belo vestido de viagem. Sentia uma vaga necessidade de vestir a sua camisa e a sua
saia e as garridas meias de camponesa.
Em meados de Dezembro, Scarlett caminhava de um lado para o outro nos
compridos corredores da Casa Grande, feito um animal enjaulado. Esquecera o quanto
abominava os dias escuros, curtos e chuvosos de Inverno. Várias vezes pensara ir até
o bar de Kennedy, mas, desde a malograda festa que dera a todos os concidadãos, já
não se sentia tão à vontade com eles como noutros tempos. Foi andar um pouco a
cavalo. Não era necessário, os moços mantinham todos os cavalos exercitados. Mas
precisava sair, mesmo com a chuva gelada. Quando havia algumas horas de sol, ficava
vendo Cat montar o pônei Shetland em grandes e alegres voltas pelo prado gelado.
Scarlett sabia que era prejudicial para a erva do próximo Verão, mas Cat estava tão
agitada quanto ela. Era o máximo que Scarlett podia fazer para a convencer a ficar
dentro de casa, mesmo na cozinha ou nos estábulos.
Na Noite de Natal Cat acendeu a vela do Menino Jesus e depois todas as velas
da árvore de Natal até onde conseguia chegar. Colum pegou-lhe no colo para alcançar
as mais altas.
- Um estranho costume inglês - comentou. - Provavelmente vais atear fogo à
casa.
Scarlett olhou para os enfeites coloridos e as velas acesas na árvore.
- Acho que fica muito bonita, mesmo que tenha sido a rainha da Inglaterra a
lançar a moda - disse ela. - Além disso, pus também azevinho em todas as janelas e
portas, Colum, portanto temos o costume irlandês por todo o lado em Ballyhara, exceto
nesta sala. Não sejas tão rabugento.
Colum riu.
- Cat O'Hara, sabias que o teu padrinho era rabugento?
- Hoje sim - respondeu Cat.
Desta vez, o riso de Colum não foi forçado.
- Já deixou de ser bebê - disse ele. - Quem me mandou perguntar?
Ajudou Scarlett a desembrulhar o presente de Cat depois de ela ter adormecido.
Era um pônei de balanço empalhado, em tamanho natural.
No Dia de Natal, Cat olhou-o com desdém.
- Não é verdadeiro.
- É um brinquedo, minha querida, para estar dentro de casa com este tempo
horrível.
Cat trepou nele e balançou-se. Admitiu que até nem era um mau brinquedo, para
um pônei não verdadeiro.
Scarlett suspirou de alívio. Já não se sentiria tão culpada quando fosse para
Dublim. Ela se encontraria lá com Charlotte no Hotel Gresham, no dia a seguir ao pão
doce e chá de Ano Novo.
Scarlett não imaginava que Dublim ficasse tão perto. Parecia que acabara de se
instalar no trem em Trim e já anunciavam Dublim. Evans, a criada de Charlotte
Montague, veio esperá-la e deu orientações a um carregador para trazer as suas
malas. Depois:
- Siga-me, por favor, Mrs. O'Hara - disse Evans, e afastou-se. Scarlett teve
dificuldade em a acompanhar em virtude das multidões apressadas na estação. Era o
maior edifício que Scarlett alguma vez vira, e o de maior movimento.
Mas verdadeiramente agitadas eram as ruas de Dublim. Com o entusiasmo,
Scarlett encostou o nariz ao vidro da carruagem. Charlotte tinha razão, ia adorar
Dublim. Não tardou que a carruagem parasse. Scarlett desceu, ajudada por um
empregado sumtuosamente fardado. Olhava fixamente para um carro elétrico puxado
por cavalos quando Evans lhe tocou no braço.
- Por aqui, se faz favor.
Charlotte aguardava-a na entrada, a uma mesinha de chá na sala de estar no
conjunto de divisões que formavam a suíte delas.
- Charlotte! - exclamou Scarlett. - Vi um carro elétrico com um andar em cima e
outro em baixo, e ambos apinhados.
- Muito boa tarde para ti, Scarlett. Fico satisfeita por Dublim lhe agradar. Dê os
agasalhos a Evans e venha tomar um chá. Temos muito que fazer.
Naquela noite, Mrs. Sims chegou com três ajudantes que transportavam trajes e
vestidos envoltos em musselina. Scarlett ficou parada e movimentou-se conforme lhe
foi ordenado, enquanto Mrs. Sims e Mrs. Montague discutiam cada pormenor de cada
peça de vestuário. Cada vestido de noite era mais elegante que aquele que o
precedera. Scarlett mirava-se e remirava-se ao espelho quando não estava sendo
picada ou beliscada por Mrs. Sims.
Quiando a modista e a empregada se foram embora, Scarlett percebeu
subitamente de que estava exausta. Concordou com prazer mal Charlotte lhe sugeriu
que jantassem na suíte, e comeu desalmadamente.
- Não ouse aumentar um milímetro que seja na cintura, Scarlett, ou terá que ser
tudo de novo ajustado - avisou Charlotte.
- Abaterei tudo quando for às compras - disse Scarlett.
Passou manteiga em outra fatia de pão. Vi pelo menos oito montras que me
pareceram maravilhosas durante o percurso da estação.
Charlotte sorriu com indulgência. Receberia uma boa comissão de todas as lojas
onde Scarlett fizesse compras.
- Poderá fazer todas as compras que quiser, isso lhe prometo. Mas só à tarde. De
manhã, posará para o seu retrato.
- Que disparate, Charlotte. Para que quero um retrato meu? Uma vez mandei
fazer um e ficou horroroso. Parecia má como uma cobra.
- Não ficará com ar de má neste, dou-lhe a minha palavra. Monsieur Hervé é um
perito em senhoras. E o retrato é importante. Tem que ser feito.
- Assim será, porque faço tudo o que me diz, mas não vou gostar, acredite no que
lhe digo.
Na manhã seguinte, Scarlett foi acordada pelo som do tráfego. Ainda estava
escuro, mas os candeeiros de rua mostraram-lhe quatro filas de carros, carroças e
carruagens de toda a espécie percorrendo a rua por debaixo da janela do seu quarto.
Por isso Dublim tinha umas ruas tão largas, quase tudo o que tem rodas na Irlanda se
encontra aqui. Inspirou uma, duas vezes. "Devo estar maluca. Ia jurar que me cheira a
caie."
Bateram suavemente à sua porta.
- O café está na sala, quando estiver pronta - disse Charlotte. - Mandei embora o
empregado, só precisa de um roupão.
Scarlett quase derrubou Mrs. Montague ao abrir a porta.
- Café! Se soubesse como tenho saudades de um café! Oh, Charlotte, por que
não me disse que bebiam café em Dublim? Apanharia todas as manhãs o trem para vir
tomar o desjejum.
O café tinha um sabor ainda melhor do que cheirava. Felizmente, Charlotte
preferia chá, porque Scarlett bebeu o conteúdo de toda a cafeteira.
Depois calçou obedientemente as meias de seda e a roupa de baixo que
Charlotte retirou de uma caixa. Sentiu-se um pouco imoral. A roupa de baixo leve e
escorregadia era totalmente diferente da de cambraia ou musselina que toda a vida
usara. Apertou firmemente o roupão de lã quando Evans entrou com uma mulher que
nunca vira.
- Esta é a Serafina - disse Charlotte. - É italiana, por isso não se preocupe se não
entender uma palavra do que ela diz. Irá tratar do seu cabelo. Só tem que ficar sentada
muito quieta e deixá-la falar sozinha.
"Está tendo um monólogo com cada cabelo da minha cabeça", pensou Scarlett ao
cabo de quase uma hora. Sentia o pescoço rígido, e não tinha a menor idéia do que a
mulher lhe iria fazer. Charlotte sentara-a perto da janela na sala de estar, onde a luz da
manhã era mais intensa.
Mrs. Sims e uma ajudante pareciam tão impacientes quanto Scarlett se sentia.
Tinham chegado vinte minutos antes.
- Ecco! - disse Serafina.
- Benissimo - disse Mrs. Montague.
- Pronto - disse Mrs. Sims.
A ajudante levantou a musselina que cobria o vestido que Mrs. Sims tinha nas
mãos. Scarlett tomou fôlego. O cetim branco brilhava com a luz, luz essa que fazia o
bordado prateado brilhar como se estivesse vivo. Era um vestido de sonho. Scarlett
ergueu-se, estendendo as mãos para lhe tocar.
- Primeiro as luvas - ordenou Mrs. Sims. - Qualquer dedo deixaria marca.
Scarlett reparou que a modista tinha calçadas luvas brancas de pelica. Pegou as
antigas luvas compridas que Charlotte lhe estendia. Estavam já dobradas e empoadas
para as calçar sem esticar.
Quando as endireitou todas até em cima, Charlotte serviu-se rápida e habilmente
de uma pequena abotoadeira de prata, Serafina colocou-lhe um lenço de seda sobre a
cabeça e despiu-Ihe o roupão e depois Mrs. Sims baixou o vestido sobre os braços
erguidos e sobre o corpo de Scarlett. Enquanto o abotoava atrás, Serafina retirou com
destreza o lenço e compôs delicadamente o cabelo de Scarlett.
Bateram à porta.
- Pontual - disse Mrs. Montague. - Deve ser Monsieur Hervé. Vamos querer Mrs.
O'Hara aqui, Mrs. Sims. Charlotte conduziu Scarlett até o meio da sala. Scarlett ouviu-a
abrir a porta e falar em voz baixa. "Calculo que fale francês e espere de mim o mesmo.
Não, nesta altura Charlotte já me conhece muito bem. Quem me dera ter um espelho,
quero ver como me fica o vestido."
Levantou um pé, depois o outro, quando a ajudante de Mrs. Sims lhe bateu nos
dedos. Não conseguiu ver os sapatos que a mulher lhe enfiou nos pés. Mrs. Sims
ajeitava-lhe o vestido nos ombros enquanto lhe segredava algo a respeito de se manter
direita. A ajudante compunha-lhe a saia.
- Mrs. O'Hara - disse Charlotte Montague -, permita-me que lhe apresente
Monsieur François Hervé.
Scarlett olhou para o homem gordo e calvo que se colocou diante de si e lhe
baixou a cabeça.
- Como está? - disse ela. Deveria apertar a mão a um pintor?
- Fantastique - disse o pintor. Estalou os dedos. Dois homens transportaram um
enorme trenó até o local entre as janelas. Quando se afastaram, Scarlett viu-se.
O vestido branco de cetim era ainda mais decotado do que imaginara. Olhou para
a ousada exposição de seios e ombros. Depois para o reflexo de uma mulher que mal
reconheceu. O cabelo fora puxado para o alto da cabeça num monte de caracóis e
arcos tão artísticos que pareciam quase naturais. O cetim tornava o seu corpo estreito
e longo, e uma cauda de cetim branco com ilustrações prateadas espalhava-se num
sinuoso semicírculo em volta dos sapatos de cetim, brancos com saltos prateados.
"Vejam só, pareço mais o retrato da avó Robillard que eu mesma."
Os anos de habituais atitudes menineiras tinham passado. Olhava para uma
mulher, e não para a beldade namoradeira de Clayton County. E gostava muito da
imagem que via. Esta estranha confundia-a e entusiasmava-a. Os seus dedos
delicados tremiam ligeiramente nos cantos, e os olhos rasgados assumiam a
expressão mais profunda e misteriosa.
O seu queixo erguia-se em absoluta autoconfiança, e fitou diretamente os seus
próprios olhos em desafio e aprovação.
- É isto mesmo - murmurou Charlotte Montague a si mesma. - É esta mulher que
irá arrasar toda a Irlanda. Todo o mundo, se quiser.
- O cavalete - pediu o artista em voz sussurrante. - Rapidamente, seus cretinos.
Vou pintar o retrato que me tornará famoso.
A fraca e pálida luz do Sol começara a brilhar quando Scarlett enterrou uma pá na
terra, no dia de Santa Erigida. Era um bom presságio para o ano que entrava. Para
comemorar, ofereceu a todos da cidade de Ballyhara cerveja preta e empadas de carne
no Kennedy. Ia ser o melhor de todos os anos, tinha certeza. No dia seguinte, partiu
para Dublim, para as seis semanas conhecidas como a Temporada do Castelo.
Desta vez, ela e Charlotte tinham uma suite com vários quartos no Hotel
Shelbourne, e não no Gresham. O Shelbourne era o local onde ficar em Dublim para a
temporada: Scarlett não entrara na imponente construção de tijolo no seu anterior
deslocamento a Dublim.
- Escolhemos a ocasião em que vamos ser vistas - dissera Charlotte. Agora ela
olhava com espanto para o enorme átrio lá dentro e compreendeu por que queria
Charlotte que ali ficassem. Era tudo de uma imponente graciosidade - o espaço, o
pessoal, os hóspedes, a atividade silenciosa e controlada. Ergueu o queixo, depois
seguiu o bagageiro pelo meio lance até o primeiro andar, o mais desejável dos
desejáveis. Embora Scarlett não o soubesse, correspondia exatamente à descrição que
Charlotte fizera dela ao porteiro.
- Tu a reconhecêrá logo. É extremamente bela e tem o porte de uma imperatriz.
Além da suite, estava reservada para uso de Scarlett uma sala de estar privada.
Charlotte mostrou-a antes de descerem para o chá. O retrato acabado estava sobre um
cavalete de latão a um canto da sala de brocado verde. Scarlett olhou-o com
admiração. Tinha realmente aquele aspecto? Aquela mulher não recuava perante
nada, e sentiu-se extremamente nervosa. Seguiu Charlotte até o piso térreo,
estupefata.
No sumtuoso salão, Charlotte identificou algumas das pessoas em outras mesas.
- Acabará por as conhecer a todas. Depois de ter sido apresentada, servirá café e
chá na sua própria sala. As pessoas trarão outras para a conhecer.
"Quem", teve Scarlett vontade de perguntar. "Quem trará pessoas e quem são as
pessoas que irão trazer?", mas não se incomodou. Charlotte sabia sempre o que fazia.
Scarlett só tinha que atentar na cauda do vestido, para não se embrulhar nela ao
recuar após a apresentação. Charlotte e Mrs. Sims iriam treiná-la todos os dias na
prática da apresentação com o vestido até o grande dia chegar.
O pesado envelope com o selo do camareiro-mor foi entregue no hotel no dia
seguinte a Scarlett ter chegado. A expressão de Charlotte não deixou de transparecer o
enorme alívio que sentiu. Nunca se tinha a certeza, por muito bem que fossem
concebidos os planos. Abriu-o com dedos firmes.
- A primeira recepção real - disse -, tal como esperava, depois de amanhã.
O espinheiro negro florescia já nas sebes, e decorria ainda o mês de Abril. Que
rica Primavera! Scarlett abrandou o andamento da charrete para respirar fundo. Não
havia motivo para pressa, os vestidos que esperassem. Ia a Trim buscar uma
encomenda de roupa de Verão que Mrs. Sims enviara. Tinha na secretária seis
convites para festas em Junho. Não sabia ao certo se estaria apta a começar a ir a
festas, mas estava preparada para ver alguns adultos. Cat era o seu tesouro mais
querido, mas... E Mrs. Fitz andava tão ocupada orientando a Casa Grande que nunca
tinha tempo para uma amigável xícara de chá. Colum fora para Galway, ao encontro de
Stephen. Não sabia que pensar da vinda de Stephen para Ballyhara. O fantasmagórico
Stephen. Talvez fosse menos fantasmagórico na Irlanda. Talvez se mostrasse tão
estranho e silencioso em Savannah em virtude do seu envolvimento no negócio de
armas. Pelo menos isso acabara! O rendimento extra que auferia agora com as
pequenas casas em Atlanta era muito bem-vindo. Devia ter dado uma fortuna aos
fenianos. Era muito melhor aplicado em roupa; pelo menos esta não feria ninguém.
Stephen traria também notícias de Savannah. Ansiava saber como estavam
todos. Maureen era tão preguiçosa para escrever cartas quanto ela. Há meses que não
sabia nada dos O'Hara de Savannah, ou de outras pessoas. Fazia sentido que ao
tomar a decisão de vender tudo em Atlanta tivesse resolvido pôr a América para trás
das costas e não mais para lá olhar.
Mesmo assim, era bom ter notícias das pessoas de Atlanta. Sabia, pelos lucros
auferidos, que as pequenas casas estavam sendo vendidas, pelo menos os negócios
de Ashley deveriam correr bem. E, no entanto, a tia Pittypat? E Índia? Secara já tanto a
ponto de ficar reduzida a pó? E todas aquelas pessoas que há muito, muito tempo
tinham sido tão importantes para ela? "Gostaria de me ter mantido eu mesma em
contato com as tias, em vez de deixar dinheiro ao advogado para lhes enviar a renda.
Fiz bem em não lhes dar conhecimento do meu paradeiro, fiz bem em proteger Cat de
Rhett. Mas talvez ele agora não fizesse nada; vejam como ele agiu no castelo. Se
escrever a Eulalie, ficarei sabendo todas as novidades de Charleston. Saberei de
Rhett. Suportaria eu saber que ele e Anne são tremendamente felizes, criam cavalos
de corrida e bebês Butler? Acho que não. Vou deixar ficar as tias tal como estão.
"E, de qualquer forma, o mais provável era receber um milhão de páginas com
censuras, e de censuras já me bastam as de Mrs. Fitz. Talvez ela esteja certa ao
aconselhar-me a dar algumas festas; é pena ter a casa e todos aqueles criados sem
qualquer serventia. Mas está redondamente enganada a respeito de Cat. Não ligo nada
ao que fazem as mães inglesas, não quero uma ama orientando a vida de Cat. Já a
vejo tão pouco atualmente, pois está sempre nos estábulos ou na cozinha ou
passeando pela propriedade ou trepando numa árvore. E a idéia de a mandar para um
colégio de freiras é uma perfeita loucura! Quando chegar a idade, a escola de Ballyhara
servirá perfeitamente. Fará lá amigos também. Às vezes preocupa-me o fato de ela
nunca querer brincar com as outras crianças. Que diabo se passa? Não é dia de
mercado. Por que está a ponte assim apinhada de pessoas?"
Scarlett apeou-se da charrete e bateu no ombro de uma mulher que corria
apressada.
- Que se passa? - A mulher olhou para ela. Tinha os olhos brilhantes, a excitação
no rosto.
- Um castigo. É melhor apressar-se, ou já não verá.
Um castigo. Scarlett não estava interessada em ver um desgraçado de um
soldado ser chicoteado. Imaginava que o castigo para os militares era serem
chicoteados publicamente. Tentou virar a charrete, mas o aglomerado de pessoas a
empurrarem-se e a correr, ávidas para ver o espectáculo, impediu-lhe a manobra. O
cavalo levou alguns encontrões, a charrete foi sacudida e empurrada. Só lhe restou
apear e agarrar as rédeas, amansar o cavalo acariciando-o e falando-lhe baixo e
caminhar ao ritmo das pessoas em seu redor.
Quando o movimento de avanço parou, Scarlett ouviu o silvo do chicote e o
terrível som líquido ao bater. Quis tapar os ouvidos, mas precisava das mãos para
amansar o cavalo assustado. Parecia-lhe que aqueles sons iam continuar
indefinidamente.
- ... cem. Pronto. - Ouviu dizerem, e depois o coro de descontentamento do
populacho. Agarrou firmemente as rédeas; os encontrões e os empurrões pioraram
com o dispersar da multidão.
Só fechou os olhos tarde demais. Vira já o corpo mutilado, e a imagem queimava-
lhe o cérebro. Estava atado aos raios de uma roda vertical, os pulsos e os tornozelos
presos com tiras de couro. Uma camisa azul manchada de vermelho pendia da cintura
para baixo sobre as calças de lã áspera, deixando desnudadas o que deveriam ter sido
umas costas largas. Agora não passavam de uma gigantesca ferida vermelha com tiras
vermelhas de carne e pele a pender.
Scarlett escondeu o rosto na crina do cavalo. Sentiu-se agoniada. O cavalo
sacudiu a cabeça, empurrando-a. Pairava no ar um terrível cheiro adocicado.
Ouviu alguém vomitar e sentiu náuseas. Dobrou-se o melhor que podia sem
largar as rédeas e vomitou também para as pedras.
- Muito bem, rapaz, não é vergonha nenhuma perderes o desjejum depois de
assistires a um castigo. Vai então ali ao bar e toma um uísque grande. Marbury me
ajudará a soltá-lo.
Scarlett levantou a cabeça para ver quem falava: um soldado britânico com
uniforme de sargento da Guarda. Dirigia-se a um soldado-raso de rosto lívido. O
soldado caminhava aos tropeções. Um outro veio ajudar o sargento. Cortaram a tira de
cabedal na parte de trás da roda, e o corpo caiu para a lama ensanguentada por
debaixo.
"A semana passada havia aqui erva", pensou Scarlett. "Isto não pode ser. Devia
ter erva verdejante."
- E a mulher, sargento? - Dois soldados agarravam os braços de uma mulher
silenciosa, com um manto preto com capuz, que se debatia.
- Solta-a. Acabou. Vamos. A carroça virá depois buscá-lo.
A mulher correu atrás dos homens. Agarrou a manga com galões dourados do
sargento.
- O seu oficial prometeu que eu o podia sepultar - gritou. - Deu-me a sua palavra.
O sargento empurrou-a.
- As minhas ordens eram para o castigar, o resto não é comigo. Deixa-me em
paz, mulher.
A figura de manto negro ficou sozinha na rua, vendo os soldados encaminharem-
se para o bar. Emitiu um som, um suspiro entrecortado. Depois voltou-se e precipitou-
se para a roda, para o corpo coberto de sangue.
- Danny, oh, Danny, oh, meu querido. - Acocorou-se, depois ajoelhou-se na lama
imunda, tentando puxar os ombros dilacerados e a cabeça pendente para o seu colo. O
capuz caiu-Ihe, revelando um rosto pálido e de feições finas, cabelo louro apanhado
num coque, olhos azuis com carregadas olheiras de sofrimento. Scarlett ficou pregada
ao chão. Mexer-se, fazer descolar as rodas sobre as pedras seria uma afronta imoral à
tragédia da mulher.
Um rapazinho sujo correu descalço pela praça.
- Pode dar-me um botão ou qualquer coisa, senhora? A minha mãe quer uma
lembrança. - Sacudiu o ombro da mulher.
Scarlett correu pelas pedras, pela erva salpicada de sangue, pela beira da lama
espezinhada. Agarrou o braço do rapaz. Este olhou-a, surpreendido, boquiaberto.
Scarlett esbofeteou-o com toda a força do seu braço. O som assemelhou-se ao
estampilho de um tiro.
- Sai daqui, seu diabo nojento! Sai daqui! - O rapaz correu, gritando de medo.
- Obrigada - disse a mulher do homem que fora chicoteado até a morte.
Agora envolvera-se, Scarlett estava ciente disso. Tinha que fazer o pouco que
podia.
- Conheço um médico em Trim - disse. - Irei buscá-lo.
- Um médico? Acha que o vai querer sangrar? - As suas palavras cheias de
amargura e desespero denotavam a pronúncia inglesa, tal como as vozes nos bailes do
castelo.
- Ele preparará o corpo do seu marido para ser sepultado - disse rapidamente
Scarlett.
A mão ensanguentada da mulher agarrou a bainha da saia de Scarlett. Levou-a
aos lábios, num abjeto beijo de gratidão. Os olhos de Scarlett encheram-se de
lágrimas. "Meu Deus, não mereço isto. Se pudesse, teria virado o carro."
- Não - disse -, por favor, deixe disso.
A mulher chamava-se Harriet Stewart, o marido Danny Kelly. Foi tudo o que
Scarlett soube até Daniel Kelly estar no caixão fechado dentro da capela católica.
Depois a viúva, que respondera apenas às perguntas do padre, mirou em seu redor
com olhos esbugalhados e desorientados.
- Billy, onde está Billy? Devia estar aqui. - O padre apurou que havia um filho,
fechado num quarto do hotel, para não assistir ao castigo. - Foram muito generosos -
disse a mulher -, aceitaram a aliança de casamento como forma de pagamento, apesar
de não ser de ouro.
- Vou buscá-lo - disse Scarlett. - Padre? Encarrega-se de Mrs. Kelly?
- Fique descansada. Traga também uma garrafa de aguardente, Mrs. O'Hara. A
pobre senhora está quase desfalecendo.
- Não desfalecerei - disse Harriet Kelly. - Não posso. Tenho que cuidar do meu
filho. É um rapazinho, tem apenas oito anos. - A sua voz era fraca e estaladiça como o
gelo novo.
Scarlett apressou-se. Billy Kelly era um rapaz louro e robusto, grande para a
idade, cheio de raiva. Por estar fechado atrás da espessa porta. Pelos soldados
ingleses.
- Eu pego numa barra de ferro de um ferreiro e esmago-lhes as cabeças até me
matarem - gritou. O estalajadeiro precisou de toda a sua força e corpulência para
segurar o rapaz.
- Não sejas doido, Billy Kelly! - As palavras ríspidas de Scarlett tiveram o efeito de
água fria atirada à cara do rapaz.
- A tua mãe precisa de ti, e só lhe queres aumentar o desgosto. Mas que espécie
de homem és tu?
O estalajadeiro pôde então libertá-lo. O rapaz ficou quieto.
- Onde está a minha mãe? - perguntou numa voz jovem e assustada, adequada à
situação.
- Vem comigo - disse Scarlett.
A história de Harriet Stewart Kelly foi sendo revelada aos poucos. Ela e o filho
estiveram em Ballyhara mais de uma semana antes de Scarlett ficar sabendo a
verdade nua e crua. Filha de um sacerdote inglês, Harriet ocupava o cargo de
preceptora-auxiliar da família de Lorde Witley. Tinha uma boa educação, para uma
mulher, e não sabia nada da vida.
Uma das suas obrigações era acompanhar os filhos do dono da casa nos seus
passeios antes do desjejum. Apaixonara-se pelo belo sorriso e voz brincalhona e
melodiosa do moço de estrebaria que também os acompanhava. Quando lhe pediu
para fugirem juntos, achou que era a aventura mais romântica do mundo.
A aventura acabou na pequena quinta do pai de Daniel Kelly. Não havia
referências e, portanto, nada de empregos para um moço de estrebaria ou uma
preceptora fugitivos. Danny trabalhava com o pai e os irmãos os campos pedregosos,
Harriet executava o que a mãe dele lhe mandava, principalmente esfregar e cerzir.
Aprendera a fazer finos bordados, como um dos predicados necessários a uma
senhora. Billy era o seu único filho, o testemunho de um romance que acabara. Danny
Kelly sentia a falta do mundo dos cavalos puro-sangue em grandes estábulos e do
elegante casaco listrado, chapéu alto e botas altas de couro, que eram a farda de um
moço de estrebaria. Culpou Harriet pela sua queda em desgraça e refugiou-se no
uísque. A família dele odiava-a por ser inglesa e protestante.
Danny foi preso por atacar um oficial inglês num bar. A família não quis saber
mais dele ao ser condenado a cem chicotadas. Encontrava-se já detido quando Harriet
pegou a mão de Billy e um naco de pão e se predispôs a percorrer as vinte milhas até
Trim, o local onde estava aquartelado o regimento do oficial insultado. Suplicou pela
vida do marido. Seria entregue o corpo para sepultar.
- Vou levar o meu filho para Inglaterra, Mrs. O'Hara, se me emprestar o dinheiro
das passagens. Os meus pais morreram, mas tenho primos que talvez nos dêem
abrigo. Eu lhe pagarei com o meu salário. Arranjarei algum trabalho.
- Que disparate - disse Scarlett. - Não reparou que eu tenho uma filha que corre
por aí feita um potro selvagem? Cat precisa de uma preceptora. Além disso, já se
apegou a Billy como uma sombra. Necessita mais que nunca de um amigo. Tu me faria
um grande favor se ficasse, Mrs. Kelly.
Era verdade, pelo menos em parte. O que Scarlett não disse foi que não confiava
nada na capacidade de Harriet apanhar o barco certo para Inglaterra, muito menos de
ganhar lá a vida. Tinha muita coragem, mas pouca esperteza, concluiu Scarlett. "Só
sabe aquilo que aprendeu nos livros." Scarlett nunca tivera em grande conta as
pessoas letradas.
Não obstante menosprezar a falta de sentido prático de Harriet, Scarlett estava
satisfeita por a ter em casa. Desde que voltara de Dublim, Scarlett achara a enorme
casa angustiantemente vazia. Não contara sentir a falta de Charlotte Montague, mas
sentia. Harriet podia perfeitamente encher essa lacuna. De muitas maneiras, era até
melhor companhia que Charlotte, porque a mínima coisa que as crianças fizessem
deixava Harriet fascinada, e Scarlett tinha conhecimento de pequenas aventuras que
Cat não acharia dignas de menção.
Billy Kelly era também uma companhia para Cat, e a inquietação de Scarlett com
o isolamento de Cat deixou de ter sentido. O último obstáculo à presença de Harriet era
a hostilidade de Mrs. Fitzpatrick.
- Não queremos ingleses em Ballyhara, Mrs. O - dissera quando Scarlett trouxera
Harriet e o filho de Trim. - Já era bastante mau ter aqui Montague, mas pelo menos ela
tinha alguma utilidade para ti.
- Bem, é possível que não queira Mrs. Kelly, mas eu quero, e a casa é minha! -
Scarlett estava farta de lhe dizerem o que devia e não devia fazer. Primeiro fora
Charlotte, e agora Mrs. Fitz. Harriet nunca a criticava. Pelo contrário. Estava tão grata
pelo abrigo e pelas roupas que Scarlett lhe dera, que esta chegava a ter vontade de lhe
dar um grito para deixar de ser tão subserviente.
Aliás, Scarlett tinha vontade de gritar com todos, e envergonhava-se da sua
atitude, pois não havia motivo algum para aquele mau humor. Não havia memória de
um crescimento tão bom, diziam as pessoas. O trigo estava já com mais de metade do
tamanho normal, e os campos de batata eram um mar de verdura compacta. Os dias
de sol radioso sucediam-se, e as comemorações no dia semanal de mercado em Trim
duraram até a tépida noite. Scarlett dançou até romper sapatos e meias, mas a música
e o riso não conseguiram animá-la durante muito tempo. Quando Harriet suspirou
romanticamente a respeito dos jovens pares que caminhavam junto ao rio
entrelaçados, Scarlett virou-lhe as costas com um encolher de ombros impaciente.
Felizmente chegavam diariamente convites pelo correio, pensou. As festas não
tardariam a começar. Parecia que as festividades em Dublim e as tentações das lojas
haviam feito o Dia do Mercado de Trim perder quase todo o seu atrativo.
Nos finais de Maio, as águas de Boyne estavam tão baixas que se conseguia ver
as pedras colocadas séculos antes para a travessia a vau. Os agricultores olhavam
ansiosamente para as nuvens espalhadas pelo vento de Oeste no belo céu baixo. Os
campos precisavam de chuva. Os esparsos aguaceiros que refrescavam o ar
humedeciam apenas o solo, fazendo que as raízes do trigo e a erva-dos-prados
viessem à superfície, enfraquecendo os caules.
Cat comunicou que o caminho do Norte para a cabana de Grainne estava ficando
muito batido.
- Ela tem mais manteiga do que consegue comer - disse Cat, espalhando a sua
num muffin. (bolo redondo, chato e muito fofo, que se come quente com manteiga e
tostado. - N. da T.) - As pessoas estão comprando feitiços para a chuva.
- Decidiste ser amiga de Grainne?
- Sim. Billy gosta dela.
Scarlett sorriu. O que quer que Billy dissesse era lei para Cat. Felizmente o rapaz
tinha bom feitio; a adoração de Cat poderia ter sido uma experiência terrível. Ao invés,
tinha uma paciência de santo. Billy herdara do pai o "jeito para os cavalos". Ensinava
Cat a montar com perícia, muito melhor do que Scarlett teria conseguido. Assim que
Cat completasse mais alguns anos, montaria um cavalo em vez de um pônei. Dizia
pelo menos duas vezes por dia que os pôneis eram para as meninas pequeninas, e Cat
já era uma menina grande. Felizmente Billy é que dissera "ainda não muito grande".
Cat nunca o teria aceito da parte de Scarlett.
No começo de Junho, Scarlett foi a uma festa em Roscommon, convencida de
que não abandonava a filha. "Provavelmente até nem dará pela minha falta. Que
humilhação."
- O tempo não está esplêndido? - diziam todos na festa.
Jogaram tênis no relvado após o jantar, à suave claridade que durou até depois
das dez horas.
Scarlett estava satisfeita de se encontrar com tantas das pessoas de que mais
gostara em Dublim. A única que não cumprimentou com vivo entusiasmo foi Charles
Ragland.
- O seu regimento é que chicoteou aquele pobre homem até a morte, Charles.
Nunca esquecerei e nunca perdoarei. Lá porque traz roupas normais, isso não altera o
fato de ser um soldado inglês e de os militares serem uns monstros.
Para sua surpresa, Charles não se desculpou.
- Lamento muito que tivesse visto, Scarlett. Um castigo não é bonito de se ver.
Mas vemos coisas ainda piores a que se deve cobrar.
Recusou-se a exemplificar, mas Scarlett tinha conhecimento, através de
conversas, da violência contra os proprietários que grassava em toda a Irlanda. Os
campos eram incendiados, as vacas degoladas, um agente de uma grande
propriedade perto de Galway fora alvo de uma emboscada e esquartejado. Falava-se
em segredo e na maior ansiedade do aparecimento dos Whiteboys, bandos
organizados de saqueadores que, anos antes, haviam aterrorizado os proprietários de
terras. Não podia ser, diziam os mais sensatos. Estes últimos incidentes eram
dispersos e esporádicos, e normalmente obra de agitadores conhecidos. Mas
conseguiam causar alguma perturbação quando os rendeiros olhavam fixamente para
dentro de uma carruagem ao passar. Scarlett perdoou Charles. Mas, disse, não
contasse com o seu esquecimento.
- Até arcarei com toda a culpa do castigo se isso a impedir de se esquecer de
mim - disse ele com paixão. Depois corou, feito um rapaz. - Que diabo, invento
discursos dignos de Lorde Byron quando estou na caserna e depois só digo disparates
quando me encontro na sua presença. Sabe, não sabe, que estou perdidamente
apaixonado por ti?
- Sim, sei. Não faz mal, Charles. Também não creio que tivesse gostado de Lorde
Byron, e gosto muito de ti.
- Gosta, meu anjo? Poderia ter esperanças de...?
- Não creio, Charles. Não fique com esse ar de desespero. Não é só contigo. É
com qualquer um. - Durante a noite, os sanduíches no quarto de Scarlett ficaram
encarquilhadas.
- E tão bom estar em casa! Receio bem ser uma pessoa horrível, Harriet. Quando
me encontro longe, anseio sempre estar em casa, por mais que ande me divertindo.
Mas até aposto em como começarei a pensar na festa seguinte, a que aceitei ir ainda
antes do final da semana. Conte-me o que se passou durante a minha ausência. Cat
importunou Billy até mais não?
- Não demais. Inventaram uma nova brincadeira a que chamam "afundar os
viquingues", não sei de onde vem o nome. Cat disse que depois a mãe me poderia
explicar, só se lembrava do suficiente para inventar a brincadeira. Puseram uma
escada de corda na torre. Billy carrega as pedras lá para
cima, depois atiram-nas pelas ameias para o rio.
Scarlett riu.
- Grande atrevida. Há muito tempo que me pede para a deixar subir à torre. E vejo
que Billy é que faz o trabalho mais pesado. E ainda não completou 4 anos. Quando
chegar aos 6 será uma peste. Terá que lhe bater com um ponteiro para a fazer
aprender as letras.
- Talvez não. Já mostrou curiosidade pelo alfabeto de animais no quarto.
Scarlett sorriu ante a sugestão implícita de que a filha seria provavelmente quase
um gênio. Queria acreditar que Cat podia fazer tudo antes e melhor que qualquer
criança na história da humanidade.
- Não me vai contar da festa, Scarlett? - pediu Harriet, ansiosa. A experiência não
a fizera perder a mania dos sonhos românticos.
- Foi bonita - disse Scarlett. - Éramos... oh, cerca de duas dúzias, creio... e pelo
menos uma vez não estava aquele general na reserva, velho e chato, para falar do que
aprendera com o duque de Wellington. Organizamos um torneio de croquete a valer e
alguém recebia apostas e dava palpites como numa corrida de cavalos. Eu fazia equipe
com...
- Mrs. O'Hara! - As palavras foram gritadas, não faladas. Scarlett saltou da
cadeira. Uma criada entrou correndo, arquejante e afogueada. - Cozinha... - arfou. -
Cat... queimou-se... - Scarlett quase a derrubou ao passar por ela correndo.
Ouviu o choro de Cat quando ia a meio da colunata da casa para a ala da
cozinha. Scarlett correu ainda mais depressa. Cat nunca chorava.
- Ela não sabia que a panela estava quente... já lhe pus manteiga na mão...
largou-a assim que lhe pegou...
- Mamã... mamã... - Havia vozes por todo o lado. Scarlett só ouvia a de Cat.
- A mamã está aqui, querida. Cat vai ficar boa num instante. - Tomou nos braços
a criança que chorava e precipitou-se para a porta. Via a marca vermelha na palma da
mão de Cat. Estava tão inchada que mantinha os dedinhos afastados.
Quase era capaz de jurar que o caminho tinha o dobro do comprimento. Corria o
mais que podia sem arriscar uma queda. "Se o Dr. Develin não estiver em casa, não
terá onde se abrigar quando voltar. Destruirei toda a sua mobília e a família dele
também."
Mas o médico estava em casa.
- Pronto, pronto, não precisa ficar nesse estado, Mrs. O'Hara. As crianças não
estão sempre sofrendo acidentes? Deixe-me ver.
Cat gritou quando ele lhe apalpou a mão. Scarlett sentiu-se dilacerar.
- É uma queimadura profunda, lá isso é verdade - disse o Dr. Devlin. - Vamos
mantê-Ia untada até a bolha encher, depois cortamos a pele e extraímos o líquido.
- Ela está com dores, Doutor. Não pode fazer nada? - As lágrimas de Cat
ensopavam o ombro de Scarlett.
- A manteiga é o melhor. Com o tempo ajuda a acalmar.
- Com o tempo? - Scarlett virou-lhe as costas e saiu correndo. Pensou no líquido
na sua língua quando Cat nascera, a rápida e abençoada libertação da dor.
Levaria a sua menina à bruxa.
Tão longe - esquecera-se de como o rio e a torre ficavam longe. As pernas
começavam a acusar o cansaço, não podia ser. Scarlett correu como se os cães do
inferno a perseguissem.
- Grainne! - exclamou ao chegar ao avezinho. - Ajude-me! Pelo amor de Deus,
ajude-me.
A bruxa saiu de detrás de uma árvore.
- Vamos sentar-nos aqui - disse em voz baixa. - Não precisa correr mais. -
Sentou-se no chão e estendeu os braços. - Vem à Grainne, Dará. Vou fazer
desaparecer a ferida.
Scarlett deitou Cat no colo da bruxa. Depois, acocorou-se no chão, pronta a
arrebatar a filha e fugir para onde quer que pudesse haver ajuda. Se lhe ocorresse
algum local ou alguém.
- Quero que ponhas a tua mão na minha, Dará. Não lhe vou tocar. Coloca-a tu
mesma na minha mão. Irei falar com a queimadura e ela me escutará. Irá embora. - A
voz de Grainne era calma, segura. Os olhos verdes de Cat fitaram o rosto flácido e
enrugado de Grainne. Colocou as costas da mãozinha ferida contra a palma da mão de
Grainne, que continha uma mistura de ervas de tom castanho.
- A tua queimadura é muito grande e muito forte, Dará. Terei que a convencer. Vai
levar bastante tempo, mas depois te sentirás melhor. - Grainne soprou suavemente
sobre a carne queimada. Uma, duas, três vezes. Aproximou os lábios das duas mãos e
começou a murmurar para a palma da mão de Cat.
As palavras eram inaudíveis, a voz quase um murmúrio suave de folhas novas ou
água límpida e pouco profunda correndo sobre pedras à luz do Sol. Ao cabo de alguns
minutos, não mais de três, o choro de Cat parou e Scarlett caiu por terra, os músculos
frouxos do alívio. O murmúrio continuou, baixo, monótono, relaxante. A cabeça de Cat
acenou, depois tombou sobre o peito de Grainne. Os murmúrios prosseguiram. Scarlett
apoiou-se nos cotovelos. Depois a cabeça pendeu-lhe e deslizou para o chão, inerte,
não tardando a adormecer. E Grainne continuou a murmurar para a queimadura,
constantemente, enquanto Cat dormia e Scarlett dormia, e lenta, lentamente, o inchaço
baixou e o vermelho foi diminuindo até a pele de Cat ficar como se nunca se tivesse
queimado. Colocou a mão de Cat sobre a outra, depois cruzou os dois braços à volta
da criança adormecida e embalou suavemente para trás e para a frente, cantarolando
entredentes. Passado muito tempo, calou-se.
- Dará. - Cat abriu os olhos. - Está na hora de ires. Diz à tua mãe. Grainne ficou
cansada e agora vai dormir. Tens que a levar para casa. - A bruxa pôs Cat de pé.
Depois voltou-se e entrou na mata de avezinho gatinhando.
- Mamã, é hora de irmos.
- Cat? Como foi que adormeci daquela maneira? Oh, meu anjo, lamento muito.
Que aconteceu? Como te sentes, querida?
- Dormi o meu soninho. A minha mão está boa. Posso subir à torre?
Scarlett olhou para a palma da mão da filha, sem qualquer mácula.
- Oh, Kitty Cat, a tua mamã precisa mesmo de um abraço e um beijo, por favor. -
Atraiu Cat a si por um instante, depois soltou-a. Era o seu presente para Cat.
Cat encostou os lábios à face de Scarlett.
- Acho que preferia tomar chá e bolos em vez de ir agora à torre - disse. Era o
presente para a mãe. - Vamos para casa.
- A O'Hara esteve enfeitiçada e a bruxa e a criança roubada estavam falando
numa língua que nenhum homem conhecia. - Nell Garrity vira com os seus próprios
olhos, disse, e de tão assustada desatara a correr para Boyne, esquecendo-se
completamente de que precisava voltar ao vau. Teria se afogado na certa se o rio
estivesse com a sua profundidade normal.
- Estavam mas era fazendo bruxedos para as nuvens passarem por nós.
- E não secou naquele dia a vaca de Annie McGinty, e logo uma das melhores
leiteiras de toda a Trim?
Dan Houlihan, em Navan, padece tanto de verrugas nos pés que mal os
consegue assentar no chão.
A criança roubada cavalga um lobo disfarçado de pônei durante o dia.
- A sua sombra incidiu na minha batedeira e a manteiga talhou.
- Aqueles que sabem, dizem que ela vê no escuro, os seus olhos brilham como
fogo durante as suas andanças.
- E nunca ouviu a história do seu nascimento, Mr. Reilly? Foi na véspera do dia de
Todos os Santos, e o céu quase ficou retalhado com os cometas...
As histórias iam sendo levadas de casa em casa por todo o distrito.
Foi Mrs. Fitzpatrick que encontrou o gato de Cat no degrau da Casa Grande.
Ocras fora estrangulado e depois estripado. Embrulhou os restos num pano e
escondeu-os no seu quarto até poder ir sem ninguém ver ao rio para o jogar.
Rosaleen Fitzpatrick irrompeu pela casa de Colum sem bater. Este olhou-a, mas
deixou-se ficar sentado na cadeira.
- Exatamente aquilo que esperava encontrar! - exclamou. - Não és capaz de
beber no bar como um homem decente, tens que esconder aqui a tua fraqueza com
essa fraca amostra de homem. - Havia imenso desprezo na sua voz, tal como ao
empurrar com a bota as pernas inertes de Stephen O'Hara.
Ressonava em altos e baixos através da boca aberta e descaída. O cheiro a
uísque impregnava as suas roupas, saturava o seu hálito.
- Deixa-me em paz, Rosaleen - disse Colum em tom agastado. - Choro com o
meu primo a morte das esperanças da Irlanda.
Mrs. Fitzpatrick levou as mãos às ancas.
- E então as esperanças da tua outra prima, hem, Colum O'Hara? Queres afogar-
te noutra garrafa enquanto Scarlett chora a morte da sua querida filha? Tu a
acompanharás na sua dor quando a tua afilhada estiver morta? Pois uma coisa te digo,
Colum, a criança corre perigo de morte.
Rosaleen ajoelhou-se diante da cadeira dele. Sacudiu-lhe o braço.
- Pelo amor de Cristo, Colum, tens que fazer alguma coisa!
- Já tentei tudo o que sabia, mas as pessoas não me dão ouvidos.
- Talvez seja tarde demais para elas te escutarem. Não te podes isolar assim do
mundo. As pessoas sentem que as abandonaste, e o mesmo sucede com a tua prima
Scarlett.
- Katie Colum O'Hara - balbuciou Colum.
- O sangue dela manchará as tuas mãos - disse Rosaleen com fria lucidez.
Colum efetuou uma série de visitas ponderadas a cada casa, cabana e bar em
Ballyhara a Adamstwon no dia e noite seguintes. A primeira visita foi ao escritório de
Scarlett, onde a encontrou a analisar os livros de caixa da propriedade. Ao vê-lo à
porta, o seu semblante desanuviou-se, voltando a carregar-se quando lhe sugeriu que
desse uma festa para comemorar o regresso do primo Stephen à Irlanda.
Acabou por capitular, como ele sabia que sucederia, e depois Colum pôde
aproveitar o convite para a festa como motivo para todas as outras visitas. Procurou
indícios que sustentassem o aviso que Rosaleen lhe fizera, mas nada encontrou, para
seu grande alívio.
Depois da missa de domingo, todos os aldeões e O'Haras de County Meath se
deslocaram a Ballyhara para dar as boas-vindas a Stephen pelo seu regresso e saber
notícias da América. Havia no relvado compridas mesas assentes em cavaletes, com
pratos fumegantes de carne de vaca e couve cozidas, cestos cheios de batatas cozidas
e pipas de espumosa cerveja preta. As portas francesas foram abertas para a sala com
os heróis irlandeses pintados no teto, um convite a quem quisesse entrar na Casa
Grande.
Foi quase uma festa boa.
Scarlett consolou-se depois com a idéia de ter feito o melhor que podia e
conversado longamente com Kathleen.
- Tenho sentido tanto a tua falta, Kathleen - disse à prima. - Desde que partiste,
nada voltou a ser o mesmo. O vau pode muito bem ter menos de dez pés de água, mas
não suporto ir à casa de Pegeen.
- E se continua tudo na mesma, Scarlett, para quê te dares ao trabalho de gastar
o teu fôlego? - retorquiu Kathleen.
Era já mãe de um rapagão e carregava um irmão seu, assim contava, para dali a
seis meses.
"Não sentiu sequer a minha falta", percebeu Scarlett com amargura.
Stephen falava tão pouco na Irlanda quanto o fizera na América, mas a família
parecia não se importar.
- É um homem calado, e pronto.
Scarlett evitou-o. Para ela continuava a ser o fantasmagórico Stephen. Trouxera
uma notícia maravilhosa. O avô Robillard morrera e deixara a sua propriedade a
Pauline e Eulalie. Estavam as duas na casa cor-de-rosa, davam os seus pequenos
passeios a pé todos os dias e diziam ser ainda mais ricas que as irmãs Telfair.
Na festa dos O'Hara, ouviu-se ao longe uma trovoada. Todos pararam de falar,
pararam de comer, pararam de rir, para olharem esperançados para o céu azul e
brilhante que parecia zombar deles. O padre Flynn celebrava todos os dias uma Missa
especial e as pessoas acendiam velas fazendo as suas orações para pedir chuva.
No dia de São João, as nuvens arrastadas pelo vento de Oeste começaram a
acumular-se em vez de passarem rapidamente. Ao fim da tarde enchiam o horizonte,
meio negras e carregadas. Os homens e mulheres que preparavam a fogueira para as
comemorações daquela noite ergueram as cabeças para as rajadas sincopadas de
vento, pressentindo chuva. Seria efetivamente uma grande comemoração se as chuvas
voltassem e as colheitas se salvassem.
A tempestade irrompeu ao crepúsculo, com uma salva de ensurdecedores trovões
que iluminavam o céu com se fosse dia e uma chuva diluviana. As pessoas
estenderam-se no chão e taparam as cabeças. O granizo fustigava-as com pedras de
gelo de tamanho de nozes. Gritos de dor e medo enchiam os momentos de silêncio
entre os trovões.
Scarlett preparava-se para deixar a Casa Grande para a música e dança junto à
fogueira. Voltou a meter-se lá dentro, encharcada até os ossos em escassos segundos,
e subiu correndo as escadas para procurar Cat. Esta assistia pela janela, os seus olhos
verdes esbugalhados, as mãos nos ouvidos. Harriet Kelly encolhera-se a um canto,
espreitando Billy para o proteger. Scarlett ajoelhou ao lado de Cat para ver a natureza
em fúria.
Durou meia hora e depois o céu desanuviou, estrelado, com uma Lua a três
quartos que brilhava. A lenha da fogueira ficara ensopada e espalhada; não seria
acesa naquela noite. E os campos de erva e trigo haviam sido aplanados pelo granizo
que os cobria de bolas cinzentas-esbranquiçadas, irregulares. Soltou-se das gargantas
dos irlandeses um lamento. O seu som penetrante atravessou as paredes de pedra e
os vidros da janela do quarto de Cat. Scarlett estremeceu e espreitou a filha morena.
Cat soltou um gemido baixinho. As suas mãos não conseguiam impedir o som.
- Perdemos a nossa colheita - disse Scarlett. - Subira para uma mesa da rua larga
de Ballyhara, de frente para os habitantes da cidade. - Mas muita coisa pode ser salva.
A erva secará e dará feno, e com os caules do trigo teremos palha suficiente apesar de
não haver espigas para moer em farinha. Vou agora a Trim e Navan e Drogheda
comprar mantimentos para o Inverno. Não haverá fome em Ballyhara, isso vos
prometo. Têm a minha palavra como a O'Hara.
Saudaram-na então.
Mas à noite, junto às lareiras, falaram da bruxa e da criança roubada e da torre
onde essa criança suscitara no fantasma do fidalgo enforcado a sede de vingança.
O céu limpo e calor implacável voltaram, para ficar. A primeira página do Times
divulgava, na sua totalidade, previsões e especulações sobre o tempo. As segundas e
terceiras páginas estavam cheias de notícias sobre ataques a propriedades e seus
donos e agentes.
Todos os dias Scarlett dava uma vista de olhos ao jornal, depois punha-o de
parte. Pelo menos não tinha que se preocupar com os seus rendeiros, e dava graças a
Deus por isso. Sabiam que olharia por eles.
Mas não era fácil. Com frequência demais, ao chegar a uma outra cidade que
deveria ter reservas de farinha, descobria que esses mantimentos ou ficaram pelos
rumores, ou se tinham esgotado. No começo discutia acesamente os preços
inflacionados, mas, à medida que os víveres iam escasseando, ficava tão satisfeita por
encontrar qualquer coisa que pagava sem regatear, às vezes por gêneros de qualidade
inferior.
"A situação estava tão catastrófica como na Geórgia após a guerra", pensou.
"Não, é pior. Porque nessa altura lutava-se contra os soldados federais que roubavam
e incendiavam tudo. Agora luto pelas vidas de mais pessoas do que jamais tive
dependentes de mim em Tara. E nem sequer sei quem é o inimigo. Não acredito que
Deus tenha amaldiçoado a Irlanda."
Mas comprou velas no valor de cem dólares para o povo de Ballyhara acender em
súplica quando orasse na capela. E montava o cavalo ou conduzia com cuidado a
carroça por entre um amontoado de pedras que haviam começado a aparecer à beira
das estradas ou nos campos. Não sabia que antigas divindades eram apaziguadas,
mas, se trouxessem chuva, de bom grado lhes daria todas as pedras de County Meath.
Até as transportaria, se necessário fosse.
Scarlett sentia-se impossibilitada de ajudar, e era uma experiência nova e
assustadora. Pensara saber de agricultura porque crescera numa plantação. Os bons
anos em Ballyhara tinham correspondido, de fato, às suas expectativas, porque se
esforçara a trabalhar e exigira o mesmo dos outros. Mas que poderia fazer, agora que
a vontade de trabalhar não bastava?
Continuou a ir às festas que aceitara com tanta animação. Mas agora procurava
obter informações de outros proprietários e não divertir-se.
Scarlett chegou com um dia de atraso a Kilbawney Abbey, para a festa dos
Gifford.
- Lamento muito, Florence - disse a Lady Gifford -, se eu tivesse maneiras teria
pensado em enviar um telegrama. Mas a verdade é que andei de um lado para o outro
por causa dos contratos das farinhas e perdi completamente a noção do dia em que
era.
Lady Gifford ficou tão aliviada de Scarlett lá estar que se esqueceu da ofensa.
Todos os demais presentes na festa tinham aceito o convite dela em vez de outro
porque deitara a isca da presença de Scarlett.
- Tenho aguardado a oportunidade para lhe apertar a mão, minha jovem senhora.
- O cavalheiro com calças de golfe sacudia vigorosamente a mão de Scarllet. Era um
homem idoso e forte, o marquês de Trevanne, com uma barba indisciplinada e um
nariz adunco com preocupantes ramificações venosas purpúreas à superfície.
- Muito obrigada, cavalheiro - disse Scarlett. "Para quê?", interrogou-se.
O marquês explicou o motivo, na voz alta dos surdos. Contou a todos da festa,
quer quisessem ouvir, quer não. O seus gritos chegavam mesmo ao relvado do
croquete.
- Estava de parabéns, bradou, por ter salvo Ballyhara. Dissera a Arthur que não
fosse tolo, não gastasse o seu dinheiro comprando navios dos ladrões que o
roubavam, dizendo que as madeiras eram boas. Mas Arthur não lhe dera ouvidos,
estava decidido a arruinar-se. Pagara oitenta mil libras, mais de metade do seu
património, o suficiente para comprar toda a terra em County Meath. Era tolo, sempre o
fora, o homem nunca tivera o menor juízo, apesar de o saber desde o tempo em que
eram rapazes. Mas que diado, adorava Arthur como se fosse seu irmão, não obstante a
tolice. Nenhum homem fora alguma vez tão seu amigo como Arthur. Chorava, sim,
sentira a sua falta, chorara quando Arthur se enforcara. Sempre o tivera em conta de
tolo, mas nem por sombras sonhara que o fosse a esse ponto. Arthur adorava aquele
lugar, entregara-lhe o seu coração, e, no fim, a sua vida. Fora um gesto criminoso
Constance tê-lo abandonado daquela maneira. Deveria tê-lo preservado em memória
de Arthur.
O marquês estava grato a Scarlett por ter feito o que a própria viúva de Arthur não
tivera a decência de fazer.
- Gostaria de lhe apertar novamente a mão, Mistress O'Hara.
Scarlett estendeu-a. Que lhe dizia este velho? O jovem fidalgo de Ballyhara não
se enforcara, um homem da cidade arrastara-o até à torre e enforcara-o. Fora Colum
quem o dissera. O marquês devia estar equivocado. Os idosos às vezes misturam as
suas lembranças... Ou Colum estava enganado. Era apenas uma criança, só sabia o
que as pessoas diziam, não se encontrava sequer em Ballyhara na época, a família
estava em Adamstown... O marquês não estava em Ballyhara, só sabia o que as
pessoas diziam. Era tudo complicado demais.
- Olá, Scarlett. - Era John Morland. Scarlett sorriu amavelmente ao marquês e
soltou a mão. Enfiou-a no cotovelo de Morland.
- Que bom vê-lo, Bart. Procurei-o por todas as festas da Temporada e não o vi em
nenhuma.
- Este ano não fui. Duas éguas prenhes suplantam um vice-rei a qualquer hora.
Como é que tem passado?
Há uma eternidade que não o via, e tanta coisa acontecera. Scarlett nem sabia
por onde começar.
- Sei o que lhe interessa, Bart - disse ela. - Um dos cavalos de caça que me
ajudou a comprar salta melhor que Half Moon. O nome dela é Comei. Parece que um
dia se ergueu e decidiu que era diversão em vez de trabalho... - Afastaram-se para um
canto sossegado, a fim de conversarem. Scarlett acabou por saber que Bart não tinha
quaisquer notícias de Rhett. Soube também mais do que desejaria sobre o parto de
uma cria quando dava a volta no ventre de uma égua. Não importava. Bart era uma das
suas pessoas preferidas, e sempre assim seria.
A conversa girou toda em volta do tempo. Nunca na história da Irlanda se falara
de uma seca, e que mais chamar a esta sucessão de dias de sol? Quase não havia
uma parte do país que não necessitasse de chuva. Na altura de pagar as rendas, em
Setembro, haveria problemas sérios.
Ela não pensara nisso. O coração de Scarlett caiu-lhe aos pés. Logicamente que
os agricultores não conseguiriam pagar as rendas. E se não os obrigasse a pagar,
como poderia esperar que os da cidade o fizessem? As lojas e os bares, e até o
médico, dependiam do dinheiro que os agricultores gastavam com eles. Não ia ter
qualquer rendimento.
Era extremamente difícil manter a boa disposição, mas impunha-se. Oh, como
gostaria que o fim-de-semana passasse.
A última noite de festa foi a 14 de Julho, o Dia da Bastilha.
Os convidados tinham sido avisados para trazerem trajes de fantasia.
Scarlett vestiu os melhores e mais garridos trajes de Galway, com quatro saiotes
de cores diferentes por baixo de uma saia encarnada.
As meias listradas faziam-lhe comichão com o calor, mas causaram tamanho
furor que valeu o desconforto.
- Nunca pensei que, com o seu aspecto sujo, as camponesas tivessem uns
vestidos tão adoráveis - esclamou Lady Gifford. - Vou comprar um de cada para levar
para Londres no ano que vem. As pessoas irão pedir-me o nome da modista.
"Que mulher tão estúpida", pensou Scarlett. Felizmente era a última noite.
Charles Ragland apareceu para o baile depois de jantar. As festas a que fora
tinham acabado naquela manhã.
- Teria vindo embora de qualquer maneira - disse mais tarde a Scarlett. - Quando
soube que estava tão perto, não resisti.
- Tão perto estava a uma distância de cinquenta milhas.
- Nem que fossem cem.
Scarlett deixou que Charles a beijasse à sombra do grande carvalho. Há uma
eternidade que não era beijada, ou tinha os braços fortes de um homem a envolvê-la e
protegê-la. Sentiu-se derreter com o amplexo. Era maravilhoso.
- Minha querida senhora - disse Charles com voz rouca.
- Shhh. Beije-me apenas até eu entontecer, Charles.
E entontecida ficou. Agarrou-se aos seus ombros largos e musculosos para não
cair. Mas quando lhe disse que iria ao seu quarto, Scarlett afastou-o, perfeitamente
lúcida. Beijos era uma coisa, dividir a cama estava fora de questão.
Queimou o bilhete de arrependimento que ele lhe meteu por debaixo da porta
durante a noite, e partiu bem de manhãzinha para não ter que se despedir.
Quando chegou a casa foi logo procurar Cat. Não ficou surpreendida ao saber
que ela e Billy tinham ido à torre. Era o único lugar fresco em Ballyhara. Mas foi uma
surpresa encontrar Mrs. Fitzpatrick e Colum à sua espera debaixo de uma árvore
grande nos fundos da casa, com um abundante lanche espalhado por cima de uma
mesa à sombra.
Scarlett ficou encantada. Há muito que Colum se afigurava um estranho, evitando
vir à Casa Grande. Era maravilhoso ter de volta o seu quase irmão.
- Tenho uma história muito estranha para te contar - disse. - Deixou-me louca de
curiosidade quando a ouvi. Que achas, Colum? É possível que o jovem fidalgo se
tenha mesmo enforcado na torre? - Scarlett descreveu-lhe o marquês de Trevanne com
cômico e maldoso rigor e imitou a sua fala ao repeti-lo.
Colum pousou a sua xícara de chá com uma precisão controlada.
- Não tenho opinião, querida Scarlett - disse, e a voz era tão ligeira e alegre como
Scarlett gostava de recordar. - Tudo é possível na Irlanda, senão teríamos pragas de
serpentes como o resto do mundo. - Sorriu ao erguer-se.- E agora vou-me. Atrasei as
minhas obrigações diárias só para ver a tua beleza. Não ligues ao que esta mulher te
disser sobre a minha adoração pelos bolos que comi com o chá.
Afastou-se tão rapidamente que Scarlett não teve tempo de embrulhar alguns
bolos num guardanapo para ele levar.
- Volto já - disse Mrs. Fitz, e correu atrás de Colum.
- E esta! - disse Scarlett. Avistou Harriet Kelly mais adiante, ao fundo do relvado
amarelecido, e acenou-lhe. - Venha lanchar - gritou Scarlett. Sobrara muito.
Rosaleen Fitzpatrick teve que levantar a saia e correr para apanhar Colum que já
ia a meio da descida do longo acesso.
Caminhou em silêncio a seu lado para recuperar o fôlego suficiente para falar.
- E que vai acontecer agora? - perguntou. - Andas abusando da bebida, não é
verdade?
Colum estacou e voltou-se para ela.
- Não é verdade, coisa nenhuma, e é isso que me anima. Pois não a ouviste?
Citando as mentiras do inglês, acreditando nelas. Tal como Devoy e os outros
acreditam nas aldrabices de Parnell. Não podia ficar mais tempo, Rosaleen, sob pena
de partir todas as xícaras inglesas e começar a uivar de protesto como um cão
acorrentado.
Rosaleen viu a angústia nos olhos de Colum e a sua expressão endureceu.
Acalentara por tempo demais a ferida no seu espírito; de nada servira. Torturava-o a
sensação de fracasso e traição. Ao cabo de mais de vinte anos lutando pela liberdade
da Irlanda, do êxito da missão de que fora incumbido, de encher o arsenal na igreja
protestante, Colum fora informado de toda a sua inutilidade. As ações políticas de
Parnell tinham mais importância. Colum estivera sempre morrendo pelo seu país; não
suportaria viver sem acreditar que o estava ajudando.
Rosaleen Fitzpatrick comungava da desconfiança de Colum em relação a Parnell;
comungava da sua frustração de que os esforços de ambos haviam sido preteridos
pelos chefes do movimento feniano. Mas era capaz de pôr de lado os seus sentimentos
para obedecer às ordens.
O seu empenhamento era tão grande quanto o dele, talvez maior, pois ansiava
mais por vingança pessoal que por justiça.
Naquele momento, porém, Rosaleen pôs de parte a sua fidelidade ao fenialismo.
O sofrimento de Colum significava mais para ela que para a Irlanda, pois ela amava-o
de uma maneira que nenhuma mulher se devia permitir amar um padre, e não o ia
deixar destruir-se através da dúvida e da raiva.
- Mas que espécie de irlandês és tu, Colum O'Hara? - disse-lhe com aspereza. -
Vais deixar que Devoy e os outros governem sozinhos e de forma errada? Sabes o que
se passa. As pessoas lutam sozinhas e pagam caro a falta de um chefe. Não querem
Parnell. Assim como tu também não. Criaste meios para um exército. Por que não o
formas agora servindo-te desses meios, em vez de te embriagares para esquecer
como faz qualquer lutador cheio de bravura num bar de esquina?
Colum olhou-a, depois para lá dela, e os olhos foram-se enchendo de esperança.
Rosaleen pôs os olhos no chão. Não podia arriscar que ele visse a emoção que
neles brilhava.
- Temos que parar de gastar tanto dinheiro - disse Scarlett, zangada. Abanou o
livro de contas à frente de Mrs. Fitzpatrick.
- Não há razão nenhuma para andarmos alimentando um exército de criados
quando a farinha para o pão custa uma fortuna. Temos que pôr a andar pelo menos
metade deles. E também... para que servem? E não me venha com a história de serem
precisos para bater as natas com que se faz a manteiga, porque se hoje existe alguma
coisa em excesso, é a manteiga. Já nem se consegue vender.
Mrs. Fitzpatrick aguardou o final da explosão de Scarlett. Depois, retirou-lhe
calmamente das mãos o livro das contas e colocou-o sobre a mesa.
- Não lhe custaria mesmo nada pô-los na rua, não é? - perguntou. - Companhia
não lhes ia faltar porque muitas das Grandes Casas da Irlanda estão fazendo o
mesmo. Não há dia em que não apareça à porta da cozinha mais de uma dúzia de
pessoas pedindo uma tigela de sopa. Vai fazer aumentar esse número?
Scarlett dirigiu-se impacientemente para a janela.
- Não, claro que não, não seja ridícula. Mas deve haver uma forma de cortar nas
despesas.
- Fica mais caro alimentar os seus cavalos do que os criados - comentou Mrs.
Fitzpatrick, friamente.
Scarlett voltou-se para ela, furiosa.
- Não preciso de mais nada. Deixe-me só.
Agarrou o livro das contas e sentou-se à secretária. Mas sentia-se perturbada
demais para se concentrar na contabilidade. Como podia Mrs. Fitz ser tão má? Devia
saber que a coisa que mais gosto de fazer na vida é montar. A única idéia que me faz
suportar este Verão horrível é pensar que a seguir vem o Outono e começa a época da
caça.
Scarlett fechou os olhos e tentou lembrar-se das manhãs frias e orvalhadas e do
som da corneta a dar início à caçada. Um pequeno músculo latejou-lhe
involuntariamente na pele macia do pescoço contraído. O seu forte não era imaginar,
mas sim agir.
Abriu os olhos e começou a trabalhar aplicadamente nas contas. Sem cereais
para vender nem rendas para cobrar, ia perder dinheiro. Isso aborrecia-a porque
sempre ganhara dinheiro nos negócios, e começar a perdê-lo constituía uma mudança
muito desagradável.
Mas Scarlett crescera num mundo em que era natural falhar-se uma colheita, ou
uma tempestade devastar as plantações. Sabia que o próximo ano iria ser diferente e
certamente melhor. Não era um fracaço só por causa dos estragos provocados pela
seca.
Não era o mesmo que o negócio das madeiras ou o armazém, onde teria sido
responsável se não houvesse lucros. Além disso, os prejuízos não iam afetar a sua
fortuna. Podia dar-se ao luxo de ser extravagante durante o resto da vida; as colheitas
em Ballyhara podiam falhar todos os anos, que ainda assim continuaria a ter muito
dinheiro.
Scarlett suspirou inconscientemente. Trabalhara, privara-se e poupara durante
tantos anos, sempre pensando que se tivesse muito dinheiro seria feliz. Agora tinha-o,
graças a Rhett, mas isso perdera todo o seu significado. Já não havia por que
trabalhar, por que lutar.
Não era tão tola que quisesse voltar a ser pobre, mas necessitava de desafios, de
usar a sua inteligência rápida, de conquistar obstáculos. E começou a pensar com
nostalgia em saltar vedações e valas e fazer números arriscados com cavalos que
pudesse controlar com a sua vontade.
Depois de feitas as contas, Scarlett voltou-se com um resmungo silencioso para a
pilha do correio. Detestava escrever cartas. Adivinhava sempre o que vinha no correio.
Muitos convites. Colocou-os num monte. Harriet arranjaria desculpas delicadas,
ninguém saberia que não fora ela a responder, e Harriet gostava de se mostrar útil.
Havia mais duas declarações. Scarlett recebia pelo menos uma por semana.
Pretendiam ser cartas de amor, mas ela sabia muito bem que não as escreveriam se
não fosse uma viúva rica. Pelo menos, não lhe escreveriam a maior parte delas.
Respondeu à primeira com frases de conveniência como "muito honrada com o
seu interesse", e "impossível retribuir a afeição na medida dos seus méritos", e "tenho
a sua amizade em alta conta", expressões que o protocolo exigia.
A segunda não era tão fácil. Era de Charles Ragland. De todos os homens que
conhecera na Irlanda, Charles era o que lhe agradava mais. A adoração que sentia por
ela era convincente, nada semelhante à bajulação elaborada dos outros. Sabia que ele
não andava atrás do seu dinheiro. Pertencia a uma família de grandes proprietários da
Inglaterra. Era o filho mais novo e escolhera o Exército em vez da Igreja. Mas devia ter
algum dinheiro seu. Tinha certeza de que o uniforme dele custara mais do que todos os
seus vestidos de baile juntos. Que mais? Charles era atraente. Tão alto quanto Rhett,
só que louro em vez de moreno. Não louro-deslavado, como muita gente. O seu cabelo
era louro com um toque arruivado, em contraste com a pele bronzeada. Era mesmo
muito atraente. As mulheres olhavam-no como se o quisessem comer.
Então, por que razão não o amava ela? Pensara nisso, pensara até bastante. Mas
não conseguia amá-lo o suficiente.
"Quero amar alguém. Sei como é amar, é a melhor coisa do mundo. Não me
conformo por ter começado a amar tão tarde. Charles ama-me e eu quero ser amada,
preciso ser amada.. Sinto-me só. Por que não o posso amar?"
"Porque amo Rhett, é por isso. É por isso que não posso amar Charles nem
qualquer outro homem. Nenhum deles é Rhett."
"Nunca terás Rhett", disse-lhe uma voz interior.
E o seu coração gritou de dor. "Julgas que não sei? Julgas que o poderei
esquecer? Julgas que não me dói vê-lo cada vez que olho para Cat? Julgas que não
me lembro dele cada vez que penso na minha vida?"
Scarlett escreveu cuidadosamente, procurando as palavras mais gentis para dizer
não a Charles Ragland. Ele nunca entenderia se ela lhe dissesse que gostava
verdadeiramente dele, que, de certa forma, talvez até o amasse porque ele a amava, e
que a afeição que sentia por ele tornava impossível o casamento. Desejava-lhe melhor
sorte do que ter uma esposa que pertenceria sempre a outro homem.
A festa de fim de ano não era longe de Killbride, que por sua vez não era longe de
Trim. Scarlett podia ir a cavalo até lá em vez de apanhar o trem. Saiu de manhã muito
cedo, quando ainda estava fresco. Os cavalos sofriam com o calor apesar de serem
refrescados quatro vezes por dia. Também ela se ressentia; à noite, quando tentava
dormir, sentira o suor colar-se à pele. Graças a Deus era Agosto. O Verão estava
quase no fim. Ao menos que terminasse depressa.
O céu estava ainda tingido de cor-de-rosa, mas, ao longe, via-se a neblina
provocada pelo calor. Scarlett esperou ter calculado bem o tempo para a viagem.
Gostaria de se pôr à sombra, e ao cavalo, quando o Sol estivesse alto.
"Será que Nan Sutcliffe já estará levantada? Nunca me pareceu do gênero de se
levantar cedo. Não interessa. Não me importava de tomar um banho e mudar de roupa
antes de ver alguém. Espero que haja uma criada decente para me ajudar, que não
seja como aquela idiota de mãos desastradas que havia em Giffords. Quase me
arrancou as mangas dos vestidos quando os pendurou. Talvez Mrs. Fitz tenha razão,
quase sempre tem. Mas não quero uma criada particular que ande sempre à minha
volta. Peggy Quin faz tudo quanto preciso lá em casa, e se as pessoas querem que as
visite terão de compreender que não estou para andar com a criada atrás. Também
devia dar uma festa para pagar a hospitalidade. Têm sido todos tão simpáticos... Mas
ainda não. Fica para o próximo Verão. Posso sempre dizer que este ano esteve quente
demais, e depois que estava preocupada com a propriedade..."
Dois homens saíram das sombras, de cada lado da estrada. Um agarrou os freios
do cavalo; o outro apontou uma espingarda. O espírito de Scarlett deu um salto, o seu
coração outro. Por que não pensara em trazer o revólver? Talvez só lhe levassem o
cavalo e as malas e a deixassem regressar a Trim se prometesse não os denunciar.
Idiotas! Por que razão, pelo menos, não traziam aquelas máscaras de que os jornais
costumavam falar?
Pelo amor de Deus! Estavam de uniforme, não eram white-boys.
- Raios vos partam! Pregaram-me um susto!
Mal conseguia distingui-los. Os uniformes verdes da Royal Irish Constabulary
confundiam-se com as sombras das sebes.
- Tenho de lhe pedir a identificação, senhora - disse o homem, segurando o
cavalo. - Kevin, vê lá atrás.
- Não se atrevam a tocar nas minhas coisas. Quem pensam que são? Eu sou
Mrs. O'Hara de Ballyhara e vou a caminho de casa dos Sutcliffes em Kilbride. Mr.
Sutcliffe é um magistrado e vai tratar-vos da saúde.
Ela não sabia se Ernest Sutcliffe era mesmo magistrado, mas tinha ar disso, com
o seu bigode farfalhudo.
- Mrs. O'Hara, não é?
Kevin, a quem tinha sido dada ordem de inspecionar lá atrás, aproximou-se. Tirou
o boné.
- Já ouvimos falar de ti no quartel. Ainda aqui há semanas perguntei a Johnny se
não deveríamos ir ter consigo e apresentar-nos.
Scarlett olhou-os com incredulidade.
- Para quê?- perguntou.
- Dizem que é da América, Mrs. O'Hara, o que eu posso confirmar depois de a
ouvir falar. Também dizem que vem de um grande estado chamado Georgia. É um
lugar que ambos trazemos no coração, uma vez que estivemos lá no exército em
sessenta e três, e até depois.
Scarlett sorriu.
- Estiveram lá?
Imagine-se, encontrar alguém da terra na estrada para Kilbride.
- Onde estiveram? Em que parte da Geórgia? Estiveram com o general Hood?
- Não, senhora. Eu era um dos rapazes de Sherman. Ali o Johnny estava com os
Confederados, foi aí que lhe puseram o nome de Johnny Reb (Johnny Rebelde. - N. da
T.).
Scarlett abanou a cabeça para clarear as idéias. Não podia estar ouvindo bem.
Mas mais perguntas e mais respostas serviram para confirmar. Os dois homens,
ambos irlandeses, eram agora grandes amigos e partilhavam felizes recordações de
teram estado em lados opostos numa guerra selvagem.
- Não compreendo - admitiu, por fim. - Há quinze anos vocês tentavam matar-se e
agora são amigos. Nunca discutem sobre o Norte e o Sul e sobre quem tinha razão?
Johnny Reb riu.
- Afinal, que é para um soldado o certo e o errado? Está lá para lutar. Não
interessa por quê, desde que seja uma boa luta.
Quando Scarlett chegou a casa dos Sutcliffes começou por chocar com o
mordomo, que quase perdeu a compostura quando ela pediu um brande com o café.
Sentia-se baralhada demais.
Depois, tomou banho, vestiu roupa lavada e desceu as escadas, já recomposta.
Até que avistou Charles Ragland. Ele não devia estar naquela festa. Fez de conta que
não o viu.
- Nan, que bonita estás. E adoro a tua casa. O meu quarto é tão bonito que nem
me apetece sair de lá.
- Nada me agradaria mais, Scarlett. Já conheces John Graham?
- Só de nome. Tenho estado à espera de uma apresentação. Como vai, Mr.
Graham?
John Graham era um. homem alto e magro, com o à-vontade de um atleta. Era o
chefe da Caçada de Galway Blazer, talvez a mais famosa de toda a Irlanda. Todos os
caçadores de raposas da Grã-Bretanha ansiavam ser convidados para uma das
caçadas de Blazer. Graham sabia-o, e Scarlett sabia que ele sabia. Não valia a pena
estar com rodeios.
- Mr. Graham, está aberto ao suborno?
Por que raio Charles não deixava de olhar para ela? E que estava fazendo ali?
John Graham lançou para trás a cabeleira grisalha e soltou uma gargalhada. Os
seus olhos sorriam quando respondeu a Scarlett.
- Sempre ouvi dizer que vocês, as americanas, iam direto ao assunto, Mrs.
OHara. Agora vejo que é verdade. Diga-me, em que está pensando?
- Será que um braço e uma perna chegariam? Posso manter-me numa sela com
uma perna, é a única coisa boa que me ocorre em relação a uma sela para mulheres, e
só preciso de uma mão para as rédeas.
O chefe da Caçada sorriu.
- Que oferta extravagante. Também já ouvi dizer que as americanas têm
tendência para a extravagância.
Scarlett estava cansada de gracejar. E a presença de Charles punha-a nervosa.
- O que pode não ter ouvido, Mr. Graham, é que as americanas atravessam as
vedações, enquanto as irlandesas passam pelos portões e as inglesas entram
diretamente em casa. Se me deixar montar com os Blazers, prometo trazer pelo menos
uma pata de lebre ou de raposa e comer um bando de corvos à frente de todos... e
sem sal.
- Por Deus, senhora, com esse seu estilo será bem-vinda quando quiser.
Scarlett sorriu.
- Não me vou esquecer disso.
Cuspiu na mão. Graham sorriu abertamente e cuspiu na dele. A palmada que
deram na mão um do outro ecoou pela galeria.
Depois, Scarlett dirigiu-se a Charles Ragland.
- Disse-lhe na minha carta, Charles, que esta era a única festa em toda a região
onde você não devia estar presente. Foi mau da sua parte ter vindo.
- Não estou aqui para a embaraçar, Scarlett. Queria dizer-lhe pessoalmente e não
por carta. Não precisa se preocupar com a minha insistência. Sei compreender quando
um não é não. O regimento vai para Donegal na próxima semana; era a minha última
oportunidade de dizer o que queria. E, confesso, de a voltar a ver. Prometo não a
importunar nem me pôr a olhar com olhos de enterro. - Sorriu com ar pesaroso. - Estive
ensaiando este discurso. Que tal soou?
- Muito bem. Que se passa em Donegal?
- Problemas com os Whiteboys. Parece que ali estão mais concentrados do que
noutras regiões.
Dois soldados mandaram-me parar para revistarem as bagagens.
- As patrulhas andam todas nas ruas. Mas não quero falar de assuntos militares.
Que disse a John Granam? Já não o ouvia rir assim há anos.
- Conhece-o? ,
- Muito bem. É meu tio.
Scarlett riu até as faces lhe doerem.
- Vocês, ingleses... Isso é o que se chama ser acanhado. Se ao menos você
fosse mais tagarela, Charles, podia me ter poupado muitos esforços. Há um ano que
tento fazer parte dos Blazers, mas não conhecia ninguém.
- A única de quem vai gostar é da tia Letitia. É capaz de atirar o tio John ao chão
sem olhar para trás. Venha, vou apresentá-la.
Havia no ar ecos longínquos de trovões, mas não chovia. Ao meio-dia o ambiente
estava sufocante. Ernest Sutcliffe tocou o gongo do jantar para chamar a atenção de
todos. Ele e a mulher tinham planejado algo diferente para aquela tarde, explicou
nervosamente.
- Há o habitual jogo de croquete e tiro com arco e flecha. E dentro de casa há a
biblioteca ou os bilhares. Ou então o que cada um costuma fazer habitualmente. Que
tal?
- Vai direto ao assunto, Ernest - disse-lhe a mulher.
Com muitos recomeços e interrupções, Ernest lá foi direto ao assunto. Havia
trajes de banho para todos e cordas colocadas ao longo do rio para os aventureiros
que se quisessem arriscar a refrescar-se nas águas impetuosas.
- Não são propriamente impetuosas - corrigiu Nan Sutcliffe -, mas é uma corrente
muito jeitosa. Estarão lá criados para servir champanhe gelado.
Scarlett foi uma das primeiras a aceitar. Era quase como passar a tarde numa
banheira de água fresca.
Era muito mais agradável do que uma banheira de água fresca, apesar de a água
estar mais quente do que ela desejaria. Scarlett foi se movendo ao longo do rio com as
mãos agarradas à corda. De súbito, viu-se apanhada no meio da corrente. Estava fria,
tão fria que ficou com pele de galinha nos braços, e corria muito veloz. Empurrava-a
contra a corda, depois arrastava-lhe os pés. Agarrou-se com toda a força. Perdeu o
controle das pernas, e a corrente fez o corpo dela mover-se em semicírculos. Sentiu
uma perigosa tentação de se deixar ir ao sabor da corrente, para onde quer que esta a
levasse. Livre da terra sob os pés, livre dos muros e das estradas ou de tudo o que
controlasse ou fosse controlado. Durante alguns longos momentos imaginou-se
deixando-se levar...
Tremia devido ao esforço de se manter agarrada à corda. Lentamente, com
intensa concentração e firmeza, deslocou-se, uma mão de cada vez, agarrando a
corda, até se conseguir libertar da corrente. Voltou a cabeça aos outros que riam e
gritavam dentro d'água e chorou, sem saber bem porquê.
Havia pequenos redemoinhos, como dedos, no local onde a água era mais
quente. Scarlett tomou lentamente consciência das suas carícias, depois deixou-se
flutuar ao sabor da corrente. Cálidas gavinhas em movimento acariciaram-lhe as
pernas, as coxas, o corpo, os seios, enrolando-se à volta da cintura e dos joelhos sob a
túnica de lã e os calções.
Sentiu desejos que não conseguiu identificar, um vazio que ansiava ser
preenchido.
- Rhett - sussurrou contra a corda, ferindo os lábios, num convite a carícias mais
brutais.
- Não é divertido? - gritou Nan Sutcliffe. - Quem quer champanhe?
Scarlett fez um esforço para olhar em volta.
- Scarlett, valente, foste até o local mais perigoso. Tens que regressar daí.
Nenhum de nós tem coragem de te ir levar o champanhe.
"Sim", pensou Scarlett, "tenho que regressar." Depois do jantar aproximou-se de
Charles Ragland. Tinha as faces muito pálidas e os olhos muito brilhantes.
- Posso oferecer-lhe um sanduíche esta noite? - perguntou calmamente.
Charles era um amante experiente e conhecedor. As suas mãos eram gentis, os
seus lábios firmes e quentes. Scarlett fechou os olhos e deixou que a sua pele
recebesse as carícias dele da mesma forma que tinha recebido as do rio. Então ele
disse o nome dela, e ela sentiu que a sensação de êxtase desaparecia. "Não", pensou,
"não, não quero perder isto, não devo." Cerrou os olhos com mais força, pensou em
Rhett, imaginou que aquelas eram as mãos de Rhett, os lábios de Rhett, que a força
quente e forte que lhe preenchia o doloroso vazio era de Rhett.
Não valia a pena. Não era Rhett. E a tristeza desta constatação fê-la querer
morrer. Afastou o rosto da boca exigente de Charles e chorou até ele parar.
- Minha querida - disse ele. - Amo-a tanto!
- Por favor - soluçou Scarlett. - Oh, por favor, vá embora.
- Que é, querida, que se passa?
- Sou eu. Eu. Estava errada. Por favor, deixe-me sozinha.
A sua voz estava tão sumida, tão cheia de desespero que Charles estendeu a
mão para a confortar, e depois afastou-se, tendo percebido que só a poderia confortar
de uma única maneira. Calmamente, agarrou a roupa e saiu, fechando a porta atrás de
si, sem fazer qualquer ruído.
Era verdade que Scarlett e Luke faziam corridas com os cavalos nas estradas à
volta de Ballyhara e Adamstown. Saltavam sebes, valas, cercas e atravessavam o
Boyne. Quase todas as manhãs durante uma semana ele passou as águas frias do rio
e entrou pela sala adentro reclamando um café e desafiando-a para uma corrida.
Scarlett costumava aguardá-lo com uma compostura estudada, mas a verdade é que
Fenton a fazia andar com os nervos à flor da pele. O seu espírito era rápido, a sua
conversa imprevisível, e ela não podia abrandar a atenção ou as defesas durante um
único minuto. Luke a fazia rir, a fazia zangar-se, a fazia sentir-se viva da ponta dos pés
à ponta dos cabelos.
As corridas pelos campos ajudavam a abrandar a tensão que sentia quando ele
estava por perto. A guerra entre eles era clara, e a rudeza recíproca, indisfarçável. Mas
a excitação que experimentava quando forçava a coragem até os limites tinha tanto de
ameaçadora como de estimulante. Scarlett sentia algo poderoso e desconhecido,
oculto bem no fundo de si mesma, ameaçando soltar-se e libertar-se.
Mrs. Fitz avisou-a de que as pessoas da cidade estavam incomodadas com o
comportamento dela.
- Os O'Hara estão perdendo o respeito - disse, com ar compreensivo. - A sua vida
social com os ingleses é diferente, é distante. Agora esta relação com o conde de
Fenton, que mostra preferência pelo inimigo, é que os perturba.
- Não me interessa nada que os perturbe. A minha vida é comigo.
A veemência de Scarlett espantou Mrs. Fitzpatrick.
- Ai é assim? - perguntou, e o tom de voz já não tinha nada de compreensivo. -
Está apaixonada por ele?
- Não, não estou. E não vou estar. E agora deixe-me em paz e diga aos outros
que me deixem em paz também.
A partir daqui, Rosaleen Fitzpatrick não fez mais nenhum comentário. Mas os
seus instintos femininos adivinhavam perturbação nos olhos febrilmente brilhantes de
Scarlett.
"Estarei apaixonada por Luke?" A pergunta de Mrs. Fitzpatrick forçara Scarlett a
interrogar-se. "Não", respondeu de imediato.
- Então, por que razão fico tão aborrecida quando ele não aparece?
Não encontrou resposta convincente.
Pensou no que tinha ficado sabendo a partir das respostas dos amigos às
referências que a ele fizera. O conde de Fenton era muito importante, diziam todos.
Possuía uma das maiores fortunas da Grã-Bretanha, propriedades na Inglaterra e
Escócia, assim como a propriedade na Irlanda. Era íntimo do príncipe de Gales,
mantinha uma enorme casa em Londres, onde, segundo se dizia, alternava os
bacanais com reuniões sociais cujos convites eram disputados pela fina flor da
sociedade. Durante vinte anos fora o alvo preferido de pais casamenteiros, desde que
herdara o título e fortuna aos 18 anos, mas escapara a todos, até mesmo a algumas
belezas notórias com fortuna própria. Sussurravam-se histórias sobre corações
despedaçados, reputações destruídas, até mesmo suicídios, e mais de um marido o
defrontara em duelo. Era imoral, cruel, perigoso, e alguns diziam mesmo que era
diabólico. Por tudo isto, era, é claro, o homem mais fascinante do mundo.
Scarlett imaginou a sensação que seria se uma irlandesa-americana na casa dos
30 anos fosse bem sucedida onde as belezas inglesas tinham falhado, e os seus lábios
curvaram-se num sorriso secreto que logo desapareceu.
Fenton não mostrava indícios de ser um homem terrivelmente apaixonado.
Tencionava posssuí-la, não casar com ela.
Semicerrou os olhos. "Não vou deixar que o meu nome se junte ao rol de
conquistas dele."
Mas não pôde deixar de imaginar como seria ser beijada por ele.
Fenton picou o cavalo para aumentar a velocidade e ultrapassou Scarlett, rindo
em voz alta. Ela curvou-se para a frente gritando a HalfMoon para que andasse mais
depressa. Quase imediatamente, teve que puxar as rédeas. A estrada fazia uma curva
entre grossos muros de pedra, e Luke parara à frente, bloqueando-lhe o caminho.
- Está brincando ou quê? - perguntou ela. - Podia ter me esmagado contra ti.
- Era exatamente isso que eu tinha na idéia - respondeu Fenton. Antes que
Scarlett tivesse tempo de perceber, ele agarrou a crina de HalfMoon e aproximou os
dois cavalos. Com a outra mão, rodeou o pecoço de Scarlett e imobilizou-a, enquanto a
sua boca cobria a dela. O seu beijo foi violento, forçando-a a abrir os lábios, enfiando a
língua na sua boca. Com a mão, obrigou-a a ceder. O coração de Scarlett bateu com
surpresa, receio, e, depois, com sujeição à força dele. Quando a libertou, sentia-se
trêmula e fraca.
- Agora vai deixar de recusar os meus convites para jantar - disse Luke. Os seus
olhos brilhavam com satisfação.
Scarlett recuperou o controle.
- Você é convencido demais - disse ela, furiosa por se encontrar ofegante.
- Sou? Duvido.
O braço de Luke rodeou-a enquanto a beijava novamente. Com a mão, procurou-
lhe o seio e acariciou-o até o limiar da dor. Scarlett desejou sentir as mãos dele
percorrerem-lhe o corpo, e os lábios brutais contra a sua pele.
Os cavalos, nervosos, mexeram-se, desfazendo o abraço. Scarlett quase perdeu
o equilíbrio.Tentou equilbrar-se na sela e pôr em ordem o seu espírito. Não devia fazer
aquilo, não devia ceder, dar-se a ele. Se o fizesse, ele perderia o interesse logo que a
conquistasse, disso não tinha dúvidas.
E ela não queria perdê-lo. Desejava-o. Aquele não era nehum rapazinho
apaixonado como Charles Ragland, aquele era um homem. Até se poderia apaixonar
por um homem assim.
Scarlett acariciou HalfMoon, acalmando-o, agradecendo-Ihe interiormente por a
ter salvo daquela loucura. Quando se virou para Fenton, os seus lábios doloridos
alargaram-se num sorriso.
- Por que não me põe uma coleira e me arrasta pelos cabelos até a casa? -
perguntou. Havia a nota suficiente de humor e condescendência na sua voz. - Assim
não assustaria os cavalos.
Puxou HalfMoon e saiu a passo, depois a trote, voltando para trás.
Voltou a cabeça e falou por cima do ombro: - Não vou aparecer para jantar, Luke,
mas você pode seguir-me até Ballyhara para tomar um café. Se quiser mais do que
isso, posso oferecer-lhe almoço ou um desjejum tardio.
Scarlett murmurou suavemente a HalfMoon para que andasse mais depressa.
Não conseguira decifrar a expressão de Luke Fenton, mas o que vira fizera-a sentir
algo muito parecido com medo.
Já tinha desmontado quando Luke entrou pelos estábulos e desceu do cavalo,
entregando as rédeas a um criado.
Scarlett fingiu não reparar que Luke dera ordens ao único criado que se
encontrava à vista. Ela própria conduziu Half Moon até os estábulos, procurando outro.
Quando os seus olhos se adaptaram à penumbra, deteve-se, petrificada, com
receio de se mexer. Cat encontrava-se no estábulo em frente, descalça e em pé sobre
o dorso de Comei, os bracinhos esticados para se equilibrar. Trazia vestida uma grossa
camisola de lã pedida emprestada a um dos moços de estrebaria. Tapava-lhe as saias,
e as mangas cobriam-lhe as pontas dos dedos. Como habitualmente, o seu cabelo
negro escapara às tranças e era uma massa de caracóis. Parecia um diabinho ou uma
miúda cigana.
- Que estás fazendo, Cat? - perguntou Scarlett, calmamente. Conhecia bem o
caráter forte do cavalo. Um ruído mais forte podia perturbá-lo.
- Estou praticando para o circo - respondeu Cat. - Como aquele desenho no meu
livro de uma senhora num cavalo. Quando for para a pista vou precisar de um guarda-
sol.
Scarlett manteve a calma. Isto ainda era mais assustador do que fora com
Bonnie. Comet podia derrubar Cat e depois esmagá-la.
- Seria melhor se esperasses até ao próximo Verão. Os teus pés devem estar
frios.
- Oh! - Cat escorregou para o chão, para junto dos arreios de metal. - Não pensei
nisso.
A sua voz ecoou pelo estábulo. Scarlett susteve a respiração. Depois, Cat trepou
a vedação com as botas e as meias de lã nas mãos.
- Eu sabia que as botas machucavam.
Scarlett fez um esforço para não agarrar a criança. Cat levaria a mal tal
demonstração. Olhou para direita à procura de um criado que levasse HalfMoon. Viu
Luke, que observava calmamente Cat.
- Esta é a minha filha, Katie Colum O'Hara - disse. "E deduz daqui o que
quiseres", Fenton, pensou.
Cat, que estava concentrada a apertar as botas, ergueu os olhos.
- Chamo-me Cat - disse. - E tu, como te chamas?
- Luke - respondeu o conde de Fenton.
- Bom dia, Luke. Queres a gema do meu ovo? Vou agora tomar o desjejum.
- Gostaria muito - disse ele.
Formaram uma estranha procissão: Cat ia à frente com Fenton ao lado, ajustando
a sua passada larga às pernas curtas da menina.
- Já tomei o desjejum - disse-lhe Cat -, mas como estou com fome vou tomar
outro.
- Acho isso muito sensato - disse ele. Não havia ironia na sua voz.
Scarlett seguia-os. Ainda estava perturbada com o susto que apanhara, e tão-
pouco se recuperara dos momentos de paixão em que Luke a beijara. Sentia-se tonta e
confusa. Fenton era o último homem na face da terra que ela julgaria gostar de
crianças, e no entanto parecia fascinado por Cat. Tratava-a exatamente como devia,
levando-a a sério sem ser condescendente só porque ela era pequena. Cat não tinha
paciência para as pessoas que tentavam tratá-la como um bebê. De alguma forma,
parecia que Luke percebera isso e o respeitava.
Scarlett sentiu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos. Oh, sim, podia vir a amar
este homem. Que bom pai poderia ele ser para a sua filha bem-amada. Afastou
rapidamente as lágrimas. Não era hora para sentimentalismos. Por Cat e por si própria,
tinha que se manter forte e com as idéias claras.
Olhou para a cabeça escura e direita de Fenton, inclinado para Cat. Parecia muito
alto e grande e poderoso. Invencível.
Estremeceu interiormente, depois rejeitou a sua covardia. Levaria a melhor.
Agora, tinha de ser. Queria-o para si e para Cat.
Scarlett quase desatou a rir perante a cena que Luke e Cat apresentavam. Cat
estava completamente absorvida na delicada tarefa de cortar o topo do seu ovo sem o
partir; Fenton observava Cat com igual concentração.
Subitamente, sem aviso prévio, Scarlett foi tomada por uma dor profunda.
Aqueles olhos escuros observando Cat deveriam ser os de Rhett, e não os de Luke.
Rhett é que devia estar fascinado pela filha, Rhett é que devia partilhar o ovo com ela e
acompanhar-lhe o passinho miúdo.
A saudade esculpiu um buraco fundo no peito de Scarlett, no lugar onde devia
estar o coração, e a angústia, durante tanto tempo dominada, encheu-o por completo.
Sentia a falta de Rhett, da sua presença, da sua voz, do seu amor.
"Se eu lhe tivesse falado de Cat enquanto era tempo... Se eu tivesse ficado em
Charleston... Se..."
Cat agarrou a manga de Scarlett.
- Vais comer o teu ovo, mamãe? Eu abro para ti.
- Obrigada, querida - respondeu Scarlett à filha. "Não sejas tola, disse para
consigo." Sorriu para Cat e para o conde de Fenton. O passado era o passado, e ela
tinha que pensar no futuro.
- Suspeito de que vai ter outra gema para comer, Luke - disse, rindo.
Cat despediu-se e saiu correndo, mas Fenton ficou.
- Traz mais café - ordenou à criada, sem a olhar. - Fale-me da sua filha - pediu ele
a Scarlett.
- Só gosta da clara do ovo - respondeu Scarlett, sorrindo para disfarçar a
preocupação. Que lhe ia dizer sobre o pai de Cat? E se Luke perguntasse o seu nome,
como morrera, quem era?
Mas Fenton só fez perguntas sobre Cat.
- Quantos anos tem esta sua filha admirável?
Mostrou espanto quando soube que Cat só tinha 4 anos, perguntou se ela era
sempre tão segura de si, se sempre fora tão precoce, se era determinada... Scarlett
acolheu com satisfação este interesse genuíno e falou das proezas de Cat O'Hara até
ter a garganta seca.
- Devia vê-la no pônei, Luke. Monta melhor que eu, ou que você... e trepa em tudo
como um macaco. Os pintores tiveram que a arrancar do escadote. Conhece os
bosques tão bem como uma raposa, tem uma bússula dentro, nunca se perde.
Determinada? É tão destemida que às vezes chego a me assustar. E nunca se queixa
quando se machuca. Mesmo em bebê raramente chorava, e, quando começou a andar,
ficava muito admirada quando caía, e levantava-se logo a seguir.... Claro que é
saudável. Não viu como ela é direita e forte? Come como um cavalo e nunca fica
enjoada. Você nem acreditaria na quantidade de éclairs e bolos de creme que ela é
capaz de engolir sem pestanejar...
Quando Scarlett sentiu a secura na garganta, olhou para o relógio e riu.
- Meu Deus, estou a aborrecê-lo há séculos. A culpa é sua, Luke, você é que
insistiu. Devia ter me mandado calar.
- De forma nenhuma. Estou muito interessado.
- Cuidado, ou terei ciúmes. Parece que está se apaixonando pela minha filha.
Fenton franziu a testa.
- O amor é para empregadas de balcão e para os romances de cordel. Estou
interessado nela.
Levantou-se, fez uma pequena reverência, agarrou a mão de Scarlett e beijou-a
levemente.
- Parto para Londres de manhã, por isso despeço-me já.
Scarlett levantou-se e ficou junto a ele.
- Vou sentir falta das nossa corridas - disse. - Volta em breve?
- Eu a visitarei e a Cat quando regressar.
"Bem!" pensou Scarlett quando ele partiu. "Nem sequer me tentou beijar na
despedida." Não sabia se havia de considerar isso um cumprimento ou um insulto.
"Deve estar arrependido da forma como se comportou quando me beijou. Deve ter
perdido o controle. E não há dúvida de que a palavra amor o assusta."
Concluiu que Luke apresentava todos os sintomas de um homem que está se
apaixonando contra vontade. Isso a fez sentir-se muito feliz. "Seria um pai maravilhoso
para Cat..." Scarlett tocou levemente com a ponta dos dedos nos lábios doloridos. E
era um homem muito excitante.
No dia de Santa Brígida choveu levemente. Scarlett disse com extremoso fervor
as orações rituais para um bom ano de lavoura, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces
quando agarrou o primeiro pedaço de terra. O padre Flynn benzeu-o com água benta,
e depois o cálice passou de boca em boca. Os lavradores saíram calmamente e de
cabeça baixa. Só Deus os podia salvar. Ninguém aguentaria outro ano como aquele.
Scarlett regressou a casa e descalçou as botas enlameadas. Depois, convidou
Cat a tomar um cacau com ela no quarto, enquanto organizava as coisas que iria levar
para Dublim. Partiria dentro de menos de uma semana. Não queria ir. Luke Fenton
estaria lá... e como poderia encará-lo? De cabeça erguida, não havia outra forma. Era o
que os seus esperavam dela.
A segunda temporada de Scarlett em Dublim foi ainda melhor que a primeira.
Todos os dias chegavam convites para todos os acontecimentos no castelo e para
cinco bailes e duas ceias nos aposentos reais. Também recebeu um envelope selado
com o convite mais cobiçado de todos: a sua carruagem seria admitida por uma
entrada especial nos fundos do castelo. Não teria que ficar horas numa fila em Dame
Street, esperando que as carruagens entrassem, quatro de cada vez, para largarem os
convidados.
Havia também cartões reclamando a sua presença em festas e jantares
particulares. Estas festas eram muito mais divertidas que as do castelo, com as suas
centenas de convidados. Scarlett riu. Com que então, um orangotango bem vestido,
não era? Não, não era, e a pilha de convites confirmava-o.
Era a O'Hara de Ballyhara, irlandesa e orgulhosa disso. Era genuína. Não fazia
diferença que Luke Fenton se encontrasse em Dublim. Ela o deixaria com os seus
sarcasmos. Podia olhá-lo de frente, sem ter medo nem vergonha, e o Diabo que o
carregasse.
Analisou os convites, escolhendo os que lhe interessavam, e sentiu uma onda de
satisfação. Era bom ser-se pretendida, usar bonitas roupas e dançar em bonitos
salões. E que tinha, se o mundo social de Dublim era inglês? Conhecia o suficiente
para saber distinguir os sorrisos, os franzir de testa, regras e transgressões da
sociedade, as suas honras e ostracismos, triunfos e perdas; era tudo parte de um jogo.
Nada disso era importante, nada disso importava para o mundo da realidade fora dos
salões de baile. Mas os jogos eram para ser jogados, e ela era uma boa jogadora.
Sentiu-se satisfeita por, afinal, ter vindo a Dublim. Gostava de ganhar.
Scarlett percebeu imediatamente que a presença de Luke Fenton em Dublim
provocara excitação e especulação.
- Minha querida - disse May Taplow -, em Londres não se fala noutra coisa. Todo
mundo sabe que Fenton considera Dublim uma cidade provinciana de terceira
categoria. A casa dele não é aberta há décadas. Por que razão estará ele aqui?
- Não faço idéia - repondeu Scarlett, imaginando qual seria a reação de May se
soubesse a verdade.
Fenton aparecia onde quer que ela estivesse. Scarlett cumprimentava-o com
educada frieza e ignorava o ar dele de confiante displicência. Após o primeiro encontro
já nem ficava furiosa por o ver. Ele já não conseguia magoá-la.
Ele não. Mas continuava a sentir o aguilhão da dor cada vez que avistava um
homem alto e moreno, vestido de veludo ou brocado, e depois percebia de que era
Fenton. Porque quem Scarlett procurava no meio da multidão era Rhett. Estivera no
castelo no ano anterior. Por que não este ano... nessa noite... nessa sala?
Mas era sempre Fenton. Para onde quer que olhasse, em todas as conversas, em
todos os jornais. Pelo menos podia dar graças por ele não lhe prestar especial atenção;
se assim não fosse, os mexericos também lhe diriam respeito. Mas desejou que o
nome dele não andasse tanto na boca das pessoas.
Os rumores foram-se resumindo gradualmente a duas teorias: estivera
preparando a casa para a visita não oficial do príncipe de Gales, ou então sucumbira
aos encantos de Lady Sophia Dudley, que causara sensação em Londres e agora
repetia o sucesso em Dublim. Era a história mais velha do mundo. Um homem resiste à
investida das mulheres durante anos e anos e, de repente, bang, aos 40 perde a
cabeça e o coração com a beleza e a inocência.
Lady Sophie Dudley tinha 17 anos. Os cabelos cor de feno, olhos azuis cor do céu
e pele branca rosada de fazer inveja à porcelana. Pelo menos era o que constava das
baladas que lhe tinham sido dedicadas e que eram vendidas por um penny em cada
esquina.
Era, na verdade, uma bela moça, muito influenciada por uma mãe ambiciosa, e
corava com frequência devido às atenções e galanteios de que era objeto. Scarlett via-
a muito. A sala dela ficava junto ao quarto de Scarlett. Era o segundo melhor quarto em
termos de decoração, mas o primeiro em termos de visitas. Não que Scarlett se
sentisse de alguma forma negligenciada; uma viúva rica e com olhos verdes teria
sempre procura.
"Por que razão ficaria surpreendida", pensou Scarlett. "Tenho o dobro da idade
dela, e o ano passado foi a minha vez." Mas às vezes, quando o nome de Sophia era
associado ao de Luke Fenton, custava-lhe conter a língua. Era do conhecimento geral
que um duque pedira Sophia em casamento, mas todos gente achava que ela fazia
melhor em escolher Fenton. Um duque tinha precedência sobre um conde, mas Fenton
era quarenta vezes mais rico que o duque e cem vezes mais atraente.
- E é meu, se eu quiser - era o que Scarlett tinha vontade de dizer. Seria que,
nesse caso, também lhe dedicariam baladas?
Reprovou-se pela sua impertinência e disse para consigo que era um disparate
pensar na previsão de Luke de que dali a um ou dois anos seria esquecida. E tentou
não se preocupar com as pequenas rugas que já tinha à volta dos olhos.
Scarlett regressou a Ballyhara para tratar de negócios, satisfeita por sair de
Dublim. As últimas semanas da temporada tinham custado a passar.
Era bom estar em casa, pensar em coisas reais como o pedido de Paddy O'Faolin
para um arrendamento maior de terra, em vez de se preocupar com a festa que se
seguia. E era delicioso sentir os bracinhos de Cat quase estrangularem-na num
caloroso abraço de boas vindas.
Quando a última questão foi resolvida e o último pedido considerado, Scarlett foi
para a sala tomar chá com Cat.
- Guardei-te metade - disse Cat, com a boca suja de chocolate dos éclairs que
Scarlett trouxera de Dublim.
- É engraçado, Kitty Cat, mas não tenho fome. Queres mais?
- Sim.
- Sim, obrigada.
- Sim, obrigada. Posso comê-los todos?
- Sim, Miss Pig, podes.
Os éclairs desapareceram antes de Scarlett ter tempo de esvaziar a xícara. Cat
era muito dedicada quando se tratava de éclairs.
- Onde vamos dar o nosso passeio? - perguntou Scarlett. Cat disse que gostaria
de ir visitar Grainne.
- Ela gosta de ti, mamã. Gosta mais de mim, mas também gosta de ti.
- Seria agradável - respondeu Scarlett. Gostaria de ir à torre. Dava-lhe uma
sensação de tranqüilidade, e havia pouca tranqüilidade no seu coração.
Scarlett fechou os olhos e encostou o rosto às velhas pedras macias. Cat
mostrou-se impaciente.
Então Scarlett encostou a escada de corda à porta alta para a experimentar.
Estava muito gasta, mas parecia suficientemente resistente. Ainda assim, pensou que
era melhor mandar fazer uma nova. Se aquela se partisse e Cat caísse... bem, nem
conseguia pensar nisso. Desejava tanto que Cat a convidasse para o seu quarto...
Agarrou-se novamente à escada.
- Grainne deve estar à nossa espera, mamã. Fizemos muito barulho.
- Está bem, querida. Já vou.
A anciã não parecia nem mais velha nem diferente do que da última vez que
Scarlett a vira. "Até apostava em como aqueles são os mesmos xales que ela trazia da
outra vez", pensou Scarlett. Cat, logo que entrou no casebre escuro, retirou umas
xícaras da prateleira e reuniu pedaços de carvão para a chaleira. Sentia-se
completamente à vontade.
- Vou à fonte encher a chaleira - disse, enquanto saía.
Grainne observava-a amorosamente.
- Dará visita-me muitas vezes - disse a anciã. - É muito boa para esta alma
solitária. Não tenho coragem de a mandar embora, pois a solidão reconhece a solidão.
Scarlett reagiu.
- Ela gosta de estar sozinha, mas não precisa se sentir só. Estou farta de lhe
perguntar se quer que arranje outras crianças para brincar, e ela diz sempre que não.
- É uma criança sábia. Eles bem tentam atirar-lhe pedras, mas ela é muito veloz.
Scarlett pensou que não estava ouvindo bem.
- Eles o quê?
As crianças dali, contou Grainne placidamente, corriam atrás de Dará pelos
bosques. No entanto, ela pressentia-os muito antes, e só os mais velhos se
conseguiam aproximar o suficiente para lhe atirarem pedras. E isto porque tinham
pernas mais compridas do que Dará e corriam mais depressa. Mas ela sabia bem
como escapar-lhes.
- Não se atrevem a persegui-la até a torre. Têm medo do fantasma do jovem
conde enforcado.
Scarlett estava atônita. A sua preciosa Cat atormentada pelas crianças de
Ballyhara! Chicotearia cada uma delas com as suas próprias mãos, expulsaria os pais
e reduziria a pó os seus haveres. Levantou-se de um salto.
- Vais fazer que sobre a criança caia o peso da destruição de Ballyhara? -
perguntou a anciã. - Senta-te, mulher. Outros fariam o mesmo. Receiam todos os que
são diferentes. E, quando os receiam, tentam afastá-los.
Scarlett deixou-se cair novamente na cadeira. Sabia que a mulher tinha razão. Ela
própria pagara várias vezes o preço de ser diferente. Só que em vez de pedras
conhecera a frieza, a crítica, o ostracismo. Mas superara tudo isso. Cat era uma
criança inocente. E corria perigo.
- Não posso ficar parada - gritou. - É intolerável. Tenho que os fazer parar.
- Oh, não se pode fazer parar a ignorância. Dará encontrou o caminho, e isso
chega. As pedras não lhe atingem a alma. Está a salvo no seu quarto da torre.
- Isso não chega. E se uma pedra a atinge? E se se machuca? Por que ela não
me disse que estava sozinha? Não posso suportar a idéia de que ela seja infeliz.
- Ouve o que te diz uma mulher velha, O'Hara. Ouve com todo o teu coração. Há
uma terra que os homens só conhecem das canções dos seachain. Chama-se Tir na
nOg e fica sob as colinas. Há homens e mulheres que descobriram o caminho para lá e
nunca mais foram vistos. Não há morte em Tir na nOg, nem decadência. Não há dor,
nem ódio, nem fome. Todos vivem em paz e não lhes falta nada.
"Isto é o que tu desejarias para a tua filha. Mas ouve-me bem. Em Tir na nOg não
há dor, por isso não há alegria. "Conheces o significado da canção dos seachain?
Scarlett abanou a cabeça.
- Então, não posso aliviar-te o coração. Dará tem mais sabedoria. Deixa-a ser
como é.
Como se a velha mulher tivesse chamado, Cat apareceu à porta. Transportava
compenetradamente a chaleira cheia de água e não olhou nem para a mãe nem para
Grainne. Ficaram as duas a observá-la, enquanto Cat colocava a chaleira na grade de
ferro sobre o carvão. Scarlett teve que virar a cabeça. Se continuasse a olhar sabia que
não resistiria a agarrar Cat e envolvê-la num abraço protetor. Cat detestaria isso.
"Também não devo chorar", pensou Scarlett. "Poderia assustá-la e perceberia que
também estou assustada."
- Olha para mim, mamã - disse Cat, vertendo cuidadosamente água fervendo para
um velho bule castanho. Sentiu-se um cheiro doce, e Cat sorriu.
- Pus lá as folhas como deve ser, Grainne - disse, com ar orgulhoso e feliz.
Scarlett agarrou-se ao xale da velha mulher.
- Diz-me o que fazer - pediu.
- Deves fazer o que te for dado fazer. Deus olhará por Dará.
"Não entendo nada do que ela diz", pensou Scarlett, mas sentiu-se mais aliviada.
Bebeu o chá de Cat no silêncio e calor do quarto sombrio que cheirava a ervas,
satisfeita por Cat ter a torre e aquele lugar para onde ir. Antes de regressar a Dublim,
Scarlett mandou fazer uma escada de corda nova e mais forte.
Nesse ano Scarlett foi às corridas a Punchestown. Fora convidada para
Bishopscourt, propriedade do conde de Clonmel, conhecido como Earlie. Para sua
grande satisfação, John Morland também lá estava. Para seu desagrado, verificou que
Luke Fenton também.
Scarlett aproximou-se de Morland logo que pôde.
- Bart, como está? Não conheço ninguém que passe tanto tempo em casa. Levo a
vida à sua procura, mas nunca o encontro em lado nenhum.
Morland irradiava satisfação e dava estalidos com os dedos.
- Tenho andado ocupado, muito ocupado, Scarlett. Acho que consegui um
vencedor, depois destes anos todos.
Não era a primeira vez que Bart dizia isto. Gostava tanto de cavalos que tinha
sempre a certeza de que cada um seria o próximo campeão nacional. Scarlett teve
vontade de o abraçar. Teria gostado de John Morland mesmo que ele não tivesse
nenhuma ligação a Rhett.
-... chamei-lhe Diana, por ser veloz, e depois John, por mim. Bem, sou
praticamente o pai dela, exceto na parte biológica. Depois vi que se chamava Dijon.
Soava a mostarda, não servia. Francês demais para uma égua irlandesa. Mas depois
pensei melhor. Quente, apimentada, tão forte que até faz doer os olhos. Como perfil
não é mau. Do tipo "saiam do caminho que aqui vou eu". E então ficou mesmo Dijon.
Vai fazer a minha fortuna. É melhor apostar uma nota de cinco nela, Scarlett, é uma
vencedora nata.
- Vou apostar dez libras, Bart - disse Scarlett, enquanto pensava num pretexto
para falar de Rhett. A princípio não relacionou o que John Morland estava dizendo.
-... Vou ficar mesmo aflito se estiver enganado. Os rendeiros estão fazendo
aquela greve que a Liga da Terra propôs. Isso deixa-me sem dinheiro para a aveia.
Pergunto-me agora como pude ter Charles Parnell em tão alta conta. Nunca pensei que
ele acabasse de braço dado com aqueles bárbaros dos fenianos.
Scarlett ficou horrorizada. Nunca lhe tinha ocorrido que a Liga da Terra pudesse
ser usada contra alguém como Bart.
- Custa-me a acreditar, Bart. Que vai fazer?
- Se ela ganhar aqui, a próxima corrida é em Galway e depois disso é Phoenix
Park, mas talvez lhe consiga arranjar umas corridas mais pequenas em Maio e Junho,
para não perder o treino.
- Não, não, Bart, não estou falando de Dijon. Que vai fazer quanto à greve das
rendas?
O rosto de Morland perdeu o brilho.
- Não sei - confessou. - Só tenho as rendas. Nunca expulsei ninguém, não me
passaria isso pela cabeça. Mas agora talvez tenha que o fazer. É uma vergonha.
Scarlett pensava em Ballyhara. Pelo menos, estava livre de confusão. Perdoara
as rendas até a época das colheitas.
- Já me ia esquecendo, Scarlett. Recebi notícias muito boas do nosso amigo
Rhett Butler.
O coração de Scarlett deu um salto.
- Ele vai aparecer aqui?
- Não. Estava a contar com ele. Escrevi-lhe falando de Dijon, mas ele respondeu
dizendo que não pode vir. Vai ser pai em junho. Desta vez tomaram muito cuidado, a
mulher ficou na cama durante meses, até desaparecer o perigo de acontecer o mesmo
que da outra vez. Mas agora está tudo ótimo. Ela já se levanta e está feliz. Ele também,
claro. Nunca vi nenhum homem tão preocupado e orgulhoso em ser pai como Rhett.
Scarlett apoiou-se a uma cadeira. Os sonhos e esperanças, quaisquer que
fossem, tinham agora desaparecido.
Earlie reservara uma bancada completa para os seus convidados. Scarlett estava
junto aos outros, observando a corrida através de binóculos de madrepérola. O relvado
era de um verde-brilhante, e a parte destinada ao público era uma massa de cor e
movimento. Havia gente em cima de vagões, nos assentos e telhados das carruagens,
pessoas passeando sozinhas ou em grupo, e comprimidas contra a vedação.
Começou a chover e Scarlett ficou satisfeita por haver outra bancada por cima,
pois assim estava mais abrigada.
- Ótimo espectáculo - comentou Morland.
- Dijon é uma grande corredora.
- Quer alguma coisa, Scarlett? - perguntou-lhe uma voz suave ao ouvido. Era
Fenton.
- Ainda não decidi, Luke.
Quando os corredores apareceram na pista, Scarlett aplaudiu, juntamente com os
outros. Concordou vinte vezes com John Morland que até a olho nu se via que Dijon
era o melhor cavalo em pista. Enquanto conversava e sorria, o seu espírito estava
ocupado analisando os prós e os contras da sua vida. Seria uma desonra casar com
Luke Fenton. Ele queria um filho e ela não lhe podia dar. Exceto Cat, mas essa estaria
segura. Nunca ninguém poria em questão quem era o verdadeiro pai. Não era bem
verdade, se perguntariam, mas não faria diferença. Acabaria por ser a O'Hara de
Ballyhara e a condessa de Fenton.
Que tipo de honra devo a Luke Fenton? Ele próprio não a tem, então, por que
razão terei que sentir que lhe devo?
Dijon ganhou. John Morland estava eufórico. Foi rodeado por uma multidão de
pessoas que o felicitavam.
No meio da confusão, Scarlett virou-se para Luke Fenton.
- Diga ao seu advogado para falar com o meu sobre os contratos - disse. -
Escolho o fim de Setembro para a data do casamento. Depois da Festa das Colheitas.
- Colum, vou casar com o conde de Fenton - disse Scarlett.
Ele riu.
- Pois, sim, e eu caso com Lilith. Vai ser uma festa com legiões de satãs como
convidados!
- Não estou brincando, Colum.
Ele ficou abruptamente sério e olhou para o rosto impassível e determinado de
Scarlett.
- Não o permitirei, Scarlett - gritou. - O homem é um diabo e é inglês.
O rosto de Scarlett ficou congestionado.
- Tu... não... permites? - disse, lentamente. - Quem pensas que és, Colum?
Deus?
Aproximou-se, de olhos brilhantes, e juntou o seu rosto ao dele.
- Ouve-me bem, Colum O'Hara. Nem tu nem ninguém pode me falar assim. Não o
permito.
O olhar dele enfrentou o dela, e ali ficaram em confrontação silenciosa durante
um tempo. Depois, Colum inclinou a cabeça para o lado e sorriu.
- Ah, Scarlett querida, este nosso temperamento O'Hara nos põe na boca
palavras que não queremos dizer. Peço-te desculpa. Vamos falar melhor.
Scarlett recuou.
- Não me venhas com conversas, Colum - disse, com tristeza. - Não acredito. Vim
falar com o meu amigo mais chegado e ele não está. Provavelmente nunca esteve.
- Não é bem assim, Scarlett querida, não é bem assim.
O ombros dela vergaram num gesto de desamparo e rejeição.
- Não interessa. Estou decidida. Vou casar com Luke Fenton e mudar-me para
Londres em Setembro.
- És a vergonha do teu povo, Scarlett O'Hara. - A voz de Colum soou como aço
cortante.
- É mentira - respondeu Scarlett com voz cansada. - Diz isso a Daniel, que está
enterrado em terra dos O'Hara que esteve perdida durante centenas de anos. Ou diz
aos teus preciosos fenianos que me têm usado durante este tempo todo. Não te
preocupes, Colum, não te abandonarei. Ballyhara se manterá como está, como abrigo
para os homens que andam fugidos e com os pubs para vocês poderem falar mal dos
ingleses. Nomeio-te meu procurador, e Mrs. Fitz manterá a Casa Grande como até
aqui. É isso que te importa, não eu.
- Não! - gritou Colum. - Estás redondamente enganada. És o meu orgulho e a
minha alegria, e Katie Colum tem o meu coração nas suas mãozinhas. Só que a Irlanda
é a minha alma e tem que vir primeiro.
Estendeu-lhe as mãos em gesto de súplica.
- Diz que acreditas em mim, pois estou falando a verdade.
Scarlett tentou sorrir.
- Acredito em ti. E tu tens que acreditar em mim
A anciã dissera: "Farás o que te for dado fazer."
- Farás o que tiveres que fazer com a tua vida, Colum, e eu farei o mesmo com a
minha.
Scarlett arrastava os pés enquanto caminhava pela Casa Grande. Era como se o
peso do seu coração lhe tivesse passado para os pés.
A cena com Colum magoara-a. Fora o primeiro cuja companhia procurara à
espera de compreensão, desejando que ele lhe indicasse um caminho diferente do que
ela escolhera. Desiludira-a, e agora sentia-se muito só. Receava dizer a Cat que ia
casar e que teriam que deixar os bosques de Ballyhara de que ela tanto gostava, assim
como a torre, que era o seu local preferido.
A reação de Cat foi como um bálsamo para o coração.
- Gosto de cidades - disse. - É onde está o zôo.
"Estou fazendo o que devo", pensou Scarlett. "Agora não tenho dúvidas."
Mandou vir de Dublim livros com imagens de Londres e escreveu a Mrs. Sims
para marcar um encontro. Tinha que encomendar o vestido de casamento.
Passados alguns dias apareceu um mensageiro de Fenton com um embrulho e
uma carta. Na carta dizia que ficaria na Inglaterra até à semana do casamento. Este
não seria anunciado antes do final da época em Londres. E Scarlett deveria
encomendar o vestido para complementar as jóias que ele enviava num embrulho pelo
mesmo portador. Ainda tinha três meses! Ninguém a pressionaria com perguntas ou
convites até ser divulgada a notícia do casamento.
Dentro do embrulho encontrou um estojo quadrado de pele com finas
incrustações de ouro. Levantando a tampa, Scarlett soltou uma exclamação. A caixa
estava forrada de veludo verde e dividida em compartimentos que continham um colar,
duas pulseiras e um par de brincos.
Os engastes eram de ouro pesado e antigo. As jóias eram rubis cor de sangue,
cada um do tamanho de um polegar. Os brincos eram rubis ovais que pendiam de uma
armação complicada. As pulseiras tinham doze pedras cada uma, e o colar era
constituído por duas fiadas de pedras unidas por correntes grossas. Pela primeira vez,
Scarlett compreendeu a diferença entre jóias e peças de joalheria. Ninguém se
referirira àqueles rubis como jóias. Eram raros demais e valiosos. Eram, sem dúvida,
peças de joalheria. Não conseguiu colocar o colar sozinha; teve que chamar Peggy
Quinn. Quando se viu ao espelho, Scarlett suspirou profundamente. A sua pele parecia
alabastro em contraste com o brilho dos rubis. O cabelo parecia mais escuro e mais
lustroso. Tentou lembrar-se como era a tiara. Sim, também tinha rubis. Pareceria uma
rainha quando fosse apresentada à rainha. Os seus olhos verdes semicerraram-se.
Londres ia ser um jogo muito mais excitante que Dublim. Até podia vir a gostar muito
de Londres.
Peggy Quinn não perdeu tempo em contar a novidade aos outros criados e à
família em Ballyhara. O magnífico conjunto de jóias, mais o manto debruado de
arminho, mais todos aqueles cafés matinais, só podiam querer dizer uma coisa. A
O'Hara ia casar com aquele canalha do conde de Fenton.
"E que vai ser de nós?" A pergunta, de mistura com muita apreensão, espalhou-
se por todas as casas.
Scarlett e Cat andaram a cavalo pelos campos de trigo em Abril. A criança franzia
o nariz devido ao cheiro intenso do estrume recém-espalhado. Os estábulos e os
celeiros nunca tinham este cheiro; eram limpos todos os dias. Scarlett riu dela.
- Nunca desdenhes da terra adubada, Cat O'Hara. Para um lavrador é um doce
perfume, e tu tens nas veias sangue de lavradores. Não quero que te esqueças disto.
Olhou com orgulho os campos arados e semeados. "Isto é meu. Dei-lhes vida."
Sabia que era desta parte da vida que ia sentir mais falta quando se mudasse para
Londres. Mas guardaria sempre a memória e a felicidade. No seu coração, seria
sempre a O'Hara.
E um dia Cat podia regressar, quando fosse crescida e se pudesse defender.
Então, ganharia por mérito próprio o nome de O'Hara.
- Nunca, mas nunca esqueças de onde vens - disse Scarlett à filha. - Orgulha-te
disso.
- Tem que jurar por cima de um monte de Bíblias que não conta a ninguém - disse
Scarlett a Mrs. Sims.
A modista mais exclusiva de Dublim deitou a Scarlett um olhar gelado.
- Nunca ninguém pôs em causa a minha discrição, Mrs. O'Hara.
- Vou me casar, Mrs. Sims, e quero que me faça o vestido. Retirou o estojo das
jóias e abriu-o.
- Estas jóias serão usadas com ele.
Os olhos e a boca de Mrs. Sims fizeram Scarlett sentir-se compensada das horas
de suplício passadas na sala de provas. A mulher devia estar deslumbrada.
- Também há uma tiara - disse Scarlett com ar desprendido -, e vou querer a
cauda debruada a arminho.
Mrs. Sims abanou vigorosamente a cabeça.
- Não pode fazer isso, Mrs. O'Hara. As tiaras e o arminho são só para as grandes
cerimônias da corte. Principalmente o arminho. Com toda a certeza não é utilizado
desde o casamento de sua Majestade.
Os olhos de Scarlett faiscaram.
- Então e eu não sei isso, Mrs. Sims? Não passo de uma americana ignorante que
se vai tornar condessa de um dia para o outro. As pessoas vão sempre condenar o que
eu fizer. Por isso, vou fazer o que quiser, e como quiser.
A infelicidade levou-a a imprimir à voz um tom imperioso.
Mrs. Sims acalmou imediatamente. No seu espírito passaram rapidamente os
mexericos sociais, tentando identificar o futuro marido de Scarlett. Pensou que haviam
de fazer um lindo par. Ignoravam a tradição e ainda eram admirados por isso. Onde ia
parar o mundo? Mas uma mulher tinha que fazer pela vida, e as pessoas falariam do
casamento durante anos. O seu trabalho ia ser exibido. Tinha que sair uma coisa
magnífica. Mrs. Sims recuperou a sua segurança altaneira.
- Só há um vestido que possa fazer justiça ao arminho e aos rubis - disse. -
Veludo de seda branca com rendas por cima. Galway será o melhor. Quanto tempo
tenho? E preciso fazer a renda, depois cosê-la ao veludo e à volta das pétalas de cada
flor. Leva tempo.
- Cinco meses chegam?
Mrs. Sims passou as mãos arranjadas pelo cabelo cuidadosamente penteado.
- Tão pouco tempo... deixe-me pensar... Se arranjar mais duas costureiras... se as
freiras fizerem isto... será o casamento mais falado na Grã-Bretanha, na Irlanda... tem
que se fazer, haja o que houver.
Percebeu que estava falando alto e tapou a boca com a mão. Tarde demais.
Scarlett apiedou-se dela. Levantou-se e estendeu a mão.
Deixo o vestido ao seu cuidado, Mrs. Sims. Tenho inteira confiança em ti. Avise-
me quando for preciso vir a Dublim para a primeira prova.
- Oh, eu vou à sua casa, Mrs. O'Hara. E gostaria que me tratasse por Daisy.
Em Country Meath o sol não fez ninguém feliz. Os lavradores estavam com medo
de ter outro ano como o anterior. Em Ballyhara abanavam a cabeça e previam
desgraças. Então Molly Keenan não vira a criança roubada pelas fadas sair da casa da
bruxa? E de outra vez não fora vista por Paddy Conroy, embora o que ele lá estivera
fazendo não contasse a ninguém, nem ao confessor. Também diziam que se tinham
ouvido mochos durante o dia em Pike Comer, e o bezerro de Mrs. MacGruder morrrera
de noite, sem razão aparente. A chuva, no dia seguinte, não diminuiu para os rumores.
Em Maio, Colum acompanhou Scarlett ao Mercado de Trabalho em Drogheda. O
trigo estava bem crescido, a erva das pastagens quase pronta para ser cortada, e as
batatas tinham uma folhagem saudável. Iam estranhamente calados, cada um entregue
aos seus pensamentos. Para Colum a preocupação devia-se ao aumento de milícias e
tropas por todo o County Meath. Os informadores diziam que vinha a caminho de
Navan um regimento inteiro. O trabalho da Liga da Terra fora bom; ele seria o último a
negar a vantagem da redução das rendas. Mas a greve às rendas agitara os
proprietários. Agora eram feitas expulsões sem aviso prévio, e o colmo começava a
arder antes que as pessoas tivessem tempo de retirar de casa os seus pertences.
Dizia-se que tinham morrido queimadas duas crianças. No dia seguinte foram feridos
dois soldados. Três fenianos tinham sido presos em Mullingar, incluindo Jim Daily. A
acusação fora incitação à violência, embora ele tivesse passado os dias e noites da
semana a servir bebidas no bar.
Scarlett só se lembrava da feira por um motivo. Rhett estivera lá com Bart
Morland. Evitou olhar para o local onde se vendiam os cavalos; quando Colum sugeriu
que dessem uma volta para apreciar a feira, quase lhe gritou que não, que queria era
voltar para casa. Havia uma certa distância entre eles desde que lhe dissera que ia
casar com Fenton. Não fora rude, não precisava ser. A acusação estava bem patente
nos seus olhos.
Passava-se o mesmo com Mrs. Fitz. Quem pensavam eles que eram para a
julgarem? Que sabiam dos seus desgostos e receios? Não chegava ficarem com
Ballyhara depois de ela partir? Era o que eles queriam. Não, não era justo. Colum era
quase seu irmão, e Mrs. Fitz sua amiga. Mais uma razão para serem compreensivos.
Não era justo. Scarlett começou a ver desaprovação em todo o lado, nos rostos das
empregadas de balcão de Ballyhara quando ela fazia um esforço especial para pensar
no que de compraria, naqueles meses magros antes das colheitas. "Não sejas tola",
disse para consigo mesma, "estás imaginando coisas porque não tens certeza do que
vais fazer. É o que devo fazer. Sim, por Cat e por mim." Andava irritável com todos
exceto com Cat, e a ela via-a pouco. Uma vez chegara a subir vários degraus da
escada de corda, mas voltara atrás. "Sou uma mulher adulta, não posso ir falar com
uma criança à procura de apoio." Trabalhava nos campos de feno dia após dia,
satisfeita por estar ocupada, satisfeita por lhe doerem os braços e as pernas após o
trabalho. Satisfeita, acima de tudo, pela boa colheita. Os seus receios desapareceram
gradualmente.
A noite de 24 de Junho completou a cura. A fogueira foi a maior de sempre e a
música e as danças constituíram o calmante de que ela precisava para pacificar os
nervos e melhorar a disposição. Quando, de acordo com a tradição, o brinde à saúde
da O'Hara foi gritado pelos campos de Ballyhara, Scarlett sentiu que estava bem com o
mundo.
No entanto, sentia-se um pouco arrependida por ter recusado tantos convites
durante o Verão. Não quisera deixar Cat sozinha. Mas sentia-se só e dispunha de
tempo demais para pensar e se preocupar.
Ficou quase feliz quando recebeu um telegrama meio histérico de Mrs. Sims,
dizendo-lhe que as rendas ainda não tinham chegado do convento em Galway, nem
sequer tinha obtido resposta às suas cartas e telegramas.
Scarlett sorria quando se dirigia para a estação de trem em Trim. Já estava
habituada a discutir com Madres Superioras e queria uma boa discussão.
Teve tempo, justo, de correr até a loja de Mrs. Sims, acalmá-la, agarrar o desenho
da renda encomendada e correr para a estação a fim de apanhar o primeiro trem para
Galway. Scarlett instalou-se confortavelmente e abriu o jornal.
Lá estava. O Irish Times imprimira na primeira página o anúncio do casamento.
Scarlett lançou olhares aos outros passageiros do compartimento para ver se algum
deles estava lendo o jornal. O desportista vestido de tweed lia um jornal desportivo; a
mãe bem vestida jogava com o filho. Leu novamente. O Times acrescentara alguns
comentários próprios à notícia do casamento. Scarlett sorriu quando leu a parte que
falava da "O'Hara de Ballyhara, um belo ornamento para os círculos mais chegados da
realeza" e "sofisticada e destemida cavaleira".
Só trouxera uma pequena mala para a sua estada em Dublim e Galway, por isso
só foi preciso um carregador para a acompanhar da estação ao hotel.
A recepção estava apinhada de pessoas.
- Mas que raio é isto? - perguntou Scarlett.
- São as corridas - respondeu o carregador. - Não veio a Galway sem saber disto,
não é? Não vai conseguir arranjar quarto.
"Impertinente", pensou Scarlett, "estás vendo se arranjas uma boa gorjeta."
- Espere aqui - ordenou. Chegando à recepção, disse:
Gostaria de falar com o gerente, por favor.
O homem de ar enervado olhou-a de cima abaixo e respondeu:
- Com certeza, minha senhora, é só um momento. - E desapareceu por detrás de
uma porta de vidro. Regressou com um homem careca de casaco preto e calças
listradas.
- Tem alguma queixa a apresentar, minha senhora? Receio bem que o serviço do
hotel diminua de qualidade nesta época das corridas. Mas o que quer que seja...
Scarlett interrompeu-o.
- Tenho a idéia de que o serviço é impecável. Por isso é que gosto de ficar no
Railway. Vou precisar de um quarto para esta noite - acrescentou, sorrindo.
A subserviência do gerente evaporou-se de imediato.
- Um quarto para esta noite? Nem pensar...
O recepcionista puxou-lhe pela manga. O gerente olhou-o, furioso. O empregado
falou-lhe ao ouvido, apontando para o Times que estava sobre a secretária.
O gerente fez uma grande reverência a Scarlett.
- É uma honra recebê-la, Mrs. O'Hara. Penso que aceitará uma suite muito
especial, a melhor em Galway, como convidada da gerência. Tem bagagem? Vou
mandar levá-la.
Scarlett apontou para o carregador. Na verdade, valia a pena casar com um
conde.
- Mande pôr isto no meu quarto. Subo mais tarde.
Na realidade, Scarlett não sabia se iria precisar dos quartos. Esperava poder
apanhar o trem da tarde para Dublim, e assim ainda teria tempo de apanhar outro para
Trim. Graças a Deus os dias eram longos. "Poderei ficar até as dez da noite se for
preciso. Agora, vejamos se as freiras ficam tão impressionadas com o conde de Fenton
como o gerente do hotel ficou. É pena ser protestante. Acho que não devia ter obrigado
Daisy Sims a jurar que guardaria o segredo."
Scarlett olhou para a praça. Que multidão malcheirosa. "Deviam ter apanhado
chuva nas roupas." Scarlett passou por dois homens de rosto congestionado que
gesticulavam. Tropeçou em Sir John Morland, e mal o reconheceu. Parecia
extremamente doente. Não havia cor no seu rosto, nem expressão nos seus olhos
habitualmente calorosos.
- Bart, meu caro. Está bem?
Ele pareceu ter dificuldade em olhar bem para ela.
- Oh, desculpe, Scarlett. Não estou lá muito bem. Já bebi um copinho a mais.
Àquela hora do dia? John Morland não costumava beber demais a nenhuma hora
do dia, muito menos antes do almoço. Agarrou-lhe o braço.
- Venha, Bart. Vai tomar café comigo e comer qualquer coisa.
Scarlett entrou na sala de jantar. Os passos de Morland eram vacilantes.
"Afinal, acho que vou precisar do quarto", pensou, "mas Bart é muito mais
importante que andar atrás de umas rendas. Que raio lhe pode ter acontecido?"
Após uma boa dose de café, ficou sabendo. John Morland foi-se abaixo e chorou
quando lhe contou.
- Queimaram-me os estábulos, Scarlett. Tinha levado Dijon às corridas a
Balbriggan, embora não seja uma grande corrida, pensei que ela havia de gostar de
correr na areia, e quando cheguei em casa os estábulos eram ruínas. Meu Deus, o
cheiro! Meu Deus!. Quando não consigo dormir ouço o relinchar dos cavalos.
Scarlett quase se engasgou. Pousou a xícara. Não podia ser. Ninguém faria uma
coisa tão horrível. Devia ter sido um acidente.
- Foram os meus rendeiros. Por causa das rendas, sabe? Como me podiam ter
tanto ódio? Tentei ser um bom senhorio, sempre tentei. Por que não me queimaram a
casa? Queimaram a casa de Edmund Barrow. Podiam ter queimado a minha comigo lá
dentro, não me importava. Se ao menos tivessem poupado os cavalos. Meu Deus,
Scarlett. Que mal lhes fizeram os meus pobres cavalos?
Não havia nada que ela pudesse dizer. O coração de Bart estava nos seus
estábulos... Bem, ele tinha estado fora com Dijon, o seu orgulho e alegria.
- Ainda tens Dijon. Podes começar tudo de novo, pô-la a procriar. É o cavalo mais
maravilhoso que já vi. Podes ficar com os estábulos de Ballyhara. Não te lembras?
Disseste-me que eram como uma catedral. Pomos lá um órgão. Podes criar potros ao
som de Bach. Não desanimes, Bart, tens que lutar. Eu sei, também já andei em baixa.
Mas não podes desistir, não podes.
Os olhos de John Morland tinham uma expressão mortiça.
- Vou para Inglaterra hoje à noite, no barco das oito. Nunca mais quero ver um
rosto irlandês ou ouvir uma voz. Pus Dijon em lugar seguro enquanto vendia o resto.
Ela vai entrar na corrida de hoje e, quando acabar, também se acaba a Irlanda para
mim.
Os seus olhos trágicos pelo menos estavam sóbrios. E secos. Scarlett quase
desejou que ele recomeçasse a chorar. Pelo menos, sentiria alguma coisa. Agora
parecia que nunca mais seria capaz de sentir nada. Parecia morto.
Então, subitamente, verificou-se uma transformação. Sir John Morland, baronete,
com esforço de vontade, ganhou vida. Os seus ombros endireitaram-se e a sua boca
esboçou um sorriso. Até os seus olhos ganharam um pouco de alegria.
- Pobre Scarlett, fiz-te passar um mau bocado. Perdoa-me. Eu aguento-me.
Aguentamo-nos sempre. Acaba o teu café e vem comigo à corrida. Aposto uma nota de
cinco em Dijon, em teu nome, e podes pagar o champanhe com o que ganhares
quando ela mostrar o que vale.
Scarlett nunca na vida respeitara alguém como respeitou John Morland nesse
momento. Sorriu-lhe também.
- Aposto também cinco libras e beberemos champanhe. Combinado?
Cuspiu na palma da mão e estendeu-a. Morland fez o mesmo, sorrindo.
- Linda moça - disse.
A caminho da corrida, Scarlett tentou lembrar-se do que ouvira dizer sobre as
corridas onde se compravam cavalos. Todos os cavalos em competição estavam à
venda, tendo os preços sido fixados pelos respectivos proprietários. No final das
corridas qualquer pessoa podia reclamar um dos cavalos, e o proprietário era obrigado
a vender pelo preço fixado. Ao contrário das habituais vendas de cavalos na Irlanda, ali
não havia regateio. Os cavalos que não fossem comprados teriam de ser reclamados
pelos seus proprietários. Scarlett não acreditava que os cavalos não pudessem ser
comprados antes de a corrida começar, quaisquer que fossem as regras. Quando lá
chegaram perguntou a Bart qual era o número do seu camarote. Disse que precisava
se refresccar.
Assim que ficou sozinha, perguntou onde se aceitavam as ofertas. Esperava que
Bart tivesse pedido um preço alto por Dijon. Tencionava comprá-la e enviá-la mais
tarde, quando ele já estivesse instalado na Inglaterra.
- Que quer isso dizer de Dijon já ter sido comprada? Isso só pode acontecer
depois da corrida.
O funcionário de chapéu alto esforçou-se por não sorrir.
- A senhora não é a única entendida. Deve ser dos americanos. O cavalheiro que
já fez uma oferta também é americano.
- Ofereço o dobro.
- Não pode ser, Mrs. O'Hara.
- Suponhamos que eu comprei Dijon a Sir John antes de a corrida começar.
- Impossível.
Scarlett ficou desesperada. Precisava conseguir aquele cavalo para Bart.
- Posso, no entanto, sugerir uma coisa...
- Sim, por favor. Que devo fazer? É terrivelmente importante.
- Pode perguntar ao novo proprietário se ele quer vender.
- Sim. Vou fazer isso.
Pagaria ao homem o resgate de um rei se preciso fosse. "Americano", dissera o
funcionário. Ótimo... Na América, o dinheiro fala.
- Quer me dizer quem ele é?
O homem do chapéu alto consultou uma folha de papel.
- Encontra-se no Jury Hotel. Chama-se Butler.
Scarlett já estava de saída. Cambaleou, quase perdendo o equilíbrio. Foi com a
voz sumida que perguntou:
- Não será, por acaso, Mr. Rhett Butler?
Pareceu-lhe demorar uma eternidade até o homem voltar a consultar a folha que
tinha na mão.
- Sim, é esse o nome.
Rhett! Ali. Bart devia ter-lhe escrito falando dos estábulos, da venda e de Dijon.
"Deve ter feito o que eu vinha fazer. Veio da América propositadamente para ajudar um
amigo. Ou para ter um vencedor nas próximas corridas de Charleston. Não interessa.
Nem o pobre do querido Bart interessa, Deus me perdoe. Vou ver Rhett."
Scarlett percebeu que corria empurrando as pessoas sem pedir desculpa. "Para o
diabo com todos, com tudo." Rhett estava ali, a alguns metros de distância.
- Camarote oito - disse para um empregado.
Ele apontou-o. Scarlett fez um esforço para respirar lentamente, tinha que
aparecer com um ar normal. Ninguém podia ver o seu coração bater, não é? Subiu os
dois degraus até o camarote. Cá em baixo, na pista oval, doze corredores de camisas
brilhantes esporeavam os cavalos em direção à meta. Todo mundo em volta de Scarlett
gritava, incitando os cavalos. Ela não ouviu nada.
Rhett observava a corrida através de uns binóculos. Mesmo a alguns metros de
distância ela sentiu o cheiro do uísque. Ele balançava-se para a frente e para trás.
Bêbedo? Rhett? Não. Aguentava sempre a bebida. Será que a desgraça de Bart o
afetara assim tanto?
"Olha para mim", implorou-lhe o coração. "Pousa os binóculos e olha para mim.
Deixa-me olhar-te nos olhos quando disseres o meu nome. Deixa-me ver nos teus
olhos que sentes alguma coisa por mim. Em tempos, amaste-me."
Gritos e exclamações festejaram o final da corrida. Rhett baixou os binóculos com
mão trêmula.
- Raios, Bart, é o meu sexto perdedor seguido - disse, rindo.
- Olá, Rhett - disse ela.
Ele voltou a cabeça, e ela viu os seus olhos escuros. Não pareciam sentir nada
por ela a não ser raiva.
- Olá, condessa. -Os olhos dele percorreram-na desde as botas até o chapéu
emplumado. - Não há dúvida de que estás com um ar... caro.
Voltou-se abruptamente para John Morland.
- Devias ter me avisado, Bart, para eu ter ficado no bar. Deixa-me passar.
Deixou Morland a cambaleando depois de o ter empurrado... e saiu.
Os olhos de Scarlett seguiram-no, impotentes. Depois, encheram-se de lágrimas.
John Morland tocou-lhe no ombro, desajeitadamente.
- Eia, Scarlett, peço desculpa por Rhett. Bebeu demais. Hoje já tiveste que
aguentar dois. Não é muito agradável.
- Não, não é muito agradável.
"Então é isto que Bart acha? 'Não é muito agradável' ser pisada? Não pedia
muito. Só que ele me dissesse olá e o meu nome. Que direito tem Rhett de estar
furioso e de me insultar? Será que não posso casar depois de ele me ter rejeitado?
Raios o partam. Por que é que para ele está bem divorciar-se de mim para casar com
uma charlestoniana decente e ter filhos decentes que se tornam em adultos ainda mais
decentes, e eu não me posso casar e dar à sua filha aquilo que devia ser ele a dar-
lhe?"
- Espero que tropece naqueles pés bêbados e parta o raio do pescoço - disse
para Bart Morland.
- Não sejas dura com ele, Scarlett. Passou por uma verdadeira tragédia. Até
tenho vergonha de estar preocupado com os estábulos quando há pessoas como Rhett
com problemas muito maiores. Falei-te do bebê, não falei? Pois aconteceu uma coisa
horrível. A mulher dele morreu ao dar à luz, e o bebê só resistiu quatro dias.
- Quê? Quê? Repete já isso. - Scarlett agarrou-se ao braço dele com tanta força
que lhe derrubou o chapéu.
Ohou para ela confuso, quase receoso. Havia nela algo de selvagem, algo mais
forte do que ele jamais conhecera. Repetiu que a mulher e o filho de Rhett tinham
morrido.
- Para onde foi ele? - gritou Scarlett. - Bart, deves ter alguma idéia para onde ele
possa ter ido.
- Não sei, Scarlett. O bar... o hotel... um pub qualquer.
- Ele vai contigo para Inglaterra esta noite?
- Não. Disse que tinha que visitar uns amigos. E um tipo incrível, tem amigos por
todo o lado. Sabias que ele uma vez foi a uma caçada com o vice-rei? Convidado por
um marajá qualquer. Devo dizer que estou surpreendido por ele se ter embebedado
tanto. Nem sequer me lembro de o ver beber comigo. Foi ele que me levou ao hotel a
noite passada e me meteu na cama. Estava com bom aspecto e deu-me uma boa
ajuda. Contava com ele hoje para me apoiar. Mas, quando desci esta manhã, o porteiro
disse-me que ele encomendou o café e o jornal, enquanto me esperava e, de repente,
saiu porta fora sem pagar. Fui para o bar esperar por ele. Scarlett, que é? Hoje não te
entendo... Estás chorando porquê? Fiz alguma coisa? Disse algo de errado?
Os olhos de Scarlett inundaram-se de lágrimas.
- Não, não, querido John Morland, Bart. Não disseste nada errado.
Ele me ama. Me ama. É a coisa mais bonita que eu poderia ter ouvido. Rhett veio
por minha causa. Por mim é que ele veio à Irlanda. Veio ter comigo logo que ficou livre.
Não foi pelo cavalo de Bart, pois poderia tê-lo comprado pelo correio. Luke Fenton não
o vai assustar. Deve querer-me tanto quanto o quero a ele. Preciso ir para casa. Não
sei onde o posso encontrar, mas ele pode encontrar a mim. Rhett Butler não se deixa
impressionar por títulos, arminhos e coroas. Ele me quer e irá me procurar. Sei que irá
a Ballyhara. Tenho que estar lá quando ele for.
- Adeus, Bart. Tenho que ir - disse Scarlett.
- Não queres ver Dijon ganhar a corrida? E as nossas apostas?
John Morlnad abanou a cabeça. Ela desparecera. Americanos! Uns tipos
fascinantes, mas nunca os entenderia.
Perdeu o trem para Dublim por dez minutos. O trem seguinte só partiria às quatro.
Scarlett mordeu os lábios, frustrada.
- Qual é o próximo trem em direção a leste? - O homem atrás do gradeamneto era
irritantemente lento.
- Pode ir até Ennis, se estiver para isso. Fica a leste de Atheny e depois segue
para sul. O trem até tem dois vagões novos, muito bonitos, dizem as senhoras... e
também há o trem para Kildare, mas esse não o pode apanhar pois já soou o apito... E
também há para Tuan, embora seja mais a norte que a leste, mas a máquina é a
melhor de toda a linha... Minha Senhora?
Scarlett debulhava-se em lágrimas junto ao homem da estação.
- Recebi o telegrama há dois minutos, o meu marido foi atropelado pela carroça
do leite, tenho que apanhar o trem para Kildare.
Ele a deixaria a mais de meio caminho do percurso de Trim e Ballyhara. Faria o
resto a pé, se fosse necessário.
Cada parada era uma tortura. Por que não se apressavam? Depressa, depressa,
sussurrava-lhe o espírito. Tinha a mala na melhor suite do Hotel Galway Railway, e, no
convento, as freiras de olhos inflamados davam os últimos pontos nas rendas
delicadas. Nada disso importava. Devia estar em casa, à espera, quando Rhett
chegasse. Se ao menos John Morland não tivesse levado tanto tempo para contar-lhe
tudo, poderia ter apanhado o trem para Dublim. Rhett poderia lá ir, podia ter ido para
qualquer lado depois de sair do camarote de Bart. Levou quase três horas e meia para
chegar a Moate, onde desceu. Passava das quatro, mas, pelo menos, já ia a caminho,
em vez de ter ficado à espera do trem que estava agora saindo de Galway.
- Onde posso comprar um bom cavalo? - perguntou ao chefe da estação. - Não
me interessa quanto custa desde que tenha uma sela, freios, e seja rápido.
Ainda tinha que percorrer vinte e cinco quilômetros.
O dono do cavalo queria regatear. Então não residia aí metade do prazer da
venda?, perguntou aos amigos, no Bar Rings Coach, depois de ter pago uma rodada a
todos. A maluca da mulher tinha-lhe atirado libras de ouro e partira como se o Diabo a
perseguisse. Nem queria contar a quantidade de rendas que vira e as partes da perna
sem cobertura decente.
Scarlett atravessou a ponte de Mulligan com o cavalo coxeando, antes das sete
horas. Na estrebaria entregou as rédeas a um moço.
- Ele não é coxo, só está cansado e fraco - disse. - Refresca-o com cuidado e
ficará como novo... não que seja grande coisa. Dou-te se me venderes um desses que
tens aí para os oficiais do forte. Não me digas que não tens, pois já cacei com alguns e
sei onde eles costumam alugar as montarias. Muda-Ihe a sela em menos de cinco
minutos e ganhas mais um guinéu.
Às sete e dez já ia a caminho com doze quilômetros para fazer e as indicações
para seguir por um atalho.
Passou por Trim Castle em direção a Ballyhara às nove horas. Doíam-lhe todos
os músculos do corpo e parecia que tinha os ossos partidos. Mas estava a pouco mais
de dois quilômetros de casa, e o crepúsculo era agradável e suave. Começou a cair
uma chuva miudinha. Scarlett inclinou-se para a frente e a cariciou o pescoço do
cavalo.
- Uma boa esfregadela e a melhor farinha quente de County Meath para ti, seja
qual for o teu nome. Aguentaste-te como um campeão. Agora, vamos a trote, bem
mereces descansar.
Semicerrou os olhos e deixou pender a cabeça. Essa noite dormiria como nunca
tinha dormido. Era difícil acreditar que ainda de manhã estava em Dublim e que
atravessara duas vezes a Irlanda, desde o desjejum.
Havia ainda a ponte de madeira sobre Knightbrook. "Quando passar a ponte
estou em Ballyhara."
Meio quilômetro para a cidade, trezentos metros para o cruzamento, subo o
caminho e já está. Cinco minutos, não mais." Endireitou-se na sela, deu um estalido
com a língua e esporeou o cavalo.
Passa-se algo de errado. A vila de Ballyhara é ali à frente e não há luzes nas
janelas. Habitualmente, a esta hora, os bares brilham que nem luas. Scarllet picou o
cavalo com os saltos das finas e delicadas botas. Passara pelas primeiras cinco casas
às escuras antes de avistar o grupo de homens frente ao caminho que dava para a
Casa Grande. Uniformes vermelhos. Milícia. Que pensavam eles estar fazendo na
cidade dela? Já lhes tinha dito que não os queria ali. Que chato, logo naquela noite em
que estava caindo de cansaço. "Claro, por isso é que as janelas estão às escuras, não
querem servir copos aos ingleses. Vou livrar-me deles e as coisas voltarão ao normal.
Quem me dera não estar tão descomposta. É difícil dar ordens quando se anda com a
roupa interior à mostra. É melhor ir a pé. Pelo menos, não fico com as saias pelo
joelho."
Puxou as rédeas. Foi difícil não gemer quando alçou a perna sobre o cavalo. Viu
um soldado, não, um oficial, dirigir-se ao seu encontro. Ótimo. Ela lhe diria o que
pensava, estava mesmo querendo. Os seus homens estavam na vila dela, no seu
caminho, impedindo-a de regressar à casa.
Ele deteve-se frente aos correios. Ao menos, podia ter tido a delicadeza de ir
encontrá-la ela. Scarlett encaminhou-se, hirta, até o centro da rua larga.
- Você aí, com o cavalo. Pare ou atiro.
Scarlett parou. Não devido à ordem do oficial, mas por causa da voz. Conhecia
aquela voz. Deus Todo Poderoso, aquela era a única voz no mundo que ela esperara
não ter que voltar a ouvir. Devia estar enganada, sentia-se tão cansada que só podia
estar imaginando coisas, a inventar pesadelos.
- Vocês aí nas casas. Não vos acontecerá nada se mandarem cá para fora o
Padre Colum O'Hara. Tenho um mandado de captura. Ninguém ficará ferido se ele se
entregar.
Scarlett teve vontade de rir. Aquilo não podia estar acontecendo. Ouvira bem,
conhecia aquela voz, ouvira-a bem junto ao ouvido dizer-lhe palavras de amor. Era
Charles Ragland. Uma vez, uma única vez na vida fora para a cama com um homem
que não era o marido, e agora ele viera do outro extremo da Irlanda para prender o seu
primo. Era um absurdo, uma loucura; era impossível.
Bem, pelo menos de uma coisa podia ter certeza, isto se não morresse de
vergonha à frente dele. Charles Ragland era o único oficial em todo o exército britânico
que faria o que ela lhe dissesse para fazer. Que fosse embora e a deixasse em paz e
ao primo.
Largou as rédeas do cavalo e avançou.
- Charles?
No momento em que ela o chamou, Charles Ragland gritou:
- Alto! - E disparou o revólver para o ar. Scarlett estremeceu.
- Charles Ragland! - gritou. - Você endoideceu?
Ouviu-se um estampido de um segundo tiro abafando-lhe as palavras, depois
Ragland pareceu dar um salto no ar e caiu no chão.
Scarlett desatou a correr.
- Charles! Charles!
Ouviu mais tiros, mais gritos, mas ignorou tudo.
- Charles!
- Scarlett! - Ouviu de um lado e depois do outro, e depois Charles chamou
"Scarlett" quando ela se ajoelhou ao lado dele. Sangrava horrivelmente do pescoço,
manchando a camisa encarnada.
- Scarlett, querida, baixa-te.
Colum encontrava-se ali perto, mas ela não olhou para ele.
- Charles, oh, Charles. Vou buscar um médico. Vou buscar Grainne, ela pode
ajudá-lo.
Charles ergueu a cabeça, e ela tomou-a entre as suas mãos. Sentiu as lágrimas
escorrerem-lhe pelo rosto abaixo, mas não se percebeu que chorava. Ele não podia
morrer. Charles não, era tão querido e tão gentil, fora tão meigo com ela. Não podia
morrer. Era um homem bom e gentil.
Ouviu-se um barulho terrível à volta. Algo assobiou sobre a sua cabeça. Por
Deus, que estava acontecendo? Aquilo eram tiros, havia gente aos tiros, ingleses,
estavam matando a sua gente. Não o permitiria. Mas tinha que ir buscar ajuda para
Charles, e ouviam-se botas correndo e Colum gritava e, "Oh, Meu Deus, por favor
ajuda-me, tenho de fazer parar isto, oh, Deus, Charles está ficando frio."
- Charles! Charles! Não morra.
- Ali vem o padre - alguém gritou.
Ouviram-se tiros de fusil vindos das janelas escuras das casas de Ballyhara. Um
soldado cambaleou e caiu. Um braço agarrou Scarlett por detrás, e ela lançou os
braços para se defender do atacante invisível.
- Mais tarde, minha cara, agora nada de luta - disse Rhett. - Esta é a melhor
oportunidade. Eu te carrego. Deixa-te cair.
Atirou-a para cima do ombro, segurando-a pelos joelhos, e correu, agachado
contra a sombra.
- Qual é o caminho por trás? - perguntou.
- Me põe no chão que eu mostro - disse Scarlett. Rhett colocou-a no chão. As
suas mãos fecharam-se sobre os ombros dela, e, puxando-a impacientemente para si,
beijou-a com firmeza, largando-a logo a seguir.
- Detestaria ser atingido sem conseguir aquilo por que vim aqui - disse, e ela
sentiu riso na voz dele. - Agora, Scarlett, tira-nos daqui.
Ela agarrou-lhe a mão e seguiu por uma passagem estreita entre duas casas.
- Segue-me. Isto vai dar num túnel. Depois de entrarmos, ninguém nos consegue
ver.
- Indica o caminho - disse Rhett. Largou-lhe a mão e deu-lhe um ligeiro empurrão.
Scarlett queria conservar a mão dele, nunca ter que a largar, mas o tiroteio ouvia-se ali
perto, e correu para a segurança do túnel.
As paredes eram altas e grossas. Logo que Scarlett e Rhett deram uns passos no
interior, o ruído da batalha tornou-se indistinto. Scarlett parou para recuperar fôlego,
para olhar para Rhett, para compreender que por fim estavam juntos. O seu coração
transbordava de felicidade.
Mas o aparentemente distante eco do tiroteio exigia a sua concentração e ela
lembrou-se. Charles Ragland estava morto. Vira um soldado ferido, talvez morto. A
milícia andava atrás de Colum, disparando contra o povo da sua vila, matando-os
talvez. Ela podia ter sido atingida e Rhett também.
- Temos que chegar à casa - disse. - Lá estaremos em segurança. Tenho que
avisar os criados para se manterem longe da cidade até isto acabar. Depressa, Rhett,
temos que nos apressar.
Ele agarrou-a pelo braço.
- Espera, Scarlett, talvez não devas ir para casa. Vim agora de lá. Está vazia e às
escuras, querida, e as portas estão todas abertas. Os criados fugiram.
Scarlett libertou-se. Gemeu aterrorizada, enquanto agarrava as saias e começava
a correr o mais depressa que podia. Cat. Onde estava Cat? Rhett falava, mas ela não
ouvia. Tinha que encontrar Cat.
Por detrás do túnel, na rua larga de Ballyhara, estavam quatro cadáveres vestidos
de encarnado e três cadáveres de camponeses. O livreiro jazia junto à sua janela
estilhaçada, e bolhas de sangue jorravam-lhe da boca, juntamente com as orações
sussurradas. Colum O'Hara rezou com ele, depois fez o sinal da cruz e o homem
morreu. O vidro partido refletia a luz da lua, que se tornara visível no céu escuro.
Parara de chover.
Colum atravessou o compartimento em três passadas. Agarrou o pau da vassoura
e enfiou-o na lareira. Ouviu-se um pequeno crepitar e viram-se chamas. Colum
regressou à rua com o archote. O seu cabelo branco estava mais brilhante que a Lua.
- Sigam-me, seus carniceiros ingleses - gritou, enquanto se dirigia para a igreja
protestante deserta -, e morreremos juntos pela liberdade da Irlanda.
Duas balas cravaram-se no peito, e caiu de joelhos. Levantou-se, cambaleante,
deu mais alguns passos hesitantes até que três outros tiros o atingiram, pela direita,
pela esquerda, novamente pela direita. Depois, caiu no chão.
Scarlett subiu os degraus da entrada com Rhett atrás.
- Cat! - gritou. - Cat! - As palavras ecoavam pela escadaria de pedra e pelo soalho
de mármore. - Cat!
Rhett agarrou-a pelos ombros. Só o seu rosto pálido e os olhos eram visíveis na
sombra.
- Scarlett - chamou em voz alta. - Scarlett, controla-te. Vem comigo. Temos que
sair daqui. Os criados deviam saber alguma coisa. Não é seguro ficar aqui.
- Cat!
Rhett abanou-a.
- Acaba com isso. O gato não é importante. Onde ficam os estábulos, Scarlett?
Precisamos é de cavalos.
- Oh, meu tonto - disse Scarlett. A sua voz tensa estava cheia de amor. - Não
sabes o que estás dizendo. Deixa-me ir. Preciso de encontrar Cat... Katie O'Hara, a
quem chamo Cat. É tua filha.
As mãos de Rhett fecharam-se dolorosamente sobre os braços de Scarlett.
- De que raio estás falando? - Olhou-a bem nos olhos, mas não conseguiu
decifrar a sua expressão no escuro. - Responde-me, Scarlett - insistiu, abanando-a.
- Deixa-me, raios! Agora não há tempo para explicações. Cat deve estar metida
em algum lado, mas está escuro e ela está sozinha. Deixa-me ir, Rhett, as perguntas
ficam para depois..
Scarlett tentou libertar-se, mas ele era muito forte.
- Para mim isto é muito importante - disse, com a voz embargada.
- Oh, está bem, está bem. Aconteceu quando íamos no barco e se deu a
tempestade. Tu lembras-te. Soube que estava grávida em Savannah, mas tu não foste
me ver comigo e eu não te disse nada na altura. Como ia adivinhar que te casarias com
Anne antes de saberes do bebê?
- Oh, meu Deus - gemeu Rhett, largando Scarlett. - Onde está ela? - perguntou. -
Temos que a encontrar.
- Vamos encontrá-la, Rhett. Há um candeeeiro sobre a mesa junto à porta. Risca
um fósforo para o encontrarmos.
A chama amarela do fósforo durou o suficiente para localizar um candeeiro de
cobre. Rhett segurou-o.
- Por onde começamos?
Ela pode estar em qualquer lado. Vamos.
Levou-o rapidamente até a sala de jantar e de estar.
- Cat - chamou. - Kitty Cat, onde estás?
A sua voz era forte mas não histérica. Não iria assustar a criança.
- Cat...
- Colum! - gritou Rosaleen Fitzpatrick. Correu do bar do Kennedy para o meio das
tropas britânicas, empurrando todos para poder chegar junto do corpo de Colum.
- Não disparem - gritou um oficial. - É uma mulher.
Rosaleen pôs-se de joelhos e colocou as mãos sobre as feridas de Colum.
- Ochon - gemeu, embalando-o.
O tiroteio parara; a intensidade da sua dor inspirava respeito, e os homens
desviaram o olhar. Fechou-lhe as pálpebras com dedos delicados, manchados de
sangue, e sussurrou-lhe adeus em gaélico.
Depois, agarrou na tocha e levantou-se, abanado-a e dando-lhe nova vida. O seu
rosto tinha um aspecto horrível. Foi tão rápida que não se ouviu nenhum tiro até chegar
à entrada da igreja.
- Pela Irlanda e pelo seu mártir, Colum O'Hara - gritou, triunfante, correndo para o
arsenal, brandindo a tocha. Durante um momento fez-se silêncio. Depois, a parede de
pedra da igreja explodiu para a rua numa cascata de chamas, e ouviu-se uma explosão
ensurdecedora.
O céu estava mais claro do que se fosse dia.
Fim
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