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Scarlett
Alexandra Ripley
I
Scarlett não partilhava nem o chapéu, nem a sua mágoa com ninguém. Rajadas de vento
empurravam a chuva para debaixo do chapéu, formando fios de água gelada, que a picavam e lhe
escorriam pelo pescoço, mas ela não se dava conta. Não sentia nada, estava atordoada pela perda.
Choraria mais tarde, quando fosse capaz de suportar a dor. Mantinha-a afastada de si, a dor, os
sentimentos, e os pensamentos. Só não afastara as palavras que se repetiam uma e outra vez na sua
cabeça, as palavras que prometiam a cura da dor que estava para vir e força para sobreviver até estar
curada.
"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara." "... as cinzas retornam às
cinzas, o pó ao pó..." A voz do pastor penetrou a concha do seu entorpecimento, e as suas palavras
ficaram gravadas. "Não!", gritou Scarlett para dentro. "Melly, não. Aquele não é o túmulo de Melly,
é grande demais, ela é tão pequenina, os seus ossos não são maiores que os de um passarinho. Não!
Ela não pode estar morta, não é possível."
Scarlett abanou a cabeça com força, negando a cova aberta e o caixão de pinho sem
ornamentos que estava sendo descido. Na madeira macia viam-se pequenos semi-círculos, marcas
deixadas pelos martelos que tinham pregado os pregos para fechar a tampa sobre o rosto em forma
de coração, suave e cheio de amor de Melanie.
"Não! Não podem, não devem fazer isto, está chovendo, não podem pô-la na chuva, vai
molhá-la. Ela é tão sensível ao frio, não podemos deixá-la no frio e na chuva. Não consigo olhar,
não agüento, não posso acreditar que ela se foi. Ela me ama, é minha amiga, a minha única amiga
verdadeira. Melly me ama, não ia me deixar agora, exatamente quando mais preciso dela."
Scarlett olhou para as pessoas que rodeavam a sepultura e foi invadida por uma cólera ardente.
"Nenhum deles se importa como eu, nenhum deles perdeu tanto quanto eu. Ninguém sabe como eu a
amo. Mas Melly sabe, não sabe? Sabe, tenho de acreditar que sim."
"No entanto, eles nunca acreditarão nisso. Nem Mrs. Merriwether, nem os Meades, nem os
Whitings, nem os Elsings. Olhem para eles, amontoados à volta de índia Wilkes e Ashley, parecem
um bando de corvos molhados nas suas roupas de luto. É verdade que estão a confortar a tia Pittypat,
embora todo mundo saiba que ela chora horrores por tudo e por nada, até mesmo quando deixa
queimar uma torrada. Nem lhes passa pela cabeça que talvez eu também precise de um pouco de
carinho, que era mais chegada a Melanie que qualquer deles. Agem como se eu nem estivesse aqui.
Ninguém me ligou nenhuma vez. Nem sequer Ashley. Ele sabia que eu estive lá, durante aqueles
dois dias horríveis depois de Melanie morrer, quando precisou de mim para arranjar as coisas. Todos
sabiam, até índia, berrando para mim que nem uma cabra. 'Como que é que havemos de fazer com o
funeral, Scarlett? E a comida para as pessoas? E o caixão? E os carregadores? E o talhão no
cemitério? E a inscrição da pedra tumular? E a notícia para o jornal?' Agora amparam-se uns aos
outros, chorando e gemendo. Bem, não lhes vou dar o prazer de me verem chorar, aqui sozinha, sem
ninguém em quem me encostar. Não posso chorar. Aqui não. Ainda não. Se começo a
chorar, talvez não seja capaz de parar. Quando chegar a Tara já posso chorar."
Scarlett ergueu a cabeça, cerrou os dentes para impedir que batessem de frio e para agüentar
os soluços que lhe subiam à garganta. "Isso vai acabar em breve e depois já posso voltar para casa,
para Tara."
Ali, no cemitério Oakland de Atlanta, Scarlett via-se rodeada pelos pedaços quebrados que
constituíam a sua vida desfeita. A alta espiral de granito, uma pedra cinzenta coberta de água
cinzenta, era um sombrio monumento a um mundo que desaparecera para sempre, o mundo
despreocupado da sua juventude, antes da guerra. Era o Monumento da Confederação, símbolo
orgulhoso da coragem impensada que mergulhara o Sul na destruição, carregando os seus
estandartes brilhantes. Representava tantas vidas perdidas, os amigos da sua infância, os galãs que
lhe tinham implorado valsas e beijos, nos tempos em que o maior dos seus problemas era saber qual
dos vestidos de baile, com grandes saias rodadas, devia usar. Representava o seu primeiro marido,
Charles Hamilton, irmão de Melanie. Representava os filhos, os irmãos, os maridos, os pais de todos
os presentes, que, encharcados, se juntavam na pequena colina onde Melanie estava sendo sepultada.
Havia outras sepulturas, outras marcas. Frank Kennedy, o segundo marido de Scarlett. E o
pequeno, terrivelmente pequeno, túmulo com uma pedra onde se lia Eugenie Victoria Butler e, por
debaixo, Bonnie. A sua última filha, e a mais amada.
Estava rodeada de vivos e de mortos, mas mantinha-se à parte. Parecia que metade de Atlanta
estava ali. A multidão não coubera na igreja e espalhara-se, formando um largo círculo, irregular e
sombrio, em volta daquela amarga mancha de cor sob a chuva cinzenta, a sepultura aberta, cavada
no barro vermelho da Geórgia para o corpo de Melanie Wilkes.
Na primeira fila estavam aqueles que tinham sido mais íntimos. Brancos e negros, todos,
menos Scarlett, tinham o rosto coberto de lágrimas. O velho cocheiro, o tio Peter, formava,
juntamente com Dilcey e Cookie um negro triângulo protetor à volta de Beau, o confuso filho de
Melanie.
Estava lá a velha geração de Atlanta, com os poucos descendentes que tragicamente lhe
restava. Os Meades, os Whitings, os Merriwethers, os Elsings. Estavam as suas filhas e genros,
estava Hugh Elsing, o único filho vivo, aleijado, estava a tia Pittypat Hamilton e o irmão, o tio
Henry Hamilton, tendo esquecido a sua zanga de anos no desgosto comum pela morte da sobrinha.
Mais nova, mas parecendo tão velha como os outros, índia Wilkers protegia-se no interior do grupo
e observava o seu irmão Ashley com uns olhos sombreados pelo desgosto e pela culpa. Como
Scarlett, ele estava sozinho. Tinha a cabeça descoberta, à chuva, sem se dar conta dos chapéus que
lhe estendiam para se abrigar, sem se aperceber da chuva gelada, incapaz de aceitar a finalidade das
palavras do pastor ou o estreito caixão que estava a ser descido para a cova lamacenta e
avermelhada.
Ashley, alto, magro e sem cor, o seu cabelo louro-pálido, agora quase grisalho, o rosto pálido
e marcado tão vazio como os olhos cinzentos, que olhavam em frente, sem nada verem. Mantinha-se
direito, numa atitude de saudação, a sua herança dos anos em que usara a farda cinzenta de oficial da
Confederação. Estava imóvel, sem sentir, nem compreender.
Ashley. Ele era o centro e o símbolo da vida arruinada de Scarlett. Por amor a ele, ignorara a
felicidade que tivera à mão. Afastara-se do marido, sem ver o seu amor por ela, sem admitir que o
amava, porque o seu desejo por Ashley se metera sempre no meio. E agora Rhett partira, marcando
apenas a sua presença ali com um ramo de flores, quentes e douradas como o Outono, um ramo
entre os demais. Atraiçoara a sua única amiga, desprezara o amor leal e persistente de Melanie. E
agora Melanie partira.
E até mesmo o amor de Scarlett por Ashley desaparecera, pois compreendera - tarde demais - que o
hábito de amá-lo há muito que substituíra o próprio amor.
Não o amava, nem voltaria a amar. E, agora, quando ela já não o queria, Ashley pertencia-lhe,
a herança que Melanie lhe deixara. Prometera a Melanie que tomaria conta dele e de Beau, o filho
deles.
Ashley era a causa da destruição da sua vida. E a única coisa que lhe restava dela. Scarlett
mantinha-se à parte, sozinha. Entre ela e as pessoas que conhecia em Atlanta só havia uma distância
fria e cinzenta, distância essa que Melanie preenchera em tempos, afastando-a do isolamento e do
ostracismo. Sob o guarda-chuva, no local onde Rhett devia estar para protegê-la com os seus ombros
largos e o seu amor, havia apenas um vento úmido e frio.
Manteve o rosto erguido, enfrentando o vento, aceitando a sua investida sem senti-lo. Tinha
todos os sentidos concentrados nas palavras que constituíam a sua força e a sua esperança.
"Isso vai acabar em breve e depois já posso ir para casa, para Tara." - Olhe para ela - sussurrou uma
senhora com um véu negro para a companheira que partilhava o seu chapéu. - Dura como pedra.
Disseram-me que durante todo o tempo em que esteve tratando do funeral, nem sequer verteu uma
lágrima. Toda negócios, a Scarlett. E sem coração.
- Sabe o que dizem as pessoas - respondeu-lhe um murmúrio. - Tem coração que chegue para
Ashley Wilkes.
- Acha que eles chegaram mesmo a... As pessoas que estavam perto mandaram-nas calar, mas ambas
pensavam a mesma coisa. Todos pensavam. Ninguém conseguia ver a dor nos olhos ensombrados de
Scarlett ou o seu coração desfeito sob a luxuosa pelica de pele de foca.
O tenebroso som cavo da terra caindo na madeira fez Scarlett cerrar os punhos. Tinha vontade
de tapar os ouvidos, de gritar bem alto - qualquer coisa que a impedisse de ouvir o terrível som da
sepultura que se fechava sobre Melanie. Mordeu dolorosamente os lábios. Não ia gritar, nunca.
O grito que estilhaçou a solenidade do ato veio de Ashley. - Melly... Mell... eee! - E novamente: -
Mell... ee. - Era o grito de uma alma atormentada, cheia de solidão e medo.
Avançou aos tropeções para o fundo buraco lamacento, como um homem subitamente cego, as
mãos procurando a pequena e suave criatura que fora toda a sua força. Mas não havia nada para
agarrar a não ser a chuva fria, que caía em fios prateados.
Scarlett olhou para Tommy Wellburn, para o Dr. Meade, para índia, para Henry Hamilton.
"Por que é que não fazem nada? Por que é que não o agarram? Alguém tem de o fazer parar!"
- Mell... eee... "Pelo amor de Deus! Vai partir o pescoço e eles estão ali de pé, olhando
estupidamente, vendo ele balançar na beira da cova.
- Ashley, pára! - gritou ela. - Ashley! - começou a correr, escorregando e resvalando na erva
molhada. O guarda-chuva, que atirara para o lado, rolou pelo chão, empurrado pelo vento, até ficar
preso no amontoado de flores. Agarrou Ashley pela cintura e tentou afastá-lo do perigo. Ele lutou
com ela. - Ashley, não faça isso. - Scarlett lutava contra a força dele. - Agora Melly já não pode te
ajudar. - A sua voz era dura, tentando penetrar a dor surda e demente de Ashley.
Ele parou, deixando cair os braços. Gemeu baixinho e depois o corpo abateu-se nos braços de
Scarlett, que o amparou. Só quando estava quase a largá-lo, devido ao
peso, é que o Dr. Meade e índia seguraram os braços inertes de Ashley para o erguerem.
- Já podes ir, Scarlett - disse o Dr. Meade. - Já não há mais nada para arruinares. - Mas eu... - Olhou
para os rostos que a rodeavam, os olhos ávidos de más sensações. Depois voltou-se e afastou-se no
meio da chuva. A multidão recuou, como se receasse que as saias dela, ao tocar-lhe, a conspurcasse.
Eles não podiam saber que se importava, não deixaria que vissem como a conseguiam magoar.
Scarlett levantou o queixo num desafio, deixando que a chuva lhe escorresse pela cara e pelo
pescoço. Manteve as costas e os ombros direitos até chegar aos portões do cemitério, ficando fora de
vista. Então, agarrou-se a um dos varões de ferro. Sentia-se tonta de cansaço, sem firmeza nos pés.
O cocheiro, Elias, correu para ela, abrindo um chapéu que ergueu sobre a sua cabeça curvada.
Scarlett caminhou até à carruagem, ignorando a mão que se estendera para a ajudar. No interior da
caixa forrada de felpa, deixou-se cair num canto e puxou a coberta de lã. Estava gelada até aos
ossos, horrorizada com o que tinha feito. Como é que fora capaz de envergonhar Ashley daquela
maneira em frente a todo mundo, quando há apenas algumas noites tinha prometido a Melanie que
tomaria conta dele e o protegeria, como Melly sempre tinha feito? Mas que outra coisa poderia ter
feito? Deixá-lo atirar-se para dentro da cova? Tinha que detê-lo.
A carruagem oscilava de um lado para o outro, com as enormes rodas enterradas nos
profundos sulcos de lama barrenta. Scarlett quase caiu no chão. Bateu com o cotovelo na janela,
fazendo com que uma dor aguda lhe percorresse o braço.
Não passava de uma dor física. Isso podia ela suportar. A outra dor, uma dor adiada, retardada,
sombria e negada, é que ela não agüentava. Ainda não, não aqui, não quando estava tão só. Tinha
mesmo que ir para Tara. Mammy estava lá. Mammy poria os seus braços escuros à volta dela,
Mammy a abraçaria, embalaria a sua cabeça, encostando-a no peito onde chorara todas as suas
mágoas infantis. Nos braços de Mammy podia chorar, chorar até ficar vazia, sem dor; podia
descansar a cabeça no peito de Mammy, podia descansar o seu coração ferido no amor de Mammy.
Mammy a abraçaria e lhe daria amor, partilharia a sua dor e a ajudaria a suportá-la.
- Depressa, Elias - disse Scarlett -, depressa. - Ajuda-me a tirar estas coisas molhadas, Pansy -
ordenou Scarlett à criada. - Rápido. - O seu rosto estava de uma palidez mortal, fazendo que os olhos
verdes parecessem mais escuros, mais brilhantes, mais assustadores. Com o nervoso, a jovem negra
atrapalhou-se. - Depressa, eu disse. Se me fizeres perder o trem, te dou uma chicotada.
Não podia fazer isso, Pansy sabia que não podia. Os tempos da escravatura tinham acabado.
Miss Scarlett já não era dona dela, podia ir embora quando quisesse. Mas o brilho febril e
desesperado dos olhos verdes de Scarlett fez com que Pansy duvidasse dos seus próprios
conhecimentos. Scarlett parecia capaz de tudo.
- Põe na mala o merino de lã preta, vai esfriar - disse Scarlett. Examinou a mala aberta. Lã
preta, seda preta, algodão preto, sarja preta, veludo preto. Podia continuar de luto até ao fim dos seus
dias. Ainda estava de luto por Bonnie, e agora por Melanie. "Devia arranjar alguma coisa ainda mais
escura que o preto, alguma coisa mais pesarosa, para pôr luto por mim mesma. Não vou pensar
nisso, pelo menos agora, se o fizer, enlouqueço. Penso nisso quando chegar a Tara. Lá, consigo
agüentar." - Veste- te, Pansy, Elias está esperando. E não te atrevas a esquecer-te do fumo para o
braço. Esta casa está de luto.
As ruas que se cruzavam em Five Points pareciam um pântano. Carroças, charretes e
carruagens estavam enterradas na lama. Os condutores amaldiçoavam a chuva, as ruas, os cavalos e
os outros condutores que lhes impediam o caminho.
Ouviam-se gritos, o som de chicotes a estalar e o barulho das pessoas. Em Five Points havia sempre
uma multidão, pessoas com pressa, que discutiam, se queixavam e riam. Five Points fervilhava de
vida, de dinamismo e de energia. Five Points era a Atlanta de que Scarlett gostava.
Mas não naquele dia. Nesse momento, Five Points impedia-lhe o caminho, Atlanta puxava-a
para trás. "Tenho que apanhar aquele trem, se o perder, morro, tenho de ir para Tara, para Mammy
ou vou-me abaixo."
- Elias - gritou ela -, não quero saber se precisa chicotear os cavalos até a morte, não me
interessa se tiver que atropelar todo mundo desta rua. Chegue à estação.
Os seus cavalos eram os mais fortes, o seu cocheiro o mais hábil, a sua carruagem a melhor
que o dinheiro podia comprar. Era melhor que nada se atravessasse no seu caminho, nada mesmo.
Apanhou o trem muito a tempo. A chaminé do trem lançou uma baforada de vapor. Scarlett susteve
a respiração ao ouvir o barulho das rodas indicando que o trem estava em movimento. Ali ele ia.
Outra vez. E outra ainda. A vagão rodou sacudindo. Estava finalmente a caminho.
Tudo ia ficar bem. Ia regressar a Tara. Imaginou-a ensolarada e luminosa. A casa branca e
resplandecente; as cortinas brancas esvoaçando nas janelas abertas, por cima das cintilantes folhas
verdes dos arbustos de jasmim, cheios de rebentos muito brancos.
Quando o trem deixou a estação, uma forte chuva negra escorria copiosamente pela janela ao
seu lado, mas não fazia mal. Em Tara haveria uma lareira acesa na sala de estar. Ouvir-se-ia o
crepitar das pinhas atiradas para junto dos troncos e as cortinas estariam fechadas, impedindo a
entrada da chuva, da escuridão e do mundo. Deitaria a sua cabeça no largo e macio peito de Mammy
e lhe contaria todas as coisas horríveis que tinham acontecido. Estaria, então, em condições de
pensar, de resolver tudo.
O silvar do vapor e o ruído agudo das rodas fizeram estremecer a cabeça de Scarlett.
Seria já Jonesboro? Devia ter dormitado, o que não admirava, tal era o seu cansaço. Não tinha
sido capaz de dormir durante duas noites, nem mesmo com o brande para lhe acalmar os nervos.
Não, a estação era Rough and Ready. Faltava ainda uma hora para Jonesboro. Pelo menos a chuva
parara, havia mesmo sinais de céu azul lá na frente. Talvez o sol estivesse brilhando em Tara.
Imaginou o caminho verde e a casa amada no topo do monte.
Scarlett suspirou profundamente. A sua irmã Suellen era agora a dona da casa. Ah! Melhor
seria chamar-lhe a choramingas da casa. Tudo o que Suellen fazia era lamentar-se, era tudo o que
sempre tinha feito desde que eram crianças. Agora ela tinha as suas próprias crianças, tão choronas
quanto ela costumava ser.
Os filhos de Scarlett também estavam em Tara. Wade e Ella. Tinha-os mandado com Prissy, a
ama deles, quando recebeu a notícia de que Melanie estava morrendo. Provavelmente, deveria tê-los
consigo no funeral de Melanie. Isso dera às bisbilhoteiras de Atlanta mais um motivo de conversa.
Era uma mãe desnaturada. Deixá-las dizer o que quisessem. Não teria conseguido passar aqueles
horríveis dias e aquelas pavorosas noites depois da morte de Melanie se também tivesse tido que
aturar Wade e Ella. Não pensaria neles, é tudo. Ia para casa, para Tara e para Mammy, e
simplesmente não se permitiria pensar em coisas que a aborrecessem. "Deus sabe que já tenho coisas
que me aborreçam o suficiente. Não preciso metê-los também nisto. Estou tão cansada..." Inclinou a
cabeça e fechou os olhos.
- Jonesboro, ma'am - disse o condutor. Scarlett pestanejou e endireitou-se.
- Obrigada. - Olhou em volta da cabine à procura de Pansy e das suas malas. "Esfolo aquela
rapariga viva se ela anda vagueando noutro vagão. Oh!, se ao menos uma senhora não tivesse que
andar acompanhada todas as vezes que põe o pé fora de casa. Faria tudo muito melhor sozinha. Lá
está ela." - Pansy! Tira essas malas da rede. Já chegamos. - "Agora já só faltam cinco milhas para
Tara. Em breve estarei em casa. Em casa!"
Will Benteen, o marido de Suellen, estava à espera na plataforma. Ver Will foi um choque; os
primeiros segundos eram sempre um choque. Scarlett gostava de Will e respeitava-o genuinamente.
Se pudesse ter tido um irmão, como sempre desejara, gostaria que fosse como Will. Sem a perna de
pau e sem fazer tanto barulho, claro. Não era possível confundi-lo com um cavalheiro; era
manifestamente classe baixa. Ela esquecia-se disso quando estava longe dele, e esquecia-o depois de
estar com ele um minuto, por ser um homem tão bom e tão gentil. Mesmo a Mammy tinha Will em
grande conta, e ela era o mais rigoroso juiz quando se tratava de ver quem era um cavalheiro ou uma
senhora.
- Will! - Ele caminhou na sua direção, naquele seu porte oscilante. Ela atirou os braços em
volta do pescoço dele e abraçou-o com força. - Oh, Will, estou tão contente de te ver que quase
choro de alegria.
Will aceitou o abraço sem emoção. - Também estou contente de te ver, Scarlett. Já faz tanto tempo. -
Demais. É vergonhoso. Quase um ano. - Parecem dois. Scarlett estacou. Tinha passado tanto tempo?
Não admirava que a sua vida estivesse num estado tão lamentável. Tara sempre lhe tinha dado uma
nova vida, uma nova força quando precisava dela. Como podia ter passado tanto tempo longe dela?
Will fez sinal a Pansy e dirigiu-se à carroça do lado de fora da estação. - E melhor irmos andando se
queremos chegar antes que escureça - disse ele. - Espero que não se importe com esta viagem
incômoda, Scarlett. Já que vinha à cidade, resolvi levar algumas provisões. - A carroça estava cheia
de sacos e pacotes.
- Não me importo nada - disse Scarlett com sinceridade. Estava de volta ao lar e qualquer coisa que
a levasse lá era boa. - Sobe nesses sacos de ração, Pansy.
Na longa viagem para Tara, permaneceu tão silenciosa quanto Will, absorvendo a quietude do
campo, refrescando-se com ela. O ar estava fresco, como se tivesse sido lavado, e o sol da tarde
batia quente nos seus ombros. Tinha feito bem em vir para casa. Tara lhe daria a paz e a proteção de
que precisava. E com a ajuda de Mammy seria capaz de reconstruir o seu mundo em ruínas.
Inclinou-se para a frente quando viraram para o caminho familiar, sorrindo na expectativa.
Mas quando a casa apareceu, deixou sair um grito de desespero. - Will, que aconteceu? - A fachada
de Tara estava coberta de trepadeiras, com longos e feios cordões de folhas mortas; quatro das
janelas tinham portadas soltas, e duas delas nem isso tinham.
- É o Verão, Scarlett. Trato dos reparos da casa no Inverno, quando não houver colheitas para
fazer. Começarei nas portadas daqui a algumas semanas. Ainda não estamos em Outubro.
- Oh, Will, por que não me deixas lhe dar algum dinheiro? Poderia contratar alguém para
ajudá-lo. Pode ver-se o tijolo através do cal. Dá um aspecto tão miserável.
Will respondeu pacientemente. - Não se arranja ninguém para trabalhar, nem por amor, nem por
dinheiro. Aqueles que querem trabalhar sempre arranjam que fazer, e quem não quer não me
serviria de nada. Eu e o Big Sam já nos arranjamos. O teu dinheiro não é preciso.
Scarlett mordeu o lábio e engoliu as palavras que queria dizer. Já antes tinha tido que lidar
freqüentemente com o orgulho de Will, e sabia que ele era irredutível. Estava certo, as colheitas e o
gado tinham que vir primeiro. Exigiam cuidados imediatos; e uma nova aguada de cal podia esperar.
Já podia ver os campos, estendendo-se atrás da casa. Estavam sem ervas daninhas, aparados a pouco.
Sentia-se o cheiro leve, mas rico do estrume na terra, preparando-a para a próxima plantação. A terra
vermelha parecia quente e fértil, e ela descontraiu-se. Este era o coração de Tara, a sua alma.
-Tem razão - disse a Will. A porta da casa abriu-se e o alpendre encheu-se de pessoas. Suellen
estava à frente, segurando o filho mais novo nos braços, acima da barriga inchada que repuxava as
costuras do seu desbotado vestido de algodão. O xale tinha caído sobre um dos braços. Scarlett
forçou uma alegria que não sentia.
- Meu Deus, Will, a Suellen vai ter outro bebê? Vais ter de construir mais quartos. Will riu com
prazer. - Ainda estamos tentando ter um rapaz. - Levantou a mão para saudar a mulher e as três
filhas.
Scarlett acenou também, desejando ter se lembrado de comprar alguns brinquedos para trazer
às crianças. "Oh! Deus, olhem para eles." Suellen estava com um ar carrancudo. Os olhos de Scarlett
correram pelas outras faces, procurando as faces negras... Prissy estava lá; Wade e Ella
escondiam-se atrás das suas saias... e a mulher de Big Sam, Delilah, segurava na mão a colher com
que devia ter estado mexendo o tacho... lá estava. Como era o nome dela? Ah!, sim, Lutie, a ama das
crianças de Tara. Mas onde estava Mammy? Scarlett chamou os filhos.
- Olá, queridos, a mãe está aqui - Depois voltou-se para Will e apoiou a mão no braço dele.
- Onde está a Mammy, Will? Ela não está tão velha que não possa vir me receber. - O medo
oprimia as palavras na garganta de Scarlett.
- Está de cama, doente, Scarlett. Scarlett saltou da carroça ainda em movimento, tropeçou,
recompôs-se e correu para a casa.
- Onde está a Mammy? - disse para Suellen, surda às saudações agitadas das crianças.
- Que belo cumprimento, Scarlett, mas não é pior do que eu esperaria de ti. Em que estavas
pensando para mandares Prissy sem sequer uma palavra, quando sabe que já tenho trabalho de
sobra?
Scarlett levantou a mão pronta para esbofetear a irmã. -Suellen, se não me disser onde está a
Mammy, desato aos gritos. Prissy puxou a manga de Scarlett. - Eu sabe onde está a Mammy, Miss
Scarlett, eu sabe. Ela está muito doente, então arranjamos aquele quartinho perto da cozinha para
ela, aquele que era onde costumava estar todos os presuntos pendurados quando havia muitos
presuntos. Está- se lá bem quentinho, perto da chaminé. Ela já lá estava quando eu vim, por isso não
posso dizer que também arranjei o quarto, mas eu trazi uma cadeira para lá para haver lugar para
uma pessoa se sentar se ela quisesse levantar-se ou se houvesse visitas...
Prissy falava para o ar. Scarlett estava à porta do quarto de Mammy, apoiando-se na ombreira.
Aquilo... aquela... coisa na cama não era a sua Mammy. A Mammy era uma mulher grande,
forte e farta de carnes, com uma quente pele castanha. Tinham passado pouco mais de seis meses
desde que Mammy deixara Atlanta, não era tempo
suficiente para a ter desgastado daquela maneira. Não podia ser. Scarlett não podia suportar. Aquela
não era a Mammy, não acreditava. Esta criatura estava cinzenta e encarquilhada, mal se notando o
seu vulto por debaixo da manta de retalhos que a cobria. Os dedos retorcidos moviam-se lentamente
entre as dobras. A pele de Scarlett arrepiou-se toda.
Então ouviu a voz de Mammy. Estava fraca e vacilante, mas era a voz adorada da Mammy.
- Missy, não disse à minina para não pôr o pé fora de casa sem usar um chapéu e levar uma
sombrinha? Disse e tornei a dizer...
- Mammy! - Scarlett caiu de joelhos ao lado da cama. - Mammy, é a Scarlett. A tua Scarlett.
Por favor, Mammy, não adoeças, eu não posso suportar, tu não. - Pousou a cabeça na cama, ao lado
dos ombros magros e chorou copiosamente, como uma criança. Uma mão sem peso acariciou a sua
cabeça curvada.
Não chora, minina. Não há nada tão mau que não possa ser remediado. - Tudo... - lamentou-se
Scarlett. - Correu tudo mal, Mammy. - Vá lá, é só uma xícara. E tem outro serviço de chá, tão bonito
como esse. Ainda podes dar a tua festa, como a Mammy prometeu.
Scarlett recuou, horrorizada. Olhou fixamente para Mammy e viu amor naqueles olhos
encovados, olhos que não viam a ela.
- Não - murmurou. Não conseguia agüentar. Primeiro Melanie, depois Rhett e agora Mammy; todos
os que amava a tinham deixado. Era cruel demais. Não podia ser. - Mammy - disse em voz alta. -
Mammy, me ouve. É a Scarlett. Agarrou a ponta do colchão e tentou abaná-lo. - Olha para mim -
suspirou. - Para mim, para o meu rosto. Tem que me reconhecer, Mammy. Sou eu, Scarlett.
As grandes mãos de Will agarraram-lhe os pulsos. - Não faça isso - disse ele. A sua voz era doce,
mas segurava-a com mãos de ferro. - Ela fica feliz quando está assim, Scarlett. Está outra vez em
Savannah, tomando conta da tua mãe quando ela era pequena. Esses foram tempos felizes para ela.
Era jovem; era forte; não tinha dores. Deixa estar.
Scarlett lutou para se libertar. - Mas eu quero que ela me reconheça, Will. Eu nunca lhe disse o que
ela significa para mim. Tenho que lhe dizer.
- Vai ter a tua oportunidade. Muitas vezes ela está diferente, conhece todo mundo. Sabe
também que está morrendo. Assim é melhor. Agora vem comigo. Estão todos à tua espera. A Delilah
ouve a Mammy da cozinha.
Scarlett deixou Will ajudá-la a pôr-se de pé. Toda ela estava paralisada, até o coração. Não
sentia nada. Seguiu-o em silêncio até à sala de estar. Suellen começou imediatamente a recriminá-la,
retomando as suas queixas onde tinha parado, mas Will mandou-a calar-se.
- Scarlett sofreu um duro golpe, Sue, deixa-a em paz. - Colocou uísque num copo e o pôs na
mão de Scarlett.
O uísque ajudou. A sensação familiar de ardor espalhou-se pelo seu corpo, atenuando a dor.
Estendeu o copo vazio a Will, e ele serviu-lhe um pouco mais.
- Olá, queridos - disse aos filhos -, venham dar um abraço na mãe. - Scarlett ouviu a sua
própria voz; soava como se pertencesse a outra pessoa qualquer; mas, ao menos, estava dizendo o
que devia.
Passou todo o tempo que podia no quarto de Mammy, ao lado dela. Depositara todas as
esperanças no conforto que os braços de Mammy lhe dariam, mas agora eram os seus jovens e fortes
braços que seguravam a velha negra moribunda. Scarlett
levantava aquela massa informe para dar banho a Mammy, para lhe mudar os lençóis, para a ajudar
quando lhe custava respirar, para persuadi-la a deixá-la meter-lhe algumas colheres de caldo na
boca. Cantava as canções de embalar que Mammy lhe tinha cantado tantas vezes e quando ela, em
delírio, falava à falecida mãe de Scarlett, esta respondia-lhe com as palavras que pensava que a mãe
teria dito.
Por vezes, os olhos úmidos de Mammy reconheciam-na, e os lábios gretados da velha mulher
sorriam com a visão da sua menina favorita. Depois, a sua voz trêmula repreendia Scarlett, tal como
tinha feito quando era criança. "O seu cabelo está todo despenteado, Miss Scarlett, agora vá dar-lhe
cem escovadelas como a Mammy lhe ensinou"; ou: "Não devia vestir esse vestido todo amarrotado.
Vá vestir alguma coisa limpa e engomada antes que alguém a veja"; ou: "Tu parece pálida que nem
um fantasma, Miss Scarlett. Andaste pondo pó-de-arroz na cara? Vá já lavá-la imediatamente."
O que quer que fosse que Mammy mandasse, Scarlett prometia fazer. Não havia tempo
suficiente para obedecer antes que Mammy ficasse de novo inconsciente ou voltasse a esse outro
mundo de que Scarlett não fazia parte. Durante o dia, e à noite, Suellen ou Dilcey, ou mesmo Will
partilhavam a vigília, e Scarlett podia dormir uma meia hora de sono solto, enroscada na velha
cadeira de balanço. Mas à noite fazia a vigília sozinha. Baixou a chama do candeeiro a óleo e
segurou nas suas as mãos magras de Mammy. Enquanto a casa e Mammy dormiam, podia
finalmente chorar, e as suas lágrimas de sofrimento aliviavam-lhe um pouco a dor.
Uma vez, naquela hora calma antes do amanhecer, Mammy acordou. - Por que está tu chorando,
querida? - murmurou ela. - A velha Mammy está pronta para pousar o seu fardo e repousar nos
braços do Senhor. Não é preciso levar as coisas assim. - A sua mão agitou-se na de Scarlett,
libertou-se e bateu na cabeça curvada de Scarlett. - Pára, vá. Nada é tão mau como você pensa. -
Desculpa - soluçou ela. - Não consigo parar de chorar. Os dedos retorcidos de Mammy puxaram o
cabelo embaraçado de Scarlett para trás.
- Diga à velha Mammy o que está a perturbar o seu cordeirinho. Scarlett olhou para aqueles
queridos, sábios e velhos olhos e sentiu uma dor mais profunda do que já tinha alguma vez sentido.
- Fiz tudo errado, Mammy. Não sei como pude fazer tantas asneiras, não compreendo.
- Miss Scarlett fez o que tinha que fazer. Não pode ninguém fazer mais do que isso. O bom
Deus mandou-lhe alguns fardos pesados e você carregou. Não vale a pena perguntar por que é que
eles foram postos nos seus ombros ou o que lhe custou carregá-los. O que 'tá feito 'tá feito. Não se
aflija agora. - As pesadas pálpebras de Mammy fecharam-se sobre as lágrimas que brilhavam na luz
fraca, e a sua respiração irregular abrandou, até que adormeceu.
"Como posso não me afligir?", quis Scarlett gritar. "A minha vida está destruída, e não sei o
que fazer. Preciso de Rhett, e ele se foi embora. Preciso de você, e está também me deixando."
Levantou a cabeça, limpou as lágrimas na manga e endireitou os ombros doloridos. As brasas
do fogão estavam quase apagadas, e o balde do carvão estava vazio. Tinha que voltar a enchê-lo,
tinha que alimentar o fogo. O quarto estava começando a gelar, e a Mammy tinha que estar sempre
quente. Scarlett aconchegou a manta de retalhos já desbotada sobre a frágil forma de Mammy.
Depois pegou o balde e saiu para a fria escuridão do pátio. Apressou-se em direção ao depósito do
carvão, desejando ter-se lembrado de pôr um xale.
Não havia luar, apenas um quarto crescente prateado e escondido por detrás de uma nuvem. O
ar estava pesado com a umidade da noite, e as poucas estrelas que não estavam escondidas pelas
nuvens pareciam muito longe e brilhavam como se fossem gelo. Scarlett estremeceu. A escuridão à
sua volta parecia sem forma, infinita. Tinha corrido cegamente até o centro do pátio, e agora não
conseguia distinguir as formas familiares da casa do fumeiro e do celeiro, que deviam estar perto.
Voltou-se, subitamente em pânico, procurando a massa branca da casa que acabara de deixar. Mas
também ela estava negra e sem forma. Não se via luz em lado nenhum. Era como se estivesse
perdida num mundo deserto e silencioso. Nada mexia na noite, nem uma folha, nem uma pena na
asa de um pássaro. O terror abanou os seus nervos retesados e quis fugir dali. Mas para onde? Tudo
ali era escuridão desconhecida.
Scarlett cerrou os dentes. Que idiotice era aquela? "Estou em casa, em Tara, e o vento escuro e
frio irá embora logo que o Sol se levante." Tentou rir; o som agudo e pouco natural a fez dar um
salto.
"Dizem que sempre está mais escuro antes da madrugada", pensou ela. "Calculo que isto seja
prova disso. Estou com uma enxaqueca, é tudo. Não vou ceder, não há tempo para isso, o fogão
precisa de ser alimentado." Pôs uma mão à frente, apalpando a escuridão, e caminhou em direção ao
local onde o depósito do carvão deveria estar, perto da pilha de lenha. Uma cova no chão a fez
tropeçar e caiu. O balde caiu com grande estrondo e se perdeu.
Cada átomo exausto e assustado do seu corpo gritava-lhe que devia desistir. Devia ficar onde
estava, abraçando a segurança do chão invisível debaixo de si, até que o dia raiasse e pudesse ver.
Mas Mammy precisava do calor e da luz amarela e reconfortante das chamas que se viam através
das janelas do fogão.
Scarlett pôs-se lentamente de joelhos e apalpou à sua volta, à procura do balde do carvão.
Com certeza nunca tinha havido uma tal escuridão no mundo. Nem mesmo uma noite com um ar tão
frio e úmido. Abria muito a boca para respirar. Onde estaria o balde? Onde estaria a madrugada?
Os seus dedos esbarraram com um metal frio. Gatinhou pelo chão em direção a ele. As mãos
abraçaram as paredes enrugadas do balde. Sentou-se quieta e segurou-o junto ao peito, num abraço
desesperado.
"Oh, Senhor, estou completamente às avessas. Não sei onde está a casa, muito menos a caixa
do carvão. Estou perdida na noite." Olhou freneticamente em torno de si, procurando uma luz
qualquer, mas o céu estava negro. Até mesmo as frias e distantes estrelas tinham desaparecido.
Por um momento, quis desatar a chorar. Gritar e gritar até acordar alguém na casa, alguém que
acendesse uma luz, que viesse procurá-la e a conduzisse para casa. O orgulho proibia-lhe isso.
Perdida no seu próprio quintal, apenas a alguns passos da porta da cozinha! Nunca se esqueceria
dessa vergonha.
Passou a asa do balde pelo braço e começou a rastejar desajeitadamente na terra escura. Mais
cedo ou mais tarde iria de encontro a alguma coisa - à casa, à pilha de lenha, ao celeiro, ao poço e
encontraria o caminho. Seria mais rápido levantar-se e caminhar. Não se sentiria tão idiota, mas
podia cair de novo, e desta vez torcer um tornozelo, ou coisa do gênero. Então, ficaria desamparada
até que alguém a encontrasse. Não importava o que tivesse que fazer, qualquer coisa era melhor do
que ficar ali sozinha, desamparada e perdida.
- Onde haveria uma parede? Devia haver uma em algum lugar por ali. Parecia-lhe que tinha
rastejado quase até Jonesboro. O pânico tocou-a levemente. E se a escuridão nunca mais levantasse,
se ela continuasse a rastejar e a rastejar para sempre, sem encontrar nada?
"Pára com isso!", disse a si própria. "Pára com isso já!" A sua garganta fazia uns ruídos
abafados.
Fez um grande esforço para se pôr de pé. Respirou lentamente e tentou que a cabeça tomasse
conta do seu coração sobressaltado. Era Scarlett O'Hara, disse a si própria. Estava em Tara, e
conhecia cada canto daquele lugar melhor que as suas próprias mãos. Que mal fazia não conseguir
ver dois palmos à sua frente? Sabia o que lá estava, tudo o que tinha a fazer era encontrar qualquer
coisa.
E faria isso pelos seus pés, não de gatas como um bebê ou um cão. Levantou o queixo e
endireitou os ombros magros... Graças a Deus ninguém a tinha visto estendida ao comprido na lama,
avançando palmo a palmo, com medo de se levantar. Nunca em toda a sua vida tinha sido derrotada.
Nem pelo exército do velho Sherman, nem pelo pior que os carpetbaggers (palavra com sentido
depreciativo que designava pessoas vindas do Norte para tomar parte ativa na política no Sul dos
Estados Unidos, entre 1860 e 1870.) p odiam fazer. Ninguém, nada poderia derrotá-la, a não ser que
ela o permitisse. Nesse caso, mereceria. A simples idéia de estar com medo, no escuro, como uma
qualquer choramingas covarde!
"Acho que deixei as coisas me abaterem mais do que alguém pode agüentar", pensou com
aversão, e o seu próprio desdém reconfortou-a. "Não deixarei que isto aconteça de novo, nunca. Não
importa o que aconteça. Uma vez que se foi até ao fundo, o caminho apenas pode melhorar. Se fiz
da minha vida uma grande confusão, irei pôr tudo em ordem. Não vou ficar parada."
Scarlett segurou o balde junto a si e caminhou em frente com passos firmes. Quase ao mesmo
tempo o balde de lata bateu em qualquer coisa fazendo um barulho estridente. Riu alto quando sentiu
o odor forte da resina nos pinheiros cortados à pouco. Estava perto da pilha de lenha e o depósito do
carvão era mesmo ali ao lado. Era exatamente o local onde tencionara ir.
A porta de ferro do fogão fechou-se sobre as chamas renovadas. O estrondo da porta ao fechar
fez Mammy agitar-se na cama. Scarlett apressou-se a aconchegar-lhe novamente a manta. O quarto
estava frio.
Mammy, por entre a sua dor, olhou de soslaio para Scarlett. - Tu tem a cara suja, e as mãos também
- murmurou com a voz enfraquecida. - Eu sei - disse Scarlett. - Vou já lavá-las. - Antes que a velha
mulher sucumbisse, Scarlett beijou-lhe a testa . - Amo-te, Mammy.
- Não precisa me dizer o que eu já sabe... - Mammy caiu de novo no sono, fugindo à dor.
- Sim, é preciso - disse-lhe Scarlett. Sabia que Mammy não podia ouvi-la, mas falou alto, para
si. - É necessário.
- Nunca disse a Melanie, e nunca disse a Rhett, até que foi tarde demais. Nunca tive tempo
para saber que os amava, nem a ti. Ao menos contigo não cometerei o erro que fiz com eles.
Scarlett olhou fixamente para a cara cadavérica da velha mulher moribunda. - Amo-te, Mammy! -
sussurrou. - Que vai ser de mim quando não te tiver para me amar?
2
A porta do quarto da doente abriu-se com estrondo e a cabeça de Prissy espreitou de lado.
- Miss Scarlett? Mr. Will diz para eu vir ficar com a Mammy enquanto vai tomar o café da
manhã. Delilah diz que tu vai se esgotar com toda essa vigília, e ela arranjou- lhe uma bela fatia de
presunto com molho para as suas papas de milho.
- Onde está o caldo de carne para a Mammy? - perguntou Scarlett imediatamente - A Delilah
sabe que tem de trazer um caldo quente logo de manhã.
- Tenho aqui mesmo na mão. - Prissy empurrou a porta com o cotovelo, o tabuleiro à sua
frente. - Mas a Mammy está dormindo, Miss Scarlett. Vai acordá-la para beber o caldo?
- Mantém tapado e põe o tabuleiro junto ao fogão. Dou-Ihe quando voltar. - Scarlett sentiu-se
esfomeada. O rico aroma que se evaporava do caldo deu-lhe cólicas no estômago, de tão vazio que
estava.
Lavou a cara e as mãos na cozinha. O vestido também estava sujo, mas servia para agora.
Vestiria um limpo depois de ter comido.
Will estava mesmo levantando-se da mesa quando Scarlett entrou na sala de jantar. Os
agricultores não podem perder tempo. O dourado sol da manhã, do lado de fora da janela, prometia
um dia radiante e quente.
- Posso ajudá-lo, tio Will? - perguntou Wade, esperançoso. Saltou da cadeira e quase a
derrubou. Viu então a mãe e o seu rosto perdeu o ar ansioso. Teria que ficar sentado à mesa e usar as
suas melhores maneiras, ou ela ficaria zangada.
Movimentou-se lentamente para puxar a cadeira a Scarlett. - Que boas maneiras tens, Wade - disse
Suellen, lisonjeira. - Bom dia, Scarlett, não se sentes orgulhosa do seu jovem cavalheiro?
Scarlett olhou estupefata para Suellen e depois para Wade. Meu Deus, ele era apenas uma
criança! Que diabo quereria Suellen com aquela doçura forçada? Pela maneira como falava, parecia
que Wade era um parceiro de dança com o qual se podia namoriscar.
Reparou com surpresa que ele era um belo rapaz. Era alto de mais para a sua idade; parecia ter
13 anos, apesar de ainda não ter 12. Suellen não acharia isso tão bom se tivesse que comprar as
roupas que lhe deixavam de servir tão depressa.
"Meu Deus! Que vou eu fazer sobre das roupas de Wade? Rhett é que faz sempre o que é
preciso. Não sei o que os rapazes vestem, nem onde comprar essas coisas. Os pulsos já saem fora
das mangas, provavelmente, precisa de um tamanho maior. E rápido. A escola deve esta começando,
se é que não começou já. Nem sequer sei qual a data de hoje."
Scarlett deixou-se cair na cadeira que Wade segurava. Esperava que ele fosse capaz de lhe
dizer tudo o que precisava saber. Mas primeiro tomaria o café.
- Me dá tanta água na boca que me parece que estou gargarejando. Obrigada, Wade Hampton -
disse de forma ausente. O presunto tinha ótimo aspecto. Era rosado e suculento e a gordura que o
envolvia estava tostada e estaladiça.
Deixou cair o guardanapo no colo sem se preocupar em desdobrá-lo e pegou a faca e o garfo.
- Mãe? - disse Wade cautelosamente. - Sim? - Scarlett cortou o presunto. - Posso ir ajudar o tio Will
nos campos, por favor? Scarlett quebrou uma regra de ouro das boas maneiras à mesa e falou com
comida na boca. O presunto estava delicioso.
- Sim, podes ir. - As suas mãos estavam ocupadas cortando outro pedaço. - Eu também - assobiou
Ella. - Eu também - ecoou Susie, filha de Suellen. - Não foi convidada - disse Wade. - O campo é
coisa de homens. As meninas ficam em casa.
Susie desatou a chorar. - Vê o que fez! - disse Suellen a Scarlett. - Eu? Não é a minha filha que está
fazendo essa barulheira toda. - Scarlett procurava sempre evitar as discussões com Suellen, quando
vinha a Tara, mas os hábitos de uma vida inteira eram fortes demais. Tinham começado a brigar
desde que eram bebês e nunca tinham realmente parado.
"Não vou deixá-la arruinar a minha primeira refeição. Sabe Deus há quanto tempo estou com
fome", pensou Scarlett; e concentrou-se em espalhar manteiga sobre o monte brilhante formado
pelas papas de milho no prato à sua frente. Nem mesmo levantou os olhos quando Wade seguiu Will
porta afora e os lamentos de Ellen se juntaram aos de Susie.
- Calem-se as duas! - gritou Suellen. Scarlett deitou molho de presunto sobre as papas, amontoadas
sobre outro pedaço de presunto, e desfez o arranjo com o garfo.
- O tio Rhett deixava-me ir - resmungou Ella. "Não vou dar-lhe ouvidos", pensou Scarlett. "Vou
fechar os ouvidos e saborear o meu café." Encheu a boca de presunto, papas e molho.
- Mãe... mãe, quando é que o tio Rhett vem para Tara? - A voz de Ella penetrava de uma
forma aguda nos seus ouvidos.
Scarlett ouviu as palavras dela, apesar de tudo, e a deliciosa comida tornou-se serragem na sua
boca. Que dizer? Como podia responder à pergunta de Ella? "Nunca!" Era essa a resposta? Não
podia, nem ela própria acreditaria nisso. Olhou com repugnância para a face rosada da filha. Ella
tinha estragado tudo. "Não podia ao menos ter me deixado em paz até eu acabar o café?"
Ella tinha o cabelo ruivo e encaracolado do pai, Frank Kennedy. Os cabelos espetavam-se à
volta da sua face manchada pelas lágrimas como se fossem rolos de arame enferrujado. Por mais que
Prissy os acamasse com água, escapavam-se sempre das apertadas tranças que lhe fazia. O corpo de
Ella também parecia feito de arame. Era muito magro e rígido. Era mais velha que Susie. Tinha
quase sete anos, enquanto Susie tinha seis e meio. Mas Susie já tinha um palmo a mais de altura e
era tão mais forte que podia brigar com Ella impunemente.
"Não admira que Ella queira que Rhett venha", pensou Scarlett. "Ele gosta mesmo dela e eu
não. Irrita-me, tal como Frank me irritava, e por mais que tente não consigo amá-la."
- Quando é que o tio Rhett vem, mãe? - perguntou Ella, de novo. Scarlett arredou a cadeira da
mesa e levantou-se.
- Isso é coisa de gente crescida - disse. - Vou ver como está a Mammy. - Não suportava pensar
em Rhett agora. Pensaria em tudo isso mais tarde, quando não estivesse tão aborrecida. Era mais
importante, muito mais, fazer a Mammy engolir o caldo. - Só mais uma colherada, Mammy querida,
também o quero muito. Mas ele foi-se, Mammy, Não posso dar o que tu queres. Reparou que
Mammy tinha entrado de novo num estado próximo do coma e ficou imensamente
agradecida. Pelo
menos, Mammy não tinha dores. O seu próprio coração doía-lhe como se estivesse cravejado de
facas. Como precisava de Rhett, especialmente agora que a Mammy se encaminhava cada vez mais
para a morte. "Se ele estivesse aqui, comigo, sentindo a mesma mágoa que eu sinto..." Rhett amava
Mammy e ela também o amava. Rhett dizia que nunca tinha se esforçado tanto na vida por ter
alguém do seu lado, nem se tinha importado tanto com a opinião de alguém quanto se importava
com a dela. Ficaria desolado quando soubesse que Mammy tinha partido, desejaria tanto ter podido
dizer-lhe adeus...
Scarlett ergueu a cabeça e arregalou os olhos. Claro. Que parva estava sendo. Olhou para
aquela mulher velha e definhando, tão pequena e leve debaixo da colcha.
- Oh, Mammy, querida, obrigada - suspirou. - Vim para junto de ti em busca de ajuda, porque
tu pões tudo de novo em ordem, e vais ajudar-me, tal como sempre fizeste. Encontrou Will no
perante Ti enquanto viver." Lia alto a Mammy passagens da Bíblia muito usada que estava na
mesa-de- cabeceira.
Lia os salmos, e a sua voz não dava sinal da dor e da raiva do seu coração.
Quando a noite caiu, Suellen acendeu o candeeiro e substituiu Scarlett, lendo, virando as finas
páginas, lendo. Então, Scarlett tomava o seu lugar. E depois Suellen, até que Will a chamou para
descansar.
- Tu também, Scarlett - disse ele. - Eu fico com a Mammy. Não sou um grande leitor, mas sei
muitas passagens da Bíblia de cor.
- Recita, então. Mas eu não deixo a Mammy. Não posso. Sentou-se no chão e encostou as costas
cansadas à parede, escutando os aterradores sons da morte. Quando a primeira luz do dia surgiu nas
janelas, os sons tornaram-se subitamente diferentes. Cada inspiração era mais ruidosa e maiores os
silêncios entre cada uma. Scarlett pôs-se imediatamente de pé. Will levantou-se da cadeira.
- Vou chamar Suellen! - exclamou. Scarlett retomou
o seu lugar ao pé da cama.
- Queres que segure a tua mão, Mammy? Deixa-me pegar-lhe. A testa de Mammy enrugou-se com o
esforço. - Tão... cansada. - Eu sei, eu sei. Não te canses mais falando. - Queria... esperar por... Mist'
Rhett. Scarlett engoliu em seco. Não podia chorar agora. - Não precisas esperar Mammy. Podes
descansar. Ele não pode vir. - Ouviu passos apressados na cozinha. - Suellen vem a caminho. E
Mister Will também. Estaremos todos aqui contigo, querida. Todos te amamos.
Uma sombra caiu sobre a cama e Mammy sorriu. - Ela quer a mim - disse Rhett. Scarlett ergueu os
olhos para ele, incrédula. - Sai daí - disse ele delicadamente -, deixa-me chegar perto de Mammy.
Scarlett pôs-se de pé. Os seus joelhos fraquejaram ao sentir a proximidade dele, a sua
grandeza, a força e a masculinidade. Rhett passou à sua frente e ajoelhou-se ao pé de Mammy.
Ele viera. Tudo ia ficar bem. Scarlett ajoelhou-se ao seu lado. O ombro dela tocava-lhe no
braço e Scarlett sentiu-se feliz, apesar da tristeza por causa de Mammy. Ele viera; Rhett estava ali.
"Que idiota fui em ter perdido a esperança daquela maneira."
- Quero que tu faça uma coisa para mim - dizia Mammy. A voz dela era forte, como se tivesse
guardado as suas forças para aquele momento. A respiração era profunda e rápida, quase palpitante.
- Tudo, Mammy - disse Rhett. - Farei o que quiseres. - Enterra-me com aquela combinação de seda
vermelha que me deste. Trata disso Eu sei que a Lutie já anda com o olho nela.
Rhett sorriu. Scarlett estava chocada. Como podia ele rir com a Mammy a morrer? Então,
percebeu que a Mammy também estava a rir, sem fazer qualquer som.
Rhett pôs a sua mão no peito. - Juro-te que Lutie nunca lhe porá a vista em cima, Mammy. Vou
fazer que ela vá contigo para o céu.
Mammy esticou as mãos na direção dele, acenando-lhe para aproximar o ouvido mais próximo
dos seus lábios.
- Tome conta de Miss Scarlett - disse ela. - Precisa de carinho e eu não posso dar-lhe mais.
Scarlett susteve a respiração. - Tomarei conta dela, Mammy - respondeu Rhett. - Jura isso - A ordem
era tímida, mas firme. - Eu juro - replicou Rhett. Mammy suspirou calmamente. Scarlett deixou a
sua respiração sair com um soluço. - Oh, Mammy querida, obrigada - gritou. - Mammy... - Ela não
te pode ouvir, Scarlett, foi-se - Rhett passou a sua grande mão, com delicadeza, pelo rosto de
Mammy e fechou-lhe os olhos. - Foi todo um mundo que se acabou, uma era. - Disse ele
suavemente. - Que descanse em paz.
- Amém - disse Will da entrada. Rhett pôs-se de pé e virou-se. - Olá, Will e Suellen. - O seu último
pensamento foi para ti, Scarlett! - exclamou Suellen. - Sempre foste a favorita dela. - Começou a
chorar copiosamente. Will tomou-a nos braços e abraçou- a contra o peito, dando-lhe pancadinhas
nas costas.
Scarlett correu para Rhett e ergueu os braços para o abraçar.
- Senti muito a tua falta - disse ela. Rhett pegou-lhe nos braços e puxou-os para baixo. - Não,
Scarlett - disse ele. - Nada mudou. - A voz dele era calma. Scarlett era incapaz de tal
constrangimento. - Que queres dizer com isso? - gritou. Rhett retraiu-se. - Não me faças repeti-lo,
Scarlett. Sabes muito bem o que quero dizer. - Não sei. Não acredito em ti. Não podes deixar-me,
não podes. Não numa altura destas, em que preciso de ti tão desesperadamente. Eu amo-te. Oh,
Rhett, não olhes para mim assim. Por que não me abraças e me consolas? Prometeste à Mammy.
Rhett abanou a cabeça com um sorriso desmaiado nos lábios. - És tão infantil, Scarlett. Já me
conheces há tanto tempo e mesmo assim, quando queres, esqueces tudo o que aprendeste. Era uma
mentira. Menti para tornar felizes os últimos momentos de uma pessoa querida. Lembra-te, meu
tesouro, eu sou um canalha, não um cavalheiro.
Rhett caminhou em direção à porta. - Não vás Rhett, por favor - suplicou Scarlett. Colocou ambas as
mãos sobre a boca e calou-se. Nunca mais seria capaz de se respeitar se lhe implorasse de novo.
Voltou a cabeça decididamente, incapaz de suportar a visão da partida de Rhett. Viu nos olhos de
Suellen uma alegria triunfante e nos de Will viu pena.
- Ele vai voltar - disse ela, mantendo a cabeça bem erguida. - Ele volta sempre - "Se o disser
muitas vezes", pensou, "talvez consiga acreditar. Talvez se torne verdade."
- Sempre - disse ela. Respirou fundo. - Onde está a combinação de Mammy, Suellen? Quero
ter certeza de que Mammy vai ser enterrada com ela.
Scarlett conseguiu manter o controle até que a penosa tarefa de dar banho e vestir o corpo de
Mammy terminou. Mas quando Will trouxe o caixão, começou a tremer. Fugiu dali sem uma
palavra.
Encheu metade do copo com uísque que tirou da garrafa de mesa, na sala de jantar. Bebeu-o
em três goles. O calor da bebida percorreu o seu corpo exausto e os tremores cessaram.
"Preciso de ar", pensou. "Preciso de sair desta casa, para longe de todos eles." Podia ouvir as
vozes assustadas das crianças, na cozinha. Os nervos gelaram-lhe a pele. Pegou nas saias, ergueu-as
e correu para longe.
Lá fora, o ar da manhã era fresco e calmo. Scarlett respirou profundamente, saboreando a
frescura do ar. Uma brisa leve levantou o cabelo que se pegara ao seu pescoço suado. Quando fora a
última vez que escovara o cabelo cem vezes? Não se lembrava. Mammy ficaria furiosa. Oh! Apertou
os nós dos dedos contra a cabeça, para conter o sofrimento, e tropeçou nas ervas altas da pastagem,
indo pela colina abaixo até aos bosques altos que marginavam o rio. Os pinheiros, com os seus altos
picos, exalavam um cheiro doce. Faziam sombra sobre um fofo e espesso tapete de agulhas
esbranquiçadas, caídas dos pinheiros ao longo de centenas de anos. Abrigada por eles, Scarlett
estava sozinha, sem que a pudessem ver da casa. Encolheu-se no chão almofadado, fatigada. Depois
instalou-se numa posição confortável, com as costas contra o tronco de uma árvore. Tinha que
pensar; devia haver alguma maneira de salvar a sua vida da ruína. Recusou-se a pensar de forma
diferente.
Não conseguia impedir a sua mente de vaguear. Estava tão confusa, tão cansada.
Já antes se tinha sentido cansada. Mais cansada que agora. Quando teve que vir de Atlanta
para Tara, com o exército ianque por todos os lados, não deixou que o
cansaço a fizesse parar. Quando teve que roubar comida por todo o lado, não desistiu por as suas
pernas e braços serem como dois pesos mortos puxando por ela. Quando apanhou algodão até as
mãos ficarem em carne viva, quando se agarrou ao arado como se fosse uma mula, quando teve que
encontrar forças para continuar, apesar de tudo, não desistiu por estar cansada. Não ia desistir agora.
Desistir não estava na sua natureza.
Olhou fixamente em frente, fazendo face a todos os seus demônios. A morte de Melanie... a
morte de Mammy... Rhett a deixá-la, dizendo que o seu casamento estava morto. Isso era o pior. A
partida de Rhett. Era isso que tinha que encarar. Ouviu a sua voz.
- Nada mudou. Não podia ser verdade!... Mas era. Tinha que arranjar maneira de o reconquistar.
Sempre tinha sido capaz de ter qualquer homem que quisesse, e Rhett era um homem como qualquer
outro, não era?
Não, ele não era como outro homem qualquer, era por isso que o queria. Um medo súbito fê-la
estremecer. E se não ganhasse desta vez? Sempre tinha vencido, de uma maneira ou de outra.
Sempre tivera o que queria, de alguma maneira. Até agora.
Um pássaro gritou roucamente. Scarlett olhou para cima e ouviu um segundo grito de
escárnio.
- Deixa-me em paz - gritou. O pássaro voou para longe, num bater de asas azul- garrido. Tinha
que pensar, lembrar o que Rhett tinha dito. Não nessa manhã ou na noite anterior
ou quando quer
que Mammy morrera. "Que foi que ele disse em nossa casa, na noite em que deixou Atlanta? Ele
falou e continuou a falar, explicando as coisas. Estava tão calmo, tão paciente quanto se pode ser
com as pessoas com quem não nos importamos o suficiente para nos zangarmos com elas."
A sua mente foi buscar uma frase quase esquecida, e alheou-se da sua exaustão. Tinha
encontrado o que precisava. Sim, sim, lembrava-o claramente. Rhett tinha-lhe oferecido o divórcio.
Então, depois da furiosa rejeição dela, tinha-o dito. Scarlett fechou os olhos, imaginando ouvir a voz
dele. "Voltarei com a freqüência suficiente para impedir os mexericos." Ela sorriu. Não tinha
vencido ainda, mas havia uma hipótese disso acontecer. E isso era suficiente para continuar.
Levantou-se, sacudiu as agulhas dos pinheiros dos cabelos e do vestido. Devia estar toda suja e
amarrotada.
As águas amarelas e barrentas do rio Flint corriam lenta e profundamente debaixo da saliência
em que se encontravam os pinheiros. Scarlett olhou para baixo e atirou uma mão-cheia de agulhas de
pinheiro. As agulhas foram corrente abaixo, fazendo remoinhos.
- Sempre andando - murmurou. - Tal como eu. Não olhes para trás, o que está feito, feito está.
Vai em frente. - Olhou de soslaio para o céu. Uma fila de brilhantes nuvens brancas estava passando.
Pareciam todas cheias de vento. "Vai esfriar", pensou automaticamente. "É melhor arranjar algo
quente para usar esta tarde, no funeral." Virou-se em direção à casa. Tinha que voltar para lá, para se
arrumar. Estar arrumada era uma coisa que devia a Mammy. Irritava-se sempre quando Scarlett
estava desarrumada.
3
Scarlett desequilibrou-se. Já devia ter estado assim tão cansada alguma vez na vida, mas não
se recordava. Estava cansada demais para se lembrar.
"Estou farta de funerais, estou farta de mortes, estou farta de ver a minha vida ir por água
abaixo, peça por peça, deixando-me completamente só."
O cemitério de Tara não era muito grande. O caixão de Mammy parecia grande, muito maior
que o de Melly, pensou Scarlett, sem nexo. Mas Mammy tinha encolhido tanto que provavelmente já
não era tão grande. Não precisava de um caixão assim.
O vento era cortante, apesar de o céu estar azul e o sol brilhar. Folhas amarelecidas rolavam
no chão, sopradas pelo vento. "O Outono está chegando, se é que não chegou já", pensou.
Costumava adorar o Outono no campo. Enquanto andava a cavalo pelos bosques, a terra parecia
coberta de ouro e o ar cheirava a cidra. "Já lá vai tanto tempo. Não voltou a haver um cavalo como
deve ser em Tara desde que o papá morreu."
Olhou para as lápides. Gerald O'Hara, nascido em County Meath, na Irlanda. Ellen Robillard
O'Hara, nascida em Savannah, na Geórgia. Gerald O'Hara, Jr. Três pedras minúsculas, todas
semelhantes. Os irmãos que nunca tinha conhecido. Ao menos Mammy estava sendo enterrada ali,
perto de "Miss Ellen", o seu primeiro amor, e não no pedaço de terra em que os escravos eram
enterrados. "Suellen gritou que se fartou, mas eu ganhei aquela briga, assim que Will se pôs do meu
lado. Quando Will se impõe, a vontade dele prevalece. É uma pena que ele seja tão obstinado e não
me deixe dar-lhe dinheiro. A casa tem um aspecto horrível. O mesmo se passa com o cemitério. Há
ervas daninhas por todo o lado, tem um aspecto desolador. Este funeral é desolador, Mammy tê-lo-ia
detestado. Aquele pregador negro não pára de falar, e aposto que nem sequer a conhecia. Mammy
não perderia tempo com as palavras dele. Ela era católica romana, todos na casa Robillard o eram,
exceto o avô, e esse não tinha muito que dizer, a julgar pelas palavras de Mammy. Deveríamos ter
arranjado um padre, mas o mais próximo está em Atlanta e teria levado dias. Pobre Mammy. Pobre
mãe. Morreu e foi enterrada sem padre. O papá também, mas isso também não importou muito a ele.
Costumava dormitar enquanto a mãe fazia as orações todas as noites." Scarlett olhou para o
desleixado cemitério e depois para a desoladora fachada da casa. "Ainda bem que a mãe não está
aqui para ver isto", pensou, sentindo subitamente dor e fúria ao mesmo tempo. "Isto destroçar-lhe-ia
o coração." Scarlett conseguiu, por um momento, ver a forma alta e graciosa da mãe tão claramente
como se Ellen O'Hara estivesse entre as pessoas que acompanhavam o funeral. A mãe estava sempre
impecavelmente arranjada, com as suas brancas mãos ocupadas costurando, ou enluvadas, pronta
para sair numa das suas visitas de misericórdia. A voz dela era sempre suave e andava sempre
ocupada na tarefa infindável que era manter, sob a sua orientação, a ordem perfeita da vida em Tara.
"Como é que ela fazia isso?" Scarlett chorou silenciosamente. "Como conseguia tornar o mundo tão
belo, sempre que ali estava? Éramos todos tão felizes nessa altura. Não importava o que acontecesse,
a mãe conseguia que tudo estivesse bem. Queria tanto que ela ainda estivesse aqui! A mãe me
abraçaria e todos os problemas desapareceriam. Não, não. Não queria que ela aqui estivesse aqui.
Ver tudo o que aconteceu a Tara, o que me aconteceu a mim, iria fazê-la muito triste. Ficaria
desapontada comigo e eu não poderia suportá-lo. Tudo, menos isso. Não vou pensar nisso, não devo.
Pensarei em qualquer outra coisa. Será que a Delilah teve o bom senso de arranjar alguma coisa para
as pessoas comerem depois do enterro? Suellen não teria pensado nisso, e de qualquer modo é
mesquinha demais para gastar dinheiro numa refeição leve."
"Não que isso lhe tivesse custado muito, não está aqui quase ninguém. No entanto, o pastor
negro tem ar de quem consegue comer por vinte. Se ele não pára de falar em repousar no seio de
Abraão e na travessia do rio Jordão, dou um grito. Aquelas três mulheres raquíticas a que ele chama
coro, são as únicas pessoas aqui que não parecem embaraçadas. Que coro! Espirituais e pandeiros! A
Mammy devia ter algo solene, em latim, e não Climbing Jacob's Ladder. Oh! É tudo tão pobre.
Ainda bem que não está quase ninguém aqui, só Suellen, Will, eu, as crianças e os criados. Pelo
menos, todos nós amávamos realmente a Mammy e sofremos com a sua partida. Os olhos de Big
Sam estão vermelhos de tanto chorar. Olhem para o pobre Pork, chorando muito também. Vejam só,
o cabelo dele está quase branco; não o imaginava tão velho. Dilcey não parece ter a idade dela,
qualquer que seja; não mudou nem um pouco desde que veio para Tara..."
A mente exausta e vagueante de Scarlett aguçou-se subitamente. O que estavam Pork e Dilcey
fazendo ali? Já não trabalhavam em Tara havia anos; desde que Pork se tornara o criado de Rhett, e
Dilcey, a mulher, fora para casa de Melanie, como ama de Beau. "Como apareceram aqui em Tara?
Não havia maneira de eles terem tido conhecimento da morte de Mammy, a não ser que Rhett lhes
tivesse dito."
Scarlett olhou por cima do ombro. Rhett teria voltado? Não havia sinais dele. Assim que a
cerimônia terminou, foi direita a Pork.
Suellen e Will que lidassem com o fastidioso pregador. - É um dia triste, Miss Scarlett. - Os olhos de
Pork estavam ainda cheios de lágrimas.
- É sim, Pork - retorquiu Scarlett. Não devia precipitar-se, ou, então, nunca descobriria o que
queria saber.
Scarlett caminhou lentamente ao lado do velho criado negro, ouvindo as suas lembranças de
Mist' Gerald, de Mammy e dos primeiros dias em Tara. Esquecera-se de que Pork tinha estado com
o seu pai tanto tempo. Ele tinha vindo para Tara com Gerald, quando aqui não havia mais do que um
velho edifício queimado e os campos tinham se tornado matagais. "Bom, Pork deve ter setenta anos,
ou mais."
Aos poucos, foi arrancando as informações que queria. Rhett tinha voltado a Charleston, para
ficar. Pork tinha embalado e enviado todas as roupas de Rhett para a estação, a fim de serem
embarcadas.
Foi a sua última obrigação como criado de Rhett. Agora estava reformado, com uma pensão
que lhe dava para ter um pedaço seu, onde quisesse.
- Posso sustentar a minha família também - disse Pork com orgulho. Dilcey nunca mais
precisaria trabalhar e Prissy teria algo a oferecer a qualquer homem que quisesse casar com ela. -
Prissy não é nenhuma beleza, Miss Scarlett, e já vai fazer vinte e cinco anos, mas com uma herança,
pode arranjar marido tão facilmente como qualquer rapariga bonita que não tenha dinheiro.
Scarlett sorriu e concordou com Pork que "Mist' Rhett" era um distinto cavalheiro. Por dentro,
Scarlett estava furiosa. A generosidade daquele distinto cavalheiro estava estragando-lhe tudo.
Quem ia tomar conta de Wade e Ella, quando Prissy fosse embora? E como iria fazer para arranjar
uma boa ama para Beau? Ele tinha acabado de perder a mãe, o pai estava meio doido com o
sofrimento, e a única pessoa com um pouco de juízo naquela casa ia embora também. Desejou poder
partir e recomeçar, deixando tudo e todos para trás. "Mãe de Deus! Vim para Tara para descansar
um pouco, para pôr a minha vida em ordem, e só encontrei mais problemas para resolver. Será que
alguma vez terei paz?"
Calma e firmemente, Will providenciou a Scarlett esse descanso. Mandou-a para a cama e deu
ordens para que não fosse incomodada. Scarlett dormiu quase dezoito
horas e acordou com um plano claro por onde começar.
- Espero que tenhas dormido bem - comentou Suellen quando a irmã desceu para o café da
manhã. A voz dela era doentiamente adocicada. - Devias estar terrivelmente cansada, depois de tudo
o que passaste. - Agora que Mammy estava morta, as tréguas tinham acabado.
Os olhos de Scarlett brilharam perigosamente. Sabia o que Suellen pensava da cena
vergonhosa que fizera, implorando a Rhett para não a deixar. Mas quando respondeu a Suellen, as
suas palavras foram igualmente doces.
- Mal pousei a cabeça na almofada, adormeci. O ar do campo é tão calmante e revigorante -
"Grande mazinha", acrescentou mentalmente. O quarto que ainda considerava seu pertencia agora a
Susie, a filha mais velha de Suellen, e Scarlett sentiu-se uma intrusa. Tinha certeza de que Suellen
também o sabia. Mas não importava. Precisava ficar bem com ela para prosseguir o seu plano.
Sorriu à irmã.
- Onde está a piada, Scarlett? Tenho uma mosca no nariz ou quê? A voz de Suellen irritou Scarlett,
mas manteve o sorriso. - Desculpa, Suellen. Estava lembrando-me de um sonho idiota que tive a
noite passada. Sonhei que éramos todos crianças outra vez e que a Mammy estava me açoitando as
pernas com uma vara de pessegueiro. Lembras-te de como essas varas machucavam?
Suellen sorriu. - Claro que me lembro. Lutie usa-as com as meninas. Quase posso sentir a dor nas
minhas próprias pernas quando ela o faz. Scarlett olhou para o rosto da irmã. - Até me admira não
ter um monte de cicatrizes - disse ela. - Era uma menina tão má, não sei como é que tu e Careen
conseguiam me aturar - espalhou manteiga num biscoito como se isso fosse a sua única
preocupação.
Suellen olhou-a com desconfiança. - Tu atormentavas-nos realmente, Scarlett. E arranjavas sempre
maneira de as brigas parecerem ser provocadas por nós.
- Eu sei. Eu era impossível. Mesmo quando éramos mais velhas. Tratei-vos como mulas
quando tivemos que apanhar o algodão depois dos ianques terem roubado tudo.
- Quase nos mataste. Estávamos como mortas com a febre tifóide, e tu arrastavas-nos da cama
para nos mandares para os campos, à torreira do sol... - Suellen ia ficando mais animada e mais
veemente, à medida que repetia todas as recriminações guardadas durante anos.
Scarlett assentiu, encorajando-a com murmúrios de contrição. "Como ela gosta de se
lamuriar", pensou. "Precisa disso como de pão para a boca." Esperou que a irmã abrandasse, antes
de dizer:
- Sinto-me tão mesquinha, mas não há nada que eu possa fazer para vos compensar por tudo o
que vos fiz passar. Will está sendo preverso não me deixando dar-vos dinheiro. No fim de contas, é
para Tara, e Tara também é a minha casa.
- Já lhe disse isso centenas de vezes - replicou Suellen. "Aposto que sim", pensou Scarlett. - Os
homens são tão teimosos - retorquiu. - Suellen, acabo de me lembrar de uma coisa. Diz que sim, era
uma bênção para mim se o fizesses. Will não poderia aborrecer-se com isso. E se eu deixasse a Ella
e o Wade aqui e vos enviasse dinheiro para o sustento deles? A vida na cidade tornou-os preguiçosos
e o ar do campo lhes faria maravilhas.
- Não sei, Scarlett. Quando o bebê nascer vamos ser demais aqui. - Suellen era gananciosa,
mas prudente.
- Eu sei - murmurou delicadamente. - Além disso, Wade Hampton come muito. Mas seria tão
bom para eles, pobres meninos da cidade. Acho que seriam precisos cerca de cem dólares só para os
alimentar e comprar calçado.
Duvidava de que Will conseguisse arranjar cem dólares em dinheiro só com o seu duro
trabalho em Tara. Notou com satisfação que Suellen estava sem palavras. Estava certa de que a voz
dela voltaria a tempo de aceitar a proposta que lhe fizera. "Depois do café vou passar um cheque
bem gordo."
- Estes são os melhores biscoitos que já provei - disse Scarlett. - Posso comer outro? Estava
começando a sentir-se muito melhor. Tinha dormido bem, tomara uma bela refeição e os filhos
estavam entregues. Sabia que devia voltar para Atlanta - ainda tinha que tratar de Beau. Também
tinha que tratar de Ashley, como prometera a Melanie. Mas pensaria nisso mais tarde; viera para
Tara em busca da paz e do sossego do campo e estava determinada a não partir sem os encontrar.
Após o café, Suellen saiu para a cozinha. Provavelmente, ia queixar-se de alguma coisa,
pensou com crueldade. Não se importava, isso permitia-lhe ficar sozinha e em paz... "A casa está tão
que custe." No pequeno quarto a partir do qual Ellen O'Hara dirigira calmamente a plantação,
Scarlett descansou a cabeça na cobertura gasta do velho sofá de couro. Depois de todos aqueles
anos, parecia haver ainda um leve traço da água de colônia de limão e verbena usada pela mãe. Era
esta a quietude que tinha vindo procurar. Não importavam as mudanças, a miséria. Tara ainda era
Tara; ainda era o seu lar. E o coração dela estava ali, no quarto de Ellen.
O bater de uma porta quebrou o silêncio. Scarlett ouviu Ella e Susie atravessarem o átrio, discutindo
sobre qualquer coisa. Tinha que sair dali; não podia suportar barulhos e conflitos. Correu para a rua;
queria mesmo ver os campos. Estavam todos tratados, vermelhos e ricos, como sempre tinham sido.
Caminhou rapidamente através do prado cheio de ervas e passou pelo telheiro das vacas.
Nunca ultrapassaria a sua aversão a vacas, nem que vivesse até os cem anos; eram umas coisas
horríveis com chifres aguçados.
Junto ao primeiro campo debruçou-se sobre a cerca e respirou o cheiro de amônio emanado do
estrume e da terra remexida. "É engraçado como o estrume da cidade é tão malcheiroso e tão sujo,
enquanto no campo é o perfume do agricultor.
"Will é com certeza um bom agricultor. Ele é a melhor coisa que já aconteceu a Tara. O que
quer que eu pudesse ter feito, nunca o conseguiríamos se ele não tivesse parado aqui a caminho de
casa, na Florida, e não tivesse decidido ficar. Apaixonou-se por esta terra da mesma maneira que
outros homens se apaixonam por uma mulher. E nem sequer é irlandês! Até Will aparecer, pensava
que só um irlandês, como o papá, pudesse amar tanto a terra."
No lado oposto do campo viu Wade ajudando Will e Big Sam a consertarem um pedaço de
cerca que estava caído. Achou que era bom para ele estar aprendendo; era a sua herança. Durante
alguns minutos ficou olhando para eles, trabalhando juntos. "Era melhor ir já para casa", pensou.
"Esqueci-me de passar o cheque a Suellen."
A assinatura no cheque era típica de Scarlett. Clara e sem enfeites; sem borrões ou linhas
hesitantes, como os escritores experimentais. Uma assinatura direta, como as
usadas nos negócios. Olhou para ela por um momento antes de a secar com o mata- borrão, e voltou
a olhá-la depois disso.
Scarlett O'Hara Butler. Quando escrevia mensagens pessoais nos convites, Scarlett seguia a moda da
altura, fazendo enfeites complicados em cada letra maiúscula e terminando com uma parábola de
remoinhos por debaixo do nome. Fê-lo agora num pedaço de papel de embrulho castanho. Depois,
olhou para o cheque que acabara de escrever. Estava datado. Tivera que perguntar a data a Suellen e
ficara surpresa com a resposta: 11 de Outubro de 1873. Tinham passado mais de três semanas desde
a morte de Melly. Estava em Tara há vinte e dois dias, cuidando de Mammy.
A data tinha ainda outros significados. A morte de Bonnie ocorrera há mais de seis meses.
Scarlett podia já deixar a monotonia do preto usado em luto pesado. Podia aceitar convites para
acontecimentos sociais e podia convidar pessoas para sua casa; podia voltar ao mundo.
"Quero voltar para Atlanta", pensou. "Quero alegria. Na minha vida tem havido demasiada
dor, mortes demais. Preciso de vida."
Dobrou o cheque para Suellen. "Também sinto falta da loja. Os livros de contas devem estar
numa confusão medonha. Além do mais, Rhett voltará a Atlanta 'para impedir os mexericos'. Tenho
que lá estar."
O único som que conseguia ouvir era o lento tique-taque do relógio por detrás da porta
fechada. O silêncio pelo qual ansiara durante tanto tempo estava agora, subitamente, a
enlouquecê-la. Levantou-se de repente.
"Darei o cheque a Suellen depois do almoço, assim que Will voltar para os campos. Depois
pego a charrete e vou fazer uma rápida visita aos amigos em Fairhill e Mimosa. Nunca me
perdoariam se não passasse lá para cumprimentá-los. À noite faço as malas e amanhã apanho o trem
da manhã."
"Volto para Atlanta. Por muito que ame Tara, já não é a minha casa. Chegou a hora de partir."
A estrada para Fairhill estava cheia de ervas e de sulcos. Scarlett lembrou-se de quando a
estrada era alisada todas as semanas e borrifada com água para não levantar pó. "Já lá vai o
tempo...", pensou com tristeza. "Havia pelo menos dez plantações a curta distância, e as pessoas
visitavam-se a toda a hora. Agora só resta Tara e as plantações dos Tarletons e dos Fontaines. Tudo
o resto são chaminés queimadas ou paredes caindo. Tenho mesmo de voltar à cidade. Tudo no
campo me põe triste." As molas da charrete e o velho e vagaroso cavalo eram quase tão ruins como
as estradas. Pensou na sua carruagem acolchoada, parelha a condizer, com Elias para conduzindo.
Precisava realmente voltar para casa, em Atlanta.
A ruidosa alegria que reinava em Fairhill tirou-a daquela disposição. Como de costume,
Beatrice Tarleton não parava de falar nos seus cavalos e nada mais lhe interessava. Scarlett notou
que os estábulos tinham um telhado novo. O telhado da casa tinha remendos novos. Jim Tarleton
parecia velho, o seu cabelo estava branco, mas tinha tido uma boa colheita de algodão com a ajuda
do genro maneta, o marido de Betsy. As outras três raparigas continuavam velhas solteironas.
- Claro que passamos os dias e as noites chorando por causa disso - disse Hetty, e todos se
riram. Scarlett não os entendia de todo. Os Tarletons conseguiam rir de tudo. Talvez isso tivesse
algo a ver com os seus cabelos ruivos.
A inveja que sentiu não era nada de novo. Desde sempre desejara fazer parte de uma família
tão terna e brincalhona como os Tarleton. Abafou a inveja que sentia; estava sendo desleal com a
mãe. Ficou muito tempo ali; estar com eles era muito divertido. Teria que visitar os Fontaine no dia
seguinte. Era quase noite quando chegou
a Tara. Mesmo antes de abrir a porta, já podia ouvir o filho mais novo de Suellen chorando por
qualquer coisa. Era realmente hora de voltar para Atlanta.
Mas havia novidades que a fizeram logo mudar as suas decisões. Suellen pegou a ruidosa
criança e a fez calar-se mesmo quando Scarlett entrava pela porta. Apesar do seu cabelo em
desalinho e do seu corpo informe, Suellen estava mais bonita que em criança.
- Oh, Scarlett! - exclamou. - Há grandes novidades, nem adivinhas... Vamos, querido, vou-te
dar um belo pedaço de osso ao jantar e podes mastigar à vontade, para esse dente maroto não te
machucar mais.
"Se um dente novo é uma grande novidade, nem quero sequer tentar adivinhar", apeteceu-lhe
dizer. Mas Suellen nem lhe deu tempo.
- Tony voltou! - disse Suellen. - Sally Fontaine veio aqui dizer-nos e acabou de sair. Tony está
de volta! São e salvo. Vamos todos jantar na casa dos Fontaine, amanhã à noite, logo que Will acabe
de tratar das vacas. Oh, Scarlett, não é maravilhoso? - O sorriso de Suellen era radiante. - O condado
está de novo enchendo- se de gente.
Scarlett sentiu vontade de abraçar a irmã, um impulso que nunca sentira antes. Suellen estava
certa, era maravilhoso ter Tony de volta. Receara que nunca mais ninguém o visse; agora, a terrível
lembrança da última vez que o vira podia ser esquecida para sempre. Estava tão exausto e
preocupado, encharcado até os ossos e a tremer. Quem não estaria gelado e cheio de medo? Os
ianques estavam mesmo atrás dele e ele corria, tentando salvar a vida, depois de ter morto o negro
que maltratara Sally. Depois matara o miserável que encorajara o idiota do negro a ir atrás de uma
branca.
Tony voltara! Mal podia esperar pela tarde do dia seguinte. O County estava a voltar à vida.
4
A plantação dos Fontaine era conhecida por Mimosa por causa do pequeno bosque que
rodeava a casa de estuque amarelo-desmaiado. As flores cor-de-rosa, parecidas com penas, tinham
caído no fim do Verão, mas as folhas verdes como fetos estavam ainda nos ramos. Ondulavam como
dançarinas ao vento, fazendo manchas de sombra, sempre a mudar, nas paredes sarapintadas da casa
cor de manteiga. A luz baixa e oblíqua do sol dava-lhe um ar quente e acolhedor.
"Espero que Tony não tenha mudado muito", pensou Scarlett um pouco nervosa. "Sete anos é
tanto tempo..." Os seus pés arrastaram-se quando Will a ajudou a descer da charrete. E se Tony
estivesse velho e cansado e derrotado, como Ashley? Isso era mais do que conseguia suportar.
Dirigiu-se devagar para a porta, atrás de Suellen e Will.
A porta abriu-se de rompante e todas as suas apreensões se desvaneceram. - Quem vem lá devagar,
como se fosse para a igreja? Não sabem correr para dar as boas-vindas a um herói acabado de
chegar?
A voz de Tony era alegre, tal como antes; o cabelo preto como nunca; o sorriso vivo e
travesso.
- Tony! Estás na mesma - gritou Scarlett. - És mesmo tu, Scarlett? Vem dar-me um beijo. Tu
também, Suellen. Não eras generosa com os beijos como a Scarlett, nos velhos tempos, mas o Will
deve ter-te ensinado umas coisas depois de terem casado. Agora que estou de volta, quero beijar
todas as mulheres com mais de seis anos do estado da Geórgia.
Suellen abafou o riso, nervosa, e olhou para Will. Um leve sorriso no seu plácido e fino rosto
mostraria a sua autorização, mas Tony não se deu ao trabalho de esperar. Agarrou-a pela cintura
delgada e pregou-lhe um beijo nos lábios. Estava rosada de prazer e confusão quando ele a largou.
Os arrogantes irmãos Fontaine tinham prestado pouca atenção a Suellen nos anos anteriores à
guerra, anos de galãs e belas meninas. Will pôs o braço em volta dos ombros dela de uma forma
forte e carinhosa.
- Scarlett, querida! - gritou Tonny, de braços abertos. Scarlett deixou-se cingir e pôs os braços à
volta do pescoço dele, num abraço apertado.
-Ficaste muito mais alto, lá no Texas! - exclamou. Tony sorria à medida que beijava os lábios
que ela lhe oferecia. Depois levantou a perna das calças para lhe mostrar as botas de tacão alto que
tinha calçadas.
- Todo mundo fica mais alto no Texas - respondeu Tony. - Não me surpreenderia se fosse lei.
Alex Fontaine sorriu por cima do ombro de Tony. - Vais ouvir mais do que podes sobre o Texas -
disse Alex lentamente. - Isto é, se Tony te deixar entrar em casa. Ele esqueceu-se de coisas como
essas. No Texas todos vivem à volta de fogos-de-campo debaixo das estrelas, em vez de terem
telhados e paredes. - Alex resplandecia de felicidade. "Parece que ele próprio tem vontade de
abraçar e beijar Tony, e por que não? Enquanto cresciam eram unha com carne. Alex deve ter
sentido muito a falta dele." Subitamente, os olhos encheram-se de lágrimas. O exuberante regresso
de Tony era o único acontecimento feliz no condado desde que as tropas de Sherman tinham
devastado a terra e as vidas das pessoas que lá viviam. Mal sabia como lidar com tão súbita
felicidade.
A mulher de Alex, Sally, puxou-a pela mão quando entrou na decadente sala de estar. - Eu sei
Estavam a mais de meio caminho de Tara quando reparou que não pensava em Rhett há imenso
tempo. Então, a melancolia e a preocupação abateram-se sobre ela e só então percebeu que a noite
estava fria e o seu corpo gelado. Embrulhou-se mais no
xale e, silenciosamente, pediu a Will que se apressasse.
"Não quero pensar em nada, esta noite não. Não quero estragar a bela noite que passei.
Rápido, Will, está frio e escuro."
Na manhã seguinte, Scarlett e Suellen levaram as crianças na carroça até Mimosa. Quando
Tony mostrou os seus revólveres de seis tiros, os olhos de Wade brilharam, muito abertos, em
adoração ao herói. Até Scarlett ficou deliciosamente espantada ante a visão das pistolas girando, ao
mesmo tempo, nos dedos de Tony. Tony surpreendeu-os ainda, atirando as pistolas ao ar e
deixando-as cair nos coldres, suspensos nas ancas com um original cinto cravejado de prata.
- Elas também disparam? - perguntou Wade. - Disparam, sim senhor. Quando fores um pouco mais
velho, ensino-te a usá-las. - E a girá-las como tu? - Sim, claro. Não serve de nada ter um revólver
destes se não se fizerem truques com ele - Tony acariciou o cabelo de Wade. - Também te vou
ensinar a montar à maneira do Oeste, Wade Hampton. Acho que vais ser o único rapaz nesta região
que saberá como deve ser uma verdadeira sela. Mas não podemos começar hoje. O meu irmão vai
dar-me lições de agricultura. Vê como as coisas são, todo mundo tem sempre que aprender coisas
novas.
Tony despediu-se depois de plantar rápidos beijos nas bochechas de Scarlett e Suellen e na
testa das meninas.
- Alex está à minha espera lá em baixo, perto do riacho. - Por que não vão encontrar a Sally? Acho
que ela está lavando roupa lá atrás da casa. Sally pareceu feliz por as ver, mas Suellen recusou o
a festa. - Scarlett, não sabes nada de como se orienta uma quinta. Se Sally se atrasasse com
a roupa,
tudo o resto estaria atrasado. Aqui não conseguimos arranjar um monte de criados, como tu tens em
Atlanta. Temos que fazer grande parte do trabalho nós próprias.
Scarlett levantou a cabeça orgulhosamente, ao perceber o tom de voz da irmã. - Talvez o melhor seja
voltar a Atlanta no trem da tarde - respondeu de mau humor. - Isso tornar-nos-ia as coisas muito
Ela sentiu-se como se tivesse sido esbofeteada. Depois, uma fúria súbita apagou a dor. -Tu não
percebes nada, Will Benteen! Rhett está zangado, mas isso passa. Ele nunca
desceria tão baixo a
ponto de partir e deixar a sua mulher desamparada.
Will abanou a cabeça. Scarlett podia considerar isso uma concordância, se o quisesse. Mas ele
não esquecera a sardônica descrição que Rhett fizera de si próprio. Era um canalha. A julgar pelo
que as pessoas diziam, sempre o fora e provavelmente sempre o seria.
Scarlett olhou fixamente para a familiar estrada de barro vermelho à sua frente. Mantinha o
queixo erguido e a sua cabeça trabalhava furiosamente. Rhett voltaria. Tinha que voltar, porque ela
queria e estava habituada a ter o que desejava. Tudo o
que tinha a fazer era pôr isso na cabeça.
5
O barulho e o movimento em Five Points eram um tônico para o espírito de Scarlett. Também
a desordem na secretária em sua casa o era. Precisava de vida e ação à sua volta depois da
entorpecedora sucessão de mortes, precisava de ter trabalho para fazer.
Na loja que possuía em Five Points, havia um monte de jornais para ser lido, pilhas de contas
da loja, uma imensidão de contas para pagar e circulares para serem rasgadas e jogadas fora. Scarlett
suspirou de prazer e puxou a cadeira para perto da secretária.
Verificou a frescura da tinta no tinteiro e a provisão de bicos para a caneta. Depois, acendeu o
candeeiro. Antes que acabasse tudo, já estaria escuro; talvez até trouxesse um tabuleiro com o jantar
para ali, enquanto trabalhava.
Pegou avidamente nas contas da loja, e as suas mãos pararam a meio caminho quando um
grande sobrescrito, no topo dos jornais, chamou a sua atenção. Estava simplesmente endereçado
"Scarlett", e a letra era de Rhett.
"Não vou lê-lo agora", pensou imediatamente, "vai interferir com tudo o que tenho para fazer.
Não estou preocupada com o seu conteúdo, nem um pouco, só não quero vê-lo agora. Vou
guardá-lo", disse para consigo "como uma sobremesa." Pegou, então, numa mão-cheia de folhas de
caixa.
Mas não conseguia concentrar-se na aritmética que fazia mentalmente, e acabou por pôr as
contas de lado e abrir o sobrescrito selado.
"Acredita-me", assim começava a carta de Rhett, "quando digo que estou profundamente
solidário com o teu sofrimento. A morte de Mammy foi uma grande perda. Estou grato por me teres
avisado a tempo de a ver antes que partisse."
Scarlett, enraivecida, ergueu os olhos dos grossos traços pretos e falou alto. "Grato uma ova! Como
pudeste mentir a ela e a mim, seu canalha!" Desejou poder queimar a carta e atirar as cinzas à cara
de Rhett, gritando-lhe aquelas palavras. Vingar-se-ia por ele a ter envergonhado à frente de Suellen e
Will. Não importava quanto tempo tinha para esperar e planejar, arranjaria uma maneira. Ele não
tinha o direito de tratar Mammy daquela maneira, de gozar assim com os seus últimos desejos. "Vou
já queimá-la, nem sequer vou ler o resto! Não tenho nada que pôr os olhos em mentiras destas!" A
sua mão procurou a caixa de fósforos, mas quando lhe pegou, largou-a imediatamente. "Vou morrer
de curiosidade por saber o que lá estava", admitiu a si própria. Baixou a cabeça e continuou a ler.
Rhett afirmava que a vida dela não ficaria alterada. As contas da casa seriam pagas pelos
advogados dele, uma providência tomada muitos anos antes, e todos os levantamentos feitos sobre a
conta bancária de Scarlett seriam repostos automaticamente. Podia dar indicações às novas lojas em
que abrisse contas sobre o procedimento a seguir: enviarem as contas diretamente aos advogados de
Rhett. Alternativamente, poderia pagar as contas em cheque, sendo a quantia reposta no seu banco.
Scarlett leu tudo isto fascinada. Tudo o que tinha a ver com dinheiro a interessava.
Sempre lhe tinha
interessado, desde o dia em que tinha sido forçada pelo Exército da União a descobrir o que era a
pobreza. Acreditava que o dinheiro era segurança. Amealhava o dinheiro que ela mesma ganhava e
ficou chocada com a generosidade de Rhett.
"Que idiota que ele é, eu podia roubá-lo descaradamente, se quisesse. Provavelmente, os
advogados devem andar falsificando os livros de contas há anos.
"Rhett deve ser imensamente rico, para poder gastar sem se importar com quê.
Sempre soube que ele era rico, mas não sabia que era tanto. Gostaria de saber quanto dinheiro tem.
Então, ele ainda me ama, isto prova-o. Nenhum homem poderia mimar uma mulher como Rhett fez
durante todos estes anos a não ser que a amasse até à loucura. E vai continuar a dar-me toda e
qualquer coisa que eu queira. Ele deve ainda sentir o mesmo, ou, então, faria restrições aos gastos.
Oh! Eu sabia! Eu sabia! Ele não sentia todas aquelas coisas que me disse. Ele pura e simplesmente
não me acreditou quando lhe disse que agora sei que o amo."
Scarlett encostou a carta de Rhett ao rosto como se estivesse segurando a mão que a escrevera.
Ela o provaria. Provaria que o amava com todo o seu coração, e, então, seriam felizes, as pessoas
mais felizes de todo o mundo!
Cobriu a carta de beijos antes de a pôr cuidadosamente numa gaveta. Depois pegou nas contas
da loja com entusiasmo. Os negócios revigoravam-na. Quando uma criada assomou à porta e
timidamente a inquiriu sobre o jantar, Scarlett mal levantou os olhos. - Traz-me qualquer coisa num
perder nada. O sorriso de Scarlett desapareceu. Não, não podia. Devia haver uma nota sobre o
funeral de Melanie, e queria vê-la.
Melanie... Ashley... A loja teria que esperar. Tinha outras obrigações a fazer primeiro. "O que me
fez prometer a Melanie que tomaria conta de Ashley e Beau?" "Mas prometi. É melhor ir lá
primeiro. E é melhor levar Pansy para limpar tudo. Em toda a cidade não se deve falar de outra coisa
senão daquela cena no cemitério. Não faz sentido aumentar os mexericos indo visitar Ashley
sozinha." Scarlett atravessou a grossa alcatifa correndo em direção à campainha e puxou-a
vigorosamente. Onde estava o seu café da manhã?
"Oh, não, Pansy estava ainda em Tara. Teria que levar uma das outras criadas. Aquela nova
rapariga, Rebecca, servia. Esperava que Rebecca a pudesse ajudar a vestir-se sem fazer muita
confusão. Queria apressar-se; começar e acabar de uma vez os seus deveres.
Quando a carruagem parou em frente à pequena casa de Ashley e Melanie, em Ivy Street,
Scarlett reparou que a coroa de luto tinha desaparecido da porta e as
janelas estavam todas fechadas.
"Índia", pensou de imediato. Claro. Ela tinha levado Ashley e Beau para irem viver na casa da
tia Pittypat. Deveria estar terrivelmente satisfeita consigo própria.
Índia, a irmã de Ashley, sempre tinha sido uma implacável inimiga de Scarlett. Scarlett mordeu o
lábio e pensou no seu dilema. Tinha certeza de que Ashley tinha se mudado com Beau para casa da
tia Pitty; era a coisa mais sensata a fazer. Sem Melanie, e agora que Dilcey se tinha ido embora, não
havia ninguém para cuidar da casa e do filho de Ashley. Na casa da tia Pittypat havia conforto, uma
vida doméstica em ordem e constante carinho para o menino, vindo de mulheres que o tinham
amado toda a sua vida.
"Duas velhas solteironas", pensou Scarlett com desdém. "Estão sempre prontas para adorar
qualquer coisa que use calças, ou mesmo calções. Se ao menos Índia não vivesse com a tia Pitty."
Com a tia, entendia-se Scarlett. A tímida senhora não se atreveria a discutir com um gatinho, quanto
mais com Scarlett.
Mas a irmã de Ashley era outra coisa, Índia adoraria ter uma discussão, dizer coisas pavorosas
na sua fria e afiada voz, pôr Scarlett na rua.
Se ao menos não tivesse prometido a Melanie, mas tinha... "Leva-me a casa de Miss Pittypat
Hamilton", ordenou a Elias. "Rebeca, vai andando para casa. Podes ir a pé."
Devia haver paus-de-cabeleira suficientes na casa de Pitty. Índia abriu-lhe a porta. Olhou para o
elegante traje de manhã, adornado com peles, que Scarlett tinha vestido. Um leve sorriso de
satisfação moveu-lhe os lábios.
"Ri-te quanto quiseres, minha velha", pensou Scarlett. O vestido de luto de Índia era de crepe
preto carregado, sem sequer um botão a enfeitá-lo.
- Vim ver como está Ashley - disse ela. - Não és bem-vinda aqui - respondeu Índia, começando a
fechar a porta. Scarlett empurrou-a. - Índia Wilkes, não te atrevas a bater-me com a porta na cara. Eu
fiz uma promessa a Melly, e vou mantê-la, nem que tenha que te matar.
Índia respondeu-lhe, empurrando a porta com o ombro em resistência à força das mãos de
Scarlett. A luta indigna de ambas prolongou-se apenas alguns segundos. Então, Scarlett ouviu a voz
de Ashley.
- É Scarlett, Índia? Eu queria falar com ela. A porta abriu-se de rompante e Scarlett entrou, notando
com prazer o rosto vermelho de raiva de Índia.
Ashley veio até o átrio, para a cumprimentar, e os passos rápidos de Scarlett vacilaram. Ele
tinha um aspecto doente.
Os olhos, pálidos, estavam rodeados por círculos negros; rugas profundas ligavam-lhe as
narinas ao queixo. As roupas pareciam grandes demais para ele; o casaco caía-lhe sobre o corpo
enfraquecido como as asas partidas num pássaro.
O coração saltou-lhe no peito. Scarlett já não amava Ashley como tinha amado todos aqueles
anos, mas ele ainda fazia parte da sua vida. Tinham partilhado tantas memórias, durante tanto tempo.
Não conseguia suportar vê-lo naquela agonia.
- Querido Ashley - disse com delicadeza -, vem sentar-te. Pareces cansado. Durante mais de uma
hora permaneceram sentados num canto, na pequena, desarrumada e barulhenta sala de visitas da tia
Pitty. Scarlett quase não falou. Escutava, enquanto Ashley falava, repetindo-se e interrompendo-se
num confuso zigue-zague de memórias. Recontou histórias da bondade, generosidade e nobreza da
sua falecida esposa; do seu amor por Scarlett, por Beau e por ele. Ashley falava em voz baixa e
inexpressiva, num tom desmaiado pelo sofrimento e pelo desespero. A sua
mão procurou cegamente a de Scarlett e agarrou-a com tamanha força que os ossos dela se
apertaram uns contra os outros dolorosamente. Apertou os lábios e deixou-o abraçar-se a ela.
Índia estava de pé, na arcada da porta, como um inspetor mudo e imóvel. Finalmente, Ashley
interrompeu-se e começou a virar a cabeça de um lado para o outro como se estivesse cego e
perdido.
- Scarlett, não posso continuar sem ela - gemeu -, não posso. Scarlett empurrou-o com a mão. Tinha
que quebrar a concha de desespero que o envolvia, ou isso o mataria, tinha certeza. Levantou-se e
inclinou-se para ele.
- Escuta-me, Ashley Wilkes - disse ela -, tenho estado a ouvir-te desfiar as tuas mágoas todo
este tempo, agora vais ouvir as minhas. Achas que és a única pessoa que amava Melly e dependia
dela? Eu amava-a e precisava dela, mais do que eu pensava, mais do que alguém pensava. Acho que
muitas outras pessoas a amavam e dela dependiam. Mas não vamos esconder-nos e morrer por causa
disso. É isso que tu estás fazendo. Envergonhas-me. E Melly também se sente envergonhada, se nos
está vendo lá do céu. Fazes alguma idéia do que ela passou para Beau nascer? Bom, eu sei o que ela
sofreu e digo-te que o seu sofrimento teria morto o homem mais forte que Deus já criou. Agora, tu
és tudo o que ele tem. É isso que queres que Melly veja? Que o seu filho está sozinho, praticamente
um órfão, porque o pai tem pena demais de si mesmo para se preocupar com ele? Queres
despedaçar-lhe o coração, Ashley Wilkes? Porque é isso mesmo que estás fazendo. - Pegou-lhe no
queixo com a mão e forçou-o a olhar para ela. - Controla-te, estás me ouvindo, Ashley? Vais já
marchar para a cozinha dizer à cozinheira que te prepare uma boa refeição quente. E vais comê-la.
Se te fizer vomitar, comes outra. Procura o teu filho. Pega-lhe no colo e diz-lhe que não tenha medo,
que ele tem um pai para cuidar dele. Faz isso. Pensa em alguém além de ti próprio.
Scarlett limpou a mão à saia, como se o abraço de Ashley a tivesse sujado. Depois saiu da
sala, empurrando Índia do seu caminho.
Enquanto abria a porta que dava para o alpendre, pôde ouvir Índia: - Meu pobre Ashley, não prestes
atenção às coisas horríveis que Scarlett disse. Ela é um monstro!
Scarlett parou e virou-se para trás. Retirou um cartão de visita da carteira e deixou-o sobre a
mesa.
- Deixo-lhe o meu cartão, tia Pitty, já que tem medo de me receber pessoalmente - gritou.
compraria muito mais que isso. Scarlett estava certa de que assim seria. - Agora, despeço-me, Índia.
"ferir os meus sentimentos". Como se eu pudesse sentir mais alguma coisa... Ashley abanou a
Scarlett inclinou a cabeça para admirar os ondulados folhos brancos da touca à moda de Maria
Stuart. A ponta que caía sobre a testa ficava mesmo muito bem. Realçava o arco negro das suas
sobrancelhas e o verde brilhante dos olhos. O cabelo parecia seda negra, caindo em caracóis de
ambos os lados dos folhos. Quem é que havia de pensar que roupa de luto lhe ficaria tão bem?
Virou-se para um lado e para outro, olhando por cima dos ombros para o seu reflexo no
grande espelho. Os enfeites de contas pretas e borlas sobre o vestido negro brilhavam de um modo
muito satisfatório.
O luto "vulgar" não era horrível como o luto pesado, tinha muito em seu favor, e um vestido
preto decotado deixava ver muita pele, se ela fosse branca como a neve.
Dirigiu-se rapidamente ao toalete e perfumou os ombros e o pescoço. Era melhor apressar-se,
os convidados deviam estar a chegar a qualquer minuto. Podia ouvir os músicos lá em baixo,
afinando os instrumentos. Regalou os olhos na pilha desordenada de espessos cartões brancos que se
viam por entre as suas escovas de cabo de prata e espelhos de mão. Os convites tinham começado a
chegar aos montes, assim que os amigos souberam que ela ia voltar ao convívio social; ia estar
ocupada durante semanas e semanas, nos próximos tempos. E, depois, haveria mais convites, e,
então, ela daria outra recepção. Ou talvez um baile durante a época do Natal. Sim, as coisas iam
ficar mesmo bem. Estava tão excitada como uma rapariga que nunca tivesse ido a uma festa. Bom,
não era para admirar. Já tinham passado mais de sete meses desde que fora a uma.
Sem contar com a festa do regresso de Tony Fontaine. Sorriu, lembrando-se. Querido Tony,
com as suas botas de cano alto e a sela de prata. Gostaria que ele viesse nessa noite à sua festa. As
pessoas ficariam com os olhos esbugalhados se ele fizesse o seu truque de girar os revólveres!
Tinha de ir - os músicos já tocavam afinado, devia ser tarde. Scarlett apressou-se a descer a escada
coberta com uma alcatifa vermelha, franzindo apreciativamente o nariz ao sentir o cheiro das flores
de estufa, que enchiam enormes jarras em todos as salas. Ao andar de sala em sala, verificando se
tudo estava em ordem, os olhos brilhavam-lhe de prazer. Estava tudo perfeito. Graças a Deus, Pansy
regressara de Tara. Ela era muito boa fazendo com que os outros criados fizessem o seu dever, muito
melhor que o novo mordomo, contratado para substituir Pork. Scarlett tirou um copo de champanhe
do tabuleiro que o novo homem lhe estendia. Pelo menos, sabia servir, até tinha um certo estilo, e
Scarlett gostava tanto que as coisas tivessem estilo.
Exatamente nesse momento tocou a campainha da porta. Surpreendeu o criado com o seu
sorriso feliz, e depois dirigiu-se ao hall de entrada para cumprimentar os seus amigos.
Foram chegando numa corrente contínua, durante quase uma hora, e a casa encheu-se com o
som de vozes altas, o intenso cheiro de perfume e pó-de-arroz, as cores brilhantes das sedas e cetins,
rubis e safiras.
Scarlett movia-se por entre a multidão, sorrindo e rindo, namoricando preguiçosamente com
os homens, aceitando os cumprimentos fastidiosos das
mulheres. Estavam tão felizes por a tornarem a ver, tinham sentido tanto a falta dela, ninguém dava
festas tão maravilhosas como ela, ninguém tinha uma casa tão linda, nem vestidos tão elegantes, o
cabelo dela era mais brilhante que o das outras, tinha um corpo mais jovem, uma pele mais perfeita e
mais suave.
"Estou divertindo-me... Uma festa maravilhosa." Deu uma vista de olhos às travessas de prata e
tabuleiros que estavam sobre a longa mesa polida, para ver se os criados os mantinham cheios. Uma
grande quantidade de comida, um excesso de comida, era importante para ela, porque era incapaz de
esquecer completamente o que fora chegar tão perto de morrer de fome, no fim da guerra. O olhar da
sua amiga Mamie Bart cruzou-se com o dela e esta sorriu. Um fio de molho amanteigado de um
pastel de ostra meio comido, que Mamie segurava, escorrera-lhe do canto da boca para o colar de
diamantes que lhe rodeava o pescoço gordo. Scarlett desviou o olhar, enojada. Um destes dias,
Mamie ia ficar gorda que nem um elefante. "Graças a Deus, posso comer tudo o que me apetece que
nunca engordo um quilo."
Sorriu encantadoramente a Harry Connington, marido da sua amiga Sylvia. - Deve ter descoberto
um elixir qualquer, Harry, parece dez anos mais novo do que a última vez que o vi. - Ficou a olhar,
maliciosamente divertida, enquanto Harry encolhia a barriga. O rosto dele ficou vermelho,
levemente roxo, antes de ele desistir do esforço que estava fazendo. Scarlett riu em voz alta e
afastou-se.
Uma explosão de gargalhadas chamou-lhe a atenção e dirigiu-se ao grupo de três homens que
estavam na sua origem. Gostava muito de ouvir uma graça qualquer, mesmo que fosse uma dessas
piadas que as senhoras têm de fingir que não entendem.
- ...por isso, digo para mim próprio, Bill, o pânico de um homem é o lucro de outro, e sei qual
desses homens o velho Bill vai ser.
Scarlett começou a afastar-se. Nessa noite queria divertir-se, e falar do pânico não era a sua
idéia de divertimento. No entanto, talvez aprendesse alguma coisa. Era mais esperta dormindo que
Bill Weller no seu melhor dia, tinha certeza disso. Se ele andava fazendo dinheiro com o pânico, ela
queria saber como. Silenciosamente, aproximou-se mais.
- ... Estes parvos destes sulistas, sempre foram um problema para mim, desde que vim para cá
- confessava Bill. - Que não se consegue fazer nada com um homem que não é naturalmente
ganancioso, portanto, todos os negócios com obrigações do tipo "triplique o seu dinheiro" e
certificados de minas de ouro que espalhei no meio deles deram um resultadão. Eles estavam a
trabalhar mais do que algum preto jamais trabalhou e poupavam todos os tostões que ganhavam para
uma necessidade. Acontece que muitos deles já tinham uma caixa cheia de obrigações e coisas
dessas. Do governo da Confederação. - O riso bombástico de Bill puxou as gargalhadas dos outros
homens.
Scarlett estava furiosa. Com que então "parvos dos sulistas"! Até o seu querido pai tinha uma
caixa cheia de obrigações da Confederação. O mesmo se passava com todas as pessoas de bem do
condado de Clayton. Tentou afastar-se, mas estava encurralada por pessoas atrás dela, que também
tinham sido atraídas pelas gargalhadas do grupo à volta de Bill Weller.
- Passado um tempo, topei o esquema - continuou Weller. - Eles não confiavam muito em
papéis. Nem em mais nada que eu tentasse. Experimentei curandeiros e bruxarias e todos os modos
seguros de fazer dinheiro, mas nenhum deu faísca. Digo- vos, rapazes, fiquei ofendido. - Fez uma
cara lúgubre, depois um grande sorriso, que deixou ver três grandes dentes de ouro. - Não tenho que
vos dizer que eu e Lula íamos
assim como que passar necessidades, se não me surgisse uma idéia qualquer. Nos bons dias gordos,
quando os Republicanos tinham a Geórgia na mão, amontoei o suficiente com aqueles contratos das
estradas-de-ferro que os rapazes me atribuíram, de modo que podíamos ter vivido das economias,
mesmo se eu tivesse sido suficientemente estúpido para ter ido e construir mesmo a estrada-de-ferro.
Mas gosto de ficar por dentro, e Lula estava ficando nervosa por eu passar tanto tempo em casa, uma
vez que não tinha nenhum negócio para tratar. Então, aleluia, lá veio o pânico e os rebeldes todos
tiraram as poupanças do banco e puseram o dinheiro debaixo do colchão. Todas as casas, até mesmo
as barracas, eram uma oportunidade que não podia deixar escapar.
- Pára lá de te gabares, Bill, de que é que te lembraste? Estou a ficar cheio de sede de estar aqui à
espera que pares de te congratulares e vás direito ao assunto. - Amos Bart acentuou a sua
impaciência com uma cuspidela ensaiada que falhou a cuspideira em questão.
Scarlett também se sentia impaciente. Impaciente para sair dali. - Agüenta aí, Amos, já lá vou. Qual
era a maneira de chegar a esses colchões? Não sou do tipo dos pregadores revivalistas. Gosto de
estar sentado à minha secretária e deixar os meus empregados fazer o servicinho. Era isso
exatamente que eu estava a fazer, sentado na minha cadeira de couro giratória, quando olhei pela
janela e vi passar um funeral. Foi como se tivesse sido atingido por um raio. Não há um lar na
Geórgia que não tenha um defunto querido que já lá tivesse vivido.
Scarlett ficou a olhar, horrorizada, para Bill Weller, enquanto ele descrevia a fraude que o
estava a fazer enriquecer ainda mais.
- As mães e as viúvas são as mais fáceis, e há mais do que tudo o resto junto. Nem pestanejam
quando os meus rapazes lhes dizem que os veteranos da Confederação estão a erguer monumentos
em todos os campos de batalha, e esvaziam os colchões em menos de um ai, para pagar, para que o
nome do seu rapaz seja gravado no mármore. - Era pior do que Scarlett podia ter imaginado.
-Ah, Bill, velha raposa, essa é de gênio! - exclamou Amos e os homens do grupo riram ainda
ais alto do que antes. Scarlett sentiu-se com vontade de vomitar. Estradas- de-ferro e minas de ouro
não existentes nunca a tinham preocupado, mas as mães e as viúvas que Bill Weller andava a
enganar eram a sua própria gente. Podia muito bem estar neste momento mandando os seus homens
para Beatrice Tarleton, ou Cathleen Calvert, ou Dimity Munroe, ou para qualquer outra mulher do
condado de Clayton, que tivesse perdido um filho, um irmão ou um marido.
A voz dela atravessou os risos como uma faca. - Essa história é a mais ordinária e mais porca que já
ouvi na minha vida. Metes- me nojo, Bill Weller. Todos vocês me metem nojo. Que é que vocês
sabem sobre os sulistas... sobre gente decente, seja onde for? Nunca tiveram um pensamento decente
ou fizeram qualquer coisa decente em toda a vossa vida! - Com as mãos e os braços estendidos,
abriu caminho através dos espantados homens e mulheres que se tinham juntado à volta de Weller e
depois começou a correr, esfregando as mãos nas saias para limpar a nódoa que era o toque deles.
Na frente dela estava a sala de jantar e os faiscantes pratos de prata cheios de comida refinada;
agoniou-se com o cheiro dos ricos e gordurosos molhos misturado com o das cuspideiras cheias de
escarros. No seu espírito, viu a mesa iluminada em casa dos Fontaines, a refeição simples feita de
presunto e pão caseiros e vegetais criados na horta, o seu lugar era com eles; eles eram a sua gente,
não estas mulheres e estes homens ordinários, porcos e espalhafatosos. Voltou-se para enfrentar
Weller e o grupo dele.
- Escória! - gritou ela - É isso que vocês são. Ralé! Saiam da minha casa, desapareçam da
vista, enojam-me!
Mamie Bart cometeu o erro de a tentar acalmar. - Vá lá, querida... - disse ela, estendendo a mão
cheia de jóias. Scarlett encolheu-se antes de lhe tocarem. - Especialmente você, sua porca gorda. -
Bem, nunca... - A voz de Mamie Bart estremeceu. - ... claro que não vou admitir que me falem deste
modo. Não ficava nem que me pedisses de joelhos, Scarlett Butler. Uma debandada tumultuosa e
irada começou então, e em menos de dez minutos as salas estavam vazias de tudo, com exceção dos
restos. Scarlett passou pelo meio da comida e champanhe entornados, pratos e copos partidos, sem
olhar para o chão. Tinha que manter a cabeça erguida, como a mãe lhe ensinara. Imaginou que
estava de novo em Tara, com um pesado volume dos romances de Waverley equilibrado em cima da
cabeça, e subiu as escadas com as costas tão direitas como uma árvore, o queixo perfeitamente
perpendicular aos ombros.
Como uma senhora. Como a mãe lhe ensinara. A cabeça andava-lhe à roda e tremiam-lhe as
pernas, mas subiu sem parar. Uma senhora nunca mostrava quando estava cansada ou aborrecida.
- Era mais do que tempo de fazer isto, e até mais - disse o cornetista. Aquele conjunto tocara
valsas por detrás das palmeiras em muitas das recepções de Scarlett.
Um dos violinistas cuspiu com pontaria para um dos vasos com palmeiras. - Demasiado tarde, na
minha opinião. Deitas-te com os cães, acordas com pulgas. Por cima deles, Scarlett estava deitada de
- Pensei que tinha dito que nunca mais ia pôr o pé dentro do armazém de Scarlett, mãe. - Chiu,
- E Rhett Butler em todas elas, aposto - murmurou Scarlett. Atirou o jornal no chão. Um
maravilhosas, exceto eu." Agarrou outra vez o jornal. Pode agora anunciar-se [dizia], uma vez que
alegre e esvoaçante vermelho e branco para a estirada final do desfile de Rex até ao trono. "Devia ter
ido buscar Wade e Ella em Tara para o desfile", pensou ela. "Mas, provavelmente,
ainda devem estar
fracos da varicela", acrescentou o seu espírito rapidamente. "E não tenho bilhetes do baile para
Suellen e Will. Além disso, mandei- lhes montes de presentes de Natal."
A chuva incessante no dia do desfile acalmou qualquer vestígio de remorso por causa das
crianças. De qualquer modo, não poderiam ter estado de pé à chuva e ao frio para ver a parada.
Mas ela podia. Embrulhou-se num xale quente e ficou de pé, em cima de um banco de pedra,
perto do portão, protegida por um grande guarda-chuva, e com uma boa visão por cima das cabeças
e sombrinhas dos espectadores, que ocupavam o passeio do lado de fora.
Como prometido, o desfile tinha mais de um quilômetro de comprimento. Era um espetáculo
corajoso e triste. A chuva tinha arruinado completamente os trajes de tipo súdito medieval. Escorria
tinta encarnada, as plumas de avestruz tombaram, chapéus de veludo, outrora vistosos, abatiam-se
sobre os rostos como alfaces murchas. Os arautos e pajens que marchavam na frente pareciam
encharcados e com frio, mas cheios de determinação; os cavaleiros lutavam, os rostos rígidos, com
os seus cavalos salpicados, tentando avançar por entre a lama escorregadia e traiçoeira. Scarlett
juntou-se ao aplauso da multidão para o conde Marshal. Era o tio Henry Hamilton, que parecia ser o
único que estava se divertindo. Arrastava-se pela lama, descalço, levando os sapatos numa mão e o
chapéu sujo na outra, acenando à multidão, primeiro com uma mão e depois com a outra, sorrindo
de orelha a orelha.
Ela própria sorriu quando as damas da corte passaram lentamente por ali, em carruagens
abertas. As líderes da sociedade de Atlanta usavam máscaras, mas nos seus rostos via-se claramente
uma infelicidade estóica. A Pocahontas de Maybelle Merriwether exibia umas penas desfeitas no
cabelo que pingava água pela cara e pelo pescoço abaixo. Mrs. Elsing e Mrs. Whiting
reconheciam-se facilmente, tremendo e encharcadas, mascaradas de Betsy Ross e Florence
Nightingale. Mrs Meade, espirrando, era a representação dos Bons Velhos Tempos, com um montão
de saias em arco de tafetá molhado. Só Mrs. Merriwether não fora afetada pela chuva. A rainha
Vitória segurava um grande guarda-chuva preto sobre a sua seca cabeça real. A sua capa de veludo
não tinha uma única mancha.
Quando as senhoras passaram houve um grande hiato e os espectadores
começaram a ir embora. Mas, nesse momento, ouviu-se o distante som de Dixie. Em pouco tempo, a
multidão dava vivas até ficar rouca e assim continuou até a banda passar por eles, quando todos
ficaram em silêncio.
Era uma banda pequena, só dois tambores e dois homens a tocarem apitos e um homem que
tocava um cornetim, com um timbre alto e doce. Mas estavam vestidos de cinzento, com faixas
douradas e brilhantes botões amarelos. E, na frente deles, um homem só com um braço segurava na
bandeira da Confederação com a mão que lhe restava. A Stars and Bars estava honradamente gasta e
desfeita e desfilava novamente por Peachtree Street. Um nó de emoção dominava todas as gargantas,
impedindo-as de dar vivas.
Scarlett sentiu lágrimas no rosto, mas não eram lágrimas de derrota, eram lágrimas de orgulho.
Os homens de Sherman tinham queimado Atlanta, os ianques tinham pilhado a Geórgia, mas não
tinham conseguido destruir o Sul. Viu lágrimas como as suas nos rostos das mulheres e dos homens
que estavam à sua frente. Todos tinham baixado os chapéus para honrar a bandeira de pé, com a
cabeça descoberta.
Permaneceram ali, ao frio e à chuva, aprumados e orgulhosos, durante muito tempo. À banda,
seguia-se uma coluna de veteranos da Confederação, usando os uniformes de guerra, tecidos à mão,
com que tinham regressado ao lar. Marcharam ao som de Dixie como se fossem novamente jovens,
e os sulistas encharcados que os viam passar, encontraram voz para os saudar e assobiar, e deixar
sair o arrepiante e crescente grito que era o Grito do Rebelde.
Os vivas duraram até os veteranos terem desaparecido. Depois, os guarda- chuvas foram
erguidos e as pessoas começaram a ir embora. Tinham-se esquecido de Rex e do dia de Reis. O
ponto alto da parada viera e passara, deixando-os molhados e gelados mas exaltados.
- Maravilhoso! - ouviu Scarlett de dúzias de bocas sorridentes, enquanto as pessoas passavam
pelo seu portão.
-O desfile ainda não acabou - disse ela para alguns deles. - Não pode ser melhor que Dixie, pois
não? - retorquiam eles. Ela abanava a cabeça. Até ela não estava interessada em ver os carros
alegóricos e trabalhara muito no seu. Também gastara muito dinheiro, em papel de crepe e
lantejoulas que a chuva estragara com certeza. Pelo menos, agora, podia sentar-se para ficar vendo e
isso já era alguma coisa. Não queria ficar toda cansada quando nessa noite havia o baile de
máscaras.
Dez longuíssimos minutos passaram antes de aparecer o primeiro carro. Scarlett percebeu
porquê quando este se aproximou. As rodas da carroça ficavam enterradas na lama barrenta e
remexida da rua a todo o momento. Suspirou e embrulhou-se mais no xale. "Parece que tenho muito
que esperar."
Levou mais de uma hora até todos os carros alegóricos terem passado por ela; antes do fim, já
os seus dentes batiam de frio. Mas, pelo menos, o seu era o melhor. As alegres flores de papel que
decoravam os lados do carro estavam encharcadas mas permaneciam bonitas. E Kenned's
Emporium, pintado com tinta dourada-cintilante brilhava visivelmente através das gotas de chuva
que se agarravam à tinta. Sabia bem que os grandes barris, com etiquetas que diziam "farinha",
"açúcar", "cereal", "melaço", "café", "sal" estavam vazios, por isso, não havia prejuízos. E as bacias
e tábuas de lavar de folha de flandres não iam enferrujar. De qualquer modo, as chaleiras de ferro já
estavam estragadas; ela colara flores de papel nas amolgadelas. O único prejuízo verdadeiro eram as
ferramentas de cabo de madeira. Até os tecidos que enrolara tão artisticamente sobre um pedaço de
arame de galinheiro podiam ser aproveitados para a caixa das pechinchas.
Se ao menos as pessoas tivessem esperado para ver o seu carro, tinha certeza de que teriam
ficado impressionadas.
Curvou os ombros e fez uma careta ao último carro. Estava rodeado por dúzias de crianças que
gritavam e pulavam. Um homem com uma máscara de elfo de diversas cores atirava rebuçados para
a esquerda e para a direita. Scarlett olhou para o nome no cartaz por cima da cabeça dele. Rich's.
Willie estava sempre falando deste novo armazém de Five Points. Estava preocupado porque lá os
preços eram mais baixos e Kennedy estava perdendo alguns clientes. "Disparates", pensou Scarlett
com desprezo. "Rich's não vai ficar aberto o tempo suficiente para me prejudicar. Baixar os preços e
deitar fora mercadoria não é maneira de ter sucesso nos negócios. Estou contentíssima por ter visto
isto. Agora posso dizer a Willie Kershaw para não ser tão parvo."
Ainda ficou mais contente ao ver o carro grand finale atrás do de Rich's. Era o trono de Rex.
Havia uma abertura na cobertura às riscas brancas e vermelhas que o encimava, e a água caía sem
parar na cabeça coroada de dourado e nos ombros com chumaços de algodão, enfeitados com pele
do Dr. Meade. Este tinha um aspecto infelicíssimo.
- Espero que apanhe uma pneumonia dupla e morra! - disse Scarlett por entre dentes. Depois
correu para dentro de casa para tomar um banho quente.
Scarlett ia mascarada de rainha de copas. Teria preferido ser a rainha de ouros, com uma coroa
de papel brilhante, colarinho alto e broches. No entanto, assim não podia usar as suas pérolas, que o
joalheiro lhe tinha dito serem "dignas da própria rainha". E, além disso, encontrara umas boas
imitações de rubis, grandes, para coser a toda a volta do grande decote do seu vestido de veludo
vermelho. Era tão bom vestir uma coisa de cor!
A cauda do vestido estava orlada com raposa branca. Ficaria estragada antes de o baile acabar,
mas não fazia mal; tinha um aspecto elegante, quando a pendurasse no braço para dançar. Tinha uma
misteriosa máscara de cetim vermelho para os olhos, que lhe cobria o rosto até à ponta do nariz, e
pintara os lábios de vermelho, para condizer. Sentia-se muito ousada e bastante segura. Nessa noite
podia dançar até lhe apetecer sem ninguém saber quem ela era, para a poderem insultar. Que idéia
maravilhosa era esta do baile de máscaras!
Mesmo com a máscara posta, Scarlett sentia-se nervosa por entrar na sala de baile sem ir
acompanhada, mas não valia a pena. Quando saiu da carruagem, ia entrar no hall viu grande grupo
de foliões mascarados e ela juntou-se a eles, sem que ninguém comentasse o fato. Uma vez lá
dentro, olhou à sua volta, espantada. A Ópera DeGives fora de tal modo transformada que estava
quase irreconhecível. O belo teatro era agora um verdadeiro e convincente palácio de rei.
Fora construída uma área para dançar sobre a metade inferior do auditório, fazendo que o
grande palco aumentasse, parecendo agora uma sala de baile gigantesca. Ao fundo, o Dr. Meade,
representando Rex, estava sentado no trono, ladeado por súbditos de uniforme, incluindo um porta
Taça Real. No centro da platéia via-se a maior orquestra que Scarlett jamais contemplara, e no
recinto havia multidões de dançarinos, de gente que olhava e de outros que andavam por ali. Havia
um sentimento tangível de alegria esfuziante, um atrevimento que provinha do anonimato dado pelas
máscaras e disfarces. Assim que entrou na sala, um homem vestido de chinês, com um longo rabo de
cavalo, pôs um braço sedoso à volta da sua cintura e levou-a, volteando, para o recinto da dança.
Podia ser um desconhecido total. Era perigoso e excitante.
A música era uma valsa e o seu par um dançarino estonteante. Enquanto rodopiavam, Scarlett
via de relance máscaras de hindus, palhaços, arlequins,
pierrettes, freiras, ursos, piratas, ninfas e cardeais, todos a dançarem tão loucamente como ela.
Quando a música parou estava sem fôlego.
- Maravilhoso! - ofegou ela. - É uma maravilha. Tanta gente. Deve estar aqui a Geórgia em
peso a dançar.
- Não exatamente - disse o seu par. - Alguns não tiveram convites. - Fez um sinal lá para cima
com o polegar. Scarlett viu que as galerias estavam cheias de gente vestida normalmente. Alguns
não eram assim tão comuns. Mamie Bart estava lá, com os diamantes todos, rodeada por outros da
"ralé". "Que bom eu não ter voltado a dar- me com aquele bando. São demasiado ordinários para
serem convidados para onde quer que seja." Scarlett conseguira esquecer a origem do seu convite.
O fato de haver um público fazia que o baile parecesse ainda mais desejável. Atirou a cabeça
para trás e riu. Os seus brincos de diamantes faiscaram; podia vê-los refletidos nos olhos do
mandarim, através dos buracos da máscara.
Nesse momento, ele desapareceu. Foi afastado por um monge com o capuz puxado para a
frente para tapar o rosto mascarado. Sem uma palavra, pegou a mão de Scarlett e rodeou-lhe a
cintura com o braço, no momento em que a orquestra começava a tocar uma alegre polca.
Dançou como já não dançava há anos. Sentia-se tonta, contagiada pela loucura excitante da
mascarada, intoxicada pela estranheza de tudo aquilo, pelo champanhe oferecido em tabuleiros de
prata por pajens vestidos de cetim, pelo prazer de estar novamente numa festa, pelo seu
inquestionável sucesso. Estava sendo um sucesso e acreditava ser desconhecida, invulnerável.
Reconheceu as viúvas da velha guarda. Traziam as mesmas máscaras que tinham usado no
desfile. Ashley estava mascarado, mas ela reconheceu-o assim que o viu. Usava uma faixa à volta da
manga do seu traje de arlequim branco e preto, "Índia devia tê-lo arrastado para aqui, de modo a ter
uma escolta", pensou Scarlett. "Que maldade da parte dela. Claro que ela não se importa se é
maldade ou não, desde que não fique mal, e um homem de luto não precisa se abster de sair do
mesmo modo que uma mulher. Pode pôr uma faixa no seu melhor traje e começar a cortejar a sua
próxima amada, antes de a mulher ter tido tempo de esfriar no caixão. Mas qualquer um pode ver
que o pobre Ashley detesta estar aqui. Vejam só a maneira como está todo curvado, metido na
fantasia. Bem, não te rales, querido. Vai haver muitas mais casas como aquela que Joe Colleton está
construindo. Vinda a Primavera, vais estar tão atarefado fazendo entregas de madeira que não terás
tempo para estar triste."
À medida que a noite ia andando, o espírito de mascarada acentuou-se ainda mais. Alguns dos
admiradores de Scarlett perguntaram-lhe o nome; um até tentou levantar-lhe a máscara. Evitou-os a
todos sem problemas. "Não me esqueci de como é que se tratam rapazes atrevidos", pensou ela,
sorrindo. "E não passam de rapazes, tenham a idade que tiverem. Até estão a espreitar pelos cantos,
à procura de algo um pouco mais forte que champanhe. Daqui a pouco, começam a lançar o Grito do
Rebelde."
- De que é que está rindo, minha rainha misteriosa? - perguntou o corpulento cavaleiro que
parecia estar fazendo o possível por lhe pisar os pés enquanto dançavam.
- Ora, de si, é claro - respondeu Scarlett, sorrindo. Não, não se esquecera de nada. Quando o
Maldita barba. Pensou que ele estava a sorrir, mas não conseguia ver-lhe os lábios. - Eu
também leio os jornais - disse Rhett. - Até mesmo em Charleston, quando uma
cidade de província
nova-rica como Atlanta decide fingir que é Nova Orleães, isso é notícia.
Nova Orleães. Ele levara-a lá na lua-de-mel. "Leva-me lá outra vez", apetecia-lhe dizer.
"Começamos de novo e tudo será diferente." Mas não podia dizer isso. Ainda não. O seu espírito
saltava rapidamente de recordação em recordação. Estreitas ruas calcetadas, salas de teto alto,
sombrias, com grandes espelhos com feias molduras douradas, comidas estranhas e maravilhosas...
- Admito que as bebidas não são tão chiques - disse ela de má vontade. Rhett deu uma gargalhada. -
Uma grande meia verdade. "Estou a fazê-lo rir. Há séculos que não o ouvia rir... há tempo demais.
Deve ter visto os homens fazerem fila para dançar comigo."
- Como é que soubeste que era eu?- perguntou ela. - Tenho uma máscara. - Só precisei de procurar a
mulher vestida mais ostensivamente, Scarlett. Com certeza que eras tu.
- Oh, grande... patife. - Esqueceu-se de que estava tentando diverti-lo. - Não estás lá muito
bonito, Rhett Butler, com essa barba horrível. Mais valia teres enfiado uma pele de urso pela cabeça
abaixo.
- Foi o disfarce mais completo de que me consegui lembrar. Há um certo número de pessoas
em Atlanta que não desejo nada que me reconheça facilmente.
- Então por que é que vieste? Suponho que não foi só para me insultar. - Prometi-te que me deixaria
ver o suficiente para calar as más-línguas, Scarlett. Esta era a ocasião perfeita.
- De que é que serve um baile de máscaras? Ninguém sabe quem é quem. - À meia-noite tiram-se as
máscaras. Ou seja, daqui a quatro minutos. Dançamos uma valsa para todos verem e depois saímos.
- Rhett tomou-a nos braços e Scarlett esqueceu a sua fúria, esqueceu o perigo de tirar a máscara
perante os seus inimigos, esqueceu o mundo. Nada mais importava senão o fato de ele estar ali,
abraçando-a.
Scarlett ficou acordada quase toda a noite, tentando compreender o que acontecera. No baile,
tudo se passara lindamente... "Quando soou a meia-noite, o Dr. Meade disse que toda a gente devia
tirar as máscaras e Rhett ria quando arrancou também a barba. Era capaz de jurar que estava se
divertindo. Fez uma espécie de saudação ao doutor e uma vênia a Mrs. Meade e depois arrastou-me
dali para fora sem mais nada. Nem sequer se deu conta do modo como me viravam as costas, pelo
menos não o deu a entender. Tinha um sorriso de orelha a orelha."
"E na carruagem, a caminho de casa, estava demasiado escuro para lhe ver a cara, mas a voz
soava bem. Eu não sabia o que dizer, mas mal tive tempo de pensar nisso. Perguntou como iam as
coisas em Tara e se o seu advogado pagava as minhas contas, e quando eu acabei de responder,
estávamos em casa. Foi quando a coisa aconteceu. Ele estava aqui, ao fundo das escadas, no hall.
Então, limitou-se a dizer boa noite, que estava cansado e foi para o seu quarto de vestir."
"Não foi odioso ou frio, só disse boa noite e subiu as escadas. Que significa isto? Por que é
que se deu ao trabalho de fazer todo este caminho? Não foi só para vir a uma festa, quando em
Charleston estão na época das festas. Também não foi por ser
um baile de máscaras, podia ir ao de Terça-Feira Gorda se quisesse. No fim de contas, tem muitos
amigos em Nova Orleães."
"Disse que era para 'calar as más-línguas'. Uma ova. Foi ele que causou tudo, ao tirar aquela
porcaria da barba do modo como o fez."
Voltou ao princípio, revendo a noite uma e outra vez, até lhe doer a cabeça. O sono, quando
chegou, foi breve e inquieto. Contudo, acordou a tempo de descer para o café com o roupão que lhe
ficava melhor. Hoje não queria que lhe trouxessem nenhuma bandeja. Rhett tomava sempre o
café-da-manhã na sala de jantar.
- De pé tão cedo, minha querida? - disse ele. - Que amável da tua parte. Assim, não preciso
escrever um bilhete de despedida. - Atirou o guardanapo para cima da mesa. - Fiz uma mala com
algumas coisas de que Pork se esquecera. Passarei para buscá-la mais tarde, quando for apanhar o
trem.
"Não me deixes", implorava o coração de Scarlett. Desviou o olhar, não fosse ele ver a súplica
nos seus olhos.
- Pelo amor de Deus, acaba o café, Rhett - disse ela. - Não vou fazer uma cena. - Dirigiu-se ao
aparador e serviu-se de café, observando-o pelo espelho. Tinha que ficar calma. Então, talvez ele
ficasse.
Ele estava de pé, com o relógio aberto na mão. - Não tenho tempo - disse. - Tenho que ver algumas
pessoas enquanto aqui estou. Vou estar muito ocupado até ao Verão, por isso, vou espalhar a notícia
de que vou para a América do Sul em negócios. Ninguém se vai pôr a falar devido a uma tão longa
ausência. A maior parte das pessoas de Atlanta nem sequer sabe onde é que fica a América do Sul.
Sabes, minha querida, estou cumprindo a minha promessa de preservar a pureza da tua reputação. -
Rhett sorriu maldosamente, fechou o relógio e enfiou-o no bolso. - Adeus, Scarlett.
- Por que é que não vais para a América do Sul e te perdes lá para sempre? Quando a porta se fechou
atrás dele, a mão de Scarlett estendeu-se para a garrafa de brande. Por que é que dissera aquilo? Não
era nada assim que sentia. Ele sempre lhe fizera aquilo, levava-a a dizer coisas que ela não queria, já
devia saber o suficiente para não se deixar levar assim. "Mas ele não me devia ter insultado com
aquilo da minha reputação. Como é que ele terá descoberto que sou uma proscrita?" Nunca se
sentira tão infeliz em toda a sua vida.
9
Mais tarde, Scarlett ficou com vergonha de si própria. Beber de manhã! Só os bêbedos da rua
faziam tal coisa. Disse a si própria que, na verdade, as coisas não estavam assim tão mal. Pelo
menos, agora sabia quando Rhett ia voltar. Ainda faltava muito tempo, mas era uma coisa certa.
Agora já não ia perder tempo imaginando que talvez naquele dia... ou no dia seguinte... ou no
outro...
Fevereiro começou com um tempo quente, pouco habitual, que encorajou as folhas novas das
árvores, e encheu o ar com o cheiro da terra a despertar.
- Abram as janelas todas - disse Scarlett aos criados - para deixar sair o mofo. - A brisa que lhe
levantava as madeixas soltas da testa era deliciosa. De repente, sentiu umas saudades terríveis de
Tara. Lá, com o vento carregado de Primavera, trazendo o cheiro da terra morna para dentro do
quarto, seria capaz de dormir.
"Mas não posso ir. Colleton vai poder começar pelo menos mais três casas, assim que este
tempo amolecer a geada que cobre a terra. Mas só o fará se eu insistir com ele. Nunca conheci um
homem tão exigente em toda a minha vida. Tudo tem de estar perfeito... capaz de esperar até a terra
estar suficientemente quente para cavar até à China sem encontrar geada.
"E se fosse só por uns dias? Uns dias não fariam muita diferença, não é?" Scarlett lembrou-se
da palidez de Ashley e dos seus ombros curvados no Baile de Carnaval e soltou uma exclamação de
desapontamento.
Se fosse para Tara, não seria capaz de se descontrair. Mandou Pansy com um recado para Elias, para
lhe trazer a carruagem. Tinha que ir à procura de Joe Colleton.
Nessa noite, como se fosse uma recompensa por ter cumprido o seu dever, a campainha da
porta tocou logo a seguir ao anoitecer.
- Scarlett, querida - chamou Tony Fontaine quando o mordomo o mandou entrar -, um velho
amigo precisa de um quarto para passar a noite. Tens piedade dele?
- Tony! - Scarlett correu da sala de estar para o abraçar. Ele pousou a bagagem e abriu os
braços para lhe dar um abraço.
- Deus Todo-Poderoso, Scarlett, tens tratado bem de ti - disse ele. - Quando vi este casarão
pensei que um doido qualquer me tinha ensinado o caminho de um hotel, - Olhou para o lustre cheio
de ornamentos, para o papel de parede aveludado, para os enormes espelhos dourados da entrada, e
depois sorriu para ela. - Não admira que tenhas casado com aquele tipo de Charleston em vez de
esperares por mim. Onde está Rhett? Gostaria de conhecer o homem que roubou a minha rapariga.
Uma sensação de medo, quais dedos gelados, percorreu a espinha de Scarlett. Será que Suellen
disse alguma coisa aos Fontaine?
- Rhett está na América do Sul - disse ela com vivacidade. - Imagina que coisa. Santo Deus,
pensava que só os missionários iam para locais tão distantes.
Tony riu. - Eu também. Lamento não o ver, mas ainda bem para mim. Tenho-te toda só para mim. E
que tal uma bebida para um homem cheio de sede?
Tinha certeza de que ele não sabia que Rhett a deixara. - Acho que uma visita tua exige uma garrafa
de champanhe. Tony respondeu que gostaria muito de champanhe mais tarde, mas, naquele
momento, apetecia-lhe um bom e velho uísque e um banho. Tinha certeza de que ainda cheirava a
estrume de vaca.
Scarlett preparou-lhe a bebida e depois mandou-o para cima, acompanhado pelo mordomo,
para um dos quartos de hóspedes que tinha vagos. Graças a Deus que os
criados viviam lá em casa; não haveria escândalo em Tony ficar o tempo que lhe apetecesse. E teria
um amigo com quem falar. Beberam champanhe ao jantar e Scarlett pôs as suas pérolas. Tony
comeu quatro grandes fatias do bolo de chocolate que a cozinheira tinha feito às pressa para a
sobremesa.
- Diz-lhes que embrulhem o que sobrar, para eu levar - implorou ele. - A única coisa de que
morro de saudades é deste bolo, com uma cobertura assim grossa. Fui sempre um guloso.
Scarlett riu e mandou o recado para a cozinha. - Estás falando mal de Sally, Tony? Ela não
sabe fazer coisinhas boas?
- Sally? Por que pensas isso? Todas as noites faz uma sobremesa ótima, só para mim. Alex
não tem destas fraquezas. Scarlett ficou admirada.
- Queres dizer que não sabias? - disse Tony. - Calculei que Suellen te tivesse escrito para
contar. Vou voltar para o Texas, Scarlett, decidi-me por volta do Natal.
Falaram durante horas. A princípio, ela implorou-lhe que ficasse, até que o embaraço desajeitado de
Tony se transformou numa das célebres fúrias dos Fontaines. - Caramba, Scarlett, cale-se! Eu tentei,
Deus sabe como tentei, mas não consigo. Por isso, é melhor parares de me aborrecer.
A sua voz alta fez que os prismas do lustre balançassem, falseando. - Devias pensar em Alex -
insistiu ela. A expressão do rosto de Tony a fez parar. Quando falou, a voz dele estava mais calma. -
Eu tentei mesmo - disse ele. - Lamento muito, Tony. - Eu também, querida. Por que não pedes ao
teu finíssimo mordomo para abrir outra garrafa e falamos sobre outra coisa qualquer?
- Conta-me sobre o Texas. Os olhos negros de Tony brilharam. - Não se vê uma cerca em
quilômetros e quilômetros. - Riu e acrescentou: - É porque não há muito que cercar, a não ser que
gostes de pó e moitas secas. Mas uma pessoa sabe quem é, quando se encontra ali sozinha, naquele
enorme vazio. Não há passado, nem estamos agarrados a farrapos, que são tudo o que nos resta.
Tudo se passa no minuto presente, ou talvez no amanhã, não no ontem. - Levantou o copo para ela. -
Estás linda como uma imagem, Scarlett. Rhett não deve ser muito esperto, senão não te deixava
ficar. Se soubesse que me safava, até fazia uns avanços.
Scarlett pôs a cabeça de lado, como uma coquete. Era divertido jogar os velhos jogos. - Tu até
fazias avanços à minha avó, se ela fosse a única mulher presente, Tony Fontaine.
Quando bates esses
olhos negros e pões esse sorriso brilhante, nenhuma mulher fica em segurança na mesma sala que tu.
- Então, querida, sabes bem que não é assim. Sou o tipo mais cavalheiresco do mundo... desde
que a dama não seja tão linda que me faça esquecer as regras do comportamento.
Gracejaram habilmente, deliciados com o seu próprio jeito, até o mordomo trazer a garrafa de
champanhe, e depois fizeram um brinde um ao outro. Scarlett estava suficientemente tonta, só de
prazer; não se importou que Tony acabasse a garrafa. Durante esse tempo, ele contou-lhe histórias
incríveis do Texas, que a fizeram rir até lhe doer a barriga.
- Tony, gostaria tanto que ficasses uns tempos - disse ela, quando ele anunciou que estava
quase a deixar-se dormir em cima da mesa. - Há séculos que não me divirto tanto.
- Quem me dera. Gosto de beber e comer bem, na companhia de uma mulher bonita e
divertida. Mas tenho que aproveitar este bom tempo. Amanhã apanho o trem que vai para o oeste,
antes que venha aí o frio. Sai muito cedo. Tomas café comigo, antes de eu ir embora?
- Mesmo que quisesses, não te escapavas. Elias conduziu-os à estação sob a luz cinzenta que
antecede o amanhecer, e Scarlett disse adeus com o lencinho enquanto Tony subia para o trem.
Levava uma pequena sacola de couro e um enorme saco de pano, onde guardava a sela. Depois de os
ter atirado para a plataforma da carruagem, voltou-se e acenou com o seu enorme chapéu texano,
enfeitado com uma faixa de pele de cobra. Ao fazer esse gesto, o casaco abriu-se e ela viu o cinturão
e os revólveres.
"Pelo menos, ficou lá o tempo suficiente para ensinar a Wade como fazê-los girar", pensou
ela. "Espero que não dê um tiro nos pés." Com os dedos, mandou um beijo a Tony. Ele inclinou o
chapéu para o apanhar, como se fosse um recipiente, meteu a mão lá dentro, tirou o beijo e meteu-o
no bolso do relógio do colete. Quando o trem partiu, Scarlett ainda se estava rindo.
- Leva-me àqueles terrenos meus, onde Mr. Colleton anda trabalhando - disse a Elias. O Sol ia
nascer antes de lá chegarem e era melhor que os trabalhadores andassem a cavar, ou teria que se
aborrecer. Tony tinha razão. Era preciso aproveitar o bom tempo.
Joe Colleton foi irredutível. - Eu vim, como lhe prometi, Mrs. Butler, mas é tal e qual eu pensava. O
degelo não é, nem por sombras, suficientemente fundo para abrir uma cova. Ainda falta um mês para
se poder começar.
Scarlett lisonjeou-o, depois zangou-se, mas não serviu de nada. Um mês depois, quando um
recado de Colleton a levou ao local, ainda se sentia frustradíssima.
Só viu Ashley quando já era tarde demais para voltar atrás. "Que lhe vou dizer? Não tenho
desculpa nenhuma para estar aqui, e Ashley é tão esperto que perceberia logo, se eu lhe pregasse
alguma mentira." Tinha certeza de que o sorriso apressado que afivelou era tão horrível como aquilo
que sentia.
Se assim era, Ashley não pareceu dar conta de nada. Ajudou-a a descer da carruagem com a
sua cortesia habitual e inata.
- Fico muito contente por te encontrar, Scarlett; é bom ver-te. Mr. Colleton disse- me que
talvez aqui viesses e, por isso, demorei-me o mais possível. - Sorriu tristemente. - Ambos sabemos
que não sou lá muito bom nos negócios, minha querida, por isso os meus conselhos não valem
muito, mas quero dizer que se de fato vais construir outro armazém aqui, é, com certeza, uma boa
idéia.
Que conversa era aquela?... "Oh, é claro, já percebo. Que esperto que Joe Colleton é, já
arranjou uma desculpa para a minha presença aqui." Voltou a dar atenção a Ashley.
- ...e ouvi dizer que é muito provável que construam uma linha de elétrico até aqui, da saída da
cidade. Não é espantosa a maneira como Atlanta está crescendo?
Ashley parecia mais forte. Muito cansado com o esforço que fazia para viver, mas mais capaz
de o fazer. Scarlett desejava ardentemente que isso quisesse dizer que o negócio de madeiras estava
melhor. Não poderia suportar se as fábricas e a serraria também desaparecessem. E nunca seria
capaz de perdoar a Ashley.
Ele pegou-lhe na mão e olhou para ela, com uma expressão preocupada no rosto marcado.
- Pareces cansada, minha querida. Está tudo bem? Apetecia-lhe encostar a cabeça no peito dele
e gemer que estava tudo muito mal.
Mas sorriu.
- Que disparate, Ashley, não sejas tonto. Ontem à noite fui a uma festa e deitei- me tarde, mais
nada. Já devias saber que não se dá a entender a uma senhora que ela não está com o seu melhor
aspecto. - "Espero que isto chegue aos ouvidos de Índia e de todas as suas amigas mesquinhas",
acrescentou Scarlett para si própria.
Ashley aceitou a explicação sem problemas. Começou a contar-lhe sobre as casas de Joe
Colleton. Como se ela não soubesse de tudo, até o exato número de pregos que era preciso para cada
uma.
- São construções de qualidade - disse Ashley. - Por uma vez, os menos afortunados são
tratados tão bem como os ricos... uma coisa que nunca esperei ver nestes tempos de oportunismo
gritante. Parece que, afinal, não se perderam todos os velhos valores. Sinto-me honrado por tomar
parte disto. Não sei se sabes, Scarlett, mas Mr. Colleton quer que seja eu a fornecer a madeira.
Ela pôs um ar espantado. - Bem, Ashley, isso é maravilhoso! E era. Ela sentia-se verdadeiramente
feliz por o seu plano para ajudar Ashley estar a resultar tão bem. Mas, pensou ela depois de falar em
particular com Colleton, a idéia não era que aquilo se transformasse numa espécie de obsessão. Joe
disse-lhe que Ashley tencionava passar um certo tempo no local todos os dias. A idéia dela era
fornecer a Ashley algum dinheiro, não um hobby, pelo amor de Deus! Assim, não poderia sequer ir
até lá.
Exceto no domingo, quando os trabalhos não estavam a decorrer, essa viagem semanal
tornou-se para ela quase uma obsessão. Já não pensava em Ashley quando via a madeira fresca e
forte nas vigas e estruturas, seguidas das paredes e do chão, à medida que a casa crescia. Caminhava
por entre as pilhas bem arranjadas de materiais e entulho com o coração ansioso. Como gostaria de
tomar parte em tudo aquilo, de ouvir o martelar, de ver as aparas a saltar das plainas, de assistir aos
progressos diários. De estar ocupada.
"Só tenho que agüentar até o Verão", estas palavras eram como que uma litania e o mote da
sua vida. "Nessa altura, Rhett volta. A ele posso contar, é o único a quem posso contar, é o único
que se preocupa comigo. Não me vai fazer viver assim, posta de parte e infeliz, quando souber como
tudo é horrível. Que foi que correu mal? Tinha tanta certeza de que se tivesse, pelo menos, dinheiro
suficiente, me sentiria segura. Agora sou rica e tenho mais medo do que em toda a minha vida."
Mas, quando o Verão chegou, não houve visita de Rhett, nem qualquer palavra dele. Scarlett
ia do armazém para casa correndo, todas as manhãs, para estar lá se ele viesse no trem do meio-dia.
À noite, vestia o vestido que lhe ficava melhor e usava as pérolas ao jantar, caso ele viesse de outro
modo qualquer. Na sua frente, estendia-se a longa mesa, brilhando com pratas e pesados damascos,
engomados até luzirem. Foi nessa altura que começou a beber a sério para afastar o silêncio,
enquanto esperava ouvir o som dos passos dele.
Quando começou a tomar sherry à tarde não achou nada de especial - afinal de contas, tomar
um ou dois copos de sherry era próprio de uma senhora. E mal deu por isso quando mudou de sherry
para uísque.. ou quando precisou de uma bebida para fazer as contas do armazém, porque ficava
deprimida por o negócio estar decaindo tanto... ou quando começou a deixar a comida no prato
porque o álcool lhe tapava melhor a fome... ou quando começou a beber um copo de brande assim
que se levantava de manhã...
Mal deu por isso quando o Verão deu lugar ao Outono. Pansy trouxe o correio da tarde ao
quarto, numa bandeja. Ultimamente, Scarlett
tentara dormir um pouco depois do almoço. Enchia, assim, uma parte do vazio da tarde e descansava
um pouco, alívio que lhe era negado durante a noite.
- Quer que eu traga um bule com café, ou qualquer coisa, Miss Scarlett? - Não, faz o teu serviço,
Pansy. - Scarlett pegou na carta de cima do monte e abriu-a. Deitou uma rápida olhadela a Pansy,
que estava a apanhar as roupas que ela atirara para o chão. "Por que é que a estúpida da rapariga não
sai do quarto?"
A carta era de Suellen, Scarlett nem se incomodou em tirar as páginas dobradas de dentro do
sobrescrito. Já sabia o que dizia. Mais queixas das maldades de Ella, como se as filhas da própria
Suellen fossem uma espécie de santas. Acima de tudo, insinuaçõezinhas maldosas sobre o preço de
tudo e sobre como Tara fazia pouco dinheiro e como Scarlett era rica. Scarlett atirou a carta para o
chão. Naquele momento, não conseguia lê-la. Teria que lê-la no dia seguinte... "Oh, graças a Deus
que Pansy se foi embora."
"Preciso de uma bebida. Já está quase escuro. Não há mal nenhum em tomar uma bebida à
noite. Vou só tomar um pequeno brande, devagar, enquanto acabo de ler o correio."
A garrafa escondida atrás das caixas de chapéus estava quase vazia. Scarlett ficou furiosa.
"Maldita Pansy! Se não fosse tão boa a pentear-me, despedia-a amanhã. Deve ter sido ela que a
bebeu. Ou outra das criadas. Não posso ter bebido assim tanto. Só escondi ali a garrafa há poucos
dias. Não interessa. Vou levar as cartas lá para baixo, para a sala de jantar. Afinal de contas, que
interessa que os criados vejam o nível da garrafa?... É a minha casa, a minha garrafa e o meu brande,
e posso fazer o que me apetecer. Onde está o meu roupão? Está ali. Por que é que os botões estão tão
duros? Nunca mais o consigo vestir."
Scarlett sentou-se à mesa para ler o correio. Uma circular a anunciar a chegada de um novo dentista.
Ora... Os seus dentes estavam ótimos, muito obrigada. Outra sobre a distribuição de leite. Um
anúncio de uma nova peça no DeGives. Scarlett deu uma vista de olhos pelos sobrescritos,
irritadamente. Não haveria nada de jeito? A mão parou quando tocou num sobrescrito fino, que fazia
um ruído semelhante a uma casca de cebola; a letra fazia lembrar gatafunhos de aranha. A tia
Eulalie. Engoliu o resto do brande e rasgou o sobrescrito. Sempre odiara as missivas afetadas, com
ar de sermão, da irmã da sua falecida mãe. Mas a tia Eulalie vivia em Charleston. Talvez dissesse
alguma coisa de Rhett. A mãe dele era a sua maior amiga.
Os olhos de Scarlett moveram-se rapidamente, franzindo-os para perceber melhor as palavras.
A tia Eulalie escrevia sempre de ambos os lados do papel, que era fino, e muitas vezes escrevia
"atravessado", escrevendo na página e depois voltando-a, escrevendo por cima das linhas já
existentes. Tudo isto com muitas palavras que não diziam quase nada.
- O Outono, tão invulgarmente quente... dizia aquilo todos os anos... a tia Pauline andava com
problemas no joelho... tinha problemas com o joelho desde que Scarlett se lembrava... uma visita à
irmã Mary Joseph... Scarlett fez uma careta. Não conseguia pensar na irmã mais nova, Carreen, pelo
seu nome religioso, apesar de ela estar no convento em Charleston havia oito anos... a venda de
bolos para o fundo da construção da catedral estava atrasadíssima porque havia poucos donativos e
seria que Scarlett não poderia... Raios! Ela dava às tias um teto para viver, e agora ainda tinha de
ajudar a construir uma catedral? Virou a página, com a testa franzida. O nome de Rhett saltou-lhe à
vista, no meio das palavras entrecruzadas. ... uma bênção ver uma querida amiga como Eleanor
Butler encontrar a felicidade, depois de tantos desgostos. Rhett é muito atencioso para a mãe e a sua
devoção tem
feito muito para melhorar a sua imagem aos olhos dos que lamentavam o comportamento
extravagante da sua juventude. Não consigo compreender, e a tia Pauline também não, porque
insistes em manter essa preocupação injustificada com os negócios, quando não precisas continuar
ligada ao armazém. Já muitas vezes no passado lamentei o teu modo de agir a este respeito, e tu
nunca deste ouvidos os minhas súplicas para que abandonasses uma atitude tão pouco própria de
uma senhora. Por isso, deixei de me referir a isso há alguns anos. Mas, agora, quando isso te afasta
do teu lugar ao lado do teu marido, sinto que é meu dever falar novamente sobre este assunto
detestável.
Scarlett atirou a carta para cima da mesa. Era, então, essa a história que Rhett andava
espalhando! Que ela não queria deixar o armazém e ir com ele para Charleston. Que descarado
mentiroso ele era! Ela implorara-lhe que a levasse com ele quando partira. Como se atrevia a
espalhar tal calúnia? Ela tinha algumas palavrinhas a dizer ao Sr. Rhett Butler, quando ele viesse
para casa.
Foi ao aparador e despejou brande para dentro do copo. Uma parte caiu na brilhante superfície
de madeira. Limpou-o com a manga. Provavelmente, ia negar tudo, o canalha. Bom, ela espetava-lhe
com a carta da tia Eulalie debaixo do nariz. Ia ver se ele era capaz de chamar mentirosa à melhor
amiga da mãe!
De repente, a fúria abandonou-a e sentiu frio. Sabia o que ele ia dizer: "Preferias que contasse a
verdade? Que eu te deixei porque viver contigo era insuportável?"
Que vergonha! Tudo era preferível a isso. Mesmo a solidão, enquanto esperava que ele
regressasse. Levou o copo aos lábios e bebeu demoradamente.
O movimento chamou-lhe a atenção, refletido no espelho que estava por cima do aparador.
Lentamente, Scarlett baixou a mão e pousou o copo. Olhou para os seus próprios olhos. Abriram-se,
chocados com aquilo que viram. Há meses que não olhava a sério para si própria e não podia
acreditar que aquela mulher pálida, magra, de olhos encovados, tivesse alguma coisa a ver com ela.
Até parecia que já não lavava o cabelo havia séculos!
Que lhe acontecera? Num gesto automático, estendeu a mão para a garrafa, dando assim a resposta.
Scarlett retirou a mão e viu como tremia.
- Oh, meu Deus - murmurou. Agarrou-se à ponta do aparador para se amparar, e ficou a olhar
para o seu reflexo.
- Louca - disse. Fechou os olhos e as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, mas limpou-as
com uns dedos que tremiam.
Apetecia-lhe mais uma bebida do que qualquer outra coisa que já desejara na vida. Passou a
língua pelos lábios. A mão direita mexeu-se por vontade própria e fechou-se à volta do copo, que
brilhava como um diamante. Scarlett olhou para as suas mãos como se pertencessem a um estranho,
olhou para a bela e pesada garrafa de cristal e para a promessa de fuga que continha. Lentamente,
observando os seus movimentos no espelho, levantou a garrafa e recuou, afastando-se do seu
assustador reflexo. Depois, inspirou profundamente e balançou o braço com toda a sua força. Ao
estilhaçar-se no enorme espelho, a garrafa, iluminada pelo sol, lançou faíscas azuis, vermelhas e
violetas. Por um instante, Scarlett viu o seu rosto partir-se em pedaços, viu o torcido sorriso de
vitória. Depois, a superfície prateada fragmentou-se e minúsculos pedacinhos espalharam -se sobre o
aparador. Pareceu que a parte superior do espelho se separava da moldura, e enormes bocados
irregulares caíram, estatelando-se com um som de disparos de canhões sobre o aparador, o chão e os
pedaços que tinham
caído primeiro.
Scarlett chorava, ria e gritava perante a destruição da sua própria imagem. - Covarde! Covarde!
Covarde! Não sentiu os pequenos cortes que os pedaços de vidro que saltaram lhe fizeram nos
braços, no pescoço e no rosto. A língua tinha gosto de sal; tocou numa gota de sangue, no rosto, e
olhou surpreendida para os dedos tingidos de vermelho.
Ficou a olhar para o local onde vira o seu reflexo, mas este desaparecera. Riu
desequilibradamente. Boa viagem.
Quando ouviram o barulho, os criados tinham acorrido à porta. Estavam muito juntos, com
medo de entrar na sala, olhando com medo a figura rígida de Scarlett. De repente, ela virou a cabeça
para eles, e Pansy lançou um grito de terror, ao ver a sua cara coberta de sangue.
- Vão embora! - disse Scarlett calmamente. - Estou perfeitamente bem. Vão embora. Quero
ficar sozinha. - Obedeceram sem uma palavra.
Ela estava sozinha, quer quisesse ou não, e não havia brande que chegasse para mudar a
situação. Rhett não ia voltar, aquela casa já não era um lar para ele. Há muito tempo que sabia isso,
mas recusara-se a enfrentá-lo. Fora uma covarde e uma louca. Não era para admirar que não tivesse
reconhecido aquela mulher do espelho. Aquela doida covarde não era Scarlett O'Hara. Scarlett
O'Hara não... - como se costumava dizer - ...não afogava as suas mágoas. Scarlett O'Hara não se
escondia e ficava à espera. Enfrentava o pior que o mundo tivesse para lhe dar. E ia ao encontro do
perigo para tirar o que desejava.
Scarlett estremeceu. Chegara tão perto de se derrotar a si mesma. Acabou-se. Era tempo - e mais que
tempo - de tomar a vida nas suas próprias mãos. Acabou-se o brande. Atirara fora aquela muleta.
Todo o seu corpo gritava por uma bebida, mas ela recusou-se a ouvir. Já fizera coisas mais
difíceis, também podia fazer isto. Tinha que fazê-lo!
Acenou com o punho ao espelho partido. - Traz lá os sete anos de má sorte, maldito sejas! - O seu
riso soou áspero, num desafio.
Encostou-se por momentos à mesa, enquanto recuperava as forças. Tinha tanto que fazer.
Depois, caminhou sobre a destruição que a cercava, partindo com os calcanhares o resto do
espelho.
- Pansy! - chamou ela da porta. - Quero que me venhas lavar o cabelo. - Scarlett tremia da
cabeça aos pés, mas obrigou as pernas a levarem-na até a escada e a subirem a longa escadaria. - A
minha pele deve parecer lixa - disse em voz alta, desviando a atenção do espírito dos desejos do
corpo. - Vou precisar de litros de água de rosas e glicerina. E tenho que arranjar roupas
completamente novas. Mrs. Marie que arranje mais ajudantes de costura.
Não devia levar mais do que algumas semanas até recuperar da sua fraqueza e voltar a ter o
seu melhor aspecto. Faria que assim fosse.
Tinha que estar bonita e forte e não havia tempo a perder. Já perdera muito. Rhett não voltara para
ela, por isso ela tinha que ir encontrar-se com ele. Ir a Charleston.
II Apostas Altas
10
Assim que tomou aquela decisão, a vida de Scarlett modificou-se radicalmente. Agora tinha
um objetivo e concentrava todas as suas energias em alcançá-lo. Mais tarde pensaria em como faria
para trazer Rhett de volta, depois de chegar a Charleston. Por agora, tinha que se preparar para a
partida.
Mrs. Marie atirou as mãos ao ar e declarou que era impossível fazer um guarda- roupa
completamente novo em apenas algumas semanas; o tio Henry Hamilton juntou as pontas dos dedos
e exprimiu o seu desagrado quando Scarlett lhe disse o que precisava que ele fizesse. A oposição
deles fez que os olhos de Scarlett brilhassem com a alegria da batalha e, no fim, foi ela que ganhou.
No princípio de Novembro, o tio Henry tinha tomado conta da gerência financeira do armazém e do
saloon, com a garantia de que o dinheiro seria entregue a Joe Colleton. E o quarto de Scarlett era
uma confusão de cor e rendas - as suas roupas novas, espalhadas, à espera de serem embaladas para
a viagem.
Ainda estava magra e tinha olheiras fundas, uma vez que as noites tinham sido um tormento
de insônia e uma terrível luta da sua vontade para resistir ao descanso que lhe prometia a garrafa de
brande. Mas também ganhara aquela batalha, e o seu apetite natural voltara. O rosto estava já
suficientemente cheio, de modo a fazer aparecer uma covinha quando sorria, e o seu peito estava
atraentemente roliço. Com uma aplicação sábia de rouge nos lábios e nas faces, tinha certeza de que
quase parecia de novo uma moça. Era tempo de partir.
"Adeus, Atlanta", disse Scarlett silenciosamente, quando o trem saiu da estação. "Tentaste
deitar-me abaixo, mas eu não deixei. Não quero saber se gostas de mim ou não." Disse a si própria
que o frio que sentia devia ter origem numa corrente de ar. Não estava com medo, nem um
bocadinho. Ia passar um tempo maravilhoso em Charleston. As pessoas não costumavam dizer que
era a cidade com mais festas em todo o Sul? E não tinha dúvidas de que ia ser convidada para todo o
lado; a tia Pauline e a tia Eulalie conheciam todo mundo. Deviam saber tudo sobre Rhett - onde ele
vivia, o que fazia - tudo o que precisava fazer era...
Não fazia sentido pensar agora nisso. Decidiria quando lá chegasse. Se pensasse agora nisso,
podia ficar nervosa com a idéia da viagem, e já decidira ir.
Céus! Era uma tolice imaginar que ia ficar nervosa. Até parecia que Charleston era no fim do
mundo. Então, Tony Fontaine não tinha ido para o Texas, que ficava tão longe, tão simplesmente
como se fosse dar um passeio até Decatur? E ela já estivera em Charleston. Sabia para onde ia...
O fato de ter detestado a cidade não queria dizer nada. Afinal de contas, naquela época era tão
nova, só tinha 17 anos e, ainda por cima, era viúva há pouco tempo e tinha um bebê. Ainda nem
sequer tinham nascido os dentes de Wade Hampton. Isso fora há mais de doze anos. Agora, tudo ia
ser diferente. Ia resultar tudo bem, exatamente como ela queria.
- Pansy, vai dizer ao condutor para mudar as nossas coisas, quero sentar-me mais perto do
fogão. Esta janela está fazendo corrente de ar.
Scarlett mandou um telegrama às tias da estação de Augusta, onde mudou para a linha da
Carolina do Sul.
chego 4 horas trem visita stop só uma criada stop beijos scarlett Tinha pensado em tudo. Exatamente
dez palavras e não corria o risco de que as tias respondessem com alguma desculpa que a impedisse
de ir, pois já ia a caminho. Não que isso fosse provável. Eulalie andava sempre a pedir-lhe que as
fosse visitar, e
a hospitalidade continuava a ser a lei das terras do Sul. Mas não valia a pena arriscar quando se
podia jogar pelo seguro e ela precisava da casa das tias para se proteger no início. Charleston era
uma cidade orgulhosa, muito convencida, e Rhett estava obviamente tentando voltar as pessoas
contra ela.
Não, ela não ia pensar nisso. Desta vez, ia adorar Charleston. Tinha certeza. Ia ser tudo
diferente. Toda a sua vida ia ser diferente. "Não olhes para trás", dissera sempre a si própria. Agora,
tencionava fazer isso mesmo. A sua vida inteira ficava para trás, cada vez mais longe, a cada volta
das rodas do trem. Todos os problemas dos seus negócios estavam nas mãos do tio Henry, resolvera
o problema da sua responsabilidade para com Melanie, os filhos estavam instalados em Tara. Pela
primeira vez na sua vida adulta, era livre para fazer aquilo que queria e sabia muito bem o que isso
era. Ia provar a Rhett que estivera enganado quando se recusara a acreditar que ela o amava. Ia
mostrar-lhe que era verdade. Ele ia ver. E, depois, ia ficar com pena de a ter deixado. Ia abraçá-la e
beijá-la e iam ser felizes para sempre... Até mesmo em Charleston, se ele insistisse em ficar lá.
Perdida no seu devaneio, Scarlett não deu pelo homem que entrara no trem em Ridgville, até
ele tropeçar no braço do seu assento. Então, encolheu-se como se ele lhe tivesse batido. Vestia o
uniforme azul do Exército da União.
Um ianque! Que faria ele ali? Aqueles tempos tinham acabado e ela queria esquecê-los para
sempre, mas a visão do uniforme fê-los regressar. O medo quando Atlanta estivera cercada, a
brutalidade dos soldados quando roubaram de Tara a sua miserável reserva de comida e colocaram
fogo na casa, a explosão de sangue quando ela disparou contra o vagabundo antes de ele ter tempo
de a violar... Scarlett sentiu novamente o coração batendo de terror e quase gritou. Malditos fossem,
malditos fossem todos, por terem destruído o Sul. Malditos fossem, sobretudo, por a terem feito
sentir desesperada e com medo! Odiava essa sensação e odiava-os a eles!
"Não vou deixar que isto me incomode, não vou. Não posso aborrecer-me com nada, agora
que preciso de ter o melhor aspecto possível e estar pronta para Charleston e Rhett. Não vou olhar
para o ianque e não vou pensar no passado. Só o futuro conta." Cheia de resolução, Scarlett olhou
pela janela para a paisagem de colinas, tão semelhante às terras que rodeavam Atlanta. Estradas de
barro vermelho atravessavam bosques de pinheiros escuros e campos de restolho queimado pela
geada, que restavam das colheitas. Já viajava há mais de um dia e até parecia que não saíra de casa.
"Depressa", incitava ela a locomotiva. "Depressa."
- Como é Charleston, Miss Scarlett? - perguntou Pansy pela centésima vez, exatamente
quando a luz começou a desaparecer lá fora.
- Muito bonita, vais ver que gostas - respondeu Scarlett pela centésima vez. - Ali! - Apontou
para a paisagem. - Vês aquela árvore com aquelas coisas penduradas?... A tal árvore espanhola de
que te falei, a árvore do musgo.
Pansy encostou o nariz na janela empoeirada. - Oooh - gemeu ela. - Parecem fantasmas a mexer-se.
Tenho medo de fantasmas, Miss Scarlett.
- Não sejas medrosa! - Mas Scarlett estremeceu. Os longos fiapos cinzentos de musgo que
ondulavam tinham um aspecto fantasmagórico naquela luz cinzenta, e ela também não gostava nada
do aspecto deles. No entanto, isso queria dizer que estavam entrando nas Terras Baixas,
aproximando-se do mar e de Charleston. Scarlett deu uma olhadela ao seu relógio de lapela. Cinco e
meia. O trem estava atrasado mais de duas horas. Tinha certeza de que as tias tinham esperado por
ela. Mas, mesmo assim, desejava não ter que chegar depois do escurecer. O escuro tinha qualquer
coisa de muito desagradável.
A estação de Charleston, que mais parecia uma caverna, estava pobremente iluminada.
Scarlett esticou o pescoço, procurando as tias ou um cocheiro que pudesse ser criado delas e
estivesse à sua espera. Mas, em vez disso, só viu outra dúzia de soldados de uniforme azul,
transportando armas aos ombros.
- Miss Scarlett... - Pansy puxou-lhe pela manga. - Há soldados por todo o lado. - A voz da
criadinha tremia.
O medo dela obrigou Scarlett a ser valente. - Faz de conta que eles não estão ali, Pansy. Eles não te
fazem mal, a guerra já acabou há praticamente dez anos. Vá lá. - Com um gesto, chamou o
carregador que empurrava o carrinho com a sua bagagem.
- Onde posso encontrar a carruagem que me veio esperar? - perguntou altivamente.
Ele conduziu-a ao exterior, mas o único veículo que se via era um carro muito velho, com um
cavalo esgotado e um condutor negro muito mal arranjado. O coração de Scarlett caiu-lhe aos pés. E
se as tias tivessem saído da cidade? Sabia que às vezes iam a Savannah visitar o pai. E se o seu
telegrama estivesse na varanda de uma casa escura e vazia?
Inspirou profundamente. Não queria saber qual seria a história, tinha era de se afastar da
estação e dos soldados ianques. "Se for preciso, até parto um vidro para entrar em casa. Por que não?
Depois, pago para o mandarem arranjar, do mesmo modo que paguei a reparação do telhado e tudo o
mais." Mandava dinheiro às tias para estas poderem viver, desde que tinham perdido tudo durante a
guerra.
- Ponha as minhas coisas naquele carro - ordenou ao carregador - e diga ao cocheiro para
descer e ajudá-lo. Vou para casa de Mistress Carey Smith, em Battery.
A palavra mágica "Battery" teve exatamente o efeito que ela esperara. Tanto o carregador
como o cocheiro se tornaram logo respeitadores e ansiosos por ajudar. Então, continua a ser o bairro
chique em Charleston, pensou Scarlett com alívio. "Graças a Deus! Seria horrível se Rhett soubesse
que eu estava viver num bairro pobre." Assim que o carro parou, Pauline e Eulalie abriram a porta de
par em par. Uma luz dourada espalhou-se no caminho que ia dar ao passeio, e Scarlett correu em
direção ao santuário que se lhe deparava.
"Estão tão velhas", pensou Scarlett quando se aproximou das tias. "Não me lembro de a tia
Pauline ser assim um espeto e tão cheia de rugas. E como é que a tia Eulalie ficou tão gorda? Parece
um balão com um tufo de cabelo grisalho no alto."
- Olha para ti! - exclamou Eulalie. - Mudaste tanto, Scarlett, que eu mal te reconheci.
Scarlett ficou desanimada. "Com certeza ela não envelhecera também, não é?" Aceitou os
abraços das tias e forçou um sorriso.
- Olhe para a Scarlett, mana - balbuciou Eulalie. - Está o retrato de Ellen. Pauline fungou. - Ellen
nunca foi assim tão magra, sabe isso muito bem, mana, - Pegou no braço de Scarlett e afastou-a de
Eulalie. - Mas há uma semelhança nítida, não digo que não.
Scarlett sorriu, desta vez de felicidade. Não lhe podiam prestar um maior cumprimento.
As tias azafamaram-se, discutindo como haviam de instalar Pansy nos quartos dos criados, e
qual era a melhor maneira de levar para cima os baús e as malas, para o quarto de Scarlett.
- Não mexes um dedo, querida - disse Eulalie para Scarlett. - Depois de uma viagem tão
comprida deves estar completamente esgotada. - Cheia de gratidão,
Scarlett instalou-se num sofá na sala, longe da confusão. Agora que finalmente ali estava, a energia
febril que a agüentara durante os preparativos parecia ter-se evaporado e percebeu que a tia tinha
razão. Estava esgotada.
Durante o jantar, quase adormeceu. Ambas as tias tinham uma voz baixa, com o sotaque
característico daquela região, que alongava as vogais e abafava as consoantes. Apesar de a conversa
delas consistir quase exclusivamente de um desacordo educado em todos os assuntos, o som era
embalador. Além disso, não estavam dizendo nada que a interessasse. Soubera o que queria quase
assim que entrara. Rhett vivia na casa da mãe, mas estava fora.
- Foi para o Norte - disse Pauline com uma expressão azeda. - Mas por uma boa razão, mana -
lembrou-lhe Eulalie. - Está na Filadélfia comprando outra vez algumas das pratas da família que os
ianques roubaram.
Pauline cedeu. - ... uma alegria ver como se dedica à felicidade da mãe, procurando tudo o que ela
perdeu.
Desta vez, foi Eulalie que criticou. - Se queres saber, podia ter mostrado alguma dessa devoção
muito mais cedo. Scarlett não quis saber. Estava ocupada com os seus próprios pensamentos, que se
resumiam em imaginar dali a quanto tempo poderia ir para a cama. Nessa noite não ia sofrer de
insônia, tinha certeza disso.
E tinha razão. Agora que tomara o controle da sua vida e estava a caminho de ter o que queria,
podia dormir como uma criança. Acordou de manhã com uma sensação de bem-estar que já não
sentia há anos. Era bem-vinda na casa das tias, não se sentia afastada e só como em Atlanta, e ainda
nem sequer tinha de pensar no que havia de dizer a Rhett quando o visse. Podia descontrair-se e
deixar-se mimar um bocadinho, enquanto esperava que ele voltasse da Filadélfia.
A tia Eulalie estragou-lhe os planos logo ao café-da-manhã, ainda antes de ter acabado a
primeira xícara de café.
- Sei como deves estar ansiosa por ver Careen, querida, mas ela só recebe visitas às terças e
sábados, por isso planejamos outra coisa para hoje.
Careen! Scarlett apertou os lábios. Não queria mesmo nada vê-la, a traidora. Dar a parte dela
de Tara, como se não significasse nada... Mas que havia de dizer às tias? Nunca compreenderiam
que uma irmã não estivesse mesmo mortinha por ver outra irmã. "Então, elas, são tão íntimas que até
vivem juntas. Tenho que fingir que não há nada no mundo que deseje mais senão ver Careen e
arranjar uma dor de cabeça quando chegar a hora."
De repente, percebeu o que Pauline estava dizendo e a cabeça começou-lhe mesmo a latejar
dolorosamente.
- ... por isso mandamos a nossa criada Susie com um recado a Eleanor Butler. Vamos visitá-la
esta manhã. - Estendeu a mão para a manteigueira. - Scarlett, podes passar-me o xarope?
Scarlett estendeu a mão automaticamente, mas deitou abaixo o jarro, entornando o xarope. A
mãe de Rhett. Ainda não estava preparada para ver a mãe de Rhett. Só se encontrara com Eleanor
Butler uma vez, no funeral de Bonnie, e quase não se lembrava dela, a não ser que era uma mulher
muito alta, digna e que impunha silêncio. "Sei que tenho que vê-la", pensou Scarlett, "mas não
agora, ainda não. Não estou preparada." Batia-lhe o coração enquanto passava desajeitadamente com
o guardanapo sobre a substância pegajosa que se espalhava na toalha.
- Scarlett, querida, não esfregues a nódoa assim na toalha. - Pauline pôs a mão
no pulso de Scarlett. Scarlett afastou-a num gesto brusco. Como é que se podiam preocupar com
uma porcaria de uma toalha velha numa hora daquelas?
- Desculpe, titia - conseguiu dizer. - Não faz mal, querida... é que quase fizeste um buraco, e
restam-nos tão poucas das nossas coisas bonitas... - A voz de Eulalie apagou-se tristemente.
Scarlett cerrou os dentes. Apetecia-lhe gritar. Que importância tinha uma toalha quando teria
de enfrentar a mãe que Rhett praticamente adorava? Suponhamos que ele lhe dissera a verdadeira
razão por que deixara Atlanta, por que tinha saído de casa? - É melhor ir ver as minhas roupas -
disse Scarlett através do nó que lhe apertava a garganta. - Pansy vai ter que tirar as rugas daquilo que
vou vestir. - Tinha que se afastar de Pauline e Eulalie, tinha que se controlar.
- Vou dizer a Susie para começar a aquecer os ferros - ofereceu-se Eulalie. Tocou a campainha
de prata que tinha junto do prato.
- ...é melhor ela lavar esta toalha antes de começar outra coisa qualquer - disse Pauline. -
Depois de a nódoa se entranhar...
- Talvez note, mana, que eu ainda não acabei de tomar o café. Com certeza não espera que eu
deixe esfriar tudo enquanto a Susie levanta a mesa.
Scarlett fugiu para o quarto. - Não vais precisar dessa capa de peles tão pesada, Scarlett - disse
Pauline. - ...claro que não - disse Eulalie. - Hoje está um típico dia de Inverno de Charleston. Eu nem
levava este xale se não estivesse resfriada.
Scarlett desapertou a capa e deu-a a Pansy. Se Eulalie queria que todos ficassem resfriados
também, ela fazia-lhe a vontade. As tias deviam pensar que ela era parva. Sabia por que razão as tias
não queriam que ela levasse a capa. Eram exatamente como a Velha Guarda de Atlanta. Para se ser
respeitável, tinha que se ter um aspecto miserável, como elas. Reparou como Eulalie olhava para o
seu chapéu, orlado a penas e muito na moda, e o rosto endureceu-lhe, numa atitude beligerante. Se
tinha que enfrentar a mãe de Rhett, ao menos o faria com estilo.
- Vamos sair - disse Eulalie, desistindo. Susie abriu a enorme porta e Scarlett seguiu as tias,
saindo para um dia magnífico. Quando desceu os degraus da entrada, ficou de boca aberta. Parecia
Maio, e não Novembro. O sol refletia o calor do caminho esbranquiçado feito de conchas esmagadas
e caía-lhe nos ombros como uma manta invisível. Levantou o queixo para o sentir no rosto, e fechou
os olhos num prazer sensual.
- Oh, tias, isto é uma maravilha! - disse. - Espero que vossa carruagem tenha uma capota de
descer.
As tias riram. - Querida menina - disse Eulalie -, já não há uma única alma em Charleston com
carruagem, exceto Sally Brewton. Vamos a pé... que é o que todo mundo faz.
- Há carruagens, mana - corrigiu Pauline. - Os carpetbaggers têm-nas. - Não podemos chamar
"almas" aos carpetbaggers, mana; desalmados é que eles são, senão não seriam carpetbaggers.
- Abutres - concordou Pauline com uma fungadela. - Nem mais - disse Eulalie. As irmãs riram de
novo. Scarlett riu com elas. O dia lindo fazia que ela se sentisse quase tonta de prazer. Num dia
como aquele, era impossível que alguma coisa corresse mal. De repente, sentiu uma grande ternura
pelas tias, apesar das suas discussões inofensivas. Seguiu- as, atravessando a larga rua vazia em
frente de casa, e subindo umas pequenas escadas do outro lado. Ao chegar ao topo, a brisa fez
abanar as penas do seu chapéu
e trouxe-lhe aos lábios um sabor de sal.
- Oh, meu Deus! - disse ela. Ao longe, do lado oposto da elevação, as águas
castanho-esverdeadas do porto de Charleston estendiam-se na sua frente até ao horizonte. À sua
esquerda, as bandeiras esvoaçavam nos altos mastros dos navios ao longo dos portos de abrigo. Para
a sua direita, as árvores de uma ilha comprida e baixa irradiavam um verde-brilhante. O sol brilhava
nas pontas de minúsculas ondinhas, fazendo que parecesse que a água estava salpicada de
diamantes. Um trio de pássaros muito brancos elevava-se no céu azul e sem nuvens, para em seguida
descer a pique, a rasar a crista das ondas. Parecia que estavam jogando um jogo, uma versão
despreocupada e leve de um jogo de crianças. A brisa leve e com gosto de sal acariciava-lhe o
pescoço.
Agora tinha certeza de que fizera bem em vir. Voltou-se para as tias: - Está um dia lindo! - disse
Scarlett. A avenida era tão larga que podiam caminhar as três ao lado umas das outras. Por duas
vezes encontraram outras pessoas: primeiro, um cavalheiro já velho, com uma casaca fora de moda e
chapéu de pele de castor, e depois uma senhora acompanhada por um rapaz magrinho, que corou
quando lhe falaram. De ambas as vezes pararam e as tias apresentaram Scarlett.
- ... a nossa sobrinha de Atlanta. A mãe dela era a nossa irmã Ellen, e está casada com o filho
de Eleanor Butler, Rhett.
- O velho cavalheiro curvou-se e beijou a mão de Scarlett, a senhora apresentou- lhe o neto,
que ficou olhando para Scarlett como se tivesse sido atingido por um raio. Para Scarlett, o dia ficava
cada vez melhor a. cada minuto que passava. Então, reparou que os transeuntes que se aproximavam
eram homens de uniforme azul.
Tropeçou e agarrou o braço de Pauline. - Tia - murmurou ela -, vêm aí soldados ianques na nossa
direção. - Continua a andar - disse Pauline com calma. - Têm que se desviarem do nosso caminho.
Scarlett olhou para Pauline, chocada. Quem havia de pensar que a sua velha tia esquelética
conseguia ser tão valente? O seu próprio coração batia tão alto que tinha certeza de que os soldados
o conseguiam ouvir, mas obrigou os pés a mexerem-se.
Quando já só os separavam três passos, os soldados afastaram-se para o lado, encostando-se à
vedação de tubos de metal que ladeava a beira do passeio, do lado da água. Pauline e Eulalie
passaram por eles como se não existissem. Scarlett levantou o queixo, imitando o jeito das tias, e
acompanhou-as.
Em algum lugar à frente delas, uma banda começou a tocar Oh, Susana! A alegre melodia, tão
folgazona, era tão bela e quente como o dia. Eulalie e Pauline começaram a andar mais depressa,
acompanhando o ritmo da música, mas os pés de Scarlett pareciam de chumbo. "Covarde!",
acusava-se a si própria. Mas não conseguia deixar de tremer por dentro.
- Por que é que há tantos malditos ianques em Charleston? - perguntou zangada. - Também vi
alguns na estação.
- Meu Deus, Scarlett - disse Eulalie -, não sabias? Charleston ainda está sob ocupação militar.
É provável que nunca mais nos deixem em paz. Odeiam-nos porque os expulsamos de Fort Sumter e
o defendemos contra toda a esquadra deles.
- E só Deus sabe quantos regimentos - acrescentou Pauline. Os rostos das irmãs brilhavam de
orgulho.
- Santíssima Mãe de Deus! - murmurou Scarlett. Que tinha ela feito? Fora meter- se mesmo na
boca do inimigo. Sabia o que queria dizer governo militar: impotência e raiva, um medo constante
de que eles confiscassem a casa das pessoas ou as