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Título original: Scarlett

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Scarlett

Alexandra Ripley
I

Perdida nas trevas


1
"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara." Scarlett O'Hara Hamilton
Kennedy Butler estava de pé, sozinha, um pouco afastada dos outros, no funeral de Melanie Wilkers.
Estava chovendo e os homens e mulheres vestidos de preto erguiam guarda-chuvas negros por cima
da cabeça. Apoiavam-se uns nos outros e as mulheres choravam, partilhando o desgosto e o abrigo.

Scarlett não partilhava nem o chapéu, nem a sua mágoa com ninguém. Rajadas de ​ vento
empurravam a chuva para debaixo do chapéu, formando fios de água gelada, que a picavam e lhe
escorriam pelo pescoço, mas ela não se dava conta. Não sentia nada, estava atordoada pela perda.
Choraria mais tarde, quando fosse capaz de suportar a dor. Mantinha-a afastada de si, a dor, os
sentimentos, e os pensamentos. Só não afastara as palavras que se repetiam uma e outra vez na sua
cabeça, as palavras que prometiam a cura da dor que estava para vir e força para sobreviver até estar
curada.
"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara." "... as cinzas retornam às
cinzas, o pó ao pó..." A voz do pastor penetrou a concha do seu entorpecimento, e as suas palavras
ficaram gravadas. "Não!", gritou Scarlett para dentro. "Melly, não. Aquele não é o túmulo de Melly,
é grande demais, ela é tão pequenina, os seus ossos não são maiores que os de um passarinho. Não!
Ela não pode estar morta, não é possível."
Scarlett abanou a cabeça com força, negando a cova aberta e o caixão de pinho sem
ornamentos que estava sendo descido. Na madeira macia viam-se pequenos semi-círculos, marcas
deixadas pelos martelos que tinham pregado os pregos para fechar a tampa sobre o rosto em forma
de coração, suave e cheio de amor de Melanie.
"Não! Não podem, não devem fazer isto, está chovendo, não podem pô-la na chuva, vai
molhá-la. Ela é tão sensível ao frio, não podemos deixá-la no frio e na chuva. Não consigo olhar,
não agüento, não posso acreditar que ela se foi. Ela me ama, é minha amiga, a minha única amiga
verdadeira. Melly me ama, não ia me deixar agora, exatamente quando mais preciso dela."
Scarlett olhou para as pessoas que rodeavam a sepultura e foi invadida por uma cólera ardente.
"Nenhum deles se importa como eu, nenhum deles perdeu tanto quanto eu. Ninguém sabe como eu a
amo. Mas Melly sabe, não sabe? Sabe, tenho de acreditar que sim."
"No entanto, eles nunca acreditarão nisso. Nem Mrs. Merriwether, nem os Meades, nem os
Whitings, nem os Elsings. Olhem para eles, amontoados à volta de índia Wilkes e Ashley, parecem
um bando de corvos molhados nas suas roupas de luto. É verdade que estão a confortar a tia Pittypat,
embora todo mundo saiba que ela chora horrores por tudo e por nada, até mesmo quando deixa
queimar uma torrada. Nem lhes passa pela cabeça que talvez eu também precise de um pouco de
carinho, que era mais chegada a Melanie que qualquer deles. Agem como se eu nem estivesse aqui.
Ninguém me ligou nenhuma vez. Nem sequer Ashley. Ele sabia que eu estive lá, durante aqueles
dois dias horríveis depois de Melanie morrer, quando precisou de mim para arranjar as coisas. Todos
sabiam, até índia, berrando para mim que nem uma cabra. 'Como que é que havemos de fazer com o
funeral, Scarlett? E a comida para as pessoas? E o caixão? E os carregadores? E o talhão no
cemitério? E a inscrição da pedra tumular? E a notícia para o jornal?' Agora amparam-se uns aos
outros, chorando e gemendo. Bem, não lhes vou dar o prazer de me verem chorar, aqui sozinha, sem
ninguém em quem me encostar. Não posso chorar. Aqui não. Ainda não. Se começo a
chorar, talvez não seja capaz de parar. Quando chegar a Tara já posso chorar."
Scarlett ergueu a cabeça, cerrou os dentes para impedir que batessem de frio e para agüentar
os soluços que lhe subiam à garganta. "Isso vai acabar em breve e depois já posso voltar para casa,
para Tara."
Ali, no cemitério Oakland de Atlanta, Scarlett via-se rodeada pelos pedaços quebrados que
constituíam a sua vida desfeita. A alta espiral de granito, uma pedra cinzenta coberta de água
cinzenta, era um sombrio monumento a um mundo que desaparecera para sempre, o mundo
despreocupado da sua juventude, antes da guerra. Era o Monumento da Confederação, símbolo
orgulhoso da coragem impensada que mergulhara o Sul na destruição, carregando os seus
estandartes brilhantes. Representava tantas vidas perdidas, os amigos da sua infância, os galãs que
lhe tinham implorado valsas e beijos, nos tempos em que o maior dos seus problemas era saber qual
dos vestidos de baile, com grandes saias rodadas, devia usar. Representava o seu primeiro marido,
Charles Hamilton, irmão de Melanie. Representava os filhos, os irmãos, os maridos, os pais de todos
os presentes, que, encharcados, se juntavam na pequena colina onde Melanie estava sendo sepultada.
Havia outras sepulturas, outras marcas. Frank Kennedy, o segundo marido de Scarlett. E o
pequeno, terrivelmente pequeno, túmulo com uma pedra onde se lia Eugenie Victoria Butler e, por
debaixo, Bonnie. A sua última filha, e a mais amada.
Estava rodeada de vivos e de mortos, mas mantinha-se à parte. Parecia que metade de Atlanta
estava ali. A multidão não coubera na igreja e espalhara-se, formando um largo círculo, irregular e
sombrio, em volta daquela amarga mancha de cor sob a chuva cinzenta, a sepultura aberta, cavada
no barro vermelho da Geórgia para o corpo de Melanie Wilkes.
Na primeira fila estavam aqueles que tinham sido mais íntimos. Brancos e negros, todos,
menos Scarlett, tinham o rosto coberto de lágrimas. O velho cocheiro, o tio Peter, formava,
juntamente com Dilcey e Cookie um negro triângulo protetor à volta de Beau, o confuso filho de
Melanie.
Estava lá a velha geração de Atlanta, com os poucos descendentes que tragicamente lhe
restava. Os Meades, os Whitings, os Merriwethers, os Elsings. Estavam as suas filhas e genros,
estava Hugh Elsing, o único filho vivo, aleijado, estava a tia Pittypat Hamilton e o irmão, o tio
Henry Hamilton, tendo esquecido a sua zanga de anos no desgosto comum pela morte da sobrinha.
Mais nova, mas parecendo tão velha como os outros, índia Wilkers protegia-se no interior do grupo
e observava o seu irmão Ashley com uns olhos sombreados pelo desgosto e pela culpa. Como
Scarlett, ele estava sozinho. Tinha a cabeça descoberta, à chuva, sem se dar conta dos chapéus que
lhe estendiam para se abrigar, sem se aperceber da chuva gelada, incapaz de aceitar a finalidade das
palavras do pastor ou o estreito caixão que estava a ser descido para a cova lamacenta e
avermelhada.
Ashley, alto, magro e sem cor, o seu cabelo louro-pálido, agora quase grisalho, o rosto pálido
e marcado tão vazio como os olhos cinzentos, que olhavam em frente, sem nada verem. Mantinha-se
direito, numa atitude de saudação, a sua herança dos anos em que usara a farda cinzenta de oficial da
Confederação. Estava imóvel, sem sentir, nem compreender.
Ashley. Ele era o centro e o símbolo da vida arruinada de Scarlett. Por amor a ele, ignorara a
felicidade que tivera à mão. Afastara-se do marido, sem ver o seu amor por ela, sem admitir que o
amava, porque o seu desejo por Ashley se metera sempre no meio. E agora Rhett partira, marcando
apenas a sua presença ali com um ramo de flores, quentes e douradas como o Outono, um ramo
entre os demais. Atraiçoara a sua única amiga, desprezara o amor leal e persistente de Melanie. E
agora Melanie partira.
E até mesmo o amor de Scarlett por Ashley desaparecera, pois compreendera - tarde demais - que o
hábito de amá-lo há muito que substituíra o próprio amor.
Não o amava, nem voltaria a amar. E, agora, quando ela já não o queria, Ashley pertencia-lhe,
a herança que Melanie lhe deixara. Prometera a Melanie que tomaria conta dele e de Beau, o filho
deles.
Ashley era a causa da destruição da sua vida. E a única coisa que lhe restava dela. Scarlett
mantinha-se à parte, sozinha. Entre ela e as pessoas que conhecia em Atlanta só havia uma distância
fria e cinzenta, distância essa que Melanie preenchera em tempos, afastando-a do isolamento e do
ostracismo. Sob o guarda-chuva, no local onde Rhett devia estar para protegê-la com os seus ombros
largos e o seu amor, havia apenas um vento úmido e frio.
Manteve o rosto erguido, enfrentando o vento, aceitando a sua investida sem senti-lo. Tinha
todos os sentidos concentrados nas palavras que constituíam a sua força e a sua esperança.
"Isso vai acabar em breve e depois já posso ir para casa, para Tara." - Olhe para ela - sussurrou uma
senhora com um véu negro para a companheira que partilhava o seu chapéu. - Dura como pedra.
Disseram-me que durante todo o tempo em que esteve tratando do funeral, nem sequer verteu uma
lágrima. Toda negócios, a Scarlett. E sem coração.
- Sabe o que dizem as pessoas - respondeu-lhe um murmúrio. - Tem coração que chegue para
Ashley Wilkes.
- Acha que eles chegaram mesmo a... As pessoas que estavam perto mandaram-nas calar, mas ambas
pensavam a mesma coisa. Todos pensavam. Ninguém conseguia ver a dor nos olhos ensombrados de
Scarlett ou o seu coração desfeito sob a luxuosa pelica de pele de foca.
O tenebroso som cavo da terra caindo na madeira fez Scarlett cerrar os punhos. Tinha vontade
de tapar os ouvidos, de gritar bem alto - qualquer coisa que a impedisse de ouvir o terrível som da
sepultura que se fechava sobre Melanie. Mordeu dolorosamente os lábios. Não ia gritar, nunca.
O grito que estilhaçou a solenidade do ato veio de Ashley. - Melly... Mell... eee! - E novamente: -
Mell... ee. - Era o grito de uma alma atormentada, cheia de solidão e medo.
Avançou aos tropeções para o fundo buraco lamacento, como um homem subitamente cego, as
mãos procurando a pequena e suave criatura que fora toda a sua força. Mas não havia nada para
agarrar a não ser a chuva fria, que caía em fios prateados.
Scarlett olhou para Tommy Wellburn, para o Dr. Meade, para índia, para Henry Hamilton.
"Por que é que não fazem nada? Por que é que não o agarram? Alguém tem de o fazer parar!"
- Mell... eee... "Pelo amor de Deus! Vai partir o pescoço e eles estão ali de pé, olhando
estupidamente, vendo ele balançar na beira da cova.
- Ashley, pára! - gritou ela. - Ashley! - começou a correr, escorregando e resvalando na erva
molhada. O guarda-chuva, que atirara para o lado, rolou pelo chão, empurrado pelo vento, até ficar
preso no amontoado de flores. Agarrou Ashley pela cintura e tentou afastá-lo do perigo. Ele lutou
com ela. - Ashley, não faça isso. - Scarlett lutava contra a força dele. - Agora Melly já não pode te
ajudar. - A sua voz era dura, tentando penetrar a dor surda e demente de Ashley.
Ele parou, deixando cair os braços. Gemeu baixinho e depois o corpo abateu-se nos braços de
Scarlett, que o amparou. Só quando estava quase a largá-lo, devido ao
peso, é que o Dr. Meade e índia seguraram os braços inertes de Ashley para o erguerem.
- Já podes ir, Scarlett - disse o Dr. Meade. - Já não há mais nada para arruinares. - Mas eu... - Olhou
para os rostos que a rodeavam, os olhos ávidos de más sensações. Depois voltou-se e afastou-se no
meio da chuva. A multidão recuou, como se receasse que as saias dela, ao tocar-lhe, a conspurcasse.
Eles não podiam saber que se importava, não deixaria que vissem como a conseguiam magoar.
Scarlett levantou o queixo num desafio, deixando que a chuva lhe escorresse pela cara e pelo
pescoço. Manteve as costas e os ombros direitos até chegar aos portões do cemitério, ficando fora de
vista. Então, agarrou-se a um dos varões de ferro. Sentia-se tonta de cansaço, sem firmeza nos pés.
O cocheiro, Elias, correu para ela, abrindo um chapéu que ergueu sobre a sua cabeça curvada.
Scarlett caminhou até à carruagem, ignorando a mão que se estendera para a ajudar. No interior da
caixa forrada de felpa, deixou-se cair num canto e puxou a coberta de lã. Estava gelada até aos
ossos, horrorizada com o que tinha feito. Como é que fora capaz de envergonhar Ashley daquela
maneira em frente a todo mundo, quando há apenas algumas noites tinha prometido a Melanie que
tomaria conta dele e o protegeria, como Melly sempre tinha feito? Mas que outra coisa poderia ter
feito? Deixá-lo atirar-se para dentro da cova? Tinha que detê-lo.
A carruagem oscilava de um lado para o outro, com as enormes rodas enterradas nos
profundos sulcos de lama barrenta. Scarlett quase caiu no chão. Bateu com o cotovelo na janela,
fazendo com que uma dor aguda lhe percorresse o braço.
Não passava de uma dor física. Isso podia ela suportar. A outra dor, uma dor adiada, retardada,
sombria e negada, é que ela não agüentava. Ainda não, não aqui, não quando estava tão só. Tinha
mesmo que ir para Tara. Mammy estava lá. Mammy poria os seus braços escuros à volta dela,
Mammy a abraçaria, embalaria a sua cabeça, encostando-a no peito onde chorara todas as suas
mágoas infantis. Nos braços de Mammy podia chorar, chorar até ficar vazia, sem dor; podia
descansar a cabeça no peito de Mammy, podia descansar o seu coração ferido no amor de Mammy.
Mammy a abraçaria e lhe daria amor, partilharia a sua dor e a ajudaria a suportá-la.
- Depressa, Elias - disse Scarlett -, depressa. - Ajuda-me a tirar estas coisas molhadas, Pansy -
ordenou Scarlett à criada. - Rápido. - O seu rosto estava de uma palidez mortal, fazendo que os olhos
verdes parecessem mais escuros, mais brilhantes, mais assustadores. Com o nervoso, a jovem negra
atrapalhou-se. - Depressa, eu disse. Se me fizeres perder o trem, te dou uma chicotada.
Não podia fazer isso, Pansy sabia que não podia. Os tempos da escravatura tinham acabado.
Miss Scarlett já não era dona dela, podia ir embora quando quisesse. Mas o brilho febril e
desesperado dos olhos verdes de Scarlett fez com que Pansy duvidasse dos seus próprios
conhecimentos. Scarlett parecia capaz de tudo.
- Põe na mala o merino de lã preta, vai esfriar - disse Scarlett. Examinou a mala aberta. Lã
preta, seda preta, algodão preto, sarja preta, veludo preto. Podia continuar de luto até ao fim dos seus
dias. Ainda estava de luto por Bonnie, e agora por Melanie. "Devia arranjar alguma coisa ainda mais
escura que o preto, alguma coisa mais pesarosa, para pôr luto por mim mesma. Não vou pensar
nisso, pelo menos agora, se o fizer, enlouqueço. Penso nisso quando chegar a Tara. Lá, consigo
agüentar." - Veste- te, Pansy, Elias está esperando. E não te atrevas a esquecer-te do fumo para o
braço. Esta casa está de luto.
As ruas que se cruzavam em Five Points pareciam um pântano. Carroças, charretes e
carruagens estavam enterradas na lama. Os condutores amaldiçoavam a chuva, as ruas, os cavalos e
os outros condutores que lhes impediam o caminho.
Ouviam-se gritos, o som de chicotes a estalar e o barulho das pessoas. Em Five Points havia sempre
uma multidão, pessoas com pressa, que discutiam, se queixavam e riam. Five Points fervilhava de
vida, de dinamismo e de energia. Five Points era a Atlanta de que Scarlett gostava.
Mas não naquele dia. Nesse momento, Five Points impedia-lhe o caminho, Atlanta puxava-a
para trás. "Tenho que apanhar aquele trem, se o perder, morro, tenho de ir para Tara, para Mammy
ou vou-me abaixo."
- Elias - gritou ela -, não quero saber se precisa chicotear os cavalos até a morte, não me
interessa se tiver que atropelar todo mundo desta rua. Chegue à estação.
Os seus cavalos eram os mais fortes, o seu cocheiro o mais hábil, a sua carruagem a melhor
que o dinheiro podia comprar. Era melhor que nada se atravessasse no seu caminho, nada mesmo.
Apanhou o trem muito a tempo. A chaminé do trem lançou uma baforada de vapor. Scarlett susteve
a respiração ao ouvir o barulho das rodas indicando que o trem estava em movimento. Ali ele ia.
Outra vez. E outra ainda. A vagão rodou sacudindo. Estava finalmente a caminho.
Tudo ia ficar bem. Ia regressar a Tara. Imaginou-a ensolarada e luminosa. A casa branca e
resplandecente; as cortinas brancas esvoaçando nas janelas abertas, por cima das cintilantes folhas
verdes dos arbustos de jasmim, cheios de rebentos muito brancos.
Quando o trem deixou a estação, uma forte chuva negra escorria copiosamente pela janela ao
seu lado, mas não fazia mal. Em Tara haveria uma lareira acesa na sala de estar. Ouvir-se-ia o
crepitar das pinhas atiradas para junto dos troncos e as cortinas estariam fechadas, impedindo a
entrada da chuva, da escuridão e do mundo. Deitaria a sua cabeça no largo e macio peito de Mammy
e lhe contaria todas as coisas horríveis que tinham acontecido. Estaria, então, em condições de
pensar, de resolver tudo.
O silvar do vapor e o ruído agudo das rodas fizeram estremecer a cabeça de Scarlett.
Seria já Jonesboro? Devia ter dormitado, o que não admirava, tal era o seu cansaço. Não tinha
sido capaz de dormir durante duas noites, nem mesmo com o brande para lhe acalmar os nervos.
Não, a estação era Rough and Ready. Faltava ainda uma hora para Jonesboro. Pelo menos a chuva
parara, havia mesmo sinais de céu azul lá na frente. Talvez o sol estivesse brilhando em Tara.
Imaginou o caminho verde e a casa amada no topo do monte.
Scarlett suspirou profundamente. A sua irmã Suellen era agora a dona da casa. Ah! Melhor
seria chamar-lhe a choramingas da casa. Tudo o que Suellen fazia era lamentar-se, era tudo o que
sempre tinha feito desde que eram crianças. Agora ela tinha as suas próprias crianças, tão choronas
quanto ela costumava ser.
Os filhos de Scarlett também estavam em Tara. Wade e Ella. Tinha-os mandado com Prissy, a
ama deles, quando recebeu a notícia de que Melanie estava morrendo. Provavelmente, deveria tê-los
consigo no funeral de Melanie. Isso dera às bisbilhoteiras de Atlanta mais um motivo de conversa.
Era uma mãe desnaturada. Deixá-las dizer o que quisessem. Não teria conseguido passar aqueles
horríveis dias e aquelas pavorosas noites depois da morte de Melanie se também tivesse tido que

aturar Wade e Ella. ​Não pensaria neles, é tudo. Ia para casa, para Tara e para Mammy, e
simplesmente não se permitiria pensar em coisas que a aborrecessem. "Deus sabe que já tenho coisas
que me aborreçam o suficiente. Não preciso metê-los também nisto. Estou tão cansada..." Inclinou a
cabeça e fechou os olhos.
- Jonesboro, ma'am - disse o condutor. Scarlett pestanejou e endireitou-se.
- Obrigada. - Olhou em volta da cabine à procura de Pansy e das suas malas. "Esfolo aquela
rapariga viva se ela anda vagueando noutro vagão. Oh!, se ao menos uma senhora não tivesse que
andar acompanhada todas as vezes que põe o pé fora de casa. Faria tudo muito melhor sozinha. Lá
está ela." - Pansy! Tira essas malas da rede. Já chegamos. - "Agora já só faltam cinco milhas para
Tara. Em breve estarei em casa. Em casa!"
Will Benteen, o marido de Suellen, estava à espera na plataforma. Ver Will foi um choque; os
primeiros segundos eram sempre um choque. Scarlett gostava de Will e respeitava-o genuinamente.
Se pudesse ter tido um irmão, como sempre desejara, gostaria que fosse como Will. Sem a perna de
pau e sem fazer tanto barulho, claro. Não era possível confundi-lo com um cavalheiro; era
manifestamente classe baixa. Ela esquecia-se disso quando estava longe dele, e esquecia-o depois de
estar com ele um minuto, por ser um homem tão bom e tão gentil. Mesmo a Mammy tinha Will em
grande conta, e ela era o mais rigoroso juiz quando se tratava de ver quem era um cavalheiro ou uma
senhora.
- Will! - Ele caminhou na sua direção, naquele seu porte oscilante. Ela atirou os braços em
volta do pescoço dele e abraçou-o com força. - Oh, Will, estou tão contente de te ver que quase
choro de alegria.
Will aceitou o abraço sem emoção. - Também estou contente de te ver, Scarlett. Já faz tanto tempo. -
Demais. É vergonhoso. Quase um ano. - Parecem dois. Scarlett estacou. Tinha passado tanto tempo?
Não admirava que a sua vida estivesse num estado tão lamentável. Tara sempre lhe tinha dado uma
nova vida, uma nova força quando precisava dela. Como podia ter passado tanto tempo longe dela?
Will fez sinal a Pansy e dirigiu-se à carroça do lado de fora da estação. - E melhor irmos andando se
queremos chegar antes que escureça - disse ele. - Espero que não se importe com esta viagem
incômoda, Scarlett. Já que vinha à cidade, resolvi levar algumas provisões. - A carroça estava cheia
de sacos e pacotes.
- Não me importo nada - disse Scarlett com sinceridade. Estava de volta ao lar e qualquer coisa que
a levasse lá era boa. - Sobe nesses sacos de ração, Pansy.
Na longa viagem para Tara, permaneceu tão silenciosa quanto Will, absorvendo a quietude do
campo, refrescando-se com ela. O ar estava fresco, como se tivesse sido lavado, e o sol da tarde
batia quente nos seus ombros. Tinha feito bem em vir para casa. Tara lhe daria a paz e a proteção de
que precisava. E com a ajuda de Mammy seria capaz de reconstruir o seu mundo em ruínas.
Inclinou-se para a frente quando viraram para o caminho familiar, sorrindo na expectativa.
Mas quando a casa apareceu, deixou sair um grito de desespero. - Will, que aconteceu? - A fachada
de Tara estava coberta de trepadeiras, com longos e feios cordões de folhas mortas; quatro das
janelas tinham portadas soltas, e duas delas nem isso tinham.
- É o Verão, Scarlett. Trato dos reparos da casa no Inverno, quando não houver colheitas para
fazer. Começarei nas portadas daqui a algumas semanas. Ainda não estamos em Outubro.
- Oh, Will, por que não me deixas lhe dar algum dinheiro? Poderia contratar alguém para
ajudá-lo. Pode ver-se o tijolo através do cal. Dá um aspecto tão miserável.
Will respondeu pacientemente. - Não se arranja ninguém para trabalhar, nem por amor, nem por
dinheiro. Aqueles que querem trabalhar sempre arranjam que fazer, e quem não quer não me
serviria de nada. Eu e o Big Sam já nos arranjamos. O teu dinheiro não é preciso.
Scarlett mordeu o lábio e engoliu as palavras que queria dizer. Já antes tinha tido que lidar
freqüentemente com o orgulho de Will, e sabia que ele era irredutível. Estava certo, as colheitas e o
gado tinham que vir primeiro. Exigiam cuidados imediatos; e uma nova aguada de cal podia esperar.
Já podia ver os campos, estendendo-se atrás da casa. Estavam sem ervas daninhas, aparados a pouco.
Sentia-se o cheiro leve, mas rico do estrume na terra, preparando-a para a próxima plantação. A terra
vermelha parecia quente e fértil, e ela descontraiu-se. Este era o coração de Tara, a sua alma.
-Tem razão - disse a Will. A porta da casa abriu-se e o alpendre encheu-se de pessoas. Suellen
estava à frente, segurando o filho mais novo nos braços, acima da barriga inchada que repuxava as
costuras do seu desbotado vestido de algodão. O xale tinha caído sobre um dos braços. Scarlett
forçou uma alegria que não sentia.
- Meu Deus, Will, a Suellen vai ter outro bebê? Vais ter de construir mais quartos. Will riu com
prazer. - Ainda estamos tentando ter um rapaz. - Levantou a mão para saudar a mulher e as três
filhas.
Scarlett acenou também, desejando ter se lembrado de comprar alguns brinquedos para trazer
às crianças. "Oh! Deus, olhem para eles." Suellen estava com um ar carrancudo. Os olhos de Scarlett
correram pelas outras faces, procurando as faces negras... Prissy estava lá; Wade e Ella
escondiam-se atrás das suas saias... e a mulher de Big Sam, Delilah, segurava na mão a colher com
que devia ter estado mexendo o tacho... lá estava. Como era o nome dela? Ah!, sim, Lutie, a ama das
crianças de Tara. Mas onde estava Mammy? Scarlett chamou os filhos.
- Olá, queridos, a mãe está aqui - Depois voltou-se para Will e apoiou a mão no braço dele.
- Onde está a Mammy, Will? Ela não está tão velha que não possa vir me receber. - O medo
oprimia as palavras na garganta de Scarlett.
- Está de cama, doente, Scarlett. Scarlett saltou da carroça ainda em movimento, tropeçou,
recompôs-se e correu para a casa.
- Onde está a Mammy? - disse para Suellen, surda às saudações agitadas das crianças.
- Que belo cumprimento, Scarlett, mas não é pior do que eu esperaria de ti. Em que estavas
pensando para mandares Prissy sem sequer uma palavra, quando sabe que já tenho trabalho de
sobra?
Scarlett levantou a mão pronta para esbofetear a irmã. -Suellen, se não me disser onde está a
Mammy, desato aos gritos. Prissy puxou a manga de Scarlett. - Eu sabe onde está a Mammy, Miss
Scarlett, eu sabe. Ela está muito doente, então arranjamos aquele quartinho perto da cozinha para
ela, aquele que era onde costumava estar todos os presuntos pendurados quando havia muitos
presuntos. Está- se lá bem quentinho, perto da chaminé. Ela já lá estava quando eu vim, por isso não
posso dizer que também arranjei o quarto, mas eu trazi uma cadeira para lá para haver lugar para
uma pessoa se sentar se ela quisesse levantar-se ou se houvesse visitas...
Prissy falava para o ar. Scarlett estava à porta do quarto de Mammy, apoiando-se na ombreira.
Aquilo... aquela... coisa na cama não era a sua Mammy. A Mammy era uma mulher grande,
forte e farta de carnes, com uma quente pele castanha. Tinham passado pouco mais de seis meses
desde que Mammy deixara Atlanta, não era tempo
suficiente para a ter desgastado daquela maneira. Não podia ser. Scarlett não podia suportar. Aquela
não era a Mammy, não acreditava. Esta criatura estava cinzenta e encarquilhada, mal se notando o
seu vulto por debaixo da manta de retalhos que a cobria. Os dedos retorcidos moviam-se lentamente
entre as dobras. A pele de Scarlett arrepiou-se toda.
Então ouviu a voz de Mammy. Estava fraca e vacilante, mas era a voz adorada da Mammy.
- Missy, não disse à minina para não pôr o pé fora de casa sem usar um chapéu e levar uma
sombrinha? Disse e tornei a dizer...
- Mammy! - Scarlett caiu de joelhos ao lado da cama. - Mammy, é a Scarlett. A tua Scarlett.
Por favor, Mammy, não adoeças, eu não posso suportar, tu não. - Pousou a cabeça na cama, ao lado

dos ombros magros e chorou copiosamente, como uma criança. ​Uma mão sem peso acariciou a sua

cabeça curvada.
Não chora, minina. Não há nada tão mau que não possa ser remediado. - Tudo... - lamentou-se
Scarlett. - Correu tudo mal, Mammy. - Vá lá, é só uma xícara. E tem outro serviço de chá, tão bonito
como esse. Ainda podes dar a tua festa, como a Mammy prometeu.
Scarlett recuou, horrorizada. Olhou fixamente para Mammy e viu amor naqueles olhos
encovados, olhos que não viam a ela.
- Não - murmurou. Não conseguia agüentar. Primeiro Melanie, depois Rhett e agora Mammy; todos
os que amava a tinham deixado. Era cruel demais. Não podia ser. - Mammy - disse em voz alta. -
Mammy, me ouve. É a Scarlett. Agarrou a ponta do colchão e tentou abaná-lo. - Olha para mim -
suspirou. - Para mim, para o meu rosto. Tem que me reconhecer, Mammy. Sou eu, Scarlett.
As grandes mãos de Will agarraram-lhe os pulsos. - Não faça isso - disse ele. A sua voz era doce,
mas segurava-a com mãos de ferro. - Ela fica feliz quando está assim, Scarlett. Está outra vez em
Savannah, tomando conta da tua mãe quando ela era pequena. Esses foram tempos felizes para ela.
Era jovem; era forte; não tinha dores. Deixa estar.
Scarlett lutou para se libertar. - Mas eu quero que ela me reconheça, Will. Eu nunca lhe disse o que
ela significa para mim. Tenho que lhe dizer.
- Vai ter a tua oportunidade. Muitas vezes ela está diferente, conhece todo mundo. Sabe
também que está morrendo. Assim é melhor. Agora vem comigo. Estão todos à tua espera. A Delilah
ouve a Mammy da cozinha.
Scarlett deixou Will ajudá-la a pôr-se de pé. Toda ela estava paralisada, até o coração. Não
sentia nada. Seguiu-o em silêncio até à sala de estar. Suellen começou imediatamente a recriminá-la,
retomando as suas queixas onde tinha parado, mas Will mandou-a calar-se.
- Scarlett sofreu um duro golpe, Sue, deixa-a em paz. - Colocou uísque num copo e o pôs na
mão de Scarlett.
O uísque ajudou. A sensação familiar de ardor espalhou-se pelo seu corpo, atenuando a dor.
Estendeu o copo vazio a Will, e ele serviu-lhe um pouco mais.
- Olá, queridos - disse aos filhos -, venham dar um abraço na mãe. - Scarlett ouviu a sua
própria voz; soava como se pertencesse a outra pessoa qualquer; mas, ao menos, estava dizendo o
que devia.
Passou todo o tempo que podia no quarto de Mammy, ao lado dela. Depositara todas as
esperanças no conforto que os braços de Mammy lhe dariam, mas agora eram os seus jovens e fortes
braços que seguravam a velha negra moribunda. Scarlett
levantava aquela massa informe para dar banho a Mammy, para lhe mudar os lençóis, para a ajudar
quando lhe custava respirar, para persuadi-la a deixá-la meter-lhe algumas colheres de caldo na
boca. Cantava as canções de embalar que Mammy lhe tinha cantado tantas vezes e quando ela, em
delírio, falava à falecida mãe de Scarlett, esta respondia-lhe com as palavras que pensava que a mãe
teria dito.
Por vezes, os olhos úmidos de Mammy reconheciam-na, e os lábios gretados da velha mulher
sorriam com a visão da sua menina favorita. Depois, a sua voz trêmula repreendia Scarlett, tal como
tinha feito quando era criança. "O seu cabelo está todo despenteado, Miss Scarlett, agora vá dar-lhe
cem escovadelas como a Mammy lhe ensinou"; ou: "Não devia vestir esse vestido todo amarrotado.
Vá vestir alguma coisa limpa e engomada antes que alguém a veja"; ou: "Tu parece pálida que nem
um fantasma, Miss Scarlett. Andaste pondo pó-de-arroz na cara? Vá já lavá-la imediatamente."
O que quer que fosse que Mammy mandasse, Scarlett prometia fazer. Não havia tempo
suficiente para obedecer antes que Mammy ficasse de novo inconsciente ou voltasse a esse outro
mundo de que Scarlett não fazia parte. Durante o dia, e à noite, Suellen ou Dilcey, ou mesmo Will
partilhavam a vigília, e Scarlett podia dormir uma meia hora de sono solto, enroscada na velha
cadeira de balanço. Mas à noite fazia a vigília sozinha. Baixou a chama do candeeiro a óleo e
segurou nas suas as mãos magras de Mammy. Enquanto a casa e Mammy dormiam, podia
finalmente chorar, e as suas lágrimas de sofrimento aliviavam-lhe um pouco a dor.
Uma vez, naquela hora calma antes do amanhecer, Mammy acordou. - Por que está tu chorando,
querida? - murmurou ela. - A velha Mammy está pronta para pousar o seu fardo e repousar nos
braços do Senhor. Não é preciso levar as coisas assim. - A sua mão agitou-se na de Scarlett,
libertou-se e bateu na cabeça curvada de Scarlett. - Pára, vá. Nada é tão mau como você pensa. -
Desculpa - soluçou ela. - Não consigo parar de chorar. Os dedos retorcidos de Mammy puxaram o
cabelo embaraçado de Scarlett para trás.
- Diga à velha Mammy o que está a perturbar o seu cordeirinho. Scarlett olhou para aqueles
queridos, sábios e velhos olhos e sentiu uma dor mais profunda do que já tinha alguma vez sentido.
- Fiz tudo errado, Mammy. Não sei como pude fazer tantas asneiras, não compreendo.
- Miss Scarlett fez o que tinha que fazer. Não pode ninguém fazer mais do que isso. O bom
Deus mandou-lhe alguns fardos pesados e você carregou. Não vale a pena perguntar por que é que
eles foram postos nos seus ombros ou o que lhe custou carregá-los. O que 'tá feito 'tá feito. Não se
aflija agora. - As pesadas pálpebras de Mammy fecharam-se sobre as lágrimas que brilhavam na luz
fraca, e a sua respiração irregular abrandou, até que adormeceu.
"Como posso não me afligir?", quis Scarlett gritar. "A minha vida está destruída, e não sei o
que fazer. Preciso de Rhett, e ele se foi embora. Preciso de você, e está também me deixando."
Levantou a cabeça, limpou as lágrimas na manga e endireitou os ombros doloridos. As brasas
do fogão estavam quase apagadas, e o balde do carvão estava vazio. Tinha que voltar a enchê-lo,
tinha que alimentar o fogo. O quarto estava começando a gelar, e a Mammy tinha que estar sempre
quente. Scarlett aconchegou a manta de retalhos já desbotada sobre a frágil forma de Mammy.
Depois pegou o balde e saiu para a fria escuridão do pátio. Apressou-se em direção ao depósito do
carvão, desejando ter-se lembrado de pôr um xale.
Não havia luar, apenas um quarto crescente prateado e escondido por detrás de uma nuvem. O
ar estava pesado com a umidade da noite, e as poucas estrelas que não estavam escondidas pelas
nuvens pareciam muito longe e brilhavam como se fossem gelo. Scarlett estremeceu. A escuridão à
sua volta parecia sem forma, infinita. Tinha corrido cegamente até o centro do pátio, e agora não
conseguia distinguir as formas familiares da casa do fumeiro e do celeiro, que deviam estar perto.
Voltou-se, subitamente em pânico, procurando a massa branca da casa que acabara de deixar. Mas
também ela estava negra e sem forma. Não se via luz em lado nenhum. Era como se estivesse
perdida num mundo deserto e silencioso. Nada mexia na noite, nem uma folha, nem uma pena na
asa de um pássaro. O terror abanou os seus nervos retesados e quis fugir dali. Mas para onde? Tudo
ali era escuridão desconhecida.
Scarlett cerrou os dentes. Que idiotice era aquela? "Estou em casa, em Tara, e o vento escuro e
frio irá embora logo que o Sol se levante." Tentou rir; o som agudo e pouco natural a fez dar um
salto.
"Dizem que sempre está mais escuro antes da madrugada", pensou ela. "Calculo que isto seja
prova disso. Estou com uma enxaqueca, é tudo. Não vou ceder, não há tempo para isso, o fogão
precisa de ser alimentado." Pôs uma mão à frente, apalpando a escuridão, e caminhou em direção ao
local onde o depósito do carvão deveria estar, perto da pilha de lenha. Uma cova no chão a fez
tropeçar e caiu. O balde caiu com grande estrondo e se perdeu.
Cada átomo exausto e assustado do seu corpo gritava-lhe que devia desistir. Devia ficar onde
estava, abraçando a segurança do chão invisível debaixo de si, até que o dia raiasse e pudesse ver.
Mas Mammy precisava do calor e da luz amarela e reconfortante das chamas que se viam através
das janelas do fogão.
Scarlett pôs-se lentamente de joelhos e apalpou à sua volta, à procura do balde do carvão.
Com certeza nunca tinha havido uma tal escuridão no mundo. Nem mesmo uma noite com um ar tão
frio e úmido. Abria muito a boca para respirar. Onde estaria o balde? Onde estaria a madrugada?
Os seus dedos esbarraram com um metal frio. Gatinhou pelo chão em direção a ele. As mãos
abraçaram as paredes enrugadas do balde. Sentou-se quieta e segurou-o junto ao peito, num abraço
desesperado.
"Oh, Senhor, estou completamente às avessas. Não sei onde está a casa, muito menos a caixa
do carvão. Estou perdida na noite." Olhou freneticamente em torno de si, procurando uma luz
qualquer, mas o céu estava negro. Até mesmo as frias e distantes estrelas tinham desaparecido.
Por um momento, quis desatar a chorar. Gritar e gritar até acordar alguém na casa, alguém que
acendesse uma luz, que viesse procurá-la e a conduzisse para casa. O orgulho proibia-lhe isso.
Perdida no seu próprio quintal, apenas a alguns passos da porta da cozinha! Nunca se esqueceria
dessa vergonha.
Passou a asa do balde pelo braço e começou a rastejar desajeitadamente na terra escura. Mais
cedo ou mais tarde iria de encontro a alguma coisa - à casa, à pilha de lenha, ao celeiro, ao poço e
encontraria o caminho. Seria mais rápido levantar-se e caminhar. Não se sentiria tão idiota, mas
podia cair de novo, e desta vez torcer um tornozelo, ou coisa do gênero. Então, ficaria desamparada
até que alguém a encontrasse. Não importava o que tivesse que fazer, qualquer coisa era melhor do
que ficar ali sozinha, desamparada e perdida.
- Onde haveria uma parede? Devia haver uma em algum lugar por ali. Parecia-lhe que tinha
rastejado quase até Jonesboro. O pânico tocou-a levemente. E se a escuridão nunca mais levantasse,
se ela continuasse a rastejar e a rastejar para sempre, sem encontrar nada?
"Pára com isso!", disse a si própria. "Pára com isso já!" A sua garganta fazia uns ruídos
abafados.
Fez um grande esforço para se pôr de pé. Respirou lentamente e tentou que a cabeça tomasse
conta do seu coração sobressaltado. Era Scarlett O'Hara, disse a si própria. Estava em Tara, e
conhecia cada canto daquele lugar melhor que as suas próprias mãos. Que mal fazia não conseguir
ver dois palmos à sua frente? Sabia o que lá estava, tudo o que tinha a fazer era encontrar qualquer
coisa.
E faria isso pelos seus pés, não de gatas como um bebê ou um cão. Levantou o queixo e
endireitou os ombros magros... Graças a Deus ninguém a tinha visto estendida ao comprido na lama,
avançando palmo a palmo, com medo de se levantar. Nunca em toda a sua vida tinha sido derrotada.
Nem pelo exército do velho Sherman, nem pelo pior que os carpetbaggers ​(palavra com sentido
depreciativo que designava pessoas vindas do Norte para tomar parte ativa na política no Sul dos
Estados Unidos, entre 1860 e 1870.) p​ odiam fazer. Ninguém, nada poderia derrotá-la, a não ser que
ela o permitisse. Nesse caso, mereceria. A simples idéia de estar com medo, no escuro, como uma
qualquer choramingas covarde!
"Acho que deixei as coisas me abaterem mais do que alguém pode agüentar", pensou com
aversão, e o seu próprio desdém reconfortou-a. "Não deixarei que isto aconteça de novo, nunca. Não
importa o que aconteça. Uma vez que se foi até ao fundo, o caminho apenas pode melhorar. Se fiz
da minha vida uma grande confusão, irei pôr tudo em ordem. Não vou ficar parada."
Scarlett segurou o balde junto a si e caminhou em frente com passos firmes. Quase ao mesmo
tempo o balde de lata bateu em qualquer coisa fazendo um barulho estridente. Riu alto quando sentiu
o odor forte da resina nos pinheiros cortados à pouco. Estava perto da pilha de lenha e o depósito do
carvão era mesmo ali ao lado. Era exatamente o local onde tencionara ir.
A porta de ferro do fogão fechou-se sobre as chamas renovadas. O estrondo da porta ao fechar
fez Mammy agitar-se na cama. Scarlett apressou-se a aconchegar-lhe novamente a manta. O quarto
estava frio.
Mammy, por entre a sua dor, olhou de soslaio para Scarlett. - Tu tem a cara suja, e as mãos também
- murmurou com a voz enfraquecida. - Eu sei - disse Scarlett. - Vou já lavá-las. - Antes que a velha
mulher sucumbisse, Scarlett beijou-lhe a testa . - Amo-te, Mammy.
- Não precisa me dizer o que eu já sabe... - Mammy caiu de novo no sono, fugindo à dor.
- Sim, é preciso - disse-lhe Scarlett. Sabia que Mammy não podia ouvi-la, mas falou alto, para
si. - É necessário.
- Nunca disse a Melanie, e nunca disse a Rhett, até que foi tarde demais. Nunca tive tempo
para saber que os amava, nem a ti. Ao menos contigo não cometerei o erro que fiz com eles.
Scarlett olhou fixamente para a cara cadavérica da velha mulher moribunda. - Amo-te, Mammy! -
sussurrou. - Que vai ser de mim quando não te tiver para me amar?
2
A porta do quarto da doente abriu-se com estrondo e a cabeça de Prissy espreitou de lado.
- Miss Scarlett? Mr. Will diz para eu vir ficar com a Mammy enquanto vai tomar o café da
manhã. Delilah diz que tu vai se esgotar com toda essa vigília, e ela arranjou- lhe uma bela fatia de
presunto com molho para as suas papas de milho.
- Onde está o caldo de carne para a Mammy? - perguntou Scarlett imediatamente - A Delilah
sabe que tem de trazer um caldo quente logo de manhã.
- Tenho aqui mesmo na mão. - Prissy empurrou a porta com o cotovelo, o tabuleiro à sua
frente. - Mas a Mammy está dormindo, Miss Scarlett. Vai acordá-la para beber o caldo?
- Mantém tapado e põe o tabuleiro junto ao fogão. Dou-Ihe quando voltar. - Scarlett sentiu-se
esfomeada. O rico aroma que se evaporava do caldo deu-lhe cólicas no estômago, de tão vazio que
estava.
Lavou a cara e as mãos na cozinha. O vestido também estava sujo, mas servia para agora.
Vestiria um limpo depois de ter comido.
Will estava mesmo levantando-se da mesa quando Scarlett entrou na sala de jantar. Os
agricultores não podem perder tempo. O dourado sol da manhã, do lado de fora da janela, prometia
um dia radiante e quente.
- Posso ajudá-lo, tio Will? - perguntou Wade, esperançoso. Saltou da cadeira e quase a
derrubou. Viu então a mãe e o seu rosto perdeu o ar ansioso. Teria que ficar sentado à mesa e usar as
suas melhores maneiras, ou ela ficaria zangada.
Movimentou-se lentamente para puxar a cadeira a Scarlett. - Que boas maneiras tens, Wade - disse
Suellen, lisonjeira. - Bom dia, Scarlett, não se sentes orgulhosa do seu jovem cavalheiro?
Scarlett olhou estupefata para Suellen e depois para Wade. Meu Deus, ele era apenas uma
criança! Que diabo quereria Suellen com aquela doçura forçada? Pela maneira como falava, parecia
que Wade era um parceiro de dança com o qual se podia namoriscar.
Reparou com surpresa que ele era um belo rapaz. Era alto de mais para a sua idade; parecia ter
13 anos, apesar de ainda não ter 12. Suellen não acharia isso tão bom se tivesse que comprar as
roupas que lhe deixavam de servir tão depressa.
"Meu Deus! Que vou eu fazer sobre das roupas de Wade? Rhett é que faz sempre o que é
preciso. Não sei o que os rapazes vestem, nem onde comprar essas coisas. Os pulsos já saem fora
das mangas, provavelmente, precisa de um tamanho maior. E rápido. A escola deve esta começando,
se é que não começou já. Nem sequer sei qual a data de hoje."
Scarlett deixou-se cair na cadeira que Wade segurava. Esperava que ele fosse capaz de lhe
dizer tudo o que precisava saber. Mas primeiro tomaria o café.
- Me dá tanta água na boca que me parece que estou gargarejando. Obrigada, Wade Hampton -
disse de forma ausente. O presunto tinha ótimo aspecto. Era rosado e suculento e a gordura que o
envolvia estava tostada e estaladiça.
Deixou cair o guardanapo no colo sem se preocupar em desdobrá-lo e pegou a faca e o garfo.
- Mãe? - disse Wade cautelosamente. - Sim? - Scarlett cortou o presunto. - Posso ir ajudar o tio Will
nos campos, por favor? Scarlett quebrou uma regra de ouro das boas maneiras à mesa e falou com
comida na boca. O presunto estava delicioso.
- Sim, podes ir. - As suas mãos estavam ocupadas cortando outro pedaço. - Eu também - assobiou
Ella. - Eu também - ecoou Susie, filha de Suellen. - Não foi convidada - disse Wade. - O campo é
coisa de homens. As meninas ficam em casa.
Susie desatou a chorar. - Vê o que fez! - disse Suellen a Scarlett. - Eu? Não é a minha filha que está
fazendo essa barulheira toda. - Scarlett procurava sempre evitar as discussões com Suellen, quando
vinha a Tara, mas os hábitos de uma vida inteira eram fortes demais. Tinham começado a brigar
desde que eram bebês e nunca tinham realmente parado.
"Não vou deixá-la arruinar a minha primeira refeição. Sabe Deus há quanto tempo estou com
fome", pensou Scarlett; e concentrou-se em espalhar manteiga sobre o monte brilhante formado
pelas papas de milho no prato à sua frente. Nem mesmo levantou os olhos quando Wade seguiu Will
porta afora e os lamentos de Ellen se juntaram aos de Susie.
- Calem-se as duas! - gritou Suellen. Scarlett deitou molho de presunto sobre as papas, amontoadas
sobre outro pedaço de presunto, e desfez o arranjo com o garfo.
- O tio Rhett deixava-me ir - resmungou Ella. "Não vou dar-lhe ouvidos", pensou Scarlett. "Vou
fechar os ouvidos e saborear o meu café." Encheu a boca de presunto, papas e molho.
- Mãe... mãe, quando é que o tio Rhett vem para Tara? - A voz de Ella penetrava de uma
forma aguda nos seus ouvidos.
Scarlett ouviu as palavras dela, apesar de tudo, e a deliciosa comida tornou-se serragem na sua
boca. Que dizer? Como podia responder à pergunta de Ella? "Nunca!" Era essa a resposta? Não
podia, nem ela própria acreditaria nisso. Olhou com repugnância para a face rosada da filha. Ella
tinha estragado tudo. "Não podia ao menos ter me deixado em paz até eu acabar o café?"
Ella tinha o cabelo ruivo e encaracolado do pai, Frank Kennedy. Os cabelos espetavam-se à
volta da sua face manchada pelas lágrimas como se fossem rolos de arame enferrujado. Por mais que
Prissy os acamasse com água, escapavam-se sempre das apertadas tranças que lhe fazia. O corpo de
Ella também parecia feito de arame. Era muito magro e rígido. Era mais velha que Susie. Tinha
quase sete anos, enquanto Susie tinha seis e meio. Mas Susie já tinha um palmo a mais de altura e
era tão mais forte que podia brigar com Ella impunemente.
"Não admira que Ella queira que Rhett venha", pensou Scarlett. "Ele gosta mesmo dela e eu
não. Irrita-me, tal como Frank me irritava, e por mais que tente não consigo amá-la."
- Quando é que o tio Rhett vem, mãe? - perguntou Ella, de novo. Scarlett arredou a cadeira da
mesa e levantou-se.
- Isso é coisa de gente crescida - disse. - Vou ver como está a Mammy. - Não suportava pensar
em Rhett agora. Pensaria em tudo isso mais tarde, quando não estivesse tão aborrecida. Era mais

importante, muito mais, fazer a Mammy engolir o caldo. ​- Só mais uma colherada, Mammy querida,

vai fazer-me feliz.


A velha mulher afastou a cabeça da colher. - Cansada... - suspirou. - Eu sei - disse
Scarlett -, eu sei. Dorme, então, não te incomodo mais. Olhou para a tigela quase
cheia. Mammy comia menos de dia para dia.
- Miss Ellen... - chamou Mammy debilmente. - Estou aqui, Mammy - replicou Scarlett. Ficava
sempre magoada de cada vez que Mammy não a reconhecia, quando pensava que as mãos que a
tratavam tão carinhosamente eram as mãos da mãe de Scarlett. "Não deveria deixar que isto me
perturbasse", dizia-se Scarlett todas as vezes. "Foi sempre a mãe quem tratou dos doentes, não eu. A
mãe era delicada para todos, era um anjo, uma perfeita senhora. Eu devia aceitar como um elogio o
ser confundida com ela. Se calhar vou para o Inferno por ter ciúmes de a mãe a ter amado mais... só
que já não acredito muito no Inferno... nem no Céu."
- Miss Ellen... - Estou aqui, Mammy. Estou aqui, Mammy. Mammy entreabriu os seus olhos velhos,
velhos. - Tu não é Miss Ellen. - Sou a Scarlett, Mammy, a tua Scarlett. - Miss Scarlett... Eu quer
Mist' Rhett. Uma coisa para dizer... Scarlett mordeu os lábios. Chorava silenciosamente. - Eu

também o quero muito. Mas ele foi-se, Mammy, Não posso dar o que tu queres. ​Reparou que

Mammy tinha entrado de novo num estado próximo do coma e ficou imensamente
​ agradecida. Pelo
menos, Mammy não tinha dores. O seu próprio coração doía-lhe como se estivesse cravejado de
facas. Como precisava de Rhett, especialmente agora que a Mammy se encaminhava cada vez mais
para a morte. "Se ele estivesse aqui, comigo, sentindo a mesma mágoa que eu sinto..." Rhett amava
Mammy e ela também o amava. Rhett dizia que nunca tinha se esforçado tanto na vida por ter
alguém do seu lado, nem se tinha importado tanto com a opinião de alguém quanto se importava
com a dela. Ficaria desolado quando soubesse que Mammy tinha partido, desejaria tanto ter podido
dizer-lhe adeus...
Scarlett ergueu a cabeça e arregalou os olhos. Claro. Que parva estava sendo. Olhou para
aquela mulher velha e definhando, tão pequena e leve debaixo da colcha.
- Oh, Mammy, querida, obrigada - suspirou. - Vim para junto de ti em busca de ajuda, porque
tu pões tudo de novo em ordem, e vais ajudar-me, tal como sempre fizeste. ​Encontrou Will no

estábulo escovando o cavalo.


- Oh, ainda bem que te encontrei, Will - disse Scarlett. Os seus olhos verdes lançavam faíscas e as
suas faces estavam naturalmente ruborizadas, mais do que com o rouge que costumava usar. - Posso
usar o cavalo e a carruagem? Preciso ir a Jonesboro. A menos que estejas arrumando-a para ires a
Jonesboro tratar de alguma coisa... Estavas? - susteve a respiração enquanto esperava pela resposta
dele.
Will olhou para ela calmamente. Entendia Scarlett melhor que ela pensava. - Há alguma coisa que
possa fazer por ti? Isto no caso de eu estar planejando ir a Jonesboro...
- Oh, Will, és tão adorável. Preferia ficar com a Mammy, mas preciso muito de avisar Rhett do
estado dela. Ela pergunta muito por ele e ele sempre gostou tanto dela, que eu nunca me perdoaria se
não lhe fizesse a vontade. - Scarlett brincava com a crina do cavalo. - Ele está em Charleston
tratando de negócios da família; a mãe mal pode dar um passo sem pedir o conselho de Rhett.
Scarlett olhou para cima, para o rosto inexpressivo de Will, e virou a cara. Começou a
entrançar pedaços da crina, atenta a essa atividade como se fosse de importância vital.
- Se pudesses mandar-lhe um telegrama... eu dou-te o endereço. E melhor seres tu a enviá-lo,
Will. Rhett sabe o quanto eu adoro a Mammy. É capaz de pensar que eu estava a exagerar a
gravidade da doença dela - Ergueu a cabeça e sorriu jovialmente. - Ele acha que eu não tenho mais
juízo que um besouro.
Will sabia que aquela era a maior de todas as mentiras. - Acho que tens razão - disse lentamente. -
Rhett deve vir o mais depressa que possa. Vou já a cavalo; é mais rápido que de carruagem.
As mãos de Scarlett descontraíram-se. - Obrigada - respondeu. - Tenho o endereço aqui no bolso. -
Estarei de volta na hora do jantar - disse Will. Tirou a sela do local onde estava. Scarlett ajudou-o.
Sentia-se cheia de energia. Estava certa de que Rhett viria. Poderia estar em Tara dentro de dois dias
se saísse de Charleston logo que recebesse o telegrama.
Passaram dois dias e Rhett não chegou. Passaram três, quatro, cinco. Scarlett deixou de
esperar o som das rodas ou o bater dos cascos na entrada. Estava exausta de tanto se esforçar por
ouvir esse som. E agora havia outro som que chamava toda a sua atenção, o som horrível do esforço
feito por Mammy para respirar. Parecia impossível que aquele corpo frágil e gasto pudesse arranjar
força suficiente para fazer entrar ar nos pulmões e fazê-lo sair de novo. Mas ela fazia-o,
repetidamente. Os tendões do pescoço engelhado estavam tensos e tremiam.
Suellen juntou-se à vigília de Scarlett. - Ela também é a minha Mammy, Scarlett - Os ciúmes e
crueldades amontoados ao longo das suas vidas estavam agora esquecidos na necessidade conjunta
de ajudar a velha negra. Trouxeram todas as almofadas da casa para a apoiar e mantiveram a
chaleira sempre fervendo. Espalharam manteiga nos lábios gretados, meteram colheradas de água
entre eles.
Mas nada aliviava a luta de Mammy. Ela olhava para ambas com piedade. - Não se esgotem -
respirou com dificuldade. - Não podem fazer nada. Scarlett pôs os dedos nos lábios de Mammy. -
Chiu! - implorou. - Não tentes falar. Guarda as tuas forças. - "Porquê, oh, porquê?" Enfureceu-se
com Deus em silêncio. "Por que não a pudeste deixar morrer com calma, quando ela vagueava no
passado? Por que tiveste que acordá-la e deixá-la sofrer tanto? Foi boa toda a sua vida, fazendo
sempre tudo pelos outros e nunca por si própria. Merece melhor que isto, nunca mais curvo a cabeça

perante Ti enquanto viver." ​Lia alto a Mammy passagens da Bíblia muito usada que estava na

mesa-de- cabeceira.
​ Lia os salmos, e a sua voz não dava sinal da dor e da raiva do seu coração.
Quando a noite caiu, Suellen acendeu o candeeiro e substituiu Scarlett, lendo, virando as finas
páginas, lendo. Então, Scarlett tomava o seu lugar. E depois Suellen, até que Will a chamou para
descansar.
- Tu também, Scarlett - disse ele. - Eu fico com a Mammy. Não sou um grande leitor, mas sei
muitas passagens da Bíblia de cor.
- Recita, então. Mas eu não deixo a Mammy. Não posso. Sentou-se no chão e encostou as costas
cansadas à parede, escutando os aterradores sons da morte. Quando a primeira luz do dia surgiu nas
janelas, os sons tornaram-se subitamente diferentes. Cada inspiração era mais ruidosa e maiores os
silêncios entre cada uma. Scarlett pôs-se imediatamente de pé. Will levantou-se da cadeira.
- Vou chamar Suellen! - exclamou. Scarlett retomou
o seu lugar ao pé da cama.
- Queres que segure a tua mão, Mammy? Deixa-me pegar-lhe. A testa de Mammy enrugou-se com o
esforço. - Tão... cansada. - Eu sei, eu sei. Não te canses mais falando. - Queria... esperar por... Mist'
Rhett. Scarlett engoliu em seco. Não podia chorar agora. - Não precisas esperar Mammy. Podes
descansar. Ele não pode vir. - Ouviu passos apressados na cozinha. - Suellen vem a caminho. E
Mister Will também. Estaremos todos aqui contigo, querida. Todos te amamos.
Uma sombra caiu sobre a cama e Mammy sorriu. - Ela quer a mim - disse Rhett. Scarlett ergueu os
olhos para ele, incrédula. - Sai daí - disse ele delicadamente -, deixa-me chegar perto de Mammy.
Scarlett pôs-se de pé. Os seus joelhos fraquejaram ao sentir a proximidade dele, a sua
grandeza, a força e a masculinidade. Rhett passou à sua frente e ajoelhou-se ao pé de Mammy.
Ele viera. Tudo ia ficar bem. Scarlett ajoelhou-se ao seu lado. O ombro dela tocava-lhe no
braço e Scarlett sentiu-se feliz, apesar da tristeza por causa de Mammy. Ele viera; Rhett estava ali.
"Que idiota fui em ter perdido a esperança daquela maneira."
- Quero que tu faça uma coisa para mim - dizia Mammy. A voz dela era forte, como se tivesse
guardado as suas forças para aquele momento. A respiração era profunda e rápida, quase palpitante.
- Tudo, Mammy - disse Rhett. - Farei o que quiseres. - Enterra-me com aquela combinação de seda
vermelha que me deste. Trata disso Eu sei que a Lutie já anda com o olho nela.
Rhett sorriu. Scarlett estava chocada. Como podia ele rir com a Mammy a morrer? Então,
percebeu que a Mammy também estava a rir, sem fazer qualquer som.
Rhett pôs a sua mão no peito. - Juro-te que Lutie nunca lhe porá a vista em cima, Mammy. Vou
fazer que ela vá contigo para o céu.
Mammy esticou as mãos na direção dele, acenando-lhe para aproximar o ouvido mais próximo
dos seus lábios.
- Tome conta de Miss Scarlett - disse ela. - Precisa de carinho e eu não posso dar-lhe mais.
Scarlett susteve a respiração. - Tomarei conta dela, Mammy - respondeu Rhett. - Jura isso - A ordem
era tímida, mas firme. - Eu juro - replicou Rhett. Mammy suspirou calmamente. Scarlett deixou a
sua respiração sair com um soluço. - Oh, Mammy querida, obrigada - gritou. - Mammy... - Ela não
te pode ouvir, Scarlett, foi-se - Rhett passou a sua grande mão, com delicadeza, pelo rosto de
Mammy e fechou-lhe os olhos. - Foi todo um mundo que se acabou, uma era. - Disse ele
suavemente. - Que descanse em paz.
- Amém - disse Will da entrada. Rhett pôs-se de pé e virou-se. - Olá, Will e Suellen. - O seu último
pensamento foi para ti, Scarlett! - exclamou Suellen. - Sempre foste a favorita dela. - Começou a
chorar copiosamente. Will tomou-a nos braços e abraçou- a contra o peito, dando-lhe pancadinhas
nas costas.
Scarlett correu para Rhett e ergueu os braços para o abraçar.
- Senti muito a tua falta - disse ela. Rhett pegou-lhe nos braços e puxou-os para baixo. - Não,
Scarlett - disse ele. - Nada mudou. - A voz dele era calma. Scarlett era incapaz de tal
constrangimento. - Que queres dizer com isso? - gritou. Rhett retraiu-se. - Não me faças repeti-lo,
Scarlett. Sabes muito bem o que quero dizer. - Não sei. Não acredito em ti. Não podes deixar-me,
não podes. Não numa altura destas, em que preciso de ti tão desesperadamente. Eu amo-te. Oh,
Rhett, não olhes para mim assim. Por que não me abraças e me consolas? Prometeste à Mammy.
Rhett abanou a cabeça com um sorriso desmaiado nos lábios. - És tão infantil, Scarlett. Já me
conheces há tanto tempo e mesmo assim, quando queres, esqueces tudo o que aprendeste. Era uma
mentira. Menti para tornar felizes os últimos momentos de uma pessoa querida. Lembra-te, meu
tesouro, eu sou um canalha, não um cavalheiro.
Rhett caminhou em direção à porta. - Não vás Rhett, por favor - suplicou Scarlett. Colocou ambas as
mãos sobre a boca e calou-se. Nunca mais seria capaz de se respeitar se lhe implorasse de novo.
Voltou a cabeça decididamente, incapaz de suportar a visão da partida de Rhett. Viu nos olhos de
Suellen uma alegria triunfante e nos de Will viu pena.
- Ele vai voltar - disse ela, mantendo a cabeça bem erguida. - Ele volta sempre - "Se o disser
muitas vezes", pensou, "talvez consiga acreditar. Talvez se torne verdade."
- Sempre - disse ela. Respirou fundo. - Onde está a combinação de Mammy, Suellen? Quero
ter certeza de que Mammy vai ser enterrada com ela.
Scarlett conseguiu manter o controle até que a penosa tarefa de dar banho e vestir o corpo de
Mammy terminou. Mas quando Will trouxe o caixão, começou a tremer. Fugiu dali sem uma
palavra.
Encheu metade do copo com uísque que tirou da garrafa de mesa, na sala de jantar. Bebeu-o
em três goles. O calor da bebida percorreu o seu corpo exausto e os tremores cessaram.
"Preciso de ar", pensou. "Preciso de sair desta casa, para longe de todos eles." Podia ouvir as
vozes assustadas das crianças, na cozinha. Os nervos gelaram-lhe a pele. Pegou nas saias, ergueu-as
e correu para longe.
Lá fora, o ar da manhã era fresco e calmo. Scarlett respirou profundamente, saboreando a
frescura do ar. Uma brisa leve levantou o cabelo que se pegara ao seu pescoço suado. Quando fora a
última vez que escovara o cabelo cem vezes? Não se lembrava. Mammy ficaria furiosa. Oh! Apertou
os nós dos dedos contra a cabeça, para conter o sofrimento, e tropeçou nas ervas altas da pastagem,
indo pela colina abaixo até aos bosques altos que marginavam o rio. Os pinheiros, com os seus altos
picos, exalavam um cheiro doce. Faziam sombra sobre um fofo e espesso tapete de agulhas
esbranquiçadas, caídas dos pinheiros ao longo de centenas de anos. Abrigada por eles, Scarlett
estava sozinha, sem que a pudessem ver da casa. Encolheu-se no chão almofadado, fatigada. Depois
instalou-se numa posição confortável, com as costas contra o tronco de uma árvore. Tinha que
pensar; devia haver alguma maneira de salvar a sua vida da ruína. Recusou-se a pensar de forma
diferente.
Não conseguia impedir a sua mente de vaguear. Estava tão confusa, tão cansada.
Já antes se tinha sentido cansada. Mais cansada que agora. Quando teve que vir de Atlanta
para Tara, com o exército ianque por todos os lados, não deixou que o
cansaço a fizesse parar. Quando teve que roubar comida por todo o lado, não desistiu por as suas
pernas e braços serem como dois pesos mortos puxando por ela. Quando apanhou algodão até as
mãos ficarem em carne viva, quando se agarrou ao arado como se fosse uma mula, quando teve que
encontrar forças para continuar, apesar de tudo, não desistiu por estar cansada. Não ia desistir agora.
Desistir não estava na sua natureza.
Olhou fixamente em frente, fazendo face a todos os seus demônios. A morte de Melanie... a

morte de Mammy... Rhett a deixá-la, dizendo que o seu casamento estava morto. ​Isso era o pior. A

partida de Rhett. Era isso que tinha que encarar. Ouviu a sua voz.

- Nada mudou. Não podia ser verdade!... Mas era. Tinha que arranjar maneira de o reconquistar.
Sempre tinha sido capaz de ter qualquer homem que quisesse, e Rhett era um homem como qualquer
outro, não era?
Não, ele não era como outro homem qualquer, era por isso que o queria. Um medo súbito fê-la
estremecer. E se não ganhasse desta vez? Sempre tinha vencido, de uma maneira ou de outra.
Sempre tivera o que queria, de alguma maneira. Até agora.
Um pássaro gritou roucamente. Scarlett olhou para cima e ouviu um segundo grito de
escárnio.

- Deixa-me em paz - gritou. O pássaro voou para longe, num bater de asas azul- garrido. ​Tinha

que pensar, lembrar o que Rhett tinha dito. Não nessa manhã ou na noite anterior
​ ou quando quer
que Mammy morrera. "Que foi que ele disse em nossa casa, na noite em que deixou Atlanta? Ele
falou e continuou a falar, explicando as coisas. Estava tão calmo, tão paciente quanto se pode ser
com as pessoas com quem não nos importamos o suficiente para nos zangarmos com elas."
A sua mente foi buscar uma frase quase esquecida, e alheou-se da sua exaustão. Tinha
encontrado o que precisava. Sim, sim, lembrava-o claramente. Rhett tinha-lhe oferecido o divórcio.
Então, depois da furiosa rejeição dela, tinha-o dito. Scarlett fechou os olhos, imaginando ouvir a voz
dele. "Voltarei com a freqüência suficiente para impedir os mexericos." Ela sorriu. Não tinha
vencido ainda, mas havia uma hipótese disso acontecer. E isso era suficiente para continuar.
Levantou-se, sacudiu as agulhas dos pinheiros dos cabelos e do vestido. Devia estar toda suja e
amarrotada.
As águas amarelas e barrentas do rio Flint corriam lenta e profundamente debaixo da saliência
em que se encontravam os pinheiros. Scarlett olhou para baixo e atirou uma mão-cheia de agulhas de
pinheiro. As agulhas foram corrente abaixo, fazendo remoinhos.
- Sempre andando - murmurou. - Tal como eu. Não olhes para trás, o que está feito, feito está.
Vai em frente. - Olhou de soslaio para o céu. Uma fila de brilhantes nuvens brancas estava passando.
Pareciam todas cheias de vento. "Vai esfriar", pensou automaticamente. "É melhor arranjar algo
quente para usar esta tarde, no funeral." Virou-se em direção à casa. Tinha que voltar para lá, para se
arrumar. Estar arrumada era uma coisa que devia a Mammy. Irritava-se sempre quando Scarlett
estava desarrumada.
3
Scarlett desequilibrou-se. Já devia ter estado assim tão cansada alguma vez na vida, mas não
se recordava. Estava cansada demais para se lembrar.
"Estou farta de funerais, estou farta de mortes, estou farta de ver a minha vida ir por água
abaixo, peça por peça, deixando-me completamente só."
O cemitério de Tara não era muito grande. O caixão de Mammy parecia grande, muito maior
que o de Melly, pensou Scarlett, sem nexo. Mas Mammy tinha encolhido tanto que provavelmente já
não era tão grande. Não precisava de um caixão assim.
O vento era cortante, apesar de o céu estar azul e o sol brilhar. Folhas amarelecidas rolavam
no chão, sopradas pelo vento. "O Outono está chegando, se é que não chegou já", pensou.
Costumava adorar o Outono no campo. Enquanto andava a cavalo pelos bosques, a terra parecia
coberta de ouro e o ar cheirava a cidra. "Já lá vai tanto tempo. Não voltou a haver um cavalo como
deve ser em Tara desde que o papá morreu."
Olhou para as lápides. Gerald O'Hara, nascido em County Meath, na Irlanda. Ellen Robillard
O'Hara, nascida em Savannah, na Geórgia. Gerald O'Hara, Jr. Três pedras minúsculas, todas
semelhantes. Os irmãos que nunca tinha conhecido. Ao menos Mammy estava sendo enterrada ali,
perto de "Miss Ellen", o seu primeiro amor, e não no pedaço de terra em que os escravos eram
enterrados. "Suellen gritou que se fartou, mas eu ganhei aquela briga, assim que Will se pôs do meu
lado. Quando Will se impõe, a vontade dele prevalece. É uma pena que ele seja tão obstinado e não
me deixe dar-lhe dinheiro. A casa tem um aspecto horrível. O mesmo se passa com o cemitério. Há
ervas daninhas por todo o lado, tem um aspecto desolador. Este funeral é desolador, Mammy tê-lo-ia
detestado. Aquele pregador negro não pára de falar, e aposto que nem sequer a conhecia. Mammy
não perderia tempo com as palavras dele. Ela era católica romana, todos na casa Robillard o eram,
exceto o avô, e esse não tinha muito que dizer, a julgar pelas palavras de Mammy. Deveríamos ter
arranjado um padre, mas o mais próximo está em Atlanta e teria levado dias. Pobre Mammy. Pobre
mãe. Morreu e foi enterrada sem padre. O papá também, mas isso também não importou muito a ele.
Costumava dormitar enquanto a mãe fazia as orações todas as noites." Scarlett olhou para o
desleixado cemitério e depois para a desoladora fachada da casa. "Ainda bem que a mãe não está
aqui para ver isto", pensou, sentindo subitamente dor e fúria ao mesmo tempo. "Isto destroçar-lhe-ia
o coração." Scarlett conseguiu, por um momento, ver a forma alta e graciosa da mãe tão claramente
como se Ellen O'Hara estivesse entre as pessoas que acompanhavam o funeral. A mãe estava sempre
impecavelmente arranjada, com as suas brancas mãos ocupadas costurando, ou enluvadas, pronta
para sair numa das suas visitas de misericórdia. A voz dela era sempre suave e andava sempre
ocupada na tarefa infindável que era manter, sob a sua orientação, a ordem perfeita da vida em Tara.
"Como é que ela fazia isso?" Scarlett chorou silenciosamente. "Como conseguia tornar o mundo tão
belo, sempre que ali estava? Éramos todos tão felizes nessa altura. Não importava o que acontecesse,
a mãe conseguia que tudo estivesse bem. Queria tanto que ela ainda estivesse aqui! A mãe me
abraçaria e todos os problemas desapareceriam. Não, não. Não queria que ela aqui estivesse aqui.
Ver tudo o que aconteceu a Tara, o que me aconteceu a mim, iria fazê-la muito triste. Ficaria
desapontada comigo e eu não poderia suportá-lo. Tudo, menos isso. Não vou pensar nisso, não devo.
Pensarei em qualquer outra coisa. Será que a Delilah teve o bom senso de arranjar alguma coisa para
as pessoas comerem depois do enterro? Suellen não teria pensado nisso, e de qualquer modo é
mesquinha demais para gastar dinheiro numa refeição leve."
"Não que isso lhe tivesse custado muito, não está aqui quase ninguém. No entanto, o pastor
negro tem ar de quem consegue comer por vinte. Se ele não pára de falar em repousar no seio de
Abraão e na travessia do rio Jordão, dou um grito. Aquelas três mulheres raquíticas a que ele chama
coro, são as únicas pessoas aqui que não parecem embaraçadas. Que coro! Espirituais e pandeiros! A
Mammy devia ter algo solene, em latim, e não Climbing Jacob's Ladder. Oh! É tudo tão pobre.
Ainda bem que não está quase ninguém aqui, só Suellen, Will, eu, as crianças e os criados. Pelo
menos, todos nós amávamos realmente a Mammy e sofremos com a sua partida. Os olhos de Big
Sam estão vermelhos de tanto chorar. Olhem para o pobre Pork, chorando muito também. Vejam só,
o cabelo dele está quase branco; não o imaginava tão velho. Dilcey não parece ter a idade dela,
qualquer que seja; não mudou nem um pouco desde que veio para Tara..."
A mente exausta e vagueante de Scarlett aguçou-se subitamente. O que estavam Pork e Dilcey
fazendo ali? Já não trabalhavam em Tara havia anos; desde que Pork se tornara o criado de Rhett, e
Dilcey, a mulher, fora para casa de Melanie, como ama de Beau. "Como apareceram aqui em Tara?
Não havia maneira de eles terem tido conhecimento da morte de Mammy, a não ser que Rhett lhes
tivesse dito."
Scarlett olhou por cima do ombro. Rhett teria voltado? Não havia sinais dele. Assim que a
cerimônia terminou, foi direita a Pork.
Suellen e Will que lidassem com o fastidioso pregador. - É um dia triste, Miss Scarlett. - Os olhos de
Pork estavam ainda cheios de lágrimas.
- É sim, Pork - retorquiu Scarlett. Não devia precipitar-se, ou, então, nunca descobriria o que
queria saber.
Scarlett caminhou lentamente ao lado do velho criado negro, ouvindo as suas lembranças de
Mist' Gerald, de Mammy e dos primeiros dias em Tara. Esquecera-se de que Pork tinha estado com
o seu pai tanto tempo. Ele tinha vindo para Tara com Gerald, quando aqui não havia mais do que um
velho edifício queimado e os campos tinham se tornado matagais. "Bom, Pork deve ter setenta anos,
ou mais."
Aos poucos, foi arrancando as informações que queria. Rhett tinha voltado a Charleston, para
ficar. Pork tinha embalado e enviado todas as roupas de Rhett para a estação, a fim de serem
embarcadas.
Foi a sua última obrigação como criado de Rhett. Agora estava reformado, com uma pensão
que lhe dava para ter um pedaço seu, onde quisesse.
- Posso sustentar a minha família também - disse Pork com orgulho. Dilcey nunca mais
precisaria trabalhar e Prissy teria algo a oferecer a qualquer homem que quisesse casar com ela. -
Prissy não é nenhuma beleza, Miss Scarlett, e já vai fazer vinte e cinco anos, mas com uma herança,
pode arranjar marido tão facilmente como qualquer rapariga bonita que não tenha dinheiro.
Scarlett sorriu e concordou com Pork que "Mist' Rhett" era um distinto cavalheiro. Por dentro,
Scarlett estava furiosa. A generosidade daquele distinto cavalheiro estava estragando-lhe tudo.
Quem ia tomar conta de Wade e Ella, quando Prissy fosse embora? E como iria fazer para arranjar
uma boa ama para Beau? Ele tinha acabado de perder a mãe, o pai estava meio doido com o
sofrimento, e a única pessoa com um pouco de juízo naquela casa ia embora também. Desejou poder
partir e recomeçar, deixando tudo e todos para trás. "Mãe de Deus! Vim para Tara para descansar
um pouco, para pôr a minha vida em ordem, e só encontrei mais problemas para resolver. Será que
alguma vez terei paz?"
Calma e firmemente, Will providenciou a Scarlett esse descanso. Mandou-a para a cama e deu
ordens para que não fosse incomodada. Scarlett dormiu quase dezoito
horas e acordou com um plano claro por onde começar.
- Espero que tenhas dormido bem - comentou Suellen quando a irmã desceu para o café da
manhã. A voz dela era doentiamente adocicada. - Devias estar terrivelmente cansada, depois de tudo
o que passaste. - Agora que Mammy estava morta, as tréguas tinham acabado.
Os olhos de Scarlett brilharam perigosamente. Sabia o que Suellen pensava da cena
vergonhosa que fizera, implorando a Rhett para não a deixar. Mas quando respondeu a Suellen, as
suas palavras foram igualmente doces.
- Mal pousei a cabeça na almofada, adormeci. O ar do campo é tão calmante e revigorante -
"Grande mazinha", acrescentou mentalmente. O quarto que ainda considerava seu pertencia agora a
Susie, a filha mais velha de Suellen, e Scarlett sentiu-se uma intrusa. Tinha certeza de que Suellen
também o sabia. Mas não importava. Precisava ficar bem com ela para prosseguir o seu plano.
Sorriu à irmã.
- Onde está a piada, Scarlett? Tenho uma mosca no nariz ou quê? A voz de Suellen irritou Scarlett,
mas manteve o sorriso. - Desculpa, Suellen. Estava lembrando-me de um sonho idiota que tive a
noite passada. Sonhei que éramos todos crianças outra vez e que a Mammy estava me açoitando as
pernas com uma vara de pessegueiro. Lembras-te de como essas varas machucavam?
Suellen sorriu. - Claro que me lembro. Lutie usa-as com as meninas. Quase posso sentir a dor nas
minhas próprias pernas quando ela o faz. Scarlett olhou para o rosto da irmã. - Até me admira não
ter um monte de cicatrizes - disse ela. - Era uma menina tão má, não sei como é que tu e Careen
conseguiam me aturar - espalhou manteiga num biscoito como se isso fosse a sua única
preocupação.
Suellen olhou-a com desconfiança. - Tu atormentavas-nos realmente, Scarlett. E arranjavas sempre
maneira de as brigas parecerem ser provocadas por nós.
- Eu sei. Eu era impossível. Mesmo quando éramos mais velhas. Tratei-vos como mulas
quando tivemos que apanhar o algodão depois dos ianques terem roubado tudo.
- Quase nos mataste. Estávamos como mortas com a febre tifóide, e tu arrastavas-nos da cama
para nos mandares para os campos, à torreira do sol... - Suellen ia ficando mais animada e mais
veemente, à medida que repetia todas as recriminações guardadas durante anos.
Scarlett assentiu, encorajando-a com murmúrios de contrição. "Como ela gosta de se
lamuriar", pensou. "Precisa disso como de pão para a boca." Esperou que a irmã abrandasse, antes
de dizer:
- Sinto-me tão mesquinha, mas não há nada que eu possa fazer para vos compensar por tudo o
que vos fiz passar. Will está sendo preverso não me deixando dar-vos dinheiro. No fim de contas, é
para Tara, e Tara também é a minha casa.
- Já lhe disse isso centenas de vezes - replicou Suellen. "Aposto que sim", pensou Scarlett. - Os
homens são tão teimosos - retorquiu. - Suellen, acabo de me lembrar de uma coisa. Diz que sim, era
uma bênção para mim se o fizesses. Will não poderia aborrecer-se com isso. E se eu deixasse a Ella
e o Wade aqui e vos enviasse dinheiro para o sustento deles? A vida na cidade tornou-os preguiçosos
e o ar do campo lhes faria maravilhas.
- Não sei, Scarlett. Quando o bebê nascer vamos ser demais aqui. - Suellen era gananciosa,
mas prudente.
- Eu sei - murmurou delicadamente. - Além disso, Wade Hampton come muito. Mas seria tão
bom para eles, pobres meninos da cidade. Acho que seriam precisos cerca de cem dólares só para os
alimentar e comprar calçado.
Duvidava de que Will conseguisse arranjar cem dólares em dinheiro só com o seu duro
trabalho em Tara. Notou com satisfação que Suellen estava sem palavras. Estava certa de que a voz
dela voltaria a tempo de aceitar a proposta que lhe fizera. "Depois do café vou passar um cheque
bem gordo."

- Estes são os melhores biscoitos que já provei - disse Scarlett. - Posso comer outro? ​Estava

começando a sentir-se muito melhor. Tinha dormido bem, tomara uma bela ​ refeição e os filhos
estavam entregues. Sabia que devia voltar para Atlanta - ainda tinha que tratar de Beau. Também
tinha que tratar de Ashley, como prometera a Melanie. Mas pensaria nisso mais tarde; viera para
Tara em busca da paz e do sossego do campo e estava determinada a não partir sem os encontrar.
Após o café, Suellen saiu para a cozinha. Provavelmente, ia queixar-se de alguma coisa,

pensou com crueldade. Não se importava, isso permitia-lhe ficar sozinha e em paz... ​"A casa está tão

calma. As crianças devem estar comendo na cozinha. Will já há muito


​ que deve ter ido para os
campos, com Wade seguindo-o que nem um cão, tal como costumava fazer desde que Will veio para
Tara. Wade é muito mais feliz aqui do que em Atlanta, principalmente agora que Rhett se foi. Não,
não vou pensar nisso agora. Fico maluca se o fizer. Vou é aproveitar a paz e o sossego, que foi por
isso que para cá vim."
Serviu-se de outra xícara de café, não se importando por este estar apenas morno. A luz do sol
entrava pela janela atrás de si, indo iluminar o quadro na parede oposta, por cima do velho aparador.
Will tinha feito um ótimo trabalho de recuperação na mobília que os soldados ianques tinham
partido. Mas nem mesmo ele conseguia remover as profundas marcas deixadas pelas espadas, nem o
buraco feito pelas baionetas no retrato da avó Robillard.
O soldado que a golpeou devia estar bêbado, imaginou. Falhou o ar arrogante, quase de
escárnio, no rosto franzino da avó, assim como os peitilhos que rodeavam o vestido barato que
usava. Tudo o que fez foi cortar-lhe a orelha esquerda, e agora parecia muito mais interessante só
com uma.
A mãe da sua mãe era o único antepassado que interessava realmente a Scarlett e sentia-se
frustrada por ninguém lhe ter contado o suficiente sobre a avó. Tinha casado três vezes, fora tudo o
que conseguira saber pela mãe, nem mais um pormenor. E Mammy cortava todas as histórias sobre
Savannah, exatamente quando começavam a tornar-se interessantes. Tinha havido duelos por causa
da avó, e as modas do tempo dela tinham sido escandalosas, com as senhoras a molharem
deliberadamente os finos vestidos de musselina para que estes se lhes colassem às pernas. E a outros
lugares também, a julgar pelo aspecto das coisas no retrato...
"Eu devia corar por pensar este tipo de coisas", disse Scarlett para si própria. Ao sair da sala
de jantar, olhou para o retrato, por cima do ombro. Como seria ela realmente?
A sala de estar mostrava sinais de pobreza e uso constante por uma jovem família. Scarlett mal
podia reconhecer a poltrona forrada de veludo em que se sentara, enquanto os galantes se
declaravam. Tudo tinha sido mudado. Tinha de admitir que Suellen tinha o direito de arranjar a casa
como entendesse, mas estava cada vez pior. Assim, não era realmente Tara.
Ficava mais desapontada à medida que ia de peça em peça. Nada estava na
mesma. De cada vez que vinha a casa havia mais mudanças e mais miséria. Por que havia Will de
ser tão obstinado? Toda a mobília precisava ser recuperada, as cortinas estavam em farrapos, e podia
ver-se o chão através das alcatifas. Podia arranjar coisas novas para Tara, se Will a deixasse. Assim,
não lhe doeria o coração ao ver as coisas de que se lembrava, com um aspecto tão lamentavelmente
gasto.
"Devia ser minha! Tomaria melhor conta dela. O papá sempre disse que me deixaria Tara.
Mas ele nunca fez testamento. Era mesmo dele, nunca pensava no amanhã." Scarlett franziu o
sobrolho, mas não conseguia zangar-se com o pai. Nunca ninguém se tinha zangado com Gerald
O'Hara. Ele era como uma amorosa criança marota, mesmo quando já estava nos sessenta anos.
"A única com quem ainda estou zangada é Carreen. Irmã mais nova ou não, fez mal em fazer
o que fez, e nunca vou lhe perdoar. Nunca. Foi teimosa que nem uma mula quando decidiu ir para o
convento, e eu acabei por aceitar. Mas nunca me disse que ia usar a sua terça parte de Tara como
dote.
"Deveria ter me dito! Eu lhe teria arranjado o dinheiro de algum modo. Assim, seria dona de
dois terços. Não a totalidade, como deveria ser, mas pelo menos o controle claro. Desse modo teria
uma palavra a dizer. Em vez disso, tenho que ficar calada enquanto vejo tudo ir por água abaixo e a
Suellen dar-se ares de rainha. Não é justo. Fui eu quem salvou Tara dos ianques e dos carpetbaggers.
Não importa o que a lei diz. É minha, e um dia será de Wade. Vou tratar disso e não me importa o

que custe." ​No pequeno quarto a partir do qual Ellen O'Hara dirigira calmamente a plantação,
Scarlett descansou a cabeça na cobertura gasta do velho sofá de couro. Depois de todos aqueles
anos, parecia haver ainda um leve traço da água de colônia de limão e verbena usada pela mãe. Era
esta a quietude que tinha vindo procurar. Não importavam as mudanças, a miséria. Tara ainda era
Tara; ainda era o seu lar. E o coração dela estava ali, no quarto de Ellen.
O bater de uma porta quebrou o silêncio. Scarlett ouviu Ella e Susie atravessarem o átrio, discutindo
sobre qualquer coisa. Tinha que sair dali; não podia suportar barulhos e conflitos. Correu para a rua;
queria mesmo ver os campos. Estavam todos tratados, vermelhos e ricos, como sempre tinham sido.
Caminhou rapidamente através do prado cheio de ervas e passou pelo telheiro das vacas.
Nunca ultrapassaria a sua aversão a vacas, nem que vivesse até os cem anos; eram umas coisas
horríveis com chifres aguçados.
Junto ao primeiro campo debruçou-se sobre a cerca e respirou o cheiro de amônio emanado do
estrume e da terra remexida. "É engraçado como o estrume da cidade é tão malcheiroso e tão sujo,
enquanto no campo é o perfume do agricultor.
"Will é com certeza um bom agricultor. Ele é a melhor coisa que já aconteceu a Tara. O que
quer que eu pudesse ter feito, nunca o conseguiríamos se ele não tivesse parado aqui a caminho de
casa, na Florida, e não tivesse decidido ficar. Apaixonou-se por esta terra da mesma maneira que
outros homens se apaixonam por uma mulher. E nem sequer é irlandês! Até Will aparecer, pensava
que só um irlandês, como o papá, pudesse amar tanto a terra."
No lado oposto do campo viu Wade ajudando Will e Big Sam a consertarem um pedaço de
cerca que estava caído. Achou que era bom para ele estar aprendendo; era a sua herança. Durante
alguns minutos ficou olhando para eles, trabalhando juntos. "Era melhor ir já para casa", pensou.
"Esqueci-me de passar o cheque a Suellen."
A assinatura no cheque era típica de Scarlett. Clara e sem enfeites; sem borrões ou linhas
hesitantes, como os escritores experimentais. Uma assinatura direta, como as
usadas nos negócios. Olhou para ela por um momento antes de a secar com o mata- borrão, e voltou
a olhá-la depois disso.
Scarlett O'Hara Butler. Quando escrevia mensagens pessoais nos convites, Scarlett seguia a moda da
altura, fazendo enfeites complicados em cada letra maiúscula e terminando com uma parábola de
remoinhos por debaixo do nome. Fê-lo agora num pedaço de papel de embrulho castanho. Depois,
olhou para o cheque que acabara de escrever. Estava datado. Tivera que perguntar a data a Suellen e
ficara surpresa com a resposta: 11 de Outubro de 1873. Tinham passado mais de três semanas desde
a morte de Melly. Estava em Tara há vinte e dois dias, cuidando de Mammy.
A data tinha ainda outros significados. A morte de Bonnie ocorrera há mais de seis meses.
Scarlett podia já deixar a monotonia do preto usado em luto pesado. Podia aceitar convites para
acontecimentos sociais e podia convidar pessoas para sua casa; podia voltar ao mundo.
"Quero voltar para Atlanta", pensou. "Quero alegria. Na minha vida tem havido demasiada
dor, mortes demais. Preciso de vida."
Dobrou o cheque para Suellen. "Também sinto falta da loja. Os livros de contas devem estar
numa confusão medonha. Além do mais, Rhett voltará a Atlanta 'para impedir os mexericos'. Tenho
que lá estar."
O único som que conseguia ouvir era o lento tique-taque do relógio por detrás da porta
fechada. O silêncio pelo qual ansiara durante tanto tempo estava agora, subitamente, a
enlouquecê-la. Levantou-se de repente.
"Darei o cheque a Suellen depois do almoço, assim que Will voltar para os campos. Depois
pego a charrete e vou fazer uma rápida visita aos amigos em Fairhill e Mimosa. Nunca me
perdoariam se não passasse lá para cumprimentá-los. À noite faço as malas e amanhã apanho o trem
da manhã."
"Volto para Atlanta. Por muito que ame Tara, já não é a minha casa. Chegou a hora de partir."
A estrada para Fairhill estava cheia de ervas e de sulcos. Scarlett lembrou-se de quando a
estrada era alisada todas as semanas e borrifada com água para não levantar pó. "Já lá vai o
tempo...", pensou com tristeza. "Havia pelo menos dez plantações a curta distância, e as pessoas
visitavam-se a toda a hora. Agora só resta Tara e as plantações dos Tarletons e dos Fontaines. Tudo
o resto são chaminés queimadas ou paredes caindo. Tenho mesmo de voltar à cidade. Tudo no
campo me põe triste." As molas da charrete e o velho e vagaroso cavalo eram quase tão ruins como
as estradas. Pensou na sua carruagem acolchoada, parelha a condizer, com Elias para conduzindo.
Precisava realmente voltar para casa, em Atlanta.
A ruidosa alegria que reinava em Fairhill tirou-a daquela disposição. Como de costume,
Beatrice Tarleton não parava de falar nos seus cavalos e nada mais lhe interessava. Scarlett notou
que os estábulos tinham um telhado novo. O telhado da casa tinha remendos novos. Jim Tarleton
parecia velho, o seu cabelo estava branco, mas tinha tido uma boa colheita de algodão com a ajuda
do genro maneta, o marido de Betsy. As outras três raparigas continuavam velhas solteironas.
- Claro que passamos os dias e as noites chorando por causa disso - disse Hetty, e todos se
riram. Scarlett não os entendia de todo. Os Tarletons conseguiam rir de tudo. Talvez isso tivesse
algo a ver com os seus cabelos ruivos.
A inveja que sentiu não era nada de novo. Desde sempre desejara fazer parte de uma família
tão terna e brincalhona como os Tarleton. Abafou a inveja que sentia; estava sendo desleal com a
mãe. Ficou muito tempo ali; estar com eles era muito divertido. Teria que visitar os Fontaine no dia
seguinte. Era quase noite quando chegou
a Tara. Mesmo antes de abrir a porta, já podia ouvir o filho mais novo de Suellen chorando por
qualquer coisa. Era realmente hora de voltar para Atlanta.
Mas havia novidades que a fizeram logo mudar as suas decisões. Suellen pegou a ruidosa
criança e a fez calar-se mesmo quando Scarlett entrava pela porta. Apesar do seu cabelo em
desalinho e do seu corpo informe, Suellen estava mais bonita que em criança.
- Oh, Scarlett! - exclamou. - Há grandes novidades, nem adivinhas... Vamos, querido, vou-te
dar um belo pedaço de osso ao jantar e podes mastigar à vontade, para esse dente maroto não te
machucar mais.
"Se um dente novo é uma grande novidade, nem quero sequer tentar adivinhar", apeteceu-lhe
dizer. Mas Suellen nem lhe deu tempo.
- Tony voltou! - disse Suellen. - Sally Fontaine veio aqui dizer-nos e acabou de sair. Tony está
de volta! São e salvo. Vamos todos jantar na casa dos Fontaine, amanhã à noite, logo que Will acabe
de tratar das vacas. Oh, Scarlett, não é maravilhoso? - O sorriso de Suellen era radiante. - O condado
está de novo enchendo- se de gente.
Scarlett sentiu vontade de abraçar a irmã, um impulso que nunca sentira antes. Suellen estava
certa, era maravilhoso ter Tony de volta. Receara que nunca mais ninguém o visse; agora, a terrível
lembrança da última vez que o vira podia ser esquecida para sempre. Estava tão exausto e
preocupado, encharcado até os ossos e a tremer. Quem não estaria gelado e cheio de medo? Os
ianques estavam mesmo atrás dele e ele corria, tentando salvar a vida, depois de ter morto o negro
que maltratara Sally. Depois matara o miserável que encorajara o idiota do negro a ir atrás de uma
branca.
Tony voltara! Mal podia esperar pela tarde do dia seguinte. O County estava a voltar à vida.
4
A plantação dos Fontaine era conhecida por Mimosa por causa do pequeno bosque que
rodeava a casa de estuque amarelo-desmaiado. As flores cor-de-rosa, parecidas com penas, tinham
caído no fim do Verão, mas as folhas verdes como fetos estavam ainda nos ramos. Ondulavam como
dançarinas ao vento, fazendo manchas de sombra, sempre a mudar, nas paredes sarapintadas da casa
cor de manteiga. A luz baixa e oblíqua do sol dava-lhe um ar quente e acolhedor.
"Espero que Tony não tenha mudado muito", pensou Scarlett um pouco nervosa. "Sete anos é
tanto tempo..." Os seus pés arrastaram-se quando Will a ajudou a descer da charrete. E se Tony
estivesse velho e cansado e derrotado, como Ashley? Isso era mais do que conseguia suportar.
Dirigiu-se devagar para a porta, atrás de Suellen e Will.
A porta abriu-se de rompante e todas as suas apreensões se desvaneceram. - Quem vem lá devagar,
como se fosse para a igreja? Não sabem correr para dar as boas-vindas a um herói acabado de
chegar?
A voz de Tony era alegre, tal como antes; o cabelo preto como nunca; o sorriso vivo e
travesso.
- Tony! Estás na mesma - gritou Scarlett. - És mesmo tu, Scarlett? Vem dar-me um beijo. Tu
também, Suellen. Não eras generosa com os beijos como a Scarlett, nos velhos tempos, mas o Will
deve ter-te ensinado umas coisas depois de terem casado. Agora que estou de volta, quero beijar
todas as mulheres com mais de seis anos do estado da Geórgia.
Suellen abafou o riso, nervosa, e olhou para Will. Um leve sorriso no seu plácido e fino rosto
mostraria a sua autorização, mas Tony não se deu ao trabalho de esperar. Agarrou-a pela cintura
delgada e pregou-lhe um beijo nos lábios. Estava rosada de prazer e confusão quando ele a largou.
Os arrogantes irmãos Fontaine tinham prestado pouca atenção a Suellen nos anos anteriores à
guerra, anos de galãs e belas meninas. Will pôs o braço em volta dos ombros dela de uma forma
forte e carinhosa.
- Scarlett, querida! - gritou Tonny, de braços abertos. Scarlett deixou-se cingir e pôs os braços à
volta do pescoço dele, num abraço apertado.
-Ficaste muito mais alto, lá no Texas! - exclamou. Tony sorria à medida que beijava os lábios
que ela lhe oferecia. Depois levantou a perna das calças para lhe mostrar as botas de tacão alto que
tinha calçadas.
- Todo mundo fica mais alto no Texas - respondeu Tony. - Não me surpreenderia se fosse lei.
Alex Fontaine sorriu por cima do ombro de Tony. - Vais ouvir mais do que podes sobre o Texas -
disse Alex lentamente. - Isto é, se Tony te deixar entrar em casa. Ele esqueceu-se de coisas como
essas. No Texas todos vivem à volta de fogos-de-campo debaixo das estrelas, em vez de terem
telhados e paredes. - Alex resplandecia de felicidade. "Parece que ele próprio tem vontade de
abraçar e beijar Tony, e por que não? Enquanto cresciam eram unha com carne. Alex deve ter
sentido muito a falta dele." Subitamente, os olhos encheram-se de lágrimas. O exuberante regresso
de Tony era o único acontecimento feliz no condado desde que as tropas de Sherman tinham
devastado a terra e as vidas das pessoas que lá viviam. Mal sabia como lidar com tão súbita
felicidade.

A mulher de Alex, Sally, puxou-a pela mão quando entrou na decadente sala de estar. ​- Eu sei

como te sentes, Scarlett - segredou-lhe Sally. - Quase nos tínhamos


esquecido como nos divertirmos. Houve mais sorrisos nesta casa hoje do que nos últimos dez anos
juntos. Esta noite vamos deitar a casa abaixo!
- Os olhos de Sally estavam também cheios de lágrimas. A festa começou. Entretanto, os Tarletons
chegaram. - Graças a Deus voltaste inteiro, rapaz! - Foi assim que Beatrice Tarleton cumprimentou
Tony. - Podes atirar-te a qualquer uma das minhas três filhas. Só tenho uma neta e estou ficando
velha.
- Oh, mamã! -gemeram Hetty, Camilla e Miranda Tarleton em coro. Depois desataram a rir. A
preocupação da mãe em criar cavalos e pessoas era suficientemente conhecida para fingirem
embaraço. Mas Tony estava vermelho que nem um pimentão.
Scarlett e Suellen vaiaram-nos. Beatrice Tarleton insistiu em ver os cavalos que Tony trouxera do
Texas antes que a noite caísse. Instalou-se uma acalorada discussão acerca dos méritos dos puro-
sangue orientais contra os cavalos bravos da Califórnia, até que alguém pediu tréguas.
- E uma bebida - disse Alex. - Até consegui arranjar uísque de verdade para celebrarmos.
Jim Tarleton deu umas pancadinhas no ombro da mulher. - Beatrice, podes discutir isso com Tony
durante os próximos meses. Anos até... - Mrs. Tarleton franziu a testa e depois encolheu os ombros
em sinal de derrota. Para ela, nada era mais importante que os cavalos, mas não faltariam
oportunidades, e esta era a noite de Tony. Além disso, ele tinha ido embora, seguindo Alex em
direção à mesa onde estavam os copos e o uísque genuíno.
Scarlett desejou, não pela primeira vez, que tomar uma bebida não fosse um prazer do qual as
senhoras estivessem automaticamente excluídas. Teria gostado de tomar uma. Ainda mais, teria
preferido falar com os homens em vez de ficar desterrada no outro lado da sala, falando de bebês e
de economia doméstica. Nunca tinha percebido, nem aceito a tradicional separação dos sexos. Mas
esse era o modo como as coisas eram feitas, sempre tinham sido, e resignou-se a isso. Pelo menos,
podia divertir-se vendo as meninas Tarleton fingir que não pensavam exatamente como a mãe. Se ao
menos Tony olhasse para elas, em vez de ficar embrenhado naquilo de que os homens estavam
falando!
- O pequeno Joe deve estar felicíssimo por ter o tio em casa - estava Hetty Tarleton dizendo a
Sally. Hetty podia dar-se ao luxo de ignorar os homens. O seu marido, gordo e maneta, era um deles.
Era a única das filhas dos Tarleton que conseguira arranjar alguém para casar.
Sally respondeu a Suellen com pormenores acerca do filho, que aborreceram Scarlett
terrivelmente. Perguntou-se se ainda faltaria muito para o jantar. Não podia faltar muito; todos os
homens eram agricultores e tinham que se levantar de madrugada no dia seguinte. Isso significava
que a festa teria que acabar cedo.
Estava certa quando pensou que o jantar seria cedo; os homens anunciaram que estavam
prontos, depois de uma única bebida.
Mas enganara-se acerca do fim antecipado da festa. Todo mundo estava divertindo-se demais
para a deixar acabar. Tony fascinou-os com histórias das suas aventuras.
- Faltava pouco menos de uma semana para me juntar aos Texas Rangers! - exclamou com
uma risada. - O estado estava sob o controle militar dos ianques, tal como todo o Sul, mas com mil
raios!... Desculpem minhas senhoras, aqueles casacas azuis não sabiam o que fazer com os índios.
Os Rangers tinham estado a combatê-los, e a única esperança que os rancheiros tinham era de que os
Rangers os continuassem
a proteger. E foi isso que fizeram. Soube logo que estava entre os meus, e alistei-me. Foi magnífico!
Não havia uniformes, não havia marchas com o estômago vazio, para onde quer que um estúpido
general quisesse que fôssemos, nada de exercícios, nada de "Sim, senhor!". Juntávamo-nos a um
grupo de camaradas e íamos em frente, à luta!
Os olhos pretos de Tony piscavam de entusiasmo. Os de Alex também. Os Fontaines sempre
tinham gostado de uma boa luta, e odiavam a disciplina.
- Como são os índios? - perguntou uma das meninas Tarleton. - Eles torturam realmente as
pessoas?
- Não vais querer ouvir isso - replicou Tony, com os olhos e o sorriso subitamente tristes.
Depois riu. - São espertos como raposas, quando é hora de lutar. Os Rangers aprenderam depressa
que se queriam derrotá-los, teriam que aprender o seu modo de fazer as coisas. Podemos encontrar a
pista de um homem ou animal nas rochas ou mesmo na água, melhor que qualquer cão de caça. E
viver de solas e ossos, se só houver isso. Nada pode vencer ou fugir a um Texas Ranger.
- Mostra-nos o teu revólver de seis tiros, Tony - disse Alex. -Agora não. Talvez amanhã, ou no dia
seguinte. Sally não quer que eu lhe faça buracos na parede.
- Eu não disse para disparares, pedi que o mostrasses - Alex arreganhou os dentes para os
amigos. - Tem o punho cravado de marfim, gabou-se. - Esperem até que o meu irmãozinho vá visitar
vocês, montado na sua grande sela do velho oeste. Tem tanta prata nela que quase ficamos cegos
com o brilho.
Scarlett sorriu. Já devia ter imaginado. Tony e Alex sempre tinham sido os homens mais
vaidosos de toda a Geórgia do Norte. Obviamente, Tony não mudara nem um pouco. Botas janotas,
de cano alto, prata na sela... Apostava que vinha com os bolsos tão vazios como quando partira,
fugindo do carrasco. Era um enorme disparate ter prata na sela, quando a casa em Mimosa precisava
de um telhado novo. Mas de Tony estava bem isso. Isso significava que ainda era o mesmo. Alex
estava orgulhoso dele como se tivesse chegado com um vagão carregado de ouro. Como os adorava!
Podiam só ter ficado com uma quinta que eles próprios tinham que amanhar, mas os ianques não
tinham derrotado os Fontaines, não tinham sequer sido capazes de lhes fazer mossa.
- Meu Deus, os rapazes teriam adorado andar cavalgando por aí, polindo a prata com o
traseiro! - exclamou Beatrice Tarleton.
Scarlett respirou fundo. "Por que razão Mrs. Tarleton tinha que estragar sempre tudo? Por que
arruinar uma noite tão feliz, lembrando a todos que todos os seus velhos amigos estavam mortos?"
Mas nada estava perdido. - Eles não seriam capazes de manter as selas por uma semana, Miss
Beatrice, sabe bem - respondeu Alex. - Teriam perdido num jogo de pôquer ou vendido para
comprar champanhe para uma festa precisando de animação. Lembra-se de quando Brent vendeu
toda a mobília do quarto na universidade e comprou cigarros a um dólar para todos os rapazes que
nunca tinham fumado?
- E quando Stuart perdeu o traje jogando as cartas e teve que se escapulir daquela festa a rigor
embrulhado num tapete? - acrescentou Tony.
- O melhor foi quando ele empenhou os livros de leis de Boyd, mesmo antes do seu primeiro
julgamento no tribunal do condado - acrescentou Jim Tarleton. - Julguei que os esfolavas vivos,
Beatrice.
- A pele acabaria sempre por lhes crescer de novo - disse Mrs. Tarleton, sorridente. - Tentei
partir-lhes as pernas quando colocaram fogo na casa do gelo, mas eles corriam demais para que os
pudesse apanhar.
- Foi dessa vez que vieram para Lovejoy e se esconderam no nosso celeiro - retorquiu Sally. -
As vacas ficaram sem leite durante uma semana, quando os gêmeos tentaram tirar sozinhos um
balde de leite para beberem.
Todos tinham uma história sobre os gêmeos Tarleton, e essas histórias levaram a outras sobre
os seus amigos e irmãos mais velhos - Lafe Munroe, Cade e Raiford Calvert, Tom e Boyd Tarleton,
Joe Fontaine -, todos rapazes que nunca tinham voltado para casa. As histórias eram a riqueza
partilhada da memória e do amor. À medida que iam sendo contadas, os cantos da sala iam ficando
cheios com a juventude sorridente daqueles que estavam mortos. Mas, agora, finalmente, não mais
perdidos, pois podiam ser lembrados com ternas risadas em vez de desesperada amargura.
A geração mais velha também não estava esquecida. Todos à volta da mesa tinham belas
lembranças da velha Miss Fontaine, a avó de Tony e Alex, com a sua língua afiada e coração doce.
E da mãe deles, chamada Jovem Miss, até ao dia em que morreu, no seu sexagésimo aniversário.
Scarlett descobriu que podia partilhar o terno divertimento provocado pelo inconveniente hábito do
pai de cantar canções rebeldes irlandesas, quando tinha, como ele dizia, "bebido um copinho". Podia
até ouvir falar na bondade da mãe sem a dor que tinha antes sido a sua resposta imediata, cada vez
que ouvia o nome de Ellen O'Hara.
A conversa continuou, hora após hora, muito depois dos pratos estarem vazios e o lume
reduzido a cinzas. Os doze sobreviventes ressuscitaram todos os entes queridos que não podiam
estar ali para dar as boas-vindas a Tony. Era uma ocasião feliz, uma ocasião de conciliação. A luz
tênue e trêmula do candeeiro de petróleo no centro da mesa não mostrava nenhuma das cicatrizes
deixadas na mobília pelos homens de Sherman, nem as paredes da sala, manchadas pela fumaça. Os
rostos em volta da mesa não tinham rugas, as roupas não tinham remendos. Nestes momentos de
ilusão, era como se Mimosa tivesse sido transportada para um lugar e um tempo sem história, onde
não havia dor e nunca tinha havido uma guerra.
Muitos anos antes, Scarlett tinha jurado a si própria nunca olhar para trás. Relembrar os
calmos dias anteriores à guerra e suspirar por eles só poderia magoá-la. Precisava de toda a sua força
e determinação para sobreviver e proteger a sua família. As memórias partilhadas na sala de jantar,
em Mimosa, não eram todas uma fonte de fraqueza. Deram-lhe coragem, eram a prova de que as
pessoas boas podiam sofrer qualquer perda e mesmo assim manter a capacidade de amar e sorrir.
Sentia-se orgulhosa de pertencer a esse grupo, orgulhosa de lhes poder chamar amigos, orgulhosa
por serem como eram.
No caminho de casa, Will caminhou à frente da charrete, segurando uma tocha e conduzindo o
cavalo. A noite estava escura e era já muito tarde. Por cima deles, as estrelas brilhavam num céu sem
nuvens, tão brilhante que a lua parecia quase transparente. O único som que se ouvia era o das
ferraduras do cavalo.
Suellen dormitava, mas Scarlett lutou contra o sono. Não queria que a noite acabasse, queria
que aquele doce conforto e felicidade durassem para sempre. Que forte estava Tony! Tão cheio de
vida, tão feliz com as suas engraçadas botas, consigo próprio, com tudo... "As meninas Tarleton
portaram-se como um bando de gatinhas ruivas e faladoras a olharem para uma tigela de leite. Qual
delas irá apanhá-lo? Beatrice Tarleton vai certamente fazer tudo para que uma delas o consiga."
No bosque perto da estrada, uma coruja fez "uuuu... uuu..." e Scarlett riu para si própria.

Estavam a mais de meio caminho de Tara quando reparou que não pensava em Rhett ​ há imenso
tempo. Então, a melancolia e a preocupação abateram-se sobre ela e só então percebeu que a noite
estava fria e o seu corpo gelado. Embrulhou-se mais no
xale e, silenciosamente, pediu a Will que se apressasse.
"Não quero pensar em nada, esta noite não. Não quero estragar a bela noite que passei.
Rápido, Will, está frio e escuro."
Na manhã seguinte, Scarlett e Suellen levaram as crianças na carroça até Mimosa. Quando
Tony mostrou os seus revólveres de seis tiros, os olhos de Wade brilharam, muito abertos, em
adoração ao herói. Até Scarlett ficou deliciosamente espantada ante a visão das pistolas girando, ao
mesmo tempo, nos dedos de Tony. Tony surpreendeu-os ainda, atirando as pistolas ao ar e
deixando-as cair nos coldres, suspensos nas ancas com um original cinto cravejado de prata.
- Elas também disparam? - perguntou Wade. - Disparam, sim senhor. Quando fores um pouco mais
velho, ensino-te a usá-las. - E a girá-las como tu? - Sim, claro. Não serve de nada ter um revólver
destes se não se fizerem truques com ele - Tony acariciou o cabelo de Wade. - Também te vou
ensinar a montar à maneira do Oeste, Wade Hampton. Acho que vais ser o único rapaz nesta região
que saberá como deve ser uma verdadeira sela. Mas não podemos começar hoje. O meu irmão vai
dar-me lições de agricultura. Vê como as coisas são, todo mundo tem sempre que aprender coisas
novas.
Tony despediu-se depois de plantar rápidos beijos nas bochechas de Scarlett e Suellen e na
testa das meninas.
- Alex está à minha espera lá em baixo, perto do riacho. - Por que não vão encontrar a Sally? Acho
que ela está lavando roupa lá atrás da casa. ​Sally pareceu feliz por as ver, mas Suellen recusou o

convite para tomar uma xícara


​ de café.
- Tenho que voltar para casa e fazer o mesmo, não posso ficar. Só não queríamos ir embora
sem te dizer olá.
Suellen apressou Scarlett a voltar à carroça. - Não vejo por que tens de ser tão descortês com Sally,
Suellen. A tua roupa podia esperar enquanto tomávamos uma xícara de café e conversávamos sobre

a festa. ​- Scarlett, não sabes nada de como se orienta uma quinta. Se Sally se atrasasse com
​ a roupa,
tudo o resto estaria atrasado. Aqui não conseguimos arranjar um monte de criados, como tu tens em
Atlanta. Temos que fazer grande parte do trabalho nós próprias.
Scarlett levantou a cabeça orgulhosamente, ao perceber o tom de voz da irmã. - Talvez o melhor seja
voltar a Atlanta no trem da tarde - respondeu de mau humor. ​- Isso tornar-nos-ia as coisas muito

mais fáceis - retorquiu Suellen. - Tu só dás mais


​ trabalho, e eu preciso daquele quarto para Susie e
Ella.
Scarlett abriu a boca para retrucar, mas depois fechou-a. Preferia mesmo estar em Atlanta. Se
Tony não tivesse vindo, já estaria lá. As pessoas também ficariam contentes por a ver. Tinha muitos
amigos em Atlanta que tinham muito tempo para tomar café, para um jogo de cartas ou uma festa.
Forçou um sorriso para os filhos, virando as costas a Suellen.
- Wade Hampton, Ella, a mãe tem de ir para Atlanta hoje, depois do almoço. Quero que me
prometam que vão ser bons e não vão dar trabalho nenhum à tia Suellen.
Scarlett esperou pelos protestos e as lágrimas. Mas as crianças estavam
ocupadas demais falando do espantoso revólver de Tony para lhe prestarem atenção. Assim que
chegaram a Tara, Scarlett mandou Pansy fazer-lhe a mala. Foi então que Ellen começou a chorar.
- A Prissy foi-se embora e não sei de ninguém aqui para me fazer as tranças - soluçou.
Scarlett resistiu ao impulso de dar uma bofetada na filha. Não podia ficar em Tara, agora que
tinha tomado a decisão de partir; ficaria doida sem nada para fazer, nem ninguém com quem falar.
Mas não podia viajar sem Pansy. Era indigno de uma senhora viajar sozinha. Que havia de fazer?
Ella queria que Pansy ficasse com ela. Podia levar tempo até que Ella se habituasse a Lutie, a ama da
pequena Susie. E se Ella continuasse a chorar dia e noite, Suellen podia mudar de idéia acerca de
manter as crianças em Tara.
- Tudo bem, então! - exclamou Scarlett abruptamente, - Pára com esse barulho horrível, Ella.
Vou deixar a Pansy aqui até o fim da semana. Ela pode ensinar Lutie a arranjar-te o cabelo. - Vou ter
que me juntar a alguma mulher na estação de Jonesboro. Deve haver alguém suficientemente
respeitável viajando para Atlanta com quem eu possa partilhar o lugar.
"Volto para casa no trem da tarde, e é tudo. Will pode levar-me até à estação e voltar a tempo
de ordenhar as suas horríveis vacas."
A meio caminho de Jonesboro, Scarlett parou de conversar animadamente sobre o regresso de
Tony Fontaine. Ficou em silêncio por uns momentos, depois proferiu abruptamente o que estava na
sua cabeça há tempo.
- Will, sobre Rhett, sobre o modo brusco como ele partiu, quer dizer, espero que Suellen não
vá dar à língua por todo o condado.
Will olhou-a com os seus pálidos olhos azuis. - Sabes muito bem que a família não diz mal da
família. - Sempre achei uma pena tu não conseguires ver o lado bom de Suellen. Ele existe, mas de
algum modo não aparece quando tu estás por perto. Vais ter que confiar em mim. Não importa como
ela te julga, Suellen nunca falará nos teus problemas pessoais a ninguém. Ela não quer que falem por
aí dos O'Haras mais do que tu.
Scarlett relaxou um pouco. Confiava cegamente em Will. A palavra dele era mais certa do que
dinheiro no banco. E era esperto, também. Não se lembrava de Will alguma vez se ter enganado
sobre qualquer coisa, exceto, talvez, sobre Suellen.
- Acreditas que ele voltará, não acreditas, Will? Will não precisava perguntar a quem ela se referia.
Sentia a ansiedade por detrás das palavras dela; mastigou tranqüilamente a palha ao canto da boca,
enquanto decidia como replicar. Por fim disse pausadamente:
- Não posso dizer que sim, Scarlett, mas não sou eu quem sabe. Apenas o vi quatro ou cinco
vezes em toda a minha vida.

Ela sentiu-se como se tivesse sido esbofeteada. Depois, uma fúria súbita apagou a dor. ​-Tu não

percebes nada, Will Benteen! Rhett está zangado, mas isso passa. Ele nunca
​ desceria tão baixo a
ponto de partir e deixar a sua mulher desamparada.
Will abanou a cabeça. Scarlett podia considerar isso uma concordância, se o quisesse. Mas ele
não esquecera a sardônica descrição que Rhett fizera de si próprio. Era um canalha. A julgar pelo
que as pessoas diziam, sempre o fora e provavelmente sempre o seria.
Scarlett olhou fixamente para a familiar estrada de barro vermelho à sua frente. Mantinha o
queixo erguido e a sua cabeça trabalhava furiosamente. Rhett voltaria. Tinha que voltar, porque ela
queria e estava habituada a ter o que desejava. Tudo o
que tinha a fazer era pôr isso na cabeça.
5
O barulho e o movimento em Five Points eram um tônico para o espírito de Scarlett. Também
a desordem na secretária em sua casa o era. Precisava de vida e ação à sua volta depois da
entorpecedora sucessão de mortes, precisava de ter trabalho para fazer.
Na loja que possuía em Five Points, havia um monte de jornais para ser lido, pilhas de contas
da loja, uma imensidão de contas para pagar e circulares para serem rasgadas e jogadas fora. Scarlett
suspirou de prazer e puxou a cadeira para perto da secretária.
Verificou a frescura da tinta no tinteiro e a provisão de bicos para a caneta. Depois, acendeu o
candeeiro. Antes que acabasse tudo, já estaria escuro; talvez até trouxesse um tabuleiro com o jantar
para ali, enquanto trabalhava.
Pegou avidamente nas contas da loja, e as suas mãos pararam a meio caminho quando um
grande sobrescrito, no topo dos jornais, chamou a sua atenção. Estava simplesmente endereçado
"Scarlett", e a letra era de Rhett.
"Não vou lê-lo agora", pensou imediatamente, "vai interferir com tudo o que tenho para fazer.
Não estou preocupada com o seu conteúdo, nem um pouco, só não quero vê-lo agora. Vou
guardá-lo", disse para consigo "como uma sobremesa." Pegou, então, numa mão-cheia de folhas de
caixa.
Mas não conseguia concentrar-se na aritmética que fazia mentalmente, e acabou por pôr as
contas de lado e abrir o sobrescrito selado.
"Acredita-me", assim começava a carta de Rhett, "quando digo que estou profundamente
solidário com o teu sofrimento. A morte de Mammy foi uma grande perda. Estou grato por me teres
avisado a tempo de a ver antes que partisse."
Scarlett, enraivecida, ergueu os olhos dos grossos traços pretos e falou alto. "Grato uma ova! Como
pudeste mentir a ela e a mim, seu canalha!" Desejou poder queimar a carta e atirar as cinzas à cara
de Rhett, gritando-lhe aquelas palavras. Vingar-se-ia por ele a ter envergonhado à frente de Suellen e
Will. Não importava quanto tempo tinha para esperar e planejar, arranjaria uma maneira. Ele não
tinha o direito de tratar Mammy daquela maneira, de gozar assim com os seus últimos desejos. "Vou
já queimá-la, nem sequer vou ler o resto! Não tenho nada que pôr os olhos em mentiras destas!" A
sua mão procurou a caixa de fósforos, mas quando lhe pegou, largou-a imediatamente. "Vou morrer
de curiosidade por saber o que lá estava", admitiu a si própria. Baixou a cabeça e continuou a ler.
Rhett afirmava que a vida dela não ficaria alterada. As contas da casa seriam pagas pelos
advogados dele, uma providência tomada muitos anos antes, e todos os levantamentos feitos sobre a
conta bancária de Scarlett seriam repostos automaticamente. Podia dar indicações às novas lojas em
que abrisse contas sobre o procedimento a seguir: enviarem as contas diretamente aos advogados de
Rhett. Alternativamente, poderia pagar as contas em cheque, sendo a quantia reposta no seu banco.

Scarlett leu tudo isto fascinada. Tudo o que tinha a ver com dinheiro a interessava.
​ Sempre lhe tinha
interessado, desde o dia em que tinha sido forçada pelo Exército da União a descobrir o que era a
pobreza. Acreditava que o dinheiro era segurança. Amealhava o dinheiro que ela mesma ganhava e
ficou chocada com a generosidade de Rhett.
"Que idiota que ele é, eu podia roubá-lo descaradamente, se quisesse. Provavelmente, os
advogados devem andar falsificando os livros de contas há anos.
"Rhett deve ser imensamente rico, para poder gastar sem se importar com quê.
Sempre soube que ele era rico, mas não sabia que era tanto. Gostaria de saber quanto dinheiro tem.
Então, ele ainda me ama, isto prova-o. Nenhum homem poderia mimar uma mulher como Rhett fez
durante todos estes anos a não ser que a amasse até à loucura. E vai continuar a dar-me toda e
qualquer coisa que eu queira. Ele deve ainda sentir o mesmo, ou, então, faria restrições aos gastos.
Oh! Eu sabia! Eu sabia! Ele não sentia todas aquelas coisas que me disse. Ele pura e simplesmente
não me acreditou quando lhe disse que agora sei que o amo."
Scarlett encostou a carta de Rhett ao rosto como se estivesse segurando a mão que a escrevera.
Ela o provaria. Provaria que o amava com todo o seu coração, e, então, seriam felizes, as pessoas
mais felizes de todo o mundo!
Cobriu a carta de beijos antes de a pôr cuidadosamente numa gaveta. Depois pegou nas contas
da loja com entusiasmo. Os negócios revigoravam-na. Quando uma criada assomou à porta e

timidamente a inquiriu sobre o jantar, Scarlett mal levantou os olhos. ​- Traz-me qualquer coisa num

tabuleiro - disse - e acende o fogo no fogão da sala.



A medida que a noite caía, ia ficando mais frio e estava com uma fome de lobo. Naquela noite
dormiu muitíssimo bem. A loja tinha feito bom negócio na sua ausência, e o jantar confortara-lhe o
estômago. Era bom estar em casa, principalmente com a carta de Rhett seguramente guardada
debaixo da almofada.
Acordou e espreguiçou-se languidamente. O ruído do papel debaixo da almofada fê-la sorrir.
Depois de ter tocado a campainha, pedindo o café, começou a planejar o seu dia. Primeiro, iria à
loja. Devia estar com as reservas em baixa; Kershaw mantinha os livros em ordem, mas não tinha
jeito para os negócios. Devia ter deixado acabar a farinha e o açúcar antes de pensar em reabastecer
os barris e, provavelmente, não tinha encomendado querosene nem acendalhas, embora estivesse
mais frio de dia para dia.
Não tinha visto os jornais na noite anterior, e a ida à loja poupava-lhe essa maçante leitura.
Kershaw e os empregados contavam-lhe o que valesse a pena saber sobre Atlanta. Não havia melhor
que uma loja para saber de todas as histórias que circulavam. As pessoas adoravam falar enquanto
esperavam que lhes embrulhassem as compras. A maior parte das vezes já sabia o que estava na
primeira página antes que o jornal fosse impresso; podia até atirá-lo para cima da secretária e não

perder nada. ​O sorriso de Scarlett desapareceu. Não, não podia. Devia haver uma nota sobre o
funeral de Melanie, e queria vê-la.
Melanie... Ashley... A loja teria que esperar. Tinha outras obrigações a fazer primeiro. "O que me
fez prometer a Melanie que tomaria conta de Ashley e Beau?" "Mas prometi. É melhor ir lá
primeiro. E é melhor levar Pansy para limpar tudo. Em toda a cidade não se deve falar de outra coisa
senão daquela cena no cemitério. Não faz sentido aumentar os mexericos indo visitar Ashley
sozinha." Scarlett atravessou a grossa alcatifa correndo em direção à campainha e puxou-a
vigorosamente. Onde estava o seu café da manhã?
"Oh, não, Pansy estava ainda em Tara. Teria que levar uma das outras criadas. Aquela nova
rapariga, Rebecca, servia. Esperava que Rebecca a pudesse ajudar a vestir-se sem fazer muita
confusão. Queria apressar-se; começar e acabar de uma vez os seus deveres.
Quando a carruagem parou em frente à pequena casa de Ashley e Melanie, em Ivy Street,
Scarlett reparou que a coroa de luto tinha desaparecido da porta e as
janelas estavam todas fechadas.
"Índia", pensou de imediato. Claro. Ela tinha levado Ashley e Beau para irem viver na casa da
tia Pittypat. Deveria estar terrivelmente satisfeita consigo própria.
Índia, a irmã de Ashley, sempre tinha sido uma implacável inimiga de Scarlett. Scarlett mordeu o
lábio e pensou no seu dilema. Tinha certeza de que Ashley tinha se mudado com Beau para casa da
tia Pitty; era a coisa mais sensata a fazer. Sem Melanie, e agora que Dilcey se tinha ido embora, não
havia ninguém para cuidar da casa e do filho de Ashley. Na casa da tia Pittypat havia conforto, uma
vida doméstica em ordem e constante carinho para o menino, vindo de mulheres que o tinham
amado toda a sua vida.
"Duas velhas solteironas", pensou Scarlett com desdém. "Estão sempre prontas para adorar
qualquer coisa que use calças, ou mesmo calções. Se ao menos Índia não vivesse com a tia Pitty."
Com a tia, entendia-se Scarlett. A tímida senhora não se atreveria a discutir com um gatinho, quanto
mais com Scarlett.
Mas a irmã de Ashley era outra coisa, Índia adoraria ter uma discussão, dizer coisas pavorosas
na sua fria e afiada voz, pôr Scarlett na rua.
Se ao menos não tivesse prometido a Melanie, mas tinha... "Leva-me a casa de Miss Pittypat
Hamilton", ordenou a Elias. "Rebeca, vai andando para casa. Podes ir a pé."
Devia haver paus-de-cabeleira suficientes na casa de Pitty. Índia abriu-lhe a porta. Olhou para o
elegante traje de manhã, adornado com peles, que Scarlett tinha vestido. Um leve sorriso de
satisfação moveu-lhe os lábios.
"Ri-te quanto quiseres, minha velha", pensou Scarlett. O vestido de luto de Índia era de crepe
preto carregado, sem sequer um botão a enfeitá-lo.
- Vim ver como está Ashley - disse ela. - Não és bem-vinda aqui - respondeu Índia, começando a
fechar a porta. Scarlett empurrou-a. - Índia Wilkes, não te atrevas a bater-me com a porta na cara. Eu
fiz uma promessa a Melly, e vou mantê-la, nem que tenha que te matar.
Índia respondeu-lhe, empurrando a porta com o ombro em resistência à força das mãos de
Scarlett. A luta indigna de ambas prolongou-se apenas alguns segundos. Então, Scarlett ouviu a voz
de Ashley.
- É Scarlett, Índia? Eu queria falar com ela. A porta abriu-se de rompante e Scarlett entrou, notando
com prazer o rosto vermelho de raiva de Índia.
Ashley veio até o átrio, para a cumprimentar, e os passos rápidos de Scarlett vacilaram. Ele
tinha um aspecto doente.
Os olhos, pálidos, estavam rodeados por círculos negros; rugas profundas ligavam-lhe as
narinas ao queixo. As roupas pareciam grandes demais para ele; o casaco caía-lhe sobre o corpo
enfraquecido como as asas partidas num pássaro.
O coração saltou-lhe no peito. Scarlett já não amava Ashley como tinha amado todos aqueles
anos, mas ele ainda fazia parte da sua vida. Tinham partilhado tantas memórias, durante tanto tempo.
Não conseguia suportar vê-lo naquela agonia.
- Querido Ashley - disse com delicadeza -, vem sentar-te. Pareces cansado. Durante mais de uma
hora permaneceram sentados num canto, na pequena, desarrumada e barulhenta sala de visitas da tia
Pitty. Scarlett quase não falou. Escutava, enquanto Ashley falava, repetindo-se e interrompendo-se
num confuso zigue-zague de memórias. Recontou histórias da bondade, generosidade e nobreza da
sua falecida esposa; do seu amor por Scarlett, por Beau e por ele. Ashley falava em voz baixa e
inexpressiva, num tom desmaiado pelo sofrimento e pelo desespero. A sua
mão procurou cegamente a de Scarlett e agarrou-a com tamanha força que os ossos dela se
apertaram uns contra os outros dolorosamente. Apertou os lábios e deixou-o abraçar-se a ela.
Índia estava de pé, na arcada da porta, como um inspetor mudo e imóvel. Finalmente, Ashley
interrompeu-se e começou a virar a cabeça de um lado para o outro como se estivesse cego e
perdido.
- Scarlett, não posso continuar sem ela - gemeu -, não posso. Scarlett empurrou-o com a mão. Tinha
que quebrar a concha de desespero que o envolvia, ou isso o mataria, tinha certeza. Levantou-se e
inclinou-se para ele.
- Escuta-me, Ashley Wilkes - disse ela -, tenho estado a ouvir-te desfiar as tuas mágoas todo
este tempo, agora vais ouvir as minhas. Achas que és a única pessoa que amava Melly e dependia
dela? Eu amava-a e precisava dela, mais do que eu pensava, mais do que alguém pensava. Acho que
muitas outras pessoas a amavam e dela dependiam. Mas não vamos esconder-nos e morrer por causa
disso. É isso que tu estás fazendo. Envergonhas-me. E Melly também se sente envergonhada, se nos
está vendo lá do céu. Fazes alguma idéia do que ela passou para Beau nascer? Bom, eu sei o que ela
sofreu e digo-te que o seu sofrimento teria morto o homem mais forte que Deus já criou. Agora, tu
és tudo o que ele tem. É isso que queres que Melly veja? Que o seu filho está sozinho, praticamente
um órfão, porque o pai tem pena demais de si mesmo para se preocupar com ele? Queres
despedaçar-lhe o coração, Ashley Wilkes? Porque é isso mesmo que estás fazendo. - Pegou-lhe no
queixo com a mão e forçou-o a olhar para ela. - Controla-te, estás me ouvindo, Ashley? Vais já
marchar para a cozinha dizer à cozinheira que te prepare uma boa refeição quente. E vais comê-la.
Se te fizer vomitar, comes outra. Procura o teu filho. Pega-lhe no colo e diz-lhe que não tenha medo,
que ele tem um pai para cuidar dele. Faz isso. Pensa em alguém além de ti próprio.
Scarlett limpou a mão à saia, como se o abraço de Ashley a tivesse sujado. Depois saiu da
sala, empurrando Índia do seu caminho.
Enquanto abria a porta que dava para o alpendre, pôde ouvir Índia: - Meu pobre Ashley, não prestes
atenção às coisas horríveis que Scarlett disse. Ela é um monstro!
Scarlett parou e virou-se para trás. Retirou um cartão de visita da carteira e deixou-o sobre a
mesa.
- Deixo-lhe o meu cartão, tia Pitty, já que tem medo de me receber pessoalmente - gritou.

Saiu, batendo a porta atrás de si.


- Vamos, Elias - disse ao cocheiro. - Para um lugar qualquer. Não suportava ficar naquela casa nem
mais um minuto. Que ia fazer? Teria conseguido convencer Ahsley? Tinha sido tão má, bem, tinha
de ser, ele estava sendo afogado em compaixão e carinho, mas isso tinha-lhe feito algum bem?
Ashley adorava o filho, talvez se recompusesse, para bem de Beau. "Talvez" não era suficiente. Ele
tinha que fazê-lo. Ela tinha que o obrigá-lo a isso.
- Leva-me ao escritório de advogado do Sr. Henry Hamilton - ordenou a Elias. O "tio Henry" era
assustador para a maior parte das mulheres, mas não para Scarlett. Ela podia compreender que
crescer na mesma casa com a tia Pittypat o tivesse tornado um misógino. Sabia que ele gostava dela,
dissera-lhe que não era tão pateta como a maioria das mulheres. Era o seu advogado e bem sabia
como era astuto no que respeitava aos negócios dela.
Quando entrou no escritório, sem esperar por ser anunciada, pousou a carta que estava lendo e
riu por entre os dentes.
- Entra, Scarlett - disse, pondo-se de pé. - Estás com pressa de processar alguém?
Ela andava de trás para a frente, ignorando a cadeira perto da secretária. - Apetecia-me matar
alguém - respondeu -, mas não sei se isso ajudaria. É ou não verdade que quando Charles morreu me
deixou todas as suas propriedades?
- Sabes bem que sim. Pára com essa inquietação e senta-te. Ele deixou-te os armazéns perto da
estação que foram queimados pelos ianques. E deixou um pedaço de terreno agrícola fora da cidade.
Mais cedo ou mais tarde, vai estar dentro dela, da maneira que Atlanta tem crescido...
Scarlett empoleirou-se na borda da cadeira, fixando os seus olhos nos dele. - E metade da casa da tia
Pitty, em Peachtree Street - disse claramente. - Ele também me deixou isso?
- Deus meu, Scarlett! Não me digas que queres mudar-te para lá! - Claro que não. Mas quero Ashley
de lá para fora. índia e a tia Pitty vão matá-lo de compaixão. Ele pode voltar para a casa dele. Eu
arranjo-lhe uma governanta.
Henry Hamilton olhou-a de uma forma indagadora e inexpressiva. - Tens certeza de que é por isso
que o queres de volta a casa, por ele estar a ser vítima de demasiada compaixão?
Scarlett fez-se de todas as cores. - Pelo amor de Deus, tio Henry! - exclamou. - Está tornando-se um
negociante de escândalos, com essa idade?
- Não me mostres as garras, minha jovem. Senta-te aí nessa cadeira, vais ouvir umas verdades
duras. Tens talvez a melhor cabeça para o negócio que eu conheço, mas tens tão pouco juízo como o
idiota da aldeia.
Scarlett fez um ar carrancudo, mas obedeceu. - Bom, sobre a casa de Ashley - disse o advogado
devagar -, já foi vendida. Fiz a escritura ontem. - Ergueu a mão para parar Scarlett antes que ela
pudesse falar. - Aconselhei-o a mudar para casa de Pitty e vender a sua. Não por causa da dor das
associações e memórias da casa, e não por estar preocupado sobre quem ia tomar conta dele e do
rapaz, apesar de ambos serem motivos válidos. Aconselhei-o a mudar, porque ele precisava do
dinheiro da venda para impedir o seu negócio de madeiras de ir ao fundo.
- Que quer dizer? Ashley não percebe patavina de como fazer dinheiro, mas não pode ir à
falência. Os construtores precisam sempre de madeira.
- Se estiverem construindo. Desce do teu pedestal por um minuto e escuta, Scarlett. Eu sei que
não estás interessada em nada que aconteça no mundo a não ser que te diga respeito, mas houve um
grande escândalo financeiro em Nova Iorque, há dois ou três dias. Um especulador chamado Jay
Cooke fez mal os cálculos e ficou arruinado, levando consigo a sua companhia ferroviária, uma
coisa chamada Northern Pacific. Levou à ruína uma série de outros especuladores, pessoas que eram
seus sócios na estrada-de-ferro e em outros dos seus negócios. Ao falirem juntamente com ele,
arrastaram um grande número de outros negócios em que estavam metidos, além do negócio com
Cooke. Então, aqueles que estavam envolvidos com ele faliram, fazendo ir à ruína ainda mais
negócios e mais pessoas. Tal como um castelo de cartas. Em Nova Iorque chamam a isto "o pânico".
Já está se espalhando. Creio que vai chegar a todo o país, antes de acabar.
Scarlett sentiu uma punhalada de terror. - E a minha loja? - gritou. E o meu dinheiro? Os bancos são
seguros? - Aquele em que tens conta é. Também lá tenho o meu dinheiro, por isso procurei
certificar-me. O fato é que Atlanta não deve ser muito marcada. Ainda não somos
suficientemente grandes para negócios de tanta monta como os que estão a arruinar- se. Mas os
negócios estão parados em todo o lado. As pessoas têm medo de investir seja no que for. E se
ninguém está construindo, ninguém precisa de madeira. Scarlett franziu a testa.
- Então, Ashley não vai fazer mais dinheiro com as serrações. Isso posso eu ver. Mas se
ninguém está investindo, por que é que a casa dele se vendeu tão depressa? Parece-me que se há
pânico, os preços das propriedades deviam ser os primeiros a cair.
O tio Henry arreganhou os dentes. - Em cheio. És esperta, Scarlett. Foi por isso que disse a Ashley
que vendesse enquanto pudesse. Atlanta ainda não sentiu o pânico, mas vai chegar aqui depressa.
Estes últimos oito anos foram muito prósperos, que diabo, há mais de vinte mil pessoas vivendo
aqui, neste momento, mas não pode haver prosperidade sem dólares.
Riu muito da sua própria piada. Scarlett riu com ele, embora não achasse nada de engraçado no
colapso econômico. Sabia que os homens gostam de ser apreciados.
A risada do tio Henry interrompeu-se bruscamente, como a água numa torneira. - Então, agora
Ashley está com a irmã e a tia por boas e apropriadas razões e de acordo com o meu conselho. E isso
não te agrada.
- Não senhor, não me agrada mesmo nada. Ele tem um ar pavoroso, e elas estão a pô-lo pior.
O andar dele parece o de um homem morto. Eu tive uma conversa com ele, tentei tirá-lo do estado
em que está, gritando com ele. Mas não sei se isso lhe fez algum bem. Sei que não vai durar, mesmo
que lhe fizesse algum bem. Pelo menos, enquanto ele estiver naquela casa.
Olhou para a expressão cética do tio Henry. A raiva avermelhou-lhe o rosto. - Não me importa o que
ouviu ou pensa, tio Henry. Eu não estou interessada em Ashley. Prometi a Melanie, antes de ela
morrer, que cuidaria dele e de Beau. Desejava muito não o ter feito, mas fiz.
A sua explosão fez Henry ficar inseguro. Ele não gostava de emoções, especialmente nas
mulheres.
- Se vais começar a chorar, vou ter de te pôr na rua. - Não vou chorar. Não sou tola. Tenho que fazer
algo e o senhor não me ajuda. Henry Hamilton recostou-se na sua cadeira. Juntou as pontas dos
dedos, descansando os braços no grande estômago. Tinha um ar de advogado, quase judicial. - Tu és
a última pessoa que pode ajudar Ashley, agora, Scarlett. Disse-te que te ia dizer umas verdades e
essa é uma delas. Houve uma grande especulação sobre ti e Ashley, verdadeira ou falsa, não me
importa, Miss Melly defendeu-te, e grande parte das pessoas a seguiram, por amor a ela, nota bem,
não porque gostassem muito de ti. Índia pensou o pior e disse-o. Juntou a sua pequena banda de
crentes. Não era uma situação bonita, mas as pessoas acomodaram-se, como sempre fazem. As
coisas podiam ter continuado assim para sempre, mesmo depois da morte de Melanie. Ninguém
gosta de rompimentos e mudanças. Mas não podias ter partido sozinha. Tinhas que fazer o teu
espetáculo ao lado da cova de Melanie. Que idéia foi essa de atirares os teus braços ao marido dela,
puxando-o para longe da falecida esposa, que muitos julgavam quase uma santa?
Ela levantou uma mão. - Sei o que vais dizer, por isso não te incomodes a dizê-lo, Scarlett. - As
pontas dos dedos dele tocaram-se de novo. - Ashley quase que se atirava para a cova, talvez partisse
o pescoço. Eu estava lá, vi tudo. Mas isso não vem ao caso. És uma rapariga tão esperta e não
conheces nada do mundo.
"Se Ashley se tivesse atirado para o caixão, toda a gente teria dito que era "tocante". Se ele se
tivesse realmente morto ao fazê-lo, teriam sentido verdadeira pena, mas há regras para lidar com o
sofrimento. A sociedade precisa de regras, Scarlett, para se manter unida. O que tu fizeste quebrou
as regras. Fizeste uma cena em público. Puseste as mãos num homem que não era teu marido. Em
público. Levantaste um escarcéu que interrompeu um funeral, uma cerimônia da qual toda a gente
sabe as regras. Quebraste os últimos ritos de uma santa. Não há uma única senhora na cidade que
não esteja do lado de Índia. Isso significa, contra ti. Não tens um único amigo, Scarlett. E se tens
alguma coisa a ver com Ashley, vais fazer que ele seja tão desprezado quanto tu."
"As senhoras estão contra ti. Deus te ajude, Scarlett, porque eu não posso. Quando as senhoras
cristãs se voltam contra alguém, é melhor não esperar a caridade e o perdão cristãos. Não está nelas.
Não o permitiriam a mais ninguém, especialmente aos seus homens. Elas possuem-nos de corpo e
alma. Foi por isso que sempre me mantive afastado do erroneamente chamado "belo sexo".
"Desejo-te todo o bem, Scarlett. Sabes que sempre gostei de ti. É tudo o que posso oferecer,
por agora; boa sorte. Fizeste uma grande confusão, e não sei se alguma vez vais poder pôr tudo em
ordem." O velho advogado pôs-se de pé. - Deixa Ashley onde está. Um destes dias aparece uma
senhora de falinha mansas e agarra-o. Depois, ela tomará conta dele. Deixa a casa da Pittypat tal
como está, incluindo a tua metade. E não pares de mandar dinheiro através de mim para pagar a sua
manutenção, tal como tens feito. Isso satisfará a tua promessa a Melanie. Vem. Acompanho-te à tua
carruagem.
Scarlett pegou-lhe no braço e caminhou mansamente ao lado dele. Mas, interiormente, estava
fervendo. Devia saber que não teria ajuda nenhuma do tio Henry.
Teria que descobrir por si própria se o que ele dissera era verdade, se havia um pânico
financeiro, sobretudo, se o seu dinheiro estava seguro.
6
"Pânico", chamara-lhe Henry Hamilton. A crise financeira que começara em Wall Street, em
Nova Iorque, estava espalhando-se por toda a América. Scarlett estava aterrorizada, com medo de
perder o dinheiro que tinha ganho e poupado. Quando deixou o escritório do velho advogado, foi
imediatamente ao banco. Estava tremendo por dentro quando chegou ao escritório do gerente do
banco.
- Compreendo a sua preocupação, Mrs. Butler - respondeu ele, mas Scarlett podia ver que não
compreendia nada.
Não gostara que ela questionasse a segurança do banco sob a sua gerência. Quanto mais
falava, mais confiante parecia e menos Scarlett acreditava nele.
Então, inadvertidamente, ele apaziguou todos os medos dela. - Não apenas continuaremos a pagar os
dividendos normais aos nossos acionistas, como irão ser um pouco mais altos que o costume. -
Olhou para ela pelo canto do olho. - Eu próprio só esta manhã tive esta informação - disse, zangado.
- E gostaria muito de saber como é que o seu marido tomou a decisão de aumentar as suas ações há
um mês atrás.
Scarlett sentiu-se capaz de gritar de alívio. Se Rhett estava comprar ações do banco, este
deveria ser o mais seguro de toda a América. Sempre fizera dinheiro quando o resto do mundo
estava no caos. Não sabia como ele tinha descoberto tudo sobre a posição do banco, e não se
importava. Para ela, era suficiente saber que Rhett tinha confiança naquele banco.
- Ele tem uma pequenina bola de cristal - disse com uma risada volúvel, que enfureceu o
gerente. Sentia-se um pouco bêbada.
Mas não tinha a cabeça nas nuvens o suficiente para se esquecer de converter em ouro todo o
dinheiro que tinha no cofre. Ainda podia ver as desvalorizadas obrigações da Confederação,
elegantemente gravadas, das quais o pai tinha dependido tanto. Não tinha fé alguma no papel.
Ao deixar o banco, parou nos degraus para desfrutar o sol quente do Outono e o bulício das
gentes na rua, na zona comercial. "Reparem naquelas pessoas correndo, estão com pressa porque há
que fazer dinheiro, não porque estejam com medo de alguma coisa. O tio Henry é tolo. Não há
pânico nenhum."
A próxima paragem foi na loja. Kennedy's Emporium, estava escrito na frente do edifício,
num grande letreiro com letras douradas. Tinha sido a sua herança do curto casamento com Frank
Kennedy. Aquilo e Ella. O prazer que a loja lhe dava compensava largamente o desapontamento
com a filha. A montra estava impecavelmente limpa e tinha um satisfatório mostruário da
mercadoria. Havia de tudo, desde machados brilhantes até novos e resplandecentes alfinetes de
costura.
No entanto, teria de lá tirar o algodão, que em breve ficaria amarelecido pelo sol e teria de
reduzir o preço. Scarlett entrou de rompante pela porta, pronta para tirar a pele a Willie Kershaw, o
empregado principal.
Mas, afinal de contas, não havia razão para isso. O algodão na montra tinha chegado
danificado pela água no navio e já estava marcado a um preço inferior. A tecelagem que o fizera
tinha concordado em reduzir dois terços do custo, por causa do prejuízo. Kershaw tinha
encomendado novas remessas, também sem ter sido mandado. O pesado cofre quadrado de ferro, na
sala dos fundos, estava repleto de maços de moedas e notas, cuidadosamente contadas, enroladas e
ensacadas, o produto das receitas diárias.
- Paguei aos empregados subalternos, Miss Scarlett - explicou Kershaw nervosamente -,
espero ter feito bem. A despesa está nas contas de sábado. Os
rapazes disseram que não podiam passar sem o pagamento semanal. Não tirei o meu, pois não sabia
como a senhora queria que eu fizesse. Mas ficaria muito agradecido se pudesse fazer isso...
- Claro, Willie - exclamou Scarlett graciosamente -, assim que conferir o dinheiro e os livros
de contas. - Kershaw tinha se saído melhor do que esperara, mas isso não significava que ia
permitir-lhe tomá-la por tola. Quando terminou de conferir as contas e o dinheiro, contou os doze
dólares e setenta e cinco centavos, para lhe pagar as três semanas. Decidiu dar-lhe um dólar extra,
quando no dia seguinte lhe pagasse o salário daquela semana. Ele merecia um bônus por ter
orientado bem as coisas, enquanto ela estivera fora.
Estava também pronta a aumentar os deveres dele. - Willie - disse-lhe em particular -, quero que
abras uma conta a crédito. Os olhos salientes de Kershaw abriram-se de espanto. Nunca tinha havido
crédito prolongado na loja, depois de Scarlett ter começado a geri-la. Ouviu cuidadosamente as
instruções dela. Quando ela o fez jurar que nunca diria nada a ninguém acerca daquilo, levou a mão
ao coração e jurou. Era melhor não quebrar o juramento, pensou ele, ou Mrs. Butler acabaria por o
descobrir. Estava convencido de que Scarlett tinha olhos na nuca e podia ler a mente das pessoas.
Isso não fazia grande diferença. Ninguém acreditaria se ele falasse.
Quando deixou a loja, Scarlett foi para casa almoçar. Depois de ter lavado as mãos e a cara,
atirou-se à pilha de jornais. A notícia sobre o funeral de Melanie era exatamente o que podia esperar,
um número mínimo de palavras, dando o nome, o local de nascimento e a data da morte. O nome de
uma senhora só podia aparecer três vezes nos jornais: no seu nascimento, no casamento e na morte, e
nunca com pormenores. Scarlett tinha escrito a notícia ela própria, e acrescentara uma frase que lhe
parecera adequadamente dignificante sobre a tragédia que fora a morte dela e sobre quanto a sua
falta seria sentida pela família enlutada e pelos seus amigos em Atlanta. "Índia deve tê-la tirado",
pensou, irritada. Se o governo da casa de Ashley não estivesse nas mãos de Índia, tudo seria muito
mais fácil.
O assunto seguinte fez as mãos de Scarlett ficarem úmidas com suores frios. O seguinte e
todos os outros; virou as páginas rapidamente, cada vez mais alarmada.
- Deixa-o na mesa - disse, quando a criada lhe anunciou o almoço. Quando se sentou à mesa, o
peito de galinha estava imerso em molho coalhado, mas isso não a incomodava.
Estava preocupada demais para comer. O tio Henry tinha razão. Havia pânico, era verdade. O
mundo dos negócios estava numa confusão terrível, mesmo a sucumbir. A bolsa de Nova Iorque
tinha estado fechada durante dez dias depois daquilo a que os repórteres chamaram "Sexta-feira
negra"; os preços das ações despencaram, porque todos estavam vendendo e ninguém comprando.
Na maioria das cidades americanas os bancos estavam fechando porque os clientes queriam o seu
dinheiro e este tinha desaparecido, investido pelos bancos em ações "seguras" que tinham ficado
sem valor. Em zonas industriais, as fábricas tinham fechado à proporção de quase uma por dia,
deixando centenas de trabalhadores sem trabalho e sem dinheiro.
O tio Henry tinha dito que isso não aconteceria em Atlanta, repetiu para si própria. Tinha que
refrear o impulso de ir ao banco e trazer para casa o seu cofre com ouro. Se Rhett não tivesse
comprado quotas do banco, ela o teria feito.
Pensou na tarefa que planejara para a tarde, desejou fervorosamente que isso não lhe tivesse
passado pela cabeça e decidiu que tinha de ser feito. Apesar de o país estar em pânico. Sobretudo
por isso.
Talvez devesse tomar um cálice de brande para acalmar o estômago às voltas. A garrafa estava
mesmo ali, no aparador. O brande também impediria os nervos de lhe saltarem da pele... Não, podia
sentir-se o cheiro no hálito, mesmo que mastigasse salsa ou folhas de mentol em seguida. Respirou
fundo e levantou-se da mesa.
- Corre à cocheira e diz ao Elias que vou sair - ordenou à criada que acorreu ao toque da
campainha.
Tocou a campainha da porta da tia Pittypat, mas ninguém respondeu. Scarlett tinha a certeza
de ter visto mexer uma das cortinas da sala de visitas. Rodou de novo a campainha. Ouviu-se o som
da campainha no átrio por detrás da porta e um abafado som de movimentos. Scarlett tocou de novo.
Tudo ficou em silêncio quando o toque da campainha se calou. Esperou, contando até vinte. Atrás
dela, um cavalo e uma charrete passavam na rua.
"Se alguém me viu aqui especada em frente a uma porta fechada, nunca mais serei capaz de os
olhar na cara sem morrer de vergonha", disse para si. Parecia ter as faces em chama. O tio Henry
estava completamente certo. Ela não seria recebida. Toda a sua vida tinha ouvido falar de pessoas
que eram tão escandalosas que nenhuma pessoa decente lhes abriria a porta, mas na sua imaginação
isso nunca poderia lhe acontecer. Era Scarlett O'Hara Butler, dos Robillards de Savannah. Isto não
podia estar a acontecendo.
"Estou aqui também para fazer o bem", pensou, confusamente magoada. Sentia os olhos
quentes e isso era sinal de lágrimas. Então, como acontecia freqüentemente, foi abalada por uma
torrente de fúria e ultraje. Que se dane! Metade desta casa pertencia-lhe! Como é que alguém se
atrevia a fechar-Ihe a porta na cara?
Bateu com o punho na porta e matraqueou a maçaneta da porta. Mas esta estava seguramente
fechada.
- Sei que estás aí, Índia Wilkes - gritou pelo buraco da fechadura. "Aí está. Espero que tenha
ouvido e fique surda."
"Vim para falar contigo, Índia, e não me vou embora enquanto o não fizer. Vou sentar-me nos
degraus do alpendre até abrires a porta ou até que Ashley volte para casa com a chave, escolhe.
Scarlett virou-se e pegou na cauda das saias. Ouviu o estrondo dos ferrolhos atrás de si,
enquanto se movia e depois o chiar dos gonzos.
- Pelo amor de Deus, entra - suspirou Índia roucamente. - Vais pôr a vizinhança toda a falar de
nós.
Scarlett perscrutou Índia calmamente, por cima do ombro. - Talvez devesses vir cá para fora e
sentares-te nos degraus comigo, Índia. Um mendigo cego pode passar por aqui e casar contigo em
troca de alojamento e comida.
Logo que disse aquilo desejou ter antes mordido a língua. Não tinha vindo para lutar com
Índia. Mas a irmã de Ashley sempre tinha sido como uma pedra no sapato, e a humilhação frente à
porta trancada, agravara-o.
Índia empurrou a porta. Scarlett virou-se e correu para a impedir de se fechar. - Desculpa -
murmurou entre dentes. O seu olhar zangado encontrou o de Índia e esta chegou-se finalmente para
trás.
"Como Rhett teria adorado isto!", pensou Scarlett subitamente. Nos bons tempos do
casamento deles, Scarlett tinha-lhe freqüentemente contado os seus triunfos nos negócios e na vida
social de Atlanta. Isso fazia-o rir alto, durante muito tempo e chamar-lhe a sua "interminável fonte
de prazer". Talvez risse de novo quando lhe contasse como Índia soprava como se fosse um dragão
em retirada.
- Que queres? - A voz de Índia era gelada, apesar de estar tremendo de raiva. - É muito
simpático da tua parte convidares-me a sentar e a tomar uma xícara de
chá - respondeu-lhe Scarlett com suas mais airosas maneiras. - Mas mal acabei de almoçar. - Na
verdade, estava com fome. O prazer da batalha tinha feito o pânico desaparecer. Esperou que o
estômago não fizesse barulho, sentia-o tão vazio como um poço seco.
Índia plantou-se contra a porta da sala de visitas. - A tia Pitty está descansando - disse. "Seria melhor
dizer que está desmaiada", pensou, mas dessa vez refreou a língua. Não estava zangada com a tia
Pittypat. Além do mais, era melhor começar com o que tinha vindo fazer. Queria ir embora antes
que Ashley voltasse.
- Não sei se sabes, Índia, mas Melanie pediu-me, quase a morrer, que prometesse tomar conta
de Beau e Ashley.
O corpo de Índia saltou como se tivesse sido ferido por um tiro. - Não digas uma palavra - avisou
Scarlett -, porque nada do que possas dizer significa alguma coisa perante as praticamente últimas
palavras de Melly.
- Vais arruinar o nome de Ashley como tens arruinado o teu. Não te vou deixar andar por aqui,
atrás dele, trazendo desgraça para todos nós.
- Índia Wilkes, a última coisa que eu quero fazer nesta terra que Deus criou, é passar nesta
casa um minuto mais do que é preciso. Vim dizer-te que preparei as coisas na loja para poderes ir
buscar tudo o que precisares.
- Os Wilkes não aceitam caridade, Scarlett. - Não estou falando de caridade, sua parva. Estou
falando da promessa que fiz a Melanie. Não imaginas com que rapidez um rapaz da idade do Beau
deixa de caber nos calções e nos sapatos. Queres que Ashley tenha que se preocupar com ninharias
dessas quando o seu coração está despedaçado por coisas mais importantes? Ou queres que façam
pouco de Beau na escola?
"Eu sei a quanto montam os rendimentos da tia Pitty. Costumava viver aqui, lembras-te? É
apenas o suficiente para manter o tio Peter e a carruagem, pôr comida na mesa e pagar os sais de
cheiro dela. E, depois, há também uma coisinha chamada "o pânico". Metade dos negócios do país
estão a ir por água abaixo. Provavelmente, Ashley vai ter menos dinheiro que nunca. Se eu posso
engolir o meu orgulho e bater à porta da frente como uma louca, tu também podes engolir o teu e
aceitar o que estou te dando. Não tens o direito de recusar, porque se fosse só por ti, deixava-te
morrer de fome, sem sequer pestanejar. Refiro-me a Beau e Ashley. E a Melly, porque lhe prometi o
que me pediu. "Toma conta de Ashley, mas não o deixes saber disso", disse- me ela. Não posso
impedir que ele o saiba se tu me não ajudares, Índia."
- Como sei que foi isso que Melanie disse? - Porque eu o digo, e a minha palavra vale ouro. Podes
pensar o que quiseres de mim, Índia, mas não encontras ninguém que diga que eu alguma vez
quebrei uma promessa feita ou voltei com a palavra atrás.
Índia hesitou e Scarlett sabia que estava ganhando. - Não precisas ir tu mesma à loja - explicou. -
Podes mandar uma lista por outra pessoa.
Índia suspirou. - Só para as roupas para Beau usar na escola - disse de má vontade. Scarlett
impediu-se de sorrir. Assim que Índia visse como era agradável ter coisas sem pagar por elas,

compraria muito mais que isso. Scarlett estava certa de que assim seria. ​- Agora, despeço-me, Índia.

Mr. Kershaw, o empregado-chefe, é o único que sabe disto,


​ e não vai dar com a língua nos dentes.
Põe o nome dele na parte de fora da tua lista e ele se encarregará do resto.
Quando se reclinou na carruagem, o estômago de Scarlett fez um ruído perfeitamente audível.
Fez um sorriso de orelha a orelha. Graças a Deus, tinha esperado.
De volta a casa, ordenou ao cozinheiro que aquecesse o almoço e a servisse outra vez.
Enquanto esperava ser chamada para a mesa, deu uma vista de olhos às outras páginas dos jornais,
evitando as histórias sobre o pânico. Havia uma coluna em que nunca tinha reparado, mas que agora
a estava fascinando. Continha notícias e mexericos sobre Charleston, e Rhett, a mãe ou a irmã
poderiam ser mencionados.
Não apareciam naquela coluna, mas também não tinha realmente esperado nada. Se
acontecesse alguma coisa interessante em Charleston, Rhett lhe contaria na próxima vez que viesse
para casa. Mostrar-se interessada na família dele e no local onde crescera, seria uma prova de que o
amava, mesmo que ele não acreditasse. "Que freqüência seria suficiente para impedir os
mexericos?", perguntou-se.
Naquela noite, Scarlett não conseguia adormecer. Cada vez que fechava os olhos, via a grande
porta da frente da casa da tia Pitty fechada e trancada à sua frente. "Era coisa de Índia", disse a si
própria. O tio Henry não poderia ter a certeza de que todas as portas de Atlanta se iam fechar contra
ela.
Mas também não pensara que ele estivesse certo quanto ao pânico. E isso até que lera nos
jornais, e descobrira que ainda era pior do que ele tinha dito.
A insônia não era uma coisa estranha para ela; já tinha aprendido antes que dois ou três
brandes a acalmariam e a ajudariam a adormecer. Desceu silenciosamente à sala de jantar e foi até o
aparador. A garrafa de cristal talhado refletia o arco-íris provocado pela luz do candeeiro que tinha
na mão.
Na manhã seguinte dormiu até mais tarde do que era costume. Não por causa do brande, mas
porque mesmo com a sua ajuda não tinha conseguido adormecer até de madrugada. Não conseguia
parar de pensar no que o tio Henry lhe tinha dito.
No caminho para a loja, parou na padaria de Mrs. Merriwether. A empregada atrás do balcão
olhou-a de alto abaixo e fez orelhas moucas quando Scarlett lhe falou.
"Tratou-me como se não existisse", percebeu, horrorizada. Enquanto atravessava o passeio da
loja para a carruagem, viu Mrs. Elsing e a filha aproximarem-se a pé. Scarlett parou, pronta para lhes
sorrir e dizer olá. As duas senhoras Elsing ficaram petrificadas quando a viram. Então, sem uma
palavra e sem voltarem a olhá-la, viraram-se e voltaram para trás. Scarlett ficou paralisada por um
momento. Depois precipitou-se para a carruagem e escondeu o rosto no canto mais escuro. Durante
um horrível momento receou cair desmaiada no chão.
Quando Elias parou a carruagem em frente à loja, Scarlett permaneceu no abrigo que esta
representava. Mandou Elias lá dentro com os sobrescritos com o pagamento para os empregados. Se
dali saísse poderia ver alguém conhecido, alguém que faria de conta que ela não existia. Só de
pensar isso era insuportável.
Índia Wilkes deveria estar por detrás disto. "Depois de ter sido tão generosa com ela! Não vou
deixá-la ir para a frente com isto, não vou! Ninguém me pode tratar desta maneira e ficar impune."
- Vamos para a serraria - ordenou a Elias quando ele voltou. O sol do Outono dava uma
tonalidade dourada e docemente resinosa às pilhas de madeira. Não se via nenhuma carroça, nem
nenhum carregador. Ninguém estava comprando.
Scarlett quis chorar. "O tio Henry disse que isto podia acontecer, mas não pensei que fosse tão
mau. Como podem as pessoas não querer esta bela e limpa madeira?" Inalou profundamente. O
aroma do pinho cortado de fresco era o mais doce perfume do mundo para ela. Como tinha saudades
da sua serraria! Nunca compreenderia como tinha deixado Rhett convencê-la a vendê-la a Ashley.
Se ainda estivesse à frente do
negócio, aquilo nunca teria acontecido. Teria vendido a madeira a alguém, de qualquer maneira. O
pânico tocou a sua mente de leve, mas afastou-o. À sua volta, as coisas estavam muito más, mas não
podia implicar com Ashley. Queria que ele a ajudasse.
- Ó pátio está lindo! - disse alegremente. - Deves ter a serraria trabalhando dia e noite, para
manteres um estoque assim, Ashley.
Ele levantou os olhos dos livros de contas na sua secretária e Scarlett sabia que toda a alegria
do mundo seria desperdiçada com ele. Ele não parecia melhor do que quando lhe tinha dado aquele
sermão.
Ashley levantou-se e tentou sorrir. A sua profunda cortesia era mais forte que a exaustão, mas
o desespero era maior que ambas.
"Não posso dizer-lhe nada sobre Índia, nem sobre o negócio", pensou Scarlett. "O esforço que
faz para respirar é tudo o que pode agüentar. É como se nada mais o segurasse de pé senão as
roupas."
- Scarlett, querida, que simpático da tua parte teres passado aqui. Não queres sentar-te?
"Simpático... é mesmo? Meu Deus, Ashley parece uma caixa de música com coisas delicadas
para dizer. Não, não parece. Parece que não sabe o que lhe sai da boca, acho que isso está mais
próximo da verdade. Por que se deveria ele importar por eu arriscar o que resta da minha reputação
ao vir aqui sem companhia? Não se importa com mais nada a não ser ele próprio, qualquer idiota
pode ver isso, porque haveria de se preocupar comigo? Posso sentar-me e conversar educadamente.
Detesto isto, mas tenho que fazer."
- Obrigada, Ashley - disse ela, sentando-se na cadeira que ele estava segurando. Forçar-se-ia a
ficar quinze minutos fazendo observações alegres e vazias sobre o tempo, contar histórias divertidas
sobre quanto se divertira em Tara. Não lhe podia contar sobre Mammy, iria perturbá-lo demais. O
regresso de Tony, contudo, era diferente. Era uma boa notícia.
Scarlett começou a falar. - Estive em Tara... - Por que me impediste, Scarlett? - perguntou Ashley. A
voz dele era monótona, sem vida, sem uma real interrogação.
Scarlett não sabia o que dizer. - Por que me impediste? - perguntou de novo. Desta vez, com
emoção, raiva, traição, dor. - Eu queria estar no túmulo. Num qualquer, não apenas no de Melanie. É
a única coisa para que sirvo... Não, não digas o que quer que ias dizer, Scarlett. Tenho sido
confortado e animado por tantas pessoas bem intencionadas, que já ouvi isso tudo centenas de vezes.
Esperava de ti mais do que as vulgaridades do costume. Ficaria grato se dissesses o que deves estar
pensando, que eu estou deixando a serraria morrer. O teu negócio, em que investiste todo o teu
coração. Sou um miserável fracassado, Scarlett. Tu sabes. Eu sei. Todo o mundo sabe. Por que é que
todos temos que agir como se não fosse assim? Culpa-me, por que não o fazes? Não podes
certamente encontrar palavras mais duras do que aquelas que digo para mim mesmo, não podes

"ferir os meus sentimentos". Como se eu pudesse sentir mais alguma coisa... ​Ashley abanou a

cabeça, lenta e pesadamente, de um lado para o outro. Era como


​ um animal ferido, derrotado por um
bando de predadores. A sua garganta soltou um soluço desesperado. Voltou-lhe as costas.
- Perdoa-me, Scarlett, te suplico. Não tinha o direito de te afligir com os meus problemas.
Agora tenho a vergonha desta minha explosão para acrescentar a todas as minhas outras vergonhas.
Sê piedosa, minha querida, e deixa-me. Ficaria grato se
fosses embora agora.
Scarlett fugiu sem uma palavra. Mais tarde sentou-se à secretária com todos os registros legais
cuidadosamente empilhados à sua frente. Cumprir a promessa feita a Melly ia ser mais difícil do que
esperara. Roupas e coisas para a casa, não eram sequer suficientes.
Ashley não levantaria um dedo para se ajudar. Teria que o fazer bem sucedido, quer ele
cooperasse ou não. Prometera a Melanie.
Não poderia suportar ver ir-se abaixo o negócio que tinha construído. Scarlett fez uma lista dos seus
bens. A loja, edifício e existências. Dava quase uma centena por mês de lucro, mas isso ia quase
com certeza baixar, quando o pânico chegasse a Atlanta e as pessoas não tivessem dinheiro para
gastar. Fez uma nota para encomendar artigos mais baratos e parar de substituir artigos de luxo,
como largas fitas de veludo.
O saloon no seu lote, perto da estação. Não era realmente seu, alugara a terra e o edifício ao
dono, por trinta dólares por mês.
Quando viessem tempos piores, as pessoas beberiam mais que nunca, talvez aumentasse a
renda. Mais uns quantos dólares a mais por mês não seriam suficientes para afiançar Ashley.
Precisava de muito dinheiro.
O ouro do cofre. Tinha muito dinheiro, mais do que vinte e cinco mil dólares. Era uma mulher
rica, na opinião da maior parte das pessoas. Mas não na sua. Ainda não se sentia segura.
"Podia voltar a comprar o negócio de Ashley", pensou, e, por momentos, a sua mente zuniu
com a excitação, com as possibilidades. Depois suspirou. Isso não resolveria tudo. Ashley era tão
tonto, que insistiria em receber apenas o que receberia no mercado, e isso era quase nada. Depois,
quando ela tornasse o negócio mais próspero, ele se sentiria um fracasso maior que nunca. Não, por
muito que quisesse pôr as mãos na serraria, tinha que fazer que Ashley fosse bem sucedido.
"Não acredito lá muito que não haja mercado para madeira. Com pânico ou sem ele, as
pessoas têm que construir alguma coisa, nem que seja um barracão para uma vaca ou um cavalo."
Scarlett procurou na pilha dos livros de contas. Tinha uma idéia. Lá estava ele, o terreno para
cultivo que Charles Hamilton lhe deixara. As quintas não produziam quase nada. De que lhe serviam
uns cestos de milho e um fardo de mau algodão? A partilha das culturas era um desperdício de boa
terra a não ser que tivesse cerca de mil hectares e uma dúzia de bons agricultores. Mas os seus cem
hectares estavam agora mesmo nos arredores de Atlanta, de tal modo as coisas estavam crescendo.
Se encontrasse um bom construtor, e eles deveriam estar sedentos de trabalho, poderia construir uma
centena de casas pequenas, talvez duzentas. Todos os que estavam perdendo dinheiro teriam que
reduzir os gastos e viver só com o essencial. As suas grandes casas seriam a primeira coisa a ir, e
teriam que encontrar um lugar onde pudessem viver.
"Não vou ganhar dinheiro nenhum, mas pelo menos não perco muito. Vou fazer que o
construtor use apenas madeira de Ashley, e da melhor que ele tem. Ele ganhará dinheiro, não uma
fortuna, mas uma receita certa, e nunca saberá que veio de mim. Posso tratar disso. Tudo o que
preciso é de um construtor que saiba manter a boca calada. E não roube muito."
No dia seguinte, Scarlett foi falar com os agricultores para lhes dizer que deixassem a terra.
7
- Sim, senhora, Mrs. Butler, estou desesperado por trabalho - disse Joe Colleton. O construtor
era um homem baixo e magro, pelos seus quarenta anos; parecia muito mais velho porque o cabelo
espesso era completamente branco, e o rosto estava enrugado devido às longas exposições ao sol e
ao tempo. Tinha a testa franzida e as fundas rugas entre as sobrancelhas escureciam-lhe ainda mais
os olhos já escuros. - Preciso de trabalho, mas não tanto que trabalhe para ti.
Scarlett quase deu meia volta para se ir embora; não era obrigada a engolir insultos de um
pobretão de um branco convencido. Mas precisava de Colleton. Era o único construtor
completamente honesto de Atlanta, aprendera isso quando vendia madeira a todos eles, no período
de expansão da reconstrução, depois da guerra. Apeteceu-lhe bater o pé. A culpa era toda de Melly.
Se não fosse por causa daquela estúpida condição, em que Ashley não podia saber que ela o estava
ajudando, podia ter usado qualquer construtor, pois o observaria como um falcão e seria ela própria
a inspecionar todas as fases do trabalho. E como gostaria de o fazer.
Mas não podia deixar que a vissem. E não podia confiar em ninguém a não ser em Colleton.
Ele tinha que aceitar o trabalho, ela tinha que o convencer. Pôs a mãozinha no braço dele. Parecia
muito delicada, com a luva de pele muito esticada.
- Mr. Colleton, se me disser que não, fico despedaçada... Preciso de alguém muito especial
para me ajudar. - Olhou para ele com um desespero suplicante no olhar. Que pena ele não ser mais
alto. Era difícil fazer de mulherzinha frágil com alguém da nossa altura. Contudo, muitas vezes,
eram estes galos fracotes que eram mais protetores em relação às mulheres. - Se recusar, não sei o
que hei de fazer.
O braço de Colleton enrijeceu. - Mrs. Butler, uma vez vendeu-me madeira verde, depois de me dizer
que estava curada. Não faço negócios duas vezes com alguém que já me enganou uma vez.
- Isso deve ter sido um engano, Mr. Colleton. Eu própria era verde, estava aprendendo o
negócio. Lembra-se como era naquele tempo. Os ianques andavam em cima de nós, sem nos
largarem um minuto. Eu andava sempre aterrorizada. - Os olhos se encheram de lágrimas que não
derramou e os lábios, pintados muito ligeiramente, tremeram. Era uma figurinha perdida. - O meu
marido, Mr. Kennedy, foi morto quando os ianques desmantelaram uma reunião do clã.
O olhar direto e sabedor de Colleton era desconcertante. Os olhos dele estavam ao mesmo
nível que os dela, duros como pedras. Scarlett retirou a mão da manga dele. Que havia de fazer? Não
podia falhar, nisto não. Ele tinha que aceitar o trabalho.
- Fiz uma promessa à minha mais querida amiga no seu leito de morte, Mr. Colleton. - Agora,
as lágrimas eram verdadeiras. - Mrs. Wilkes pediu-me ajuda e agora estou pedindo a ti. - Despejou a
história toda, como Melanie sempre protegera Ashley... A falta de jeito de Ashley para os negócios...
a sua tentativa de se enterrar vivo com a mulher... as pilhas de madeira por vender... a necessidade
de segredo...
Colleton ergueu a mão para a fazer calar. - Pronto, Mrs. Butler. Se é por Mrs. Wilkes, aceito o
trabalho. - Baixou a mão e estendeu-a. - Um aperto de mão, vai ficar com as casas mais bem
construídas e com os melhores materiais.
Scarlett pôs a sua mão na dele. - Obrigada - disse ela. Sentia-se como se tivesse alcançado o maior
triunfo da sua vida.
Já tinham passado algumas horas quando se lembrou que não tencionara usar o melhor de
tudo, só a melhor madeira. A porcaria das casas ia custar uma fortuna e,
ainda por cima, do dinheiro que tanto lhe custara a ganhar. E também não ia ganhar nada com a
ajuda que estava dando a Ashley. Iam todos continuar a bater-lhe com a porta na cara.
"Bem, nem todos. Tenho muitos amigos pessoais, e são muito mais divertidos que a antiquada
gente de Atlanta."
Scarlett empurrou para o lado o esquema que Joe Colleton tinha feito num saco de papel para
ela estudar e aprovar. Ficaria muito mais interessada quando ele lhe desse números do seu
orçamento; que diferença fazia o aspecto das casas ou o local onde ele ia pôr as escadas?
Tirou de uma gaveta o seu livro de endereços, de capa de veludo, e começou a fazer uma lista.
Ia dar uma festa. Uma festa grande, com músicos e rios de champanhe, e quantidades enormes da
comida melhor e mais cara. Agora que acabara o tempo de luto pesado, era hora de dar a conhecer
aos amigos que podia ser convidada para as festas deles, e a melhor maneira de o fazer era
convidá-los para uma festa sua.
Passou rapidamente o olhar pelos nomes das velhas famílias de Atlanta. "Todos eles pensam
que devia pôr luto pesado por Melanie, não vale a pena convidá-los. E também não preciso de me
embrulhar toda em crepes. Ela não era minha irmã, era só minha cunhada e nem sequer tenho
certeza se isso conta, uma vez que Charles Hamilton foi o meu primeiro marido e depois dele já
houve dois."
Scarlett deixou descair os ombros. Charles Hamilton não tinha nada que ver com nada, e o
luto também não. Ela estava de luto por Melanie da forma mais verdadeira de todas; era um peso e
uma preocupação perpétuos no seu coração. Sentia a falta da amiga calma e dedicada, que fora
muito mais importante para ela do que alguma vez se apercebera; sem Melanie, o mundo ficara mais
frio e mais sombrio. E tão solitário. Scarlett só voltara do campo há dois dias, mas nessas duas noites
sentira-se suficientemente sozinha para que o coração se lhe enchesse de medo.
Podia ter contado a Melanie a partida de Rhett; Melanie era a única pessoa em quem podia
confiar no que tocava a um assunto tão vergonhoso. E Melanie também lhe teria dito o que ela
precisava de ouvir: "Claro que ele vai voltar, querida", teria ela dito. "Ele ama-te tanto." Pronunciara
estas mesmas palavras mesmo antes de morrer: "Sê gentil com o capitão Butler, ele ama-te tanto."
Só de pensar nas palavras de Melanie, fez que Scarlett se sentisse melhor. Se Melly disse que
Rhett a amava, então, ele amava-a, não era só ela a desejar que assim fosse. Scarlett sacudiu os
pensamentos tristes, endireitou as costas. Não precisava nada de estar sozinha. E não fazia mal
nenhum que a velha Atlanta nunca mais lhe falasse. Tinha muitos amigos. Então, a lista da festa já ia
em duas páginas e ainda não passara da letra G da agenda.
Os amigos que Scarlett estava pensando receber eram os mais extravagantes e mais bem
sucedidos da horda de oportunistas que descera sobre a Geórgia nos dias do governo de
Reconstrução. Muitos dos primeiros tinham partido quando o governo fora banido em 1871, mas um
grande número ficara, para gozar as suas grandes casas e as fortunas tremendas que tinham feito
apanhando os restos da falecida Confederação. Não estavam nada tentados a ir para "casa". As suas
origens estavam melhor no esquecimento.
Rhett sempre os desprezara. Chamava-lhes "escória" e saía de casa quando Scarlett dava as
suas suntuosas festas. Scarlett pensava que ele era tolo e disse-lhe.
"Os ricos são sempre muito mais divertidos que os pobres. As suas roupas, carruagens e jóias
são melhores, e servem-te melhor comida e bebida quando vais a casa deles."
Mas nada em casa de nenhum dos seus amigos era, nem de perto, tão elegante como o serviço
nas festas de Scarlett. Decidira que esta seria a melhor recepção de todas. Começou a fazer uma
segunda lista com o título "Coisas para recordar", com uma nota para encomendar cisnes de gelo
para as carnes frias e mais dez caixas de champanhe. Um vestido novo, também. Tinha que ir
imediatamente à casa da costureira, depois de deixar a encomenda dos convites na tipografia.

Scarlett inclinou a cabeça para admirar os ondulados folhos brancos da touca à moda de Maria
Stuart. A ponta que caía sobre a testa ficava mesmo muito bem. Realçava o arco negro das suas
sobrancelhas e o verde brilhante dos olhos. O cabelo parecia seda negra, caindo em caracóis de
ambos os lados dos folhos. Quem é que havia de pensar que roupa de luto lhe ficaria tão bem?
Virou-se para um lado e para outro, olhando por cima dos ombros para o seu reflexo no
grande espelho. Os enfeites de contas pretas e borlas sobre o vestido negro brilhavam de um modo
muito satisfatório.
O luto "vulgar" não era horrível como o luto pesado, tinha muito em seu favor, e um vestido
preto decotado deixava ver muita pele, se ela fosse branca como a neve.
Dirigiu-se rapidamente ao toalete e perfumou os ombros e o pescoço. Era melhor apressar-se,
os convidados deviam estar a chegar a qualquer minuto. Podia ouvir os músicos lá em baixo,
afinando os instrumentos. Regalou os olhos na pilha desordenada de espessos cartões brancos que se
viam por entre as suas escovas de cabo de prata e espelhos de mão. Os convites tinham começado a
chegar aos montes, assim que os amigos souberam que ela ia voltar ao convívio social; ia estar
ocupada durante semanas e semanas, nos próximos tempos. E, depois, haveria mais convites, e,
então, ela daria outra recepção. Ou talvez um baile durante a época do Natal. Sim, as coisas iam
ficar mesmo bem. Estava tão excitada como uma rapariga que nunca tivesse ido a uma festa. Bom,
não era para admirar. Já tinham passado mais de sete meses desde que fora a uma.
Sem contar com a festa do regresso de Tony Fontaine. Sorriu, lembrando-se. Querido Tony,
com as suas botas de cano alto e a sela de prata. Gostaria que ele viesse nessa noite à sua festa. As
pessoas ficariam com os olhos esbugalhados se ele fizesse o seu truque de girar os revólveres!
Tinha de ir - os músicos já tocavam afinado, devia ser tarde. Scarlett apressou-se a descer a escada
coberta com uma alcatifa vermelha, franzindo apreciativamente o nariz ao sentir o cheiro das flores
de estufa, que enchiam enormes jarras em todos as salas. Ao andar de sala em sala, verificando se
tudo estava em ordem, os olhos brilhavam-lhe de prazer. Estava tudo perfeito. Graças a Deus, Pansy
regressara de Tara. Ela era muito boa fazendo com que os outros criados fizessem o seu dever, muito
melhor que o novo mordomo, contratado para substituir Pork. Scarlett tirou um copo de champanhe
do tabuleiro que o novo homem lhe estendia. Pelo menos, sabia servir, até tinha um certo estilo, e
Scarlett gostava tanto que as coisas tivessem estilo.
Exatamente nesse momento tocou a campainha da porta. Surpreendeu o criado com o seu
sorriso feliz, e depois dirigiu-se ao hall de entrada para cumprimentar os seus amigos.
Foram chegando numa corrente contínua, durante quase uma hora, e a casa encheu-se com o
som de vozes altas, o intenso cheiro de perfume e pó-de-arroz, as cores brilhantes das sedas e cetins,
rubis e safiras.
Scarlett movia-se por entre a multidão, sorrindo e rindo, namoricando preguiçosamente com
os homens, aceitando os cumprimentos fastidiosos das
mulheres. Estavam tão felizes por a tornarem a ver, tinham sentido tanto a falta dela, ninguém dava
festas tão maravilhosas como ela, ninguém tinha uma casa tão linda, nem vestidos tão elegantes, o
cabelo dela era mais brilhante que o das outras, tinha um corpo mais jovem, uma pele mais perfeita e
mais suave.
"Estou divertindo-me... Uma festa maravilhosa." Deu uma vista de olhos às travessas de prata e
tabuleiros que estavam sobre a longa mesa polida, para ver se os criados os mantinham cheios. Uma
grande quantidade de comida, um excesso de comida, era importante para ela, porque era incapaz de
esquecer completamente o que fora chegar tão perto de morrer de fome, no fim da guerra. O olhar da
sua amiga Mamie Bart cruzou-se com o dela e esta sorriu. Um fio de molho amanteigado de um
pastel de ostra meio comido, que Mamie segurava, escorrera-lhe do canto da boca para o colar de
diamantes que lhe rodeava o pescoço gordo. Scarlett desviou o olhar, enojada. Um destes dias,
Mamie ia ficar gorda que nem um elefante. "Graças a Deus, posso comer tudo o que me apetece que
nunca engordo um quilo."
Sorriu encantadoramente a Harry Connington, marido da sua amiga Sylvia. - Deve ter descoberto
um elixir qualquer, Harry, parece dez anos mais novo do que a última vez que o vi. - Ficou a olhar,
maliciosamente divertida, enquanto Harry encolhia a barriga. O rosto dele ficou vermelho,
levemente roxo, antes de ele desistir do esforço que estava fazendo. Scarlett riu em voz alta e
afastou-se.
Uma explosão de gargalhadas chamou-lhe a atenção e dirigiu-se ao grupo de três homens que
estavam na sua origem. Gostava muito de ouvir uma graça qualquer, mesmo que fosse uma dessas
piadas que as senhoras têm de fingir que não entendem.
- ...por isso, digo para mim próprio, Bill, o pânico de um homem é o lucro de outro, e sei qual
desses homens o velho Bill vai ser.
Scarlett começou a afastar-se. Nessa noite queria divertir-se, e falar do pânico não era a sua
idéia de divertimento. No entanto, talvez aprendesse alguma coisa. Era mais esperta dormindo que
Bill Weller no seu melhor dia, tinha certeza disso. Se ele andava fazendo dinheiro com o pânico, ela
queria saber como. Silenciosamente, aproximou-se mais.
- ... Estes parvos destes sulistas, sempre foram um problema para mim, desde que vim para cá
- confessava Bill. - Que não se consegue fazer nada com um homem que não é naturalmente
ganancioso, portanto, todos os negócios com obrigações do tipo "triplique o seu dinheiro" e
certificados de minas de ouro que espalhei no meio deles deram um resultadão. Eles estavam a
trabalhar mais do que algum preto jamais trabalhou e poupavam todos os tostões que ganhavam para
uma necessidade. Acontece que muitos deles já tinham uma caixa cheia de obrigações e coisas
dessas. Do governo da Confederação. - O riso bombástico de Bill puxou as gargalhadas dos outros
homens.
Scarlett estava furiosa. Com que então "parvos dos sulistas"! Até o seu querido pai tinha uma
caixa cheia de obrigações da Confederação. O mesmo se passava com todas as pessoas de bem do
condado de Clayton. Tentou afastar-se, mas estava encurralada por pessoas atrás dela, que também
tinham sido atraídas pelas gargalhadas do grupo à volta de Bill Weller.
- Passado um tempo, topei o esquema - continuou Weller. - Eles não confiavam muito em
papéis. Nem em mais nada que eu tentasse. Experimentei curandeiros e bruxarias e todos os modos
seguros de fazer dinheiro, mas nenhum deu faísca. Digo- vos, rapazes, fiquei ofendido. - Fez uma
cara lúgubre, depois um grande sorriso, que deixou ver três grandes dentes de ouro. - Não tenho que
vos dizer que eu e Lula íamos
assim como que passar necessidades, se não me surgisse uma idéia qualquer. Nos bons dias gordos,
quando os Republicanos tinham a Geórgia na mão, amontoei o suficiente com aqueles contratos das
estradas-de-ferro que os rapazes me atribuíram, de modo que podíamos ter vivido das economias,
mesmo se eu tivesse sido suficientemente estúpido para ter ido e construir mesmo a estrada-de-ferro.
Mas gosto de ficar por dentro, e Lula estava ficando nervosa por eu passar tanto tempo em casa, uma
vez que não tinha nenhum negócio para tratar. Então, aleluia, lá veio o pânico e os rebeldes todos
tiraram as poupanças do banco e puseram o dinheiro debaixo do colchão. Todas as casas, até mesmo
as barracas, eram uma oportunidade que não podia deixar escapar.
- Pára lá de te gabares, Bill, de que é que te lembraste? Estou a ficar cheio de sede de estar aqui à
espera que pares de te congratulares e vás direito ao assunto. - Amos Bart acentuou a sua
impaciência com uma cuspidela ensaiada que falhou a cuspideira em questão.
Scarlett também se sentia impaciente. Impaciente para sair dali. - Agüenta aí, Amos, já lá vou. Qual
era a maneira de chegar a esses colchões? Não sou do tipo dos pregadores revivalistas. Gosto de
estar sentado à minha secretária e deixar os meus empregados fazer o servicinho. Era isso
exatamente que eu estava a fazer, sentado na minha cadeira de couro giratória, quando olhei pela
janela e vi passar um funeral. Foi como se tivesse sido atingido por um raio. Não há um lar na
Geórgia que não tenha um defunto querido que já lá tivesse vivido.
Scarlett ficou a olhar, horrorizada, para Bill Weller, enquanto ele descrevia a fraude que o
estava a fazer enriquecer ainda mais.
- As mães e as viúvas são as mais fáceis, e há mais do que tudo o resto junto. Nem pestanejam
quando os meus rapazes lhes dizem que os veteranos da Confederação estão a erguer monumentos
em todos os campos de batalha, e esvaziam os colchões em menos de um ai, para pagar, para que o
nome do seu rapaz seja gravado no mármore. - Era pior do que Scarlett podia ter imaginado.
-Ah, Bill, velha raposa, essa é de gênio! - exclamou Amos e os homens do grupo riram ainda
ais alto do que antes. Scarlett sentiu-se com vontade de vomitar. Estradas- de-ferro e minas de ouro
não existentes nunca a tinham preocupado, mas as mães e as viúvas que Bill Weller andava a
enganar eram a sua própria gente. Podia muito bem estar neste momento mandando os seus homens
para Beatrice Tarleton, ou Cathleen Calvert, ou Dimity Munroe, ou para qualquer outra mulher do
condado de Clayton, que tivesse perdido um filho, um irmão ou um marido.
A voz dela atravessou os risos como uma faca. - Essa história é a mais ordinária e mais porca que já
ouvi na minha vida. Metes- me nojo, Bill Weller. Todos vocês me metem nojo. Que é que vocês
sabem sobre os sulistas... sobre gente decente, seja onde for? Nunca tiveram um pensamento decente
ou fizeram qualquer coisa decente em toda a vossa vida! - Com as mãos e os braços estendidos,
abriu caminho através dos espantados homens e mulheres que se tinham juntado à volta de Weller e
depois começou a correr, esfregando as mãos nas saias para limpar a nódoa que era o toque deles.
Na frente dela estava a sala de jantar e os faiscantes pratos de prata cheios de comida refinada;
agoniou-se com o cheiro dos ricos e gordurosos molhos misturado com o das cuspideiras cheias de
escarros. No seu espírito, viu a mesa iluminada em casa dos Fontaines, a refeição simples feita de
presunto e pão caseiros e vegetais criados na horta, o seu lugar era com eles; eles eram a sua gente,
não estas mulheres e estes homens ordinários, porcos e espalhafatosos. Voltou-se para enfrentar
Weller e o grupo dele.
- Escória! - gritou ela - É isso que vocês são. Ralé! Saiam da minha casa, desapareçam da
vista, enojam-me!
Mamie Bart cometeu o erro de a tentar acalmar. - Vá lá, querida... - disse ela, estendendo a mão
cheia de jóias. Scarlett encolheu-se antes de lhe tocarem. - Especialmente você, sua porca gorda. -
Bem, nunca... - A voz de Mamie Bart estremeceu. - ... claro que não vou admitir que me falem deste
modo. Não ficava nem que me pedisses de joelhos, Scarlett Butler. Uma debandada tumultuosa e
irada começou então, e em menos de dez minutos as salas estavam vazias de tudo, com exceção dos
restos. Scarlett passou pelo meio da comida e champanhe entornados, pratos e copos partidos, sem
olhar para o chão. Tinha que manter a cabeça erguida, como a mãe lhe ensinara. Imaginou que
estava de novo em Tara, com um pesado volume dos romances de Waverley equilibrado em cima da
cabeça, e subiu as escadas com as costas tão direitas como uma árvore, o queixo perfeitamente
perpendicular aos ombros.
Como uma senhora. Como a mãe lhe ensinara. A cabeça andava-lhe à roda e tremiam-lhe as
pernas, mas subiu sem parar. Uma senhora nunca mostrava quando estava cansada ou aborrecida.
- Era mais do que tempo de fazer isto, e até mais - disse o cornetista. Aquele conjunto tocara
valsas por detrás das palmeiras em muitas das recepções de Scarlett.
Um dos violinistas cuspiu com pontaria para um dos vasos com palmeiras. - Demasiado tarde, na

minha opinião. Deitas-te com os cães, acordas com pulgas. ​Por cima deles, Scarlett estava deitada de

bruços na sua cama coberta de seda, soluçando


​ como se tivesse quebrado o coração. Pensara que ia
divertir-se tanto.
Mais tarde, nessa noite, quando a casa estava em sossego e na escuridão, Scarlett foi lá abaixo
buscar uma bebida para a ajudar a dormir. Todos os sinais da festa tinham desaparecido, com
exceção dos complicados arranjos florais e das velas meio queimadas nos candelabros de seis braços
sobre a mesa vazia da sala de jantar.
Scarlett acendeu as velas e apagou o seu candeeiro. Por que é que havia de andar por ali meio
às escuras, como se fosse algum ladrão? A casa era sua e podia fazer aquilo que lhe apetecesse.
Escolheu um copo, levou-o para a mesa juntamente com a garrafa e sentou-se na cadeira de
braços na cabeceira da mesa. A mesa também era dela.
O brande espalhou um calor calmante pelo seu corpo e Scarlett suspirou. "Graças a Deus!
Mais outra bebida e os meus nervos devem parar de andar aos saltos como até agora." Encheu
novamente o elegante copo de licor e engoliu o brande de um trago, com um movimento preciso do
punho. "Não é preciso apressar-me", pensou ela, enchendo o copo. "Não é próprio de uma senhora."
Bebericou o terceiro copo. Que bonita estava a luz das velas, lindas chamas douradas que se
refletiam na superfície polida da mesa. O copo vazio também era bonito. Quando o fazia rodar entre
os dedos viam-se arcos-íris nos lados facetados.
Estava tudo sereno como um túmulo. Quando largou o brande, o barulho do vidro batendo no
vidro a fez dar um salto. Isso queria dizer que ela precisava de uma bebida, não era? Ainda estava
nervosa demais para dormir.
As velas estavam no fim e a garrafa esvaziou-se lentamente e o habitual controle que Scarlett
tinha sobre o seu espírito e sobre a sua memória dissipou-se. Fora nesta sala que tudo começara. A
mesa estava vazia, só com as velas em cima e um tabuleiro de prata com a garrafa de brande e
copos. Rhett estava bêbado. Nunca o vira assim tão bêbado, ele agüentava bem a bebida. No entanto,
nessa noite, estava bêbado e
cruel. Disse-lhe coisas tão horríveis, que a feriram tanto, e torceu-Ihe o braço até ela gritar de dor.
Mas depois... depois levou-a no colo até ao quarto e obrigou-a a recebê-lo. Só que ele não
precisava a obrigar a aceitá-lo. Ficou como que renascida quando ele começou a tocar-lhe, a beijá-la
nos lábios, no pescoço, no corpo. O toque dele queimava e gritou por mais, e o seu corpo
arqueou-se, tenso, para ir ao encontro do dele, uma e outra vez...
Não podia ser verdade. Devia ter sonhado aquilo, mas como é que podia ter sonhado tais
coisas quando nem sequer imaginava que existiam?
Nenhuma senhora sentiria jamais o desejo selvagem que ela sentira, nenhuma senhora faria as
coisas que ela fizera. Scarlett tentou empurrar os pensamentos para o canto escuro do seu espírito,
onde guardava o impensável e o insuportável. Mas bebera demais.
"Aconteceu mesmo, gritava o seu coração, aconteceu. Não inventei nada." E o seu espírito, ao qual a
mãe ensinara tão cuidadosamente que as senhoras não tinham impulsos animalescos, não conseguia
controlar as exigências apaixonadas do seu corpo, que ansiava por sentir novamente aquele êxtase e
rendição.
As mãos de Scarlett tocavam os seios doloridos, mas não eram aquelas mãos que o seu corpo
desejava tanto. Deixou cair os braços na mesa e pousou a cabeça neles. E abandonou-se às ondas de
desejo e dor que a faziam retorcer-se, gritando entrecortadamente para a sala vazia e silenciosa,
iluminada pelas velas.
- Rhett, oh, Rhett, preciso de ti.
8
Aproximava-se o Inverno e Scarlett ficava mais nervosa a cada dia que passava. Joe Colleton
cavara o buraco da cave da primeira casa, mas chuvas contínuas tornavam impossível enchê-lo de
cimento para as fundações.
- Mr. Wilkes desconfiaria logo se eu comprasse madeira antes de estar pronto para a usar -
disse ele sensatamente, e Scarlett sabia que ele tinha razão. Mas isso não fazia que a demora se
tornasse menos frustrante.
Talvez toda aquela idéia de construir fosse um erro. Dia após dia, os jornais noticiavam mais
desastres no mundo dos negócios. Agora, havia sopa dos pobres e filas para pão nas grandes cidades
americanas, porque cada vez mais milhares de pessoas perdiam os seus empregos todas as semanas,
quando as companhias iam à falência. Por que estava ela arriscando agora o seu dinheiro, no pior
momento possível? Por que é que fizera aquela tola promessa a Melly? Se ao menos a chuva gelada
parasse...
E os dias também iam parar de ficar mais pequenos. Conseguia manter-se ocupada durante o
dia, mas a escuridão fechava-a na casa vazia, só com os seus pensamentos por companhia. E não
queria pensar, porque não encontrava respostas para nada. Como é que se metera nesta trapalhada?
Nunca fizera nada deliberadamente para voltar as pessoas contra ela, por que é que eram todos tão
odiosos? Por que é que Rhett estava levando tanto tempo para regressar a casa? Que podia ela fazer
para melhorar as coisas? Tinha que haver alguma coisa, não podia continuar para sempre andando
de sala em sala na grande casa, como uma ervilha rebolando numa bacia de metal vazia.
Ficaria contente se Wade e Ella voltassem para casa, para lhe fazerem companhia, mas
Suellen escrevera dizendo que estavam em quarentena, enquanto uma criança após outra passava
pela tortura do comichão causada pela varicela.
Podia voltar a dar-se com os Barts e os amigos deles. Não tinha importância o fato de ter
chamado porca a Mammie, a pele dela era tão espessa como uma parede de tijolo. Uma das razões
por que Scarlett gostara de ter a "ralé" por amigos é que, com eles, podia ser grosseira sempre que
quisesse que eles voltavam sempre de rastos, a pedir mais. "Graças a Deus que não desci tão baixo.
Não vou rastejar até eles, agora que sei como são ordinários."
"Mas é que fica escuro tão cedo. E as noites são tão longas e não consigo dormir como deve
ser. As coisas vão melhorar quando a chuva parar... quando o Inverno acabar... quando Rhett
voltar..."
Por fim, o tempo melhorou e os dias ficaram luminosos e frios, cheios de sol, com farrapos de
nuvens lá no alto de um céu azul e brilhante. Colleton bombeou a água estagnada do buraco que
cavara e o vento áspero secou o barro vermelho da Geórgia, tornando-o duro como tijolo. Mandou
vir cimento e madeira, para fazer as formas de moldar as sapatas.
Scarlett mergulhou numa orgia de presentes. Estavam quase no Natal. Comprou bonecas para
Ella e para cada uma das filhas de Suellen. Bebês para as mais novas, com corpos macios cheios de
serragem e caras rechonchudas feitas de porcelana, bem assim como os pés e as mãos. Susie e Ella
iam ficar com umas senhorinhas quase iguais, com malas de pele bem imaginadas, cheias de lindas
roupas. Wade era um problema; Scarlett nunca sabia o que havia de fazer com ele. Depois,
lembrou-se da promessa de Tony Fontaine de o ensinar a girar os revólveres, e comprou um par para
Wade, com as iniciais dele gravadas na parte de dentro dos punhos de marfim. Suellen era fácil -
uma bolsa de seda enfeitada com pérolas, luxuosa demais para usar
no campo, com uma moeda de ouro de vinte dólares lá dentro, que era boa em qualquer lugar. Will
era impossível. Scarlett procurou por todo o lado antes de desistir e comprou-lhe outro casaco de
pele de carneiro, igual ao que lhe dera no ano anterior e no ano antes desse. "O que conta é a
intenção", disse a si própria com firmeza.
Ponderou durante bastante tempo antes de decidir não dar um presente a Beau. Índia era
pessoa capaz de o devolver sem abrir. Além disso, Beau não tinha falta de nada, pensou
amargamente. A conta dos Wilkes no seu armazém aumentava todas as semanas.
Comprou um corta-charutos de ouro para Rhett, mas não teve coragem para o mandar. Em vez
disso, os presentes que arranjou para as tias de Charleston foram muito mais bonitos que o costume.
Talvez elas dissessem à mãe de Rhett como ela se lembrara delas e Mrs. Butler podia dizer a Rhett.
"Pergunto a mim mesma se ele me vai mandar alguma coisa. Ou trazer-me. Talvez venha
passar o Natal, para calar as más-línguas."
Essa possibilidade era suficientemente credível para lançar Scarlett numa grande agitação,
decorando toda a casa. Quando esta parecia um jardim, cheia de ramos de pinheiro, azevinho e hera,
levou os restos para o armazém.
- Sempre usamos a grinalda de ouropel na montra, Mrs. Butler. Não é preciso mais nada -
disse Willie Kershaw.
- Não me digas o que é e o que não é preciso. Enrola estes cordões de pinho em volta dos
balcões e põe a coroa de azevinho na porta. Fará que as pessoas se sintam com espírito de Natal, e
gastam mais dinheiro em presentes. Não temos coisinhas bonitas para presentes em número
suficiente. Onde está aquela caixa grande de leques de papel encerado?
- Disse-me para a tirar daqui. Disse-me que não devíamos gastar o espaço útil das prateleiras
com ninharias, quando aquilo que as pessoas queriam era pregos e tábuas de lavar.
- Tonto, isso era nessa época, agora é diferente. Vai buscá-la. - Bem, não tenho bem a certeza de
onde a pus. Foi há muito tempo. - Santíssima Mãe de Deus! Vai ver o que é que aquele homem ali
quer. Eu própria a procurarei. - Scarlett entrou de rompante na sala das arrumações, por detrás da
área de vendas.
Estava no topo de uma escada, procurando no meio de pilhas poeirentas, numa das prateleiras
de cima, quando ouviu as vozes familiares de Mrs. Merriwether e da filha Maybelle.

- Pensei que tinha dito que nunca mais ia pôr o pé dentro do armazém de Scarlett, mãe. ​- Chiu,

o empregado pode ouvir-te. Procuramos em todo os locais da cidade e não


​ se consegue encontrar
uma peça de veludo preto. Não posso acabar a minha máscara sem isso.
- Quem é que já ouviu falar na rainha Vitória com uma capa colorida? Scarlett franziu as
sobrancelhas. De que raio estariam falando? Desceu a escada em silêncio e foi na ponta dos pés
encostar o ouvido à parede.
- Não, minha senhora - ouviu dizer o empregado. - Não temos muita procura de veludo.
- Exatamente como esperava. Vamos embora, Maybelle. - Já que aqui estamos, talvez consiga
encontrar as penas que preciso para a minha Pocahontas - dizia Maybelle.
- Que disparate. Vamos lá. Nunca devíamos ter vindo aqui. Supõe que alguém nos viu. - O
passo de Mrs. Merriwether era pesado mas rápido. Bateu com a porta ao
sair.
Scarlett voltou a subir a escada. Todo o espírito de Natal a abandonara. Alguém ia dar um
baile de máscaras e ela não fora convidada. Quem lhe dera que tivesse deixado Ashley partir o
pescoço no túmulo de Melanie! Encontrou a caixa de que andava à procura e atirou-a ao chão, onde
rebentou, espalhando os leques de cores vivas num amplo arco.
- Agora apanha-os e limpa o pó de todos eles! - ordenou. - Vou para casa. - Preferia morrer a
começar a choramingar em frente dos seus próprios empregados.
O jornal do dia estava no banco da carruagem. Estivera tão ocupada com as decorações que
ainda não tivera tempo de o ler. E agora já não lhe interessava muito, mas serviria para tapar o seu
rosto de algum metido que se pusesse a olhar para ela. Scarlett endireitou a dobra do jornal e abriu-o
na página central para ler "A Nossa Carta de Charleston". Só falava da pista de corridas de
Washington, reaberta recentemente e do próximo dia das corridas, em Janeiro. Scarlett leu de
relance as descrições extasiantes das semanas das corridas de antes da guerra, as pretensões do
costume de Charleston em como sempre tinham tido o melhor e o mais elaborado fosse do que fosse
e as previsões de que as próximas corridas iriam igualar as suas predecessoras, ou até suplantá-las.
De acordo com o correspondente, haveria festas durante todo o dia, todos os dias e um baile todas as
noites, durante semanas.

- E Rhett Butler em todas elas, aposto - murmurou Scarlett. Atirou o jornal no chão. ​Um

cabeçalho da primeira página chamou-lhe a atenção. Desfile termina com baile


​ de máscaras. "Devia
ser disto que o velho dragão e Maybelle estavam falando", pensou ela. "Todo mundo vai a festas

maravilhosas, exceto eu." Agarrou outra vez o jornal. ​Pode agora anunciar-se [dizia], uma vez que

os planos e os preparativos já estão prontos,


​ que Atlanta será agraciada no próximo dia 6 de Janeiro
com um desfile que certamente rivalizará com a magnificência da famosa Terça-Feira Gorda de
Nova Orleães. Os "Foliões do Dia de Reis" é um corpo formado recentemente pelas figuras de proa
da nossa cidade, do mundo da sociedade e dos negócios, e os incentivadores deste acontecimento
fabuloso. O rei do desfile reinará em Atlanta, servido por uma corte de nobres. Entrará na cidade e a
atravessará no carro alegórico real, num desfile que se espera venha a ultrapassar um quilômetro de
comprimento. Todos os cidadãos, seus súditos nesse dia, são convidados a ver o desfile e a
maravilharem-se com ele. O horário e o percurso serão anunciados numa posterior edição deste
jornal.
As folias do dia terminarão com um baile de máscaras, para o qual a Ópera DeGives será
transformada num verdadeiro país das Maravilhas. Os foliões distribuíram quase trezentos convites
aos melhores cavaleiros e às mais belas damas de Atlanta.
- Maldição! - disse Scarlett. A desolação tomou conta dela e começou a chorar como uma criança.
Não era justo Rhett andar dançando e rindo em Charleston, e todos os seus inimigos em Atlanta a
divertirem-se, enquanto ela estava enfiada, sozinha, na sua enorme e silenciosa casa. Nunca fizera
nada de tão mau para merecer este tratamento.
"Mas também nunca foste tão mariquinhas para deixares que te façam chorar", disse a si
própria, zangada.
Scarlett limpou as lágrimas com as costas da mão. Não ia chafurdar na tristeza. Ia procurar
aquilo que queria. Ia ao baile, ia arranjar maneira disso.
Arranjar um convite para o baile não era impossível, até nem era difícil; Scarlett descobriu que
o anunciado desfile seria principalmente constituído por carros
decorados, anunciando produtos e lojas. Havia um pagamento para os participantes, é claro, assim
como o custo de decorar o carro alegórico, mas todos os negócios representados no desfile
receberiam dois convites para o baile. Mandou Willie Kershaw com o dinheiro para inscrever
Kennedy's Emporium no desfile.
Isto reforçou a sua crença de que praticamente tudo podia ser comprado. O dinheiro conseguia
tudo.
- Como é que vai decorar o carro, Mrs. Butler?- perguntou Kershaw. A questão abria centenas de
possibilidades. - Vou pensar nisso, Willie. - Bom, ela podia gastar horas e horas, encher imensas
noites, a pensar como é que havia de fazer que todos os outros carros parecessem dignos de dó ao pé
do seu.
Também tinha que pensar no traje de máscara para o baile. Ia levar tanto tempo! Tinha que ver
outra vez todas as suas revistas de moda, tinha que descobrir o que as pessoas iam levar, tinha que
escolher tecidos, marcar as provas, escolher um penteado...
Oh, não! Ainda estava de luto. Certamente, isso não significava que tinha que ir de preto a um
baile de máscaras. Nunca fora a nenhum, não sabia quais eram as regras. Mas a idéia era enganar as
pessoas, não era? Não parecer como era habitual, disfarçar-se. Então, com certeza, que não devia ir
de preto. O baile soava-lhe melhor a cada minuto que passava.
Scarlett despachou rapidamente os seus afazeres no armazém e apressou-se a ir à modista,
Mrs. Marie.
A corpulenta Mrs. Marie, respirando ofegantemente, tirou um molho de alfinetes da boca, para
poder dizer que as senhoras tinham encomendado máscaras de Rosebud, vestido de baile cor-de-rosa
ornamentado com rosas de seda de Branca de Neve, vestido de baile branco ornamentado com
rendas brancas com goma e lantejoulas de Noite, veludo azul-escuro bordado com estrelas prateadas
de Madrugada, saias de seda sobrepostas em dois tons de rosa de Pastora, vestido riscado com um
avental branco ornamentado de rendas brancas ... - Está bem, está bem - disse Scarlett
impacientemente. - Já vi o que é que estão fazendo. Amanhã digo-lhe de que é que vou. Mrs. Marie
atirou as mãos ao ar. - Mas não vou ter tempo de fazer o seu vestido, Mrs. Butler. Com tudo isto tive
de arranjar mais duas costureiras e mesmo assim não vejo como é que vou conseguir acabar tudo a
tempo... Não há maneira nenhuma de poder juntar outra máscara àquelas com que já me
comprometi.
Scarlett ignorou a recusa da mulher com um gesto da mão. Sabia que conseguia forçá-la a
fazer o que queria. O difícil era decidir o que é que havia de ser.
A resposta surgiu-lhe quando estava jogando paciência, enquanto esperava pela hora de jantar.
Espreitou para o baralho das cartas para ver se ia arranjar o rei de que precisava para um espaço
vazio. Não, antes do próximo rei havia duas rainhas. O jogo não ia sair bem.
Uma rainha! Claro! Poderia usar um belíssimo traje, com uma grande cauda enfeitada com
peles brancas. E todas as jóias que quisesse.
Atirou o resto das cartas para cima da mesa e correu pelas escadas acima para ir ver a sua
caixa das jóias. "Porquê, oh, por que é que Rhett fora tão avarento comprando-lhe jóias?"
Comprava-lhe tudo o resto que ela queria, mas as únicas jóias de que gostava eram pérolas. Tirou
fiada após fiada e empilhou-as na cômoda. Ali! Os seus brincos de diamante. Usaria esses com
certeza. E podia usar pérolas no cabelo, bem assim como no pescoço e nos pulsos. Que pena não se
poder arriscar a usar o
seu anel de noivado, de esmeraldas e diamantes. Demasiadas pessoas iriam reconhecê-lo, e se
soubessem quem ela era podiam evitá-la. Contava com o seu traje e com a máscara do rosto para a
proteger de Mrs. Merriwether, de Índia Wilkes e das outras mulheres. Tencionava divertir-se, dançar
todas as danças e tomar novamente parte nas coisas.
A 5 de Janeiro, o dia antes do desfile, Atlanta em peso estava de gala, com as preparações. O
gabinete do presidente da Câmara tinha ordenado que todas as lojas fechassem no dia 6 e que todos
os edifícios no percurso da parada fossem decorados de vermelho e branco, as cores de Rex, rei do
desfile.
Scarlett pensou que era um desperdício fechar o armazém num dia em que a cidade ia estar
cheia de pessoas do campo, que viriam para as celebrações. Mas pendurou grandes rosáceas de fitas
na fachada da loja e na vedação de ferro em frente à sua casa e, exatamente como todo mundo,
esbugalhou os olhos perante a transformação de Whitehall e Marietta Street. Estandartes e bandeiras
cobriam todos os postes de iluminação e fachadas das casas, formando um verdadeiro túnel de

alegre e esvoaçante vermelho e branco para a estirada final do desfile de Rex até ao trono. ​"Devia ter

ido buscar Wade e Ella em Tara para o desfile", pensou ela. "Mas, provavelmente,
​ ainda devem estar
fracos da varicela", acrescentou o seu espírito rapidamente. "E não tenho bilhetes do baile para
Suellen e Will. Além disso, mandei- lhes montes de presentes de Natal."
A chuva incessante no dia do desfile acalmou qualquer vestígio de remorso por causa das
crianças. De qualquer modo, não poderiam ter estado de pé à chuva e ao frio para ver a parada.
Mas ela podia. Embrulhou-se num xale quente e ficou de pé, em cima de um banco de pedra,
perto do portão, protegida por um grande guarda-chuva, e com uma boa visão por cima das cabeças
e sombrinhas dos espectadores, que ocupavam o passeio do lado de fora.
Como prometido, o desfile tinha mais de um quilômetro de comprimento. Era um espetáculo
corajoso e triste. A chuva tinha arruinado completamente os trajes de tipo súdito medieval. Escorria
tinta encarnada, as plumas de avestruz tombaram, chapéus de veludo, outrora vistosos, abatiam-se
sobre os rostos como alfaces murchas. Os arautos e pajens que marchavam na frente pareciam
encharcados e com frio, mas cheios de determinação; os cavaleiros lutavam, os rostos rígidos, com
os seus cavalos salpicados, tentando avançar por entre a lama escorregadia e traiçoeira. Scarlett
juntou-se ao aplauso da multidão para o conde Marshal. Era o tio Henry Hamilton, que parecia ser o
único que estava se divertindo. Arrastava-se pela lama, descalço, levando os sapatos numa mão e o
chapéu sujo na outra, acenando à multidão, primeiro com uma mão e depois com a outra, sorrindo
de orelha a orelha.
Ela própria sorriu quando as damas da corte passaram lentamente por ali, em carruagens
abertas. As líderes da sociedade de Atlanta usavam máscaras, mas nos seus rostos via-se claramente
uma infelicidade estóica. A Pocahontas de Maybelle Merriwether exibia umas penas desfeitas no
cabelo que pingava água pela cara e pelo pescoço abaixo. Mrs. Elsing e Mrs. Whiting
reconheciam-se facilmente, tremendo e encharcadas, mascaradas de Betsy Ross e Florence
Nightingale. Mrs Meade, espirrando, era a representação dos Bons Velhos Tempos, com um montão
de saias em arco de tafetá molhado. Só Mrs. Merriwether não fora afetada pela chuva. A rainha
Vitória segurava um grande guarda-chuva preto sobre a sua seca cabeça real. A sua capa de veludo
não tinha uma única mancha.
Quando as senhoras passaram houve um grande hiato e os espectadores
começaram a ir embora. Mas, nesse momento, ouviu-se o distante som de Dixie. Em pouco tempo, a
multidão dava vivas até ficar rouca e assim continuou até a banda passar por eles, quando todos
ficaram em silêncio.
Era uma banda pequena, só dois tambores e dois homens a tocarem apitos e um homem que
tocava um cornetim, com um timbre alto e doce. Mas estavam vestidos de cinzento, com faixas
douradas e brilhantes botões amarelos. E, na frente deles, um homem só com um braço segurava na
bandeira da Confederação com a mão que lhe restava. A Stars and Bars estava honradamente gasta e
desfeita e desfilava novamente por Peachtree Street. Um nó de emoção dominava todas as gargantas,
impedindo-as de dar vivas.
Scarlett sentiu lágrimas no rosto, mas não eram lágrimas de derrota, eram lágrimas de orgulho.
Os homens de Sherman tinham queimado Atlanta, os ianques tinham pilhado a Geórgia, mas não
tinham conseguido destruir o Sul. Viu lágrimas como as suas nos rostos das mulheres e dos homens
que estavam à sua frente. Todos tinham baixado os chapéus para honrar a bandeira de pé, com a
cabeça descoberta.
Permaneceram ali, ao frio e à chuva, aprumados e orgulhosos, durante muito tempo. À banda,
seguia-se uma coluna de veteranos da Confederação, usando os uniformes de guerra, tecidos à mão,
com que tinham regressado ao lar. Marcharam ao som de Dixie como se fossem novamente jovens,
e os sulistas encharcados que os viam passar, encontraram voz para os saudar e assobiar, e deixar
sair o arrepiante e crescente grito que era o Grito do Rebelde.
Os vivas duraram até os veteranos terem desaparecido. Depois, os guarda- chuvas foram
erguidos e as pessoas começaram a ir embora. Tinham-se esquecido de Rex e do dia de Reis. O
ponto alto da parada viera e passara, deixando-os molhados e gelados mas exaltados.
- Maravilhoso! - ouviu Scarlett de dúzias de bocas sorridentes, enquanto as pessoas passavam
pelo seu portão.
-O desfile ainda não acabou - disse ela para alguns deles. - Não pode ser melhor que Dixie, pois
não? - retorquiam eles. Ela abanava a cabeça. Até ela não estava interessada em ver os carros
alegóricos e trabalhara muito no seu. Também gastara muito dinheiro, em papel de crepe e
lantejoulas que a chuva estragara com certeza. Pelo menos, agora, podia sentar-se para ficar vendo e
isso já era alguma coisa. Não queria ficar toda cansada quando nessa noite havia o baile de
máscaras.
Dez longuíssimos minutos passaram antes de aparecer o primeiro carro. Scarlett percebeu
porquê quando este se aproximou. As rodas da carroça ficavam enterradas na lama barrenta e
remexida da rua a todo o momento. Suspirou e embrulhou-se mais no xale. "Parece que tenho muito
que esperar."
Levou mais de uma hora até todos os carros alegóricos terem passado por ela; antes do fim, já
os seus dentes batiam de frio. Mas, pelo menos, o seu era o melhor. As alegres flores de papel que
decoravam os lados do carro estavam encharcadas mas permaneciam bonitas. E Kenned's
Emporium, pintado com tinta dourada-cintilante brilhava visivelmente através das gotas de chuva
que se agarravam à tinta. Sabia bem que os grandes barris, com etiquetas que diziam "farinha",
"açúcar", "cereal", "melaço", "café", "sal" estavam vazios, por isso, não havia prejuízos. E as bacias
e tábuas de lavar de folha de flandres não iam enferrujar. De qualquer modo, as chaleiras de ferro já
estavam estragadas; ela colara flores de papel nas amolgadelas. O único prejuízo verdadeiro eram as
ferramentas de cabo de madeira. Até os tecidos que enrolara tão artisticamente sobre um pedaço de
arame de galinheiro podiam ser aproveitados para a caixa das pechinchas.
Se ao menos as pessoas tivessem esperado para ver o seu carro, tinha certeza de que teriam
ficado impressionadas.
Curvou os ombros e fez uma careta ao último carro. Estava rodeado por dúzias de crianças que
gritavam e pulavam. Um homem com uma máscara de elfo de diversas cores atirava rebuçados para
a esquerda e para a direita. Scarlett olhou para o nome no cartaz por cima da cabeça dele. Rich's.
Willie estava sempre falando deste novo armazém de Five Points. Estava preocupado porque lá os
preços eram mais baixos e Kennedy estava perdendo alguns clientes. "Disparates", pensou Scarlett
com desprezo. "Rich's não vai ficar aberto o tempo suficiente para me prejudicar. Baixar os preços e
deitar fora mercadoria não é maneira de ter sucesso nos negócios. Estou contentíssima por ter visto
isto. Agora posso dizer a Willie Kershaw para não ser tão parvo."
Ainda ficou mais contente ao ver o carro grand finale atrás do de Rich's. Era o trono de Rex.
Havia uma abertura na cobertura às riscas brancas e vermelhas que o encimava, e a água caía sem
parar na cabeça coroada de dourado e nos ombros com chumaços de algodão, enfeitados com pele
do Dr. Meade. Este tinha um aspecto infelicíssimo.
- Espero que apanhe uma pneumonia dupla e morra! - disse Scarlett por entre dentes. Depois
correu para dentro de casa para tomar um banho quente.
Scarlett ia mascarada de rainha de copas. Teria preferido ser a rainha de ouros, com uma coroa
de papel brilhante, colarinho alto e broches. No entanto, assim não podia usar as suas pérolas, que o
joalheiro lhe tinha dito serem "dignas da própria rainha". E, além disso, encontrara umas boas
imitações de rubis, grandes, para coser a toda a volta do grande decote do seu vestido de veludo
vermelho. Era tão bom vestir uma coisa de cor!
A cauda do vestido estava orlada com raposa branca. Ficaria estragada antes de o baile acabar,
mas não fazia mal; tinha um aspecto elegante, quando a pendurasse no braço para dançar. Tinha uma
misteriosa máscara de cetim vermelho para os olhos, que lhe cobria o rosto até à ponta do nariz, e
pintara os lábios de vermelho, para condizer. Sentia-se muito ousada e bastante segura. Nessa noite
podia dançar até lhe apetecer sem ninguém saber quem ela era, para a poderem insultar. Que idéia
maravilhosa era esta do baile de máscaras!
Mesmo com a máscara posta, Scarlett sentia-se nervosa por entrar na sala de baile sem ir
acompanhada, mas não valia a pena. Quando saiu da carruagem, ia entrar no hall viu grande grupo
de foliões mascarados e ela juntou-se a eles, sem que ninguém comentasse o fato. Uma vez lá
dentro, olhou à sua volta, espantada. A Ópera DeGives fora de tal modo transformada que estava
quase irreconhecível. O belo teatro era agora um verdadeiro e convincente palácio de rei.
Fora construída uma área para dançar sobre a metade inferior do auditório, fazendo que o
grande palco aumentasse, parecendo agora uma sala de baile gigantesca. Ao fundo, o Dr. Meade,
representando Rex, estava sentado no trono, ladeado por súbditos de uniforme, incluindo um porta
Taça Real. No centro da platéia via-se a maior orquestra que Scarlett jamais contemplara, e no
recinto havia multidões de dançarinos, de gente que olhava e de outros que andavam por ali. Havia
um sentimento tangível de alegria esfuziante, um atrevimento que provinha do anonimato dado pelas
máscaras e disfarces. Assim que entrou na sala, um homem vestido de chinês, com um longo rabo de
cavalo, pôs um braço sedoso à volta da sua cintura e levou-a, volteando, para o recinto da dança.
Podia ser um desconhecido total. Era perigoso e excitante.
A música era uma valsa e o seu par um dançarino estonteante. Enquanto rodopiavam, Scarlett
via de relance máscaras de hindus, palhaços, arlequins,
pierrettes, freiras, ursos, piratas, ninfas e cardeais, todos a dançarem tão loucamente como ela.
Quando a música parou estava sem fôlego.
- Maravilhoso! - ofegou ela. - É uma maravilha. Tanta gente. Deve estar aqui a Geórgia em
peso a dançar.
- Não exatamente - disse o seu par. - Alguns não tiveram convites. - Fez um sinal lá para cima
com o polegar. Scarlett viu que as galerias estavam cheias de gente vestida normalmente. Alguns
não eram assim tão comuns. Mamie Bart estava lá, com os diamantes todos, rodeada por outros da
"ralé". "Que bom eu não ter voltado a dar- me com aquele bando. São demasiado ordinários para
serem convidados para onde quer que seja." Scarlett conseguira esquecer a origem do seu convite.
O fato de haver um público fazia que o baile parecesse ainda mais desejável. Atirou a cabeça
para trás e riu. Os seus brincos de diamantes faiscaram; podia vê-los refletidos nos olhos do
mandarim, através dos buracos da máscara.
Nesse momento, ele desapareceu. Foi afastado por um monge com o capuz puxado para a
frente para tapar o rosto mascarado. Sem uma palavra, pegou a mão de Scarlett e rodeou-lhe a
cintura com o braço, no momento em que a orquestra começava a tocar uma alegre polca.
Dançou como já não dançava há anos. Sentia-se tonta, contagiada pela loucura excitante da
mascarada, intoxicada pela estranheza de tudo aquilo, pelo champanhe oferecido em tabuleiros de
prata por pajens vestidos de cetim, pelo prazer de estar novamente numa festa, pelo seu
inquestionável sucesso. Estava sendo um sucesso e acreditava ser desconhecida, invulnerável.
Reconheceu as viúvas da velha guarda. Traziam as mesmas máscaras que tinham usado no
desfile. Ashley estava mascarado, mas ela reconheceu-o assim que o viu. Usava uma faixa à volta da
manga do seu traje de arlequim branco e preto, "Índia devia tê-lo arrastado para aqui, de modo a ter
uma escolta", pensou Scarlett. "Que maldade da parte dela. Claro que ela não se importa se é
maldade ou não, desde que não fique mal, e um homem de luto não precisa se abster de sair do
mesmo modo que uma mulher. Pode pôr uma faixa no seu melhor traje e começar a cortejar a sua
próxima amada, antes de a mulher ter tido tempo de esfriar no caixão. Mas qualquer um pode ver
que o pobre Ashley detesta estar aqui. Vejam só a maneira como está todo curvado, metido na
fantasia. Bem, não te rales, querido. Vai haver muitas mais casas como aquela que Joe Colleton está
construindo. Vinda a Primavera, vais estar tão atarefado fazendo entregas de madeira que não terás
tempo para estar triste."
À medida que a noite ia andando, o espírito de mascarada acentuou-se ainda mais. Alguns dos
admiradores de Scarlett perguntaram-lhe o nome; um até tentou levantar-lhe a máscara. Evitou-os a
todos sem problemas. "Não me esqueci de como é que se tratam rapazes atrevidos", pensou ela,
sorrindo. "E não passam de rapazes, tenham a idade que tiverem. Até estão a espreitar pelos cantos,
à procura de algo um pouco mais forte que champanhe. Daqui a pouco, começam a lançar o Grito do
Rebelde."
- De que é que está rindo, minha rainha misteriosa? - perguntou o corpulento cavaleiro que
parecia estar fazendo o possível por lhe pisar os pés enquanto dançavam.
- Ora, de si, é claro - respondeu Scarlett, sorrindo. Não, não se esquecera de nada. ​Quando o

cavaleiro lhe largou a mão em favor do ansioso mandarim, que estava de


​ volta pela terceira vez,
Scarlett implorou graciosamente uma cadeira e um copo de champanhe. O cavaleiro tinha-a
machucado muito num dos dedos do pé.
Mas quando a sua escolta a conduzia para a sala de estar, ao lado, declarou
subitamente que a orquestra estava tocando a sua música preferida e não podia deixar de dançar.
Vira a tia Pittypat e Mrs. Elsing no seu caminho. Será que elas a tinham reconhecido?
Uma mistura de raiva e medo enfraqueceu o sentimento de feliz excitação que a dominava.
Estava dolorosamente consciente do seu pé machucado e do hálito a uísque do mandarim.
"Agora não vou pensar nisso, nem em Mrs. Elsing, nem no meu pé machucado. Não vou
deixar que nada estrague o meu divertimento." Tentou empurrar esses pensamentos e entregar-se ao
prazer da festa.
Mas, contra a sua vontade, os seus olhos olhavam muitas vezes para as partes laterais da sala
de baile e para os homens e mulheres que aí estavam, uns de pé, outros sentados.
Tocaram de leve num pirata, alto e barbudo, que estava encostado a uma porta e que lhe fez
uma vênia. Scarlett suspendeu a respiração. Voltou a cabeça para olhar novamente. Havia qualquer
coisa... um ar insolente...
O pirata usava uma camisa branca de cerimônia e calças escuras. Não se podia dizer que fosse
uma fantasia, com exceção da larga faixa de seda vermelha que lhe rodeava a cintura, com duas
pistolas lá enfiadas. E laços azuis atados às pontas da espessa barba. No rosto usava uma simples
máscara preta, que lhe tapava os olhos. Não era ninguém que ela conhecesse, pois não? Tão poucos
homens usavam barbas espessas naquela altura. No entanto, o seu porte... E o modo como parecia
olhá-la, como se atravessasse a máscara.
Quando Scarlett olhou para ele pela terceira vez, ele sorriu, com os dentes muito brancos
contrastando com a barba escura e a pele morena. Scarlett sentiu-se enfraquecer. Era Rhett.
Não podia ser... devia estar a imaginar coisas... Não, não estava; não se sentiria assim se fosse
outra pessoa. Então não era mesmo dele? Aparecer num baile para o qual a maioria das pessoas não
conseguiu ser convidada. Rhett conseguia tudo!
- Desculpe-me, tenho de ir. Não, de verdade, estou falando a sério. - Afastou-se do mandarim
e correu para o pirata.
Rhett fez outra vênia. - Edward Teach, ao seu serviço, minha senhora. - Quem? - "Pensaria ele que
ela não o reconhecera?" - Edward Teach, normalmente conhecido por Barba Negra, o maior vilão
que alguma vez cruzou as águas do Atlântico. - Rhett puxou um caracol da barba, enfeitado com um
laço.
O coração de Scarlett deu um pulo. "Ele está divertindo-se", pensou ela, " fazendo daquelas
partidas dele que sabe que eu quase nunca compreendo. Exatamente como era seu costume antes
de... das coisas ficarem mal. Agora não posso fazer asneira. Não posso. Que teria eu dito dantes,
quando ainda não o amava tanto?"
- Surpreende-me que tenhas vindo a um baile em Atlanta quando há tantos acontecimentos
importantes na tua querida Charleston - disse ela.
Aí estava. Era mesmo isso. Não era precisamente mauzinho, mas também não era muito
amoroso.
As sobrancelhas de Rhett elevaram-se num arco negro por cima da máscara e Scarlett
suspendeu a respiração. Ele fazia sempre aquilo quando estava divertido. Ela estava agindo mesmo
bem.
- Como é que estás tão bem informada sobre a vida social de Charleston, Scarlett?
- Leio o jornal. Uma tonta qualquer não se cansa de falar de uma corrida de cavalos qualquer.

Maldita barba. Pensou que ele estava a sorrir, mas não conseguia ver-lhe os lábios. ​- Eu

também leio os jornais - disse Rhett. - Até mesmo em Charleston, quando uma
​ cidade de província
nova-rica como Atlanta decide fingir que é Nova Orleães, isso é notícia.
Nova Orleães. Ele levara-a lá na lua-de-mel. "Leva-me lá outra vez", apetecia-lhe dizer.
"Começamos de novo e tudo será diferente." Mas não podia dizer isso. Ainda não. O seu espírito
saltava rapidamente de recordação em recordação. Estreitas ruas calcetadas, salas de teto alto,
sombrias, com grandes espelhos com feias molduras douradas, comidas estranhas e maravilhosas...
- Admito que as bebidas não são tão chiques - disse ela de má vontade. Rhett deu uma gargalhada. -
Uma grande meia verdade. "Estou a fazê-lo rir. Há séculos que não o ouvia rir... há tempo demais.
Deve ter visto os homens fazerem fila para dançar comigo."
- Como é que soubeste que era eu?- perguntou ela. - Tenho uma máscara. - Só precisei de procurar a
mulher vestida mais ostensivamente, Scarlett. Com certeza que eras tu.
- Oh, grande... patife. - Esqueceu-se de que estava tentando diverti-lo. - Não estás lá muito
bonito, Rhett Butler, com essa barba horrível. Mais valia teres enfiado uma pele de urso pela cabeça
abaixo.
- Foi o disfarce mais completo de que me consegui lembrar. Há um certo número de pessoas
em Atlanta que não desejo nada que me reconheça facilmente.
- Então por que é que vieste? Suponho que não foi só para me insultar. - Prometi-te que me deixaria
ver o suficiente para calar as más-línguas, Scarlett. Esta era a ocasião perfeita.
- De que é que serve um baile de máscaras? Ninguém sabe quem é quem. - À meia-noite tiram-se as
máscaras. Ou seja, daqui a quatro minutos. Dançamos uma valsa para todos verem e depois saímos.
- Rhett tomou-a nos braços e Scarlett esqueceu a sua fúria, esqueceu o perigo de tirar a máscara
perante os seus inimigos, esqueceu o mundo. Nada mais importava senão o fato de ele estar ali,
abraçando-a.
Scarlett ficou acordada quase toda a noite, tentando compreender o que acontecera. No baile,
tudo se passara lindamente... "Quando soou a meia-noite, o Dr. Meade disse que toda a gente devia
tirar as máscaras e Rhett ria quando arrancou também a barba. Era capaz de jurar que estava se
divertindo. Fez uma espécie de saudação ao doutor e uma vênia a Mrs. Meade e depois arrastou-me
dali para fora sem mais nada. Nem sequer se deu conta do modo como me viravam as costas, pelo
menos não o deu a entender. Tinha um sorriso de orelha a orelha."
"E na carruagem, a caminho de casa, estava demasiado escuro para lhe ver a cara, mas a voz
soava bem. Eu não sabia o que dizer, mas mal tive tempo de pensar nisso. Perguntou como iam as
coisas em Tara e se o seu advogado pagava as minhas contas, e quando eu acabei de responder,
estávamos em casa. Foi quando a coisa aconteceu. Ele estava aqui, ao fundo das escadas, no hall.
Então, limitou-se a dizer boa noite, que estava cansado e foi para o seu quarto de vestir."
"Não foi odioso ou frio, só disse boa noite e subiu as escadas. Que significa isto? Por que é
que se deu ao trabalho de fazer todo este caminho? Não foi só para vir a uma festa, quando em
Charleston estão na época das festas. Também não foi por ser
um baile de máscaras, podia ir ao de Terça-Feira Gorda se quisesse. No fim de contas, tem muitos
amigos em Nova Orleães."
"Disse que era para 'calar as más-línguas'. Uma ova. Foi ele que causou tudo, ao tirar aquela
porcaria da barba do modo como o fez."
Voltou ao princípio, revendo a noite uma e outra vez, até lhe doer a cabeça. O sono, quando
chegou, foi breve e inquieto. Contudo, acordou a tempo de descer para o café com o roupão que lhe
ficava melhor. Hoje não queria que lhe trouxessem nenhuma bandeja. Rhett tomava sempre o
café-da-manhã na sala de jantar.
- De pé tão cedo, minha querida? - disse ele. - Que amável da tua parte. Assim, não preciso
escrever um bilhete de despedida. - Atirou o guardanapo para cima da mesa. - Fiz uma mala com
algumas coisas de que Pork se esquecera. Passarei para buscá-la mais tarde, quando for apanhar o
trem.
"Não me deixes", implorava o coração de Scarlett. Desviou o olhar, não fosse ele ver a súplica
nos seus olhos.
- Pelo amor de Deus, acaba o café, Rhett - disse ela. - Não vou fazer uma cena. - Dirigiu-se ao
aparador e serviu-se de café, observando-o pelo espelho. Tinha que ficar calma. Então, talvez ele
ficasse.
Ele estava de pé, com o relógio aberto na mão. - Não tenho tempo - disse. - Tenho que ver algumas
pessoas enquanto aqui estou. Vou estar muito ocupado até ao Verão, por isso, vou espalhar a notícia
de que vou para a América do Sul em negócios. Ninguém se vai pôr a falar devido a uma tão longa
ausência. A maior parte das pessoas de Atlanta nem sequer sabe onde é que fica a América do Sul.
Sabes, minha querida, estou cumprindo a minha promessa de preservar a pureza da tua reputação. -
Rhett sorriu maldosamente, fechou o relógio e enfiou-o no bolso. - Adeus, Scarlett.
- Por que é que não vais para a América do Sul e te perdes lá para sempre? Quando a porta se fechou
atrás dele, a mão de Scarlett estendeu-se para a garrafa de brande. Por que é que dissera aquilo? Não
era nada assim que sentia. Ele sempre lhe fizera aquilo, levava-a a dizer coisas que ela não queria, já
devia saber o suficiente para não se deixar levar assim. "Mas ele não me devia ter insultado com
aquilo da minha reputação. Como é que ele terá descoberto que sou uma proscrita?" Nunca se
sentira tão infeliz em toda a sua vida.
9
Mais tarde, Scarlett ficou com vergonha de si própria. Beber de manhã! Só os bêbedos da rua
faziam tal coisa. Disse a si própria que, na verdade, as coisas não estavam assim tão mal. Pelo
menos, agora sabia quando Rhett ia voltar. Ainda faltava muito tempo, mas era uma coisa certa.
Agora já não ia perder tempo imaginando que talvez naquele dia... ou no dia seguinte... ou no
outro...
Fevereiro começou com um tempo quente, pouco habitual, que encorajou as folhas novas das
árvores, e encheu o ar com o cheiro da terra a despertar.
- Abram as janelas todas - disse Scarlett aos criados - para deixar sair o mofo. - A brisa que lhe
levantava as madeixas soltas da testa era deliciosa. De repente, sentiu umas saudades terríveis de
Tara. Lá, com o vento carregado de Primavera, trazendo o cheiro da terra morna para dentro do
quarto, seria capaz de dormir.
"Mas não posso ir. Colleton vai poder começar pelo menos mais três casas, assim que este
tempo amolecer a geada que cobre a terra. Mas só o fará se eu insistir com ele. Nunca conheci um
homem tão exigente em toda a minha vida. Tudo tem de estar perfeito... capaz de esperar até a terra
estar suficientemente quente para cavar até à China sem encontrar geada.
"E se fosse só por uns dias? Uns dias não fariam muita diferença, não é?" Scarlett lembrou-se
da palidez de Ashley e dos seus ombros curvados no Baile de Carnaval e soltou uma exclamação de
desapontamento.
Se fosse para Tara, não seria capaz de se descontrair. Mandou Pansy com um recado para Elias, para
lhe trazer a carruagem. Tinha que ir à procura de Joe Colleton.
Nessa noite, como se fosse uma recompensa por ter cumprido o seu dever, a campainha da
porta tocou logo a seguir ao anoitecer.
- Scarlett, querida - chamou Tony Fontaine quando o mordomo o mandou entrar -, um velho
amigo precisa de um quarto para passar a noite. Tens piedade dele?
- Tony! - Scarlett correu da sala de estar para o abraçar. Ele pousou a bagagem e abriu os
braços para lhe dar um abraço.
- Deus Todo-Poderoso, Scarlett, tens tratado bem de ti - disse ele. - Quando vi este casarão
pensei que um doido qualquer me tinha ensinado o caminho de um hotel, - Olhou para o lustre cheio
de ornamentos, para o papel de parede aveludado, para os enormes espelhos dourados da entrada, e
depois sorriu para ela. - Não admira que tenhas casado com aquele tipo de Charleston em vez de
esperares por mim. Onde está Rhett? Gostaria de conhecer o homem que roubou a minha rapariga.
Uma sensação de medo, quais dedos gelados, percorreu a espinha de Scarlett. Será que Suellen
disse alguma coisa aos Fontaine?
- Rhett está na América do Sul - disse ela com vivacidade. - Imagina que coisa. Santo Deus,
pensava que só os missionários iam para locais tão distantes.
Tony riu. - Eu também. Lamento não o ver, mas ainda bem para mim. Tenho-te toda só para mim. E
que tal uma bebida para um homem cheio de sede?
Tinha certeza de que ele não sabia que Rhett a deixara. - Acho que uma visita tua exige uma garrafa
de champanhe. Tony respondeu que gostaria muito de champanhe mais tarde, mas, naquele
momento, apetecia-lhe um bom e velho uísque e um banho. Tinha certeza de que ainda cheirava a
estrume de vaca.
Scarlett preparou-lhe a bebida e depois mandou-o para cima, acompanhado pelo mordomo,
para um dos quartos de hóspedes que tinha vagos. Graças a Deus que os
criados viviam lá em casa; não haveria escândalo em Tony ficar o tempo que lhe apetecesse. E teria
um amigo com quem falar. Beberam champanhe ao jantar e Scarlett pôs as suas pérolas. Tony
comeu quatro grandes fatias do bolo de chocolate que a cozinheira tinha feito às pressa para a
sobremesa.
- Diz-lhes que embrulhem o que sobrar, para eu levar - implorou ele. - A única coisa de que
morro de saudades é deste bolo, com uma cobertura assim grossa. Fui sempre um guloso.
Scarlett riu e mandou o recado para a cozinha. - Estás falando mal de Sally, Tony? Ela não
sabe fazer coisinhas boas?
- Sally? Por que pensas isso? Todas as noites faz uma sobremesa ótima, só para mim. Alex
não tem destas fraquezas. Scarlett ficou admirada.
- Queres dizer que não sabias? - disse Tony. - Calculei que Suellen te tivesse escrito para
contar. Vou voltar para o Texas, Scarlett, decidi-me por volta do Natal.
Falaram durante horas. A princípio, ela implorou-lhe que ficasse, até que o embaraço desajeitado de
Tony se transformou numa das célebres fúrias dos Fontaines. - Caramba, Scarlett, cale-se! Eu tentei,
Deus sabe como tentei, mas não consigo. Por isso, é melhor parares de me aborrecer.
A sua voz alta fez que os prismas do lustre balançassem, falseando. - Devias pensar em Alex -
insistiu ela. A expressão do rosto de Tony a fez parar. Quando falou, a voz dele estava mais calma. -
Eu tentei mesmo - disse ele. - Lamento muito, Tony. - Eu também, querida. Por que não pedes ao
teu finíssimo mordomo para abrir outra garrafa e falamos sobre outra coisa qualquer?
- Conta-me sobre o Texas. Os olhos negros de Tony brilharam. - Não se vê uma cerca em
quilômetros e quilômetros. - Riu e acrescentou: - É porque não há muito que cercar, a não ser que
gostes de pó e moitas secas. Mas uma pessoa sabe quem é, quando se encontra ali sozinha, naquele
enorme vazio. Não há passado, nem estamos agarrados a farrapos, que são tudo o que nos resta.
Tudo se passa no minuto presente, ou talvez no amanhã, não no ontem. - Levantou o copo para ela. -
Estás linda como uma imagem, Scarlett. Rhett não deve ser muito esperto, senão não te deixava
ficar. Se soubesse que me safava, até fazia uns avanços.

Scarlett pôs a cabeça de lado, como uma coquete. Era divertido jogar os velhos jogos. ​- Tu até

fazias avanços à minha avó, se ela fosse a única mulher presente, Tony Fontaine.
​ Quando bates esses
olhos negros e pões esse sorriso brilhante, nenhuma mulher fica em segurança na mesma sala que tu.
- Então, querida, sabes bem que não é assim. Sou o tipo mais cavalheiresco do mundo... desde
que a dama não seja tão linda que me faça esquecer as regras do comportamento.
Gracejaram habilmente, deliciados com o seu próprio jeito, até o mordomo trazer a garrafa de
champanhe, e depois fizeram um brinde um ao outro. Scarlett estava suficientemente tonta, só de
prazer; não se importou que Tony acabasse a garrafa. Durante esse tempo, ele contou-lhe histórias
incríveis do Texas, que a fizeram rir até lhe doer a barriga.
- Tony, gostaria tanto que ficasses uns tempos - disse ela, quando ele anunciou que estava
quase a deixar-se dormir em cima da mesa. - Há séculos que não me divirto tanto.
- Quem me dera. Gosto de beber e comer bem, na companhia de uma mulher bonita e
divertida. Mas tenho que aproveitar este bom tempo. Amanhã apanho o trem que vai para o oeste,
antes que venha aí o frio. Sai muito cedo. Tomas café comigo, antes de eu ir embora?
- Mesmo que quisesses, não te escapavas. Elias conduziu-os à estação sob a luz cinzenta que
antecede o amanhecer, e Scarlett disse adeus com o lencinho enquanto Tony subia para o trem.
Levava uma pequena sacola de couro e um enorme saco de pano, onde guardava a sela. Depois de os
ter atirado para a plataforma da carruagem, voltou-se e acenou com o seu enorme chapéu texano,
enfeitado com uma faixa de pele de cobra. Ao fazer esse gesto, o casaco abriu-se e ela viu o cinturão
e os revólveres.
"Pelo menos, ficou lá o tempo suficiente para ensinar a Wade como fazê-los girar", pensou
ela. "Espero que não dê um tiro nos pés." Com os dedos, mandou um beijo a Tony. Ele inclinou o
chapéu para o apanhar, como se fosse um recipiente, meteu a mão lá dentro, tirou o beijo e meteu-o
no bolso do relógio do colete. Quando o trem partiu, Scarlett ainda se estava rindo.
- Leva-me àqueles terrenos meus, onde Mr. Colleton anda trabalhando - disse a Elias. O Sol ia
nascer antes de lá chegarem e era melhor que os trabalhadores andassem a cavar, ou teria que se
aborrecer. Tony tinha razão. Era preciso aproveitar o bom tempo.
Joe Colleton foi irredutível. - Eu vim, como lhe prometi, Mrs. Butler, mas é tal e qual eu pensava. O
degelo não é, nem por sombras, suficientemente fundo para abrir uma cova. Ainda falta um mês para
se poder começar.
Scarlett lisonjeou-o, depois zangou-se, mas não serviu de nada. Um mês depois, quando um
recado de Colleton a levou ao local, ainda se sentia frustradíssima.
Só viu Ashley quando já era tarde demais para voltar atrás. "Que lhe vou dizer? Não tenho
desculpa nenhuma para estar aqui, e Ashley é tão esperto que perceberia logo, se eu lhe pregasse
alguma mentira." Tinha certeza de que o sorriso apressado que afivelou era tão horrível como aquilo
que sentia.
Se assim era, Ashley não pareceu dar conta de nada. Ajudou-a a descer da carruagem com a
sua cortesia habitual e inata.
- Fico muito contente por te encontrar, Scarlett; é bom ver-te. Mr. Colleton disse- me que
talvez aqui viesses e, por isso, demorei-me o mais possível. - Sorriu tristemente. - Ambos sabemos
que não sou lá muito bom nos negócios, minha querida, por isso os meus conselhos não valem
muito, mas quero dizer que se de fato vais construir outro armazém aqui, é, com certeza, uma boa
idéia.
Que conversa era aquela?... "Oh, é claro, já percebo. Que esperto que Joe Colleton é, já
arranjou uma desculpa para a minha presença aqui." Voltou a dar atenção a Ashley.
- ...e ouvi dizer que é muito provável que construam uma linha de elétrico até aqui, da saída da
cidade. Não é espantosa a maneira como Atlanta está crescendo?
Ashley parecia mais forte. Muito cansado com o esforço que fazia para viver, mas mais capaz
de o fazer. Scarlett desejava ardentemente que isso quisesse dizer que o negócio de madeiras estava
melhor. Não poderia suportar se as fábricas e a serraria também desaparecessem. E nunca seria
capaz de perdoar a Ashley.
Ele pegou-lhe na mão e olhou para ela, com uma expressão preocupada no rosto marcado.
- Pareces cansada, minha querida. Está tudo bem? Apetecia-lhe encostar a cabeça no peito dele
e gemer que estava tudo muito mal.
Mas sorriu.
- Que disparate, Ashley, não sejas tonto. Ontem à noite fui a uma festa e deitei- me tarde, mais
nada. Já devias saber que não se dá a entender a uma senhora que ela não está com o seu melhor
aspecto. - "Espero que isto chegue aos ouvidos de Índia e de todas as suas amigas mesquinhas",
acrescentou Scarlett para si própria.
Ashley aceitou a explicação sem problemas. Começou a contar-lhe sobre as casas de Joe
Colleton. Como se ela não soubesse de tudo, até o exato número de pregos que era preciso para cada
uma.
- São construções de qualidade - disse Ashley. - Por uma vez, os menos afortunados são
tratados tão bem como os ricos... uma coisa que nunca esperei ver nestes tempos de oportunismo
gritante. Parece que, afinal, não se perderam todos os velhos valores. Sinto-me honrado por tomar
parte disto. Não sei se sabes, Scarlett, mas Mr. Colleton quer que seja eu a fornecer a madeira.
Ela pôs um ar espantado. - Bem, Ashley, isso é maravilhoso! E era. Ela sentia-se verdadeiramente
feliz por o seu plano para ajudar Ashley estar a resultar tão bem. Mas, pensou ela depois de falar em
particular com Colleton, a idéia não era que aquilo se transformasse numa espécie de obsessão. Joe
disse-lhe que Ashley tencionava passar um certo tempo no local todos os dias. A idéia dela era
fornecer a Ashley algum dinheiro, não um hobby, pelo amor de Deus! Assim, não poderia sequer ir
até lá.
Exceto no domingo, quando os trabalhos não estavam a decorrer, essa viagem semanal
tornou-se para ela quase uma obsessão. Já não pensava em Ashley quando via a madeira fresca e
forte nas vigas e estruturas, seguidas das paredes e do chão, à medida que a casa crescia. Caminhava
por entre as pilhas bem arranjadas de materiais e entulho com o coração ansioso. Como gostaria de
tomar parte em tudo aquilo, de ouvir o martelar, de ver as aparas a saltar das plainas, de assistir aos
progressos diários. De estar ocupada.
"Só tenho que agüentar até o Verão", estas palavras eram como que uma litania e o mote da
sua vida. "Nessa altura, Rhett volta. A ele posso contar, é o único a quem posso contar, é o único
que se preocupa comigo. Não me vai fazer viver assim, posta de parte e infeliz, quando souber como
tudo é horrível. Que foi que correu mal? Tinha tanta certeza de que se tivesse, pelo menos, dinheiro
suficiente, me sentiria segura. Agora sou rica e tenho mais medo do que em toda a minha vida."
Mas, quando o Verão chegou, não houve visita de Rhett, nem qualquer palavra dele. Scarlett
ia do armazém para casa correndo, todas as manhãs, para estar lá se ele viesse no trem do meio-dia.
À noite, vestia o vestido que lhe ficava melhor e usava as pérolas ao jantar, caso ele viesse de outro
modo qualquer. Na sua frente, estendia-se a longa mesa, brilhando com pratas e pesados damascos,
engomados até luzirem. Foi nessa altura que começou a beber a sério para afastar o silêncio,
enquanto esperava ouvir o som dos passos dele.
Quando começou a tomar sherry à tarde não achou nada de especial - afinal de contas, tomar
um ou dois copos de sherry era próprio de uma senhora. E mal deu por isso quando mudou de sherry
para uísque.. ou quando precisou de uma bebida para fazer as contas do armazém, porque ficava
deprimida por o negócio estar decaindo tanto... ou quando começou a deixar a comida no prato
porque o álcool lhe tapava melhor a fome... ou quando começou a beber um copo de brande assim
que se levantava de manhã...
Mal deu por isso quando o Verão deu lugar ao Outono. Pansy trouxe o correio da tarde ao
quarto, numa bandeja. Ultimamente, Scarlett
tentara dormir um pouco depois do almoço. Enchia, assim, uma parte do vazio da tarde e descansava
um pouco, alívio que lhe era negado durante a noite.
- Quer que eu traga um bule com café, ou qualquer coisa, Miss Scarlett? - Não, faz o teu serviço,
Pansy. - Scarlett pegou na carta de cima do monte e abriu-a. Deitou uma rápida olhadela a Pansy,
que estava a apanhar as roupas que ela atirara para o chão. "Por que é que a estúpida da rapariga não
sai do quarto?"
A carta era de Suellen, Scarlett nem se incomodou em tirar as páginas dobradas de dentro do
sobrescrito. Já sabia o que dizia. Mais queixas das maldades de Ella, como se as filhas da própria
Suellen fossem uma espécie de santas. Acima de tudo, insinuaçõezinhas maldosas sobre o preço de
tudo e sobre como Tara fazia pouco dinheiro e como Scarlett era rica. Scarlett atirou a carta para o
chão. Naquele momento, não conseguia lê-la. Teria que lê-la no dia seguinte... "Oh, graças a Deus
que Pansy se foi embora."
"Preciso de uma bebida. Já está quase escuro. Não há mal nenhum em tomar uma bebida à
noite. Vou só tomar um pequeno brande, devagar, enquanto acabo de ler o correio."
A garrafa escondida atrás das caixas de chapéus estava quase vazia. Scarlett ficou furiosa.
"Maldita Pansy! Se não fosse tão boa a pentear-me, despedia-a amanhã. Deve ter sido ela que a
bebeu. Ou outra das criadas. Não posso ter bebido assim tanto. Só escondi ali a garrafa há poucos
dias. Não interessa. Vou levar as cartas lá para baixo, para a sala de jantar. Afinal de contas, que
interessa que os criados vejam o nível da garrafa?... É a minha casa, a minha garrafa e o meu brande,
e posso fazer o que me apetecer. Onde está o meu roupão? Está ali. Por que é que os botões estão tão
duros? Nunca mais o consigo vestir."
Scarlett sentou-se à mesa para ler o correio. Uma circular a anunciar a chegada de um novo dentista.
Ora... Os seus dentes estavam ótimos, muito obrigada. Outra sobre a distribuição de leite. Um
anúncio de uma nova peça no DeGives. Scarlett deu uma vista de olhos pelos sobrescritos,
irritadamente. Não haveria nada de jeito? A mão parou quando tocou num sobrescrito fino, que fazia
um ruído semelhante a uma casca de cebola; a letra fazia lembrar gatafunhos de aranha. A tia
Eulalie. Engoliu o resto do brande e rasgou o sobrescrito. Sempre odiara as missivas afetadas, com
ar de sermão, da irmã da sua falecida mãe. Mas a tia Eulalie vivia em Charleston. Talvez dissesse
alguma coisa de Rhett. A mãe dele era a sua maior amiga.
Os olhos de Scarlett moveram-se rapidamente, franzindo-os para perceber melhor as palavras.
A tia Eulalie escrevia sempre de ambos os lados do papel, que era fino, e muitas vezes escrevia
"atravessado", escrevendo na página e depois voltando-a, escrevendo por cima das linhas já
existentes. Tudo isto com muitas palavras que não diziam quase nada.
- O Outono, tão invulgarmente quente... dizia aquilo todos os anos... a tia Pauline andava com
problemas no joelho... tinha problemas com o joelho desde que Scarlett se lembrava... uma visita à
irmã Mary Joseph... Scarlett fez uma careta. Não conseguia pensar na irmã mais nova, Carreen, pelo
seu nome religioso, apesar de ela estar no convento em Charleston havia oito anos... a venda de
bolos para o fundo da construção da catedral estava atrasadíssima porque havia poucos donativos e
seria que Scarlett não poderia... Raios! Ela dava às tias um teto para viver, e agora ainda tinha de
ajudar a construir uma catedral? Virou a página, com a testa franzida. O nome de Rhett saltou-lhe à
vista, no meio das palavras entrecruzadas. ... uma bênção ver uma querida amiga como Eleanor
Butler encontrar a felicidade, depois de tantos desgostos. Rhett é muito atencioso para a mãe e a sua
devoção tem
feito muito para melhorar a sua imagem aos olhos dos que lamentavam o comportamento
extravagante da sua juventude. Não consigo compreender, e a tia Pauline também não, porque
insistes em manter essa preocupação injustificada com os negócios, quando não precisas continuar
ligada ao armazém. Já muitas vezes no passado lamentei o teu modo de agir a este respeito, e tu
nunca deste ouvidos os minhas súplicas para que abandonasses uma atitude tão pouco própria de
uma senhora. Por isso, deixei de me referir a isso há alguns anos. Mas, agora, quando isso te afasta
do teu lugar ao lado do teu marido, sinto que é meu dever falar novamente sobre este assunto
detestável.
Scarlett atirou a carta para cima da mesa. Era, então, essa a história que Rhett andava
espalhando! Que ela não queria deixar o armazém e ir com ele para Charleston. Que descarado
mentiroso ele era! Ela implorara-lhe que a levasse com ele quando partira. Como se atrevia a
espalhar tal calúnia? Ela tinha algumas palavrinhas a dizer ao Sr. Rhett Butler, quando ele viesse
para casa.
Foi ao aparador e despejou brande para dentro do copo. Uma parte caiu na brilhante superfície
de madeira. Limpou-o com a manga. Provavelmente, ia negar tudo, o canalha. Bom, ela espetava-lhe
com a carta da tia Eulalie debaixo do nariz. Ia ver se ele era capaz de chamar mentirosa à melhor
amiga da mãe!
De repente, a fúria abandonou-a e sentiu frio. Sabia o que ele ia dizer: "Preferias que contasse a
verdade? Que eu te deixei porque viver contigo era insuportável?"
Que vergonha! Tudo era preferível a isso. Mesmo a solidão, enquanto esperava que ele
regressasse. Levou o copo aos lábios e bebeu demoradamente.
O movimento chamou-lhe a atenção, refletido no espelho que estava por cima do aparador.
Lentamente, Scarlett baixou a mão e pousou o copo. Olhou para os seus próprios olhos. Abriram-se,
chocados com aquilo que viram. Há meses que não olhava a sério para si própria e não podia
acreditar que aquela mulher pálida, magra, de olhos encovados, tivesse alguma coisa a ver com ela.
Até parecia que já não lavava o cabelo havia séculos!
Que lhe acontecera? Num gesto automático, estendeu a mão para a garrafa, dando assim a resposta.
Scarlett retirou a mão e viu como tremia.
- Oh, meu Deus - murmurou. Agarrou-se à ponta do aparador para se amparar, e ficou a olhar
para o seu reflexo.
- Louca - disse. Fechou os olhos e as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, mas limpou-as
com uns dedos que tremiam.
Apetecia-lhe mais uma bebida do que qualquer outra coisa que já desejara na vida. Passou a
língua pelos lábios. A mão direita mexeu-se por vontade própria e fechou-se à volta do copo, que
brilhava como um diamante. Scarlett olhou para as suas mãos como se pertencessem a um estranho,
olhou para a bela e pesada garrafa de cristal e para a promessa de fuga que continha. Lentamente,
observando os seus movimentos no espelho, levantou a garrafa e recuou, afastando-se do seu

assustador reflexo. ​Depois, inspirou profundamente e balançou o braço com toda a sua força. Ao
estilhaçar-se no enorme espelho, a garrafa, iluminada pelo sol, lançou faíscas azuis, vermelhas e
violetas. Por um instante, Scarlett viu o seu rosto partir-se em pedaços, viu o torcido sorriso de
vitória. Depois, a superfície prateada fragmentou-se e minúsculos pedacinhos espalharam -se sobre o
aparador. Pareceu que a parte superior do espelho se separava da moldura, e enormes bocados
irregulares caíram, estatelando-se com um som de disparos de canhões sobre o aparador, o chão e os
pedaços que tinham
caído primeiro.
Scarlett chorava, ria e gritava perante a destruição da sua própria imagem. - Covarde! Covarde!
Covarde! Não sentiu os pequenos cortes que os pedaços de vidro que saltaram lhe fizeram nos
braços, no pescoço e no rosto. A língua tinha gosto de sal; tocou numa gota de sangue, no rosto, e
olhou surpreendida para os dedos tingidos de vermelho.
Ficou a olhar para o local onde vira o seu reflexo, mas este desaparecera. Riu
desequilibradamente. Boa viagem.
Quando ouviram o barulho, os criados tinham acorrido à porta. Estavam muito juntos, com
medo de entrar na sala, olhando com medo a figura rígida de Scarlett. De repente, ela virou a cabeça
para eles, e Pansy lançou um grito de terror, ao ver a sua cara coberta de sangue.
- Vão embora! - disse Scarlett calmamente. - Estou perfeitamente bem. Vão embora. Quero
ficar sozinha. - Obedeceram sem uma palavra.
Ela estava sozinha, quer quisesse ou não, e não havia brande que chegasse para mudar a
situação. Rhett não ia voltar, aquela casa já não era um lar para ele. Há muito tempo que sabia isso,
mas recusara-se a enfrentá-lo. Fora uma covarde e uma louca. Não era para admirar que não tivesse
reconhecido aquela mulher do espelho. Aquela doida covarde não era Scarlett O'Hara. Scarlett
O'Hara não... - como se costumava dizer - ...não afogava as suas mágoas. Scarlett O'Hara não se
escondia e ficava à espera. Enfrentava o pior que o mundo tivesse para lhe dar. E ia ao encontro do
perigo para tirar o que desejava.
Scarlett estremeceu. Chegara tão perto de se derrotar a si mesma. Acabou-se. Era tempo - e mais que
tempo - de tomar a vida nas suas próprias mãos. Acabou-se o brande. Atirara fora aquela muleta.
Todo o seu corpo gritava por uma bebida, mas ela recusou-se a ouvir. Já fizera coisas mais
difíceis, também podia fazer isto. Tinha que fazê-lo!
Acenou com o punho ao espelho partido. - Traz lá os sete anos de má sorte, maldito sejas! - O seu
riso soou áspero, num desafio.
Encostou-se por momentos à mesa, enquanto recuperava as forças. Tinha tanto que fazer.
Depois, caminhou sobre a destruição que a cercava, partindo com os calcanhares o resto do
espelho.
- Pansy! - chamou ela da porta. - Quero que me venhas lavar o cabelo. - Scarlett tremia da
cabeça aos pés, mas obrigou as pernas a levarem-na até a escada e a subirem a longa escadaria. - A
minha pele deve parecer lixa - disse em voz alta, desviando a atenção do espírito dos desejos do
corpo. - Vou precisar de litros de água de rosas e glicerina. E tenho que arranjar roupas
completamente novas. Mrs. Marie que arranje mais ajudantes de costura.
Não devia levar mais do que algumas semanas até recuperar da sua fraqueza e voltar a ter o
seu melhor aspecto. Faria que assim fosse.
Tinha que estar bonita e forte e não havia tempo a perder. Já perdera muito. Rhett não voltara para
ela, por isso ela tinha que ir encontrar-se com ele. Ir a Charleston.

II ​Apostas Altas
10
Assim que tomou aquela decisão, a vida de Scarlett modificou-se radicalmente. Agora tinha
um objetivo e concentrava todas as suas energias em alcançá-lo. Mais tarde pensaria em como faria
para trazer Rhett de volta, depois de chegar a Charleston. Por agora, tinha que se preparar para a
partida.
Mrs. Marie atirou as mãos ao ar e declarou que era impossível fazer um guarda- roupa
completamente novo em apenas algumas semanas; o tio Henry Hamilton juntou as pontas dos dedos
e exprimiu o seu desagrado quando Scarlett lhe disse o que precisava que ele fizesse. A oposição
deles fez que os olhos de Scarlett brilhassem com a alegria da batalha e, no fim, foi ela que ganhou.
No princípio de Novembro, o tio Henry tinha tomado conta da gerência financeira do armazém e do
saloon, com a garantia de que o dinheiro seria entregue a Joe Colleton. E o quarto de Scarlett era
uma confusão de cor e rendas - as suas roupas novas, espalhadas, à espera de serem embaladas para
a viagem.
Ainda estava magra e tinha olheiras fundas, uma vez que as noites tinham sido um tormento
de insônia e uma terrível luta da sua vontade para resistir ao descanso que lhe prometia a garrafa de
brande. Mas também ganhara aquela batalha, e o seu apetite natural voltara. O rosto estava já
suficientemente cheio, de modo a fazer aparecer uma covinha quando sorria, e o seu peito estava
atraentemente roliço. Com uma aplicação sábia de rouge nos lábios e nas faces, tinha certeza de que
quase parecia de novo uma moça. Era tempo de partir.
"Adeus, Atlanta", disse Scarlett silenciosamente, quando o trem saiu da estação. "Tentaste
deitar-me abaixo, mas eu não deixei. Não quero saber se gostas de mim ou não." ​Disse a si própria

que o frio que sentia devia ter origem numa corrente de ar. Não estava​ com medo, nem um
bocadinho. Ia passar um tempo maravilhoso em Charleston. As pessoas não costumavam dizer que
era a cidade com mais festas em todo o Sul? E não tinha dúvidas de que ia ser convidada para todo o
lado; a tia Pauline e a tia Eulalie conheciam todo mundo. Deviam saber tudo sobre Rhett - onde ele
vivia, o que fazia - tudo o que precisava fazer era...
Não fazia sentido pensar agora nisso. Decidiria quando lá chegasse. Se pensasse agora nisso,
podia ficar nervosa com a idéia da viagem, e já decidira ir.
Céus! Era uma tolice imaginar que ia ficar nervosa. Até parecia que Charleston era no fim do
mundo. Então, Tony Fontaine não tinha ido para o Texas, que ficava tão longe, tão simplesmente
como se fosse dar um passeio até Decatur? E ela já estivera em Charleston. Sabia para onde ia...
O fato de ter detestado a cidade não queria dizer nada. Afinal de contas, naquela época era tão
nova, só tinha 17 anos e, ainda por cima, era viúva há pouco tempo e tinha um bebê. Ainda nem
sequer tinham nascido os dentes de Wade Hampton. Isso fora há mais de doze anos. Agora, tudo ia
ser diferente. Ia resultar tudo bem, exatamente como ela queria.
- Pansy, vai dizer ao condutor para mudar as nossas coisas, quero sentar-me mais perto do
fogão. Esta janela está fazendo corrente de ar.
Scarlett mandou um telegrama às tias da estação de Augusta, onde mudou para a linha da
Carolina do Sul.
chego 4 horas trem visita stop só uma criada stop beijos scarlett Tinha pensado em tudo. Exatamente
dez palavras e não corria o risco de que as tias respondessem com alguma desculpa que a impedisse
de ir, pois já ia a caminho. Não que isso fosse provável. Eulalie andava sempre a pedir-lhe que as
fosse visitar, e
a hospitalidade continuava a ser a lei das terras do Sul. Mas não valia a pena arriscar quando se
podia jogar pelo seguro e ela precisava da casa das tias para se proteger no início. Charleston era
uma cidade orgulhosa, muito convencida, e Rhett estava obviamente tentando voltar as pessoas
contra ela.
Não, ela não ia pensar nisso. Desta vez, ia adorar Charleston. Tinha certeza. Ia ser tudo
diferente. Toda a sua vida ia ser diferente. "Não olhes para trás", dissera sempre a si própria. Agora,
tencionava fazer isso mesmo. A sua vida inteira ficava para trás, cada vez mais longe, a cada volta
das rodas do trem. Todos os problemas dos seus negócios estavam nas mãos do tio Henry, resolvera
o problema da sua responsabilidade para com Melanie, os filhos estavam instalados em Tara. Pela
primeira vez na sua vida adulta, era livre para fazer aquilo que queria e sabia muito bem o que isso
era. Ia provar a Rhett que estivera enganado quando se recusara a acreditar que ela o amava. Ia
mostrar-lhe que era verdade. Ele ia ver. E, depois, ia ficar com pena de a ter deixado. Ia abraçá-la e
beijá-la e iam ser felizes para sempre... Até mesmo em Charleston, se ele insistisse em ficar lá.
Perdida no seu devaneio, Scarlett não deu pelo homem que entrara no trem em Ridgville, até
ele tropeçar no braço do seu assento. Então, encolheu-se como se ele lhe tivesse batido. Vestia o
uniforme azul do Exército da União.
Um ianque! Que faria ele ali? Aqueles tempos tinham acabado e ela queria esquecê-los para
sempre, mas a visão do uniforme fê-los regressar. O medo quando Atlanta estivera cercada, a
brutalidade dos soldados quando roubaram de Tara a sua miserável reserva de comida e colocaram
fogo na casa, a explosão de sangue quando ela disparou contra o vagabundo antes de ele ter tempo
de a violar... Scarlett sentiu novamente o coração batendo de terror e quase gritou. Malditos fossem,
malditos fossem todos, por terem destruído o Sul. Malditos fossem, sobretudo, por a terem feito
sentir desesperada e com medo! Odiava essa sensação e odiava-os a eles!
"Não vou deixar que isto me incomode, não vou. Não posso aborrecer-me com nada, agora
que preciso de ter o melhor aspecto possível e estar pronta para Charleston e Rhett. Não vou olhar
para o ianque e não vou pensar no passado. Só o futuro conta." Cheia de resolução, Scarlett olhou
pela janela para a paisagem de colinas, tão semelhante às terras que rodeavam Atlanta. Estradas de
barro vermelho atravessavam bosques de pinheiros escuros e campos de restolho queimado pela
geada, que restavam das colheitas. Já viajava há mais de um dia e até parecia que não saíra de casa.
"Depressa", incitava ela a locomotiva. "Depressa."
- Como é Charleston, Miss Scarlett? - perguntou Pansy pela centésima vez, exatamente
quando a luz começou a desaparecer lá fora.
- Muito bonita, vais ver que gostas - respondeu Scarlett pela centésima vez. - Ali! - Apontou
para a paisagem. - Vês aquela árvore com aquelas coisas penduradas?... A tal árvore espanhola de
que te falei, a árvore do musgo.
Pansy encostou o nariz na janela empoeirada. - Oooh - gemeu ela. - Parecem fantasmas a mexer-se.
Tenho medo de fantasmas, Miss Scarlett.
- Não sejas medrosa! - Mas Scarlett estremeceu. Os longos fiapos cinzentos de musgo que
ondulavam tinham um aspecto fantasmagórico naquela luz cinzenta, e ela também não gostava nada
do aspecto deles. No entanto, isso queria dizer que estavam entrando nas Terras Baixas,
aproximando-se do mar e de Charleston. Scarlett deu uma olhadela ao seu relógio de lapela. Cinco e
meia. O trem estava atrasado mais de duas horas. Tinha certeza de que as tias tinham esperado por
ela. Mas, mesmo assim, desejava não ter que chegar depois do escurecer. O escuro tinha qualquer
coisa de muito desagradável.
A estação de Charleston, que mais parecia uma caverna, estava pobremente iluminada.
Scarlett esticou o pescoço, procurando as tias ou um cocheiro que pudesse ser criado delas e
estivesse à sua espera. Mas, em vez disso, só viu outra dúzia de soldados de uniforme azul,
transportando armas aos ombros.
- Miss Scarlett... - Pansy puxou-lhe pela manga. - Há soldados por todo o lado. - A voz da
criadinha tremia.
O medo dela obrigou Scarlett a ser valente. - Faz de conta que eles não estão ali, Pansy. Eles não te
fazem mal, a guerra já acabou há praticamente dez anos. Vá lá. - Com um gesto, chamou o
carregador que empurrava o carrinho com a sua bagagem.
- Onde posso encontrar a carruagem que me veio esperar? - perguntou altivamente.
Ele conduziu-a ao exterior, mas o único veículo que se via era um carro muito velho, com um
cavalo esgotado e um condutor negro muito mal arranjado. O coração de Scarlett caiu-lhe aos pés. E
se as tias tivessem saído da cidade? Sabia que às vezes iam a Savannah visitar o pai. E se o seu
telegrama estivesse na varanda de uma casa escura e vazia?
Inspirou profundamente. Não queria saber qual seria a história, tinha era de se afastar da
estação e dos soldados ianques. "Se for preciso, até parto um vidro para entrar em casa. Por que não?
Depois, pago para o mandarem arranjar, do mesmo modo que paguei a reparação do telhado e tudo o
mais." Mandava dinheiro às tias para estas poderem viver, desde que tinham perdido tudo durante a
guerra.
- Ponha as minhas coisas naquele carro - ordenou ao carregador - e diga ao cocheiro para
descer e ajudá-lo. Vou para casa de Mistress Carey Smith, em Battery.
A palavra mágica "Battery" teve exatamente o efeito que ela esperara. Tanto o carregador
como o cocheiro se tornaram logo respeitadores e ansiosos por ajudar. Então, continua a ser o bairro
chique em Charleston, pensou Scarlett com alívio. "Graças a Deus! Seria horrível se Rhett soubesse

que eu estava viver num bairro pobre." ​Assim que o carro parou, Pauline e Eulalie abriram a porta de

par em par. Uma luz​ dourada espalhou-se no caminho que ia dar ao passeio, e Scarlett correu em
direção ao santuário que se lhe deparava.
"Estão tão velhas", pensou Scarlett quando se aproximou das tias. "Não me lembro de a tia
Pauline ser assim um espeto e tão cheia de rugas. E como é que a tia Eulalie ficou tão gorda? Parece
um balão com um tufo de cabelo grisalho no alto."
- Olha para ti! - exclamou Eulalie. - Mudaste tanto, Scarlett, que eu mal te reconheci.
Scarlett ficou desanimada. "Com certeza ela não envelhecera também, não é?" Aceitou os
abraços das tias e forçou um sorriso.
- Olhe para a Scarlett, mana - balbuciou Eulalie. - Está o retrato de Ellen. Pauline fungou. - Ellen
nunca foi assim tão magra, sabe isso muito bem, mana, - Pegou no braço de Scarlett e afastou-a de
Eulalie. - Mas há uma semelhança nítida, não digo que não.
Scarlett sorriu, desta vez de felicidade. Não lhe podiam prestar um maior cumprimento.
As tias azafamaram-se, discutindo como haviam de instalar Pansy nos quartos dos criados, e
qual era a melhor maneira de levar para cima os baús e as malas, para o quarto de Scarlett.
- Não mexes um dedo, querida - disse Eulalie para Scarlett. - Depois de uma viagem tão
comprida deves estar completamente esgotada. - Cheia de gratidão,
Scarlett instalou-se num sofá na sala, longe da confusão. Agora que finalmente ali estava, a energia
febril que a agüentara durante os preparativos parecia ter-se evaporado e percebeu que a tia tinha
razão. Estava esgotada.
Durante o jantar, quase adormeceu. Ambas as tias tinham uma voz baixa, com o sotaque
característico daquela região, que alongava as vogais e abafava as consoantes. Apesar de a conversa
delas consistir quase exclusivamente de um desacordo educado em todos os assuntos, o som era
embalador. Além disso, não estavam dizendo nada que a interessasse. Soubera o que queria quase
assim que entrara. Rhett vivia na casa da mãe, mas estava fora.
- Foi para o Norte - disse Pauline com uma expressão azeda. - Mas por uma boa razão, mana -
lembrou-lhe Eulalie. - Está na Filadélfia comprando outra vez algumas das pratas da família que os
ianques roubaram.
Pauline cedeu. - ... uma alegria ver como se dedica à felicidade da mãe, procurando tudo o que ela
perdeu.
Desta vez, foi Eulalie que criticou. - Se queres saber, podia ter mostrado alguma dessa devoção
muito mais cedo. Scarlett não quis saber. Estava ocupada com os seus próprios pensamentos, que se
resumiam em imaginar dali a quanto tempo poderia ir para a cama. Nessa noite não ia sofrer de
insônia, tinha certeza disso.
E tinha razão. Agora que tomara o controle da sua vida e estava a caminho de ter o que queria,
podia dormir como uma criança. Acordou de manhã com uma sensação de bem-estar que já não
sentia há anos. Era bem-vinda na casa das tias, não se sentia afastada e só como em Atlanta, e ainda
nem sequer tinha de pensar no que havia de dizer a Rhett quando o visse. Podia descontrair-se e
deixar-se mimar um bocadinho, enquanto esperava que ele voltasse da Filadélfia.
A tia Eulalie estragou-lhe os planos logo ao café-da-manhã, ainda antes de ter acabado a
primeira xícara de café.
- Sei como deves estar ansiosa por ver Careen, querida, mas ela só recebe visitas às terças e
sábados, por isso planejamos outra coisa para hoje.
Careen! Scarlett apertou os lábios. Não queria mesmo nada vê-la, a traidora. Dar a parte dela
de Tara, como se não significasse nada... Mas que havia de dizer às tias? Nunca compreenderiam
que uma irmã não estivesse mesmo mortinha por ver outra irmã. "Então, elas, são tão íntimas que até
vivem juntas. Tenho que fingir que não há nada no mundo que deseje mais senão ver Careen e
arranjar uma dor de cabeça quando chegar a hora."
De repente, percebeu o que Pauline estava dizendo e a cabeça começou-lhe mesmo a latejar
dolorosamente.
- ... por isso mandamos a nossa criada Susie com um recado a Eleanor Butler. Vamos visitá-la
esta manhã. - Estendeu a mão para a manteigueira. - Scarlett, podes passar-me o xarope?
Scarlett estendeu a mão automaticamente, mas deitou abaixo o jarro, entornando o xarope. A
mãe de Rhett. Ainda não estava preparada para ver a mãe de Rhett. Só se encontrara com Eleanor
Butler uma vez, no funeral de Bonnie, e quase não se lembrava dela, a não ser que era uma mulher
muito alta, digna e que impunha silêncio. "Sei que tenho que vê-la", pensou Scarlett, "mas não
agora, ainda não. Não estou preparada." Batia-lhe o coração enquanto passava desajeitadamente com
o guardanapo sobre a substância pegajosa que se espalhava na toalha.
- Scarlett, querida, não esfregues a nódoa assim na toalha. - Pauline pôs a mão
no pulso de Scarlett. Scarlett afastou-a num gesto brusco. Como é que se podiam preocupar com
uma porcaria de uma toalha velha numa hora daquelas?
- Desculpe, titia - conseguiu dizer. - Não faz mal, querida... é que quase fizeste um buraco, e
restam-nos tão poucas das nossas coisas bonitas... - A voz de Eulalie apagou-se tristemente.
Scarlett cerrou os dentes. Apetecia-lhe gritar. Que importância tinha uma toalha quando teria
de enfrentar a mãe que Rhett praticamente adorava? Suponhamos que ele lhe dissera a verdadeira

razão por que deixara Atlanta, por que tinha saído de casa? ​- É melhor ir ver as minhas roupas -

disse Scarlett através do nó que lhe apertava a​ garganta. - Pansy vai ter que tirar as rugas daquilo que
vou vestir. - Tinha que se afastar de Pauline e Eulalie, tinha que se controlar.
- Vou dizer a Susie para começar a aquecer os ferros - ofereceu-se Eulalie. Tocou a campainha
de prata que tinha junto do prato.
- ...é melhor ela lavar esta toalha antes de começar outra coisa qualquer - disse Pauline. -
Depois de a nódoa se entranhar...
- Talvez note, mana, que eu ainda não acabei de tomar o café. Com certeza não espera que eu
deixe esfriar tudo enquanto a Susie levanta a mesa.
Scarlett fugiu para o quarto. - Não vais precisar dessa capa de peles tão pesada, Scarlett - disse
Pauline. - ...claro que não - disse Eulalie. - Hoje está um típico dia de Inverno de Charleston. Eu nem
levava este xale se não estivesse resfriada.
Scarlett desapertou a capa e deu-a a Pansy. Se Eulalie queria que todos ficassem resfriados
também, ela fazia-lhe a vontade. As tias deviam pensar que ela era parva. Sabia por que razão as tias
não queriam que ela levasse a capa. Eram exatamente como a Velha Guarda de Atlanta. Para se ser
respeitável, tinha que se ter um aspecto miserável, como elas. Reparou como Eulalie olhava para o
seu chapéu, orlado a penas e muito na moda, e o rosto endureceu-lhe, numa atitude beligerante. Se
tinha que enfrentar a mãe de Rhett, ao menos o faria com estilo.
- Vamos sair - disse Eulalie, desistindo. Susie abriu a enorme porta e Scarlett seguiu as tias,
saindo para um dia magnífico. Quando desceu os degraus da entrada, ficou de boca aberta. Parecia
Maio, e não Novembro. O sol refletia o calor do caminho esbranquiçado feito de conchas esmagadas
e caía-lhe nos ombros como uma manta invisível. Levantou o queixo para o sentir no rosto, e fechou
os olhos num prazer sensual.
- Oh, tias, isto é uma maravilha! - disse. - Espero que vossa carruagem tenha uma capota de
descer.
As tias riram. - Querida menina - disse Eulalie -, já não há uma única alma em Charleston com
carruagem, exceto Sally Brewton. Vamos a pé... que é o que todo mundo faz.
- Há carruagens, mana - corrigiu Pauline. - Os carpetbaggers têm-nas. - Não podemos chamar
"almas" aos carpetbaggers, mana; desalmados é que eles são, senão não seriam carpetbaggers.
- Abutres - concordou Pauline com uma fungadela. - Nem mais - disse Eulalie. As irmãs riram de
novo. Scarlett riu com elas. O dia lindo fazia que ela se sentisse quase tonta de prazer. Num dia
como aquele, era impossível que alguma coisa corresse mal. De repente, sentiu uma grande ternura
pelas tias, apesar das suas discussões inofensivas. Seguiu- as, atravessando a larga rua vazia em
frente de casa, e subindo umas pequenas escadas do outro lado. Ao chegar ao topo, a brisa fez
abanar as penas do seu chapéu
e trouxe-lhe aos lábios um sabor de sal.
- Oh, meu Deus! - disse ela. Ao longe, do lado oposto da elevação, as águas
castanho-esverdeadas do porto de Charleston estendiam-se na sua frente até ao horizonte. À sua
esquerda, as bandeiras esvoaçavam nos altos mastros dos navios ao longo dos portos de abrigo. Para
a sua direita, as árvores de uma ilha comprida e baixa irradiavam um verde-brilhante. O sol brilhava
nas pontas de minúsculas ondinhas, fazendo que parecesse que a água estava salpicada de
diamantes. Um trio de pássaros muito brancos elevava-se no céu azul e sem nuvens, para em seguida
descer a pique, a rasar a crista das ondas. Parecia que estavam jogando um jogo, uma versão
despreocupada e leve de um jogo de crianças. A brisa leve e com gosto de sal acariciava-lhe o
pescoço.
Agora tinha certeza de que fizera bem em vir. Voltou-se para as tias: - Está um dia lindo! - disse
Scarlett. A avenida era tão larga que podiam caminhar as três ao lado umas das outras. Por duas
vezes encontraram outras pessoas: primeiro, um cavalheiro já velho, com uma casaca fora de moda e
chapéu de pele de castor, e depois uma senhora acompanhada por um rapaz magrinho, que corou
quando lhe falaram. De ambas as vezes pararam e as tias apresentaram Scarlett.
- ... a nossa sobrinha de Atlanta. A mãe dela era a nossa irmã Ellen, e está casada com o filho
de Eleanor Butler, Rhett.
- O velho cavalheiro curvou-se e beijou a mão de Scarlett, a senhora apresentou- lhe o neto,
que ficou olhando para Scarlett como se tivesse sido atingido por um raio. Para Scarlett, o dia ficava
cada vez melhor a. cada minuto que passava. Então, reparou que os transeuntes que se aproximavam
eram homens de uniforme azul.
Tropeçou e agarrou o braço de Pauline. - Tia - murmurou ela -, vêm aí soldados ianques na nossa
direção. - Continua a andar - disse Pauline com calma. - Têm que se desviarem do nosso caminho.
Scarlett olhou para Pauline, chocada. Quem havia de pensar que a sua velha tia esquelética
conseguia ser tão valente? O seu próprio coração batia tão alto que tinha certeza de que os soldados
o conseguiam ouvir, mas obrigou os pés a mexerem-se.
Quando já só os separavam três passos, os soldados afastaram-se para o lado, encostando-se à
vedação de tubos de metal que ladeava a beira do passeio, do lado da água. Pauline e Eulalie
passaram por eles como se não existissem. Scarlett levantou o queixo, imitando o jeito das tias, e
acompanhou-as.
Em algum lugar à frente delas, uma banda começou a tocar Oh, Susana! A alegre melodia, tão
folgazona, era tão bela e quente como o dia. Eulalie e Pauline começaram a andar mais depressa,
acompanhando o ritmo da música, mas os pés de Scarlett pareciam de chumbo. "Covarde!",
acusava-se a si própria. Mas não conseguia deixar de tremer por dentro.
- Por que é que há tantos malditos ianques em Charleston? - perguntou zangada. - Também vi
alguns na estação.
- Meu Deus, Scarlett - disse Eulalie -, não sabias? Charleston ainda está sob ocupação militar.
É provável que nunca mais nos deixem em paz. Odeiam-nos porque os expulsamos de Fort Sumter e
o defendemos contra toda a esquadra deles.
- E só Deus sabe quantos regimentos - acrescentou Pauline. Os rostos das irmãs brilhavam de
orgulho.
- Santíssima Mãe de Deus! - murmurou Scarlett. Que tinha ela feito? Fora meter- se mesmo na
boca do inimigo. Sabia o que queria dizer governo militar: impotência e raiva, um medo constante
de que eles confiscassem a casa das pessoas ou as

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