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Sara tinha em mente que tudo a sua volta era horrível, monótono, sem graça

e sem cor. Pela janela de seu quarto ela observava atentamente a caminhada dos
peregrinos, todos seguidores de Cartóvis, líder da igreja dos fies da Santa mãe
Évine (aquela que matou dez homens com o crânio de um gigante). Ela não havia
planejado acordar cedo naquela manhã de quarta-feira, 2 de abril de 2013, mesmo
sendo seu dever, pois era o dia do acampamento dos conquistadores e estar em pé
às 5:00 da manhã era intrinsicamente importante. O som de instrumentos de
qualquer tipo era uma sinfonia infernal nos ouvidos de Sara, pior ainda quando
tocados de manhã cedo. Ela detestava essas peregrinações trimestrais que
passeavam pela cidade inteira. Sua irmã mais velha Milena, sempre, sem exceção
deitava-se ao seu lado e carinhosamente lhe acariciava a cabeça. Retirava de seu
bolso um fone tão velho quanto ela e juntas ouviam músicas que as acalmavam por
horas até finalmente a peregrinação passar. Ao lembrar-se disso, Sara surtou, abriu
a janela de seu quarto que ficava no quinto andar de um prédio de classe alto e
atirou na multidão um abajur de sua escrivaninha. Para a sorte dos peregrinos a
pontaria de Sara era horrível - não que ela tenha mirado em alguém em seu
momento de fúria. O objeto atingiu em cheio a cabeça da estatua da santa mãe
Évine, seus estilhaços rolaram até cair sobre a parte de baixo da estatua onde
encontrava-se os corpos dos dez homens mortos pela santa mãe, corpos esculpidos
em preda cinzenta e tão realistas que quem os vislumbrava acreditava realmente
que era corpos reais pintados de cinza.
As cantorias e o barulho harmônico das rabecas, cítaras, violinos, saltérios e
flautas de todos os tipos encobriram o incidente; diferentes de Sara os peregrinos
estavam com o coração totalmente alegre e encharcado de amor ao próximo, e isso
revoltava a garota, como eles podem estar felizes? Pensou ela, como eles podem
cantar e tocar seus instrumentos chatos e irritantes enquanto tanta dor e sofrimento
são semeados no mundo todo? Não restava duvidas de que qualquer coisa que
viesse daquela rua não alegraria Sara, nem se um caminhão desgovernado desse
um fim no respirar de cada um com um simples toque no acelerador. Sara pensou
na possibilidade de atropelar todos, mas não durou por mais de um minuto. Vão
todos para o inferno! Gritou Sara na esperança de que os atingisse em sua alegre
macha. O grito dela foi abafado, é obvio, o que a irritou ainda mais. Fechando a
janela com força, seu pulso bateu na lateral de metal, soltou um grito de alarme e
em seguida agarrou o travesseiro e, como se fosse um saco de pancada começou a
desferir um soco atrás do outro. A raiva era iminente, preencheu cada lacuna escura
no espaço infindável de vida que ela chamava de coração, nada mais importava
nem os barulhos da rua nem o pulso latejando, apenas o travesseiro e o quanto de
força ainda lhe restava para feri-lo.
Quando se sofre por uma vida não é “frescura” – por mais que alguns não
definam assim, ou usem de outra forma o conceito de frescura – é algo arrebatador,
que nos deixa a deriva em um mar de lagrimas com um único barco de papel para
ser nossa salvação e um remo feito de palavras vazias e sem sentido. Nada que vier
do mais alto escalão é suficiente para desfazer a partida de um para a morte e outro
para um lugar distante onde a internet não exista ou o contato por telefone seja uma
novidade. Cada mensagem de consolo que chegava ao celular de Sara era como o
remo que citei, ainda mais quando esse remo vinha em novas formas que nem
sequer movia o barco de seu lugar. A garota afogava os punhos cada vez mais
fundos, acredito que ela desejasse ver uma gota de sangue brotar do branquíssimo
objeto. Seus braços não tinham mais força e seu coração havia saciado o desejo de
violência – momentaneamente.
A mãe de Sara estava perto da janela do quarto logo abaixo a do seu, e pode
ver que o abajur que ela comprará a dois anos para Melena fora atirado contra a
imagem. A Sra. Henley empacotava os últimos cereais para que sua filha os levasse
para o acampamento; quando ouviu o urro de Sara logo acima, deixou tudo e correu
para ver oque havia acontecido. Por parte a Sra. Henley já tinha em mente o porquê
de sua filha ter agido assim. Após a morte de Milena, Sara tinha aumento seus
ataques repentinos de raiva, eles já eram bem frequentes quando tudo era normal,
mas a partida de sua irmã foi o combustível mais inflamável que poderia ter sido
jogado sobre a fogueira da raiva.

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