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Mike Cury Fogagnolo – 8547262

O BEM JURÍDICO NOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA

O Direito Penal, mais do que dizer respeito a um conjunto de normas que definem
condutas criminosas, às quais são cominadas sanções qualificadas como penas,
significa, também, uma área do conhecimento sobre o poder punitivo do Estado e uma
técnica de sua realização, cujo fim maior são dois: por um lado, limitar e legitimar tal
poder e, por outro, viabilizar a proteção dos bens jurídicos mais importantes por meio da
ação racional desse mesmo poder.
Os bens jurídicos aparecem então como uma ideia que se desenvolveu com a
finalidade de orientar a atuação do poder penal. A limitação e legitimação do poder de
punir demanda a construção de um conceito que elabore, para além da forma jurídica,
um critério material, possivelmente ontológico, daqueles elementos aos quais se pode
considerar justo e legítimo que o Estado tutele por meio da atuação de sua ultima ratio,
seu poder de aplicar as sanções mais graves do ordenamento.
Evidentemente, a construção de tais critérios, ou seja, o delineamento do que
pode ser tido como bem jurídico digno de tutela penal, depende das concepções morais
e políticas que vigem em certa sociedade e que estão presentes, para além do direito
positivado, no seio da própria sociedade. Não se trata aqui de entender-se que o direito
penal deve se orientar pelos valores morais e políticos da sociedade em seu dinamismo
sem mais. Existem flutuações constantes no tecido social que, como ondas, mostram
uma dinâmica demasiadamente instável na variação dos valores sociais. Assim, há
momentos conjunturais que manifestam maior demanda punitivista pela população, ao
mesmo tempo em que isso pode ser retroalimentado por governos populistas que
vendem a punitividade como solução dos males sociais. Em outros momentos, tais
ímpetos podem se acalmar. Importa, portanto, não apenas captar os valores sociais por
meio da foto de um breve momento. Os valores sociais estão para além dessas
variações, sendo resultado de processos históricos mais profundos e duradouros.
Nesse sentido, a ideia de bem jurídico como limitadora do direito penal, ao voltar-
se, no Estado Democrático de Direito, à proteção dos elementos que compõem a esfera
da dignidade humana, demarcam uma série de valores que resultam de construção
histórica secular, remontando até mesmo ao renascimento humanista. Os bens jurídicos,
fazendo referência à dignidade humana e seus atributos, são, pois, uma luz guia em
meio à fluidez social dos breves períodos.
No Direito Penal brasileiro, há, no título IX da Parte Especial do Código Penal, os
chamados crimes contra a paz pública. São os crimes de incitação ao crime, de apologia
se crime ou criminoso, de associação criminosa e de constituição de milícia privada
(artigos 286 a 288-A). O que de pronto chama a atenção em relação a tais crimes é a
questão quanto ao bem jurídico, ou bens jurídicos, tutelados por eles.
Em primeiro lugar, o nome do título – “dos crimes contra a paz pública” – já traz
algumas questões a serem mencionadas. Como se pode notar, a paz pública não é
qualquer ser humano, suas qualidades morais ou patrimoniais, nada que faça referência,
portanto, ao menos diretamente, à esfera da dignidade humana. Paz pública apresenta,
doutrinariamente, dois sentidos principais, um objetivo e outro subjetivo. Objetivamente,
a paz pública seria a ordem social, ou seja, entende-se que há um estado de paz pública
quando há um estado de vigência da ordem legal, bem como um estado de sossego das
relações sociais, seja entre cidadãos, seja entre estes e as instituições estatais. Por outro
lado, no sentido subjetivo, paz pública se refere ao estado de espírito dos cidadãos, no
sentido de estarem em paz quanto a crerem na efetiva vigência da ordem socia.
Há certa divergência na doutrina quanto ao sentido que se deve considerar a paz
pública que dá o nome do mencionado título do Código Penal. Ambas as direções,
porém, trazem problemas. A paz pública em sentido objetivo apresenta uma significativa
vagueza semântica, como também quanto à delimitação do objeto da tutela dos tipos
penais aí incluídos. Ora, se paz pública é, em sentido objetivo, a vigência pacífica da
ordem social, falta saber o que é exatamente isso. É evidente que estado absoluto de
paz é apenas uma concepção ideal, na medida em que a sociedade é naturalmente
conflituosa. Além disso, tal conflituosidade não é homogênea ao longo do tecido social.
Seus conflitos podem concentrar-se em torno de certos segmentos, sendo
preponderantes em algumas regiões da totalidade social e mais amenos em outras. Um
crime que vise à proteção de tal estado de paz na vigência da ordem social precisa ter
ao menos o potencial de abalar esse estado. Entretanto, se há porções da realidade
social notavelmente mais conflituosas que outras, os impactos que o cometimento de
tipos penais tais como incitação ao crime ou apologia de fato criminoso podem afetar
diferentemente a ordem social, a depender do caso concreto. Uma mesma conduta,
pode, assim, causar ou não um certo abalo na ordem social.
Quanto ao sentido subjetivo, entendida a paz social como estado de espírito, ou
estado de ânimo, ou seja, concepção psicologista da paz social, apresenta o problema
da volatilidade do que seja um abalo nesse estado emocional. Uma mesma conduta
pode, a depender de certas circunstâncias, causar ou não o sentimento de perigo nas
pessoas, desestabilizando ou não a paz social nesse sentido. Não há um medidor
preciso para verificar a capacidade de uma certa conduta causar medo social. Veja-se,
por exemplo, o crime de associação criminosa. Esse crime é consumado desde que três
ou mais pessoas se associem com o fim de cometer crimes. Não precisa haver o
cometimento de qualquer crime, basta a associação. Entretanto, a simples associação,
reconhecida pela doutrina como momento de preparação dentro do iter criminis, sequer
vem a ser conhecido, geralmente, pela população, o que só ocorre depois de que crimes
efetivamente sejam praticados, chamando a atenção dos aparelhos repressivos do
Estado. Qual abalo à paz pública a associação, então, por si só pode causar? A princípio,
é possível dizer que nenhum, pois ficando desconhecido esse ato, não terá o potencial
de afetar a paz pública. Por outro lado, muito mais abalo à paz pública se dá pela
exploração, principalmente midiática, desse tipo de situação. Num decaimento do
empirismo, em que a exibição sensacionalista do que se tem por banditismo se traveste
de jornalismo e informação, termos como associação criminosa, organização criminosa
etc. são usados de forma alarmista. O bombardeio diário da população por tais estímulos
pode significar um estado de perturbação da paz social, no sentido de fragilização do
sentimento de confiança na vigência da ordem social, muito maior do que a associação
consumada.
O caráter de crime de perigo abstrato que reveste os tipos penais do referido título
pode ser alegado para a contraposição a essa crítica. Costuma-se dizer que o que tais
tipos visam é a evitar o efetivo abalo do sentimento da ordem social, que pode ou não
ocorrer de fato. Quanto aos crimes de incitação ao crime e apologia ao crime ou
criminoso é dito que possuem caráter de proteção prévia, adiantamento da atuação
penal, para que os crimes em si não venham a ser estimulados e praticados. Nesse
sentido, quanto a esses dois crimes, está-se em terreno movediço, porquanto a tentativa
de uma proteção abstrata de elementos que dificilmente fazem referência à dignidade
humana privilegia a censura em contraposição à liberdade de expressão. De fato, certas
manifestações são efetivamente prejudiciais, causando graves males sociais. Exemplo
disso é o incentivo à contaminação generalizada em época pandêmica, a fim de
alcançar-se uma suposta imunidade de rebanho. Por outro lado, a fraqueza de
consistência do bem jurídico tutelado abre brechas à intimidação da liberdade do
cidadão.
Quanto aos crimes de associação criminosa e constituição de milícia privada,
diga-se que são exceções ao disposto no artigo 31 do Código Penal. São, porém,
incertos em diversos sentidos. É diferente associar-se, por exemplo, para consumir
drogas, e associar-se para traficar armas, ou cometer homicídios. O tipo, porém, não
diferencia ambas as situações. A inofensividade da associação que não chega a ser
conhecida pela população, conforme comentado, sendo ainda assim punida, é
demonstrativo de um direito penal que rasga os moldes civilizatórios que se dão pela
limitação conferida pela referência penal à bens jurídicos que compõem a dignidade
humana. O crime de constituição de milícia privada, por sua vez, além de ser passível
da mesma crítica, traz também a incerteza em relação ao conteúdo semântico do tipo,
havendo maleabilidade quanto aos conceitos de, por exemplo, milícia privada. A pena,
de 4 a 8 anos, diverge bastante daquela do crime de associação criminosa, que é de um
a três anos, sem que o tipo delimite com suficiente precisão o que pode ser tido como
uma coisa e o que pode ser tomado como outra.
Apesar desses problemas, e outros que se revelem no uso desses tipos
penalizadores, fato é que são lei vigente. Assim, devendo ser aplicados, é necessário
que a atuação do operador do direito, sobretudo aquela de parte dos órgãos de Estado
– MP e Judiciário – deve orientar-se pela melhor dogmática penal. Deve, portanto, ser
lembrado que o Direito Penal não é uma mera retórica que pode ser contorcido a
depender do momento político, mas sim se trata de uma construção histórica, que possui
sentido histórico, que mostra a contraposição de uma sociedade que busca pautar-se
pela lei e não pelo arbítrio em relação a sociedades outras em que o poder se dá pela
vontade subjetiva daquele que o detém.
Para isso, é sempre importante tratar com cuidado do tema dos bens jurídicos. A
ação punitiva do Estado, sendo subsidiária, porquanto última em face de outros
mecanismos menos graves, deve se pautar pela orientação dada pelo sentido trazido na
qualificação adequada do bem jurídico tutelado. Assim, um Estado Democratico de
Direito contém valores que não devem estar submetidos aos ventos momentâneos da
sociedade. Tais valores, cristalizados em bens jurídicos dignos de tutela penal, devem
orientar a prática jurídica a fim de que se aprimore a racionalização do poder Estatal,
reforçando-se o caráter da prevalência da dignidade humana sobre sentimentos
punitivistas, interesses políticos e forças conjunturais momentâneas que se possam
mostrar contrárias ao pacto civilizatório.

REFERÊNCIAS

BITENCORT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 4. São


Paulo. Saraiva. 6ª edição. 2012.
HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código Penal: Volume IX. Rio de Janeiro.
Revista Forense. 1958.
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Brasileiro: Parte Especial. Vol 3. Rio de Janeiro.
Editora Forense LTDA. 2019.
NUCCI. Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Vol 3. Rio de Janeiro.
Editora Forense LTDA. 2019.

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