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Anotações sobre Design de Moda e Antropofagia

Notes about Fashion Design and Anthropofagy

PRECIOSA, Rosane
Profa. Doutora em Psicologia da Universidade Anhembi Morumbi

Palavras-Chave: Design Brasileiro, antropofagia, identidade

Resumo

O presente ensaio pretende especular sobre os possíveis efeitos de uma prática estética antropofágica, herança cultural
modernista que ainda vibra em nossa tradição, num contexto contemporâneo, onde, não só no design de moda
especificamente, bem como no design em todas as suas manifestações, circula um discurso afirmativo em torno do que
vem se constituindo sob a denominação “Marca Brasil”. Discurso esse que se sustenta na idéia de que existe hoje um
momento especial de mercado propício à expansão de um “estilo brasileiro”. O objetivo desse texto é contribuir com
algumas idéias em torno da concepção de identidade brasileira formulada pela ótica antropofágica e aquela outra que se
constitui a partir de uma lógica de mercado.

Key-Words: Brazilian Design, antropophagy, identity

Abstract

The present essay intends to investigate about the feasible effects of an anthropophagy pratical esthetics modern cultural
inheritance that still vibrates in our contemporary tradition, where not only in fashion design but in its more complete
manifestations circulates one affirmative speech around which constitute itself under the denomination “Marca Brasil”,
speech that supports itself in the idea that exist today an special moment of market favourable to expansion of a
brazilian style. The objective of this text is discuss a few ideas around the brazilian identity conception by antropophagy
and another wich constitute itself in terms of a market logic.

Anotações sobre Design de Moda e Antropofagia

“Há de haver um inconsciente rico para moverem-se a inteligência e a arte.”


(Roberto Corrêa dos Santos)

Minha idéia inicial era investigar a Moda Brasileira sob o viés antropofágico, ou seja, eu buscaria repertoriar
a criação de moda que, de alguma forma, sinalizasse um diálogo com nossa herança antropofágica. Porém, à
medida que o texto ia se estruturando, foi adquirindo novos contornos e acabou por me revelar uma surpresa:
percebi que meu genuíno interesse era bem menos procurar pelas pistas efetivas da incorporação pela Moda
dessa tradição antropofágica, do que pensar na complexidade que essa idéia comporta, uma vez que existe,
presente hoje entre nós, uma contagiante discussão em torno da brasilidade que certamente não se atém
apenas ao Design de Moda, mas que se estende também ao território do Design de Objetos. Era preciso,
então, antes mesmo de elencar qualquer criação de moda que dialogasse mais intensivamente com essa
tradição estética, procurar, nos limites desse texto, ampliar a discussão, lançando algumas questões sobre
design de moda e cultura brasileira, ambas avaliadas pela ótica da antropofagia.

A idéia aqui é, sobretudo, esboçar um diálogo com essa referência cultural de cunho antropofágico para
avaliar, no contemporâneo, os efeitos de sua contaminação em nós. Ou, em outros palavras, ensejar a
oportunidade de nos perguntarmos: como essa tradição se atualiza em nós? Partindo do pressuposto de que,
nela, a alteridade é peça fundamental, promotora de misturas, e que nossa própria cultura move-se nesse
terreno acidentado dos hibridismos, a relevância desse ensaio, em suas modestas pretensões, talvez seja
lançar algumas idéias sobre as afinidades que possam existir, se é que existem, entre a denominação “Marca
Brasil”, que abriga toda uma produção material contemporânea, correntemente veiculada dessa forma, e que
parece promover e afirmar uma identidade genuinamente brasileira, e a vertente antropofágica, que encontra
no contato com o que lhe é estranho, o contato com o Outro, um expansor de sua potência, justamente por ser
capaz de incorporar elementos que forçam sua constante reinvenção.

“Insights Oswaldianos”

É Sob o signo do deslocamento que se pode buscar entender a importância do poeta, escritor e ensaísta
Oswald de Andrade. Deslocamento não só físico, refiro-me às suas viagens à Europa, onde trava contato com
as vanguardas estéticas do início do século XX, mas sobretudo deslocamentos conceituais, já que suas
viagens são movidas pela força do questionamento da herança colonial recebida.

Entretanto, ainda que se destaque a figura de Oswald de Andrade neste contexto modernista, por ter sido ele
a introduzir a radical noção de antropofagia para se pensar uma cultura híbrida como a nossa, é importante
mencionar outras presenças, que, juntamente com ele, desafiaram uma sociedade predominantemente
latifundiária, bastante conservadora, resistente a mudanças, que se comprazia em reproduzir servilmente os
modelos estéticos da metrópole. São eles, Mario de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Villa Lobos, e
outros mais, que, integrando os eventos vanguardistas de 1922, difundiram entre nós o gosto pelo
experimento, abrindo espaço para que um “mundo novo” se descortinasse diante de nós, trazendo-nos os
ventos da renovação artística e cultural, não sem enfrentar, é bom que se diga, uma grande dose de
resistência e de desconfiança, por toda a parte.

Num contexto de globalização de hábitos, que dá o tom de nossa própria contemporaneidade, questões tais
como o global e o local são incessantemente questionadas. Difícil, hoje, é pensar em culturas e bens culturais
que não sejam submetidos a padrões homogeneizantes, que não sejam programados em escalas globais. O
capital vem se propagando em dimensões planetárias de tal ordem que nos desafia quase diariamente a nos
formularmos a seguinte pergunta: mas o que é mesmo específico de minha cultura? Que signos operam na
confecção do imaginário dessa cultura? Será mesmo que essa questão ainda é relevante? Como lidar com
ela?

O fato é que evocar a figura de Oswald de Andrade nesse momento talvez seja oportuno. Receptivo à
experiência da alteridade, ele logo percebeu que era exatamente a exposição ao fora que nos dotava de uma
potência de criação invulgar. No entanto, o próprio gesto de devoração não continha em si nenhum princípio
de hierarquização, nenhum cálculo prévio do que supostamente seria de ‘bom tom’ devorar, digerir, para
melhor se incluir em algum nicho de mercado. Contrariamente a uma identidade business que tenta se alinhar
às experiências globalizantes, com um tempero local, que nem de leve pode dar ares de exotismo, mas de
certa forma guardas infinitas relações com o exótico, a estética antropofágica nunca esteve a serviço de
estabilizar mercados, oferecendo “coisas nossas”. Sua prática estética e política, era pura deriva
odontológica. Mordia-se o que se podia, e nunca se parava de morder e digerir e vomitar e se reinventar. As
raízes que Oswald sempre cobiçou foram as aéreas, que nunca se arvoraram em tentar fixar uma identidade
brasileira. Aliás, a lógica eminentemente bricoleur desse ritual, consiste, ao contrário, em manter bem
afastadas qualquer tentação de unidade.

Hoje, contrariamente, falar de uma identidade nacional é pensá-la em termos de penetração no mercado de
valores globais. E, para isso, é indispensável que se construa um marketing eficiente, um discurso
convincente sobre nosso potencial criativo.

“Somos o que somos... inclassificáveis”1

“Todos os outros países estão sempre se inventando sem parar, mas o Brasil aceita pensar essa invenção
constante. É isso o que é interessante do Brasil, e sem isso o Brasil perde o interesse como uma forma de
civilização específica” 2

Desde o final dos anos 90, a moda brasileira, mas não só, desperta imenso interesse no mercado externo. Em
2000, nunca se falou tanto dela. Pouco a pouco, vão desembarcando por aqui os jornalistas estrangeiros. A
temporada de 2001 apenas consolida um quadro que vai acentuadamente se delineando. De repente a cultura
brasileira está em alta e isso certamente se deve à afluência da mídia internacional cá por estas bandas. E
para melhor aquilatar a efervescência desse momento, é interessante acompanhar atentamente as palavras
entusiasmadas de Suzy Menkes, a poderosa jornalista de moda do Herald Tribune:

“ As cores são tórridas e as padronagens selvagens; os babados se espalham sobre corpos bronzeados e nus.
O norte da Europa pode ter um dos mais frescos verões e os céus mais cinzentos já registrados, mas uma
brisa quente latina sopra por entre a moda neste momento”. (...) Pense na praia de Copacabana. Há muita
moda no Brasil. Primeiro veio Gisele Bündchen (...) ela foi seguida por Fernanda Tavares e uma dúzia de
outras modelos com a aparência da Garota de Ipanema. Elas foram adotadas pelo fotógrafo Mario Testino e
trocaram o look de loura pálida pelo de morena e voluptuosa.
(...) Não há dúvida de que o estilo e a música do momento tocam ao ritmo latino. Jennifer Lopez, para lá de
quente, tem sido cortejada por Versace, enquanto Ricky Martin, o ídolo adolescente com voz de veludo, é
vestido por Armani.
(...) No outono, tudo era linear, gráfico e neutro. Agora é a vez dos babados e do movimento, silhuetas
curvilíneas e qualquer cor, desde que clara e exótica como um papagaio.”13

A partir desse pequeno fragmento já se pode perceber que nesse espaço inventado de latinidade Suzy
Menkes irá pendurar o que lhe der na telha. Um mero continente cenográfico, onde se embaralham figuras
sensuais de Gisele Bundchen, Fernanda Tavares, garotas de Ipanema e... a caliente Jennifer Lopez,
celebridade que acabou definindo o look da temporada: “o vestido transpassado na frente, com estampa de
palmeira e uma fenda na saia para revelar as pernas”. E tudo isso devidamente documentado pela câmera do
fotógrafo peruano, Mario Testino, famosa exportação da América Latina, segundo palavras dela.

Prevalece uma vez mais a concepção de uma América Latina homogênea, uma espécie de resort paradisíaco,
em que acabamos nos tornando a referência dominante. Inexiste de fato qualquer intenção de extrair dessas
culturas suas especificidades. Quem sabe por preguiça ou mera ignorância.

Esse olhar estrangeiro, que nos rastreia, ainda busca escorar-se nos inúmeros clichês que, de alguma forma,
ajudamos a inventar sobre nós mesmos: doces bárbaros, felizes e nus. Uma gente original, espalhafatosa e
sensual. Também, não podia ser de outro jeito, afinal herdaram o paraíso na terra, é o que pensam sobre nós.

De fato, não acho que haja inconveniente algum em afirmar nossa sensualidade e alegria, a não ser quando
isso vira carregamento de exportação para ser canibalizado em zonas temperadas, habitadas por gente
ponderada, ávida por consumir exotismos, nas horas vagas. É quando, então, somos aprisionados numa
imagem que amalgama volúpia e eterno cio.

Recorro aos meus recortes de jornal, e localizo algo que talvez possa nos interessar e dar continuidade à essa
conversa. Trata-se de uma entrevista, concedida pelo estilista Alexandre Herchcovitch à jornalista de moda
Erika Palomino, publicada no caderno especial de Moda da Folha de São Paulo em 16/06/2000.
EP: O que você acha do atual momento da moda brasileira?
AH: Tem gente que fala para mim: aproveita que agora vêm os jornalistas internacionais e faz biquini. Bem,
o trabalho não mudou porque agora vem gente ver. Os trabalhos têm de ser universais. Quem fizer moda
regional vai morrer em duas coleções. O que vai prevalecer são os trabalhos com personalidade.
(...) No caso do Lino Villaventura, se as pessoas vierem buscar o regional, então é o momento dele, porque
ele sempre fez isso, então ele está muito coerente com isso tudo.

Fico imaginando o que de fato Herchcovitch quis dizer ao se referir a trabalhos com personalidade. Talvez
sejam aqueles que forcem passagem na subjetividade do estilista, porque precisam se materializar, porque
são absolutamente vitais à sua existência. Daí, inevitavelmente atritarem-se com os padrões que vêm de fora,
contrariando as expectativas de sujeição, de passivo encaixe. Nesse sentido, um trabalho com personalidade
seria, então, a busca de uma via singular, bastante ativa de criação. É exatamente essa via singular que
predomina na criação de Alexandre Herchcovitch, sempre às voltas com uma história tão pessoal que se
fortalece e se amplifica ao dar ouvidos ao que não é “seu”, pertence ao mundo. Quanto ao fato dele dizer que
os trabalhos têm de ser universais, isso soa para mim como uma fina percepção de que é necessário ajustar
sua criação singular às demandas de signos globais, para obter inserção no mercado. Se não, vira-se um
nada. Isso, para mim não é nem um bom ou um mal sinal em si mesmo, o que me interessa é perceber a
dinâmica de funcionamento do mercado global.

Quanto à leitura que ele faz do estilista Lino Villaventura, suspeito que haja um equívoco de avaliação. Não
se trata, a meu ver, que Lino procure dar consistência a uma história regional, pura e simplesmente. Suas
roupas falam de misturas. Ele traz à cena o proveitoso diálogo entre repertórios tão diferentes e igualmente
complexos, cada qual a seu modo: o popular e o erudito, o “bárbaro” e o tecnológico. E isso nele é marcante.
Ele se arrisca em diferentes sotaques, até mesmo naqueles que possam estar “em baixa” em termos
mercadológicos.

Acho mesmo que essa inquietude é que não deixa o Brasil parar de se inventar, aquilo para que o Hermano
Vianna nos chama atenção lá no início do texto, provém dessa nossa constituição em patchwork, desse
terreno acidentado, bem pouco homogêneo em que se assenta a cultura brasileira. Nossa potência, decerto,
porque nos dá forças para inventar, a partir de nossa precariedade, mas também nossa ruína. É
impressionante nossa capacidade de sermos maleáveis, a ponto de subordinarmos nossa própria existência ao
consumo voraz das últimas tendências do mercado. Isso tudo, sem ao menos parar um só instante para se
perguntar: mas isso faz sentido na minha vida ?

Ao Invés de Raízes, Asas

Gosto muito de aludir ao designer como um diagnosticador de seu tempo, de sua cultura, enfim, deste
contemporâneo que o circunscreve. Ele, que é capaz de materializar questões que nos são caras em nosso
cotidiano, propondo-nos diferentes abordagens para elas, espalhando outros valores entre nós. E é claro que
essa íntima conversa que trava com suas próprias referências se contamina o tempo todo com o que está se
produzindo nos espaços exteriores à sua própria história.

É importante nos lembrarmos de que vibra em nossa tradição cultural uma prática antropofágica de viver.
Devoramos o que nos traz potência para existir nos expandindo, nos reinventando, ao menos essa é a
formulação ritualística do que seja uma experiência antropofágica. Consolidamos essa lição com o
modernismo, e a figura do filósofo-escritor Oswald de Andrade para nós se torna indispensável referência.
Ele, que “numa viagem a Paris, do alto da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua
própria terra”, palavras do escritor Paulo Prado.

Paris afetou-lhe a alma e provocou nele o deslocamento necessário para que iniciasse uma estranha viagem:
a de desbravador de si próprio. Alguém que tanto mais se conhece quanto se deixa atravessar pelo o que não
é ele mesmo, pelo vasto mundo que permite ressoar em seu corpo. Um projeto cosmopolita que não trancafia
em sua valise de viajante as vivências de heterogeneidades que já traz consigo. Oswald devora a Europa que
lhe interessa, a que lhe pode prover combustível para a reinvenção de si próprio e da cultura que lhe abriga.

Vê-se que esta atitude descarta completamente qualquer possibilidade de converter a Europa, neste caso
específico, ou, que seja, os EUA, numa versão mais recente, desde os anos 50, em modelo pronto a ser
copiado e reproduzido. Hábito, por sinal, bem ao gosto das elites brasileiras, infelizmente. E o mais patético
disso tudo é que consomem tudo, sem problematizar coisa alguma. Devoram toda sorte de bugigangas
caríssimas, que, segundo lhes afiançam, lhes conferem distinção, os fazem sentir incluídos nessa parcela vip
de primeiro mundo, tão ambicionada por eles. Para Suely Rolnik, é quando “vence o vetor negativo desta
tradição (antropofágica)”, e vamos nos entalando com tudo, sem senso crítico algum. O contrário disso se
daria quando o vetor oposto se afirma e a “antropofagia nos torna mais invulneráveis à sedução das
tendências”.4 Neste caso, nossa capacidade de criação e improvisação se liberam de quaisquer orientações
imitativas, reprodutivas. “ (...) Têm empresas grandes de moda que poderiam lançar o que quisessem, mas
não. O Brasil está sendo visto, e agora? Vão mostrar cópias deles? As pessoas têm que ter mais coragem.” 5
Essa observação feita pelo estilista se ajusta perfeitamente ao trecho de entrevista que reproduzo a seguir,
concedida pelo escritor e jornalista inglês Collin McDowell ao sociólogo e pesquisador de moda Dario
Caldas. Collin McDowell acabara de chegar a São Paulo para acompanhar a temporada de desfiles de 2001.

“O Sr. Certamente conhece alguns estilistas brasileiros e tem algumas informações sobre a moda local.
Então, o que o Sr. espera ver no Brasil?
Responde McDowell:
Espero que a moda do Brasil seja excitante e inteligente, e que reflita o estilo de vida e da cultura do país,
sendo diferente do que encontramos na Europa e em Nova York. Se não for diferente conceitualmente, para
que existiria então? Globalmente, já vimos muitos talentos. O Brasil poderá servir como centro de moda
somente se encontrar algo único para trazer ao mundo. Espero e conto com isso.6

Pensar em identidade brasileira hoje é inevitavelmente vê-la articulada à idéia de mercado. Nossa existência,
avaliada pelos mercados globais, se traduz em termos de sermos capazes de nos traduzirmos em marca
original. Se o mundo anseia por diferenciação e originalidade, nós que somos polifônicos culturalmente,
certamente poderemos chegar a ocupar um lugar de destaque. Esse é o pensamento que predomina. E tudo
passa a ser tratado como uma espécie de gincana, cujo vencedor será aquele que melhor se posicionar
estrategicamente nas regras do mercado, que, certamente, as manobra, dita, ainda que sutilmente, o que de
fato nele pode ser incorporado como valor criativo único. E lá vamos nós com nossas marcas estampadas
atrás de compradores: Brazilian fragance, Brazilian juice , até chegar no Brazilian body and soul. Fico
pensando se essa seria mesmo a única forma de lidarmos com esse mundo-mercado globalizado. Como
pensar em endossar discursos hegemônicos, se vivemos o paradoxo de existirmos internamente em
constantes conflitos sociais, de ordem puramente econômica. Seria o caso, então, de empreendermos todos
os nossos esforços para nos configurarmos de acordo com as exigências de uma dinâmica econômica
globalizada? Essa é a nossa sinuca de bico. Sob o abrigo da expressão Made in Brazil, pipocam existências,
cujo denominador comum dificilmente encontraríamos. Pelo visto, a Marca Brasil é confeccionada de
muitos logos, para se usar o jargão. Alguns altamente tecnológicos, outros de uma rudeza de acabamento
quase simplória, pura baixa tecnologia, mas cuja convivialidade, certamente não sem atritos, nos ajuda a
divisar no horizonte sempre o múltiplo no lugar do uno.

Um Fim sem Fim

O recado está dado e parece ser este: pretendemos ser apenas reféns de um território de referências-padrão ou
cobiçamos algo mais? De nossa desenvoltura para misturar repertórios, acredito que ninguém mais duvide.
Afinal, é o que temos feito o tempo todo. E essa alquimia vem forjando estéticas muito singulares. A cena da
música eletrônica brasileira hoje ilustra isso muito bem: agrega aos padrões rítmicos marcantemente
populares as batidas eletrônicas. Afina sem cerimônia baixa tecnologia com tecnologia de ponta, e produz
outra coisa, um híbrido, que nos torna sensíveis a outras realidades musicais. E o que dizer, por exemplo, da
imersão de vários projetos de design em nossa tradição artesanal, buscando com ela conexões bastante
inventivas?

Em termos de design de moda, a parceria de Walter Rodrigues com as rendeiras do Piauí (2001) configurou-
se um interessante exemplo. O que podemos supor é que certamente dessa contaminação resultaram
profundas transformações. Amplificou-se o espaço de criação em ambas as partes. Redimensionou-se e
redesenhou-se o território existencial de cada um dos sujeitos envolvidos no projeto. E o resultado é o
híbrido produzido por essa conjunção: a ativação da tradição, não pela via do seu “resgate”, mas por sua
incorporação pelo ambiente tecnológico desenhado no presente.

Acredito que não precisamos ficar evocando nossas raízes, ou qualquer outra coisa que clame por fixar
identidades “patropi”. Não é de raízes que precisamos, mas de asas que nos permitam flanar, avaliar e
contrabandear com o que vem de fora. Mas para isso é indispensável ativar nosso orgão da visão, calibrando-
o com as interrogações adequadas, para que a gente pare de funcionar apenas aderindo ao que não nos diz
respeito, nem aos nossos corpos nem às nossas almas. Caso contrário, nossa potência de invenção pára de
funcionar, encalha. É quando, por exemplo, o corpo vira mero estandarte de tendências hegemônicas, e a
gente vive fingindo que aquilo tudo faz algum sentido, simplesmente porque vivemos sem vislumbrar
quaisquer prioridades para nós, exceto encaixar adequadamente em algum estilo publicitário que se vende
por aí, a todo momento, tentando convencer a todos que a vida é um mero slogan bem bolado.

Notas
1
Fragmento de verso de uma canção do compositor e poeta Arnaldo Antunes, intitulada Inclassificáveis, CD Silêncio.
2
Comentário feito pelo antropólogo Hermano Vianna, extraído do documentário Intérpretes do Brasil, dirigido por Isa
Grispum Ferraz.
3
Moda – Caderno Especial, editado pela Folha de São Paulo, 25/8/2000
4
Ambas as citações são de autoria da psicanalista e ensaísta Suely Rolnik, e constam do ensaio “Corpo Vibrátil”,
escrito para o catálogo da coleção outono/inverno e 98 da M. Officer.
5
Alexandre Herchcovitch: Entrevista a Érika Palomino (cit.).
6
Entrevista publicada na Folha de São Paulo em 26/06/2001.

Bibliografia

ANDRADE, O. Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 1990, 141 p.


ALMEIDA, M.C. F. de. Tornar-se Outro. São Paulo: Editora Annablume, 2002. cap. 1, 295 p.
BIANCO, G.; BORGES, P. O Brasil na Moda.. São Paulo: Editora Caras, 2003. cap.1, 1276 p.
FREIRE, G. Modos de Homem & Modas de Mulher. Rio de Janeiro: Editora Record, 3o .edição, 1986. 181
p.
HELENA, L. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo: Editora Ática, 1986. cap. 3 e 4, 80 p.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. cap. 4, 476 p.
VANNUCCHI, A. Cultura Brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1999. cap. 3, 141p.

Publicações

ESTRADA, M. H. Uma Inversão do Olhar, de autoria de Estrada. In: Revista Arc Design julho/agosto de
2002. n. 26. São Paulo.

Rosane Preciosa - rpreciosa@uol.com.br

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