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História oral, caminhos e descaminhos

António Torres Montenegro*

A problemática que a história oral tem suscitado pode ser projetada


em uma diversidade de campos. Poder-se-ia enumerar alguns com o
objetivo de possibilitar caminhos para reflexão.
A partir da década de 1960, o depoimento oral se constitui em fonte
para a produção do historiador. Muitas questões são alvo de estudos e
debates.1 Nesse cenário surgem exageros como a afirmação de alguns
autores, para quem a democratização resultante da possibilidade de todos
contarem sua versão das histórias vivenciadas e ou aprendidas apontaria
para encerrar com a exclusividade corporativa do fazer historiográfico.
Essa postura revela uma forma simplista e reducionista de tratar a
contribuição da história oral para a compreensão do passado. Uma outra
perspectiva que tem gerado muitos equívocos é metodologicamente
trabalhar um depoimento da memória, depois de transcrito, como sendo
da mesma natureza que a fonte escrita. Michael Hall em seu artigo
"História Oral: os riscos da inocência", ao abordar aspectos
problemáticos da história oral, relata algumas experiências frustrantes.
Segundo Hall, determinados entrevistados nada acrescentam ao já
conhecido, embora o depoente — no caso em tela — tivesse tido uma
importância ativa nos acontecimentos de 1945. Ou mesmo um outro
entrevistado participante, em São Paulo da greve de 1917, que confundia
com a de 1919.2
Nas minhas próprias pesquisas recordo que, embevecido pelas
leituras de Walter Benjamim, desejava que o entrevistado descrevesse a
cidade, suas ruas, casas, praças, monumentos, suas mudanças, assim como
este fizera em Infância em Berlim.3 Nesse sentido, deve-se estar atento
para o fato de que o entrevistado não tem obrigação de preencher as
lacunas, estabelecer elo nos fragmentos ou corresponder a projetos de
pesquisadores ciosos de seu labor académico. O respeito ao entrevistado
supõe possibilitar que este desenvolva suas observações, análises,

*Professor de História da Universidade Federal de Pernambuco.


1 LÊ GOFF, J. História Oral e Memória. Enciclopédia Einaud.
2 HALL, Michael M. História Oral: os riscos da inocência in O. Direito à Memória
— Património Histórico e Cidadania, uma publicação do Património Histórico da
Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura do Município de São Paulo, DPH, 1992.
3 BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas.

\Rev. Brás, de Hist. | S. Paulo] v.13, n" 25/26 | pp. 55-65 | set. 92/ago. 93 |

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um conjunto de processos que nos tornam idênticos e diferentes das
pontos de vista, sentindo-se livre da obrigação de atender a c|inili|tici demais pessoas com quem convivemos.
expectativa. Deve-se ainda observar que a memória é resultante •! > É nesse cenário que se pode estabelecer uma reflexão entre a força
vivência individual e da forma como se processa a interiori/ai .><• do dos significados socialmente definidos e que são registrados cotidia-
significados que constituem a rede de significações sociais. Nesse namente na memória e, em outros momentos, a forma como o aconte-
sentido, não se deve imaginar que o depoente responderá de I m i u . i cimental histórico vivido se constitui em um território de experiências
conclusiva a nossas indagações. A memória possibilita resgatar as mau .is transcendendo ao socialmente estabelecido.
de como foram vividos, sentidos, compreendidos determinados moiiu-mn-. Muitas entrevistas relatam marcas que algumas vezes em nada se
determinados acontecimentos; ou mesmo o que e como foi transmiiul" < diferenciam do que está registrado em outras fontes. No entanto, a
registrado pela memória individual e ou coletiva. dimensão da memória, mesmo quando coincide ou reproduz os signi-
ficados sociais institucionalizados, oferece elementos para reflexão acerca
da força das marcas das histórias que se tornaram hegemónicas. Nesse
HISTÓRIAS DE VIDA aspecto, merece atenção a força com que ficou gravada em uma parcela
da camada popular trabalhadora (hoje aposentada) a memória de que
A entrevista realizada na perspectiva da história de vida estabel. . < Getúlio Vargas foi o único "que fez pela pobreza".5 Alguns fragmentos
um campo de resgate da memória. São experiências, acontecimcni"'. das falas dos entrevistados ajudam a recompor e compreender o processo
momentos que constituem as fontes de significados a serem revisitado- de fundação de marcas significativas da memória em relação a Getúlio. Para
diversos entrevistados, esse teria sido o governante responsável pela
Diferentes são as entrevistas que têm como foco determinados temas, \\.\\s a preocupação básica são opiniões, pontos de vista, análises ,\»
institucionalização da legislação trabalhista, que passou a garantir "apo-
sentadoria, férias, salário mínimo..." Tal legislação, que procura construir
entrevistado. Esse tipo de entrevista se caracterizará por uma consinii,.!»
um ordenamento jurídico das relações de trabalho, materializa-se no interior
em que predomina a racionalidade ou mesmo o discurso racionali/ailo d»
de um discurso e de uma política de propaganda sistemática de reificação
entrevistado. da imagem de governante. Apenas entre trabalhadores aposentados que
Adélia Bezerra, em seu artigo Memória e Ficção, realiza uma i n .1 têm uma militância política no Partido Comunista é que encontraremos
reflexão ao analisar no Phenon de Platão a metáfora do bloco de ceia falas que instituem um contra-discurso a essa representação oficial.6
caracterizando a memória —, onde seriam impressas em intensidadei
diversas as marcas constitutivas da memória individual e colei i \
Algumas se tornam permanentes, outras se apagam. Nessa perspecdva e REFLEXÕES SOBRE UMA PRÁTICA
que a autora visita Funes o Memorioso de Jorge Luis Borges, e evideiu 1.1
a necessidade vital de seletividade da memória. Funes, ao passar a me A relação entre o entrevistador e o entrevistado é outro aspecto
morizar (em razão de um acidente) tudo que os sentidos registram, mói constitutivo da produção de um depoimento. A postura de um entre-
rerá de convulsão pulmonar, pois viver torna-se impossível.4 vistador deve ser de um parteiro que não conhece a pressa e a impaciên-
Poder-se-ia então iniciar algumas considerações sobre a trilha < l . i cia e está disponível a ouvir as histórias do entrevistado com o mesmo
memória, reconhecendo a seletividade como uma das caractciísii> .is cuidado, atenção e respeito, tenham estas significado ou não para a pes-
fundantes. Entretanto, se imaginarmos ter avançado alguns passos n.i quisa em tela.
construção da compreensão dessa nossa capacidade de registrai « > Existem diferenças marcantes entre as entrevistas com pessoas
passado, somos surpreendidos ante a questão: mas o que nos faz rcgi.sii.u comuns e com líderes políticos, comunitários, religiosos, esportivos, estu-
determinados acontecimentos e outros não, ou determinados falir, i dantis... Entre esses últimos observa-se constantemente uma nítida
detalhes? A cultura, o inconsciente, a história individual e coletiva... Esses preocupação em construir um discurso que tenha uma lógica, uma coe-
seriam fatores constitutivos das formas de relação que se estabelecem eniie rência, e que fortaleça a imagem que o entrevistado deseja pública. Para
o sujeito e o acontecimental histórico vivenciado cotidianamente. E n l i m .
5 MONTENEGRO, António Torres. História Oral e Memória. (A cultura popular
revisitada). São Paulo, Contexto. 1992, pp.103.
4 BEZERRA, Adélia. Memória e Ficção in Resgate (Revista de Cultura do (Vnin 6 Ibid., p. 103.
de Memória — UNICAMP. Campinas, 1991 — N.3, pp.09-15.
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Eu digo: 'Então, pronto, se não querem pagar o povo da área, tam-
eles as marcas da memória já estão organizadas segundo um rodipi |>n
bém o povo da área não vai fazer mais nada. O senhor bote os traba-
viamente definido. Esta postura de muitos entrevistados | > < > , | .
associada à preocupação em evitar que o caráter contraditou» c lhadores para trabalhar, agora que ninguém vai pegar mais uma pedra para
mentado da memória (e em última instância das experiências i n t e r n m , M < I > fazer, ninguém vai mais'.
se torne do conhecimento público. A prática de alguns entrevistado- Aí ele disse: 'Mas num já começou o trabalho?'
produzir um discurso racionalizado acerca de sua memória é a Icniahv.i .1. Começou mas os homem não aguentam mais, estão tudo morrendo
fundar (o próprio depoente) os significados e as explicações do i|n< . de fome, nem um lanche o senhor não vai levar'.
narrado. Aí ele chegou e disse: 'Tá certo, se ninguém quer mais. A
O caráter contraditório das experiências humanas vivem i.ul.r. < senhora faça uma reunião lá dizendo que a gente vai levar os
interiorizadas, e que se constituem em memórias, pode ser aie.siail- trabalhadores, que ... encerrou o trabalho."7
diversos depoimentos. Tomemos uma passagem do depoimento de \ O relato de Tota projeta uma resistência que se estabelece na
tonia Vidal (Tota), quando descreve a construção do canal da M a i . i i c n . i periferia dos mais diversos centros urbanos do Brasil, onde as mulheres
após uma grande cheia do Rio Capibaribe: assumem a liderança das lutas sociais. São elas que, vivenciando de forma
Eu sei que, com esse negocinho, o prefeito Gustavo Krau-.e. i m n
mais efetiva a reduzida oferta de serviços de bens coletivos, organizam-se
esse negócio de ir lá, pronto, aí ele destinou a fazer a pista. Aí >
e desencadeiam um combate pela construção de uma outra realidade.
a botar a gente pra trabalhar e começou a chegar pedra, aí ele l.ilmi .1.
fazer o canal, aí botemo esse projeto. Ele entrou com a gente eom ev,< Nessa entrevista é resgatado um enfrentamento com o poder público (a
projeto de UM POR TODOS. Todo mundo achando bom, e os hoine ,u l prefeitura) para a construção de um canal, em que a população participava
os home parado, morrendo de fome, a ninhada de filho tudo pedindo |n 1.1 como mão-de-obra gratuita. Tota descreve a ação para subverter esse
rua, morrendo de fome, as mulheres seca, não podendo nem falai, t m Io «h quadro.
fome pegando aquelas pedras triste que meu velho, foi o que aeahon Durante a mesma entrevista, Tota rememora a relação que vivenciou
meu velho foi isso. Problema daquelas pedras atacou mais o corai,.10 ,i. i intensamente enquanto operária da fábrica têxtil da Macaxeira.
foi isso. Cada pedra que não tinha mais tamanho, os homens i n . l » "...quando vim trabalhar, aí era o recreio que o finado Othon,
trabalhando naquele negócio. Quando é um dia eu olhei assim, h.|u. i agora a fábrica tem muita, muita gente dentro, mas ruim, mas no tempo do
pensando... mas que é que esse povo está fazendo? Chamei coni.uln-. > n finado Othon, ali era um pai. Era. Qualquer funcionário, podia ser pobre-
digo: 'Comadre, bora fazer uma reunião de noite com esse povo', ( ' u i i i . n i i . zinha, podia ser tecelã, podia ser do escriturário, ganhava aquele... aquele
disse: 'Mas, comadre, isso aí é projeto da prefeitura'.
dote para casar, o vestido, a capela, o sapato e ainda vinha, ainda ganha-
Eu digo: 'E o que é aqui é da prefeitura que o povo não t u a ' H"i.i
va aquele dote para casa, o forro da cama do dia, aquelas colchas de
lá, vamo fazer uma reunião, rapaz, com esses homens'. Aí l i / r n
reunião de noite. Nesse dia, o pessoal todínho da área que traballi.iv.i I . H rendão, aquelas coisas lindas que ele dava, aquelas coisas todinha e a
Tinha umas sessenta pessoas que tava dentro do trabalho do c.in.il l i > gente ainda tinha um mês para voltar ao trabalho, ele dava. As mulheres,
mulher carregando pedra, era menino acidentado, era aquela l o n i n Ia para descansar, a licença era... três meses. Agora que eles estão dando aí
danada. Fizemos a reunião, eu digo: 'Olha, minha gente, uma cois.i • u na fábrica, agora três meses de licença, no tempo dele era seis meses de
dizer a vocês: vai todo mundo parar esse trabalho no canal...' Teve t licença que ele dava. Três meses do menino, três da mãe. Sete de setembro
que ficou revoltado comigo. 'Vai todo mundo parar, porque vm . ele dava camisa de setembro, mês de setembro, ele, quando chegava 7 de
botar na cabeça de vocês que a prefeitura tem trabalhador, c por i|m setembro, a gente tudinho marchava, dentro do recreio, aquele recreio para
a gente se sujeitando a isso? Trabalhar morrendo de fome, os p.n .1. ele era um céu, aquilo ali, quando ele via a gente tudinho ali dentro,
família parado. E, se eles vier fazer esse trabalho também com o i saltando, finado Othon, ele ficava ali no meio, que nem um bonequinho
daqui, lhes pagando a esses pais de família que estão parado l 1 .
aquele pouco, para aqueles homens que estavam parados, mas ele n.i» <\>n
fazer esse acordo de pagar. Quando ele botou para dentro, ele n . n > <|m
pagar, disse que na prefeitura tinha homem para trabalhar, que \.> VIDAL, Antônia. in Casa Amrela. Memórias, lutas, sonhos ... Recife,
Departamento de Memória da Federação dos Moradores de Casa Amarela, 1988,
com trabalho, ganhando da prefeitura'. pp. 22-23.

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"Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as ima-
velhinho no meio da gente. Aí ele dava blusa e sapato. Quando era São
gens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me es-
João, era um corte de pano, Natal era um corte de pano corte mesmo."8 perar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos recep-
A operária que rememora e interpela o patrão de pai é subsumid;i táculos ainda mais recônditos. Outras inrrompem aos turbilhões e, en-
no pacto paternalista, que se instala na fábrica.9 A força do imaginário quanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio como que a
patrão/pai arrebata Tota, deixando-a inteiramente grata e reconhecida dizerem: — Não seremos nós? — Eu, então, com a mão do espírito, afasto-
"àquela prática bondosa". Não é e é a mesma Tota que resiste ao projeto as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu
da prefeitura de construir o canal com mão-de-obra gratuita dos moradores. esconderijo a imagem apareça à vista."12
Narradora exemplar, percorre os meandros labirínticos da condição de mu- Essa reflexão de Santo Agostinho muito se assemelha à descrição
lher, operária, mãe e esposa, trazendo à tona experiências, emoções, vivên- de Halbwach das formas de visitação à memória. Para este há um passado
cias. Entretanto, muitos destes territórios da memória, ao se materiali/ar "que nos é possível evocar quando queremos: e aqueles que, ao con-
em relatos e serem comparados/analisados, correm o grave perigo de trário, não atendem ao nosso apelo, se bem que, logo que os procuramos
apenas receberem o tratamento de contraditório. no passado, parece que nossa vontade tropeça num obstáculo".13
A diferença residiria, segundo Halbwach, no fato de que os
acontecimentos "e as noções que temos mais facilidade em lembrar são
REVISITANDO MEMÓRIAS do domínio comum ... e é por podermos nos apoiar na memória dos outros
que somos capazes de lembrar".14 Enquanto "daqueles que não podemos
Um outro aspecto a ser analisado é o do resgate da memória. Esta nos lembrar à vontade, diremos voluntariamente, que eles não pertencem
é construída a partir de um universo diversificado de marcas que podei a aos outros mas a nós, porque ninguém além de nós pode conhecê-los".15
nos remeter ao relato de imagens, situações, acontecimentos ou a narração A análise de Santo Agostinho e Halbwach está voltada para uma resis-
de experiências. Tais quadros são relembrados por um processo dr tência própria ao processo mental individual de lembrar. No entanto, para
o trabalho de história oral, há de se considerar a relação que o próprio
estímulos dirigidos à memória voluntária ou através de processos asso
entrevistado, que vive um outro presente, tem com o passado. Permitir-se
ciativos inconscientes e/ou desconhecidos à memória involutária.10 Ncssi-
trazer à tona comportamentos, situações, pontos de vista muitas vezes em
sentido, o conjunto de fatores que transformam um fato, uma imagem, uma
completa contradição com valores do presente coloca-se como uma enorme
sensação em marcas da memória nem sempre são conhecidos. Em outros
ameaça, pois a imagem social e pública que se tem no presente é muito
termos, temos a memória voluntária que, estimulada, nos faz narrar ira;' diferente do passado. Relembrar é projetar publicamente um cenário a que
mentos do nosso passado e que está, no entanto, de maneira invisível a ótica do presente poderá oferecer inúmeras restrições. No interior deste
associada à memória involuntária. conflito é que muitas vezes um relato, uma descrição do passado des-
No interior desse processo de universos imbricados, o tempo crono- colam-se dos fatos e se transformam em um discurso, uma fala racio-
lógico inexiste. O tempo da memória é o tempo da experiência de um perío- nalizada. Produz-se uma representação dissociada do vivido, do sentido.
do de vida, de atividade profissional, política, religiosa, cultural, afetiva... que Na contramão de todos esses perigos está o narrador. Aquele que
nos arrebata e condiciona quase que inteiramente, nos fazendo perceber c tem a capacidade de relatar, descrever acontecimentos, fatos, situações
reconstruir a realidade de uma determinada maneira. Realizar uma entrevista suas e de outros como um artesão que produz uma peça. A dimensão
é sobretudo a tentativa de visitar com o entrevistado esses territórios utilitária do que narra está presente na forma de conselhos e sugestões
diversos, que se relacionam e se comunicam através de uma lógica para práticas. Evita explicações, deixando inteiramente livre a interpretação.16 E
nós desconhecida.11 como observa Walter Benjamim, o narrador figura entre os mestres e os
Santo Agostinho, nas Confissões tem uma passagem que resgata o
processo de visitação a sua memória.
12 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Petrópolis, Editora Vozes, 1988, p. 224.
13 HALBWACHS, Maurice. Op. cit., p. 49.
14 Idem.
8 Ibid., p. 22. 16 Idem.
9 PERROT, Michelle. Os excluídos da história, pp. 82-83. 16 BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São
10 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice. 1990. Paulo, Editora Brasiliense, 1985, pp.197/221.
11 BOSI, Ecléa. Lembrança de velhos. São Paulo, T. A. Queiroz Editor, 1983.

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sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, lesisiir àqueles momentos difíceis; na fé para surpresa de muitos... A
mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de . omunhão, ritual da liturgia católica, era a fonte que alimentava espiri-
toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas iMalmente Aguiar para resistir, não apagar ou negar o passado, a derrota,
em grande parte a experiência alheia). — "Seu dom é poder contar sua vida: a ijueda. Estabelece uma união entre o comunismo e o catolicismo, quando
sua dignidade é contá-la por inteira —",17 esles oficialmente se digladiavam. Transcende seu tempo, a cultura oficial
Uma pequena passagem da entrevista de José de Aguiar, um velho l .itirma sua fé inquebrantável de que os tempos das mobilizações, dos
militante comunista e católico praticante (faleceu em 18/7/88), é um relato sindicatos, das lutas voltariam e o encontrariam no seu posto.
Assim como José de Aguiar, Joventino é um outro entrevistado
de uma intensa experiência de vida. Experiência individual, social coletiva
(|uo evidencia as características do narrador. Na passagem de sua entre-
para muitos que como ele viveram "o silêncio" que se segue ao golpe de 64.
vista (a seguir), Joventino descreve "uma experiência alheia" que lhe dei-
"Porque minha prisão foi uma prisão incomunicável, ninguém, nem
meu pai nem minha mãe puderam me localizar, saíram à minha procura em xou marcas indeléveis na memória.
"Olhe! Esses senhor de engenho, tudo era ruim. Que antigamente
cima de seis dias que ninguém sabia do meu paradeiro. Não só a minha
na manobrado pelos perrepistas, era um pessoal desumano, tudo era mal-
família, como também a família de muitos companheiros. Inclusive quem
vado, era, era um pessoal malvado naqueles engenhos... Nós trabalhava
mais sofreu é a família dos prisioneiros é que as mãezinhas, quantas
Li, Banhava l 200 por dia. Trabalhava seis dias pra ganhar 7 200, nera?
mãezinhas que tiveram suas crises, caíram por dentro de casa ou nas ruas
7 200, e não pagava na mão, não, pagava avoando. Aí a tempo chegou
de ataque e quantas foram hospitalizadas e quantas mãezinhas morreram
MUI camarada magro, disse: 'Colega, tem trabalho aqui?' Eu disse: Fala com
com a prisão dos seus esposos, com a prisão dos seus filhos. O silêncio 0 administrador', aí ele falou. Aí o camarada chegou: 'Rapaz, aqui é bom,
dominava o campo, e o silêncio dominava dentro das fábricas e o silêncio mas o pagamento ele não dá na mão', ele avoa'. Ele disse: 'Olhe, vocês
dominava diante dos companheiros. hca tudo ao meu lado, porque ele hoje vai pagar"na mão'. Eu disse: 'É
"A minha volta ao trabalho: no primeiro dia, assim que na minha mesmo?' Fulano de tal, vu, vu, vu. Olha, pra ganharr 7 200, é seis dias a
hora eu saí pra fazer meu lanche fora da fábrica e no lugar que eu me 1 200, né? 7 200. Ah, meu filho, quando chegou a vez dele, ele com uma
sentei fiquei sozinho, porque aquele grupo de companheiros que nós i .musa branca punho virado. Aí o camarada, chegou a vez do camarada,
sentava junto todos os dias naquela hora de café para dialogar, tomar o somente uma semana que ele trabalhou, ele disse pra mulher em casa:
nosso cafezinho conversando, sorrindo, tudo isso desapareceu. O silêncio! 'Mulher, te cuida na burrinha, bota cangalha na burra, que eu hoje vou
Entrou no coração de todos, fez com que nós ficasse disfarçado uns aos ensinar'. A mulher já ficou prontinha, sabe? A mulher e o filho, que ele
outros. Procurava os companheiros para conversar comigo e não encon- chegou, nós tudo na fila. Aí se ... o nome dele era ... Seu António ... fulano
trava, o companheiro não visitava minha casa, o companheiro não ia na de tal ... vu, vu, vu ... Ele subiu, pela escadinha, chegou lá, cara meteu,
minha máquina para falar comigo, o companheiro não me acompanhava levantou um punhal deste tamanho, pegou ele assim disse: 'Você vai pagar
para o trabalho e também não me acompanhava de volta para casa e eu é na mão'. Aí botou aquilo aqui no rosto e desceu com ele e disse:
passei os seis meses andando sozinho sem ninguém chegar na minha casa 'Apanhe!' Mandou. Ele apanhou, apanhou, apanhou, deu na mão dele,
Até mesmo os próprios companheiros de partido tiveram medo ou que se agora ajoelhe pra morrer. Ele disse. 'Não, mas eu sou um pai de família'.
assombraram ou que não se aproximaram. Fiquei isolado de visita, de tudo, Ele disse: 'Agora?!' 'Não, mas eu cumpria a ordem do senhor de engenho'.
se não o caminho que tinha para mim era o caminho da igreja, a donde ou Ele disse: 'Todas as ordens não se cumpre, não, você vai morrer!' Ele
nos domingos ia assistir a celebração da missa e que lá eu recebia aquela disse: 'Apois antes de você morrer, você faz um juramento, faça. Você
comunhão e buscar conforto para que pudesse voltar diante dos compa ainda paga um pobre de um trabalhador assim?' Ele disse não senhor.
nheiros àquela vida. Foi passando para anos, o silêncio era a mesma o>i\.i 'Ainda assim, você é perrepista ou é liberal?' Sou liberal, o que dizia que
e tudo na vista da gentinha desaparecido, as mobilizações, sindicato, não era perrepista morria na hora."11
se falava na fábrica ou em parte alguma durante esses anos."18 Joventino, embora não seja o personagem central da história — pois
O dom de José de Aguiar, sua "dignidade" é "contar sua vida" conta a história do agricultor António —, constrói um relato pontilhado de
por inteira. Sua sabedoria é mostrar a todos onde buscava forças p.n.i marcas que transformaram este acontecimento em uma fonte de ensina-
mentos. Astúcia, senso prático, aconselhamento, sabedoria, podem ser
17 Ibid. p. 221.
18 MONTENEGRO, António Torres. História Oral e Memória. (A cultura
revisitada). São Paulo, Contexto. 1992, p. 127. " Ibid., p.89.

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descobertos em quem se dispõe a ler — ouvir — essa história de Joventino. -. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1980.
E quem poderá esquecer o brado, a exclamação, a afirmação universal, UOSI, Ecléa. Lembranças de Velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
IHIRKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
"todas as ordens não se cumpre, não" e mais uma vez reencontrar o
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
narrador Benjaminiano: "O narrador é a figura na qual o justo se encontra 1982.
consigo mesmo" 20 OLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
DANIELSON, Larry. "The Folklorists, the oral historian and local history". In: The Oral History
REFLEXÕES FINAIS Review. Fullerton: Huthson, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
Todas as veredas percorridas nesse trabalho têm peculiaridades —. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, 1986.
próprias de uma sociedade onde aproximadamente 60% são constituídas LÊ OOFF, Jacques. Memória — História. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.
HALBWACH, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
de analfabetos. Construtores cotidianos da história têm deixado poucas
MONTENEGRO, António Torres. História Oral e Memória. A Cultura Popular Revisitada. São
marcas de como vivem, sentem, experimentam, desejam, sonham, pensam Paulo: Contexto, 1992.
o presente, o passado e o futuro. Nesse aspecto a história oral (no tra- —. Bairro do Recife l Porto de Muitas Histórias. Recife: Gráfica Recife, 1989.
balho com os segmentos populares) se constitui em uma possibilidade . Cosa Amarela. Memórias, Lutas, Sonhos. Recife: Inojosa, 1988.
efetiva de produção de um vasto campo documental. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Variações Sobre a Técnica de Gravador no Registro da
No entanto, deve-se também detectar o fato de que a prática da Informação Viva. São Paulo: Ceru, FFLCH/USP, 1983.
história oral tem uma enorme possibilidade de se constituir em uma TORRES, Rosa Maria. Recuperar Ias Historias dei Pueblo. Quito: Universitária, 1987.
comunidade de ouvintes. Nesse processo é que será possível visitar me- VERENA, Alberti. História Oral: a Experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1989.
mórias de experiências como as de Tota, Aguiar, Joventino e não apenas
VON SINSOM, Olga R. de Moraes, (org). Experimentos com História de Vida. São Paulo:
memórias rasas, alinhavadas, como registra Guimarães Rosa: Vértice, 1988.

"A lembrança da vida da gente se guarda em trechos


diversos, cada um com seu signo e sentimento uns com os
outros, acho que não misturam. Contar seguido, RESUMO ABSTRACT
alinhavado só sendo coisas de rasa importância"'.21 O artigo propõe uma refelexão The article proposes e meto-
nifiotlológica, considerando que no dological reflection, connsidering that
No entanto, ouvir memórias é também a possibilidade de
Itnixil, cuja população analfabeta é in Brazil, wich 60% of iliterate
mergulhar em universos onde a vida se projeta por inteira; <!<• cerca de 60%, a história oral é people, oral history is an importam
ouvinte e narrador se encontram em uma rede indissociável. ma» importante de constituição docu- way of documental research.
"De cada vivemento que em real tive, de alegria forte ou inrninl.
pesar, cada vez daquela, hoje vejo que era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim, eu acho
assim é que eu conto. O senhor bondoso é de me ouvir. Tem
horas antigas que ficaram muito mais perto do que outras
em recente data. "22

BIBLIOGRAFIA

BAKTIN, Michail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: HUCITEC,
1987.
BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

20 BENJAMIM, Walter. Op. cit., p. 221.


21 ROSA, Guimarães. Grandes Sertões: Veredas.
22 Ibid.

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