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TEXTO DE APOIO - 12º ano

Heterónimos de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos

Sem deixarmos de reconhecer alguma importância ao foro psicológico (ele diz psiquiátrico) na criação dos
heterónimos, julgamos que a heteronímia de Pessoa é, essencialmente, uma genial construção intelectual de um
universo literário (poético), dentro do qual pudesse instituir-se um “super-Poeta” que ele próprio, com corajosa
sinceridade se considerou. A poesia de Pessoa é essencialmente dramática. As personagens desse drama
encontrou-as ele no desdobramento do seu “eu”, na sua própria despersonalização. Daí o nome que ele mesmo
deu a esse universo artístico: “Drama em gente”.

Alberto Caeiro

É o poeta que aceita o mundo como ele é, sem curar de lhe investigar a natureza e a origem. O poeta vive na
observação, pelos sentidos, do mundo real, no tempo presente. Para ele não há passado, porque recordar é
atraiçoar a natureza (que é apenas o agora); não há futuro, porque o futuro é campo de imagens enganadoras. É,
em suma, o poeta do real e do objectivo. Só os sentidos contam para ele e os olhos são o mais importante, talvez
porque os olhos captam mais largamente o mundo real.
Não quer nada com a filosofia “Há metafísica bastante em não pensar em nada”; “o único sentido íntimo das
coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum”. Mas note-se que tudo isto não passa de um belo jogo artístico.
Com efeito, Caeiro, ao negar toda a Metafísica, já está a raciocinar, já está a construir uma nova Metafísica: uma
antimetafísica.
Pessoa imaginou Alberto Caeiro tendo apenas a 4ª classe da instrução primária; era no entanto seu mestre e
mestre de Ricardo Reis e de Álvaro de Campos. Mais uma prova de que tudo isto é um jogo literário.
E o jogo continua. Como camponês que era (“guardador de rebanhos”), convinha que Caeiro não se revelasse
num estilo muito culto. E, de facto, o predomínio da coordenação, as imagens e comparações comezinhas, a
simplicidade do vocabulário, o predomínio dos sentidos denotativos, tudo isto dá à sua linguagem um nível
próprio dum homem do campo, embora, paradoxalmente, com bastante cultura e sobretudo com hábitos de
raciocinar. A sua linguagem é sobretudo abstracta, adaptada ao raciocínio, e nunca nela surge a descrição
impressionista da realidade. (…) Como poeta bucólico, Caeiro deveria basear a sua poesia na descrição
visualista da natureza.
Este poeta dá-nos a impressão de um homem culto que pretende despir-se da farda pesada de toda a cultura
amontoada ao longo dos séculos: “O essencial é saber ver/ saber ver sem estar a pensar,/ mas isso (triste de nós
se trazemos a alma vestida!),/ Isso exige um estudo profundo,/ uma aprendizagem de desaprender…”; “Procuro
despir-me do que aprendi”.

Ricardo Reis

Representa o poeta clássico, quer na mentalidade, quer no estilo. É pagão, acreditando em todos os deuses
antigos e segue uma ética entre o epicurismo e o estoicismo: em tudo procurar a moderação, quer no prazer, quer
na dor. A moderação, a calma, a tranquilidade, deve ser a grande regra do homem. Há uma velada tristeza nos
poemas de Ricardo Reis, talvez o disfarce de um esforço lúcido para se adaptar, ou para evitar os piores efeitos
da fatalidade: “Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge/ Mas finge sem fingimento,/ nada esperes que em ti já não
exista,/ cada um consigo é triste./ Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,/ Sorte se a sorte é dada.”
O estilo das Odes de Ricardo Reis utiliza todos os ingredientes do Classicismo: o epicurismo do carpe diem
(vive o dia de hoje) e a áurea mediocritas (auria mediania) de Horácio, a teoria do fluir inexorável da, de
Heraclito, o uso estilístico da ordem inversa das palavras na frase (hipérbato), o emprego de latinismos, quer de
palavras (termos eruditos, o gerúndio dos verbos), quer de construções.
Reis distancia-se de Caeiro porque aceita a força ordenadora da razão, porque pensa que “as coisas devem ser
sentidas como são (como Caeiro) mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra
clássicas”. O próprio estilo de Reis, elegante e cuidado (contraposto ao descuido estilístico de Caeiro), manifesta
bem a tentativa de adequar a linguagem a uma concepção do mundo e da vida.(…)
Reis aproxima-se, no entanto, de Caeiro pelo seu paganismo (“Cristo é um deus a mais”) e pelo seu apego à
natureza campestre. Note-se, porém, que em Caeiro a observação da natureza se realiza numa aceitação alegre,
ao passo que em Ricardo Reis há apenas satisfação aparente, uma serenidade que esconde um desespero, como
se o poeta fosse um desterrado num mundo estranho.

Álvaro de Campos

É o poeta cantor da vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica. Sente-se nos seus
poemas uma atração quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral
pela civilização moderna industrial: “Ah! Não poder exprimir-me todo como um motor… ser completo como
uma máquina!”. Mas, a par desta paixão, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da
vida moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica/ tenho febre e escrevo./ Escrevo
rangendo os dentes…”.
Álvaro de Campos aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das coisas como
são”. Ele precisa de “sentir tudo de todas as maneiras”, não se contenta senão com “sensações brutais”. Este
desmedido Sensacionismo de Campos vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a maior ruptura na
literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.
A “Ode Triunfal”, publicada no primeiro Orpheu, e a “Ode Marítima”, dada à luz no segundo, quer pela
violência das sensações, à maneira do poeta norte-americano Whitman, quer pelo estilo escandalosamente novo,
aparentemente desleixado, com uma grande irregularidade de estrofes e versos, com uma imagética
chocantemente arrojada, com enumerações caóticas, anáforas, aliterações e onomatopeias, constituem o ponto
mais brilhante da poesia verdadeiramente Futurista.
Álvaro de Campos é, como Cesário Verde, um poeta urbano: como ele, embora de forma mais chocantemente
futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e o tédio de si mesmo. Campos evolui,
nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa angústia que muitas vezes se exprime por meio de
amargas ironias.
Toda a desordem de ritmos, toda a violência de metáforas e expressões provêm do desespero de não poder
meter nas palavras o tamanho das sensações. É o próprio Campos que afirma: A emoção intensa não cabe na
palavra: tem de baixar ao grito ou subir ao canto”.

Como conclusão, e relacionando os três heterónimos, demos a palavra ao próprio Pessoa:

“Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha
disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou
nem a mim nem à vida”.

David Mourão Ferreira (in O Rosto e as Máscaras), comentando o texto citado de Pessoa, escreve: Alberto
Caeiro, desejando-se um simples homem da natureza, inteiramente desligado dos valores da cultura, pretendeu
sobretudo, ser; Álvaro de Campos, sem se mostrar tão radical na recusa dos valores culturais – mas contestando-
os, afinal, de modo mais corrosivo – esforçou-se principalmente por sentir, em lúcida histeria, de acordo como
os ritmos modernos; e Ricardo Reis, por seu turno, não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas
as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e que nem por isso deixa de ser pessoal.
Em suma: uma arte de SER, uma arte de SENTIR, uma arte de VIVER.

In Fernando Pessoa e Heterónimos, António Afonso Borregana, Texto Editora

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