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C olado na porta de um dos escritórios da loja localizada no bairro do Bronx, no norte da ilha de Manhattan, em Nova York, o adesivo
anuncia: “I love wood”. Ali, todos parecem gostar de madeira. A loja vende o material a preço de ouro e tem preferência pela Tabebuia serratifolia,
nome científico do ipê amarelo, estrela do mercado por sua dureza, sua resistência e pelo traço suave de seus veios. Na tarde de 12 de novembro
passado, nos fundos da loja, empilhados em prateleiras, havia enormes deckings de ipê, como é chamado o corte que resulta em pranchas alongadas e
grossas. Da loja, depois de trabalhado nas marcenarias ao gosto do freguês, o ipê, ou “iron wood”, reaparecerá nos terraços do Upper East Side, nas
coberturas do Soho, nas varandas do Brooklyn. “É uma madeira de luxo, exótica, muito cobiçada no mercado norte-americano”, diz o porta-voz para o
tema de florestas do Greenpeace, Daniel Brinds.
Entre os funcionários da loja do Bronx, nenhum sabia informar com precisão sobre a origem daquele ipê, cujo metro cúbico é vendido ali por 6 mil
dólares. “Sei que a madeira é importada do Brasil, mas não sei dizer diretamente de onde vem”, disse uma funcionária, mal disfarçando a impaciência.
Ninguém sabia, ou dizia não saber, que os deckings de “ipe wood” ou “tropical hardwood” nos fundos da loja escondem uma história exemplar de
crime ambiental, saga descoberta pela piauí que começou no sul do Pará em fevereiro de 2019 e que o Ibama chegou a apurar em sigilo até a
investigação ser enterrada, sem qualquer punição aos criminosos, por uma decisão do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ele próprio sob
investigação por suspeita de colaborar com um esquema de contrabando internacional de madeira da Amazônia.
Em parceria com o consórcio internacional de jornalismo investigativo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) e o Center for
Climate Crime Analysis (CCCA), a piauí identificou um lote de ipê extraído ilegalmente no Pará e conseguiu reconstituir todo o trajeto da madeira
clandestina até a loja em Nova York. O lote é constituído por 53 metros cúbicos de ipê amarelo, o equivalente à derrubada de 13 árvores, suficiente para
carregar dois caminhões. Da floresta no Pará, essa quantidade de madeira saiu custando em torno de 21 mil reais. Quando chegou às lojas de Nova
York, depois de percorrer 5,6 mil quilômetros por terra e mar durante três meses, seu preço já estava em 1,8 milhão de reais. No percurso, entre
fevereiro e abril de 2019, valorizou 89 vezes, cinco vezes mais do que a cocaína – não à toa, atraiu o interesse da maior facção criminosa do país, o PCC
(Primeiro Comando da Capital).
Os detalhes da reconstituição da trilha do ipê amarelo, espécie campeã de exportação pelo Brasil, comprovam a participação de um importante
traficante de cocaína ligado à facção e a colaboração com o crime por parte de setores do poder público, cuja missão é justamente combater o
contrabando de madeira, além de evidenciar que a saga do ipê não é um fenômeno aleatório, motivado pela pobreza, mas resultado de um projeto
criminoso organizado. Encorajados pelo governo Bolsonaro, madeireiros e grileiros avançam com força na destruição da floresta. Entre agosto de 2020 e
julho de 2021, 13,2 mil quilômetros quadrados de mata foram devastadas no bioma, o maior índice em 15 anos, segundo levantamento do Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) divulgado em novembro. Um terço desse desmatamento ocorreu em terras públicas. No Pará, estado líder
na destruição da Amazônia, 3,3 milhões de metros cúbicos de madeira (suficiente para encher 37 mil caminhões) foram extraídos ilegalmente dessas
áreas entre 2008 e 2020, de acordo com estimativa da CCCA baseada em dados do Inpe.
“É fato que uma grande quantidade de madeira de origem ilegal entra nos mercados europeu e norte-americano atualmente. Prova disso é a
inconsistência substancial entre a quantidade de áreas na Amazônia autorizadas para extração madeireira e a quantidade de madeira produzida. Isto
indica que uma grande quantidade de madeira é originária de áreas não autorizadas”, diz Rhavena Madeira, diretora do CCCA no Brasil.
Quando a noite começa a cair no sul do Pará, dezenas de caminhões deixam o fundo da mata rumo ao asfalto da BR-163, a rodovia de quase 4,5 mil
quilômetros que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. Velhos e barulhentos, os veículos movem-se devagar, abarrotados de pesadas toras
de ipê, jatobá e cumaru, todas madeiras de alto valor comercial e extraídas criminosamente, horas antes, da Floresta Nacional do Jamanxim, uma das
mais desmatadas do país. Os motoristas confiam no breu noturno para driblar a fiscalização. É um cuidado exagerado, herdado de outros tempos, pois
atualmente a presença de fiscais dos órgãos ambientes é praticamente nula na região.
Boa parte dos caminhões tem o mesmo destino: o distrito de Isol, no município de Novo Progresso, um lugarejo poeirento às margens da BR-163, com
uma dúzia de ruas sem asfalto e casas simples. No distrito, onde estão instaladas cinco grandes serrarias, respira-se madeira, literalmente. O cheiro das
toras cortadas impregna o ar, em meio ao ronco incessante das serras. Em fevereiro de 2019, no período de apenas doze dias, Isol recebeu um
carregamento de 970 metros cúbicos de ipê amarelo nas formas de toras, pranchas e deckings. A madeira encheu 25 caminhões.
Examinando as guias florestais, documentos oficiais que registram todo o percurso da madeira no estado do Pará, descobriu-se que aquela madeira
fora apreendida e doada pelo Ibama à prefeitura de Itaituba, cidade às margens do rio Tapajós, distante 400 quilômetros de Novo Progresso. A
prefeitura, por sua vez, vendeu o material em leilão, por 335 mil reais, para a JMS Alexandre Serraria. Dentro desse imenso lote de madeira, estavam os
53 metros cúbicos de ipê cujo percurso a piauí rastreou. Encerrado o leilão em Itaituba, a madeira, ainda segundo as guias florestais, foi transportada
por quase 500 quilômetros em direção ao sul, até chegar ao distrito de Isol, onde fica a sede da JMS Alexandre Serraria. Em seguida, a JMS vendeu o
lote de 53 metros cúbicos de ipê para a Canaã do Norte Madeiras, cuja sede também fica em Isol. A Canaã do Norte, por sua vez, revendeu para uma
terceira empresa, que levou a madeira até o porto de Barcarena, na região metropolitana de Belém, de onde o carregamento partiu com destino aos
Estados Unidos.
A história real começa com uma fraude. A prefeitura de Itaituba jamais fez um leilão de 970 metros cúbicos de ipê amarelo. “Nunca vendemos ipê
algum e nem venderíamos”, diz o procurador-geral de Itaituba, Diego Cajado Neves. “Precisamos muito de madeira para construir pontes e palafitas.”
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ex-presidente do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente no país, confirma: “Essa venda por parte da
prefeitura não faz sentido. Se a prefeitura tivesse recebido doação de madeira por parte do Ibama, não poderia ter vendido.” Era a primeira fraude.
A segunda fraude está no transporte da madeira por 500 quilômetros até o distrito de Isol. As guias florestais informam que o transporte foi feito por 68
veículos – constam os números das placas nos documentos. Ao checar as informações, a piauí descobriu que seis dessas placas não são de caminhões
com carrocerias capazes de levar a madeira. Correspondem a dois carros de passeio – um Fiat Palio e um Gol – e quatro motocicletas, que jamais
conseguiriam levar toda aquela carga por 500 quilômetros. Tudo indica que a história do leilão de madeira pela prefeitura de Itaituba foi apenas um
subterfúgio criado por contrabandistas de madeira para “esquentar” ipês extraídos ilegalmente da floresta do Jamanxim.
Segundo a Junta Comercial do Pará, o proprietário da JMS é João Marcos da Silva Alexandre, um rapaz de 28 anos que, ao menos no papel, ingressou
cedo na atividade madeireira: em 2015, com apenas 22 anos, abriu sua primeira empresa do ramo, em Novo Progresso, e construiu um currículo de
infrator. Segundo dados do Ibama, a JMS acumula 300 mil reais de multas por infrações ambientais. Hoje, Alexandre trabalha como pedreiro em Sinop,
no Mato Grosso, com salário aproximado de 1,5 mil reais – pouco para quem, no papel, é um grande atacadista do setor madeireiro. Em depoimento a
um fiscal do órgão ambiental, o “gerente geral” da empresa, Douglas Gaspar Barbosa, disse que Alexandre “emprestou o nome” para a abertura da
firma em troca do pagamento das mensalidades de um curso superior de engenharia civil em Cuiabá, mas não informou quem seria o real dono da
empresa. (Barbosa, que não foi localizado pela reportagem, é filho de um antigo servidor do Ibama demitido em 2006 por corrupção e grilagem de
terras).
Já a sede da Canaã nem fica no distrito de Isol. Em outubro passado, a piauí visitou a região e constatou que seu endereço formal não existe. Embora
todos se conheçam no distrito, nenhum dos dez moradores abordados pela reportagem disse conhecer a serraria nem seu proprietário. Um deles, que
pediu para não ser identificado por medo de retaliação, deu uma pista: existe no distrito a figura do “vendedor de nota”, dono de empresas que só
existem no papel e que servem para “esquentar” madeira extraída ilegalmente da Floresta Nacional do Jamanxim.
O dono formal da Canaã do Norte apresenta os mesmos indícios de ser um testa de ferro no esquema. Com 31 anos, Antonio Carlos Rodrigues de
Oliveira, conhecido por Tonhão, tornou-se um dos maiores grileiros de áreas públicas no Pará. A exemplo de Alexandre, ele também abriu sua
primeira madeireira muito jovem, aos 20 anos de idade, em 2010. Dois anos depois, fiscais do Ibama constataram que a empresa era fantasma, o que lhe
rendeu uma ação penal na Justiça por ter inserido dados falsos no Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais, o Sisflora, programa
que o Pará usa para controlar a circulação de madeira no estado. A intenção de Tonhão, de acordo com a acusação do Ministério Público, era
“esquentar” 2,1 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Ele também é réu em quatro ações civis na Justiça Federal, acusado de desmatar ilegalmente 2,8
mil hectares em áreas protegidas no sul do Pará.
No início da década de 2010, quando já era dono de sua primeira madeireira, Tonhão trabalhava como tratorista para o pecuarista e ex-vereador de
Novo Progresso Armando Anversa Faccin, que já foi condenado judicialmente a reparar uma área desmatada por “atividade madeireira ilegal”.
Tonhão também foi funcionário do ex-vice-prefeito de Novo Progresso, Ricardo Faccin, sobrinho do ex-vereador. Os Faccin negam ter relações
comerciais com Tonhão. “Ninguém da nossa família nunca trabalhou no setor madeireiro”, garante o ex-vice-prefeito. Hoje, Tonhão, o grande grileiro,
tem uma modesta barraca de lanches no Centro de Novo Progresso. Ele não quis dar entrevista. “Desculpe, amigo, não tenho informação sobre esses
assuntos”, escreveu no WhatsApp, antes de bloquear a piauí no aplicativo.
Criada em 2006 pelo então presidente Lula, a Floresta Nacional do Jamanxim ocupa 1,3 milhão de hectares a poucos quilômetros da margem oeste da
BR-163. Deveria ser uma floresta intocada, mas a proximidade da estrada, principal via de escoamento da soja de Mato Grosso para os portos do Pará,
vem arrasando com a mata. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Jamanxim é a terceira floresta nacional mais desmatada
da Amazônia. Quase 15% de sua área foi substituída por pastos. Imagens de satélite mostram a floresta sendo rasgada por centenas de quilômetros de
estradas de terra, que os locais chamam de “ramais”. Em 2017, o governo de Michel Temer enviou um projeto ao Congresso reduzindo em 27% o
tamanho da unidade de conservação, mas recuou após intensas críticas por parte de ambientalistas e de organizações não-governamentais.
Espremido de um lado por Jamanxim e de outro pelas terras indígenas Baú e Mekragnotire, do povo caiapó, o perímetro urbano de Novo Progresso,
com seus 25 mil habitantes, fica às margens da BR-163. Os primeiros moradores, vindos de Mato Grosso e da Região Sul, chegaram durante a
construção da rodovia, em 1973, durante a ditadura militar. Desde então, a destruição da floresta é a grande atividade econômica do município, seja
para extrair madeira, abrir novos pastos ou desbravar áreas de garimpo. Na cidade, há dezenas de pontos de venda de máquinas para o garimpo e lojas
de compra e venda de ouro. A estátua de um garimpeiro, com mais de dois metros de altura, enfeita o cruzamento das duas principais avenidas. A
devastação catapulta a violência: de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Novo Progresso registrou um índice de 100 mortes
violentas por 100 mil habitantes em 2020, mais que o dobro do verificado no Pará e no Brasil, no mesmo período. O crime organizado anda lado a lado
com a destruição da floresta.
Até o prefeito Gelson Luiz Dill, do MDB, tem seu quinhão de terra em área pública. Sua fazenda Carapuça, às margens do rio de mesmo nome, ocupa
784 hectares no meio do parque nacional do Jamanxim (a leste da BR-163), parte ocupado por pasto e boi. Em novembro de 2015, Dill registrou a área
em seu nome no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Criado pelo governo federal em 2012, o CAR é um sistema autodeclaratório cujo objetivo é
regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada propriedade rural – cabe ao dono registrar o polígono do imóvel e delimitar a reserva de
mata nativa a ser preservada. Apesar da finalidade ambiental, o CAR tem sido utilizado para viabilizar a posse ilegal de terras públicas, sobretudo na
Amazônia.
Na cartilha do grileiro, o primeiro passo é registrar no CAR determinada área dentro de unidades de conservação ou terras indígenas, todas públicas,
como se fosse particular. Em seguida ele invade a área e retira a madeira com valor de mercado. Depois vem o fogo e o plantio de capim, formando o
pasto para o boi, que atesta a ocupação da área, à espera de uma nova lei que atualize a data limite para a regularização fundiária do local – a norma
atualmente em vigor valida a posse de áreas em terras públicas até 2008.
Apesar de o registro de propriedade ter sido feito em 2015, Dill garante que a terra já estava em suas mãos antes da criação do parque de Jamanxim em
2006. “Quem invadiu não foram os produtores rurais, mas o governo federal, na época do PT. Se tem alguém injustiçado nessa história é o produtor”,
diz. Dill é bolsonarista, assim como a maioria esmagadora dos habitantes de Novo Progresso, onde 72,7% da população votaram em Jair Bolsonaro no
primeiro turno de 2018. Na entrada da cidade, um outdoor parcialmente rasgado traz a foto do presidente ao lado da frase “Por Deus, por nossas
famílias e por quem produz”.
A volúpia do desmatamento que há décadas alimenta Novo Progresso encontra pouca resistência nos órgãos públicos de repressão. Exceto por equipes
do Ibama que vez ou outra ocupam o escritório local do órgão para operações pontuais, a fiscalização é quase nula na região. Durante o dia,
percorrendo a floresta pelos “ramais”, a sensação é a de que o percentual de floresta derrubada é muito maior do que apontam os satélites do Inpe, com
áreas imensas reduzidas a tocos de árvores calcinados em meio ao capim alto que será o alimento do boi. Não é raro ouvir o barulho das motosserras,
operadas por homens contratados informalmente pelos “gatos”, os intermediadores de mão de obra na região, sob condições degradantes. “Já vi um
homem morrer na minha frente quando o tronco que a gente serrava caiu pro lado dele”, diz um desses trabalhadores, de 36 anos, que só se identificou
com seu primeiro nome, Redenilson.
Tonhão, o ex-funcionário da família Faccin e dono da Canaã do Norte, por onde passou o carregamento de ipê amarelo, tratou de reservar o seu
quinhão na grande farra da grilagem e do desmatamento dentro da Jamanxim. Em abril de 2016, registrou para si, por meio do CAR, uma área de 5,7
mil hectares (equivalente ao bairro Barra da Tijuca, no Rio) dentro da floresta. Batizou sua área como Fazenda Toca da Onça. O passo seguinte, como
convém à cartilha do grileiro, foi desmatar o local. Atualmente, metade da propriedade é ocupada por pastos, de acordo com dados do Inpe. Não há
acesso à Toca da Onça por terra. Dez quilômetros antes da fazenda, uma barreira com corrente e cadeado impede a passagem na única estrada de chão
batido, muito mal conservada, que leva à propriedade. Nas imediações, é possível detectar um ou outro ipê amarelo, que muito provavelmente só
segue intacto na natureza porque não atingiu o ponto de corte. De 2016 a 2020, o CCCA, parceira da piauí nesta reportagem, estima que foram
extraídos 80 mil metros cúbicos de madeira da Toca da Onça, dos quais 76,5 mil (95%) em 2019, exatamente o ano em que a madeireira de Tonhão
comprou o lote ilegal de ipê amarelo que foi parar em Nova York.
Treze dias depois de pagar 50 mil reais pela madeira da JMS, a Canaã do Norte, de Tonhão, revendeu o carregamento para outra empresa, a Coexpa
Comércio e Exportação de Produtos da Amazônia, com sede em Belém. Embolsou 437 mil reais, nove vezes mais do que pagara duas semanas antes, e
isso sem fazer qualquer beneficiamento na madeira que justificasse um lucro tão grande. O procurador Ubiratan Cazetta, do Ministério Público Federal
no Pará, explica os números da operação. “É comum os contrabandistas de madeira simularem altos lucros na compra e venda de madeira para
justificar a entrada do dinheiro obtido com a venda final do próprio produto ou de outros crimes, como corrupção e tráfico de drogas. É um caso típico
de lavagem.”
Assim como a JMS e a Canaã do Norte, a Coexpa também tem um histórico de infrações ambientais: a empresa já foi autuada em 225 mil reais pelo
Ibama, e seu proprietário, Bruno Leão Atayde, é réu em duas ações penais na Justiça estadual paraense, acusado de delitos contra o meio ambiente.
Consultada sobre o lote ilegal de ipê amarelo, a Coexpa emitiu uma nota em que afirma ter prestado todas as informações para “o pleno esclarecimento
dos fatos perante os órgãos ambientais competentes”. Na nota, a Coexpa acrescenta que faz “rigoroso procedimento de análise interna” de seus
produtos e fornecedores, avaliando “requisitos como licenciamento ambiental, existência de lastro comprobatório de origem de produtos, antecedentes
de autuação ambiental, bem como regularidade nos sistemas oficiais de controle, tanto em âmbito estadual como federal.” Não disse nada sobre a
falsificação das guias florestais do ipê, que estão na origem da fraude.
As guias florestais apontam um caminho estranho para o ipê. Depois de viajar 500 quilômetros em direção ao sul entre os dias 7 e 18 de fevereiro de
2019, os 53,3 metros cúbicos pegaram o caminho inverso, viajando 800 quilômetros em direção ao norte, no dia 11 de março de 2019, rumo ao porto de
Santarém. Tudo indica que, na verdade, a viagem foi outra: a madeira foi retirada criminosamente de algum ponto da região de Novo Progresso
(possivelmente da Fazenda Toca da Onça, de Tonhão, no meio do Jamanxim) e levada em caminhão para o porto de Santarém, de onde a Coexpa tratou
de escoá-la em balsas pelo rio Amazonas, até o porto de Barcarena, na área metropolitana de Belém, já com destino certo: a empresa J. Gibson McIlvain,
grande atacadista de madeiras do estado norte-americano de Maryland e importadora frequente de ipês brasileiros.
Enquanto o ipê viajava pelo Amazonas, a Aimex (Associação da Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), da qual a Coexpa faz parte,
pressionava o Ibama para recuar na decisão de inserir o ipê amarelo na lista de espécies sob risco de extinção, organizada pela Cites (Convenção sobre
o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Flora e da Fauna Silvestres, ligada à ONU). A proposta surgira no fim de 2018, ainda na gestão de
Michel Temer, e, caso fosse implantada, tornaria mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, com a exigência de certificado de origem da madeira
pelo exportador (o que inviabilizaria a remessa, para o exterior, do lote dessa espécie vendido pela Canaã do Norte à Coexpa). “Não se justifica
estabelecer procedimentos que estão indo na contramão das medidas adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, de desregulamentar
procedimentos de controle desnecessários”, escreveu a presidência da Aimex em ofício ao Ibama.
A pressão sobre o governo brasileiro também vinha dos importadores, sobretudo os norte-americanos (segundo o Ibama, 90% do ipê extraído no Brasil
é exportado). Naquele mês de março de 2019, Salles viajou para os Estados Unidos na comitiva do presidente Bolsonaro. Não consta na agenda oficial
dele reuniões com representantes das importadoras de madeira norte-americanas, mas, coincidência ou não, exatamente naqueles dias o governo
recuou da intenção de inserir o ipê na lista da Cites. Em comunicado à Câmara dos Deputados, o ministro Ricardo Salles disse haver “falta de estudos
científicos específicos” e “necessidade de consultas mais detalhadas” ao Ibama. Desde então, a proposta segue engavetada.
Naquele fim de março, logo após o ministro voltar ao Brasil, lobistas da IWPA (International Wood Products Association), entidade que reúne as
maiores importadora de madeira dos Estados Unidos, inclusive a J. Gibson MacIlvain, comentaram o recuo do governo brasileiro em relação ao ipê.
“Isso confirma o que ouvimos do pessoal da embaixada do Brasil na sexta-feira”, escreveu Joseph O’Donnell, diretor da IWPA, para uma lobista da
entidade, em e-mail de 26 de março daquele ano obtido pela piauí. Finalmente, o caminho estava livre para a exportação do ipê. Ao chegar ao porto de
Barcarena, o lote de deckings foi dividido em três contêineres embarcados no navio cargueiro Balsa em 10 de abril de 2019. No dia seguinte, a
embarcação zarpou do Pará com destino ao porto de Cristóbal, Panamá. Oito dias depois, o carregamento foi inserido em outro navio, que rumou para
Baltimore, um dos principais dos Estados Unidos, no estado de Maryland, onde chegou em 14 de maio. Do porto de Baltimore, a madeira viajou mais
27 km até a sede da J. Gibson McIlvain, localizada no município de Perry Hall. A J. Gibson McIlvain não vende diretamente para o consumidor final,
apenas para pátios em todos os Estados Unidos – entre eles, a loja no Bronx, em Nova York.
A J.Gibson McIlvain não possui nenhuma ação por crime ambiental nos Estados Unidos e, durante as investigações tanto da piauí quanto do Ibama,
não apareceu nenhuma suspeita de que a empresa tivesse conhecimento prévio da origem ilegal do ipê amarelo que recebeu. Procurada, a empresa não
se manifestou. Em seu site, a McIlvain se diz orgulhosa do processo rigoroso que utiliza para garantir qualidade e legalidades da madeira da
Amazônia. “O processo começa com a concessão de terras no Brasil. O governo local tem um excelente programa florestal e é fácil rastrear o histórico
de negócios e as fontes de cada fábrica”, diz.
No Brasil, comercializar madeira de origem ilegal é crime com pena de até quatro anos de reclusão, sem multa. Nos Estados Unidos, a punição, prevista
no Lacey Act, é mais dura: vai até cinco anos de prisão, com multa de 500 mil dólares, o que equivale a quase 3 milhões de reais ao câmbio atual. O
combate ao contrabando de madeira nos EUA melhorou com o fim da gestão de Donald Trump, na avaliação de Daniel Brindis, do Greenpeace. Mas
poderia ser mais efetivo. Uma das falhas da fiscalização, diz ele, é o excessivo apego à formalidade documental. “O governo se apega muito ao que está
no papel, mas já está provado que, em alguns casos, os documentos podem ser fraudados na origem”, diz ele. “Infelizmente, o governo norte-
americano ainda é suscetível ao lobby do setor madeireiro.” Para Rhavena Madeira, do CCCA, falta efetividade na aplicação da Lacey Act. “Esses
regulamentos têm deficiências de implementação e limitações de investigação ligados à dificuldade da rastreabilidade”, afirma. “O mesmo ocorre na
Europa. As autoridades competentes dificilmente conseguem identificar todos os operadores atuantes na cadeia e em muitos países não há operações
de controle e fiscalização sistemáticas. Faltam procedimentos e interpretações uniformes.”
Em agosto de 2020, cinco meses após engavetar a proposta de tornar mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, o então ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, foi além: nomeou André Heleno Silveira, um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sem qualquer experiência na
área ambiental, para cuidar da Coordenação de Inteligência de Fiscalização do Ibama, um setor vital no combate ao crime organizado por trás da
destruição da Amazônia. Semanas depois, Salles designou o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães Júnior como superintendente do
órgão no Pará. Silveira e Magalhães Júnior cuidaram de desmontar os núcleos de inteligência, tanto na matriz em Brasília quanto na filial em Belém,
respectivamente (o Ibama possui pequenos núcleos de inteligência distribuídos pelos 26 estados), trocando servidores experientes por pessoas sem
qualificação. “Claramente o objetivo era inviabilizar qualquer investigação mais aprofundada contra os grileiros, madeireiros e garimpeiros”, diz um
funcionário de alto escalão do órgão federal, sob anonimato, para evitar retaliações.
Meses mais tarde, em maio de 2021, tanto Salles quanto Magalhães Júnior foram alvos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que investiga a
participação de ambos em um esquema de facilitação do contrabando de madeira amazônica de origem ilegal – também são apurados os crimes de
prevaricação, advocacia administrativa e corrupção. Segundo a PF, após Salles encontrar-se em Brasília com representantes da Aimex, do Pará, em
fevereiro de 2020, Magalhães Júnior, supostamente por ordem do então ministro, assinou licenças de exportação retroativas para legalizar 153 mil
metros cúbicos de ipê e jatobá extraídos ilicitamente no Pará e apreendidos no mês anterior nos Estados Unidos. Pouco depois de a investigação da PF
vir à tona, Salles deixou o cargo de ministro.
Examinada em retrospectiva, a extinção do setor de inteligência em 2019 favoreceu as quadrilhas que atuam no contrabando de madeira ilegal para
exterior. Não há notícia de que o sucateamento do setor de inteligência tenha tido o objetivo específico de impedir a descoberta da conexão do ipê
amarelo exportado para Nova York, mas o fato é que a decisão do ministro favoreceu os contrabandistas.
Ainda no primeiro semestre de 2019, os fiscais do Ibama suspeitaram do tal leilão de madeira que teria sido promovido pela prefeitura de Itaituba. No
início de 2019, a prefeitura teria pedido à Secretaria de Meio Ambiente do Pará que registrasse os créditos de uma imensa quantidade de madeira em
favor da serraria JMS: ao todo, eram 8,6 mil metros cúbicos, dos quais 2,3 mil de ipê, suspostamente arrematados no leilão. A inserção dos créditos no
Sisflora, o sistema do governo paraense que controla o transporte de madeira, é uma forma de legalizar o produto. A secretaria aceitou o suposto
pedido da prefeitura sem contestar.
Os falsos créditos de madeira para a JMS foram incluídos no Sisflora pelo então gerente do sistema, Victor André Holanda Pessoa, que ocupava o cargo
de chefe de Cadastro, Transporte e Comercialização de Produtos Florestais da Secretaria do Meio Ambiente do Pará. Holanda Pessoa chegara ao cargo
em janeiro de 2019, pouco antes de fazer a inserção dos dados. E chegara por cima. Fora indicado por Parsifal de Jesus Pontes, então chefe da Casa Civil
do governador do Pará, Hélder Barbalho. A indicação, no entanto, era mais do que uma temeridade.
Na época, Holanda Pessoa já era um dos principais alvos de uma operação da Polícia Federal que investigava um grande esquema de tráfico de cocaína
dos portos brasileiros para a Europa protagonizado pelo PCC. Filho de piloto e ligado à facção paulista, Pessoa tinha uma logística própria para o
transporte aéreo de cocaína: levava grandes cargas da droga por helicóptero do Paraguai para um hangar em Americana, no interior paulista, e de lá,
em pequenos aviões, para outro galpão no aeroporto de Tomé-Açu, no interior do Pará. Dali, transportava a cocaína em carros e caminhões até os
portos de Belém e Barcarena, de onde a droga zarpava, oculta em contêineres, rumo a Europa. Em abril de 2018, nove meses antes de ser nomeado pelo
governo Barbalho, Holanda Pessoa teve um carregamento de 513 quilos de pasta base de cocaína apreendido pela PF no interior paulista. O motorista
do caminhão que leva a droga foi preso em flagrante – e Pessoa, meses depois, ganhou a promoção para gerenciar o Sisflora no governo do Pará.
O narcotraficante do PCC ficou apenas quatro meses no cargo – ele seria um dos 50 presos no ano seguinte pela Polícia Federal, acusados de tráfico
internacional de drogas, na Operação Além-Mar. Seu padrinho, Parsifal de Jesus Pontes, também caiu, mas por outro motivo: é acusado de fraudar a
compra de respiradores para pacientes infectados com o coronavírus. Foi no ambiente comandado por esse tipo de figuras que os contrabandistas
legalizaram fraudulentamente a grande carga de madeira amazônica (incluindo o ipê amarelo que foi parar em Nova York). Com isso, conseguiram
vendê-la para 18 estados brasileiros e para o exterior, auferindo um lucro total estimado pelos fiscais do Ibama em 26,98 milhões de reais. “A madeira
tem pelo menos duas grandes utilidades para o narcotráfico: serve para lavar o dinheiro da atividade e também para ocultar a própria droga nos navios
rumo à Europa e Estados Unidos”, diz Aiala Colares de Oliveira Couto, professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) que investiga o crime
organizado na Região Norte.
Antes que Pessoa fosse responsabilizado pelo contrabando da madeira, a investigação do Ibama foi interrompida com o desmonte do setor de
inteligência do órgão ambiental patrocinado por Ricardo Salles. “Estávamos perto de puxar esse novelo quando tudo foi por água abaixo”, afirma um
fiscal do órgão sob anonimato, devido ao temor de retaliação. Com isso, o trabalho dos fiscais foi remetido para a Polícia Federal e o Ministério Público
Federal, que, por sua vez, considerou não haver crime de âmbito federal e mandou o caso ao Ministério Público do Pará – que denunciou até agora
apenas um personagem da fraude: o dono da Coexpa, Bruno Atayde Leão, por crime ambiental. Consultado pela piauí, Pessoa, que atualmente
responde em liberdade ação penal em que é acusado de tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro, disse ter recebido as acusações
“com perplexidade” e mandou dizer que está à “disposição das autoridades competentes para, ao modo e tempo correto, prestar quaisquer
esclarecimentos que porventura se façam necessários”. (colaborou Eduardo Goulart)
Allan de Abreu
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
Os meses de protestos que se seguiram deram início a uma crise em gestação desde o
começo do século XXI. A ordem que estava sendo colocada em xeque era o Chile
neoliberal, planejado durante a longa ditadura militar iniciada em 1973 e que, com
algumas reformas, continuou após a transição negociada para a democracia em 1990. O
símbolo mais tangível desse período é a Constituição ratificada no fraudulento
plebiscito organizado pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980. O documento
consolidou uma mescla de democracia limitada e economia de mercado, orientada
pelos interesses de grandes corporações. A Constituição devolveu ao mercado direitos
sociais anteriormente garantidos pelo Estado e, ao mesmo tempo, enfraqueceu os
direitos trabalhistas e sindicais, dificultando a organização dos trabalhadores.
Sendo assim, não é coincidência que o levante, embora deflagrado pelo aumento da
tarifa, tenha se organizado em torno da pauta de uma nova Constituição. Menos de um
mês depois do início dos protestos, o governo concordou em convocar um plebiscito
para que a população dissesse se a Constituição devia ser substituída ou não. Uma
imensa maioria (78%) aprovou a medida em outubro de 2020. Em maio do ano
seguinte, os chilenos voltaram às urnas para eleger os membros de uma Assembleia
Constituinte.
O Chile experimentou uma relativa calma durante as quase três décadas que
A Revolução dos Pinguins (assim batizada em razão das cores dos uniformes
escolares), em 2006, foi o primeiro indicativo de um descontentamento mais profundo.
Centenas de milhares de pessoas marcharam em protesto contra as mensalidades
escolares e pedindo a construção de um sistema educacional de qualidade para todos.
A Concertación, que estava em seu quarto mandato consecutivo, conseguiu evitar a
ampliação do conflito fazendo pequenas reformas e prometendo melhorias futuras.
A situação mudou em 2010, quando Piñera foi eleito presidente. Ele levou para o
governo os herdeiros da ditadura de Pinochet, expondo os mecanismos de acumulação
e mercantilização antes ocultos sob um verniz progressista. No ano seguinte, protestos
liderados por movimentos sociais independentes dos partidos políticos da transição
eclodiram em todo o país, coincidindo com mobilizações em outras partes do mundo,
como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street.
Tudo isso ocorreu à distância dos partidos políticos da transição, que se reproduziam
pacificamente dentro do aparato estatal e se afastavam cada vez mais das paixões e
opiniões dos cidadãos chilenos. Essa desconexão se manifestou na abstenção eleitoral,
oferecendo uma oportunidade para o ressurgimento da direita. Em 2017, Piñera
reconquistou a Presidência numa eleição com baixo índice de comparecimento.
primeiro lugar, por causa de seu valor simbólico, uma vez que a Constituição atual foi
um projeto fundacional feito pela ditadura e desempenhou papel importante na
transição incompleta para a democracia. Mas a Constituição também apresenta sérios
problemas para uma democracia funcional, como as “leis orgânicas” que regulam
aspectos centrais do Estado e da economia e um Tribunal Constitucional, composto por
juízes conservadores, que bloqueia muitas das leis reformistas aprovadas pelo
Congresso.
Foi assim que Gabriel Boric, um jovem deputado da Frente Ampla e ele próprio um ex-
líder estudantil, viu a questão, quando, contrariando seu partido, assinou o
documento. A decisão teve consequências surpreendentes para Boric, marcando o
início de sua ascensão como liderança política nacional.
A posição de Boric foi compartilhada pela maioria dos chilenos. Num plebiscito
realizado em outubro de 2020, quase 80% dos votos foram favoráveis à formação de
uma Assembleia Constituinte. O Acordo deu início a uma série de acontecimentos que
vão realizar um dos sonhos mais caros da esquerda: pôr um fim à Constituição de
Pinochet.
direita foi reduzida a uma minoria sem o poder de veto a que tinha se acostumado. Por
outro lado, as forças da esquerda independente – muitas das quais contavam com
ativistas de fora de Santiago, antigos líderes dos protestos e acadêmicos progressistas –
somadas aos partidos históricos da esquerda elegeram um grande número de
delegados. Em aliança com representantes que ocupam cadeiras reservadas aos povos
indígenas, essas forças puderam formar um bloco majoritário, embora haja diferenças
importantes entre os grupos.
O processo no Chile está conectado a uma mudança política mais ampla na América
Latina, que se manifestou de maneira diferente em cada país no ano passado – do
levante colombiano[5] à eleição do professor e sindicalista Pedro Castillo no Peru e da
líder de esquerda Xiomara Castro em Honduras. Há sinais de uma reestruturação
global na esteira da pandemia de Covid, caracterizada pelo desejo de ter maior controle
sobre os fluxos de capital e pela consciência da necessidade de reduzir a extrema
concentração de riqueza e de levar as mudanças climáticas mais a sério.
Caso o mundo de fato entre numa fase pós-liberal – o que nem de longe pode ser dado
como certo –, o Chile talvez sirva como um guia e um laboratório, assim como foi na
segunda metade dos anos 1970, quando se tornou pioneiro nas reformas econômicas
radicais do neoliberalismo. Hoje a esquerda chilena tem a oportunidade de ajudar a
construir uma nova ordem que pode moldar as estruturas sociais, econômicas e
políticas do país para os próximos anos, e provocar também importantes reverberações
regionais e globais. Substituir a Constituição não é o mesmo que uma revolução, ou
uma mudança imediata nas relações de poder. Mas representa a superação definitiva
da longa ditadura militar e de seus legados neoliberais, e um imenso avanço na
oportunidade de desenvolver uma agenda progressista robusta. É um momento para
caminhar na direção do horizonte que uma boa parte da esquerda chilena sempre
buscou: o socialismo democrático.
Uma série de protestos contra a reforma tributária do presidente Iván Duque tomou
[5]
Marcelo Casals
Itapevi, no interior de São Paulo, com meus dois irmãos e minha mãe. Meu pai sempre
esteve envolvido em política, sobretudo a local. Foi vereador pelo MDB, atuava em
eleições e tinha muitos adversários na vida pública. Antes de entrar para a política, ele
teve uma trajetória vitoriosa. Foi pedreiro, mestre de obras, até criar a própria
construtora, que prestava serviço para o setor privado e para a prefeitura. Tínhamos
um padrão de vida razoável. Chegamos a ter bons carros, cerca de vinte casas e um
posto de gasolina, que ganhamos depois que meu pai fez algumas obras para a Shell.
Quando ele decidiu entrar para a política, tudo isso se perdeu. Durante anos, vivemos
numa gangorra. De repente, da noite para o dia, tínhamos que vender tudo para pagar
dívidas contraídas em campanhas. A construtora fechou e ele passou a trabalhar
facilitando o caminho de outras empreiteiras que queriam participar de licitações, o
que lhe rendia boas comissões.
Até que, em 2012, paramos de nos falar. A nossa relação já era complicada, mas chegou
a um ponto crítico quando ele começou a se juntar aos inimigos políticos que ajudaram
a destruir a nossa família. Não suportei. Eles haviam processado meu pai catorze vezes
e transformado a nossa vida num inferno. Meu pai dizia que estava tudo bem, que na
política as coisas funcionavam assim mesmo, uma hora se rompia e na outra se reatava.
Mas eu não aceitava. Dois anos depois, em 2014, nos falamos brevemente por telefone e
ele me pareceu animadíssimo. Dizia que estava viajando o Brasil e fazendo grandes
negócios. Achei que fosse exagero dele, mas não falei nada. Em 2019, ele me procurou.
Disse que não estava bem de saúde, que havia passado muito mal no escritório e que
quase morrera. Tinha diabetes, era cardíaco e não se cuidava. Foi quando nos
reaproximamos.
Passei a levá-lo a consultas médicas e exames. Durante a pandemia, ele ficava isolado
em casa e eu levava os mantimentos de que ele precisava. Nesses contatos, ele começou
a me contar um pouco mais sobre o trabalho que fazia. Eu seguia sem dar muito
crédito porque eram coisas fora da realidade, como compra e venda de empresas de
capital milionário. Eu achava que ele estava exagerando. Afinal de contas, a vida dele
não era luxuosa nem abastada, como poderia ser a vida de um empresário de grande
porte. Ele levava uma vida normal e morava de aluguel.
Em 2020, mesmo tendo que se resguardar por causa da pandemia, meu pai resolveu se
candidatar a vereador em Itapevi. Na época, fiquei intrigado – como sobraria tempo
para a política se ele estava tão ocupado com tantos negócios? –, mas guardei as
dúvidas para mim. Ele andava bastante envolvido na campanha quando, no dia 9 de
setembro, sentiu-se mal. Me ligou às nove da manhã. Levei-o ao hospital. O médico
disse que meu pai havia infartado. Foi internado às pressas para colocar um marca-
passo e ficou na UTI inalando oxigênio enquanto o hospital pedia aprovação do plano
de saúde para a cirurgia. Fiquei ao lado dele. Nessa noite na UTI, do dia 9 para o dia 10
de setembro, ele enfim me contou toda a história. Não sei bem qual era a sua intenção:
me alertar que eu tinha direitos? Hoje, penso que sim.
No leito hospitalar, meu pai me disse que fazia parte de um grupo cujo cabeça era
Marcos Tolentino, o senhor que o país conheceu durante a CPI da Pandemia como um
dos suspeitos na operação bilionária que pretendia comprar a vacina indiana Covaxin.
A secretária de Tolentino, de fato, nos ligava a cada dez minutos para saber como meu
pai estava. Ele falou das viagens que fazia para assinar documentos em nome do grupo
de Tolentino, das contas bancárias de que era titular, das licitações das quais as
empresas do grupo participavam para fornecer equipamentos e serviços ao setor
público. Falou do FIB Bank, empresa da qual ele era sócio e que fornecia garantias para
diversas operações no setor público. Falou que o capital do FIB Bank era lastreado em
precatórios e terrenos. E que ele viajava por todo o Brasil para assinar as garantias
emitidas pelo banco. Disse que semanalmente ia a São Caetano do Sul despachar
documentos em nome da Chocolate Pan, empresa da qual ele também era sócio.
Fiquei impactado por essa conversa, não entendia de onde saíra o dinheiro para tantos
negócios, mas não tive muito tempo para reagir. Na manhã do dia 10, meu pai foi
levado para a sala de cirurgia. Ao colocar o marca-passo, sofreu três paradas cardíacas
e não resistiu.
havia pedido. Quem pagou as custas funerárias foi a empresa de Tolentino, que se
mostrou solícito naquele momento de dor. Ao voltar a Itapevi, fui até a casa do meu
pai para começar a esvaziar o imóvel. Foi quando me deparei com contratos sociais de
empresas, pró-labores, uma infinidade de documentos que comprovavam tudo o que
ele havia me falado no hospital. Fiquei assustado porque, até aquele momento, eu
ainda desconfiava de que ele tivesse fabricado algumas histórias. Diante daquela
papelada toda, percebi que ele não estava mentindo nem exagerando. Havia falado a
verdade. Os documentos de pró-labore mostravam pagamentos de 4 mil, 5 mil reais
por empresa da qual ele era sócio. (Nunca consegui ter certeza de quantas empresas
meu pai fora sócio, mas cheguei a identificar cinco.)
Na minha segunda visita ao escritório, fui recebido por Wagner Potenza, um dos
braços direitos de Tolentino. Comecei a conversa já num tom alterado. Disse a ele:
“Vamos parar de mentira? Como vocês me dizem que as empresas do meu pai estavam
inativas, que meu pai ganhava 18 mil por ano e que isso era tudo que vocês sabiam, e
eu descubro que há um banco muito ativo no nome dele?” (O FIB Bank, apesar do nome,
não é uma instituição financeira, segundo o Banco Central. Trata-se de uma empresa que
fornece garantias fidejussórias, que são como cartas de fiança.) Potenza tentou me acalmar.
Pediu para que eu não fizesse nada com aquilo, prometeu que falaria com Tolentino e
me daria um retorno.
Nesse meio-tempo, para piorar a situação, fui procurado por promotores do Ministério
Público que queriam saber se meu pai deixara bens. Na década de 1990, meu pai foi
alvo de catorze processos de improbidade, num valor que hoje alcança 600 mil reais.
Por isso, eu fui citado pelo Ministério Público depois de sua morte. Pela lei, nem eu
nem meus irmãos herdaremos a dívida do nosso pai, mas o patrimônio dele precisa ser
informado à Justiça para ressarcir o erário em caso de condenação. Diante da enorme
confusão burocrática, eu não tinha condições de fazer o inventário para apresentar ao
MP, e muito menos de custeá-lo. Como pagaria o imposto de transmissão de bens
previsto no inventário sobre um patrimônio gigantesco, e que eu desconhecia? Eu não
tinha esse dinheiro, nem meus irmãos.
Ocorre que, em abril de 2021, a CPI da Pandemia iniciou seus trabalhos no Senado. Daí
em diante, tudo mudou.
demoraram a chegar ao FIB Bank. A empresa tinha oferecido a garantia para a compra
da vacina indiana Covaxin, pelo governo de Jair Bolsonaro – um negócio bilionário
que, uma vez reveladas as irregularidades, acabou cancelado. Eu não sabia de nada.
Até então, achava que o FIB Bank tivesse uma atividade honesta e regular, mas, a cada
passo que a CPI avançava, a confusão ficava maior – e o nome do meu pai começou a
aparecer na imprensa. Diante dessa avalanche de informação, percebi, por exemplo,
que sua morte jamais fora informada nos documentos oficiais das empresas das quais
ele era dono. O FIB Bank continuava atuando normalmente, sem que a Junta Comercial
tivesse sido avisada sobre qualquer mudança societária. O mesmo ocorria com a MB
Guassu, firma na qual meu pai tinha um sócio, um senhor chamado Sebastião Lima,
também falecido. As omissões, operadas por Tolentino e seus empregados, configuram
crime de falsidade ideológica.
Não cheguei a conhecer Sebastião Lima. Soube que era um homem simples que morava
na periferia de São Paulo. Quando morreu, em 2017, seus filhos não herdaram nada da
MB Guassu, ainda que Lima detivesse 99% do capital social da empresa. Meu pai era o
dono do 1% restante. Como nenhum herdeiro de Lima colocou a MB Guassu no
inventário, meu pai tornou-se então o único dono vivo da empresa. Ele assinava por ela
e fazia todas as movimentações. Quando meu pai morreu, o grupo do Tolentino
continuou movimentando a MB Guassu, mesmo com ambos os sócios falecidos. (Em
outubro de 2021, depois das investigações da CPI, uma empresa que foi lesada pela turma de
Tolentino protocolou um documento na Junta informando sobre a morte dos dois acionistas. A
empresa lesada está em busca de indenização.)
A CPI colocou em evidência que muitos daqueles negócios dos quais meu pai
participava pareciam ser formas de arrancar dinheiro do poder público. Eram
empresas que existiam, mas não produziam nada de fato. Tratava-se apenas de um
amontoado de CNPJs sendo movimentados por indivíduos sem que houvesse uma
atividade empresarial nítida por trás – a exceção era o FIB Bank, que, de fato, operava.
Havia clientes reais em busca de suas garantias, embora a CPI tenha mostrado que nem
todos eles puderam acionar a fiança oferecida, quando isso se fez necessário.
Em meados de julho de 2021, conforme as coisas iam ficando mais claras para mim, eu
procurava Renato Nunes, o auxiliar que fora designado para cuidar do meu caso.
Passou semanas me dizendo que não podia ajudar naquele momento porque Tolentino
estava muito debilitado recuperando-se das sequelas da Covid. Ele, de fato, tivera um
quadro grave da doença, mas sua recuperação não foi tão longa quanto diziam. Numa
das vezes em que ouvi que ele estava em fase de reabilitação, fui surpreendido naquela
mesma tarde com o noticiário mostrando Tolentino ao lado do presidente Jair
Bolsonaro num evento no Palácio do Planalto. Eu sabia das conexões políticas entre
eles. Mas fiquei indignado com a mentira.
No dia 24 de julho, a piauí me procurou quando estava fazendo uma reportagem sobre
o FIB Bank. Relatei isso ao Renato Nunes. Ele me orientou a não falar com a revista e
disse que, se eu me expusesse, seria chamado a depor na CPI, algo que eu
absolutamente não desejava. Questionei por que eu estava sendo procurado por
jornalistas e ele me escreveu a seguinte mensagem: “Foi emitida uma carta em um
negócio que não se concretizou, num período que o Marcos estava em coma. Mas como
ele tem relacionamento com o presidente e o líder do governo, está gerando esse tipo
de matéria. Estamos todos muito tranquilos.” Na época, era uma explicação nebulosa,
mas hoje se sabe que ele se referia à carta de fiança emitida pelo FIB Bank para a
compra da Covaxin e que o relacionamento de Tolentino era com Jair Bolsonaro e o
deputado Ricardo Barros (PP-PR). Já então era evidente que eles queriam me calar.
Num determinado momento, para se livrarem de mim, me ofereceram um carro zero-
quilômetro. Disseram que eu poderia escolher o modelo, de qualquer valor. Eu disse
que não aceitaria. Tenho dois irmãos e não poderia sozinho receber nada que se
referisse ao meu pai. Eu também sabia que esse carro seria uma forma de ganhar
tempo, na expectativa de que eu parasse de importuná-los com a questão do
inventário. Não aceitei.
Em outro argumento para me enrolar, diziam que, tão logo terminasse a CPI, Tolentino
compraria a participação do meu pai nas empresas – um valor que nunca foi estimado
– e eu poderia fazer o inventário normalmente. Tolentino explicava que, naquele
momento, entre julho e agosto, centraria esforços em sua defesa e, depois de concluído
o relatório final da CPI, poderia se dedicar ao meu caso. Disse que, com seus contatos
no Ministério Público, na Procuradoria-Geral da República e na Polícia Federal, ele
resolveria seus eventuais problemas rapidamente e logo estaria livre para tratar do
meu assunto. Nunca mencionou, no entanto, ter qualquer intenção de aparecer como
acionista. Ele era o sócio oculto. Meu pai era o testa de ferro.
Eu não estava nada tranquilo com aquelas promessas. Minha vida estava sendo
consumida por aquela burocracia e eu não conseguia resolvê-la. Da parte deles, só
enrolação. Para piorar, eles tinham costas quentes porque, a essa altura, já estava
evidente que Tolentino possuía conexões com os poderosos de Brasília, incluindo o
próprio presidente Bolsonaro. O que eu mais desejava, na verdade, era simplesmente
que eles resolvessem as demandas do MP no processo de improbidade e fizessem o
inventário. Tolentino havia prometido cuidar das duas coisas, mas nada acontecia.
escritório de Tolentino para conversarmos. Fiquei horas por lá. Ele me apresentou a um
advogado que, segundo ele, estava trabalhando diretamente no caso do meu pai.
Chamava-se Ricardo Uchôa. O advogado me disse que atuava para extinguir as ações
de improbidade em Itapevi, o que me deu alguma esperança de que as coisas entrariam
nos eixos e a situação se regularizaria. Mas os sinais que eu recebia, na verdade, não
eram otimistas. Dias antes, Tolentino fora depor na CPI. Curiosamente, tentou parecer
que estava doente diante dos senadores, em razão de supostas sequelas da Covid. Só
que, no escritório, ele agia de forma normal, sem demonstrar qualquer sinal de que
estivesse debilitado. Pior que isso. Ali, diante dos parlamentares, ele disse que não
tinha nada a ver com meu pai ou com as empresas das quais meu pai era sócio, como a
MB Guassu e o FIB Bank. De testa de ferro, meu pai passava agora, diante do país
inteiro, a ser o único responsável por aquilo tudo.
Era uma insanidade. Eu não apenas sabia que meu pai trabalhava para Tolentino. Em
meio à papelada que encontrei em sua casa, havia um registro, em documento público,
comprovando o vínculo. Num termo de declarações assinado por meu pai em 9 de
janeiro de 2018, prestado numa delegacia de São Paulo por razões que eu desconheço,
ele reconheceu o falecimento do sócio Sebastião Lima, disse não estar a par da data
precisa da morte, alegou que não sabia quem era o verdadeiro dono da MB Guassu
(empresa da qual ele mesmo era sócio) e afirmou que trabalhava para o grupo de
Tolentino. Disse que sua função era de “assessoria na área de política empresarial”. Eu
guardo esse termo de declaração comigo, já que ele demonstra a relação que meu pai
tinha com o Tolentino – sobretudo porque, desde a CPI, Tolentino tem negado
publicamente ter qualquer coisa a ver com essas empresas das quais meu pai era sócio.
O relatório final da CPI ficou pronto no dia 26 de outubro. Em suas mais de mil
páginas, os senadores recomendaram o indiciamento de 78 pessoas, incluindo o
presidente da República, por crimes cometidos durante a pandemia. Tolentino está
entre os citados: é acusado de fraude em contrato, formação de organização criminosa e
improbidade administrativa. Os senadores classificaram Tolentino como “sócio oculto
do FIB Bank”. Ou seja, o relatório detalhava aquilo que, naquela altura, eu já sabia:
embora meu pai assinasse toda a papelada, quem era o responsável pela operação era
Tolentino. O governo, que poderia ajudar a esclarecer tudo, colaborando para
desvendar como e por que procuraram uma empresa tão enrolada como o FIB Bank
para garantir a compra da Covaxin, parece não ter interesse algum em fazê-lo, a julgar
pela reação das autoridades governamentais ao relatório final da CPI.
Minha mãe e meus irmãos já não tinham muito contato com meu pai quando tudo
aconteceu. Depois do divórcio, ele os ajudou financeiramente até a maioridade de cada
um, mas depois se afastou. Nunca foi um pai presente e tampouco deixou a família em
condição confortável após a separação. Minha mãe ficou sem nada. No final da vida,
como o salário que ele recebia de Tolentino foi minguando, eu e meus irmãos
ajudávamos a custear suas despesas básicas e medicamentos. Quando ele morreu, fui
encarregado de resolver a burocracia por ser o filho mais próximo dele, mas sempre
tive receio de contar à família tudo o que eu havia descoberto. Não queria preocupá-
los. Quando a CPI passou a investigar os negócios de Tolentino e o nome do meu pai
veio à tona, foi um susto para eles. Descobriram a confusão porque um conhecido
estava assistindo ao noticiário e avisou que o nome do meu pai havia sido citado pelos
senadores. Foi nesse momento que tive de contar tudo o que sabia. Agora, estão todos
assustados e preocupados comigo. Somos pessoas simples. Nada disso fazia parte da
nossa realidade.
Diante de tudo o que aconteceu, minha mãe se revolta: diz que, além de toda a
confusão que ele armou em vida, deixou como herança problemas ainda mais
complexos. Quando ele se foi, nós, os filhos, ficamos tristes. Era o nosso pai. Mas o
drama, neste momento, é maior, diante do imbróglio que devemos resolver. Não temos
poder, conexões políticas, influência. Somos as vítimas pequenas desse escândalo e,
portanto, o elo mais frágil. Meus irmãos e eu sempre nos perguntamos como meu pai
foi se envolver nisso. Mas não há resposta. Ele não ficou rico, não acumulou
patrimônio, não tinha nem casa própria quando morreu. Senão por dinheiro, por que
ele fez isso? Não acho que foi inocente. Não creio que as pessoas que participaram
disso, incluindo meu pai, tenham sido enganadas. Mas a razão, de fato, nunca
saberemos.
Ao contrário do que Tolentino prometera, quando o relatório final da CPI foi entregue,
ninguém me procurou para dar sequência ao meu caso. Ficaram em silêncio. Em
novembro do ano passado, o Ministério Público voltou a entrar em contato comigo em
busca do inventário do meu pai e eu voltei a recorrer a Tolentino. Foi quando Ricardo
Uchôa, advogado de Tolentino, me pediu que assinasse uma procuração dando a eles
plenos poderes para movimentar a MB Guassu na Junta Comercial – poderes que
incluíam obter certidões de quitação e transferir direitos sucessórios. Pedi explicações.
Por que precisavam de uma procuração para atuar na Junta Comercial sendo que o
problema estava no Ministério Público de Itapevi? Como confiar nessas pessoas depois
de mais de um ano de mentiras e enrolação?
Quando fiz esses questionamentos, Tolentino mudou o semblante. Disse que não iria
mais fazer nada por mim e que eu que me virasse para resolver tudo: o inventário, a
ação de improbidade, enfim, tudo que se relaciona ao meu pai. Depois de todo esse
tempo esperando, voltei à estaca zero. Mas desta vez decidi agir de forma diferente.
Estou sendo aconselhado por advogados e já apresentei tudo o que tenho ao Ministério
Público e à Polícia Federal: documentos, conversas de WhatsApp e áudios. Se essas
empresas, de fato, tiverem algum patrimônio, o que nos interessa é que ele seja usado
para resolver as pendências na Justiça. O que mais quero é me livrar dessas pessoas e
desse problema que não é meu, mas tem consumido a minha vida.
Para mim, é difícil conceber que meu pai fosse o testa de ferro de Tolentino. Ele sempre
trabalhou, estava envolvido em negócios. Não parava em casa. Mas nunca imaginei
que pudesse ser esse tipo de negócio, com licitações para o governo federal, para
governos estaduais. Embora eu tenha trabalhado brevemente num cargo indicado por
ele e até concorrido a vereador, sem sucesso, na verdade nunca fui de política. Essa não
é a minha realidade. Tenho uma vida normal, sou comerciante. Por isso demorei a
acreditar. Agora, só quero resolver e esquecer – e voltar a viver longe dessas pessoas.
É comerciante
N uma tarde no fim de outubro do ano passado, o arqueólogo Rodrigo Elias de
Oliveira encontrou o que parecia uma pedrinha escura, no meio de uma escavação.
“Era da cor da terra”, lembra. Com seu olhar afiado de quem também estudou e exerce
odontologia, percebeu logo que tinha um elemento precioso diante de si: um dente de
leite humano. A descoberta aconteceu durante a exploração em um sítio arqueológico
no Vale do Rio Peruaçu, um afluente do São Francisco, no Norte de Minas Gerais, a
cerca de 650 km de Belo Horizonte. Oliveira sentiu-se premiado. “É uma peça muito
pequenininha, mas que pode nos dar muita informação – desde que a gente tenha a
estrutura para estudá-la”, diz.
A escavação foi feita na entrada de uma caverna formada por um grande paredão de
calcário ao longo do qual há dezenas de pinturas rupestres, representando figuras
humanas, animais e motivos abstratos. É um sítio importante para a arqueologia
brasileira. Entre os anos 1980 e 1990, escavações feitas ali sob a liderança do professor
André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encontraram
vestígios de ocupação humana por volta de 13,3 mil anos atrás, no que configura uma
das mais antigas evidências da presença do Homo sapiens no continente americano.
O principal sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu se chama Lapa do Boquete, mas
alguns pesquisadores só se referem ao local pela sigla bqt, para evitar o duplo sentido
com a gíria que significa felação – pronunciado “boquéte”, com “e” aberto e que foi
incorporado à língua portuguesa em 1990, segundo o Dicionário Houaiss. O nome do
sítio é proferido com o “e” fechado (“boquête”), conforme registrado em nosso
vernáculo desde 1899. A lapa foi assim batizada em referência a uma passagem estreita
nas imediações da caverna, como uma pequena boca, explica Andrei Isnardis, que hoje
também é professor da UFMG.
Pääbo inaugurou o estudo do DNA antigo e, com sua equipe no Instituto Max Planck
de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, onde trabalha há 25 anos,
desenvolveu boa parte das ferramentas usadas nesse campo de pesquisa. Ele se
especializou no sequenciamento do DNA de linhagens extintas de humanos. Decifrou,
entre outros, o genoma dos neandertais, espécie que acabou extinta possivelmente por
ter perdido a competição evolutiva com os Homo sapiens. Em seus estudos, Pääbo
mostrou que os neandertais procriaram com humanos modernos e, mesmo que tenham
desaparecido do mapa há 40 mil anos, deixaram uma marca indelével no DNA
humano, presente em até 4% do genoma de cada um de nós.
O estudo confirmou – mais uma vez – que os americanos efetivamente vieram da Ásia:
o DNA do garoto de Mal’ta tem trechos que só são compartilhados atualmente por
povos nativos das Américas. Mas foi mais longe. Os resultados mostraram que, de fato,
as misturas e migrações foram uma força motriz da história humana. O DNA do
menino tinha sequências que hoje só são encontradas em povos que vivem na Europa
ou no Oeste da Ásia.
Américas saíram do nordeste da Ásia. Provavelmente, vieram a pé, porque o nível dos
oceanos estava mais baixo e havia uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca.
Essa área hoje está debaixo do mar, mas no fim da Era do Gelo formava uma grande
faixa de terra firme chamada Beríngia. Não há consenso, porém, sobre quando as
Américas foram ocupadas pela primeira vez: as estimativas mais conservadoras falam
em 15 ou 16 mil anos, mas alguns arqueólogos defendem que a entrada se deu muito
antes disso.
A questão parecia resolvida no século passado depois que uma ponta de lança
fabricada em pedra com uma técnica refinada foi encontrada ao lado de costelas de
mamute num sítio arqueológico próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, no
Oeste dos Estados Unidos. Depois desse achado, na década de 1930, pontas de estilo
parecido foram encontradas em vários sítios em território norte-americano,
frequentemente associadas a fósseis de grandes mamíferos extintos. A idade desses
sítios girava em torno dos 13 mil anos, e os fabricantes daquelas ferramentas ficaram
conhecidos como o “povo de Clóvis”.
Há 13 mil anos – uma coincidência que reforçou a tese –, as geleiras que cobriam a
maior parte da América do Norte durante a última Era do Gelo estavam derretendo.
Com isso, abriu-se um corredor terrestre que permitia a passagem de humanos e
animais do Alasca até as grandes planícies centrais dos Estados Unidos. Consolidou-se
então uma explicação para a ocupação das Américas, que foi dominante ao longo do
século XX: os humanos chegaram à América do Norte caminhando pela faixa que
ligava a Sibéria ao Alasca e, com o degelo, se espalharam pelo interior do continente,
caçando grandes mamíferos com suas pontas de lança de estilo distinto. Os primeiros
americanos, portanto, eram o povo de Clóvis.
Já não era sem tempo. Cerca de 13 mil anos atrás, quando o povo de Clóvis fabricava
suas pontas no Norte, havia gente por praticamente todo canto da América do Sul. A
Lapa do Boquete não era um caso isolado no Brasil. Na mesma época, para ficar num
único exemplo, havia grupos humanos ocupando a Amazônia, como mostram os
indícios de até 13,1 mil anos encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte
Alegre, no Pará. Aquelas pessoas pareciam plenamente adaptadas aos recursos que a
floresta lhes oferecia e levavam uma vida muito diferente da dos caçadores de grandes
mamíferos do Norte, além de produzirem ferramentas usando uma tecnologia
totalmente distinta. Ou seja: o povo de Clóvis não era o pioneiro, mas contemporâneo
desses outros povos.
Strauss disse que a construção do laboratório custou cerca de 1 milhão de reais, dos
quais um terço foi para a compra de equipamentos. A máquina mais sofisticada
adquirida para o projeto é um TapeStation, que será usado para organizar a informação
genética a ser sequenciada. “O grande truque não está no equipamento, mas sim na
estrutura do laboratório, nos reagentes utilizados e nos protocolos capazes de
identificar e isolar o DNA antigo”, disse a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, que
vai coordenar o laboratório ao lado de Strauss.
Quando estava no instituto alemão, Strauss percebeu que o DNA antigo poderia ajudar
a resolver mistérios da arqueologia brasileira. Material de estudo não faltaria: a região
de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é conhecida pela abundância de remanescentes
humanos antigos encontrados em seus sítios arqueológicos. Centenas de esqueletos
foram exumados naquela região desde as expedições pioneiras do naturalista
dinamarquês Peter Lund nos anos 1840.
Aqueles fósseis poderiam ajudar a provar – ou refutar – uma hipótese proposta no final
dos anos 1980 pelo bioantropólogo Walter Neves, mentor de Strauss na arqueologia.
Neves sugeriu que o continente americano foi povoado por dois grupos
biologicamente distintos, que vieram em duas levas – ambas passando pela Beríngia. O
cientista chegou a essa conclusão ao notar que os crânios de Lagoa Santa e outras
regiões do continente americano tinham aspectos que lembravam mais as populações
que hoje vivem na Austrália ou na África do que os indígenas atuais. A reconstituição
do rosto de Luzia, um dos esqueletos humanos mais velhos das Américas, encontrado
em 1974, fixou no imaginário popular no Brasil, ao aparecer em jornais, revistas e livros
didáticos, como a figura emblemática da suposta cara dos primeiros brasileiros.
Na tese de Neves, a primeira leva de americanos trouxe os antepassados de Luzia, que
têm ancestrais comuns com os grupos que saíram da África e colonizaram a Oceania, se
deslocando por meio de barcos desde o Sudeste Asiático, há mais de 40 mil anos. A
segunda leva de americanos incluiu os povos com feições mais próximas às dos
asiáticos atuais, que deram origem aos povos indígenas. Se fosse possível extrair DNA
do material de Lagoa Santa, talvez desse para esclarecer seu parentesco com os
indígenas contemporâneos.
Strauss falou da sua ideia a Johannes Krause, geneticista alemão que foi aluno de
Svante Pääbo e trabalhou com o sueco no sequenciamento do genoma dos denisovanos
e neandertais. Krause foi cético quanto à possibilidade de sucesso, já que em ambientes
tropicais o DNA se degrada mais rapidamente, devido à temperatura, à umidade e à
acidez do solo. Mas ele estimulou Strauss a seguir em frente, e o Instituto Max Planck
formalizou a parceria com a USP.
A genética mostra ainda que os ancestrais dos nativos americanos se isolaram dos
demais povos asiáticos numa época que coincide com o chamado Último Máximo
Glacial, situado entre 26 mil e 19 mil anos atrás, que marca o auge da extensão das
geleiras na última Era do Gelo. Cientistas acreditam que o isolamento dessa população
se deu justamente por causa das condições climáticas extremas, deixando-a cercada de
gelo na Beríngia, aquela passagem entre a Sibéria e o Alasca.
Essa explosão populacional é um sinal de que o grupo que tinha ficado isolado dos
demais povos asiáticos havia finalmente chegado às Américas – esse é o padrão que se
esperaria depois que um agrupamento humano chegasse num território novo,
despovoado e repleto de recursos. Por isso, os cientistas acreditam que o período de
isolamento populacional aconteceu na Beríngia, que não estava coberta por geleiras e
era habitada por grandes mamíferos que podiam servir de alimento. “O problema é
que a genética é meio ruim para dizer onde as pessoas estavam naquele momento”,
disse Pinotti. “Só conseguimos falar do tempo.”
Usando uma ferramenta que permite estimar quando duas populações se separaram e
há quanto tempo elas compartilham um ancestral comum, conhecida como “relógio
molecular”, o geneticista brasileiro e seus colegas calcularam que a chegada às
Américas do grupo que deu origem aos povos indígenas atuais aconteceu há, no
máximo, 19,5 mil anos, conforme anunciaram em artigo publicado na revista Current
Biology, em 2019.
O resultado coincide em grandes linhas com estimativas feitas a partir das linhagens de
DNA mitocondrial, que, como é transmitido apenas da mãe aos seus filhos, é útil para
investigar as linhagens maternas de uma população. Um estudo de 2016 que analisou
essas linhagens concluiu que a entrada nas Américas deve ter acontecido por volta de
16 mil anos atrás, por um grupo que colonizou o continente seguindo o litoral do
Pacífico.
A história do povoamento das Américas ficou mais confusa em 2015, quando um
Quando se deparou com esse sinal na análise dos dados, a geneticista Tábita
Hünemeier – uma das autoras da descoberta – achou que se tratasse de um erro, de tão
contraintuitivo que lhe pareceu. Ela tentou fazer correções estatísticas para ver se o
sinal sumia, mas ele continuava irredutível. Dos 21 povos indígenas de todo o
continente americano amostrados pelo estudo, os três grupos brasileiros – e apenas eles
– pareciam ter como ancestral uma população misteriosa.
Mas o nome não ajudava a explicar de onde tinham vindo aqueles ypykuéras. O sinal
aparecia em povos indígenas que falam línguas de troncos distintos, que se separaram
há mais de 4 mil anos. “Por isso, achamos que deveria ser um sinal antigo”, disse
Hünemeier. O problema ganhou nitidez em 2021, quando ela e seus colegas decidiram
buscar o sinal genético numa amostra maior de populações. Ele apareceu então nos
araras, no Pará, nos guaranis-kaiowás, em Mato Grosso do Sul, e em povos indígenas
de outros países. “O que a gente vê é o sinal muito espalhado pela América do Sul”,
continuou a geneticista. “Tem nos Andes, na Amazônia, na costa do Pacífico.” Para ela,
é um indício de que a rota de colonização do continente americano se deu pelo litoral
do Pacífico. Mas os cientistas não sabem dizer por que essa assinatura genética não foi
encontrada em povos da América do Norte ou da Sibéria.
O sinal australasiano não quer dizer que povos da Oceania atravessaram o Pacífico
para chegar às Américas no passado remoto. Tal sinal foi trazido ao continente pelos
povos que entraram pelo nordeste asiático, na região siberiana. Provavelmente, é o
resultado de cruzamentos entre populações diferentes que se encontraram na Sibéria,
de onde alguns partiram rumo ao continente americano, e outros, em direção à
Oceania. “Tudo tem a ver com a heterogeneidade dos povos que chegaram à Beríngia e
a partir dali se dispersaram pelo continente americano”, disse Bortolini.
O genoma dos indivíduos coletados por Lund acrescentou uma pitada de mistério
acerca da população Y. O sinal australasiano apareceu em um – e apenas um – dos
cinco indivíduos. Para complicar, correspondia a cerca de 3% de seu genoma, uma
proporção parecida à encontrada nas populações contemporâneas. O dado é um
complicador porque se o sinal australasiano fosse, de fato, um sinal antigo, como
suspeitavam os pesquisadores, ele devia aparecer em proporção bem maior naquele
indivíduo que viveu há 10,4 mil anos – e não na mesma proporção das populações de
hoje. A constatação representa um desafio, que os próprios autores reconheceram no
artigo. O enigma permanece sem solução.
Mas os indivíduos da Lapa do Santo, cujo DNA foi extraído na Alemanha, ajudaram a
elucidar algumas dúvidas. A análise mostrou que os sete indivíduos tinham parentesco
com um menino que fora enterrado por volta de 12,8 mil anos atrás em Anzick, em
Montana, no noroeste dos Estados Unidos, junto de ferramentas típicas do povo de
Clóvis – esse menino é o único remanescente humano encontrado num sítio dessa
cultura. O mesmo parentesco foi verificado em outros dois esqueletos de países
americanos: um, de quase 11 mil anos e encontrado em Los Rieles, no Chile, e um
outro, de 9,3 mil anos, escavado em Belize, na América Central.
Os genomas da Lapa do Santo ainda mostraram que os povos de Lagoa Santa, embora
tivessem crânios com feições parecidas com as dos australasianos, não tinham conexão
genética com essas populações. Pelo contrário, eles compartilham um ancestral comum
com os povos indígenas atuais, que têm feições mais parecidas com as dos povos
asiáticos. Tudo considerado, os resultados indicam que Luzia e seus parentes não são
uma população biologicamente distinta, o que joga por terra o modelo de ocupação
proposto por Walter Neves.
Diante disso, Strauss mandou fazer outra reconstituição facial baseada nos crânios de
Lagoa Santa – dessa vez de um indivíduo da Lapa do Santo –, divulgada por ocasião
da publicação dos dois artigos. A ideia era substituir a imagem de Luzia com traços
marcadamente africanos, elaborada nos anos 1990. A nova cara dos povos de Lagoa
Santa tem uma morfologia mais genérica, com traços menos africanizados que os de
Luzia. A imagem, porém, não viralizou como a reconstituição original e, ainda hoje, o
rosto de Luzia é a figura que vem à mente quando se pensa nos primeiros brasileiros.
Neves não se deu por vencido. Amargurado com a proeminência que a genética vem
ganhando na arqueologia – uma tendência que costuma descrever como a “ditadura do
DNA” –, ele prefere enxergar que a presença do sinal australasiano em alguns povos
indígenas é uma prova de que sua tese – que o continente americano foi povoado por
dois grupos biologicamente distintos – está correta. Para ele, a população Y nada mais
é do que a população que teria dado origem aos povos de Lagoa Santa cujos
remanescentes foram escavados por ele e sua equipe. “Isso era algo absolutamente
esperado”, diz. No entanto, Neves não explica por que os esqueletos da Lapa do Santo
são parentes dos indígenas contemporâneos e, portanto, não representam povos
biologicamente distintos.
É irônico que a hipótese de Neves tenha sido refutada pela genética, num estudo feito
por Strauss, um ex-aluno que ele considera brilhante. Em certa medida, o triunfo do
DNA representa o ocaso da craniometria, técnica que o bioantropólogo empregou ao
longo da carreira (Neves se aposentou em 2017, mas continua a frequentar a
universidade). A hipótese de que as Américas tinham sido povoadas por duas
populações distintas foi construída com base em medições minuciosas da morfologia
dos crânios. Com o acesso ao DNA antigo, no entanto, agora os cientistas conseguem
resgatar as instruções genéticas que levaram à diversidade observada nas amostras.
é a parte de dentro do osso temporal, onde fica a cóclea, no ouvido interno. “Como o
osso é mais denso e isolado nessa região, a gente tende a ter mais DNA preservado ali”,
diz o geneticista Tiago Ferraz, da USP. Mas se o objetivo for a extração de DNA
mitocondrial (aquele que só passa de mãe para filho), continua Ferraz, é melhor usar
um dente, que preserva maiores concentrações desse material.
Dentre as amostras que serão analisadas na USP, estão o dente de leite achado na Lapa
do Boquete e outros remanescentes humanos que venham a surgir nas próximas etapas
da escavação – os pesquisadores voltarão a campo em maio. Uma das primeiras
amostras das quais Strauss gostaria de tentar extrair DNA é o Homem de Confins,
encontrado numa expedição feita nos anos 1930 em um dos sítios mais ricos da região
de Lagoa Santa – a Lapa Mortuária de Confins, onde foram descobertos remanescentes
de mais de oitenta indivíduos. O esqueleto do Homem de Confins estava junto a fósseis
de animais extintos, sinalizando que poderia ser muito antigo, mas não foi possível
datá-lo diretamente. Por sorte, Strauss fez amostragens desse indivíduo antes do
incêndio no prédio em que ficava a reserva técnica do Museu de História Natural e
Jardim Botânico da UFMG, em junho de 2020. O fogo destruiu remanescentes humanos
coletados ao longo de décadas na região de Lagoa Santa.
Um ano antes, a Nature publicou um artigo que trazia evidências muito antigas da
presença humana no continente americano, desta vez na Caverna Chiquihuite, que fica
numa montanha no centro-norte do México, a 2 740 metros de altitude. Ali, foram
encontradas quase 2 mil ferramentas de pedra em diferentes camadas de sedimentos.
As mais antigas estavam em camadas de pelo menos 31 mil anos, milênios antes do
Último Máximo Glacial, conforme relatou um grupo de cientistas do México, Brasil,
Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.
Mesmo assim, nenhum sítio arqueológico brasileiro anterior ao Último Máximo Glacial
é reconhecido de forma irrestrita. Ainda é cedo para dizer se White Sands e
Chiquihuite terão mais aceitação na comunidade arqueológica. É possível que
enfrentem alguma resistência, porque as datas não se encaixam com a história que a
genética conta. De acordo com os estudos de DNA antigo e contemporâneo, a
população asiática que deu origem aos povos nativos americanos se formou entre 21
mil e 20 mil anos atrás. A ocupação do continente, portanto, teria acontecido depois
disso. De modo que qualquer datação anterior a esse período acaba enfrentando
resistência entre os estudiosos. Se até o século passado a época em que viveu o povo de
Clóvis era considerada o limite para a ocupação do continente, hoje é a genética quem
impõe o teto cronológico.
Esse cenário, no entanto, não invalida as provas da presença humana nas Américas
antes do Último Máximo Glacial. O que a genética nos conta, na realidade, é que, se
havia grupos humanos lascando pedra no Piauí há 40 mil anos, então eles não são
ancestrais dos povos indígenas atuais. Em outras palavras, são uma população que não
teve sucesso reprodutivo, conforme propôs Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. “Os
bem-sucedidos foram os sibero-beringianos e os ypykuéras”, afirma a geneticista. “Eles
colonizaram o continente e seus descendentes estão aí.”
Nada impede, portanto, que os grupos humanos que passaram por White Sands,
Chiquihuite, Santa Elina e a Serra da Capivara representem de fato um beco sem saída
da genealogia humana – mas, mesmo assim, terão sido eles, e não o povo de Clóvis, os
primeiros habitantes do continente americano. O que intriga os geneticistas é que
mesmo espécies extintas como os neandertais e os denisovanos – os malsucedidos de
seu tempo – deixaram pistas genéticas que ajudam a retraçar sua história. Por que os
povos de White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra de Capivara não deixaram
pista alguma? “O que o DNA antigo mostrou até agora é que ninguém some sem
deixar rastro”, disse Thomaz Pinotti.
Se houve grupos humanos que entraram nas Américas antes do Último Máximo
Glacial, se espalharam pelo continente e depois desapareceram, esse seria um evento
único na história humana, argumenta André Strauss. “Em nenhum outro lugar do
mundo o Homo sapiens passou dezenas de milhares de anos com uma densidade
demográfica mínima, que beira a invisibilidade”, afirma. Depois que saíram da África,
os humanos modernos colonizaram a Eurásia em 5 mil anos, continua o arqueólogo.
“Esses caras não eram bobos, eles sabiam o que estavam fazendo.” Diante dessa
excepcionalidade, acredita Strauss, o ônus da prova deveria recair sobre os cientistas
que defendem que a presença humana no continente americano tem mais de 20 mil
anos.
Araujo lembra também que o relógio molecular, aquele método que calcula a data de
separação entre as populações, carrega muita incerteza. O método se baseia na
frequência com que ocorrem mutações aleatórias no DNA mitocondrial, no
cromossomo Y ou nos demais trechos do genoma humano. Araujo afirma que a
imprecisão advém do fato de que essa frequência não é constante ao longo do tempo e
depende de uma série de fatores. No entanto, diz ele, nem sempre as incertezas são
discutidas pelos geneticistas. Além disso, os estudos do DNA muitas vezes desprezam
os resultados gerados por outras linhas de evidência, arqueológicas ou não.
Por exemplo: se os humanos chegaram à América do Norte por volta de 18 mil anos
atrás, conforme sugere a genética, como explicar a grande variedade de estilos de
ferramentas encontrada na América do Sul por volta de 13 mil anos atrás? “Muito
tempo teria que ter passado para chegarmos a essa vastíssima diversidade cultural”,
afirma o arqueólogo da USP. Da mesma forma, uma ocupação recente não explica a
riqueza das línguas indígenas faladas hoje na Amazônia. “A genética é imprescindível
e enriquece muito as nossas inferências, mas devemos saber de suas limitações”, diz
Araujo. “E temos que colocar a bendita arqueologia nessa história.”
A divergência entre os resultados dos estudos de DNA e os sítios arqueológicos muito
antigos pode servir de estímulo à busca de novas evidências. “O que parece é que
houve mesmo uma entrada no continente antes do Último Máximo Glacial”, afirma
Andrei Isnardis, o arqueólogo da UFMG que estudou a Lapa do Boquete nos anos 1990
e está participando das novas escavações. Recentemente, Isnardis e alguns colegas
visitaram os sítios em Mato Grosso e no Piauí. Ele saiu convencido de que os indícios
da presença humana antiga ali são inequívocos. “Tudo bem que a genética aponte para
uma ocupação não tão antiga”, afirma. “Não será a primeira e nem a oitava vez que a
gente diverge da genética. Nós vamos continuar estudando.”
Strauss está acostumado a transitar entre campos distintos. Ele tem graduação em
geologia e em ciências sociais, e colocou um pé na genética desde o mestrado. “O
cientista social tem uma língua, o biólogo tem outra e o geólogo tem uma terceira. Se
você sabe falar essas línguas, é muito mais fácil fazer com que eles trabalhem juntos”,
diz. Strauss acredita que é a arqueologia, e não a genética, quem terá a palavra final
sobre o povoamento das Américas. “A resolução desse debate virá por uma descoberta
arqueológica, ou pela sua ausência nos próximos mil anos.”
N uma tarde no fim de outubro do ano passado, o arqueólogo Rodrigo Elias de
Oliveira encontrou o que parecia uma pedrinha escura, no meio de uma escavação.
“Era da cor da terra”, lembra. Com seu olhar afiado de quem também estudou e exerce
odontologia, percebeu logo que tinha um elemento precioso diante de si: um dente de
leite humano. A descoberta aconteceu durante a exploração em um sítio arqueológico
no Vale do Rio Peruaçu, um afluente do São Francisco, no Norte de Minas Gerais, a
cerca de 650 km de Belo Horizonte. Oliveira sentiu-se premiado. “É uma peça muito
pequenininha, mas que pode nos dar muita informação – desde que a gente tenha a
estrutura para estudá-la”, diz.
A escavação foi feita na entrada de uma caverna formada por um grande paredão de
calcário ao longo do qual há dezenas de pinturas rupestres, representando figuras
humanas, animais e motivos abstratos. É um sítio importante para a arqueologia
brasileira. Entre os anos 1980 e 1990, escavações feitas ali sob a liderança do professor
André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encontraram
vestígios de ocupação humana por volta de 13,3 mil anos atrás, no que configura uma
das mais antigas evidências da presença do Homo sapiens no continente americano.
O principal sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu se chama Lapa do Boquete, mas
alguns pesquisadores só se referem ao local pela sigla bqt, para evitar o duplo sentido
com a gíria que significa felação – pronunciado “boquéte”, com “e” aberto e que foi
incorporado à língua portuguesa em 1990, segundo o Dicionário Houaiss. O nome do
sítio é proferido com o “e” fechado (“boquête”), conforme registrado em nosso
vernáculo desde 1899. A lapa foi assim batizada em referência a uma passagem estreita
nas imediações da caverna, como uma pequena boca, explica Andrei Isnardis, que hoje
também é professor da UFMG.
Pääbo inaugurou o estudo do DNA antigo e, com sua equipe no Instituto Max Planck
de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, onde trabalha há 25 anos,
desenvolveu boa parte das ferramentas usadas nesse campo de pesquisa. Ele se
especializou no sequenciamento do DNA de linhagens extintas de humanos. Decifrou,
entre outros, o genoma dos neandertais, espécie que acabou extinta possivelmente por
ter perdido a competição evolutiva com os Homo sapiens. Em seus estudos, Pääbo
mostrou que os neandertais procriaram com humanos modernos e, mesmo que tenham
desaparecido do mapa há 40 mil anos, deixaram uma marca indelével no DNA
humano, presente em até 4% do genoma de cada um de nós.
O estudo confirmou – mais uma vez – que os americanos efetivamente vieram da Ásia:
o DNA do garoto de Mal’ta tem trechos que só são compartilhados atualmente por
povos nativos das Américas. Mas foi mais longe. Os resultados mostraram que, de fato,
as misturas e migrações foram uma força motriz da história humana. O DNA do
menino tinha sequências que hoje só são encontradas em povos que vivem na Europa
ou no Oeste da Ásia.
Américas saíram do nordeste da Ásia. Provavelmente, vieram a pé, porque o nível dos
oceanos estava mais baixo e havia uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca.
Essa área hoje está debaixo do mar, mas no fim da Era do Gelo formava uma grande
faixa de terra firme chamada Beríngia. Não há consenso, porém, sobre quando as
Américas foram ocupadas pela primeira vez: as estimativas mais conservadoras falam
em 15 ou 16 mil anos, mas alguns arqueólogos defendem que a entrada se deu muito
antes disso.
A questão parecia resolvida no século passado depois que uma ponta de lança
fabricada em pedra com uma técnica refinada foi encontrada ao lado de costelas de
mamute num sítio arqueológico próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, no
Oeste dos Estados Unidos. Depois desse achado, na década de 1930, pontas de estilo
parecido foram encontradas em vários sítios em território norte-americano,
frequentemente associadas a fósseis de grandes mamíferos extintos. A idade desses
sítios girava em torno dos 13 mil anos, e os fabricantes daquelas ferramentas ficaram
conhecidos como o “povo de Clóvis”.
Há 13 mil anos – uma coincidência que reforçou a tese –, as geleiras que cobriam a
maior parte da América do Norte durante a última Era do Gelo estavam derretendo.
Com isso, abriu-se um corredor terrestre que permitia a passagem de humanos e
animais do Alasca até as grandes planícies centrais dos Estados Unidos. Consolidou-se
então uma explicação para a ocupação das Américas, que foi dominante ao longo do
século XX: os humanos chegaram à América do Norte caminhando pela faixa que
ligava a Sibéria ao Alasca e, com o degelo, se espalharam pelo interior do continente,
caçando grandes mamíferos com suas pontas de lança de estilo distinto. Os primeiros
americanos, portanto, eram o povo de Clóvis.
Já não era sem tempo. Cerca de 13 mil anos atrás, quando o povo de Clóvis fabricava
suas pontas no Norte, havia gente por praticamente todo canto da América do Sul. A
Lapa do Boquete não era um caso isolado no Brasil. Na mesma época, para ficar num
único exemplo, havia grupos humanos ocupando a Amazônia, como mostram os
indícios de até 13,1 mil anos encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte
Alegre, no Pará. Aquelas pessoas pareciam plenamente adaptadas aos recursos que a
floresta lhes oferecia e levavam uma vida muito diferente da dos caçadores de grandes
mamíferos do Norte, além de produzirem ferramentas usando uma tecnologia
totalmente distinta. Ou seja: o povo de Clóvis não era o pioneiro, mas contemporâneo
desses outros povos.
Strauss disse que a construção do laboratório custou cerca de 1 milhão de reais, dos
quais um terço foi para a compra de equipamentos. A máquina mais sofisticada
adquirida para o projeto é um TapeStation, que será usado para organizar a informação
genética a ser sequenciada. “O grande truque não está no equipamento, mas sim na
estrutura do laboratório, nos reagentes utilizados e nos protocolos capazes de
identificar e isolar o DNA antigo”, disse a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, que
vai coordenar o laboratório ao lado de Strauss.
Quando estava no instituto alemão, Strauss percebeu que o DNA antigo poderia ajudar
a resolver mistérios da arqueologia brasileira. Material de estudo não faltaria: a região
de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é conhecida pela abundância de remanescentes
humanos antigos encontrados em seus sítios arqueológicos. Centenas de esqueletos
foram exumados naquela região desde as expedições pioneiras do naturalista
dinamarquês Peter Lund nos anos 1840.
Aqueles fósseis poderiam ajudar a provar – ou refutar – uma hipótese proposta no final
dos anos 1980 pelo bioantropólogo Walter Neves, mentor de Strauss na arqueologia.
Neves sugeriu que o continente americano foi povoado por dois grupos
biologicamente distintos, que vieram em duas levas – ambas passando pela Beríngia. O
cientista chegou a essa conclusão ao notar que os crânios de Lagoa Santa e outras
regiões do continente americano tinham aspectos que lembravam mais as populações
que hoje vivem na Austrália ou na África do que os indígenas atuais. A reconstituição
do rosto de Luzia, um dos esqueletos humanos mais velhos das Américas, encontrado
em 1974, fixou no imaginário popular no Brasil, ao aparecer em jornais, revistas e livros
didáticos, como a figura emblemática da suposta cara dos primeiros brasileiros.
Strauss falou da sua ideia a Johannes Krause, geneticista alemão que foi aluno de
Svante Pääbo e trabalhou com o sueco no sequenciamento do genoma dos denisovanos
e neandertais. Krause foi cético quanto à possibilidade de sucesso, já que em ambientes
tropicais o DNA se degrada mais rapidamente, devido à temperatura, à umidade e à
acidez do solo. Mas ele estimulou Strauss a seguir em frente, e o Instituto Max Planck
formalizou a parceria com a USP.
A genética mostra ainda que os ancestrais dos nativos americanos se isolaram dos
demais povos asiáticos numa época que coincide com o chamado Último Máximo
Glacial, situado entre 26 mil e 19 mil anos atrás, que marca o auge da extensão das
geleiras na última Era do Gelo. Cientistas acreditam que o isolamento dessa população
se deu justamente por causa das condições climáticas extremas, deixando-a cercada de
gelo na Beríngia, aquela passagem entre a Sibéria e o Alasca.
Essa explosão populacional é um sinal de que o grupo que tinha ficado isolado dos
demais povos asiáticos havia finalmente chegado às Américas – esse é o padrão que se
esperaria depois que um agrupamento humano chegasse num território novo,
despovoado e repleto de recursos. Por isso, os cientistas acreditam que o período de
isolamento populacional aconteceu na Beríngia, que não estava coberta por geleiras e
era habitada por grandes mamíferos que podiam servir de alimento. “O problema é
que a genética é meio ruim para dizer onde as pessoas estavam naquele momento”,
disse Pinotti. “Só conseguimos falar do tempo.”
Usando uma ferramenta que permite estimar quando duas populações se separaram e
há quanto tempo elas compartilham um ancestral comum, conhecida como “relógio
molecular”, o geneticista brasileiro e seus colegas calcularam que a chegada às
Américas do grupo que deu origem aos povos indígenas atuais aconteceu há, no
máximo, 19,5 mil anos, conforme anunciaram em artigo publicado na revista Current
Biology, em 2019.
O resultado coincide em grandes linhas com estimativas feitas a partir das linhagens de
DNA mitocondrial, que, como é transmitido apenas da mãe aos seus filhos, é útil para
investigar as linhagens maternas de uma população. Um estudo de 2016 que analisou
essas linhagens concluiu que a entrada nas Américas deve ter acontecido por volta de
16 mil anos atrás, por um grupo que colonizou o continente seguindo o litoral do
Pacífico.
Quando se deparou com esse sinal na análise dos dados, a geneticista Tábita
Hünemeier – uma das autoras da descoberta – achou que se tratasse de um erro, de tão
contraintuitivo que lhe pareceu. Ela tentou fazer correções estatísticas para ver se o
sinal sumia, mas ele continuava irredutível. Dos 21 povos indígenas de todo o
continente americano amostrados pelo estudo, os três grupos brasileiros – e apenas eles
– pareciam ter como ancestral uma população misteriosa.
Mas o nome não ajudava a explicar de onde tinham vindo aqueles ypykuéras. O sinal
aparecia em povos indígenas que falam línguas de troncos distintos, que se separaram
há mais de 4 mil anos. “Por isso, achamos que deveria ser um sinal antigo”, disse
Hünemeier. O problema ganhou nitidez em 2021, quando ela e seus colegas decidiram
buscar o sinal genético numa amostra maior de populações. Ele apareceu então nos
araras, no Pará, nos guaranis-kaiowás, em Mato Grosso do Sul, e em povos indígenas
de outros países. “O que a gente vê é o sinal muito espalhado pela América do Sul”,
continuou a geneticista. “Tem nos Andes, na Amazônia, na costa do Pacífico.” Para ela,
é um indício de que a rota de colonização do continente americano se deu pelo litoral
do Pacífico. Mas os cientistas não sabem dizer por que essa assinatura genética não foi
encontrada em povos da América do Norte ou da Sibéria.
O sinal australasiano não quer dizer que povos da Oceania atravessaram o Pacífico
para chegar às Américas no passado remoto. Tal sinal foi trazido ao continente pelos
povos que entraram pelo nordeste asiático, na região siberiana. Provavelmente, é o
resultado de cruzamentos entre populações diferentes que se encontraram na Sibéria,
de onde alguns partiram rumo ao continente americano, e outros, em direção à
Oceania. “Tudo tem a ver com a heterogeneidade dos povos que chegaram à Beríngia e
a partir dali se dispersaram pelo continente americano”, disse Bortolini.
O genoma dos indivíduos coletados por Lund acrescentou uma pitada de mistério
acerca da população Y. O sinal australasiano apareceu em um – e apenas um – dos
cinco indivíduos. Para complicar, correspondia a cerca de 3% de seu genoma, uma
proporção parecida à encontrada nas populações contemporâneas. O dado é um
complicador porque se o sinal australasiano fosse, de fato, um sinal antigo, como
suspeitavam os pesquisadores, ele devia aparecer em proporção bem maior naquele
indivíduo que viveu há 10,4 mil anos – e não na mesma proporção das populações de
hoje. A constatação representa um desafio, que os próprios autores reconheceram no
artigo. O enigma permanece sem solução.
Mas os indivíduos da Lapa do Santo, cujo DNA foi extraído na Alemanha, ajudaram a
elucidar algumas dúvidas. A análise mostrou que os sete indivíduos tinham parentesco
com um menino que fora enterrado por volta de 12,8 mil anos atrás em Anzick, em
Montana, no noroeste dos Estados Unidos, junto de ferramentas típicas do povo de
Clóvis – esse menino é o único remanescente humano encontrado num sítio dessa
cultura. O mesmo parentesco foi verificado em outros dois esqueletos de países
americanos: um, de quase 11 mil anos e encontrado em Los Rieles, no Chile, e um
outro, de 9,3 mil anos, escavado em Belize, na América Central.
Os genomas da Lapa do Santo ainda mostraram que os povos de Lagoa Santa, embora
tivessem crânios com feições parecidas com as dos australasianos, não tinham conexão
genética com essas populações. Pelo contrário, eles compartilham um ancestral comum
com os povos indígenas atuais, que têm feições mais parecidas com as dos povos
asiáticos. Tudo considerado, os resultados indicam que Luzia e seus parentes não são
uma população biologicamente distinta, o que joga por terra o modelo de ocupação
proposto por Walter Neves.
Diante disso, Strauss mandou fazer outra reconstituição facial baseada nos crânios de
Lagoa Santa – dessa vez de um indivíduo da Lapa do Santo –, divulgada por ocasião
da publicação dos dois artigos. A ideia era substituir a imagem de Luzia com traços
marcadamente africanos, elaborada nos anos 1990. A nova cara dos povos de Lagoa
Santa tem uma morfologia mais genérica, com traços menos africanizados que os de
Luzia. A imagem, porém, não viralizou como a reconstituição original e, ainda hoje, o
rosto de Luzia é a figura que vem à mente quando se pensa nos primeiros brasileiros.
Neves não se deu por vencido. Amargurado com a proeminência que a genética vem
ganhando na arqueologia – uma tendência que costuma descrever como a “ditadura do
DNA” –, ele prefere enxergar que a presença do sinal australasiano em alguns povos
indígenas é uma prova de que sua tese – que o continente americano foi povoado por
dois grupos biologicamente distintos – está correta. Para ele, a população Y nada mais
é do que a população que teria dado origem aos povos de Lagoa Santa cujos
remanescentes foram escavados por ele e sua equipe. “Isso era algo absolutamente
esperado”, diz. No entanto, Neves não explica por que os esqueletos da Lapa do Santo
são parentes dos indígenas contemporâneos e, portanto, não representam povos
biologicamente distintos.
É irônico que a hipótese de Neves tenha sido refutada pela genética, num estudo feito
por Strauss, um ex-aluno que ele considera brilhante. Em certa medida, o triunfo do
DNA representa o ocaso da craniometria, técnica que o bioantropólogo empregou ao
longo da carreira (Neves se aposentou em 2017, mas continua a frequentar a
universidade). A hipótese de que as Américas tinham sido povoadas por duas
populações distintas foi construída com base em medições minuciosas da morfologia
dos crânios. Com o acesso ao DNA antigo, no entanto, agora os cientistas conseguem
resgatar as instruções genéticas que levaram à diversidade observada nas amostras.
é a parte de dentro do osso temporal, onde fica a cóclea, no ouvido interno. “Como o
osso é mais denso e isolado nessa região, a gente tende a ter mais DNA preservado ali”,
diz o geneticista Tiago Ferraz, da USP. Mas se o objetivo for a extração de DNA
mitocondrial (aquele que só passa de mãe para filho), continua Ferraz, é melhor usar
um dente, que preserva maiores concentrações desse material.
Dentre as amostras que serão analisadas na USP, estão o dente de leite achado na Lapa
do Boquete e outros remanescentes humanos que venham a surgir nas próximas etapas
da escavação – os pesquisadores voltarão a campo em maio. Uma das primeiras
amostras das quais Strauss gostaria de tentar extrair DNA é o Homem de Confins,
encontrado numa expedição feita nos anos 1930 em um dos sítios mais ricos da região
de Lagoa Santa – a Lapa Mortuária de Confins, onde foram descobertos remanescentes
de mais de oitenta indivíduos. O esqueleto do Homem de Confins estava junto a fósseis
de animais extintos, sinalizando que poderia ser muito antigo, mas não foi possível
datá-lo diretamente. Por sorte, Strauss fez amostragens desse indivíduo antes do
incêndio no prédio em que ficava a reserva técnica do Museu de História Natural e
Jardim Botânico da UFMG, em junho de 2020. O fogo destruiu remanescentes humanos
coletados ao longo de décadas na região de Lagoa Santa.
Um ano antes, a Nature publicou um artigo que trazia evidências muito antigas da
presença humana no continente americano, desta vez na Caverna Chiquihuite, que fica
numa montanha no centro-norte do México, a 2 740 metros de altitude. Ali, foram
encontradas quase 2 mil ferramentas de pedra em diferentes camadas de sedimentos.
As mais antigas estavam em camadas de pelo menos 31 mil anos, milênios antes do
Último Máximo Glacial, conforme relatou um grupo de cientistas do México, Brasil,
Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.
Mesmo assim, nenhum sítio arqueológico brasileiro anterior ao Último Máximo Glacial
é reconhecido de forma irrestrita. Ainda é cedo para dizer se White Sands e
Chiquihuite terão mais aceitação na comunidade arqueológica. É possível que
enfrentem alguma resistência, porque as datas não se encaixam com a história que a
genética conta. De acordo com os estudos de DNA antigo e contemporâneo, a
população asiática que deu origem aos povos nativos americanos se formou entre 21
mil e 20 mil anos atrás. A ocupação do continente, portanto, teria acontecido depois
disso. De modo que qualquer datação anterior a esse período acaba enfrentando
resistência entre os estudiosos. Se até o século passado a época em que viveu o povo de
Clóvis era considerada o limite para a ocupação do continente, hoje é a genética quem
impõe o teto cronológico.
Esse cenário, no entanto, não invalida as provas da presença humana nas Américas
antes do Último Máximo Glacial. O que a genética nos conta, na realidade, é que, se
havia grupos humanos lascando pedra no Piauí há 40 mil anos, então eles não são
ancestrais dos povos indígenas atuais. Em outras palavras, são uma população que não
teve sucesso reprodutivo, conforme propôs Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. “Os
bem-sucedidos foram os sibero-beringianos e os ypykuéras”, afirma a geneticista. “Eles
colonizaram o continente e seus descendentes estão aí.”
Nada impede, portanto, que os grupos humanos que passaram por White Sands,
Chiquihuite, Santa Elina e a Serra da Capivara representem de fato um beco sem saída
da genealogia humana – mas, mesmo assim, terão sido eles, e não o povo de Clóvis, os
primeiros habitantes do continente americano. O que intriga os geneticistas é que
mesmo espécies extintas como os neandertais e os denisovanos – os malsucedidos de
seu tempo – deixaram pistas genéticas que ajudam a retraçar sua história. Por que os
povos de White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra de Capivara não deixaram
pista alguma? “O que o DNA antigo mostrou até agora é que ninguém some sem
deixar rastro”, disse Thomaz Pinotti.
Se houve grupos humanos que entraram nas Américas antes do Último Máximo
Glacial, se espalharam pelo continente e depois desapareceram, esse seria um evento
único na história humana, argumenta André Strauss. “Em nenhum outro lugar do
mundo o Homo sapiens passou dezenas de milhares de anos com uma densidade
demográfica mínima, que beira a invisibilidade”, afirma. Depois que saíram da África,
os humanos modernos colonizaram a Eurásia em 5 mil anos, continua o arqueólogo.
“Esses caras não eram bobos, eles sabiam o que estavam fazendo.” Diante dessa
excepcionalidade, acredita Strauss, o ônus da prova deveria recair sobre os cientistas
que defendem que a presença humana no continente americano tem mais de 20 mil
anos.
Araujo lembra também que o relógio molecular, aquele método que calcula a data de
separação entre as populações, carrega muita incerteza. O método se baseia na
frequência com que ocorrem mutações aleatórias no DNA mitocondrial, no
cromossomo Y ou nos demais trechos do genoma humano. Araujo afirma que a
imprecisão advém do fato de que essa frequência não é constante ao longo do tempo e
depende de uma série de fatores. No entanto, diz ele, nem sempre as incertezas são
discutidas pelos geneticistas. Além disso, os estudos do DNA muitas vezes desprezam
os resultados gerados por outras linhas de evidência, arqueológicas ou não.
Por exemplo: se os humanos chegaram à América do Norte por volta de 18 mil anos
atrás, conforme sugere a genética, como explicar a grande variedade de estilos de
ferramentas encontrada na América do Sul por volta de 13 mil anos atrás? “Muito
tempo teria que ter passado para chegarmos a essa vastíssima diversidade cultural”,
afirma o arqueólogo da USP. Da mesma forma, uma ocupação recente não explica a
riqueza das línguas indígenas faladas hoje na Amazônia. “A genética é imprescindível
e enriquece muito as nossas inferências, mas devemos saber de suas limitações”, diz
Araujo. “E temos que colocar a bendita arqueologia nessa história.”
Strauss está acostumado a transitar entre campos distintos. Ele tem graduação em
geologia e em ciências sociais, e colocou um pé na genética desde o mestrado. “O
cientista social tem uma língua, o biólogo tem outra e o geólogo tem uma terceira. Se
você sabe falar essas línguas, é muito mais fácil fazer com que eles trabalhem juntos”,
diz. Strauss acredita que é a arqueologia, e não a genética, quem terá a palavra final
sobre o povoamento das Américas. “A resolução desse debate virá por uma descoberta
arqueológica, ou pela sua ausência nos próximos mil anos.”
Com Uğur Şahin e Özlem Türeci
Encontrar a cura para o câncer era o principal objetivo da BioNTech, criada em 2008
pelo casal de médicos alemães Uğur Şahin, 56 anos, e Özlem Türeci, 54 anos, ambos
descendentes de turcos. O aparecimento da Covid-19, porém, levou a empresa de
biotecnologia a concentrar esforços na área de doenças infecciosas.
F oi a combinação de Kate Winslet, Matt Damon e Jude Law que fez Claudia
Lindemann pensar pela primeira vez em crise de saúde pública. Uma noite, em 2011,
quando fazia mestrado em farmácia em Münster, na Alemanha, ela viu Contágio.
Inspirado no primeiro surto de Sars, o filme mostra um mundo paralisado por um
patógeno até então desconhecido e é assustadoramente premonitório. Embora tenha
considerado pouco realistas as cenas ambientadas em laboratórios, Claudia
inevitavelmente se perguntou “como seria desenvolver uma vacina em uma
pandemia”. Atriz nas horas vagas, ela mal sabia que, nove anos mais tarde, receberia
um papel como protagonista na vida real.
Após terminar o mestrado, ela se tornou uma das primeiras beneficiárias da iniciativa
europeia VacTrain, criada para fomentar uma nova geração de desenvolvedores de
vacinas, e fez doutorado sobre o tema no prestigioso Instituto Jenner, que tem parceria
com a Universidade de Oxford (Claudia não sabia, mas, no começo da pandemia, seus
ex-colegas já estavam desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus no instituto).
Em 2018, ela foi contratada pela BioNTech e, por ter formação como virologista, sem
qualquer especialização em câncer – foco principal das pesquisas do laboratório –, ficou
encarregada de conduzir o estudo toxicológico do projeto em parceria com a Pfizer
para uma vacina contra a gripe. Esse processo de seis meses tinha acabado de começar
quando Claudia foi informada do projeto relativo ao coronavírus e do pedido do PEI.
Ela sabia que, dessa vez, “o toxicológico” precisava ser concluído com uma
rapidez bem maior. Durante uma conversa com Uğur Şahin – fundador da BioNTech,
ao lado de sua mulher, Özlem Türeci, ambos médicos – logo após a reunião de
fevereiro com a entidade reguladora, Claudia explicou que, após analisar como
condensar cada etapa do estudo, tinha reduzido a duração para apenas três meses.
Uğur não ficou tão impressionado quanto ela esperava; ele queria iniciar os ensaios
clínicos dali a algumas semanas. “Vamos, Claudia, precisamos achar uma solução”,
disse.
Para encontrar essa solução, Claudia voltou à sua mesa em uma das filiais da
BioNTech, situada acima de uma antiga cervejaria, no centro medieval de Mainz, na
Alemanha. Lá, ela clicou no link de um relatório que descobrira dias antes, ao
pesquisar o seguinte no Google: Como desenvolver uma vacina durante uma pandemia?
Ela achou um trecho crucial escondido na página 55. Os termos eram indecifráveis para
quem não fosse especialista, mas, em suma, a orientação dos autores para os órgãos
reguladores era a seguinte: durante uma emergência de saúde pública, os
desenvolvedores de medicamentos deveriam ter permissão para proceder ao ensaio de
fase 1 após compilarem um relatório provisório. Esse documento conteria os dados
coletados a partir da observação dos roedores e nos exames de sangue feitos pouco
depois da administração das vacinas, para demonstrar que a substância não havia
causado nenhum dano grave aos animais. Contudo, a parte mais demorada de um
estudo toxicológico – na qual os órgãos dos ratos são dissecados cuidadosamente para
o exame das amostras com microscópio – não precisaria estar concluída antes de ser
iniciado um ensaio com seres humanos. Se os testes mostrassem que as pequenas
cobaias estavam saudáveis logo após receberem a injeção, a BioNTech poderia iniciar
de imediato o ensaio clínico de fase 1 e finalizar o estudo toxicológico enquanto essa
etapa estivesse em andamento.
Claudia fez as contas ao ouvir isso. Essas duas doses nos ensaios clínicos significavam
que ela precisaria testar três doses consecutivas em ratos. Como a equipe do Projeto
Lightspeed havia estabelecido um intervalo de 21 dias – ou três semanas – entre cada
injeção em seres humanos, as doses para roedores do estudo toxicológico levariam seis
semanas, e as últimas amostras de sangue só seriam analisadas após o fim desse
período. O objetivo de Uğur era inatingível.
Perplexa, Claudia voltou à prancheta. Logo concluiu que a única e última opção era
encurtar os intervalos de três semanas. A BioNTech daria três doses aos roedores, mas
com apenas uma semana de intervalo. Ela argumentou com os especialistas do PEI que
esse era um protocolo ainda mais intenso: caso os animais tolerassem receber essa
quantidade de vacina repetidas vezes, seria possível presumir que os seres humanos
responderiam bem a intervalos maiores entre as doses.
De todo modo, Claudia estava confiante. Ela se lembrou de, na infância, ter tomado a
vacina BCG contra a meningite e a tuberculose, que deixou uma ferida considerável.
“Achei que a reatogenicidade local não seria pior do que essa, então defendi, inclusive
no PEI, que as tolerâncias locais não eram uma questão”, explica. Caso ela estivesse
certa, essa decisão ousada ajudaria a fornecer dados de segurança sobre os animais em
quantidade suficiente para a BioNTech solicitar que o início de um ensaio clínico
“primeiro em humanos” ocorresse apenas três semanas após os primeiros ratos
receberem uma dose no estudo toxicológico.
Quando concluiu esse planejamento inovador, Claudia logo entrou em ação ao lado de
Jan Diekmann, um ex-integrante do grupo acadêmico de Uğur e Özlem em Mainz que
comandava o departamento de segurança não clínica da BioNTech. Eles ordenaram
que os ratos fossem enviados o mais rápido possível para um local de teste certificado,
de modo que tivessem tempo de se ambientar. Também se certificaram de que o
material de mRNA a ser utilizado no estudo fosse enviado para a biofarmacêutica
Polymun, na Áustria, e, uma vez formulado, fosse conduzido para o local da pesquisa.
Mas alguém precisava estar em Viena para supervisionar o início do “toxicológico” no
dia 17 de março, terça-feira.
Enquanto Jan acelerava pela autoestrada incomumente vazia, seu celular tocou. Era
Claudia, com um pedido inusitado. O planejamento do estudo toxicológico fora
aprovado por todas as partes e descrevia todos os detalhes – desde as dosagens
precisas aos intervalos, incluindo o momento em que as amostras de sangue deveriam
ser coletadas. Embora estivesse confiante de que a maioria das vacinas candidatas a
combater o coronavírus – administradas em três injeções com doses diferentes – seria
bem tolerada nos ratos, Claudia de repente estava preocupada com um dos construtos
baseados em uRNA. Ela disse que talvez a dose máxima de 100 microgramas fosse
“muito alta”. A equipe da virologista Annette Vogel já estava injetando o construto em
camundongos na BioNTech para testar a presença de anticorpos e observara que os
roedores estavam perdendo peso, o que é uma clara indicação de intolerância.
“Realmente não estou confortável com isso”, confessou Claudia a Jan. “Vamos solicitar
uma alteração no planejamento.”
Pelo cronograma, os ratos receberiam uma dose às oito da manhã do dia seguinte,
então esse era um pedido pouco usual. Jan precisava agir rápido: assim que pôde,
mandou um e-mail para os organizadores do estudo toxicológico.
Por outro lado, projetar a fase 1 para uma vacina contra o coronavírus deveria ter sido
moleza. A BioNTech poderia atrair voluntários saudáveis na comunidade e só
precisava monitorar os efeitos colaterais, a serem registrados pelos participantes em
diários e informados em conversas telefônicas com os pesquisadores. Quando a
empresa terceirizada alemã responsável por realizar o ensaio com as vacinas
candidatas a combater a Covid-19 convocou voluntários pelo Facebook, mais de mil
pessoas se apresentaram em um único dia. Algumas até ligaram para a recepção da
BioNTech e imploraram para participar do estudo. Encontrar sujeitos dispostos não era
um problema.
Em primeiro lugar, a empresa não tinha pessoal suficiente para preparar esses estudos
nem mesmo no segmento de oncologia. Em janeiro de 2020, Özlem havia selecionado
currículos para ampliar o grupo de gestores médicos e desenvolvedores clínicos da
BioNTech. No início do Projeto Lightspeed, as entrevistas com esses candidatos ainda
estavam acontecendo.
Eram meados de março e, até então, a inovação científica por trás do Projeto
Lightspeed tinha sido comunicada apenas para especialistas na área, incluindo o
bioquímico Klaus Cichutek, presidente do PEI, e os demais integrantes do painel da
agência reguladora alemã, fabricantes terceirizados e funcionários da BioNTech, da
Fosun e da Pfizer. Esse folheto seria a primeira tentativa de uma explicação abrangente
do funcionamento das vacinas candidatas para pessoas de fora. Teria de ser um curso
intensivo, com uma linguagem que mesmo um médico que nunca viu uma fita de
mRNA compreendesse.
Isso também ocorria com os cerca de 120 projetos de pesquisa da BioNTech. Tanto
Uğur quanto Özlem entendiam a soma das partes, a visão global, mas somente ela
tinha a capacidade de comunicar isso aos outros. “Eu começo com as partes, e ela, com
a visão integrada”, contou Uğur, com admiração. Portanto, foi Özlem quem construiu a
narrativa das vacinas e das terapias de mRNA da BioNTech. Era ela quem apresentava
os avanços da empresa em conferências e faculdades e para os mercados de capitais. É
Özlem, nas palavras de Uğur, “a pessoa que integra, traduz e resolve”.
Em geral, o processo de dose única crescente já descrito demora meses para ser
concluído – um tempo do qual a BioNTech não dispunha. Nas conversas iniciais com
colegas da Pfizer envolvidos em estudos clínicos, ficou claro um imperativo: o ensaio
clínico da última etapa deveria começar no fim de julho para a vacina ser aprovada
ainda em 2020. Mas Özlem se deu conta de que, se a BioNTech iniciasse o ensaio de
fase 1 em abril e o conduzisse com perfeição no menor tempo possível, ainda assim não
o encerraria antes de setembro. Era preciso abrir mão de alguma coisa.
Özlem e sua equipe também identificaram outra maneira de acelerar o ensaio. Quando
não existe uma pandemia em curso, a maioria dos estudos clínicos é planejada de
forma que a segunda dose seja aplicada após um intervalo de pelo menos 28 dias, para
que a resposta imunológica provocada pela primeira injeção tenha mais tempo de
entrar em ação. Após as duas doses, os pesquisadores costumam esperar mais catorze
dias para verificar a existência de anticorpos e células T. Portanto, as amostras de
sangue só poderiam ser coletadas após 42 dias. Para os ensaios relativos à Covid-19,
Özlem e a equipe decidiram implementar um esquema de vacinação com um intervalo
de apenas 21 dias e testar as respostas imunológicas sete dias após a segunda dose, em
vez dos catorze dias. No total, isso eliminaria duas semanas do processo.
Esse tempo extra faria mais do que contribuir para o lançamento do ensaio de fase 3 no
prazo. Meses depois, também garantiria que as pessoas vacinadas no mundo real
recebessem a segunda dose mais cedo – após 21 dias, e não 28 – e, desse modo,
estivessem totalmente protegidas mais rápido.
Após três semanas de lockdown, as informações divulgadas pela agência que monitora a
saúde pública na Alemanha, o Instituto Robert Koch, mostraram que o pior cenário que
Uğur imaginara em janeiro – de disseminação rápida e incontrolável do Sars-CoV-2 –
não tinha se concretizado. Na verdade, as medidas básicas de contenção estavam
controlando o vírus, o que dava à BioNTech certa folga para respirar. Özlem e Uğur
viveram no limite durante três meses. Naquele momento, estavam mais confiantes de
que, com o estudo toxicológico acelerado e o estudo “primeiro em humanos” já
preparado, talvez a ciência se adiantasse a esse patógeno. “Eu sabia que tínhamos uma
chance. A gente estava no jogo”, diz Uğur.
Era impossível testar em seres humanos doses crescentes dos vinte construtos da
BioNTech, pois cada um tinha um código genético diferente para a proteína Spike ou
era baseado em uma plataforma de mRNA específica – e, ao mesmo tempo, cumprir
um cronograma ambicioso. Como se tratava de um ensaio clínico de fase 1, a empresa
precisava limitar o número de vacinas candidatas.
Mainz, a equipe do Projeto Lightspeed fazia a sua parte para restringir a seleção.
Era cedo demais para obter os resultados do estudo toxicológico de Claudia ou uma
indicação sobre as células T que as vacinas candidatas eram capazes de ativar. Mas,
desde que uma primeira visualização mostrou que as vacinas induziam uma resposta
imunológica em camundongos, tinha surgido uma série de dados semelhantes.
Indicavam que todos os vinte protótipos pré-clínicos estimularam o desenvolvimento
de anticorpos neutralizantes fortes. Por isso, era difícil fazer uma escolha.
Na cabeça de Uğur e Özlem, o segredo era encontrar uma vacina que alcançasse o
equilíbrio certo entre duas características essenciais. Uma delas era garantir que a
proteína codificada pelo mRNA – o alvo usado para treinar as tropas – fosse
reproduzida em grandes quantidades nas células. A outra era estimular o sistema
imunológico. Se isso ocorresse sem a intensidade necessária, uma dose considerável de
mRNA deixaria de ativar todas as forças relevantes, como anticorpos e células T; mas,
em excesso, poderia causar efeitos colaterais graves. A primeira plataforma incluída
pelo casal, o uRNA, era naturalmente dotada da capacidade de desencadear a
atividade imunológica e, como comprovado pelo tratamento de centenas de pacientes
com câncer, a equipe da BioNTech alcançara ótimos resultados com o formato quando
envolto em um lipídio neutro para administração intravenosa.[2] Mas o uRNA nunca
havia sido combinado com os novos lipídios propostos para a injeção intramuscular,
que tinham poderes de estimulação próprios e complementares. Havia o risco de que,
ao ser combinada, essa formulação sobrecarregasse o sistema imunológico. Para evitar
isso, a equipe poderia ter submetido o uRNA a um processo de purificação específico
desenvolvido pela BioNTech, mas Uğur queria simplificar as coisas. A BioNTech teria
que testar o uRNA na sua forma não purificada e torcer pelo melhor.
Para cada candidata, o DNA tinha que ser produzido primeiro, como um modelo para
a produção do mRNA. As etapas duraram cinco dias, de segunda a sexta-feira. Com o
intuito de permitir que os integrantes da equipe descansassem no fim de semana –
após trabalharem dias a fio em salas limpas, vestidos da cabeça aos pés em trajes de
proteção abafados, com pausas de algumas horas apenas para comer e ir ao banheiro –,
foi programado um ciclo de produção por semana. Primeiro foi produzido o mRNA
para a candidata baseada em modRNA que codificava o domínio de ligação ao
receptor, e em seguida a versão não modificada. Assim como ocorreu com os primeiros
lotes de teste fabricados depois da superação das dificuldades iniciais pela equipe de
Stephanie Hein, responsável pela clonagem das sequências genéticas dos antígenos
usando bactéria, uma pequena van de entregas esperou em frente à fábrica da
BioNTech para levar, durante a noite, o material de mrna embalado em sacos plásticos
e congelado a -70ºC até a Polymun, em Viena. Lá, ele foi combinado com lipídios antes
de ser envasado, rotulado e enviado para os locais dos ensaios clínicos.
Na mesma hora, Uğur pegou o celular e ligou para Alex a fim de obter mais detalhes.
Em seguida, telefonou para a virologista Annette Vogel. Ambos concordavam que a
B2.9 seria uma finalista melhor e estavam decepcionados por ser tarde demais para
incluí-la no estudo com seres humanos, programado para começar dali a alguns dias.
Mas Uğur ainda não estava disposto a desistir. “Vamos ver o que conseguimos fazer
aqui”, disse aos dois, antes de desligar e telefonar para Andreas Kuhn, que
supervisionava a fabricação em Idar-Oberstein.
Enquanto isso, Claudia dava os retoques finais nas novecentas páginas do relatório
provisório do estudo toxicológico, que concluíra em apenas dois meses.
Os dados eram extremamente positivos. Os ratos não tinham apresentado febre alta
nem perdido peso. Não houvera nenhum sinal de alerta, como o surgimento de pelo
áspero, o que indica que talvez haja algo de errado com os animais. Os roedores
também fugiram assim que os pesquisadores entraram na sala, conforme tendem a
reagir instintivamente quando estão saudáveis. “É ruim quando eles só ficam parados
em um canto e não fazem nada, mas aqueles ratos estavam perfeitamente felizes”,
explica Claudia. Não houve qualquer indício de uma resposta sistêmica grave a
qualquer uma das vacinas candidatas de mRNA selecionadas. O sistema imunológico
dos mamíferos não estava sendo sobrecarregado.
Claudia foi chamada sem aviso prévio por especialistas da agência, que exigiram uma
explicação. Como o celular ia ficar sem bateria e o filho pequeno estava no outro
quarto, ela precisou se ajoelhar perto de uma tomada para falar com o PEI enquanto
recarregava o aparelho. Nessa posição, reiterou que a BioNTech realizava o estudo com
a chamada abordagem de “plataforma” e seguia a orientação encontrada em uma parte
do relatório da OMS sobre o ebola. Uma candidata bastante similar, a B2.8, fora testada
no “toxicológico” e podia ser considerada uma substituta da B2.9, baseada exatamente
na mesma plataforma do acervo de mRNA da BioNTech. Ambas pertenciam à mesma
família.
U ğur e Özlem estavam em casa quando o e-mail chegou, pouco antes das três
da tarde de 21 de abril, terça-feira. “PEI: o estudo pode ser iniciado” era o título da
mensagem encaminhada por Ruben Rizzi, chefe do departamento de questões
regulatórias na BioNTech. Uma resposta formal da agência alemã foi incluída na
mensagem e afirmava: “Os certificados e os resultados dos testes são adequados e,
portanto, atendem aos respectivos requisitos, conforme estabelecido na aprovação do
ensaio clínico.” Italiano enérgico, filho de um especialista em doenças infecciosas que
atendia pacientes graves com Covid-19 em um hospital lotado em Bergamo, Ruben
acrescentou acima da mensagem, em letras maiúsculas: PARABÉNS, PESSOAL.
Horas mais tarde, outro integrante da equipe respondeu à mensagem, com cópia para
todos, trazendo uma atualização. As máquinas de PCR da Bosch haviam chegado ao
principal local do ensaio clínico, em Mannheim. Os funcionários da BioNTech
responsáveis por estudar os manuais das máquinas tinham viajado até os locais para
treinar cada equipe. Um ensaio clínico com duzentos voluntários saudáveis entre 18 e
55 anos começaria em abril, conforme o cronograma de Uğur, sendo que indivíduos
mais velhos seriam incluídos 28 dias após o grupo mais jovem ter recebido duas doses
e ter sido monitorado. Uğur enviou essa informação aos colegas da Pfizer e comentou:
“Continuamos no prazo.”
A notícia foi recebida com certo alívio em Nova York, que estava prestes a se tornar o
centro global da pandemia do coronavírus. As unidades de terapia intensiva estavam
abarrotadas, e o som das sirenes servia de trilha sonora apocalíptica para os
profissionais do Projeto Light-speed alocados no arranha-céu da Pfizer em Manhattan.
Dezenas de necrotérios móveis tinham sido instalados na cidade, então os corpos eram
levados para caminhões refrigerados estacionados em frente aos hospitais. Algumas
das instituições ficaram sem estoque de sacos para cadáveres, e vítimas não
identificadas foram enterradas em valas comuns em um cemitério de indigentes na Ilha
Hart. “Uma coisa é ver uma imagem na televisão, outra é andar pelas ruas de Nova
York e olhar aqueles caminhões frigoríficos se amontoando. Foi muito assustador”, diz
Kathrin Jansen, da Pfizer.
Naquela mesma tarde, chegaram novos dados sobre o construto B2.9, incluído no
ensaio clínico de última hora. Os exames de sangue mais recentes dos camundongos
que tinham recebido esse construto ajustado eram da semana anterior, e as novas
amostras confirmaram que o nível de anticorpos neutralizantes era mais de quatro
vezes superior ao do induzido pelo construto B2.8. Aliviado, Uğur escreveu em um e-
mail para Alex: “Seus estudos confirmam que mudar foi mesmo uma decisão muito
sábia. Muito obrigado.”
Os resultados foram um alívio para a equipe do Projeto Lightspeed. Onze dias antes, a
Moderna tinha publicado os resultados de quatro voluntários do seu estudo de fase 1
com o modRNA. A empresa de biotecnologia norte-americana testara uma dose de 25
microgramas, mas a considerara insuficiente, então anunciou que ia tentar doses de 50
e de 100 microgramas. A BioNTech queria a todo custo evitar uma situação similar,
porque os relatórios sobre os participantes do ensaio alemão que receberam 100
microgramas do modRNA não apresentaram bons indicadores. Os indivíduos tinham
desenvolvido sintomas parecidos com os da gripe, como calafrios e febre. Alguns não
conseguiram levantar da cama. Para uma vacina que deveria ser administrada em
velocidade recorde, em todos os tipos de ambientes improvisados, isso estava muito
aquém do ideal. Quem recebesse a vacina teria de ser monitorado de perto durante
horas e, com certeza, muitos escolheriam pular essa parte. “O ideal era uma injeção que
pudesse ser dada no estacionamento do supermercado”, observa Özlem, que integrava
o comitê de quatro pessoas responsável por revisar os dados de segurança de Berlim e
Mannheim.
Sete minutos depois, respondeu assim ao e-mail: “Caro Alexander, cara equipe. Isso é
incrível. Temos uma vacina!”
Joe Miller
É jornalista britânico
W ander Oliveira enfrentava dificuldades. Às vésperas de completar 36 anos,
estava endividado por todos os lados, não estudara para ter uma profissão e não sabia
o que fazer da vida. Naquele domingo de 2004, embora fosse católico, ele estacionou
diante do maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus, em Goiânia, e entrou.
No púlpito, o pastor Darlan Ávila, um dos líderes da igreja no Brasil, fez um pedido à
plateia de 5 mil fiéis: “Fechem os olhos e deixem o manto de Cristo cobrir vocês.”
Oliveira acatou a orientação e concentrou-se nas suas dificuldades. Ele vinha tentando
ganhar a vida como empresário de shows de música sertaneja, mas nada dava certo.
Tinha recebido um convite para trabalhar com uma dupla ainda em início de carreira,
João Neto e Frederico, que cantava para plateias minúsculas. Oliveira estava na dúvida
se aceitava o trabalho ou procurava outro ofício. Aproveitou o convite do bispo, e
mandou um apelo aos céus: “Se for para eu trabalhar com os meninos, o Senhor precisa
me dar uma prova.”
Encerrado o culto, Oliveira voltou para o carro e conferiu seu celular, um velho
StarTAC da Motorola. Havia três ligações perdidas – duas de João Neto e uma de
Frederico. Como é próprio de quem está em busca de uma inspiração mágica, Oliveira
interpretou aquilo não como uma coincidência, mas como a resposta divina. Topou a
empreitada. (Para quem não está familiarizado com o mundo da música sertaneja: João
Neto e Frederico cobram hoje 250 mil reais por um único show e seus vídeos no
YouTube somam 1 bilhão de visualizações.) Ali, recomeçava uma carreira que, depois
de muito trabalho, uma falência acachapante e métodos controversos, faria dele o mais
lucrativo empresário de cantores do Brasil.
N o dia 4 de novembro de 2021, dezessete anos depois do culto na Igreja
Marília, a voz mais ouvida do Brasil, estava cansada de cumprir sua lotadíssima
agenda de shows voando em aviões pequenos. Os dois combinaram então procurar um
modelo Phenom 300, fabricado pela Embraer, ou um Citation cj4, da Cessna, ambos
com autonomia de voo de até 3,6 mil km. Dois meses antes, Marília se recusara a
embarcar no bimotor King Air, de propriedade do próprio Oliveira, para atender a um
compromisso profissional no Rio de Janeiro. Preferiu alugar o jato de uma empresa de
táxi-aéreo. Agora, tomara a decisão de evitar os bimotores. Achava-os desconfortáveis
e queria ter a segurança de viajar num avião próprio, com boa manutenção. No dia
seguinte, teria que embarcar num bimotor, um King Air c90. Faria um show em
Caratinga, no interior de Minas Gerais, onde a pista de pouso tinha apenas 1,08 mil
metros e só podia receber bimotores. O aeroporto mais próximo com capacidade para
jatos ficava em Governador Valadares, a mais de 100 km do local do show. Seria muito
demorado.
100 km de Goiânia, Wander Divino de Oliveira vem de uma família modesta. Seus pais
tiveram seis filhos e os nomes de todos os homens começam com W – Wagner,
Wanderlan, Wander e Wilton. Aos 5 anos, Oliveira já ajudava a ensacar milho e feijão
produzidos na roça da família. “Meus pais tinham a terrinha deles, mas não eram ricos.
Eu nunca passei fome, mas a vida era dura”, recorda. Aos 8, ele passou a acordar às
quatro da manhã porque, antes de ir para a escola, precisava fazer a ordenha das vacas.
A escola ficava a 8 km de sua casa. No começo, ia no lombo de um cavalo. Depois,
passou a fazer o trajeto de bicicleta.
Desde o início, Oliveira detestava a vida rural. Aos 15 anos, ao lado de irmãos mais
velhos, mudou-se para Goiânia, onde começou a cursar eletrotécnica. Enquanto
estudava, chegou a trabalhar na antiga Centrais Elétricas de Goiás. Numa ocasião, a
escola promoveu uma viagem para os alunos conhecerem fábricas de lâmpadas e
disjuntores em São Paulo, mas apenas o percurso de ônibus seria gratuito. A
hospedagem e a comida correriam por conta dos alunos. Sem dinheiro, ele e um colega
organizaram dois shows para arrecadar recursos. Contrataram dois cantores sertanejos
e fizeram uma festa no ginásio do colégio e outra numa casa de eventos. O lucro pagou
hotel e alimentação de diversos alunos – e ainda sobrou dinheiro. Tem coisa aí, ele
pensou.
Oliveira conhecia música sertaneja. Na roça de seus pais, os peões compravam revistas
com partituras de músicas de duplas famosas, como Pena Branca e Xavantinho,
Milionário e José Rico e Chrystian e Ralf. Oliveira sabia cantar todos os hits. Na
adolescência, já em Goiânia, chegou a fazer um curso de canto para se enturmar e,
quem sabe, descobrir um ganha-pão. Não rolou uma coisa nem outra. “A professora
falou que não nasci para aquilo”, diz. Errada ela não estava. Oliveira é tímido, sua voz
é levemente rouca e, quando fala, em ritmo acelerado, come as sílabas.
Com seu gosto pela música, Oliveira começou a organizar festas sertanejas em bares e
casas de evento. Era o começo dos anos 1990 e ele tinha 20 e poucos anos. Em
sociedade com um colega, Paulino Rezende, o mesmo que se candidataria a vereador
pelo PDT alguns anos depois, abriu uma modesta casa de shows. Chamava-se Circos
Cowboy porque, por falta de dinheiro para erguer um telhado, ficava debaixo de uma
tenda. A aposta, porém, não era faturar com a música: era bebida alcoólica. Deu certo.
Pouco tempo depois, abriram outra casa, a Pirâmide Cowboy, agora com três tendas.
Não cobravam ingressos, ou cobravam ingressos irrisórios, e viviam da venda de
cerveja. A Pirâmide Cowboy cresceu e chegou a ter uma unidade em Brasília.
Vislumbrando um bom negócio, ele e seu sócio Paulino Rezende se ofereceram para
representar Bruno e Marrone. Levaram um “não, muito obrigado”, pois a dupla já
tinha um agente. Então, resolveram fazer a mesma proposta para Marcos e Fernando,
uma outra dupla sertaneja de Goiânia que dava então seus primeiros passos e vinha
atraindo bom público na Pirâmide Cowboy. Marcos e Fernando toparam e, no começo
de 1999, o contrato estava assinado. Oliveira ficou com a missão de escolher o
repertório, vender os shows e pagar as rádios para que tocassem as músicas – o
controvertido jabá, no jargão do mercado. Como dono de balada, Oliveira conhecia os
ritmos e batidas que empolgavam a pista de dança. “A música tinha de render
coreografia, ter uma virada, um pá-pá-pá para bater as mãos na hora do refrão”, diz.
O primeiro disco da dupla foi gravado dentro da Pirâmide Cowboy, com público ao
vivo. Com o material em mãos, Oliveira começou a percorrer as rádios da região para
vender seu peixe e pagar os jabás. O primeiro sucesso veio já no ano seguinte,
com Socorro, uma música com todos os ingredientes do pá-pá-pá de que Oliveira
gostava. Os versos e foi chegando sob o clarão da Lua/eu notei que ela estava completamente
nua introduzem o refrão Socorro veio em minha direção! Socorro já chegou passando a mão.
Em seguida, estourou a balada É Armação, que desmascarava uma mulher que se dizia
grávida de um, quando era de outro.
O sucesso chamou a atenção da EMI, a gravadora inglesa que estava então entre as
principais do Brasil. Oliveira foi procurado pela empresa, gostou da proposta e assinou
contrato. Começaram a pipocar convites para que Marcos e Fernando se apresentassem
em programas como Domingão do Faustão, da Globo, e Domingo Legal, do SBT. Em
pouco tempo, o cachê dos shows passou a subir. Foi de 2 mil para 5 mil, depois 10 mil e
em seguida atingiu 20 mil. Com tanta notícia boa, Oliveira e a dupla alugaram uma
casa num condomínio em Itu, nos arredores de São Paulo, para ficarem mais perto do
mercado. O negócio, enfim, começava a desabrochar. Até que tudo desandou.
Nesse contexto, Oliveira fez uma visita à família, que ainda morava na roça. A certa
altura, seu irmão Wanderlan cansou de ouvi-lo arrotar seus sucessos e desabafou:
“Cara, você está muito enjoado. Não sei como as pessoas aguentam ficar perto de
você.” Oliveira conta que nunca esqueceu aquilo e, naquele momento, percebeu o erro
que vinha cometendo: a arrogância. Ele e a dupla, embevecidos com o sucesso,
deixaram de pensar nas próximas músicas, de cultivar os fãs e começaram a se
desentender. Para piorar, a Pirâmide Cowboy teve que fechar as portas depois que
uma cliente foi executada a tiros na frente do estabelecimento.
E m 2001, estava tudo acabado. Oliveira tinha fechado a casa que alugara em Itu e
voltado para Goiânia. Nos anos seguintes, sustentou-se oferecendo projetos culturais
de artistas desconhecidos para a Prefeitura de Goiânia e o governo do estado. Mas o
negócio se arrastava. Afundado em dívidas e sem rumo, fazia planos de largar o
mercado de música e abrir uma empresa para restaurar estofados. E então, em 2004, foi
procurado pela dupla João Neto e Frederico. “Que mané vender sofá! Vamos trabalhar
com música porque é disso que gostamos”, conta Frederico, ao rememorar como fez o
convite para Oliveira, de quem já era amigo. Assinaram contrato. Oliveira decidiu que
tentaria mais uma vez.
Nessa altura, recorreu a uma pesquisa informal que fizera anos antes. Ele pedira a mais
de cem camelôs e feirantes de Goiânia e região que vendiam CDs para que anotassem
as trinta músicas que seus clientes mais compravam. No resultado, apareceram no
topo Boate Azul, de Benedito Seviero, Telefone Mudo, de Franco e Peão Carreiro,
e Sublime Renúncia, de Pery e Prado Júnior, canções cantadas até hoje em qualquer
karaoke do país. Oliveira então tentou convencer a dupla Marcos e Fernando a retomar
a carreira gravando um CD só com as mais pedidas. Eles não toparam, mas João Neto e
Frederico gostaram da ideia.
Em seu Volkswagen Logus, Oliveira rodou por todos os estados do Brasil distribuindo
CDs piratas para feirantes e camelôs, e pagando jabás para as rádios tocarem as
músicas de sua dupla. Para economizar com hospedagem, dormia dentro do carro. Às
vezes, entregava os CDs diretamente na central de distribuição, que ficava no Paraguai,
na fronteira com o Paraná.
Do outro lado da Ponte da Amizade, as próprias lojas de mercadorias piratas
abasteciam os feirantes em várias partes do Brasil. Oliveira estacionava o carro no lado
brasileiro, enchia uma mochila com seus CDs piratas para driblar a fiscalização e
entregava tudo aos lojistas paraguaios. Fazia o trajeto várias vezes ao longo do dia.
“Uma vez, voltando do Paraguai, ele me ligou de Londrina. Pediu para eu depositar
500 reais porque tinha acabado o dinheiro da gasolina”, recorda Wagner, o irmão que
então trabalhava como funcionário público da Eletrobras. Quando voltava do Paraguai
para Goiânia, Oliveira trazia seu porta-malas cheio de CDs virgens para uma nova
rodada de pirataria.
O negócio deu certo. Seu telefone começou a tocar, com casas de shows espalhadas
pelo Brasil fazendo contato para contratar a dupla. Como ainda não tinham apelo
comercial, João Neto e Frederico cobravam cachê – e não percentual da bilheteria. O
cachê chegou a 5 mil reais, mas o esquema todo continuava no vermelho. A venda de
CDs piratas era usada para piratear mais CDs e pagar mais jabás, mas o lucro não
vinha. A mudança que colocaria seu negócio no azul veio da iminência de um calote.
Oliveira pediu ao diretor da Rádio Paranaíba, em Uberlândia, que não descontasse seu
cheque de 3 mil reais porque não tinha fundos. O então diretor, Luiz Antônio Pedreira,
perguntou qual era o custo para fazer um CD pirata. “Eu respondi que era 1,50 real.
Era menos, mas eu queria já abater da minha dívida”, relembra ele. Pedreira tinha
contrato para vender shows de Victor e Leo, uma dupla que estava estourando nas
paradas em Goiás e no Triângulo Mineiro, e então encomendou 2 mil CDs de seus
cantores e pediu que Oliveira os distribuísse nas feiras.
Oliveira topou na hora. Além da pirataria terceirizada, percebeu que poderia pegar
carona no sucesso de Victor e Leo. Sem avisar o dono da rádio, gravou os 2 mil CDs
com quinze músicas da dupla e incluiu cinco de João Neto e Frederico. Ainda colocou
uma foto de Victor e Leo na capa, sob o título Explosão Universitária. No canto superior
direito do CD, imprimiu o número do seu celular. As vendas dos CDs piratas de Victor
e Leo explodiram. “Vendi mais de 100 mil cópias”, diz ele. Fez mais do que isso. “As
pessoas me ligavam para falar do Victor e Leo, daí eu explicava que as músicas tal e tal
eram de João Neto e Frederico.” Como todo mundo ganhou dinheiro, nem Victor e
Leo, nem o diretor da rádio Paranaíba, reclamaram da pirataria.
Nesse período, Oliveira achou que tinha encontrado seu caminho. “Esse negócio de
trabalhar com música vai dar certo”, dizia. Ao final de um show de sua dupla, cujo
cachê já estava em 20 mil reais, ouviu de um contratante que, se fosse o caso, pagaria
“muito mais”. Oliveira aproveitou e, inspirado na turma do axé, mudou o contrato de
cachê para percentual da bilheteria. Em uma festa de rodeio de Votuporanga, no
interior de São Paulo, tomou um susto. O contratante reservou um bom hotel, com
quarto individual para cada um deles. Coisa rara. Depois do show, entregou a parte de
Oliveira em dinheiro vivo: 70 mil reais. Oliveira chamou João Neto e Frederico no seu
quarto, espalhou o dinheiro sobre a cama e disse: “Temos como opções pagar parte das
nossas dívidas com banco, iluminadores e empresa de ônibus. Ou podemos investir em
mais cópias de CDs piratas e fazer um álbum novo. Pensar que estamos ricos não é
uma alternativa.” A dupla gravou um DVD e, meses depois, fechou contrato com a
Som Livre, gravadora então ligada ao grupo Globo e que, por isso mesmo, tinha boas
chances de divulgação em programas de entretenimento da emissora.
Com o caixa engordando, Oliveira começou a diversificar seus negócios. Abriu uma
construtora, a Múltipla, cujo foco principal era construir prédios em Palmas, na capital
do Tocantins. Contratou uma consultoria para melhorar a WorkShow e começou a ler
livros de autoajuda financeira, como Pai Rico, Pai Pobre, best-seller norte-americano
sobre finanças, e Mentes Milionárias, outro do ramo, com incursões na neurociência.
Mas não perdeu o foco principal. Numa visita a Palmas, conheceu uma dupla que fazia
sucesso local, os irmãos Henrique e Juliano, hoje um fenômeno da música sertaneja.
Depois de algumas conversas e reuniões, fecharam contrato.
com três artistas e, no final de uma tarde qualquer, já perto das 17 horas, seu interfone
tocou. Era uma garotinha de 13 anos, que trazia umas canções escritas em um caderno
escolar e um violão debaixo do braço. A dupla João Neto e Frederico estava na empresa
e pediu para a menina cantar. Gostaram. “Ela era uma garota sem experiência de vida,
mas falava de amor, dor e traição como se tivesse passado por cinco divórcios”, diz
Frederico. Eles resolveram chamar Oliveira para escutar. “As letras eram boas e ruins
ao mesmo tempo: tudo muito bem escrito, mas longas e sem um refrão-chiclete”,
lembra Oliveira. Mas, ao ouvir uma garota pequena com um vozeirão, ele logo pensou:
tem coisa aí. A menina era Marília Mendonça.
Marília tinha perdido seu pai biológico havia pouco, vítima de um câncer. Seus pais se
separaram quando ela ainda estava na infância. Sua mãe se casou de novo e teve João
Gustavo, mas o relacionamento com o marido não durou e, mais uma vez, deu-se a
ausência paterna. Ruth Moreira sustentou os filhos com meios modestíssimos. Chegou
a ter um pequeno bar, e morava nos fundos. A necessidade de trabalhar tendo filhos
pequenos levou os vizinhos a denunciá-la no Conselho Tutelar por abandono de
incapazes. Aos poucos, Oliveira foi assumindo o papel da figura paterna para Marília.
“Muitas vezes a mãe dela me chamava aqui no escritório pedindo para eu dar bronca
porque ela estava bebendo muito, essas coisas de adolescente”, lembra Oliveira.
Aos 13 anos, Marília compôs Minha Herança, que seria, anos mais tarde, feitas algumas
adaptações, a primeira canção a ser gravada profissionalmente por João Neto e
Frederico. Na época, a música estourou. Marília também fez Cuida Bem Dela para a
dupla Henrique e Juliano. Outro estouro. Mas foi só depois de quase seis anos na
WorkShow, período em que compôs dezenas de hits para os artistas da empresa, que
Marília Mendonça foi lançada como cantora. “Esperei ela fazer 18 anos para protegê-la
dela mesma. Ela não tinha estrutura emocional para lidar com o mercado, que poderia
sugar essa criatividade”, diz Oliveira.
Um dos orgulhos de Oliveira é ter sido o primeiro a abrir portas para mulheres no
mercado sertanejo, no qual hoje fazem sucesso artistas como Simone e Simaria e Naiara
Azevedo – nenhuma delas é da WorkShow. “Além da Marília, eu assinei contrato com
a Maiara e Maraisa ainda em 2015”, diz ele. “As duas tinham sido recusadas por um
outro empresário só porque são mulheres. Dou graças a Deus, na verdade, pela burrice
dele”, diz Oliveira, comemorando seu alto faturamento com o sucesso das irmãs mato-
grossenses. A presença de mulheres no segmento deu origem ao “feminejo”, cuja diva
era a própria Marília. Mesmo assim, o mercado sertanejo ainda é um terreno de
homens. Na própria WorkShow, as mulheres representam apenas 20% do elenco da
empresa.
quando o escritor e músico Cornélio Pires (1884-1958) gravou seu primeiro disco de 78
rotações com canções sobre a vida na roça. Natural de Tietê, no interior de São Paulo,
Pires vivia na capital e era conhecido como “bandeirante caipira”. Desde então, cantar
a vida rural faz parte da cultura nacional. “Mesmo que hoje o Brasil seja um país
majoritariamente urbano, quase todos nós temos pais ou avós criados no interior ou na
roça”, diz o jornalista André Piunti, especializado em música sertaneja. “De alguma
forma, esse estilo de música conecta todas essas pessoas. Festas de aniversário de
cidades e as feiras agropecuárias são parte da diversão da população rural ou de
cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Tocantins e Paraná, os mais importantes dentro do mercado de shows sertanejos.”
A tecnologia sempre foi uma aliada da WorkShow, que monitora seus artistas com
precisão. Em uma sala da empresa, há duas telas imensas, onde aparecem em tempo
real as execuções de músicas de seus artistas em todas as mais de 10 mil rádios do país.
O programa usado é o Connectmix, semelhante ao Google Analytics, com a diferença
de que o acesso é pago. Ao longo de 15 de dezembro do ano passado, por exemplo, dia
em que a piauí visitou a sala para conhecer o programa, a música Todo Mundo Menos
Você, uma parceria entre Marília Mendonça e a dupla Maiara e Maraisa, tocou em 2 202
rádios do país.
Quem analisa esses dados é Luciano Sassinhora, radialista há três décadas que ocupa o
posto de diretor do Departamento de Rádio da WorkShow. Pelo Connectmix,
Sassinhora pode levantar o histórico de uma determinada canção – em que horários
mais toca, em que regiões do país, por exemplo. No dia 5 de novembro, dia em que o
avião de Marília Mendonça caiu, suas músicas haviam sido executadas 6 209 vezes. No
dia seguinte ao acidente, foram 36 197 execuções. Em todo o mês de novembro, a
música Troca de Calçada, seu sucesso que faz uma homenagem às prostitutas, tocou 45
045 vezes nas rádios de todo o país.
O jabá continua no centro do negócio, seja para artistas consagrados ou novatos. “De
tanto tocar nas rádios, o público passa a gostar e a pedir de forma orgânica as nossas
músicas”, diz a nova aposta da WorkShow, a cantora Allana Macedo, uma morena de
voz grave e cabelo de Pocahontas. Quando vai lançar uma música, a WorkShow gasta
cerca de 400 mil reais em jabá, contratando uma média de cinquenta rádios, todas com
alcance de pelo menos um raio de 80 km. “Os sertanejos têm vozes poderosas e são
aplicados, investem, trabalham duro, fazem a roda girar”, elogia Paula Lavigne,
produtora cultural e empresária de seu marido, Caetano Veloso. “Os caras hoje
cumprem o papel antes exercido pelas gravadoras: eles têm estúdios, vão em busca de
parcerias com outros cantores, fazem coreografia para bombar no TikTok.” Mas ela é
radicalmente contra a prática do jabá para as rádios. “Porque só toca quem tem grana,
deixa os menos ricos de lado. O jabá matou o samba no Brasil.”
de Moraes Soares, com quem tem uma menina de 7 anos, enriqueceu com a música
sertaneja. Em sua fazenda às margens do Rio Araguaia, em Goiás, tem 6 mil cabeças de
gado, um patrimônio estimado em 35 milhões de reais. Cada um dos catorze galpões
climatizados da propriedade reúne 16 mil frangos, e o abate ocorre a cada dois meses –
um negócio que lhe rende cerca de 2 milhões de reais ao ano. Cria oitocentos porcos,
tem gado Nelore para venda de sêmen. A gigante do setor alimentício JBS é seu
principal cliente para a venda de carne. Oliveira também tem produção de leite, que é
comprada por uma cooperativa goiana. Tudo isso pertence à WorkShow Agropecuária,
mas seus negócios se expandem para outras áreas. Ainda mantém a construtora
Múltipla, que deixou de erguer prédios em Palmas para produzir asfalto. É sócio da
Potiguar, uma fábrica de chope, e de uma empresa de placas fotovoltaicas, a
WorkSolar. Para ajudar sua ex-dupla sertaneja Marcos e Fernando, cuja carreira
artística naufragou depois de um sucesso inicial, tornou-se sócio deles numa fábrica de
tinta.
A música, claro, continua sendo seu negócio principal. Ele aparece como sócio em uma
miríade de pequenas empresas formadas por seus artistas (para emitir as notas fiscais
dos shows), cujos nomes soam como títulos de música sertaneja – é a Show Completo,
a Mistura Louca, a Tô Bem Produções, a Nave Balada ou a Sentimento Louco – esta
última, uma sociedade de Oliveira com Marília. Há seis meses, em nome da
WorkShow, ele fechou contrato com a Universal, uma das maiores gravadoras do país,
que passará a trabalhar com boa parte de seus artistas. Como representa hoje metade
de todos os sucessos do sertanejo no país, Oliveira sentou-se para conversar com a
Universal em condições privilegiadas. Ficará com 80% dos royalties, cabendo os outros
20% para a gravadora. Oliveira, no entanto, fica responsável por todo o investimento
de marketing (leia-se, entre outras coisas, pagar jabá para as rádios). “O Wander é um
gênio”, disse o diretor da Universal, Paulo Lima, em conversa por videoconferência
com a piauí de sua casa em Los Angeles: “Ele tem faro e ouvido para escolher artistas
que, sem risco algum, vão criar sucesso atrás de sucesso.”
Agora que está consolidado, Oliveira não quer nem ouvir falar em pirataria. Em 2012,
por exemplo, sua dupla Henrique e Juliano gravou o primeiro DVD durante um show
ao vivo, quando emplacou o sucesso da música Não Tô Valendo Nada (Vou esperar minha
mulher querer ir no banheiro/Aí eu ganho cinco minutinhos de solteiro/É rapidinho, ela nem vai
desconfiar). O DVD foi feito para ser exibido no YouTube, uma medida preventiva
contra a pirataria que já tinha tomado conta do mercado de vendas físicas. Grande
parte do negócio de Oliveira hoje é justamente recolher royalties das músicas cujos
direitos detém. O sucesso Batom de Cereja, por exemplo, a canção mais executada no
Spotify do Brasil no ano passado, não é de um artista da Work-Show, mas seus direitos
pertencem a Oliveira. Hoje, ele lucra alto com o que antes ele não pagava. Sua
WorkShow Editora e Produções Musicais reúne canções de mais de quinhentos
compositores.
A morte de Marília reforçou um terror de Oliveira. Ele morre de medo de avião. Antes
da pandemia, tinha dois jatos – um Phenom e um Cessna. Hoje, tem apenas o bimotor
King Air, mas só embarca numa aeronave se não tiver nenhuma opção. Quando
precisa viajar de Goiânia para São Paulo ou Rio de Janeiro, vai de carro. Ele também
dirige até sua fazenda. A viagem dura em torno de três horas. No caminho, ouve o
Spotify. Gosta de escutar Cyndi Lauper, Bryan Adams, Elton John e Jimmy Cliff.
Oliveira não fala inglês e diz que não é preciso entender as palavras para saber se uma
música é boa. “Os cabelinhos do braço se arrepiam.” É quando tem coisa aí.
João Batista Jr.
reunidas em uma das salas do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Nem todas usam
máscara, algumas vestem paletó e gravata, outras estão com distintivos pendurados ao
peito. Um ponto que chama a atenção é a presença de alguns homens em uniforme de
camuflagem e metralhadora em punho, apontada para o chão. Eles estão posicionados
à esquerda da foto. São integrantes do Comando de Operações Táticas (COT), uma
unidade de elite da Polícia Federal. O ministro Luiz Fux, presidente do STF, está bem
no centro da imagem, com máscara, gravata e camisa branca.
A fotografia foi tirada a pedido de Fux, no auge das manifestações golpistas do Sete de
Setembro do ano passado, quando equipes de segurança e policiais foram mobilizados
para proteger o STF e os ministros. É o registro visual do momento em que a sede da
mais alta corte da Justiça brasileira correu o risco de ser invadida, saqueada,
incendiada. Naqueles dias, tudo isso parecia possível. A mobilização de um forte
esquema de segurança, incluindo até o grupo de elite da Polícia Federal, revelou-se
útil. Apenas em um único ponto dos gradis que cercavam o prédio no dia 7, houve sete
tentativas de invasão. “Foi o dia mais tenso da minha vida”, diz Fux, quando relembra
o episódio em suas conversas privadas.
Na vigência do regime democrático, nunca o STF viveu uma ameaça tão vil. Na noite
de 6 de setembro, bolsonaristas em fúria romperam a barreira policial e ocuparam a
Esplanada dos Ministérios. Os caminhoneiros buzinavam, aceleravam sem sair do
lugar, a multidão gritava, um policial chegou a sacar a arma para contê-los. Em vão.
Em um vídeo divulgado nas redes, um dos bolsonaristas comemorou: “Acabamos de
invadir! A polícia não deu conta de segurar o povo. E nós vamos invadir o STF
amanhã!” Havia grupos que corriam de um lado para o outro, agitando bandeiras,
cartazes ou exemplares da Bíblia. Outro rezava o Pai-Nosso, pedindo o fim do
comunismo, a morte ou a prisão de ministros do STF.
Dentro do tribunal, a rotina parecia irreal. “Você faz ideia do que era aquilo?”, diz um
assessor ouvido pela piauí que pediu para não ser identificado porque ainda hoje tem
receio de ser hostilizado pelos bolsonaristas. “De repente, você olhava para o lado e
tinha um cara com um fuzil na mão.” O objetivo da segurança, dentro e fora do
tribunal, era proteger a vida dos ministros e funcionários, mas também manter a
integridade do prédio. “Essas pessoas colocavam a destruição do Supremo,
quebradeira, incêndio, como se fosse a Queda da Bastilha”, diz um ministro que
participou das sucessivas reuniões ocorridas na véspera e no dia das manifestações.
“Para eles, o Supremo é o símbolo da resistência democrática. Já pensou o Supremo
queimando?”
Não adiantou nada. “Bolsonaro é muito reativo às redes sociais e, naqueles dias, elas
estavam enfurecidas”, diz um ministro com gabinete no Palácio do Planalto. No
palanque na Avenida Paulista, extasiado com a multidão e seus gritos de “mito”,
Bolsonaro disse que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes e
conclamou-o a deixar o cargo: “Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!”
Ovacionado, Bolsonaro saiu de lá animadíssimo, arrebatado pela presença da multidão
e convicto de que, diante de apoio popular tão expressivo, tinha condições de fazer o
que bem entendesse. Queimar o Supremo, por exemplo.
Na volta para Brasília, ainda dentro do avião presidencial, Bolsonaro recebeu os
primeiros sinais de que seu discurso passara do ponto. Não deu a mínima. Ao
desembarcar na Base Aérea de Brasília, voltou a ter notícia de reações negativas. Desta
vez, reagiu aos gritos. Passou boa parte da madrugada no celular, recebendo recados e
acompanhando as redes sociais. Aos poucos, foi compreendendo que o caldo havia
entornado. Mesmo os políticos da base governista, parte do empresariado e até de
setores militares não estavam dispostos a apoiar “uma loucura”, segundo a expressão
usada por um general do Alto Comando do Exército.
No dia seguinte, irritadíssimo com as reações adversas, fez uma reunião ministerial,
que a piauí reconstituiu ouvindo seis ministros, entre civis e militares, que ali
estiveram. Bolsonaro insistia que o apoio maciço que recebera no dia anterior tinha que
ser suficiente para “partir para cima do STF”. Levantando a voz, enfurecido, disse: “E o
que vamos entregar a esse povo que foi para as ruas ontem nos apoiar?” O ministro
Onyx Lorenzoni e a ministra Damares Alves, afinados com Bolsonaro, concordavam
que “algo” deveria ser feito. O ministro Paulo Guedes ponderou que uma “crise
institucional” devastaria a economia. “Tudo isso para quê? O que vamos ganhar?”,
indagou.
Como se sabe, a euforia toda acabou numa nota em que Bolsonaro pede desculpas ao
Supremo e atribui suas palavras golpistas ao “calor do momento”. “Bolsonaro não
organizou um protesto. Organizou uma maluquice completa”, diz um ministro do STF.
“E veja só o que o governo fez! No fim, foi hilário. Organizou uma greve de
caminhoneiros que quase derruba o próprio governo. É incrível a irracionalidade dessa
gente.” Fracassada, a agitação pró-golpe incensada pelo presidente sugou parte da
energia militante de seus radicais.
Nos dias, semanas e meses seguintes às manifestações, Bolsonaro não deu um pio
contra o Supremo. Próceres do Centrão começaram a bater no peito para dizer que
haviam domado os ímpetos autoritários do presidente. Até que, no dia 12 de janeiro
passado, Bolsonaro voltou – pela enésima vez – a lembrar quem é. Durante uma
entrevista, atacou os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que
relatam ao todo cinco inquéritos contra o presidente. “Quem é que esses dois pensam
que são? Quem eles pensam que são?” Estava irritado com decisões recentes de ambos.
Disse que os ministros estavam “cassando liberdades democráticas nossas”. Acusou
Moraes de agir “fora das quatro linhas” e disse que Barroso entendia de “terrorismo”.
A fotografia de Fux cercado por seguranças e policiais num dia de insurreição golpista
é uma imagem para ser lembrada ao longo de 2022, esse que será o ano politicamente
mais decisivo da história democrática do Brasil. Afinal, haverá uma disputa
presidencial em que o candidato à reeleição insiste em dizer que só deixará o poder
“por vontade de Deus”.
Monica Gugliano
Guido Reni
(1575-1642) Pintor italiano do período barroco. O quadro de 1611 retrata uma passagem
do Novo Testamento sobre o infanticídio ordenado pelo rei Herodes
C omo era a primeira vez que se encontrava pessoalmente com o príncipe
O herdeiro do trono britânico chegou ao jardim botânico Kew Gardens, nos arredores
de Londres, acompanhado do presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba. O país
africano é hoje uma referência em iniciativas sustentáveis. Quase 90% do seu território
é ocupado por matas preservadas e lá se encontram várias espécies ameaçadas, além de
60% dos elefantes africanos soltos na natureza. As medidas de preservação gabonenses
contam com o apoio internacional: em 2019, a Noruega ofereceu ao país 150 milhões de
dólares, a serem pagos ao longo de dez anos, para estancar o desmatamento e
estimular iniciativas de preservação da floresta.
Antonelli, que é diretor científico dos Kew Gardens desde 2019, ciceroneou o príncipe e
o presidente na visita ao jardim botânico. Ele primeiro conduziu as autoridades ao
herbário, lar de uma coleção de cerca de 7 milhões de espécimes. Ali, Ondimba foi
apresentado à principal atração da visita: uma semente de café. Tratava-se da Coffea
stenophylla, que não era encontrada na natureza desde 1954. Uma equipe de cientistas
dos Kew Gardens redescobriu a raridade em 2018, em uma floresta de Serra Leoa, na
África.
São conhecidas 124 espécies de café. Duas apenas – a Coffea arabica (arábica) e a Coffea
canephora (robusta, também chamada conilon no Brasil) – respondem por 99% da
produção global de café industrializado, tanto por causa de sua qualidade para o
consumo, quanto por sua resistência nos plantios. O problema é que ambas correm o
risco de não sobreviver ao próximo século, uma vez que não suportariam a elevação da
temperatura global. (No Brasil, maior produtor mundial de café, a semente mais
comum é a arábica.)
Até 2021, não se conhecia uma espécie de café capaz de aguentar o baque das
mudanças climáticas – até que o botânico Aaron Davis, dos Kew Gardens, demonstrou
que a Coffea stenophylla poderia cumprir esse papel. A pesquisa, publicada na
revista Nature Plants naquele ano, provou que a semente é capaz de resistir a
temperaturas de até 1,9°C acima do limite suportado pela robusta e de até 6,8°C acima
do limite tolerado pela arábica. Além disso, a Coffea stenophylla passou com louvor na
prova de paladar feita às cegas por degustadores profissionais.
A pesquisa com essa semente esquecida de café era a boa notícia que Charles pretendia
transmitir a Ondimba, pois o Gabão tem terras potencialmente aptas para o seu plantio.
Além disso, o príncipe, que tem se dedicado com afinco às questões ambientais, queria
mostrar ao presidente como as investigações científicas realizadas nos Kew Gardens
estão ajudando no plano estratégico da Sustainable Markets Initiative (SMI, Iniciativa
de Mercados Sustentáveis), a menina dos olhos de Charles. A organização lançada por
ele em 2020 tem como meta incentivar o setor privado a investir na economia
sustentável, como diz seu nome.
Não é o único projeto cultivado pelo príncipe com a SMI. Ele também ambiciona criar
um conjunto de direitos da fauna e da flora para ser adotado mundialmente. A
iniciativa se chama Terra Carta, nome que faz referência à Magna Carta, o primeiro
ensaio de Constituição moderna da história por ter fixado em 1215 os direitos e deveres
dos cidadãos ingleses, submetendo até mesmo o poder real ao domínio da lei comum.
A Terra Carta foi uma ideia que Charles apresentou na One Planet Summit, conferência
dedicada à preservação da biodiversidade, realizada em Paris em janeiro do ano
passado. Cerca de trinta chefes de Estado estavam presentes. O do Brasil não foi
convidado, apesar de grande parte do território do país abrigar a floresta mais
biodiversa do planeta, a Amazônia.
Após a visita à Coffea stenophylla, a comitiva seguiu para o Grass Garden, área dedicada
principalmente às gramíneas, com 550 espécies, todas de uso comercial. Ao avistar
alguns tipos de grama de maior porte, o príncipe perguntou a Antonelli sobre a
serventia delas. “Sir Charles, essas espécies geram menos gás metano nas vacas que as
comem. E o metano que elas emitem colabora com as mudanças climáticas”, explicou o
biólogo paulista. “Mas elas gostam de comer isso?”, perguntou o príncipe. Ao que
Antonelli respondeu: “Se não tiverem outra opção, sim.” E os dois soltaram uma
risada, quebrando a formalidade do encontro e atraindo os flashes dos fotógrafos que
acompanhavam a visita.
Há cerca de 50 mil plantas e 14 mil árvores nos Kew Gardens, que ocupam uma área de
130 hectares – um pouco menor que o Parque Ibirapuera, em São Paulo, que tem 158
hectares. Além das atrações vegetais, várias construções erguidas no local ao longo dos
séculos chamam a atenção dos visitantes. O Grande Pagode, de 1762, é uma torre de 50
metros que imita os templos chineses. O Rock Garden, feito em 1882, exibe a vegetação
de regiões montanhosas. Atração preferida dos turistas, segundo um levantamento
interno, a Palm House é uma estufa de espécies extraídas de florestas tropicais,
construída entre 1844 e 1848. Até 2019, o jardim botânico inglês recebia em média 2
milhões de visitantes por ano, o que fazia dele um dos principais pontos turísticos da
região de Londres. Com a pandemia, entretanto, o movimento caiu mais de 40%.
Por trás da fachada turística, os Kew Gardens têm historicamente outra missão: realizar
pesquisas científicas. A instituição conta com mais de 350 pesquisadores, capitaneados
por Antonelli, e dispõe de uma receita anual na casa dos 80 milhões de libras (cerca de
590 milhões de reais), provenientes de doações, patrocínios, repasses governamentais e
lucros com projetos. Desse montante, em torno de 50 milhões de libras (cerca de 370
milhões de reais) são destinados à área de “pesquisa e conservação”.
turistas: a Palm House. Ele tem um motivo sentimental para preferir a estufa de plantas
tropicais. “O cheiro, a luminosidade, a umidade, tudo me leva de volta para casa.” É só
o biólogo entrar ali e afloram em sua memória recordações do quintal em Campinas
onde passou a infância: o cheiro do pé de limão, a imagem dos cachos da bananeira,
das verduras crescendo na horta e das borboletas azuis que passeavam por lá.
Seu pai, um bancário cujo hobby era a astronomia, costumava ficar horas observando
as estrelas. O menino também gostava de vasculhar o céu com o telescópio doméstico,
mas seu passatempo predileto era coletar e colecionar insetos. “Minha família me
chamava de bicho do mato”, conta Antonelli. “Eu fazia assim”, ele explica,
gesticulando. “Com um pedaço de tecido preso a um arame, capturava borboletas e
besouros para guardar em caixas de sapato. Até hoje tenho essa mania.” Ele guarda
uma coleção de mais de 2 mil insetos em sua casa. “Tenho também uma de carcaças de
cobras.”
Os passeios pelas praias do litoral paulista, nas férias da família, incentivaram ainda
mais a paixão de Antonelli pela natureza. Quando chegou a época do vestibular, ele
optou pela biologia, que começou a cursar na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mas era inquieto demais para a rotina universitária e, aos 17 anos, decidiu
trancar o curso, colocar um mochilão nas costas e embarcar para a Europa.
O plano inicial era viajar por seis meses, mas a aventura se prolongou por três anos.
Antonelli morou na França, na Suíça e percorreu de carona a Europa Oriental. Para se
sustentar, fazia bicos. “Trabalhei de garçom, faxineiro, jardineiro, babá, de tudo.” Foi
para o México, onde bateu ponto como concierge de um hotel. Juntou dinheiro para
praticar mergulho em praias de Cuba e Belize. Depois, decidiu ir para Honduras, onde
se tornou instrutor de mergulho. “Nos parques nacionais hondurenhos, comecei a
perceber os padrões da natureza, o contexto geral. Entendi, por exemplo, como plantas
e animais viajaram pelo mundo, ao longo de milênios, para construir a Terra como
conhecemos. Passei a me interessar pelos processos evolutivos e como eles
transformam o meio ambiente.”
Em Honduras ele conheceu sua mulher, a sueca Anna Sveide, que também dava aulas
de mergulho. Os dois se casaram em 2001 e têm três filhos – Gabriel, de 16 anos, e
Clara e Maria, gêmeas de 15 anos. Antonelli passa parte dos dias em Gotemburgo, na
Suécia, onde vive sua família, e parte em Londres. Cerca de duas horas de voo (sem
escala) separa uma cidade da outra.
Foi na Universidade de Gotemburgo, uma das mais tradicionais da Suécia, que ele
terminou a graduação de biologia. “Ia para as aulas de manhã e à noite. À tarde,
trabalhava como tradutor. Anna, empregada como enfermeira, era quem arcava com a
maior parte das contas” (hoje, sua mulher dirige a ala de uma clínica psiquiátrica).
Durante o doutorado, na mesma universidade, Antonelli realizou suas primeiras
excursões científicas à Amazônia, entre 2003 e 2008. Em 2010, aos 32 anos, tornou-se
curador do Jardim Botânico de Gotemburgo, o maior dos países escandinavos, com 16
mil espécies de plantas.
Em junho de 2018, durante uma estadia de seis meses como professor visitante na
Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele recebeu uma carta dos Kew Gardens,
com um convite para se candidatar à vaga de diretor científico da instituição. O biólogo
estava com 39 anos e se julgava “novo e inexperiente demais para o cargo”. Mas para o
diretor-geral dos Kew Gardens, o inglês Richard Deverell, a escolha de Alexandre
Antonelli para a diretoria científica dos jardins ocorreu na hora certa: “Ele entrou na
instituição em um momento particular, no qual seu histórico pessoal em estudos de
conservação da biodiversidade se alinhou com as visões e estratégias dos Kew Gardens
de preservar a diversidade das plantas em escala global.”
Deverell, que também é biólogo, fez trabalho de campo na Tanzânia com “Alex”, como
chama Antonelli, e ficou impressionado. “Pude me certificar do quanto ele é
apaixonado pela atividade de naturalista”, conta. “Alex é hoje uma referência global
em estudos de biodiversidade em florestas tropicais na América do Sul, contribuindo
para entender como as forças da evolução resultaram na extraordinária riqueza e
diversidade de espécies na região.”
Para poder aceitar o convite dos Kew Gardens, o biólogo brasileiro precisou deixar em
2019 a direção do centro de biodiversidade e do Jardim Botânico de Gotemburgo.
Também abandonou os planos de desenvolver um aplicativo de reconhecimento, por
meio da câmera do celular, de espécies animais e vegetais. Ele estava testando a
tecnologia em escolas na Suécia na época.
cientistas dos Kew Gardens. A missão deles, segundo o biólogo, “foi apresentar
evidências de como soluções científicas sustentáveis, baseadas em sistemas naturais,
podem combater as crises climáticas e a perda de biodiversidade”. Um exemplo dessas
evidências levado a Glasgow foi a semente da Coffea stenophylla, a mesma apresentada
ao presidente do Gabão um mês antes.
Por isso mesmo, Antonelli acredita que pode contribuir mais para o conhecimento
sobre a biodiversidade brasileira fazendo seus trabalhos fora daqui. “Na Inglaterra e na
Suécia tenho todo o apoio necessário para realizar pesquisas mais ambiciosas,
incluindo as coletas e análises que realizo em biomas brasileiros, como na Amazônia.
No Brasil, desde que acabaram com o programa Ciência sem Fronteiras, infelizmente o
país não conta com uma ação federal de peso na área.”
Na COP26, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, disse que o
Brasil zeraria o desmatamento em 2028, adiantando em dois anos o prazo prometido
por outros governos brasileiros em conferências climáticas anteriores. Para explicar o
plano surpreendente, Pereira Leite exibiu um gráfico com dados otimistas do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a informação de que o desmatamento na
Amazônia teria diminuído 5% entre 2020 e 2021. Na verdade, estava tentando fazer a
plateia de boba.
Em 18 de novembro, seis dias após o fim da COP26, veio a público a notícia de que o
ministério ocultara por mais de um mês as informações reais do Inpe sobre o
desmatamento, que havia aumentado 22% – e não diminuído 5%. Antonelli é taxativo:
“Para ter acesso às dezenas de bilhões de dólares de financiamentos dados como
incentivo pelas nações ricas a quem preserva, e não desmata, países como o Brasil
precisam provar o que falam.”
E m julho deste ano, Antonelli vai lançar o seu primeiro livro, The Hidden
O livro não é dirigido ao meio científico, mas ao público em geral. “Senti desconexão
entre o que os pesquisadores debatem sobre o tema da biodiversidade e o
entendimento da maioria da população sobre o assunto. Por isso decidi escrever”, diz
Antonelli. “Misturei os meus estudos com as percepções e vivências que tive ao fazer
trabalho de campo, nas florestas.” Ao longo de sua carreira, ele coletou, identificou e
catalogou mais de 2 mil tipos de plantas, insetos e répteis, em estudos de campo feitos
em 24 países.
Na obra, o biólogo conta várias histórias das descobertas que fez. Em algumas, o acaso
teve participação importante. Ele encontrou uma nova espécie de planta, uma parente
distante do café, a Cordiera montana, ao tropeçar no galho de uma árvore de 10 metros
de altura, na Cordilheira dos Andes, no Peru.
No Norte de Moçambique, quando estava atrás de cobras venenosas, ele fez outra
descoberta junto com sua equipe. “Após o Sol se pôr e as temperaturas caírem um
pouco, pegamos nossas tochas e saímos para uma caminhada. Estava um breu e de
repente vimos dois olhos brilhantes nos encarando de uma enorme rocha”, conta
Antonelli no livro. “Um de meus alunos, Harith Farooq, pulou ferozmente em direção
ao animal e finalmente conseguiu pegá-lo, ao custo de vários arranhões.” Era uma nova
espécie de lagartixa, de 15 cm de comprimento, que ainda não foi catalogada.
Filipe Vilicic
Jornalista e escritor, é diretor de criação da agência Virtù. Publicou, entre outros livros, O
Clique de 1 Bilhão de Dólares (Intrínseca)
C omo era a primeira vez que se encontrava pessoalmente com o príncipe
O herdeiro do trono britânico chegou ao jardim botânico Kew Gardens, nos arredores
de Londres, acompanhado do presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba. O país
africano é hoje uma referência em iniciativas sustentáveis. Quase 90% do seu território
é ocupado por matas preservadas e lá se encontram várias espécies ameaçadas, além de
60% dos elefantes africanos soltos na natureza. As medidas de preservação gabonenses
contam com o apoio internacional: em 2019, a Noruega ofereceu ao país 150 milhões de
dólares, a serem pagos ao longo de dez anos, para estancar o desmatamento e
estimular iniciativas de preservação da floresta.
Antonelli, que é diretor científico dos Kew Gardens desde 2019, ciceroneou o príncipe e
o presidente na visita ao jardim botânico. Ele primeiro conduziu as autoridades ao
herbário, lar de uma coleção de cerca de 7 milhões de espécimes. Ali, Ondimba foi
apresentado à principal atração da visita: uma semente de café. Tratava-se da Coffea
stenophylla, que não era encontrada na natureza desde 1954. Uma equipe de cientistas
dos Kew Gardens redescobriu a raridade em 2018, em uma floresta de Serra Leoa, na
África.
São conhecidas 124 espécies de café. Duas apenas – a Coffea arabica (arábica) e a Coffea
canephora (robusta, também chamada conilon no Brasil) – respondem por 99% da
produção global de café industrializado, tanto por causa de sua qualidade para o
consumo, quanto por sua resistência nos plantios. O problema é que ambas correm o
risco de não sobreviver ao próximo século, uma vez que não suportariam a elevação da
temperatura global. (No Brasil, maior produtor mundial de café, a semente mais
comum é a arábica.)
Até 2021, não se conhecia uma espécie de café capaz de aguentar o baque das
mudanças climáticas – até que o botânico Aaron Davis, dos Kew Gardens, demonstrou
que a Coffea stenophylla poderia cumprir esse papel. A pesquisa, publicada na
revista Nature Plants naquele ano, provou que a semente é capaz de resistir a
temperaturas de até 1,9°C acima do limite suportado pela robusta e de até 6,8°C acima
do limite tolerado pela arábica. Além disso, a Coffea stenophylla passou com louvor na
prova de paladar feita às cegas por degustadores profissionais.
A pesquisa com essa semente esquecida de café era a boa notícia que Charles pretendia
transmitir a Ondimba, pois o Gabão tem terras potencialmente aptas para o seu plantio.
Além disso, o príncipe, que tem se dedicado com afinco às questões ambientais, queria
mostrar ao presidente como as investigações científicas realizadas nos Kew Gardens
estão ajudando no plano estratégico da Sustainable Markets Initiative (SMI, Iniciativa
de Mercados Sustentáveis), a menina dos olhos de Charles. A organização lançada por
ele em 2020 tem como meta incentivar o setor privado a investir na economia
sustentável, como diz seu nome.
Não é o único projeto cultivado pelo príncipe com a SMI. Ele também ambiciona criar
um conjunto de direitos da fauna e da flora para ser adotado mundialmente. A
iniciativa se chama Terra Carta, nome que faz referência à Magna Carta, o primeiro
ensaio de Constituição moderna da história por ter fixado em 1215 os direitos e deveres
dos cidadãos ingleses, submetendo até mesmo o poder real ao domínio da lei comum.
A Terra Carta foi uma ideia que Charles apresentou na One Planet Summit, conferência
dedicada à preservação da biodiversidade, realizada em Paris em janeiro do ano
passado. Cerca de trinta chefes de Estado estavam presentes. O do Brasil não foi
convidado, apesar de grande parte do território do país abrigar a floresta mais
biodiversa do planeta, a Amazônia.
Após a visita à Coffea stenophylla, a comitiva seguiu para o Grass Garden, área dedicada
principalmente às gramíneas, com 550 espécies, todas de uso comercial. Ao avistar
alguns tipos de grama de maior porte, o príncipe perguntou a Antonelli sobre a
serventia delas. “Sir Charles, essas espécies geram menos gás metano nas vacas que as
comem. E o metano que elas emitem colabora com as mudanças climáticas”, explicou o
biólogo paulista. “Mas elas gostam de comer isso?”, perguntou o príncipe. Ao que
Antonelli respondeu: “Se não tiverem outra opção, sim.” E os dois soltaram uma
risada, quebrando a formalidade do encontro e atraindo os flashes dos fotógrafos que
acompanhavam a visita.
Há cerca de 50 mil plantas e 14 mil árvores nos Kew Gardens, que ocupam uma área de
130 hectares – um pouco menor que o Parque Ibirapuera, em São Paulo, que tem 158
hectares. Além das atrações vegetais, várias construções erguidas no local ao longo dos
séculos chamam a atenção dos visitantes. O Grande Pagode, de 1762, é uma torre de 50
metros que imita os templos chineses. O Rock Garden, feito em 1882, exibe a vegetação
de regiões montanhosas. Atração preferida dos turistas, segundo um levantamento
interno, a Palm House é uma estufa de espécies extraídas de florestas tropicais,
construída entre 1844 e 1848. Até 2019, o jardim botânico inglês recebia em média 2
milhões de visitantes por ano, o que fazia dele um dos principais pontos turísticos da
região de Londres. Com a pandemia, entretanto, o movimento caiu mais de 40%.
Por trás da fachada turística, os Kew Gardens têm historicamente outra missão: realizar
pesquisas científicas. A instituição conta com mais de 350 pesquisadores, capitaneados
por Antonelli, e dispõe de uma receita anual na casa dos 80 milhões de libras (cerca de
590 milhões de reais), provenientes de doações, patrocínios, repasses governamentais e
lucros com projetos. Desse montante, em torno de 50 milhões de libras (cerca de 370
milhões de reais) são destinados à área de “pesquisa e conservação”.
turistas: a Palm House. Ele tem um motivo sentimental para preferir a estufa de plantas
tropicais. “O cheiro, a luminosidade, a umidade, tudo me leva de volta para casa.” É só
o biólogo entrar ali e afloram em sua memória recordações do quintal em Campinas
onde passou a infância: o cheiro do pé de limão, a imagem dos cachos da bananeira,
das verduras crescendo na horta e das borboletas azuis que passeavam por lá.
Seu pai, um bancário cujo hobby era a astronomia, costumava ficar horas observando
as estrelas. O menino também gostava de vasculhar o céu com o telescópio doméstico,
mas seu passatempo predileto era coletar e colecionar insetos. “Minha família me
chamava de bicho do mato”, conta Antonelli. “Eu fazia assim”, ele explica,
gesticulando. “Com um pedaço de tecido preso a um arame, capturava borboletas e
besouros para guardar em caixas de sapato. Até hoje tenho essa mania.” Ele guarda
uma coleção de mais de 2 mil insetos em sua casa. “Tenho também uma de carcaças de
cobras.”
Os passeios pelas praias do litoral paulista, nas férias da família, incentivaram ainda
mais a paixão de Antonelli pela natureza. Quando chegou a época do vestibular, ele
optou pela biologia, que começou a cursar na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mas era inquieto demais para a rotina universitária e, aos 17 anos, decidiu
trancar o curso, colocar um mochilão nas costas e embarcar para a Europa.
O plano inicial era viajar por seis meses, mas a aventura se prolongou por três anos.
Antonelli morou na França, na Suíça e percorreu de carona a Europa Oriental. Para se
sustentar, fazia bicos. “Trabalhei de garçom, faxineiro, jardineiro, babá, de tudo.” Foi
para o México, onde bateu ponto como concierge de um hotel. Juntou dinheiro para
praticar mergulho em praias de Cuba e Belize. Depois, decidiu ir para Honduras, onde
se tornou instrutor de mergulho. “Nos parques nacionais hondurenhos, comecei a
perceber os padrões da natureza, o contexto geral. Entendi, por exemplo, como plantas
e animais viajaram pelo mundo, ao longo de milênios, para construir a Terra como
conhecemos. Passei a me interessar pelos processos evolutivos e como eles
transformam o meio ambiente.”
Em Honduras ele conheceu sua mulher, a sueca Anna Sveide, que também dava aulas
de mergulho. Os dois se casaram em 2001 e têm três filhos – Gabriel, de 16 anos, e
Clara e Maria, gêmeas de 15 anos. Antonelli passa parte dos dias em Gotemburgo, na
Suécia, onde vive sua família, e parte em Londres. Cerca de duas horas de voo (sem
escala) separa uma cidade da outra.
Foi na Universidade de Gotemburgo, uma das mais tradicionais da Suécia, que ele
terminou a graduação de biologia. “Ia para as aulas de manhã e à noite. À tarde,
trabalhava como tradutor. Anna, empregada como enfermeira, era quem arcava com a
maior parte das contas” (hoje, sua mulher dirige a ala de uma clínica psiquiátrica).
Durante o doutorado, na mesma universidade, Antonelli realizou suas primeiras
excursões científicas à Amazônia, entre 2003 e 2008. Em 2010, aos 32 anos, tornou-se
curador do Jardim Botânico de Gotemburgo, o maior dos países escandinavos, com 16
mil espécies de plantas.
Na virada de 2015 para 2016, Antonelli fez uma promessa de Ano-Novo para a sua
família. “Prometi que iria criar um centro para tratar de biodiversidade na Suécia,
unindo esforços de várias instituições científicas, como museus e universidades”, ele
conta. Dito e feito. O Centro de Biodiversidade Global de Gotemburgo foi inaugurado
em 2017. “Após um ano de trabalho, em 2018, calculamos que o número de notícias
sobre biodiversidade na mídia sueca aumentou em cerca de dez vezes, principalmente
em consequência de nossos esforços para divulgar essas pautas”, diz Antonelli.
Em junho de 2018, durante uma estadia de seis meses como professor visitante na
Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele recebeu uma carta dos Kew Gardens,
com um convite para se candidatar à vaga de diretor científico da instituição. O biólogo
estava com 39 anos e se julgava “novo e inexperiente demais para o cargo”. Mas para o
diretor-geral dos Kew Gardens, o inglês Richard Deverell, a escolha de Alexandre
Antonelli para a diretoria científica dos jardins ocorreu na hora certa: “Ele entrou na
instituição em um momento particular, no qual seu histórico pessoal em estudos de
conservação da biodiversidade se alinhou com as visões e estratégias dos Kew Gardens
de preservar a diversidade das plantas em escala global.”
Deverell, que também é biólogo, fez trabalho de campo na Tanzânia com “Alex”, como
chama Antonelli, e ficou impressionado. “Pude me certificar do quanto ele é
apaixonado pela atividade de naturalista”, conta. “Alex é hoje uma referência global
em estudos de biodiversidade em florestas tropicais na América do Sul, contribuindo
para entender como as forças da evolução resultaram na extraordinária riqueza e
diversidade de espécies na região.”
Para poder aceitar o convite dos Kew Gardens, o biólogo brasileiro precisou deixar em
2019 a direção do centro de biodiversidade e do Jardim Botânico de Gotemburgo.
Também abandonou os planos de desenvolver um aplicativo de reconhecimento, por
meio da câmera do celular, de espécies animais e vegetais. Ele estava testando a
tecnologia em escolas na Suécia na época.
cientistas dos Kew Gardens. A missão deles, segundo o biólogo, “foi apresentar
evidências de como soluções científicas sustentáveis, baseadas em sistemas naturais,
podem combater as crises climáticas e a perda de biodiversidade”. Um exemplo dessas
evidências levado a Glasgow foi a semente da Coffea stenophylla, a mesma apresentada
ao presidente do Gabão um mês antes.
Por isso mesmo, Antonelli acredita que pode contribuir mais para o conhecimento
sobre a biodiversidade brasileira fazendo seus trabalhos fora daqui. “Na Inglaterra e na
Suécia tenho todo o apoio necessário para realizar pesquisas mais ambiciosas,
incluindo as coletas e análises que realizo em biomas brasileiros, como na Amazônia.
No Brasil, desde que acabaram com o programa Ciência sem Fronteiras, infelizmente o
país não conta com uma ação federal de peso na área.”
Na COP26, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, disse que o
Brasil zeraria o desmatamento em 2028, adiantando em dois anos o prazo prometido
por outros governos brasileiros em conferências climáticas anteriores. Para explicar o
plano surpreendente, Pereira Leite exibiu um gráfico com dados otimistas do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a informação de que o desmatamento na
Amazônia teria diminuído 5% entre 2020 e 2021. Na verdade, estava tentando fazer a
plateia de boba.
Em 18 de novembro, seis dias após o fim da COP26, veio a público a notícia de que o
ministério ocultara por mais de um mês as informações reais do Inpe sobre o
desmatamento, que havia aumentado 22% – e não diminuído 5%. Antonelli é taxativo:
“Para ter acesso às dezenas de bilhões de dólares de financiamentos dados como
incentivo pelas nações ricas a quem preserva, e não desmata, países como o Brasil
precisam provar o que falam.”
E m julho deste ano, Antonelli vai lançar o seu primeiro livro, The Hidden
O livro não é dirigido ao meio científico, mas ao público em geral. “Senti desconexão
entre o que os pesquisadores debatem sobre o tema da biodiversidade e o
entendimento da maioria da população sobre o assunto. Por isso decidi escrever”, diz
Antonelli. “Misturei os meus estudos com as percepções e vivências que tive ao fazer
trabalho de campo, nas florestas.” Ao longo de sua carreira, ele coletou, identificou e
catalogou mais de 2 mil tipos de plantas, insetos e répteis, em estudos de campo feitos
em 24 países.
Na obra, o biólogo conta várias histórias das descobertas que fez. Em algumas, o acaso
teve participação importante. Ele encontrou uma nova espécie de planta, uma parente
distante do café, a Cordiera montana, ao tropeçar no galho de uma árvore de 10 metros
de altura, na Cordilheira dos Andes, no Peru.
No Norte de Moçambique, quando estava atrás de cobras venenosas, ele fez outra
descoberta junto com sua equipe. “Após o Sol se pôr e as temperaturas caírem um
pouco, pegamos nossas tochas e saímos para uma caminhada. Estava um breu e de
repente vimos dois olhos brilhantes nos encarando de uma enorme rocha”, conta
Antonelli no livro. “Um de meus alunos, Harith Farooq, pulou ferozmente em direção
ao animal e finalmente conseguiu pegá-lo, ao custo de vários arranhões.” Era uma nova
espécie de lagartixa, de 15 cm de comprimento, que ainda não foi catalogada.
Filipe Vilicic
Jornalista e escritor, é diretor de criação da agência Virtù. Publicou, entre outros livros, O
Clique de 1 Bilhão de Dólares (Intrínseca)
Allan Sieber
Não foi uma opção aleatória, tampouco inédita. A crítica de culinária norte-americana
M. F. K. Fisher escreveu que “nossas três necessidades vitais – comida, segurança e
amor – estão de tal modo entrelaçadas que não se pode falar de uma sem falar da outra
[…]. Há mais que uma comunhão de corpos quando dividimos o pão e bebemos o
vinho”. O alimento tem a função básica de combustível, mas a comida, produto
cultural, engloba algo mais: fala ao espírito e à memória, dá conforto e (re)forma a
sociedade, tanto mais em épocas de crise.
Foi durante uma dessas visitas à cozinha que, um dia, olhando para os livros de
culinária na estante, reencontrei o caderno de receitas da minha bisavó paterna. Como
gosto de cozinhar e sou historiador, minha avó, Maria Elisa Torelly Cruz, havia me
escolhido como fiel depositário do manuscrito. Aceitei o presente com carinho, mas
para mim tratava-se mais de um documento da história familiar do que de um livro
cujas receitas eu realmente utilizaria. Embora guarde muitas boas lembranças das
comidas da infância, nenhuma delas está relacionada a esta bisavó, com quem tive
pouco contato.
Ela se chamava Mary Amaro Torelly. Nasceu em Porto Alegre, em 1913, filha de
Ernestina Amaro da Silveira e do advogado Firmino da Silva Torelly. Era prima do
jornalista e humorista Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), que ficou
conhecido com o pseudônimo Barão de Itararé. Graças ao capital econômico e social da
família, minha bisavó teve a educação que se esperava de uma jovem da elite gaúcha.
Cursou o tradicional Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, administrado por irmãs
franciscanas, e tal como sua mãe desde cedo frequentou os salões de chá e participou
de obras de caridade.
Em 1936 casou-se com o advogado Paulo Setembrino de Carvalho Cruz (1913-85), com
quem teve dois filhos, Maria Elisa, minha avó, nascida no ano seguinte, e Paulo
Fernando, em 1941. Sabe-se lá por que motivo, todos na família pronunciavam seu
nome como “Mêri”. Ela morreu em 1999, quando eu tinha 10 anos.
Crianças não estavam entre as suas distrações preferidas. Lembro que era uma mulher
de amplo sorriso, elegante, sempre bem penteada, maquiada e enfeitada com joias. Eu
me recordo de vê-la sentada no sofá da casa da minha avó, fazendo palavras cruzadas
com uma grande lupa. Ou comendo bombons de cereja e garrafinhas de chocolate com
recheio alcoólico, que ela nunca me oferecia. Era uma senhora gulosa, apaixonada por
doces, embora devesse evitá-los por questões de saúde. Nunca a vi cozinhando.
Ela se casou sem nada saber de culinária e foi morar com a sogra, Adelina Villela de
Carvalho, a “Zizi”, que cuidava da administração da casa. Quando Zizi morreu, em
1953, “o caos reinou na cozinha”, conta minha avó, que na época estava com 16 anos e
teve que se matricular em uma escola de culinária para transmitir à mãe os
conhecimentos de forno e fogão. Minha avó ajudou na administração do lar até se casar
em 1957, quando Mary se viu novamente sozinha com suas empregadas. “Ela mesma
não sabia muito, mas aprendeu a fazer uma comida excelente, porque seguiu as
receitas com rigor”, conta minha avó. “Acabou se tornando uma ótima professora,
muito exigente, e ensinou várias cozinheiras.”
Com 25 cm de altura e 17 cm de largura, capa dura revestida com tecido verde e bege
estampado com desenhos de ramos de bambu, o caderno tem apenas a palavra
“Receitas” desenhada no canto inferior direito. Dentro, estão registradas 156 receitas,
todas elas escritas a mão, separadas em onze categorias, de molhos a sobremesas, sem
esquecer os drinques. Os pratos doces (bolos, biscoitos, pudins, cremes e sorvetes)
representam mais de 40% do total, e quase igual proporção das receitas está
relacionada ao nome de alguém, como a “Torta salgada (Lelete)” e os “Pãezinhos da
Elzira”, ou então a alguma marca da indústria alimentícia, como as “Rosquinhas Royal
União”. Há ainda todo um capítulo com receitas copiadas do decorador e chef amador
carioca Miguel de Carvalho Neto, conhecido como Miguel, o Magnífico, que teve certa
proeminência no meio culinário entre os anos 1950 e 1960.
Quando minha avó me deu o caderno de presente, eu imaginava encontrar ali todo um
arsenal de receitas antigas da família, algumas talvez de mais de um século. Entretanto,
à medida que ia passando as páginas, percebi que se tratava de um material bem mais
recente, possivelmente compilado a partir de 1957, quando Mary precisou gerenciar
pessoalmente a cozinha.
As receitas citam os cubos de caldo Knorr, cuja fábrica abriu em São Paulo em 1961, e a
maionese Hellmann’s, que chegou ao Brasil em 1962. Algumas também recorrem ao
ketchup, do qual os cozinheiros brasileiros passaram a falar mais comumente a partir
da década de 1960. Há ainda uma receita chamada “Maionese Walita”, difundida na
década de 1950 pela fábrica de eletrodomésticos para ensinar as donas de casa a
usarem o liquidificador. As receitas não foram datadas, mas acredito que tenham sido
recolhidas até o fim da década de 1970.
Sendo uma coletânea mais recente, o caderno estava longe de fazer parte daquilo que
Gilberto Freyre chamou de “maçonaria das mulheres” – a herança culinária de uma
família, com receitas seculares transmitidas de mãe para filha, como um bem precioso
do clã. Se não corresponde à ideia de Freyre, o caderno da minha bisavó, contudo,
encaixa-se perfeitamente naquilo que Colleen Cotter chamou de livros de receitas
comunitários (community cookbooks). A linguista norte-americana definiu assim estes
trabalhos manuscritos, despretensiosos, feitos por donas de casa a partir de referências
de seu núcleo familiar, seu bairro ou seu clube, e que de certa forma tiravam as
mulheres do isolamento de suas cozinhas, inserindo-as em uma comunidade. Por isso,
são mais que meros registros de receitas: constituem uma narrativa cultural, tecida por
meio de alianças e conhecimentos.
No caderno de Mary esta aliança está traçada quando ela relaciona pessoas (Lelete,
Elzira, Dora…) às receitas, que também indicam o crescente impacto da indústria
alimentícia (como a Nestlé e a União) sobre o paladar doméstico. Cada receita,
portanto, tem algo a ver com a história pessoal de Mary, mas também com a história
social da alimentação no país. A “Musse de atum (Alba)”, por exemplo, oriunda da
cozinha de Alba Cruz Livonius, sua cunhada, é um prato pretensamente requintado
cuja receita mulheres da elite trocavam entre si e só pode ter sido desenvolvida a partir
da década de 1960, pois utiliza certa dose de… ketchup.
Ao conversar com minha avó, descobri que o caderno era o documento de algo ainda
mais interessante. Como minha bisavó nunca aprendeu a cozinhar de fato, precisava
do caderno como um guia para comandar as cozinheiras. Por isso, nele não constam
receitas de pratos do dia a dia, uma vez que estas eram já do conhecimento das
empregadas. Por isso, também, minha bisavó não escreve “atum” ou “gelatina” ao citar
estes ingredientes, mas “atum CPC” e “gelatina Oetker”. Não sabendo manejar a
cozinha, a fidelidade às marcas era sua garantia de que as receitas sairiam sempre
iguais. Nenhum prato típico gaúcho consta do caderno, mas, ao gosto da época, Mary
anotou duas receitas de vatapá, uma delas sem camarão seco e com frango – prato que
meu bisavô apelidou de “vatapá sintético”, para desgosto da esposa.
Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.), até os posts do canal digital Tastemade,
poderia ser um capítulo da história da luta de classes, dos gêneros e etnias. Uma
grande distância separa quem se julga qualificado a escrever e coletar receitas e quem
se encontra na situação de simplesmente fazer a comida, sob as ordens de outrem. No
Brasil não há como falar de receitas e de cozinha sem considerar estes dois papéis
distintos: o da dona de casa, comumente branca e de posses, e o da cozinheira, em geral
pobre e negra.
A cozinha não escapou desse anátema e foi, durante séculos, ocupada prioritariamente
pelos cativos. Até famílias menos abastadas cuidavam de ter um escravizado para
cuidar de sua alimentação, como demonstraram os historiadores Almir El-Kareh e
Héctor Bruit, ao apontarem como eram frequentes nos jornais cariocas anúncios de
compra e venda de cativos (de ambos os sexos) aptos ao trabalho doméstico e à
culinária “trivial”. [1]
Um desses anúncios, publicado em 16 de fevereiro de 1828, no Diário do Rio de Janeiro,
diz:
Na Praça da Constituição, nº 10, vende-se uma muito vistosa mucama de Nação, sabe todo o
serviço de casa, faz uma camisa dando-se-lhe cortada, lava, engoma liso, cozinha, e assa, de
forno, e de fogão, não tem moléstias nem vícios conhecidos.
Como se sabe, o fim da escravatura não significou uma ruptura profunda nesse tipo de
relações. Diversos estudos apontam que o trabalho doméstico foi um dos setores que
mais absorveu a população recém-liberta: mulheres negras empregaram-se como amas-
secas e de leite, engomadeiras, cozinheiras e faxineiras, enquanto os ex-cativos do sexo
masculino passaram a atuar em serviços adjacentes à casa, como os de marceneiro e
pedreiro, além de cuidarem da lavoura e de atividades relacionadas ao comércio.
As senhoras, geralmente, que têm uma educação fina, de salão, casam-se e veem-se em apuros
para dirigir a sua casa. Esbarram com mil dificuldades, sofrem, afligem-se por não saberem levar
a efeito a parte mais interessada da casa; felizmente vão aparecendo os livros práticos e auxiliares
para este labor contínuo e interminável.
Há tempos era um preconceito que os pais tinham, como digo sempre, geralmente a educação que
davam às suas filhas estendia-se a proibição de irem à cozinha, privarem-nas de tratar com
fâmulos. A educação de uma moça de família distinta era incompatível com o andamento geral
da casa. Quantas não se viram em embaraço. Acostumadas ao elemento servil, sem prática,
casavam-se e encontravam um marido amigo de gulodices, quitutes e arranjo caseiro. Que
suplício?!!
Em 1923 foi aprovado pelo presidente Artur Bernardes o decreto nº 16 107, a primeira
regulamentação da República sobre os serviços domésticos, aí incluídos os porteiros,
jardineiros, lavadeiras etc. – todo um conjunto de atividades que não merecera atenção
no Código Civil de 1916. Dentre os trabalhadores mencionados nesse decreto, estavam
“os cozinheiros”, mas não as cozinheiras (é significativo que os únicos serviçais de
cozinha regulamentados fossem homens, mantendo as cozinheiras na irregularidade).
O artigo terceiro do decreto prescrevia que cada um desses trabalhadores teria uma
carteira – um indicativo de sua situação regular e a garantia de alguma proteção legal.
As condições atuais da vida são tais que algumas donas de casa quase dispensam a cozinheira,
indo elas mesmo preparar os seus pastéis e cozinhá-los, quando não decidem efetuar outros
serviços leves da cozinha. Preferem, muitas vezes, fazer por suas próprias mãos os pratos mais
do seu agrado – especialmente aqueles que não estragam nem sujam as mãos. É notória a falta de
boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes. Esta falta está se verificando em toda a parte.
Não admira, portanto, que as donas de casa tomem as suas providências no sentido de não sentir
inteiramente a sua falta. Para a remediar, embora não exista evidentemente o desejo de dispensar
as cozinheiras, muitas senhoras já se vão familiarizando com a cozinha. Foram inventados, para
esbater a sua falta, alguns instrumentos de fácil manuseio e que evitam alguns trabalhos
demasiadamente penosos para quem não tem o hábito da cozinha. Quase todos eles são de
agradável aspecto, alguns até interessantes.
Mas, tão logo a mulher começou a transpor a soleira doméstica, a reação conservadora
se esforçou para puxá-la de volta para casa. A fim de incentivar o retrocesso,
começaram a surgir periódicos, como a revista Vida Doméstica (1920-62), o Jornal das
Moças (1914-68) e seu suplemento Jornal da Mulher (1930), publicados no Rio de Janeiro,
que, apesar de voltados para o público feminino, eram em geral editados por homens e
associações católicas. O teor dos artigos costumava ser bastante retrógrado, contrário,
por exemplo, ao voto feminino, ao trabalho externo ao lar, ao desquite… A respeito
desse período, a historiadora Luzia Margareth Rago, escreveu em Os Prazeres da
Noite, livro de 1991:
Generoso, o sexo barbado disse à mulher que o seu papel era no lar, na educação dos filhos, nas
carícias do esposo, no seu trono doméstico da graça, longe do mundo, das suas contingências
miseráveis, das suas abominações tremendas, a cujo contato não há alma feminina que não
empalideça e não estiole.
Juntamente com a imprensa, a indústria fez a sua reação conservadora (ainda que em
parte também inovadora), tentando atrair a mulher que antes não cozinhava para a
frente dos fogões. Se esforçou para mostrar às consumidoras que seria possível casar o
melhor dos dois mundos: a cozinha podia, também, ser chique. Na Feira Internacional
de Amostras de 1933, no Rio de Janeiro, o estande da Companhia do Gás exibiu uma
cozinha moderna e contratou uma atriz-cozinheira para demonstrar que, com os novos
eletrodomésticos, a dona de casa escaparia de ficar com a cara suja de fuligem, como
diz uma reportagem da revista O Cruzeiro, de novembro daquele ano:
O próprio espaço físico da cozinha será posto em discussão, com os críticos modernos
apontando os espaços amplos das cozinhas antigas como danosos ao bom manejo do
lar, pois exigiam que se andasse “muitos quilômetros” todos os anos, ao se deslocar
entre o fogão, a pia e a mesa de jantar. Em texto de 1933, autores anônimos asseguram
que a dimensão ideal da cozinha é de 6,25 m², o que permite não só a disposição prática
de todos os utensílios e eletrodomésticos, mas também “um espaço livre, central, para
os movimentos, de 1,50 metro, ou seja, a dimensão de dois braços abertos”.
Em abril daquele ano, a revista Vida Doméstica publicou um diálogo travado entre uma
cozinheira e o representante da fictícia Caixa de Aposentadoria dos Domésticos. Nele, a
cozinheira, empregada na casa de uma feminista, fazia uma queixa ao funcionário,
exigindo um ato oficial que proibisse o termo “criada”, substituindo-o pelo mais
moderno “doméstica”, para ela menos pejorativo. É evidente o tom conservador do
texto, debochando das pretensões trabalhistas. Na mesma revista, números depois,
foram publicados os seguintes versinhos, sem autoria: Lá em casa tem uma preta
cozinheira/E que nos serve desde tenra idade,/Vive contente e é boa companheira/Até no nome
ela é Felicidade… Felizes mesmo eram os patrões de Felicidade, atendidos por uma
criada servil e leal. A nostalgia da senzala continuava a marcar a imaginação da elite
brasileira.
Cozinhar, dantes, era mister que as senhoras exerciam com sacrifício, e só em circunstâncias
excepcionalíssimas, para salvar uma situação de aperto quando a cozinheira faltava e não havia
outro remédio. Hoje, entretanto, já não sucede assim. Hoje, cozinhar já é um prazer. E como o
problema da “boa cozinheira” cada dia mais e mais se agrava, a dona de casa de 1936 lhe dá a
solução mais simples: dispensa-a… o que oferece a vantagem de adquirir sossego de espírito e de
poder saborear os quitutes ao próprio gosto ou ao gosto do marido.
Dois anos mais tarde, o suplemento carioca Jornal da Mulher apresentou uma definição
mais abrangente para o substantivo “cozinheira”:
Não queremos nos referir somente às empregadas domésticas, mas as que vão para a cozinha
auxiliar os quitutes, ou exercer as funções na falta das empregadas; enfim, queremos nos referir
às patroas que, também gostam, às vezes, de simular cozinheiras. Quer isso dizer que o termo é
genérico e que abrange a toda aquela que quer ser mestre-cuca.
Sinal dos tempos foi também a publicação, em 1940, do mais famoso livro de receitas
do país, Comer Bem, assinado com o pseudônimo Dona Benta – nome de um
personagem de Monteiro Lobato. A “autora” aparece na capa como uma vovozinha
gentil, segurando um bolo diante dos olhos gulosos de Pedrinho. Boa dona de casa,
Dona Benta gerenciava a cozinha do Sítio do Picapau Amarelo, mas quem ia para a
frente do fogão era Tia Nastácia, a empregada negra, que não teve a honra de aparecer
na capa do livro. A ideia é clara: as leitoras da obra devem se identificar com Dona
Benta, pois, como ela, estão destinadas ao comando, e não ao trabalho pesado das
panelas, como Tia Nastácia.
Décadas depois, em 1961, no salão paroquial de uma igreja no Alto da Boa Vista, no
Rio de Janeiro, ocorreu um fato histórico de grande importância: trinta mulheres de
todo o país se reuniram no Primeiro Encontro Nacional de Empregadas Domésticas,
promovido pela Juventude Operária Católica. O feito rendeu uma reportagem de três
páginas e diversas fotos na revista Manchete, com o título Revolução da Copa e Cozinha.
Abre a reportagem a fala de uma doméstica anônima, identificada apenas por
“escurinha”, que diz:
É preciso abolir o elevador de serviço. Que diabo! Aos domingos, quando saímos para passear,
mais arrumadinhas, não custava nada a gente usar o elevador social. As patroas deviam
reconhecer que nós somos criaturas humanas, vivendo num país democrático. Ou os direitos
civis variam com as classes econômicas? Será que ainda vivemos no regime da escravidão?
De certa forma, vivíamos. Levou ainda quase meio século para que os direitos das
empregadas domésticas fossem finalmente reconhecidos.
Q uando minha bisavó iniciou a escrita de seu caderno de receitas, esses direitos
ainda não existiam. Mary não entendia das panelas, mas comandava a cozinha,
fazendo do caderno o instrumento que lhe garantia o sucesso à mesa.
As verdadeiras mãos por trás das comidas eram as cozinheiras, que colocavam as
receitas do caderno em prática. No caderno, elas estão identificadas como autoras de
apenas 8 das 156 receitas: “Pãezinhos (Elzira)”, “Rolinhos de queijo (Elzira)”,
“Empadas (Elzira)”, “Pastéis (Geny)”, “Pastel (Venina)”, “Biscoitos (Venina)”, “Sorvete
de creme (Venina)” e “Biscoitos (Siá Josefa)”.
Elzira e Venina eram cozinheiras de minha bisavó. Geny, de sua cunhada Alba. E Siá
Josefa, de uma prima de seu marido, Nice. Minha avó conta que Elzira chegava tarde
no serviço, fumava muito, era desbocada, mas cozinhava muito bem. Era a responsável
por fazer inclusive os quitutes dos chás de quinta-feira, data especial na agenda social
de minha bisavó. Venina auxiliava Elzira, e quando aprendeu os segredos da cozinha
tomou o lugar da colega, que foi dispensada. Infelizmente, não encontrei registros dos
sobrenomes nem das idades das duas.
Mary anotou as receitas das cozinheiras sem instruções detalhadas, nem as medidas e
temperaturas exatas. Algumas indicações bastavam para quem sabia cozinhar por tino
e por prática. Minha bisavó provavelmente não conseguia reproduzi-las sozinha, mas
sabia que seriam bem executadas por outras cozinheiras, como a receita do “Pastel
(Venina)”: 1/2 copo de salmoura; 2 ovos; 2 colheres de azeite; 1 e 1/2 colher de cachaça; farinha
de trigo à vontade. Deixar a massa descansar meia hora.
Tia Mary (assim batizada em homenagem à minha bisavó) ainda se lembra dos
quitutes das cozinheiras. Quando peço que me conte como era o pastel de Venina, ela
encontra logo duas palavras para descrevê-lo: “Era divino.”
Pedro Meirelles
Além de nunca ter saído antes de Montevidéu, a viagem do exílio também foi a
primeira vez em que Peri Rossi subiu num barco – talvez a única forma de escapar do
naufrágio que sofria seu país. Desde 1967, com a chegada de Jorge Pacheco Areco à
Presidência pelo Partido Colorado e a crescente influência das Forças Armadas no
governo, a situação política do Uruguai estava cada vez mais crítica. Em maio de 1968,
acompanhando o movimento mundial de revolta estudantil e proletária cujo estopim
foi em Paris, uma série de manifestações culminou no decreto de estado de sítio por
Pacheco Areco em junho. Enquanto isso, o grupo guerrilheiro tupamaros – que tinha
como um dos líderes o hoje ex-presidente José “Pepe” Mujica –, em atuação desde a
primeira metade da década, ganhava força e realizava diversos ataques pelo país. Peri
Rossi, como uma parcela considerável da população uruguaia, simpatizava com o
grupo, embora não atuasse na guerrilha. Ainda uma democracia em 1971, o país se
preparava para a eleição presidencial, e a esquerda não armada se uniu na grande
coalizão chamada de Frente Ampla – na qual Peri Rossi militava, e pela qual Mujica
seria eleito em 2009. Era uma tentativa de driblar o sistema bipartidário de até então,
em que a disputa era tradicionalmente apenas entre o Partido Colorado e o Partido
Nacional. Em meio a acusações de fraude, venceu o candidato do Partido Colorado,
Juan María Bordaberry, e a repressão por parte do Estado foi aumentando até culminar
na dissolução do Legislativo em 1973. Ao contrário dos vizinhos Brasil, Chile e
Argentina, não houve uma tomada de poder à força por parte dos militares, e
tampouco uma figura central como foi o general chileno Augusto Pinochet.
Sobre Descripción de un Naufragio, o livro inédito que compunha sua bagagem, Peri
Rossi escreve que os poemas são uma “alegoria em versos de uma derrota, de uma
ruptura, de uma separação, ou seja, de um exílio, e alegoria, também, de uma
sobrevivência”. Um dos poemas, sem título, é diagramado na forma de um barco; a
última parte, que seria o casco, diz: p/o/r/q/ue/indolores, afligidos por cruéis tragédias
cotidianas/– a sombra daquele faminto que se enforcou na árvore/os gritos dos prisioneiros nas
celas sem luz/os lamentos das mães, órfãs de filhos –/a sotavento dos sonhos mais caros
impossíveis/lançamos a nau das navegações infinitas/navegamos pelo úmido mar dos
sargaços/em rota sem derrota, perecedora,/até o fundo do mar, onde/jaz a sombra dos justos.
No final de 1972, Peri Rossi foi considerada “inominável” pelo governo uruguaio.
Qualquer menção ao nome da autora na mídia foi proibida, assim como seus livros.
Também perdeu, e nunca conseguiu reaver, sua cátedra de literatura comparada no
Instituto de Professores Artigas, um centro de ensino terciário de excelência em
Montevidéu – o lugar onde se formara em 1964 e conhecera Achugar, que, depois de
ajudá-la, conseguiu fugir para a Venezuela e hoje é professor emérito da Universidade
de Miami, nos Estados Unidos. Naquela época, além de ser professora, Peri Rossi já era
uma personalidade conhecida nos grupos da esquerda independente na capital
uruguaia e colaboradora do jornal comunista El Popular, além de abertamente
homossexual.
A chegada de Peri Rossi à Espanha, porém, esteve longe de ser tranquila ou triunfal, e
o plano de retornar a seu país natal depois de alguns meses durou pouco tempo.
“Quando veio o golpe, me dei conta de que não podia voltar, de que o regresso era
uma loucura”, disse certa vez a Parizad Tamara Dejbord, uma estudiosa de sua obra.
“Eu me lembrava perfeitamente de que em Montevidéu, que estava cheia de exilados
espanhóis, meu vizinho esperava que Franco caísse. Muitos espanhóis viveram
quarenta anos no Uruguai e morreram esperando.” Quando Peri Rossi desembarcou na
Espanha, o ditador Francisco Franco de fato ainda estava no poder, e quando o
governo uruguaio retirou sua cidadania, em 1974, ela teve que fugir para Paris para
não ser presa, no que chama de seu “segundo exílio”. Voltou alguns meses depois para
Barcelona, casando-se com um amigo militante gay para naturalizar-se espanhola. Só
recuperaria a documentação uruguaia – e a possibilidade de retorno – após o fim da
ditadura, em 1985. Mesmo assim, nunca voltou a morar na cidade onde nasceu.
“Quando caiu a ditadura, me dei conta de que havia vivido catorze anos com nostalgia
de Montevidéu – uma nostalgia horrorosa – e agora não tinha vontade de ter nostalgia
de Barcelona. Para ter nostalgia, sigo tendo sempre a mesma”, disse certa vez. “Além
disso, não se exila porque se quer, se exila porque se tem que salvar a pele, e acho que,
dentro dessa insensata geometria que é a vida, um ato involuntário não tem que ser
respondido com um ato voluntário como é voltar. Estritamente não se pode voltar
porque é um tempo que já não existe.”
Montevidéu, Cristina Peri Rossi estava de cama em seu apartamento no bairro Les
Corts, em Barcelona, quando recebeu um telefonema de Miquel Iceta, ministro da
Cultura e Esportes da Espanha. Faltavam dois dias para Peri Rossi completar 80 anos, e
o médico que tinha ido a sua casa checar um broncoespasmo acabara de sair. Iceta lhe
deu a notícia de que fora escolhida como ganhadora do Prêmio Miguel de Cervantes, o
mais importante da literatura de língua espanhola, pela totalidade de sua obra – 46
livros, entre poesia, romances, contos e ensaios. A premiação consiste em 125 mil euros,
aproximadamente 800 mil reais, galardoados pelo rei da Espanha. Peri Rossi é a sexta
mulher a ganhar o prêmio, que conta 46 edições. A uruguaia é considerada por muitos
críticos a única mulher do chamado boom latino-americano, ao lado de autores como
Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar – apesar de já ter
salientado numa entrevista de 1988 seu pertencimento a uma geração posterior,
“marcada pela experiência do exílio”. Peri Rossi é 27 anos mais nova do que Cortázar,
por exemplo – o que não os impediu de manter uma longa e intensa amizade até a
morte do escritor argentino, com quem compartilhou o amor por dinossauros,
caleidoscópios e justiça social, registrada no livro Julio Cortázar y Cris, de 2014.
Pouquíssimo lida no Brasil, com uma só obra traduzida no país (Habitaciones Privadas,
de 2012, publicada como Espaços Íntimos pela editora Gradiva em 2017), Peri Rossi é
também pouco conhecida quando comparada com os nomes mais famosos do boom.
Desde seu primeiro livro, Viviendo (1963), lançado quando contava apenas 22 anos,
causou polêmica; se não no meio da crítica literária, que possivelmente só lhe dedicou
uma resenha relevante na época (porém muito elogiosa e assinada pelo autor Mario
Benedetti), ao menos em seu núcleo familiar. No ensaio Detente, Instante, Eres Tan Bello,
de 2016, ela conta que sua mãe se recusou a ler a obra, “temerosa, segundo suas
palavras, de saber o que eu pensava e sentia”. Já seu tio materno, em cuja biblioteca
Peri Rossi passou a infância e a adolescência, não só não leu o livro como a partir daí
deixou de ler de vez. Nas palavras da sobrinha, abandonou os livros “sob o pretexto de
que a literatura contemporânea (ou seja, eu) não valia nada”.
A rebeldia da escrita de Peri Rossi estava presente desde os 6 anos, quando anunciou à
família que iria ser escritora, em um grande almoço de domingo na casa da avó.
“Imediatamente, fez-se um silêncio geral”, ela escreve. “Só se ouvia o tilintar de algum
garfo no prato. Por fim, meu tio materno, solteiro, intelectual, funcionário público,
grande leitor, amante da música, porém misógino, neurótico e frustrado, exclamou: ‘O
que a menina falou?’” A reação do tio desencadeou uma aflição geral dos parentes. “‘O
que ela está falando?’, perguntava, incrédulo, um tio-avô. ‘Está louca’, sentenciava
minha avó, que sempre me fez sentir como um bicho estranho. ‘Escritora? De onde
tirou isso?’, proclamava outro.” A mãe, professora de literatura, foi a única que
acreditou, “mas suspirou profundamente”.
Na biblioteca do tio, modesta mas bastante completa para uma família fora da elite
intelectual montevideana – ele era um funcionário público de baixo escalão; o pai de
Peri Rossi, alcoólatra e violento, trabalhava como operário numa fábrica têxtil –, ela
descobriu a quase total ausência de autoras mulheres nas estantes. Havia três: a grega
antiga Safo de Lesbos, Virginia Woolf, inglesa, e a argentina Alfonsina Storni. O tio
perguntou-lhe um dia se ela sabia como as autoras tinham morrido; a menina
respondeu que sim, que as três tinham se suicidado. “Viu? As mulheres não escrevem,
e quando escrevem, se suicidam”, disse. Peri Rossi se viu num impasse, mas logo
decidiu: “Ia ser escritora, e a coisa do suicídio ficaria para depois.” Quando se assumiu
lésbica, ainda adolescente, viu que suas referências eram ainda mais estritas. “Bem, eu
disse: somos três: minha namorada, Safo e eu. Como não tenho nenhum problema com
as minorias, não me pareceu de todo ruim esse triângulo”, disse em entrevista ao jornal
argentino Página 12, em 2009. Depois da adolescência, já aos 25 anos, uma visita
desavisada, ao entrar na casa da escritora, se depararia com a frase “Eu não tenho
preconceito contra os heterossexuais, nem os discrimino”.
F oi para conseguir livros de Peri Rossi que eu saí de Buenos Aires, onde estava
fazendo pesquisa, para passar alguns dias do outro lado do Rio da Prata. Era maio de
2019, e depois de três anos me debruçando sobre sua obra, ainda não tinha conseguido
acesso a quase nenhum dos livros anteriores à viagem do exílio, que foram proibidos e
recolhidos pelos militares. Por isso mesmo não sabia se viria a encontrá-los, mesmo em
Montevidéu. Tentativas preliminares de procurar as publicações em sites de venda
online não geraram nenhum resultado. O plano era um tanto ingênuo: caminhar pela
cidade, sozinha, entrando em todo sebo que eu cruzasse e perguntando sobre os livros.
Para a minha surpresa – e a dos livreiros uruguaios, que achavam bastante curioso o
meu interesse por Peri Rossi – encontrei primeiras edições de Los Museos
Abandonados e El Libro de Mis Primos, respectivamente seu segundo e terceiro livros,
ambos publicados em 1969. Uma das primeiras autoras a explorar a temática da
repressão que tomava a América Latina nas décadas de 1960 e 1970, já nas duas obras
Peri Rossi fazia referências explícitas à guerrilha urbana e à violência e perseguição
contra militantes da esquerda por parte do Estado uruguaio.
Eu tinha descoberto Peri Rossi ao procurar, como ela, referências lésbicas na poesia, e
quando a balsa em que eu estava embarcada entrou no porto de Montevidéu, a
sensação que eu tinha era de que o Brasil, meu país, também estava naufragando. O
Uruguai era, então, um dos poucos países da América Latina que resistiam ao avanço
da onda conservadora – isso até Luis Alberto Lacalle Pou, o candidato do Partido
Nacional, de direita, vencer a eleição em novembro daquele mesmo ano. No Brasil, Jair
Bolsonaro estava em seus primeiros meses de governo e a atmosfera nos meus círculos
sociais e profissionais era de medo e revolta. O projeto de extermínio de pessoas não
brancas e/ou LGBTQIA+ não só já era evidente como relatos de casos de agressão física
ou verbal, que eu mesma vivi poucas semanas antes do segundo turno em 2018, tinham
aumentado sensivelmente. Os ataques às universidades federais e a órgãos de fomento
à pesquisa como a Capes e o CNPq também já estavam em andamento – devo a esta
última instituição boa parte da pesquisa acadêmica sobre Peri Rossi que resultou na
minha dissertação de mestrado, Nostalgia de Infinito e a Poética do Impossível em Alejandra
Pizarnik e Cristina Peri Rossi, defendida na Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2020.
Ao fim de El Libro de Mis Primos, Oliverio, muito incomodado com o que o resto da
família diz sobre Federico após a fuga, começa uma revolução dos primos contra os
adultos com uma pedra que magicamente voa pela casa enquanto as crianças brincam
de “soldados e guerrilheiros”, destruindo-a e matando os parentes mais velhos.
Federico e seu grupo, por sua vez, conseguem invadir a cidade, numa página final que
também ecoa Rosa: “Na noite calma, branca, mansa, entramos na cidade como homens
de paz, mas protegendo-nos nas sombras que permitem os parapeitos das casas e as
claraboias. Noite de verão, noite calma. Nem às crianças se ouve chorar, essas crianças
que sempre choram ao longe nas noites de verão. Cada um sentiu sua nostalgia, sua
nostalgia de coisas e de casas. […] e Rafael se aproxima, companheiro, às ordens,
estamos prontos, e Rafael sorri, como nunca, na noite branca de cartolina noite branca
claranoite contente põe seu braço sobre meu ombro sorri. É a hora. CHEGAMOS.”
Peri Rossi afirmou certa vez que esse foi o primeiro livro uruguaio que trabalhava a
temática dos grupos de guerrilha. Sendo essa informação exata ou não, é certo que seu
trabalho estava não só a par dos feitos e desejos da juventude revolucionária, mas
apontava novas direções, políticas e estéticas para a literatura uruguaia. Na própria
forma do livro, que não apenas alterna poesia e prosa como as fusiona, de modo que se
torna impossível definir o limite entre uma e outra, é explícito o movimento desafiador
às normas de gênero. Um desafio que se reflete também no sentido do gênero enquanto
construção social – presente em sua obra desde as primeiras publicações. Mas se as
obras desse período carregam um tom esperançoso em relação ao futuro, jogando com
a possibilidade palpável de uma mudança radical no destino do país, o crescente
autoritarismo e a repressão por parte do Estado uruguaio logo frearam as expectativas
de Peri Rossi. A epígrafe de Indicios Pánicos, de 1970, é uma fala de Mussolini, cuja frase
final, assustadoramente contemporânea, diz: “Em certo sentido, pode-se dizer que o
policial precedeu, na história, o professor.”
E m 1971, Peri Rossi publicou Evohé, seu primeiro livro de poesia e o último antes
Se Peri Rossi deixou o Uruguai como uma escritora de renome e fazendo parte ativa da
vida intelectual de Montevidéu, ao desembarcar em Barcelona era uma desconhecida.
“Tenho que começar tudo de novo”, concluiu, e para ela isso queria dizer ganhar
prêmios. Assim o fez, acumulando dezenove ao longo de 59 anos de carreira. Mas até
hoje parece sentir o peso do exílio, e um descompasso com o mundo à sua volta que vai
além de uma questão territorial e se torna mesmo ontológica. Em carta a Cortázar de 17
de outubro de 1983, narra um sonho em que estava no hospital, prestes a ser operada, e
o médico informa o diagnóstico: “Carece de capacidade de identificar-se.” E, ao mesmo
tempo, o movimento de exilar-se, de não se identificar, se torna indispensável para o
trabalho do escritor. Essa é uma das lições que Miguel de Cervantes – o autor, não o
prêmio – parece nos dar em Dom Quixote de la Mancha, com o fidalgo que leu livros de
cavalaria até que “se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”. O
“eu”, na literatura, são muitos, e tanto ler quanto escrever implicam sair um pouco de
si, pelo menos por um tempo. Peri Rossi, por sua vez, também nos deixa muitas lições,
e em Detente, Instante, Eres Tan Bello faz uma espécie de dedicatória ao tio: “Às vezes as
mulheres escrevem, e, apesar disso, não se suicidam.”
M e trouxeram pra cá faz…, já faz uns…, bom, pode ser que tenha vindo
se vivo capengando, talvez eu mesmo tenha me carregado até aqui, na marra, pelo cu
das calças, como se diz,
então, olha, pra falar a verdade não me lembro de nada, nem quero me lembrar,
estou velho, dizem, … mas desconfiado, a cabeça avoada, sim, esvoaçada, uns pedaços
de mim por aí, no que ao menos pontual, sem os prazos remarcados, não é desse jeito?,
outro dia mesmo tomei um susto comigo, que apareci, no espelho do banheiro, um
velho desconhecido,
quem?,
abanei a mão, pra ter certeza, segurei-me na torneira da pia, meio passado, e o outro
lazarento, tal qual no vidro, arrevesado, arremedando-me ao inverso, e… pá!,
sim, era eu, que sou ainda, acho, mesmo que habitante um tanto diferido de ontens,
vendo-me num futuro, porém hoje, agora, ou qualquer coisa assim, desentendida e
desavinda,
as febres da caduquice?,
não, acho que não, nunca fui tão ciente…, sou professor de história, não sabe?,
levei o dia amuado, debaixo dos braços, beliscando as pelancas, a mocidade desvivida
e enfiada num canto surdo e mudo qualquer da cabeça, concluí,
já carregamos, lá atrás, o velho desde então, … aquele que somos, mas depois de
amanhã, não pensa assim?,
… o que valerá em reversas direções, também, ora, ora, os primeiros anos reverberados
em erradas rugas, da mesma outra forma, nas dobras da pele e do pensamento,
… estes restos vívidos da juventude, ainda validos e revividos, sidos sendo, de novo,
como da primeira destas tantas e demais vezes,
devaneio?
já tomei esses compridos, hoje, … eu, … ninguém acredita em mim, por estas bandas…,
por quê?, aqui é o inferno?, hein?,
… ou somente cismas?,
isso explicaria muita coisa, se é que se perceba quando pelejamos vivos, também, e,
mesmo, se fomos vivos de fato, um dia, porque as dúvidas vão retesadas, sempre, pra
ambos os lados do ser e do não ser, segundo o célebre verso do bardo inglês, correto ao
menos nas incertezas que valem questionamento, cuja resposta se faz nos silêncios,
… sim e não, ao mesmo tempo, pois as dúvidas, por isso mesmo, também nas
dissipações, quem há de negá-lo?,
sei lá, não sei cá, sei aqui, não se sabe se lá!,
viver?,
ou estarei saldando meus erros, no outro mundo, que este mesmo, aqui, num agora
inesgotável?,
não, ninguém vem me ver, ninguém, … disseram que minha filha, uma vez por mês,
irene…,
descreio,
que filha?,
acho que faz uns dez anos que não como nem biscoito de polvilho…,
às vezes mamãe me visita, no mais frio da noite…, entra quietinha no quarto, fala do
pai, seu marido, lá longe, no meio do arrozal, a madrugada cansando os afazeres do
dia seguinte, por antecipações, nos entremeados da vigília,
eu lhe obedeço sem fazer força, o pesinho das pálpebras que ninguém aguenta, na
bagagem dos sonhos, sobrepesadas,
… e folheio os meus dias nas páginas adiante, então, impressas na mais funda quimera,
… não me importo, porque se uns sonham acordado, como dizem, há os que
despertam apenas para os pesadelos, não acha?, e me espreguiço devagar, estalando as
juntas do tornozelo, … daqui a pouco o banzé da passarinhada, penso gostoso, quente,
me apagando de mim, recoberto, porém descoberto, ao mesmo tempo, sim, e imagino
que este aqui, agora, em velho, é que é o de noite, escuro e pesadelado, pra daqui a
pouco eu acordar menino, entende?,
não come carne quando a lua está lá no alto, benê!, ela avisou, … o bucho espreme,
empanzinado, as visagens ruins, moleque!, … o amadeo lobisomem virou bicho de pé preto desse
jeitinho, não sabe?,
transformo-se-me?,
uma vez um menino estuporou, vizinho de colônia, tanta carne moída mandou pro
bucho, com arroz, depois das nove da noite, esfomeado,
comeu na panela, escondido, a colher de pau quase não cabendo na bocarra, disseram,
era o de comer do dia seguinte, pra marmita do pai e do irmão mais velho, que iriam
longe, cedinho, desmatar um capão, lá pros lados do corguinho da sucuri, nos limites
da montanha, fazendola do seu honestaldo,
arreliento, comeu e limpou a boca no lençol, quando se deitou, ciência dos vestígios
alaranjados na barra cerzida, vez que gostavam, todos ali, do arroz bem soltinho,
tingido e perfumado de urucum, a prova cabal,
em uma hora, ou pouco mais, pôs pra fora a congestão, já contorcido no azedo dos
espasmos,
foi aquele ninguém nos acuda!, o pai puxando a língua do filho, engrolada, a mãe
pedindo chorosa, pra são vito, que não levasse embora o filhinho, … e aquele cerco de
gente, a molecada espiando a desgraça pelada pelo vão das pernas da vizinhança
curiosa,
não ia muito com a cara dele, mesmo, porque seu pai metido a administrador da
fazenda…, esse sujeitinho toma ordens e quer cuspir poses e posses!, papai falava,
depois…, bom, a gente ria dele, sim, a boquinha torta de não acatar os mais velhos, em
triste gilvaz, … mas justo escarmento, repuxado numa bochecha, redefinitiva exortação
pra meio mundo e meio, e, mais, pros demais arredores, na cara de pau curvo de um
sem-vergonha que haveria de morrer assim, soprando de lado,
vai, bocudo!,
… sai, beiçola!,
ele chorava, jogava pedras, corria atrás da meninada e, ainda, tomava uns cascudos,
pra aprender,
sim, meu irmão me ensinou a bater de mão fechada, cerrando bem os dedos, na palma,
pra não luxar os artelhos, o pugilato mais doído, ainda que não ecoado, pondo o
arremate na força da vez única, bem marroada e definitiva, sem o gongo salvador, ele
dizia, gabando-se do muque ostentado – repuxada antes a manga da camisa, por
mostrar o inchaço bonito dos bíceps,
por isso mesmo, toda vez, pelo relembrado caso da boca oblíqua, eu tremia diante das
desobediências, mesmo fechando os punhos de raiva, pra não quebrar a falange dos
dedos com o soco, ainda que apenas imaginado, … e, nem bem revivia o episódio,
arrotava ardido, aturdido e repetido, engolindo o cuspe, alimentado,
ora, a gente deve aprender a dormir vazio, mas cheio dele, do desguarnecido, esta lição
que vamos revivendo, compreendeu?,
bom, casar…, posso ter me casado, sim, gostei muito de teresa, se bem que ela, nada,
não queria saliências comigo, e as desfeitas a gente não esquece,
não, o bom arrepio não deixa cicatriz, negaceio é que é feito à unha, de seu tanto que o
estigma, depois, calcado e recalcado, latejando as memórias mais fundas, em cultivada
casca de ferida, quase que quase seca, e assim permanecida, em lavoura diária, pelo
gostoso da coceirinha, e, e e, e, e e…,
como se respiradas, chiando por entupidas narinas, em ambas as direções, como já lhe
disse, e repito,
não tenho fome, não…, o cheiro até embrulha o estômago, sai pra lá com isso…,
o quê?,
arroz com feijão, picadinho de carne, salada de chuchu com cebola, todo mundo viu,
… será que é a teresa que vem me ver à noite, escondida?, os olhos dela esverdinhados,
duas maritacas no forro de casa, grulhando,
sim, o amor comendo os fios, por dentro, aquela arruaça de penas e gritos,
a luz acabou,
não, não!, teresa não comeu a fiação com os olhos, não, papai, onde já se viu?,
ele riu de mim, contou pra mamãe, espalhou pros outros parentes, até,
curti vergonha do que nem sabia, revelado assim, por mim mesmo, nas carnes do
corpo, antes, latejadas…,
reconto…, teresa era mil e uma noites, mas, sem os dias de alívio, era um aperto de nós,
retrancados, mas num só, e solitário,
hein?,
bem, alguma coisa a gente devia aprender, contando sem parar o dinheiro dos outros,
isso sim…,
meu peito é que sem as forças, papai…, o senhor não entende?, ou o senhor só sabe os
escuros?,
dona alda não queria deixar, coloquei a mão no pinto, arrochando os dedos, como se
alicatasse as vontades sem controle,
vai, benedito, pode ir, vai…,
não menti de corpo inteiro, porque a fisgada maior no peito, aquele anzol na boca, por
desentalar-me, assim,
e fiz tocaia,
disse que gostava dela, no corredor da escola, só pra ela, mas a menina correu, se rindo
embora,
sim, o salário de fome é que me trouxe pra cidade, mais do que a seca…,
lembro que limpei a bunda com ele, faz um tempinho, num momento de raiva…,
besteira, né?, sujei o cu à toa,
ora, ora, a seca e a sujeição até que expeditas, enfim…, um empurrão, não acha?,
falar nisso…,
eta, que vontade duma cachacinha agora, rapaz!, depois, um gole de café, boca de pito,
um cigarrinho bom, mas aqui…, seja o inferno, talvez, só água e comprimidos
pilulados, difíceis de engolir,
no entanto, à noite, escuto a gemeção dos outros, com as dores lamentadas, em coro
discorde,
os passos no corredor,
vai que ela sendo o diabo aos poucos, mesmo, em si, e não a crosta do meu
xingamento,
toda tarde, depois do almoço, os velhinhos vão pro pátio coberto, saindo de seus
quartos,
aqui faz tanto calor!, será mesmo o abismo?, … o buraco no qual a queda não se finda,
sem mundos ou fundos?,
a televisão fica lá, 20 polegadas, no alto de uma prateleira de ferro, meio que escorada
nos galhos, protegida por duas telhas grandes, de amianto, amarradas com arame
recozido,
outro dia, com a chuva de vento, grudou uma água marrom na tela, respingada, e os
artistas choraram ferrugem,
não sei, deu uma tristeza que só vendo…, eu mesmo rechorei escondido no quarto,
depois, abafando-me,
mas, de repente, bateu um alívio, porque as lágrimas branquinhas de clara
translucidez, nas costas da mão, correndo soltas pelos vales de peles e veias que
carrego,
sorri e brinquei de soprar enchentes, então, nos campos e campos desta propriedade
que sou e estou, ainda,
vivo!,
senti o frio úmido das florestas de pelo, deitadas com o vendaval dos pulmões, … e
respirei, feliz, sem aqueles chiados tristes, … ou, ao menos, deixei de ouvi-los, o que é
mesma coisa,
decidi-me há tempos,
não sei explicar, tive dois minutos de certeza de que não estava velho, e que a vida
ainda viria, ditosa, remedando os sonhos,
o capiroto é mouco,
filha da puta!,
não, não gosto muito de televisão, uns programas chatos, o aparelho meio muito lá no
alto, dá dor no cangote, … acho que foi de propósito, sim, pra velharada torcicolar o
pescoço e rumar de volta pro quarto, doce quarto, dando sossego aos funcionários,
os velhotes voltam resmungando sem igual as contas que não batem de um dolorido
flexuoso também na teimosia, penso, em noves fora dos poucos restados dias…,
sim, estes sim, redefinindo o conceito de programação para além do gênero humano,
numa espécie de sobrepostas dores, o que somos, desde o parto, por bem-bom mal-
estar,
uma vez, faz tempo, tive de pegar um filhote de andorinha que caiu do ninho, já
emplumado, no quase fugir do chão, sua janela de liberdade por abrir-se à vida, feita
de azul, faltando pouco,
cuidei dele, então, com papinha de fubá, durante uma semana, e tomei-me de amor,
porque o tiquinho de vida se afeiçoou a mim, enfiado entre os meus pés, protegido,
querendo estas mãos em concha, ainda hoje, nas lembranças, quando bate as asinhas e
pia conversas que passei a compreender com mais fundura que as palavras todas, que
nunca aprendi…,
teve uma infecção repentina e morreu entre os meus dedos…, foi deitando o corpinho,
recolhendo uma pata, engruvinhada, e eu supus, por tremenda vontade, impedir-lhe o
fim, erguendo sua postura, com a delicada maior força que fiz na vida, em vão…,
sempre choro, quando uns piadinhos ecoam, no cair da tarde, apagando a distância
tecida destes esgarçados dias, emaranhados em cegos nós…,
… eu me divertia muito nas quermesses, vovó amarrava o balão com força, em várias
voltas e volteios, até arroxear os meus dedos,
se escapar, não compro outro, não!, … vai aprendendo a segurar as coisas de que gosta, hein!,
isso, pra dizer a verdade, agora, acho que nunca aprendi, vovó…,
… uns velhinhos vão escorando os outros como disfarce das próprias tonturas, o que
não é recomendado,
às vezes, a dupla cai do cavalo, … ou da burrice, quando, por azar, ambos os mundos
da lua, lá deles, no entorno translativo de cada um, corrupiando para a mesma banda
de um lado só, desengrenados, e os dois, de supetão, porque tudo eppur si muove,
pronto!, desestribados e coincidentes no tombo,
falaram pra família que foi a osteoporose, que ele não caiu e quebrou o osso, não, não!,
mas que o osso partiu sozinho, e ele despencou-se dele mesmo, arriado,
os filhos acreditaram,
melhor,
cada um escutando o que bem não entender, de si, nas próprias caducagens coloridas,
mas em som mono,
… decrepitudes estereafônicas?,
ah, mesmo rouco, um pouco mouco, meio louco, sei rir de mim, sim, o que é uma
espécie de haicai, gênero de mínima poesia, viu?,
pularam o muro, dá pra ver a marca das solas, no reboco, e, ainda, cagaram no chão,
embaixo da jabuticabeira,
as moscas fizeram a festa, cansadas das peles enrugadas,
o demônio riu dos ladrões, porque o aparelho há muito quebrado, sem som,
ela fez questão de avisar, pessoalmente, de quarto em quarto, que iam pedir outro
aparelho pra prefeitura, … pra associação de amigos do bairro, sei lá,
eu mesmo não estava nem aí, se bem que faz tempo que não estou nem aqui, também,
então…,
… o único divertimento!,
fui obrigado a almoçar duas vezes, hoje, o cão-tinhoso me ameaçou com soro, injeção,
se não limpasse o prato,
não adiantou!, satanás faz gosto de sapatear nas partes baixas da gente…, começa pelo
estômago e vai descendo, só pode,
segurei o pau e o saco pra ela, chacoalhando as ferramentas com um ó, procê bem
sublinhado,
ia ficar no quarto, lendo, mas ouvi uns gritos feios, … um livro do florestan, a revolução
burguesa no brasil,
meu vizinho, seu josé, estava atracado com o coiso, quase na porta do meu alojamento,
acredita?,
ele não queria perder o capítulo da novela, gostava de sair mais cedo, mas a enfermeira
bateu o pé no roubo…,
aproveitei, enfiei-me na cruzada alheia, fingi que apartava e dei uns apertos nas
peitolas do anticristo, com gosto!,
disfarcei,
seu josé ainda urrava uns palavrões cabeludos, de tampar os olhos, sobrantes os fios
daquela sua seborreica peruca, inclusive, boca adentro dos gritos,
percebi que davam uns safanões nele, em disfarçados repuxões vingativos, séquito de
belzebu, creio em deus pai!,
numa hora dessas, tenho certeza, a cuja acendendo a lenha com os cascos, lá dentro da
enfermaria, pensei,
… cruz-credo!,
então, trancadas as portas, tudo serenou, os pacientes voltaram para os quartos, o pátio
ficou vazio,
sentei-me num banco de cimento, doado pela clínica de repouso santana, não para
nádego reconforto da velharada, mas por figadal e incisiva propaganda aos parentes
visitantes, lembrando que havia, no município, um asilo bem melhor, particular, …
este sim, de abundantes refrigérios,
sei…,
depois outra,
e mais outra,
ri daquela atitude,
em vão,
foram se abancando no lugar de sempre, os olhos voltados para o vazio onde ficava o
aparelho,
nenhum espanto, nenhum comentário, nada, todos com o olhar voltado para a tevê que
não havia, compenetrados,
É escritor. Publicou os romances as visitas que hoje estamos (Iluminuras) e siameses (Kotter)
A s mortes de Thomas Lovejoy e Edward Wilson, com um dia de diferença,
Hoje, parece um conceito óbvio, mas antes não era assim. Em 1960, Wilson fez estudos
de campo em ilhas ao lado de seu colega Robert MacArthur (1930-72). Os dois
constataram que, quanto menor fosse a área de uma determinada ilha, menor seria o
número de espécies que ela poderia abrigar e maior o risco de extinção das formas de
vida ali existentes. A conclusão é válida também para outros ecossistemas isolados e
está na base da chamada biogeografia de ilhas, disciplina criada pela dupla.
“Sistemas mais diversos funcionam melhor, pois têm mais estabilidade e são mais
resilientes”, explica a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília
(UnB). Eles operam à semelhança de uma carteira de investimentos financeiros, diz ela.
“Se você tiver aplicações diferentes e houver flutuações em algumas, as outras vão
segurar a estabilidade do conjunto.” Da mesma forma, a diversidade biológica pode
garantir a sobrevivência de um ecossistema no caso de perturbações ambientais.
colocou os pés pela primeira vez em 1965, quando estava fazendo doutorado sobre as
aves do bioma. Ali, ele ajudou a implantar o mais longevo experimento já feito em
florestas tropicais, iniciado em 1979 e ainda em curso. Tocado em parceria com o
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o projeto tem por objetivo avaliar
o efeito da degradação florestal sobre a biodiversidade. As observações são feitas em
onze fragmentos florestais situados cerca de 80 km ao Norte de Manaus. Com tamanho
de 1 a 100 hectares, eles são cercados por pastagens ou áreas em que a mata está se
recompondo lentamente depois de ter sido derrubada.
O estudo dos fragmentos amazônicos mostrou que certas espécies de sapos, roedores e
borboletas prosperavam mesmo nos trechos menores de floresta. Mas as aves e os
mamíferos que precisam de territórios mais amplos sofrem muito com a fragmentação.
Nos trechos com 100 hectares, metade das espécies de aves desaparece depois de
quinze anos, conforme mostrou um artigo científico de 2003 – aquele que Lovejoy
considerava o mais valioso dentre as centenas que publicou ao longo de mais de meio
século.
O estudo influenciou o desenho das unidades de conservação criadas na Amazônia. À
frente da diretoria de parques nacionais do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), incumbido então de atribuições que hoje cabem ao Ibama e ao
ICMBio, a engenheira agrônoma e ambientalista Maria Tereza Jorge Pádua implantou
algumas das primeiras áreas protegidas na Amazônia entre 1968 e 1982, depois de
aconselhar-se com vários cientistas, Lovejoy entre eles. “Não deveríamos criar
unidades de conservação com um tamanho mínimo que não conseguisse proteger os
ecossistemas ou as espécies ameaçadas de extinção”, afirma.
Para Diniz Filho, a controvérsia nasce de uma leitura equivocada das propostas de
Wilson. “Ter predisposição para certas coisas não significa que aquilo está determinado
e imutável, e nem que o ambiente não interfira. Isso se aplica para qualquer
característica que tenha uma base genética, seja comportamental, morfológica ou
fisiológica”, diz o ecólogo, que considera Sociobiology um dos livros fundamentais que
fizeram a síntese da teoria da evolução no século passado.
Lovejoy, por sua vez, seguia engajado na luta para diminuir o desmatamento na
Amazônia. Num artigo de 2019, assinado com o climatologista brasileiro Carlos Nobre,
ele notou que o bioma estava se aproximando do ponto a partir do qual não
conseguiria mais produzir as chuvas das quais dependem não só a própria floresta,
mas também o agronegócio no centro-sul do país. Escreveram o seguinte: “Juntos, os
povos e líderes dos países amazônicos têm o poder, a ciência e as ferramentas para
evitar um desastre ambiental em escala continental e, de fato, global.”
Bernardo Esteves
convulsionada entre o fim de tarde e o início da noite. Como faz conexão entre
diferentes linhas que cruzam a segunda maior cidade da Colômbia, é a estação mais
movimentada de todo o sistema de metrô, que transporta mais de 800 mil passageiros
por dia.
Por volta de 18 horas do dia 7 de dezembro passado, um homem que levava uma
mochila infantil às costas e puxava um menino pela mão esquerda se deteve diante de
outra mensagem, na porta de entrada da saleta: “Bem-vindo. Este é um espaço de
atendimento com profissionais de psicologia. Aqui você poderá compartilhar qualquer
dificuldade emocional que esteja passando.” Uma composição do metrô se aproximou
da plataforma, o homem olhou as horas no relógio e desembestou com a criança para
dentro do vagão.
Cerca de meia hora depois, uma mulher e um homem entraram na salinha de 10 m2,
cuja decoração consistia apenas em duas mesas, com três cadeiras cada. Eles eram
irmãos e foram recebidos pela psicóloga Daniela Arias, de 23 anos, que pediu para que
se sentassem. Logo em seguida, um rapaz de estatura mediana, vestido de jeans,
camiseta e tênis, parou diante da porta de vidro. Viu que o posto de atendimento
estava ocupado e resolveu esperar por sua vez.
O rapaz era Andres Gomez, de 28 anos, olhos castanhos atentos e fala eloquente. Do
lado de fora da sala, ele contou à piauí que pouco antes da pandemia vinha se sentindo
muito angustiado. Havia aberto uma loja de bijuterias e as pressões para obter
resultados positivos no empreendimento só aumentavam. Além disso, estava prestes a
se casar. E, como primogênito, era o principal responsável por cuidar do pai, da mãe e
do irmão. “Eram muitas responsabilidades. Fui ficando deprimido”, disse. “Num
momento de desespero, pensei em acabar com tudo. Botar um ponto final nos
problemas.”
Gomez e sua família pegaram Covid. “Me vi, mais uma vez, sobrecarregado e
preocupado em cuidar de minha família. Eu sempre fui assim, superprotetor com
todos.” Ele decidiu adiar o casamento e passou a frequentar a salinha da estação de San
Antonio pelo menos duas vezes por mês durante a pandemia. Às vezes, se questionava
sobre o que as pessoas no metrô estariam pensando ao vê-lo entrar ali. “Será que
acham que sou louco? Hoje, vejo que sou é corajoso. Antes, eu achava que era melhor
carregar sozinho meus problemas. Não queria demonstrar fraqueza. Até que, um dia,
eu desmoronei.” Os escuchaderos sugeriram que Gomez pensasse primeiro em si
mesmo, na sua própria saúde mental. “Eles me ensinaram que estar bem comigo me
deixará mais forte para ajudar os outros.”
Quando a conversa da psicóloga com os dois irmãos terminou, uma hora depois,
Gomez foi convidado a entrar na salinha. Ele sentou-se em uma das cadeiras e se pôs a
desabafar, gesticulando com as mãos.
A psicóloga Daniela Arias faz um atendimento primário na saleta da estação San
Alguns vão lá apenas uma vez, para botar para fora algo que os angustia. Outros
voltam com frequência, como Gomez. Há também os que param do lado de fora,
refletindo se devem ou não entrar, e acabam indo embora. “A saúde mental é
estigmatizada e existe muito desconhecimento sobre o que é o tratamento psicológico”,
afirmou Arias. “Muitos acham que não precisam de ajuda profissional porque não
estão loucos. Não entendem que podemos oferecer uma orientação para que a vida seja
mais leve.”
A psicóloga definiu o choque da pandemia sobre a saúde mental das pessoas como
“aquela gota d’água que cai no copo cheio e faz transbordar tudo”. Muita gente teve
que enfrentar o luto de forma intensa, com a perda súbita de familiares e amigos, sem
falar nos problemas com dinheiro. “A pandemia aumentou bastante a responsabilidade
familiar e financeira. Quantas pessoas não perderam o emprego? Além disso, se viram
impossibilitadas de se encontrar com quem gostam, de fazer as coisas que davam
prazer. Elas têm a sensação de que a vida está parada.”
“Sempre fui muito trabalhador”, disse. “Mas, hoje, sem emprego, eu sinto muito medo.
Medo de não conseguir pagar as contas, de não poder sustentar minha família, medo
do futuro. Tenho muitas coisas na minha cabeça. Parece que ela vai…”, afirmou,
fazendo um gesto com os dedos, como se sua cabeça fosse explodir.
Tiago Coelho
Rio de Janeiro. No dia seguinte, pouca coisa restava de um dos prédios históricos de
maior importância do país – antiga residência da família real – e de um dos principais
acervos científicos da América do Sul. O fogo havia consumido 85% dos cerca de 20
milhões de itens do museu, entre eles múmias trazidas por dom Pedro II do Egito,
objetos de arte e artefatos africanos, indígenas e greco-romanos, coleções de
paleontologia, entomologia e botânica.
Enquanto as chamas ardiam com violência, cinzas espalharam-se pela região da Quinta
da Boa Vista, onde fica o museu. Alguns detritos voaram até uma distância inesperada.
Um deles foi parar, misteriosamente, na varanda de um apartamento localizado na
Praça Saenz Peña, no bairro da Tijuca, a doze minutos de carro do local do incêndio.
Era uma pequena placa carbonizada com besouros.
Alguns exemplares são de espécies que correm risco de extinção, como o Rosalia alpina,
um bichinho cuja suntuosa coloração azul, pontuada por manchas pretas, se estende
em todo seu corpo delgado até as longas antenas. Outros são considerados pragas na
fauna europeia, como o Scolytus scolytus, de austera e brilhante carapaça marrom-
avermelhada, vetor de doenças causadas por fungos que podem devastar árvores.
A coleção de besouros não foi a primeira doação feita pela Alemanha ao Museu
“Sabemos como é doloroso perder bens culturais únicos”, disse Johannes Bloos, cônsul-
geral adjunto da Alemanha no Brasil, à piauí. O seu país passou, há alguns anos, por
desastres parecidos ao do Museu Nacional. Em 2004, um incêndio na Biblioteca
Duquesa Anna Amalia, em Weimar, destruiu 37 pinturas e cerca de 50 mil livros do
século XVI ao XX. Em 2009, desabou o prédio do Arquivo Histórico da Cidade de
Colônia, que continha milhares de mapas históricos, além de documentos antigos e
papéis de Karl Marx e Friedrich Engels.
Emily Almeida
Repórter da piauí
O corredor estava abarrotado de homens de terno e mulheres de tailleur.
O casal tenta programar suas agendas de modo que um dos dois sempre esteja
disponível para cuidar da criança. Muitas vezes não dá certo. Naquela tarde de
dezembro do ano passado, a assessora andava de lá para cá com o carrinho de bebê,
apreensiva, aguardando que Braga e Bomfim saíssem do Plenário 10, onde
participavam de uma reunião da Comissão de Educação da Câmara, da qual fazem
parte. Eles estavam atrasados para uma consulta no pediatra.
Tanto Bomfim quanto Braga tinham um projeto para relatar. Preocupados com o
horário, os dois pediram ao presidente da sessão, deputado Gastão Vieira (Pros-MA),
que invertesse a pauta do dia, permitindo que o casal votasse seus projetos antes dos
demais colegas. “É uma decisão de avô. Sempre me sensibilizo com essas coisas”,
justificou Vieira. Mas o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) não aceitou a mudança –
e Hugo chegou atrasado à consulta.
Hugo é o primeiro filho do casal. O menino nasceu em junho de 2021, em São Paulo, de
parto natural. Foi uma jornada exaustiva: Bomfim começou a sentir as contrações numa
segunda-feira, mas a criança só nasceu três dias depois, na quinta-feira à tarde. A
equipe médica precisou usar ocitocina para induzir o parto. “Eu fiquei muito abalada.
Não sei de onde tirei forças na hora do nascimento”, diz a deputada.
Na sala de parto, uma caixinha de som reproduzia uma playlist de músicas ambiente. O
pai lembra que, em dado momento, reconheceu os acordes iniciais de Reconvexo, samba
de Caetano Veloso que se tornou uma espécie de canção oficial do casal. “Quando ouvi
a música tocar, imediatamente me tranquilizei e pensei: ‘Ele vai nascer agora’”, conta
Braga. “Mas a música foi passando, e o Hugo não nascia. Até que, na última palavra,
quando o Caetano canta ‘Reconvexooo’, a gente ouviu o choro: ‘Uááá!’ E ele nasceu.”
O nome da criança foi uma sugestão do pai, que quis homenagear o ex-presidente da
Venezuela, um de seus ídolos. “Hugo Rafael Chávez Frias, nascido em Sabaneta de
Barinas”, recita Braga, com devoção. A mãe não embarcou na ideia de primeira. “Não
vetei, mas não era algo que me tocava, a princípio”, explica Bomfim. Isso mudou
quando, durante uma de suas leituras, ela descobriu que Nahuel Moreno,
revolucionário argentino que inspirou o morenismo – corrente socialista à qual a
deputada se filia –, também se chamava Hugo. “Aí eu aceitei. Virou uma homenagem
do pai e da mãe.”
“Tudo o que dizem sobre a dupla jornada da mulher eu passei a viver”, diz Bomfim,
em seu gabinete na Câmara, onde o casal recebeu a piauí. A deputada vestia uma blusa
rosa, molhada no ombro por uma golfada que Hugo havia lançado minutos antes. Nas
paredes do gabinete há pôsteres de Karl Marx e Marielle Franco. A essa paisagem se
somou recentemente um tapetinho de borracha colorido, onde fica o bebê. Os
assessores já se habituaram a trabalhar ouvindo músicas do Mundo Bita e de Sandy e
Junior – o hit Quando Você Passa, lançado pela dupla em 2001, é infalível para acalmar
Hugo.
O casal espera que, com o fim da amamentação exclusiva, a rotina do bebê se torne
menos intensa e possam matricular a criança numa creche. Mas nem isso será fácil. “O
trabalho aqui na Câmara começa de manhã e termina de madrugada. Que creche vai
aceitar uma criança com esses horários?”, lamenta Bonfim. “Mesmo contratando uma
babá seria complicado. Ela precisaria trabalhar manhã, tarde, noite e madrugada…”
O menino, enquanto isso, vive uma rotina de congressista. Acorda cedo e vai para o
Congresso no colo dos pais, que moram em um apartamento funcional em Brasília. Ao
longo do dia, Hugo acompanha reuniões de gabinete e tira sonecas, supervisionado
pelo casal ou por seus assessores. Com meses de vida, já embarcou em mais aviões do
que a maioria dos brasileiros numa vida inteira. É habitué da ponte aérea Brasília-São
Paulo-Rio de Janeiro, cidades onde está amarrado a compromissos profissionais e
familiares.
A experiência política do casal rendeu certos aprendizados para a criança, que já exibe
– acreditam os pais – a mesma verve de esquerda. Segundo eles, o menino chora
quando se depara com bolsonaristas. “Da última vez, o Hugo estava no elevador,
sorrindo, até que entrou uma figura simbólica da extrema direita. Foi só olhar para ela
que ele começou a berrar: ‘Uááá!’”, diverte-se Braga, com um sorriso de canto de boca,
orgulhoso. “Na primeira vez você pensa que é exagero de pai e de mãe. Mas quando
acontece de novo…”, prossegue o deputado. “Do nada o tempo virou.
Impressionante”, completa a mãe.
Luigi Mazza
Repórter da piauí
O contador e ativista Paulo Araújo, de 31 anos, procurou durante seis meses
uma casa espaçosa para alugar no Centro de São Bernardo do Campo, cidade da
Região Metropolitana de São Paulo. Encontrou diversos imóveis disponíveis e fez
algumas propostas. Mas sempre escutava “não” como resposta em algum momento da
negociação. Araújo atendia aos requisitos exigidos: tinha fiador e dinheiro para o
depósito caução. Chegou até mesmo a oferecer doze meses de pagamento adiantado.
Os proprietários se recusavam a alugar os imóveis ao saber o motivo da locação: criar a
sede física da ONG Casa Neon Cunha, para abrigar e capacitar pessoas LGBTQIA+ em
situação de rua. “Escutei desde que a casa de acolhida desvalorizaria o lugar até que os
vizinhos iriam reclamar do entra e sai dessa gente”, conta Araújo, presidente da ONG.
Ao todo, ele ouviu 25 “nãos”.
Para tirar a dúvida sobre as recusas em série, o Diário do Grande ABC resolveu fazer
uma reportagem em que o jornalista se fazia passar por uma pessoa interessada no
aluguel das mesmas casas. Quando era perguntado sobre o objetivo da locação, a
reportagem dizia que era para uma república de estudantes. Todas as negociações
deram certo, mas não foram fechadas, claro, porque se tratava de uma apuração
jornalística.
Araújo, por sua vez, só conseguiu alugar um imóvel em dezembro passado, depois que
o site de locação Quinto Andar entrou de intermediário no negócio e bancou a reforma
do telhado e das instalações elétrica e hidráulica da casa. “A violência do preconceito
mostra a cara na rua, mas também nas transações comerciais”, diz ele.
Ela nasceu em Belo Horizonte, mas mora em São Bernardo do Campo desde os 2 anos
de idade. Seu pai foi operário na Volkswagen e a mãe, diarista. “Aos 4 anos, eu já
ajudava minha mãe a fazer as faxinas e tarefas domésticas”, conta Cunha, que se
reconhece como menina desde a infância.
Em 2014, quando tinha 45 anos, ela entrou na Justiça com um pedido de retificação de
gênero em sua documentação. Na época, o governo federal exigia um laudo médico
que comprovasse a transexualidade de quem pleiteava a alteração dos documentos. O
processo era exaustivo e deixava a pessoa refém de uma análise subjetiva de médicos e
juízes. Além disso, a mudança, na maioria das vezes, era autorizada àqueles que
tinham se submetido à cirurgia de redesignação sexual.
Cunha se recusou a passar pela avaliação médica. Como o resultado do processo estava
demorando, ela resolveu enviar à Organização dos Estados Americanos (OEA) um
pedido de morte assistida, caso seu gênero e identidade não fossem reconhecidos. Mas,
em 2016, o juiz Celso Lourenço Morgado, da 6ª Vara Cível de São Bernardo do Campo,
deferiu o pedido de mudança de gênero e nome. Na sentença, ele afirmou: “A
transexualidade não é uma condição patológica, e a identidade de gênero é
autodefinida pela pessoa.”
A Casa Neon Cunha vai abrir as portas no próximo mês de março. “Até 2020, havia
treze mulheres trans morando nas ruas de São Bernardo. Hoje, são trinta”, diz Paulo
Araújo, que vai abrigar todas elas na sede e agora está em busca de doações para
mobiliar e prover o local, onde será oferecido aconselhamento e qualificação.
Paulo saiu a campo para fazer um novo censo da população em situação de rua. O
resultado saiu no final de janeiro: são 31 884 pessoas – 31% a mais que em 2019, quando
foi feita a pesquisa anterior. “Houve um aumento do número de famílias morando na
rua e também da população trans”, afirma Carlos Bezerra Júnior, secretário municipal
de Assistência e Desenvolvimento Social. O novo censo constatou que há 171 mulheres
trans, 72 homens trans e 50 travestis em situação de rua na maior cidade do país.
“Eu nunca atendi tantas mulheres trans e travestis como nos últimos dois anos”, conta
o padre Júlio Lancellotti, que comanda uma enorme rede de apoio às pessoas em
situação de rua, a partir da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Zona Leste de São Paulo.
“E há outro agravante: além de não terem um teto e passarem fome, essas pessoas
precisam lidar com ataques constantes de violência física e psicológica.”
Neon Cunha afirma que tirar as pessoas trans da rua é fundamental para garantir que
elas continuem vivas. Em novembro de 2020, a transexual Ester Vogue, em situação de
rua em São Bernardo do Campo, teve 80% de seu corpo queimado em um crime de
ódio. Morreu três dias antes de completar 34 anos.
Lucas Francisco, de 21 anos, foi outro que acordou às 3h30. Ele mora com os pais em
São Gonçalo, cidade a 32 km do Rio de Janeiro, e até julho do ano passado era zagueiro
do Casimiro de Abreu Esporte Clube – no município fluminense de mesmo nome.
Quando a agremiação suspendeu o futebol profissional, o jovem se viu forçado a entrar
temporariamente para o time dos ambulantes da praia como vendedor de espetinhos
de camarão.
Edson Lopes, guia de turismo em Belo Horizonte há nove anos e dono da empresa
Eddytur, calcula que entre 80 e 100 ônibus partem de Minas Gerais para o Rio nos fins
de semana. “Todo dia aparece alguém que perdeu o emprego e organiza uma excursão
para ganhar uma renda extra”, diz ele, reclamando que o mercado foi invadido por
concorrentes sem registro profissional, que baixaram os preços das passagens. Lopes
tem feito campanha nas redes sociais contra esses ônibus piratas, que estão
prejudicando sua empresa: antes ele fazia três viagens por mês para o Rio e agora tem
feito apenas uma.
Copacabana é o destino mais cobiçado, mas excursões também são feitas para Ipanema
e Recreio dos Bandeirantes. Há pacotes a partir de 130 reais por pessoa (ida e volta)
saindo de Belo Horizonte. Crianças de até 5 anos não pagam, e as de 6 a 9 pagam meia.
Os mineiros eram maioria naquele domingo de dezembro, mas havia grupos de São
Paulo e do interior do estado do Rio na faixa de areia em frente ao Copacabana Palace.
Durante o tempo em que passaram na praia, Junior e seus familiares consumiram duas
garrafas de uísque e cinco caixas de cerveja que trouxeram de casa. Após duas horas
exposto ao sol, Wellington já exibia a pele tostada. “Vim aqui pra me queimar e pra
beber”, disse ele, que via o mar pela primeira vez, assim como Carine. Os dois não
sabiam nadar e usaram a mesma palavra para expressar o que sentiram diante da
imensidão do oceano: “Liberdade.”
Alex Júnior, de 18 anos, funcionário de uma fábrica de sofás em Piraúba, Minas Gerais,
não conteve o espanto diante do mar. “É muito maior do que Bichinho de Luz”,
exclamou, referindo-se à represa perto de sua cidade onde costuma passear com os
amigos.
Elvira Lobato
Com pelagem castanha, inevitáveis orelhas de abano, cauda maior que o resto do corpo
e bigodes tão longos que matariam Salvador Dalí de inveja, pesava 1,2 kg e media 70
cm de comprimento. Não tinha, está claro, o porte de um rinoceronte ou hipopótamo.
Mesmo assim, os zoólogos o classificavam como um rato-gigante-do-sul. A espécie
atende pelo nome científico de Cricetomys ansorgei e é bem mais parruda que os
hamsters, camundongos e outros bigodudos.
Em zonas de conflito, tais artefatos bélicos são instalados junto à vegetação rasteira e
debaixo do solo com o intuito de evitar que adversários acessem pontos estratégicos,
como arsenais, rodovias, postos militares e reservatórios de água. Basta pisar nas
armadilhas para detoná-las. Uma vez acionadas, lançam estilhaços de metal capazes de
matar ou ferir gravemente tanto os humanos quanto os bichos. Por continuarem
ocultos mesmo depois das guerras e insurreições, os dispositivos que ainda não
estouraram acabam interditando locais onde poderiam existir moradias e florescer
atividades econômicas. Daí a necessidade de localizar e remover os armamentos – uma
operação arriscada e onerosa.
devido às minas terrestres. O contingente é 20% maior que o de 2019. Cada artefato
custa, no máximo, 30 dólares. O intrincado processo de desativá-lo, contudo, sai bem
mais caro: de 300 a 1 mil dólares. Rússia, China e Estados Unidos figuram hoje entre os
principais fabricantes desse tipo de armadilha.
Para atingir tamanha precisão, os roedores passam por um treinamento de nove meses
e recebem bananas ou amendoins toda vez que identificam o cheiro do explosivo.
Depois que concluem o aprendizado, deixam de ganhar as recompensas e trabalham de
graça.
Foi o belga Bart Weetjens, engenheiro de produtos que virou monge budista, quem
resolveu utilizar ratos para monitorar os temerários dispositivos. Em 1997, apresentou
a ideia à Universidade de Antuérpia e à Universidade Sokoine de Agricultura, que
estudaram o assunto e adestraram os primeiros bichinhos. Paralelamente, Weetjens
fundou a Apopo e a incumbiu de capitanear o projeto.
D urante cinco anos, Magawa abraçou com afinco a nobre missão que a Apopo
lhe confiou. Valeu a pena. Sozinho, o roedor encontrou mais de cem artefatos bélicos,
sobretudo na cidade cambojana de Siem Reap. Entre as descobertas, havia minas
terrestres, mas também granadas, bombas e projéteis não detonados. Nenhum outro
rato se saiu melhor. Para retribuir tanta bravura, a People’s Dispensary for Sick
Animals (PDSA) homenageou Magawa com uma medalha de ouro em setembro de
2020. Até aquele momento, a instituição britânica que se dedica à caridade veterinária
desde 1917 só premiara cachorros, pombos, cavalos e gatos.
Armando Antenore
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
N enhuma pessoa com o juízo no lugar imagina que, ao sair de casa para zanzar,
vai acabar esbarrando com um show gratuito da cantora Rihanna em praça pública. No
entanto, foi mais ou menos isso que aconteceu em Bruxelas, no início da tarde de 4 de
dezembro passado. “Rihanna! Rihanna! Rihanna!”, gritaram milhares de pessoas na
Grand-Place, no centro histórico da capital da Bélgica, assim que a cantora na calçada
entoou a última frase da canção Stay, um dos maiores sucessos da diva da música pop.
Havia um mar de gente com celulares na mão assistindo ao show inesperado. Quando
acabou, várias pessoas correram em direção à cantora para fazer selfies ao lado
dela. Thank you, thank you, dizia a moça aos tietes, num inglês claudicante. Enquanto
desligava o microfone portátil que um artista de rua lhe emprestara para a dublagem,
um fã pediu seu autógrafo. Foi a hora da verdade. A Rihanna que se apresentava na
praça em Bruxelas assinou no pedaço de papel: “Priscila Beatrice, Rihanna
Impersonator.”
Priscila Beatriz da Silva Vieira, 29 anos, 1,78 metro, é mineira de Vespasiano e mora em
Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Rihanna, 33 anos, 1,73 metro, é
natural de Barbados, onde foi declarada recentemente “heroína nacional”, e vive em
Beverly Hills, na Califórnia. As duas são espantosamente parecidas. Em comum, têm a
cor da pele, os olhos verdes, as maçãs do rosto proeminentes, o nariz, a boca… Parece
que foram esculpidas pelo mesmo artista. Soma-se a isso o empenho de Vieira em
imitar os penteados, as maquiagens e os trejeitos de Rihanna. Elas compartilham
inclusive o signo: ambas são de Peixes. “Até nisso Deus acertou!”, comemora a mineira.
Aprendeu direitinho. Em 2014, Vieira foi convidada pela primeira vez para fazer um
show como sósia de Rihanna em um clube de Contagem. Ela subiu ao palco com três
dançarinas e um pen drive carregado de músicas para dublar. “Naquele dia tive
certeza de que nasci para isso.”
Mas não ganhava a vida fazendo aquilo. Até março de 2020, ela trabalhava como
vendedora de planos funerários. As jornadas diárias, batendo de porta em porta,
podiam durar treze horas. Vieira contava os minutos para o fim da semana chegar e
poder se transfigurar na estrela Priscila Beatrice, seu nome artístico. Nos sábados, subia
aos palcos das boates de Contagem para interpretar os sucessos de Rihanna.
Vieira leu o comentário de Rihanna à noite, quando estava se preparando para dormir.
Pulou do sofá e gritou tão alto que assustou o marido, o balconista de farmácia Felipe
Ferreira, e acordou seus três filhos – de 11, 6 e 2 anos. Em sua página no Instagram, a
mineira escreveu, em português e em inglês, que estava “chorando de emoção”. “Foi o
momento mais louco da minha vida”, recorda. “Pense numa pessoa que ficou 48 horas
sem dormir, à base de energético, com os olhos arregalados de tanta euforia. Fui eu!”
Também, pudera: logo depois do comentário de Rihanna, empresas brasileiras e até
estrangeiras a procuraram, interessadas em estampar o seu rosto em campanhas
publicitárias. Nos dias seguintes, Vieira atingiu a marca de 200 mil seguidores no
Instagram e de 1 milhão no TikTok.
Na época, ela estava sem emprego e passava os dias contando as moedas. “Era um
desespero. Eu vivia pensando no que fazer para sustentar três crianças. Aquele
comentário da Rihanna foi enviado por Deus.” Hoje, Vieira consegue sobreviver
apenas com o trabalho de influenciadora digital, divulgando produtos nas redes
sociais. Já apareceu no comercial de uma empresa de cartões de crédito, fazendo graça
de sua semelhança com Rihanna, e de vez em quando é convidada para programas de
humor. Também grava vídeos desejando feliz aniversário a desconhecidos de
diferentes partes do mundo. “Tive que aprender a falar ‘parabéns’ em umas dez
línguas. Uma loucura!”
para participar do videoclipe de uma cantora do país. Era a sua primeira viagem para
fora do Brasil. Numa tarde foi com colegas de trabalho a um restaurante de Istambul.
Papo vai, papo vem, a mesa se encheu de pratos que ninguém havia pedido. “Que
coisa mais estranha”, ela pensou. Então uma garçonete perguntou se Vieira poderia
tirar fotos com a equipe da cozinha. “Eles serviram tanta comida de cortesia porque
acharam que eu era a Riri”, lembra, gargalhando.
De volta ao Brasil, ela se dedicou a escrever suas resoluções para 2022. Decidiu que vai
aprimorar o inglês e estudar técnica vocal para, quem sabe, cantar os sucessos de
Rihanna com a própria voz, em vez de dublá-los.
A lista de metas foi feita no escritório da casa que alugou depois de fazer sucesso na
internet. Em seu novo quarto, o item de decoração mais valioso é um porta-retratos
com a reprodução do comentário feito por Rihanna. Na parede da memória de Vieira,
essa lembrança é o quadro que mais a alegra.
Thallys Braga
PONENCIAS ADVENTÍCIAS
porque os envolvidos
os sem-narinas
– endogamia –
– pode ser –
– de jeito nenhum –
a qualidade literária
– cedo ou tarde –
Os caligramas que ilustram esta página, feitos pelo autor, fazem parte, junto com os
poemas aqui reproduzidos, do livro Scriptio Defectiva (ainda sem data de lançamento).
Caligramas são poemas visuais que mesclam palavra e imagem.
Ronald Augusto Poeta e ensaísta, publicou A Contragosto do Solo (Demônio Negro) e edita
o blog Poesia-pau
POR UM FIO
A capa da piauí_184, janeiro, apesar de não ser uma das minhas favoritas da revista, é
uma das que mais conversou com o recheio dela em todos esses anos que assino. O
Brasil claramente vive um período de luto há tempos (sem contar a pandemia) e as
reportagens da edição trazem isso: luto pelo fim do Programa Mais Médicos, luto pelo
rompimento de barragens no país, luto pelas mulheres que morrem todos os dias
devido ao aborto não legalizado, luto pela guerra às drogas que não dá certo e luto por
aqueles que morrem em decorrência da homofobia. Não creio que este será nosso ano
de superação, mas ainda acredito neste país.
GUSTAVO RIGONATO_AMERICANA/SP
Lula, por ser pragmático, fez um importante aceno a um adversário histórico, Geraldo
Alckmin, para compor sua chapa presidencial. Não deixa de ser um lance de mestre,
mas que encontrará enorme resistência entre a militância petista, além do receio da
figura do vice assumir o lugar do titular, como ocorreu em vários momentos de nossa
história recente. O lado positivo seria também uma tentativa de restaurar a social-
democracia no país, pois tanto os tucanos como os petistas foram os responsáveis pelos
melhores momentos de nossa democracia após a ditadura militar.
Lula só tem a ganhar com tal convite, pois revelou seu lado negociador, que prevalece
sobre seus pronunciamentos mais radicais, que só agradam à militância. Alckmin é
quem eventualmente pode perder ao desistir de uma candidatura ao governo de São
Paulo.
VARIEGADOS
Primeiro, minha gratidão a Adriana Hellering (Cartas, piauí_184, janeiro), por nos
lembrar dos passarinhos – e a vocês pelas dicas sobre o que funciona ou não para
poupá-los. Num país onde crianças morrem por falta de médicos, e mulheres por
serem obrigadas a levar uma gestação indesejada até o fim, adesivar janelas é uma
forma de resistência. Ainda mais em São Paulo.
Também agradeço a Meg Weeks pela matéria Em nome da mãe (agora aberta ao
público!), na mesma edição, e ao projeto Milhas pela Vida das Mulheres – cujo trabalho
deveria ser bem mais conhecido, a fim de conscientizar a sociedade sobre os riscos do
aborto clandestino no Brasil e a possibilidade de fazê-lo em segurança em países
vizinhos.
Agora, o textão.
Pesquisei sobre a ação proposta pelo Psol e pela Anis visando à descriminalização do
aborto – a ADPF 442/DF. Embora exista um precedente na 1ª Turma do STF (HC
124306/RJ) comprando a tese de admitir o aborto voluntário nas doze primeiras
semanas da gestação, acho difícil que o plenário venha a concluir o julgamento de
forma positiva nos próximos anos – além da existência de certa resistência de setores
da sociedade (e de algumas autoridades, como o atual PGR), não seria difícil atrasar a
decisão mediante pedidos de vistas.
Fico surpreso que não tenhamos avançado mais nesse tema “comendo pelas beiradas”,
pacificando mais interpretações que flexibilizem o ônus de provar a ocorrência das
exceções legais (li uma matéria da Folha de S.Paulo de 29/07/2018 referindo que não seria
necessário comprovar a ocorrência do estupro e que bastaria procurar uma unidade de
saúde – mas já ouvi anedotas relatando o contrário), a fim de criar para a doutrina
jurídica uma “ladeira escorregadia” conducente à descriminalização. Pesquisei um
pouco o assunto, e fiquei um tanto frustrado por não encontrar uma literatura
específica focando aborto em caso de gravidez na adolescência; é no mínimo estranho
que pessoas que não são consideradas (legalmente) responsáveis o suficiente para
dirigir um carro sejam obrigadas a assumir as responsabilidades da gestação e da
maternidade. Mais ainda porque é consenso que a gravidez precoce – além do impacto
socialmente adverso sobre as perspectivas de vida a longo prazo da gestante e do
nascituro – implica risco à saúde: a) da gestante e b) do nascituro (risco aumentado de
complicações neonatais e mortalidade infantil: há um gráfico interessante do Centro de
Controle e Prevenção de Doenças mostrando que, nos Estados Unidos, a mortalidade
infantil referente a gestantes com menos de 20 anos é quase o dobro da taxa relativa a
mães entre 30 e 34 anos de idade).
ARMÁRIO ABERTO
IURI BAPTISTA_CAMPINAS/SP
VIK MUNIZ
EXPLOSIVO
NOTA SOBRE QUEM ANDA PELAS NOSSAS PÁGINAS: É tanta gente, Jésu, que até
perdemos a conta. Importa aqui lembrar uma dessas pessoas, o grande repórter Luiz
Maklouf Carvalho, morto prematuramente em 2020. Mak, como todos o chamavam, é
autor de uma biografia seminal do presidente. Nela, fica claro que Bolsonaro teve, sim,
que deixar o Exército porque planejou explodir bombas em quartéis. Em janeiro de
1988, o Conselho de Justificação das Forças Armadas o condenou por um sonoro placar
de três a zero. O caso foi encaminhado ao Superior Tribunal Militar, que, em junho
daquele ano, encontrou uma saída salomônica: absolveu-o, deixando subentendido que
ele se apressasse a abandonar o Exército por livre e espontânea vontade. Bolsonaro
optou pela política e, em novembro, elegeu-se vereador pelo Rio de Janeiro. Até as
emas do Alvorada sabem disso e é de se perguntar se não hesitaram em aceitar os
tabletes de cloroquina por desconfiarem da sensatez daquele que já foi chamado de
“mau militar” por um general-presidente. Mas tergiversamos. Antes de nos
despedirmos, urge passar adiante um recado que nos chega de um dos cassinos mais
elegantes de Ibiza. Diretamente de um jogo de chemin de fer (o preferido de James
Bond!), a repórter Consuelo Dieguez manda avisar que sua matéria não diz que
Bolsonaro foi expulso do Exército, mas que o atentado o empurrou para a reserva. No
que uma ema mais sagaz talvez comente com a amiga: e ficamos nós aqui a pagar essa
conta.
BERMUDES
Mas diante de todas essas considerações, gostaria de dizer que concordo com o leitor:
houve jactância.
BOLA DE CRISTAL
“Quando será o golpe?” (de Jair Bolsonaro), pergunta André Petry, na piauí_178, julho
de 2021.
Meu palpite é que a tentativa de golpe será logo após o primeiro turno, dia 2 de
outubro, se Lula estiver à frente do total de votos de Bolsonaro. A raiva será ainda
maior se Moro for disputar com Lula o segundo turno, dia 30 de outubro. Armas,
dinheiro para as Forças Armadas, aumentos salariais para policiais federais e
cooptação de forças estaduais, é tudo preparação para o golpe que vai sair pela culatra.
Bolsonaro deveria ser preso com seu clã e seus generais milicianos palacianos de
plantão. É a caquistocracia em seu esplendor.
UNIVERSIDADE
Não sou da área acadêmica, mas gostei do artigo do autor anônimo (sob o pseudônimo
Benamê Kamu Almudras), Parece revolução, mas é só neoliberalismo (piauí_172, janeiro de
2021). As questões levantadas no artigo inicial me fizeram refletir, e acredito que o
autor (ou a autora) parece ter mais reflexões singulares para outros debates. A escolha
do anonimato me pareceu estratégica para mostrar que o importante é a discussão de
ideias, e não necessariamente personalizar o debate, mesmo porque já se conhece as
“vaidades acadêmicas”. Eu conheço, e é um porre.
redacaopiaui@revistapiaui.com.br