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C olado na porta de um dos escritórios da loja localizada no bairro do Bronx, no norte da ilha de Manhattan, em Nova York, o adesivo

anuncia: “I love wood”. Ali, todos parecem gostar de madeira. A loja vende o material a preço de ouro e tem preferência pela Tabebuia serratifolia,
nome científico do ipê amarelo, estrela do mercado por sua dureza, sua resistência e pelo traço suave de seus veios. Na tarde de 12 de novembro
passado, nos fundos da loja, empilhados em prateleiras, havia enormes deckings de ipê, como é chamado o corte que resulta em pranchas alongadas e
grossas. Da loja, depois de trabalhado nas marcenarias ao gosto do freguês, o ipê, ou “iron wood”, reaparecerá nos terraços do Upper East Side, nas
coberturas do Soho, nas varandas do Brooklyn. “É uma madeira de luxo, exótica, muito cobiçada no mercado norte-americano”, diz o porta-voz para o
tema de florestas do Greenpeace, Daniel Brinds.

Entre os funcionários da loja do Bronx, nenhum sabia informar com precisão sobre a origem daquele ipê, cujo metro cúbico é vendido ali por 6 mil
dólares. “Sei que a madeira é importada do Brasil, mas não sei dizer diretamente de onde vem”, disse uma funcionária, mal disfarçando a impaciência.
Ninguém sabia, ou dizia não saber, que os deckings de “ipe wood” ou “tropical hardwood” nos fundos da loja escondem uma história exemplar de
crime ambiental, saga descoberta pela piauí que começou no sul do Pará em fevereiro de 2019 e que o Ibama chegou a apurar em sigilo até a
investigação ser enterrada, sem qualquer punição aos criminosos, por uma decisão do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ele próprio sob
investigação por suspeita de colaborar com um esquema de contrabando internacional de madeira da Amazônia.

Em parceria com o consórcio internacional de jornalismo investigativo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) e o Center for
Climate Crime Analysis (CCCA), a piauí identificou um lote de ipê extraído ilegalmente no Pará e conseguiu reconstituir todo o trajeto da madeira
clandestina até a loja em Nova York. O lote é constituído por 53 metros cúbicos de ipê amarelo, o equivalente à derrubada de 13 árvores, suficiente para
carregar dois caminhões. Da floresta no Pará, essa quantidade de madeira saiu custando em torno de 21 mil reais. Quando chegou às lojas de Nova
York, depois de percorrer 5,6 mil quilômetros por terra e mar durante três meses, seu preço já estava em 1,8 milhão de reais. No percurso, entre
fevereiro e abril de 2019, valorizou 89 vezes, cinco vezes mais do que a cocaína – não à toa, atraiu o interesse da maior facção criminosa do país, o PCC
(Primeiro Comando da Capital).
Os detalhes da reconstituição da trilha do ipê amarelo, espécie campeã de exportação pelo Brasil, comprovam a participação de um importante
traficante de cocaína ligado à facção e a colaboração com o crime por parte de setores do poder público, cuja missão é justamente combater o
contrabando de madeira, além de evidenciar que a saga do ipê não é um fenômeno aleatório, motivado pela pobreza, mas resultado de um projeto
criminoso organizado. Encorajados pelo governo Bolsonaro, madeireiros e grileiros avançam com força na destruição da floresta. Entre agosto de 2020 e
julho de 2021, 13,2 mil quilômetros quadrados de mata foram devastadas no bioma, o maior índice em 15 anos, segundo levantamento do Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) divulgado em novembro. Um terço desse desmatamento ocorreu em terras públicas. No Pará, estado líder
na destruição da Amazônia, 3,3 milhões de metros cúbicos de madeira (suficiente para encher 37 mil caminhões) foram extraídos ilegalmente dessas
áreas entre 2008 e 2020, de acordo com estimativa da CCCA baseada em dados do Inpe.

“É fato que uma grande quantidade de madeira de origem ilegal entra nos mercados europeu e norte-americano atualmente. Prova disso é a
inconsistência substancial entre a quantidade de áreas na Amazônia autorizadas para extração madeireira e a quantidade de madeira produzida. Isto
indica que uma grande quantidade de madeira é originária de áreas não autorizadas”, diz Rhavena Madeira, diretora do CCCA no Brasil.
Quando a noite começa a cair no sul do Pará, dezenas de caminhões deixam o fundo da mata rumo ao asfalto da BR-163, a rodovia de quase 4,5 mil
quilômetros que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. Velhos e barulhentos, os veículos movem-se devagar, abarrotados de pesadas toras
de ipê, jatobá e cumaru, todas madeiras de alto valor comercial e extraídas criminosamente, horas antes, da Floresta Nacional do Jamanxim, uma das
mais desmatadas do país. Os motoristas confiam no breu noturno para driblar a fiscalização. É um cuidado exagerado, herdado de outros tempos, pois
atualmente a presença de fiscais dos órgãos ambientes é praticamente nula na região.

Boa parte dos caminhões tem o mesmo destino: o distrito de Isol, no município de Novo Progresso, um lugarejo poeirento às margens da BR-163, com
uma dúzia de ruas sem asfalto e casas simples. No distrito, onde estão instaladas cinco grandes serrarias, respira-se madeira, literalmente. O cheiro das
toras cortadas impregna o ar, em meio ao ronco incessante das serras. Em fevereiro de 2019, no período de apenas doze dias, Isol recebeu um
carregamento de 970 metros cúbicos de ipê amarelo nas formas de toras, pranchas e deckings. A madeira encheu 25 caminhões.

Examinando as guias florestais, documentos oficiais que registram todo o percurso da madeira no estado do Pará, descobriu-se que aquela madeira
fora apreendida e doada pelo Ibama à prefeitura de Itaituba, cidade às margens do rio Tapajós, distante 400 quilômetros de Novo Progresso. A
prefeitura, por sua vez, vendeu o material em leilão, por 335 mil reais, para a JMS Alexandre Serraria. Dentro desse imenso lote de madeira, estavam os
53 metros cúbicos de ipê cujo percurso a piauí rastreou. Encerrado o leilão em Itaituba, a madeira, ainda segundo as guias florestais, foi transportada
por quase 500 quilômetros em direção ao sul, até chegar ao distrito de Isol, onde fica a sede da JMS Alexandre Serraria. Em seguida, a JMS vendeu o
lote de 53 metros cúbicos de ipê para a Canaã do Norte Madeiras, cuja sede também fica em Isol. A Canaã do Norte, por sua vez, revendeu para uma
terceira empresa, que levou a madeira até o porto de Barcarena, na região metropolitana de Belém, de onde o carregamento partiu com destino aos
Estados Unidos.

Essa é a história oficial.

A história real começa com uma fraude. A prefeitura de Itaituba jamais fez um leilão de 970 metros cúbicos de ipê amarelo. “Nunca vendemos ipê
algum e nem venderíamos”, diz o procurador-geral de Itaituba, Diego Cajado Neves. “Precisamos muito de madeira para construir pontes e palafitas.”
Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ex-presidente do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente no país, confirma: “Essa venda por parte da
prefeitura não faz sentido. Se a prefeitura tivesse recebido doação de madeira por parte do Ibama, não poderia ter vendido.” Era a primeira fraude.

A segunda fraude está no transporte da madeira por 500 quilômetros até o distrito de Isol. As guias florestais informam que o transporte foi feito por 68
veículos – constam os números das placas nos documentos. Ao checar as informações, a piauí descobriu que seis dessas placas não são de caminhões
com carrocerias capazes de levar a madeira. Correspondem a dois carros de passeio – um Fiat Palio e um Gol – e quatro motocicletas, que jamais
conseguiriam levar toda aquela carga por 500 quilômetros. Tudo indica que a história do leilão de madeira pela prefeitura de Itaituba foi apenas um
subterfúgio criado por contrabandistas de madeira para “esquentar” ipês extraídos ilegalmente da floresta do Jamanxim.

Segundo a Junta Comercial do Pará, o proprietário da JMS é João Marcos da Silva Alexandre, um rapaz de 28 anos que, ao menos no papel, ingressou
cedo na atividade madeireira: em 2015, com apenas 22 anos, abriu sua primeira empresa do ramo, em Novo Progresso, e construiu um currículo de
infrator. Segundo dados do Ibama, a JMS acumula 300 mil reais de multas por infrações ambientais. Hoje, Alexandre trabalha como pedreiro em Sinop,
no Mato Grosso, com salário aproximado de 1,5 mil reais – pouco para quem, no papel, é um grande atacadista do setor madeireiro. Em depoimento a
um fiscal do órgão ambiental, o “gerente geral” da empresa, Douglas Gaspar Barbosa, disse que Alexandre “emprestou o nome” para a abertura da
firma em troca do pagamento das mensalidades de um curso superior de engenharia civil em Cuiabá, mas não informou quem seria o real dono da
empresa. (Barbosa, que não foi localizado pela reportagem, é filho de um antigo servidor do Ibama demitido em 2006 por corrupção e grilagem de
terras).

Já a sede da Canaã nem fica no distrito de Isol. Em outubro passado, a piauí visitou a região e constatou que seu endereço formal não existe. Embora
todos se conheçam no distrito, nenhum dos dez moradores abordados pela reportagem disse conhecer a serraria nem seu proprietário. Um deles, que
pediu para não ser identificado por medo de retaliação, deu uma pista: existe no distrito a figura do “vendedor de nota”, dono de empresas que só
existem no papel e que servem para “esquentar” madeira extraída ilegalmente da Floresta Nacional do Jamanxim.

O dono formal da Canaã do Norte apresenta os mesmos indícios de ser um testa de ferro no esquema. Com 31 anos, Antonio Carlos Rodrigues de
Oliveira, conhecido por Tonhão, tornou-se um dos maiores grileiros de áreas públicas no Pará. A exemplo de Alexandre, ele também abriu sua
primeira madeireira muito jovem, aos 20 anos de idade, em 2010. Dois anos depois, fiscais do Ibama constataram que a empresa era fantasma, o que lhe
rendeu uma ação penal na Justiça por ter inserido dados falsos no Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais, o Sisflora, programa
que o Pará usa para controlar a circulação de madeira no estado. A intenção de Tonhão, de acordo com a acusação do Ministério Público, era
“esquentar” 2,1 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Ele também é réu em quatro ações civis na Justiça Federal, acusado de desmatar ilegalmente 2,8
mil hectares em áreas protegidas no sul do Pará.

No início da década de 2010, quando já era dono de sua primeira madeireira, Tonhão trabalhava como tratorista para o pecuarista e ex-vereador de
Novo Progresso Armando Anversa Faccin, que já foi condenado judicialmente a reparar uma área desmatada por “atividade madeireira ilegal”.
Tonhão também foi funcionário do ex-vice-prefeito de Novo Progresso, Ricardo Faccin, sobrinho do ex-vereador. Os Faccin negam ter relações
comerciais com Tonhão. “Ninguém da nossa família nunca trabalhou no setor madeireiro”, garante o ex-vice-prefeito. Hoje, Tonhão, o grande grileiro,
tem uma modesta barraca de lanches no Centro de Novo Progresso. Ele não quis dar entrevista. “Desculpe, amigo, não tenho informação sobre esses
assuntos”, escreveu no WhatsApp, antes de bloquear a piauí no aplicativo.

Criada em 2006 pelo então presidente Lula, a Floresta Nacional do Jamanxim ocupa 1,3 milhão de hectares a poucos quilômetros da margem oeste da
BR-163. Deveria ser uma floresta intocada, mas a proximidade da estrada, principal via de escoamento da soja de Mato Grosso para os portos do Pará,
vem arrasando com a mata. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Jamanxim é a terceira floresta nacional mais desmatada
da Amazônia. Quase 15% de sua área foi substituída por pastos. Imagens de satélite mostram a floresta sendo rasgada por centenas de quilômetros de
estradas de terra, que os locais chamam de “ramais”. Em 2017, o governo de Michel Temer enviou um projeto ao Congresso reduzindo em 27% o
tamanho da unidade de conservação, mas recuou após intensas críticas por parte de ambientalistas e de organizações não-governamentais.

Espremido de um lado por Jamanxim e de outro pelas terras indígenas Baú e Mekragnotire, do povo caiapó, o perímetro urbano de Novo Progresso,
com seus 25 mil habitantes, fica às margens da BR-163. Os primeiros moradores, vindos de Mato Grosso e da Região Sul, chegaram durante a
construção da rodovia, em 1973, durante a ditadura militar. Desde então, a destruição da floresta é a grande atividade econômica do município, seja
para extrair madeira, abrir novos pastos ou desbravar áreas de garimpo. Na cidade, há dezenas de pontos de venda de máquinas para o garimpo e lojas
de compra e venda de ouro. A estátua de um garimpeiro, com mais de dois metros de altura, enfeita o cruzamento das duas principais avenidas. A
devastação catapulta a violência: de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Novo Progresso registrou um índice de 100 mortes
violentas por 100 mil habitantes em 2020, mais que o dobro do verificado no Pará e no Brasil, no mesmo período. O crime organizado anda lado a lado
com a destruição da floresta.

Até o prefeito Gelson Luiz Dill, do MDB, tem seu quinhão de terra em área pública. Sua fazenda Carapuça, às margens do rio de mesmo nome, ocupa
784 hectares no meio do parque nacional do Jamanxim (a leste da BR-163), parte ocupado por pasto e boi. Em novembro de 2015, Dill registrou a área
em seu nome no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Criado pelo governo federal em 2012, o CAR é um sistema autodeclaratório cujo objetivo é
regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada propriedade rural – cabe ao dono registrar o polígono do imóvel e delimitar a reserva de
mata nativa a ser preservada. Apesar da finalidade ambiental, o CAR tem sido utilizado para viabilizar a posse ilegal de terras públicas, sobretudo na
Amazônia.

Na cartilha do grileiro, o primeiro passo é registrar no CAR determinada área dentro de unidades de conservação ou terras indígenas, todas públicas,
como se fosse particular. Em seguida ele invade a área e retira a madeira com valor de mercado. Depois vem o fogo e o plantio de capim, formando o
pasto para o boi, que atesta a ocupação da área, à espera de uma nova lei que atualize a data limite para a regularização fundiária do local – a norma
atualmente em vigor valida a posse de áreas em terras públicas até 2008.
Apesar de o registro de propriedade ter sido feito em 2015, Dill garante que a terra já estava em suas mãos antes da criação do parque de Jamanxim em
2006. “Quem invadiu não foram os produtores rurais, mas o governo federal, na época do PT. Se tem alguém injustiçado nessa história é o produtor”,
diz. Dill é bolsonarista, assim como a maioria esmagadora dos habitantes de Novo Progresso, onde 72,7% da população votaram em Jair Bolsonaro no
primeiro turno de 2018. Na entrada da cidade, um outdoor parcialmente rasgado traz a foto do presidente ao lado da frase “Por Deus, por nossas
famílias e por quem produz”.

A volúpia do desmatamento que há décadas alimenta Novo Progresso encontra pouca resistência nos órgãos públicos de repressão. Exceto por equipes
do Ibama que vez ou outra ocupam o escritório local do órgão para operações pontuais, a fiscalização é quase nula na região. Durante o dia,
percorrendo a floresta pelos “ramais”, a sensação é a de que o percentual de floresta derrubada é muito maior do que apontam os satélites do Inpe, com
áreas imensas reduzidas a tocos de árvores calcinados em meio ao capim alto que será o alimento do boi. Não é raro ouvir o barulho das motosserras,
operadas por homens contratados informalmente pelos “gatos”, os intermediadores de mão de obra na região, sob condições degradantes. “Já vi um
homem morrer na minha frente quando o tronco que a gente serrava caiu pro lado dele”, diz um desses trabalhadores, de 36 anos, que só se identificou
com seu primeiro nome, Redenilson.
Tonhão, o ex-funcionário da família Faccin e dono da Canaã do Norte, por onde passou o carregamento de ipê amarelo, tratou de reservar o seu
quinhão na grande farra da grilagem e do desmatamento dentro da Jamanxim. Em abril de 2016, registrou para si, por meio do CAR, uma área de 5,7
mil hectares (equivalente ao bairro Barra da Tijuca, no Rio) dentro da floresta. Batizou sua área como Fazenda Toca da Onça. O passo seguinte, como
convém à cartilha do grileiro, foi desmatar o local. Atualmente, metade da propriedade é ocupada por pastos, de acordo com dados do Inpe. Não há
acesso à Toca da Onça por terra. Dez quilômetros antes da fazenda, uma barreira com corrente e cadeado impede a passagem na única estrada de chão
batido, muito mal conservada, que leva à propriedade. Nas imediações, é possível detectar um ou outro ipê amarelo, que muito provavelmente só
segue intacto na natureza porque não atingiu o ponto de corte. De 2016 a 2020, o CCCA, parceira da piauí nesta reportagem, estima que foram
extraídos 80 mil metros cúbicos de madeira da Toca da Onça, dos quais 76,5 mil (95%) em 2019, exatamente o ano em que a madeireira de Tonhão
comprou o lote ilegal de ipê amarelo que foi parar em Nova York.

Treze dias depois de pagar 50 mil reais pela madeira da JMS, a Canaã do Norte, de Tonhão, revendeu o carregamento para outra empresa, a Coexpa
Comércio e Exportação de Produtos da Amazônia, com sede em Belém. Embolsou 437 mil reais, nove vezes mais do que pagara duas semanas antes, e
isso sem fazer qualquer beneficiamento na madeira que justificasse um lucro tão grande. O procurador Ubiratan Cazetta, do Ministério Público Federal
no Pará, explica os números da operação. “É comum os contrabandistas de madeira simularem altos lucros na compra e venda de madeira para
justificar a entrada do dinheiro obtido com a venda final do próprio produto ou de outros crimes, como corrupção e tráfico de drogas. É um caso típico
de lavagem.”

Assim como a JMS e a Canaã do Norte, a Coexpa também tem um histórico de infrações ambientais: a empresa já foi autuada em 225 mil reais pelo
Ibama, e seu proprietário, Bruno Leão Atayde, é réu em duas ações penais na Justiça estadual paraense, acusado de delitos contra o meio ambiente.
Consultada sobre o lote ilegal de ipê amarelo, a Coexpa emitiu uma nota em que afirma ter prestado todas as informações para “o pleno esclarecimento
dos fatos perante os órgãos ambientais competentes”. Na nota, a Coexpa acrescenta que faz “rigoroso procedimento de análise interna” de seus
produtos e fornecedores, avaliando “requisitos como licenciamento ambiental, existência de lastro comprobatório de origem de produtos, antecedentes
de autuação ambiental, bem como regularidade nos sistemas oficiais de controle, tanto em âmbito estadual como federal.” Não disse nada sobre a
falsificação das guias florestais do ipê, que estão na origem da fraude.
As guias florestais apontam um caminho estranho para o ipê. Depois de viajar 500 quilômetros em direção ao sul entre os dias 7 e 18 de fevereiro de
2019, os 53,3 metros cúbicos pegaram o caminho inverso, viajando 800 quilômetros em direção ao norte, no dia 11 de março de 2019, rumo ao porto de
Santarém. Tudo indica que, na verdade, a viagem foi outra: a madeira foi retirada criminosamente de algum ponto da região de Novo Progresso
(possivelmente da Fazenda Toca da Onça, de Tonhão, no meio do Jamanxim) e levada em caminhão para o porto de Santarém, de onde a Coexpa tratou
de escoá-la em balsas pelo rio Amazonas, até o porto de Barcarena, na área metropolitana de Belém, já com destino certo: a empresa J. Gibson McIlvain,
grande atacadista de madeiras do estado norte-americano de Maryland e importadora frequente de ipês brasileiros.
Enquanto o ipê viajava pelo Amazonas, a Aimex (Associação da Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), da qual a Coexpa faz parte,
pressionava o Ibama para recuar na decisão de inserir o ipê amarelo na lista de espécies sob risco de extinção, organizada pela Cites (Convenção sobre
o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Flora e da Fauna Silvestres, ligada à ONU). A proposta surgira no fim de 2018, ainda na gestão de
Michel Temer, e, caso fosse implantada, tornaria mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, com a exigência de certificado de origem da madeira
pelo exportador (o que inviabilizaria a remessa, para o exterior, do lote dessa espécie vendido pela Canaã do Norte à Coexpa). “Não se justifica
estabelecer procedimentos que estão indo na contramão das medidas adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, de desregulamentar
procedimentos de controle desnecessários”, escreveu a presidência da Aimex em ofício ao Ibama.

A pressão sobre o governo brasileiro também vinha dos importadores, sobretudo os norte-americanos (segundo o Ibama, 90% do ipê extraído no Brasil
é exportado). Naquele mês de março de 2019, Salles viajou para os Estados Unidos na comitiva do presidente Bolsonaro. Não consta na agenda oficial
dele reuniões com representantes das importadoras de madeira norte-americanas, mas, coincidência ou não, exatamente naqueles dias o governo
recuou da intenção de inserir o ipê na lista da Cites. Em comunicado à Câmara dos Deputados, o ministro Ricardo Salles disse haver “falta de estudos
científicos específicos” e “necessidade de consultas mais detalhadas” ao Ibama. Desde então, a proposta segue engavetada.

Naquele fim de março, logo após o ministro voltar ao Brasil, lobistas da IWPA (International Wood Products Association), entidade que reúne as
maiores importadora de madeira dos Estados Unidos, inclusive a J. Gibson MacIlvain, comentaram o recuo do governo brasileiro em relação ao ipê.
“Isso confirma o que ouvimos do pessoal da embaixada do Brasil na sexta-feira”, escreveu Joseph O’Donnell, diretor da IWPA, para uma lobista da
entidade, em e-mail de 26 de março daquele ano obtido pela piauí. Finalmente, o caminho estava livre para a exportação do ipê. Ao chegar ao porto de
Barcarena, o lote de deckings foi dividido em três contêineres embarcados no navio cargueiro Balsa em 10 de abril de 2019. No dia seguinte, a
embarcação zarpou do Pará com destino ao porto de Cristóbal, Panamá. Oito dias depois, o carregamento foi inserido em outro navio, que rumou para
Baltimore, um dos principais dos Estados Unidos, no estado de Maryland, onde chegou em 14 de maio. Do porto de Baltimore, a madeira viajou mais
27 km até a sede da J. Gibson McIlvain, localizada no município de Perry Hall. A J. Gibson McIlvain não vende diretamente para o consumidor final,
apenas para pátios em todos os Estados Unidos – entre eles, a loja no Bronx, em Nova York.

A J.Gibson McIlvain não possui nenhuma ação por crime ambiental nos Estados Unidos e, durante as investigações tanto da piauí quanto do Ibama,
não apareceu nenhuma suspeita de que a empresa tivesse conhecimento prévio da origem ilegal do ipê amarelo que recebeu. Procurada, a empresa não
se manifestou. Em seu site, a McIlvain se diz orgulhosa do processo rigoroso que utiliza para garantir qualidade e legalidades da madeira da
Amazônia. “O processo começa com a concessão de terras no Brasil. O governo local tem um excelente programa florestal e é fácil rastrear o histórico
de negócios e as fontes de cada fábrica”, diz.

No Brasil, comercializar madeira de origem ilegal é crime com pena de até quatro anos de reclusão, sem multa. Nos Estados Unidos, a punição, prevista
no Lacey Act, é mais dura: vai até cinco anos de prisão, com multa de 500 mil dólares, o que equivale a quase 3 milhões de reais ao câmbio atual. O
combate ao contrabando de madeira nos EUA melhorou com o fim da gestão de Donald Trump, na avaliação de Daniel Brindis, do Greenpeace. Mas
poderia ser mais efetivo. Uma das falhas da fiscalização, diz ele, é o excessivo apego à formalidade documental. “O governo se apega muito ao que está
no papel, mas já está provado que, em alguns casos, os documentos podem ser fraudados na origem”, diz ele. “Infelizmente, o governo norte-
americano ainda é suscetível ao lobby do setor madeireiro.” Para Rhavena Madeira, do CCCA, falta efetividade na aplicação da Lacey Act. “Esses
regulamentos têm deficiências de implementação e limitações de investigação ligados à dificuldade da rastreabilidade”, afirma. “O mesmo ocorre na
Europa. As autoridades competentes dificilmente conseguem identificar todos os operadores atuantes na cadeia e em muitos países não há operações
de controle e fiscalização sistemáticas. Faltam procedimentos e interpretações uniformes.”

Em agosto de 2020, cinco meses após engavetar a proposta de tornar mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, o então ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, foi além: nomeou André Heleno Silveira, um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sem qualquer experiência na
área ambiental, para cuidar da Coordenação de Inteligência de Fiscalização do Ibama, um setor vital no combate ao crime organizado por trás da
destruição da Amazônia. Semanas depois, Salles designou o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães Júnior como superintendente do
órgão no Pará. Silveira e Magalhães Júnior cuidaram de desmontar os núcleos de inteligência, tanto na matriz em Brasília quanto na filial em Belém,
respectivamente (o Ibama possui pequenos núcleos de inteligência distribuídos pelos 26 estados), trocando servidores experientes por pessoas sem
qualificação. “Claramente o objetivo era inviabilizar qualquer investigação mais aprofundada contra os grileiros, madeireiros e garimpeiros”, diz um
funcionário de alto escalão do órgão federal, sob anonimato, para evitar retaliações.

Meses mais tarde, em maio de 2021, tanto Salles quanto Magalhães Júnior foram alvos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que investiga a
participação de ambos em um esquema de facilitação do contrabando de madeira amazônica de origem ilegal – também são apurados os crimes de
prevaricação, advocacia administrativa e corrupção. Segundo a PF, após Salles encontrar-se em Brasília com representantes da Aimex, do Pará, em
fevereiro de 2020, Magalhães Júnior, supostamente por ordem do então ministro, assinou licenças de exportação retroativas para legalizar 153 mil
metros cúbicos de ipê e jatobá extraídos ilicitamente no Pará e apreendidos no mês anterior nos Estados Unidos. Pouco depois de a investigação da PF
vir à tona, Salles deixou o cargo de ministro.

Examinada em retrospectiva, a extinção do setor de inteligência em 2019 favoreceu as quadrilhas que atuam no contrabando de madeira ilegal para
exterior. Não há notícia de que o sucateamento do setor de inteligência tenha tido o objetivo específico de impedir a descoberta da conexão do ipê
amarelo exportado para Nova York, mas o fato é que a decisão do ministro favoreceu os contrabandistas.

Ainda no primeiro semestre de 2019, os fiscais do Ibama suspeitaram do tal leilão de madeira que teria sido promovido pela prefeitura de Itaituba. No
início de 2019, a prefeitura teria pedido à Secretaria de Meio Ambiente do Pará que registrasse os créditos de uma imensa quantidade de madeira em
favor da serraria JMS: ao todo, eram 8,6 mil metros cúbicos, dos quais 2,3 mil de ipê, suspostamente arrematados no leilão. A inserção dos créditos no
Sisflora, o sistema do governo paraense que controla o transporte de madeira, é uma forma de legalizar o produto. A secretaria aceitou o suposto
pedido da prefeitura sem contestar.
Os falsos créditos de madeira para a JMS foram incluídos no Sisflora pelo então gerente do sistema, Victor André Holanda Pessoa, que ocupava o cargo
de chefe de Cadastro, Transporte e Comercialização de Produtos Florestais da Secretaria do Meio Ambiente do Pará. Holanda Pessoa chegara ao cargo
em janeiro de 2019, pouco antes de fazer a inserção dos dados. E chegara por cima. Fora indicado por Parsifal de Jesus Pontes, então chefe da Casa Civil
do governador do Pará, Hélder Barbalho. A indicação, no entanto, era mais do que uma temeridade.

Na época, Holanda Pessoa já era um dos principais alvos de uma operação da Polícia Federal que investigava um grande esquema de tráfico de cocaína
dos portos brasileiros para a Europa protagonizado pelo PCC. Filho de piloto e ligado à facção paulista, Pessoa tinha uma logística própria para o
transporte aéreo de cocaína: levava grandes cargas da droga por helicóptero do Paraguai para um hangar em Americana, no interior paulista, e de lá,
em pequenos aviões, para outro galpão no aeroporto de Tomé-Açu, no interior do Pará. Dali, transportava a cocaína em carros e caminhões até os
portos de Belém e Barcarena, de onde a droga zarpava, oculta em contêineres, rumo a Europa. Em abril de 2018, nove meses antes de ser nomeado pelo
governo Barbalho, Holanda Pessoa teve um carregamento de 513 quilos de pasta base de cocaína apreendido pela PF no interior paulista. O motorista
do caminhão que leva a droga foi preso em flagrante – e Pessoa, meses depois, ganhou a promoção para gerenciar o Sisflora no governo do Pará.

O narcotraficante do PCC ficou apenas quatro meses no cargo – ele seria um dos 50 presos no ano seguinte pela Polícia Federal, acusados de tráfico
internacional de drogas, na Operação Além-Mar. Seu padrinho, Parsifal de Jesus Pontes, também caiu, mas por outro motivo: é acusado de fraudar a
compra de respiradores para pacientes infectados com o coronavírus. Foi no ambiente comandado por esse tipo de figuras que os contrabandistas
legalizaram fraudulentamente a grande carga de madeira amazônica (incluindo o ipê amarelo que foi parar em Nova York). Com isso, conseguiram
vendê-la para 18 estados brasileiros e para o exterior, auferindo um lucro total estimado pelos fiscais do Ibama em 26,98 milhões de reais. “A madeira
tem pelo menos duas grandes utilidades para o narcotráfico: serve para lavar o dinheiro da atividade e também para ocultar a própria droga nos navios
rumo à Europa e Estados Unidos”, diz Aiala Colares de Oliveira Couto, professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) que investiga o crime
organizado na Região Norte.

Antes que Pessoa fosse responsabilizado pelo contrabando da madeira, a investigação do Ibama foi interrompida com o desmonte do setor de
inteligência do órgão ambiental patrocinado por Ricardo Salles. “Estávamos perto de puxar esse novelo quando tudo foi por água abaixo”, afirma um
fiscal do órgão sob anonimato, devido ao temor de retaliação. Com isso, o trabalho dos fiscais foi remetido para a Polícia Federal e o Ministério Público
Federal, que, por sua vez, considerou não haver crime de âmbito federal e mandou o caso ao Ministério Público do Pará – que denunciou até agora
apenas um personagem da fraude: o dono da Coexpa, Bruno Atayde Leão, por crime ambiental. Consultado pela piauí, Pessoa, que atualmente
responde em liberdade ação penal em que é acusado de tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro, disse ter recebido as acusações
“com perplexidade” e mandou dizer que está à “disposição das autoridades competentes para, ao modo e tempo correto, prestar quaisquer
esclarecimentos que porventura se façam necessários”. (colaborou Eduardo Goulart)
Allan de Abreu
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)

Luiz Fernando Toledo


é mestrando em jornalismo de dados pela Universidade Columbia (NY) e foi editor da OCCRP no Brasil até 2021. É um dos diretores da Associação Brasileira
de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Tradução de Rogerio Galindo

E m outubro de 2019, o velho Chile inesperadamente ruiu. Um aumento na tarifa

do metrô na capital Santiago deu início a semanas de protestos liderados por


estudantes secundaristas, que instigavam os passageiros a pular as catracas. À medida
que as manifestações ficavam maiores, o governo de direita do empresário Sebastián
Piñera respondeu com o uso desproporcional da força policial. Então, no dia 18 de
outubro, o governo mandou fechar todas as estações, deixando milhões de pessoas nas
ruas sem ter como se locomover. A decisão se revelou um erro fatal. Em questão de
horas, os protestos se tornaram gigantescos. Quando a noite chegou, barricadas foram
erguidas em bairros pobres e de classe média. Na manhã seguinte, diversas estações de
metrô nas periferias da capital estavam em chamas. Foi o começo violento daquilo que
seria chamado de estallido social (explosão social).

Os meses de protestos que se seguiram deram início a uma crise em gestação desde o
começo do século XXI. A ordem que estava sendo colocada em xeque era o Chile
neoliberal, planejado durante a longa ditadura militar iniciada em 1973 e que, com
algumas reformas, continuou após a transição negociada para a democracia em 1990. O
símbolo mais tangível desse período é a Constituição ratificada no fraudulento
plebiscito organizado pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980. O documento
consolidou uma mescla de democracia limitada e economia de mercado, orientada
pelos interesses de grandes corporações. A Constituição devolveu ao mercado direitos
sociais anteriormente garantidos pelo Estado e, ao mesmo tempo, enfraqueceu os
direitos trabalhistas e sindicais, dificultando a organização dos trabalhadores.
Sendo assim, não é coincidência que o levante, embora deflagrado pelo aumento da
tarifa, tenha se organizado em torno da pauta de uma nova Constituição. Menos de um
mês depois do início dos protestos, o governo concordou em convocar um plebiscito
para que a população dissesse se a Constituição devia ser substituída ou não. Uma
imensa maioria (78%) aprovou a medida em outubro de 2020. Em maio do ano
seguinte, os chilenos voltaram às urnas para eleger os membros de uma Assembleia
Constituinte.

Os resultados foram surpreendentes. A direita conquistou menos de um terço das


cadeiras (algo impensável poucos anos antes), perdendo seu tradicional poder de veto,
ao passo que os candidatos independentes e de esquerda tiveram avanços
significativos. Embora algumas alianças tenham sofrido ligeiras modificações nos
últimos meses, ainda há um sólido bloco majoritário identificado com as demandas
populares articuladas durante o estallido. Em vista do teor antineoliberal dos protestos e
da vitória do político de esquerda Gabriel Boric, de 36 anos, nas eleições presidenciais
de dezembro passado, o processo constitucional é uma excelente oportunidade para a
esquerda chilena moldar um novo pacto social.

O Chile experimentou uma relativa calma durante as quase três décadas que

seguiram a transição para a democracia. O primeiro governo eleito, em 1989, liderado


pela Concertación de Partidos por la Democracia – a coalizão de centro-esquerda
forjada durante a ditadura militar como bloco de oposição moderada –, teve sucesso
em tirar Pinochet e os militares do poder. Porém, muitos dos economistas, ideólogos e
tecnocratas da Concertación, ao assumirem o comando da nação, decidiram – por
convicção ou por medo – manter as linhas mestras da ordem econômica estabelecida
sob Pinochet.

A história desse modelo é bem conhecida: os chamados Chicago Boys, um grupo de


economistas que segue a escola neoclássica,[1] haviam convencido a ditadura a reformar
a economia a favor das grandes corporações. Pinochet e os militares implementaram a
rápida privatização da educação, da previdência social e da saúde. Ao privatizar
dezenas de estatais, o governo criou uma nova oligarquia e construiu uma base de
apoio importante para o autoritarismo.
Na década de 1990, o autoritarismo conquistou a legitimação democrática que não
tinha. Essa consolidação foi avalizada por um ciclo de expansão econômica que
melhorou radicalmente as condições materiais de vida da maioria dos chilenos. A
pobreza foi reduzida a níveis nunca atingidos na história do país, e o consumo
aumentou em todas as classes sociais, graças à disponibilidade de crédito. A classe
empresarial também contou com condições favoráveis para o acúmulo de riqueza.
Talvez a política mais controversa desse período tenha sido o uso, para fins de
especulação, dos imensos recursos das Administradoras de Fundos de Pensões (AFP),
fundos previdenciários obrigatórios que haviam sido privatizados. Por alguns anos, o
livre mercado, a estabilidade social e a forte desigualdade pareceram perfeitamente
compatíveis.

No mesmo período, a esquerda sofreu as consequências de uma divisão iniciada na


época da ditadura. A derrota do projeto revolucionário da Unidade Popular (UP),
coalização que apoiou o governo de Salvador Allende (1970-73), levou a um longo
período de reflexão e autocrítica na esquerda. O Partido Comunista do Chile (PCCH) e
outros grupos radicais lamentavam a falta de uma política consistentemente militante e
insistiam na necessidade de lançar mão de “todas as formas de luta”, incluindo a
violência, no combate à ditadura.

O fracasso dessa estratégia, somado à derrocada da União Soviética, deixou o PCCH


isolado durante a década de 1990 e o início dos anos 2000. Enquanto isso, alas
significativas do Partido Socialista (PS), a legenda histórica de Allende, passaram por
um processo de “renovação”, renunciando ao marxismo e ao horizonte revolucionário
em favor da democracia liberal. Os socialistas entraram numa aliança com os
democratas cristãos (que tinham apoiado o golpe dado por Pinochet em 1973, mas se
afastaram da ditadura pouco tempo depois), formando um bloco de oposição
democrática e anti-autoritária. O PS e o Partido Democrata Cristão (PDC) foram a base
da Concertación, que concordou em participar de um plebiscito, realizado em 1988,
sobre a permanência de Pinochet no governo.

Graças a uma imensa mobilização e à pressão internacional, a oposição a Pinochet


ganhou – 56% dos chilenos votaram contra a extensão do governo do ditador. No ano
seguinte, a Concertación venceu com facilidade as eleições presidenciais, que foram o
ponto de partida de vinte anos de poder para a coalizão. Mas os governos da
Concertación hesitaram em forçar grandes mudanças ideológicas. Em vez disso,
mantiveram os pilares centrais do modelo neoliberal, legitimado por um novo, embora
limitado, sistema democrático.
E nquanto os partidos da esquerda permaneciam divididos, a insatisfação com a

democracia neoliberal manifestou seus primeiros sinais. Muitos jovens estavam


afastados do sistema político. Na primeira década do século XXI, a apatia se
transformou em raiva, especialmente entre os estudantes secundaristas e universitários
do sistema educacional privatizado que segregava classes sociais.

A Revolução dos Pinguins (assim batizada em razão das cores dos uniformes
escolares), em 2006, foi o primeiro indicativo de um descontentamento mais profundo.
Centenas de milhares de pessoas marcharam em protesto contra as mensalidades
escolares e pedindo a construção de um sistema educacional de qualidade para todos.
A Concertación, que estava em seu quarto mandato consecutivo, conseguiu evitar a
ampliação do conflito fazendo pequenas reformas e prometendo melhorias futuras.

A situação mudou em 2010, quando Piñera foi eleito presidente. Ele levou para o
governo os herdeiros da ditadura de Pinochet, expondo os mecanismos de acumulação
e mercantilização antes ocultos sob um verniz progressista. No ano seguinte, protestos
liderados por movimentos sociais independentes dos partidos políticos da transição
eclodiram em todo o país, coincidindo com mobilizações em outras partes do mundo,
como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street.

Movimentos ambientais começaram a se mobilizar contra o modelo econômico


extrativista e a destruição da natureza. E o que mais chamou a atenção: universitários
foram às ruas mais uma vez para protestar contra a segregação de classes produzida
pelas altas mensalidades cobradas pelas faculdades particulares e públicas, que
geravam onerosos endividamentos, geridos por bancos privados. Para a geração
seguinte de líderes políticos, forjada por esses protestos, da qual Boric faz parte, estava
claro que os fracassos do sistema educacional eram parte de um problema mais amplo
relacionado aos limites e às inconsistências da transição democrática.

A Concertación – rebatizada como Nueva Mayoría, com a inclusão do PCCH e outros


partidos de esquerda na coalização – teve uma última oportunidade de responder de
modo significativo aos protestos estudantis quando, mais uma vez, derrotou a direita
nas eleições presidenciais de 2013. Michelle Bachelet (do Partido Socialista), que já
tinha ocupado a Presidência entre 2006 e 2010, voltou ao poder com um mandato para
fazer reformas, incluindo a educação gratuita e a substituição do sistema
previdenciário.
Para tanto, ela teve o apoio de importantes líderes estudantis, incluindo aqueles que
organizaram a Frente Ampla, uma nova coalizão política de esquerda – inspirada por
movimentos como o Podemos da Espanha e o Syriza da Grécia –, que conquistou
algumas cadeiras na Câmara dos Deputados. Mas a oposição unificada da direita, a
corrupção no círculo mais próximo de Bachelet e a disposição conservadora de alguns
tecnocratas da Nueva Mayoría conspiraram contra o projeto de reformas. O sistema de
previdência social mal foi modificado e o objetivo de criar uma educação superior
gratuita se transformou numa enorme transferência de recursos para universidades
particulares.

Enquanto isso, os chilenos testemunhavam uma queda no prestígio das instituições


que por décadas serviram como esteios do sistema político. A Igreja Católica perdeu
sua autoridade moral com a revelação de abusos sexuais sistemáticos da parte de
sacerdotes. As Forças Armadas e a polícia foram acusadas de desviar milhões do
dinheiro público. Várias acusações de corrupção e financiamento ilegal de campanhas
foram feitas contra empresários e membros da elite política, num país que se orgulhava
da retidão de suas autoridades.

Ao longo de todo esse período, os protestos continuaram e se expandiram para fazer


frente a outros problemas. O movimento No + AFP (Chega das AFP, as
Administradoras de Fundos de Pensões) uniu centenas de milhares de chilenos em
2016 e 2017 para repudiar o sistema de previdência privada. Em Araucanía, a região do
Chile com maior proporção de indígenas, os conflitos fundiários se intensificaram, e as
demandas históricas do povo Mapuche ganharam apoio popular. E, em 2018, uma
onda de feminismo radical percorreu o Chile.

Tudo isso ocorreu à distância dos partidos políticos da transição, que se reproduziam
pacificamente dentro do aparato estatal e se afastavam cada vez mais das paixões e
opiniões dos cidadãos chilenos. Essa desconexão se manifestou na abstenção eleitoral,
oferecendo uma oportunidade para o ressurgimento da direita. Em 2017, Piñera
reconquistou a Presidência numa eleição com baixo índice de comparecimento.

N os anos anteriores ao estallido social – o levante de 2019 –, a ideia de substituir a

Constituição começou a circular nos movimentos populares. Quando foi inicialmente


sugerida, no entanto, durante os protestos estudantis de 2011, a proposta foi alvo de
zombaria tanto da direita como de boa parte da velha Concertación. É preciso dar
crédito a Bachelet, que em seu segundo mandato pretendia iniciar um processo
constituinte, embora não tivesse a vontade política necessária para fazer com que fosse
aprovado – e acabou vendo o projeto ruir junto com as reformas da previdência e da
educação. O resultado dos protestos fez a ideia ressurgir como algo possível e urgente.

A ditadura militar de Pinochet em certo momento encarou a reforma constitucional


com urgência semelhante. O governo ditatorial começou a trabalhar numa nova
Constituição pouco depois de assumir o poder, em 1973, convicto de que o sistema
democrático enraizado na Constituição de 1925 estava irremediavelmente obsoleto. A
junta militar desejava eliminar a possibilidade de que um novo projeto revolucionário e
anticapitalista, à semelhança do liderado por Salvador Allende, transformasse
radicalmente as instituições econômicas e políticas, e até mesmo os corações e as
mentes dos chilenos. No fim da década de 1970, uma pequena comissão criada pela
ditadura apresentou os esboços iniciais da nova Constituição. Depois de modificar o
documento para concentrar e expandir o poder do regime, Pinochet o ratificou por
meio de um plebiscito sem eleitores registrados – as listas eleitorais haviam sido
destruídas pela ditadura – e sem que houvesse uma oposição consentida.

Durante a contestação à ordem ditatorial, iniciada com enormes protestos nacionais em


1983, a demanda por uma nova Assembleia Constituinte começou a vir à tona. No
entanto, a oposição moderada – a aliança entre o PDC e o PS – acabou aceitando o
processo de transição previsto na Constituição de 1980, que resultou no plebiscito de
1988 no qual 56% rejeitaram Pinochet. O pragmatismo da coalizão foi motivado pela
derrota da estratégia insurrecional da esquerda radical e pela repressão do governo aos
protestos. Líderes moderados pressionaram por uma reforma nos aspectos mais
antidemocráticos da Constituição – como o banimento de partidos marxistas –,
recorrendo a negociações com o regime em 1989.

Essas negociações permitiram que uma série de mecanismos antidemocráticos


sobrevivesse durante a transição da ditadura à democracia, entre eles a manutenção de
senadores biônicos (ex-integrantes da Corte Suprema,[2] das Forças Armadas e de outras
instituições estatais, todas marcadamente conservadoras), um sistema eleitoral que
permitia à direita controlar metade do Congresso tendo cerca de um terço dos votos, e
a impotência do presidente para remover o alto-comando das Forças Armadas.

Cientistas sociais da época chamaram esses aspectos da Constituição de “enclaves


autoritários”. Algumas mudanças foram conquistadas em 2005 – como o fim dos
senadores biônicos –, mais uma vez como resultado de negociações entre a velha
Concertación e a direita. Mas a exigência de uma nova Constituição foi deixada de lado
em nome da estabilidade política. Essa meta continuou sendo uma aspiração da
esquerda (principalmente do PCCH e de outros pequenos grupos radicais) que estava
excluída dos termos da transição.

C omo a questão da mudança constitucional se tornou tão importante? Em

primeiro lugar, por causa de seu valor simbólico, uma vez que a Constituição atual foi
um projeto fundacional feito pela ditadura e desempenhou papel importante na
transição incompleta para a democracia. Mas a Constituição também apresenta sérios
problemas para uma democracia funcional, como as “leis orgânicas” que regulam
aspectos centrais do Estado e da economia e um Tribunal Constitucional, composto por
juízes conservadores, que bloqueia muitas das leis reformistas aprovadas pelo
Congresso.

É importante lembrar que somente com os protestos gigantescos e disruptivos de 2019


o governo de direita foi forçado a abrir mão da ordem política desenhada pela
ditadura. Mas o caminho que levou à formação da Assembleia Constituinte não foi
fácil. A repressão aos protestos em 2019 incluiu declarações dramáticas de “guerra” da
parte de Piñera, violações de direitos humanos e a presença das Forças Armadas nas
ruas, o que lembrou os mais sombrios momentos da ditadura militar. Em meio a uma
crise que se intensificava, o Congresso Nacional negociou o Acordo pela Paz Social e
pela Nova Constituição, assinado em 15 de novembro, menos de um mês após o início
dos protestos.

Boa parte da esquerda parlamentar, especialmente o PCCH e setores da Frente Ampla


– a coalizão de esquerda composta por ex-líderes estudantis –, viu o acordo com
ceticismo e se recusou a assiná-lo. Um dos pontos mais sensíveis era a exigência de
maioria de dois terços dos delegados da Assembleia para a aprovação de novos artigos,
algo que, tendo em vista o equilíbrio eleitoral do poder à época, parecia dar à direita
um virtual poder de veto. Apesar dessas limitações, outros acreditavam que a situação
oferecia uma oportunidade sem precedentes para pôr fim à democracia neoliberal da
transição.

Foi assim que Gabriel Boric, um jovem deputado da Frente Ampla e ele próprio um ex-
líder estudantil, viu a questão, quando, contrariando seu partido, assinou o
documento. A decisão teve consequências surpreendentes para Boric, marcando o
início de sua ascensão como liderança política nacional.
A posição de Boric foi compartilhada pela maioria dos chilenos. Num plebiscito
realizado em outubro de 2020, quase 80% dos votos foram favoráveis à formação de
uma Assembleia Constituinte. O Acordo deu início a uma série de acontecimentos que
vão realizar um dos sonhos mais caros da esquerda: pôr um fim à Constituição de
Pinochet.

N a eleição dos membros da Constituinte, que ocorreu em maio de 2021,[3] a

direita foi reduzida a uma minoria sem o poder de veto a que tinha se acostumado. Por
outro lado, as forças da esquerda independente – muitas das quais contavam com
ativistas de fora de Santiago, antigos líderes dos protestos e acadêmicos progressistas –
somadas aos partidos históricos da esquerda elegeram um grande número de
delegados. Em aliança com representantes que ocupam cadeiras reservadas aos povos
indígenas, essas forças puderam formar um bloco majoritário, embora haja diferenças
importantes entre os grupos.

O resultado também teve impacto na corrida presidencial. A aliança de esquerda


composta sobretudo pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista (o Partido Socialista
decidiu permanecer ao lado dos Democratas Cristãos)[4] conquistou uma quantidade
impressionante de votos nas eleições primárias. Já a direita tradicional teve
dificuldades para convencer os eleitores de que está aberta a reformas limitadas no
neoliberalismo oligarca e reacionário que defendeu tão pouco tempo.

Em um sinal de aprofundamento da crise política da direita, um candidato de extrema


direita, José Antonio Kast – que defende abertamente a ditadura militar, critica o
governo Piñera e se identifica com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro –, após ser
derrotado na eleição presidencial do ano passado, agora lidera a reação conservadora
contra os protestos e a nova Constituição.

Num resultado surpreendente, Kast recebeu a maior porcentagem dos votos no


primeiro turno das eleições presidenciais – 27,9% –, ficando à frente de Boric, que
obteve 25,8%. Boric, porém, acabou vencendo o segundo turno em 19 de dezembro
com quase 56% dos votos. A sua eleição marcou o fim da ordem política da transição
dominada pela direita tradicional e pela Concertación, que mais tarde virou Nueva
Mayoría. Ainda assim, a força da extrema direita é um lembrete da fragilidade da
ordem política chilena e da contingência dos ganhos conquistados pela esquerda. Há
muito trabalho a fazer para construir uma alternativa viável à democracia neoliberal
deslegitimada.

O processo constitucional é uma oportunidade histórica para a esquerda chilena por


dois motivos. Primeiro, representa a institucionalização do conflito iniciado pelo
levante de 2019. Apesar da natureza apartidária e até mesmo antipartidária dos
protestos, a esquerda conseguiu se conectar com o novo senso comum criado pelo povo
nas ruas e canalizá-lo como uma força para transformar a Assembleia Constituinte.
Entre outras coisas, a esquerda é a força política mais bem preparada para defender as
causas feministas, ambientalistas e indígenas que agora têm apoio majoritário, mas que
foram em grande medida ignoradas pelos partidos da transição. Boric começa seu
mandato presidencial em março. Junto com a esquerda, ele tem a oportunidade de
consolidar a nova ordem constitucional a partir de sua posição no governo. Sua
legitimidade será reforçada por uma Constituição que estabelece um novo papel para o
Estado em questões de direitos e regulação de grandes corporações.

É bem possível que a Constituinte remova os traços mais salientes da Constituição de


1980, como os enclaves autoritários remanescentes ou a noção bastante rígida de
propriedade privada, que permitiu a mercantilização do direito à água, dentre outras
políticas. Outros aspectos decisivos da Constituinte são o reconhecimento
constitucional dos povos indígenas, uma nova definição da sociedade e da família que
permita mudanças legislativas, como a legalização do aborto, e limites efetivos e
concretos para a exploração do meio ambiente por mineradoras transnacionais,
madeireiras e empresas de pesca. Espera-se ainda que a Constituinte acabe com a
dimensão mercantil da previdência social, da saúde e do sistema de educação. Todas
essas demandas se alinham com a agenda tradicional da esquerda. Conflitos históricos
hão de acontecer em breve dentro da forma constitucional de uma democracia social
pós-liberal.

Entretanto, há também riscos políticos. A duração da Assembleia Constituinte e as


divisões internas já ameaçam indispor uma grande fatia do público, o que pode afetar a
legitimidade do texto que emergir dos trabalhos. A direita e a imprensa conservadora
estão determinadas a desacreditar a Constituinte, usando quaisquer erros e atrasos
para isso – e o apoio que Kast recebeu na eleição presidencial prova que eles fizeram
avanços. Ao mesmo tempo, houve importantes desacordos dentro do campo
progressista, especialmente durante o debate das regras que irão guiar o processo. A
manutenção de um quórum de dois terços estabelecido na autorização original da
Constituinte provocou debates exasperados na esquerda. Em futuras disputas, a
esquerda terá de equilibrar a adesão a seus compromissos históricos e a necessidade de
não colocar em risco o sucesso das deliberações.
Para além dos partidos, há também o risco de que certos aspectos da plataforma
progressista acabem inspirando mais divisão do que unidade. A cientista política
norte-americana Nancy Fraser escreveu sobre a diferença entre uma “política de
reconhecimento” e uma “política de redistribuição”. A primeira, que tem amplo apoio
na geração mais jovem, valoriza a diversidade e a diferença. Essas aspirações vêm da
esquerda, é claro, mas não deveriam ser seus únicos objetivos. Se não for acompanhada
de uma política de redistribuição – que visa melhorar as condições sociais e materiais e
diminuir o poder das grandes corporações –, a política de reconhecimento pode acabar
afastando alguns eleitores. Para isso, o bloco de esquerda na Constituinte deve
enfatizar mudanças à Constituição que estabeleçam direitos de sindicalização, direito à
greve e outros regramentos que teriam impacto direto nas vidas de milhões de
trabalhadores.

O processo no Chile está conectado a uma mudança política mais ampla na América
Latina, que se manifestou de maneira diferente em cada país no ano passado – do
levante colombiano[5] à eleição do professor e sindicalista Pedro Castillo no Peru e da
líder de esquerda Xiomara Castro em Honduras. Há sinais de uma reestruturação
global na esteira da pandemia de Covid, caracterizada pelo desejo de ter maior controle
sobre os fluxos de capital e pela consciência da necessidade de reduzir a extrema
concentração de riqueza e de levar as mudanças climáticas mais a sério.

Caso o mundo de fato entre numa fase pós-liberal – o que nem de longe pode ser dado
como certo –, o Chile talvez sirva como um guia e um laboratório, assim como foi na
segunda metade dos anos 1970, quando se tornou pioneiro nas reformas econômicas
radicais do neoliberalismo. Hoje a esquerda chilena tem a oportunidade de ajudar a
construir uma nova ordem que pode moldar as estruturas sociais, econômicas e
políticas do país para os próximos anos, e provocar também importantes reverberações
regionais e globais. Substituir a Constituição não é o mesmo que uma revolução, ou
uma mudança imediata nas relações de poder. Mas representa a superação definitiva
da longa ditadura militar e de seus legados neoliberais, e um imenso avanço na
oportunidade de desenvolver uma agenda progressista robusta. É um momento para
caminhar na direção do horizonte que uma boa parte da esquerda chilena sempre
buscou: o socialismo democrático.

Artigo originalmente publicado na revista Dissent.


No Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, é um dos principais adeptos das
[1]

ideias econômicas difundidas pelos Chicago Boys – como a intervenção mínima do


Estado no mercado e a livre concorrência. Guedes fez seu doutorado em economia na
Universidade de Chicago e deu aulas na Universidade do Chile no início dos anos
1980. (N. R.)

A Corte Suprema, composta de 21 ministros, é a máxima instância do Poder


[2]

Judiciário. No Chile há ainda o Tribunal Constitucional, com dez ministros,


responsável por aprovar qualquer alteração na lei máxima do país, analisar a
constitucionalidade de projetos de lei e proteger os direitos fundamentais. No Brasil, o
Supremo Tribunal Federal (STF) acumula atribuições equivalentes às exercidas no
Chile pelas duas instituições. (N. R.)

Os trabalhos da Constituinte começaram em julho de 2021 e seus membros devem


[3]

redigir o texto da nova Constituição no prazo máximo de um ano. (N. R.)

[4] A Nueva Mayoría se dissolveu em 2018.

Uma série de protestos contra a reforma tributária do presidente Iván Duque tomou
[5]

as ruas de várias cidades da Colômbia a partir de 28 de abril de 2021. O governo


suspendeu a reforma, mas reagiu violentamente às manifestações, que passaram a
reunir outras reivindicações, como as do sistema de saúde e de aposentadoria.
A piauí publicou uma reportagem sobre o assunto na edição 178, de julho de 2021.
Durante os protestos, 80 pessoas foram mortas, segundo a ONG colombiana Instituto
de Estudios para el Desarrollo y la Paz), e mais de 2 mil, feridas. (N. R.)

Marcelo Casals

Acadêmico radicado em Santiago, no Chile, é PhD em história da América Latina pela


Universidade de Wisconsin Madison
Em depoimento a Ana Clara Costa

M eu pai se chamava Francisco Valderi Fernandes de Lima. Morávamos em

Itapevi, no interior de São Paulo, com meus dois irmãos e minha mãe. Meu pai sempre
esteve envolvido em política, sobretudo a local. Foi vereador pelo MDB, atuava em
eleições e tinha muitos adversários na vida pública. Antes de entrar para a política, ele
teve uma trajetória vitoriosa. Foi pedreiro, mestre de obras, até criar a própria
construtora, que prestava serviço para o setor privado e para a prefeitura. Tínhamos
um padrão de vida razoável. Chegamos a ter bons carros, cerca de vinte casas e um
posto de gasolina, que ganhamos depois que meu pai fez algumas obras para a Shell.
Quando ele decidiu entrar para a política, tudo isso se perdeu. Durante anos, vivemos
numa gangorra. De repente, da noite para o dia, tínhamos que vender tudo para pagar
dívidas contraídas em campanhas. A construtora fechou e ele passou a trabalhar
facilitando o caminho de outras empreiteiras que queriam participar de licitações, o
que lhe rendia boas comissões.

Nesse período difícil, meu pai começou a enfrentar também as campanhas de


difamação, que acabavam afetando a nossa família. Ele foi alvo de processos de
improbidade administrativa por razões políticas, e nós sofríamos as consequências
públicas dessas acusações. Minha mãe, com quem ele se casou muito antes de ter
qualquer bem, pedia que ele deixasse a política. Ele sempre resistiu. A certa altura, ela
decidiu que não queria mais viver daquela forma e pediu a separação. No início da
década de 2000, ela se mudou para Londrina com os meus irmãos mais novos. Eu
cheguei a ficar um tempo com eles, mas, em 2005, aos 26 anos, voltei para o estado de
São Paulo. Em Itapevi, o grupo político do meu pai havia vencido a eleição municipal e
fui contratado como funcionário da prefeitura. Cheguei a me candidatar a vereador,
mas não fui eleito. Trabalhei na prefeitura até 2009, quando a aliança política foi
rompida e meu pai pediu que a prefeitura terminasse meu contrato.

Até que, em 2012, paramos de nos falar. A nossa relação já era complicada, mas chegou
a um ponto crítico quando ele começou a se juntar aos inimigos políticos que ajudaram
a destruir a nossa família. Não suportei. Eles haviam processado meu pai catorze vezes
e transformado a nossa vida num inferno. Meu pai dizia que estava tudo bem, que na
política as coisas funcionavam assim mesmo, uma hora se rompia e na outra se reatava.
Mas eu não aceitava. Dois anos depois, em 2014, nos falamos brevemente por telefone e
ele me pareceu animadíssimo. Dizia que estava viajando o Brasil e fazendo grandes
negócios. Achei que fosse exagero dele, mas não falei nada. Em 2019, ele me procurou.
Disse que não estava bem de saúde, que havia passado muito mal no escritório e que
quase morrera. Tinha diabetes, era cardíaco e não se cuidava. Foi quando nos
reaproximamos.

Passei a levá-lo a consultas médicas e exames. Durante a pandemia, ele ficava isolado
em casa e eu levava os mantimentos de que ele precisava. Nesses contatos, ele começou
a me contar um pouco mais sobre o trabalho que fazia. Eu seguia sem dar muito
crédito porque eram coisas fora da realidade, como compra e venda de empresas de
capital milionário. Eu achava que ele estava exagerando. Afinal de contas, a vida dele
não era luxuosa nem abastada, como poderia ser a vida de um empresário de grande
porte. Ele levava uma vida normal e morava de aluguel.

Em 2020, mesmo tendo que se resguardar por causa da pandemia, meu pai resolveu se
candidatar a vereador em Itapevi. Na época, fiquei intrigado – como sobraria tempo
para a política se ele estava tão ocupado com tantos negócios? –, mas guardei as
dúvidas para mim. Ele andava bastante envolvido na campanha quando, no dia 9 de
setembro, sentiu-se mal. Me ligou às nove da manhã. Levei-o ao hospital. O médico
disse que meu pai havia infartado. Foi internado às pressas para colocar um marca-
passo e ficou na UTI inalando oxigênio enquanto o hospital pedia aprovação do plano
de saúde para a cirurgia. Fiquei ao lado dele. Nessa noite na UTI, do dia 9 para o dia 10
de setembro, ele enfim me contou toda a história. Não sei bem qual era a sua intenção:
me alertar que eu tinha direitos? Hoje, penso que sim.

No leito hospitalar, meu pai me disse que fazia parte de um grupo cujo cabeça era
Marcos Tolentino, o senhor que o país conheceu durante a CPI da Pandemia como um
dos suspeitos na operação bilionária que pretendia comprar a vacina indiana Covaxin.
A secretária de Tolentino, de fato, nos ligava a cada dez minutos para saber como meu
pai estava. Ele falou das viagens que fazia para assinar documentos em nome do grupo
de Tolentino, das contas bancárias de que era titular, das licitações das quais as
empresas do grupo participavam para fornecer equipamentos e serviços ao setor
público. Falou do FIB Bank, empresa da qual ele era sócio e que fornecia garantias para
diversas operações no setor público. Falou que o capital do FIB Bank era lastreado em
precatórios e terrenos. E que ele viajava por todo o Brasil para assinar as garantias
emitidas pelo banco. Disse que semanalmente ia a São Caetano do Sul despachar
documentos em nome da Chocolate Pan, empresa da qual ele também era sócio.

Fiquei impactado por essa conversa, não entendia de onde saíra o dinheiro para tantos
negócios, mas não tive muito tempo para reagir. Na manhã do dia 10, meu pai foi
levado para a sala de cirurgia. Ao colocar o marca-passo, sofreu três paradas cardíacas
e não resistiu.

F ui enterrar meu pai em Londrina, no Paraná, no jazigo da família, conforme ele

havia pedido. Quem pagou as custas funerárias foi a empresa de Tolentino, que se
mostrou solícito naquele momento de dor. Ao voltar a Itapevi, fui até a casa do meu
pai para começar a esvaziar o imóvel. Foi quando me deparei com contratos sociais de
empresas, pró-labores, uma infinidade de documentos que comprovavam tudo o que
ele havia me falado no hospital. Fiquei assustado porque, até aquele momento, eu
ainda desconfiava de que ele tivesse fabricado algumas histórias. Diante daquela
papelada toda, percebi que ele não estava mentindo nem exagerando. Havia falado a
verdade. Os documentos de pró-labore mostravam pagamentos de 4 mil, 5 mil reais
por empresa da qual ele era sócio. (Nunca consegui ter certeza de quantas empresas
meu pai fora sócio, mas cheguei a identificar cinco.)

Com esses documentos em mãos, procurei o escritório de Marcos Tolentino, que


comandava o grupo de empresas. Fui recebido pela advogada Cristiany Rocha de
Freitas. Ela me disse que, a despeito de todos aqueles contratos sociais, as empresas
estavam inativas e meu pai não tinha nada no nome dele. Para comprovar o que dizia,
ela me deu uma declaração de renda mostrando que meu pai ganhava 18 mil reais por
ano – o que dava 1,5 mil reais por mês.
Nos papéis, meu pai era sócio da MB Guassu, que oficialmente atuava como
administradora de bens e cujo capital social era de 2 milhões de reais. Descobri que a
MB Guassu era a principal acionista do FIB Bank, que, no papel, tinha um capital social
de 7,5 bilhões de reais, uma cifra que me causou enorme espanto. Resolvi consultar a
Junta Comercial e descobri que, ao contrário do que haviam me dito, nenhuma das
empresas estava inativa. Voltei a procurar o escritório de Tolentino em busca de
esclarecimentos. Até aquele momento, eu pensava que estava tratando com pessoas
idôneas, de um grupo de empresas correto, com atividades legítimas.

Na minha segunda visita ao escritório, fui recebido por Wagner Potenza, um dos
braços direitos de Tolentino. Comecei a conversa já num tom alterado. Disse a ele:
“Vamos parar de mentira? Como vocês me dizem que as empresas do meu pai estavam
inativas, que meu pai ganhava 18 mil por ano e que isso era tudo que vocês sabiam, e
eu descubro que há um banco muito ativo no nome dele?” (O FIB Bank, apesar do nome,
não é uma instituição financeira, segundo o Banco Central. Trata-se de uma empresa que
fornece garantias fidejussórias, que são como cartas de fiança.) Potenza tentou me acalmar.
Pediu para que eu não fizesse nada com aquilo, prometeu que falaria com Tolentino e
me daria um retorno.

Nesse meio-tempo, para piorar a situação, fui procurado por promotores do Ministério
Público que queriam saber se meu pai deixara bens. Na década de 1990, meu pai foi
alvo de catorze processos de improbidade, num valor que hoje alcança 600 mil reais.
Por isso, eu fui citado pelo Ministério Público depois de sua morte. Pela lei, nem eu
nem meus irmãos herdaremos a dívida do nosso pai, mas o patrimônio dele precisa ser
informado à Justiça para ressarcir o erário em caso de condenação. Diante da enorme
confusão burocrática, eu não tinha condições de fazer o inventário para apresentar ao
MP, e muito menos de custeá-lo. Como pagaria o imposto de transmissão de bens
previsto no inventário sobre um patrimônio gigantesco, e que eu desconhecia? Eu não
tinha esse dinheiro, nem meus irmãos.

Passaram-se os meses de outubro e novembro de 2020. Como nada se resolvia, procurei


Marcos Tolentino diretamente. No dia 20 de dezembro, fui ao seu escritório. Ele passou
quatro horas falando coisas bonitas sobre o meu pai. Sempre muito cordial, gentil.
Disse que meu pai era seu amigo, que era seu “linha de frente” nos negócios, o
primeiro a chegar ao escritório todas as manhãs, em São Paulo. E fez uma promessa:
“Não se preocupe, vou pagar todos os custos do inventário.” Disse que passaria as
festas de fim de ano na Bahia e, assim que voltasse a São Paulo, por volta do dia 3 de
janeiro, me procuraria. Era um sujeito que sabia levar as pessoas na conversa, sempre
educado. Confiei.
Tolentino não me procurou. No dia 25 de janeiro, fiz contato com ele pelo WhatsApp.
“Fernando, me desculpe, correria total!”, ele escreveu, enviando sua localização do
momento. Mostrava que ainda estava na Bahia, em Arraial d’Ajuda. Reafirmou que, ao
voltar para São Paulo, me procuraria. Enquanto isso não acontecia, ele pediu que um
de seus funcionários, Renato Nunes, me desse a assistência necessária. Nesse período,
Nunes, de fato, começou a me assessorar. Mas tudo era muito lento. Eles sempre
pediam que eu não fizesse nada, que deixasse tudo na mão deles e me orientavam,
acima de tudo, a não procurar o Ministério Público novamente, algo que eu cogitava
fazer. Queria apenas apresentar ao MP os documentos comprovando o patrimônio do
meu pai e reforçar que não tinha condições de pagar o inventário. Eu acreditava que os
promotores pudessem até mesmo me ajudar a resolver o imbróglio.

Ocorre que, em abril de 2021, a CPI da Pandemia iniciou seus trabalhos no Senado. Daí
em diante, tudo mudou.

A s investigações da CPI sobre a atuação do governo durante a pandemia não

demoraram a chegar ao FIB Bank. A empresa tinha oferecido a garantia para a compra
da vacina indiana Covaxin, pelo governo de Jair Bolsonaro – um negócio bilionário
que, uma vez reveladas as irregularidades, acabou cancelado. Eu não sabia de nada.
Até então, achava que o FIB Bank tivesse uma atividade honesta e regular, mas, a cada
passo que a CPI avançava, a confusão ficava maior – e o nome do meu pai começou a
aparecer na imprensa. Diante dessa avalanche de informação, percebi, por exemplo,
que sua morte jamais fora informada nos documentos oficiais das empresas das quais
ele era dono. O FIB Bank continuava atuando normalmente, sem que a Junta Comercial
tivesse sido avisada sobre qualquer mudança societária. O mesmo ocorria com a MB
Guassu, firma na qual meu pai tinha um sócio, um senhor chamado Sebastião Lima,
também falecido. As omissões, operadas por Tolentino e seus empregados, configuram
crime de falsidade ideológica.

Não cheguei a conhecer Sebastião Lima. Soube que era um homem simples que morava
na periferia de São Paulo. Quando morreu, em 2017, seus filhos não herdaram nada da
MB Guassu, ainda que Lima detivesse 99% do capital social da empresa. Meu pai era o
dono do 1% restante. Como nenhum herdeiro de Lima colocou a MB Guassu no
inventário, meu pai tornou-se então o único dono vivo da empresa. Ele assinava por ela
e fazia todas as movimentações. Quando meu pai morreu, o grupo do Tolentino
continuou movimentando a MB Guassu, mesmo com ambos os sócios falecidos. (Em
outubro de 2021, depois das investigações da CPI, uma empresa que foi lesada pela turma de
Tolentino protocolou um documento na Junta informando sobre a morte dos dois acionistas. A
empresa lesada está em busca de indenização.)

A CPI colocou em evidência que muitos daqueles negócios dos quais meu pai
participava pareciam ser formas de arrancar dinheiro do poder público. Eram
empresas que existiam, mas não produziam nada de fato. Tratava-se apenas de um
amontoado de CNPJs sendo movimentados por indivíduos sem que houvesse uma
atividade empresarial nítida por trás – a exceção era o FIB Bank, que, de fato, operava.
Havia clientes reais em busca de suas garantias, embora a CPI tenha mostrado que nem
todos eles puderam acionar a fiança oferecida, quando isso se fez necessário.

Todos os envolvidos na compra da vacina Covaxin eram ligados, de alguma forma, a


Marcos Tolentino. Os documentos revelados pelos senadores durante as oitivas
mostravam que meu pai já havia morrido quando o negócio começou a ser discutido
com a Índia. Mas toda a operação de garantia da compra daquela vacina foi feita pelo
FIB Bank. Naquele momento, tudo começou a fazer sentido para mim: entendi por que
eles não queriam resolver o inventário do meu pai. Mexer naquelas empresas
significaria alterar toda uma estrutura societária e revelar o que até então estava
escondido: Tolentino, apesar de ser o dono do grupo de empresas, não tinha seu nome
oficialmente vinculado a nenhuma delas. Esse era o papel do meu pai. Tolentino não
tinha a menor intenção de aparecer como dono dessas firmas. Por isso, solucionar o
meu problema seria, automaticamente, criar um problema para ele.

Em meados de julho de 2021, conforme as coisas iam ficando mais claras para mim, eu
procurava Renato Nunes, o auxiliar que fora designado para cuidar do meu caso.
Passou semanas me dizendo que não podia ajudar naquele momento porque Tolentino
estava muito debilitado recuperando-se das sequelas da Covid. Ele, de fato, tivera um
quadro grave da doença, mas sua recuperação não foi tão longa quanto diziam. Numa
das vezes em que ouvi que ele estava em fase de reabilitação, fui surpreendido naquela
mesma tarde com o noticiário mostrando Tolentino ao lado do presidente Jair
Bolsonaro num evento no Palácio do Planalto. Eu sabia das conexões políticas entre
eles. Mas fiquei indignado com a mentira.

No dia 24 de julho, a piauí me procurou quando estava fazendo uma reportagem sobre
o FIB Bank. Relatei isso ao Renato Nunes. Ele me orientou a não falar com a revista e
disse que, se eu me expusesse, seria chamado a depor na CPI, algo que eu
absolutamente não desejava. Questionei por que eu estava sendo procurado por
jornalistas e ele me escreveu a seguinte mensagem: “Foi emitida uma carta em um
negócio que não se concretizou, num período que o Marcos estava em coma. Mas como
ele tem relacionamento com o presidente e o líder do governo, está gerando esse tipo
de matéria. Estamos todos muito tranquilos.” Na época, era uma explicação nebulosa,
mas hoje se sabe que ele se referia à carta de fiança emitida pelo FIB Bank para a
compra da Covaxin e que o relacionamento de Tolentino era com Jair Bolsonaro e o
deputado Ricardo Barros (PP-PR). Já então era evidente que eles queriam me calar.
Num determinado momento, para se livrarem de mim, me ofereceram um carro zero-
quilômetro. Disseram que eu poderia escolher o modelo, de qualquer valor. Eu disse
que não aceitaria. Tenho dois irmãos e não poderia sozinho receber nada que se
referisse ao meu pai. Eu também sabia que esse carro seria uma forma de ganhar
tempo, na expectativa de que eu parasse de importuná-los com a questão do
inventário. Não aceitei.

Em outro argumento para me enrolar, diziam que, tão logo terminasse a CPI, Tolentino
compraria a participação do meu pai nas empresas – um valor que nunca foi estimado
– e eu poderia fazer o inventário normalmente. Tolentino explicava que, naquele
momento, entre julho e agosto, centraria esforços em sua defesa e, depois de concluído
o relatório final da CPI, poderia se dedicar ao meu caso. Disse que, com seus contatos
no Ministério Público, na Procuradoria-Geral da República e na Polícia Federal, ele
resolveria seus eventuais problemas rapidamente e logo estaria livre para tratar do
meu assunto. Nunca mencionou, no entanto, ter qualquer intenção de aparecer como
acionista. Ele era o sócio oculto. Meu pai era o testa de ferro.

Eu não estava nada tranquilo com aquelas promessas. Minha vida estava sendo
consumida por aquela burocracia e eu não conseguia resolvê-la. Da parte deles, só
enrolação. Para piorar, eles tinham costas quentes porque, a essa altura, já estava
evidente que Tolentino possuía conexões com os poderosos de Brasília, incluindo o
próprio presidente Bolsonaro. O que eu mais desejava, na verdade, era simplesmente
que eles resolvessem as demandas do MP no processo de improbidade e fizessem o
inventário. Tolentino havia prometido cuidar das duas coisas, mas nada acontecia.

E m setembro de 2021, quando completou um ano da morte do meu pai, fui ao

escritório de Tolentino para conversarmos. Fiquei horas por lá. Ele me apresentou a um
advogado que, segundo ele, estava trabalhando diretamente no caso do meu pai.
Chamava-se Ricardo Uchôa. O advogado me disse que atuava para extinguir as ações
de improbidade em Itapevi, o que me deu alguma esperança de que as coisas entrariam
nos eixos e a situação se regularizaria. Mas os sinais que eu recebia, na verdade, não
eram otimistas. Dias antes, Tolentino fora depor na CPI. Curiosamente, tentou parecer
que estava doente diante dos senadores, em razão de supostas sequelas da Covid. Só
que, no escritório, ele agia de forma normal, sem demonstrar qualquer sinal de que
estivesse debilitado. Pior que isso. Ali, diante dos parlamentares, ele disse que não
tinha nada a ver com meu pai ou com as empresas das quais meu pai era sócio, como a
MB Guassu e o FIB Bank. De testa de ferro, meu pai passava agora, diante do país
inteiro, a ser o único responsável por aquilo tudo.

Era uma insanidade. Eu não apenas sabia que meu pai trabalhava para Tolentino. Em
meio à papelada que encontrei em sua casa, havia um registro, em documento público,
comprovando o vínculo. Num termo de declarações assinado por meu pai em 9 de
janeiro de 2018, prestado numa delegacia de São Paulo por razões que eu desconheço,
ele reconheceu o falecimento do sócio Sebastião Lima, disse não estar a par da data
precisa da morte, alegou que não sabia quem era o verdadeiro dono da MB Guassu
(empresa da qual ele mesmo era sócio) e afirmou que trabalhava para o grupo de
Tolentino. Disse que sua função era de “assessoria na área de política empresarial”. Eu
guardo esse termo de declaração comigo, já que ele demonstra a relação que meu pai
tinha com o Tolentino – sobretudo porque, desde a CPI, Tolentino tem negado
publicamente ter qualquer coisa a ver com essas empresas das quais meu pai era sócio.

O relatório final da CPI ficou pronto no dia 26 de outubro. Em suas mais de mil
páginas, os senadores recomendaram o indiciamento de 78 pessoas, incluindo o
presidente da República, por crimes cometidos durante a pandemia. Tolentino está
entre os citados: é acusado de fraude em contrato, formação de organização criminosa e
improbidade administrativa. Os senadores classificaram Tolentino como “sócio oculto
do FIB Bank”. Ou seja, o relatório detalhava aquilo que, naquela altura, eu já sabia:
embora meu pai assinasse toda a papelada, quem era o responsável pela operação era
Tolentino. O governo, que poderia ajudar a esclarecer tudo, colaborando para
desvendar como e por que procuraram uma empresa tão enrolada como o FIB Bank
para garantir a compra da Covaxin, parece não ter interesse algum em fazê-lo, a julgar
pela reação das autoridades governamentais ao relatório final da CPI.

Minha mãe e meus irmãos já não tinham muito contato com meu pai quando tudo
aconteceu. Depois do divórcio, ele os ajudou financeiramente até a maioridade de cada
um, mas depois se afastou. Nunca foi um pai presente e tampouco deixou a família em
condição confortável após a separação. Minha mãe ficou sem nada. No final da vida,
como o salário que ele recebia de Tolentino foi minguando, eu e meus irmãos
ajudávamos a custear suas despesas básicas e medicamentos. Quando ele morreu, fui
encarregado de resolver a burocracia por ser o filho mais próximo dele, mas sempre
tive receio de contar à família tudo o que eu havia descoberto. Não queria preocupá-
los. Quando a CPI passou a investigar os negócios de Tolentino e o nome do meu pai
veio à tona, foi um susto para eles. Descobriram a confusão porque um conhecido
estava assistindo ao noticiário e avisou que o nome do meu pai havia sido citado pelos
senadores. Foi nesse momento que tive de contar tudo o que sabia. Agora, estão todos
assustados e preocupados comigo. Somos pessoas simples. Nada disso fazia parte da
nossa realidade.

Diante de tudo o que aconteceu, minha mãe se revolta: diz que, além de toda a
confusão que ele armou em vida, deixou como herança problemas ainda mais
complexos. Quando ele se foi, nós, os filhos, ficamos tristes. Era o nosso pai. Mas o
drama, neste momento, é maior, diante do imbróglio que devemos resolver. Não temos
poder, conexões políticas, influência. Somos as vítimas pequenas desse escândalo e,
portanto, o elo mais frágil. Meus irmãos e eu sempre nos perguntamos como meu pai
foi se envolver nisso. Mas não há resposta. Ele não ficou rico, não acumulou
patrimônio, não tinha nem casa própria quando morreu. Senão por dinheiro, por que
ele fez isso? Não acho que foi inocente. Não creio que as pessoas que participaram
disso, incluindo meu pai, tenham sido enganadas. Mas a razão, de fato, nunca
saberemos.

Ao contrário do que Tolentino prometera, quando o relatório final da CPI foi entregue,
ninguém me procurou para dar sequência ao meu caso. Ficaram em silêncio. Em
novembro do ano passado, o Ministério Público voltou a entrar em contato comigo em
busca do inventário do meu pai e eu voltei a recorrer a Tolentino. Foi quando Ricardo
Uchôa, advogado de Tolentino, me pediu que assinasse uma procuração dando a eles
plenos poderes para movimentar a MB Guassu na Junta Comercial – poderes que
incluíam obter certidões de quitação e transferir direitos sucessórios. Pedi explicações.
Por que precisavam de uma procuração para atuar na Junta Comercial sendo que o
problema estava no Ministério Público de Itapevi? Como confiar nessas pessoas depois
de mais de um ano de mentiras e enrolação?

Quando fiz esses questionamentos, Tolentino mudou o semblante. Disse que não iria
mais fazer nada por mim e que eu que me virasse para resolver tudo: o inventário, a
ação de improbidade, enfim, tudo que se relaciona ao meu pai. Depois de todo esse
tempo esperando, voltei à estaca zero. Mas desta vez decidi agir de forma diferente.
Estou sendo aconselhado por advogados e já apresentei tudo o que tenho ao Ministério
Público e à Polícia Federal: documentos, conversas de WhatsApp e áudios. Se essas
empresas, de fato, tiverem algum patrimônio, o que nos interessa é que ele seja usado
para resolver as pendências na Justiça. O que mais quero é me livrar dessas pessoas e
desse problema que não é meu, mas tem consumido a minha vida.
Para mim, é difícil conceber que meu pai fosse o testa de ferro de Tolentino. Ele sempre
trabalhou, estava envolvido em negócios. Não parava em casa. Mas nunca imaginei
que pudesse ser esse tipo de negócio, com licitações para o governo federal, para
governos estaduais. Embora eu tenha trabalhado brevemente num cargo indicado por
ele e até concorrido a vereador, sem sucesso, na verdade nunca fui de política. Essa não
é a minha realidade. Tenho uma vida normal, sou comerciante. Por isso demorei a
acreditar. Agora, só quero resolver e esquecer – e voltar a viver longe dessas pessoas.

Fernando Boletti de Lima

É comerciante
N uma tarde no fim de outubro do ano passado, o arqueólogo Rodrigo Elias de

Oliveira encontrou o que parecia uma pedrinha escura, no meio de uma escavação.
“Era da cor da terra”, lembra. Com seu olhar afiado de quem também estudou e exerce
odontologia, percebeu logo que tinha um elemento precioso diante de si: um dente de
leite humano. A descoberta aconteceu durante a exploração em um sítio arqueológico
no Vale do Rio Peruaçu, um afluente do São Francisco, no Norte de Minas Gerais, a
cerca de 650 km de Belo Horizonte. Oliveira sentiu-se premiado. “É uma peça muito
pequenininha, mas que pode nos dar muita informação – desde que a gente tenha a
estrutura para estudá-la”, diz.

A escavação foi feita na entrada de uma caverna formada por um grande paredão de
calcário ao longo do qual há dezenas de pinturas rupestres, representando figuras
humanas, animais e motivos abstratos. É um sítio importante para a arqueologia
brasileira. Entre os anos 1980 e 1990, escavações feitas ali sob a liderança do professor
André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encontraram
vestígios de ocupação humana por volta de 13,3 mil anos atrás, no que configura uma
das mais antigas evidências da presença do Homo sapiens no continente americano.

O arqueólogo Andrei Isnardis ainda era estudante da graduação em ciências sociais


quando participou das escavações nos anos 1990. Logo ficou claro para a equipe de
Prous que aquele era um sítio extraordinário, conta Isnardis. “Tem muito material para
datar, as coisas estão no lugar e bem conservadas, então é nadar de braçada.” O sítio
surpreendeu não só pela antiguidade, mas pela riqueza dos vestígios. Havia
ferramentas de pedra, carvão de fogueiras e restos das plantas e animais que estavam
na base da dieta dos grupos humanos de passagem por aquele abrigo. A cereja do bolo
foram seis sepultamentos com remanescentes humanos, incluindo um homem adulto
semimumificado, com fragmentos da pele, músculos, tendões e cartilagens
conservados.

Agora, quase um quarto de século depois da última escavação de Prous, o arqueólogo


André Strauss, de 37 anos, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo (USP), comanda uma equipe de pesquisadores que está de
volta ao local. Um dos objetivos das novas escavações é confirmar a presença humana
de mais de 13 mil anos – e quem sabe recuar ainda mais. Além disso, Strauss espera
encontrar fósseis humanos e novos sepultamentos. Seu objetivo é conseguir “uma
quantidade obscena de dados” e mandá-los para datação no Instituto Weizmann de
Ciência, em Israel, parceiro da USP nesse projeto.

O dente de leite achado em outubro é, por enquanto, o único remanescente humano


identificado sem sombra de dúvida nas três semanas em que a equipe da USP esteve
em campo em 2021. O dente é uma das partes anatômicas preferidas pelos arqueólogos
para tentar recuperar material genético antigo, porque está entre as que mais
preservam o DNA ao longo dos milênios. Se conseguirem isolar fragmentos de DNA
daquele dente, um trabalho delicado e complexo, os pesquisadores terão pistas sobre
quem eram – e de onde vieram – os grupos que povoaram aquele local.

O principal sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu se chama Lapa do Boquete, mas
alguns pesquisadores só se referem ao local pela sigla bqt, para evitar o duplo sentido
com a gíria que significa felação – pronunciado “boquéte”, com “e” aberto e que foi
incorporado à língua portuguesa em 1990, segundo o Dicionário Houaiss. O nome do
sítio é proferido com o “e” fechado (“boquête”), conforme registrado em nosso
vernáculo desde 1899. A lapa foi assim batizada em referência a uma passagem estreita
nas imediações da caverna, como uma pequena boca, explica Andrei Isnardis, que hoje
também é professor da UFMG.

A piauí esteve no Vale do Peruaçu em outubro para acompanhar o trabalho de campo


do grupo da USP. Junto com a arqueóloga Eliane Chim, sua aluna de doutorado,
Strauss definiu as áreas em que eles ampliariam as escavações feitas pela equipe de
Prous. Não pretendem abrir grandes áreas novas, mas apenas pequenos “puxadinhos”
nos buracos já escavados, em busca de amostras para datação. No dia em que Strauss
chegou, Chim lhe mostrou o material coletado até ali, que incluía artefatos, peças de
cerâmica e uma abundância de vegetais, como espigas e grãos de milho muito antigos.
Strauss se entusiasmou com o que viu. “Esse sítio é especial”, afirmou.

N a década de 1980, o geneticista sueco Svante Pääbo conseguiu do Museu

Egípcio de Berlim Oriental a amostra de uma criança mumificada há mais de 2 mil


anos. Fascinado pelo Egito antigo desde a infância, quando sua mãe o levou para
conhecer as pirâmides, Pääbo estava obcecado com a ideia de tentar recuperar
fragmentos de DNA de uma múmia. Nos intervalos do seu doutorado na Universidade
de Uppsala, no qual se dedicava ao estudo de adenovírus, o geneticista tentou extrair
material genético da amostra. Teve sucesso na sua tarefa. Em 1985, relatou na
revista Nature que conseguira identificar e clonar moléculas de DNA extraídas da
múmia egípcia.

Pääbo inaugurou o estudo do DNA antigo e, com sua equipe no Instituto Max Planck
de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, onde trabalha há 25 anos,
desenvolveu boa parte das ferramentas usadas nesse campo de pesquisa. Ele se
especializou no sequenciamento do DNA de linhagens extintas de humanos. Decifrou,
entre outros, o genoma dos neandertais, espécie que acabou extinta possivelmente por
ter perdido a competição evolutiva com os Homo sapiens. Em seus estudos, Pääbo
mostrou que os neandertais procriaram com humanos modernos e, mesmo que tenham
desaparecido do mapa há 40 mil anos, deixaram uma marca indelével no DNA
humano, presente em até 4% do genoma de cada um de nós.

Para os arqueólogos, o acesso aos genes de indivíduos que viveram há dezenas de


milhares de anos abriu um novo mundo. Antes, estavam limitados a estudar rastros
que as populações do passado deixavam para trás, como ferramentas de pedra. Agora,
com as crescentes inovações nos estudos sobre o DNA antigo, muitos arqueólogos
acreditam – embora outros tantos desconfiem – que a técnica poderá revolucionar a sua
disciplina tanto ou até mais do que a datação por carbono-14. (Esse método, hoje
considerado o padrão-ouro da datação arqueológica, foi desenvolvido em 1949 pelo
químico norte-americano Willard Libby. Até então, só era possível determinar a idade
de um sítio por métodos relativos, bem mais imprecisos.)

Para o geneticista norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, o DNA


antigo revelou aos pesquisadores um universo desconhecido, da mesma forma que a
invenção do microscópio no século XVII abriu os olhos da humanidade para a
existência das células e dos micro-organismos, conforme escreveu no livro Who We Are
and How We Got Here (Quem somos e como chegamos aqui), lançado em 2018 e sem
tradução para o português. A genética mostrou que as populações atuais são
aparentadas de uma forma inesperada, e revelou movimentos populacionais que não
deixaram outros registros. “O DNA antigo estabeleceu que grandes migrações e
misturas entre populações muito divergentes foram uma força central que moldou a
Pré-História humana”, escreveu Reich.

Um indicador dessa diversidade veio em 2013, quando cientistas estudaram o DNA de


um menino de 3 a 4 anos sepultado no sítio de Mal’ta, no Sul da Sibéria, há cerca de 24
mil anos. O material talvez ajudasse a entender o mistério que envolve a ocupação das
Américas, uma das grandes questões em aberto da arqueologia. Como a Sibéria é
considerada o lugar de onde saíram os primeiros americanos, talvez o grupo que
enterrou aquele garoto tivesse algum parentesco com os colonizadores das Américas.
Seu genoma poderia trazer novas pistas sobre a identidade dessas populações. O
sequenciamento foi feito pelo grupo do dinamarquês Eske Willerslev, da Universidade
de Copenhague – outro protagonista dos estudos de DNA antigo.

O estudo confirmou – mais uma vez – que os americanos efetivamente vieram da Ásia:
o DNA do garoto de Mal’ta tem trechos que só são compartilhados atualmente por
povos nativos das Américas. Mas foi mais longe. Os resultados mostraram que, de fato,
as misturas e migrações foram uma força motriz da história humana. O DNA do
menino tinha sequências que hoje só são encontradas em povos que vivem na Europa
ou no Oeste da Ásia.

O s pesquisadores estão de acordo que os grupos humanos que povoaram as

Américas saíram do nordeste da Ásia. Provavelmente, vieram a pé, porque o nível dos
oceanos estava mais baixo e havia uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca.
Essa área hoje está debaixo do mar, mas no fim da Era do Gelo formava uma grande
faixa de terra firme chamada Beríngia. Não há consenso, porém, sobre quando as
Américas foram ocupadas pela primeira vez: as estimativas mais conservadoras falam
em 15 ou 16 mil anos, mas alguns arqueólogos defendem que a entrada se deu muito
antes disso.

A questão parecia resolvida no século passado depois que uma ponta de lança
fabricada em pedra com uma técnica refinada foi encontrada ao lado de costelas de
mamute num sítio arqueológico próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, no
Oeste dos Estados Unidos. Depois desse achado, na década de 1930, pontas de estilo
parecido foram encontradas em vários sítios em território norte-americano,
frequentemente associadas a fósseis de grandes mamíferos extintos. A idade desses
sítios girava em torno dos 13 mil anos, e os fabricantes daquelas ferramentas ficaram
conhecidos como o “povo de Clóvis”.

Há 13 mil anos – uma coincidência que reforçou a tese –, as geleiras que cobriam a
maior parte da América do Norte durante a última Era do Gelo estavam derretendo.
Com isso, abriu-se um corredor terrestre que permitia a passagem de humanos e
animais do Alasca até as grandes planícies centrais dos Estados Unidos. Consolidou-se
então uma explicação para a ocupação das Américas, que foi dominante ao longo do
século XX: os humanos chegaram à América do Norte caminhando pela faixa que
ligava a Sibéria ao Alasca e, com o degelo, se espalharam pelo interior do continente,
caçando grandes mamíferos com suas pontas de lança de estilo distinto. Os primeiros
americanos, portanto, eram o povo de Clóvis.

Dali em diante, qualquer achado arqueológico que contradissesse a primazia de Clóvis


passou a ser sumariamente refutado. Foi o que aconteceu com a descoberta da
arqueóloga brasileira Niède Guidon, publicada na revista Nature, em 1986. Guidon
achou ferramentas de pedra em camadas de sedimentos com 32 mil anos de idade, no
Boqueirão da Pedra Furada, na Serra da Capivara, no Sul do Piauí. Era coisa muito
mais antiga do que o povo de Clóvis. Arqueólogos – norte-americanos na maioria –
julgaram que não era possível determinar de forma inequívoca que os artefatos fossem
de fato de fabricação humana, e por isso o sítio nunca foi amplamente aceito.

Ocorre que sítios arqueológicos anteriores à cultura Clóvis continuaram aparecendo – e


sendo contestados – em vários pontos do continente americano, até que surgiram em
Monte Verde, no Sul do Chile, evidências irrefutáveis da presença humana há 14,6 mil
anos. Um milênio antes de Clóvis. Os achados, revelados na Nature em 1988,
suscitaram a resistência costumeira, mas depois de uma década de controvérsia Monte
Verde acabou por ser reconhecido pela maioria dos arqueólogos como um sítio válido,
pondo um fim definitivo à primazia de Clóvis.

Já não era sem tempo. Cerca de 13 mil anos atrás, quando o povo de Clóvis fabricava
suas pontas no Norte, havia gente por praticamente todo canto da América do Sul. A
Lapa do Boquete não era um caso isolado no Brasil. Na mesma época, para ficar num
único exemplo, havia grupos humanos ocupando a Amazônia, como mostram os
indícios de até 13,1 mil anos encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte
Alegre, no Pará. Aquelas pessoas pareciam plenamente adaptadas aos recursos que a
floresta lhes oferecia e levavam uma vida muito diferente da dos caçadores de grandes
mamíferos do Norte, além de produzirem ferramentas usando uma tecnologia
totalmente distinta. Ou seja: o povo de Clóvis não era o pioneiro, mas contemporâneo
desses outros povos.

C omo o peso do poder econômico também aparece na ciência, as teses e

descobertas arqueológicas feitas nos países em desenvolvimento têm mais dificuldade


de atrair a atenção. Uma barreira está na ausência de infraestrutura para fazer
pesquisas de última geração, o que submete os pesquisadores à agenda dos grandes
centros estrangeiros. Por isso, a abertura do Laboratório de Arqueogenética da USP,
prevista para acontecer em maio, pode vir a ser um divisor de águas para o país e a
região. Será o primeiro laboratório da América do Sul com tecnologia de ponta para
estudar o DNA antigo. Pesquisadores da Argentina e do Peru já manifestaram interesse
em usar as instalações da USP para analisar amostras. “A expectativa é que o
laboratório se transforme num polo regional de atração e que se apresente como uma
alternativa à hegemonia dos grandes centros de pesquisa”, diz André Strauss.

O novo laboratório também deverá ajudar a manter no Brasil o patrimônio fóssil


encontrado em território nacional. “Antes tínhamos que pedir autorização para
mandar amostras para fora, porque não havia nenhum laboratório local que pudesse
realizar essas análises”, diz o geneticista Thomaz Pinotti, que está fazendo doutorado
em conjunto pela UFMG, sob orientação de Fabrício Santos, e pela Universidade de
Copenhague, com Eske Willerslev. Strauss, por sua vez, espera que o espaço ajude a
combater a lógica que impera na arqueogenética mundial, em que os cientistas dos
países em desenvolvimento mandam suas amostras para processamento nos países
desenvolvidos, e elas passam a ser tratadas como commodities, num processo em que
os pesquisadores da periferia entram com a matéria-prima, e os cientistas dos grandes
centros, com a tecnologia e a expertise.

Com 96 m2, o laboratório fica no Museu de Arqueologia e Etnologia, na Cidade


Universitária, na Zona Oeste de São Paulo. Quase metade dessa superfície é dedicada à
área reservada para a manipulação do material antigo – o chamado clean lab, ou
laboratório limpo, equipado com uma série de dispositivos para minimizar a
contaminação de amostras por DNA moderno. Mesmo com a adoção desses
dispositivos, a contaminação continua sendo o principal fantasma dos estudiosos de
genomas. Num laboratório, moléculas de DNA – humano e de outros organismos –
podem estar em todo canto: suspensas no ar, coladas na vidraria, nos equipamentos.
No estudo de DNA antigo, é fundamental garantir que o material genético analisado
vem de fato do fóssil, e apenas do fóssil, e não de uma das incontáveis fontes potenciais
de contaminação.

O laboratório da USP é compartimentado em ambientes separados, cada um reservado


para uma etapa da extração e processamento do DNA antigo. “A ideia é nunca
misturar as coisas”, disse Strauss quando levou a reportagem da piauí para conhecer o
local, em dezembro passado. O arqueólogo chama a atenção para o sistema de
pressurização e purificação do ar, dois dos principais mecanismos para evitar a
contaminação. “Quanto mais você entrar na área limpa, maior será a pressão. Quando
abrir uma porta, o ar vai fluir para fora”, explicou, simulando o barulho do vento. Os
pesquisadores terão que vestir equipamento de segurança com gorro, macacão e luvas,
e qualquer objeto que for trazido para a área limpa terá que receber um banho de luz
ultravioleta que destrói moléculas de DNA.

Strauss disse que a construção do laboratório custou cerca de 1 milhão de reais, dos
quais um terço foi para a compra de equipamentos. A máquina mais sofisticada
adquirida para o projeto é um TapeStation, que será usado para organizar a informação
genética a ser sequenciada. “O grande truque não está no equipamento, mas sim na
estrutura do laboratório, nos reagentes utilizados e nos protocolos capazes de
identificar e isolar o DNA antigo”, disse a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, que
vai coordenar o laboratório ao lado de Strauss.

A maior parte do financiamento para a construção do laboratório vem da Fapesp, a


fundação paulista de amparo à ciência, que tem um edital para estimular jovens
pesquisadores a trazer novas linhas de pesquisa para suas instituições. O resto dos
recursos vem da própria USP e de uma parceria estabelecida com o Instituto Max
Planck. A origem da parceria remonta a 2010, quando Strauss foi para o centro de
pesquisa alemão fazer seu doutorado. O DNA antigo estava na crista da onda no Max
Planck: naquele ano, o grupo de Svante Pääbo publicou o rascunho do genoma do
neandertal e o genoma completo dos denisovanos – outra espécie humana extinta,
conhecida apenas por um número restrito de fósseis encontrados na Ásia.

Quando estava no instituto alemão, Strauss percebeu que o DNA antigo poderia ajudar
a resolver mistérios da arqueologia brasileira. Material de estudo não faltaria: a região
de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é conhecida pela abundância de remanescentes
humanos antigos encontrados em seus sítios arqueológicos. Centenas de esqueletos
foram exumados naquela região desde as expedições pioneiras do naturalista
dinamarquês Peter Lund nos anos 1840.

Aqueles fósseis poderiam ajudar a provar – ou refutar – uma hipótese proposta no final
dos anos 1980 pelo bioantropólogo Walter Neves, mentor de Strauss na arqueologia.
Neves sugeriu que o continente americano foi povoado por dois grupos
biologicamente distintos, que vieram em duas levas – ambas passando pela Beríngia. O
cientista chegou a essa conclusão ao notar que os crânios de Lagoa Santa e outras
regiões do continente americano tinham aspectos que lembravam mais as populações
que hoje vivem na Austrália ou na África do que os indígenas atuais. A reconstituição
do rosto de Luzia, um dos esqueletos humanos mais velhos das Américas, encontrado
em 1974, fixou no imaginário popular no Brasil, ao aparecer em jornais, revistas e livros
didáticos, como a figura emblemática da suposta cara dos primeiros brasileiros.
Na tese de Neves, a primeira leva de americanos trouxe os antepassados de Luzia, que
têm ancestrais comuns com os grupos que saíram da África e colonizaram a Oceania, se
deslocando por meio de barcos desde o Sudeste Asiático, há mais de 40 mil anos. A
segunda leva de americanos incluiu os povos com feições mais próximas às dos
asiáticos atuais, que deram origem aos povos indígenas. Se fosse possível extrair DNA
do material de Lagoa Santa, talvez desse para esclarecer seu parentesco com os
indígenas contemporâneos.

Strauss falou da sua ideia a Johannes Krause, geneticista alemão que foi aluno de
Svante Pääbo e trabalhou com o sueco no sequenciamento do genoma dos denisovanos
e neandertais. Krause foi cético quanto à possibilidade de sucesso, já que em ambientes
tropicais o DNA se degrada mais rapidamente, devido à temperatura, à umidade e à
acidez do solo. Mas ele estimulou Strauss a seguir em frente, e o Instituto Max Planck
formalizou a parceria com a USP.

H oje, os cientistas combinam dois tipos de técnicas para estabelecer a

genealogia da espécie humana – a análise do DNA antigo, o método mais moderno,


que conheceu um salto tecnológico nos últimos quinze anos, e o exame do genoma de
povos contemporâneos, que vinha sendo feito há mais tempo. Contar a história
populacional a partir do estudo do DNA moderno é como tentar entender como foi
uma partida de xadrez olhando para a posição final das peças, como propõe o
geneticista Thomaz Pinotti. O tabuleiro mostra como o jogo terminou, mas dá poucas
pistas sobre como cada peça se movimentou durante a partida. “Com o DNA antigo,
conseguimos vislumbrar momentos passados do jogo e enxergar onde estavam as
peças nas rodadas anteriores.”

No caso da ocupação das Américas, os estudos genéticos indicam que os povos


indígenas atuais são, na grande maioria, descendentes de uma mesma população, que
por sua vez é fruto do cruzamento entre um grupo vindo do Leste asiático e de uma
população siberiana que já não existe de forma isolada, da qual fazia parte o menino de
Mal’ta.

A genética mostra ainda que os ancestrais dos nativos americanos se isolaram dos
demais povos asiáticos numa época que coincide com o chamado Último Máximo
Glacial, situado entre 26 mil e 19 mil anos atrás, que marca o auge da extensão das
geleiras na última Era do Gelo. Cientistas acreditam que o isolamento dessa população
se deu justamente por causa das condições climáticas extremas, deixando-a cercada de
gelo na Beríngia, aquela passagem entre a Sibéria e o Alasca.

Em seu mestrado pela UFMG, Pinotti investigou as linhagens de cromossomo Y


(passado do pai para os filhos homens) que deram origem à diversidade genética atual
dos indígenas americanos. “A história que o cromossomo Y conta é de uma expansão
populacional explosiva nas Américas”, disse o geneticista. “Um grupo pequeno de
homens entrou no continente e foi extremamente bem-sucedido, assim como seus
filhos.” (Esse grupo naturalmente incluía também mulheres, mas o estudo de Pinotti
revelou apenas detalhes sobre a linhagem paterna dos primeiros americanos, já que
examinou o cromossomo Y.)

Essa explosão populacional é um sinal de que o grupo que tinha ficado isolado dos
demais povos asiáticos havia finalmente chegado às Américas – esse é o padrão que se
esperaria depois que um agrupamento humano chegasse num território novo,
despovoado e repleto de recursos. Por isso, os cientistas acreditam que o período de
isolamento populacional aconteceu na Beríngia, que não estava coberta por geleiras e
era habitada por grandes mamíferos que podiam servir de alimento. “O problema é
que a genética é meio ruim para dizer onde as pessoas estavam naquele momento”,
disse Pinotti. “Só conseguimos falar do tempo.”

Usando uma ferramenta que permite estimar quando duas populações se separaram e
há quanto tempo elas compartilham um ancestral comum, conhecida como “relógio
molecular”, o geneticista brasileiro e seus colegas calcularam que a chegada às
Américas do grupo que deu origem aos povos indígenas atuais aconteceu há, no
máximo, 19,5 mil anos, conforme anunciaram em artigo publicado na revista Current
Biology, em 2019.

O resultado coincide em grandes linhas com estimativas feitas a partir das linhagens de
DNA mitocondrial, que, como é transmitido apenas da mãe aos seus filhos, é útil para
investigar as linhagens maternas de uma população. Um estudo de 2016 que analisou
essas linhagens concluiu que a entrada nas Américas deve ter acontecido por volta de
16 mil anos atrás, por um grupo que colonizou o continente seguindo o litoral do
Pacífico.
A história do povoamento das Américas ficou mais confusa em 2015, quando um

estudo mostrou que três povos indígenas brasileiros – Paiter-Suruí e Karitiana, em


Rondônia, e Xavante, em Mato Grosso – tinham em seu genoma um padrão que só é
encontrado em populações da Austrália, da Nova Guiné e das Ilhas Andaman, no
Sudeste Asiático. Essa assinatura – o “sinal australasiano”, conforme dizem os
geneticistas – correspondia a cerca de 3% do genoma dos três povos, mas aparecia de
modo consistente – e inexplicável.

Quando se deparou com esse sinal na análise dos dados, a geneticista Tábita
Hünemeier – uma das autoras da descoberta – achou que se tratasse de um erro, de tão
contraintuitivo que lhe pareceu. Ela tentou fazer correções estatísticas para ver se o
sinal sumia, mas ele continuava irredutível. Dos 21 povos indígenas de todo o
continente americano amostrados pelo estudo, os três grupos brasileiros – e apenas eles
– pareciam ter como ancestral uma população misteriosa.

O coordenador do estudo – David Reich, de Harvard – sugeriu chamá-la de


“população X”, mas a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), que era também autora do trabalho, torceu o nariz para a
sugestão. Com Hünemeier, que fora sua aluna de doutorado, Bortolini decidiu propor
um nome mais criativo. Hünemeier foi atrás de um dicionário de tupi que havia na
casa de sua tia e veio com a proposta de chamar aquela população misteriosa de
Ypykuéra, que quer dizer “ancestral”. A proposta vingou, e o grupo ficou conhecido
como a “população Y”.

Mas o nome não ajudava a explicar de onde tinham vindo aqueles ypykuéras. O sinal
aparecia em povos indígenas que falam línguas de troncos distintos, que se separaram
há mais de 4 mil anos. “Por isso, achamos que deveria ser um sinal antigo”, disse
Hünemeier. O problema ganhou nitidez em 2021, quando ela e seus colegas decidiram
buscar o sinal genético numa amostra maior de populações. Ele apareceu então nos
araras, no Pará, nos guaranis-kaiowás, em Mato Grosso do Sul, e em povos indígenas
de outros países. “O que a gente vê é o sinal muito espalhado pela América do Sul”,
continuou a geneticista. “Tem nos Andes, na Amazônia, na costa do Pacífico.” Para ela,
é um indício de que a rota de colonização do continente americano se deu pelo litoral
do Pacífico. Mas os cientistas não sabem dizer por que essa assinatura genética não foi
encontrada em povos da América do Norte ou da Sibéria.
O sinal australasiano não quer dizer que povos da Oceania atravessaram o Pacífico
para chegar às Américas no passado remoto. Tal sinal foi trazido ao continente pelos
povos que entraram pelo nordeste asiático, na região siberiana. Provavelmente, é o
resultado de cruzamentos entre populações diferentes que se encontraram na Sibéria,
de onde alguns partiram rumo ao continente americano, e outros, em direção à
Oceania. “Tudo tem a ver com a heterogeneidade dos povos que chegaram à Beríngia e
a partir dali se dispersaram pelo continente americano”, disse Bortolini.

Para Hünemeier, a descoberta do sinal australasiano deveria levar os geneticistas a


reconsiderar seu entendimento da ocupação das Américas. “A gente pensava nessa
questão de forma muito simplista, com o povoamento feito em uma grande leva
migratória, seguida por outras ondas menores”, afirmou. “Parece que foram sucessivas
ondas, todas vindas do mesmo lugar, mas em tempos distintos, e por uma população
maior e mais diferenciada do que se pensava.”

O s dois primeiros estudos pelo método do DNA antigo em amostras

arqueológicas encontradas no Brasil foram realizados no exterior e publicados em 2018.


Um saiu na revista Science e outro na Cell (André Strauss, da USP, é o único cientista a
assinar ambos os trabalhos). O primeiro sequenciou o genoma de cinco indivíduos
escavados por Peter Lund na Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa, no século XIX,
cujos remanescentes são parte do acervo do Museu Real de História Natural da
Dinamarca. O material foi processado no laboratório do geneticista Eske Willerslev, em
Copenhague.

O outro estudo, publicado na Cell, analisou amostras de sete esqueletos escavados na


Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, um sítio que foi estudado pela equipe de
Walter Neves na primeira década deste século e que, desde 2011, vem sendo escavado
sob a coordenação de Strauss. Nesse caso, o DNA foi extraído num laboratório da
Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde atua o geneticista Cosimo Posth, que
conduziu o trabalho. Nos dois casos, os estudos incluíram também análises de material
encontrado em outros países americanos.

O genoma dos indivíduos coletados por Lund acrescentou uma pitada de mistério
acerca da população Y. O sinal australasiano apareceu em um – e apenas um – dos
cinco indivíduos. Para complicar, correspondia a cerca de 3% de seu genoma, uma
proporção parecida à encontrada nas populações contemporâneas. O dado é um
complicador porque se o sinal australasiano fosse, de fato, um sinal antigo, como
suspeitavam os pesquisadores, ele devia aparecer em proporção bem maior naquele
indivíduo que viveu há 10,4 mil anos – e não na mesma proporção das populações de
hoje. A constatação representa um desafio, que os próprios autores reconheceram no
artigo. O enigma permanece sem solução.

Mas os indivíduos da Lapa do Santo, cujo DNA foi extraído na Alemanha, ajudaram a
elucidar algumas dúvidas. A análise mostrou que os sete indivíduos tinham parentesco
com um menino que fora enterrado por volta de 12,8 mil anos atrás em Anzick, em
Montana, no noroeste dos Estados Unidos, junto de ferramentas típicas do povo de
Clóvis – esse menino é o único remanescente humano encontrado num sítio dessa
cultura. O mesmo parentesco foi verificado em outros dois esqueletos de países
americanos: um, de quase 11 mil anos e encontrado em Los Rieles, no Chile, e um
outro, de 9,3 mil anos, escavado em Belize, na América Central.

As descobertas sugerem que, de fato, o povo de Clóvis se expandiu para a América do


Sul, mesmo que não tenham sido eles os primeiros a ocupar o continente. O estudo
revelou ainda que os fabricantes das ferramentas de Clóvis não são ancestrais dos
indígenas sul-americanos contemporâneos. Portanto, outra onda migratória é que
trouxe para a América do Sul os antepassados dos povos originais.

Os genomas da Lapa do Santo ainda mostraram que os povos de Lagoa Santa, embora
tivessem crânios com feições parecidas com as dos australasianos, não tinham conexão
genética com essas populações. Pelo contrário, eles compartilham um ancestral comum
com os povos indígenas atuais, que têm feições mais parecidas com as dos povos
asiáticos. Tudo considerado, os resultados indicam que Luzia e seus parentes não são
uma população biologicamente distinta, o que joga por terra o modelo de ocupação
proposto por Walter Neves.

Diante disso, Strauss mandou fazer outra reconstituição facial baseada nos crânios de
Lagoa Santa – dessa vez de um indivíduo da Lapa do Santo –, divulgada por ocasião
da publicação dos dois artigos. A ideia era substituir a imagem de Luzia com traços
marcadamente africanos, elaborada nos anos 1990. A nova cara dos povos de Lagoa
Santa tem uma morfologia mais genérica, com traços menos africanizados que os de
Luzia. A imagem, porém, não viralizou como a reconstituição original e, ainda hoje, o
rosto de Luzia é a figura que vem à mente quando se pensa nos primeiros brasileiros.

Neves não se deu por vencido. Amargurado com a proeminência que a genética vem
ganhando na arqueologia – uma tendência que costuma descrever como a “ditadura do
DNA” –, ele prefere enxergar que a presença do sinal australasiano em alguns povos
indígenas é uma prova de que sua tese – que o continente americano foi povoado por
dois grupos biologicamente distintos – está correta. Para ele, a população Y nada mais
é do que a população que teria dado origem aos povos de Lagoa Santa cujos
remanescentes foram escavados por ele e sua equipe. “Isso era algo absolutamente
esperado”, diz. No entanto, Neves não explica por que os esqueletos da Lapa do Santo
são parentes dos indígenas contemporâneos e, portanto, não representam povos
biologicamente distintos.

É irônico que a hipótese de Neves tenha sido refutada pela genética, num estudo feito
por Strauss, um ex-aluno que ele considera brilhante. Em certa medida, o triunfo do
DNA representa o ocaso da craniometria, técnica que o bioantropólogo empregou ao
longo da carreira (Neves se aposentou em 2017, mas continua a frequentar a
universidade). A hipótese de que as Américas tinham sido povoadas por duas
populações distintas foi construída com base em medições minuciosas da morfologia
dos crânios. Com o acesso ao DNA antigo, no entanto, agora os cientistas conseguem
resgatar as instruções genéticas que levaram à diversidade observada nas amostras.

Na avaliação de Strauss, o DNA antigo permitirá que os cientistas finalmente consigam


reconstruir as relações de ancestralidade das populações. Os marcadores indiretos que
os cientistas usavam para inferir as relações entre as populações – como as medidas
dos crânios – muitas vezes lhes davam pistas enganosas. “Agora temos um teste de
paternidade para a arqueologia”, afirmou Strauss. “Conseguimos dizer quem é pai de
quem, que é uma parte fundamental da história humana.”

A região da anatomia preferida pelos geneticistas para a extração de DNA antigo

é a parte de dentro do osso temporal, onde fica a cóclea, no ouvido interno. “Como o
osso é mais denso e isolado nessa região, a gente tende a ter mais DNA preservado ali”,
diz o geneticista Tiago Ferraz, da USP. Mas se o objetivo for a extração de DNA
mitocondrial (aquele que só passa de mãe para filho), continua Ferraz, é melhor usar
um dente, que preserva maiores concentrações desse material.

O DNA antigo é extraído do pó do osso, que é submetido a uma série de reações


químicas. Para isso, naturalmente, é preciso transformar o osso em pó. “Todas as
análises começam com um processo destrutivo”, explicou Ferraz. Existe um método de
amostragem por meio de uma pequena incisão que preserva a integridade do crânio,
mas não é a estratégia mais eficaz. “Quando temos a permissão dos arqueólogos para
destruir o material, cortamos o osso de forma longitudinal, para poder ver os canais
auditivos e fazer a amostragem direto na cóclea, no ponto mais denso”, afirma o
geneticista. Antes disso, porém, é preciso fazer uma tomografia do fóssil, de forma a
poder construir uma réplica em três dimensões no futuro. Mas não há garantia de
sucesso: os pesquisadores não têm como saber se será possível recuperar DNA de uma
amostra antes de processá-la.

Ferraz diz que uma quantidade minúscula de pó de osso – de 30 a 50 mg apenas – é


suficiente para a extração de DNA. No processo, o pó é misturado a um reagente que
se liga a moléculas de DNA, sejam elas provenientes do fóssil, de humanos
contemporâneos ou de qualquer outro organismo. A etapa seguinte consiste em
separar o material genético humano do não humano. O DNA antigo é separado do
moderno na análise dos dados, com a ajuda de ferramentas capazes de identificar a
degradação dessa molécula ao longo do tempo – a capacidade de separar o DNA
antigo do contemporâneo é que caracterizou o grande salto que a arqueogenética deu
nos últimos anos.

Tiago Ferraz aprendeu os protocolos para extrair DNA de fósseis e validar a


antiguidade do material no Instituto Max Planck, onde passou dois anos de seu
doutorado. A defesa de sua tese, orientada por Tábita Hünemeier e André Strauss,
estava marcada para o fim de janeiro deste ano. Depois disso, ele deve começar seu
pós-doutorado, financiado pela parceria da USP com o Instituto Max Planck. Ferraz
será o responsável pela extração de DNA antigo no Laboratório de Arqueogenética, e
deve treinar outros pesquisadores para executarem a tarefa no futuro.

Dentre as amostras que serão analisadas na USP, estão o dente de leite achado na Lapa
do Boquete e outros remanescentes humanos que venham a surgir nas próximas etapas
da escavação – os pesquisadores voltarão a campo em maio. Uma das primeiras
amostras das quais Strauss gostaria de tentar extrair DNA é o Homem de Confins,
encontrado numa expedição feita nos anos 1930 em um dos sítios mais ricos da região
de Lagoa Santa – a Lapa Mortuária de Confins, onde foram descobertos remanescentes
de mais de oitenta indivíduos. O esqueleto do Homem de Confins estava junto a fósseis
de animais extintos, sinalizando que poderia ser muito antigo, mas não foi possível
datá-lo diretamente. Por sorte, Strauss fez amostragens desse indivíduo antes do
incêndio no prédio em que ficava a reserva técnica do Museu de História Natural e
Jardim Botânico da UFMG, em junho de 2020. O fogo destruiu remanescentes humanos
coletados ao longo de décadas na região de Lagoa Santa.

Strauss gostaria também de ampliar a diversidade geográfica das amostras de DNA


antigo estudadas no Brasil. Por enquanto, a região de Lagoa Santa é a única em que
esqueletos muito velhos tiveram o genoma analisado. Com o laboratório da USP, o
arqueólogo espera conseguir caracterizar melhor a história profunda dos nativos
americanos. “Os dados arqueogenéticos vão nos permitir entender quem eram esses
primeiros americanos e quais eram suas dinâmicas populacionais”, afirmou.

E m setembro do ano passado, cientistas britânicos e norte-americanos

anunciaram ao mundo que haviam descoberto milhares de pegadas humanas à beira


de um lago, num sítio arqueológico no Parque Nacional de White Sands, no Novo
México. Eram pegadas de pelo menos dezesseis pessoas. Tinham sido deixadas por pés
humanos de diferentes tamanhos, crianças e adolescentes na maioria. Os cientistas
identificaram um total de 61 trilhas, das quais a mais comprida passa de 2 km. As
datações indicam que as pegadas foram feitas entre 21 mil e 23 mil anos, no auge,
portanto, do Último Máximo Glacial, conforme anunciaram os autores na
revista Science.

Um ano antes, a Nature publicou um artigo que trazia evidências muito antigas da
presença humana no continente americano, desta vez na Caverna Chiquihuite, que fica
numa montanha no centro-norte do México, a 2 740 metros de altitude. Ali, foram
encontradas quase 2 mil ferramentas de pedra em diferentes camadas de sedimentos.
As mais antigas estavam em camadas de pelo menos 31 mil anos, milênios antes do
Último Máximo Glacial, conforme relatou um grupo de cientistas do México, Brasil,
Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.

Os dois exemplos são os acréscimos mais recentes à lista de evidências da presença


humana nas Américas há mais de 20 mil anos. O Brasil tem alguns representantes
ilustres nessa lista. O casal de arqueólogos Denis Vialou e Águeda Vilhena Vialou – ele
francês e ela brasileira –, em artigo publicado na revista Antiquity em 2017, relatou ter
encontrado vestígios de uma ocupação com pelo menos 26 mil anos de idade em Santa
Elina, em Mato Grosso.

Na Serra da Capivara, as evidências da presença humana anterior a Clóvis continuam a


aparecer, e agora já surgiram em oito sítios arqueológicos. Na década passada, o
arqueólogo Eric Boëda substituiu Niède Guidon na coordenação da missão
arqueológica franco-brasileira que pesquisa a região desde os anos 1970. Para fugir da
controvérsia em torno do Boqueirão da Pedra Furada – aquele onde Guidon achou
ferramentas com 32 mil anos de idade –, Boëda tratou de adotar métodos mais
modernos e escavar novos sítios. Na Toca da Tira Peia, seu grupo achou evidências de
ocupação com 22 mil anos de idade. No Sítio do Meio, as datas chegam a 29 mil anos.
No Vale da Pedra Furada, 41 mil anos, conforme sustentou um artigo publicado no ano
passado na revista Plos One. “Está ficando difícil dizer que não existe [uma ocupação
antiga naquela região]”, afirmou Boëda.

Mesmo assim, nenhum sítio arqueológico brasileiro anterior ao Último Máximo Glacial
é reconhecido de forma irrestrita. Ainda é cedo para dizer se White Sands e
Chiquihuite terão mais aceitação na comunidade arqueológica. É possível que
enfrentem alguma resistência, porque as datas não se encaixam com a história que a
genética conta. De acordo com os estudos de DNA antigo e contemporâneo, a
população asiática que deu origem aos povos nativos americanos se formou entre 21
mil e 20 mil anos atrás. A ocupação do continente, portanto, teria acontecido depois
disso. De modo que qualquer datação anterior a esse período acaba enfrentando
resistência entre os estudiosos. Se até o século passado a época em que viveu o povo de
Clóvis era considerada o limite para a ocupação do continente, hoje é a genética quem
impõe o teto cronológico.

Esse cenário, no entanto, não invalida as provas da presença humana nas Américas
antes do Último Máximo Glacial. O que a genética nos conta, na realidade, é que, se
havia grupos humanos lascando pedra no Piauí há 40 mil anos, então eles não são
ancestrais dos povos indígenas atuais. Em outras palavras, são uma população que não
teve sucesso reprodutivo, conforme propôs Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. “Os
bem-sucedidos foram os sibero-beringianos e os ypykuéras”, afirma a geneticista. “Eles
colonizaram o continente e seus descendentes estão aí.”

Nada impede, portanto, que os grupos humanos que passaram por White Sands,
Chiquihuite, Santa Elina e a Serra da Capivara representem de fato um beco sem saída
da genealogia humana – mas, mesmo assim, terão sido eles, e não o povo de Clóvis, os
primeiros habitantes do continente americano. O que intriga os geneticistas é que
mesmo espécies extintas como os neandertais e os denisovanos – os malsucedidos de
seu tempo – deixaram pistas genéticas que ajudam a retraçar sua história. Por que os
povos de White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra de Capivara não deixaram
pista alguma? “O que o DNA antigo mostrou até agora é que ninguém some sem
deixar rastro”, disse Thomaz Pinotti.

Se houve grupos humanos que entraram nas Américas antes do Último Máximo
Glacial, se espalharam pelo continente e depois desapareceram, esse seria um evento
único na história humana, argumenta André Strauss. “Em nenhum outro lugar do
mundo o Homo sapiens passou dezenas de milhares de anos com uma densidade
demográfica mínima, que beira a invisibilidade”, afirma. Depois que saíram da África,
os humanos modernos colonizaram a Eurásia em 5 mil anos, continua o arqueólogo.
“Esses caras não eram bobos, eles sabiam o que estavam fazendo.” Diante dessa
excepcionalidade, acredita Strauss, o ônus da prova deveria recair sobre os cientistas
que defendem que a presença humana no continente americano tem mais de 20 mil
anos.

A dificuldade de acomodar no mesmo roteiro os sítios muito antigos e os estudos

de DNA aguçou uma tensão velada entre arqueólogos e geneticistas. O arqueólogo


Astolfo Araujo, também da USP, é um dos que veem com desconfiança a primazia que
a biologia molecular conquistou na explicação do povoamento das Américas. Em sua
avaliação, estudos genéticos pecam ao fazer afirmações peremptórias a partir de dados
fragmentários, que dependem de um número limitado de amostras estudadas. “Pode
haver uma quantidade enorme de informação que não está nos esqueletos conhecidos”,
alegou.

Araujo lembra também que o relógio molecular, aquele método que calcula a data de
separação entre as populações, carrega muita incerteza. O método se baseia na
frequência com que ocorrem mutações aleatórias no DNA mitocondrial, no
cromossomo Y ou nos demais trechos do genoma humano. Araujo afirma que a
imprecisão advém do fato de que essa frequência não é constante ao longo do tempo e
depende de uma série de fatores. No entanto, diz ele, nem sempre as incertezas são
discutidas pelos geneticistas. Além disso, os estudos do DNA muitas vezes desprezam
os resultados gerados por outras linhas de evidência, arqueológicas ou não.

Por exemplo: se os humanos chegaram à América do Norte por volta de 18 mil anos
atrás, conforme sugere a genética, como explicar a grande variedade de estilos de
ferramentas encontrada na América do Sul por volta de 13 mil anos atrás? “Muito
tempo teria que ter passado para chegarmos a essa vastíssima diversidade cultural”,
afirma o arqueólogo da USP. Da mesma forma, uma ocupação recente não explica a
riqueza das línguas indígenas faladas hoje na Amazônia. “A genética é imprescindível
e enriquece muito as nossas inferências, mas devemos saber de suas limitações”, diz
Araujo. “E temos que colocar a bendita arqueologia nessa história.”
A divergência entre os resultados dos estudos de DNA e os sítios arqueológicos muito
antigos pode servir de estímulo à busca de novas evidências. “O que parece é que
houve mesmo uma entrada no continente antes do Último Máximo Glacial”, afirma
Andrei Isnardis, o arqueólogo da UFMG que estudou a Lapa do Boquete nos anos 1990
e está participando das novas escavações. Recentemente, Isnardis e alguns colegas
visitaram os sítios em Mato Grosso e no Piauí. Ele saiu convencido de que os indícios
da presença humana antiga ali são inequívocos. “Tudo bem que a genética aponte para
uma ocupação não tão antiga”, afirma. “Não será a primeira e nem a oitava vez que a
gente diverge da genética. Nós vamos continuar estudando.”

Escaldados, os geneticistas evitam colocar mais lenha na fogueira. Thomaz Pinotti


acredita que eles devem sempre seguir o consenso dos arqueólogos. “Se a comunidade
como um todo decidir que White Sands é um sítio indiscutível, temos que incluir isso
nas nossas modelagens.” Tábita Hünemeier lembra que a genética é só mais uma
ferramenta para elucidar os processos de povoamento do continente. “Ela tem mais
poder de explicação porque consegue resgatar informações antigas, datar mutações e
ver a estrutura de populações que desapareceram, mas não consegue trabalhar
sozinha.” A geneticista está contente de dividir com um arqueólogo a coordenação do
Laboratório de Arqueogenética da USP. “Eu e André temos visões diferentes do
mesmo problema, mas a gente se complementa.”

Strauss está acostumado a transitar entre campos distintos. Ele tem graduação em
geologia e em ciências sociais, e colocou um pé na genética desde o mestrado. “O
cientista social tem uma língua, o biólogo tem outra e o geólogo tem uma terceira. Se
você sabe falar essas línguas, é muito mais fácil fazer com que eles trabalhem juntos”,
diz. Strauss acredita que é a arqueologia, e não a genética, quem terá a palavra final
sobre o povoamento das Américas. “A resolução desse debate virá por uma descoberta
arqueológica, ou pela sua ausência nos próximos mil anos.”
N uma tarde no fim de outubro do ano passado, o arqueólogo Rodrigo Elias de

Oliveira encontrou o que parecia uma pedrinha escura, no meio de uma escavação.
“Era da cor da terra”, lembra. Com seu olhar afiado de quem também estudou e exerce
odontologia, percebeu logo que tinha um elemento precioso diante de si: um dente de
leite humano. A descoberta aconteceu durante a exploração em um sítio arqueológico
no Vale do Rio Peruaçu, um afluente do São Francisco, no Norte de Minas Gerais, a
cerca de 650 km de Belo Horizonte. Oliveira sentiu-se premiado. “É uma peça muito
pequenininha, mas que pode nos dar muita informação – desde que a gente tenha a
estrutura para estudá-la”, diz.

A escavação foi feita na entrada de uma caverna formada por um grande paredão de
calcário ao longo do qual há dezenas de pinturas rupestres, representando figuras
humanas, animais e motivos abstratos. É um sítio importante para a arqueologia
brasileira. Entre os anos 1980 e 1990, escavações feitas ali sob a liderança do professor
André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encontraram
vestígios de ocupação humana por volta de 13,3 mil anos atrás, no que configura uma
das mais antigas evidências da presença do Homo sapiens no continente americano.

O arqueólogo Andrei Isnardis ainda era estudante da graduação em ciências sociais


quando participou das escavações nos anos 1990. Logo ficou claro para a equipe de
Prous que aquele era um sítio extraordinário, conta Isnardis. “Tem muito material para
datar, as coisas estão no lugar e bem conservadas, então é nadar de braçada.” O sítio
surpreendeu não só pela antiguidade, mas pela riqueza dos vestígios. Havia
ferramentas de pedra, carvão de fogueiras e restos das plantas e animais que estavam
na base da dieta dos grupos humanos de passagem por aquele abrigo. A cereja do bolo
foram seis sepultamentos com remanescentes humanos, incluindo um homem adulto
semimumificado, com fragmentos da pele, músculos, tendões e cartilagens
conservados.

Agora, quase um quarto de século depois da última escavação de Prous, o arqueólogo


André Strauss, de 37 anos, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo (USP), comanda uma equipe de pesquisadores que está de
volta ao local. Um dos objetivos das novas escavações é confirmar a presença humana
de mais de 13 mil anos – e quem sabe recuar ainda mais. Além disso, Strauss espera
encontrar fósseis humanos e novos sepultamentos. Seu objetivo é conseguir “uma
quantidade obscena de dados” e mandá-los para datação no Instituto Weizmann de
Ciência, em Israel, parceiro da USP nesse projeto.

O dente de leite achado em outubro é, por enquanto, o único remanescente humano


identificado sem sombra de dúvida nas três semanas em que a equipe da USP esteve
em campo em 2021. O dente é uma das partes anatômicas preferidas pelos arqueólogos
para tentar recuperar material genético antigo, porque está entre as que mais
preservam o DNA ao longo dos milênios. Se conseguirem isolar fragmentos de DNA
daquele dente, um trabalho delicado e complexo, os pesquisadores terão pistas sobre
quem eram – e de onde vieram – os grupos que povoaram aquele local.

O principal sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu se chama Lapa do Boquete, mas
alguns pesquisadores só se referem ao local pela sigla bqt, para evitar o duplo sentido
com a gíria que significa felação – pronunciado “boquéte”, com “e” aberto e que foi
incorporado à língua portuguesa em 1990, segundo o Dicionário Houaiss. O nome do
sítio é proferido com o “e” fechado (“boquête”), conforme registrado em nosso
vernáculo desde 1899. A lapa foi assim batizada em referência a uma passagem estreita
nas imediações da caverna, como uma pequena boca, explica Andrei Isnardis, que hoje
também é professor da UFMG.

A piauí esteve no Vale do Peruaçu em outubro para acompanhar o trabalho de campo


do grupo da USP. Junto com a arqueóloga Eliane Chim, sua aluna de doutorado,
Strauss definiu as áreas em que eles ampliariam as escavações feitas pela equipe de
Prous. Não pretendem abrir grandes áreas novas, mas apenas pequenos “puxadinhos”
nos buracos já escavados, em busca de amostras para datação. No dia em que Strauss
chegou, Chim lhe mostrou o material coletado até ali, que incluía artefatos, peças de
cerâmica e uma abundância de vegetais, como espigas e grãos de milho muito antigos.
Strauss se entusiasmou com o que viu. “Esse sítio é especial”, afirmou.
N a década de 1980, o geneticista sueco Svante Pääbo conseguiu do Museu

Egípcio de Berlim Oriental a amostra de uma criança mumificada há mais de 2 mil


anos. Fascinado pelo Egito antigo desde a infância, quando sua mãe o levou para
conhecer as pirâmides, Pääbo estava obcecado com a ideia de tentar recuperar
fragmentos de DNA de uma múmia. Nos intervalos do seu doutorado na Universidade
de Uppsala, no qual se dedicava ao estudo de adenovírus, o geneticista tentou extrair
material genético da amostra. Teve sucesso na sua tarefa. Em 1985, relatou na
revista Nature que conseguira identificar e clonar moléculas de DNA extraídas da
múmia egípcia.

Pääbo inaugurou o estudo do DNA antigo e, com sua equipe no Instituto Max Planck
de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, onde trabalha há 25 anos,
desenvolveu boa parte das ferramentas usadas nesse campo de pesquisa. Ele se
especializou no sequenciamento do DNA de linhagens extintas de humanos. Decifrou,
entre outros, o genoma dos neandertais, espécie que acabou extinta possivelmente por
ter perdido a competição evolutiva com os Homo sapiens. Em seus estudos, Pääbo
mostrou que os neandertais procriaram com humanos modernos e, mesmo que tenham
desaparecido do mapa há 40 mil anos, deixaram uma marca indelével no DNA
humano, presente em até 4% do genoma de cada um de nós.

Para os arqueólogos, o acesso aos genes de indivíduos que viveram há dezenas de


milhares de anos abriu um novo mundo. Antes, estavam limitados a estudar rastros
que as populações do passado deixavam para trás, como ferramentas de pedra. Agora,
com as crescentes inovações nos estudos sobre o DNA antigo, muitos arqueólogos
acreditam – embora outros tantos desconfiem – que a técnica poderá revolucionar a sua
disciplina tanto ou até mais do que a datação por carbono-14. (Esse método, hoje
considerado o padrão-ouro da datação arqueológica, foi desenvolvido em 1949 pelo
químico norte-americano Willard Libby. Até então, só era possível determinar a idade
de um sítio por métodos relativos, bem mais imprecisos.)

Para o geneticista norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, o DNA


antigo revelou aos pesquisadores um universo desconhecido, da mesma forma que a
invenção do microscópio no século XVII abriu os olhos da humanidade para a
existência das células e dos micro-organismos, conforme escreveu no livro Who We Are
and How We Got Here (Quem somos e como chegamos aqui), lançado em 2018 e sem
tradução para o português. A genética mostrou que as populações atuais são
aparentadas de uma forma inesperada, e revelou movimentos populacionais que não
deixaram outros registros. “O DNA antigo estabeleceu que grandes migrações e
misturas entre populações muito divergentes foram uma força central que moldou a
Pré-História humana”, escreveu Reich.

Um indicador dessa diversidade veio em 2013, quando cientistas estudaram o DNA de


um menino de 3 a 4 anos sepultado no sítio de Mal’ta, no Sul da Sibéria, há cerca de 24
mil anos. O material talvez ajudasse a entender o mistério que envolve a ocupação das
Américas, uma das grandes questões em aberto da arqueologia. Como a Sibéria é
considerada o lugar de onde saíram os primeiros americanos, talvez o grupo que
enterrou aquele garoto tivesse algum parentesco com os colonizadores das Américas.
Seu genoma poderia trazer novas pistas sobre a identidade dessas populações. O
sequenciamento foi feito pelo grupo do dinamarquês Eske Willerslev, da Universidade
de Copenhague – outro protagonista dos estudos de DNA antigo.

O estudo confirmou – mais uma vez – que os americanos efetivamente vieram da Ásia:
o DNA do garoto de Mal’ta tem trechos que só são compartilhados atualmente por
povos nativos das Américas. Mas foi mais longe. Os resultados mostraram que, de fato,
as misturas e migrações foram uma força motriz da história humana. O DNA do
menino tinha sequências que hoje só são encontradas em povos que vivem na Europa
ou no Oeste da Ásia.

O s pesquisadores estão de acordo que os grupos humanos que povoaram as

Américas saíram do nordeste da Ásia. Provavelmente, vieram a pé, porque o nível dos
oceanos estava mais baixo e havia uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca.
Essa área hoje está debaixo do mar, mas no fim da Era do Gelo formava uma grande
faixa de terra firme chamada Beríngia. Não há consenso, porém, sobre quando as
Américas foram ocupadas pela primeira vez: as estimativas mais conservadoras falam
em 15 ou 16 mil anos, mas alguns arqueólogos defendem que a entrada se deu muito
antes disso.

A questão parecia resolvida no século passado depois que uma ponta de lança
fabricada em pedra com uma técnica refinada foi encontrada ao lado de costelas de
mamute num sítio arqueológico próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, no
Oeste dos Estados Unidos. Depois desse achado, na década de 1930, pontas de estilo
parecido foram encontradas em vários sítios em território norte-americano,
frequentemente associadas a fósseis de grandes mamíferos extintos. A idade desses
sítios girava em torno dos 13 mil anos, e os fabricantes daquelas ferramentas ficaram
conhecidos como o “povo de Clóvis”.

Há 13 mil anos – uma coincidência que reforçou a tese –, as geleiras que cobriam a
maior parte da América do Norte durante a última Era do Gelo estavam derretendo.
Com isso, abriu-se um corredor terrestre que permitia a passagem de humanos e
animais do Alasca até as grandes planícies centrais dos Estados Unidos. Consolidou-se
então uma explicação para a ocupação das Américas, que foi dominante ao longo do
século XX: os humanos chegaram à América do Norte caminhando pela faixa que
ligava a Sibéria ao Alasca e, com o degelo, se espalharam pelo interior do continente,
caçando grandes mamíferos com suas pontas de lança de estilo distinto. Os primeiros
americanos, portanto, eram o povo de Clóvis.

Dali em diante, qualquer achado arqueológico que contradissesse a primazia de Clóvis


passou a ser sumariamente refutado. Foi o que aconteceu com a descoberta da
arqueóloga brasileira Niède Guidon, publicada na revista Nature, em 1986. Guidon
achou ferramentas de pedra em camadas de sedimentos com 32 mil anos de idade, no
Boqueirão da Pedra Furada, na Serra da Capivara, no Sul do Piauí. Era coisa muito
mais antiga do que o povo de Clóvis. Arqueólogos – norte-americanos na maioria –
julgaram que não era possível determinar de forma inequívoca que os artefatos fossem
de fato de fabricação humana, e por isso o sítio nunca foi amplamente aceito.

Ocorre que sítios arqueológicos anteriores à cultura Clóvis continuaram aparecendo – e


sendo contestados – em vários pontos do continente americano, até que surgiram em
Monte Verde, no Sul do Chile, evidências irrefutáveis da presença humana há 14,6 mil
anos. Um milênio antes de Clóvis. Os achados, revelados na Nature em 1988,
suscitaram a resistência costumeira, mas depois de uma década de controvérsia Monte
Verde acabou por ser reconhecido pela maioria dos arqueólogos como um sítio válido,
pondo um fim definitivo à primazia de Clóvis.

Já não era sem tempo. Cerca de 13 mil anos atrás, quando o povo de Clóvis fabricava
suas pontas no Norte, havia gente por praticamente todo canto da América do Sul. A
Lapa do Boquete não era um caso isolado no Brasil. Na mesma época, para ficar num
único exemplo, havia grupos humanos ocupando a Amazônia, como mostram os
indícios de até 13,1 mil anos encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte
Alegre, no Pará. Aquelas pessoas pareciam plenamente adaptadas aos recursos que a
floresta lhes oferecia e levavam uma vida muito diferente da dos caçadores de grandes
mamíferos do Norte, além de produzirem ferramentas usando uma tecnologia
totalmente distinta. Ou seja: o povo de Clóvis não era o pioneiro, mas contemporâneo
desses outros povos.

C omo o peso do poder econômico também aparece na ciência, as teses e

descobertas arqueológicas feitas nos países em desenvolvimento têm mais dificuldade


de atrair a atenção. Uma barreira está na ausência de infraestrutura para fazer
pesquisas de última geração, o que submete os pesquisadores à agenda dos grandes
centros estrangeiros. Por isso, a abertura do Laboratório de Arqueogenética da USP,
prevista para acontecer em maio, pode vir a ser um divisor de águas para o país e a
região. Será o primeiro laboratório da América do Sul com tecnologia de ponta para
estudar o DNA antigo. Pesquisadores da Argentina e do Peru já manifestaram interesse
em usar as instalações da USP para analisar amostras. “A expectativa é que o
laboratório se transforme num polo regional de atração e que se apresente como uma
alternativa à hegemonia dos grandes centros de pesquisa”, diz André Strauss.

O novo laboratório também deverá ajudar a manter no Brasil o patrimônio fóssil


encontrado em território nacional. “Antes tínhamos que pedir autorização para
mandar amostras para fora, porque não havia nenhum laboratório local que pudesse
realizar essas análises”, diz o geneticista Thomaz Pinotti, que está fazendo doutorado
em conjunto pela UFMG, sob orientação de Fabrício Santos, e pela Universidade de
Copenhague, com Eske Willerslev. Strauss, por sua vez, espera que o espaço ajude a
combater a lógica que impera na arqueogenética mundial, em que os cientistas dos
países em desenvolvimento mandam suas amostras para processamento nos países
desenvolvidos, e elas passam a ser tratadas como commodities, num processo em que
os pesquisadores da periferia entram com a matéria-prima, e os cientistas dos grandes
centros, com a tecnologia e a expertise.

Com 96 m2, o laboratório fica no Museu de Arqueologia e Etnologia, na Cidade


Universitária, na Zona Oeste de São Paulo. Quase metade dessa superfície é dedicada à
área reservada para a manipulação do material antigo – o chamado clean lab, ou
laboratório limpo, equipado com uma série de dispositivos para minimizar a
contaminação de amostras por DNA moderno. Mesmo com a adoção desses
dispositivos, a contaminação continua sendo o principal fantasma dos estudiosos de
genomas. Num laboratório, moléculas de DNA – humano e de outros organismos –
podem estar em todo canto: suspensas no ar, coladas na vidraria, nos equipamentos.
No estudo de DNA antigo, é fundamental garantir que o material genético analisado
vem de fato do fóssil, e apenas do fóssil, e não de uma das incontáveis fontes potenciais
de contaminação.

O laboratório da USP é compartimentado em ambientes separados, cada um reservado


para uma etapa da extração e processamento do DNA antigo. “A ideia é nunca
misturar as coisas”, disse Strauss quando levou a reportagem da piauí para conhecer o
local, em dezembro passado. O arqueólogo chama a atenção para o sistema de
pressurização e purificação do ar, dois dos principais mecanismos para evitar a
contaminação. “Quanto mais você entrar na área limpa, maior será a pressão. Quando
abrir uma porta, o ar vai fluir para fora”, explicou, simulando o barulho do vento. Os
pesquisadores terão que vestir equipamento de segurança com gorro, macacão e luvas,
e qualquer objeto que for trazido para a área limpa terá que receber um banho de luz
ultravioleta que destrói moléculas de DNA.

Strauss disse que a construção do laboratório custou cerca de 1 milhão de reais, dos
quais um terço foi para a compra de equipamentos. A máquina mais sofisticada
adquirida para o projeto é um TapeStation, que será usado para organizar a informação
genética a ser sequenciada. “O grande truque não está no equipamento, mas sim na
estrutura do laboratório, nos reagentes utilizados e nos protocolos capazes de
identificar e isolar o DNA antigo”, disse a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, que
vai coordenar o laboratório ao lado de Strauss.

A maior parte do financiamento para a construção do laboratório vem da Fapesp, a


fundação paulista de amparo à ciência, que tem um edital para estimular jovens
pesquisadores a trazer novas linhas de pesquisa para suas instituições. O resto dos
recursos vem da própria USP e de uma parceria estabelecida com o Instituto Max
Planck. A origem da parceria remonta a 2010, quando Strauss foi para o centro de
pesquisa alemão fazer seu doutorado. O DNA antigo estava na crista da onda no Max
Planck: naquele ano, o grupo de Svante Pääbo publicou o rascunho do genoma do
neandertal e o genoma completo dos denisovanos – outra espécie humana extinta,
conhecida apenas por um número restrito de fósseis encontrados na Ásia.

Quando estava no instituto alemão, Strauss percebeu que o DNA antigo poderia ajudar
a resolver mistérios da arqueologia brasileira. Material de estudo não faltaria: a região
de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é conhecida pela abundância de remanescentes
humanos antigos encontrados em seus sítios arqueológicos. Centenas de esqueletos
foram exumados naquela região desde as expedições pioneiras do naturalista
dinamarquês Peter Lund nos anos 1840.
Aqueles fósseis poderiam ajudar a provar – ou refutar – uma hipótese proposta no final
dos anos 1980 pelo bioantropólogo Walter Neves, mentor de Strauss na arqueologia.
Neves sugeriu que o continente americano foi povoado por dois grupos
biologicamente distintos, que vieram em duas levas – ambas passando pela Beríngia. O
cientista chegou a essa conclusão ao notar que os crânios de Lagoa Santa e outras
regiões do continente americano tinham aspectos que lembravam mais as populações
que hoje vivem na Austrália ou na África do que os indígenas atuais. A reconstituição
do rosto de Luzia, um dos esqueletos humanos mais velhos das Américas, encontrado
em 1974, fixou no imaginário popular no Brasil, ao aparecer em jornais, revistas e livros
didáticos, como a figura emblemática da suposta cara dos primeiros brasileiros.

Na tese de Neves, a primeira leva de americanos trouxe os antepassados de Luzia, que


têm ancestrais comuns com os grupos que saíram da África e colonizaram a Oceania, se
deslocando por meio de barcos desde o Sudeste Asiático, há mais de 40 mil anos. A
segunda leva de americanos incluiu os povos com feições mais próximas às dos
asiáticos atuais, que deram origem aos povos indígenas. Se fosse possível extrair DNA
do material de Lagoa Santa, talvez desse para esclarecer seu parentesco com os
indígenas contemporâneos.

Strauss falou da sua ideia a Johannes Krause, geneticista alemão que foi aluno de
Svante Pääbo e trabalhou com o sueco no sequenciamento do genoma dos denisovanos
e neandertais. Krause foi cético quanto à possibilidade de sucesso, já que em ambientes
tropicais o DNA se degrada mais rapidamente, devido à temperatura, à umidade e à
acidez do solo. Mas ele estimulou Strauss a seguir em frente, e o Instituto Max Planck
formalizou a parceria com a USP.

H oje, os cientistas combinam dois tipos de técnicas para estabelecer a

genealogia da espécie humana – a análise do DNA antigo, o método mais moderno,


que conheceu um salto tecnológico nos últimos quinze anos, e o exame do genoma de
povos contemporâneos, que vinha sendo feito há mais tempo. Contar a história
populacional a partir do estudo do DNA moderno é como tentar entender como foi
uma partida de xadrez olhando para a posição final das peças, como propõe o
geneticista Thomaz Pinotti. O tabuleiro mostra como o jogo terminou, mas dá poucas
pistas sobre como cada peça se movimentou durante a partida. “Com o DNA antigo,
conseguimos vislumbrar momentos passados do jogo e enxergar onde estavam as
peças nas rodadas anteriores.”

No caso da ocupação das Américas, os estudos genéticos indicam que os povos


indígenas atuais são, na grande maioria, descendentes de uma mesma população, que
por sua vez é fruto do cruzamento entre um grupo vindo do Leste asiático e de uma
população siberiana que já não existe de forma isolada, da qual fazia parte o menino de
Mal’ta.

A genética mostra ainda que os ancestrais dos nativos americanos se isolaram dos
demais povos asiáticos numa época que coincide com o chamado Último Máximo
Glacial, situado entre 26 mil e 19 mil anos atrás, que marca o auge da extensão das
geleiras na última Era do Gelo. Cientistas acreditam que o isolamento dessa população
se deu justamente por causa das condições climáticas extremas, deixando-a cercada de
gelo na Beríngia, aquela passagem entre a Sibéria e o Alasca.

Em seu mestrado pela UFMG, Pinotti investigou as linhagens de cromossomo Y


(passado do pai para os filhos homens) que deram origem à diversidade genética atual
dos indígenas americanos. “A história que o cromossomo Y conta é de uma expansão
populacional explosiva nas Américas”, disse o geneticista. “Um grupo pequeno de
homens entrou no continente e foi extremamente bem-sucedido, assim como seus
filhos.” (Esse grupo naturalmente incluía também mulheres, mas o estudo de Pinotti
revelou apenas detalhes sobre a linhagem paterna dos primeiros americanos, já que
examinou o cromossomo Y.)

Essa explosão populacional é um sinal de que o grupo que tinha ficado isolado dos
demais povos asiáticos havia finalmente chegado às Américas – esse é o padrão que se
esperaria depois que um agrupamento humano chegasse num território novo,
despovoado e repleto de recursos. Por isso, os cientistas acreditam que o período de
isolamento populacional aconteceu na Beríngia, que não estava coberta por geleiras e
era habitada por grandes mamíferos que podiam servir de alimento. “O problema é
que a genética é meio ruim para dizer onde as pessoas estavam naquele momento”,
disse Pinotti. “Só conseguimos falar do tempo.”

Usando uma ferramenta que permite estimar quando duas populações se separaram e
há quanto tempo elas compartilham um ancestral comum, conhecida como “relógio
molecular”, o geneticista brasileiro e seus colegas calcularam que a chegada às
Américas do grupo que deu origem aos povos indígenas atuais aconteceu há, no
máximo, 19,5 mil anos, conforme anunciaram em artigo publicado na revista Current
Biology, em 2019.
O resultado coincide em grandes linhas com estimativas feitas a partir das linhagens de
DNA mitocondrial, que, como é transmitido apenas da mãe aos seus filhos, é útil para
investigar as linhagens maternas de uma população. Um estudo de 2016 que analisou
essas linhagens concluiu que a entrada nas Américas deve ter acontecido por volta de
16 mil anos atrás, por um grupo que colonizou o continente seguindo o litoral do
Pacífico.

A história do povoamento das Américas ficou mais confusa em 2015, quando um

estudo mostrou que três povos indígenas brasileiros – Paiter-Suruí e Karitiana, em


Rondônia, e Xavante, em Mato Grosso – tinham em seu genoma um padrão que só é
encontrado em populações da Austrália, da Nova Guiné e das Ilhas Andaman, no
Sudeste Asiático. Essa assinatura – o “sinal australasiano”, conforme dizem os
geneticistas – correspondia a cerca de 3% do genoma dos três povos, mas aparecia de
modo consistente – e inexplicável.

Quando se deparou com esse sinal na análise dos dados, a geneticista Tábita
Hünemeier – uma das autoras da descoberta – achou que se tratasse de um erro, de tão
contraintuitivo que lhe pareceu. Ela tentou fazer correções estatísticas para ver se o
sinal sumia, mas ele continuava irredutível. Dos 21 povos indígenas de todo o
continente americano amostrados pelo estudo, os três grupos brasileiros – e apenas eles
– pareciam ter como ancestral uma população misteriosa.

O coordenador do estudo – David Reich, de Harvard – sugeriu chamá-la de


“população X”, mas a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), que era também autora do trabalho, torceu o nariz para a
sugestão. Com Hünemeier, que fora sua aluna de doutorado, Bortolini decidiu propor
um nome mais criativo. Hünemeier foi atrás de um dicionário de tupi que havia na
casa de sua tia e veio com a proposta de chamar aquela população misteriosa de
Ypykuéra, que quer dizer “ancestral”. A proposta vingou, e o grupo ficou conhecido
como a “população Y”.

Mas o nome não ajudava a explicar de onde tinham vindo aqueles ypykuéras. O sinal
aparecia em povos indígenas que falam línguas de troncos distintos, que se separaram
há mais de 4 mil anos. “Por isso, achamos que deveria ser um sinal antigo”, disse
Hünemeier. O problema ganhou nitidez em 2021, quando ela e seus colegas decidiram
buscar o sinal genético numa amostra maior de populações. Ele apareceu então nos
araras, no Pará, nos guaranis-kaiowás, em Mato Grosso do Sul, e em povos indígenas
de outros países. “O que a gente vê é o sinal muito espalhado pela América do Sul”,
continuou a geneticista. “Tem nos Andes, na Amazônia, na costa do Pacífico.” Para ela,
é um indício de que a rota de colonização do continente americano se deu pelo litoral
do Pacífico. Mas os cientistas não sabem dizer por que essa assinatura genética não foi
encontrada em povos da América do Norte ou da Sibéria.

O sinal australasiano não quer dizer que povos da Oceania atravessaram o Pacífico
para chegar às Américas no passado remoto. Tal sinal foi trazido ao continente pelos
povos que entraram pelo nordeste asiático, na região siberiana. Provavelmente, é o
resultado de cruzamentos entre populações diferentes que se encontraram na Sibéria,
de onde alguns partiram rumo ao continente americano, e outros, em direção à
Oceania. “Tudo tem a ver com a heterogeneidade dos povos que chegaram à Beríngia e
a partir dali se dispersaram pelo continente americano”, disse Bortolini.

Para Hünemeier, a descoberta do sinal australasiano deveria levar os geneticistas a


reconsiderar seu entendimento da ocupação das Américas. “A gente pensava nessa
questão de forma muito simplista, com o povoamento feito em uma grande leva
migratória, seguida por outras ondas menores”, afirmou. “Parece que foram sucessivas
ondas, todas vindas do mesmo lugar, mas em tempos distintos, e por uma população
maior e mais diferenciada do que se pensava.”

O s dois primeiros estudos pelo método do DNA antigo em amostras

arqueológicas encontradas no Brasil foram realizados no exterior e publicados em 2018.


Um saiu na revista Science e outro na Cell (André Strauss, da USP, é o único cientista a
assinar ambos os trabalhos). O primeiro sequenciou o genoma de cinco indivíduos
escavados por Peter Lund na Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa, no século XIX,
cujos remanescentes são parte do acervo do Museu Real de História Natural da
Dinamarca. O material foi processado no laboratório do geneticista Eske Willerslev, em
Copenhague.

O outro estudo, publicado na Cell, analisou amostras de sete esqueletos escavados na


Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, um sítio que foi estudado pela equipe de
Walter Neves na primeira década deste século e que, desde 2011, vem sendo escavado
sob a coordenação de Strauss. Nesse caso, o DNA foi extraído num laboratório da
Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde atua o geneticista Cosimo Posth, que
conduziu o trabalho. Nos dois casos, os estudos incluíram também análises de material
encontrado em outros países americanos.

O genoma dos indivíduos coletados por Lund acrescentou uma pitada de mistério
acerca da população Y. O sinal australasiano apareceu em um – e apenas um – dos
cinco indivíduos. Para complicar, correspondia a cerca de 3% de seu genoma, uma
proporção parecida à encontrada nas populações contemporâneas. O dado é um
complicador porque se o sinal australasiano fosse, de fato, um sinal antigo, como
suspeitavam os pesquisadores, ele devia aparecer em proporção bem maior naquele
indivíduo que viveu há 10,4 mil anos – e não na mesma proporção das populações de
hoje. A constatação representa um desafio, que os próprios autores reconheceram no
artigo. O enigma permanece sem solução.

Mas os indivíduos da Lapa do Santo, cujo DNA foi extraído na Alemanha, ajudaram a
elucidar algumas dúvidas. A análise mostrou que os sete indivíduos tinham parentesco
com um menino que fora enterrado por volta de 12,8 mil anos atrás em Anzick, em
Montana, no noroeste dos Estados Unidos, junto de ferramentas típicas do povo de
Clóvis – esse menino é o único remanescente humano encontrado num sítio dessa
cultura. O mesmo parentesco foi verificado em outros dois esqueletos de países
americanos: um, de quase 11 mil anos e encontrado em Los Rieles, no Chile, e um
outro, de 9,3 mil anos, escavado em Belize, na América Central.

As descobertas sugerem que, de fato, o povo de Clóvis se expandiu para a América do


Sul, mesmo que não tenham sido eles os primeiros a ocupar o continente. O estudo
revelou ainda que os fabricantes das ferramentas de Clóvis não são ancestrais dos
indígenas sul-americanos contemporâneos. Portanto, outra onda migratória é que
trouxe para a América do Sul os antepassados dos povos originais.

Os genomas da Lapa do Santo ainda mostraram que os povos de Lagoa Santa, embora
tivessem crânios com feições parecidas com as dos australasianos, não tinham conexão
genética com essas populações. Pelo contrário, eles compartilham um ancestral comum
com os povos indígenas atuais, que têm feições mais parecidas com as dos povos
asiáticos. Tudo considerado, os resultados indicam que Luzia e seus parentes não são
uma população biologicamente distinta, o que joga por terra o modelo de ocupação
proposto por Walter Neves.

Diante disso, Strauss mandou fazer outra reconstituição facial baseada nos crânios de
Lagoa Santa – dessa vez de um indivíduo da Lapa do Santo –, divulgada por ocasião
da publicação dos dois artigos. A ideia era substituir a imagem de Luzia com traços
marcadamente africanos, elaborada nos anos 1990. A nova cara dos povos de Lagoa
Santa tem uma morfologia mais genérica, com traços menos africanizados que os de
Luzia. A imagem, porém, não viralizou como a reconstituição original e, ainda hoje, o
rosto de Luzia é a figura que vem à mente quando se pensa nos primeiros brasileiros.

Neves não se deu por vencido. Amargurado com a proeminência que a genética vem
ganhando na arqueologia – uma tendência que costuma descrever como a “ditadura do
DNA” –, ele prefere enxergar que a presença do sinal australasiano em alguns povos
indígenas é uma prova de que sua tese – que o continente americano foi povoado por
dois grupos biologicamente distintos – está correta. Para ele, a população Y nada mais
é do que a população que teria dado origem aos povos de Lagoa Santa cujos
remanescentes foram escavados por ele e sua equipe. “Isso era algo absolutamente
esperado”, diz. No entanto, Neves não explica por que os esqueletos da Lapa do Santo
são parentes dos indígenas contemporâneos e, portanto, não representam povos
biologicamente distintos.

É irônico que a hipótese de Neves tenha sido refutada pela genética, num estudo feito
por Strauss, um ex-aluno que ele considera brilhante. Em certa medida, o triunfo do
DNA representa o ocaso da craniometria, técnica que o bioantropólogo empregou ao
longo da carreira (Neves se aposentou em 2017, mas continua a frequentar a
universidade). A hipótese de que as Américas tinham sido povoadas por duas
populações distintas foi construída com base em medições minuciosas da morfologia
dos crânios. Com o acesso ao DNA antigo, no entanto, agora os cientistas conseguem
resgatar as instruções genéticas que levaram à diversidade observada nas amostras.

Na avaliação de Strauss, o DNA antigo permitirá que os cientistas finalmente consigam


reconstruir as relações de ancestralidade das populações. Os marcadores indiretos que
os cientistas usavam para inferir as relações entre as populações – como as medidas
dos crânios – muitas vezes lhes davam pistas enganosas. “Agora temos um teste de
paternidade para a arqueologia”, afirmou Strauss. “Conseguimos dizer quem é pai de
quem, que é uma parte fundamental da história humana.”

A região da anatomia preferida pelos geneticistas para a extração de DNA antigo

é a parte de dentro do osso temporal, onde fica a cóclea, no ouvido interno. “Como o
osso é mais denso e isolado nessa região, a gente tende a ter mais DNA preservado ali”,
diz o geneticista Tiago Ferraz, da USP. Mas se o objetivo for a extração de DNA
mitocondrial (aquele que só passa de mãe para filho), continua Ferraz, é melhor usar
um dente, que preserva maiores concentrações desse material.

O DNA antigo é extraído do pó do osso, que é submetido a uma série de reações


químicas. Para isso, naturalmente, é preciso transformar o osso em pó. “Todas as
análises começam com um processo destrutivo”, explicou Ferraz. Existe um método de
amostragem por meio de uma pequena incisão que preserva a integridade do crânio,
mas não é a estratégia mais eficaz. “Quando temos a permissão dos arqueólogos para
destruir o material, cortamos o osso de forma longitudinal, para poder ver os canais
auditivos e fazer a amostragem direto na cóclea, no ponto mais denso”, afirma o
geneticista. Antes disso, porém, é preciso fazer uma tomografia do fóssil, de forma a
poder construir uma réplica em três dimensões no futuro. Mas não há garantia de
sucesso: os pesquisadores não têm como saber se será possível recuperar DNA de uma
amostra antes de processá-la.

Ferraz diz que uma quantidade minúscula de pó de osso – de 30 a 50 mg apenas – é


suficiente para a extração de DNA. No processo, o pó é misturado a um reagente que
se liga a moléculas de DNA, sejam elas provenientes do fóssil, de humanos
contemporâneos ou de qualquer outro organismo. A etapa seguinte consiste em
separar o material genético humano do não humano. O DNA antigo é separado do
moderno na análise dos dados, com a ajuda de ferramentas capazes de identificar a
degradação dessa molécula ao longo do tempo – a capacidade de separar o DNA
antigo do contemporâneo é que caracterizou o grande salto que a arqueogenética deu
nos últimos anos.

Tiago Ferraz aprendeu os protocolos para extrair DNA de fósseis e validar a


antiguidade do material no Instituto Max Planck, onde passou dois anos de seu
doutorado. A defesa de sua tese, orientada por Tábita Hünemeier e André Strauss,
estava marcada para o fim de janeiro deste ano. Depois disso, ele deve começar seu
pós-doutorado, financiado pela parceria da USP com o Instituto Max Planck. Ferraz
será o responsável pela extração de DNA antigo no Laboratório de Arqueogenética, e
deve treinar outros pesquisadores para executarem a tarefa no futuro.

Dentre as amostras que serão analisadas na USP, estão o dente de leite achado na Lapa
do Boquete e outros remanescentes humanos que venham a surgir nas próximas etapas
da escavação – os pesquisadores voltarão a campo em maio. Uma das primeiras
amostras das quais Strauss gostaria de tentar extrair DNA é o Homem de Confins,
encontrado numa expedição feita nos anos 1930 em um dos sítios mais ricos da região
de Lagoa Santa – a Lapa Mortuária de Confins, onde foram descobertos remanescentes
de mais de oitenta indivíduos. O esqueleto do Homem de Confins estava junto a fósseis
de animais extintos, sinalizando que poderia ser muito antigo, mas não foi possível
datá-lo diretamente. Por sorte, Strauss fez amostragens desse indivíduo antes do
incêndio no prédio em que ficava a reserva técnica do Museu de História Natural e
Jardim Botânico da UFMG, em junho de 2020. O fogo destruiu remanescentes humanos
coletados ao longo de décadas na região de Lagoa Santa.

Strauss gostaria também de ampliar a diversidade geográfica das amostras de DNA


antigo estudadas no Brasil. Por enquanto, a região de Lagoa Santa é a única em que
esqueletos muito velhos tiveram o genoma analisado. Com o laboratório da USP, o
arqueólogo espera conseguir caracterizar melhor a história profunda dos nativos
americanos. “Os dados arqueogenéticos vão nos permitir entender quem eram esses
primeiros americanos e quais eram suas dinâmicas populacionais”, afirmou.

E m setembro do ano passado, cientistas britânicos e norte-americanos

anunciaram ao mundo que haviam descoberto milhares de pegadas humanas à beira


de um lago, num sítio arqueológico no Parque Nacional de White Sands, no Novo
México. Eram pegadas de pelo menos dezesseis pessoas. Tinham sido deixadas por pés
humanos de diferentes tamanhos, crianças e adolescentes na maioria. Os cientistas
identificaram um total de 61 trilhas, das quais a mais comprida passa de 2 km. As
datações indicam que as pegadas foram feitas entre 21 mil e 23 mil anos, no auge,
portanto, do Último Máximo Glacial, conforme anunciaram os autores na
revista Science.

Um ano antes, a Nature publicou um artigo que trazia evidências muito antigas da
presença humana no continente americano, desta vez na Caverna Chiquihuite, que fica
numa montanha no centro-norte do México, a 2 740 metros de altitude. Ali, foram
encontradas quase 2 mil ferramentas de pedra em diferentes camadas de sedimentos.
As mais antigas estavam em camadas de pelo menos 31 mil anos, milênios antes do
Último Máximo Glacial, conforme relatou um grupo de cientistas do México, Brasil,
Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.

Os dois exemplos são os acréscimos mais recentes à lista de evidências da presença


humana nas Américas há mais de 20 mil anos. O Brasil tem alguns representantes
ilustres nessa lista. O casal de arqueólogos Denis Vialou e Águeda Vilhena Vialou – ele
francês e ela brasileira –, em artigo publicado na revista Antiquity em 2017, relatou ter
encontrado vestígios de uma ocupação com pelo menos 26 mil anos de idade em Santa
Elina, em Mato Grosso.

Na Serra da Capivara, as evidências da presença humana anterior a Clóvis continuam a


aparecer, e agora já surgiram em oito sítios arqueológicos. Na década passada, o
arqueólogo Eric Boëda substituiu Niède Guidon na coordenação da missão
arqueológica franco-brasileira que pesquisa a região desde os anos 1970. Para fugir da
controvérsia em torno do Boqueirão da Pedra Furada – aquele onde Guidon achou
ferramentas com 32 mil anos de idade –, Boëda tratou de adotar métodos mais
modernos e escavar novos sítios. Na Toca da Tira Peia, seu grupo achou evidências de
ocupação com 22 mil anos de idade. No Sítio do Meio, as datas chegam a 29 mil anos.
No Vale da Pedra Furada, 41 mil anos, conforme sustentou um artigo publicado no ano
passado na revista Plos One. “Está ficando difícil dizer que não existe [uma ocupação
antiga naquela região]”, afirmou Boëda.

Mesmo assim, nenhum sítio arqueológico brasileiro anterior ao Último Máximo Glacial
é reconhecido de forma irrestrita. Ainda é cedo para dizer se White Sands e
Chiquihuite terão mais aceitação na comunidade arqueológica. É possível que
enfrentem alguma resistência, porque as datas não se encaixam com a história que a
genética conta. De acordo com os estudos de DNA antigo e contemporâneo, a
população asiática que deu origem aos povos nativos americanos se formou entre 21
mil e 20 mil anos atrás. A ocupação do continente, portanto, teria acontecido depois
disso. De modo que qualquer datação anterior a esse período acaba enfrentando
resistência entre os estudiosos. Se até o século passado a época em que viveu o povo de
Clóvis era considerada o limite para a ocupação do continente, hoje é a genética quem
impõe o teto cronológico.

Esse cenário, no entanto, não invalida as provas da presença humana nas Américas
antes do Último Máximo Glacial. O que a genética nos conta, na realidade, é que, se
havia grupos humanos lascando pedra no Piauí há 40 mil anos, então eles não são
ancestrais dos povos indígenas atuais. Em outras palavras, são uma população que não
teve sucesso reprodutivo, conforme propôs Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. “Os
bem-sucedidos foram os sibero-beringianos e os ypykuéras”, afirma a geneticista. “Eles
colonizaram o continente e seus descendentes estão aí.”

Nada impede, portanto, que os grupos humanos que passaram por White Sands,
Chiquihuite, Santa Elina e a Serra da Capivara representem de fato um beco sem saída
da genealogia humana – mas, mesmo assim, terão sido eles, e não o povo de Clóvis, os
primeiros habitantes do continente americano. O que intriga os geneticistas é que
mesmo espécies extintas como os neandertais e os denisovanos – os malsucedidos de
seu tempo – deixaram pistas genéticas que ajudam a retraçar sua história. Por que os
povos de White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra de Capivara não deixaram
pista alguma? “O que o DNA antigo mostrou até agora é que ninguém some sem
deixar rastro”, disse Thomaz Pinotti.

Se houve grupos humanos que entraram nas Américas antes do Último Máximo
Glacial, se espalharam pelo continente e depois desapareceram, esse seria um evento
único na história humana, argumenta André Strauss. “Em nenhum outro lugar do
mundo o Homo sapiens passou dezenas de milhares de anos com uma densidade
demográfica mínima, que beira a invisibilidade”, afirma. Depois que saíram da África,
os humanos modernos colonizaram a Eurásia em 5 mil anos, continua o arqueólogo.
“Esses caras não eram bobos, eles sabiam o que estavam fazendo.” Diante dessa
excepcionalidade, acredita Strauss, o ônus da prova deveria recair sobre os cientistas
que defendem que a presença humana no continente americano tem mais de 20 mil
anos.

A dificuldade de acomodar no mesmo roteiro os sítios muito antigos e os estudos

de DNA aguçou uma tensão velada entre arqueólogos e geneticistas. O arqueólogo


Astolfo Araujo, também da USP, é um dos que veem com desconfiança a primazia que
a biologia molecular conquistou na explicação do povoamento das Américas. Em sua
avaliação, estudos genéticos pecam ao fazer afirmações peremptórias a partir de dados
fragmentários, que dependem de um número limitado de amostras estudadas. “Pode
haver uma quantidade enorme de informação que não está nos esqueletos conhecidos”,
alegou.

Araujo lembra também que o relógio molecular, aquele método que calcula a data de
separação entre as populações, carrega muita incerteza. O método se baseia na
frequência com que ocorrem mutações aleatórias no DNA mitocondrial, no
cromossomo Y ou nos demais trechos do genoma humano. Araujo afirma que a
imprecisão advém do fato de que essa frequência não é constante ao longo do tempo e
depende de uma série de fatores. No entanto, diz ele, nem sempre as incertezas são
discutidas pelos geneticistas. Além disso, os estudos do DNA muitas vezes desprezam
os resultados gerados por outras linhas de evidência, arqueológicas ou não.

Por exemplo: se os humanos chegaram à América do Norte por volta de 18 mil anos
atrás, conforme sugere a genética, como explicar a grande variedade de estilos de
ferramentas encontrada na América do Sul por volta de 13 mil anos atrás? “Muito
tempo teria que ter passado para chegarmos a essa vastíssima diversidade cultural”,
afirma o arqueólogo da USP. Da mesma forma, uma ocupação recente não explica a
riqueza das línguas indígenas faladas hoje na Amazônia. “A genética é imprescindível
e enriquece muito as nossas inferências, mas devemos saber de suas limitações”, diz
Araujo. “E temos que colocar a bendita arqueologia nessa história.”

A divergência entre os resultados dos estudos de DNA e os sítios arqueológicos muito


antigos pode servir de estímulo à busca de novas evidências. “O que parece é que
houve mesmo uma entrada no continente antes do Último Máximo Glacial”, afirma
Andrei Isnardis, o arqueólogo da UFMG que estudou a Lapa do Boquete nos anos 1990
e está participando das novas escavações. Recentemente, Isnardis e alguns colegas
visitaram os sítios em Mato Grosso e no Piauí. Ele saiu convencido de que os indícios
da presença humana antiga ali são inequívocos. “Tudo bem que a genética aponte para
uma ocupação não tão antiga”, afirma. “Não será a primeira e nem a oitava vez que a
gente diverge da genética. Nós vamos continuar estudando.”

Escaldados, os geneticistas evitam colocar mais lenha na fogueira. Thomaz Pinotti


acredita que eles devem sempre seguir o consenso dos arqueólogos. “Se a comunidade
como um todo decidir que White Sands é um sítio indiscutível, temos que incluir isso
nas nossas modelagens.” Tábita Hünemeier lembra que a genética é só mais uma
ferramenta para elucidar os processos de povoamento do continente. “Ela tem mais
poder de explicação porque consegue resgatar informações antigas, datar mutações e
ver a estrutura de populações que desapareceram, mas não consegue trabalhar
sozinha.” A geneticista está contente de dividir com um arqueólogo a coordenação do
Laboratório de Arqueogenética da USP. “Eu e André temos visões diferentes do
mesmo problema, mas a gente se complementa.”

Strauss está acostumado a transitar entre campos distintos. Ele tem graduação em
geologia e em ciências sociais, e colocou um pé na genética desde o mestrado. “O
cientista social tem uma língua, o biólogo tem outra e o geólogo tem uma terceira. Se
você sabe falar essas línguas, é muito mais fácil fazer com que eles trabalhem juntos”,
diz. Strauss acredita que é a arqueologia, e não a genética, quem terá a palavra final
sobre o povoamento das Américas. “A resolução desse debate virá por uma descoberta
arqueológica, ou pela sua ausência nos próximos mil anos.”
Com Uğur Şahin e Özlem Türeci

Tradução de Mayumi Aibe, Natalie Gerhardt e Paula Diniz

Encontrar a cura para o câncer era o principal objetivo da BioNTech, criada em 2008
pelo casal de médicos alemães Uğur Şahin, 56 anos, e Özlem Türeci, 54 anos, ambos
descendentes de turcos. O aparecimento da Covid-19, porém, levou a empresa de
biotecnologia a concentrar esforços na área de doenças infecciosas.

Şahin e Türeci vislumbraram a possibilidade de combater o coronavírus recorrendo à


técnica que, havia anos, desenvolviam para imunoterapias individualizadas contra o
câncer. Os medicamentos são baseados na manipulação do RNA mensageiro, ou
mRNA, molécula que leva um conjunto de instruções contidas no DNA de uma célula
para o setor de “produção” celular. As instruções são usadas para criar as proteínas
essenciais que constituem e controlam os órgãos e tecidos do corpo.

Em janeiro de 2020, quando a pandemia começava a se alastrar pelo mundo, Şahin e


Türeci lançaram o Projeto Lightspeed (velocidade da luz), para produzir o quanto antes
uma vacina contra a Covid-19. Logo se associaram à Pfizer, o que permitiu à BioNTech
desenvolver, testar em larga escala – com 43 mil voluntários – e distribuir a sua vacina,
cuja eficácia foi anunciada em novembro de 2020.

A saga dessa descoberta em tempo recorde é o tema do livro A Vacina, do jornalista


britânico Joe Miller – co-assinado por Şahin e Türeci –, que conta no trecho a seguir os
dramáticos primeiros passos para encontrar e testar a arma certeira contra o
coronavírus.

F oi a combinação de Kate Winslet, Matt Damon e Jude Law que fez Claudia

Lindemann pensar pela primeira vez em crise de saúde pública. Uma noite, em 2011,
quando fazia mestrado em farmácia em Münster, na Alemanha, ela viu Contágio.
Inspirado no primeiro surto de Sars, o filme mostra um mundo paralisado por um
patógeno até então desconhecido e é assustadoramente premonitório. Embora tenha
considerado pouco realistas as cenas ambientadas em laboratórios, Claudia
inevitavelmente se perguntou “como seria desenvolver uma vacina em uma
pandemia”. Atriz nas horas vagas, ela mal sabia que, nove anos mais tarde, receberia
um papel como protagonista na vida real.

Em uma reunião de 6 de fevereiro de 2020, semanas antes de a Pfizer e a Fosun Pharma


– uma gigante farmacêutica chinesa de capital aberto – embarcarem no Projeto
Lightspeed, o Instituto Paul Ehrlich (a agência reguladora de vacinas na Alemanha, de
sigla PEI), rejeitou o apelo da BioNTech para desobrigá-la a fazer o chamado estudo
toxicológico ou realizá-lo concomitantemente aos ensaios clínicos. O órgão regulador
insistiu que, antes de começar o “primeiro em humanos” – ou estudo de fase 1 –, era
necessário observar durante várias semanas os ratos que recebessem injeções de
construtos baseados em RNA mensageiro – ou mRNA –,[1] a fim de identificar possíveis
efeitos colaterais graves. A empresa deveria examinar com microscópio os tecidos dos
órgãos dos animais em busca de sinais de doença e compilar esses dados em um
relatório verificado em caráter oficial. Por sorte, Claudia estava bem preparada para
essa tarefa morosa.

Após terminar o mestrado, ela se tornou uma das primeiras beneficiárias da iniciativa
europeia VacTrain, criada para fomentar uma nova geração de desenvolvedores de
vacinas, e fez doutorado sobre o tema no prestigioso Instituto Jenner, que tem parceria
com a Universidade de Oxford (Claudia não sabia, mas, no começo da pandemia, seus
ex-colegas já estavam desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus no instituto).
Em 2018, ela foi contratada pela BioNTech e, por ter formação como virologista, sem
qualquer especialização em câncer – foco principal das pesquisas do laboratório –, ficou
encarregada de conduzir o estudo toxicológico do projeto em parceria com a Pfizer
para uma vacina contra a gripe. Esse processo de seis meses tinha acabado de começar
quando Claudia foi informada do projeto relativo ao coronavírus e do pedido do PEI.

Ela sabia que, dessa vez, “o toxicológico” precisava ser concluído com uma
rapidez bem maior. Durante uma conversa com Uğur Şahin – fundador da BioNTech,
ao lado de sua mulher, Özlem Türeci, ambos médicos – logo após a reunião de
fevereiro com a entidade reguladora, Claudia explicou que, após analisar como
condensar cada etapa do estudo, tinha reduzido a duração para apenas três meses.
Uğur não ficou tão impressionado quanto ela esperava; ele queria iniciar os ensaios
clínicos dali a algumas semanas. “Vamos, Claudia, precisamos achar uma solução”,
disse.

Para encontrar essa solução, Claudia voltou à sua mesa em uma das filiais da
BioNTech, situada acima de uma antiga cervejaria, no centro medieval de Mainz, na
Alemanha. Lá, ela clicou no link de um relatório que descobrira dias antes, ao
pesquisar o seguinte no Google: Como desenvolver uma vacina durante uma pandemia?

O documento de 113 páginas, intitulado Diretrizes para a Qualidade, a Segurança e a


Eficácia das Vacinas contra o Ebola, fora elaborado mais de três anos antes por um comitê
de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e tinha como foco principal
as vacinas desenvolvidas após a epidemia na África Ocidental, mas também incluía
princípios gerais para fabricantes de medicamentos que estivessem na corrida para
conter qualquer vírus em propagação desenfreada. Ainda impactada pelas palavras de
Uğur, Claudia começou a pesquisar como acelerar o estudo.

Ela achou um trecho crucial escondido na página 55. Os termos eram indecifráveis para
quem não fosse especialista, mas, em suma, a orientação dos autores para os órgãos
reguladores era a seguinte: durante uma emergência de saúde pública, os
desenvolvedores de medicamentos deveriam ter permissão para proceder ao ensaio de
fase 1 após compilarem um relatório provisório. Esse documento conteria os dados
coletados a partir da observação dos roedores e nos exames de sangue feitos pouco
depois da administração das vacinas, para demonstrar que a substância não havia
causado nenhum dano grave aos animais. Contudo, a parte mais demorada de um
estudo toxicológico – na qual os órgãos dos ratos são dissecados cuidadosamente para
o exame das amostras com microscópio – não precisaria estar concluída antes de ser
iniciado um ensaio com seres humanos. Se os testes mostrassem que as pequenas
cobaias estavam saudáveis logo após receberem a injeção, a BioNTech poderia iniciar
de imediato o ensaio clínico de fase 1 e finalizar o estudo toxicológico enquanto essa
etapa estivesse em andamento.

Claudia apresentou essa proposta em reuniões virtuais com o Instituto Paul-Ehrlich e


recebeu um sinal verde dos especialistas da agência reguladora.

No entanto, a etapa de análise não era o único obstáculo que impedia um


“toxicológico” rápido. De acordo com as regulamentações, as empresas precisavam
administrar nos estudos com animais uma dose extra em relação ao número planejado
para os ensaios com seres humanos.

Para interromper o mecanismo de acoplamento por meio do qual a proteína Spike do


Sars-CoV-2 – a protrusão em forma de coroa do vírus – se conecta a receptores
específicos e invade células saudáveis, a BioNTech e a maioria dos demais
desenvolvedores de vacinas optaram por um esquema de duas doses. “Quando
desconhecemos o poder do inimigo, não queremos uma resposta muito fraca”, disse
Uğur à equipe nas primeiras reuniões, para a enorme decepção dos gerentes focados no
aspecto comercial, que esperavam por um produto de dose única, fácil de vender. Ele
explicou que, ao ser exposto pela primeira vez a uma ameaça perceptível, o sistema
imunológico produz a chamada resposta “primária”. No segundo encontro, as defesas
do corpo já estão reforçadas. “Não sabemos o quanto é necessário, então vamos buscar
o máximo”, argumentou Uğur.

Claudia fez as contas ao ouvir isso. Essas duas doses nos ensaios clínicos significavam
que ela precisaria testar três doses consecutivas em ratos. Como a equipe do Projeto
Lightspeed havia estabelecido um intervalo de 21 dias – ou três semanas – entre cada
injeção em seres humanos, as doses para roedores do estudo toxicológico levariam seis
semanas, e as últimas amostras de sangue só seriam analisadas após o fim desse
período. O objetivo de Uğur era inatingível.

Perplexa, Claudia voltou à prancheta. Logo concluiu que a única e última opção era
encurtar os intervalos de três semanas. A BioNTech daria três doses aos roedores, mas
com apenas uma semana de intervalo. Ela argumentou com os especialistas do PEI que
esse era um protocolo ainda mais intenso: caso os animais tolerassem receber essa
quantidade de vacina repetidas vezes, seria possível presumir que os seres humanos
responderiam bem a intervalos maiores entre as doses.

Entretanto, esse planejamento representava um risco para o cronograma ambicioso do


Projeto Lightspeed. A BioNTech calculava injetar em um grupo de roedores a dose
mais alta que pretendia usar nos ensaios clínicos: 100 microgramas. Era uma dose alta
para um animal com peso entre 200 e 300 gramas e provavelmente causaria efeitos
colaterais temporários, como inchaço. Em geral, esses sintomas diminuem com o
tempo, mas talvez parecessem mais graves do que de fato eram por causa do período
de recuperação reduzido e fossem confundidos com um evento adverso problemático.

De todo modo, Claudia estava confiante. Ela se lembrou de, na infância, ter tomado a
vacina BCG contra a meningite e a tuberculose, que deixou uma ferida considerável.
“Achei que a reatogenicidade local não seria pior do que essa, então defendi, inclusive
no PEI, que as tolerâncias locais não eram uma questão”, explica. Caso ela estivesse
certa, essa decisão ousada ajudaria a fornecer dados de segurança sobre os animais em
quantidade suficiente para a BioNTech solicitar que o início de um ensaio clínico
“primeiro em humanos” ocorresse apenas três semanas após os primeiros ratos
receberem uma dose no estudo toxicológico.

Quando concluiu esse planejamento inovador, Claudia logo entrou em ação ao lado de
Jan Diekmann, um ex-integrante do grupo acadêmico de Uğur e Özlem em Mainz que
comandava o departamento de segurança não clínica da BioNTech. Eles ordenaram
que os ratos fossem enviados o mais rápido possível para um local de teste certificado,
de modo que tivessem tempo de se ambientar. Também se certificaram de que o
material de mRNA a ser utilizado no estudo fosse enviado para a biofarmacêutica
Polymun, na Áustria, e, uma vez formulado, fosse conduzido para o local da pesquisa.
Mas alguém precisava estar em Viena para supervisionar o início do “toxicológico” no
dia 17 de março, terça-feira.

Na véspera do dia previsto, Angela Merkel subiu ao palco em Berlim. A Alemanha já


registrava dezesseis mortes por coronavírus e, em apenas 24 horas, o número de casos
confirmados havia aumentado 20%, passando dos 6 mil. Três dias depois de o diretor
financeiro Sierk Poetting ter mandado para casa todos os profissionais da BioNTech,
exceto os trabalhadores essenciais, a chanceler fez um apelo para que os cidadãos
alemães cancelassem as férias e só saíssem se fosse necessário. Igrejas e sinagogas
deveriam fechar, assim como parquinhos e comércio não essencial. “Nunca houve
medidas como essas no nosso país”, declarou Merkel em uma entrevista coletiva. “São
abrangentes, mas necessárias neste momento.” Claudia ia se mudar e, como a creche já
estava fechada, seu filho pequeno precisava de cuidados e atenção constantes. Ela não
tinha como viajar, de jeito nenhum. Então, na tarde de segunda-feira, Jan Diekmann
entrou no seu Mercedes e começou a longa viagem até o local do estudo toxicológico,
no Sul da Alemanha.

Enquanto Jan acelerava pela autoestrada incomumente vazia, seu celular tocou. Era
Claudia, com um pedido inusitado. O planejamento do estudo toxicológico fora
aprovado por todas as partes e descrevia todos os detalhes – desde as dosagens
precisas aos intervalos, incluindo o momento em que as amostras de sangue deveriam
ser coletadas. Embora estivesse confiante de que a maioria das vacinas candidatas a
combater o coronavírus – administradas em três injeções com doses diferentes – seria
bem tolerada nos ratos, Claudia de repente estava preocupada com um dos construtos
baseados em uRNA. Ela disse que talvez a dose máxima de 100 microgramas fosse
“muito alta”. A equipe da virologista Annette Vogel já estava injetando o construto em
camundongos na BioNTech para testar a presença de anticorpos e observara que os
roedores estavam perdendo peso, o que é uma clara indicação de intolerância.
“Realmente não estou confortável com isso”, confessou Claudia a Jan. “Vamos solicitar
uma alteração no planejamento.”

Pelo cronograma, os ratos receberiam uma dose às oito da manhã do dia seguinte,
então esse era um pedido pouco usual. Jan precisava agir rápido: assim que pôde,
mandou um e-mail para os organizadores do estudo toxicológico.

Às sete da manhã seguinte, o planejamento foi alterado e enviado de volta à BioNTech


para assinatura. Enquanto isso, Jan dirigia do hotel para uma antiga fazenda que tinha
sido convertida em instalação para testes em animais. Ele desinfetou as mãos, vestiu
roupas de proteção e se dirigiu para a sala em que os ratos numerados individualmente
eram pesados e tinham a temperatura medida. Mas, em um canto do celeiro,
funcionários injetavam a dose de 100 microgramas de uRNA, motivo da preocupação
de Claudia. “Os colaboradores estavam tão ansiosos para começar que já tinham dado
a substância a dois animais antes que a mensagem para abortar chegasse”, conta ela. Os
roedores foram excluídos do estudo oficial, mas Jan decidiu monitorá-los de todo
modo. Ele achou que talvez os dois fornecessem uma pista útil sobre a tolerância a essa
plataforma em doses altas.

E nquanto Claudia e Jan trabalhavam no estudo toxicológico do Projeto

Lightspeed, outros profissionais enfrentavam o desafio de lançar o ensaio do tipo


“primeiro em humanos” mais rápido da história da BioNTech.

A empresa tinha bastante experiência na administração de medicamentos de mRNA


em pacientes com câncer e já havia realizado ensaios clínicos com mais de quatrocentas
pessoas ao longo dos anos, em vários países. Contudo, esses estudos progrediam
devagar. Hospitais do mundo todo eram contratados para identificar pessoas em um
estágio específico de uma doença avançada e dispostas a tomar um medicamento
experimental. O processo de recrutar o número necessário de pacientes demorava anos.

Por outro lado, projetar a fase 1 para uma vacina contra o coronavírus deveria ter sido
moleza. A BioNTech poderia atrair voluntários saudáveis na comunidade e só
precisava monitorar os efeitos colaterais, a serem registrados pelos participantes em
diários e informados em conversas telefônicas com os pesquisadores. Quando a
empresa terceirizada alemã responsável por realizar o ensaio com as vacinas
candidatas a combater a Covid-19 convocou voluntários pelo Facebook, mais de mil
pessoas se apresentaram em um único dia. Algumas até ligaram para a recepção da
BioNTech e imploraram para participar do estudo. Encontrar sujeitos dispostos não era
um problema.

Mas ainda havia obstáculos suficientes pela frente.

Em primeiro lugar, a empresa não tinha pessoal suficiente para preparar esses estudos
nem mesmo no segmento de oncologia. Em janeiro de 2020, Özlem havia selecionado
currículos para ampliar o grupo de gestores médicos e desenvolvedores clínicos da
BioNTech. No início do Projeto Lightspeed, as entrevistas com esses candidatos ainda
estavam acontecendo.

Como os compostos da vacina contra o coronavírus nunca tinham sido testados em


seres humanos, o ensaio também seria complexo. Os voluntários receberiam primeiro
doses muito baixas da vacina e, somente se fossem bem toleradas, uma dose mais alta
seria administrada aos demais participantes. Como Uğur e Özlem planejavam levar
algumas das vinte vacinas candidatas que estavam sendo testadas naquela época para
a fase clínica, o ensaio precisava avaliar a segurança e a tolerabilidade de cada
construto em doses crescentes, em diferentes grupos de idade, antes que a melhor
candidata e a dose correta fossem escolhidas para um ensaio combinado de fases 2 e 3,
a ser realizado pela Pfizer, com dezenas de milhares de indivíduos.

A terceirizada alemã encarregada da fase 1 teria de adaptar os processos rotineiros de


trabalho para que o estudo tivesse uma eficácia excepcional. No entanto, assim como a
maioria das empresas do país, não tinha expediente nos fins de semana. De forma
alguma era esperado que a equipe comparecesse aos sábados e domingos, mesmo em
um projeto crucial como esse. O esquema das doses precisou ser planejado com
cuidado, de modo que as principais datas para a revisão dos dados dos exames de
sangue não caíssem nos fins de semana.

Fora isso, havia a questão da comunicação e do treinamento. Entregar um novo


produto farmacêutico aos cuidados de médicos que vão conduzir um ensaio clínico é
um pouco como deixar um recém-nascido com uma babá pela primeira vez. Os pais
entregam instruções minuciosas para explicar os horários das refeições do bebê, a
frequência dos choros e as formas de acalmá-lo. Do mesmo modo, para garantir que
um estudo em seres humanos não seja interrompido ao primeiro sinal de efeito
colateral, é preciso informar às agências reguladoras e à equipe do estudo exatamente
quais sintomas estão dentro do esperado e como medir o risco que representam para os
pacientes. Por isso, a empresa precisava elaborar depressa um “Folheto para
Pesquisadores” – trata-se, essencialmente, de um manual do usuário explicando em
linhas gerais a tecnologia que compõe as vacinas. O objetivo desse documento é
eliminar as surpresas.

Eram meados de março e, até então, a inovação científica por trás do Projeto
Lightspeed tinha sido comunicada apenas para especialistas na área, incluindo o
bioquímico Klaus Cichutek, presidente do PEI, e os demais integrantes do painel da
agência reguladora alemã, fabricantes terceirizados e funcionários da BioNTech, da
Fosun e da Pfizer. Esse folheto seria a primeira tentativa de uma explicação abrangente
do funcionamento das vacinas candidatas para pessoas de fora. Teria de ser um curso
intensivo, com uma linguagem que mesmo um médico que nunca viu uma fita de
mRNA compreendesse.

Ninguém na BioNTech tinha o conhecimento e a experiência necessários para dar conta


dessa tarefa. Ninguém a não ser Özlem. As habilidades singulares dela já eram um
componente crucial da parceria pessoal e profissional do casal. Se dependesse de Uğur
– e da sua memória visual –, ele cobriria as paredes do escritório com quadros brancos
e anotações. Todos esses mapas mentais faziam sentido para ele, é claro, e talvez
também para especialistas de áreas específicas. Mas era preciso que alguém traçasse
uma conexão coerente entre esses mapas, ligasse os pontos. “Tínhamos que explicar as
coisas para não especialistas”, diz Özlem.

Isso também ocorria com os cerca de 120 projetos de pesquisa da BioNTech. Tanto
Uğur quanto Özlem entendiam a soma das partes, a visão global, mas somente ela
tinha a capacidade de comunicar isso aos outros. “Eu começo com as partes, e ela, com
a visão integrada”, contou Uğur, com admiração. Portanto, foi Özlem quem construiu a
narrativa das vacinas e das terapias de mRNA da BioNTech. Era ela quem apresentava
os avanços da empresa em conferências e faculdades e para os mercados de capitais. É
Özlem, nas palavras de Uğur, “a pessoa que integra, traduz e resolve”.

Quando a BioNTech – e a humanidade – mais precisou, esses talentos vieram mesmo a


calhar. Como diretora médica da empresa, Özlem trabalhou para que os pesquisadores
do estudo de fase 1 proposto compreendessem que febre e sintomas semelhantes aos
da gripe eram ocorrências possíveis e que não tinha problema nenhum usar anti-
inflamatórios para tratá-los. Ela compilou uma lista de dicas de fácil leitura, como a
sugestão de que os voluntários se hidratassem bem antes de receberem as injeções. Mas
isso era apenas parte da rotina. Ao lado do consultor médico externo, Martin Bexon, e
do chefe de redação científica da BioNTech, Christopher Marshallsay, Özlem assumiu
ainda a tarefa de planejar e elaborar o protocolo do estudo, que precisava delinear toda
a estrutura do ensaio clínico. No entanto, antes de fazer isso, teve de negociar com o
PEI e com uma comissão de ética específica uma maneira de possibilitar a seleção
rápida da vacina candidata final para a fase 3.

Em geral, o processo de dose única crescente já descrito demora meses para ser
concluído – um tempo do qual a BioNTech não dispunha. Nas conversas iniciais com
colegas da Pfizer envolvidos em estudos clínicos, ficou claro um imperativo: o ensaio
clínico da última etapa deveria começar no fim de julho para a vacina ser aprovada
ainda em 2020. Mas Özlem se deu conta de que, se a BioNTech iniciasse o ensaio de
fase 1 em abril e o conduzisse com perfeição no menor tempo possível, ainda assim não
o encerraria antes de setembro. Era preciso abrir mão de alguma coisa.

Inúmeras discussões com os órgãos reguladores trataram da quantidade necessária de


“sentinelas” – voluntários que recebem as primeiras doses – e do período em que
deveriam ser monitoradas antes que os demais participantes recebessem uma injeção
com a mesma dose. Quanto aos voluntários que receberiam uma dose mais baixa,
houve deliberações a fim de determinar quais dados seriam imprescindíveis para que o
estudo avançasse para a etapa seguinte, na qual uma dose mais alta seria injetada em
alguns participantes. De acordo com Özlem, os dados de segurança dos ensaios
oncológicos com mRNA realizados pela BioNTech e as informações iniciais do estudo
toxicológico de Claudia haviam demonstrado que a maioria dos eventos adversos foi
observada nas primeiras 24 horas após a administração. Por isso, ela propôs que uma
parte dos participantes remanescentes em cada grupo de doze pessoas poderia receber
a injeção apenas um dia após as sentinelas. Para mitigar mais o risco, os demais só
passariam pelo procedimento 48 horas depois.

Özlem e sua equipe também identificaram outra maneira de acelerar o ensaio. Quando
não existe uma pandemia em curso, a maioria dos estudos clínicos é planejada de
forma que a segunda dose seja aplicada após um intervalo de pelo menos 28 dias, para
que a resposta imunológica provocada pela primeira injeção tenha mais tempo de
entrar em ação. Após as duas doses, os pesquisadores costumam esperar mais catorze
dias para verificar a existência de anticorpos e células T. Portanto, as amostras de
sangue só poderiam ser coletadas após 42 dias. Para os ensaios relativos à Covid-19,
Özlem e a equipe decidiram implementar um esquema de vacinação com um intervalo
de apenas 21 dias e testar as respostas imunológicas sete dias após a segunda dose, em
vez dos catorze dias. No total, isso eliminaria duas semanas do processo.

Esse tempo extra faria mais do que contribuir para o lançamento do ensaio de fase 3 no
prazo. Meses depois, também garantiria que as pessoas vacinadas no mundo real
recebessem a segunda dose mais cedo – após 21 dias, e não 28 – e, desse modo,
estivessem totalmente protegidas mais rápido.

Depois de analisar os dados, as autoridades concordaram com ambos os conceitos, o


que gerou uma redução significativa na duração do estudo “primeiro em humanos”.

A BioNTech compartilhou com a Pfizer o planejamento do ensaio clínico, de modo que


a empresa norte-americana executasse um processo similar nos Estados Unidos. O
ensaio repetido não apenas serviria para apaziguar a Food and Drug Administration
(FDA), a agência reguladora norte-americana, que preferia que os desenvolvedores de
medicamentos executassem uma versão nacional desses estudos, mas também, com
sorte, confirmaria os dados coletados em Mannheim e em outro local em Berlim.

Após três semanas de lockdown, as informações divulgadas pela agência que monitora a
saúde pública na Alemanha, o Instituto Robert Koch, mostraram que o pior cenário que
Uğur imaginara em janeiro – de disseminação rápida e incontrolável do Sars-CoV-2 –
não tinha se concretizado. Na verdade, as medidas básicas de contenção estavam
controlando o vírus, o que dava à BioNTech certa folga para respirar. Özlem e Uğur
viveram no limite durante três meses. Naquele momento, estavam mais confiantes de
que, com o estudo toxicológico acelerado e o estudo “primeiro em humanos” já
preparado, talvez a ciência se adiantasse a esse patógeno. “Eu sabia que tínhamos uma
chance. A gente estava no jogo”, diz Uğur.

De todo modo, a equipe do Projeto Lightspeed precisava reduzir a complexidade da


empreitada – e rápido. A maioria dos fabricantes selecionou uma única candidata à
vacina ideal para levar à etapa clínica. A Moderna – empresa norte-americana de
biotecnologia – fez isso em 16 de março de 2020, quando administrou ao primeiro
paciente sua vacina de mRNA, desenvolvida para expressar a proteína Spike completa
que se projeta do coronavírus. Cientistas da Universidade de Oxford, que mais tarde se
associaram à AstraZeneca – grupo farmacêutico anglo-sueco –, também optaram por
avaliar um único construto de vetor viral, em uma espécie de “tudo ou nada”.

Era impossível testar em seres humanos doses crescentes dos vinte construtos da
BioNTech, pois cada um tinha um código genético diferente para a proteína Spike ou
era baseado em uma plataforma de mRNA específica – e, ao mesmo tempo, cumprir
um cronograma ambicioso. Como se tratava de um ensaio clínico de fase 1, a empresa
precisava limitar o número de vacinas candidatas.

N os laboratórios que ocupavam os andares superiores da sede da BioNTech em

Mainz, a equipe do Projeto Lightspeed fazia a sua parte para restringir a seleção.

Era cedo demais para obter os resultados do estudo toxicológico de Claudia ou uma
indicação sobre as células T que as vacinas candidatas eram capazes de ativar. Mas,
desde que uma primeira visualização mostrou que as vacinas induziam uma resposta
imunológica em camundongos, tinha surgido uma série de dados semelhantes.
Indicavam que todos os vinte protótipos pré-clínicos estimularam o desenvolvimento
de anticorpos neutralizantes fortes. Por isso, era difícil fazer uma escolha.

No entanto, a equipe sabia que, embora os resultados de estudos com roedores


fossem indicativos, as informações não eram necessariamente preditivas do
funcionamento de uma vacina em seres humanos. Segundo Özlem, a empresa pensou
em uma forma de se proteger contra esta potencial disparidade. “Queríamos testar pelo
menos um construto por plataforma de mRNA na fase 1”, afirma, referindo-se aos
formatos exclusivos à disposição da BioNTech. Também queriam fazer uma divisão
igual entre candidatas que codificassem a própria proteína Spike e o domínio de
ligação ao receptor menor. Mesmo em um teste “primeiro em humanos” acelerado, a
empresa desejava o maior número possível de chutes a gol.

Na cabeça de Uğur e Özlem, o segredo era encontrar uma vacina que alcançasse o
equilíbrio certo entre duas características essenciais. Uma delas era garantir que a
proteína codificada pelo mRNA – o alvo usado para treinar as tropas – fosse
reproduzida em grandes quantidades nas células. A outra era estimular o sistema
imunológico. Se isso ocorresse sem a intensidade necessária, uma dose considerável de
mRNA deixaria de ativar todas as forças relevantes, como anticorpos e células T; mas,
em excesso, poderia causar efeitos colaterais graves. A primeira plataforma incluída
pelo casal, o uRNA, era naturalmente dotada da capacidade de desencadear a
atividade imunológica e, como comprovado pelo tratamento de centenas de pacientes
com câncer, a equipe da BioNTech alcançara ótimos resultados com o formato quando
envolto em um lipídio neutro para administração intravenosa.[2] Mas o uRNA nunca
havia sido combinado com os novos lipídios propostos para a injeção intramuscular,
que tinham poderes de estimulação próprios e complementares. Havia o risco de que,
ao ser combinada, essa formulação sobrecarregasse o sistema imunológico. Para evitar
isso, a equipe poderia ter submetido o uRNA a um processo de purificação específico
desenvolvido pela BioNTech, mas Uğur queria simplificar as coisas. A BioNTech teria
que testar o uRNA na sua forma não purificada e torcer pelo melhor.

Já o modRNA, desenvolvido com um propósito inicial bastante diferente, atenuava os


estímulos. De acordo com Uğur, por mais que soubessem que “o modRNA seria bem
tolerado”, estavam “preocupados com a possibilidade de a resposta das células T não
ser tão forte quanto a obtida com o uRNA, e, com isso, a dose necessária ficar na faixa
de 200 a 300 microgramas – o que é até dez vezes maior do que a dose da vacina que
acabou chegando ao mercado”. Por outro lado, a capacidade dos lipídios de
desencadear a atividade imunológica, o que poderia comprometer as candidatas
baseadas em uRNA, talvez ajudasse o modRNA. Só havia um modo de ter certeza:
incluir ambos no estudo. Para os ensaios clínicos, foi selecionada uma única candidata
baseada em uRNA, assim como duas baseadas em modRNA – uma que codificava a
proteína Spike completa e outra que codificava o domínio de ligação ao receptor.

A última vaga foi dada à mais recente de todas as plataformas, o mRNA de


autoamplificação, ou aaRNA, a base de uma vacina que codificava a proteína Spike
completa, o que fez o número de candidatas do ensaio “primeiro em humanos” chegar
ao seu total máximo de quatro. Mas, enquanto o uRNA e o modRNA haviam passado
por vários ajustes realizados pela equipe da BioNTech ao longo dos anos, o aaRNA não
tinha sido aperfeiçoado dessa maneira nem fora aprovado com louvor nos testes pré-
clínicos de anticorpos. Ainda assim, como a plataforma fazia com que o mRNA se
reproduzisse durante um curto período após a injeção, o aaRNA trazia a promessa de
doses mais baixas, e Uğur decidiu dar uma chance a esse plano de contingência. Ele
pensava que o recém-chegado também poderia servir de base para uma vacina de
segunda geração, caso os resultados do ensaio de fase 1 ajudassem a empresa a ajustar
a fórmula do aaRNA.

A s informações sobre as candidatas selecionadas foram repassadas à equipe em

Idar-Oberstein, onde se localizava a sede do maior centro de produção da BioNTech.


Não se tratava de uma simulação: as vacinas produzidas para ensaios clínicos tinham
que aderir a padrões extremamente rigorosos, a fim de evitar a contaminação ou
formulações insatisfatórias, e demandavam uma preparação intensiva. As equipes de
fabricação de modelos de DNA e RNA da BioNTech trabalharam em turnos, de modo a
compilar instruções detalhadas para todas as etapas do processo.

Para cada candidata, o DNA tinha que ser produzido primeiro, como um modelo para
a produção do mRNA. As etapas duraram cinco dias, de segunda a sexta-feira. Com o
intuito de permitir que os integrantes da equipe descansassem no fim de semana –
após trabalharem dias a fio em salas limpas, vestidos da cabeça aos pés em trajes de
proteção abafados, com pausas de algumas horas apenas para comer e ir ao banheiro –,
foi programado um ciclo de produção por semana. Primeiro foi produzido o mRNA
para a candidata baseada em modRNA que codificava o domínio de ligação ao
receptor, e em seguida a versão não modificada. Assim como ocorreu com os primeiros
lotes de teste fabricados depois da superação das dificuldades iniciais pela equipe de
Stephanie Hein, responsável pela clonagem das sequências genéticas dos antígenos
usando bactéria, uma pequena van de entregas esperou em frente à fábrica da
BioNTech para levar, durante a noite, o material de mrna embalado em sacos plásticos
e congelado a -70ºC até a Polymun, em Viena. Lá, ele foi combinado com lipídios antes
de ser envasado, rotulado e enviado para os locais dos ensaios clínicos.

Na tarde do dia 16 de abril, quinta-feira, a BioNTech estava pronta para o início do


primeiro estudo em seres humanos. Após escolher quatro candidatas e implementar
cronogramas de produção, a empresa estava prestes a enviar ao PEI um pedido oficial
para realizar um ensaio de fase 1. Foi quando chegou um e-mail na caixa de entrada de
Uğur e Özlem. O bioquímico Alex Muik estava testando anticorpos neutralizantes na
velocidade máxima permitida pela única máquina na sua mesa e encaminhara novos
dados sobre mais um construto, baseado em modRNA, que expressava a proteína Spike
completa. A sequência de nucleotídeos para o espinho nodoso fora ligeiramente
ajustada, de modo a otimizar a maneira pela qual as células do corpo a traduzem. A
vacina, chamada de BNT162B2.9, tinha sido testada pouco antes em camundongos, e o
sangue dos roedores acabara de ser coletado e entregue a Alex. Mas os resultados eram
claros: a vacina havia suscitado uma resposta dos anticorpos muito superior à do
construto de modRNA similar, o BNT162B2.8, que já tinha sido selecionado como
vacina candidata.

Na mesma hora, Uğur pegou o celular e ligou para Alex a fim de obter mais detalhes.
Em seguida, telefonou para a virologista Annette Vogel. Ambos concordavam que a
B2.9 seria uma finalista melhor e estavam decepcionados por ser tarde demais para
incluí-la no estudo com seres humanos, programado para começar dali a alguns dias.
Mas Uğur ainda não estava disposto a desistir. “Vamos ver o que conseguimos fazer
aqui”, disse aos dois, antes de desligar e telefonar para Andreas Kuhn, que
supervisionava a fabricação em Idar-Oberstein.

Ao pedir o impossível, Uğur recebeu esta resposta: “Não conseguimos mudar o


construto e deixá-lo pronto para a segunda-feira. Nem se fosse na velocidade da luz.”
Conforme Andreas lembrou ao chefe, o processo de produção durava cinco dias e, de
qualquer maneira, a capacidade da semana seguinte já estava reservada à produção da
B2.8 para o ensaio clínico. Uğur ficou em silêncio por alguns segundos, o que fez
Andreas achar que a ligação tinha caído. Ele refletiu e fez uma proposta: “E se a equipe
antecipasse em uma semana a produção do construto de autoamplificação, invertendo
a ordem das doses no ensaio clínico, de modo a dar tempo à BioNTech de preparar a
mudança para a B2.9?” Andreas respondeu que a equipe havia trabalhado
incansavelmente para preparar todos os documentos para a versão anterior e, por fim,
prometeu: “Mas vou falar com eles.” Na sexta-feira à noite, ele retornou a ligação. Após
cinco dias de trabalho exaustivo, a equipe de Idar-Oberstein dedicaria o fim de semana
a outro ciclo de produção. Uğur enviou um e-mail para Alex e Annette com uma frase
só: “Vamos dar um jeito de fazer a B2.9 funcionar.” Nove meses depois, ficaria bastante
clara a importância dessa decisão para que finalmente fosse possível combater a
disseminação do coronavírus.

Enquanto isso, Claudia dava os retoques finais nas novecentas páginas do relatório
provisório do estudo toxicológico, que concluíra em apenas dois meses.

Os dados eram extremamente positivos. Os ratos não tinham apresentado febre alta
nem perdido peso. Não houvera nenhum sinal de alerta, como o surgimento de pelo
áspero, o que indica que talvez haja algo de errado com os animais. Os roedores
também fugiram assim que os pesquisadores entraram na sala, conforme tendem a
reagir instintivamente quando estão saudáveis. “É ruim quando eles só ficam parados
em um canto e não fazem nada, mas aqueles ratos estavam perfeitamente felizes”,
explica Claudia. Não houve qualquer indício de uma resposta sistêmica grave a
qualquer uma das vacinas candidatas de mRNA selecionadas. O sistema imunológico
dos mamíferos não estava sendo sobrecarregado.

No entanto, seu pressentimento naquela tarde antes do início do estudo, quando


Claudia ligou para Jan e pediu para que as doses de 100 microgramas de uRNA fossem
removidas de última hora, se revelou profético. Os dois roedores que receberam a dose
mais alta dos técnicos ansiosos – antes da chegada das instruções para abortar o
procedimento – tiveram febre de mais de 40ºC. Por sorte, os ratos foram excluídos das
análises antes que o estudo começasse, de maneira que os dados não impediriam a
aprovação do ensaio clínico. Mas, após a BioNTech apresentar ao PEI, em 16 de abril,
os dados de toxicologia organizados, o órgão regulador percebeu que as candidatas
selecionadas para o estudo “primeiro em humanos” não eram todas idênticas às que
Claudia e Jan haviam testado em ratos. Incluída por Uğur de última hora, a B2.9
obviamente não fazia parte do estudo toxicológico em roedores iniciado em março.

Claudia foi chamada sem aviso prévio por especialistas da agência, que exigiram uma
explicação. Como o celular ia ficar sem bateria e o filho pequeno estava no outro
quarto, ela precisou se ajoelhar perto de uma tomada para falar com o PEI enquanto
recarregava o aparelho. Nessa posição, reiterou que a BioNTech realizava o estudo com
a chamada abordagem de “plataforma” e seguia a orientação encontrada em uma parte
do relatório da OMS sobre o ebola. Uma candidata bastante similar, a B2.8, fora testada
no “toxicológico” e podia ser considerada uma substituta da B2.9, baseada exatamente
na mesma plataforma do acervo de mRNA da BioNTech. Ambas pertenciam à mesma
família.

A virologista garantiu à entidade reguladora que a BioNTech e a Pfizer logo testariam


também a B2.9 em ratos, mas não daria tempo de fazer isso antes do início dos estudos
em seres humanos em Mannheim e Berlim. “Dissemos que a candidata exata ainda
estava a caminho e que não tínhamos dúvidas quanto a uma equiparação dos
resultados”, afirma Jan, que participou da ligação.

Entretanto, havia um último obstáculo burocrático. No fim de março, em conversas


com Özlem e a sua equipe, a Comissão de Ética do estado de Baden-Württemberg
decretou que todos os participantes do ensaio deveriam ser testados para a Covid-19
antes de receberem a vacina. Na época, apenas algumas empresas especializadas
realizavam o teste, e o processamento dos resultados demorava pelo menos dois dias.
Até mesmo a Bundesliga, principal liga de futebol do país, que estava suspensa por
semanas, encontrava dificuldades em submeter os jogadores a exames com a
regularidade necessária para que as partidas fossem retomadas com segurança. A
Comissão de Ética tinha sido extremamente favorável em muitos outros aspectos – e
até havia agendado reuniões ad hoc com a equipe e com os órgãos reguladores –, então
essa exigência repentina os surpreendeu. “Foi difícil entender. Quando se tratava desse
assunto, não conseguíamos mudar a opinião deles”, diz Uğur. Depois que suas
contestações se mostraram infrutíferas, Uğur pediu ajuda ao gerente de projetos
Christian Miculka, que ingressara na BioNTech pouco antes, em fevereiro. Christian
ligou na mesma hora para um amigo com quem havia estudado na Áustria trinta anos
antes, funcionário de uma ex-subsidiária da empresa alemã Bosch. Como sabia que a
popular fabricante de eletrodomésticos também produzia o kit de teste de PCR, usado
para os testes padrão-ouro de Covid-19, solicitou um contato na empresa. Horas
depois, quando trocava os pneus do carro sob uma chuva torrencial, Christian recebeu
a ligação do vice-presidente da Bosch. O executivo lhe informou que havia uma
demanda extraordinariamente alta para os dispositivos de testes, os quais custariam
cerca de 50 mil euros cada. Disse ainda que, para além da questão de adquirir um
número suficiente das máquinas em falta, a BioNTech teria bastante dificuldade para
conseguir os cartuchos descartáveis necessários para a realização dos testes –
mercadoria cobiçada naquela ocasião. Mesmo assim, após confirmar que o
equipamento atendia aos padrões da Comissão de Ética, Christian encomendou quatro
desses dispositivos valiosos e todos os cartuchos que conseguiu. “Precisei pedir
desculpas à equipe de aquisições, porque é provável que eu tenha violado todas as
políticas deles”, conta. Não deu tempo de pesquisar os preços.

U ğur e Özlem estavam em casa quando o e-mail chegou, pouco antes das três

da tarde de 21 de abril, terça-feira. “PEI: o estudo pode ser iniciado” era o título da
mensagem encaminhada por Ruben Rizzi, chefe do departamento de questões
regulatórias na BioNTech. Uma resposta formal da agência alemã foi incluída na
mensagem e afirmava: “Os certificados e os resultados dos testes são adequados e,
portanto, atendem aos respectivos requisitos, conforme estabelecido na aprovação do
ensaio clínico.” Italiano enérgico, filho de um especialista em doenças infecciosas que
atendia pacientes graves com Covid-19 em um hospital lotado em Bergamo, Ruben
acrescentou acima da mensagem, em letras maiúsculas: PARABÉNS, PESSOAL.

Horas mais tarde, outro integrante da equipe respondeu à mensagem, com cópia para
todos, trazendo uma atualização. As máquinas de PCR da Bosch haviam chegado ao
principal local do ensaio clínico, em Mannheim. Os funcionários da BioNTech
responsáveis por estudar os manuais das máquinas tinham viajado até os locais para
treinar cada equipe. Um ensaio clínico com duzentos voluntários saudáveis entre 18 e
55 anos começaria em abril, conforme o cronograma de Uğur, sendo que indivíduos
mais velhos seriam incluídos 28 dias após o grupo mais jovem ter recebido duas doses
e ter sido monitorado. Uğur enviou essa informação aos colegas da Pfizer e comentou:
“Continuamos no prazo.”

A notícia foi recebida com certo alívio em Nova York, que estava prestes a se tornar o
centro global da pandemia do coronavírus. As unidades de terapia intensiva estavam
abarrotadas, e o som das sirenes servia de trilha sonora apocalíptica para os
profissionais do Projeto Light-speed alocados no arranha-céu da Pfizer em Manhattan.
Dezenas de necrotérios móveis tinham sido instalados na cidade, então os corpos eram
levados para caminhões refrigerados estacionados em frente aos hospitais. Algumas
das instituições ficaram sem estoque de sacos para cadáveres, e vítimas não
identificadas foram enterradas em valas comuns em um cemitério de indigentes na Ilha
Hart. “Uma coisa é ver uma imagem na televisão, outra é andar pelas ruas de Nova
York e olhar aqueles caminhões frigoríficos se amontoando. Foi muito assustador”, diz
Kathrin Jansen, da Pfizer.

No dia seguinte, 22 de abril, o PEI anunciou publicamente que havia autorizado o


ensaio clínico da BioNTech. Como não estava entre os destinatários do e-mail de Ruben
Rizzi, Claudia soube da novidade pelo boletim de notícias sobre coronavírus do site do
Tagesschau, o principal telejornal da emissora pública alemã ARD. Um e-mail foi
enviado para a equipe da BioNTech pouco depois, e as ações da empresa subiram
incríveis 30% na Nasdaq, a Bolsa que reúne empresas de alta tecnologia em Nova York.
O presidente do PEI, Klaus Cichutek, deu uma entrevista coletiva falando sobre os
trabalhos da agência reguladora antes da autorização, ressaltando que não tinham
pulado nenhuma etapa. Mas, quando perguntaram em que data uma vacina seria
aprovada para a distribuição mais ampla, ele diminuiu as expectativas. Segundo Klaus,
era “improvável” que isso ocorresse antes do fim do ano.

Naquela mesma tarde, chegaram novos dados sobre o construto B2.9, incluído no
ensaio clínico de última hora. Os exames de sangue mais recentes dos camundongos
que tinham recebido esse construto ajustado eram da semana anterior, e as novas
amostras confirmaram que o nível de anticorpos neutralizantes era mais de quatro
vezes superior ao do induzido pelo construto B2.8. Aliviado, Uğur escreveu em um e-
mail para Alex: “Seus estudos confirmam que mudar foi mesmo uma decisão muito
sábia. Muito obrigado.”

No dia 23 de abril, quinta-feira, a chefe de comunicação da BioNTech, Jasmina


Alatovic, dirigiu-se ao local do ensaio clínico em Mannheim a fim de coordenar as
filmagens do momento histórico – a primeira injeção – para a imprensa alemã. Um
colega que ia naquela direção lhe ofereceu carona e perguntou se ela poderia esperar
no Aeroporto de Frankfurt, que ficava no caminho. Em geral repleto de executivos e
turistas, o terminal principal desse ponto central de voos internacionais estava vazio.
Só se escutavam os cliques ligeiros de um painel de embarque antigo. Poucos carros
estavam parados na fila de táxis. A vacina já estava demorando.

Assim que ela chegou ao edifício simples de tijolos marrons em Mannheim, os


acontecimentos se desenrolaram depressa. Enquanto os bondes passavam devagar na
rua, a equipe da BioNTech esperava em uma salinha para proteger o anonimato dos
voluntários. Na porta ao lado, um enfermeiro diluiu a vacina e, às 11h08, o primeiro
paciente recebeu a dose do construto de uRNA. Uma mensagem de uma linha foi
enviada para a equipe do Projeto Lightspeed: “A preparação da vacina e a injeção
ocorreram sem problemas.” Logo em seguida, Özlem respondeu para todos: “Ótimo
trabalho, pessoal! Estou muito orgulhosa de todos vocês e acho incrível que o
desempenho desta equipe esteja no nível dos ‘atletas de alto rendimento’.”

Fotos daquele momento foram transmitidas em canais de notícias em todo o país.


Poucas horas depois, a equipe de Oxford injetaria, no seu primeiro paciente no Reino
Unido, uma vacina candidata de vetor viral contra o coronavírus. Porém, graças ao
hábito alemão de se adiantar às coisas, a BioNTech se tornou a primeira empresa na
Europa a testar uma vacina contra a Covid-19 em seres humanos.

A pós os primeiros voluntários da fase 1 receberem as doses com segurança, a

equipe do Projeto Light-speed iniciou a espera agonizante pelos sinais preliminares de


uma vacina eficaz em seres humanos. Foi uma espera que Özlem e a equipe clínica
reduziram para cinco semanas: três semanas até que a segunda dose pudesse ser
administrada, uma semana para as defesas imunológicas entrarem em ação e uma
semana para o processamento das amostras. Mas, de forma inesperada, o estágio final
de processamento se mostrou ambicioso demais.

Naquele momento, a BioNTech usava uma empresa de diagnósticos no Norte da Itália


para analisar amostras do estudo. Tubos de ensaio dos centros de pesquisa em
Mannheim e Berlim eram enviados diretamente para a empresa toscana, que estava
aberta e funcionava com capacidade total. A pedido de Uğur, a BioNTech pressionava
para que os resultados iniciais, ainda brutos, fossem disponibilizados o mais rápido
possível, de modo que pudessem tomar uma decisão a respeito da candidata
vencedora para proceder a um estudo global de última fase.

Entretanto, logo ficou claro que o procedimento na Itália demoraria muito. Os


funcionários não trabalhavam 24 horas por dia e, por decreto regulatório, precisavam
revisar e verificar os dados antes de apresentar conclusões. Mais uma vez, Uğur contou
com a desenvoltura do bioquímico Alex Muik. Assim que o sangue dos voluntários
alemães que tinham recebido duas doses no ensaio era coletado, as caixas com as
amostras eram enviadas para a BioNTech. Usando o teste com o vírus substituto no
qual Alex trabalhara com sua única máquina de mesa, bastava um dia para gerar dados
preliminares sobre a intensidade da resposta imunológica provocada pelas vacinas.
“Liguei várias vezes para Alex”, conta Uğur, que estava desesperado para saber o
desempenho das candidatas praticamente no mesmo instante em que chegassem a
Mainz. “Ele falava: ‘Uğur, me dê três horas.’ E depois: ‘Uğur, preciso de mais meia
hora’.” Então, em 29 de maio, pouco depois de uma da tarde, chegou um e-mail.

Alex tinha anexado na mensagem o primeiro conjunto de dados do ensaio clínico da


BioNTech. Ele testara o sangue de seis dos participantes que receberam duas doses de
10 microgramas do modRNA e de dois indivíduos que receberam 30 microgramas da
mesma formulação – essa plataforma gerava apreensão em Uğur e Özlem, que se
perguntavam se ela exigiria uma dose muito alta. Os anticorpos neutralizantes foram
medidos e comparados com a sorologia de pacientes recuperados da Covid-19; depois,
foram representados por dezenas de pontos agrupados na parte inferior de um gráfico
que, para os leigos, pareceria comum. Contudo, essa imagem significava um avanço
monumental na batalha da ciência para derrotar o implacável coronavírus. A candidata
colocava em ação os atiradores de elite do sistema imunológico apenas sete dias após a
conclusão de um regime de baixa dosagem – uma resposta ainda melhor do que a
observada em pacientes que sobreviveram a uma infecção natural por coronavírus.

Os resultados foram um alívio para a equipe do Projeto Lightspeed. Onze dias antes, a
Moderna tinha publicado os resultados de quatro voluntários do seu estudo de fase 1
com o modRNA. A empresa de biotecnologia norte-americana testara uma dose de 25
microgramas, mas a considerara insuficiente, então anunciou que ia tentar doses de 50
e de 100 microgramas. A BioNTech queria a todo custo evitar uma situação similar,
porque os relatórios sobre os participantes do ensaio alemão que receberam 100
microgramas do modRNA não apresentaram bons indicadores. Os indivíduos tinham
desenvolvido sintomas parecidos com os da gripe, como calafrios e febre. Alguns não
conseguiram levantar da cama. Para uma vacina que deveria ser administrada em
velocidade recorde, em todos os tipos de ambientes improvisados, isso estava muito
aquém do ideal. Quem recebesse a vacina teria de ser monitorado de perto durante
horas e, com certeza, muitos escolheriam pular essa parte. “O ideal era uma injeção que
pudesse ser dada no estacionamento do supermercado”, observa Özlem, que integrava
o comitê de quatro pessoas responsável por revisar os dados de segurança de Berlim e
Mannheim.

O painel decidira descontinuar as doses de 100 microgramas, mas os dados


preliminares enviados por Alex mostraram que essa resolução não afetaria o
surgimento de uma candidata funcional. Muito pelo contrário. “Naquele momento,
sabíamos que talvez 10, quem sabe 30 microgramas seriam suficientes”, diz Uğur.
Todas as otimizações de mRNA nas quais o casal e as suas equipes tinham trabalhado
ao longo dos anos estavam dando resultado. “O número de doses que éramos capazes
de fornecer, se houvesse autorização para comercialização, tinha efetivamente
triplicado.”

Havia um fato ainda mais encorajador: a candidata baseada em modRNA da BioNTech


ativava anticorpos neutralizantes com níveis de sucesso semelhantes em todos os oito
voluntários cujas amostras de sangue tinham sido analisadas. Era alta a probabilidade
de as tropas mobilizadas pelo corpo em resposta à vacina desmantelarem o patógeno
que já ceifara quase meio milhão de vidas, impedindo-o de se acoplar às células do
pulmão e causar uma doença grave. “Foi maravilhoso ver aquilo”, conta Uğur. Por um
instante, ele se permitiu apreciar a beleza da ciência que aperfeiçoara durante décadas
ao lado de Özlem e das suas equipes.

Sete minutos depois, respondeu assim ao e-mail: “Caro Alexander, cara equipe. Isso é
incrível. Temos uma vacina!”

Capítulo do livro A Vacina, a ser publicado em março pela editora Intrínseca.

A BioNTech havia desenvolvido quatro versões de mRNA sintético, removendo,


[1]

substituindo ou reconfigurando blocos de construção individuais para aumentar os


poderes naturais da molécula. Essas versões eram o uRNA (o mRNA contendo uridina,
uma das moléculas que formam a estrutura do RNA), o modRNA (ou mRNA
modificado com nucleosídeo), o aaRNA (ou mRNA de autoamplificação) e o taRNA
(ou mRNA de transamplificação). Como os nomes sugerem, estes dois últimos vêm
com sua própria “máquina copiadora”, ou capacidade de replicação, aumentando e
prolongando drasticamente a produção de um antígeno de vacina, como a proteína
Spike do coronavírus, nas linhas de produção celular. (N. R.)

[2]Glóbulos microscópios de gorduras, conhecidos como nanopartículas lipídicas, têm


sido usados desde a década de 1990 para inserir DNA em culturas de células.
Experimentos revelaram que os lipídios também poderiam encapsular o mRNA e
proteger esta molécula até ela atingir as células que funcionam como os principais
comunicadores do sistema imunológico. Os medicamentos baseados em mRNA
precisavam de uma blindagem para viajar pelo corpo até encontrar uma célula, e a
ideia era que, com a ajuda de uma química meticulosa, os lipídios conseguissem fazer
esse trabalho sem provocar um ataque imunológico contra si mesmos. (N.R.)

Joe Miller

É jornalista britânico
W ander Oliveira enfrentava dificuldades. Às vésperas de completar 36 anos,

estava endividado por todos os lados, não estudara para ter uma profissão e não sabia
o que fazer da vida. Naquele domingo de 2004, embora fosse católico, ele estacionou
diante do maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus, em Goiânia, e entrou.
No púlpito, o pastor Darlan Ávila, um dos líderes da igreja no Brasil, fez um pedido à
plateia de 5 mil fiéis: “Fechem os olhos e deixem o manto de Cristo cobrir vocês.”
Oliveira acatou a orientação e concentrou-se nas suas dificuldades. Ele vinha tentando
ganhar a vida como empresário de shows de música sertaneja, mas nada dava certo.
Tinha recebido um convite para trabalhar com uma dupla ainda em início de carreira,
João Neto e Frederico, que cantava para plateias minúsculas. Oliveira estava na dúvida
se aceitava o trabalho ou procurava outro ofício. Aproveitou o convite do bispo, e
mandou um apelo aos céus: “Se for para eu trabalhar com os meninos, o Senhor precisa
me dar uma prova.”

Encerrado o culto, Oliveira voltou para o carro e conferiu seu celular, um velho
StarTAC da Motorola. Havia três ligações perdidas – duas de João Neto e uma de
Frederico. Como é próprio de quem está em busca de uma inspiração mágica, Oliveira
interpretou aquilo não como uma coincidência, mas como a resposta divina. Topou a
empreitada. (Para quem não está familiarizado com o mundo da música sertaneja: João
Neto e Frederico cobram hoje 250 mil reais por um único show e seus vídeos no
YouTube somam 1 bilhão de visualizações.) Ali, recomeçava uma carreira que, depois
de muito trabalho, uma falência acachapante e métodos controversos, faria dele o mais
lucrativo empresário de cantores do Brasil.
N o dia 4 de novembro de 2021, dezessete anos depois do culto na Igreja

Universal, Wander Oliveira estava na sua empresa, a WorkShow, instalada em um


edifício de 22 andares. Sua sala, na cobertura do prédio, tem vista panorâmica de
Goiânia, piso de mármore e, no hall de entrada, sobre uma bancada, há uma imagem
de Nossa Senhora de 1 metro de altura. Naquele dia, Oliveira tinha uma reunião com a
cantora e compositora Marília Mendonça. A certa altura, a artista abriu a porta da sala
principal e, do seu jeito despojado de sempre, entrou fazendo um anúncio: “Wandão,
tá decidido: pode procurar um jato para nós! Não quero mais ficar viajando aí em avião
bimotor.”

Marília, a voz mais ouvida do Brasil, estava cansada de cumprir sua lotadíssima
agenda de shows voando em aviões pequenos. Os dois combinaram então procurar um
modelo Phenom 300, fabricado pela Embraer, ou um Citation cj4, da Cessna, ambos
com autonomia de voo de até 3,6 mil km. Dois meses antes, Marília se recusara a
embarcar no bimotor King Air, de propriedade do próprio Oliveira, para atender a um
compromisso profissional no Rio de Janeiro. Preferiu alugar o jato de uma empresa de
táxi-aéreo. Agora, tomara a decisão de evitar os bimotores. Achava-os desconfortáveis
e queria ter a segurança de viajar num avião próprio, com boa manutenção. No dia
seguinte, teria que embarcar num bimotor, um King Air c90. Faria um show em
Caratinga, no interior de Minas Gerais, onde a pista de pouso tinha apenas 1,08 mil
metros e só podia receber bimotores. O aeroporto mais próximo com capacidade para
jatos ficava em Governador Valadares, a mais de 100 km do local do show. Seria muito
demorado.

Na tarde de 6 de novembro, dois dias depois da decisão de comprar um jato, um carro


do Corpo de Bombeiros deixou o ginásio Goiânia Arena, na capital de Goiás,
carregando o corpo de Marília Mendonça, vítima da queda do bimotor que a levava
para Caratinga. Depois do velório que reuniu uma multidão de mais de 100 mil
pessoas, o cortejo fúnebre da cantora foi acompanhado apenas pelos mais íntimos.
Numa fotografia amplamente divulgada pela imprensa e pelas redes sociais, ao lado do
caixão aparecem duas duplas sertanejas – Maiara e Maraisa, e Henrique e Juliano – e,
entre elas, um cidadão que ninguém conhecia. As legendas dessa foto identificavam
apenas os artistas. No portal UOL, por exemplo, o cidadão do centro foi identificado
como “um amigo”. Era Wander Oliveira.
Oliveira era o empresário por trás do sucesso estrondoso de Marília Mendonça – ela,
que chegava a receber 800 mil reais por um único show. Mas ele é mais do que isso. Em
um ano bom, o faturamento de sua empresa – com shows, execuções de músicas em
plataformas de streaming e cachês de publicidade – chega perto de 1 bilhão de reais.
Seus quase trinta clientes, a maioria sertanejos, são os artistas mais executados no
YouTube e no Spotify no Brasil, as plataformas que indicam a popularidade dos
artistas. Ele é empresário de Henrique e Juliano (10,8 bilhões de execuções no
YouTube), Maiara e Maraisa (5,2 bilhões), e Diego e Victor Hugo (cuja canção Facas foi
a segunda mais tocada no Spotify do Brasil no ano passado).

Na música sertaneja, um mundo dominado por homens, Oliveira tornou-se o primeiro


empresário a apostar em mulheres cantoras e compositoras. Marília Mendonça, a joia
de seu portfólio, soma 15,1 bilhões de execuções no YouTube, desempenho que a
coloca entre as artistas mais assistidas do mundo, à frente de fenômenos planetários
como a norte-americana Beyoncé. (Fora do universo da música sertaneja, no Brasil,
esses são números inatingíveis. Anitta, a estrela mais reluzente do funk, tem 5,8 bilhões
de execuções no YouTube. Ivete Sangalo, a popularíssima musa do axé, tem 900 mil.)
Oliveira ergueu seu império sem ter curso superior, sem saber cantar, sem conexões
com o mercado de São Paulo e do Rio de Janeiro, e com aversão aos holofotes e à fama.

N ascido na zona rural de Americano do Brasil, município de 6 mil habitantes a

100 km de Goiânia, Wander Divino de Oliveira vem de uma família modesta. Seus pais
tiveram seis filhos e os nomes de todos os homens começam com W – Wagner,
Wanderlan, Wander e Wilton. Aos 5 anos, Oliveira já ajudava a ensacar milho e feijão
produzidos na roça da família. “Meus pais tinham a terrinha deles, mas não eram ricos.
Eu nunca passei fome, mas a vida era dura”, recorda. Aos 8, ele passou a acordar às
quatro da manhã porque, antes de ir para a escola, precisava fazer a ordenha das vacas.
A escola ficava a 8 km de sua casa. No começo, ia no lombo de um cavalo. Depois,
passou a fazer o trajeto de bicicleta.

Desde o início, Oliveira detestava a vida rural. Aos 15 anos, ao lado de irmãos mais
velhos, mudou-se para Goiânia, onde começou a cursar eletrotécnica. Enquanto
estudava, chegou a trabalhar na antiga Centrais Elétricas de Goiás. Numa ocasião, a
escola promoveu uma viagem para os alunos conhecerem fábricas de lâmpadas e
disjuntores em São Paulo, mas apenas o percurso de ônibus seria gratuito. A
hospedagem e a comida correriam por conta dos alunos. Sem dinheiro, ele e um colega
organizaram dois shows para arrecadar recursos. Contrataram dois cantores sertanejos
e fizeram uma festa no ginásio do colégio e outra numa casa de eventos. O lucro pagou
hotel e alimentação de diversos alunos – e ainda sobrou dinheiro. Tem coisa aí, ele
pensou.

Oliveira conhecia música sertaneja. Na roça de seus pais, os peões compravam revistas
com partituras de músicas de duplas famosas, como Pena Branca e Xavantinho,
Milionário e José Rico e Chrystian e Ralf. Oliveira sabia cantar todos os hits. Na
adolescência, já em Goiânia, chegou a fazer um curso de canto para se enturmar e,
quem sabe, descobrir um ganha-pão. Não rolou uma coisa nem outra. “A professora
falou que não nasci para aquilo”, diz. Errada ela não estava. Oliveira é tímido, sua voz
é levemente rouca e, quando fala, em ritmo acelerado, come as sílabas.

Com seu gosto pela música, Oliveira começou a organizar festas sertanejas em bares e
casas de evento. Era o começo dos anos 1990 e ele tinha 20 e poucos anos. Em
sociedade com um colega, Paulino Rezende, o mesmo que se candidataria a vereador
pelo PDT alguns anos depois, abriu uma modesta casa de shows. Chamava-se Circos
Cowboy porque, por falta de dinheiro para erguer um telhado, ficava debaixo de uma
tenda. A aposta, porém, não era faturar com a música: era bebida alcoólica. Deu certo.
Pouco tempo depois, abriram outra casa, a Pirâmide Cowboy, agora com três tendas.
Não cobravam ingressos, ou cobravam ingressos irrisórios, e viviam da venda de
cerveja. A Pirâmide Cowboy cresceu e chegou a ter uma unidade em Brasília.

Em meados da década de 1990, Oliveira percebeu uma mudança. Os artistas de axé da


Bahia, como Netinho e É o Tchan, estavam passando a cobrar uma porcentagem da
bilheteria por seus shows, e não mais um cachê fixo desvinculado da lotação do
espetáculo. A dupla sertaneja Bruno e Marrone, que estava começando a carreira, por
exemplo, ainda operava no esquema antigo. Cobrava o equivalente a apenas 200 reais
por show, quer o espetáculo atraísse dez pessoas ou mil. No começo, os baianos
começaram pedindo 20% da bilheteria. Oliveira deu-se conta de que, com essa fórmula,
era possível ganhar como dono de casa de shows, mas também havia oportunidade
para faturar alto como empresário de artistas. Ele vinha conseguindo se manter com a
Pirâmide Cowboy, mas de novo pensou: tem coisa aí.

Vislumbrando um bom negócio, ele e seu sócio Paulino Rezende se ofereceram para
representar Bruno e Marrone. Levaram um “não, muito obrigado”, pois a dupla já
tinha um agente. Então, resolveram fazer a mesma proposta para Marcos e Fernando,
uma outra dupla sertaneja de Goiânia que dava então seus primeiros passos e vinha
atraindo bom público na Pirâmide Cowboy. Marcos e Fernando toparam e, no começo
de 1999, o contrato estava assinado. Oliveira ficou com a missão de escolher o
repertório, vender os shows e pagar as rádios para que tocassem as músicas – o
controvertido jabá, no jargão do mercado. Como dono de balada, Oliveira conhecia os
ritmos e batidas que empolgavam a pista de dança. “A música tinha de render
coreografia, ter uma virada, um pá-pá-pá para bater as mãos na hora do refrão”, diz.

O primeiro disco da dupla foi gravado dentro da Pirâmide Cowboy, com público ao
vivo. Com o material em mãos, Oliveira começou a percorrer as rádios da região para
vender seu peixe e pagar os jabás. O primeiro sucesso veio já no ano seguinte,
com Socorro, uma música com todos os ingredientes do pá-pá-pá de que Oliveira
gostava. Os versos e foi chegando sob o clarão da Lua/eu notei que ela estava completamente
nua introduzem o refrão Socorro veio em minha direção! Socorro já chegou passando a mão.
Em seguida, estourou a balada É Armação, que desmascarava uma mulher que se dizia
grávida de um, quando era de outro.

O sucesso chamou a atenção da EMI, a gravadora inglesa que estava então entre as
principais do Brasil. Oliveira foi procurado pela empresa, gostou da proposta e assinou
contrato. Começaram a pipocar convites para que Marcos e Fernando se apresentassem
em programas como Domingão do Faustão, da Globo, e Domingo Legal, do SBT. Em
pouco tempo, o cachê dos shows passou a subir. Foi de 2 mil para 5 mil, depois 10 mil e
em seguida atingiu 20 mil. Com tanta notícia boa, Oliveira e a dupla alugaram uma
casa num condomínio em Itu, nos arredores de São Paulo, para ficarem mais perto do
mercado. O negócio, enfim, começava a desabrochar. Até que tudo desandou.

Oliveira passou a selecionar os convites. Quando recebia ligações de programas de


menor audiência do SBT e da RedeTV! pedindo uma apresentação da dupla, Oliveira
recusava. Queria que seus agenciados aparecessem apenas na Globo. Cheios de si,
Marco e Fernando deixaram de receber os fãs nos camarins de seus shows. Na mesma
época, Oliveira percebeu que sua dupla não era uma prioridade da EMI, que preferia
promover a dupla Cleiton e Camargo – sendo Werley Camargo o irmão de Zezé Di
Camargo e Luciano.

Nesse contexto, Oliveira fez uma visita à família, que ainda morava na roça. A certa
altura, seu irmão Wanderlan cansou de ouvi-lo arrotar seus sucessos e desabafou:
“Cara, você está muito enjoado. Não sei como as pessoas aguentam ficar perto de
você.” Oliveira conta que nunca esqueceu aquilo e, naquele momento, percebeu o erro
que vinha cometendo: a arrogância. Ele e a dupla, embevecidos com o sucesso,
deixaram de pensar nas próximas músicas, de cultivar os fãs e começaram a se
desentender. Para piorar, a Pirâmide Cowboy teve que fechar as portas depois que
uma cliente foi executada a tiros na frente do estabelecimento.
E m 2001, estava tudo acabado. Oliveira tinha fechado a casa que alugara em Itu e

voltado para Goiânia. Nos anos seguintes, sustentou-se oferecendo projetos culturais
de artistas desconhecidos para a Prefeitura de Goiânia e o governo do estado. Mas o
negócio se arrastava. Afundado em dívidas e sem rumo, fazia planos de largar o
mercado de música e abrir uma empresa para restaurar estofados. E então, em 2004, foi
procurado pela dupla João Neto e Frederico. “Que mané vender sofá! Vamos trabalhar
com música porque é disso que gostamos”, conta Frederico, ao rememorar como fez o
convite para Oliveira, de quem já era amigo. Assinaram contrato. Oliveira decidiu que
tentaria mais uma vez.

Nessa altura, recorreu a uma pesquisa informal que fizera anos antes. Ele pedira a mais
de cem camelôs e feirantes de Goiânia e região que vendiam CDs para que anotassem
as trinta músicas que seus clientes mais compravam. No resultado, apareceram no
topo Boate Azul, de Benedito Seviero, Telefone Mudo, de Franco e Peão Carreiro,
e Sublime Renúncia, de Pery e Prado Júnior, canções cantadas até hoje em qualquer
karaoke do país. Oliveira então tentou convencer a dupla Marcos e Fernando a retomar
a carreira gravando um CD só com as mais pedidas. Eles não toparam, mas João Neto e
Frederico gostaram da ideia.

Oliveira fez então um CD com um compilado de 25 canções de “modão”, como são


chamadas as músicas clássicas sertanejas. De cambulhada, incluiu cinco canções da
dupla João Neto e Frederico, como Pega Fogo Cabaré, Meu Anjo e Pura Magia. “Assim, o
cara escutava Chitãozinho e Xororó, Zezé Di Camargo e Luciano e, opa!, também os
meus meninos”, conta Oliveira. “Sem saber, o público começava a gostar dos meus
artistas. Sem falar que eu concentrava em apenas um CD tudo o que o cara queria
escutar, sem precisar gastar com mais.” Para fazer seu produto, Oliveira não esconde
que montou uma central de pirataria, pois não pagava direito autoral para nenhum
artista. “Varávamos a madrugada copiando CD para depois ir distribuir aos feirantes
na manhã seguinte”, confirma Frederico. Os CDs eram deixados com os camelôs em
esquema de consignação.

Em seu Volkswagen Logus, Oliveira rodou por todos os estados do Brasil distribuindo
CDs piratas para feirantes e camelôs, e pagando jabás para as rádios tocarem as
músicas de sua dupla. Para economizar com hospedagem, dormia dentro do carro. Às
vezes, entregava os CDs diretamente na central de distribuição, que ficava no Paraguai,
na fronteira com o Paraná.
Do outro lado da Ponte da Amizade, as próprias lojas de mercadorias piratas
abasteciam os feirantes em várias partes do Brasil. Oliveira estacionava o carro no lado
brasileiro, enchia uma mochila com seus CDs piratas para driblar a fiscalização e
entregava tudo aos lojistas paraguaios. Fazia o trajeto várias vezes ao longo do dia.
“Uma vez, voltando do Paraguai, ele me ligou de Londrina. Pediu para eu depositar
500 reais porque tinha acabado o dinheiro da gasolina”, recorda Wagner, o irmão que
então trabalhava como funcionário público da Eletrobras. Quando voltava do Paraguai
para Goiânia, Oliveira trazia seu porta-malas cheio de CDs virgens para uma nova
rodada de pirataria.

O negócio deu certo. Seu telefone começou a tocar, com casas de shows espalhadas
pelo Brasil fazendo contato para contratar a dupla. Como ainda não tinham apelo
comercial, João Neto e Frederico cobravam cachê – e não percentual da bilheteria. O
cachê chegou a 5 mil reais, mas o esquema todo continuava no vermelho. A venda de
CDs piratas era usada para piratear mais CDs e pagar mais jabás, mas o lucro não
vinha. A mudança que colocaria seu negócio no azul veio da iminência de um calote.
Oliveira pediu ao diretor da Rádio Paranaíba, em Uberlândia, que não descontasse seu
cheque de 3 mil reais porque não tinha fundos. O então diretor, Luiz Antônio Pedreira,
perguntou qual era o custo para fazer um CD pirata. “Eu respondi que era 1,50 real.
Era menos, mas eu queria já abater da minha dívida”, relembra ele. Pedreira tinha
contrato para vender shows de Victor e Leo, uma dupla que estava estourando nas
paradas em Goiás e no Triângulo Mineiro, e então encomendou 2 mil CDs de seus
cantores e pediu que Oliveira os distribuísse nas feiras.

Oliveira topou na hora. Além da pirataria terceirizada, percebeu que poderia pegar
carona no sucesso de Victor e Leo. Sem avisar o dono da rádio, gravou os 2 mil CDs
com quinze músicas da dupla e incluiu cinco de João Neto e Frederico. Ainda colocou
uma foto de Victor e Leo na capa, sob o título Explosão Universitária. No canto superior
direito do CD, imprimiu o número do seu celular. As vendas dos CDs piratas de Victor
e Leo explodiram. “Vendi mais de 100 mil cópias”, diz ele. Fez mais do que isso. “As
pessoas me ligavam para falar do Victor e Leo, daí eu explicava que as músicas tal e tal
eram de João Neto e Frederico.” Como todo mundo ganhou dinheiro, nem Victor e
Leo, nem o diretor da rádio Paranaíba, reclamaram da pirataria.

Nesse período, Oliveira achou que tinha encontrado seu caminho. “Esse negócio de
trabalhar com música vai dar certo”, dizia. Ao final de um show de sua dupla, cujo
cachê já estava em 20 mil reais, ouviu de um contratante que, se fosse o caso, pagaria
“muito mais”. Oliveira aproveitou e, inspirado na turma do axé, mudou o contrato de
cachê para percentual da bilheteria. Em uma festa de rodeio de Votuporanga, no
interior de São Paulo, tomou um susto. O contratante reservou um bom hotel, com
quarto individual para cada um deles. Coisa rara. Depois do show, entregou a parte de
Oliveira em dinheiro vivo: 70 mil reais. Oliveira chamou João Neto e Frederico no seu
quarto, espalhou o dinheiro sobre a cama e disse: “Temos como opções pagar parte das
nossas dívidas com banco, iluminadores e empresa de ônibus. Ou podemos investir em
mais cópias de CDs piratas e fazer um álbum novo. Pensar que estamos ricos não é
uma alternativa.” A dupla gravou um DVD e, meses depois, fechou contrato com a
Som Livre, gravadora então ligada ao grupo Globo e que, por isso mesmo, tinha boas
chances de divulgação em programas de entretenimento da emissora.

Com o caixa engordando, Oliveira começou a diversificar seus negócios. Abriu uma
construtora, a Múltipla, cujo foco principal era construir prédios em Palmas, na capital
do Tocantins. Contratou uma consultoria para melhorar a WorkShow e começou a ler
livros de autoajuda financeira, como Pai Rico, Pai Pobre, best-seller norte-americano
sobre finanças, e Mentes Milionárias, outro do ramo, com incursões na neurociência.
Mas não perdeu o foco principal. Numa visita a Palmas, conheceu uma dupla que fazia
sucesso local, os irmãos Henrique e Juliano, hoje um fenômeno da música sertaneja.
Depois de algumas conversas e reuniões, fecharam contrato.

Só faltou combinar com os goianos. João Neto e Frederico detestaram a ideia da


contratação de outra dupla e sentiram-se preteridos. “Foi ciúme, não tem o que falar”,
diz Oliveira. Eles deixaram a WorkShow e, em 2015, moveram uma ação indenizatória
contra a empresa alegando que parte dos lucros que geravam era investida em outros
artistas. (Em 2019, o processo foi extinto. “Erramos, pedimos perdão e está tudo certo
conosco”, diz Frederico. Ele e João Neto voltaram a ser agenciados pela Work-Show em
2020.)

E m 2008, a WorkShow estava em ascensão. Ocupava um sobrado, tinha contrato

com três artistas e, no final de uma tarde qualquer, já perto das 17 horas, seu interfone
tocou. Era uma garotinha de 13 anos, que trazia umas canções escritas em um caderno
escolar e um violão debaixo do braço. A dupla João Neto e Frederico estava na empresa
e pediu para a menina cantar. Gostaram. “Ela era uma garota sem experiência de vida,
mas falava de amor, dor e traição como se tivesse passado por cinco divórcios”, diz
Frederico. Eles resolveram chamar Oliveira para escutar. “As letras eram boas e ruins
ao mesmo tempo: tudo muito bem escrito, mas longas e sem um refrão-chiclete”,
lembra Oliveira. Mas, ao ouvir uma garota pequena com um vozeirão, ele logo pensou:
tem coisa aí. A menina era Marília Mendonça.

Em um primeiro momento, Oliveira escalou a menina para trabalhar apenas como


autora de músicas para os artistas da WorkShow. Uma semana depois, Ruth Moreira,
mãe da adolescente, apareceu na empresa para assinar o contrato de trabalho da filha
menor de idade. O salário era de 3 mil reais. Um dinheiro graúdo para uma família
pobre. Com esse contrato, Marília passou a sustentar sua família – ela, a mãe e um
irmão mais novo.

Marília tinha perdido seu pai biológico havia pouco, vítima de um câncer. Seus pais se
separaram quando ela ainda estava na infância. Sua mãe se casou de novo e teve João
Gustavo, mas o relacionamento com o marido não durou e, mais uma vez, deu-se a
ausência paterna. Ruth Moreira sustentou os filhos com meios modestíssimos. Chegou
a ter um pequeno bar, e morava nos fundos. A necessidade de trabalhar tendo filhos
pequenos levou os vizinhos a denunciá-la no Conselho Tutelar por abandono de
incapazes. Aos poucos, Oliveira foi assumindo o papel da figura paterna para Marília.
“Muitas vezes a mãe dela me chamava aqui no escritório pedindo para eu dar bronca
porque ela estava bebendo muito, essas coisas de adolescente”, lembra Oliveira.

Aos 13 anos, Marília compôs Minha Herança, que seria, anos mais tarde, feitas algumas
adaptações, a primeira canção a ser gravada profissionalmente por João Neto e
Frederico. Na época, a música estourou. Marília também fez Cuida Bem Dela para a
dupla Henrique e Juliano. Outro estouro. Mas foi só depois de quase seis anos na
WorkShow, período em que compôs dezenas de hits para os artistas da empresa, que
Marília Mendonça foi lançada como cantora. “Esperei ela fazer 18 anos para protegê-la
dela mesma. Ela não tinha estrutura emocional para lidar com o mercado, que poderia
sugar essa criatividade”, diz Oliveira.

A estreia de Marília como intérprete aconteceu com o lançamento de um EP, em que


constavam duas músicas que viraram grandes hits: Alô Porteiro (Pegue suas coisas que
estão aqui/Nesse apartamento você não entra mais/Olha o que você me fez, você foi me
trair/Agora arrependido quer voltar atrás) e Sentimento Louco (Só queria mais um pouco desse
sentimento louco/De acordar de madrugada pra fazer de novo/E se isso for pecado, quem vai nos
julgar?). As letras que entoavam as amarguras de amor lhe renderiam a alcunha de
Rainha da Sofrência. Infiel, música que tornou seu rosto famoso, seria lançada em 2016
quando gravou um DVD ao vivo. Quem esteve no show constatou que o público ali já
sabia cantar as músicas, insistentemente tocadas na internet e nas rádios.
Às vésperas de sua morte, Marília Mendonça estava faturando entre 10 e 12 milhões de
reais por mês, entre o que recebia do Spotify, Deezer e YouTube, além dos shows e
contratos de publicidade.

Um dos orgulhos de Oliveira é ter sido o primeiro a abrir portas para mulheres no
mercado sertanejo, no qual hoje fazem sucesso artistas como Simone e Simaria e Naiara
Azevedo – nenhuma delas é da WorkShow. “Além da Marília, eu assinei contrato com
a Maiara e Maraisa ainda em 2015”, diz ele. “As duas tinham sido recusadas por um
outro empresário só porque são mulheres. Dou graças a Deus, na verdade, pela burrice
dele”, diz Oliveira, comemorando seu alto faturamento com o sucesso das irmãs mato-
grossenses. A presença de mulheres no segmento deu origem ao “feminejo”, cuja diva
era a própria Marília. Mesmo assim, o mercado sertanejo ainda é um terreno de
homens. Na própria WorkShow, as mulheres representam apenas 20% do elenco da
empresa.

N a certidão de nascimento da música caipira no Brasil consta o ano de 1929,

quando o escritor e músico Cornélio Pires (1884-1958) gravou seu primeiro disco de 78
rotações com canções sobre a vida na roça. Natural de Tietê, no interior de São Paulo,
Pires vivia na capital e era conhecido como “bandeirante caipira”. Desde então, cantar
a vida rural faz parte da cultura nacional. “Mesmo que hoje o Brasil seja um país
majoritariamente urbano, quase todos nós temos pais ou avós criados no interior ou na
roça”, diz o jornalista André Piunti, especializado em música sertaneja. “De alguma
forma, esse estilo de música conecta todas essas pessoas. Festas de aniversário de
cidades e as feiras agropecuárias são parte da diversão da população rural ou de
cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Tocantins e Paraná, os mais importantes dentro do mercado de shows sertanejos.”

Hoje, o sertanejo está no auge. É, de longe, o ritmo mais escutado em rádios


e streaming no Brasil. Dos cinco artistas mais escutados pelo Spotify no ano passado,
quatro são desse segmento: Gusttavo Lima, Marília Mendonça, Jorge e Mateus, e
Henrique e Juliano. Oliveira diz que o Spotify é como uma espécie de Lojas
Americanas da era das redes sociais: “Antes eram as Americanas que mais vendiam
CD”, diz Oliveira. “Agora, é pelo Spotify que as pessoas escutam música e, a cada
apertada no play, centavos entram na nossa conta.”
Oliveira explorou o potencial da internet logo cedo. Ainda em 2007, contratou João
Alves da Silva Junior, que então dava aulas de informática e webdesign no Senac, em
Goiânia. Silva Junior, dono de uma longa barba grisalha, não entendia nada de música
sertaneja – sua paixão é o rock –, mas topou o emprego. De saída, criou 25
comunidades diferentes para João Neto e Frederico na rede social da época, o Orkut.
“Eu fazia perguntas sobre as músicas favoritas para gerar engajamento”, lembra,
referindo-se a uma estratégia hoje banal. Na mesma época, surgiu o YouTube, a
gigante plataforma de vídeos, e o negócio tomou outra proporção. A dupla Henrique e
Juliano foi o primeiro caso de sucesso da WorkShow no YouTube.

A tecnologia sempre foi uma aliada da WorkShow, que monitora seus artistas com
precisão. Em uma sala da empresa, há duas telas imensas, onde aparecem em tempo
real as execuções de músicas de seus artistas em todas as mais de 10 mil rádios do país.
O programa usado é o Connectmix, semelhante ao Google Analytics, com a diferença
de que o acesso é pago. Ao longo de 15 de dezembro do ano passado, por exemplo, dia
em que a piauí visitou a sala para conhecer o programa, a música Todo Mundo Menos
Você, uma parceria entre Marília Mendonça e a dupla Maiara e Maraisa, tocou em 2 202
rádios do país.

Quem analisa esses dados é Luciano Sassinhora, radialista há três décadas que ocupa o
posto de diretor do Departamento de Rádio da WorkShow. Pelo Connectmix,
Sassinhora pode levantar o histórico de uma determinada canção – em que horários
mais toca, em que regiões do país, por exemplo. No dia 5 de novembro, dia em que o
avião de Marília Mendonça caiu, suas músicas haviam sido executadas 6 209 vezes. No
dia seguinte ao acidente, foram 36 197 execuções. Em todo o mês de novembro, a
música Troca de Calçada, seu sucesso que faz uma homenagem às prostitutas, tocou 45
045 vezes nas rádios de todo o país.

“Monitoro se as rádios estão tocando os artistas em cujas músicas estamos investindo”,


diz Sassinhora, dono de um vozeirão grave e um jeito despachado. Na semana de
lançamento de uma canção, cada rádio deve tocar a música pelo menos quatro vezes no
dia, sempre logo antes ou logo depois do intervalo comercial. “Em geral, os caras do
funk estão preocupados em bombar na internet, então investem em clipes lindos. E só.
Veja se eles lotam shows e duram muito tempo? Um exemplo é o MC Livinho. Em 2016
estourou com alguns hits e hoje ninguém mais sabe quem é”, diz Sassinhora. “Graças a
Deus, temos a humildade de pagar e colher os frutos do jabá. O cara que cuida da
agenda de shows dos nossos artistas fica maluco de tanto atender telefone.” Marília
Mendonça chamava a sala desse funcionário de “Casa da Moeda”.

O jabá continua no centro do negócio, seja para artistas consagrados ou novatos. “De
tanto tocar nas rádios, o público passa a gostar e a pedir de forma orgânica as nossas
músicas”, diz a nova aposta da WorkShow, a cantora Allana Macedo, uma morena de
voz grave e cabelo de Pocahontas. Quando vai lançar uma música, a WorkShow gasta
cerca de 400 mil reais em jabá, contratando uma média de cinquenta rádios, todas com
alcance de pelo menos um raio de 80 km. “Os sertanejos têm vozes poderosas e são
aplicados, investem, trabalham duro, fazem a roda girar”, elogia Paula Lavigne,
produtora cultural e empresária de seu marido, Caetano Veloso. “Os caras hoje
cumprem o papel antes exercido pelas gravadoras: eles têm estúdios, vão em busca de
parcerias com outros cantores, fazem coreografia para bombar no TikTok.” Mas ela é
radicalmente contra a prática do jabá para as rádios. “Porque só toca quem tem grana,
deixa os menos ricos de lado. O jabá matou o samba no Brasil.”

W ander Oliveira, 53 anos, casado com a namorada de adolescência, Tatiane

de Moraes Soares, com quem tem uma menina de 7 anos, enriqueceu com a música
sertaneja. Em sua fazenda às margens do Rio Araguaia, em Goiás, tem 6 mil cabeças de
gado, um patrimônio estimado em 35 milhões de reais. Cada um dos catorze galpões
climatizados da propriedade reúne 16 mil frangos, e o abate ocorre a cada dois meses –
um negócio que lhe rende cerca de 2 milhões de reais ao ano. Cria oitocentos porcos,
tem gado Nelore para venda de sêmen. A gigante do setor alimentício JBS é seu
principal cliente para a venda de carne. Oliveira também tem produção de leite, que é
comprada por uma cooperativa goiana. Tudo isso pertence à WorkShow Agropecuária,
mas seus negócios se expandem para outras áreas. Ainda mantém a construtora
Múltipla, que deixou de erguer prédios em Palmas para produzir asfalto. É sócio da
Potiguar, uma fábrica de chope, e de uma empresa de placas fotovoltaicas, a
WorkSolar. Para ajudar sua ex-dupla sertaneja Marcos e Fernando, cuja carreira
artística naufragou depois de um sucesso inicial, tornou-se sócio deles numa fábrica de
tinta.

A música, claro, continua sendo seu negócio principal. Ele aparece como sócio em uma
miríade de pequenas empresas formadas por seus artistas (para emitir as notas fiscais
dos shows), cujos nomes soam como títulos de música sertaneja – é a Show Completo,
a Mistura Louca, a Tô Bem Produções, a Nave Balada ou a Sentimento Louco – esta
última, uma sociedade de Oliveira com Marília. Há seis meses, em nome da
WorkShow, ele fechou contrato com a Universal, uma das maiores gravadoras do país,
que passará a trabalhar com boa parte de seus artistas. Como representa hoje metade
de todos os sucessos do sertanejo no país, Oliveira sentou-se para conversar com a
Universal em condições privilegiadas. Ficará com 80% dos royalties, cabendo os outros
20% para a gravadora. Oliveira, no entanto, fica responsável por todo o investimento
de marketing (leia-se, entre outras coisas, pagar jabá para as rádios). “O Wander é um
gênio”, disse o diretor da Universal, Paulo Lima, em conversa por videoconferência
com a piauí de sua casa em Los Angeles: “Ele tem faro e ouvido para escolher artistas
que, sem risco algum, vão criar sucesso atrás de sucesso.”

Agora que está consolidado, Oliveira não quer nem ouvir falar em pirataria. Em 2012,
por exemplo, sua dupla Henrique e Juliano gravou o primeiro DVD durante um show
ao vivo, quando emplacou o sucesso da música Não Tô Valendo Nada (Vou esperar minha
mulher querer ir no banheiro/Aí eu ganho cinco minutinhos de solteiro/É rapidinho, ela nem vai
desconfiar). O DVD foi feito para ser exibido no YouTube, uma medida preventiva
contra a pirataria que já tinha tomado conta do mercado de vendas físicas. Grande
parte do negócio de Oliveira hoje é justamente recolher royalties das músicas cujos
direitos detém. O sucesso Batom de Cereja, por exemplo, a canção mais executada no
Spotify do Brasil no ano passado, não é de um artista da Work-Show, mas seus direitos
pertencem a Oliveira. Hoje, ele lucra alto com o que antes ele não pagava. Sua
WorkShow Editora e Produções Musicais reúne canções de mais de quinhentos
compositores.

E Marília Mendonça continua sendo um tesouro comercial. A artista deixou dezenas de


músicas inéditas. Depois de recusar contrato com a Amazon e o Globoplay, ela aceitou
fechar negócio com a Netflix pouco antes de sua morte. A empresa de Los Gatos, na
Califórnia, fará uma série documental sobre sua vida e obra. “Ela adorava ver Netflix
com as amigas”, diz Oliveira. O projeto está mantido e talvez tenha dez episódios.
“Também vou lançar um prêmio de música chamado Prêmio Marília Mendonça.” Por
fim, entre seus principais lançamentos para este ano, está o irmão de Marília
Mendonça, João Gustavo. Sucesso garantido? “O sucesso de uma música não é
matemática exata”, diz Oliveira. “Se não casa a energia da canção com o público,
podemos investir em rádio, em rede social, em tudo, mas não tem dinheiro que faça o
artista vingar.”

A morte de Marília reforçou um terror de Oliveira. Ele morre de medo de avião. Antes
da pandemia, tinha dois jatos – um Phenom e um Cessna. Hoje, tem apenas o bimotor
King Air, mas só embarca numa aeronave se não tiver nenhuma opção. Quando
precisa viajar de Goiânia para São Paulo ou Rio de Janeiro, vai de carro. Ele também
dirige até sua fazenda. A viagem dura em torno de três horas. No caminho, ouve o
Spotify. Gosta de escutar Cyndi Lauper, Bryan Adams, Elton John e Jimmy Cliff.
Oliveira não fala inglês e diz que não é preciso entender as palavras para saber se uma
música é boa. “Os cabelinhos do braço se arrepiam.” É quando tem coisa aí.
João Batista Jr.

Repórter da piauí, publicou A Beleza da Vida: A Biografia


Imagens por Caio Borges

Plínio Salgadário Ribamar

É curador-chefe do periódico mais heterofágico do Brasil. Seus ghost-writers são Roberto


Kaz e Afonso Cappellaro
N a fotografia que ilustra esta página aparecem mais de cinquenta pessoas,

reunidas em uma das salas do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Nem todas usam
máscara, algumas vestem paletó e gravata, outras estão com distintivos pendurados ao
peito. Um ponto que chama a atenção é a presença de alguns homens em uniforme de
camuflagem e metralhadora em punho, apontada para o chão. Eles estão posicionados
à esquerda da foto. São integrantes do Comando de Operações Táticas (COT), uma
unidade de elite da Polícia Federal. O ministro Luiz Fux, presidente do STF, está bem
no centro da imagem, com máscara, gravata e camisa branca.

A fotografia foi tirada a pedido de Fux, no auge das manifestações golpistas do Sete de
Setembro do ano passado, quando equipes de segurança e policiais foram mobilizados
para proteger o STF e os ministros. É o registro visual do momento em que a sede da
mais alta corte da Justiça brasileira correu o risco de ser invadida, saqueada,
incendiada. Naqueles dias, tudo isso parecia possível. A mobilização de um forte
esquema de segurança, incluindo até o grupo de elite da Polícia Federal, revelou-se
útil. Apenas em um único ponto dos gradis que cercavam o prédio no dia 7, houve sete
tentativas de invasão. “Foi o dia mais tenso da minha vida”, diz Fux, quando relembra
o episódio em suas conversas privadas.

Na vigência do regime democrático, nunca o STF viveu uma ameaça tão vil. Na noite
de 6 de setembro, bolsonaristas em fúria romperam a barreira policial e ocuparam a
Esplanada dos Ministérios. Os caminhoneiros buzinavam, aceleravam sem sair do
lugar, a multidão gritava, um policial chegou a sacar a arma para contê-los. Em vão.
Em um vídeo divulgado nas redes, um dos bolsonaristas comemorou: “Acabamos de
invadir! A polícia não deu conta de segurar o povo. E nós vamos invadir o STF
amanhã!” Havia grupos que corriam de um lado para o outro, agitando bandeiras,
cartazes ou exemplares da Bíblia. Outro rezava o Pai-Nosso, pedindo o fim do
comunismo, a morte ou a prisão de ministros do STF.

Dentro do tribunal, a rotina parecia irreal. “Você faz ideia do que era aquilo?”, diz um
assessor ouvido pela piauí que pediu para não ser identificado porque ainda hoje tem
receio de ser hostilizado pelos bolsonaristas. “De repente, você olhava para o lado e
tinha um cara com um fuzil na mão.” O objetivo da segurança, dentro e fora do
tribunal, era proteger a vida dos ministros e funcionários, mas também manter a
integridade do prédio. “Essas pessoas colocavam a destruição do Supremo,
quebradeira, incêndio, como se fosse a Queda da Bastilha”, diz um ministro que
participou das sucessivas reuniões ocorridas na véspera e no dia das manifestações.
“Para eles, o Supremo é o símbolo da resistência democrática. Já pensou o Supremo
queimando?”

O sonho do presidente Jair Bolsonaro, e isso já deixou de ser um segredo há

muito tempo, é ver o Supremo queimando. Naquele Sete de Setembro, depois de


discursar na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro embarcou para São Paulo levando
uma comitiva de 38 pessoas, entre as quais onze ministros. Como seu discurso em
Brasília fora acima do tom, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, começou a se
preocupar com o que aconteceria em São Paulo, onde Bolsonaro falaria à massa
reunida na Avenida Paulista. Pediu ao colega das Comunicações, Fábio Faria, que,
durante o voo, tentasse acalmar e dissuadir o chefe de insultar os ministros do STF.

Não adiantou nada. “Bolsonaro é muito reativo às redes sociais e, naqueles dias, elas
estavam enfurecidas”, diz um ministro com gabinete no Palácio do Planalto. No
palanque na Avenida Paulista, extasiado com a multidão e seus gritos de “mito”,
Bolsonaro disse que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes e
conclamou-o a deixar o cargo: “Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!”
Ovacionado, Bolsonaro saiu de lá animadíssimo, arrebatado pela presença da multidão
e convicto de que, diante de apoio popular tão expressivo, tinha condições de fazer o
que bem entendesse. Queimar o Supremo, por exemplo.
Na volta para Brasília, ainda dentro do avião presidencial, Bolsonaro recebeu os
primeiros sinais de que seu discurso passara do ponto. Não deu a mínima. Ao
desembarcar na Base Aérea de Brasília, voltou a ter notícia de reações negativas. Desta
vez, reagiu aos gritos. Passou boa parte da madrugada no celular, recebendo recados e
acompanhando as redes sociais. Aos poucos, foi compreendendo que o caldo havia
entornado. Mesmo os políticos da base governista, parte do empresariado e até de
setores militares não estavam dispostos a apoiar “uma loucura”, segundo a expressão
usada por um general do Alto Comando do Exército.

No dia seguinte, irritadíssimo com as reações adversas, fez uma reunião ministerial,
que a piauí reconstituiu ouvindo seis ministros, entre civis e militares, que ali
estiveram. Bolsonaro insistia que o apoio maciço que recebera no dia anterior tinha que
ser suficiente para “partir para cima do STF”. Levantando a voz, enfurecido, disse: “E o
que vamos entregar a esse povo que foi para as ruas ontem nos apoiar?” O ministro
Onyx Lorenzoni e a ministra Damares Alves, afinados com Bolsonaro, concordavam
que “algo” deveria ser feito. O ministro Paulo Guedes ponderou que uma “crise
institucional” devastaria a economia. “Tudo isso para quê? O que vamos ganhar?”,
indagou.

Como se sabe, a euforia toda acabou numa nota em que Bolsonaro pede desculpas ao
Supremo e atribui suas palavras golpistas ao “calor do momento”. “Bolsonaro não
organizou um protesto. Organizou uma maluquice completa”, diz um ministro do STF.
“E veja só o que o governo fez! No fim, foi hilário. Organizou uma greve de
caminhoneiros que quase derruba o próprio governo. É incrível a irracionalidade dessa
gente.” Fracassada, a agitação pró-golpe incensada pelo presidente sugou parte da
energia militante de seus radicais.

“Frente à ameaça de baderna e ocupação do Supremo, agiram bem os ministros que


tomaram as providências a tempo”, elogia o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso. FHC lembra da atitude do ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, que
presidiu o STF entre 1964 e 1967, em plena ditadura militar, e ofereceu “célebre
resistência às tentativas” do governo de violar a Constituição em vigor. “Com a
sucessão de atos institucionais, ele acabou perdendo a parada, mas deixou o exemplo.”
A yres Britto, ex-ministro do STF, explica didaticamente que o presidente

cometeu crime de responsabilidade. Violou o artigo 2º da Constituição (que afirma que


os poderes da União são “independentes e harmônicos entre si”), violou o artigo 78
(que reafirma o princípio da independência e da harmonia) e violou o artigo 85 (no
qual se diz que atentar contra o “livre exercício” dos poderes constitui “crime de
responsabilidade”). “Bolsonaro infringiu todos esses artigos da nossa Constituição que,
ao tomar posse, jurou respeitar. Ele precisa conhecer as quatro linhas de que tanto
fala”, diz Britto. “Bolsonaro instrumentalizou o Sete de Setembro. Alguma coisa precisa
ser feita para acabar com essa aberração.”

Nos dias, semanas e meses seguintes às manifestações, Bolsonaro não deu um pio
contra o Supremo. Próceres do Centrão começaram a bater no peito para dizer que
haviam domado os ímpetos autoritários do presidente. Até que, no dia 12 de janeiro
passado, Bolsonaro voltou – pela enésima vez – a lembrar quem é. Durante uma
entrevista, atacou os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que
relatam ao todo cinco inquéritos contra o presidente. “Quem é que esses dois pensam
que são? Quem eles pensam que são?” Estava irritado com decisões recentes de ambos.
Disse que os ministros estavam “cassando liberdades democráticas nossas”. Acusou
Moraes de agir “fora das quatro linhas” e disse que Barroso entendia de “terrorismo”.

A fotografia de Fux cercado por seguranças e policiais num dia de insurreição golpista
é uma imagem para ser lembrada ao longo de 2022, esse que será o ano politicamente
mais decisivo da história democrática do Brasil. Afinal, haverá uma disputa
presidencial em que o candidato à reeleição insiste em dizer que só deixará o poder
“por vontade de Deus”.

Monica Gugliano

É jornalista e colaboradora do Valor Econômico


MASSACRE DOS INOCENTES_1611_GUIDO RENI (1575-1642)

Guido Reni

(1575-1642) Pintor italiano do período barroco. O quadro de 1611 retrata uma passagem
do Novo Testamento sobre o infanticídio ordenado pelo rei Herodes
C omo era a primeira vez que se encontrava pessoalmente com o príncipe

Charles, o biólogo paulista Alexandre Antonelli, de 43 anos, precisou se inteirar de


algumas formalidades. Para cumprimentar o príncipe, por exemplo, teria que fazer
uma reverência, curvando o pescoço. Inicialmente deveria dizer Your Royal
Highness (vossa alteza real) – sendo Your Majesty (vossa majestade) um tratamento
reservado à rainha Elizabeth II. Depois, como teria uma conversa mais longa com o
príncipe naquela manhã de 28 de setembro do ano passado, Antonelli estava
autorizado a se dirigir a ele apenas como “sir Charles”.

O herdeiro do trono britânico chegou ao jardim botânico Kew Gardens, nos arredores
de Londres, acompanhado do presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba. O país
africano é hoje uma referência em iniciativas sustentáveis. Quase 90% do seu território
é ocupado por matas preservadas e lá se encontram várias espécies ameaçadas, além de
60% dos elefantes africanos soltos na natureza. As medidas de preservação gabonenses
contam com o apoio internacional: em 2019, a Noruega ofereceu ao país 150 milhões de
dólares, a serem pagos ao longo de dez anos, para estancar o desmatamento e
estimular iniciativas de preservação da floresta.

Antonelli, que é diretor científico dos Kew Gardens desde 2019, ciceroneou o príncipe e
o presidente na visita ao jardim botânico. Ele primeiro conduziu as autoridades ao
herbário, lar de uma coleção de cerca de 7 milhões de espécimes. Ali, Ondimba foi
apresentado à principal atração da visita: uma semente de café. Tratava-se da Coffea
stenophylla, que não era encontrada na natureza desde 1954. Uma equipe de cientistas
dos Kew Gardens redescobriu a raridade em 2018, em uma floresta de Serra Leoa, na
África.

São conhecidas 124 espécies de café. Duas apenas – a Coffea arabica (arábica) e a Coffea
canephora (robusta, também chamada conilon no Brasil) – respondem por 99% da
produção global de café industrializado, tanto por causa de sua qualidade para o
consumo, quanto por sua resistência nos plantios. O problema é que ambas correm o
risco de não sobreviver ao próximo século, uma vez que não suportariam a elevação da
temperatura global. (No Brasil, maior produtor mundial de café, a semente mais
comum é a arábica.)

Até 2021, não se conhecia uma espécie de café capaz de aguentar o baque das
mudanças climáticas – até que o botânico Aaron Davis, dos Kew Gardens, demonstrou
que a Coffea stenophylla poderia cumprir esse papel. A pesquisa, publicada na
revista Nature Plants naquele ano, provou que a semente é capaz de resistir a
temperaturas de até 1,9°C acima do limite suportado pela robusta e de até 6,8°C acima
do limite tolerado pela arábica. Além disso, a Coffea stenophylla passou com louvor na
prova de paladar feita às cegas por degustadores profissionais.

A pesquisa com essa semente esquecida de café era a boa notícia que Charles pretendia
transmitir a Ondimba, pois o Gabão tem terras potencialmente aptas para o seu plantio.
Além disso, o príncipe, que tem se dedicado com afinco às questões ambientais, queria
mostrar ao presidente como as investigações científicas realizadas nos Kew Gardens
estão ajudando no plano estratégico da Sustainable Markets Initiative (SMI, Iniciativa
de Mercados Sustentáveis), a menina dos olhos de Charles. A organização lançada por
ele em 2020 tem como meta incentivar o setor privado a investir na economia
sustentável, como diz seu nome.

Não é o único projeto cultivado pelo príncipe com a SMI. Ele também ambiciona criar
um conjunto de direitos da fauna e da flora para ser adotado mundialmente. A
iniciativa se chama Terra Carta, nome que faz referência à Magna Carta, o primeiro
ensaio de Constituição moderna da história por ter fixado em 1215 os direitos e deveres
dos cidadãos ingleses, submetendo até mesmo o poder real ao domínio da lei comum.
A Terra Carta foi uma ideia que Charles apresentou na One Planet Summit, conferência
dedicada à preservação da biodiversidade, realizada em Paris em janeiro do ano
passado. Cerca de trinta chefes de Estado estavam presentes. O do Brasil não foi
convidado, apesar de grande parte do território do país abrigar a floresta mais
biodiversa do planeta, a Amazônia.

Após a visita à Coffea stenophylla, a comitiva seguiu para o Grass Garden, área dedicada
principalmente às gramíneas, com 550 espécies, todas de uso comercial. Ao avistar
alguns tipos de grama de maior porte, o príncipe perguntou a Antonelli sobre a
serventia delas. “Sir Charles, essas espécies geram menos gás metano nas vacas que as
comem. E o metano que elas emitem colabora com as mudanças climáticas”, explicou o
biólogo paulista. “Mas elas gostam de comer isso?”, perguntou o príncipe. Ao que
Antonelli respondeu: “Se não tiverem outra opção, sim.” E os dois soltaram uma
risada, quebrando a formalidade do encontro e atraindo os flashes dos fotógrafos que
acompanhavam a visita.

O passeio terminou no Laboratório Jodrell, onde cientistas estudam o DNA de plantas


e realizam análises de produtos de grandes empresas como a sueca Ikea e a norte-
americana Procter & Gamble.
O s Royal Botanic Gardens (Jardins Botânicos Reais), mais conhecidos como

Kew Gardens, por estarem situados na região de Kew, no sudeste de Londres,


remontam ao início do século XVIII. Nessa época, o local abrigava residências de
nobres, mas foi adquirido em 1759 pela princesa Augusta de Saxe-Gota-Altemburgo,
mãe do rei George III, que decidiu criar ali um jardim de plantas exóticas. Pouco a
pouco, todo tipo de vegetal começou a chegar ao jardim, trazido pelas mãos dos
curiosos naturalistas britânicos que se espalharam em expedições por várias partes do
mundo.

Em 1840, o jardim botânico deixou de pertencer à realeza e passou a ser comandado


pelo governo britânico, reforçando o seu cunho científico e de pesquisa econômica,
com o desenvolvimento de espécimes para o cultivo. Um episódio dramático do
colonialismo aplicado à agricultura, aliás, vincula os Kew Gardens à história econômica
brasileira. Em 1876, um funcionário dos jardins, Robert MacKenzie Cross, e o
comerciante de borracha inglês Henry Wickham conseguiram levar com sucesso da
região amazônica para a Inglaterra milhares de sementes da Hevea brasiliensis, a
seringueira, que produz a borracha natural. As mudas foram cultivadas nos Kew
Gardens, e as que floresceram, enviadas para serem plantadas no Sri Lanka, então
colônia britânica conhecida como Ceilão. Os plantios deram certo na Ásia e
derrubaram o então poderoso monopólio brasileiro da borracha natural. Até hoje, o Sri
Lanka é um grande produtor de borracha.

Há cerca de 50 mil plantas e 14 mil árvores nos Kew Gardens, que ocupam uma área de
130 hectares – um pouco menor que o Parque Ibirapuera, em São Paulo, que tem 158
hectares. Além das atrações vegetais, várias construções erguidas no local ao longo dos
séculos chamam a atenção dos visitantes. O Grande Pagode, de 1762, é uma torre de 50
metros que imita os templos chineses. O Rock Garden, feito em 1882, exibe a vegetação
de regiões montanhosas. Atração preferida dos turistas, segundo um levantamento
interno, a Palm House é uma estufa de espécies extraídas de florestas tropicais,
construída entre 1844 e 1848. Até 2019, o jardim botânico inglês recebia em média 2
milhões de visitantes por ano, o que fazia dele um dos principais pontos turísticos da
região de Londres. Com a pandemia, entretanto, o movimento caiu mais de 40%.

Por trás da fachada turística, os Kew Gardens têm historicamente outra missão: realizar
pesquisas científicas. A instituição conta com mais de 350 pesquisadores, capitaneados
por Antonelli, e dispõe de uma receita anual na casa dos 80 milhões de libras (cerca de
590 milhões de reais), provenientes de doações, patrocínios, repasses governamentais e
lucros com projetos. Desse montante, em torno de 50 milhões de libras (cerca de 370
milhões de reais) são destinados à área de “pesquisa e conservação”.

O lugar favorito de Antonelli nos Kew Gardens é o mesmo da maioria dos

turistas: a Palm House. Ele tem um motivo sentimental para preferir a estufa de plantas
tropicais. “O cheiro, a luminosidade, a umidade, tudo me leva de volta para casa.” É só
o biólogo entrar ali e afloram em sua memória recordações do quintal em Campinas
onde passou a infância: o cheiro do pé de limão, a imagem dos cachos da bananeira,
das verduras crescendo na horta e das borboletas azuis que passeavam por lá.

Seu pai, um bancário cujo hobby era a astronomia, costumava ficar horas observando
as estrelas. O menino também gostava de vasculhar o céu com o telescópio doméstico,
mas seu passatempo predileto era coletar e colecionar insetos. “Minha família me
chamava de bicho do mato”, conta Antonelli. “Eu fazia assim”, ele explica,
gesticulando. “Com um pedaço de tecido preso a um arame, capturava borboletas e
besouros para guardar em caixas de sapato. Até hoje tenho essa mania.” Ele guarda
uma coleção de mais de 2 mil insetos em sua casa. “Tenho também uma de carcaças de
cobras.”

Os passeios pelas praias do litoral paulista, nas férias da família, incentivaram ainda
mais a paixão de Antonelli pela natureza. Quando chegou a época do vestibular, ele
optou pela biologia, que começou a cursar na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mas era inquieto demais para a rotina universitária e, aos 17 anos, decidiu
trancar o curso, colocar um mochilão nas costas e embarcar para a Europa.

O plano inicial era viajar por seis meses, mas a aventura se prolongou por três anos.
Antonelli morou na França, na Suíça e percorreu de carona a Europa Oriental. Para se
sustentar, fazia bicos. “Trabalhei de garçom, faxineiro, jardineiro, babá, de tudo.” Foi
para o México, onde bateu ponto como concierge de um hotel. Juntou dinheiro para
praticar mergulho em praias de Cuba e Belize. Depois, decidiu ir para Honduras, onde
se tornou instrutor de mergulho. “Nos parques nacionais hondurenhos, comecei a
perceber os padrões da natureza, o contexto geral. Entendi, por exemplo, como plantas
e animais viajaram pelo mundo, ao longo de milênios, para construir a Terra como
conhecemos. Passei a me interessar pelos processos evolutivos e como eles
transformam o meio ambiente.”

Em Honduras ele conheceu sua mulher, a sueca Anna Sveide, que também dava aulas
de mergulho. Os dois se casaram em 2001 e têm três filhos – Gabriel, de 16 anos, e
Clara e Maria, gêmeas de 15 anos. Antonelli passa parte dos dias em Gotemburgo, na
Suécia, onde vive sua família, e parte em Londres. Cerca de duas horas de voo (sem
escala) separa uma cidade da outra.

Foi na Universidade de Gotemburgo, uma das mais tradicionais da Suécia, que ele
terminou a graduação de biologia. “Ia para as aulas de manhã e à noite. À tarde,
trabalhava como tradutor. Anna, empregada como enfermeira, era quem arcava com a
maior parte das contas” (hoje, sua mulher dirige a ala de uma clínica psiquiátrica).
Durante o doutorado, na mesma universidade, Antonelli realizou suas primeiras
excursões científicas à Amazônia, entre 2003 e 2008. Em 2010, aos 32 anos, tornou-se
curador do Jardim Botânico de Gotemburgo, o maior dos países escandinavos, com 16
mil espécies de plantas.

No mesmo ano, junto com uma equipe de dezoito pesquisadores, publicou na


revista Science um importante estudo, intitulado Amazonia Through Time: Andean Uplift,
Climate Change, Landscape Evolution, and Biodiversity (Amazônia ao longo do tempo:
elevação andina, mudanças climáticas, evolução da paisagem e da biodiversidade).
Nele, demonstrou como processos geológicos e filogenéticos foram a razão da
formidável variedade de espécies da Amazônia. Uma causa crucial foi a elevação da
Cordilheira dos Andes, que produziu efeitos sobre a região amazônica que levaram ao
aumento da biodiversidade. A pesquisa apontou ainda que a origem do boom de
espécies no bioma amazônico ocorreu há mais de 20 milhões de anos. Antes,
acreditava-se que teria ocorrido cerca de 3 milhões de anos atrás.

No meio acadêmico, mede-se o sucesso de um artigo científico pela quantidade de


vezes que é citado em outros estudos de renome. O texto da Science foi citado em quase
2 mil pesquisas. Professor de biodiversidade da Universidade de Gotemburgo e
professor visitante da Universidade de Oxford, Antonelli já assinou cerca de 200
artigos científicos, mencionados em 12 mil estudos. “Ele é brilhante. Contribuiu para as
ciências ambientais de diversas formas, descrevendo, mapeando e realizando previsões
relacionadas à biodiversidade, além de influir em projetos que mitigam os efeitos
negativos das mudanças climáticas”, diz a botânica Mari Källersjö, professora da
Universidade de Gotemburgo e atual diretora do jardim botânico da cidade. “Mas o
que o distingue ainda mais de seus pares é sua qualidade como comunicador. Ele tem a
rara habilidade de tornar fáceis de entender as coisas mais complicadas, seja
conversando com crianças em uma escola, seja com executivos ou líderes mundiais.”
Na virada de 2015 para 2016, Antonelli fez uma promessa de Ano-Novo para a sua
família. “Prometi que iria criar um centro para tratar de biodiversidade na Suécia,
unindo esforços de várias instituições científicas, como museus e universidades”, ele
conta. Dito e feito. O Centro de Biodiversidade Global de Gotemburgo foi inaugurado
em 2017. “Após um ano de trabalho, em 2018, calculamos que o número de notícias
sobre biodiversidade na mídia sueca aumentou em cerca de dez vezes, principalmente
em consequência de nossos esforços para divulgar essas pautas”, diz Antonelli.

Em junho de 2018, durante uma estadia de seis meses como professor visitante na
Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele recebeu uma carta dos Kew Gardens,
com um convite para se candidatar à vaga de diretor científico da instituição. O biólogo
estava com 39 anos e se julgava “novo e inexperiente demais para o cargo”. Mas para o
diretor-geral dos Kew Gardens, o inglês Richard Deverell, a escolha de Alexandre
Antonelli para a diretoria científica dos jardins ocorreu na hora certa: “Ele entrou na
instituição em um momento particular, no qual seu histórico pessoal em estudos de
conservação da biodiversidade se alinhou com as visões e estratégias dos Kew Gardens
de preservar a diversidade das plantas em escala global.”

Deverell, que também é biólogo, fez trabalho de campo na Tanzânia com “Alex”, como
chama Antonelli, e ficou impressionado. “Pude me certificar do quanto ele é
apaixonado pela atividade de naturalista”, conta. “Alex é hoje uma referência global
em estudos de biodiversidade em florestas tropicais na América do Sul, contribuindo
para entender como as forças da evolução resultaram na extraordinária riqueza e
diversidade de espécies na região.”

Para poder aceitar o convite dos Kew Gardens, o biólogo brasileiro precisou deixar em
2019 a direção do centro de biodiversidade e do Jardim Botânico de Gotemburgo.
Também abandonou os planos de desenvolver um aplicativo de reconhecimento, por
meio da câmera do celular, de espécies animais e vegetais. Ele estava testando a
tecnologia em escolas na Suécia na época.

O príncipe Charles e Antonelli se falaram pela primeira vez, por telefone, em

dezembro de 2020. A ligação durou cerca de uma hora, e os dois conversaram a


respeito de problemas ambientais e das iniciativas científicas dos Kew Gardens.
“Falamos sobre soluções para combater o desmatamento e incentivar o reflorestamento
em países com vastas florestas tropicais”, contou o biólogo, que foi autorizado a tratar
o príncipe de “sir Charles”. “Ele manifestou frustração com a falta de interesse de
alguns grupos, em especial empresas de capital gigantesco, que se beneficiaram
economicamente ao longo da pandemia. Elas, de fato, não têm contribuído na prática
com as transformações ambientais que precisam ser feitas agora.”

Em outubro do ano passado, o príncipe William, o filho mais velho de Charles e o


segundo na linha de sucessão ao trono, também se mostrou preocupado com o assunto
ao fazer uma declaração que rendeu manchetes em todo lugar. Logo depois que Jeff
Bezos, o dono da Amazon, lançou ao espaço mais um foguete de sua companhia Blue
Origin e poucos dias antes da abertura, em Glasgow, da 26ª Conferência das Nações
Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, William disse a uma emissora de tevê:
“Precisamos de alguns dos maiores cérebros e mentes do mundo concentrados em
tentar consertar este planeta, não tentando encontrar o próximo lugar para ir e viver.”

Antonelli concorda com William. “Temos de direcionar os recursos financeiros e


intelectuais para reparar o que está acontecendo com o meio ambiente. Ou serão
enormes os remorsos, pois deixaremos essa devastação como uma herança que vai
afetar nossos filhos e netos”, diz. O diretor científico dos Kew Gardens também não
teme dar nome aos bois, o que William evitou. “Investir em astrofísica, na exploração
científica do espaço, é fundamental. Mas não é isso que Bezos faz. Ele faz isso pelos
lucros e para se exibir.”

E m novembro do ano passado, Antonelli esteve na COP26 com um grupo de 28

cientistas dos Kew Gardens. A missão deles, segundo o biólogo, “foi apresentar
evidências de como soluções científicas sustentáveis, baseadas em sistemas naturais,
podem combater as crises climáticas e a perda de biodiversidade”. Um exemplo dessas
evidências levado a Glasgow foi a semente da Coffea stenophylla, a mesma apresentada
ao presidente do Gabão um mês antes.

Na COP26, Antonelli teve encontros com o presidente da Colômbia, Iván Duque


Márquez, e da Costa Rica, Carlos Alvarado Quesada. A equipe dos Kew Gardens faz
parceria científica com mais de cem países, para realizar projetos como os de
catalogação de plantas na Colômbia e de reflorestamento no México. Com o Brasil,
nada. “Infelizmente, não temos conseguido firmar novas parcerias com o Brasil”,
lamenta. “Espero maior abertura do governo federal para escutar os cientistas e
entender suas prioridades. Mas o que tenho visto é o contrário, com pesquisadores
perdendo bolsas e colegas abandonando os estudos que realizam por falta de apoio.
Muitos estão desempregados.”

Por isso mesmo, Antonelli acredita que pode contribuir mais para o conhecimento
sobre a biodiversidade brasileira fazendo seus trabalhos fora daqui. “Na Inglaterra e na
Suécia tenho todo o apoio necessário para realizar pesquisas mais ambiciosas,
incluindo as coletas e análises que realizo em biomas brasileiros, como na Amazônia.
No Brasil, desde que acabaram com o programa Ciência sem Fronteiras, infelizmente o
país não conta com uma ação federal de peso na área.”

Na COP26, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, disse que o
Brasil zeraria o desmatamento em 2028, adiantando em dois anos o prazo prometido
por outros governos brasileiros em conferências climáticas anteriores. Para explicar o
plano surpreendente, Pereira Leite exibiu um gráfico com dados otimistas do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a informação de que o desmatamento na
Amazônia teria diminuído 5% entre 2020 e 2021. Na verdade, estava tentando fazer a
plateia de boba.

Em 18 de novembro, seis dias após o fim da COP26, veio a público a notícia de que o
ministério ocultara por mais de um mês as informações reais do Inpe sobre o
desmatamento, que havia aumentado 22% – e não diminuído 5%. Antonelli é taxativo:
“Para ter acesso às dezenas de bilhões de dólares de financiamentos dados como
incentivo pelas nações ricas a quem preserva, e não desmata, países como o Brasil
precisam provar o que falam.”

E m julho deste ano, Antonelli vai lançar o seu primeiro livro, The Hidden

Universe: Adventures in Biodiversity (O universo oculto: aventuras na biodiversidade). A


obra será publicada simultaneamente na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Suécia e na
China – ainda não tem edição prevista no Brasil. Está dividida em quatro partes. Na
primeira, ele procura responder a esta ampla questão: “O que é biodiversidade?” Na
segunda, discute o valor da biodiversidade, que vai além da dimensão financeira.
“Como as estrelas pouco ligam para o que pensamos delas quando olhamos para o
vazio, as flores – e a biodiversidade – não estão aqui realmente por nós. Mas uma coisa
é certa: não poderíamos estar aqui sem elas”, escreve. Nas duas últimas partes, ele
aponta as principais ameaças e as soluções para a construção de um futuro sustentável.

O livro não é dirigido ao meio científico, mas ao público em geral. “Senti desconexão
entre o que os pesquisadores debatem sobre o tema da biodiversidade e o
entendimento da maioria da população sobre o assunto. Por isso decidi escrever”, diz
Antonelli. “Misturei os meus estudos com as percepções e vivências que tive ao fazer
trabalho de campo, nas florestas.” Ao longo de sua carreira, ele coletou, identificou e
catalogou mais de 2 mil tipos de plantas, insetos e répteis, em estudos de campo feitos
em 24 países.

Na obra, o biólogo conta várias histórias das descobertas que fez. Em algumas, o acaso
teve participação importante. Ele encontrou uma nova espécie de planta, uma parente
distante do café, a Cordiera montana, ao tropeçar no galho de uma árvore de 10 metros
de altura, na Cordilheira dos Andes, no Peru.

No Norte de Moçambique, quando estava atrás de cobras venenosas, ele fez outra
descoberta junto com sua equipe. “Após o Sol se pôr e as temperaturas caírem um
pouco, pegamos nossas tochas e saímos para uma caminhada. Estava um breu e de
repente vimos dois olhos brilhantes nos encarando de uma enorme rocha”, conta
Antonelli no livro. “Um de meus alunos, Harith Farooq, pulou ferozmente em direção
ao animal e finalmente conseguiu pegá-lo, ao custo de vários arranhões.” Era uma nova
espécie de lagartixa, de 15 cm de comprimento, que ainda não foi catalogada.

Filipe Vilicic

Jornalista e escritor, é diretor de criação da agência Virtù. Publicou, entre outros livros, O
Clique de 1 Bilhão de Dólares (Intrínseca)
C omo era a primeira vez que se encontrava pessoalmente com o príncipe

Charles, o biólogo paulista Alexandre Antonelli, de 43 anos, precisou se inteirar de


algumas formalidades. Para cumprimentar o príncipe, por exemplo, teria que fazer
uma reverência, curvando o pescoço. Inicialmente deveria dizer Your Royal
Highness (vossa alteza real) – sendo Your Majesty (vossa majestade) um tratamento
reservado à rainha Elizabeth II. Depois, como teria uma conversa mais longa com o
príncipe naquela manhã de 28 de setembro do ano passado, Antonelli estava
autorizado a se dirigir a ele apenas como “sir Charles”.

O herdeiro do trono britânico chegou ao jardim botânico Kew Gardens, nos arredores
de Londres, acompanhado do presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba. O país
africano é hoje uma referência em iniciativas sustentáveis. Quase 90% do seu território
é ocupado por matas preservadas e lá se encontram várias espécies ameaçadas, além de
60% dos elefantes africanos soltos na natureza. As medidas de preservação gabonenses
contam com o apoio internacional: em 2019, a Noruega ofereceu ao país 150 milhões de
dólares, a serem pagos ao longo de dez anos, para estancar o desmatamento e
estimular iniciativas de preservação da floresta.
Antonelli, que é diretor científico dos Kew Gardens desde 2019, ciceroneou o príncipe e
o presidente na visita ao jardim botânico. Ele primeiro conduziu as autoridades ao
herbário, lar de uma coleção de cerca de 7 milhões de espécimes. Ali, Ondimba foi
apresentado à principal atração da visita: uma semente de café. Tratava-se da Coffea
stenophylla, que não era encontrada na natureza desde 1954. Uma equipe de cientistas
dos Kew Gardens redescobriu a raridade em 2018, em uma floresta de Serra Leoa, na
África.

São conhecidas 124 espécies de café. Duas apenas – a Coffea arabica (arábica) e a Coffea
canephora (robusta, também chamada conilon no Brasil) – respondem por 99% da
produção global de café industrializado, tanto por causa de sua qualidade para o
consumo, quanto por sua resistência nos plantios. O problema é que ambas correm o
risco de não sobreviver ao próximo século, uma vez que não suportariam a elevação da
temperatura global. (No Brasil, maior produtor mundial de café, a semente mais
comum é a arábica.)

Até 2021, não se conhecia uma espécie de café capaz de aguentar o baque das
mudanças climáticas – até que o botânico Aaron Davis, dos Kew Gardens, demonstrou
que a Coffea stenophylla poderia cumprir esse papel. A pesquisa, publicada na
revista Nature Plants naquele ano, provou que a semente é capaz de resistir a
temperaturas de até 1,9°C acima do limite suportado pela robusta e de até 6,8°C acima
do limite tolerado pela arábica. Além disso, a Coffea stenophylla passou com louvor na
prova de paladar feita às cegas por degustadores profissionais.

A pesquisa com essa semente esquecida de café era a boa notícia que Charles pretendia
transmitir a Ondimba, pois o Gabão tem terras potencialmente aptas para o seu plantio.
Além disso, o príncipe, que tem se dedicado com afinco às questões ambientais, queria
mostrar ao presidente como as investigações científicas realizadas nos Kew Gardens
estão ajudando no plano estratégico da Sustainable Markets Initiative (SMI, Iniciativa
de Mercados Sustentáveis), a menina dos olhos de Charles. A organização lançada por
ele em 2020 tem como meta incentivar o setor privado a investir na economia
sustentável, como diz seu nome.

Não é o único projeto cultivado pelo príncipe com a SMI. Ele também ambiciona criar
um conjunto de direitos da fauna e da flora para ser adotado mundialmente. A
iniciativa se chama Terra Carta, nome que faz referência à Magna Carta, o primeiro
ensaio de Constituição moderna da história por ter fixado em 1215 os direitos e deveres
dos cidadãos ingleses, submetendo até mesmo o poder real ao domínio da lei comum.
A Terra Carta foi uma ideia que Charles apresentou na One Planet Summit, conferência
dedicada à preservação da biodiversidade, realizada em Paris em janeiro do ano
passado. Cerca de trinta chefes de Estado estavam presentes. O do Brasil não foi
convidado, apesar de grande parte do território do país abrigar a floresta mais
biodiversa do planeta, a Amazônia.

Após a visita à Coffea stenophylla, a comitiva seguiu para o Grass Garden, área dedicada
principalmente às gramíneas, com 550 espécies, todas de uso comercial. Ao avistar
alguns tipos de grama de maior porte, o príncipe perguntou a Antonelli sobre a
serventia delas. “Sir Charles, essas espécies geram menos gás metano nas vacas que as
comem. E o metano que elas emitem colabora com as mudanças climáticas”, explicou o
biólogo paulista. “Mas elas gostam de comer isso?”, perguntou o príncipe. Ao que
Antonelli respondeu: “Se não tiverem outra opção, sim.” E os dois soltaram uma
risada, quebrando a formalidade do encontro e atraindo os flashes dos fotógrafos que
acompanhavam a visita.

O passeio terminou no Laboratório Jodrell, onde cientistas estudam o DNA de plantas


e realizam análises de produtos de grandes empresas como a sueca Ikea e a norte-
americana Procter & Gamble.

O s Royal Botanic Gardens (Jardins Botânicos Reais), mais conhecidos como

Kew Gardens, por estarem situados na região de Kew, no sudeste de Londres,


remontam ao início do século XVIII. Nessa época, o local abrigava residências de
nobres, mas foi adquirido em 1759 pela princesa Augusta de Saxe-Gota-Altemburgo,
mãe do rei George III, que decidiu criar ali um jardim de plantas exóticas. Pouco a
pouco, todo tipo de vegetal começou a chegar ao jardim, trazido pelas mãos dos
curiosos naturalistas britânicos que se espalharam em expedições por várias partes do
mundo.

Em 1840, o jardim botânico deixou de pertencer à realeza e passou a ser comandado


pelo governo britânico, reforçando o seu cunho científico e de pesquisa econômica,
com o desenvolvimento de espécimes para o cultivo. Um episódio dramático do
colonialismo aplicado à agricultura, aliás, vincula os Kew Gardens à história econômica
brasileira. Em 1876, um funcionário dos jardins, Robert MacKenzie Cross, e o
comerciante de borracha inglês Henry Wickham conseguiram levar com sucesso da
região amazônica para a Inglaterra milhares de sementes da Hevea brasiliensis, a
seringueira, que produz a borracha natural. As mudas foram cultivadas nos Kew
Gardens, e as que floresceram, enviadas para serem plantadas no Sri Lanka, então
colônia britânica conhecida como Ceilão. Os plantios deram certo na Ásia e
derrubaram o então poderoso monopólio brasileiro da borracha natural. Até hoje, o Sri
Lanka é um grande produtor de borracha.

Há cerca de 50 mil plantas e 14 mil árvores nos Kew Gardens, que ocupam uma área de
130 hectares – um pouco menor que o Parque Ibirapuera, em São Paulo, que tem 158
hectares. Além das atrações vegetais, várias construções erguidas no local ao longo dos
séculos chamam a atenção dos visitantes. O Grande Pagode, de 1762, é uma torre de 50
metros que imita os templos chineses. O Rock Garden, feito em 1882, exibe a vegetação
de regiões montanhosas. Atração preferida dos turistas, segundo um levantamento
interno, a Palm House é uma estufa de espécies extraídas de florestas tropicais,
construída entre 1844 e 1848. Até 2019, o jardim botânico inglês recebia em média 2
milhões de visitantes por ano, o que fazia dele um dos principais pontos turísticos da
região de Londres. Com a pandemia, entretanto, o movimento caiu mais de 40%.

Por trás da fachada turística, os Kew Gardens têm historicamente outra missão: realizar
pesquisas científicas. A instituição conta com mais de 350 pesquisadores, capitaneados
por Antonelli, e dispõe de uma receita anual na casa dos 80 milhões de libras (cerca de
590 milhões de reais), provenientes de doações, patrocínios, repasses governamentais e
lucros com projetos. Desse montante, em torno de 50 milhões de libras (cerca de 370
milhões de reais) são destinados à área de “pesquisa e conservação”.

O lugar favorito de Antonelli nos Kew Gardens é o mesmo da maioria dos

turistas: a Palm House. Ele tem um motivo sentimental para preferir a estufa de plantas
tropicais. “O cheiro, a luminosidade, a umidade, tudo me leva de volta para casa.” É só
o biólogo entrar ali e afloram em sua memória recordações do quintal em Campinas
onde passou a infância: o cheiro do pé de limão, a imagem dos cachos da bananeira,
das verduras crescendo na horta e das borboletas azuis que passeavam por lá.

Seu pai, um bancário cujo hobby era a astronomia, costumava ficar horas observando
as estrelas. O menino também gostava de vasculhar o céu com o telescópio doméstico,
mas seu passatempo predileto era coletar e colecionar insetos. “Minha família me
chamava de bicho do mato”, conta Antonelli. “Eu fazia assim”, ele explica,
gesticulando. “Com um pedaço de tecido preso a um arame, capturava borboletas e
besouros para guardar em caixas de sapato. Até hoje tenho essa mania.” Ele guarda
uma coleção de mais de 2 mil insetos em sua casa. “Tenho também uma de carcaças de
cobras.”

Os passeios pelas praias do litoral paulista, nas férias da família, incentivaram ainda
mais a paixão de Antonelli pela natureza. Quando chegou a época do vestibular, ele
optou pela biologia, que começou a cursar na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mas era inquieto demais para a rotina universitária e, aos 17 anos, decidiu
trancar o curso, colocar um mochilão nas costas e embarcar para a Europa.

O plano inicial era viajar por seis meses, mas a aventura se prolongou por três anos.
Antonelli morou na França, na Suíça e percorreu de carona a Europa Oriental. Para se
sustentar, fazia bicos. “Trabalhei de garçom, faxineiro, jardineiro, babá, de tudo.” Foi
para o México, onde bateu ponto como concierge de um hotel. Juntou dinheiro para
praticar mergulho em praias de Cuba e Belize. Depois, decidiu ir para Honduras, onde
se tornou instrutor de mergulho. “Nos parques nacionais hondurenhos, comecei a
perceber os padrões da natureza, o contexto geral. Entendi, por exemplo, como plantas
e animais viajaram pelo mundo, ao longo de milênios, para construir a Terra como
conhecemos. Passei a me interessar pelos processos evolutivos e como eles
transformam o meio ambiente.”

Em Honduras ele conheceu sua mulher, a sueca Anna Sveide, que também dava aulas
de mergulho. Os dois se casaram em 2001 e têm três filhos – Gabriel, de 16 anos, e
Clara e Maria, gêmeas de 15 anos. Antonelli passa parte dos dias em Gotemburgo, na
Suécia, onde vive sua família, e parte em Londres. Cerca de duas horas de voo (sem
escala) separa uma cidade da outra.

Foi na Universidade de Gotemburgo, uma das mais tradicionais da Suécia, que ele
terminou a graduação de biologia. “Ia para as aulas de manhã e à noite. À tarde,
trabalhava como tradutor. Anna, empregada como enfermeira, era quem arcava com a
maior parte das contas” (hoje, sua mulher dirige a ala de uma clínica psiquiátrica).
Durante o doutorado, na mesma universidade, Antonelli realizou suas primeiras
excursões científicas à Amazônia, entre 2003 e 2008. Em 2010, aos 32 anos, tornou-se
curador do Jardim Botânico de Gotemburgo, o maior dos países escandinavos, com 16
mil espécies de plantas.

No mesmo ano, junto com uma equipe de dezoito pesquisadores, publicou na


revista Science um importante estudo, intitulado Amazonia Through Time: Andean Uplift,
Climate Change, Landscape Evolution, and Biodiversity (Amazônia ao longo do tempo:
elevação andina, mudanças climáticas, evolução da paisagem e da biodiversidade).
Nele, demonstrou como processos geológicos e filogenéticos foram a razão da
formidável variedade de espécies da Amazônia. Uma causa crucial foi a elevação da
Cordilheira dos Andes, que produziu efeitos sobre a região amazônica que levaram ao
aumento da biodiversidade. A pesquisa apontou ainda que a origem do boom de
espécies no bioma amazônico ocorreu há mais de 20 milhões de anos. Antes,
acreditava-se que teria ocorrido cerca de 3 milhões de anos atrás.

No meio acadêmico, mede-se o sucesso de um artigo científico pela quantidade de


vezes que é citado em outros estudos de renome. O texto da Science foi citado em quase
2 mil pesquisas. Professor de biodiversidade da Universidade de Gotemburgo e
professor visitante da Universidade de Oxford, Antonelli já assinou cerca de 200
artigos científicos, mencionados em 12 mil estudos. “Ele é brilhante. Contribuiu para as
ciências ambientais de diversas formas, descrevendo, mapeando e realizando previsões
relacionadas à biodiversidade, além de influir em projetos que mitigam os efeitos
negativos das mudanças climáticas”, diz a botânica Mari Källersjö, professora da
Universidade de Gotemburgo e atual diretora do jardim botânico da cidade. “Mas o
que o distingue ainda mais de seus pares é sua qualidade como comunicador. Ele tem a
rara habilidade de tornar fáceis de entender as coisas mais complicadas, seja
conversando com crianças em uma escola, seja com executivos ou líderes mundiais.”

Na virada de 2015 para 2016, Antonelli fez uma promessa de Ano-Novo para a sua
família. “Prometi que iria criar um centro para tratar de biodiversidade na Suécia,
unindo esforços de várias instituições científicas, como museus e universidades”, ele
conta. Dito e feito. O Centro de Biodiversidade Global de Gotemburgo foi inaugurado
em 2017. “Após um ano de trabalho, em 2018, calculamos que o número de notícias
sobre biodiversidade na mídia sueca aumentou em cerca de dez vezes, principalmente
em consequência de nossos esforços para divulgar essas pautas”, diz Antonelli.

Em junho de 2018, durante uma estadia de seis meses como professor visitante na
Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele recebeu uma carta dos Kew Gardens,
com um convite para se candidatar à vaga de diretor científico da instituição. O biólogo
estava com 39 anos e se julgava “novo e inexperiente demais para o cargo”. Mas para o
diretor-geral dos Kew Gardens, o inglês Richard Deverell, a escolha de Alexandre
Antonelli para a diretoria científica dos jardins ocorreu na hora certa: “Ele entrou na
instituição em um momento particular, no qual seu histórico pessoal em estudos de
conservação da biodiversidade se alinhou com as visões e estratégias dos Kew Gardens
de preservar a diversidade das plantas em escala global.”

Deverell, que também é biólogo, fez trabalho de campo na Tanzânia com “Alex”, como
chama Antonelli, e ficou impressionado. “Pude me certificar do quanto ele é
apaixonado pela atividade de naturalista”, conta. “Alex é hoje uma referência global
em estudos de biodiversidade em florestas tropicais na América do Sul, contribuindo
para entender como as forças da evolução resultaram na extraordinária riqueza e
diversidade de espécies na região.”

Para poder aceitar o convite dos Kew Gardens, o biólogo brasileiro precisou deixar em
2019 a direção do centro de biodiversidade e do Jardim Botânico de Gotemburgo.
Também abandonou os planos de desenvolver um aplicativo de reconhecimento, por
meio da câmera do celular, de espécies animais e vegetais. Ele estava testando a
tecnologia em escolas na Suécia na época.

O príncipe Charles e Antonelli se falaram pela primeira vez, por telefone, em

dezembro de 2020. A ligação durou cerca de uma hora, e os dois conversaram a


respeito de problemas ambientais e das iniciativas científicas dos Kew Gardens.
“Falamos sobre soluções para combater o desmatamento e incentivar o reflorestamento
em países com vastas florestas tropicais”, contou o biólogo, que foi autorizado a tratar
o príncipe de “sir Charles”. “Ele manifestou frustração com a falta de interesse de
alguns grupos, em especial empresas de capital gigantesco, que se beneficiaram
economicamente ao longo da pandemia. Elas, de fato, não têm contribuído na prática
com as transformações ambientais que precisam ser feitas agora.”

Em outubro do ano passado, o príncipe William, o filho mais velho de Charles e o


segundo na linha de sucessão ao trono, também se mostrou preocupado com o assunto
ao fazer uma declaração que rendeu manchetes em todo lugar. Logo depois que Jeff
Bezos, o dono da Amazon, lançou ao espaço mais um foguete de sua companhia Blue
Origin e poucos dias antes da abertura, em Glasgow, da 26ª Conferência das Nações
Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, William disse a uma emissora de tevê:
“Precisamos de alguns dos maiores cérebros e mentes do mundo concentrados em
tentar consertar este planeta, não tentando encontrar o próximo lugar para ir e viver.”

Antonelli concorda com William. “Temos de direcionar os recursos financeiros e


intelectuais para reparar o que está acontecendo com o meio ambiente. Ou serão
enormes os remorsos, pois deixaremos essa devastação como uma herança que vai
afetar nossos filhos e netos”, diz. O diretor científico dos Kew Gardens também não
teme dar nome aos bois, o que William evitou. “Investir em astrofísica, na exploração
científica do espaço, é fundamental. Mas não é isso que Bezos faz. Ele faz isso pelos
lucros e para se exibir.”
E m novembro do ano passado, Antonelli esteve na COP26 com um grupo de 28

cientistas dos Kew Gardens. A missão deles, segundo o biólogo, “foi apresentar
evidências de como soluções científicas sustentáveis, baseadas em sistemas naturais,
podem combater as crises climáticas e a perda de biodiversidade”. Um exemplo dessas
evidências levado a Glasgow foi a semente da Coffea stenophylla, a mesma apresentada
ao presidente do Gabão um mês antes.

Na COP26, Antonelli teve encontros com o presidente da Colômbia, Iván Duque


Márquez, e da Costa Rica, Carlos Alvarado Quesada. A equipe dos Kew Gardens faz
parceria científica com mais de cem países, para realizar projetos como os de
catalogação de plantas na Colômbia e de reflorestamento no México. Com o Brasil,
nada. “Infelizmente, não temos conseguido firmar novas parcerias com o Brasil”,
lamenta. “Espero maior abertura do governo federal para escutar os cientistas e
entender suas prioridades. Mas o que tenho visto é o contrário, com pesquisadores
perdendo bolsas e colegas abandonando os estudos que realizam por falta de apoio.
Muitos estão desempregados.”

Por isso mesmo, Antonelli acredita que pode contribuir mais para o conhecimento
sobre a biodiversidade brasileira fazendo seus trabalhos fora daqui. “Na Inglaterra e na
Suécia tenho todo o apoio necessário para realizar pesquisas mais ambiciosas,
incluindo as coletas e análises que realizo em biomas brasileiros, como na Amazônia.
No Brasil, desde que acabaram com o programa Ciência sem Fronteiras, infelizmente o
país não conta com uma ação federal de peso na área.”

Na COP26, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, disse que o
Brasil zeraria o desmatamento em 2028, adiantando em dois anos o prazo prometido
por outros governos brasileiros em conferências climáticas anteriores. Para explicar o
plano surpreendente, Pereira Leite exibiu um gráfico com dados otimistas do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a informação de que o desmatamento na
Amazônia teria diminuído 5% entre 2020 e 2021. Na verdade, estava tentando fazer a
plateia de boba.

Em 18 de novembro, seis dias após o fim da COP26, veio a público a notícia de que o
ministério ocultara por mais de um mês as informações reais do Inpe sobre o
desmatamento, que havia aumentado 22% – e não diminuído 5%. Antonelli é taxativo:
“Para ter acesso às dezenas de bilhões de dólares de financiamentos dados como
incentivo pelas nações ricas a quem preserva, e não desmata, países como o Brasil
precisam provar o que falam.”

E m julho deste ano, Antonelli vai lançar o seu primeiro livro, The Hidden

Universe: Adventures in Biodiversity (O universo oculto: aventuras na biodiversidade). A


obra será publicada simultaneamente na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Suécia e na
China – ainda não tem edição prevista no Brasil. Está dividida em quatro partes. Na
primeira, ele procura responder a esta ampla questão: “O que é biodiversidade?” Na
segunda, discute o valor da biodiversidade, que vai além da dimensão financeira.
“Como as estrelas pouco ligam para o que pensamos delas quando olhamos para o
vazio, as flores – e a biodiversidade – não estão aqui realmente por nós. Mas uma coisa
é certa: não poderíamos estar aqui sem elas”, escreve. Nas duas últimas partes, ele
aponta as principais ameaças e as soluções para a construção de um futuro sustentável.

O livro não é dirigido ao meio científico, mas ao público em geral. “Senti desconexão
entre o que os pesquisadores debatem sobre o tema da biodiversidade e o
entendimento da maioria da população sobre o assunto. Por isso decidi escrever”, diz
Antonelli. “Misturei os meus estudos com as percepções e vivências que tive ao fazer
trabalho de campo, nas florestas.” Ao longo de sua carreira, ele coletou, identificou e
catalogou mais de 2 mil tipos de plantas, insetos e répteis, em estudos de campo feitos
em 24 países.

Na obra, o biólogo conta várias histórias das descobertas que fez. Em algumas, o acaso
teve participação importante. Ele encontrou uma nova espécie de planta, uma parente
distante do café, a Cordiera montana, ao tropeçar no galho de uma árvore de 10 metros
de altura, na Cordilheira dos Andes, no Peru.

No Norte de Moçambique, quando estava atrás de cobras venenosas, ele fez outra
descoberta junto com sua equipe. “Após o Sol se pôr e as temperaturas caírem um
pouco, pegamos nossas tochas e saímos para uma caminhada. Estava um breu e de
repente vimos dois olhos brilhantes nos encarando de uma enorme rocha”, conta
Antonelli no livro. “Um de meus alunos, Harith Farooq, pulou ferozmente em direção
ao animal e finalmente conseguiu pegá-lo, ao custo de vários arranhões.” Era uma nova
espécie de lagartixa, de 15 cm de comprimento, que ainda não foi catalogada.
Filipe Vilicic

Jornalista e escritor, é diretor de criação da agência Virtù. Publicou, entre outros livros, O
Clique de 1 Bilhão de Dólares (Intrínseca)
Allan Sieber

Humorista, ilustrador, quadrinista e artista plástico, é autor de Perca Amigos, Pergunte-me


Como, da Mórula
C omo muitas pessoas em todo o mundo, durante a pandemia eu me vi tolhido da

normalidade e enclausurado. Tentando criar alguma rotina saudável, no ir e vir do


quarto para a sala, da sala para o banheiro, do banheiro para o quarto, comecei a fazer
paradas cada vez mais frequentes na cozinha. Não apenas para comer, mas também
para cozinhar. Parece que tanto os que já praticavam a culinária quanto os que
decidiram ter um hobby novo para enfrentar a ansiedade fizeram da cozinha o
principal cômodo da casa. A atração culinária nestes anos de Covid se manifestou de
forma tão forte e ampla que um tuíte em espanhol proclamou: Se llama pandemia por la
cantidad de gente haciendo pan.

Não foi uma opção aleatória, tampouco inédita. A crítica de culinária norte-americana
M. F. K. Fisher escreveu que “nossas três necessidades vitais – comida, segurança e
amor – estão de tal modo entrelaçadas que não se pode falar de uma sem falar da outra
[…]. Há mais que uma comunhão de corpos quando dividimos o pão e bebemos o
vinho”. O alimento tem a função básica de combustível, mas a comida, produto
cultural, engloba algo mais: fala ao espírito e à memória, dá conforto e (re)forma a
sociedade, tanto mais em épocas de crise.

Foi durante uma dessas visitas à cozinha que, um dia, olhando para os livros de
culinária na estante, reencontrei o caderno de receitas da minha bisavó paterna. Como
gosto de cozinhar e sou historiador, minha avó, Maria Elisa Torelly Cruz, havia me
escolhido como fiel depositário do manuscrito. Aceitei o presente com carinho, mas
para mim tratava-se mais de um documento da história familiar do que de um livro
cujas receitas eu realmente utilizaria. Embora guarde muitas boas lembranças das
comidas da infância, nenhuma delas está relacionada a esta bisavó, com quem tive
pouco contato.

Ela se chamava Mary Amaro Torelly. Nasceu em Porto Alegre, em 1913, filha de
Ernestina Amaro da Silveira e do advogado Firmino da Silva Torelly. Era prima do
jornalista e humorista Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), que ficou
conhecido com o pseudônimo Barão de Itararé. Graças ao capital econômico e social da
família, minha bisavó teve a educação que se esperava de uma jovem da elite gaúcha.
Cursou o tradicional Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, administrado por irmãs
franciscanas, e tal como sua mãe desde cedo frequentou os salões de chá e participou
de obras de caridade.
Em 1936 casou-se com o advogado Paulo Setembrino de Carvalho Cruz (1913-85), com
quem teve dois filhos, Maria Elisa, minha avó, nascida no ano seguinte, e Paulo
Fernando, em 1941. Sabe-se lá por que motivo, todos na família pronunciavam seu
nome como “Mêri”. Ela morreu em 1999, quando eu tinha 10 anos.

Crianças não estavam entre as suas distrações preferidas. Lembro que era uma mulher
de amplo sorriso, elegante, sempre bem penteada, maquiada e enfeitada com joias. Eu
me recordo de vê-la sentada no sofá da casa da minha avó, fazendo palavras cruzadas
com uma grande lupa. Ou comendo bombons de cereja e garrafinhas de chocolate com
recheio alcoólico, que ela nunca me oferecia. Era uma senhora gulosa, apaixonada por
doces, embora devesse evitá-los por questões de saúde. Nunca a vi cozinhando.

Ela se casou sem nada saber de culinária e foi morar com a sogra, Adelina Villela de
Carvalho, a “Zizi”, que cuidava da administração da casa. Quando Zizi morreu, em
1953, “o caos reinou na cozinha”, conta minha avó, que na época estava com 16 anos e
teve que se matricular em uma escola de culinária para transmitir à mãe os
conhecimentos de forno e fogão. Minha avó ajudou na administração do lar até se casar
em 1957, quando Mary se viu novamente sozinha com suas empregadas. “Ela mesma
não sabia muito, mas aprendeu a fazer uma comida excelente, porque seguiu as
receitas com rigor”, conta minha avó. “Acabou se tornando uma ótima professora,
muito exigente, e ensinou várias cozinheiras.”

A história da minha bisavó reflete a de muitas mulheres brasileiras oriundas de


famílias abastadas. Criada para jamais colocar as mãos na massa, pois podia contar
com o trabalho dos empregados, abundantes e servis no período pós-escravidão, Mary
se viu um dia obrigada a mudar de rota.

A o buscar no caderno da minha bisavó alguma receita que me inspirasse e

distraísse do iminente colapso da civilização, a minha formação como historiador logo


se manifestou. Comecei a tratar o manuscrito como um documento a ser analisado,
pois me pareceu que era um testemunho das transformações que afetaram não apenas
uma mulher, mas toda uma época.

Com 25 cm de altura e 17 cm de largura, capa dura revestida com tecido verde e bege
estampado com desenhos de ramos de bambu, o caderno tem apenas a palavra
“Receitas” desenhada no canto inferior direito. Dentro, estão registradas 156 receitas,
todas elas escritas a mão, separadas em onze categorias, de molhos a sobremesas, sem
esquecer os drinques. Os pratos doces (bolos, biscoitos, pudins, cremes e sorvetes)
representam mais de 40% do total, e quase igual proporção das receitas está
relacionada ao nome de alguém, como a “Torta salgada (Lelete)” e os “Pãezinhos da
Elzira”, ou então a alguma marca da indústria alimentícia, como as “Rosquinhas Royal
União”. Há ainda todo um capítulo com receitas copiadas do decorador e chef amador
carioca Miguel de Carvalho Neto, conhecido como Miguel, o Magnífico, que teve certa
proeminência no meio culinário entre os anos 1950 e 1960.

Quando minha avó me deu o caderno de presente, eu imaginava encontrar ali todo um
arsenal de receitas antigas da família, algumas talvez de mais de um século. Entretanto,
à medida que ia passando as páginas, percebi que se tratava de um material bem mais
recente, possivelmente compilado a partir de 1957, quando Mary precisou gerenciar
pessoalmente a cozinha.

As receitas citam os cubos de caldo Knorr, cuja fábrica abriu em São Paulo em 1961, e a
maionese Hellmann’s, que chegou ao Brasil em 1962. Algumas também recorrem ao
ketchup, do qual os cozinheiros brasileiros passaram a falar mais comumente a partir
da década de 1960. Há ainda uma receita chamada “Maionese Walita”, difundida na
década de 1950 pela fábrica de eletrodomésticos para ensinar as donas de casa a
usarem o liquidificador. As receitas não foram datadas, mas acredito que tenham sido
recolhidas até o fim da década de 1970.

Sendo uma coletânea mais recente, o caderno estava longe de fazer parte daquilo que
Gilberto Freyre chamou de “maçonaria das mulheres” – a herança culinária de uma
família, com receitas seculares transmitidas de mãe para filha, como um bem precioso
do clã. Se não corresponde à ideia de Freyre, o caderno da minha bisavó, contudo,
encaixa-se perfeitamente naquilo que Colleen Cotter chamou de livros de receitas
comunitários (community cookbooks). A linguista norte-americana definiu assim estes
trabalhos manuscritos, despretensiosos, feitos por donas de casa a partir de referências
de seu núcleo familiar, seu bairro ou seu clube, e que de certa forma tiravam as
mulheres do isolamento de suas cozinhas, inserindo-as em uma comunidade. Por isso,
são mais que meros registros de receitas: constituem uma narrativa cultural, tecida por
meio de alianças e conhecimentos.

No caderno de Mary esta aliança está traçada quando ela relaciona pessoas (Lelete,
Elzira, Dora…) às receitas, que também indicam o crescente impacto da indústria
alimentícia (como a Nestlé e a União) sobre o paladar doméstico. Cada receita,
portanto, tem algo a ver com a história pessoal de Mary, mas também com a história
social da alimentação no país. A “Musse de atum (Alba)”, por exemplo, oriunda da
cozinha de Alba Cruz Livonius, sua cunhada, é um prato pretensamente requintado
cuja receita mulheres da elite trocavam entre si e só pode ter sido desenvolvida a partir
da década de 1960, pois utiliza certa dose de… ketchup.

Ao conversar com minha avó, descobri que o caderno era o documento de algo ainda
mais interessante. Como minha bisavó nunca aprendeu a cozinhar de fato, precisava
do caderno como um guia para comandar as cozinheiras. Por isso, nele não constam
receitas de pratos do dia a dia, uma vez que estas eram já do conhecimento das
empregadas. Por isso, também, minha bisavó não escreve “atum” ou “gelatina” ao citar
estes ingredientes, mas “atum CPC” e “gelatina Oetker”. Não sabendo manejar a
cozinha, a fidelidade às marcas era sua garantia de que as receitas sairiam sempre
iguais. Nenhum prato típico gaúcho consta do caderno, mas, ao gosto da época, Mary
anotou duas receitas de vatapá, uma delas sem camarão seco e com frango – prato que
meu bisavô apelidou de “vatapá sintético”, para desgosto da esposa.

A história dos livros de receitas, desde o De Re Coquinaria (Sobre cozinhar), de

Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.), até os posts do canal digital Tastemade,
poderia ser um capítulo da história da luta de classes, dos gêneros e etnias. Uma
grande distância separa quem se julga qualificado a escrever e coletar receitas e quem
se encontra na situação de simplesmente fazer a comida, sob as ordens de outrem. No
Brasil não há como falar de receitas e de cozinha sem considerar estes dois papéis
distintos: o da dona de casa, comumente branca e de posses, e o da cozinheira, em geral
pobre e negra.

Minha bisavó nasceu 25 anos depois da abolição da escravatura. Em sua infância e


juventude ainda perduravam noções presentes desde os primórdios da colonização,
entre elas a de que o trabalho pesado era algo indigno, destinado às classes
subalternas.

A cozinha não escapou desse anátema e foi, durante séculos, ocupada prioritariamente
pelos cativos. Até famílias menos abastadas cuidavam de ter um escravizado para
cuidar de sua alimentação, como demonstraram os historiadores Almir El-Kareh e
Héctor Bruit, ao apontarem como eram frequentes nos jornais cariocas anúncios de
compra e venda de cativos (de ambos os sexos) aptos ao trabalho doméstico e à
culinária “trivial”. [1]
Um desses anúncios, publicado em 16 de fevereiro de 1828, no Diário do Rio de Janeiro,
diz:

Na Praça da Constituição, nº 10, vende-se uma muito vistosa mucama de Nação, sabe todo o
serviço de casa, faz uma camisa dando-se-lhe cortada, lava, engoma liso, cozinha, e assa, de
forno, e de fogão, não tem moléstias nem vícios conhecidos.

Às sinhás e sinhazinhas não competia cuidar da cozinha, mas elas às vezes


arregaçavam as mangas para fabricar doces finos que impressionassem os convivas,
produzindo uma confeitaria em tudo distinta do doce de tabuleiro das cozinheiras
negras, como descreveu Gilberto Freyre em seu livro Açúcar. Desenhava-se aí uma das
principais dinâmicas do serviço doméstico, vigente até a atualidade: a patroa se
dedicava ao “requintado”, enquanto a cativa ou, depois, a empregada, se incumbia do
“básico”.

Como se sabe, o fim da escravatura não significou uma ruptura profunda nesse tipo de
relações. Diversos estudos apontam que o trabalho doméstico foi um dos setores que
mais absorveu a população recém-liberta: mulheres negras empregaram-se como amas-
secas e de leite, engomadeiras, cozinheiras e faxineiras, enquanto os ex-cativos do sexo
masculino passaram a atuar em serviços adjacentes à casa, como os de marceneiro e
pedreiro, além de cuidarem da lavoura e de atividades relacionadas ao comércio.

Em 1912, um ano antes do nascimento de minha bisavó, a professora Eulália Vaz, da


Escola Profissional de São Paulo, publicou A Sciencia no Lar Moderno. O livro é um dos
primeiros indícios de que algo estava mudando na mentalidade brasileira a respeito da
vida doméstica, o que fica claro no trecho abaixo, em que a autora convida as leitoras
(mulheres da elite, às quais se dirigia a obra) a colocar de lado seus receios e adentrar o
mundo da cozinha:

As senhoras, geralmente, que têm uma educação fina, de salão, casam-se e veem-se em apuros
para dirigir a sua casa. Esbarram com mil dificuldades, sofrem, afligem-se por não saberem levar
a efeito a parte mais interessada da casa; felizmente vão aparecendo os livros práticos e auxiliares
para este labor contínuo e interminável.

Há tempos era um preconceito que os pais tinham, como digo sempre, geralmente a educação que
davam às suas filhas estendia-se a proibição de irem à cozinha, privarem-nas de tratar com
fâmulos. A educação de uma moça de família distinta era incompatível com o andamento geral
da casa. Quantas não se viram em embaraço. Acostumadas ao elemento servil, sem prática,
casavam-se e encontravam um marido amigo de gulodices, quitutes e arranjo caseiro. Que
suplício?!!
Em 1923 foi aprovado pelo presidente Artur Bernardes o decreto nº 16 107, a primeira
regulamentação da República sobre os serviços domésticos, aí incluídos os porteiros,
jardineiros, lavadeiras etc. – todo um conjunto de atividades que não merecera atenção
no Código Civil de 1916. Dentre os trabalhadores mencionados nesse decreto, estavam
“os cozinheiros”, mas não as cozinheiras (é significativo que os únicos serviçais de
cozinha regulamentados fossem homens, mantendo as cozinheiras na irregularidade).
O artigo terceiro do decreto prescrevia que cada um desses trabalhadores teria uma
carteira – um indicativo de sua situação regular e a garantia de alguma proteção legal.

Apesar de proteger muito mais o empregador do que o empregado, a nova legislação


gerou uma reação negativa da parte do patronato. Nessa época começaram a aparecer
na imprensa críticas à “falta de boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes”, ao
mesmo tempo que surgiam palavras de incentivo às donas de casa para que
desenvolvessem suas habilidades culinárias. Um texto de 1924, da Vida Doméstica, a
“revista do lar e dos campos”, destacava:

As condições atuais da vida são tais que algumas donas de casa quase dispensam a cozinheira,
indo elas mesmo preparar os seus pastéis e cozinhá-los, quando não decidem efetuar outros
serviços leves da cozinha. Preferem, muitas vezes, fazer por suas próprias mãos os pratos mais
do seu agrado – especialmente aqueles que não estragam nem sujam as mãos. É notória a falta de
boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes. Esta falta está se verificando em toda a parte.
Não admira, portanto, que as donas de casa tomem as suas providências no sentido de não sentir
inteiramente a sua falta. Para a remediar, embora não exista evidentemente o desejo de dispensar
as cozinheiras, muitas senhoras já se vão familiarizando com a cozinha. Foram inventados, para
esbater a sua falta, alguns instrumentos de fácil manuseio e que evitam alguns trabalhos
demasiadamente penosos para quem não tem o hábito da cozinha. Quase todos eles são de
agradável aspecto, alguns até interessantes.

Dois processos começam a se formar. De um lado, tem-se um discurso ofensivo aos


empregados, acusando-os, coletivamente, de serem falhos e mal preparados (é o
surgimento da imagem da “empregada insubordinada ou insolente”) e, como solução
ao impasse, a sugestão de que as donas de casa encarassem elas mesmas o serviço
culinário. De outro, percebe-se o início da difusão de transformações tecnológicas na
cozinha. Ambos os processos se encontrarão nas figuras da “dona de casa” e da “rainha
do lar”, a mulher que domina a dinâmica familiar e os instrumentos domésticos como
ninguém.

A construção da tríade mãe-esposa-administradora da casa é evidentemente parte de


um movimento conservador e machista que tenta limitar os anseios de autonomia das
mulheres ao mundo restrito da vida doméstica. No alvorecer dos anos 1930, as
mulheres começavam a obter alguma liberdade. Desde 1932, já estavam autorizadas a
votar as mulheres casadas que tivessem permissão de seus maridos, as solteiras com
salário próprio e as viúvas. Ademais, mudanças no ensino vinham permitindo que elas
ampliassem seus estudos, ocupando espaço em antigos redutos masculinos, como as
profissões liberais. A expansão urbana, os novos meios de transporte e a crescente
indústria da moda, com suas lojas especializadas, criaram outros espaços de
sociabilidade, e se espalhou a prática do footing feminino pelas ruas elegantes e os cafés
das grandes cidades.

Mas, tão logo a mulher começou a transpor a soleira doméstica, a reação conservadora
se esforçou para puxá-la de volta para casa. A fim de incentivar o retrocesso,
começaram a surgir periódicos, como a revista Vida Doméstica (1920-62), o Jornal das
Moças (1914-68) e seu suplemento Jornal da Mulher (1930), publicados no Rio de Janeiro,
que, apesar de voltados para o público feminino, eram em geral editados por homens e
associações católicas. O teor dos artigos costumava ser bastante retrógrado, contrário,
por exemplo, ao voto feminino, ao trabalho externo ao lar, ao desquite… A respeito
desse período, a historiadora Luzia Margareth Rago, escreveu em Os Prazeres da
Noite, livro de 1991:

Generoso, o sexo barbado disse à mulher que o seu papel era no lar, na educação dos filhos, nas
carícias do esposo, no seu trono doméstico da graça, longe do mundo, das suas contingências
miseráveis, das suas abominações tremendas, a cujo contato não há alma feminina que não
empalideça e não estiole.

Juntamente com a imprensa, a indústria fez a sua reação conservadora (ainda que em
parte também inovadora), tentando atrair a mulher que antes não cozinhava para a
frente dos fogões. Se esforçou para mostrar às consumidoras que seria possível casar o
melhor dos dois mundos: a cozinha podia, também, ser chique. Na Feira Internacional
de Amostras de 1933, no Rio de Janeiro, o estande da Companhia do Gás exibiu uma
cozinha moderna e contratou uma atriz-cozinheira para demonstrar que, com os novos
eletrodomésticos, a dona de casa escaparia de ficar com a cara suja de fuligem, como
diz uma reportagem da revista O Cruzeiro, de novembro daquele ano:

À vista do público, trabalhando rapidamente, a “operadora” fazia doces e biscoitos, aprontava


pratos complicados, punha em funcionamento o forno, demonstrava como é possível economizar
gás sem retardar o serviço da cozinha. […] E a cozinheira improvisada, com um sorriso nos
lábios, explicava: – Isto que eu faço aqui com rapidez e asseio pode ser feito, com muito mais
vantagem, em qualquer casa de família…

O próprio espaço físico da cozinha será posto em discussão, com os críticos modernos
apontando os espaços amplos das cozinhas antigas como danosos ao bom manejo do
lar, pois exigiam que se andasse “muitos quilômetros” todos os anos, ao se deslocar
entre o fogão, a pia e a mesa de jantar. Em texto de 1933, autores anônimos asseguram
que a dimensão ideal da cozinha é de 6,25 m², o que permite não só a disposição prática
de todos os utensílios e eletrodomésticos, mas também “um espaço livre, central, para
os movimentos, de 1,50 metro, ou seja, a dimensão de dois braços abertos”.

A substituição do fuliginoso fogão a lenha pelos modernos aparelhos a gás criou um


abismo geracional: as mocinhas tinham pouco a aprender com a mãe ou a avó, que
desconheciam o uso da nova ferramenta da cozinha. Coube à indústria e à mídia
assumir o papel de professores. No Rio de Janeiro, a Sociedade Anônima do Gás,
responsável pela canalização e distribuição do produto, instalou escolas – separadas –
para patroas e empregadas aprenderem a manusear os aparelhos. “A dona de casa não
deve acercar-se da cozinheira na qualidade de uma leiga”, ensinavam as professoras da
escola em 1935.

Com a chegada da modernidade e a redução do número de empregados domésticos, a


mulher deveria exercer um papel mais ativo na manutenção do próprio lar. Enquanto a
cozinheira se ocupa das refeições, e a empregada, munida de um aspirador de pó
(vendido no país desde a década de 1920), faz a limpeza pesada, “fica entendido que a
dona de casa ajudará nos trabalhos leves, tais como arranjar flores nos vasos, cuidar
das plantas que adornam o interior da casa, sacudir e fazer as camas”, dizia um texto
de 1934 no Anuário das Senhoras.

D ois projetos de lei tentaram, em 1935, incluir novamente a categoria das

empregadas domésticas no rol das profissões regulamentadas pela nova Constituição.


Não foram aprovados pela Câmara, e as cozinheiras, camareiras e demais serventes
permaneceram distantes da proteção social e trabalhista. No mesmo período, grupos
católicos se mobilizaram para criar alternativas, como a Liga de Proteção ao Lar Pobre,
entidade filantrópica que mantinha um registro de empregadas domésticas para
encaminhá-las às casas interessadas.

Em abril daquele ano, a revista Vida Doméstica publicou um diálogo travado entre uma
cozinheira e o representante da fictícia Caixa de Aposentadoria dos Domésticos. Nele, a
cozinheira, empregada na casa de uma feminista, fazia uma queixa ao funcionário,
exigindo um ato oficial que proibisse o termo “criada”, substituindo-o pelo mais
moderno “doméstica”, para ela menos pejorativo. É evidente o tom conservador do
texto, debochando das pretensões trabalhistas. Na mesma revista, números depois,
foram publicados os seguintes versinhos, sem autoria: Lá em casa tem uma preta
cozinheira/E que nos serve desde tenra idade,/Vive contente e é boa companheira/Até no nome
ela é Felicidade… Felizes mesmo eram os patrões de Felicidade, atendidos por uma
criada servil e leal. A nostalgia da senzala continuava a marcar a imaginação da elite
brasileira.

Em 1936, a empregada doméstica Laudelina de Campos Melo, militante do Partido


Comunista Brasileiro, fundou em Santos a Associação de Trabalhadoras Domésticas,
primeiro sindicato do gênero no país. Não era mera coincidência o fato de Campos
Melo também militar na Frente Negra Brasileira, movimento criado em São Paulo em
1931 para prestar assistência social, educativa e jurídica à população negra, mas extinto
seis anos depois pelo Estado Novo.

Os esforços dos empregados em prol de seus direitos continuavam, enquanto a


imprensa perseverava em fazer as mulheres aceitarem os novos tempos, sem mucamas
nem criadas, como aconselhou a revista Cruzeiro, em 1936:

Cozinhar, dantes, era mister que as senhoras exerciam com sacrifício, e só em circunstâncias
excepcionalíssimas, para salvar uma situação de aperto quando a cozinheira faltava e não havia
outro remédio. Hoje, entretanto, já não sucede assim. Hoje, cozinhar já é um prazer. E como o
problema da “boa cozinheira” cada dia mais e mais se agrava, a dona de casa de 1936 lhe dá a
solução mais simples: dispensa-a… o que oferece a vantagem de adquirir sossego de espírito e de
poder saborear os quitutes ao próprio gosto ou ao gosto do marido.

Dois anos mais tarde, o suplemento carioca Jornal da Mulher apresentou uma definição
mais abrangente para o substantivo “cozinheira”:

Não queremos nos referir somente às empregadas domésticas, mas as que vão para a cozinha
auxiliar os quitutes, ou exercer as funções na falta das empregadas; enfim, queremos nos referir
às patroas que, também gostam, às vezes, de simular cozinheiras. Quer isso dizer que o termo é
genérico e que abrange a toda aquela que quer ser mestre-cuca.

Sinal dos tempos foi também a publicação, em 1940, do mais famoso livro de receitas
do país, Comer Bem, assinado com o pseudônimo Dona Benta – nome de um
personagem de Monteiro Lobato. A “autora” aparece na capa como uma vovozinha
gentil, segurando um bolo diante dos olhos gulosos de Pedrinho. Boa dona de casa,
Dona Benta gerenciava a cozinha do Sítio do Picapau Amarelo, mas quem ia para a
frente do fogão era Tia Nastácia, a empregada negra, que não teve a honra de aparecer
na capa do livro. A ideia é clara: as leitoras da obra devem se identificar com Dona
Benta, pois, como ela, estão destinadas ao comando, e não ao trabalho pesado das
panelas, como Tia Nastácia.
Décadas depois, em 1961, no salão paroquial de uma igreja no Alto da Boa Vista, no
Rio de Janeiro, ocorreu um fato histórico de grande importância: trinta mulheres de
todo o país se reuniram no Primeiro Encontro Nacional de Empregadas Domésticas,
promovido pela Juventude Operária Católica. O feito rendeu uma reportagem de três
páginas e diversas fotos na revista Manchete, com o título Revolução da Copa e Cozinha.
Abre a reportagem a fala de uma doméstica anônima, identificada apenas por
“escurinha”, que diz:

É preciso abolir o elevador de serviço. Que diabo! Aos domingos, quando saímos para passear,
mais arrumadinhas, não custava nada a gente usar o elevador social. As patroas deviam
reconhecer que nós somos criaturas humanas, vivendo num país democrático. Ou os direitos
civis variam com as classes econômicas? Será que ainda vivemos no regime da escravidão?

De certa forma, vivíamos. Levou ainda quase meio século para que os direitos das
empregadas domésticas fossem finalmente reconhecidos.

Q uando minha bisavó iniciou a escrita de seu caderno de receitas, esses direitos

ainda não existiam. Mary não entendia das panelas, mas comandava a cozinha,
fazendo do caderno o instrumento que lhe garantia o sucesso à mesa.

As verdadeiras mãos por trás das comidas eram as cozinheiras, que colocavam as
receitas do caderno em prática. No caderno, elas estão identificadas como autoras de
apenas 8 das 156 receitas: “Pãezinhos (Elzira)”, “Rolinhos de queijo (Elzira)”,
“Empadas (Elzira)”, “Pastéis (Geny)”, “Pastel (Venina)”, “Biscoitos (Venina)”, “Sorvete
de creme (Venina)” e “Biscoitos (Siá Josefa)”.

Elzira e Venina eram cozinheiras de minha bisavó. Geny, de sua cunhada Alba. E Siá
Josefa, de uma prima de seu marido, Nice. Minha avó conta que Elzira chegava tarde
no serviço, fumava muito, era desbocada, mas cozinhava muito bem. Era a responsável
por fazer inclusive os quitutes dos chás de quinta-feira, data especial na agenda social
de minha bisavó. Venina auxiliava Elzira, e quando aprendeu os segredos da cozinha
tomou o lugar da colega, que foi dispensada. Infelizmente, não encontrei registros dos
sobrenomes nem das idades das duas.

Mary anotou as receitas das cozinheiras sem instruções detalhadas, nem as medidas e
temperaturas exatas. Algumas indicações bastavam para quem sabia cozinhar por tino
e por prática. Minha bisavó provavelmente não conseguia reproduzi-las sozinha, mas
sabia que seriam bem executadas por outras cozinheiras, como a receita do “Pastel
(Venina)”: 1/2 copo de salmoura; 2 ovos; 2 colheres de azeite; 1 e 1/2 colher de cachaça; farinha
de trigo à vontade. Deixar a massa descansar meia hora.

Tia Mary (assim batizada em homenagem à minha bisavó) ainda se lembra dos
quitutes das cozinheiras. Quando peço que me conte como era o pastel de Venina, ela
encontra logo duas palavras para descrevê-lo: “Era divino.”

No ensaio Cozinhar e Comer, em Casa e na Rua: Culinária e Gastronomia na Corte do


[1]

Império do Brasil, publicado no nº 33 da revista Estudos Históricos, de janeiro/julho de


2004.

Pedro Meirelles

É doutor em história pela UFRGS, especialista em história social do Brasil imperial


M ontevidéu, 4 de outubro de 1972. Cristina Peri Rossi enche uma mala com

sua máquina de escrever Remington, cem folhas de papel em branco e um volume de


cada um dos seis livros que escreveu até então, incluindo os poemas datilografados de
um inédito. São cinco da manhã quando ela e sua companheira fecham a porta do
apartamento em que moram e entram no carro do poeta Hugo Achugar, para quem
haviam ligado uma hora antes. Peri Rossi não deu maiores explicações e Achugar não
esperava nenhuma. Sabia que os telefones de ambos estavam grampeados, e que mais
cedo ou mais tarde ele e a esposa também precisariam sair escondidos de casa – e do
país – sem saber quando poderiam voltar. Seis horas depois, o transatlântico italiano
Giulio Cesare flutuava na direção oposta do porto da capital uruguaia e Peri Rossi
fazia, aos 30 anos, a primeira viagem de sua vida. Como bagagem/uma mala cheia de
papéis/e de angústia/os papéis/para escrever/a angústia/para viver com ela/companheira amiga,
como diz o poema A Viagem, de seu livro Estado de Exílio.

Além de nunca ter saído antes de Montevidéu, a viagem do exílio também foi a
primeira vez em que Peri Rossi subiu num barco – talvez a única forma de escapar do
naufrágio que sofria seu país. Desde 1967, com a chegada de Jorge Pacheco Areco à
Presidência pelo Partido Colorado e a crescente influência das Forças Armadas no
governo, a situação política do Uruguai estava cada vez mais crítica. Em maio de 1968,
acompanhando o movimento mundial de revolta estudantil e proletária cujo estopim
foi em Paris, uma série de manifestações culminou no decreto de estado de sítio por
Pacheco Areco em junho. Enquanto isso, o grupo guerrilheiro tupamaros – que tinha
como um dos líderes o hoje ex-presidente José “Pepe” Mujica –, em atuação desde a
primeira metade da década, ganhava força e realizava diversos ataques pelo país. Peri
Rossi, como uma parcela considerável da população uruguaia, simpatizava com o
grupo, embora não atuasse na guerrilha. Ainda uma democracia em 1971, o país se
preparava para a eleição presidencial, e a esquerda não armada se uniu na grande
coalizão chamada de Frente Ampla – na qual Peri Rossi militava, e pela qual Mujica
seria eleito em 2009. Era uma tentativa de driblar o sistema bipartidário de até então,
em que a disputa era tradicionalmente apenas entre o Partido Colorado e o Partido
Nacional. Em meio a acusações de fraude, venceu o candidato do Partido Colorado,
Juan María Bordaberry, e a repressão por parte do Estado foi aumentando até culminar
na dissolução do Legislativo em 1973. Ao contrário dos vizinhos Brasil, Chile e
Argentina, não houve uma tomada de poder à força por parte dos militares, e
tampouco uma figura central como foi o general chileno Augusto Pinochet.
Sobre Descripción de un Naufragio, o livro inédito que compunha sua bagagem, Peri
Rossi escreve que os poemas são uma “alegoria em versos de uma derrota, de uma
ruptura, de uma separação, ou seja, de um exílio, e alegoria, também, de uma
sobrevivência”. Um dos poemas, sem título, é diagramado na forma de um barco; a
última parte, que seria o casco, diz: p/o/r/q/ue/indolores, afligidos por cruéis tragédias
cotidianas/– a sombra daquele faminto que se enforcou na árvore/os gritos dos prisioneiros nas
celas sem luz/os lamentos das mães, órfãs de filhos –/a sotavento dos sonhos mais caros
impossíveis/lançamos a nau das navegações infinitas/navegamos pelo úmido mar dos
sargaços/em rota sem derrota, perecedora,/até o fundo do mar, onde/jaz a sombra dos justos.

No final de 1972, Peri Rossi foi considerada “inominável” pelo governo uruguaio.
Qualquer menção ao nome da autora na mídia foi proibida, assim como seus livros.
Também perdeu, e nunca conseguiu reaver, sua cátedra de literatura comparada no
Instituto de Professores Artigas, um centro de ensino terciário de excelência em
Montevidéu – o lugar onde se formara em 1964 e conhecera Achugar, que, depois de
ajudá-la, conseguiu fugir para a Venezuela e hoje é professor emérito da Universidade
de Miami, nos Estados Unidos. Naquela época, além de ser professora, Peri Rossi já era
uma personalidade conhecida nos grupos da esquerda independente na capital
uruguaia e colaboradora do jornal comunista El Popular, além de abertamente
homossexual.

A chegada de Peri Rossi à Espanha, porém, esteve longe de ser tranquila ou triunfal, e
o plano de retornar a seu país natal depois de alguns meses durou pouco tempo.
“Quando veio o golpe, me dei conta de que não podia voltar, de que o regresso era
uma loucura”, disse certa vez a Parizad Tamara Dejbord, uma estudiosa de sua obra.
“Eu me lembrava perfeitamente de que em Montevidéu, que estava cheia de exilados
espanhóis, meu vizinho esperava que Franco caísse. Muitos espanhóis viveram
quarenta anos no Uruguai e morreram esperando.” Quando Peri Rossi desembarcou na
Espanha, o ditador Francisco Franco de fato ainda estava no poder, e quando o
governo uruguaio retirou sua cidadania, em 1974, ela teve que fugir para Paris para
não ser presa, no que chama de seu “segundo exílio”. Voltou alguns meses depois para
Barcelona, casando-se com um amigo militante gay para naturalizar-se espanhola. Só
recuperaria a documentação uruguaia – e a possibilidade de retorno – após o fim da
ditadura, em 1985. Mesmo assim, nunca voltou a morar na cidade onde nasceu.
“Quando caiu a ditadura, me dei conta de que havia vivido catorze anos com nostalgia
de Montevidéu – uma nostalgia horrorosa – e agora não tinha vontade de ter nostalgia
de Barcelona. Para ter nostalgia, sigo tendo sempre a mesma”, disse certa vez. “Além
disso, não se exila porque se quer, se exila porque se tem que salvar a pele, e acho que,
dentro dessa insensata geometria que é a vida, um ato involuntário não tem que ser
respondido com um ato voluntário como é voltar. Estritamente não se pode voltar
porque é um tempo que já não existe.”

N o dia 10 de novembro de 2021, quase cinquenta anos após a fuga de

Montevidéu, Cristina Peri Rossi estava de cama em seu apartamento no bairro Les
Corts, em Barcelona, quando recebeu um telefonema de Miquel Iceta, ministro da
Cultura e Esportes da Espanha. Faltavam dois dias para Peri Rossi completar 80 anos, e
o médico que tinha ido a sua casa checar um broncoespasmo acabara de sair. Iceta lhe
deu a notícia de que fora escolhida como ganhadora do Prêmio Miguel de Cervantes, o
mais importante da literatura de língua espanhola, pela totalidade de sua obra – 46
livros, entre poesia, romances, contos e ensaios. A premiação consiste em 125 mil euros,
aproximadamente 800 mil reais, galardoados pelo rei da Espanha. Peri Rossi é a sexta
mulher a ganhar o prêmio, que conta 46 edições. A uruguaia é considerada por muitos
críticos a única mulher do chamado boom latino-americano, ao lado de autores como
Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar – apesar de já ter
salientado numa entrevista de 1988 seu pertencimento a uma geração posterior,
“marcada pela experiência do exílio”. Peri Rossi é 27 anos mais nova do que Cortázar,
por exemplo – o que não os impediu de manter uma longa e intensa amizade até a
morte do escritor argentino, com quem compartilhou o amor por dinossauros,
caleidoscópios e justiça social, registrada no livro Julio Cortázar y Cris, de 2014.

Pouquíssimo lida no Brasil, com uma só obra traduzida no país (Habitaciones Privadas,
de 2012, publicada como Espaços Íntimos pela editora Gradiva em 2017), Peri Rossi é
também pouco conhecida quando comparada com os nomes mais famosos do boom.
Desde seu primeiro livro, Viviendo (1963), lançado quando contava apenas 22 anos,
causou polêmica; se não no meio da crítica literária, que possivelmente só lhe dedicou
uma resenha relevante na época (porém muito elogiosa e assinada pelo autor Mario
Benedetti), ao menos em seu núcleo familiar. No ensaio Detente, Instante, Eres Tan Bello,
de 2016, ela conta que sua mãe se recusou a ler a obra, “temerosa, segundo suas
palavras, de saber o que eu pensava e sentia”. Já seu tio materno, em cuja biblioteca
Peri Rossi passou a infância e a adolescência, não só não leu o livro como a partir daí
deixou de ler de vez. Nas palavras da sobrinha, abandonou os livros “sob o pretexto de
que a literatura contemporânea (ou seja, eu) não valia nada”.

A rebeldia da escrita de Peri Rossi estava presente desde os 6 anos, quando anunciou à
família que iria ser escritora, em um grande almoço de domingo na casa da avó.
“Imediatamente, fez-se um silêncio geral”, ela escreve. “Só se ouvia o tilintar de algum
garfo no prato. Por fim, meu tio materno, solteiro, intelectual, funcionário público,
grande leitor, amante da música, porém misógino, neurótico e frustrado, exclamou: ‘O
que a menina falou?’” A reação do tio desencadeou uma aflição geral dos parentes. “‘O
que ela está falando?’, perguntava, incrédulo, um tio-avô. ‘Está louca’, sentenciava
minha avó, que sempre me fez sentir como um bicho estranho. ‘Escritora? De onde
tirou isso?’, proclamava outro.” A mãe, professora de literatura, foi a única que
acreditou, “mas suspirou profundamente”.

Na biblioteca do tio, modesta mas bastante completa para uma família fora da elite
intelectual montevideana – ele era um funcionário público de baixo escalão; o pai de
Peri Rossi, alcoólatra e violento, trabalhava como operário numa fábrica têxtil –, ela
descobriu a quase total ausência de autoras mulheres nas estantes. Havia três: a grega
antiga Safo de Lesbos, Virginia Woolf, inglesa, e a argentina Alfonsina Storni. O tio
perguntou-lhe um dia se ela sabia como as autoras tinham morrido; a menina
respondeu que sim, que as três tinham se suicidado. “Viu? As mulheres não escrevem,
e quando escrevem, se suicidam”, disse. Peri Rossi se viu num impasse, mas logo
decidiu: “Ia ser escritora, e a coisa do suicídio ficaria para depois.” Quando se assumiu
lésbica, ainda adolescente, viu que suas referências eram ainda mais estritas. “Bem, eu
disse: somos três: minha namorada, Safo e eu. Como não tenho nenhum problema com
as minorias, não me pareceu de todo ruim esse triângulo”, disse em entrevista ao jornal
argentino Página 12, em 2009. Depois da adolescência, já aos 25 anos, uma visita
desavisada, ao entrar na casa da escritora, se depararia com a frase “Eu não tenho
preconceito contra os heterossexuais, nem os discrimino”.

F oi para conseguir livros de Peri Rossi que eu saí de Buenos Aires, onde estava

fazendo pesquisa, para passar alguns dias do outro lado do Rio da Prata. Era maio de
2019, e depois de três anos me debruçando sobre sua obra, ainda não tinha conseguido
acesso a quase nenhum dos livros anteriores à viagem do exílio, que foram proibidos e
recolhidos pelos militares. Por isso mesmo não sabia se viria a encontrá-los, mesmo em
Montevidéu. Tentativas preliminares de procurar as publicações em sites de venda
online não geraram nenhum resultado. O plano era um tanto ingênuo: caminhar pela
cidade, sozinha, entrando em todo sebo que eu cruzasse e perguntando sobre os livros.
Para a minha surpresa – e a dos livreiros uruguaios, que achavam bastante curioso o
meu interesse por Peri Rossi – encontrei primeiras edições de Los Museos
Abandonados e El Libro de Mis Primos, respectivamente seu segundo e terceiro livros,
ambos publicados em 1969. Uma das primeiras autoras a explorar a temática da
repressão que tomava a América Latina nas décadas de 1960 e 1970, já nas duas obras
Peri Rossi fazia referências explícitas à guerrilha urbana e à violência e perseguição
contra militantes da esquerda por parte do Estado uruguaio.

Eu tinha descoberto Peri Rossi ao procurar, como ela, referências lésbicas na poesia, e
quando a balsa em que eu estava embarcada entrou no porto de Montevidéu, a
sensação que eu tinha era de que o Brasil, meu país, também estava naufragando. O
Uruguai era, então, um dos poucos países da América Latina que resistiam ao avanço
da onda conservadora – isso até Luis Alberto Lacalle Pou, o candidato do Partido
Nacional, de direita, vencer a eleição em novembro daquele mesmo ano. No Brasil, Jair
Bolsonaro estava em seus primeiros meses de governo e a atmosfera nos meus círculos
sociais e profissionais era de medo e revolta. O projeto de extermínio de pessoas não
brancas e/ou LGBTQIA+ não só já era evidente como relatos de casos de agressão física
ou verbal, que eu mesma vivi poucas semanas antes do segundo turno em 2018, tinham
aumentado sensivelmente. Os ataques às universidades federais e a órgãos de fomento
à pesquisa como a Capes e o CNPq também já estavam em andamento – devo a esta
última instituição boa parte da pesquisa acadêmica sobre Peri Rossi que resultou na
minha dissertação de mestrado, Nostalgia de Infinito e a Poética do Impossível em Alejandra
Pizarnik e Cristina Peri Rossi, defendida na Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2020.

A primeira edição de Los Museos Abandonados, que encontrei no sebo de Montevidéu, é


dedicada “Aos guerrilheiros. A seus heróis inominados. A seus mártires. A seus
mortos. Ao Homem Novo que nasce deles. Ainda que essa seja, definitivamente, a mais
desajeitada homenagem que se lhes possa fazer”. O livro, composto de quatro contos,
ganhou em 1968 o prêmio de prosa de autores com menos de 30 anos da Arca Editora,
com júri integrado por Eduardo Galeano e Ángel Rama – que depois apelidaria Peri
Rossi de “la Rimbaudcita”, em referência ao poeta simbolista francês Arthur Rimbaud.
Já em El Libro de Mis Primos, o personagem Federico é um adolescente de família
burguesa que foge de casa para se juntar à guerrilha. O livro é escrito a partir da
perspectiva de uma criança chamada Oliverio e seus primos; Federico é o mais velho e
o preferido do menino, que fica desolado quando descobre que este foi para as
guerrilhas sem levá-lo: “Eu não sei pra onde o Federico foi, mas estava magoado
quando amanheceu e me dei conta de que tinha ido sem mim, sem me levar com ele,
me deixando na casa cheia de pássaros e de galinhas e das tias que estão cada vez mais
iguais aos pássaros e de noite me dão medo.” O capítulo tem como epígrafe a
passagem “a gente cresce sempre, sem saber para onde”, do conto Nenhum, Nenhuma,
de Guimarães Rosa.
Como no conto roseano, a história se passa numa enorme casa rodeada por um jardim
que parece suspensa no tempo e no espaço, e também transita na fina linha entre
memória, sonho e realidade. “Então, o fato se dissolve. As lembranças são outras
distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono”, escreve Rosa.
Tanto Oliverio quanto o “menino” de Nenhum, Nenhuma estão imersos nas fantasias e
alegrias da infância ao mesmo tempo que na descoberta do mundo e suas angústias. E,
no meio disso, fantasias e descobertas da – e na – linguagem. Há também,
inevitavelmente, paralelos com a história familiar de Peri Rossi e sua própria infância,
sobre as quais a autora se debruça em seu último lançamento, o romance
autobiográfico La Insumisa (2020). Nele, Peri Rossi narra que a avó morava em uma
casa com muitos quartos e um extenso jardim onde ela passava os dias, construída por
seus bisavós, imigrantes genoveses, que tiveram catorze filhos ao longo de quinze anos.
“O fundo da casa da minha avó era grande como o Paraíso que falavam na igreja, e
como o Paraíso que falavam na igreja, estava povoado de animais diversos, em estado
selvagem, que fugiam dos humanos e levavam uma vida solitária e perigosa.”

Ao fim de El Libro de Mis Primos, Oliverio, muito incomodado com o que o resto da
família diz sobre Federico após a fuga, começa uma revolução dos primos contra os
adultos com uma pedra que magicamente voa pela casa enquanto as crianças brincam
de “soldados e guerrilheiros”, destruindo-a e matando os parentes mais velhos.
Federico e seu grupo, por sua vez, conseguem invadir a cidade, numa página final que
também ecoa Rosa: “Na noite calma, branca, mansa, entramos na cidade como homens
de paz, mas protegendo-nos nas sombras que permitem os parapeitos das casas e as
claraboias. Noite de verão, noite calma. Nem às crianças se ouve chorar, essas crianças
que sempre choram ao longe nas noites de verão. Cada um sentiu sua nostalgia, sua
nostalgia de coisas e de casas. […] e Rafael se aproxima, companheiro, às ordens,
estamos prontos, e Rafael sorri, como nunca, na noite branca de cartolina noite branca
claranoite contente põe seu braço sobre meu ombro sorri. É a hora. CHEGAMOS.”

Peri Rossi afirmou certa vez que esse foi o primeiro livro uruguaio que trabalhava a
temática dos grupos de guerrilha. Sendo essa informação exata ou não, é certo que seu
trabalho estava não só a par dos feitos e desejos da juventude revolucionária, mas
apontava novas direções, políticas e estéticas para a literatura uruguaia. Na própria
forma do livro, que não apenas alterna poesia e prosa como as fusiona, de modo que se
torna impossível definir o limite entre uma e outra, é explícito o movimento desafiador
às normas de gênero. Um desafio que se reflete também no sentido do gênero enquanto
construção social – presente em sua obra desde as primeiras publicações. Mas se as
obras desse período carregam um tom esperançoso em relação ao futuro, jogando com
a possibilidade palpável de uma mudança radical no destino do país, o crescente
autoritarismo e a repressão por parte do Estado uruguaio logo frearam as expectativas
de Peri Rossi. A epígrafe de Indicios Pánicos, de 1970, é uma fala de Mussolini, cuja frase
final, assustadoramente contemporânea, diz: “Em certo sentido, pode-se dizer que o
policial precedeu, na história, o professor.”

E m 1971, Peri Rossi publicou Evohé, seu primeiro livro de poesia e o último antes

do exílio, altamente erótico e lidando explicitamente com relações entre


mulheres. Evohé foi um escândalo em Montevidéu, tanto entre a direita quanto a
esquerda; também foi um marco importantíssimo em sua vida e obra. Embora a relação
entre corpo e palavra, linguagem e erotismo já estivesse presente nos trabalhos
anteriores, aqui toma uma forma que Peri Rossi segue por toda a vida. Nomeado em
referência aos gritos de êxtase das sacerdotisas do deus Baco, Evohé é uma literatura
movida pelo desejo, em todas as suas facetas: a angústia de ser um corpo só no mundo,
o êxtase dos encontros, a impossibilidade de fundir-se com o ser amado, ou com a
palavra. Nele, como em toda sua obra, linguagem e o Outro se confundem, numa
disputa de gozo e sofrimento extremamente angustiante e ainda assim necessária, uma
experiência de comunhão e ruptura com o que há de externo ao
sujeito: Silêncio./Quando ela abre suas pernas/que todo mundo se cale./Que ninguém
murmure/nem me venha/com contos nem poesias/nem histórias de catástrofes/que não há
enxame melhor/que seus pelos/nem abertura maior que a de suas pernas/nem abóbada que eu
vislumbre com mais respeito/nem selva tão fragrante quanto seu púbis/nem torres e catedrais
mais seguras./Orais: ela abriu suas pernas./Todo mundo ajoelhado.

Se Peri Rossi deixou o Uruguai como uma escritora de renome e fazendo parte ativa da
vida intelectual de Montevidéu, ao desembarcar em Barcelona era uma desconhecida.
“Tenho que começar tudo de novo”, concluiu, e para ela isso queria dizer ganhar
prêmios. Assim o fez, acumulando dezenove ao longo de 59 anos de carreira. Mas até
hoje parece sentir o peso do exílio, e um descompasso com o mundo à sua volta que vai
além de uma questão territorial e se torna mesmo ontológica. Em carta a Cortázar de 17
de outubro de 1983, narra um sonho em que estava no hospital, prestes a ser operada, e
o médico informa o diagnóstico: “Carece de capacidade de identificar-se.” E, ao mesmo
tempo, o movimento de exilar-se, de não se identificar, se torna indispensável para o
trabalho do escritor. Essa é uma das lições que Miguel de Cervantes – o autor, não o
prêmio – parece nos dar em Dom Quixote de la Mancha, com o fidalgo que leu livros de
cavalaria até que “se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”. O
“eu”, na literatura, são muitos, e tanto ler quanto escrever implicam sair um pouco de
si, pelo menos por um tempo. Peri Rossi, por sua vez, também nos deixa muitas lições,
e em Detente, Instante, Eres Tan Bello faz uma espécie de dedicatória ao tio: “Às vezes as
mulheres escrevem, e, apesar disso, não se suicidam.”

Anita Rivera Guerra

É doutoranda em português e espanhol pela Universidade Harvard e mestra em


comunicação e cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ
“Quem não quiser se arruinar deve tomar cuidado para que, pesado segundo a escala
desse aparelho, não seja julgado leve demais”

THEODOR W. ADORNO e MAX HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento

M e trouxeram pra cá faz…, já faz uns…, bom, pode ser que tenha vindo

sozinho, não sei,

se vivo capengando, talvez eu mesmo tenha me carregado até aqui, na marra, pelo cu
das calças, como se diz,

então, olha, pra falar a verdade não me lembro de nada, nem quero me lembrar,

estou velho, dizem, … mas desconfiado, a cabeça avoada, sim, esvoaçada, uns pedaços
de mim por aí, no que ao menos pontual, sem os prazos remarcados, não é desse jeito?,

ou o relógio só batendo no meu pulso, hein?,

outro dia mesmo tomei um susto comigo, que apareci, no espelho do banheiro, um
velho desconhecido,

quem?,

abanei a mão, pra ter certeza, segurei-me na torneira da pia, meio passado, e o outro
lazarento, tal qual no vidro, arrevesado, arremedando-me ao inverso, e… pá!,

sim, era eu, que sou ainda, acho, mesmo que habitante um tanto diferido de ontens,
vendo-me num futuro, porém hoje, agora, ou qualquer coisa assim, desentendida e
desavinda,

as febres da caduquice?,

não, acho que não, nunca fui tão ciente…, sou professor de história, não sabe?,
levei o dia amuado, debaixo dos braços, beliscando as pelancas, a mocidade desvivida
e enfiada num canto surdo e mudo qualquer da cabeça, concluí,

isso, a velhice num de repente, assim diluída, a não ser que…,

olha, se a homeopatia vale mesmo, basta nascer, e pronto!,

já carregamos, lá atrás, o velho desde então, … aquele que somos, mas depois de
amanhã, não pensa assim?,

… o que valerá em reversas direções, também, ora, ora, os primeiros anos reverberados
em erradas rugas, da mesma outra forma, nas dobras da pele e do pensamento,

… estes restos vívidos da juventude, ainda validos e revividos, sidos sendo, de novo,
como da primeira destas tantas e demais vezes,

devaneio?

puta que o pariu, moça!,

já tomei esses compridos, hoje, … eu, … ninguém acredita em mim, por estas bandas…,
por quê?, aqui é o inferno?, hein?,

fala, capeta!, … responde, bugio das profundas!,

… ou somente cismas?,

a gente sabe quando morre?,

isso explicaria muita coisa, se é que se perceba quando pelejamos vivos, também, e,
mesmo, se fomos vivos de fato, um dia, porque as dúvidas vão retesadas, sempre, pra
ambos os lados do ser e do não ser, segundo o célebre verso do bardo inglês, correto ao
menos nas incertezas que valem questionamento, cuja resposta se faz nos silêncios,

… sim e não, ao mesmo tempo, pois as dúvidas, por isso mesmo, também nas
dissipações, quem há de negá-lo?,

sei lá, não sei cá, sei aqui, não se sabe se lá!,
viver?,

as carnes dançando com os ossos…,

ou estarei saldando meus erros, no outro mundo, que este mesmo, aqui, num agora
inesgotável?,

não, ninguém vem me ver, ninguém, … disseram que minha filha, uma vez por mês,

irene…,

traz bolachas recheadas,

descreio,

que filha?,

só se mamãe, e eles confundindo tudo, mas…,

melhor nem pensar nisso,

acho que faz uns dez anos que não como nem biscoito de polvilho…,

bolacha recheada!, pra cima de mim?,

às vezes mamãe me visita, no mais frio da noite…, entra quietinha no quarto, fala do
pai, seu marido, lá longe, no meio do arrozal, a madrugada cansando os afazeres do
dia seguinte, por antecipações, nos entremeados da vigília,

… me vela os sonos, puxa a coberta e revela,

dorme, ela fala, dorme,

eu lhe obedeço sem fazer força, o pesinho das pálpebras que ninguém aguenta, na
bagagem dos sonhos, sobrepesadas,

as tarefas e as obrigações vistas, revistas,

… e folheio os meus dias nas páginas adiante, então, impressas na mais funda quimera,
… não me importo, porque se uns sonham acordado, como dizem, há os que
despertam apenas para os pesadelos, não acha?, e me espreguiço devagar, estalando as
juntas do tornozelo, … daqui a pouco o banzé da passarinhada, penso gostoso, quente,
me apagando de mim, recoberto, porém descoberto, ao mesmo tempo, sim, e imagino
que este aqui, agora, em velho, é que é o de noite, escuro e pesadelado, pra daqui a
pouco eu acordar menino, entende?,

não come carne quando a lua está lá no alto, benê!, ela avisou, … o bucho espreme,
empanzinado, as visagens ruins, moleque!, … o amadeo lobisomem virou bicho de pé preto desse
jeitinho, não sabe?,

mamãe fala o medonho, quando quer, … arrepia,

não ouvi, errei, … dei no que deu, deu no que dei,

transformo-se-me?,

uma vez um menino estuporou, vizinho de colônia, tanta carne moída mandou pro
bucho, com arroz, depois das nove da noite, esfomeado,

comeu na panela, escondido, a colher de pau quase não cabendo na bocarra, disseram,

era o de comer do dia seguinte, pra marmita do pai e do irmão mais velho, que iriam
longe, cedinho, desmatar um capão, lá pros lados do corguinho da sucuri, nos limites
da montanha, fazendola do seu honestaldo,

arreliento, comeu e limpou a boca no lençol, quando se deitou, ciência dos vestígios
alaranjados na barra cerzida, vez que gostavam, todos ali, do arroz bem soltinho,
tingido e perfumado de urucum, a prova cabal,

em uma hora, ou pouco mais, pôs pra fora a congestão, já contorcido no azedo dos
espasmos,

foi aquele ninguém nos acuda!, o pai puxando a língua do filho, engrolada, a mãe
pedindo chorosa, pra são vito, que não levasse embora o filhinho, … e aquele cerco de
gente, a molecada espiando a desgraça pelada pelo vão das pernas da vizinhança
curiosa,

bem feito!, disse comigo, quem mandou?,

não ia muito com a cara dele, mesmo, porque seu pai metido a administrador da
fazenda…, esse sujeitinho toma ordens e quer cuspir poses e posses!, papai falava,

depois…, bom, a gente ria dele, sim, a boquinha torta de não acatar os mais velhos, em
triste gilvaz, … mas justo escarmento, repuxado numa bochecha, redefinitiva exortação
pra meio mundo e meio, e, mais, pros demais arredores, na cara de pau curvo de um
sem-vergonha que haveria de morrer assim, soprando de lado,

vai, bocudo!,

… sai, beiçola!,

… boca torta e cu de argola!,

ele chorava, jogava pedras, corria atrás da meninada e, ainda, tomava uns cascudos,
pra aprender,

sim, meu irmão me ensinou a bater de mão fechada, cerrando bem os dedos, na palma,
pra não luxar os artelhos, o pugilato mais doído, ainda que não ecoado, pondo o
arremate na força da vez única, bem marroada e definitiva, sem o gongo salvador, ele
dizia, gabando-se do muque ostentado – repuxada antes a manga da camisa, por
mostrar o inchaço bonito dos bíceps,

por isso mesmo, toda vez, pelo relembrado caso da boca oblíqua, eu tremia diante das
desobediências, mesmo fechando os punhos de raiva, pra não quebrar a falange dos
dedos com o soco, ainda que apenas imaginado, … e, nem bem revivia o episódio,
arrotava ardido, aturdido e repetido, engolindo o cuspe, alimentado,

isso até hoje,

ora, a gente deve aprender a dormir vazio, mas cheio dele, do desguarnecido, esta lição
que vamos revivendo, compreendeu?,
bom, casar…, posso ter me casado, sim, gostei muito de teresa, se bem que ela, nada,
não queria saliências comigo, e as desfeitas a gente não esquece,

não, o bom arrepio não deixa cicatriz, negaceio é que é feito à unha, de seu tanto que o
estigma, depois, calcado e recalcado, latejando as memórias mais fundas, em cultivada
casca de ferida, quase que quase seca, e assim permanecida, em lavoura diária, pelo
gostoso da coceirinha, e, e e, e, e e…,

as expectativas…, pancadas frouxas no peito, assobiando as asmas desse inútil roçado,


verdejante até nas secas mais esturricadas,

as tristezas maiores vêm de dentro, sim e assim,

como se respiradas, chiando por entupidas narinas, em ambas as direções, como já lhe
disse, e repito,

uma hora você tem de engolir o muco,

noutras, é preciso escarrá-lo,

moça, quer me obrigar a almoçar duas vezes?, será o benedito?,

não, não será, porque sou…, o benedito sou eu, mulher!,

não, não, comida pra fora do prato também mata!,

não tenho fome, não…, o cheiro até embrulha o estômago, sai pra lá com isso…,

eu…, comi sim!,

o quê?,

arroz com feijão, picadinho de carne, salada de chuchu com cebola, todo mundo viu,

vai lá no refeitório e pergunta, vai…, ou, então…,

chega aqui, chega…, olha o bafo, ó…,


gelatina de sobremesa, … de abacaxi, ai, ai, abaixa aqui, abaixa, abaixa que eu lhe
mostro, ó,

duro, duro, ó!,

põe a mão só um pouquinho, pra sentir, põe…,

… será que é a teresa que vem me ver à noite, escondida?, os olhos dela esverdinhados,
duas maritacas no forro de casa, grulhando,

sim, o amor comendo os fios, por dentro, aquela arruaça de penas e gritos,

pronto, a esperança deu nisso, tá vendo?,

a luz acabou,

não, não!, teresa não comeu a fiação com os olhos, não, papai, onde já se viu?,

teresa é o meu amor, falei por falar…,

confessei sem querer…,

ele riu de mim, contou pra mamãe, espalhou pros outros parentes, até,

curti vergonha do que nem sabia, revelado assim, por mim mesmo, nas carnes do
corpo, antes, latejadas…,

teresa era sem palavras, … ou cento e uma?,

reconto…, teresa era mil e uma noites, mas, sem os dias de alívio, era um aperto de nós,
retrancados, mas num só, e solitário,

o amor, irmão do medo?,

hein?,

não, é no escuro que a luz dói mais, nos olhos, se repentina,

eu dou um jeito nisso!,


papai queria torcer e arrancar a cabeça dela, espalhando o sangue pelos caibros, para os
outros bichos, irmãos dela, desistirem, pelo exemplo, de comer a fiação, amedrontados
com a barbárie…,

um prejuízo dos diabos!,

teresa…, o pai dela trabalhava no banco do brasil, na cidade,

bem, alguma coisa a gente devia aprender, contando sem parar o dinheiro dos outros,
isso sim…,

acho que o galo cantou, pela terceira vez,

teresa nos sonhos,

atrás das árvores,

teresa nos canarinhos-da-terra, à tardinha, enchendo os galhos de gorjeios amarelos, e,


quando alguém em todos os lugares, porque mesmo em nenhuns, sabia?,

a solidão, feita e refeita presente, em desfeitas e nãos…,

meu peito é que sem as forças, papai…, o senhor não entende?, ou o senhor só sabe os
escuros?,

ele se zangou comigo, brabo,

um frio na barriga, … ainda não bateu o sinal,

pedi pra professora,

saí antes, porque muito apertado, muito…,

dona alda não queria deixar, coloquei a mão no pinto, arrochando os dedos, como se
alicatasse as vontades sem controle,
vai, benedito, pode ir, vai…,

não menti de corpo inteiro, porque a fisgada maior no peito, aquele anzol na boca, por
desentalar-me, assim,

e fiz tocaia,

sabia que teresa ia passar ali…,

esbarrei o meu amor,

as colegas gargalharam e saíram de perto, por antecipada malvadez, acho,

preciso falar uma coisa pra você, teresa…,

disse que gostava dela, no corredor da escola, só pra ela, mas a menina correu, se rindo
embora,

nunca mais olhou na minha cara…,

eu pagava o escárnio do beiçola?, será?,

sim, o salário de fome é que me trouxe pra cidade, mais do que a seca…,

fiz supletivo e me formei, reformado, indo adiante em concurso, matéria no jornaleco


da cidade, professor aos cinquenta,

guardei o folhetim na gaveta, até há pouco,

lembro que limpei a bunda com ele, faz um tempinho, num momento de raiva…,
besteira, né?, sujei o cu à toa,

ora, ora, a seca e a sujeição até que expeditas, enfim…, um empurrão, não acha?,

o crás da maritaca às vezes não procrastina!, refleti, teleológico,

falar nisso…,
eta, que vontade duma cachacinha agora, rapaz!, depois, um gole de café, boca de pito,
um cigarrinho bom, mas aqui…, seja o inferno, talvez, só água e comprimidos
pilulados, difíceis de engolir,

qualquer dia perco as estribeiras e cuspo na cara dela,

sai de perto, diacho!,

no entanto, à noite, escuto a gemeção dos outros, com as dores lamentadas, em coro
discorde,

os passos no corredor,

e tenho medo da minha vez,

vai que ela sendo o diabo aos poucos, mesmo, em si, e não a crosta do meu
xingamento,

então…, no mais, as feituras do vazio, ocas por dentro,

toda tarde, depois do almoço, os velhinhos vão pro pátio coberto, saindo de seus
quartos,

… ou mais ou menos coberto, não vou mentir, a jabuticabeira-do-mato no meio,


frondosa, idosa, espelho de uma ironia irrefletida,

construíram o telhado em volta, gambiarra,

aqui faz tanto calor!, será mesmo o abismo?, … o buraco no qual a queda não se finda,
sem mundos ou fundos?,

a televisão fica lá, 20 polegadas, no alto de uma prateleira de ferro, meio que escorada
nos galhos, protegida por duas telhas grandes, de amianto, amarradas com arame
recozido,

outro dia, com a chuva de vento, grudou uma água marrom na tela, respingada, e os
artistas choraram ferrugem,

não sei, deu uma tristeza que só vendo…, eu mesmo rechorei escondido no quarto,
depois, abafando-me,
mas, de repente, bateu um alívio, porque as lágrimas branquinhas de clara
translucidez, nas costas da mão, correndo soltas pelos vales de peles e veias que
carrego,

a fiação, descendo o forro?,

sorri e brinquei de soprar enchentes, então, nos campos e campos desta propriedade
que sou e estou, ainda,

vivo!,

senti o frio úmido das florestas de pelo, deitadas com o vendaval dos pulmões, … e
respirei, feliz, sem aqueles chiados tristes, … ou, ao menos, deixei de ouvi-los, o que é
mesma coisa,

decidi-me há tempos,

não, nenhuma ilha ou filha inexistente haveria de me cercar e me tomar de mim, eu


mesmo, irenes ou atlântidas que fossem,

não sei explicar, tive dois minutos de certeza de que não estava velho, e que a vida
ainda viria, ditosa, remedando os sonhos,

… mas com arame galvanizado, é lógico,

e caí em mim, desamparado, desarvorado, desamarrado…,

no natal, penduram uns pisca-piscas, a extensão pela veneziana do escritório, fazendo


barriga no varal das roupas, a árvore então floridinha de jabuticabas-lumes,

disse que alguém ia tomar um choque, qualquer dia, isso sim,

não me deram ouvidos,

o capiroto é mouco,

… teresa, mais surda ainda, meu deus!,


gosto de abrir a bolacha e rapar o recheio, antes, com os dentes de baixo,

mamãe ri, me chama de queixada, … de porquinho,

agora tiro a dentadura de cima e a repasso, desbastando a guloseima em mínimo


arado, com cuidado, pra não a quebrar…,

depois chupo as lascas, lambendo a ferramenta dentifrícia, … tão gostoso!,

o demônio quer me proibir, tem cabimento?, disse que dá ânsia de vômito,

filha da puta!,

o chifrudo não cospe faísca e golfa enxofre?, hã?,

tomara que morra eletrocutada, cadela do tártaro!,

não, não gosto muito de televisão, uns programas chatos, o aparelho meio muito lá no
alto, dá dor no cangote, … acho que foi de propósito, sim, pra velharada torcicolar o
pescoço e rumar de volta pro quarto, doce quarto, dando sossego aos funcionários,

os velhotes voltam resmungando sem igual as contas que não batem de um dolorido
flexuoso também na teimosia, penso, em noves fora dos poucos restados dias…,

é até bonito de ver,

cada velhinho tem o seu lugar no pátio,

sim, estes sim, redefinindo o conceito de programação para além do gênero humano,
numa espécie de sobrepostas dores, o que somos, desde o parto, por bem-bom mal-
estar,

eles vêm em bando, andorinhando com dificuldade, as asinhas quebradas, lentas, o


rangido chiado das cadeiras de roda, … e as bengalas, pontuando a vagareza arrastada
dos chinelos, pshhh, pshhh, toc, pshhh, pshhh, toc…, esse pedido de silêncio das manias,
recorrente, prendendo ao chão os avoados do mundo, em sonoros símbolos,
é, é preciso aprender a rir-se de si, porque as lágrimas…,

uma vez, faz tempo, tive de pegar um filhote de andorinha que caiu do ninho, já
emplumado, no quase fugir do chão, sua janela de liberdade por abrir-se à vida, feita
de azul, faltando pouco,

cuidei dele, então, com papinha de fubá, durante uma semana, e tomei-me de amor,
porque o tiquinho de vida se afeiçoou a mim, enfiado entre os meus pés, protegido,
querendo estas mãos em concha, ainda hoje, nas lembranças, quando bate as asinhas e
pia conversas que passei a compreender com mais fundura que as palavras todas, que
nunca aprendi…,

teve uma infecção repentina e morreu entre os meus dedos…, foi deitando o corpinho,
recolhendo uma pata, engruvinhada, e eu supus, por tremenda vontade, impedir-lhe o
fim, erguendo sua postura, com a delicada maior força que fiz na vida, em vão…,

sempre choro, quando uns piadinhos ecoam, no cair da tarde, apagando a distância
tecida destes esgarçados dias, emaranhados em cegos nós…,

… eu me divertia muito nas quermesses, vovó amarrava o balão com força, em várias
voltas e volteios, até arroxear os meus dedos,

se escapar, não compro outro, não!, … vai aprendendo a segurar as coisas de que gosta, hein!,

isso, pra dizer a verdade, agora, acho que nunca aprendi, vovó…,

tudo o que amei ficou longe do alcance das mãos,

… ou escorreu por entre os braços,

… uns velhinhos vão escorando os outros como disfarce das próprias tonturas, o que
não é recomendado,

às vezes, a dupla cai do cavalo, … ou da burrice, quando, por azar, ambos os mundos
da lua, lá deles, no entorno translativo de cada um, corrupiando para a mesma banda
de um lado só, desengrenados, e os dois, de supetão, porque tudo eppur si muove,
pronto!, desestribados e coincidentes no tombo,

nessa brincadeira de roda, aqui, um pobrezinho já quebrou a bacia, … ou o fêmur, não


me lembro, e pouco importa,

falaram pra família que foi a osteoporose, que ele não caiu e quebrou o osso, não, não!,
mas que o osso partiu sozinho, e ele despencou-se dele mesmo, arriado,

os filhos acreditaram,

sempre acreditam, principalmente se os fatos carregando os genitores pelo bico do


urubu, quando o fardo já perdeu o contorno das costas, por distância dos anos e da
enganosa lucidez, apagados ambos da proximidade perdida,

filha…, que filha, meu deus?, … que filha?,

disseram que o túmulo de teresa é revestido de ladrilhos hidráulicos,

o volume da televisão quebrou faz tempo, então é só a tela, mesmo,

melhor,

cada um escutando o que bem não entender, de si, nas próprias caducagens coloridas,
mas em som mono,

… decrepitudes estereafônicas?,

ah, mesmo rouco, um pouco mouco, meio louco, sei rir de mim, sim, o que é uma
espécie de haicai, gênero de mínima poesia, viu?,

ontem, roubaram a televisão,

pularam o muro, dá pra ver a marca das solas, no reboco, e, ainda, cagaram no chão,
embaixo da jabuticabeira,
as moscas fizeram a festa, cansadas das peles enrugadas,

o demônio riu dos ladrões, porque o aparelho há muito quebrado, sem som,

quando ligarem, vão ter aquela surpresa!,

senti que a filha da puta gostou, por todos os lados,

ela fez questão de avisar, pessoalmente, de quarto em quarto, que iam pedir outro
aparelho pra prefeitura, … pra associação de amigos do bairro, sei lá,

a partir de hoje, não tem televisão!, nem precisam sair…,

eu mesmo não estava nem aí, se bem que faz tempo que não estou nem aqui, também,
então…,

um homem precisa aprender a não estar em lugar nenhum, na verdade,

mas aquele capeta, fingido,

tadinhos, a única diversão que tinham…,

e falava mais alto, pra todos ouvirem,

… o único divertimento!,

sei…, teu nome é legião, marafona!,

fui obrigado a almoçar duas vezes, hoje, o cão-tinhoso me ameaçou com soro, injeção,
se não limpasse o prato,

vade retro!, … bode do casco rachado!,

não adiantou!, satanás faz gosto de sapatear nas partes baixas da gente…, começa pelo
estômago e vai descendo, só pode,

segurei o pau e o saco pra ela, chacoalhando as ferramentas com um ó, procê bem
sublinhado,

ela riu de mim, a desgraçada,


criei coragem e fui ao casamento de teresa…, mostrei a cara no cartório, também,

voltei pra casa antes da festa, solitário mais que nunca,

no caminho, comecei a contar os flamboyants, … perdi a conta,

abri a porta chorando, incapaz de me segurar, como sempre, daí em diante,

ia ficar no quarto, lendo, mas ouvi uns gritos feios, … um livro do florestan, a revolução
burguesa no brasil,

saí pra espiar o furdunço,

meu vizinho, seu josé, estava atracado com o coiso, quase na porta do meu alojamento,
acredita?,

ele não queria perder o capítulo da novela, gostava de sair mais cedo, mas a enfermeira
bateu o pé no roubo…,

sem dentes, todo bafafá é mais cuspido, é ou não é?,

aproveitei, enfiei-me na cruzada alheia, fingi que apartava e dei uns apertos nas
peitolas do anticristo, com gosto!,

ela saiu chorando, depois que um enfermeiro a socorreu,

disfarcei,

quase não conseguimos, hein?,

ele nem me respondeu, mal-agradecido!,

seu josé ainda urrava uns palavrões cabeludos, de tampar os olhos, sobrantes os fios
daquela sua seborreica peruca, inclusive, boca adentro dos gritos,

engasgado, ele babava sem parar e tossia, assustando a plateia de velhos…,

saiu arrastado, soprando as ventas e os pelos,


todos os funcionários acompanhavam o cortejo, menos a enfermeira-chefe, claro,

percebi que davam uns safanões nele, em disfarçados repuxões vingativos, séquito de
belzebu, creio em deus pai!,

numa hora dessas, tenho certeza, a cuja acendendo a lenha com os cascos, lá dentro da
enfermaria, pensei,

… cruz-credo!,

então, trancadas as portas, tudo serenou, os pacientes voltaram para os quartos, o pátio
ficou vazio,

peguei meu livro, na cabeceira da cama, e saí, de novo,

sentei-me num banco de cimento, doado pela clínica de repouso santana, não para
nádego reconforto da velharada, mas por figadal e incisiva propaganda aos parentes
visitantes, lembrando que havia, no município, um asilo bem melhor, particular, …
este sim, de abundantes refrigérios,

sei…,

mas, então, uns quarenta minutos depois, o inusitado…,

uma porta se abriu,

depois outra,

e mais outra,

os velhos todos saindo, combinados,

era o horário em que assistiam à televisão,

ri daquela atitude,

os coitados se esqueceram de que o aparelho fora roubado…,


tentei avisar, gritei,

hoje não tem televisão!,

um deles sorriu pra mim, mostrando as gengivas roxas,

outra senhora resmungou qualquer coisa que não entendi,

a maioria nem tchum pra mim, essa é a verdade,

repeti o alerta, acentuando-o com mais força,

hoje não tem novela!, … roubaram a tevê!,

em vão,

foram se abancando no lugar de sempre, os olhos voltados para o vazio onde ficava o
aparelho,

nenhum espanto, nenhum comentário, nada, todos com o olhar voltado para a tevê que
não havia, compenetrados,

… quando mefistófeles voltou, eu mesmo, também, já me divertia com o último


capítulo da novela,

Conto do livro inédito um treminhão na banguela cruzando sem freios o fusquinha da


vida.

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

É escritor. Publicou os romances as visitas que hoje estamos (Iluminuras) e siameses (Kotter)
A s mortes de Thomas Lovejoy e Edward Wilson, com um dia de diferença,

reduziram muito e abruptamente a diversidade de inteligência sobre o planeta.


Lovejoy morreu no dia 25 de dezembro passado, vítima de um tumor no pâncreas, na
Virgínia. No dia seguinte, Wilson morreu em Massachusetts de causa não divulgada.
Lovejoy nasceu em Nova York e morreu aos 80 anos. Wilson, nascido no Alabama,
estava com 92 anos. Ambos tiveram filhos. Ambos dedicaram suas carreiras ao estudo
da vida na Terra. Ambos deixaram um legado especialmente relevante para um
planeta em destruição: a ideia de que quanto mais variedade houver, quanto mais
diversidade, mais biodiversidade, tanto melhor.

Ao escrever o prefácio de um livro de dois colegas em 1980, Lovejoy introduziu um


conceito novo – era a “diversidade biológica”. O termo acabou se popularizando
depois que foi encurtado para “biodiversidade” e passou a ser disseminado por
autores como Wilson, que, em 1992, doze anos depois da introdução do novo conceito,
escreveu o livro Diversidade da Vida. A diversidade, no caso, deve ser entendida em
vários níveis: não só no número de espécies, mas também na variedade de genes em
indivíduos de uma mesma espécie ou de funções ecológicas dentro de um ecossistema.

Hoje, parece um conceito óbvio, mas antes não era assim. Em 1960, Wilson fez estudos
de campo em ilhas ao lado de seu colega Robert MacArthur (1930-72). Os dois
constataram que, quanto menor fosse a área de uma determinada ilha, menor seria o
número de espécies que ela poderia abrigar e maior o risco de extinção das formas de
vida ali existentes. A conclusão é válida também para outros ecossistemas isolados e
está na base da chamada biogeografia de ilhas, disciplina criada pela dupla.

“Sistemas mais diversos funcionam melhor, pois têm mais estabilidade e são mais
resilientes”, explica a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília
(UnB). Eles operam à semelhança de uma carteira de investimentos financeiros, diz ela.
“Se você tiver aplicações diferentes e houver flutuações em algumas, as outras vão
segurar a estabilidade do conjunto.” Da mesma forma, a diversidade biológica pode
garantir a sobrevivência de um ecossistema no caso de perturbações ambientais.

T homas Eugene Lovejoy dedicou sua carreira ao estudo da Amazônia, onde

colocou os pés pela primeira vez em 1965, quando estava fazendo doutorado sobre as
aves do bioma. Ali, ele ajudou a implantar o mais longevo experimento já feito em
florestas tropicais, iniciado em 1979 e ainda em curso. Tocado em parceria com o
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o projeto tem por objetivo avaliar
o efeito da degradação florestal sobre a biodiversidade. As observações são feitas em
onze fragmentos florestais situados cerca de 80 km ao Norte de Manaus. Com tamanho
de 1 a 100 hectares, eles são cercados por pastagens ou áreas em que a mata está se
recompondo lentamente depois de ter sido derrubada.

Centenas de artigos científicos, teses e dissertações já foram publicados a partir das


mais de quatro décadas de observações feitas nesse experimento. O trabalho ajudou a
resolver uma questão que intrigava os ambientalistas. Eles queriam saber sobre a
melhor estratégia a se adotar para a criação de unidades de conservação: criar uma
única área contínua ou várias reservas de menor tamanho?

O estudo dos fragmentos amazônicos mostrou que certas espécies de sapos, roedores e
borboletas prosperavam mesmo nos trechos menores de floresta. Mas as aves e os
mamíferos que precisam de territórios mais amplos sofrem muito com a fragmentação.
Nos trechos com 100 hectares, metade das espécies de aves desaparece depois de
quinze anos, conforme mostrou um artigo científico de 2003 – aquele que Lovejoy
considerava o mais valioso dentre as centenas que publicou ao longo de mais de meio
século.
O estudo influenciou o desenho das unidades de conservação criadas na Amazônia. À
frente da diretoria de parques nacionais do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), incumbido então de atribuições que hoje cabem ao Ibama e ao
ICMBio, a engenheira agrônoma e ambientalista Maria Tereza Jorge Pádua implantou
algumas das primeiras áreas protegidas na Amazônia entre 1968 e 1982, depois de
aconselhar-se com vários cientistas, Lovejoy entre eles. “Não deveríamos criar
unidades de conservação com um tamanho mínimo que não conseguisse proteger os
ecossistemas ou as espécies ameaçadas de extinção”, afirma.

E dward Osborne Wilson era frequentemente chamado de “o maior biólogo

vivo”. Ele próprio preferia se enxergar como um naturalista, conforme se definiu na


autobiografia que lançou em 1994. Se inscrevia na linhagem de grandes pensadores
iniciada pelo próprio Charles Darwin no século XIX e ajudou a dar forma às ciências da
vida tal como as conhecemos hoje. “Wilson estava presente em todos os
desenvolvimentos teóricos importantes que aconteceram na biologia evolutiva e na
ecologia nos anos 1950 e 1960”, diz o ecólogo José Alexandre Diniz Filho, da
Universidade Federal de Goiás.

Era um estudioso de formigas, ou mirmecólogo. Especializado na classificação e


sistematização desses insetos, descobriu e descreveu centenas de espécies e lançou em
1990 um livro-texto fundamental para sua disciplina, que lhe valeu um dos dois
prêmios Pulitzer que ganhou.

O trabalho com esses insetos despertou o interesse de Wilson para o estudo do


comportamento social em outras espécies e levou-o a formular uma teoria geral do
comportamento animal que destacava seu caráter hereditário. O trabalho foi lançado
em 1975 no livro Sociobiology: The New Synthesis (Sociobiologia: a nova síntese), que
fundou a disciplina de mesmo nome. Mas o trabalho foi criticado por pesquisadores
que viram naquelas ideias um determinismo genético que poderia ser usado para
legitimar o machismo, o racismo ou a eugenia.

Para Diniz Filho, a controvérsia nasce de uma leitura equivocada das propostas de
Wilson. “Ter predisposição para certas coisas não significa que aquilo está determinado
e imutável, e nem que o ambiente não interfira. Isso se aplica para qualquer
característica que tenha uma base genética, seja comportamental, morfológica ou
fisiológica”, diz o ecólogo, que considera Sociobiology um dos livros fundamentais que
fizeram a síntese da teoria da evolução no século passado.

U ma consequência quase incontornável das descobertas que fizeram como

cientistas, Wilson e Lovejoy tiveram um envolvimento progressivo com o


ambientalismo ao longo das suas carreiras. Nos últimos anos de vida, Wilson estava
empenhado em defender a proposta de que metade da área do planeta deveria ser
protegida em áreas de conservação, uma ideia que defendeu em seu livro Da Terra
Metade: O Nosso Planeta Luta pela Vida, publicado em 2016.

Lovejoy, por sua vez, seguia engajado na luta para diminuir o desmatamento na
Amazônia. Num artigo de 2019, assinado com o climatologista brasileiro Carlos Nobre,
ele notou que o bioma estava se aproximando do ponto a partir do qual não
conseguiria mais produzir as chuvas das quais dependem não só a própria floresta,
mas também o agronegócio no centro-sul do país. Escreveram o seguinte: “Juntos, os
povos e líderes dos países amazônicos têm o poder, a ciência e as ferramentas para
evitar um desastre ambiental em escala continental e, de fato, global.”

Bernardo Esteves

Repórter da piauí, é autor do livro Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)


A imponente estação de metrô San Antonio, na região central de Medellín, fica

convulsionada entre o fim de tarde e o início da noite. Como faz conexão entre
diferentes linhas que cruzam a segunda maior cidade da Colômbia, é a estação mais
movimentada de todo o sistema de metrô, que transporta mais de 800 mil passageiros
por dia.

As pessoas seguem apressadas pelos corredores da San Antonio e poucas reparam em


uma salinha de parede de vidro, revestida de adesivo lilás, estampado com flores
coloridas e uma frase em letras grandes: ¿Cómo va la vida?

Por volta de 18 horas do dia 7 de dezembro passado, um homem que levava uma
mochila infantil às costas e puxava um menino pela mão esquerda se deteve diante de
outra mensagem, na porta de entrada da saleta: “Bem-vindo. Este é um espaço de
atendimento com profissionais de psicologia. Aqui você poderá compartilhar qualquer
dificuldade emocional que esteja passando.” Uma composição do metrô se aproximou
da plataforma, o homem olhou as horas no relógio e desembestou com a criança para
dentro do vagão.

Cerca de meia hora depois, uma mulher e um homem entraram na salinha de 10 m2,
cuja decoração consistia apenas em duas mesas, com três cadeiras cada. Eles eram
irmãos e foram recebidos pela psicóloga Daniela Arias, de 23 anos, que pediu para que
se sentassem. Logo em seguida, um rapaz de estatura mediana, vestido de jeans,
camiseta e tênis, parou diante da porta de vidro. Viu que o posto de atendimento
estava ocupado e resolveu esperar por sua vez.

O rapaz era Andres Gomez, de 28 anos, olhos castanhos atentos e fala eloquente. Do
lado de fora da sala, ele contou à piauí que pouco antes da pandemia vinha se sentindo
muito angustiado. Havia aberto uma loja de bijuterias e as pressões para obter
resultados positivos no empreendimento só aumentavam. Além disso, estava prestes a
se casar. E, como primogênito, era o principal responsável por cuidar do pai, da mãe e
do irmão. “Eram muitas responsabilidades. Fui ficando deprimido”, disse. “Num
momento de desespero, pensei em acabar com tudo. Botar um ponto final nos
problemas.”

Em setembro de 2019, Gomez procurou um dos centros de saúde de Medellín que


oferecem atendimento psicológico. “Conversando com os psicólogos, percebi que meus
problemas não eram o fim da linha e que eu não precisava morrer para me ver livre
deles. Eu tinha apenas que entendê-los e aprender a lidar melhor com tudo.”

Quando a pandemia ainda se alastrava, em setembro de 2020, a Prefeitura de Medellín


resolveu ampliar o serviço de apoio psicológico, levando-o até lugares de grande
movimentação, como praças e metrô. O projeto ganhou um
nome: Escuchaderos (Escutadores). Seu objetivo é oferecer um espaço de escuta
psicológica gratuita, para que as pessoas exprimam abertamente seus sentimentos e
angústias.

Gomez e sua família pegaram Covid. “Me vi, mais uma vez, sobrecarregado e
preocupado em cuidar de minha família. Eu sempre fui assim, superprotetor com
todos.” Ele decidiu adiar o casamento e passou a frequentar a salinha da estação de San
Antonio pelo menos duas vezes por mês durante a pandemia. Às vezes, se questionava
sobre o que as pessoas no metrô estariam pensando ao vê-lo entrar ali. “Será que
acham que sou louco? Hoje, vejo que sou é corajoso. Antes, eu achava que era melhor
carregar sozinho meus problemas. Não queria demonstrar fraqueza. Até que, um dia,
eu desmoronei.” Os escuchaderos sugeriram que Gomez pensasse primeiro em si
mesmo, na sua própria saúde mental. “Eles me ensinaram que estar bem comigo me
deixará mais forte para ajudar os outros.”

Quando a conversa da psicóloga com os dois irmãos terminou, uma hora depois,
Gomez foi convidado a entrar na salinha. Ele sentou-se em uma das cadeiras e se pôs a
desabafar, gesticulando com as mãos.
A psicóloga Daniela Arias faz um atendimento primário na saleta da estação San

Antonio. Dependendo da gravidade do caso, a pessoa é encaminhada a um centro de


saúde. “Aqui é um espaço onde ela expõe seus problemas no trabalho, com a família,
na vida social”, disse. “Nas conversas, fornecemos ferramentas para que possa lidar
com situações que geram desconforto emocional. Temos também uma estratégia de
prevenção ao suicídio.” As salas ficam abertas das 8 às 20 horas, mas
os escuchaderos fazem atendimento telefônico 24 horas por dia.

Alguns vão lá apenas uma vez, para botar para fora algo que os angustia. Outros
voltam com frequência, como Gomez. Há também os que param do lado de fora,
refletindo se devem ou não entrar, e acabam indo embora. “A saúde mental é
estigmatizada e existe muito desconhecimento sobre o que é o tratamento psicológico”,
afirmou Arias. “Muitos acham que não precisam de ajuda profissional porque não
estão loucos. Não entendem que podemos oferecer uma orientação para que a vida seja
mais leve.”

A psicóloga definiu o choque da pandemia sobre a saúde mental das pessoas como
“aquela gota d’água que cai no copo cheio e faz transbordar tudo”. Muita gente teve
que enfrentar o luto de forma intensa, com a perda súbita de familiares e amigos, sem
falar nos problemas com dinheiro. “A pandemia aumentou bastante a responsabilidade
familiar e financeira. Quantas pessoas não perderam o emprego? Além disso, se viram
impossibilitadas de se encontrar com quem gostam, de fazer as coisas que davam
prazer. Elas têm a sensação de que a vida está parada.”

F altavam poucos minutos para as 20 horas, e a movimentação na Estação San

Antonio diminuía. Um homem alto e magro se aproximou da salinha. “Sabe se ainda


dá tempo de pegar uma consulta?”, perguntou José Inostroza, de 52 anos. Ele trabalha
como motorista de caminhão, mas estava desempregado havia quatro meses.

“Sempre fui muito trabalhador”, disse. “Mas, hoje, sem emprego, eu sinto muito medo.
Medo de não conseguir pagar as contas, de não poder sustentar minha família, medo
do futuro. Tenho muitas coisas na minha cabeça. Parece que ela vai…”, afirmou,
fazendo um gesto com os dedos, como se sua cabeça fosse explodir.

Andres Gomez deixou a sala no horário de encerramento das atividades do local, e a


psicóloga pediu que Inostroza retornasse no dia seguinte. Gomez se despediu: “Daqui
uns dias volto para continuar curando as coisas em mim. Diminuir o fardo nas minhas
costas.”

Tiago Coelho

Repórter da piauí e roteirista de cinema


N a noite de 2 de setembro de 2018, um incêndio destruiu o Museu Nacional, no

Rio de Janeiro. No dia seguinte, pouca coisa restava de um dos prédios históricos de
maior importância do país – antiga residência da família real – e de um dos principais
acervos científicos da América do Sul. O fogo havia consumido 85% dos cerca de 20
milhões de itens do museu, entre eles múmias trazidas por dom Pedro II do Egito,
objetos de arte e artefatos africanos, indígenas e greco-romanos, coleções de
paleontologia, entomologia e botânica.

Enquanto as chamas ardiam com violência, cinzas espalharam-se pela região da Quinta
da Boa Vista, onde fica o museu. Alguns detritos voaram até uma distância inesperada.
Um deles foi parar, misteriosamente, na varanda de um apartamento localizado na
Praça Saenz Peña, no bairro da Tijuca, a doze minutos de carro do local do incêndio.
Era uma pequena placa carbonizada com besouros.

Logo que tomou conhecimento do paradeiro da placa, a pesquisadora Marcela Laura


Monné Freire, professora do Museu Nacional – que é vinculado à Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) –, entrou em contato com a moradora do apartamento para
recuperar o material. “Aquilo era tudo que restara fisicamente da coleção de besouros
que estava no museu”, ela conta. Monné Freire é filha do pesquisador uruguaio Miguel
Monné, um dos principais responsáveis pela coleção de entomologia, que abrigava 12
milhões de insetos e foi quase toda destruída – perdeu 98% dos itens.

Por esse motivo, os entomólogos do museu comemoraram em dezembro passado a


chegada de quatro caixas vindas da Alemanha. Dentro delas havia 1 548 besouros
doados pelo Instituto Alemão de Entomologia Senckenberg (SDEI), em Müncheberg.
“Os exemplares poderão ser utilizados em estudos científicos de alunos do museu e de
pesquisadores de outras instituições nacionais ou estrangeiras”, disse Monné Freire.

O s besouros atravessaram o Atlântico trazidos pela entomóloga Marianna

Vieira dos Passos Simões, curadora da coleção de coleópteros da entidade alemã.


Foram escolhidos a partir de uma lista feita por profissionais do Museu Nacional, que
indicaram quais os grupos mais relevantes para a entidade. Após a seleção, os insetos
preservados a seco foram alfinetados nas quatro caixas, com etiquetas de identificação
e fundo apropriado para o transporte de material entomológico – e despachados para o
Brasil. “Foi uma curadoria demorada e laboriosa, mas extremamente gratificante”, diz
Simões, que foi aluna do Museu Nacional.

Alguns exemplares são de espécies que correm risco de extinção, como o Rosalia alpina,
um bichinho cuja suntuosa coloração azul, pontuada por manchas pretas, se estende
em todo seu corpo delgado até as longas antenas. Outros são considerados pragas na
fauna europeia, como o Scolytus scolytus, de austera e brilhante carapaça marrom-
avermelhada, vetor de doenças causadas por fungos que podem devastar árvores.

Existem aproximadamente 400 mil espécies identificadas de coleópteros, o que faz


deles o maior e mais diverso grupo do reino animal. Suas funções na natureza são
muitas, como polinizar as plantas, participar da reciclagem dos nutrientes e atuar no
controle de pragas. “Os besouros são intimamente relacionados aos seres humanos e
fundamentalmente importantes para a nossa sociedade”, diz Monné Freire.

A coleção de besouros não foi a primeira doação feita pela Alemanha ao Museu

Nacional. No dia seguinte ao incêndio, o país anunciou uma ajuda de 1 milhão de


euros (cerca de 6,2 milhões de reais). Boa parte do dinheiro foi usada de maneira
emergencial pela equipe de resgate dos objetos sobreviventes, que precisava comprar
luvas, escovas, máscaras faciais e caixas plásticas para a coleta entre os escombros. A
Alemanha também está contribuindo com a preparação de um esqueleto de baleia que
fará parte do acervo do museu (antes disso, será exposto na Cidade das Artes, na Barra
da Tijuca).

“Sabemos como é doloroso perder bens culturais únicos”, disse Johannes Bloos, cônsul-
geral adjunto da Alemanha no Brasil, à piauí. O seu país passou, há alguns anos, por
desastres parecidos ao do Museu Nacional. Em 2004, um incêndio na Biblioteca
Duquesa Anna Amalia, em Weimar, destruiu 37 pinturas e cerca de 50 mil livros do
século XVI ao XX. Em 2009, desabou o prédio do Arquivo Histórico da Cidade de
Colônia, que continha milhares de mapas históricos, além de documentos antigos e
papéis de Karl Marx e Friedrich Engels.

Profissionais que trabalharam na recuperação do acervo em Colônia estiveram no Rio


de Janeiro para ajudar no resgate dos objetos entre os destroços do Museu Nacional.
Rio e Colônia estão ligadas por uma parceria: são cidades-irmãs desde 2011, e o acordo
prevê trabalho conjunto em algumas áreas, como meio ambiente e planejamento
urbano.

O paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, ressalta que os alemães


são parceiros antigos da instituição e se mostraram bastante solidários na época do
incêndio. “Naquele momento complicado, fomos acolhidos tanto pela Unesco quanto
pela Alemanha, que hoje é nossa maior parceira”, diz Kellner. “Recompor as coleções
ainda é o maior desafio que todos nós temos. Sem elas não vamos ter o Museu
Nacional de volta.”

Em setembro do ano passado, foi lançada a campanha Recompõe, com o objetivo de


incentivar as doações. O Museu Universal Joanneum, localizado em Graz, na Áustria,
doou 197 peças de seu acervo, entre elas ferramentas, armas, cerâmicas e adornos de
populações do Alto Xingu, na Amazônia. O cantor Nando Reis entregou ao museu
uma grande coleção de caramujos reunida por seu pai e por ele. O embaixador e
escritor gaúcho Fernando Cacciatore de Garcia doou 27 objetos da Grécia antiga e do
Império Romano, e o imunologista Wilson Savino, 229 peças de arte africana.

A reinauguração do Museu Nacional deve ocorrer em setembro próximo, quatro anos


depois do incêndio. A previsão é de que somente a área externa receba visitantes, pois
as obras do interior do prédio continuam até 2026. Quando tudo ficar pronto, os
besouros vindos da Alemanha, mais do que um novo atrativo do museu, serão
pequenos emblemas da sua ressurreição.

Emily Almeida

Repórter da piauí
O corredor estava abarrotado de homens de terno e mulheres de tailleur.

Enquanto alguns caminhavam apressados, outros formavam rodinhas de conversa.


Eram onze da manhã de uma quarta-feira, pico da semana de trabalho na Câmara dos
Deputados. Vários projetos de lei eram discutidos simultaneamente nos plenários onde
funcionam as comissões da Casa. No meio da muvuca, Débora Cruz destoava da cena:
ziguezagueando pela galeria, ela dava pequenos piques e freava, pilotando um
carrinho de bebê. Fazia de tudo para que a criança não abrisse um berreiro: cócegas,
caras e bocas.
Esse tipo de serviço faz parte da rotina profissional de Cruz, que trabalha como
assessora de imprensa da deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP), mãe da criança. O
bebê de sete meses, Hugo, circula com frequência pelo Congresso. Como ele ainda está
em fase de amamentação, Bomfim não tem alternativa senão levá-lo para o trabalho. O
que vem a calhar, já que o pai do menino, Glauber Braga (Psol-RJ), também é
deputado.

O casal tenta programar suas agendas de modo que um dos dois sempre esteja
disponível para cuidar da criança. Muitas vezes não dá certo. Naquela tarde de
dezembro do ano passado, a assessora andava de lá para cá com o carrinho de bebê,
apreensiva, aguardando que Braga e Bomfim saíssem do Plenário 10, onde
participavam de uma reunião da Comissão de Educação da Câmara, da qual fazem
parte. Eles estavam atrasados para uma consulta no pediatra.

Tanto Bomfim quanto Braga tinham um projeto para relatar. Preocupados com o
horário, os dois pediram ao presidente da sessão, deputado Gastão Vieira (Pros-MA),
que invertesse a pauta do dia, permitindo que o casal votasse seus projetos antes dos
demais colegas. “É uma decisão de avô. Sempre me sensibilizo com essas coisas”,
justificou Vieira. Mas o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) não aceitou a mudança –
e Hugo chegou atrasado à consulta.

G lauber Braga, de 39 anos, e Sâmia Bomfim, de 32 anos, se conheceram no

exercício da militância. Ele despontou na política em Nova Friburgo, no estado do Rio,


e está em seu quarto mandato na Câmara. Ela ganhou notoriedade no movimento
universitário em São Paulo e agora exerce seu primeiro mandato. Depois de um ano
trabalhando lado a lado na bancada do Psol em Brasília, os dois começaram a namorar
no final de 2019. O romance, catalisado pelo isolamento social na pandemia, logo se
converteu em união estável.

Hugo é o primeiro filho do casal. O menino nasceu em junho de 2021, em São Paulo, de
parto natural. Foi uma jornada exaustiva: Bomfim começou a sentir as contrações numa
segunda-feira, mas a criança só nasceu três dias depois, na quinta-feira à tarde. A
equipe médica precisou usar ocitocina para induzir o parto. “Eu fiquei muito abalada.
Não sei de onde tirei forças na hora do nascimento”, diz a deputada.
Na sala de parto, uma caixinha de som reproduzia uma playlist de músicas ambiente. O
pai lembra que, em dado momento, reconheceu os acordes iniciais de Reconvexo, samba
de Caetano Veloso que se tornou uma espécie de canção oficial do casal. “Quando ouvi
a música tocar, imediatamente me tranquilizei e pensei: ‘Ele vai nascer agora’”, conta
Braga. “Mas a música foi passando, e o Hugo não nascia. Até que, na última palavra,
quando o Caetano canta ‘Reconvexooo’, a gente ouviu o choro: ‘Uááá!’ E ele nasceu.”

O nome da criança foi uma sugestão do pai, que quis homenagear o ex-presidente da
Venezuela, um de seus ídolos. “Hugo Rafael Chávez Frias, nascido em Sabaneta de
Barinas”, recita Braga, com devoção. A mãe não embarcou na ideia de primeira. “Não
vetei, mas não era algo que me tocava, a princípio”, explica Bomfim. Isso mudou
quando, durante uma de suas leituras, ela descobriu que Nahuel Moreno,
revolucionário argentino que inspirou o morenismo – corrente socialista à qual a
deputada se filia –, também se chamava Hugo. “Aí eu aceitei. Virou uma homenagem
do pai e da mãe.”

C om a chegada do bebê, os deputados incorporaram à militância socialista as

questões da maternidade. Em maio do ano passado, antes de Hugo nascer, Bomfim e


Braga protocolaram juntos um projeto de lei que cria o Estatuto da Parentalidade. O
texto, que ainda está nas etapas iniciais de tramitação, propõe que pais e mães tenham
direito a seis meses de licença após o nascimento de um filho. A lei atual reserva quatro
meses para a mãe e cinco dias para o pai – o que acaba jogando todo o trabalho de
criação no colo das mulheres.

“Tudo o que dizem sobre a dupla jornada da mulher eu passei a viver”, diz Bomfim,
em seu gabinete na Câmara, onde o casal recebeu a piauí. A deputada vestia uma blusa
rosa, molhada no ombro por uma golfada que Hugo havia lançado minutos antes. Nas
paredes do gabinete há pôsteres de Karl Marx e Marielle Franco. A essa paisagem se
somou recentemente um tapetinho de borracha colorido, onde fica o bebê. Os
assessores já se habituaram a trabalhar ouvindo músicas do Mundo Bita e de Sandy e
Junior – o hit Quando Você Passa, lançado pela dupla em 2001, é infalível para acalmar
Hugo.

O casal espera que, com o fim da amamentação exclusiva, a rotina do bebê se torne
menos intensa e possam matricular a criança numa creche. Mas nem isso será fácil. “O
trabalho aqui na Câmara começa de manhã e termina de madrugada. Que creche vai
aceitar uma criança com esses horários?”, lamenta Bonfim. “Mesmo contratando uma
babá seria complicado. Ela precisaria trabalhar manhã, tarde, noite e madrugada…”

O menino, enquanto isso, vive uma rotina de congressista. Acorda cedo e vai para o
Congresso no colo dos pais, que moram em um apartamento funcional em Brasília. Ao
longo do dia, Hugo acompanha reuniões de gabinete e tira sonecas, supervisionado
pelo casal ou por seus assessores. Com meses de vida, já embarcou em mais aviões do
que a maioria dos brasileiros numa vida inteira. É habitué da ponte aérea Brasília-São
Paulo-Rio de Janeiro, cidades onde está amarrado a compromissos profissionais e
familiares.

A experiência política do casal rendeu certos aprendizados para a criança, que já exibe
– acreditam os pais – a mesma verve de esquerda. Segundo eles, o menino chora
quando se depara com bolsonaristas. “Da última vez, o Hugo estava no elevador,
sorrindo, até que entrou uma figura simbólica da extrema direita. Foi só olhar para ela
que ele começou a berrar: ‘Uááá!’”, diverte-se Braga, com um sorriso de canto de boca,
orgulhoso. “Na primeira vez você pensa que é exagero de pai e de mãe. Mas quando
acontece de novo…”, prossegue o deputado. “Do nada o tempo virou.
Impressionante”, completa a mãe.

Luigi Mazza

Repórter da piauí
O contador e ativista Paulo Araújo, de 31 anos, procurou durante seis meses

uma casa espaçosa para alugar no Centro de São Bernardo do Campo, cidade da
Região Metropolitana de São Paulo. Encontrou diversos imóveis disponíveis e fez
algumas propostas. Mas sempre escutava “não” como resposta em algum momento da
negociação. Araújo atendia aos requisitos exigidos: tinha fiador e dinheiro para o
depósito caução. Chegou até mesmo a oferecer doze meses de pagamento adiantado.
Os proprietários se recusavam a alugar os imóveis ao saber o motivo da locação: criar a
sede física da ONG Casa Neon Cunha, para abrigar e capacitar pessoas LGBTQIA+ em
situação de rua. “Escutei desde que a casa de acolhida desvalorizaria o lugar até que os
vizinhos iriam reclamar do entra e sai dessa gente”, conta Araújo, presidente da ONG.
Ao todo, ele ouviu 25 “nãos”.

Para tirar a dúvida sobre as recusas em série, o Diário do Grande ABC resolveu fazer
uma reportagem em que o jornalista se fazia passar por uma pessoa interessada no
aluguel das mesmas casas. Quando era perguntado sobre o objetivo da locação, a
reportagem dizia que era para uma república de estudantes. Todas as negociações
deram certo, mas não foram fechadas, claro, porque se tratava de uma apuração
jornalística.

Araújo, por sua vez, só conseguiu alugar um imóvel em dezembro passado, depois que
o site de locação Quinto Andar entrou de intermediário no negócio e bancou a reforma
do telhado e das instalações elétrica e hidráulica da casa. “A violência do preconceito
mostra a cara na rua, mas também nas transações comerciais”, diz ele.

A Casa Neon Cunha nasceu em 2018, quando o discurso de ódio contra a

população LGBTQIA+ se expandia no Brasil, inclusive da parte de políticos e religiosos.


O nome é uma homenagem a Neon Cunha, de 52 anos, que entrou para a história dos
direitos da população trans depois de viver, nas suas próprias palavras, “mais um
processo de apagamento de sua identidade”.

Ela nasceu em Belo Horizonte, mas mora em São Bernardo do Campo desde os 2 anos
de idade. Seu pai foi operário na Volkswagen e a mãe, diarista. “Aos 4 anos, eu já
ajudava minha mãe a fazer as faxinas e tarefas domésticas”, conta Cunha, que se
reconhece como menina desde a infância.

Em 2014, quando tinha 45 anos, ela entrou na Justiça com um pedido de retificação de
gênero em sua documentação. Na época, o governo federal exigia um laudo médico
que comprovasse a transexualidade de quem pleiteava a alteração dos documentos. O
processo era exaustivo e deixava a pessoa refém de uma análise subjetiva de médicos e
juízes. Além disso, a mudança, na maioria das vezes, era autorizada àqueles que
tinham se submetido à cirurgia de redesignação sexual.
Cunha se recusou a passar pela avaliação médica. Como o resultado do processo estava
demorando, ela resolveu enviar à Organização dos Estados Americanos (OEA) um
pedido de morte assistida, caso seu gênero e identidade não fossem reconhecidos. Mas,
em 2016, o juiz Celso Lourenço Morgado, da 6ª Vara Cível de São Bernardo do Campo,
deferiu o pedido de mudança de gênero e nome. Na sentença, ele afirmou: “A
transexualidade não é uma condição patológica, e a identidade de gênero é
autodefinida pela pessoa.”

Foi o primeiro caso no Brasil de retificação de documento sem a necessidade de laudo


médico, o que criou um precedente jurídico. “A morte é a não existência, a ausência de
vida. Não ter acesso ao direito de ter documento era uma forma de me apagar”, diz
Cunha, que se graduou em publicidade e trabalha como funcionária pública da
Prefeitura de São Bernardo do Campo.

A conquista transformou Cunha em um símbolo da luta dos transexuais contra o


processo de invisibilização que os atinge. Desde então, ela adotou como lemas duas
frases que se inter-relacionam. Uma é da escritora Conceição Evaristo e diz: “Eles
combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer.” Outra surgiu do rolê nas
favelas: “Corre com nós ou corre de nós.”

A Casa Neon Cunha vai abrir as portas no próximo mês de março. “Até 2020, havia
treze mulheres trans morando nas ruas de São Bernardo. Hoje, são trinta”, diz Paulo
Araújo, que vai abrigar todas elas na sede e agora está em busca de doações para
mobiliar e prover o local, onde será oferecido aconselhamento e qualificação.

N o segundo semestre de 2021, uma equipe contratada pela Prefeitura de São

Paulo saiu a campo para fazer um novo censo da população em situação de rua. O
resultado saiu no final de janeiro: são 31 884 pessoas – 31% a mais que em 2019, quando
foi feita a pesquisa anterior. “Houve um aumento do número de famílias morando na
rua e também da população trans”, afirma Carlos Bezerra Júnior, secretário municipal
de Assistência e Desenvolvimento Social. O novo censo constatou que há 171 mulheres
trans, 72 homens trans e 50 travestis em situação de rua na maior cidade do país.

“Eu nunca atendi tantas mulheres trans e travestis como nos últimos dois anos”, conta
o padre Júlio Lancellotti, que comanda uma enorme rede de apoio às pessoas em
situação de rua, a partir da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Zona Leste de São Paulo.
“E há outro agravante: além de não terem um teto e passarem fome, essas pessoas
precisam lidar com ataques constantes de violência física e psicológica.”

Ao contrário de São Bernardo do Campo, São Paulo já dispõe de um abrigo municipal


para a população trans, chamado Casa Florescer. Mas, segundo Lancellotti, o local “não
tem higiene” e condições adequadas. “A prefeitura não entende que essas pessoas têm
família. Uma mulher trans não está autorizada a ficar nesses lugares ao lado de seu
companheiro”, diz ele.

Neon Cunha afirma que tirar as pessoas trans da rua é fundamental para garantir que
elas continuem vivas. Em novembro de 2020, a transexual Ester Vogue, em situação de
rua em São Bernardo do Campo, teve 80% de seu corpo queimado em um crime de
ódio. Morreu três dias antes de completar 34 anos.

João Batista Jr.

Repórter da piauí, publicou A Beleza da Vida: A Biografia de Marco Antonio de Bia


A movimentação em frente ao hotel Copacabana Palace contrastava com o

silêncio da praia na manhã daquele domingo, dia 5 de dezembro do ano passado. O


barulho não vinha dos hóspedes, mas dos passageiros dos ônibus e vans que
desembarcavam no calçadão às 5h30, com caixas de isopor, coolers e sacolas.

Assim que os veículos estacionavam, surgia o primeiro comitê de recepção: senegaleses


oferecendo óculos escuros espelhados, vendedores de chapéus e guias de turismo com
oferta de pacotes baratos de city tour. Enquanto a algazarra se formava, algumas
mulheres buscavam o melhor ângulo para a selfie com o Copacabana Palace ao fundo.

A excursão de um dia, ou bate-volta, para Copacabana havia retomado firme no início


de dezembro. Trabalhadores de baixo poder aquisitivo aproveitavam o único dia de
folga da semana para se divertir na praia. “A movimentação acontece aos domingos
porque sábado é dia de trabalho para esse pessoal”, explicou o agente de turismo
Edson Lopes, que há nove anos organiza viagens de Belo Horizonte para o Rio.

A atividade alimenta uma cadeia de prestadores de serviço informais que madrugam


para recepcionar os visitantes. Às 3h30 soou o despertador na casa de Humberto
Farias, de 26 anos, morador da Zona Norte que gerencia um quiosque de aluguel de
cadeira e guarda-sol. Quando um ônibus proveniente de Piracicaba, no interior de São
Paulo, encostou às seis da manhã em frente ao Copacabana Palace, ele já estava a
postos no local – Farias havia sido avisado na véspera da chegada do grupo.

A parceria entre os quiosques e os organizadores das excursões garante pequenos


confortos aos viajantes. Farias indica dois deles: chuveiro para tirarem a areia do corpo
antes do embarque para casa e ajuda para transportar as caixas de isopor e
os coolers repletos de bebida e comida que são trazidos de casa para reduzir o custo
com alimentação. Ele jogou duas grandes caixas de isopor nos ombros e conduziu os
passageiros até o quiosque. “Cliente meu não carrega peso”, disse. O quiosque
funciona também como ponto de referência, caso o turista se desgarre do grupo e se
perca na praia, o que é comum.

Lucas Francisco, de 21 anos, foi outro que acordou às 3h30. Ele mora com os pais em
São Gonçalo, cidade a 32 km do Rio de Janeiro, e até julho do ano passado era zagueiro
do Casimiro de Abreu Esporte Clube – no município fluminense de mesmo nome.
Quando a agremiação suspendeu o futebol profissional, o jovem se viu forçado a entrar
temporariamente para o time dos ambulantes da praia como vendedor de espetinhos
de camarão.

O s ônibus dos excursionistas chegam e saem da cidade sem nenhum controle

ou acompanhamento por parte do poder público municipal. A prefeitura também não


dispõe de informações estatísticas sobre esses visitantes, segundo o secretário
municipal de Turismo, Bruno Kazuhiro. Ele contou que os hotéis e restaurantes
reclamam que as excursões não contribuem para a geração de renda e arrecadação de
impostos, porque trazem um turista que não consome. O secretário parece concordar
com o raciocínio, que não leva em conta os ganhos do comércio informal.
Kazuhiro disse que a prefeitura pretende convocar o setor privado para construir e
explorar um estacionamento – que ele chama de hub – para os ônibus, que hoje ficam
estacionados na rua. A medida, na sua opinião, permitiria o controle do fluxo turístico
e retiraria os veículos das vias públicas. Há planos também de criação de uma taxa
municipal – uma espécie de selo-pedágio – a ser paga pelos ônibus para entrar na
cidade.

Edson Lopes, guia de turismo em Belo Horizonte há nove anos e dono da empresa
Eddytur, calcula que entre 80 e 100 ônibus partem de Minas Gerais para o Rio nos fins
de semana. “Todo dia aparece alguém que perdeu o emprego e organiza uma excursão
para ganhar uma renda extra”, diz ele, reclamando que o mercado foi invadido por
concorrentes sem registro profissional, que baixaram os preços das passagens. Lopes
tem feito campanha nas redes sociais contra esses ônibus piratas, que estão
prejudicando sua empresa: antes ele fazia três viagens por mês para o Rio e agora tem
feito apenas uma.

Copacabana é o destino mais cobiçado, mas excursões também são feitas para Ipanema
e Recreio dos Bandeirantes. Há pacotes a partir de 130 reais por pessoa (ida e volta)
saindo de Belo Horizonte. Crianças de até 5 anos não pagam, e as de 6 a 9 pagam meia.

A s excursões bate-volta são organizadas pelas redes sociais. Agentes de turismo

e outros profissionais contratam ônibus para transportar os passageiros e, uma vez


negociado o frete, anunciam os lugares. O Facebook é a principal vitrine de venda, mas
a comunicação boca a boca também funciona.

Os mineiros eram maioria naquele domingo de dezembro, mas havia grupos de São
Paulo e do interior do estado do Rio na faixa de areia em frente ao Copacabana Palace.

As enfermeiras Tatiane Gomes, Lizandra Alves e Marta Roberta saíram de Piracicaba,


no interior de São Paulo, às 21 horas do sábado. Foi a primeira viagem que fizeram
após meses de trabalho extenuante durante a pandemia. Elas viajaram 564 km para
relaxar, mas se decepcionaram com a poluição e a pobreza no Rio de Janeiro.
“Sinceramente, a praia do Guarujá é mais bonita e bem cuidada”, lamentou Roberta.
Estavam também inconformadas com a taxa de 3 reais para usar o banheiro público e o
aluguel de 10 reais da cadeira. “No Guarujá, se você consome, não paga pela cadeira”,
disse Gomes.

O mineiro Ênio Junior, de 33 anos, técnico de manutenção de um supermercado em


Sete Lagoas, contratou pela internet o pacote de viagem para ele, a mulher, Natália
Pimenta, a cunhada Carine Pimenta e o sobrinho Wellington Pimenta. Eles chegaram
ao Rio em um ônibus que saiu de Belo Horizonte com cinquenta passageiros.

Durante o tempo em que passaram na praia, Junior e seus familiares consumiram duas
garrafas de uísque e cinco caixas de cerveja que trouxeram de casa. Após duas horas
exposto ao sol, Wellington já exibia a pele tostada. “Vim aqui pra me queimar e pra
beber”, disse ele, que via o mar pela primeira vez, assim como Carine. Os dois não
sabiam nadar e usaram a mesma palavra para expressar o que sentiram diante da
imensidão do oceano: “Liberdade.”

Alex Júnior, de 18 anos, funcionário de uma fábrica de sofás em Piraúba, Minas Gerais,
não conteve o espanto diante do mar. “É muito maior do que Bichinho de Luz”,
exclamou, referindo-se à represa perto de sua cidade onde costuma passear com os
amigos.

Elvira Lobato

Elvira Lobato é jornalista e publicou os livros Instinto de Repórter, pela Publifolha,


e Antenas da Floresta, pela Objetiva
E le não dava nenhuma bandeira de que defendia os fracos e oprimidos. Pelo

contrário: quem o avistasse numa savana ou floresta logo se assustaria e sairia


correndo. Dificilmente alguém imaginaria que aquela criaturinha dentuça salvara
inúmeras almas por causa de um insólito superpoder, o olfato afiadíssimo. O herói sem
capa nem escudo chamava-se Magawa e nasceu na Tanzânia, país da África Oriental,
mas virou lenda graças às façanhas que protagonizou em outra região: o Sudeste
Asiático. Era, por incrível que pareça, um rato.

Com pelagem castanha, inevitáveis orelhas de abano, cauda maior que o resto do corpo
e bigodes tão longos que matariam Salvador Dalí de inveja, pesava 1,2 kg e media 70
cm de comprimento. Não tinha, está claro, o porte de um rinoceronte ou hipopótamo.
Mesmo assim, os zoólogos o classificavam como um rato-gigante-do-sul. A espécie
atende pelo nome científico de Cricetomys ansorgei e é bem mais parruda que os
hamsters, camundongos e outros bigodudos.

Onívoro, Magawa exibia bochechas elásticas o suficiente para transportar toda a


comida que desejasse armazenar numa toca. O roedor, porém, nunca precisou lutar
pelo próprio sustento nem construir abrigos. Ele sempre viveu em cativeiro, sob os
cuidados de uma organização não governamental belga, a Apopo. Foi gerado na
cidade tanzaniana de Morogoro, onde fica a Universidade Sokoine de Agricultura. A
instituição – que o acolheu desde o nascimento, em 25 de novembro de 2013 – decidiu
transferi-lo para o Sudeste Asiático três anos depois. No Camboja, Magawa finalmente
iniciou o trabalho que o consagraria: a detecção de minas terrestres.

Em zonas de conflito, tais artefatos bélicos são instalados junto à vegetação rasteira e
debaixo do solo com o intuito de evitar que adversários acessem pontos estratégicos,
como arsenais, rodovias, postos militares e reservatórios de água. Basta pisar nas
armadilhas para detoná-las. Uma vez acionadas, lançam estilhaços de metal capazes de
matar ou ferir gravemente tanto os humanos quanto os bichos. Por continuarem
ocultos mesmo depois das guerras e insurreições, os dispositivos que ainda não
estouraram acabam interditando locais onde poderiam existir moradias e florescer
atividades econômicas. Daí a necessidade de localizar e remover os armamentos – uma
operação arriscada e onerosa.

E m 2020, pelo menos 7 073 pessoas de 54 países morreram ou se machucaram

devido às minas terrestres. O contingente é 20% maior que o de 2019. Cada artefato
custa, no máximo, 30 dólares. O intrincado processo de desativá-lo, contudo, sai bem
mais caro: de 300 a 1 mil dólares. Rússia, China e Estados Unidos figuram hoje entre os
principais fabricantes desse tipo de armadilha.

Se treinados adequadamente, ratos como Magawa ou de outra espécie parecida,


a Cricetomys gambianus, conseguem sentir o cheiro do TNT, explosivo que compõe a
maioria das minas terrestres. Assim que reconhecem o odor maligno, os roedores
arranham o chão justamente na altura em que os dispositivos se escondem. Um único
animal leva trinta minutos para rastrear um terreno com as dimensões de uma quadra
de tênis. Já um técnico não vasculha a mesma área em menos de quatro dias, ainda que
use um detector de metais.

Além de se destacarem pela rapidez, os mamíferos de faro prodigioso são certeiros.


Diferentemente das máquinas, que podem confundir meras sucatas com minas
terrestres, os ratos não costumam errar. Quando acusam a presença do TNT, há
grandes chances de que estejam realmente em cima de uma armadilha.

Para atingir tamanha precisão, os roedores passam por um treinamento de nove meses
e recebem bananas ou amendoins toda vez que identificam o cheiro do explosivo.
Depois que concluem o aprendizado, deixam de ganhar as recompensas e trabalham de
graça.

Bastante comuns na África, os Cricetomys ansorgei e os Cricetomys gambianus executam o


serviço com tanta eficácia não apenas porque dispõem de olfato aguçado. Eles também
se mostram dóceis e obstinados, o que os torna facilmente domesticáveis, têm uma
memória acima da média e não pesam muito. Por isso, conseguem andar sobre as
minas terrestres sem ativá-las.

Foi o belga Bart Weetjens, engenheiro de produtos que virou monge budista, quem
resolveu utilizar ratos para monitorar os temerários dispositivos. Em 1997, apresentou
a ideia à Universidade de Antuérpia e à Universidade Sokoine de Agricultura, que
estudaram o assunto e adestraram os primeiros bichinhos. Paralelamente, Weetjens
fundou a Apopo e a incumbiu de capitanear o projeto.

Desde então, os roedores da ONG – batizados de HeroRATs – já contribuíram para


desmontar quase 140 mil minas, que ameaçavam 1,1 milhão de pessoas, distribuídas
por 30 milhões de m². Atualmente a entidade ainda conta com as duas parcerias
acadêmicas, detém um orçamento anual de 5 milhões de euros e possui 136 ratos.
Quarenta deles procuram minas no Camboja e 10 em Angola, 66 estão treinando na
Sokoine e 20 realizam outra tarefa espantosa: cheirar escarros para averiguar se
habitantes pobres da Etiópia e da Tanzânia sofrem de tuberculose.

D urante cinco anos, Magawa abraçou com afinco a nobre missão que a Apopo

lhe confiou. Valeu a pena. Sozinho, o roedor encontrou mais de cem artefatos bélicos,
sobretudo na cidade cambojana de Siem Reap. Entre as descobertas, havia minas
terrestres, mas também granadas, bombas e projéteis não detonados. Nenhum outro
rato se saiu melhor. Para retribuir tanta bravura, a People’s Dispensary for Sick
Animals (PDSA) homenageou Magawa com uma medalha de ouro em setembro de
2020. Até aquele momento, a instituição britânica que se dedica à caridade veterinária
desde 1917 só premiara cachorros, pombos, cavalos e gatos.

Em junho de 2021, o roedor condecorado se aposentou. Estava bem de saúde, embora


já não tivesse o olfato sensível da mocidade. Sem obrigações profissionais, atravessava
os dias fazendo o que mais gostava: cavar, roer, brincar e correr numa ampla gaiola,
equipada com rodas de exercício, túneis, rampas, cordas, galhos e areia. Em janeiro,
perdeu o apetite, manifestou cansaço excessivo e se tornou sonolento. Morreu de
causas naturais no segundo sábado do mês. Quarenta e cinco dias antes, completara 8
anos – uma idade avançada mesmo para os ratos excepcionais.

Armando Antenore

Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
N enhuma pessoa com o juízo no lugar imagina que, ao sair de casa para zanzar,

vai acabar esbarrando com um show gratuito da cantora Rihanna em praça pública. No
entanto, foi mais ou menos isso que aconteceu em Bruxelas, no início da tarde de 4 de
dezembro passado. “Rihanna! Rihanna! Rihanna!”, gritaram milhares de pessoas na
Grand-Place, no centro histórico da capital da Bélgica, assim que a cantora na calçada
entoou a última frase da canção Stay, um dos maiores sucessos da diva da música pop.

Havia um mar de gente com celulares na mão assistindo ao show inesperado. Quando
acabou, várias pessoas correram em direção à cantora para fazer selfies ao lado
dela. Thank you, thank you, dizia a moça aos tietes, num inglês claudicante. Enquanto
desligava o microfone portátil que um artista de rua lhe emprestara para a dublagem,
um fã pediu seu autógrafo. Foi a hora da verdade. A Rihanna que se apresentava na
praça em Bruxelas assinou no pedaço de papel: “Priscila Beatrice, Rihanna
Impersonator.”

Priscila Beatriz da Silva Vieira, 29 anos, 1,78 metro, é mineira de Vespasiano e mora em
Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Rihanna, 33 anos, 1,73 metro, é
natural de Barbados, onde foi declarada recentemente “heroína nacional”, e vive em
Beverly Hills, na Califórnia. As duas são espantosamente parecidas. Em comum, têm a
cor da pele, os olhos verdes, as maçãs do rosto proeminentes, o nariz, a boca… Parece
que foram esculpidas pelo mesmo artista. Soma-se a isso o empenho de Vieira em
imitar os penteados, as maquiagens e os trejeitos de Rihanna. Elas compartilham
inclusive o signo: ambas são de Peixes. “Até nisso Deus acertou!”, comemora a mineira.

A s comparações entre Priscila Vieira e Rihanna começaram a surgir em

Contagem em 2007, quando o hit Umbrella estourou no Brasil. Os mais próximos


olhavam as fotos da cantora e exclamavam: “Mas é a Priscila!” Então com 15 anos,
Vieira não deu muita bola. Estava mais interessada em outra estrela, Britney Spears.
“Só tinha espaço pra ela na minha vida. Tive que aprender a gostar da Riri”, conta.

Aprendeu direitinho. Em 2014, Vieira foi convidada pela primeira vez para fazer um
show como sósia de Rihanna em um clube de Contagem. Ela subiu ao palco com três
dançarinas e um pen drive carregado de músicas para dublar. “Naquele dia tive
certeza de que nasci para isso.”

Mas não ganhava a vida fazendo aquilo. Até março de 2020, ela trabalhava como
vendedora de planos funerários. As jornadas diárias, batendo de porta em porta,
podiam durar treze horas. Vieira contava os minutos para o fim da semana chegar e
poder se transfigurar na estrela Priscila Beatrice, seu nome artístico. Nos sábados, subia
aos palcos das boates de Contagem para interpretar os sucessos de Rihanna.

Em agosto de 2020, a própria cantora constatou a semelhança, ao ver Priscila vestida e


maquiada igual a ela em um vídeo compartilhado por uma página norte-americana de
memes no Instagram. “Cadê o álbum, irmã?”, comentou Rihanna, em inglês, na
publicação. A pergunta é a mesma que os fãs lhe fazem com frequência nas redes
sociais, pois seu último disco de músicas inéditas foi lançado há seis anos.

Vieira leu o comentário de Rihanna à noite, quando estava se preparando para dormir.
Pulou do sofá e gritou tão alto que assustou o marido, o balconista de farmácia Felipe
Ferreira, e acordou seus três filhos – de 11, 6 e 2 anos. Em sua página no Instagram, a
mineira escreveu, em português e em inglês, que estava “chorando de emoção”. “Foi o
momento mais louco da minha vida”, recorda. “Pense numa pessoa que ficou 48 horas
sem dormir, à base de energético, com os olhos arregalados de tanta euforia. Fui eu!”
Também, pudera: logo depois do comentário de Rihanna, empresas brasileiras e até
estrangeiras a procuraram, interessadas em estampar o seu rosto em campanhas
publicitárias. Nos dias seguintes, Vieira atingiu a marca de 200 mil seguidores no
Instagram e de 1 milhão no TikTok.

Na época, ela estava sem emprego e passava os dias contando as moedas. “Era um
desespero. Eu vivia pensando no que fazer para sustentar três crianças. Aquele
comentário da Rihanna foi enviado por Deus.” Hoje, Vieira consegue sobreviver
apenas com o trabalho de influenciadora digital, divulgando produtos nas redes
sociais. Já apareceu no comercial de uma empresa de cartões de crédito, fazendo graça
de sua semelhança com Rihanna, e de vez em quando é convidada para programas de
humor. Também grava vídeos desejando feliz aniversário a desconhecidos de
diferentes partes do mundo. “Tive que aprender a falar ‘parabéns’ em umas dez
línguas. Uma loucura!”

A ntes de chegar à Bélgica em dezembro passado, Priscila Vieira foi à Turquia

para participar do videoclipe de uma cantora do país. Era a sua primeira viagem para
fora do Brasil. Numa tarde foi com colegas de trabalho a um restaurante de Istambul.
Papo vai, papo vem, a mesa se encheu de pratos que ninguém havia pedido. “Que
coisa mais estranha”, ela pensou. Então uma garçonete perguntou se Vieira poderia
tirar fotos com a equipe da cozinha. “Eles serviram tanta comida de cortesia porque
acharam que eu era a Riri”, lembra, gargalhando.

De volta ao Brasil, ela se dedicou a escrever suas resoluções para 2022. Decidiu que vai
aprimorar o inglês e estudar técnica vocal para, quem sabe, cantar os sucessos de
Rihanna com a própria voz, em vez de dublá-los.

A lista de metas foi feita no escritório da casa que alugou depois de fazer sucesso na
internet. Em seu novo quarto, o item de decoração mais valioso é um porta-retratos
com a reprodução do comentário feito por Rihanna. Na parede da memória de Vieira,
essa lembrança é o quadro que mais a alegra.

Thallys Braga

Estagiário de jornalismo da piauí


QUEM SEGUE, QUEM ESBARRA

peregrino em noite branca tenebrosa

com pé incerto a confusão pisando do deserto

vozes em vão passos sem tino

repetido latir se não vizinho nítido

ouviu de cão contumaz e desperto


e em pastoral albergue que se ergue

mal coberto piedade achou

uma vez que não achou caminho

e vem madrugada e mais depois o sol

foi quando entre arminhos uns risos

de escondida sonolenta beldade –

a bem dizer um pensamento que atoleimava

a vontade e o torrencial da determinação

– com doce sanha no dedirróseo alvorecer então

saltou de sonho sobre o não bem são viandante

quase pagou a hospedagem com a magra vida

que por acaso ainda lhe sobrevinha

antes ô errar na montanha do que morrer

da sorte que para si imaginara

contudo não havia cão contumaz

sanha beldade nada risca nenhuma

alquebrado a confusão pisando do deserto

uma vez diserto outra vez sobrevivo

só o repetido latir do pensamento

na tenebrosa noite branca do peregrino


2

tão facilmente um se esconde em outro

e não obstante cada qual a sede sendo

de todos sem expurgo

de nenhum grosso tumulto

tão vasto é o apetite mais rude

tão curvo o espírito do corpo túmulo

tão lúcido esse que a vigília chameja em surto

tão sem paradeiro tão jamais

seu mais rápido rugitar dura um ano terrestre

seus mais largos lustros um coice do sol

sua mais vigilante quietude o conduz

às bordas do seu inumerável quem


A NARRATIVA NÃO SEGUE EM LINHA RETA

não sei quantos portugais morreriam à míngua

caso pisássemos em seus calos desfazendo da arte da calista gostosona

de sena, o seu o se’o o siô

o seô jorge que – concedida a presunção de inocência –

ainda tenho em grande consideração


quanto ao outro, até que não me incomoda, isto é,

desde que não se demore e decida ir embora

com seu bandoneon de milonga enfiado no embornal

antes que se anuncie a inominada aurora

PONENCIAS ADVENTÍCIAS

convidam-me para um debate

para compor uma mesa com outros escritores

por causa das qualidades de minha literatura

ou porque sou (um escritor) negro

um rosto preto a menos entre os humanos?

quando convidam um escritor não negro

para participar de uma mesa

aparentemente é por causa da sua literatura

porém ele é convidado justamente por ser não negro

porque ele é um igual

porque não é considerado um corpo estranho

porque os envolvidos

querem se reconhecer no sujeito


que vai palestrar para eles os aquém os além-raciais

os sem-narinas

– endogamia –

talvez tudo aconteça desse jeito

sem que ninguém desse círculo de mesmidades pense

sobre as consequências advindas

por simples e contratual inércia

– pode ser –

quando convidam um escritor negro para um debate

é por causa de sua literatura e imediatamente

porque ele é um sujeito que combate o racismo

onde quer que se apresente

ou porque esse autor negro

executa para os não negros o trabalho

que eles se orgulhariam de realizar

– melhor não ir com tamanha sede –

já que os brancos solidários não querem invadir

ou sequestrar o disco arranhado da representatividade

o lugar de fala de ninguém

– de jeito nenhum –

então se convencem da importância de exercitar a escuta


de permitir o testemunho do outro

de como isso lhes garante certa paz de espírito

pois assim estão colaborando corretamente

na luta contra o racismo

quando convidam um escritor negro

para compor uma mesa apenas por causa de sua obra

é porque nem ele nem a curadoria sabem

que se trata de um negro

ou nem ele nem a curadoria

querem saber qualquer coisa a

propósito desse tópico

são reféns da noção segundo a qual

a qualidade literária

– cedo ou tarde –

põe cada coisa no seu devido lugar

Os caligramas que ilustram esta página, feitos pelo autor, fazem parte, junto com os
poemas aqui reproduzidos, do livro Scriptio Defectiva (ainda sem data de lançamento).
Caligramas são poemas visuais que mesclam palavra e imagem.

Ronald Augusto Poeta e ensaísta, publicou A Contragosto do Solo (Demônio Negro) e edita
o blog Poesia-pau
POR UM FIO

A capa da piauí_184, janeiro, apesar de não ser uma das minhas favoritas da revista, é
uma das que mais conversou com o recheio dela em todos esses anos que assino. O
Brasil claramente vive um período de luto há tempos (sem contar a pandemia) e as
reportagens da edição trazem isso: luto pelo fim do Programa Mais Médicos, luto pelo
rompimento de barragens no país, luto pelas mulheres que morrem todos os dias
devido ao aborto não legalizado, luto pela guerra às drogas que não dá certo e luto por
aqueles que morrem em decorrência da homofobia. Não creio que este será nosso ano
de superação, mas ainda acredito neste país.

Que venham, no futuro, mais capas cômicas e alegres!

GUSTAVO RIGONATO_AMERICANA/SP

LULA E A TERCEIRA VIA

O jornalista Fernando de Barros e Silva, no artigo Lula e o “melhor do PSDB” (piauí_184,


janeiro), tem razão ao concluir o texto advertindo que a situação do Brasil é terminal, e
que não se fala em consolidar as instituições ou ampliar os horizontes da democracia,
mas em salvá-las da destruição. Realmente a reeleição de Bolsonaro será um desastre
completo, motivo pelo qual aqueles que têm consciência desse fato devem estar atentos
ao desenrolar dos acontecimentos.

Lula, por ser pragmático, fez um importante aceno a um adversário histórico, Geraldo
Alckmin, para compor sua chapa presidencial. Não deixa de ser um lance de mestre,
mas que encontrará enorme resistência entre a militância petista, além do receio da
figura do vice assumir o lugar do titular, como ocorreu em vários momentos de nossa
história recente. O lado positivo seria também uma tentativa de restaurar a social-
democracia no país, pois tanto os tucanos como os petistas foram os responsáveis pelos
melhores momentos de nossa democracia após a ditadura militar.

Lula só tem a ganhar com tal convite, pois revelou seu lado negociador, que prevalece
sobre seus pronunciamentos mais radicais, que só agradam à militância. Alckmin é
quem eventualmente pode perder ao desistir de uma candidatura ao governo de São
Paulo.

DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ

VARIEGADOS

No artigo de estreia na revista, Meg Weeks acompanhou o périplo de Mariana para


poder abortar (Em nome da mãe, piauí_184, janeiro). Porém, a autora não citou outras
situações análogas relativas aos direitos reprodutivos, tal como a extensa reportagem
anterior de Angélica Santa Cruz (“A gente acolhe”, piauí_174, março de 2021), que foi
comentada em carta na edição seguinte. A referenciação creio ser importante para
situar a questão, no âmbito da revista em primeiro lugar, e também no
acompanhamento dos retrocessos legais quanto à descriminalização do aborto que
teimam em acontecer em nosso país. No mais, no trabalho de Meg Weeks chama a
atenção que há redes de viabilização do aborto fora do Brasil, com estrutura adequada,
confiável e de acompanhamento pós-intervenção. Parece não ser tão complicado para
ser adotado como modelo, vencida a polêmica, muito mais moralista e
pseudorreligiosa do que legal ou biológica. E foi útil saber que o uso de milhas aéreas
pode ter um fim muito mais nobre do que bancar ininterruptas e irritantes
propagandas na tevê de conhecida empresa/site que vende passagens e pacotes
turísticos por meio desse artifício.

Já na piauí_183, dezembro de 2021, o diálogo entre Fernando de Barros e Silva


(Cinquenta tons de direita) e a Esquina de João Batista Jr. (O puxador de votos) foi
providencial, para ilustrar que nunca houve uma terceira via, mas tão somente uma
direita com maquiagens distintas, pragmática, mais ou menos bolsonarista a depender
do calor – e do valor – do momento. Faltou uma menção à expressão original do livro
de E. L. James, adaptada por Guilherme Boulos no primeiro debate presidencial de
2018, quando se referiu aos outros candidatos como sendo os “cinquenta tons de
Temer” (Lula estava preso e Haddad ainda não o havia substituído). Sabemos que por
mais um ano haverá algumas construções e muitas destruições político-
governamentais, e as amostras de tais articulações no Legislativo (Arthur, o miúdo, de
Angélica Santa Cruz) e Executivo (Na encruzilhada, de Consuelo Dieguez) estão dadas e
fadadas a rumar para o inevitável abismo. Esperanças natalinas? Ainda que o bom
velhinho também esteja de partida do Brasil, como vemos pela capa da edição, há que
se considerar que, na festa de fim de ano no Palácio do Planalto, com pronunciamentos
de presidente e ministros, a única coisa mais próxima da realidade foi o Papai Noel lá
presente. Assim, para um Feliz 2023, torço para que tenhamos um 2022 de muito
trabalho político, democrático, institucional e eleitoral.

ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP

CARTA SOBRE UMA CARTA

Primeiro, minha gratidão a Adriana Hellering (Cartas, piauí_184, janeiro), por nos
lembrar dos passarinhos – e a vocês pelas dicas sobre o que funciona ou não para
poupá-los. Num país onde crianças morrem por falta de médicos, e mulheres por
serem obrigadas a levar uma gestação indesejada até o fim, adesivar janelas é uma
forma de resistência. Ainda mais em São Paulo.

Também agradeço a Meg Weeks pela matéria Em nome da mãe (agora aberta ao
público!), na mesma edição, e ao projeto Milhas pela Vida das Mulheres – cujo trabalho
deveria ser bem mais conhecido, a fim de conscientizar a sociedade sobre os riscos do
aborto clandestino no Brasil e a possibilidade de fazê-lo em segurança em países
vizinhos.

Agora, o textão.

Pesquisei sobre a ação proposta pelo Psol e pela Anis visando à descriminalização do
aborto – a ADPF 442/DF. Embora exista um precedente na 1ª Turma do STF (HC
124306/RJ) comprando a tese de admitir o aborto voluntário nas doze primeiras
semanas da gestação, acho difícil que o plenário venha a concluir o julgamento de
forma positiva nos próximos anos – além da existência de certa resistência de setores
da sociedade (e de algumas autoridades, como o atual PGR), não seria difícil atrasar a
decisão mediante pedidos de vistas.

Fico surpreso que não tenhamos avançado mais nesse tema “comendo pelas beiradas”,
pacificando mais interpretações que flexibilizem o ônus de provar a ocorrência das
exceções legais (li uma matéria da Folha de S.Paulo de 29/07/2018 referindo que não seria
necessário comprovar a ocorrência do estupro e que bastaria procurar uma unidade de
saúde – mas já ouvi anedotas relatando o contrário), a fim de criar para a doutrina
jurídica uma “ladeira escorregadia” conducente à descriminalização. Pesquisei um
pouco o assunto, e fiquei um tanto frustrado por não encontrar uma literatura
específica focando aborto em caso de gravidez na adolescência; é no mínimo estranho
que pessoas que não são consideradas (legalmente) responsáveis o suficiente para
dirigir um carro sejam obrigadas a assumir as responsabilidades da gestação e da
maternidade. Mais ainda porque é consenso que a gravidez precoce – além do impacto
socialmente adverso sobre as perspectivas de vida a longo prazo da gestante e do
nascituro – implica risco à saúde: a) da gestante e b) do nascituro (risco aumentado de
complicações neonatais e mortalidade infantil: há um gráfico interessante do Centro de
Controle e Prevenção de Doenças mostrando que, nos Estados Unidos, a mortalidade
infantil referente a gestantes com menos de 20 anos é quase o dobro da taxa relativa a
mães entre 30 e 34 anos de idade).

RAMIRO PERES_SÃO PAULO/SP

ARMÁRIO ABERTO

Achei o texto do Marco Pigossi (Eu me sinto invencível, piauí_184, janeiro)


extremamente “Ai, como é difícil ser um homem branco educado padrãozinho cis
rico… não dá nem para se assumir sem correr o risco de perder o papel de galã de
novela das 9!”. Poxa, que barra, menina! E, para que fique claro, o problema não é ele
ter problemas apropriados à realidade dele e escrever sobre coisas que importam para
ele. Todo mundo tem seu lugar de fala e todo mundo tem direito de falar a partir dele.
O problema é ele escrever um texto egocêntrico, cheio de autopiedade e pouca
consciência de seus privilégios e trivialidades. Muito melhor seria um texto com uma
pegada “Poxa, se foi difícil para mim, imagina para outros em situações infinitamente
mais vulneráveis, imagina o quanto ainda temos que caminhar, vamos falar sobre
isso?”. Pior ainda é todo mundo aplaudir como se ele fosse um herói. Pigossi é tão
ingenuozinho, se preocupou esse tempo todo à toa! Gay branco, rico, cis, padrãozinho
é sempre aplaudido.

IURI BAPTISTA_CAMPINAS/SP

VIK MUNIZ

Na reportagem Feira extraordinária, da magnífica Clara Rellstab na piauí_183,


dezembro de 2021, há um pequeno equívoco: ela menciona que a Feira de São Joaquim
tem 39 mil m² de extensão. Metragem quadrada é medida de área, extensão é
comprimento. Tico e Teco aqui acham que a feira tem 39 mil m² de área. E olha que
raramente eles concordam entre si!
FÁBIO BATALHA_DUQUE DE CAXIAS/RJ

NOTA BIOGRÁFICA DA REDAÇÃO: Clara Rellstab foi sempre considerada magnífica


por todos que tiveram a ventura de conhecê-la. A única exceção foi o seu professor de
geometria (que a considerava apenas estupenda). Abra uma champanhota para Tico e
Teco, eles estão de parabéns (pena que não possamos dizer a mesma coisa do nosso
departamento de Checagem e Revisão).

EXPLOSIVO

Senhores, em nome do suposto rigor: O atual presidente da República, Jair Bolsonaro,


NÃO foi para a reserva porque planejou explodir bombas em quartel, fosse assim teria
sido expulso sem direito a soldo (Na encruzilhada, piauí_183, dezembro). Ocorre que
quando um militar se candidata, entra em licença, se eleito, vai para a reserva
remunerada, se não eleito, volta para o quartel. No caso do dito-cujo, ele foi eleito,
então saiu conforme acima. “Jornalismo independente, rigoroso e apartidário”:
verdade, ou mais um órgão impresso a vilipendiá-la? Não posso crer que seja
desconhecimento da jornalista, mas se for, há que ver por aí quem anda em vossas
páginas.

JÉSU ANTOMAR_PORTO ALEGRE/RS

NOTA SOBRE QUEM ANDA PELAS NOSSAS PÁGINAS: É tanta gente, Jésu, que até
perdemos a conta. Importa aqui lembrar uma dessas pessoas, o grande repórter Luiz
Maklouf Carvalho, morto prematuramente em 2020. Mak, como todos o chamavam, é
autor de uma biografia seminal do presidente. Nela, fica claro que Bolsonaro teve, sim,
que deixar o Exército porque planejou explodir bombas em quartéis. Em janeiro de
1988, o Conselho de Justificação das Forças Armadas o condenou por um sonoro placar
de três a zero. O caso foi encaminhado ao Superior Tribunal Militar, que, em junho
daquele ano, encontrou uma saída salomônica: absolveu-o, deixando subentendido que
ele se apressasse a abandonar o Exército por livre e espontânea vontade. Bolsonaro
optou pela política e, em novembro, elegeu-se vereador pelo Rio de Janeiro. Até as
emas do Alvorada sabem disso e é de se perguntar se não hesitaram em aceitar os
tabletes de cloroquina por desconfiarem da sensatez daquele que já foi chamado de
“mau militar” por um general-presidente. Mas tergiversamos. Antes de nos
despedirmos, urge passar adiante um recado que nos chega de um dos cassinos mais
elegantes de Ibiza. Diretamente de um jogo de chemin de fer (o preferido de James
Bond!), a repórter Consuelo Dieguez manda avisar que sua matéria não diz que
Bolsonaro foi expulso do Exército, mas que o atentado o empurrou para a reserva. No
que uma ema mais sagaz talvez comente com a amiga: e ficamos nós aqui a pagar essa
conta.

BERMUDES

No artigo “Eu não existi” (piauí_180, setembro de 2021), vemos um senhor,


Sergio Bermudes, numa foto com uma estante de imponentes livros
encadernados (uma coleção de jurisprudências?). Devido à Covid, ele teria ficado
inconsciente por um ano. Vemos sua vida surgir no texto. Uma trajetória dentro do
exercício do direito no Rio de Janeiro. Seu gosto refinado, todos os seus discos de Ella
Fitzgerald, suas relações pessoais com ex-presidentes e artistas. E muita cultura com
demonstrações de erudição. De passagem, há a informação da sucessão na Academia
Brasileira de Letras. Dos candidatos, que agora foram eleitos, estão Gilberto Gil e
Fernanda Montenegro. Ficamos sabendo que nessa imortalidade operam influências e
forças tão terrenas.

Contudo, na seção Cartas do mês de outubro, o leitor Umberto Noce demonstra


indignação com a piauí por dar espaço àquele senhor que iguala o atual ocupante da
Presidência deste país a Lula. Pessoalmente, gostei do texto. Acho que essa revista tem
a ver com o mundo diverso (o leitor sugere que na publicação houve uma
demonstração da força das relações do personagem).

Mas diante de todas essas considerações, gostaria de dizer que concordo com o leitor:
houve jactância.

ANDRÉ LUIZ RESENDE DE SOUZA_BELO HORIZONTE/MG

NOTA FILOSÓFICA DA REDAÇÃO SÓ PARA DAR UM JEITO DE REPETIR A


PALAVRA “JACTÂNCIA”: Abstraindo-se do artigo em questão – esta nota é
impessoal –, nós aqui na redação ficamos nos perguntando se a tal da jactância (de
novo!) não faz parte da vasta experiência humana. E se faz, se ela não tem lugar nesse
tal “mundo diverso” sobre o qual devemos nos debruçar.

BOLA DE CRISTAL

“Quando será o golpe?” (de Jair Bolsonaro), pergunta André Petry, na piauí_178, julho
de 2021.
Meu palpite é que a tentativa de golpe será logo após o primeiro turno, dia 2 de
outubro, se Lula estiver à frente do total de votos de Bolsonaro. A raiva será ainda
maior se Moro for disputar com Lula o segundo turno, dia 30 de outubro. Armas,
dinheiro para as Forças Armadas, aumentos salariais para policiais federais e
cooptação de forças estaduais, é tudo preparação para o golpe que vai sair pela culatra.
Bolsonaro deveria ser preso com seu clã e seus generais milicianos palacianos de
plantão. É a caquistocracia em seu esplendor.

PAULO SERGIO ARISI_PORTO ALEGRE/RS

UNIVERSIDADE

Não sou da área acadêmica, mas gostei do artigo do autor anônimo (sob o pseudônimo
Benamê Kamu Almudras), Parece revolução, mas é só neoliberalismo (piauí_172, janeiro de
2021). As questões levantadas no artigo inicial me fizeram refletir, e acredito que o
autor (ou a autora) parece ter mais reflexões singulares para outros debates. A escolha
do anonimato me pareceu estratégica para mostrar que o importante é a discussão de
ideias, e não necessariamente personalizar o debate, mesmo porque já se conhece as
“vaidades acadêmicas”. Eu conheço, e é um porre.

CESAR POLACHINI_SÃO PAULO/SP

Por questões de clareza e espaço, a piauí se reserva o direito de editar as cartas


selecionadas para publicação. Solicitamos que as cartas informem o nome e o endereço
completo do remetente.

Cartas para a redação:

redacaopiaui@revistapiaui.com.br

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