Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Arqueologia do desastre
Há 50 anos, a ditadura promovia a invasão predatória da Amazônia,
marcada por rodovias, projetos megalômanos e propaganda ufanista
Ricardo Cardim
(br/autores/ricardo-cardim) 01set2020 01h00 (07set2020 10h48)
Imagem do projeto Viagem pitoresca pelo Brasil , de Cássio Vasconcellos. Amazônia, 2015 Cássio
Vasconcellos
Criança curiosa, encontrei, há trinta anos, no armário da casa de minha avó materna,
um exemplar da Manchete — Edição especial Brasil 1970. Ao folhear a revista, deparei
com uma cena que me marcaria: uma estrada de terra enlameada riscando um infinito
tapete de floresta e o título em letras garrafais: “Para unir os brasileiros nós rasgamos
o inferno verde”. Outra chamada: “O Norte Amazônico — Aqui vencemos a floresta”.
Lembro bem da sensação que me tomou. Como era possível tamanha ousadia como
aquela invasão?
Privacidade - Termos
muito eficiente. Basta uma espiada em ferramentas como Google Earth para constatar
que, fora o coração da Amazônia, todo o nosso território foi transformado em uma
colcha de retalhos pela ocupação humana.
Edição especial da revista Manchete lançada em outubro de 1970 com 12 páginas coloridas
dedicadas à "conquista" da floresta viabilizada pela abertura da rodovia Transamazônica.
Reprodução/Acervo Ricardo Cardim
Com exceção da Amazônia, neste começo de século tudo o que temos não passa de
remanescentes de algo maior. Cabe aqui a frase de Warren Dean sobre a Mata
Atlântica: “Não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério da Educação
começar assim: Crianças, vocês vivem em um deserto; vamos lhes contar como foi que
vocês foram deserdadas?”
Arqueologia botânica
Um exercício que gosto de fazer é imaginar uma “arqueologia botânica”: procurar
pistas e tentar imaginar o território brasileiro séculos atrás, em uma paisagem ainda
sem interferências humanas significativas, pouco permeada pela civilização europeia e
seus reflexos, dominada por enormes extensões de vegetação primária, abundante de
árvores seculares e fauna. Claro que já tínhamos populações indígenas causando
diferentes impactos no ambiente, mas, certamente, não com a velocidade e a
competência de nossa civilização.
A Mata Atlântica demorou séculos para chegar aos críticos 12,5% de remanescentes da
área original. Já na Amazônia, que em 1980 apresentava apenas 1,6% de áreas
desmatadas, o desmatamento saltou em quarenta anos para 20% do total do bioma.
Esse índice não considera os trechos degradados por situações como exploração
madeireira, o que pode levar a números bem piores. Considerando a enorme extensão
do bioma, essa porcentagem se mostra altamente significativa e mostra a
agressividade da destruição.
Transamazônica
Na estratégia da conquista da Amazônia, as estrelas são as rodovias de penetração. O
plano traçava duas paralelas: a Perimetral Norte, ao norte do rio Amazonas, com 2.465
quilômetros, e outra ao sul, a Transamazônica, com 5.619 quilômetros, de onde
sairiam transversais, formando uma rede acessando milhares de quilômetros de
floresta. A construção foi anunciada em 16 de julho de 1970, com a promessa de
atravessar o Brasil de leste a oeste, percorrendo uma distância maior que a existente
entre Caracas e Buenos Aires.
Um filme oficial mostra árvores gigantescas caindo com música triunfal ao fundo. O
toco de uma castanheira secular ganhou uma placa de lançamento: “Nestas margens
do Xingu, em plena selva amazônica, o sr. presidente da República dá início à
construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste
gigantesco mundo verde”.
A situação da fauna não era melhor que a da flora. A caça seguia implacável, ainda
mais com a facilidade de acesso aos mercados.
Em 1971, a Realidade explica como era esse comércio: “A grande caçada coletiva de
felinos começou em 1965, quando umas três dezenas de firmas de pele
profissionalizaram como caçadores boa parte dos homens do baixo Xingu, Tocantins e
Tapajós. Em 1970, somando peles exportadas, perdidas na caça e no contrabando,
calcula-se que foram mortas 30 mil onças e 370 mil gatos menores. [...] 1970 foi um
ano ruim para os vendedores de peles: mataram apenas 500 mil jacarés”. O texto
informa que 80% da renda de Altamira, no Pará, atual sede da usina de Belo Monte,
era o negócio de peles.
Pecuária
No decorrer da década de 1970 a pecuária também foi incentivada, principalmente
pela Sudam. A estatal patrocinava campanhas em revistas de circulação nacional com
textos abomináveis. Uma empresa anunciava na busca de investidores: “A
Agropecuária Jabuti impõe o progresso à Amazônia. A boiada está modificando a
paisagem amazônica, fazendo desaparecer a era de lendas, do exotismo, dos mistérios,
das promessas. O Brasil dedica-se a conquistá-la”.
O tom não era diferente nas páginas editoriais. “O progresso ganha a selva. Lugarejos
perdidos na selva começam a plantar e criar os primeiros bois.”
O especial Amazônia da Realidade, de outubro de 1971, abre uma matéria com o título
“As patas do boi estão abrindo 280 fazendas na Amazônia: uma área duas vezes a da
Áustria”. E reproduz a fala do diretor do consórcio Swift-Armour-King’s Ranch, três
dos maiores grupos mundiais de carne: “Metade da população do mundo passa fome,
está prevista uma grande escassez de alimentos para as próximas décadas. A região
amazônica está fadada a ser o grande centro exportador de carne do mundo”.
BR-364
Mas o caso de mais rápido e agressivo desmatamento da Amazônia se deu em
Rondônia, com a abertura, em 1973, da estrada Cuiabá-Porto Velho (BR-364) e seu
asfaltamento, em 1984. O programa Polonoroeste investiu 1,5 bilhão de dólares na
colonização no estado a noroeste de Mato Grosso, sendo apenas 3% do valor reservado
à proteção do meio ambiente e 0,5% à pesquisa científica.
No final dos anos 1970 somente em Rondônia operavam setecentas serrarias, com 3
mil homens trabalhando no corte de madeira, com grande ineficiência: era preciso
queimar 150 milhões de metros cúbicos de madeira para obter 6 milhões de metros
cúbicos de madeiras nobres.
Para obter uma tonelada de ferro-gusa é necessária a lenha de pelo menos seiscentos
metros quadrados de floresta nativa. O carvão vegetal vinha de milhares de fornos
comumente chamados de “rabo-quente”, muitos deles irregulares e com precárias
condições de trabalho, em cidades como Marabá, antigo centro do conhecido
“polígono da castanha”, outrora com abundância da espécie.
Estima-se que até 2005 foram desmatados ilegalmente 800 mil hectares para atender
a exportação acumulada de ferro-gusa. O resultado em toda a grande região de Carajás
é a sumária eliminação da floresta, como pode ser comprovado no Google Earth,
comparando o desmatamento na linha do tempo na região entre 1984 e hoje.