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A RESPONSABILIDADE SOCIAL DO DISCURSO

GEOGRAFICO NA CONSTRUÇÃO DE UMA


GEOGRAFIA DOS “VENCIDOS”16.
REPRESENTAÇÕES E NEGAÇÕES

Maria Ester Ferreira da Silva Viegas.


Professora Dra. Associada /Universidade
Federal de Alagoas (UFAL) – Campus
Arapiraca – Unidade Sede
Coordenadora do LETUR – Laboratório de
Estudos Territoriais.
Pesquisadora associada do
GOVCOPP-Aveiro-Pt.
(mestersilva@palmeira.ufal.br
Odair Barbosa de Moraes (1)
Professor Dr. Associado/Universidade
Federal, de Alagoas (UFAL) Campus
Delmiro Gouveia.
Odair.Moraes@delmiro.ufal.br.

INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objetivo discutir a questão dos


territórios sociais e suas cartografias, tomamos como recorte a cidade

16
Discussão apresentada originariamente in: Caderno de Geografia, v.30, Número
Especial 2, 2020. DOI 10.5752/p.2318-2962.2020v30nesp2p301. Aqui a palavra
“vencidos” se aplica não no sentido dos derrotados enquanto sujeitos históricos
participantes da construção do território brasileiro, porém vencidos pelo aparelho
burocrático da escrita estamental onde o discurso dos poderosos, dos dominadores são
ainda hoje o discurso operante.

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de Palmeira dos Índios, pois os diversos projetos desenvolvidos através
da Pro Reitoria de extensão da Universidade Federal de Alagoas foram
executados em atenção as demandas apresentadas pelo lugar e onde a
UFAL tem uma das suas Unidades Acadêmicas. Essas demandas foram
oriundas da percepção de que os conteúdos das ementas das diferentes
disciplinas que compõe o escopo dos conteúdos dos diferentes cursos
que fazem o Campus Arapiraca, padecem de um olhar mais próximo da
realidade onde as Unidades estão serão inseridas, onde a população
local foge ao perfil do sujeito que o discurso das disciplinas com um
olhar fechado e eurocêntrico centram suas análises.
Sabe-se que um dos grandes recursos que a geografia se utiliza
para complementar suas análises e informações é a Ciência
Cartográfica. E que sendo a mesma um discurso de poder, a Cartografia
representou o discurso das elites que comandam o mundo. A
Cartografia Social surge como um espaço de possibilidades para que
“outros discursos” sejam representados, e assim possamos educar para
uma realidade concreta e onde as pessoas possam construir ações
objetivas calcadas numa realidade concreta e completa. Entendemos
que através da Cartografia Social (CS) poderemos tratar de uma
problemática que envolve questões de ordem cultural, política e
econômica.
É de fundamental importância que a Geografia possa colocar
posições em um campo teórico e provavelmente metodológico à
reflexão do lugar dos povos negros e indígenas, no tempo histórico das
contradições da valorização do espaço que se caracteriza na alienação e
reificação do valor capitalista da apropriação dos territórios indígenas e
quilombolas no processo de formação territorial do Brasil. As pequenas
cidades de origem colonial como é o caso de Palmeira dos Índios, têm
muito a contar sobre esse processo de construção do território brasileiro
e silenciamentos dos povos originários e dos povos negros
escravizados.
O atual momento histórico pelo qual passa o nosso país, nos
convida a colocar novamente nas rodas de discussões os povos
tradicionais na ordem do dia. O desmantelamento das políticas públicas

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ligadas aos povos tradicionais como um todo tem sido de grande
proporção e o espaço da sala de aula é o lugar por excelência para que
possamos alertar para as perdas de garantias individuais e coletivas que
esses segmentos tiveram diante das medidas políticas do atual governo
brasileiro.
A Geografia tem como um dos seus discursos estruturantes a
“produção espacial”, questionar a não visibilidade de determinados
grupos sociais dentro da produção espacial do Brasil enquanto
sociedade é tornar claro que a obrigatoriedade da construção
epistemológica da Geografia se dá através da prática da geografia com
perspectivas próprias da realidade social, que aliado a teoria teremos
um produto que reflita essa mesma realidade. O que a Cartografia
oficial não fez foi colocar exatamente dentro de sua produção a
presença dos povos indígenas, ribeirinhos, caiçaras, camponeses,
ciganos, sem teto, povos de terreiros, etc, nas suas representações. A
invisibilidade desses segmentos dentro da produção cartográfica é
minimizada com a inserção da Cartografia social como instrumento de
visibilidade do discurso cartográfico comprometido com a Geografia
social.
Não se pretende nesse texto cuidar dos meandros teóricos acerca
da produção do espaço, mas exatamente aponta como essas
representações do espaço produzido na cidade de Palmeira dos Índios
poderá ser um espaço dialógico de educar para a realidade.

A cidade

Viva meus filhinhos da fulô do limão... viva meus filhinhos da


fulô do imbu... da fulô do caju... de todas sementes... (Toré
cantado pelos índios Xucuru-Palmeira).

O processo de colonização, quando se apropria de territórios que


têm um povo nativo originário do lugar (sem o processo de imigração)
gera uma onda inevitável de violência, pois são submetidos a novas
culturas e a um novo poder. A força militar do Estado colonizador é
usada para ditar o domínio sobre os nativos dos territórios colonizados,

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com presença militar, jurídica, administrativa e religiosa. Segundo
Moraes (2002) a colonização gera uma relação sociedade-espaço, onde
os naturais do lugar são concebidos como atributos do espaço, uma
sorte do recurso natural local (MORAES, 2002, p. 85-86).
Comungando com o pensamento de Said e Moraes (1995,
2002), observa-se que essa prática do imperialismo “pensar, colonizar,
controlar terras”, predominou no território de Palmeira dos Índios, que
sofreu perdas consideráveis como os povos indígenas e as comunidades
de negros rurais ou “quilombolas”.

Tudo na história humana tem suas raízes na terra, o que significa


que devemos pensar sobre habitação, mas significa também que as
pessoas pensam em ter mais territórios, e, portanto, precisaram fazer
algo em relação aos habitantes nativos. Num nível muito básico, o
imperialismo significa pensar, colonizar, controlar terras que não
são possuídas e habitadas por outros. Por inúmeras razões, elas
atraem algumas pessoas e muitas vezes trazem uma miséria
indescritível para outras (SAID, 1995, p. 37).

Para Moraes (2002, p. 80): “Colonização envolve conquista, e


esta se objetiva na submissão das populações encontradas na
apropriação dos lugares e na subordinação dos poderes eventualmente
defrontados”. O processo de colonização traz características de
violência, conquista e poder militar. As estruturas produtivas já
existentes têm que se adaptar ao novo poder de colonizador, quer por
incorporação ou por destruição. Notadamente a colonização pode ser
afirmada como um processo de valorização do espaço, com apropriação
dos meios naturais, transformando-os numa segunda natureza e numa
produção de formas espaciais, e apropriação do espaço produzido.
Neste sentido a apropriação do território de Palmeira dos Índios
pelos portugueses trouxe diferentes espacialidades ao lugar e a
territorialização do grupo português implicou drasticamente no
processo de (dês) territorialização de outros grupos. O processo de (dês)
territorialização acontece quando expropriados do seu território estes
povos não conseguem se territorializar em outros espaços acontecendo
a exclusão e a marginalização dos mesmos. Estes territórios que estão

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em disputa, se tornam garantia de identidade e luta, sendo transformado
de território de exclusão e marginalidade para território de luta e
sobrevivência garantidos pela tradição e pela ancestralidade. A
destruição, a construção e a reconstrução fazem parte do espaço
tornando-o qualificado para as futuras apropriações, “A constituição de
um território é, assim, um processo cumulativo, a cada momento um
resultado e uma possibilidade – um contínuo em movimento”
(MORAES, 2002, p. 57). Sendo assim, a construção de um território
torna-se uma maneira singular de ler a história de um lugar. Portanto, a
apropriação é um elemento que define território. Porque qualifica uma
porção de terra através do trabalho social do grupo que ocupa e explora
aquele espaço, numa evidente relação sociedade-espaço17.
Tem-se na história da formação do território como a explicação
dos processos sociais resultantes das intervenções humanas que
envolvem dimensões econômicas, políticas e culturais da vida social, o
que dá uma identidade ao território que pertencem a um povo e a uma
cultura própria. Resgatar a história da formação territorial é importante
para fazer uma análise das ações que culminaram nas atuais áreas de
dominação do Estado. A Geografia humana se preocupa em entender e
explicar as formas de ocupação e valorização do espaço natural através
do trabalho humano identificando, o modo de ser, de agir, as

17
Esta discussão é feita com muita propriedade por Antonio Carlos Robert de Moraes
em sua obra: A Valorização do espaço, onde ele afirma que: .... Nesse sentido resta o
espaço como categoria social real, o espaço-resultado, construído e em construção, o
espaço real como demarcação de práticas sociais precisas, uma realidade que não
prescinde em hipótese alguma da vitalidade histórica que lhe é impressa por uma
sociedade concreta. Não há, espaço sem sociedade, nesta concepção; ou melhor, não
pode haver espaço, nem como categoria a priori e ideal nem como dimensão física
isolada e arbitrariamente pré-delimitada. O que há é a possibilidade de se trabalhar
uma relação sociedade-espaço, relação que é social exclusivamente, e que
historicamente se expressa em processos reais ou mais complexos, cuja compreensão
deve ser tarefa de uma teoria marxista da geografia. Daí a proposta que aqui será
desenvolvida: trata-se de desvendar as formas concretas que qualificam e determinam
essa relação, cuja historicidade a define enquanto processo permanente de dês
naturalização, humanização e socialização do espaço terrestre. (MORAES, 1999,
p.72-73).

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manifestações culturais e históricas que atuam nas sociedades de modo
diferente na construção do espaço social.
Faz-se necessário observar a questão do Estado como
instrumentalizador e legitimador da segregação espacial sofrida pelos
povos negros e indígenas na organização do território brasileiro, assim
como as diversas formas de resistências empreendidas pelos diferentes
povos indígenas e quilombolas para conseguirem sobreviver ao
massacre imposto pelo modelo econômico capitalista onde o Outro não
existe essencialmente enquanto Ser e sim enquanto mercadoria e onde
a terra teria apenas valor de troca e não valor de uso. De acordo com
(SILVA, 2004, apud, MARTINS, 1998, p.16-17).

Se a mercadoria é um instrumento para subjugar os povos indígenas,


tem também o seu retorno, a sua contrapartida. Ao mesmo tempo
em que destrói ou modifica as sociedades tribais, cria um canal de
vivificação de relações sociais, lança o índio na contradição da
sociedade de mercado... O índio se transforma em agente dos
processos da sociedade que pretende dominá-lo, passa a ser sujeito
político do mundo que pretende fazê-lo desaparecer...

A apropriação do território que hoje forma o município de


Palmeira dos Índios traz uma história de exclusão visível a qualquer
olhar mais atento dirigido à sua formação territorial. Esta formação está
mascarada pela romântica lenda indígena não permitindo as pessoas
perceberem a violência impetrada aos diferentes povos na formação do
território palmeirense, o que torna os habitantes desta cidade
desinformados sobre sua própria história, sua raiz, sua memória
(Viegas, 2020, p.302). E a presença dos quilombolas, também foi
apagada dos equipamentos que poderiam demarcar a presença do povo
negro na cidade: A destituição do espaço religiosos da Igreja Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos para a alocação do Museu18 XUKURU

18
Sobre essa discussão da destituição da Igreja em função do Museus de Usos e
Costumes ver artigo publicado Viegas, M. E. F. da S., & Moraes, O. B. de. (2020).
Museu de usos e costumes em Palmeira dos Índios, Alagoas, Brasil: sobreposição de
culturas, negação de identidades. Diversitas Journal, 5(3), 1898-1923.

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de Usos e Costumes da cidade, mostra esse apagamento da memória do
povo negro na cidade (Viegas e Moraes, 2020).
A discussão de uma cartografia social do município como
ferramenta metodológica de apropriação do território dentro dos
currículos da disciplina de Geografia coloca no tempo presente questões
cotidianas que contribuirão para uma visão com uma maior
proximidade do real da cartografia da cidade. É preciso entender que
uma invisibilidade cartográfica é antes de tudo reflexo de uma
invisibilidade sociológica e jurídica de determinados segmentos da
população da sociedade (Viegas, Cadernos de Geografia, 2020, v.30).
A aproximação da Cartografia Social como instrumento pedagógico de
leitura da cidade, se torna essencial, haja vista que sendo negados a
representação ou mesmo a existência dos quilombolas e indígenas
dentro da cartografia oficial, resta a cartografia social cobrir essa
lacuna.
Construir um outro mapa da cidade com função de
entendimento do lugar tornará o discurso geográfico um excelente leitor
da realidade junto aos alunos, e assim a Geografia estará contribuindo
para uma produção intelectual que problematiza e responde a realidade
de onde o aluno está inserido. O ambiente escolar deve ser um dos primeiros
lugares a ensinar os indivíduos a respeitar as diversidades, seja elas culturais,
raciais, econômica, uma vez que o Brasil é formado por diversas etnias, não
deve haver espaço para atitudes racista e preconceituosas. A Geografia é um
importante aliado para ser trabalhar uma educação que promova a igualdade
racial e o respeito às etnias. É necessária uma revisão nos conteúdos
curriculares para que a temática antirracial seja trabalhada nas escolas
independente dos alunos serem negros ou serem índios.
As identidades quilombolas e indígenas em muitas vezes não
são bem-vindas nos lugares onde estão inseridas, um processo histórico,
baseado em um discurso racista e excludente deixaram negros e índios
de fora do grande bolo de divisão da riqueza da nação. As lutas dos
povos indígenas para serem reconhecidos (existe uma farta literatura
que afirma que os índios do Nordeste não existem mais), o que os obriga
a uma constante reafirmação de sua identidade. E os povos

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quilombolas, que surgem organizados juridicamente após a
Constituição de 1988 também lutam pela reparação histórica, onde o
país reconhecendo o imenso prejuízo moral, econômico e social que a
escravidão impetrou ao povo negro, disponibiliza instrumentos através
de políticas públicas que possam ajudar ao negro brasileiro conseguir
condições de vida e inserção dentro da sociedade, porque “vidas negras
importam”.

CONCLUSÃO

Mapas e cartografia em geral são ferramentas utilizadas para


relatar uma realidade, simplificando-a. Ferramenta dos geógrafos, mas
também (e antes de tudo) dos militares, instrumento do poder público,
do Estado, isto é, do poder, os mapas não são coisas neutras como
tendemos muito a acreditar. Pensar, fazer um mapa é fazer escolhas. O
mapa é uma simplificação da realidade e dependendo se se opta ou não
por mostrar esta ou aquela informação, a representação da realidade não
será a mesma. Pode haver um interesse, uma aposta, em não mostrar
esta ou aquela informação em uma carta, ou, pelo contrário, mostrar
diferentes tipos de informações na mesma carta.
Nesta comunicação, esperamos que tenhamos sido capazes de
explicar, que todo o conhecimento produzido seja capaz de construir
uma idéia de Cartografia que represente a todos aqueles que fazem e
fizeram a construção do território brasileiro, e não apenas a de uma
classe. Que sejamos sensíveis as novas cartografias que fogem a
cartografia oficial, que a cartografia social tenha um espaço maior
dentro de nossos conteúdos, para que possamos atingir uma sociedade
menos assimétrica.

REFERÊNCIAS

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 7, n.


13, p. 97-110, jan./jun., 2017.

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Revista de Ensino de Geografia, Uberlândia-MG, v. 8, n. 15, p. 82-
97, jul./dez. 2017. ISSN 2179-4510 -
http://www.revistaensinogeografia.ig.ufu.br/

El poder de la Cartografía Social en las prácticas contrahegemónicas o


La Cartografía Social como estrategia para diagnosticar nuestro
território », Universidad estadual Paulista, 2006.

KOGA, Dirce. Cidades entre territórios de vida e territórios vivido.


Serviço Social & Sociedade. São Paulo, n. 72, p. 23-52, nov. 2002.
[Links]

______. Medidas de cidades entre territórios de vida e territórios


vividos. São Paulo: Cortez, 2003. [Links]

VIEGAS, Maria Ester Ferreira da Silva. O negro, o índio, a cidade e o


esquecimento: a cartografia dos vencidos como uma possibilidade de
leitura do território. Caderno de Geografia, v.30, Número Especial 2,
2020.

Viegas, M. E. F. da S., & Moraes, O. B. de. (2020). Museu de usos e


costumes em Palmeira dos Índios, Alagoas, Brasil: sobreposição de
culturas, negação de identidades. Diversitas Journal, 5(3), 1898-
1923.

SILVA, M.E.F. A desterritorialização do povo Xukuru-Kariri e


processo de demarcação das terras indígenas em Palmeira dos Índios.
2004.120f. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade
Federal de Sergipe, Aracaju, 2004.

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