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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA


DISCURSIVO-FUNCIONAL

MONCLAR GUIMARÃES LOPES

NITERÓI

2010
0
MONCLAR GUIMARÃES LOPES

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA


DISCURSIVO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-


graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito final para a obtenção
do Grau de Mestre. Área de Concentração:
Estudos da Linguagem. Subárea: Língua
Portuguesa. Linha de Pesquisa: Interfaces –
Discurso/Sintaxe/Fonologia Experimental.

Orientadora: Profa Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes

Co-orientador: Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Niterói

2010

1
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

L864 Lopes, Monclar Guimarães.


Encapsulamentos semânticos em perspectiva discursivo-funcional /
Monclar Guimarães Lopes. – 2010.
219 f. ; il.
Orientador: Vanda Maria Cardozo de Menezes.

Co-orientador: Sebastião Carlos Leite Gonçalves.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,


Instituto de Letras, 2010.
Bibliografia: f. 118-126.

2
MONCLAR GUIMARÃES LOPES

ENCAPSULAMENTOS SEMÂNTICOS EM PERSPECTIVA


DISCURSIVO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-


graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito final para a obtenção
do Grau de Mestre. Área de Concentração:
Estudos da Linguagem.

Aprovada em 21 de junho de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Profa. Vanda Maria Cardozo de Menezes – UFF
Orientadora

_______________________________________________________
Prof. Sebastião Carlos Leite Gonçalves – UNESP
Co-orientador

_______________________________________________________
Profa. Maria Maura Cesário – UFRJ

_______________________________________________________
Profa. Mariângela Rios de Oliveira – UFF

_______________________________________________________
Profa. Nilza Barrozo Dias – UFRJ

Niterói

2010
3
Os desejos humanos são infindáveis. São
como a sede de um homem que bebe água
salgada, não se satisfaz e a sua sede apenas
aumenta.

Texto Budista

[...]

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador


Tem que passar além da dor.
[...]

Fernando Pessoa

4
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que sempre me incentivaram


em minha educação.

À minha esposa, pelo apoio incondicional e


compreensão de minha ausência.

Às minhas irmãs, pela amizade e por


acreditarem em mim.

Aos mestres que encontrei pelo caminho,


sobretudo à Vanda e ao Sebastião Carlos, sem
os quais esse trabalho não teria saído.

À Nelma da secretaria de Pós-graduação,


pela eterna boa vontade e competência.

5
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – O triângulo de Odgen e Richards ...................................................... 19


Quadro 2 – Percepção e referente ...................................................................... 22
Quadro 3 – Função e configuração dos rótulos propostos por Francis ............... 43
Quadro 4 – O modelo descendente de Representação Gramatical proposto
pela GDF .......................................................................................... 52
Quadro 5 – Categorias do Nível Interpessoal ....................................................... 56
Quadro 6 – Categorias do Nível Representacional .............................................. 73
Quadro 7 – Encapsuladores do Nível Representacional ..................................... 91

6
SUMÁRIO

RESUMO .............................................................................................................. 10

ABSTRACT .......................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12

CAPÍTULO I: A REFERÊNCIA E SEUS POSTULADOS TEÓRICOS ................ 17


1.1. OS ESTUDOS DA REFERÊNCIA ................................................... 17
1.2. A PERSPECTIVA LÓGICO-SEMÂNTICA ...................................... 18
1.3. A PERSPECTIVA SOCIOCOGNITIVA INTERACIONISTA ............ 21
1.3.1. A instabilidade e os processos de estabilização .................. 24
1.3.2. Categorização e recategorização ......................................... 26
1.3.3. A progressão referencial ....................................................... 27

CAPÍTULO II: O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO ........................................ 31


2.1. INTRODUÇÃO .................................................................................... 31
2.2. A POSIÇÃO DOS RÓTULOS NO TEXTO .......................................... 34
2.3. ROTULAÇÃO E NOMINALIZAÇÃO .................................................... 34
2.4. RÓTULOS DE CONTEÚDO ............................................................... 36
2.5. RÓTULOS METALINGUÍSTICOS ...................................................... 37
2.5.1. Nomes ilocucionários ............................................................ 37
2.5.2. Nomes de atividades linguageiras ........................................ 38
2.5.3. Nomes de processos mentais .............................................. 39
2.5.4. Nomes de texto ..................................................................... 39
2.6. CONFIGURAÇÃO DOS RÓTULOS ................................................... 40

CAPÍTULO III: A GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL (GDF) ................... 46


3.1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 46
3.2. PROPRIEDADES BÁSICAS DA GDF................................................. 50
7
3.3. OS QUATRO NÍVEIS DE ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA ................ 52
3.3.1. O Nível Interpessoal (ou pragmático).................................... 54
3.3.1.1. Move ....................................................................... 56
3.3.1.2. Ato Discursivo ......................................................... 60
3.3.1.3. Ilocução ................................................................... 64
3.3.1.4. Participantes ............................................................ 67
3.3.1.5. Conteúdo Comunicado ............................................ 68
3.3.1.6. Subatos .................................................................... 69
3.3.2. O Nível Representacional (ou semântico) ............................. 71
3.3.2.1. As categorias ontológicas básicas ........................... 73
3.3.2.1.1. Conteúdo Proposicional ............................. 73
3.3.2.1.2. Episódio ...................................................... 75
3.3.2.1.3. Estado-de-Coisas ....................................... 76
3.3.2.1.4. Propriedades .............................................. 77
3.3.2.1.5. Indivíduos ................................................... 79
3.3.2.2. As categorias semânticas secundárias .................... 80
3.3.2.2.1. Lugar .......................................................... 80
3.3.2.2.2. Tempo ........................................................ 81
3.3.2.2.3. Modo .......................................................... 82
3.3.2.2.4. Razão ......................................................... 82
3.3.2.2.5. Quantidade ................................................ 83
3.3.2.3. Língua Reflexiva ..................................................... 83

CAPÍTULO IV: PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................... 85


4.1. CARACTERIZAÇÃO DO CORPUS .................................................... 85
4.2. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ...................................................... 86
4.2.1. Estudo dos rótulos metalinguísticos propostos por Francis
e do Nível Representacional da GDF............................................... 86
4.2.2. Levantamento de dados no corpus ....................................... 87
4.2.3. Elaboração de metodologia de análise...................................87
CAPÍTULO V: A ANÁLISE DOS DADOS .......................................................... 89
5.1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 89
5.2. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS BÁSICOS ............................... 91

8
5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional ........................ 92
5.2.2. Encapsuladores de Episódio ................................................ 94
5.2.3. Encapsuladores de Estado-de-coisas .................................. 96
5.2.4. Encapsuladores atribuidores de Propriedades .................... 99
5.3. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS SECUNDÁRIOS .................... 101
5.3.1. Encapsuladores de Modo ..................................................... 102
5.3.2. Encapsuladores de Razão .................................................... 103
5.3.3. Encapsuladores de Quantidade ............................................ 104
5.4. ENCAPSULADORES METALINGUÍSTICOS ..................................... 106
5.5. CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA ..................................................... 107
5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos. 108
5.5.2 O papel do contexto ............................................................... 108
5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos .............................. 110
5.5.4. A análise de encapsulamentos de núcleo gramatical .......... 110
5.5.5. Nem todo encapsulamento advém de categoria instável..... 110
5.5.6. A configuração dos encapsulamentos depende do discurso.112
5.6. Perspectivas futuras ............................................................................ 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 115

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 118

ANEXOS ............................................................................................................. 127

9
RESUMO

Este trabalho propõe a ampliação categorial dos encapsulamentos


semânticos propostos por Francis (1994, 2003) por intermédio das categorias
semânticas do Nível Representacional da Gramática Discursivo-Funcional.
Defendemos que a autora, em seus estudos, não deu tratamento a todas as
categorias semânticas possíveis de uma unidade linguística. Paralelamente,
patrocinamos uma redefinição do próprio conceito de encapsulamento, uma vez que
este pode tanto apresentar dependência contextual quanto ser representado por
elemento gramaticalizado. Os dados coletados para a elaboração da análise foram
extraídos de oitenta e oito textos do gênero Crítica de Cinema e TV, do jornal A
Folha de São Paulo online, no período de agosto de 2008 a janeiro deste ano.

PALAVRAS-CHAVE: Encapsulamento; Referenciação; Gramática Discursivo-


Funcional

10
ABSTRACT

This work proposes the categorial widening of the semantic anaphoric


encapsulations proposed by Francis (1994, 2003) through the semantic categories of
the Representational Level established by the Functional Discourse Grammar. We
believe that Francis, in her studies, did not approach all the possible semantic
categories of a language unit. In addition to this, we support a redefinition of the
concept of encapsulation, since it can be dependent on context or be represented by
grammaticalized terms. Our corpora were extracted from eighty-eight TV and Movie
Reviews from Folha de São Paulo online, in the period of August, 2008 to January,
2010.

KEY WORDS: Encapsulation; Referenciation; Functional Discourse Grammar.

11
INTRODUÇÃO

O mundo não fala, apenas nós falamos. Desde que fomos programados com uma
linguagem, o mundo pode levar-nos a adotar certas crenças. Mas não poderia fornecer
uma linguagem para que nós falássemos. Apenas outros seres humanos podem fazê-lo.

1
Richard Rorty

Esta dissertação visa à discussão teórica dos estudos da referência –


incluindo-a em uma perspectiva mais recente de análise lingüística, a discursivo-
funcional2 – e à ampliação categorial dos encapsulamentos semânticos  de
metafunção ideacional e textual  propostos por Francis (1994, 2003), por recurso
às categorias semânticas do Nível Representacional da Gramática Discursivo-
Funcional3. Para tanto, utilizam-se como corpus oitenta e oito textos do gênero
Crítica de Cinema e TV, todos extraídos do jornal Folha de São Paulo, do período de
Agosto de 2008 a Janeiro deste ano.

Defende-se a tese de que os encapsulamentos semânticos extrapolam as


categorias previstas por Francis, que, em vez de quatro – nomes ilocucionários, de
processo mental, de atividades linguageiras e de textos –, compõem oito categorias

1
- Original: The world does not speak. Only we do. The world can, once we have programmed
ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for us to speak.
Only other human beings can do that. Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity.
Cambrigde: Cambridge University Press, 1989.
2
Uma vez que se trata de uma perspectiva recente, a organização deste trabalho exige uma
abordagem mais detalhada e extensa do referencial teórico, uma vez que se trata de uma teoria
pouco difundida no Brasil: a Gramática Discursivo-Funcional.
3
A Gramática Discursivo-Funcional representa uma versão atualizada da Gramática Funcional
Padrão de Dik (1997), elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2008).

12
– encapsuladores de Conteúdo Proposicional, de Episódio, de Estado-de-coisas, de
Propriedade, de Modo, de Razão, de Quantidade e Metalinguísticos. Paralelamente,
também se defende a tese de que o encapsulamento vai além do sintagma nominal
ou do cotexto propriamente dito – ao contrário do que defende Conte (2003, p. 177)
–, pois, sob uma dimensão discursivo-funcional, o encapsulamento pode tanto ser
representado por elementos gramaticais quanto pode não encontrar âncora
delimitável no cotexto, conforme será visto na análise dos dados. Por essa razão,
far-se-á uso da concepção de Koch (2003, p. 94), uma vez que sua definição de
encapsulamento – sumarização de uma informação precedente, compartilhada pelos
interlocutores – atende tanto ao cotexto quanto ao contexto.

Além dessas questões, a pesquisa visa a investigar mais dois pontos:

1) O estudo das categorias estáveis dos encapsulamentos

Embora a perspectiva sociocognitiva interacionista reconheça as práticas de


sedimentação das categorias em protótipos e estereótipos, os estudos que conferem
instabilidade ao objeto-de-discurso (referente) têm estado, fortemente, mais
presentes. Dessa forma, esta pesquisa inclui algumas categorias lexicais e
gramaticais que, embora mais estáveis, representam formas encapsuladoras.

2) A configuração dos encapsulamentos é gradiente, e não binária

Os estudos atuais dos encapsulamentos acerca de sua configuração, se


axiológicos ou não-axiológicos, sugerem que sua configuração se dá de forma
binária: ou é avaliativo ou não. No entanto, sustenta-se a idéia de gradiência, uma
vez que se encontram, no corpus, formas encapsuladoras cuja configuração não é
claramente delimitável.

Segundo os autores da GDF, a idéia da análise de um fenômeno textual


através de um modelo gramatical partiu do próprio Dik, que já havia dedicado todo
um capítulo ao estudo da anáfora em The Theory of Functional Grammar Part 2:
Complex and Derived Constructions. Na versão atual, no entanto, Hengeveld e
Mackenzie (2008) apenas apontam a potencialidade do estudo anafórico, mas ainda
não o desenvolvem. É importante ressaltar que essa atualização da teoria
13
gramatical, que implicou, inclusive, uma nova nomeação, representa toda uma
mudança de perspectiva da Gramática Funcional Padrão, distanciando-se, e muito,
de sua versão original. Como, para a Gramática Discursivo-Funcional (doravante
GDF), a unidade mínima de análise não é a oração, mas o Ato Discursivo4, os
paradigmas mudaram. Portanto, o que se fez, aqui, não foi uma confirmação do
trabalho de Dik, mas a interpretação de um tipo de anáfora mediante as
potencialidades das categorias semânticas previstas pela GDF.

Munidos da concepção de que um modelo de análise gramatical deve ser


descendente, isto é, deve partir do componente conceitual, Hengeveld e Mackenzie
(2008) dividem sua teoria em quatro instâncias hierárquicas  o Nível Interpessoal
(ou pragmático), o Nível Representacional (ou semântico), o Nível Morfológico e o
Fonológico  e prevê o estudo da anáfora em todas elas, como se vê a seguir:

1) Anáforas do Nível Interpessoal (pragmático):

A: - Saia daqui!
B: - Não fale comigo assim!

2) Anáforas do Nível Representacional (semântico):

A:- Há muitos semáforos nesta cidade!


B: Eu não notei isso.

3) Anáforas do Nível Morfossintático:

A:- Eu comi ‘lamb chops’ noite passada.


B: - É assim que vocês dizem ‘chuletas de cordeiro’ em inglês?

4) Anáforas do Nível Fonológico:

A: - Eu comi /t∫u’letasdekor’dero/ noite passada?

4
Para definição de Ato Discursivo, consulte o tópico 3.3.1.2, no terceiro capítulo.

14
B: - Isso não deveria ser /∫u’letasdekor’dero/?
De acordo com os autores (op. cit), em (1B), o elemento anafórico assim faz
remissão à estratégia comunicativa escolhida por (1A), razão pela qual pertence ao
nível pragmático; em (2B), isso faz remissão à situação extralinguística descrita por
2A, por isso pertence ao nível semântico. Já as referências (3B) e (4B) são
diferentes por serem de natureza metalinguística, isto é, são mensagens sobre o
código (JACKOBSON 1971 apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 05).

Dessa forma, sob a égide da GDF, pode-se conceber em que extensão a


referência sofre motivações de cunho pragmático, semântico ou gramatical, o que
vem a favorecer um novo estudo tipológico da referenciação. Vale ressaltar que a
Linguística Textual não trabalha com esses níveis linguísticos, que permitem a
análise de anáforas tanto no território do léxico, quanto no da gramática.

Não obstante, pela extensão e natureza da pesquisa suscitada pela hipótese


apresentada, delimitou-se a pesquisa aos encapsulamentos semânticos,
compreendendo-os a partir dos conteúdos que encapsulam, e não a partir dos níveis
em que se manifestam. Dessa forma, analisam-se quais encapsuladores fazem
remissão a um segmento disponível de discurso, isto é, que já foi designado. Por
isso, na pesquisa realizada, há também a investigação de elementos que, embora
se manifestem no Nível Morfossintático, encapsulam uma designação prévia. Tal
recorte epistemológico, o da análise a partir do conteúdo encapsulado, mostrou-se
necessário, uma vez que se partiu dos estudos já propostos por Francis (1993,
2004), cuja análise dos rótulos já partia desse princípio.

No que tange à literatura vigente, vários autores têm-se debruçado sobre o


fenômeno da referenciação5 feito por meio de encapsulamentos. Alguns sob uma
perspectiva sistêmico-funcional (FRANCIS, 1993, 2004), outros sob uma perspectiva
textual (CONTE, 2003), outros sob uma perspectiva discursivo-argumentativa
(MOIRAND, 1975), outros, ainda, sob uma perspectiva sociocognitiva (MONDADA e
DUBOUIS, 2003; APOTHÉLOZ e REICHLER-BÉGUELIN, 2003).

5
Por referenciação, entendemos o complexo processo de construção de objetos-de-discurso
(referentes) na interação dos sujeitos envolvidos. Para tal perspectiva, não se deve considerar a
referência em si mesma, mas o processo intersubjetivo no qual os sujeitos (sócio-cognitivos)
elaboram versões públicas do mundo.
15
Embora tais linhas de estudo da referenciação sejam variadas, esta
dissertação aproxima-se da perspectiva de Francis (1994, 2003), uma vez que a
GDF também tem como base as metafunções linguísticas elaboradas pela
Linguística Sistêmico-Funcional. Contudo, trata-se, na verdade, de uma perspectiva
discursivo-funcional da referência, visto a dimensão discursivo-pragmática em que a
GDF se insere.

Não obstante, tal perspectiva não se afasta de uma concepção sociocognitiva


da linguagem. As duas teorias compreendem a importância da práxis e
compartilham a idéia de que é através dela que se constrói o discurso. Portanto, a
perspectiva sociocognitiva da referência e a discursivo-funcional são linhas
complementares. A diferença tênue entre as duas é que a primeira se preocupa com
o processo em si, isto é, em como se dá a construção dos objetos-de-discurso, e a
segunda, em como tais processos discursivos se manifestam na cadeia linguística.

Quanto à organização do trabalho, esta dissertação é composta de cinco


capítulos, além da introdução e das considerações finais. Iniciou-se através de uma
revisão de literatura, em que se apresentam duas linhas do estudo da referência  a
lógico-semântica e a sociocognitiva interacionista (capítulo I)  e um estudo
pormenorizado do encapsulamento na literatura vigente (capítulo II). A partir daí,
tratamos da fundamentação teórica, na qual apresentamos as propriedades gerais
da GDF e discutimos sua potencialidade para um estudo dos encapsulamentos
(capítulo III). Por fim, tratamos da metodologia de análise (capítulo IV) e da
investigação do corpus levantado (capítulo V).

Acredita-se que a relevância de tal trabalho se encontra na interface de duas


linhas, que, muito embora possuam visão de língua semelhante e sejam
complementares6, percorrem caminhos diferentes na maioria dos estudos. De um
modo geral, o que se pretende, aqui, é fazer algo semelhante a proposta de Neves
(2006): aliar gramática e texto.
6
De acordo com Dik (1978 apud Neves, 1999), para o Funcionalismo, a língua é concebida como
instrumento de interação social entre seres humanos, usado com o objetivo principal de estabelecer
relações comunicativas entre os usuários; Segundo Koch (2003), para a Linguística Textual, a língua
é como um lugar de interação, no qual os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais e no
qual o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos
ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos.

16
CAPÍTULO I

A REFERÊNCIA E SEUS POSTULADOS TEÓRICOS

Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre os estudos
da referência. Para tanto, ele se subdivide em quatro partes. Na primeira seção,
introduzem-se as duas correntes que tratam do estudo da referência; na segunda e
terceira seções, explicita-se cada uma das perspectivas apresentadas; na quarta, faz-se
uma breve avaliação do capítulo.

1.1. OS ESTUDOS DA REFERÊNCIA

A relação entre signo e coisa, isto é, entre linguagem e mundo, é uma


investigação antiga nas ciências linguísticas. Desde os estóicos, questões acerca da
natureza e do lugar do acontecimento semântico têm recorrência nos estudos da
linguagem: como e quando eclode a significação? Em que momento da cognição
irrompe o significado? Qual é o mecanismo da semiose, enfim? (cf. BLIKSTEIN,
1985, p. 23).

Tais questionamentos levaram estudiosos a inúmeras pesquisas e a algumas


reformulações teóricas sobre a relação linguagem-mundo e, mais especificamente,
sobre a relação entre signos linguísticos (significante e significado) e o referente (a
coisa extralinguística). Pode-se afirmar que os pesquisadores e os teóricos da área
se dividem basicamente em duas tendências dominantes: uma de tradição lógico-
semântica e outra, mais recente, de perspectiva sociocognitiva interacionista.

17
1.2. A PERSPECTIVA LÓGICO-SEMÂNTICA DA REFERÊNCIA

Até o século XIX, grande parte dos estudos linguísticos apontaram para uma
relação biunívoca entre língua e realidade, com o pressuposto de que a língua servia
como representação do pensamento (cf. KOCH, 2003, p. 13), concepção que nos
levou à ideia de que o sujeito era um ser psicológico, individual, dono de suas
vontades e ações (op. cit.), uma vez que a linguagem era tomada como mera
transcrição da realidade objetiva. Tal ponto de vista, segundo Araújo (2004, p.22)
está presente desde Agostinho (354-430) até Locke – 1632.

Agostinho restringe a linguagem à referência, sem o que o significado é vazio, pois a


linguagem deve transmitir pensamento, e pensamento é sobre algo;[...]. Para a
concepção agostiniana de linguagem, mas também para o senso comum e para o poeta,
conhecer a essência, a realidade “mesma”, é algo mais precioso do que a palavra
(palavras não passam de palavras, sons: “palavras soltas ao vento”, diz-se “words,
nothing but words”...).
Para Locke, as palavras são usadas para falar da realidade das coisas e não do fruto
da imaginação da pessoa. Com uso frequente firma-se, fixa-se a relação entre sons e
idéias a ponto de quando alguém ouve tal som, vir-lhe a idéia como se fosse a própria
coisa que impressiona os sentidos.

A partir do séc. XIX, no entanto, tais pontos de vista começam a ser refutados
pelo estruturalismo de Saussure (1971, p. 79), que afirma que a língua não deve ser
reduzida a uma nomenclatura, numa simples relação entre nome e coisa. Para tal
teórico, o signo linguístico é psíquico, tem relação com um conceito e uma imagem
acústica, ambos de natureza mental. Logo, abandona-se a referência, na defesa de
que uma ciência linguística deveria basear-se em suas relações internas, e não em
componentes extralinguísticos.

Tal insuficiência da relação entre signos e coisas veio sendo insistentemente


assinalada na linguística, até que os estudos semânticos de Odgen e Richards
(1956 apud BLIKSTEIN, 1985, p. 23) lançaram mão da figura do referente, isto é, da
coisa extralinguística, que distinguiam nitidamente de referência, ou significado

18
linguístico. Ficavam assim superadas, aparentemente, as relações dicotômicas entre
significante e significado, na medida em que, para os dois estudiosos (op. cit),
símbolo (signo ou significante), referência ou pensamento (significado) e referente
(coisa ou objeto extralinguístico) passavam a figurar numa relação triádica,
esquematizada no triângulo abaixo:

Referência ou Pensamento

(significado)

Símbolo Referente
(significante) (coisa ou objeto extralinguístico)

Quadro 1 – O triângulo de Odgen e Richards (BLIKSTEIN, 1985, p. 24)

Não obstante, muito embora Odgen e Richards tenham lançado mão do que
concebem como referente (a coisa extralinguística) - dando um passo a mais que
Saussure, que só havia estabelecido uma relação dicotômica no estudo do signo
(significante x significado) -, não o incluíram nos estudos linguísticos, afirmando que
não havia nenhuma relação direta e pertinente entre símbolo e referente, somente
entre símbolo e referência, em consonância com os estudos de Saussure.

Como consequência de tal posicionamento, os estudos da significação só se


ativeram ao lado esquerdo do triângulo, vendo o eixo símbolo e referência como um
código social homogêneo. Essa tendência é observada por Benveniste (1991, p.52),

devido ao fenômeno da transparência linguística, o falante considera haver entre o signo


e a realidade uma adequação total: o signo recobre e dirige a realidade, ou melhor, ele é
essa realidade. Objeto e nome se confundem. [...] Já o linguista trabalha com a relação
entre significante e significado, e o “domínio do arbitrário” é relegado para fora da
compreensão do signo linguístico.

19
Em outras palavras, sobre o trecho citado, Benveniste comenta que a
significação não decorre da referência, mas da relação entre conceito e imagem
acústica, como defendia Saussure.
Até então relegada ao âmbito da filosofia da linguagem, a referência era
analisada em parâmetros de verdade. Mais especificamente, filósofos como
Wittgenstein(1994), Frege (1977) e Russel(1978)7, ao verem que o signo não se
limitava ao estabelecimento de uma relação direta com a coisa nomeada, relegaram-
no à forma lógica da proposição em afirmações assertóricas. Para tais estudiosos,
só haveria referência se dada proposição pudesse ser verificada no mundo (hipótese
veritativa), como podemos notar no famoso exemplo de Russel (1978, p. 41):

(01) O atual rei da França é calvo

Segundo Russel, como a França não tem rei, há apenas a representação, e


não uma referência, já que ela não é localizável no mundo. Tal crença segundo a
qual haveria um referente a ser identificado na realidade “mesma” era pressuposto
de todos os estudos lógico-semânticos. Para Coseriu (1969, p.237), trata-se de uma
postura logicista da linguagem.

a mania logicista é um dos lugares-comuns que – com arrogância não justificada pelas
dimensões de suas idéias, e entre confusões de toda índole – proclamam C. K. Odgen e
I. A. Richards... Isto para não falar das idéias, ainda mais extravagantes, de A.
Korzybsky, Science and Meaning, Lancaster Pa., 1933, e de sua escola antiaristotélica
de neo-semanticistas, para quem a maioria dos males do mundo se deveria ao uso
impróprio das palavras.

Em um mesmo sentido, para Araújo (2004), o problema da relação entre


signo e realidade depende da concepção de significado e referência. Se significado
for o conceito aderido a um significante, então a relação acima fica,
propositadamente, fora da linguística. Designa-se, remete-se com o signo a uma
situação intencionada ou experimentada e nesta operação o que se transmite,
evidentemente, é um signo e não um objeto (Ibidem, p. 45). Além disso, para a

7
As datas apontadas acima representam a referência da tradução da obra. As obras originais datam
de 1921, 1892 e 1903, respectivamente.

20
autora, o patamar estrutural, aquele dos signos e suas combinações, depende do
discurso e não da frase gramatical ou de uma proposição. A pragmática vem a ser o
horizonte teórico, quer dizer, é preciso sair dos limites exclusivamente estruturais da
língua (Ibidem, p. 46).

Por conseguinte, percebe-se que, em determinado momento da ciência, a


linguística reivindicou a incorporação do referente8 em suas pesquisas (isto é, não
relegando-o somente à filosofia da linguagem), o que, por consequência, suscitou a
segunda tendência – de perspectiva sociocognitiva interacionista –, como
contraponto à primeira – de tradição lógico semântica.

A esse respeito, Blikstein (1985, p. 45) afirma que

(...) a Linguística acaba por confessar a necessidade de incluir a percepção/cognição no


aparelho teórico da semântica, pois é evidente que a significação linguística é tributária
do referente e que, por sua vez, é constituído pela dimensão perceptivo-cognitiva.

1.3. A PERSPECTIVA SOCIOCOGNITIVA INTERACIONISTA DA REFERÊNCIA

Uma das grandes contribuições da perspectiva sociocognitiva interacionista é


a compreensão de que a percepção é o lugar não-linguístico em que se situa a
apreensão da significação, ou seja, é a percepção/cognição que transforma o “real”
em referente (GREIMAS, 1973 apud BLIKSTEIN, 1985, p. 47).

8
A incorporação do referente a que nos referimos, no entanto, não é algo meramente extralinguístico,
mas,sim, construído pelo intermédio da práxis, como veremos a seguir.

21
Referência

PERCEPÇÃO

Realidade

Símbolo Referente

Quadro 2 – Percepção e referente (BLIKSTEIN, 1985, p. 49)

Tal mudança paradigmática, reificada não somente por Greimas como


também por vários outros (cf. Coseriu, Benveniste, Chomsky etc.), permitiu-nos
perceber que a língua não recorta a realidade propriamente, mas, sim, apresenta
uma realidade “fabricada” no discurso, pois é a percepção, enquanto sistema de
crenças, ideologias e hábitos, que constrói, fabrica o “real”. Inclusive, segundo
Saussure (1971), não é o objeto que precede o ponto de vista (percepção para
Greimas), mas exatamente o contrário, perspectiva que, sem dúvida, reitera o novo
posicionamento: o da fabricação do real.

Baseado na conhecida obra de cunho verídico de W. Herzog, O Enigma de


Kaspar Hauser, Blikstein (1985) defende que a percepção depende de uma
construção e de uma prática social. No filme em questão, por exemplo, o
protagonista, Kaspar Hauser, fora criado em um sótão sem nenhum contato humano
até os dezoito anos. Após ser inserido no convívio em sociedade, embora já tivesse
adquirido linguagem, Kaspar Hauser decodifica a significação do mundo sempre de
forma “aberrante”, o que exemplifica a função da percepção (enquanto sistema de
crenças, ideologias e hábitos) na interpretação do mundo. Inclusive, de acordo com
o autor (Ibid., p. 55),

a permanência do déficit cognitivo de Kaspar Hauser seria um índice de que os


elementos que modelam a percepção do mundo e as configurações conceituais podem
ser capturados não só na linguagem, mas, sobretudo, na dimensão da práxis. É a tese

22
de que o sistema perceptual, as estruturas mentais e a própria linguagem são tributários
da práxis.

Portanto, a tendência sociocognitiva interacionista, em sentido lato, não só


incluiu o referente na análise linguística, como também a importância da práxis
social para entender o objeto extralinguístico, ao colocar em ação processos de
estereotipação, ou seja, ao possibilitar a “estabilização” do mundo.

Apoiado na mesma idéia, Blikstein (Ibid., p.82), afirma que

a nossa cognição estaria sujeita, portanto, a um processo ininterrupto de estereotipação,


a ponto de considerarmos “real” e “natural” todo um universo de referentes e realidades
fabricadas. Daí a função “fascista” da linguagem, segundo a expressão de R. Barthes. A
língua “amarra” a percepção/cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um
modo ainda não-programado pelos corredores de estereotipação; como Sísifo,
estaríamos condenados a conhecer ou a reconhecer, sempre a mesma realidade:
nossas retinas “fatigadas” estariam condenadas a ver sempre a mesma “pedra-no-meio-
do-caminho” de Carlos Drummond de Andrade.

Num mesmo sentido, Kripke (1991 apud ARAÚJO, 2004, p. 85) afirma que a
referência depende não só do que pensamos, mas de outras pessoas da
comunidade, da história de como o nome adquiriu um referente (...) É seguindo tal
história que se chega à referência.

Essa visão de construção do real torna-se fonte de estudo para um grupo de


autores franco-suíços, entre os quais se podem destacar Apothéloz, Kleiber,
Charolles, Berrendonner, Reichler-Béguelin, Chanêt, Mondada e D. Dubois. Todos
eles concordam que a referenciação (isto é, o processo implicado no ato de referir) é
uma atividade discursiva. Logo, acreditam que ela é pautada na práxis social. Esse
termo, referenciação, nasceu de uma reflexão de Mondada e Dubois (2003), que,
refutando uma visão objetivista do mundo, passam a questionar os processos de
discretização da realidade.

Tal reformulação paradigmática, da relação entre objeto e referência para o


processo de referir, é o que nos faz compreender melhor o que subjaz à práxis.
Desse modo, investiga-se não como a informação é transmitida ou como os estados
do mundo são representados de modo adequado, mas busca-se saber como as
23
atividades humanas, cognitivas e linguísticas estruturam e dão um sentido ao mundo
(MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 20).

Essa mudança de foco, como consequência, implica uma alteração na


concepção de sujeito. Saímos de um sujeito psicológico, ou seja, cognitivo, racional,
individual para um sujeito psicossocial, de caráter ativo na produção do social e da
interação, embora se (re)produza o social na medida em que se encontram
engajados na produção discursiva (KOCH, 2003, p.14).

No intuito de sedimentar os conceitos deste tópico, segue parte do resumo do


artigo de Mondada e Dubois que ratifica a concepção acima (2003, p.17):

A idéia segundo a qual a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou


menos bem às coisas tem atravessado a história do pensamento ocidental. Opomos
uma outra concepção segundo a qual os sujeitos constroem, através de práticas
discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo.

9
De acordo com esta segunda visão, as categorias e os objetos de discurso pelos
quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas
se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos.[...]

1.3.1. A instabilidade e os processos de estabilização

Uma vez que o objeto de discurso tem sempre como aporte a percepção dos
participantes, a transformação do referente em objeto de discurso resultou na
aceitação de certa instabilidade do signo, já que a interpretação e a significação do
mundo estão sempre em um continuum ad infinitum.

Essa constatação nos leva a observar a constante mudança das categorias


utilizadas para descrever o mundo, tanto sincrônica quanto diacronicamente, o que,
por sua vez, leva os autores a defender que haja sempre uma intencionalidade
subjacente ao processo de inclusão de um referente em determinada categoria.

9
Para Apothéloz e Reichler-Béguelin (apud Koch, 2005), os referentes são denominados objetos de
discurso, pois eles são construídos na atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, não como
produtos da realidade, mas fundamentalmente culturais.

24
Baseado no mesmo ponto de vista, o da instabilidade do referente, Sacks
(apud MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 23) afirma que

a questão não é mais a de avaliar a adequação de um rótulo “correto”, mas de escrever


em detalhes os procedimentos (linguísticos e sócio-cognitivos) pelos quais os atores
sociais se referem uns aos outros – por exemplo, categorizando qualquer um como
sendo um “homem velho”, em vez de um “banqueiro”, ou de um “judeu”, etc., tendo em
conta o fato de algumas destas categorias poderem ter eventualmente consequências
importantes para a integridade da pessoa.

No entanto, não se pode defender que essa instabilidade seja generalizada,


pois, no intuito de assegurar a coerência comunicativa, os elementos tendem a se
incluir em certos grupos e não em outros. Não se está dizendo que haja fronteiras
para a atividade de referenciar, mas que, ao estarem inseridos nos discursos sócio-
históricos e em procedimentos culturalmente ancorados, os objetos de discurso se
ajustam, em determinado grau, à prototipicidade e à estereotipação. Isso nos faz
crer que as categorias não sejam fixas, mas “evolutivas”, isto é, elas são recursos
que asseguram uma plasticidade linguística e cognitiva e uma garantia de
adequação contextual e adaptativa (MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 25).

Logo, a prototipicidade e a estereotipação são processos com certo grau de


dinamicidade, que visam incluir os referentes em determinadas categorias e não em
outras, no intuito de assegurar a coerência comunicativa. Inclusive, com base nessa
asserção, gostar-se-ia de parafrasear Bakhtin (1992, p. 283) - quando defende a
necessidade dos gêneros do discurso para a atividade comunicativa -, ao trazer-se a
seguinte reflexão para as categorias:Se não existissem as categorias e se não as
dominássemos; se tivéssemos de criá-las pela primeira vez no processo de fala; se
tivéssemos de construir todas elas ad hoc nos nossos enunciados, a comunicação
verbal seria quase impossível 10.

Em um mesmo sentido, Mondada e Dubois (2003, p. 42) postulam que

10
A citação original de Bakhtin (1992, p. 283) é a seguinte: se não existissem os gêneros do discurso
e se não os dominássemos; se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala; se
tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a construção verbal seria quase impossível.

25
o protótipo torna possível seu compartilhamento entre muitos indivíduos através da
comunicação linguística, e ele se torna, de fato, um objeto socialmente distribuído,
estabilizado no seio de um grupo de sujeitos. Tal protótipo compartilhado evolui para
uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo.

1.3.2. Categorização e recategorização

A categorização é a colocação do referente em determinada categoria


cognitivamente estabelecida (NEVES, 2006, p. 100), enquanto a recategorização é a
reconfiguração de um objeto de discurso citado previamente, isto é, lato senso, a
ação de colocar o objeto de discurso em uma nova categoria.

Dessa forma, já que se tratou não só de um processo, mas também do outro,


é preciso asseverar que se analisou não só a ativação de um referente (sua
categorização), como também sua manutenção e transformação no
discurso(retomada e recategorização). Em suma, o que se investigou foi a
progressão de um objeto de discurso, atentando-se para o processo de atribuir
significado e não para o significado em si. Foi por esse motivo, inclusive, que
Mondada e Dubois (2003) propuseram a mudança de terminologia: de referência
para referenciação; nesta última, imbricada a idéia de processo, uma vez que o
estudo não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação
intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente
elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações
em curso dos enunciadores (MONDADA, 2001 apud KOCH, 2005, p.34).

Portanto, concorda-se com Koch (2005, p.35) que a intencionalidade está


subjacente à referenciação, quando a autora diz que

as formas de referenciação são escolhas do sujeito em interação com outros sujeitos,


em função de um querer-dizer. Os objetos de discurso não se confundem com a
realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação. Ou
seja: a realidade é construída, mantida e alterada pela forma como, sociocognitivamente,
interagimos com ela: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação
com o entorno físico, social e cultural.

26
1.3.3. A progressão referencial

Segundo Koch (2003), a progressão referencial se dá pela manutenção do


referente na memória discursiva. No entanto, nem sempre a inserção de um
referente garante a sua manutenção. Em síntese, a referenciação pode ser
relacionada à concepção de memória discursiva das seguintes formas (2003, p. 83):

1. ativação – pelo qual um referente textual até então não mencionado é introduzido,
passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) na rede conceptual do
modelo de mundo textual: a expressão linguística que o “representa” permanece em foco
na memória de curto termo, de tal forma que o referente fica saliente no modelo.

2. reativação – um nódulo já introduzido é novamente ativado na memória de curto


termo, por meio de uma forma referencial, de modo que o referente textual permanece
saliente (o nódulo continua em foco);

3. de-ativação – ativação de um novo nódulo, deslocando-se a atenção para um


outro referente textual e desativando-se, assim, o referente que estava em foco
anteriormente. Embora fora de foco, este continua a ter um endereço cognitivo (locação)
no modelo textual, podendo a qualquer momento ser novamente ativado. Seu estatuto
no modelo textual é de inferível.

Embora o modelo de ativação, reativação e de-ativação dos referentes na


perspectiva lógico-semântica se dê da mesma forma que na sociocognitiva
interacionista, vale ressaltar que a primeira valorizava a anáfora na
correferencialidade, isto é, quando há retomada de referentes previamente citados
no texto. Portanto, a primeira não se atinha à atividade intersubjetiva dos falantes,
ao processamento cognitivo, mas à localização da cadeia referencial de um tópico
discursivo. Veja o exemplo:

(02) a fórmula é quase idêntica: mulheres independentes e glamourosas (entenda-se


endinheiradas e fúteis) compartilham seus problemas mais íntimos (amorosos e
sexuais), em meio aos prédios, táxis e bares de nova york. mas, agora, elas estão mais
perto dos 40 do que dos 30 anos e têm carreiras mais consolidadas.

Crítica 03 - “Versão "envelhecida" de "Sex" é mais do mesmo”

Folha de São Paulo – 11/01/09

27
Na retomada de mulheres pela anáfora elas, tem-se identidade referencial,
pois se sabe que o referente é o mesmo, há, pois, correferência.

Por um outro lado, os estudos da referenciação (perspectiva sociocognitiva


interacionista) permitiram-nos não somente observar a atividade intersubjetiva
subjacente às anáforas correferenciais como também investigar anáforas de outro
estatuto, que fazem remissão a referentes sem retomá-los, dentre as quais se
podem destacar as anáforas indiretas e os encapsulamentos.

Entende-se por anáfora indireta (AI), a remissão sem retomada de objetos de


discurso, conforme defende Marchuschi (2005, p. 53):

a anáfora indireta (AI) é geralmente constituída por expressões nominais definidas,


indefinidas e pronomes interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um
antecedente (ou subsequente) explícito no texto. Trata-se de uma estratégia endofórica
de “ativação” de referentes novos e não de uma “reativação” de referentes já
conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implícita.

Veja o exemplo:

(03) [...]O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca
disse, por exemplo, que a “Monalisa” de Leonardo seria melhor se representasse uma
santa. Mas quando UM FILME fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até
ganha o Oscar, como “A Luz É Para Todos” (TCM, 18h;livre), em 1948. [...]

Crítica 08  Programação destaca roteiro de Kazan


Folha de São Paulo, 28/09/08

No exemplo, não há retomada de referentes, mas, sim, a remissão à cinema


através do referente um filme. Nesse caso, há um universo referencial emergente
(MARCHUSCHI, 2005, p. 58), sugerido pelo enquadre mental de um referente no
processamento textual.

É importante ressaltar, no entanto, que essa conceituação de anáfora indireta


(AI) é bastante recente. Segundo Marchuschi (2005, p. 54),

28
originalmente, o termo anáfora, na retórica clássica, indicava a repetição de uma
expressão ou de um sintagma no início de uma frase. Hoje, na acepção técnica, anáfora
anda longe da noção original e o termo é usado para designar expressões que, no texto,
se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais
(retomando-os ou não), contribuindo assim para a continuidade tópica e referencial.

Já por encapsulamento, entende-se a remissão a predicações11 previamente


citadas no texto, transformando-as em objetos de discurso, como pode-se ver no
exemplo a seguir:

(04) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser
reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões
verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.

SUBVERSÃO NO SENTIDO LITERAL, a versão sub, que vem de baixo e


atinge a bunda dos donos das verdades institucionalizadas.

Crítica 45  DVDs retomam Allen Pastelão


Folha de São Paulo, 11/01/09

No segmento acima, percebe-se que a expressão subversão no sentido


literal faz remissão a toda predicação anterior, categorizando-a como subversão, e
não a retoma, uma vez que a predicação não possui o estatuto de referente.

A mudança de perspectiva no estudo da referência, da lógico-semântica para


a sociocognitiva interacionista, é fruto da virada pragmática na linguística. Através
dela, afastou-se de Saussure no que tange ao problema da referência, que
considerava apenas os aspectos intrínsecos da língua. Afinal, faz-se mais do que
combinar signos, codificá-los e decodificá-los. Os sujeitos não foram programados
para falar pelo fato de terem aprendido regras fixas e sistemáticas, mas, sim,
designados a semiotizar a realidade, interpretarem-na, torná-la acessível e

11
Por predicação, compreendemos o processo básico de constituição do enunciado, a que se refere
Neves (2006).

29
significativa através do uso linguístico – que, por sua vez, é motivado psicológica,
discursiva e pragmaticamente.

Logo, apoiar a idéia de uma perspectiva de cunho pragmático é entender que


o problema da referência transpõe a questão da nomeação e da identificação de um
referente no mundo. De fato, o que importa é saber como as palavras podem
significar ou representar os mundos discursivos de que se fala, e não como elas
podem apontar a realidade “mesma”.

30
CAPÍTULO II

O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO

Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre o fenômeno
em análise e subdivide-se em sete partes. Na primeira seção, retoma-se e aprofunda-se
o conceito de encapsulamento. Da segunda à sexta seção, aborda-se a perspectiva de
Francis (1994, 2003) para o estudo dos encapsulamentos, explicitando-se as categorias
elaboradas pela autora. Na sétima seção, apresenta-se uma avaliação das questões
gerais do texto.

2.1. INTRODUÇÃO

Neste capítulo, dar-se-á ênfase ao estudo do encapsulamento anafórico,


considerado como recurso de referenciação, no âmbito dos estudos
sociocognitivistas interacionistas. Também conhecido como sumarização, Conte
(2003, p. 177) o compreende como um recurso coesivo pelo qual um sintagma
nominal funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente do
texto. Construído com um nome geral como núcleo lexical, com uma clara
preferência pela determinação através de demonstrativos, o sintagma nominal
anafórico representa a transformação de parte de uma predicação, uma predicação
inteira ou segmentos de texto em referentes, uma vez que não há retomada de
objetos de discurso precedentes, como se pode verificar no exemplo abaixo:

(05) [...] Eu irei razpar(sic) a cabeça na maquina zero se for campeão!!! fiz ESSA
PROMESSA no jogo contra o Palmeiras e quinta rasparei a cabeça se Deus quiser!!!

Relato de Beto Gitirana


Em http://www.meusport.com/forum/showthread.php?t=64994 – acessado em 04/04/08

31
No sintagma essa promessa, percebe-se a existência de uma expressão
anafórica, até mesmo pela função dêitica do demonstrativo essa. No entanto, em
toda a sequência do primeiro parágrafo, não se encontra um referente lexicalizado
que propicie a retomada por essa promessa, o que nos leva à conclusão de que a
âncora para tal anáfora não se encontra em um lexema, mas em uma predicação ou
segmento de texto (como é o caso em que o exemplo se situa, que faz remissão ao
primeiro período). Logo, essa promessa representa um encapsulamento de toda a
proposição raspar a cabeça na máquina zero se for campeão.

Tal fato, o da não-localização de um rótulo lexical para um referente na cadeia


discursiva, contribui para a argumentação favorável à perspectiva da referenciação,
já que mostra ao ouvinte que ele deverá procurar a base dessa categorização não
na realidade extralinguística, mas no fazer discursivo do texto. Dessa forma,
percebe-se o encapsulamento como um importante recurso de progressão
referencial ao transformar em referentes entidades de segunda e terceira ordens
como estados de coisa, eventos, situações, processos, fatos, proposições e atos de
enunciação (LYONS, 1977). Inclusive, o encapsulamento essa promessa não
apenas encapsula o período que o antecede, como também a atitude do locutor, já
que o ato de fala é promissivo12.

Como a progressão textual não ocorre linearmente, o encapsulamento pode


representar tanto uma sumarização anafórica quanto catafórica, ou seja, pode ter
função retrospectiva, ao fazer remissão a sequências prévias do texto, ou
prospectiva, ao preceder o “dizer”, como os exemplos a seguir, em que essa idéia
faz remissão ao primeiro período e situação antecede a predicação sublinhada:

(06) [...] Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que
exponha suas verdades mais íntimas e profundas. ESSA IDÉIA, esboçada em obras
anteriores de Eduardo Coutinho, como “Santo Forte” e “Edifício Master”, ganha uma
evidência incontornável em seu documentário mais recente, “Jogo de Cena”, que chega
agora ao DVD. [...]

Crítica 41  “Coutinho deixa o espectador sem chão”


Folha de São Paulo, 07/12/08

12
Para explicação de ato de fala promissivo, ver tópico 3.3.1.3, no terceiro capítulo.

32
(07) [...] A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações,
como um pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um
casal e descobrem que os anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.[...]

Crítica 02 – O discreto charme da burguesia

Folha de São Paulo, 31/08/08

Na análise dos encapsulamentos, autoras como Koch (2005), Neves (2006) e


Conte (2003) apontam para uma clara tendência pela representação do fenômeno
através de sintagma nominal de núcleo substantivo, subtipo nomeado rotulação por
Francis (1994, 2003). Todas elas concordam que a rotulação seja um
encapsulamento de grande valor para a progressão argumentativa do texto, uma vez
que permite a categorização através de nomes axiológicos, que revelam as
intenções persuasivas do falante, tal como se pode observar no exemplo abaixo, em
que o substantivo subversão representa uma avaliação do segmento de texto
destacado:

(08) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser
reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões
verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.

SUBVERSÃO NO SENTIDO LITERAL, a versão sub, que vem de baixo e


atinge a bunda dos donos das verdades institucionalizadas.

Crítica 45  DVDs retomam Allen Pastelão


Folha de São Paulo, 11/01/09

À guisa de uma classificação do fenômeno, Francis (1994, 2003) propõe uma


divisão para as rotulações de acordo com a posição e a função que elas assumem
nos textos, além de levar em consideração a carga avaliativa que elas podem
conter.

Com base nesse postulado, a autora (1994, 2003) apresenta as categorias


retrospectivos, prospectivos e retrospectivos/prospectivos (em relação à posição);
indicador de conteúdo e indicador de estrutura (em relação à função); axiológicos e
33
não-axiológicos (em relação à carga avaliativa). Além disso, nomeia a função
indicador de estrutura como rótulos metalinguísticos e a desdobra em subconjuntos,
a saber: nomes ilocucionários, nomes de atividades linguageiras, nomes de
processo mental e nomes de texto.

2.2. A POSIÇÃO DOS RÓTULOS NO TEXTO

O rótulo prospectivo tem a função de antecipar ao leitor/ouvinte o que se


seguirá no texto, isto é, conforme Francis (1994, 2003) postula, a função de avançar
perspectivas sobre a continuidade do texto. A inteligibilidade desse tipo de rótulo,
portanto, só ocorrerá se houver uma compatibilidade semântica com tal sintagma.

Já o rótulo retrospectivo será assim considerado desde que não se refira a um


elemento textual específico anteriormente expresso; ou seja, não se trata de uma
repetição ou de uma recategorização (por meio de sinônimo, por exemplo) de um
elemento precedente. Tal nome só será assim considerado se a sua presença se
justificar pela sumarização do dizer, devendo ser reconstruído (ou mesmo
construído) pelo leitor/ouvinte, uma vez que o antecedente não está claramente
delimitado no texto. Segundo Francis (2003, p. 201):

A extensão precisa do discurso a ser seccionada pode não importar: é a mudança do


discurso assinalada pelo rótulo e seu ambiente imediato que é de crucial importância
para o desenvolvimento do discurso. Pode-se mesmo arguir que uma indistinção
referencial deste tipo pode ser usada estrategicamente pelo escritor para efeitos criativos
ou persuasivos, talvez dando escopo para diferentes interpretações, ou ofuscando as
linhas de argumentos artificiosos ou espúrios.

2.3. ROTULAÇÃO E NOMINALIZAÇÃO

Embora a rotulação seja um tipo de encapsulamento, ela ainda pode


apresentar-se de uma forma diferente: ancorada em um sintagma verbal
previamente citado no texto, e não em uma predicação ou porção maior de texto.
Nesse caso, ter-se-á uma nominalização, uma vez que o encapsulador será um
lexema-núcleo resultante de uma transformação verbo-nominal, ou seja, derivado
morfologicamente do verbo da proposição do conteúdo informacional, como vê-se
no exemplo a seguir:
34
(09) [...] No passado, a liberdade tanto podia ser essa, liberal, que conhecemos hoje
(que, parece, a que está em crise financeira), como a que foi sonhada pela humanidade
a partir do desenvolvimento da indústria, SONHO segundo o qual as máquinas nos
libertariam e trabalhariam por nós. [...]

Crítica 22  Em “Bourne”, Estado suprime liberdade


Folha de São Paulo, 05/10/08

Nesse exemplo, sonho foi transformado em objeto de discurso com base no


referente construído pelo sintagma verbal foi sonhada.

É importante ressaltar que o termo ‘nominalização’ se refere tanto ao


processo quanto à expressão nominalizadora; entretanto, Apothéloz (1995)
estabelece uma distinção entre o fenômeno linguístico e o nome que designa o
fenômeno. Para a autora, o termo nominalização diz respeito à operação discursiva
de natureza anafórica ou catafórica, enquanto as expressões “informação-suporte” e
“substantivo-predicativo” designam o objeto da nominalização. Nessa última, está
implícita a noção de tema-rema que é atribuída ao tópico discursivo.

Zamponi (2002, p. 197) ressalta que o “substantivo-predicativo” é uma noção


semântica e não morfológica e que o predicativo é relevante na medida em que
indica dois aspectos que envolvem as nominalizações: a referencialidade e a
predicação. Para a autora (op. cit.):

(...) “predicativo” pode ser relacionado à “proposição” a que foi dado um estatuto
referencial (...) [bem como] nos induz a considerar a dimensão atributiva da expressão
referencial: o elemento anafórico é simultaneamente um elemento de referência e de
predicação, acumulando a função temática e remática ou, como afirma Schwarz (2000),
operando uma tematização-remática.

A nominalização possui um papel organizador do discurso, uma vez que


estabelece a coesão entre os enunciados de um mesmo parágrafo e entre os
parágrafos de um mesmo texto. Como afirma Freire de Carvalho (2005, p.65),

pode-se afirmar que, no processo de construção de sentido(s), há uma “memorização”


do sentido do cotexto linguístico em que está o verbo, por exemplo, a qual permitirá ao
35
receptor-leitor, por meio de uma “recuperação” de sentido pelo derivado substancial do
verbo dado, estabelecer significações por uma aproximação semântico-formal das duas
proposições.

2.4. RÓTULOS DE CONTEÚDO

Os rótulos de conteúdo se relacionam à metafunção discursiva interpessoal


de Halliday (1985)13.

Essa função volta-se para os interlocutores e trata-se de um importante


recurso da linguagem, que é o de estabelecer e o de manter relações sociais; é por
meio dela que os sujeitos interagem marcando a posição discursiva assumida na
enunciação, como ocorre no exemplo abaixo, em que o encapsulamento essa
revolta, ao encapsular o segmento anterior “vive como se fosse de favor” e o
segmento à frente “essa impossibilidade de existir num mundo que tem a sua cor
como um defeito de fábrica”, marca a posição enunciativa do falante enquanto um
ser consciente da causa do negro.

(10) Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h;


classificação indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito
boa. É ao ser informada da morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial
de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não".
Sirk disserta sobre as qualidades de Lana com poucas palavras: "Ela era nula". Não
é propriamente um elogio à atriz de seu filme de maior sucesso. Mas ele completa
dizendo que não era necessário ser uma boa atriz para fazer esse papel.
Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner -no
filme, mãe e filha-, não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um filme
sobre negros, sobre ser negro num momento anterior à conquista da igualdade de
direitos.

13
Por metafunção interpessoal, entende-se o nível que abrange todos os usos da língua para
expressar relações sociais e pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na
situação discursiva e no ato de fala.

36
Por isso, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah Jane, já
expressa ESSA REVOLTA, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua cor
como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em
sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]

Crítica 10  “Racismo é tema de aparente melodrama”


Folha de São Paulo, 14/09/08

2.5. RÓTULOS METALINGUÍSTICOS

Os rótulos metalinguísticos se relacionam às metafunções textual e ideacional


de Halliday (1985): textual, porque diz respeito à criação de textos adequados às
necessidades comunicacionais, isto é, à criação de textos pertinentes aos contextos
de uso e elaborados levando em conta o aspecto organizacional ou, em outras
palavras, ao estabelecimento das relações coesivas na organização textual;
Ideacional, porque diz respeito à interpretação e expressão de nossa experiência
acerca dos processos do mundo exterior e dos processos mentais e abstratos de
todos os tipos.

Ao se dobrar sobre o enunciado, o foco do discurso pode estar no conteúdo,


anterior ou posterior, presente no cotexto (encapsulador de conteúdo); ou pode,
também, reportar-se às ações que se realizam através da linguagem, os atos de
linguagem. Segundo Francis (2003, p. 202), os rótulos metalinguísticos distribuem-
se nos seguintes grupos: “ilocucionários”; de “atividades linguageiras”; de “processo
mental”; de “textos”.

A seguir, descrevem-se tais tipos de rótulos ou nomes em conformidade com


Francis (1994, 2003), por meio de exemplos extraídos de corpora variados:

2.5.1. Nomes ilocucionários

São os que nomeiam uma ação e dizem respeito à força com que aquilo que
se diz é dito. São exemplos de nomes ilocucionários: ordem, promessa, conselho,
acusação, aviso, reivindicação, asserção, resposta, revelação, declaração,
sugestão, advertência, crítica, proposta, afirmação, etc. Tais rótulos são, portanto,
nominalizações de ações verbais.

37
(11) Por isto te ordeno: institui aí na Terra o meu Reino, anuncia ao mundo que ESTA
ORDEM veio de mim. Eu sou o Deus de Abraão [...]
http://www.inricristo.org.br

2.5.2. Nomes de atividades linguageiras

Para Francis (1994, 2003), os rótulos que nomeiam as atividades linguageiras


referem-se aos resultados de atividades mentais que se concretizam na linguagem,
ou seja, dependem dela para existir. São atividades como: descrição, distinção,
referência, julgamento, diagnóstico, narração, explicação, relato, esclarecimento,
comparação, comentário, controvérsia, debate, exemplo, ilustração, definição, etc.
Apesar de semelhantes aos nomes ilocucionários, não possuem uma âncora textual,
um processo, sintagma verbal ou adjetival que esteja sendo categorizado ad hoc no
discurso.

(12) O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência


mesmo de "O Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O
filme nos mostra a trajetória de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que
busca alguém para se ocupar de seu corpo após a morte.
Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas
a quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra
resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter
sagrado etc. Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a
convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem
deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria
homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo
o suicídio).
A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no
filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que
preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não
porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente
o que dele recebemos. Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que
retiramos da imagem é o que lhe damos.

Crítica 27  ”Essência escapa em ‘O Gosto da Cereja’”


Folha de São Paulo, 16/11/08

38
2.5.3. Nomes de processos mentais

Os rótulos relativos a processos mentais referem-se aos atos que se realizam


com a mente: estados e processos cognitivos e seus resultados. Por exemplo:
análise, suposição, atitude, opinião, conceito, convicção, avaliação, constatação,
atribuição, idéia, noção, etc. Muitas formas desta natureza podem expressar
aspectos do estado cognitivo alcançado a partir do seu processamento, como:
crença e opinião, por exemplo, ao passo que outras podem tanto se referir ao
processo como ao resultado, como ocorre com o núcleo constatação.

(13) A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.


Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente
esmagados pelo sistema. É UMA CONSTATAÇÃO, então, que ultrapassa o físico para
chegar a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que
é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".

Crítica 07 Verhoeven retrata faroeste amoral


Folha de São Paulo, 03/08/08

2.5.4. Nomes de texto

São formas que operam uma designação metalinguística propriamente dita,


isto é, rotulam extensões do discurso precedente, definindo seus limites precisos.
Referem-se à estrutura textual-formal do discurso. Não há interpretação envolvida,
apenas encapsulam extensões precedentes ou subsequentes. É o caso de frase,
pergunta, sentença, palavra, termo, parágrafo, etc.

(14) Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h;


classificação indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito
boa. É ao ser informada da morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial
de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não". Sirk disserta sobre as qualidades de Lana COM
POUCAS PALAVRAS: "Ela era nula". Não é propriamente um elogio à atriz de seu filme
de maior sucesso. Mas ele completa dizendo que não era necessário ser uma boa atriz
para fazer esse papel.[...]
Crítica 10  “Racismo é tema de aparente melodrama”
Folha de São Paulo, 14/09/08

39
Embora haja a subdivisão dos rótulos de conteúdo e dos metalinguísticos,
Farnes (1973 apud FRANCIS 2003, p. 202) considera a divisão em “indicadores de
estrutura” e “indicadores de conteúdo” contraproducente, pois vê nesses processos
a confluência, a um só tempo, do cognitivo, do linguístico e do social. Assim, sugere
a designação de rótulos metadiscursivos em vez de metalinguísticos, englobando-se
todas as metafunções discursivas propostas por Halliday (1985).

Dessa forma, o autor defende que os rótulos correspondem à perspectiva


enunciativa dos sujeitos, uma vez que esses tentam controlar, de alguma forma,
enunciativa e pragmaticamente, seu discurso.

2.6. CONFIGURAÇÃO DOS RÓTULOS

De configuração axiológica e não-axiológica, para Francis (1993, 2004, os


rótulos podem determinar o posicionamento enunciativo de um projeto de “dizer”.
Entendem-se, por valor axiológico, os nomes que apontarem uma avaliação do
locutor, enquanto, por não-axiológico, os que representarem, sem avaliação, um
segmento prévio no texto. Tais configurações, axiológico e não-axiológico, são
encontradas nos exemplos a seguir, respectivamente:

(15) Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de
Samira Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um
filme entre garotas (e a infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e
envolve um elemento mínimo. No caso, trata-se de duas gêmeas que vivem presas em
suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).
Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de
seu pai, Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes
de Abbas Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja.
Kiarostami criou uma escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a
escrever roteiros, sempre com temas mínimos, quase inexistentes. No entanto,
raramente algum deles desenvolveu ESSA QUALIDADE DE ESPELHO DA OBRA DE
ABBAS: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o grande
prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema,
com certeza.[...]

Crítica 15  “Obra se Abbas é única no cinema iraniano”


Folha de São Paulo, 26/10/08

40
Em (15), o rótulo essa qualidade de espelho da obra de Abbas refere-se ao
segmento do texto que trata da imparcialidade do produtor de cinema ao retratar
objetivamente as situações de seus roteiros, sem impregná-las de avaliações ou
pontos de vista. O autor da crítica categorizou tal atitude positivamente através do
sintagma supracitado, por isso, trata-se de um rótulo de configuração axiológica.

(16) Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de


maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro
da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes
sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim
Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO. Por outro lado, é uma reflexão ousada e
dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em tempos de transformação
política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão fartamente dos
poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento
brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no
enforcamento de Tiradentes (interpretado por José Wilker).[...]

Crítica 13  “Cineasta revisita Inconfidência com ironia”


Folha de São Paulo, 07/09/08

Em (13), o rótulo essa convocação é uma nominalização14 do sintagma


verbal conclamara e, para a perspectiva de Francis (1993, 2004) possui valor não-
axiológico.

Quanto ao valor argumentativo do fenômeno, Conte (2003, p. 177) afirma que


as rotulações são um poderoso meio de manipulação do leitor quando tem como
núcleo de seu sintagma um nome axiológico (avaliativo), uma vez que representam
uma atitude do falante com relação ao conteúdo enunciado.

Não obstante, Zavam (2007) discorda de Conte (2003) sobre a existência, a


priori, de nomes avaliativos. Defende que os nomes adquirem valor axiológico no
contexto em que estão sendo empregados, uma vez que são objetos de discurso,
isto é, são (re)construídos pelos sujeitos no curso de suas interações verbais, e não
entidades preexistentes, independentes da referência que se faça a eles. Sob essa

14
O exemplo em questão trata-se de uma nominalização não-prototípica, uma vez que o fenômeno
não é representado por palavra da mesma família, mas sinônima.

41
perspectiva, a realidade que se erige no evento comunicativo não é dada, mas
fabricada e alimentada pelo próprio discurso num contínuo processo de construção e
reconstrução coletiva da própria realidade, que aos sujeitos daquele evento toca
(re)elaborar. Zavam (Ibidem, p. 135) aponta que os posicionamentos adotados por
Conte (2003) e Francis (1994, 2003)

parecem revelar uma visão quase que exclusivamente linguística sobre a referenciação,
embora não seja essa a intenção dos pesquisadores citados. É como se a construção do
referente ou a remissão a ele se resumisse ao emprego de expressões linguísticas, de
expressões que já viriam com seu significado antecipadamente dados.

No que tange à questão argumentativa subjacente às rotulações, de acordo


com Koch (2002), tais formas não têm apenas a função de referir, dando
continuidade ao texto, mas também de contribuir na construção de sentidos na
medida em que assinalam direcionamentos argumentativos, pontos de vista. Grosso
modo, a escolha por um determinado rótulo leva em conta o papel dos
interlocutores, o contexto e o gênero discursivo adequado para a obtenção dos
propósitos comunicativos do falante. Além disso, tais formas possuem uma
dimensão simultaneamente construtiva e intersubjetiva. Por essa razão, essas
expressões referenciais precisam ser vistas sob sua multifuncionalidade, merecendo
destaque especial a estreita relação entre referenciação e argumentação.

Em um mesmo sentido, Francis (1994, 2003) defende que a rotulação não só


sumariza o conteúdo do que foi literalmente dito, mas também o modo, a forma de
dizer. Para tanto, recorre aos argumentos de John Austin (1965 apud KERBRAT-
ORECCHIONI, 2001), para quem todo dizer é um fazer, isto é, todo ato de
linguagem constitui determinado ato de fala.

Em síntese, a categorização das funções dos rótulos para Francis se afigura


do seguinte modo:

42
Posição

Retrospectivos Prospectivos Retrospectivos/Prospectivos

Função

Conteúdo Metalinguístico

Ilocucionários Atividades Processo Nomes de texto


linguageiras Mental

Configuração

Avaliativa Não-avaliativa

Quadro 3 – Função e configuração dos rótulos segundo Francis (1994, 2003)

Embora tenha dado um tratamento escalar aos encapsulamentos, Francis


(1994, 2003), em seus estudos, optou pelo tratamento particular da rotulação, cujo
núcleo é sempre substantivo. Todavia, como o processo de encapsulamento é mais
amplo e nem sempre é representado por sintagma de núcleo substantivo, esta
pesquisa resolveu ampliar os estudos da autora em três pontos: 1) na proposta de
classificação de encapsulamentos de núcleos demonstrativos; 2) no estudo mais
43
aprofundado dos encapsulamentos metalinguísticos, explorando uma possível
existência de outros subconjuntos; 3) na consideração da importância de alguns
termos de natureza gramatical na análise do fenômeno. Portanto, em decorrência da
ampliação de nosso escopo, tratar-se-ão todos os fenômenos sob o termo
encapsulamento, uma vez que não se focalizará apenas o processo de rotulação.

De início, em relação à classificação dos encapsulamentos de núcleos


demonstrativos, tentou-se observar de que modo esse fenômeno se encaixaria nas
duas categorias já elaboradas por Francis (1994, 2003). Ao nosso ver, caberia, no
mínimo, a elaboração de uma subcategoria, uma vez que as classificações “de
conteúdo” e “metalinguística” já englobam todas as metafunções discursivas da
língua (interpessoal, ideacional e textual).

Não obstante, durante a nossa análise, deparamo-nos com um problema de


natureza epistemológica. Como um encapsulador de núcleo demonstrativo, como no
exemplo a seguir, pertenceria à categoria metalinguísticos? Sob o ponto de vista
da teoria de trabalho, a GDF, isso é um termo de metafunção textual que não se
encaixa na categoria metalinguística pré-determinada por Francis. Tal constatação
nos faz repensar a categoria para a inclusão desse tipo de encapsulamento, nem
que seja apenas em termos de sua nomeação. Ou seja, para encaixar os
encapsulamentos de núcleo demonstrativo nessa categoria, mudar-se-ia o nome
metalinguístico e criar-se-ia uma subcategoria? Essa é uma das questões que esta
pesquisa responde, mais à frente.

(17) [...] Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com
a maioria das séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas
das vielas mais escuras e fétidas da alma humana.

Crítica 06  Com Glenn Close, série vê lado podre da vida


Folha de São Paulo, 10/08/08

Para tanto, recorreu-se à GDF, cujas classificações do Nível


Representacional (de função ideacional e textual) englobam tanto as questões
metalinguísticas suscitadas por Francis (1994, 2003) quanto outras restritas à

44
designação – dessas últimas, fez-se uso para a ampliação das categorias
semânticas.
Por fim, o estudo aprofundado da GDF levou-nos à consciência de que o
processo de encapsulamento é uma atividade complexa em que tanto fatores de
ordem lexical quanto gramatical estão em jogo, perspectiva até então pouco
considerada. Em seu estado atual de ciência, a referenciação focaliza apenas as
questões de natureza lexical. Portanto, no que tange ao terceiro ponto de nossa
pesquisa, chamou-se a atenção para a análise de alguns elementos de natureza
gramatical. Pode-se conferir tal fato no exemplo abaixo, em que o operador assim,
embora um termo de natureza gramatical, encapsula um segmento anterior.

(18) A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.


Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente
esmagados pelo sistema. É uma constatação, então, que ultrapassa o físico para chegar
a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que é
utilizado por uma megacorporação em "Robocop".[...]

Crítica 07  Verhoeven retrata faroeste amoral


Folha de São Paulo, 03/08/08

45
CAPÍTULO III

A GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL

Neste capítulo, apresentam-se o referencial teórico que sustenta a análise desta


pesquisa e as justificativas para o trabalho com esse modelo funcionalista de linguagem
para a análise dos encapsulamentos. Para tanto, o capítulo divide-se em quatro partes.
As duas primeiras seções introduzem brevemente o assunto; a terceira explicita as
categorias da GDF que servirão como aporte para nossa pesquisa; a quarta, por sua
vez, traz as justificativas para o estudo dos encapsulamentos sob a égide da GDF.

3.1. INTRODUÇÃO

A Gramática Discursivo-Funcional (GDF) constitui uma nova abordagem


funcionalista para a análise linguística. Elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2006;
2008), tal teoria se diferencia por conceber uma organização Top-down da
gramática, isto é, ela parte da cadeia mais alta da hierarquia linguística, a intenção
do falante, e faz sua análise até o componente de saída, a articulação. Começou a
ser esboçada em 1997 por Kees Hengeveld em um texto intitulado Cohesion in
Functional Grammar, no qual Hengeveld propõe um modelo discursivo com base
nas idéias apresentadas no último capítulo de Dik (1997), dedicado ao discurso e às
propriedades pragmáticas e psicológicas que um modelo de base discursiva deve
apresentar. Depois de algumas versões da GDF, publicadas em diferentes revistas e
livros15, Hengeveld e Mackenzie lançaram, no segundo semestre de 2008, o livro

15
Para ter acesso a tais artigos, consulte o site do professor Hengeveld, em:
http://home.hum.uva.nl/oz/hengeveldp/

46
Functional Discourse-Grammar. A typologically-based theory of language structure,
que traz uma versão completa e atualizada da GDF.

Uma vez que se trata de um modelo funcional relativamente novo no meio


científico, a GDF ainda é pouco difundida no Brasil. Os trabalhos acerca dessa linha
têm se concentrado na Unesp de São José do Rio Preto, onde os professores
Hengeveld e Mackenzie já ministraram workshops e orientaram pesquisas. Com
relação às outras regiões, a GDF concentra-se na Europa: Portugal, Espanha,
França, Inglaterra, Dinamarca e, sobretudo, Holanda, país em que está situada a
sede de estudos: a Universiteit van Amsterdam.

Em relação a sua origem, a GDF é uma reformulação do que se vinha


chamando de Gramática Funcional Padrão, cuja última versão assume uma nova
unidade de análise, o Ato Discursivo, como forma de se tornar um modelo de
gramática funcional mais abrangente. Essa nova categoria, que passa a ser a
unidade básica de análise da GDF, suscita preocupações no próprio Dik, que
enxerga as limitações de seu modelo gramatical orientado para a oração como
unidade básica de análise. A partir daí, formula-se uma nova teoria que busca
analisar as expressões linguísticas com base em um contexto discursivo mais
amplo, procurando aliar, de forma produtiva, informações contextuais, gramaticais e
cognitivas. Aproxima-se, assim, a gramática ao discurso e ao processamento
cognitivo. Contudo, é importante ressaltar que, apesar da GDF ser estruturalmente
orientada para o discurso, ela não é uma gramática do discurso, mas, sim, um
modelo de gramática funcionalista que tenta analisar a influência do discurso nas
configurações sintáticas da gramática da língua. Trata-se de uma perspectiva teórica
que se aproxima da concepção de linguagem adotada por Traugott (1982) e
Traugott e König (1991), que consideram o discurso como um componente da
gramática.

Com efeito, segundo Hengeveld (2004), há diversas razões por que a


Gramática Funcional deve expandir-se da sentença para o discurso. Há, em primeiro
lugar, muitos fenômenos linguísticos que podem ser explicados somente em termos
de unidades maiores que a sentença individual. Há, em segundo lugar, muitas
expressões linguísticas menores que a sentença individual, que, todavia, funcionam
como enunciados completos e independentes dentro do discurso, como frases
47
elípticas, exclamações e vocativos. Desse modo, o nome Gramática Discursivo-
Funcional se justifica pela ênfase no Ato Discursivo, o que quer dizer que ela não se
restringe a orações completas, como afirmado acima.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 02), a GDF pode ser definida mais
concisamente como uma teoria que procura entender como as unidades linguísticas
são estruturadas em termos do mundo que elas descrevem e das intenções
comunicativas com que elas são produzidas. Assumindo o Ato Discursivo como
unidade de análise, o discurso passa a ser, na GDF, o “suporte” das unidades
linguísticas de níveis mais baixos. Enquanto a Gramática Funcional de Dik inicia-se
com a seleção de itens lexicais, para, em seguida, expandir gradualmente a
estrutura subjacente da oração, a GDF inicia-se com a formulação da intenção do
falante, finalizando com a realização da expressão linguística.

No que tange à nossa pesquisa, pode parecer equivocada a opção por uma
teoria cujo título recebe o nome gramática. No entanto, assevera-se que os níveis
elaborados pelos professores Hengeveld e Mackenzie (2006; 2008) vão muito além
da mera estrutura gramatical e não fogem a uma perspectiva textual, uma vez que
também compreendem elementos de ordem pragmática e semântica, como eles
mesmos já observaram em Functional Discourse-Grammar. A typologically-based
theory of language structure ao tratarem da possibilidade do estudo da anáfora em
sua teoria.

Para termos a comprovação de tal dado, o da previsão da análise


transfrástica (textual) e não só a da cláusula (morfossintática), seguem os tipos de
conhecimentos sob o escopo da GDF – adotados a partir da elaboração de Dik
(1997, p. 10):

a) Conhecimento prévio: conhecimento que falante e ouvinte possuem


antes de um evento comunicativo, que pode ser linguístico (conhecimento
da língua) ou não-linguístico (conhecimento do mundo e de outros mundos
possíveis);

b) Conhecimento imediato: conhecimento derivado da situação discursiva


em que ocorre o evento, que pode ser situacional (conhecimento derivado
48
do que pode ser percebido e inferido da situação comunicativa) ou textual
(conhecimento oriundo da informação transmitida durante o evento
comunicativo).
Ainda, os conhecimentos linguístico, não-linguístico e textual podem ser
divididos, a saber:

• Conhecimento linguístico:

a) Lexical: conhecimento dos predicados lexicais da língua, suas


propriedades semânticas e morfossintáticas, e suas inter-relações;
b) Gramatical: conhecimento das regras e princípios que definem as
estruturas gramaticais da língua, e das regras e princípios pelos quais essas
estruturas subjacentes podem ser expressas na língua;

c) Pragmático: conhecimento das regras e princípios que administram o uso


correto de expressões linguísticas na interação verbal.

• Conhecimento não-linguístico:

a) Referencial: conhecimento sobre entidades, como pessoas, coisas e


lugares;
b) Episódico: conhecimento sobre estados-de-coisas (ações, processos,
posições, estados), nos quais as entidades estiveram, estão ou estarão envolvidas;
c) Geral: conhecimento sobre regras gerais e princípios que governam o
mundo e outros mundos possíveis.

• Conhecimento textual:

a) Referencial: conhecimento sobre entidades, na forma mencionada do


texto, entidades discursivas ou tópicos;
b) Episódico: conhecimento sobre estados-de-coisas, nos quais as entidades
estão envolvidas, na forma descrita no texto;
c) Geral: conhecimento sobre regras gerais e princípios, na forma
mencionada no texto.

49
É importante ressaltar que a nossa pesquisa terá um caráter ensaísta no
âmbito da GDF, uma vez que os próprios autores não desenvolveram metodologia
com foco no estudo das referências, só propuseram sua potencialidade. O que se
fez aqui foi investigar, na GDF, quais caminhos demonstram abertura para uma
investigação dos encapsulamentos.

3.2. PROPRIEDADES BÁSICAS DA GDF

São propriedades básicas da Gramática Discursivo-Funcional:

(i) Constituir o componente gramatical de um amplo modelo


da interação verbal do usuário de língua natural, que, por
sua vez, é composto por componentes conceituais,
contextuais e de formulação linguística;
(ii) Considerar os Atos Discursivos como unidades básicas de
análise, o que nos leva a considerá-la uma gramática do
discurso, e não da cláusula;
(iii) Dividir a organização linguística em quatro níveis: um
interpessoal (ou pragmático), um representacional (ou
semântico); um morfossintático (ou estrutural) e um
fonológico (ou articulatório);
(iv) Ordenar esses níveis da categoria mais alta à mais baixa
(top-down fashion), começando com a representação das
intenções linguísticas do falante e, em sequência,
analisando os níveis mais baixos na hierarquia.

Dessa forma, grosso modo, o novo modelo proposto por Hengeveld e


Mackenzie (2008) é descrito como um processo top-down (descendente), que parte
da intenção do falante (do componente conceitual) para a expressão das formas
linguísticas. Essa análise sugere, segundo os autores, que o falante primeiro decide
qual vai ser seu propósito comunicativo (sua intenção) para depois selecionar e
codificar essa informação gramaticalmente.

50
Essa mudança é, conforme Hengeveld e Mackenzie (2005), motivada pelo
postulado de que a eficiência de um modelo de gramática é tanto maior quanto mais
se aproximar do processamento cognitivo16. Isso porque, segundo eles, estudos
psicolinguísticos (LEVELT, 1989 apud HENGEVELD E MACKENZIE, 2008)
demonstram claramente que a produção linguística é um processo descendente,
que se inicia com as intenções do falante e termina com a articulação/realização da
expressão linguística real (componente de expressão).

Segundo Levelt (1989 apud MODESTO 2006, p. 07), as etapas da produção


da fala são:

1) O falante decide qual vai ser seu propósito comunicativo


(informações pragmáticas e contextuais);

2) O falante seleciona a informação mais adequada para atingir seu


objetivo;

3) O falante codifica a informação em termos gramaticais e


fonológicos e, por fim,

4) O falante realiza o processo de articulação.

Essas características nos levam ao seguinte esquema:

16
Embora os autores questionem acerca da eficiência do modelo, a GDF não se trata de um modelo
de processamento, mas, sim, de descrição gramatical, que procura apenas refletir o processamento.

51
Componente Conceitual
Componente Gramatical

Formulação

Componente Contextual
Codificação

Componente de Saída

Quadro 4 - O modelo descendente

3.3. OS QUATRO NÍVEIS DA ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA

De um modo geral, a organização linguística da GDF se dá através de quatro


níveis, a saber: o Interpessoal (ou pragmático), o Representacional (ou semântico),
o Morfossintático e o Fonológico. À nossa pesquisa interessam apenas os dois
primeiros, uma vez que o fenômeno analisado faz remissão ou ao nível pragmático
ou ao semântico. Portanto, não se tratou dos dois últimos níveis da organização
linguística neste trabalho.

Antes de tratar-se especificamente dos dois primeiros níveis, é importante


chamar a atenção para o fato de que, para as teorias funcionalistas, a língua é um
instrumento de comunicação, e não um objeto autônomo. Nesse sentido, suas

52
estruturas são submetidas às pressões provenientes do uso, que exerce grande
influência sobre a estrutura linguística.

Assim, o funcionalismo analisa a estrutura gramatical tendo como base a


situação comunicativa do ato de fala, seus participantes e seu contexto discursivo.
Desse modo, não se pode compreender um fato linguístico sem se levar em conta o
sistema ao qual pertence. A análise de uma língua requer que se considerem as
diversas funções linguísticas e seus modos de realização.

Com base em uma troca intricada entre os participantes no processo de


interação verbal, Neves (2000, p. 19) postula que

a língua (e a gramática) não pode ser descrita como um sistema autônomo, já que a
gramática não pode ser entendida sem parâmetros como cognição e comunicação,
processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação, aquisição e
evolução.

Sendo assim, nesse processo, pesam diversos fatores, dentre eles: a força de
situação de comunicação, o planejamento, as imagens que o falante forma do
interlocutor, entre outros.

Em um mesmo sentido, Halliday (1985) diz que o sistema linguístico está


intrinsecamente ligado ao contexto e provê todos os elementos necessários para
que a língua possa ser utilizada em situações concretas de uso por falantes reais,
mas é também a partir dos fatores externos que o falante deverá proceder para
determinar suas escolhas. Cada indivíduo faz parte de um grupo social e usa a
língua em situações variadas para atingir diferentes objetivos.

Halliday (1985, p. 141) formulou um esquema, em que as funções básicas da


comunicação se dividem em:

a) Ideacional – em que linguagem tem como finalidade a manifestação de conteúdos que


estejam ligados à experiência que o falante possui do mundo concreto, real ou de seu
universo subjetivo, interior. Diz respeito ao conteúdo do que é dito, à interpretação e
expressão de nossa experiência acerca dos processos do mundo exterior e dos
processos mentais e abstratos de todos os tipos.

53
b) Interpessoal – abrange todos os usos da língua para expressar relações sociais e
pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na situação discursiva e
no ato de fala. Permite que o falante participe da situação comunicativa para aprovar,
desaprovar, expressar crença, opinião, dúvida, etc.

c) Textual – em que a linguagem estabelece vínculos com ela mesma e está ligada às
características da situação em que é usada. Nesta função, o indivíduo falante ou escritor
é capaz de criar textos e o ouvinte ou leitor consegue distinguir um texto de um conjunto
aleatório de frases. A função textual é, pois, um instrumento das outras duas, já que
sempre o ato comunicativo necessita da elaboração de discursos. Esta função é que
habilita o falante a criar um texto.

Para Halliday (1985), essas três funções se combinam e se atualizam


simultaneamente nas cláusulas, estruturando assim o contexto conversacional,
equilibrando o ato de fala em representação (ideacional), troca (interpessoal) e
mensagem (textual). Tais conceitos serão fundamentais para o entendimento dos
dois primeiros níveis da GDF, a seguir.

3.3.1. O Nível Interpessoal (ou pragmático)

O Nível Interpessoal (NI), como o nome sugere, equivale ao que Halliday


(1985) nomeou de função interpessoal da língua. Esse é o nível que lida com os
aspectos formais de uma unidade linguística. Esta, por sua vez, reflete seu papel na
interação entre os participantes, cada qual com um propósito comunicativo em
mente. O NI implica a ideia de que cada falante emprega uma estratégia de modo
mais ou menos consciente para atingir seus objetivos comunicativos. Em alguns
casos, esse propósito pode ser bastante explícito (como em uma entrevista de
emprego). Em outros, ele pode ser meramente elaborado para estabelecer e manter
relações sociais.

Nesse nível, três tipos de primitivos operam: esquemas, lexemas e


operadores primários. Os esquemas conteriam os recursos gramaticais que estão
disponíveis em cada língua para se fazerem as distinções que dizem respeito à
interação verbal, tais como ilocuções básicas, funções pragmáticas (Tópico, Foco e
Contraste.), diferenciações sociais (p. ex. pronomes e formas de tratamento
deferenciais e informais, etc.). Os lexemas introduzidos nesse nível incluem nomes
próprios, locuções que modificam o ato ilocutivo (p. ex. em síntese), marcadores
54
discursivos, etc. Os operadores primários são elementos passíveis de instigar
processos nos Níveis Morfossintático e Fonológico (p. ex. operadores de
reportatividade, de identificabilidade ou de genericidade).

Não obstante, o NI não tem como parâmetro o esgotamento de todos os


aspectos discursivos envolvidos nesse processo, mas somente daqueles que são
relevantes para a manifestação linguística. A GDF, apesar de ter como escopo o
discurso, não é uma teoria do discurso, mas, sim, de análise da estrutura linguística.

Os aspectos discursivos tratados pela GDF são aqueles que dão conta das
funções retóricas e pragmáticas da língua. Por função retórica, entende-se a forma
como os componentes discursivos são ordenados para que o falante atinja seus
objetivos comunicativos e também as propriedades formais dos enunciados que
influenciam o destinatário a aceitar os propósitos comunicativos de seu interlocutor.
Por função pragmática, entende-se, aqui, a forma como os interlocutores moldam
suas mensagens com base nas expectativas atuais do estado mental do
destinatário.

O objetivo de tratar tais funções é o de explicitar que as decisões


comunicativas do falante não são tomadas a partir da gramática, mas, sim, de um
componente conceitual. Na verdade, é esse componente que contém as intenções
comunicativas do falante e as estratégias que ele deseja usar para obtê-las.

Se, por exemplo, numa dada situação, o ouvinte B está próximo à janela de
sua sala de estar e escuta do falante A o enunciado “Está frio aqui dentro!”, é muito
provável que A interprete tal enunciado como “Feche a janela” e não apenas como
um comentário. No entanto, se A e B estivessem em um local em que tanto A quanto
B não tivessem liberdade de executar o ato de fechar a janela, o mesmo enunciado,
provavelmente, seria interpretado como um comentário. Tais exemplos mostram que
a análise linguística, em termos de ilocução, não pode ser feita sem se levar em
conta aspectos pragmáticos e retóricos. Diz-se também retóricos, porque a opção
entre “Está frio aqui dentro” e “Feche a janela” não é neutra. Há, por trás de tais
enunciados, princípios de polidez e papéis sociais que precisam ser evidenciados na
análise linguística.

55
Desse modo, o NI contém as descrições de todas as propriedades das
unidades linguísticas que refletem a interação verbal e a influenciam -
hierarquicamente, a seguir: Move > Ato Discursivo > Conteúdo Comunicado. O Ato
Discursivo se subdivide em Ilocução e Participantes – únicos em relação não-
hierárquica. O Conteúdo Comunicado se subdivide, por sua vez, em Subato de
atribuição > Subato de referência. Elas podem ser representadas como na figura
abaixo:

(∏ M1: [ Move
(∏ A1: [ Ato Discursivo
(∏ F1: ILL (F1): ∑ (F1))Ф Ilocução básica
(∏ P1: ... (P1): ∑ (P1))Ф Falante
(∏ P2: ... (P1): ∑ (P2))Ф Ouvinte
(∏ C1: [ Conteúdo Comunicado
(∏ T1 [...] (T1): ∑ (T1))Ф Subato de Atribuição
(∏ R1 [...] (R1): ∑ (R1))Ф Subato de Referência
] (C1): ∑ (C1))Ф Conteúdo Comunicado
] (M1): ∑ (M1))Ф Move

17
Quadro 5 – Categorias do Nível Interpessoal

3.3.1.1. O Move

De acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008), o nível mais alto na


hierarquia, o Move (M), descreve o segmento inteiro de discurso que é considerado
relevante no processo de interação. Em termos interpessoais, ele pode ser definido
como a unidade mínima de discurso (Kroon, 1995 apud Hengeveld e Mackenzie,
2008) e é o veículo utilizado na expressão de intenções comunicativas do falante
como, por exemplo, um convite, uma informação, um interrogatório, uma ameaça,
um alerta, etc. Pode ser constituído de um ou mais Atos Discursivos temporalmente
ordenados que, juntos, formam o núcleo (simples ou complexo). Cada Ato
Discursivo (A) se organiza com base num esquema Ilocucionário (ILL), que contém
ao menos dois Participantes (P), o Falante e o Ouvinte (S, A)18 e o Conteúdo

17
O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das
unidades do Nível Interpessoal. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.
18
S do inglês speaker (falante) e A de addressee (destinatário).
56
Comunicado (C) com seus argumentos. O Conteúdo Comunicado contém um
número variável de Subatos de Atribuição (A) e de Referência (R), aos quais as
funções pragmáticas são atribuídas.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 51), o Move(M) se define pelo fato


de “requisitar” uma resposta ou ser ele mesmo uma resposta, ou seja, uma reação
ao pedido. É uma categoria mais evidente na conversação, pelo fato de contar com
a informação prosódica como unidade delimitadora das ações do falante (além dos
elementos linguísticos que demarcam tal unidade). Nesse tipo de interação, de
modo muito geral, cada Move corresponderia ao turno de fala. Há Moves de
iniciação e de reação, como em:

(19) A: What is the capital of Latvia? (M1)Iniciação


B: Riga. (M2)Reação Why do you ask?

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 50)

No entanto, essa correspondência não é fixa, pois, em um mesmo turno, pode


haver dois Moves, veja:

(20) A: What is the capital of Latvia? (M1)Iniciação


B: Riga. (M2)Reação Why do you ask? (M3)Iniciação
A: I’m doing my homework. (M4)Reação

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 50)

Os Moves constituídos por apenas um Ato Discursivo são mais fáceis de


identificar, como no exemplo (19). Em contrapartida, a identificação do Move em
outras sequências textuais não se dá com tal facilidade, já que as reorientações
discursivas perlocucionariamente motivadas nem sempre são previsíveis nesses
casos. Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), embora o Move geralmente se
encontre no início de parágrafos em sequências expositivas, argumentativas e
narrativas, isso não é um fator determinante. A despeito dos parágrafos terem como
função a introdução de novos tópicos ou focalização de diferentes aspectos do

57
tópico em curso, não é difícil encontrar textos inteligíveis e adequados à norma
padrão que tragam mais de um Move em parágrafo único. Não é raro, por exemplo,
achar parágrafos que tanto desenvolvem um argumento quanto concluem a tese de
um texto. Veja o exemplo:

(21) [...] No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais
evidente é a censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de
seu filho durante a ditadura militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus
e terras em busca de respostas. Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu
heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela individualidade. A história passa um tanto
ao largo.

Crítica 25  Rezende faz valer a individualidade


Folha de São Paulo, 23/11/08

No exemplo acima, têm-se dois Moves em parágrafo único, M1 e M2, ambos


constituídos por um Ato Discursivo19 de força ilocucionária DECLARATIVA, sendo
que o último Move representa uma reação ao primeiro, já que apresenta o
movimento perlocucionário de conclusão/fechamento do texto. Os dois Moves estão
destacados abaixo:

(M1: [A1: - No entanto, com “Zuzu Angel”... isolado em seu heroísmo – (A1))] (M1))

((M2: [A1: - Por isso mesmo, o filme... tanto ao largo – (A1))] (M2))

Embora, os dois Moves acima sejam constituídos de apenas um Ato


Discursivo (isto é, de núcleo simples), isso não é uma regra. Há também os de
núcleo complexo (mais de um Ato Discursivo), como o exemplo que segue:

(22) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a
Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12
anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a
cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,
vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar

19
Para uma maior compreensão da categoria Ato Discursivo, consulte o tópico seguinte, 3.3.1.2.

58
errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em
transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,
representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Crítica 01  A censura parece vitimar só o imaginário


Folha de São Paulo, 31/08/08

O parágrafo acima representa o Move de reação da crítica em destaque,


concluindo-a. Apresenta quatro Atos Discursivos, identificados pela força
ilocucionária que carregam: admonitiva, declarativa, interrogativa e declarativa.
Abaixo, destacam-se ambas categorias:

(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:
DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: INTER (F3)) – Será que
essa... Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ]
(A4)) ] (M1))

A categoria Move (assim como as outras categorias dos Níveis Interpessoal e


Representacional) pode ser marcada com a presença de operadores e
modificadores, que orientam a argumentação de um Move. Por operadores,
compreendem-se os elementos gramaticais que especificam o papel do Move no
discurso em andamento, enquanto por modificadores, os elementos lexicais com a
mesma função. Segue um exemplo de operador que orienta uma concessão e outro
de modificador que marca o início de uma síntese:

(23) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony
estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-
mulher -o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que
nível estamos, se no da vida ou no da representação.
APESAR desses momentos serem intensos, o fato é que, até a cena de
assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua
maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson
Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu
com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama existisse sobretudo para
ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.
[...]

59
Crítica 26  Filme de Cukor aproxima a vida e o palco
Folha de São Paulo, 23/11/08

(24) Temos sempre os dois lados do avanço tecnologico. Mas me questiono diariamente
que como com tantas descobertas sendo realizadas todos os dias, tantos avanços
teconologicos principalmente no campo da comunicação ( Até ontem a internet era uma
novidade, hoje é essencial, indispensável, nao imagino minha vida sem ), como que
doenças graves não tem sua cura ou remedios ? Porque não usarmos em prol de cura
de doenças todo o avanço do mundo atual ? Sei que isso sai completamente de nosso
tema, mas é realmente as vezes revoltante vermos que milhoes são gastos pro homem
ir a Lua enquanto milhares de pessoas morrem desse maldito cancer, desa aids. Fica o
questionamento, o que é mais importante salvar vidas ou o avanço tecnologico ?

Por Marcelle Ximenes em 07/06/2009 às 11:10 PM

RESUMINDO a história, infelizmente é assim, mais por dinheiro pessoas matam e


por dinheiro pessoas morrem.

Quando há uma guerra ela geralmente acontece por causa que alguém quer ter
o poder, o petróleo ou por dinheiro e a cura das doenças não são divulgadas por causa
do dinheiro, por que os laboratórios dependem dos coquitéis que são vendidos
para obterem seu lucro e eles não querem abrir mão desse lucro.

Por Adilson Silva Santos em 19/06/2009 às 11:50 AM


Fórum de opinião em http://turmae2009.bligoo.com/content/view/531283/RFID-Uma-
introdu-o-ao-tema.html - acessado em 05/01/10

3.3.1.2. O Ato Discursivo

Segundo Kroon (apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 60), os Atos


Discursivos são as menores unidades identificáveis do comportamento
comunicativo. Em contraste com a categoria Move, eles não encaminham,
necessariamente, a comunicação visando à obtenção de um objetivo comunicativo.
Enquanto para a gramática tradicional a unidade básica de análise é a oração, para
a Gramática Discursivo-Funcional, a unidade é o Ato Discursivo, que se conecta à
categoria Move através de relações de equipolência e dependência (nesta última, as

60
relações entre os atos – funções retóricas – são de Motivação, Concessão,
Orientação e Correção)20.

É importante enfatizar que, assim como não há equivalente formal da


categoria Move, também não há correspondência formal entre o Ato Discursivo e
qualquer outra unidade linguística. Em muitos casos, para que o falante atinja sua
intenção comunicativa não é necessário que haja uma estrutura oracional, mas
somente um sintagma nominal ou adverbial, como no exemplo a seguir, em que o
SN expresso em B funciona como Ato Discursivo e Move:

(25) A: Who does John want to shave?


B: Himself.
Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 61)

Estabelecer o Ato Discursivo como a unidade mínima do comportamento


discursivo de análise permite-nos estudar sob um prisma discursivo-funcional tanto
elementos menores que a oração  como no exemplo acima  quanto elementos
extra-oracionais que eram vistos à margem da gramática (p. ex. os marcadores
discursivos). Contudo, delimitar esses segmentos discursivos não é tarefa simples.
As duas categorias mais altas na hierarquia do Nível Interpessoal, o Move e o Ato
Discursivo, por exemplo, apresentam-se mais fluidas, menos previsíveis, o que as
torna passíveis de discordância durante a análise, já que pertencem ao Componente
Contextual. Inclusive, na atual versão da GDF, os autores (2008, p. 60), embora
definam a categoria Ato Discursivo, não estabelecem, de forma pontual,
mecanismos para sua identificação, já que não há correspondência direta entre o
Ato Discursivo e qualquer outra unidade linguística (Ibidem, p. 60). Todavia,
observam, na categoria, dois elementos importantes para sua delimitação: 1)
segmentos de mesma força ilocucionária tendem a formar um único Ato
Discursivo; 2) Contornos Entonacionais distintos, manifestados entre predicações
(seja em relação de equipolência, seja de dependência) no Nível Fonológico,

20
Uma vez que as funções retóricas dos Atos Discursivos não foram utilizadas na análise de dados
de nossa pesquisa, resolvemos não exemplificá-los. Para explicitação, conferir Hengeveld e
Mackenzie (2008, p. 53)

61
marcam Atos Discursivos diferentes, mesmo quando constituídos por mesma força
ilocucionária21.
Para elucidação do primeiro elemento, segue o exemplo abaixo:

(26) Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande
cantora. Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo,
cuja história pessoal e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. [...]

Crítica 46  “Maysa é a nossa versão de Amy Winehouse”


Folha de São Paulo, 11/01/09

Acima, tem-se um Move (M) de descrição, constituído de apenas um Ato


Discursivo (A), cuja unidade é mantida pela identidade na força ilocucionária (de
valor DECLarativo) entre as predicações. Veja a esquematização do Move:

(M1: [ (A1: [ (F1: DECL (F1)) (C1: [ (T1: intensa,..., (Tn)) (R1: Maysa (R1))] (C1)) (C2: [ (T1:
nossa diva... cotovelo (T1)) (R1: Maysa (R1))] (C2)) (C3: [ (T1: inspiraram (T1)) (R1: história
pessoal e música (R1)) (R2: minissérie da Globo (R2))] (C3)) ] (A1)) ] (M1))

Abaixo, um exemplo de motivação fonológica.

(27) A: What happened yesterday in the Scottish Premier League?


B: Celtic won. And Rangers lost.

Helgeveld e Mackenzie (2008, p. 53)

No exemplo, o Move de iniciação de A provoca o Move de reação de B, cujo


turno de fala consiste de dois Atos Discursivos, marcados pelo contorno
entonacional. É importante ressaltar que o ponto que separa os dois períodos não é
simplesmente descartável sob um ponto de vista discursivo. Dizer Celtic won. And
Rangers lost ou Celtic won and Rangers lost não é a mesma coisa. No primeiro

21
Para a teoria, há momentos em que a relação entre os níveis ocorre de maneira não-hierárquica,
em que um nível mais baixo influencia um nível mais alto, processo nomeado alinhamento pelos
autores (cf. 2008, p. 316). No entanto, não é isso que ocorre no segundo caso. Não é o Nível
Fonológico que influencia o Interpessoal, mas, sim, este que tem repercussões naquele.

62
caso, subentende-se que o falante deseja enfatizar a informação do segundo
predicado, por isso opta por um período mais curto, de entonação mais marcada. Já
no segundo, isso não ocorre, o que nos mostra que certos padrões prosódicos
modificam não só a orientação discursiva, como também a própria unidade
linguística – no caso, é determinante para a localização de um ou mais Atos
Discursivos.

Quanto à configuração, os Atos Discursivos podem ser de três tipos:

1) Expressivos: em que o falante expressa seus sentimentos. (p. ex.


Droga!);
2) Interativos: em que o Ato Discursivo interpela o ouvinte (p. ex.
Parabéns!)
3) Contentor: em que o Ato Discursivo envolve o Conteúdo
Comunicado e uma ilocução – lexical ou abstrata. (p. ex. Eu
prometo que estarei em casa / eu estarei em sua casa amanhã).

Além disso, assim como a categoria Move, o Ato Discursivo pode conter
modificadores e operadores. Os modificadores (de caráter lexical) permitem ao
falante comentar ou enfatizar o próprio Ato Discursivo. Veja:

(28) [...] Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma
investigação longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma
nova capitã, Monica Rawling (Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a
desferir um duro golpe nas gangues da área.

Crítica 06  Com Glenn Close, série vê lado podre da vida


Folha de São Paulo, 10/08/08

Já os operadores (de caráter gramatical) podem marcar ironia, ênfase ou


mitigação acerca do Ato Discursivo. Veja o exemplo abaixo em que o contorno
entonacional dado ao verbo denuncia ironia:

63
(29) This IS fun, don’t you think?
Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 65)

3.3.1.3. A Ilocução

A Ilocução captura as propriedades formais e lexicais de Atos Discursivos em


situações convencionalizadas, que estão a serviço de intenções comunicativas
como: “chamar a atenção”, “asseverar”, “ordenar”, “questionar”, “advertir”, “requerer”,
etc. No entanto, assim como não há correspondência entre as unidades linguísticas
e as duas categorias mais altas do Nível Interpessoal, também não há relação direta
entre uma intenção comunicativa específica e uma ilocução.

Por Ilocução, ou ato ilocucionário, segundo Austin e Searle (1972 apud


KERBRAT-ORECCHIONI, 2001), pode-se compreender todo enunciado linguístico
em que o falante visa a produzir certo efeito e a implicar certa modificação da
situação interlocutiva. Searle (1972 apud KERBRAT-ORECCHIONI, 2001, p. 31) os
classifica em cinco tipos, a saber:

1. Os assertivos: têm o objetivo de “comprometer a responsabilidade do


locutor (em diferentes níveis) sobre a existência de um estado-de-coisas,
sobre a verdade da proposição expressa”. Trata-se, neste caso, de uma
adequação das palavras ao mundo.
2. Os diretivos: o objetivo ilocutório dos diretivos consiste “no fato de eles
constituírem tentativas por parte do locutor de mandar o auditor fazer
alguma coisa”; tentativas que podem ser “muito modestas” (“convidar a”,
“sugerir” etc.) ou, ao contrário, “ardentes” (“ordenar”, “exigir”, “insistir”), de
acordo com o eixo relativo ao grau de intensidade na apresentação do
objetivo.
3. Os promissivos: são atos cujo objetivo é obrigar o locutor (aqui,
igualmente, em graus variados) a adotar uma conduta futura.
4. Os expressivos: (como “agradecer”, “parabenizar”, “se desculpar”,
“deplorar”) possuem, de acordo com sua definição, o objetivo de “expressar
o estado psicológico especificado na condição de sinceridade diante de um
estado de coisas especificado pelo conteúdo proposicional”.

64
5. Os declarativos: quando provocamos mudanças no mundo através de
nossas enunciações. Em sentido estrito, dizem respeito a todos os
performativos.

Em contrapartida, enquanto Searle (1972 apud KERBRAT-ORECCHIONI,


2001) classifica as ilocuções em cinco tipos, Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 71)
as ampliam para doze categorias, cujas descrições seguem:

• Declarativa (DECL): o falante informa o ouvinte do Conteúdo Proposicional


evocado.

• Interrogativa (INTER): o falante requisita ao ouvinte responder ao Conteúdo


Proposicional evocado.

• Imperativa (IMPER): o falante delega ao ouvinte a responsabilidade de fazer


uma ação evocada.

• Proibitiva (PROH): o falante proíbe o ouvinte de fazer uma ação evocada.

• Optativa (OPT): o falante indica ao ouvinte seu desejo que a situação positiva
evocada pelo Conteúdo Comunicado ocorra.

• Imprecativa (IMPR): o falante indica ao ouvinte seu desejo que a situação


negativa evocada pelo Conteúdo Comunicado ocorra.

• Exortativo (HORT): o falante encoraja o ouvinte ou a si mesmo a fazer uma


ação evocada no Conteúdo Comunicado.

• Não-exortativo (DISHORT): o falante desencoraja o ouvinte ou a si mesmo a


fazer uma ação evocada no Conteúdo Comunicado.

• Admonitiva (ADMON): o falante adverte o ouvinte a realizar a situação


evocada pelo Conteúdo Comunicado.

• Comissiva (COMM): o falante promete a si mesmo a realizar uma situação


futura evocada pelo Conteúdo Comunicado.

• Suplicativa (SUPPL): o falante pede permissão ao ouvinte para realizar a


situação evocada pelo Conteúdo Comunicado;
65
• Mirativa (MIR): o falante expressa sua surpresa sobre o Conteúdo
Comunicado evocado.

A seguir, um exemplo que evidencia algumas dessas ilocuções – observe a


nomenclatura destacada em caixa alta na esquematização do Move, que marcam as
ilocuções:

(30) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a
Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12
anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a
cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,
vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar
errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em
transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,
representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Crítica 01  A censura parece vitimar só o imaginário


Folha de São Paulo, 31/08/08

(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:
DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: MIR (F3)) – Será que essa...
Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ] (A4)) ]
(M1))

Além das funções citadas, Hengelved; Mackenzie (Ibidem, p. 76) apontam


que uma ilocução também pode ser ocupada por interjeições e expressões
correlatas (que servem para dar vazão às reações do falante em relação aos
elementos presentes na situação discursiva) e vocativos (que, quando no início de
um segmento discursivo, servem para chamar a atenção do ouvinte).
Em relação aos modificadores e operadores de tal categoria, os primeiros
representam modalizações de atitude do falante (p. ex. francamente, sinceramente);
os últimos, marcam ênfase e mitigação. Veja um exemplo de cada, respectivamente:

66
(31) Scarlett O'Hara queria ir para algum lugar, mas, francamente, ninguém dá a
mínima.

Fonte: Desciclopédia
Em http://desciclo.pedia.ws/wiki/Ningu%C3%A9m_se_importa – acessado em 05/01/10

(32) Quero isso AGORA!!!


Exemplo construído

3.3.1.4. Os Participantes

Os dois participantes do Nível Interpessoal são Falante (P1) e Ouvinte (P2), os


quais carregam a função Agente e Receptor, respectivamente. Veja o exemplo em
que os dois participantes estão marcados:

(33) I request you to complete this form.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 85)

No entanto, há situações em que eles estão implícitos. Veja o exemplo


abaixo, em que a fala de A se dirige a B, embora ambos não estejam marcados no
texto.

(34) A: What happened yesterday in the Scottish Premier League?


B: Celtic won. And Rangers lost.

Helgeveld e Mackenzie (2008, p. 53)

Além disso, quando o Ato Discursivo tiver configuração expressiva, haverá


apenas a função falante (P1) representada. Exemplo:

67
(35) Ai!

Exemplo Construído

Quanto aos modificadores e operadores da categoria “participantes”, os


primeiros são representados quando há uma especificação restrita do núcleo. O
falante, nesse caso, representará uma faceta de si mesmo ou do ouvinte, ou, ainda,
selecionará um ouvinte específico. Veja o exemplo.

(36) Ei, você aí, de que lado você está?


Música Ei, você aí - Banda Ruth’s
Disponível em: http://www.letras.com.br/bandas-ruths/ei-voce-ai

Já os operadores serão representados por elementos que marquem número


(singular/plural) e status (gênero, etc.) de um dos participantes.

3.3.1.5. O Conteúdo Comunicado

Enquanto a Ilocução indica o uso conversacional convencionalizado de um


Ato Discursivo, o Conteúdo Comunicado contém a totalidade do que o falante deseja
evocar durante a interação. Em termos acionais, ele corresponde ao componente
representacional de Searle (1969) e evidencia as escolhas do falante na evocação
do mundo externo sobre o qual ele deseja falar.

No que tange ao componente representacional, Searle entende que esse


elemento, que pode ser comum a atos de fala diferenciados entre si – com relação
ao componente ilocucionário –, vem a ser uma proposição. Contudo, no sentido
tradicionalmente atribuído ao termo proposição, o componente representacional
designa não um mero fragmento de ato de fala, mas algo que, enunciado em certas
circunstâncias, pode ser considerado o cumprimento de um ato de fala, mais
precisamente, uma asserção. Em outras palavras, uma proposição corresponde a
um enunciado em que já está marcado o componente ilocucionário, especificamente
aquele que caracteriza a intenção de realizar o ato de fala de afirmar um fato
como verdadeiro (asserção). Em resumo, é esse tipo de proposição (de ato
68
discursivo de ilocução declarativa) que corresponde ao Conteúdo Comunicado. Ou
seja, em Atos Discursivos em que esteja marcada atitude proposicional ou termos de
sua fonte ou origem (conhecimento comum partilhado, evidência sensorial,
inferência) não haverá Conteúdo Comunicado. Veja um exemplo:

(37) (A) Maria vem aqui.


(A) Maria, vem aqui!

Exemplo construído

No primeiro caso, o falante enuncia uma asserção, um Ato Discursivo de


ilocução declarativa. Portanto, aí, há Conteúdo Comunicado. No segundo, há uma
ordem, isto é, um Ato Discursivo de ilocução imperativa. Logo, aí, não há Conteúdo
Comunicado.

O Conteúdo Comunicado comporta as funções pragmáticas figura x fundo;


tópico x comentário; contraste x sobreposição22.

Os modificadores de Conteúdo Comunicado são aqueles que enfatizam a


asserção (p. ex. felizmente, realmente, sinceramente.), já os operadores podem
trazer tanto idéia de ênfase quanto de reportatividade23.

3.3.1.6. Os Subatos

É uma crença fundamental da teoria do ato de fala (SEARLE, apud


KERBRAT-ORECCHIONI, 2001) que a referência deve ser analisada como acional,

22
Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 96), o contraste sinaliza o desejo do falante de
externalizar diferenças particulares entre dois ou mais conteúdos comunicados ou entre um conteúdo
comunicado e outra informação contextual disponível. Já a sobreposição sinaliza o desejo do falante
de externalizar semelhanças particulares entre os mesmos elementos.
23
Enquanto os operadores de ênfase podem ser representados fonologicamente como visto em
algumas categorias prévias, os operadores de reportatividade não parecem estar presentes em todas
as línguas. Os autores (2008, p. 104) recorreram à língua indígena peruana Shibipo para
exemplificação do fenômeno, em que um sufixo marca a reportatividade:

Cai-ronqui reocoocainyantanque (sufixo – equivale a declaradamente)

Declaradamente, enquanto ele estava indo (no barco), ele virou.

69
uma vez que o ato de referir deve ser considerado uma ação pragmática e
cooperativa no processo de interação verbal entre falante e ouvinte (DIK 1978 apud
HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 107). A informação pragmática consiste de
toda informação (de longo termo, situacional e imediata) trazida pela comunicação
em seu processo de interação.
A GDF apóia essa visão, mas acrescenta o termo atribuição (ou adscrição) à
cena. Para os autores, da mesma forma que a referência, a escolha do material
lexical, e a quantidade dele oferecida, é determinada pelo falante, que planeja a
melhor forma de influenciar/persuadir seu destinatário.

Dessa forma, os autores consideram tanto referência quanto atribuição


elementos de análise do Nível Interpessoal (NI). Nomeados, respectivamente,
Subato de Referência e Subato de Atribuição, tais categorias compõem o Conteúdo
Comunicado.

O Subato de Atribuição representa a tentativa do falante de evocar uma


propriedade. Nesse caso, o falante não precisa atribuir necessariamente uma
propriedade a um referente. Segundo os autores (Ibidem, p. 109), ao proferir, por
exemplo, “está chovendo”, o falante está evocando somente uma propriedade
meteorológica sem evocar nenhum tipo de referente; chover não está sendo
atribuído a, mas simplesmente descrito. O Subato de Referência, por sua vez,
ocorre quando o falante tenta evocar um referente, proferindo coisas do tipo:
homem, casa, gato, árvore, entre outras.

As duas categorias possuem modificadores e operadores. Em relação ao


Subato de Atribuição, temos modificadores de função atitudinal (p. ex. bem,
maravilhosamente.), enfática (p. ex. realmente, certamente.) e reportativo (p. ex.
segundo, conforme.) e operadores de função aproximativa (p. ex. tipo) e enfática (p.
ex. completamente). Já em se tratando do Subato de Referência24, têm-se
modificadores de função atitudinal (pobre, pequeno, etc.) e operadores de

24
Embora os encapsuladores representem um Subato de Referência, as entidades que já possuem o
estatuto de referentes não podem ser encapsulados, ou porque representam entidades concretas e
tangíveis ou porque já representam em si um encapsulamento. Por esse motivo, não nos
estenderemos neste tópico.

70
identificabilidade (p. ex. O homem x Um homem) e ênfase (p. ex. vi com meus
próprios olhos).

3.3.2. O Nível Representacional (ou semântico)

Enquanto o Nível Interpessoal espelha a função interpessoal da língua


(Halliday, 1985), o Nível Representacional (NR) trabalha com a função ideacional,
com a manifestação de conteúdos que estejam ligados à experiência que o falante
possui do mundo concreto, real ou de seu universo subjetivo, interior.

O NR lida com os aspectos formais de uma unidade linguística ao refletir seu


papel no estabelecimento de uma relação com o mundo real ou imaginário que ela
descreve e, por essa razão, refere-se à designação e não à evocação (que ocorre
no nível interpessoal). Ele cuida apenas da semântica de uma unidade linguística e,
assim como o Nível Interpessoal, lida com três primitivos: esquemas, lexemas e
operadores primários. Os esquemas indicam que recursos gramaticais estão
disponíveis em cada língua para o estabelecimento de distinções semânticas; por
exemplo, as várias categorias de designação (animado/inanimado), as funções
semânticas (Ator, Paciente, Recipiente, Lugar etc), as oposições de número
(singular, dual, plural e outras). É aqui que se inclui a maioria dos lexemas, inclusive
os advérbios que modificam o conteúdo proposicional (p. ex. obviamente). Os
operadores primários desse nível abrangem a evidencialidade, o tempo absoluto e
relativo, a polaridade etc.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), dado que as unidades no Nível


Representacional são caracterizadas pelo fato de que elas designam, as diferenças
entre as unidades desse nível podem ser estabelecidas em termos de quatro
categorias ontológicas básicas25, ou melhor, semânticas, a saber:

a) entidades de primeira ordem: indivíduos. Eles podem ser localizados no


espaço e podem ser avaliados em termos existenciais.

25
Além dessas categorias semânticas, ainda existe uma outra de quarta ordem, que se refere aos
atos de fala que, localizados no tempo e no espaço, são avaliados em termos de condições de
felicidade. No entanto, como ela se refere ao Conteúdo Comunicado do Nível Interpessoal, essa
categoria não está destacada aqui.

71
b) entidades de segunda ordem: estados-de-coisas. Podem ser localizados
no espaço e no tempo e podem ser avaliados em relação a sua realidade.

c) entidades de terceira ordem: conteúdos proposicionais. São construções


mentais, que não podem ser localizadas nem no espaço nem no tempo, mas que
podem ser avaliadas em termos de verdade.

d) entidades de ordem zero26: propriedades. Não podem ser caracterizadas


por parâmetros de espaço e tempo e não têm existência independente. Só podem
ser avaliadas em termos de sua aplicabilidade a outros tipos de entidade ou à
situação a qual descreve. Para exemplificá-las, Hengeveld e Mackenzie (2008)
recorrem aos exemplos: “verde”, uma propriedade de entidades de primeira ordem,
“recente”, de segunda ordem e “inegável”, de terceira ordem.

Não obstante as categorias semânticas orientem a GDF a propor as unidades


do NR, elas não as definem por completo. A relação hierárquica das unidades do NR
são: conteúdo proposicional (p) > episódio (ep) > estado-de-coisas (e) > propriedade
(f). Além dessas quatro, há a unidade indivíduo (x), que não apresenta relação
hierárquica com propriedades (f)

É importante ressaltar que, apesar de não estar prevista na categoria


ontológica básica, a unidade episódio, que é um encadeamento de estado-de-
coisas, faz parte da constituição básica da cadeia hierárquica da GDF.
Tais propriedades semânticas mediante as quais o Nível Representacional
opera estão hierarquicamente organizadas abaixo:

26
É importante ressaltar que as três primeiras categorias foram tomadas de Lyons (1977 apud
HENGEVELD E MACKENZIE, 2008) e somente a última foi elaborada por Hengeveld & Mackenzie
(2008).

72
(∏ p1: Conteúdo proposicional
(∏ ep1: Episódio
(∏ e1: Estado de coisas
[(∏ f1: [ Propriedade
(∏ f1:  (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade lexical
(∏ x1:  (x1): [σ (x1)Ф])Ф Indivíduo
...
] (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade
(e1)Ф]: [σ (e1)Ф]) Estado de coisas
(ep1): [[σ (ep1)Ф]) Episódio
(p1): [σ (p1)Ф]) Conteúdo proposicional
27
Quadro 6 – Categorias do Nível Representacional

Além dessas categorias básicas, Hengeveld e Mackenzie (2008) investigaram


outras, secundárias, que, muitas vezes, representam argumentos nodais do texto,
como nos casos de clivagem. Elas se subdividem em cinco, a saber: lugar, tempo,
modo, razão e quantidade. Seguem os exemplos extraídos dos autores com a
explicitação de tais categorias, respectivamente (2008, p. 135):

(38) O lugar em que encontrei Sheila foi no parque.


(39) O horário em que encontrei Sheila foi às 3h.
(40) O modo como eu abordei o leão foi com grande precaução.
(41) A razão pela qual eu me casei com ela foi porque ela me faria feliz.
(42) O ritmo com o qual examinei os alunos foi de três a cada hora.

Hengeveld e Mackenzie (2008)

3.3.2.1. As categorias ontológicas básicas

3.3.2.1.1. O Conteúdo Proposicional

Conteúdos Proposicionais são constructos mentais que não existem no espaço


e no tempo, mas somente na mente daqueles que os acolhem. Representam a

27
O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das
unidades do Nível Representacional. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.

73
camada mais alta do NR e correlacionam-se, de forma não-marcada, com o Ato
Discursivo, no Nível Interpessoal. Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 144),
podem ser factuais, quando são pedaços de conhecimento ou uma crença acerca do
mundo real, ou não-factuais, quando são desejos ou expectativas com relação a um
mundo imaginário. Além disso, são caracterizados pelo fato de serem qualificados
em termos de suas atitudes proposicionais (certeza, dúvida, descrença) ou em
termos de sua fonte ou origem (conhecimento comum partilhado, evidência
sensorial, inferência).

Como são de natureza proposicional, é importante saber diferenciá-los do


Conteúdo Comunicado, pertencente ao Nível Interpessoal. O Conteúdo
Proposicional está sempre ligado ou à atitude proposicional ou à sua fonte de origem
(como afirmado previamente) e pode ser atribuído a outras pessoas além do falante.
Já o Conteúdo Comunicado é sempre atribuído ao falante e está ligado à
enunciação, isto é, não apresenta avaliação do falante acerca daquilo que se
enuncia.

(43) (A) A mãe de Joana virá para o almoço.


(B) Joana crê que sua mãe virá para o almoço.

Exemplo construído

Acima, entre A e B, tem-se, respectivamente, a presença de Conteúdo


Comunicado e Conteúdo Proposicional. Enquanto em A se presencia uma
proposição assertiva, em B, presencia-se uma predicação de dúvida.

Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 151), por atitude proposicional


entende-se o grau de comprometimento do falante acerca daquilo que diz, ou seja,
ela sempre apresenta um valor modal. Muitas vezes, essa atitude encontra-se
lexicalizada no texto (como no exemplo acima); noutras, ela é inferencial, baseada
em recursos gramaticais, como ocorre na condicional hipotética abaixo:

(44) If he came, I would leave.


Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 154)

74
Assim como as categorias do NI, as do NR possuem modificadores e
operadores. Os modificadores do Conteúdo Proposicional são marcados por
expressões que modalizam o grau de comprometimento do falante acerca da
proposição (p. ex. provavelmente, certamente, evidendemente) e os operadores são
marcados por funções gramaticais que tenham o mesmo efeito (veja o exemplo
acima, em que o modal If expressa hipótese).

3.3.2.1.2. O Episódio

O Episódio é composto por um ou mais Estados-de-coisas numa sequência


coerente, onde consta unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes.
Correlaciona-se, de forma não-marcada, com a categoria Move do Nível
Interpessoal quando composto por tipo narrativo, em geral constituindo uma série de
eventos apresentados em ordem cronológica, que não envolve nenhuma mudança
de cena. Inclusive, para Hengeveld & Mackenzie (2008, p. 160) Episódio é sinônimo
de “partes coerentes de um discurso narrativo”. Veja um exemplo:

(45) [...] Badii viaja por uma região desértica, com seu carro ai encontrando as pessoas a
quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra
resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter
sagrado, etc. [...]

Crítica 27  Essência escapa em “O Gosto da Cereja”


Folha de São Paulo, 16/11/08

Acima, todos os Estados-de-coisas se referem ao mesmo indivíduo, Badii, e


marcam desenvolvimento cronológico.

Entretanto, é importante ressaltar que existem textos de tipo narrativo que não
possuem uma sequência narrativa prototípica, como se pode ver no gênero textual
receita, onde as sequências injuntivas presentes nos passos a serem seguidos
possuem unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes. Dessa forma,
nesses gêneros, a categoria Episódio também está presente:

75
(46) [...] Peneire a farinha de trigo, o chocolate em pó e o fermento. Reserve. Bata as
claras em neve, junte as gemas peneiradas. Sem parar de bater, junte aos poucos o
açúcar. Com a batedeira desligada, junte aos poucos a mistura reservada [...]
Bolo trufado de brigadeiro branco e preto
http://tudogostoso.uol.com.br/receita/80060-bolo-trufado-de-brigadeiro-branco-e-
preto.html

Os Modificadores de Episódio são representados por marcadores de tempo


absoluto (p. ex. ontem, hoje, amanhã.) e os operadores, pelo uso continuado das
mesmas desinências verbais de tempo e de modo e de número e pessoa. Inclusive,
são os operadores que garantem a unidade da categoria e sua mudança implica o
início de um novo Episódio.

3.3.2.1.3. Estados-de-coisas (ou eventos)

Estados-de-coisas são entidades que podem ser localizadas no tempo relativo


e podem ser avaliadas em termos de sua realidade. Correlacionam-se, de forma
não-marcada ao Conteúdo Comunicado, no Nível Interpessoal. São caracterizados
por uma ou mais propriedades, que, por sua vez, podem conter descrições de
indivíduos e outras propriedades. De acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008, p.
171), o que permite distinguir Episódio e Estado-de-coisas é o fato de a categoria
Episódio admitir, por exemplo, modificadores de tempo absoluto (como ontem, hoje,
amanhã, etc.), e a categoria Estado-de-coisas admitir modificadores de tempo
relativo (como depois do almoço, em duas horas, etc), não sendo necessário que a
localização no tempo e no espaço ocorra com base em um tempo/lugar absoluto.
Veja o exemplo a seguir, em que o modificador temporal alguns segundos depois
restringe-se apenas ao predicado matriz.

(47) [...] A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da
Guerra Fria é que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a
liberdade; ALGUNS SEGUNDOS DEPOIS descobrimos que a liberdade consiste em
escolher uma operadora de telefone, ou de escolher certa marca de cerveja.[...]

Crítica 22  Em “Bourne”, Estado suprime liberdade.


Folha de São Paulo, 05/10/08

76
Os modificadores dos estados-de-coisas são as expressões lexicais que
marcam o tempo relativo, o lugar e a frequência de ocorrência; a realidade; o cenário
físico e cognitivo do estado-de-coisas. Veja os exemplos (idem, ibidem).

(48) Sheila works in London (Location)


Sheila went out before dinner (Relative time)
Sheila goes to London Frequently (Frequency)
Sheila is actually a guy. (Reality)
Sheila fell ill because of the heavy rainfall (Cause)
Sheila stayed home so that she could watch television (Purpose)

Já os operadores são os termos gramaticais que marcam o lugar, tempo


relativo, modalidade orientada para o evento, percepção de evento, polaridade e
quantificação. Veja os exemplos transcritos abaixo (HENGEVELD & MACKENZIE,
2008, p. 172, 173, 175, 177, 179 e 180)

(49) Jan is away fishing (Location)


Tomorrow, at three they will have entered (Relative tense)
Together, we will go over there (Event-oriented modality)
Sheila saw Peter had left. (Event perception)
He is not a king (Polarity)
I used to come (quantification)

3.3.2.1.4. As Propriedades

As Propriedades são entidades de ordem zero, que não podem ser


caracterizadas por parâmetros de espaço e tempo e não têm existência
independente. Só podem ser avaliadas em termos de sua aplicabilidade a outros
tipos de entidade ou situação a qual descreve. Correlacionam-se, de forma não-
marcada, com o Subato de Atribuição, no Nível Interpessoal. Subdividem-se em dois
tipos: Propriedades Configuracionais e Propriedades Lexicais (ou apenas
propriedades). As primeiras representam o inventário dos esquemas de predicação
relevantes para uma língua, prevendo questões de valência, função semântica e

77
grau de definitude dos argumentos, etc28. As últimas referem-se a partes do
discurso, podendo modificar entidades de todas as ordens, como se vê abaixo:

(50) A highly intelligent man.

Hengeveld e Mackenzie (2008, p.215)

Acima, highly é uma propriedade de entidade de ordem zero e intelligent, de


primeira ordem. Abaixo, continuosly marca entidade de segunda e strongly, de
terceira ordem.

(51) He stares continuously.


She strongly believes that.
Hengeveld e Mackenzie (2008, 214)

Os modificadores e operadores das Propriedades funcionam como


Propriedades de Propriedades, isto é, designam entidades de ordem zero (como no
exemplo acima – highly intelligent). Nos exemplos abaixo, tem-se um modificador e
um operador, respectivamente.

(52) [...] Zuzu aparece aqui como personagem ISOLADO em seu heroísmo [...]

Crítica 25  Rezende faz valer a individualidade


Folha de São Paulo, 23/11/08

(53) [...] mais familiar, o GORDINHO urso Po quer ser um grande mestre do Kung Fu,
embora esse “excesso de gostosura” pareça um empecilho bem, digamos, polpudo. [...]

Crítica 38  “Wall-E” se destaca entre lançamentos de animação


Folha de São Paulo, 21/12/08

Nos exemplos acima, personagem é uma propriedade de primeira ordem


(designa o indivíduo Zuzu) modificada por outra propriedade (isolado). Por sua vez,

28
Neste trabalho, não trataremos das Propriedades Configuracionais, uma vez que elas não
colaboram para a análise de nossos dados.

78
gordo, uma propriedade do indivíduo urso, possui um operador formado por sufixo
diminutivo que lhe atribui intensidade.

3.3.2.1.5. Os Indivíduos

Indivíduos designam entidades de primeira ordem, concretas e tangíveis. Além


disso, existem por si sós e podem ser localizados no espaço. Correlacionam-se, de
forma não-marcada, com o Subato de Referência, no Nível Interpessoal (NI). Eles se
diferem do Subato de Referência por não evocarem referentes, mas, sim,
designarem-nos através de processos de retomada e remissão (anáforas, catáforas,
expressões dêiticas), sejam eles explícitos ou não.

No exemplo a seguir, tem-se o Subato de Referência O robô Wall-E sendo


retomado várias vezes por anáforas lexicais e por elipse. Em cada uma dessas
retomadas, tem-se um Indivíduo marcado.

(54) O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas.
Afinal, elas sobrevivem a tudo. Ø Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há

toneladas de sucata por toda parte. Enquanto isso, Ø junta de caixinhas a parte de robôs
como ele. Wall-E enxerga beleza onde só há lixo.

Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que
Ø se apaixona pela evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado
aparece no seu mundo e o domina completamente.

A nostalgia que permeava toda a sua existência dá lugar à onipresença de


Eva. Tudo em nome do amor, embora fora de sintonia. Afinal, ela tem uma missão:
encontrar registro de vida na Terra para que a humanidade, reclusa no espaço, possa
retornar ao planeta.[...]

Crítica 38 – “Wall-E” se destaca entre lançamentos de animação


Folha de São Paulo, 21/12/08

79
Os modificadores de Indivíduos podem expressar qualificação (p. ex. ele era
rico), quantificação (p. ex. eles eram muitos), localidade (p. ex. o homem na lua) ou
tempo (p. ex. os artistas de hoje). Os operadores refletem os mesmos aspectos. Os
exemplos seguem na mesma ordem: homenzarrão, meninada, portaria,
antevéspera.

3.3.2.2. As categorias secundárias

3.3.2.2.1. Lugar

Ao lado dos Indivíduos, que são entidades concretas e tangíveis, as línguas


também reconhecem a classe Lugar. No Componente Conceitual, deve-se supor
que a conceituação dos indivíduos (como cobertor, rocha ou Martin Luther King)
difere da conceituação de locais (como Norte, Atlanta ou Georgia), muito embora
tais nomes possam representar ora uma categoria ora outra. Para exemplificação,
Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 248) pedem que se considere o exemplo “casa”:
para um potencial comprador, a casa pode ser concebida como um Lugar, um local
para viver. Em contrapartida, para um agente imobiliário, a casa será conceituada,
acima de tudo, como um Indivíduo, uma mercadoria a ser vendida. Inclusive, em
inglês, existe um nome para cada caso: home e house, respectivamente.

Para os autores (ibidem), essa distinção se encontra refletida nas funções que
essas palavras ocupam. House, na maior parte das vezes, ocupa um sintagma
nominal e home, um adverbial. Veja o exemplo abaixo, em que, com um mesmo
nome, grifa-se um Lugar e um Indivíduo, respectivamente:

(55) [...] Logo no início da primeira temporada, que estreou em fevereiro NOS EUA, uma
inimiga de Wendy arrisca sua carreira espalhando na mídia suas falahs como mãe. [...]

Crítica 03 – Versão “envelhecida” de “Sex” é mais do mesmo


Folha de São Paulo, 24/08/08

80
(56) [...] Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos
(os EUA colonizaram culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão
que pai de sua filha é que terá de salvar alguns tantos. [...]

Crítica 42 – Rigoroso, “O Hospedeiro” é falso trash


Folha de São Paulo, 04/01/09

A modificação de unidades semânticas com a designação de lugar é possível


em dois pontos. No primeiro, o modificador afeta apenas o núcleo (p. ex. estrada
principal). No segundo, ele afeta toda a unidade semântica (p. ex. perigosamente
perto dos espectadores).

Os operadores da categoria abrangem questões como graus de distância,


visibilidade e características proeminentes do ambiente físico (p. ex. eu vi isso lá).

3.3.2.2.2. Tempo

As línguas especializaram expressões para a designação das categorias de


tempo. Algumas estão ligadas à interpretação contextual do momento da fala (hoje,
próximo ano), outras estabelecem posições relativas na escala de tempo (antes de
sexta), enquanto há aquelas que se referem a um calendário socialmente
estabelecido (Páscoa, Natal).

Independentemente da escala temporal que se utiliza, o tempo é sempre uma


construção espacial imaginária, que pode ser representada por proformas (p. ex. ela
me cumprimentou na hora em que cheguei), dêiticos (p. ex. Termine agora!),
advérbios interrogativos (p. ex. quando ela virá?) ou advérbios que representem
estado-de-coisas de valor temporal (p. ex. Gostei quando me disse aquilo).

Os modificadores de Tempo funcionam assim como os de lugar: ou afetam


apenas o núcleo (p. ex. noite passada) ou afetam toda a unidade semântica (p. ex.
aqueles velhos tempos). Os operadores podem ter função de localização (p. ex. Esta
terça) ou quantificação (p. ex. a todo momento).

81
3.3.2.2.3. Modo

Designa o modo pelo qual um estado-de-coisas é desenvolvido. Em outras


palavras, assim como as línguas nos permitem falar sobre o “onde” e o “quando”,
também nos permitem tratar do “modo”. Por essa razão, a GDF reconhece a variável
Modo para os casos em que as línguas apresentam expressões para sua
designação.

(57) [...] Assim como certos preconceitos se escondem METICULOSAMENTE,


“Imitação” é um grande filme, dos maiores, escondido sob a pele do melodrama por este
cineasta tão independente que, após este filme, quando o vento batia só a seu favor em
Hollywood, fez as malas e voltou para a Alemanha.

Crítica 10 – Racismo é tema de aparente melodrama.


Folha de São Paulo, 14/09/08

Os modificadores de Modo ou afetam apenas o núcleo (p. ex. muito


cuidadosamente) ou toda a unidade semântica (p. ex. abriu com um novo método).
Os operadores de Modo são de localização (p. ex. desse modo) e de quantificação
(p. ex. o público reagiu de várias maneiras diferentes).

3.3.2.2.4. Razão
Funcionam à mesma maneira que a categoria de Modo, mas designando a
Razão de um Estado-de-coisas. Assim sendo, a categoria pode ser considerada um
tipo especial de Conteúdo Proposicional, uma vez que ela representa os
pensamentos que levam um falante a agir de determinada forma.

(58)[...] Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner  no
filme, mãe e filha , não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um
filme sobre negros, sobre ser negro num momento anterior à conquista da igualdade de
direitos.
POR ISSO, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah
Jane, já expressa essa revolta, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua
cor como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em
sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]

82
Crítica 10 – Racismo é tema de aparente melodrama
Folha de São Paulo, 14/09/08

Uma vez que a Razão possui uma natureza proposicional, concebe-se como
seus modificadores os termos que indicam atitude proposicional (p. ex. Ele saiu
porque, aparentemente, sua mãe está doente). Já os operadores são de natureza
quantitativa (p. ex. Há três razões).

3.3.2.2.5. Quantidade

As línguas permitem uma designação para as quantidades. O termo


Quantidade é projetado para abranger tanto fenômenos contáveis quanto
incontáveis. Inclusive, as palavras “quantidade” e “número” são núcleos típicos da
designação quantitativa.

(59) [...] No entanto, a história parece se esvair, esvaziada, ao longo do filme. Tudo
começa na Cinemateca Francesa e segue para a revolta da Cinemateca (que grande
QUANTIDADE de cinéfilos considera o início de maio de 68).[...]

Crítica 23 – Bertolucci converte história em cinema.


Folha de São Paulo, 30/11/08

A categoria Quantidade pode ser modificada lexicalmente da mesma forma


que as outras categorias semânticas (p. ex. uma generosa dose de molho) e possuir
operadores de localização (p. ex. aquela quantia ali) e de quantificação (três litros de
leite).

3.3.2.3. Língua Reflexiva

Até agora, tratou-se de todas as categorias semânticas que pertencem ao Nível


Representacional (NR). Entretanto, quando se fala sobre algo, não se trata
necessariamente de um evento narrado. Também se pode falar sobre o evento
discursivo em si e seus produtos.

83
Dessa perspectiva, surge a categoria Língua Reflexiva, de função
metalinguística, isto é, que trata da mensagem sobre o código. Hengeveld e
Mackenzie (2008, p 275) destaca-a das outras do Nível Representacional por ser a
única categoria de função textual (Halliday, 1985), e não Ideacional, como as outras
categorias do Nível Representacional. Abaixo, marca-se um exemplo da categoria,
em que o sintagma a explicação apresenta função metalinguística:

(60) O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência


mesmo de "O Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O
filme nos mostra a trajetória de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que
busca alguém para se ocupar de seu corpo após a morte.
Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas
a quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra
resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter
sagrado etc. Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a
convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem
deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria
homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo
o suicídio).
A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no
filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que
preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não
porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente
o que dele recebemos. Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que
retiramos da imagem é o que lhe damos.
Crítica/”Essência escapa em ‘O Gosto da Cereja’”
Folha de São Paulo, 16/11/08

84
CAPÍTULO IV

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo, caracteriza-se o corpus da pesquisa e apresentam-se os


procedimentos de análise por meio da interface GDF e referenciação. Para tanto, o
capítulo está dividido em duas partes. Na primeira seção, faz-se uma explanação sobre
o gênero textual analisado, a fonte de pesquisa dos encapsulamentos levantados; na
segunda, apresentam-se as possibilidades de categorização dos encapsulamentos
mediante os paradigmas da GDF.

4.1. CARACTERIZAÇÃO DO CORPUS

O corpus utilizado neste trabalho constitui-se de oitenta e oito críticas de


cinema e televisão, todas extraídas da Folha de São Paulo online, referentes ao
período de agosto de 2008 a janeiro de 2010. Pode-se dizer que tal gênero foi
escolhido pelo fato de representar textos em que sequências descritivas, narrativas
e argumentativas se mesclam, o que favorece estratégias mais variadas de
remissão. Portanto, a investigação fez uso de tal gênero do discurso apenas para a
análise dos encapsulamentos, e não para sua caracterização.

Quanto aos aspectos gerais do gênero discursivo, a crítica se caracteriza por


pertencer à esfera jornalística e por ter uma função de comentário sobre
determinado tema, geralmente na esfera artística ou cultural, com o propósito de
informar o leitor sob uma perspectiva não só descritiva, mas também avaliativa.

Segundo Horkheimer (2003), a crítica é feita pelo crítico, jornalista ou


profissional especializado na área, que entra em contato com o produto a ser
criticado e redige matérias ou artigos apresentando uma valoração do objeto
analisado. Em geral, o crítico não pode apresentar uma avaliação puramente

85
subjetiva, mas também deve apresentar descrição de aspectos objetivos que dêem
sustentação a seus argumentos.

No que tange especificamente às críticas de cinema e TV, elas são, na


maioria das vezes, pautadas na interação entre o conteúdo e realidade social em
que estamos inseridos e definem-se pelo objetivo de recomendar, ou não, os
programas, séries, desenhos animados ou filmes sobre os quais discursam. Quanto
à extensão, são bem variadas. Há, em nosso corpus, críticas de extensão de dois
parágrafos (meia página) e outras que chegam a duas páginas.

4.2. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

No intuito de propor um tratamento da referenciação sob a perspectiva da


GDF, nossa pesquisa atendeu ao seguinte esquema:

4.2.1. Estudo dos rótulos metalinguísticos propostos por Francis (1994,


2003) e do Nível Representacional da GDF

As nossas hipóteses sobre uma possível interface entre referenciação e GDF


advieram de dois fatos: primeiro, de estarem ancoradas na mesma perspectiva
linguística  a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday (1985); segundo, de
Hengeveld e Mackenzie (2008) confirmarem a possibilidade do estudo da anáfora
nos diferentes níveis da GDF.

Dessa forma, através de um estudo teórico aprofundado tanto dos rótulos


metalinguísticos (Francis, 1994, 2003) quanto das categorias constituintes do Nível
Representacional (Hengeveld e Mackenzie, 2008), percebe-se que as mesmas
metafunções discursivas eram levadas em consideração  a ideacional e a textual ,
o que nos fez pensar em uma provável correspondência.

No entanto, tal expectativa não se confirmou plenamente. Para Francis (1994,


2003), os rótulos podem apresentar tanto metafunção interpessoal (rótulos de
conteúdo) quanto ideacional e textual (rótulos metalinguísticos). Já para a nossa
perspectiva, embora existam encapsuladores que façam remissão a elementos de
Nível Interpessoal e outros, a de Nível Ideacional e Textual, defende-se que não há
encapsulamentos interpessoais. Para a teoria em estudo, a metafunção interpessoal
86
(NI) envolve a evocação de referentes, enquanto a ideacional e a textual (NR), a
designação. Portanto, uma vez que os encapsulamentos representam a remissão a
segmentos já evocados, eles apenas designam ou apontam segmentos prévios do
texto.

4.2.2. Levantamento de dados no corpus

O segundo passo de nossa pesquisa foi levantar todos os encapsulamentos no


corpus. Tal procedimento teve como objetivo nos fazer ver quais desses fenômenos
capturavam o NR e quais categorias semânticas permitiam a manifestação de
encapsulamentos. Ao todo, catalogaram-se 104 encapsulamentos, sendo 13 de
Conteúdos Proposicionais, 36 de Episódios, 20 de Estado-de-coisas, 12 Atribuidores
de Propriedades, 08 de Modo, 06 de Razão, 05 de Quantidade e 14
metalinguísticos. Defende-se que a maior freqüência de Encapsuladores de
Episódios se deve ao fato da remissão ao trecho narrativo nas sequências
argumentativas.

4.2.3. Elaboração de metodologia de análise dos encapsuladores do


Nível Representacional

Para a elaboração de nossa metodologia, baseamo-nos: em quatro das cinco


categorias primárias do Nível Representacional (Conteúdo Proposicional, Episódio,
Estado-de-Coisas e Propriedades), em três das cinco categorias secundárias (modo,
razão e quantidade) e na categoria língua reflexiva (de metafunção textual). Tal
elaboração teve como aporte as propriedades previstas em cada uma dessas
categorias e sua análise foi de cunho qualitativo, tendo como objetivo principal a
descrição interpretativa das ocorrências encontradas.

Os motivos que nos levaram à não-consideração de três dessas onze


categorias (indivíduo, lugar e tempo) foram os seguintes: a) Os indivíduos já
possuem o estatuto de referentes, são entidades concretas e tangíveis, portanto,
não podem ser encapsulados; b) lugar e tempo relativos não são encapsulados
sozinhos, mas, sim, juntos dos Estados-de-coisas expressos no segmento de texto a
que fazem remissão e, por esse motivo, pertencem à categoria Episódio, como se
verá na análise dos dados.
87
Em linhas gerais, constatou-se que existem oito categorias semânticas que
permitem encapsulamento, em vez de quatro (propostas por Francis), a saber:

Encapsuladores semânticos básicos, que se subdividem em:

1) De Conteúdos Proposicionais29;
2) De Episódios;
3) De Estados-de-coisas;
4) De Propriedades.

Encapsuladores semânticos secundários, que se subdividem em:

5) Encapsuladores de Modo;
6) Encapsuladores de Razão;
7) Encapsuladores de Quantidade.

Encapsuladores metalinguísticos

29
Os encapsuladores de Conteúdo Proposicional compreendem os rótulos de processo mental
previstos por Francis (1994, 2003) e os de atividades linguageiras e nomes de textos, aos dois rótulos
de mesmo nome previstos pela autora. Só não há, sob o prisma da GDF, equivalência quanto aos
rótulos ilocucionários, pois as ilocuções pertencem ao Nível Interpessoal para a teoria em análise.

88
CAPÍTULO V

A ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, exemplificam-se os encapsuladores semânticos levantados no


corpus, abordam-se as contribuições da pesquisa para os estudos da referenciação e
sugerem-se perspectivas futuras de análise. Para tanto, este capítulo está dividido em
seis partes. Na primeira seção, faz-se uma breve introdução, onde há considerações
gerais sobre a análise dos dados; na segunda, terceira e quarta seções, trata-se dos
encapsuladores de categorias semânticas primárias, secundárias e de língua reflexiva,
respectivamente; Na quinta,das contribuições da pesquisa; Na sexta, das perspectivas
futuras.

5.1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve como objetivo a ampliação e análise dos rótulos de


metafunção ideacional e textual propostos por Francis (1994, 2003), somando à
essa categoria os encapsuladores de núcleos não-substantivos e submetendo-a às
classes constituintes do Nível Representacional da GDF. O aumento do escopo
levou-nos à análise de uma classe geral de encapsulamentos, e não só a de
processos de rotulação. Concomitantemente, a opção pelo estudo do fenômeno sob
o prisma de uma nova teoria guiou-nos a novas perspectivas e classificações.

Apesar da mudança paradigmática, ratificam-se as análises feitas por Francis


(1994, 2003) acerca da posição dos rótulos (retrospectivos, prospectivos,
retrospectivos/prospectivos), da configuração (avaliativa e não-avaliativa) e da
função (interpessoal de um lado ou ideacional e textual de outro). No entanto, têm-
se duas ressalvas sobre os estudos da autora em relação a nossa pesquisa: 1) A
configuração axiológica e não-axiológica de um rótulo não se dá de maneira
localista, isto é, apenas no interior do fenômeno, e de maneira binária. No nosso

89
gênero em análise, em que, declaradamente, deve-se fazer uma valoração do tópico
discursivo, encontram-se encapsuladores não-axiológicos aos quais, através de
predicações, atribuíam-se propriedades avaliativas e encontram-se encapsuladores
cuja configuração não é claramente definida, como ocorre abaixo, em que o
encapsulador essa convocação, em nossa perspectiva, tem um baixo grau de
avaliação:

(16) Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de


maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro
da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes
sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim
Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO. Por outro lado, é uma reflexão ousada e
dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em tempos de transformação
política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão fartamente dos
poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento
brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no
enforcamento de Tiradentes (interpretado por José Wilker).[...]

Crítica 13  “Cineasta revisita Inconfidência com ironia”


Folha de São Paulo, 07/09/08

2) Os rótulos/encapsulamentos em si são apenas ideacionais ou textuais


(semânticos), embora existam aqueles que fazem remissão a conteúdos do Nível
Interpessoal. Tal ponto de vista nos leva a repensar a abordagem de Francis (1994,
2003) ao considerar os nomes ilocucionários como rótulos metalinguísticos. Embora
se compreenda a abordagem da autora, uma vez que se decidiu analisar apenas os
encapsulamentos que fazem remissão a conteúdos do NR, teve-se de retirar os
nomes ilocucionários da análise, pois eles pertencem ao Nível Interpessoal da GDF.

Em nossa abordagem, quanto à função, os encapsuladores do NR foram


classificados do seguinte modo:

90
Encapsuladores semânticos básicos

Conteúdos Proposicionais Estado-de-coisas Propriedades

Episódios Indivíduos

Encapsuladores semânticos secundários

Lugar Modo Quantidade

Tempo Razão

Encapsuladores metalinguísticos

Quadro 7 – encapsuladores do Nível Representacional

5.2. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS BÁSICOS

Consideram-se encapsuladores semânticos básicos aqueles que fazem


remissão a entidades de zero, segunda e terceira ordens30, desde que esses
conteúdos sejam representados por predicações ou segmentos maiores de texto, e
não por sintagmas nominais. Neste último caso, os conteúdos já possuem estatuto
de referentes.

30
Como apontado no tópico 4.2.3. do capítulo IV, os indivíduos – entidades de primeira ordem – não
podem ser encapsulados, uma vez que sempre possuem o estatuto de referentes. Paralelamente,
excetuam-se da análise os atos ilocucionários – entidades de quarta ordem –, já que pertencem ao
Nível Interpessoal, conforme citado na nota 25, página 71, capítulo III.

91
5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional

São aqueles que capturam (ou inferem) seja a própria atitude proposicional
expressa (certeza, dúvida, descrença), seja a sua origem (conhecimento comum
partilhado, evidência sensorial, inferência) em uma predicação ou segmento maior
de texto.

Apresentam correspondência com os rótulos de processo mental propostos


por Francis (1994, 2003) e costumam ter como núcleos nomes que são usados para
projetar pensamentos e ideias ou o seu resultado (FRANCIS, 2003, p. 208), tais
como:

análise, atitude, atribuição, conceito, conhecimento, convicção, crença, descoberta,


doutrina, dúvida, filosofia, fundamento lógico, hipótese, idéia, insight, interpretação,
leitura, modo de pensar, noção, noção falsa, opinião, pensamento, ponto de vista,
posição, princípios, suspeita, teoria.

Seguem, aqui, quatro exemplos em que se marcam dois encapsulamentos de


cada tipo.
Em (62), o encapsulador prospectivo dúvida faz remissão à atitude
proposicional expressa pela predicação teria sido ela, de fato, raptada?, em que o
emprego verbal do futuro do pretérito sugere a própria dúvida. Já em (63), o
encapsulador retrospectivo uma constatação faz remissão à atitude proposicional
do segmento sublinhado e tem o estatuto de inferível, pois não há marcas, no trecho
encapsulado, de que se trata de uma certeza percebida, muito embora o segmento
seja assertivo.

(62) [...] De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um
grupo de aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que
raptou sua mulher (Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é
interessante e tensa. Mas existe, sobretudo, A DÚVIDA: teria sido ela, de fato, raptada?
Entramos num terreno muito frequentado por Brooks: o da liberdade feminina.[...]

Crítica 33  Faroeste aborda liberdade feminina


Folha de São Paulo, 02/11/08

92
(63) [...]A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.
Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente
esmagados pelo sistema. É UMA CONSTATAÇÃO, então, que ultrapassa o físico para
chegar a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que
é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".[...]

Crítica 07  Verhoeven retrata faroeste amoral


Folha de São Paulo, 03/08/08

Em (64) e (65), os encapsuladores retrospectivos dessas idéias e essa


atitude inferem os processos cognitivos expressos nos segmentos a que remetem.

(64) [...] Encenações convivem com entrevistas e material de arquivo.


Há um pouco de humor forçado, como se a todo momento fosse necessário recorrer a
coisas "espertas" e a mais infeliz DESSAS IDÉIAS talvez seja um trio de supostos
telespectadores sedentários e imbecilizados. [...]

Crítica 12  Série lança armadilhas no próprio caminho


Folha de São Paulo, 14/09/08

(65) [...] O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não
recomendado a menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou
"certo é errado". Vale, primeiro, do ponto de vista do enredo, em que um famoso
jornalista de TV (Sean Connery), com ligações importantes no Oriente Médio, se vê a
horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual não tem a menor
influência.
A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que
as jogariam em Israel. Ele tomaria ESSA ATITUDE como represália ao presidente dos
EUA, que deseja tirá-lo do poder.[...]

Crítica 36  Brooks fez belo exercício de antecipação


Folha de São Paulo, 21/12/08

Francis (2003, p. 205) enfatiza que a seleção de um nome particular como


rótulo para a proposição de alguém não reflete, necessariamente, sua intenção

93
original. O falante poderia remeter-se a um trecho de relato, por exemplo,
categorizando-o como atitude, análise, hipótese, muito embora ele não seja o
enunciador de tal segmento.

5.2.2. Encapsuladores de Episódio

São aqueles que fazem remissão a um Episódio, isto é, a uma sequência


coerente de texto, onde há unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes.

(66) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony
estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-
mulher  o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que
nível estamos, se no da vida ou no da representação.
Embora ESSES MOMENTOS sejam intensos, o fato é que, até a cena de
assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua
maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson
Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu
com a sensibilidade que se conhece. [...]

Crítica 26  Filme de Cukor aproxima a vida e o palco


Folha de São Paulo, 23/11/08

(67) [...]E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a
do cinema de gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título,
inclusive, é um CGI confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo
bonito na indústria, Bong faz de seu filme algo extremamente político.
Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos
(os EUA colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão
que pai de sua filha e que terá de salvar alguns tantos.
NESSE CLIMA UM TANTO TRESLOUCADO, há espaço também para o terror,
até o desfecho que emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV
brasileira exibia nos anos 70. Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.

Crítica 42  Rigoroso, "O Hospedeiro" é falso trash


Folha de São Paulo, 04/01/09

94
Acima, os exemplos (66) e (67) encapsulam os episódios expressos pelos
segmentos destacados, transformando-os em tópico discursivo. Tais tipos de
encapsuladores são muito frequentes em nosso corpus, sobretudo nos parágrafos
que marcam a transição narração-argumentação. Acredita-se que tal recurso de
remissão seja favorável ao próprio gênero discursivo em análise, uma vez que um
enredo ou parte de enredo torna-se produto a ser avaliado.

Existem nomes típicos que costumam representar núcleos de encapsuladores


de episódio, tais como: acontecimento, aventura, cena, conto, encenação, enredo,
episódio, história, incidente, momento, narração, narrativa, ocorrido, relato. No
entanto, além dos nomes, encontram-se elementos de núcleos adverbiais que,
embora representados por advérbios de lugar ou de tempo, capturam os estados-de-
coisas, o tempo, o lugar e os participantes expressos no episódico, como se vê a
seguir:

(68) [...] Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da
doméstica paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm
planos de morar juntas perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e
põe Lala numa viagem de descoberta ao país vizinho.

É AQUI que surge o momento fantástico, quando Lala encontra um dos


segredos de sua amada, numa cena subaquática realizada com efeitos especiais. A
diretora admite que, na mistura de gêneros, foi complicado deixar a sala de edição.[...]

Crítica 73  Argentina narra fantasia de casal gay

Folha de São Paulo, 01/11/09

(69) [...]Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior,
uma nova aposta foi feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball),
os episódios continuaram a exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar
num dos leitos do Princeton Plainsboro Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma
clínico passou a causar um impacto mais significativo nos relacionamentos entre os
personagens.
A série, ENTÃO, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade
entre capítulos e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no
final da quarta temporada, quando House não consegue salvar da morte a namorada do
melhor amigo, o oncologista Wilson (Robert Sean Leonard). [...]

95
Crítica 09  "House" luta para não virar "one-man-show"
Folha de São Paulo, 28/09/08

Em (68) e (69), aqui e então encapsulam as sequências narrativas


destacadas. No início de nossa pesquisa, tinha-se a hipótese de que esses
elementos representariam encapsuladores de lugar e tempo relativos,
respectivamente. Por relativos, quer-se dizer que a referência corresponde a um
lugar abstrato ou a um tempo psicológico  isto é, construído no discurso , em cuja
remissão estaria sempre envolvido um ou mais Estados-de-coisas. Contudo,
percebeu-se que o recorte feito por tais categorias remetia a todo o episódio. Foi em
função dessa constatação que se deixou de incluir, no grupo dos encapsulamentos
semânticos secundários, as categorias Tempo e Lugar.

5.2.3. Encapsuladores de Estados-de-Coisas

São aqueles que fazem remissão a um Estado-de-coisas previamente citado


no texto, desde que o mesmo já não possua o estatuto de referente, isto é, não seja
uma nominalização de verbo. Abaixo, destaca-se o encapsulador essa última
circunstância, em que a predicação “ser amada” transforma-se em tópico
discursivo.

(70) [...] Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de
Alzheimer. O roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no
que tem de particular ou de geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de
modo que não devemos estabelecer uma relação obrigatória entre idade e doença). É
culta, casada há muitos anos, ama e é amada.
ESSA ÚLTIMA CIRCUNSTÂNCIA é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma
"love story" para ser engolida pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a
saber: a perda progressiva de memória.[...]

"Longe Dela" cativa pela sensibilidade


Folha de São Paulo, 12/10/08

Uma vez que os Estados-de-coisas estão diretamente relacionados aos


processos, isto é, aos elementos responsáveis por codificar ações, eventos,

96
estabelecer relações, construir o dizer e o existir (HALLIDAY 1985 apud CUNHA e
SOUZA, 2007, p.54), eles serão, muitas vezes, encapsulados por uma
nominalização31, muito embora nem sempre esse processo seja feito por uma
palavra cognata, tal como ocorre nos exemplos a seguir em que essa convocação
representa uma nominalização que remete ao segmento que tem como base a
forma verbal conclamara e desse ardiloso embaralhamento, que tem como base
a forma verbal misturando:

(71) [...] Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de
maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro
da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes
sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim
Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO.[..]
Crítica 13  Cineasta revisita Inconfidência com ironia
Folha de São Paulo, 07/09/08

(72) [...] O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta
convidava mulheres a falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se
apresentaram, 23 foram selecionadas e filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce
Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus entrevistados como "personagens", em
"Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso, misturando depoimentos de
mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas
por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão, Fernanda
Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.
O efeito DESSE ARDILOSO EMBARALHAMENTO é deixar o espectador sem chão, em
dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,
afinal, viveu o quê. [...]

Crítica 41  Coutinho deixa o espectador sem chão


Folha de São Paulo, 07/12/08

31
Durante a análise, chegamos a especular que a nominalização seria um encapsulador de
Propriedades. No entanto, embora a nominalização tenha como base o verbo de um predicado,
remete-se a todo o Estado-de-coisas. Por isso, foi categorizada como um encapsulador desta
categoria.

97
Não obstante, em nosso corpus, foram bastante frequentes os casos em que
houve remissão a Estado-de-coisas por encapsulamento por demonstrativo, de
função endofórica. Acredita-se que tal aspecto se deve ao fato de que alguns
Estados-de-coisas representem, na maioria das vezes, o foco comunicativo e, por
serem a informação mais saliente na memória do falante, este recorre ao pronome
demonstrativo32 apenas, transformando o Estado-de-coisas em tópico. Inclusive,
como defende Levinson (1991 apud NEVES 2006, p. 93), o falante preferirá, sempre
que possível, zero a pronome, e pronome a sintagma nominal pleno (grifo meu).
Abaixo, seguem dois exemplos, em que isso encapsula Estados-de-coisas:

(73) [...] Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que
seriam os bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um
episódio da série, que foi de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de
criatividade de um formato -a sitcom, com três câmeras e riso da plateia- inventado nos
anos 50 e que dura até hoje. Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não
será de verdade. É o que a tribo de espectadores vem descobrindo a cada semana. Por
exemplo, nos quatro episódios exibidos até agora, os quatro atores de "Seinfeld" só
aparecem em um -nos outros, são só mencionados, aparecem em pequenas cenas ou
nem ISSO.[...]

Crítica 68  Elenco de "Seinfeld" está de volta (mas não muito)


Folha de São Paulo, 18/11/09

(74) Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas
jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos
que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes
sociais distintas. Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da
diretora argentina Lucía Puenzo, "XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano
passado e premiado em festivais mundo afora (como em Cannes), sobre os conflitos de
jovem hermafrodita.

32
Uma observação importante: em todo nosso corpus, apenas a categoria Estado-de-coisas foi
encapsulada por sintagmas exclusivamente demonstrativos. Nas categorias semânticas secundárias,
como veremos a seguir, embora os núcleos das categorias Modo, Razão e Quantidade possam ser
pronomes demonstrativos, eles se encontram sempre em uma locução prepositiva ou conjuntiva.

98
"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que ISSO não
era importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam
viver o romance de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz
Puenzo, 32, à Folha, por telefone.[...]

Crítica 73  Argentina narra fantasia de casal gay


Folha de São Paulo, 01/11/09

5.2.4. Encapsulamentos Atribuidores de Propriedades

Tais encapsuladores mostram-se bem diferentes das categorias até aqui


apresentadas. Na verdade, eles não encapsulam uma propriedade, mas um Estado-
de-coisas ou, até mesmo, todo um Episódio, mas lhe atribui uma propriedade.

A princípio, suspeitava-se da não-existência desses encapsuladores.


Pensáva-se que, na verdade, tratar-se-ia de um encapsulador de Estado-de-coisas
ou de Episódio. Não obstante, alguns exemplos de nosso corpus nos fizeram
constatar que tal categoria não faz remissão direta ao Estado-de-coisas ou ao
Episódio. Muitas vezes, inclusive, a sequência à qual o encapsulamento se remete
não é claramente delimitável, como se pode confirmar no exemplo abaixo, em que o
encapsulador essa queda não aponta um segmento específico do texto.

(75) [...] Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se
apaixonar por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Woody Allen) vai parar
na típica republiqueta latino-americana de San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para
acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu
poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de
Allen, que insere filmetes paralelos -que poderiam ser campeões no YouTube-, como o
sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o comercial do
cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens e nos situam
na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se compromete com
nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de
campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.

99
Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura
caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos
frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para
saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de
seu olhar oblíquo. Comediantes têm ESSA QUEDA por inverter o olhar.[...]

Crítica 45  DVDs retomam Allen pastelão


Folha de São Paulo, 11/01/09

No exemplo acima, a referência essa queda é apenas inferível, podendo


representar a postura anárquica de Allen, que sempre questiona os sistemas e as
crenças. Acredita-se que encapsuladores como esse tenham, sobretudo, uma certa
dependência contextual, e não somente cotextual, como apontam os estudos de
Conte (2003) e Francis (1994, 2003). Aproximam-se do que Gary-Prieur e Noailly
(2003) entitularam demonstrativos insólitos33, uma categoria em que o
destinatário não consegue identificar ou inferir o “referente”. Por esse motivo,
defende-se que tais encapsulamentos só podem ser compreendidos através de uma
análise discursiva mais ampla, e não apenas através de recursos endofóricos.
Abaixo, segue outro exemplo desse tipo de encapsulamento, em que o segmento
encapsulado por essa dureza é inferível.

(76) Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de
Deus e ainda jovem o bastante para odiar isso.Nos seus piores momentos, tem a
verve de um poeta marginal afiado. É um chato com alguma razão que explica sua
má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes. Chega na casa da ex-
namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea Sophie
(Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny
leva o trio a um colapso imediato.

Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo
lembrando "Depois de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original.
Se na noite nova-iorquina de Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de
Leigh Johnny é o motor de tensões constantes.

33
cf. GARY-PRIEUR, Marie-Nöelle; NOAILLY, Michèle. Demonstrativos Insólitos. In: CAVALCANTE,
M. N; RODRIGUES, B. B; CIULLA, A (Orgs). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.

100
ESSA DUREZA tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também
percebido em "Kes" (1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema
britânico lançado há pouco pela mesma distribuidora Lume Filmes.[...]

Crítica 65  Em clima de ressaca, filme de Mike Leigh explora uma Londres


sombria
Folha de São Paulo, 27/09/09

No entanto, o estatuto de tal encapsulador atribuidor de propriedade nem


sempre é de inferível. Como se afirmou anteriormente, embora haja remissão a um
Estado-de-coisas ou a um Episódio, tal processo não ocorre de forma direta, pois se
remete sem encapsular o segmento. Nesse caso, a categoria que se transforma em
tópico é a propriedade, e não a predicação ou segmento de texto. Pode-se observar
tal característica no exemplo abaixo, em que o encapsulador essa naturalidade
para o “diferente” faz remissão a um segmento de texto apenas inferível:

(77)[...] Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de
duas jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão
burlescos que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de
classes sociais distintas.
ESSA NATURALIDADE PARA O "DIFERENTE" já estava no primeiro longa
da diretora argentina. [...]
Argentina narra fantasia de casal gay
Folha de São Paulo, 01/11/09

5.3. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS SECUNDÁRIOS

Há dois grupos de encapsuladores semânticos secundários: 1) aqueles que


encapsulam Modo, Razão ou Quantidade expressa em predicações ou segmentos
de textos34; 2) aqueles cujos núcleos atribuem a idéia de Modo, Razão ou
Quantidade às predicações ou segmentos de texto que encapsulam. Tratar-se-á
desses dois tipos nas seções a seguir.

34
Como afirmado no tópico 5.2.2., as categorias de lugar e tempo não são encapsuladoras.

101
5.3.1. Encapsuladores de Modo

Podem ser de dois tipos: 1) aqueles que fazem remissão a uma circunstância
de modo expressa no texto, encapsulando não apenas o modo, como também o
Estado-de-coisas. O que o difere de um encapsulador de Estado-de-coisas é o fato
de ser representado por um nome ou advérbio que indica a função de modo,
deixando-se, assim, a circunstância em evidência. 2) aqueles que, embora não haja
circunstâncias de modo nos conteúdos a que se remetem, encapsulam um ou mais
Estados-de-Coisas e atribuem-lhe ad hoc tal circunstância. Seguem os exemplos:

(78) [...] Um dos conceitos básicos desta teoria é que nenhum objeto físico deste
universo pode viajar a uma velocidade maior que a velocidade da luz ou seja, nenhum
objeto pode viajar a uma velocidade maior que 300.000 km/s (aproximadamente). Mas,
sem dúvida, o conceito mais importante da Teoria da Relatividade é a famosa afirmação
2
da "equivalência entre massa e energia", expressa através da equação E=mc . Essa
fascinante fórmula nos diz que, devido a relatividade, a massa de um corpo aumenta
quanto mais rapidamente este se mover. DESSE MODO, o corpo ganha energia cinética
(a energia de movimento) que é diretamente proporcional a massa do corpo e ao
quadrado de sua velocidade. Como o aumento da massa acarreta um aumento da
energia, fica fácil perceber que a massa está relacionada à energia e, logicamente, a
energia a massa. Ambas são equivalentes! Assim, quanto mais um objeto se aproxima
da velocidade da luz, mais e mais massa (ou seu equivalente em energia) será
necessário para aumentar a velocidade do objeto, crescendo geometricamente de tal
modo que no limite da velocidade da luz tende ao infinito. [...]

VELOCIDADE DE DOBRA
http://inpu.sites.uol.com.br/veldobra.htm - acessado em 15/01/10

(79) Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro,
coldre nas costas e dá um beijo no bebê. ASSIM dá início a mais um dia. Mas não da
atriz carioca de 43 anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que
tem lançamento neste mês em DVD.[...]

Malu Mader ataca como matadora


Folha de São Paulo, 07/06/09

102
Em (78), desse modo encapsula “mover mais rapidamente”, em que há
explícita uma circunstância de modo. Já em (79), não há circunstância de modo
expressa no trecho a que assim se refere. Nesse caso, infere-se que tal
circunstância depende mais do discurso, no momento em que a designação é feita.

5.3.2. Encapsuladores de Razão (ou Causa)35

Ocorrem da mesma forma que os encapsuladores de Modo, isto é, podem


basear-se em âncoras textuais ou não.

(80) [...] O Procurador de Udine, Antonio Biancardi, autorizou nesta quarta-feira o enterro
de Eluana Englaro, 38, a italiana em coma há 17 anos e que a família ajudou a morrer
nesta segunda-feira (9) depois da suspensão da alimentação e hidratação.

Ela morreu de sede após 17 anos. A autorização da Justiça coincide com a opinião
do procurador-geral da Corte de Apelação de Trieste, Beniamino Deidda, que afirmou
nesta quarta-feira que a causa da morte da jovem é compatível com o protocolo
médico.[...]

Site JusBrasil - Justiça autoriza enterro de Eluana; Italiana Morreu de Sede


http://www.jusbrasil.com.br/noticias/775172/justica-autoriza-enterro-de-eluana-italiana-
morreu-de-sede - acessado em 15/01/10

(81) [...] Existe UMA, e apenas uma, RAZÃO para o lançamento de "Uma Vida sem
Regras" no Brasil: Robert Pattinson estar no papel principal.[...]

Crítica 48 – "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção


Folha de São Paulo, 09/04/09

35
Na GDF, a categoria Razão compreende circunstâncias de causa. Por esse motivo, elucidamos tal
circunstância na nomeação

103
Em (80), a causa faz remissão à locução adverbial de sede e ao Estado-de-
coisas expresso, isto é, morrer de sede. Já em (81), uma razão encapsula o
segmento destacada como motivo para lançamento de um filme no Brasil.

5.3.3. Encapsuladores de Quantidade

Quantidade é uma categoria que se associa não apenas a sintagmas verbais,


como também a indivíduos, isto é, referentes. Por conseguinte, uma vez que o
encapsulamento exige, pelo menos, uma predicação a que se faça remissão, só
haverá encapsulamentos de quantidade se: 1) houver expressão adverbial no
predicado que possa ser encapsulada por nome que expresse essa idéia (p. ex.
número, quantidade, frequência); 2) houver elementos gramaticais que façam
remissão a um ou mais estados-de-coisas, a cuja função possa ser atribuída idéia
de quantidade.
Em todo nosso corpus, não houve ocorrências do primeiro caso de
encapsulamento – embora se defenda a sua possibilidade –, o que nos levou a
construí-lo.

(82) Você sabe que eu viajo várias vezes ao ano e ainda não se acostumou com tal
frequência?

Exemplo construído.

Acima, tal frequência faz remissão à predicação eu viajo várias vezes ao


ano, elencando a frequência enquanto núcleo encapsulador, daí a sua classificação.

Encontraram-se, no corpus, dois elementos gramaticais cujos núcleos faziam


remissão a predicações anteriores e representavam a idéia de quantidade, o que
nos levou ao segundo caso de encapsulador supracitado.

104
(83) [...]Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e
Taylor, 26. Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme
com impressionante maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o
provocativo texto de Tennessee Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente'
tem de mais memorável: o duelo entre Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico
da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que acompanha o DVD.
O livro traz, AINDA, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo
Tennessee Williams e um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre
outras informações e curiosidades.

Crítica 48  "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção


Folha de São Paulo, 09/04/09

(84) [...]O mistério, a inquietação, a loucura da guerra e a aventura lisérgica foram


substituídos pela contemplação enfadonha. Músicas adicionais "inéditas" de Carmine
Coppola, pai do diretor, não faziam falta no original. ALÉM DISSO, a temerária
remarcação de luz "plastificou" a fotografia de Vittorio Storaro. No cinema, assim como
na música, muitas vezes os pequenos ruídos da versão "vinil" reproduzem uma obra
mais real. [...]

Crítica 67  Obra mítica de Coppola é melhor na versão "curta"


Folha de São Paulo, 11/10/09

Em (83) e (84), ainda e além disso encapsulam os respectivos segmentos


prévios de texto e atribuem-lhes a idéia de quantidade (além do que foi citado).

De todas as categorias do NR, essa é a mais fluida, mais difícil de definir e


de menor frequência. A princípio, inclusive, questionou-se a sua existência,
pensando que, se realmente havia encapsuladores de quantidade, também deveria
haver para outras circunstâncias. Não obstante, ao explorarem-se outros advérbios,
percebemos que circunstâncias de tempo e lugar estão previstas em Episódio
(como abordamos no tópico 5.2.2); de modo, meio, instrumento, em Modo; de
causa, em Razão; de intensidade e tempo (equivalente à frequência), em

105
Quantidade; de afirmação, negação e dúvida em Conteúdo Proposicional36.
Portanto, confirmou-se que todas as categorias semânticas de uma unidade
linguística estão presentes, como muito bem afirmaram Hengeveld e Mackenzie
(2008, p. 128).

5.4. ENCAPSULADORES METALINGUÍSTICOS

Ao contrário das outras categorias semânticas, esses pertencem à


metafunção textual da língua e servem para falar do evento comunicativo em si.
Caracterizam, como aponta Jakobson (1971 apud HENGEVELD e MACKENZIE,
2008, p. 275), a mensagem sobre o próprio código.

Uma vez que a função é metalinguística, optou-se por manter a nomeação e


classificação de Francis. Portanto, em vez da classificação Encapsulador de Língua
Reflexiva, utilizar-se-á Encapsulador Metalinguístico.

São representados por duas categorias: 1) nomes que se referem a alguns


tipos de atividade linguageira ou aos seus resultados, como debate, definição,
descrição, explicação, exposição, mensagem, pergunta, etc.; 2) nomes que se
referem à estrutura textual formal do discurso, como citação, excerto, página,
parágrafo, passagem, etc.

(85) [...]Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a


convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem
deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria
homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo
o suicídio).
A EXPLICAÇÃO está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no
filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que
preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não
porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente
o que dele recebemos.
Crítica 27  Essência escapa em "O Gosto da Cereja"
Folha de São Paulo, 16/11/08

36
Nessa investigação, analisamos também advérbios menos frequentes, como de concessão,
conformidade, companhia, finalidade, referência. No entanto, eles representavam ou outras
categorias da GDF, ou operadores e modificadores de uma categoria.

106
(86) [...]UMA FRASE entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é
ilegal". A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já
havia feito sucesso no teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o
roteiro do longa, que emplacou cinco indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro,
ator dramático para Frank Langella (que vive Nixon) e trilha.
Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento"
para Nixon levanta OUTRO QUESTIONAMENTO nos EUA: estaria levando o ex-
presidente à segunda instância, com possível redenção por mostrar seu lado mais
humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a tendência autodestrutiva?[...]

Crítica 44  Filme mostra 'julgamento' de Nixon


Folha de São Paulo, 04/01/09

Nos exemplos acima, explicação, uma frase e outro questionamento


nomeiam atividades linguageiras ao fazer remissão aos trechos destacados. Abaixo,
trecho nomeia uma parte formal do discurso.

(87) [...]"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com
outro garoto. Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o
aniversariante tentava descobrir o que seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde.
Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-fio, num cruzamento, e foi
imediatamente atropelado por um carro." Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", O
TRECHO acima ilustra o estilo seco de observação do cotidiano que caracterizava o
norte-americano Raymond Carver (1939-1988).[...]

Crítica 76  Filme-mosaico com dramas cotidianos é ponto alto na obra de Robert


Altman
Folha de São Paulo, 15/11/09

5.5. CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA

Considera-se que a interpretação dos encapsulamentos semânticos através


do NR apresenta quatro contribuições substanciais para os estudos da
referenciação:

107
5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos

Conforme explanação do segundo capítulo, a proposta de Francis (1994,


2003) para a categorização dos rótulos semânticos restringia-se a quatro categorias,
a saber: nomes ilocucionários, nomes de processo mental, nomes de atividades
linguísticas e nomes de texto. No entanto, o estudo aprofundado das categorias
semânticas possíveis de uma unidade linguística permitiu-nos uma análise mais
ampla, que, por sua vez, acarretou uma substantiva modificação das categorias
previstas pela autora.

5.5.2. O papel do contexto

Embora os estudos de Francis (1994, 2003) e Conte (1994, 2003) acerca do


encapsulamento representem importantes contribuições para a pesquisa linguística,
no que tange a questões de uso da língua, o seu objeto de pesquisa se restringiu à
classificação dos encapsuladores cotextuais, isto é, daqueles que tivessem uma
clara dependência da superfície textual. Portanto, a despeito das autoras
comungarem dos pressupostos teóricos sociocognitivistas interacionistas, seus
estudos repousam numa análise que se prende a critérios de ordem lexical e
sintática, o que equivale dizer que a preocupação na observação do fenômeno
atende mais a aspectos de estruturação e de organização cotextual, o que
caracteriza uma visão simplificada para os processos de significação.

Tem-se como pressuposto que a linguagem é um trabalho que envolve


atividades humanas, sócio-históricas, que se organizam por meio de textos, os quais
não se caracterizam apenas por uma estrutura linguística, mas também por um
funcionamento sócio-discursivo. Assim, a construção do texto, tanto em termos de
produção quanto de intelecção, assume qualidades que ultrapassam a língua e o
discurso, envolvendo processos sociocognitivos como memória discursiva,
inferências, analogias e ação reflexiva dos sujeitos.

Desse modo, gostar-se-ia, de, neste trabalho, propor uma ampliação do


estudo do fenômeno com base na Gramática Discursivo-Funcional, sugerindo que a
âncora de um encapsulamento não se encontraria apenas em uma predicação ou

108
segmento de texto, como também no contexto discursivo-pragmático, como
percebemos no exemplo a seguir:

(88) Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar
por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica
republiqueta latino-americana de San Marcos. De sequestrado pelos rebeldes acaba se
tornando presidente. (Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso
país para acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm
seu poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos
de Allen, que insere filmetes paralelos  que poderiam ser campeões no YouTube,
como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o
comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens
e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se
compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que
promessa de campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que
aceitamos acreditar.

NESSA FASE PALEOLÍTICA, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua
figura caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos
frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para
saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de
seu olhar oblíquo. Comediantes têm essa queda por inverter o olhar.[...]

Críticam 45 – “Bananas”
Folha de São Paulo, 11/01/09

No sintagma nessa fase paleolítica, apesar de percebemos a existência de


uma expressão anafórica, até mesmo pela natureza do demonstrativo essa, não há
remissão ao cotexto. Logo, em toda a sequência do primeiro parágrafo, não
encontramos um referente lexicalizado que propicie a remissão através de nessa
fase paleolítica, o que nos leva à conclusão de que a âncora para tal anáfora não
se encontra em uma predicação ou segmento de texto, mas no contexto discursivo-
pragmático. Trata-se de um emprego insólito como apontam Gary-Prieur e Noailly
(2003), em que o contexto discursivo pragmático tem preponderância sobre o
cotexto.

109
5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos

Segundo Zamponi (2002), pode-se considerar a dimensão atributiva de um


rótulo, isto é, além de ele representar o tema de um novo tópico discursivo, ele pode
ter função remática, ao atribuir uma nova propriedade ao segmento encapsulado.
Tal elemento anafórico é simultaneamente um elemento de referência e de
predicação, acumulando a função temática e remática ou, como afirma Schawrz
(2000), operando uma tematização-remática (Ibid., p.197).

Tais apontamentos foram feitos no trabalho de Zamponi (2002) ao considerar


os rótulos de configuração axiológica, em que, claramente, uma propriedade era
atribuída ao segmento encapsulado. Todavia, propõe-se que não somente termos
avaliativos implicam atribuição. Como se pôde observar nas categorias semânticas
secundárias, por exemplo, existem expressões que, ao mesmo tempo em que
encapsulam, atribuem uma propriedade de modo, razão ou quantidade.

5.5.4. Análise de encapsulamentos de núcleo gramatical

As literaturas vigentes consideram que o encapsulamento é sempre realizado


por um sintagma nominal. Inclusive, para Conte (2003, p. 17), o conceito de
encapsulamento é o que segue: um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal
funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente de texto.

No entanto, a nossa pesquisa comprovou que o encapsulamento não se


restringe ao sintagma nominal, uma vez que existem palavras gramaticais que
desempenham tal função. Por esse motivo, adotamos a concepção de Koch (2002,
p. 94), de que a anáfora encapsuladora é a sumarização de uma informação
precedente, compartilhada pelos interlocutores, uma vez que é perfeitamente
aplicável às categorias lexicais e gramaticais.

5.5.5. Nem todo encapsulamento advém de uma categoria instável

Embora a perspectiva sociocognitiva interacionista reconheça as práticas de


sedimentação das categorias em protótipos e estereótipos, os estudos que conferem
instabilidade ao objeto-de-discurso têm estado, fortemente, mais presentes. Crê-se

110
que esse seja um movimento natural dos estudos sobre referência, que, em seu
atual estágio, precisa opor-se a uma corrente que vise apenas à estabilidade.

Não obstante, defende-se que se faz imprescindível um tratamento pontual


das categorias mais sedimentadas do discurso, pois apenas a focalização de um
dos aspectos pode levar-nos a um posicionamento passível de falhas.

Com relação aos encapsulamentos, por exemplo, encontramos, na literatura


vigente, definições que apontam para o fenômeno apenas em seu caráter instável,
em que o falante, através de um nome, faz remissão a um segmento de texto
previamente expresso. No entanto, encontra-se, na categoria episódio, a existência
de nomes encapsuladores que nem sempre apresentam âncoras cotextuais, visto
seu alto grau de estabilidade, como o exemplo a seguir.

(89) As únicas imagens documentais de "Vá e Veja" (1985) só aparecem em seus


minutos finais. Apesar de o efeito ser notável, esse clássico do filme de guerra não
precisaria recorrer a isso para aumentar a catarse anti-nazista que o orienta quase
desde o início. Quase, porque a primeira meia hora do filme trata a Segunda Guerra
Mundial de longe, como o evento que leva crianças e adolescentes a procurar armas e
outros objetos de uso militar escondidos nas areias brancas de uma aldeia na Bielo-
Rússia (ou Belarus), república soviética invadida pelos alemães, em 1943.[...]

Crítica 31 – "Vá e Veja" leva poesia a cenário de guerra


Folha de São Paulo, 09/11/08

O nome início, destacado acima, é um caso exemplar de encapsulador de


episódio. Independente da situação discursiva, início representará sempre um
encapsulador, uma vez que marca unidade ou continuação de tempo, lugar e
participantes de uma sequência coerente de Estados-de-coisas. Inclusive, no
exemplo em questão, início não faz remissão direta a um segmento do texto, muito
embora se descreva uma das situações iniciais do filme.

Em se tratando de nomes encapsuladores, Francis (2003, p. 203) defende a


existência de nomes com essa potencial função. No entanto, a autora os analisa
mediante a remissão que fazem a predicações anteriores, isto é, submetendo-os
sempre ao cotexto. Sob a nossa ótica, a categoria Episódio pode sobrepor-se aos

111
critérios de ordem sintática, uma vez que pertence ao NR, hierarquicamente acima
do Morfossintático.

5.5.6. A configuração dos encapsulamentos não depende da sintaxe,


mas do discurso

A princípio, especulamos que a maior parte dos encapsulamentos presentes


nas sequências argumentativas de nosso corpus apresentaria configuração
avaliativa. No entanto, encontramos, um significante número de encapsuladores
não-avaliativos, que só tinham como objetivo transformar um segmento em tópico
discursivo. Isso nos evidenciou que a opção por um encapsulador avaliativo ou não-
avaliativo em tais sequências não interfere substancialmente no fazer discursivo do
texto. A escolha de um encapsulador não-avaliativo não indica que o falante terá
uma posição mais neutra em seu discurso, uma vez que a “avaliação” é uma
estratégia que não se dá apenas na categorização como também na predicação e
nos processos de retomada e remissão de referentes. Esse ponto nos faz refletir
acerca do posicionamento de Conte (2003, p. 177) ao afirmar que o encapsulamento
anafórico de caráter avaliativo é um poderoso meio de manipulação do leitor.
Embora não se discorde da autora, acredita-se que a ênfase dada ao nome
avaliativo pode levar-nos a subentender que encapsulamentos não-avaliativos não
propiciariam uma progressão avaliativa do objeto-de-discurso. Mais uma vez,
argumenta-se que um posicionamento sintaticista e localista traria uma visão
reducionista do processo de referenciação. A avaliação de determinado
encapsulamento não é dada apenas na categorização, mas no decorrer da atividade
discursiva. Veja o exemplo:

(90) Se Coutinho já encarava seus entrevistados como "personagens", em "Jogo de


Cena" ele dá mais uma volta no parafuso, misturando depoimentos de mulheres
"comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas por
aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão, Fernanda Torres,
Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.
O efeito DESSE ARDILOSO EMBARALHAMENTO é deixar o espectador sem chão,
em dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,
afinal, viveu o quê.

112
Crítica 41 – Coutinho deixa o espectador sem chão
Folha de São Paulo, 07/12/08

Acima, muito embora o núcleo embaralhamento já atribua valor axiológico ao


encapsulamento, percebe-se o alto valor argumentativo de seu adjunto, ardiloso. Se
ele fosse retirado do trecho, isso implicaria uma tênue mudança argumentativa. No
entanto, se apenas se mudasse a ordem, poder-se-ia ainda contar com a atribuição,
muito embora ela já não fizesse parte do sintagma. Veja:

(91) O efeito DESSE EMBARALHAMENTO é ardiloso, deixa o espectador sem chão,


em dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,
afinal, viveu o quê.

Tal observação nos leva a defender que a análise da carga axiológica ou


não-axiológica de um dado objeto-de-discurso deve ser feita não apenas sob
aspectos sintáticos mas também discursivos.

5.6. PERSPECTIVAS FUTURAS

Nas atuais discussões sobre a relação entre linguagem e realidade, o fator


pragmático tem sido imprescindível, especialmente quando se quiser compreender a
capacidade de referir-se a algo, num determinado contexto  como sendo também
uma capacidade de entender-se a respeito de algo com alguém, com um
determinado propósito , e como isso produz efeitos sobre a práxis. Trata-se da
referenciação, que, abordada sob o ângulo discursivo-pragmático, permite uma
análise mais completa e produtiva da própria linguagem, já que linguagem é ação, é
um modo de vida, como abordava Wittgenstein (1953 apud ARAÚJO, 2004).

A despeito de tal concepção discursivo-pragmática da língua, esta pesquisa


ateve-se ao reconhecimento das categorias semânticas envolvidas nos processos
de encapsulamento, isto é, com o aspecto linguístico. Desse modo, aqui, não se
tratou nem das categorias pragmáticas dos encapsulamentos nem de uma análise
mais argumentativa e retórica do processo de referenciação, mas apenas da

113
taxionomia do NR37. Defende-se que um futuro estudo de tais aspectos seja um bom
caminho a ser percorrido. Pensa-se que tanto entender em que dimensão se
encontra um encapsulamento, se no Nível Interpessoal ou Representacional, quanto
aferir de que forma os operadores e modificadores das categorias previstas pela
GDF colaboram na referenciação pode ser um grande auxílio na compreensão do
processo de argumentação dos textos.

Também se defende que uma futura análise dos encapsulamentos de caráter


mais gramatical possa representar uma boa interseção entre referenciação e
gramaticalização, uma vez que, na categoria episódio – veja exemplos (68) e (69),
páginas 94 e 95 –, percebemos a presença de palavras gramaticais que fazem
remissão a tempo, espaço e texto concomitantemente, o que parece comprovar a
unidirecionalidade e elucidar os aspectos cognitivos que nos levariam a tal princípio
lingüístico. O mesmo poderia ser especulado no que tange aos encapsulamentos
secundários, uma vez que se apontam categorias gramaticais que funcionam como
proformas de sequenciação textual, mas que selecionam segmentos disponíveis do
discurso, tal qual o encapsulamento prototípico.

37
Como abordamos na Introdução desta pesquisa, trata-se de uma abordagem discursivo-funcional,
muito embora isso não descarte a dimensão sociocognitiva. Tratam-se de teorias complementares.

114
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola ensina os alunos a ler e a escrever orações e períodos e exige que interpretem
e redijam textos. Algumas pessoas poderiam dizer que essa afirmação não é verdadeira,
porque hoje todos os professores dão aulas de redação e de interpretação de textos.
Mas como é uma aula de redação? O professor põe um tema na lousa, pede que os
alunos escrevam sobre ele, corrige os erros localizados no nível da frase. A aula de
interpretação de texto consiste em responder a um questionário com perguntas que não
representam nenhum desafio intelectual ao aluno e que não contribuem para o
entendimento global do texto. Muitas vezes, o professor não se satisfaz com os textos e
os roteiros de interpretação dos livros didáticos, seleciona algum texto e faz uma bela
interpretação em classe. Se o aluno lhe pergunta como enxergar numa produção
discursiva as coisas geniais que ele nela percebeu, costuma apresentar duas respostas:
para analisar um texto, é preciso ter sensibilidade; para descobrir os sentidos do texto, é
necessário lê-lo uma, duas, três, n vezes.

As duas respostas estão eivadas de ingenuidade. Não basta recomendar que o


aluno leia atentamente o texto muitas vezes, é preciso mostrar o que é que se deve
observar nele. A sensibilidade não é um dom inato, mas algo que se cultiva e se
desenvolve.

[...]

A finalidade da apresentação de elementos discursivos é tornar explícitos


mecanismos implícitos de estruturação e de interpretação de textos. Quem escreve ou lê
com eficiência conhece esses procedimentos de maneira mais ou menos “intuitiva”.
Explicitá-los contribui para que um maior número de pessoas possa, de maneira mais
rápida e eficaz, transformar-se em bons leitores.

[...]

38
José Luiz Fiorin

38
Cf. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

115
Neste estudo, realizou-se uma análise qualitativa da categorização dos
encapsulamentos semânticos – de metafunção ideacional e textual – a partir do
exame de textos de crítica de cinema e TV, pertencentes à esfera jornalística e
publicados na Folha de São Paulo online. Para tanto, tomou-se como base o Nível
Representacional da Gramática Discursivo-Funcional, uma vez que ela prevê todos
os aspectos semânticos de uma unidade linguística.

A pesquisa ratifica a conceituação de encapsulamento como sumarização de


uma informação precedente, compartilhada pelos interlocutores (KOCH, 2002, p.
94), mas entende que o fenômeno não se restringe ao sintagma nominal e nem
sempre apresenta âncoras cotextuais explícitas, como se pensava anteriormente.
Conforme visto no quinto capítulo, há termos gramaticais que, em determinadas
circunstâncias, funcionam como anáforas encapsuladoras, assim como há
encapsulamento cujo segmento a que se faz remissão não se encontra delimitado
no texto.

Acredita-se que tal mudança paradigmática nos confirme a não-existência de


invólucros pré-destinados a certas funções discursivas, pois, do contrário, significa
impor limites aos processos cognitivos, pôr a função em serviço da forma, é negar a
preponderância da práxis sobre o uso linguístico.

Há toda uma mudança de perspectiva filosófica na passagem do modelo


lógico-semântico para os de cunho pragmático – como a perspectiva sociocognitivo
interacionista e discursivo-funcional de linguagem. Sentido, valor de verdade e
referência a estado-de-coisa cedem lugar a comportamento, usuário, propósito de
fala, situação de emprego. Afinal, como muito bem defendem Mondada e Dubois
(2003), a questão não é localizar os objetos do mundo ou verificar a existência de
entidades abstratas, mas entender como os sujeitos constroem versões públicas do
mundo.

Quanto à função discursiva, confirma-se o consenso de que o


encapsulamento seja importante na condução e progressão de um texto, na medida
em que traça uma orientação argumentativa para o texto, ao hipostatizar,
transformar em tópicos discursivos predicações ou segmentos do discurso, e não
referentes já disponíveis, lexicalizados. Crê-se que o reconhecimento, por parte do

116
ouvinte/leitor, de qual segmento do discurso é encapsulado  se uma atitude
proposicional, se um episódio, se uma propriedade etc.  possa ser uma ferramenta
relevante à análise dos pontos de vista defendidos no texto. Pode-se, por exemplo,
constatar que um discurso de outrem é encapsulado, pelo produtor do texto, como
dúvida, crença, atitude, muito embora o segmento em si não tenha essa conotação.

Cabe lembrar que, com a linguagem, faz-se muito mais do que nomear. Com
um encapsulamento, por exemplo, não apenas se nomeia um segmento discursivo,
pois, por trás deste, há a intenção de identificar algo a alguém, um querer dizer, um
significar que demanda a leitura do contexto, dos propósitos da fala naquela
determinada circunstância. Na verdade, não há objetos discriminados,
individualizados em si, com propriedades essenciais, intrínsecas,
independentemente de uma conceptualização cultural, linguística, semiótica, como
defende a pragmática.

Por fim, de posse dessa concepção da linguagem, refletiu-se, sobretudo,


acerca dos leitores em formação de nossa sociedade e ratificamos a fala de Fiorin:
tornar explícitos mecanismos implícitos de estruturação e de interpretação de textos
contribui para que um maior número de pessoas possa, de maneira mais rápida e
eficaz, transformar-se em bons leitores.

117
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126
ANEXOS

(01) A censura parece vitimar só o imaginário

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Uma pessoa reclama por ter tido de assistir, sem prévio aviso, a um trailer do mais recente
filme de Zé do Caixão. Eram cenas chocantes, diz.
Poucos dias antes podia-se ver, num programa jornalístico matinal, o vídeo da cena em que
um homem, a menos de um metro de distância, pelas costas, dá um tiro na cabeça de um ex-
empregado.
Não me lembro de ninguém reclamando por ter visto essa cena. Não recordo de nenhuma reação
escandalizada da censura do Ministério da Justiça. A censura, assim como a sensibilidade da pessoa
do trailer, parece vitimar apenas o imaginário. Um assassinato "real" pode ser visto, talvez porque
seja real. Um assassinato nas mesmas circunstâncias, num filme, é proibido a menores de 18 anos
porque é chocante.

Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a Cabeça de
Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12 anos). Pois alguém a trará -
está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a cabeça dentro de um saco.
Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah, vai chocar tanto quanto as diabruras,
também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar errado, mas esse tipo de reação visa objetos
específicos. Lembra a das pessoas em transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson
Welles, em 1938, representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.

Folha de São Paulo, 31/08/08

(02) Buñuel mergulha na fantasia para ironizar donos do poder. Vencedor do Oscar em 1973,
filme traz diretor espanhol em sua melhor forma

JOSÉ GERALDO COUTO

127
COLUNISTA DA FOLHA

"O Discreto Charme da Burguesia", rodado na França em 1972, é Luis Buñuel em sua melhor
forma: na linguagem fluida e livre dos sonhos, um ataque implacável aos donos do poder político,
material e moral.
Em lugar da fúria anárquica dos primeiros filmes, o diretor, já setentão, destila uma ironia
sutil, um humor sereno.
O roteiro sagaz, em parceria com Jean-Claude Carrière, não conta propriamente uma história,
mas esboça uma série de tramas que se desfazem. Sonhos dentro de sonhos, anedotas e lendas
enxertadas, pistas falsas, elipses bruscas. Ver essa obra, Oscar de filme estrangeiro em 73, é pisar o
terreno movediço da fantasia e do desejo.
A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações, como um
pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um casal e descobrem que os
anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.
Dali partem todos, incluindo a dona da casa, para um restaurante nas redondezas, onde,
quando estão prestes a fazer seus pedidos, descobrem que, num canto do salão, desenrola-se o
velório do proprietário. Daí até o final, serão inúmeras as refeições frustradas, pelos motivos mais
diversos: batida policial, manobras militares, ataque terrorista.
A figura-chave do grupo de grã-finos é Rafael Acosta (Fernando Rey), embaixador da
republiqueta sul-americana de Miranda. Traficante de cocaína em conluio com seus amigos
burgueses e com o establishment local, Acosta é o elo entre a Europa supostamente civilizada e o
Terceiro Mundo miserável, corrupto e atrasado. Um não vive sem o outro.
Buñuel é impiedoso com o teatro de máscaras das elites. Numa cena memorável, um homem
(Julien Bertheau) passa de bispo a jardineiro numa simples troca de roupa. O hábito desfaz o monge.
Questionado sobre a presença de um antigo chefe de campo de concentração nazista em seu país,
Acosta diz: "Chamá-lo de carniceiro é um exagero. Estive com ele um par de vezes e constatei que é
um homem simpático e distinto".
São todos simpáticos e distintos nesse grupo de discretos monstros, com a roupa certa, o
vinho adequado e as fórmulas de conveniência na ponta da língua. Buñuel ri deles, de nós e de si
próprio.

O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA


Distribuidora: Lume
Quanto: R$ 44,90, em média
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 31/08/08

128
(03) Versão "envelhecida" de "Sex" é mais do mesmo

CRISTINA FIBE
DA REPORTAGEM LOCAL

Cortaram a Charlotte; envelheceram e repaginaram Carrie, Samantha e Miranda. Dez anos


depois da estréia da série "Sex and the City" (que acabou em 2004), a escritora Candace Bushnell,
49, volta às telas com "Lipstick Jungle" (na tradução literal, "selva de batom"). A fórmula é quase
idêntica: mulheres independentes e glamourosas (entenda-se endinheiradas e fúteis) compartilham
seus problemas mais íntimos (amorosos e sexuais), em meio aos prédios, táxis e bares de Nova
York. Mas, agora, elas estão mais perto dos 40 do que dos 30 anos e têm carreiras mais
consolidadas.
A favor da série, que estréia amanhã na Fox, há o fato de ter sido bem recebida nos EUA, garantindo
uma segunda temporada -"Cashmere Mafia", também "inspirada" em "Sex" e protagonizada por Lucy
Liu, durou só sete episódios. À história: no lugar de Carrie, agora quem sofre a dor de ser solteira-em-
busca-do-príncipe é a estilista Victory Ford (a talentosa Lindsay Price).
Já nos primeiros episódios, Victory consegue repetir uma série de feitos que a protagonista
escritora de "Sex and the City" demorou seis temporadas para alcançar. Aqui estão os altos e baixos
profissionais, o bloqueio criativo, a paixão pelo milionário com medo de compromisso (um novo Mr.
Big?) e até a viagem dos sonhos a Paris. Mas Victory não narra os episódios, como Carrie fazia, e
perde espaço pela insistência da produção em fazer de Brooke Shields o foco prioritário.

A nova Miranda

A personagem de Shields, Wendy, se parece com a Miranda de "Sex", justamente quem


menos atraía o público. É que sua vida tem menos graça -mãe, workaholic, precisa conciliar as
necessidades da família e o sucesso profissional. Sai a advogada (Miranda), entra uma executiva de
cinema, trazendo para "Lipstick" outro elemento cada vez mais corrente nas séries americanas: os
bastidores de Hollywood.
Logo no início da primeira temporada, que estreou em fevereiro nos EUA, uma inimiga de
Wendy arrisca sua carreira espalhando na mídia suas falhas como mãe. Para salvá-la, entra em cena
a terceira melhor amiga, Nico (Kim Raver). A loira fatal, casada, dará um toque "Samantha" à série. É
ela quem protagoniza as cenas picantes dos primeiros episódios, porém não com a mesma ousadia
da ninfomaníaca de "Sex and the City". E, se há dez anos o jeito "libertário" de Samantha
surpreendia, hoje ele soa um tanto envelhecido.
É essa a principal falha de "Lipstick Jungle". Sem surpreender, a série retoma o que no
século passado foi novidade.

129
LIPSTICK JUNGLE
Quando: estréia amanhã, às 22h
Onde: na Fox
Classificação indicativa: não recomendada para menores de 16 anos
Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 24/08/08

(04) Em "Príncipe", a cidade cresce erroneamente

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É incrível a solidão de Gustavo em "O Príncipe" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado
para menores de 14 anos). Voltando da Europa, onde viveu por 20 anos, ele não se reconhece em
sua cidade, que mudou inteiramente.

Em São Paulo, ele viverá alguns reencontros, não apenas com a cidade, mas com amigos.
Os lugares, no entanto, são fundamentais. É na praça D. José Gaspar que um amigo (Otávio
Augusto) recita trechos de "A Divina Comédia" em altos brados. Essa já foi "a praça da Biblioteca", da
Galeria Metrópole, do Paribar. Agora é um buraco ocupado por moradores de rua. As mudanças de
São Paulo induzem à solidão. O reencontro com a antiga amada é, como de ofício, a constatação do
desencontro.
E seu bairro, a bucólica Vila Madalena, virou o bairro dos bares, do trânsito e da barulheira noturna.
Esses 20 anos de distância mostram onde o filme se constrói: sobre um hiato, sobre uma brecha na
qual o tempo se perde, como se a cidade ao se construir executasse um percurso errático, um
labirinto em que não existe memória possível, onde as experiências se perdem como se fossem
produto da imaginação.

Para combater esse filme cheio de virtudes, valia, quando estava em cartaz, usar qualquer
argumento. Agora, passado o tempo, talvez ele possa ser visto sem a paixão destrutiva que tanto se
usa para policiar nossos bons filmes.

Folha de São Paulo, 10/08/08

(05) Série retrata apetite por autodestruição

CÁSSIO STARLING CARLOS

130
CRÍTICO DA FOLHA

Um bom título já é meio caminho andado para o sucesso de uma produção. "Californication",
que se traduziria como "californização", resulta da fusão do nome do Estado norte-americano com a
palavra "fornicação". É, pois, sob o signo da devassidão que se retrata a vida de um quarentão nesta
série criada por Tom Kapinos (oriundo da cândida "Dawson's Creek"), cujos 12 episódios que
compõem a primeira temporada acabam de sair em DVD. A produção, exibida nos EUA pelo
Showtime, principal concorrente da HBO no campo dos seriados adultos, marcou a volta de David
Duchovny (o agente Fox Mulder de "Arquivo X") à linha de frente da TV. Duchovny faz Hank Moody,
um escritor de Nova York que parte para Hollywood em busca de melhores oportunidades (leia-se, o
atraente mercado de roteiristas), mas lá só encontra melhores condições para "apodrecer sob o sol
da Califórnia".

Referências
Movido a álcool, cigarros e sexo desenfreado, Hank é uma versão contemporânea do Dante
que parte para a temporada no inferno em busca de sua Beatriz na "Divina Comédia". É também uma
releitura de Jay Gatsby em sua paixão nunca satisfeita por Daisy no romance icônico de F. Scott
Fitzgerald sobre os frenéticos anos do jazz. É impossível também não encontrar nele ecos dos auto-
retratos de Charles Bukowski em seu encanto pela degradação. Mas as referências eruditas não
passam de trampolim de onde Kapinos arranca elementos para pintar o mal-estar de seu
personagem (e o olhar deste sobre nossa época). Muito mais explícita é a trajetória rock'n'roll de
Hank em seu apetite por (auto)destruição.

Delírios
Já na cena de abertura do piloto o escritor delira sobre um altar diante de uma imagem de
Cristo quando uma freira se aproxima dele e lhe oferece candidamente um boquete. Naquele
momento antológico, o que se ouve na trilha são os Stones alertando que "você nem sempre pode ter
aquilo que quer". Ao longo dos 12 episódios serão inúmeras as outras referências (Dylan, Lou Reed,
Radiohead, Sex Pistols, Guns N" Roses, uma aparição de Henry Rollins) ao espírito decadente que
consuma o rock. Dele vêm os sons, a cor e a dor que tornam tão digno de comoção este herói sem
nenhum caráter.

CALIFORNICATION - 1ª TEMPORADA
Distribuidora: Paramount
Direção: Tom Kapinos
Quanto: R$ 49,90, em média
Avaliação: bom
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos
Folha de São Paulo, 17/08/08

131
(06) Com Glenn Close, série vê lado podre da vida

BRUNO PORTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos pilares do maior seriado de todos os tempos, "Família Soprano", era a noção de que
o ser humano não tem salvação. À medida que as temporadas avançavam, os personagens iam
sendo tragados por suas personalidades atormentadas.
"The Shield", cuja quarta temporada acaba de ser lançada aqui em DVD (foi exibida nos EUA,
em 2005, e no Brasil, pelo canal AXN, que não transmite mais a série), se vale de uma dinâmica
parecida e, em função disso, foi saudada diversas vezes por jornalistas americanos como a nova
"Soprano". Tendo como pano de fundo uma delegacia responsável por uma das regiões mais
violentas de Los Angeles, a série é centrada em Vic Mackey (Michael Chiklis, de "Quarteto
Fantástico"), um policial que só cumpre a lei quando ela está a seu favor.
No início do seriado, Mackey parecia mais interessado em enriquecer à custa do submundo
do que em acabar com ele. Na segunda e terceira temporadas, porém, ele começou a perceber que
sua ambição poderia destruir não só o seu futuro como o de sua família.
A quarta temporada é um desdobramento dessa pausa para reflexão. Ela começa meses depois do
final da temporada anterior, com o personagem de Chiklis tentando recomeçar sua vida. Dois dos
homens que integravam uma espécie de tropa de elite que ele liderava foram transferidos para outras
delegacias, deixando-o isolado.
Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma investigação
longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma nova capitã, Monica Rawling
(Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a desferir um duro golpe nas gangues da
área.
Mackey compra a briga de Monica e esboça ter reencontrado o gosto pela profissão de policial. O
envolvimento de um amigo com um criminoso, porém, faz com que ele volte a recorrer aos métodos
do passado. Não é só o caráter de Mackey que apresenta sinais de deterioração. Dois outros
personagens importantes da série, o ex-capitão e agora vereador David Aceveda (Benito Martinez) e
o detetive Dutch (Jay Karnes), dão sinais de estarem perto de perder o controle sobre seus demônios
interiores.
A escalação de Glenn Close para o papel de Monica deixou fãs de Chiklis em estado de alerta: eles
temiam que a atriz de "Ligações Perigosas" acabasse tirando os holofotes de cima do ator. Um temor
que acabou não se confirmando: contida, Close brilha, mas Chiklis não fica atrás.
Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com a maioria das
séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas das vielas mais escuras e
fétidas da alma humana.

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THE SHIELD
Distribuidora: Sony
Quanto: R$ 79,90 (4 DVDs)
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 10/08/08

(07) Verhoeven retrata faroeste amoral

PAULO SANTOS LIMA


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven. Consciência


que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente esmagados pelo sistema. É
uma constatação, então, que ultrapassa o físico para chegar a algo além: o próprio mundo. É assim
com o corpo biomecânico do policial que é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".
Não é diferente em "Showgirls" (TC Action, 0h20; não recomendado para menores de 18 anos).
Estamos no universo dos grandes shows de cassino em Las Vegas, cidade que simboliza a riqueza
material: o dinheiro, que inclusive torna confusos o humano e o produto. Sobretudo quando são
corpos de dançarinas como Nomi Malone (Elizabeth Berkeley), que tem plena consciência sobre seu
físico ser um item de consumo, uma peça de carne a se degustar.
Ela chega com tudo, passando a perna nas amigas concorrentes, oferecendo o que tem de
melhor aos poderosos, tudo a fim de vencer na vida como uma grande dançarina. Não só ela; todas
são pistoleiras. É como se estivéssemos num faroeste amoral.
Seria estúpido que Verhoeven utilizasse imagens "puritanas" para criticar esse ideário
utilitarista que "plastifica" até mesmo a mais orgânica das experiências vivas, o sexo. Assim, por que
deixar de ir ao ponto e mostrar os seios, dorsos e púbis à luz da visão? Seria hipócrita, senão
obsceno, escondê-los.

Folha de São Paulo, 03/08/08

(08) Programação destaca obra de Kazan

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

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O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca disse, por
exemplo, que a "Monalisa" de Leonardo seria melhor se representasse uma santa. Mas, quando um
filme fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até ganha o Oscar, como "A Luz É Para
Todos" (TCM, 18h; livre), em 1948.
Oscar injusto (para filme e direção), por sinal, porque Elia Kazan ainda era um diretor de
recursos bem limitados, que se preparava para maiores vôos.
Um desses vôos é "Vidas Amargas" (TCM, 20h; classificação não informada), de 1955, que
deu a James Dean o prêmio de melhor ator, como o jovem que se sente impotente diante da figura
paterna. O filme foi rodado em cinemascope, de modo que, se não houver duas amplas tarjas negras
acima e abaixo da imagem (numa TV tradicional), o melhor é mudar de canal, nem que seja para ver
o Silvio Santos, pois estaremos diante de qualquer coisa que não "Vidas Amargas".
Para completar o dia dedicado a Kazan, o canal propõe "Sindicato de Ladrões" (22h;
classificação não informada) e "Clamor do Sexo" (23h50; classificação não informada). No primeiro
caso, 1954, Kazan estava em plena maldição do macarthismo, mas deu a volta por cima, inventou um
assunto e ganhou um Oscar bem merecido. No segundo, fez sua obra-prima com a história de um
amor de juventude (escrita por William Inge). Historinha, quase, mas grande filme.

Folha de São Paulo, 28/09/08

(09) "House" luta para não virar "one-man-show"

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A quinta temporada de "House" acaba de estrear nos Estados Unidos -e chega ao Brasil, pelo
Universal Channel, até o fim do ano-, apontando para uma necessária virada dramatúrgica.
O show começou bem em 2004 com uma original abordagem do mundo médico, por meio da
controversa e bem-humorada figura do dr. House -uma espécie de Jack Bauer ("24 Horas") do mundo
hospitalar, que quebra todos os protocolos da área, exaspera o senso comum, mas sempre traz a
solução correta ao final.
Os pacientes chegam às suas mãos prestes a morrer de doenças misteriosas que ele e seu
time têm de resolver por meio de decisões rápidas e de alto risco. Quando todos apontam para um
diagnóstico que parece ser o certo, mas que não se traduz na cura, House tem uma sacada inusitada
e salva os coitados.
Essa fórmula funcionou bem nas primeiras temporadas. Não só por conta do fantástico
humorista que é o britânico Hugh Laurie, ex-parceiro do célebre Stephen Fry, mas porque sua equipe
funcionava bem nos momentos de tensão em que se discutiam os quebra-cabeças.
Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior, uma nova aposta foi
feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball), os episódios continuaram a

134
exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar num dos leitos do Princeton Plainsboro
Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma clínico passou a causar um impacto mais significativo
nos relacionamentos entre os personagens.
A série, então, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade entre capítulos
e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no final da quarta temporada,
quando House não consegue salvar da morte a namorada do melhor amigo, o oncologista Wilson
(Robert Sean Leonard).
Quando a atual temporada começa, House está fazendo de tudo e até contrata um
investigador particular, para reconquistar a amizade perdida. Porém, apesar de estar sofrendo, o
genial médico não fica mais "humano". Segue tratando mal os enfermos e não se importando com a
ética que deveria reger a relação médico-paciente. O sumiço de Wilson -que funcionava como o
Watson de Sherlock Holmes- fará com que os roteiristas sejam obrigados a dar mais vigor aos
personagens que sobraram em torno do misantropo House -e que a essa altura já não são muitos.
De outro modo, a série corre o risco de reduzir-se a um "one-man-show". Laurie é um grande
ator e humorista, mas precisa de boas tramas e interlocutores combativos para que "House" siga
sendo o excelente espetáculo que conseguiu transportar o suspense hitchcockiano para a mesa de
cirurgias.

Avaliação: bom
Folha de São Paulo, 28/09/08

(10) Racismo é tema de aparente melodrama

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Comentando a interpretação de Lana Turner em "Imitação da Vida" (TCM, 22h; classificação


indicativa não informada), Douglas Sirk diz que ela tem uma réplica muito boa. É ao ser informada da
morte de Annie, a negra a quem estivera ligada no essencial de sua vida. Na réplica, Lana diz: "Não".
Sirk disserta sobre as qualidades de Lana com poucas palavras: "Ela era nula". Não é propriamente
um elogio à atriz de seu filme de maior sucesso. Mas ele completa dizendo que não era necessário
ser uma boa atriz para fazer esse papel.
Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner -no filme, mãe e
filha-, não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um filme sobre negros, sobre ser
negro num momento anterior à conquista da igualdade de direitos.
Por isso, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah Jane, já expressa
essa revolta, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua cor como um defeito de fábrica
(na trama, as duas mulheres criam um negócio em sociedade; as respectivas filhas crescem e
conhecem destinos opostos).

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Assim como certos preconceitos se escondem meticulosamente, "Imitação" é um grande
filme, dos maiores, escondido sob a pele do melodrama por este cineasta tão independente que,
após este filme, quando o vento batia só a seu favor em Hollywood, fez as malas e voltou para a
Alemanha.

Folha de São Paulo, 14/09/08

(11) Tempo dilui humor de "Apertem os Cintos..."

CÁSSIO STARLING CARLOS


CRÍTICO DA FOLHA

Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, antes dos ataques do 11 de Setembro e
dos acidentes com os ônibus espaciais, um trio de roteiristas ousou ver em desastres aéreos uma
fonte de piadas. Com um orçamento ridículo (para os padrões americanos) de US$ 3,5 milhões,
"Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" ultrapassou a mais delirante das estimativas e arrecadou o
equivalente a mais de 20 vezes o quanto custou. O lançamento em DVD do filme de 1980,
acompanhado da inevitável continuação, feita dois anos depois por outro time, é oportunidade para
verificar se o humor daqueles tempos ainda é capaz de fazer alguém rir. O alvo dos irmãos Jerry e
David Zucker, ao lado de Jim Abrahams, eram as produções do tipo "Aeroporto", uma franquia dos
chamados "disaster-movies", típica dos anos 70. Enquanto esses espetáculos-catástrofes eram
superproduções (para os padrões da época), os Zucker e Abrahams conceberam sua paródia em
esquema de filme B, com elenco anônimo, efeitos especiais precários e muita gozação sobre a
seriedade alheia. A idéia central do trio foi pirar sobre a cultura acumulada por qualquer estudante de
cinema ou consumidor compulsivo de filmes e deslocar o sentido de cenas e situações de
reconhecimento imediato, produzindo um curto-circuito de risadas. É o que se vê logo de cara, com a
cauda de avião percorrendo nuvens em referência à barbatana do monstrão de "Tubarão". Depois, a
sucessão de "roubos" não poupa clássicos como "Casablanca", "A Um Passo da Eternidade" e "Os
Embalos de Sábado à Noite". Com o sucesso obtido, dois anos depois o filme foi quase inteiramente
copiado, com apenas um upgrade do veículo principal (do avião para o ônibus espacial), mas com
efeito de piada recontada. Já os Zucker mais Abrahams garantiram o bem-estar na velhice
reproduzindo a bem-sucedida fórmula de paródias em "Top Secret - Superconfidencial", "Top Gang",
"Tá Todo Mundo Louco" ou esgotando sua repetição na série "Corra que a Polícia Vem Aí". Mesmo
tendo sido escolhida pelo American Film Institute, em uma votação feita em 2000, como a décima
comédia mais engraçada de todos os tempos, "Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" não sobreviveu ao
tempo. Sua graça de pastelão acabou diluída no humor ácido dos irmãos Farrelly, de Ben Stiller e
pela trupe de Judd Apatow, atuais reis da comédia.
APERTEM OS CINTOS, O PILOTO SUMIU 1 & 2
Direção: Jim Abrahams, David e Jerry Zucker

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Lançamento: Paramount
Quanto: R$ 29,90
Classificação indicativa: livre
Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 14/09/08

(12) Série lança armadilhas no próprio caminho

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Escrever sobre o que representa a literatura, compor uma canção sobre o processo de
composição e recepção da música: é nesse território metalinguístico que se aventura "No Estranho
Planeta dos Seres Audiovisuais".
O primeiro episódio se defronta com a dificuldade natural de apresentar a série e resumir o
que virá. Feito esse desconto, o tom escolhido lança armadilhas pelo caminho.
Optou-se por uma conversa com o telespectador (por meio de um narrador e uma apresentadora
fictícia, interpretada por Renata Gaspar), combinando imagens de diferentes texturas, capturadas em
vários suportes. Encenações convivem com entrevistas e material de arquivo.
Há um pouco de humor forçado, como se a todo momento fosse necessário recorrer a coisas
"espertas" -e a mais infeliz dessas idéias talvez seja um trio de supostos telespectadores sedentários
e imbecilizados.
Na simplificação característica da TV, algumas impropriedades são cometidas. O plano-
sequência, por exemplo, não é uma invenção do cinema iraniano, e apreciá-lo não é uma
exclusividade do espectador oriental, como se sugere.
Entrevistados sem muito o que falar ("tipo assim", seres audiovisuais?) são ouvidos. Não
seria melhor pedir, no espírito do programa, que entregassem um vídeo com as respostas? (SÉRGIO
RIZZO)
Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 14/09/08

(13) Cineasta revisita Inconfidência com ironia

COLUNISTA DA FOLHA

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Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de maneira ufanista
o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro da Educação, Jarbas
Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes sobre temas históricos. "Os
Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim Pedro de Andrade a essa convocação.
Por outro lado, é uma reflexão ousada e dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em
tempos de transformação política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão
fartamente dos poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento
brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no enforcamento de
Tiradentes (interpretado por José Wilker).

Balé da conspiração

Em contraste com a exuberância tropicalista do longa-metragem anterior do cineasta,


"Macunaíma" (1969), "Os Inconfidentes" é marcado pelo rigor da "mise-en-scène" e por um humor
crispado. Com movimentos longos e lentos, a câmera acompanha o balé dos conspiradores nas idas
e vindas de seus conchavos, configurando uma sutil e complexa coreografia moral. A postura dos
personagens é quase hierática, a dicção é de tribuna. É como se eles falassem conscientemente para
a posteridade. O que dá vida, pulsação e verdade a esses revolucionários de gabinete é, a par da
ambientação nas cidades históricas e montanhas de Minas Gerais, a extraordinária competência de
um punhado de atores: Fernando Torres, morto na última quinta-feira, no papel de Claudio Manuel da
Costa; Luís Linhares (Tomás Antônio Gonzaga), Paulo César Pereio (Alvarenga Peixoto), Nelson
Dantas (Padre Toledo). Nesse ambiente de modesta aristocracia, em que os escravos negros
aparecem quase como parte da mobília das casas, a figura de Tiradentes é um corpo estranho e até
incômodo, uma espécie de porra-louca que parece ser o único a acreditar de fato na insurreição.
Mantida sob rédea curta, a ironia se manifesta em alusões sutis ao momento político em que o filme
foi feito (o papel dos militares, a dependência externa, a situação dos presos políticos), até explodir
no final, em que se exibe um cinejornal chapa-branca sobre as comemorações da Inconfidência. O
anacronismo invade a tela como uma agressão. O DVD tem extras preciosos: o curta-metragem
restaurado "O Aleijadinho" (1978), de Joaquim Pedro, com texto e roteiro de Lucio Costa, e uma
entrevista esclarecedora do crítico Jean-Claude Bernardet. (JOSÉ GERALDO COUTO)

DVD: OS INCONFIDENTES
Distribuidora: Videofilmes
Quanto: R$ 49,90
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 07/09/08

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(14) Plano único faz inventário da estupidez

JOSÉ GERALDO COUTO

COLUNISTA DA FOLHA

"Ainda Orangotangos", longa de estréia de Gustavo Spolidoro, acompanha personagens


diversos ao longo de um dia na vida de Porto Alegre. O fato notável é que faz isso num longo e único
plano-sequência, ou seja, numa tomada contínua. O tour de force faz lembrar um filme feito há 60
anos por Hitchcock, "Festim Diabólico" -só que, neste, tudo se passava em um apartamento, e a ação
convergia para um crime. Em "Ainda...", ao contrário, a narrativa se esgarça em episódios
independentes, com a câmera abandonando sem cerimônia um personagem para seguir outro.
Resulta daí uma série de situações bizarras e banais. O fato de a câmera avançar sempre em frente
e as portas abertas nunca se fecharem traz uma qualidade vagamente onírica, um mergulho de Alice
no mundo dos horrores. Spolidoro já mostrou ter talento. Agora, precisa ter algo a dizer, pois limitar-
se a exibir um compêndio da estupidez humana ainda é muito pouco.

AINDA ORANGOTANGOS
Produção: Brasil, 2007
Direção: Gustavo Spolidoro
Com: Karina Kazuê, Lindon Shimizu, Artur José Pinto
Quando: em cartaz nos cines Frei Caneca e HSBC Belas Artes
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 07/09/08

(15) Obra de Abbas é única no cinema iraniano

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Falar de "cinema iraniano" é, a rigor, tão absurdo quanto falar do cinema argentino, do
francês, do japonês, do brasileiro. Se existem certas características comuns, há outras que
diferenciam profundamente os filmes. E mesmo que isso não apareça com clareza num primeiro
momento, aos poucos se mostra com facilidade.
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Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de Samira
Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um filme entre garotas (e a
infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e envolve um elemento mínimo. No caso,
trata-se de duas gêmeas que vivem presas em suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).
Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de seu pai,
Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes de Abbas
Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja. Kiarostami criou uma
escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a escrever roteiros, sempre com temas
mínimos, quase inexistentes. No entanto, raramente algum deles desenvolveu essa qualidade de
espelho da obra de Abbas: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o
grande prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema, com
certeza.

Folha de São Paulo, 26/10/08

(16) Levante romeno tem registro definitivo

AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O ano de 1989 é o 1968 de minha geração. Cobri para esta Folha o braço húngaro da
revolução democrática que rasgou a "cortina de ferro", derrubou o Muro de Berlim e liquidou o império
soviético. Sua página mais violenta aconteceu na Romênia de Nicolau Ceauscescu.
"Videogramas de uma Revolução" é o documentário definitivo sobre o fim do "socialismo" romeno.
Para sua realização aliaram-se dois ensaístas, um com as imagens, o alemão Harun Farocki, outro
dos estudos de comunicação, o romeno Andrei Ujica. Nada que surpreenda, portanto, que o resultado
seja uma das mais complexas radiografias em filme do poder da imagem nas sociedades
contemporâneas.
Na esteira de mais um massacre perpetrado por Ceauscescu, entre 21 e 25 de dezembro, a Romênia
explodiu. Farocki e Ujica articulam registros audiovisuais do levante de Bucareste feitos tanto por
profissionais, da ininterrupta cobertura televisiva, como por amadores, de inúmeros cinegrafistas
independentes. O que assistimos é como foi a revolução ao vivo.

Extras como prefácio

Farocki e Ujica radicalizam a máxima de Mathew Brady, o fotógrafo maior da Guerra Civil dos
EUA (1861-1865): "a câmera é o olho da história". Mais que isso: subvertem de autoritário para
libertário o panóptico global da multiplicação de câmeras. Vão além: editam e ordenam as imagens

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mas também as comentam. "Ônibus 174", de José Padilha, e "Santiago", de João Moreira Salles,
beberam nestas águas.
Ceaucescu se impôs à custa de sangue e à custa de sangue foi deposto. A execução dele e
de sua esposa Elena, no dia de Natal, foi vista por todos na TV, como para provar que o pesadelo de
fato acabara. Aquela cena está para as imagens em movimento como as fotos do cadáver de Che
Guevara para a fotografia. Há algo de belo em que o texto que revelou Ujica, muito antes do filme, se
chamasse "O Ultimato das Imagens".
Como sempre na Coleção Videofilmes, dois extras complementam impecavelmente o
lançamento. São "O Rei do Comunismo Pompa e Esplendor de Nicolau Ceausescu", dirigido por Ben
Lewis para a BBC, e "Um Dia na República Popular da Polônia", de Maciej J. Drygas. Em seus estilos
distintos, respectivamente o filme reportagem e o documentário de arquivo cumprem a mesma
função: como prefácios, apresentam o universo do chamado "socialismo realmente existente" antes
da retumbante queda do tirano.

VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO


Direção: Harun Farocki e Andrei Ujica
Distribuidora: Videofilmes
Quanto: R$ 50 (em média)
Classificação: não informada
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 26/10/08

(17) Majidi filma com fé as provações de Deus

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Primeiro cineasta iraniano indicado ao Oscar de filme estrangeiro com "Filhos do Paraíso"
(1997), Majid Majidi trabalha "em nome de Deus", como informam os créditos de "A Canção dos
Pardais". Em "A Cor do Paraíso" (1999), que Majidi abria com o mesmo letreiro, Deus era
mencionado diversas vezes e um movimento de câmera, combinado a um efeito de iluminação,
sugeria a Sua presença. Aqui, a interferência divina é oblíqua. Prêmio de melhor ator no Festival de
Berlim deste ano, Reza Najie volta a interpretar um disciplinador pai de família (papel que fez em
"Filhos do Paraíso"), devotado também à criação de avestruzes da fazenda onde trabalha.
O desemprego bate à sua porta, no entanto, e ameaça transformá-lo em outra pessoa,
terrivelmente pressionada pela dificuldade em ganhar dinheiro. À semelhança dos motoboys
paulistanos, ele encontra a alternativa de rodar com sua velha motocicleta, agora um táxi, pelas ruas
apinhadas de Teerã.

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Como desgraça pouca é bobagem, uma de suas filhas quebra o aparelho de audição, sem o
qual não consegue estudar, e o filho sonha obsessivamente com uma criação de peixes. As
provações parecem afastar o protagonista do caminho do bem (ou de Deus), mas a fé com que Majidi
filma envolve também seus personagens.

A CANÇÃO DOS PARDAIS


Quando: hoje, às 21h, IG Cine; amanhã, às 19h, na Faap
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: regular

Folha de São Paulo, 26/10/08

(18) Obra de Brillante Mendoza privilegia cinema sensorial

CÁSSIO STARLING CARLOS


CRÍTICO DA FOLHA

Quando exibido em competição em Cannes em maio, "Serbis" foi considerado por parte dos
jornalistas mera provocação, o tipo de filme que teria sido mais correto programar para uma das
paralelas do que no time dos candidatos a maiorais.
O cotidiano de uma família que vive no interior de um decadente cinema que exibe filmes
pornográficos, em meio a uma fauna de homossexuais e travestis que praticam sexo anônimo pelos
corredores, pareceu no mínimo extravagância ou, no máximo, mau gosto.
Ao lado de Lav Diaz, cujo longuíssimo "Melancholia" também foi selecionado com acuidade
para esta 32ª Mostra, a exibição do filme de Brillante Mendoza justifica-se, por um lado, pela vocação
informativa do festival paulistano.
Pois a cinematografia filipina, que teve um farol internacional nos anos 70 e 80 por meio do
nome de Lino Brocka, voltou a ser foco de atenções com a emergência de um grupo de realizadores
autorais.

Sem moralismo

Mendoza não é novato. "Serbis" é o sexto longa de uma carreira produtiva que começou em
2005 com "O Massagista" (exibido na 29ª Mostra, após vencer o Festival de Locarno).
"Serbis" reafirma a inclinação de Mendoza por um cinema sensorial, no qual corpos, sons e espaços
ganham primazia frente à psicologia ou à clareza do relato. Como em "Adeus Dragon Inn" e "O Sabor

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da Melancia", do malaio Tsai Ming-liang, o filme do filipino explora signos como a sexualidade em
lugares públicos e a presença recorrente de fluxos (corpóreos e materiais).
Ao contrário de Tsai, cuja obsessão pela incomunicabilidade se expressa na forma de
bloqueios interpessoais e espaços inundados, "Serbis" prefere dar um sinal positivo ao que mostra:
crianças passeiam de carrinhos e os frequentadores em busca de sexo convivem abertamente com
os moradores do espaço. A encenação convida a despojar o olhar do moralismo e a enxergar ali algo
que simboliza circulação e conexão.
A certa altura, a câmera escapa do confinamento e ganha a rua, revelando num letreiro o
nome do cinema: Família. Sinal de que, na visão de Mendoza, a vida é melhor num bordel do que
numa prisão.

SERBIS
Quando: hoje, às 17h40, na Cinemateca (sala BNDES); quarta, às 13h30, no Cinesesc
Classificação: não indicado a menores de 18 anos
Avaliação: bom
Folha de São Paulo, 26/10/08

(19) Domingo reúne filmes subestimados

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Talvez seja por milagre, talvez não. O certo é que este domingo está cheio de filmes
atraentes. Por exemplo, "Meu Tio da América" (Futura, 22h; não recomendado para menores de 12
anos), um Alain Resnais que há muito saiu do circuito.
Mas há dois filmes brasileiros bem subestimados e interessantes. Um deles, "Brasília 18%"
(Canal Brasil, 18h30; 16 anos), entra na cota habitual de filmes de Nelson Pereira dos Santos
simplesmente incompreendidos. Há ali secura, corrupção, alucinações -coisas típicas de Brasília.
Mais do que isso, no entanto, convém lembrar de "Rio 40 Graus", o primeiro filme do diretor. Ali, havia
uma capital (o Rio) de um país modesto, atrasado, mas tremendamente esperançoso em relação ao
futuro. A Brasília de Nelson não dá espaço à esperança nem ao futuro: é tão fossilizada quanto o
nome, brandido em vão, de nossos vultos literários.
Quanto a "Saneamento Básico, o Filme" (TC Pipoca, 20h; 12 anos), de Jorge Furtado, não
deu certo em grande parte devido ao nome infeliz, que parece o de um árido documentário. Na
verdade, estamos diante de uma comédia em que a burocracia e o cinema se encontram, quando o
povo de uma cidadezinha tenta conseguir verba para tratamento de esgoto, mas não existe o
dinheiro. Existe para a produção de vídeo. Uma mão lava a outra, então. Ou suja, se se preferir.

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Folha de São Paulo, 19/10/08

(20) Joaquim Pedro de Andrade reinventa Oswald

COLUNISTA DA FOLHA

"O Homem do Pau-Brasil" (1981), último filme de Joaquim Pedro de Andrade (1932-88), foi
recebido com certa má vontade à época em que foi lançado. Suas ousadias formais e seu desprezo
pelo "realismo" televisivo iam na contramão da tendência domesticada que então se impunha mesmo
entre os remanescentes do cinema novo, empenhados na busca de um suposto diálogo com o
grande público.
Não por acaso, o filme era dedicado a Glauber Rocha, que morrera naquele mesmo ano e que
também se recusara a sucumbir ao comodismo geral. Mas o que é "O Homem do Pau-Brasil"? Em
poucas palavras, a recriação ficcional de episódios da vida e da obra de Oswald de Andrade. Mais do
que isso, porém, trata-se de uma tentativa de discutir o legado modernista em sua vertente mais
radical e experimental.
No filme, agora lançado em DVD, esse experimentalismo começa na escalação do elenco.
Dois atores, um homem (Flávio Galvão) e uma mulher (Ítala Nandi), representam Oswald, como a
indicar dois aspectos da sua personalidade, o masculino e o feminino, yin e yang.

Antinaturalismo

O tema da antropofagia, do "quem come quem" (nos vários sentidos do verbo), perpassa todo
o filme, repleto, desde o título, de figurações do falo, signo de potência criadora, pelo menos até
desembocar na utopia final oswaldiana do matriarcado. A reconstituição de época é estilizada,
antinaturalista, e o tom da encenação é farsesco.
Boa parte da narrativa é ambientada em um navio que viaja da Europa para o Brasil, trazendo
artistas, cientistas, missionários jesuítas. O trânsito, ou antes, o entrechoque entre a cultura européia
e a energia brasileira é a própria matéria do filme.
Todo o elenco é brilhante, e o destaque fica para Dina Sfat interpretando uma Tarsila do
Amaral que oscila entre a extrema finesse e a mais deliciosa grossura.
Visto hoje, quando nos habituamos a um cineminha rasteiro e medroso, "O Homem do Pau-
Brasil" parece um objeto absurdo. Só os filmes de Julio Bressane, de algum modo, podem dialogar
com ele. Nos fornidos extras do DVD, o destaque é o documentário "Cinema Novo", realizado
também por Joaquim Pedro em 1967, mostrando, no calor da hora, os filmes realizados então por
Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues etc.
Documento inestimável de uma época de efervescência criadora e coragem artística. (JOSÉ
GERALDO COUTO)

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O HOMEM DO PAU-BRASIL
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Distribuição: VideoFilmes
Quanto: R$ 49,90 (em média)
Classificação indicativa: livre
Avaliação: ótimo
Folha de São Paulo, 19/10/08

(21) "Longe Dela" cativa pela sensibilidade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Se Julie Christie tivesse ganho o Oscar por "Longe Dela" (HBO, 1h05; não recomendado para
menores de 12 anos), o que aliás seria bem merecido, a repercussão desse filme de Sarah Polley
seria outra.
Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de Alzheimer. O
roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no que tem de particular ou de
geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de modo que não devemos estabelecer uma
relação obrigatória entre idade e doença). É culta, casada há muitos anos, ama e é amada.
Essa última circunstância é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma "love story" para ser engolida
pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a saber: a perda progressiva de memória.
Sarah Polley trabalha com inteligência: usa o caso de amor para, por um lado, tornar palatável esse
mal horrível (esquecer de si mesmo equivale a morrer em vida, não?). Por outro, coloca Grant
(Gordon Pinsent, também notável), o marido, num estado de perfeita solidão. Cabe a ele amar uma
pessoa incapaz sequer de reconhecê-lo. É a mesma com quem viveu e, ao mesmo tempo, não é.
O terrível num filme desses é que, por melhor que se faça, sempre o mal será visto antes da obra. E
não se admitirá que este é um filme estimável não só por sua grande atriz mas também porque foi
feito com muita sensibilidade.

Folha de São Paulo, 12/10/08

(22) Em "Bourne", Estado suprime liberdade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

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A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da Guerra Fria é
que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a liberdade; alguns segundos
depois descobrimos que a liberdade consiste em escolher uma operadora de telefone, ou de escolher
certa marca de cerveja.
No passado, a liberdade tanto podia ser essa, liberal, que conhecemos hoje (que, parece, a
que está em crise financeira), como a sonhada pela humanidade a partir do desenvolvimento da
indústria, sonho segundo o qual as máquinas nos libertariam e trabalhariam por nós (é o ponto de
René Clair em "A Nós a Liberdade", 1931).
A trilogia Bourne, que se fecha com "Ultimato Bourne" (TC Premium, 18h10; não
recomendado para menores de 14 anos), recoloca, em parte, essa questão. Afinal, o agente Bourne é
o sujeito que, para começar, renuncia não só à liberdade como à identidade em favor do seu país.
Mas o que é "o seu país"? Eis o que ninguém mais sabe direito. Bourne busca neste episódio
identificar onde está o começo de toda sua desgraça. Claro, são pessoas que tomaram um aparelho
estatal (o de espionagem) e ameaçam privar os outros da liberdade (ou da vida) caso se oponham a
eles. É o momento em que o desejo de poder se mostra maior que tudo. Fritz Lang mostrou como
isso funcionava, na Alemanha de 1932, em "O Testamento do Dr. Mabuse".

Folha de São Paulo, 05/10/08

(23) Bertolucci converte história em cinema

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A história é um personagem constante nos filmes de Bernardo Bertolucci: "O Conformista"


nos remetia à Itália fascista; "1900" passava em revista certo século 20; "O Último Imperador"
recuperava a história recente da China.
O viés de Bertolucci parece depender da produção: se tem meios à disposição, não evita o
painel grandioso. Mas, se não for o caso, consegue se virar buscando um viés capaz de interessar o
espectador.
Que "Os Sonhadores" (TC Cult, 22h; não indicado a menores de 16 anos), de 2003,
interessa, interessa. Lá estão, unidos, Paris, 1968 e a cinefilia. Para quem gosta de cinema, é difícil
pedir mais. Mas havia, ainda, a revelação de Eva Green, a estonteante.
No entanto, a história parece se esvair, esvaziada, ao longo do filme. Tudo começa na
Cinemateca Francesa e segue para a revolta da Cinemateca (que grande quantidade de cinéfilos
considera o início do Maio de 68).
Dos encontros aí acontecidos surge uma história de apartamento, de amores, de
experiências, de transgressões, envolvendo os três personagens do filme -como bons cinéfilos de 68,

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alheios ao mundo.
Até que, em determinado momento, o mundo, o mundo de Maio de 68, portanto um mundo
cinematográfico, vem ao seu encontro. Tem-se a impressão de que aí se revela o sentido dos filmes
de um esteta como Bertolucci. Nele, a história existe para virar cinema.
Folha de São Paulo, 30/11/08

(24) C.O.N.T.R.O.L.E. volta em dose dupla

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Quando o intrépido agente Maxwell Smart trombou pela primeira vez com as portas
automáticas da sede do C.O.N.T.R.O.L.E., em 1965, a palavra "franquia" ainda não era usada para
personagens e séries de cinema ou televisão. A protagonizada por James Bond, uma das mais bem-
sucedidas da história, ainda estava no quarto longa-metragem e talvez nem mesmo seus produtores
imaginassem que chegasse ao século 21.
A ressurreição de Smart, contudo, encontrou em 2008 cenário bem diferente. Agora,
personagens bem-sucedidos são tratados pelos estúdios como marcas a explorar de todas as formas
possíveis, como demonstra o lançamento em DVD de "Agente 86", nova versão do seriado para o
cinema, acompanhada de outro longa, "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle".
No primeiro, Steve Carell ("O Virgem de 40 Anos") substitui Don Adams (1923-2005) como Smart,
agente de uma central de inteligência (por assim dizer) dos EUA que enfrentava, nos tempos da
guerra fria, seus rivais soviéticos da K.A.O.S. - paródias da CIA e da KGB que incorporavam também
ironias ao estilo britânico de espionagem personificado por Bond. Criado por Mel Brooks e Buck
Henry, Smart passa por um banho de loja de alta tecnologia nessa adaptação moderninha que
também o torna menos tolo do que no original de TV, da mesma forma que sua parceira de
aventuras, a Agente 99 (Anne Hathaway, de "O Diabo Veste Prada", no papel que era de Barbara
Feldon), fica mais independente e durona.
O longa apresenta também uma dupla de personagens secundários, os jovens cientistas Bruce (Masi
Oka) e Lloyd (Nate Torrence), que desenvolvem as traquitanas usadas pelos agentes do
C.O.N.T.R.O.L.E. Em "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle", eles se tornam protagonistas de
aventura em torno de um manto de invisibilidade que vai parar nas mãos do ditador do fictício
Maraguai (entre o Paraguai e o Uruguai...).
Como a ação transcorre em paralelo à de "Agente 86", Smart é mencionado diversas vezes e
a Agente 99 faz uma participação especial, mas prevalece o humor juvenil nessa versão dirigida em
especial a adolescentes. Se bater saudade de Don Adams, já saíram em DVD as duas primeiras
temporadas da série original, com 30 episódios cada, o telefilme "Agente 86, De Novo?" (1989) e a
temporada única da segunda versão para TV (1995).

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AGENTE 86
Distribuidora: Warner (R$ 45)
Avaliação: regular
AGENTE 86: BRUCE E LLOYD - FORA DE CONTROLE
Distribuidora: Warner (só locação)
Classificação: não indicado a menores de 12 anos (ambos os filmes)
Avaliação: ruim

Folha de São Paulo, 30/11/08

(25) Rezende faz valer a individualidade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Pode-se dizer o que melhor se achar dos filmes de Sérgio Rezende, mas nunca que lhes falta
coerência. Com uma ou duas exceções, são filmes que biografam personagens históricos
("Lamarca") ou ficcionalizam fatos históricos ("Guerra de Canudos") na perspectiva de falar a um
público amplo.
São filmes de estrutura tradicional, como "Zuzu Angel" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado para
menores de 14 anos), e, falemos francamente, não fazem uma idéia muito boa do cinema, que não
aparece ali como produtor de conhecimento, mas, essencialmente, como divulgador de verdades
produzidas fora dali.
A estrutura e a mise-en-scène optam pelo tradicional, às vezes até demais. O mundo que
Rezende propõe, de modo geral, é simples: há os bons, maus, os certos e errados. Tudo para facilitar
o público. A questão é: por que os filmes de outros países não precisam dessas simplificações para
existir e, inclusive, atrair público?
No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais evidente é a
censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de seu filho durante a ditadura
militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus e terras em busca de respostas.
Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela
individualidade. A história passa um tanto ao largo.

Folha de São Paulo, 23/11/08

(26) Filme de Cukor aproxima a vida e o palco

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INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Famoso pela habilidade em dirigir atrizes, em "Fatalidade" é a um ator, Ronald Colman, que
George Cukor dedicou o melhor dos seus esforços. Foi compensador, já que Colman ficou com o
Oscar de melhor ator em 1948, enquanto Cukor ganhava o prêmio por melhor direção.
No mais, Ruth Gordon e Garson Kanin foram indicados para o Oscar de melhor roteiro por este filme
que pode ser visto como uma homenagem à arte do ator. Tony (Colman) é um famoso ator teatral
que sofre intensamente a cada novo papel dramático. Chegar ao personagem, integrá-lo à sua
personalidade, vivê-lo inteiramente durante duas horas é um exercício doloroso. A ponto de, quando
alguém lhe pergunta quem é, responder é um problema. Não é difícil depreender que as coisas
tornam-se ainda mais dramáticas quando ele vai fazer o Otelo de Shakespeare.
Por um lado, mais dramáticas. Por outro, um tanto esquemáticas. Embora Gordon e Kanin
evitem deter-se no ciúme de Otelo, é inevitável que se desenvolva um paralelismo que tende ao
esquemático entre a peça e o filme.
Talvez aí esteja o paradoxo do filme. Como Otelo termina por matar Desdêmona, sabemos
que há mulheres correndo perigo -em cena ou fora dela. E Cukor cria cenas fantásticas a partir desse
pressuposto.
Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony estrangula não
só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-mulher -o público do teatro, e
nós também, ficamos em suspense, sem saber em que nível estamos, se no da vida ou no da
representação.

Embora esses momentos sejam intensos, o fato é que, até a cena de assassinato (sim,
acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua maior vocação é para uma
magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson Kanin escreveu com maestria (às vezes na
companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama
existisse sobretudo para ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.
Depois que o crime acontece, no entanto, o filme adquire gravidade e coloca em oposição Tony, o
ator, e Bill (Edmond O'Brien), o agente de imprensa, ou, se se prefere, o gênio e o medíocre. Ou seja,
é exatamente quando "Fatalidade" mostra sua face de trama policial que o aspecto filme de
bastidores se manifesta plenamente: o palco e a vida se comunicam de maneira mais intensa, e a
teatralidade se mostra pelo aspecto mais rico.

FATALIDADE
Direção: George Cukor
Distribuição: Lume Filmes
Quanto: R$ 37,50 (em média)
Classificação indicativa: não informada
Avaliação: bom
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Folha de São Paulo, 23/11/08

(27) Essência escapa em "O Gosto da Cereja"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência mesmo de "O
Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O filme nos mostra a trajetória
de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que busca alguém para se ocupar de seu
corpo após a morte.
Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas a quem dá
carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra resistências, é óbvio, mas,
mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter sagrado etc.
Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a convicção de que o
essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem deseja se suicidar. Correu, na
época do lançamento do filme, que esse homem seria homossexual, o que configuraria um duplo
crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo o suicídio).
A explicação está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no filme: Badii
surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que preste um serviço. Não é do
feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não porque fuja delas. É que seu cinema funciona
como um espelho. Ele nos dá exatamente o que dele recebemos.
Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que retiramos da imagem é o que lhe
damos.

Folha de São Paulo, 16/11/08

(28) Sem cortes, Sokúrov encena a história russa

CÁSSIO STARLING CARLOS


CRÍTICO DA FOLHA

O espectador leigo de cinema fica a ver navios quando críticos e teóricos se lançam a elogiar
um filme elencando as virtudes com base no uso de tantos planos-sequências. O termo é técnico e,
portanto, jargão, inadequado, segundo regras, para ser usado em textos jornalísticos. Mas como
explicitar as qualidades de "Arca Russa", filme realizado numa única tomada de 97 minutos, ou seja,
num único plano-sequência, sem explicar do que se trata e para que serve? Sejamos didáticos,
portanto.
Um filme, como um livro, uma novela ou uma história em quadrinhos, é feito de centenas de pontos
150
de vista, perspectivas sobre ações, personagens e objetos. A cada um desses recortes de filmagem
se dá o nome de "plano". No processo seguinte, a montagem, o editor se encarrega de colocar ordem
e ritmo nesses pedaços, construindo sequências e, com a sucessão delas, o filme que vemos.
Nessas operações, trata-se portanto de reinventar a realidade, primeiro por meio da encenação nas
filmagens, depois colocando certa ordem que nos dá impressão de realidade.
Contra esta "realidade", alguns cineastas começaram a rodar cenas em planos longos, sem
cortes, num modo, segundo críticos e teóricos importantes, de se aproximar ao máximo da realidade
(supostamente mais "real" do que aquela outra). Sem cortes, acreditava-se, não há manipulação
daquilo que se vê. Ou, mais importante, mantém-se a unidade de espaço e de tempo, proporcionando
ao espectador acompanhar uma ação em sua integridade e, de quebra, em sua verdade.
Ora, o projeto do diretor russo Aleksandr Sokúrov em "Arca Russa" foi levar ao limite as tentativas
anteriores de realizar um filme inteiro sem cortes, tecnicamente impossível antes do advento da
câmera digital. Mas, ao contrário de seguir o culto do fetichismo realista, o plano-sequência que
constitui "Arca Russa" transmite outras significações que não o do culto da veracidade.
A longa tomada foi feita nos extensos salões e corredores do Museu Hermitage, que ocupa
um majestoso palácio imperial em São Petersburgo. Como proeza técnica, a ambição de Sokúrov e
equipe não se esgota no virtuosismo. Trata-se de usar a fluidez (trazida pelo movimento contínuo da
imagem) como meio de encenar a história do país, interpretando-a.
Desse modo, passado e presente se interpenetram na imagem, dando-nos a ver a história
como um processo contínuo que avança "sem cortes". Ao contrário, continua, se reproduz,
reencontra-se por meio de um fluxo no qual nada se perde, tudo se transforma.

ARCA RUSSA
Direção: Aleksandr Sokúrov
Distribuidora: Versátil Home Vídeo
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 16/11/08

(29) Oliver Stone faz seu melhor filme desde "Wall Street"

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Como se sabe, "W.", de Oliver Stone, é um filme polêmico. Recria pedaços da vida de
George W. Bush, o ainda presidente dos Estados Unidos, com ironia e sarcasmo. Traz um aspecto
inegavelmente corajoso e que talvez só se justifique dentro deste dado tão forte da cultura americana:
151
a defesa da liberdade de expressão. Que outro país produziria a biografia de um presidente da
República, vivo e ainda no poder, mesmo se desmoralizado e enfraquecido?
"W." é, no mínimo, um filme divertido de ver. Personagens que frequentaram os noticiários
nos últimos anos surgem aqui em versão ficcional, um pouco como costumam fazer os programas de
humor -ainda que, neste caso, de forma bem mais discreta.
Boa parte da graça está em identificar os atores caracterizados e observar suas cuidadosas
composições, principalmente aqueles que interpretam figuras marcantes do governo Bush: Thandie
Newton como Condoleezza Rice, Jeffrey Right como Colin Powell, Richard Dreyfuss como Dick
Cheney e Scott Glenn como Donald Rumsfeld.
Para além desse aspecto "passatempo" do filme, "W." é um bom estudo de personagem, um
pouco como Oliver Stone já havia feito em "Nixon" -só que, desta vez, de forma bem menos
excessiva.
Em "W.", Stone foi menos ambicioso do que em "Nixon", talvez na mesma medida da "grandiosidade"
de seu personagem central, muito bem interpretado por Josh Brolin (do vencedor do Oscar "Onde os
Fracos Não Têm Vez").
O roteiro alterna cenas da juventude de Bush e momentos cruciais de sua atuação na
presidência. Por trás da estrutura simples, escondem-se algumas idéias interessantes, relacionadas a
questões familiares. Nesse aspecto, o personagem mais fascinante é Bush pai, magistralmente
defendido por James Cromwell. O roteiro de "W.", curiosamente, traz a assinatura de Stanley Weiser,
parceiro de Stone no enredo de "Wall Street" -não por acaso, o melhor filme de Stone antes deste
"W.".
São duas crônicas políticas precisas, feitas em cima do laço, e, de certa forma, profundamente
relacionadas.

W. Produção: EUA, 2008


Direção: Oliver Stone
Com: Josh Brolin, Ellen Burstyn, James Cromwell e Richard Dreyfuss
Quando: sem previsão de estréia no Brasil
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 16/11/08

(30) Irregular, Makhmalbaf acerta em "Gabbeh"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Está certo e não está falar do "cinema francês", ou "brasileiro", ou "americano". Está errado
porque cada cinematografia produz filmes muito diferentes entre si. E está certo porque, por mais
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diferentes que sejam, filmes de um país sempre guardarão algo de comum: uma luz, uma paisagem,
um modo de ser das pessoas etc.
Isso lhes confere uma personalidade que transcende, em larga medida, os desígnios de cada
artista. Mas será bem injusto colocar todas as obras num mesmo saco nacional. Por exemplo: os
filmes de Abbas Kiarostami pouco têm em comum com os de Mohsen Makhmalbaf.
Este último, aliás, se pauta por uma irregularidade avassaladora. "Gabbeh" (Futura, 22h, não
recomendado a menores de 12 anos) é um dos seus mais belos trabalhos a terem chegado até nós.
Gabbeh é um tipo de tapete persa, o que é bem conhecido. Menos conhecido é aquilo sobre o que
discorre o filme: a sofisticada estamparia de um gabbeh é a narrativa de uma história.
Assim como a tatuagem pode ser um relato, as figuras do gabbeh são como que o resumo de uma
existência, com seus espantos, belezas, tragédias. Aqui, em linhas gerais, é a história de um amor
que se conta.
Se outras vezes vemos Makhmalbaf oscilar entre o autoritário e o meramente comercial ("A
Caminho de Kandahar"), em "Gabbeh" é possível encontrar momentos de verdadeira poesia.

Folha de São Paulo, 09/11/08

(31) "Vá e Veja" leva poesia a cenário de guerra

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

As únicas imagens documentais de "Vá e Veja" (1985) só aparecem em seus minutos finais.
Apesar de o efeito ser notável, esse clássico do filme de guerra não precisaria recorrer a isso para
aumentar a catarse anti-nazista que o orienta quase desde o início.
Quase, porque a primeira meia hora do filme trata a Segunda Guerra Mundial de longe, como o
evento que leva crianças e adolescentes a procurar armas e outros objetos de uso militar escondidos
nas areias brancas de uma aldeia na Bielo-Rússia (ou Belarus), república soviética invadida pelos
alemães, em 1943.
Um deles, Fliora (Aleksei Kravchenko), encontra um rifle e resolve abandonar a mãe e as
irmãs pequenas para se juntar a guerrilheiros. Inexperiente, não será aceito pelo comandante da
milícia, mas experimentará, primeiro acompanhado por uma jovem (Olga Mironova) e depois sozinho,
as agruras do conflito.
Sua jornada não é propriamente a de um herói, como um filme hollywoodiano tenderia a
caracterizá-la. Fliora carrega a dor profunda e a indignação de ser um sobrevivente em cenário de
apocalipse: 628 aldeias bielo-russas foram queimadas com seus habitantes pelos nazistas, informa o
próprio "Vá e Veja" (ou "venha e veja", no título em inglês). Último dos cinco longas dirigidos pelo
russo Elem Klimov (1933-2003), que teve atuação política expressiva (sobretudo como secretário da
associação de cineastas do país) nos tempos de URSS, ele se inspira parcialmente em episódios de

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guerra vividos por ele e sua família em Volgogrado (na época, Stalingrado).
A forte estrutura estatal do cinema soviético, que reunia 39 estúdios espalhados pelas repúblicas,
possibilitou que Klimov trabalhasse aqui em escala de superprodução, sob o guarda-chuva do
Mosfilm, em Moscou, e do Belarusfilm, em Minsk. Não causa surpresa, portanto, que tenha obtido o
prêmio de melhor filme no Festival de Moscou.
A denúncia de atrocidades cometidas contra bielo-russos e a abordagem épica
transformaram também "Vá e Veja" em um grande sucesso de bilheteria na URSS, com cerca de 29
milhões de espectadores ("Titanic", o recordista do mercado brasileiro em toda a história, teve 16,3
milhões).
"Estes são tempos difíceis", diz um personagem. Klimov não procura maquiá-los, mas combina
poesia ao realismo para acompanhar o efeito da guerra sobre os sentidos de Fliora (com destaque
para a audição) e seu processo traumático de amadurecimento.

VÁ E VEJA
Direção: Elem Klimov
Distribuidora: Lume Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 09/11/08

(32) Ruim e ideológico, longa consagra estética da TV

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Há um bom princípio, em "Romance": observar a contaminação do teatro pela TV no Brasil


(na trama, jovem atriz aceita trocar o anonimato do teatro pelas novelas).
A questão existe, de fato, e reflete-se no estilo de interpretação quase insuportável, porém frequente
nos nossos palcos, em que à idéia geral de que teatro consiste de gritos e gesticulação excessiva
juntou-se a autocomplacência criada pelo êxito na TV.
Aos poucos, porém, percebemos que Guel Arraes não vê na TV algo daninho. A
ridicularização das novelas mostra-se apenas um pretexto para melhor demonstrar que as relações
ali são mais complexas -e até criativas. Ou seja, o filme discute, ou finge discutir, as relações entre
uma arte "pura", mas que não fala a ninguém, e outra "impura", que fala a muitos, e explora o
território das relações entre representação e verdade. Tudo amarrado pelo paralelo maníaco entre
"vida real" (a ficção do filme) e "Tristão e Isolda" (a peça encenada de início).

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Se no nível das idéias o filme avança para o macete puro e simples, no da encenação
caminha para uma espécie de ressurreição do estilo Vera Cruz, ou de algo tão antiquado quanto. Se
no roteiro boas idéias se alternam com falatório inútil, no setor interpretação os vícios da TV atacam o
elenco em peso (exceção: Wagner Moura).
As voltas, os circunlóquios, a desgastada aproximação de clássico e moderno (saudade de
"Carnaval Atlântida", de J.C. Burle) levam à consagração da estética de TV no teatro (ver cena final) e
à vitória do bom senso sobre a paixão.
Desde os tempos do CPC (Centro Popular de Cultura), não se via nada tão carregado de
ideologia.

ROMANCE
Direção: Guel Arraes
Quando: estréia na próxima sexta-feira
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: ruim

Folha de São Paulo, 09/11/08

(33) Faroeste aborda liberdade feminina

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Se não foi a primeira incursão de Claudia Cardinale ao Velho Oeste, "Os Profissionais" (TCM,
20h; classificação indicativa não informada) foi a primeira a fazer barulho. Ela vinha cercada de um
grupo de atores de primeiro time: Burt Lancaster, Robert Ryan, Lee Marvin, Ralph Bellamy, Jack
Palance etc. A direção era de Richard Brooks e a produção, muito maior do que a habitual para o
gênero.
De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um grupo de
aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que raptou sua mulher
(Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é interessante e tensa. Mas existe,
sobretudo, a dúvida: teria sido ela, de fato, raptada? Entramos num terreno muito frequentado por
Brooks: o da liberdade feminina.
O Oeste não deixa de ser um estranho lugar para abordá-la, porque lá as mulheres têm um lugar
secundário, quando têm. Mas o autor de "À Procura de Mr. Goodbar" não deixaria de achar um jeito
de encaixá-la em lugar de relevo: coisas assim são as que se espera de um cineasta liberal por
excelência.
No TCM, no entanto, o dia não é de Claudia, e sim de Burt Lancaster, de quem se festejam os 95

155
anos de nascimento e que comparece em "Baixeza" (16h30; classificação indicativa não informada) e
"Os Assassinos" (22h; classificação indicativa não informada), de Robert Siodmak.

Folha de São Paulo, 02/11/08

(34) Drama ressalta riqueza estética de Bertolucci

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

O escritor Alberto Moravia (1907-1990) já era uma personalidade na imprensa, na literatura e


no cinema italianos em 1951, quando publicou "O Conformista". Quase duas décadas depois, o
prestígio consolidado do autor não impediu que o cineasta Bernardo Bertolucci, então com menos de
30 anos, adaptasse o romance com liberdade em relação ao original, sobretudo no desfecho.
Enquanto o livro de Moravia usa um "herói contemporâneo" para expressar um sentimento
antifascista com a ferida ainda aberta, o filme de Bertolucci se beneficia da distância no tempo para
uma reflexão mais conectada com a idéia de ação política no final dos anos 60, que já havia fornecido
matéria-prima para "Partner" (1968). Natural, portanto, que Bertolucci considere "O Conformista"
(1970) seu atestado de maturidade como diretor: além de se apropriar de material alheio para lhe dar
sentido próprio, seu quarto longa para cinema demonstra a riqueza estética que o caracterizaria
desde então, graças também ao início de parcerias duradouras com o fotógrafo Vittorio Storaro e o
desenhista de produção Ferdinando Scarfiotti. Storaro (Oscar por "Apocalypse Now", "Reds" e "O
Último Imperador") já havia trabalhado com Bertolucci em uma produção para a TV, "A Estratégia da
Aranha", lançada no mesmo ano de "O Conformista" e também baseada em leitura muito particular
de obra literária, o conto "Tema do Traidor e do Herói", do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
A adaptação do romance de Moravia substitui a narrativa linear original por uma estrutura em forma
de flashback, o que acentua o aspecto um tanto onírico da trajetória do protagonista Marcello Clerici
(o ator francês Jean-Louis Trintignant, que já havia feito "Um Homem, uma Mulher" e "Z"). Servidor
público que se considera diferente dos outros devido a um episódio de infância, ele quer apenas levar
uma "vida normal". Na Itália dos anos 30, o casamento com uma jovem de classe média baixa
(Stefania Sandrelli) e a militância como agente fascista lhe parecem essenciais para construir a sua
conformação social. A lua-de-mel em Paris traz sua primeira missão, aproximar-se de seu ex-
professor antifascista, cuja mulher (Dominique Sanda, que faz também duas pontas) o atrai, para
matá-lo. As idas e vindas no tempo exploram sua fragilidade, seus dilemas morais e seu processo de
tomada de consciência, que o uso significativo de cores, sombras e espaços traduz em forma de
cinema.

156
O CONFORMISTA
Direção: Bernardo Bertolucci
Distribuidora: Lume
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 28/12/08

(35) Dramas com luta de classes são destaques

PAULO SANTOS LIMA


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em "Metrópolis" (TC Cult, 15h40, não indicado a menores de 12 anos), o filho do maior
industrial da cidade apaixona-se por uma operária, o que o faz conhecer a triste realidade dos
subterrâneos onde mora o proletariado que abastece a elite que vive na superfície.
Fritz Lang, neste que não é dos seus melhores filmes, mas ainda assim é um belo exercício de
espaços e arquiteturas, comenta a Alemanha de 1926. E a questão central do filme é a luta de
classes, o que torna ainda mais ingênuo (e absurdo) o plano mostrando o aperto de mão entre patrão
e empregado.
Sobre o mesmo assunto, George Stevens foi mais agudo em 1955, com seu "Assim Caminha a
Humanidade" (TCM, 18h35, classificação indicativa não informada), em que a conciliação entre
classes é uma impossibilidade, resultando no sacrifício de uma das partes. Jett Rink (James Dean)
trabalha numa fazenda texana sob grande ressentimento e rebeldia. Para piorar, ama a mulher do
chefe que ele odeia. Até ele encontrar petróleo e enriquecer espetacularmente. A fúria
perdura, porém, e o abismo que o separa de seus patrões aumentará colossalmente. O caminho será
o da violência, sobretudo aquela que há na ocupação e sangria de um espaço e de suas coisas e
seres, como foi a do Texas, com seu gado e petróleo sendo explorados pelo homem. Neste belo
filme, Stevens fala dos EUA, evidentemente, mas também do ser humano em geral.

Folha de São Paulo, 28/12/08

(36) Brooks fez belo exercício de antecipação

INÁCIO ARAUJO
157
CRÍTICO DA FOLHA

O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não recomendado a
menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou "certo é errado". Vale, primeiro,
do ponto de vista do enredo, em que um famoso jornalista de TV (Sean Connery), com ligações
importantes no Oriente Médio, se vê a horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual
não tem a menor influência.
A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que as
jogariam em Israel. Ele tomaria essa atitude como represália ao presidente dos EUA, que deseja tirá-
lo do poder.
Do ponto de vista da ficção, temos aí um belo exercício de antecipação (o filme é de 1982). Ele não
se detém na semelhança com aspectos da política internacional no século 21.
É o fato do repórter se ver perdido entre tantas visões da realidade, entre tantas versões do
mundo que mais o aproxima de nós.
Mas o aspecto mais interessante deste filme de Richard Brooks é sua distância em relação à
produção média, sua ousadia de saber se perder junto com seu herói, de não fingir que o mundo é
facilmente compreensível, nem divisível de imediato em certo/errado.
Brooks contraria, com sua proverbial honestidade, as regras do sucesso cinematográfico.
Regras cada vez mais explícitas. Paga um preço: o fracasso imediato. Mas faz um filme memorável.

Folha de São Paulo, 21/12/08

(37) Filme registra movimento grevista de 1978 em pleno olho do furacão. Documentário
impressiona pelas imagens de trabalhadores e discursos

JOSÉ GERALDO COUTO


COLUNISTA DA FOLHA
Roberto Gervitz ("Feliz Ano Velho", "Jogo Subterrâneo") e Sérgio Toledo ("Vera") tinham
pouco mais de 20 anos e eram universitários de classe média quando fizeram o documentário
"Braços Cruzados Máquinas Paradas", em 1978. Inicialmente concebido para registrar a eleição para
a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, dominado havia 14 anos pelo "pelego"
Joaquim dos Santos Andrade (o Joaquinzão), o filme foi colhido no olho do furacão do primeiro
grande movimento grevista paulistano desde o golpe militar de 1964. Na esteira das greves
metalúrgicas do ABC, cujo principal líder era um certo Lula, as fábricas de São Paulo começaram a
parar por reajustes salariais, melhores condições de trabalho e liberdade sindical. Os jovens Toledo e
Gervitz, excitados com o movimento, optaram por fazer de seu filme um instrumento, dando voz aos
operários e seus líderes. Visto hoje, 30 anos depois, "Braços Cruzados" ainda impressiona por seu
frescor e vitalidade, mas também por documentar um certo mundo operário que parece não existir
158
mais, o das grandes massas de trabalhadores braçais operando máquinas semi-manuais. Como diz,
nos extras do DVD, um dos líderes do movimento de 78, as fábricas hoje "parecem laboratórios",
onde "se bobear os operários trabalham de terno". Como os cineastas estavam envolvidos de corpo e
alma na luta da oposição para reconquistar o sindicato, grande parte do filme se concentra na
campanha eleitoral, nas eleições fraudadas, anuladas pela Justiça e depois revalidadas pelo governo
militar. Embora haja tensão no processo, é algo que hoje soa distante e datado.

Filme de amor

O que fica de mais precioso são as imagens dos trabalhadores nas fábricas, nos ônibus e
trens, nas moradias precárias. A fala dos não-militantes são quase sempre mais interessantes do que
a dos sindicalistas. Uma operária diz, indignada, na porta de uma fábrica: "Não é à toa que tem cada
vez mais ladrão e gente pedindo esmola. Vale mais roubar ou mendigar do que acordar às três da
madrugada para trabalhar na Philco e ganhar uma porcaria". A câmera de Aloysio Raulino capta com
extrema sensibilidade o balé de rostos e corpos que pela primeira vez se viam como atores da
história, e não apenas como vítimas ou espectadores. Nos extras, além de entrevistas de Gervitz e
Raulino, o destaque são os depoimentos de cinco líderes das greves de 78, três décadas depois. Ao
se rever na tela e contextualizar o movimento, eles dão uma demonstração de lucidez, coerência e
alegria que chega a comover. Um deles diz a certa altura a palavra "amor" para definir o que os une.
Para além da política, Gervitz e Toledo fizeram isso mesmo: um filme de amor.

BRAÇOS CRUZADOS MÁQUINAS PARADAS


Lançamento: VideoFilmes
Quanto: R$ 45, em média
Classificação: livre
Avaliação: ótimo

Folha de São Paulo, 21/12/08

(38) "Wall-E" se destaca entre lançamentos de animação

Disney também sai com duas edições comemorativas com extras e restaurações

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES


DA REPORTAGEM LOCAL

159
O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas -afinal, elas
sobrevivem a tudo. Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há toneladas de sucata por
toda parte. Enquanto isso, junta de caixinhas a partes de robôs como ele. Wall-E enxerga beleza
onde só há lixo.
Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que se apaixona pela
evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado aparece no seu mundo e o domina
completamente.
A nostalgia que permeava toda a sua existência dá lugar à onipresença de Eva. Tudo em
nome do amor, embora fora de sintonia. Afinal, ela tem uma missão: encontrar registro de vida na
Terra para que a humanidade, reclusa no espaço, possa retornar ao planeta.
É uma história de amor clássica, de encontros e desencontros, perdas e ganhos, embalada
por uma mensagem ecológica, mas sem panfletarismo nem apontar o dedo para ninguém. Somos
todos errados na poluição do mundo e na nossa vida sedentária -e sabemos disso. Não é preciso um
discurso político para nos convencer.
Com o mínimo de falas, lembra muito a simplicidade dos filmes de Charles Chaplin e acerta
em cheio ao nos estender a mão para exaltar a relação entre os seres -ainda que não humanos. É
ingênuo de um jeito que sentimos saudade, sem, com isso, ser tonto. Vai ser justo se levar um Oscar.
Ou mais.

Pançudos com orgulho

Aproveitando a avidez das crianças por presentes, outros cinco lançamentos chegam ao DVD
(veja quadro ao lado).
Mais familiar, o gordinho urso Po quer ser um mestre do kung fu, embora esse "excesso de
gostosura" pareça um empecilho bem, digamos, polpudo.
Na mesma linha de "Ratatouille", em que um rato queria cozinhar, aqui a mensagem é de
enfrentar os desafios para alcançar seu sonho. Com um belo humor, não há como não torcer pelo
urso, que rouba a cena frente aos outros animais. Mas, tudo bem, eles vão ganhar um filme próprio,
conforme nos contam os extras de "Kung Fu Panda". "Os Cinco Furiosos" sai em breve em DVD.
Também fora de peso, o politicamente incorreto Shrek ganha nova franquia com uma fábula singela,
em que ele tem de aprender o que significa o Natal para cumprir seu papel de paizão dos trigêmeos.
É um subproduto, bem longe do humor que o ogro verde já produziu.
Já a concorrente Disney tem duas edições comemorativas: "A Bela Adormecida" faz 50 anos,
com uma trama bem datada, embora ainda embale muitos sonhos das meninas. Mas fica estranho
realmente em pleno 2008 uma princesa ficar esperando um príncipe chegar para levá-la do marasmo
de sua vida.
"A Espada Era a Lei", de 1963, reconta a história do rei Arthur como um garoto de 12 anos
numa Inglaterra sem rei nem lei. Acompanhado de uma coruja rabugenta, ele vai ser tutoreado pelo
mago Merlin até cumprir sua missão de herói.

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O filme marcou a ruptura entre Walt Disney e o roteirista Bill Peet. Na época mais preocupado
com a criação dos parques, Walt deixou de lado o cinema e se arrependeu do resultado, abalando a
confiança entre eles. Dois anos depois, afastaria Peet de "Mogli" e nunca mais trabalhariam juntos.
Mas os lançamentos não são só estrangeiros. Mônica lança a terceira versão de seu "Cine Gibi". O
foco são sete planos "infalíveis" de Cebolinha para apanhar o coelhinho Sansão. Na verdade, quem
apanha é ele e o Cascão, porque são sete vezes em que suas maluquices dão bem errado. Perdeu
um pouco de fôlego essa idéia de fazer um mosaico de aventuras, mas as histórias continuam
divertidas.

Folha de São Paulo, 21/12/08

(39) Sofia Coppola revela talento em drama sobre a juventude

Em sua estréia na direção, filha de Francis Ford aborda irmãs nos anos 70

BRUNO YUTAKA SAITO


DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1999, quando estreou na direção com "As Virgens Suicidas", que tem lançamento em
DVD, Sofia Coppola ainda era lembrada apenas como a adolescente nariguda que tivera uma
atuação constrangedora em "O Poderoso Chefão 3" (90).
Foi ao entrar em contato com o livro homônimo de Jeffrey Eugenides que Sofia encontrou a
maneira de se reinventar como artista. Ela tinha à mão uma trama contemporânea, escrita como se
fosse um romance clássico, como explica o making of do DVD.
É fácil, hoje, após a consagração com seus filmes seguintes, os excelentes "Encontros e
Desencontros" (03) e "Maria Antonieta" (06), entender as razões pelas quais o livro de Eugenides
fascinou a diretora. Sofia começava ali a definir seus temas essenciais, perseguidos e seguidos à
risca nessas produções. Mais do que um cinema de "mulherzinha", ou feminista, como um olhar mais
rasteiro poderia sugerir, ela adota visão cúmplice sobre a alienação, carregada de um sentimento de
não-pertencimento, algo que extrapola as definições de sexos.
Com "Virgens...", tais sensações vêm em estado bruto, já que o foco é a adolescência. Uma
das idéias que resumem o filme está na fala de Cecilia, a irmã mais nova, após tentativa de suicídio.
"Você não tem idade para saber o quanto a vida fica difícil", diz o médico, no que ela responde:
"Obviamente, doutor, você nunca foi uma garota de 13 anos".
A questão não é entender as razões do que o título do filme entrega -a repressão dos pais
não explica o ato das cinco irmãs. Prevalece o inexplicável.
A estrutura escolhida por Sofia garante a magia. A história vem narrada por homens que na
época -o longa se passa nos anos 70- eram apenas moleques apaixonados pelo quinteto. Eles
161
relembram garotas que permanecerão para sempre em suas memórias, perfeitas, belas e intocadas.
Sofia parece evocar astros que morreram jovens, como James Dean ou Marilyn Monroe, para
vasculhar o voyeurismo e o fetichismo.
Para completar, a trilha do duo francês Air garante o clima onírico, de beleza mórbida,
necessário a esse filme que só melhora com o tempo.

AS VIRGENS SUICIDAS
Direção: Sofia Coppola
Distribuidora: Paramount (à venda exclusivamente nas lojas da rede
2001; site: www.2001video.com.br, por R$ 19,90)
Classificação: não indicado para menores de 16 anos
Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 14/12/08

(40) Francesa faz filme sem grandes pretensões

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "Um Lugar na Platéia" (TC Premium, 12h30; não indicado a menores de 12 anos) existe
um pianista cansado do estrelato e dos infinitos compromissos de sua agenda. Existe também um
velho "self-made man" disposto a se desfazer de sua preciosa coleção de arte, um filho professor
universitário que não se entende com o pai, uma atriz que faz sucesso com um novelão de TV, mas
acredita que esse sucesso vai afastá-la de bons papéis.
O que esses personagens têm em comum é que frequentam o café onde trabalha Cécile De
France, ou Jessica, que, por sua simpatia, acaba transitando entre as mais sólidas neuroses
artísticas com alegre desenvoltura. Ninguém dirá que Danièle Thompson realizou um grande filme.
Não se trata disso. Mas se trata de criar uma matinê que se possa ver sem maiores compromissos,
mas que não ofenda nem a inteligência, nem a vista do espectador. É o que se chama de um produto
digno.
Isso tornou-se muito menos frequente do que seria desejável. É como se os produtores, pressionados
pelos altos custos e pelo medo decorrente, só soubessem arriscar no certo, ou seja, não arriscar.
Há um monte de filmes nessa categoria hoje. Não, certamente, os brilhantes "Crepúsculo dos
Deuses" (TC Cult, 22h; não indicado a menores de 12 anos), de Billy Wilder, ou "Dália Negra"
(mesmo canal, 0h05; não indicado a menores de 14 anos), de Brian de Palma.

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Folha de São Paulo, 07/12/08

(41) Coutinho deixa o espectador sem chão

JOSÉ GERALDO COUTO


COLUNISTA DA FOLHA

Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que exponha suas
verdades mais íntimas e profundas. Essa idéia, esboçada em obras anteriores de Eduardo Coutinho,
como "Santo Forte" e "Edifício Master", ganha uma evidência incontornável em seu documentário
mais recente, "Jogo de Cena", que chega agora ao DVD.
O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta convidava mulheres a
falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram selecionadas e
filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus
entrevistados como "personagens", em "Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso,
misturando depoimentos de mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas
histórias narradas por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão,
Fernanda Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.
O efeito desse ardiloso embaralhamento é deixar o espectador sem chão, em dúvida sobre
quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem, afinal, viveu o quê.
Os extras do DVD, ao exibir as entrevistas prévias das selecionadas com a assistente do diretor,
Cristiana Grumbach, revelam que o jogo foi além: há, entre as depoentes, uma que conta a história
de outra, que por sua vez narra uma terceira história, que já não sabemos mais a quem pertence.
De certo modo, revelar esses depoimentos de bastidores é um pouco como desmontar o brinquedo
para descobrir como funciona, e a sensação se reforça com a já tradicional "faixa comentada", em
que Coutinho fala sobre seu filme com o cineasta João Moreira Salles e o crítico Carlos Alberto
Mattos. Mas, por estranho que pareça, essa revelação dos mecanismos ilusionistas do filme, em vez
de diminuir seu impacto emocional, acaba por intensificá-lo. Na organização desses múltiplos
discursos sobre dramas pessoais em que quase sempre sobressai a relação com os filhos ou, mais
raramente, com os pais há todo um questionamento do estatuto da representação, da condição
feminina e da própria noção de verdade.

Mas há também uma carga de vivência humana quase insuportável. "Jogo de Cena" pode ser
visto, se quisermos, como um estudo sobre as lágrimas e seu modo de produção o que dificilmente
impedirá o espectador de verter algumas ao longo da sessão.

Folha de São Paulo, 07/12/08

163
(42) Rigoroso, "O Hospedeiro" é falso trash

PAULO SANTOS LIMA


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O trash é uma valoração meio complicada ao cinema, arte que transita entre estéticas
irregulares sem necessariamente trair o bom enquadramento, a boa imagem.
Um certo público médio francês, nos anos 50, por exemplo, achava os filmes de Claude Autant-Lara
um primor de requinte. Os críticos da "Cahiers du Cinéma", lúcidos, esclareceram que esse cinema
clássico, todo "chique", era um lixo.
Pois "O Hospedeiro" (TC Action, 22h, não indicado a menores de 12 anos) talvez pareça meio
"filme de moleque" para alguns, ou mesmo trash (sim, o termo hoje é utilizado como coringa na
manga).
E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a do cinema de
gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título, inclusive, é um CGI
confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo bonito na indústria, Bong faz de
seu filme algo extremamente político.
Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos (os EUA
colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão que pai de sua filha e
que terá de salvar alguns tantos.
Nesse clima um tanto tresloucado, há espaço também para o terror, até o desfecho que
emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV brasileira exibia nos anos 70.
Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.

Folha de São Paulo, 04/01/09

(43) Em nome da mãe

"Maysa - Quando Fala o Coração", minissérie sobre a vida turbulenta da cantora de "Meu
Mundo Caiu", dirigida por seu filho, Jayme Monjardim, estrÉia amanhã na Globo

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Jayme Monjardim, 53, é conhecido, entre outros trabalhos, pela direção inovadora na novela
"Pantanal" e pelo filme "Olga". A partir de amanhã, será o filho da cantora Maysa.

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Diretor da Globo, ele leva ao ar na emissora o grande projeto de sua vida: uma minissérie de nove
capítulos sobre a turbulenta vida de sua mãe (1936-1977), estrela da música brasileira de carreira
internacional, celebrizada pela interpretação de "Meu Mundo Caiu", entre outros grandes sucessos do
samba-canção e da bossa nova.
Fora dos palcos, sua vida foi marcada por atitudes controversas, paixões polêmicas, abuso
de álcool, de moderadores de apetite e tentativas de suicídio. Morreu aos 40, em um acidente de
carro na ponte Rio-Niterói.
Monjardim tinha apenas dois anos quando Maysa se separou de seu pai, o bilionário André
Matarazzo, e foi deixado na casa de avós, sendo criado por uma empregada. Aos seis, quando o pai
morreu, o "jogaram" em um colégio interno na Espanha por quase dez anos.
Uma cena criada pelo autor da minissérie, Manoel Carlos (leia entrevista à pág. E3), tenta resumir o
sofrimento e a sensação de abandono: em uma rara visita ao internato, Maysa se depara com o filho
pequeno doente e diz que não irá beijá-lo para não correr o risco de se resfriar e prejudicar sua voz.
Monjardim, que diz nunca ter feito análise, contou à Folha que se manteve "congelado" ao rever -e
dirigir- cenas tão dramáticas de seu passado.

FILHO X DIRETOR

Consegui separar o filho do diretor, ter um distanciamento suficiente para não sofrer ou me
emocionar. Sem isso, não poderia ter feito esse trabalho.
Já imaginou gravar essa cena [em que Maysa não beija Monjardim no internato] e começar a
chorar? Me dediquei a esse projeto, talvez o mais importante na minha vida, para contar uma linda
história de amor. O projeto é tão elevado, já sofri tanto por ser um menino sozinho, que parece outra
encarnação. Mas, quando assistir na TV, não sou mais diretor, e sim o filho. Aí não me responsabilizo
pelo que vou fazer, porque até agora estou congelado.

CENAS FORTES
A minissérie é um resumo muito sutil do que aconteceu. Aquilo foi um beijo, mas imagina
passar dez anos em um colégio interno sozinho. Os dez anos foram tão violentos que essa cena não
é mais violenta para mim. O que tinha que chorar já foi. [A cena em que Maysa é encontrada em uma
banheira cheia de sangue após cortar os pulsos] Não vi, mas vi muitas outras. Vivi cenas muito
difíceis. Mas isso não é um problema para mim. Não tenho defeitos de fabricação por causa disso.
Todos os filhos de artistas passam por problemas não tão diferentes dos que eu passei. As grandes
estrelas são complicadas, polêmicas, intensas. Algo tem de especial, não são normais. Acabam
fazendo besteiras e vivendo loucuras.

ABANDONO
Nunca fiz análise. Na minha vida inteira me virei sozinho. Imagina ficar sozinho em um
colégio interno, sem sair nem para as férias, durante dez anos.

165
Não falava português direito e até hoje não sei escrever em português. Mas foram 30 anos de
análise em dois anos que estou nesse projeto da minissérie. Não tenho por que ficar me lamentando.
Eu sou tão realizado. Tenho três filhos lindos, uma mulher linda, ganho muito bem para fazer o que
gosto.
Por que reclamar do meu passado? Trabalhei anos para acabar com os meus monstrinhos.

ACERTO DE CONTAS?

[Sobre cena em que André Matarazzo cobra de Maysa atenção ao filho: "Um dia ele vai
crescer e há de julgar a boa mãe que você foi ou deixou de ser"] É lógico que já a julguei mal pra
caramba. Tinha raiva, era revoltado, pô, como minha mãe me largou em um colégio? Mas, à medida
em que cresci, fui entendendo que Maysa agia assim por milhões de motivos. Entendia por que ela
bebia, por que a vida dela era difícil. E vivi os dois últimos anos da vida dela muito bem, como
grandes amigos. Consegui admirá-la.

HOMENAGEM
Acho que ela ia achar [a minissérie] uma graça, ficar impressionada de andar no Projac e ver
um carrinho com o nome dela. Ela morreu endividadíssima, tadinha, ferrada. Eu me sinto à vontade.
A minissérie é para cima, não uma lavação de roupa, é uma purificação, uma recuperação de nossa
memória e uma homenagem à música brasileira. O país estava esquecendo um patrimônio nacional.

Folha de São Paulo, 04/01/09

(44) Filme mostra 'julgamento' de Nixon

"Frost/Nixon" recria entrevista em que o ex-presidente americano reconhece ter


"decepcionado o povo americano'

Conversa com apresentador de programas populares de TV rendeu ao republicano volumoso


cachê, que incluiu 10% dos lucros de publicidade

DANIEL BERGAMASCO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em "Frost/Nixon", uma das pessoas que ajudam a preparar o apresentador de TV David Frost
para a entrevista com Richard Nixon -a primeira concedida após sua renúncia, três anos antes- diz
166
que a sabatina precisa ser contundente a ponto de se tornar "o julgamento" que o presidente dos
EUA nunca tivera pelas acusações do escândalo Watergate.
Como mostra o filme de Ron Howard (o mesmo diretor de"Mente Brilhante"), que estreia no
Brasil em 20/2, a entrevista célebre de 1977 acabou desempenhando esse papel simbólico, levando
um Nixon (1913-1994) exaltado a confirmar a espionagem no comitê do Partido Democrata com
escutas ilegais. Uma frase entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é ilegal".
A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já havia feito sucesso no
teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o roteiro do longa, que emplacou cinco
indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro, ator dramático para Frank Langella (que vive
Nixon) e trilha.
Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento" para Nixon
levanta outro questionamento nos EUA: estaria levando o ex-presidente à segunda instância, com
possível redenção por mostrar seu lado mais humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a
tendência autodestrutiva?
E isso quando um presidente envolvido em crise econômica e guerra impopular está deixando
a Casa Branca?
O roteirista titubeia. "Se me preocupo que o público tenha compaixão por um homem
autodestrutivo, solitário, perdido? Não sei. Pessoas diferentes terão reações diferentes. Mas o filme
não redime ninguém", diz Morgan, que viu indagações semelhantes no longa sobre a rainha Elizabeth
2ª.
"Eu nunca esperava que pessoas saíssem de "A Rainha" tocadas por ela. Ficamos constrangidos,
para ser honesto, com aquele grande entusiasmo sobre a monarquia. Mas não acho que isso
acontecerá da mesma maneira, não haverá congestionamento de pessoas se filiando ao Partido
Republicano. O filme mostra que, com toda sua humanidade, o legado de Nixon ainda é criminoso",
disse, em mesa redonda em Nova York, com a Folha e mais cinco jornais, em novembro.
O efeito George W. Bush, diz ele, tem mais força na revisão dessa imagem. "A atual administração
está fazendo um grande trabalho de reabilitar Richard Nixon, que está sendo substituído como o
presidente mais odiado de todos os tempos. Agora, ele é apenas o número dois no ranking [risos]."

Cachê
Frost (vivido no filme pelo ator por Michael Sheen), notório jet-setter inglês rodeado de
mulheres, grifes e fama como apresentador de programas populares de TV, pagou pela exclusividade
da entrevista. Garantiu a Nixon US$ 600 mil (US$ 3 mi nos valores de hoje, no cálculo do diretor, ou
R$ 6,7 mi), mais 10% dos lucros de publicidade.
Era um cachê generoso para enfrentar um entrevistador que se supunha fraco e fútil, o que
justifica o choque quando Frost consegue extrair de Nixon frases que ele não parecia ter planejado
dizer, como "decepcionei o povo americano".
O filme especula sobre as motivações do ex-presidente para desabafar, mas, para Howard,
não há na obra nenhuma revisão sobre a figura histórica do republicano, que entrou no Salão Oval da
Casa Branca em 1969, foi reeleito e renunciou em 1974.

167
"A simpatia por um personagem não muda sua imagem histórica, algo que passa por um
entendimento mais completo. Nixon era um visionário formidável, mas destruído por suas emoções
conturbadas. Não parecia confortável sob a própria pele", diz Morgan.

Nixon compositor

A família de Nixon demonstrou-se interessada pelo projeto do filme. Os herdeiros


concederam entrevistas na fase de pesquisa e autorizaram o uso de uma canção composta pelo ex-
presidente ao piano.
Apesar de ter entrevistado seis dezenas de pessoas entre a criação da peça e do filme, em
especial membros das equipes de assessores de Nixon e Frost, que rodearam a entrevista, Peter
Morgan se deu a liberdade de inventar algumas cenas.
Na principal delas, na véspera do último dia de gravações, Nixon telefona bêbado para Frost
e o desafia a ser mais mordaz. Não há relatos de que isso tenha acontecido, mas o roteirista se
baseou nos testemunhos de que Nixon, quando em final de mandato, telefonava embriagado para
pessoas e depois se esquecia de que o fizera, sob efeito da mistura com moderadores de humor.
"Era algo que ele faria. Pensei que, mesmo que isso não tenha acontecido, dramaturgicamente seria
responsável."

Folha de São Paulo, 04/01/09

(45) DVDs retomam Allen pastelão

Comédias do início da carreira mostram diretor anárquico, que vai além da figura do baixinho
desajeitado

HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Woody Allen, 73, costumava lembrar a famosa parábola de que a vida deveria ser ao
contrário. Iniciaríamos velhos e, ganhando saúde, chegaríamos à juventude para, enfim, nossa morte
ser consumada por um orgasmo. E se o mesmo acontecesse com sua obra cinematográfica? Se
Allen partisse de "Vicky Cristina Barcelona" (2008) e terminasse em "O que Há, Tigresa?" (1966)?
Para quem não gosta de um humor mais grotesco, pode parecer um horror. Mas, para quem sabe
que uma cena de pastelão pode nos dizer muito mais do que supõe nossa vã mediocridade, vale
muito a pena.

168
A comédia "O que Há, Tigresa?", primeiro roteiro e direção de Woody Allen, parte do que
poderia ser uma brincadeira adolescente: dublar um filme com bobagens. Na época, o já ousado
comediante transforma o jogo, em que a palavra vence a imagem, numa potente metáfora sobre a
indústria cinematográfica. Quem se arriscou a criticar Hollywood logo na primeira direção?
Joga água fervendo na visão americana da Guerra Fria. Escolhe um filme de espionagem japonês já
risível em si para subverter a trama.
Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser reconhecido, os
olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões verbais são absurdos
xingamentos nacionalistas.
Subversão no sentido literal, a versão sub, que vem de baixo e atinge a bunda dos donos das
verdades institucionalizadas.

Republiqueta de bananas

Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar por Nancy
(Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica republiqueta latino-americana de
San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para acompanhar seus
sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu poder mensurado pelo que pesam
em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de Allen, que insere filmetes paralelos -que
poderiam ser campeões no YouTube-, como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de
estacionamento e o comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as
personagens e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se
compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de
campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.
Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura caricata de
baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos frenéticos apontam o que virá
depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para saber tudo sobre sexo.
Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de seu olhar oblíquo. Comediantes
têm essa queda por inverter o olhar. Para ser expressivo, é necessário dar outra visão, como a do
cego dirigindo um filme. É a necessária coragem da arte. Aos acomodados: que se iludam com "Big
Brothers", "Dança dos Famosos" e outras formas pouco honestas de divertir os outros.
Sempre admirei Woody Allen por nunca ter ido à premiação do Oscar. E também o admirei muito por
ter ido. Não foi para não ceder ao esquema corruptível e vaidoso, mas, depois, foi para fazer um
gesto de afeto com Nova York. Topou ir à cerimônia do Oscar no ano seguinte ao 11 de Setembro.
Poderia até ser ao contrário, ter ido a todas e faltado na última, mas não se é Woody Allen
impunemente.

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HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões e do Circo
Roda Brasil

Folha de São Paulo, 11/01/09

(46) Maysa é a nossa versão de Amy Winehouse

CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande cantora.
Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo, cuja história pessoal
e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. Dirigida por Jayme Monjardim, filho da
cantora, "Maysa -Quando Fala o Coração" mostrou em seus primeiros capítulos um eficiente elenco,
esmero na produção dos cenários e figurinos, além da bela fotografia de Affonso Beato, num padrão
raro na TV brasileira.
A série revelou também a talentosa atriz gaúcha Larissa Maciel, que personifica a cantora de
maneira bem convincente. Ainda que falte um pouco de intensidade em sua interpretação, justamente
nas cenas em que dubla Maysa cantando, seus grandes e expressivos olhos verdes são capazes de
hipnotizar o espectador.
Talvez a opção de Manoel Carlos, autor da série, por uma narrativa não-cronológica possa
incomodar os espectadores acostumados ao formato mais convencional de grande parte das novelas
e minisséries da emissora. Mas esse recurso permite equilibrar, por meio de flashbacks, as
passagens mais pesadas e melodramáticas da história com outras mais descontraídas, incluindo os
esperados números musicais.
Especialmente saborosa é a cena em que Maysa interpreta o samba-canção "Ouça" (de sua
autoria), um de seus maiores sucessos. Com o rosto em primeiro plano, enquadrado pela tela de um
aparelho de TV, a cantora mandou um irônico recado para o ex-marido, o milionário André
Matarazzo. E que outra cantora teria, como a impulsiva Maysa, a coragem de tirar o sapato e atirá-lo
sobre espectadores desrespeitosos, que insistiam em falar alto durante uma de suas apresentações?

Cafajeste
Já as aparições do jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli (bem interpretado pelo ator Mateus
Solano) garantiram os momentos mais leves e divertidos. "Pela bossa nova, eu namoraria até o Trio
Iraquitã", dispara o autor da clássica "Lobo Bobo", no melhor estilo cafajeste, antes de lançar seu
charme sobre a cantora.
Ironicamente, outra cena exibida na última quarta nos remeteu a um fenômeno cultural bem
característico dos dias de hoje: a indústria que se alimenta da vida pessoal dos artistas e
170
celebridades. Flagrada por um paparazzo ao se despir para um banho de cachoeira com um grupo de
amigos, Maysa viu sua intimidade exposta na capa de um tabloide bem semelhante aos atuais.
Quem sabe, se conhecesse o trágico final de Maysa, a cantora inglesa Amy Winehouse, que
parece ser tão intensa e autodestrutiva quanto a diva brasileira da fossa, tivesse um insight sobre o
que a próxima noite de excessos pode lhe reservar.

MAYSA - QUANDO FALA O CORAÇÃO

Quando: ter. e qui., às 23h05; sex., às 23h50, na Rede Globo

Classificação: não indicada a menores de 12 anos

Avaliação: bom

Folha de São Paulo, 11/01/09

(47) Êxito de "Se Eu Fosse Você 2" questiona cinema brasileiro

A liderança de público (5,479 milhões) e de renda (R$ 46,2 milhões) do longa "Se Eu Fosse
Você 2" nas bilheterias brasileiras neste ano revela mais do que a capacidade do país de produzir um
filme-fenômeno.
O êxito extraordinário do título de Daniel Filho expõe também o que falta à indústria nacional
de cinema. Embora com lançamentos crescentes, o Brasil raramente detém mais do que 10% do total
do público.
"Faz falta o gênero 'comédia picaresca', que respondeu pelo maior sucesso do cinema
brasileiro, 'Dona Flor e Seus Dois Maridos' (1976) [público de cerca de 11 milhões] e para o qual
temos vocação e talento", diz Gustavo Dahl, ex-presidente da Agência Nacional do Cinema, atual
gerente do Centro Técnico do Audiovisual.
A prevalência da comédia no gosto popular chama a atenção também do crítico e professor
da USP Ismail Xavier. "Não temos no cinema uma forte tradição do melodrama, ao contrário de
Hollywood e dos cinemas argentino e mexicano", diz ele.
No cinema brasileiro, afirma Xavier, "o eixo dominante caminhou do teatro de revista para a
chanchada ou para filmes como 'Absolutamente Certo' [1957], de Anselmo Duarte, que já dialogava
com a TV".

Cinema e TV

171
A aproximação de "Se Eu Fosse Você 2", estrelado por Glória Pires e Tony Ramos, com o
universo da TV é citada também por Dahl, que assinala a oposição entre o "cinema comercial" e o
"cinema de autor", refletida na disputa por recursos de produção.
"Daniel Filho fazia TV como se fosse cinema e faz cinema como se fosse TV. Tem intimidade
com a comicidade brasileira. Só que comédia é artesanato; artesanato é disciplina, o oposto do
geralmente entendido como cinema autoral", diz.
Segundo o ex-presidente da Ancine, "3/4 do investimento em produção cinematográfica via
leis de renúncia fiscal é direcionado para o cinema autoral, deixando a indústria de entretenimento
brasileiro por conta da TV". "Se Eu Fosse Você 2" custou R$ 6 milhões, reunidos com o uso das leis
de incentivo à cultura via renúncia fiscal.

"Fato isolado"

Para o diretor José Eduardo Belmonte ("Meu Mundo em Perigo", "Se Nada Mais Der Certo"),
cujos filmes são consagrados em festivais, mas dificilmente alcançam o público, o sucesso de "Se Eu
Fosse Você 2", que "não há como não celebrar", é um "fato isolado" no contexto da produção
nacional.
"Nosso cinema comercial vinha mal das pernas. Antes dele, várias comédias populares com
uma estética menos elaborada fracassaram enormemente."
O cineasta Cacá Diegues, no entanto, vê no êxito de "Se Eu Fosse Você 2" um sinal de vigor
da produção de cinema no Brasil. "Não pode existir um cinema nacional consolidado sem uma
cumplicidade com o público, embora seja necessário garantir sempre a manifestação daqueles que
desejam mudar o gosto do público. E Daniel Filho tem o faro do público, sabe como conquistá-lo",
afirma.
Já Inácio Araujo, crítico da Folha acha "doentio que um filme faça 5 milhões de espectadores
e a maioria dos demais filmes faça 5.000, 10 mil ou coisa parecida". Em 2008, entre 91 longas
nacionais lançados, só 16 ultrapassaram 100 mil espectadores. Para Araujo, esse "é um problema
que se deveria começar a levar a sério". Quanto ao longa de Daniel Filho, diz: "Parece-me um filme
que deve existir, um filme divertido. Será muito ruim que se converta em modelo para alguma coisa".

SILVANA ARANTES
Folha de São Paulo, 15/03/09

(48) "Gata em Teto de Zinco Quente" é próximo filme de coleção

Além de ter imortalizado o texto de Tennessee Williams, um dos mais importantes


dramaturgos americanos, a versão cinematográfica de "Gata em Teto de Zinco Quente" --quarto

172
volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, nas bancas a partir do próximo domingo-- promoveu
o único encontro nas telas de Paul Newman e Elizabeth Taylor.
Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e Taylor, 26.
Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme com impressionante
maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o provocativo texto de Tennessee
Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente' tem de mais memorável: o duelo entre
Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que
acompanha o DVD.
O livro traz, ainda, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo Tennessee Williams e
um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre outras informações e curiosidades.
Paul Newman vinha de uma sólida formação teatral. Foi aluno do Actor's Studio --discípulo, portanto,
do famoso método de Lee Strasberg, assim como Marlon Brando e Montgomery Clift-- e estreou na
Broadway em 1953, aos 28 anos, na primeira montagem de "Picnic", de William Inge. Os olhos azuis
e o jeito de galã logo fizeram com que fosse cortejado por Hollywood, onde estreou um ano depois,
com "O Cálice Sagrado".
Mas detestou tanto o trabalho neste filme que se desculpou publicamente, por meio de um
anúncio pago em uma revista. Logo depois, redimiu-se com papéis elogiados em "Marcado pela
Sarjeta" (1956), de Robert Wise, e "O Mercador de Almas", de Martin Ritt, pelo qual levou o prêmio de
melhor interpretação masculina no Festival de Cannes, em 1958.
Liz Taylor começou direto no cinema, ainda criança. Aos 10 anos, contracenou com a famosa
cachorra Lassie em "A Força do Coração", e, aos 19, fez par com Montgomery Clift em "Um Lugar ao
Sol", de George Stevens. Antes de "Gata em Teto...", fez ainda "Ivanhoé", "Assim Caminha a
Humanidade" e "A Árvore da Vida", pelo qual ganhou sua primeira indicação ao Oscar, de atriz
coadjuvante, em 1957.
Juntos na tela, Newman e Taylor promovem um embate que, como explica o texto de Starling
Carlos, será apresentado de um modo essencialmente físico. Os enquadramentos e angulações do
diretor Richard Brooks realçam essa característica do texto. Brick (Newman), entorpecido pelo álcool
e com uma perna engessada devido a um acidente, tem grande dificuldade para se mover. Maggie
(Taylor), ao contrário, inquieta como uma gata, se movimenta sem parar pelo cenário (boa parte do
filme se passa no quarto do casal).
Cada uma das cenas entre os dois lembra um duelo carregado de tensão sexual, diante da
indiferença de Brick ao desejo de Maggie. A partir da segunda metade do filme, esse embate se
estende aos outros integrantes da família, que explode em crise. E "Gata em Teto...", enfim, traz duas
estrelas de primeira grandeza no esplendor de sua juventude.

Folha de São Paulo, 09/04/09

(49) Globo exibe hoje "Se Eu Fosse Você", inédito na TV aberta

173
A edição desta segunda-feira da "Tela Quente" vai exibir o filme "Se Eu Fosse Você", um dos
grandes sucessos do cinema nacional da chamada retomada, que designa o reaquecimento da
produção desde o fim da Embrafilme, no começo dos anos 90.
O longa, estrelado por Tony Ramos e Glória Pires e dirigido por Daniel Filho, conta a história
de um casal em crise que troca de corpos misteriosamente.
Segundo Inácio Araújo, crítico da Folha, o desenvolvimento da trama "não é nada tão inédito, nada
tão profundo, mas tudo correto. A comédia conjugal é o gênero que melhor funciona para Daniel
Filho".
Apesar da crítica não ter sido muito favorável ao filme --considerando-o uma "comediazinha
arroz com feijão" com o objetivo de "faturar"--, "Se Eu Fosse Você" foi um grande sucesso de
bilheteria, atraindo um público de 3,6 milhões de pessoas.
Essa marca coloca o filme de 2006 na quarta posição da lista dos filmes brasileiros mais
vistos desde 1995, ano que marca a retomada do cinema nacional.
Em reportagem publicada pela Folha Online, Daniel Filho falou que o segredo do filme estava na
escolha do casal. "Eu precisava de atores que pudessem ser comediantes e econômicos, pois a
situação em si já tinha graça. Uma passada de mão a mais poderia estragar a cena".
Sequência de sucesso
A continuação desse sucesso do cinema brasileiro bateu o recorde de público da retomada.
A comédia "Se Eu Fosse Você 2" atraiu mais de 5,3 milhões de espectadores para as salas
de cinema. Antes, o posto era de "2 Filhos de Francisco".
O blockbuster nacional também atingiu a vice-liderança no ranking de arrecadação nas
bilheterias, ultrapassando a marca de R$ 49 milhões. A liderança nesse quesito ainda pertece a
"Titanic" (1997).

Folha de São Paulo, 13/04/09

(50) Coleção Folha traz "Pacto Sinistro", de Alfred Hitchcock

Em "Pacto Sinistro", próximo volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema --disponível nas
bancas no domingo--, Alfred Hitchcock mais do que justifica sua fama de "mestre do suspense". Ele
se faz valer de seu reconhecido domínio da linguagem cinematográfica para eletrizar o espectador e,
de quebra, abordar dois de seus assuntos favoritos: o duplo e a transferência de culpa.
As duas questões já estavam amplamente presentes no romance de Patricia Highsmith que deu
origem ao roteiro. A trama é simples: um homem sinistro aborda um total desconhecido e lhe
apresenta o plano de um crime perfeito.
Guy Haynes, jogador de tênis, tem problemas com a ex-mulher, que lhe recusa o divórcio;
Bruno Anthony, autor da ideia, odeia o pai. Se um se livrar do problema do outro, não devem ser
descobertos, pois serão assassinatos sem motivos aparentes.

174
Já nos planos de abertura, Hitchcock apresenta a questão do duplo de forma direta, como
mostra o texto do crítico Inácio Araujo que integra este volume da coleção: "Vemos pernas se
movendo em direções opostas. Um sapato escuro, um sapato claro. Tudo parece colocá-los em
oposição, exceto o fato de que estamos em uma estação ferroviária e ambos caminham na direção
de um trem".
Durante a viagem, ocorre o diálogo que deslancha a história: "Está armada a trama em vários
aspectos, mas especialmente em um. Bruno é capaz de remeter Guy ao mais fundo de seus
sentimentos. O tenista recusa o pacto, mas sabemos que, no fundo, ele deseja a morte da frívola
esposa. E o simples fato de desejar, ainda que de maneira inconsciente, uma morte, nos torna
potencialmente assassinos. Assim racionava Hitchcock. Assim também raciocinava o charmoso
Bruno".
Bruno, mente doentia, interpreta reações ambíguas de Guy como um sinal para levar sua
ideia macabra adiante. Quando este se recusa a realizar sua parte do plano, Bruno arma para
incriminar Guy. É o medo profundo do típico herói hitchcockiano: ser acusado de um crime que jamais
cometeu.

Protagonistas destacados

Apesar da direção precisa de Hitchcock, com sua decupagem cuidadosa, nada funcionaria
tão bem se não fossem os atores principais. Farley Granger, como Guy, e Robert Walker, como
Bruno, são muito diferentes entre si, mas com um ponto em comum: são sedutores e charmosos à
sua maneira.
É verdade que Hitchcock declarou a François Truffaut que gostaria mesmo de ter William
Holden no papel de Guy, pois queria "um homem mais forte", mas Farley Granger, que já havia
trabalhado com o cineasta em "Festim Diabólico", dá conta do recado e está perfeitamente
convincente.
Robert Walker, o vilão Bruno, teve um fim trágico: morreu no ano seguinte ao lançamento do
filme, vítima de uma reação alérgica provocada por um calmante.
O livro que acompanha o DVD traz fotos do filme e ainda um texto que descreve a produção
de "Pacto Sinistro", desde a compra dos direitos do livro até a data de seu lançamento.
Há também biografias de Alfred Hitchcock, Patricia Highsmith e do elenco principal, além de
comentários dos críticos Roger Ebert, André Bazin, Claude Chabrol e Eric Rohmer.

Folha de São Paulo, 16/04/09

(51) "América" de Sergio Leone evoca São Paulo dos anos 40, diz Ugo Georgetti; leia trecho

175
O cineasta brasileiro Ugo Giorgetti, diretor de "Sábado" (1994) e "Boleiros" (1998), entre
outros, aponta o filme "Era Uma vez na América" (1984), do cineasta italiano Sergio Leone (1929-
1989), como um de seus prediletos. É o último filme de Leone, que morreu há 20 anos e ficou
conhecido por reinventar o faroeste nos anos 60 com o "spaghetti-western".
Para Giorgetti, a história dos garotos judaicos que crescem juntos nas ruas de Nova York
reacende as memórias de quem cresceu em bairros paulistanos como a Mooca, o Brás, a Bela Vista,
o Bom Retiro e Santana. "Quem foi criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de
imigração de São Paulo, é capaz de rever nesse filme suas próprias primeiras experiências e a
atmosfera precisa em que elas se deram", diz o cineasta.
O relato do cineasta brasileiro sobre "Era Uma vez na América" está no livro "Ilha Deserta -
Filmes" (Publifolha). A publicação traz textos de Giorgetti e outros seis apaixonados por cinema. Cada
um dos autores aponta e comenta dez filmes que levariam para uma ilha deserta.
Leia abaixo trecho do livro que traz o relato completo de Giorgetti sobre "Era Uma vez na América" e
saiba mais sobre o livro.
Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está
atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela
Nova Ortografia".
*
SERGIO LEONE
Era uma Vez na América
"Todo o material referente à infância contido em The Hoods não cessava de me atrair. A
fascinação era imensa. Não podia deixar de me convencer de que a base do romance de Grey me
inspirava muito."
Sergio Leone, com suas próprias palavras, nos informa o que o motivou a realizar esse filme
complexo: a infância. E é de uma certa infância que o filme trata de maneira soberba. Quem foi
criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de imigração de São Paulo, como a
Mooca, o Brás, a Bela Vista e sobretudo o Bom Retiro e Santana, é capaz de rever nesse filme suas
próprias primeiras experiências e a atmosfera precisa em que elas se deram.
Aquela confusão nas ruas feita pelo movimento de automóveis, bondes, carretas e mesmo
cavalos, aquela gentarada estranha enchendo as calçadas, alguns envergando pesados sobretudos
europeus sob o nosso calor, os ouvidos sendo invadidos por expressões em múltiplas línguas e
múltiplos sotaques, buzinas e pregões, as narinas elas também invadidas pelo cheiro particular vindo
dos porões das casas, do interior dos pequenos negócios e das iguarias que iam de focaccie a
burrecas.
E principalmente os amigos, garotos às vezes com nomes estranhos e quase
impronunciáveis, imediatamente desfigurados e simplificados pela nossa tradicional falta de cerimônia
e esculhambação. Essas corruptelas hilariantes de seus nomes provavelmente acompanham alguns
daqueles garotos até hoje.

176
Henry Miller, num livro cuja atmosfera lembra muito o filme de Leone, escreveu: "Nascer nas
ruas significa vagar por toda a sua vida, ser livre. Significa acidente e incidente, drama e movimento.
Significa, acima de tudo, sonho" (Primavera Negra).
Era uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) é isso: sonho. O sonho das
ruas, através do qual Leone acompanha cinco garotos que crescem e vagam incessantemente por
um dos bairros de imigração como os que eu descrevi acima, só que em Nova York. O fato de que
depois eles se tornam delinquentes perigosos é absolutamente irrelevante.
Esse retrato fiel e poético da imigração só foi conseguido por meio das atuações estupendas
dos atores - quer dizer: dos meninos -, apoiados pela fotografia belíssima de Tonino Delli Colli,
fotógrafo habitual de Leone e Pasolini, e pela maravilhosa trilha sonora de Ennio Morricone,
impecável quando trabalha para grandes cineastas.

"Ilha Deserta - Filmes"


Autores: Ugo Agnaldo Farias, Amir Labaki, Bernardo Carvalho, Inácio Araújo e outros
Editora: Publifolha
Páginas: 224
Quanto: R$ 29,00

Folha de São Paulo, 22/05/09

(52) "Rastros de Ódio" é o próximo volume da Coleção Folha

Praticamente ignorado pela crítica --e pelo Oscar-- na época de seu lançamento, "Rastros de
Ódio" é hoje considerado um dos melhores "westerns" já feitos e a obra-prima do diretor John Ford
(1894-1973).
O filme, que compõe o 11º volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, respeita as
características do gênero, mas, ao mesmo tempo, é capaz de alargar seus limites.
Os "westerns" de John Ford ajudaram a forjar o mito da América: "Uma epopeia localizada no
tempo (século 19, basicamente), consistindo da empreitada de homens brancos tentando aproveitar
economicamente o território ocupado pelos índios", escreve o crítico da Folha Inácio Araujo, no
ensaio que acompanha o DVD neste volume da coleção, disponível a partir de domingo.
"Rastros de Ódio" é uma odisseia de cores fortes, cuja complexidade dá novos rumos ao gênero. O
filme narra a saga de Ethan (John Wayne, em uma de suas melhores atuações no cinema), que
durante sete anos procura sua sobrinha Debbie (Natalie Wood, em um de seus primeiros papéis no
cinema), raptada por índios.
Ethan é movido pelo ressentimento e pelo desejo de vingança. Em uma das cenas mais
fortes do filme, ele atira no rosto de um índio recém-enterrado e justifica sua atitude: sem os olhos,
segundo a própria crença indígena, seu espírito vagará pela eternidade.

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Sem "Rastros de Ódio", não seria possível imaginar, por exemplo, um filme como "Os
Imperdoáveis", o faroeste crepuscular que Clint Eastwood realizou em 1992, cujo protagonista traz
muitos dos traços do personagem de Ethan.

Folha de São Paulo, 28/05/09

(53) DVD de Coleção Folha exibe clássico de Hawks

Os créditos de "Uma Aventura na Martinica", atração da Coleção Folha Clássicos do Cinema


do domingo que vem, impressionam: Humphrey Bogart e Lauren Bacall à frente do elenco; Howard
Hawks na direção; roteiro de William Faulkner e Jules Furthman a partir de um livro de Ernest
Hemingway (originalmente chamado "To Have and Have Not").
Num primeiro momento, Hemingway riu da proposta e a recusou, mas, quando se viu com
dificuldades financeiras, voltou à ideia. Hawks então convenceu a Warner a comprar os direitos de
adaptação.
O romance de Hemingway se passa em Cuba, onde o autor viveu boa parte de sua vida, e
conta a história de um americano contrabandista de rum que vive entre Havana e Key West.
O primeiro roteiro, assinado por Jules Furthman, era bastante fiel ao livro, mas a possibilidade de
surgirem problemas diplomáticos com Cuba, ainda sob a presidência de Fulgêncio Batista, levou o
estúdio encomendar um novo roteiro a William Faulkner, que transferiu a trama para a colônia
francesa da Martinica, no Caribe.
Essa mudança fez com que o filme fosse constantemente comparado a "Casablanca", que a
própria Warner havia produzido dois anos antes, com grande sucesso. Como em "Casablanca", a
trama se passa em uma colônia francesa sob o regime do governo de Vichy (aliado dos nazistas),
com Bogart à frente de um romance com um pano de fundo histórico.
O personagem de Bogart em "Uma Aventura...", porém, guarda diferenças importantes. Harry
é um expatriado americano que trabalha acompanhando turistas ricos em seu barco. Quer se manter
à margem da situação política até que conhece Marie "Slim" (Lauren Bacall), uma jovem sem dinheiro
para voltar para casa.
Para conseguir ajudá-la, aceita a proposta de integrantes da resistência e aluga seu barco
para levar um de seus líderes.
Autor de quase 50 filmes dos mais diversos gêneros, entre eles os clássicos "Scarface"
(1932) e "Onde Começa o Inferno" (1959), Hawks deixou como marca um estilo direto.
"Nunca emprego artifícios, conto minha histórias da forma mais simples, como qualquer um as veria,
colocando a câmera à altura do olhar de um homem", disse certa vez.
"Uma Aventura na Martinica", segundo o crítico da Folha Inácio Araujo, no texto que faz parte
deste volume, é o triunfo deste princípio.

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"Ele dizia, e é fácil concordar, que se trata da coisa mais fácil do mundo. É evidente, porém,
que não basta colocar a câmera à altura do homem para chegar a bons filmes. Seu segredo
consistiu, em grande medida, em perguntar-se qual a estatura de um homem. Isto é: o que faz de um
homem um homem?", destaca o crítico.

Folha de São Paulo, 31/05/09

(54) Filme mostra vida de modelos brasileiras

A moda brasileira já possui um bom número de histórias para serem contadas. No entanto,
até agora foram poucos os livros que buscaram abordá-las, e mais raros ainda foram os filmes. O
novo documentário "Top Models - Um Conto de Fadas Brasileiro" é a primeira tentativa de registrar
em imagens uma parte fascinante dessa história: a das garotas que saíram dos grotões do país para
se Dirigido pelo carioca Richard Luiz, o filme traz depoimentos das principais tops brasileiras, como
Gisele Bundchen, Raquel Zimmermann, Isabeli Fontana, Adriana Lima e Carol Ribeiro. Elas falam do
início da carreira, da ascensão ao panteão fashion e dos seus planos para o futuro, após deixarem
essa profissão que dura o mesmo tempo que a juventude.
O lançamento do documentário acontece no próximo dia 15, durante a SPFW (São Paulo
Fashion Week), numa festa para mil convidados no shopping Iguatemi. No final de julho, o filme será
exibido em versão digital em cinco capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Salvador, Porto Alegre e mais
outra, ainda em negociação). Em dezembro, chega ao DVD. Uma cópia em película será feita para
exibição internacional.
Produzido pela Protótipo Filmes e pela Luminosidade, que organiza a SPFW, "Top Models"
custou cerca de R$ 800 mil. Os primeiros depoimentos e imagens foram feitos durante a produção de
um calendário com 25 modelos, em 2005. Na época, não havia a pretensão de transformar o material
num longa-metragem. "Mas vi que poderia ser algo maior do que uma série de entrevistas. Poderia
ter um ponto de ficção misturado com depoimentos reais", afirma o diretor.
Foi feito, então, um roteiro (por Renata Terra) que, em paralelo às declarações das tops consagradas,
contava a história de uma modelo estreante, Luana, e suas agruras para conseguir um lugar ao sol.
Cenas ficcionais foram acrescidas às verdadeiras, tudo conduzido pela voz de uma narradora,
"interpretada" pela atriz Alice Braga.
O filme levou quatro anos para ser concluído. "Gastamos muito tempo para obter a liberação
de imagens de desfiles e publicidades de grandes grifes estrangeiras", justifica Luiz, que atua desde
2001 como diretor de produtos audiovisuais da SPFW.
A agenda agitada das tops também atrasou o longa. Ele precisou correr atrás delas, com sua
equipe de duas pessoas, pelas principais cidades da moda --Paris, Milão, Nova York e Londres.

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Os depoimentos das modelos são a melhor coisa do filme. Elas falam com simplicidade e franqueza
sobre suas carreiras, revelando como seus "contos de fadas" foram construídos com trabalho,
perseverança e, claro, um pouco de sorte.

ALCINO LEITE NETO


VIVIAN WHITEMAN

Folha de São Paulo, 07/06/09

(55) Malu Mader ataca como matadora

Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro, coldre
nas costas e dá um beijo no bebê. Assim dá início a mais um dia. Mas não da atriz carioca de 43
anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que tem lançamento neste mês em
DVD.
Ela é uma agente da Polícia Federal, casada, mãe recente e enfrentando as dificuldades de
um marido músico e --ela vai descobrir um tempo depois-- drogado ao extremo.
Ela acaba deixando a PF ao atirar no próprio parceiro de trabalho numa ótima sequência de ação em
um treme-treme do centro de São Paulo.
Cinco anos depois, não acha emprego, e o marido, ainda mais dependente de heroína, vende
o filho para comprar drogas e morre de overdose.

Uma organização sigilosa --cujo lema é livrar o país de todo tipo de criminosos-- recruta a
moça para enfrentar ladrões de material radioativo, gangue de motoqueiros e serial killer de gays,
sempre com tiros, mortes, perseguições e culpas.
O seriado ficou datado no que diz respeito ao roteiro e às questões morais, que, hoje,
parecem inocentes, mas não deve nada com relação aos efeitos especiais, um marco na época em
que estreou, em 1997.
Malu conta que aceitou fazer a série "sem nem querer saber o que era", por ter gostado do
resultado de "A Vida como Ela É", também dirigida por Daniel Filho. "Adaptar Nelson Rodrigues era
um biscoito fino para as massas. Depois de topar 'A Justiceira', quando vi que teria de pular de
helicóptero, tremi na base. Mas considero legal ter feito por ter inaugurado o seriado de ação no
Brasil."
Daniel Filho foi para os EUA finalizar os episódios e aprender como montar aquela estrutura
no estilo de programas como "A Dama de Ouro". "Foi um papel carbono dos seriados americanos
muito divertido de fazer", conta ele nos extras.

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Malu diz não ter se inspirado em ninguém. "Nunca tinha assistido a Kate Mahonney. Via 'As
Panteras', mas não acho que tenha nada de uma Pantera na Diana. Ela é muito mais sofrida, como
aliás tudo aqui no Brasil."
A série teve de ser encurtada de 32 episódios para 12 em razão da segunda gravidez de
Malu. Ela trabalhou até os cinco meses de gestação --"com Antonio pulando lá dentro". "Era bem
complicado correr com uma barriga daquele tamanho. E a câmera teve de ir fechando mais no rosto,
porque, além da barriga da gravidez, eu passei a comer muito e fui engordando [risos]. Quero mostrar
o seriado para meu filho mais novo para ele ver o estrago que fez."

Atrás das câmeras

O lançamento do antigo seriado acontece simultaneamente a um projeto no outro extremo.


Na semana passada, ela finalizou o material adicional de "Contratempo", que fez com Mini Kerti e foi
sua estreia na direção. O filme conta a história de jovens da periferia em um projeto social de música.
Os extras do DVD, que sai em setembro, trazem alguns personagens cortados do filme, além de
depoimentos sobre conceitos musicais.
Na TV, é de 2003 o último sucesso de Malu. Foi a certinha Maria Clara, de "Celebridade".
Depois, fez em 2007 a Eva de "Eterna Magia", mas a novela das seis não foi bem no Ibope.
A empolgação com a carreira de diretora ("onde tudo é novo") tem reduzido o espaço para novos
papéis: "Eu falava desse projeto para todo mundo. Acho que isso afastou outros convites". Outro
motivo para deixá-la longe da telinha é um novo filme, desta vez de ficção, sobre o qual não dá
muitos detalhes. "Deve demorar um pouco. Escrever é uma empreitada para macho, mas tenho
coragem."

"A Justiceira - DVD"


Distribuidora: Som Livre; R$ 49,90
Classificação: não indicado a menores de 16 anos

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES


Folha de São Paulo, 07/06/09

(56) Segunda temporada de "True Blood" estreia dia 19 na TV paga

Nem todo o sangue derramado na primeira temporada de "True Blood" foi suficiente para
saciar o apetite por violência na pequena Bon Temps, Louisiana. A segunda fase da série, que estreia
na HBO no dia 19, às 22h, tem ainda mais mortes, sexo e, é claro, bastante sangue. Já no primeiro
episódio, há uma nova onda de crimes, com mais um assassinato brutal e humanos sendo
sequestrados e torturados por vampiros.

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Criado por Alan Ball a partir dos livros de Charlaine Harris, o programa mostra vampiros
"saindo do caixão" e tentando se integrar à sociedade após a descoberta de sangue sintético.
A convivência turbulenta entre humanos e mortos-vivos é sintetizada no romance entre a
protagonista Sookie Stackhouse (Anna Paquin), uma garçonete com poderes telepáticos, e o vampiro
galã Bill Compton (Stephen Moyer). Agora, o casal terá de lidar com a chegada de uma nova
vampira, a adolescente Jessica Hamby, que fica sob a responsabilidade de Bill.
Com forte apelo sexual, enredo de mistérios e um discreto subtexto político, é um dos
sucessos da TV americana. Segundo o "New York Times", a estreia da segunda temporada teve 3,4
milhões de espectadores e foi o programa mais visto na HBO desde o final de "Família Soprano".
Nesta segunda temporada, os conflitos entre vampiros e humanos estão mais acirrados. A
discussão sobre os direitos civis dos mortos-vivos --uma metáfora sobre a delicada questão da
tolerância na sociedade americana- ganha destaque. Jason Stackhouse (Ryan Kwanten), o irmão
inconsequente de Sookie, entra para uma seita antivampiros que tem como objetivo impedir as
criaturas de conquistar os mesmos direitos dos cidadãos comuns.
A galeria de seres e acontecimentos sobrenaturais também ganha novos personagens. Como
se não bastassem os vampiros, os transmorfos e os exorcismos vistos na primeira fase --que sai
agora em DVD--, uma nova personagem ganha espaço: a misteriosa Maryann Forrester (Michele
Forbes), espécie de bruxa que chega bancando a boa samaritana.
Ao lado de filmes como o blockbuster adolescente "Crepúsculo" e, mais recentemente, o
sueco "Let the Right One In", "True Blood" é responsável por colocar os vampiros, personagens
centenários da cultura pop, na moda mais uma vez. Gélidos, perigosos e sexies, eles ainda renderão
muitos frutos para Hollywood.

TRUE BLOOD - 1ª TEMPORADA


Distribuidora: Warner; R$ 120
Classificação: 18 anos

LETICIA DE CASTRO
Folha de São Paulo, 11/07/09

(57) Tom impessoal enfraquece drama "real"

Os "fatos reais" podem ser uma armadilha fatal. Eles são a base de "O Contador de
Histórias". E a história, no caso, é de Roberto Carlos Ramos, um menino que a mãe, por falta de
condições e acreditando na propaganda da TV, entrega à Febem mineira para ser criado pelo Estado.
Como a propaganda não coincide com a vida real, Roberto Carlos aos 13 anos já é considerado um
caso irrecuperável. Isso até que entra em cena a pedagoga Margherit (Maria de Medeiros), para
quem não existe alguém irrecuperável nessa idade. A questão proposta é: a substituição de um
método impessoal pela aproximação caso a caso pode salvar um jovem desencaminhado?
Não é, sejamos francos, questão que se apresente, pois, ainda que seja, o filme nos lança

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num beco sem saída. A Febem, onde o menino foi deixado, era uma instituição monstruosa, tanto
que foi fechada e substituída por um sistema de pequenas unidades (portanto, teoricamente, de
atendimento mais próximo das crianças e adolescentes envolvidos). Desse ponto de vista, a questão
inexiste.
Se a ideia de Margherit (isto é, do filme) é demonstrar que as pessoas não são más por
natureza, mas agem em grande medida em vista do ambiente social que frequentam, também aí
estamos chovendo no molhado: as mentalidades liberais acreditam nisso há um século; as
conservadoras jamais acreditarão, haja o que houver.
Em outras palavras, o que sobra de real falta de verdade ao filme de Luiz Villaça. E nisso a
forma não desmente o fundo. A impessoalidade da empreitada já se nota pelo número de roteiristas
(quatro) -compreende-se que a Febem seja vista ora como um inferno, ora como um promissor
purgatório.
Quanto à mise-en-scène, além de uma direção de atores precária (Maria de Medeiros está
bem entre atores mal conduzidos), ela consegue perder o momento mais promissor da trama: quando
o jovem e ameaçador Cabelinho invade a casa de Margherit. Por um instante parece que teremos
uma sequência hitchcockiana. Não. Ela é amorfa como, mais ou menos, todo o conjunto.

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Direção: Luiz Villaça


Produção: Brasil, 2009
Quando: estreia na sexta-feira
Classificação: não informada
Avaliação: ruim

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 02/08/09

(58) Pialat evita melodrama e cria elos entre pintura e cinema em "Van Gogh"

A eterna relação de fascínio entre o cinema e a pintura flutua desde a inspiração até o
vampirismo daquele frente a esta. Quando se trata de biografar artistas então, os filmes parecem
antes de tudo querer projetar ideais raros, quando não inexistentes. Dos "heróis irresistíveis" da arte,
o nome de Vincent van Gogh tornou-se um lugar-comum, com sua mistura de ícone romântico,
reconhecimento tardio e mito rebelde.
O suicídio que encerrou sua trajetória curta e fulgurante pôs fim com chave de ouro a uma
história feita sob medida para o cinema e sua queda pelo melodrama.

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Quando chegou às mãos do diretor francês Maurice Pialat em 1991, o mito já havia recebido revisões
assinadas por grandes como Resnais, Minnelli e Altman, além de um curta feito pelo próprio Pialat
nos anos 60. Conhecido mais por seu temperamento irascível do que pelo rigor e pela forma
antiespetacular de seu trabalho, Pialat aborda o artista enquanto mito pela contramão. Inadequação,
incompreensão e insubordinação às regras não constituem valores em si, demonstra o diretor a partir
de seu modelo, dando a entender que o raciocínio aplica-se sem mudanças a seu trajeto de autor.
Logo, o "Van Gogh" de Pialat será tão idiossincrático quanto o ultraromântico de Minnelli e o
despojado de Altman. No entanto, em vez de se perder em confissões, Pialat recupera explicitamente
em "Van Gogh" sua própria experiência como pintor, prática que exerceu antes de se converter em
cineasta.

Sem ilusionismos

Com o álibi de filme sobre artista, Pialat executa um dos mais profundos trabalhos pictóricos
já feitos no cinema, sem permitir confundir pintura com empetecamento da imagem ou com a
reprodução impressionante, mas sem sentido, da obra de Van Gogh realizada por Kurosawa em
"Sonhos".
O diretor francês nos faz ver que entre cinema e pintura a similitude não se esgota na
superfície da tela, nos acordos de luz e cor que muitas vezes nos levam a perder nosso olhar no
ilusionismo da beleza.
É na concepção de quadro, espaço delimitado por quatro linhas que se abrem ou se fecham
que tanto pintor como cineasta impõem uma visão (no sentido de ponto de vista) ao espectador.
O artista, então, passa a ser aquele que oferece uma experiência sublime, que nos arranca do torpor,
mesmo quando retrata um tema ou uma vivência identificada como banal (exemplar, aqui, no modo
como Van Gogh é um homem sem qualidades). Os outros não passam de captadores de imagens.

VAN GOGH

Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 44,90
Classificação: 16 anos
Avaliação: ótimo

CÁSSIO STARLING CARLOS


Folha de São Paulo, 09/08/09

(59) Oliver Stone filma biografia lisérgica de Jim Morrison

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É um trabalho árduo esse de fazer um filme de rock. Se o diretor já começa ganhando, pelo
fato de arrebanhar muitos espectadores que já são fãs da banda ou do gênero retratado, por outro
lado esse mesmos fãs são cricris o suficiente para exigir que cada detalhe da vida do astro seja
reproduzido sem maiores liberdades.
Com "The Doors", de 1991, Oliver Stone conseguiu o raro feito de unir o útil ao agradável.
O filme é informativo, tanto em relação à banda como em relação ao clima dos Estados Unidos e,
mais especificamente, de Los Angeles no fim dos anos 60.
E é radicalmente autoral também, abusando de cenas de viagens lisérgicas, bêbadas ou
simplesmente alucinadas. Stone apresenta sua visão do mito Jim Morrison e consegue agradar até
os fãs do "rei lagarto".
O The Doors lançou seis álbuns de estúdio entre 1967 e 1971 e, a despeito de hits como
"Light My Fire", "People Are Strange", "Hello, I Love You", "Touch Me", "Roadhouse Blues" e "Riders
on the Storm", sua grande força estava no carisma do cantor e poeta Jim Morrison.
O fato de ele ter morrido em julho de 1971, aos 27 anos (em Paris, em circunstâncias pouco
esclarecidas), fez o mito em torno dele aumentar exponencialmente, até que, 20 anos depois, deu
neste filme.
E, quase mais 20 anos depois, chegamos a este DVD duplo com um disco só de bons extras,
que incluem 14 cenas deletadas, documentários e boas entrevistas com os atores e a equipe.
O que mais chama a atenção nas entrevistas é que elas não se limitam a louvar o filme e o diretor.
Oliver Stone, por exemplo, reclama de Meg Ryan (no papel de Pamela Courson) ter escondido o seio
com a mão numa cena de sexo com Val Kilmer (Morrison): "Ela não entendeu nada dos anos 60 e
estragou minha cena".
Em outro momento, o ator Frank Whaley (que interpreta o guitarrista Robby Krieger) tira um
sarro das extravagâncias de Val Kilmer, revelando que o astro não aceitava ser chamado pelo próprio
nome, apenas como "Jim Morrison", durante as filmagens do longa.

THE DOORS
Direção: Oliver Stone
Lançamento: Sony Pictures (R$ 39,90; DVD duplo; classificação: 18 anos)
Avaliação: ótimo

IVAN FINOTTI
Folha de São Paulo, 16/08/09

(60) Longa propõe experiência física da guerra

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Enquanto a Guerra do Vietnã demorou, mas acabou recebendo um tratamento
cinematográfico com peso equivalente ao do trauma provocado por ela na sociedade norte-
americana, o impacto do envolvimento do país na atual Guerra do Iraque vem sendo recuperado pela
ficção audiovisual com intensidade e quase em tempo real.
A vivência dos soldados foi reconstituída com crueza nas séries de TV "Over There" e
"Generation Kill", enquanto o modo de captar e reproduzir suas imagens serviram para o cineasta
Brian De Palma questionar a veracidade do que acreditamos só de ver no magistral "Redacted".
Agora, "Guerra ao Terror", dirigido pela sempre interessante Kathryn Bigelow, sai diretamente em
DVD no Brasil, depois de receber prêmios no Festival de Veneza em 2008 e a boa acolhida geral da
imprensa. norte-americana.
Infelizmente, não passou aqui em salas, pois só mesmo a exibição em tela de cinema deve
ser mais impactante que a visão do filme em TV.
Em vez de drama humanista, libelo pacifista ou manifesto politizado, o que o filme propõe é
uma experiência física da guerra. Para isso, seu fiapo de história resume-se a acompanhar um grupo
especialista em localizar e desativar IEDs, sigla para as bombas improvisadas que rotineiramente
destroçam reuniões de iraquianos e, de vez em quando, despacham soldados americanos mais
rápido para casa.
Enquanto aguardam ansiosos a chegada da folga, quando poderão retornar aos Estados
Unidos e rever suas famílias, os integrantes do grupo Delta vivem sob o risco contínuo de explosões,
ataques de franco-atiradores e formas ainda mais cruéis inventadas pela resistência iraquiana.
Ao se inserir no grupo, o filme nos leva a experimentar um conflito marcado menos por combates
abertos, frontais e espetaculares e mais pela recorrência de subterfúgios característicos de guerrilha.

Câmera aflita

Grudada em três soldados, a câmera aflita de Bigelow reconstitui uma percepção dessa
experiência que o registro jornalístico-documental nunca alcança e que os games, em sua dimensão
de projeção virtual, já ultrapassaram.
Além desse triunfo no âmbito do realismo, a concentração quase somente em cenas de ação
faz de "Guerra ao Terror" um filme cuja ressonância política vai além da obtida pelos documentários
que nos mostraram seus horrores.
De um lado, porque carrega a cada passo militar o peso intervencionista, invasivo e de pouca
receptividade da presença norte-americana.
Mas, sobretudo, porque basta a inserção de uma pausa nesse universo concentrado, quando
o filme mostra a indecisão de um soldado de folga diante de uma prateleira de cereais num mercado,
para sentirmos uma violência cujo impacto não se mede em explosões.

GUERRA AO TERROR
Direção: Kathryn Bigelow

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Lançamento: Imagem Filmes (R$ 35, em média)
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo

CÁSSIO STARLING CARLOS


Folha de São Paulo, 16/08/09

(61) Thriller de Joseph Losey desafia o espectador ao usar clima de pesadelo

Não dá para acreditar em nada de "A Sombra da Forca". Um pai alcoólatra, o escritor David
Graham (Michael Redgrave), que chega em Londres, vindo do Canadá, 24 horas antes da execução
do filho. A estranha recepção que lhe dão os Stanford (rica família do melhor amigo do rapaz). O
advogado ambíguo, que nunca se sabe se está defendendo ou atacando o seu constituinte. A busca
desesperada do pai por evidências para livrar o filho da pena capital.
Não dá para acreditar em nada, digo, até percebermos que nada aqui aspira à realidade. A
interpretação dos atores é crispada (e por vezes se tem a impressão de que Joseph Losey escolheu
os piores ou menos adequados atores da Inglaterra). As peripécias policiais baseiam-se menos em
provas e achados espetaculares do que no poder de convicção dos diversos envolvidos. Mesmo a luz
de Freddie Francis está mais próxima de um filme de terror do que de um thriller policial.
Se não aspira à realidade, "A Sombra da Forca" propõe-se, então, como um pesadelo e é lá
que vive e faz sentido. E só assim pode ser compreendido, pois Losey dá-se ao luxo de trabalhar
uma intriga que não fecha, não esgota todos os dados que lança mas deixa-os um tanto soltos, como
fiapos de memória que cabe ao espectador, em grande parte, recolher.
Assim, esse estranho filme nos propõe uma espécie de "whodunit" (quem é o culpado?), pois
sabemos que o verdadeiro culpado está entre as pessoas em cena, mas não é bem isso. Propõe uma
espécie de mergulho na psicologia dos personagens. Mas também não é bem isso. Há momentos em
que tudo parece nos escapar, exceto a angústia de David, de quem também as coisas escapam à
medida em que se aproxima o momento da execução.
Nos fazer participar intensamente desse pesadelo em que David Graham joga toda sua vida
não é o menor dos méritos de "A Sombra da Forca". É uma pena: apesar da boa qualidade das
imagens, o DVD chega praticamente sem nenhum extra.

A SOMBRA DA FORCA

Diretor: Joseph Losey


Lançamento: Lume
Quanto: R$ 49,90
Avaliação: bom

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INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 23/08/09

(62) Filmes são Kieslowski em formação

"Cinemaníaco" e "Acaso", lançados agora em DVD, estão entre os primeiros longas de ficção
realizados pelo polonês.

Krzysztof Kieslowski (1941-96) começou fazendo documentários. Esse aprendizado deu-lhe a


segurança necessária para que, ao encarar a ficção, seu cinema estivesse colado ao real e, ao
mesmo tempo, o transcendesse esteticamente.
Dois dos primeiros longas de ficção do diretor polonês chegam ao DVD e atestam o seu
rápido amadurecimento como autor de cinema.
"Cinemaníaco" (1979) oscila entre a sátira política e o melodrama pessoal ao narrar a história
de um funcionário de empresa estatal (Jerzy Stuhr) que compra uma câmera de 8mm para filmar o
nascimento do filho e acaba se tornando, primeiro, o cineasta oficial da firma e, depois, um incômodo
documentarista da vida cotidiana de sua cidade.
Já estão presentes ali algumas marcas do futuro criador do "Decálogo": o foco em
personagens em situações de impasse, o pendor para as paisagens desoladas, o uso criterioso da
câmera na mão.
Mas é em "Acaso", feito em 1981 e interditado pela censura até 1987, que o estilo de
Kieslowski começa de fato a florescer. Trata-se da narrativa complexa de três caminhos alternativos
para a vida de um estudante de medicina, Witek (Boguslaw Linda).
O "nó de tempo", a encruzilhada de destinos possíveis, é a chegada esbaforida do protagonista à
plataforma de uma estação. Numa das alternativas, ele alcança o trem para Varsóvia e se torna um
agente do partido oficial do regime comunista.
Nas outras duas, Witek perde o trem e embarca em vidas diferentes: ativista dissidente ou
médico apolítico.
Não há aqui o esquematismo que se esperaria do mesmo tema nas mãos de um Ettore
Scola. Os tempos alternativos não são compartimentos estanques, e os papéis assumidos por Witek
não estão assim tão distantes um do outro.
Não é só no enredo engenhoso que se forja a densidade desse drama sobre os dilemas da
ética, do amor e da fé (política, religiosa), mas sobretudo no uso das cores (o violeta, o amarelo) na
composição de um espaço dramático profundo e pulsante, cheio de desvãos onde os seres podem se
encontrar ou se perder. O "expressionismo cromático" do "Decálogo" e da "Trilogia das Cores" tem
talvez aqui a sua bela gênese.

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ACASO/ CINEMANÍACO

Diretor: Krzysztof Kieslowski


Lançamento: VideoFilmes
Quanto: R$ 46 (cada um, em média)
Avaliação: ótimo/ bom

JOSÉ GERALDO COUTO


Folha de São Paulo, 06/09/09

(63) Como no livro original, filme "Lobo da Estepe" é para raros

Obra de 1974 virou cult ao levar para o cinema o romance de Herman Hesse

Renegado, esnobado, esquecido, cultuado e, finalmente, lançado em DVD. Basicamente é


esse o caminho tortuoso do filme "O Lobo da Estepe", de 1974, dirigido e escrito pelo americano Fred
Haines. Trata-se de uma adaptação livre (e como poderia ser diferente?) do romance de mesmo
nome do germano-suíço Herman Hesse (1877-1962).
Nobel de literatura em 1946, Hesse havia publicado "O Lobo da Estepe" em 1927. É,
provavelmente, seu principal e mais controverso romance. A história trata de Harry Haller, um homem
com 47 anos que não consegue se adaptar à vida na sociedade. Sente-se aprisionado pelas
convenções morais, assim com seu eu interior, um lobo selvagem, está aprisionado dentro da casca
humana.
Resolve, assim, suicidar-se no dia em que completar 50 anos.
Em suas andanças pela cidade, porém, depara-se com uma casa noturna onírica chamada Teatro
Mágico, que só admite a entrada de "loucos e raros", pois o preço do ingresso é a sua mente. Ali,
Haller conhece Hermine e Pablo, que o conduzirão numa balada de sexo sem amarras e drogas sem
culpa, direto ao inconsciente.
Por suas características rebeldes e transgressoras, o romance foi redescoberto pela
contracultura nos anos 60 (chegou a dar o nome à banda de rock norte-americana Steppenwolf, de
"Born to Be Wild").

O filme

Lançado em 1974, após sete anos de produção tempestuosa, "O Lobo da Estepe" traz o
grande ator sueco Max von Sydow no papel de Harry Haller. Foi a única obra dirigido pelo californiano
Fred Haines.

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O filme, assim como o Teatro Mágico original, é para raros.
Apesar de trazer uma narração em off do protagonista, o que ajuda em muitos momentos, não há
uma linearidade fácil.
O que há é uma explosão de ideias e técnicas: uma parte da história se passa em desenhos;
outro momento usa animação de fotos; imagens se congelam durante a ação; céus verdes e árvores
cor de laranja; efeitos especiais pululam por todo canto. Parte das cenas são gravadas em videoteipe.
Usam-se muitos efeitos especiais de vídeo, como o de cromaqui -no qual o ator contracena num
fundo azul, no qual mais tarde é aplicado outro fundo.
Mas essas cenas se tornam um tanto simplórias quando vistas hoje. Sumiços e aparições de
surpresa, muitas acompanhados por ruídos ridículos fazem lembrar episódios televisivos de "Os
Trapalhões". É preciso, portanto, dar algum desconto ao diretor e à década à qual o filme pertence.
Tudo contribui para dar uma cara lisérgica, surreal, claustrofóbica, estranha, ao mesmo tempo em
que é underground, caseira, de fundo de quintal.

As filmagens

Antes do diretor, "O Lobo da Estepe" foi arquitetado pelo produtor Melvin Fishman no final
dos anos 60. Apaixonado pelo livro e por Carl Jung (de quem Hesse era discípulo), Fishman queria "o
primeiro filme jungiano", mergulhado na psicanálise, nos símbolos e nas imagens de sonhos como
expressão do inconsciente.
O primeiro diretor convidado foi Michelangelo Antonioni, que pensou em Walter Matthau e
Jack Lemmon para o papel principal, antes de declarar a obra infilmável.
A MGM sondou atores como Marlon Brando e James Coburn e escritores como Fred Haines, cujo
roteiro para "Ulisses", de James Joyce, havia sido indicado ao Oscar em 1968.
Querendo escapar das garras dos estúdios, Fishman carregou uma equipe de produção até a
Basiléia, cidade suíça onde "O Lobo da Estepe" havia sido escrito e, curiosamente, onde foi
descoberto o LSD.
Lá, o obcecado produtor passava horas filmando o escritor Fred Haines lendo sua versão do
roteiro embaixo de uma lâmpada de 150 watts. Até Timothy Leary, o guru das drogas, apareceu por
lá e foi testado para o papel de Harry Haller. Após sete anos de tentativas, finalmente, Sydow,
Dominique Sanda e Pierre Clement ("A Bela da Tarde", de 1967) começaram a filmar, com Haines na
cadeira de diretor.
Terminadas as filmagens, um financiador assumiu o controle da obra, o que acarretou em um
ataque cardíaco para Fishman.
Foram feitas 80 cópias com cores erradas (o olho azul de Dominique Sana ficou marrom) e o
filme foi um fracasso. Dois anos depois, ainda lutando para ter controle sobre a obra, Fishman teve
outra parada cardíaca. Morreu sozinho e triste, como o lobo da estepe planejara.

O LOBO DA ESTEPE

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Direção: Fred Haines
Lançamento: Platina Filmes (R$ 20, em média); 18 anos
Avaliação: bom

IVAN FINOTTI
Folha de São Paulo, 13/09/09

(64) "A Vila" é momento alto na carreira de Shyamalan

Passa, é claro, "Psicose" (TC Cult, 22h, 12 anos), programado para hoje para ser o
encerramento e ponto alto da série dedicada a Hitchcock. Não é injusto. Mas é esse pouco amado M.
Night Shyamalan que merece, por hoje, um tanto de atenção, ao menos de quem já conhece
"Psicose" de cor.
O indiano, com efeito, misturava algo oriental a um suspense bem ocidental em "O Sexto
Sentido". Aos poucos, a delicadeza do olhar e do traço foram se impondo em sua obra, da qual "A
Vila" (TNT, 19h40, 12 anos) é um momento alto.
Ali uma comunidade recusa o mundo tal como se apresenta e pretende reconstruí-lo curado
dos males -e do pior de todos: o tempo. Mas o tempo se infiltra nesse paraíso artificial e o corrompe.
Ou, antes, o purifica, porque esse mundo está montado sobre a mentira, no caso, e para falar em
termos de cinema: cenografia e figurinos.

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 20/09/09

(65) Em clima de ressaca, filme de Mike Leigh explora uma Londres sombria

Chama a atenção que "Naked" (1993), de Mike Leigh, finalmente veja a luz do dia no Brasil
meses após o lançamento nos cinemas de "Simplesmente Feliz" (2008). "Naked" sai agora em DVD
sem nunca ter sido distribuído nas salas. É a crônica mais sombria de Leigh, contrastando com o
último, sua obra mais risonha.
Premiado no Festival de Cannes com direção e ator (David Thewlis) dois anos antes da
Palma de Ouro para Leigh por "Segredos e Mentiras" (1996), o tom de "Naked" lembra o de uma
ressaca.
E, como ocorre em ressacas, o mal-estar é forte, mas a sensação de estar vivo também. O

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filme segue algo de bêbado e nublado, com espasmos de sobriedade tocante, um pouco como a
própria Londres.
O eixo da trama é Johnny (David Thewlis). Ele faz parte de uma galeria peculiar de ingleses,
como o Alex de "Laranja Mecânica" (1971), o skinhead Trevor de "Made in Britain" (1984), ou Francie
Brady, o proto-punk mirim de "Nó na Garganta" (1997). São agentes do caos com sensibilidades
insuspeitas.

Charme pós-punk

Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de Deus e ainda
jovem o bastante para odiar isso.
Nos seus piores momentos, tem a verve de um poeta marginal afiado. É um chato com
alguma razão que explica sua má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes.
Chega na casa da ex-namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea
Sophie (Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny leva o
trio a um colapso imediato.
Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo lembrando "Depois
de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original. Se na noite nova-iorquina de
Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de Leigh Johnny é o motor de tensões
constantes.
Essa dureza tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também percebido em "Kes"
(1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema britânico lançado há pouco pela mesma
distribuidora Lume Filmes.
Como Loach, Mike Leigh destaca o som do falar na Grã-Bretanha com ouvidos abertos. O trio
Johnny, Louise e Sophie, o casal de escoceses na rua e o outro personagem masculino em cena,
Jeremy (Greg Cruttwell), assumem visões de mundo e de classes sociais em sonoridades peculiares
da paisagem britânica.

NAKED
Distribuição: Lume Filmes
Quanto: R$ 39,90, em média
Classificação: 18 anos
Avaliação: ótimo

KLEBER MENDONÇA FILHO


Folha de São Paulo, 27/09/09

(66) Drama de Douglas Sirk chega aos 50 anos com frescor intacto

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Último trabalho do diretor em grande estúdio gira em torno de jogo de aparências

Nada parece verdadeiro em "Imitação da Vida". Sarah Jane é negra, embora seja branca;
Lora é uma atriz, embora só apareça em fotos publicitárias; Steve é um fotógrafo, embora renuncie
com desenvoltura à arte em troca de um bom emprego; o sr. Loomis é um agente, mas mais parece
um cáften, oferecendo suas atrizes a produtores de teatro e cinema.
O que é verdadeiro no filme com que Douglas Sirk encerrou a carreira (em estúdios), então?
Annie, talvez. Annie, a negra que é negra, a empregada dedicada e servil.
Neste filme que chega aos 50 anos em plena juventude, narra-se em princípio a história de duas
mães. A branca Lora e a negra Annie cuidam de suas filhas, Susie e Sarah Jane, como princesinhas.
Na medida do possível. Existe uma brancura ostensiva em Lora. Ela se comporta como se não
houvesse discriminação racial. Impossível saber até que ponto isso é hipocrisia.
Em dado momento, ela pedirá a Sarah Jane que execute tarefas de criada, embora saiba que ela não
é criada. Ela o faz com um tipo de inocência característico dos brancos que, por tratarem os negros
em pé de igualdade, como que lhes exigem uma retribuição.
No mais, ela tenta cobrir a filha de mimos. Quer dar a ela tudo o que não teve. Ora, ocorre
que sua carreira de atriz de repente deslancha. Então, Susie irá para os melhores colégios, mas não
terá mais a companhia da mãe. Para desenvolver sua carreira, ela tem de renunciar ao amor de
Steve.
É bem verdade que Steve, num primeiro momento namorado todo cheio de dedicação, logo
faz a exigência clássica do machismo mais machista: que a mulher abandone a carreira e se deixe
cuidar por ele. Importa o seguinte: quanto mais Lora progride em sua carreira, mais a cor branca se
mostra predominante nas paredes e na decoração de sua casa.

Alienação

Ao lado disso, existe Annie e sua obsessão pela verdade. Obsessão que torna sua presença
insuportável para Sarah Jane. A filha sabe em que mundo vive e da necessidade de escapar disso.
Ainda não existem os direitos civis. A única maneira é se passar por branca, o que é possível para
ela, desde que negue sua origem e seja um travesti do branco a que ela tanto aspira para não ser
desprezada.
Ao contrário da primeira versão do filme (1934), em que a negra se tornava o sustentáculo da
casa graças às suas fantásticas panquecas, aqui Douglas Sirk sabiamente a mantém sempre numa
posição subalterna, compatível com sua natureza servil. Ela deve ser a única pessoa não deslocada
nessa história, o que não significa que não seja, como todos os demais, alienada. Todos pensam que
são algo que não são: Lora, Susie, Steve, Sarah Jane.
A única que sabe quem é, que não passa por deslocamentos, que não vive as mentiras e a
corrosão dos desejos é Annie. Não porque seja consciente. Ela é consciente apenas de sua
inferioridade (e adaptada a ela).

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Se todos os outros são, de certa forma, alienados, o fato de ser centrada não favorece a
empregada. Apenas significa que interiorizou com sucesso a condição de escrava. O tempo torna
cada vez mais evidente a dimensão desta obra-prima, que sai num DVD sem extras, mas com
formato correto e boas cores.

IMITAÇÃO DA VIDA

Distribuição: Classicline
Quanto: R$ 34,80 (12 anos)
Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 11/10/09

(67) Obra mítica de Coppola é melhor na versão "curta"

Nem sempre o "director's cut", a remontagem feita pelo próprio cineasta de seus filmes,
melhora o produto original. Um dos maiores exemplos é "Apocalypse Now", filme emblemático e
brilhante que fechou a psicodélica década de 70 nos EUA.
Por isso, é uma ótima notícia que seja relançado em sua versão original, de 1979, esse título
que Francis Ford Coppola havia "renovado" como "Apocalypse Now Redux" em 2001, afastando o
espectador de uma obra original e pulsante.
Para lembrar: a novela "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, uma metáfora para o
fracasso da civilização europeia, transformada em barbárie na África primeva, já era um título
perseguido nos EUA desde os anos 30. Seria o primeiro projeto revolucionário de Orson Welles em
Hollywood -até ser cancelado e virar um ícone.
Essa obra mítica, que impunha desafios para a adaptação ao padrão vigente por sua
estrutura narrativa, foi resgatado por outro "enfant terrible" do cinema, Coppola, que tentava nos anos
70 reconstruir a Hollywood dos grandes estúdios -mas em versão "autoral".
Coube a John Milius a tarefa de verter a história do empreendimento colonial em xeque para a
convulsionada Guerra do Vietnã, que corroía os valores da sociedade americana. As filmagens foram
um desastre. De um tufão que destruiu o set nas Filipinas, às idiossincrasias geniais e
megalomaníacas de Coppola, passando por um ataque cardíaco do ator principal (Martin Sheen) no
meio das filmagens e orçamentos estourados de forma espetacular, uma série catastrófica de
eventos marcou definitivamente o filme.
Mas esse sentido de urgência, as imperfeições, o sentido quixotesco e romântico da aventura
também fizeram a beleza da obra, que foi amaldiçoada nos EUA antes de ser apresentada (ainda

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incompleta) de forma triunfal em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro. É todo esse patrimônio que
foi colocado a perder na versão "remasterizada". Os 49 minutos adicionais incluíram digressões
supérfluas e trouxeram justificativas desnecessárias para personagens que emergiam como figuras
bíblicas e mitológicas em meio à névoa.
O mistério, a inquietação, a loucura da guerra e a aventura lisérgica foram substituídos pela
contemplação enfadonha. Músicas adicionais "inéditas" de Carmine Coppola, pai do diretor, não
faziam falta no original. Além disso, a temerária remarcação de luz "plastificou" a fotografia de Vittorio
Storaro. No cinema, assim como na música, muitas vezes os pequenos ruídos da versão "vinil"
reproduzem uma obra mais real.

APOCALYPSE NOW

Distribuidora: Universal
Quanto: R$ 19,90 (16 anos)
Avaliação: ótimo

MARCOS STRECKER
Folha de São Paulo, 11/10/09

(68) Elenco de "Seinfeld" está de volta (mas não muito)

Nos EUA, série "Curb Your Enthusiasm" inclui trupe do programa extinto em 1998

Nos 4 episódios exibidos, atores apareceram em apenas um; na trama, eles interpretam a si
mesmos e pensam em fazer reunião

Desde o dia 20 de setembro, a tribo formada pelos órfãos de "Seinfeld" nos EUA se reúne
nos domingos à noite para assistir ao que mais perto se vai chegar de uma reunião daquela que é
considerada por críticos a melhor série cômica já exibida pela TV americana.

Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que seriam os
bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um episódio da série, que foi
de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de criatividade de um formato -a sitcom, com
três câmeras e riso da plateia- inventado nos anos 50 e que dura até hoje.
Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não será de verdade. É o que a tribo de
espectadores vem descobrindo a cada semana. Por exemplo, nos quatro episódios exibidos até
agora, os quatro atores de "Seinfeld" só aparecem em um -nos outros, são só mencionados,
aparecem em pequenas cenas ou nem isso.
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Coautor de "Seinfeld", David é o John Lennon para o Paul McCartney de Jerry Seinfeld.
Desde o fim da série, ele é o que manteve uma carreira mais coerentemente fértil. Seu "Curb", em
que interpreta a si mesmo em situações plausíveis mas exageradas para efeitos cômicos, entrou na
sétima temporada com sucesso.
No plot armado por ele para fazer "a reunião que não é reunião", cria um motivo torpe para
chamar os ex-colegas a atuar com ele: quer dar um papel secundário à ex-mulher, Cheryl (Cheryl
Hines), e assim reconquistá-la. Para sua surpresa, Seinfeld e o elenco aceitam.
Assim, Seinfeld, Julia Louis-Dreyfus, Michael Richards e Jason Alexander interpretam a si mesmos
interpretando a si mesmos enquanto falam com Larry David sobre a volta para mais um episódio -
tudo dentro de "Curb". Confuso? É para ser assim, disse David.
Nos convites individuais, ele mente a cada um que os outros já aceitaram. Seinfeld desconfia
dos verdadeiros motivos do amigo que ele conhece muito bem. Alexander acha bom uma volta para
redimir o péssimo último capítulo da série -uma crítica verdadeira que se faz ao encerramento do
programa.
Richards não presta atenção, atoleimado que está com os cartazes de mulheres nuas do
restaurante a que David o levou, e acaba dizendo sim. E cabe a David vender a volta à NBC. No meio
do caminho, ele briga com o executivo da emissora e corre o risco de ficar sem reunião -e sem
mulher.
É nesse momento em que os fãs estamos pendurados. O episódio em que tudo acontece foi
o terceiro, exibido em 3 de outubro. Desde então, mais um foi ao ar, domingo passado, e nada de
"Seinfeld". Hoje é dia de "Curb" nos EUA. E a série vai caminhando para o final...

SÉRGIO DÁVILA
Folha de São Paulo, 18/11/09

(69) Comédia dramática faz de Cantona um guru

Em "Sonhos de um Sedutor" (1972), baseado em peça de sua autoria, Woody Allen é um


crítico de cinema, especialmente inseguro com mulheres, que recebe conselhos do seu ídolo
Humphrey Bogart, caracterizado em presença sobrenatural, produto de fantasia, como o durão Rick,
de "Casablanca" (1942).
Situação parecida alimenta "À Procura de Eric", que disputou a mostra competitiva do Festival
de Cannes deste ano.
Eric (Steve Evets), carteiro de Manchester, passa a trocar ideias sobre seus diversos
problemas com outro Eric, o ex-jogador francês Cantona (interpretado pelo próprio).
Eleito pela revista inglesa "Four Four Two" como o maior jogador estrangeiro a atuar no país,
Cantona fez história nos anos 90 pelo Manchester United, cuja torcida ainda o venera como um

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semideus. Temperamento belicoso e arrogância nada disfarçada também o transformaram em alvo
do ódio de torcedores rivais.
Foi o que lhe custou uma vaga na seleção francesa que obteve o título mundial em 1998: o
técnico Aimé Jacquet preferiu abrir mão dele (depois de longa suspensão por envolver-se em briga
na arquibancada) e de outro ídolo francês que também atuava na Inglaterra, David Ginola, a correr o
risco de desestabilizar o jovem elenco.
É outro Cantona, mais sereno e sábio pelo efeito do tempo, que aconselha seu fã em "À
Procura de Eric".
Estamos em cenário semelhante ao das outras crônicas sobre a classe trabalhadora britânica
realizadas pelo diretor Ken Loach e pelo roteirista Paul Laverty, como "Meu Nome É Joe" (1998).
O solitário carteiro Eric, no fundo em busca de si mesmo, não superou a separação da primeira
mulher (Stephanie Bishop) e tem problemas com os filhos adolescentes da segunda, que o deixou.
Seu processo depressivo é acompanhado não só por um sobrenatural Cantona mas também por
amigos de trabalho e torcida, que exercerão papel importante nessa comédia dramática em que
predomina o valor da solidariedade.

À PROCURA DE ERIC

Quando: hoje, às 15h50, no CineBombril; e em outros dois dias e horários de exibição


Classificação: livre
Avaliação: bom

SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 25/10/09

(70) Anárquica, série dos anos 50 ajudou a formatar humor na TV

Caixa reúne primeira temporada de "I Love Lucy", produção que liderou audiência

Muitos dos pais de fãs de "Seinfeld", "Friends", "Will & Grace" e "Two and a Half Men" ainda
não haviam nascido quando o modelo de seriado cômico era formatado por um casal que reinou
durante a década de 50 como o mais popular da TV norte-americana.
De 1951 a 1957, Lucille Ball (1911-1989) e Desi Arnaz (1917-1986) produziram e estrelaram 181
episódios de "I Love Lucy", que obteve o primeiro lugar de audiência em quatro de suas seis
temporadas (nas outras duas, ficou em segundo e em terceiro lugares).
Os alicerces desse fenômeno, que se mantém ainda hoje como um dos mais bem-sucedidos na

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história da TV nos EUA, se espalham pelos 35 episódios da primeira temporada recém-lançada em
DVD em caixa de sete discos que traz ainda o episódio-piloto, perdido durante décadas e só exibido,
como relíquia, em abril de 1990.
Nele, um narrador conduz o espectador até um pequeno apartamento no sétimo andar de um
prédio de Nova York próximo à região dos teatros e das casas noturnas, onde despertam -em camas
separadas- Ricky e Lucy Ricardo. Cantor, ele se prepara para uma importante apresentação; ela quer
acompanhá-lo, contra a vontade dele.
O argumento para um seriado que falasse de modo bem-humorado sobre o cotidiano de um
casal veio do programa de rádio "My Favorite Husband", criado em 1948 e estrelado por Ball, que
interpretava a mulher de um banqueiro. Quando a rede CBS se interessou em adaptá-lo para a TV
com a própria atriz, Arnaz entrou no pacote.
Os dois se conheceram nas filmagens de "Garotas em Penca" (1940) e se casaram em
seguida. Ao fundar, em 1950, a produtora Desilu, tentavam justamente viabilizar trabalhos conjuntos.
A negociação com a CBS possibilitou que assumissem a produção do seriado, os direitos sobre os
personagens e a autonomia criativa.
Levado ao ar em outubro de 1951, o primeiro episódio, "As Garotas Querem Ir a uma Boate",
já estabeleceu parâmetros duradouros, como um apartamento de classe média para os Ricardo, mais
cenográfico do que o ambiente do piloto, e a presença de um casal de vizinhos, Ethel (Vivian Vance)
e Fred Mertz (William Frawley).
No segundo episódio, "Seja Companheira", as variações em torno da situação-base -marido
que parece desinteressado da mulher- incluem brincadeiras com as origens cubanas de Ricky (e do
próprio Arnaz) e uma referência ao Brasil, em homenagem a Carmen Miranda (1909-1955), com Ball
dublando "Mamãe Eu Quero".
Semana após semana, cada nova meia hora foi consolidando características técnicas -como
a gravação com quatro câmeras diante de uma plateia, o primeiro seriado a fazer isso- e
dramatúrgicas, com destaque para os diálogos ágeis.
Duelos verbais, frases de duplo sentido e humor às vezes anárquico, mas sempre para
consumo familiar, lembram que esse gênero televisivo tem como avós Ricky e Lucy Ricardo.

I LOVE LUCY - 1ª TEMPORADA

Distribuição: Paramount
Quanto: R$ 129,90 (em média)
Avaliação: bom

SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 25/10/09

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(71) Mostra ressalta importância que escultor dava à fotografia

Entre destaques está painel com 71 fotos que reproduz montagem de 1900

O escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) já foi tema de duas exposições antológicas na
Pinacoteca do Estado. A primeira, em 1995, reuniu 200 mil pessoas e representou a consagração do
espaço como o museu mais dinâmico da cidade. Já em 2001 foi a vez de "A Porta do Inferno", que
consumiu 20 anos de trabalho de Rodin, levar novas hordas de visitantes ao local.
Assim, em menos de 15 anos, "Rodin: do Ateliê ao Museu", em cartaz no Masp (Museu de Arte de
São Paulo), traz novamente obras do escultor. Redundante? Não. A mostra apresenta um tema
relevante não só em seu processo como também para a própria arte moderna: a importância da
fotografia.
A exposição, organizada em parceria com o Museu Rodin, em Paris, reúne 22 esculturas e
194 imagens que refletem a relação de fato intensa entre o artista e seus fotógrafos. Rodin começou
a registrar suas obras e seu ateliê em 1880, quando esse procedimento tornava-se mais maduro,
após 40 anos de experimentação.
Em seus arquivos, foram encontradas nada menos do que 25 mil fotografias, sendo que
7.000 delas foram encomendas do próprio Rodin. Por tudo isso, pode-se perceber como mesmo os
fotógrafos se interessavam em registrar as esculturas de Rodin, um objeto mais simples de trabalhar,
quando eram necessários alguns minutos para conseguir registrar uma imagem com foco.
Desde 1896, o artista exibia suas esculturas junto de fotografias, o que comprova a importância que
Rodin dava a estas últimas. No Masp, um dos exemplos mais significativos disso é o painel com 71
fotos de Eugène Druet expostas da mesma maneira como o artista e seu fotógrafo o fizeram em
1900, em sua exposição na place d'Alma. Composto por imagens ora repetidas, ora realizadas por
ângulos distintos, esse painel é um testemunho de que Rodin não via a fotografia somente como um
registro mas como algo mais complexo.
Nos tempos modernos, que se firmavam na virada do século 19 para o 20, quando Rodin
realizou tal exposição, a aceleração dos processos de reprodução e circulação era fundamental, e a
fotografia, um de seus meios mais eficazes.
Rodin era tão consciente do papel crescente desse processo e do eventual prejuízo que ele
poderia causar, que tinha contratos de exclusividade com os fotógrafos com quem trabalhava,
controlando seu modo de fazer. No contrato assinado com Ernest Bulloz, um dos presentes na
mostra, ele manteve para si "a direção artística da reprodução de suas obras no que tange à
iluminação e à forma de exposição".
O percurso da mostra, então, apresenta os vários fotógrafos de diversas nacionalidades que
trabalharam com Rodin num sistema de real parceria, como Eugène Druet, seu favorito, Bulloz, que o
sucedeu, e os experimentais ingleses Stephen Haweis e Henry Coles, que gostavam de registrar as
esculturas no momento do pôr do sol.

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RODIN: DO ATELIÊ AO MUSEU
Quando: de terça a domingo, das 11h às 18h; quintas, das 11h às 20h; até o dia 13/ 12
Onde: Masp (av. Paulista, 1.578, tel. 0/xx/11/3251-5644)
Quanto: R$ 15
Avaliação: ótimo

FABIO CYPRIANO
Folha de São Paulo, 01/11/09

(72) Amos Gitai perde vigor do passado

Em duas novas produções, diretor retoma questões e história israelita com olhar conservador

Os "travellings" laterais continuam elegantes. Mas é possível perguntar se o cinema de Amos


Gitai não terá chegado a um ponto de saturação em que a precisão de alguns anos atrás dá lugar,
cada vez mais, à retórica?
Pois assim parecem as coisas em "A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas",
adaptação teatral do texto histórico de Flavius Josephus sobre a tomada da Galileia pelos romanos
no ano 70 a.C. Relato de enorme beleza sobre o momento crucial em que os judeus perdem sua
autonomia, que o próprio Gitai encenou no Festival de Avignon (França).
Transposta para o cinema, a mise-en-scène teatral parece um tanto grandiloquente e as grandes
estruturas de ferro montadas para a ocasião enfatizam o caráter épico do momento bem menos do
que o esforço da própria direção.
Em "A Guerra dos Filhos..." encontram-se os mesmos ecos do passado sobre o presente que
surgem em "Carmel": a trágica história israelita rebate sobre cada gesto, torna-o uma interrogação
angustiante. Aqui, Gitai procede a uma espécie de colagem em que se encontram desde a invasão
romana (representada de outra maneira que não a da peça) até os dias atuais.
Lá estão os pais de Amos (pioneiros do Estado de Israel), seu filho preparado para a guerra, o próprio
Amos orientando um ator que fará seu papel (de soldado, na guerra de 1973, quando estava num
helicóptero acidentado), fotos de família e de infância, a mãe em filmes familiares etc.
"Carmel" aproxima a história pessoal da coletiva e faz o retrato de um Amos Gitai mais sensibilizado
pela infausta história dos judeus desde a perda da autonomia, no século 1º a.C., do que
habitualmente. Mais angustiado, digamos logo (o que ocorre também na filmagem da peça teatral).
Existe lugar, claro, para os rumos de Israel. Seus pais mesmo vêm de uma experiência de esquerda,
laica, bem contraditória com opções políticas mais recentes.
No entanto, parece se notar menos espaço para diálogo com os árabes, ambição de várias
obras passadas do diretor israelense (mas não de "Um Dia Você Compreenderá", exibido na Mostra
de 2008). É uma conversa mais íntima desta vez: Amos, sua família, seu passado, seu país, seu
povo. A extensão pode ser grande, mas a natureza do diálogo é a mesma.

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Voltando ao início: não é o assunto, nem a natureza do diálogo, nem mesmo as posições
políticas o que tende a indicar uma inflexão conservadora no trabalho do diretor: são os
procedimentos, os "travellings", em suma, o olhar que parece se tornar um pouco acostumado demais
ao problema que, com razão, escolheu como seu. Se olharmos para seus filmes de uma ou duas
décadas atrás, não encontramos nos de hoje o mesmo vigor. Às vezes, é preciso sair de si mesmo
com força.

A GUERRA DOS FILHOS DA LUZ CONTRA OS FILHOS DAS TREVAS

Quando: hoje, às 17h50, e dia 5, às 20h20, no Unibanco Arteplex

CARMEL

Quando: hoje, às 15h50, no Unibanco Arteplex


Classificação: 14 anos (ambos)
Avaliação: bom (ambos)

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 01/11/09

(73) Argentina narra fantasia de casal gay

"O Menino Peixe", de Lucía Puenzo ("XXY"), conta saga de garotas entre Buenos Aires e vila
do Paraguai

Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas jovens que
se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos que, no final das
contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes sociais distintas.
Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da diretora argentina Lucía Puenzo,
"XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano passado e premiado em festivais mundo afora
(como em Cannes), sobre os conflitos de jovem hermafrodita.

"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que isso não era
importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam viver o romance
de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz Puenzo, 32, à Folha, por telefone.
"Foi como em "XXY", quando a gente não mostra Alex [protagonista] sem roupa, que era o que todo
mundo queria ver. Não gosto de escandalizar."
Puenzo volta a trabalhar com Inés Efron, 25, atriz de "XXY" e estrela em ascensão na Argentina.

201
Após o filme de Puenzo, ela já rodou outros dez, incluindo longas com Lucrecia Martel ("La Mujer sin
Cabeza") e Daniel Burman ("Ninho Vazio").
Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da doméstica
paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm planos de morar juntas
perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e põe Lala numa viagem de
descoberta ao país vizinho.
É aqui que surge o momento fantástico, quando Lala encontra um dos segredos de sua
amada, numa cena subaquática realizada com efeitos especiais. A diretora admite que, na mistura de
gêneros, foi complicado deixar a sala de edição.
"O mais difícil [de fazer o filme] foi achar uma identidade, um ritmo para a história, nesse
encontro de gêneros. O filme navega por tons diferentes, mas acho que isso acabou virando parte de
sua identidade."
A fotografia intercala cores frias da casa sombria de Lala de Buenos Aires com cores quentes
da vila paraguaia de Ypoá, embora nubladas.

Literatura

"O Menino Peixe" é baseado em seu livro de estreia, lançado no Brasil neste ano pela Gryphus.
Puenzo tinha então 23 anos e, desde então, já publicou outros três livros. O quinto, "A Fúria da
Lagosta", sobre os filhos de um argentino que leva um banco à falência e foge de casa, sai no final do
ano. Em comum, todos falam de jovens.
"É uma idade muito poderosa, quando tomamos decisões que vão nos definir para sempre,
não somos mais crianças, nem adultos", diz Puenzo.
Enquanto escreve roteiros para outros diretores e finaliza seu novo livro, Puenzo se prepara
para rodar seu terceiro longa em 2010. Ainda sem título, a obra se passará numa cidade deserta na
Patagônia.

FERNANDA EZABELLA
Folha de São Paulo, 01/11/09

(74) Bellocchio faz um estudo sobre o poder

O sexo e a política sempre foram os vetores do cinema de Marco Bellocchio. "Vencer" é uma
nova e complexa conjugação desse binômio. Em resumo, trata-se da história de Ida Dalser (Giovanna
Mezzogiorno), a primeira mulher de Benito Mussolini (Filippo Timi). Esteio afetivo e material do jovem
militante socialista, ela lhe dá dinheiro para criar um jornal, lhe dá um filho, lhe dá autoconfiança.

202
Mas, ao romper com o socialismo para fundar o fascismo e arrebatar o poder, Mussolini renega Ida,
casa-se com outra e institui uma família "oficial". Proscrita, tratada como louca, a antiga amante
enfrenta os mil braços do regime para ser reconhecida como mãe do filho do Duce.
Bellocchio se serve dessa história real para fazer um estudo do poder em seu duplo aspecto, de
potência criadora e de força de castração.
Essa duplicidade aflora na forma narrativa: na primeira parte do filme, política e erotismo se
fundem em pura energia transformadora. A montagem é vibrante, há uma apologia da máquina e da
velocidade, a linguagem visual é gráfica, sinóptica, recorrendo a letreiros e efeitos visuais que
remetem ao nascente futurismo.
À medida que o fascismo se institucionaliza e Mussolini canaliza seu impulso erótico para a
guerra, no âmbito interno (do país, da família, do indivíduo) passa a imperar a repressão. O filme vira
um melodrama. O Duce deixa de ser um homem de carne e osso e se torna uma imagem nas telas
de cinema, nas fotos de jornal, nos bustos.

VENCER

Quando: hoje, às 22h, no Unibanco Arteplex 2 e quarta-feira (4/11), às 19h10, no HSBC Belas Artes
2
Classificação: 14 anos Avaliação: ótimo

JOSÉ GERALDO COUTO


Folha de São Paulo, 01/11/09

(75) Filme sobre preconceito no Brasil continua atual

Rodado no final dos anos 70 por João Batista de Andrade, longa-metragem traz a melhor
atuação de José Dumont

Uma sessão dupla provocadora juntaria "O Homem que Virou Suco", filmado há quase 30
anos por João Batista de Andrade, ao recente "Estômago" (2006), dirigido por Marcos Jorge.
Os dois têm material rico para uma questão essencial para o cinema, a representação. Unidos pelo
elemento "personagem nordestino", ambos os filmes oferecem leituras distintas sobre as relações de
classe e de cultura no Brasil. Não é difícil sentir algo de retrocesso no jeito de olhar.

Ambos lidam com "paraíbas" num ambiente de Sudeste hostil. No filme de Andrade, há uma
energia política que fortalece o personagem, Heraldo (José Dumont, no seu melhor momento).
Esse poeta popular paraibano é dotado de um afiado senso crítico que testa São Paulo tanto quanto
São Paulo o testa.

203
Sua dignidade vem com uma raiva espontânea que manda às favas hierarquias estabelecidas
de classe e de poder. Em "Estômago", suspeita-se de que o ponto de vista é o de um patrão pouco
razoável para com o seu personagem serviçal.
Obviamente, são filmes de eras distintas. Filmado na São Paulo do final dos anos 70, "O
Homem que Virou Suco" talvez passaria melhor com "São Paulo S/A" (1965), de Luiz Sergio Person,
outro registro da cidade como estado de espírito.
As imagens cruas são cheias de uma revolta peculiar à esquerda da época. Detratores
poderão acusar um envelhecimento do material, mas o valor histórico contextualizado talvez caia
melhor.
Floreios dogmáticos como a representação raivosa de um personagem americano, chefe de
multinacional, podem ser facilmente associados à premiação de "O Homem..." no Festival de Moscou,
em 1980, um dos inúmeros reconhecimentos que o filme teve.
De qualquer forma, hoje, as linhas gerais do choque entre mundo pobre e mundo rico dentro
do Brasil continuam atuais.
João Batista de Andrade prova o quanto estava afiado numa sequência essencial em que o
poeta trabalhador assiste a um "audiovisual" de tom empresarial-fascista, parte dos esforços de
contratação para a construção do metrô de São Paulo.
É um filme dentro do filme que discute não só o preconceito, mas a tentativa de o ambiente
dobrar o indivíduo, além da força mítica de São Paulo em relação ao brasileiro.

O HOMEM QUE VIROU SUCO


Distribuidora: Original
Quanto: R$ 31,90 (16 anos)
Avaliação: ótimo

KLEBER MENDONÇA FILHO


Folha de São Paulo, 08/11/09

(76) Filme-mosaico com dramas cotidianos é ponto alto na obra de Robert Altman

"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com outro garoto.
Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o aniversariante tentava descobrir o que
seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde. Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-
fio, num cruzamento, e foi imediatamente atropelado por um carro."
Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", o trecho acima ilustra o estilo seco de observação do
cotidiano que caracterizava o norte-americano Raymond Carver (1939-1988).
Literatura sobre o fio perigoso das coisas, sempre à espreita dos protagonistas, ela forneceu valiosa
matéria-prima para outro notável cronista dos EUA em "Short Cuts - Cenas da Vida" (1993).

204
"Vejo toda a obra de Carver como se fosse apenas uma história, pois seus contos são todos
ocorrências, todos apenas sobre coisas que acontecem ao personagens e fazem com que sua vida
mude de rumo", explica Robert Altman (1925-2006) na introdução à coletânea, publicada no Brasil
com o mesmo título (mas que, em tradução literal, significa "atalhos").

Cruzamentos

Altman e o roteirista Frank Barhydt trabalharam sobre nove contos e um poema de Carver,
em exemplar trabalho de garimpagem que cruza personagens e situações, faz mudanças importantes
e cria ao menos duas figuras cruciais.
Por meio delas -uma cantora (Annie Ross) e sua filha, uma violoncelista (Lori Singer)-, o filme
ganha música, usada não apenas para pontuar dramaticamente as cenas.
Como em "Magnólia" (1999, de Paul Thomas Anderson), cuja estrutura foi inspirada em "Short Cuts",
as canções funcionam como comentários aos dramas vividos pelos personagens e se integram à
ação de tal forma que o mosaico respeita o andamento da música.
Duas dezenas de trajetórias são costuradas nos subúrbios de Los Angeles, como se o filme
"erguesse os telhados" de casas, na imagem do próprio Altman, para bisbilhotar o que ocorre.
Não era um procedimento original, nem mesmo na filmografia do próprio cineasta, mas acabou
fazendo escola e deu origem a diversas "homenagens" e imitações.
Inserido na obra de Altman em momento de alta no seu prestígio internacional, entre uma
fábula ácida sobre Hollywood ("O Jogador", 1992) e um comentário irônico sobre o mundo da moda
("Prêt-à-Porter", 1994), "Short Cuts" dividiu o Leão de Ouro em Veneza com "A Liberdade É Azul", do
polonês Krzysztof Kieslowski.
Que belo festival.

SHORT CUTS - CENAS DA VIDA Distribuidora: Lume


Quanto: R$ 39,90 (16 anos)
Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 15/11/09

(77) Assassino de série vira pai e encontra mentor

205
Na 4ª temporada de "Dexter", protagonista enfrenta vilão que mata há 30 anos

Agora um homem de família, Dexter precisa de tempo. Tempo para si mesmo, o que significa
tempo para matar. O assassino de serial killers da série "Dexter" enfrenta a complexa agenda da vida
de casado e pai.
Enquanto conversa com sua nova vítima, é interrompido por um telefonema da mulher, pedindo para
que compre remédio para seu bebê.
O sono interrompido todas as noites pelo choro, aliado ao cotidiano do trabalho e às horas
extras de seu segredo criminoso, faz com que ele capote o carro no caminho para casa logo no
episódio de estreia da movimentada quarta temporada, atualmente em exibição nos EUA e que entra
no ar no canal pago FX no ano que vem.
Sangue é o que move Dexter. Ele é um analista de provas para a polícia de Miami, onde sua
irmã é detetive, durante o dia. À noite, vira um justiceiro e esconde seus rastros para que nem ela
descubra quem ele é. Vivido pelo ator Michael C.
Hall, Dexter oficializou o casamento com Rita (Julie Benz) no final do terceiro ano do seriado,
não antes de matar um oponente que arrancava pedaços de pele das vítimas. Nessa nova fase, o
cerco parece se fechar em torno dele, que vai ter de abrir mão de algumas coisas para assumir as
responsabilidades de ser um chefe de família. Só que matar não parece ser uma delas.
"Quem assistiu desde a primeira temporada nunca imaginaria Dexter casado e com filhos",
afirma Hall, em entrevista por telefone de Los Angeles.
"Esse conflito de interesses vai determinar quanto mais ele consegue segurar seu segredo",
diz. "É questão de tempo até que algo balance as coisas." A nova temporada tem Dexter quebrando,
aos poucos, os pontos de seu código de conduta e uma violência mais explícita, com a chegada de
John Lithgow (da comédia "Third Rock from the Sun"). É ele que inaugura as matanças ao incorporar
um assassino que refaz crimes de 30 anos atrás.
Dexter, a princípio, entra na missão de pegar o Assassino da Trindade como seu novo troféu,
mas as coisas se complicam. "Ele vai ter uma conexão com o matador. Vai ser delicioso esse
embate, porque ele nunca se sentiu tão fascinado com alguém. De alguma forma, ele reverencia esse
cara, que conseguiu escapar com um histórico de mortes tão grande."
Além disso, Dexter se conecta com o filho. É para ele que revela o grande segredo: "Papai é
um serial killer". Como a criança não chora, ele tem certeza de que vai ficar bem.
"É desafiador interpretá-lo com emoções. No começo, ele falsificava tudo. Agora, sente algo
realmente. Ainda assim, há um tipo de desconexão que permite que ele continue matando. Tenta ser
mais humano, mas não se desvencilha da herança sociopata", define o ator.

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES


Folha de São Paulo, 22/11/09

206
(78) Protagonistas tentaram evitar relação para não confundir público de série

A vida imita a arte. Ou não.


Michael C. Hall e Jennifer Carpenter são irmãos na série. Na trama, ele foi adotado pelo pai
dela, que criou o código para aplacar a sede de matar de Dexter "com quem merece".
Na vida real, eles se casaram numa cerimônia particular durante o intervalo para começar as
gravações desta temporada.
"A gente tentou não se envolver, até para não confundir o público. E também qual era a
chance de a gente se casar, né? Mas, no final das contas, você acaba escolhendo viver sua vida.
Agora, me sinto mais completa e mais responsável", diz Jennifer Carpenter.
Já para ele, "a confiança é muito importante no set". "Nisso nossa relação ajudou. Não é sempre que
temos cenas juntos, então não é como se estivéssemos lado a lado num cubículo. Trabalhamos
juntos, mas não estamos grudados."
Segundo a atriz, eles também tentam não falar de trabalho em casa. "Só eu posso defender
minha personagem. Após tudo o que ela já passou, como ter um namorado que queria matá-la, ou
outro que foi assassinado a tiros e mais um torturado... Ninguém sabe mais do que eu por que Debra
não vive numa camisa de força. Não ligo para a opinião dos outros."
É ela que dá a definição mais interessante para Dexter. "Ele tem um quê de um herói dos
quadrinhos. Mas, por outro lado, é como uma bebida forte. Você sabe que tem um gosto amargo.
Mas tem dias que você quer algo que morda sua boca."
Lado feminino da vida de casal diante das telas, Julie Benz, que interpreta Rita, defende a
ingenuidade de sua personagem, que, mesmo dividindo a mesma cama, continua sem desconfiar do
"hobby" dele. "Ela está num sonho. Tem um marido, uma linda casa, um bebê. Vai perceber
pequenas mentiras, mas nunca imagina que ele possa ser um serial killer. Não dá para viver com
alguém se você identificar essa escuridão nela", explica.
Gostar de Dexter faz o telespectador entrar num dilema. Você torce para que ele se safe, mas
o que ele faz no tempo livre é assassinar pessoas.
"A chave é que ele só pega pessoas terríveis. Se ele matasse inocentes, não iam gostar dele.
E ele age como uma criança. O jeito que percebe o mundo e como interage com outros não é
calculista. Ele tenta realmente ser normal", diz Hall.

Folha de São Paulo, 22/11/09

(79) Drama de Sidney Lumet questiona TV

"Eu estava na CBS com Ed Murrow em 1951", diz o veterano jornalista Howard Beale a seu
chefe, em referência a um personagem célebre na imprensa dos EUA por enfrentar na TV o então

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senador Joseph McCarthy -episódio recriado por "Boa Noite e Boa Sorte" (2005), de George Clooney.
Beale quer dizer, com a lembrança, que participou da adolescência do telejornalismo americano e
também de sua entrada na vida adulta. Mas, nos anos 70, isso representava, para muita gente, que
ele era um dinossauro incapaz de se adaptar aos novos tempos em que jornalismo e entretenimento
começavam a se confundir.
Com a progressiva perda de audiência do telejornal que apresenta, Beale é demitido.
No primeiro dia de aviso prévio, abre o programa anunciando, ao vivo para todo o país, que vai
estourar os miolos na frente das câmeras dali a uma semana.
"Rede de Intrigas" (1976) acompanha a tormenta que move sua emissora a partir desse aviso
tresloucado.
Interpretado com exuberância por Peter Finch (1912-1977), que ganhou um Oscar póstumo
pelo papel, Beale é um personagem fictício que trabalha em uma também fictícia rede de TV dos
EUA, mas o drama insólito protagonizado por ele aponta para um jogo de forças muito concreto que
apenas se esboçava nos anos 70 e que, desde então, só vem se aprofundando.
A contundência e o caráter premonitório do filme se devem sobretudo àquele que os créditos
apresentam como seu autor, o lendário roteirista Paddy Chayefsky (1923-1981), que recebeu pelo
trabalho seu terceiro Oscar -os anteriores foram por "Marty" (1955) e "Hospital" (1971).
Veterano profissional de televisão, Chayefsky ambienta nos corredores da UBS -calcada nas "co-
irmãs" CBS, NBC e ABC- uma demolidora peça de acusação da transformação da vida
contemporânea em espetáculo, da banalização do jornalismo e do triunfo do cinismo sobre a
integridade moral, na TV e em outros quadrantes.
Além do pobre Beale, a trama -dirigida por Sidney Lumet ("Um Dia de Cão"), outro veterano
da TV tem como protagonistas o diretor de jornalismo da rede (William Holden) e uma inescrupulosa
executiva em ascensão (Faye Dunaway).
No vigoroso panorama do cinema americano dos anos 70, "Rede..." era apenas mais um
exemplo de como fazer filmes adultos a partir de temas sociais agudos. Em seu diagnóstico da TV,
talvez ainda não tenha sido superado.

REDE DE INTRIGAS

Distribuidora: Fox
Quanto: R$ 29,90 (14 anos)
Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 22/11/09

208
(80) Sofrimento de jovem modelo turbina trama

Personagem bela e má que sofre acidente e fica tetraplégica remete a moralismos

"Eu não aguento mais, preciso sair daqui!" No leito da UTI, uma menina estonteantemente
linda grita por socorro. Ela não consegue se mexer do pescoço para baixo. Depois de um acidente,
ficou tetraplégica. E, no meio da noite, acorda desesperada, clamando por um amigo. Enquanto isso,
em nossas casas, em geral em boas condições de saúde, não conseguimos desgrudar os olhos da
TV.
A cena é tensa, e a atriz Alinne Moraes, que interpreta a modelo Luciana em "Viver a Vida",
de Manoel Carlos, comove. O acidente de Luciana foi, até agora, um dos pontos altos da novela, e
sua internação, idem. Mas por que assistimos fascinados à cena da garota jovem e bonita paralisada
e sofrendo?
Também vimos, com os olhos vidrados, a cena da família da jovem recebendo a notícia
desesperadora de que a menina "com a vida pela frente" havia ficado tetraplégica.
Tudo parece ficar mais pesado em "Viver a Vida" porque a personagem em questão é uma menina de
20 e poucos anos. Linda. Mimada. Será que o espectador se sente vingado porque a riquinha
supermal acostumada teve o que mereceu? Será que o que uma garota bonita e rica merece é sofrer
um acidente de carro? Será que é por isso que ouvimos (e temos algum prazer) hipnotizados a
menina gritando de desespero?
Na internet, já existe até enquete: "Você acha que Luciana mereceu ficar tetraplégica?".
Como se alguém merecesse tragédia desse tipo.
Claro. Espera-se que Luciana se recupere. E também que ela mude, vire uma pessoa melhor,
de bom coração. Só a dor salva? É preciso literalmente quase morrer para mudar? A modelo Luciana
faz pensar em muitos moralismos. A má sofre. Ser bonita e mimada mata.
O acidente da modelo (a profissão do momento, com que toda jovem telespectadora sonha) é o
assunto central da trama por enquanto, espécie de ápice. Antes de a novela estrear, já se comentava
que "uma menina ia ficar tetraplégica". Veríamos com fascinação o sofrimento, a recuperação lenta e
uma família desesperada.
Mas devemos gostar mesmo de ver moças (por que será que em geral são as mulheres
bonitas que agonizam em novelas?) no hospital. Afinal, já acompanhamos uma menina grávida
morrer após ser atropelada, em "Páginas da Vida". E todos os detalhes de outra jovem bonita com
leucemia (quem se esquece da cena em que Carolina Dieckmann raspou a cabeça?) em "Laços de
Família", ambas de Manoel Carlos.
Moça bonita em hospital dá ibope. E, ao desligar a TV, talvez a gente pense: "Não sou tão
bonita nem tão rica. Mas pelo menos não estou morrendo no hospital". Ou, se não sou bonita,
ninguém também pode ser.
NINA LEMOS
Folha de São Paulo, 29/11/09

209
(81) Em edições oficiais, filmes de Truffaut evidenciam pulsação dos sentimentos

"Todo mundo quer amor, seja o físico, seja o sentimental." A fórmula, dita a certa altura pelo
protagonista de "O Homem que Amava as Mulheres", ilustra cada um dos títulos da filmografia de
François Truffaut (1932-1984). Representar sob múltiplos ângulos a validade universal dessa máxima
garantiu a seus filmes manterem intactos a beleza e o frescor.
Três deles, que tiveram recepção pouco acalorada em seus lançamentos, retornam ao
mercado em edições oficiais, ou seja, com o selo da qualidade da Versátil, e não nas versões
mambembes que a Silver Screen comercializa. "A Noiva Estava de Preto" (1968), "A Sereia do
Mississipi" (1969) e "O Homem que Amava as Mulheres" (1977) refletem, a seu modo, temas morais
e preocupações estéticas distintos. Vistos juntos, eles projetam a interpretação sempre irônica, mas
nunca cínica ou desencantada, de Truffaut sobre a pulsação vital dos sentimentos.
O primeiro do lote traz Jeanne Moreau, em seu único reencontro com o diretor após o mítico "Jules e
Jim - Uma Mulher para Dois" (1962). Em "A Noiva Estava de Preto", a atriz encarna Julie, uma viúva
cujo casamento terminou ainda nos degraus da igreja e que, por isso, toma por missão vingar-se dos
responsáveis pelo fim abrupto de sua promessa de felicidade.
"Noir" desde o título, essa farsa reaproxima o diretor do universo criminal que ele já
frequentara no magnífico "Atirem no Pianista" (1960). Mais que exercício de gênero, contudo, trata-
se, como define o próprio Truffaut, "de um filme de amor sem nenhuma cena de amor" e no qual cada
assassinato é encenado como obra de arte, num exercício de admiração ao gênio de Hitchcock.
Amor e morte(s) também servem de motor para "A Sereia do Mississipi", outra deliciosa farsa em que
Truffaut nos diverte invertendo as imagens àquela altura consolidadas de Jean-Paul Belmondo e
Catherine Deneuve, ele num registro antiviril e refém do romantismo, ela, avessa à doçura
sentimental, como predadora.
Do lado de lá da morte, Bertrand, o incansável sedutor de "O Homem que Amava as
Mulheres", entrega suas memórias como uma sucessão de conquistas. Por meio da dedicação de
seu personagem a todas as mulheres do mundo, alguém capaz de morrer de tanto amar, Truffaut
eleva sua crença romântica a uma altura que ele só ultrapassaria adiante no majestoso "A Mulher do
Lado".

A NOIVA ESTAVA DE PRETO, A SEREIA DO MISSISSIPI, O HOMEM QUE AMAVA AS


MULHERES

Distribuidora: Versátil
Quanto: cerca de R$ 100 (caixa) ou R$ 45 (cada um)
Classificação: livre
Avaliação: ótimo
CÁSSIO STARLING CARLOS
Folha de São Paulo, 29/11/09

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(82) Série sobre os 10 mandamentos é a obra-prima de Kieslowski

Caixa reúne produção que diretor fez para TV polonesa no final dos anos 80

"A inda Vivo", filme biográfico sobre Krzysztof Kieslowski que vem como um dos extras de
"Decálogo", lembra que a série foi concebida num momento particular, em que o comunismo
agonizava, e os colegas do cineasta achavam necessário tocar em questões urgentes, como os
sindicatos, as insatisfações etc.
Foi uma estranha e fértil intuição que, aparentemente, levou Kieslowski a refugiar-se "no
básico": os dez mandamentos. Era um momento de desespero, também, e é um outro cineasta,
Zanussi salvo engano, que lembra o ritmo febril em que Kieslowski trabalhava. Poderia levar anos o
projeto de dez filmes, cada um dedicado a um mandamento. Mas tinha necessidade de fazer tudo
rápido, como se quisesse não ver o mundo exterior à sua volta.
Ora, hoje, os filmes de "Decálogo" soam como um amplo documento da queda do comunismo
na Polônia e em toda a Europa oriental. Foi justamente ao abstrair as lutas políticas que Kieslowski
conseguiu resumir sua trajetória, dos anos de estudante de cinema ao trabalho como documentarista.
Passemos pela avaliação, apressada, dos dez filmes. Como no passado, destacam-se claramente os
que se transformaram em longas e acabaram por consagrar o cineasta internacionalmente, como
"Não Matarás" e "Não Amarás" -no filme, "Não Cometerás Adultério" (a versão desta caixa é a dos
filmes para a TV, com pouco menos de uma hora cada um).
O primeiro, "Amarás a Deus sobre Todas as Coisas", em que a tensão entre acreditar em
Deus ou na ciência se apresenta com vigor, também é muito forte. Em alguns momentos, faz pensar
que, de fato, se tivesse mais tempo de filmagem, alguns episódios poderiam ter rendido mais. A
contrapartida é: teria perdido o momento -e isso seria irreparável.
Os episódios têm um cenário quase fixo: um conjunto habitacional que, na monotonia,
representa o limite do sonho comunista. Da igualdade como ideal, chega-se facilmente ao
igualitarismo como ideologia: os conjuntos habitacionais, em sua repetição insistente, traçam o limite
da vida. Ali há calma, padronização, contenção. Uma espécie de "desenergia" em que as diferenças
são anuladas. Ou não. Porque os filmes vão justamente ao particular.
Sem símbolos, são inspirados pelo espírito documental de Kieslowski, que chega aqui, nessa
Polônia insatisfeita -que não parece fazer parte nem da Europa ocidental nem do bloco comunista-,
aos títulos mais decisivos da carreira como ficcionista (numa série de filmes em que pouca gente
levava fé).
É aqui que se manifesta um encontro quase perfeito entre uma circunstância (a agonia do
comunismo), uma convicção (a crença no cinema como registro capaz de captar uma realidade
fugaz, que vem dos primeiros trabalhos) e a fé cristã. Esta, oculta por circunstâncias políticas várias
(do nazismo ao comunismo), está longe de ser suficientemente explorada. Em dado momento,
quando "Ainda Vivo" trata da passagem de Kieslowski pela escola de cinema de Lodz, refere-se ao

211
ano de 1968, em que, diz ele, a escola acaba porque os professores judeus são expulsos. Eis uma
coisa sobre o que a Polônia ainda deve explicações: o arraigado, triste, indecoroso antissemitismo,
que atravessa séculos e regimes políticos.
A edição de "Decálogo", à parte provar ser a obra-prima de Kieslowski, traz extratos de uma
entrevista coletiva do autor e o curta " O Escritório" (1966): é um começo, mas uma amostra ainda
insuficiente da produção do "jovem Kieslowski", de que se encontram bons fragmentos em "Ainda
Vivo".

DECÁLOGO Distribuidora: Versátil


Quanto: de R$ 44,90 (cada disco) a 149,90 (caixa com quatro discos)
Classificação: 16 anos
Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 06/12/09

(83) "Quinteto da Morte" faz rir com costumes ingleses do pós-guerra

Comédia de 1955, sobre amigos que planejam assalto perfeito, foi refilmada pelos irmãos Coen
em 2004

Criminosos não devem ter compaixão por ninguém, muito menos por velhinhas de aspecto
frágil e ingênuo. A tese é demonstrada, na melhor tradição do humor negro britânico, por "Quinteto da
Morte" (55), cuja trama foi transportada para os EUA pelos irmãos Coen em "Matadores de Velhinha"
(04).
Não se deixe impressionar pela fragilidade da refilmagem -que, para piorar, também é mais
longa. A trama funciona melhor em compactos 87 minutos e em sua paisagem original, combinando
ingredientes do policial -especialmente do "filme de assalto"- com crônica social sobre usos e
costumes ingleses do pós-guerra.
Viúva solitária que cuida dos papagaios deixados pelo marido como se fossem seus filhos, a
sra. Wilberforce (Katie Johnson) mora em um sobrado antigo, em Londres. Todos na região a
conhecem, inclusive os policiais do distrito mais próximo, habituados a suas visitas.
Para complementar a pensão, ela resolve alugar os cômodos superiores. O primeiro
interessado a encanta: um sujeito respeitável que se apresenta como professor (Alec Guinness) e
que diz receber regularmente quatro amigos com os quais forma um quinteto amador de música
erudita. Não parece haver inquilino melhor, com amigos também distintos, ao menos na visão de uma

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doce senhora inglesa. O negócio do tal quinteto, no entanto, é um plano perfeito de assalto que
envolve a participação da velhinha como cúmplice.
Claro que as coisas não saem conforme o planejamento, gerando situações insólitas e
diálogos mordazes, muito bem costurados pelo roteiro de William Rose ("Deu a Louca no Mundo",
"Adivinhe Quem Vem para Jantar"), que recebeu indicação ao Oscar pelo trabalho.
Dirigido de maneira discreta e eficiente por Alexander Mackendrick, que fez em seguida devastadora
representação da imprensa em "A Embriaguez do Sucesso" (57), "Quinteto da Morte" traz um show
de atores, embora inicialmente pareça um solo de Guinness (o Obi-Wan Kenobi de "Star Wars").
Com o tempo, os demais intérpretes da quadrilha (entre eles, Peter Sellers em início de carreira)
ganham sua oportunidade de se destacar. Mas, no fim, o filme é mesmo da velhinha impagável feita
por Johnson, e não de seus matadores.

QUINTETO DA MORTE
Distribuidora: Universal
Quanto: R$ 30 (classificação: 12 anos)
Avaliação: ótimo

SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 13/12/09

(84) Vampiro de "Crepúsculo" protagoniza filme inexpressivo

Ator Robert Pattinson vive músico rejeitado pela namorada em comédia dramática

Existe uma, e apenas uma, razão para o lançamento de "Uma Vida sem Regras" no Brasil: a
presença de Robert Pattinson no papel principal. Pouco antes de estrelar o primeiro filme da série
"Crepúsculo" (2008), o ator participou dessa produção inglesa quase amadora -retirada agora do
escaninho do esquecimento para aproveitar o novo fenômeno de popularidade.
As jovens admiradoras de Pattinson terão seu deslumbramento colocado à prova por "Uma
Vida sem Regras". O ator interpreta um sujeito não apenas sem qualquer glamour, como também
sem a mínima graça -que não lembra em nada o vampiro romântico de "Crepúsculo", ou talvez
apenas na palidez.
Art, o personagem de Pattinson, é um "loser", um perdedor clássico. Músico frustrado, ele é
abandonado pela namorada e precisa voltar para a casa dos pais, que o tratam como um estorvo em
suas vidas. As únicas pessoas que o suportam são dois amigos, um que tem medo de lugares
abertos, outro que só pensa em se dar bem com as mulheres.

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Para dar uma guinada em sua vida, ele gasta suas últimas economias contratando os
serviços do dr. Levi Ellington, autor do livro de autoajuda "Não É Sua Culpa". O psicólogo passa a
acompanhá-lo dia e noite, mas a situação de Art só piora.
"Uma Vida sem Regras" emula as comédias dramáticas do cinema independente americano,
como "Retratos de Família" (2005) e "A Lula e a Baleia" (2005), na esperteza rápida e fácil de sua
trama sobre personagens alienados e famílias disfuncionais. Ao mesmo tempo, o filme tem o humor
duro, árido dos britânicos.
O resultado, cena após cena, é um desencontro -que a direção burocrática de Oliver Irving,
em seu primeiro longa, nunca consegue evitar. Sobre a atuação de Pattinson, não há nada no filme
que sugira que ele iria se tornar um fenômeno pouquíssimo tempo depois, embora ele se saia
razoavelmente cantando. De qualquer forma, seria injusto exigir que ele salvasse um filme tão
inexpressivo, que emprestasse algum charme a um personagem quase catatônico, com apatia que
beira o insuportável. O título "Uma Vida sem Interesse" talvez fosse mais apropriado para o filme -
assim como um lançamento direto para o DVD.

UMA VIDA SEM REGRAS


Direção: Oliver Irving
Produção: Reino Unido, 2008
Com: Robert Pattinson, Rebecca Pidgeon e Jeremy Hardy
Onde: Espaço Unibanco Pompeia 8, Frei Caneca Unibanco Arteplex 8 e circuito
Classificação: livre
Avaliação: ruim

RICARDO CALIL
Folha de São Paulo, 20/12/09

(85) Filme de Manoel de Oliveira sobre padre Antônio Vieira segue tom político

O padre Antônio Vieira foi um grande pensador da língua portuguesa, sabe-se. E um grande
pensador político, poderia acrescentar Manoel de Oliveira ao projetar seu "Palavra e Utopia". É um
filme sobre a palavra, sem dúvida, sobre as línguas, que circulam diversas ao longo do filme, e sobre
Portugal e sua pequenez em face da grandeza que projetava Vieira.
Um filme sobre a justiça, já que Vieira não apenas sabe se manifestar sobre a necessidade
de servir à pátria e aturar suas ingratidões, como, sobretudo, é contra a escravidão dos negros, os
atentados aos índios, as perseguições aos judeus. Por essas e outras, será alvo da Inquisição, de
que o salvam a sabedoria, o charme e Roma.

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De que Vieira fala Oliveira, em qual Vieira pensa? É menos o homem de talento incomum, de
palavra inspirada, que visa o filme, do que o homem cuja palavra usa para o combate. Estamos,
portanto, diante de Oliveira, cineasta político.
Não será absurdo pensar em um Oliveira/Vieira (um Olivieira?). Assim como o padre orador
do século 17, Oliveira até hoje é mais reconhecido fora de Portugal do que dentro.
Vieira foi um homem de duas terras, Brasil e Portugal. Que eram uma, pois o Brasil pertencia ao
reino. Oliveira de certa forma faz aqui um filme de homenagem ao Brasil, onde havia os índios e os
negros. Onde havia, já, os oligarcas que tinham de ouvir seus sermões de cara amarrada, quando
condenava a prática da escravatura, o hábito de viver sem trabalhar etc.
Tinha um pé em cada borda do mundo: Portugal e Brasil. O oceano era seu domínio. E várias
vezes Oliveira nos mostra esse movimento das águas, de um lado para outro do Atlântico, como se
fosse preciso sair de Portugal para apreender o mundo.
"Palavra e Utopia" é um filme da palavra. Desde o título. Pois é com palavras que se faz
política. Mas assim como existe aqui uma política dos sotaques (um falar português menos
acentuado em Luís Miguel Cintra, um falar brasileiro com certa distância em Lima Duarte -o primeiro,
o Vieira da idade madura, o segundo, o da velhice), existe também uma das imagens. Pois, ninguém
esqueça, Oliveira é um cineasta, e não só isso: é um dos grandes.
A imagem espreita a palavra todo o tempo. Confronta-a a si mesma. A sacraliza. Como a
música de que fala Vieira, purifica. Mas também pode servir de moldura para que melhor se escute a
palavra. E a de Vieira dói. Ela opõe à palavra do poder o poder da palavra em liberdade. À Inquisição,
a independência. Esse é o Vieira que apaixona e inspira Oliveira. Ao qual este grande cineasta
político não homenageia: o que faz é sugerir Vieira como intelectual, homem e caráter exemplar.

PALAVRA E UTOPIA Distribuidora: Versátil


Quanto: R$ 40 (em média)
Classificação: livre
Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 20/12/09

(86) Jack Black e Seth Rogen atuam em comédias opostas

Atores protagonizam filmes de resultados distintos, que chegam ao país no formato DVD, sem
passar por cinema

Com a maioria das salas de cinema do Brasil reservada a blockbusters e produções


nacionais, resta a várias comédias indies pular uma etapa e cair direto no formato DVD. É o que
acontece com "Ano Um" e "O Segurança Fora de Controle".

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São duas fitas de humor escrachado, mas com estética -e resultados- bem diferentes.
Dirigida por Harold Ramis (do inigualável "Feitiço do Tempo"), "Ano Um" é ambientada na pré-história
e traz o espalhafatoso Jack Black ("Escola de Rock", "Nacho Libre") e o indie tímido Michael Cera
("Juno", "Superbad") como dois caçadores mais preocupados em perseguir mulheres e o sono do que
animais.
Desastrados, eles são expulsos da aldeia e partem em viagem pelo mundo. Na jornada,
conhecem Caim e Abel. Caim, é claro, mata Abel e leva a dupla a mais percalços.
"Ano Um" tem um pequeno problema, que costuma ser fatal às comédias: não tem graça. Suas
piadas são insípidas, bobas, e se apoiam quase exclusivamente nas caretas e trejeitos de Jack Black.
E Michael Cera, que ganhou fama com o humor indie de Judd Appatow, aqui se mostra perdido.

No shopping

Outra estrela do diretor Appatow, Seth Rogen está mais do que confortável no papel de um
segurança de shopping em "O Segurança Fora de Controle".
Se Rogen acostumou-se a dar vida a personagens meio estúpidos que adoram maconha,
aqui ele interpreta o histriônico e paranoico Ronnie Barnhard, que faz a ronda em um shopping do
meio-oeste norte-americano.
Ele tenta capturar um maluco que invade o estacionamento do local pelado para se exibir
para as mulheres. Barnhard é, ainda, apaixonado pela loiríssima Brandi (Anna Faris), uma vendedora
de loja que não está nem aí para ele.
Barnhard pretende capturar o maluco para, entre outros objetivos, impor autoridade e ganhar
permissão para andar armado. Mas a polícia local tem outros planos.
A investigação é passada para o detetive Harrison (Ray Liotta), que, além de chefiar o caso,
conquista a loira Brandi.
Seth Rogen consegue equilibrar com competência os lados autoritário e ingênuo de seu
personagem. O diretor Jody Hill, também roteirista do filme, cria situações espetaculares, como a
cena em que uma repórter de TV entrevista o personagem de Rogen e deixa de mencionar que ele é
chefe de segurança do shopping.
"O Segurança Fora de Controle" não está entre as melhores comédias do ano -não está nem
entre as melhores comédias de Seth Rogen-, mas arranca boas risadas graças a um roteiro certinho,
a atuações convincentes e às boas piadas que aparecem aqui e ali.

ANO UM
Direção: Harold Ramis
Com: Jack Black, Michael Cera
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 40, em média
Avaliação: ruim
Classificação: 10 anos

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O SEGURANÇA FORA DE CONTROLE
Direção: Jody Hill
Com: Seth Rogen, Ray Liotta
Lançamento: Warner
Quanto: R$ 40, em média
Avaliação: bom
Classificação: não informada

THIAGO NEY
Folha de São Paulo, 27/12/09

(87) "A Falecida" destaca vida do subúrbio carioca

Seria um pouco covarde comparar este "A Falecida" com a média dos DVDs editados no
Brasil. Aliás, com o auxílio da Petrobrás, não faria vergonha frente aos melhores.
Existe, para começar, o filme, devidamente restaurado. E mais dois curtas de Leon Hirszman:
"Partido Alto" e "Nelson Cavaquinho". O primeiro é praticamente um trabalho didático sobre esse tipo
de samba.
Um pouco chato, mas existe a mística da arte popular que essa geração cultivou. Já "Nelson
Cavaquinho" parece carregar toda a paixão do realizador. O grande compositor ganha um retrato em
que o íntimo e o musical se encontram de maneira harmoniosa. O que é biográfico remete à vida das
populações pobres do Rio de Janeiro, às quais devemos alguns dos melhores momentos de nossa
cultura. O restauro restitui a força colossal da fotografia de Mário Carneiro.
A parte de extras compõe-se, no essencial, de depoimentos. A soma deles é exaustiva. Em
grande parte, o objetivo é que Fernanda Montenegro, Paulinho da Viola e Eduardo Coutinho nos
digam quem era Hirszman -mas seus filmes falam muito bem por ele. Existe, por fim, "A Falecida".
A interpretação do cineasta se antepõe à obra do dramaturgo. Não é mau, mas tenho a
impressão de que algumas características interessam muito mais ao cinema novo do que a Nelson
Rodrigues. Nas mãos de Hirszman, a história de Zulmira, mulher que busca na morte uma espécie de
compensação às frustrações da existência, destaca bem a vida do subúrbio carioca. Subúrbio
observado sem complacência, como se fosse o caso de pôr em relevo as cotidianas infelicidades a
que a pobreza sujeita. A fotografia de José Medeiros tende a um cinza que rebate a atmosfera
abafada que respiram os personagens.
A bela direção de atores torna presenças como a de Ivan Cândido, o marido, difíceis de
esquecer. O destaque principal, no entanto, fica mesmo com Fernanda Montenegro.
O disco se faz acompanhar por um pequeno livro com impressões de críticos brasileiros e
estrangeiros sobre o filme. É tanto que o santo desconfia: a Videofilmes, que normalmente trabalha

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muito bem, aqui até se excede um pouco ao produzir essa edição "black tie" deste belo filme do
diretor de "Eles Não Usam Black-tie".

A FALECIDA

Distribuidora: Videofilmes
Quanto: R$ 54,90
Classificação: 12 anos
Avaliação: ótimo

INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 03/01/10

(88) Marlon Brando é marcante no irregular "Cartada Final"

O que levaria Marlon Brando, o maior ator do cinema, a aceitar papéis esdrúxulos, em filmes
idem? A falta de grana? Ou um autoflagelo diante da ladeira abaixo que foi sua vida pessoal nos seus
últimos anos?
Talvez seja isso, conhecendo o gosto de Brando em levar seu corpo e imagem ao limite, mas
é mais crível que ele soubesse o quanto estava acima de tudo, ou seja, fosse o único astro da história
a contrariar a lógica natural que delega ao tino do diretor o resultado de um filme.
É difícil duvidar, por exemplo, que Elia Kazan não tenha sido o grande responsável pelo primor de
"Viva Zapata!" (TC Cult, 16h05, 12 anos), mesmo com Marlon no papel de Emiliano Zapata.
Por outro lado, Brando aparece intacto, marcante e lindo em sua velhice e tonelagem, no irregular e
esquecível longa "A Cartada Final" (TC Action, 17h25, 14 anos).

PAULO SANTOS LIMA


Folha de São Paulo, 10/01/10

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