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INSTITUTO DE LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
NITERÓI
2010
0
MONCLAR GUIMARÃES LOPES
Niterói
2010
1
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
2
MONCLAR GUIMARÃES LOPES
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profa. Vanda Maria Cardozo de Menezes – UFF
Orientadora
_______________________________________________________
Prof. Sebastião Carlos Leite Gonçalves – UNESP
Co-orientador
_______________________________________________________
Profa. Maria Maura Cesário – UFRJ
_______________________________________________________
Profa. Mariângela Rios de Oliveira – UFF
_______________________________________________________
Profa. Nilza Barrozo Dias – UFRJ
Niterói
2010
3
Os desejos humanos são infindáveis. São
como a sede de um homem que bebe água
salgada, não se satisfaz e a sua sede apenas
aumenta.
Texto Budista
[...]
Fernando Pessoa
4
AGRADECIMENTOS
5
LISTA DE QUADROS
6
SUMÁRIO
RESUMO .............................................................................................................. 10
ABSTRACT .......................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12
8
5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional ........................ 92
5.2.2. Encapsuladores de Episódio ................................................ 94
5.2.3. Encapsuladores de Estado-de-coisas .................................. 96
5.2.4. Encapsuladores atribuidores de Propriedades .................... 99
5.3. ENCAPSULADORES SEMÂNTICOS SECUNDÁRIOS .................... 101
5.3.1. Encapsuladores de Modo ..................................................... 102
5.3.2. Encapsuladores de Razão .................................................... 103
5.3.3. Encapsuladores de Quantidade ............................................ 104
5.4. ENCAPSULADORES METALINGUÍSTICOS ..................................... 106
5.5. CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA ..................................................... 107
5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos. 108
5.5.2 O papel do contexto ............................................................... 108
5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos .............................. 110
5.5.4. A análise de encapsulamentos de núcleo gramatical .......... 110
5.5.5. Nem todo encapsulamento advém de categoria instável..... 110
5.5.6. A configuração dos encapsulamentos depende do discurso.112
5.6. Perspectivas futuras ............................................................................ 113
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 118
9
RESUMO
10
ABSTRACT
11
INTRODUÇÃO
O mundo não fala, apenas nós falamos. Desde que fomos programados com uma
linguagem, o mundo pode levar-nos a adotar certas crenças. Mas não poderia fornecer
uma linguagem para que nós falássemos. Apenas outros seres humanos podem fazê-lo.
1
Richard Rorty
1
- Original: The world does not speak. Only we do. The world can, once we have programmed
ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for us to speak.
Only other human beings can do that. Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity.
Cambrigde: Cambridge University Press, 1989.
2
Uma vez que se trata de uma perspectiva recente, a organização deste trabalho exige uma
abordagem mais detalhada e extensa do referencial teórico, uma vez que se trata de uma teoria
pouco difundida no Brasil: a Gramática Discursivo-Funcional.
3
A Gramática Discursivo-Funcional representa uma versão atualizada da Gramática Funcional
Padrão de Dik (1997), elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2008).
12
– encapsuladores de Conteúdo Proposicional, de Episódio, de Estado-de-coisas, de
Propriedade, de Modo, de Razão, de Quantidade e Metalinguísticos. Paralelamente,
também se defende a tese de que o encapsulamento vai além do sintagma nominal
ou do cotexto propriamente dito – ao contrário do que defende Conte (2003, p. 177)
–, pois, sob uma dimensão discursivo-funcional, o encapsulamento pode tanto ser
representado por elementos gramaticais quanto pode não encontrar âncora
delimitável no cotexto, conforme será visto na análise dos dados. Por essa razão,
far-se-á uso da concepção de Koch (2003, p. 94), uma vez que sua definição de
encapsulamento – sumarização de uma informação precedente, compartilhada pelos
interlocutores – atende tanto ao cotexto quanto ao contexto.
A: - Saia daqui!
B: - Não fale comigo assim!
4
Para definição de Ato Discursivo, consulte o tópico 3.3.1.2, no terceiro capítulo.
14
B: - Isso não deveria ser /∫u’letasdekor’dero/?
De acordo com os autores (op. cit), em (1B), o elemento anafórico assim faz
remissão à estratégia comunicativa escolhida por (1A), razão pela qual pertence ao
nível pragmático; em (2B), isso faz remissão à situação extralinguística descrita por
2A, por isso pertence ao nível semântico. Já as referências (3B) e (4B) são
diferentes por serem de natureza metalinguística, isto é, são mensagens sobre o
código (JACKOBSON 1971 apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 05).
5
Por referenciação, entendemos o complexo processo de construção de objetos-de-discurso
(referentes) na interação dos sujeitos envolvidos. Para tal perspectiva, não se deve considerar a
referência em si mesma, mas o processo intersubjetivo no qual os sujeitos (sócio-cognitivos)
elaboram versões públicas do mundo.
15
Embora tais linhas de estudo da referenciação sejam variadas, esta
dissertação aproxima-se da perspectiva de Francis (1994, 2003), uma vez que a
GDF também tem como base as metafunções linguísticas elaboradas pela
Linguística Sistêmico-Funcional. Contudo, trata-se, na verdade, de uma perspectiva
discursivo-funcional da referência, visto a dimensão discursivo-pragmática em que a
GDF se insere.
16
CAPÍTULO I
Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre os estudos
da referência. Para tanto, ele se subdivide em quatro partes. Na primeira seção,
introduzem-se as duas correntes que tratam do estudo da referência; na segunda e
terceira seções, explicita-se cada uma das perspectivas apresentadas; na quarta, faz-se
uma breve avaliação do capítulo.
17
1.2. A PERSPECTIVA LÓGICO-SEMÂNTICA DA REFERÊNCIA
Até o século XIX, grande parte dos estudos linguísticos apontaram para uma
relação biunívoca entre língua e realidade, com o pressuposto de que a língua servia
como representação do pensamento (cf. KOCH, 2003, p. 13), concepção que nos
levou à ideia de que o sujeito era um ser psicológico, individual, dono de suas
vontades e ações (op. cit.), uma vez que a linguagem era tomada como mera
transcrição da realidade objetiva. Tal ponto de vista, segundo Araújo (2004, p.22)
está presente desde Agostinho (354-430) até Locke – 1632.
A partir do séc. XIX, no entanto, tais pontos de vista começam a ser refutados
pelo estruturalismo de Saussure (1971, p. 79), que afirma que a língua não deve ser
reduzida a uma nomenclatura, numa simples relação entre nome e coisa. Para tal
teórico, o signo linguístico é psíquico, tem relação com um conceito e uma imagem
acústica, ambos de natureza mental. Logo, abandona-se a referência, na defesa de
que uma ciência linguística deveria basear-se em suas relações internas, e não em
componentes extralinguísticos.
18
linguístico. Ficavam assim superadas, aparentemente, as relações dicotômicas entre
significante e significado, na medida em que, para os dois estudiosos (op. cit),
símbolo (signo ou significante), referência ou pensamento (significado) e referente
(coisa ou objeto extralinguístico) passavam a figurar numa relação triádica,
esquematizada no triângulo abaixo:
Referência ou Pensamento
(significado)
Símbolo Referente
(significante) (coisa ou objeto extralinguístico)
Não obstante, muito embora Odgen e Richards tenham lançado mão do que
concebem como referente (a coisa extralinguística) - dando um passo a mais que
Saussure, que só havia estabelecido uma relação dicotômica no estudo do signo
(significante x significado) -, não o incluíram nos estudos linguísticos, afirmando que
não havia nenhuma relação direta e pertinente entre símbolo e referente, somente
entre símbolo e referência, em consonância com os estudos de Saussure.
19
Em outras palavras, sobre o trecho citado, Benveniste comenta que a
significação não decorre da referência, mas da relação entre conceito e imagem
acústica, como defendia Saussure.
Até então relegada ao âmbito da filosofia da linguagem, a referência era
analisada em parâmetros de verdade. Mais especificamente, filósofos como
Wittgenstein(1994), Frege (1977) e Russel(1978)7, ao verem que o signo não se
limitava ao estabelecimento de uma relação direta com a coisa nomeada, relegaram-
no à forma lógica da proposição em afirmações assertóricas. Para tais estudiosos,
só haveria referência se dada proposição pudesse ser verificada no mundo (hipótese
veritativa), como podemos notar no famoso exemplo de Russel (1978, p. 41):
a mania logicista é um dos lugares-comuns que – com arrogância não justificada pelas
dimensões de suas idéias, e entre confusões de toda índole – proclamam C. K. Odgen e
I. A. Richards... Isto para não falar das idéias, ainda mais extravagantes, de A.
Korzybsky, Science and Meaning, Lancaster Pa., 1933, e de sua escola antiaristotélica
de neo-semanticistas, para quem a maioria dos males do mundo se deveria ao uso
impróprio das palavras.
7
As datas apontadas acima representam a referência da tradução da obra. As obras originais datam
de 1921, 1892 e 1903, respectivamente.
20
autora, o patamar estrutural, aquele dos signos e suas combinações, depende do
discurso e não da frase gramatical ou de uma proposição. A pragmática vem a ser o
horizonte teórico, quer dizer, é preciso sair dos limites exclusivamente estruturais da
língua (Ibidem, p. 46).
8
A incorporação do referente a que nos referimos, no entanto, não é algo meramente extralinguístico,
mas,sim, construído pelo intermédio da práxis, como veremos a seguir.
21
Referência
PERCEPÇÃO
Realidade
Símbolo Referente
22
de que o sistema perceptual, as estruturas mentais e a própria linguagem são tributários
da práxis.
Num mesmo sentido, Kripke (1991 apud ARAÚJO, 2004, p. 85) afirma que a
referência depende não só do que pensamos, mas de outras pessoas da
comunidade, da história de como o nome adquiriu um referente (...) É seguindo tal
história que se chega à referência.
9
De acordo com esta segunda visão, as categorias e os objetos de discurso pelos
quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas
se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos.[...]
Uma vez que o objeto de discurso tem sempre como aporte a percepção dos
participantes, a transformação do referente em objeto de discurso resultou na
aceitação de certa instabilidade do signo, já que a interpretação e a significação do
mundo estão sempre em um continuum ad infinitum.
9
Para Apothéloz e Reichler-Béguelin (apud Koch, 2005), os referentes são denominados objetos de
discurso, pois eles são construídos na atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, não como
produtos da realidade, mas fundamentalmente culturais.
24
Baseado no mesmo ponto de vista, o da instabilidade do referente, Sacks
(apud MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 23) afirma que
10
A citação original de Bakhtin (1992, p. 283) é a seguinte: se não existissem os gêneros do discurso
e se não os dominássemos; se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala; se
tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a construção verbal seria quase impossível.
25
o protótipo torna possível seu compartilhamento entre muitos indivíduos através da
comunicação linguística, e ele se torna, de fato, um objeto socialmente distribuído,
estabilizado no seio de um grupo de sujeitos. Tal protótipo compartilhado evolui para
uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo.
26
1.3.3. A progressão referencial
1. ativação – pelo qual um referente textual até então não mencionado é introduzido,
passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) na rede conceptual do
modelo de mundo textual: a expressão linguística que o “representa” permanece em foco
na memória de curto termo, de tal forma que o referente fica saliente no modelo.
27
Na retomada de mulheres pela anáfora elas, tem-se identidade referencial,
pois se sabe que o referente é o mesmo, há, pois, correferência.
Veja o exemplo:
(03) [...]O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca
disse, por exemplo, que a “Monalisa” de Leonardo seria melhor se representasse uma
santa. Mas quando UM FILME fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até
ganha o Oscar, como “A Luz É Para Todos” (TCM, 18h;livre), em 1948. [...]
28
originalmente, o termo anáfora, na retórica clássica, indicava a repetição de uma
expressão ou de um sintagma no início de uma frase. Hoje, na acepção técnica, anáfora
anda longe da noção original e o termo é usado para designar expressões que, no texto,
se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais
(retomando-os ou não), contribuindo assim para a continuidade tópica e referencial.
(04) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser
reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões
verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.
11
Por predicação, compreendemos o processo básico de constituição do enunciado, a que se refere
Neves (2006).
29
significativa através do uso linguístico – que, por sua vez, é motivado psicológica,
discursiva e pragmaticamente.
30
CAPÍTULO II
O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO
Este capítulo tem como objetivo apresentar revisão de literatura sobre o fenômeno
em análise e subdivide-se em sete partes. Na primeira seção, retoma-se e aprofunda-se
o conceito de encapsulamento. Da segunda à sexta seção, aborda-se a perspectiva de
Francis (1994, 2003) para o estudo dos encapsulamentos, explicitando-se as categorias
elaboradas pela autora. Na sétima seção, apresenta-se uma avaliação das questões
gerais do texto.
2.1. INTRODUÇÃO
(05) [...] Eu irei razpar(sic) a cabeça na maquina zero se for campeão!!! fiz ESSA
PROMESSA no jogo contra o Palmeiras e quinta rasparei a cabeça se Deus quiser!!!
31
No sintagma essa promessa, percebe-se a existência de uma expressão
anafórica, até mesmo pela função dêitica do demonstrativo essa. No entanto, em
toda a sequência do primeiro parágrafo, não se encontra um referente lexicalizado
que propicie a retomada por essa promessa, o que nos leva à conclusão de que a
âncora para tal anáfora não se encontra em um lexema, mas em uma predicação ou
segmento de texto (como é o caso em que o exemplo se situa, que faz remissão ao
primeiro período). Logo, essa promessa representa um encapsulamento de toda a
proposição raspar a cabeça na máquina zero se for campeão.
(06) [...] Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que
exponha suas verdades mais íntimas e profundas. ESSA IDÉIA, esboçada em obras
anteriores de Eduardo Coutinho, como “Santo Forte” e “Edifício Master”, ganha uma
evidência incontornável em seu documentário mais recente, “Jogo de Cena”, que chega
agora ao DVD. [...]
12
Para explicação de ato de fala promissivo, ver tópico 3.3.1.3, no terceiro capítulo.
32
(07) [...] A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações,
como um pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um
casal e descobrem que os anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.[...]
(08) [...] Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser
reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões
verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.
(...) “predicativo” pode ser relacionado à “proposição” a que foi dado um estatuto
referencial (...) [bem como] nos induz a considerar a dimensão atributiva da expressão
referencial: o elemento anafórico é simultaneamente um elemento de referência e de
predicação, acumulando a função temática e remática ou, como afirma Schwarz (2000),
operando uma tematização-remática.
13
Por metafunção interpessoal, entende-se o nível que abrange todos os usos da língua para
expressar relações sociais e pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na
situação discursiva e no ato de fala.
36
Por isso, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah Jane, já
expressa ESSA REVOLTA, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua cor
como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em
sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]
São os que nomeiam uma ação e dizem respeito à força com que aquilo que
se diz é dito. São exemplos de nomes ilocucionários: ordem, promessa, conselho,
acusação, aviso, reivindicação, asserção, resposta, revelação, declaração,
sugestão, advertência, crítica, proposta, afirmação, etc. Tais rótulos são, portanto,
nominalizações de ações verbais.
37
(11) Por isto te ordeno: institui aí na Terra o meu Reino, anuncia ao mundo que ESTA
ORDEM veio de mim. Eu sou o Deus de Abraão [...]
http://www.inricristo.org.br
38
2.5.3. Nomes de processos mentais
39
Embora haja a subdivisão dos rótulos de conteúdo e dos metalinguísticos,
Farnes (1973 apud FRANCIS 2003, p. 202) considera a divisão em “indicadores de
estrutura” e “indicadores de conteúdo” contraproducente, pois vê nesses processos
a confluência, a um só tempo, do cognitivo, do linguístico e do social. Assim, sugere
a designação de rótulos metadiscursivos em vez de metalinguísticos, englobando-se
todas as metafunções discursivas propostas por Halliday (1985).
(15) Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de
Samira Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um
filme entre garotas (e a infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e
envolve um elemento mínimo. No caso, trata-se de duas gêmeas que vivem presas em
suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).
Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de
seu pai, Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes
de Abbas Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja.
Kiarostami criou uma escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a
escrever roteiros, sempre com temas mínimos, quase inexistentes. No entanto,
raramente algum deles desenvolveu ESSA QUALIDADE DE ESPELHO DA OBRA DE
ABBAS: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o grande
prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema,
com certeza.[...]
40
Em (15), o rótulo essa qualidade de espelho da obra de Abbas refere-se ao
segmento do texto que trata da imparcialidade do produtor de cinema ao retratar
objetivamente as situações de seus roteiros, sem impregná-las de avaliações ou
pontos de vista. O autor da crítica categorizou tal atitude positivamente através do
sintagma supracitado, por isso, trata-se de um rótulo de configuração axiológica.
14
O exemplo em questão trata-se de uma nominalização não-prototípica, uma vez que o fenômeno
não é representado por palavra da mesma família, mas sinônima.
41
perspectiva, a realidade que se erige no evento comunicativo não é dada, mas
fabricada e alimentada pelo próprio discurso num contínuo processo de construção e
reconstrução coletiva da própria realidade, que aos sujeitos daquele evento toca
(re)elaborar. Zavam (Ibidem, p. 135) aponta que os posicionamentos adotados por
Conte (2003) e Francis (1994, 2003)
parecem revelar uma visão quase que exclusivamente linguística sobre a referenciação,
embora não seja essa a intenção dos pesquisadores citados. É como se a construção do
referente ou a remissão a ele se resumisse ao emprego de expressões linguísticas, de
expressões que já viriam com seu significado antecipadamente dados.
42
Posição
Função
Conteúdo Metalinguístico
Configuração
Avaliativa Não-avaliativa
(17) [...] Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com
a maioria das séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas
das vielas mais escuras e fétidas da alma humana.
44
designação – dessas últimas, fez-se uso para a ampliação das categorias
semânticas.
Por fim, o estudo aprofundado da GDF levou-nos à consciência de que o
processo de encapsulamento é uma atividade complexa em que tanto fatores de
ordem lexical quanto gramatical estão em jogo, perspectiva até então pouco
considerada. Em seu estado atual de ciência, a referenciação focaliza apenas as
questões de natureza lexical. Portanto, no que tange ao terceiro ponto de nossa
pesquisa, chamou-se a atenção para a análise de alguns elementos de natureza
gramatical. Pode-se conferir tal fato no exemplo abaixo, em que o operador assim,
embora um termo de natureza gramatical, encapsula um segmento anterior.
45
CAPÍTULO III
A GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL
3.1. INTRODUÇÃO
15
Para ter acesso a tais artigos, consulte o site do professor Hengeveld, em:
http://home.hum.uva.nl/oz/hengeveldp/
46
Functional Discourse-Grammar. A typologically-based theory of language structure,
que traz uma versão completa e atualizada da GDF.
Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 02), a GDF pode ser definida mais
concisamente como uma teoria que procura entender como as unidades linguísticas
são estruturadas em termos do mundo que elas descrevem e das intenções
comunicativas com que elas são produzidas. Assumindo o Ato Discursivo como
unidade de análise, o discurso passa a ser, na GDF, o “suporte” das unidades
linguísticas de níveis mais baixos. Enquanto a Gramática Funcional de Dik inicia-se
com a seleção de itens lexicais, para, em seguida, expandir gradualmente a
estrutura subjacente da oração, a GDF inicia-se com a formulação da intenção do
falante, finalizando com a realização da expressão linguística.
No que tange à nossa pesquisa, pode parecer equivocada a opção por uma
teoria cujo título recebe o nome gramática. No entanto, assevera-se que os níveis
elaborados pelos professores Hengeveld e Mackenzie (2006; 2008) vão muito além
da mera estrutura gramatical e não fogem a uma perspectiva textual, uma vez que
também compreendem elementos de ordem pragmática e semântica, como eles
mesmos já observaram em Functional Discourse-Grammar. A typologically-based
theory of language structure ao tratarem da possibilidade do estudo da anáfora em
sua teoria.
• Conhecimento linguístico:
• Conhecimento não-linguístico:
• Conhecimento textual:
49
É importante ressaltar que a nossa pesquisa terá um caráter ensaísta no
âmbito da GDF, uma vez que os próprios autores não desenvolveram metodologia
com foco no estudo das referências, só propuseram sua potencialidade. O que se
fez aqui foi investigar, na GDF, quais caminhos demonstram abertura para uma
investigação dos encapsulamentos.
50
Essa mudança é, conforme Hengeveld e Mackenzie (2005), motivada pelo
postulado de que a eficiência de um modelo de gramática é tanto maior quanto mais
se aproximar do processamento cognitivo16. Isso porque, segundo eles, estudos
psicolinguísticos (LEVELT, 1989 apud HENGEVELD E MACKENZIE, 2008)
demonstram claramente que a produção linguística é um processo descendente,
que se inicia com as intenções do falante e termina com a articulação/realização da
expressão linguística real (componente de expressão).
16
Embora os autores questionem acerca da eficiência do modelo, a GDF não se trata de um modelo
de processamento, mas, sim, de descrição gramatical, que procura apenas refletir o processamento.
51
Componente Conceitual
Componente Gramatical
Formulação
Componente Contextual
Codificação
Componente de Saída
52
estruturas são submetidas às pressões provenientes do uso, que exerce grande
influência sobre a estrutura linguística.
a língua (e a gramática) não pode ser descrita como um sistema autônomo, já que a
gramática não pode ser entendida sem parâmetros como cognição e comunicação,
processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação, aquisição e
evolução.
Sendo assim, nesse processo, pesam diversos fatores, dentre eles: a força de
situação de comunicação, o planejamento, as imagens que o falante forma do
interlocutor, entre outros.
53
b) Interpessoal – abrange todos os usos da língua para expressar relações sociais e
pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na situação discursiva e
no ato de fala. Permite que o falante participe da situação comunicativa para aprovar,
desaprovar, expressar crença, opinião, dúvida, etc.
c) Textual – em que a linguagem estabelece vínculos com ela mesma e está ligada às
características da situação em que é usada. Nesta função, o indivíduo falante ou escritor
é capaz de criar textos e o ouvinte ou leitor consegue distinguir um texto de um conjunto
aleatório de frases. A função textual é, pois, um instrumento das outras duas, já que
sempre o ato comunicativo necessita da elaboração de discursos. Esta função é que
habilita o falante a criar um texto.
Os aspectos discursivos tratados pela GDF são aqueles que dão conta das
funções retóricas e pragmáticas da língua. Por função retórica, entende-se a forma
como os componentes discursivos são ordenados para que o falante atinja seus
objetivos comunicativos e também as propriedades formais dos enunciados que
influenciam o destinatário a aceitar os propósitos comunicativos de seu interlocutor.
Por função pragmática, entende-se, aqui, a forma como os interlocutores moldam
suas mensagens com base nas expectativas atuais do estado mental do
destinatário.
Se, por exemplo, numa dada situação, o ouvinte B está próximo à janela de
sua sala de estar e escuta do falante A o enunciado “Está frio aqui dentro!”, é muito
provável que A interprete tal enunciado como “Feche a janela” e não apenas como
um comentário. No entanto, se A e B estivessem em um local em que tanto A quanto
B não tivessem liberdade de executar o ato de fechar a janela, o mesmo enunciado,
provavelmente, seria interpretado como um comentário. Tais exemplos mostram que
a análise linguística, em termos de ilocução, não pode ser feita sem se levar em
conta aspectos pragmáticos e retóricos. Diz-se também retóricos, porque a opção
entre “Está frio aqui dentro” e “Feche a janela” não é neutra. Há, por trás de tais
enunciados, princípios de polidez e papéis sociais que precisam ser evidenciados na
análise linguística.
55
Desse modo, o NI contém as descrições de todas as propriedades das
unidades linguísticas que refletem a interação verbal e a influenciam -
hierarquicamente, a seguir: Move > Ato Discursivo > Conteúdo Comunicado. O Ato
Discursivo se subdivide em Ilocução e Participantes – únicos em relação não-
hierárquica. O Conteúdo Comunicado se subdivide, por sua vez, em Subato de
atribuição > Subato de referência. Elas podem ser representadas como na figura
abaixo:
(∏ M1: [ Move
(∏ A1: [ Ato Discursivo
(∏ F1: ILL (F1): ∑ (F1))Ф Ilocução básica
(∏ P1: ... (P1): ∑ (P1))Ф Falante
(∏ P2: ... (P1): ∑ (P2))Ф Ouvinte
(∏ C1: [ Conteúdo Comunicado
(∏ T1 [...] (T1): ∑ (T1))Ф Subato de Atribuição
(∏ R1 [...] (R1): ∑ (R1))Ф Subato de Referência
] (C1): ∑ (C1))Ф Conteúdo Comunicado
] (M1): ∑ (M1))Ф Move
17
Quadro 5 – Categorias do Nível Interpessoal
3.3.1.1. O Move
17
O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das
unidades do Nível Interpessoal. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.
18
S do inglês speaker (falante) e A de addressee (destinatário).
56
Comunicado (C) com seus argumentos. O Conteúdo Comunicado contém um
número variável de Subatos de Atribuição (A) e de Referência (R), aos quais as
funções pragmáticas são atribuídas.
57
tópico em curso, não é difícil encontrar textos inteligíveis e adequados à norma
padrão que tragam mais de um Move em parágrafo único. Não é raro, por exemplo,
achar parágrafos que tanto desenvolvem um argumento quanto concluem a tese de
um texto. Veja o exemplo:
(21) [...] No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais
evidente é a censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de
seu filho durante a ditadura militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus
e terras em busca de respostas. Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu
heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela individualidade. A história passa um tanto
ao largo.
(M1: [A1: - No entanto, com “Zuzu Angel”... isolado em seu heroísmo – (A1))] (M1))
((M2: [A1: - Por isso mesmo, o filme... tanto ao largo – (A1))] (M2))
(22) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a
Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12
anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a
cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,
vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar
19
Para uma maior compreensão da categoria Ato Discursivo, consulte o tópico seguinte, 3.3.1.2.
58
errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em
transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,
representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.
(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:
DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: INTER (F3)) – Será que
essa... Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ]
(A4)) ] (M1))
(23) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony
estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-
mulher -o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que
nível estamos, se no da vida ou no da representação.
APESAR desses momentos serem intensos, o fato é que, até a cena de
assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua
maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson
Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu
com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama existisse sobretudo para
ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.
[...]
59
Crítica 26 Filme de Cukor aproxima a vida e o palco
Folha de São Paulo, 23/11/08
(24) Temos sempre os dois lados do avanço tecnologico. Mas me questiono diariamente
que como com tantas descobertas sendo realizadas todos os dias, tantos avanços
teconologicos principalmente no campo da comunicação ( Até ontem a internet era uma
novidade, hoje é essencial, indispensável, nao imagino minha vida sem ), como que
doenças graves não tem sua cura ou remedios ? Porque não usarmos em prol de cura
de doenças todo o avanço do mundo atual ? Sei que isso sai completamente de nosso
tema, mas é realmente as vezes revoltante vermos que milhoes são gastos pro homem
ir a Lua enquanto milhares de pessoas morrem desse maldito cancer, desa aids. Fica o
questionamento, o que é mais importante salvar vidas ou o avanço tecnologico ?
Quando há uma guerra ela geralmente acontece por causa que alguém quer ter
o poder, o petróleo ou por dinheiro e a cura das doenças não são divulgadas por causa
do dinheiro, por que os laboratórios dependem dos coquitéis que são vendidos
para obterem seu lucro e eles não querem abrir mão desse lucro.
60
relações entre os atos – funções retóricas – são de Motivação, Concessão,
Orientação e Correção)20.
20
Uma vez que as funções retóricas dos Atos Discursivos não foram utilizadas na análise de dados
de nossa pesquisa, resolvemos não exemplificá-los. Para explicitação, conferir Hengeveld e
Mackenzie (2008, p. 53)
61
marcam Atos Discursivos diferentes, mesmo quando constituídos por mesma força
ilocucionária21.
Para elucidação do primeiro elemento, segue o exemplo abaixo:
(26) Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande
cantora. Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo,
cuja história pessoal e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. [...]
(M1: [ (A1: [ (F1: DECL (F1)) (C1: [ (T1: intensa,..., (Tn)) (R1: Maysa (R1))] (C1)) (C2: [ (T1:
nossa diva... cotovelo (T1)) (R1: Maysa (R1))] (C2)) (C3: [ (T1: inspiraram (T1)) (R1: história
pessoal e música (R1)) (R2: minissérie da Globo (R2))] (C3)) ] (A1)) ] (M1))
21
Para a teoria, há momentos em que a relação entre os níveis ocorre de maneira não-hierárquica,
em que um nível mais baixo influencia um nível mais alto, processo nomeado alinhamento pelos
autores (cf. 2008, p. 316). No entanto, não é isso que ocorre no segundo caso. Não é o Nível
Fonológico que influencia o Interpessoal, mas, sim, este que tem repercussões naquele.
62
caso, subentende-se que o falante deseja enfatizar a informação do segundo
predicado, por isso opta por um período mais curto, de entonação mais marcada. Já
no segundo, isso não ocorre, o que nos mostra que certos padrões prosódicos
modificam não só a orientação discursiva, como também a própria unidade
linguística – no caso, é determinante para a localização de um ou mais Atos
Discursivos.
Além disso, assim como a categoria Move, o Ato Discursivo pode conter
modificadores e operadores. Os modificadores (de caráter lexical) permitem ao
falante comentar ou enfatizar o próprio Ato Discursivo. Veja:
(28) [...] Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma
investigação longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma
nova capitã, Monica Rawling (Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a
desferir um duro golpe nas gangues da área.
63
(29) This IS fun, don’t you think?
Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 65)
3.3.1.3. A Ilocução
64
5. Os declarativos: quando provocamos mudanças no mundo através de
nossas enunciações. Em sentido estrito, dizem respeito a todos os
performativos.
• Optativa (OPT): o falante indica ao ouvinte seu desejo que a situação positiva
evocada pelo Conteúdo Comunicado ocorra.
(30) [...] Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a
Cabeça de Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12
anos). Pois alguém a trará -está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a
cabeça dentro de um saco. Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah,
vai chocar tanto quanto as diabruras, também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar
errado, mas esse tipo de reação visa objetos específicos. Lembra a das pessoas em
transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson Welles, em 1938,
representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.
(M1: [ (A1: [(F1: ADMON (F1)) – Pois mais vale... de Alfredo Garcia – ] (A1)) (A2: [(F2:
DECL (F2)) – E vai executar... de um saco – ] (A2)) (A3: [(F3: MIR (F3)) – Será que essa...
Zé do Caixão? – ] (A3)) (A4: [(F4: DECL (F4)) – Posso estar... o fim dos tempos – ] (A4)) ]
(M1))
66
(31) Scarlett O'Hara queria ir para algum lugar, mas, francamente, ninguém dá a
mínima.
Fonte: Desciclopédia
Em http://desciclo.pedia.ws/wiki/Ningu%C3%A9m_se_importa – acessado em 05/01/10
3.3.1.4. Os Participantes
67
(35) Ai!
Exemplo Construído
Exemplo construído
3.3.1.6. Os Subatos
22
Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 96), o contraste sinaliza o desejo do falante de
externalizar diferenças particulares entre dois ou mais conteúdos comunicados ou entre um conteúdo
comunicado e outra informação contextual disponível. Já a sobreposição sinaliza o desejo do falante
de externalizar semelhanças particulares entre os mesmos elementos.
23
Enquanto os operadores de ênfase podem ser representados fonologicamente como visto em
algumas categorias prévias, os operadores de reportatividade não parecem estar presentes em todas
as línguas. Os autores (2008, p. 104) recorreram à língua indígena peruana Shibipo para
exemplificação do fenômeno, em que um sufixo marca a reportatividade:
69
uma vez que o ato de referir deve ser considerado uma ação pragmática e
cooperativa no processo de interação verbal entre falante e ouvinte (DIK 1978 apud
HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 107). A informação pragmática consiste de
toda informação (de longo termo, situacional e imediata) trazida pela comunicação
em seu processo de interação.
A GDF apóia essa visão, mas acrescenta o termo atribuição (ou adscrição) à
cena. Para os autores, da mesma forma que a referência, a escolha do material
lexical, e a quantidade dele oferecida, é determinada pelo falante, que planeja a
melhor forma de influenciar/persuadir seu destinatário.
24
Embora os encapsuladores representem um Subato de Referência, as entidades que já possuem o
estatuto de referentes não podem ser encapsulados, ou porque representam entidades concretas e
tangíveis ou porque já representam em si um encapsulamento. Por esse motivo, não nos
estenderemos neste tópico.
70
identificabilidade (p. ex. O homem x Um homem) e ênfase (p. ex. vi com meus
próprios olhos).
25
Além dessas categorias semânticas, ainda existe uma outra de quarta ordem, que se refere aos
atos de fala que, localizados no tempo e no espaço, são avaliados em termos de condições de
felicidade. No entanto, como ela se refere ao Conteúdo Comunicado do Nível Interpessoal, essa
categoria não está destacada aqui.
71
b) entidades de segunda ordem: estados-de-coisas. Podem ser localizados
no espaço e no tempo e podem ser avaliados em relação a sua realidade.
26
É importante ressaltar que as três primeiras categorias foram tomadas de Lyons (1977 apud
HENGEVELD E MACKENZIE, 2008) e somente a última foi elaborada por Hengeveld & Mackenzie
(2008).
72
(∏ p1: Conteúdo proposicional
(∏ ep1: Episódio
(∏ e1: Estado de coisas
[(∏ f1: [ Propriedade
(∏ f1: (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade lexical
(∏ x1: (x1): [σ (x1)Ф])Ф Indivíduo
...
] (f1): [σ (f1)Ф]) Propriedade
(e1)Ф]: [σ (e1)Ф]) Estado de coisas
(ep1): [[σ (ep1)Ф]) Episódio
(p1): [σ (p1)Ф]) Conteúdo proposicional
27
Quadro 6 – Categorias do Nível Representacional
27
O quadro nos serve apenas de ilustração. Os símbolos utilizados servem para a taxionomia das
unidades do Nível Representacional. No entanto, tais símbolos não servirão a nossa pesquisa.
73
camada mais alta do NR e correlacionam-se, de forma não-marcada, com o Ato
Discursivo, no Nível Interpessoal. Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 144),
podem ser factuais, quando são pedaços de conhecimento ou uma crença acerca do
mundo real, ou não-factuais, quando são desejos ou expectativas com relação a um
mundo imaginário. Além disso, são caracterizados pelo fato de serem qualificados
em termos de suas atitudes proposicionais (certeza, dúvida, descrença) ou em
termos de sua fonte ou origem (conhecimento comum partilhado, evidência
sensorial, inferência).
Exemplo construído
74
Assim como as categorias do NI, as do NR possuem modificadores e
operadores. Os modificadores do Conteúdo Proposicional são marcados por
expressões que modalizam o grau de comprometimento do falante acerca da
proposição (p. ex. provavelmente, certamente, evidendemente) e os operadores são
marcados por funções gramaticais que tenham o mesmo efeito (veja o exemplo
acima, em que o modal If expressa hipótese).
3.3.2.1.2. O Episódio
(45) [...] Badii viaja por uma região desértica, com seu carro ai encontrando as pessoas a
quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra
resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter
sagrado, etc. [...]
Entretanto, é importante ressaltar que existem textos de tipo narrativo que não
possuem uma sequência narrativa prototípica, como se pode ver no gênero textual
receita, onde as sequências injuntivas presentes nos passos a serem seguidos
possuem unidade ou continuação de tempo, lugar e participantes. Dessa forma,
nesses gêneros, a categoria Episódio também está presente:
75
(46) [...] Peneire a farinha de trigo, o chocolate em pó e o fermento. Reserve. Bata as
claras em neve, junte as gemas peneiradas. Sem parar de bater, junte aos poucos o
açúcar. Com a batedeira desligada, junte aos poucos a mistura reservada [...]
Bolo trufado de brigadeiro branco e preto
http://tudogostoso.uol.com.br/receita/80060-bolo-trufado-de-brigadeiro-branco-e-
preto.html
(47) [...] A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da
Guerra Fria é que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a
liberdade; ALGUNS SEGUNDOS DEPOIS descobrimos que a liberdade consiste em
escolher uma operadora de telefone, ou de escolher certa marca de cerveja.[...]
76
Os modificadores dos estados-de-coisas são as expressões lexicais que
marcam o tempo relativo, o lugar e a frequência de ocorrência; a realidade; o cenário
físico e cognitivo do estado-de-coisas. Veja os exemplos (idem, ibidem).
3.3.2.1.4. As Propriedades
77
grau de definitude dos argumentos, etc28. As últimas referem-se a partes do
discurso, podendo modificar entidades de todas as ordens, como se vê abaixo:
(52) [...] Zuzu aparece aqui como personagem ISOLADO em seu heroísmo [...]
(53) [...] mais familiar, o GORDINHO urso Po quer ser um grande mestre do Kung Fu,
embora esse “excesso de gostosura” pareça um empecilho bem, digamos, polpudo. [...]
28
Neste trabalho, não trataremos das Propriedades Configuracionais, uma vez que elas não
colaboram para a análise de nossos dados.
78
gordo, uma propriedade do indivíduo urso, possui um operador formado por sufixo
diminutivo que lhe atribui intensidade.
3.3.2.1.5. Os Indivíduos
(54) O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas.
Afinal, elas sobrevivem a tudo. Ø Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há
toneladas de sucata por toda parte. Enquanto isso, Ø junta de caixinhas a parte de robôs
como ele. Wall-E enxerga beleza onde só há lixo.
Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que
Ø se apaixona pela evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado
aparece no seu mundo e o domina completamente.
79
Os modificadores de Indivíduos podem expressar qualificação (p. ex. ele era
rico), quantificação (p. ex. eles eram muitos), localidade (p. ex. o homem na lua) ou
tempo (p. ex. os artistas de hoje). Os operadores refletem os mesmos aspectos. Os
exemplos seguem na mesma ordem: homenzarrão, meninada, portaria,
antevéspera.
3.3.2.2.1. Lugar
Para os autores (ibidem), essa distinção se encontra refletida nas funções que
essas palavras ocupam. House, na maior parte das vezes, ocupa um sintagma
nominal e home, um adverbial. Veja o exemplo abaixo, em que, com um mesmo
nome, grifa-se um Lugar e um Indivíduo, respectivamente:
(55) [...] Logo no início da primeira temporada, que estreou em fevereiro NOS EUA, uma
inimiga de Wendy arrisca sua carreira espalhando na mídia suas falahs como mãe. [...]
80
(56) [...] Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos
(os EUA colonizaram culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão
que pai de sua filha é que terá de salvar alguns tantos. [...]
3.3.2.2.2. Tempo
81
3.3.2.2.3. Modo
3.3.2.2.4. Razão
Funcionam à mesma maneira que a categoria de Modo, mas designando a
Razão de um Estado-de-coisas. Assim sendo, a categoria pode ser considerada um
tipo especial de Conteúdo Proposicional, uma vez que ela representa os
pensamentos que levam um falante a agir de determinada forma.
(58)[...] Ali, o essencial são as atrizes negras: Juanita Moore e a bela Susan Kohner no
filme, mãe e filha , não por acaso indicadas ambas para o Oscar. Porque este é um
filme sobre negros, sobre ser negro num momento anterior à conquista da igualdade de
direitos.
POR ISSO, se no filme a mãe vive como se fosse de favor, sua filha, Sarah
Jane, já expressa essa revolta, essa impossibilidade de existir num mundo que tem sua
cor como um defeito de fábrica (na trama, as duas mulheres criam um negócio em
sociedade; as respectivas filhas crescem e conhecem destinos opostos).[...]
82
Crítica 10 – Racismo é tema de aparente melodrama
Folha de São Paulo, 14/09/08
Uma vez que a Razão possui uma natureza proposicional, concebe-se como
seus modificadores os termos que indicam atitude proposicional (p. ex. Ele saiu
porque, aparentemente, sua mãe está doente). Já os operadores são de natureza
quantitativa (p. ex. Há três razões).
3.3.2.2.5. Quantidade
(59) [...] No entanto, a história parece se esvair, esvaziada, ao longo do filme. Tudo
começa na Cinemateca Francesa e segue para a revolta da Cinemateca (que grande
QUANTIDADE de cinéfilos considera o início de maio de 68).[...]
83
Dessa perspectiva, surge a categoria Língua Reflexiva, de função
metalinguística, isto é, que trata da mensagem sobre o código. Hengeveld e
Mackenzie (2008, p 275) destaca-a das outras do Nível Representacional por ser a
única categoria de função textual (Halliday, 1985), e não Ideacional, como as outras
categorias do Nível Representacional. Abaixo, marca-se um exemplo da categoria,
em que o sintagma a explicação apresenta função metalinguística:
84
CAPÍTULO IV
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
85
subjetiva, mas também deve apresentar descrição de aspectos objetivos que dêem
sustentação a seus argumentos.
1) De Conteúdos Proposicionais29;
2) De Episódios;
3) De Estados-de-coisas;
4) De Propriedades.
5) Encapsuladores de Modo;
6) Encapsuladores de Razão;
7) Encapsuladores de Quantidade.
Encapsuladores metalinguísticos
29
Os encapsuladores de Conteúdo Proposicional compreendem os rótulos de processo mental
previstos por Francis (1994, 2003) e os de atividades linguageiras e nomes de textos, aos dois rótulos
de mesmo nome previstos pela autora. Só não há, sob o prisma da GDF, equivalência quanto aos
rótulos ilocucionários, pois as ilocuções pertencem ao Nível Interpessoal para a teoria em análise.
88
CAPÍTULO V
5.1. INTRODUÇÃO
89
gênero em análise, em que, declaradamente, deve-se fazer uma valoração do tópico
discursivo, encontram-se encapsuladores não-axiológicos aos quais, através de
predicações, atribuíam-se propriedades avaliativas e encontram-se encapsuladores
cuja configuração não é claramente definida, como ocorre abaixo, em que o
encapsulador essa convocação, em nossa perspectiva, tem um baixo grau de
avaliação:
90
Encapsuladores semânticos básicos
Episódios Indivíduos
Tempo Razão
Encapsuladores metalinguísticos
30
Como apontado no tópico 4.2.3. do capítulo IV, os indivíduos – entidades de primeira ordem – não
podem ser encapsulados, uma vez que sempre possuem o estatuto de referentes. Paralelamente,
excetuam-se da análise os atos ilocucionários – entidades de quarta ordem –, já que pertencem ao
Nível Interpessoal, conforme citado na nota 25, página 71, capítulo III.
91
5.2.1. Encapsuladores de Conteúdo Proposicional
São aqueles que capturam (ou inferem) seja a própria atitude proposicional
expressa (certeza, dúvida, descrença), seja a sua origem (conhecimento comum
partilhado, evidência sensorial, inferência) em uma predicação ou segmento maior
de texto.
(62) [...] De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um
grupo de aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que
raptou sua mulher (Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é
interessante e tensa. Mas existe, sobretudo, A DÚVIDA: teria sido ela, de fato, raptada?
Entramos num terreno muito frequentado por Brooks: o da liberdade feminina.[...]
92
(63) [...]A consciência do corpo é um dado expressivo no cinema de Paul Verhoeven.
Consciência que vem da própria situação na qual estão os personagens, geralmente
esmagados pelo sistema. É UMA CONSTATAÇÃO, então, que ultrapassa o físico para
chegar a algo além: o próprio mundo. É assim com o corpo biomecânico do policial que
é utilizado por uma megacorporação em "Robocop".[...]
(65) [...] O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não
recomendado a menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou
"certo é errado". Vale, primeiro, do ponto de vista do enredo, em que um famoso
jornalista de TV (Sean Connery), com ligações importantes no Oriente Médio, se vê a
horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual não tem a menor
influência.
A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que
as jogariam em Israel. Ele tomaria ESSA ATITUDE como represália ao presidente dos
EUA, que deseja tirá-lo do poder.[...]
93
original. O falante poderia remeter-se a um trecho de relato, por exemplo,
categorizando-o como atitude, análise, hipótese, muito embora ele não seja o
enunciador de tal segmento.
(66) [...]Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony
estrangula não só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-
mulher o público do teatro, e nós também, ficamos em suspense, sem saber em que
nível estamos, se no da vida ou no da representação.
Embora ESSES MOMENTOS sejam intensos, o fato é que, até a cena de
assassinato (sim, acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua
maior vocação é para uma magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson
Kanin escreveu com maestria (às vezes na companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu
com a sensibilidade que se conhece. [...]
(67) [...]E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a
do cinema de gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título,
inclusive, é um CGI confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo
bonito na indústria, Bong faz de seu filme algo extremamente político.
Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos
(os EUA colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão
que pai de sua filha e que terá de salvar alguns tantos.
NESSE CLIMA UM TANTO TRESLOUCADO, há espaço também para o terror,
até o desfecho que emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV
brasileira exibia nos anos 70. Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.
94
Acima, os exemplos (66) e (67) encapsulam os episódios expressos pelos
segmentos destacados, transformando-os em tópico discursivo. Tais tipos de
encapsuladores são muito frequentes em nosso corpus, sobretudo nos parágrafos
que marcam a transição narração-argumentação. Acredita-se que tal recurso de
remissão seja favorável ao próprio gênero discursivo em análise, uma vez que um
enredo ou parte de enredo torna-se produto a ser avaliado.
(68) [...] Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da
doméstica paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm
planos de morar juntas perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e
põe Lala numa viagem de descoberta ao país vizinho.
(69) [...]Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior,
uma nova aposta foi feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball),
os episódios continuaram a exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar
num dos leitos do Princeton Plainsboro Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma
clínico passou a causar um impacto mais significativo nos relacionamentos entre os
personagens.
A série, ENTÃO, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade
entre capítulos e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no
final da quarta temporada, quando House não consegue salvar da morte a namorada do
melhor amigo, o oncologista Wilson (Robert Sean Leonard). [...]
95
Crítica 09 "House" luta para não virar "one-man-show"
Folha de São Paulo, 28/09/08
(70) [...] Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de
Alzheimer. O roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no
que tem de particular ou de geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de
modo que não devemos estabelecer uma relação obrigatória entre idade e doença). É
culta, casada há muitos anos, ama e é amada.
ESSA ÚLTIMA CIRCUNSTÂNCIA é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma
"love story" para ser engolida pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a
saber: a perda progressiva de memória.[...]
96
estabelecer relações, construir o dizer e o existir (HALLIDAY 1985 apud CUNHA e
SOUZA, 2007, p.54), eles serão, muitas vezes, encapsulados por uma
nominalização31, muito embora nem sempre esse processo seja feito por uma
palavra cognata, tal como ocorre nos exemplos a seguir em que essa convocação
representa uma nominalização que remete ao segmento que tem como base a
forma verbal conclamara e desse ardiloso embaralhamento, que tem como base
a forma verbal misturando:
(71) [...] Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de
maneira ufanista o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro
da Educação, Jarbas Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes
sobre temas históricos. "Os Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim
Pedro de Andrade a ESSA CONVOCAÇÃO.[..]
Crítica 13 Cineasta revisita Inconfidência com ironia
Folha de São Paulo, 07/09/08
(72) [...] O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta
convidava mulheres a falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se
apresentaram, 23 foram selecionadas e filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce
Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus entrevistados como "personagens", em
"Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso, misturando depoimentos de
mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas
por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão, Fernanda
Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.
O efeito DESSE ARDILOSO EMBARALHAMENTO é deixar o espectador sem chão, em
dúvida sobre quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem,
afinal, viveu o quê. [...]
31
Durante a análise, chegamos a especular que a nominalização seria um encapsulador de
Propriedades. No entanto, embora a nominalização tenha como base o verbo de um predicado,
remete-se a todo o Estado-de-coisas. Por isso, foi categorizada como um encapsulador desta
categoria.
97
Não obstante, em nosso corpus, foram bastante frequentes os casos em que
houve remissão a Estado-de-coisas por encapsulamento por demonstrativo, de
função endofórica. Acredita-se que tal aspecto se deve ao fato de que alguns
Estados-de-coisas representem, na maioria das vezes, o foco comunicativo e, por
serem a informação mais saliente na memória do falante, este recorre ao pronome
demonstrativo32 apenas, transformando o Estado-de-coisas em tópico. Inclusive,
como defende Levinson (1991 apud NEVES 2006, p. 93), o falante preferirá, sempre
que possível, zero a pronome, e pronome a sintagma nominal pleno (grifo meu).
Abaixo, seguem dois exemplos, em que isso encapsula Estados-de-coisas:
(73) [...] Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que
seriam os bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um
episódio da série, que foi de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de
criatividade de um formato -a sitcom, com três câmeras e riso da plateia- inventado nos
anos 50 e que dura até hoje. Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não
será de verdade. É o que a tribo de espectadores vem descobrindo a cada semana. Por
exemplo, nos quatro episódios exibidos até agora, os quatro atores de "Seinfeld" só
aparecem em um -nos outros, são só mencionados, aparecem em pequenas cenas ou
nem ISSO.[...]
(74) Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas
jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos
que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes
sociais distintas. Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da
diretora argentina Lucía Puenzo, "XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano
passado e premiado em festivais mundo afora (como em Cannes), sobre os conflitos de
jovem hermafrodita.
32
Uma observação importante: em todo nosso corpus, apenas a categoria Estado-de-coisas foi
encapsulada por sintagmas exclusivamente demonstrativos. Nas categorias semânticas secundárias,
como veremos a seguir, embora os núcleos das categorias Modo, Razão e Quantidade possam ser
pronomes demonstrativos, eles se encontram sempre em uma locução prepositiva ou conjuntiva.
98
"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que ISSO não
era importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam
viver o romance de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz
Puenzo, 32, à Folha, por telefone.[...]
(75) [...] Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se
apaixonar por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Woody Allen) vai parar
na típica republiqueta latino-americana de San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para
acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu
poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de
Allen, que insere filmetes paralelos -que poderiam ser campeões no YouTube-, como o
sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o comercial do
cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens e nos situam
na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se compromete com
nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de
campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.
99
Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura
caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos
frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para
saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de
seu olhar oblíquo. Comediantes têm ESSA QUEDA por inverter o olhar.[...]
(76) Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de
Deus e ainda jovem o bastante para odiar isso.Nos seus piores momentos, tem a
verve de um poeta marginal afiado. É um chato com alguma razão que explica sua
má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes. Chega na casa da ex-
namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea Sophie
(Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny
leva o trio a um colapso imediato.
Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo
lembrando "Depois de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original.
Se na noite nova-iorquina de Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de
Leigh Johnny é o motor de tensões constantes.
33
cf. GARY-PRIEUR, Marie-Nöelle; NOAILLY, Michèle. Demonstrativos Insólitos. In: CAVALCANTE,
M. N; RODRIGUES, B. B; CIULLA, A (Orgs). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.
100
ESSA DUREZA tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também
percebido em "Kes" (1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema
britânico lançado há pouco pela mesma distribuidora Lume Filmes.[...]
(77)[...] Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de
duas jovens que se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão
burlescos que, no final das contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de
classes sociais distintas.
ESSA NATURALIDADE PARA O "DIFERENTE" já estava no primeiro longa
da diretora argentina. [...]
Argentina narra fantasia de casal gay
Folha de São Paulo, 01/11/09
34
Como afirmado no tópico 5.2.2., as categorias de lugar e tempo não são encapsuladoras.
101
5.3.1. Encapsuladores de Modo
Podem ser de dois tipos: 1) aqueles que fazem remissão a uma circunstância
de modo expressa no texto, encapsulando não apenas o modo, como também o
Estado-de-coisas. O que o difere de um encapsulador de Estado-de-coisas é o fato
de ser representado por um nome ou advérbio que indica a função de modo,
deixando-se, assim, a circunstância em evidência. 2) aqueles que, embora não haja
circunstâncias de modo nos conteúdos a que se remetem, encapsulam um ou mais
Estados-de-Coisas e atribuem-lhe ad hoc tal circunstância. Seguem os exemplos:
(78) [...] Um dos conceitos básicos desta teoria é que nenhum objeto físico deste
universo pode viajar a uma velocidade maior que a velocidade da luz ou seja, nenhum
objeto pode viajar a uma velocidade maior que 300.000 km/s (aproximadamente). Mas,
sem dúvida, o conceito mais importante da Teoria da Relatividade é a famosa afirmação
2
da "equivalência entre massa e energia", expressa através da equação E=mc . Essa
fascinante fórmula nos diz que, devido a relatividade, a massa de um corpo aumenta
quanto mais rapidamente este se mover. DESSE MODO, o corpo ganha energia cinética
(a energia de movimento) que é diretamente proporcional a massa do corpo e ao
quadrado de sua velocidade. Como o aumento da massa acarreta um aumento da
energia, fica fácil perceber que a massa está relacionada à energia e, logicamente, a
energia a massa. Ambas são equivalentes! Assim, quanto mais um objeto se aproxima
da velocidade da luz, mais e mais massa (ou seu equivalente em energia) será
necessário para aumentar a velocidade do objeto, crescendo geometricamente de tal
modo que no limite da velocidade da luz tende ao infinito. [...]
VELOCIDADE DE DOBRA
http://inpu.sites.uol.com.br/veldobra.htm - acessado em 15/01/10
(79) Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro,
coldre nas costas e dá um beijo no bebê. ASSIM dá início a mais um dia. Mas não da
atriz carioca de 43 anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que
tem lançamento neste mês em DVD.[...]
102
Em (78), desse modo encapsula “mover mais rapidamente”, em que há
explícita uma circunstância de modo. Já em (79), não há circunstância de modo
expressa no trecho a que assim se refere. Nesse caso, infere-se que tal
circunstância depende mais do discurso, no momento em que a designação é feita.
(80) [...] O Procurador de Udine, Antonio Biancardi, autorizou nesta quarta-feira o enterro
de Eluana Englaro, 38, a italiana em coma há 17 anos e que a família ajudou a morrer
nesta segunda-feira (9) depois da suspensão da alimentação e hidratação.
Ela morreu de sede após 17 anos. A autorização da Justiça coincide com a opinião
do procurador-geral da Corte de Apelação de Trieste, Beniamino Deidda, que afirmou
nesta quarta-feira que a causa da morte da jovem é compatível com o protocolo
médico.[...]
(81) [...] Existe UMA, e apenas uma, RAZÃO para o lançamento de "Uma Vida sem
Regras" no Brasil: Robert Pattinson estar no papel principal.[...]
35
Na GDF, a categoria Razão compreende circunstâncias de causa. Por esse motivo, elucidamos tal
circunstância na nomeação
103
Em (80), a causa faz remissão à locução adverbial de sede e ao Estado-de-
coisas expresso, isto é, morrer de sede. Já em (81), uma razão encapsula o
segmento destacada como motivo para lançamento de um filme no Brasil.
(82) Você sabe que eu viajo várias vezes ao ano e ainda não se acostumou com tal
frequência?
Exemplo construído.
104
(83) [...]Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e
Taylor, 26. Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme
com impressionante maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o
provocativo texto de Tennessee Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente'
tem de mais memorável: o duelo entre Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico
da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que acompanha o DVD.
O livro traz, AINDA, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo
Tennessee Williams e um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre
outras informações e curiosidades.
105
Quantidade; de afirmação, negação e dúvida em Conteúdo Proposicional36.
Portanto, confirmou-se que todas as categorias semânticas de uma unidade
linguística estão presentes, como muito bem afirmaram Hengeveld e Mackenzie
(2008, p. 128).
36
Nessa investigação, analisamos também advérbios menos frequentes, como de concessão,
conformidade, companhia, finalidade, referência. No entanto, eles representavam ou outras
categorias da GDF, ou operadores e modificadores de uma categoria.
106
(86) [...]UMA FRASE entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é
ilegal". A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já
havia feito sucesso no teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o
roteiro do longa, que emplacou cinco indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro,
ator dramático para Frank Langella (que vive Nixon) e trilha.
Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento"
para Nixon levanta OUTRO QUESTIONAMENTO nos EUA: estaria levando o ex-
presidente à segunda instância, com possível redenção por mostrar seu lado mais
humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a tendência autodestrutiva?[...]
(87) [...]"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com
outro garoto. Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o
aniversariante tentava descobrir o que seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde.
Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-fio, num cruzamento, e foi
imediatamente atropelado por um carro." Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", O
TRECHO acima ilustra o estilo seco de observação do cotidiano que caracterizava o
norte-americano Raymond Carver (1939-1988).[...]
107
5.5.1. Abordagem mais ampla dos encapsulamentos semânticos
108
segmento de texto, como também no contexto discursivo-pragmático, como
percebemos no exemplo a seguir:
(88) Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar
por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica
republiqueta latino-americana de San Marcos. De sequestrado pelos rebeldes acaba se
tornando presidente. (Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso
país para acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm
seu poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos
de Allen, que insere filmetes paralelos que poderiam ser campeões no YouTube,
como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o
comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens
e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se
compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que
promessa de campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que
aceitamos acreditar.
NESSA FASE PALEOLÍTICA, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua
figura caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos
frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para
saber tudo sobre sexo. Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de
seu olhar oblíquo. Comediantes têm essa queda por inverter o olhar.[...]
Críticam 45 – “Bananas”
Folha de São Paulo, 11/01/09
109
5.5.3. O papel atributivo dos encapsulamentos
110
que esse seja um movimento natural dos estudos sobre referência, que, em seu
atual estágio, precisa opor-se a uma corrente que vise apenas à estabilidade.
111
critérios de ordem sintática, uma vez que pertence ao NR, hierarquicamente acima
do Morfossintático.
112
Crítica 41 – Coutinho deixa o espectador sem chão
Folha de São Paulo, 07/12/08
113
taxionomia do NR37. Defende-se que um futuro estudo de tais aspectos seja um bom
caminho a ser percorrido. Pensa-se que tanto entender em que dimensão se
encontra um encapsulamento, se no Nível Interpessoal ou Representacional, quanto
aferir de que forma os operadores e modificadores das categorias previstas pela
GDF colaboram na referenciação pode ser um grande auxílio na compreensão do
processo de argumentação dos textos.
37
Como abordamos na Introdução desta pesquisa, trata-se de uma abordagem discursivo-funcional,
muito embora isso não descarte a dimensão sociocognitiva. Tratam-se de teorias complementares.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola ensina os alunos a ler e a escrever orações e períodos e exige que interpretem
e redijam textos. Algumas pessoas poderiam dizer que essa afirmação não é verdadeira,
porque hoje todos os professores dão aulas de redação e de interpretação de textos.
Mas como é uma aula de redação? O professor põe um tema na lousa, pede que os
alunos escrevam sobre ele, corrige os erros localizados no nível da frase. A aula de
interpretação de texto consiste em responder a um questionário com perguntas que não
representam nenhum desafio intelectual ao aluno e que não contribuem para o
entendimento global do texto. Muitas vezes, o professor não se satisfaz com os textos e
os roteiros de interpretação dos livros didáticos, seleciona algum texto e faz uma bela
interpretação em classe. Se o aluno lhe pergunta como enxergar numa produção
discursiva as coisas geniais que ele nela percebeu, costuma apresentar duas respostas:
para analisar um texto, é preciso ter sensibilidade; para descobrir os sentidos do texto, é
necessário lê-lo uma, duas, três, n vezes.
[...]
[...]
38
José Luiz Fiorin
38
Cf. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
115
Neste estudo, realizou-se uma análise qualitativa da categorização dos
encapsulamentos semânticos – de metafunção ideacional e textual – a partir do
exame de textos de crítica de cinema e TV, pertencentes à esfera jornalística e
publicados na Folha de São Paulo online. Para tanto, tomou-se como base o Nível
Representacional da Gramática Discursivo-Funcional, uma vez que ela prevê todos
os aspectos semânticos de uma unidade linguística.
116
ouvinte/leitor, de qual segmento do discurso é encapsulado se uma atitude
proposicional, se um episódio, se uma propriedade etc. possa ser uma ferramenta
relevante à análise dos pontos de vista defendidos no texto. Pode-se, por exemplo,
constatar que um discurso de outrem é encapsulado, pelo produtor do texto, como
dúvida, crença, atitude, muito embora o segmento em si não tenha essa conotação.
Cabe lembrar que, com a linguagem, faz-se muito mais do que nomear. Com
um encapsulamento, por exemplo, não apenas se nomeia um segmento discursivo,
pois, por trás deste, há a intenção de identificar algo a alguém, um querer dizer, um
significar que demanda a leitura do contexto, dos propósitos da fala naquela
determinada circunstância. Na verdade, não há objetos discriminados,
individualizados em si, com propriedades essenciais, intrínsecas,
independentemente de uma conceptualização cultural, linguística, semiótica, como
defende a pragmática.
117
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
119
CONTE, Maria-Elisabeth. Encapsulamento Anafórico. In: CAVALCANTE, M;
RODRIGUES, B. (Org.). Referenciação Clássicos da Linguística. Vol 1. São Paulo:
Contexto, 2003. p.177-190.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
120
GARCIA VELASCO, Daniel. Lexical Competence in Functional Discourse Grammar.
Revista Alfa, volume 51, número 2, 2007. p. 165-187.
121
__________. Cohesion in Functional Grammar. In: BUTLER, C., CONNOLLY, J.,
GATWARD, R; VISMANS, R. (Org.). Discourse and Pragmatics in Functional
Grammar (Functional Grammar Series 18). Berlin: Mouton de Gruyter, 1997, p. 1-16.
KOCH, Ingedore G.V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.
122
__________. Cognição e processamento textual. Revista da Anpoll, vol. 2, 1996,
p.35-44.
123
MODESTO, A. T.T. Abordagens Funcionalistas. Revista Letra Magna. Ano 03. No. 4.
1o. semestre de 2008. 10p.
NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006.
124
RONCARATI, Cláudia; NEVES DA SILVA, Sílvia. A construção da referência e do
sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa. In: Revista Gragoatá, no. 21, UFF,
2006. p. 319-338.
SALOMÃO, Maria Margarida. Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo
sociocognitivo da referência. In: KOCH, I.V; MORATO, E. M; BENTES, A. C.
Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1971.
SEARLE, J. R. Les Actes de langage. Paris: Hermann, 1972. (1e ed. Speech acts,
Cambridge, 1969).
125
SOUZA, Edson.R.F. Gramática Funcional: Da oração ao discurso. Revista eletrônica
Domínios da Linguagem, ano 2, no. 1, p. 1-28, 2008.
126
ANEXOS
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Uma pessoa reclama por ter tido de assistir, sem prévio aviso, a um trailer do mais recente
filme de Zé do Caixão. Eram cenas chocantes, diz.
Poucos dias antes podia-se ver, num programa jornalístico matinal, o vídeo da cena em que
um homem, a menos de um metro de distância, pelas costas, dá um tiro na cabeça de um ex-
empregado.
Não me lembro de ninguém reclamando por ter visto essa cena. Não recordo de nenhuma reação
escandalizada da censura do Ministério da Justiça. A censura, assim como a sensibilidade da pessoa
do trailer, parece vitimar apenas o imaginário. Um assassinato "real" pode ser visto, talvez porque
seja real. Um assassinato nas mesmas circunstâncias, num filme, é proibido a menores de 18 anos
porque é chocante.
Pois mais vale que pessoas tão sensíveis passem longe de "Tragam-me a Cabeça de
Alfredo Garcia" (TC Cult, 11h45; não recomendado para menores de 12 anos). Pois alguém a trará -
está feito o aviso. E vai executar um longo trajeto com a cabeça dentro de um saco.
Será que essa cabeça, devida ao fantástico Sam Peckinpah, vai chocar tanto quanto as diabruras,
também fantásticas, do Zé do Caixão? Posso estar errado, mas esse tipo de reação visa objetos
específicos. Lembra a das pessoas em transe histérico para quem o programa de rádio no qual Orson
Welles, em 1938, representava a invasão da Terra por alienígenas era, de fato, o fim dos tempos.
(02) Buñuel mergulha na fantasia para ironizar donos do poder. Vencedor do Oscar em 1973,
filme traz diretor espanhol em sua melhor forma
127
COLUNISTA DA FOLHA
"O Discreto Charme da Burguesia", rodado na França em 1972, é Luis Buñuel em sua melhor
forma: na linguagem fluida e livre dos sonhos, um ataque implacável aos donos do poder político,
material e moral.
Em lugar da fúria anárquica dos primeiros filmes, o diretor, já setentão, destila uma ironia
sutil, um humor sereno.
O roteiro sagaz, em parceria com Jean-Claude Carrière, não conta propriamente uma história,
mas esboça uma série de tramas que se desfazem. Sonhos dentro de sonhos, anedotas e lendas
enxertadas, pistas falsas, elipses bruscas. Ver essa obra, Oscar de filme estrangeiro em 73, é pisar o
terreno movediço da fantasia e do desejo.
A primeira sequência dá a senha da situação que se repetirá com variações, como um
pesadelo recorrente: amigos burgueses chegam para jantar na casa de um casal e descobrem que os
anfitriões os esperavam apenas para a noite seguinte.
Dali partem todos, incluindo a dona da casa, para um restaurante nas redondezas, onde,
quando estão prestes a fazer seus pedidos, descobrem que, num canto do salão, desenrola-se o
velório do proprietário. Daí até o final, serão inúmeras as refeições frustradas, pelos motivos mais
diversos: batida policial, manobras militares, ataque terrorista.
A figura-chave do grupo de grã-finos é Rafael Acosta (Fernando Rey), embaixador da
republiqueta sul-americana de Miranda. Traficante de cocaína em conluio com seus amigos
burgueses e com o establishment local, Acosta é o elo entre a Europa supostamente civilizada e o
Terceiro Mundo miserável, corrupto e atrasado. Um não vive sem o outro.
Buñuel é impiedoso com o teatro de máscaras das elites. Numa cena memorável, um homem
(Julien Bertheau) passa de bispo a jardineiro numa simples troca de roupa. O hábito desfaz o monge.
Questionado sobre a presença de um antigo chefe de campo de concentração nazista em seu país,
Acosta diz: "Chamá-lo de carniceiro é um exagero. Estive com ele um par de vezes e constatei que é
um homem simpático e distinto".
São todos simpáticos e distintos nesse grupo de discretos monstros, com a roupa certa, o
vinho adequado e as fórmulas de conveniência na ponta da língua. Buñuel ri deles, de nós e de si
próprio.
128
(03) Versão "envelhecida" de "Sex" é mais do mesmo
CRISTINA FIBE
DA REPORTAGEM LOCAL
A nova Miranda
129
LIPSTICK JUNGLE
Quando: estréia amanhã, às 22h
Onde: na Fox
Classificação indicativa: não recomendada para menores de 16 anos
Avaliação: regular
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
É incrível a solidão de Gustavo em "O Príncipe" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado
para menores de 14 anos). Voltando da Europa, onde viveu por 20 anos, ele não se reconhece em
sua cidade, que mudou inteiramente.
Em São Paulo, ele viverá alguns reencontros, não apenas com a cidade, mas com amigos.
Os lugares, no entanto, são fundamentais. É na praça D. José Gaspar que um amigo (Otávio
Augusto) recita trechos de "A Divina Comédia" em altos brados. Essa já foi "a praça da Biblioteca", da
Galeria Metrópole, do Paribar. Agora é um buraco ocupado por moradores de rua. As mudanças de
São Paulo induzem à solidão. O reencontro com a antiga amada é, como de ofício, a constatação do
desencontro.
E seu bairro, a bucólica Vila Madalena, virou o bairro dos bares, do trânsito e da barulheira noturna.
Esses 20 anos de distância mostram onde o filme se constrói: sobre um hiato, sobre uma brecha na
qual o tempo se perde, como se a cidade ao se construir executasse um percurso errático, um
labirinto em que não existe memória possível, onde as experiências se perdem como se fossem
produto da imaginação.
Para combater esse filme cheio de virtudes, valia, quando estava em cartaz, usar qualquer
argumento. Agora, passado o tempo, talvez ele possa ser visto sem a paixão destrutiva que tanto se
usa para policiar nossos bons filmes.
130
CRÍTICO DA FOLHA
Um bom título já é meio caminho andado para o sucesso de uma produção. "Californication",
que se traduziria como "californização", resulta da fusão do nome do Estado norte-americano com a
palavra "fornicação". É, pois, sob o signo da devassidão que se retrata a vida de um quarentão nesta
série criada por Tom Kapinos (oriundo da cândida "Dawson's Creek"), cujos 12 episódios que
compõem a primeira temporada acabam de sair em DVD. A produção, exibida nos EUA pelo
Showtime, principal concorrente da HBO no campo dos seriados adultos, marcou a volta de David
Duchovny (o agente Fox Mulder de "Arquivo X") à linha de frente da TV. Duchovny faz Hank Moody,
um escritor de Nova York que parte para Hollywood em busca de melhores oportunidades (leia-se, o
atraente mercado de roteiristas), mas lá só encontra melhores condições para "apodrecer sob o sol
da Califórnia".
Referências
Movido a álcool, cigarros e sexo desenfreado, Hank é uma versão contemporânea do Dante
que parte para a temporada no inferno em busca de sua Beatriz na "Divina Comédia". É também uma
releitura de Jay Gatsby em sua paixão nunca satisfeita por Daisy no romance icônico de F. Scott
Fitzgerald sobre os frenéticos anos do jazz. É impossível também não encontrar nele ecos dos auto-
retratos de Charles Bukowski em seu encanto pela degradação. Mas as referências eruditas não
passam de trampolim de onde Kapinos arranca elementos para pintar o mal-estar de seu
personagem (e o olhar deste sobre nossa época). Muito mais explícita é a trajetória rock'n'roll de
Hank em seu apetite por (auto)destruição.
Delírios
Já na cena de abertura do piloto o escritor delira sobre um altar diante de uma imagem de
Cristo quando uma freira se aproxima dele e lhe oferece candidamente um boquete. Naquele
momento antológico, o que se ouve na trilha são os Stones alertando que "você nem sempre pode ter
aquilo que quer". Ao longo dos 12 episódios serão inúmeras as outras referências (Dylan, Lou Reed,
Radiohead, Sex Pistols, Guns N" Roses, uma aparição de Henry Rollins) ao espírito decadente que
consuma o rock. Dele vêm os sons, a cor e a dor que tornam tão digno de comoção este herói sem
nenhum caráter.
CALIFORNICATION - 1ª TEMPORADA
Distribuidora: Paramount
Direção: Tom Kapinos
Quanto: R$ 49,90, em média
Avaliação: bom
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos
Folha de São Paulo, 17/08/08
131
(06) Com Glenn Close, série vê lado podre da vida
BRUNO PORTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos pilares do maior seriado de todos os tempos, "Família Soprano", era a noção de que
o ser humano não tem salvação. À medida que as temporadas avançavam, os personagens iam
sendo tragados por suas personalidades atormentadas.
"The Shield", cuja quarta temporada acaba de ser lançada aqui em DVD (foi exibida nos EUA,
em 2005, e no Brasil, pelo canal AXN, que não transmite mais a série), se vale de uma dinâmica
parecida e, em função disso, foi saudada diversas vezes por jornalistas americanos como a nova
"Soprano". Tendo como pano de fundo uma delegacia responsável por uma das regiões mais
violentas de Los Angeles, a série é centrada em Vic Mackey (Michael Chiklis, de "Quarteto
Fantástico"), um policial que só cumpre a lei quando ela está a seu favor.
No início do seriado, Mackey parecia mais interessado em enriquecer à custa do submundo
do que em acabar com ele. Na segunda e terceira temporadas, porém, ele começou a perceber que
sua ambição poderia destruir não só o seu futuro como o de sua família.
A quarta temporada é um desdobramento dessa pausa para reflexão. Ela começa meses depois do
final da temporada anterior, com o personagem de Chiklis tentando recomeçar sua vida. Dois dos
homens que integravam uma espécie de tropa de elite que ele liderava foram transferidos para outras
delegacias, deixando-o isolado.
Além disso, as missões arriscadas que comandava foram substituídas por uma investigação
longa e burocrática. Esse quadro muda quando a delegacia ganha uma nova capitã, Monica Rawling
(Glenn Close), uma mulher honesta que chega disposta a desferir um duro golpe nas gangues da
área.
Mackey compra a briga de Monica e esboça ter reencontrado o gosto pela profissão de policial. O
envolvimento de um amigo com um criminoso, porém, faz com que ele volte a recorrer aos métodos
do passado. Não é só o caráter de Mackey que apresenta sinais de deterioração. Dois outros
personagens importantes da série, o ex-capitão e agora vereador David Aceveda (Benito Martinez) e
o detetive Dutch (Jay Karnes), dão sinais de estarem perto de perder o controle sobre seus demônios
interiores.
A escalação de Glenn Close para o papel de Monica deixou fãs de Chiklis em estado de alerta: eles
temiam que a atriz de "Ligações Perigosas" acabasse tirando os holofotes de cima do ator. Um temor
que acabou não se confirmando: contida, Close brilha, mas Chiklis não fica atrás.
Regada a violência e a temas polêmicos, "Shield" tem pouco ou nada a ver com a maioria das
séries atuais. Ela quer entreter, sim, mas faz isso percorrendo algumas das vielas mais escuras e
fétidas da alma humana.
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THE SHIELD
Distribuidora: Sony
Quanto: R$ 79,90 (4 DVDs)
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos
Avaliação: ótimo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
133
O cinema sofre de uma perversão toda sua: o grande tema. Ninguém nunca disse, por
exemplo, que a "Monalisa" de Leonardo seria melhor se representasse uma santa. Mas, quando um
filme fala de racismo, torna-se significativo só por isso e até ganha o Oscar, como "A Luz É Para
Todos" (TCM, 18h; livre), em 1948.
Oscar injusto (para filme e direção), por sinal, porque Elia Kazan ainda era um diretor de
recursos bem limitados, que se preparava para maiores vôos.
Um desses vôos é "Vidas Amargas" (TCM, 20h; classificação não informada), de 1955, que
deu a James Dean o prêmio de melhor ator, como o jovem que se sente impotente diante da figura
paterna. O filme foi rodado em cinemascope, de modo que, se não houver duas amplas tarjas negras
acima e abaixo da imagem (numa TV tradicional), o melhor é mudar de canal, nem que seja para ver
o Silvio Santos, pois estaremos diante de qualquer coisa que não "Vidas Amargas".
Para completar o dia dedicado a Kazan, o canal propõe "Sindicato de Ladrões" (22h;
classificação não informada) e "Clamor do Sexo" (23h50; classificação não informada). No primeiro
caso, 1954, Kazan estava em plena maldição do macarthismo, mas deu a volta por cima, inventou um
assunto e ganhou um Oscar bem merecido. No segundo, fez sua obra-prima com a história de um
amor de juventude (escrita por William Inge). Historinha, quase, mas grande filme.
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
A quinta temporada de "House" acaba de estrear nos Estados Unidos -e chega ao Brasil, pelo
Universal Channel, até o fim do ano-, apontando para uma necessária virada dramatúrgica.
O show começou bem em 2004 com uma original abordagem do mundo médico, por meio da
controversa e bem-humorada figura do dr. House -uma espécie de Jack Bauer ("24 Horas") do mundo
hospitalar, que quebra todos os protocolos da área, exaspera o senso comum, mas sempre traz a
solução correta ao final.
Os pacientes chegam às suas mãos prestes a morrer de doenças misteriosas que ele e seu
time têm de resolver por meio de decisões rápidas e de alto risco. Quando todos apontam para um
diagnóstico que parece ser o certo, mas que não se traduz na cura, House tem uma sacada inusitada
e salva os coitados.
Essa fórmula funcionou bem nas primeiras temporadas. Não só por conta do fantástico
humorista que é o britânico Hugh Laurie, ex-parceiro do célebre Stephen Fry, mas porque sua equipe
funcionava bem nos momentos de tensão em que se discutiam os quebra-cabeças.
Era, porém, previsível que o formato logo cansaria. E, na temporada anterior, uma nova aposta foi
feita. Copiando um pouco o modelo de "Six Feet Under" (Alan Ball), os episódios continuaram a
134
exibir, no começo, um caso desesperador que logo iria parar num dos leitos do Princeton Plainsboro
Hospital, em Nova Jersey. Só que o enigma clínico passou a causar um impacto mais significativo
nos relacionamentos entre os personagens.
A série, então, passou a evoluir como uma novela, trazendo mais continuidade entre capítulos
e com os dramas individuais ganhando consistência. O ápice deu-se no final da quarta temporada,
quando House não consegue salvar da morte a namorada do melhor amigo, o oncologista Wilson
(Robert Sean Leonard).
Quando a atual temporada começa, House está fazendo de tudo e até contrata um
investigador particular, para reconquistar a amizade perdida. Porém, apesar de estar sofrendo, o
genial médico não fica mais "humano". Segue tratando mal os enfermos e não se importando com a
ética que deveria reger a relação médico-paciente. O sumiço de Wilson -que funcionava como o
Watson de Sherlock Holmes- fará com que os roteiristas sejam obrigados a dar mais vigor aos
personagens que sobraram em torno do misantropo House -e que a essa altura já não são muitos.
De outro modo, a série corre o risco de reduzir-se a um "one-man-show". Laurie é um grande
ator e humorista, mas precisa de boas tramas e interlocutores combativos para que "House" siga
sendo o excelente espetáculo que conseguiu transportar o suspense hitchcockiano para a mesa de
cirurgias.
Avaliação: bom
Folha de São Paulo, 28/09/08
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
135
Assim como certos preconceitos se escondem meticulosamente, "Imitação" é um grande
filme, dos maiores, escondido sob a pele do melodrama por este cineasta tão independente que,
após este filme, quando o vento batia só a seu favor em Hollywood, fez as malas e voltou para a
Alemanha.
Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, antes dos ataques do 11 de Setembro e
dos acidentes com os ônibus espaciais, um trio de roteiristas ousou ver em desastres aéreos uma
fonte de piadas. Com um orçamento ridículo (para os padrões americanos) de US$ 3,5 milhões,
"Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" ultrapassou a mais delirante das estimativas e arrecadou o
equivalente a mais de 20 vezes o quanto custou. O lançamento em DVD do filme de 1980,
acompanhado da inevitável continuação, feita dois anos depois por outro time, é oportunidade para
verificar se o humor daqueles tempos ainda é capaz de fazer alguém rir. O alvo dos irmãos Jerry e
David Zucker, ao lado de Jim Abrahams, eram as produções do tipo "Aeroporto", uma franquia dos
chamados "disaster-movies", típica dos anos 70. Enquanto esses espetáculos-catástrofes eram
superproduções (para os padrões da época), os Zucker e Abrahams conceberam sua paródia em
esquema de filme B, com elenco anônimo, efeitos especiais precários e muita gozação sobre a
seriedade alheia. A idéia central do trio foi pirar sobre a cultura acumulada por qualquer estudante de
cinema ou consumidor compulsivo de filmes e deslocar o sentido de cenas e situações de
reconhecimento imediato, produzindo um curto-circuito de risadas. É o que se vê logo de cara, com a
cauda de avião percorrendo nuvens em referência à barbatana do monstrão de "Tubarão". Depois, a
sucessão de "roubos" não poupa clássicos como "Casablanca", "A Um Passo da Eternidade" e "Os
Embalos de Sábado à Noite". Com o sucesso obtido, dois anos depois o filme foi quase inteiramente
copiado, com apenas um upgrade do veículo principal (do avião para o ônibus espacial), mas com
efeito de piada recontada. Já os Zucker mais Abrahams garantiram o bem-estar na velhice
reproduzindo a bem-sucedida fórmula de paródias em "Top Secret - Superconfidencial", "Top Gang",
"Tá Todo Mundo Louco" ou esgotando sua repetição na série "Corra que a Polícia Vem Aí". Mesmo
tendo sido escolhida pelo American Film Institute, em uma votação feita em 2000, como a décima
comédia mais engraçada de todos os tempos, "Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu" não sobreviveu ao
tempo. Sua graça de pastelão acabou diluída no humor ácido dos irmãos Farrelly, de Ben Stiller e
pela trupe de Judd Apatow, atuais reis da comédia.
APERTEM OS CINTOS, O PILOTO SUMIU 1 & 2
Direção: Jim Abrahams, David e Jerry Zucker
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Lançamento: Paramount
Quanto: R$ 29,90
Classificação indicativa: livre
Avaliação: regular
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Escrever sobre o que representa a literatura, compor uma canção sobre o processo de
composição e recepção da música: é nesse território metalinguístico que se aventura "No Estranho
Planeta dos Seres Audiovisuais".
O primeiro episódio se defronta com a dificuldade natural de apresentar a série e resumir o
que virá. Feito esse desconto, o tom escolhido lança armadilhas pelo caminho.
Optou-se por uma conversa com o telespectador (por meio de um narrador e uma apresentadora
fictícia, interpretada por Renata Gaspar), combinando imagens de diferentes texturas, capturadas em
vários suportes. Encenações convivem com entrevistas e material de arquivo.
Há um pouco de humor forçado, como se a todo momento fosse necessário recorrer a coisas
"espertas" -e a mais infeliz dessas idéias talvez seja um trio de supostos telespectadores sedentários
e imbecilizados.
Na simplificação característica da TV, algumas impropriedades são cometidas. O plano-
sequência, por exemplo, não é uma invenção do cinema iraniano, e apreciá-lo não é uma
exclusividade do espectador oriental, como se sugere.
Entrevistados sem muito o que falar ("tipo assim", seres audiovisuais?) são ouvidos. Não
seria melhor pedir, no espírito do programa, que entregassem um vídeo com as respostas? (SÉRGIO
RIZZO)
Avaliação: regular
COLUNISTA DA FOLHA
137
Em 1972 o Brasil, no momento mais duro do regime militar, comemorava de maneira ufanista
o Sesquicentenário da Independência. Pouco antes, o então ministro da Educação, Jarbas
Passarinho, conclamara os cineastas brasileiros a fazer filmes sobre temas históricos. "Os
Inconfidentes" é, por um lado, a resposta marota de Joaquim Pedro de Andrade a essa convocação.
Por outro lado, é uma reflexão ousada e dolorosa sobre as ações e hesitações dos intelectuais em
tempos de transformação política. Baseado nos chamados "autos da devassa" e lançando mão
fartamente dos poemas dos próprios inconfidentes, o filme retrata com ironia e distanciamento
brechtianos o cipoal de intrigas e traições que resultou na revolução abortada e no enforcamento de
Tiradentes (interpretado por José Wilker).
Balé da conspiração
DVD: OS INCONFIDENTES
Distribuidora: Videofilmes
Quanto: R$ 49,90
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Avaliação: ótimo
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(14) Plano único faz inventário da estupidez
COLUNISTA DA FOLHA
AINDA ORANGOTANGOS
Produção: Brasil, 2007
Direção: Gustavo Spolidoro
Com: Karina Kazuê, Lindon Shimizu, Artur José Pinto
Quando: em cartaz nos cines Frei Caneca e HSBC Belas Artes
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: bom
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Falar de "cinema iraniano" é, a rigor, tão absurdo quanto falar do cinema argentino, do
francês, do japonês, do brasileiro. Se existem certas características comuns, há outras que
diferenciam profundamente os filmes. E mesmo que isso não apareça com clareza num primeiro
momento, aos poucos se mostra com facilidade.
139
Se tomarmos "A Maçã" (Futura, 22h, não recomendado a menores de 12 anos), de Samira
Makhmalbaf, vamos encontrar algumas características de outros filmes. É um filme entre garotas (e a
infância virou quase marca registrada do cinema iraniano) e envolve um elemento mínimo. No caso,
trata-se de duas gêmeas que vivem presas em suas casas desde o nascimento (têm agora 11 anos).
Há em Samira um espírito de denúncia que por vezes podemos encontrar nos filmes de seu pai,
Mohsen. Mas, à parte os limites até físicos da ação, não têm nada com os filmes de Abbas
Kiarostami, por exemplo, que se recusam a denunciar o que quer que seja. Kiarostami criou uma
escola, uma série de seguidores para os quais chegou até a escrever roteiros, sempre com temas
mínimos, quase inexistentes. No entanto, raramente algum deles desenvolveu essa qualidade de
espelho da obra de Abbas: ele só mostra aquilo que nós mesmos projetamos na tela. Será ele o
grande prosseguidor de Ozu, o japonês? E o Japão o que tem em comum com o Irã? Cinema, com
certeza.
AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA
O ano de 1989 é o 1968 de minha geração. Cobri para esta Folha o braço húngaro da
revolução democrática que rasgou a "cortina de ferro", derrubou o Muro de Berlim e liquidou o império
soviético. Sua página mais violenta aconteceu na Romênia de Nicolau Ceauscescu.
"Videogramas de uma Revolução" é o documentário definitivo sobre o fim do "socialismo" romeno.
Para sua realização aliaram-se dois ensaístas, um com as imagens, o alemão Harun Farocki, outro
dos estudos de comunicação, o romeno Andrei Ujica. Nada que surpreenda, portanto, que o resultado
seja uma das mais complexas radiografias em filme do poder da imagem nas sociedades
contemporâneas.
Na esteira de mais um massacre perpetrado por Ceauscescu, entre 21 e 25 de dezembro, a Romênia
explodiu. Farocki e Ujica articulam registros audiovisuais do levante de Bucareste feitos tanto por
profissionais, da ininterrupta cobertura televisiva, como por amadores, de inúmeros cinegrafistas
independentes. O que assistimos é como foi a revolução ao vivo.
Farocki e Ujica radicalizam a máxima de Mathew Brady, o fotógrafo maior da Guerra Civil dos
EUA (1861-1865): "a câmera é o olho da história". Mais que isso: subvertem de autoritário para
libertário o panóptico global da multiplicação de câmeras. Vão além: editam e ordenam as imagens
140
mas também as comentam. "Ônibus 174", de José Padilha, e "Santiago", de João Moreira Salles,
beberam nestas águas.
Ceaucescu se impôs à custa de sangue e à custa de sangue foi deposto. A execução dele e
de sua esposa Elena, no dia de Natal, foi vista por todos na TV, como para provar que o pesadelo de
fato acabara. Aquela cena está para as imagens em movimento como as fotos do cadáver de Che
Guevara para a fotografia. Há algo de belo em que o texto que revelou Ujica, muito antes do filme, se
chamasse "O Ultimato das Imagens".
Como sempre na Coleção Videofilmes, dois extras complementam impecavelmente o
lançamento. São "O Rei do Comunismo Pompa e Esplendor de Nicolau Ceausescu", dirigido por Ben
Lewis para a BBC, e "Um Dia na República Popular da Polônia", de Maciej J. Drygas. Em seus estilos
distintos, respectivamente o filme reportagem e o documentário de arquivo cumprem a mesma
função: como prefácios, apresentam o universo do chamado "socialismo realmente existente" antes
da retumbante queda do tirano.
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Primeiro cineasta iraniano indicado ao Oscar de filme estrangeiro com "Filhos do Paraíso"
(1997), Majid Majidi trabalha "em nome de Deus", como informam os créditos de "A Canção dos
Pardais". Em "A Cor do Paraíso" (1999), que Majidi abria com o mesmo letreiro, Deus era
mencionado diversas vezes e um movimento de câmera, combinado a um efeito de iluminação,
sugeria a Sua presença. Aqui, a interferência divina é oblíqua. Prêmio de melhor ator no Festival de
Berlim deste ano, Reza Najie volta a interpretar um disciplinador pai de família (papel que fez em
"Filhos do Paraíso"), devotado também à criação de avestruzes da fazenda onde trabalha.
O desemprego bate à sua porta, no entanto, e ameaça transformá-lo em outra pessoa,
terrivelmente pressionada pela dificuldade em ganhar dinheiro. À semelhança dos motoboys
paulistanos, ele encontra a alternativa de rodar com sua velha motocicleta, agora um táxi, pelas ruas
apinhadas de Teerã.
141
Como desgraça pouca é bobagem, uma de suas filhas quebra o aparelho de audição, sem o
qual não consegue estudar, e o filho sonha obsessivamente com uma criação de peixes. As
provações parecem afastar o protagonista do caminho do bem (ou de Deus), mas a fé com que Majidi
filma envolve também seus personagens.
Quando exibido em competição em Cannes em maio, "Serbis" foi considerado por parte dos
jornalistas mera provocação, o tipo de filme que teria sido mais correto programar para uma das
paralelas do que no time dos candidatos a maiorais.
O cotidiano de uma família que vive no interior de um decadente cinema que exibe filmes
pornográficos, em meio a uma fauna de homossexuais e travestis que praticam sexo anônimo pelos
corredores, pareceu no mínimo extravagância ou, no máximo, mau gosto.
Ao lado de Lav Diaz, cujo longuíssimo "Melancholia" também foi selecionado com acuidade
para esta 32ª Mostra, a exibição do filme de Brillante Mendoza justifica-se, por um lado, pela vocação
informativa do festival paulistano.
Pois a cinematografia filipina, que teve um farol internacional nos anos 70 e 80 por meio do
nome de Lino Brocka, voltou a ser foco de atenções com a emergência de um grupo de realizadores
autorais.
Sem moralismo
Mendoza não é novato. "Serbis" é o sexto longa de uma carreira produtiva que começou em
2005 com "O Massagista" (exibido na 29ª Mostra, após vencer o Festival de Locarno).
"Serbis" reafirma a inclinação de Mendoza por um cinema sensorial, no qual corpos, sons e espaços
ganham primazia frente à psicologia ou à clareza do relato. Como em "Adeus Dragon Inn" e "O Sabor
142
da Melancia", do malaio Tsai Ming-liang, o filme do filipino explora signos como a sexualidade em
lugares públicos e a presença recorrente de fluxos (corpóreos e materiais).
Ao contrário de Tsai, cuja obsessão pela incomunicabilidade se expressa na forma de
bloqueios interpessoais e espaços inundados, "Serbis" prefere dar um sinal positivo ao que mostra:
crianças passeiam de carrinhos e os frequentadores em busca de sexo convivem abertamente com
os moradores do espaço. A encenação convida a despojar o olhar do moralismo e a enxergar ali algo
que simboliza circulação e conexão.
A certa altura, a câmera escapa do confinamento e ganha a rua, revelando num letreiro o
nome do cinema: Família. Sinal de que, na visão de Mendoza, a vida é melhor num bordel do que
numa prisão.
SERBIS
Quando: hoje, às 17h40, na Cinemateca (sala BNDES); quarta, às 13h30, no Cinesesc
Classificação: não indicado a menores de 18 anos
Avaliação: bom
Folha de São Paulo, 26/10/08
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Talvez seja por milagre, talvez não. O certo é que este domingo está cheio de filmes
atraentes. Por exemplo, "Meu Tio da América" (Futura, 22h; não recomendado para menores de 12
anos), um Alain Resnais que há muito saiu do circuito.
Mas há dois filmes brasileiros bem subestimados e interessantes. Um deles, "Brasília 18%"
(Canal Brasil, 18h30; 16 anos), entra na cota habitual de filmes de Nelson Pereira dos Santos
simplesmente incompreendidos. Há ali secura, corrupção, alucinações -coisas típicas de Brasília.
Mais do que isso, no entanto, convém lembrar de "Rio 40 Graus", o primeiro filme do diretor. Ali, havia
uma capital (o Rio) de um país modesto, atrasado, mas tremendamente esperançoso em relação ao
futuro. A Brasília de Nelson não dá espaço à esperança nem ao futuro: é tão fossilizada quanto o
nome, brandido em vão, de nossos vultos literários.
Quanto a "Saneamento Básico, o Filme" (TC Pipoca, 20h; 12 anos), de Jorge Furtado, não
deu certo em grande parte devido ao nome infeliz, que parece o de um árido documentário. Na
verdade, estamos diante de uma comédia em que a burocracia e o cinema se encontram, quando o
povo de uma cidadezinha tenta conseguir verba para tratamento de esgoto, mas não existe o
dinheiro. Existe para a produção de vídeo. Uma mão lava a outra, então. Ou suja, se se preferir.
143
Folha de São Paulo, 19/10/08
COLUNISTA DA FOLHA
"O Homem do Pau-Brasil" (1981), último filme de Joaquim Pedro de Andrade (1932-88), foi
recebido com certa má vontade à época em que foi lançado. Suas ousadias formais e seu desprezo
pelo "realismo" televisivo iam na contramão da tendência domesticada que então se impunha mesmo
entre os remanescentes do cinema novo, empenhados na busca de um suposto diálogo com o
grande público.
Não por acaso, o filme era dedicado a Glauber Rocha, que morrera naquele mesmo ano e que
também se recusara a sucumbir ao comodismo geral. Mas o que é "O Homem do Pau-Brasil"? Em
poucas palavras, a recriação ficcional de episódios da vida e da obra de Oswald de Andrade. Mais do
que isso, porém, trata-se de uma tentativa de discutir o legado modernista em sua vertente mais
radical e experimental.
No filme, agora lançado em DVD, esse experimentalismo começa na escalação do elenco.
Dois atores, um homem (Flávio Galvão) e uma mulher (Ítala Nandi), representam Oswald, como a
indicar dois aspectos da sua personalidade, o masculino e o feminino, yin e yang.
Antinaturalismo
O tema da antropofagia, do "quem come quem" (nos vários sentidos do verbo), perpassa todo
o filme, repleto, desde o título, de figurações do falo, signo de potência criadora, pelo menos até
desembocar na utopia final oswaldiana do matriarcado. A reconstituição de época é estilizada,
antinaturalista, e o tom da encenação é farsesco.
Boa parte da narrativa é ambientada em um navio que viaja da Europa para o Brasil, trazendo
artistas, cientistas, missionários jesuítas. O trânsito, ou antes, o entrechoque entre a cultura européia
e a energia brasileira é a própria matéria do filme.
Todo o elenco é brilhante, e o destaque fica para Dina Sfat interpretando uma Tarsila do
Amaral que oscila entre a extrema finesse e a mais deliciosa grossura.
Visto hoje, quando nos habituamos a um cineminha rasteiro e medroso, "O Homem do Pau-
Brasil" parece um objeto absurdo. Só os filmes de Julio Bressane, de algum modo, podem dialogar
com ele. Nos fornidos extras do DVD, o destaque é o documentário "Cinema Novo", realizado
também por Joaquim Pedro em 1967, mostrando, no calor da hora, os filmes realizados então por
Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues etc.
Documento inestimável de uma época de efervescência criadora e coragem artística. (JOSÉ
GERALDO COUTO)
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O HOMEM DO PAU-BRASIL
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Distribuição: VideoFilmes
Quanto: R$ 49,90 (em média)
Classificação indicativa: livre
Avaliação: ótimo
Folha de São Paulo, 19/10/08
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Se Julie Christie tivesse ganho o Oscar por "Longe Dela" (HBO, 1h05; não recomendado para
menores de 12 anos), o que aliás seria bem merecido, a repercussão desse filme de Sarah Polley
seria outra.
Como não ganhou, temos então um mero "filme de doença", no caso o mal de Alzheimer. O
roteiro cerca todas as circunstâncias que tornem a situação explícita, no que tem de particular ou de
geral. Fiona não é uma mulher especialmente idosa (de modo que não devemos estabelecer uma
relação obrigatória entre idade e doença). É culta, casada há muitos anos, ama e é amada.
Essa última circunstância é essencial: "Longe Dela" precisa ser uma "love story" para ser engolida
pelo espectador. Ela compensa o horror da situação, a saber: a perda progressiva de memória.
Sarah Polley trabalha com inteligência: usa o caso de amor para, por um lado, tornar palatável esse
mal horrível (esquecer de si mesmo equivale a morrer em vida, não?). Por outro, coloca Grant
(Gordon Pinsent, também notável), o marido, num estado de perfeita solidão. Cabe a ele amar uma
pessoa incapaz sequer de reconhecê-lo. É a mesma com quem viveu e, ao mesmo tempo, não é.
O terrível num filme desses é que, por melhor que se faça, sempre o mal será visto antes da obra. E
não se admitirá que este é um filme estimável não só por sua grande atriz mas também porque foi
feito com muita sensibilidade.
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
145
A liberdade já foi um conceito sagrado, mesmo para a publicidade. Depois da Guerra Fria é
que as coisas mudaram. Na TV, pode-se ver um comercial exaltando a liberdade; alguns segundos
depois descobrimos que a liberdade consiste em escolher uma operadora de telefone, ou de escolher
certa marca de cerveja.
No passado, a liberdade tanto podia ser essa, liberal, que conhecemos hoje (que, parece, a
que está em crise financeira), como a sonhada pela humanidade a partir do desenvolvimento da
indústria, sonho segundo o qual as máquinas nos libertariam e trabalhariam por nós (é o ponto de
René Clair em "A Nós a Liberdade", 1931).
A trilogia Bourne, que se fecha com "Ultimato Bourne" (TC Premium, 18h10; não
recomendado para menores de 14 anos), recoloca, em parte, essa questão. Afinal, o agente Bourne é
o sujeito que, para começar, renuncia não só à liberdade como à identidade em favor do seu país.
Mas o que é "o seu país"? Eis o que ninguém mais sabe direito. Bourne busca neste episódio
identificar onde está o começo de toda sua desgraça. Claro, são pessoas que tomaram um aparelho
estatal (o de espionagem) e ameaçam privar os outros da liberdade (ou da vida) caso se oponham a
eles. É o momento em que o desejo de poder se mostra maior que tudo. Fritz Lang mostrou como
isso funcionava, na Alemanha de 1932, em "O Testamento do Dr. Mabuse".
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
146
alheios ao mundo.
Até que, em determinado momento, o mundo, o mundo de Maio de 68, portanto um mundo
cinematográfico, vem ao seu encontro. Tem-se a impressão de que aí se revela o sentido dos filmes
de um esteta como Bertolucci. Nele, a história existe para virar cinema.
Folha de São Paulo, 30/11/08
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Quando o intrépido agente Maxwell Smart trombou pela primeira vez com as portas
automáticas da sede do C.O.N.T.R.O.L.E., em 1965, a palavra "franquia" ainda não era usada para
personagens e séries de cinema ou televisão. A protagonizada por James Bond, uma das mais bem-
sucedidas da história, ainda estava no quarto longa-metragem e talvez nem mesmo seus produtores
imaginassem que chegasse ao século 21.
A ressurreição de Smart, contudo, encontrou em 2008 cenário bem diferente. Agora,
personagens bem-sucedidos são tratados pelos estúdios como marcas a explorar de todas as formas
possíveis, como demonstra o lançamento em DVD de "Agente 86", nova versão do seriado para o
cinema, acompanhada de outro longa, "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle".
No primeiro, Steve Carell ("O Virgem de 40 Anos") substitui Don Adams (1923-2005) como Smart,
agente de uma central de inteligência (por assim dizer) dos EUA que enfrentava, nos tempos da
guerra fria, seus rivais soviéticos da K.A.O.S. - paródias da CIA e da KGB que incorporavam também
ironias ao estilo britânico de espionagem personificado por Bond. Criado por Mel Brooks e Buck
Henry, Smart passa por um banho de loja de alta tecnologia nessa adaptação moderninha que
também o torna menos tolo do que no original de TV, da mesma forma que sua parceira de
aventuras, a Agente 99 (Anne Hathaway, de "O Diabo Veste Prada", no papel que era de Barbara
Feldon), fica mais independente e durona.
O longa apresenta também uma dupla de personagens secundários, os jovens cientistas Bruce (Masi
Oka) e Lloyd (Nate Torrence), que desenvolvem as traquitanas usadas pelos agentes do
C.O.N.T.R.O.L.E. Em "Agente 86: Bruce e Lloyd Fora de Controle", eles se tornam protagonistas de
aventura em torno de um manto de invisibilidade que vai parar nas mãos do ditador do fictício
Maraguai (entre o Paraguai e o Uruguai...).
Como a ação transcorre em paralelo à de "Agente 86", Smart é mencionado diversas vezes e
a Agente 99 faz uma participação especial, mas prevalece o humor juvenil nessa versão dirigida em
especial a adolescentes. Se bater saudade de Don Adams, já saíram em DVD as duas primeiras
temporadas da série original, com 30 episódios cada, o telefilme "Agente 86, De Novo?" (1989) e a
temporada única da segunda versão para TV (1995).
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AGENTE 86
Distribuidora: Warner (R$ 45)
Avaliação: regular
AGENTE 86: BRUCE E LLOYD - FORA DE CONTROLE
Distribuidora: Warner (só locação)
Classificação: não indicado a menores de 12 anos (ambos os filmes)
Avaliação: ruim
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Pode-se dizer o que melhor se achar dos filmes de Sérgio Rezende, mas nunca que lhes falta
coerência. Com uma ou duas exceções, são filmes que biografam personagens históricos
("Lamarca") ou ficcionalizam fatos históricos ("Guerra de Canudos") na perspectiva de falar a um
público amplo.
São filmes de estrutura tradicional, como "Zuzu Angel" (Canal Brasil, 18h30; não recomendado para
menores de 14 anos), e, falemos francamente, não fazem uma idéia muito boa do cinema, que não
aparece ali como produtor de conhecimento, mas, essencialmente, como divulgador de verdades
produzidas fora dali.
A estrutura e a mise-en-scène optam pelo tradicional, às vezes até demais. O mundo que
Rezende propõe, de modo geral, é simples: há os bons, maus, os certos e errados. Tudo para facilitar
o público. A questão é: por que os filmes de outros países não precisam dessas simplificações para
existir e, inclusive, atrair público?
No entanto, com "Zuzu Angel", temos um caso que por razões diversas (a mais evidente é a
censura) ficou na sombra: o da estilista que, após o desaparecimento de seu filho durante a ditadura
militar, torna-se uma intrépida mãe coragem e mobiliza céus e terras em busca de respostas.
Zuzu aparece aqui como personagem isolado em seu heroísmo. Por isso mesmo, o filme vale pela
individualidade. A história passa um tanto ao largo.
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INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Famoso pela habilidade em dirigir atrizes, em "Fatalidade" é a um ator, Ronald Colman, que
George Cukor dedicou o melhor dos seus esforços. Foi compensador, já que Colman ficou com o
Oscar de melhor ator em 1948, enquanto Cukor ganhava o prêmio por melhor direção.
No mais, Ruth Gordon e Garson Kanin foram indicados para o Oscar de melhor roteiro por este filme
que pode ser visto como uma homenagem à arte do ator. Tony (Colman) é um famoso ator teatral
que sofre intensamente a cada novo papel dramático. Chegar ao personagem, integrá-lo à sua
personalidade, vivê-lo inteiramente durante duas horas é um exercício doloroso. A ponto de, quando
alguém lhe pergunta quem é, responder é um problema. Não é difícil depreender que as coisas
tornam-se ainda mais dramáticas quando ele vai fazer o Otelo de Shakespeare.
Por um lado, mais dramáticas. Por outro, um tanto esquemáticas. Embora Gordon e Kanin
evitem deter-se no ciúme de Otelo, é inevitável que se desenvolva um paralelismo que tende ao
esquemático entre a peça e o filme.
Talvez aí esteja o paradoxo do filme. Como Otelo termina por matar Desdêmona, sabemos
que há mulheres correndo perigo -em cena ou fora dela. E Cukor cria cenas fantásticas a partir desse
pressuposto.
Exemplo mais evidente, mas não único: a cena final de "Otelo", em que Tony estrangula não
só Desdêmona, como, ao mesmo tempo, Brita (Signe Hasso), sua ex-mulher -o público do teatro, e
nós também, ficamos em suspense, sem saber em que nível estamos, se no da vida ou no da
representação.
Embora esses momentos sejam intensos, o fato é que, até a cena de assassinato (sim,
acontece um no filme), "Fatalidade" deixa a impressão de que sua maior vocação é para uma
magnífica "comédia do recasamento", dessas que Garson Kanin escreveu com maestria (às vezes na
companhia de Gordon) e que Cukor dirigiu com a sensibilidade que se conhece. É como se o drama
existisse sobretudo para ganhar o Oscar, graças ao prestígio que a comédia não costuma ter.
Depois que o crime acontece, no entanto, o filme adquire gravidade e coloca em oposição Tony, o
ator, e Bill (Edmond O'Brien), o agente de imprensa, ou, se se prefere, o gênio e o medíocre. Ou seja,
é exatamente quando "Fatalidade" mostra sua face de trama policial que o aspecto filme de
bastidores se manifesta plenamente: o palco e a vida se comunicam de maneira mais intensa, e a
teatralidade se mostra pelo aspecto mais rico.
FATALIDADE
Direção: George Cukor
Distribuição: Lume Filmes
Quanto: R$ 37,50 (em média)
Classificação indicativa: não informada
Avaliação: bom
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Folha de São Paulo, 23/11/08
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência mesmo de "O
Gosto da Cereja" (Futura, 22h; classificação indicativa não informada). O filme nos mostra a trajetória
de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que busca alguém para se ocupar de seu
corpo após a morte.
Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas a quem dá
carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra resistências, é óbvio, mas,
mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter sagrado etc.
Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a convicção de que o
essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem deseja se suicidar. Correu, na
época do lançamento do filme, que esse homem seria homossexual, o que configuraria um duplo
crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo o suicídio).
A explicação está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no filme: Badii
surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que preste um serviço. Não é do
feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não porque fuja delas. É que seu cinema funciona
como um espelho. Ele nos dá exatamente o que dele recebemos.
Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que retiramos da imagem é o que lhe
damos.
O espectador leigo de cinema fica a ver navios quando críticos e teóricos se lançam a elogiar
um filme elencando as virtudes com base no uso de tantos planos-sequências. O termo é técnico e,
portanto, jargão, inadequado, segundo regras, para ser usado em textos jornalísticos. Mas como
explicitar as qualidades de "Arca Russa", filme realizado numa única tomada de 97 minutos, ou seja,
num único plano-sequência, sem explicar do que se trata e para que serve? Sejamos didáticos,
portanto.
Um filme, como um livro, uma novela ou uma história em quadrinhos, é feito de centenas de pontos
150
de vista, perspectivas sobre ações, personagens e objetos. A cada um desses recortes de filmagem
se dá o nome de "plano". No processo seguinte, a montagem, o editor se encarrega de colocar ordem
e ritmo nesses pedaços, construindo sequências e, com a sucessão delas, o filme que vemos.
Nessas operações, trata-se portanto de reinventar a realidade, primeiro por meio da encenação nas
filmagens, depois colocando certa ordem que nos dá impressão de realidade.
Contra esta "realidade", alguns cineastas começaram a rodar cenas em planos longos, sem
cortes, num modo, segundo críticos e teóricos importantes, de se aproximar ao máximo da realidade
(supostamente mais "real" do que aquela outra). Sem cortes, acreditava-se, não há manipulação
daquilo que se vê. Ou, mais importante, mantém-se a unidade de espaço e de tempo, proporcionando
ao espectador acompanhar uma ação em sua integridade e, de quebra, em sua verdade.
Ora, o projeto do diretor russo Aleksandr Sokúrov em "Arca Russa" foi levar ao limite as tentativas
anteriores de realizar um filme inteiro sem cortes, tecnicamente impossível antes do advento da
câmera digital. Mas, ao contrário de seguir o culto do fetichismo realista, o plano-sequência que
constitui "Arca Russa" transmite outras significações que não o do culto da veracidade.
A longa tomada foi feita nos extensos salões e corredores do Museu Hermitage, que ocupa
um majestoso palácio imperial em São Petersburgo. Como proeza técnica, a ambição de Sokúrov e
equipe não se esgota no virtuosismo. Trata-se de usar a fluidez (trazida pelo movimento contínuo da
imagem) como meio de encenar a história do país, interpretando-a.
Desse modo, passado e presente se interpenetram na imagem, dando-nos a ver a história
como um processo contínuo que avança "sem cortes". Ao contrário, continua, se reproduz,
reencontra-se por meio de um fluxo no qual nada se perde, tudo se transforma.
ARCA RUSSA
Direção: Aleksandr Sokúrov
Distribuidora: Versátil Home Vídeo
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo
(29) Oliver Stone faz seu melhor filme desde "Wall Street"
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
Como se sabe, "W.", de Oliver Stone, é um filme polêmico. Recria pedaços da vida de
George W. Bush, o ainda presidente dos Estados Unidos, com ironia e sarcasmo. Traz um aspecto
inegavelmente corajoso e que talvez só se justifique dentro deste dado tão forte da cultura americana:
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a defesa da liberdade de expressão. Que outro país produziria a biografia de um presidente da
República, vivo e ainda no poder, mesmo se desmoralizado e enfraquecido?
"W." é, no mínimo, um filme divertido de ver. Personagens que frequentaram os noticiários
nos últimos anos surgem aqui em versão ficcional, um pouco como costumam fazer os programas de
humor -ainda que, neste caso, de forma bem mais discreta.
Boa parte da graça está em identificar os atores caracterizados e observar suas cuidadosas
composições, principalmente aqueles que interpretam figuras marcantes do governo Bush: Thandie
Newton como Condoleezza Rice, Jeffrey Right como Colin Powell, Richard Dreyfuss como Dick
Cheney e Scott Glenn como Donald Rumsfeld.
Para além desse aspecto "passatempo" do filme, "W." é um bom estudo de personagem, um
pouco como Oliver Stone já havia feito em "Nixon" -só que, desta vez, de forma bem menos
excessiva.
Em "W.", Stone foi menos ambicioso do que em "Nixon", talvez na mesma medida da "grandiosidade"
de seu personagem central, muito bem interpretado por Josh Brolin (do vencedor do Oscar "Onde os
Fracos Não Têm Vez").
O roteiro alterna cenas da juventude de Bush e momentos cruciais de sua atuação na
presidência. Por trás da estrutura simples, escondem-se algumas idéias interessantes, relacionadas a
questões familiares. Nesse aspecto, o personagem mais fascinante é Bush pai, magistralmente
defendido por James Cromwell. O roteiro de "W.", curiosamente, traz a assinatura de Stanley Weiser,
parceiro de Stone no enredo de "Wall Street" -não por acaso, o melhor filme de Stone antes deste
"W.".
São duas crônicas políticas precisas, feitas em cima do laço, e, de certa forma, profundamente
relacionadas.
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Está certo e não está falar do "cinema francês", ou "brasileiro", ou "americano". Está errado
porque cada cinematografia produz filmes muito diferentes entre si. E está certo porque, por mais
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diferentes que sejam, filmes de um país sempre guardarão algo de comum: uma luz, uma paisagem,
um modo de ser das pessoas etc.
Isso lhes confere uma personalidade que transcende, em larga medida, os desígnios de cada
artista. Mas será bem injusto colocar todas as obras num mesmo saco nacional. Por exemplo: os
filmes de Abbas Kiarostami pouco têm em comum com os de Mohsen Makhmalbaf.
Este último, aliás, se pauta por uma irregularidade avassaladora. "Gabbeh" (Futura, 22h, não
recomendado a menores de 12 anos) é um dos seus mais belos trabalhos a terem chegado até nós.
Gabbeh é um tipo de tapete persa, o que é bem conhecido. Menos conhecido é aquilo sobre o que
discorre o filme: a sofisticada estamparia de um gabbeh é a narrativa de uma história.
Assim como a tatuagem pode ser um relato, as figuras do gabbeh são como que o resumo de uma
existência, com seus espantos, belezas, tragédias. Aqui, em linhas gerais, é a história de um amor
que se conta.
Se outras vezes vemos Makhmalbaf oscilar entre o autoritário e o meramente comercial ("A
Caminho de Kandahar"), em "Gabbeh" é possível encontrar momentos de verdadeira poesia.
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
As únicas imagens documentais de "Vá e Veja" (1985) só aparecem em seus minutos finais.
Apesar de o efeito ser notável, esse clássico do filme de guerra não precisaria recorrer a isso para
aumentar a catarse anti-nazista que o orienta quase desde o início.
Quase, porque a primeira meia hora do filme trata a Segunda Guerra Mundial de longe, como o
evento que leva crianças e adolescentes a procurar armas e outros objetos de uso militar escondidos
nas areias brancas de uma aldeia na Bielo-Rússia (ou Belarus), república soviética invadida pelos
alemães, em 1943.
Um deles, Fliora (Aleksei Kravchenko), encontra um rifle e resolve abandonar a mãe e as
irmãs pequenas para se juntar a guerrilheiros. Inexperiente, não será aceito pelo comandante da
milícia, mas experimentará, primeiro acompanhado por uma jovem (Olga Mironova) e depois sozinho,
as agruras do conflito.
Sua jornada não é propriamente a de um herói, como um filme hollywoodiano tenderia a
caracterizá-la. Fliora carrega a dor profunda e a indignação de ser um sobrevivente em cenário de
apocalipse: 628 aldeias bielo-russas foram queimadas com seus habitantes pelos nazistas, informa o
próprio "Vá e Veja" (ou "venha e veja", no título em inglês). Último dos cinco longas dirigidos pelo
russo Elem Klimov (1933-2003), que teve atuação política expressiva (sobretudo como secretário da
associação de cineastas do país) nos tempos de URSS, ele se inspira parcialmente em episódios de
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guerra vividos por ele e sua família em Volgogrado (na época, Stalingrado).
A forte estrutura estatal do cinema soviético, que reunia 39 estúdios espalhados pelas repúblicas,
possibilitou que Klimov trabalhasse aqui em escala de superprodução, sob o guarda-chuva do
Mosfilm, em Moscou, e do Belarusfilm, em Minsk. Não causa surpresa, portanto, que tenha obtido o
prêmio de melhor filme no Festival de Moscou.
A denúncia de atrocidades cometidas contra bielo-russos e a abordagem épica
transformaram também "Vá e Veja" em um grande sucesso de bilheteria na URSS, com cerca de 29
milhões de espectadores ("Titanic", o recordista do mercado brasileiro em toda a história, teve 16,3
milhões).
"Estes são tempos difíceis", diz um personagem. Klimov não procura maquiá-los, mas combina
poesia ao realismo para acompanhar o efeito da guerra sobre os sentidos de Fliora (com destaque
para a audição) e seu processo traumático de amadurecimento.
VÁ E VEJA
Direção: Elem Klimov
Distribuidora: Lume Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: ótimo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
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Se no nível das idéias o filme avança para o macete puro e simples, no da encenação
caminha para uma espécie de ressurreição do estilo Vera Cruz, ou de algo tão antiquado quanto. Se
no roteiro boas idéias se alternam com falatório inútil, no setor interpretação os vícios da TV atacam o
elenco em peso (exceção: Wagner Moura).
As voltas, os circunlóquios, a desgastada aproximação de clássico e moderno (saudade de
"Carnaval Atlântida", de J.C. Burle) levam à consagração da estética de TV no teatro (ver cena final) e
à vitória do bom senso sobre a paixão.
Desde os tempos do CPC (Centro Popular de Cultura), não se via nada tão carregado de
ideologia.
ROMANCE
Direção: Guel Arraes
Quando: estréia na próxima sexta-feira
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: ruim
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Se não foi a primeira incursão de Claudia Cardinale ao Velho Oeste, "Os Profissionais" (TCM,
20h; classificação indicativa não informada) foi a primeira a fazer barulho. Ela vinha cercada de um
grupo de atores de primeiro time: Burt Lancaster, Robert Ryan, Lee Marvin, Ralph Bellamy, Jack
Palance etc. A direção era de Richard Brooks e a produção, muito maior do que a habitual para o
gênero.
De resto, a história a contar era muito forte: Bellamy é o sujeito que contrata um grupo de
aventureiros para seguir o bando de um rebelde mexicano (Palance) que raptou sua mulher
(Cardinale). Existe, por um lado, a perseguição: ela em si é interessante e tensa. Mas existe,
sobretudo, a dúvida: teria sido ela, de fato, raptada? Entramos num terreno muito frequentado por
Brooks: o da liberdade feminina.
O Oeste não deixa de ser um estranho lugar para abordá-la, porque lá as mulheres têm um lugar
secundário, quando têm. Mas o autor de "À Procura de Mr. Goodbar" não deixaria de achar um jeito
de encaixá-la em lugar de relevo: coisas assim são as que se espera de um cineasta liberal por
excelência.
No TCM, no entanto, o dia não é de Claudia, e sim de Burt Lancaster, de quem se festejam os 95
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anos de nascimento e que comparece em "Baixeza" (16h30; classificação indicativa não informada) e
"Os Assassinos" (22h; classificação indicativa não informada), de Robert Siodmak.
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
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O CONFORMISTA
Direção: Bernardo Bertolucci
Distribuidora: Lume
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo
Em "Metrópolis" (TC Cult, 15h40, não indicado a menores de 12 anos), o filho do maior
industrial da cidade apaixona-se por uma operária, o que o faz conhecer a triste realidade dos
subterrâneos onde mora o proletariado que abastece a elite que vive na superfície.
Fritz Lang, neste que não é dos seus melhores filmes, mas ainda assim é um belo exercício de
espaços e arquiteturas, comenta a Alemanha de 1926. E a questão central do filme é a luta de
classes, o que torna ainda mais ingênuo (e absurdo) o plano mostrando o aperto de mão entre patrão
e empregado.
Sobre o mesmo assunto, George Stevens foi mais agudo em 1955, com seu "Assim Caminha a
Humanidade" (TCM, 18h35, classificação indicativa não informada), em que a conciliação entre
classes é uma impossibilidade, resultando no sacrifício de uma das partes. Jett Rink (James Dean)
trabalha numa fazenda texana sob grande ressentimento e rebeldia. Para piorar, ama a mulher do
chefe que ele odeia. Até ele encontrar petróleo e enriquecer espetacularmente. A fúria
perdura, porém, e o abismo que o separa de seus patrões aumentará colossalmente. O caminho será
o da violência, sobretudo aquela que há na ocupação e sangria de um espaço e de suas coisas e
seres, como foi a do Texas, com seu gado e petróleo sendo explorados pelo homem. Neste belo
filme, Stevens fala dos EUA, evidentemente, mas também do ser humano em geral.
INÁCIO ARAUJO
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CRÍTICO DA FOLHA
O título original de "O Homem com a Lente Mortal" (HBO, 0h45; não recomendado a
menores de 12 anos) é, mais apropriadamente, "Wrong Is Right", ou "certo é errado". Vale, primeiro,
do ponto de vista do enredo, em que um famoso jornalista de TV (Sean Connery), com ligações
importantes no Oriente Médio, se vê a horas tantas aprisionado numa teia arquiperigosa, sobre a qual
não tem a menor influência.
A saber: um poderoso local dispõe-se a repassar armas atômicas a terroristas, que as
jogariam em Israel. Ele tomaria essa atitude como represália ao presidente dos EUA, que deseja tirá-
lo do poder.
Do ponto de vista da ficção, temos aí um belo exercício de antecipação (o filme é de 1982). Ele não
se detém na semelhança com aspectos da política internacional no século 21.
É o fato do repórter se ver perdido entre tantas visões da realidade, entre tantas versões do
mundo que mais o aproxima de nós.
Mas o aspecto mais interessante deste filme de Richard Brooks é sua distância em relação à
produção média, sua ousadia de saber se perder junto com seu herói, de não fingir que o mundo é
facilmente compreensível, nem divisível de imediato em certo/errado.
Brooks contraria, com sua proverbial honestidade, as regras do sucesso cinematográfico.
Regras cada vez mais explícitas. Paga um preço: o fracasso imediato. Mas faz um filme memorável.
(37) Filme registra movimento grevista de 1978 em pleno olho do furacão. Documentário
impressiona pelas imagens de trabalhadores e discursos
Filme de amor
O que fica de mais precioso são as imagens dos trabalhadores nas fábricas, nos ônibus e
trens, nas moradias precárias. A fala dos não-militantes são quase sempre mais interessantes do que
a dos sindicalistas. Uma operária diz, indignada, na porta de uma fábrica: "Não é à toa que tem cada
vez mais ladrão e gente pedindo esmola. Vale mais roubar ou mendigar do que acordar às três da
madrugada para trabalhar na Philco e ganhar uma porcaria". A câmera de Aloysio Raulino capta com
extrema sensibilidade o balé de rostos e corpos que pela primeira vez se viam como atores da
história, e não apenas como vítimas ou espectadores. Nos extras, além de entrevistas de Gervitz e
Raulino, o destaque são os depoimentos de cinco líderes das greves de 78, três décadas depois. Ao
se rever na tela e contextualizar o movimento, eles dão uma demonstração de lucidez, coerência e
alegria que chega a comover. Um deles diz a certa altura a palavra "amor" para definir o que os une.
Para além da política, Gervitz e Toledo fizeram isso mesmo: um filme de amor.
Disney também sai com duas edições comemorativas com extras e restaurações
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O mundo acabou. O robô Wall-E passeia pela Terra vivendo em meio às baratas -afinal, elas
sobrevivem a tudo. Faz solitariamente seu trabalho de compactar lixo, e há toneladas de sucata por
toda parte. Enquanto isso, junta de caixinhas a partes de robôs como ele. Wall-E enxerga beleza
onde só há lixo.
Com cara de suja, essa simpática máquina leva uma vida tranquila até que se apaixona pela
evolução: uma versão feminina de robô com design arrojado aparece no seu mundo e o domina
completamente.
A nostalgia que permeava toda a sua existência dá lugar à onipresença de Eva. Tudo em
nome do amor, embora fora de sintonia. Afinal, ela tem uma missão: encontrar registro de vida na
Terra para que a humanidade, reclusa no espaço, possa retornar ao planeta.
É uma história de amor clássica, de encontros e desencontros, perdas e ganhos, embalada
por uma mensagem ecológica, mas sem panfletarismo nem apontar o dedo para ninguém. Somos
todos errados na poluição do mundo e na nossa vida sedentária -e sabemos disso. Não é preciso um
discurso político para nos convencer.
Com o mínimo de falas, lembra muito a simplicidade dos filmes de Charles Chaplin e acerta
em cheio ao nos estender a mão para exaltar a relação entre os seres -ainda que não humanos. É
ingênuo de um jeito que sentimos saudade, sem, com isso, ser tonto. Vai ser justo se levar um Oscar.
Ou mais.
Aproveitando a avidez das crianças por presentes, outros cinco lançamentos chegam ao DVD
(veja quadro ao lado).
Mais familiar, o gordinho urso Po quer ser um mestre do kung fu, embora esse "excesso de
gostosura" pareça um empecilho bem, digamos, polpudo.
Na mesma linha de "Ratatouille", em que um rato queria cozinhar, aqui a mensagem é de
enfrentar os desafios para alcançar seu sonho. Com um belo humor, não há como não torcer pelo
urso, que rouba a cena frente aos outros animais. Mas, tudo bem, eles vão ganhar um filme próprio,
conforme nos contam os extras de "Kung Fu Panda". "Os Cinco Furiosos" sai em breve em DVD.
Também fora de peso, o politicamente incorreto Shrek ganha nova franquia com uma fábula singela,
em que ele tem de aprender o que significa o Natal para cumprir seu papel de paizão dos trigêmeos.
É um subproduto, bem longe do humor que o ogro verde já produziu.
Já a concorrente Disney tem duas edições comemorativas: "A Bela Adormecida" faz 50 anos,
com uma trama bem datada, embora ainda embale muitos sonhos das meninas. Mas fica estranho
realmente em pleno 2008 uma princesa ficar esperando um príncipe chegar para levá-la do marasmo
de sua vida.
"A Espada Era a Lei", de 1963, reconta a história do rei Arthur como um garoto de 12 anos
numa Inglaterra sem rei nem lei. Acompanhado de uma coruja rabugenta, ele vai ser tutoreado pelo
mago Merlin até cumprir sua missão de herói.
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O filme marcou a ruptura entre Walt Disney e o roteirista Bill Peet. Na época mais preocupado
com a criação dos parques, Walt deixou de lado o cinema e se arrependeu do resultado, abalando a
confiança entre eles. Dois anos depois, afastaria Peet de "Mogli" e nunca mais trabalhariam juntos.
Mas os lançamentos não são só estrangeiros. Mônica lança a terceira versão de seu "Cine Gibi". O
foco são sete planos "infalíveis" de Cebolinha para apanhar o coelhinho Sansão. Na verdade, quem
apanha é ele e o Cascão, porque são sete vezes em que suas maluquices dão bem errado. Perdeu
um pouco de fôlego essa idéia de fazer um mosaico de aventuras, mas as histórias continuam
divertidas.
Em sua estréia na direção, filha de Francis Ford aborda irmãs nos anos 70
Em 1999, quando estreou na direção com "As Virgens Suicidas", que tem lançamento em
DVD, Sofia Coppola ainda era lembrada apenas como a adolescente nariguda que tivera uma
atuação constrangedora em "O Poderoso Chefão 3" (90).
Foi ao entrar em contato com o livro homônimo de Jeffrey Eugenides que Sofia encontrou a
maneira de se reinventar como artista. Ela tinha à mão uma trama contemporânea, escrita como se
fosse um romance clássico, como explica o making of do DVD.
É fácil, hoje, após a consagração com seus filmes seguintes, os excelentes "Encontros e
Desencontros" (03) e "Maria Antonieta" (06), entender as razões pelas quais o livro de Eugenides
fascinou a diretora. Sofia começava ali a definir seus temas essenciais, perseguidos e seguidos à
risca nessas produções. Mais do que um cinema de "mulherzinha", ou feminista, como um olhar mais
rasteiro poderia sugerir, ela adota visão cúmplice sobre a alienação, carregada de um sentimento de
não-pertencimento, algo que extrapola as definições de sexos.
Com "Virgens...", tais sensações vêm em estado bruto, já que o foco é a adolescência. Uma
das idéias que resumem o filme está na fala de Cecilia, a irmã mais nova, após tentativa de suicídio.
"Você não tem idade para saber o quanto a vida fica difícil", diz o médico, no que ela responde:
"Obviamente, doutor, você nunca foi uma garota de 13 anos".
A questão não é entender as razões do que o título do filme entrega -a repressão dos pais
não explica o ato das cinco irmãs. Prevalece o inexplicável.
A estrutura escolhida por Sofia garante a magia. A história vem narrada por homens que na
época -o longa se passa nos anos 70- eram apenas moleques apaixonados pelo quinteto. Eles
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relembram garotas que permanecerão para sempre em suas memórias, perfeitas, belas e intocadas.
Sofia parece evocar astros que morreram jovens, como James Dean ou Marilyn Monroe, para
vasculhar o voyeurismo e o fetichismo.
Para completar, a trilha do duo francês Air garante o clima onírico, de beleza mórbida,
necessário a esse filme que só melhora com o tempo.
AS VIRGENS SUICIDAS
Direção: Sofia Coppola
Distribuidora: Paramount (à venda exclusivamente nas lojas da rede
2001; site: www.2001video.com.br, por R$ 19,90)
Classificação: não indicado para menores de 16 anos
Avaliação: bom
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em "Um Lugar na Platéia" (TC Premium, 12h30; não indicado a menores de 12 anos) existe
um pianista cansado do estrelato e dos infinitos compromissos de sua agenda. Existe também um
velho "self-made man" disposto a se desfazer de sua preciosa coleção de arte, um filho professor
universitário que não se entende com o pai, uma atriz que faz sucesso com um novelão de TV, mas
acredita que esse sucesso vai afastá-la de bons papéis.
O que esses personagens têm em comum é que frequentam o café onde trabalha Cécile De
France, ou Jessica, que, por sua simpatia, acaba transitando entre as mais sólidas neuroses
artísticas com alegre desenvoltura. Ninguém dirá que Danièle Thompson realizou um grande filme.
Não se trata disso. Mas se trata de criar uma matinê que se possa ver sem maiores compromissos,
mas que não ofenda nem a inteligência, nem a vista do espectador. É o que se chama de um produto
digno.
Isso tornou-se muito menos frequente do que seria desejável. É como se os produtores, pressionados
pelos altos custos e pelo medo decorrente, só soubessem arriscar no certo, ou seja, não arriscar.
Há um monte de filmes nessa categoria hoje. Não, certamente, os brilhantes "Crepúsculo dos
Deuses" (TC Cult, 22h; não indicado a menores de 12 anos), de Billy Wilder, ou "Dália Negra"
(mesmo canal, 0h05; não indicado a menores de 14 anos), de Brian de Palma.
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Folha de São Paulo, 07/12/08
Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que exponha suas
verdades mais íntimas e profundas. Essa idéia, esboçada em obras anteriores de Eduardo Coutinho,
como "Santo Forte" e "Edifício Master", ganha uma evidência incontornável em seu documentário
mais recente, "Jogo de Cena", que chega agora ao DVD.
O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal, em que o cineasta convidava mulheres a
falar, num estúdio, sobre suas vidas. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram selecionadas e
filmadas em junho de 2006 no teatro Glauce Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava seus
entrevistados como "personagens", em "Jogo de Cena" ele dá mais uma volta no parafuso,
misturando depoimentos de mulheres "comuns" com falas de atrizes que reproduzem as mesmas
histórias narradas por aquelas. Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa Beltrão,
Fernanda Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do público, quase anônimas.
O efeito desse ardiloso embaralhamento é deixar o espectador sem chão, em dúvida sobre
quais histórias são verdadeiras, quais são inventadas, e sobre quem, afinal, viveu o quê.
Os extras do DVD, ao exibir as entrevistas prévias das selecionadas com a assistente do diretor,
Cristiana Grumbach, revelam que o jogo foi além: há, entre as depoentes, uma que conta a história
de outra, que por sua vez narra uma terceira história, que já não sabemos mais a quem pertence.
De certo modo, revelar esses depoimentos de bastidores é um pouco como desmontar o brinquedo
para descobrir como funciona, e a sensação se reforça com a já tradicional "faixa comentada", em
que Coutinho fala sobre seu filme com o cineasta João Moreira Salles e o crítico Carlos Alberto
Mattos. Mas, por estranho que pareça, essa revelação dos mecanismos ilusionistas do filme, em vez
de diminuir seu impacto emocional, acaba por intensificá-lo. Na organização desses múltiplos
discursos sobre dramas pessoais em que quase sempre sobressai a relação com os filhos ou, mais
raramente, com os pais há todo um questionamento do estatuto da representação, da condição
feminina e da própria noção de verdade.
Mas há também uma carga de vivência humana quase insuportável. "Jogo de Cena" pode ser
visto, se quisermos, como um estudo sobre as lágrimas e seu modo de produção o que dificilmente
impedirá o espectador de verter algumas ao longo da sessão.
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(42) Rigoroso, "O Hospedeiro" é falso trash
O trash é uma valoração meio complicada ao cinema, arte que transita entre estéticas
irregulares sem necessariamente trair o bom enquadramento, a boa imagem.
Um certo público médio francês, nos anos 50, por exemplo, achava os filmes de Claude Autant-Lara
um primor de requinte. Os críticos da "Cahiers du Cinéma", lúcidos, esclareceram que esse cinema
clássico, todo "chique", era um lixo.
Pois "O Hospedeiro" (TC Action, 22h, não indicado a menores de 12 anos) talvez pareça meio
"filme de moleque" para alguns, ou mesmo trash (sim, o termo hoje é utilizado como coringa na
manga).
E daí? Rigorosíssimo, o coreano Joon-ho Bong mantém a tradição do seu país, a do cinema de
gênero, e utiliza todos os recursos para honrá-lo (o monstro do título, inclusive, é um CGI
confeccionado por uma empresa norte-americana). Mesmo fazendo bonito na indústria, Bong faz de
seu filme algo extremamente político.
Temos, assim, um monstro criado em laboratório por militares norte-americanos (os EUA
colonizam culturalmente o país há tempos) e um abilolado que é mais irmão que pai de sua filha e
que terá de salvar alguns tantos.
Nesse clima um tanto tresloucado, há espaço também para o terror, até o desfecho que
emula as batalhas de "Ultraseven", aquele seriado japonês que a TV brasileira exibia nos anos 70.
Que o cinema faça filmes "vagabundos" como esse.
"Maysa - Quando Fala o Coração", minissérie sobre a vida turbulenta da cantora de "Meu
Mundo Caiu", dirigida por seu filho, Jayme Monjardim, estrÉia amanhã na Globo
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Jayme Monjardim, 53, é conhecido, entre outros trabalhos, pela direção inovadora na novela
"Pantanal" e pelo filme "Olga". A partir de amanhã, será o filho da cantora Maysa.
164
Diretor da Globo, ele leva ao ar na emissora o grande projeto de sua vida: uma minissérie de nove
capítulos sobre a turbulenta vida de sua mãe (1936-1977), estrela da música brasileira de carreira
internacional, celebrizada pela interpretação de "Meu Mundo Caiu", entre outros grandes sucessos do
samba-canção e da bossa nova.
Fora dos palcos, sua vida foi marcada por atitudes controversas, paixões polêmicas, abuso
de álcool, de moderadores de apetite e tentativas de suicídio. Morreu aos 40, em um acidente de
carro na ponte Rio-Niterói.
Monjardim tinha apenas dois anos quando Maysa se separou de seu pai, o bilionário André
Matarazzo, e foi deixado na casa de avós, sendo criado por uma empregada. Aos seis, quando o pai
morreu, o "jogaram" em um colégio interno na Espanha por quase dez anos.
Uma cena criada pelo autor da minissérie, Manoel Carlos (leia entrevista à pág. E3), tenta resumir o
sofrimento e a sensação de abandono: em uma rara visita ao internato, Maysa se depara com o filho
pequeno doente e diz que não irá beijá-lo para não correr o risco de se resfriar e prejudicar sua voz.
Monjardim, que diz nunca ter feito análise, contou à Folha que se manteve "congelado" ao rever -e
dirigir- cenas tão dramáticas de seu passado.
FILHO X DIRETOR
Consegui separar o filho do diretor, ter um distanciamento suficiente para não sofrer ou me
emocionar. Sem isso, não poderia ter feito esse trabalho.
Já imaginou gravar essa cena [em que Maysa não beija Monjardim no internato] e começar a
chorar? Me dediquei a esse projeto, talvez o mais importante na minha vida, para contar uma linda
história de amor. O projeto é tão elevado, já sofri tanto por ser um menino sozinho, que parece outra
encarnação. Mas, quando assistir na TV, não sou mais diretor, e sim o filho. Aí não me responsabilizo
pelo que vou fazer, porque até agora estou congelado.
CENAS FORTES
A minissérie é um resumo muito sutil do que aconteceu. Aquilo foi um beijo, mas imagina
passar dez anos em um colégio interno sozinho. Os dez anos foram tão violentos que essa cena não
é mais violenta para mim. O que tinha que chorar já foi. [A cena em que Maysa é encontrada em uma
banheira cheia de sangue após cortar os pulsos] Não vi, mas vi muitas outras. Vivi cenas muito
difíceis. Mas isso não é um problema para mim. Não tenho defeitos de fabricação por causa disso.
Todos os filhos de artistas passam por problemas não tão diferentes dos que eu passei. As grandes
estrelas são complicadas, polêmicas, intensas. Algo tem de especial, não são normais. Acabam
fazendo besteiras e vivendo loucuras.
ABANDONO
Nunca fiz análise. Na minha vida inteira me virei sozinho. Imagina ficar sozinho em um
colégio interno, sem sair nem para as férias, durante dez anos.
165
Não falava português direito e até hoje não sei escrever em português. Mas foram 30 anos de
análise em dois anos que estou nesse projeto da minissérie. Não tenho por que ficar me lamentando.
Eu sou tão realizado. Tenho três filhos lindos, uma mulher linda, ganho muito bem para fazer o que
gosto.
Por que reclamar do meu passado? Trabalhei anos para acabar com os meus monstrinhos.
ACERTO DE CONTAS?
[Sobre cena em que André Matarazzo cobra de Maysa atenção ao filho: "Um dia ele vai
crescer e há de julgar a boa mãe que você foi ou deixou de ser"] É lógico que já a julguei mal pra
caramba. Tinha raiva, era revoltado, pô, como minha mãe me largou em um colégio? Mas, à medida
em que cresci, fui entendendo que Maysa agia assim por milhões de motivos. Entendia por que ela
bebia, por que a vida dela era difícil. E vivi os dois últimos anos da vida dela muito bem, como
grandes amigos. Consegui admirá-la.
HOMENAGEM
Acho que ela ia achar [a minissérie] uma graça, ficar impressionada de andar no Projac e ver
um carrinho com o nome dela. Ela morreu endividadíssima, tadinha, ferrada. Eu me sinto à vontade.
A minissérie é para cima, não uma lavação de roupa, é uma purificação, uma recuperação de nossa
memória e uma homenagem à música brasileira. O país estava esquecendo um patrimônio nacional.
DANIEL BERGAMASCO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em "Frost/Nixon", uma das pessoas que ajudam a preparar o apresentador de TV David Frost
para a entrevista com Richard Nixon -a primeira concedida após sua renúncia, três anos antes- diz
166
que a sabatina precisa ser contundente a ponto de se tornar "o julgamento" que o presidente dos
EUA nunca tivera pelas acusações do escândalo Watergate.
Como mostra o filme de Ron Howard (o mesmo diretor de"Mente Brilhante"), que estreia no
Brasil em 20/2, a entrevista célebre de 1977 acabou desempenhando esse papel simbólico, levando
um Nixon (1913-1994) exaltado a confirmar a espionagem no comitê do Partido Democrata com
escutas ilegais. Uma frase entrou para o folclore americano: "Se o presidente faz, então não é ilegal".
A encenação do pingue-pongue entre Nixon e Frost, com seus bastidores, já havia feito sucesso no
teatro. O autor, Peter Morgan ("A Rainha"), assina também o roteiro do longa, que emplacou cinco
indicações ao Globo de Ouro: filme, diretor, roteiro, ator dramático para Frank Langella (que vive
Nixon) e trilha.
Na elogiada versão cinematográfica, a entrevista que serviu como "julgamento" para Nixon
levanta outro questionamento nos EUA: estaria levando o ex-presidente à segunda instância, com
possível redenção por mostrar seu lado mais humano, em conflito entre a inteligência brilhante e a
tendência autodestrutiva?
E isso quando um presidente envolvido em crise econômica e guerra impopular está deixando
a Casa Branca?
O roteirista titubeia. "Se me preocupo que o público tenha compaixão por um homem
autodestrutivo, solitário, perdido? Não sei. Pessoas diferentes terão reações diferentes. Mas o filme
não redime ninguém", diz Morgan, que viu indagações semelhantes no longa sobre a rainha Elizabeth
2ª.
"Eu nunca esperava que pessoas saíssem de "A Rainha" tocadas por ela. Ficamos constrangidos,
para ser honesto, com aquele grande entusiasmo sobre a monarquia. Mas não acho que isso
acontecerá da mesma maneira, não haverá congestionamento de pessoas se filiando ao Partido
Republicano. O filme mostra que, com toda sua humanidade, o legado de Nixon ainda é criminoso",
disse, em mesa redonda em Nova York, com a Folha e mais cinco jornais, em novembro.
O efeito George W. Bush, diz ele, tem mais força na revisão dessa imagem. "A atual administração
está fazendo um grande trabalho de reabilitar Richard Nixon, que está sendo substituído como o
presidente mais odiado de todos os tempos. Agora, ele é apenas o número dois no ranking [risos]."
Cachê
Frost (vivido no filme pelo ator por Michael Sheen), notório jet-setter inglês rodeado de
mulheres, grifes e fama como apresentador de programas populares de TV, pagou pela exclusividade
da entrevista. Garantiu a Nixon US$ 600 mil (US$ 3 mi nos valores de hoje, no cálculo do diretor, ou
R$ 6,7 mi), mais 10% dos lucros de publicidade.
Era um cachê generoso para enfrentar um entrevistador que se supunha fraco e fútil, o que
justifica o choque quando Frost consegue extrair de Nixon frases que ele não parecia ter planejado
dizer, como "decepcionei o povo americano".
O filme especula sobre as motivações do ex-presidente para desabafar, mas, para Howard,
não há na obra nenhuma revisão sobre a figura histórica do republicano, que entrou no Salão Oval da
Casa Branca em 1969, foi reeleito e renunciou em 1974.
167
"A simpatia por um personagem não muda sua imagem histórica, algo que passa por um
entendimento mais completo. Nixon era um visionário formidável, mas destruído por suas emoções
conturbadas. Não parecia confortável sob a própria pele", diz Morgan.
Nixon compositor
Comédias do início da carreira mostram diretor anárquico, que vai além da figura do baixinho
desajeitado
HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Woody Allen, 73, costumava lembrar a famosa parábola de que a vida deveria ser ao
contrário. Iniciaríamos velhos e, ganhando saúde, chegaríamos à juventude para, enfim, nossa morte
ser consumada por um orgasmo. E se o mesmo acontecesse com sua obra cinematográfica? Se
Allen partisse de "Vicky Cristina Barcelona" (2008) e terminasse em "O que Há, Tigresa?" (1966)?
Para quem não gosta de um humor mais grotesco, pode parecer um horror. Mas, para quem sabe
que uma cena de pastelão pode nos dizer muito mais do que supõe nossa vã mediocridade, vale
muito a pena.
168
A comédia "O que Há, Tigresa?", primeiro roteiro e direção de Woody Allen, parte do que
poderia ser uma brincadeira adolescente: dublar um filme com bobagens. Na época, o já ousado
comediante transforma o jogo, em que a palavra vence a imagem, numa potente metáfora sobre a
indústria cinematográfica. Quem se arriscou a criticar Hollywood logo na primeira direção?
Joga água fervendo na visão americana da Guerra Fria. Escolhe um filme de espionagem japonês já
risível em si para subverter a trama.
Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser reconhecido, os
olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões verbais são absurdos
xingamentos nacionalistas.
Subversão no sentido literal, a versão sub, que vem de baixo e atinge a bunda dos donos das
verdades institucionalizadas.
Republiqueta de bananas
Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar por Nancy
(Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica republiqueta latino-americana de
San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para acompanhar seus
sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu poder mensurado pelo que pesam
em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de Allen, que insere filmetes paralelos -que
poderiam ser campeões no YouTube-, como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de
estacionamento e o comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as
personagens e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se
compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de
campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.
Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura caricata de
baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos frenéticos apontam o que virá
depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para saber tudo sobre sexo.
Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de seu olhar oblíquo. Comediantes
têm essa queda por inverter o olhar. Para ser expressivo, é necessário dar outra visão, como a do
cego dirigindo um filme. É a necessária coragem da arte. Aos acomodados: que se iludam com "Big
Brothers", "Dança dos Famosos" e outras formas pouco honestas de divertir os outros.
Sempre admirei Woody Allen por nunca ter ido à premiação do Oscar. E também o admirei muito por
ter ido. Não foi para não ceder ao esquema corruptível e vaidoso, mas, depois, foi para fazer um
gesto de afeto com Nova York. Topou ir à cerimônia do Oscar no ano seguinte ao 11 de Setembro.
Poderia até ser ao contrário, ter ido a todas e faltado na última, mas não se é Woody Allen
impunemente.
169
HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões e do Circo
Roda Brasil
CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Intensa, irreverente, contraditória, autodestrutiva, mas antes de tudo uma grande cantora.
Assim era Maysa (1936-1977), nossa eterna diva da fossa e da dor de cotovelo, cuja história pessoal
e, naturalmente, sua música, inspiraram a minissérie da Globo. Dirigida por Jayme Monjardim, filho da
cantora, "Maysa -Quando Fala o Coração" mostrou em seus primeiros capítulos um eficiente elenco,
esmero na produção dos cenários e figurinos, além da bela fotografia de Affonso Beato, num padrão
raro na TV brasileira.
A série revelou também a talentosa atriz gaúcha Larissa Maciel, que personifica a cantora de
maneira bem convincente. Ainda que falte um pouco de intensidade em sua interpretação, justamente
nas cenas em que dubla Maysa cantando, seus grandes e expressivos olhos verdes são capazes de
hipnotizar o espectador.
Talvez a opção de Manoel Carlos, autor da série, por uma narrativa não-cronológica possa
incomodar os espectadores acostumados ao formato mais convencional de grande parte das novelas
e minisséries da emissora. Mas esse recurso permite equilibrar, por meio de flashbacks, as
passagens mais pesadas e melodramáticas da história com outras mais descontraídas, incluindo os
esperados números musicais.
Especialmente saborosa é a cena em que Maysa interpreta o samba-canção "Ouça" (de sua
autoria), um de seus maiores sucessos. Com o rosto em primeiro plano, enquadrado pela tela de um
aparelho de TV, a cantora mandou um irônico recado para o ex-marido, o milionário André
Matarazzo. E que outra cantora teria, como a impulsiva Maysa, a coragem de tirar o sapato e atirá-lo
sobre espectadores desrespeitosos, que insistiam em falar alto durante uma de suas apresentações?
Cafajeste
Já as aparições do jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli (bem interpretado pelo ator Mateus
Solano) garantiram os momentos mais leves e divertidos. "Pela bossa nova, eu namoraria até o Trio
Iraquitã", dispara o autor da clássica "Lobo Bobo", no melhor estilo cafajeste, antes de lançar seu
charme sobre a cantora.
Ironicamente, outra cena exibida na última quarta nos remeteu a um fenômeno cultural bem
característico dos dias de hoje: a indústria que se alimenta da vida pessoal dos artistas e
170
celebridades. Flagrada por um paparazzo ao se despir para um banho de cachoeira com um grupo de
amigos, Maysa viu sua intimidade exposta na capa de um tabloide bem semelhante aos atuais.
Quem sabe, se conhecesse o trágico final de Maysa, a cantora inglesa Amy Winehouse, que
parece ser tão intensa e autodestrutiva quanto a diva brasileira da fossa, tivesse um insight sobre o
que a próxima noite de excessos pode lhe reservar.
Avaliação: bom
A liderança de público (5,479 milhões) e de renda (R$ 46,2 milhões) do longa "Se Eu Fosse
Você 2" nas bilheterias brasileiras neste ano revela mais do que a capacidade do país de produzir um
filme-fenômeno.
O êxito extraordinário do título de Daniel Filho expõe também o que falta à indústria nacional
de cinema. Embora com lançamentos crescentes, o Brasil raramente detém mais do que 10% do total
do público.
"Faz falta o gênero 'comédia picaresca', que respondeu pelo maior sucesso do cinema
brasileiro, 'Dona Flor e Seus Dois Maridos' (1976) [público de cerca de 11 milhões] e para o qual
temos vocação e talento", diz Gustavo Dahl, ex-presidente da Agência Nacional do Cinema, atual
gerente do Centro Técnico do Audiovisual.
A prevalência da comédia no gosto popular chama a atenção também do crítico e professor
da USP Ismail Xavier. "Não temos no cinema uma forte tradição do melodrama, ao contrário de
Hollywood e dos cinemas argentino e mexicano", diz ele.
No cinema brasileiro, afirma Xavier, "o eixo dominante caminhou do teatro de revista para a
chanchada ou para filmes como 'Absolutamente Certo' [1957], de Anselmo Duarte, que já dialogava
com a TV".
Cinema e TV
171
A aproximação de "Se Eu Fosse Você 2", estrelado por Glória Pires e Tony Ramos, com o
universo da TV é citada também por Dahl, que assinala a oposição entre o "cinema comercial" e o
"cinema de autor", refletida na disputa por recursos de produção.
"Daniel Filho fazia TV como se fosse cinema e faz cinema como se fosse TV. Tem intimidade
com a comicidade brasileira. Só que comédia é artesanato; artesanato é disciplina, o oposto do
geralmente entendido como cinema autoral", diz.
Segundo o ex-presidente da Ancine, "3/4 do investimento em produção cinematográfica via
leis de renúncia fiscal é direcionado para o cinema autoral, deixando a indústria de entretenimento
brasileiro por conta da TV". "Se Eu Fosse Você 2" custou R$ 6 milhões, reunidos com o uso das leis
de incentivo à cultura via renúncia fiscal.
"Fato isolado"
Para o diretor José Eduardo Belmonte ("Meu Mundo em Perigo", "Se Nada Mais Der Certo"),
cujos filmes são consagrados em festivais, mas dificilmente alcançam o público, o sucesso de "Se Eu
Fosse Você 2", que "não há como não celebrar", é um "fato isolado" no contexto da produção
nacional.
"Nosso cinema comercial vinha mal das pernas. Antes dele, várias comédias populares com
uma estética menos elaborada fracassaram enormemente."
O cineasta Cacá Diegues, no entanto, vê no êxito de "Se Eu Fosse Você 2" um sinal de vigor
da produção de cinema no Brasil. "Não pode existir um cinema nacional consolidado sem uma
cumplicidade com o público, embora seja necessário garantir sempre a manifestação daqueles que
desejam mudar o gosto do público. E Daniel Filho tem o faro do público, sabe como conquistá-lo",
afirma.
Já Inácio Araujo, crítico da Folha acha "doentio que um filme faça 5 milhões de espectadores
e a maioria dos demais filmes faça 5.000, 10 mil ou coisa parecida". Em 2008, entre 91 longas
nacionais lançados, só 16 ultrapassaram 100 mil espectadores. Para Araujo, esse "é um problema
que se deveria começar a levar a sério". Quanto ao longa de Daniel Filho, diz: "Parece-me um filme
que deve existir, um filme divertido. Será muito ruim que se converta em modelo para alguma coisa".
SILVANA ARANTES
Folha de São Paulo, 15/03/09
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volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, nas bancas a partir do próximo domingo-- promoveu
o único encontro nas telas de Paul Newman e Elizabeth Taylor.
Quando o filme foi lançado, em setembro de 1958, Newman tinha 33 anos, e Taylor, 26.
Apesar de jovens, os dois enfrentam diálogos densos e cortantes do filme com impressionante
maturidade. "Nem a vigorosa direção de Richard Brooks nem o provocativo texto de Tennessee
Williams apagam o que 'Gata em Teto de Zinco Quente' tem de mais memorável: o duelo entre
Elizabeth Taylor e Paul Newman", afirma o crítico da Folha Cássio Starling Carlos, no livro que
acompanha o DVD.
O livro traz, ainda, biografias do diretor, Richard Brooks, do dramaturgo Tennessee Williams e
um texto sobre a censura imposta à peça e ao roteiro, entre outras informações e curiosidades.
Paul Newman vinha de uma sólida formação teatral. Foi aluno do Actor's Studio --discípulo, portanto,
do famoso método de Lee Strasberg, assim como Marlon Brando e Montgomery Clift-- e estreou na
Broadway em 1953, aos 28 anos, na primeira montagem de "Picnic", de William Inge. Os olhos azuis
e o jeito de galã logo fizeram com que fosse cortejado por Hollywood, onde estreou um ano depois,
com "O Cálice Sagrado".
Mas detestou tanto o trabalho neste filme que se desculpou publicamente, por meio de um
anúncio pago em uma revista. Logo depois, redimiu-se com papéis elogiados em "Marcado pela
Sarjeta" (1956), de Robert Wise, e "O Mercador de Almas", de Martin Ritt, pelo qual levou o prêmio de
melhor interpretação masculina no Festival de Cannes, em 1958.
Liz Taylor começou direto no cinema, ainda criança. Aos 10 anos, contracenou com a famosa
cachorra Lassie em "A Força do Coração", e, aos 19, fez par com Montgomery Clift em "Um Lugar ao
Sol", de George Stevens. Antes de "Gata em Teto...", fez ainda "Ivanhoé", "Assim Caminha a
Humanidade" e "A Árvore da Vida", pelo qual ganhou sua primeira indicação ao Oscar, de atriz
coadjuvante, em 1957.
Juntos na tela, Newman e Taylor promovem um embate que, como explica o texto de Starling
Carlos, será apresentado de um modo essencialmente físico. Os enquadramentos e angulações do
diretor Richard Brooks realçam essa característica do texto. Brick (Newman), entorpecido pelo álcool
e com uma perna engessada devido a um acidente, tem grande dificuldade para se mover. Maggie
(Taylor), ao contrário, inquieta como uma gata, se movimenta sem parar pelo cenário (boa parte do
filme se passa no quarto do casal).
Cada uma das cenas entre os dois lembra um duelo carregado de tensão sexual, diante da
indiferença de Brick ao desejo de Maggie. A partir da segunda metade do filme, esse embate se
estende aos outros integrantes da família, que explode em crise. E "Gata em Teto...", enfim, traz duas
estrelas de primeira grandeza no esplendor de sua juventude.
173
A edição desta segunda-feira da "Tela Quente" vai exibir o filme "Se Eu Fosse Você", um dos
grandes sucessos do cinema nacional da chamada retomada, que designa o reaquecimento da
produção desde o fim da Embrafilme, no começo dos anos 90.
O longa, estrelado por Tony Ramos e Glória Pires e dirigido por Daniel Filho, conta a história
de um casal em crise que troca de corpos misteriosamente.
Segundo Inácio Araújo, crítico da Folha, o desenvolvimento da trama "não é nada tão inédito, nada
tão profundo, mas tudo correto. A comédia conjugal é o gênero que melhor funciona para Daniel
Filho".
Apesar da crítica não ter sido muito favorável ao filme --considerando-o uma "comediazinha
arroz com feijão" com o objetivo de "faturar"--, "Se Eu Fosse Você" foi um grande sucesso de
bilheteria, atraindo um público de 3,6 milhões de pessoas.
Essa marca coloca o filme de 2006 na quarta posição da lista dos filmes brasileiros mais
vistos desde 1995, ano que marca a retomada do cinema nacional.
Em reportagem publicada pela Folha Online, Daniel Filho falou que o segredo do filme estava na
escolha do casal. "Eu precisava de atores que pudessem ser comediantes e econômicos, pois a
situação em si já tinha graça. Uma passada de mão a mais poderia estragar a cena".
Sequência de sucesso
A continuação desse sucesso do cinema brasileiro bateu o recorde de público da retomada.
A comédia "Se Eu Fosse Você 2" atraiu mais de 5,3 milhões de espectadores para as salas
de cinema. Antes, o posto era de "2 Filhos de Francisco".
O blockbuster nacional também atingiu a vice-liderança no ranking de arrecadação nas
bilheterias, ultrapassando a marca de R$ 49 milhões. A liderança nesse quesito ainda pertece a
"Titanic" (1997).
Em "Pacto Sinistro", próximo volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema --disponível nas
bancas no domingo--, Alfred Hitchcock mais do que justifica sua fama de "mestre do suspense". Ele
se faz valer de seu reconhecido domínio da linguagem cinematográfica para eletrizar o espectador e,
de quebra, abordar dois de seus assuntos favoritos: o duplo e a transferência de culpa.
As duas questões já estavam amplamente presentes no romance de Patricia Highsmith que deu
origem ao roteiro. A trama é simples: um homem sinistro aborda um total desconhecido e lhe
apresenta o plano de um crime perfeito.
Guy Haynes, jogador de tênis, tem problemas com a ex-mulher, que lhe recusa o divórcio;
Bruno Anthony, autor da ideia, odeia o pai. Se um se livrar do problema do outro, não devem ser
descobertos, pois serão assassinatos sem motivos aparentes.
174
Já nos planos de abertura, Hitchcock apresenta a questão do duplo de forma direta, como
mostra o texto do crítico Inácio Araujo que integra este volume da coleção: "Vemos pernas se
movendo em direções opostas. Um sapato escuro, um sapato claro. Tudo parece colocá-los em
oposição, exceto o fato de que estamos em uma estação ferroviária e ambos caminham na direção
de um trem".
Durante a viagem, ocorre o diálogo que deslancha a história: "Está armada a trama em vários
aspectos, mas especialmente em um. Bruno é capaz de remeter Guy ao mais fundo de seus
sentimentos. O tenista recusa o pacto, mas sabemos que, no fundo, ele deseja a morte da frívola
esposa. E o simples fato de desejar, ainda que de maneira inconsciente, uma morte, nos torna
potencialmente assassinos. Assim racionava Hitchcock. Assim também raciocinava o charmoso
Bruno".
Bruno, mente doentia, interpreta reações ambíguas de Guy como um sinal para levar sua
ideia macabra adiante. Quando este se recusa a realizar sua parte do plano, Bruno arma para
incriminar Guy. É o medo profundo do típico herói hitchcockiano: ser acusado de um crime que jamais
cometeu.
Protagonistas destacados
Apesar da direção precisa de Hitchcock, com sua decupagem cuidadosa, nada funcionaria
tão bem se não fossem os atores principais. Farley Granger, como Guy, e Robert Walker, como
Bruno, são muito diferentes entre si, mas com um ponto em comum: são sedutores e charmosos à
sua maneira.
É verdade que Hitchcock declarou a François Truffaut que gostaria mesmo de ter William
Holden no papel de Guy, pois queria "um homem mais forte", mas Farley Granger, que já havia
trabalhado com o cineasta em "Festim Diabólico", dá conta do recado e está perfeitamente
convincente.
Robert Walker, o vilão Bruno, teve um fim trágico: morreu no ano seguinte ao lançamento do
filme, vítima de uma reação alérgica provocada por um calmante.
O livro que acompanha o DVD traz fotos do filme e ainda um texto que descreve a produção
de "Pacto Sinistro", desde a compra dos direitos do livro até a data de seu lançamento.
Há também biografias de Alfred Hitchcock, Patricia Highsmith e do elenco principal, além de
comentários dos críticos Roger Ebert, André Bazin, Claude Chabrol e Eric Rohmer.
(51) "América" de Sergio Leone evoca São Paulo dos anos 40, diz Ugo Georgetti; leia trecho
175
O cineasta brasileiro Ugo Giorgetti, diretor de "Sábado" (1994) e "Boleiros" (1998), entre
outros, aponta o filme "Era Uma vez na América" (1984), do cineasta italiano Sergio Leone (1929-
1989), como um de seus prediletos. É o último filme de Leone, que morreu há 20 anos e ficou
conhecido por reinventar o faroeste nos anos 60 com o "spaghetti-western".
Para Giorgetti, a história dos garotos judaicos que crescem juntos nas ruas de Nova York
reacende as memórias de quem cresceu em bairros paulistanos como a Mooca, o Brás, a Bela Vista,
o Bom Retiro e Santana. "Quem foi criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de
imigração de São Paulo, é capaz de rever nesse filme suas próprias primeiras experiências e a
atmosfera precisa em que elas se deram", diz o cineasta.
O relato do cineasta brasileiro sobre "Era Uma vez na América" está no livro "Ilha Deserta -
Filmes" (Publifolha). A publicação traz textos de Giorgetti e outros seis apaixonados por cinema. Cada
um dos autores aponta e comenta dez filmes que levariam para uma ilha deserta.
Leia abaixo trecho do livro que traz o relato completo de Giorgetti sobre "Era Uma vez na América" e
saiba mais sobre o livro.
Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está
atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela
Nova Ortografia".
*
SERGIO LEONE
Era uma Vez na América
"Todo o material referente à infância contido em The Hoods não cessava de me atrair. A
fascinação era imensa. Não podia deixar de me convencer de que a base do romance de Grey me
inspirava muito."
Sergio Leone, com suas próprias palavras, nos informa o que o motivou a realizar esse filme
complexo: a infância. E é de uma certa infância que o filme trata de maneira soberba. Quem foi
criado, entre os anos 40 e 50, em algum dos grandes bairros de imigração de São Paulo, como a
Mooca, o Brás, a Bela Vista e sobretudo o Bom Retiro e Santana, é capaz de rever nesse filme suas
próprias primeiras experiências e a atmosfera precisa em que elas se deram.
Aquela confusão nas ruas feita pelo movimento de automóveis, bondes, carretas e mesmo
cavalos, aquela gentarada estranha enchendo as calçadas, alguns envergando pesados sobretudos
europeus sob o nosso calor, os ouvidos sendo invadidos por expressões em múltiplas línguas e
múltiplos sotaques, buzinas e pregões, as narinas elas também invadidas pelo cheiro particular vindo
dos porões das casas, do interior dos pequenos negócios e das iguarias que iam de focaccie a
burrecas.
E principalmente os amigos, garotos às vezes com nomes estranhos e quase
impronunciáveis, imediatamente desfigurados e simplificados pela nossa tradicional falta de cerimônia
e esculhambação. Essas corruptelas hilariantes de seus nomes provavelmente acompanham alguns
daqueles garotos até hoje.
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Henry Miller, num livro cuja atmosfera lembra muito o filme de Leone, escreveu: "Nascer nas
ruas significa vagar por toda a sua vida, ser livre. Significa acidente e incidente, drama e movimento.
Significa, acima de tudo, sonho" (Primavera Negra).
Era uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) é isso: sonho. O sonho das
ruas, através do qual Leone acompanha cinco garotos que crescem e vagam incessantemente por
um dos bairros de imigração como os que eu descrevi acima, só que em Nova York. O fato de que
depois eles se tornam delinquentes perigosos é absolutamente irrelevante.
Esse retrato fiel e poético da imigração só foi conseguido por meio das atuações estupendas
dos atores - quer dizer: dos meninos -, apoiados pela fotografia belíssima de Tonino Delli Colli,
fotógrafo habitual de Leone e Pasolini, e pela maravilhosa trilha sonora de Ennio Morricone,
impecável quando trabalha para grandes cineastas.
Praticamente ignorado pela crítica --e pelo Oscar-- na época de seu lançamento, "Rastros de
Ódio" é hoje considerado um dos melhores "westerns" já feitos e a obra-prima do diretor John Ford
(1894-1973).
O filme, que compõe o 11º volume da Coleção Folha Clássicos do Cinema, respeita as
características do gênero, mas, ao mesmo tempo, é capaz de alargar seus limites.
Os "westerns" de John Ford ajudaram a forjar o mito da América: "Uma epopeia localizada no
tempo (século 19, basicamente), consistindo da empreitada de homens brancos tentando aproveitar
economicamente o território ocupado pelos índios", escreve o crítico da Folha Inácio Araujo, no
ensaio que acompanha o DVD neste volume da coleção, disponível a partir de domingo.
"Rastros de Ódio" é uma odisseia de cores fortes, cuja complexidade dá novos rumos ao gênero. O
filme narra a saga de Ethan (John Wayne, em uma de suas melhores atuações no cinema), que
durante sete anos procura sua sobrinha Debbie (Natalie Wood, em um de seus primeiros papéis no
cinema), raptada por índios.
Ethan é movido pelo ressentimento e pelo desejo de vingança. Em uma das cenas mais
fortes do filme, ele atira no rosto de um índio recém-enterrado e justifica sua atitude: sem os olhos,
segundo a própria crença indígena, seu espírito vagará pela eternidade.
177
Sem "Rastros de Ódio", não seria possível imaginar, por exemplo, um filme como "Os
Imperdoáveis", o faroeste crepuscular que Clint Eastwood realizou em 1992, cujo protagonista traz
muitos dos traços do personagem de Ethan.
178
"Ele dizia, e é fácil concordar, que se trata da coisa mais fácil do mundo. É evidente, porém,
que não basta colocar a câmera à altura do homem para chegar a bons filmes. Seu segredo
consistiu, em grande medida, em perguntar-se qual a estatura de um homem. Isto é: o que faz de um
homem um homem?", destaca o crítico.
A moda brasileira já possui um bom número de histórias para serem contadas. No entanto,
até agora foram poucos os livros que buscaram abordá-las, e mais raros ainda foram os filmes. O
novo documentário "Top Models - Um Conto de Fadas Brasileiro" é a primeira tentativa de registrar
em imagens uma parte fascinante dessa história: a das garotas que saíram dos grotões do país para
se Dirigido pelo carioca Richard Luiz, o filme traz depoimentos das principais tops brasileiras, como
Gisele Bundchen, Raquel Zimmermann, Isabeli Fontana, Adriana Lima e Carol Ribeiro. Elas falam do
início da carreira, da ascensão ao panteão fashion e dos seus planos para o futuro, após deixarem
essa profissão que dura o mesmo tempo que a juventude.
O lançamento do documentário acontece no próximo dia 15, durante a SPFW (São Paulo
Fashion Week), numa festa para mil convidados no shopping Iguatemi. No final de julho, o filme será
exibido em versão digital em cinco capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Salvador, Porto Alegre e mais
outra, ainda em negociação). Em dezembro, chega ao DVD. Uma cópia em película será feita para
exibição internacional.
Produzido pela Protótipo Filmes e pela Luminosidade, que organiza a SPFW, "Top Models"
custou cerca de R$ 800 mil. Os primeiros depoimentos e imagens foram feitos durante a produção de
um calendário com 25 modelos, em 2005. Na época, não havia a pretensão de transformar o material
num longa-metragem. "Mas vi que poderia ser algo maior do que uma série de entrevistas. Poderia
ter um ponto de ficção misturado com depoimentos reais", afirma o diretor.
Foi feito, então, um roteiro (por Renata Terra) que, em paralelo às declarações das tops consagradas,
contava a história de uma modelo estreante, Luana, e suas agruras para conseguir um lugar ao sol.
Cenas ficcionais foram acrescidas às verdadeiras, tudo conduzido pela voz de uma narradora,
"interpretada" pela atriz Alice Braga.
O filme levou quatro anos para ser concluído. "Gastamos muito tempo para obter a liberação
de imagens de desfiles e publicidades de grandes grifes estrangeiras", justifica Luiz, que atua desde
2001 como diretor de produtos audiovisuais da SPFW.
A agenda agitada das tops também atrasou o longa. Ele precisou correr atrás delas, com sua
equipe de duas pessoas, pelas principais cidades da moda --Paris, Milão, Nova York e Londres.
179
Os depoimentos das modelos são a melhor coisa do filme. Elas falam com simplicidade e franqueza
sobre suas carreiras, revelando como seus "contos de fadas" foram construídos com trabalho,
perseverança e, claro, um pouco de sorte.
Malu Mader toma banho, sai do chuveiro, coloca uma calcinha preta, bota de couro, coldre
nas costas e dá um beijo no bebê. Assim dá início a mais um dia. Mas não da atriz carioca de 43
anos, e sim de sua personagem Diana Maciek, de "A Justiceira", que tem lançamento neste mês em
DVD.
Ela é uma agente da Polícia Federal, casada, mãe recente e enfrentando as dificuldades de
um marido músico e --ela vai descobrir um tempo depois-- drogado ao extremo.
Ela acaba deixando a PF ao atirar no próprio parceiro de trabalho numa ótima sequência de ação em
um treme-treme do centro de São Paulo.
Cinco anos depois, não acha emprego, e o marido, ainda mais dependente de heroína, vende
o filho para comprar drogas e morre de overdose.
Uma organização sigilosa --cujo lema é livrar o país de todo tipo de criminosos-- recruta a
moça para enfrentar ladrões de material radioativo, gangue de motoqueiros e serial killer de gays,
sempre com tiros, mortes, perseguições e culpas.
O seriado ficou datado no que diz respeito ao roteiro e às questões morais, que, hoje,
parecem inocentes, mas não deve nada com relação aos efeitos especiais, um marco na época em
que estreou, em 1997.
Malu conta que aceitou fazer a série "sem nem querer saber o que era", por ter gostado do
resultado de "A Vida como Ela É", também dirigida por Daniel Filho. "Adaptar Nelson Rodrigues era
um biscoito fino para as massas. Depois de topar 'A Justiceira', quando vi que teria de pular de
helicóptero, tremi na base. Mas considero legal ter feito por ter inaugurado o seriado de ação no
Brasil."
Daniel Filho foi para os EUA finalizar os episódios e aprender como montar aquela estrutura
no estilo de programas como "A Dama de Ouro". "Foi um papel carbono dos seriados americanos
muito divertido de fazer", conta ele nos extras.
180
Malu diz não ter se inspirado em ninguém. "Nunca tinha assistido a Kate Mahonney. Via 'As
Panteras', mas não acho que tenha nada de uma Pantera na Diana. Ela é muito mais sofrida, como
aliás tudo aqui no Brasil."
A série teve de ser encurtada de 32 episódios para 12 em razão da segunda gravidez de
Malu. Ela trabalhou até os cinco meses de gestação --"com Antonio pulando lá dentro". "Era bem
complicado correr com uma barriga daquele tamanho. E a câmera teve de ir fechando mais no rosto,
porque, além da barriga da gravidez, eu passei a comer muito e fui engordando [risos]. Quero mostrar
o seriado para meu filho mais novo para ele ver o estrago que fez."
Nem todo o sangue derramado na primeira temporada de "True Blood" foi suficiente para
saciar o apetite por violência na pequena Bon Temps, Louisiana. A segunda fase da série, que estreia
na HBO no dia 19, às 22h, tem ainda mais mortes, sexo e, é claro, bastante sangue. Já no primeiro
episódio, há uma nova onda de crimes, com mais um assassinato brutal e humanos sendo
sequestrados e torturados por vampiros.
181
Criado por Alan Ball a partir dos livros de Charlaine Harris, o programa mostra vampiros
"saindo do caixão" e tentando se integrar à sociedade após a descoberta de sangue sintético.
A convivência turbulenta entre humanos e mortos-vivos é sintetizada no romance entre a
protagonista Sookie Stackhouse (Anna Paquin), uma garçonete com poderes telepáticos, e o vampiro
galã Bill Compton (Stephen Moyer). Agora, o casal terá de lidar com a chegada de uma nova
vampira, a adolescente Jessica Hamby, que fica sob a responsabilidade de Bill.
Com forte apelo sexual, enredo de mistérios e um discreto subtexto político, é um dos
sucessos da TV americana. Segundo o "New York Times", a estreia da segunda temporada teve 3,4
milhões de espectadores e foi o programa mais visto na HBO desde o final de "Família Soprano".
Nesta segunda temporada, os conflitos entre vampiros e humanos estão mais acirrados. A
discussão sobre os direitos civis dos mortos-vivos --uma metáfora sobre a delicada questão da
tolerância na sociedade americana- ganha destaque. Jason Stackhouse (Ryan Kwanten), o irmão
inconsequente de Sookie, entra para uma seita antivampiros que tem como objetivo impedir as
criaturas de conquistar os mesmos direitos dos cidadãos comuns.
A galeria de seres e acontecimentos sobrenaturais também ganha novos personagens. Como
se não bastassem os vampiros, os transmorfos e os exorcismos vistos na primeira fase --que sai
agora em DVD--, uma nova personagem ganha espaço: a misteriosa Maryann Forrester (Michele
Forbes), espécie de bruxa que chega bancando a boa samaritana.
Ao lado de filmes como o blockbuster adolescente "Crepúsculo" e, mais recentemente, o
sueco "Let the Right One In", "True Blood" é responsável por colocar os vampiros, personagens
centenários da cultura pop, na moda mais uma vez. Gélidos, perigosos e sexies, eles ainda renderão
muitos frutos para Hollywood.
LETICIA DE CASTRO
Folha de São Paulo, 11/07/09
Os "fatos reais" podem ser uma armadilha fatal. Eles são a base de "O Contador de
Histórias". E a história, no caso, é de Roberto Carlos Ramos, um menino que a mãe, por falta de
condições e acreditando na propaganda da TV, entrega à Febem mineira para ser criado pelo Estado.
Como a propaganda não coincide com a vida real, Roberto Carlos aos 13 anos já é considerado um
caso irrecuperável. Isso até que entra em cena a pedagoga Margherit (Maria de Medeiros), para
quem não existe alguém irrecuperável nessa idade. A questão proposta é: a substituição de um
método impessoal pela aproximação caso a caso pode salvar um jovem desencaminhado?
Não é, sejamos francos, questão que se apresente, pois, ainda que seja, o filme nos lança
182
num beco sem saída. A Febem, onde o menino foi deixado, era uma instituição monstruosa, tanto
que foi fechada e substituída por um sistema de pequenas unidades (portanto, teoricamente, de
atendimento mais próximo das crianças e adolescentes envolvidos). Desse ponto de vista, a questão
inexiste.
Se a ideia de Margherit (isto é, do filme) é demonstrar que as pessoas não são más por
natureza, mas agem em grande medida em vista do ambiente social que frequentam, também aí
estamos chovendo no molhado: as mentalidades liberais acreditam nisso há um século; as
conservadoras jamais acreditarão, haja o que houver.
Em outras palavras, o que sobra de real falta de verdade ao filme de Luiz Villaça. E nisso a
forma não desmente o fundo. A impessoalidade da empreitada já se nota pelo número de roteiristas
(quatro) -compreende-se que a Febem seja vista ora como um inferno, ora como um promissor
purgatório.
Quanto à mise-en-scène, além de uma direção de atores precária (Maria de Medeiros está
bem entre atores mal conduzidos), ela consegue perder o momento mais promissor da trama: quando
o jovem e ameaçador Cabelinho invade a casa de Margherit. Por um instante parece que teremos
uma sequência hitchcockiana. Não. Ela é amorfa como, mais ou menos, todo o conjunto.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 02/08/09
(58) Pialat evita melodrama e cria elos entre pintura e cinema em "Van Gogh"
A eterna relação de fascínio entre o cinema e a pintura flutua desde a inspiração até o
vampirismo daquele frente a esta. Quando se trata de biografar artistas então, os filmes parecem
antes de tudo querer projetar ideais raros, quando não inexistentes. Dos "heróis irresistíveis" da arte,
o nome de Vincent van Gogh tornou-se um lugar-comum, com sua mistura de ícone romântico,
reconhecimento tardio e mito rebelde.
O suicídio que encerrou sua trajetória curta e fulgurante pôs fim com chave de ouro a uma
história feita sob medida para o cinema e sua queda pelo melodrama.
183
Quando chegou às mãos do diretor francês Maurice Pialat em 1991, o mito já havia recebido revisões
assinadas por grandes como Resnais, Minnelli e Altman, além de um curta feito pelo próprio Pialat
nos anos 60. Conhecido mais por seu temperamento irascível do que pelo rigor e pela forma
antiespetacular de seu trabalho, Pialat aborda o artista enquanto mito pela contramão. Inadequação,
incompreensão e insubordinação às regras não constituem valores em si, demonstra o diretor a partir
de seu modelo, dando a entender que o raciocínio aplica-se sem mudanças a seu trajeto de autor.
Logo, o "Van Gogh" de Pialat será tão idiossincrático quanto o ultraromântico de Minnelli e o
despojado de Altman. No entanto, em vez de se perder em confissões, Pialat recupera explicitamente
em "Van Gogh" sua própria experiência como pintor, prática que exerceu antes de se converter em
cineasta.
Sem ilusionismos
Com o álibi de filme sobre artista, Pialat executa um dos mais profundos trabalhos pictóricos
já feitos no cinema, sem permitir confundir pintura com empetecamento da imagem ou com a
reprodução impressionante, mas sem sentido, da obra de Van Gogh realizada por Kurosawa em
"Sonhos".
O diretor francês nos faz ver que entre cinema e pintura a similitude não se esgota na
superfície da tela, nos acordos de luz e cor que muitas vezes nos levam a perder nosso olhar no
ilusionismo da beleza.
É na concepção de quadro, espaço delimitado por quatro linhas que se abrem ou se fecham
que tanto pintor como cineasta impõem uma visão (no sentido de ponto de vista) ao espectador.
O artista, então, passa a ser aquele que oferece uma experiência sublime, que nos arranca do torpor,
mesmo quando retrata um tema ou uma vivência identificada como banal (exemplar, aqui, no modo
como Van Gogh é um homem sem qualidades). Os outros não passam de captadores de imagens.
VAN GOGH
Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 44,90
Classificação: 16 anos
Avaliação: ótimo
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É um trabalho árduo esse de fazer um filme de rock. Se o diretor já começa ganhando, pelo
fato de arrebanhar muitos espectadores que já são fãs da banda ou do gênero retratado, por outro
lado esse mesmos fãs são cricris o suficiente para exigir que cada detalhe da vida do astro seja
reproduzido sem maiores liberdades.
Com "The Doors", de 1991, Oliver Stone conseguiu o raro feito de unir o útil ao agradável.
O filme é informativo, tanto em relação à banda como em relação ao clima dos Estados Unidos e,
mais especificamente, de Los Angeles no fim dos anos 60.
E é radicalmente autoral também, abusando de cenas de viagens lisérgicas, bêbadas ou
simplesmente alucinadas. Stone apresenta sua visão do mito Jim Morrison e consegue agradar até
os fãs do "rei lagarto".
O The Doors lançou seis álbuns de estúdio entre 1967 e 1971 e, a despeito de hits como
"Light My Fire", "People Are Strange", "Hello, I Love You", "Touch Me", "Roadhouse Blues" e "Riders
on the Storm", sua grande força estava no carisma do cantor e poeta Jim Morrison.
O fato de ele ter morrido em julho de 1971, aos 27 anos (em Paris, em circunstâncias pouco
esclarecidas), fez o mito em torno dele aumentar exponencialmente, até que, 20 anos depois, deu
neste filme.
E, quase mais 20 anos depois, chegamos a este DVD duplo com um disco só de bons extras,
que incluem 14 cenas deletadas, documentários e boas entrevistas com os atores e a equipe.
O que mais chama a atenção nas entrevistas é que elas não se limitam a louvar o filme e o diretor.
Oliver Stone, por exemplo, reclama de Meg Ryan (no papel de Pamela Courson) ter escondido o seio
com a mão numa cena de sexo com Val Kilmer (Morrison): "Ela não entendeu nada dos anos 60 e
estragou minha cena".
Em outro momento, o ator Frank Whaley (que interpreta o guitarrista Robby Krieger) tira um
sarro das extravagâncias de Val Kilmer, revelando que o astro não aceitava ser chamado pelo próprio
nome, apenas como "Jim Morrison", durante as filmagens do longa.
THE DOORS
Direção: Oliver Stone
Lançamento: Sony Pictures (R$ 39,90; DVD duplo; classificação: 18 anos)
Avaliação: ótimo
IVAN FINOTTI
Folha de São Paulo, 16/08/09
185
Enquanto a Guerra do Vietnã demorou, mas acabou recebendo um tratamento
cinematográfico com peso equivalente ao do trauma provocado por ela na sociedade norte-
americana, o impacto do envolvimento do país na atual Guerra do Iraque vem sendo recuperado pela
ficção audiovisual com intensidade e quase em tempo real.
A vivência dos soldados foi reconstituída com crueza nas séries de TV "Over There" e
"Generation Kill", enquanto o modo de captar e reproduzir suas imagens serviram para o cineasta
Brian De Palma questionar a veracidade do que acreditamos só de ver no magistral "Redacted".
Agora, "Guerra ao Terror", dirigido pela sempre interessante Kathryn Bigelow, sai diretamente em
DVD no Brasil, depois de receber prêmios no Festival de Veneza em 2008 e a boa acolhida geral da
imprensa. norte-americana.
Infelizmente, não passou aqui em salas, pois só mesmo a exibição em tela de cinema deve
ser mais impactante que a visão do filme em TV.
Em vez de drama humanista, libelo pacifista ou manifesto politizado, o que o filme propõe é
uma experiência física da guerra. Para isso, seu fiapo de história resume-se a acompanhar um grupo
especialista em localizar e desativar IEDs, sigla para as bombas improvisadas que rotineiramente
destroçam reuniões de iraquianos e, de vez em quando, despacham soldados americanos mais
rápido para casa.
Enquanto aguardam ansiosos a chegada da folga, quando poderão retornar aos Estados
Unidos e rever suas famílias, os integrantes do grupo Delta vivem sob o risco contínuo de explosões,
ataques de franco-atiradores e formas ainda mais cruéis inventadas pela resistência iraquiana.
Ao se inserir no grupo, o filme nos leva a experimentar um conflito marcado menos por combates
abertos, frontais e espetaculares e mais pela recorrência de subterfúgios característicos de guerrilha.
Câmera aflita
Grudada em três soldados, a câmera aflita de Bigelow reconstitui uma percepção dessa
experiência que o registro jornalístico-documental nunca alcança e que os games, em sua dimensão
de projeção virtual, já ultrapassaram.
Além desse triunfo no âmbito do realismo, a concentração quase somente em cenas de ação
faz de "Guerra ao Terror" um filme cuja ressonância política vai além da obtida pelos documentários
que nos mostraram seus horrores.
De um lado, porque carrega a cada passo militar o peso intervencionista, invasivo e de pouca
receptividade da presença norte-americana.
Mas, sobretudo, porque basta a inserção de uma pausa nesse universo concentrado, quando
o filme mostra a indecisão de um soldado de folga diante de uma prateleira de cereais num mercado,
para sentirmos uma violência cujo impacto não se mede em explosões.
GUERRA AO TERROR
Direção: Kathryn Bigelow
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Lançamento: Imagem Filmes (R$ 35, em média)
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo
Não dá para acreditar em nada de "A Sombra da Forca". Um pai alcoólatra, o escritor David
Graham (Michael Redgrave), que chega em Londres, vindo do Canadá, 24 horas antes da execução
do filho. A estranha recepção que lhe dão os Stanford (rica família do melhor amigo do rapaz). O
advogado ambíguo, que nunca se sabe se está defendendo ou atacando o seu constituinte. A busca
desesperada do pai por evidências para livrar o filho da pena capital.
Não dá para acreditar em nada, digo, até percebermos que nada aqui aspira à realidade. A
interpretação dos atores é crispada (e por vezes se tem a impressão de que Joseph Losey escolheu
os piores ou menos adequados atores da Inglaterra). As peripécias policiais baseiam-se menos em
provas e achados espetaculares do que no poder de convicção dos diversos envolvidos. Mesmo a luz
de Freddie Francis está mais próxima de um filme de terror do que de um thriller policial.
Se não aspira à realidade, "A Sombra da Forca" propõe-se, então, como um pesadelo e é lá
que vive e faz sentido. E só assim pode ser compreendido, pois Losey dá-se ao luxo de trabalhar
uma intriga que não fecha, não esgota todos os dados que lança mas deixa-os um tanto soltos, como
fiapos de memória que cabe ao espectador, em grande parte, recolher.
Assim, esse estranho filme nos propõe uma espécie de "whodunit" (quem é o culpado?), pois
sabemos que o verdadeiro culpado está entre as pessoas em cena, mas não é bem isso. Propõe uma
espécie de mergulho na psicologia dos personagens. Mas também não é bem isso. Há momentos em
que tudo parece nos escapar, exceto a angústia de David, de quem também as coisas escapam à
medida em que se aproxima o momento da execução.
Nos fazer participar intensamente desse pesadelo em que David Graham joga toda sua vida
não é o menor dos méritos de "A Sombra da Forca". É uma pena: apesar da boa qualidade das
imagens, o DVD chega praticamente sem nenhum extra.
A SOMBRA DA FORCA
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INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 23/08/09
"Cinemaníaco" e "Acaso", lançados agora em DVD, estão entre os primeiros longas de ficção
realizados pelo polonês.
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ACASO/ CINEMANÍACO
Obra de 1974 virou cult ao levar para o cinema o romance de Herman Hesse
O filme
Lançado em 1974, após sete anos de produção tempestuosa, "O Lobo da Estepe" traz o
grande ator sueco Max von Sydow no papel de Harry Haller. Foi a única obra dirigido pelo californiano
Fred Haines.
189
O filme, assim como o Teatro Mágico original, é para raros.
Apesar de trazer uma narração em off do protagonista, o que ajuda em muitos momentos, não há
uma linearidade fácil.
O que há é uma explosão de ideias e técnicas: uma parte da história se passa em desenhos;
outro momento usa animação de fotos; imagens se congelam durante a ação; céus verdes e árvores
cor de laranja; efeitos especiais pululam por todo canto. Parte das cenas são gravadas em videoteipe.
Usam-se muitos efeitos especiais de vídeo, como o de cromaqui -no qual o ator contracena num
fundo azul, no qual mais tarde é aplicado outro fundo.
Mas essas cenas se tornam um tanto simplórias quando vistas hoje. Sumiços e aparições de
surpresa, muitas acompanhados por ruídos ridículos fazem lembrar episódios televisivos de "Os
Trapalhões". É preciso, portanto, dar algum desconto ao diretor e à década à qual o filme pertence.
Tudo contribui para dar uma cara lisérgica, surreal, claustrofóbica, estranha, ao mesmo tempo em
que é underground, caseira, de fundo de quintal.
As filmagens
Antes do diretor, "O Lobo da Estepe" foi arquitetado pelo produtor Melvin Fishman no final
dos anos 60. Apaixonado pelo livro e por Carl Jung (de quem Hesse era discípulo), Fishman queria "o
primeiro filme jungiano", mergulhado na psicanálise, nos símbolos e nas imagens de sonhos como
expressão do inconsciente.
O primeiro diretor convidado foi Michelangelo Antonioni, que pensou em Walter Matthau e
Jack Lemmon para o papel principal, antes de declarar a obra infilmável.
A MGM sondou atores como Marlon Brando e James Coburn e escritores como Fred Haines, cujo
roteiro para "Ulisses", de James Joyce, havia sido indicado ao Oscar em 1968.
Querendo escapar das garras dos estúdios, Fishman carregou uma equipe de produção até a
Basiléia, cidade suíça onde "O Lobo da Estepe" havia sido escrito e, curiosamente, onde foi
descoberto o LSD.
Lá, o obcecado produtor passava horas filmando o escritor Fred Haines lendo sua versão do
roteiro embaixo de uma lâmpada de 150 watts. Até Timothy Leary, o guru das drogas, apareceu por
lá e foi testado para o papel de Harry Haller. Após sete anos de tentativas, finalmente, Sydow,
Dominique Sanda e Pierre Clement ("A Bela da Tarde", de 1967) começaram a filmar, com Haines na
cadeira de diretor.
Terminadas as filmagens, um financiador assumiu o controle da obra, o que acarretou em um
ataque cardíaco para Fishman.
Foram feitas 80 cópias com cores erradas (o olho azul de Dominique Sana ficou marrom) e o
filme foi um fracasso. Dois anos depois, ainda lutando para ter controle sobre a obra, Fishman teve
outra parada cardíaca. Morreu sozinho e triste, como o lobo da estepe planejara.
O LOBO DA ESTEPE
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Direção: Fred Haines
Lançamento: Platina Filmes (R$ 20, em média); 18 anos
Avaliação: bom
IVAN FINOTTI
Folha de São Paulo, 13/09/09
Passa, é claro, "Psicose" (TC Cult, 22h, 12 anos), programado para hoje para ser o
encerramento e ponto alto da série dedicada a Hitchcock. Não é injusto. Mas é esse pouco amado M.
Night Shyamalan que merece, por hoje, um tanto de atenção, ao menos de quem já conhece
"Psicose" de cor.
O indiano, com efeito, misturava algo oriental a um suspense bem ocidental em "O Sexto
Sentido". Aos poucos, a delicadeza do olhar e do traço foram se impondo em sua obra, da qual "A
Vila" (TNT, 19h40, 12 anos) é um momento alto.
Ali uma comunidade recusa o mundo tal como se apresenta e pretende reconstruí-lo curado
dos males -e do pior de todos: o tempo. Mas o tempo se infiltra nesse paraíso artificial e o corrompe.
Ou, antes, o purifica, porque esse mundo está montado sobre a mentira, no caso, e para falar em
termos de cinema: cenografia e figurinos.
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 20/09/09
(65) Em clima de ressaca, filme de Mike Leigh explora uma Londres sombria
Chama a atenção que "Naked" (1993), de Mike Leigh, finalmente veja a luz do dia no Brasil
meses após o lançamento nos cinemas de "Simplesmente Feliz" (2008). "Naked" sai agora em DVD
sem nunca ter sido distribuído nas salas. É a crônica mais sombria de Leigh, contrastando com o
último, sua obra mais risonha.
Premiado no Festival de Cannes com direção e ator (David Thewlis) dois anos antes da
Palma de Ouro para Leigh por "Segredos e Mentiras" (1996), o tom de "Naked" lembra o de uma
ressaca.
E, como ocorre em ressacas, o mal-estar é forte, mas a sensação de estar vivo também. O
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filme segue algo de bêbado e nublado, com espasmos de sobriedade tocante, um pouco como a
própria Londres.
O eixo da trama é Johnny (David Thewlis). Ele faz parte de uma galeria peculiar de ingleses,
como o Alex de "Laranja Mecânica" (1971), o skinhead Trevor de "Made in Britain" (1984), ou Francie
Brady, o proto-punk mirim de "Nó na Garganta" (1997). São agentes do caos com sensibilidades
insuspeitas.
Charme pós-punk
Aos 27, Johnny é maduro o suficiente para entender um suposto mau humor de Deus e ainda
jovem o bastante para odiar isso.
Nos seus piores momentos, tem a verve de um poeta marginal afiado. É um chato com
alguma razão que explica sua má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes.
Chega na casa da ex-namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com a sempre aérea
Sophie (Katrin Cartlidge, que morreu precocemente em 2002). O charme pós-punk de Johnny leva o
trio a um colapso imediato.
Ele sairá pela cidade numa odisseia de encontros fortuitos que, mesmo lembrando "Depois
de Horas" (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original. Se na noite nova-iorquina de
Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de Leigh Johnny é o motor de tensões
constantes.
Essa dureza tem na fala uma verdade britânica notável, aspecto também percebido em "Kes"
(1969), de Ken Loach, outro momento importante do cinema britânico lançado há pouco pela mesma
distribuidora Lume Filmes.
Como Loach, Mike Leigh destaca o som do falar na Grã-Bretanha com ouvidos abertos. O trio
Johnny, Louise e Sophie, o casal de escoceses na rua e o outro personagem masculino em cena,
Jeremy (Greg Cruttwell), assumem visões de mundo e de classes sociais em sonoridades peculiares
da paisagem britânica.
NAKED
Distribuição: Lume Filmes
Quanto: R$ 39,90, em média
Classificação: 18 anos
Avaliação: ótimo
(66) Drama de Douglas Sirk chega aos 50 anos com frescor intacto
192
Último trabalho do diretor em grande estúdio gira em torno de jogo de aparências
Nada parece verdadeiro em "Imitação da Vida". Sarah Jane é negra, embora seja branca;
Lora é uma atriz, embora só apareça em fotos publicitárias; Steve é um fotógrafo, embora renuncie
com desenvoltura à arte em troca de um bom emprego; o sr. Loomis é um agente, mas mais parece
um cáften, oferecendo suas atrizes a produtores de teatro e cinema.
O que é verdadeiro no filme com que Douglas Sirk encerrou a carreira (em estúdios), então?
Annie, talvez. Annie, a negra que é negra, a empregada dedicada e servil.
Neste filme que chega aos 50 anos em plena juventude, narra-se em princípio a história de duas
mães. A branca Lora e a negra Annie cuidam de suas filhas, Susie e Sarah Jane, como princesinhas.
Na medida do possível. Existe uma brancura ostensiva em Lora. Ela se comporta como se não
houvesse discriminação racial. Impossível saber até que ponto isso é hipocrisia.
Em dado momento, ela pedirá a Sarah Jane que execute tarefas de criada, embora saiba que ela não
é criada. Ela o faz com um tipo de inocência característico dos brancos que, por tratarem os negros
em pé de igualdade, como que lhes exigem uma retribuição.
No mais, ela tenta cobrir a filha de mimos. Quer dar a ela tudo o que não teve. Ora, ocorre
que sua carreira de atriz de repente deslancha. Então, Susie irá para os melhores colégios, mas não
terá mais a companhia da mãe. Para desenvolver sua carreira, ela tem de renunciar ao amor de
Steve.
É bem verdade que Steve, num primeiro momento namorado todo cheio de dedicação, logo
faz a exigência clássica do machismo mais machista: que a mulher abandone a carreira e se deixe
cuidar por ele. Importa o seguinte: quanto mais Lora progride em sua carreira, mais a cor branca se
mostra predominante nas paredes e na decoração de sua casa.
Alienação
Ao lado disso, existe Annie e sua obsessão pela verdade. Obsessão que torna sua presença
insuportável para Sarah Jane. A filha sabe em que mundo vive e da necessidade de escapar disso.
Ainda não existem os direitos civis. A única maneira é se passar por branca, o que é possível para
ela, desde que negue sua origem e seja um travesti do branco a que ela tanto aspira para não ser
desprezada.
Ao contrário da primeira versão do filme (1934), em que a negra se tornava o sustentáculo da
casa graças às suas fantásticas panquecas, aqui Douglas Sirk sabiamente a mantém sempre numa
posição subalterna, compatível com sua natureza servil. Ela deve ser a única pessoa não deslocada
nessa história, o que não significa que não seja, como todos os demais, alienada. Todos pensam que
são algo que não são: Lora, Susie, Steve, Sarah Jane.
A única que sabe quem é, que não passa por deslocamentos, que não vive as mentiras e a
corrosão dos desejos é Annie. Não porque seja consciente. Ela é consciente apenas de sua
inferioridade (e adaptada a ela).
193
Se todos os outros são, de certa forma, alienados, o fato de ser centrada não favorece a
empregada. Apenas significa que interiorizou com sucesso a condição de escrava. O tempo torna
cada vez mais evidente a dimensão desta obra-prima, que sai num DVD sem extras, mas com
formato correto e boas cores.
IMITAÇÃO DA VIDA
Distribuição: Classicline
Quanto: R$ 34,80 (12 anos)
Avaliação: ótimo
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 11/10/09
Nem sempre o "director's cut", a remontagem feita pelo próprio cineasta de seus filmes,
melhora o produto original. Um dos maiores exemplos é "Apocalypse Now", filme emblemático e
brilhante que fechou a psicodélica década de 70 nos EUA.
Por isso, é uma ótima notícia que seja relançado em sua versão original, de 1979, esse título
que Francis Ford Coppola havia "renovado" como "Apocalypse Now Redux" em 2001, afastando o
espectador de uma obra original e pulsante.
Para lembrar: a novela "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, uma metáfora para o
fracasso da civilização europeia, transformada em barbárie na África primeva, já era um título
perseguido nos EUA desde os anos 30. Seria o primeiro projeto revolucionário de Orson Welles em
Hollywood -até ser cancelado e virar um ícone.
Essa obra mítica, que impunha desafios para a adaptação ao padrão vigente por sua
estrutura narrativa, foi resgatado por outro "enfant terrible" do cinema, Coppola, que tentava nos anos
70 reconstruir a Hollywood dos grandes estúdios -mas em versão "autoral".
Coube a John Milius a tarefa de verter a história do empreendimento colonial em xeque para a
convulsionada Guerra do Vietnã, que corroía os valores da sociedade americana. As filmagens foram
um desastre. De um tufão que destruiu o set nas Filipinas, às idiossincrasias geniais e
megalomaníacas de Coppola, passando por um ataque cardíaco do ator principal (Martin Sheen) no
meio das filmagens e orçamentos estourados de forma espetacular, uma série catastrófica de
eventos marcou definitivamente o filme.
Mas esse sentido de urgência, as imperfeições, o sentido quixotesco e romântico da aventura
também fizeram a beleza da obra, que foi amaldiçoada nos EUA antes de ser apresentada (ainda
194
incompleta) de forma triunfal em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro. É todo esse patrimônio que
foi colocado a perder na versão "remasterizada". Os 49 minutos adicionais incluíram digressões
supérfluas e trouxeram justificativas desnecessárias para personagens que emergiam como figuras
bíblicas e mitológicas em meio à névoa.
O mistério, a inquietação, a loucura da guerra e a aventura lisérgica foram substituídos pela
contemplação enfadonha. Músicas adicionais "inéditas" de Carmine Coppola, pai do diretor, não
faziam falta no original. Além disso, a temerária remarcação de luz "plastificou" a fotografia de Vittorio
Storaro. No cinema, assim como na música, muitas vezes os pequenos ruídos da versão "vinil"
reproduzem uma obra mais real.
APOCALYPSE NOW
Distribuidora: Universal
Quanto: R$ 19,90 (16 anos)
Avaliação: ótimo
MARCOS STRECKER
Folha de São Paulo, 11/10/09
Nos EUA, série "Curb Your Enthusiasm" inclui trupe do programa extinto em 1998
Nos 4 episódios exibidos, atores apareceram em apenas um; na trama, eles interpretam a si
mesmos e pensam em fazer reunião
Desde o dia 20 de setembro, a tribo formada pelos órfãos de "Seinfeld" nos EUA se reúne
nos domingos à noite para assistir ao que mais perto se vai chegar de uma reunião daquela que é
considerada por críticos a melhor série cômica já exibida pela TV americana.
Desde então, "Curb Your Enthusiasm" (HBO) inseriu em sua trama o que seriam os
bastidores do elenco original de "Seinfeld" se reunindo para fazer mais um episódio da série, que foi
de 1990 a 1998 e marcou um dos últimos momentos de criatividade de um formato -a sitcom, com
três câmeras e riso da plateia- inventado nos anos 50 e que dura até hoje.
Sendo Larry David o autor e ator de "Curb", a reunião não será de verdade. É o que a tribo de
espectadores vem descobrindo a cada semana. Por exemplo, nos quatro episódios exibidos até
agora, os quatro atores de "Seinfeld" só aparecem em um -nos outros, são só mencionados,
aparecem em pequenas cenas ou nem isso.
195
Coautor de "Seinfeld", David é o John Lennon para o Paul McCartney de Jerry Seinfeld.
Desde o fim da série, ele é o que manteve uma carreira mais coerentemente fértil. Seu "Curb", em
que interpreta a si mesmo em situações plausíveis mas exageradas para efeitos cômicos, entrou na
sétima temporada com sucesso.
No plot armado por ele para fazer "a reunião que não é reunião", cria um motivo torpe para
chamar os ex-colegas a atuar com ele: quer dar um papel secundário à ex-mulher, Cheryl (Cheryl
Hines), e assim reconquistá-la. Para sua surpresa, Seinfeld e o elenco aceitam.
Assim, Seinfeld, Julia Louis-Dreyfus, Michael Richards e Jason Alexander interpretam a si mesmos
interpretando a si mesmos enquanto falam com Larry David sobre a volta para mais um episódio -
tudo dentro de "Curb". Confuso? É para ser assim, disse David.
Nos convites individuais, ele mente a cada um que os outros já aceitaram. Seinfeld desconfia
dos verdadeiros motivos do amigo que ele conhece muito bem. Alexander acha bom uma volta para
redimir o péssimo último capítulo da série -uma crítica verdadeira que se faz ao encerramento do
programa.
Richards não presta atenção, atoleimado que está com os cartazes de mulheres nuas do
restaurante a que David o levou, e acaba dizendo sim. E cabe a David vender a volta à NBC. No meio
do caminho, ele briga com o executivo da emissora e corre o risco de ficar sem reunião -e sem
mulher.
É nesse momento em que os fãs estamos pendurados. O episódio em que tudo acontece foi
o terceiro, exibido em 3 de outubro. Desde então, mais um foi ao ar, domingo passado, e nada de
"Seinfeld". Hoje é dia de "Curb" nos EUA. E a série vai caminhando para o final...
SÉRGIO DÁVILA
Folha de São Paulo, 18/11/09
196
semideus. Temperamento belicoso e arrogância nada disfarçada também o transformaram em alvo
do ódio de torcedores rivais.
Foi o que lhe custou uma vaga na seleção francesa que obteve o título mundial em 1998: o
técnico Aimé Jacquet preferiu abrir mão dele (depois de longa suspensão por envolver-se em briga
na arquibancada) e de outro ídolo francês que também atuava na Inglaterra, David Ginola, a correr o
risco de desestabilizar o jovem elenco.
É outro Cantona, mais sereno e sábio pelo efeito do tempo, que aconselha seu fã em "À
Procura de Eric".
Estamos em cenário semelhante ao das outras crônicas sobre a classe trabalhadora britânica
realizadas pelo diretor Ken Loach e pelo roteirista Paul Laverty, como "Meu Nome É Joe" (1998).
O solitário carteiro Eric, no fundo em busca de si mesmo, não superou a separação da primeira
mulher (Stephanie Bishop) e tem problemas com os filhos adolescentes da segunda, que o deixou.
Seu processo depressivo é acompanhado não só por um sobrenatural Cantona mas também por
amigos de trabalho e torcida, que exercerão papel importante nessa comédia dramática em que
predomina o valor da solidariedade.
À PROCURA DE ERIC
SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 25/10/09
Caixa reúne primeira temporada de "I Love Lucy", produção que liderou audiência
Muitos dos pais de fãs de "Seinfeld", "Friends", "Will & Grace" e "Two and a Half Men" ainda
não haviam nascido quando o modelo de seriado cômico era formatado por um casal que reinou
durante a década de 50 como o mais popular da TV norte-americana.
De 1951 a 1957, Lucille Ball (1911-1989) e Desi Arnaz (1917-1986) produziram e estrelaram 181
episódios de "I Love Lucy", que obteve o primeiro lugar de audiência em quatro de suas seis
temporadas (nas outras duas, ficou em segundo e em terceiro lugares).
Os alicerces desse fenômeno, que se mantém ainda hoje como um dos mais bem-sucedidos na
197
história da TV nos EUA, se espalham pelos 35 episódios da primeira temporada recém-lançada em
DVD em caixa de sete discos que traz ainda o episódio-piloto, perdido durante décadas e só exibido,
como relíquia, em abril de 1990.
Nele, um narrador conduz o espectador até um pequeno apartamento no sétimo andar de um
prédio de Nova York próximo à região dos teatros e das casas noturnas, onde despertam -em camas
separadas- Ricky e Lucy Ricardo. Cantor, ele se prepara para uma importante apresentação; ela quer
acompanhá-lo, contra a vontade dele.
O argumento para um seriado que falasse de modo bem-humorado sobre o cotidiano de um
casal veio do programa de rádio "My Favorite Husband", criado em 1948 e estrelado por Ball, que
interpretava a mulher de um banqueiro. Quando a rede CBS se interessou em adaptá-lo para a TV
com a própria atriz, Arnaz entrou no pacote.
Os dois se conheceram nas filmagens de "Garotas em Penca" (1940) e se casaram em
seguida. Ao fundar, em 1950, a produtora Desilu, tentavam justamente viabilizar trabalhos conjuntos.
A negociação com a CBS possibilitou que assumissem a produção do seriado, os direitos sobre os
personagens e a autonomia criativa.
Levado ao ar em outubro de 1951, o primeiro episódio, "As Garotas Querem Ir a uma Boate",
já estabeleceu parâmetros duradouros, como um apartamento de classe média para os Ricardo, mais
cenográfico do que o ambiente do piloto, e a presença de um casal de vizinhos, Ethel (Vivian Vance)
e Fred Mertz (William Frawley).
No segundo episódio, "Seja Companheira", as variações em torno da situação-base -marido
que parece desinteressado da mulher- incluem brincadeiras com as origens cubanas de Ricky (e do
próprio Arnaz) e uma referência ao Brasil, em homenagem a Carmen Miranda (1909-1955), com Ball
dublando "Mamãe Eu Quero".
Semana após semana, cada nova meia hora foi consolidando características técnicas -como
a gravação com quatro câmeras diante de uma plateia, o primeiro seriado a fazer isso- e
dramatúrgicas, com destaque para os diálogos ágeis.
Duelos verbais, frases de duplo sentido e humor às vezes anárquico, mas sempre para
consumo familiar, lembram que esse gênero televisivo tem como avós Ricky e Lucy Ricardo.
Distribuição: Paramount
Quanto: R$ 129,90 (em média)
Avaliação: bom
SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 25/10/09
198
(71) Mostra ressalta importância que escultor dava à fotografia
Entre destaques está painel com 71 fotos que reproduz montagem de 1900
O escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) já foi tema de duas exposições antológicas na
Pinacoteca do Estado. A primeira, em 1995, reuniu 200 mil pessoas e representou a consagração do
espaço como o museu mais dinâmico da cidade. Já em 2001 foi a vez de "A Porta do Inferno", que
consumiu 20 anos de trabalho de Rodin, levar novas hordas de visitantes ao local.
Assim, em menos de 15 anos, "Rodin: do Ateliê ao Museu", em cartaz no Masp (Museu de Arte de
São Paulo), traz novamente obras do escultor. Redundante? Não. A mostra apresenta um tema
relevante não só em seu processo como também para a própria arte moderna: a importância da
fotografia.
A exposição, organizada em parceria com o Museu Rodin, em Paris, reúne 22 esculturas e
194 imagens que refletem a relação de fato intensa entre o artista e seus fotógrafos. Rodin começou
a registrar suas obras e seu ateliê em 1880, quando esse procedimento tornava-se mais maduro,
após 40 anos de experimentação.
Em seus arquivos, foram encontradas nada menos do que 25 mil fotografias, sendo que
7.000 delas foram encomendas do próprio Rodin. Por tudo isso, pode-se perceber como mesmo os
fotógrafos se interessavam em registrar as esculturas de Rodin, um objeto mais simples de trabalhar,
quando eram necessários alguns minutos para conseguir registrar uma imagem com foco.
Desde 1896, o artista exibia suas esculturas junto de fotografias, o que comprova a importância que
Rodin dava a estas últimas. No Masp, um dos exemplos mais significativos disso é o painel com 71
fotos de Eugène Druet expostas da mesma maneira como o artista e seu fotógrafo o fizeram em
1900, em sua exposição na place d'Alma. Composto por imagens ora repetidas, ora realizadas por
ângulos distintos, esse painel é um testemunho de que Rodin não via a fotografia somente como um
registro mas como algo mais complexo.
Nos tempos modernos, que se firmavam na virada do século 19 para o 20, quando Rodin
realizou tal exposição, a aceleração dos processos de reprodução e circulação era fundamental, e a
fotografia, um de seus meios mais eficazes.
Rodin era tão consciente do papel crescente desse processo e do eventual prejuízo que ele
poderia causar, que tinha contratos de exclusividade com os fotógrafos com quem trabalhava,
controlando seu modo de fazer. No contrato assinado com Ernest Bulloz, um dos presentes na
mostra, ele manteve para si "a direção artística da reprodução de suas obras no que tange à
iluminação e à forma de exposição".
O percurso da mostra, então, apresenta os vários fotógrafos de diversas nacionalidades que
trabalharam com Rodin num sistema de real parceria, como Eugène Druet, seu favorito, Bulloz, que o
sucedeu, e os experimentais ingleses Stephen Haweis e Henry Coles, que gostavam de registrar as
esculturas no momento do pôr do sol.
199
RODIN: DO ATELIÊ AO MUSEU
Quando: de terça a domingo, das 11h às 18h; quintas, das 11h às 20h; até o dia 13/ 12
Onde: Masp (av. Paulista, 1.578, tel. 0/xx/11/3251-5644)
Quanto: R$ 15
Avaliação: ótimo
FABIO CYPRIANO
Folha de São Paulo, 01/11/09
Em duas novas produções, diretor retoma questões e história israelita com olhar conservador
200
Voltando ao início: não é o assunto, nem a natureza do diálogo, nem mesmo as posições
políticas o que tende a indicar uma inflexão conservadora no trabalho do diretor: são os
procedimentos, os "travellings", em suma, o olhar que parece se tornar um pouco acostumado demais
ao problema que, com razão, escolheu como seu. Se olharmos para seus filmes de uma ou duas
décadas atrás, não encontramos nos de hoje o mesmo vigor. Às vezes, é preciso sair de si mesmo
com força.
CARMEL
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 01/11/09
"O Menino Peixe", de Lucía Puenzo ("XXY"), conta saga de garotas entre Buenos Aires e vila
do Paraguai
Mistura de romance, aventura e fantasia, "O Menino Peixe" conta a saga de duas jovens que
se envolvem em roubos e assassinatos, numa série de eventos tão burlescos que, no final das
contas, o menor de seus problemas é serem namoradas e de classes sociais distintas.
Essa naturalidade para o "diferente" já estava no primeiro longa da diretora argentina Lucía Puenzo,
"XXY", destaque da Mostra de São Paulo do ano passado e premiado em festivais mundo afora
(como em Cannes), sobre os conflitos de jovem hermafrodita.
"A todo momento eu dizia para as duas atrizes [de "O Menino Peixe'] que isso não era
importante, podia ser a história de um homem e uma mulher, tanto faz. Elas deviam viver o romance
de maneira bem natural e não fazer disso a questão do filme", diz Puenzo, 32, à Folha, por telefone.
"Foi como em "XXY", quando a gente não mostra Alex [protagonista] sem roupa, que era o que todo
mundo queria ver. Não gosto de escandalizar."
Puenzo volta a trabalhar com Inés Efron, 25, atriz de "XXY" e estrela em ascensão na Argentina.
201
Após o filme de Puenzo, ela já rodou outros dez, incluindo longas com Lucrecia Martel ("La Mujer sin
Cabeza") e Daniel Burman ("Ninho Vazio").
Em "O Menino Peixe", ela faz a garota de classe média alta Lala, enamorada da doméstica
paraguaia La Guayi, que trabalha em sua casa em Buenos Aires. Elas têm planos de morar juntas
perto de um lago no Paraguai, mas um assassinato as separa e põe Lala numa viagem de
descoberta ao país vizinho.
É aqui que surge o momento fantástico, quando Lala encontra um dos segredos de sua
amada, numa cena subaquática realizada com efeitos especiais. A diretora admite que, na mistura de
gêneros, foi complicado deixar a sala de edição.
"O mais difícil [de fazer o filme] foi achar uma identidade, um ritmo para a história, nesse
encontro de gêneros. O filme navega por tons diferentes, mas acho que isso acabou virando parte de
sua identidade."
A fotografia intercala cores frias da casa sombria de Lala de Buenos Aires com cores quentes
da vila paraguaia de Ypoá, embora nubladas.
Literatura
"O Menino Peixe" é baseado em seu livro de estreia, lançado no Brasil neste ano pela Gryphus.
Puenzo tinha então 23 anos e, desde então, já publicou outros três livros. O quinto, "A Fúria da
Lagosta", sobre os filhos de um argentino que leva um banco à falência e foge de casa, sai no final do
ano. Em comum, todos falam de jovens.
"É uma idade muito poderosa, quando tomamos decisões que vão nos definir para sempre,
não somos mais crianças, nem adultos", diz Puenzo.
Enquanto escreve roteiros para outros diretores e finaliza seu novo livro, Puenzo se prepara
para rodar seu terceiro longa em 2010. Ainda sem título, a obra se passará numa cidade deserta na
Patagônia.
FERNANDA EZABELLA
Folha de São Paulo, 01/11/09
O sexo e a política sempre foram os vetores do cinema de Marco Bellocchio. "Vencer" é uma
nova e complexa conjugação desse binômio. Em resumo, trata-se da história de Ida Dalser (Giovanna
Mezzogiorno), a primeira mulher de Benito Mussolini (Filippo Timi). Esteio afetivo e material do jovem
militante socialista, ela lhe dá dinheiro para criar um jornal, lhe dá um filho, lhe dá autoconfiança.
202
Mas, ao romper com o socialismo para fundar o fascismo e arrebatar o poder, Mussolini renega Ida,
casa-se com outra e institui uma família "oficial". Proscrita, tratada como louca, a antiga amante
enfrenta os mil braços do regime para ser reconhecida como mãe do filho do Duce.
Bellocchio se serve dessa história real para fazer um estudo do poder em seu duplo aspecto, de
potência criadora e de força de castração.
Essa duplicidade aflora na forma narrativa: na primeira parte do filme, política e erotismo se
fundem em pura energia transformadora. A montagem é vibrante, há uma apologia da máquina e da
velocidade, a linguagem visual é gráfica, sinóptica, recorrendo a letreiros e efeitos visuais que
remetem ao nascente futurismo.
À medida que o fascismo se institucionaliza e Mussolini canaliza seu impulso erótico para a
guerra, no âmbito interno (do país, da família, do indivíduo) passa a imperar a repressão. O filme vira
um melodrama. O Duce deixa de ser um homem de carne e osso e se torna uma imagem nas telas
de cinema, nas fotos de jornal, nos bustos.
VENCER
Quando: hoje, às 22h, no Unibanco Arteplex 2 e quarta-feira (4/11), às 19h10, no HSBC Belas Artes
2
Classificação: 14 anos Avaliação: ótimo
Rodado no final dos anos 70 por João Batista de Andrade, longa-metragem traz a melhor
atuação de José Dumont
Uma sessão dupla provocadora juntaria "O Homem que Virou Suco", filmado há quase 30
anos por João Batista de Andrade, ao recente "Estômago" (2006), dirigido por Marcos Jorge.
Os dois têm material rico para uma questão essencial para o cinema, a representação. Unidos pelo
elemento "personagem nordestino", ambos os filmes oferecem leituras distintas sobre as relações de
classe e de cultura no Brasil. Não é difícil sentir algo de retrocesso no jeito de olhar.
Ambos lidam com "paraíbas" num ambiente de Sudeste hostil. No filme de Andrade, há uma
energia política que fortalece o personagem, Heraldo (José Dumont, no seu melhor momento).
Esse poeta popular paraibano é dotado de um afiado senso crítico que testa São Paulo tanto quanto
São Paulo o testa.
203
Sua dignidade vem com uma raiva espontânea que manda às favas hierarquias estabelecidas
de classe e de poder. Em "Estômago", suspeita-se de que o ponto de vista é o de um patrão pouco
razoável para com o seu personagem serviçal.
Obviamente, são filmes de eras distintas. Filmado na São Paulo do final dos anos 70, "O
Homem que Virou Suco" talvez passaria melhor com "São Paulo S/A" (1965), de Luiz Sergio Person,
outro registro da cidade como estado de espírito.
As imagens cruas são cheias de uma revolta peculiar à esquerda da época. Detratores
poderão acusar um envelhecimento do material, mas o valor histórico contextualizado talvez caia
melhor.
Floreios dogmáticos como a representação raivosa de um personagem americano, chefe de
multinacional, podem ser facilmente associados à premiação de "O Homem..." no Festival de Moscou,
em 1980, um dos inúmeros reconhecimentos que o filme teve.
De qualquer forma, hoje, as linhas gerais do choque entre mundo pobre e mundo rico dentro
do Brasil continuam atuais.
João Batista de Andrade prova o quanto estava afiado numa sequência essencial em que o
poeta trabalhador assiste a um "audiovisual" de tom empresarial-fascista, parte dos esforços de
contratação para a construção do metrô de São Paulo.
É um filme dentro do filme que discute não só o preconceito, mas a tentativa de o ambiente
dobrar o indivíduo, além da força mítica de São Paulo em relação ao brasileiro.
(76) Filme-mosaico com dramas cotidianos é ponto alto na obra de Robert Altman
"Na segunda de manhã, o garoto aniversariante estava indo para a escola com outro garoto.
Um saco de batata frita passava de uma mão para a outra e o aniversariante tentava descobrir o que
seu amigo ia lhe dar de presente naquela tarde. Distraído, o aniversariante pisou em falso no meio-
fio, num cruzamento, e foi imediatamente atropelado por um carro."
Extraído do conto "Uma Coisinha Boa", o trecho acima ilustra o estilo seco de observação do
cotidiano que caracterizava o norte-americano Raymond Carver (1939-1988).
Literatura sobre o fio perigoso das coisas, sempre à espreita dos protagonistas, ela forneceu valiosa
matéria-prima para outro notável cronista dos EUA em "Short Cuts - Cenas da Vida" (1993).
204
"Vejo toda a obra de Carver como se fosse apenas uma história, pois seus contos são todos
ocorrências, todos apenas sobre coisas que acontecem ao personagens e fazem com que sua vida
mude de rumo", explica Robert Altman (1925-2006) na introdução à coletânea, publicada no Brasil
com o mesmo título (mas que, em tradução literal, significa "atalhos").
Cruzamentos
Altman e o roteirista Frank Barhydt trabalharam sobre nove contos e um poema de Carver,
em exemplar trabalho de garimpagem que cruza personagens e situações, faz mudanças importantes
e cria ao menos duas figuras cruciais.
Por meio delas -uma cantora (Annie Ross) e sua filha, uma violoncelista (Lori Singer)-, o filme
ganha música, usada não apenas para pontuar dramaticamente as cenas.
Como em "Magnólia" (1999, de Paul Thomas Anderson), cuja estrutura foi inspirada em "Short Cuts",
as canções funcionam como comentários aos dramas vividos pelos personagens e se integram à
ação de tal forma que o mosaico respeita o andamento da música.
Duas dezenas de trajetórias são costuradas nos subúrbios de Los Angeles, como se o filme
"erguesse os telhados" de casas, na imagem do próprio Altman, para bisbilhotar o que ocorre.
Não era um procedimento original, nem mesmo na filmografia do próprio cineasta, mas acabou
fazendo escola e deu origem a diversas "homenagens" e imitações.
Inserido na obra de Altman em momento de alta no seu prestígio internacional, entre uma
fábula ácida sobre Hollywood ("O Jogador", 1992) e um comentário irônico sobre o mundo da moda
("Prêt-à-Porter", 1994), "Short Cuts" dividiu o Leão de Ouro em Veneza com "A Liberdade É Azul", do
polonês Krzysztof Kieslowski.
Que belo festival.
SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 15/11/09
205
Na 4ª temporada de "Dexter", protagonista enfrenta vilão que mata há 30 anos
Agora um homem de família, Dexter precisa de tempo. Tempo para si mesmo, o que significa
tempo para matar. O assassino de serial killers da série "Dexter" enfrenta a complexa agenda da vida
de casado e pai.
Enquanto conversa com sua nova vítima, é interrompido por um telefonema da mulher, pedindo para
que compre remédio para seu bebê.
O sono interrompido todas as noites pelo choro, aliado ao cotidiano do trabalho e às horas
extras de seu segredo criminoso, faz com que ele capote o carro no caminho para casa logo no
episódio de estreia da movimentada quarta temporada, atualmente em exibição nos EUA e que entra
no ar no canal pago FX no ano que vem.
Sangue é o que move Dexter. Ele é um analista de provas para a polícia de Miami, onde sua
irmã é detetive, durante o dia. À noite, vira um justiceiro e esconde seus rastros para que nem ela
descubra quem ele é. Vivido pelo ator Michael C.
Hall, Dexter oficializou o casamento com Rita (Julie Benz) no final do terceiro ano do seriado,
não antes de matar um oponente que arrancava pedaços de pele das vítimas. Nessa nova fase, o
cerco parece se fechar em torno dele, que vai ter de abrir mão de algumas coisas para assumir as
responsabilidades de ser um chefe de família. Só que matar não parece ser uma delas.
"Quem assistiu desde a primeira temporada nunca imaginaria Dexter casado e com filhos",
afirma Hall, em entrevista por telefone de Los Angeles.
"Esse conflito de interesses vai determinar quanto mais ele consegue segurar seu segredo",
diz. "É questão de tempo até que algo balance as coisas." A nova temporada tem Dexter quebrando,
aos poucos, os pontos de seu código de conduta e uma violência mais explícita, com a chegada de
John Lithgow (da comédia "Third Rock from the Sun"). É ele que inaugura as matanças ao incorporar
um assassino que refaz crimes de 30 anos atrás.
Dexter, a princípio, entra na missão de pegar o Assassino da Trindade como seu novo troféu,
mas as coisas se complicam. "Ele vai ter uma conexão com o matador. Vai ser delicioso esse
embate, porque ele nunca se sentiu tão fascinado com alguém. De alguma forma, ele reverencia esse
cara, que conseguiu escapar com um histórico de mortes tão grande."
Além disso, Dexter se conecta com o filho. É para ele que revela o grande segredo: "Papai é
um serial killer". Como a criança não chora, ele tem certeza de que vai ficar bem.
"É desafiador interpretá-lo com emoções. No começo, ele falsificava tudo. Agora, sente algo
realmente. Ainda assim, há um tipo de desconexão que permite que ele continue matando. Tenta ser
mais humano, mas não se desvencilha da herança sociopata", define o ator.
206
(78) Protagonistas tentaram evitar relação para não confundir público de série
"Eu estava na CBS com Ed Murrow em 1951", diz o veterano jornalista Howard Beale a seu
chefe, em referência a um personagem célebre na imprensa dos EUA por enfrentar na TV o então
207
senador Joseph McCarthy -episódio recriado por "Boa Noite e Boa Sorte" (2005), de George Clooney.
Beale quer dizer, com a lembrança, que participou da adolescência do telejornalismo americano e
também de sua entrada na vida adulta. Mas, nos anos 70, isso representava, para muita gente, que
ele era um dinossauro incapaz de se adaptar aos novos tempos em que jornalismo e entretenimento
começavam a se confundir.
Com a progressiva perda de audiência do telejornal que apresenta, Beale é demitido.
No primeiro dia de aviso prévio, abre o programa anunciando, ao vivo para todo o país, que vai
estourar os miolos na frente das câmeras dali a uma semana.
"Rede de Intrigas" (1976) acompanha a tormenta que move sua emissora a partir desse aviso
tresloucado.
Interpretado com exuberância por Peter Finch (1912-1977), que ganhou um Oscar póstumo
pelo papel, Beale é um personagem fictício que trabalha em uma também fictícia rede de TV dos
EUA, mas o drama insólito protagonizado por ele aponta para um jogo de forças muito concreto que
apenas se esboçava nos anos 70 e que, desde então, só vem se aprofundando.
A contundência e o caráter premonitório do filme se devem sobretudo àquele que os créditos
apresentam como seu autor, o lendário roteirista Paddy Chayefsky (1923-1981), que recebeu pelo
trabalho seu terceiro Oscar -os anteriores foram por "Marty" (1955) e "Hospital" (1971).
Veterano profissional de televisão, Chayefsky ambienta nos corredores da UBS -calcada nas "co-
irmãs" CBS, NBC e ABC- uma demolidora peça de acusação da transformação da vida
contemporânea em espetáculo, da banalização do jornalismo e do triunfo do cinismo sobre a
integridade moral, na TV e em outros quadrantes.
Além do pobre Beale, a trama -dirigida por Sidney Lumet ("Um Dia de Cão"), outro veterano
da TV tem como protagonistas o diretor de jornalismo da rede (William Holden) e uma inescrupulosa
executiva em ascensão (Faye Dunaway).
No vigoroso panorama do cinema americano dos anos 70, "Rede..." era apenas mais um
exemplo de como fazer filmes adultos a partir de temas sociais agudos. Em seu diagnóstico da TV,
talvez ainda não tenha sido superado.
REDE DE INTRIGAS
Distribuidora: Fox
Quanto: R$ 29,90 (14 anos)
Avaliação: ótimo
SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 22/11/09
208
(80) Sofrimento de jovem modelo turbina trama
"Eu não aguento mais, preciso sair daqui!" No leito da UTI, uma menina estonteantemente
linda grita por socorro. Ela não consegue se mexer do pescoço para baixo. Depois de um acidente,
ficou tetraplégica. E, no meio da noite, acorda desesperada, clamando por um amigo. Enquanto isso,
em nossas casas, em geral em boas condições de saúde, não conseguimos desgrudar os olhos da
TV.
A cena é tensa, e a atriz Alinne Moraes, que interpreta a modelo Luciana em "Viver a Vida",
de Manoel Carlos, comove. O acidente de Luciana foi, até agora, um dos pontos altos da novela, e
sua internação, idem. Mas por que assistimos fascinados à cena da garota jovem e bonita paralisada
e sofrendo?
Também vimos, com os olhos vidrados, a cena da família da jovem recebendo a notícia
desesperadora de que a menina "com a vida pela frente" havia ficado tetraplégica.
Tudo parece ficar mais pesado em "Viver a Vida" porque a personagem em questão é uma menina de
20 e poucos anos. Linda. Mimada. Será que o espectador se sente vingado porque a riquinha
supermal acostumada teve o que mereceu? Será que o que uma garota bonita e rica merece é sofrer
um acidente de carro? Será que é por isso que ouvimos (e temos algum prazer) hipnotizados a
menina gritando de desespero?
Na internet, já existe até enquete: "Você acha que Luciana mereceu ficar tetraplégica?".
Como se alguém merecesse tragédia desse tipo.
Claro. Espera-se que Luciana se recupere. E também que ela mude, vire uma pessoa melhor,
de bom coração. Só a dor salva? É preciso literalmente quase morrer para mudar? A modelo Luciana
faz pensar em muitos moralismos. A má sofre. Ser bonita e mimada mata.
O acidente da modelo (a profissão do momento, com que toda jovem telespectadora sonha) é o
assunto central da trama por enquanto, espécie de ápice. Antes de a novela estrear, já se comentava
que "uma menina ia ficar tetraplégica". Veríamos com fascinação o sofrimento, a recuperação lenta e
uma família desesperada.
Mas devemos gostar mesmo de ver moças (por que será que em geral são as mulheres
bonitas que agonizam em novelas?) no hospital. Afinal, já acompanhamos uma menina grávida
morrer após ser atropelada, em "Páginas da Vida". E todos os detalhes de outra jovem bonita com
leucemia (quem se esquece da cena em que Carolina Dieckmann raspou a cabeça?) em "Laços de
Família", ambas de Manoel Carlos.
Moça bonita em hospital dá ibope. E, ao desligar a TV, talvez a gente pense: "Não sou tão
bonita nem tão rica. Mas pelo menos não estou morrendo no hospital". Ou, se não sou bonita,
ninguém também pode ser.
NINA LEMOS
Folha de São Paulo, 29/11/09
209
(81) Em edições oficiais, filmes de Truffaut evidenciam pulsação dos sentimentos
"Todo mundo quer amor, seja o físico, seja o sentimental." A fórmula, dita a certa altura pelo
protagonista de "O Homem que Amava as Mulheres", ilustra cada um dos títulos da filmografia de
François Truffaut (1932-1984). Representar sob múltiplos ângulos a validade universal dessa máxima
garantiu a seus filmes manterem intactos a beleza e o frescor.
Três deles, que tiveram recepção pouco acalorada em seus lançamentos, retornam ao
mercado em edições oficiais, ou seja, com o selo da qualidade da Versátil, e não nas versões
mambembes que a Silver Screen comercializa. "A Noiva Estava de Preto" (1968), "A Sereia do
Mississipi" (1969) e "O Homem que Amava as Mulheres" (1977) refletem, a seu modo, temas morais
e preocupações estéticas distintos. Vistos juntos, eles projetam a interpretação sempre irônica, mas
nunca cínica ou desencantada, de Truffaut sobre a pulsação vital dos sentimentos.
O primeiro do lote traz Jeanne Moreau, em seu único reencontro com o diretor após o mítico "Jules e
Jim - Uma Mulher para Dois" (1962). Em "A Noiva Estava de Preto", a atriz encarna Julie, uma viúva
cujo casamento terminou ainda nos degraus da igreja e que, por isso, toma por missão vingar-se dos
responsáveis pelo fim abrupto de sua promessa de felicidade.
"Noir" desde o título, essa farsa reaproxima o diretor do universo criminal que ele já
frequentara no magnífico "Atirem no Pianista" (1960). Mais que exercício de gênero, contudo, trata-
se, como define o próprio Truffaut, "de um filme de amor sem nenhuma cena de amor" e no qual cada
assassinato é encenado como obra de arte, num exercício de admiração ao gênio de Hitchcock.
Amor e morte(s) também servem de motor para "A Sereia do Mississipi", outra deliciosa farsa em que
Truffaut nos diverte invertendo as imagens àquela altura consolidadas de Jean-Paul Belmondo e
Catherine Deneuve, ele num registro antiviril e refém do romantismo, ela, avessa à doçura
sentimental, como predadora.
Do lado de lá da morte, Bertrand, o incansável sedutor de "O Homem que Amava as
Mulheres", entrega suas memórias como uma sucessão de conquistas. Por meio da dedicação de
seu personagem a todas as mulheres do mundo, alguém capaz de morrer de tanto amar, Truffaut
eleva sua crença romântica a uma altura que ele só ultrapassaria adiante no majestoso "A Mulher do
Lado".
Distribuidora: Versátil
Quanto: cerca de R$ 100 (caixa) ou R$ 45 (cada um)
Classificação: livre
Avaliação: ótimo
CÁSSIO STARLING CARLOS
Folha de São Paulo, 29/11/09
210
(82) Série sobre os 10 mandamentos é a obra-prima de Kieslowski
Caixa reúne produção que diretor fez para TV polonesa no final dos anos 80
"A inda Vivo", filme biográfico sobre Krzysztof Kieslowski que vem como um dos extras de
"Decálogo", lembra que a série foi concebida num momento particular, em que o comunismo
agonizava, e os colegas do cineasta achavam necessário tocar em questões urgentes, como os
sindicatos, as insatisfações etc.
Foi uma estranha e fértil intuição que, aparentemente, levou Kieslowski a refugiar-se "no
básico": os dez mandamentos. Era um momento de desespero, também, e é um outro cineasta,
Zanussi salvo engano, que lembra o ritmo febril em que Kieslowski trabalhava. Poderia levar anos o
projeto de dez filmes, cada um dedicado a um mandamento. Mas tinha necessidade de fazer tudo
rápido, como se quisesse não ver o mundo exterior à sua volta.
Ora, hoje, os filmes de "Decálogo" soam como um amplo documento da queda do comunismo
na Polônia e em toda a Europa oriental. Foi justamente ao abstrair as lutas políticas que Kieslowski
conseguiu resumir sua trajetória, dos anos de estudante de cinema ao trabalho como documentarista.
Passemos pela avaliação, apressada, dos dez filmes. Como no passado, destacam-se claramente os
que se transformaram em longas e acabaram por consagrar o cineasta internacionalmente, como
"Não Matarás" e "Não Amarás" -no filme, "Não Cometerás Adultério" (a versão desta caixa é a dos
filmes para a TV, com pouco menos de uma hora cada um).
O primeiro, "Amarás a Deus sobre Todas as Coisas", em que a tensão entre acreditar em
Deus ou na ciência se apresenta com vigor, também é muito forte. Em alguns momentos, faz pensar
que, de fato, se tivesse mais tempo de filmagem, alguns episódios poderiam ter rendido mais. A
contrapartida é: teria perdido o momento -e isso seria irreparável.
Os episódios têm um cenário quase fixo: um conjunto habitacional que, na monotonia,
representa o limite do sonho comunista. Da igualdade como ideal, chega-se facilmente ao
igualitarismo como ideologia: os conjuntos habitacionais, em sua repetição insistente, traçam o limite
da vida. Ali há calma, padronização, contenção. Uma espécie de "desenergia" em que as diferenças
são anuladas. Ou não. Porque os filmes vão justamente ao particular.
Sem símbolos, são inspirados pelo espírito documental de Kieslowski, que chega aqui, nessa
Polônia insatisfeita -que não parece fazer parte nem da Europa ocidental nem do bloco comunista-,
aos títulos mais decisivos da carreira como ficcionista (numa série de filmes em que pouca gente
levava fé).
É aqui que se manifesta um encontro quase perfeito entre uma circunstância (a agonia do
comunismo), uma convicção (a crença no cinema como registro capaz de captar uma realidade
fugaz, que vem dos primeiros trabalhos) e a fé cristã. Esta, oculta por circunstâncias políticas várias
(do nazismo ao comunismo), está longe de ser suficientemente explorada. Em dado momento,
quando "Ainda Vivo" trata da passagem de Kieslowski pela escola de cinema de Lodz, refere-se ao
211
ano de 1968, em que, diz ele, a escola acaba porque os professores judeus são expulsos. Eis uma
coisa sobre o que a Polônia ainda deve explicações: o arraigado, triste, indecoroso antissemitismo,
que atravessa séculos e regimes políticos.
A edição de "Decálogo", à parte provar ser a obra-prima de Kieslowski, traz extratos de uma
entrevista coletiva do autor e o curta " O Escritório" (1966): é um começo, mas uma amostra ainda
insuficiente da produção do "jovem Kieslowski", de que se encontram bons fragmentos em "Ainda
Vivo".
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 06/12/09
Comédia de 1955, sobre amigos que planejam assalto perfeito, foi refilmada pelos irmãos Coen
em 2004
Criminosos não devem ter compaixão por ninguém, muito menos por velhinhas de aspecto
frágil e ingênuo. A tese é demonstrada, na melhor tradição do humor negro britânico, por "Quinteto da
Morte" (55), cuja trama foi transportada para os EUA pelos irmãos Coen em "Matadores de Velhinha"
(04).
Não se deixe impressionar pela fragilidade da refilmagem -que, para piorar, também é mais
longa. A trama funciona melhor em compactos 87 minutos e em sua paisagem original, combinando
ingredientes do policial -especialmente do "filme de assalto"- com crônica social sobre usos e
costumes ingleses do pós-guerra.
Viúva solitária que cuida dos papagaios deixados pelo marido como se fossem seus filhos, a
sra. Wilberforce (Katie Johnson) mora em um sobrado antigo, em Londres. Todos na região a
conhecem, inclusive os policiais do distrito mais próximo, habituados a suas visitas.
Para complementar a pensão, ela resolve alugar os cômodos superiores. O primeiro
interessado a encanta: um sujeito respeitável que se apresenta como professor (Alec Guinness) e
que diz receber regularmente quatro amigos com os quais forma um quinteto amador de música
erudita. Não parece haver inquilino melhor, com amigos também distintos, ao menos na visão de uma
212
doce senhora inglesa. O negócio do tal quinteto, no entanto, é um plano perfeito de assalto que
envolve a participação da velhinha como cúmplice.
Claro que as coisas não saem conforme o planejamento, gerando situações insólitas e
diálogos mordazes, muito bem costurados pelo roteiro de William Rose ("Deu a Louca no Mundo",
"Adivinhe Quem Vem para Jantar"), que recebeu indicação ao Oscar pelo trabalho.
Dirigido de maneira discreta e eficiente por Alexander Mackendrick, que fez em seguida devastadora
representação da imprensa em "A Embriaguez do Sucesso" (57), "Quinteto da Morte" traz um show
de atores, embora inicialmente pareça um solo de Guinness (o Obi-Wan Kenobi de "Star Wars").
Com o tempo, os demais intérpretes da quadrilha (entre eles, Peter Sellers em início de carreira)
ganham sua oportunidade de se destacar. Mas, no fim, o filme é mesmo da velhinha impagável feita
por Johnson, e não de seus matadores.
QUINTETO DA MORTE
Distribuidora: Universal
Quanto: R$ 30 (classificação: 12 anos)
Avaliação: ótimo
SÉRGIO RIZZO
Folha de São Paulo, 13/12/09
Ator Robert Pattinson vive músico rejeitado pela namorada em comédia dramática
Existe uma, e apenas uma, razão para o lançamento de "Uma Vida sem Regras" no Brasil: a
presença de Robert Pattinson no papel principal. Pouco antes de estrelar o primeiro filme da série
"Crepúsculo" (2008), o ator participou dessa produção inglesa quase amadora -retirada agora do
escaninho do esquecimento para aproveitar o novo fenômeno de popularidade.
As jovens admiradoras de Pattinson terão seu deslumbramento colocado à prova por "Uma
Vida sem Regras". O ator interpreta um sujeito não apenas sem qualquer glamour, como também
sem a mínima graça -que não lembra em nada o vampiro romântico de "Crepúsculo", ou talvez
apenas na palidez.
Art, o personagem de Pattinson, é um "loser", um perdedor clássico. Músico frustrado, ele é
abandonado pela namorada e precisa voltar para a casa dos pais, que o tratam como um estorvo em
suas vidas. As únicas pessoas que o suportam são dois amigos, um que tem medo de lugares
abertos, outro que só pensa em se dar bem com as mulheres.
213
Para dar uma guinada em sua vida, ele gasta suas últimas economias contratando os
serviços do dr. Levi Ellington, autor do livro de autoajuda "Não É Sua Culpa". O psicólogo passa a
acompanhá-lo dia e noite, mas a situação de Art só piora.
"Uma Vida sem Regras" emula as comédias dramáticas do cinema independente americano,
como "Retratos de Família" (2005) e "A Lula e a Baleia" (2005), na esperteza rápida e fácil de sua
trama sobre personagens alienados e famílias disfuncionais. Ao mesmo tempo, o filme tem o humor
duro, árido dos britânicos.
O resultado, cena após cena, é um desencontro -que a direção burocrática de Oliver Irving,
em seu primeiro longa, nunca consegue evitar. Sobre a atuação de Pattinson, não há nada no filme
que sugira que ele iria se tornar um fenômeno pouquíssimo tempo depois, embora ele se saia
razoavelmente cantando. De qualquer forma, seria injusto exigir que ele salvasse um filme tão
inexpressivo, que emprestasse algum charme a um personagem quase catatônico, com apatia que
beira o insuportável. O título "Uma Vida sem Interesse" talvez fosse mais apropriado para o filme -
assim como um lançamento direto para o DVD.
RICARDO CALIL
Folha de São Paulo, 20/12/09
(85) Filme de Manoel de Oliveira sobre padre Antônio Vieira segue tom político
O padre Antônio Vieira foi um grande pensador da língua portuguesa, sabe-se. E um grande
pensador político, poderia acrescentar Manoel de Oliveira ao projetar seu "Palavra e Utopia". É um
filme sobre a palavra, sem dúvida, sobre as línguas, que circulam diversas ao longo do filme, e sobre
Portugal e sua pequenez em face da grandeza que projetava Vieira.
Um filme sobre a justiça, já que Vieira não apenas sabe se manifestar sobre a necessidade
de servir à pátria e aturar suas ingratidões, como, sobretudo, é contra a escravidão dos negros, os
atentados aos índios, as perseguições aos judeus. Por essas e outras, será alvo da Inquisição, de
que o salvam a sabedoria, o charme e Roma.
214
De que Vieira fala Oliveira, em qual Vieira pensa? É menos o homem de talento incomum, de
palavra inspirada, que visa o filme, do que o homem cuja palavra usa para o combate. Estamos,
portanto, diante de Oliveira, cineasta político.
Não será absurdo pensar em um Oliveira/Vieira (um Olivieira?). Assim como o padre orador
do século 17, Oliveira até hoje é mais reconhecido fora de Portugal do que dentro.
Vieira foi um homem de duas terras, Brasil e Portugal. Que eram uma, pois o Brasil pertencia ao
reino. Oliveira de certa forma faz aqui um filme de homenagem ao Brasil, onde havia os índios e os
negros. Onde havia, já, os oligarcas que tinham de ouvir seus sermões de cara amarrada, quando
condenava a prática da escravatura, o hábito de viver sem trabalhar etc.
Tinha um pé em cada borda do mundo: Portugal e Brasil. O oceano era seu domínio. E várias
vezes Oliveira nos mostra esse movimento das águas, de um lado para outro do Atlântico, como se
fosse preciso sair de Portugal para apreender o mundo.
"Palavra e Utopia" é um filme da palavra. Desde o título. Pois é com palavras que se faz
política. Mas assim como existe aqui uma política dos sotaques (um falar português menos
acentuado em Luís Miguel Cintra, um falar brasileiro com certa distância em Lima Duarte -o primeiro,
o Vieira da idade madura, o segundo, o da velhice), existe também uma das imagens. Pois, ninguém
esqueça, Oliveira é um cineasta, e não só isso: é um dos grandes.
A imagem espreita a palavra todo o tempo. Confronta-a a si mesma. A sacraliza. Como a
música de que fala Vieira, purifica. Mas também pode servir de moldura para que melhor se escute a
palavra. E a de Vieira dói. Ela opõe à palavra do poder o poder da palavra em liberdade. À Inquisição,
a independência. Esse é o Vieira que apaixona e inspira Oliveira. Ao qual este grande cineasta
político não homenageia: o que faz é sugerir Vieira como intelectual, homem e caráter exemplar.
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 20/12/09
Atores protagonizam filmes de resultados distintos, que chegam ao país no formato DVD, sem
passar por cinema
215
São duas fitas de humor escrachado, mas com estética -e resultados- bem diferentes.
Dirigida por Harold Ramis (do inigualável "Feitiço do Tempo"), "Ano Um" é ambientada na pré-história
e traz o espalhafatoso Jack Black ("Escola de Rock", "Nacho Libre") e o indie tímido Michael Cera
("Juno", "Superbad") como dois caçadores mais preocupados em perseguir mulheres e o sono do que
animais.
Desastrados, eles são expulsos da aldeia e partem em viagem pelo mundo. Na jornada,
conhecem Caim e Abel. Caim, é claro, mata Abel e leva a dupla a mais percalços.
"Ano Um" tem um pequeno problema, que costuma ser fatal às comédias: não tem graça. Suas
piadas são insípidas, bobas, e se apoiam quase exclusivamente nas caretas e trejeitos de Jack Black.
E Michael Cera, que ganhou fama com o humor indie de Judd Appatow, aqui se mostra perdido.
No shopping
Outra estrela do diretor Appatow, Seth Rogen está mais do que confortável no papel de um
segurança de shopping em "O Segurança Fora de Controle".
Se Rogen acostumou-se a dar vida a personagens meio estúpidos que adoram maconha,
aqui ele interpreta o histriônico e paranoico Ronnie Barnhard, que faz a ronda em um shopping do
meio-oeste norte-americano.
Ele tenta capturar um maluco que invade o estacionamento do local pelado para se exibir
para as mulheres. Barnhard é, ainda, apaixonado pela loiríssima Brandi (Anna Faris), uma vendedora
de loja que não está nem aí para ele.
Barnhard pretende capturar o maluco para, entre outros objetivos, impor autoridade e ganhar
permissão para andar armado. Mas a polícia local tem outros planos.
A investigação é passada para o detetive Harrison (Ray Liotta), que, além de chefiar o caso,
conquista a loira Brandi.
Seth Rogen consegue equilibrar com competência os lados autoritário e ingênuo de seu
personagem. O diretor Jody Hill, também roteirista do filme, cria situações espetaculares, como a
cena em que uma repórter de TV entrevista o personagem de Rogen e deixa de mencionar que ele é
chefe de segurança do shopping.
"O Segurança Fora de Controle" não está entre as melhores comédias do ano -não está nem
entre as melhores comédias de Seth Rogen-, mas arranca boas risadas graças a um roteiro certinho,
a atuações convincentes e às boas piadas que aparecem aqui e ali.
ANO UM
Direção: Harold Ramis
Com: Jack Black, Michael Cera
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 40, em média
Avaliação: ruim
Classificação: 10 anos
216
O SEGURANÇA FORA DE CONTROLE
Direção: Jody Hill
Com: Seth Rogen, Ray Liotta
Lançamento: Warner
Quanto: R$ 40, em média
Avaliação: bom
Classificação: não informada
THIAGO NEY
Folha de São Paulo, 27/12/09
Seria um pouco covarde comparar este "A Falecida" com a média dos DVDs editados no
Brasil. Aliás, com o auxílio da Petrobrás, não faria vergonha frente aos melhores.
Existe, para começar, o filme, devidamente restaurado. E mais dois curtas de Leon Hirszman:
"Partido Alto" e "Nelson Cavaquinho". O primeiro é praticamente um trabalho didático sobre esse tipo
de samba.
Um pouco chato, mas existe a mística da arte popular que essa geração cultivou. Já "Nelson
Cavaquinho" parece carregar toda a paixão do realizador. O grande compositor ganha um retrato em
que o íntimo e o musical se encontram de maneira harmoniosa. O que é biográfico remete à vida das
populações pobres do Rio de Janeiro, às quais devemos alguns dos melhores momentos de nossa
cultura. O restauro restitui a força colossal da fotografia de Mário Carneiro.
A parte de extras compõe-se, no essencial, de depoimentos. A soma deles é exaustiva. Em
grande parte, o objetivo é que Fernanda Montenegro, Paulinho da Viola e Eduardo Coutinho nos
digam quem era Hirszman -mas seus filmes falam muito bem por ele. Existe, por fim, "A Falecida".
A interpretação do cineasta se antepõe à obra do dramaturgo. Não é mau, mas tenho a
impressão de que algumas características interessam muito mais ao cinema novo do que a Nelson
Rodrigues. Nas mãos de Hirszman, a história de Zulmira, mulher que busca na morte uma espécie de
compensação às frustrações da existência, destaca bem a vida do subúrbio carioca. Subúrbio
observado sem complacência, como se fosse o caso de pôr em relevo as cotidianas infelicidades a
que a pobreza sujeita. A fotografia de José Medeiros tende a um cinza que rebate a atmosfera
abafada que respiram os personagens.
A bela direção de atores torna presenças como a de Ivan Cândido, o marido, difíceis de
esquecer. O destaque principal, no entanto, fica mesmo com Fernanda Montenegro.
O disco se faz acompanhar por um pequeno livro com impressões de críticos brasileiros e
estrangeiros sobre o filme. É tanto que o santo desconfia: a Videofilmes, que normalmente trabalha
217
muito bem, aqui até se excede um pouco ao produzir essa edição "black tie" deste belo filme do
diretor de "Eles Não Usam Black-tie".
A FALECIDA
Distribuidora: Videofilmes
Quanto: R$ 54,90
Classificação: 12 anos
Avaliação: ótimo
INÁCIO ARAUJO
Folha de São Paulo, 03/01/10
O que levaria Marlon Brando, o maior ator do cinema, a aceitar papéis esdrúxulos, em filmes
idem? A falta de grana? Ou um autoflagelo diante da ladeira abaixo que foi sua vida pessoal nos seus
últimos anos?
Talvez seja isso, conhecendo o gosto de Brando em levar seu corpo e imagem ao limite, mas
é mais crível que ele soubesse o quanto estava acima de tudo, ou seja, fosse o único astro da história
a contrariar a lógica natural que delega ao tino do diretor o resultado de um filme.
É difícil duvidar, por exemplo, que Elia Kazan não tenha sido o grande responsável pelo primor de
"Viva Zapata!" (TC Cult, 16h05, 12 anos), mesmo com Marlon no papel de Emiliano Zapata.
Por outro lado, Brando aparece intacto, marcante e lindo em sua velhice e tonelagem, no irregular e
esquecível longa "A Cartada Final" (TC Action, 17h25, 14 anos).
218