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U D O

Otrabalho apresentado nesta publicação consis


te em uma pesquisa das fontes hisionogrdficas
PAULO AS FRONTE!". 3A:REPÚBUCA-
referentes aos índiosMacuxino valedo rioBran SANTILLI hisi. política os Mi-
co, focalizando asua presença, de relevância sig
do rio Branco
nificativa, na formação das fronteiras nacionais
nesta região das Guianas. consolidada apenas em
período recente, em pieno século XX, bastante
tardiamente em relação aos outros limites territo
riais brasileiros com os países de colonização ibé
rica, játraçados, em linhas gerais, no Tratado de
Madrid em 1750. Opropósito do trabalho ora
publicado é aanálise da ocupação colonizadora
da região de campos no extremo norte do vale do
rio Branco, abordando aexpansão dapecuária, a .

instalação das agencias indigenistas e aatuação


das lideranças indígenas locais, constituintes dos

fatores de peso, edecisivos no processo de for •

mação das fronteiras nacionais. Os resultados da


pesquisa revelam aação dos colonos pecuaristas,
assim como aatuação das agências indigenistas
incidindo sobre osistema político dos Macuxi e
que o acoplamento destes mesmos projetes polí
ticos distintos conferiu nexo peculiareorientou a
história do contato entre índios t componentes
da sociedade nacional.

NHII/USP
FAPESP
!3-

V!

5,1
Fronteiras da República

História e política entre os Macuxi


no vale do rio Branco

Paulo Santilli

São Paulo
1994

NHn-USP FAPESP
Núcxeo de História Fundação de Amparo à
Indígena e do Indigenismo Pesquisa do Estado de São Paulo
Fronteiras da República

s
m

Fronteiras da República

História e política entre os Macuxi


no vale do rio Branco

Paulo Santilli

São Paulo
1994

NHII - USP FAPESP


Núcleo de História Fundação de Amparo à
Indígena e do Indigenismo Pesquisa do Estado de São Paulo

Copyright © Paulo Santilli

Sumário
Projeto Editorial:
Núcleo deHistória Indígena e do Indigenismo - USP
Coordenação do Núcleo:
Manuela Carneiro da Cunha

Editores Responsáveis:
Beatriz Perrone-Moisés
John Monteiro

Ilustração da Capa:
Baseada no relevo rupestre "Timehi",
atribuído a Macunaíma Introdução 9
Preparação e Editoração Eletrônica: Roraima: um cenário do início do século XX 17
John Monteiro

Impressão: Ação indigenista: formação de lideranças e


Lis Gráfica e Editora
sedentarização 39

Trajetórias, Histórias: a liderança política macuxi na


interpretação do contato 65

Conclusão 103

Fontes e Bibliografia 107


!

Mapas e Ilustrações

Mapa 1. Povos indígenas do Rio Branco e da Guiana 19

Mapa 2. Aldeias Macuxi no Rio Branco 35


Dança Macuxi 54

Missa Campal 54

Tuxaua üdefonso 76

Este livro foi produzido e


publicado graças ao apoioda
FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo)
ao projeto História Indígena e do
Indigenismo no Brasil
(Proc. 88/2564-5)
II

INTRODUÇÃO
I

I Otrabalho apresentado na oportunidade desta publicação tematiza ahistória


política do povo Macuxi referenciada ao processo de colonização nacional no
vale do rio Branco no início do século XX.
Os Macuxi são um povo de caçadores e agricultores de filiação lingüística
Carib, que habita a região das Guianas, entre as cabeceiras dos rios Branco e
Rupununi, território atualmente partilhado entre Brasil e Guiana. Os Macuxi,
juntamente com os povos vizinhos — os Taurepang, os Arecuna e os
Kamarakoto —, também falantes de línguas pertencentes à família Carib, e
muito próximos, social e culturalmente, formam uma unidade étnica mais
abrangente, os povos Pemon. Nos territórios contíguos aos Pemon aleste vivem
osAkawaio, também conhecidos emárea brasileira pela designação Ingarikó, e
osPatamona, que formam conjuntamente, por sua vez, os povos Kapon. Todos
esses povos, estreitamente relacionados entre si, habitam as terras altas abran-
I gendo aárea do monte Roraima, odivisor natural das águas que vertem para os
I vales dos rios Amazonas, Essequibo e Orinoco.
Osterritórios deocupação tradicional Pemon e Kapon naárea doRoraima,
desde os primórdios do século XVIII, converteram-se em objeto de uma disputa
acirradaentre domínioscoloniaisconcorrentes, envolvendo, a princípio,Portu
gal, Espanha e Holanda. Tal disputa, estendendo-se secularmente, teve como
I resultante asobreposição de fronteiras coloniais/nacionais às fronteiras étnicas
precedentes,operando aintroduçãode novas distinções, divisões eantagonismos
entre os mesmos povos, culturas e sociedades. Forjadas assim, polarizando
conflitos, asfronteiras coloniais/nacionais separaram aspopulações componen
tes das mesmasetnias,seccionaram os territórios indígenas, erguerambarreiras
entre aldeias cerceando os movimentos de seus habitantes e a continuidade de
suas relações sociais básicas, afetando fortemente as formas próprias de
organização social, bem como as cosmologias indígenas.
Osíndios, porém, devo destacar, desempenharam uma atuação decisiva na
formação das fronteiras coloniais/nacionais na área do monte Roraima e,
mesmo, tiveram umapresença damaior relevância paraadefinição dosdomínios
territoriais partilhados por diferentes Estados.
Introdução 11
10 Fronteiras da República

Opresente trabalho focaliza precisamente asrelações sociais que permearam Raposa-Serra doSol, a área mais extensa, que abrange cerca de 1.700.000 ha.,
o contato entre índios e agentes colonizadores no processo de construção das existem hoje cerca deduzentas fazendas apossadas eum número inestimável de
fronteiras internacionais nessa região, procurando apreender os significados garimpos (levantamento realizado peio Grupo de Trabalho Interministerial para
possíveis da atuação das lideranças políticas locais no contexto específico das Identificação da Área Indígena Raposa-Serra do Sol, 1988). Tal situação é
sociedades indígenas. A abordagem adotada aqui limita-se apenas a umproce agravada pelo fato de que a maior parte das referidas áreas tem seu processo de
dimento exploratório, tendo-se em vista a análise preliminar da temática mais regularização paralisado por litígio judicial. Parece-me que, neste quadro, a
ampla em questão; trata-se, por ora, de um estudo monográfico enfocando compreensão sociológica do processo de ocupação fundiária do território
especialmente o caso dos Macuxi no vale do rio Branco, isto é, em território Macuxi impõe-se enquanto uma tarefa urgente.
brasileiro.1 A ocupaçãocolonial portuguesa da baciado rioBranco noséculo XVIII não
O território Macuxi se estende por duas áreas ecologicamente distintas: os resultouemcolonizaçãocivilda região.A ocupaçãocivilda árease iniciaa partir
campos, ao sul e, ao norte, uma área onde predominam serras, geralmente das últimas décadas do século XIX, com a expansão da pecuária na área do baixo
recobertas por floresta, que se presta a uma exploração ligeiramente diferenci rio Uraricoera e médio rio Branco. O dado que configura um fator fundamental
ada daquela feita pelos índios na planície. A dimensão deste território pode ser para a discussão que se segue, é que a expansão da pecuária pelo território
estimada em torno de 3.000.000 a 4.000.000 ha., abrangendo de 3oa 4o N. Lat. Macuxi, nas primeiras décadas do séculoXX, coincide com o estabelecimento
a 58° a 61° O. Long. das duas agências indigenistas que, até meados do século, intervieram efetiva
As várias estimativas existentes sobre a população Macuxi variam de 3.100
mente no processo de contato, a missão da Ordem de São Bento e o Serviço de
indivíduos (Migliazza, 1978) a 12.500 indivíduos (Amodio, 1983) apenas no Proteção aos índios. Nestas balizas temporais se situa o presente trabalho, na
lado brasileiro; em área guianense haveria, segundo uma estimativa oficial para tentativa de apreender uma história do contato Macuxi.
o ano de 1946,1.676 indivíduos (Colson, 1962:84), cifra que, embora imprecisa, Não se pretende, porém, esboçar aqui uma história do indigenismo. A
deve ser considerada para formar-se uma noção aproximada do quadro intençãoque norteou esta pesquisa foi essencialmente a de buscar uma perspec
demográfico Macuxi. Quanto à população no Brasil, a dificuldade de se chegar tiva aproximada do modo pelo qual os Macuxi vivenciaram o impacto do
a um número mais exato deve-se à alta mobilidade de um contingente significa contato. Nesse sentido, a dinâmica do sistema político desta sociedade, diante da
tivo que se encontra fora das aldeias, engajado na economia regional. atuação das agências indigenistas,a meu ver,se impôsenquantofoco prioritário
Não há, tampouco, dados precisos sobre o número de aldeias Macuxi na
de análise. A hipótese que sustentarei, nas páginas que se seguem, é a de que a
Guiana. Para a área brasileira, estarei aqui utilizando a relação elaborada por ação das agências indigenistas incidiu, acima de tudo,sobre a política interna dos
Migliazza em 1970, que corrobora a estimativa atual, feita pelo Conselho Macuxi e que o acoplamento destes dois projetos políticos distintos conferiu
nexo e orientou a história do contato.
Indígena de Roraima, de 100 aldeias Macuxi na região. Destas cem aldeias, dez
se localizam no extremo sul e sudeste do território, ou seja, nos vales dos rios Fontes e metodologia
Tacutu e Uraricoera, fronteira com o território Wapixana (grupo de filiação
lingüística Aravvak), sendo várias entre elas de população mista. No extremo Esta pesquisa se iniciou em 1982, como parte de um projeto mais amplo de
noroeste,nosvales dos rios Surumu e Miang,limitecom o territórioTaurepang, estudo da história indígena em Roraima, coordenado pela Prof Manuela
há três aldeias mistas Macuxi-Taurepang, e na extremidade norte, limite com os Carneiro da Cunha no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Ingarikó, outras três aldeias mistas Macuxi-Ingarikó, no interflúvio Cotingo- Universidade Estadualde Campinas.O pontode partida do mencionado projeto
Maú. foi a documentação reunida nas memórias da arbitragem de fronteiras entre
No Brasil, atualmente, o território Macuxi encontra-se formalmente dividido Brasil e Guiana Inglesa (1903), localizada e reproduzida pela Prof3 Manuela
em quinze áreas indígenas, separadas entre si. Estas áreas indígenas, ao arrepio Carneiro da Cunha na Cambridge University Library, que a trouxe para o Brasil
dalegislação indigenista vigente no país, encontram-se invadidas porfazendei e convidou a mim e a Nádia Farage para, juntos, empreendermos tal estudo.
ros, pequenos posseiros e ainda garimpeiros; para que se tenha uma noção A esta compilação documental de referência foram agregadas outras fontes
aproximada das proporções alcançadas por tal invasão das terras Macuxi já primárias, disponíveis embibliotecas e arquivos brasileiros. Comefeito, presen-
reconhecidas oficialmente, pode-se apenas mencionar que na Área Indígena
12 Fronteiras da República Introdução 13

ça antiga nas fontes documentais, os Macuxi são constantemente citados nos No âmbito das fontes etnográficas, utilizei, entre outros, os trabalhosde W.
relatosdos agentescoloniaisque atuaramna regiãodo rio Branco desdefins do
Roth (1915,1924,1929) —obra decaráter geral sobre ospovos indígenas nas
século XVIII. Para o século XLX, foram consultados os relatos de viajantes como
Guianas, masde indiscutível riqueza deinformações sobre a cultura material e
E.ImThurn(1883)e,emespecial,odeviagemdeR.Schomburgk([1848] 1922- mitologia Macuxi —,e a monografia deW. Farabee (1924), que permanece até
23);os relatórios feitos à RoyalGeographical SocietyporR.H.Schomburgk—
hoje como a única descrição etnográfica estritosensosobre os Macuxi. Foram
que percorreu, em várias ocasiões, a área Macuxi na década de trinta do século
igualmente importantes osdois ensaios etnográficos publicados porírisMyers
XIX—foram consultados na coletânea que se encontra novolume III da parte na revistaTimehri na décadade quarenta.
inglesadas memóriasda arbitragemdefronteiras(1903).Foram aindautilizados
os trabalhos dosmissionários anglicanos W. Brett(1868) e J. Williams (1932),
Com relação aos Macuxi em área brasileira, como mencionei acima, dispo
mos, para o período do século XDÍ até o início do século XX, do material reunido
que, para fim de catequese, estiveram por longo tempo entre os Macuxi.
porJoaquim Nabuco (1903), a quem coube a defesa daspretensões territoriais
As fontes primárias manuscritas que utilizo neste trabalho provêm basica
brasileiras naarbitragem de fronteiras entre Brasil e Guiana Inglesa em1904,
mente de três acervos: o arquivo do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro,
que resultou em uma vasta compilação documental sobre a área de ocupação
a documentação do Serviço de Proteção aos índios (SPI), que se encontra no luso-brasileira. Dentre os viajantes do século XDC, foram utilizados, em
Centro deDocumentação Etnológica do Museu doíndio, noRio deJaneiro, e o particular, osrelatos deH. Coudreau (1887) e E. Stradelli (1887,1889,1906),
arquivo da Primeira Comissão Demarcadora de Limites, em Belém do Pará.
que registram dados sobre demografia e localização dos Macuxi, além de
No arquivo do Mosteiro de São Bento encontram-se os registros da missão fornecerem informações detalhadas sobre a ocupação pecuarista na região de
beneditina norio Branco, de 1909a 1947.Utilizei, emespecial, a documentação campos de Roraima.
manuscrita do monge D. Alcuino Meyer que, por mais de vinte anos consecuti
O material mais importante e, sem sombra de dúvida, a única pesquisa
vos,percorreu a áreaMacuxi parafim de evangelização. D. Alcuino, ao longo etnográfica de fôlego empreendida na região, deve-se a T. Koch-Grünberg
destes anos,coletou umextenso vocabulário Macuxi, bemcomoumacoleçãode ([1917-1928] 1979-1982), que percorreu as bacias dos rios Brancoe Orinoco
mitos, e registrou em diário o andamentode suas atividades, o que resultou em
entre osanos de1911 e1913: além de um minucioso diário deviagem, deinegável
um conjunto de dezenas de volumes manuscritos. Há também no Arquivo do valor histórico, o autor nos legou uma descrição etnográfica de excelente
Mosteiro a correspondência mantida pelos missionários, que fornece dados qualidade, hojeumclássico naparcaetnografia deRoraima. A obradeT. Koch-
minuciosos sobre sua influência nas aldeias.
Grünberg representa, nos marcos do presente trabalho, uma fonte primária
Adocumentação do Serviço de Proteção aos índios, composta de relatórios fundamental.
e ofícios diversos dirigidos pelaprimeira inspetoria regional à diretoria daquele Utilizei igualmente os relatos de viajantes, jádo século XX, como ogeógrafo
órgão,foi especialmente importantepor permitir avariaro peso da interferência
H. Rice ([1937] 1982), o advogado L. Pereira (1917), o geógrafo A.Teixeira
doSPIentre os Macuxi, sobretudo seu papelno reconhecimento daslideranças Guerra (1957), e outros, que fornecem dados importantes, embora fragmentá
formaisnas aldeias.Noarquivoda PrimeiraComissãoDemarcadorade Limites,
rios, sobre a população indígena na região, e, em particular, sobre a ocupação
em Belém do Pará, pude consultar a documentação inédita das comissões
pecuarista deseu território. Quanto a esta última questão, foi degrande valia a
militaresque inspecionarama fronteiraBrasil/GuianaInglesaem fins da década etnografia da sociedade regional roraimense realizada por P.Rivière (1972), que
devinteedécadadetrinta, material precioso pelodetalhamento dasinformações. contribui para a análise das relações inter-étnicas na área. Devo também
Ao longo da pesquisa, procedi também a um levantamento documental no mencionar a monografia mais recente sobre os Macuxi, empreendida por E.
Arquivo Público do Estado do Amazonas, no ArquivoMunicipal de BoaVista, Diniz (1972), que consiste em uma análise do contexto interétnico em que se
Roraima, e nos arquivos da Diocese de Roraima, onde se encontra uma situam os Macuxi em Roraima.
importante coleção de registros de batismos e casamentos realizados pelos Desejo mencionar que os Macuxi são uma sociedade relativamente desconhe
religiosos entre os índios da região desde 1909. Grande parte do material cida em termos etnográficos. Tal lacuna etnográfica foi, aliás, lamentada porP.
coletado, porém, não foi utilizada nos limites deste livro, por transbordar seu
Rivière (1984:5) em balanço da etnologia recente das Guianas, dado o
recorte temático, e espero, será tratada em trabalho posterior.
descompasso entre sua presença na área esua presença na produção etnológica.
No intuito de suprir o referencial etnográfico necessário à análise, utilizei os
14 Fronteiras da República
Introdução 15

estudos comparativos hoje existentes sobre a estrutura social nas Guianas,


quadro em que se inserem os Macuxi. São eles: a coletânea Carib-Speaking sociedade regional que se forma no período, enfatizando o aspecto de que o
Indians —Culture, Society andLanguage, organizada por E. Basso (1977), crescimento demográfico verificado pelos recenseamentos daépoca emmuito se
onde estão reunidos artigos que representam grande parte da produção deve à incorporação dapopulação indígena à economia regional. Corrobora-se
etnográfica mais recente nas Guianas; uma edição especial da revista assim a argumentação de P. Rivière (1972), para quem o fato marcante na
Antropológica (1983-1984/59-62), em que estão ostrabalhos apresentados no sociologiade Roraimaera um dispositivo demobilidade etnosocial, viabilizado
pelo regime de trabalho e pelo parentesco ritual que envolvia regionais e índios.
simpósio Carib Political and Social Organization, ocorrido em1982, durante
Por outro lado, o capítulo referencia a ocupação fundiária de Roraima ao quadro
o 44° Congresso deAmericanistas; e, porfim, a síntese daetnologia guianense
publicadamais recentemente por P. Rivière (1984). político da primeira República que a possibilita.
O segundocapítulofocalizaos projetosespecíficosdas agênciasindigenistas
No decorrer da pesquisa, estive entre os Macuxi por cinco diferentes
que, a partir da primeira década do século, passam a atuar entre os Macuxi, a
períodos. A primeira viagem aocampo foirealizada entre osmeses dejaneiro a
março de1984, subvencionada pela Fundação deAmparo àPesquisa doEstado saber, o Serviço de Proteção aos índios e a Missão da Ordem de São Bento.
Examinados tais projetos, analisa a interrelação de ambas as agências e a
deSãoPaulo. Durante osverões dosanos de1986 e 1987 retornei àáreaMacuxi,
sociedade regional, seus embates e possíveis convergências. Para além de sua
em pesquisa para o ProjetoPovos Indígenas no Brasil, do Centro Ecumênico
de Documentação e Informação. No ano de 1987, visitei novamente aldeias interrelação com a sociedade regional, exploro mais detalhadamente a disputa
Macuxi porcerca dequarenta dias, a convite daDiocese deRoraima parauma travada entre as agências indigenistas pela hegemonia de seu projeto político
com relação à população indígena.
avaliação dosprojetos econômicos implementados pelaIgreja Católica entreos
Macuxi. E, finalmente, regressei ao campo nosmeses de abril e maio de 1988, O terceiro capítulo discute o possível impacto da atuação das agências
como representante do Ministério da Reforma Agrária no grupo de trabalho indigenistas sobre o sistema político dos Macuxi. A hipótese que defendo é a de
interministerial paraidentificação da áreaindígena Raposa/Serra do Sol. que a atuação de tais agências se deu através da intermediação de lideranças
indígenas tradicionais, intermediação esta só facultada pela dinâmica política
Nestas ocasiões, coletei dados sobre organização social e tradição oral
interna à sociedade Macuxi. Nesse sentido, examino a trajetória política de
Macuxi. No entanto, por opção de método, não utilizei tais dados nos marcos
algumas lideranças, explorando aquilo que, nelas, considero exemplar para o
deste livro: sabe-se quão problemático é o entrecruzamento de dados advindos
entendimento de uma história do contato Macuxi.
da tradição oral da sociedade estudada e registros escritos a ela relativos.
Questão inaugurada por J. Vansina (1966, 1968), representa ainda hoje um
dilema teórico para a história indígena (veja-se R. Rosaldo, 1980; R. Price, Agradecimentos
1985). Nesse sentido, preferi restringir estapesquisa àsfontes escritas, umavez
que afidelidade àtradição oral—isto é,sua não subordinação auma cronologia Os incentivos e colaborações que recebi ao longo desta pesquisa foram muitos
—é um problema a serenfrentado em uma pesquisa de maior fôlego. Entendo e, fatalmente correndo o risco de omitir contribuições valiosas, tentarei aqui
assim que este livro representa umprimeiro passo em direção a uma história reconhecê-las.
Macuxi. Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo
auxílio concedido à pesquisa de campo nos meses de janeiro a março de 1984.
Sinopsedos capítulos Agradeçoaos arquivistas e bibliotecários das instituições em que pesquisei,
em particular a Clara Galvão, arquivista chefe do Centro de Documentação
O critério editorial básico que orientou esta publicação foi simplesmente Etnológica do Museu do índio, e D. Alcuino Meyer, missionário que trabalhou
procurar manter a forma original do texto redigido em 1989, concebido a entre os Macuxidurante três décadas e tambéma D. MatheusRamalho Rocha,
princípio como dissertação demestrado. monge arquivista do Arquivo do Mosteiro de São Bento, cujo apoio foi
Oprimeiro capítulo traça um panorama da ocupação fundiária em Roraima, fundamental no levantamento dos dados da pesquisa.
apartir de fins do século XDC. Detém-se, por um lado, na análise do perfil da Agradeço ainda aos religiosos da Ordem de N. S. da Consolata, a D. Aldo
Mongiano,bispode Roraima,e aoSuperiordaOrdem,Pe. LírioGirardi,porsua
16 Fronteiras da República

confiança e apoio. A Cario Zacchini, amigo com quem pude contar em todas as
horas difíceisda pesquisade campo, devolvoaqui um pouco do muitoque recebi.
Agradeço a Alicia Rolla, que gentilmente elaborou o mapa de aldeias RORAIMA
Macuxi, e a Stela Azevedo de Abreu, que fez a revisão do texto.
um cenário do início do século XX
Quero registrar minha gratidão à equipe do Projeto Povos Indígenas no
Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação, em especial a
Carlos Alberto Ricardo, coordenador do referido projeto, por todo o apoio
prestado a esta pesquisa, e sua inestimável colaboração intelectual.
Devo ainda agradecer a meus colegas e alunos da Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual Paulista, campus de Assis, pela atenção com
que receberam os resultados parciais desta pesquisa. Estendo também este
agradecimento aos membros do Projeto História Indígena e do Indigenismo,
coordenado pela Prof3 Manuela Carneiro da Cunha, na Universidade de São
Paulo, bem como aos membros do Projeto História do Contato em Roraima, A ocupação colonialportuguesado vale do rio Branco teve imcio na década de
coordenado pelos Profs. Alcida Ramos e Bruce Albert, na Universidade de 70do século XVIII. Foi uma ocupação marcadamente estratégico-militar: nessa
Brasília, pelo interesse que constantemente demonstraram, traduzido em apoio região limítrofe às possessões espanhola eholandesa nas Guianas, os portugue
e orientação. ses procuraram impedir possíveis tentativas de invasão a seus domínios no vale
Quero registrar nesta oportunidade o meu particular reconhecimento pelos amazônico, construindo, em1775, oForte SãoJoaquim, naconfluência dosrios
incentivo, críticas e sugestões prestados pelos componentes da banca examina Uraricoera e Tacutu, formadores do Branco, e via de acesso às baciasdos rios
dora que procedeu a uma avaliação acadêmica deste trabalho, agradecendo aos Orinoco e Essequibo.
profs. Mariza Corrêa e Robin Wright da UNICAMP que se dedicaram pronta A estratégia utilizada pelos portugueses para assegurar a posse do vale
mente à leitura minuciosa do texto. baseou-se no aldeamento da população indígena, articulado pelo destacamento
A todos os meus amigos, devo o alento que tive nestes anos. Quero, em do Forte São Joaquim, e obtido através do estabelecimento de relações
particular, agradecer a Waldemar Brandt Filho, José Márcio Moura, Paulo clientelísticas com os índios da região. Dentre as diversas etnias então aldeadas,
Michalizyn e Sérgio Luís Carrara, com quem partilhei mais intensamente os Macuxi comparecem, surpreendentemente, em pequeno número: temos
dúvidas e certezas. notícia de apenas dois grupos locais que, entre 1786e 1789, chegaram aaldear-
Desejo agradecer, em especial, a Nádia Farage, amiga e companheira se. Além disso, não permaneceriam por muito tempo, pois, em 1790, em meio
inseparável em todosos momentosvivenciados ao longo dos últimos anos, que auma grande egeneralizada revolta, fugiriam amaior parte dos índios aldeados
soube desvendar e compartilhar generosamente os caminhos de entrada e de e,aqueles remanescentes seriam espalhados poroutros aldeamentos portugueses
saída desta pesquisa, cujos resultados alcançados devo inteiramente aos frutos no rio Negro (Question de Limites..., 1903; Nabuco, 1941; Farage, 1986).
de trabalhos conjuntos. Novas tentativas de colonização não seriam mais empreendidas no século
Agradeçoa meus pais,irmãos, e a Nair, pela compreensãoe estímulo que me XVILT. Porém, dado ointeresse estratégico na região do alto rio Branco, aliado
permitiram empreender esta pesquisa. Inti, Júlia e Caio me deram um bom ao fato de que a fisiografia desta área, em particular, não propiciava o
motivo paracontinuá-la. extrativismo, o projeto de estabelecer aldeamentos indígenas e colônias milita
A Eliane, nãohá como agradecer. Tudo são trechos que escuto: vêm dela. res, enquanto forma de preservação do território, continua presente durante o
A Manuela Carneiro da Cunha, minha orientadora, porsua aposta firme e Império. De todo modo, não houve, ao longo do século XIX, qualquer investi
constante, por sua paciência e sabedoria, devo muito mais do que pude aqui mentonessesentido comparável às iniciativas anteriores. A efêmera e isolada
registrar. Missão de Porto Alegre no rio Uraricoera entre os Macuxi, Sapará eJaricuna
(Taurepang) foi logo abandonada, segundo à época informava o Presidente da
província do Amazonas (Amaral, [1857] 1906, 1:614), porque "os índios
18 Fronteiras da República

preferem as suas malocas ao lugar destinado para a residência do missionário".


O Regulamento das Missões (Decreto n° 426 de 24/7/1845) não produziu
maiores resultados em termos de aldeamento da população indígena no rio
Branco, como, aliás, em toda Província do Amazonas (Lacerda, [1864] 1906,
111:134), embora tenha sido invocado tardiamente por ocasião da disputa de
fronteiras, quando foram distribuídos circunstancialmente alguns presentes e
títulos honoríficos de "capitão"às lideranças indígenas das aldeias situadasnas
proximidades do território então em litígio (Nabuco, 1903, IV).
Apresença militar, por outro lado, também serestringiria cora aguerra civil
na década de 1830 e a posterior dissolução da Guarda Nacional. Apesar de o
Decreto Imperial n" 662 de 22/12/1849 determinar a instalação de colônias
militares, e a Portaria de 26/5/1850 que o regulamenta, fixar o alto rio Branco
como local prioritário, não havia recursos nem contingente para concretizar
essas medidas, segundo informavam seguidamente os presidentes da Província
do Amazonas à Corte (Aguiar, [1851] 1906,1:7-8). Ademais, desde 1842,com
a condução porviadiplomática da disputa fronteiriça entre Brasil e Inglaterra
(que assumira a parte da Holanda nas vizinhas colônias de Berbice, Essequibo
e Demerara desdea Capitulação de 1803),a colonização de rio Brancodeixava
de ser primordialmente uma questão de conquista militar. Nesta ocasião o
território contestado, compreendendoa faixa de terras entre os rios Rupununi,
Tacutu, Cotingo c a vertente oriental da cordilheira Pacaraima, habitadapelos
Macuxi, "Wapixana, Atorai, Tarumã e Wai-Wai tornou-se "neutralizado" por
umacordo entreas partes, atéquefossedefinido o limitedafronteira entreBrasil
eInglaterra (Guiana Inglesa). Aproximava-se ofim dociclo emque acartografia
política da região era traçada pela configuração espacial dos aldeamentos e
aldeiassob influência colonial. A partir de meados do século XIX, a ênfase da
ação oficial recairia sobre um novo fator de povoamento, a pecuária.
A pecuária não foi ainda uma atividade empreendida por colonos civis, ao
contrário, sua implementação, em fins do século XVIII, foi uma iniciativa
oficial, visando integrar a região do rio Branco aomercado interno colonial com
o fornecimento de carnes e courosà capitaniade São José do Rio Negro e assim
torná-la um pólo de atração e fixação de colonos (Ribeiro de Sampaio, [1777]
1S72:270 ss.). Tal iniciativa partiu do Governo da Capitania de São José do Rio
Negro, durante a administração de Manuel da Gama Lobo D'Almada, que
introduziu as primeiras cabeças de gado nos campos do rio Branco em 1787, Povos indígenas do rio Branco e da Guiana
Fontes: Colson. A.J. Butt, 1971; CEDI, Povos Indígenas no Brasil, 1984
criando então as fazendas da Coroa, que mais tarde tornar-se-iam as fazendas
nacionais, deque tratarei adiante1. No entanto, passados praticamente cem anos
de domínio luso-brasileiro do alto rio Branco, o rebanho bovino, bem como a
grande parte das terras de campos, que compunham as fazendas nacionais,
Fronteiras da República Roraima no Início do Século XX 21
20

permaneciam sob a administração do Forte São Joaquim, cuja atuação era as cachoeiras do rioBranco, o principal obstáculo à navegação e ao transporte
subordinada aoGoverno daCapitania doRio Negro e àTesouraria da Fazenda. de gado entre os campos naturais e a capital da província, a pecuária ainda
Durante a longa disputa de fronteiras com a Inglaterra houve inúmeras constituía, atéfins doséculo XDC, uma atividade complementaraoextrativismo,
iniciativas por parte dos governos imperial e provincial para fomentar o e um meio de vida, antes que uma produção de bensvoltada para o mercado.
povoamento dessa região por colonos civis, mas se colheram invariavelmente Em contrapartida, os atrativos — não me refiro àqueles oficiais, mas aos
resultados inócuos. A Freguesia Nossa Senhora do Carmo, criada no alto rio geralmente oficiosos—oferecidos paraoestabelecimento de criatórios particu
Branco, nãopassava deumaficção administrativa eencontrava-se inteiramente lares eram proporcionais às distâncias a serem vencidas: com o gado criado
despovoada em 1856 (Vieira, [1856] 1906,1:478). Em 1857, foi proposta asua simplesmente solto nos campos, parte dele selvagem, não seria preciso fazer
extinção e a anexação do território à outra sede administrativa no rio Negro muito mais que capturaralgumas reses e instalar-se num quinhão de terra. Os
(Corrêa Miranda, [1857] 1906,1:539). A Lei de Terras de 1850, que exigia o exemplos pioneiros, se não partiram dos mesmos militares encarregados pela
registro da posse das terras para que as mesmas pudessem ser reconhecidas guardado patrimônio público, pelo menoscontavam com a sua conivência; é o
legalmente de domínio particular, resultou em apenas seis pedidos dereconhe próprio Presidente de Província do Amazonas quem afirma: "Nas Fazendas do
cimento em todo o vale do rio Branco no encerramento dos prazos em 1856 Estado crescem asdespesas ediminui aprodução, aopasso quenasparticulares
(Amaral, [1857] 1906,1:634). Em 1861, o Presidente daProvíncia doAmazo quelheficam adjacentes o incremento éacelerado eoslucros subidos" (Furtado,
nas, Dr.Manoel Clementino Carneiro da Cunha ([1861] 1906,11:539), aoabrir [1858] 1906,11:31). Dessa forma, opatrimônio doEstado, constituído pelas três
asegunda sessão daAssembléia Legislativa, informava osparlamentares sobre fazendas nacionais — São José, São Bento e São Marcos — em meados do
o que ocorria no rio Branco: "A criação do gado não se acha em bom pé. As século XIX, estaria reduzido a apenas uma parte da fazenda São Marcos no
maiores fazendas são as Nacionais do rio Branco. Entre os particulares não se início doséculo XX. O restante se tornaria objeto de ocupação de particulares.
nota interesse por esse trabalho." Segundo o viajante francês HenriCoudreau (1887:407), na décadade 1880
Em1870, o governador Dr. João Wilkens deMattos ([1870] 1906,111:807) essa ocupação se concentrava na margem direita do rio Branco e do rio
entregava o cargo a seu sucessor repetindo os mesmos dados: "O Governo Uraricoera, em terras das antigas fazendas São José e São Bento. Das trinta e
Imperial tem mandado conceder terras para a creação degado; mas são ainda duas fazendas então instaladas, vinte e oito se situavam aí e apenas quatro
nullos os resultados dessa indústria". Naquele mesmo ano não viria a se estavam na margem esquerda do Branco e seu outro formador, o rio Tacutu. Nas
apresentarnenhum interessado no contrato, ofertado publicamente pelo governo primeiras décadas deste século, a expansão dos criatórios seguiria em direção
da Província (Mattos, [1870] 1906,111:856), para o fornecimento de carnes oposta, pelo vale do Tacutu, oterritório em que vivia tradicionalmente agrande
verdes para Manaus. parcela dapopulação Macuxi. Nestes campos, onde formalmente ainda predo
Com efeito, ospossíveis interessados, a população de colonos civis novale minava apropriedade do Estado, evárias aldeias indígenas seespalhavam pelas
dorio Branco,estavamvoltadossobretudoparaaextraçãode balatae decaucho extensas planícies, o estabelecimento dos domínios particulares se daria na
nas matas do baixo rio Branco em fins do século XIX e início do século XX. É mesma proporção do rebanho que cada criador conseguisse manter sob seu
somente apartir deste período que apecuáriacomeça aseconstituir ematividade controle. Em outras palavras, o gado marcado e ao alcance do vaqueiro era a
marginal dentro da economia extrativista da Amazônia. A pecuária no rio únicamedida de ocupação das terras, o título realde posse.
Branco ainda apresentava uma característica particular em relação a outras Deforma semelhante aoqueocorreu emoutras regiões dopaís, ocrescimento
regiões do país: o gado eratransportado pelo rio até o mercado, uma faixa de dapecuária extensiva aquitambém sebaseou emrelações conhecidas comosorte
aproximadamente seiscentos quilômetros de hiléia o separava das povoações ou quarta, que consiste em um contrato oral, peloqual o dono de um rebanho
mais próximas no rio Negro. A via fluvial alongava para mais ou menos entrega um lote deseu gado para um vaqueiro que, emcontrapartida, tem direito
oitocentos e cinqüenta quilômetros esse trajeto e o tempo gastopara percorrê- a umade cadaquatro crias nascidas durante um período combinado2. Poresse
lo, se considerarmos a falta de pasto, tornava o gado uma mercadoria de contrato sedistinguiam as posições sociais de fazendeiro, categoria que denota
rentabilidade duvidosa. Apesar de haverem os governos provinciais investido a condição de proprietário, e vaqueiro, um aspirante a essa condição, cuja
repetidas vezes, em diferentes gestões, naabertura deuma estrada contornando perspectiva de vidaé, como tempo, formar o próprio rebanho. Inicialmente tais
Fronteiras da República
Roraima no Início do Século XX 23

posições não diferenciavam estilos de vida; com as dificuldades de acesso ao


mercado, nessa região remota o gado era muito mais um meio de vida que uma foram subindo pelo curso dos rios e igarapés e ocupando oscampos adjacentes.
mercadoria. O status superior do fazendeiro não o distanciava necessariamente O número de criatórios, assim, aumentou sradativamente.
de seus vaqueiros, as relações que ligavam um ao outro no regime da sorte Não há indicações de que tenha ocorrido um movimento migratório de
tornavam-nos virtualmente iguais. Servia mais como meio de distinção e maiores proporções para essa região até a criação do Território Federal na
angariação de prestígio aostentação de habilidades no manejo cóm ogado, onde década de 1940. Na ausência de um ciclo econômico de maior dinamismo,
sepoderia demonstrar os atributos fundamentais da condição masculina nessa contando apenas com algumas incursões esporádicas de balateiros nas matas
sociedade decriadores (Rivière, 1972:89). Eram estes atributos quelhe marca que bordejam os campos ao sul, o crescimento da população foi lento, porém,
vam o contorno externo, diferenciando o civilizado do caboclo, categoria que constante. Os dados que indicam essa ocupação são bastante fragmentários e
denota a origem nativa de quem discrimina. foram coletados por critérios tão vagos edíspares que impedem uma comparação
O regime da sorte cumpriu uma função importante na expansão dos rigorosa entre eles. Apesar disso, tentemos um perfil aproximado.
criatórios ; pode-se ter uma noção disso pelos dados de Ermanno Stradelli A menção mais remota a uma povoação formada por criadores de gado no
(1889:36), que esteve no rio Branco dois anos depois deCoudreau. Segundo esse alto rio Branco3 provém do cônego Francisco Bernardino de Souza ([1873]
autor, não havia apenas trinta e duas fazendas, mas sim trinta e dois fazendeiros 1988:179) sobre um povoado existente nas proximidades do Forte São Joaquim
naregião decampos, cujo gado estaria distribuído por oitenta criatórios. Talvez na década de 1870, também denominado SãoJoaquim. Nessa mesma década,
essa discrepância de números representasse uma contradição apenas aparente, segundo Jacques Ourique (1906:13), o povoado de São Joaquim teria sido
mera questão de nomenclatura: poderia haver trinta e dois fazendeiros, cujas transferido para a margem direita do rio Branco, cerca de uma légua abaixo da
residências seriam as sedes das respectivas fazendas e os quarenta e oito barrado rio CaiméouCauamé, lugarquese tornaria conhecido comoBoaVista.
criatórios ou fazendas restantes seriam os retiros, jargão regional que denota o Em 1885, Coudreau (1887:257) estima que, emtoda a região do rioBranco, ou
lugar onde seconstrói um curral e, eventualmente, um abrigo para o vaqueiro seja,noscamposemambasas margens do rio,haviamil "civilizados", incluindo
poder cuidar do gado nas pastagens mais distantes das sedes das fazendas. De aí "brancos, mestiços e índios vestidos". Essa população estava localizada,
qualquer forma, independente daprocedência desta interpretação, os dados de como vimos, na margem direita do rio Branco, onde se encontrava a maioria das
Coudreau eStradelli apontam—como igualmente ofezmuitomaistarde Rivière fazendas então existentes, e no povoado de Boa Vista.
(1972:85) — a grande dispersão dos criatórios e o isolamento das unidades Nas duas últimas décadas do século XIX, no entanto, essa situação começava
familiares;fatoresestesque terãoum pesodecisivonadefiniçãodas relaçõesdos a se alterar. A grande parte das terras das propriedades estatais, situadas na
criadores com os índios. margem esquerdado rio Branco e novaledo Tacutu, preservadas até o início do
Vários motivos parecem ter contribuído para essa situação extremada de século XX em virtude de seu valor estratégico na disputa de fronteiras com a
isolamento e, ao menos dois são mais evidentes. Em primeiro lugar, há razões Guiana Inglesa, tomar-se-ia, a partir desse momento, objeto de ocupação
de ordem ecológica: a distribuição das chuvas, aliada às condições do solo, particular. Uma listagem dessa ocupação, apresentada na segunda memória
tornam aspastagens totalmente ressecadas einaproveitáveis para ogado no auge brasileira para a arbitragem de limites de 1904 (Ouestion de Limites..., 1903,
do verão (novembro amarço), enaestação chuvosa (abril aoutubro), oscampos IV), menciona a existência das seguintes fazendas na áreado território tradici
sealagam e os igarapés ficam intransponíveis para o gado. Uma conseqüência onal Macuxi:

disso é que orebanho tem que percorrer grandes distâncias para alimentar-se e
estar asalvo no auge de ambas as estações. Em segundo lugar, sendo opastoreio a) Área em litígio (entre os rios Surumu eRupununi):
do gado pelos campos naturais oúnico método de criação praticado, cada criador
tenderá a ocupar a maior área de pastagem possível como condição para o 1 — Burgo Andreas, localizado na margem esquerda do Surumu e
crescimento do próprio rebanho. pertencente a Bento Aranha (1 casa).
Separados, portanto, pela distância que as pastagens exigiam, isolados por
imposição das condições das próprias atividades que exerciam, os vaqueiros 2 — Baixa do Surumu, situada na margem esquerda do Surumu, de
Espiridião José d'Andrade (1 casa).
T

24 Fronteiras da República Roraima no Início do Século XX 25

3 — Maravilha, situada na margem esquerda do Surumu, de de Pedro Marques Garrido. Administrado por João Baptistada Silva
RaymundoAntônio da Silva (1 casa). (1 casa).

4 — Cuan-Cuan, situada à margem esquerda do Surumu, de Benigno 18 — Burgo Dourado, situa-se desde as terras de Pedro Garrido até a
Marajó (1 casa). margem direita do Mucumucú, de Gabriel Pereira da Silva(1 casa).
5 — Cuan-Cuan, situada à margem esquerda do Surumu, de João 19 — Burgo Dourado, situado desde as terras de Pedro Garrido até a
Peres da Silva (1 casa). margem direita do Mucumucú, de Boaventurada Silva(1 casa).
6 — S. Antônio, localizado na foz do rio Surumu, de Manoel José de 20 — Burgo Dourado, situado desde as terras de Pedro Garrido até a
Andrade (2 casa). margem direita do Mucumucú, de Paschoal Gomes da Silva (1 casa).
7 — Maravilha, situada desde o Chiriuhini ao Cuminá, de Francisca 21 — Burgo Dourado, situado entre as terras de Pedro Garrido e a
Eudoxia Collares (1 casa). margem direita do Mucumucú, de Hygino Luiz Pereira (1 casa).
8 — Maravilha, situada desde o Chiriuhini até o Cuminá, de Manoel 22 — S. José do Tacutu, situada desde a margem do rio Cumucumú
Vieira Accioly Cavalcanti (2 casas). até a margem direita do Cuará, de Ozono Francisco Mendes (1 casa).
9 — Carapanatuba, localizada desde o Cuminá até o Cuchua, de 23— Burgo Carneiro de Campos, localizado desde a margem direita
Marcos Vieira da Silva (1 casa). do Cuaré atéa margem esquerda do Carahuau. Administrado pelo
Capitão Cardoso (Tuxaua Uapixana) que tem sob suas ordens250
10 — S. João, localizada desde o Cuchua até Viruaquim, de a Uapixanas (8 casa).
Raymundo Garcia d'Almeida (1 casa).
11 — Conceição, situada na nascente do rio Mahu na sua margem b) Propriedades localizadas à margem direita do Tacutu, a jusantedo rio
direita, em frente ao Pirara, de José Amando Lima (3 casas). Surumu, fora da área em litígio:
12 — Burgo Manaú, localizado na nascente do Pirara, na margem
direita do rio Mahu, de Doceo e Amanda Aranha. Administrado por 24 — Flechal, situada na margemdireita do rio Surumu, de Sebastião
João Lambe (1 casa). José Diniz (1 casa).
13 — Burgo Baixa do Macuxi, localizado na margem esquerda do rio 25 — Burgo Andreas, situada na margem direita do Surumu, de Bento
Mahu e margemdireita do Pirara, de Raymundo Chefe (1 casa). Aranha.

14 — Burgo Neengahiba, localizado na foz do rio Pirara na margem


esquerda, de Olivia Aranha. Administrado por Henrique Tahurame (1 c) Propriedades localizadas à margem esquerdadoTacutu forada áreaem
casa). litígio:

15 — Burgo Icanuyaba, localizado na foz do Naipu na margem direita


do Pirara, de Josephina Aranha. Administrado por Guilherme Uairá (1 26 — Cachoeirinha, situada no igarapé Cachoeirinha, de João Pereira
da Silva (1 casa).
casa).
16 — Burgo MirandaReis, situado na margem esquerda do Pirara, na 27— Cachoeirinha, localizado pelo igarapé Cachoeirinha, de Antônio
margem direitado Naipu e no lago Amacu, de João Aranha. Ferreira Lima. Administrada porPedro Cabo (1casa).
Administrado por Daniel Tacá (lcasa). 28 —Arapari, situada no igarapé Cachoeirinha, entre o Arapari e
17 — Manari, localizado na foz do Mahu em sua margem esquerda, Calangro, de Sebastião José Diniz. Administrada porCamillo Mineiro
(2 casas).
T
26 Fronteiras da República
Roraima no Início do Século XX 27

29 — Tipucú, localizada desde Calangro até Monoi, de Antônio


Gomes Pereira Bastos (2 casas). Umoutro dado quechama a atenção nalistagem apresentada pela memória
brasileira é o elevado número de fazendas emqueosproprietários permanecem
30 — Murará, localizada entre o Murará e o Onça, de Rita Capitary ausentes,e o gadoentregueaoscuidadosdevaqueirosou"administradores''.Em
(Macuxi (3 casas). parte,a própria listagem esclarece essefato: algumas propriedades são retiros,
31 — Frexal, situada à margem direita do médio Surumu. São os alguns proprietáriostêm mais de uma propriedade.Por outro lado, há fazendei
retiros de Sebastião José Diniz (3 casas). ros residentesno povoado de Boa Vista, como afirmamos cronistasda região
para os anos subseqüentes (Ourique, 1906:13; Pereira, 1917:25; Rice,
32 — Papagaio,situado do Monoi até Milho, de Antônio Gomes 1949:46). Aliás, o próprio crescimento de Boa Vista é, em si mesmo, um
Pereira Bastos (1 casa). indicador do avanço da ocupação pecuarista nos campos do rio Branco, na
33 — S. Benedicto, situado de Milho até Cuchua, de Lauriano José medida em que toda a sua população estaria exclusivamente voltada para
Pereira de Leão (1 casa). atividades relacionadas à criação,à vendade gadoparaManaus, e ao comércio
de gêneros relativos às necessidades dos fazendeiros até meados do século XX.
34 — S. Francisco, localizado desde Cajueiro até Tamaruá, de Desdeentão,comosurgimento dosgarimpos nadécada de30e denovas funções
Francisco Antônio Ribeiro y Peres, falecido (6 casas).
administrativas a partir da criação do Território Federal de Roraima em 1944,
35 — S. Lourenço do Lago, situado desde Tamaruá até o lago S. ocorreria uma diversificação das atividades da população de Boa Vista.
Lourenço, de Delphina Bueno Levei (3 casas). Boa Vista foi o único povoado do alto rio Branco por várias décadas. Em
36 — S. Lourenço do Lago, situado desde Tamaruá até o lago S. 1890, foi elevada à categoria de vila pelo então presidente da Província do
Lourenço, de Delphino Bueno Gauthierres. Administrado por 4 Amazonas, capitão Villeroy. Segundo o advogado Luciano Pereira(1917:25),
capitãesMacuxi com 336 índios da mesma nação (5 casas). que esteve no rio Brancoem 1917, a vila era formadapor quarentae novecasas
e barracas, e contava com uma população de aproximadamente 500 habitantes.
37 — Muratu, de Antônio Nogueira Barreto (3 casas). O mesmoautor(Pereira, 1917:30) estimava nessaocasião, para todo o valedo
38 — Tucunaré, de Sebastião José Diniz. É o retiro de sua fazenda rioBranco,"entre8 a 10mila população propriamente indígenae entre3 a4 mil
Quitanhaú (1 casa). o restante, no meio da qual se contam muitos portugueses, na sua maioria
comerciantes oufazendeiros..." Jánoano de1924 havia cento esessenta equatro
39 — Quitanhaú, de Sebastião José Diniz (1 casa). casase umapopulação estimada em1.200habitantes (Rice, 1949:16). Em1926
BoaVistafoi elevada à condição de sedemunicipal, o queampliou a autonomia
Considerando a finalidade de tal levantamento, ou seja, comprovar a ocupa administrativa locale fortaleceu a elitepolítica de fazendeiros emseu poder de
ção civilda áreadisputada coma Inglaterra, torna-se compreensível que, sob a pressão sobre os órgãos dos governos provincial e federal, encarregados de
rubrica propriedades, tenham sido agrupadas as mais variadas formas de resguardar os direitos dos povos indígenas sobre suas áreas de ocupação
ocupaçãoda área. Dentre as propriedades mencionadas constam,por exemplo, tradicional4.0reconhecimento dessesdireitosrepresentaria, evidentemente, um
fazendas, retiros, posses e ao que parece, até mesmo aldeias indígenas com a empecilho à expansão das propriedades particulares,como veremos adianteem
denominação de burgos (vide números 12,13,14,15,23, 30, 37). Apesar da maiores detalhes.
imprecisão destes dados, eles servem como umindicador doavanço daocupação Esta expansão, no entanto, prosseguiu lentamente, seguindo o curso dos
pecuarista sobre asáreas deocupação tradicional dos índios, mais precisamente principais afluentes do Tacutu até as vertentes meridionais da cordilheira
dos Macuxi.
Pacaraima. Dorelatório da Comissão deInspeção deFronteiras, que percorreu
Em contrastecom os dados fornecidospor H. Coudreau, a listagemapresen os principais rios da bacia do Branco em 1927,constamos seguiníesestabele
tada pela memória brasileira indica que apenas a partir da última década do cimentos:
século XDC e início do século XX a colonização civil no vale do rio Branco
atingia oscampos adjacentes à margem esquerda desterioe ovaledorioTacutu.
As fazendas aí mencionadas eram, portanto, estabelecimentos bastante recentes.
r
28 Fronteiras da República Roraima no Início do Século XX 29

Na margem direita do Tacutu (Lopes de Souza, 1927): Fazenda Remédio —


Fazenda Reforma —
Fazenda São Luis — tenente Luis de França Carvalho. Fazenda Urário —
Fazenda São Joaquim — Fazenda Morada Nova —
Fazenda Padre — de Lauro Bacuri. Fazenda Passarão — de Gabriel Pereira.
Fazenda Paraíso — da viúva do sr. Quadros. Fazenda Aramirá —
Fazenda Maravilha — coronel Manoel Acyoli Cavalcanti. Fazenda Nova Estrela —
Fazenda Remédio — Maloca do velho Antônio —
Fazenda Cruzeiro — da viúva do sr. José Caetano. Fazenda Casa Branca — tenente Cícero Correia de Melo.
Fazenda Sebastopol — Fazenda Bebedouro —
Fazenda São Francisco — Fazenda Novo Destino —
Fazenda Primavera — Fazenda Passarinho —
Fazenda Janicuru — do venezuelano Quintino Gutierrez.
Fazenda Conceição — do Dr. João Augusto Zany. Emboraconstemdessa relaçãoquarenta e quatroestabelecimentos, ou seja,
Fazenda São Lourenço — do coronel Garrido. apenas quatroa mais que na listagem apresentada pela memória brasileira de
Sítio Bom Jesus de Manoel Barreto (caboclo amazonense). 1904, deve-se considerar que estes dados se referem apenas a áreas adjacentes
Fazenda São Salvador — do luso Rodrigues Pedro Figueiredo. às margens brasileiras de dois rios fronteiriços, enquanto que aqueles são
Sítio Valparaíso — de Gabriel P. Silva — encarregado Costa. extensivos a toda região banhada pelo braço esquerdodo rio Branco, vale dizer,
todo o vale do Tacutu. Cabe notar ainda o registro das seguintes aldeias
Fazenda Eua — do guianense Felix Buchly.
indígenas nos relatóriosacima mencionados:
Fazenda Cajazeira — de Luiz Mesquita Pimentel.
Sítio Santa Cruz — de Manoel Eugênio de Castro.
Na margem direita do Tacutu (Lopes de Souza, 1927):
Fazenda Tucunaré — de JG Araújo — encarregado João Braga.
Fazenda Olho D'água — do cearense João Carioca.
São Carlos — maloca de índios Macuxi (17 pessoas).
Fazenda Nova Cintra — coronel Pinto — encarregado João Lima. Céu — aldeamento do velho tuxaua Macuxi Manoel Barreto.
Fazenda Luzitânia — de Joaquim Tome. Maloca do 2a tuxaua Magalhães, próximo a São Salvador.
Fazenda Verdum — de Luis Marcelino da Silva.
Barraca do Paulo Wapixana.
Fazenda Santa Fé — de Moacyr Jurema. Empresa— maloca dos índiosWapixana Antônioe Manduca.
Sítio Tem que — do sr. Uchoa (balateiro). Maloca do Terencio — 4 casas, 52 pessoas (Wapixana).
Morada Boa Esperança — guianense Filip Clark (balateiro).
Na margem direita do Maú:
Na margem direita do Maú (Facó, 1927):
Margem do Quinoô — maloca Macuxi (17 índios).
Fazenda Condado — de João Paiva. Margem do Menaiutê — maloca Macuxi (36 índios).
Fazenda Cachoeira — de Amâncio Ferreira de Lucena.
Retiro do Levei — "toda a população é indígena".
Fazenda Perseverança — Retiro da Cachoeirinha — 23 índios Macuxi.
Fazenda Cariry — de João Menezes da Silva (Jango).
30 Fronteiras da República Roraima no Início do Século XX 31

Maturuca — aldeia Macuxi (169 índios). região do rio Branco uma população de aproximadamente 18.000habitantes,
Lilás — aldeia Macuxi. sendo 10.000 indígenas. A população de Boa Vista foi avaliada então em torno
Maturuquinha — aldeia Macuxi. de 2.000 pessoas.
Iren-Mutã — acampamento Severino garimpeiro (14 civilizados, 21 Atéessa época, a população considerada peloscronistas comonão indígena,
índios Macuxi). ou "civilizada", esteve, como aludi acima, voltada quase que exclusivamente
Uiapá-Meirú — maloca do tuxaua Pedrinho (2 casas, 42 pessoas). paraa pecuária e atividades correlatas, dentreas quaiso comércio de gêneros de
consumo dos pecuaristas, tais como açúcar, sal, ferragens, tecidos, etc, e o
Acampamento do padre Mayo — maloca Macuxi (50 índios).
transporte de gado para Manaus, feito por batelões nos períodos de cheia dos
Maloca do Joaquim — maloca Macuxi. rios. Excepcionalmente dedicavam-se à extração de balata nas matas que
Margem do Cauaylã — maloca do Tristão (macuxi, ?). bordejam os campos, na região do alto rio Tacutu (Lopesde Souza, 1927:31)e
Maloca do tuxaua Paqui — maloca Macuxi (48 índios). do alto rio Maú (Facó, 1927:14), bem como ao cultivo de tabaco na área da serra
do Truaru(Lopesde Souza,1927:41) e à produção de aguardente, em especial,
*tota! da população recenseada no rio Tacutu: na margem esquerda do médio rio Surumu (informação pessoal prestada pelo
tuxaua Raimundo na aldeia Gavião — fevereiro de 1984). Umaoutraexceção,
414 civilizados — 220 índios que até a década de 1930 envolvia apenas um grupo diminuto de pessoas,
arregimentadas pelomineiro SeverinoPereira,erao garimpodeouroe diamante
♦total
da população recenseada no rio Maú (inclui arredores do Monte
no alto rio Maú e alto rio Cotingo, região serrana no extremo norte do vale do
rio Branco.
Roraima e trajeto da Faz. São Marcos a Faz. Iracema):
Emmeados dadécadadetrinta, entretanto, ogarimpo atrairia umcontingente
236 civilizados — 1.646 índios considerável de migrantes para a região serrana, vindos de outras áreas do rio
Branco, como também de outras partes do país. Em carta a seus superiores no
Riode Janeirodatadado iníciodo anode 1940,o mongebeneditino DomAlcuino
Os relatórios da Comissão de Inspeção de Fronteiras, embora não explicitem
Meyer, que trabalhava entre os índios da região há vários anos, informava sobre
os critérios utilizados para o levantamento da população, permitem supor que tal
os iníciodestenovo ciclode ocupação colonizadora que então avançava parao
levantamento se baseou apenas na contagem da população presente nas menci
extremo norte do Município de Boa Vista:
onadas localidades na ocasião. Deve ser frisado também que o levantamento da
população se limitouao registrodos habitantesencontrados dentrode um trajeto No Socomora o velho mineiro Severino Pereira da Silva,casado pela
pré- estabelecido pela comissão e que, portanto, não inclui toda a população. segunda vez com índia Macuxi e pai de numerosa família. Este
Vale notar ainda a utilização de categorias um tanto vagas em tal recenseamenío, Parahybano está no rio Branco há maisde 30 anos.Foi ele que iniciou
o trabalho de mineração de ouro e diamantes no alto rio Branco. Em
como por exemplo, no cômputo dos indivíduos discriminados enquanto "civili
1928 encontrei-o no igarapé do Eremutau, um dia de viagem daqui
zados estão inclusos aqueles índios incorporados às famílias de civilizados" (igarapé do Caranguejo) para o N. Estava então amasiado com uma
(Lopes de Souza, 1927:21) nolevantamento parao rioTacutu,e "caboclos" no macuxie casou-se.Em 1936foiatéo Rio poravião, levando muitoskilos
recenseamento das margens do Maú (Facó, 1927:31). de ouro e não sei quantos diamantes fazendo com que muitos nordes
No entanto, o avanço da exploração econômica, que se verifica nessas tinos e gente do Pará e de Manaus etc. viessem tentar fortuna nos
primeiras décadas do século XTX no vale do rio Tacutu, não chegou a alterar o garimpos doAlto Cotingo.Elleafirmou-meque calculaem cercade700
quadro mais geral da bacia do rio Branco. O vale do rio Uraricoera era ainda a pessoas os que presentemente trabalham em ouro etc. no Cotingo e
área onde estavam estabelecidas, em sua maior parte, as fazendas de gado: ali Aninô. Houve época em que um garimpeiro achava nos melhores
foram registrados setenta e oito estabelecimentos, entre retiros e fazendas, no ano lugarescentenas de gramasde ouro por dia. Ultimamente tiram pouco
resultado masemgeral aindacompensador. Não falta entretanto quem
de 1927 (Barbosa, 1927:38). Naquele mesmo ano, o general Cândido Mariano
tenha tidoprejuízo. Alémdos civilizados também muitos índios expio-
Rondon (1927:52), comandante da Comissão de Limites, estimava em toda a
32 Fronteiras da República Roraima no Início do Século XX 33

ramouroe diamantes, ou comoempregados dosbrancosganhando (se Perseverança — à direita do curso inferior do Maú.
é que recebem) 150% por mez além de comida e pequenas regalias, Espírito Santo — margem direita do baixo Maú.
outros porprópria conta (AlcuinoMeyeraoArquiabade doMosteiro de
Cachoeira — margem direita do baixo Maú.
São Bento, 10-01-1940).
Condado —margem direita do baixo Maú (23 hab.).
Desta mesma época há notícias deque uma epidemia deraiva teria dizimado M. Guilherme — margem direita do baixo Maú (antiga maloca do
grande parte do rebanho bovino do rio Branco (Guerra, 1957:180), tendo Guilherme).
persistido até meados da década de 1950, quando a situação voltaria a se Novo Destino —margem direita do baixo Maú (18 hab.).
normalizar nas fazendas. Apesar de tal epidemia ter ocorrido concomitante- Veiga — margem direita do baixo Maú.
mente à notíciada descobertade ouro e diamante no extremo norte do vale do rio
Canto da Fortuna — margem direita do baixo Maú.
Branco e,ambos osfatores teremcontribuído paraadecadênciadasfazendas nos
anos 30/40, não parece terhavido umretrocesso nopovoamento daregião, mas Casa Branca —àdireita do curso inferior do Maú (45 hab.)
antes uma alternância de atividades que não chegou a abalar o ritmo de Piraraquim — margem direita do baixo Maú.
crescimento da população civil. Nova Estrela — margem direita do baixo Maú.
Talvez tenha ocorrido até um incremento da imigração para o rio Branco Passarão — margem direita do baixo Maú.
nessa ocasião, que posteriormente reverteria emfavor da expansão pecuarista. Aldeias Indígenas:
Pode-se encontrar indicações nessesentido na obrado Capitão de mare guerra Boqueirão da Lua (Capoi-Mutá) — à direita do curso médio do Maú
Braz Dias de Aguiar (1947), que, chefiando uma comissão demarcadora de (320 hab.).
limites, esteve na área durante os anos 1929/1934, onde estão registrados os Genérica —perto da margem direita do médio Maú (21 hab.).
seguintesestabelecimentos: Passagem — (42 hab.).
Aldeia da Foz doTimão — alto Maú (38 hab.).
a) Rio Cotingo: Cachoeirinha — (54 hab.).
Viruaquim — (48 hab.).
Fazendas/Garimpos:
Maturuca — na margem direita do Sanam, afluente do médio Maú
Camarão — próximo a Serrada Mina, de Pedro Rodrigues. (150 hab.).
Campo Maior — no igarapé Suapi, dePedro da Costa Padilha Maturuquinha —cerca de 7,5 km a sudoeste de Maturuca, à direita
Caranguejo — na margem esquerda do igarapé Truaru. do médioMaú(80 hab.).
Aldeias Indígenas: Lilá —entre Soco, Maturuca e Maturuquinha (200 hab.).
Conta — aldeia Macuxi, acima da confluência com o Surumu. a população macuxi no vale do rio Maú foi estimada pelos membros
Ererá — aldeia Macuxi,próxima à margem do Caracanã. daComissão Brasileira de Limites em 1.300 pessoas.
Soco — aldeia Macuxi entre Maturuca,Maloquinha e Lilá ("ocupada
porindígenas e civilizados"). Ç) Rio Surumu

Fazendas
a) Rio Maú (margem direita):
Alemanha — margem direita do médio Surumu.
Fazendas: Araçá — foz do Araçá, margem direita do alto Surumu.
Reforma — na margem direita do baixo Maú. A. Araújo — margem direita do alto Surumu.
Bom Futuro (antiga Cariri) — margem direita do baixoMaú (20 hab.). Bonfim — margem direita do baixo Surumu.
34 Fronteiras da República
LEGENDA
O Macuxi
Carnaúba — margem esquerda do baixo Surumu. O Wapixana-Macuxi
Casa Verde — margem esquerdado baixo Surumu.
Flechal — próximo a margem direita dobaixo Surumu.
Garapa — pouco acima dafoz do Miang no alto Surumu.
João Gama— margem esquerda do médio Surumu.
\ I
Joaquim Cardoso —margem esquerda do baixo Surumu.
Maruai — à direita do médio Surumu. ; ..o " ?o/ • ., £•»<¥• i ^.J L ()
Milagres —àdireita do alto Surumu (pé da serra Tipiti).
Providencia — à esquerda do baixo Surumu.
São Raimundo — margem esquerda do baixo Surumu. j> ^ o\ :ü\» e ,•". •&••£" ,7/ >^
I 1 o*^-*. °M «O* \J -"* O ^V> -' /
Sobral— margemdireitado médioSurumu.
Carapá — margem direita. ' ^'•Wo -o *.*%<} -a ir/M 7 / y
São José — margem esquerdado alto Surumu. -N. \ \ \, \ \ . s "oV... • :'*> Ou CH» g'-\
Tracuá— margem esquerda do alto Surumu.
Aldeias Indígenas:
•• ~-^Vv-^os : ~ •?•."• « \'j • ••«* vm! N/=> Jr
Barro— margemesquerdado médioSurumu.
•v. C «L_ «O fio-. ^, V ••...*' " \- ; h\ \f~
Boca da Mata — margem esquerda do alto Surumu.
Curicaca — curso médio do igarapé Ingaripá. s&rH' . -\\ <• J s';-,#v-. y-A • >kA
Limão — próximo a confluência dos rios Surumu e Cotingo.

Os problemasbásicos que estes dados apresentamsão os mesmos que se pode -pi Ra)>>..W - ;,\ ->í ||:5\ Xm^
levantar em relação aos registros da Comissão de Inspeção de Fronteiras de
1927: oscritérios utilizados paraacoleta dedados parecem tãodiscrepantes que
impedem qualquer tentativa de comparação global. Ainda assim, pode-se notar
um aspecto complementar entre ambos os levantamentos, pois neste último há
informações relativamente detalhadas sobre os rios Cotingo e Surumu5 que, Aldeias Macuxi no rio Branco
juntamente com o rio Maú, constituem os principais afluentes do rio Tacutu. Extraído de Ernesto C. Migliazza/1970
Tomados em seu conjunto, estes dados nos oferecem um panorama geral da 1. Brasília
2. Curicaca
23. Bom Jesus
24. Oaroura
44. Pedra Branca 65. Escondida 86. Gavião
45. Maracaja
ocupação do território Macuxi, com a expansão da pecuária nas primeiras 3. Passa Raiva
4. Cajueiro
25. Roça
26. Xiriri
46. Marcas
47. Caraparu
66. Ulnmutd
67. Paiuia
87. Igarapd Grande
88. Aratania
68. Soco
décadas deste século. Para uma idéia aproximada doque representam tais dados S.Aiâçá
6. Felicidade
27. Uroao
28. Formosa
48. Bananal II
49. Manco
69. Maturuca
89.
90.
Passa Raiva
Cristal

nadinâmicademográfica de todoovaledo rio Branco,pode-secontrastá-los com 7. Genipapo


8. Livramento n
29. Espinhaço
30.Arãça
50. S. Maria
51. Bandeira Branca
70. Macedonia
71. Enseada
91.
92.
Arara
Milho
72. üils 93. Napoteâo
9. Barrinha 31. Mucaipá
os seguintes totais: 10. Floresta 32.Cumana
52.Paure
53. Sapab
73. Socori 94. Bismarlc
74. Bananal 95. Raposa
De 1909 a 1946 os monges beneditinos batizaram 9.285 "civilizados" e 11. Ponte da Barra
IZ Uniam
33. Miang
34. Enseada
54. Quinor U
55. Abelardo
75. Maracanã
76. Canina
96. Chumina
97-Preguicinha
12.104 índios em toda a áreada Prelasia, quecorresponde aproximadamente à 13. Ouro
M.SJoJaaf
35. Barro
36. S. Jorge
56. Pedra Preta
57. Boa Esperança
77. Santa Maria
78. Araçá
98. Guariba
15.Capivara 99. Urubu
área da bacia do rio Branco. De modo significativo, para o ano de 1943, o 16. Tauari
37. Salvador
38.Taxi
58. Flechal
59. Pipi
79. Pacu
80.Flexa
100. Vista Alegre
«01. Arame
lingüista Ernesto Migliazza, que esteve trabalhando por muitos anos consecu 18. Manga Braba
19. Estaç2o
39. Machado
40. Pedra do Sol
60. Caracana
61. Barro
81. Escondida
82. S. Cruz
102.Boqueirão
103. Canauam
tivos no rio Branco, avalia apopulação total daregião em 19.709 habitantes, que 20. Canivete
21. Vista Alegre
41. Contão
42. Todos Querem
62. Tipo
63. Atla
83. Cachoeirinha
84. Vixela
104. Perdiz
105. Manoa
22.Carapana 43. Araca 64. Orinduque 85. Feliz Encontro
i
36 Fronteiras da República
Roraima no Início do Século XX 37

o autor divide em 15.700 indígenas e 4.009 não indígenas, totais, portanto, eficaz e duradouro de dominação. Como hipótese correlata, diria que a
inferiores àqueles fornecidos pelos batismos realizados pelos beneditinos. Boa intermediação política exercida pelas lideranças, os assim chamados tuxauas,
Vista tinha então 3.000 habitantes,e só na região de campos 10.509; dos quais foi um fator fundamental neste processo e mais, tal intermediação, ou a sua
1.000Migliazza considera índios integrados. Emsíntese, partesignificativa do recusa, afetou diretamente o próprio processo de formação de lideranças
crescimento demográfico neste meioséculo se deu com o estabelecimento das indígenas nasaldeias. Sãoestas asquestões aserem exploradas naspáginas que
fazendas na margem esquerdado rio Branco, no vale do Tacutue o aumento de seguem.
habitantes em Boa Vista. Em grande parte, a meu ver, isso se deve à mudança
Antes, porém, cabe mapearos outros agentessociais que passam a atuar a
dos índios das aldeias para as fazendas, garimpos e para a cidade, sendo que
partir dos anos dez, a saber, o Serviço de Proteção ao índio e a Ordem de São
saíram emigrantes emmaior número doquevieram imigrantes de outras regiões
Bento, cujosprojetos não rarodivergiram daquele da sociedade regional.
dopaísparao rioBranco. Assim sendo, pode-se constatar queo perfil crescente
da população não decorreu tão somente de movimentos migratórios, mas
sobretudo da inserção da população indígena na economia regional, seja Notas

enquanto vaqueiros, garimpeiros, sejaemfunções correlatas como carregadores


ou auxiliaresnaconstruçãode casas,nastarefasdo currale serviçosdomésticos, Acriação dasfazendas nacionais foiumainiciativa dogoverno dacapitania deSão
ou ainda, de forma marginal, como fornecedores de farinha e outros gêneros Josédo Rio Negro, na década de 80 do séculoXVIII. Nãohá, portanto, umacarta
agrícolas aos criadores, garimpeiros e comerciantes na cidade. regia que ordene seu estabelecimento, o que é atestado pelo fato de que a as
memórias brasileiras para a arbitragem de fronteiras com a Guiana Inglesa
Pode-seconcluir, portanto,queasrelaçõesinterétnicasseestabeleceramaqui (Question deLimites..., 1903)nãotraztaldocumento. Noentanto, a existência de
de forma bastante peculiar: enquanto em outras regiões do país, como nos trêsfazendas nacionais —SãoBento, SãoJosée São Marcos —,de propriedade
campos do Paranapanema (Nimuendaju, 1954:83/88), no sul de Mato-Grosso do Estado, foi assim reconhecida desde esse período. Seus limites serão evocados
(Oliveira, 1976:56), noMaranhão (Ribeiro, 1979:58), noPiauí(Mott, 1979:68), abaixo. Para um histórico detalhado das fazendas nacionais, veja-se Farage,
a expansão da pecuária se deu com a expulsão e/ou extinção da população 1986b.
indígena, no rio Branco os criadores tentaram ocupar os territórios indígenas Segundo Diniz(1972:38), a sorte teria sido a relação de trabalho predominante
buscando inicialmente a anuência dos índios. entre vaqueiros e fazendeiros atéa introdução dotrabalho assalariado pela firma
Isso não ocorreu por serem mais humanitários os criadores aqui do que J. G. de Araújona região. Estaempresa comercial, sediadaem Manaus, tornara-
alhures. A intimidação pela violência também foi largamente utilizada para se credora de Sebastião Diniz, personagem que evocarei adiante, e recebeu em
expulsar índios e abrir caminho para o gado, mas nem sempre tal método foi espólio diversas fazendas degadonorioBranco, passando aadministrá-las através
possível ouencorajador para oscriadores dispersos diante deinúmeras aldeias de capatazes e vaqueiros subordinados a um gerente em Boa Vista. Há registros
indígenas espalhadas à suavolta. Tampouco seria imprescindível para o acesso de trabalho assalariado nas fazendas JG de Araújo ainda em 1927 (Cândido
Mariano da Silva Rondo.n, 1927, 1:96).
dos fazendeiros à condição de proprietários da terra, na medida em que grande
parte das terras decampos eram formalmente, embora ilegitimamente, propri Areferência mais antiga à existência deuma povoação devaqueiros denominada
edades estatais, e, nesse sentido, quem poderia se contraporao direito de posse São Joaquim distinta do Forte é, com efeito, feita pelo cônego Francisco
Bernardino de Souza (1873) 1988:179. Há, noentanto, uma referência anterior,
dos fazendeiros seriam os interesses do próprio Estado.
de Lourenço da Silva Araújo eAmazonas ([1852] 1984:188) àmesma povoação,
Extermíniohouve, semdúvida:o etnógrafoTheodorKoch-Grünberg([1917] que não deixa clarosejasetrata de uma povoação civil, independente da guarnição
1928, I) registra etnias que, à época de sua passagem, encontravam-se em do Forte.
processo de extinção,como os Wayumará, os Sapará, os Purukoto. No entanto,
Quanto àlegislação sobre terras devolutas, áreas desegurança nafronteira eterras
avento a hipótese de que, muitas vezes, os fazendeiros preferiram investir no indígenas na República, veja-se M. Carneiro da Cunha, 1987.
clientelismo, estabelecendocom os índios relações de compadrio e de aliança,
através do casamento com, índias, e levando crianças indígenas para serem
De modo importante, aobra de B. Dias de Aguiar (1947), realizada sobre registros
tomados pela comissão demarcadora de limites de 1933-34, traz informações sobre
criadas nas fazendas.Estes laços, a meu ver, revelar-se-iamum meio muito mais o início do surto garimpeiro nos vales dos rios Cotingo e Maú.
AÇÃOINDIGENISTA
formação de lideranças e sedentarização

Delineada a fronteira com a Guiana Inglesa em 1904, o projeto oficial para a


região do rio Branco sofria uma inflexão radical: pode-se dizer que o próprio
conceito de fronteira deixava de ser uma questão militar para tornar-se, acima
de tudo, uma questão econômica. A ação indigenista deve ser lida neste contexto,
como, aliás, já apontou, com propriedade, Souza Lima (1985) em relação ao
estabelecimento eatuação doServiço deProteção aoíndio emâmbito nacional.
Neste capítulo, procurarei examinar mais detalhadamente o impacto da ação
indigenista no bojo da ocupação da porção central do território Macuxi,
enfatizando suas conseqüências para a organização social indígena.
A colonização sistemática do território tradicional Macuxi, como vimos no
capítulo anterior, ocorreu a partir das primeiras décadas do século XX. O início
da expansão pecuarista nos campos do rio Branco, em fins do século XIX,
atingia mais diretamente as bordas deste território ao sul e a leste, área
predominantemente habitada pelos Wapixana, onde se encontravam algumas
aldeias de população mesclada Macuxi-Wapixana. Foi somente nas primeiras
décadas deste século que os colonos civis começariam a se instalar em maior
número ao norte do vale do Tacutu, na região onde se concentravam as aldeias
Macuxi.
Podemos, portanto, estabelecer como balizas temporais desta discussão, de
um lado, a década de 1910, quando o avanço da economia pecuarista volta-se
para o extremo nordeste da região de campos e se estabelecem as agências de
contato, representadas pelo SPI e pela Missão Beneditina no rio Branco. De
outro lado,o ciclo se completa nasdécadas de 1940/50, com a consolidação da
ocupação pecuarista e o refluxo do surto do garimpo, que teve início nos anos
30 e promoveu a exploração econômica da região montanhosa, ainda não
atingida pelo gado, no extremo norte do território Macuxi. Além disso, outros
fatores, tais como a criação do Território Federal de Roraima, subordinado
40 Fronteiras da República
Ação Indigenista 41

administrativamente ao Governo Federal, em meados da década de 1940, a Vale notar, no entanto, que ahistória do SPI naárea do rio Branco, desde seu
extinção da Missão Beneditina em 1947, e a decadência do SPI — cujas início, vincula-se estreitamente à história da antiga Fazenda Nacional de São
atribuições, em grande parte, seriam assumidas pelo Governo territorial —, Marcos, aque aludi no capítulo anterior. Sob aesfera do Ministério da Fazenda
vieram encerrar esta etapa do processo colonizador. no século XIX, as fazendas nacionais, já no período republicano, passariam
sucessivamente pela administração do Ministério da Guerra e do Ministério da
O Serviço de Proteção aos índios Agricultura que, por sua vez, as designaria à Superintendência da Defesa da
Borracha e, em 1915, ao Serviço de Proteção aos índios, órgãos subordinados
OServiço de Proteção aos índios instala-se em Roraima no ano de 1915, àquele ministério2. As fazendas —embora este plural fosse apenas uma ficção
através da criação de um posto na Fazenda São Marcos. Tratava-se de um jána década de 10 —permaneceram sob agestão do SPI até aextinção deste
desdobramento da unidade administrativa representada pela IaInspetoria Regi órgão em 1969, quando aFazenda São Marcos, então devidamente caracteriza
onal, que abrangia ainda Amazonas, Acre, Pará e norte do Mato Grosso. A da enquanto área indígena, tornou-se atribuição da Fundação Nacional do índio
instalação de postos do SPI naregião do rio Branco, nesta data, parece dever- —FUNAI. Como veremos, discutir oprocesso deesbulho das terras daFazenda
se a dois motivos: emprimeiro lugar, taliniciativa articular-se-ia à esfera mais São Marcos, ocorrido naquele início deséculo, ésimultaneamente refletir sobre
global de ação do SPI que, enquanto órgão estatal, visava tanto aproteção formal a interrelação do SPI com os outros agentes sociais em causa, sobretudo os
às terras indígenas, quanto a disciplinarização da questão fundiária no país fazendeiros, interessados no acesso àquelas terras.
(Souza Lima, 1985; Oliveira F, 1986)1. Durante o Império, como vimos, a estratégia oficial adotada paragarantir o
Para a região do rio Branco, em particular, o debate para a arbitragem domínio da área limítrofe com a Guiana Inglesa foi preservar a propriedade
diplomática dafronteira Brasil/Guiana Inglesa trouxe à tona pesadas acusações estatal de grande parte das terras de campos naturais. No entanto, das três
quanto àescravização de índios na área, com aconivência do Governo Federal, fazendas — São Bento, São José e São Marcos— que pertenciamao Estado e
que foram largamente utilizadas pela Inglaterra, em favor de suas pretensões estiveram sob gestão do Ministério da Fazenda durante o período imperial,
territoriais. Tais acusações colocavam, portanto, o Governo brasileiro em apenas São Marcos e, ainda assim, em parte, não estaria sob a ocupação de
posição politicamente delicada frente àopinião pública nacional einternacional, particulares nos primeiros anos deste século. Consistindo em terras indígenas,
e exigiam resposta. e este é o ponto que aqui nos interessa de perto, a perda das fazendas nacionais
Passadas, aliás,maisde duas décadas do proferimento do laudo arbitraique para particulares agredia frontalmente os direitos daqueles povos, como, mais
definiu a fronteira, a migração deíndios paraa Guiana Inglesa, provocada pelas tarde, viria a reconhecer melancolicamente umfuncionário doSPI: "OGoverno
violências cometidas por fazendeiros brasileiros, ainda era uma preocupação da União estáameaçado deficar, dentro depouco tempo, semterra alguma em
para os estrategistas militares. Em 1927, o Estado-Maior do Exército alertava suas fazendas, principalmente nas deSão Bento e São José, para suas necessi
o comandante da Comissão de Inspeção de Fronteiras para o problema da dades futuras (...) Jamais houve a menor providência sobre a invasão dessas
mudança de índios para a margem guianense do rio Tacutu e,embora conside terras, das quais o maior prejudicado no esbulho éoíndio, que jánão sabe onde
rasse improvável uma ação militar inglesa naregião, chamava-lhe aatenção para sepossa localizar" (Bento Pereira de Lemos àDiretoria do SPI, 27/11/1917, ms.
aimportância das "fronteiras vivas", representadas pela população indígena, na Museu do índio).
eventualidade deuma disputa (Cândido Mariano Rondon, 7/06/1927, pp. 7-10). Tal esbulho, emlargamedida, encontrou respaldo jurídico emumainterpre
Em relatório de inspeção, o General Rondon alertava o Estado-Maior do tação espúria, por parte do Governo do Amazonas, do artigo 64 da Constituição
Exército sobre asconseqüências políticas danosas quepoderiam advirdosmaus republicana de 1891. Explico.
tratos infligidos aos índios pelasociedade regional naquela fronteira, e comen Em rápidas linhas, o artigo 64daConstituição de1891 delegava aosEstados
tava: "Quediferença entreos ingleses da Guiana e os brasileiros da Fronteira. legislação supletiva sobre as terras devolutas da União. Como bem coloca
Aqueles procuram chamar para o seuterritório todos osíndios da região; estes Manuela Carneiro da Cunha (1987:74ss.), a medida teve, na prática, efeitos
escorraçam seuspatrícios dassuaspróprias terras,obrigando-os aexpatriarem- funestos,uma vez que os governosestaduais,mais sensíveisàs pressõeslocais,
se!" (Rondon, 1927:69-70). freqüentemente consideraram devolutas terras indígenas a fimdesuaconcessão
42 Fronteiras da República Ação Indigenista 43

a particulares. Interpretação de má fé, obviamente, pois,como afirmaainda a pelo rio Branco, enviava ao diretor do SPI um ofício informando-o "do clima de
autora, terras indígenas nunca foram consideradas devolutas pela legislação violência, ameaças de morte aos funcionários do SPI, exploração dos índios e
brasileira. Isto se aplica exatamente à atuaçãodo Governo do Amazonas nas mudança de aldeias inteiras para a Guiana (. . .) com total impunidade dos
primeiras décadas da República: conforme a documentação disponível no fazendeiros perante asautoridades de Boa Vista" (Inspetor João Augusto Zany,
Instituto deTerras doAmazonas3, o Governo doEstado, noperíodo de1899 a dezembro de 1914, ms. Museu doíndio). A questão viria a seacirrar nosanos
1944, chegou a expedir cerca deduzentos e deztítulos definitivos. Estes títulos, seguintes, como o demonstram os relatórios de 1916,1917,1918 e 1919 (mss.
em sua grande maioria, incidiam sobre a região do médio e alto rio Branco, Museu do índio), onde constam insistentes apelos para que fossem tomadas
atingindo aindaseusafluentes Uraricoera, Amajari, Mucajaí, Cauamé, Tacutu, medidas jurídicas contra a grilagem das terras das fazendas nacionais: nesta
Cotingo e Maú, áreasdeincontestável ocupação indígena, emparticular Macuxi época, o administrador Alípio Vieira deFreitas e seu superior imediato, Bento
e Wapixana. PereiradeLemos, começaram a tomarprovidências cabíveis nosentido dereaver
Alémdisso, asáreasdefronteira, conforme o próprio artigo 64da Constitui o domínio de fato daquelas propriedades.
ção em quese amparava o Governo do Amazonas paradistribuí-las, continua Inicialmente foram erguidasas instalações da sede do SPI na fazenda São
vam afetas ao Governo Federal. Tratava-se, portanto, de uma ingerência Marcos, cujo administrador viriaaserofuncionário mais graduado doGoverno
indevida na esfera federal. Soma-se a istoo fato de que a política indigenista Federal naregião durante muitos anos. Emnovembro de1917, o inspetor Bento
oficial, quehaviasidodelegada aosestados em1889(Decr. nfl 7 de 20/11/1889, PereiradeLemos requisitava aonovoadministradordasfazendas nacionais uma
apudCarneiro daCunha, 1987:74ss.), voltou aoâmbito dogoverno central em listadosposseiros daquelas terras (Ofício nQ 264de27/11/1917, ms.Museu do
1906, quando da criação do Ministério da Agricultura (LeinB 1606 de 29/12/ índio). Emjunho do ano seguinte, o mesmo inspetor faria publicar no Diário
1906) e posteriormente, doServiço deProteção aos índios. Porestes motivos, Oficial do Amazonas um edital proibindo a permanência de gado particular na
cedoeclodiriam divergências entreosgovernos estadual e federal, representado área das fazendas nacionais, estratagema utilizado pelos posseiros para impor
localmente pelo Serviço de Proteção aos índios. Ocaso da FazendaSão Marcos, sua presença na área4.
que exploraremos a seguir,ilustraparticularmente bem esta questão. Foram ainda afixadas cópias deste edital na porta principal do prédio da
Na década de setenta do século XIX, as fazendas nacionais, então sob a intendênciado município,e, em seguida, tiradascertidõesde sua afixação, que
jurisdição do Ministério da Fazenda, foram arrendadas a Leopoldo Pereira foram enviadas ao Governador. Tal atitude provocou grande alarme entre os
Tavares e ao Comendador Antônio JoséGomes Bastos, pelo período de nove fazendeiros: o Conselho Municipal de Boa Vista reuniu-se então para protestar
anos . Em 1887, cessado o prazo de arrendamento, o Comendador Bastos juntoaoGoverno doAmazonas e aoMinistério daAgricultura (filme 032/0934
renovou seu contrato com o Governo Imperial. Um ano mais tarde, o mesmo — Museu do índio).
comendador, através de um contrato particular, tornou Sebastião José Diniz, Osprotestos, aoquetudoindica, surtiram efeito imediato: após alguns dias,
fazendeiro na província do Amazonas, cessionário de tal arrendamento. O um telegramada Diretoriado SPI ordenavaa BentoPereiraLemosa suspensão
Governo Imperial, no entanto, não aceitou aquela transferência de contrato, da retirada dos ocupantes das fazendas nacionais (Diretoria do SPI ao Inspetor
ordenando que, noprazodeumano, Sebastião Diniz retirasse seugadoe demais do Amazonas e Acre, 4/07/1918, telegrama no. 342, Museu do índio).
pertences dasterras depropriedade doEstado. Nãofoioqueocorreu: favorecido, A contrapartidadoGovernodoAmazonasigualmente nãotardaria, represen
certamente, pela instauração da República, Sebastião José Diniz viria a se tada pela concessão a particulares de cerca de quarenta títulos definitivos nos
estabelecerna porçãonorte da fazenda São Marcos, ocupação que, mais tarde, anosque se seguiram, até 1923,títulos que,em suamaioria, incidiam sobreas
fundamentaria a requisição de título definitivo, porparte de J. G. deAraújo & terras das fazendas nacionais.
Cia., firma comercial deManaus, credora doespólio deDiniz (Farage, 1986b). Os conflitos da agência oficial com os fazendeiros e as autoridadeslocais, no
Ao assumir a gestão da fazenda SãoMarcos em 1915,o SPIdeparar-se-ia com entanto, não se resumiam a uma disputa em torno da propriedade estatal das
este quadro de ocupação, complicado e dificilmente reversível. terras. Tais conflitos consistiam em questão mais abrangente, afeta a direitos
Já noano de1914, umfuncionário doMinistério daAgricultura, Indústria e territoriais indígenas, uma vez que, também nesta área, o governo estadual do
Comércio, ex-administrador das fazendas nacionais, em viagem de inspeção Amazonas tentaria imiscuir-se, motivado por interesses da população regional.
44 Fronteiras da República 45
Ação Indigenista

Avançando sobre um campo deatuação que alegislação federal atribuía aoSPI, Osfatores quecontribuíram paratalacomodação certamente transcendem o
ogoverno do Amazonas, em 1917, tomaria ainiciativade promulgaruma leique, âmbito regional. Apresença doSPIfoiredimensionada norio Branco apartir de
entre outras medidas, reservava uma área entre osrios Surumu e Cotingo para 1930, em meio às transformações estruturais ocorridas no Estado. Com a
os índios Macuxi e Jaricuna (Taurepang)5. desorganização administrativa que seseguiu à derrocada darepública velha, a
A referida lei, sob todos osângulos, afigurava-se um paradoxo jurídico: de atuação doSPIsofreu um lapso depelo menos um ano, quando foi demitido o
um lado, porque, como aludi acima, o governo estadual extrapolava de suas inspetor regional do Amazonas e Acre. Ao ser reconduzido ao cargo no ano
atribuições, extrapolação ainda mais claramente expressa noartigo 6\ onde alei seguinte, o inspetor relatava que, durante este período, havia sido movida uma
delegava aoGoverno da União a tarefa dedemarcar, no prazo de três anos, as campanha intensa no Amazonas pela desativação doServiço de Proteção aos
áreas que então reservava. Poroutro lado, e demodo mais grave, a leide1917, índios. Além disso, continuava o funcionário, a primeira medida do governo
ao reservar aos Macuxi e Taurepang umapequena faixadentrea realextensão provisório, no ano de 1931, concernente à inspetoria regional, havia sido a
de seus territórios, implicitamente liberava a área restante à ocupação de redução de sua verba a menos dametade daquela disponível para oano de1929
particulares: mais doqueregular a ocupação indígena, portanto, a leivoltava- (Relatório da Ia Inspetoria Regional à Diretoria do SPI, 1930-1931).
separa alegalização dasposses indevidamente estabelecidas atéaquele momen Este cortedrástico de recursos obrigou a Inspetoria a diminuir o número de
to, e as que se seguiriam. funcionários e a retrair suas atividades, situação que perdurou até os anos 60,
A demarcação da área, tal como imposta pela lei de 1917 foi, no entanto, quando seriaextinta aagência oficial, emmeio agraves denúncias dedesmandos
realizada pelo SPI em 1919. Poucos anos depois, a inspetoria regional viria a e corrupção. Uminforme relativo aorioBranco, enviado à Diretoria doSPI,já
queixar-se aoDiretor doSPIqueatémesmo aquela pequena faixa reservada em no ano de 1941, retratava esta situação de forma eloqüente:
1917 encontrava-se invadida "pelo pessoal deJ. G.deAraújo com a finalidade
Sr. Diretor:A inspeçãono rio Brancotem queser adiadaparamarçoou
de engordar cabeças de gado". Tornada, na prática, letra morta, a lei de 16 de abril. Conforme confessa o próprio encarregadosó se fez ali campeada
outubro de1917seriarevogada em1922, deixando, naopinião doinspetor, oSPI em 1934e agoraacabade me telegrafar haverfeitoa queeu ordenei. O
impotente para tomar qualquer atitude nadefesa daocupação indígena daquelas encarregado preocupa-se somente comosinteresses doJ. G.Araújo, do
terras (Relatório da lã Inspetoria Regional à Diretoria doSPI, 1924:13, Museu Homero Cruz e talvez de sua fazenda no Amajary, na mesma zona da
do índio). Fazenda São Marcos.Desde que saí do Rio tenho tudo isso a verificar
Vê-se, portanto, que nestes primeiros embates com o poder local, a atuação pessoalmente, o quenãofoi possível porque os recursos só vieram em
do SPI ficou muito aquém das prerrogativas que lhe eram conferidas por lei. Este novembro/dezembro, e aí foi impossível sair da sede... (Relatório da
quadro, vale notar, não se alteraria nos anos seguintes; ao contrário, com o InspetoriaRegional àDiretoria doSPI, 1940;doe. anexo, 26/02/1941).
passar dotempo, a ação doSPI tenderia a sercada vez mais inexpressiva. Mais teremos a falar adiante sobre o Serviço de Proteção aos índios no rio
Asdivergências relativas à política indigenista oficial, que opunham funci Branco. Por ora, examinemos a atuação da missão beneditina, outro agente
onários do Estado, elitelocal e missionários religiosos, certamente variaram ao indigenista que, naquele período, disputava com o SPI o mesmo espaço
longo da primeira metade do século, de acordo com os diferentes momentos institucional de mediação entre o Estado e a população indígena na área.
conjunturais. Emum primeiro momento, aprópriaforma deinserção dos agentes
indigenistas — religiosos, inclusive, como veremos adiante — no cenário local A Missão Beneditina
motivou a emergência de conflitos com os fazendeiros, que se manifestaram
pública e ostensivamente, em disputas acirradas em torno de questões como a Muitos sacerdotes católicos trabalharam no rio Branco desde o século XVIII.
posse da terra e utilização da mãode obra indígena. Até meados do século, a Missionários carmelitas acompanharam os militares portugueses no aldeamento
divergência entre os interesses de cada um destes segmentos perderia aênfase, dos índios; no decorrer do século XLX, carmelitas e jesuítas, atuando no rio
dando lugar auma acomodação tácita, dentro de um novo equilíbrio de forças, Negro, estendiamsuas viagens de desobrigaaté o rio Brancoe, por ocasião da
em que os conflitos passariam a ser tratados rotineiramente por vias disputade fronteirascom a Inglaterraforam enviadosmissionários para batizar
institucionalizadas.
os índios e atestar os limites de domínio do Estado. No entanto, dada a violência
46 Fronteiras da República Ação Indigenista 47

secular no recrutamento dos índios e a efemeridade da presença dos missioná nus e vadios, e que tem ainda no sangueos instinctos da natureza não
rios, é temerário falar de trabalho religioso strictosensu entre os índios no rio refreada por tradição ou por autoridade alguma. . . (Van Caloen,
Branco antes damissão beneditina. Em 1898, durante uma viagem pela região 1919:10).
para sondar a localização mais apropriada para o estabelecimento de uma
missão, o padre Libermann, que fora visitador apostólico das missões da
Ao postular o respeito à liberdade individual, van Caloen parecia não
alimentar maiores expectativas quanto à conversão dos adultos; o investimento
Congregação do Sagrado Coração de Maria nas Antilias eAmérica Meridional, catequético deveria, em sua opinião, voltar-se inteiramente para aconversão de
deparava-se com um legado pouco consistente de seusantecessores: os índios,
crianças. Isto, aliás, o expressa, de forma ainda mais incisiva, em outra
registra ele,"estavam mesmo mais preocupados emconjurar os maus espíritos
passagem de seu discurso: "Sigamos o exemplo da natureza nossa mãe, que
que louvar ao bom Deus" (Limbour, 1908:515).
nunca procede por saltos. Já é muito para esta geração, o passar d'um estado
As condições estruturais para o trabalho sistemático de catequese no rio quasi animal ao de um bom pae de familia..." (Van Caloen, 1919:10).
Branco surgiram coma separação entre Estado e Igreja noregime republicano:
Vê-se, portanto, que a premissa básica, emsua argumentação, eraa deque
com ofim doImpério, eaautonomia daorganização religiosa, aSanta Sépassou
a conversão seria obtida somente através do distanciamento gradativo do
ainvestir nareestruturação dacombalida Igreja Romana noBrasil pelos moldes
indivíduo desuacultura deorigem, cujaexistência oprelado negava, aoatribuir
do Concilio Vaticano I, incentivando a vindade religiosos, de novasordens, a
aosíndios umestado quasi animal, ouseja,um estado de natureza. Porém, não
abertura de congregações e de novas áreas de missão. Coube à Ordem de São
deixava de reconhecer a força desta"natureza", contra a qual haviaque lutar
Bento a área do rio Branco, então desmembrada da Diocese de Manaus e elevada
longamente: "Um dos maiores perigos d'uma civilização rápida e adiantada
à categoria de abadia nullius da Abadia de Nossa Senhora de Monserat do Rio
demais é o instinto selvagem aindanão bem dominado, que persiste apesar da
de Janeiro. Para os beneditinos, tratava-se de um grande desafio: monges
melhor educação, e produz essa inconstância tão freqüente entre os índios
formados nos claustros dos mosteiros, cultivavam uma tradição letrada e não
quando se lhes aperta demais a liberdade" (Van Caloen, 1919:10). Como
tinham experiência missionária entre osíndios. Deoraemdiante, teriam que pôr
exemplo, vanCaloen citava a parábola, aliás, bastante convincente, "daquelle
à provaa própria ordemem contraste comoutrasmaismodernas e organizadas
com vistas ao trabalho missionário6.
jovem índio, manso eintelligente", que D.Antônio Macedo Costa teria enviado
a ordenar-se em Roma:
A falta de experiência da Ordem de São Bento em catequese indígena, no
entanto, teria sua contrapartida na crítica dos beneditinos aos métodos utilizados O moço seguiucom brilho todo o curso, voltou de Roma sacerdote e
nos aldeamentos indígenas anteriormente empreendidos por outras ordens doutor. Mas apenasvoltou para sua terra natal, ao respiraro ar de suas
florestas, ao sentir-se tão perto dos seus, selvagens, sim, mas
religiosas. As linhas mestras de tal crítica foram colocadas no discurso de Dom
consanguineos, sentiu em si um tal impulso, uma tal paixão pela
Gerardo van Caloen, bispo e prelado da missão beneditina no rio Branco, em liberdade, comprimida durante toda a mocidade passada em terra
conferência realizada no Centro Católico do Rio de Janeiro no ano de 1919. estrangeira, que não poude resistir. Largou a civilização, a ciência, a
Nesta ocasião, procurando convencer os assistentes e as autoridades governa convivência com homens de escol, jogou fora a batina e correu á seus
mentais a destinarem recursos para a longínqua missão, da qual era o mentor congêneres paranunca maisreapparecer! Diza tradição que, ao despir
intelectual, o prelado, em seu favor, afirmava que : a batina, elle dissera a phrase latina: Quodnatura dat nemo negare
potest. (Van Caloen, 1919:11).
... o segredo para o sucesso da catequese é o respeito à liberdade
individual de cada um dos índios. Nada de constrangimentos, nada do Paraevitarquealgoparecido sucedesse aosmeninos, objeto dacatequese dos
que se assemelha à escravidão (. . .) Há um segundo systema de beneditinos no rio Branco,os monges,segundoo prelado, tiveram "o cuidadode
aldeamento melhor ainda que o primeiro e mais efficaz porque está abrir de vez em quando uma das válvulas apropriadas; a caça, a pesca e uma
baseado emraízes mais profundas: é o systema de educação completa
excursão anual de um mes ás matas, ás aldeias, e malocas para rever os seus
de meninos e de meninas índios, em internatos agrícolas, educação
coroada pelo matrimônio christão e afundação deum larcivilizado (. (. . .) Assim, satisfeita a saudade, não há perigo de fuga. . ." (Van Caloen,
..)Isto basta para aprimeirageração de meninos, apanhados nas mattas, 1919:12).
48 Fronteiras da República Ação Indigenista 49

Frise-se assim que a atuação missionária da Ordem de São Bento pautou-se vamos, e porondeo bispoeo capitãoquerem arrastaro índio! (A Gazeta
pela ênfase na educação enquanto chave para a conversão dos índios no rio de Notícias, 9/0411919).
Branco. Sobre este eixo, como veremos, articular-se-iam grande parte dos
conflitos havidos com os outros agentes sociais em questão. Mas, retomemos nossa questão. Em 1909, chegaram a Boa Vista quatro
Os contornos de tal polêmica, no entanto, jáevidenciar-se-iam desde aquela monges e dois irmãos conversos, para instalação da missão. Desde a chegada,
data, uma vez que van Caloen, em favor de sua proposta, criticava não só o os missionários beneditinos acalentaram o projeto de um educandário para
missionamento religioso tradicional, mas também, o indigenismo leigo do crianças indígenas. Aoportunidade para acriação do educandário surgiria jáno
Estado: "(• ••) Foi inútil, meus senhores, oesforço feito pela Maçonaria para primeiro contato coraos índios, quando o então administrador da FazendaSão
roubar áEgreja Catholica seu secular monopólio das Missões de Catechese (.. Marcos, José Franco Neves, convidou os monges para uma visita à aldeia do
.) Não se conseguiu arrancar ás mãos dos apóstolos abandeira da Cruz que salva tiLxaua Ildefonso—de quem trataremos, com maior detalhe, adiante —,situada
omundo. Não foram os maçons, que ouviram as palavras de Christo: Ide, ensinae nas proximidades dasede dafazenda. Neves teria previamente avisado Ildefonso
á todos os povos" (Van Caloen, 1919:14-15). Tais colocações provocaram sobre avisita dos missionários, que por sua vez, avisou as aldeias da redondeza,
reação imediata, por parte dos funcionários do Serviço de Proteção aos índios quecompareceram nodia marcado para conhecer os monges barbados, condi
e do círculo positivista nacional: no mesmo dia da conferência do beneditino, ção que os tornaria conhecidos entre os índios.
Horta Barbosa, então diretor do SPI, tomou adefesa de sua repartição, em carta Segundo o relato de Dom Achario, um dos visitantes, os missionários, a
enviada ao jornal A Notícia, que publicava a fala de van Caloen. Refutando as caminho da aldeia, temiam "as orgias e os horrores destas festas indígenas..."
opiniões do prelado, o diretordo SPI brandia as inúmeras atividades desenvol (Demuynck, 1909,111:171-172).
vidas pelo órgão, inclusive na Fazenda Nacional de São Marcos, onde se Ao contrário da expectativa dos monges, os maiores problemas a serem
empregavam índios como vaqueiros, trabalhadores rurais e carreiros, "na enfrentados pela missão beneditina não partiriam dos índiospagam, mas antes,
própria região do rio Branco,onde o illustre missionáriobeneditino tão devota- por um lado, dos regionais, cujos costumes religiosos não seenquadrariam sem
mente sepropõe aarrombar uma porta aberta" (A Notícia, 4/04/1919). De modo resistências na ortodoxia católica pós-conciliar, e,por outro lado, dos agentes do
mais contundente, manifestar-se-ia o capitão Alípio Bandeira, funcionário do SPI, que lutariam pela exclusividade dos recursos públicos destinados à
SPI e ex-administrador da Fazenda São Marcos, acusando os beneditinos de assistência aos índios.
exploração da mão de obra indígena, sob o pretexto de educar e evangelizar: " Poucos meses após sua chegada ao rio Branco, os missionários já se veriam
(...)Tem índios na sua fazenda como qualquer outro fazendeiro, ásoldada, com envolvidos num conflito com aelite política local que teria graves conseqüências
esta diferença — que os outros pagam com dinheiro, ao passo que os para o futuro imediato da missão, bem como desdobramentos no cenário
benedictinos pagam com roupa (. . .)" (A Gazeta de Notícias, 13/04/1919). nacional. Segundo a crônica da missão, nos primeiros dias em Boa Vista, os
Voltaremos a este ponto adiante. missionários se sentiam acolhidos com certa simpatia por parte da população,
Aconferência do bispo, vale notar, atingiu, além das instituições menciona apesar de não ter havido qualquer manifestação exterior ou pública nesse
das, as consciências eruditas da capital da república. Posicionando-se frente à sentido. As primeiras dificuldades surgiram com algumas resistências àprática
polêmica, Humberto de Campos, folclorista, presença freqüente na imprensa da da confissão, mas os monges as atribuíam auma certa apatia das "consciências
época, viria a ponderar com surpreendente lucidez: relachadas", algo muito natural na terra da "aventura edo dinheiro", oque não
Ante esses depoimentos sobre acatechese leiga e religiosa do índio, que se mudava sua determinação em conduzir a população à observação das "leis da
deve pensar, afinal, desse serviço? Apalavra do padre diante da Cruz ésagrada; igreja eda piedade cristã". Os problemas mais sérios começaram asurgir com
ado militar, emithida sobre oaço da espada érespeitável, que fazer pois? as autoridades civis de Boa Vista, mais precisamente com Bento Brasil, cuja
família era detentora dos maiores latifúndios da região do rio Branco e, de modo
Aresposta é,no entanto, simples: é não dar dinheiro a nenhum deles, mais importante, da hegemonia política na Vila. Com efeito, Bento Brasil, que
edeixar oíndio na sua floresta, na sua tribu, na sua maloca... Ocaminho
do inferno não é pela selva, no Amazonas. É por aqui, por onde nos já havia doado uma fazenda à paróquia de N. S. do Carmo, a única em toda a
região, ehavia sido oadministrador dos bens da Igreja —cujo sacerdote, opadre
Furtado, era freqüentador assíduo de sua casa7—, não admitiria passivamente
Fronteiras da República Ação Indigenista 51
50

a idéia de uma Igreja subordinada direta e somente a Roma, gerida a partir de —ainda todavia se encontram, apesar das orações e canções sagradas,
interesses próprios, que eventualmente não coincidissem com os seus particula nomais profundo paganismo e repetem tudo sem pensar emnada. Mas
por isso estariam eles moralmente abaixo da maioria de nós?
res.
Uma violenta disputa pelo poder caracterizou a paisagem política do rio Senão seencontrasse aqui nointerior primitivo deum país, seamissão
Branco por várias décadas: desde amorte de Sebastião Diniz8, olíder político pudesse trabalhar com grandes recursos e instalar escolas, se poderia
incontestável no rio Branco na virada do século (JJmbour, 1898:464), dois fazer uma obra duradoura que tivesse realmente valor. Mas aqui onde
grupos de fazendeiros, um deles encabeçado por Bento Brasil, disputavam a o branco crêque estácivilizado quando dáaosíndios uns farrapos e o
hegemonia do poder na área. Na medida em que os missionários iam estabele ensina a beber pinga ea maldizer, osexplora demaneira irresponsável
embenefício dopróprio pecúlio, nessedesgraçado rincão doAmazonas
cendo relações com seu novo rebanho no rio Branco, eles se aproximaram de em geral e do rio Branco em particular, todo esforço cultural sincero
pessoas rivais e/ou hostis ao então deputado Bento Brasil, o que tornou sua restará fragmentário e como fenômeno passageiro. Para que tanto
presença uma interferência perturbadora na correlação de forças locais e desgaste e esforço? (Koch-Grünberg, 1979,1:48).
potencialmente um risco para a hegemonia do deputado e seu grupo, que se
aglutinava em torno da formação da loja maçônica "Paz e Progresso do Rio Talimpulso, no entanto, foi decurta duração, uma vez que osmissionários,
Branco". A perseguição política então desencadeada por Bento Brasil aos logo em1912, seriam forçados a abandonar amissão doSurumu, pormotivo de
missionários norioBranco suscitou veementes protestos porparte dapopulação doença. Dos quatro monges edois irmãos leigos chegados para fundar amissão,
católica nas capitais brasileiras, em especial no Rio de Janeiro, o que, em dois morreriam a caminho de Belém, comfebre amarela, e um terceiro, Dom
contrapartida, lhes conferiu algum respaldo político para permanecer na área Adalberto Kaufmehl—que iniciara atradução detrechos dos textos evangélicos
(Kaufmehl, 1910:203-209). para utilizar nas aulas de catecismo —, foi obrigado a retirar-se pelo mesmo
Com ahostilização do grupo dominante em Boa Vista, porém, os missioná motivo. Reduzidos em número, os missionários decidiram mudar para Serra
rios se viram forçados a abandonar a vila, de onde partiram, indo encontrar Grande, um lugar a algumas horas de viagem ao sul de Boa Vista, namargem
refúgio na fazenda "Capela", de propriedade do coronel PauloSaldanha, um dos oposta dorio Branco, deonde partiriam para realizarviagens dedesobriga pelas
destacados opositores do grupo maçom. Daí seguiram para ovale do Surumu, fazendas e aldeias mais próximas. Ostrês missionários permaneceram realizan
ao norte da vila, na região montanhosa ainda ocupada exclusivamente pelos do este trabalho até 1915, quando, por problemas internos à Ordem, voltariam
índios, para estabelecerem asede de uma missão de catequese. Com aajuda dos ao Mosteiro-mãe no Rio de Janeiro.
índios, os missionários construíram três barracões às margens do alto Surumu Em 1921, com aascensão domonge Dom Pedro Eggerath para a direção da
e deram início ao trabalho de evangelização, ou em suas palavras, Abadia beneditina no Rio de Janeiro, foram enviados outros missionários para
"cristianização metódica", que consistia basicamente na celebração dos ritos o rio Branco, abrindo-se uma nova fase da missão. Desta vez, havendo já
litúrgicos nas aldeias, ena fundação de uma escola, onde passariam aministrar superado oclima hostil navila, epodendo contarcom opatrocínio donovo abade
aulas, jános primeiros meses de 1910, de rudimentos de alfabetização, carpin- e mais recursos, os monges instalaram-se em Boa Vista e voltaram-se para
tariae jardinagem paracrianças indígenas. projetosmais ambiciosos,comoa aberturade umaestradacontornandoo trecho
A missão do Surumu parecia atingir uma etapa florescente quando foi encachoeirado do rio Branco, de Boa Vista a Caracaraí, e ainda a aberturade
visitada pelo etnólogo Koch-Grünberg no ano seguinte de sua fundação, cujas uma empresa agro-industrial. Fundaram então em Boa Vista um "patronato"
impressões sobre otrabalho dos beneditinos erambastantefavoráveis, apesardo para meninos e meninas indígenas, que funcionou em regime de internato até
isolamento:
1945, poronde passariam centenas decrianças provenientes dediversas aldeias.
Ocontato com as aldeias nesta nova fase da missão ficaria porconta dos monges
Pode-se opinar sobre asmissões como quiser—falo aqui desde oponto encarregados das viagens de desobriga, e entre eles, cabe destacar a figura de
devista puramente humano—Esta missão tem uma grande vantagem
pois protege ospobres índios dos abusos dos brancos e evita ainda que Dom Alcuino Meyer, cuja atuação foi amais abrangente eduradoura, especial
mente nas aldeias Macuxi, como veremos adiante.
por pouco tempo que eles se transformem em bêbados degenerados
afetados pelas doenças dacivilização. —Desde o ponto devista cristão
52 Fronteiras da República Ação Indigenista 53

0 espaço conquistado na Vila deBoa Vista, no entanto, não dirimiria todos acompanhado por índios de uma aldeia a outra. Levava consigo apenas uma
os problemas dos beneditinos no cenário local. Os administradores da Fazenda mula para carregar seus instrumentos indispensáveis, um altar portátil, uma
São Marcos—que haviam sido seus aliados noconflito com asautoridades civis batina, e os livros de registro. O roteiro de cada viagem era elaborado pelo
durante a primeira fase da missão, e que haviam lhes prestado bons serviços, próprio missionário que aproveitava os meses de seca (novembro amaio) para
intermediando os primeiros contatos com os índios — se voltariam contra os percorrer omaior número possível de aldeias efazendas eatingir oslugares mais
religiosos a partir da instalação do SPI em 1916, contestando todas asconces distantes. Assim, por exemplo, nas suas viagens no ano de1942, pelos vales dos
sões de verbas públicas destinadas à catequese (Relatórios da Ia Inspetoria rios Tacutu, Cotingo, Maú eSurumu, Dom Alcuino visitou, no período de14de
Regional àDiretoria do SPI, 1924-1943). No entendimento dos agentes do SPI, janeiro a5 de maio, quarenta ecinco aldeias ecinqüenta esete fazendas, retiros
tais recursos eramconcedidos aosreligiosos emdetrimento doserviço oficial, a egarimpos. Osaldo do serviço religioso que ele fornece é oseguinte: setenta e
quem caberia prestar assistência leiga aos índios, sem interferir em suas crenças cinco missas celebradas, noventa práticas com pregações, quarenta e cinco
tradicionais, conforme os princípios republicanos. Assim, à medida queiamse catequeses, vinte e cinco batismos, cento e trinta crismados, trinta e quatro
tornandomais nítidas as esferas administrativas na República, a concorrência casamentos, trinta etrês confissões etrinta ecinco comunhões (Alcuino Meyer
entre as duas agências de contato, a missão beneditina e o SPI, parecia se 1942, ms.).
manifestarde forma mais evidente em disputas localizadas. Por sugestão de Dom Mauro Wirth, seu irmão de Ordem, que havia estudado
Desse modo, por exemplo, logo após a fundação, pelos beneditinos, do literatura na Universidade de Viena echegara namissão em 1936, Dom Alcuino
"patronato" para as crianças indígenas, os funcionários do SPI acordaram para passou acoletar contos míticos, que lhe eram narrados por seus acompanhantes
a necessidade de criarem uma escola com a mesma finalidade na Fazenda São Macuxi nas pausas para descanso durante as viagens echegou acolecionar cento
Marcos, ou,reversamente, emseguida àcriação doSanatório "General Rondon" e cinqüenta desses relatos. Seu interesse explícito nessa coleta "era puramente
pelo SPI em 1921, os missionários abriram um hospital em Boa Vista. Com a lingüístico enada literário (...) Precisava conhecermelhoralíngua macuxi, para
instalação doSPI no rio Branco, criava-se assim um novo pólo deinteresses em poder catequisar os índios emseupróprio idioma, tornando minha missão mais
relação à população indígena, fator que contribuiu para que ocorresse uma profícua" (Alcuino Meyer, s/d., ms.). Embora tenha, conseguido assim um
"mudança deênfase naatuação damissão beneditina: a atenção dos religiosos a grande avanço em sua capacidade de doutrinação, ométodo de catequese parece
partir daquele momento estaria mais voltada para a sociedade regional, onde o terpermanecido o mesmo desde a fundação damissão, consistindo basicamente
campo de trabalho lhes seria mais favorável do que no período anterior. Este será na celebração dos ritos canônicos, sem maiores elaborações que levassem em
o tema de nossa próxima seção. consideração tal avanço. Pode-se observar pelo relatório de viagem acima
Poroutro lado, a permanência da missão durante um período consecutivo mencionado, que a mensuração das atividades religiosas era dada mais pelo
mais longo, até 1947, permitiu que houvesse um avanço no trabalho de número de ritos celebrados do que por uma possível significação pretendida.
catequese, e, no que diz respeito aos Macuxi, pela primeira vez um monge Neste sentido, o próprio Dom Alcuino definiria o seu trabalho como
lograria alcançar o domínio da língua com condições de fazer doutrinação no catequese primitiva. Emoutras palavras, o monge nãobuscava obter conver
código nativo. Este monge foi Dom Alcuino Meyer, que desde sua chegada no sões baseadas em profundas convicções doutrinárias — o que talvez só
rio Brancoem 1926,ficou incumbidodas viagensde desobrigae catequesedos esperasse dascrianças indígenas, depois dealguns anos naescola emBoaVJsta
índios. Ainda hoje osíndios mais idosos referem-se aelecomo o"padre macuxi", —, mas antes, devido àscondições em que realizava o seu trabalho, o domínio
distinção que denota uma intimidade de convívio que os demais sacerdotes não dalíngua lheserviasobretudopara incitarosíndios aos costumes cristãos deuma
parecem ter alcançado. forma mutuamente inteligível, como esperava Dom Achario nos primeiros
Dada a vastidão do território sob sua responsabilidade, Dom Alcuino tempos da missão.
passaria a maior parte de seus vinte anos de missão emviagens pelas aldeias e Além disso, o domínio da língua lhe serviria igualmente para formar uma
fazendas, onde permanecia o tempo necessário para a celebração dos ritos noção mais exata dos limites de seu próprio trabalho, cujo nível rudimentar de
litúrgicos, oque variava dealgumas horas até três aquatro dias, dependendo dos doutrinação seria reconhecido por Dom Alcuino na Introdução de sua coletânea
serviços requeridos. O monge fazia asviagens a pé, e circunstancialmente era
Ação Indigenista 55

de mitos, quando menciona as dificuldades com que se deparava para elaborar


uma mensagem evangelizadora, a partir da narrativa mítica:
nascimento, vida, morte, ressurreição, toda e qualquer mudança de
estado e situação, tudo é variável, tudo é possível... Predominam aí a
imaginação fértil, viva, destituída de lógica e bom senso. Tudo parece
natural e nada é impossível. Os milagres narrados na Santa Escritura
parecem prodígios insignificantes comparados com astransformações
contadas nas lendas indígenas.

Tal constatação, feita por Dom Alcuino após a saída definitiva dps
beneditinos do rio Branco, nos reenvia ao método postulado por Dom Gerardo
Van Caloen, em sua conferência de 1919: o trabalho de catequese bem sucedido
tinha como premissa o distanciamento dos indivíduos de sua cultura de origem.
A catequese mais avançada seria, portanto, aquela dos meninos criados no
padroado, que deveria culminar com um matrimônio cristão.
fc / .StJLiAsl r///lt/>-1 - J*

Dança Macuxi
Arquivo dos Beneditinos
Os Filhos da Nação

A despeito das divergências no plano discursivo, a atuação da missão


beneditina e do SPI possuíam o objetivo comum de gerar e exercer influência
sobre a população indígena. Enquanto o papel do SPI era primordialmente
sobrepor as fronteiras nacionais às fronteiras étnicas, fazendo dos índios
"trabalhadores nacionais", a missão dos religiosos era alargar as fronteiras do
catolicismo até as fronteiras nacionais, convertendo os índios em famílias
cristãs. De modo importante, um ponto de convergência se destaca na atuação
de ambas as agências de contato, que éo fato de haverem eleito a educação de
criançasindígenas como seu alvo prioritário.
Por este motivo, o domínio da língua portuguesa, por parte dos índios,
proporcionado pela educação escolar, adquiria alto valor para oprojeto indige
nista, enquanto instrumento, nas palavras de um funcionário do SPI, de
"nacionalizar efetivamente as nossas fronteiras abandonadas" (Relatório da l3
Inspetoria Regional à Diretoria do SPI —1940. Museu do índio). Outra coisa
não disse o prelado da missão beneditina, enaltecendo sua obra entreos índios
do rio Branco: "Já falam portuguez; não éalinguagem de Camões, não, mas é
portuguez... Sim, são brasileiros esão católicos" (Van Caloen, 1919:9). Assim,
ambas as agências de contato reivindicariam a si a legitimidade exclusiva de
engenheiros sociais, construtores da nação, encontrando na civilização das
crianças indígenas o terreno fértil à implantação dos respectivos projetos.
Missa campal
Arquivo dos Beneditinos
Ação Indigenista 57
Fronteiras da República
56

tornaram-se disseminados, borrando e, ao mesmo tempo, recriando os contornos


Neste quadro viria ainda aintervir a população regional, através da prática desta sociedade.
bastante difundida de adoção daquelas crianças. Fato corriqueiro dentre as
Neste quadro, ocompadrio, segundo Rivière (1972), viriaacumprir afunção
famílias devaqueiros efazendeiros pioneiras, que seestabeleceram nos campos
de aproximar socialmente indivíduos sem ligações genealógicas, através do
do rio Branco, foi a adoção de crianças, vindas, no mais das vezes, das aldeias
estabelecimento de um parentesco ritual.Efêmeraou duradoura, tal aproxima
próximas de onde situaram suas posses. Menção constante dos cronistas da ção mantém-se pela circunstância das afinidades pessoais e, sobretudo, das
região neste período, aadoção de crianças indígenas jáfoi exaltada como "obra lealdades políticas. Obatismo deumfilho, era,portanto, aocasião mais propícia
civilizatória e abnegada" por parte dos fazendeiros e garimpeiros; denunciada
paraum pai ampliar o leque de suasrelações sociais, ao escolher padrinhos e,
como "exploração brutal" por funcionários do SPI e missionários católicos; e
conseqüentemente, compadres.
descrita pelos etnógrafos da área seja como uma relação de "servidão" (Diniz,
1972:123), seja de perfilhamento em seu sentido mais amplo (Rivière, 1972:30- O termo compadre conota, neste contexto, uma relação de intimidade, e
ainda, alguma permissividade, que variava, conforme o status respectivo dos
31).
compadres, de uma condição igualitária a uma distância que impunha o
Com efeito, aexploração da mão de obra de crianças indígenas, na condição
reconhecimento da hierarquia. Neste último extremo, segundo Rivière
defilhos adotivos, emtrabalhos domésticos eserviços correlatos àpecuária, por
(1972:30ss.), se situavamas relações entre"civilizados"e "caboclos". Dentre
parte de fazendeiros, foi enfatizada por Rivière (1972) e Diniz (1972), que suasexpectativas recíprocas, deve-se frisar, dapartedosíndios,o fatode poder
pesquisaram em Roraima na década de sessenta. Ambos os autores referem-se
contar, em caso de pendências — e a mais comum consistia, e consiste, na
àadoção como um mecanismo de mobilidade etno-social, pelo qual uma criança
invasão das roçasdos índios pelo gado de fazendeiros—, com a interferênciade
índia, freqüentemente de sexo masculino, criada em intimidade com os misteres
um compadre influente no cenário local ou regional; e da parte dos fazendeiros,
da pecuária, podia assumir plenamente o status de "civilizado", desde que
a possibilidadede requisitarmão de obrasem remuneração,uma vez se tratando
apagasse as marcas de origem. Uma palavra, ainda que rápida, sobre aestrutura
de solicitação de um compadre.
da sociedade regional, faz-se necessária para acompreensão das condições para
a existência desta mobilidade etno-social.
No entanto, a adoção de crianças indígenas, muito embora articulada à
instituição do apadrinhamento, ganha, a certa altura, alguma autonomia, em
Como bem apontou Rivière (1972), nessa sociedade, voltada exclusivamente
presença de um outro fator complicador, a tutela orfanológica. Instituição de
vpara apecuária eregrada apartir de tais normas, duas categorias sociais básicas âmbito nacional, a tutela orfanológica, no período de 1916 a 1928, colocou o
se distinguiam: de um lado, os "civilizados", isto é, os colonos recém-chegados, destino de crianças indígenas em mãos dos juizes de órfãos. Tal atribuição foi
ede outro, os "caboclos", designação pejorativa atribuída àpopulação indígena.
responsávelpor um autênticotráficode braçoscativospara o serviçodoméstico
Sobre esta distinção fundamental de seus contornos externos, a economia
em muitas regiões do país, e o rio Branco não escapou à regra.
pecuária reproduziria uma outra diferenciação interna de posições
hierarquizadas: ade fazendeiro, categoria que denota acondição de proprietário O poder tutelardosjuizes de órfãossobrecriançasindígenascessaem 1928.
do gado, e ade vaqueiro, que zelava pelo gado possuído por terceiros. Porém, A alocação destas mesmas crianças para o trabalho doméstico, no entanto,
não setratavam decategorias estanques: oregime bastante difundido da"sorte" persiste no rio Branco, por largo tempo, enquanto prática arraigadadas famílias
abastadas do local. Como se vê do seguinte protesto, enviado pelo inspetor do
ou "quarta", pelo qual um vaqueiro teria direito sobre uma de quatro crias do
rebanho sobseuscuidados, facultava-lhe oacesso àcondição defazendeiro. Esta SPI ao juiz de menoresem Boa Vista, datadode 1956:"... a menor Maria Luiza
possibilidade, portanto, nuançava a distância hierárquica entre ambas as da Silva é índia aldêiada, órfã de pai e mãi, residente na Maloca do Contão, no
posições.Tal trajetória era igualmente possívelpara apopulação indígena, desde rio Surumu (...) ã niesma foi mandada para esta cidade pelo Missionário
protestante Sm. Haroldo Burns, em 6 de Julho deste ano, para servir na
que, repito, não persistissem nesta distinção étnica.
residência da família do Sm. Abílio Matos Moura, sem permissão desta
Além da sorte, vicejaram, com a expansão dos criatórios pelos campos,
Ajudância. Pelo exposto, está evidenciado que a menor Maria não conhece a
outras instituições e relações sociais impostas pela situação de isolamento das
cidade e nem tão pouco o seu algoz" (Ofício do Inspetor Chefe da Ajudância de
unidades domésticas, que caracterizava a área. Dentre elas, o compadrio, a
adoção de crianças indígenas por "civilizados", o casamento com índias,
18 Fronteiras da República Ação Indigenista 59

São Marcos,Alfredo José da Silva, ao Sr. Juiz de Direito, de Menores, Órfãos conferência do bispo Van Caloen no Círculo Católico do Rio de Janeiro, o
e Ausentes Maxilimiano da Trindade Filho, 19/10/56, ms. Museu do índio). prelado se valia da escola indígena, como argumento para requerer recursos
A exploração da mão de obra indígena pelos fazendeiros, através do oficiais em favor da missão no rio Branco, o SPI, como vimos, reagiu de
estabelecimento de relações clientelísticas, suscitou denúncias e ácidas críticas imediato, abrindo uma polêmica na imprensa da capital. Localmente, a resposta
por parte das agências de contato: em 1922,justificando a transferência da sede do SPI viria a efetivar-secom a criação da Escola AgrícolaIndígenaTheophilo
do SPI, da fazenda São Marcos, para Boa Vista, o inspetor argumentava ser Leal, na Fazenda São Marcos, naquele mesmo ano de 1919, para alfabetizar e
"melhor dilatar a esfera de açãodeste serviço por toda a zona daquele municipio, formar seleiros, ferreiros e carpinteiros "foi criada em regime de internato e
onde os índios eram alvo permanente de perseguições promovidas por fazendei começou a funcionarcom crianças indígenastomadaspela Inspetoriadas mãos
ros inescrupulosos que os escravizavam a seu serviço sem compensar-lhes a de civilizados que as exploravam. Em 1920 havia trinta e uma crianças, entre
atividade" (Relatório da P Inspetoria Regional à Diretoria do SPI, 1927. ms. elas osfilhos dos índios que viviam nas imediações da fazenda e aítrabalhavam
Museu do índio). Um tanto mais tímida, a oposição dos beneditinos igualmente como peões, carregadores, remadores..." (Relatório da l3 Inspetoria Regional
se fez ouvir, nas cartas que Dom Alcuino Meyer enviava à casa-mãe. à Diretoria do SPI, 1919. Museu do índio).
Não esqueçamos, porém, que se tratava de uma querela no campo do No ano de 1924, o SPI criaria mais quatro escolas, mas note-se, junto a
clientelismo, em que as agências de contato disputariam com a elite local, e aldeias Macuxi e Wapixana, pois, justificava o inspetor, "muito necessária se
sobretudo, entre si, pelo controle da formação desta mão de obra. torna a criação de escolas primárias nas zonas habitadas pelos silvicolas que se
Os beneditinos vieram a criar um internato para meninos índios em 1909, que vão adaptando aos costumes da civilização... para torná-los úteis ao engrande-
funcionou até cerca de 1912 na missão religiosa do Surumu, havendo sido cimento da Pátria e ao bem da família" (Relatório da Ia Inspetoria Regional à
transferida, junto à sede da missão, para a Serra Grande, ao sul de Boa Vista, Diretoria do SPI, 1927. ms. Museu do índio). A inovação representada pela
entre 1913 e 1915, quando foi localizada em Boa Vista, onde permaneceu até criação de escolas nas aldeias, para o SPI, prestava-se a legitimar um modelo
1947, ano em que os beneditinos se retiraram do rio Branco. Neste patronato, indigenista próprio, em contraste àquele adotado pelos religiosos: "Basta
os missionários ministravam aulas de primeiras letras, carpintaria, marcenaria, verificar-se o formidável dispendio que tem o Governo com as missões religio
lavoura e pecuária a crianças que recrutavam nas aldeias. sas, onde os internatos apesar das subvenções são mantidos pelos trabalhos dos
Não é possível precisar o número de meninos que passaram pelo internato internados arrancados na maior parte dos casos violentamente de suas famílias
nestes anos; os relatórios da missão fazem vaga menção a uma cifra em torno de c separados para longe, porque os colégios mantidos por essas missões não se
dez a quinze alunos por ano. A falta de informação detalhada sobre o tempo de acham localizados no habitat dos selvagens" (Relatório da l3 Inspetoria Regio
permanência de cada aluno no internatocomprometea tentativa de se chegar a nal àDiretoria do SPI, 1940. ms. Museu do índio). Neste projeto, oSPI pretendia
uma estimativa mais segura. Porém, Dom Pedro Eggerath, prelado da missão do formar ura corpo de "funcionários intérpretes", recrutados entre os seus alunos
rio Branco, não teria razões para subestimar tal cifra quando, em 1923, ao índios, que viessem a mediar suas relações com os grupos indígenas. Vale notar,
solicitar uma subvenção ao Congresso Nacional, mencionava haverem passado de passagem, que tal modelo seria, anos depois, incorporado enquanto modelo
cem meninos índios na "escola profissional-agrícola" mantida pelos beneditinos oficial para a educação indígena.
no rio Branco. Naquele mesmo ano de 1924 o SPI criou ainda o Sanatório General Rondon
A partir de 1922, com o incremento de recursos e a chegada de novos em Boa Vista, que não chegou a funcionar efetivamente e que, mais tarde, seria
missionários, amplia-se o raio da missão. Neste período, as irmãs beneditinas objeto de uma tentativa de instalação de mais uma escola, desta vez para meninas
viriam a fundar um internato feminino, e não me parece, portanto, desproposi índias, claramente para fazer frente à ampliação da escola beneditina: "A
tado aventar que tenham passado cerca de duas centenas de alunos pela escola inspectoria tem como resolvido transformar o sanatório General Rondon num
da missão nos anos de seu funcionamento. instituto para menores indígenas. . . Essa medida se impõe mesmo porque a
Estabelecendo-se na área alguns anos depois dos beneditinos, o Serviço de Prelazia do Rio Branco, dispondo de vultuosos auxílios oficiais, tem na cidade
Proteção aos índios viria prontamente se contrapor à missão religiosa, com ela de Boa Vista um educandário para meninas, que nada mais é que uma casa de
disputando a subvenção oficial. Quando, por ocasião do proferimento da escravização de menores, que são obrigadas a serviços mortificantes,
Fronteiras da República Ação Indigenista 61
60

pesadíssimos, em pleno sol, horas a fio, como assim tem assistido a população final, de modo a poder agir com a necessária autoridade e exacto
da cidade citada" (Relatório da Ia Inspetoria Regional à Diretoria do SPI, 1927. conhecimento" (Ministério daAgricultura, 1911:287). Vale notar que
a menção à recolha de documentos relativos à Fazenda São Marcos
ms. Museu do índio).
ganha maior relevo, uma vez que um incêndio, ocorrido no Arquivo
Até o momento, viemos mapeando os agentes sociais, e seus respectivos Público do Amazonas, no início do século, destruiu a documentação ali
projetos, que se defrontam no campo indigenista. Vimos que, apesar de seus existente da seção dos Próprios Nacionais,em que se enquadravamas
conflitos internos, a praxis indigenista, no rio Branco, voltou-se basicamente fazendas nacionais,o que talvez expliquea grandefragmentaçãoatual
paraa educação lato sensu dapopulação indígena, como meio de colonização. da documentação relativa às fazendas nacionais.
Há, porém, que sublinhar que este instrumento não atingia indiferenciada- A documentação sobre terras no Estado do Amazonas (inclusive a região do rio
mente os índios em questão; ao contrário, a educação interferia, de modo Branco até1944), constante doArquivo doEstado doAmazonas, encontra-se hoje
seletivo,junto à populaçãoindígena na área, recrutandoapenas alguns de seus no InstitutodeTerras doAmazonas,paraondefoi transferida,apósa criaçãodeste
membros. Claro está que, neste recrutamento, tanto o SPI quanto os beneditinos órgão, na década de70. Osdados aquicitados foram coletados porNádia Farage,
investiam politicamentena formação de neófitos que, uma vez de posse do novo em pesquisa realizada no Instituto de Terras do Amazonas no anode 1988.
código cultural, atuariamjunto a seu grupo, propagando este mesmo código, A íntegra do documento é a seguinte:
bem como alargando a área de influência indigenista. Ministério da Agricultura, Industria e Commercio.
Assim sendo, na praxis indigenista desenha-se uma praxis indígena, ou seja, Inspectoria do Serviço deProtecção aos índios
emerge aqui um espaço privilegiado para a análise do modo particular pelo qual Fazendas Nacionais do Rio Branco.
os Macuxi entenderam e lidaram com a ação indigenista, à medida em que a Edital de Praça.
documentação nos permite seguir a trajetória de alguns dos indivíduos em Deordemsuperior,façosaber a quem interessarpossae aoconhecimen
questão. Este será o tema do próximo capítulo. to deste pertencer que fica de ora em deante prohibida a estadia ou
collocação de gados de particulares nas fazendas Nacionais, sitas no
Municípiode BoaVistado Rio Branco,desteEstado,denominadas São
Notas
Bento, São Marcos e São José, cujos limites são:—São Bento—limita-
se ao Norte com o rio Urariquéra; ao Sul, com o rio Cauamé; a Leste,
Lembremos aqui apenas que oServiço deProteção aos índios—segundo oDecreto com o rio Branco; e a Oeste, com os rios Urariquéra e Maracá e com o
no. 8072, de 20/06/1910, que o criava, e o Decreto no. 9214, de 15/12/1911, que Território da República da Venezuela. São Marcos — limita-se ao
alterava o primeiro—surgia com um amplo leque de prerrogativas, especialmente Norte, com o terreno neutro que termina na Cordilheira de Pacaraima
as de impedir invasões a terras indígenas e a restituição daquelas porventura e o rio Surumu; ao Sul, com os rios Branco e Tacutu; a Leste, com os
usurpadas (veja-se M. Carneiro da Cunha, 1987:78ss.). rios Tacutu e Surumu; e a Oeste, com os rios Urariquéra e Parimé. São
O Relatório do Ministro da Agricultura à Presidência da República de 1911 José — limita-se ao Norte, com o rio Tacutu; ao Sul, com o igarapé do
informava que se desenvolvia o processo de transferência das fazendas nacionais Surrão, com a fazenda particular "São Pedro" e terras devolutas; a Leste,
para o SPI: com o rio Tacutu e com terras que se estendem ao Estado do Pará; e a
"(. . .) tem o inspetor do Amazonas tratado do processo relativo à Oeste, com o rio Branco. Outrosim, faço saber que fica marcado o prazo
passagem da fazenda S. Marcos, no rio Branco, para o nosso Serviço, de noventa (90) dias, a contar da publicação do presente, para os
processo que se encontra presentemente na Directoria do Patrimônio possuidores de gados, que se encontram em pastagens nas alludidas
Nacional, no Ministério da Fazenda, já tendo parecer do delegado fiscal fazendas e suas dependências, retirarem os mesmos sob pena de serem
do Amazonas, o qual, segundo estou informado é favorável àquella ditos gados aprehendidos e levados a depósito por conta de quem
passagem.
pertencerem. Inspectoria do Serviço de Proteção aos índios, no Estado
do Amazonas e Território do Acre, em Manaus, 19 de junho de 1918.
Paraauxiliaroestudoda questão,o mesmoinspectortemprocuradoem
— o Inspector, Bento Pereira Lemos (Diário Oficial—Amazonas, 20/
antigos papéis, manuscritos e impressos, no Archivo Publico e na
06/1918).
Bibliotheca Nacional, todos os elementos que possam elucidar o caso,
sendo seu intuito, aliás muito louvável, levar, quandopartir, a decisão
62 Fronteiras da República Ação Indigenista 63

5 Como segue: Palácio do Governo, emManáos, 16 de Outubro de1917. —Dr. Pedro


O Doutor Pedro de Alcântara Bacellar, Governador do Estado do de Alcântara Bacellar.
Amazonas, etc. (Lei no. 941, de 16/10/1917, in Leis, Decretos e Regulamentos —
Faço saber a todos osseus habitantes que a Assembléa Legislativa do Amazonas, t. XXI —jul/dez. 1917).
Estado decreta e eu sancciono a seguinte Lei: Oantagonismo entremosteiroe missãofoi exploradoextensamente porL.F. Baeta
art. 1. Fica oGovernador do Estado auctorizado aconceder, comoposses Neves (1978), em seu trabalho sobre os aldeamentos indígenas empreendidos
immemoriais havidas poroccupação primaria, todas asterras possuídas pelos jesuítas no Brasil, onde sustenta que as ordens missionárias têm como seu
actualmente por índios selvagens ou semi-civilizados, para seu inverso as ordens monacais. O caso dos beneditinos no rio Branco, no entanto,
domicilio e aproveitamento. demonstra que tal antagonismo não constituiu um empecilho insuperável para que
art. 2.A áreadecadasecçãoserácorrespondente aonumero defamílias uma ordem monacal promovesse a catequização de índios.
oupessoas datribu a que ellafôrfeita e aodestino agrícola oupastoril, Nos termos de um jornal católico do Rio de Janeiro, o sr. Bento Brasil "tratava o
conforme a qualidade da terra. padre Furtado como um cão e pretendeu fazer o mesmo com os beneditinos" {O
art. 3. O Governador doEstado, porum Regulamento especial, fixará Universo, 9/3/1910).
o processo para effetuar taes concessões, que deverão serpromovidas
Sebastião Diniz explorava balata no baixo rio Branco em fins do século XIX.
porintermédio doServiço deProteção aosíndios, oudaauctoridade ou
Tornou-se arrendatário de parte das Fazendas Nacionais em fins do século XLX,
repartição que tiver a seu cargo zelar os interesses dos índios, caso
extincto aquelle serviço do Governo Federal. e, depois de vencido o contrato, tomou posse de parte considerável do rebanho e
de grandes extensões de terra dentro dos limites das fazendas, que mais tarde, na
art. 4.Essas terras, uma vezconcedidas, serão consideradas, para todos década de 1920, seriam requisitadas por J.G. Araújo ao Governo do Amazonas
os effeitos, como de domicilio particular, sendo, porém, inalienáveis. como propriedades particulares!
art. 5. Ficam desde já reservadas sobo regimen da presente Lei:
a)para domicilio e aproveitamento dos índios Macuchys e Jaricunas,
ahi estabelecidos com pequena agricultura e criação degado, a região
compreendida entre os riosSurumu e Cotingo, e as serras Mairary e
Conopiáepim, no município de Bôa Vista do Rio Branco.
b) as terras situadas nomunicípio deLábrea, entre osrios Seruhiny e
Sepateny, limitados amontante ejusante, respectivamente, porpicadas
queserão traçadas desde oscampos superiores dorioSeruhiny atéorio
Sepateny e de um ponto fronteiro á foz do igarapé Mixiry, no rio
Seruhiny ao rio Sepateny.
c)asterras situadas acincoenta (50) kilometros ajusante dascachoeiras
até alcançarem estas, em ambas as margens do rio Jauapery, no
município de Moura.
art. 6. A mediçãoe demarcaçãodestasconcessõesdeveráser effectuada
pelo Governo daUnião, dentro do praso de(3) annos, dapromulgação
da presente Lei.
art. 7. Desta concessão ficam também excluídas todas as terras já
concedidas peloEstado, como as que estejam occupadas, e cultivadas
por quaesquer pessoas que nas mesmas tenham residência habitual e
cultura effetivas.
art. 8. Revogam-se as disposições em contrario.
TRAJETÓRIAS, HISTÓRIAS
a liderança política macuxi na interpretação do contato

1_
Subscritos, subliminares

Durante a conferência ao Círculo Católico do Rio de Janeiro, em 1919, o


bispo Van Caloen chegou a provocar espanto, senão incredulidade, em sua
platéia, ao afirmar intrepidamente que a catequese no rio Branco havia sido
reivindicada pelos próprios índiosna região, em abaixo-assinado encaminhado
aosmonges. Tal documento fora entregue às autoridades competentes durante
uma audiência, quando o bispo, oportunamente, solicitava subvenção para a
missão.
O inusitado desta colocação não escapou aos jornais: no dia seguinte à
audiência deVanCaloen, Humberto deCampos perguntavasarcasticamente"se
a petição vinha sellada. .."(AGazeta de Notícias, 9/04/1919). OSPI, por sua
vez, através de AlípioBandeira, aventava queo documento traziaà bailanão a
necessidade de uma missão, mas antes sua validade, "porque para serem
catechisados, estavam muito adiantados os índios do abaixo-assinado..." (A
Gazeta de Notícias, 13/04/1919).
A controvérsia, em si mesma, é certamente insignificante, pois nossa
compreensão daquelemomentonãopassatantopelaautenticidade dodocumento
que os opositores do bispo contestavam, prestando-se antes amapear posições
que conhecemos nocapítulo anterior. Porém, é seumotivo, o abaixo-assinado,
registro escrito, portanto, de uma demanda que seria propriamente indígena, que
aqui nos interessa examinar de perto, no que evoca de uma outra polêmica, que
se trava hoje no domínio da historiografia: como apreender, para uma
reconstituição histórica, demandas sociais que carecem de registro escrito, um
documento que, como o abaixo-assinado a que aludia o bispo, vem, aos olhos
ocidentais, legitimá-las histórica e politicamente?
66 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 67

Sabe-se que, porlargo tempo, a historiografia de sociedades ágrafas e/ou Os Macuxi e o contexto social guianense
populações iletradas foi considerada uma tarefa metodologicamente difícil,
senão impossível, tanto da parte de antropólogos, quanto da de historiadores. Vimos nos capítulos anteriores que, no decorrer das primeiras décadas do
Nãose tratadeseguirmos aquiopercursode ambas asdisciplinas, antesgostaria século, a expansão da pecuária e do garimpo provocouo avanço da ocupação
de destacar algumas linhasmestras para nossa reflexão que, em larga medida, colonizadora no extremo nordeste do vale do rio Branco; os cronistas da região
se devem à contribuição teóricarecente do antropólogo MarshallSahlins. são, aliás, bastante explícitos sobre a amplitude deste processo e sua articulação
Estudando a história do contato no Havaí nos últimos anos, Sahlins (1981, à constituição da fronteira nacional. Desta perspectiva, poder-se-ia definir
1985) avançou uma proposta teórica da maior importância. Suas premissas, resumidamente uma história do contato dos Macuxi ao longo deste período,
como veremos aseguir, já estavam presentes naanálise deManuela Carneiro da como parte de uma história da sobreposição das fronteiras nacionais às
Cunha ([1973] 1986) sobre o messianismo Canela, bem como na de Helène fronteiras étnicas: como se sabe, com o estabelecimento definitivo dos limites de
Clastres (1978) sobre o profetismo Tupi-Guarani, muito embora nestes traba fronteira entre Brasil e Guiana Inglesa em 1904, apraxis indigenista na área
lhos nãohaja a preocupação de transformá-las emenunciado teórico. passaria por profunda mudança. Nesse sentido, o estabelecimento das fronteiras
Contestando a oposição entre história e estrutura social — perpetuamente nacionais ganha relevância para a história do contato, como limite de incidência
recolocada, como sabemos, nasdiferentes vertentes teóricas daAntropologia—, de forças de pressão, formando uma linha de tensão. A questão que nos cabe é
Sahlins argumenta queum acontecimento, para tornar-se evento (e, portanto, delinear o espaço preciso onde incidem, naquele dado momento, tais forças de
história), necessita sertematizado e,este éo ponto importante, esta tematização pressão sobre a sociedade Macuxi.
depende de um sistema de significações que lhe é anterior. Nesse sentido, a Cabe ressaltar aqui, inicialmente, a constância dos limites do território
história é culturalmente ordenada. De modo correlato, a incorporação de um Macuxi, que abrangia, no início do século XX, praticamente a mesma área em
evento à estrutura pré-existente pode surtir um efeito transformador; assim que os situavam os primeiros cronistas da região no século XVIII. Assim o atesta
sendo,o movimentoinicialdeincorporação,ouseja,de reproduçãodaestrutura, o relato de Koch-Grünberg (1982, vol. 111:20) :
vêm resultar em sua transformação. Ou, nos termos do autor, um acontecimento Seu território principal se encontra como na época de seu primeiro
aciona uma "prática da estrutura", para sua interpretação; reversamente, tal contato com os europeus, desde fins do século XVIII, entre oTacutu, seu
interpretação permite configurar uma "estrutura da prática", onde intervém as afluente direito, o Mahú ou Ireng e o Rupununi, o grande afluente
forças sociais em jogo, imprimindo novos sentidos e valores às categorias esquerdo do Alto Essequibo, no território fronteriçp entre Brasil e
culturais utilizadas. Estaria assim dada a possibilidade de transformação da Guiana Inglesa, onde eles habitam principalmente a grande serra
estrutura. Canucú,coberta pelaselva. Desde aíse estendempelooeste-noroesteaté
O contato entre ordens culturais distintas, continua Sahlins, configura um o Cotingo e mais adiante em povoações isoladas por ambas as maregens
momento privilegiado para a apreensão deste processo, uma vez que nele se do Surumu e pelo sul deste na savana ondulada até a região do Alto
Parimé-Maruá ao lado dos Wapixana. Pela margem direita do Baixo
evidenciam tanto as lógicas culturais em confronto, quanto o seu desenrolar
Uraricoerase encontramapenas poucosassentamentosdos Macuxi, que
permite apreender as transformações estruturais que dele resultam. Este ponto aqui como no Surumu já estão em parte mesclados com os Wapixana.
teórico tem fortes implicações metodológicas, se entendemos que o registro de O ponto mais avançado da tribo para oeste é o dos Macuxi de Maracá,
uma situação colonial é feito unilateralmente, e, nesse sentido, a tarefa da separado do contingente principal a leste pelos Wapixana e sem
história indígena ébuscar decifrar nas entrelinhas, nos silêncios dodocumento, conexão com ele (...)
uma outra lógica cultural, que ali se esconde.
Osefeitos da ocupação fundiária, conforme registra ainda Koch-Grünberg
Não lamentemos, pois, a ausência do abaixo-assinado, comprovação
(1982, vol. 111:20), circunscreviam-se à região do rio Uraricoera: "Tanto a
cartorialde umademanda políticaporpartedospovosindígenas no rio Branco.
opressão e atos violentos por parte dos colonos brancos que tem se estabelecido
Suaausência,porém,nãopermitesupora inexistênciade umademandapolítica.
nesta parte do rio durante os últimos 30 anos, como as epidemias, os tem
Ao contrário, aqui se supõe um projeto indígena no contato com as agências
dizimado e dispersado. Escassos remanescentes vivemaqui e ali em pequenas
indigenistas,e à sua interpretação este capítulo se dedica.
68 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 69

choças ao redor de Maracá." Tal não deve surpreender, uma vez que, como à ocupação dos campos pela pecuária, teria motivado a migração da população
vimos, nesta área se inicia a expansão pecuária em Roraima. indígena em direção à margem esquerda dos rios Mau e Tacutu, território inglês.
Fato notável é que, decorrido mais de meio século da passagem do etnólogo Porém, este dado, a meu ver, deve ser tomado com certa cautela. Este movimento
Koch-Grünberg pelo rio Branco, o território tradicional Macuxi mantinha os migratóriodificilmentepoderia ser mensuradoem termosquantitativos:por um
limites acima descritos, como se constata no mapa elaborado pelo lingüista lado, há que considerar que, como aludi anteriormente, trata-se de uma preocu
Ernesto Migliazza (1970) na década de 1960: cerca de cem aldeias Macuxi pação de estrategistas, que viam na população indígena uma garantia da
disseminavam-se então por um território que se estendia pelos vales dos rios integridade da fronteira. Por outro lado, migração talvez não seja o termo mais
Uraricoera, Parimé, a oeste, pelo vale do rio Branco, e mais ao norte, na área dos exato para definir o processo, pois que se caracterizava por deslocamentos
rios Surumu e Cotingo. Ao contrastar os dados registrados por Koch-Grünberg dentro de um mesmo território tradicional e, nesse sentido, não afetava a
em1911comaquelesfornecidospor Migliazzaparaos anos 60,evidencia-seque densidade populacional do grupo.
a abrangência da área habitada pelos Macuxi permaneceu praticamente O paradoxo aqui é apenas aparente, pois, se, de uma perspectiva panorâmica,
inalterada, apesar de os índios se verem compelidos a dividir a ocupação deste nào percebemos maiores alterações na territorialidade e na demografia dos
território com os fazendeiros e garimpeiros que, como vimos, aí estabelecer-se- Macuxi, quando nos voltamos para as diferentes descrições feitas, ao longo do
iam em grande número durante o período em questão. período em questão, sobre os grupos locais, representados nas aldeias, podemos
O mesmo se aplica à densidade populacional dos Macuxi. Koch-Grünberg aí notar a ocorrência de profundas modificações provocadas pelo contato. A
estimava em 3.000 indivíduos a população total do grupo. Corroborando os hipótese que formulo é que o impacto primeiro do contato foi de natureza'
dados registrados por Coudreau em 1885, o autor indica que o contingente da política, e, assim sendo, teria atingido o grupo local, enquanto espaço por
população Macuxi mais afetado pela instalação dos fazendeiros, era aquele excelência da vida social e política dos Macuxi. Examinemos esta possibilidade
estabelecido nas margens do Uraricoera e que estava separado, a oeste, da maior de perto.
parcelados Macuxi, que se encontrava nos vales do Tacutu e do Rupununi. As primeiras informações pormenorizadas sobre as aldeias Macuxi na região
Para o ano de 1943, Migliazza (1978:8) estima uma cifra de 3.900 indivíduos do rio Brancoprovêm dos relatosde viagemdos irmãosR. e R. H. Schomburgk
paraa população Macuxi nas aldeias do valedo rio Branco1, cômputo que não (R. Schomburgk [1848] 1922-23); R. H. Schomburgk, [1836-1839] 1903),no
inclui,portanto,os habitantes dovaledo Rupununina Guianae os residentesnas início do século XIX. Estes viajantesnaturalistasdescrevem uma paisagemem
fazendas e garimpos do lado brasileiro. Vale notar que o mapa de Migliazza que as várias aldeias Macuxi eram constituídas por uma única grande casa
indica inclusive uma distribuição das aldeias pelo território que coincide com a comunal, ou ainda, por um conjunto de casas, onde viviam cerca de trinta a
variaçãode densidadepopulacional apontada por Koch-Grünberg: a sudoeste, sessenta pessoas.
umgrupo menor, vintee seisaldeias dispersas, encontra-se localizado desdeos Trata-se deduaspossibilidades dentro deummesmo padrão aldeão, segundo
arredores da ilha de Maracá, no rio Uraricoera, até o alto rio Parimé e na margem explica a etnografia atual para a área guianense. Com efeito, os estudiosos da
direita do rio Branco, e, deste modo, separado de seu território principal, a leste, área (veja-se Colson, 1971; Rivière, 1984), quanto à organização social na
ou seja, no vale do Tacutu, em seus afluentes pela margem direita, Surumu, Guiana, afirmam que a forma da aldeia varia em função dos dois diferentes
Cotingo e Maú ou Ireng, até o vale do Rupununi, onde se encontraum maior ambientes ecológicos da região, savana e floresta. As aldeias na floresta
número, oitenta aldeias. caracterizam-se por casas comunais,em que convivemdistintosgruposdomés
Por outro lado, os cronistas da região, em especial os relatórios da Comissão ticos,compostos por famílias extensas, ligadasentresi por laçosde parentesco.
Demarcadora de Fronteiras de 1927 (Lopes de Souza, 1927; Rondon, 1927; Já na savana geralmente se encontram casas dispersas, que abrigam grupos
Barbosa, 1927; Facó, 1927 — Mss. I1 Comissão Demarcadora de Limites), domésticos, cuja composição é análoga àquelaacimadescrita; nessesentido,a
registram a ocorrência de um movimento migratório que parece ter-se mantido aldeia na savana configuraria um desdobramento da casa comunal típica da
contínuo, desde meados do século XTX, durante todo o período em questão. Tal floresta. De modo importante, a aldeia nafloresta exibe uma população média
êxodo teriasidoprovocado peloprocesso colonizatório: o recrutamento forçado de trinta habitantes,enquanto na savana a densidadedemográfica é ainda mais
demão-de-obra paraoextrativismovegetal,e,maistarde,paraogarimpo,aliado baixa (Rivière, 1984:25).
70 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 71

Tal média populacional, o que é essencialreter, parece ter-se mantido estável vínculos de coresidência com os cunhados de sua geração, e com os filhos e
ao longo do tempo: referindo-se aos Pemon, habitantes da savana, Colson sobrinhos da geração seguinte. Istoocorre, eonforme sustenta o autor, devido a
(1986:375) indica que uma aldeia, constituída por quatro a seis casas, e uma trêsfatoresbásicos:a assimetriadasrelaçõesdeafinidade, ondeosvínculosentre
população de cerca de quarentahabitantes é a imagem constante na literatura sogro egenro sãomais fortes que entre oscunhados; atendência uxorilocal, onde
etnográficada área, desde os registrosdos irmãosSchomburgk,a que me referi aexpectativa édequeosfilhos deixem aaldeia natal aindajovensparacasarfora;
acima, até um período recente. e as relações estreitas entre irmãos (Thomas, 1982:98).
Nesta mesmadireção,cabe ressaltaraindaa relevânciada hipótesede Nelly Para os Macuxi, no entanto, os dados disponíveis não permitem definir a
Arvelo-Jimenez (1974), de que para estas sociedades a história das aldeias é morfologiados grupos locais com a mesma clareza.As dificuldades para tanto
história política, é um movimento propriamente histórico. Ao descrever os começam já na definição do que seja aldeia. Durante a primeira metade deste
grupos locais Ye'cuana, povo de língua Carib que habita a região de floresta século,os gruposlocaisMacuxiassumiram conformações diversificadas quese
equatorialna Venezuela,a noroestedos Macuxi,a autora define a abrangência distinguem no panorama regional: há referência a aldeias constituídas por uma
de seus movimentos no tempo e no espaço de modo preciso: as aldeias, no início grande casa comunal, habitada por vários grupos domésticos (Farabee,
de sua formação, são constituídas por uma população em torno de oito a vinte 1924:15). Ocorrem hoje mais comumente aldeias formadas por diversas casas
e sete habitantes, e passam a adquirir maior estabilidade e autonomia em um menores, onde habitam famílias nucleares, e ainda, aldeias compostas por
ponto mais adiantadode seu ciclo de desenvolvimento, com cercade quarentae apenas um grupo doméstico. Embora não haja indicaçõesmais detalhadaspara
cinco habitantes, chegando atingir até setenta habitantes, quando, a partir deste avaliar a proporção destas variantes na composição geral das aldeias Macuxi,
ponto, começam a declinar. Sobre sua abrangência no tempo, a autora esclarece pode-se inferir dos registros dos cronistas (Alcuino Meyer ao Arquiabade do
que, embora o período de duração das aldeias seja bastante variável, sua Mosteiro de São Bento, 10-01-1940, ms.) que o segundo tipo torna-se mais
composiçãovia de regra supõe, de um únicogrupo doméstico no início, isto é, difundido com a intensificação do contato.
uma família nuclear com duas gerações que pode crescer, tornando-se família Essa diversidade de situações pode ser percebida por por designações
extensa com até quatro gerações reunindo vários grupos domésticos. específicas na língua Macuxi : yewik ou waipa se referem às grandes casas
Para os grupos Pemon, ou mais exatamente, os Taurepang e Arekuna, David coletivas de base circular ou ovalada ; tapei, ou abrigos provisórios, simples
Thomas (1973:63) apresentaum padrão residencialonde as aldeias constituem coberturas de folhas de palmeira utilizadas em viagens, durante as caçadas e
unidades mais dispersas e em que a população varia em média entre cinco e festas, e, por fim, aute ou ute, que significam casa, ou qualquer casa de modo
quarenta habitantes, comexceção deumaúnica aldeia, cujoshabitantes somam genérico, mas que são utilizadas mais freqüentemente com relação às pequenas
setenta e seis. casas familiares de forma retangular.
Dentreas quarenta aldeiasobservadasporThomas (1973:61),praticamente O termo mais abrangente que engloba todas estas situações é pata, que
a metade(45%) era constituídapor apenasum grupo doméstico, sendo que essa poderiaser traduzido, literalmente, por lugar,oupatasek, o lugarhabitado, que
proproção teriasido aindamaior,conforme demonstra o autoraocompararseus correspondeaproximadamente à palavraaldeia,nosentidoamploutilizadoaqui,
dados obtidos em 1971, com um censo realizado na mesma área em 1937, quando embora seja um termo mais vago que significa também terra, mundo(Colson,
dois terços das aldeias eram constituídos por apenas um grupo doméstico. 1986:114).
Tal dispersão não passou desapercebida ao autor, que a tematizaria em De uma perspectivacomparativapara a Guiana,Rivière (1984)descreveum
trabalho posterior (1982:15), afirmado serem os Pemon, entre os povos das padrão aldeão em tudo análogo àquele fornecido por Colson. Porém, em um
terras altas da Guiana, os que mais avançaram na direção da autonomia das esforçode síntesedaorganizaçãosocialguianense,o autorfocalizaa redesocial
unidades mínimas da sociedade, representadas pelo grupo aldeão. Thomas que compõe a aldeia, fornecendo dados que iluminam a presente discussão.
(1982:98)procuraexplicareste quadro,argumentando haver um limite natural Vejamos.
de crescimento para as aldeias Pemon, de até no máximo seis a sete grupos Rivière(1984:72) priorizaa aldeiaenquantounidade de análise,reconhecen
domésticos; dada a impossiblidade das suas lideranças políticas, em torno das do que, do ponto de vista local, a aldeia representa a unidade política por
quais se articulam os grupos domésticos, manterem, simultaneamente, os excelência, inexistindo unidades inclusivas ao nível supra-aldeão.
72 Fronteiras da República
Trajetórias, Histórias 73

Em linhas gerais, o grupo local, continua Rivière (1984:72), organiza-se em lembremos, gente, do ponto de vista das agências indigenistas, era igualmente a
tornodafiguradeum chefe,queé, acimade tudo,um líder-sogro.Explicao autor riqueza a acumular. Trata-se, no que se segue, de trilhar os meandros desta
que, idealmente autônomo, o grupo local é concebido como uma parentela disputa, que envolve monges, funcionários governamentais e chefes.
bilateralendógama; talprojetode endogamia, porém,nem sempreseria realizá
vel,sejaporfatoresdemográficos ou políticos. Aoladode um idealendogâmico,
verifica-se uma tendência à uxorilocalidade, enquanto estratégia subordinada à Chefes, tuxauas: casos exemplares
endogamia. Frisa o autor que, nestas sociedades, as relações de afinidade são
marcadas verticalmente, ou seja, entre sogroe genro e, deste modo, contémum Voltemos a 1909, ano em que um primeiro grupo de monges beneditinos
potencial de hierarquia: dada a tendência à residência uxorilocal na área, a chegava a Roraima para instalar uma missão entre os índios. Ao serem recebidos
posiçãosubordinadadosgenrosseria resultadodo controledo sogro sobre suas com hostilidade pelos maçons, grupo político dominante em Boa Vista, os
filhas.
missionários retiram-se para o interior, vindo a encontrar refúgio na Fazenda
Nacional São Marcos, cujo administrador, José Ricardo Franco das Neves, à
Neste quadro, a existência, o tamanho e a estabilidade de um grupo local
época o mais graduadorepresentantedo Estadona região, havia-se tornadoum
depende basicamente da habilidade política de um líder-sogro na manipulação
destacado opositor dos maçons.
doslaçosde parentesco.Como declíniodo prestígiodo líder-sogro, ou sua morte,
o grupo local tende a tomar outras formas, como por exemplo, um arranjo de A aliança entre a administração de São Marcos e os missionários, como
siblings, ou desfazer-se, com o retorno dos afins às suas aldeias de origem, sabemos, não perduraria após a instalação do SPI na área. Naquele momento,
levando consigo as respectivas mulheres. no entanto, tal aliança foi de grande valiaparaos beneditinos, nãoapenas pelo
apoiopolítico frente à maçonaria, masprincipalmente por lheshaverpossibili
Tal modelo de estrutura social levou Rivière a afirmar que a sociedade
tado seus primeiros contatos com a população indígena. Neste quadro, os
guianense é equacionada em termos de uma economia política: gente, nas
Guianas, seria a riqueza a acumular. Assim sendo, para o autor, toda a
missionários beneditinos vieram seinserir em relações já de ant^s construídas
com os índios na região, o que, podemos supor, de certo modo terminou por
habilidade política de um líder-sogro está direcionada para reter consigo os
orientar as relações que a missão diretamente estabeleceu com a população
genros, e, se possível,os filhos homens. Isto porque, uma vasta parentela está
indígena. Comefeito, foiRicardo Franco dasNeves quempromoveu o encontro
na proporção direta do grau de prestígio de um líder.
inicial dos missionários com os índios, conduzindo-os à aldeia do chefe Macuxi
A estrutura social na Guiana é, no entanto, motivo de polêmica entre os Ildefonso, localizada na confluência dosrios Surumu e Cotingo.
estudiosos da área. Contrapondo-se à linha interpretativa de Rivière, Joanna
"Uma viagem de exploração", assim o cronista da missão caracterizaria a
Overing (1986) argumenta que se trata nem tanto de uma economia política,
visitadosmonges à aldeia emque vivia Ildefonso. Napartida, como vimos, algo
quantode uma filosofia política,cuja premissabásica é a de que a coexistência
inseguros, os missionários seriamtranqüilizados peloadministrador Franco das
da diferença é condição de existência da sociedade. Não se trata de nos
Neves, coma afirmação de queo chefe Ildefonso "era cristão e gozava de boa
aprofundarmos nesta polêmica; o pontoimportante a reteré que,em quepesem
reputação em todo o rio Branco" (Demuynck, O.S.B., 1910, III, 12:172).
as diferentes posições teóricas sustentadas pelosetnólogos, estesconvergem na
afirmação dequeoepicentro davidapolíticanaGuianaé oparentesco, e questão Comefeito, logona chegada à aldeia, as apreensões dosreligiosos desvane
indissociável, o padrão de residência. Assim sendo, comobemcoloca Overing ceram-se,dianteda acolhidacordiale calorosados índios.A crônicadestaca,em
(1975:117), onde moraré uma decisão altamente política, e cada líder dedicar- primeiro plano,o grande número de índios presentes, atraídos pelacuriosidade
se-á a atrair o maior númeropossível de co-residentes. de conhecer os "padres barbados": vindos de aldeias distantes, ali estavam
representados, além dos Macuxi, os Wapixana e os Jaricuna, embora estes
Neste quadro sumário, retomemos alguns pontos. Aventei anteriormente que
últimos estivessem em menor número e não houvessem trazido suas mulheres.
o impacto primeiro do contato parece não ter atingido tanto a demografia oua O tuxaua Ildefonso contabilizava seus convivas: "gente como o diabo!"
territorialidade dos Macuxi, quanto sua estrutura política, da qual decorrem (Demuynck, O.S.B., 1910,III, 12:211-212).
estes dois fatores. Para demonstrá-lo, estaremos nos debruçando sobre ogrupo
local, universo em que, como vimos, a política se faz. Em segundo lugar, "Tudose passacomdecênciaesem excessos",comenta,satisfeito,o cronista
da missão (Demuynck, O.S.B., 1910, III, 12:227). Osíndios atenderam pron-
rr

Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 75


74

tamente arecomendação dos monges deinterromper afesta para assistir amissa prerrogativa dos governadores deprovíncia, havendo sido largamente utilizada
na manhã seguinte, e, durante a celebração da missa, a assistência teria se naregião dorioBranco nocontexto dadisputa fronteiriça com aGuiana Inglesa,
comportado de modo exemplar: "aos sinais que eu fazia aum chefe índio, este como tática para asseguraro domíniobrasileirosobre a área contestada: como
comandava os assistentes parase sentarem, levantarem ou ajoelharem (...) Os vimos, constam da relação dos estabelecimentos ditos de propriedade de
movimentos eram executados com precisão militar. .." (Demuynck, O.S.B., brasileiros na referida área, apresentada na documentação brasileira (veja-se
1910, III, 12:227). À despedida, os monges teriam ainda a grata surpresa de capítulo I), vários títulos de "capitão" referentes a índios, cujas aldeias,
serem questionados pelos índios acerca de "quando retornariam para os civili chamadas burgos, figuram como comprovantesda ocupação nacional.
zar. ..!" (Demuynck, O.S.B., 1910, III, 12:228/9). A liderançacreditadaa Ildefonsonaformaçãode seugrupolocal,certamente
O sucesso desta primeira viagem, que o cronista compararia, um tanto contribuiucomo um fator de peso para a outorgadeste título. O grupo localque
abusivamente, à cena, celebrizada porVictor Meirelles, da primeira missa no teriaseformadoem tornodaliderançadeIldefonso,constituíaumagrandealdeia
Brasil em 1500, animou os missionários a empreenderem logo outra visita à às margens do regatoAnaí-Ute, também chamado do Milho (Koch-Grünberg,
aldeia de Ildefonso, quando repetir-se-ia o mesmo êxito anterior. A tônica do 19791:83),nas proximidades da sede da fazendaSão Marcos. Posteriormente
relato, mais uma vez, é o grande número de índios reunidos para presenciar a a aldeia haveria se deslocado para o norte,junto à confluênciados rios Surumu
visita dos monges: "A multidão acorre de todos oslados, homens, mulheres e e Cotingo, onde a encontraram os beneditinos em fins de 1909. Apesar da
crianças se empurram, me tomam as mãos, me acariciam abarba. As mulheres mudança da aldeia, seushabitantes continuaram a freqüentar asededa fazenda,
me apresentam seus bebês, oshomens tocam meu escapulário. Estão contentes como teve oportunidade de presenciar Koch-Grünberg (1979 1:36-37): "São
de enfimver o Padre..." (Barbier, O.S.B., 1911, IV, 1:45). Os regionais, que Marcosé algo comoum centrode reuniãodos índios de umavasta área (...) em
engrossavam a comitiva, calculavam em torno de dois mil índios na ocasião, certas ocasiões chegam pequenos grupos de homens, mulheres e crianças para
informa o cronista, embora considere a cifra superestimada (Barbier, O.S.B., trocarmercadorias,especialmentesal por farinhade mandioca,milho e diversas
1911, IV, 1:45). frutas (...) em sua maior parte é gente do tuxaua geral Ildefonso".
Tal afluxo de convivas, a crônica missionária explicitamente credita à No entanto, a escolha de Ildefonso como representante oficial da população
capacidade de arregimentação do chefe Ildefonso (Demuynck, O.S.B., 1910, III, indígena da região perante o Estado supunha não apenaso reconhecimento de
12:171), que, frente àsurpresa dos monges, teria gentilmente replicado: "É seu umaliderançadeIldefonsoentreosíndios,comotambém, eprincipalmente, uma
povo, snr. Padre, tudo isso seu povo" (Barbier, O.S.B., 1911, IV, 1:45). resposta positiva de Ildefonso diante das demandas do Estado. Opina Koch-
A escolha da aldeia de Ildefonso, e este é o ponto que nos interessa,não foi Grünberg (1979,1:46,81,88) que Idelfonso,em virtude de um antigo convívio
certamente umaescolhaaleatória. FrancodasNevesmantinha comIldefonso um cultivado com os brancos, aprendera a aparentar uma "submissa devoção", com
vínculo de longa data: relata oetnológo alemão Koch-Grünberg (1979,1:37,68), a qual soubera conquistar a confiança dos funcionários governamentais e,
que estiveracomambos na cidade de Manaus, em 1905, quando oadministrador, posteriormente,dos religiosos.Nesse sentido,ambos os fatores,liderançaentre
em reconhecimento a sua postura, conduzira Ildefonso àquela capital para os índios e postura frente aos nacionais, são indissociáveis no desempenhoda
apresenta-lo ao governador do Estado do Amazonas, de quem receberia mais função que se reconhece oficialmente com a outorga de títulos; em outras
tarde o título de "Capitão Geral dos índios do Surumu". palavras, a outorga do título a Ildefonso não se resume a uma iniciativa
Neste quadro, os missionários beneditinos vieram se inserir em relações jáde unilateral, mas envolve um jogo de expectativas de ambos os lados. Senão,
antes construídas comosíndios naregião, o que, podemos supor, decerto modo vejamos.
terminou por orientar asrelações que a missão diretamente estabeleceu com a Os estudos de micro-política, em voga na década de 1960, definiram a
população indígena. Voltaremos a este ponto adiante. Observemos, por ora, o intermediaçãoenquantoconceitofundamental para a compreensão de processos
título, algo solene, outorgadoa Ildefonso. políticos em que se defrontam ordens culturais distintas. Nesse contexto,
A concessão de títulos honoríficos, por parte do Estado, a lideranças entende-se porintermediação política a interlocução realizada porpersonagens
indígenas erauma prática desde operíodo colonial. Apartir doRegulamento das determinados, lideranças que se constituem no cruzamento de duas ordens
Missões, de 24 de julho de 1845,a concessão de tais títulos passou a ser uma culturais e que, precisamente de sua capacidade de interlocução, ou seja, de
Trajetórias, Histórias 77

traduçãode um novo código cultural àquele a que pertence, deriva seu estatuto
de liderança (Swartz et alii, 1969). Estudos de caso, nesta linha de pesquisa,
como o de Paul Friedrich (1969) sobre o cacicazgo no México, ilustraram
exemplarmente tais colocações.
O conceito de intermediação podebemprestar-se à leitura destemomento da
trajetória política de Ildefonso a que assistimos: na posição de chefe, e,
conhecedor da língua nacional, era para sua pessoa que convergiam preferenci
almente as demandas da política indigenista. Após a concessão do título a
Ildefonso, seguiram-se nomeações de outras lideranças, como Beré, da aldeia
Contão, no rio Cotingo, e Melquior, da aldeia Maturuca, no rio Mau, havendo
ambos recebido o título igualmente pomposo de "Tuxaua Geral" entre os
Macuxi. Neste quadro, não me parecegratuito que os títulos de tuxaua tenham
proliferado durante os anos vinte e trinta, quando, em conjuntura análoga à de
1902, as comissões de inspeção e demarcação de fronteiras os concederam,
atingindo a imensa maioria das aldeias Macuxi na área do rio Branco. Tratava-
se, obviamente, deumatentativa de cristalizar a chefia, em umasociedade onde,
como vimos, esta dependia de uma reafirmação constante por parte do grupo.
Porém, uma questão tanto mais interessante, a meu ver, é refletir sobre as
interpretações e manipulações dequeforamalvoos títulos honoríficos dentrodo
sistema político Macuxi.
Pode-se aventar inicialmente queochefe, investido emtuxaua, canalizava as
demandas deseugrupodiante dasituaçãodecontato. Assim,acrônica damissão
beneditina descreve o encontro dos monges, durante uma de suas visitas
subsequentes àaldeia de Ildefonso, com otuxaua Ambrósio, chefe de um grupo
local das cercanias, criando uma cena antológica:
O chefe— Nós estamos contentes por haverconhecido o Padre.
A assistência responde — Conhecido o Padre.
— Nós lhe desejamos uma boa viagem.
— Uma boa viagem.
— Que ele esteja em breve de volta entre nós.
— Entre nós.
— Que ele nos traga muitas mercadorias.
—Mercadorias.
(Barbier, O.S.B., 1910, IV, 1:49).

Tal cena, ressalve-se, não deve ser tomada em seu sentido literal, o que nos
levaria a entender que a demanda dos índios se reduzia às ferramentas, anzóis,
Tuxaua Ildefonso medalhinhas e outras miudezas que missionários, militares e outros agentes
Arquivo dos Beneditinos, 1923
governamentais coslumeiramente distribuíam em sua passagem pelas aldeias.
78 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 79

Observemosantes que, ao contrário, as demandas dos índios foram múltiplas e do Surumu, a partirda aldeiade "Aleluia", em umaseqüência de visitasbem-
visavam um universo mais amplo do que o dos manufaturados, como por sucedidas.
exemplo, o conhecimento ritual que tinham a oferecer os "padres barbados": Assim foi desde que os missionários começaram aventurar-se além de
conta o monge Alcuino Meyer que, freqüentemente, por insistente solicitação "Aleluia"; quando, porexemplo, partiram, ainda noanode1910, deAleluia para
dosíndios,tevequecantaradnauseam hinos religiosos, e atémesmoesgotarseu conhecer a "Maloca do Mel", cujo chefe, Manoel Pita, era o irmão mais novo de
repertório de cançõesprofanas. O pontoimportante a reteré que, para alémde Ildefonso:
sua multiplicidade, tais demandas eram expressas através da figura do chefe,
A medida em que nos aproximamos da Maloca do Mel, avistamos todo
interlocutor privilegiado deste encontro. Esta interlocução, penso eu, constitui
o grupo reunido em duas longas filas. Eles disparam tiros de fuzil,
um referencial básico para orientação das investigações sobre a história do
depois a mesma recepção, apertos de mão, discursos, distribuição de
contato, uma vez que nesse mesmo espaço de mediação inscrevem-se as imagens, etc. Ao chegar na malocaencontropreparado um quartode
iniciativas atinentes ao sistema político indígena. veado e uma cabaça de caldo de cana fermentado (...) Toda a maloca
Retomemos, portanto, o circuito de relações em que os missionários está reunida e contempla, entre explosões de risos, este espetáculo de
beneditinos viriam se introduzir, servindo-se da mediação de Ildefonso. Logo todo novo para eles (...) (Barbier, O.SS., 1910, IV, 1:50).
após a primeira visita dos missionários à aldeia em que vivia Ildefonso, este
A aldeia,segundodescrevemos monges,"era uma aglomeração de cercade
tomou a iniciativa de procurá-los onde se encontravam hospedados, quando,
quinze habitaçõesindígenas, em queviviam, aproximadamente,duzentasalmas.
segundo registra a crônica missionária,"novamente expressou o grande desejo
Estenúmerohaviaaumentado consideravelmente porocasião denossachegada
dos índios em nos ter entre eles (. . .)" Na ocasião, Ildefonso teria dito
(...) fomos saudados peloMacuxi Manoel, irmão do tuxaua ildefonso, quenos
textualmente — "Venha! venha conosco lá embaixo padre! Os Macuxi farão
introduziu em uma cabana de taipa expressamenteconstruídapara os Padres.
uma casa para você. Eu já disse que plantem mandioca, bananas (...) para que
Este Manoelhaviarecebidoordemde nos dar atençãoe denos servirde guia em
possam comer todos os dias" (Demuynck, O.S.B., 1910, III, 12:230).
nossa viagem de exploração (...)" (Demuynck, Õ.S.B., 1910, IV, 1:125).
A proposta,evidentemente,seriabem recebida,representavapara os monges
Os missionários, frise-se, pareciam intencionalmente direcionar suas visitas
não só o estabelecimento de uma base, mas também um ponto de partida para
apostólicas às aldeias maiores e maispopulosas, como "Maloca Bonita", situada
outras conquistas. Esta primeira base representava certamente um parâmetro
no vale do rio Cotingo,onde, desde o início, investiram com grandeênfase:
importante: os missionários voltaram à aldeia de Ildefonso para uma segunda
visita, quando, tendo se repetido o êxito da visita anterior, o monge Dom (...) Nós entramos alegremente na malocado velhotuxaua Quiapím
Bonaventure Barbier resolveria comemorar aquela data, um sábado da semana (Kati). Ela contaperto de vintecasas de índios, de um estilosimples,
mas bonito, habitadas por cerca de 300 Macuxis. Até o momento eu não
santa no calendário cristão, como marco inicial do trabalho de catequese,
havia encontrado uma aldeia tão grande. Chamam-na, em seu dialeto,
batizando a aldeia com o nome de "Aleluia" (Barbier, O.S.B., 1910, IV, 1:45).
"Buriakro", nome que eu, em seguida, troquei para "Bonita" (. . .)
Com efeito, a aldeia "Aleluia" serviu como uma porta para os beneditinos (Goppert, 1911:257).
entrarem em contato com os índios na região. Ildefonso, na posição de guia e
intérprete, conduziria os religiosos às outras aldeias no vale do rio Surumu. Os Após essasprimeirasviagensexploratórias, os monges procuraram intensi
missionários, ao menos inicialmente, demonstravam grande entusiasmo com o ficarotrabalho decatequese, estabelecendo-sepermanentemente entre osíndios,
papeldesempenhado por Ildefonso; acreditavam haverencontrado na figurado coma fundação de uma missãoàs margens do altoSurumu naquele mesmoano
"tuxaua geral de todos os Macuxi", alguém "civilizado e inteligente", que de 1910. Os resultados não tardaram a aparecer, e, já no ano seguinte de sua
dispunha de uma rede de relações que o credenciava a exercer uma função da instalação, a missão atravessava uma fase de florescimento. A atuação dos
maior relevância para a implantação e o desenvolvimento da missão entre os religiosos parece ter se expandido consideravelmente, chegando até mesmo,
índios (Goppert, O.S.B., 1910, III, 12:233). O mapa de uma das primeiras como vimos, a incomodaros fazendeiros pela influência que detinham sobre a
viagens missionárias, datado de 1910, indica claramente que os beneditinos, população indígena na região:
nesse período, vieram a ampliar o alcance de sua atuação para as aldeias na área
80 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 81

Seus antigos ditos amigos entre os fazendeiros do rio Branco e do estabelecido relações com os posseiros da região, cuja brutalidade parece ter
Uraricoera já começam a se converter em inimigos pelo temor de que, pautado o distanciamento de seu grupoda área maisafetada pela expansão da
pouco apouco, osreligiosos atraiam àMissão todos osíndios, privando- pecuária:
os assim de mão de obra. Em verdade, esta não é uma idéia tola, porque
para a Missão açodem muitos índios das diferentes tribos, que bem Em sua juventude, Pita teve más experiências com os brancos. O velho
sabemfazer umadistinçãoentreo beme o mal,sobretudoentre um bom Campos (José Manuel Campos), um dos mais antigos colonos do
e um mau trato (Koch-Grünberg, 1979,1:131).
Uraricoera, sogro de Bamberg (outro grande latifundiário da região),
hoje homemhonorável, persuadiucom falsas promessasa ele e a outros
A influência dos beneditinos entre os índios fazia-se notar então, sobretudo trinta e cinco Macuxi e Wapixana para que fossem a Manaus. Ali os
nas aldeias mais próximas à sede da missão, onde os religiosos vinham embarcou em um vapor, dizendo que os levaria de volta ao rio Branco,
estreitando os vínculos com seus habitantes e realizando pregações com maior mas quando a embarcação rumou rio abaixo, em direção ao Amazonas,
freqüência, eparticularmente emduas delas, que eram asmais populosas esobre a gentese pôsa chorare nãocomeunadaemdoisdias. Duranteseis anos
tiveram que trabalhar nas matas malsãs de caucho do rio Purus. Vinte
as quais se concentravam maiores esforços. Trata-se das aldeias "Koime-
deles morreram em virtude das febres (...) Por isso Pita já não quer mais
lemong", ou "Maloca do Mel" e "Buriakro", ou "Maloca Bonita", que como trabalhar para os brancos (...) (Koch-Grünberg, 1979,1:64).
mencionei acima, já se destacavam pelo grandenúmero de habitantes antes do
estabelecimento dos missionários, e que, segundo o testemunho de Koch- As relações travadas com os beneditinos, no entanto, pareciam ser de teor
Grünberg, ainda cresceriam devido à sua influência: bastante diverso. Na ausência dos missionários, relata Koch-Grünberg (1979,
1:67),um genro do chefe Pita, Tinapu, incumbia-se de promover a celebração dos
Koimelemong em sua extensão atual se fundou em período recente.
Originalmente a aldeia consistia unicamente emduas casas Macuxi no ritos ensinados pelos monges.
velho estilo. Durante o ano passado agruparam-se em torno delas mais A área de influência da missão se estendia, de modo análogo, à aldeia
ou menos uma dezena de cabanas e barracas abertas. Este grande "Maloca Bonita", situada ao norte, no vale do rio Cotingo. Na mesma ocasião,
aumento foi causado, por um lado, pela personalidade do cacique Pita ou seja, em 1911, a aldeia compunha-se de dez casas, habitadas por índios
que exerce uma profunda influência sobre os índios daqui com seu Macuxi e Taurepang, e, note-se, ainda segundo Koch-Grünberg (1982,111:32),
caráter tranqüilo, sensato e às vezes enérgico, e por outro, devido à o tamanho e a densidade demográfica desta aldeia explicar-se-ia, naqueles
proximidade damissão. Osíndios sãoverdadeiramente curiosos. Certa últimos anos, tanto pela influência dos beneditinos quanto "pelo prestígio do
simpatia para comos missionários, que são completamente distintos chefe" Kati.
dos demaisbrancoscom os quais às vezes se encontram,e o misterioso,
oencanto queosrodeia, tudoissoatraiosíndios (Koch-Grünberg, 1979, Parece-me evidenciar-se que o estabelecimento da missão — e, um pouco
1:51). depois, do posto de atração do SPI na área, como veremos — veio alterar a
composição e a demografia das aldeias. Porém, os dados igualmente evidenciam
Em outrapassagem, o etnólogo é ainda maisincisivo : que tal alteraçãonão decorreriada açãodiretadas agênciasde contato, mas antes
Koimelemong no princípio tinhaapenas duascasasredondas Macuxi, da ação política dos chefes. Podemos assim entrever que, no espaço criado entre
em torno das quais se agruparam então durante os últimos anos as as demandas do grupo e as demandas indigenistas, ou seja, no espaço da
demais cabanas, em parte pelo prestígiode Pita, tuxauados Macuxie intermediação, abriu-se espaço para o projeto político dos próprios chefes. Vale
emparte devido aos esforços dos beneditinos do alto Surumu (...) a dizer, respaldado pela etnografia atual, que, se os agentes indigenistas encontra
aldeia consistia de doze cabanas habitáveis e algumas barracas abertas ram nos chefes um meio eficaz de recrutamento da população indígena, por suas
para hóspedes (Koch-Grünberg, 1979,111:31). redes de relações, os chefes, por sua vez, terão encontrado nas agências um
Nesse sentido, cabe notar aqui, além da influência dos missionários, a instrumento poderoso para ampliá-las.
relevância do papel do chefe Manoel Pita, que constituía o elo principal de Esta não era decerto a única alternativa que se colocava naquele momento
ligação dosreligiosos comos índios e cujoprestígio também contribuía para o para a sociedade Macuxi como um todo. Recorramos novamente a Koch-
crescimento da aldeia. Pita, ainda segundo relata Koch-Grünberg, já havia Grünberg, cujo relato revela uma observação minuciosa sobre os contornos do
li

82 Fronteiras da República
Trajetórias, Histórias 83 •ÍI

alcance da atuação missionária. Nas proximidades da missão do Surumu, havia


se Colson,1967;Santilli,1987).Destemodo,o quedesejodestacar,os criadores
mais uma aldeia, cuja população, de modo semelhante a "Koimelemong" e
do Aleluia representaram não apenas oficiantes, mas tradutores,exegetas por
"Buriakro", teria crescido consideravelmente naqueles anos, mas que, ao
excelência;eram chamadosipu:kenan, termoque podeser traduzidoliteralmen
contrário destas duas, mantinha distância dos beneditinos. Chamava-se
te por sábios, ou ainda,profetas,propagadores de uma mensagemcuja origina
"Kaualianalemong" e consistia de "(. . .) sete cabanas habitáveis, de base
lidade consistia exatamente em conceber um novo corpus de conhecimento,
redondaaté ovaladaou retangular,comparedesbaixasrecobertas de barro e teto
construído a partir de elementos da cosmologia tradicional e do proselitismo
de palha de palmeira, que são arrematadas em um esteio grosso e também
cristão (Colson, 1967). Ocorre que, à diferença dos Piaroa, onde, conforme
algumaschoçassemicaídase algumasconstruções novassemterminar,emparte mostrou Overing (1975) liderança ritual e liderança política são sobrepostas,
puros andaimes" (Koch-Grünberg, 1979,1:109). entre as sociedades Carib na Guiana as esferas de liderança podem ou não se
Segundo o autor, o chefe Selemelá, que o convidara a visitar a aldeia, não recobrir, como no caso macuxi, ou, em um limite, configurarem esferas
desejava qualquer relação com os beneditinos, mas, naquela ocasião, pretendia absolutamente distintas, tal como observou Thomas (1973:40) para os
construir uma "igreja" no pátio central da aldeia para um missionário inglês que Taurepang. Diante disso, sugiro que, nesta face do processo de contato em
esperava para breve. Na casa de Selemelá havia ainda um baú contendo livros particular, a intermediação foi exercida por lideranças rituais da sociedade
e outros objetos procedentes da missão anglicana de Muitaro na Guiana Inglesa, macuxi, e esta seria uma diferença básica com relação à situação de contato que
que o chefe parecia guardar com muito ciúme. Acrescenta contraditoriamente examinamos, onde terá sido questão afeta à liderança secular, os iebru, chefes.
Koch-Grünberg (1979,1:112): "Nem Selemelá, nem sua gente tem idéia do No entanto, não explorarei tal questão nos limites do presente trabalho.
cristianismo. Conhecem apenas algumas orações, um mixtum compositum de
Neste período, a missão beneditina de São Geraldo de Borgonha, no alto rio
indio e inglês, mas sem compreender o sentido (...)" Surumu, igualmente florescia. Mas, note-se, à medida em que os religiosos
No entanto, é o autor quem esclarece, revelava-se ali nem tanto um efeito fortaleciam seus vínculos com os habitantes das aldeias que haviam contatado
direto do missionamento anglicano que então operava na Guiana Inglesa, mas anteriormente por intermédio do chefe Ildefonso, este, curiosamente, parecia
sim um dos centros de um movimento religioso, conhecido na literatura da área tornar-se cada vez mais distante dos monges, bem como do circuito de relações
por Areruia,Aleluia, ou, na grafiainglesa, Hallelujah: "A estas reminiscencias em que os introduzira. A crônica missionária, sintomaticamente, deixa de
cristãs pertencem também o entediante"araruya" que suprimiu entre os habitan mencionar seu nome a partir dos primeiros meses de 1910; precisamente no
tes de Kaualianalemong, quase por completo, os bonitos e antigos cantos e período em que relata o florescimento da missão, o nome de Ildefonso passa a ser
danças" (Koch-Grünberg, 1979, 1:112). Tal movimento religioso, de cunho simplesmente omitido.
profético, surgira entre os Macuxi, na região do rio Rupununi, a partir do
Para interpretar esta omissão, é bastante elucidativo o registro que faz Koch-
missionamento anglicano nas primeiras décadas do século XIX . De modo
Grünberg, no mesmo período, de um relato de Hermínio, cunhado de Manoel
importante, teria adquiridofeição própria no final do século, ou, mais precisa Pita, irmão de Ildefonso. Segundo informava Hermínio, Ildefonso,
mente, no período de neutralização do território do Rupununi, ocasião em que
foram afastados os missionários. Disseminando-se entre os povos Pemon e devido ao seu longo convívio com os brancos, este tem se desmoralizado
Kapon na região circum-Roraima, o movimento Aleluia conheceu grande completamente, como tantos outros de sua raça, e seduzido por eles
comete todo tipo de infâmias. Quase todos os seus homens o abandona
efervescência naqueles anos.
ram. Agora se vendeu a Bento Brasil e trata de arranjar-lhe braçais para
Em rápidas linhas, consistia o Aleluia em uma interpretação particular da as matas malsãs de caucho no rio Anauá. Como ninguém quer ir
teologia cristã, onde o panteão cristão foi incorporado à cosmologia indígena, e voluntariamente com ele, os ameaça dizendo que Bento Brasil virá com
sobretudo a liturgia foi alterada, com a supressão da figura do sacerdote. No soldadospara levá-losà força. Ildefonsorecebedezmil réis por cabeça
contexto do Aleluia, os especialistas eram os piatzán, ou xamãs, ainda que (• • •)•
iniciantes,personagens que,atravésde um esforçointensode reflexãoe criação,
"O mais autêntico tráfico de escravos", acrescenta o etnólogo (Koch-
inovavam as próprias tradições, estabelecendoo contato entre a sociedade e as
Grünberg, 1979,1:46).
divindades, que,aliás, não constituíam maisum monopólio dos brancos (veja-
84 Fronteiras da República
Trajetórias, Histórias 85

Tais informações, embora não ofereçam uma explicação categórica para a


omissão da crônica missionária, permitem vislumbrar os acontecimentos sobre administração colonial inglesa era exatamente quebrar a linha de sucessão
os quais silenciava: ao que tudo indica, entre este relato de 1911 e a crônica hereditária das chefias locais, e substituí-la por mandatários temporários,
missionária de fins de 1909 não haveria apenas um distanciamento entre os escolhidos fora das linhagens legitimadas tradicionalmente; no caso Macuxi, o
missionários e Ildefonso, mas sim, uma mudança de tônica nas suas relações. espaço de intermediação da chefia se situava nos limites de uma contradição
A omissão da crônica não escondia portanto, qualquer intenção deliberada, essencial,decorrenteda discrepânciaentre o cargo de chefe,outorgadoatravés
sejadosmissionários, sejade Ildefonso. Oque a crônicanãomenciona e o relato da concessão de títulos honoríficos, quesepresumiapermanente, e a posiçãodo
de Hermínio, ao contrário, evidencia, é o declínio do prestígio político de chefe na estrutura social Macuxi, cuja existência implicava na reafirmação
Ildefonso: a posição de Ildefonso como agenciador de mão-de-obra tornava-o o constante por parte do grupo.
ponto mais vulnerável deumacorrente quetendia aromper-se, namedida emque Com efeito, tal contradição impunha limites ao espaço de intermediação, e
aumentavao tensionamentoentre os seus pólos. Os índios ligados ao grupo local dentro desses limites moviam-se chefes indígenas e, nem tanto, agentes
de Ildefonso, ao abandonarem "Aleluia" e recusarem-se a reconhecer sua indigenistas; se por um lado, o reconhecimento da chefia era um meio eficaz de
liderança,retiravam-lhe os atributosda chefia, restringindosua capacidade de recrutamento da população indígena, poroutro, caberia àslideranças indígenas
arregimentação. A sua condição de mediador já não mais basear-se-ia no ahabilidade política detornar essereconhecimento uminstrumento paraampliar
prestígio político, mas no apelo a ameaças externas, o único recurso que lhe seu prestígio.
restara na tentativa de arrebanhar mais gente. Continuemos. A intermediação política, enquanto mecanismo, nãose esgota
O declíniodoprestígiode Ildefonso,noentanto,nãoexpressariauma rejeição na trajetória singular de Ildefonso; outros personagens emergiriam ainda.
ao contato por parte dos que o abandonavam. Estes, aliás, em grande parte, Apesar do rápido crescimento, a missão do altorio Surumu teriauma duração
teriam se deslocado para Koimelemong, onde reagrupar-se-iam em torno da efêmera, tendo sidodesativada no anoseguinte à passagem do etnólogo Koch-
liderança de Manoel Pita,o irmãomaisnovode Ildefonso (depoimento prestado Grünberg, isto é, 1913,e somente a partirde 1921os religiosos retomariam o
por Filismino/aldiea Barro). Os índios que abandonavam "Aleluia" parecem trabalho de catequese com maior intensidade, embora desta vez, sua presença
antes haver recusado uma forma específica do contato, precisamente aquela nasaldeias fosse menos constante, restrita apenas àsviagens dedesobriga. Além
cujas relações Ildefonso se prestava a mediar. Nesse sentido, sua trajetória disso, outra agência, oSPI,como sabemos, apartir de1914, viria adisputar com
permite evidenciar certos limites da atuação da chefia na intermediação do os beneditinos a influência sobrea população indígena na região.
contato;dentre as expectativasque convergiam sobre a figura do tuxaua, caberia Como igualmente anunciei no capítulo anterior, ambas as agências
às lideranças indígenasencontraras formas própriasde lidar com as demandas indigenistas, em favorda formação de intermediários políticos, investiriam na
quese apresentavam e quepudessem se compatibilizar coma manutenção e/ou educação de crianças indígenas. Examinemos no momento um dos casos mais
reprodução do prestígio político. bem sucedidos de talinvestimento, porparte dosbeneditinos, que foio de José
Pode-se dizer, portanto, que a crônica silenciava duplamente: a mesma Armando, ironicamente, o filho mais novo do antigo tuxaua geral Ildefonso.
lacuna criada com a omissão a figura de Ildefonso, ocultava também o Osmissionários haviam trazido José Armando daaldeia quando criança para
desaparecimento da aldeia "Aleluia". Com o fracionamento do grupo local, ser criado na escola da missão e, depois de formado, tentariam convertê-lo em
"Aleluia" deixava de existirenquanto aldeia e consequentemente como centro de tuxaua. A primeira referência que faz a crônica missionária acerca desta
convergência dos índios da região, embora a residência de Ildefonso ainda personagem, no entanto, já deixa transparecer um certo desapontamento dos
permanecesse no mesmo local. religiosos, tendo em vista sua expectativa quanto à liderança potencial de seu
Em um de seus últimos encontros com Ildefonso, comenta Koch-Grünberg neófito. José Armando, ao que tudo indica, não seprestava acumpriropapel que
(1979,1:89-90) que seusantigosseguidores,bem comoseu irmãoPita,evitavam lhe reservavam sem hesitações, como informa um relato domonge DomAlcuino
"o agora odiado Ildefonso, "que pavoneava, e se presumia tuxaua geral". Meyer a seu superior:
Pode-se aqui tecer um contraste interessante com o caso dos Bena na Esserapaz, queparecia terseesquecido doqueV.Revma. fizera porele,
Tanzânia, analisado por Marc Swartz (1969:227-242), onde o problema da apresentou-se novamente na prelazia, quando de volta do Roraima,
aonde fora na qualidade de boiadeiro da Comissão Rondon. O José
Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 87
86

Armando mostrou-se arrependido de ter abandonado os padres, recebeu Piauhyense e alguns caboclos do Limão", e parasua decepção, soubera queele
por diversas vezes os santos sacramentos, trabalhou algum tempo no estava vivendo "amasiado com uma índia" na aldeia Warodmetá. De modo
Calunga(entãoa sede da missão),e mudou-seem seguida para o Limão, análogo à ocasião anterior, informa ainda o monge: "Assegurou-me o José
com permissão e a conselho nosso. É hoje empregado na Fazenda Armandoqueestáarrependido do passoerradoquederae queembrevevaivoltar
Nacional, tendo o próprio general insistido com ele para que aceitasse aoseiodafamiliaemorarnoLimão..." Masdestavezoaluno dospadres parecia
o emprego de vaqueiro no Xiriri [um retiro da Fazenda Nacional São
estar mais convicto com respeito ao seu papel de tuxaua:
Marcos] e se estabelecesse no Limãocomo tuxaua. Comprometeu-se a
aceitar o emprego, porém não deseja ser tuxaua. . . No Limão fiz o O tuxaua José Armando tem foros de tuxaua grande. Quer ampliar a
casamento dele com a Cecília, sua antiga noiva (Relatório da viagem maloca do Limão; chamar para lá maior número de caboclos. Prometeu-
pastoral realizada porAIcuino Meyer noperíodo defevereiro ajulho me fazer lá uma capela grande e boa (cartadeAlcuinoMeyerao archi-
de 1928 ao abade do Mosteiro São Bento do Rio de Janeiro). abade do Mosteiro São Bento do Rio de Janeiro em 10/01/1940).

A aldeia do Limão não era uma escolha totalmente aleatória dos indigenistas. Comojá se entrevê nafala de Dom Alcuino, a importânciada aldeia do Limão
Após a saída dos missionários doalto Surumu, o grupo local de Koimelemong perdurariana cartografiaindigenistada áreanem tantopela açãodos religiosos,
veio a se dispersar, havendo alguns de seusintegrantes permanecido na mesma mas principalmente pela Expedição de Inspeção de Fronteira e a Comissão
área, nas vertentesda serra do Mel, na aldeiaque tornar-se-ia conhecidamais Brasileira Demarcadora de Limites, que operaram na área do rio Branco nas
tarde por Barro,enquanto os remanescentes fundariam a aldeiado Limão, no décadas de 1920 e 1930, respectivamente. Estes anos, aliás, foram momentos
mesmo local da extinta aldeia Aleluia, próximo à confluência dos rios Surumu altos da ação indigenista do Estado na região: a Comissão de Inspeção de
e Cotingo. Infelizmente não dispomos de dados sobre as linhasinternas desta Fronteira, comandada pelo general Rondon, então chefe do SPI, e a Comissão
fissão. Um dado importante a reter,porém, é que a propostados indigenistas, Demarcadora de Limites, comandada pelo capitão Braz Dias de Aguiar,
portanto, fundamentava-se nasrelações de parentesco de José Armando nesta implicaramem um substancialaumentodopequenocontingente defuncionários
aldeia. Assim sendo, muito provavelmentevisava reconstruir naquela área um do SPI sediados permanentemente na Fazenda São Marcos, e conferiram maior
polo de atração que havia sidodesbaratado pela defecção de Ildefonso. poder de atuação ao órgão protecionista, em um momento, lembremos, que a
A resistência apresentada inicialmente por José Armando à idéia de se tomar missão beneditina, há algum tempo desarticulada, ensaiava ainda sua
tuxaua parece ter sido superada rapidamente, e logo seu nome apareceria reestruturação.
mencionado na crônica missionária como o tuxauado Limão e acompanhante de Limão, bem como a aldeia Macuxi de Contão—localizada mais ao norte, no
Dom Alcuino nas viagens de desobriga pela região. Mas os vínculos com a baixo rio Cotingo—, devido a sua localizaçãoestratégica, tornaram-se pontos
parentela e o apoio dosmissionários na sustentação da posição de tuxaua, não importantesno caminhode subidade ambasas expedições oficiaisparao monte
parecem ter sido suficientes para garantir a arregimentação dos índios sob Roraima,convertendo-se em acampamento e centrode arregimentação de mão-
influênciados religiosos,como ocorriaanteriormente no caso de Koimelemong. de-obra, onde os expedicionários conseguiam guias e carregadores. Muito
Embora José Armando permanecesse como tuxaua do Limão durante muitos embora as referências existentes na documentação relativa às comissões de
anos, a aldeia não cresceria neste período, nem se converteria num centro fronteiras (Aguiar, 1947:15,16;24-26;51) não permitamdetalhar a natureza da
importante de irradiação da ação indigenista (Severino Barros, depoimento, relaçãoestabelecidacomestesgruposlocais,delapodemosinferiracondiçãode
aldeia de SãoJorge, janeiro/86), mas manter-se-ia atéfins da década de 1940 base de apoio atribuída a estas duas aldeias:
como em 1928,"reduzidaa pouquíssimas casascom talvez umas trinta almas Encontram-se elementos dessa tribo [Macuxi], em quantidade relativa
(...)" (Relatório deDomAlcuino Meyer aoabade doMosteiro SãoBento doRio mente grande, ao longo do baixo e do médio Cotingo, sendo que, na
de Janeiro, julho de 1928). parte inferior do mesmo, se acham localizadas duas aldeias de certa
Em outro relato a seu superior, decorridos mais de dez anos após a nomeação importância: Conta e Limão.
do tuxaua do Limão, Dom Alcuino informa que encontrara José Armando A primeira fica à margem direita do rio, a cerca de 4o 10'L. N. e 60°
trabalhando comogarimpeiro noaltorioCotingo, "comumsócio[sic]civilizado 50'Lg. O. Gr., em frente à serra homônima.Tem sido alcançada várias
88 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias
89

vezes pelos exploradores da bacia do Branco, inclusive por elementos Maturuca, passou-se toda para a Guyana por influencia dos padres. Hoje,
da C. B. D. de Limites — 1* Divisão.
porém,jáestá quasi toda no Brasil, declarando-me otucháua que estava tratando
A segunda, situada na confluência Cotingo-Surumu, a cerca de 3o de trazer para olado brasileiro orestante de sua gente" (Lopes de Souza 1927
55'30"L. N. e 60° 29'40"Lg. O. Gr., tem sido escolhida muitas vezes 111:15). * \ v »
para acampamento, por diversos grupos de excursionistas, ao cruzarem
o baixo curso fluvial (Aguiar, 1947:51).
Em 1934, os integrantes da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites
permaneceram acampados porvários meses emMaturuca, onde instalaram um
A concentraçãoda populaçãoindígenae a formaçãode grandes aldeiascomo depósito eum observatório astronômico. Os principais motivos alegados pela
um ponto de convergência da estratégia de atuaçào indigenista e do projeto Comissão para aescolha de Maturuca eram, de um lado, ocontato fácil com os
político de lideranças indígenas marcaria ainda a história de outros grupos índios, "habituados ao convívio do civilizado eaptos a executar, satisfatoria
locais; na áreade maiordensidadeda populaçãoMacuxi,podemos verificar que mente, o rude transporte de carga", e, de outro, sua posição geográfica
um papel análogoàqueleexercidopelas aldeiasAleluia e Koimelemongno vale privilegiada, em conseqüência, note-se, dos muitos caminhos construídos pelos
do rio Surumu, seria cumprido também pelas aldeias de Maturuca, no vale do índios emseu território (Aguiar, 1947:79). Apopulação de Maturuca seriaentão
rio Mau, e Raposa, no vale do rio Tacutu. de 150habitantes, eem todo ovale do rio Maú, aproximadamente 1300Macuxi;
Desde 1927, Maturuca, tanto quanto Limão e Contão para a área dos rios os militares, no entanto, atribuíam ao tuxaua Melquior um raio de influência
Surumu e Cotingo, é mencionada na documentação como base de apoio para a muito além doslimitesde seugrupo local: "Umdos mais interessantes habitantes
atuação indigenista no vale do rio Maú. De modo importante, registra um dos de Maturuca era o tucháua Melquior, comunicativo e sagaz, a cujo mando
membrosda comissão de inspeção de fronteiras,que ali se baseia no ano de 1927, obedeciam mais de 2000 íncolas, distribuídos por várias localidades" (Aeuiar
tenente Thales Facó, que a população de Maturuca já de antes mantinha relações 1947:81). .
com os fazendeiros que começavam a se estabelecer em seu território: "O Há, muito provavelmente, exagero nesta estimativa. No entanto, tal estima
tucháua Meriquió tem ahi a seus cuidados umas duzentas e poucas rezes da tiva é, de certo modo, compartilhada pelos beneditinos e, nesse sentido, se não
Fazenda Casa Branca, pertencente ao Tenente Cícero" (Lopes de Souza, 1927, deve ser tomada literalmente, pode bem ser uma indicação da extensão da
IH:15). Esta informação, aliás, é confirmada mais tarde pelo missionário influênciapolíticade Maturuca sobre osgrups locais circunvizinhosnocontexto
Alcuino Meyer, que acrescenta o dado significativo de que o tal tenente Cícero, das relações de contato, oque transparece claramente na crônica missionária:
um dos, senão o primeiro posseiro da região, havia sido administrador da (.. .) fui à grande maloca do Maturuca, onde muita gente me estava
Fazenda Nacional de São Marcos2: esperando. Ede todos olugar em que maior numero de indios sereúne.
Como muitas malocas também esta do Maturuca tem um curral para Amaloca principalfica ao pé da serra do Maturuca edista menos de uma
gado. Ha anos passados o tuxaua Melchior, chefe do pessoal do hora da beira do rio Mahú, em linha reta mal 500 ms. Contei ahi doze
casas (...)
Maturuca e lugares vizinhos, tomava conta duma ponta de gado do
tenente Cicero Correia de Mello, fazendeiro estabelecido na Casa
Branca, no baixo Mahú. Este senhor, que já fora administrador de São De todos os tuxauas, Melchior (de perto de 40 ou 35 anos) éomelhor;
Marcos, é bom para com os indios. Viu porém que não lhe dava resultado oque maiszelo tem pelapraticadareligião, para aoração, etc, esegundo
deixar o gado nos campos da grande enseada do Maturuca e por mequer parecer, é também quem mais influencia exerce sobre osseus
conseguinte retirou-o; e o tem na fazenda Soco sob os cuidados de subalternos. Epena não saber ler nem escrever, no mais ébem instruído.
SeverinoPereiradaSilva (AlcuinoMeyeraoBispo-Arquiabade, 10/011 Ajurisdição dele pertencem, alem do Maturuca, as malocas de: Pedra
1940, ms). Branca (8), Erira (8), Pakará (1), Eremutan (1), Wailang (?), Soco (4)
Angawí (3), Maracanã (2), Tepeékui (2), Carona (4), eSeremutá (1) é
Outra fonte deinfluência sobre osMacuxi deMaturuca, vista com preocu Sakúmekeré (3) na Guiana Inglesa. Os números digo algarismos junto
pação pelos militares, seria acolonização inglesa damargem oposta dorio Maú: • aos nomes dos lugares indicam um numero de casas ou barracas. Contei
"Ha, em Maturuca esuas dependências, uma população de 169 índios Macuxis. 510 indios do Maturuca edependências alludidas (...) (AlcuinoMeyer
Essa população, nos tempos em que a missão ingleza operava em frente a aoBispo-Arquiabade, 10/01/1940, ms.).
90 Fronteiras da República
Trajetórias, Histórias 91

A influência de Maturuca sobreoutros grupos locais, se alimentada pelas Ainda menino, Gabriel saiu da aldeiapara irmorarcom uma irmã de sua mãe,
agências indigenistas, em contrapartida passaria a canalizar para si oinvesti casada com Silverio Emiliano, um "civilizado" que havia estabelecido uma
mento político das agências indigenistas. Anos depois da passagem das comis fazenda naregião, nas imediações da aldeia de Chumina. Na fazenda, Gabriel
sões demarcadoras, Maturuca figuraria ainda como uma das prioridades da esforçar-se-ia paraaprender o português e compreender o quea tiae o esposo
missão beneditina: falavam: conta que, penosamente, memorizaria as primeiras palavras que
(...) OMaturuca éque em primeiro lugar mereceria avisita demorada conseguira distinguir, "Raimundo a cavalo", repetindo-as por vários dias,
do padre. Mas dependerá das circunstancias acima apontadas e de durante as caminhadas pelo campo, enquanto pastoreava o gado (Raposo, l i

outras mais, qual o ponto aser escolhido em primeiro lugar (Maturuca 1972:22).
ou Barro, no Surumu, ou São Bento no alto Cotingo, ou Serra do Apesar das dificuldades que enfrentava, Gabriel preferia viver nafazenda,
Guariba, ou... ?).Aos poucos esta acção sedeverá estender aos outros
lugares. Por ora só posso dizer que esta expectativa causou muita aprender oportuguês eandar àcavalo, avoltarpara asua aldeia de origem eviver
satisfação aos indios eem cerca de 20 malocas seprontificaram afazer com ospais. Preferia viver cuidando do gado, aoestilo regional, que valorizava
capella (...) mais do que aquele que seus pais tinham a lhe oferecer na aldeia. De modo
novelesco, Gabriel relataque,apósquinze anostrabalhando comovaqueiro na
(...)Mas para tudo isso necessitarei que benfeitores me ajudem edêem fazenda, um conflito o leva de volta à Raposa: a tia descobre que todas as
imagens, estatuas, crucifixos, cobertas de altares, etc, bem como sinos manhãs, Gabriel, ao tirar o leite das vacas, reservava uma pequena parte para
de7até30kilos. Preciso tercomquepossa estimularosindios epremiar alguns moradores da aldeia do Chumina que vinham costumeiramente até o
o zeloeboa vontade deles (...) (Alcuino Meyer aoBispo-Arquiabade, curral, eporissorepreende severamente osobrinho, que sevêobrigado adeixar
10/01/1940, ms.). a fazenda. Pelos quinze anos de trabalho, Gabriel recebeu uma vaca, três
Sedestes fragmentos podemosinferir aconstrução de relações clientelísticas novilhos, um pano velho e um par de calções.
entre apopulação indígenaeas agênciasindigenistasnoperíodo,ondese destaca A única referência feita em sua auto-biografiaa esseperíodo na aldeiaé o fato
opapel exercido pelas lideranças indígenas, criadas ou reforçadas pelo contato, de ter sido então batizado, já adulto, pelo monge Alcuino Meyer. Logo sairia
a parcimônia das fontes, por sua vez, representa certamente um embaraço à novamente para trabalhar como vaqueiro em outra fazenda, ocasião em que
análise mais aprofundada da questão. No entanto, dispomos de outra fonte, cuja também se casapelaprimeira vez,comumasobrinha desuamãe. Avivência de
natureza, diversa daquela examinada até omomento, atorna um documento da Gabriel, atéaquele momento, erasobretudo entre os"civilizados", esegundo ele,
maior importância para a presente discussão; trata-se da auto-biografia, nesse tempo, poderia definir-se a si próprio como um "caboclo", designação
publicada por Padre Silvano Sabatini (1972), do Macuxi Gabriel Viriato atribuída pelos regionais aosíndios que trabalhavam nas fazendas egarimpos da
Raposo que, após longa convivência com apopulação regional, tornou-se chefe região e que, supostamente, por este motivo, viveriam como os "civilizados"
de sua aldeia de origem, Raposa, no baixo rio Tacutu. Assim sendo, seu (Raposo, 1972:29). Algum tempo depois, havendo conseguido amealhar alguns
depoimento vem preencher uma séria lacuna deixada pela documentação, bens, Gabriel resolveformar uma fazenda,ou seja, comprar a posse deuma área
permitindo portanto um exame minucioso da carreira política de um chefe de terra,construirum curral e uma casa, reproduzindo o estilode vida regional.
Macuxi na situação de contato. Porém, o divórcio, que logo se seguiu, o teria levado a um período, em que,
Gabriel Viriato nasceu na aldeia Macuxi de Raposa na década de 1920. segundo seu depoimento, perderia todos os bens queconseguira acumular:
Localizada no vale do rio Tacutu, a aldeia de Raposa representou, de modo ... eu achava tudo maravilhoso naquele tempo; andava pelos campos
análogo às aldeias de Contão eMaturuca, um ponto de convergência da ação com meus companheiros,encontravauma cabeça de gado dos brancos,
indigenista desde as primeiras décadas do século. Além disso, sua posição matava-a e comia fartamente, dançava muito, em todas as oportunida
geográfica atornava vulnerável àsociedade regional, dado que aárea do baixo des.Eramuitobom... Meuerrofoimuitograve.Parabeberfuiobrigado
rioTacutu foi uma das áreas mais atingidas pela expansão fundiária noreferido a vender tudo o que eu tinha. Mas eu continuei bebendo e fazendo
período. festa. .. (Raposo, 1972:31).
Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 93
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No entanto, para comprar a bebida, aguardente de cana ou cachaça, não No ano de 1947, logoapósa suavoltaparaa Raposa, Gabriel foi nomeado
bastava apenas vender os poucos bens que conseguira juntar. Gabriel teria que pelos representantes doSPIpara desempenhar duas funções: "tuxaua daRaposa
trabalhar, como de fato trabalhou durante muitos anos garimpando ouro e e delegado dos índios" para toda a região dovale do Tacutu. Embora o controle
diamante em troca de seu sustento, até que, nas suas palavras, um dia, e conhecimento do padrão cultural regional quedetinha Gabriel, adquiridos era
finalmente, consegui uma outra esposa. (Raposo, 1972:31). Gabriel continua a sua longa vivênciafora da aldeia, tenhasido um dado relevante,que certamente
trabalhar para fazendeiros e garimpeiros, mas com maior empenho apartir do contribuiu para a tomada de tal decisão por parte dos funcionários do SPI, a
segundo casamento, na esperança de galgar uma posição almejada e obter os chefia, nestecaso, nãoparecia ser apenas uma simples decorrência de interfe
bens possuídos pelos regionais, vale dizer, um lote de gado e as mercadorias rências externas na vida da aldeia. Além do conhecimento da sociedade nacional,
consumidas comumente nas fazendas, comosal, roupas, ferramentas, querose Gabriel dispunha, como aventei acima, de uma ampla rede de relações de
ne, etc. Seu projeto teria duração igualmente efêmera, interrompido agora pela parentesco naaldeia, o que fazia com que, emsuatrajetória secombinassem, ao
morte inesperada da esposa: "Estava tudo acabado, para mim não existia outra menos potencialmente, alguns.atributos essenciais tanto daposição de iebru, o
mulher... bebi tudo quanto possuía... poderia ter reconstruído a minha vida, chefe tradicional, quanto da de tuxaua. Nesse sentido, Gabriel apresentaria o
mas preferi continuar sofrendo edesperdiçando tudo" (1972:32). perfil típico dointermediáriopolítico, descrito porSwartz et alli(1969), a que
Ávida de garimpeiro, entretanto, mudaria radicalmente com osurgimento de aludi anteriormente: controlandodoiscódigosculturaisdistintos, tornar-se-ia o
umfato inusitado. Noano de 1945 correu umanotícia entreosíndios daregião, foco de um jogo de mútua legitimação. Vale notar que, deste modo, a aldeia
e particularmente entre os moradores da aldeia Raposa, de que ogoverno do tornava-se umaunidade ramima dejurisdição nacional. Comefeito,euarriscaria
Presidente Getúlio Vargas estava promovendo o alistamento militar compulsó aqui levantar a suposição de que essa combinação terá ocorrido nos casos
rio da população masculina, que deveria participar da segunda grande guerra. anteriormente descritos, em que a interferência da presençaindigenistaresultou
Dizia-se ainda que quem não seapresentasse àsautoridades militares, estaria no crescimento e na fixação da população. Vejamos.
sujeito àprisão perpétua. Diante dessa notícia, seis habitantes da Raposa, entre Detenhamo-nos nesta nova função atribuída a Gabriel, a de delegado de
eles Gabriel, "apesar da vontade louca de fugir" (Raposo, 1972:33), decidiram índios, que não se confunde com a função de tuxaua. É Gabriel quem vem
se apresentar na cidade de Boa Vista, onde foram engajados no serviço militar explicitá-la quando, após alguns anos, percebendo dificuldades, renuncia ao
eposteriormente enviados para Belém, no estado do Pará. Depois de cumprir o cargo: "o papel do delegado é aquele de capturar quem é malfeitor, quem é
tempo de serviço militar, Gabriel partiu de Belém para conhecer outras regiões criminoso, quem rouba e come os animaisdos brancos... Vi que não era uma
do país, quando passou vários meses viajando; nesse meio tempo conseguiu boacoisa,quemecausava muitas inimizades comos parentes e comos brancos
alfabetizar-se. Após viver asmais adversas situações, Gabrielvolta àRaposa no e entãoapresentei a minha demissão ao chefeda inspetoria e retomei o cargode
ano de 1946. tuxaua" (Raposo, 1972:39). A diferença básica, portanto, entre os cargos
Emseuretorno, Gabriel estabeleceu-se definitivamente na aldeia, casando- criados no quadro da ação indigenista é que um deles, o de tuxaua, prendia-se
se pela terceira vez. Embora não tivesse filhos do primeiro casamento, e do mais diretamenteao sistemapolíticoMacuxi,enquantoo de delegadode índios,
segundo houvesse tido apenas um, que veio afalecer com pouco tempo de vida, porseu alcance supra-aldeão, tomava umafeição própria e talvez intraduzível
deste terceiro casamento ele teriacinco filhas e doisfilhos. Ao quetudoindica, pelocódigo tradicional3. Talcontradição entreasduas funções parece terlevado
apaternidade lhe serviu como meio de galgar uma posição influente dentro da Gabriel a optar por uma, a de tuxaua, provavelmente a que lhe causaria menor
aldeia. Além disso, Gabriel eraumdos dezfilhos doantigo tuxaua Zeca Viriato desgaste político junto ao grupo local. Mas, se alguma das duas funções
e deDarniana, cuja família vivia naaldeia vizinha deChumina. Assim, apesar implicava em maior ou menor comprometimento do prestígio das lideranças
de ter se mantido, desde a infância, distante de seus parentes mais próximos, indígenas, a diferença entre ambas seria antes uma questão de abrangência de
contava ainda comuma extensa parentela, que constituía a grande maioria da atuação, do que propriamente de natureza da função.
população daRaposa, daqual se reaproximaria aofixar residência permanente O próprio Gabriel descreve sua investidura no cargo de tuxaua repetindo a
na aldeia. Este teria sido um fator fundamental a permitir que Gabriel, mais mesma lista de afazeres de que se incumbia o delegado de índios: "Não sabia
tarde, se tornasse a principal liderança política de Raposa. exatamente que coisa deveria fazer. Mas felizmente sempre podia contar com o
f
Trajetórias, Histórias 95
Fronteiras da República
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— Compadre, carne mesmo eu não posso dar-lhe. Contente-se com o


padre, odelegado da inspetoria dos índios, eum civilizado que se chama Davi bucho, os ossos e a cabeça do animal.
Cruz. (...)Ovelho Cruz me dizia que eu não deveria permitiroroubo de animais Da quarta vez disse:
dos brancos, que fizesse todos trabalharem, que proibisse abebida alcoólica, que —Veja bemcompadre. Eunãoposso mais dar-lhe coisaalguma, sabe.
impedisse brigas. . ." (1972:36). As mesmas atribuições poderiam assim ter Nem o bucho e nem as vísceras. Voca bem sabe que senão não teremos
implicações distintas, restritas aos limites da aldeia e quando fora destes; o sabão: minha esposa não fará sabão...
primeiro caso coincide com os limites das unidades políticas eas relações entre E passou um, dois três, quatro anos e o branco não deu mais nada.
os habitantes da mesma aldeia, referenciadas pelo sistema de parentesco e Passaram-semuitos anos e quando se foi, em vez de deixar tudo como
legitimadas por posições recíprocas, oque não ocorre entre grupos locais. Em quando haviachegado, vendeu a terra paraIsaias Madeira... o preço
outras palavras, no primeiro caso oprestigio do chefe pode serum trunfo que não foiumcavalo. E Raposa passou a Isaias Madeira (Raposo, 1972:77-8).
existe no segundo.
Isto não significa dizer que o papel de tuxaua, intermediário político Ao tornar-se tuxaua, Gabrielse veria às voltas como mesmaquestão, o gado
institucionalizado, não apresentasse contradições quando contraposto à chefia defazendeiros ocupando oscampos nasproximidades daaldeia, fato estequelhe
tradicional. Contradições, aliás, já transpareciam nos casos até aqui examina traria muitos problemas, emvirtude dasuaposição deintermediário privilegiado
dos; ocaso de Gabriel, no entanto, oferece vantagem àanálise pelo fato de que, das relações entre seu grupo local e os regionais, porumlado, e as agências
avançando no tempo, as exibe de forma clara. Estou assim sugerindo que as indigenistas, por outro. Conta Gabriel que, quando foi nomeado tuxaua, os
contradições inerentes à intermediação política se acirram na razão direta do moradores deRaposajáhaviamsofridoinúmeras conseqüênciasindesejáveis em
avanço sobre as terras indígenas em Roraima, processo que se intensifica apartir decorrênciado estabelecimento dafazendanasproximidades da aldeia,tendoele
dos anos quarenta. Atentemos aorelato de Gabriel: procurado saber de um outro branco, porque o fazendeiro alegava haver
Meu pai, que era tuxaua, consentiu que obranco entrasse nas terras da comprado asterras onde sesituava ãRaposa, quando então chegou à conclusão
maloca da Raposa. de que não teria havido compra nenhuma, e a alegação do fazendeiro não
O branco chegou e disse: passaria deuma mentira. Os moradores daaldeia poderiam então terexpulsado
— Compadre, eu farei minha própria casa ali. Eu não tomarei a sua ofazendeiro IsaiasMadeira, porémnãoofizeramportemerem possíveis reações
terra, compadre; eu não quero terra mas trazer e colocar aqui o meu a esta atitude. Mas, ao contrário do que pensava Gabriel, o problema não se
rebanho. Mas fique tranqüilo, eu não tomarei a sua terra. Ocuparei reduzia simplesmente a saída daquele fazendeiro, mas ainda apresentaria
somente otempo necessário para tratar omeu rebanho que está disperso desdobramentos que o tornariam crônico.
nos campos, masdurante o tempo que estiver aqui, serei muito gentil
com todos vocês: aí haverá carne, haverá leite, será muito bom para Com efeito, depois de muito tempo, Gabriel soubera que Isaias Madeira
vocês.
sairiadaáreada Raposa, massairiaapenas porquetinhavendido apossedaterra
Papai disse: à outrofazendeiro.Contaeleque um certodia,estavacortandomadeirana mata
— Está bem, compadre. Se é como você fala, pode ficar aqui. para fazer uma construção, quando um menino veio trazer-lhe a notícia da
Entãoo brancoconstruiu a suacasa,levantou o curralparaos animais chegada de um outrobranco, o qualjá tinha se apossado de sua casa:
e prometeu darumquarto da carne. (...) mandaram chamar-me comurgência. Tomaram conta daminha
Papai ficou animado, porque a fome não é brincadeira. casa e expulsaram minha esposa à força.
Aprimeira vez que obranco abateu um animal, deu oquarto prometido Enfureci-me... eu perguntei:
e papai disse: —mas como puderamfazer uma coisa dessas?... Chegueilá e o sol já
— Por Deus! Que patrão bom. estava se pondo, eu disse:
Quando o branco abateu o segundo animal, disse: — Posso entrar?
—Olha compadre, acarne estáficando muito cara. Não posso mais dar- Me responderam,
lhe um quarto, não posso mesmo.Toma um talho. — Ninguém entra aqui. Eu avancei sem medo...
Da terceira vez disse:
Fronteiras da República
96 Trajetórias, Histórias 97

De onde vem você? Anda, anda! Pois nós compramos Raposa de


na contingência de partir. Em um lance inusitado, Gabriel e seu irmão Abel
Isaias Madeira!
propõem àesposa deGomes acompra desuafazenda, ouseja, departe das terras
Eu disse: que de antes pertencia àaldeia. Com aanuência do SPI, acompra esdrúxula foi
— Não, não vou a nenhum lugar. Eu não vendi a ninguém. Eu não realizada no ano de 1963.
conheço nenhum Isaias Madeira. Como puderam comprar dele? Esta
casa é minha. Ponham-se daqui prá fora! (Raposo, 1972:79-80).
Apartir desta época, Gabriel veio aincentivar acriação de gado naaldeia da
Raposa, bem como sua inserção no mercado regional através da comercialização
Assim Gabriel conseguiu livrar-se temporariamente dostruculentos forastei de um excedente de farinha de mandioca. O fecho de sua auto-biografia bem
ros, mas apenas temporariamente, pois estes voltariam várias vezes para comprova que um certo afã desenvolvimentista o impelia naqueles anos:
ameaçá-lo, eeleteriaquefazerdiversas viagens àsede local dainspetoriado SPI, Vi como os índios da Guiana são muito mais avançados que nós (...)
para denunciar asagressões e pedir providências, sem obter, no entanto, uma Vi lá índios Macuxi que sabem falar inglês, português, macuxi,
solução definitiva. Aliás, o papel do SPI nesse caso parece ter sido bastante wapixana, wai-wai, patamona, ingarikó e todas aslínguas. Osbrancos
ambíguo, consta no depoimento de Gabriel, uma última menção aestes forastei ingleses viajam com eles e pagam oitenta dólares ao mês. Oitenta
rosum tantocomprometedora: "Umdiaestávamos trabalhando. Elespassaram dólares, só para falar!
e Francisco disse:— Saibaque.nós estivemosna inspetoriadepoisde você. Eu
Esta política faria com que Raposa setornasse um modelo, tanto sob a ótica
dei $10.000 cruzeiros parao chefe dainspetoriae elemandou dizerqueaqui tudo
doSPI, quanto daquela damissão católica, que, aofim dadécada de quarenta,
énosso eque nós mandamos aqui" (Raposo, 1972:80). Contudo, otalFrancisco
havia sido transferida dos beneditinos para a ordem italiana de N. S. da
esuairmã adoeceram pouco tempo depois, vindo afalecer emseguida, eGabriel
Consolata. Esteseriao legado queGabriel, aofalecer, noanode1967, deixaria
seria acusado depratic&rfeitiçaria contra ambos, quando então foi chamado a
depor sobre ocaso perante as autoridades civis em Boa Vista, e nesta ocasião às agências indigenistas.
negou as acusações. Odado relevante aqui é que com a morte de ambos, um No entanto, a morte de Gabriel ocorre em um momento de mudanças
terceiro irmão, chamado "Alquivi"venderia a possedasterrasda Raposapara estruturais, que infletiriam decisivamente aintermediação política deque foium
outro fazendeiro, o qual adotaria umanova estratégia com os índios. protagonista exemplar. De um lado, as agências indigenistas não seriam as
mesmas,aomenosemforma: comoaludiacima, a missãocatólicadesestrutura-
Esteoutrofazendeiro, chamadoValdemarGomesapresentou-se dizendoque
se momentaneamente com a saída dos beneditinos até que a ordem da Consolata
seria"muito bom", que faria um cercado para prenderogado e não causar danos
a retome, construindo entre aquelas sociedades indígenas umcampo derelações
aos roçados dos índios nem interferir na aldeia, esegundo Gabriel, "novamente, não de todo coincidente com o de seus antecessores. Por sua vez, o Serviço de
dissemos: — Está bem patrão. Se é assim, pode ficar aqui na nossa terra"
Proteção aos índios, como ébem sabido, nadécada de sessenta, veio asubmergir
(Raposo, 1972:81). Aestratégia deste novo fazendeiro consistiu em escolher o em uma avalanche de acusações de corrupção e desmandos, dando lugar,
próprio tuxaua, no caso Gabriel, paraserseu vaqueiro edesse modo tentarevitar depurado o rondonismo, à Fundação Nacional doíndio.
reivindicações, reclamações ou quaisquer atitudes de hostilidade por parte dos
índios. Gabriel, porém, não sedemoraria no emprego, osconflitos com opatrão De outro lado, a ocupação fundiária de Roraima chegaria consolidada ao
cedo emergiriam, devidos sobretudo ao controleque este último exerciasobre os final daquela década, e viria a atingir seuauge nos anos setenta, amplamente
benefíciosdo leitee dacarne, impedindoque Gabriel repartisse seuquinhão com respaldada pela política desenvolvimentista do regime núlitar. Outro seria,
osde sua aldeia. Impedia assim, note-se, oexercício dagenerosidade que seria portanto, o contexto do contato com que haveriam de lidar os Macuxi. Recapi-
tulemos alguns dados obtidos na história da aldeia deRaposa: osconflitos com
o dever de um chefe.
posseiros, emsuagrande maioria, representam variações acerca dedois antago
As relações com ofazendeiro, a partir deste momento, deteriorar-se-iam; o nismos essenciais, a posse da terra e a exploração do trabalho dos índios.
gado dafazenda passariaapastar 1ivremente pelo território daaldeia, danifican- Configura-se aquiumasituação criadacoma frustração deexpectativas mútuas
do roças, apesar dos protestos de seus habitantes que, representados por Gabriel que sãogeradas nomomento dechegada dos fazendeiros. Traçando umesboço
aoSPI,nãoencontrariam solução. Umfatonovoviriaa ocorrerjá no início dos
esquemático, talsituação seria formada naseguinte seqüência: inicialmente os
anos 60, quando Valdemar Gomes abandona a esposa, e esta sevê igualmente
Trajetórias, Histórias 99
98 Fronteiras da República

índios não oferecem resistências à instalaçãode fazendeiros que, ao chegarem, funcionário do órgãotutor: o chefedaAjudância deSão Marcos a encaminha ao
acenam com artigos manufaturados,como tecidos,ferramentas, aguardente, ou delegado de polícia da cidade de Boa Vista, para "as providências que o caso
mesmo carne e leite de gado em trocade farinhade mandiocae ajudano trabalho requer". Eximia-se assim de qualquer responsabilidade e,o que é mais signifi
para a construção de uma casa, de um curral. Como é evidente no caso de cativo nocontexto denossa discussão, reduzia oepisódio aumdesentendimento
Gabriel, nestemomento, interesses e expectativas recíprocas podiamdarorigem entre pessoas que pareciam agir isoladamente, esvaziando sua dimensão de
conflito interétnico.
a relações de compadrio, ou ainda, conjugais, intermediadas freqüentemente
pelotuxaua. Osatritos, como vimos, começaram comosestragos nasroças dos Desnecessário seria reafirmar a violência que caracterizava, e ainda hoje
índios causados pelo gado, criado solto nos campos, ou, questão igualmente caracteriza as relações interétnicas na área: o episódio fala por si. Deledesejo
exemplar,com a pretensãodofazendeirode cerceara pescados índios,feita com apenas sublinhar o fato deque, diante da insistência dofazendeiro João Alves
o uso de timbó nos lagos e igarapés, cujas águas se tornam momentaneamente em atribuir-lhe a autoria do feito, Aniceto Marques tenta se desvencilhar da
danosas ao gado. O quadro agrava-se irremediavelmente quando o fazendeiro, situação, mencionando seuvínculo a umoutro fazendeiro. Emcontrapartida, a
uma vez instalado, deixa de cumprir a expectativa dos índios em relação ao afirmação de tal vínculo eclipsava sua própria condição de índio, o que nãoo
fornecimento constante de bens que lhes havia sido prometido. O clientelismo, impediu de, posteriormente, buscar aproteção da Fundação Nacional do índio,
assim, revelava-se violência. Ilustra-o, de modo eloqüente, uma denúncia feita apesar disto, como vimos, em nada alterar sua defesa. Em rápidas palavras,
por um índio Macuxi ao administrador da Fazenda São Marcos. Embora o pode-se concluir que, afinal, em um cenário depatrões, havia queser cliente,
documento seja datado de 1969, portanto quase dois anos após a extinção do SPI, imposição de uma realidade construída ao longo de anos de contato, talvez
quando a FazendaSão Marcosjá estava sob a gestão do órgão que o substituiu, duramente sopesada e utilizada pelos índios naquele momento.
a Fundação Nacional do índio (FUNAI), a denúncia feita pelo índio Aniceto
If you hold a stone, hold it in your hands.
Marques é apenas uma narrativa mais detalhada, entre inúmeros outros casos do
If you feel the weight, you'11 never be late
mesmo teor registrados pelos funcionários do SPI nas décadas anteriores4. To understand.
Registra o chefe da Ajudância de São Marcos que, no dia 1 de março de 1969, (Caetano Veloso)
o índio Manoel Aniceto Marques foi abordado por João da Silva Carneiro,
proprietárioda fazenda São Seruê, que o acusavade haver cortado a língua de
uma vaca de seu rebanho. Diante da negativa de Aniceto, o fazendeiro e seus Notas

capangas forçaram-no, sob a mira de um revólver, a acompanhá-los à fazenda


São Seruê. Lá chegando, Aniceto foi espancado barbaramente para que confes 1 Sobre as aldeias Macuxi na Guiana ver James Williams(1932:7-12) e íris Myers
sasse, e instado a ressarcir o pretenso dano: "como é, caboclo, você paga ou não (1944/1946,26:16-38).
paga a língua da minha vaca?" Acuado, Aniceto compromete-se, por fim, em 2 Depoimento de Simão, Maracanã, janeiro 1986:
pagar a dívida que lhe imputava o fazendeiro, muito embora não reconheça ... tuxaua que teve aqui, tem um lugar ali chamado"Karuglu"... o nomedele
responsabilidade no caso. Em uma tentativa desesperada de livrar-se de seus é Adão... Esse tuxaua não consentia que branco nenhum entrasse, nem inglês,
perseguidores, alega ter que ir, "pois meu patrão está me esperando, para levar então os americanos chamavam ele lá pro Anaí. Anaí, depois no igarapé do
o gado". Milho... no igarapé do Milho prá entrar em acordocom ele, prá pedir terra
sabe? Pedir terra pro pessoal dele qie tinha muito, tava aumentandoo pessoal,
Porém, no dia seguinte, quando os capangas de João Alves Carneiro foram
a população dele, então já respondia: "Não, eu não consintoporque eu tenho
até a fazenda Santo Onofre, em que trabalhava, para cobrar a dívida, Aniceto
muito pessoal também,eles tão aumentando,podedepoisde euconsentir,você
postergou o pagamento,indo mais tarde buscar apoio na Fundação Nacionaldo entrar lá com seu pessoal, depois eles brigarem, meu pessoal com o seu, então
índio. não quero isso. " Vieram um branco aqui já antes dele; o tuxaua não tinha
A trama em que se vê envolvido Aniceto parece-me iluminar, à guisa de morrido, tava vivo ainda só que ele veio aqui pedir lugar novamente, um branco
conclusão, as múltiplas facesdoclientelismo queaquitentamos explorar. Note- com o nome de tenente Cícero... Então ele pediu lugar e veio um, um homem
se, inicialmente, o tratamento individualizador dispensado à questão pelo
100 Fronteiras da República Trajetórias, Histórias 101

que é vaqueiro dele por nome Plácido, que realmente é tio daquela mulher que Depoimentoprestadopelo índio ManoelAniceto Marques, contra a pessoa do
nós tivemos conversa (D. Marinha —fazenda Sto. Antônio do Pão). senhor João da Silva Carneiro, vulgo João Alves.
Então ele veio e tinha mais um índio também na companhia deles que é Labadi, Que no dia 1 do corrente mes, nos campos da Fazenda Santo Onofre,
lá da maloca da Cachoeira, hoje em dia ele é falecido. Mas não tinha ninguém pertencente ao senhor Francisco José da Silva, o índio Manoel Aniceto
de branco, ainda quando esse branco veio pedir permissão para trazer, prá ele Marques, foiabordado pelosenhor JoãodaSilvaCarneiro, "vulgo"JoséAlves,
vim aqui morar ... O branco veio tinha um tuxaua já segundo tuxaua ali no residente na Fazenda São Seruê de sua propriedade, que depois de perguntar
Morro, o nome dele era Lino. Então ele enganou ele, dizendo que ia dar gado se fora ele, o índio que cortara a língua de uma VACA pertencente ao mesmo
prá ele também, sabe, ia fazer tudo para ele, então o homem consentiu... lá senhor,e tendorecebido aresposta negativa, dequeele,oíndionuncateriafeito
já esse índio consentiu, depois que esse Adão tinha falecido; e ele não consentia, talcoisa, uma vesque noperíodo de talacontecimento elese encontrava fora
agora esse outro consentiu, então ele consentiu e depopis entrou gado nba rocça onde se dera o tal acontecimento.
dele, disse tuxaua aí, e esse tuxaua ficou bravo, expulsou ele todinha, então o
Depois de muito insistir perguntando a mesma coisa, e sempre recebeu a
branco retirou o gado dele todinho, tudo, tudo, tirou o gado dele. Então nesse
resposta negativa, o índio disse ter que ir embora, pois teria que levar um
tempo ele trouxe três polícias,três polícias com ele, esse fazendeiro (tenente
rebanho de gado para o curralde seu patrão, foi convidado para ir com João
Cícero)...
Alves a FazendaSão Saruê,queo índiorespondeu nãoter nadaque ir fazerlá,
... depoisficou,voltouno que estava. Não tinhamais gado prá preocupareles e que iria sim levar o gado para a Fazenda onde trabalhava, foi quando o
também, e depois que foram embora chegou outro de nome João Mendonça, referido senhor, João da Silva Carneiro, puxou de um revolver pondo em cima
então este roubou um gado desviado lá da Guiana, então ele trouxe lá no Apertar do índio dizendo, ou você vai comigo ou eu lhe mato aqui mesmo.
da Hora que rea roubado e não podia ficar assim... é, livre, então ele escondeu
Dada a impossibilidadede defesa, o índio resolveu seguir o dito senhor, que
lá num lugar isolado... esse João Mendonça concordou com tenente Cícero,
depois de ter chegado a sua Fazenda, entrou dentro da casa depois de ter
já tava julgando dono daqui, então ele vendeu prá João Mendonça, João
conferenciado com seus filhos e um capanga, voltou trasendo nas mãos uma
Mendonça pagou, açi trouxe o gado que ele tinha roubado, começou a trazer
pêiade pêiarcavalos, e depois dechegarperto do índio disseAGORA VOCO
mais gado... prá acontecer o que está acontecendo... daí prá frente apareceu
CONFESSA QUE CORTOU A LÍNGUA DE MINHA VACA. O índio
o garimpo, então aí foi onde foi a invasão, chegou a invasão. Os brancos que
respondeu nãosenhor seu João, eu nãocorteia língua de sua vacanão,dada
não tinham fazenda, só tinha a fazenda do João Mendonça... Naquele tempo
a resposta o senhor Joãopassou a surralo coma pêiae ameaçalo comumafaca
o pessoal não tinha muita encrenca com eles também. Agora só quando um
quetrasia nasintura, e quedepois veioparajuntodosmesmos mais dois filhos
índio fazia um erro, como aconteceu lá na Santa Teresa, um índio flexar uma
e um capanga, um negrote de nome CAKI, um de seus filhos puchou de um
vaca; lá o branco, o vaqueiro deu uma pisa no velho, que hoje em dia ele é
revolvere passoua ameaçalocom o mesmodizendo,se correrescabocloeu te
falecido... mas fora disso acho que não sei se eles tem alguma coisanão sei,
atiro, daí entrou em ação o tal capanga CAKI, que passou a querelo agarrar o
àsvezes eles não contamdireito.Tem o índio, sujeito eradependente do branco,
índio para que o patrão pudessesurralo como queria, foi quandoo indiovendo
mas... não empatava eles pescarem e tocar fogo como hoje tá acontecendo .
que seria barbaramente espancado, resolveu correr, correu cerca de um
.. O Mendonça era uma pessoa, assim ruim, sabe, como se diz, ruim, mas nunca
quilômetro, quando foi alcançado pelosdoisfilhos doreferido senhor, umdos
maltratou os índios... Quando ele matava gado, ele dava carne prá eles aí, toda
quais veio montado no cavalodo próprioindio,João Alvese o negrovinham
vez, mas que não faltava . . . agora os outros queriam que os índios
a pé, um dos filhosquandoo alcançou sacou de um revolvere disse pára senão
trabalhassem, trabalhassem só prá eles, trazia as coisas só prá eles . . .
é pior, e comoo indionãoquisera pararrecebeu umtiroa queimarroupa, que
trabalhavam ainda na roça e nos garimpo, assim por diante, comboiando,
lhepassou pertodaspernas, maisadiante o mesmo rapaz, filhodosenhorJoão
trazendo carga lá na Carnaúba, quase perto de Boa Vista de à pé e tocando boi
Alves o cercou e disse não corre, pára se não é pior para ti, o índio já muito
... meu pai aí, tá acostumado a contar prá nós que ele trazia cargas e cargas
cançado resolveu parar, e logo em seguida chegava o senhor João Alves
de cachaça prá vender aí nos garimpo dos branco... e os branco só esperando
Carneiro "vulgo" João Alves, e o seu capanga o negrote CAKI, João Alves
aí na casa dele ...
disse, como é caboclo, você paga ou não paga a língua da minha vaca? daí o
3 Para uma brilhante análise de situação análoga entre os Ticuna, veja-se J. índio respondeu, olha seu João, eu vou pagar, prá que o senhor me deixe em
Oliveira P, 1986. paz, mais não fui eu quem cortou a língua de sua vaca, eu pago para o senhor
4 Segue a transcrição do depoimento: me deixar ir para casa, pois meu patrão está me esperando, para levar o gado.
102 Fronteiras da República

Depois pediu o seu cavalo do filho do dito senhor, o quelhe foi entregue.
No outro diabem cedo, chegara nafasenda Santo Onofre dois portadores do
senhor João Alves Carneiro, para receber opagamento detallíngua, sendo um CONCLUSÃO
deles o tal CAKI, que perante muitas pessoas ali existentes enclusive o dono
dareferida fasenda, osenhor Francisco José daSilva, que ouviu quando oindio
disse, que pagaria, porem não teria sido outro, digo, autor detalfaçanha, que
foi testemunhado pelos presentes.
O índio não pagou a línguae veio procurarseus direitos na FNI do Território,
Ajudância de São Marcos.
Pelo exposto acima, solicito as providencias que o caso requer.
Ajudância de São Marcos, 17 de março de 1969
Ivan Edson Gadelha — Chefe da Ajudância
(ms. CDEI Museu do índio)
Ao focalizar a formação de grandes aldeias Macuxi, sob a ação de agências
indigenistas na área do rio Branco na primeira metade do século, procurei
demonstrarqueo impactoinicialdocontatofoi,sobretudo, umimpacto político.
Àguisa deconclusão, gostaria deindicar asimplicações mais gerais decorrentes
deste processo, à luz da literatura etnográfica da região.
Grandes aldeias, compostas por vários grupos domésticos, segundo a
etnografiarecentedesta área,parecemser um fenômeno bastantedifundidonas
sociedades guianenses, em conseqüência do contato,em particular, da atuação
de missões religiosas e agências governamentais (Thomas, 1973:78-112;
Urbina, 1986:191). No entanto, tal fenômeno não seria decorrente apenas do
processo de contato,mas, conforme afirma Colson, procedendo a um balanço
dos trabalhos apresentados no simpósio Carib Political and Social
Organization, em período anteriorà consolidação da ocupaçãoda área,quando
o contato com aquelas sociedades era ainda incipiente, sua existência era
verificada: os exploradores do início do século XLX, já faziam referências a
aldeias de alta densidade demográfica na região do monte Roraima. A autora
(1986:378) registra haver encontrado, na década de 1950, algumas grandes
aldeiascompostaspor váriosgruposdomésticosentreos Akawaio.Suaocorrên
cia, mais recentemente, é ainda atestada por Villalon(1986:62),que descreve
mega aldeias entre os E'napa, povo de língua Carib na região do médio rio
Orinoco.
As grandes aldeias Macuxi constituídas no início do século, que aqui
discutimos, apresentam em comum, como tentei demonstrar, não apenas a
interferência de representantes da sociedade nacional, mas, e principalmente, a
convergência de propósitos daqueles representantes e das liderançasindígenas
nestas aldeias.
104 Fronteiras da República Conclusão
105

Com efeito, a presença de representantes da sociedade regional e de agentes 1986), as grandes aldeias Macuxi teriam se formado com a reunião de vários
indigenistas estende-se, no períodoexaminado, a um grandenúmerode aldeias grupos domésticos sem que esta articulação tenha afetado drasticamente sua
Macuxi, sem que, no entanto, em todas tenhaocorrido necessariamente o mesmo composição interna. Osdados apresentados porDiniz (1979:61), para a década
fenômeno, isto é, a reunião de múltiplos grupos domésticos formando uma de 1960, indicam que os grupos domésticos Macuxi compunham-se em média
unidade de alta densidade demográfica, e, portanto, um dilema político, se de 7,9 membros, cifra bastante próxima à média verificada para o grupo
considerarmos o padrãopolítico tradicional, evocado no terceiro capítulo. Isto doméstico em outrassociedades na áreaguianense (veja-se Thomas, 1973:63-
não terá ocorrido, por exemplo, na aldeia Macuxi, batizada pelos monges 64; Villalon, 1986). A afirmação deVillalon (1986:62) quanto aos E'õapa, de
beneditinos com o nome de São Jorge, no vale do rio Surumu, onde vieram a se que o processo de formação de grandes aldeias mostra uma tendência à
agregar apenas mais uma ou duas famílias nucleares ao grupo doméstico combinação dos grupos domésticos, e não à suafusão ouà dissolução, poderia
original: seu principal líder relembrava, háalgum tempo atrás, quepreferia que assim serestendida a outras sociedades naGuiana. O contraste marcado pelos
outrapessoa seincumbisse dasfunções detuxaua, poissentia-se intimidado para Macuxi é que, no contexto do contato, este processo parece ter se ampliado,
desempenhara função "porque não sabia falar português" (Severino Barbosa, disseminando-se por várias aldeias.
depoimento, janeiro/1986). Neste caso encontra-se ainda a aldeia Limão, que
A mudança na configuração espacial das aldeias, com a reunião de vários
mencionei no capítuloanterior,onde,apesardos esforçosdos agentes do SPI e,
grupos domésticos, aparentemente conflita com a manutenção de um território
sobretudo, dosbeneditinos, que,naintençãodeformaremumaliderança, haviam
Macuxi inalterado. Poder-se-ia argüir quea expansão interna daaldeia variava
educado José Armando na escola da missão, não obtiveram os resultados
narazão inversa damanutenção doterritório, provocando suaretração. Isto, no
esperados emvirtude dalongarecusa deJoséArmando em adequar suaprática
entanto, nãoocorreu, o quese explica, a meu ver,precisamente porconsistir a
política ao projeto indigenista.
alta demográfica um dado previsto naorganização social. Fusão, dissolução, e
Creio,portanto, ser possível, nestecontexto, avançarum passo com relação também combinação, sãomovimentos das aldeias pelo território emque, como
à afirmativa de que,na áreaguianense, aldeias de altadensidade demográfica só bemcolocou Jimenez (1971), podemos lera história política destas sociedades.
semantêm devido àpresença deforças externas aodomínio doparentesco (veja-
Asfazendas chegaram; os Macuxi acorreram para ver deperto os"monges
se, por exemplo,Thomas 1982:98).Sugiro,diante do caso das grandes aldeias
barbados"; tuxauas foram feitos e desfeitos, mas, em virtude desta feição
Macuxi que foram convertidas em centros de atuação dos missionários
singular da estrutura social que viemos discutindo, o território Macuxi perma
beneditinos e dos agentes do SPI no início do século, que tais forças externas nece, demandando seu justo reconhecimento.
constituíram-se em alternativas para a dinâmica política interna ao grupo,
através das quais, os chefes tentavam atrairco-residentes, ampliando sua rede
de relações. Levavam, assim, a um limite as possibilidades dadaspreviamente
no sistema político tradicional. Tal alternativa teria sido então apenas uma,
dentre outras formas possíveis de lidarcoma situação de contato.
Porém, se o crescimento da população de certas aldeias é a mudança mais
visível emque se evidencia esteprocesso, suasignificação também é dada pelo
quenãofoi afetado como impacto inicial do contato: a composição internados
grupos domésticos, o território tradicional Macuxi e a cifra total dapopulação.
A atuação das agências indigenistas, como vimos, incidiu decisivamente
sobre os grupos locais, constituindo-se em um fator de peso para aformação de
grandes aldeias. No entanto, eudiria que aformação destas unidades mais densas
não parece ter interferido na composição interna dos grupos domésticos. De
modo análogo ao ocorrido entre os outros grupos Pemon (Urbina, 1986;
Thomas, 1982), entre os Kapon (Colson, 1986) e entre os E'napa (Villalon,
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