Você está na página 1de 9

História da América Pré-colombiana

UNISINOS
Profa Maria Cristina Bohn Martins

As cidades perdidas da Amazônia

Arqueólogos estão descobrindo que uma parte da floresta já foi "urbanizada", com cidades
conectadas por estradas1.

Kuhikugu, no Xingu: a maior “cidade” já descoberta pelos arqueólogos na amazônia brasileira.

É inevitável pensar na floresta amazônica como uma gigantesca mata virgem, praticamente
intocada. Embora saibamos que a região é habitada por dezenas de povos indígenas, a ideia
predominante no imaginário das pessoas é a de que eles sempre viveram em perfeita harmonia
com o ambiente, interferindo o menos possível na natureza e tirando dela apenas o essencial
para sua sobrevivência. Ao que tudo indica, essa visão romântica está completamente errada.
Não que tenham sido erguidas na Amazônia pirâmides ao estilo das construídas por maias e
astecas na América Central – isso continua sendo pura ficção. Mas descobertas arqueológicas
feitas nas últimas 3 décadas indicam que, antes de o Brasil ser descoberto, a população nativa
da Floresta Amazônica era muito mais numerosa e sofisticada do que se costuma imaginar.

Entre os anos de 1000 e 1400, aldeias muito grandes, interligadas por boas estradas, dominavam
certas regiões. Em outras, grupos de até 15 mil habitantes erguiam aterros com cerca de 10
metros de altura para construir suas casas sobre eles e evitar as inundações. “Existiam
sociedades complexas no rio Amazonas quase inteiro, no médio e baixo Orinoco, na Bolívia e em
outras áreas”, diz o arqueólogo americano Michael Heckenberger, que há anos estuda um
conjunto de agrupamentos desse tipo no Alto Xingu. “Em 1500, a Amazônia provavelmente era
uma área de enorme variabilidade cultural, com grupos regionalmente interligados.”

Tribos marajoaras

A ideia de uma Amazônia “urbanizada” na verdade é antiga. Quando os primeiros exploradores


espanhóis desceram o rio Amazonas vindos dos Andes, em 1542, o cronista da missão – um
frade dominicano chamado Gaspar de Carvajal – descreveu-a como um lugar densamente
povoado. “Quando nos viram, saíram para nos encontrar no meio do rio mais de 200 pirogas
[canoas], cada uma com 20, 30 ou 40 índios”, escreveu o frade. “Em terra firme, era maravilhoso
ver os esquadrões que existiam nas vilas, todos tocando instrumentos e dançando.”

Do século XVII em diante, descrições desse tipo tornaram-se raras, o que levou muitos céticos a
considerar que Carvajal e outros exploradores exageravam bastante nos relatos. Com o advento
da arqueologia científica, no século XIX, ganhou força a hipótese de que o calor excessivo, as
chuvas constantes e o solo pobre em nutrientes inviabilizariam o surgimento de qualquer tipo
de civilização na Amazônia, já que seria impossível produzir alimentos para sustentar grandes
populações. A partir da década de 1980, porém, essa visão começou a ser questionada. As

1
Adaptado de Reinaldo José Lopes, 13 abr 2018. https://super.abril.com.br/historia/as-
cidadesperdidas-da-amazonia/
descobertas começaram na foz do Amazonas, onde trabalhava a arqueóloga americana Anna
Roosevelt, da Universidade de Illinois. Na Ilha de Marajó, ela estudou os chamados tesos –
morros cuja origem é parcial ou totalmente artificial. Concluiu que eles haviam sido construídos
por uma grande população marajoara por volta do ano 1000. Os chefes tribais teriam usado os
tesos como fortalezas e postos de observação. Foi desse povo também a ideia de construir
aterros anti–inundação. Pelo volume de material encontrado nos sítios arqueológicos, acredita-
se que podem ter vivido ali cerca de 15 mil pessoas no século XVI

A lenda de Z

No dia 20 de abril de 1925, o explorador britânico Percy Fawcett, seu filho Jack e o amigo Raleigh
Rimmell deixaram Cuiabá, no Mato Grosso, rumo ao Alto Xingu buscando descobrir a “cidade
perdida de Z”, uma suposta civilização avançada que teria existido no meio da Amazônia. A
pequena expedição desapareceu e ninguém sabe exatamente qual foi o destino dos seus
integrantes. Será que as sociedades complexas da Amazônia pré-Cabral inspiraram a lenda de
Z?

Pode ser. Já a ideia de Eldorado – uma cidade abarrotada de ouro e prata escondida no meio da
floresta – nada tem a ver com Fawcett nem com o Brasil. Ela provavelmente nasceu na América
Central, a milhares de quilômetros do Xingu, por obra da imaginação de conquistadores
espanhóis inspirados nas cidades erguidas por maias e astecas nas florestas tropicais daquela
região.

Geoglifos do Acre

A mais de 2 mil quilômetros de distância da Ilha de Marajó, no Acre, existe outro tipo de vestígio
das civilizações que prosperaram na Amazônia antes da chegada de Pedro Álvares Cabral. São
geoglifos, desenhos geométricos que só podem ser notados quando vistos do alto – mais ou
menos como as linhas de Nazca, no Peru.
“Essas figuras indicam que a floresta acreana teve uma ocupação densa por volta do ano de
1200”, diz o pesquisador Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre. Formando quadrados,

retângulos e losangos, os desenhos chegam a ter 300 metros de diâmetro e são delimitados por
trincheiras com até 3 metros de profundidade. A maioria só foi identificada recentemente, por
causa do desmatamento na região. Antes, permaneciam encobertos pelas árvores.

Ranzi considera que ainda é cedo para dizer como os geoglifos foram feitos e qual era a sua
função original. Muitos ficam em áreas relativamente elevadas. Portanto, diz o pesquisador,
podem ter sido usados para monitoramento e defesa do território. Outra possibilidade é a de
que as grandes trincheiras funcionassem como tanques para a criação de peixes e tartarugas. É
possível que os indígenas tenham desmatado vastas áreas do Acre para criar sua rede de
geoglifos – são mais de 200 num raio de apenas 250 quilômetros quadrados. “Mas tendo a
acreditar que, por causa de fenômenos naturais como El Ninõs excepcionalmente intensos, o
ambiente não era de mata fechada na época da ocupação”, diz Ranzi. O pesquisador calcula que
uma população de aproximadamente 60 mil pessoas vivia na região.

Superaldeias do Xingu

No Alto Xingu, estudos liderados pelo arqueólogo Michael Heckenberger também estão
revelando a face “urbana” que a Amazônia já teve. Trabalhando em parceria com membros da
etnia cuicuro, ele afirma ter identificado uma rede de antigas vilas – a maioria também do
período imediatamente anterior à chegada dos europeus – que fazem as atuais aldeias indígenas
parecerem anãs.

Organizados em grandes círculos e com capacidade para abrigar milhares de pessoas, esses
agrupamentos eram cercados por fossos de vários metros de largura e profundidade, cercadas
por paliçadas e interligadas por estradas respeitáveis, com até 40 metros de largura. Eles teriam
surgido no século IX e atingido seu apogeu cerca de 400 anos depois, no século XIII. Mantinham
entre si relações de poder e hierarquia. Faziam alianças, negociavam e guerreavam, também.
No auge, alguns desses núcleos chegaram a ser endereço para mais de 2 mil moradores. Não se
sabe exatamente como eles desapareceram, mas é provável que vários tenham entrado em
colapso antes da chegada dos europeus.

Há indícios de que os índios da rede de superaldeias amazônicas produziam para sustentar a


população que, somada, chegava a 50 mil habitantes. Imagens de satélite já revelaram áreas de
floresta que provavelmente foram roças ou pomares. E até hoje existem na região trechos de
mata virgem que produzem frutos comestíveis em quantidade bem acima da média – provável
herança do tempo em que os nativos manejavam habilmente a floresta, selecionando as plantas
mais frutíferas para complementar seu sustento. “É como se esses antigos habitantes do Xingu
tivessem um modelo alternativo de organização”, diz Heckenberger. Em vez de juntar todo
mundo num único – e insustentável – agrupamento, eles viviam distribuídos em vilas de
pequeno ou médio porte, mas conectadas por estradas que viabilizavam a formação das redes
de comércio e o intercâmbio cultural.

Todos esses dados – sempre é bom lembrar – ainda são preliminares, mas levam a crer que a
Amazônia pré-Cabral abrigava muito mais gente do que se costumava imaginar anos atrás. É
provável que a densidade populacional tenha despencado com epidemias trazidas pelos
europeus, como parece ter acontecido em outras regiões das Américas. Mas isso não impediu
que as civilizações da Amazônia deixassem alguns legados. Na tradição oral dos cuicuros e de
outros povos do Xingu, há referências às grandes obras do passado. E a cerâmica indígena
produzida hoje é bastante similar à encontrada em vários sítios arqueológicos.

*****

Pesquisa revela civilizações antigas com até 1 milhão de


habitantes na Amazônia

Boa parte da Amazônia ainda é um mistério para os arqueólogos. Por muitos anos, reinou a
crença de que a floresta não havia abrigado grandes civilizações antes da chegada dos europeus
– como houve no Peru com os Incas; ou no México com os Maias. Acreditava-se, também, que
os antigos povos pré-colombianos da região ficavam restritos apenas nas áreas próximas aos
principais rios. 2

Estavam errados. Agora, arqueólogos da Universidade de Exeter encontraram evidências de que


civilizações com até 1 milhão de habitantes, divididos em diferentes comunidades, viviam no sul
da Amazônia, longe dos principais rios, antes da chegada dos portugueses. Os sítios se
encontram na bacia do Alto Tapajós, noroeste do Mato Grosso. Brasileiros da Universidade
Federal do Pará (UFPA), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade do
Estado de Mato Grosso (UEMT) também participaram das pesquisas.

A descoberta foi possível graças a imagens de satélites que identificaram 81 novos sítios
arqueológicos na região. Em seguida, foi realizada uma expedição que encontrou cerâmicas,
ferramentas e vestígios de dejetos. Além disso, foram encontrados geoglifos – valas escavadas
na terra, que formam desenhos que só podem ser vistos do alto. A teoria é que essas instalações
servissem como cenário de rituais. Parte das aldeias identificas estão cercadas por valas ou

2
ttps://super.abril.com.br/historia/pesquisa-revela-civilizacoes-antigas-com-ate-1-milhao de habitantes-
na-amazonia
fossos com profundidade entre 1m e 3m, possivelmente para evitar ataques de tribos rivais e
animais.

Também foram encontrados vestígios da chamada “terra preta de índio”, um tipo de solo gerado
por meio da ação humana, como a queima controlada de madeira e o manejo de restos de
animais. A terra preta é mais fértil do que a maioria dos solos naturais amazônicos e é
comumente usado para cultivo de plantas. O fato de existirem vestígios de aldeias fortificadas,
terraplanagem e plantações por lá desmente a noção que nós tínhamos de que a floresta
tropical era praticamente intocada pela agricultura. Como os índios venceram uma mata tão
densa, é difícil dizer. Uma das possibilidades é que o clima com períodos secos da região pode
ter facilitado a derrubada de parte das matas, além da terraplanagem.

As dimensões dos sítios arqueológicos variam entre 30 e 400 metros de diâmetro. Estimam que
essas sociedades viveram por volta de 1250 dC e 1500 dC. Ainda falta muito o que descobrir,
mas, gradualmente, estamos juntando mais informações sobre a história da maior floresta
tropical do planeta.

Arqueólogos descobrem grandes áreas urbanas na Amazônia pré-histórica3

Grupo encontrou 'cidades' de 700 anos cercadas com muralhas e fossos. Comunidades
lembravam assentamentos medievais ou da Grécia Antiga.

Tire da sua cabeça a velha ideia de que a Amazônia antes de Cabral era um grande vazio, um
monte de "mato" com duas ou três tribos indígenas vagando ao léu. Essa visão está indo por
terra há tempos, e acaba de levar uma nova pancada num artigo científico publicado nesta sexta
(29). Pesquisadores americanos e brasileiros estudaram a região do Alto Xingu, em Mato Grosso,
e acharam indícios de uma rede de assentamentos urbanos defendidos por muralhas e fossos,
unidos por largas estradas e organizados em torno de centros rituais que lembram os que ainda
são usados pelos índios da área. Trechos do Xingu que hoje parecem mata virgem ainda
guardam, na verdade, as cicatrizes de "cidades" perdidas de 700 anos, afirmam os cientistas em
pesquisa na revista americana .

As aspas em torno da palavra "cidades" são necessárias porque, ao que parece, os ancestrais
dos índios cuicuros e outros povos do Alto Xingu não usavam o espaço da maneira urbana
tradicional, empacotando grande quantidade de casas num só lugar. Em vez de um conjunto de
arranha-céus, seus assentamentos estão mais para um condomínio fechado com vasta área
verde. Eles combinavam uma sucessão de vilas, unidas por estradas (as maiores com até 50 m
de largura), com trechos entremeados de lavouras de mandioca, florestas manejadas e mata
virgem.

"O problema é que, se você acha esse tipo de coisa na Europa, é uma cidade. Se você acha isso
em outro lugar, tem de ser outra coisa", explicou em comunicado oficial o arqueólogo americano
Michael Heckenberger, coordenador da pesquisa, que trabalha na Universidade da Flórida em
Gainesville. "Elas têm planejamento e organização incríveis, mais do que muitos exemplos
clássicos do que as pessoas chamam de urbanismo", diz Heckenberger. O arqueólogo trabalhou,

3
Disponível em: G1 > Ciência e Saúde - NOTÍCIAS - Arqueólogos descobrem grandes áreas urbanas na
Amazônia pré-histórica (globo.com) Consultado em 02/07/2023
no Xingu, junto com especialistas como os antropólogos Carlos Fausto e Bruna Franchetto, do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e com Afukaka Kuikuro, da tribo dos
cuicuros, que também assina o estudo.

Polêmica de terminologia à parte, o certo é que, para os pesquisadores, as comunidades urbanas


do Mato Grosso pré-Cabral tinham mais ou menos o tamanho de uma cidade média da Grécia
Antiga (Esparta, por exemplo, que era relativamente modesta) ou da Idade Média (Coimbra na
época em que o reino de Portugal foi fundado, digamos). Tais como essas comunidades antigas,
as "cidades" do Xingu se organizavam em torno de uma praça central, com cerca de 150 m de
comprimento, que servia para reuniões e atividades religiosas rituais.

Dique para captura de peixes era comum nos assentamentos e ainda é usado por índios cuicuros (Foto:
Science/AAAS)

Segundo Heckenberger, os assentamentos estavam organizados de forma hierárquica, com


"cidades" centrais maiores e vilas subordinadas, dispostas a poucos quilômetros de distância
umas das outras, de maneira que uma caminhada de 15 minutos era suficiente para ir de um
local a outro. As estradas que cortavam os conglomerados de assentamentos se organizavam
de acordo com princípios astronômicos simples, orientando-se de nordeste para sudoeste.

Na região estudada pelos cientistas com a ajuda de aparelhos de GPS e guias indígenas, os
assentamentos parecem ter se organizado em duas "ligas" de "cidades" e vilas, cada uma com
território de uns 250 quilômetros quadrados e população combinada de 50 mil pessoas. Além
das muralhas (feitas com paliçadas), fossos e estradas, elas eram servidas por infraestrutura de
pontes, diques para captura e manejo intensivo de peixes e canais usados para o transporte via
canoa lado a lado com as estradas.

Toda essa complexidade urbana e social traz à baila a questão inevitável: o que aconteceu?
Como a região deu lugar às aldeias e tribos relativamente modestas de hoje? O que os
arqueólogos sabem é que o apogeu das "cidades" do Xingu foi de 700 a 500 anos atrás.
Coincidência ou não, o período se encerra com a chegada dos europeus à América do Sul.

Acredita-se que o declínio das populações indígenas no continente esteja fortemente associado
às doenças europeias, contra as quais seu organismo não tinha imunidade, e as epidemias de
varíola, peste bubônica e outras moléstias apareciam mesmo entre povos que não tinham tido
contato direto com os colonizadores -- bastava se encontrar com outros nativos já infectados.
Por isso, é bem possível que esses males estejam por trás do fim do urbanismo amazônico.

Arqueólogos descobrem conjunto de ilhas artificiais pré-coloniais na Amazônia4

Pesquisadores atribuem construções monumentais a populações indígenas da Amazônia Antiga

‘É construção de índio’, explicaram os ribeirinhos sobre o lugar onde moram: as cerca de 20 ilhas
artificiais recentemente descobertas por arqueólogos do Instituto Mamirauá na região do
Médio e Alto Solimões, na Amazônia. As ilhas são sítios arqueológicos de antigas aldeias
construídas em áreas de várzea nos períodos pré-colonial e colonial. Nomeadas pelas
populações locais como ‘aterrados’, as estruturas de terra ficam próximas a áreas com
depressões, chamadas de ‘cavadas’, de onde foi retirado o material para a construção das ilhas,
há centenas de anos. Na Amazônia, construções similares foram encontradas na Ilha do Marajó,
no Pará, e em Llanos de Mojos, na Bolívia. Agora, mais uma vez, a comunidade científica
encontra evidências do que foi visto e descrito no século XVI por cronistas europeus que
percorreram os rios e matas do interior da Amazônia e que também é corroborado pela tradição
oral das populações do presente.

Primeiras descobertas

As primeiras informações sobre essas construções na região do Médio Solimões, no Amazonas,


foram coletadas em levantamentos de campo realizados na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Amanã, em 2015. Em julho de 2018, um “aterrado” foi encontrado durante uma
expedição ao rio Juruá, na mesma região.

A descoberta foi possível após a indicação de um ribeirinho de uma comunidade da Reserva de


Desenvolvimento Mamirauá, unidade de conservação da região e uma das principais áreas de
atuação do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência,

4
https://www.mamiraua.org.br/noticias/arqueologia-ilhas-artificiais-pre-coloniais-amazonia-antiga.
Acessado em março de 2020
Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Depois disso, foram encontradas mais três no
rio Jutaí e outras cinco nos rios Japurá e Auatí-Paraná.

O conjunto

Guiado por informações de um morador da cidade de Tonantins (AM), o arqueólogo do Instituto


Mamirauá Márcio Amaral subiu, em outubro, para a região do rio Içá, no Alto Solimões. Depois
de cinco dias de viagem a barco, o pesquisador descobriu um conjunto de treze ilhas artificiais.
“Esse número, que pode ser ainda maior, configura um padrão de ocupação em uma área ainda
maior do que as ilhas encontradas no Marajó.” Cada uma apresenta área entre 1 e 3 hectares e
medem de seis e sete metros de altura.

“Faz a gente ponderar a quantidade de pessoas necessárias para construir, movimentar milhares
de metros cúbicos de terra e fazer uma organização desse tipo. É preciso ter pessoas,
organização para coordenar essas pessoas e é preciso ter engenheiros que projetaram essas
estruturas para elas se sustentarem”, afirma o arqueólogo. Os achados corroboram a teoria de
que a Amazônia era densamente populosa e composta por sociedades complexas e organizadas
antes da chegada dos europeus. As construções das ilhas estão em uma área atribuída aos
antigos omáguas, povo indígena do tronco tupi que figura também nas crônicas antigas de
navegadores espanhóis e portugueses que passaram pela região entre os séculos XVI e XIX.

Acredita-se que os omáguas são ascendentes dos atuais kambebas, etnia amazônida com
aproximadamente 1.500 indivíduos em território brasileiro. Foram encontradas cerâmicas do
estilo corrugado, caracterizado esteticamente pelas ‘rugas’, camadas modeladas nos vasos e
peças. O estilo cerâmico datado do século 15 e 16 é comum a grupos tupis. Testemunhos dos
ribeirinhos da região dão mais pistas sobre a história das ilhas da região. Há relatos de
reocupação das ilhas artificiais ao final do século 19 e início do século 20 por um grupo indígena
que teria sido dizimado pela varíola, sobrevivendo apenas uma criança.

O indígena sobrevivente foi adotado por uma família do município de Santo Antônio de Içá e
teve um filho, hoje um pedreiro de cerca de 70 anos. “É necessário localizarmos ele e tentar
descobrir a que grupo pertencia o pai dele, se eram kambeba é uma evidência fascinante e
indicativo de que descendentes dos omáguas estariam provavelmente reocupando os aterrados
até o início do século passado”, explica o arqueólogo. Também foram identificados fragmentos
de cerâmica do estilo Hachurada Zonada, tipo ainda mais antigo – acredita-se que por volta de
mil a.C.

Estratégias de sobrevivência

Não fosse a construção das ilhas, a área onde elas estão ficariam completamente inundada por
ao menos seis meses do ano pela dinâmica de secas e cheias da várzea. Espécies encontradas
abundantemente nos locais de terra firme e cultivada pelas populações tradicionais da
Amazônia, como o açaí, não prosperariam nessa região. Os ribeirinhos atuais relatam a
existência de antigos currais de quelônios5 na região. As “cavadas”, áreas de onde foi retirada a

5
Tartarugas
terra para formar a ilha, podem ter sido utilizadas com este propósito. Seria um modo de
garantir fonte de proteína animal nas chamadas entressafras, quando o alimento é escasso.

Em varreduras de superfície das ilhas também foram encontrados vestígios do chamado ‘pão de
índio’, material orgânico que indica técnica tradicional de armazenamento de alimentos de
origem vegetal. Além disso, as localizações dos aterrados não eram escolhidas ao acaso. “Os
aterrados estão posicionados em bocas de paranás e lagos com uma quantidade enorme de
recursos pesqueiros. Tem muito peixe, quelônios, jacarés, é uma fauna muito rica. Então é uma
localização estratégica”, diz o pesquisador. Márcio afirma que os dados são importantes para
entender como os indígenas moldavam a paisagem, manejavam os recursos naturais e
desenvolviam estratégias de sobrevivência adequadas ao ambiente em que viviam.

Arqueologia e tradição oral

“É importante ressaltar que as pessoas já conheciam, mas isso era ignorado ou desconhecido
pela comunidade científica”, diz Márcio que, antes de mais nada, conversa com moradores da
região onde busca fragmentos e indícios de ocupações milenares. “A arqueologia precisa se
voltar para quem mora nessas áreas porque essas pessoas são as conhecedoras e tem uma
tradição oral que a gente consegue rastrear até há quatro, cinco gerações”, complementa.

Os pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da


Amazônia do Instituto Mamirauá ainda devem voltar ao conjunto de ilhas para dar continuidade
às pesquisas, ampliando o levantamento e o mapeamento das ilhas artificiais.

O custo, entretanto, é alto, e os pesquisadores carecem de recursos para as expedições


científicas até as ilhas, que têm grande relevância para a compreensão da história da
Amazônia. “É como se fossem pirâmides, mas construções de terra, não por isso menos
importante. São também complexas e indicam um padrão de ocupação humana amplamente
distribuída nas regiões do médio-alto disperso.”

Você também pode gostar