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atrás. As primeiras sociedades complexas das Américas são bem mais antigas: surgiram na
América do Sul na mesma época do nascimento da civilização egípcia, no norte da África, e a
mesopotâmica, no Oriente Médio, de acordo com dois estudos publicados em dezembro
na Nature.
Há cerca de 5.100 anos, no norte do Peru, em uma paisagem árida conhecida como Norte Chico
ou Norte Pequeno, viveram os primeiros habitantes do continente que trocaram a caça, a pesca e
a coleta de alimentos pela agricultura irrigada. Habitavam ao menos 20 núcleos residenciais
monumentais, com praças circulares e pirâmides de até 26 metros de altura. Três arqueólogos,
Jonathan Haas, do Field Museum, dos Estados Unidos, sua mulher, Winifred Creamer, e o
peruano Alvaro Ruiz confirmaram o desenvolvimento de um complexo cultural nessa região
entre 3.000 a.C. e 1.800 a.C. por meio de datações com carbono radiativo.
Intrigou o fato de esse povo não ter produzido artefatos de cerâmica nem plantado cereais, em
geral a principal produção agrícola das primeiras sociedades complexas, mas apenas algodão,
abobrinha, pimenta, feijão, abacate, goiaba e cana. Essa descoberta desafia a teoria de que as
sociedades andinas complexas teriam evoluído principalmente pela exploração de recursos
marítimos e, segundo Alvaro Ruiz, sugere que é preciso repensar o início do desenvolvimento
econômico, social e cultura do início da civilização peruana e de toda a América do Sul.
Tornando essa revisão ainda mais necessária, a equipe de José Iriarte, do Instituto de Pesquisa
Tropical Smithsonian, no Panamá, revelou sociedades complexas antigas onde não se imaginava
que pudessem existir: na região de Los Ajos, uma área de campos alagáveis no sudeste do
Uruguai.
Ali, ao redor de praças, sobre montes de até 2 metros de altura, dispostos em forma de círculo ou
ferradura, os habitantes erguiam suas habitações entre 4.800 e 4.200 anos atrás. Há indícios de
que essa sociedade, anterior às que surgiram na Amazônia, plantava grãos como milho e já havia
abandonado a caça e a coleta de alimentos. Antes se pensava que grupos com tal nível de
organização só existissem nos Andes e na planície amazônica.
Desde 2010, uma equipe internacional de cientistas esteve extraindo amostras de cabelo, dente e
ossos de múmias e cadáveres de antes da conquista da América. O material remonta a um
período entre 8.000 anos e 500 anos atrás. O DNA nessas amostras permite investigar como foi a
chegada dos verdadeiros conquistadores do continente e qual seu parentesco com as populações
indígenas atuais.
Acabaram de ser publicados os resultados da maior análise desse tipo, que estudou 92 restos
mortais encontrados principalmente no Peru, na Bolívia e no Chile. Os pesquisadores
sequenciaram o genoma mitocondrial, a parte do DNA que passa das mães para os filhos, e o
compararam ao de populações atuais da América do Sul. Os resultados indicam que grande parte
das populações indígenas originais desapareceu depois da chegada dos conquistadores espanhóis.
Segundo o trabalho publicado na Science Advances, nenhuma das linhagens genéticas
encontradas nas múmias chegou aos indígenas da atualidade.
Estudos anteriores de menor envergadura tinham mostrado um enorme declínio de população
entre os indígenas depois do desembarque dos europeus. Os autores daquele trabalho culpavam
sobretudo as doenças oriundas do velho continente, como a varíola, mas a escravização, a guerra
e o colapso das sociedades pré-colombianas também desempenharam um papel indiscutível.
“Em nosso estudo não determinamos qual porcentagem de população desapareceu, mas vimos
que a conquista teve efeitos devastadores na população local já que, em alguns pontos da costa
oeste da América do Sul, pelo menos metade desapareceu”, explica Wolfgang Haak, pesquisador
do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana de Jena, Alemanha, e coautor do
estudo.
"A conquista teve efeitos devastadores na população local"
O trabalho estima que os primeiros humanos chegaram à América há 16.000 anos,
aproximadamente um milênio antes do que estimavam estudos anteriores. Tratava-se de um
grupo reduzido que se separou das populações siberianas entre 2.000 e 9.000 anos atrás. Naquela
altura, o corredor de terra que unia a Eurásia e a América pelo estreito de Bering era inacessível
devido às geleiras, por isso os autores do estudo acreditam que os primeiros americanos tenham
chegado pela rota marítima ao longo da costa do Pacífico, que se abriu antes da via terrestre.
Esses primeiros grupos conquistaram todo o continente em 1.500 anos, como demonstram os
restos arqueológicos encontrados no sul do Chile. As diferentes populações se distribuíram em
grupos pequenos e separados, “como ilhas no oceano”, explica Bastien Llamas, pesquisador da
Universidade de Adelaide, na Austrália, e coautor do trabalho. Esse fato contribuiu para que
“quando os europeus chegaram, a maioria dessas populações morresse”, afirma. Essa situação foi
especialmente grave nas cidades incas e de outras culturas da costa ocidental, explica o trabalho.
De todos os cenários possíveis para explicar os dados genéticos analisados, o único que se
encaixa é o da mortalidade em massa depois da chegada dos europeus, um cenário que também
coincide com testemunhos históricos da época, ressalta Llamas.
Linhagens perdidas
“É evidente que outras populações da América do Sul sobreviveram e se tornaram os ancestrais
das populações indígenas atuais”, acrescenta o especialista em DNA antigo, mas sua diversidade
genética diminuiu com a perda de parte das linhagens originais. É difícil saber até onde chega
essa perda, pois uma das limitações do estudo, conforme admite Llamas, é que existem poucos
dados genéticos de populações atuais de regiões como Machu Picchu e outros epicentros das
culturas pré-colombianas para compará-los com os genomas antigos. “Possivelmente existem
populações atuais descendentes das linhagens analisadas, mas temos uma lacuna nos dados”,
reconhece.
Carles Lalueza-Fox, pesquisador do CSIC e especialista em genética de populações, oferece uma
opinião independente sobre o estudo. A conclusão é “sem dúvida razoável”, ressalta, mas ainda
faltam dados para sustentá-la. Por sua forma de transmissão de mães a filhos, é normal que “as
linhagens mitocondriais se extingam de forma natural em qualquer população sem necessidade
de propor causas disruptivas externas; é um fenômeno esperável cada vez que uma mulher ou
não tem filhos ou só tem filhos homens”, detalha.
O trabalho estima que os primeiros humanos chegaram à América há 16.000 anos
Para Marcos Galego, pesquisador espanhol que trabalha na Universidade de Cambridge (Reino
Unido), trata-se de um estudo “muito bem elaborado” e de conclusões bastante plausíveis. “Há
muitos estudos anteriores que indicam que morreram cerca de 95% de nativos”, ressalta.
Em todo caso, ainda resta dar o passo mais importante: extrair o DNA nuclear, onde se encontra
o grosso do genoma e se armazena informação muito mais detalhada das linhas paterna e
materna. Isso permitiria saber qual foi o papel de doenças importadas pelos conquistadores como
o sarampo ou a varíola e ajudaria a quantificar até onde chegou o extermínio dos índios depois
do primeiro contato.
Das comunidades mais recônditas da Amazônia aos bairros de grandes cidades sul-americanas
como Lima e Buenos Aires, as nações originárias e seus idiomas nativos atravessam todo o
território da América Latina. Memória viva de saberes que sobreviveram ao pior das conquistas
europeias, as línguas originárias sobrevivem ameaçadas pela pressão econômica sobre seus
territórios, pelo êxodo rural e pela falta de apoio público.
Devido ao patrimônio cultural que representam e à vulnerabilidade que chega ao perigo de
extinção iminente em muitos casos, a Unesco declarou 2019 como o Ano Internacional das
Línguas Indígenas. Para a instituição, o direito de uma pessoa utilizar o idioma que prefere é “um
pré-requisito para a liberdade de pensamento, opinião e expressão”.
A América Latina não é a região com maior número de línguas, nem de falantes de idiomas
nativos − segundo uma estimativa muito aproximada, seriam 25 milhões −, mas é a que
apresenta mais diversidade. As 500 (mais ou menos) línguas nativas faladas estão agrupadas em
99 famílias que se estendem da Patagônia até a Mesoamérica, segundo o Atlas Sociolingüístico
de Pueblos Indígenas en América Latina (“atlas sociolinguístico de povos indígenas na América
Latina”), publicado em 2009 sob o auspício do Unicef e da Agência Espanhola de Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (Aecid), que continua sendo um dos trabalhos mais
completos para localizar essa realidade.
Essa diversidade é a principal riqueza linguística da região, pois é um reflexo da diversidade
cultural e étnica de seus povos e permite investigar a história do povoamento do território ao
longo dos milênios, como explica Inge Sichra, sociolinguista austríaca radicada em Cochabamba
(Bolívia), coordenadora do Atlas e fundadora do Programa de Formação em Educação
Intercultural Bilíngue para os Países Andinos (Proeib Andes).
Línguas sem Estado
Para a escritora mixe e linguista Yásnaya Elena Aguilar, não existem características linguísticas
comuns a todos os idiomas originários, mas sim uma sociopolítica. “São línguas de povos que
sofreram colonização, mas não formaram um Estado próprio”, explica.
Aguilar, que recentemente fez um histórico discurso em mixe no Congresso mexicano, destaca
que na época independência, em 1810, cerca de 65% da população do México falava uma língua
indígena, mas hoje esse índice é de apenas 6,5%. Houve todo um processo de homogeneização
cultural, que se apoiou no sistema educativo dos tempos da Revolução Mexicana (1910-1921) e
continua até hoje no trato com as instituições públicas, que funcionam quase exclusivamente em
espanhol.
Para Aguilar, os casos mais graves só o setor de saúde e o sistema de Justiça, que quase nunca
contam com intérpretes, algo que põe em risco a liberdade e a vida das pessoas. Não foi sempre
assim. Diante de um Estado “que se comporta de forma monolíngue”, Aguilar lembra a
experiência histórica de Oaxaca − o Estado do sudoeste mexicano onde vive o povo mixe −,
onde no século XIX os professores das escolas municipais eram funcionários das comunidades e
ensinavam nas línguas próprias.
Na época da independência, em 1810, cerca de 65% da população do México falava uma
língua indígena, e hoje são apenas 6,5%
Quando a cultura oficial é escrita apenas em espanhol e quase não existe educação formal fora
desse idioma, escrever literatura contemporânea em uma língua originária é quase um ato de
heroísmo. É isso que a poeta maia Briceida Cuevas Cob faz desde o início dos anos noventa. Sua
poesia se concentra “nas coisas simples que vão nos deslumbrando”, como “um amanhecer, que
é um processo” ou “o comportamento de uma árvore”, explica em uma entrevista. Seu método de
criação é bilíngue: primeiro escreve em maia e depois, em espanhol, dando vida a um segundo
processo criativo que também é “uma ponte” para alcançar aqueles que não podem ler os
originais.
Cuevas Cob é originária da comunidade de Tepakán, no sudeste do México. Nessa área,
participando de oficinas de escrita e criando uma espécie de movimento cultural, formou-se um
grupo de autores maias no final do século XX. “Falar da importância da escrita em língua
originária é falar desse processo e de seu resultado, que se vê por meio do grande número de
autores que escrevem atualmente [em idioma nativo]”, explica.