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Como realmente era a América antes


da chegada de Colombo?
Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil 12 de outubro de 2021 América Latina

Quando Cristóvão Colombo chegou ao outro lado do Atlântico em 12 de outubro de


1492, o “novo mundo” era um lugar complexo, diverso e fascinante.

Ao contrário do que fizeram parecer muitos relatos de europeus na época, o


continente era muito povoado e abrigava sociedades dinâmicas, cuja sofisticação, em
muitos casos, não tinha paralelo na Europa.

Nas Américas viviam entre 40 e 60 milhões de pessoas, segundo estimativas mais


recentes. Elas falavam cerca de 1.200 idiomas diferentes, agrupados em 120 famílias
linguísticas, disse à BBC News Brasil Charles C. Mann, autor do livro “1491 - Novas
revelações das Américas antes de Colombo”.
A América que existia quando Colombo chegou era muito diferente da que mostravam pinturas
como esta, do século 19. Imagem: Getty

Desde estruturas sociais quase democráticas, passando pelo manejo de florestas e o


domínio da engenharia e da matemática, os povos originários da região ajudaram a
criar grande parte do mundo que vivemos hoje, mesmo que não tenham recebido o
crédito. Um exemplo disso é o milho, uma criação mesoamericana que revolucionou a
alimentação humana e se tornou um componente essencial na dieta mundial.

“A domesticação e a manipulação genética de plantas é a tecnologia mais


impressionante desenvolvida pelos indígenas na América”, disse à BBC Brasil o
arqueólogo americano Kurt Anschuetz, especialista na agricultura de povos pré-
colombianos da América do Norte.

Os nativos também tinham “uma dieta mais equilibrada e mais nutritiva” do que em
outras partes do mundo na época, graças não somente ao milho, mas também ao
cultivo da batata, do abacate, do tomate e das abóboras, entre outros. Diferentemente
do que ocorría no “velho mundo”, não havia evidência de períodos de fome prolongada
entre eles, segundo Charles C. Mann.

As plantas também são o principal indício de que existia um intercâmbio entre norte e
sul. No entanto, até hoje os arqueólogos não sabem explicar exatamente como
espécies domesticadas na Amazônia, como o tabaco, chegaram à região do atual
Canadá ou o cacau mesoamericano à América do Sul, sem uma rota direta, animais de
carga ou caravanas.

À partir do século 15, muitos dos povos originários foram dizimados por doenças
trazidas de além-mar que chegaram através dos rios ou de animais, até mesmo antes
do contato direto com os europeus.

No choque entre dois mundos que se seguiu à chegada de Colombo, muitas das
formas de vida e das estruturas construídas no continente foram rapidamente
destruídas, deixando perguntas que os especialistas ainda tentam responder. Esse é
um dos motivos pelos quais é difícil obter informações sobre todos os que viviam na
América pré-colombiana.

Nessa reportagem especial da BBC News Brasil, nos concentramos em uma seleção,
feita com a ajuda de antropólogos e arqueólogos, das maiores e mais influentes
culturas da região logo antes da chegada dos espanhóis e portugueses.

Em alguns casos, elas deixaram mais evidências arqueológicas das suas sociedades.
Em outros, como no caso dos povos da Amazônia, descobertas mais recentes estão
mudando completamente o que se acreditava sobre a vida no continente.

Conteúdo interativo

AMÉRICA DO AMÉRICA DO
NORTE MESOAMÉRICA SUL

AMÉRICA DO NORTE

As dezenas de culturas que viviam desde o atual Canadá até o extremo norte do
México costumavam se organizar em comunidades menos monumentais e mais
igualitárias do que os grandes reinos da Mesoamérica, por exemplo — e muito mais do
que as monarquias europeias do século 15.

Estima-se que nessa parte do continente havia cerca de 5 milhões de pessoas quando
chegaram os primeiros europeus.
“Em geral, eram povos que viviam em grupos relativamente pequenos e se juntavam
para ajudarem-se mutuamente, mas colocavam limitações muito claras ao poder das
suas autoridades”, diz Charles C. Mann.

Em algumas sociedades, tudo tinha que ser decidido por consenso e os líderes podiam
inclusive ser destituídos pelo povo — ideias que continuavam impressionando os
teóricos do iluminismo francês no século 18.

AMÉRICA DO NORTE
Haudenosaunee Culturas mississipianas Culturas pueblo

Haudenosaunee

As nações indígenas Mohawk, Onondaga, Oneida, Cayuga e Seneca, formavam o povo


Haudenosaunee e viviam em áreas rurais densamente povoadas.

Suas aldeias eram extensas e ficavam próximas uma à outra, mas não havia uma
capital específica.

“Dessa forma, todos ficavam mais próximos do suprimento de comida. Na América do


Norte não havia animais de carga como o cavalo. Por isso, transportar alimentos até
uma cidade grande era mais difícil”, diz Charles C. Mann.

Os haudenosaunee formavam uma confederação regida por um governo com leis


aprovadas por um conselho em que homens e mulheres tinham poder de decisão,
inclusive sobre as guerras.

Na prática, segundo especialistas, era um governo de consenso, como uma


democracia sem partidos.

Isso impressionou os europeus que, quando chegaram à América, ainda viviam sob
monarquias absolutistas em sociedades extremamente desiguais.

Reunião dos chefes das tribos Mohawk, Onondaga, Oneida, Cayuga, Seneca e Tuscarora; esta
última se uniu aos haudenosaunee no século 18. Imagem: Getty

Atualmente, os haudenosaunee são a única nação indígena oficialmente reconhecida


nos Estados Unidos como um povo originário que influenciou a constituição e a forma
de governo americanas.

Charles C. Mann acredita que a semelhança entre o sistema político dos nativos e o
atual é pequena, mas diz que o impacto cultural causado pela forma de vida dessa e de
outras nações indígenas é inegável.
“Os europeus encontraram povos que não tinham medo de seus governos, que eram
autônomos e que riam da ideia de que a nobreza era hereditária. Essas foram lições
importantes que aprenderam com eles”, afirma.

Culturas mississipianas

As culturas mississipianas eram um grupo extenso de cidades que compartilhavam as


mesmas práticas religiosas e visões de mundo.

Se estendiam pelo meio-oeste, o leste e o sudeste do que seriam atualmente os


Estados Unidos, chegando até a fronteira com o Canadá.

“Em seu apogeu, pouco antes do ano 1400, a extensão territorial desses povos era
equivalente ao que chamamos de ‘cristandade’ na Europa na mesma época. Isso nos dá
uma ideia de quão influente essa cultura foi na América do Norte”, explica Charles C.
Mann.

As cidades mississipianas mais importantes tinham conjuntos de montículos de terra


em forma de pirâmide ou plataforma, sobre os quais se construíam casas e templos.

Entre elas esteve a imponente Cahokia — já desabitada quando chegaram os


colonizadores — e também Moundville, o segundo maior centro urbano daquela
cultura.

Em seu apogeu, Moundville tinha templos e residências sobre montículos de terra, como nessa
recriação artística. Imagem: Caleb O’Connor, Museus de Universidade do Alabama

Mais que centros políticos ou comerciais, esses locais eram pontos importantes para a
vida social e mística dos mississipianos. Alí aconteciam enormes festivais religiosos e
sacrifícios em massa, segundo revelaram escavações arqueológicas.

No entanto, pouco antes da chegada dos europeus, Moundville, assim como outras
antes dela, deixou de ser habitada e passou a ser um local reservado para enterros e
peregrinação religiosa.

“Hoje se consideram duas possibilidades: uma delas, segundo os indígenas


descendentes dos mississipianos, é que eles acreditavam que as cidades tinham uma
missão e um ciclo de vida. Depois de algum tempo, saíam delas para que se
transformassem em outra coisa. A segunda possibilidade é que abandonaram
Moundville porque se cansaram de sua estrutura elitista e só mantiveram as cidades
onde o poder era mais compartilhado”, diz Mann.
Culturas pueblo

Entre o que hoje é o sudoeste dos Estados Unidos e o noroeste do México havia mais
de 20 comunidades com idiomas e etnias diferentes, mas com uma cultura e religião
em comum.

Os espanhóis as chamaram de pueblos (vilarejos), mas algumas das comunidades eram


tão grandes que os primeiros relatos escritos se referiam a elas como “reinos” e diziam
que “se estendiam até onde a vista alcançava”.

É o caso de Zuni e Acoma, esta última uma cidade impressionante construída sobre um
platô no atual Estado do Novo México, nos EUA.

Acoma, visto desde cima nesta foto de 1927, era um dos pueblos mais importantes da região
quando os europeus chegaram. Imagem: Getty

“Algumas cidades eram maiores do que outras, mas não havia uma dominante. Temos
evidências de que em tempos de seca ou de fome as comunidades se deslocavam de
uma cidade a outra e eram abrigadas pelos vizinhos, às vezes por anos, até que as
condições melhorassem na sua área. As culturas aprendiam umas com as outras e as
comunidades eram multinacionais”, explica à BBC News Brasil Kurtz Anschuetz.

Os pueblanos também eram agrônomos e agricultores talentosos, segundo


Anschuetz.

Desenvolveram variedades de milho e tecnologias para poder cultivá-las em diferentes


tipos de solo, em campos espalhados por todo o território. Isso garantia que teriam
alimento suficiente para todo o ano, reservas para compensar colheitas ruins e
também o necessário para cumprir seus rituais religiosos.

Mas, mesmo que não houvesse na Europa naquela época uma agricultura tão
sofisticada em grande escala, a técnica e a eficiência dos nativos não impressionou os
colonizadores.

“Os europeus estavam buscando riquezas minerais e almas para catequizar. Eles
diziam que o solo americano era tão fértil que as pessoas não tinham que fazer nada,
só semear e colher. Mas não era assim”, diz Anschuetz.

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MESOAMÉRICA

Estabelecidos em cidades monumentais e organizados em grandes impérios ou em


pequenos estados independentes, os mesoamericanos se pareciam mais com o que os
europeus identificavam como “civilizações”.

Quando eles chegaram, cerca de 24 milhões de pessoas, de acordo com as estimativas


mais recentes, viviam no coração da América.

Essa região foi berço de inovações e avanços tecnológicos importantes, o que fez com
que suas grandes e populosas cidades, em muitos aspectos, funcionassem melhor do
que as europeias.

Os povos nativos desviavam o curso natural de rios, construíam enormes lagos


impermeáveis e plantavam dentro de balsas flutuantes. Extraíam borracha das árvores
para jogar bola e, ao contrário do que acreditavam os espanhóis, conheciam muito
bem a roda, apesar de não a utilizarem porque era inútil em seus terrenos irregulares e
sem animais de carga.

Os maias estão entre os poucos povos da humanidade, e são o único em todo o


continente, a desenvolver a escrita de forma independente. Mas isso não impediu que
outras culturas mesoamericanas registrassem seu profundo conhecimento de
astronomia, matemática e uma elaborada poesia oral.

MESOAMÉRICA
Império mexica Império tarasco Civilização maia

Império mexica

No final do século 15, o império mexica (que mais tarde muitos historiadores
chamariam de asteca) estava em seu auge.

As cidades-estado de Tenochtitlán, Texcoco e Tacuba tinham formado uma poderosa


aliança político-militar que tomou o poder dos tepanecas e conquistou a maior parte
do centro e do sul do que hoje é o México.

Os mexicas não necessariamente tinham presença militar nos territórios conquistados,


mas obrigavam seus novos súditos a enviar produtos e soldados a Tenochtitlán, a sede
do império, como tributo.
Também se casavam com as filhas dos chefes locais para que seus herdeiros, educados
na capital, comandassem as regiões no futuro.

Tudo isso lhes permitia manter um império hegemônico, mesmo que dentro dele se
falassem muitos idiomas além do oficial, o náuatle.

“Em muitos sentidos, não era um sistema tão diferente do que se via na Europa nessa
mesma época”, disse à BBC News Brasil a etnóloga Antje Gunsenheimer, da
Universidade de Bonn, na Alemanha.

O zoológico que Moctezuma 2º tinha dentro de Tenochtitlán é um exemplo de como os mexicas


ostentavam seu poder. Imagem: Getty

Assim como nos reinos europeus, os mexicas exibiam seu poder através da riqueza e
do esplendor dos palácios e jardins de Tenochtitlán.

Quando os europeus chegaram, Tenochtitlán era uma cidade maior do que Paris.

Estima-se que ali podem ter vivido cerca de 250 mil pessoas, a maior densidade
populacional da América.

Cada bairro de Tenochtitlán tinha sua própria estrutura política e religiosa, com seus templos,
escolas e soldados, conta Gunsenheimer. Imagem: Getty

"Era uma cidade refinada, com banheiros públicos, mais de 30 palácios que tinham
cerâmicas finas e tecidos elegantes. E ficava em meio a mais de 2 mil km² de lagos
ricos em peixes, enquanto que a agricultura nos arredores era bastante produtiva e
permitia sustentar a população da região”, disse à BBC News Mundo, o serviço em
espanhol da BBC, Esteban Mira Caballos, doutor em História da América pela
Universidade de Sevilha, na Espanha.

Mas, a capital era, acima de tudo, um triunfo da engenharia sem comparação.

Um sofisticado sistema de canais e represas construídos ao longo do tempo permitia


regular a quantidade de água que chegava a Tenochtitlán das montanhas, por meio
dos lagos. Dessa forma, evitava-se a inundação muito frequente da cidade em períodos
de chuva intensa e se garantia o fornecimento de água doce para a população.

Apesar de ter sido construída em meio a um lago, a capital mexica não era inundada graças a
um sistema de canais e represas. Imagem: Getty

“Os mexicas viviam num ambiente que parecia muito abundante, mas que era muito
frágil e tinha que ser muito bem administrado. E eles faziam isso perfeitamente.
Entendiam que, com tanta gente em uma só cidade, o risco de contaminação dos lagos
era alto. Sabemos hoje que eles tinham profissionais que coletavam os excrementos e
os levaram para a terra firme para que fossem usados como adubo orgânico nas
plantações, por exemplo. A cidade era muito limpa”, diz Antje Gunsenheimer.
Depois da conquista, os espanhóis destruíram o sistema hidráulico de Tenochtitlán,
que se transformou na Cidade do México, e o reconstruíram no estilo europeu. A partir
daí, a cidade foi inundada mais vezes durante o século 16 e sofreu graves epidemias
de tifo — prova de que o sistema original era melhor do que o implementado pelos
conquistadores.

Império tarasco

Os arqui-inimigos dos mexicas são menos conhecidos porque sobraram menos


registros da sua sociedade e relatos de como viviam antes do contato com os
espanhóis.

No entanto, os tarascos tinham o segundo maior Estado da Mesoamérica quando os


europeus pisaram pela primeira vez no continente.

En sua mitologia, os mexicas se referiam aos tarascos como uma das tribos que saíram
de sua terra ancestral, Aztlán, mas que não chegaram junto com eles a Tenochtitlán.

“Falar deles nesses termos ajudava os mexicas a justificar sua incapacidade de derrotar
os tarascos e expandir sua fronteira até o noroeste. É como se eles dissessem: ‘eles são
fortes assim porque são nossos parentes, é por isso que não conseguimos vencê-los’”,
disse à BBC News Brasil Sarah Albiez-Wieck, da Universidade de Colônia, na
Alemanha.

No final do século 15, a capital tarasca, Tzintzuntzan, tinha quase 30 mil habitantes e
era parte de um centro de poder formado por três cidades-estado próximas a um lago,
assim como no império mexica. Mas, nesse caso, os especialistas acreditam que o
poder estava menos concentrado em uma só cidade.

Tzintzuntzan era a capital administrativa e tinha um grande centro religioso com


edifícios e pirâmides de estrutura mista, retangular e circular, chamadas de yácatas.
Nessas construções viviam os sacerdotes, se realizavam sacrifícios rituais e se
acendiam fogueiras como sinal de que o império entraria em guerra.

O centro cerimonial é a área mais bem conservada de Tzintzuntzan. Imagem: Getty

Em relatos dos mexicas e dos espanhóis, os tarascos também aparecem como


respeitados metalúrgicos.

“O oeste do México foi o berço da metalurgía na Mesoamérica, e os tarascos são


parte dessa tradição, que é anterior a eles. Mas eles foram os primeiros a organizar a
extração e o trabalho com metais em nível estatal”, explica Albiez-Wieck.
Os tarascos conseguiram manter parte do seu poder político por mais tempo do que
seus inimigos. Por meio de negociações com os espanhóis após a queda de
Tenochtitlán, os líderes tarascos puderam continuar recebendo tributos e tendo
subordinados até o início do século 17.

Civilização maia

No século 15, a maioria das grandes cidades maias, com suas pirâmides e monumentos
imponentes — hoje atrações turísticas populares — já estavam em decadência. Mas
algo revolucionário vinha acontecendo com essa civilização nos últimos séculos.

“Sabemos que o sistema de reis divinos desapareceu mais ou menos no século 9 e não
ressurgiu. Então a administração das cidades maias passou a ser mais comunal. No
século 15 não acho que chegasse a ser uma democracia, mas certamente mais pessoas
participavam das decisões”, disse à BBC News Brasil Nikolai Grube, das universidades
de Texas, nos Estados Unidos, e de Bonn, na Alemanha, um dos maiores especialistas
em textos maias.

Como na Grécia antiga, o mundo maia sempre foi formado por cidades-estado que
competiam e entravam em guerras umas com as outras, apesar de compartilharem a
cultura, o idioma e a ideia de que pertenciam a um mesmo povo. Os reis tinham um
forte controle sobre as rotas de comércio.

Quando o sistema controlado pela nobreza entrou em colapso, segundo Grube, as


pessoas parecem ter aproveitado esse vácuo de poder para ter mais acesso a bens de
luxo como as jóias feitas de jade e a cerâmica.

As rotas de intercâmbio com outros povos, agora livres, permitiram que produtos
como o ouro e o cobre, entre outros, também chegassem ao mundo maia. “De certa
maneira, as pessoas ficaram mais ricas em um mundo mais globalizado”, diz Grube.

Ao mesmo tempo, a arquitetura das cidades ficou mais modesta. Sem reis que
organizassem o trabalho em obras gigantescas, chegou ao fim a era dos grandes
monumentos e palácios. Os templos, feitos por famílias, passaram a ser menores.

Os templos mais modestos de Mayapán refletiam o momento em que se encontrava a civilização


maia antes da chegada dos espanhóis. Imagem: Getty

Na península de Yucatán, no atual México, Mayapán foi a maior cidade maia antes da
conquista, mas também já tinha sido abandonada quando os espanhóis chegaram.
Nojpetén, capital dos Itzá Maia construída sobre um lago, foi tão poderosa que chegou
a controlar todo o norte do que hoje é a Guatemala.
Essa mudança política e econômica também não foi a única revolução cultural da qual
os maias participaram na América. No fim do século 15, eles já eram os astrônomos
mais avançados do continente, baseados em um grande conhecimento matemático.
Por causa deles, a humanidade conheceu o símbolo do zero.

“Sabemos que na Mesopotâmia se faziam cálculos com a ideia do zero, mas sem um
signo que o representasse. Mas os maias tinham isso e foram os primeiros”, explica
Grube.

Apesar de que a ideia do zero já existia, um símbolo para o zero é importante porque
facilitava representar números mais longos e, portanto, fazer cálculos muito mais
complexos. Dessa forma, os maias desenvolveram um sistema de calendários que
misturava crenças religiosas, o ano solar de 365 dias e outros fenômenos astronômicos
como os ciclos de Vênus, da Lua e de outros planetas com enorme precisão.

Foram também os maias os únicos no continente — e um dos quatro povos da


humanidade — a desenvolver a escrita de maneira independente.

O sistema de escrita maia era semelhante aos hieróglifos egípcios e permitia escrever
todas as palavras de seu idioma. Hoje, no entanto, só quatro livros maias foram
preservados, com textos cerimoniais e de astronomia, já que o resto foi perdido
durante e depois das batalhas contra os espanhóis.

Por outro lado, o fato de que não terem um governo unificado também deu à
civilização maia uma vantagem sobre os invasores — eles nunca foram
completamente conquistados.

“A península de Yucatán e as regiões montanhosas da Guatemala estavam divididas


em muitos Estados pequenos liderados por grupos ou por senhores. Apesar de alguns
terem se unido aos espanhóis, grande parte não foi submetida ao controle do império
colonial nem das autoridades mexicanas até pelo menos o início do século 20”, diz
Nikolai Grube.

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AMÉRICA DO SUL

Em 1492, a América do Sul abrigava cerca de 25 milhões de pessoas, organizadas em


muitos povos extremamente diferentes.

Desde os grandes impérios andinos como o chimú e o inca até os povos do sul
conhecidos por resistir à conquista e desenhar a fronteira do império espanhol.
As sociedades pré-colombianas menos conhecidas da região até hoje são as
amazônicas, cujo encontro com os europeus, em muitos casos, não aconteceu até o
século 16.

Na verdade, durante muito tempo se pensou que somente grupos pequenos e


itinerantes podiam viver em um ambiente tão complexo.

Agora, os pesquisadores acreditam que entre oito e 10 milhões de pessoas viviam na


Amazônia, falando cerca de 300 idiomas diferentes e, em sua maioria, estabelecidos
em grandes centros.

“Não podemos dizer que eram cidades como as dos incas ou maias. Eram espaços com
valor político e religioso, que eram ocupados habitualmente, se misturavam com a
floresta e estavam hiperconectados por um sistema de estradas”, disse à BBC News
Brasil Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo (MAE-USP).

A floresta amazônica também não era completamente virgem quando os europeus


chegaram, como se pensou durante muito tempo. Esses povos a transformaram,
plantaram nela e a tornaram mais resistente a eventos climáticos.

A costa atlântica do continente, por sua vez, também abrigava uma variedade enorme
de povos como os tupinambás, os guaranis e os charrúa, mas o colonialismo e a
fundação das cidades apagaram grande parte das evidências materiais de suas vidas
pré-colombianas.

AMÉRICA DO SUL
Império inca Império chimú Culturas dos Llanos de Moxos Povo do Xingu Aisuaris
Cultura santarém Mapuches

Império inca

No final do século 15, o império inca havia se tornado o maior do mundo — uma
expansão só comparável com a do império romano.

Sua capital, Cusco, foi redesenhada pelo líder expansionista Pachacuti para ter a forma
de um puma, um dos principais animais sagrados nos Andes.

O inca Pachacuti (à direita) foi o principal líder expansionista do império, que chegou a ser, na
época, o mais extenso do mundo. Imagem: Getty

No lugar onde estariam os órgãos genitais do animal ficava o Coricancha, ou templo


do Sol, o mais importante do império.
“Era o Vaticano dos Andes”, disse à BBC News Brasil Sonia Alconini, da Universidade
de Virgínia, nos Estados Unidos.

O império abarcava cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados, do norte do atual


Equador até a região central do Chile, e estava dividido em quatro grandes partes,
cada uma com suas províncias.

Tudo isso era conectado por um sistema viário de pedra, bem construído e de uma
escala que ainda impressiona pesquisadores. “Havia infraestrutura por todos os lados:
pontes, escadas para subir as montanhas com lhamas. Muitas dessas estradas
continuam sendo usadas”, diz Alconini.

Pelas estradas do império circulavam as conchas do molusco spondylus, muito


valorizadas como adornos, penas de aves tropicais, ayahuasca, folhas de coca,
pimenta-aji, cobre e madeiras vindas da Amazônia.

O ouro e a prata, que cobriam as paredes de templos em Cusco, tinham uma


importância mais ritual do que comercial: o ouro representava o sol e a prata, a lua.
Por isso, só quem podia usá-los eram as elites, consideradas divinas.

Para conseguir dominar uma parte tão grande do continente, os incas tiveram que
subjugar todos os povos da região, de tribos a Estados mais complexos, e estimulá-los
a trabalhar em obras de infraestrutura — que não incluíam só as estradas, mas
também templos, fortalezas e palácios.

Sem moeda e sem mercado, que mecanismos econômicos tornaram um império tão
extenso viável?

A resposta, segundo Alconini, tem a ver com a sofisticada administração e distribuição


de recursos feitas pelos incas, mas também com suas estratégias de soft power.

“Quando os incas chegavam a um centro ritual importante, como o oráculo de


Pachacamac, construíam ali outros templos e incorporavam aquela divindade a seu
panteão imperial. Levavam sua estátua a Cusco e a colocavam no Coricancha. Imagine
o efeito que isso tinha nas comunidades”, explica.

Ao mesmo tempo, um dos aspectos mais importantes da conquista inca era a


organização da economia da nova província. Para isso, eles faziam um censo dos
recursos locais e de todas as pessoas, segundo idade e gênero, algo que permitia
determinar o tributo que cada um tinha que pagar ao Estado — em forma de trabalho.

Os quipus guardavam a informação dos censos de todas as províncias imperiais. Imagem: Getty

Na capital havia bibliotecas de quipus que guardavam não só os dados administrativos


de todo o império, mas também as linhagens das famílias reais — os diferentes tipos
de informação eram organizados segundo o tipo de nó, sua posição, grossura, cor ou
da extensão do quipu.
Uma vez feito o censo de uma nova província, todos os recursos disponíveis e
produzidos ali a partir daquele momento eram divididos em três partes: um terço para
o Estado, outro para o soberano e a família imperial e o último para as próprias
comunidades.

Era o sistema chamado de mita.

O terço dedicado ao Estado funcionava como garantia de segurança para a população,


já que em períodos de seca, por exemplo, a ajuda vinha daí.

Esse sistema também foi essencial para manter as obras e o movimento de soldados
por toda a rede de caminhos do império. O Estado colocava comida, tecidos e
sandálias nas callancas — armazéns construídos nas estradas em intervalos de um dia
de caminhada — para que os soldados, e outros funcionários, pudessem viajar sem
tanto peso.

Os viajantes em missão oficial podiam se abastecer em “callancas” como esta, que encontravam
nas estradas incas. Imagem: Getty

Em algumas regiões, as escavações arqueológicas sugerem que a conquista inca e seu


sistema de redistribuição serviu para nivelar as condições de vida das elites e dos
cidadãos comuns, segundo Alconini.

No entanto, isso não quer dizer que todos os povos aceitavam e gostavam de ser
dominados pelos incas, que exigiam, entre outras coisas, que se falasse o quechua,
idioma do império. Caso colaborassem, as comunidades recebiam terras melhores
como compensação. Caso se rebelassem, eram transportadas, integralmente, a outras
áreas.

“Os incas levaram gente da região do Equador para a Bolívia. O mesmo aconteceu no
Chile. Isso mostra a capacidade enorme que eles tinham de mover, organizar e planejar
a sociedade”, diz Sonia Alconini.

A mão de obra dos povos conquistados também serviu para expandir a fronteira
agrícola do império. Graças à técnica dos terraços de cultivo, construídos nas
montanhas andinas, conseguiram plantar milho e batatas, entre outros.

Esse sistema permitiu a expansão sem precedentes dos incas, mas não impediu as
crises políticas provocadas pela sucessão de seus líderes. Uma delas causou a divisão
que culminou na derrota do império para os espanhóis.

Império chimú
Até aproximadamente os anos 1470, o império chimú — que se estendia por cerca de
500 km desde o sul do atual Equador até a costa norte do Peru, talvez até Lima,
segundo alguns pesquisadores — era um dos mais poderosos dos Andes.

Chan Chan, sua capital, era uma das maiores e mais esplêndidas cidades em toda a
América.

“Ela foi tão grande quanto Tenochtitlán ou até maior. Chan Chan tinha 24 km² de
construção e se estima que em seu apogeu viveram entre 25 mil e 50 mil pessoas. Mas
se contarmos todas as comunidades-satélite, facilmente poderíamos chegar a 100 mil
habitantes”, disse à BBC News Brasil Gabriel Prieto, da Universidade da Flórida, nos
EUA.

Dentro da cidade ficavam os enormes palácios reais, alguns com até 150 hectares de
extensão e paredes de barro de 15 metros de altura. Um sistema de praças em ordem
descendente dava acesso à parte mais íntima dos palácios, para enfatizar que nem
todo mundo tinha acesso aos espaços da elite.

Os edifícios eram decorados com motivos marinhos porque, para os chimú, o mar não
era apenas a principal via de intercâmbio com outros povos da costa andina, mas
também seu lugar mitológico de origem.

Os chimú decoravam seus palácios com peixes e aves marinhas porque acreditavam ter nascido
de um homem que veio do mar. Imagem: Getty

Mas, apesar de se considerarem gente do mar, o principal investimento dos chimú


aconteceu em terra.

O império construiu um sistema de irrigação de zonas desérticas com canais feitos de


pedra e barro que são considerados um exemplo do alcance da engenharia pré-
colombiana.

“Essas pessoas conseguiram, sem ferramentas que hoje são básicas para a engenharia
civil, manter uma variação de nível em seus canais de menos de um metro por cada
quilômetro, algo essencial para que um sistema como esses funcione bem”, explica
Gabriel Prieto.

A capital foi construída em um vale artificial criado a partir desse sistema: um canal
principal trazia água de um rio a 80 km de distância, enquanto outros canais traziam
água das montanhas. Hoje, essa região voltou a ser desértica.

Nas áreas residenciais de Chan Chan foram encontrados vestígios de muitas oficinas
de tecelagem, cerâmica e metalurgia. Essa última foi um dos grandes legados dos
chimú à região, já que foi a primeira vez que o metal passou a ser utilizado em larga
escala pelas pessoas comuns, não apenas pelas elites, nos Andes.

“Eles eram basicamente uma máquina industrial de processar objetos de metal,


especialmente de cobre e bronze arsênico (liga de cobre e bronze que pode ocorrer
naturalmente ou ser produzida)”, diz o arqueólogo.
Depois de conquistarem o império, os incas levaram os ourives e metalúrgicos chimú a Cusco
para que eles ensinassem suas técnicas. Imagem: Getty

Para os chimú, o ouro e a prata representavam a dualidade complementar do mundo.


Por isso, eram abundantes em seus palácios e mausoléus, onde os senhores mais
poderosos eram enterrados com adornos extravagantes.

A ourivesaria chimú tinha tanto prestígio que os incas adotaram seu estilo e os
espanhóis contabilizaram quantidades impressionantes de metais preciosos nas ruínas
de suas cidades após a conquista.

O império perdeu força poucos anos antes da chegada dos europeus, quando entrou
em um conflito definitivo com os incas, segundo os pesquisadores.

“Essa briga definiu o futuro da região andina porque os incas nunca tinham enfrentado
uma organização política tão poderosa quanto os chimú, mas esses últimos não
tinham o aparato militar que os incas tinham. No fim, os incas venceram e
conquistaram todo o território norte”, diz Gabriel Prieto.

Povos amazônicos
Culturas dos Llanos de Moxos

Na atual Bolívia, arqueólogos encontraram indícios de uma cultura que desafia tudo o
que se pensava sobre as pessoas que viviam na Amazônia até 1492.

“Nessa região havia muitas obras monumentais, algo que não se espera nem se diz da
Amazônia. Sempre esperamos encontrar monumentos de pedra, mas, aqui, a
monumentalidade é de terra”, disse à BBC News Brasil Carla Jaimes Betancourt, da
Universidade de Bonn, na Alemanha.

São estruturas arquitetônicas diferentes que pertenciam aos povos da área de


planícies e floresta úmida dos Llanos de Moxos, na atual província do Beni.

Esses povos são chamados coletivamente de “cultura casarabe” ou “cultura hidráulica


das lomas”.

As lomas em questão são o principal tipo de estruturas encontrado na região —


montículos em forma de pirâmide que chegavam a medir até 20 metros de altura e
eram conectados por canais e aterros. Eles eram usados em residências, cemitérios,
áreas de cultivo e, os maiores, como centros cerimoniais ou casas para a elite.
Na foz do rio Madeira foi encontrada uma rede de 500 lomas. Estima-se que, em todo
o Beni, chegaram a ser construídos até 20 mil desses montículos no total.

“Aparentemente essas pessoas marcavam a paisagem para mostrar hegemonia


política e religiosa. Alguns sítios são maiores e se conectam com montículos menores,
o que nos faz pensar que havia áreas de influência, como uma capital e seus satélites”,
diz Betancourt.

Outras estruturas que nos mostram como viviam os povos nos Llanos de Moxos são as
plataformas elevadas de cultivo de vários tamanhos encontradas no local — algumas
de até 30 metros de largura e centenas de metros de comprimento, onde se plantava
milho, mandioca, pimenta e abóboras.

Perto da atual fronteira com o Brasil estão os vestígios de outra sociedade,


especializada na construção de valas que formavam geoglifos. No entanto, não eram
simplesmente desenhos no solo. Eles serviam como trincheiras de três a quatro
metros de profundidade que protegiam as aldeias, mas ainda não se sabem do que,
nem de quem.

“São aldeias que impressionam pelo seu tamanho. Encontramos valas circulares
delimitando áreas gigantescas, de 240 hectares. E havia uma aldeia ao lado da outra,
separadas por um sistema de valas (…). Como na região viviam povos diferentes é
possível que houvesse tensões entre eles, mas não sabemos exatamente que
fenômenos aconteciam ali”, afirma a arqueóloga.

As valas circulares funcionavam como trincheiras para proteger as aldeias e tinham até quatro
metros de profundidade. Imagem: Carla Jaimes Betancourt

Mas o mais importante é que criar todas essas estruturas requeria muita mão de obra,
o que mostra que as sociedades do Beni eram mais complexas e muito maiores do que
se imaginava.

“Para realizar essas construções era necessário uma organização social e política
estável e muita gente. Estimamos que hoje em dia a população do departamento do
Beni (cerca de 500 mil pessoas) seja cerca de 20% do que era antes da chegada dos
europeus)”, diz Carla Betancourt.

E, apesar da grande quantidade de pessoas vivendo e mudando a paisagem local


durante milhares de anos, o legado das culturas pré-colombianas foi um território rico
em biodiversidade. “Comparado com o que estamos fazendo hoje com a Amazônia,
com o desmatamento e a monocultura agrícola, o que eles fizeram é impressionante”,
conclui.

Povos amazônicos
Povo do Xingu

O complexo de Kuhikugu é um dos sítios arqueológicos mais importantes e


reveladores da Amazônia.

São 20 aldeias espalhadas em uma área de cerca de 20 mil km² na região do Alto do
Xingu, no Centro-Oeste brasileiro, descobertas por Michael Heckenberger, da
Universidade da Flórida, com a colaboração de profissionais brasileiros e indígenas
locais.

Elas provavelmente foram construídas pelos antepassados do povo kuikuro, que


atualmente vive na região.

“Onde hoje há uma aldeia kuikuro havia 20 há 500 anos, e a maior de todas era cerca
de 15 a 20 vezes maior do que a atual. Estimamos que cerca de 50 mil pessoas viviam
nesse complexo em 1491”, disse o arqueólogo à BBC News Brasil.

O mais surpreendente para os pesquisadores, no entanto, foi a organização da área.

Kuhikugu, uma das maiores, tem um centro de mais de 50 hectares, possivelmente


destinado a cerimônias, mas também a algumas residências, com uma enorme praça e
rodeado por trincheiras.

Nessa recriação de Kuhikugu vê-se a praça principal, as áreas residenciais misturadas com a
floresta e as estradas que a conectavam ao complexo de aldeias. Imagem: Luigi Marini

Outros sítios residenciais parecidos ficam dispostos em seus arredores: dois


assentamentos grandes 5 km ao norte e ao sul e alguns menores à leste e à oeste.
Entre todas estas aldeias, e em direção a outras próximas, havia um sistema de
estradas com até 50 metros de largura, quatro pistas e até calçadas.

“Acreditamos que toda a região do Xingu estava conectada por esta rede. Algo assim
não existia nem na Grécia antiga, nem na Europa medieval, onde havia grandes
cidades, mas elas não estavam conectadas a outras comunidades de maneira tão
precisa”, afirma Heckenberger.

O que foi encontrado na Amazônia brasileira, afirma Heckenberger, é um tipo de


urbanismo diferente e único no mundo.

“Os indígenas descobriram há 800 anos que a natureza poderia ser incorporada às
cidades. As áreas de ocupação humana se misturavam e se alternavam com a floresta,
os pomares e as plantações.”

Durante muitos anos os pesquisadores assumiram que no interior da floresta


amazônica pré-colombiana os povos eram nômades e caçadores-coletores, mas
descobertas como a de Kuhikugu mostram que ainda há muito por entender.
Como a maioria dos povos da região, os indígenas do Xingu sofreram uma queda de população
após entrar em contato com os europeus. Essa representação é do século 19. Imagem: Getty

“As pessoas não perceberam que esses sistemas complexos existiam na Amazônia
porque a expectativa era encontrar algo como uma grande cidade maia. Mas o fato de
que isso não exista não quer dizer que a população não estivesse em um processo de
urbanização, que não estivessem se organizando e administrando os recursos naturais
de maneira sofisticada”, diz Heckenberger.

“Kuhikugu tem uma trincheira dupla ao seu redor que se estende por dois quilômetros,
tem 15 metros de largura e cinco metros de profundidade. Eram construções
enormes. Seria mais óbvio para nós se fosse uma pirâmide, mas uma vala como esta
requeria a mesma mobilização de mão de obra.”

O trabalho daquela sociedade também se destinava a modificar a floresta: segundo


estudos recentes, os indígenas praticavam uma forma de agroflorestação, escolhendo
a forma e os locais mais convenientes para que determinadas espécies de plantas
crescessem.

Nos últimos anos, novas escavações mostravam que havia sociedades complexas,
densas e estabelecidas como a do Xingu nas principais bacias de rios amazônicos,
segundo Heckenberger.

“Através dessas estradas, os povos de toda a bacia amazônica provavelmente se


conectavam uns aos outros. Não vemos mais isso hoje porque o colonialismo jogou
uma bomba nuclear em toda a sociedade que existia ali.”

Povos amazônicos
Aisuaris

Décadas depois da chegada dos europeus à América, muitos povos da Amazônia


central permaneciam sem contato e, em alguns casos, protegidos das doenças que já
atingiam outras comunidades do continente.

É o que parece ter acontecido com os aisuaris.

De acordo com os relatos dos primeiros padres espanhóis que entraram em contato
com eles (Gaspar de Carvajal em 1540 e Cristóbal de Acuña em 1639), esse povo vivia
em uma região densamente povoada — com pelo menos 30 aldeias só da sua cultura,
sem contar os povos vizinhos — nas margens do rio Amazonas, perto da atual cidade
de Tefé (AM).
Os religiosos descreveram os nativos como povos compostos de milhares de
guerreiros, com “caminhos bons e largos que saíam para as aldeias do interior” e que
criavam animais como o tracajá (uma espécie de cágado).

Durante muito tempo acreditou-se que essas descrições eram exageradas, mas, nos
últimos anos, arqueólogos brasileiros começaram a comprovar que, na verdade, elas
se aproximavam da realidade.

“Os relatos diziam que os aisuaris tinham aldeias lineares nas barrancas dos rios. Nós
encontramos sítios assim, de até um quilômetro de extensão, em um assentamento
que ocupava um total de 18 hectares. E este lugar estava bastante degradado pela
ação do tempo e do ambiente, o que nos faz pensar que a aldeia original devia ser
muito maior”, disse à BBC News Brasil Rafael Lopes, do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá.

Segundo Lopes, o antropólogo brasileiro Antonio Porro, especialista nos povos da


Amazônia central, estima que a comunidade aisuari pode ter tido até 60 mil pessoas
no final do século 15.

A ilustração dos cientistas alemães Spix e Martius mostra uma aldeia na margem do rio Japurá
no século 19. Imagem: Getty

Os vestígios arqueológicos também parecem confirmar que os nativos domesticavam


tracajás, algo que, novamente, desmonta a ideia de que as civilizações da região eram
apenas caçadoras e coletoras.

“Isso garantia que eles teriam proteína em sua dieta, mas é importante mencionar que,
ainda que tivessem muitas bocas para alimentar, separavam uma quantidade de
tartarugas e liberavam o resto. Isso é fazer uma boa gestão de recursos naturais”, diz
Eduardo Neves, do MAE-USP.

Outra prova dessa gestão está na própria floresta. Em 2019, o Grupo de Pesquisa em
Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá, do
qual Rafael Lopes faz parte, descobriu um castanhal de 400 a 500 anos de idade
próximo a um sítio arqueológico na região. As árvores chegavam a quase exatos 500
metros da margem do rio. “Isso mostra que houve um trabalho humano para plantar e
manter isso aqui”, diz o arqueólogo.

Segundo os relatos dos padres espanhóis, a cada 15 km nas estradas aisuaris havia
abrigos rodeados de plantações para abastecer as pessoas que saíam em expedições
comerciais a outras aldeias — um conceito semelhante ao das callancas dos incas.
Esses detalhes, no entanto, ainda não foram confirmados.

Os aisuaris eram famosos na região pelo intercâmbio de peixe seco e de cerâmica, e


recebiam principalmente adornos de ouro. As cerâmicas encontradas na região, diz
Lopes, parecem confirmar que os nativos pertenciam a uma rica malha de
intercâmbio comercial e cultural.
As urnas decoradas encontradas próximo de onde viviam os aisuaris indican que sua arte tinha
influência de outros povos. Imagens: Erêndira Oliveira e GP Arqueologia do IDSM

As mesmas pessoas também nos permitem saber algo sobre a sua visão de mundo e
conexão com o território. Um exemplo são as urnas funerárias dos séculos 14 a 16
encontradas pela equipe de Lopes em um sítio da região, que demonstram a existência
de um ritual religioso complexo e importante.

O fato de serem pequenas, de no máximo um metro de altura, mostra que nem todo o
corpo de uma pessoa era enterrado. Em geral, enterrava-se o corpo no solo primeiro,
esperava-se sua decomposição e os ossos eram depois retirados da terra e colocados
nas urnas, às vezes junto a ossos de animais, para serem enterrados novamente.

No final do século 17, o missionário jesuíta Samuel Fritz disse que encontrou somente
poucas aldeias aisuaris onde antes havia dezenas. Como muitos povos da região, eles
teriam sofrido um enorme declínio populacional após o contato com os colonizadores.

Povos amazônicos
Cultura santarém

As margens do Amazonas no extremo norte brasileiro, onde fica a atual cidade de


Santarém (PA), foram o lar de uma civilização pré-colombiana cuja arte era tão
valorizada que suas peças chegaram até o Caribe pelas redes de intercâmbio da
região.

A cultura Santarém, como é chamada pelos pesquisadores, viveu seu apogeu entre os
anos 1200 e 1400.

Seu centro era uma grande cidade de pelo menos 400 hectares com seções
semelhantes a bairros, fileiras de casas ordenadas e construídas sobre montículos, na
região onde fica a atual cidade de Santarém, no Pará.

Ali foram encontrados exemplares de um tipo de cerâmica e de adornos únicos nas


Américas: entre eles, vasos e urnas, esculturas antropomórficas (especialmente de
mulheres), pontas de lança e “muiraquitãs” — amuletos em forma de rã ou de outros
animais, esculpidos em amazonita, usados como colares e que se espalharam por
muitas regiões da Amazônia.

As muiraquitãs aparecem em muitas lendas amazônicas, e Santarém parece ter sido seu centro
de produção. Imagem: Departamento de Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ

A cultura Santarém também tinha um “culto de cremação”.


“Eles mumificavam os corpos, os guardavam, vestiam e saíam com eles na rua. Eles
eram considerados seres vivos, como no caso dos incas. Mas as múmias se
deterioravam. Por isso, a cremação era provavelmente a etapa final. As cinzas eram
colocadas em vasilhas especiais e possivelmente diluídas em um tipo de chá, que as
pessoas bebiam”, explica à BBC Brasil Anna Roosevelt, da Universidade de Illinois em
Chicago (EUA), que escavou sítios em Santarém.

“É um ritual comum na Amazônia e significa reverência. Você está bebendo a alma, o


poder e o status da pessoa.”

Essas cinzas, junto aos restos orgânicos das festas fúnebres, tiveram também um
papel vital na fertilidade do solo amazônico. Juntos, eles produziam uma “terra
preta”, que os indígenas transportavam para locais de cultivo.

“Basicamente era lixo orgânico que se transformava em adubo. Eles não o produziam
especificamente para isso, mas era uma forma de usar esses resíduos, que deviam ser
abundantes porque as populações eram grandes”, afirma Roosevelt.

A terra preta é hoje uma das principais pistas encontradas em sítios arqueológicos
que indica que, ao contrário do que se pensava, a Amazônia era bastante povoada.

Os primeiros europeus a chegar na região de Santarém, em 1542, foram padres que


tiveram contato com o povo tapajó, que foi extinto tempos depois do encontro com os
colonizadores.

Apesar de não haver, segundo Roosevelt, evidência arqueológica definitiva de que os


tapajós eram parte da cultura Santarém, ela acredita que eles possam ter sido seus
descendentes.

“A continuidade das culturas dos povos amazônicos é impressionante. A maioria


delas continua viva até hoje, apesar da colonização e da perda de território. Há povos
que mantêm os mesmos símbolos, cerimônias e arte dos que viviam na região há
milhares de anos”, afirma.

Mapuches

No início dos anos 1540, quando os espanhóis chegaram ao centro-sul do que hoje são
Chile e Argentina, perto da Patagônia, encontraram uma organização social tão bem
estruturada que nunca conseguiram dominá-la.

Tanto é assim que os mapuches resistiram com sucesso à conquista mais do que
qualquer outro povo da América.
Os nativos daquela região foram os únicos com quem a Espanha teve que assinar um
acordo de paz, garantindo que respeitaria os limites de seu território. Antes disso, os
mapuches já tinham enfrentado os incas numa guerra sangrenta e perderam parte de
suas terras no norte do Chile, mas impediram o avanço do império. Tudo isso sem um
governo central.

“Os espanhóis estimaram o número de mapuches com base nas batalhas que tiveram
com eles. Hoje sabemos que houve exageros, mas calculamos que havia
provavelmente entre 1,2 e 1,3 milhão de pessoas no território deles na época”, disse à
BBC News Brasil Tom Dillehay, da Universidade Vanderbilt, nos EUA e da Universidade
Austral do Chile.

Os incas conquistaram uma parte do território mapuche, mas não conseguiram avançar mais ao
sul. Imagem: Felipe Guaman Poma de Ayala/Wikimedia Commons

Os povos mapuches eram comunidades confederadas, semelhantes a muitos dos


nativos da América do Norte, unidos ideologicamente, culturalmente e para fins
militares.

Mas há aspectos únicos da organização mapuche que, segundo Dillehay, foram


essenciais para que eles pudessem resistir aos espanhóis por tanto tempo.

“Eles se organizavam em uma estrutura de parentesco que eu chamo de ‘telescópica’.


Os grupos familiares relacionados a um antepassado masculino comum formavam um
lof e esses lofs se uniam, em tempos de guerra, em outros grupos sob o comando de
chefes militares chamados toquis. Regiões diferentes mandavam seus toquis a
cerimônias públicas para que eles entrassem em acordo sobre estratégias para
enfrentar os invasores”, explica.

Durante os séculos de resistência à conquista, os mapuches expandiram seu território até o


atual Uruguai. A gravura mostra mulheres em uma aldeia na Argentina no século 19. Imagem:
Getty

Em épocas de conflito, as aldeias mapuches se especializavam de acordo com as


necessidades do povo: algumas se responsabilizavam pela comida, outros por receber
famílias desalojadas, outros por fornecer guerreiros, etc.

“Outra vantagem que eles tinham era a utilização de táticas de guerrilha. Atacavam
em grupos pequenos e em áreas planejadas, de onde podiam sair rapidamente. A
guerra móvel era seu ponto forte”, diz o arqueólogo.

A resistência dos mapuche teve sucesso até o século 19, quando os militares chilenos
conseguiram conquistar seu território e submetê-los às autoridades do país. Hoje em
dia, descendentes desse povo continuam mobilizados politicamente, especialmente no
Chile.
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Créditos
Pesquisa e reportagem: Camilla Costa (@_camillacosta)
Design e ilustração: Cecilia Tombesi e Kako Abraham
Programação: Alex Nicolaides
Edição: Carol Olona e Ricardo Acampora
Com a colaboração de Shilpa Saraf, Adam Allen e Sally Morales
Projeto liderado por Carol Olona

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