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O Fogo da Torá

Reflexão da Parashat Vezot haB’rachá


Por Sha’ul Bentsion

“Disse pois: YHWH veio de Sinai, e lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o monte
Paran, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia para eles o fogo da
Torá.” (Devarim/Deuteronômio 33:2)

A passagem acima é um tanto curiosa. Afinal, qual a relação entre os lugares


mencionados acima, e por que Moshe os cita, associado ao fogo da Torá. E mais: o que
é o fogo da Torá?

O Targum Yerushalmi, concordando com Rashi e tantos outros comentaristas, explica o


que essa passagem quer dizer, do ponto de vista da tradição judaica:

“E ele disse: YHWH se revelou no Sinai para dar a Torá ao Seu povo da Casa de
Israel, e o esplendor da glória da Sua Shechiná se levantou de Gueval para se doar aos
filhos de Essav, mas eles não a receberam. Ela brilhou em majestade e glória do monte
Paran, para se doar aos filhos de Ishmael, mas eles não a receberam. Ela retornou e se
revelou em santidade ao Seu povo da Casa de Israel, e com Ele dez mil vezes dez mil
anjos. Ele escreveu com a Sua Destra, e lhes deu a Sua Torá e Seus mandamentos, a
partir de fogo abrasador.”

Pelo entendimento judaico, Moshe se refere ao fato de que, desde os primórdios da


criação, YHWH busca aqueles que estão dispostos a receberem Sua Torá. Assim sendo,
YHWH buscou se revelar de forma coletiva à toda a humanidade. Nem todos os
receberam. Se entendermos que Yeshua é a própria Torá feita carne, então podemos
compreender quando Yochanan nos diz: “Mas todos quanto O receberam, deu-lhes o
poder de serem feitos filhos de Elohim.” A Torá era muito mais do que um simples
conjunto de leis e regras. A Torá era um verdadeiro termo de adoção. Nela,
encontramos a possibilidade de nos tornarmos filhos do El-Elyon.

Muitos tiveram a chance de receberem a Torá. Alguns, como Ishmael e Essav, citados
no comentário do Targum, cresceram tendo recebido da pura seiva da instrução da Torá,
tendo sido criados por Avraham e Yitschak, respectivamente. Mas, o que fez de
Ya’akov o herdeiro dessa promessa? O que tornou Israel povo de YHWH?

A resposta está no fato de que Ya’akov aceitou tomar sobre si o fogo da Torá. Esse é o
mesmo fogo que Yeshua veio nos oferecer, conforme profetizado por Yochanan
haMat’vil (João, o Imersor):

“Eu, na verdade, vos imirjo em água para o arrependimento; mas aquele que vem após
mim é mais poderoso do que eu, que nem sou digno de levar-lhe as sandálias; ele lhes
imergirá com o fogo da Ruach HaKodesh.” (Matitiyahu/Mateus 3:11)

Muitas pessoas não se dão conta de que o relato feito por Yochanan não se referia a uma
“nova onda” de sensações ou “arrepios” travestidos de aparente espiritualidade.
Yochanan se referia ao fogo da Torá, o mesmo que foi aceito por Ya’akov, e que o
tornou herdeiro da promessa e pai da nação de Israel.
Mas, afinal, o que é o fogo da Torá?

O Talmud narra a história de um pastor de ovelhas que, tendo 40 anos, não sabia ler
sequer o alef-beit. Certa vez, esse pastor encontrou uma pedra com um furo no meio,
que havia sido causado pelo gotejar da água. Ele então concluiu: “Se algo tão suave
como a água pode fazer um buraco na rocha sólida – quanto mais a Torá – que é fogo, é
capaz de fazer uma marca indelével no meu coração!” Esse pastor, então, foi estudar a
Torá, e se tornou um dos líderes de sua geração.

Vemos pela própria Torá que existe um fogo especial que sai de YHWH, como vemos
em Vayicrá (Levítico) 9:24:

“Porque o fogo saiu de diante de YHWH, e consumiu o holocausto e a gordura, sobre o


altar; o que vendo todo o povo, jubilaram e caíram sobre as suas faces.”

Quando analisamos as Escrituras, vemos que o fogo está associado à própria presença
de YHWH:

“E sucedeu que, posto o sol, houve escuridão, e eis um forno de fumaça, e uma tocha de
fogo, que passou por aquelas metades.” (Bereshit/Gênesis 15:17)

O fogo tem a ver com a kedushá (santidade) da presença de YHWH:

“Porque YHWH teu Elohim é um fogo que consome, um Elohim zeloso.”


(Devarim/Deuteronômio 4:24)

Nossa matéria, imperfeita e impura, é incapaz de se aproximar dEle. Se o fazemos, sem


nos purificarmos, somos consumidos. É por essa razão que os iníquos são descritos
como queimando na presença de YHWH:

“ E os povos serão como as queimas de cal; como espinhos cortados arderão no fogo.”
(Yeshayahu/Isaías 33:12)

Justamente porque a iniquidade não agüenta o poder da luz de YHWH. Assim sendo,
podemos compreender o fogo como uma ação de purificação que decorre pelo se
aproximar de YHWH. De um jeito ou de outro, passaremos pelo fogo. Podemos
escolher como passaremos: De forma a deixá-lo nos purificar, ou desafiando-o, de modo
que ele nos consumirá.

A autora Tracy R. Rich, da obra “Judaism 101”, ao descrever a oferta queimada (que,
portanto, é relacionada ao fogo), assim afirma:

“Uma olah (oferta queimada) é completamente queimada no altar externo, e nenhuma


parte dela é comida por qualquer pessoa. Porque a oferta [queimada] representa
completa submissão à vontade de Elohim, a oferta inteira é dada a Elohim (i.e. ela não
pode ser usada depois de ser queimada). Ela expressa um desejo de comunhão com
Elohim, e expiar pecados incidentais no processo (pois como você pode ter comunhão
com Elohim se estiver manchado com pecados?)”
Mas, afinal, qual a relação disso com o fogo da Torá? E, por que, os demais povos
não quiseram recebê-lo?

O fogo da Torá é justamente o processo pelo qual, ao nos aproximarmos da Torá,


começamos a nos alinhar com a vontade de Elohim, de modo que a nossa própria
carnalidade e vontade são queimados. Porque a nossa natureza caída não deseja,
naturalmente, as coisas de Elohim.

Infelizmente, hoje em dia, as pessoas enxergam apenas o poder do fogo, ou a


capacidade do fogo de “iluminar.” Yeshua nos diz que devemos iluminar o mundo ao
nosso redor. Mas, para iluminar o ambiente ao nosso redor, devemos queimar algo
dentro de nós. As pessoas querem ser luz, mas não querem acender o fogo da Torá
dentro de si próprias. Ou querem apenas o calor do fogo – ie. os dons espirituais, sem a
dor natural do processo de purificação.

Se você se aproximar da Torá, saiba que irá se queimar. Não de uma forma ruim, pois a
Torá queima aquela parte de nós que está atrelada ao nosso yetser hará (inclinação ao
mal), mas mesmo assim sentirá a dor. Sentirá a dor de ter que conter suas reações e
impulsos. Sentirá a dor de ser rejeitado pelas pessoas à sua volta. Sentirá a dor de
amoldar o seu caráter a um propósito e um conjunto de valores, de ética e de moral,
muito mais elevados do que qualquer padrão humano. E, por fim, sentirá a dor da luta
de sua carne, que não quer se sacrificar no fogo para permitir que o espírito se ilumine.

O mérito de Ya’akov Avinu, Israel, foi o de aceitar sobre si o fogo da Torá. Não apenas
o poder ou as bênçãos, mas todo o processo de purificação. Desde os primórdios,
Elohim oferece o Seu fogo como forma de retificar o mal gerado pela queda do homem.
Mas poucos são aqueles que desejam o fogo remediador. Ishmael (cujos descendentes
hoje compõem boa parte do mundo islâmico) não quis abdicar de sua carnalidade, e de
sua inveja de Yitschak. Essav (cujos descendentes compuseram, segundo a tradição
judaica, o império romano) não quis abdicar de sua idolatria para viver uma vida com
YHWH. E YHWH foi acolhido pelo menor povo da terra, a quem YHWH prometeu
colher os frutos da purificação pelo fogo. O processo da purificação de Israel é
doloroso, mas no fim sairemos melhores do que entramos.

Hoje, os olhos de YHWH continuam a sondar a terra, procurando quem aceite o fogo
purificador da Torá/Yeshua. Estaremos dispostos a recebê-lo, não apenas aceitando suas
bênçãos, mas pagando o seu preço?

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