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François Jullien - Tratado Da Eficácia
François Jullien - Tratado Da Eficácia
François Jullien
TRATADO DA EFICÁCIA
T radução
P aulo N eves
editoraB 34
I l)ITOI<A M
T ítulo original:
T raité de V efficacité
Revisão:
G eraldo G érson de S o uza
V Edição - 1998
ISBN 85-7326-112-9
CDD-181.11
TRATADO DA EFICÁCIA
1
â
TRATADO DA EFICÁCIA
A dvertência....................................................... ...................... . 9
O bjeto e referências................................................................ 11
10 François Jullien
O B JETO E REFERÊN CIA S
T ratado da Eficácia
im p rn p ru iu n iU ’ d ia m a d o “ legism o” ; a edição utilizada é a de Chen
Q iynu, I hin l:<'izi jisbi, Shanghai, Shanghai renm in chubanshe, 1974,
2 vol.
12 François Jullien
I.
C O M OS O L H O S FIXOS N O M O D E L O
14 François Jullien
•n
i ta s ” (Ética a N ic ô m a c o , 1106 b), tem os de pensar a
lação. M ais precisam ente, é “ em direção a ele” , diz
A ristóteles, que, com “ os olhos fixos acim a” , “ co n
d u zirem o s nossa o b r a ” . M esm o que o justo meio'
ideal seja relativo ta n to às circunstâncias q u an to aos
indivíduos, ele é sem pre objeto de m ira (s k o p o s ), e
sua perfeição se instau ra com o n o rm a que devem os
em_seguida e n carn ar nos fatos. Perm anece in ta ta a
função do m odelo posto com ojobjetivo) que se de
term ina num plano “teó rico ” , e ao qual, u m a vez es
tabelecido, deve a “ p rá tic a ” subm eter-se.
x\ d o b ra , d o rav an te, está vincada: im põe-se a
nós esta junção — teo ria-p rática — cuja razão jus
tificativa não cogitaríam o s m ais sequer de contes
tar (e, por mais que retrabalhem os a articulação des
ses term os, não saím os deles). Vejo inclusive aí um A '“dobra”
dos gestos m ais característicos do O cidente m o d er teoria-prática
no (ou do m undo — se é a p artir do “ O cidente” que
d e se padroniza?): to d o s em casa, e q u aisq u er que
sejam os papéis, o revolucionário traça o m odelo da
sociedade a construir, ou o m ilitar o plano de guerra
a conduzir, ou o econom ista a curva de crescim en
to a realizar... O u tro s ta n to s esquem as projetadoS~ti
sohre o m u n d o , e m arcad o s p o r idealidade, que em !
seguida deverem os, com o se diz, fazer e n tra r nos ^
i r/m ji
furos. M as o que significa aqui “fazer e n tra r” , q u a n
. */•-
d o é no real que se p retende fazê-lo? P rim eiram en
te, o en ten d im en to conceberia “com vistas ao m e
lh o r” ; depois, investe-se a von tad e p ara im por esse
m odelo à realidade. Im p o r, isto é, co lo car sobre,
com o que p a ra d ecalcar, m as tam b ém subm eter à
lorça. O ra, essa m odelização, som os ten tad o s a es-
lendc-la a tu d o , ela cujo princípio é a ciência; pois
sabc-se m uito bem que a ciência (européia, pelo m e
nos a ciência clássica) não passa, ela m esm a, de um
v . i m o em preendim ento de m odelização (e so b retu
d o dc m atem atização) cuja eficácia técnica, com o
.iplicação p rática, ao tra n sfo rm a r m aterialm ente o / ! :" 4 U ^ '
m undo, veio atestar.
I i.il.u lo da Kficácia 15
j A questão será, p o rta n to , perguntarm o-nos se
i »> que foi tão bem -sucedido do p o n to de vista da
j técnica, ao nos to rn arm o s m estres da natureza, vale
i igualm ente p a ra a gestão das situações e das rela
ç õ e s h u m an as. O u , re to m a n d o a divisão estabele-
[j cida pelos gregos: pode essa eficácia d o m odelo que
co n sta ta m o s no nível da p ro d u ç ã o (poiesis) valer
tam b ém n o d o m ín io da ação, o d a praxis — na o r
dem , com o diz A ristóteles, não m ais daquilo que se
“ fa b ric a ” m as d aq u ilo que se “ cu m p re” ? Pois, p o r
m ais que se ten h a distinguido os dois, n ão se dei
x o u talvez de c o n tin u ar a cop iar um do o u tro (e, se-
Pode-se per ,, guram ente, a ação da produção): m esm o quan d o as
manecer técnico
ij “ co isas” se to rn a m as q u estões h u m an a s, n ã o se
na ordem da
conduta?
j deixaria de gostar de perm anecer na tranqüilizadora
p o sição de “ té c n ic o s” — artífices o u dem iurgos.
!- —D ra , sabem os m uito bem , e A ristóteles é o prim ei
ro a reconhecê-lo, que, se a ciência pode im p o r seu
rig o r às coisas, ao p en sar na necessidade delas, do
q u e re su lta rá a eficácia técn ica, nossa a ção , com
relação a ela, assenta-se n u m fundo de indeterm i-
nação; ela n ã o conseguiria elim inar a contingência
e sua p articu larid ad e resiste à generalidade d a lei:
ela n ão conseguiria se colocar, p o rtan to , n o simples
pro longam ento da ciência. Por isso, do m esm o m o
do que a m atéria de Aristóteles, força indeterm inada
dos co n trário s, perm anece sem pre m ais ou m enos
recalcitrante à d eterm in ação d a “fo rm a ” , tam bém
o m u n d o jam ais é inteiram ente acolhedor a essa o r
dem que q u erem o s p a ra ele: subsistirá inevitavel
m ente u m a diferença en tre o m odelo que p ro je ta
m os p a ra agir e aquele que, com os olhos fix o s aci
m a , conseguim os realizar. Em sum a, a p rática sem-
| p re tra iria u m p o u co a teoria. E o m odelo co n tin u a
I i n o horizonte do olhar. R etirado para seu céu, o ideal
:.j é inacessível.
16 François Jullien
tifa ") — já que a filosofia n ão p o d e a c e ita r esse
li acasso. Pois de que m o d o , após te r c o n ta d o ta n
to com a ap tid ão d o hom em p a ra a ciência, depois
ilc tê-lo feito entrever a perfeição das essências, po
deria ela decidir-se a deixá-lo finalm ente tã o desar
m ado: incapaz de se co n d u zir no m u n d o , de triu n
fa re m seus projetos e, p a ra ta n to , de m an o b rar? De
tato, nesse deb ate duvidoso en tab u lad o en tre a fo r
ma e a m atéria ou, com o já diziam os Trágicos, entre
o “ m elh o r” e o “ necessário ” , A ristóteles acreditou
identificar u m a faculdade cuja d estin ação fosse a
prática e que, vin d o a su b stitu ir a teo ria, pudesse
co m pensar aqu ela diferença: um a cap acid ad e que
tosse um a virtude intelectual (“d ian o ética” ) ao mes
mo tem po que diretam en te envolvida com a ação, ^ fS C O ^ -
c p o rta n to pudesse g a ra n tir a m ediação desejada,
r.ssa sab ed o ria p rá tic a , ch am am o -la tra d ic io n a l
mente a “ p ru d ên cia” (phronesis). É p ru d en te, po s H.
sui essa capacid ad e p rá tic a , quem “ é cap az de deli
berar c o rretam en te sobre o que é bom e vantajoso
para ele” {É t. a N ic ., V I, 5). C om o se d elibera ap e
nas sobre o contingente, a prudência não é um a ciên
cia; mas tam pouco é um a arte, n o sentido da techne,
já que ela visa à ação (praxis) e n ão à p ro d u ção. Por
essa du p la distin ção , ei-la reconhecida em sua fu n A “prudên
cia” conseguiria
ção pró p ria: não m ais n o p ro lo n g am en to da ciên
compensar a
cia mas ao lado dela, e re q u eren d o um a o u tra p a r diferença teoria/
te da alm a racional. E n q u an to sua p arte científica prática?
visa a co n tem p lar tu d o o que não p ode ser diferen
te do que n ã o é (os o b jeto s m etafísicos o u m atem á
ticos), cabe à sua p arte “ logística” encarregar-se das
necessidades d a a ç ã o , n o seio de u m m u n d o em
co n stan te m u tação , calcu lan d o e d eliberando pelo
m elhor. C o m pletam -na, nesse sentido, ta n to a “jus
teza da o lh a d a ” q u a n to a “ vivacidade de e sp írito ”
ou a cap acid ad e de “ ju lg a m e n to ” (g n o m e ). N ã o
m ais a ilustram os sáb io s absorvidos em suas espe
culações, m as os “ ad m in istrad o res das casas e das
cid a d es”. N ão m ais os T ales o u os A n ax ág o ra cujo
T ratatlo da Eficácia I
saber, “difícil” e “ divino” , é “ sem u tilidade” , mas
IV rid c s um hom em de ação — Péricles: Péricles é reab ilita
do pela filosofia p o r ter sabido gerir os negócios dos
hom ens.
Eis p o rta n to que, com A ristóteles, e com o não
se cessou de dizê-lo depois, a filosofia re to rn a ria às
“ coisas” ; após te r visado m uito alto, ela se to rn a
ria “ re a lista ” . M as não sei se se tra ta igualm ente, a
p ro p ó sito da “ p ru d ê n c ia ” , de um a verdadeira ca
pacidade “ log ística” que viesse satisfazer a neces
sidade percebida e d a qual a eficácia fosse o prin cí
pio. A ntes de m ais n ad a, p a ra definir essa faculda
de p rática em função de critérios que sejam os seus,
Aristóteles se vê ap an h ad o num círculo vicioso, sub
lin h ad o pelos com entadores. “ A p rudência, define
ele, é aquela disposição p rática, aco m p an h ad a de
regra verdadeira, relativa ao que é bom e m au p ara
o h o m em .” M as de onde vem essa “ regra verdadei
r a ” que deve a c o m p a n h a r a deliberação e serve de
n o rm a, se não é ju stam ente da ciência? O ra, sabe-
se que, ao c o n trá rio de P latão, A ristóteles não acre
dita m ais na possibilidade de deduzir com pletam en
te o p a rtic u la r do geral, nem a ação dos princípios;
assim , ele só p ode definir a prudência pelo p ró p rio
prudente: esse critério da p ru d ên cia, que a ciência
n ã o p ode estabelecer, som ente p o d erá fornecê-lo o
Sobre o que se
fundamenta a hom em do qual dizem os com um ente que é “pruden-
prudência? ■ te ” . N ã o se fiando m ais na transcendência da n o r
m a, x\ristóteles é rem etido assim ao o u tro extrem o
I e c o n d en ad o ao em pírism o; p o rq u a n to , não tendo
j i mais essência em relação à qual se definir, a prudên-
I I cia só é discernível p o r m eio da existência de indi-
J^víduos singulares: A ristóteles é, p o rta n to , incapaz
de explicá-la rem o n tan d o aquém do que disse dela
i^desde sem pre o senso com um . Dessa faculdade prá-
' tica, invocada p a ra c o b rir o déficit da teoria, reve
la-se m u ito difícil, em últim a instância, estabelecer
o valor. O u seriam as prem issas intelectualistas gre
gas (e nas quais A ristóteles se manteve: com o o p ro
18 François Jullien
va sua definição da prudência pela “ regra verdadei
ra ” , ortbos logos) que, to rn an d o essa prudência ina-
preensível q u a n to a seu critério, fazem assim tro p e
çar a teoria?
Por o u tro lado, e a despeito daquilo a que ten
dia a valorização p o p u la r d a p ru d ên cia n a q u al ele
se inspira, x^ristóteles não pôde, o u não quis, separar
das considerações éticas sua reflexão sobre a p ru
dência. A d o b ra vincada pela filosofia grega o rien
Prudência/
ta a ação no sentido da m oralidade, e Aristóteles não habilidade
se afasto u disso: m esm o que seja ele quem vá m ais
longe, na filosofia grega, p a ra pensar as condições
da ação eficaz, esta se acha sem pre transcendida em
seu fim (a “ v an tag em ” q u e o p ru d en te visa n ão é o
proveito pessoal m as o da co m unidade, ele tem p o r
h orizonte a polis, cf. Et. a N ic ., III). T estem unha-
o, em p articu lar, a m aneira com o A ristóteles opõe
o p ru d e n te ao hábil (d e in o s): e n q u an to a h ab ilid a A habilidade
de é a capacidade de com binar os meios mais eficien não é pensada
T ratado da Eficácia l ‘*
l; o próprio Zeus com eça p o r devorar a divina M étis
para assim ilar sua sab ed o ria e estar seguro, em face
dos deuses e dos hom ens, de im pedir as em bosca
das que p oderiam fazê-lo cair.
Se a cap acid ad e de inteligência d e n o tad a pela
A metis m etis se exerce em planos m uito diversos, dizem -nos
Detienne e V ernant, a ênfase é sempre colocada, não
o b stan te, sob re a “eficácia p rá tic a ” , isto é, “a bus-
__ca do sucesso num d o m ín io da a ç ã o ” . O que carac-
r teriza p articu larm en te a m etis é que, p o r um a m a
n o b ra m ais o u m enos frau d u len ta, e graças ao p ro
veito tira d o das circunstâncias, ela perm ite levar a
, m elh o r sobre a força: en g an an d o seu adversário na
corrid a de carro s, e p o rq u e sabe esperar a ocasião
p ropícia, o A ntíloco de H o m ero consegue inverter
a situação em seu favor. C om o tem p o r cam po de
aplicação o m u n d o do m ovente, do m últiplo e do
am bíguo, a inteligência d a m etis sabe tornar-se in
finitam ente m aleável e so lta, ela é cham ad a “ variá-
i vel” e “ m atizad a” : com o as realidades que afeta são
n a m aio ria das vezes tra b a lh a d a s p o r forças c o n
trárias, ela deve perm an ecer p o lim orfa e móvel; e,
p ara ter influência sobre um a situação em constante
m u tação , perm anece a b e rta a todos os possíveis e
n ã o cessa de se tra n sfo rm ar p ara se a d a p ta r. Ain-
j d a m ais ínapreensível e fugaz que o m u n d o ao qual
“Flexibilidade’’ [ se d estin a: g raças à sua m a le a b ilid a d e , ela p o d e
do espírito em ^ triu n far lá onde n ão há, para o sucesso, regras pron-
face da variabi tas, receitas estereotipadas. O m odelo dela — ou
lidade das coisas pelo m enos seu bestiário favorito — conjuga os p a
péis da rap o sa e d o polvo: da prim eira possui a es
perteza em m u d ar de co m p o rtam en to ; d o segundo,
a capacid ad e de en laçar sua vítim a e de paralisá-la.
D o m esm o m o d o , Ulisses sabe fru stra r, p o r suas
& a rtim a n h a s, os assaltos de seu adversário e, p o r sua
■ jvrcu "€ > 'fK 7 C 0 f eloqüência, ap an h á-lo em suas arm adilhas.
T eríam o s aí, enfim , não recu an d o d ia n te de
J q . ■?
W A í0 lW U ^ n en h u m m eio, a universal lição d o realism o. E, no
entanto, lendo D etienne e V ernant, convencem o-nos
20 François Jullien
ili' um a originalidade- grega da m etis. Pois ela p er
m anece m arcada p o r um dup lo sinal — técnico e ^
m ágico. A tena é de fato sua pad ro eira. Sua dim en
são técnica se m ostra ta n to na caça q u a n to na pes-
«.;i, c ilustrada pela arte de conduzir o c a rro de com - '
lu te o u o nav io . Assim , o bom p ilo to é aquele a
quem a m etis perm ite, diante do m ovim ento incon-
irolável das ondas, exercer d a m elhor m aneira seu
dom ínio; e, em bora se trate de ação, a referência não
deixa de ser tam b ém a da p ro d u ç ã o : A tena é ao
m esm o tem p o aquela que co n stru iu o navio e que
o conduz. P o r o u tro lad o , q u er se tra te das m aq u i
nações de A tena ou de M edéia, seus filtros e seus
prestígios são tem id o s, elas fazem intervir o u tro s
poderes, m ais obscuros que a p u ra inteligência hu
m ana, elas n ã o se afastaram do m u n d o dos sortilé
gios nem ren u n ciaram aos encantam entos. A eficá- 11
• II
cia revelada pela m etis não se libertou, p o rta n to , do I;
m aravilhoso dos m itos.
M ais im p o rtan te ain d a é que dessa inteligên
cia astuciosa n ão en co n tram o s em p arte algum a da
G récia a teoria. Pode-se descobri-la em to d a parte
110 jogo das p ráticas sociais e intelectuais, e m esm o
às vezes “ de form a o b se d a n te ” , m as n enhum texto
a analisa p ara nos fornecer seus fundam entos ou nos
m o stra r seus m eios. P or isso, p a ra estudá-la, V er - 1 1
n a n t e D etienne não dispõem de o u tro recurso se
não interrogar os m itos que a colocam em cena, pois i |
ela aparece sem pre m ais o u m enos “ em concavi-;1
d a d e ” , “ im ersa num a prática que n ão se p reo cu p a,
em nenhum m o m en to , m esm o q u an d o a utiliza, em ’ |
explicitar sua n atu reza nem em justificar seu p ro -j
c e d im e n to ” . Pelo que p ressupõe de m o v ente e de
inapreensível, p o rta n to de re fra tá rio a to d a form a
erigida em m o d elo , a m etis escapa à em presa de
estabilização identitária, fu ndada no Ser e em Deus,
à q u al se devotou o espírito grego. F o ram os sofis
tas os únicos que com eçaram a a b rir a inteligência
filosófica aos recursos inqu ietan tes d a m etis, m as
T ratado da Eficácia
sabem os com o su a o rie n ta çã o viu-se logo rech a
çada; era p o rta n to inevitável que a m etis “ p erm a
necesse exterior ao que constitui d o ravante o lar da
ciência h e lê n ic a ” (e que a p ró p ria p alav ra ten h a
desaparecido cedo da língua grega). E som ente p o r
desin teresse q u e o c o n h e c im e n to d ela se desvia,
p reo cu p ad o com o está, prim eiram ente, em en con
tra r consistência nas coisas e em o rd en ar o m undo?
O u não seria antes p orque o in stru m en tal teórico
grego (que co n tin u a sendo em grande parte o n o s
so) n ã o conseguiria ap reen der esse p erpétuo movi-
1 m en to no qual se d eb ate a ação? O fato é que essa
eficácia p rática, pelo m enos do lado grego — e p o r
m ais que lhe reco n h eçam algum a im p o rtâ n c ia, e
m esm o que ten h am sentido algum prazer em evocá-
la — , perm anece im pensada.
22 François Jullien
do ten ta sistem atizar esses d ad o s m ateriais, ela re
duz a su p erioridade na g uerra a sim ples d ad o s nu
m éricos (fazendo assim rep o u sar a g u erra em leis
m atem áticas); ou então procede p o r geom etrização
de um dos fatores em jogo (assim , a p a rtir d o â n
gulo fo rm ad o pela força a rm a d a com sua base, cf.
von Bülow ; ou pela teo ria das linhas interiores, cf.
De Jo m in i). “ R esu ltad o p u ra m e n te geo m étrico e
sem valo r”, conclui severam ente Clausewitz: p o r sua j
perspectiva unilateral, inacessível à variável e exclu-1
sivam ente m aterial, um a tal teorização é incapaz de '
“ d o m in ar a vida re a l” . P or isso, com o a condução
da g u erra revelara-se refratária à teo ria, n ã o resta
va o u tra possibilidade, p a ra explicar sucessos m ili
tares, senão invocar as disposições n atu rais e o “ gê
n io ” (que sabem os prescindir de teoria); e a v erd a
deira con d u ção da guerra só apareceu de fato, cons
tata C lausew itz, “de m aneira acessória e a n ô n im a ”,
sob a pena de “testem u n h as o u de m em o rialistas” .
O ra , de que m aneira o p ró p rio Clausew itz de
cide p en sar a g u erra p a ra su p erar essa ap o ria? O
p ro ced im en to , à p rim eira vista, tem algo de su r
preendente. Ele com eça por concebê-la segundo sua
fo rm a -“ m o d e lo ” , en q u a n to ideal e p u ra essência,
com o “g u erra a b s o lu ta ”, p a ra lhe o p o r em segui
d a a g u erra “ real” , tal com o é levada a m odificar-
se nos fatos. M esm o q u e considere que, até o pre- i
sente, a reflex ão sob re a g u erra trilh o u cam in h o /j
erra d o e não atingiu seu objetivo, e isso p o r ter pre- i
tendido m odelizar o im odelizável, C lausew itz ain
da perm anece preso à articulação teoria-prática: não
saindo d a d o b ra com um segundo a q u al o p ensa
m en to ocidental concebeu a ação, ele n ão tem o u
tra saída, q u an d o repõe em cena a articulação tra
dicional do m odelo e da realidade, senão o p o r seus
term o s e p en sar sua diferença. Segundo seu m ode
lo, a guerra implica um uso ilim itado da força, o que
a co n d u z logicam ente, e n q u an to ação recíproca, a
tender aos extrem os (visando um a destruição total).
T ratado da Eficácia
1., nu en tan to , “tu d o assum e um a form a diferente
q u a n d o se passa da ab stração p ara a realidade” : já
que a guerra não é jam ais um ato isolado, já que não
consiste n u m a decisão única e jam ais existe algo de
absoluto em seu resu ltad o , essa teíidência ao extre
m o que constitui a essência da guerra se m ostra sem
p re m ais o u m enos a te n u a d a nos fato s (som ente
N a p o le ã o , esse “deus da g u erra ” , teria conseguido
trazer a g uerra de volta a seu conceito). O pro b le
m a dessa diluição é inclusive um dos m ais interes
santes que C lausew itz colocou: qu al é esse “ m eio
não c o n d u to r” que im pede a “ descarga co m p leta ” ,
que, n ã o o b stan te, seria a g uerra em seu princípio?
N ã o p o d en d o sair da relação teo ria-p rática, g u er
ra “ ideal” e g u erra real, ao m esm o tem po em que
dem asiado consciente do que essa relação deixa es
A essência da capar da realidade, C lausew itz consegue finalm ente
guerra é escapar servir-se dela — mas explorando-a pelo avesso: cap
a seu modelo ta r ju stam en te a o rig in alid ad e da gu erra a p a rtir
dessa inadequação. O que faz a guerra é precisamen-
!j te essa distância inevitável que nela o real to m a em
'i relação a seu m odelo: p en sar a guerra, em sum a, é
p en sar co m o ela é levada a trair seu conceito.
O que leva a colocar decididam ente a questão:
em que condições é possível um a ciência d a co n d u
ção d a guerra? (À m aneira com o K an t perg u n tav a
um p o u c o antes: em que condições é possível um a
ciência m etafísica? O u, re m o n tan d o ain d a m ais até
N ew ton: em que condições é possível um a ciência
física?) O ra , é forçoso reconhecer que, na pan ó p lia
das form as lógicas que regem o m undo da ação (mas
copiad as daquelas que regem o m undo do co nhe
cim ento}, a m ais rigorosa delas, a de “ lei” , m ostra-
se inaplicável à co n d u ção d a g u erra, em razão da
m udança e d a variedade dos fenôm enos en co n tra
dos: é som ente com “ m é to d o ” q u e se teria de lidar,
não no sentido lógico, m as no de um a “p ro b a b ili
dade m édia de casos a n á lo g o s” , do que resulta um
m odo de proceder “ n o rm alm en te” a d ap ta d o e que.
24 François Jullien
progressivam ente assim ilado, “ vira h á b ito ” , tra n s
form a-se em “ ro tin a ” e pode p o rta n to ser utiliza
Aspecto de
do, na urgência da ação , de u m a fo rm a “quase in
fundo: a “rotina”
consciente” {daí a “p ro fissão ” que facilita o funcio
nam ento d a m áq u in a m ilitar); esse m odo de p ro ce
der perm ite agir “ m enos m a l” , m esm o ig n o ran do
um a p arte d a determ in ação p a rtic u la r à situação.
Acontece que ta l “ m é to d o ” , cuja aplicação cons
tan te e uniform e acaba de en g en d rar “ um a espécie
de ap tid ão m ecânica” , é cada vez m enos ad ap tad o
à m edida que se sobe na h ierarq u ia das resp o n sabi
lidades e se ab an d o n a o p lan o tá tic o pelo d a estra
tégia: q u an to mais se adm inistra a ação em seu con
ju n to , ta n to m aio r tam b ém é a capacidade de “ju l
g am e n to ” , que sabe ap reciar a p articu larid ad e das
situações, e ta n to m aior, p o rta n to , é o talen to pes
soal a que se recorre. N esse nível, em face d o c a rá
ter sem pre sin g u lar e p o rta n to inédito que a ação
m ilitar adquire em sua am plitude, qualq u er form ali
zação que im plique a repetição constitui o p io r p e
rigo; e é con tra essa im possibilidade do m odelo que
a teo ria volta inelutavelm ente a esb arrar. A liás, o
p ró p rio Clausew itz, em sua reflexão sobre a guerra,
n ã o pretende o u tra coisa senão “ e d u c a r” o espírito
do fu tu ro chefe de guerra; ou , m ais m odestam ente
ain d a, “guiá-lo em sua au to -e d u c a çâ o ” , ao lhe for
necer apen as “ um p o n to de referência destin ad o a
esco rar seu ju lg a m e n to ” : “cu ltiv á-lo ” , em sum a,
m as n ão “ aco m p an h á-lo no cam po de b a ta lh a ” .
N o entanto, p o r m ais desconfiado que seja das
m odelizações ab stratas que se projetam sobre o cur
so das coisas, a p a rtir do m om ento em que não se
co n te n ta em p en sar a g u erra m as nos indica com o
fazê-la (p o rq u e e v id e n te m e n te n ã o p o d e ater-se
àquele aspecto de fundo), C lausew itz é incapaz de
conceber a condução d a guerra sem “ plano de guer
r a ” tra ç a d o de an tem ão . Este c o n tin u a sen d o “ a
o ssa tu ra de to d o a to de g u e rra ” , p orque fixa, em
função do objetivo visado, a série de ações p ró p ria
T ratado da Eficácia
para con d u zir a ele; e m esm o q u a n d o a dificuldade
reside “ em sua ex ecu ção ” , n ã o convém d eixar, em
face d o “ ím peto a p a re n te ” do m om ento, que esse
O plano de plano seja “ d erro tad o ”, nem mesmo que seja “posto
guerra choca-se em d ú v id a ” . Assim, q u a n d o se coloca do p o n to de
com a variável vista da necessidade p rática, Clausew itz re to rn a ao
esquem a que sua reflexão teó rica havia ab alad o :
prim eiro o e n te n d im e n to concebe a fo rm a ideal,
depois se investe a v o n tad e — um a “ v o n ta d e de
fe rro ” que “ esm aga os o b stácu lo s” — p a ra fazer
e n tra r esse p ro je to nos fatos... C om o risco, aliás,
de que a estratégia venha a m odificar em seguida
esse p lan o inicial: pois “na guerra, mais do que em
q u alq u er o u tra p a rte , as coisas se passam de form a
diferente d aquela que se h avia pensado, e adquirem
de p e rto um aspecto diferente do que se percebe de
longe” . Já que a guerra não é um a atividade da v o n
tad e “ aplicada a um a m atéria in erte ” , com o acre
d ita ra m erro n eam en te os teóricos anteriores, m as,
sim , um o bjeto que “vive e reage” , é óbvio que essa
vivacidade d a reação se fu rta p o r natu reza a to d o
p lan o preestabelecido. D aí a conclusão a que che
ga C lausew itz e que nos devolve ao im passe que já
conhecemos: “É evidente, p o rtan to , que, num a ação
com o a guerra, cujo plano fundado sobre condições
gerais é com m u ita freqüência p ertu rb a d o p o r fe
nôm enos p articu lares inesperados, cum pre deixar
um a p a rte geral bem m a io r ao talen to e reco rrer
m enos do que em qualq u er o u tra coisa a indicações
teóricas”.
C lausew itz fo rjo u u m co n ceito p a ra p en sa r
esse fracasso de um m odelo ideal que conduz a ação:
o atrito . Esse conceito seria b astante geral p a ra per
m itir distin g u ir a g u erra real daquela que se lê nos
livros, ta n to é verdade que “ na guerra tu d o baixa
de nível em conseqüência de inúm eras co n tin g ên
cias secundárias que jam ais po d em ser exam inadas
em d etalhe n o papel, de m odo que se perm anece
m uito aquém do objetivo” . Clausewitz fala de atrito
26 François Jullien
p o rq u e ele p ró p rio n ã o ren u n cio u , p a ra pen sar a “Atrito”,
ação, ao m odelo m ecanicista (assim com o ao pon-i “máquina”
T ratado da Eficácia 17
II.
O U A PO IA N D O -SE N A PR O PE N SÃ O
T ratado da Eficácia
sa tra d iç ã o — com o to d a trad içã o , tam bém a chi
Início da nesa (e há m uita tradição a esse respeito) — e p e r
clivagem
m itiria re m o n ta r aquém das escolhas im plícitas que
são as nossas (veiculadas p o r nós com o uma evidên
cia m as que, graças a essa ocasião de recuo, pode
m os investigar). R elacio n ando a diferença assina
lad a com essa questão com um que é a eficácia: em
vez de tra ç a r um m odelo que sirva de no rm a à sua
ação, o sábio chinês é levado a co n cen trar a a te n
ção n o curso d as coisas, tal com o está envolvido
nele, p a ra descobrir-lhe a coerência e tira r provei
to de sua evolução. O ra , dessa diferença poder-se-
, ia tira r um a altern ativ a p a ra a conduta: em lugar
1 de c o n stru ir um a form a ideal que se p ro jeta sobre
as coisas, o b stinar-se em detectar os fatores favo
ráveis que atu a m em sua configuração; em vez de
Apoiar-se ■ fixar um objetivo p ara sua ação, deixar-se levar pela
naquilo que é r-, : p ropensão; em sum a, em vez de im p o r um plano ao
portador i, *" m u n d o , apoiar-se no potencial d a situação.
L ido de longe, a p a rtir d a perspectiva que é
trad icio n alm en te a nossa, um provérbio do princi
p ad o de Q i citad o p o r M êncio, p o rta n to um m o
ralista, resum iria à sua m aneira essa o u tra possibi
lidade (a cu ltu ra d a região de Q i, em face da m ais
trad icio n alista de Lu, focalizaria esse interesse di
rigido à eficácia nos últim os séculos da antig ü id a
de chinesa): “ P or m ais que se ten h a um a inteligên
cia avisada, mais vale apoiar-se n o potencial inscrito
n a situ a ç ã o ” ; “ p o r m ais que se tenha na m ão o sa-
cho e a en x ad a, m ais vale esperar o m o m en to da
m a tu ra ç ã o ” (M Z , II, A, 1). N esse p o n to , com efei
to , sab ed o ria e estratégia se juntam : m ais do que
r~ c o m nossas ferram entas, contam os com o desenvol
vim ento d o processo p a ra atingir o efeito desejado;
em vez de p en sar em tra ç a r planos, saibam os tira r
p roveito d aq u ilo que se acha im plicado pela situa-
|j ção e que nos é p ro m etid o p o r sua evolução. Esse
\~potencial é m uito m ais — e m esm o bem diferente
— que um sim ples concurso de circunstâncias, por
30 François Jullien
afo rtu n a d o que seja: preso na lógica de um desen
volvim ento regulado, é levado a desenvolver-se es
pontan eam en te e pode nos “ p o rta r” .
D uas noções se en co n tram assim n o cerne da
antiga estratégia chinesa e form am par: de um lado,
a de situação o u de configuração {x in g ), ta l com o X
se atualiza e to m a form a sob nossos olhos (enquanto
relação de força); d o o u tro e resp o n d en d o a ela, a
<p>oVjjWíuj;
de potencial (shk p ro n u n ciar shea), ta l q ual se acha
Noção de po-
im plicado nessa situ ação e se pode fazê-lo a tu a r a cencial de situação
nosso favor. N o s antigos tra ta d o s m ilitares (Sunzi,
cap. 5, “ Shi” ), este vem ilu stra d o pela im agem da
to rren te que, em seu im pulso, é capaz de a rra sta r
pedras; o u pela da b alestra esticada e cujo disparo
está p ro n to a p a rtir. N a au sência de explicações
reóricas, com o é freqüente n a C h in a , cabe a nós
interp retar essas imagens: graças ao desnível da to r
rente bem com o à estreiteza de seu leito (resultante
da co nfiguração d o relevo), a situação é p o r si m es
ma fonte de efeito (diz-se que a to rre n te “ o btém
potencial” , “ fá-lo advir” ); d o m esm o m odo, no caso
da balestra, a disposição funciona autom aticam ente
tão logo é acionada: ela form a um dispositivo.
U m a vez d eterm in ad o esse potencial, os p en
sadores chineses da estratég ia se p re o cu p aram em I
dcscobrir-lhe as conseqüências. O ra , estas colocam
KítllYP^
em q u estão o que p o d eria ser um a concepção hu
m anista da eficácia. D o rav an te, con ta m enos nos~* [/.<?
so investim ento pessoal, im pondo-se ao m u n d o e
graças ao nosso esforço, d o que o co n d icio n am en
to objetivo resu ltan te da situação: é a ele que devo
ex p lo ra r, com ele é que devo c o n ta r, ele sozinho i
basta para d eterm inar o sucesso. Preciso apenas dei^J
.Vii-lo a tu a r. Se força e fraqueza, é dito a seguir, são
uma questão de situação, coragem e co vardia são
um a questão de potencial (decorrente dessa situa-
çao). C oragem e co v ard ia são, pois, o p ro d u to da
situação em vez de nos pertencerem com o p ró p rio
(r, poderíam os acrescentar, de dependerem de nossa
1 1 .il.u lo dn F fic á c ia M
É o potencial responsabilidade). C om o glosa um co m en tad o r (Li
de situação que Q u an ), se as tro p a s obtiverem o potencial estraté
torna corajoso no
gico, “ en tão os covardes serão brav o s” ; se o perde
combate
rem , “e n tã o os b rav o s serão c o v ard es” . Por isso,
Ihésse tra ta d o prossegue: o bom general p ro c u ra o
11 sucesso n o p o ten cial d a situação em vez de pedi-lo
1 1 aos h om ens sob seu co m an d o . C onform e saiba ou
j n ão apoiar-se no potencial da situação, ele os to rn a
covardes ou corajosos. D ito de o u tro m odo (W ang
T X i) , coragem e covardia são “ m odificações” desse
potencial.
O único equivalente que encontro, no lado eu
ro p eu , p a ra essa idéia de potencial nos seria forne
cido pela m ecânica: n o que ela cham a precisam en
te a “energia potencial de situação” (mas, justam en
Potencial físi te, em term os físicos e n ão m orais, com o teorem a
co ou estratégico científico aplicável à produção, o da energia cinética,
e n ã o com o reg ra p a ra a co n d u ta). Prova disso é a
im agem que encerra essa exposição de estratégia:
“Aquele que se apóia n o potencial contido na situ a
ção utiliza seus hom ens em com bate do m esm o m o
d o q u e se faz ro la r to ra s o u pedras. É p ró p rio da
n atu reza das to ras e das pedras perm anecerem im ó
veis num solo plano e entrarem em m ovim ento num
solo inclinado; se são q u a d rad a s, param ; se são re
d o n d as, rolam : o potencial das tro p as que sabem os
em pregar em co m b ate é com parável ao das pedras
red o n d as que descem de um a alta m o n ta n h a ro la n
d o ” . A inclinação serve aqui p o rta n to de im agem
à p ropensão que resu lta da relação de força que o
estrategista sabe em pregar em seu proveito para m a
n o b ra r os hom ens: o efeito decorre dela sp o n te sua
[por sua livre vontade], insistem os com entadores,
e é irresistível; p o sto q ue a inclinação está inscrita
na co n fig u ração (ao m esm o tem po o relevo e a re
d o n d eza das pedras), o resu ltad o é “ fácil” .
N ã o se deveria, aliás, lim itar essa energia p o
tencial de situação ao simples terreno das operações.
T o rn o u -se trad icio n al concebê-la de m aneira m ais
32 François Jullien
am pla — n o tad am en te sob estes três aspectos con-
juntos (cf. Li Jing). C o m o potencial m oral: “ q u a n
do o general despreza o inim igo e suas tro p a s estão
felizes em co m b ater, q u an d o seu a rd o r se eleva até ,
o céu e sua energia é com o um fu ra c ã o ” ; com o p o
tencial to p o g ráfico tam bém : q u a n d o , sendo ap er
ta d o o desfiladeiro e estreito o cam inho, “ um único
hom em g u ard a a passagem e mil h om ens n ã o po- -f
deriam p a ssa r” ; co m o potencial p o r “ a d a p ta ç ã o ” , J’u0‘íi
enfim: q u a n d o se p ode aprov eitar-se d o a fro u x a
m ento do inim igo e de seu cansaço, q u an d o ele está
esgotado pela sede e pela fom e, q u an d o “ seus p o s
tos av an çad o s ainda n ão fo ram estabelecidos e sua
retag u ard a ain d a está atrav essan d o um rio ” ... Em
todos esses casos, quem sabe apoiar-se n o potencial
de situ ação pode facilm ente levar a m elhor. O u, se-/,
g undo a expressão de um co m en tad o r, “ com pou^. Pouco esforço,
co esfo rço ” pode-se o b te r “ m uito efeito ” *5. muito efeito
Os antigos tra ta d o s de estratégia n ão hesitam
em e x p lo ra r esse recurso ao extrem o — a p o n to de
nos chocar. Pois, p a ra fazer crescer essa energia de
situação, o estrategista chinês não se ap ó ia apenas
naquilo que, na topografia o u no estado das tro p as,
pode ser desfavorável a seu ad versário; ele aco m o
da igualm ente a situação de m odo que suas próprias
tro p as se vejam levadas a m anifestar um m áxim o
de a rd o r. P ara isso, b a sta que as co n d u za a u m a j
situação de perigo tal que n ã o ten h am o u tra saída |
senão co m b ater com to d a s as suas forças p a ra es - 1
cap ar dela (SZ, cap. 11, “Jiu d i” ). A ssim , ele só de-
im n in a o com bate em “terren o m o rta l” , ou seja,
após ter feito suas tropas penetrarem profu n d am en
te cm te rritó rio inim igo; pois en tão é com o se, de
pois de tê-las feito su b ir bem alto , “lhes tirasse a
escad a” : com o não podem recuar, estão condena- Encurralar as
das a co m b ater até a m orte. N ão pede, pois, a seus próprias tropas
, . . . para aumentar
Itomens que seiam n aturalm ente coraiosos, com o se . .
^ j seu potencial
isso fosse um a v irtu d e intrínseca, m as, d ia n te da
Mtunção de perigo em que os lança, ele os obriga a
U
V , sê-lo. Serão forçados a isso a despeito de tu d o . E a
ij recíproca tam bém é verdadeira: q u ando vê o inim i-
'] go acuado, e sem o u tra saída senão com bater até a
! m orte, ele p ró p rio lhe arranja um a escapatória para
jj que o ad versário n ã o seja levado a m anifestar to d a
>* a sua co m batividade*.
>
lo. O que a estratégia ocidental percebe assim, de passagem,
a reflexão chinesa torna mais legível e obriga a pensar.
34 François Jullien
"im ip lo ancestral” , com o, para nós, “ no gabinete” ), ^ y
vM.i deve ser, n ão de p lan iíicação , m as de “ avalia
- l o " (noção de xiao) ou , m ais ex atam en te, de su- ^ .> Jp J
l>nti^-jo (no sentido de av aliar de a n te m ã o e p o r
mi ni de um cálculo: noção de jF): o estrategista deve ; ,
tn in (\;ir p o r su p u ta r, a p a rtir de um exam e m inu-
* luso das forças em presença, os fatores que são fa
voráveis a um o u a o u tro cam po e de onde virá a
vilórin. () antigo tra ta d o que com eçam os a ler inicia--1
«.<•, assim, por um a exposição sistem ática da m anei-
i i com o se deve cond u zir rigorosam ente essa apre-
i wç.io prelim inar (e com o tal indispensável; SZ, cap.
I, “J i” ): em função de cin co critério s de base (o
m oral, as condições m eteorológicas [o “c é u ” ], as
i oridições topográficas [a “te rra ” ], o co m an d o e o
NÍstcma de o rganização), e p a ra culm inar n u m con- Sistema de
liinto determ in ad o de questões (1. Q u e so b eran o avaliação
consegue infundir o m elhor m oral? 2. Q ue c o m a n
do c o mais capaz? 3. Q uem se beneficia das m e
lhores condições m eteorológicas e de terreno? 4. De ,4't-
que lado se cu m p rem m elhor as ordens? 5. Q u a l cov 'tií-ío
lado está m ais bem arm ado? 6. De que lado os ofi T*' :
ciais e os hom ens são mais bem treinados? 7. De que
lado, enfim , se o b serva m elhor a disciplina?). E o
perito em estratégia concluirá: “A p a rrir disso, sei
quem irá vencer ou ser v en cid o ” . Pois d a situação
an tagonista, tal com o essa série de questões p ôde
avaliar, fazen d o delas um exam e co m p leto e sob
seus diversos aspectos, deriva um potencial que bas
ta rá explorar.
É, na verdade, nessa passagem d a su p u tação [
das forças em presença p ara o potencial que se des- I
prende dela que tu d o se decide. A frase do antigo '•
tra ta d o m ilitar deve ser lida com aten ção : “ E n
tendida a suputação d o que é aproveitável [em fun
ção dos sete p o n to s precedentes], cria-se en tão um
potencial de situação capaz de a ju d a r exteriorm en
te^” (entenda-se: sem as regras de avaliação e p o r
ta n to no te rre n o d as operações). D a í a definição
T ratado da Eficácia
que segue: esse potencial consiste em “ determ in ar
o c ircu n stan cial em fu n ção do p ro v e ito ” . Assim
en ten d id a, a circu n stância n ã o é m ais aquilo que,
em sua determ inação p articu lar, e p o rta n to im pre
visível, sem pre am eaça fazer m alograr o plano p ro
..D
jetado sobre ela; m as, sim, o que, precisam ente gra
ças à sua variab ilid ad e, pode ser progressivam ente
3
infletido pela p ro p en são que em ana da situação e
fazer advir o proveito esperado. Saím os, assim , de
um a lógica d o m odelo (a de um plano-m odelo que
vem d a r fo rm a às coisas), com o tam bém da en ca r
nação (um a id éia-p rojeto que vem concretizar-se
no tem po), p a ra e n tra r num a lógica d o desenvol
vim ento: deix ar o efeito im plicado desenvolver-se
x\ circunstân
p o r si m esm o, em v irtude do processo iniciado. Por
cia não é mais conseguinte, o circu n stancial n ão m ais é concebi
aquilo que “se do apenas — e m esm o de m odo nenhum — com o
tem ao redor” aqu ilo que “ se tem ao re d o r” (circum -stare), a tí
tu lo de acessório ou de detalhe (aco m p an h an d o o
que seria o essencial d a situação ou do aconteci
m en to — e rem etendo p o r esse m eio a um a m eta
física da essência); m as é p o r interm édio dele que
Em vez de advém o potencial — en q u an to , precisam ente ^ p o
fazer malograr o tencial de situação*. C onclusão: o potencial é cir
projeto, é ela que
cun stan cial — só existe circunstancialm ente — e
cria potencial
vice-versa (ou seja, é essa potencialidade das cir
cun stân cias que cum pre explorar).
Pois, com o não deixou de observar um com en
ta d o r (Du M u), se é de fato possível, pelas supu-
taçõ es p relim in ares, estar seguro d a v itó ria, já o
potencial da situação, ele, não pode ser “visto de
a n te m ã o ” (isto é, antes do início das operações) —
m as som ente detectado — , já que n ã o cessa de se
tra n sfo rm a r; com efeito, no seio do processo a n ta
gonista a interação é contínua: a to d o m om ento, “ é
em função do que é prejudicial a meu adversário que
Da avaliação
percebo o que m e é p ro v e ito so ” e, reciprocam ente,
dos fatores à sua
possibilidade de é “em função do que é proveitoso ao inim igo que
exploração percebo o que me é prejudicial” . O que eqüivale a
36 François Jullien
ii i onliecer (W ang Xi) q u e “o potencial d a situação
r <u|iit' tira proveito da variável” . A concepção desse
IH«inicial asseg u ra, pois, a tra n siç ã o , n o in te rio r
ilrss.i exposição, entre as su putações iniciais, co n
duzidas segundo regras fixas, e a ex p lo ração ulte-
i inr das circunstâncias, um a vez encetado o proces-
n>, Pois, com o se explica p o sterio rm en te, ao mes-
uni icm po em que n ã o se deve cessar, d u ra n te as
npi-rações, de e n g a n a r o ad versário, convém adap-
i.ir-sc co n stan tem en te a ele: se ele é te n ta d o pelo
proveito, eu o “ seduzo” ; se está em desordem , “ apo-
dero-m e” dele; o u se resiste, eu m e “ m un icio” etc.
i hi ainda, se está cheio de a rd o r, “ lanço a co n fu
são nele”; se a d o ta p rudentem ente um a atitu de m o
desta, eu o “ en v aid eço ” ; o u se está em plena for
ma, eu o canso etc. P osto qu e, em presença do ini- j
m ino, n ão cesso de evoluir, n ã o posso d eclarar de/
antem ão com o v ou vencê-lo. Em outras palavras (Li/
(Juan): “A estratégia carece de d eterm in ação pré^
via” , e é som ente “ em função d o potencial da situqi-j1
ção que ela adquire fo rm ae” .
V oltem os a o lado europeu. Q u a n d o fazia um
!>alanço dos fracassos com que se dep araram os te ó
ricos da g uerra, C lausew itz os atrib u ía a três razões
(D a guerra, II, 2): i . O s te ó ric o s (ocidentais) da
p i e r r a v isaram “ g ra n d e z a s c e rta s ” , “ q u a n d o na
guerra to d o s os cálculos se fazem com grandezas
variáveis” ; 2. C onsideraram apenas “grandezas m a
te ria is” , “ q u a n d o o a to de g u erra é in teiram ente
im pregnado de forças e de efeitos espirituais e m o
rais” ; 3. L evaram em c o n ta apenas a atividade de
iini único c am p o , “ q u a n d o a guerra repousa sobre
a ação incessante q u e os dois cam pos exercem um
sobre o o u tr o ” . C o n sta ta m o s, em c o n tra p a rtid a , ' Pode-se, por
que a concepção da estratégia elab o rad a nos anti-> tanto, compreen
der a guerra co
j;os tra ta d o s chineses, a p a rtir dessa idéia m estra d e 1
mo “o que vive e
umj potencial desT tuaçãoj escapa igualm ente a es
reage”
sas três críticas (e verificam os assim — de fora —
com o essas três razões cam in h am lado a lado e re-
l ratado da Eficácia
m etem à m esm a lógica): 1. O s chineses pensam o
potencial de situ ação em term os de variável, não
p o d en d o este ser d eterm in ad o de an tem ão porque
p rocede de u m a a d a p taç ão contínua; 2. As supu-
tações de que esse potencial deriva com binam sem
dificuldade os fatores espirituais e físicos (levando
em co n ta ta n to o m o ral que assegura a coesão das
tro p a s q u a n to as questões de organização m aterial
e de arm am en to ); 3. x\ dim ensão recíproca está no
p ró p rio cerne d aq u ilo que constitui o potencial de
situação (cf. o que é desvantajoso p ara o o u tro é por
isso m esm o v an tajo so p ara mim ) e a guerra é n a tu
ralm en te p en sad a, na C hina, com o q u alq u e r o u tro
, processo, em term o s de interação e de polaridade.
/" ~ ' Em conseqüência, a estratégia chinesa n ão pre
cisa passar pela relação teoria-prática (porque a no-
38 François Jullien
( Combatentes, nos séculos V-IV antes de nossa era),
os tra ta d o s m ilitares expõem -na co erentem ente; e
*•1.1 igualm ente m arco u , desde essa época, os o u tro s /
setores da atividade hum ana, especialm ente o diplo-1
m.itico e o político. '
T ratado da Eficácia
e dirigi-lo; com respeito aos ou tro s, deve incidir so
bre sua inteligência, sua capacidade e seu hu m o r,
de m o d o a p o d er to rn á-lo s a “ m o la ” com que p o s
sam m anejá-los.
N ão há tam pouco necessidade, nesse dom ínio,
de fazer plano o u de fixar norm a para dirigir a p ró
pria co n d u ta: pois, p ara levar vantagem sobre o o u
tro e p o d er disp o r dele à vontade, não há o u tro c a
m in h o a seguir, após tê-lo avaliado suficientem en
te, senão ad ap tar-se a ele; e to d o s os casos possíveis
, ^são aproveitáveis: se o o u tro tem exigências m orais
que o fazem desprezar as riquezas, não posso sedu-
zi-lo pela ten tação de um gan h o , m as, em com pen
sação, posso ap ro v eitar disso p ara fazê-lo su p o rtar
despesas; se ele for bastante corajoso p a ra despre
zar to d o e q u a lq u e r perigo, n ã o tenho m eios de in
cutir-lhe m edo, m as, em com pensação, posso a p ro
veitar disso p a ra fazê-lo a rro sta r perigos etc. (cap.
10, “ M o u ” ). Esse antigo tra ta d o de diplom acia se
co m praz em an alisar em detalhe de que m aneira é,
conform ando-m e constantem ente ao outro, que, não
me alienando jam ais, p o rta n to jam ais suscitando da
p arte dele reserva o u resistência, au m en to progres
sivam ente m inha influência e posso em seguida m a
nobrá-lo. Infinitamente maleável, acom panhando em
tu d o a situação, n ã o a forçando nem m esm o ten-
;sionando-a jam ais, to rn o -m e disponível a ela sem
I 'n ad a predeterm inar por m im m esm o e sem nada des-
i pender: em fu n ção d as d ú v id as de m eu p a rce iro ,
'“ m od ifico ” m in h a co n d u ta ; em função d o que ele
sabe, “atesto com o v e rd ad eiro ” ; em função do que
ele diz, “ faço sobressair com o essencial” ; em função
de sua ascendência, “ faço ad vir” ; em função de seus
dissabores, “ a d a p to ” ; em função de seus tem ores,
“ a fa sto ” etc. O o u tro evolui assim num a espécie de
aquiescência c o n tín u a que o desarm a progressiva-
l m ente e o subm ete a mim. Em face do o u tro (e isso
é ta n to m ais im p o rtan te q u an d o esse o u tro é o p rín
cipe), conduzo-m e p o rta n to sem pre à vista, sem ris-
François Juliien
»1 i, não p ro jetan d o nem im p o n d o n ad a de antem ão, para aproveitar
in,is, .10 contrário, esposando tão bem a circunstância se ^e*a lem vez
• r 1 •. 1 de modelizar)
i|iu' ela me fornece a cada vez um a o p o rtu n id ade que
pi isso aproveitar; e deixando-m e assim continuam en
te levar pela situação, aum ento grad ativ am ente mi- >
nli.i influência. A im agem é forte a esse respeito: o
vilno “g ira ” , com o o faria um a b ola, p a ra buscar a
1 .ida vez o que é “ a d e q u a d o ” . N ã o se im obilizando f •
cm plano nenhum , não se e n te rra n d o em n enhum
projeto, sua estratégia n ão tem fundo. “Insondável”
p>ira os o u tro s, “ inesgotável” p a ra ele. ^
Essa reflexão sobre a diplo m acia nos recon-
ilii/., p o rta n to , b astan te logicam ente, à idéia de um
fio trncial d e situação (m esm a n o ção de sbi). Isso
porque essa ascendência que ad q u iro sobre o o u tro
n .10 se deve a m eus esforços, tam p o u co à sorte (am-
Ims, aliás, fracassariam aqui), m as sim plesm ente à
m aneira com o sei tira r v an tag em d o processo co n
duzido: apóio-m e nos fatores p o rta d o re s que pude
perceber na situação p ara deixá-los tra b a lh a r a meu
l.ivor. A fórm ula é tão decisiva nesse dom ínio q u a n
to a p ro p ó sito da arte m ilitar: é preciso “ in stau rar
um potencial de situação p a ra gerir as coisas” (cap.
S, “ Kei q ia n ” ). E, p ara in stau rar esse potencial, con-
vem antes de tu d o , com o vim os, avaliar o m ais pre-
v isamente a situação (em contexto diplom ático: exa-
ininar quais são seus ad ep to s, distinguir quem é de
sua o p in ião e quem n ão o é, ver o q u e é d ito “ den-
ir o ” e o que é d ito “ fo ra ” etc.). Desse potencial de
situação, acu m u lad o ao longo de sua evolução, re
su ltará finalm ente, da m aneira m ais “ categ ó rica”
possível, a o p o rtu n id a d e de se exercer a m aior a s
cendência, em vez de ser d erro tad o (cap. “ Benjing
yinfu” ). Pois esse p otencial (de situação) é de fato
o que “ s e p a ra ” “ lu c ro ” e “p reju ízo ” , visto que é o É em função
l.itor que, p o r sua “ au to rid ad e” , inflete a evoluçãof. seu Potenc'a'
,, . . . ^- , 1 que se inflete a
V oltam os m uito naturalm en te a im agem das pedras
. 1 . situaçao
red o n d as que descem do a lto de um a en costa; e,
p ara co n clu ir que “ o potencial d a situação faz com
Tratado da Eficácia 41
jlque não possa d eix ar de ser assim ” : há um a confi-
j guração diplo m ática assim com o há um a configu-
| ração estratégica, e o condicionam ento objetivo que
ela o p era é igualm ente determ inante.
I
4. C onsiderem os agora esse potencial de situ
ção no q u a d ro da org anização social e política: ele
O potencial em
se tra d u z em posição de força (sh i), o u to rg a n d o a
política é a posição
de autoridade
a u to rid ad e, e n q u an to o desnível do qual procedia
o efeito (cf. as pedras que descem a encosta) co rres
p o n d e ao da h ierarq u ia. Ele cria um a inclinação à
ob ed iên cia, dele d eco rre a ascendência exercida:
apo ian d o -se na posição su p erio r, som os levados a
ser escutados pelos inferiores — sem que isso depen
A propensão à
obediência da de valor pessoal nem devam os a nossos esforços,
nem m esm o que ten h am o s de p ro c u rá -lo . N ã o é
algo que deva ser buscado nem assum ido. Essa p ro
p ensão a ser obedecido deriva ap en as da posição
o cu p ad a. Em sum a, é d o lugar, e n ã o de si m esm o,
q ue resulta o efeito.
Esse lugar p o r excelência, do qual decorre es
p o n tan eam en te a a u to rid ad e , é o tro n o . Por isso,
vem os constituir-se em to rn o da n o ção de posição
de au to rid ad e um im p ortante m ovim ento de p en
sam ento, no final da antigüidade chinesa, que visa
a erigir o tro n o em fonte de po d er ab so lu to . N ão ,
com o vimos alhures, ou com o foi tam bém defendido
p o r o u tro s na C hina (os confucianos), invocando a
transcendência e em nom e de algum a v o ntade di
vina, tam p o u co em nom e de um c o n tra to político
estabelecido entre as pessoas, p a ra fu n d a r a ordem
civil, m as em nom e unicam ente da eficácia: p o r cau
sa de sua posição superior, o lugar o cu p ad o pelo
p ríncipe p ro d u z um p o d er suficiente p ara fazer rei
n a r a o rdem em to d o o im pério — p o rta n to em v ir
tu d e apenas da p ro p en são que dele em ana, p u ra
m ente objetiva, e n ão desse d a d o sem pre aleatório
que é o valor das pessoas. Esses defensores d o a u
to rita rism o , m u ito im propriam ente cham ados “le-
42 François Jullien
Kisi.is” (porque sua c o n cep ção p o u co corresponde
.1 nossa idéia de lei e eles p e n sa ra m apen as o p o der
r ii.io o d ireito), te n ta ra m assim b lo q u ear o poten-
t ia I de situação na posição de um só, isolado no alto,
0 príncipe; e, com isso, tra n s fo rm a r as relações po-
liucus num p u ro disp o sitiv o de a u to rid a d e . O des- j
mvcl do q u al deriva o p o ten cial p erm anece, m as a |
situação p o rta d o ra , a o se p o la riz a r n o príncipe, se ’
1 ristaliza; de em inentem ente m óvel, ela se im o b ili-1
/a num sítio único: o p rín cip e é p o rta d o p o r seu '
povo d o m esm o m odo q u e u m a acha de lenha en -1
i a ra p ita d a n o to p o d a m o n ta n h a é p o rta d a p o r ela !
<• a dom ina (H an Feizi, cap. 14, “ G ong m ing” ).
M as com o é p en sad o esse p o sto de co m ando
do qual decorre in d efinidam ente a obediência? D ali
onde está e n carap itad o , e em nom e apenas de sua
posição de au to rid ad e, o p ríncipe tem em m ãos os
dois “ m an íp u lo s” que d istrib u em as recom pensas e
os castigos (sendo a m b o s codificados segundo n o r A posição de
autoridade consti
mas estritas — fa — que são conhecidas de to d o s e
tui um dispositivo
aplicadas regularm ente): p o r si sós, essas duas a la
vancas do m edo e do interesse constituem um dis
positivo suficiente, ao m esm o tem p o incitativo e re
pressivo, que lhe p erm ite fazer a n atu reza hum ana
se com portar com o ele quer (H F Z , cap. 7, “ Er bing” ).
Ao m esm o tem po, esses defensores do au toritarism o )/ i »•
(que são tam bém , p o r isso m esm o, ps inventores do
to ta litarism o ) com preen d eram m uito bem que a es
sência m ais íntim a do p o d er que exercem os sobre os
outros reside no saber que adq u irim o s a respeito de
les, graças à tran sp arên cia forçada n a q u al os m an-
lemos: quan to m enos puderm os esconder, tan to mais
som os subm issos; o o lh a r que desvela nos paralisa.
Por isso, p o r um sistem a m u ito refinado de “ disso
ciação” das opiniões (que perm ite confrontá-las) ao
Muito melhor
m esm o tem p o que de “ so lid arização ” das pessoas
que o “panoptis-
(to rn an d o -as coletivam ente responsáveis e incitan
m o” de Bentham
do-as a se denunciarem , H F Z , cap. 48, “Ba jin g ” , § {Foucaultj
4 e 6), bem com o p o r um a sutil técnica policial, man-
44 François Jullien
bém esposa, m ãe, concubinas, b astard o s e, obvia
mente, o filho herdeiro — pois todos quererão fazê-
lo “ p e rd e r” sua posição o u pelo m enos “ dividi-la”
(i IFZ, cap. 4 8 , § 3 e 8). Essa teo ria da posição se
acom panha assim de um a fina psicologia da suspeita
que cam inha em sentido o p o sto àquilo que vim os
acerca da arte diplom ática destin ad o aos conselhei
ros de corte, e previne contra ele: cabe acima de tudo
ao príncipe desconfiar d os que se antecipam a seus
desejos e agem sem pre em seu sentido, pois desse
m odo acum ulam um capital de co nfiança que lhes
perm ite fazê-lo sair sub-repticiam ente de sua p osi
ção de au to rid ade. N ão p a ra d erru b a r o tro n o —
do que jam ais se cogitou na C hina — m as p a ra usur
pá-lo, to m a n d o sim plesm ente o lugar de seu deten
tor (e essa substitu ição é ta n to m ais fácil n a medi-Jj
-f
da em que não devem co n tar o valor e o investimen-^í
to pessoais, que p ersonalizam o poder).
A o u tra recom endação d ad a ao príncipe, com o
m odo de em prego de sua posição , é deixá-la a tu a r
plenam ente, sem interferir no funcionam ento de seu
dispositivo p o r seus bons sentim entos o u sua v irtu
de. Pois, desde que o ap arelh o da posição funcio
ne, a subm issão dos o u tro s resulta au to m aticam en
te. Introduzindo, ao co n trário , o acaso, em bora de
pendente de um a boa vontade, ao m esm o tem po que
da exceção (em relação à regularidade d a no rm a),
toda m edida de indulgência o u de generosidade da
parte d o príncipe é fonte inevitável de m au fu ncio
nam ento. Ela p e rtu rb a p o r sua v ibração h u m an a
aquilo que, sem ela, m arc h a ria sozinho... De m a
neira geral, ao red u zir o p o d er a esse su p o rte, pu- i
ra mente instrum ental, da posição, os defensores chi- 1
neses do despotism o visaram a despersonalizá-lo o
mais com p letam en te possível (e creio que eles efe-
t ivam ente, d entre to d as as tradições culturais, é que
loram mais longe nesse sentido). E nq u an to a ascen
dência exercida pelo príncipe confuciano se deve à
sua sabed o ria e se m anifesta pela influência favo
I r;it,i*.to da Eficácia
rável que espalha a seu red o r, a ascendência do so
berano legista repousa inteiram ente na desigualdade
m áxim a das posições e o efeito de potencial que dela
deriva. Existem , de fato , dois critérios: o u o valor
Mérico/posição pessoal, ou a posição ocupada. E um exclui o o u tro ,
segundo eles (H FZ , cap. 4 0 , “ N an shi” ): ou se conta
com a capacidade pessoal, despende-se energia e o
resu ltad o perm anece precário (H FZ , cap. 4 9 , “W u
d u ” ); ou se busca ap o io apenas na posição de a u
toridade, deixando-se “ p o rta r” p o r ela, com o o d ra
gão é levado pelas nuvens (cf. Shen D ao), e as ordens
e m itid a s sã o e n tã o in c a n sav e lm e n te e x e c u ta d as
(H F Z , cap. 28): tã o indefinidam ente q u an to , p o rta
d a pelo barco, um a carga está destinada a flutuar...
Da concepção estratégica, tal com o p erm an e
ceu trad icio n al na C h ina até os nossos dias, a essa
concepção política particular, percebe-se claram ente
a continuidade: a coragem ou a covardia do com
batente dependem do potencial da situação do m es
m o m o d o que a subm issão ou a insubm issão dos
súditos (m esma noção de shi)-, ta n to num caso com o
no o u tro , o condicio n am ento objetivo da situação
prevalece sobre as qualidades intrínsecas e o esfor
ço dos indivíduos. M as assim com o, p a ra pensar a
g u erra, essa concepção do potencial repousava na
in teração e n a p o larid ade, e a situação era conside
ra d a em sua evolução (é m esm o de seu d esd o b ra
m en to que procedia o efeito), assim tam bém , para
p en sar o p o d er (e aum entá-lo ao m áxim o), os de
fensores do d espotism o p ro c u rara m m o n o p o lizar
to d o o potencial, fazendo-o convergir sobre o tr o
no, bem com o im obilizar a situação (num a relação
exclusiva — e p erpétua — de subm issão). O siste
m a é b loqueado e torna-se aberran te. M as nem por
isso ele perdeu to d a eficácia. Foi seguindo escrupu
losam ente o ensinam ento dos pensadores do despo
tism o que o im pério chinês foi fu n dado (em - 221).
E ele é, com o se sabe, o prim eiro im pério b u ro crá
tico d o m undo.
46 François Jullien
( JBJKTIVO OU C O N S E Q Ü Ê N C IA
I rut.ido da Eficácia 47
risco de reco n fig u rar u m dos term os da junção, ou
com o risco de levá-lo ao lim ite (posição-lim ite, p o r
exem plo: q u a n d o se co n sidera que o fim pro p o sto
p ode ser um a ficção — m as suficientem ente consis
ten te, todavia, p a ra im plicar meios úteis). Pode-se
re tra b a lh ar esse q u a d ro , redefinir um a de suas m a r
gens — m as dificilm ente sair dele.
O q u a d ro perm anece — exatam ente e n q u a n
to q u a d ro d o pen sam ento. O ra, eis que e n c o n tra
m os, na C hina, um pensam ento da eficácia que, não
p ro jetan d o nenhum p lan o sobre o curso das coisas,
ta m p o u c o precisa co n siderar a condução sob esse
ângulo meios-fim: esta resulta, p o r conseguinte, não
de um a aplicação (vindo a teoria concebida de a n
Continuação
da clivagem tem ão recobrir o real, de m aneira a p o der em segui-
’ da decalcá-lo), m as antes de um a exploração {tiran
do vantagem do potencial im plicado num a situação
dada). O u tro s pressupostos, o u pelo m enos que nos
interessam n a m edida em que são diferentes e nos
desestabilizam , nos fazem perceber ou tras possibi
lidades: neles não são privilegiados nem m ontagem ,
p o r o p erações preconcebidas e dispostas sistem ati
cam ente, nem escalonam ento no tem po, p o r p ro g ra
m ação a p a rtir d o objetivo visado. Em sum a, não
há term o, perfeito em si e percebido de antem ão, que
ordenasse o curso e nos guiasse n a m archa; e o “ ca
m in h o ” , tal com o o entendem os tradicionalm ente
Ji? n a C hina (o tao), está m uito distante de nosso “ m é
f- to d o ” (m e th o d o s: o “ cam in h o ” pelo qual se “ p ro s
segue” , que co n d u z para).
R e m o n ta n d o m ais um a vez, p o r esse expe
Na origem da diente, a nossos pressupostos teóricos: aquele “p ru
relação meios-fim: d e n te ” que A ristóteles nos apresentava p a ra servir
a “prudência” é de m ediação entre a teo ria e a p rática nos é ju sta
saber deliberar m ente definido co m o aquele que sabe “ d elib erar”
sobre o s m eios p a ra atingir u m fim d eterm in ad o .
O ra , vejam os de que m aneira é concebida um a de
liberação com o essa. A ristóteles to m a p o r m odelo
a co n stru ção das figuras n a m atem ática: assim co
48 François Jullien
mo se parte da figura su p o stam en te c o n stru íd a p a
ra rem o n tar a seguir, p o r u m a análise regressiva,
i\ série das operações necessárias (na q u a l o últim o
(erm o descoberto pela análise revela-se o prim eiro
do pon to de vista da gênese), assim tam b ém se p a r
te do fim supostam ente o b tid o p a ra d eterm inar em
segu id a, reg ressiv am en te, a série d os m eios que
Remontar do
conduzem a ele (e o últim o m eio percebido é aquele
fim à série dos
pelo qual se deverá com eçar). x\o m esm o tem po,
meios (Aristóteles,
A ristóteles está m u ito consciente de que o m odelo em geometria)
to m a d o d a m ate m á tic a n ã o p o d e ser to ta lm e n te
ad eq u ad o n o que se refere à ação h u m a n a (cf. a
interp retação feita p o r Pierre A ubenque a seu res
peito em seu estudo sobre a prudência): 1. Ao co n
trário da reversibilidade m atem ática que perm ite
percorrer indiferentem ente a série n u m o u n o u tro
sentido, progressivo o u regressivo, a ação h u m an a
se desenvolve n u m tem p o irreversível e, en quanto
não for co m p ro v ad a pela experiência, a cau salida
de in stru m en tal do m eio perm anece hipotética; 2.
Kntre o m eio e o fim visado, h á sem pre o risco de
se in te rp o re m ac o n te c im en to s im previsíveis que
criam obstácu lo à eficácia suposta do m eio e põem
o fim fo ra de alcance; 3. Inversam ente, levando em
conta a relativa au to n o m ia d o m eio com relação ao
-S J
fim, h á tam b ém o risco de o m eio, ao desenvolver V. '-o
sua causalidade, u ltrap assar o fim visado (exem plo
aristotélico dessa causalidade adjacente o u p arasi
ta: q u a n d o o rem édio que visa à saúde m ata por
acidente o paciente).
P o rtan to , sem pre estaríam os v o ltan d o , n a E u
ro p a , a este gesto típico: p a rtim o s de u m m odelo
ideal (e este é fornecido de preferência pela m ate
m ática) p ara consid erar em seguida o q u an to a p rá
tica difere dele. C om efeito, se o m odelo m atem á
tico não pode ser to talm en te aplicável à co n d u ta,
p o r exem plo, “ nas questões de m edicina ou nos a s
suntos de d in h e iro ” , diz-nos A ristóteles (Et. a N ic., Conduta e
III, 1 1 1 2 b), é que e n tã o se nos oferecem vários conjectura
'Iracado da Eficácia
m eios possíveis que, p o r isso m esm o, perm anecem
conjecturais; e é som ente com p aran d o essas conjec
tu ras que podem os investigar, entre os meios co n
sid erad o s, “ qual o m ais rápido e o m e lh o r” . E n
qu an to , p ara o m atem ático, há apenas um a solução
p a ra realizar sua figura e para ele, com o para o gra
m ático, sua deliberação é tão-som ente a m edida de
sua ignorância, encontram o-nos, nos assuntos h u
m anos, d ian te das possibilidades concorrentes sem
p oderm os estar certos d o resultado de nenhum a. A
deliberação (relativa aos meios) n ã o pode, pois, in
vocar a ciência, tam p o uco, no o u tro extrem o, re-
■c o rrer à adivinhação — nem basear-se no necessá
rio, tam p o u co confiar n o acaso: p o r isso deve ela
IfvlCAMhfe acan to n ar-se no saber ap ro xim ativo d a “ o p in iã o ” ,
Ym \ & \ 0 co m p a ra n d o a eficácia respectiva dos m eios possí
veis, e n ão pode elim inar o risco de fracasso.
O fosso, aliás, entre o fim e os meios, é aum en
ta d o pelo fato de que estes rem etem a duas facul
dades diferentes. De um lado, a vontade, entendi
da com o a p tid ão a desejar o bem (botdesis), fixa o
fim desejado (mas que po d e c o n tin u a r sendo um
voto de devoção); de ou tro, nossa capacidade de es
colher {proairesis) nos faz o p ta r, após deliberação,
pelo m eio m ais adequado (incidindo essa cap acid a
de apenas n o possível efetivo, levando em conta cir
cunstâncias e obstáculos). As duas questões devem,
p o r conseguinte, ser consideradas separadam ente:
a da q u alid ad e do fim, que em últim a instância é de
ordem m oral, e a da eficácia dos meios, m oralm ente
neutra e de ordem técnica, tal com o a ilustram a arte
m édica, a da guerra ou m esm o a d a ginástica. As
sim, deliberar sobre a o p o rtunidade de fazer a guer
ra é alheio ao fato de saber se a guerra em vista é
ju sta ou n ão (Ética a E u d e m o , 1227 a). Existem ,
p o rta n to , não um , m as “ dois d o m ín io s” , conclui
A ristóteles, “ nos quais se p ro d u z o bem ag ir” : um
Insubordina
ção dos meios a reside no estabelecim ento c o rre to d o objetivo {te
seu fim las), p o sto com o objeto em vista (sk o p o s ); o o u tro ,
50 François Jullien
“ na d escoberta dos m eios que co n duzem ao fim ”
[ta pros to telos). O ra , é possível q u e “ fins e m eios
estejam tan to em desacordo quan to em a c o rd o ” (em
“sinfonia”, diz A ristóteles: sym pbonein). “Pois acon
tece que o objetivo é bom , mas, na ação, falta o meio
de atingi-lo; o u tra s vezes, encontram -se de repente
os m eios ap ro p ria d o s, m as o fim que se colocou é
ru im .” E n q u a n to o p lato n ism o só se hav ia p re o
cu p ad o com a excelência do fim (culm inando nes
te fim suprem o, a idéia do bem ) e p o r conseguinte
considerava a adm inistração dos meios som ente em
sub o rd in ação im ediata à ciência do fim , A ristóte
les não acred ita mais que os meios d ecorram tão fa
cilm ente da idéia e faz da a d a p ta ç ão deles um p ro
blem a. Pois n ão basta que a ação seja bem intencio
n ad a, p a ra ser m eritória, ela deve tam b ém ser bem -
sucedida; e, em face d a indeterm in ação das coisas,)
essa realização não pode elim inar to d o perigo e t o d a 1
aventura.
T ratado da Eficácia 51
m ais consciente que ele esteja da irredutível dificul
dade que tem os em pensar a guerra, Clausew itz con
tin u a sem pre a g irar em to rn o daquilo que se afi
gura, em to d o s os sentidos, im por-se com o um a evi
dência: a eficácia n ã o poderia ser o u tra coisa, na
guerra com o alhures, senão “ saber organizar a guer
r ra em co n fo rm id ad e e x a ta com os m eios e os obje
tivos, sem fazer algo a m ais ou a m enos” . T estem u
n h a-o Frederico II, digno de adm iração p o r ter sa
bido fazer “e xa ta m en te o que era preciso p ara a tin
g ir seu o b jetiv o ” . O p o sto a C arlos X II, ou m esm o
a N a p o le ã o , ele se revela o m e lh o r e stra te g ista ,
aquele qu e, em últim a instância, foi o m ais bem-
su ced id o , ju sta m e n te em ra zão dessa eco n o m ia.
C lausew itz havia feito disso um a m áxim a já em sua
ju v e n tu d e , m áx im a p rá tic a , à m an eira k a n tia n a ,
(I m as de um a p rá tic a que d o rav an te tem em vista
apenas a eficácia e rom pe enfim to d o vínculo com
O imperativo a m oral: “V isarás o objetivo m ais im p o rta n te , o
estratégico expres
m ais decisivo, que te sentires com força p a ra a tin
so em termos de
meios-fim (segun gir; escolherás p a ra esse fim o cam inho m ais cu rto
do Clausewitz) que te sentires com força p a ra seguir” .
O que nos é assim recom endado, a título pros-
pectivo, co m o lem a de eficácia, ver-se-ia co m p ro
vado do p o n to de vista inverso, retrospectivo, q u a n
do, em vez de p recisar fazer guerra, a questão é ti
ra r u m a lição das g u erras d o p assado. A “c rític a ” ,
no d o m ín io m ilitar, n a d a m ais é, com efeito, que
“ p ô r à p ro v a ” , p ara avaliação, os “m eios em prega
d o s ” . Para ter acesso a um a generalidade teórica,
b a sta ria , diz-nos C lausew itz, saber “ quais são os
O
efeitos dos meios em pregados” e se esses efeitos “es-
tavam nas intenções da pessoa que a g ia” . O ra , eis
no e n ta n to que tu d o se confunde a p a rtir do m o
m en to em que com eça esse exam e crítico: a relação
m eios-fim , que a cred itáv am o s d o m in a r tã o bem ,
que se n os im p u n h a com o um a evidência, faz de
novo a teo ria m alo g rar (reler o capítulo p a rtic u la r
m ente afetad o que ele dedica à “c rític a”, em II, 5).
52 François Jullien
r h u i, -
54 François Jullien
fazer que a situação evolua de tal form a que o efeito Mas ele tira
resulte progressivam ente p o r si m esm o e seja co er proveito do des
dobramento da
citivo. Isso se d á , com o com eçam os a perceber, ou
situação
esgotando e p aralisan d o aos pou co s o adversário,
de m o d o que, q u an d o o co m b ate finalm ente inicia,
o o u tro já ten h a renunciado a com bater; ou, ao in
verso, condu zin d o as p ró p ria s tro p a s a u m a situa
ção sem saída, tran sfo rm ad a em “ te rre n o m o rta l” ,
de m odo que sejam obrigadas a com bater até a m or
te, já que não podem m ais recu ar (SZ, cap. 11, “Jiu
d i” ). “ M ergulhadas tão p ro fundam ente no seio dos
perigos, elas não têm m ais m e d o ” ; “ n ã o sabendo
mais aonde ir, elas resistem ” ; “ não podendo agir de
o u tro m odo, elas co m b atem ” . A situação, no ponto
aonde é con d u zid a, contém o efeito: “ [...| sem que ¥
se tenha de fazer rein ar a o rdem , elas são a te n ta s” ;
“ sem que se ten h a de associá-las, elas são so lidá
ria s ” ; e “ sem que se te n h a de c o m a n d á -la s, elas
obedecem ”.
E nquanto insistimos no caráter conativo e pro
b ató rio dos m eios en genhados, essa disposição dos
meios uns sobre os o u tro s, p ara elevar-se em dire
ção ao fim (esse “em direção a ” do pros to telos),
com o risco, aliás, de caírem , os pensadores chine
ses insistiram n a legitim idade do resu ltad o espera
do; d o m esm o m odo que os m eios são sem pre rela
tivam ente artificiais, ao ser objeto de u m a m o n ta
gem, e devem exercer um a pressão sobre as coisas
p ara fazer advir o fim desejado, assim tam bém , des
de que a situação leve ao resultado esperado, o efeito
Por conse-
decorre sozinho e n atu ralm en te. Pois, um a vez de-;
i| guinte, é a situa
senvolvido o p o ten cial (de situação), está-se em si-\ ção que conduz
tuação de força (com o se falou a n te rio rm en te de por si mesma ao
um a posição de força). x\s form ulações variam p ara resultado
dizer isso: “a situação faz que não possa ser de outro
m o d o g” ; “ sem que seja buscad o h” , obtém -se o re
sultado. C oloquem os os piores inim igos num b a r
co, se o vento com eçar a fustigá-lo, vê-los-emos coo
perar tã o intim am ente, diante d a tem pestade, q u a n
I'ratado da Eficácia
to coo p eram habitualm ente nossas duas m ãos: é da
\ m esm a m aneira, pela situação de perigo em que são
lançados, que deve nascer a coesão no seio dos exér
citos (SZ, ib id .}. P ara forçá-los à resistência, impe-
dindo-os de fugir, já foi dito , o estrategista “ não se
a p ó ia ” em m eios m ateriais (do tipo “ cavalos pea-
d os” o u “ rodas enterradas” , com o aconteceu há não
T- m uito tem po em nossa linha M aginot), m as conten-
\ ta-se em d eix ar que atu e a situação à qual os a rra s
to u . Pois, estabelecida com o é, a situação não dei
Ç'" ><& [
xa o u tra saída, “ será preciso” subm eter-se a ela.
Disso resultam dois m odos de eficácia que re
(0' m etem a duas lógicas concorrentes: ao lado da re-
56 François Jullien
regressar ao porto: as reviravoltas perm anecem pos
síveis, entre os dois cam pos, assim com o as m udan- - -, - ... j _
ças de vento, e a n arrativ a se co m p raz nessa inde- _i-y' ^
cisão e nas peripécias que d ram atizam . P o r isso, na
m aioria das vezes, p a ra triu n fa r, o herói tem neces- ' \'-[m
sidade de algum a assistência. A inda que tenham o i Ü
espírito fértil em m eios astu cio so s, m echanai, os
aqueus d iante de T ró ia n ã o poderiam ter o b tid o a
vitória sem o auxílio dos deuses; depois, vagando
nas “ ondas indom áveis” , sacudido pelas tem pesta
des e c o n d e n a d o ao n a u frá g io , U lisses teria sido
esm agado p o r essas vicissitudes sem a cum plicida
de de A tena. M esm o na época clássica, os tra ta d o s
gregos de estratégia sem pre reco m en d arão , com o
últim o recurso, o apelo à divindade: “ Im agina que
todos os hom ens, n a escolha de seus ato s, guiam -
sc apenas p o r conjecturas, sem saberem de m odo al
gum aquele que lhes tra rá v an tag em ” , diz o velho
rei a seu filho (X enofonte, Ciropédia, I, 6); por isso,
quer se tra te de vencer o inim igo pela força ou pela
astúcia, “ aconselho que n ão as em pregue apenas
com a ajuda dos deuses” ÍH iparco, V). A o térm ino f
da racionalização grega da ação hum ana, Aristóteles
ainda colocará a arte da estratégia junto à da n a
vegação, e faz o acaso intervir paralelam ente à a r t e )
(Et. a E ud., VIII, 2, 1247 a): cabe à tecbne vir com-V
pensar a tyche, m as sem p o d er excluí-la.
C lausew itz disse p o r que não se podia elimi-
ntíí o acaso da g uerra. É que a guerra real jam ais é
a g uerra ab so lu ta (isto é, em co n fo rm id ad e com o
m odelo e segundo seu conceito), “ o rigor m atem á
tico está excluído d ela” , e_não^se..poderia c h e g a ra /
resultados “ logicam ente necessários” . A diversidade^— imodelizável,
das relações de que é tecida a g u erra, e o ca rá te r o curso da guerra
incerto da delim itação dessas relações, fazem en trar seria Por isso
em consideração um grande núm ero de fatores que ilógico.'
não poderiam ser avaliados tod o s com exatidão; em
particular, a arte da guerra se aplica, com o sabem os,
“ a forças vivas e m o ra is” que escapam à determ i-
IV.imdo da Eficácia 57
nação quantificável dos efeitos físicos. Por isso, “ ao
longo de cada fio, grosso ou fin o ” de que é tecida
sua tra m a , processa-se um jogo com plexo de po s
sibilidades “ que faz da guerra a atividade hum ana
que m ais se assem elha a um jogo de c a rta s ” ; por
isso, ela nos te n ta e nos a p a ix o n a , a despeito do
h o rro r que nos inspira, e não cessa de nos fascinar
por sua im previsibilidade radical, n ão ob stan te os
cálculos. O bjetivam ente, n ã o podem os elim inar seu
c a rá te r a le a tó rio e, subjetivam ente, a pessoa que
age, achando-se sem pre “ colocada diante das rea-'
lidades diferentes daquelas que esperava” , não pode
evitar a “ d ú v id a ” com relação ao plano traç ad o , e
r \ p ara se a te r a este tem de se valer d a vontade. N o
m elhor dos casos, o estrategista tra b a lh a em cim a
de p robabilidades; e, “ para to d a a parte de certeza
que falta, tem de confiar no destino ou na sorte, seja
q u al for o nom e que se lhes d ê ” .
1___ D iante desse b u raco que o argum ento da in-
| determ inação e do acaso deixa aberto no seio da teo-
\ ria ocidental, os antigos tra ta d o s chineses têm com
I que nos surp reen d er pelo fato de sua posição cate-
I górica. Para aquele que sabe apoiar-se no potencial
Na guerra da situação, “ sua vitória no com bate não se desvia”
como alhures, o
(SZ, cap. 4, “X in g ” ). Esse “ não se desvia” signifi
desenvolvimento
iniciado não se
ca q u e o q u e ele faz “ o conduz inevitavelm ente ao
desvia sucesso” . Segundo as glosas, não há “ desvio” pos
sível (Z hang Yu) nem “ d u as” possibilidades de evo
lução (Li Q u an ; cf. a “ capacidade c o n sta n te ” que
n ã o se desvia, no L a o zi, § 28). Em função d a evo
lução da relação de força, o resultado do com bate,
antes m esm o de iniciado, se acha p redeterm inado.
í C om efeito, co m o o explica um co m en tad o r, “ se
■' p rocurássem os vencer co m b aten d o pela fo rç a ” , ou
seja, co n ta n d o apenas com nosso investim ento fí-
^ sico, “p o r m elh o r que fôssem os” , haveria sem pre
^ “m o m en to s em que poderíam os ser b a tid o s” . M as
o bom estrategista intervém a m o n ta n te do proces
so: ele soube identificar os fatores que lhe eram fa-
58 François Jullien
voráveis “ q u an d o ainda n ã o se haviam a tu a liz a d o ”
e, com isso, p ôde fazer q u e a situ ação evoluísse n o
sentido que lhe convinha; quando o potencial acum u-
lado se revela com pletam ente a seu favor, ele ini
cia então decididam ente o com bate e o sucesso está
g aran tid o . >
A ra z ã o disso é simples: com o o diz em segui O sucesso é
da esse antigo tra ta d o de estratégia, ele vence um predeterminado
pela situação
inim igo “ já d e rro ta d o ” . A v itó ria é p red eterm in a
da e n ão p ode desviar-se p o rq u e se acha im plicada
pela relação das forças em presença antes m esm o
que o co m b ate o co rra. O que a fórm u la seguinte
c ap ta com u m a sagaz inversão: “ Assim as tro p as
vitoriosas com eçam vencendo e pro cu ram em segui
da lançar-se ao co m b ate; ao passo q u e as tro p as ¥■
vencidas com eçam lançando-se ao co m b ate e b u s
cam em seguida vencer” . A m áxim a pode parecer
p arad o x al m as n ã o o é, ela apenas projeta nos com
p o rtam en to s o p o sto s o m o m en to da clivagem que
se produz necessariam ente na evolução da relação
antagonista, e da qual advém o sucesso. T ro p as que
buscam a v itó ria som ente no in stan te do com bate
são vencidas de antem ão . Pois, com o se com p reen
deu, o com bate n ão passa de um resultado. Ele ape
nas m anifesta em plena luz, pela m an eira com o é
travad o , a p ro p en são que se achava im plicada na
situação antes m esm o que ele tivesse início; e é p o r
apoiar-se nessa propen são que já é designado o ven
cedor, antes m esm o de lançar-se ao com bate. / r
T > t* V í’ rr'
Essa idéia parece evidente, parece inclusive ba
X-
nal dem ais p ara ser propriam ente um a idéia: “ Se co
nheço o o u tro e se conheço a m im m esm o, em cem Ç, J
com bates n ad a ten h o a tem er” (SZ, cap. 3, “ M o u
g o n g ” ). M as a estratégia chinesa a p en so u em to d o A originalida
o seu rigor, seguiu-a até as suas últim as co n seqüên de do pensamento
chinês é descobrir
cias e abre su a evidência à p ro fu n d id a d e . C om o
uma profundida
qu alq u er o u tro processo, o curso d a guerra n ão de
de no truísmo —
pende apenas dos fatores que estão em jogo: se co é aprofundar a
nheço suficientem ente a relação d as fo rças entre evidência
Tratado da Eficácia
m eu adversário e m im , poderei aceitar lançar-m e ao
com bate som ente se tiver certeza de que o potencial
atu a com p letam ente a meu favor. T oda a estraté
gia rep o u sa p o rta n to num a coleta de inform ação
sistem ática (daí a im p o rtân cia d ad a à espionagem
e às suas diversas categorias de agentes, m eticulosa
m ente repertoriadas — “ nativos” , “ in tern o s” , “ d u
Ú\
plo s” etc.; cf. SZ, cap. 13, “ Yong jian ” ), seguida de
avaliação: convém “ estim ar” — “ av aliar” — “ enu
m e ra r” — “ so p e sar” , até que, pela diferença dos
pesos cotejados, a balança p enda brutalm ente para
um lado (SZ, cap. 4). As tro p as vitoriosas, é dito à
m an eira de adágio (cf. tam b ém G G Z , cap. “ Ben
jing” , § 4), são com o um tonel em co m p aração a
um a plum a. A cum ulando potencial, o estrategista
! aum enta o desequilíbrio e, q u ando se lança ao com
bate, precisa apenas deixá-lo agir.
A g u erra, p o r conseguinte, nada m ais oferece
de estranho o u de incerto. É reduzida à lógica de um
processo que, evoluindo a p a rtir unicam ente d a in
teração dos pólos (opostos e com plem entares: os
dois adversários), torna-se perfeitam ente coerente.
N ã o dá lugar, p o rta n to , à indeterm inação e ao ac a
so, não é m ais suscetível de q u alquer determ inação
ex terio r — deus ou destino. O céu dos tra ta d o s es-
- tratégicos chineses não é m ais que o céu m e teo ro
V * " '
lógico e clim ático, de concepção p u ram en te n atu -
i ralista, que intervém norm alm ente a títu lo de fato r
& na av aliação d a relação em jogo (cf. SZ, cap. 1,
“J i ” ); e, se h ouver d e rro ta, isso de m aneira n en h u
m a se deve a um a “ calam idade celeste” , m as sem
pre ao erro do general (cf. SZ, cap. 10, “D i x in g ” ).
■Q u a n to à “ presciência” requerida antes de trav a r
o com bate, não é dos “e sp írito s” que o estrategista
| pensa em obtê-la, m as de seus serviços de inform a-
í ções... P or isso, cabe-lhe — e a fórm ula é lap id ar —
“Proibir os
“ p ro ib ir os presságios e a fa sta r as d ú v id a s” (SZ,
presságios”, “afas
tar as dúvidas” cap. 11, “Jiu d i” ). Ele não só rejeita os o m ina de
antes da b atalh a, aos quais to d a a nossa Antigüí-
60 François Jullien
dade se confiou, mas também não se permite sequer
;i dúvida que, assegurava-nos Clausewitz, sempre
atinge o próprio general quando, após ter concebi
do seu plano, enrra em ação. Uma única modalidade f
articula toda essa reflexão: o que se produz “a cada
instante” “não pode deixar d e” acontecer (desde o
momento em que suas condições estão asseguradas);
em uma palavra, é “ inelutável” (bik).
Essa idéia de uma inelutabilidade dos proces
sos, e portanto do sucesso de quem sabe aprovei
tar-se dela, se verifica em todo o pensamento chi
nês. Em bora em sentido exatam ente oposto às te
ses estrategistas, já que ele considera que a sobera
nia repousa, não nas relações de força, e portanto
A
na arte da guerra, mas no dom ínio exercido pela
m oral, um pensador como M êncio não sai dessa A propensão é
lógica do conseqüente e do antecedente. Ou, melhor, determinante em
a m oralidade é tam bém um a força, tanto mais de moral com o em
term inante quanto é capaz de se reproduzir e age estratégia
T ratado da Eficácia 61
a *. o r ç c -
se” , isto é, ao ponto de partida daquilo que, com o
condição, levado a seguir pela evolução das coisas,
irá impor-se progressivam ente sozinho. O efeito,
então, não é apenas provável, como num a relação
construída de meios a fim, mas também, decorren-
O plano de '^do sponte sua , se produz infalivelmente.
fundo da diferen Começamos a perceber que o fosso que sepa
ça: a “delibera
ra esses dois m odos de eficácia é profundo demais
ç ã o ” grega ins-
creve-se numa
para não se inscrever num a diferença mais geral. A
tradição política deliberação que está no ponto de partida da rela
ção meios-fim é em primeiro lugar um procedimento
social e político que o m undo grego prom oveu, e
que converteu inclusive em sua principal instituição
(do Conselho dos Anciãos de H om ero, a boulê, à
deliberação dem ocrática em assembléia); paralela
mente, a instância deliberante interiorizou-se e é em
“deliberação consigo m esm o” que o indivíduo, ins
ta urando-se como “princípio dos futuros” (arche
tôn esom enôn), determ ina sua ação. Q uanto à Chi
na, não privilegiou uma organização deliberadora
em seu funcionam ento político, mas fundam entou
sua visão do m undo sobre a regulam entação; por
tanto, não concebeu a eficácia a p artir da ação,
com o entidade isolável, mas segundo o m odo da
transform ação.
62 François Jullien
IV .
ação ou tra n sfo rm a çã o
64 François Jullien
migo], destruí-lo só na pior das hipóteses” (SZ, cap. O u preferir
í, “M ou gong” ). E isso permanece verdadeiro em “m antê-lo inta
t o ” (lado chinês)
qualquer escala: “Conservar intato o exército [ini
migo] é preferível a destruí-lo”, valendo o mesmo,
insistimos para m aior clareza, no nível de cada b a
talhão e da m enor esquadra. O que torna flagrante
;i oposição: “Assim, os que são peritos na arte da * -
Hiierra subm etem o exército inim igo sem trav ar
combate; tom am as cidades sem atacá-las e arrui
nam um país sem operações prolongadas. E sempre
conservando intato que se deve conquistar o m un
do inteiro; assim as armas não perdem o fio e o pro
veito é to ta l” . Como o resume um com entador (Li
Quan), não há “ valor” em m atar; em vez de des-
1 ruir as forças do adversário, mais vale fazê-las pen
François Jullien
te do potencial da situação e se revelam determinan
tes do ponto de vista da evolução das forças em
presença. Acha-se modificada, por via de conseqüên- í
cia, a própria natureza do com bate: para Clause- I
witz, somente este, no fogo da ação, é verdadeira- 1
m ente decisivo, é o m om ento em que se joga tudo !
c constitui, portanto, por si só, a “essência” da guer- '
ru; ao passo que, começamos a percebê-lo, para os j
estrategistas chineses, o combate é tão-somente o re-j
sultado, a título de conseqüência, de uma transfor^*
inação que se operou a m ontante. ^
Pensando a guerra a partir do com bate, en- h ^PV )
quanto ato isolável, Clausewitz só pode conceber-
ilie a duração feita de “vários atos sucessivos” ou,
no máximo, estreitando-lhes a ligação, como uma
"engrenagem de com bates” . Ou seja, ele não é ca
paz de explicar o tem po próprio da guerra, quer se
ir.ite de uma simples cam panha ou da guerra intei
ra, senão como uma som a dos m om entos de ação.
I odo intervalo de tem po entre eles só pode fazer av
Fracasso, a
guerra desviar-se e afastá-la de sua essência. Por partir do “aco”,
quanto tudo o que não é ação só pode então exis- em explicar a
n r negativamente como “suspensão de ação” — em duração
mitras palavras, com o “ inação” : tudo o que não é
.ição na guerra não seria mais do que uma “dilui
r ã o da guerra no fator tem po”. O ra, por sensíveis
que sejam à eficácia das operações mais breves, que
intervém a título conclusivo, os estrategistas chineses
v.ilorizaram, em troca, o tempo progressivo da trans
lormação, durante o qual o potencial é acumulado, V O tem po entre
os com bates não
l.sse tempo entre os com bates não é um tem po es-
é um tem po
leril, um tem po m orto, com o se diz, mesmo que m orto
pareça inativo, porque esse desenrolar permite uma
evolução graças à qual a relação de força poderá
pender finalmente para o bom lado. N ão há “dilui-
(,.!<>” no tem po, mas m aturação pelo tem po, nele o
r le i to não se perde mas se desdobra. Pois a eficácia
indireta exige um tem po longo — um tem po lento
p a r a operar. Concebendo a guerra segundo a
68 François Jullíen
terior da série de diagramas, e o sábio aprende, ao
consultá-los, a estim ar o cam po das forças que es
tão em presença e constituem o potencial da situa
ção. N ão para fazer disso um objeto de contem pla
ção (e o pensam ento do ato caminhou, na Grécia,
junto com a abstração do ser), mas para pôr sua
conduta continuamente em fase com a evolução das
coisas. A eficácia, na China, não cessaremos de com
prová-lo, é um a eficácia por adaptação.
Sabe-se que, tom ando o cam inho da reflexão
iniciada pela tragédia, Aristóteles pensa a ação a
partir de duas m odalidades opostas, conforme seja
realizada “ de plena vontade” (h ekôn ) ou “contra
nossa vontade” , conform e tenha seu princípio em
nós ou ajam os “ sob coerção” ou “por ignorância” .
Ele valorizava, assim, a im putabilidade do sujeito O que não é
e abria um lugar para a deliberação que permitisse nem escolhido
a este “escolher” seu ato (daí termos podido desen nem sofrido
volver posteriorm ente um pensamento da Vonta^çj^-
como instância autônom a e condição da liberdade^.'
O ra, a língua chinesa, constatam os, não opõe ca
tegoricamente o passivo e o ativo (não há voz a esse N em ativo
respeito), ela deixa no mais das vezes essa diferen nem passivo
ça indecisa, e descreve as operações sob o aspecto
não tanto do agente quanto do “funcionam ento”
(o do yo n g em relação ao tim). Consideremos, por
exemplo, a eficácia por influência, resultante de um
condicionam ento (como quando o potencial da si
tuação nos torna corajosos em combate): em que
medida ela nos é atribuível? N ão a “escolhem os”,
mas ela tam pouco se exerce como uma “violência”
.1 nosso respeito (favorecendo, com o o faz, a mani-
I t alado da Eficácia
l
to a ação é pessoal e remete a um sujeito, essa trans
D issolução da formação é frawsindividual; e sua eficácia indireta
categoria de su
dissolve o sujeito. Isso, é claro, em proveito da ca
jeito em proveito
do processo tegoria do processo.
Tam bém nós tivemos de responder pelo caso
em que o resultado é bem-sucedido sem que por isso
possamos considerar que “isso” nos é devido pes
soalm ente. Solução tradicional, a nossa, mas da
qual, compreensivelmente, os pensadores chineses
não tiveram necessidade: “isso” nos é “inspirado” ;
o sucesso que não vem de mim provém de uma ação
Por trás do exterior a mim — mas ação sempre, seja dos deu
m ito da ação, o ses seja dos demônios. A razão teve de violentar-se
da “inspiração”
j para adm itir um a solução como essa, sabe que ela
j é irracional, mas a tolera por ser côm oda: pois ela
vem com pensar o custo da racionalização exigida
pela constituição de um sujeito agente, como ins
tância autônom a, sem que p o r isso nos faça sair
j dessa noção de agente (mas apenas a recue). Na
esteira de Platão, Aristóteles ainda usa essa solução
(quando, aliás, se deixou de usá-la?): aqueles que,
“ de onde quer que se lancem, têm êxito sem refle
xão, são habitados pelo deus” (Et. a E ud., VIII,
1247 a), a boa fortuna (eutychia) é um “dom ” do
Céu — no mesmo sentido que um bom nascimen
to. M as progressivamente, e a partir de Aristóteles,
o pensamento ocidental desenvolveu uma distinta
concepção do acaso (cf. Et. a N ic., VI): como efei
to não mais da providência, mas da contingência;
n ão mais devido à inspiração do deus, mas à inde-
term inação da m atéria. Desde então, o acaso não é
mais o nom e dado por nossa ignorância a essa for
M utação eu ça obscura que dirigiria tudo, aquém das causas que
ropéia na identi identificamos, mas aquilo que, nas lacunas da ação
ficação do acaso divina, permite à iniciativa hum ana insinuar-se. Já
que não somos guiados pelo deus, podem os — e
mesmo devemos — entregar-nos à deliberação: há
lugar para a ação hum ana que se insere na ordem
do m undo, porque esta é inacabada; e, na falta de
70 François Jullien
uma Providência, a “prudência” (cf. prudentia co
mo contração de providentia , segundo Cícero) é o
imico recurso que nos resta para conduzir a ação
.lo sucesso.
O pensamento europeu não cessou de alargar
fssa brecha aberta à indeterm inação das coisas. Ao
desembaraçar da finalidade o m undo das questões
humanas, e isso sobretudo desde a Renascença (já
que aí a contingência não é mais somente residual
como em Aristóteles), ele foi levado a associar ta n
to mais estreitamente a ação à eficácia. Com efei-
lo, ao torn ar o m undo hum ano um m undo de ins- ■ f
1.1 hilidade, votado à descontinuidade, ao efêmero,
,i mobilidade, sem nenhum princípio de ordem que
lhe fosse intrínseco ou o transcendesse, ele não po
dia mais conceber a eficácia a não ser segundo o
modo de uma intervenção arriscada que, por sua
•uidácia, viesse responder à imprevisibilidade das Somente a
coisas — e beneficiar-se dela, também. Sabemos que ação arriscada
poderia enfrentar
.t política é essencialmente ação para M aquiavel,
a impre\'isibilida-
nisso comparável à guerra, e seu Príncipe é inteira de das coisas
mente um elogio à capacidade de empreender. Por
LcwV. •
quanto a m atéria política, sendo contingente, é ao
mesmo tem po m aleável, p o rtan to tecnicam ente C ü iT *
irunsformável, e o homem tem poder sobre ela, aj
despeito dos perigos; pode esperar dar-lhe forma a<
lhe impor seu desígnio. Abrindo-se o caos político
,i todas as iniciativas, o homem reage ao perigo pelo
virtuosismo de sua ação, inovando. Por isso, ao cabo
r* Virtuosidade da
de uma laicização da antiga idéia de criação, é o ato ação (Maquiavel)
li.itad o da Eficácia 71
colas, e seja qual for o grau de insistência, com o se
se tratasse aí de um a intuição comum que servisse
de fundo ao pensam ento (isto é, que o pensamento
não cessou de explorar), e cuja evidência não se
poderia recusar. Evidência jamais completam ente
justificada, portanto, e que me arriscarei a desen
volver da seguinte maneira. Pelo simples fato de que
j ela intervém no curso das coisas, a ação está sem-
: pre num a relação de ingerência a respeito delas, sua
1 iniciativa a torna intrusa; como vem de outra par-
, te (introduzindo plano-projeto-ideal), ela não aban-
í dona uma certa exterioridade em face do m undo e
i portanto está sempre relativamente em desaprumo
, ' com ele — ela permanecerá arbitrária. Arbitrária e
| ■im portuna. Pois, ao se inserir no curso das coisas,
: ela sempre rom pe um pouco o tecido das coisas e
, vem perturbar sua coerência; inclusive, ao impor-
| : se a elas, suscita inevitavelmente resistências, ou pelo
i menos reticências, que ela não pode de pronto con-
I trolar mas que lhe fazem frente, num a coalizão tá-
J ! cita, e a desfazem em silêncio. Até que o abalo que
I ela produz se am orteça, que a agitação se dissipe e
\seu efeito seja reabsorvido.
Por outro lado, ela intervém num instante de
term inado e não em outro, faz pesar aqui e não ali,
é sempre local e m om entânea (ainda que dure dez
anos, como a guerra de Tróia...), sua incidência é
> pontual. Como intervém arbitrariam ente e é isola
da, essa ação se destaca e sobressai no curso das coi
sas, portanto chama a nossa atenção: ao forçar o
curso das coisas, força tam bém nosso olhar. Além
disso, com o é pessoal e remete diretam ente a um
sujeito dado (mesmo coletivo), ela se deixa facilmen
te identificar. Por isso produz acontecim ento, inau
gura um sentido, monta-se uma história com ela.
Focalizando a atenção, cristalizando o interesse: a
articulação que ela faz emergir do desenvolvimen
to das coisas serve de tram a à narração, e a dificul
dade que ela enfrenta cria o suspense que cativa; sua
François Jullien
aspereza, em suma, serve de g ancho da narrativa. * T U"
Mas esse aspecto espetacular é apenas a contrapar
tida de sua pequena influência sobre a realidade —
pelo que ela é, ao mesmo tem po, arti- e super- ficiai:
umjsimples epifenôm enõjenfim, que se destaca m o M as quase
mentaneamente com o um rasto de espuma sobre o não o efeito
fundo silencioso das coisas — mas logo apagado.
Pela tensão que oferece, ela pode muito bem satis
fazer a nossa necessidade de dram a (“dram a” em
grego = ação), mas não é eficaz. O u, como o deixa
transparecer tam bém nossa língua, ao perceber seu
avesso, todo agente (ator), quando infringe a ordem
das coisas, se com porta com o “energúm eno” (cf.
energein : agir) — ao invés de ser o dem iurgo que
acredita ser; e todo agir é ingênuo.
Por causa disso, para assegurar sua influência
sobre o m undo, para nele exercer seu domínio, o sá
bio não age — não mais do que o estrategista (os
dois papéis coincidem nesse ponto) — , ele “trans
form a” (buan). Pois, ao contrário da ação, que é
necessariamente m om entânea, mesmo quando se
prolonga, a transform ação se estende no tem po, e ! É da continui
c dessa continuidade que provém o efeito. O pen dade da transfor
samento chinês nos reconduz incessantemente a essa m ação que vem o
efeito
constatação: p or ínfimo que seja o ponto de parti
da, por acentuação progressiva chega-se aos resul
tados mais decisivos; ele foi particularm ente sen
sível, de fato, à m aneira pela qual aquilo que não
se interrom pe é levado, por esse simples fato, a se
"desdobrar” , a se “espessar” , a se “ adensar” e, por
acumulação regular, adquire cada vez mais consis
tência (cf. ZY, § 26). A ponto de isso acabar se im
pondo à nossa “ evidência” sem deixar de ser natu-
i al. O u, com o o exprim e habilm ente a fórm ula,
“lorna-se manifesto sem [precisar] se m ostrar0” : o A mais sutil
categoria mas
t esultado é cada vez mais sensível, inclusive tornou-
tam bém a mais
m' patente, mas justamente a título de resultado, sem
decisiva: o que se
que jamais tenha atraído o olhar ou que se tenha torna evidente, à
<!<■ assinalá-lo. força de se mum-
74 François Jullien
O ra, o mesmo acontece se, deixando o campo das
preocupações morais, passamos a considerar como,
de m aneira mais interessada, o conselheiro de cor =>0 .
te ganha ascendência sobre seu príncipe (por fami- _
7*rOvivíc a -
liarização progressiva); ou faz que a situação evo-
•IV* <V C l í O * ' - L
luaf à~seu favorTpor modificação contínua). A anti
‘ v " c ’' ' '■ 3
ga fórmula de sabedoria vale tam bém para a estra
tégia, e estas poucas palavras resumiriam por si sós
o cam inho chinês da eficácia: “pela duração trans- J
formar [e fazer] advirq” (GGZ, cap. 8, “M o ” ). Fa- j
zer advir (ou melhor, deixar advir, pois esse fazer é
dem asiado injuntivo) não é buscar impor o efeito, N ã o impor o
com o quando se age, mas deixar que o efeito se im- efeito mas deixá-
lo impor-se
ponha naturalm ente, por sedim entação progressi
va — adquirindo corpo, ganhando massa. De modo ■.X» C5U-
que não sou mais eu que imperiosamente o quero,
JEA>
mas é a situação que progressivamente o implica:
rc>^ A > a 'o ^ r °
a injunção se introduziu habilm ente no curso das
coisas e não se reconhece mais nele.
Por outro lado, ao contrário da ação, que sen>
pre é pontual, a transform ação se opera sobre to
dos os pontos do conjunto em questão. Esse é pro
priamente um aspecto da realidade ao qual os chi
neses foram sensíveis ao m áxim o, e no qual o anti
go C lássico da m utação não cessou de insistir: a
transformação não tem “lugar próprior” . N ão só ela
não é local, com o o é a ação, mas tam bém não é
localizável, seu desdobramento é sempre global. Seu | A transforma-
efeito, por conseguinte, é difuso, am biente, jamais J ção é global —
acantonado. portanto não se vê
François Jullien
t--
Estava ganho de antem ão, com o se diz, uma vez ve que possa ser
concluído o com bate e para reduzir-lhe o mérito. louvado
1ratado da Eficácia 77
tivo que se fixou. Em sentido inverso, os chineses
O sábio chinês pensaram a eficácia hum ana com base na transfor
'"transforma”
m ação natural. O estrategista faz que a situação
evolua em seu proveito do mesmo m odo que a n a
tureza faz a planta crescer ou que o rio não cessa
de escavar seu leito. Como nessas modificações n a
turais, a transform ação que ele opera é ao mesmo
tem po difusa e discreta, ímperceptível em seu cur
so mas manifesta por seus efeitos. M ais do que na
transcendência da ação, os chineses crêem na ima-
nência da transform ação: não nos vemos envelhe
cer, não vemos o rio escavar seu leito, e no entanto
é a esse desenvolvimento imperceptível que se deve
a realidade da paisagem e da vida.
Uma imagem conseguiu captar essa eficiência
difusa da transformação (eficiência : terei de retomar
o term o) — a do ven to (cf. ZY, § 33: “Ele sabe de
onde vem o vento” ). Como ele se insinua em toda
!
parte e no tem po, não se percebe o vento passar,
A transforma- |
mas, sob seu curso, “as ervas se deitam ” (C onver
ção à imagem do j
vento invisível sas de C onfúcio, XII, 19). Ele não é o sopro inspi
(mas cujos efeitos rado — pneum a divino — que surge m om entanea
são sensíveis em mente para suscitar, com o uma onda arrancada ao
toda parte) torpor da existência, o grande jato do ato heróico,
ou da criação poética; mas é aquele fluxo contínuo
que, propagando-se através do m undo e nele espa
lhando sua incitação, impregna-o gradativam ente
de sua tendência — nele estende ao infinito seu m o
vimento. A literatura grega iniciou pela Ilíada o re
lato inspirado de ações insignes, a deusa canta a
cólera de Aquiles e combates dramáticos. Enquanto
isso, considera-se que a prim eira seção da primeira
obra literária da China (o Sbijing), que data aproxi
m adamente da mesma época e tem por título “Ven
tos dos principados” (“ Guo feng” ), evoca em pe
ças curtas a influência transform adora que, a par
tir da personalidade do príncipe, se dissemina atra
vés de seu principado e dá forma a seus costumes:
influência que se manifesta por meio dos menores
78 François Jullien
i raços do sentimento ou do comportamento das pes
soas, infietidos em seu sentido, mas sem jamais ser
concretamente apreensível, tam pouco isoladamente
perceptível — com o o é o vento.
li.itndo da Eficácia
V.
ESTRUTURA DA 0 C A S L \0
T ratado da Eficácia Kl
ele pareça vir ao nosso encontro, occurrit, que seja
uma ocorrência. Tem po favorável, que conduz ao
porto, “o p o rtu n o ” — mas tempo fugaz também:
tempo m ínim o e ao mesmo tempo ótimo, que mal
desponta entre o não ainda t o já não mais e que é
preciso “ca p ta r” para ter êxito. Enquanto a ciên
cia tem por alvo o eterno (o que é sempre idêntico
e que se pode dem onstrar: sempre o ideal da m ate
mática), o útil é eminentemente variável, reconhe
ce Aristóteles: pois “ uma coisa é útil hoje mas não
o será am anhã” ( Grande morai, 1,1197 a 38). “ Em
vista do fim que se precisa”, convém portanto es
clarecer, da m aneira que se precisa e quando se pre
cisa: sendo o bem declinável segundo as categorias,
a partir do m om ento em que não mais se crê num a
idéia do Bem que seja geral, a ocasião será o bem
O bem segun segundo a categoria do tem po; em outras palavras,
do a categoria do “o tem po enquanto é bom ” . E, mesmo no interior
tem po
dessa categoria do tem po, “são ciências diferentes
que estudam ocasiões diferentes”, e a ocasião se con
ceberá diferentemente em medicina e em estratégia;
no limite, haveria mesmo tantas ocasiões específi
cas quantas situações. M as no mesmo m om ento —
e eis aí de novo o contragolpe (contracusto) da crí
tica feita a Platão, a ocasião corre o risco de ser
inapreensível. Pois, disseminada como está através
H á uma ge da diversidade de suas ocorrências, pode ela ainda
neralidade da ser objeto de “ciência”, e mesmo de “técnica” —
ocasião? visto que a técnica tam bém exige por natureza o
geral?
A im portância da ocasião — kairos — mesmo
assim é afirm ada de uma ponta à outra de nossa
Antigüidade. “ N ada vale mais do que conhecê-la”
O nipotência (Píndaro), ela é “o m elhor dos guias em todo em
do kairos preendim ento hum ano” (Sófocles), sua “onipotên
cia” é afirmada. Desde os primeiros poetas, Homero
e Hesíodo, kairos aparece associado à definição do
ato eficaz, diz-nos M onique Trédé, e “ está exata
mente aí, parece, a chave da noção”, à qual o sur
82 François Jullien
to das técnicas, no século V, conferirá seu pleno
desenvolvimento: em seu em preendim ento de per
suasão, o orador não se vale apenas do raciocínio
para valorizar o verossímil (eik o s ), ele se empenha
igualmente em tirar vantagem das circunstâncias,
aproveitando a ocasião e exprimindo-se de acordo
com ela (de Górgias a Isócrates); do mesmo modo,
a medicina hipocrática desconfia dos preceitos de
m asiado gerais e busca adaptar a terapêutica, na
ausência de qualquer elemento “estável” (kathes -
tekos), à particularidade e à “m ixórdia” dos casos
com que se depara: não apenas para realizar a d o
sagem certa — e o kairós médico é antes de tudo
uma questão de medida — mas tam bém , durante
o tratam ento, em resposta à “crise”, para intervir
quando for preciso.
Sob o fundo de evidência que eles acabaram
por tecer, a ponto de nosso pensamento da ocasião
parecer doravante óbvio (ou não seria melhor di
zer nosso “im -pensam ento” ? ), começamos a perce
ber os pressupostos teóricos desse “tem po oportu
no” — em outras palavras, quais são os com ponen
tes gregos da ocasião. Seu plano de fundo não é C om ponentes
outro senão o da ontologia, opondo o ser ao devir, gregos da ocasião
Tr.irado da Eficácia
partir das tecbnai que a ocasião é concebida, e esta
o é em relação à ação. Por isso, a pergunta não pode
ser evitada: o que resta da concepção do tem po
oportuno (e trata-se ainda de “tem po” ?), desde o
instante em que se sai dessas escolhas implícitas:
desde o m omento em que não mais a consideramos
na perspectiva da ação, mas segundo esta outra ló
gica que começamos a seguir — a da transform a
ção? Se nem por isso a “ocasião” desaparece, sua
estrutura, em com pensação, concebemo-lo de an
tem ão, deve ser repensada.
84 François Jullien
situação”, a exemplo da torrente que arrasta as pe
dras, e “é do potencial de situação que decorre a
seguir o m om ento conveniente para atacar” . Ou,
segundo o texto canônico, o potencial cria a tensão
vertiginosa de onde vem o impulso, após o que o
momento adaptado é m uito “curto” . A acentuação
preliminar, e progressiva, opõe-se o breve instante
do ataque; mas o encadeamento se processa no in
terior de uma mesma imagem: “ O potencial de si
tuação é com o arm ar a balestra e o momento opor
tuno é como disparar seu m ecanismo” .
Eis portanto que se esboça uma distinta con
cepção da “ocasião”: não mais como a chance que
se oferece de passagem, por um feliz concurso de
circunstâncias, incitando à ação e favorecendo seu
sucesso; mas como o momento mais adequado para
intervir no curso do processo iniciado (a ponto de,
no limite, nem ser mais uma intervenção — de tal
m odo somos impelidos a ela), aquele em que cul
mina a potencialidade progressivamente adquirida
e que permite produzir o máximo de eficácia. Como
o especifica um com entador (sempre W ang Xi), esse
potencial da situação “vem de longe”, mesmo que
o m om ento do ataque seja tão breve. N a ótica da C om o tal, ela
é uma culminação
transform ação, a ocasião não é senão a culminação
de um desenvolvimento, e o tem po de duração a
preparou; por isso, longe de suceder de improviso,
ela é o fruto de uma evolução que se deve tom ar em
sua partida, assim que aparece.
Essa ocasião é outra, ou, melhor, é dupla, já
que se encontra nas duas extremidades da duração:
por trás da ocasião que julgamos ver surgir de im
proviso, e que devemos saber aproveitar no instante,
perfila-se uma outra, a montante dela, que é o ponto
de partida do processo encetado e do qual aquela
procede no final do desenvolvimento. Estamos li
dando, de fato, não com um mas com dois instan
N ã o um, mas
tes cruciais (isto é, no início e no fim da transfor dois instantes
mação): aquele, term inal, em que se cai enfim so cruciais
T ratado da Eficácia H5
bre o inimigo com um m áxim o de intensidade, a
ponto de este ser imediatamente derrotado; e aquele,
inicial, em que se com eçou a operar a clivagem a
partir da qual o potencial pendeu progressivamen
te para um dos lados. Do mesmo m odo que, no es
tágio terminal, a ocasião se tornou flagrante, em seu
estágio inicial ela ainda é apenas perceptível com
muita dificuldade; mas é essa prim eira demarcação
que é decisiva, pois é a partir dela que tem início a
capacidade de efeito e que a ocasião final não é, no
final das contas, senão sua conseqüência. Era lógi
co, portanto, que a reflexão estratégica, na China,
reportasse sua atenção do m om ento do desenca-
deamento ao m om ento inicial em que se esboça a
tendência que conduz a esse m om ento. Segundo
um a de suas preciosas fórm ulas (G G Z, cap. 7,
“ C huai” ), essa reflexão empenha-se em discernir o
“potencial da situação” em seu estágio “em brioná
rio ”, “no estado de ativação”u. Pois, com o vimos,
o estrategista poderá em seguida contar com seu de
senvolvimento e deixar-se levar por ele; quanto mais
cedo ele perceber, portanto, essa ativação de poten
O estágio do cial, tanto melhor saberá aproveitar-se dele. Tudo
ínfim o é decisivo se decide no estágio do mais ínfimo, e o m enor pro
cesso que se inicia, seja o “vôo de um inseto” ou o
“ rastejar de um verme” , com o o bater de asas da
borboleta, de Lorenz a Prigogine, tem igualmente
sua incidência.
E a sabedoria, nesse ponto tam bém , coincide
exatam ente com a estratégia. Pois, quer se trate de
conformar-se interiormente à m oralidade ou de m a
nifestar no m undo sua eficácia, am bos, o sábio e o
estrategista, são levados a investigar o ponto de par
Investigar o tida da tendência, essa é inclusive sua prim eira preo
p on to de partida cupação. Com efeito, por m enor que ela seja, a par
da tendência
tir do m om ento em que se afirm a, a tendência m o
dificará infalivelmente a situação: o prim eiro inves
tiga o m enor desvio de seu foro íntim o, porque, se
não o corrigir em seguida, ele o afastará cada vez
86 François Jullien
mais do caminho (cf. ZY, § 1); o segundo investi
ga a menor propensão favorável que se ativa no seio
do mundo, pois, tão logo a identifica, poderá apoiar-
se nela até sua culminação. Com efeito, no momento
da ativação ainda nada se vê, m as já está estabe
lecida uma orientação. Ou, como o explicita um co
m entador a propósito da m oral (Zhu Xi com entan
do ZY, § 1), nenhum a m arca sensível ainda se atua
lizou, mas já foi iniciado o movimento, e esse ab a
lo ínfimo, se não se tom ar cuidado com ele, terá con
seqüências infinitas. Pois, mal começa a despontar,
ele já inflete o curso das coisas (ou da consciência)
e pode exibir cada vez mais longe seus efeitos — com
0 passar do tem po, na duração. Dessa preciosa n o
N o çã o de
ção de ativação, a lição é fácil, portanto, de tirar: o ativação
potencial da situação que se vê surgir na ocasião
devia ser detectado em sua prim eira prefiguração;
pois, em vez de ser fugaz essa ocasião, podia-se en
tão seguir passo a passo seu desdobram ento e por
tanto ter certeza de — e estar pronto para — gol
pear no m om ento oportuno.
Cabe, pois, reportar toda a atenção estratégi
ca a esse estágio inicial, a m ontante da “ocasião”,
m om ento discrim inador em bora ainda não paten
te, que faz imperceptivelmente a situação pender,
e do qual decorrerá progressivam ente o sucesso.
Kstá aí o prim eiro desencadeamento, secreto mas
que com anda o outro, em que se “decide” da ma A m ontante
neira mais sutil o que fará tudo, a seguir, pender da ocasião visí
para um ladov (GGZ, cap. “Ben jing”; cf. as con vel, o m om ento
discriminante
fusões significativas, entre texto e com entário, a
propósito de ji e de w eiw). No mesmo momento em
que a ocasião se desenvolve, cabe repensar, assim,
.1 própria noção de “crise” (krisis no sentido de “de
11 ütado da Eficácia «7
D issolução da no qual começa a se operar a clivagem e que é “ de
“crise” cisivo” . Ele não está mais ligado ao espetacular,
como na ação teatral (cf. novamente a Grécia), e sim
ao mais discreto. M as, sabendo-se detectá-lo, pode-
se então prever a evolução e geri-la; e a “crise” pode
ser desativada.
88 François Jullien
tempo conhecimentos relativos aos princípios — psi
cológico, estratégico, político — e uma apreciação,
a mais precisa possível, da situação, consistindo to
do o m érito da operação, e seu risco tam bém , na
adequação dos dois planos: uma vez mais, o traba
lho do espírito, na Grécia, está em ligar o particular
ao geral; e, pela arte da previsão racional (p ron oia ),
o estrategista está apto a ultrapassar as aparências
para atingir “o mais verídico” , do qual se sabe ser
também “o menos visível” [aiethestaton/aphanes-
taton; e, ainda aqui, a busca ocidental é a da “ver
d ade” escondida sob o véu, do Ser oculto).
O ra, o estrategista chinês não conjectura, não
argum enta, não constrói. Ele não m onta hipótese,
não entra em nenhum cálculo de verossimilhança.
Toda a sua arte, ao contrário, é detectar o mais cedo
possível as menores tendências que são levadas a se
manifestar: ao detectá-las, logo que elas começam Fundamentar-
a orientar, em segredo, o curso ininterrupto das coi se, não sobre o
verossím il (cons
sas, antes p o rtan to que tenham tido o tem po de
truído), mas
emergir e de manifestar seus efeitos, ele está em con sobre a tendência
dições de prever a que elas conduzem; coincidindo ativada
com a ativação dessas tendências, ele se antecipa à
sua atualização. O com entador de nosso tratado de
diplomacia assim esclarece (GGZ, cap. “ Ben jing” ):
“o m ovimento que mal se inicia” , mas com o tal já
é “crítico”, “evolui do sutil ao manifesto51”; por isso,
o estrategista clarividente é aquele que o apreende
nesse estágio inicial, “quando ele ainda não ofere
ceu sinal evidente e não se atualizou^'” . Nesse está
gio, a tem pestade ainda é subterrânea, o “desen-
cadeam ento” da crise, ainda “secreto”. M as sabe-
se que, como “pazadas de te rra ” que “se acum u
lam ”, dele irá resultar inelutavelmente um efeito.
Essa reflexão veio a ser ilustrada sob o aspec
to da fissuração (cf. GGZ, cap. 4, “Di x i”, que se
ocupa disso). Em prim eiro lugar, a menor fissura
apresenta sinais precursores que, a título sim ulta
neamente de indícios e de pródrom os, possibilitam
T ratado da Eficácia
ao olhar atento detectá-la; por outro lado, a menos
que seja obturada em seguida, a m enor fissura ten
de espontaneam ente a se alastrar: ao mesmo tem
po ela se abre e se aprofunda — torna-se sucessi
Fissura, fenda, vamente “fenda” , “ falha”, “rachadura” . Da fissura
rachadura (cf. à brecha, o devir é previsível visto que está impli
Butor, La Mo- cado, a modificação desde já está anunciada, basta
dification) deixar o tem po correr. Foi portanto no estágio ini
cial da fissura que o “perigo” começou. O ra, sabe-
se que o m undo inteiro é feito de união e de sepa
ração (e já entre o Céu e a Terra, ao mesmo tempo
separados e reunidos): a fissuração acha-se pois ins
crita na grande lógica da realidade, ela não cessa de
trabalhar por baixo do tecido das coisas, sempre
am eaçado de rasgar-se, e requer uma perm anente
suturação (seja de que m odo for: “obturando-a”,
“suprim indo-a” , “cerzindo-a”, “ ocultando-a” ...).
Por isso, o estrategista deve sempre “espreitar” a
fissura — e antes de tudo, é claro, em seu adversá
rio. Toda a estratégia com relação ao outro poderia
mesmo resumir-se nesta dupla m anobra (cf. GGZ,
cap. “ Ben jing” ): não oferecer a m enor fissura ao
adversário, de m odo que ele não tenha nenhum p o
der sobre nós, esteja condenado a agir furtivam en
te e não possa nos penetrar; ao mesmo tem po que
Perscrutar a
perscrutar a menor fissuração nele a fim de que esta,
m enor fissura abrindo-se progressivam ente em brecha, perm ita
enfim atacá-lo sem perigo. Assim, é “seguindo as fa
lhas do o u tro ”, especifica o texto diplom ático, que
devemos nos “pôr em m ovimento2-” . Caso contrá
rio seria uma intervenção arbitrária, perigosa p o r
que forçada. Ao passo que basta “ acossar” a fen
da3 , deixando-a manifestar-se, para que o outro seja
infalivelmente derrotado.
N ão obstante, uma questão se lê inevitavel
mente no reverso dessa estratégia: e se o outro tam
bém não apresenta nenhum a falha, o que se pode
rá fazer? M as essa interrogação, longe de voltar a
questionar a tese, permite com provar sua lógica, ao
90 François JulLien
radicalizá-la: não haverá exatam ente nada a fazer
— nada a “esperar”. É preciso “esperar a falha do Salx-r rspri .tr
outro para se pôr em m ovim ento” , é dito com in
sistência (GGZ, cap. “ Ben jing” ), em vez de pensar
em enfrentá-lo sem que se tenha abalado sua posn
ção, o que seria ao mesmo tem po oneroso e arris
cado. Esperar é o corolário de prever. Sabe-se, com
efeito, que a fissuração está inscrita na lógica das
coisas, e portanto é certo que, cedo ou tarde, o outro
será ameaçado por ela. Enquanto o m undo for liso,
sem ter onde agarrar, sem fissura a penetrar, o es
trategista “se m antém recuado e espera a ocasião”
(GGZ, cap. 4, “Di xi” ): aquela prim eira ocasião da
fissuração que mais tarde virará uma brecha e per
mitirá enfim, no m om ento oportuno, penetrar sem
violência e de um só golpe na posição adversária.
Uma vez mais, a arte da guerra apenas corrobora a
da diplomacia: no início, é preciso ser como uma
“ virgem” , discreto e reservado, até que o adversá
rio “abra sua p o rta ”; depois, quando esta se abrir,
precipitar-se nela com a celeridade da lebre, e “o
inimigo não tem mais condições de resistir” (SZ,
cap. 11, “Jiu di” ).
Isso geralmente acontece a partir do m om en
to em que nenhum fator é portador: se a situação
lhe é com pletam ente desfavorável, não deixa ver
nenhum potencial a seu favor, o sábio espera. Ele
se m antém inativo, o im portante para ele é conser
var-se (na China, atualm ente, ele se retira para o
campo, finge-se de doente etc.). A fórm ula a esse
respeito merece ser lida com atenção: “o sábio —
pelo (no) não-agir — espera que haja capacidade^ ”
(GGZ, cap. “Ben jing” ). Ou seja, ele espera que a
situação na qual está envolvido seja de novo carre
gada positivamente. Pois ele sabe que está em p ro
cesso um a renovação, da qual decorrerá mais ta r
de uma outra coerência que, na medida em que o
processo só depende dele mesmo, não pode proce
der senão por alternância; portanto, emergirão no
T ratado da Eficácia 91
vos fatores que não poderiam ser tão negativos quan
to os atuais, posto que virão com pensá-los. Esse
m au m om ento irá passar; um novo já está em m ar
cha, em segredo, do qual ele espera serenamente que
recomece a portá-lo.
92 François Jullien
com a lógica de sua evolução; não é um tem po re
gular como o da ciência — tem po dócil — , nem um
tempo acidental com o aquele aberto à ação — tem
N em regular
po rebelde — , mas um tem po regulado: que m an nem caótico —
tém o equilíbrio mediante a transform ação e per mas regulado
manece coerente em bora não cesse de inovar. Esse
tempo que não conhece a divisão entre teoria e prá
tica, que portanto não é nem “crônico” nem “kái-
rico” (nem periódico nem arriscado), esse tempo que
não se repete jamais mas com o qual podemos con
tar, creio que sua designação mais justa seria: tem
po estratégico.
E, na verdade, porque seu desenvolvimento é
regulado que o estrategista sabe prever e pode es
perar (prever o tem po vindouro e esperar que ele
melhore). Sábio e estrategista ao mesmo tem po, e
é esse um lugar-comum ao qual o pensamento chi
nês não cessou de voltar, não cessou de elucidar (cf.
ZY, § 34, G G Z, passim , e, obviamente, o “ G ran
de com entário” do Zhuyi). Poder-se-ia retom ar as
sim sua lógica: graças à total disponibilidade à qual
ele soube fazer que a sua consciência tivesse aces
so, por ter dissolvido nela os pontos de focalização
aos quais conduzem inevitavelmente idéias e pro
jetos, porque a separou tam bém das fixações par
ticulares às quais, por esclerose, ela se abandona, e
liberou, portanto, ao mesmo tem po da parcialida
de e da rigidez nas quais se encerra, ao tornar-se
exclusivo, todo ponto de vista individual (o que sig
nifica por conseguinte, e para enfim dizer isso p o D a disponibi
lidade da cons
sitivamente, que a tornou coextensiva à globalidade
ciência, que per
dos processos e a m antém tão movente e fluida — mite experim en
com pletam ente evolutiva — quanto o é o curso do tar a globalidade
real), o sábio/estrategista está em condições de es do processo, à
posar a coerência de conjunto do devir e pode as capacidade de
antecipar
sim antecipar-se com certeza às modificações vin
douras — como se sentisse em si mesmo, dizem-nos,
a falta objetiva delas; porque ele sabe que, percebi
da desse ponto de vista global, a renovação à qual
T ratado da Eficácia
está permanentemente exposto o real jamais é aber-
rante, ele confia no reequilíbrio necessário, entre
suas tensões contrárias, antes mesmo que este tenha
começado. D etectar seria talvez o term o mais apro-
priadoc : ao “perscrutar” da maneira mais precisa
o presente, ele já descobre nele a presença daquilo
de que ele está prenhe, mas que ainda não apareceu.
Nosso tratado de diplomacia começa com es
tas palavras: por “considerar” a alternância de “aber
tu ra ” e de “fecham ento” entre os dois pólos da rea
lidade (enquanto fatores opostos ecomplementares,
yin e yang), por “calcular” o “fim ” , que é ao mes
mo tem po “início”, no seio da “multiplicidade das
espécies”, e p o r estar igualmente aberto à “lógica
interior à consciência”, o sábio/estrategista “percebe
os sintomas precursores da m udança” e pode “guar
d ar a p o rta” “da vida e da m orte” , dos sucessos e
Pois é coinci dos fracassos. De fato, de um lado “a m udança é
dindo com a
sem fim” , mas, do outro, cada fenômeno de exis
lógica do desen
volvim ento inicia
tência “tem seu lugar legítimo de culminação^’”; a
do que se pode partir do qual, em função da alternância que o re
antecipar gula (>’!>! c yang, “d u ro ”-”m ole” , “ aberto” -”fecha-
d o ”, “tensão”-“ distensão” etc.), o real é eminente
mente controlável. A “prescíência” em questão não
procede, portanto, de um raciocínio hipotético, tam
pouco de um gesto mágico, ela se contenta em es
clarecer o que “virá” em função do que “ acada de
acontecer”, isto implicando aquilo sem interrupção.
Segundo uma expressão corrente na China, e que é
retom ada aqui, o “fim” é ao mesmo tempo “início”,
o presente é um a contínua transição (e o m undo
um a perpétua variação): portanto, se rem onto ao
desenvolvimento em curso, posso “experim entar”
de antem ão o desenvolvimento que dele vai resul
ta r e, com isso, controlá-lo (cf. GGZ, cap. 4, “Di
x i” , início).
Assim, aparece na concepção da ocasião um
fosso que valeria a pena aprofundar, não para fi
xar sua diferença {pois desejo, ao contrário, superá-
94 François Jullien
Ia), mas para tentar perceber m elhor, e prim eira
mente conseguir dizer, jogando tem porariam ente
com o contraste, o que o pensamento chinês não ces
sou de fazer passar, mesmo através da diversidade
das posições adotadas, como se fosse o óbvio (pois
isso é talvez ainda mais difícil de perceber no caso
do pensamento chinês: o que ele não cessa de dei
xar passar, o que ele diz em toda parte sem jamais
isolá-lo): uma certa lógica da eficácia que, no fun
do, nada tem de estranho (ela inclusive nos é fami
liar por muitos aspectos), mas que o pensamento
chinês jamais teve necessidade de explicitar, vei
a i lando-a com o uma evidência; e da qual nós mes
mos, ainda que, de uma certa m aneira, a encontre
mos integrada em nossa experiência, e até façamos
dela uma forma de sabedoria, jamais tivemos o cui
dado de form ular a teoria — ou talvez não o tenha
mos podido, por conta de nossos pressupostos. Para
tirarmos proveito do paralelo esboçado e acentuan
do seu confronto: com o o tem po é acidental aos
olhos de M aquiavel, como é instável e descontínuo,
Maquiavel não espera nenhum benefício dele (a não C ontinuação
scr, mais tarde, o de estabilizar os corpos políticos da clivagem
graças ao papel legitimador da tradição). Ele não
acredita que se possa “gozar do benefício do tem
po”, mesmo que isso seja, reconhece, o que “se ouve
lioje constantem ente dizer da parte dos sábios”
( Príncipe , 3). “ Pois o tem po persegue igualmente
tudo à sua frente, e traz em sua esteira tanto o bem
quanto o mal, tanto o mal quanto o bem” ; por isso,
nesse tem po p ertu rb ad o da inovação, tem po da
eventualidade e do perigo, o único recurso está na
iniciativa e na capacidade de improvisar. Ao acaso
d.i ocasião só pode responder uma ação arriscada,
que intervém prontam ente (como César Bórgía em M aquiavel: ao
acaso da ocasião
Sinigáglia ou Júlio II contra Baglione), e toda dem o
responde uma
ra é suicida. x\o contrário, desde o momento em que
ação arriscada
se espera a eficácia, não da ação, mas da transfor
mação, e em que a ocasião se dissolve na regulação,
Tratado da Eficácia 95
pode-se contar com a duração. M as recusar o risco
de um a ação im ediata nem por isso significa que se
“tem poriza” (deixando para mais tarde o m om en
Pode-se contar to de agir: não se tra ta de adiar): apenas se espera
com a regulação que o desenrolar do processo encetado nos tenha
para vencer? conduzido para mais perto do resultado previsto (a
distinguir de um objetivo visado), de m odo que,
intervindo o menos possível, e graças unicamente
à propensão das coisas, sejamos levados ao êxito.
E verdade que a gram ática dos príncipes, na
Europa, tam bém levou em conta o tem po longo da
maturação. Ela ensina a “ceder” ao tempo, a “acom
panhá-lo” — esse tempo que, sabemos, procede pas
so a passo, gra d a tim . O político de G racián tem
Gracián
consciência de que “a m uleta do tem po é mais útil
que a maça de H ércules” , sabe, portanto, perfeita
mente que lhe será preciso “atravessar o vasto cur
so do tem po para chegar ao centro da ocasião” (O
hom em universal , 3). Ele tam bém sabe “esperar” .
E, não obstante, subsiste ainda um certo desvio em
relação ao que seria a pura espera do desenvolvi
mento. Esta não tem por princípio preferir a “pa
A espera ciência” à “pressa” , recomendar a delação inteligen
estratégica te (como expediente dilatório), fazer o elogio da
“lentidão” com relação à precipitação (pois as duas
deverão finalmente equilibrar-se: lentidão espanhola
e vivacidade francesa, a fleum a oposta à paixão
etc.). Q uando Gracián celebra a espera, ele a con
cebe em relação à pessoa, com o um traço de cará
ter e num plano m oral, sua alegorização anda jun
to com uma psicologização, ela é prova do dom í
nio que se adquiriu sobre as paixões (da violência
que é preciso fazer-se, com o ele diz, “para só explo
dir no momento oportuno”). Permanece-se no ideal
hum anista do autodomínio em vez de fazê-lo depen
der inteiramente do desenvolvimento em curso; per
manece-se num a lógica do objetivo e da ação, ain
da que se chegue a roçar a da transform ação. Por
quanto a espera estratégica é muito mais — ou, me-
96 François Jullíen
Ihor, muito diferente — que o “ am adurecim ento”
dos desígnios (em oposição à “ pressa que faz tudo
ab o rtar” ), ela não é nem lenta nem apressada: tam
bém ela é regulada, justam ente porque se preserva
de todo desígnio projetado, porque não conhece,
portanto, im paciência mas pode esposar tudo ao
longo do tem po do processo.
N o entanto, mesmo na visão heróica de nos
sos hum anistas, e até em M aquiavel, mesmo quan
do se preconizou a ação aventurosa e arriscada, não
se poderia desconhecer toda idéia de regulação, nem
que fosse sob o tema mais banal da “roda da for
tu n a” — alias, a rocha Tarpéia fica perto do C api
tólio*' — do qual jamais nos desembaraçamos com
pletamente. N o momento em que a Fortuna partiu,
devemos saber “que ela voltará” , que a roda “ gi
rará novam ente”, elevando e rebaixando alternada
mente uns e outros: nenhum fracasso pode nos fa
zer desesperar (não nos deixemos abater) e nenhum
sucesso pode nos garantir o futuro (não sejamos
arrogantes). Para além mesmo da lição, há de fato,
em M aquiavel, a idéia de uma natureza das “coi
sas do m undo” tal que, se toda existência é movente
e efêmera, o m undo no entanto é estável em seu
conjunto. N ão nos esqueçamos de que, no fim de
contas, o tem po é “pai de toda verdade” ... M as,
também aí, a aproximação acaba depressa: pois não
se pode deixar de levar em conta que essa represen
tação de uma roda da fortuna permanece em gran
de parte mítica (não podendo livrar-se totalm ente
do imaginário popular, mesclado como é ao mes
mo tem po de crença e de ceticismo); sobretudo, ela
permanece em M aquiavel num plano, no horizon
te do m undo hum ano e bordej ando-o, diferente do
T ratado da Eficácia
da ação arriscada. Seu fundo de invariabilidade en
volve a variabilidade do presente mas sem penetrá-
la. Ele não reduz, por essa razão, o tempo aciden
tal da ocasião; não pode fazer do tem po hum ano
um tem po regulado.
98 François Jullien
mínima sua duração — “infinitesimal” — , surgin
do com o um relâmpago no “quase nada do tem
po” ... Tendo abandonado a idéia grega de um tem
po cíclico e de um periodismo eterno, sentiríamos
ainda mais intensamente a excepcionalidade da oca
sião. Esta é intrinsecamente trágica, e a retórica é
hábil em fazer uso de seu pathos: num tem po to r O pathos do
encontro
nado irreversível, a ocasião é “única”, “sem prece
dente nem reedição”, não é anunciada nem conhe
ce uma segunda vez, não podemos nos preparar p a
ra ela de antem ão nem resgatá-la depois etc. Acon
tecendo sempre pela primeira (e pela última) vez, ela
0 sempre “ inopinada” , não saberíam os dar lições
sobre ela e a seu respeito só poderem os improvisar.
“Para atenuar a urgência do inesperado”, con
sidera no entanto Jankélévitch no viés de uma ex
planação, “precisaríam os esposar intim am ente a
curva da evolução inovadora: na falta de uma di-
lação, o uníssono nos devolveria talvez o domínio
da ocorrência...” Jankélévitch não prossegue, e a
frase term ina com reticências. De fato, uma hipó
tese é percebida, no caminho da reflexão, cuja ló
gica eventual se pressente mas sem poder desen
volvê-la; a alternativa que se esboçou logo é inter
rompida porque seu caso possível, embora precisa
mente discernido, não se integra em alguma coerên
cia que pudesse escorá-lo e dar-lhe consistência. Por A m enos que
isso, Jankélévitch se detém aí, a idéia permanece em se saiba “esp o
suspenso. O ra, reconhecemos que essa é precisa sar” o desenvol
mente a possibilidade que a tradição chinesa desen vim ento encetado
I iiitado da Eficácia
transformação. H á de fato encontro, e primeiramen
te no estágio da ativação, no começo do processo
(cf. o ji inicial), mas, com o esta é identificada des
de cedo, e desde então nos apoiam os nela, ela dá
ensejo a uma evolução da qual se pode progressi
vamente tirar vantagem. A ativação inicial do en
contro é “ decisiva” pelo que envolve de possibili
dades a atualizar e, na outra ponta, o “desenca-
D a ativação
deam ento” final da ocasião se vê enriquecido de
inicial ao desen- todo o potencial acumulado: entre o encontro ini
cadeam ento final cial e a ocasião final, que decorre a título de resul
tado, intercala-se todo o tem po do processo — so
bre o qual se tem influência e que se pode infletir
no sentido desejado. Em sua culm inação, e graças
ao benefício da evolução, o acidental transform ou-
se progressivamente em conseqüência “ inelutável”;
e, em vez de recorrer à iniciativa de uma ação a r
riscada, a intervenção é mínima.
N o limite, assistimos à dissolução do aconte
D issolu ção do
cimento: a batalha é apenas conclusiva, ela que nos
acontecim ento
comprazemos tanto em celebrar, comumente, e que
marca época; nesse estágio, o grande general nem
sequer tem m érito em vencer. Do lado europeu, ao
contrário, a ocasião é realmente o acontecimento
por excelência, em sua dupla dim ensão de advento
e de encarnação: de um lado, a ocasião faz irrup
ção, ela surge (ela sobre-ve m) rompendo com a con
tinuação do devir; e, do outro, ela abre cam inho
para a existência tem poral, determ inando-a hic et
nunc, a causa latente, preexistente, que nela aspi
rava a realizar-se (ela “ocasiona a causação” , como
diz Jankélévitch). Ora, a China não pensou o mo
m ento (da ocasião) nem segundo a gratuidade de
uma pura ocorrência, nem sob o ângulo da causação
(a insondável causa sui que não cessou de obsedar
nossa metafísica e da qual Jankélévitch não se li
vrou); mas ela o concebeu com o transição: com o a
emergência momentaneamente visível de uma trans
form ação contínua. Assim, há m uito os chineses
Tracado da Eficácia
dade de uma pensamento chinês jamais pensou uma verdadeira
superação exterioridade (já que nele o oposto é sempre com
plem entar, está implicado num a lógica de intera
ção): portanto ele não conhece esse êxtase do en
contro. Do mesmo m odo, não se m ostra sensível
àquilo que tem, não apenas de pungente, mas tam
bém de cativante, esse presente imprevisível em que
tudo se joga, vivido com paixão, na urgência do
instante — esse “Agora incandescente” (Jankélé-
vitch). Ele pensou o benefício a tirar da evolução e
do longo prazo, mas não o que esse instante excep
cional excita de paixão e de forças vivas. Pois esse
acidental, ele próprio, é atraente (e o que dele nos
escapa é fascinante): após ter sido obrigado a cons
tatar que a incerteza é inevitável na guerra, e por
tanto ter deduzido que uma teoria rigorosa da guer
ra é impossível, eis que Clausewitz, por uma revi
ravolta inesperada, leva no final essa incerteza a seu
crédito. Isso porque ela abre um outro espaço, sus
citando um impulso entusiasta — ela satisfaz outras
aspirações. Que a guerra é um “jogo”, é isso mes
mo, reconhece Clausewitz, com o risco de não mais
poder fazer dela um objeto de ciência, “o elemento
que m elhor convém ao espírito hum ano em geral” .
Pois, “em vez de curvar-se à medíocre necessidade,
ele se diverte no reino das possibilidades” ; “trans
portada, a coragem ganha asas”, de modo que a au
Jogo, risco, dácia e o perigo se tornam o elem ento no qual o
aventura do encon- espírito se lança “como o nadador intrépido se lança
tro-acontecimento na corrente”. Jogo, risco, audácia que a estratégia,
na China, sempre recusou.
Tal como é concebida na Europa, a ocasião faz
nascer o prazer do risco, da surpresa, do desconhe
cido. Prazer da aventura, num a palavra, do qual
brotou tam bém o da narrativa (tendo por objeto
privilegiado as figuras opostas da guerra e do am or,
mas que se revelam idênticas em sua estrutura de
ocasião). Considerada com o um encontro arrisca
do, a ocasião incita e faz sonhar, sua economia es
I ratado da Eficácia
lítico, mais o estado do m undo piora: quanto mais
há proibições, mais o país é pobre; quanto mais há
leis, mais há bandidos (§ 57). Ou ainda, segundo
um m odo irônico: fazer reinar a ordem num gran
de reino é como cozinhar peixes miúdos (§ 60): pro
cure não lhes tocar em nada, “não lhes retire nem
as vísceras nem as escam as” (He Shang gong), do
contrário tudo se reduzirá a papa...
Para que “ não haja nada que não esteja em
ordem ” (segundo o m odo do “que não haja nada
que não seja feito” ), para que essa ordem que é, não
a de um a harm onia preestabelecida, mas a da regu
lação, por transform ação contínua, se estenda a tu
do e seja “ constante” , é preciso “ praticar o não-
agir” ou, mais exatamente, para respeitar a iteração
do term o, “ fazer o não-fazer” (“agir o não-agir”1),
resume num a fórm ula o Laozt (§ 3, 75). Eis aí con
firmado, por esse aparente paradoxo, que o não-agir
não traduz nenhum desinteresse em relação ao mun
do, que ele não nos desvia em nada da realidade (que
não é “m ístico” ). Pois a negação não incide sobre
o próprio verbo, mas sobre seu com plem e
“Agir sem objeto interno: o agir é m antido (em sua perspecti-
aSlr’' va de eficácia), apenas seu objeto é retirado (naquilo
que se arrisca sempre a conter de parcial e de fixo);
por isso, liberada do que implica ordinariam ente de
rígido e de limitado, a atividade é conduzida a seu
pleno regime, ela se confunde com o curso das coi
sas em vez de perturbá-lo: se retiro do agir seu ati-
vismo, suprimo junto a oportunidade da desordem.
A gir sem agir: não ajo (em função de um plano es
tabelecido, de maneira pontual, forçando as coisas),
mas tam pouco sou não atuante — não permaneço
inativo — porque acom panho o real durante todo
o seu desenrolar (porque vou de par com ele, por
que sou seu parceiro). Ao mesmo tem po em que o
m undo não é mais um objeto de agir, torno-m e par
te integrante de seu devir: “ajo”, a partir de então,
sem mais “enfrentá-lom ” (essa é a últim a frase do
T ratado da Eficácia
N .1 iHISCIlCiil ma (que a terra imita: o “céu” ); mais acima ainda,
de construção o curso sem fim das coisas que as faz passar da la-
mctafíüici): os
tência à atualização e reciprocam ente (que o céu
n í v e i s di' advento
do real culminam
imita: o “cam inho” ). A m ontante do cam inho, en
no “natural" fim, está o “ n a tu ra l” (como capacidade de advir
spon te sua): não como um nível a mais, mas como
o m odo perfeito do “cam inho” — que é tam bém o
pleno regime da eficácia. “T erm o” últim o, limite
“ extrem o” (W ang Bi): quanto ao natural, ele não
imita nada, não tem algo acima, o que o caracteri
za, ao contrário de todo o resto, é que não se rela
ciona a nada além dele próprio. Poder-se-ia acredi
tar (chegou-se a acreditar) que tal ordenação do real
se lê segundo um m odo platônico. M as, antes de
tudo, o fato de um estágio “im itar” o anterior não
significa que o reproduza (como o leito pintado re
produz o do artesão que por sua vez reproduz a
Eles devem ser Idéia), mas que se inspira nele e o substitui (não há,
concebidos não portanto, problem a de perda de um para o outro);
mais em termos
sobretudo, trata-se aí não de níveis de ser, mas de
de ser, m as de
processo estágios ou de níveis de advento (a visão chinesa não
é ontológica, já o vimos suficientemente, mas pen
sa o real com o processo). Por isso, essa ordenação
do real não culmina numa forma de transcendência
(uma form a transcendente: a do Bem), mas naque
la capacidade que está “no fundo” do real e cons
O lastro d o titui o lastro do processo (do qual não cessa de pro
processo ceder o processo das existências, que é ao mesmo
tem po seu capital e sua fonte). É ela que constitui
o m odo absoluto do “C am inho”, poderíam os cha
má-la sua “virtude” de imanência (conforme o pró
prio título que foi conferido a esse texto, D ao de
jing, o Clássico do cam inho e da virtude).
Cum pre ainda nos entendermos mais precisa
mente sobre cada um dos termos. N ão se deve en
tender virtude aqui no sentido m oral, com o uma
A virtude de
disposição a agir segundo o bem, e o mestre taoísta
imanência
o anuncia sem rodeios: não mais do que o m undo
(“céu e terra” ), o sábio não pretende “ser hum ano”
T ratado da Eficácia
“capacidade” mas não há “m estre”p , resume o co
m entador, W ang Bi, § 10). Tal é a capacidade que
emerge do fundo do real (“abissal*1’” ) e na qual, para
ser eficaz, o sábio deve abeberar-se; é a ela que, para
jamais “perder”, ele deve “assim ilar-se” (§ 23).
Essa eficácia por imanência é um lugar-comum
do pensamento chinês. Entre as duas grandes tra
dições adversas, a dos confucianos e a dos taoístas
(e que tendemos demais a isolar sob rótulos), a di
ferença relativa à eficácia está em que os primeiros
tendem expressamente a confundir os dois sentidos
A noção de da noção de virtude (assim, é a virtude de hum ani
im anência é dade que, atraindo todos os povos para si, permite
comum às diver
triunfar dos outros príncipes, segundo M êncio), ao
sas correntes do
pensam ento passo que os segundos os separam ostensivamente.
chinês M as, quer se chegue a ele pela retidão interior ou
por pura concordância com o curso espontâneo das
coisas, uns e outros se juntam no não-agir (e este
não é uma especialidade do taoísm o, mesmo que o
tema seja nele muito mais marcado). O progresso
moral preconizado pelos confucianos tam bém cul
mina na espontaneidade, e o esforço assíduo con
verte-se então — e resolve-se — em perfeita facili
dade (cf. ZY, § 20). De Shun, o m odelo dos bons
soberanos, Confúcio diz que “fez reinar a ordem
sem agir” {Conversas, XV, 4); e “fazer acontecer
sem agir”, do mesmo m odo que “manifestar-se sem
m ostrar-se” , é uma articulação determ inante dos
dois pensamentos (LZ, § 47, e ZY, § 26).
Entre taoístas e confucianos, a diferença, no
fundo, não reside tanto na maneira como concebem
o modo de advento do real quanto naquilo que con
sideram como ponto de partida da realidade: estes
concebem o real a partir do lastro de iniciativa e de
reatividade que não cessa de investir-se no grande
processo do m undo, sem jam ais desviar-se nem
exaurir-se (noção de cbeng; que corresponde ao las
tro de “hum anidade” e de solidariedade que existe
em nós” : noção de ren x ), e que conduz o curso do
Tratado da Eficácia
espera: “ O sábio, no/pelo não-agir, espera que haja
cap acid ad e” (G G Z , cap. “ Ben jin g ” ). A fórm ula
merece ser relida, pois ganha m ais relevo sob essa
luz taoísta: quando nada mais é portador na situa
ção , não apenas não há mais nada a fazer senão
esperar, e é “ ousando” não agir que saberemos nos
conservar (o que é essencial para a seqüência: para
que haja uma seqüência; cf. a atenção taoísta diri
gida ao simples fato — prim ordial — de manter-se
vivo); m as, sobretudo, é não fazendo mais nada,
quando mais nada é favorável, evitando intervir,
não perturbando com nosso ativismo a regulação
em andam ento, que m elhor poderem os fazer esta
advir. Chegam os a esta lição que o taoísm o ensinou
da m elhor m aneira: é ineficaz enfrentar a situação
para forçá-la. Esse agir pode ser heróico — em todo
caso, é espetacular — mas é em vão: será derrota
do. É, ao contrário, “após ter distinguido o fácil e
o difícil” que o conselheiro de corte “concebe sua
estratégia” (G G Z , ibid.)-. seu agir se reduz na m e
dida em que segue a linha de m aior facilidade e não
é bloqueado; ou ainda, prossegue o tratad o de di
plom acia, é “ao conform ar-se à espontaneidade dos
processos em cu rso ” , o tao natural, que ele torna
sua estratégia “efetiva”: quanto mais souber espo
sar o curso do real, m elhor esse agir conseguirá in-
tegrar-se à realidade e, desse m odo, im por-se com
ela.
A fórm ula do n ão-agir é, p o rtan to , genera-
lizável em diplom acia: se, no com ércio com os ou
tros, soubermos adaptar-nos à diferença dos casos,
poderemos toda vez tirar vantagem da situação o fe
recida, seja num sentido ou no outro, e assim, “sem
agir”, conseguir “conduzir a situação” (G G Z , cap.
1, “Bai he”). Sem agir significa aqui, a propósito das
relações de pessoas e de interesses, que é tornando-
nos disponíveis à situação, graças à serenidade pela
qual nos firmamos interiorm ente (segundo o modo
taoísta), ou seja, evitando projetar sobre a situação
Tratado da Eficácia
posição de autoridade. É a partir desta que se esta
belece o aparelho do poder: ela permite ao sobera
no, de um lado, instituir a norma das recompensas
e dos castigos, que se impõe a todos, e faz cada in
divíduo reagir instintivam ente em função do medo
e do interesse; do outro, m anter sob controle o con
junto da população graças aos procedim entos mi
nuciosos de responsabilização coletiva, de con fron
tação mútua e de verificação. N a medida em que
esse aparelho de poder age, ou m elhor, reage, com o
um puro dispositivo, o príncipe não precisa mais
dar-se ao trabalho de julgar: as punições e as recom
pensas são automáticas; ele tam pouco precisa vigiar,
porque as denúncias se tornam sistem áticas. N o fi
nal, quando esse regime está perfeitam ente assim i
lado, ele não tem mais sequer necessidade de casti
gar, pois cada um, com pelido interiorm ente pelo
desejo e pela repulsa, respeita espontaneam ente a
1 lei im posta. Cada um desempenha então sua fun
ção tão naturalm ente quanto “o galo serve de guar-
da-noturno” ou o gato “serve para pegar os ra to s”,
e o “sáb io ” (nesse caso, o déspota) não tem mais,
ele mesm o, que ^ e a f a in a r ” . Basta que “m antenha
firmemente em/mão^” esse dispositivo e “dos qua
tro cantos do mundo todos virão trazer-lhe sua con
tribu ição ” : ele precisa apenas “esperar” que esta se
m anifeste e que cada um se devote pelo que toca a
ele.
O teórico do despotismo não tem dificuldade
de m ostrar o alto rendim ento que daí resulta: gra
ças à autom aticidade desse dispositivo, o funciona
mento do poder é sempre adequado (cf. “tudo es
tando assim estabelecido em torn o dele [o prínci
pe], assim que ele abre sua porta, tudo se ad ap ta”};
esse funcionamento é constantemente igual, uma vez
que, inteiramente implicado pela m áquina, não de
pende mais da boa vontade dos outros ou dele mes
m o; e tam bém constantem ente recondutível: a m á
quina pode funcionar desse modo sem se deter, seu
François Jullien
funcionam ento é “coerente” e regular. D aí a eco
nomia de conjunto a que se chega: o príncipe é tanto
mais poderoso quanto não mais precisa intervir; e
mesmo, “tanto em baixo quanto em cim a” , no ní
vel do povo com o do príncipe, “não há mais ag ir”. ' /
O cupando cada um seu lugar, tudo funciona por si: \
todas as peças do m aquinism o, uma vez acionadas, |
andam sozinhas.
E nesse sentido que se deve com preender que
se cham e de “vazio” o poder exercido (cf. “vazio e
sem agir” , ou “vazio” ele “espera” que os outros
desenvolvam para ele sua atividade). Vazio signifi E “ v azio ” do
ca que o soberano deixa funcionar o dispositivo do poder d espótico
Ir.uado da Eficácia
se para o outro lado. Tam bém o torna precário: já
que toda m anifestação de força só pode ser tem po
rária, o efeito, ao ligar seu destino à força, logo es
tará esgotado, ele se condena ao efêmero.
M esm o aquilo que apenas sublinharia o efei
to já é seu parasita, sobrecarrega-o e sobretudo o
D efinir um a inibe. “ R estos de co m id a” e “ protuberâncias” , diz
econom ia do
o Laozi (§ 2 4 ). “Quem se ergue na ponta dos pés
efeito
não é estável, e quem dá grandes passadas não pode
m arch ar.” Q uand o fazem os em excesso, com o é
dito correntem ente, não apenas despendemos esfor
ço em vão, mas tam bém m inam os a possibilidade
de efeito. Esse mais resulta em m enos, pois esse e x
cedente é som ente um peso m orto; ele não apenas
am eaça o efeito com um risco de reviravolta ou de
esgotam ento, mas tam bém bloqueia o que podia
advir — digamos mesm o: o que só pedia para vir;
O excedente impede-se que o efeito simplesmente resulte. O custo
de efeito faz
então é duplo: de um lado, esse excedente mina in
ob stru çã o à
teriorm ente o efeito, pela obstrução que produz; de
possibilidade de
efeito outro, exteriorm ente, faz que ele seja “detestado”.
Pois, em vez de passar (despercebido), esse exceder
o evidencia, suscita reticências e focaliza as resistên
cias, provoca sua rejeição.
O Laozi leva ainda mais longe a exigência:
“Q uando o efeito advém, não se fixar nele” (§ 2).
O sábio/estrategista não busca atribuir-se o efeito,
O não faz dele um m érito seu. Pois, a partir do m o
m ento em que nos atribuím os o efeito, entram os
numa lógica de apropriação que só pode penalizá-
lo , pois tudo aquilo que “ocupam os” está destina
do a ser “abandonado” , e essa apropriação, recain
do sobre o efeito, faz que seja contestado; “ocupar
o efeito” (§ 7 7 , cf. G G Z , cap. “ M o ” ) im plica que,
ao ocupá-lo com o uma posição, invadimos com isso
a dos outros, e o efeito se vê com prom etido por essa
I rivalidade, sua duração não está mais segura. B as
ta , em troca, não ocupar o efeito para que ele “não
L igar à nossa nos abandone” : em vez de torná-lo precário pren-
I ratado da Eficácia
não c “ não-ser” , mas o fundo latente das coisas^ co
mo se fala do fundo de um quadro ou do fundo do
silêncio: esse fundo é o lastro a partir do qual o som
F ora il.i m c t a -
físicu: o h ii u lo
é produzido e que o faz ressoar, de onde o traçado
c o m o Listro emerge e graças ao qual pode vibrar (para sair de
nosso atavism o on tológ ico, não vejo, na verdade,
outro meio senão fazer essas analogias funcionarem).
Levando adiante a experiência do pincel: longe de
ser um vazio de inanidade, esse esvaziamento é an
tes o “fino” que se opõe ao cheio do traçado, lá onde
o concreto se reduz ao ínfim o e se torna discreto, e
que faz sobressair o cheio em sua força e sua espes
sura: fino infinitam ente sutil, por conseguinte, ele
I cujo espírito, desem baraçado do peso das form as e
das coisas, não cessa de circular através delas e de
Seu esvazia
m ento im pede o anim á-las. Se ele cessasse de atravessar o real, este
pleno de im o bili ficaria definitivamente entorpecido, prostrado, c o a
zar-se gulado; sem esse influxo do vazio, o real seria com
pletamente reificado.
O Laozi propôs imagens a respeito dele ( § 11).
T od os os raios da roda convergem para o meio, e é
“onde não há n ada”, na parte esvaziada (no cen
tro em que penetra o eixo), que “está o funciona
mento do carro” (que permite à roda girar e ao carro
avançar); do mesmo m odo, m olda-se a argila para
fazer um vaso, mas “é onde não há n a d a ” que se
exerce a “função do vaso”: graças a esse vazio in
terior, o vaso pode conter, é um ob jeto que pode
servir; ou ainda, é abrindo porta e janelas nas pa
redes que o quarto deixa passar a luz e se pode h a
Uma lógica
bitá-lo. Onde o pleno é escavado, por aquilo que
não on tológ ica
— fam iliarizar-se
dele se esvaziou, seja na m adeira, na terra ou na
com ela (caso parede, daí vem sua cond ição de cumprir uma fun
co n trá rio , o ção , daí vem sua capacidade de efeito. O Laozi o
assunto parecerá resume com uma fórm ula que poderíam os assim
abstrato )
explicitar: o que se traduz com o “proveito” no es
tágio da atualização das coisas se exerce com o “ fun
V azio-p len o , cionam ento” ao nível de seu lastro indiferenciado
tun ção-proveito (§ 11). De fato , graças à atualização do pleno, o
Tratado da Eficácia
margem para operar; se todo vazio é elim inado, eli-
mina-se tam bém o jogo que perm itia o livre ex e r
cício do efeito. T orn ad o opaco e rígido, sem mais
nenhum vazio para h abitá-lo, o real se acha inibi
do; e essa advertência vale tam bém (em primeiro
Assim, o lugar) no plano político: esse demasiado pleno que
pleno dos regula o atravanca é, com o vimos, o dos regulam entos e
m entos bloqueia
das proibições que, ao se multiplicarem, acabam por
o m ovim ento
entravar a sociedade e fazem que não se possa mais
esp ontân eo
evoluir livremente. Por isso, será preciso esvaziá-los,
evacua-los, para restituir ao real sua capacidade de
avanço. Pois, quando nada mais é codificado (e toda
cod ificação é apenas uma reificação do real), por
tanto nada mais impede a iniciativa, esta se desen
volve sponte sua: basta, no vazio das proibições e
dos regulam entos, deixar fazer/deixar passar, e o
agir é sem m anobras.
Esse vazio não é espiritualista, tam pouco é ma
terialista, não remete nem à física dos corpos nem
à m etafísica da alm a, sua lógica é funcional: ele é o
O vazio é o
que m antém o que permite ao pleno perm anecer fluido e respirar
real em curso, (perm anecendo arejado) — m antém -no em curso e
p o rtan to efetivo animado (e esse deslocamento é essencial: a perspec
— “ an im a d o ” tiva aí não é mais a da alma, com o entidade, mas
(a o co n trá rio de
da animação, com o processo). A pintura chinesa
“ im o b ilizad o” )
oferece um eloqüente exem plo disso ao to rn ar sen
sível a interação do vazio com o pleno — inclusive
é exatam ente essa interação que ela não cessa de
P assar pela pintar: o branco do traçado, no rolo, é o que per
“ estética ” para m ite aos traço s cheios com unicarem -se entre si, é o
sair de nossa
meio deixado vacante em que se tecem suas relações;
p ersp ectiv a
on tológica
ao mesmo tem po, ele lhes permite m anifestar seu
efeito, abrindo esse traçado ao infinito — sobre o
Infinito. D e fato , basta apagar um pouco que seja
esse traçado, tornando-o evasivo, para que nele aflo
re o lastro sem fundo das coisas; através de seu m e
nor espaçam ento insinua-se o mais longínquo h o
rizonte. Por isso, esse horizonte se acha dissem ina
do através do rolo, todo o traçado é penetrado de
Tratado da Eficácia
pensam ento da “todo o mundo conhece o bem com o bem , e isso
eficácia? já é o n âo -bem ” . Em vez de se excluírem , os con-
j trários se condicionam m utuam ente, e é dessa ló-
^ gica que o sábio tira sua estratégia. Pois, em vez de
se ater aos aspectos opostos das coisas, tais com o
a consciência com um os percebe, e de m antê-los
isolados, o sábio sabe discernir a interdependência
É so bre o
deles para aproveitá-los. E a ela que ele explora, em
fundo de interde
vez de despender esforço: sendo essa interdepen
pendência e de
reversibilidade dência suficiente para prom over o real, ele se co n
qu e se opera a tenta em deixá-la operar, não tem mais necessida
tom ad a de co n s de de agir e pode se deixar levar. V oltam os à pro
ciência estratégica pensão — pois é dela que, em última instância, pro
vém a determ inação das coisas (§ 5 1 ): enquanto o
“cam inho” do tao “engendra”, enquanto “a capa
cidade alimenta” (por imanência) e a “materialidade
co n cretiza” , cabe à propensão “fazer advir” ; é ela
que orienta, gradativamente, o curso que a realidade
tom a. Assim, é em term os de propensão que o co
m entador do Laozi (W ang Bi, § 9) compreende que
o que está cheio demais deve transbordar, ou o que
é aguçado demais se quebrar. Um a expressão dele
merece sobretudo nossa atenção, pois ela exprime
da m elhor m aneira em que consiste a estratégia: é
I próprio do estrategista “conceber uma propensão”
i tal que “ele não precise trabalhar1- ” (e que portanto
seja “sem m érito” , § 6 4 ). Sabendo discernir o mais
C a p ta r a 1 ^cedo possível com o atua a interdependência, ele se
im anência p ró apóia na tendência que dela em ana e não precisa
pria à tendência _ mais “se esfo rçar”.
V ejam os concretam ente com o operar, ou, m e
lhor, deixar operar, e por conseguinte não precisar
mais agir para ser bem-sucedido. Se você quiser lan-
çar-se à frente para ter êxito , diz o Laozi (§ 7 ), isso
será ao m esmo tem po estafante e arriscado; você
suscitará inevitavelmente rivalidades, terá de enfren
tar os outros e se obstinar. Ao passo que, se você
se coloca modestamente atrás, disso poderá resultar
(espontaneam ente) que você seja lançado para a
Tratado da Eficácia
posição dentro de si, constituindo assim a reserva
do outro, de onde este retira sua possibilidade: um
aspecto prepara o o u tro , arm azena-se em co n ca
vidade o que pode a seguir manifestar-se plenamen-
O aspecto ,(ite. N ão tem capacidade para atacar decididamente
inverso serve de quem não soube, ao invés, ter piedade; não tem re
lastro de onde o cursos para ser liberal quem não soube, em senti
prim eiro pode
do contrário, poupar. Quem pretende de saída ser
resultar
liberal, ou de saída ser resoluto, ou de saída se im
por, “está m o rto ”, diz o Laozi. Pois essa liberalida
de, ou essa resolução, ou essa prom oção logo se es
gotam, elas não têm lastro de onde possam resultar.
Por isso, não se deve con tar “ch am ar” o efei
to, mas deixá-lo advir; não “bu scar” nós mesmos
O efeito n ão
deve ser buscado
o efeito, mas colocarm o-nos em posição de recolhê-
mas recolh id o lo. O efeito é aquilo que se colhe. Por isso, a posi
ção mais prom issora está em b aixo, lá onde a ca
pacidade não é mais solicitada, portanto pode ser
“co n stan te” e “não nos ab an d o n a” ('§ 2 8 ). Uma
imagem dessa aptidão a deixar convergir para si o
efeito é a do mar que recolhe as águas (§ 3 2 , 66).
“ O que faz que os rios e o mar devam poder reinar
sobre todos os cursos d’água é sua aptidão em co-
locar-se abaixo deles” : o m ar deixa os rios escoa
rem em sua direção seguindo sua inclinação e os
domina em nível inferior. D o mesmo m odo, o sá
O m ar: é
estan do em baixo bio domina o povo ao se colocar “por suas palavras
que se dom ina abaixo dele” (o imperador chamar-se-ia a si próprio
“eu, o hum ilde” ou “o que está s ó ”; cf. § 3 9 ); por
isso, quando ele se encontra acima do povo, este não
o considera “ pesado” de carregar, fica “ feliz de em
purrá-lo para a frente” , e sem se cansar (§ 6 6 ); e o
sábio, por sua vez, pode utilizar sem dificuldade a
energia dos outros (§ 6 8). Essa humildade (no sen
tido próprio: a escolha de colocar-se em baixo) não
é nem moral nem psicológica, é puramente estraté
gica (§ 61). E o Laozi desenvolve sua im portância
no plano diplom ático: em vez de impor sua hege
m onia, que desde então será contestada, um gran-
Tratado da Eficácia
é aquele que sabe dispor da m elhor m aneira a falta
no seio da situação (com o condição), de modo que
um efeito compensador, jogando a seu favor, resulte
a seguir tanto m ais im perativam ente. O Laozi se
com praz nestas fórm ulas: “de ser dobrado [ou de
ser parcial] resulta que se fique in teiro ”, “ de ser
curvado, que se fique ereto ”, ou “de ser vazio, que
D eixar-se
se esteja repleto” (§ 2 2 ). Ao nos situarm os num ex
levar pela lógica
tremo, tanto mais dirigimos e carregamos a propen
com pen sad ora
são que nos levará ao outro extrem o: assim , ao es
colherm os colocar-nos no extrem o do negativo, so
mos conduzidos com o que contra a nossa vontade,
levados pela tensão reguladora do real, à plenitude
inversa. Com preender isso é o que o Laozi cham a
“ a sutil inteligência”, da qual se pode tam bém ser-
vir-se, de um modo contrário, contra os adversários:
“Se você quiser que algo seja dobrado, é preciso
primeiro desd obrá-lo” (com o situação de partida,
da qual possa o efeito decorrer de m aneira “intrín
seca”; cf. o sentido de g i f ); assim também, “se você
quiser que algo seja enfraquecido, é preciso primeiro
fortalecê-lo; se quiser que algo seja eliminado, é pre
ciso prim eiro prom ovê-lo; se quiser que algo seja
retirado, é preciso primeiro con ced ê-lo” (§ 3 6 ). O
com entador (W ang Bi) não hesita em tirar daí as
conseqüências no plano político: se quiser se livrar
de um déspota, deixe-o seguir sua inclinação e m er
gulhar no extrem o da tirania, pois assim provoca
rá muito melhor sua perdição, por si próprio, do que
^ se resolver castigá-lo. Tirarem os disso a lição: a Chi
na esperaria sua libertação muito m ais da auto-re-
R egu lação
gulação do real que da revolução... M a s é verda
(por propensão) de que a revolução é o paroxism o da ação , concen
ou revolução (cf. trada com o esta em seu objetivo, confiando no m o
ação) delo, e querendo ser uma epopéia*'.
Tratado da Eficácia
ilc esgotar-se), poder-se-á usar deliberadam ente a
lógica com pensadora do real para fazer reagir a si
tuação no sentido desejado: bastará para isso “co
meçar por andar na con tracorren te” do resultado
Kstr.uógúi de ao qual se quer chegar (assim, com o vimos, recua
scihkI»contrário mos para serm os levados à frente, colocam o-n os
— a mais astuta? em baixo para poderm os subir etc.); sendo assim,
“ainda não se entrou” e já se tem “em vista a saí
da* ”” e, sem que os outros “percebam vestígio dis
so ” , recolhe-se para si todo o proveito... N o fundo,
para que nossos fins mais interessados possam re
sultar a título de efeito, caberia não mais querer, fa-
;zendo peso sobre as coisas; basta inscrevê-los na
trajetória das coisas, de m odo que, entregue à sua
( im anência, o efeito seja aí um fenôm eno.
Tratado da Eficácia 14
plctam ente m anifestado, com o que em falta mas
inesgotável.
O ra, é essa capacidade de efecto que o pensa
mento chinês, de seu lado, não cessou de investigar.
Ele não se preocupou em opor o ser à aparência,
tam pouco o ser ao devir, não se perguntou de onde
vem o real (e por quê; por isso, não desenvolveu
m itos); sua questão é antes como o real advém: co
mo ele “fu n cio n a” (n oção de y o n $ ) e se torna
“viável” (ao ser regulado: o tao). Pois, não cessan
Efecto/afeto do de se entre-afetar (gan ^ ), a realidade não cessa
de tornar-se efetiva: estando sempre a se desdobrar,
e justam ente por ser coerente e regulada, realidade
nunca acaba de advir e não pode se esgotar.
Um pensamento da processualidade, poder-se-
ia dizer, tam bém aqui esticando as palavras (mas
com o fazer de outro m odo se se quer abri-las à di
N o ça o centra] ferença?) — a noção precisa ser forjada. T o d o real
de processitalidade
não passa de um processo, e portanto, no plano da
conduta, só se torna real o que é ob jeto de um pro
cesso, isto é, o que resulta de um processo. D iferen
tem ente do efeito (visado pelo agir num a relação
m eios-fim ), o efecto não deve ser “ bu scad o”, de
form a direta e voluntária; ele é cham ado a decor
rer “naturalm ente” do processo encetado. Toda es
tratégia consistirá, em contrapartida, em saber im
plicar o processo a m ontante, de onde o efeito em
O efecto n ão é seguida será levado por si m esmo a “vir”. Porque
bu scad o co m o é da ordem da conseqüência, porque im plica por
m eta, m as resulta tanto, para resultar, passar por um processo que é
a título de co n se
sua cond ição, essa eficácia é indireta em relação ao
qü ência
objetivo considerado. Ela é da ordem do fruto que,
transform ando-se im perceptivelm ente, é levado a
amadurecer, não do gesto heróico que pretende con
quistar à força. Pois não se pode esperar “tom ar de
assalto ” o real, ou tom á-lo “de surpresa”, diz tam
bém M êncio (II, A, 2 ), é preciso haver sempre um
desenvolvimento (o que, para o efecto, é a con d i
ção de seu desdobram ento); é im possível, com o se
Tratado da Eficácia
M ostra-o a sutil distinção que foi traçad a a
esse respeito entre as virtudes de “hum anidade” e
de “eqüidade” (§ 38 e seguintes). N a medida em que
“agem ”, am bas são virtudes inferiores, mas uma é
não obstante superior à outra, a humanidade à eqüi
l>oís jçrnus de dade, posto que, quando se age por hum anidade,
agir: <> agir sem “age-se” mas sem “visar a agir” , e mesmo sem ter
desígnio é gene
em mira o agir, movido com o se é de repente pela
ro so , abu nd ante;
com p aixão, muito mais se reage, portan to, do que
o agir co n certad o
c m esquinho se age, e o sentim ento que se eleva em nós, sem que
tenhamos sido forçados a prever ou escolher, possui
uma globalidade de princípio (é para com todo ho
mem, simplesmente por ser hom em, que se tem pie
dade): essa virtude de hum anidade “a b ra ça ” então
a humanidade inteira e a “recobre” generosamente;
ao passo que, quando, por não ser mais tão extenso
■,esse amor aos outros, se age por “eqüidade”, apenas
para ser justo, esse agir justam ente é aju stad o, é
adaptado e medido caso a caso, e sua virtude se es-
tiola em sua pontualidade; ela não mais poderá re
sultar, um grau mais ab aixo , senão no form alism o
dos ritos. Poder-se-ia dizer assim que, enquanto a
O prim eiro é eqüidade, procedendo passo a passo (taco a taco),
generoso porque se limita ao efeito, a virtude de humanidade é capaz
procede de um
de efecto (enraizando-se ela própria em sua cap a
lastro de efeito
cidade de afeto); pois em seu caso se revela um lastro
de efeito que, com um ente latente, faz que o efeito,
quando é suscitado, não se esgote e possa exercer
O que a exp e seu pleno efeito (cf. Zhuyi, “X ic i”, A, 5 1 ). A inten-
riência m oral per cionalidade do efeito, ao con trário, mantém o efei
m ite esclarecer do
to na superfície, produzido, içado, ele é saliente por
real (passando-se
que é forçado (cf. o sentido de yfl , para exprim ir a
de uma visão m e
tafísica a uma intencionalidade; cf. L Z , § 2 0 e tam bém M Z , VII,
visão “processual” B, 33). O que reage à fenomenalidade respectiva de
da realidade) ambas: com o a capacidade superior não visa ao efei
to , ela passa despercebida (eis por que, com o é dito
no início, “a virtude superior não é virtuosa” ): já
C onseqüência: que se confunde com a efetividade, ela não pode ser
co m o n ão visa ao nom ead a (aparecend o “ à p a rte” ) e recon h ecid a
IS7
uma alternativa, sendo a eficácia que não é técnica
rechaçada obrigatoriam ente para o dom ínio do ir
racional e da magia): intervindo o mais cedo possí
vel, no estágio em que nada ainda se enrijeceu nem
com plicou, não precisam os descer à particularida
de das coisas (cf. § 4 7 ), nem obrar com a instru-
mentalidade de uma coisa (m im -obrar, com o se diz);
nesse estágio não existem “coisas”, nem coisas nem
causas (individuadas), tudo o que obstaculiza. Pois
o carreiro deixado pela roda, o recurso ao instru
m ento são com o que tantas outras deficiências com
respeito a uma pura processualidade, todos esses
traços são defeitos (cf. na série das fórmulas: “quem
sabe falar bem fala sem defeito” : pois ele se abstém
de “análises” e de “distinções”, acrescenta o com en
tador, operando-se estas apenas no nível de um real
T ra ço s, defei i que se diferencia ao se atualizar). T raço s, defeitos,
tos, instrum entos: instrum entos são o quinhão de um real que adveio
é a jusante que se
com pletam ente e se concretizou, que portanto im
tem de fazer esfor
plica agir e forçar; ao passo que, quando operam os
ç o , em face do
co n cre to no estágio anterior à atualização, não precisam os
determ inar o curso das coisas por vir, conclui o co
m entador, “com o atualizad o”0 .
Antes da atualização, de um lado — tão logo
ocorreu a individuação, do outro: teremos assim que
r' 0 mudar de m etafísica, ou, m elhor, renunciar à m e
K ã o dois
níveis de ser, mas tafísica (a do ser eterno oposto ao devir, ou do ser
dois estágios do absoluto oposto à aparência), para que, passando
processo por essa outra distinção prim ária, mas que, desta
vez, se recusa à separação (ela sublinha, ao co n trá
rio, a constante transição do real), possamos entrar
nessa lógica da processualidade (mesmo a distinção
aristotélica entre potência e ato não caberia aqui, e
inclusive nada tem a ver, visto que, do lado chinês,
vê-se m uito bem que não se trata de uma “ form a”
que, em ato, conduziria teleologicam ente o desen
volvim ento). Resultou disso uma concepção da efi
cácia que se perceberá m elhor a contrario : o erro
que com etem os ao visar diretam ente o efeito é que
Tratado da Eficácia
os outros ajustes cuja necessidade se torna flagran
te a cada novo ajuste... Por princípio, im aginam os,
essa corrida jam ais terá fim. Ela não cessará p o r
tanto de fazer o mundo correr em busca de uma efi
cácia que, para chegar mais rapidamente ao o b je
tivo (procurando os meios mais diretos: falsos “ata
lhos” , diz o Laozi, § 5 3 ), se afasta cada vez mais
de seu objetivo.
O ra, não se poderia sair dessa concepção ne
gativa da eficácia sem co lo ca r em questão o que
corre o risco de estar em seu princípio mesmo: não
apenas a relação m eios-fim , seu aspecto ao mesmo
tem po instrum ental e pontual (o das medidas indi
viduais), mas tam bém seu caráter aleatório (vencer
ou não: m om ento crucial e trágico) e sua im plica
ção de esforço (em função de tarefas que nos fix a
mos com o meio para vencer). Por mais que se re-
trabalhe a n o ção , a eficácia perm anecerá ainda de
masiadam ente do lado da ação; e, assim com o foi
preciso rem ontar do efeito patente ao efecto, seria
preciso extrair de debaixo da eficácia uma noção
que não fosse mais tão onerada pelo peso do tan
gível. N o fundo, aquilo de que nos fala desde o iní
cio o pensamento chinês ao nos colocar numa pers
pectiva de transform ação, até nos conduzir à idéia
de uma eficácia indireta (que seria apenas indireta;
o que, pelo próprio interior da n oção, permanece
Fim da déca- um p arad oxo), é menos de eficácia, propriam ente
lage: eficácia/ falando, do que — mais radicalm ente — de eficiên
eficiência cia. Pelo m enos, vê-se agora m elhor delineado o
conceito desta. À eficiência pertencem a fluidez e a
Fazer da continuidade do processo: ela abre a eficácia a uma
eficiên cia um aptidão que não mais necessita do co n creto para
co n ceito operar; procedendo de uma econom ia de conjunto,
ela dispensa tanto o objetivo quanto o esforço; e,
porque, em vez de ser voluntária, decorre das co n
dições im plicadas não poderia de repente faltar ou
desviar-se. Ela está m enos do lado do agir (em ter
mos de acontecim ento) que de um advento-realiza-
I l . l l . u l l l <1.1 l . t l l . k W
m nrn, pela separação dos planos que autorizava,
permitiu fundar uma ciência (teórica) na Europa; ao
passo que a outra ancoragem , a chinesa, serviu de
base à estratégia.
Da evolução que, na C hina, leva o Invisível
religioso (e antes de tudo o dos espíritos dos m or
N;i origem da tos, sbenp ) a significar essa eficiência do recurso de
noi,'.m de eficiên
im anência, o próprio Laozi fornece uma referência
cia na China
pela seguinte denegação em série (§ 6 0 ; é claro que
não leio aqui essas fórm ulas de um ponto de vista
estritam ente histórico-religioso, mas em função do
que elas deixam ver da m utação, e destacando esse
significado possível): “Q uando se aborda o mundo
hum ano seguindo o cam inho, os espíritos dos m or
tos já não m anifestam eficiência”. Aqui, a eficiên
cia do invisível (shen) ainda está próxim a de um
eficaz religioso; mas o au tor retom a em seguida:
“O u, m elhor, não é que já não manifestem eficiên
cia, mas é que sua eficiência não prejudica os ho
mens; e não é som ente que sua eficiência não pre
judique os hom ens, mas o sábio tam bém não pre
judica os hom ens” . Isso porque a eficiência (do in
visível) não prejudica o que é “n atu ral”, acrescen
ta o com entador (W ang Bi); “e, quando os existen
tes preservam o que é natural, não há nada que seja
acrescentado pela eficiência invisível; e, quando não
há nada que seja acrescentado pela eficiência invi
sível, não mais nos damos conta da eficiência com o
eficiên cia” . Essa eficiência da qual não mais nos
damos conta (e que se opõe portanto ao milagre),
que não “acrescenta” nada ao natural (e não é por-
D o plano de
( tanto soí?re-natural), torna-se o lastro de im anên-
fundo religioso à , cia. O espírito “do vale”, do qual foi dito que “não
concepção de um m o rre”, oferece uma imagem dela (§ 6): ele é a “fê
lastro de imanência m ea abissal” cu ja “p o rta” não cessa de se abrir à
existência; “de m aneira ininterrupta”, é especifica
do, “com o se isso existisse” : a eficiência perm ane
ce indistinta, vimos por que, ao operar con tin u a
mente a m ontante; mas assim, é dito a seguir, “ser-
Tracado da Eficácia
ciplina etc.): sempre a descrição de formas , em su
ma (form a da batalha, da m archa, do acam pam en
to , e, antes de tudo, do recrutam ento), ou seja, um
O próprio
problem a ao m esmo tem po de ordem e de modelo
M aq u iavel se (de ordem pelo m odelo; cf. o dos rom anos), cuja
interessa m ais simples instauração, segundo ele, cria a força e que,
pelas form as de com o tais, nos remetem inexoravelm ente ao lado
ordem do que
grego.
pela estratégia
Q uanto a Clausewitz, certam ente é quem m e
lhor nos esclareceria sobre as reticências da refle
x ã o ocidental acerca da m anipulação estratégica.
N o entanto, ele tem a idéia de um “desgaste” do
inimigo, com o esgotam ento gradual das forças e da
vontade do adversário ao longo do tem po (cf. o
exem plo de Frederico, o G rande, durante a Guerra
dos Sete Anos), mesmo que restrinja seu emprego
à defesa e o conceba apenas para resistir. Ou ain
da, concebendo a guerra a partir do engajam ento
arm ado que ele distribui sistem aticam ente entre es
tes três objetivos — a destruição das forças adver
sárias, a conquista de um lugar e de um objeto — ,
Clausewitz sugere porém uma “quarta categoria de
co m b ate”, em bora limitado dessa vez unicamente
à ofensiva, o qual repousa sobre o fingimento e cor
responde aos “ reconhecim entos em que se busca
conseguir que o inimigo se descubra” (bem com o
aos “ alertas com que se procura fatig á-lo ” ou às
“dem onstrações destinadas a impedi-lo de abando
nar uma posição ou de se dirigir a uma o u tra” ) —
e do qual os primeiros tipos de com bate seriam ape
nas o meio. M as, perm anecendo preso justam ente
a essa idéia de um com bate destruidor, quer este se
produza realm ente ou seja apenas possível, C lau
sewitz não poderia ir mais longe: sendo o com bate
concebido com o ação e definido por seu objetivo,
sua lógica só pode ser a de uma eficácia direta, e
toda m anobra anterior a isso pode realm ente “ser
Preso à n o çã o
de co m b ate, vir de guia para o princípio eficaz”, mas de modo
C lausew itz não algum ser tom ada por esse princípio. Em outras pa
Tratado da Eficácia 17
cias. Sob essas figuras familiares da “artim anha” ou
da “astúcia” , que a Europa com freqüência sentiu
prazer em psicologizar (e depois em m oralizar, ou
mesmo em diabolizar), e que são tidas assim por
anedóticas, dissimula-se, do lado chinês, a arte de
conduzir tão progressivam ente o real que já não se
precisa enfrentá-lo. O u, m elhor, arte de induzi-lo,
Induzir m ani
poder-se-ia dizer, pois conduzir ainda é por demais
pulando
dirigista e cham ativo, por seu modo de acom panha
m ento (cum : com ), pressupõe ainda demasiada ex-
terioridade, em relação à situação, e portanto ati
vidade voluntarista e esforço da parte do “su jeito”.
Percebem-se assim dois dom ínios por contraste (a
ponto de se excluírem ?): ou a força repousa na co
lisão, com o em Clausew itz, por concentração má
xim a da ação focalizada sobre o ponto e o instante
julgados decisivos e que se vinculam com o acon te
cimento (a “ batalha principal”; cf. sua pesquisa dos
centros de gravidade no adversário, sendo o o b je
tivo reduzi-los a um só para concentrar o im pacto *);
ou existe predeterm inação do processo, por infle
xão tão gradual de seu desenvolvimento que não há
mais senão momentos sucessivos, nenhum dos quais
se sobressai, e que nele se dissolve o acontecimen
M omentos/
to ; e enquanto a eficácia se torna indireta e discre-
aco n tecim en to
François Jullien
ta ao longo da m anipulação, ela é direta e manifes
ta no co m b ate *.
Tratado da Eficácia
gos, m i ti lógica é com um e suas “a rtes” se corres
pondem (e m uito mais fortem ente ainda na China
do que em M aquiavel). Por isso, vemos desde a *\n-
tigüidade, no quadro do pensam ento do despotis
mo, im propriam ente cham ado legista, que já evoca
mos (cf. supra cap. 2 e 6), os chineses traçarem uma
teoria bastante com pleta da m anipulação política.
A m anip u la
Sob esse ângulo, aliás, a noção se aproxim a mais da
çã o do poder
etim ologia do que entre nós, remetendo explicita
mente ao que se tom a em mãos: o que o príncipe
esclarecido “tom a em m ãos” são as recom pensas e
os castigos de que se serve com o de dois “ca b o s”
ou de dois “m anípulosc” (H F Z , cap. 7, “E r bing” ),
com andando em seus súditos as reações opostas,
mas igualmente instintivas, do medo e do interesse
— e das quais a subm issão decorrerá sponte sua.
Pode-se retom ar aqui, p ortan to, o que acaba
de ser dito da m anipulação estratégica, para cons
truir uma noção da m anipulação política que resu
me todos os aspectos do despotism o e os articula
entre si: o segredo, em prim eiro lugar, com o aca
bamos de ver, que o príncipe não partilha com nin
guém , nem mesmo com seus parentes ou seus fa
voritos (H F Z , cap. 4 8 , “Ba jin g ” , I); a to tal dis-
simetria dos papéis, a seguir, e o antagonism o das
posições: para conservar inteiro o potencial de si
tu ação con stituíd o por sua p o sição so b eran a, o
príncipe deve considerar todos os outros, no inte
rior de seu reino, com o adversários a subm eter à
sua autoridade; a ascendência sobre outrem que
permite dom iná-lo: assim com o o estrategista tem
vantagem sobre o inimigo graças à disposição que
este tom a, o príncipe tem vantagem sobre todos os
seus súditos ao torná-los visíveis pela vigilância e
pelo controle im postos (ao mesmo tem po em que
ele próprio evita deixar transparecer qualquer dis
posição interior, de alegria ou de cólera, para que
não tenham com o pegá-lo); a redução do outro à
passividade: desde o m om ento em que é o único a
Tratado da Eficácia
Nada escapa a essa lógica, desde o início ela
é extrem a e sua radicalidade a torna instrutiva. Fi
camos espantados de ver assim erguer-se inteiramen
te pronto esse “cân o n e” de todos os totalitarism os,
com o se, nesse ponto, o pensamento não tivesse ne
cessidade de tatear: o rigor é sem exceção, o poder
não conhece hesitação, elim ina-se cuidadosamente
toda vibração hum ana. M ais nenhum reconheci
m ento é feito à pessoa, a idéia mesma de direito se
vê submergida sob a onipotência da “ lei”, não há
lugar para valores. Se tudo converge para o prínci
pe e o impele para a frente, o príncipe mesmo se
m antém discreto, renunciou a toda preocupação de
glória, renunciou inclusive à sua própria individua
lidade. C om o perfeito m anipulador, ele se dissolve
na m anipulação; e, ao tratar os outros com o au tô
m atos, ele próprio se torna autôm ato.
François Jullien
X.
M A N IPU LA ÇÃ O VERSUS PERSU A SÃ O
Tratado da Eficácia
cm nada, portanto, os dois pontos precedentes —
a transform ação prévia e a eficácia indireta por co n
dicionam ento. E, de fato , enquanto o mundo gre
go se apegou, sabe-se quanto, aos prestígios p ró
prios do discurso e não cessou de estudar a arte de
servir-se deles, constatam os, em troca, que a C hi
na antiga se desinteressa dos procedim entos de ar
gum entação, das partes do discurso e das figuras da
retórica. A eloqüência e a valorização que ela tem
em mira estariam portanto igualmente relacionadas
E loqü ência, com o espetacular e com a ação: há efetivam ente
ação , espetáculo uma “ação oratória”, e o orador também está diante
de um público; ao tornar sua palavra mais veemente
graças à retórica, ao colocá-la “diante dos o lh o s”
de seus ouvintes, com o é recom endado, ele busca
atingir ainda mais diretam ente o efeito. Ao passo
que quem “fala” , segundo o tratado chinês, fala o
m ínim o possível ou, m elh or, não o vemos falar :
aquilo a que assistim os, em troca, é a maneira dis
creta pela qual, a m ontante e por inflexão progres
M a s tudo se siva, com o anteriorm ente o estrategista, ele prepa
decide a m o n ta n ra o terreno para se fazer ouvir; e falar e propor, do
te da palavra mesmo modo que com bater, é algo que está, para
ele, num longínqüo jusante.
Certam ente, foi dito que a retórica serve tam
bém à m anipulação. Pois ela não ordena apenas
instruir o destinatário; ele tam bém é recom endado,
com o se sabe, a buscar agradá-lo e com ovê-lo; in
clusive freqüentemente ela visa fazê-lo reagir, e sem
que ele tenha consciência disso, m ais no nível de
suas “p aixões” , com o se diz, que de sua razão (“ra-
zão ” - “p aix ão ” : uma das velhas clivagens européi
as que a retórica contribuiu para enraizar). M esm o
assim argumentos se enfrentam , uma escolha está
aberta, p o rtan to , e uma convicção pode se criar.
Uma lógica se exp licita, tendo por o b jeto o veros
sím il, quando não a verdade: sobre a qual se tem
sempre m aior ou menor dom ínio e que se pode re
futar. Enquanto que, do lado chinês, tudo incide
Tratado da Eficácia 18
ao norte quanto ao sul”, fazemos dele um joguch'
(G G Z ,cap . 3, “Nei qian ”; cap. 5, “Fei qian” ); c tios
mesmos evoluímos com tal facilidade que não rcsi.t
mais o menor “interstício” entre o outro e nós e não
se vê nenhum “sinal” exterior dessa dependência.
Em si, não é tanto o que é proposto aqui qur
é espantoso, pois se percebe bem sua lógica, mas mi.i
absolutização: espantoso que não se trate aí de e x
pedientes, mais ou m enos vergonhosos, mas do ca
minho norm al, e que seria mesmo ideal. Que qual
quer outra possibilidade seja excluída e o outro (mas
se trata ainda de um “outro” ?) reduzido a uma com
pleta passividade. M esm o “M aqu iavel”, entre nós,
não considerou isso.
Tratado da Eficácia
to disso, o príncipe de Hu acreditou que Zheng ti
nha boas intenções a seu respeito. Assim, não se
precaveu. O s homens de Zheng o atacaram repen
tinamente e tom aram o principado.”
20 0 François Jullien
X I.
IM A G E N S DA ÁGUA
Tratado da Eficácia 20 9
completamente para reagir a ela e me adaptar; c, ao
transformar-me assim globalm ente por ela, renovo
me inteiramente a partir do interior e mantenho-me
dinâm ico. A ponto de que esse efeito que se mani
festa continuam ente através do desenvolvim ento
não é mais, propriam ente falando, eficácia — a no
ção se revela mais uma vez demasiado estreita —
mas se desdobra em “eficiência”: “ Ser capaz de se
transform ar em função das m odificações do adver
sário de m odo a obter a vitória é o que se cham a a
[divina] eficiência” ( ibid .). Eficiência infinitam en
te “sutil” e, com o tal, insondável, que se confunde
com a do fundo de im anência do qual não cessa de
proceder a grande renovação do m undo — a dos
“dias” e das “estações”: a mais “divina”, por seu
êxito, ao mesmo tempo que a mais natural.
Teríam os portanto que repartir assim o “cons
tan te” e o “m utável”: na guerra, há uma “ló g ica”
constante mas o “potencial” não o éa ; do mesmo
m odo que a água tem uma “natureza” constante,
mas sua “ form a” não o é (W ang X i). Pois, se a n a
tureza constante da água é tender para baixo , ela
não tem form a constante, já que é em função do
terreno que ela a determ ina; do mesmo m odo, se a
lógica constante, na guerra, é atacar os pontos fra
cos, o potencial nela é constantemente mutável, por
que depende do inimigo ao qual se responde e es
ses pontos fracos não cessam de variar em função
Sem form a da situação. Por isso, não se pode modelizar a guer
co n stan te: a ra, isto é, construir uma form a (eidos) que seja vá
im possível m o-
lida a despeito da diferença dos casos: “ O ataque e
d elização
a defesa são infinitamente sutis, não se lhes pode dar
form a no nível do enunciado” (Li Q uan). Pois, se
se quisesse dispor a forma no enunciado, erigi-la em
paradigm a, perder-se-ia todo o seu potencial.
N a falta de poder modelizar o conflito, já que
ele é constantemente mutável, não resta outro “enun
ciado” possível senão o da variável: em vez de cons
truir uma teoria das form as, o pensam ento chinês
a) Xing ; shi \
c) X iao ; ji - $ f
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e) Bing fa wu ding, wei yin shi er cheng
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13 4 François Jullien
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