Você está na página 1de 236

coleção TRANS

François Jullien

TRATADO DA EFICÁCIA
T radução
P aulo N eves

editoraB 34
I l)ITOI<A M

l-diiora ,\A I ul.i.


Kiiii I (migrin, 592 Jardim Europa CEP 0145J-000
S.m 1'niHo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777

Copyright © Editora 3 4 Ltda. (edição brasileira), 1998


T raité de 1’efficacité © Éditions Grasset & Fasquelle, Paris, 1996

A FOTOCÓ PIA DE Q UALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA


APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS D O A UTOR.

T ítulo original:
T raité de V efficacité

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:


Bracher & M a lta P ro d u çã o G ráfica

Revisão:
G eraldo G érson de S o uza

V Edição - 1998

C atalogação na Fonte d o Departam ento N acion al do Livro


(Fundação Biblioteca N acional, RJ, Brasil)

Jullien, François, 1951-


J9 4 t T ratad o da eficácia / François Jullien; tradução
de Paulo N eves. — São Paulo: Ed. 34, 1998
240 p. (Coleção TRANS)

T radução de: T raité de Pefficacité

ISBN 85-7326-112-9

1. T eoria da ação. 2. Intencionalidade {Filosofia).


3. M etas (Filosofia). 4. Filosofia chinesa. I. Título.
III. Série.

CDD-181.11
TRATADO DA EFICÁCIA
1

â
TRATADO DA EFICÁCIA

A dvertência....................................................... ...................... . 9
O bjeto e referências................................................................ 11

I. Com os olhos fixos no m o d e lo ................................. 13


II. Ou apoiando-se na p rop en são................................... 29
III. Objetivo ou conseqüência........................................... 47
IV. Ação ou transform ação............................................... 63
V. Estrutura da o ca siã o ..................................................... 81
VI. Nada fazer (e que nada deixe de ser f e ito )............ 107
VII. Deixar advir o efe ito ..................................................... 129
VIII. Da eficácia à eficiência ................................................ 147
IX. Lógica da m anipulação................................................ 165
X. M anipulação versus persuasão................................. 183
XI. Imagens da á g u a ............................................................ 201
XII. Elogio da facilidade...................................................... 217

Glossário das expressões chinesas...................................... 233


A D V E R T Ê N C IA

O que querem os dizer q u a n d o dizem os que algo é p o rta d o r —


não “p o rta d o r d e ” , m as sim plesm ente “p o rta d o r” ? P or exem plo, a
p ro p ó sito de um m ercado o u da evolução de um a em presa. Q u an d o
dizem os que tal fa to r é p o rta d o r, consideram os que esse fator está p ro ­
m etido p o r si m esm o a um certo desenvolvim ento, no qu al podem os
nos apoiar: em vez de fazer tu d o depender de nossa iniciativa, reco­
nhecem os que u m certo potencial esta inscrito n a situação, que é p re ­
ciso identificar, e que p odem os nos deix ar “ p o r ta r” p o r ele. Em prego
deix ad o um p o u c o im preciso, o u pelo m enos que enco n tram o s acan-
to n ad o na esfera d a prática, à m argem d a língua, e cuja lógica não p en ­
saríam os em indagar. N o entanto, parece-m e que se pressente nele to d a
um a visão possível de n o sso e n g ajam en to n o m u n d o ; e ain d a que,
con fo rm an d o -se m al a nossos pressu p o sto s teóricos, ele pudesse nos
dar a o p o rtu n id a d e de superá-los a p a rtir disso, de repensá-los, e nos
descortinasse o u tra s fontes de “eficácia” .

O u tras em relação à tra d iç ã o eu ropéia o u , pelo m enos, tal qual


ela nos vem dos gregos: p en san d o a eficácia a p a rtir da ab straç ão de
form as ideais, edificadas em m odelos, que se projetariam sobre o m u n ­
do e que a v o n tad e teria com o m eta realizar. Essa trad iç ão é a d o p la ­
no tra ç a d o previam ente e d o heroísm o da ação; segundo o viés pelo
qual a explicam os, ela é a dos m eios e dos fins ou d a relação teoria-
prática. O ra , eis que descobrim os m ais além , n a C hina, um a concep­
ção da eficácia que ensina a d eixar ad v ir o efeito: não a visá-lo (dire­
tam ente), m as a im plicá-lo (com o conseqüência); ou seja, não a buscá-
lo, m as a recolhê-lo — a deixá-lo resultar. B astaria, dizem -nos os an-
íigos chineses, saber tira r proveito do d esen rolar d a situação p ara se
deixar “ p o r ta r ” p o r ela. Se não nos em penham os com algo, se não
penam os nem forçam os, não é p o rq u e pensávam os em nos desligar do
m undo, mas para term os m ais êxito nele. Essa inteligência que não pas­
sa pela relação teo ria -p rá tica , m as se apóia apenas na evolução d.is

I'r.H .iilo iia KficácLi


cois.is, ih . 1111.1 l.i i‘inos cstratégica. Ao estudá-la, terem os de nos per-
Hiinl.ii em im t.i se, de nosso lado, e m esm o entre aqueles que, opondo-
se .10 rem ado das idéias ou da m o ral, teriam o p ta d o pelo “realism o”
de A ristóteles a M aquiavel o u a C lausew itz — realm ente se pen-
snn .i eficácia. O u m esm o se a eficácia n ã o é, ela p ró p ria , um a noção
um pouco c u rta dem ais, um p o u co to la dem ais, p a ra com preender
com o fazer/deixar advir a realidade.
Sob a questão da eficácia, com efeito, descobre-se progressiva­
m ente u m a o u tra: n ã o m ais a d o ser e d o conhecer, ta l com o n ã o ces­
sou de colocá-la a m etafísica, nem tam p o u co da ação, que é o seu c o r­
respondente ético, m as a das condições de efetividade. Pois o que é,
pro p riam en te falan d o , um e fe ito ? O u de que m o d o se realiza o real?

D a questão da eficácia, ain d a im preg n ad a de voluntarism o, à da


“eficiência” , p o r onde se chega ao fundo de im anência, cabe te n ta r um a
décalage. E ntendendo-se décaler nos dois sentidos d o term o: operar
um certo deslocam ento em relação à n o rm a (a de nossos háb ito s de
pensam ento) p assan d o de um q u a d ro a o u tro — d a E uropa à C hina e
reciprocam ente — que faça m exer nossas representações e p o n h a em
m ovim ento o pensam ento; e tam bém décaler no sentido de tirar o calço:
p a ra com eçar a perceber aqu ilo c o n tra o q u a l n ã o cessam os de m a n ­
te r tra v a d o o p en sam en to m as que, p o r isso m esm o, n ã o podem os
pensar.
C ertam ente, p a ra o p erar essa décalage, seria preciso refundir a
língua e seus pressupostos teóricos: de passagem , fazê-la desviar d o que
se vê levada a dizer, antes m esm o que se te n h a com eçado a falar —
ab ri-la a um a o u tra inteligibilidade possível, pu x á-la na d ireção de
o u tro s recursos.

10 François Jullien
O B JETO E REFERÊN CIA S

Este ensaio responde ao precedente, co n sagrado à m oral (Fonder


la m orale [F undara m oral], G rasset, 1995) e que p a rtia de um a leitu­
ra de M êncio. N a C hina do fim da A ntigüidade, com efeito, duas c o r­
rentes se opõem cada vez m ais claram ente: a dos “ m o ralistas” , cujo
rep resen tan te m ais conhecido é M ên cio (abr.: M Z ), no século IV a n ­
tes de nossa era, com o Z h o n g yo n g (abr.: ZY ); e a que poderíam os
ch am ar dos “realistas” , os quais, n a corrid a desenfreada ao p o der que
os R einos C o m b aten tes então conhecem , reagem c o n tra a trad iç ão e
o en sinam ento dos ritos.
São esses ú ltim o s que desenvolvem d a m aneira m ais explicita
possível, n a C h in a, o p en sam en to da eficácia. M as verem os que os
pró p rio s m o ralistas, e em p articu lar M êncio, em b o ra assum indo p o ­
sições co n trá ria s, estão de aco rd o com eles em m uitos p o n to s. Pois o
pensam ento d a eficácia é p a rtilh ad o p o r to d o s, residindo a diferença
apenas n o “ c a m in h o ” to m ad o .

• Em relação à g u erra, o principal tex to é o de Sunzi (abr.: SZ;


século VI-V antes de nossa era?}: a edição seguida é a de Y ang Bingan,
S u n zi buijian, Z o n g zh o u guji chu b an sh e, H en an , 1986, e dos Onze
co m en tad o res, S h i yi jia zh u Sunzi, ed. de G uo H u a ru o , Z h o n g h u a
shuju; a m elhor edição ocidental é a de R oger A m es, Sun-tzu, T he A rt
o f W arfare, N e w Y ork, B allantine Books, 1993.
A títu lo com p lem en tar, citam os Sun Bin, século IV antes de no s­
sa era, m u ito interessante tam b ém , m as cujo tex to se acha m u ito mais
desfig u rad o ; a edição seguida é a de D eng Z ezo n g , Sun B in bingfa
zh u y i, Pequim , Jiefangjun ch u banshe, 1986; cf. tam b ém a edição re­
cente de D .C . L au e R oger Ames, Sun Pin, T he A r t o f W arfare, New
Y ork, B allantine Books, 1996.

• N o to can te à política, o tex to seguido é o de H an Feizi (abr.:


H F Z , 2 8 0 ? -2 3 4 ), o p e n sa d o r m ais b rilh a n te do d esp o tism o chiní-s

T ratado da Eficácia
im p rn p ru iu n iU ’ d ia m a d o “ legism o” ; a edição utilizada é a de Chen
Q iynu, I hin l:<'izi jisbi, Shanghai, Shanghai renm in chubanshe, 1974,
2 vol.

• Com respeito à d iplom acia e ao que ch am aríam os a retórica,


m as que é antes um a an ti-retó rica, o tex to seguido é o G u ig u zi (abr.:
( í( iZ , 390P-320?). N a ausência de edição perfeitam ente confiável, o
que se explica pela escassa aten ção d a d a co m u m ente a esse tex to , se­
gui, além dos co m entários clássicos (Yin Z hizhang, T a o H ongjing), as
indicações recentes de Z h en g Jiew en, G uig u zi yanjiu, H a ik u , N an h ai
chubangongsi, 1993 (cf. tam bém N en g bian shan d o u , Jinan, Shandong
renm in ch u b an sh e, 1995), e acessoriam ente de Feng Z u o m in , Baihua
guiguzi, T aiw an , X ingguang chubanshe.

• A guerra, o poder, a palavra constituem os três principais objetos


em q uestão. C om relação a eles, o L a o zi (abr.: L Z , século VI ou IV
antes de nossa era?} é inclassificável p o rq u e os re co rta a todos. D aí
m eu desejo de retirá-lo do h o rizo n te m ístico no q u a l o O cidente se
com prazeu em colocá-lo, p a ra inscrevê-lo n a base desta reflexão sobre
o efeito; no que se refere ao estabelecim ento d o tex to e seu com entário
p o r W ang Bi, a edição seguida é a do W ang Bi jix ia o sb i, vol. 1, Pequim,
Z h o n g h u a shuju, 1980; a m elhor edição ocidental é a de R o b ert G.
H enricks, Lao -tzu , Te-tao ching, N e w Y ork, Ballantine Books, 1989.

Enfim , preferi d eix ar fora desta m o ntagem as coletâneas de “ es­


tra ta g e m a s” , do gênero dos T rinta e seis estratagem as, San sbi liu ji:
ao m esm o tem p o p a ra respeitar a unid ad e histórica do corpus (já que
essas coletâneas são evidentem ente m ais tardias e apenas retom am sob
form a de provérbios os elem entos precedentes) e p a ra sep arar de saí­
da esta reflex ão d as “chinesices” a que m u ito freq ü en tem en te nos
entregam os.

Este en saio , com efeito, n ã o é um tra ta d o de eficácia, m as da


eficácia. C om o tal, ele re to m a questões ab o rd a d a s em L a Propension
des choses (Seuil, “Des tra v a u x ” , 1992), m as p ro c u ra n d o pensar seu
q u a d ro e levá-las m ais adiante...

As letras so brescritas rem etem ao glossário das expressões chi­


nesas n o final do volum e.

12 François Jullien
I.
C O M OS O L H O S FIXOS N O M O D E L O

1. Até que p o n to jam ais saím os com pletam en­


te desse esquem a, e será que p odem os sair dele, p o ­
dem os m esm o interrogá-lo (“ n ó s ” , co n tin u ad o res,
no seio d a tradição européia, das prim eiras clivagens
gregas) ? Ele está tã o bem assim ilado que n ã o o ve­
m os mais — que não nos vemos mais: traçam os um a
form a ideal (eid o s), que colocam os co m o objetivo
[telos] e agim os em seguida p a ra fazê-la passar p ara
os fatos. T u d o isso aconteceria p o r si m esm o — o b­
jetivo, ideal e v ontade: com os o lhos fixos n o m o­
delo que concebem os, que projetam os sobre o m u n ­
do e d o qual fazem os u m p lan o a execu tar, esco­
lhem os intervir no m undo e d a r form a à realidade.
E q u a n to m ais, em nossa ação, souberm os p erm a­
necer p róxim os dessa form a ideal, ta n to m aior será
a chance de serm os bem -sucedidos.
Essa dobra (“ d o b ra ” no sentido de vinco re­
sultante d o h áb ito — trata-se aqui de um a d o b ra da
razão), vemos pelo m enos onde a fom os buscar. Isso
p o rq u e, p a ra c ria r o m u n d o , já teve de ser assim
(mas p en sar em explicar o m u n d o sob o ângulo de
sua criação já era algo carregado de pressupostos...).
O pensam en to do m odelo se ofereceu, ele p ró p rio ,
com o m odelo, o gesto antecede: em sua b o n d ade
divina, o p eran d o com vistas ao m elhor, o dem iurgo
platônico não p o d eria fazer o u tra coisa senão “ fi­
xar incessantem ente seu o lh a r” sobre o “ ser im pe-
recível” p a ra erigi-lo em p arad ig m a, a fim de reali­
zar em sua o b ra “ a fo rm a e as p ro p rie d a d e s” desse
ser {idea ka i dynam is, T im eu , 28 a); e “tu d o o que
cie p ro d u z desse m o d o é n ecessariam en te b e lo ” .

I rat;«J<> tia Eficácia


I )ra, o mesm o acontece com o artífice d a pólis, ele
Icm por m odelo o grande O p erário: “ dirigindo seu
o lh a r” p a ra o ab so lu to das essências, ele p ro cu ra
fazer passar p a ra os costum es de seus sem elhantes
aquilo que “percebe n o a lto ” (R ep ública, VI, 500
'-Vyii |[)ll
c). “ N o a lto ” estão as form as eternas, virtudes per­
feitas, que som ente um espírito contem plativo pode
apreender. P or isso, p a ra traçar o plano de um a boa
constituição política, o artífice da pólis é com o um
“p in to r” que, trab alh an d o a partir do “ exem plar di­
vin o ", busca cuidadosam ente reproduzi-lo. M esm o
o o ra d o r, em geral tã o suspeito, no m o m en to em
que d eixa de ser um a d u la d o r, m antém seu olhar
fixo n o ideal (G órgias, 304 d) e não cessa, em seu
discurso, de inspirar-se nele.
N ão foi difícil ver nesse p o der das Idéias — e
a despeito do tra b a lh o de racionalização filosófica
a que foi subm etido — os restos de um a concepção
m ítica. Ao relacionar desse m odo o visível com o in ­
visível, ao atrib u ir às form as de além d a experiên­
cia, erigidas com o arquétipos, a virtude de d a r fo r­
m a ao sensível, o platonism o perm aneceria trib u tá-
rio de um a “m entalidade p rim itiva” (com o o pro-
^\ vam as analogias que a teoria das Idéias oferece com
o m u n d o ex tratem p o ral, de função quase etiológica
— com o a dos “ D em as” — que Lévy-Bruhl evoca­
va a p ropósito das sociedades arcaicas); desse m odo,
ele iria buscar sua concepção d a eficácia no velho
lastro religioso do qual a filosofia não cessou, poste-
\ riorm ente, de se libertar. Pois sabem os que, com Aris­
tóteles, já não se crê mais nesse estatuto de pura cópia,
a m atéria do m undo não p o deria ser um simples re ­
ceptáculo que o dem iurgo m odelaria à vontade: não
vindo m ais im prim ir-se de fora com o um cânone in­
O modelo tangível, a n o rm a to rn a-se o justo meio im anente às
permanece em coisas e, com o tal, depende d a p articu larid ad e das
mira mesmo que
situações. M as não deix am os de m a n te r os olhos
seja imanente
volta d o s para-, é, po rém , “ dirigindo o o lh a r” p ara o
ideal, aqui o da m ediedade, que, com o “ bons artis-
W ■« > ' ! < "

14 François Jullien
•n
i ta s ” (Ética a N ic ô m a c o , 1106 b), tem os de pensar a
lação. M ais precisam ente, é “ em direção a ele” , diz
A ristóteles, que, com “ os olhos fixos acim a” , “ co n ­
d u zirem o s nossa o b r a ” . M esm o que o justo meio'
ideal seja relativo ta n to às circunstâncias q u an to aos
indivíduos, ele é sem pre objeto de m ira (s k o p o s ), e
sua perfeição se instau ra com o n o rm a que devem os
em_seguida e n carn ar nos fatos. Perm anece in ta ta a
função do m odelo posto com ojobjetivo) que se de­
term ina num plano “teó rico ” , e ao qual, u m a vez es­
tabelecido, deve a “ p rá tic a ” subm eter-se.
x\ d o b ra , d o rav an te, está vincada: im põe-se a
nós esta junção — teo ria-p rática — cuja razão jus­
tificativa não cogitaríam o s m ais sequer de contes­
tar (e, por mais que retrabalhem os a articulação des­
ses term os, não saím os deles). Vejo inclusive aí um A '“dobra”
dos gestos m ais característicos do O cidente m o d er­ teoria-prática
no (ou do m undo — se é a p artir do “ O cidente” que
d e se padroniza?): to d o s em casa, e q u aisq u er que
sejam os papéis, o revolucionário traça o m odelo da
sociedade a construir, ou o m ilitar o plano de guerra
a conduzir, ou o econom ista a curva de crescim en­
to a realizar... O u tro s ta n to s esquem as projetadoS~ti
sohre o m u n d o , e m arcad o s p o r idealidade, que em !
seguida deverem os, com o se diz, fazer e n tra r nos ^
i r/m ji
furos. M as o que significa aqui “fazer e n tra r” , q u a n ­
. */•-
d o é no real que se p retende fazê-lo? P rim eiram en­
te, o en ten d im en to conceberia “com vistas ao m e­
lh o r” ; depois, investe-se a von tad e p ara im por esse
m odelo à realidade. Im p o r, isto é, co lo car sobre,
com o que p a ra d ecalcar, m as tam b ém subm eter à
lorça. O ra, essa m odelização, som os ten tad o s a es-
lendc-la a tu d o , ela cujo princípio é a ciência; pois
sabc-se m uito bem que a ciência (européia, pelo m e­
nos a ciência clássica) não passa, ela m esm a, de um
v . i m o em preendim ento de m odelização (e so b retu ­
d o dc m atem atização) cuja eficácia técnica, com o
.iplicação p rática, ao tra n sfo rm a r m aterialm ente o / ! :" 4 U ^ '
m undo, veio atestar.

I i.il.u lo da Kficácia 15
j A questão será, p o rta n to , perguntarm o-nos se
i »> que foi tão bem -sucedido do p o n to de vista da
j técnica, ao nos to rn arm o s m estres da natureza, vale
i igualm ente p a ra a gestão das situações e das rela­
ç õ e s h u m an as. O u , re to m a n d o a divisão estabele-
[j cida pelos gregos: pode essa eficácia d o m odelo que
co n sta ta m o s no nível da p ro d u ç ã o (poiesis) valer
tam b ém n o d o m ín io da ação, o d a praxis — na o r­
dem , com o diz A ristóteles, não m ais daquilo que se
“ fa b ric a ” m as d aq u ilo que se “ cu m p re” ? Pois, p o r
m ais que se ten h a distinguido os dois, n ão se dei­
x o u talvez de c o n tin u ar a cop iar um do o u tro (e, se-
Pode-se per­ ,, guram ente, a ação da produção): m esm o quan d o as
manecer técnico
ij “ co isas” se to rn a m as q u estões h u m an a s, n ã o se
na ordem da
conduta?
j deixaria de gostar de perm anecer na tranqüilizadora
p o sição de “ té c n ic o s” — artífices o u dem iurgos.
!- —D ra , sabem os m uito bem , e A ristóteles é o prim ei­
ro a reconhecê-lo, que, se a ciência pode im p o r seu
rig o r às coisas, ao p en sar na necessidade delas, do
q u e re su lta rá a eficácia técn ica, nossa a ção , com
relação a ela, assenta-se n u m fundo de indeterm i-
nação; ela n ã o conseguiria elim inar a contingência
e sua p articu larid ad e resiste à generalidade d a lei:
ela n ão conseguiria se colocar, p o rtan to , n o simples
pro longam ento da ciência. Por isso, do m esm o m o ­
do que a m atéria de Aristóteles, força indeterm inada
dos co n trário s, perm anece sem pre m ais ou m enos
recalcitrante à d eterm in ação d a “fo rm a ” , tam bém
o m u n d o jam ais é inteiram ente acolhedor a essa o r­
dem que q u erem o s p a ra ele: subsistirá inevitavel­
m ente u m a diferença en tre o m odelo que p ro je ta ­
m os p a ra agir e aquele que, com os olhos fix o s aci­
m a , conseguim os realizar. Em sum a, a p rática sem-
| p re tra iria u m p o u co a teoria. E o m odelo co n tin u a
I i n o horizonte do olhar. R etirado para seu céu, o ideal
:.j é inacessível.

2. M a s é essa, seguram ente, apenas a prim ei­


ra palavra da história (a longa história “teoria-prá-

16 François Jullien
tifa ") — já que a filosofia n ão p o d e a c e ita r esse
li acasso. Pois de que m o d o , após te r c o n ta d o ta n ­
to com a ap tid ão d o hom em p a ra a ciência, depois
ilc tê-lo feito entrever a perfeição das essências, po­
deria ela decidir-se a deixá-lo finalm ente tã o desar­
m ado: incapaz de se co n d u zir no m u n d o , de triu n ­
fa re m seus projetos e, p a ra ta n to , de m an o b rar? De
tato, nesse deb ate duvidoso en tab u lad o en tre a fo r­
ma e a m atéria ou, com o já diziam os Trágicos, entre
o “ m elh o r” e o “ necessário ” , A ristóteles acreditou
identificar u m a faculdade cuja d estin ação fosse a
prática e que, vin d o a su b stitu ir a teo ria, pudesse
co m pensar aqu ela diferença: um a cap acid ad e que
tosse um a virtude intelectual (“d ian o ética” ) ao mes­
mo tem po que diretam en te envolvida com a ação, ^ fS C O ^ -
c p o rta n to pudesse g a ra n tir a m ediação desejada,
r.ssa sab ed o ria p rá tic a , ch am am o -la tra d ic io n a l­
mente a “ p ru d ên cia” (phronesis). É p ru d en te, po s­ H.
sui essa capacid ad e p rá tic a , quem “ é cap az de deli­
berar c o rretam en te sobre o que é bom e vantajoso
para ele” {É t. a N ic ., V I, 5). C om o se d elibera ap e­
nas sobre o contingente, a prudência não é um a ciên­
cia; mas tam pouco é um a arte, n o sentido da techne,
já que ela visa à ação (praxis) e n ão à p ro d u ção. Por
essa du p la distin ção , ei-la reconhecida em sua fu n ­ A “prudên­
cia” conseguiria
ção pró p ria: não m ais n o p ro lo n g am en to da ciên­
compensar a
cia mas ao lado dela, e re q u eren d o um a o u tra p a r ­ diferença teoria/
te da alm a racional. E n q u an to sua p arte científica prática?
visa a co n tem p lar tu d o o que não p ode ser diferen­
te do que n ã o é (os o b jeto s m etafísicos o u m atem á­
ticos), cabe à sua p arte “ logística” encarregar-se das
necessidades d a a ç ã o , n o seio de u m m u n d o em
co n stan te m u tação , calcu lan d o e d eliberando pelo
m elhor. C o m pletam -na, nesse sentido, ta n to a “jus­
teza da o lh a d a ” q u a n to a “ vivacidade de e sp írito ”
ou a cap acid ad e de “ ju lg a m e n to ” (g n o m e ). N ã o
m ais a ilustram os sáb io s absorvidos em suas espe­
culações, m as os “ ad m in istrad o res das casas e das
cid a d es”. N ão m ais os T ales o u os A n ax ág o ra cujo

T ratatlo da Eficácia I
saber, “difícil” e “ divino” , é “ sem u tilidade” , mas
IV rid c s um hom em de ação — Péricles: Péricles é reab ilita­
do pela filosofia p o r ter sabido gerir os negócios dos
hom ens.
Eis p o rta n to que, com A ristóteles, e com o não
se cessou de dizê-lo depois, a filosofia re to rn a ria às
“ coisas” ; após te r visado m uito alto, ela se to rn a ­
ria “ re a lista ” . M as não sei se se tra ta igualm ente, a
p ro p ó sito da “ p ru d ê n c ia ” , de um a verdadeira ca ­
pacidade “ log ística” que viesse satisfazer a neces­
sidade percebida e d a qual a eficácia fosse o prin cí­
pio. A ntes de m ais n ad a, p a ra definir essa faculda­
de p rática em função de critérios que sejam os seus,
Aristóteles se vê ap an h ad o num círculo vicioso, sub­
lin h ad o pelos com entadores. “ A p rudência, define
ele, é aquela disposição p rática, aco m p an h ad a de
regra verdadeira, relativa ao que é bom e m au p ara
o h o m em .” M as de onde vem essa “ regra verdadei­
r a ” que deve a c o m p a n h a r a deliberação e serve de
n o rm a, se não é ju stam ente da ciência? O ra, sabe-
se que, ao c o n trá rio de P latão, A ristóteles não acre­
dita m ais na possibilidade de deduzir com pletam en­
te o p a rtic u la r do geral, nem a ação dos princípios;
assim , ele só p ode definir a prudência pelo p ró p rio
prudente: esse critério da p ru d ên cia, que a ciência
n ã o p ode estabelecer, som ente p o d erá fornecê-lo o
Sobre o que se
fundamenta a hom em do qual dizem os com um ente que é “pruden-
prudência? ■ te ” . N ã o se fiando m ais na transcendência da n o r­
m a, x\ristóteles é rem etido assim ao o u tro extrem o
I e c o n d en ad o ao em pírism o; p o rq u a n to , não tendo
j i mais essência em relação à qual se definir, a prudên-
I I cia só é discernível p o r m eio da existência de indi-
J^víduos singulares: A ristóteles é, p o rta n to , incapaz
de explicá-la rem o n tan d o aquém do que disse dela
i^desde sem pre o senso com um . Dessa faculdade prá-
' tica, invocada p a ra c o b rir o déficit da teoria, reve­
la-se m u ito difícil, em últim a instância, estabelecer
o valor. O u seriam as prem issas intelectualistas gre­
gas (e nas quais A ristóteles se manteve: com o o p ro ­

18 François Jullien
va sua definição da prudência pela “ regra verdadei­
ra ” , ortbos logos) que, to rn an d o essa prudência ina-
preensível q u a n to a seu critério, fazem assim tro p e ­
çar a teoria?
Por o u tro lado, e a despeito daquilo a que ten ­
dia a valorização p o p u la r d a p ru d ên cia n a q u al ele
se inspira, x^ristóteles não pôde, o u não quis, separar
das considerações éticas sua reflexão sobre a p ru ­
dência. A d o b ra vincada pela filosofia grega o rien­
Prudência/
ta a ação no sentido da m oralidade, e Aristóteles não habilidade
se afasto u disso: m esm o que seja ele quem vá m ais
longe, na filosofia grega, p a ra pensar as condições
da ação eficaz, esta se acha sem pre transcendida em
seu fim (a “ v an tag em ” q u e o p ru d en te visa n ão é o
proveito pessoal m as o da co m unidade, ele tem p o r
h orizonte a polis, cf. Et. a N ic ., III). T estem unha-
o, em p articu lar, a m aneira com o A ristóteles opõe
o p ru d e n te ao hábil (d e in o s): e n q u an to a h ab ilid a­ A habilidade
de é a capacidade de com binar os meios mais eficien­ não é pensada

tes, sem consideração pela qualidade do fim , já a


prudência se preocupa com isso. N a m edida em que,
constitui um a reto m ad a ética da habilid ad e, a p ru ­
dência perm anece o rien tad a p a ra o bem ; q u an to à
“ h a b ilid a d e ” , é descartada.

3. C o m o acred itar, to d av ia, que, com seu co­


nhecid o g o sto pelos estratag em as, os g regos não X-
tenham sido seduzidos pela simples habilidade e pela
arte de triu n far? M u ito cedo, e nos d om ínios m ais
diversos da ação, eles celeb raram essa inteligência
astuciosa, cap az de c o n to rn a r as dificuldades, que
é a m etis. C om o form a de inteligência en gajada na
p rá tic a , esta co m b in a, dizem -nos M areei D etíenne
e Jean-Pierre V e rn a n t no belo estudo que lhe c o n ­
sag raram , ao m esm o tem p o “ o faro, a sagacidade, A inteligência
a previsão, a flexibilidade de espírito, o fingim en­ astuciosa dos
gregos
to , a esperteza, a atenção vigilante, o senso da o p o r­
tu n id ad e” ... Ulisses, o engenhoso Ulisses, Ulisses dos U lis se s
mil rodeios, é o herói rico em m etis — p o lym etis.

T ratado da Eficácia l ‘*
l; o próprio Zeus com eça p o r devorar a divina M étis
para assim ilar sua sab ed o ria e estar seguro, em face
dos deuses e dos hom ens, de im pedir as em bosca­
das que p oderiam fazê-lo cair.
Se a cap acid ad e de inteligência d e n o tad a pela
A metis m etis se exerce em planos m uito diversos, dizem -nos
Detienne e V ernant, a ênfase é sempre colocada, não
o b stan te, sob re a “eficácia p rá tic a ” , isto é, “a bus-
__ca do sucesso num d o m ín io da a ç ã o ” . O que carac-
r teriza p articu larm en te a m etis é que, p o r um a m a ­
n o b ra m ais o u m enos frau d u len ta, e graças ao p ro ­
veito tira d o das circunstâncias, ela perm ite levar a
, m elh o r sobre a força: en g an an d o seu adversário na
corrid a de carro s, e p o rq u e sabe esperar a ocasião
p ropícia, o A ntíloco de H o m ero consegue inverter
a situação em seu favor. C om o tem p o r cam po de
aplicação o m u n d o do m ovente, do m últiplo e do
am bíguo, a inteligência d a m etis sabe tornar-se in ­
finitam ente m aleável e so lta, ela é cham ad a “ variá-
i vel” e “ m atizad a” : com o as realidades que afeta são
n a m aio ria das vezes tra b a lh a d a s p o r forças c o n ­
trárias, ela deve perm an ecer p o lim orfa e móvel; e,
p ara ter influência sobre um a situação em constante
m u tação , perm anece a b e rta a todos os possíveis e
n ã o cessa de se tra n sfo rm ar p ara se a d a p ta r. Ain-
j d a m ais ínapreensível e fugaz que o m u n d o ao qual
“Flexibilidade’’ [ se d estin a: g raças à sua m a le a b ilid a d e , ela p o d e
do espírito em ^ triu n far lá onde n ão há, para o sucesso, regras pron-
face da variabi­ tas, receitas estereotipadas. O m odelo dela — ou
lidade das coisas pelo m enos seu bestiário favorito — conjuga os p a ­
péis da rap o sa e d o polvo: da prim eira possui a es­
perteza em m u d ar de co m p o rtam en to ; d o segundo,
a capacid ad e de en laçar sua vítim a e de paralisá-la.
D o m esm o m o d o , Ulisses sabe fru stra r, p o r suas
& a rtim a n h a s, os assaltos de seu adversário e, p o r sua
■ jvrcu "€ > 'fK 7 C 0 f eloqüência, ap an h á-lo em suas arm adilhas.
T eríam o s aí, enfim , não recu an d o d ia n te de
J q . ■?
W A í0 lW U ^ n en h u m m eio, a universal lição d o realism o. E, no
entanto, lendo D etienne e V ernant, convencem o-nos

20 François Jullien
ili' um a originalidade- grega da m etis. Pois ela p er­
m anece m arcada p o r um dup lo sinal — técnico e ^
m ágico. A tena é de fato sua pad ro eira. Sua dim en­
são técnica se m ostra ta n to na caça q u a n to na pes-
«.;i, c ilustrada pela arte de conduzir o c a rro de com - '
lu te o u o nav io . Assim , o bom p ilo to é aquele a
quem a m etis perm ite, diante do m ovim ento incon-
irolável das ondas, exercer d a m elhor m aneira seu
dom ínio; e, em bora se trate de ação, a referência não
deixa de ser tam b ém a da p ro d u ç ã o : A tena é ao
m esm o tem p o aquela que co n stru iu o navio e que
o conduz. P o r o u tro lad o , q u er se tra te das m aq u i­
nações de A tena ou de M edéia, seus filtros e seus
prestígios são tem id o s, elas fazem intervir o u tro s
poderes, m ais obscuros que a p u ra inteligência hu­
m ana, elas n ã o se afastaram do m u n d o dos sortilé­
gios nem ren u n ciaram aos encantam entos. A eficá- 11
• II
cia revelada pela m etis não se libertou, p o rta n to , do I;
m aravilhoso dos m itos.
M ais im p o rtan te ain d a é que dessa inteligên­
cia astuciosa n ão en co n tram o s em p arte algum a da
G récia a teoria. Pode-se descobri-la em to d a parte
110 jogo das p ráticas sociais e intelectuais, e m esm o
às vezes “ de form a o b se d a n te ” , m as n enhum texto
a analisa p ara nos fornecer seus fundam entos ou nos
m o stra r seus m eios. P or isso, p a ra estudá-la, V er - 1 1
n a n t e D etienne não dispõem de o u tro recurso se­
não interrogar os m itos que a colocam em cena, pois i |
ela aparece sem pre m ais o u m enos “ em concavi-;1
d a d e ” , “ im ersa num a prática que n ão se p reo cu p a,
em nenhum m o m en to , m esm o q u an d o a utiliza, em ’ |
explicitar sua n atu reza nem em justificar seu p ro -j
c e d im e n to ” . Pelo que p ressupõe de m o v ente e de
inapreensível, p o rta n to de re fra tá rio a to d a form a
erigida em m o d elo , a m etis escapa à em presa de
estabilização identitária, fu ndada no Ser e em Deus,
à q u al se devotou o espírito grego. F o ram os sofis­
tas os únicos que com eçaram a a b rir a inteligência
filosófica aos recursos inqu ietan tes d a m etis, m as

T ratado da Eficácia
sabem os com o su a o rie n ta çã o viu-se logo rech a­
çada; era p o rta n to inevitável que a m etis “ p erm a­
necesse exterior ao que constitui d o ravante o lar da
ciência h e lê n ic a ” (e que a p ró p ria p alav ra ten h a
desaparecido cedo da língua grega). E som ente p o r
desin teresse q u e o c o n h e c im e n to d ela se desvia,
p reo cu p ad o com o está, prim eiram ente, em en con­
tra r consistência nas coisas e em o rd en ar o m undo?
O u não seria antes p orque o in stru m en tal teórico
grego (que co n tin u a sendo em grande parte o n o s­
so) n ã o conseguiria ap reen der esse p erpétuo movi-
1 m en to no qual se d eb ate a ação? O fato é que essa
eficácia p rática, pelo m enos do lado grego — e p o r
m ais que lhe reco n h eçam algum a im p o rtâ n c ia, e
m esm o que ten h am sentido algum prazer em evocá-
la — , perm anece im pensada.

4. U m a prova dessa dificuldade em p ensar a


condução da ação é pensar a guerra. C om efeito, por
aqu ilo que, e n q u an to ação, ela radicaliza e leva ao
extrem o , a g uerra revela da m elhor m aneira os im ­
passes a que conduz a concepção da ação eficaz, na
m edida em que ela procede de um a m odelização ou
se encerra n u m a concepção técnica (as duas, aliás,
com o co m eçam os a p erceber, c am in h am juntas).
T o m o p o r testem unho o que diz dela C lausew itz no
o u tro extrem o de nossa trad ição , no início do sé­
culo X IX , q u an d o faz o b alanço dos esforços fei­
Exemplo: o tos p a ra teo rizar a guerra na E uropa. Ele co n sta ta
fracasso em aí um fracasso. Este se deve prim eiram ente, a seu
teorizar a guerra
ver, ao fato de se ter com eçado a conceber a guer­
ra co m o se concebeu o resto, sob o ângulo d a p ro ­
d u ção m aterial e que com isso se p erd eu seu p rin ­
cípio p ro p riam en te ativo: a ciência da guerra com e­
çou p o r se o c u p a r da a rte de fab ricar arm as e de
c o n stru ir fortificações, d a organização do exército
e d o m ecanism o de seus m ovim entos, evoluindo,
assim , da poliorcética e da tática iniciais p ara uma
arte m ecânica cada vez m ais elab orada. O u , quan-

22 François Jullien
do ten ta sistem atizar esses d ad o s m ateriais, ela re­
duz a su p erioridade na g uerra a sim ples d ad o s nu­
m éricos (fazendo assim rep o u sar a g u erra em leis
m atem áticas); ou então procede p o r geom etrização
de um dos fatores em jogo (assim , a p a rtir d o â n ­
gulo fo rm ad o pela força a rm a d a com sua base, cf.
von Bülow ; ou pela teo ria das linhas interiores, cf.
De Jo m in i). “ R esu ltad o p u ra m e n te geo m étrico e
sem valo r”, conclui severam ente Clausewitz: p o r sua j
perspectiva unilateral, inacessível à variável e exclu-1
sivam ente m aterial, um a tal teorização é incapaz de '
“ d o m in ar a vida re a l” . P or isso, com o a condução
da g u erra revelara-se refratária à teo ria, n ã o resta­
va o u tra possibilidade, p a ra explicar sucessos m ili­
tares, senão invocar as disposições n atu rais e o “ gê­
n io ” (que sabem os prescindir de teoria); e a v erd a­
deira con d u ção da guerra só apareceu de fato, cons­
tata C lausew itz, “de m aneira acessória e a n ô n im a ”,
sob a pena de “testem u n h as o u de m em o rialistas” .
O ra , de que m aneira o p ró p rio Clausew itz de­
cide p en sar a g u erra p a ra su p erar essa ap o ria? O
p ro ced im en to , à p rim eira vista, tem algo de su r­
preendente. Ele com eça por concebê-la segundo sua
fo rm a -“ m o d e lo ” , en q u a n to ideal e p u ra essência,
com o “g u erra a b s o lu ta ”, p a ra lhe o p o r em segui­
d a a g u erra “ real” , tal com o é levada a m odificar-
se nos fatos. M esm o q u e considere que, até o pre- i
sente, a reflex ão sob re a g u erra trilh o u cam in h o /j
erra d o e não atingiu seu objetivo, e isso p o r ter pre- i
tendido m odelizar o im odelizável, C lausew itz ain ­
da perm anece preso à articulação teoria-prática: não
saindo d a d o b ra com um segundo a q u al o p ensa­
m en to ocidental concebeu a ação, ele n ão tem o u ­
tra saída, q u an d o repõe em cena a articulação tra ­
dicional do m odelo e da realidade, senão o p o r seus
term o s e p en sar sua diferença. Segundo seu m ode­
lo, a guerra implica um uso ilim itado da força, o que
a co n d u z logicam ente, e n q u an to ação recíproca, a
tender aos extrem os (visando um a destruição total).

T ratado da Eficácia
1., nu en tan to , “tu d o assum e um a form a diferente
q u a n d o se passa da ab stração p ara a realidade” : já
que a guerra não é jam ais um ato isolado, já que não
consiste n u m a decisão única e jam ais existe algo de
absoluto em seu resu ltad o , essa teíidência ao extre­
m o que constitui a essência da guerra se m ostra sem­
p re m ais o u m enos a te n u a d a nos fato s (som ente
N a p o le ã o , esse “deus da g u erra ” , teria conseguido
trazer a g uerra de volta a seu conceito). O pro b le­
m a dessa diluição é inclusive um dos m ais interes­
santes que C lausew itz colocou: qu al é esse “ m eio
não c o n d u to r” que im pede a “ descarga co m p leta ” ,
que, n ã o o b stan te, seria a g uerra em seu princípio?
N ã o p o d en d o sair da relação teo ria-p rática, g u er­
ra “ ideal” e g u erra real, ao m esm o tem po em que
dem asiado consciente do que essa relação deixa es­
A essência da capar da realidade, C lausew itz consegue finalm ente
guerra é escapar servir-se dela — mas explorando-a pelo avesso: cap­
a seu modelo ta r ju stam en te a o rig in alid ad e da gu erra a p a rtir
dessa inadequação. O que faz a guerra é precisamen-
!j te essa distância inevitável que nela o real to m a em
'i relação a seu m odelo: p en sar a guerra, em sum a, é
p en sar co m o ela é levada a trair seu conceito.
O que leva a colocar decididam ente a questão:
em que condições é possível um a ciência d a co n d u ­
ção d a guerra? (À m aneira com o K an t perg u n tav a
um p o u c o antes: em que condições é possível um a
ciência m etafísica? O u, re m o n tan d o ain d a m ais até
N ew ton: em que condições é possível um a ciência
física?) O ra , é forçoso reconhecer que, na pan ó p lia
das form as lógicas que regem o m undo da ação (mas
copiad as daquelas que regem o m undo do co nhe­
cim ento}, a m ais rigorosa delas, a de “ lei” , m ostra-
se inaplicável à co n d u ção d a g u erra, em razão da
m udança e d a variedade dos fenôm enos en co n tra ­
dos: é som ente com “ m é to d o ” q u e se teria de lidar,
não no sentido lógico, m as no de um a “p ro b a b ili­
dade m édia de casos a n á lo g o s” , do que resulta um
m odo de proceder “ n o rm alm en te” a d ap ta d o e que.

24 François Jullien
progressivam ente assim ilado, “ vira h á b ito ” , tra n s­
form a-se em “ ro tin a ” e pode p o rta n to ser utiliza­
Aspecto de
do, na urgência da ação , de u m a fo rm a “quase in ­
fundo: a “rotina”
consciente” {daí a “p ro fissão ” que facilita o funcio­
nam ento d a m áq u in a m ilitar); esse m odo de p ro ce­
der perm ite agir “ m enos m a l” , m esm o ig n o ran do
um a p arte d a determ in ação p a rtic u la r à situação.
Acontece que ta l “ m é to d o ” , cuja aplicação cons­
tan te e uniform e acaba de en g en d rar “ um a espécie
de ap tid ão m ecânica” , é cada vez m enos ad ap tad o
à m edida que se sobe na h ierarq u ia das resp o n sabi­
lidades e se ab an d o n a o p lan o tá tic o pelo d a estra­
tégia: q u an to mais se adm inistra a ação em seu con­
ju n to , ta n to m aio r tam b ém é a capacidade de “ju l­
g am e n to ” , que sabe ap reciar a p articu larid ad e das
situações, e ta n to m aior, p o rta n to , é o talen to pes­
soal a que se recorre. N esse nível, em face d o c a rá ­
ter sem pre sin g u lar e p o rta n to inédito que a ação
m ilitar adquire em sua am plitude, qualq u er form ali­
zação que im plique a repetição constitui o p io r p e­
rigo; e é con tra essa im possibilidade do m odelo que
a teo ria volta inelutavelm ente a esb arrar. A liás, o
p ró p rio Clausew itz, em sua reflexão sobre a guerra,
n ã o pretende o u tra coisa senão “ e d u c a r” o espírito
do fu tu ro chefe de guerra; ou , m ais m odestam ente
ain d a, “guiá-lo em sua au to -e d u c a çâ o ” , ao lhe for­
necer apen as “ um p o n to de referência destin ad o a
esco rar seu ju lg a m e n to ” : “cu ltiv á-lo ” , em sum a,
m as n ão “ aco m p an h á-lo no cam po de b a ta lh a ” .
N o entanto, p o r m ais desconfiado que seja das
m odelizações ab stratas que se projetam sobre o cur­
so das coisas, a p a rtir do m om ento em que não se
co n te n ta em p en sar a g u erra m as nos indica com o
fazê-la (p o rq u e e v id e n te m e n te n ã o p o d e ater-se
àquele aspecto de fundo), C lausew itz é incapaz de
conceber a condução d a guerra sem “ plano de guer­
r a ” tra ç a d o de an tem ão . Este c o n tin u a sen d o “ a
o ssa tu ra de to d o a to de g u e rra ” , p orque fixa, em
função do objetivo visado, a série de ações p ró p ria

T ratado da Eficácia
para con d u zir a ele; e m esm o q u a n d o a dificuldade
reside “ em sua ex ecu ção ” , n ã o convém d eixar, em
face d o “ ím peto a p a re n te ” do m om ento, que esse
O plano de plano seja “ d erro tad o ”, nem mesmo que seja “posto
guerra choca-se em d ú v id a ” . Assim, q u a n d o se coloca do p o n to de
com a variável vista da necessidade p rática, Clausew itz re to rn a ao
esquem a que sua reflexão teó rica havia ab alad o :
prim eiro o e n te n d im e n to concebe a fo rm a ideal,
depois se investe a v o n tad e — um a “ v o n ta d e de
fe rro ” que “ esm aga os o b stácu lo s” — p a ra fazer
e n tra r esse p ro je to nos fatos... C om o risco, aliás,
de que a estratégia venha a m odificar em seguida
esse p lan o inicial: pois “na guerra, mais do que em
q u alq u er o u tra p a rte , as coisas se passam de form a
diferente d aquela que se h avia pensado, e adquirem
de p e rto um aspecto diferente do que se percebe de
longe” . Já que a guerra não é um a atividade da v o n ­
tad e “ aplicada a um a m atéria in erte ” , com o acre­
d ita ra m erro n eam en te os teóricos anteriores, m as,
sim , um o bjeto que “vive e reage” , é óbvio que essa
vivacidade d a reação se fu rta p o r natu reza a to d o
p lan o preestabelecido. D aí a conclusão a que che­
ga C lausew itz e que nos devolve ao im passe que já
conhecemos: “É evidente, p o rtan to , que, num a ação
com o a guerra, cujo plano fundado sobre condições
gerais é com m u ita freqüência p ertu rb a d o p o r fe­
nôm enos p articu lares inesperados, cum pre deixar
um a p a rte geral bem m a io r ao talen to e reco rrer
m enos do que em qualq u er o u tra coisa a indicações
teóricas”.
C lausew itz fo rjo u u m co n ceito p a ra p en sa r
esse fracasso de um m odelo ideal que conduz a ação:
o atrito . Esse conceito seria b astante geral p a ra per­
m itir distin g u ir a g u erra real daquela que se lê nos
livros, ta n to é verdade que “ na guerra tu d o baixa
de nível em conseqüência de inúm eras co n tin g ên ­
cias secundárias que jam ais po d em ser exam inadas
em d etalhe n o papel, de m odo que se perm anece
m uito aquém do objetivo” . Clausewitz fala de atrito

26 François Jullien
p o rq u e ele p ró p rio n ã o ren u n cio u , p a ra pen sar a “Atrito”,
ação, ao m odelo m ecanicista (assim com o ao pon-i “máquina”

to de vista técnico que o acom panha): p o r m ais “ l u - |


brificada” que esteja a “ m á q u in a m ilita r” , restam
sem pre inum eráveis p o n to s de a trito que, p o r m e­
nores que sejam, resultam n u m a resistência suficien­
tem ente global p a ra fazer desviar a ação d a m archa
prevista. “N a g u erra tu d o é sim p les” (segundo o
pro jeto inicial), “m as a coisa m ais sim ples é difícil”
(isto é, tã o logo se passa à execução). D ificuldade
com parável, diz-nos C lausew itz, àquela que expe­
rim entam os de repente p a ra execu tar com precisão
n a água um m ovim ento tã o n a tu ra l q u a n to o cam i­
nhar... Entre a guerra, tal com o a descobrim os quan­
do a fazem os, e a facilidade de su a co n cep ção, a
diferença é um a diferença de co n ju n to — de “cli­
m a ” o u de “ m eio ” : seria ilusório pen sar em redu-
zi-la p o r um acréscim o de teo ria, som ente o h ábito
p ode fu n cio n ar, graças ao trein am en to , e portanto_
à força de prática.
M a s esse “ a g u e rrim e n to ” n ã o a c a b a rá com
essa diferença. A despeito das m ediações que, des­
de A ristóteles (e m esm o já Platão?), a filosofia não
cessou de tecer entre a teoria e a p rática, e das quais
a “ p ru d ên cia” , en q u a n to reto m ad a ética d a m etis
dos antigos heróis, representava o prim eiro elo, não
p o d eria ser elim inada a falha entre o real e seu m o ­ O imodelizável
delo. P or isso, a p ro p ó sito da guerra, n ão restava
o u tra coisa a C lausew itz senão teo rizar esse déficit
da teo ria. Suspeita-se de que a g u erra n ã o seja um a
ciência; m as, acrescenta C lausew itz, ela tam p o u co
é um a arte: é m esm o su rp reen d en te, ele o bserva,
“ver o q u a n to os esquem as ideológicos das artes e
das ciências são p o u c o afeitos a essa a tiv id a d e ” .
A liás, C lausew itz percebe m u ito bem a razão dis­
so: é que essa atividade lida com um objeto que vive
e reage. N o e n ta n to , desses “ esquem as” que criti­
cam os — avaliam os isso ain d a com C lausew itz — >
n ão é tão fácil escapar.

T ratado da Eficácia 17
II.
O U A PO IA N D O -SE N A PR O PE N SÃ O

1. Já o p en sam en to chinês nos faz sair dessa


d o b ra. Isso p o rq u e ele não co n stru iu um m u n d o de
form as ideais, com o arq u étip o s o u puras essências,
a sep arar d a realidade e que pudessem dar-lhe fo r­
m a: to d o real se lhe ap resenta co m o um processo,
regulado e co n tín u o , d ecorrente da sim ples in te ra­
ção dos fatores em jogo (ao m esm o tem p o o p o stos
e com plem entares: os fam osos yin e yang). A o rd em '1'
não deco rreria, p o rta n to , de um m odelo, no qual
se possa fix ar o o lh a r e que se aplique às coisas; ao
co n trá rio , essa o rd em está co n tid a in teiram ente no j
curso d o real, que ela conduz de um m o d o im anente
e cuja viabilidade ela assegura (daí o tem a o n ip re­
sente no pensam en to chinês do “ c a m in h o ” , o ta o )%
Ao se p ro p o r esclarecer a m archa das coisas, ao elu­
cid ar sua coerência in tern a e p a ra c o n fo rm a r a ela
a p ró p ria co n d u ta, o sábio chinês não concebeu a ti­
vidade co n tem p lativ a que fosse u m p u ro conheci­
m ento (th eo rein}, tivesse u m fim em si m esm a, ou
m esm o fosse o fim suprem o (a felicidade) e pudes­
Se não se
se ser desinteressada. O “ m u n d o ” não é p a ra ele um passasse mais
o b jeto de especulação, não h á, de um lad o , o “co ­ pela relação
nhecim ento” e, d o o u tro , a “ a ç ã o ” . P or isso, o pen­ teoria-prática
sam ento chinês desconhece logicam ente a relação
teo ria-p rática: desconhece-a, m as n ão p o r ignorán- j
cia, o u porque ele teria perm anecido na infância; ele
sim plesm ente passou ao lado. C om o passou a o lado (~í >
da idéia d o Ser ou do pensam ento de D eus. ( -v
Surge, assim, um a diferença, percebida no mais
distan te, n a C hina, que renovaria os possíveis, fa ­
ria enfim m over-se a visão na qual se en terro u nos-

T ratado da Eficácia
sa tra d iç ã o — com o to d a trad içã o , tam bém a chi­
Início da nesa (e há m uita tradição a esse respeito) — e p e r­
clivagem
m itiria re m o n ta r aquém das escolhas im plícitas que
são as nossas (veiculadas p o r nós com o uma evidên­
cia m as que, graças a essa ocasião de recuo, pode­
m os investigar). R elacio n ando a diferença assina­
lad a com essa questão com um que é a eficácia: em
vez de tra ç a r um m odelo que sirva de no rm a à sua
ação, o sábio chinês é levado a co n cen trar a a te n ­
ção n o curso d as coisas, tal com o está envolvido
nele, p a ra descobrir-lhe a coerência e tira r provei­
to de sua evolução. O ra , dessa diferença poder-se-
, ia tira r um a altern ativ a p a ra a conduta: em lugar
1 de c o n stru ir um a form a ideal que se p ro jeta sobre
as coisas, o b stinar-se em detectar os fatores favo­
ráveis que atu a m em sua configuração; em vez de
Apoiar-se ■ fixar um objetivo p ara sua ação, deixar-se levar pela
naquilo que é r-, : p ropensão; em sum a, em vez de im p o r um plano ao
portador i, *" m u n d o , apoiar-se no potencial d a situação.
L ido de longe, a p a rtir d a perspectiva que é
trad icio n alm en te a nossa, um provérbio do princi­
p ad o de Q i citad o p o r M êncio, p o rta n to um m o ­
ralista, resum iria à sua m aneira essa o u tra possibi­
lidade (a cu ltu ra d a região de Q i, em face da m ais
trad icio n alista de Lu, focalizaria esse interesse di­
rigido à eficácia nos últim os séculos da antig ü id a­
de chinesa): “ P or m ais que se ten h a um a inteligên­
cia avisada, mais vale apoiar-se n o potencial inscrito
n a situ a ç ã o ” ; “ p o r m ais que se tenha na m ão o sa-
cho e a en x ad a, m ais vale esperar o m o m en to da
m a tu ra ç ã o ” (M Z , II, A, 1). N esse p o n to , com efei­
to , sab ed o ria e estratégia se juntam : m ais do que
r~ c o m nossas ferram entas, contam os com o desenvol­
vim ento d o processo p a ra atingir o efeito desejado;
em vez de p en sar em tra ç a r planos, saibam os tira r
p roveito d aq u ilo que se acha im plicado pela situa-
|j ção e que nos é p ro m etid o p o r sua evolução. Esse
\~potencial é m uito m ais — e m esm o bem diferente
— que um sim ples concurso de circunstâncias, por

30 François Jullien
afo rtu n a d o que seja: preso na lógica de um desen­
volvim ento regulado, é levado a desenvolver-se es­
pontan eam en te e pode nos “ p o rta r” .
D uas noções se en co n tram assim n o cerne da
antiga estratégia chinesa e form am par: de um lado,
a de situação o u de configuração {x in g ), ta l com o X
se atualiza e to m a form a sob nossos olhos (enquanto
relação de força); d o o u tro e resp o n d en d o a ela, a
<p>oVjjWíuj;
de potencial (shk p ro n u n ciar shea), ta l q ual se acha
Noção de po-
im plicado nessa situ ação e se pode fazê-lo a tu a r a cencial de situação
nosso favor. N o s antigos tra ta d o s m ilitares (Sunzi,
cap. 5, “ Shi” ), este vem ilu stra d o pela im agem da
to rren te que, em seu im pulso, é capaz de a rra sta r
pedras; o u pela da b alestra esticada e cujo disparo
está p ro n to a p a rtir. N a au sência de explicações
reóricas, com o é freqüente n a C h in a , cabe a nós
interp retar essas imagens: graças ao desnível da to r­
rente bem com o à estreiteza de seu leito (resultante
da co nfiguração d o relevo), a situação é p o r si m es­
ma fonte de efeito (diz-se que a to rre n te “ o btém
potencial” , “ fá-lo advir” ); d o m esm o m odo, no caso
da balestra, a disposição funciona autom aticam ente
tão logo é acionada: ela form a um dispositivo.
U m a vez d eterm in ad o esse potencial, os p en ­
sadores chineses da estratég ia se p re o cu p aram em I
dcscobrir-lhe as conseqüências. O ra , estas colocam
KítllYP^
em q u estão o que p o d eria ser um a concepção hu­
m anista da eficácia. D o rav an te, con ta m enos nos~* [/.<?
so investim ento pessoal, im pondo-se ao m u n d o e
graças ao nosso esforço, d o que o co n d icio n am en­
to objetivo resu ltan te da situação: é a ele que devo
ex p lo ra r, com ele é que devo c o n ta r, ele sozinho i
basta para d eterm inar o sucesso. Preciso apenas dei^J
.Vii-lo a tu a r. Se força e fraqueza, é dito a seguir, são
uma questão de situação, coragem e co vardia são
um a questão de potencial (decorrente dessa situa-
çao). C oragem e co v ard ia são, pois, o p ro d u to da
situação em vez de nos pertencerem com o p ró p rio
(r, poderíam os acrescentar, de dependerem de nossa

1 1 .il.u lo dn F fic á c ia M
É o potencial responsabilidade). C om o glosa um co m en tad o r (Li
de situação que Q u an ), se as tro p a s obtiverem o potencial estraté­
torna corajoso no
gico, “ en tão os covardes serão brav o s” ; se o perde­
combate
rem , “e n tã o os b rav o s serão c o v ard es” . Por isso,
Ihésse tra ta d o prossegue: o bom general p ro c u ra o
11 sucesso n o p o ten cial d a situação em vez de pedi-lo
1 1 aos h om ens sob seu co m an d o . C onform e saiba ou
j n ão apoiar-se no potencial da situação, ele os to rn a
covardes ou corajosos. D ito de o u tro m odo (W ang
T X i) , coragem e covardia são “ m odificações” desse
potencial.
O único equivalente que encontro, no lado eu­
ro p eu , p a ra essa idéia de potencial nos seria forne­
cido pela m ecânica: n o que ela cham a precisam en­
te a “energia potencial de situação” (mas, justam en­
Potencial físi­ te, em term os físicos e n ão m orais, com o teorem a
co ou estratégico científico aplicável à produção, o da energia cinética,
e n ã o com o reg ra p a ra a co n d u ta). Prova disso é a
im agem que encerra essa exposição de estratégia:
“Aquele que se apóia n o potencial contido na situ a­
ção utiliza seus hom ens em com bate do m esm o m o­
d o q u e se faz ro la r to ra s o u pedras. É p ró p rio da
n atu reza das to ras e das pedras perm anecerem im ó­
veis num solo plano e entrarem em m ovim ento num
solo inclinado; se são q u a d rad a s, param ; se são re ­
d o n d as, rolam : o potencial das tro p as que sabem os
em pregar em co m b ate é com parável ao das pedras
red o n d as que descem de um a alta m o n ta n h a ro la n ­
d o ” . A inclinação serve aqui p o rta n to de im agem
à p ropensão que resu lta da relação de força que o
estrategista sabe em pregar em seu proveito para m a­
n o b ra r os hom ens: o efeito decorre dela sp o n te sua
[por sua livre vontade], insistem os com entadores,
e é irresistível; p o sto q ue a inclinação está inscrita
na co n fig u ração (ao m esm o tem po o relevo e a re ­
d o n d eza das pedras), o resu ltad o é “ fácil” .
N ã o se deveria, aliás, lim itar essa energia p o ­
tencial de situação ao simples terreno das operações.
T o rn o u -se trad icio n al concebê-la de m aneira m ais

32 François Jullien
am pla — n o tad am en te sob estes três aspectos con-
juntos (cf. Li Jing). C o m o potencial m oral: “ q u a n ­
do o general despreza o inim igo e suas tro p a s estão
felizes em co m b ater, q u an d o seu a rd o r se eleva até ,
o céu e sua energia é com o um fu ra c ã o ” ; com o p o­
tencial to p o g ráfico tam bém : q u a n d o , sendo ap er­
ta d o o desfiladeiro e estreito o cam inho, “ um único
hom em g u ard a a passagem e mil h om ens n ã o po- -f
deriam p a ssa r” ; co m o potencial p o r “ a d a p ta ç ã o ” , J’u0‘íi
enfim: q u a n d o se p ode aprov eitar-se d o a fro u x a ­
m ento do inim igo e de seu cansaço, q u an d o ele está
esgotado pela sede e pela fom e, q u an d o “ seus p o s­
tos av an çad o s ainda n ão fo ram estabelecidos e sua
retag u ard a ain d a está atrav essan d o um rio ” ... Em
todos esses casos, quem sabe apoiar-se n o potencial
de situ ação pode facilm ente levar a m elhor. O u, se-/,
g undo a expressão de um co m en tad o r, “ com pou^. Pouco esforço,
co esfo rço ” pode-se o b te r “ m uito efeito ” *5. muito efeito
Os antigos tra ta d o s de estratégia n ão hesitam
em e x p lo ra r esse recurso ao extrem o — a p o n to de
nos chocar. Pois, p a ra fazer crescer essa energia de
situação, o estrategista chinês não se ap ó ia apenas
naquilo que, na topografia o u no estado das tro p as,
pode ser desfavorável a seu ad versário; ele aco m o­
da igualm ente a situação de m odo que suas próprias
tro p as se vejam levadas a m anifestar um m áxim o
de a rd o r. P ara isso, b a sta que as co n d u za a u m a j
situação de perigo tal que n ã o ten h am o u tra saída |
senão co m b ater com to d a s as suas forças p a ra es - 1
cap ar dela (SZ, cap. 11, “Jiu d i” ). A ssim , ele só de-
im n in a o com bate em “terren o m o rta l” , ou seja,
após ter feito suas tropas penetrarem profu n d am en­
te cm te rritó rio inim igo; pois en tão é com o se, de­
pois de tê-las feito su b ir bem alto , “lhes tirasse a
escad a” : com o não podem recuar, estão condena- Encurralar as
das a co m b ater até a m orte. N ão pede, pois, a seus próprias tropas
, . . . para aumentar
Itomens que seiam n aturalm ente coraiosos, com o se . .
^ j seu potencial
isso fosse um a v irtu d e intrínseca, m as, d ia n te da
Mtunção de perigo em que os lança, ele os obriga a

U
V , sê-lo. Serão forçados a isso a despeito de tu d o . E a
ij recíproca tam bém é verdadeira: q u ando vê o inim i-
'] go acuado, e sem o u tra saída senão com bater até a
! m orte, ele p ró p rio lhe arranja um a escapatória para
jj que o ad versário n ã o seja levado a m anifestar to d a
>* a sua co m batividade*.

2. Já que o p ró p rio d a estratégia


gundo os antigos tra ta d o s, é apoiar-se no potencial
inscrito na situ ação , p a ra se deixar levar p o r ele no
curso de sua evolução, está excluída desde o início
a idéia de p red eterm in ar o curso dos acontecim en­
'*■
to s em função de um p ian o tra ç a d o de an tem ão ,
com o ideal a realizar, e que seria estabelecido m ais
ou m enos d efinitivam ente (no sentido d o “ p lan o
estratég ico ” de que fala Clausew itz: “é ele que in­
dica q u a n d o , o nde e p o r m eio de que força a rm a ­
da um com b ate deve ser tra v a d o ” ). O estrategista
"chinês, com efeito, evita p ro jetar sobre o desenvol­
vim ento vindouro algum dever ser, que ele teria con­
cebido pessoalm ente e gostaria de lhe im por, já que
!
é desse p ró p rio desenvolvim ento, tal com o é leva-
Começar por j do logicam ente a se processar, que ele pretende ti-
avalíar a situação , ra r vantagem . P o rtan to , se um a o p eração deve de
fato intervir previam ente ao início do conflito (no

* Em sua A rte da Guerra, Maquiavel o diz também:


“Outros generais impuseram a seus soldados a necessidade
de combater, não lhes deixando esperança de salvação a não
ser na vitória. E o meio mais poderoso e o mais seguro de
tornar os soldados renhidos no combate” (IV); e a recípro­
ca também é verdadeira: “N ão se deve jamais levar o inimi­
go ao desespero, essa é uma regra que César praticou numa
batalha contra os germanos: percebendo que a necessidade
de vencer lhes dava novas forças, abriu-lhes uma passagem
e preferiu dar-se ao trabalho de persegui-los a vencê-los com
perigo no campo de batalha” (VI). Mas Maquiavel registra
isso a título de observação, sem fornecer noção para justificá-

>
lo. O que a estratégia ocidental percebe assim, de passagem,
a reflexão chinesa torna mais legível e obriga a pensar.

34 François Jullien
"im ip lo ancestral” , com o, para nós, “ no gabinete” ), ^ y
vM.i deve ser, n ão de p lan iíicação , m as de “ avalia­
- l o " (noção de xiao) ou , m ais ex atam en te, de su- ^ .> Jp J
l>nti^-jo (no sentido de av aliar de a n te m ã o e p o r
mi ni de um cálculo: noção de jF): o estrategista deve ; ,
tn in (\;ir p o r su p u ta r, a p a rtir de um exam e m inu-
* luso das forças em presença, os fatores que são fa­
voráveis a um o u a o u tro cam po e de onde virá a
vilórin. () antigo tra ta d o que com eçam os a ler inicia--1
«.<•, assim, por um a exposição sistem ática da m anei-
i i com o se deve cond u zir rigorosam ente essa apre-
i wç.io prelim inar (e com o tal indispensável; SZ, cap.
I, “J i” ): em função de cin co critério s de base (o
m oral, as condições m eteorológicas [o “c é u ” ], as
i oridições topográficas [a “te rra ” ], o co m an d o e o
NÍstcma de o rganização), e p a ra culm inar n u m con- Sistema de
liinto determ in ad o de questões (1. Q u e so b eran o avaliação
consegue infundir o m elhor m oral? 2. Q ue c o m a n ­
do c o mais capaz? 3. Q uem se beneficia das m e­
lhores condições m eteorológicas e de terreno? 4. De ,4't-
que lado se cu m p rem m elhor as ordens? 5. Q u a l cov 'tií-ío
lado está m ais bem arm ado? 6. De que lado os ofi­ T*' :
ciais e os hom ens são mais bem treinados? 7. De que
lado, enfim , se o b serva m elhor a disciplina?). E o
perito em estratégia concluirá: “A p a rrir disso, sei
quem irá vencer ou ser v en cid o ” . Pois d a situação
an tagonista, tal com o essa série de questões p ôde
avaliar, fazen d o delas um exam e co m p leto e sob
seus diversos aspectos, deriva um potencial que bas­
ta rá explorar.
É, na verdade, nessa passagem d a su p u tação [
das forças em presença p ara o potencial que se des- I
prende dela que tu d o se decide. A frase do antigo '•
tra ta d o m ilitar deve ser lida com aten ção : “ E n ­
tendida a suputação d o que é aproveitável [em fun­
ção dos sete p o n to s precedentes], cria-se en tão um
potencial de situação capaz de a ju d a r exteriorm en­
te^” (entenda-se: sem as regras de avaliação e p o r­
ta n to no te rre n o d as operações). D a í a definição

T ratado da Eficácia
que segue: esse potencial consiste em “ determ in ar
o c ircu n stan cial em fu n ção do p ro v e ito ” . Assim
en ten d id a, a circu n stância n ã o é m ais aquilo que,
em sua determ inação p articu lar, e p o rta n to im pre­
visível, sem pre am eaça fazer m alograr o plano p ro ­
..D
jetado sobre ela; m as, sim, o que, precisam ente gra­
ças à sua variab ilid ad e, pode ser progressivam ente
3
infletido pela p ro p en são que em ana da situação e
fazer advir o proveito esperado. Saím os, assim , de
um a lógica d o m odelo (a de um plano-m odelo que
vem d a r fo rm a às coisas), com o tam bém da en ca r­
nação (um a id éia-p rojeto que vem concretizar-se
no tem po), p a ra e n tra r num a lógica d o desenvol­
vim ento: deix ar o efeito im plicado desenvolver-se
x\ circunstân­
p o r si m esm o, em v irtude do processo iniciado. Por
cia não é mais conseguinte, o circu n stancial n ão m ais é concebi­
aquilo que “se do apenas — e m esm o de m odo nenhum — com o
tem ao redor” aqu ilo que “ se tem ao re d o r” (circum -stare), a tí­
tu lo de acessório ou de detalhe (aco m p an h an d o o
que seria o essencial d a situação ou do aconteci­
m en to — e rem etendo p o r esse m eio a um a m eta­
física da essência); m as é p o r interm édio dele que
Em vez de advém o potencial — en q u an to , precisam ente ^ p o ­
fazer malograr o tencial de situação*. C onclusão: o potencial é cir­
projeto, é ela que
cun stan cial — só existe circunstancialm ente — e
cria potencial
vice-versa (ou seja, é essa potencialidade das cir­
cun stân cias que cum pre explorar).
Pois, com o não deixou de observar um com en­
ta d o r (Du M u), se é de fato possível, pelas supu-
taçõ es p relim in ares, estar seguro d a v itó ria, já o
potencial da situação, ele, não pode ser “visto de
a n te m ã o ” (isto é, antes do início das operações) —
m as som ente detectado — , já que n ã o cessa de se
tra n sfo rm a r; com efeito, no seio do processo a n ta ­
gonista a interação é contínua: a to d o m om ento, “ é
em função do que é prejudicial a meu adversário que
Da avaliação
percebo o que m e é p ro v e ito so ” e, reciprocam ente,
dos fatores à sua
possibilidade de é “em função do que é proveitoso ao inim igo que
exploração percebo o que me é prejudicial” . O que eqüivale a

36 François Jullien
ii i onliecer (W ang Xi) q u e “o potencial d a situação
r <u|iit' tira proveito da variável” . A concepção desse
IH«inicial asseg u ra, pois, a tra n siç ã o , n o in te rio r
ilrss.i exposição, entre as su putações iniciais, co n ­
duzidas segundo regras fixas, e a ex p lo ração ulte-
i inr das circunstâncias, um a vez encetado o proces-
n>, Pois, com o se explica p o sterio rm en te, ao mes-
uni icm po em que n ã o se deve cessar, d u ra n te as
npi-rações, de e n g a n a r o ad versário, convém adap-
i.ir-sc co n stan tem en te a ele: se ele é te n ta d o pelo
proveito, eu o “ seduzo” ; se está em desordem , “ apo-
dero-m e” dele; o u se resiste, eu m e “ m un icio” etc.
i hi ainda, se está cheio de a rd o r, “ lanço a co n fu ­
são nele”; se a d o ta p rudentem ente um a atitu de m o­
desta, eu o “ en v aid eço ” ; o u se está em plena for­
ma, eu o canso etc. P osto qu e, em presença do ini- j
m ino, n ão cesso de evoluir, n ã o posso d eclarar de/
antem ão com o v ou vencê-lo. Em outras palavras (Li/
(Juan): “A estratégia carece de d eterm in ação pré^
via” , e é som ente “ em função d o potencial da situqi-j1
ção que ela adquire fo rm ae” .
V oltem os a o lado europeu. Q u a n d o fazia um
!>alanço dos fracassos com que se dep araram os te ó ­
ricos da g uerra, C lausew itz os atrib u ía a três razões
(D a guerra, II, 2): i . O s te ó ric o s (ocidentais) da
p i e r r a v isaram “ g ra n d e z a s c e rta s ” , “ q u a n d o na
guerra to d o s os cálculos se fazem com grandezas
variáveis” ; 2. C onsideraram apenas “grandezas m a­
te ria is” , “ q u a n d o o a to de g u erra é in teiram ente
im pregnado de forças e de efeitos espirituais e m o ­
rais” ; 3. L evaram em c o n ta apenas a atividade de
iini único c am p o , “ q u a n d o a guerra repousa sobre
a ação incessante q u e os dois cam pos exercem um
sobre o o u tr o ” . C o n sta ta m o s, em c o n tra p a rtid a , ' Pode-se, por­
que a concepção da estratégia elab o rad a nos anti-> tanto, compreen­
der a guerra co­
j;os tra ta d o s chineses, a p a rtir dessa idéia m estra d e 1
mo “o que vive e
umj potencial desT tuaçãoj escapa igualm ente a es­
reage”
sas três críticas (e verificam os assim — de fora —
com o essas três razões cam in h am lado a lado e re-

l ratado da Eficácia
m etem à m esm a lógica): 1. O s chineses pensam o
potencial de situ ação em term os de variável, não
p o d en d o este ser d eterm in ad o de an tem ão porque
p rocede de u m a a d a p taç ão contínua; 2. As supu-
tações de que esse potencial deriva com binam sem
dificuldade os fatores espirituais e físicos (levando
em co n ta ta n to o m o ral que assegura a coesão das
tro p a s q u a n to as questões de organização m aterial
e de arm am en to ); 3. x\ dim ensão recíproca está no
p ró p rio cerne d aq u ilo que constitui o potencial de
situação (cf. o que é desvantajoso p ara o o u tro é por
isso m esm o v an tajo so p ara mim ) e a guerra é n a tu ­
ralm en te p en sad a, na C hina, com o q u alq u e r o u tro
, processo, em term o s de interação e de polaridade.
/" ~ ' Em conseqüência, a estratégia chinesa n ão pre­
cisa passar pela relação teoria-prática (porque a no-

'í y ção de potencial de situação a substitui a seu m odo,


ao assegurar a m ediação entre o cálculo inicial e a
v ariação circunstancial). A o m esm o tem po, ela es­
c a p a à p erd a inevitável (da p rá tic a em relação à
teo ria) que o n e ro u até aqui a teoria o cid en tal —
inclusive Clausevvitz. Em sum a, ela n ã o precisa se
deparar com “ atrito ” ; pois, na medida em que am ea­
ça to d o p lan o tra ç a d o de an tem ão , a circunstância
Nada mais de
adventícia é, ao c o n trário , o que perm ite ao p o te n ­
“atrito", nem de
“acaso” ou de
cial im plicado advir e desenvolver-se. C om o in stru­
“gênio” m en tal teó rico que lhe é p ró p rio , fo rm a liz ad o r e
técnico, o O cidente m ostrou-se singularm ente de­
sa rm a d o p a ra p en sar a co ndução da guerra, consi­
d eran d o apen as seus aspectos laterais (seus p re p a ­
rativos ou seus d ad o s m ateriais), m as perd en d o de
vista o fenôm eno m esm o (tal com o C lausew itz, no
e n ta n to , o identificou: um objeto que “ vive e re a ­
g e” ). R estava então um a única saída, à qual o p ró ­
p rio C lausew itz não po d eria ren u n ciar com pleta­
m ente: invocar o acaso ou o gênio. P or co ntraste,
a inteligência que o pensam ento chinês desenvolveu
se revela de n atu reza em inentem ente estratégica. A
p a rtir d o fim d a A n tigüidade (época dos R einos

38 François Jullien
( Combatentes, nos séculos V-IV antes de nossa era),
os tra ta d o s m ilitares expõem -na co erentem ente; e
*•1.1 igualm ente m arco u , desde essa época, os o u tro s /
setores da atividade hum ana, especialm ente o diplo-1
m.itico e o político. '

O m esm o acontece, na verdade, com o con­


selheiro de co rte e com o estrategista. Q u er tenha,
no ex terio r, de p re sid ir às alianças o u q u eira, no
interior, a tra ir o príncipe p a ra suas idéias, to d o d i­
plom ata deve com eçar p o r um a avaliação rigorosa
tia situ ação — ta n to “ a p re c ia r” as relações de fo r­
ça num p lan o político q u a n to “ s u p u ta r” as dispo­
sições interiores de seus parceiros de um p o n to de
vista psicológico (G uiguzi, cap. 7, “ C h u ai” ). O c á l - 1
a ilo da relação das forças em jogo passa assim por
um a série de itens qu e, do m esm o m odo que prece­
dentem ente, visam a cercar a situ ação sob to d o s os
A mesma
seus aspectos: m edir o ta m an h o respectivo dos rei­
avaliação siste­
nos, avaliar sua im portância dem ográfica, sopesar
mática dos fato­
seu peso econôm ico e sua riqueza etc.; e tam bém res se requer em
exam inar quem leva a m elhor do p o n to de vista das diplomacia
condições to p o g ráficas, o u p o r sua estratégia, ou
sob o ângulo das relações entre príncipe e m inistros
etc.; o u ain d a estim ar com quais aliad o s se pode
c o n ta r, em relação a quem o povo está m elhor in­
ten cio n ad o e quem tira ria p ro v eito das desordens
(cf. tam b ém o cap. 5, “ Fei q ia n ” ). R esp o ndendo
sistem aticam ente a esse tip o de q u estio n ário e fa­
zendo convergir seus d ad o s, o conselheiro político
chega a um conhecim ento suficiente, relativo aos fa­
tores em jogo, p a ra estar certo d o resultado d a ope­
ração que inicia (e, se ele se d e p a ra com algum a
“ in ad eq u ação ” , é d ito com o co ro lário , é que ain­
da não conhece suficientem ente a situação; cap. 3,
“ Nei q ia n ” ). C om relação ao príncipe, a apreciação
deve incidir sobre o que este deseja ou detesta, de
m odo a pod er agradar-lhe com certeza e, conseguin­
do assim cap tar sua benevolência, g an h ar seu apoio

T ratado da Eficácia
e dirigi-lo; com respeito aos ou tro s, deve incidir so­
bre sua inteligência, sua capacidade e seu hu m o r,
de m o d o a p o d er to rn á-lo s a “ m o la ” com que p o s­
sam m anejá-los.
N ão há tam pouco necessidade, nesse dom ínio,
de fazer plano o u de fixar norm a para dirigir a p ró ­
pria co n d u ta: pois, p ara levar vantagem sobre o o u ­
tro e p o d er disp o r dele à vontade, não há o u tro c a ­
m in h o a seguir, após tê-lo avaliado suficientem en­
te, senão ad ap tar-se a ele; e to d o s os casos possíveis
, ^são aproveitáveis: se o o u tro tem exigências m orais
que o fazem desprezar as riquezas, não posso sedu-
zi-lo pela ten tação de um gan h o , m as, em com pen­
sação, posso ap ro v eitar disso p ara fazê-lo su p o rtar
despesas; se ele for bastante corajoso p a ra despre­
zar to d o e q u a lq u e r perigo, n ã o tenho m eios de in­
cutir-lhe m edo, m as, em com pensação, posso a p ro ­
veitar disso p a ra fazê-lo a rro sta r perigos etc. (cap.
10, “ M o u ” ). Esse antigo tra ta d o de diplom acia se
co m praz em an alisar em detalhe de que m aneira é,
conform ando-m e constantem ente ao outro, que, não
me alienando jam ais, p o rta n to jam ais suscitando da
p arte dele reserva o u resistência, au m en to progres­
sivam ente m inha influência e posso em seguida m a ­
nobrá-lo. Infinitamente maleável, acom panhando em
tu d o a situação, n ã o a forçando nem m esm o ten-
;sionando-a jam ais, to rn o -m e disponível a ela sem
I 'n ad a predeterm inar por m im m esm o e sem nada des-
i pender: em fu n ção d as d ú v id as de m eu p a rce iro ,
'“ m od ifico ” m in h a co n d u ta ; em função d o que ele
sabe, “atesto com o v e rd ad eiro ” ; em função do que
ele diz, “ faço sobressair com o essencial” ; em função
de sua ascendência, “ faço ad vir” ; em função de seus
dissabores, “ a d a p to ” ; em função de seus tem ores,
“ a fa sto ” etc. O o u tro evolui assim num a espécie de
aquiescência c o n tín u a que o desarm a progressiva-
l m ente e o subm ete a mim. Em face do o u tro (e isso
é ta n to m ais im p o rtan te q u an d o esse o u tro é o p rín ­
cipe), conduzo-m e p o rta n to sem pre à vista, sem ris-

François Juliien
»1 i, não p ro jetan d o nem im p o n d o n ad a de antem ão, para aproveitar
in,is, .10 contrário, esposando tão bem a circunstância se ^e*a lem vez
• r 1 •. 1 de modelizar)
i|iu' ela me fornece a cada vez um a o p o rtu n id ade que
pi isso aproveitar; e deixando-m e assim continuam en­
te levar pela situação, aum ento grad ativ am ente mi- >
nli.i influência. A im agem é forte a esse respeito: o
vilno “g ira ” , com o o faria um a b ola, p a ra buscar a
1 .ida vez o que é “ a d e q u a d o ” . N ã o se im obilizando f •
cm plano nenhum , não se e n te rra n d o em n enhum
projeto, sua estratégia n ão tem fundo. “Insondável”
p>ira os o u tro s, “ inesgotável” p a ra ele. ^
Essa reflexão sobre a diplo m acia nos recon-
ilii/., p o rta n to , b astan te logicam ente, à idéia de um
fio trncial d e situação (m esm a n o ção de sbi). Isso
porque essa ascendência que ad q u iro sobre o o u tro
n .10 se deve a m eus esforços, tam p o u co à sorte (am-
Ims, aliás, fracassariam aqui), m as sim plesm ente à
m aneira com o sei tira r v an tag em d o processo co n ­
duzido: apóio-m e nos fatores p o rta d o re s que pude
perceber na situação p ara deixá-los tra b a lh a r a meu
l.ivor. A fórm ula é tão decisiva nesse dom ínio q u a n ­
to a p ro p ó sito da arte m ilitar: é preciso “ in stau rar
um potencial de situação p a ra gerir as coisas” (cap.
S, “ Kei q ia n ” ). E, p ara in stau rar esse potencial, con-
vem antes de tu d o , com o vim os, avaliar o m ais pre-
v isamente a situação (em contexto diplom ático: exa-
ininar quais são seus ad ep to s, distinguir quem é de
sua o p in ião e quem n ão o é, ver o q u e é d ito “ den-
ir o ” e o que é d ito “ fo ra ” etc.). Desse potencial de
situação, acu m u lad o ao longo de sua evolução, re­
su ltará finalm ente, da m aneira m ais “ categ ó rica”
possível, a o p o rtu n id a d e de se exercer a m aior a s­
cendência, em vez de ser d erro tad o (cap. “ Benjing
yinfu” ). Pois esse p otencial (de situação) é de fato
o que “ s e p a ra ” “ lu c ro ” e “p reju ízo ” , visto que é o É em função
l.itor que, p o r sua “ au to rid ad e” , inflete a evoluçãof. seu Potenc'a'
,, . . . ^- , 1 que se inflete a
V oltam os m uito naturalm en te a im agem das pedras
. 1 . situaçao
red o n d as que descem do a lto de um a en costa; e,
p ara co n clu ir que “ o potencial d a situação faz com

Tratado da Eficácia 41
jlque não possa d eix ar de ser assim ” : há um a confi-
j guração diplo m ática assim com o há um a configu-
| ração estratégica, e o condicionam ento objetivo que
ela o p era é igualm ente determ inante.
I
4. C onsiderem os agora esse potencial de situ
ção no q u a d ro da org anização social e política: ele
O potencial em
se tra d u z em posição de força (sh i), o u to rg a n d o a
política é a posição
de autoridade
a u to rid ad e, e n q u an to o desnível do qual procedia
o efeito (cf. as pedras que descem a encosta) co rres­
p o n d e ao da h ierarq u ia. Ele cria um a inclinação à
ob ed iên cia, dele d eco rre a ascendência exercida:
apo ian d o -se na posição su p erio r, som os levados a
ser escutados pelos inferiores — sem que isso depen­
A propensão à
obediência da de valor pessoal nem devam os a nossos esforços,
nem m esm o que ten h am o s de p ro c u rá -lo . N ã o é
algo que deva ser buscado nem assum ido. Essa p ro ­
p ensão a ser obedecido deriva ap en as da posição
o cu p ad a. Em sum a, é d o lugar, e n ã o de si m esm o,
q ue resulta o efeito.
Esse lugar p o r excelência, do qual decorre es­
p o n tan eam en te a a u to rid ad e , é o tro n o . Por isso,
vem os constituir-se em to rn o da n o ção de posição
de au to rid ad e um im p ortante m ovim ento de p en ­
sam ento, no final da antigüidade chinesa, que visa
a erigir o tro n o em fonte de po d er ab so lu to . N ão ,
com o vimos alhures, ou com o foi tam bém defendido
p o r o u tro s na C hina (os confucianos), invocando a
transcendência e em nom e de algum a v o ntade di­
vina, tam p o u co em nom e de um c o n tra to político
estabelecido entre as pessoas, p a ra fu n d a r a ordem
civil, m as em nom e unicam ente da eficácia: p o r cau­
sa de sua posição superior, o lugar o cu p ad o pelo
p ríncipe p ro d u z um p o d er suficiente p ara fazer rei­
n a r a o rdem em to d o o im pério — p o rta n to em v ir­
tu d e apenas da p ro p en são que dele em ana, p u ra ­
m ente objetiva, e n ão desse d a d o sem pre aleatório
que é o valor das pessoas. Esses defensores d o a u ­
to rita rism o , m u ito im propriam ente cham ados “le-

42 François Jullien
Kisi.is” (porque sua c o n cep ção p o u co corresponde
.1 nossa idéia de lei e eles p e n sa ra m apen as o p o der
r ii.io o d ireito), te n ta ra m assim b lo q u ear o poten-
t ia I de situação na posição de um só, isolado no alto,
0 príncipe; e, com isso, tra n s fo rm a r as relações po-
liucus num p u ro disp o sitiv o de a u to rid a d e . O des- j
mvcl do q u al deriva o p o ten cial p erm anece, m as a |
situação p o rta d o ra , a o se p o la riz a r n o príncipe, se ’
1 ristaliza; de em inentem ente m óvel, ela se im o b ili-1
/a num sítio único: o p rín cip e é p o rta d o p o r seu '
povo d o m esm o m odo q u e u m a acha de lenha en -1
i a ra p ita d a n o to p o d a m o n ta n h a é p o rta d a p o r ela !
<• a dom ina (H an Feizi, cap. 14, “ G ong m ing” ).
M as com o é p en sad o esse p o sto de co m ando
do qual decorre in d efinidam ente a obediência? D ali
onde está e n carap itad o , e em nom e apenas de sua
posição de au to rid ad e, o p ríncipe tem em m ãos os
dois “ m an íp u lo s” que d istrib u em as recom pensas e
os castigos (sendo a m b o s codificados segundo n o r­ A posição de
autoridade consti­
mas estritas — fa — que são conhecidas de to d o s e
tui um dispositivo
aplicadas regularm ente): p o r si sós, essas duas a la ­
vancas do m edo e do interesse constituem um dis­
positivo suficiente, ao m esm o tem p o incitativo e re­
pressivo, que lhe p erm ite fazer a n atu reza hum ana
se com portar com o ele quer (H F Z , cap. 7, “ Er bing” ).
Ao m esm o tem po, esses defensores do au toritarism o )/ i »•
(que são tam bém , p o r isso m esm o, ps inventores do
to ta litarism o ) com preen d eram m uito bem que a es­
sência m ais íntim a do p o d er que exercem os sobre os
outros reside no saber que adq u irim o s a respeito de­
les, graças à tran sp arên cia forçada n a q u al os m an-
lemos: quan to m enos puderm os esconder, tan to mais
som os subm issos; o o lh a r que desvela nos paralisa.
Por isso, p o r um sistem a m u ito refinado de “ disso­
ciação” das opiniões (que perm ite confrontá-las) ao
Muito melhor
m esm o tem p o que de “ so lid arização ” das pessoas
que o “panoptis-
(to rn an d o -as coletivam ente responsáveis e incitan­
m o” de Bentham
do-as a se denunciarem , H F Z , cap. 48, “Ba jin g ” , § {Foucaultj
4 e 6), bem com o p o r um a sutil técnica policial, man-

'I ratado da Eficácia •H


tid a secreta, que procede p o r investigações parale-
^ las ejdesinform ação proposital((noção de shtt), o prín­
cipe erige sua posição em verdadeira m áquina de sa­
ber: p o r essa busca fo rçada de to d a inform ação, p o r
essa capina m eticulosa dos dados, ele consegue, do
fundo de seu palácio, “ ver tudo ” e “ ouvir tudo ” (H FZ,
cap. 14); e, tã o logo a m enor rebelião é denunciada,
ele não terá sequer necessidade de recorrer à força
p a ra reprim ir. A arte de governar é, n o fundo, ape-
Fazer os outros ' n as fazer q ue o u tro s co n trib u am p a ra a posição de
contribuírem pa- J quem go v ern a, n ã o que ele m esm o se afaine, m as
ra a sua posição Ji fazendo que o u trem seja levado a fazê-lo p ara ele.
'C o m efeito, é possível devotar-se à sua tarefa, sem
deixar o palácio, e nem p o r isso o cupar sua posição.
A ssim co m o é possível tam b ém retirar-se p a ra “ a
b eira-m ar” e co n serv ar perfeitam ente à m ão o dis­
positivo do poder e dirigir tudo. O que significa reco­
nhecer que a posição não deve ser ocup ad a p o r in­
vestim ento pessoal, m as tecnicam ente; que ela é da
Um perfeito
1 ord em , n ã o d a presença física, local e reduzida, m as
tirano não tem
mais necessidade d o m anejo dos com andos. Por isso, ela perm ite exer-
de estar presente cer o p o d er a fu n d o e sem esforço.
Levando em conta essa eficácia absolutam ente
suficiente da p osição, a única tarefa que cabe ao
p ríncipe, p a ra g o vernar, é respeitar-lhe o au to m a-
tism o e m an tê-la em sua integralidade. C om o a so­
b eran ia só existe pela posição e com o ela n ão pode
c o n ta r com n en h u m sentim ento, de am o r o u de re ­
conhecim ento, da p arte do povo (diferentem ente do
p atern alism o com que sonham os confucianos), a
posição so b eran a deve defender-se de to d a usurpa-
ção a seu respeito: q u alq u e r o u tra posição só pode
se afirm ar em seu d etrim ento. N essa perspectiva da
posição, com efeito, príncipe e súditos são percebi­
dos n u m a relação estritam ente antagônica; p o r isso,
o p o der se revela objeto de um confli
Não deixar te ’ m esm o clue na m aioria das vezes seja apenas la-
usurpar sua ten te, o p o n d o o déspota a to d o s os dem ais: prim ei-
posição ram ente, nobres, m inistros e conselheiros; m as tam -

44 François Jullien
bém esposa, m ãe, concubinas, b astard o s e, obvia­
mente, o filho herdeiro — pois todos quererão fazê-
lo “ p e rd e r” sua posição o u pelo m enos “ dividi-la”
(i IFZ, cap. 4 8 , § 3 e 8). Essa teo ria da posição se
acom panha assim de um a fina psicologia da suspeita
que cam inha em sentido o p o sto àquilo que vim os
acerca da arte diplom ática destin ad o aos conselhei­
ros de corte, e previne contra ele: cabe acima de tudo
ao príncipe desconfiar d os que se antecipam a seus
desejos e agem sem pre em seu sentido, pois desse
m odo acum ulam um capital de co nfiança que lhes
perm ite fazê-lo sair sub-repticiam ente de sua p osi­
ção de au to rid ade. N ão p a ra d erru b a r o tro n o —
do que jam ais se cogitou na C hina — m as p a ra usur­
pá-lo, to m a n d o sim plesm ente o lugar de seu deten­
tor (e essa substitu ição é ta n to m ais fácil n a medi-Jj
-f
da em que não devem co n tar o valor e o investimen-^í
to pessoais, que p ersonalizam o poder).
A o u tra recom endação d ad a ao príncipe, com o
m odo de em prego de sua posição , é deixá-la a tu a r
plenam ente, sem interferir no funcionam ento de seu
dispositivo p o r seus bons sentim entos o u sua v irtu ­
de. Pois, desde que o ap arelh o da posição funcio­
ne, a subm issão dos o u tro s resulta au to m aticam en­
te. Introduzindo, ao co n trário , o acaso, em bora de­
pendente de um a boa vontade, ao m esm o tem po que
da exceção (em relação à regularidade d a no rm a),
toda m edida de indulgência o u de generosidade da
parte d o príncipe é fonte inevitável de m au fu ncio­
nam ento. Ela p e rtu rb a p o r sua v ibração h u m an a
aquilo que, sem ela, m arc h a ria sozinho... De m a ­
neira geral, ao red u zir o p o d er a esse su p o rte, pu- i
ra mente instrum ental, da posição, os defensores chi- 1
neses do despotism o visaram a despersonalizá-lo o
mais com p letam en te possível (e creio que eles efe-
t ivam ente, d entre to d as as tradições culturais, é que
loram mais longe nesse sentido). E nq u an to a ascen­
dência exercida pelo príncipe confuciano se deve à
sua sabed o ria e se m anifesta pela influência favo­

I r;it,i*.to da Eficácia
rável que espalha a seu red o r, a ascendência do so­
berano legista repousa inteiram ente na desigualdade
m áxim a das posições e o efeito de potencial que dela
deriva. Existem , de fato , dois critérios: o u o valor
Mérico/posição pessoal, ou a posição ocupada. E um exclui o o u tro ,
segundo eles (H FZ , cap. 4 0 , “ N an shi” ): ou se conta
com a capacidade pessoal, despende-se energia e o
resu ltad o perm anece precário (H FZ , cap. 4 9 , “W u
d u ” ); ou se busca ap o io apenas na posição de a u ­
toridade, deixando-se “ p o rta r” p o r ela, com o o d ra ­
gão é levado pelas nuvens (cf. Shen D ao), e as ordens
e m itid a s sã o e n tã o in c a n sav e lm e n te e x e c u ta d as
(H F Z , cap. 28): tã o indefinidam ente q u an to , p o rta ­
d a pelo barco, um a carga está destinada a flutuar...
Da concepção estratégica, tal com o p erm an e­
ceu trad icio n al na C h ina até os nossos dias, a essa
concepção política particular, percebe-se claram ente
a continuidade: a coragem ou a covardia do com ­
batente dependem do potencial da situação do m es­
m o m o d o que a subm issão ou a insubm issão dos
súditos (m esma noção de shi)-, ta n to num caso com o
no o u tro , o condicio n am ento objetivo da situação
prevalece sobre as qualidades intrínsecas e o esfor­
ço dos indivíduos. M as assim com o, p a ra pensar a
g u erra, essa concepção do potencial repousava na
in teração e n a p o larid ade, e a situação era conside­
ra d a em sua evolução (é m esm o de seu d esd o b ra­
m en to que procedia o efeito), assim tam bém , para
p en sar o p o d er (e aum entá-lo ao m áxim o), os de­
fensores do d espotism o p ro c u rara m m o n o p o lizar
to d o o potencial, fazendo-o convergir sobre o tr o ­
no, bem com o im obilizar a situação (num a relação
exclusiva — e p erpétua — de subm issão). O siste­
m a é b loqueado e torna-se aberran te. M as nem por
isso ele perdeu to d a eficácia. Foi seguindo escrupu­
losam ente o ensinam ento dos pensadores do despo­
tism o que o im pério chinês foi fu n dado (em - 221).
E ele é, com o se sabe, o prim eiro im pério b u ro crá ­
tico d o m undo.

46 François Jullien
( JBJKTIVO OU C O N S E Q Ü Ê N C IA

J. N a altern ativ a esboçada, o prim eiro cam i­


nho traçad o , o da m odelização, “ e u ro p e u ” , passa
pela relação m eios-fim . Sendo um fim concebido
ideal m ente, buscam os a seguir os m eios a em pregar
para fazê-lo e n tra r nos fatos (com tu d o o que essa -1
“e n tra d a ” pode supor de intrusão — ao m esm o tem- •
po de relativam ente a rb itrá rio e de forçado). O u,
para ap resen tar o procedim ento às avessas, enten­
dem os por plano, no sentido de plano de ação, to d o
projeto elab o rad o que co m p o rta um a seqüência or-
denada de operações, en q u a n to m eios, d estin ad a a - ' (jj, ^ '
atingir o objetivo visado.
M eios-fim : de um lado, e já m ais o u m enos ao
.ilcance da m ã o , o leque a b e rto d os recu rsos, ao
m esm o tem p o in stru m en to s e m arcos; e, do o u tro ,
110 horizonte, o que é sim ultaneam ente o term o e o
objetivo (telos), em direção ao qual n ão cessarem os
de m archar, n o qual m anterem os os olhos fixos: ao
m esm o tem p o o que ten sio n a, m a n d a n d o fazer es­
forço, e o que p ro m ete. D o ra v a n te está tã o bem
estabelecido o face-a-face entre esses dois p lan o s, Pode-se dis-
1ornou-se tam bém tã o côm o d o , que escapa ao pen- pensar a relação
meios-tim?
sarnento (pensam os a p a rtir dele, m as n ão a ele).
l’ois ele serve de q u a d ro o m ais geral: é p o r meio
dele que com preendem os a ação , dele é que espe­
ram os a eficácia (agir, da m aneira m ais geral, é em ­
pregar m eios com vistas a um fim d a d o , e a eficá­
cia está na ad eq u ação entre o fim e os m eios em ­
pregados). Posso m esm o dizer que aqueles que hoje,
.1 p ro p ó sito do m anagem ent, estão em busca de n o ­
vos m odelos n ão p oderiam passar sem ele. C om o

I rut.ido da Eficácia 47
risco de reco n fig u rar u m dos term os da junção, ou
com o risco de levá-lo ao lim ite (posição-lim ite, p o r
exem plo: q u a n d o se co n sidera que o fim pro p o sto
p ode ser um a ficção — m as suficientem ente consis­
ten te, todavia, p a ra im plicar meios úteis). Pode-se
re tra b a lh ar esse q u a d ro , redefinir um a de suas m a r­
gens — m as dificilm ente sair dele.
O q u a d ro perm anece — exatam ente e n q u a n ­
to q u a d ro d o pen sam ento. O ra, eis que e n c o n tra ­
m os, na C hina, um pensam ento da eficácia que, não
p ro jetan d o nenhum p lan o sobre o curso das coisas,
ta m p o u c o precisa co n siderar a condução sob esse
ângulo meios-fim: esta resulta, p o r conseguinte, não
de um a aplicação (vindo a teoria concebida de a n ­
Continuação
da clivagem tem ão recobrir o real, de m aneira a p o der em segui-
’ da decalcá-lo), m as antes de um a exploração {tiran­
do vantagem do potencial im plicado num a situação
dada). O u tro s pressupostos, o u pelo m enos que nos
interessam n a m edida em que são diferentes e nos
desestabilizam , nos fazem perceber ou tras possibi­
lidades: neles não são privilegiados nem m ontagem ,
p o r o p erações preconcebidas e dispostas sistem ati­
cam ente, nem escalonam ento no tem po, p o r p ro g ra ­
m ação a p a rtir d o objetivo visado. Em sum a, não
há term o, perfeito em si e percebido de antem ão, que
ordenasse o curso e nos guiasse n a m archa; e o “ ca­
m in h o ” , tal com o o entendem os tradicionalm ente
Ji? n a C hina (o tao), está m uito distante de nosso “ m é­
f- to d o ” (m e th o d o s: o “ cam in h o ” pelo qual se “ p ro s­
segue” , que co n d u z para).
R e m o n ta n d o m ais um a vez, p o r esse expe­
Na origem da diente, a nossos pressupostos teóricos: aquele “p ru ­
relação meios-fim: d e n te ” que A ristóteles nos apresentava p a ra servir
a “prudência” é de m ediação entre a teo ria e a p rática nos é ju sta­
saber deliberar m ente definido co m o aquele que sabe “ d elib erar”
sobre o s m eios p a ra atingir u m fim d eterm in ad o .
O ra , vejam os de que m aneira é concebida um a de­
liberação com o essa. A ristóteles to m a p o r m odelo
a co n stru ção das figuras n a m atem ática: assim co­

48 François Jullien
mo se parte da figura su p o stam en te c o n stru íd a p a ­
ra rem o n tar a seguir, p o r u m a análise regressiva,
i\ série das operações necessárias (na q u a l o últim o
(erm o descoberto pela análise revela-se o prim eiro
do pon to de vista da gênese), assim tam b ém se p a r­
te do fim supostam ente o b tid o p a ra d eterm inar em
segu id a, reg ressiv am en te, a série d os m eios que
Remontar do
conduzem a ele (e o últim o m eio percebido é aquele
fim à série dos
pelo qual se deverá com eçar). x\o m esm o tem po,
meios (Aristóteles,
A ristóteles está m u ito consciente de que o m odelo em geometria)
to m a d o d a m ate m á tic a n ã o p o d e ser to ta lm e n te
ad eq u ad o n o que se refere à ação h u m a n a (cf. a
interp retação feita p o r Pierre A ubenque a seu res­
peito em seu estudo sobre a prudência): 1. Ao co n ­
trário da reversibilidade m atem ática que perm ite
percorrer indiferentem ente a série n u m o u n o u tro
sentido, progressivo o u regressivo, a ação h u m an a
se desenvolve n u m tem p o irreversível e, en quanto
não for co m p ro v ad a pela experiência, a cau salida­
de in stru m en tal do m eio perm anece hipotética; 2.
Kntre o m eio e o fim visado, h á sem pre o risco de
se in te rp o re m ac o n te c im en to s im previsíveis que
criam obstácu lo à eficácia suposta do m eio e põem
o fim fo ra de alcance; 3. Inversam ente, levando em
conta a relativa au to n o m ia d o m eio com relação ao
-S J
fim, h á tam b ém o risco de o m eio, ao desenvolver V. '-o
sua causalidade, u ltrap assar o fim visado (exem plo
aristotélico dessa causalidade adjacente o u p arasi­
ta: q u a n d o o rem édio que visa à saúde m ata por
acidente o paciente).
P o rtan to , sem pre estaríam os v o ltan d o , n a E u­
ro p a , a este gesto típico: p a rtim o s de u m m odelo
ideal (e este é fornecido de preferência pela m ate­
m ática) p ara consid erar em seguida o q u an to a p rá ­
tica difere dele. C om efeito, se o m odelo m atem á­
tico não pode ser to talm en te aplicável à co n d u ta,
p o r exem plo, “ nas questões de m edicina ou nos a s ­
suntos de d in h e iro ” , diz-nos A ristóteles (Et. a N ic., Conduta e
III, 1 1 1 2 b), é que e n tã o se nos oferecem vários conjectura

'Iracado da Eficácia
m eios possíveis que, p o r isso m esm o, perm anecem
conjecturais; e é som ente com p aran d o essas conjec­
tu ras que podem os investigar, entre os meios co n ­
sid erad o s, “ qual o m ais rápido e o m e lh o r” . E n­
qu an to , p ara o m atem ático, há apenas um a solução
p a ra realizar sua figura e para ele, com o para o gra­
m ático, sua deliberação é tão-som ente a m edida de
sua ignorância, encontram o-nos, nos assuntos h u ­
m anos, d ian te das possibilidades concorrentes sem
p oderm os estar certos d o resultado de nenhum a. A
deliberação (relativa aos meios) n ã o pode, pois, in ­
vocar a ciência, tam p o uco, no o u tro extrem o, re-
■c o rrer à adivinhação — nem basear-se no necessá­
rio, tam p o u co confiar n o acaso: p o r isso deve ela
IfvlCAMhfe acan to n ar-se no saber ap ro xim ativo d a “ o p in iã o ” ,
Ym \ & \ 0 co m p a ra n d o a eficácia respectiva dos m eios possí­
veis, e n ão pode elim inar o risco de fracasso.
O fosso, aliás, entre o fim e os meios, é aum en­
ta d o pelo fato de que estes rem etem a duas facul­
dades diferentes. De um lado, a vontade, entendi­
da com o a p tid ão a desejar o bem (botdesis), fixa o
fim desejado (mas que po d e c o n tin u a r sendo um
voto de devoção); de ou tro, nossa capacidade de es­
colher {proairesis) nos faz o p ta r, após deliberação,
pelo m eio m ais adequado (incidindo essa cap acid a­
de apenas n o possível efetivo, levando em conta cir­
cunstâncias e obstáculos). As duas questões devem,
p o r conseguinte, ser consideradas separadam ente:
a da q u alid ad e do fim, que em últim a instância é de
ordem m oral, e a da eficácia dos meios, m oralm ente
neutra e de ordem técnica, tal com o a ilustram a arte
m édica, a da guerra ou m esm o a d a ginástica. As­
sim, deliberar sobre a o p o rtunidade de fazer a guer­
ra é alheio ao fato de saber se a guerra em vista é
ju sta ou n ão (Ética a E u d e m o , 1227 a). Existem ,
p o rta n to , não um , m as “ dois d o m ín io s” , conclui
A ristóteles, “ nos quais se p ro d u z o bem ag ir” : um
Insubordina­
ção dos meios a reside no estabelecim ento c o rre to d o objetivo {te­
seu fim las), p o sto com o objeto em vista (sk o p o s ); o o u tro ,

50 François Jullien
“ na d escoberta dos m eios que co n duzem ao fim ”
[ta pros to telos). O ra , é possível q u e “ fins e m eios
estejam tan to em desacordo quan to em a c o rd o ” (em
“sinfonia”, diz A ristóteles: sym pbonein). “Pois acon­
tece que o objetivo é bom , mas, na ação, falta o meio
de atingi-lo; o u tra s vezes, encontram -se de repente
os m eios ap ro p ria d o s, m as o fim que se colocou é
ru im .” E n q u a n to o p lato n ism o só se hav ia p re o ­
cu p ad o com a excelência do fim (culm inando nes­
te fim suprem o, a idéia do bem ) e p o r conseguinte
considerava a adm inistração dos meios som ente em
sub o rd in ação im ediata à ciência do fim , A ristóte­
les não acred ita mais que os meios d ecorram tão fa ­
cilm ente da idéia e faz da a d a p ta ç ão deles um p ro ­
blem a. Pois n ão basta que a ação seja bem intencio­
n ad a, p a ra ser m eritória, ela deve tam b ém ser bem -
sucedida; e, em face d a indeterm in ação das coisas,)
essa realização não pode elim inar to d o perigo e t o d a 1
aventura.

2. P ara p ensar a g u erra, tam bém C lausew itz


n ã o p o d eria sair desse q u a d ro , e sua fo rm u lação
pretende ser a m ais geral: “A teo ria deve, pois, em ­
penhar-se em considerar a n atureza dos m eios e dos
fins” (D a guerra, II, 2). Em tá tic a , os m eios são as
forças a rm ad as em pregadas n o com b ate e o fim é
a vitória na batalh a; m as sabem os que esse sucesso
tático é, ele p ró p rio , apenas um m eio d o p o n to de
vista da estratégia, cujo fim últim o é d ita r ao ad v er­
sário as condições de paz. N o limite, a p ró p ria guer^
Meios-fim
ra é um m eio e a política é o fim: graças a esse re ­
servem também
vezam ento seguram -se com o d am en te as duas p o n ­ de quadro para a
tas; e, até que se atin ja o objetivo últim o, to d o o b­ estratégia
jetivo p a rtic u la r, ao se su b o rd in a r a u m objetivo
m ais geral (cf. a diferença entre Z iel e Z w e c k ), ser­ /jrjl,C te fc = T ■
ve tam b ém de meio p ara este. Q u an to ao “p lan o de
g u e rra ” , é concebido sim plesm ente em sentido in­
À '
verso, v o ltan d o a descer a cadeia. Por m ais sutil e
m inuciosa que possa ser sua análise, e m esm o p o r
r*É. ' v l55í ”

T ratado da Eficácia 51
m ais consciente que ele esteja da irredutível dificul­
dade que tem os em pensar a guerra, Clausew itz con­
tin u a sem pre a g irar em to rn o daquilo que se afi­
gura, em to d o s os sentidos, im por-se com o um a evi­
dência: a eficácia n ã o poderia ser o u tra coisa, na
guerra com o alhures, senão “ saber organizar a guer­
r ra em co n fo rm id ad e e x a ta com os m eios e os obje­
tivos, sem fazer algo a m ais ou a m enos” . T estem u­
n h a-o Frederico II, digno de adm iração p o r ter sa­
bido fazer “e xa ta m en te o que era preciso p ara a tin ­
g ir seu o b jetiv o ” . O p o sto a C arlos X II, ou m esm o
a N a p o le ã o , ele se revela o m e lh o r e stra te g ista ,
aquele qu e, em últim a instância, foi o m ais bem-
su ced id o , ju sta m e n te em ra zão dessa eco n o m ia.
C lausew itz havia feito disso um a m áxim a já em sua
ju v e n tu d e , m áx im a p rá tic a , à m an eira k a n tia n a ,
(I m as de um a p rá tic a que d o rav an te tem em vista
apenas a eficácia e rom pe enfim to d o vínculo com
O imperativo a m oral: “V isarás o objetivo m ais im p o rta n te , o
estratégico expres­
m ais decisivo, que te sentires com força p a ra a tin ­
so em termos de
meios-fim (segun­ gir; escolherás p a ra esse fim o cam inho m ais cu rto
do Clausewitz) que te sentires com força p a ra seguir” .
O que nos é assim recom endado, a título pros-
pectivo, co m o lem a de eficácia, ver-se-ia co m p ro ­
vado do p o n to de vista inverso, retrospectivo, q u a n ­
do, em vez de p recisar fazer guerra, a questão é ti­
ra r u m a lição das g u erras d o p assado. A “c rític a ” ,
no d o m ín io m ilitar, n a d a m ais é, com efeito, que
“ p ô r à p ro v a ” , p ara avaliação, os “m eios em prega­
d o s ” . Para ter acesso a um a generalidade teórica,
b a sta ria , diz-nos C lausew itz, saber “ quais são os
O
efeitos dos meios em pregados” e se esses efeitos “es-
tavam nas intenções da pessoa que a g ia” . O ra , eis
no e n ta n to que tu d o se confunde a p a rtir do m o ­
m en to em que com eça esse exam e crítico: a relação
m eios-fim , que a cred itáv am o s d o m in a r tã o bem ,
que se n os im p u n h a com o um a evidência, faz de
novo a teo ria m alo g rar (reler o capítulo p a rtic u la r­
m ente afetad o que ele dedica à “c rític a”, em II, 5).

52 François Jullien
r h u i, -

Em prim eiro lugar, p orque se to rn a m anifesto que


um m eio jam ais é in teiram ente isolável d o c o n ju n ­
to do qual faz parte, p o rtan to jamais com pletam ente
abordãvel pela análise, e p o r conseguinte jam ais per­
feitam ente identificável: assim com o to d a causa, por , Mas funda­
m ínim a que seja, “ estenderá seus efeitos ao ex tre­ mentando-se no
m o do a to de g u e rra ” , “m od ifican d o o resultado curso das coisas,
pode um “meio”
final num certo grau, p o r m en o r que seja” , assim
ser completamen­
tam b ém “ cada m eio exercerá efeitos que se esten­
te identificável?
d erão até o objetivo fin a l” . À m edida que se e s p a ^
lha e se m istura à com plexidade dos fenôm enos, a i
incidência d o m eio se dissolve e se tran sfo rm a, p o r -1
ta n to n ã o é m ais m ensurável. Além disso, esse ex a­
me crítico não deveria ser apenas a análise dos meios
realm ente em pregados, m as tam bém — p o r com ­
p aração — “ de to d o s os m eios possíveis” que cu m ­
pre p o rta n to prim eiram ente especificar, ou seja, no
fundo, “ inventar” . Clausewitz ousa dizê-lo: n ão sen­
d o m ais suficiente a análise d o que efetivam ente se
produziu, a avaliação do possível exige, da parte do
crítico (m esm o militar!}, um a grande capacidade de
“ in iciativa” e de “c ria ç ã o ” ... Difícil en tão é p reten ­
d er colocar-se exatam ente no p o n to de vista da pes
soa que age p a ra lo u v ar ou cen su rar seu ato .
Ao considerá-la assim m ais de perto, a relação i
m eios-fim suscita de fato ta n ta s dificuldades q u a n - '
to a relação de causalidade ao lado da qual ela anda; (
e aquilo que um a análise “crítica” , retro sp ectiva e
“te ó ric a ” , com eçou a deixar ver repercute sobre a
situação prática d o hom em que delibera m eios para j'~!'
atingir um fim d eterm inado. É forçoso ind ag arm o-
nos se acontece efetivam ente que, em pen h ad o s co­
mo estam os na com plexidade das situações, sem pre
em evolução, tenham os meios a “ escolher”, suficien­ A deliberação
tem ente claros e distin to s, à m an eira das idéias, e sobre os “m eios”
cujos efeitos futuros possam os prever, p ara que pos­ não será ilusória?

sam ser o objeto de um a com paração e perm itir “ de­


lib e ra r” a respeito deles. N ão b a sta m ais reconhe­
cer com A ristóteles que os m eios considerados para

T ratado da Eficácia 5.1


□gir são sem pre m ais o u m enos conjecturais; a p ró ­
pria “ d elib eração ” na qual se apóia a “p ru d ên c ia”
que ilum ina a “e sco lh a” to rn a-se um ta n to fantas-
m ática. D ito de o u tro m odo, e não se p o d erá m ais
esconder a q u estão , será que essa experim entação
' dos m eios possíveis, à distância, pro jetad o s sobre
o fu tu ro , an tecipando-se ao fim , não é sem pre —
ousem os a p alav ra, e com o risco de ser censurado
; -o-' (ípio — um pouco m ágicat
1
O que to rn a ta n to m ais o p o rtu n o perceber d
que m an eira o p en sam ento chinês da eficácia, en­
gajado com o ele é, p o d eria p assar ao lado dessas
dificuldades (com o risco, é claro, de se deparar com
outras; n ão espero dele que trag a um a solução para
as com plicações en frentadas pela teo ria ocidental,
m as antes que, g raças à décalage, deixe perceber
m elhor as razões dessas com plicações). V im os que
o estrateg ista chinês, em vez de elab o rar um plano,
p ro jetad o sobre o fu tu ro e que conduz ao objetivo
fix ad o , e depois definir o encadeam ento dos m eios
m ais ad eq u ad o s p a ra realizá-lo, p arte de um a av a­
liação m inuciosa da relação de forças em jogo p a ra
apoiar-se nos fatores favoráveis im plicados na situa­
ção e ex plorá-los co n tin u am en te p o r m eio das cir­
cunstâncias encontradas. Sabe-se que as circunstân-
i cias são com freqüência im previstas, im previsíveis
m esm o, e até to ta lm e n te inéditas, e é p o r isso que
n ã o se p o d e tra ç a r um plano prévio; elas contêm ,
em c o n tra p a rtid a , um certo potencial que, graças à
nossa m aleabilidade e à nossa disponibilidade, po-
(_dem os ap ro v eitar. Eis p o r que o estrategista chinês
O estrategista
chinês não delibe­ não projeta nem co n strói nada. T am pouco “ delibe­
ra sobre os meios r a ” , nem precisa “escolher” (entre meios que seriam
' igualm ente possíveis). O que pressupõe que não há
I sequer “ fim ” p a ra ele, traçad o à distância e de um
'm o d o ideal, m as que ele não cessa de tira r v an ta­
gem da situ ação à m edida de seu desenvolvim ento
i(e o que o guia é sim plesm ente o proveito a obter).
M ais precisam ente, to d a a sua estratégia consiste em

54 François Jullien
fazer que a situação evolua de tal form a que o efeito Mas ele tira
resulte progressivam ente p o r si m esm o e seja co er­ proveito do des­
dobramento da
citivo. Isso se d á , com o com eçam os a perceber, ou
situação
esgotando e p aralisan d o aos pou co s o adversário,
de m o d o que, q u an d o o co m b ate finalm ente inicia,
o o u tro já ten h a renunciado a com bater; ou, ao in­
verso, condu zin d o as p ró p ria s tro p a s a u m a situa­
ção sem saída, tran sfo rm ad a em “ te rre n o m o rta l” ,
de m odo que sejam obrigadas a com bater até a m or­
te, já que não podem m ais recu ar (SZ, cap. 11, “Jiu
d i” ). “ M ergulhadas tão p ro fundam ente no seio dos
perigos, elas não têm m ais m e d o ” ; “ n ã o sabendo
mais aonde ir, elas resistem ” ; “ não podendo agir de
o u tro m odo, elas co m b atem ” . A situação, no ponto
aonde é con d u zid a, contém o efeito: “ [...| sem que ¥
se tenha de fazer rein ar a o rdem , elas são a te n ta s” ;
“ sem que se ten h a de associá-las, elas são so lidá­
ria s ” ; e “ sem que se te n h a de c o m a n d á -la s, elas
obedecem ”.
E nquanto insistimos no caráter conativo e pro­
b ató rio dos m eios en genhados, essa disposição dos
meios uns sobre os o u tro s, p ara elevar-se em dire­
ção ao fim (esse “em direção a ” do pros to telos),
com o risco, aliás, de caírem , os pensadores chine­
ses insistiram n a legitim idade do resu ltad o espera­
do; d o m esm o m odo que os m eios são sem pre rela­
tivam ente artificiais, ao ser objeto de u m a m o n ta ­
gem, e devem exercer um a pressão sobre as coisas
p ara fazer advir o fim desejado, assim tam bém , des­
de que a situação leve ao resultado esperado, o efeito
Por conse-
decorre sozinho e n atu ralm en te. Pois, um a vez de-;
i| guinte, é a situa­
senvolvido o p o ten cial (de situação), está-se em si-\ ção que conduz
tuação de força (com o se falou a n te rio rm en te de por si mesma ao
um a posição de força). x\s form ulações variam p ara resultado
dizer isso: “a situação faz que não possa ser de outro
m o d o g” ; “ sem que seja buscad o h” , obtém -se o re­
sultado. C oloquem os os piores inim igos num b a r­
co, se o vento com eçar a fustigá-lo, vê-los-emos coo­
perar tã o intim am ente, diante d a tem pestade, q u a n ­

I'ratado da Eficácia
to coo p eram habitualm ente nossas duas m ãos: é da
\ m esm a m aneira, pela situação de perigo em que são
lançados, que deve nascer a coesão no seio dos exér­
citos (SZ, ib id .}. P ara forçá-los à resistência, impe-
dindo-os de fugir, já foi dito , o estrategista “ não se
a p ó ia ” em m eios m ateriais (do tipo “ cavalos pea-
d os” o u “ rodas enterradas” , com o aconteceu há não
T- m uito tem po em nossa linha M aginot), m as conten-
\ ta-se em d eix ar que atu e a situação à qual os a rra s­
to u . Pois, estabelecida com o é, a situação não dei­

Ç'" ><& [
xa o u tra saída, “ será preciso” subm eter-se a ela.
Disso resultam dois m odos de eficácia que re­
(0' m etem a duas lógicas concorrentes: ao lado da re-

9 % s lação de m eios a fim , que nos é m ais fam iliar, a re ­


lação de condição-conseqüência foi a que os chine­
n: ses privilegiaram . D esde que a estratégia consiste ern^
Condição- fazer que a situ ação evolua de tal m aneira que, ao
conseqüência: se d eixar levar p o r ela, de seu potencial acu m u la­
mudança de ótica do resulte n atu ralm en te o efeito, não há m ais ne­
cessidade de o p ta r (entre meios) nem de em penhar-
se — p ara atin g ir o fim. A b an d o n an d o um a lógica
da m odelização (que se funda sobre a construção
de um a form a-fim ), passa-se en tão a um a lógica do
processo (cf. a im po rtância do z e \ “resulta q u e” , na
articulação do discurso): de um lado, o sistem a cau ­
sai é ab erto , com plexo, de com binações infinitas; do
o u tro , o processo é fechado e o resultado está im ­
plicado em seu desenvolvim ento.

v| 3. M edir-se-á esse afastam ento das lógicas pela


m aneira com o o sucesso é percebido — hipotético,
, e ^ de um lado, e in elutável, do o u tro . Pois, d o lado
'g re g o , nascido da epopéia e m odelado pela trag é­
& dia, o pensam ento é sensível às am eaças que pesam
Piloto ou sobre a ação h u m ana. O estrategista se engaja na
estrategista: o
b a ta lh a com o o p ilo to em barca p a ra o alto -m ar,
empreendimento
am bos o p eram em cam pos em constante m utação,
permanece alea­
tório (do lado cheios de im previstos, sem jam ais estarem seguros,
grego) até o final, de p o d e r triu n far do adversário ou de

56 François Jullien
regressar ao porto: as reviravoltas perm anecem pos­
síveis, entre os dois cam pos, assim com o as m udan- - -, - ... j _
ças de vento, e a n arrativ a se co m p raz nessa inde- _i-y' ^
cisão e nas peripécias que d ram atizam . P o r isso, na
m aioria das vezes, p a ra triu n fa r, o herói tem neces- ' \'-[m
sidade de algum a assistência. A inda que tenham o i Ü
espírito fértil em m eios astu cio so s, m echanai, os
aqueus d iante de T ró ia n ã o poderiam ter o b tid o a
vitória sem o auxílio dos deuses; depois, vagando
nas “ ondas indom áveis” , sacudido pelas tem pesta­
des e c o n d e n a d o ao n a u frá g io , U lisses teria sido
esm agado p o r essas vicissitudes sem a cum plicida­
de de A tena. M esm o na época clássica, os tra ta d o s
gregos de estratégia sem pre reco m en d arão , com o
últim o recurso, o apelo à divindade: “ Im agina que
todos os hom ens, n a escolha de seus ato s, guiam -
sc apenas p o r conjecturas, sem saberem de m odo al­
gum aquele que lhes tra rá v an tag em ” , diz o velho
rei a seu filho (X enofonte, Ciropédia, I, 6); por isso,
quer se tra te de vencer o inim igo pela força ou pela
astúcia, “ aconselho que n ão as em pregue apenas
com a ajuda dos deuses” ÍH iparco, V). A o térm ino f
da racionalização grega da ação hum ana, Aristóteles
ainda colocará a arte da estratégia junto à da n a ­
vegação, e faz o acaso intervir paralelam ente à a r t e )
(Et. a E ud., VIII, 2, 1247 a): cabe à tecbne vir com-V
pensar a tyche, m as sem p o d er excluí-la.
C lausew itz disse p o r que não se podia elimi-
ntíí o acaso da g uerra. É que a guerra real jam ais é
a g uerra ab so lu ta (isto é, em co n fo rm id ad e com o
m odelo e segundo seu conceito), “ o rigor m atem á­
tico está excluído d ela” , e_não^se..poderia c h e g a ra /
resultados “ logicam ente necessários” . A diversidade^— imodelizável,
das relações de que é tecida a g u erra, e o ca rá te r o curso da guerra
incerto da delim itação dessas relações, fazem en trar seria Por isso
em consideração um grande núm ero de fatores que ilógico.'
não poderiam ser avaliados tod o s com exatidão; em
particular, a arte da guerra se aplica, com o sabem os,
“ a forças vivas e m o ra is” que escapam à determ i-

IV.imdo da Eficácia 57
nação quantificável dos efeitos físicos. Por isso, “ ao
longo de cada fio, grosso ou fin o ” de que é tecida
sua tra m a , processa-se um jogo com plexo de po s­
sibilidades “ que faz da guerra a atividade hum ana
que m ais se assem elha a um jogo de c a rta s ” ; por
isso, ela nos te n ta e nos a p a ix o n a , a despeito do
h o rro r que nos inspira, e não cessa de nos fascinar
por sua im previsibilidade radical, n ão ob stan te os
cálculos. O bjetivam ente, n ã o podem os elim inar seu
c a rá te r a le a tó rio e, subjetivam ente, a pessoa que
age, achando-se sem pre “ colocada diante das rea-'
lidades diferentes daquelas que esperava” , não pode
evitar a “ d ú v id a ” com relação ao plano traç ad o , e
r \ p ara se a te r a este tem de se valer d a vontade. N o
m elhor dos casos, o estrategista tra b a lh a em cim a
de p robabilidades; e, “ para to d a a parte de certeza
que falta, tem de confiar no destino ou na sorte, seja
q u al for o nom e que se lhes d ê ” .
1___ D iante desse b u raco que o argum ento da in-
| determ inação e do acaso deixa aberto no seio da teo-
\ ria ocidental, os antigos tra ta d o s chineses têm com
I que nos surp reen d er pelo fato de sua posição cate-
I górica. Para aquele que sabe apoiar-se no potencial
Na guerra da situação, “ sua vitória no com bate não se desvia”
como alhures, o
(SZ, cap. 4, “X in g ” ). Esse “ não se desvia” signifi­
desenvolvimento
iniciado não se
ca q u e o q u e ele faz “ o conduz inevitavelm ente ao
desvia sucesso” . Segundo as glosas, não há “ desvio” pos­
sível (Z hang Yu) nem “ d u as” possibilidades de evo­
lução (Li Q u an ; cf. a “ capacidade c o n sta n te ” que
n ã o se desvia, no L a o zi, § 28). Em função d a evo­
lução da relação de força, o resultado do com bate,
antes m esm o de iniciado, se acha p redeterm inado.
í C om efeito, co m o o explica um co m en tad o r, “ se
■' p rocurássem os vencer co m b aten d o pela fo rç a ” , ou
seja, co n ta n d o apenas com nosso investim ento fí-
^ sico, “p o r m elh o r que fôssem os” , haveria sem pre
^ “m o m en to s em que poderíam os ser b a tid o s” . M as
o bom estrategista intervém a m o n ta n te do proces­
so: ele soube identificar os fatores que lhe eram fa-

58 François Jullien
voráveis “ q u an d o ainda n ã o se haviam a tu a liz a d o ”
e, com isso, p ôde fazer q u e a situ ação evoluísse n o
sentido que lhe convinha; quando o potencial acum u-
lado se revela com pletam ente a seu favor, ele ini­
cia então decididam ente o com bate e o sucesso está
g aran tid o . >
A ra z ã o disso é simples: com o o diz em segui­ O sucesso é
da esse antigo tra ta d o de estratégia, ele vence um predeterminado
pela situação
inim igo “ já d e rro ta d o ” . A v itó ria é p red eterm in a­
da e n ão p ode desviar-se p o rq u e se acha im plicada
pela relação das forças em presença antes m esm o
que o co m b ate o co rra. O que a fórm u la seguinte
c ap ta com u m a sagaz inversão: “ Assim as tro p as
vitoriosas com eçam vencendo e pro cu ram em segui­
da lançar-se ao co m b ate; ao passo q u e as tro p as ¥■
vencidas com eçam lançando-se ao co m b ate e b u s­
cam em seguida vencer” . A m áxim a pode parecer
p arad o x al m as n ã o o é, ela apenas projeta nos com ­
p o rtam en to s o p o sto s o m o m en to da clivagem que
se produz necessariam ente na evolução da relação
antagonista, e da qual advém o sucesso. T ro p as que
buscam a v itó ria som ente no in stan te do com bate
são vencidas de antem ão . Pois, com o se com p reen ­
deu, o com bate n ão passa de um resultado. Ele ape­
nas m anifesta em plena luz, pela m an eira com o é
travad o , a p ro p en são que se achava im plicada na
situação antes m esm o que ele tivesse início; e é p o r
apoiar-se nessa propen são que já é designado o ven­
cedor, antes m esm o de lançar-se ao com bate. / r
T > t* V í’ rr'
Essa idéia parece evidente, parece inclusive ba­
X-
nal dem ais p ara ser propriam ente um a idéia: “ Se co ­
nheço o o u tro e se conheço a m im m esm o, em cem Ç, J
com bates n ad a ten h o a tem er” (SZ, cap. 3, “ M o u
g o n g ” ). M as a estratégia chinesa a p en so u em to d o A originalida­
o seu rigor, seguiu-a até as suas últim as co n seqüên­ de do pensamento
chinês é descobrir
cias e abre su a evidência à p ro fu n d id a d e . C om o
uma profundida­
qu alq u er o u tro processo, o curso d a guerra n ão de­
de no truísmo —
pende apenas dos fatores que estão em jogo: se co­ é aprofundar a
nheço suficientem ente a relação d as fo rças entre evidência

Tratado da Eficácia
m eu adversário e m im , poderei aceitar lançar-m e ao
com bate som ente se tiver certeza de que o potencial
atu a com p letam ente a meu favor. T oda a estraté­
gia rep o u sa p o rta n to num a coleta de inform ação
sistem ática (daí a im p o rtân cia d ad a à espionagem
e às suas diversas categorias de agentes, m eticulosa­
m ente repertoriadas — “ nativos” , “ in tern o s” , “ d u ­
Ú\
plo s” etc.; cf. SZ, cap. 13, “ Yong jian ” ), seguida de
avaliação: convém “ estim ar” — “ av aliar” — “ enu­
m e ra r” — “ so p e sar” , até que, pela diferença dos
pesos cotejados, a balança p enda brutalm ente para
um lado (SZ, cap. 4). As tro p as vitoriosas, é dito à
m an eira de adágio (cf. tam b ém G G Z , cap. “ Ben
jing” , § 4), são com o um tonel em co m p aração a
um a plum a. A cum ulando potencial, o estrategista
! aum enta o desequilíbrio e, q u ando se lança ao com ­
bate, precisa apenas deixá-lo agir.
A g u erra, p o r conseguinte, nada m ais oferece
de estranho o u de incerto. É reduzida à lógica de um
processo que, evoluindo a p a rtir unicam ente d a in ­
teração dos pólos (opostos e com plem entares: os
dois adversários), torna-se perfeitam ente coerente.
N ã o dá lugar, p o rta n to , à indeterm inação e ao ac a­
so, não é m ais suscetível de q u alquer determ inação
ex terio r — deus ou destino. O céu dos tra ta d o s es-
- tratégicos chineses não é m ais que o céu m e teo ro ­
V * " '
lógico e clim ático, de concepção p u ram en te n atu -
i ralista, que intervém norm alm ente a títu lo de fato r
& na av aliação d a relação em jogo (cf. SZ, cap. 1,
“J i ” ); e, se h ouver d e rro ta, isso de m aneira n en h u ­
m a se deve a um a “ calam idade celeste” , m as sem ­
pre ao erro do general (cf. SZ, cap. 10, “D i x in g ” ).
■Q u a n to à “ presciência” requerida antes de trav a r
o com bate, não é dos “e sp írito s” que o estrategista
| pensa em obtê-la, m as de seus serviços de inform a-
í ções... P or isso, cabe-lhe — e a fórm ula é lap id ar —
“Proibir os
“ p ro ib ir os presságios e a fa sta r as d ú v id a s” (SZ,
presságios”, “afas­
tar as dúvidas” cap. 11, “Jiu d i” ). Ele não só rejeita os o m ina de
antes da b atalh a, aos quais to d a a nossa Antigüí-

60 François Jullien
dade se confiou, mas também não se permite sequer
;i dúvida que, assegurava-nos Clausewitz, sempre
atinge o próprio general quando, após ter concebi­
do seu plano, enrra em ação. Uma única modalidade f
articula toda essa reflexão: o que se produz “a cada
instante” “não pode deixar d e” acontecer (desde o
momento em que suas condições estão asseguradas);
em uma palavra, é “ inelutável” (bik).
Essa idéia de uma inelutabilidade dos proces­
sos, e portanto do sucesso de quem sabe aprovei­
tar-se dela, se verifica em todo o pensamento chi­
nês. Em bora em sentido exatam ente oposto às te­
ses estrategistas, já que ele considera que a sobera­
nia repousa, não nas relações de força, e portanto
A
na arte da guerra, mas no dom ínio exercido pela
m oral, um pensador como M êncio não sai dessa A propensão é
lógica do conseqüente e do antecedente. Ou, melhor, determinante em
a m oralidade é tam bém um a força, tanto mais de­ moral com o em
term inante quanto é capaz de se reproduzir e age estratégia

por influência, de maneira difusa e discreta. PreoV


cupai-vos com vosso povo, diz M êncio ao prínci­
pe, partilhai vossos prazeres com ele, e não podereís
deixar de reinar progressivamente sobre todos os
príncipes: pois todos os povos quererão submeter-
se à vossa autoridade, eles vos abrirão suas portas
e não conseguiriam resistir-vos. Se, pela violência, |
não se tem outro final senão o fracasso, pois o po- |
der de que se dispõe é limitado e suscita a rivalida- j
de, é suficiente, em contrapartida, apoiar-se na pro- j
pensão que resulta de sua autoridade para ser levado
pelos o utros a triunfar (M Z, I, A, 7). Conclusão
idêntica à dos estrategistas, mesmo que o ponto de
partida seja inverso (o bem moral oposto ao pro­
veito pessoal): não se precisará sequer “buscar” esse
resultado, da simples conciliação das condições fa­
voráveis o efeito decorre naturalm ente e se torna
“irresistível”. Todo o pensamento chinês da eficá­
cia, e quaisquer que sejam suas opções ideológicas,
encontra-se neste gesto: “voltar” à “origem”1, à “ba-

T ratado da Eficácia 61
a *. o r ç c -
se” , isto é, ao ponto de partida daquilo que, com o
condição, levado a seguir pela evolução das coisas,
irá impor-se progressivam ente sozinho. O efeito,
então, não é apenas provável, como num a relação
construída de meios a fim, mas também, decorren-
O plano de '^do sponte sua , se produz infalivelmente.
fundo da diferen­ Começamos a perceber que o fosso que sepa­
ça: a “delibera­
ra esses dois m odos de eficácia é profundo demais
ç ã o ” grega ins-
creve-se numa
para não se inscrever num a diferença mais geral. A
tradição política deliberação que está no ponto de partida da rela­
ção meios-fim é em primeiro lugar um procedimento
social e político que o m undo grego prom oveu, e
que converteu inclusive em sua principal instituição
(do Conselho dos Anciãos de H om ero, a boulê, à
deliberação dem ocrática em assembléia); paralela­
mente, a instância deliberante interiorizou-se e é em
“deliberação consigo m esm o” que o indivíduo, ins­
ta urando-se como “princípio dos futuros” (arche
tôn esom enôn), determ ina sua ação. Q uanto à Chi­
na, não privilegiou uma organização deliberadora
em seu funcionam ento político, mas fundam entou
sua visão do m undo sobre a regulam entação; por­
tanto, não concebeu a eficácia a p artir da ação,
com o entidade isolável, mas segundo o m odo da
transform ação.

62 François Jullien
IV .
ação ou tra n sfo rm a çã o

í. O que se pode pretender, na verdade, sufi­


cientemente unitário e separado, no seio do com ­
portam ento — que seja autoconsistente e suficien­
temente independente de todo contexto, e acima de
t udo do antes e do depois — para que se possa des-
lacá-lo como tal na tram a de nossa existência? Exis­
te uma realidade própria, que tenham os condições
de assinalar e identificar, e que podem os cham ar
"ação” ? Os pensadores chineses poderiam duvidar Que pressu­
disso, eles que consideram a conduta hum ana como postos a pensar a
qualquer outro curso, em termos de processo, re­ “ação” ?

gulado e contínuo. Curso da natureza ou da con­


duta (tianxing — renxing), tao hum ano e tao do
m undo — para eles, a tram a é ininterrupta. Pensar
.1 ação implica, simetricamente, um duplo pressu­

posto: figurar a conduta hum ana como um fazer es­


pecífico (ergon , praxis; e, novamente, o modelo téc­
nico da produção serve de referência) e conceber a
.ição como uma entidade própria, isolável, e capaz
de servir de unidade de base à conduta.
Acontece o mesmo para pensar a guerra. Clan-
scwitz concebe-a como um ato: o que ele chama o
O “a to ” de
"ato de guerra” . Já vimos a estratégia definida en­
guerra
quanto “ plano” , ele próprio função de um “obje­
tivo”, mas é a ação que constitui sua base, ao for­
necer-lhe os “ meios” . Essa ação que depende de um
pl.ino e conduz ao objetivo corresponde na guerra
,10 com bate, e é a partir dessa “ unidade ” que a guer-
Unidade de
i .1 é analisável: conceber-se-á a “tática” como a teo-
ação: o com bate
i u relativa ao uso das forças arm adas no combate,
r n “estratégia” com o a teoria relativa ao uso dos

1 1.1 tudo da Eficácia


com bates a serviço da guerra; ou, ainda, a tática
incide sobre a “ form a” do com bate e a estratégia
sobre sua “significação” . N ão haveria, portanto,
senão “uma simples e única m aneira de encarar as
coisas” , conclui Clausewitz, é saber “qual será, em
cada instante da guerra e da cam panha, o resulta­
do provável dos grandes e dos pequenos combates
que as duas partes em confronto podem propor-se” .
E inclusive aí que a reflexão de Clausewitz se to r­
na mais sutil — mas talvez já ultrapasse também seu
quadro e se ponha em perigo: desde o m om ento em
que sua possibilidade é levada em conta, um com ­
bate que fosse apenas considerado pode ter uma
incidência determ inante sobre a seqüência das ope­
rações. Finalmente, o com bate mesmo não ocorreu,
mas suas conseqüências — pois é nelas então que
se pensa — são bem reais.
Em todo caso, somente essa ação que o com ­
bate constitui permitiria obter uma “eficácia verda­
deira”, enquanto “eficácia direta”, para atingir o
efeito visado. E Clausewitz praticam ente não dei­
xa dúvida sobre a natureza desse efeito: o com bate
não visa outra coisa, na guerra, senão a destruição
das forças adversárias. Clausewitz pertence, com
Destruir o ini­
efeito, àquela tradição m ilitar que deve sua origem
m igo (Clausewitz)
à batalha ordenada, tal como se constituiu em nossa
Antigüidade (cf. o enfrentamento das falanges, m ar­
chando uma contra a outra, em fileiras cerradas),
e que Napoleão, durante toda a sua vida, teria apro­
xim ado de sua forma absoluta (cf. Austerlitz). É a
ela que Clausewitz converte em teoria; seu objeti­
vo único é aniquilar o inimigo (cf. D a guerra, I, 2:
“A destruição das forças inimigas sempre se reve­
la, portanto, o meio superior e o mais eficaz diante
do qual todos os demais devem esm orecer” ). Ora,
o antigo tratado chinês recomendava exatam ente o
inverso. Um de seus primeiros capítulos começa com
este princípio: “De m aneira geral, o m elhor proce­
dim ento, na guerra, é conservar intato o país [ini-

64 François Jullien
migo], destruí-lo só na pior das hipóteses” (SZ, cap. O u preferir
í, “M ou gong” ). E isso permanece verdadeiro em “m antê-lo inta­
t o ” (lado chinês)
qualquer escala: “Conservar intato o exército [ini­
migo] é preferível a destruí-lo”, valendo o mesmo,
insistimos para m aior clareza, no nível de cada b a­
talhão e da m enor esquadra. O que torna flagrante
;i oposição: “Assim, os que são peritos na arte da * -
Hiierra subm etem o exército inim igo sem trav ar
combate; tom am as cidades sem atacá-las e arrui­
nam um país sem operações prolongadas. E sempre
conservando intato que se deve conquistar o m un­
do inteiro; assim as armas não perdem o fio e o pro­
veito é to ta l” . Como o resume um com entador (Li
Quan), não há “ valor” em m atar; em vez de des-
1 ruir as forças do adversário, mais vale fazê-las pen­

der para o nosso lado. Penetrando profundam ente


em seu território, separando-o de suas bases, cor-
iando-se suas relações, obriga-se o inimigo a ceder,
d e se submete espontaneamente; e, ao mesmo tem ­
po que tomo o país inimigo intato, “m antenho ínta-
tas minhas próprias tropas” : a economia é máxima.
N ão existe aí, por conseguinte, nada mais que
11111 paradoxo. E que não haja equí%’oco: não é por

bondade de alma que se evita m assacrar o inimi - 1 *Y~


Ho, mas por pura preocupação de eficácia. Enquan-j
lo o objetivo da guerra, considerada do ponto dei
vista da ação, é a destruição do adversário, seu ob-
|ctivo, quando ela é considerada do ponto de vista
ila transform ação, se torna sua desestruturação
( lomeça a esboçar-se uma oposição à qual teremos
seguidamente de voltar: a eficácia da ação é direta
(de meio a fim), mas é onerosa e arriscada; a da
transform ação é indireta (de condição a conse­
qüência), mas se torna progressivamente incontor-
luvel. O ideal na guerra, especifica na verdade o
i l.issico chinês, é “atacar o adversário em sua es-
ti.itégia” , depois “ em suas alianças” (ou “quando
ns exércitos fazem sua junção”), depois “em suas
n o p as”, finalmente “em suas posições”. Iniciar (di­

I i.iu d o da Eficácia í»S


retamente) uma guerra de cerco é o pior, tanto por
causa da imobilização das forças que daí resulta
quanto porque nela se está mais exposto; esse face-
a-face imóvel representa o grau zero da estratégia.
Esta consiste, ao contrário, em atacar o inimigo em
seu “cérebro”, como dizem os antigos com entado­
res, muito mais do que em suas forças físicas; pois,
desm oralizado aos poucos, o inimigo acaba por
entregar-se naturalm ente, é vencido sem disparar
um tiro. Simplesmente porque sua resistência está
paralisada — e não à força de “com bates” .
A noção de com bate ofereceria a Clausewitz
uma outra comodidade: permitir-lhe-ia analisar a
guerra enquanto tal, stricto sensu, separando-a de
tudo o que a cerca ou nela se imiscui — mas não é
ela; ou seja, distinguir, segundo seus termos, entre
a guerra propriamente dita, concebida como “o uso
das forças arm adas” , e aquilo que, enquanto “m a­
nutenção das forças”, seria apenas uma “prepara­
ção para o com bate” e deve, por esse motivo, ser
excluído da estratégia. Isto porque, mesmo que não
possa negar a influência exercida por essas “preli­
m inares” (ou, pelo menos, o que ele deve julgar co­
mo tal, porquanto “essa preparação, reconhece ele,
se aproxim a bastante da ação, de modo que traz em
sua esteira a ação da guerra, e na prática alterna-se
com esta” ), Clausewitz tem, no entanto, necessidade
de operar essa separação para pensar a guerra “se­
gundo seu conceito” , com o ato puro, e com o tal
isolável. O ra, vemos ao contrário os antigos tra ta ­
dos militares chineses integrarem à sua reflexão es­
tratégica não somente as questões de organização
e de abastecimento, mas tam bém o custo econômi­
co da guerra e o estado m oral e político do país (cf.,
em SZ, a im portância do cap. 2, “Zuo zhan”). De
fato, são fatores que intervém no curso da guerra e
o infletem; não se pode, portanto, excluí-los a títu­
lo de “circunstâncias concom itantes”, como o faz
Clausewitz, uma vez que essas condições fazem par-

François Jullien
te do potencial da situação e se revelam determinan­
tes do ponto de vista da evolução das forças em
presença. Acha-se modificada, por via de conseqüên- í
cia, a própria natureza do com bate: para Clause- I
witz, somente este, no fogo da ação, é verdadeira- 1
m ente decisivo, é o m om ento em que se joga tudo !
c constitui, portanto, por si só, a “essência” da guer- '
ru; ao passo que, começamos a percebê-lo, para os j
estrategistas chineses, o combate é tão-somente o re-j
sultado, a título de conseqüência, de uma transfor^*
inação que se operou a m ontante. ^
Pensando a guerra a partir do com bate, en- h ^PV )
quanto ato isolável, Clausewitz só pode conceber-
ilie a duração feita de “vários atos sucessivos” ou,
no máximo, estreitando-lhes a ligação, como uma
"engrenagem de com bates” . Ou seja, ele não é ca­
paz de explicar o tem po próprio da guerra, quer se
ir.ite de uma simples cam panha ou da guerra intei­
ra, senão como uma som a dos m om entos de ação.
I odo intervalo de tem po entre eles só pode fazer av
Fracasso, a
guerra desviar-se e afastá-la de sua essência. Por­ partir do “aco”,
quanto tudo o que não é ação só pode então exis- em explicar a
n r negativamente como “suspensão de ação” — em duração
mitras palavras, com o “ inação” : tudo o que não é
.ição na guerra não seria mais do que uma “dilui­
r ã o da guerra no fator tem po”. O ra, por sensíveis
que sejam à eficácia das operações mais breves, que
intervém a título conclusivo, os estrategistas chineses
v.ilorizaram, em troca, o tempo progressivo da trans
lormação, durante o qual o potencial é acumulado, V O tem po entre
os com bates não
l.sse tempo entre os com bates não é um tem po es-
é um tem po
leril, um tem po m orto, com o se diz, mesmo que m orto
pareça inativo, porque esse desenrolar permite uma
evolução graças à qual a relação de força poderá
pender finalmente para o bom lado. N ão há “dilui-
(,.!<>” no tem po, mas m aturação pelo tem po, nele o
r le i to não se perde mas se desdobra. Pois a eficácia
indireta exige um tem po longo — um tem po lento
p a r a operar. Concebendo a guerra segundo a

I i.iiail» da Eficácia f>7


::r *,
Vo (fç o c & o
categoria não do ato mas do processo, os chineses
nos ensinam esse bom uso da duração.

2. Teríamos que voltar, portanto, ao m ito oc


dental da ação. T anto mais que a ação é, de fato, o
O mito ociden­ objeto próprio ao m ytbos, concebido exatam ente
tal da ação como relato de ação, pelo qual teve início a civili­
zação européia. Repassemos, pois, essas imagens,
elas que estão entre as primeiras da história de nossa
razão. Deus, seja o da tradição judaico-cristã ou o
do Tim eu, faz o m undo existir por meio de um ato
criador; e é próprio do herói tam bém im prim ir sua
ação sobre o mundo, enfrentando-o: com a epopéia,
a literatura começou pelo relato de atos m em orá­
veis, enaltecidos a título de façanhas, depois a tra­
gédia os encenou (sendo próprio do teatro, lembra
Aristóteles que ainda não possuía term o para o que
chamamos personagem, representar os homens “en­
quanto agem”, prattontes). Constatação sumamente
banal, mas que o é menos vista da China. A China
Visto da China não construiu um grande relato da gênese, nem se
em penhou em explicar o advento do m undo por
algum ato demiúrgico (a história de N ü W a am as­
sando a lama não se colocou a serviço do pensamen­
to); nenhum traço de epopéia tam pouco, na anti­
güidade chinesa, nem por conseguinte do teatro que,
entre nós, se lhe seguiu: outras tantas ausências a
avaliar para investigar, em troca, de onde nos che-
- gam nossas representações. Descobrimos não ape­
nas que o pensam ento chinês não se entregou ao
culto do agir — heróico ou trágico —, mas também,
mais radicalm ente, que não escolheu interpretar o
_real em termos de ação. Sua obra mais antiga (o I
Ching ou Clássico da M utação), construída a p ar­
tir da oposição de dois tipos de traços, cheio e que­
brado, representando os dois pólos de todo proces­
so, explica a realidade sob o aspecto de uma tran s­
formação contínua: as figuras se convertem umas
nas outras por simples perm utação de traço, no in-

68 François Jullíen
terior da série de diagramas, e o sábio aprende, ao
consultá-los, a estim ar o cam po das forças que es­
tão em presença e constituem o potencial da situa­
ção. N ão para fazer disso um objeto de contem pla­
ção (e o pensam ento do ato caminhou, na Grécia,
junto com a abstração do ser), mas para pôr sua
conduta continuamente em fase com a evolução das
coisas. A eficácia, na China, não cessaremos de com­
prová-lo, é um a eficácia por adaptação.
Sabe-se que, tom ando o cam inho da reflexão
iniciada pela tragédia, Aristóteles pensa a ação a
partir de duas m odalidades opostas, conforme seja
realizada “ de plena vontade” (h ekôn ) ou “contra
nossa vontade” , conform e tenha seu princípio em
nós ou ajam os “ sob coerção” ou “por ignorância” .
Ele valorizava, assim, a im putabilidade do sujeito O que não é
e abria um lugar para a deliberação que permitisse nem escolhido
a este “escolher” seu ato (daí termos podido desen­ nem sofrido
volver posteriorm ente um pensamento da Vonta^çj^-
como instância autônom a e condição da liberdade^.'
O ra, a língua chinesa, constatam os, não opõe ca­
tegoricamente o passivo e o ativo (não há voz a esse N em ativo
respeito), ela deixa no mais das vezes essa diferen­ nem passivo
ça indecisa, e descreve as operações sob o aspecto
não tanto do agente quanto do “funcionam ento”
(o do yo n g em relação ao tim). Consideremos, por
exemplo, a eficácia por influência, resultante de um
condicionam ento (como quando o potencial da si­
tuação nos torna corajosos em combate): em que
medida ela nos é atribuível? N ão a “escolhem os”,
mas ela tam pouco se exerce como uma “violência”
.1 nosso respeito (favorecendo, com o o faz, a mani-

lestação de nossa energia), ela se integra ao m e s m o j


Irm po em que inflete. A clivagem ativo/passivo, t a r I
como é estabelecida em nossas gramáticas, é dema
si.ulo estreita para apreendê-la. Porquanto o que me
"p o rta” desse modo não é devido a mim nem tam
N em eu nem
pouco é sofrido por mim, isso não é nem eu nem não-eu
n,io-eu, mas antes passa através de “m im ” . Enquan

I t alado da Eficácia

l
to a ação é pessoal e remete a um sujeito, essa trans­
D issolução da formação é frawsindividual; e sua eficácia indireta
categoria de su­
dissolve o sujeito. Isso, é claro, em proveito da ca­
jeito em proveito
do processo tegoria do processo.
Tam bém nós tivemos de responder pelo caso
em que o resultado é bem-sucedido sem que por isso
possamos considerar que “isso” nos é devido pes­
soalm ente. Solução tradicional, a nossa, mas da
qual, compreensivelmente, os pensadores chineses
não tiveram necessidade: “isso” nos é “inspirado” ;
o sucesso que não vem de mim provém de uma ação
Por trás do exterior a mim — mas ação sempre, seja dos deu­
m ito da ação, o ses seja dos demônios. A razão teve de violentar-se
da “inspiração”
j para adm itir um a solução como essa, sabe que ela
j é irracional, mas a tolera por ser côm oda: pois ela
vem com pensar o custo da racionalização exigida
pela constituição de um sujeito agente, como ins­
tância autônom a, sem que p o r isso nos faça sair
j dessa noção de agente (mas apenas a recue). Na
esteira de Platão, Aristóteles ainda usa essa solução
(quando, aliás, se deixou de usá-la?): aqueles que,
“ de onde quer que se lancem, têm êxito sem refle­
xão, são habitados pelo deus” (Et. a E ud., VIII,
1247 a), a boa fortuna (eutychia) é um “dom ” do
Céu — no mesmo sentido que um bom nascimen­
to. M as progressivamente, e a partir de Aristóteles,
o pensamento ocidental desenvolveu uma distinta
concepção do acaso (cf. Et. a N ic., VI): como efei­
to não mais da providência, mas da contingência;
n ão mais devido à inspiração do deus, mas à inde-
term inação da m atéria. Desde então, o acaso não é
mais o nom e dado por nossa ignorância a essa for­
M utação eu­ ça obscura que dirigiria tudo, aquém das causas que
ropéia na identi­ identificamos, mas aquilo que, nas lacunas da ação
ficação do acaso divina, permite à iniciativa hum ana insinuar-se. Já
que não somos guiados pelo deus, podem os — e
mesmo devemos — entregar-nos à deliberação: há
lugar para a ação hum ana que se insere na ordem
do m undo, porque esta é inacabada; e, na falta de

70 François Jullien
uma Providência, a “prudência” (cf. prudentia co­
mo contração de providentia , segundo Cícero) é o
imico recurso que nos resta para conduzir a ação
.lo sucesso.
O pensamento europeu não cessou de alargar
fssa brecha aberta à indeterm inação das coisas. Ao
desembaraçar da finalidade o m undo das questões
humanas, e isso sobretudo desde a Renascença (já
que aí a contingência não é mais somente residual
como em Aristóteles), ele foi levado a associar ta n ­
to mais estreitamente a ação à eficácia. Com efei-
lo, ao torn ar o m undo hum ano um m undo de ins- ■ f
1.1 hilidade, votado à descontinuidade, ao efêmero,
,i mobilidade, sem nenhum princípio de ordem que
lhe fosse intrínseco ou o transcendesse, ele não po­
dia mais conceber a eficácia a não ser segundo o
modo de uma intervenção arriscada que, por sua
•uidácia, viesse responder à imprevisibilidade das Somente a
coisas — e beneficiar-se dela, também. Sabemos que ação arriscada
poderia enfrentar
.t política é essencialmente ação para M aquiavel,
a impre\'isibilida-
nisso comparável à guerra, e seu Príncipe é inteira­ de das coisas
mente um elogio à capacidade de empreender. Por­
LcwV. •
quanto a m atéria política, sendo contingente, é ao
mesmo tem po m aleável, p o rtan to tecnicam ente C ü iT *
irunsformável, e o homem tem poder sobre ela, aj
despeito dos perigos; pode esperar dar-lhe forma a<
lhe impor seu desígnio. Abrindo-se o caos político
,i todas as iniciativas, o homem reage ao perigo pelo
virtuosismo de sua ação, inovando. Por isso, ao cabo
r* Virtuosidade da
de uma laicização da antiga idéia de criação, é o ato ação (Maquiavel)

de fundação política que, voluntário e resoluto, e


num plano estritam ente hum ano, serve de padrão
iios heróis (Ciro, Teseu ou R ôm ulo — e mesmo
Moisés). Por sua ação, o homem poderia ser cria
dor de “ordem nova” .

3. O ra, é forçoso constatar que a tradição chi­


nesa se m ostrou cética em relação a essa eficácia
.ilrihuída à ação. Isso vale, aliás, para todas as es-

li.itad o da Eficácia 71
colas, e seja qual for o grau de insistência, com o se
se tratasse aí de um a intuição comum que servisse
de fundo ao pensam ento (isto é, que o pensamento
não cessou de explorar), e cuja evidência não se
poderia recusar. Evidência jamais completam ente
justificada, portanto, e que me arriscarei a desen­
volver da seguinte maneira. Pelo simples fato de que
j ela intervém no curso das coisas, a ação está sem-
: pre num a relação de ingerência a respeito delas, sua
1 iniciativa a torna intrusa; como vem de outra par-
, te (introduzindo plano-projeto-ideal), ela não aban-
í dona uma certa exterioridade em face do m undo e
i portanto está sempre relativamente em desaprumo
, ' com ele — ela permanecerá arbitrária. Arbitrária e
| ■im portuna. Pois, ao se inserir no curso das coisas,
: ela sempre rom pe um pouco o tecido das coisas e
, vem perturbar sua coerência; inclusive, ao impor-
| : se a elas, suscita inevitavelmente resistências, ou pelo
i menos reticências, que ela não pode de pronto con-
I trolar mas que lhe fazem frente, num a coalizão tá-
J ! cita, e a desfazem em silêncio. Até que o abalo que
I ela produz se am orteça, que a agitação se dissipe e
\seu efeito seja reabsorvido.
Por outro lado, ela intervém num instante de­
term inado e não em outro, faz pesar aqui e não ali,
é sempre local e m om entânea (ainda que dure dez
anos, como a guerra de Tróia...), sua incidência é
> pontual. Como intervém arbitrariam ente e é isola­
da, essa ação se destaca e sobressai no curso das coi­
sas, portanto chama a nossa atenção: ao forçar o
curso das coisas, força tam bém nosso olhar. Além
disso, com o é pessoal e remete diretam ente a um
sujeito dado (mesmo coletivo), ela se deixa facilmen­
te identificar. Por isso produz acontecim ento, inau­
gura um sentido, monta-se uma história com ela.
Focalizando a atenção, cristalizando o interesse: a
articulação que ela faz emergir do desenvolvimen­
to das coisas serve de tram a à narração, e a dificul­
dade que ela enfrenta cria o suspense que cativa; sua

François Jullien
aspereza, em suma, serve de g ancho da narrativa. * T U"
Mas esse aspecto espetacular é apenas a contrapar­
tida de sua pequena influência sobre a realidade —
pelo que ela é, ao mesmo tem po, arti- e super- ficiai:
umjsimples epifenôm enõjenfim, que se destaca m o­ M as quase
mentaneamente com o um rasto de espuma sobre o não o efeito
fundo silencioso das coisas — mas logo apagado.
Pela tensão que oferece, ela pode muito bem satis­
fazer a nossa necessidade de dram a (“dram a” em
grego = ação), mas não é eficaz. O u, como o deixa
transparecer tam bém nossa língua, ao perceber seu
avesso, todo agente (ator), quando infringe a ordem
das coisas, se com porta com o “energúm eno” (cf.
energein : agir) — ao invés de ser o dem iurgo que
acredita ser; e todo agir é ingênuo.
Por causa disso, para assegurar sua influência
sobre o m undo, para nele exercer seu domínio, o sá­
bio não age — não mais do que o estrategista (os
dois papéis coincidem nesse ponto) — , ele “trans
form a” (buan). Pois, ao contrário da ação, que é
necessariamente m om entânea, mesmo quando se
prolonga, a transform ação se estende no tem po, e ! É da continui­
c dessa continuidade que provém o efeito. O pen­ dade da transfor­
samento chinês nos reconduz incessantemente a essa m ação que vem o
efeito
constatação: p or ínfimo que seja o ponto de parti­
da, por acentuação progressiva chega-se aos resul­
tados mais decisivos; ele foi particularm ente sen­
sível, de fato, à m aneira pela qual aquilo que não
se interrom pe é levado, por esse simples fato, a se
"desdobrar” , a se “espessar” , a se “ adensar” e, por
acumulação regular, adquire cada vez mais consis­
tência (cf. ZY, § 26). A ponto de isso acabar se im­
pondo à nossa “ evidência” sem deixar de ser natu-
i al. O u, com o o exprim e habilm ente a fórm ula,
“lorna-se manifesto sem [precisar] se m ostrar0” : o A mais sutil
categoria mas
t esultado é cada vez mais sensível, inclusive tornou-
tam bém a mais
m' patente, mas justamente a título de resultado, sem
decisiva: o que se
que jamais tenha atraído o olhar ou que se tenha torna evidente, à
<!<■ assinalá-lo. força de se mum-

1 1 .tu d o da Eficácia 7.1


festar, mas sem Prova disso é a m aneira como podemos expli­
precisar se mostrar car a “ascendência” — notadam ente a ascendência
do sábio, um fenômeno que a China analisou m ui­
Da ascendência to mais do que nós. Ou talvez estejamos pouco à
vontade p ara analisá-lo, exceto para considerá-lo
segundo o m odo do não-sei-quê clássico, com o em
Gracián ( “...Eles se apoderam do coração e da lín­
v.r< •íjao. ,í -f i gua dos outros, por um não-sei-quê que os faz res­
peitar” , O hom em da corte, XLII). Transform ação
de si e transform ação dos outros são igualm ente
progressivas, e uma é consecutiva à outra: é porque
a “ autenticidade interior” não se desmente que ela
acaba por “enform ar” todo o com portamento; com
I
o tem po, ela se torna “transparente” fora, depois
D o interior
tão com pletam ente “ m anifesta” que essa objetiva-
para fora: mani- ção, ao se intensificar, reage necessariamente sobre
festação-trans- (o que está em volta e o sábio acaba, sem o querer,
form ação por “ abalar” e “transform ar” (ZY, § 23). Do prin­
i-w'
cípio interior a seu efeito externo, a transição é re­
gular, o encadeam ento, contínuo. Assim, pelo pró­
prio fato de que ele não a trai — que continua a não
traí-la, a confiança dos outros se torna cada vez mais
sólida a seu respeito, é cada vez mais ancorada; pelo
simples fato de jamais ser rom pida, ela se manifes­
ta, integrando-se sem sobressalto à realidade, e fun­
g ç o oscp<W
ciona naturalmente. Com o tempo, o sábio não tem
çSt * necessidade de “se mexer para ser respeitado” , de
“falar para ser acreditado” , de “recom pensar para
encorajar” ou de “se encolerizar para ser tem ido”
(ZY, § 33). Em sum a, ele não precisa “se m exer”
(num sentido ou no outro, o que é sempre relativa­
mente arbitrário) para “ m odificar” a realidade; em
outras palavras, e esta fórmula é a mais eloqüente,
ele não precisa “ agir” para fazer “ advir”P (ZY, §
26).
A m udança decorre então naturalm ente, a tí­
tulo de conseqüência, por simples prolongam ento
do processo, sem que se tenha de fazer pressão so­
bre a situação e nem tam pouco despender energia.

74 François Jullien
O ra, o mesmo acontece se, deixando o campo das
preocupações morais, passamos a considerar como,
de m aneira mais interessada, o conselheiro de cor­ =>0 .
te ganha ascendência sobre seu príncipe (por fami- _
7*rOvivíc a -
liarização progressiva); ou faz que a situação evo-
•IV* <V C l í O * ' - L
luaf à~seu favorTpor modificação contínua). A anti­
‘ v " c ’' ' '■ 3
ga fórmula de sabedoria vale tam bém para a estra­
tégia, e estas poucas palavras resumiriam por si sós
o cam inho chinês da eficácia: “pela duração trans- J
formar [e fazer] advirq” (GGZ, cap. 8, “M o ” ). Fa- j
zer advir (ou melhor, deixar advir, pois esse fazer é
dem asiado injuntivo) não é buscar impor o efeito, N ã o impor o
com o quando se age, mas deixar que o efeito se im- efeito mas deixá-
lo impor-se
ponha naturalm ente, por sedim entação progressi­
va — adquirindo corpo, ganhando massa. De modo ■.X» C5U-
que não sou mais eu que imperiosamente o quero,
JEA>
mas é a situação que progressivamente o implica:
rc>^ A > a 'o ^ r °
a injunção se introduziu habilm ente no curso das
coisas e não se reconhece mais nele.
Por outro lado, ao contrário da ação, que sen>
pre é pontual, a transform ação se opera sobre to ­
dos os pontos do conjunto em questão. Esse é pro­
priamente um aspecto da realidade ao qual os chi­
neses foram sensíveis ao m áxim o, e no qual o anti­
go C lássico da m utação não cessou de insistir: a
transformação não tem “lugar próprior” . N ão só ela
não é local, com o o é a ação, mas tam bém não é
localizável, seu desdobramento é sempre global. Seu | A transforma-
efeito, por conseguinte, é difuso, am biente, jamais J ção é global —
acantonado. portanto não se vê

Por isso, por ser contínua e progressiva, por


operar em toda p an e ao mesmo tempo, a transfor­
mação passa norm alm ente despercebida. N ão sen­
do mais atribuível (a uma vontade individual), tam ­
pouco localizável (num lugar e num m om ento d a­
dos), ela não é isolável, não se destaca, portanto
não se vê. Diferentemente da ação, que é sempre
espetacular, e tem o mesmo aspecto teatral, seu
efeito se'dissolve na situação. Isso foi dito muitas

-> )c. 3t VVjia f o o


VvA)C. » .'p r.< ra r
i 75
Tratado da Eficácia
... • . * n>--: W -V : --«e. • ■'■ '•' ■
■ g ) .,,r>

vezes do sábio: sob sua influência, “o povo evolui


dia-a-dia em direção ao bem1sem se dar conta do
que produz isso” (M Z, VII, A, 13). M as o mesmo
vale para o conselheiro de corte que adm inistra os
negócios em seu proveitc?) “Cum pre dirigir as coi­
sas de m odo que isso advenha progressivamente,
X d l! ViC<l\& f
dia-a-dia, sem que os outros se dêem conta dissos”
(GGZ, cap. 8, “M o ” ). O fato de a injunção se in­
filtrar no curso das coisas, a ponto de se dissimu­
-. - ■<'■■ n- ; lar nele, torna-a m uito mais eficaz; visto que, ao
escapar à consciência, ela retira todo domínio so­
Cj'P Ic A x ^ p -^
bre ela e o torna passivo a seu respeito. A fórmula
^ q V - .v - O .' 0
. c VOU.I* é paralela no que concerne ao estrategista: “ Deve-
; -•• C í . a W ^ > se dirigir os assuntos m ilitares de m odo que se
ÇUKfe y cgcESÇ triunfe a cada dia, progressivamente, sem que os
'• outros nos possam tem er” (ib id .). Os outros, isto
{S^Í& K èC J' K JÈUSlVuiw«;r
é, os inimigos, não pensam sequer em nos temer
■k,\»Wiu wjücs porque não percebem a situação m udar e tornar-
<7 j^c» ivi; i ■•■ se perigosa (e, quando se dão conta disso, é tarde
demais, eles estão em nossas mãos). A transform a­
+ £ « 1 ^ * y* x . v- w e ção foi tão insensível, por “acum ulação” progres­
XK>S- •MCcSV ft siva (do “positivo” ou da “ capacidade” ), que, mes­
mo em seu campo, “repousa-se em cim a” sem ter
consciência de onde vem esse proveito; “segue-se”
'-' 'Ap.W- :v.t]i«o . naturalm ente seu cam inho, “sem se dar conta de
WW ■
com o é assim ” .
d; - X*,-
A eficácia é tanto maior, em suma, quanto for
Categoria discreta. O sábio transform a o m undo por aquilo
determinante: o que ele deixa em anar de sua personalidade, dia-a-
discreto dia, pouco a pouco, sem precisar se im por nem se
colocar como exemplo (ZY, § 33); assim também,
do bom general não há nada a louvar — nem sua
“clarividência” nem sua “coragem ” (SZ, cap. 4,
“Xing” ). A afirmação nos surpreende, m as é rigo-
i rosa: ao melhor estrategista não se cogita de erguer
estátua. Isso porque ele soube fazer a situação evo­
luir tão bem no sentido desejado, intervindo a m on­
D o bom estra­ tante e de m aneira progressiva, que to rn o u a vitó­
tegista, nada se ria “fácil”, não havendo por que louvá-lo por isso.

François Jullien
t--
Estava ganho de antem ão, com o se diz, uma vez ve que possa ser
concluído o com bate e para reduzir-lhe o mérito. louvado

Mas isso é justamente conceder, sem que se saiba,


o maior dos elogios. Pois é porque o m érito é tão O m érito é tão
completo que o êxito se afigura natural, e passa por­ com pleto que
tanto despercebido. Tam bém aí, o que poderíam os passa desper­
acreditar ser um paradoxo apenas aprofunda a evi­ cebido
dência: “ O utrora, os que eram hábeis na guerra [só]
triunfavam em vitórias fáceis” . Pois só se lançavam
ao com bate depois que tinham podido tornar a vi­
tória “fácil”, fazendo a situação evoluir a seu favor,
e estavam p ortanto seguros de triunfar. Em vez de
ser o sucesso arrancado à força, no m om ento da
ação e por dem onstrações de proeza que a tornam
insigne (e que se com em oram a seguir), esse suces­
so se viu implicado na transform ação iniciada bem
antes, da relação antagonista, a ponto de ser con­
fundido com a evolução das coisas. Nem suspense
nem evento, nada mais existe aí que m arque época
N ada a contar
ou que se dramatize: nenhum elemento, portanto,
com que fazer uma história. — Compreende-se por
que a China não compôs epopéia.- — - ----
Para pensar a eficácia, entre ação e transfor­
mação, e da Grécia à China, os referentes, no fun­ China-Grécia,
a inversão
do, são inversos. Os gregos pensaram a transform a­
ção natural com base na ação hum ana. Mesmo que
Aristóteles se tenha desvencilhado da fábula platô­
nica da criação do mundo, a natureza, em suas obras
biológicas, a todo instante é personificada: a natu­
reza aristotélica é “engenhosa”, “demiúrgica”, “ fa-
A natureza
bricadora”; ou, ainda, é “p in to ra”, “ m odeladora”
grega “fa
c “governanta” — ela tam bém tem um plano. Por
mais que se distinga dos produtos da arte por ter
seu princípio em si mesma e proceder segundo um
m odo im anente, ainda assim ela opera, como toda
ação, num a relação de meio a fim; mesmo que não
delibere (mas não esqueçamos que é por ignorân­
cia que o artista chega a deliberar), nem por isso ela
deixa de “ querer” ao “olhar” em direção ao obje­

1ratado da Eficácia 77
tivo que se fixou. Em sentido inverso, os chineses
O sábio chinês pensaram a eficácia hum ana com base na transfor­
'"transforma”
m ação natural. O estrategista faz que a situação
evolua em seu proveito do mesmo m odo que a n a­
tureza faz a planta crescer ou que o rio não cessa
de escavar seu leito. Como nessas modificações n a­
turais, a transform ação que ele opera é ao mesmo
tem po difusa e discreta, ímperceptível em seu cur­
so mas manifesta por seus efeitos. M ais do que na
transcendência da ação, os chineses crêem na ima-
nência da transform ação: não nos vemos envelhe­
cer, não vemos o rio escavar seu leito, e no entanto
é a esse desenvolvimento imperceptível que se deve
a realidade da paisagem e da vida.
Uma imagem conseguiu captar essa eficiência
difusa da transformação (eficiência : terei de retomar
o term o) — a do ven to (cf. ZY, § 33: “Ele sabe de
onde vem o vento” ). Como ele se insinua em toda
!
parte e no tem po, não se percebe o vento passar,
A transforma- |
mas, sob seu curso, “as ervas se deitam ” (C onver­
ção à imagem do j
vento invisível sas de C onfúcio, XII, 19). Ele não é o sopro inspi­
(mas cujos efeitos rado — pneum a divino — que surge m om entanea­
são sensíveis em mente para suscitar, com o uma onda arrancada ao
toda parte) torpor da existência, o grande jato do ato heróico,
ou da criação poética; mas é aquele fluxo contínuo
que, propagando-se através do m undo e nele espa­
lhando sua incitação, impregna-o gradativam ente
de sua tendência — nele estende ao infinito seu m o­
vimento. A literatura grega iniciou pela Ilíada o re­
lato inspirado de ações insignes, a deusa canta a
cólera de Aquiles e combates dramáticos. Enquanto
isso, considera-se que a prim eira seção da primeira
obra literária da China (o Sbijing), que data aproxi­
m adamente da mesma época e tem por título “Ven­
tos dos principados” (“ Guo feng” ), evoca em pe­
ças curtas a influência transform adora que, a par­
tir da personalidade do príncipe, se dissemina atra­
vés de seu principado e dá forma a seus costumes:
influência que se manifesta por meio dos menores

78 François Jullien
i raços do sentimento ou do comportamento das pes­
soas, infietidos em seu sentido, mas sem jamais ser
concretamente apreensível, tam pouco isoladamente
perceptível — com o o é o vento.

li.itndo da Eficácia
V.
ESTRUTURA DA 0 C A S L \0

1. O acaso, de um lado, a arte, do outro: en­


tre tycbê e tecbne, interpõe-se um terceiro term o
para pensar a ação — a ocasião (kairos). Q uer se
trate da navegação, da medicina ou da estratégia,
tais como Platão as alinha sucessivamente (Leis, IV, Entre a arte e
o acaso: a ocasião
709 b), entre aquilo que, de um lado, depende da
fortuna (ou da “divindade” ) e, do outro, aquilo que
é “ nosso” (a técnica), a ocasião operaria a junção
de onde provém a eficácia: ela é o m om ento favo­
rável que é oferecido pelo acaso e que a arte per­
mite explorar; graças a ela, nossa ação é capaz de
inserir-se no curso das coisas, ela já não faz um ar-
rombamento, mas consegue enxertar-se nele, apro­
veitando-se de sua causalidade e sendo auxiliada por
ele. Graças a ela, o plano concertado consegue en­
carnar-se, esse momento oportuno nos dá poder, as­
segura nosso domínio. Em política tam bém , reco­
nhece o filósofo, “eu sempre esperava o bom m o­
mento para agir” (Carta VII). Isso porque a ocasião
é necessária, mesmo na aventurosa questão da Sí-
cília, para que ele possa esperar pôr em prática a
“teo ria”. Objetivo-ação-ocasião: o esquema dora­
O esquema:
vante está com pleto, vindo a ocasião ajustar um
objecivo-ação-
para assistir a outra. Pois “o fim da ação” é ele pró­ ocasião
prio “ relativo à ocasião”, lembra Aristóteles (Et. a
N ic., III, 1 1 1 0 a 14).
Ultima coordenada a levar em conta, conse­
qüentem ente, para pensar a ação eficaz, a do tem ­
po. Pois a ocasião é aquela coincidência da ação e
do tem po que faz que o instante se torne de repen­
te uma chance, que o tempo seja então propício, que

T ratado da Eficácia Kl
ele pareça vir ao nosso encontro, occurrit, que seja
uma ocorrência. Tem po favorável, que conduz ao
porto, “o p o rtu n o ” — mas tempo fugaz também:
tempo m ínim o e ao mesmo tempo ótimo, que mal
desponta entre o não ainda t o já não mais e que é
preciso “ca p ta r” para ter êxito. Enquanto a ciên­
cia tem por alvo o eterno (o que é sempre idêntico
e que se pode dem onstrar: sempre o ideal da m ate­
mática), o útil é eminentemente variável, reconhe­
ce Aristóteles: pois “ uma coisa é útil hoje mas não
o será am anhã” ( Grande morai, 1,1197 a 38). “ Em
vista do fim que se precisa”, convém portanto es­
clarecer, da m aneira que se precisa e quando se pre­
cisa: sendo o bem declinável segundo as categorias,
a partir do m om ento em que não mais se crê num a
idéia do Bem que seja geral, a ocasião será o bem
O bem segun­ segundo a categoria do tem po; em outras palavras,
do a categoria do “o tem po enquanto é bom ” . E, mesmo no interior
tem po
dessa categoria do tem po, “são ciências diferentes
que estudam ocasiões diferentes”, e a ocasião se con­
ceberá diferentemente em medicina e em estratégia;
no limite, haveria mesmo tantas ocasiões específi­
cas quantas situações. M as no mesmo m om ento —
e eis aí de novo o contragolpe (contracusto) da crí­
tica feita a Platão, a ocasião corre o risco de ser
inapreensível. Pois, disseminada como está através
H á uma ge­ da diversidade de suas ocorrências, pode ela ainda
neralidade da ser objeto de “ciência”, e mesmo de “técnica” —
ocasião? visto que a técnica tam bém exige por natureza o
geral?
A im portância da ocasião — kairos — mesmo
assim é afirm ada de uma ponta à outra de nossa
Antigüidade. “ N ada vale mais do que conhecê-la”
O nipotência (Píndaro), ela é “o m elhor dos guias em todo em­
do kairos preendim ento hum ano” (Sófocles), sua “onipotên­
cia” é afirmada. Desde os primeiros poetas, Homero
e Hesíodo, kairos aparece associado à definição do
ato eficaz, diz-nos M onique Trédé, e “ está exata­
mente aí, parece, a chave da noção”, à qual o sur­

82 François Jullien
to das técnicas, no século V, conferirá seu pleno
desenvolvimento: em seu em preendim ento de per­
suasão, o orador não se vale apenas do raciocínio
para valorizar o verossímil (eik o s ), ele se empenha
igualmente em tirar vantagem das circunstâncias,
aproveitando a ocasião e exprimindo-se de acordo
com ela (de Górgias a Isócrates); do mesmo modo,
a medicina hipocrática desconfia dos preceitos de­
m asiado gerais e busca adaptar a terapêutica, na
ausência de qualquer elemento “estável” (kathes -
tekos), à particularidade e à “m ixórdia” dos casos
com que se depara: não apenas para realizar a d o ­
sagem certa — e o kairós médico é antes de tudo
uma questão de medida — mas tam bém , durante
o tratam ento, em resposta à “crise”, para intervir
quando for preciso.
Sob o fundo de evidência que eles acabaram
por tecer, a ponto de nosso pensamento da ocasião
parecer doravante óbvio (ou não seria melhor di­
zer nosso “im -pensam ento” ? ), começamos a perce­
ber os pressupostos teóricos desse “tem po oportu­
no” — em outras palavras, quais são os com ponen­
tes gregos da ocasião. Seu plano de fundo não é C om ponentes
outro senão o da ontologia, opondo o ser ao devir, gregos da ocasião

o “estável” ao “ m ovente” : é para adaptar a regra


à instabilidade das coisas — ou melhor, para que
esta se veja enfim adaptada — que se “espera” a
ocasião; do mesmo modo, sua concepção repousa
na relação que mais m arcou o impulso inicial da
filosofia, a do particular e do geral, a ponto inclu­
sive de radicalizar sua oposição (e, encerrando-se
então na particularidade, como em Aristóteles, de
escapar à teoria). Ela é então o último recurso que
nos resta num m undo privado da fixidez das essên­
cias, entregue ao tem po e no qual somos forçados
a agir; mas recurso, não obstante, porque ela per­
manece habitada pela harm onia: entre o demais e
o muito pouco, a ocasião é sym m etros, ela alcança
o ideal grego do núm ero e da medida. Enfim, é a

Tr.irado da Eficácia
partir das tecbnai que a ocasião é concebida, e esta
o é em relação à ação. Por isso, a pergunta não pode
ser evitada: o que resta da concepção do tem po
oportuno (e trata-se ainda de “tem po” ?), desde o
instante em que se sai dessas escolhas implícitas:
desde o m omento em que não mais a consideramos
na perspectiva da ação, mas segundo esta outra ló­
gica que começamos a seguir — a da transform a­
ção? Se nem por isso a “ocasião” desaparece, sua
estrutura, em com pensação, concebemo-lo de an­
tem ão, deve ser repensada.

2. N o entanto, encontram os tam bém , na Chi­


na, a noção de m om ento oportuno, “ad ap tad o ”,
que “não se deve perder” (com o risco de perder a
eficácia estratégica). Também lá o bem se vê distri­
buído segundo uma m ultiplicidade de aspectos: da
mesma forma que para o “espírito” o bem é a “pro­
fundidade” , ou para “os negócios” a “capacidade” ,
para o “ pôr-se em m ovim ento” ele é o “ m om ento”
A ocasião (LZ, § 8); e esse m om ento do “ desencadeam ento”
concebida com o não deve ser “re ta rd ad o ” (GGZ, cap. 8, “M o ” ).
desencadeam ento Resta exam inar mais de perto com o este é com ­
do potencial preendido pela antiga literatura estratégica (cf. SZ,
cap. 5, “Shi”). N a esteira do potencial de situação
ilustrado pela torrente que, em seu im pulso, é ca­
paz de arrastar pedras, esse m om ento do desenca­
deam ento é evocado pela imagem da ave que, ao
precipitar-se de súbito sobre a presa, com um úni­
co golpe lhe rom pe os ossos. E que ela atacou exa­
tam ente no instante exigido pela distância que a
separava do alvo (cf. a noção de jie1, que designa
prim eiramente o nó do caule do bam bu, e a partir
daí a conjuntura e a justa medida); e se o ataque
desfechado possui então a intensidade máxim a, a
ponto de estraçalhar o corpo da vítima, é que um
m áxim o de potencial é acum ulado. Pois, com o o
especifica um com entador (Wang Xi), “o impulso
fulminante da ave de rapina resulta do potencial de

84 François Jullien
situação”, a exemplo da torrente que arrasta as pe­
dras, e “é do potencial de situação que decorre a
seguir o m om ento conveniente para atacar” . Ou,
segundo o texto canônico, o potencial cria a tensão
vertiginosa de onde vem o impulso, após o que o
momento adaptado é m uito “curto” . A acentuação
preliminar, e progressiva, opõe-se o breve instante
do ataque; mas o encadeamento se processa no in­
terior de uma mesma imagem: “ O potencial de si­
tuação é com o arm ar a balestra e o momento opor­
tuno é como disparar seu m ecanismo” .
Eis portanto que se esboça uma distinta con­
cepção da “ocasião”: não mais como a chance que
se oferece de passagem, por um feliz concurso de
circunstâncias, incitando à ação e favorecendo seu
sucesso; mas como o momento mais adequado para
intervir no curso do processo iniciado (a ponto de,
no limite, nem ser mais uma intervenção — de tal
m odo somos impelidos a ela), aquele em que cul­
mina a potencialidade progressivamente adquirida
e que permite produzir o máximo de eficácia. Como
o especifica um com entador (sempre W ang Xi), esse
potencial da situação “vem de longe”, mesmo que
o m om ento do ataque seja tão breve. N a ótica da C om o tal, ela
é uma culminação
transform ação, a ocasião não é senão a culminação
de um desenvolvimento, e o tem po de duração a
preparou; por isso, longe de suceder de improviso,
ela é o fruto de uma evolução que se deve tom ar em
sua partida, assim que aparece.
Essa ocasião é outra, ou, melhor, é dupla, já
que se encontra nas duas extremidades da duração:
por trás da ocasião que julgamos ver surgir de im ­
proviso, e que devemos saber aproveitar no instante,
perfila-se uma outra, a montante dela, que é o ponto
de partida do processo encetado e do qual aquela
procede no final do desenvolvimento. Estamos li­
dando, de fato, não com um mas com dois instan­
N ã o um, mas
tes cruciais (isto é, no início e no fim da transfor­ dois instantes
mação): aquele, term inal, em que se cai enfim so­ cruciais

T ratado da Eficácia H5
bre o inimigo com um m áxim o de intensidade, a
ponto de este ser imediatamente derrotado; e aquele,
inicial, em que se com eçou a operar a clivagem a
partir da qual o potencial pendeu progressivamen­
te para um dos lados. Do mesmo m odo que, no es­
tágio terminal, a ocasião se tornou flagrante, em seu
estágio inicial ela ainda é apenas perceptível com
muita dificuldade; mas é essa prim eira demarcação
que é decisiva, pois é a partir dela que tem início a
capacidade de efeito e que a ocasião final não é, no
final das contas, senão sua conseqüência. Era lógi­
co, portanto, que a reflexão estratégica, na China,
reportasse sua atenção do m om ento do desenca-
deamento ao m om ento inicial em que se esboça a
tendência que conduz a esse m om ento. Segundo
um a de suas preciosas fórm ulas (G G Z, cap. 7,
“ C huai” ), essa reflexão empenha-se em discernir o
“potencial da situação” em seu estágio “em brioná­
rio ”, “no estado de ativação”u. Pois, com o vimos,
o estrategista poderá em seguida contar com seu de­
senvolvimento e deixar-se levar por ele; quanto mais
cedo ele perceber, portanto, essa ativação de poten­
O estágio do cial, tanto melhor saberá aproveitar-se dele. Tudo
ínfim o é decisivo se decide no estágio do mais ínfimo, e o m enor pro­
cesso que se inicia, seja o “vôo de um inseto” ou o
“ rastejar de um verme” , com o o bater de asas da
borboleta, de Lorenz a Prigogine, tem igualmente
sua incidência.
E a sabedoria, nesse ponto tam bém , coincide
exatam ente com a estratégia. Pois, quer se trate de
conformar-se interiormente à m oralidade ou de m a­
nifestar no m undo sua eficácia, am bos, o sábio e o
estrategista, são levados a investigar o ponto de par­
Investigar o tida da tendência, essa é inclusive sua prim eira preo­
p on to de partida cupação. Com efeito, por m enor que ela seja, a par­
da tendência
tir do m om ento em que se afirm a, a tendência m o­
dificará infalivelmente a situação: o prim eiro inves­
tiga o m enor desvio de seu foro íntim o, porque, se
não o corrigir em seguida, ele o afastará cada vez

86 François Jullien
mais do caminho (cf. ZY, § 1); o segundo investi­
ga a menor propensão favorável que se ativa no seio
do mundo, pois, tão logo a identifica, poderá apoiar-
se nela até sua culminação. Com efeito, no momento
da ativação ainda nada se vê, m as já está estabe­
lecida uma orientação. Ou, como o explicita um co­
m entador a propósito da m oral (Zhu Xi com entan­
do ZY, § 1), nenhum a m arca sensível ainda se atua­
lizou, mas já foi iniciado o movimento, e esse ab a­
lo ínfimo, se não se tom ar cuidado com ele, terá con­
seqüências infinitas. Pois, mal começa a despontar,
ele já inflete o curso das coisas (ou da consciência)
e pode exibir cada vez mais longe seus efeitos — com
0 passar do tem po, na duração. Dessa preciosa n o ­
N o çã o de
ção de ativação, a lição é fácil, portanto, de tirar: o ativação
potencial da situação que se vê surgir na ocasião
devia ser detectado em sua prim eira prefiguração;
pois, em vez de ser fugaz essa ocasião, podia-se en­
tão seguir passo a passo seu desdobram ento e por­
tanto ter certeza de — e estar pronto para — gol­
pear no m om ento oportuno.
Cabe, pois, reportar toda a atenção estratégi­
ca a esse estágio inicial, a m ontante da “ocasião”,
m om ento discrim inador em bora ainda não paten­
te, que faz imperceptivelmente a situação pender,
e do qual decorrerá progressivam ente o sucesso.
Kstá aí o prim eiro desencadeamento, secreto mas
que com anda o outro, em que se “decide” da ma­ A m ontante
neira mais sutil o que fará tudo, a seguir, pender da ocasião visí­
para um ladov (GGZ, cap. “Ben jing”; cf. as con­ vel, o m om ento
discriminante
fusões significativas, entre texto e com entário, a
propósito de ji e de w eiw). No mesmo momento em
que a ocasião se desenvolve, cabe repensar, assim,
.1 própria noção de “crise” (krisis no sentido de “de­

cisão” ). Isso porque o m om ento crítico não corres­


ponde mais ao estágio da manifestação (cf. na me­
dicina hipocrática em que a crise é o m om ento no
qual se “julga” a doença), mas se desloca a mon-
1;iiite até o estágio mais ínfimo — o da ativação —

11 ütado da Eficácia «7
D issolução da no qual começa a se operar a clivagem e que é “ de­
“crise” cisivo” . Ele não está mais ligado ao espetacular,
como na ação teatral (cf. novamente a Grécia), e sim
ao mais discreto. M as, sabendo-se detectá-lo, pode-
se então prever a evolução e geri-la; e a “crise” pode
ser desativada.

3. Prever a “ocasião”, esse é de fato o req


sito mais com um da estratégia, tanto no Ocidente
quanto na China: quando se “percebem os males de
longe” , consegue-se facilmente remediá-los, reco­
Prever a nhece também M aquiavel, que tira a lição do exem­
o c a siã o plo rom ano (Príncipe , 3); ao passo que, quando o
mal é ostensivo, “ não há mais tem po” e “a doença
tornou-se incurável” . Primeira diferença, porém:
M aquiavel só concebe essa previdência para reme­
diar o negativo (e não para apoiar-se no que seria
p o rta d o r ): quando, sob aparências vantajosas, “se
oculta um veneno secreto” que é preciso saber iden­
tificar com antecedência, sob pena de ser atingido
por ele (i b i d 13). Por outro lado, há dois m odos
de conceber que essa previsão necessária é possível:
ou se constrói um raciocínio (quando se pensa a
ocasião por referência à ação); ou se apóia na lógi­
ca de um desenvolvimento (quando ela é pensada
por referência à transform ação). O prim eiro caso
é exemplificado por um historiador como Tucídides,
que foi quem levou mais longe, na Grécia clássica,
a racionalização da ocasião. Seus heróis, Formião
ou Brásidas, deduzem a ocasião vindoura do cálculo
a que se aplicam (logismos) a partir dos elementos
Prever com ba­
se num raciocínio diversos da conjuntura, e entregando-se a conjec­
ou em função do turas. De um lado, eles juntam o m aior núm ero de
desenvolvim ento dados possível; do outro (em seguida), elaboram hi­
póteses para se deterem na mais provável. Uma ló­
gica fundada no verossímil (eik o s ) lhes permite as­
sim reconstruir o estado de espírito do inimigo, pre­
ver suas intenções e avaliar no mesmo instante as
chances de sucesso. Nela se com binam ao mesmo

88 François Jullien
tempo conhecimentos relativos aos princípios — psi­
cológico, estratégico, político — e uma apreciação,
a mais precisa possível, da situação, consistindo to ­
do o m érito da operação, e seu risco tam bém , na
adequação dos dois planos: uma vez mais, o traba­
lho do espírito, na Grécia, está em ligar o particular
ao geral; e, pela arte da previsão racional (p ron oia ),
o estrategista está apto a ultrapassar as aparências
para atingir “o mais verídico” , do qual se sabe ser
também “o menos visível” [aiethestaton/aphanes-
taton; e, ainda aqui, a busca ocidental é a da “ver­
d ade” escondida sob o véu, do Ser oculto).
O ra, o estrategista chinês não conjectura, não
argum enta, não constrói. Ele não m onta hipótese,
não entra em nenhum cálculo de verossimilhança.
Toda a sua arte, ao contrário, é detectar o mais cedo
possível as menores tendências que são levadas a se
manifestar: ao detectá-las, logo que elas começam Fundamentar-
a orientar, em segredo, o curso ininterrupto das coi­ se, não sobre o
verossím il (cons­
sas, antes p o rtan to que tenham tido o tem po de
truído), mas
emergir e de manifestar seus efeitos, ele está em con­ sobre a tendência
dições de prever a que elas conduzem; coincidindo ativada
com a ativação dessas tendências, ele se antecipa à
sua atualização. O com entador de nosso tratado de
diplomacia assim esclarece (GGZ, cap. “ Ben jing” ):
“o m ovimento que mal se inicia” , mas com o tal já
é “crítico”, “evolui do sutil ao manifesto51”; por isso,
o estrategista clarividente é aquele que o apreende
nesse estágio inicial, “quando ele ainda não ofere­
ceu sinal evidente e não se atualizou^'” . Nesse está­
gio, a tem pestade ainda é subterrânea, o “desen-
cadeam ento” da crise, ainda “secreto”. M as sabe-
se que, como “pazadas de te rra ” que “se acum u­
lam ”, dele irá resultar inelutavelmente um efeito.
Essa reflexão veio a ser ilustrada sob o aspec­
to da fissuração (cf. GGZ, cap. 4, “Di x i”, que se
ocupa disso). Em prim eiro lugar, a menor fissura
apresenta sinais precursores que, a título sim ulta­
neamente de indícios e de pródrom os, possibilitam

T ratado da Eficácia
ao olhar atento detectá-la; por outro lado, a menos
que seja obturada em seguida, a m enor fissura ten­
de espontaneam ente a se alastrar: ao mesmo tem ­
po ela se abre e se aprofunda — torna-se sucessi­
Fissura, fenda, vamente “fenda” , “ falha”, “rachadura” . Da fissura
rachadura (cf. à brecha, o devir é previsível visto que está impli­
Butor, La Mo- cado, a modificação desde já está anunciada, basta
dification) deixar o tem po correr. Foi portanto no estágio ini­
cial da fissura que o “perigo” começou. O ra, sabe-
se que o m undo inteiro é feito de união e de sepa­
ração (e já entre o Céu e a Terra, ao mesmo tempo
separados e reunidos): a fissuração acha-se pois ins­
crita na grande lógica da realidade, ela não cessa de
trabalhar por baixo do tecido das coisas, sempre
am eaçado de rasgar-se, e requer uma perm anente
suturação (seja de que m odo for: “obturando-a”,
“suprim indo-a” , “cerzindo-a”, “ ocultando-a” ...).
Por isso, o estrategista deve sempre “espreitar” a
fissura — e antes de tudo, é claro, em seu adversá­
rio. Toda a estratégia com relação ao outro poderia
mesmo resumir-se nesta dupla m anobra (cf. GGZ,
cap. “ Ben jing” ): não oferecer a m enor fissura ao
adversário, de m odo que ele não tenha nenhum p o ­
der sobre nós, esteja condenado a agir furtivam en­
te e não possa nos penetrar; ao mesmo tem po que
Perscrutar a
perscrutar a menor fissuração nele a fim de que esta,
m enor fissura abrindo-se progressivam ente em brecha, perm ita
enfim atacá-lo sem perigo. Assim, é “seguindo as fa­
lhas do o u tro ”, especifica o texto diplom ático, que
devemos nos “pôr em m ovimento2-” . Caso contrá­
rio seria uma intervenção arbitrária, perigosa p o r­
que forçada. Ao passo que basta “ acossar” a fen­
da3 , deixando-a manifestar-se, para que o outro seja
infalivelmente derrotado.
N ão obstante, uma questão se lê inevitavel­
mente no reverso dessa estratégia: e se o outro tam ­
bém não apresenta nenhum a falha, o que se pode­
rá fazer? M as essa interrogação, longe de voltar a
questionar a tese, permite com provar sua lógica, ao

90 François JulLien
radicalizá-la: não haverá exatam ente nada a fazer
— nada a “esperar”. É preciso “esperar a falha do Salx-r rspri .tr
outro para se pôr em m ovim ento” , é dito com in­
sistência (GGZ, cap. “ Ben jing” ), em vez de pensar
em enfrentá-lo sem que se tenha abalado sua posn
ção, o que seria ao mesmo tem po oneroso e arris­
cado. Esperar é o corolário de prever. Sabe-se, com
efeito, que a fissuração está inscrita na lógica das
coisas, e portanto é certo que, cedo ou tarde, o outro
será ameaçado por ela. Enquanto o m undo for liso,
sem ter onde agarrar, sem fissura a penetrar, o es­
trategista “se m antém recuado e espera a ocasião”
(GGZ, cap. 4, “Di xi” ): aquela prim eira ocasião da
fissuração que mais tarde virará uma brecha e per­
mitirá enfim, no m om ento oportuno, penetrar sem
violência e de um só golpe na posição adversária.
Uma vez mais, a arte da guerra apenas corrobora a
da diplomacia: no início, é preciso ser como uma
“ virgem” , discreto e reservado, até que o adversá­
rio “abra sua p o rta ”; depois, quando esta se abrir,
precipitar-se nela com a celeridade da lebre, e “o
inimigo não tem mais condições de resistir” (SZ,
cap. 11, “Jiu di” ).
Isso geralmente acontece a partir do m om en­
to em que nenhum fator é portador: se a situação
lhe é com pletam ente desfavorável, não deixa ver
nenhum potencial a seu favor, o sábio espera. Ele
se m antém inativo, o im portante para ele é conser­
var-se (na China, atualm ente, ele se retira para o
campo, finge-se de doente etc.). A fórm ula a esse
respeito merece ser lida com atenção: “o sábio —
pelo (no) não-agir — espera que haja capacidade^ ”
(GGZ, cap. “Ben jing” ). Ou seja, ele espera que a
situação na qual está envolvido seja de novo carre­
gada positivamente. Pois ele sabe que está em p ro ­
cesso um a renovação, da qual decorrerá mais ta r­
de uma outra coerência que, na medida em que o
processo só depende dele mesmo, não pode proce­
der senão por alternância; portanto, emergirão no­

T ratado da Eficácia 91
vos fatores que não poderiam ser tão negativos quan­
to os atuais, posto que virão com pensá-los. Esse
m au m om ento irá passar; um novo já está em m ar­
cha, em segredo, do qual ele espera serenamente que
recomece a portá-lo.

4. A diferença de estrutura própria à ocasião,


entre a China e a Europa, deveria portanto ser bus­
cada primeiramente na concepção do “ tem po” . Do
lado grego, como se este está de saída ameaçada pela
oposição principal, teoria-prática, não se pôde fa­
zer outra coisa senão duplicá-lo: dois adversários
nasceram, Cronos e Kaíros, implacáveis entre si,
mas ambos filhos de Aion, o Tempo eterno. H á, de
um lado, o tem po construído pelo conhecimento,
tem po regular, divisível, analisável, e portanto con­
Um tem po trolável; do outro, o tem po aberto à ação e consti­
nem crônico nem tuído pela ocasião, tem po perigoso, caótico, e por­
káirico
tanto “indom ável” . Já em Aristóteles esse tem po
ocasional se define, em oposição ao outro, por seu
caráter insuficientemente dirigido, hesitante, vaci­
lante; e sabemos que o pensamento m oderno acen­
tuou ainda mais sua contingência, ou, m elhor, to r­
nou-a radical: o próprio poderio rom ano só foi pos­
sível, em seu “devir perfeito”, diz-nos M aquiavel,
“pela ocorrência dos acidentes” . O ra, o tem po dos
processos, tal como é concebido na China, não é,
propriam ente falando, um objeto de conhecim en­
to nem tam pouco um objetivo de ação (cf. A ristó­
teles, o telos da ação é relativo ao kairos ): não é um
tem po cuja medida nos contentam os em contem ­
plar, de um ponto de vista desinteressado, tampouco
um tem po no qual se queira intervir à força, pela
irrupção da vontade e esperando tirar vantagem de
sua desordem; mas antes um desenvolvimento com
o qual se procura estar em contínua adequação e do
qual se esposa cada um dos estágios: tanto coinci­
dindo, por perscrutação, com a ativação dos pro­
cessos, quanto se conformando, na conduta pessoal,

92 François Jullien
com a lógica de sua evolução; não é um tem po re­
gular como o da ciência — tem po dócil — , nem um
tempo acidental com o aquele aberto à ação — tem ­
N em regular
po rebelde — , mas um tem po regulado: que m an­ nem caótico —
tém o equilíbrio mediante a transform ação e per­ mas regulado
manece coerente em bora não cesse de inovar. Esse
tempo que não conhece a divisão entre teoria e prá­
tica, que portanto não é nem “crônico” nem “kái-
rico” (nem periódico nem arriscado), esse tempo que
não se repete jamais mas com o qual podemos con­
tar, creio que sua designação mais justa seria: tem ­
po estratégico.
E, na verdade, porque seu desenvolvimento é
regulado que o estrategista sabe prever e pode es­
perar (prever o tem po vindouro e esperar que ele
melhore). Sábio e estrategista ao mesmo tem po, e
é esse um lugar-comum ao qual o pensamento chi­
nês não cessou de voltar, não cessou de elucidar (cf.
ZY, § 34, G G Z, passim , e, obviamente, o “ G ran­
de com entário” do Zhuyi). Poder-se-ia retom ar as­
sim sua lógica: graças à total disponibilidade à qual
ele soube fazer que a sua consciência tivesse aces­
so, por ter dissolvido nela os pontos de focalização
aos quais conduzem inevitavelmente idéias e pro­
jetos, porque a separou tam bém das fixações par­
ticulares às quais, por esclerose, ela se abandona, e
liberou, portanto, ao mesmo tem po da parcialida­
de e da rigidez nas quais se encerra, ao tornar-se
exclusivo, todo ponto de vista individual (o que sig­
nifica por conseguinte, e para enfim dizer isso p o ­ D a disponibi­
lidade da cons­
sitivamente, que a tornou coextensiva à globalidade
ciência, que per­
dos processos e a m antém tão movente e fluida — mite experim en­
com pletam ente evolutiva — quanto o é o curso do tar a globalidade
real), o sábio/estrategista está em condições de es­ do processo, à
posar a coerência de conjunto do devir e pode as­ capacidade de
antecipar
sim antecipar-se com certeza às modificações vin­
douras — como se sentisse em si mesmo, dizem-nos,
a falta objetiva delas; porque ele sabe que, percebi­
da desse ponto de vista global, a renovação à qual

T ratado da Eficácia
está permanentemente exposto o real jamais é aber-
rante, ele confia no reequilíbrio necessário, entre
suas tensões contrárias, antes mesmo que este tenha
começado. D etectar seria talvez o term o mais apro-
priadoc : ao “perscrutar” da maneira mais precisa
o presente, ele já descobre nele a presença daquilo
de que ele está prenhe, mas que ainda não apareceu.
Nosso tratado de diplomacia começa com es­
tas palavras: por “considerar” a alternância de “aber­
tu ra ” e de “fecham ento” entre os dois pólos da rea­
lidade (enquanto fatores opostos ecomplementares,
yin e yang), por “calcular” o “fim ” , que é ao mes­
mo tem po “início”, no seio da “multiplicidade das
espécies”, e p o r estar igualmente aberto à “lógica
interior à consciência”, o sábio/estrategista “percebe
os sintomas precursores da m udança” e pode “guar­
d ar a p o rta” “da vida e da m orte” , dos sucessos e
Pois é coinci­ dos fracassos. De fato, de um lado “a m udança é
dindo com a
sem fim” , mas, do outro, cada fenômeno de exis­
lógica do desen­
volvim ento inicia­
tência “tem seu lugar legítimo de culminação^’”; a
do que se pode partir do qual, em função da alternância que o re­
antecipar gula (>’!>! c yang, “d u ro ”-”m ole” , “ aberto” -”fecha-
d o ”, “tensão”-“ distensão” etc.), o real é eminente­
mente controlável. A “prescíência” em questão não
procede, portanto, de um raciocínio hipotético, tam ­
pouco de um gesto mágico, ela se contenta em es­
clarecer o que “virá” em função do que “ acada de
acontecer”, isto implicando aquilo sem interrupção.
Segundo uma expressão corrente na China, e que é
retom ada aqui, o “fim” é ao mesmo tempo “início”,
o presente é um a contínua transição (e o m undo
um a perpétua variação): portanto, se rem onto ao
desenvolvimento em curso, posso “experim entar”
de antem ão o desenvolvimento que dele vai resul­
ta r e, com isso, controlá-lo (cf. GGZ, cap. 4, “Di
x i” , início).
Assim, aparece na concepção da ocasião um
fosso que valeria a pena aprofundar, não para fi­
xar sua diferença {pois desejo, ao contrário, superá-

94 François Jullien
Ia), mas para tentar perceber m elhor, e prim eira­
mente conseguir dizer, jogando tem porariam ente
com o contraste, o que o pensamento chinês não ces­
sou de fazer passar, mesmo através da diversidade
das posições adotadas, como se fosse o óbvio (pois
isso é talvez ainda mais difícil de perceber no caso
do pensamento chinês: o que ele não cessa de dei­
xar passar, o que ele diz em toda parte sem jamais
isolá-lo): uma certa lógica da eficácia que, no fun­
do, nada tem de estranho (ela inclusive nos é fami­
liar por muitos aspectos), mas que o pensamento
chinês jamais teve necessidade de explicitar, vei­
a i lando-a com o uma evidência; e da qual nós mes­
mos, ainda que, de uma certa m aneira, a encontre­
mos integrada em nossa experiência, e até façamos
dela uma forma de sabedoria, jamais tivemos o cui­
dado de form ular a teoria — ou talvez não o tenha­
mos podido, por conta de nossos pressupostos. Para
tirarmos proveito do paralelo esboçado e acentuan­
do seu confronto: com o o tem po é acidental aos
olhos de M aquiavel, como é instável e descontínuo,
Maquiavel não espera nenhum benefício dele (a não C ontinuação
scr, mais tarde, o de estabilizar os corpos políticos da clivagem
graças ao papel legitimador da tradição). Ele não
acredita que se possa “gozar do benefício do tem ­
po”, mesmo que isso seja, reconhece, o que “se ouve
lioje constantem ente dizer da parte dos sábios”
( Príncipe , 3). “ Pois o tem po persegue igualmente
tudo à sua frente, e traz em sua esteira tanto o bem
quanto o mal, tanto o mal quanto o bem” ; por isso,
nesse tem po p ertu rb ad o da inovação, tem po da
eventualidade e do perigo, o único recurso está na
iniciativa e na capacidade de improvisar. Ao acaso
d.i ocasião só pode responder uma ação arriscada,
que intervém prontam ente (como César Bórgía em M aquiavel: ao
acaso da ocasião
Sinigáglia ou Júlio II contra Baglione), e toda dem o­
responde uma
ra é suicida. x\o contrário, desde o momento em que
ação arriscada
se espera a eficácia, não da ação, mas da transfor­
mação, e em que a ocasião se dissolve na regulação,

Tratado da Eficácia 95
pode-se contar com a duração. M as recusar o risco
de um a ação im ediata nem por isso significa que se
“tem poriza” (deixando para mais tarde o m om en­
Pode-se contar to de agir: não se tra ta de adiar): apenas se espera
com a regulação que o desenrolar do processo encetado nos tenha
para vencer? conduzido para mais perto do resultado previsto (a
distinguir de um objetivo visado), de m odo que,
intervindo o menos possível, e graças unicamente
à propensão das coisas, sejamos levados ao êxito.
E verdade que a gram ática dos príncipes, na
Europa, tam bém levou em conta o tem po longo da
maturação. Ela ensina a “ceder” ao tempo, a “acom­
panhá-lo” — esse tempo que, sabemos, procede pas­
so a passo, gra d a tim . O político de G racián tem
Gracián
consciência de que “a m uleta do tem po é mais útil
que a maça de H ércules” , sabe, portanto, perfeita­
mente que lhe será preciso “atravessar o vasto cur­
so do tem po para chegar ao centro da ocasião” (O
hom em universal , 3). Ele tam bém sabe “esperar” .
E, não obstante, subsiste ainda um certo desvio em
relação ao que seria a pura espera do desenvolvi­
mento. Esta não tem por princípio preferir a “pa­
A espera ciência” à “pressa” , recomendar a delação inteligen­
estratégica te (como expediente dilatório), fazer o elogio da
“lentidão” com relação à precipitação (pois as duas
deverão finalmente equilibrar-se: lentidão espanhola
e vivacidade francesa, a fleum a oposta à paixão
etc.). Q uando Gracián celebra a espera, ele a con­
cebe em relação à pessoa, com o um traço de cará­
ter e num plano m oral, sua alegorização anda jun­
to com uma psicologização, ela é prova do dom í­
nio que se adquiriu sobre as paixões (da violência
que é preciso fazer-se, com o ele diz, “para só explo­
dir no momento oportuno”). Permanece-se no ideal
hum anista do autodomínio em vez de fazê-lo depen­
der inteiramente do desenvolvimento em curso; per­
manece-se num a lógica do objetivo e da ação, ain­
da que se chegue a roçar a da transform ação. Por­
quanto a espera estratégica é muito mais — ou, me-

96 François Jullíen
Ihor, muito diferente — que o “ am adurecim ento”
dos desígnios (em oposição à “ pressa que faz tudo
ab o rtar” ), ela não é nem lenta nem apressada: tam ­
bém ela é regulada, justam ente porque se preserva
de todo desígnio projetado, porque não conhece,
portanto, im paciência mas pode esposar tudo ao
longo do tem po do processo.
N o entanto, mesmo na visão heróica de nos­
sos hum anistas, e até em M aquiavel, mesmo quan­
do se preconizou a ação aventurosa e arriscada, não
se poderia desconhecer toda idéia de regulação, nem
que fosse sob o tema mais banal da “roda da for­
tu n a” — alias, a rocha Tarpéia fica perto do C api­
tólio*' — do qual jamais nos desembaraçamos com­
pletamente. N o momento em que a Fortuna partiu,
devemos saber “que ela voltará” , que a roda “ gi­
rará novam ente”, elevando e rebaixando alternada­
mente uns e outros: nenhum fracasso pode nos fa­
zer desesperar (não nos deixemos abater) e nenhum
sucesso pode nos garantir o futuro (não sejamos
arrogantes). Para além mesmo da lição, há de fato,
em M aquiavel, a idéia de uma natureza das “coi­
sas do m undo” tal que, se toda existência é movente
e efêmera, o m undo no entanto é estável em seu
conjunto. N ão nos esqueçamos de que, no fim de
contas, o tem po é “pai de toda verdade” ... M as,
também aí, a aproximação acaba depressa: pois não
se pode deixar de levar em conta que essa represen­
tação de uma roda da fortuna permanece em gran­
de parte mítica (não podendo livrar-se totalm ente
do imaginário popular, mesclado como é ao mes­
mo tem po de crença e de ceticismo); sobretudo, ela
permanece em M aquiavel num plano, no horizon­
te do m undo hum ano e bordej ando-o, diferente do

4 N a R ocha Tarpéia eram executados os crim inosos


de Roma. Sua proxim idade do m onte Capitólio inspirou esse
provérbio que significa que o castigo (ou a queda) acom pa­
nha de perto o triunfo. (N . d o T.)

T ratado da Eficácia
da ação arriscada. Seu fundo de invariabilidade en­
volve a variabilidade do presente mas sem penetrá-
la. Ele não reduz, por essa razão, o tempo aciden­
tal da ocasião; não pode fazer do tem po hum ano
um tem po regulado.

5. Disso decorrem dois m odos de com preen


der a ocasião, ou, pelo menos, privilegiar-se-á um
A ocasião
destes dois aspectos: como encontro ou como resul­
concebida com o tado. Do lado europeu, predominou a relação da ne­
encontro ou cessidade e do acaso, e é ela que aparece no plano
com o resultado de fundo do pensamento de um Maquiavel: o m un­
do hum ano é tecido de sucessões necessárias mas
descontínuas — e por isso descosidas — entre as
quais pode operar-se o encontro oportuno. Ou, dito
de um modo mais dram ático (mas amou-se tanto
esse drama...): a ocasião é a graça que, por inter-
mitência, vem consertar o rasgão. Retom ado do ve­
lho lastro religioso, esse rasgão seria, no fim de con­
tas, apenas o fato de existir. Por isso, quer se trate
de conhecer ou de agir, ou, m elhor ainda, de criar
(e o encontro é então o da inspiração), sentiu-se
prazer em valorizar aquela coincidência m om entâ­
nea que, operando-se entre duas cronologias distin­
tas, constitui a “feliz simultaneidade da ocasião” (cf.
Vladimir Jankélévitch, Le Je-ne-sais-quoi et le Pres-
que-rien, I, La m anière et l ’occasion): um “ cruza­
m ento” se realiza pontualm ente (no m om ento p ró ­
prio, com o se diz) entre o instante de uma “ocor­
rência” e o de uma “intervenção”; em outras pala­
vras, dever-se-ia considerar a ocasião com o uma
“interseção”, sendo a disjunção crônica, que con­
tinua ineficaz, substituída pela conjunção káírica
que se deve aproveitar. M as esta é tão “ frágil” que
ainda é pesado demais falar de encontro ou de in­
terseção, e Vladim ir Jankélévitch seria tentado a
reconsiderar os termos propostos: pois dificilmen­
te se trata de uma interferência, mas, antes, de uma
“tangência”, a tal ponto é fugaz esse encontro e

98 François Jullien
mínima sua duração — “infinitesimal” — , surgin­
do com o um relâmpago no “quase nada do tem ­
po” ... Tendo abandonado a idéia grega de um tem ­
po cíclico e de um periodismo eterno, sentiríamos
ainda mais intensamente a excepcionalidade da oca­
sião. Esta é intrinsecamente trágica, e a retórica é
hábil em fazer uso de seu pathos: num tem po to r­ O pathos do
encontro
nado irreversível, a ocasião é “única”, “sem prece­
dente nem reedição”, não é anunciada nem conhe­
ce uma segunda vez, não podemos nos preparar p a­
ra ela de antem ão nem resgatá-la depois etc. Acon­
tecendo sempre pela primeira (e pela última) vez, ela
0 sempre “ inopinada” , não saberíam os dar lições
sobre ela e a seu respeito só poderem os improvisar.
“Para atenuar a urgência do inesperado”, con­
sidera no entanto Jankélévitch no viés de uma ex­
planação, “precisaríam os esposar intim am ente a
curva da evolução inovadora: na falta de uma di-
lação, o uníssono nos devolveria talvez o domínio
da ocorrência...” Jankélévitch não prossegue, e a
frase term ina com reticências. De fato, uma hipó­
tese é percebida, no caminho da reflexão, cuja ló­
gica eventual se pressente mas sem poder desen­
volvê-la; a alternativa que se esboçou logo é inter­
rompida porque seu caso possível, embora precisa­
mente discernido, não se integra em alguma coerên­
cia que pudesse escorá-lo e dar-lhe consistência. Por A m enos que
isso, Jankélévitch se detém aí, a idéia permanece em se saiba “esp o­
suspenso. O ra, reconhecemos que essa é precisa­ sar” o desenvol­
mente a possibilidade que a tradição chinesa desen­ vim ento encetado

volveu, por seu lado: acompanhar o desenvolvimen­


to encetado em cada uma de suas etapas e até sua
culm inação, de m odo a estar constantem ente em
lase com ele (cf. supra “esposar a curva da evolu­
ção” , em “ uníssono” ). A interseção acidental do
encontro converte-se assim em coincidência contí­
nua com o curso do processo; em vez de ser o ins-
líinte fugaz e arriscado oferecido à ação, a ocasião
<ic torna contem porânea de todos os estágios da

I iiitado da Eficácia
transformação. H á de fato encontro, e primeiramen­
te no estágio da ativação, no começo do processo
(cf. o ji inicial), mas, com o esta é identificada des­
de cedo, e desde então nos apoiam os nela, ela dá
ensejo a uma evolução da qual se pode progressi­
vamente tirar vantagem. A ativação inicial do en­
contro é “ decisiva” pelo que envolve de possibili­
dades a atualizar e, na outra ponta, o “desenca-
D a ativação
deam ento” final da ocasião se vê enriquecido de
inicial ao desen- todo o potencial acumulado: entre o encontro ini­
cadeam ento final cial e a ocasião final, que decorre a título de resul­
tado, intercala-se todo o tem po do processo — so­
bre o qual se tem influência e que se pode infletir
no sentido desejado. Em sua culm inação, e graças
ao benefício da evolução, o acidental transform ou-
se progressivamente em conseqüência “ inelutável”;
e, em vez de recorrer à iniciativa de uma ação a r­
riscada, a intervenção é mínima.
N o limite, assistimos à dissolução do aconte­
D issolu ção do
cimento: a batalha é apenas conclusiva, ela que nos
acontecim ento
comprazemos tanto em celebrar, comumente, e que
marca época; nesse estágio, o grande general nem
sequer tem m érito em vencer. Do lado europeu, ao
contrário, a ocasião é realmente o acontecimento
por excelência, em sua dupla dim ensão de advento
e de encarnação: de um lado, a ocasião faz irrup­
ção, ela surge (ela sobre-ve m) rompendo com a con­
tinuação do devir; e, do outro, ela abre cam inho
para a existência tem poral, determ inando-a hic et
nunc, a causa latente, preexistente, que nela aspi­
rava a realizar-se (ela “ocasiona a causação” , como
diz Jankélévitch). Ora, a China não pensou o mo­
m ento (da ocasião) nem segundo a gratuidade de
uma pura ocorrência, nem sob o ângulo da causação
(a insondável causa sui que não cessou de obsedar
nossa metafísica e da qual Jankélévitch não se li­
vrou); mas ela o concebeu com o transição: com o a
emergência momentaneamente visível de uma trans­
form ação contínua. Assim, há m uito os chineses

100 François Jullien


tiveram a noção do tem po longo, da duração lenta,
pela qual nossa teoria da história recentemente se
Em proveito
interessou — eles a chamaram com este outro nome,
das “transformii-
mas que exprime m uito bem seu sentido, e mesmo „ções silenciosas”
o esclarece: as “transform ações silencíosase

6. Ao vincular a ocasião à ação, ao concebê-


la com o encontro, ao erigi-la em acontecim ento, a
Europa fez dela um nó de sua reflexão — ao mes­
mo tem po nó e problem a. E verdade que o inte-
lectualismo grego havia feito tudo inicialmente para
racionalizar a ocasião. Dando crédito à onipotên­
cia da medida, fundando-se sobre o cálculo das ve-
rossimilhanças, sob a dupla autoridade do m etron
e do logism os, médicos, oradores ou estrategistas,
seduzidos pelo domínio infinito que as technai co­
meçam então a prometer, pretendem ser “engenhei­
ros da ocasião” (Monique Trédé). Cícero ecoa ainda
esse otimismo ao considerar que existe uma ciên­
cia exata do m elhor lugar e do m elhor tempo (uma
“ciência” , diz ele, da “oportunidade dos m om en­
tos próprios a agir” ; e antes dele Panécio*: “ uma
ciência da boa ocasião das ações” ). O que não im­
pede que, já no fim do século V grego, essa confian­
ça no domínio da ocasião se veja ameaçada: o aca­
so invade a cena, acaso que Tucídides não pudera
eliminar, e o encontro da ocasião é seu dom , kairos
une-se a tyché e tende a confundir-se com ela. Aris­
tóteles o certifica, ele que relaciona a ocasião à con­
tingência e faz desta o meio próprio à ação hum a­
na; outro obstáculo à ciência, com o foi dito, a oca­
sião revela-se o não-sei-quê de particular que resis­
te à generalidade. Finalmente, constata Dioniso de
Halicarnasso, nenhum filósofo e nenhum retórico
jamais pôde dizer algo de útil sobre o k airos . Em
respeito à ocasião, o raciocínio não têm mais p o ­

* Panécio de Rodes, filósofo estóico do século II a.C.


(N . do T.)

T ratado da Eficácia 101


der, a determinação tam pouco, e o espirito reconhe­
ce seus limites. O ra, da irracionalidade da ocasião
Irracionalidade
pôde-se concluir pela do sucesso. Os caminhos da
d o encontro-
acontecim ento eficácia embaralham-se. Alguns são bem sucedidos,
adm ite Aristóteles, não apenas “sem raciocínio”,
mas inclusive “contrariam ente a todos os ensina­
mentos da ciência e do raciocínio” . E M aquiavel,
por uma vez, apenas repetirá Aristóteles: ao engen­
d rar uma atitude irracional, uma má com preensão
dos homens e das circunstâncias pode ser bem-su­
cedida lá onde a razão teria desesperado e o homem
calculista, fracassado.
Para responder a tan to irracional e m elhor
exorcizá-lo, o Ocidente teve de inventar uma m ito­
logia da Ocasião e personificou-a. Lisipo esculpiu-
Por isso, ela a (no tem po de Aristóteles) e Posidipo celebrou-a:
foi personificada Kairos, “dom ador de tu d o ”, avançando “na pon­
(na Grécia) ta dos pés” (ou “vagando em vôo”) e tendo na mão
uma navalha; uma mecha de cabelos lhe cai sobre
a testa (a ser pega à sua aproximação) mas, por trás,
seu crânio é calvo (que ninguém espere to rn ar a
agarrá-lo). Em M aquiavel, tam bém , a Ocasião per­
manecerá a deusa sempre em movimento, que “tem
um pé sobre um a ro d a ”. T udo está aí para nos ad ­
vertir que essa ocasião deve ser pega em pleno vôo
— “pelos cabelos” — sem deliberar, sem mesmo
refletir, como que por um rapto. N o entanto, não
creio que possam os nos contentar com isso, esse
tem a contém outra coisa: prova-o, justam ente, o
prazer que se teve em sua alegorização. Se a ocasião
A figura da
desafia a razão, resta ainda evidenciar o sentido que
O casião não se
reduz à eficácia ela abre, a tensão que ela cria. Pois o estatuto de
irracionalidade da ocasião não poderia esgotar sua
figura, e isso é ainda mais sensível visto da China:
outros recursos se revelam, uma outra m otivação
se m anifesta, coisas que lá não encontramos.
E, antes de m ais nada, a ocasião apela tanto
à ousadia quanto à perspicácia, ela exige que res­
pondam os a seu desafio pela audácia, ela implica

102 François Jullien


que nos superemos. O ra, nos antigos tratados chi­
neses, essa superação de si não é exaltada, pelo me­
nos a título pessoal, já que é concebida com o o efei­
to, não da vontade, mas de um condicionam ento
(comparável ao das tropas obrigadas a com bater até
a m orte porque não lhes foi deixada outra saída).
Ainda que tal noção não se encontre nesses tra ta ­
dos militares (neles o sábio/estrategista nega, com o
O encontro-
vimos, o gosto das proezas), a “ audácia” (to lm a ) é acontecim ento
invocada em toda parte na Grécia, a propósito da invoca a audácia
guerra (cf. Hiparco, 7; e mesmo para um estrategista
tão “experiente” quanto Brásidas}; como tam bém
a propósito da retórica (de Górgias a Isócrates). E
foi precisamente essa audácia de enfrentar a fortu­
na que M aquiavel considerou a virtude por exce­
lência, que ele celebrou com o nome de virtü. O per
fortuna o p e r virtü , ou felicidade ou talento: se a
ocasião contou com o sucesso dos fundadores, é que
ela também, e sobretudo, serviu de revelador de seus
méritos ao lhes permitir ousarem. Isso porque a For­
tuna, por natureza, é mulher, ela se entrega aos “ho­
mens bravos” muito mais que aos “ hom ens frios” ,
ela prefere os jovens por serem mais ousados. A
surpresa da ocasião provoca um sobressalto de ener­
gia, e o próprio risco possibilita a façanha: toda
ocasião obtida com dificuldade é uma ocasião de
glória, é ela que inspira o ato heróico. O ra, a estra­
tégia chinesa, como foi visto, se desinteressa da gló­
ria e não acredita no heroísmo. Ou, m elhor, não é A clivagem:
a estratégia que, por princípio, não é heróica — não heroísm o ou
estratégia
deve sê-lo?
Concebida como encontro, a ocasião eleva o
eu acima dele mesmo, estende-o para além dos li­
mites esperados — até o sublime; ela também faz o
tem po sair para fora de si, torna-o inédito: abre-se
uma esperança insuspeitada, oferece-se o roçar de
uma exterioridade — nasce uma vertigem. Ao criar
O encontro-
a chance de um rapto, essa ocasião é tam bém oca­ acontecim cnto
sião de liberdade, ela liberta os possíveis. O ra, o abre a possiliili-

Tracado da Eficácia
dade de uma pensamento chinês jamais pensou uma verdadeira
superação exterioridade (já que nele o oposto é sempre com ­
plem entar, está implicado num a lógica de intera­
ção): portanto ele não conhece esse êxtase do en­
contro. Do mesmo m odo, não se m ostra sensível
àquilo que tem, não apenas de pungente, mas tam ­
bém de cativante, esse presente imprevisível em que
tudo se joga, vivido com paixão, na urgência do
instante — esse “Agora incandescente” (Jankélé-
vitch). Ele pensou o benefício a tirar da evolução e
do longo prazo, mas não o que esse instante excep­
cional excita de paixão e de forças vivas. Pois esse
acidental, ele próprio, é atraente (e o que dele nos
escapa é fascinante): após ter sido obrigado a cons­
tatar que a incerteza é inevitável na guerra, e por­
tanto ter deduzido que uma teoria rigorosa da guer­
ra é impossível, eis que Clausewitz, por uma revi­
ravolta inesperada, leva no final essa incerteza a seu
crédito. Isso porque ela abre um outro espaço, sus­
citando um impulso entusiasta — ela satisfaz outras
aspirações. Que a guerra é um “jogo”, é isso mes­
mo, reconhece Clausewitz, com o risco de não mais
poder fazer dela um objeto de ciência, “o elemento
que m elhor convém ao espírito hum ano em geral” .
Pois, “em vez de curvar-se à medíocre necessidade,
ele se diverte no reino das possibilidades” ; “trans­
portada, a coragem ganha asas”, de modo que a au ­
Jogo, risco, dácia e o perigo se tornam o elem ento no qual o
aventura do encon- espírito se lança “como o nadador intrépido se lança
tro-acontecimento na corrente”. Jogo, risco, audácia que a estratégia,
na China, sempre recusou.
Tal como é concebida na Europa, a ocasião faz
nascer o prazer do risco, da surpresa, do desconhe­
cido. Prazer da aventura, num a palavra, do qual
brotou tam bém o da narrativa (tendo por objeto
privilegiado as figuras opostas da guerra e do am or,
mas que se revelam idênticas em sua estrutura de
ocasião). Considerada com o um encontro arrisca­
do, a ocasião incita e faz sonhar, sua economia es­

104 François Jullien


taria mais ligada, no final das contas, ao desejo do
que à eficácia. Ou, m elhor, todo o seu irracional Prazer/eficácia

encontraria sua lógica nesse outro plano do imagi­


nário e da paixão — plano que sua alegorização
encena. Prova-o o dito costum eiro quando fala dos
“caprichos” da fortuna; ou Maquiavel quando acon­
selha abordar a ocasião — ou melhor, agredi-la —
como a uma mulher.
Lógicas do prazer ou da eficácia — aqui os
caminhos divergem. Seguindo o que se anunciava
com o o cam inho europeu da eficácia (em função
daquela articulação de base: objetivo-ação-ocasião),
vimo-nos engajados num a direção que se descobre,
Fim da divagem
no final, que conduz mais ao heroísm o do que à
estratégia. O próprio M aquiavel, ou Clausewitz,
estarão tão preocupados com a eficácia quanto se
diz? Não haveria, mesmo neles, algo de ínextirpável,
um excedente — excesso — em relação ao que se­
ria a pura função do efeito e que teria mais a ver
com a exaltação da pessoa, com a glória? Talvez
jamais tenham os saído da epopéia...
Por isso, convém ab an d o n ar m om entanea­
mente o paralelo para tentar com preender melhor,
continuando do lado chinês, como o efeito decorre
discretamente dele mesmo, em conform idade com
seu estatuto de conseqüência e por pura imanência.
O imaginário e a paixão podem tam bém ser fonte Q uestão a se­
de efeito, mas despendendo esforço. Resta ver como guir: a imanência
o efeito poderia resultar sem que se tivesse de des­
pender esforço.

T ratado da Eficácia 105


VI.
NADA FAZER
(E QUE NADA DEIXE DE SER FEITO)

1. O Ocidente freqüentemente se equivocou,


penso eu, sobre o “nâo-agir” preconizado pelos pen­
sadores do “cam inho”, do tao, os taoístas. Pelo me­
nos, da forma como esse não-agir é concebido no
texto considerado com o o texto fundador dessa es­
cola, o L aozi, o mais breve dos grandes textos do
D esvio pelo
pensamento chinês — apenas cinco mil palavras — Laozi (e saída fora
que é igualmente o texto chinês mais traduzido para da metafísica]
as línguas européias, certam ente porque seria ao
mesmo tempo o mais revelador e o menos traduzível
(uma coisa corroborando a outra), ao mesmo tem ­
po o mais crucial e o mais desconcertante. M ensa­
gem tanto mais preciosa, portanto, quanto jamais
é com pletam ente percebida, quanto se suspeita que
sempre esteja mais ou menos perdida (e estaríamos
condenados doravante a lê-la à nossa maneira): a
de uma sabedoria para sempre distante, enterrada
sob o trabalho da razão, ou ao menos obscurecida
por ela, e cujo frescor original somente esses afo­
rismos conservariam. Por isso, são fonte de inesgo­
tável fascínio, de tal m odo seu sentido se afigura ao
mesmo tem po simples e misterioso: o mais simples
— ou o mais radical — e por isso mesmo, o mais
misterioso.
Assim é o “ O riente” , ou, m elhor, sua m ira­
gem, o Oriente eterno do exotismo, do qual o “Oci­
dente” se com prazeu em tornar seu antípoda, que
se presta tão com odam ente a suas fantasias, e que
O Oriente i|iii'
ele não cessa de consum ir segundo um m odo com ­
se consom e
pensador: seu irracionalismo serviria oportunam en­
te de válvula na m aquinaria definitivamente insta­

T ratado da Eficácia 107


lada pela ciência, seu tom figurado (e “ poético” )
refrescaria momentaneamente a atmosfera confina­
da entre as paredes do conceito e da lógica. Mas sem
sair dela por isso — sem pensar algo exterior a ela.
Como se acreditou ver no Laozi um apofatismo aná­
logo ao nosso (e que é o outro de nosso discurso
teórico), ele foi facilmente classificado sob o ró tu ­
lo da “ m ística” . Do mesmo m odo, porque se asso­
ciava a eficácia à ação, tendeu-se a interpretar seu
não-agir com o o simples avesso de nosso agir he­
róico, invertendo este, portanto, no sentido da re­
núncia e da passividade (o O cidente “ativ o ” so­
nhando ter no O riente seu repouso...). O ra, bem
longe de pregar um desinteresse pelos assuntos h u ­
m anos, de p ro p o r um afastam ento do m undo, o
não-agir do L aozi ensina como se conduzir nele para
ser bem-sucedido. Pois isto pelo menos é claro por
falta de opção: esse pensador taoísta não poderia
nos convidar a fugir do mundo, porque para ele não
há outro m undo em nom e do qual rejeitar este, em
O preceito do cuja esperança se poderia confiar, em cuja espera
não-agir não se poderia suportar a vida. Em seu conjunto, e como
exige que se os outros grandes textos da antigüidade chinesa, os
abandone o aforismos do L a o zi são dirigidos ao príncipe e são
m undo
receitas de política — ou mesmo de estratégia: o
não-agir só pode ser preconizado aí com a marca
Ensina, ao de um proveito tangível — o de “o b ter” o m undo
contrário, com o e nele fazer reinar a ordem —, e portanto apenas
vencer por seu efeito.
Para convencer-se disso, bastaria ler a fórm u­
la por inteiro: “ nada fazer e que nada deixe de ser
feito*1” (LZ, § 37, 48). O que traduzo aqui pela li­
gação mais neutra, um simples “e”, conjuga na ver­
dade dois sentidos que poderiam parecer contradi­
tó rio s — adversativo e consecutivo. Pode-se ler
tam bém a fórm ula da seguinte maneira: “não fa­
zer nada m as que nada deixe de ser feito” ou “não
fazer nada de so rte que (a ponto de que) nada dei­
xe de ser feito” . Essa “palavra vazia” (er) que liga

108 François Jullien


os dois membros da frase serve para dizer ao mes­
mo tempo a nâo-exclusão dos contrários e a pas­
sagem de um ao outro; e, nesse segundo sentido,
mas que já não é, propriam ente falando, um senti­
do, ela não se contenta em fazer aparecer o que
segue com o o resultado do que precede, mas intro­
duz entre am bos um a dim ensão de desenrolar e
reproduz (por seu “ vazio” ) o tem po do processo.
Tom ada em seu conjunto, a fórm ula não significa,
portanto, apenas que o não-agir não exclui o efei­
to, mas sobretudo que é não agindo (sabendo não Sabendo não
agir) que se pode chegar melhor ao sentido deseja­ agir
do. Nesse estágio, de fato (de forma “que não haja
nada que não seja feito” ), a dupla negação elimi­
na de antem ão, do resultado vindouro, todo limi­
te e toda falta, ela o leva à plenitude.
Por isso, quer se trate do príncipe ou do sábio,
esse não-agir é a condição. Por si só, ele exprime sua
ambição. Se o soberano deve “fazer de m odo” que
os hábeis “já não ousem agir” (§ 3), é sem dúvida
porque esse agir “inteligente” , por sua iniciativa,
vem perturbar o curso espontâneo das coisas (agir Agir ou falar
ou falar: falar, sob esse aspecto, é como agir — pon­
tual, manifesto e forçado — e os sábios não falam
mais do que agem, cf. § 56; ou, invertendo a com ­
paração: agir é com o falar, o agir é tão suplem en­
tar quanto a palavra). A partir do m omento em que
se age, com efeito, instaura-se um “outro com eço”
em relação à maneira como a situação evoluía, cria-
se um “início de questão” (cf. o comentário de Wang
Bi, o mais filosófico do Laozi, no século III de nos­
sa era, § 45, 56). Pelo que traz consigo de exterior
(como modelo ou com o intenção projetados), pelo
que assim inaugura e que não estava implicado, e
portanto necessariamente interfere, esse agir é ine­
vitavelmente fonte de estorvo, ele inter-ve m como
um entrave: se “não se ousa agir 8 ” (§ 64, final), é
então primeiramente para não impedir que advenha
aquilo que, sem o agir, adviria sozinho. Enquanto

T ratado da Eficácia 109


em todas as épocas, e em todos os tons, a tradição
européia reconheceu m érito à audácia, o pensador
taoísta celebra por seu lado a “não-audácia” . E isso,
Elogio da nâo-
audácia pela simples razão do que resulta dessa iniciativa do
agir como perigo suscitado (pela infração causada):
se somos “corajosos para ousar”, não poderíam os
m orrer de morte natural; ao passo que, se temos a
força de “não ousar”, estamos em condições de ga­
rantir o essencial — e, antes de tudo, de nos m an­
term os “vivos” (§ 73).
Duas lógicas se opõem, na verdade: de um la­
do, a do ativismo, que é a de um dispêndio e de uma
acumulação sem fim, no m odo do sem pre m ais , se­
gundo a qual não se pára de aprender (§ 48) ou de
querer ir mais longe (§ 47); e, do outro, ao contrá­
Eliminar sua rio, aquela segundo a qual não se pára de eliminar
ingerência sua ingerência, de reduzir sua azáfama. E à luz dessa
clivagem que devemos ler a fórm ula inicial: “dim i­
nuir e dim inuir ainda mais, até o estágio do não-
agir: sem nada fazer — [erj não há mais nada que
deixe de ser feito” {§ 48). O grau zero do agir ao
qual se chegaria corresponde então ao pleno regi­
me da eficácia, não se pode sempre “obter o m un­
do ” a não ser “sem se afainar”. De fato, tão logo
Fazer faz
se faz, aparece na mesma hora o não-feito; fazer
aparecer o não-
feito
tudo, ao mesmo tem po que progride, não cessa de
operar uma cisão entre o que se faz e o que não se
faz: tão logo se faz, há fatalmente um fazer que é
deixado de lado e que jamais se poderá recuperar.
Ora, não só todo esse não-feito reduz na mesma pro­
porção o que se pretende fazer, mas sobretudo tra ­
balha em sentido contrário ao que se faz, prepara-
O não-feito lhe a desfeita, ele o des-faz 11 * (§ 64). Dito de outro
desfaz m odo, fazer tudo tem seu avesso, assim como tudo
aquilo a que nos “apegam os” contém em si sua

* N o original francês há um jogo de palavras entre d


faite (derrota, traduzido aqui por desfeita , que tem o sentido
de derrota e m antém o jogo) e dé-fait (des-faz). (N . do T.)

110 François Jullien


"p erd a” , im plicando todo apego que se deve em
seguida desprender-se dele. “ Q uanto mais se faz,
mais se perde”, conclui ligando os dois o com enta­
dor (W ang Bi, § 5). Por isso, é somente evitando
fazer que é possível não haver mais nem não-feito1
nem des-feito — que se pode evitar ao mesmo tem ­
po a falta e o fracasso.
Quem “espalha” seu “agir”, “pondo em exe­
cução” , explicita o com entador (Wang Bi, § 29), é
forçado a se “prender” aqui e portanto a se despren­
der acolá; esse ocasionalismo é arbitrário e obriga,
além disso, a “suprim ir” do real tudo o que ultra­ O agir é arti­
passa seu projetoL. Ademais, todo agir é forçado a ficial

bloquear m om entaneam ente o real, quando tudo


nos m ostra que este está em evolução contínua; o
contrário do agir (negativo) será portanto esposar
seu curso e ajustar-se a ele (yin oposto a u/ei1 }: con­
vém sempre acom panhar o real para que ele possa
evoluir a seu bel-prazer — ao nosso e ao m esm o
tem po ao dele. Por isso, “os que desejam obter o
m undo agindo, afirma perem ptoriam ente o velho
Mestre, vejo bem que não contribuem nada para
isso” ... (§ 29). Pois não compreenderam que o m un­
do hum ano não é como um “vaso” que se poderia
segurar nas mãos: ele é feito sim ultaneam ente de
visível e de invisível, tudo nele aparece e desapare­
ce sucessivamente, nada nele está parado^ : em uma
palavra, ele “não pode ser um objeto de agir” . Ele É por isso que
tem, de fato, sua instrumentalidade (o “vaso” ), mas o m undo não é
que não é codificável, e por isso não se deve cessar um objeto de agir

de ajustar-se a ele para servir-se dele.


V oltam os assim à clivagem anterior: se nos
contemos de agir, é para deixar advir (§ 47) e para
que o m undo “p o r si m esm o” possa “transform ar-
se” (§ 37); a transform ação im plicada substitui a
ação dirigida. E essa recusa do dirigismo vale em
Renunciar ao
primeiro lugar em política. Q uanto mais os regu­
dirigism o da a<,'ãu
lamentos e as prescrições proliferam, eles que são
lustamente a expressão exacerbada do “fazer” po-

I ratado da Eficácia
lítico, mais o estado do m undo piora: quanto mais
há proibições, mais o país é pobre; quanto mais há
leis, mais há bandidos (§ 57). Ou ainda, segundo
um m odo irônico: fazer reinar a ordem num gran­
de reino é como cozinhar peixes miúdos (§ 60): pro­
cure não lhes tocar em nada, “não lhes retire nem
as vísceras nem as escam as” (He Shang gong), do
contrário tudo se reduzirá a papa...
Para que “ não haja nada que não esteja em
ordem ” (segundo o m odo do “que não haja nada
que não seja feito” ), para que essa ordem que é, não
a de um a harm onia preestabelecida, mas a da regu­
lação, por transform ação contínua, se estenda a tu ­
do e seja “ constante” , é preciso “ praticar o não-
agir” ou, mais exatamente, para respeitar a iteração
do term o, “ fazer o não-fazer” (“agir o não-agir”1),
resume num a fórm ula o Laozt (§ 3, 75). Eis aí con­
firmado, por esse aparente paradoxo, que o não-agir
não traduz nenhum desinteresse em relação ao mun­
do, que ele não nos desvia em nada da realidade (que
não é “m ístico” ). Pois a negação não incide sobre
o próprio verbo, mas sobre seu com plem e
“Agir sem objeto interno: o agir é m antido (em sua perspecti-
aSlr’' va de eficácia), apenas seu objeto é retirado (naquilo
que se arrisca sempre a conter de parcial e de fixo);
por isso, liberada do que implica ordinariam ente de
rígido e de limitado, a atividade é conduzida a seu
pleno regime, ela se confunde com o curso das coi­
sas em vez de perturbá-lo: se retiro do agir seu ati-
vismo, suprimo junto a oportunidade da desordem.
A gir sem agir: não ajo (em função de um plano es­
tabelecido, de maneira pontual, forçando as coisas),
mas tam pouco sou não atuante — não permaneço
inativo — porque acom panho o real durante todo
o seu desenrolar (porque vou de par com ele, por­
que sou seu parceiro). Ao mesmo tem po em que o
m undo não é mais um objeto de agir, torno-m e par­
te integrante de seu devir: “ajo”, a partir de então,
sem mais “enfrentá-lom ” (essa é a últim a frase do

112 François Jullien


I .tiozi, § 81). Esse puro agir (como em outra parte
se talou do puro amor) é um agir que não conhece Um agir sem
manobras
mais nem dispêndio nem atrito — um agir sem m a­
nobras; ao perder sua descontinuidade e sua rigidez,
ele se transform a em evolução sem fim. Do mesmo
modo que se pode saborear sem fim. Como o res­
saltam essas form ulações paralelas, “ age-se sem
a^ir” como se “saboreia o não-sabor” ou se “afaina
sem afainar-se” (§ 63). Pois, assim com o o não-sa-
bor (a “ insipidez” ) constitui o fundo latente dos
sabores mais diversos (e os contém juntos no esta­
do de virtualidades), o sábio age na raiz do devir e
se situa a m ontante de sua m aior m anifestação: o
agir ou o saborear estendem-se assim por si mesmos,
«•111 mais exclusão, e são “ inesgotáveis” .

2. Um ponto desde o início está subjacente a


essa reflexão, em torno do qual não cessamos de gi­
rar — mas o próprio pensamento chinês não cessa
de voltar a ele, com o se não findasse de explorá-lo:
a partir do m om ento em que é ativado, um proces­
so é levado p o r si mesmo a se desdobrar; algo se
enceta que só pede para devir. Por si m esm o signi-
lica que o movimento em questão está contido no
estado presente das coisas, que sucede “ espontanea­
mente” que ele seja “assim ”, que isso é natural (o
sentido do zirann no Laozi). Entretanto, o fato de
esse processo estar im plicado não significa que ele
se realize, resta ainda fornecer-lhe as condições de
seu desdobrar-se. Uma fórmula repensa a partir daí
ii agir-sem-agir do L a o zi (§ 64, final): em vez de
"ousar agir”, convém “ ajudar o desenvolvimento
espontâneo de todos os existentes” , isto é, convém Assistir o
ittsistir o que vem naturalm ente. Chegando assim natural
a roçar a contradição, insinuando-se entre essas
m argens, a fórm ula libera um a possibilidade de
sentido que em seguida não mais cessará, ao des­
dobrar-se, de deixar fluir a evidência: uma “evidên-
i ia", justamente, que não se consegue ver, a não ser

11 .il.ulo da Eficácia 113


primeiramente contraindo-a — aquela que o pen­
samento chinês não cessa de elucidar, por um viés
ou por outro, e em torno da qual os aforismos do
L aozi nos fazem reaparecer continuam ente, como
à beira de seu poço.
Retom ando a fórm ula pelas duas extrem ida­
des: como isso vem naturalmente, cumpre evitar in­
tervir ousando agir (sob pena de perturbar a espon­
taneidade em andam ento); mas, ao mesmo tem po,
convém secundar a propensão natural favorecendo
seu aparecimento. Ao contrário da ação (direta, vo­
luntária, função de um objetivo), o agir-sem-agir
A eficácia é possui uma eficácia indireta: procede de um condi­
indireta
cionam ento e se realiza pela transform ação. O m o­
delo, ou pelo menos o exemplo privilegiado, é tira­
do do brotar das plantas (cf. a China, povo de agri­
cultores e não de pastores). Como é dito no M êncio
(II, A, 2), não se deve nem atacar as plantas para
fazê-las crescer mais depressa (imagem de um a ação
“direta” ), nem deixar de limpar à sua volta para
ajudá-las a brotar (por um condicionam ento favo­
rável). N ão se pode forçar a planta a crescer, nem
tam pouco se deve abandoná-la; mas, liberando-a do
que poderia entravar seu desenvolvimento, deve-se
deixá-la brotar. O ra, isso vale tam bém no plano
político: o bom príncipe, pois é primeiramente a ele
que o L a o zi tem em m ira, é aquele que, suprim in­
do as coerções e as exclusões, permite que cada exis­
tente possa desabrochar livremente. Seu agir-sem-
agir é um laisser-faire (deixar-fazer, deixar-passar),
mas que não é nada fazer absolutamente. Pois eqüi­
vale a fazer de m odo que isso possa ser feito sozi­
nho. M esmo que o fazer se torne mínimo, torne-se
aí o mais discreto, esse deixar é ativo.
j\o mesmo tempo, essa discrição torna-o mais
difícil de apreender. Pode-se m uito bem pensá-lo a
partir de seu contrário, opor assim o que é “orde­
A o se confun­ n ad o ” (por outros) ao que sempre sucede “espon­
dir com o curso taneam ente” (5 51), mas o que assim sucede espon­

114 François Jullien


taneam ente, por si mesmo, não se vê. A partir do espontánco d;is
momento em que o agir, liberando-se de todo ati- coisas, esse
sem-agir não é
vismo, chega a confundir-se com o curso espontâ­
mais identificável
neo das coisas, não se pode mais identificá-lo; como
ele se difunde aí ao longo de sua evolução, não há
mais nada nele que se focalize ou se destaque, ele
esposa tão cedo o princípio dessa evolução que não
o vemos distinguir-se dela. Esse agir-sem-agir não
tem mais aresta nem aspereza. A fronteira entre o
fazer e o feito se apaga, não se sabe mais a quem
ou a que atribuir o efeito, cada um acredita de boa
fé poder reivindicá-lo. Quando, graças ao agir-sem-
agir do príncipe, “o efeito se realiza e se segue a
situação”, todos dizem: “Isso me veio sozinho” (§
17). Por isso, do m elhor soberano sabe-se apenas
que ele existe (que “nele há realm ente um lá-em-
cim a...” ): o m érito, já o sabem os, é tan to m aior
quanto não é percebido (não que se queira dissi-
mulá-lo, por humildade, mas porque os outros não
estão em condições de percebê-lo). Por isso, quan­
do a eficácia se torna natural, “quase n ão ” se pode
dizê-la, ou, melhor, é nesse m odo do quase não que
m elhor se pode dizê-la0 (§ 23, início): contendo-se
de falar dela, deixa-se passar sua consciência —
marca-se em concavidade sua presença. O u ainda,
já que o agir-sem-agir eqüivale ao saborear sem sa­
bor (o da insipidez), é nesse m odo do insípido que Esse agir-sem-
se pode evocá-lo melhor (cf. o com entário de W ang agir é “insípido”
Bi, § 23). N ão se destacando mais nenhum sabor,"
atinge-se nesse estado neutro o fundo indiferencia-
do das coisas — que é tam bém o lastro de suas
virtualidades.
Rem ontando, de fato, aos níveis de advento do
real, pode-se distinguir sucessivamente (§ 25; cf.
W ang Bi e o “G rande com entário” do Z h u y i ): o Rem ontar à
fonte da eficácia
nível do desempenho concreto, que é o da atuali­
zação (a “terra” ) e que o homem “ im ita”; a m on­
tante dele, o dos traços ainda discretos das coisas,
que prefiguram a atualização delas e lhes dão for­

T ratado da Eficácia
N .1 iHISCIlCiil ma (que a terra imita: o “céu” ); mais acima ainda,
de construção o curso sem fim das coisas que as faz passar da la-
mctafíüici): os
tência à atualização e reciprocam ente (que o céu
n í v e i s di' advento
do real culminam
imita: o “cam inho” ). A m ontante do cam inho, en­
no “natural" fim, está o “ n a tu ra l” (como capacidade de advir
spon te sua): não como um nível a mais, mas como
o m odo perfeito do “cam inho” — que é tam bém o
pleno regime da eficácia. “T erm o” últim o, limite
“ extrem o” (W ang Bi): quanto ao natural, ele não
imita nada, não tem algo acima, o que o caracteri­
za, ao contrário de todo o resto, é que não se rela­
ciona a nada além dele próprio. Poder-se-ia acredi­
tar (chegou-se a acreditar) que tal ordenação do real
se lê segundo um m odo platônico. M as, antes de
tudo, o fato de um estágio “im itar” o anterior não
significa que o reproduza (como o leito pintado re­
produz o do artesão que por sua vez reproduz a
Eles devem ser Idéia), mas que se inspira nele e o substitui (não há,
concebidos não portanto, problem a de perda de um para o outro);
mais em termos
sobretudo, trata-se aí não de níveis de ser, mas de
de ser, m as de
processo estágios ou de níveis de advento (a visão chinesa não
é ontológica, já o vimos suficientemente, mas pen­
sa o real com o processo). Por isso, essa ordenação
do real não culmina numa forma de transcendência
(uma form a transcendente: a do Bem), mas naque­
la capacidade que está “no fundo” do real e cons­
O lastro d o titui o lastro do processo (do qual não cessa de pro­
processo ceder o processo das existências, que é ao mesmo
tem po seu capital e sua fonte). É ela que constitui
o m odo absoluto do “C am inho”, poderíam os cha­
má-la sua “virtude” de imanência (conforme o pró­
prio título que foi conferido a esse texto, D ao de
jing, o Clássico do cam inho e da virtude).
Cum pre ainda nos entendermos mais precisa­
mente sobre cada um dos termos. N ão se deve en­
tender virtude aqui no sentido m oral, com o uma
A virtude de
disposição a agir segundo o bem, e o mestre taoísta
imanência
o anuncia sem rodeios: não mais do que o m undo
(“céu e terra” ), o sábio não pretende “ser hum ano”

116 François Jullien


c agir bem (§ 5). Isso porque não convêm nem o agir
liem o bem: se somos hum anos para com os outros,
somos levados a focalizar nossa conduta sobre atos
bons, individuais e momentâneos, e recaímos então
no agir espetacular e de pouco efeito; e o que cha­ Ela não passa
mamos o bem não passa de uma norm a projetada pelas clivagens da
sobre o m undo (a “retidão” da m oral) que nos leva moral

.1 cindir o m undo em dois, a opô-lo a ele mesmo (o

hem-o mal) e, finalmente, a m utilá-lo. Porquanto,


ao suprim irm os um para valorizar o outro, anula­
mos sua interdependência, perdemos de vista sua
coerência (cf. § 2, 49). Deve-se, portanto, entender
virtude neste outro sentido que, não mais remeten­
do ao dever ser, é da ordem da efetividade: no sen­
tido de uma qualidade que torna próprio para um
certo efeito, ou seja, que possui a capacidade de
produzi-lo (como se fala da virtude curativa de uma Virtude no
planta, ou da virtude reparadora do tempo, ou quan­ sentido de efeti­
vidade
do se diz: “em virtude de” ). Segundo uma glosa das
mais clássicas na China, e que vale tam bém para o
l.aozi (cf. W ang Bi, § 38), de, a virtude, é interpre­
tada pelo verbo, hom ônimo transform ado em sinô­
nimo, que significa “o b ter”: a “virtude” é uma efi­
ciência. Q uanto à noção de imanência, ela é mais
cercada que definida (defini-la seria, obviamente,
perdê-la), e três fórmulas se encadeiam em espiral
para traçar sua lógica (repetindo-se duas vezes, § 10
e 51): “ [ela] faz advir mas sem possuir, age mas sem
se apoiar, [faz] crescer mas sem dirigir” . Dito de
outro m odo, a virtude de imanência não se apro­ Com o descre­
ver a imanência?
pria do que ela faz existir (é desinteressada), age com
um agir que não é nem dependente nem merecedor
(“ sem se a p o iar” ), faz/deixa desabrochar — mas
sem exercer autoridade. Ela se exerce sem transcen­
der. O u ainda, “todos os existentes se apóiam nela
para advir mas ela não os conduz (melhor que: ela
não os “ recusa” ); o efeito se realiza sem que ela faça
dele um nome; ela veste e alimenta todos os exis­
tentes sem lhes servir de mestre” (§ 34; há realmente

T ratado da Eficácia
“capacidade” mas não há “m estre”p , resume o co­
m entador, W ang Bi, § 10). Tal é a capacidade que
emerge do fundo do real (“abissal*1’” ) e na qual, para
ser eficaz, o sábio deve abeberar-se; é a ela que, para
jamais “perder”, ele deve “assim ilar-se” (§ 23).
Essa eficácia por imanência é um lugar-comum
do pensamento chinês. Entre as duas grandes tra ­
dições adversas, a dos confucianos e a dos taoístas
(e que tendemos demais a isolar sob rótulos), a di­
ferença relativa à eficácia está em que os primeiros
tendem expressamente a confundir os dois sentidos
A noção de da noção de virtude (assim, é a virtude de hum ani­
im anência é dade que, atraindo todos os povos para si, permite
comum às diver­
triunfar dos outros príncipes, segundo M êncio), ao
sas correntes do
pensam ento passo que os segundos os separam ostensivamente.
chinês M as, quer se chegue a ele pela retidão interior ou
por pura concordância com o curso espontâneo das
coisas, uns e outros se juntam no não-agir (e este
não é uma especialidade do taoísm o, mesmo que o
tema seja nele muito mais marcado). O progresso
moral preconizado pelos confucianos tam bém cul­
mina na espontaneidade, e o esforço assíduo con­
verte-se então — e resolve-se — em perfeita facili­
dade (cf. ZY, § 20). De Shun, o m odelo dos bons
soberanos, Confúcio diz que “fez reinar a ordem
sem agir” {Conversas, XV, 4); e “fazer acontecer
sem agir”, do mesmo m odo que “manifestar-se sem
m ostrar-se” , é uma articulação determ inante dos
dois pensamentos (LZ, § 47, e ZY, § 26).
Entre taoístas e confucianos, a diferença, no
fundo, não reside tanto na maneira como concebem
o modo de advento do real quanto naquilo que con­
sideram como ponto de partida da realidade: estes
concebem o real a partir do lastro de iniciativa e de
reatividade que não cessa de investir-se no grande
processo do m undo, sem jam ais desviar-se nem
exaurir-se (noção de cbeng; que corresponde ao las­
tro de “hum anidade” e de solidariedade que existe
em nós” : noção de ren x ), e que conduz o curso do

118 François Juilien


mundo de m aneira constantemente regulada; aque­
les o concebem a partir do fundo indiferenciado
(noção de w u), de onde não cessam de atualizar-se
os existentes individuais {you por relação a w u s ),
em cuja plenitude o caminho natural — o tao — os
leva a retornar. M as confucianos e taoístas estão de
•icordo quanto à imanência do efeito: seja por in­
fluência m oral ou p o r propensão natural (sendo
também natural essa eficiência moral), a tendência
se conclui por si mesma, isso “vem por si mesmo
sem que seja cham ado” (LZ, § 73), o resultado não
poderia falhar (MZ, IV, A, 9). Quer se trate do “ca­ O mundo
m inho” do tao ou da moral, o m undo rende-se a ele “rende(-sej” à
imanência
inelutavelmente, e também lhe rende (para exprimir
a am bigüidade de gu fi). De fato, render (-se) signi­
ficaria aqui ao mesmo tempo que o m undo retor­
na com o a seu lastro original (lastro indiferenciado
ou lastro de humanidade; cf. LZ, § 22,34; e Conver­
sas, XII, 1; M Z , IV, A, 4 e 13 ) e que lhe cabe a título
de ganho, que como tal é j ustificado, e é esse o ren­
dimento de sua eficácia. Sobre esse ponto, as receitas
de sabedoria coincidem: esse retorno à imanência
é de um rendim ento garantido. O sábio, na China,
é aquele que, ao render-se à naturalidade dos proces­
sos, faz que o m undo se lhe renda obrigatoriamente,

3. Visto que o não-agir preconizado pelo taoís-


mo não é desprovido de possibilidades estratégicas,
não seria de surpreender que, em suas idéias inte­
ressadas, os conselheiros de corte recorressem a ele.
Ele não é um ensinam ento rem oto dos sábios, não
vale apenas para o príncipe, mas serve para todos
aqueles que querem ser bem-sucedidos, em tempo
com um , na m enor escala; ou, melhor, é por meio
dele que, renunciando à visibilidade do agir, a acon-
tecibilidade se dissolve e os tem pos parecem “ordi­ A fórmula di
não-agir nas rd
nários” . A situação m uda, mas “em silêncio”. Na
ções de pessoas
gestão dos assuntos diplom áticos ou políticos, o de interesses
grau mais simples desse não-agir é, como vimos, a

Tratado da Eficácia
espera: “ O sábio, no/pelo não-agir, espera que haja
cap acid ad e” (G G Z , cap. “ Ben jin g ” ). A fórm ula
merece ser relida, pois ganha m ais relevo sob essa
luz taoísta: quando nada mais é portador na situa­
ção , não apenas não há mais nada a fazer senão
esperar, e é “ ousando” não agir que saberemos nos
conservar (o que é essencial para a seqüência: para
que haja uma seqüência; cf. a atenção taoísta diri­
gida ao simples fato — prim ordial — de manter-se
vivo); m as, sobretudo, é não fazendo mais nada,
quando mais nada é favorável, evitando intervir,
não perturbando com nosso ativismo a regulação
em andam ento, que m elhor poderem os fazer esta
advir. Chegam os a esta lição que o taoísm o ensinou
da m elhor m aneira: é ineficaz enfrentar a situação
para forçá-la. Esse agir pode ser heróico — em todo
caso, é espetacular — mas é em vão: será derrota­
do. É, ao contrário, “após ter distinguido o fácil e
o difícil” que o conselheiro de corte “concebe sua
estratégia” (G G Z , ibid.)-. seu agir se reduz na m e­
dida em que segue a linha de m aior facilidade e não
é bloqueado; ou ainda, prossegue o tratad o de di­
plom acia, é “ao conform ar-se à espontaneidade dos
processos em cu rso ” , o tao natural, que ele torna
sua estratégia “efetiva”: quanto mais souber espo­
sar o curso do real, m elhor esse agir conseguirá in-
tegrar-se à realidade e, desse m odo, im por-se com
ela.
A fórm ula do n ão-agir é, p o rtan to , genera-
lizável em diplom acia: se, no com ércio com os ou­
tros, soubermos adaptar-nos à diferença dos casos,
poderemos toda vez tirar vantagem da situação o fe­
recida, seja num sentido ou no outro, e assim, “sem
agir”, conseguir “conduzir a situação” (G G Z , cap.
1, “Bai he”). Sem agir significa aqui, a propósito das
relações de pessoas e de interesses, que é tornando-
nos disponíveis à situação, graças à serenidade pela
qual nos firmamos interiorm ente (segundo o modo
taoísta), ou seja, evitando projetar sobre a situação

120 François Jullien


idéias ou intenções, ou, com o o diz elegantemente
fs s e tratad o, m antendo-as “encobertas” em vez de
nos concentrarm os sobre elas, que “ exercem os nos­
sa autoridade” (G G Z , cap. “Ben jin g ”). A imagem
tia serpente ou, melhor ainda, do dragão exprim e
bem essa mobilidade do espírito que perm ite evo­
luir à vontade, sem jam ais ser estorvado nem sofrer
O agir-sem -
(evolução opondo-se a ação): o corpo maleável do
agir se tran sfo r­
dragão não tem form a fixa, ele ondula e se curva
m a em cap acid a­
em todos os sentidos, contrai-se para se distender, de de evo lu ção: o
concentra-se para progredir; ele esposa tão bem as d ragão
nuvens que, sempre levado por elas, avança sem
fazer esforço. Por isso, quase não se distingue de­
las. D o mesmo m odo, a intencionalidade estratégi­
ca não tem intenção definida, ela não se obstina em
nenhum plano para m elhor seguir todos os contor­
nos da situação e poder aproveitá-los: se o estrate­
gista não age, é porque ele não fragm enta nem des­
pende sua energia numa ação determ inada, mas,
com o o corpo infinitam ente solto do dragão, vale-
se da renovação da situação para — evoluindo sem­
pre — não cessar de avançar.
Percebe-se a relação confusa (perversa?) que
o pensamento diplom ático mantém com o não-agir
do taoísm o. Enquanto este tinha em m ira a ordem
com um , o conselheiro de corte que se insinua aqui
sob a figura do “sáb io ” (o term o perm anece) só
pensa em seu interesse pessoal (através do prínci­
pe), e isso sem o m enor escrúpulo, sem o m enor
pudor; sobretudo, enquanto o taoísm o rejeita deli­
beradam ente a inteligência (por ela vir perturbar a
simplicidade primitiva; L Z , § 19), o conselheiro de
corte integra o não-agir numa inteligência estraté­
gica que reconhecidamente se desenvolve na sombra
e se com praz nas maquinações (G G Z , cap. “M o u ”,
final). Resta todavia, em am bos os casos, a idéia de
se ajustar à situação para tirar proveito dela. Espo­
sar o curso espontâneo das coisas, responder-lhe
“com o fêm ea” , tal com o o recomenda o Laozi (sen-

Tratado da Eficácia 121


tido de shun ou de yinu ), permite conceber a co n ­
duta estratégica não mais em term os de ação mas
de reação (>7Hgv ); e esse insinuar-se basta para mu­
R eagir em vez dar globalm ente as perspectivas. Enquanto o agir
de agir é arriscado, porque é obrigado a aventurar-se numa
situação que apenas se aborda, porque tam bém é
oneroso, pelo que despende de iniciativa e de ener­
gia para se pôr em m ovim ento, algo bem diferente
acontece com o agir-sem -agir da reação: reagir já
não é arriscado, porque a situação já foi posta à pro­
^.cp® r j va e se m anifestou, tam pouco é dispendioso, por­
Çpt que se é levado pelo que o outro já investiu de a ti­
vidade (em vez de investir com lastro próprio). E n ­
fim, enquanto o agir permanece m arcado pelo a r­
bitrário de seu gesto inaugural e teve que forçar, o
m ínim o que fosse, o real para nele inserir-se, a rea­
ção se acha de saída justificada por aquilo que a
suscitou. A ação é necessariam ente m ediata (deve
ser preparada por uma intenção, m otivada por um
querer), ao-passo que a reação pode ser im ediata
(aderindo simplesmente ao outro, sem custo de idéia
ou de vontade). Ou ainda, poderíam os dizer: en­
quanto o agir é transcendente ao mundo, enquan­
to permanece m arcado por uma certa exteriorida-
Reagir nos rein­
de (que o obriga a se impor), reagir nos reintegra
tegra num a lógi­
prontamente numa lógica de imanência, em que bas­
ca de im anência
ta esposar. O que se traduz na econom ia respecti­
va de am bos. Enquanto a ação , enrijecida por seu
p ro jeto , deve im obilizar-se num ponto particular e
nele se acantona, a reatividade da reação a mantém
viva e móvel: com o o corpo do dragão-serpente, ela
reage em todos os sentidos (cf. a serpente do monte
Chang proposta com o modelo de estratégia: “Q uan­
do a atacam na cabeça, é a cauda que se ergue; quan­
do a atacam na cauda, é a cabeça que se ergue; quan­
do a atacam no centro, as duas extrem idades se er­
guem ao mesmo tem po”; SZ , cap. “Jiu di” ). Com o
esse tratado de diplom acia o resume, a reação “não
tem lugar próprio”w (G G Z , cap. “Ben jin g” ), ela

122 François Jullien


pode produzir-se em qualquer ponto e em qualquer
m om ento. Em uma palavra, não é localizável; sen­
do assim, está de acordo com a ubiqüidade opera-
tória da transform ação.

4. Pode-se levar ainda mais longe o paradoxo


— mas que é sempre apenas aparente: o de que um
pensamento da ditadura possa inspirar-se no não-
agir. Q uer nos reportem os ao que diz a tradição a
esse respeito, quer nos atenham os ao testemunho
dos textos, é de fato inegável que o autoritarism o
político dos “legistas” chineses tem filiação direta
com o pensam ento taoísta. M as não existe aí, no
fundo, nada de espantoso (e portanto não se preci­
sa fazer uma triagem nos textos, com o bem o m os­
trou Léon Vandermeersch): a partir do momento em
que se estende a tudo e a todo instante, e faz pesar
sobre todos a mais rigorosa coerção, o autoritarismo
do poder, ao tornar-se totalitário, não tem mais ne­
cessidade de agir pontualm ente; o condicionam en­
to que ele impõe de uma vez por todas é suficiente
para fazer com que, sem que precise mais querer ou
pesar, resulte inexoravelm ente a submissão. Q uan ­ Um perfeito
do sua tirania é bem sucedida, um tirano nada mais déspota n ão
precisa m ais agir
tem a fazer, ele somente precisa deixar fazer: a sujei­
ção em relação a ele é espontânea, chega-se a um
regime de perfeita reatívidade, e sua transcendência,
levada ao extrem o, converte-se em pura imanência.
Pois é realmente da im anência que os “legis­
ta s” chineses, ao instaurarem o poder mais autori­
tário, esperam a eficácia (que se traduz para eles em
obediência). Com o o analisa finamente seu m elhor
teó rico (H F Z , cap. 8, “ Y ang qu an” ), a natureza
d e ^ e ’poder quéTesurta doconH icionam ento exer-
cidojé não ter que se “m ostrar”; seu detentor per­
m anece ele próprio “vazio e sem agir”, contentan-
do-se em deixá-lo operar. Pois, enquanto a “ativi­
dade se manifesta pelos quatro lados” , “o essencial
está no centro” que é constituído, com o vimos, pela

Tratado da Eficácia
posição de autoridade. É a partir desta que se esta­
belece o aparelho do poder: ela permite ao sobera­
no, de um lado, instituir a norma das recompensas
e dos castigos, que se impõe a todos, e faz cada in­
divíduo reagir instintivam ente em função do medo
e do interesse; do outro, m anter sob controle o con ­
junto da população graças aos procedim entos mi­
nuciosos de responsabilização coletiva, de con fron ­
tação mútua e de verificação. N a medida em que
esse aparelho de poder age, ou m elhor, reage, com o
um puro dispositivo, o príncipe não precisa mais
dar-se ao trabalho de julgar: as punições e as recom ­
pensas são automáticas; ele tam pouco precisa vigiar,
porque as denúncias se tornam sistem áticas. N o fi­
nal, quando esse regime está perfeitam ente assim i­
lado, ele não tem mais sequer necessidade de casti­
gar, pois cada um, com pelido interiorm ente pelo
desejo e pela repulsa, respeita espontaneam ente a
1 lei im posta. Cada um desempenha então sua fun­
ção tão naturalm ente quanto “o galo serve de guar-
da-noturno” ou o gato “serve para pegar os ra to s”,
e o “sáb io ” (nesse caso, o déspota) não tem mais,
ele mesm o, que ^ e a f a in a r ” . Basta que “m antenha
firmemente em/mão^” esse dispositivo e “dos qua­
tro cantos do mundo todos virão trazer-lhe sua con­
tribu ição ” : ele precisa apenas “esperar” que esta se
m anifeste e que cada um se devote pelo que toca a
ele.
O teórico do despotismo não tem dificuldade
de m ostrar o alto rendim ento que daí resulta: gra­
ças à autom aticidade desse dispositivo, o funciona­
mento do poder é sempre adequado (cf. “tudo es­
tando assim estabelecido em torn o dele [o prínci­
pe], assim que ele abre sua porta, tudo se ad ap ta”};
esse funcionamento é constantemente igual, uma vez
que, inteiramente implicado pela m áquina, não de­
pende mais da boa vontade dos outros ou dele mes­
m o; e tam bém constantem ente recondutível: a m á­
quina pode funcionar desse modo sem se deter, seu

François Jullien
funcionam ento é “coerente” e regular. D aí a eco ­
nomia de conjunto a que se chega: o príncipe é tanto
mais poderoso quanto não mais precisa intervir; e
mesmo, “tanto em baixo quanto em cim a” , no ní­
vel do povo com o do príncipe, “não há mais ag ir”. ' /
O cupando cada um seu lugar, tudo funciona por si: \
todas as peças do m aquinism o, uma vez acionadas, |
andam sozinhas.
E nesse sentido que se deve com preender que
se cham e de “vazio” o poder exercido (cf. “vazio e
sem agir” , ou “vazio” ele “espera” que os outros
desenvolvam para ele sua atividade). Vazio signifi­ E “ v azio ” do
ca que o soberano deixa funcionar o dispositivo do poder d espótico

poder que tem em mãos sem interferir em sua m ar­


cha, sem nada acrescentar de pessoal (portanto, c o ­
mo um puro dispositivo): ele evita manifestar e mes­
mo sentir a menor preferência, pois esta viria pre­
judicar, pelo arbitrário de sua subjetividade, a im-
pecabilidade desse funcionam ento; evita tam bém
fazer valer sua inteligência, pois esta só poderia con­
fundir, pelo jogo que introduziria, a rigorosa niti­
dez do sistem a, tal com o é im posta por sua coerên­
cia; além disso, ela incitaria os outros a rivalizar em
inteligência com ele e, rebaixando-o ao nível deles,
entregaria o poder à com petição (e portanto preju­
dicaria seu bom funcionam ento). Esse perfeito dés­
pota evita inclusive todo e qualquer “dirigism o”, U m perfeito
pois preconizar uma linha a seguir ainda é im por déspota n ão é
uma ordem m om entânea e parcial, e portanto in­ m ais dirigista
justa, à ordem global tal com o esse sistema defini­
tivamente a instaurou; adem ais, é introduzir inten-
cionalidade naquilo que deve andar sozinho, isto é,
em função apenas de sua necessidade. Sobretudo, 'i
para não perturbar essa ordem imanente que, com o
tal, é auto-suficiente, o bom soberano do despotis­
mo deve preservar-se das tentações da virtude: de­
monstrar clemência ou generosidade recolocaria em
questão a regularidade das recompensas e dos cas­
tigos. P or isso seu papel é dito “vazio” , e o m elhor

Tratado da Eficácia 125


ê
soberano passa “despercebido”. O teórico do au­
I'. i>iiss,« ,u c
toritarism o repete a respeito dele o que dizia o sá­
ilr s p r r c r ltu ln
bio taoísta: deve-se apenas saber que “ no alto ele
existe” (H F Z , cap. 38 “N an san ”).
Entretanto, há realmente traição, de novo, nes­
sa versão despótica do não-agir. Pois, enquanto o
taoísm o preconizava o não-agir do príncipe para
deixar que as individualidades se desenvolvessem,
liberando-as assim da golilha dos regulam entos e
das interdições (considerados com o resultantes do
progresso da civilização), o despotism o “ legista”
cumpre exatam ente o papel inverso: subjuga todos
os indivíduos ao poder de um único que encarna o
Estado. Enquanto o taoísm o tendia a aproxim ar a
O a rtifício do
ordem social da simplicidade natural, os “legistas”
poder, levado ao organizam o poder de form a com pletam ente arti­
extrem o , restaura ficial (ele é independente dos sentim entos do prín­
um regim e de cipe, repousa unicamente nas norm as im postas e no
pura reatividade,
controle exercido). M as, desse dispositivo artificial,
e p o rta n to de
m ontado tecnicamente, eles esperam em seguida que
espontaneidade
funcione sozinho; é por aí que recuperam com ple­
tam ente o não-agir do taoísm o e se vinculam de
novo à naturalidade dos processos: o soberano de
novo nada mais tem a fazer do que deixar fazer, a
obediência resulta naturalm ente e a ordem social é
espontânea. O s “legistas” juntam -se aos “tao ístas”
em sua crítica à inteligência e em sua rejeição das
virtudes, porque atribuem a mesma eficiência a essa
espontaneidade; m as, muito sensíveis ao desenvol­
vimento acelerado da civilização, nesse final de An­
tigüidade, e não acreditando mais, por conseguin­
te, que seja possível retornar à sociedade patriarcal
que vemos preconizada no Laozi (§ 8 0 ), preocupa­
dos sobretudo em perm itir que seu príncipe adqui­
ra o m áxim o de poder, entre os principados rivais,
para reconstituir a unidade da China em seu pro­
veito, eles são levados a inventar novas condições
> — despóticas — para reatar com a virtude de im a-
nência e sua eficácia: é radicalizando a esse ponto

126 François Tullien


d poder que eles chegam a torná-lo novamente dis­

creto (confundido com o é com o simples funciona­


Ao toriiiir-sr
mento do aparelho); e é conferindo-lhe a im placa­
abso lu ta, a c o e r
bilidade da lei natural que podem im pô-lo com o ção volta a ligar
algo natural. O taoísm o havia m ostrado o cam inho se à virtude dc
da im anência na liberação das coerções sociais; o im anência e se
despotismo legista, por sua vez, força a voltar à vir­ torn a natural

tude de im anência ao restituir a coerção absoluta.


A inversão é com pleta, mas (portanto) a lógi­
ca é a mesma: reencontram os nesse m odo exacer-
bado da tirania legista a relação de condição para '|
conseqüência que estrutura toda a concepção chi- j j
nesa da eficácia. Se faltarem as condições, constata
igualmente o pensador legista (H FZ, cap. 2 8 , “Gong
ming” ), o resultado é ilusório, a despeito dos m aio­
res esforços: por mais heróicos que sejam os, “não
poderemos fazer brotar uma espiga no inverno”; ao
contrário, a partir do momento em que as condições
estão postas, o resultado decorre por simples im a­
nência — sem que se tenha de “penar”, de “ex o r­
tar”, de “instar”, de “obrigar” : assim com o “a água
corre ou o barco flutua” , o soberano do despotis­
mo “conserva o cam inho natural” e é indefinida­
mente obedecido. É nisso que o cham am os um so­
berano “esclarecido”. Ele só precisa deixar advir o
efeito.

Tratado da Eficácia 127


VII.
D E IX A R A D V IR O E F E IT O

1. Uma questão decisiva, e mesmo a mais de­


cisiva, já que é dela que depende o sucesso, mas que
percebem os, no fundo, ser pouco colocada: de que
m aneira, isto é, em que condições um efeito é pos­
sível (de nossa parte, e em face da situação que abor­
dam os)? M elh or dizendo, essa questão é colocada
freqüentem ente nas ciências e nas técnicas, isto é,
desde o m om ento em que se pode constituir um o b­
jeto — ao mesmo tempo estável e definido; ou ain­
da, é própria dos dom ínios da arte e do discurso,
os da estética ou da retórica, quando se tem em vista
Fazer o efeito
um efeito particular (produzir persuasão ou beleza).
resultar de uma
M as raram ente tê-la-íam os co lo cad o de m aneira pura visão técnica
geral, em relação ao mundo indefinido e movente
da con d u ta, e numa perspectiva estratégica: não
com pusem os uma arte de vencer (mesmo o Prínci­
pe não chega a ser um a), não teorizam os a metis.
Pois nós nos mantivemos concentrados sobre o agir,
virtuoso ou m aravilhoso, o b jeto da m oral ou da
epopéia.
O ra, seguindo o ensinamento da sabedoria da
China antiga, com eçam os a suspeitar de que um
efeito não se mede pelo que dele se vê, pela cons­
ciência que dele se tem, e portanto pelo fato de se Para pensar
falar dele. Esse efeito espetacular é de pouco efei­ sua viabilidade
to: continua sendo pelicular, em vez de fundir-se na (cf. o tao: o “c a ­
realidade, e gera por si próprio, ao afirm ar-se, rea­ m in h o ” )

ções antagônicas; disso resulta um confronto sem


fim, ficam os travados nele. Ao contrário, os mes­
tres de sabedoria da C hina antiga nos ensinam a
usar o real com astúcia — astúcia não tanto com

I ratado da Eficácia 129


os outros, o que sempre foi visto entre nós com o o
m áxim o da habilidade (Ulisses ou a R aposa etc.),
mas astúcia com a situação, confiando na lógica de
seu desenvolvimento: ao mesmo tempo para deixar
advir o efeito — e portanto sem haver necessidade
de esforço e de dispêndio — e para evitar toda re­
jeição em relação a ele, permitindo que ele aconte­
ça. Uma coisa condiciona a outra, pois a exigência
é una e se deixa apreender conjuntamente, no Laozi,
Q ual é o
' sob estes três aspectos principais: que o efeito não
regim e d o efeito? I seja forçado, que não se queira apropriar-se dele e
i que se evite saturá-lo*
Será que se pode dizer mais, sobre a eficácia
da conduta, do que o que foi dito dela sempre —
que o que vemos repetido em toda parte, prudên­
cia herdada do fundo das idades, que subjaz a to ­
das as sabedorias (sabedoria dita popular ou “ das
nações” : esse fundo anterior a todas as teorias) e se
apega a esta evidência: que é preciso evitar o exces­
L ugar-co-
so? A imagem de que parte o Laozi é a de um vaso
m um : evitar o
excesso
que, vazio, permanece aprum ado e se inclina assim
que está cheio ( § 9): pode-se “m antê-lo aprum ado”
(à força) para “enchê-lo até à borda”, mas, tão logo
é solto, ele se esvazia; por isso, “é m elhor deter-se”
antes que ele se tenha enchido para que, mantendo
o equilíbrio, não precise esvaziar-se. Outra imagem:
a ponta que, afiada demais, não pode ser preserva­
da e acaba por se quebrar. N ão convém o excesso
(despejar, aguçar etc.) — reconhecem os aí a divisa
(meden agan, em grego; qu tai, em chinês; cf. L Z ,
§ 2 9 ). M as já reaparece tam bém a diferença aí, sob
aquilo que podia parecer da mais extrem a banali­
dade, que se podia supor ser ob jeto de um entendi­
m ento unânime. Pois, ao contrário do que dizem
entre nós as m áxim as m orais, ou do que cantaram
os coros da tragédia grega, esse excesso não é co n ­
denado, entre os chineses, porque, ultrapassando a
Mas a China medida, sair-se-ia da condição humana e invadir-
n ãoconhece a se-ia um outro domínio (o dos deuses: a bybris); não

130 François Jullien


é condenado porque provocaria forças que nos são byhrit (rl.i u.i>>
superiores e desafiaria insolentemente o destino. Se tom " " -'K'1" !
há de fato ultrapassagem do limite, nem por isso há
transgressão, o único aspecto levado em conta é a
lógica interna à situação: simplesmente, que o de-
masiado cheio transborda (ou que o demasiado pon- ^
tudo se quebra) e que o excesso de efeito se volta j|
contra o efeito/O excesso de efeito m ata o efeito._j
Sem fazer intervir nenhum fundo moral ou religio­
so (o qual, deve-se confessar, é sempre mais ou m e­
nos m ágico a esse respeito), o ponto de vista é o da
simples eficácia: assim que é levado ao extrem o, que
se torna rígido ou forçado, o efeito ultrapassa o li- Descrever a
miar de tolerância do real, não é mais integrável e possibilidade de
. , efeito
se desfaz.
É essencial, portanto, que o efeito não seja ob­
jeto de nenhuma sobrecarga da parte de quem o
produz, que este se preserve de nada acrescentar, de
pessoal e de afetivo, à sua pura efetividade (§ 30):
que “não ouse” servir-se dele para se fazer valer,' [
mas se contente com o puro efeito — sem m ostrar- ‘
se “arrogante” com isso, sem fazer disso uma “re- j
putação”, sem se “vangloriar” disso. O “fruto” bas­
ta: que o efeito se m ostre resultante apenas da si- Efeito e c o n -
tuação e se dissolva em sua coerência; que seja vi- «a-efeito
vido por todos com o inelutável — com o se não se
pudesse fazer de outro m odo senão passar por ele
— e não seja pesadox . Que nenhuma dem onstra-
ção de força, portanto, venha realçar o efeito. Pois,
caso co n trário , tudo o que nele é dem onstração de
torça torna esse efeito dependente das reviravoltas
de situação a que se expõe todo recurso à força; I
além disso, o efeito se acha então submetido ao des­
gaste inelutável das forças. Esse reforço do efeito, <
em suma, enfraquece o efeito. Fragiliza-o por co n ­
tam inação, pois a força é apenas o avesso da fra­
queza e a provoca por compensação: ao pender para Ligar o efeito
o lado da força, o efeito se vê doravante preso nes- à £orça {)
sa tensão: força-fraqueza, e está pronto a inclinar-

Ir.uado da Eficácia
se para o outro lado. Tam bém o torna precário: já
que toda m anifestação de força só pode ser tem po­
rária, o efeito, ao ligar seu destino à força, logo es­
tará esgotado, ele se condena ao efêmero.
M esm o aquilo que apenas sublinharia o efei­
to já é seu parasita, sobrecarrega-o e sobretudo o
D efinir um a inibe. “ R estos de co m id a” e “ protuberâncias” , diz
econom ia do
o Laozi (§ 2 4 ). “Quem se ergue na ponta dos pés
efeito
não é estável, e quem dá grandes passadas não pode
m arch ar.” Q uand o fazem os em excesso, com o é
dito correntem ente, não apenas despendemos esfor­
ço em vão, mas tam bém m inam os a possibilidade
de efeito. Esse mais resulta em m enos, pois esse e x ­
cedente é som ente um peso m orto; ele não apenas
am eaça o efeito com um risco de reviravolta ou de
esgotam ento, mas tam bém bloqueia o que podia
advir — digamos mesm o: o que só pedia para vir;
O excedente impede-se que o efeito simplesmente resulte. O custo
de efeito faz
então é duplo: de um lado, esse excedente mina in ­
ob stru çã o à
teriorm ente o efeito, pela obstrução que produz; de
possibilidade de
efeito outro, exteriorm ente, faz que ele seja “detestado”.
Pois, em vez de passar (despercebido), esse exceder
o evidencia, suscita reticências e focaliza as resistên­
cias, provoca sua rejeição.
O Laozi leva ainda mais longe a exigência:
“Q uando o efeito advém, não se fixar nele” (§ 2).
O sábio/estrategista não busca atribuir-se o efeito,
O não faz dele um m érito seu. Pois, a partir do m o­
m ento em que nos atribuím os o efeito, entram os
numa lógica de apropriação que só pode penalizá-
lo , pois tudo aquilo que “ocupam os” está destina­
do a ser “abandonado” , e essa apropriação, recain­
do sobre o efeito, faz que seja contestado; “ocupar
o efeito” (§ 7 7 , cf. G G Z , cap. “ M o ” ) im plica que,
ao ocupá-lo com o uma posição, invadimos com isso
a dos outros, e o efeito se vê com prom etido por essa
I rivalidade, sua duração não está mais segura. B as­
ta , em troca, não ocupar o efeito para que ele “não
L igar à nossa nos abandone” : em vez de torná-lo precário pren-

132 François Jullien


«Inulo-o à nossa pessoa, deixam o-lo pertencer ao pessoa o efeito

mtiiulo que o fez ex istir— devolvemo-lo à sua ima- to rn a -o precário

iu-ncia. Uma outra fórmula exprim e de form a ain-


«l.i m elhor essa discrição estratégica: “Q ue o efeito
prossiga e que a gente mesma se retire” (§ 9). Ela
di/. duas coisas ao mesmo tem po: que o efeito “se
k«'gue” a título de resultado, ele é da ordem da co n ­
seqüência — não do projeto; e tam bém que, em vez
de nos atribuirm os a autoria do efeito, e de tirar­
mos prestígio disso, cedemos o lugar aos fatores por­
tadores do efeito, para deixá-los atu ar plenamente.
Uma vez m ais, eis-nos arrastados para muito
longe do heroísm o: que o efeito não seja nem rígi­ A nti-h eroísm o

do nem forçad o, que não se busque evidenciá-lo,


que se evite de reclam á-lo e enaltecer-se dele, tudo
visa a deixar o efeito m oldar-se à evolução das co i­
sas e ser absorvido. Absorvido discretam ente pelo
real, ele adquire sua realidade. Essa recusa de uma
intensificação manifesta do efeito (resoluta, ativista)
deve ser compreendida em função daquilo que faz
o efeito: um efeito só é efeito se for levado a se m a- j1
nifestar, se estiver em curso e tornar-se efetivo. O ra, ,
isso exige que ele não seja saturad o; não só não N â o satu rar o
convém ultrapassar o limite do efeito, mas mesmo efeito

levá-lo ao limite. “ As cinco cores fazem o olho ce­


g o ”, diz o Laozi (§ 1 2 ), “as cinco notas fazem o
ouvido surdo, os cinco sabores fazem o paladar se
corrom per” . Se foi possível ler nessas frases um ape­
lo à “redução dos sentidos” , de alcance m oral (He
Shang gong), pode-se tam bém deduzir de sua rejei­
ção do sensacional (cf. o “ventre” oposto ao “o lh o ”
co m o âm ago das capacidades) que uma sensação
tem tanto mais efeito quanto menos for insistente;
quando é pleno , quando se ostenta, o efeito não se ^
exerce mais. Ou ainda, o efeito se exerce não quan­
U m efeito só é
do é pleno, mas quando advém. Q uando as sensa­
efetivo quando
ções estão em seu auge, e os sentidos estão saturados
está em via de
delas, o efeito não é sentido mais e cessa de ser efe­ advir — quando
tivo; ele não é sentido, tam pouco, se for dado logo aind a está por

Tratado da Eficácia 133


vir, portanto de saída. Ao con trário, é porque há lugar para uma
quando não está transform ação e porque se pode passar de um es­
realizado
tágio a outro e progredir — por superação de uma
falta, o efeito sendo conquistado sobre o não-efei-
to — que pode se exercer o efeito. À maneira de uma
decantação ou de um advento graduais (§ 15): como
a água “ag itad a” que, “ao im obilizar-se” , “torna-
se aos poucos lím p id a”; ou, inversam ente, com o
aquilo que, a partir do “repouso”, “por um longo
a b a lo ” , “aos poucos vem à vida” . Por isso, “quem
conserva esse cam in h o” , o do tao, “ não quer o ple­
n o ” . Pois, enquanto o que é pleno não tem mais
futuro e se vê condenado, podendo apenas “trans-
1f b o rd ar” , o que não está cheio perm anece tendido
em direção à sua plenitude e, desse m odo, pode “re-
■| novar-se” .
I Eis por que, finalm ente, a verdadeira eficácia
parece deficiente. “A grande obra evita advir” (me­
lhor que: “advém à n o ite” ), diz o Laozi (§ 4 1 ). C o ­
mo a pintura m oderna no-lo fez com preender ao
P or que <
efeito deve { valorizar o esboço, o que parece faltar perm ite à
/a T'' cer em falta obra continuar em curso e a exercer seu efeito; esse
se exercer? inacabado mantém seu efeito em atividade. Ou ain-
da, “ reduzido é o som mas grande é a sonoridade”;
ao con trário das “cinco n otas” que, todas juntas e
levando a sensação ao auge, ensurdeciam o ouvido
e o impediam de perceber qualquer efeito, esse pou­
co de som deixa seu efeito harm ônico propagar-se
tanto m elhor quanto ele próprio se retém — qu an ­
to se mantém em reserva, permanece em recuo. Vale
dizer que, para poder se exercer, a verdadeira efi­
cácia se afigura o oposto do efeito consum ado, sem-
I pre em falta com seu resultado, justamente para que
j_jela não cesse de resultar. “A grande realização está
com o que em falta, por isso seu uso não se con so­
me”, “a grande plenitude é com o que vazia, por isso
seu uso não se esgota” (e tam bém : “ a grande reti­
dão parece cu rv a”, “a grande habilidade, canhes-
tra”, “a grande eloqüência, contida” etc.). Notemos

134 François Jullien


bem esse “co m o ” , “parece” : isso não significa que
a eficácia esteja realmente em falta, mas que é legi­
tim o que assim o pareça para que seja sempre cha­
mada a advir — tendo de operar — e jam ais se dei­
xe com pletam ente atualizar. Pois, caso con trário,
tornada definitivam ente estacionária e enchendo
todo o horizonte, ela obstruiria toda espera e todo
apelo, e não poderia mais cum prir sua função. Em
outras palavras, a verdadeira eficácia aparece sem­
pre em^concavidade, ço m o o evoca um dos m oti­
vos favoritos do Laozi: o pequeno vale (cf. “a am ­ Eteito cm
pla capacidade é com o que insuficiente” em para­ concavid ad c: o
lelo com “ a capacidade superior é com o o peque­ pequeno i\tle
no vale” , § 41). Por meio do alargamento do peque­ SVw-:.
no vale, graças a esse esvaziamento sempre a preen­
cher, o “esp írito” passa “ sem jam ais m orrer” . O
mesmo acontece com a eficácia: em vez de se im ­ É o vazio qiu-
por plenam ente, ela pode exercer seu pleno efeito perm ite o pleno
graças ao vazio que contém . efeito

2. H á duas maneiras de com preender o vazio.


Seja um vazio de inexistência, que se inscreve numa
perspectiva metafísica, a do ser e do não-ser: é o vazio
do budismo {sunya, em sânscrito; cf. kong, em chi­ A s duas co n ­
cepções do vazio:
nês); seja o vazio funcional do Laozi (noção de ),
p o n to de vista do
que se exerce p or relação com o pleno e graças ao
ser e da função
qual o pleno pode cum prir seu pleno efeito. Os dois
são radicalm ente diferentes, mesmo que possamos
ser tentados a confundi-los e que eles se tenham co n ­
taminado posteriormente (sabemos, por um lado pe­
lo m enos, que foi nesse qüiproquó que o budismo,
vindo da índia, isto é, do indo-europeu, terra da me­
tafísica, entrou na China; o que se compreende tam - ■
bém: que só se pode com eçar a assim ilar um pen­ Aí-
sam ento exterior equivocando-se a respeito dele).
O posto ao pleno e funcionando correlativam ente a 1
ele, o vazio do Laozi é o meio em que o pleno se reab-
V azio c plrim
sorve e se indiferencia; é tam bém aquilo a partir de
que o pleno advém e se torna efetivo. Portanto, ele

I ratado da Eficácia
não c “ não-ser” , mas o fundo latente das coisas^ co ­
mo se fala do fundo de um quadro ou do fundo do
silêncio: esse fundo é o lastro a partir do qual o som
F ora il.i m c t a -
físicu: o h ii u lo
é produzido e que o faz ressoar, de onde o traçado
c o m o Listro emerge e graças ao qual pode vibrar (para sair de
nosso atavism o on tológ ico, não vejo, na verdade,
outro meio senão fazer essas analogias funcionarem).
Levando adiante a experiência do pincel: longe de
ser um vazio de inanidade, esse esvaziamento é an ­
tes o “fino” que se opõe ao cheio do traçado, lá onde
o concreto se reduz ao ínfim o e se torna discreto, e
que faz sobressair o cheio em sua força e sua espes­
sura: fino infinitam ente sutil, por conseguinte, ele
I cujo espírito, desem baraçado do peso das form as e
das coisas, não cessa de circular através delas e de
Seu esvazia­
m ento im pede o anim á-las. Se ele cessasse de atravessar o real, este
pleno de im o bili­ ficaria definitivamente entorpecido, prostrado, c o a ­
zar-se gulado; sem esse influxo do vazio, o real seria com ­
pletamente reificado.
O Laozi propôs imagens a respeito dele ( § 11).
T od os os raios da roda convergem para o meio, e é
“onde não há n ada”, na parte esvaziada (no cen ­
tro em que penetra o eixo), que “está o funciona­
mento do carro” (que permite à roda girar e ao carro
avançar); do mesmo m odo, m olda-se a argila para
fazer um vaso, mas “é onde não há n a d a ” que se
exerce a “função do vaso”: graças a esse vazio in­
terior, o vaso pode conter, é um ob jeto que pode
servir; ou ainda, é abrindo porta e janelas nas pa­
redes que o quarto deixa passar a luz e se pode h a­
Uma lógica
bitá-lo. Onde o pleno é escavado, por aquilo que
não on tológ ica
— fam iliarizar-se
dele se esvaziou, seja na m adeira, na terra ou na
com ela (caso parede, daí vem sua cond ição de cumprir uma fun­
co n trá rio , o ção , daí vem sua capacidade de efeito. O Laozi o
assunto parecerá resume com uma fórm ula que poderíam os assim
abstrato )
explicitar: o que se traduz com o “proveito” no es­
tágio da atualização das coisas se exerce com o “ fun­
V azio-p len o , cionam ento” ao nível de seu lastro indiferenciado
tun ção-proveito (§ 11). De fato , graças à atualização do pleno, o

136 François Jullien


funcionamento indefinido do vazio pode sair de sua
mdeterm inação e se m anifestar em proveito parti­
cular; mas tam bém é graças à indiferenciação do
vazio que serve de fundo latente das coisas que cada
atualização particular não está mais murada em sua
particularidade, mas pode comunicar-se em seu fun­
do com as outras e, por relação, descobrir sua pró­
pria virtualidade. O efeito, quando se realiza, é sem­
pre específico; mas aquilo que o indetermina, o “va­
zio ” , é a condição — genérica e geradora — que lhe
permite existir.
Para explicar a possibilidade de efeito, preci­
samos portanto sondar a capacidade, que lhe vem
do vazio, de ao mesmo tempo com unicar-se e ma­
nifestar-se. As duas funções se encontram , o que se
pode dizer m elhor negativam ente: sem a indiferen­
cia ção do vazio, com o fundo com um (n oção de
wuz’), uma individuação não poderia ir de encon­
tro a outras, interagir com elas (graças àquele “en­
tre” operante) e fazer ressaltar seu efeito; e, se não
houvesse a vacuidade do vazio com o meio ambiente,
esse efeito não poderia se difundir e propagar. Uma
noção resume essa eficácia do vazio, segundo o c o ­
m entador do Laozi (tonga , em W ang Bi; cf. § 14, O vazio per-
m ite a passagem —
4 0 ,4 4 ) : o vazio é simplesmente o que permite a pas­
do efeito « '
sagem do efeito. “Onde nada existe de atualizado,
*

não há parte alguma onde não [se] possa passar,
parte alguma aonde não [se] possa ir ". Ao co n trá­
jM '
rio, o que impede o efeito de se exercer é quando o
pleno não está mais penetrado de vazio e, tornan ­
do-se opaco, gera obstáculo: fazendo anteparo, ele
E n qu an to que,
leva o real a im obilizar-se, ficam os presos nele; não torn an d o-se op a­
sendo possível mais nenhuma circulação, enterra- c o , o pieno efeito
m o-nos nele. Despido de todo m isticism o (já que cria ob stácu lo
sem m otivação m etafísica), o retorno ao vazio pre­
conizado no Laozi é um apelo a dissolver os blo­
queios a que está exposto todo real, desde o momen­
to em que não conhece mais interstício e está satu­
rado. Pois, se tudo está repleto, não resta nenhuma

Tratado da Eficácia
margem para operar; se todo vazio é elim inado, eli-
mina-se tam bém o jogo que perm itia o livre ex e r­
cício do efeito. T orn ad o opaco e rígido, sem mais
nenhum vazio para h abitá-lo, o real se acha inibi­
do; e essa advertência vale tam bém (em primeiro
Assim, o lugar) no plano político: esse demasiado pleno que
pleno dos regula­ o atravanca é, com o vimos, o dos regulam entos e
m entos bloqueia
das proibições que, ao se multiplicarem, acabam por
o m ovim ento
entravar a sociedade e fazem que não se possa mais
esp ontân eo
evoluir livremente. Por isso, será preciso esvaziá-los,
evacua-los, para restituir ao real sua capacidade de
avanço. Pois, quando nada mais é codificado (e toda
cod ificação é apenas uma reificação do real), por­
tanto nada mais impede a iniciativa, esta se desen­
volve sponte sua: basta, no vazio das proibições e
dos regulam entos, deixar fazer/deixar passar, e o
agir é sem m anobras.
Esse vazio não é espiritualista, tam pouco é ma­
terialista, não remete nem à física dos corpos nem
à m etafísica da alm a, sua lógica é funcional: ele é o
O vazio é o
que m antém o que permite ao pleno perm anecer fluido e respirar
real em curso, (perm anecendo arejado) — m antém -no em curso e
p o rtan to efetivo animado (e esse deslocamento é essencial: a perspec­
— “ an im a d o ” tiva aí não é mais a da alma, com o entidade, mas
(a o co n trá rio de
da animação, com o processo). A pintura chinesa
“ im o b ilizad o” )
oferece um eloqüente exem plo disso ao to rn ar sen­
sível a interação do vazio com o pleno — inclusive
é exatam ente essa interação que ela não cessa de
P assar pela pintar: o branco do traçado, no rolo, é o que per­
“ estética ” para m ite aos traço s cheios com unicarem -se entre si, é o
sair de nossa
meio deixado vacante em que se tecem suas relações;
p ersp ectiv a
on tológica
ao mesmo tem po, ele lhes permite m anifestar seu
efeito, abrindo esse traçado ao infinito — sobre o
Infinito. D e fato , basta apagar um pouco que seja
esse traçado, tornando-o evasivo, para que nele aflo­
re o lastro sem fundo das coisas; através de seu m e­
nor espaçam ento insinua-se o mais longínquo h o ­
rizonte. Por isso, esse horizonte se acha dissem ina­
do através do rolo, todo o traçado é penetrado de

138 François Jullien


imt ,1 Icm, o “céu ” não tem mais um lugar fixo , mas
cm toda parte (ou, m elhor, ele não está: ele
nfwra em toda parte). H abitado pelo vazio, esse tra­
z id o torna-se a m arca m om entânea de uma ausên-
» m, cm vez de ostentar plenam ente sua figura, ele
i upr.i um fluxo invisível — do invisível (shen b ) — ,
esse traçado torna-se vestígio. Pois é realm ente daí ' ' ' ° traçado é
que o vazio não cessa de tirar seu efeito: enquanto vestígio
o pleno é sempre lim itado, enquanto dele já se per-
ir b e o fim, o vazio é inesgotável. Seu lastro é sem i
lundo. O Laozi o diz textualm ente (§ 4): “ O tao é
vazio, mas, quando nos servimos dele, não sucede
que o esgotem os” (m elhor que: “ não sucede que
tenhamos de enchê-lo novam ente”; cf. § 35). E tam ­
bém, “quando nos servimos dele, não precisamos
fazer esforço” (§ 6): com o o vazio a nada se opõe, C o n clu são
ele não poderia suscitar resistência, e assim não pode (mas voltar a
gastar-se. Testem unha-o tudo aquilo que, figuran- ela): o vazio é o
do o esvaziam ento no Laozi, não cessa de deixar lastro inesgotável
f>assar: o pequeno vale, acerca do qual já sabem os
que a eficiência invisível não cessa de atravessá-lo
e que, por isso, ela “não m orre” (§ 6 ); a porta, in ­
clusive a da M ãe, por onde não cessa de ser engen- r [
drado (§ 1, 6); o fole, enfim , que “está vazio mas ^
não cessa de soprar”, e do qual, “quando é agita­
d o”, se “faz sair sempre m ais” (efeito, § 5). O ra, o
“entre céu e terra”, pergunta o Laozi, todo esse “va­
zio” onde surge a vida, não seria ele próprio “com o
um grande fole” ?

3. Essa interação do vazio e do pleno, no in ­


terior do efeito, é exemplar. Ela revela a interdepen­
dência dos aspectos opostos do real, graças à qual
o real não cessa de operar e pela qual não cessa de
advir. A exemplo do vazio e do pleno, todos os co n ­
Por que uma
trários “se engendram um ao o u tro ” , diz o Laozi
lógica da não-
(§ 2 ): vemos determinado aspecto com o pleno mas,
e xclu são dos
em concavidade, o outro está em curso. “Tod o o co n trário s pode
mundo conhece o belo com o belo, e isso já é o feio” , fecun dar um

Tratado da Eficácia
pensam ento da “todo o mundo conhece o bem com o bem , e isso
eficácia? já é o n âo -bem ” . Em vez de se excluírem , os con-
j trários se condicionam m utuam ente, e é dessa ló-
^ gica que o sábio tira sua estratégia. Pois, em vez de
se ater aos aspectos opostos das coisas, tais com o
a consciência com um os percebe, e de m antê-los
isolados, o sábio sabe discernir a interdependência
É so bre o
deles para aproveitá-los. E a ela que ele explora, em
fundo de interde­
vez de despender esforço: sendo essa interdepen­
pendência e de
reversibilidade dência suficiente para prom over o real, ele se co n ­
qu e se opera a tenta em deixá-la operar, não tem mais necessida­
tom ad a de co n s­ de de agir e pode se deixar levar. V oltam os à pro­
ciência estratégica pensão — pois é dela que, em última instância, pro­
vém a determ inação das coisas (§ 5 1 ): enquanto o
“cam inho” do tao “engendra”, enquanto “a capa­
cidade alimenta” (por imanência) e a “materialidade
co n cretiza” , cabe à propensão “fazer advir” ; é ela
que orienta, gradativamente, o curso que a realidade
tom a. Assim, é em term os de propensão que o co ­
m entador do Laozi (W ang Bi, § 9) compreende que
o que está cheio demais deve transbordar, ou o que
é aguçado demais se quebrar. Um a expressão dele
merece sobretudo nossa atenção, pois ela exprime
da m elhor m aneira em que consiste a estratégia: é
I próprio do estrategista “conceber uma propensão”
i tal que “ele não precise trabalhar1- ” (e que portanto
seja “sem m érito” , § 6 4 ). Sabendo discernir o mais
C a p ta r a 1 ^cedo possível com o atua a interdependência, ele se
im anência p ró ­ apóia na tendência que dela em ana e não precisa
pria à tendência _ mais “se esfo rçar”.
V ejam os concretam ente com o operar, ou, m e­
lhor, deixar operar, e por conseguinte não precisar
mais agir para ser bem-sucedido. Se você quiser lan-
çar-se à frente para ter êxito , diz o Laozi (§ 7 ), isso
será ao m esmo tem po estafante e arriscado; você
suscitará inevitavelmente rivalidades, terá de enfren­
tar os outros e se obstinar. Ao passo que, se você
se coloca modestamente atrás, disso poderá resultar
(espontaneam ente) que você seja lançado para a

140 François Jullien


Im ite , e o recuo no qual escolheu colocar-se leva Kxem pln: rm

por si mesmo a inverter-se: em vez de lançar-se você vez de tentarm os


nos lançar, deixar
mesmo à frente, deve fazer de modo que os outros
que nos lancem
r que sejam levados a fazê-lo por você. E já que são
os outros que o impelem, eles não poderiam depois
contestar-lhe esse avanço; com o este corresponde
nquele que a situação exige, ele se integra nele na­
&
turalmente. De fato, com o você, com seu recuo, terá
desativado antecipadam ente as desconfianças e as
prevenções, os outros não sentirão inveja de você,
serão atraídos e virão espontaneam ente procurá-lo:
cm vez de querer impor-se com pletam ente, buscan­
do saturar (à força de agir), você se beneficia do
efeito de concavidade que faz convergir a tensão, e
do qual pode resultar a prom oção (erd , “resulta
que” é novamente a locução “vazia” que exprim e
o desenvolvimento invisível pelo qual se chega ao
resultado). O s últimos serão os prim eiros, foi dito
tam bém entre nós — mas aqui não é por recompen­
sa (no Juízo final, e por obra da transcendência), e
sim desde já e por pura im anência (a que decorre
da situação). Além disso, essa escolha do recuo não
significa nenhuma abnegação: se preferimos nos co ­
locar atrás, é para estarmos em m elhor condição de
“ fazer advir nosso interesse pessoal” (e, do mesmo
m odo, se tratam os nosso eu com o algo de “ex te­
rio r”, é para m elhor fazê-lo existir). Pura questão
de eficácia.
R esta com preender mais precisamente de que
maneira esse auto-rebaixam ento (que deve resultar
em sua prom oção pelos outros) se integra na lógi­
ca mais geral segundo a qual os contrários se atraem
m utuamente, um aspecto condicionando o outro.
“N ão ousar pôr-se à frente” para ser mais capaz,
depois, de “poder dirigir os o u tro s”, nos é dito (§
6 7 ), é com o ser econôm ico de m odo a poder ser li­
beral (ou ser com passivo de m odo a ser co rajo so
para atacar). Se um aspecto pode, assim, inverter-
se no ou tro, é que no fundo ele apenas m uda de

Tratado da Eficácia
posição dentro de si, constituindo assim a reserva
do outro, de onde este retira sua possibilidade: um
aspecto prepara o o u tro , arm azena-se em co n ca ­
vidade o que pode a seguir manifestar-se plenamen-
O aspecto ,(ite. N ão tem capacidade para atacar decididamente
inverso serve de quem não soube, ao invés, ter piedade; não tem re­
lastro de onde o cursos para ser liberal quem não soube, em senti­
prim eiro pode
do contrário, poupar. Quem pretende de saída ser
resultar
liberal, ou de saída ser resoluto, ou de saída se im ­
por, “está m o rto ”, diz o Laozi. Pois essa liberalida­
de, ou essa resolução, ou essa prom oção logo se es­
gotam, elas não têm lastro de onde possam resultar.
Por isso, não se deve con tar “ch am ar” o efei­
to, mas deixá-lo advir; não “bu scar” nós mesmos
O efeito n ão
deve ser buscado
o efeito, mas colocarm o-nos em posição de recolhê-
mas recolh id o lo. O efeito é aquilo que se colhe. Por isso, a posi­
ção mais prom issora está em b aixo, lá onde a ca ­
pacidade não é mais solicitada, portanto pode ser
“co n stan te” e “não nos ab an d o n a” ('§ 2 8 ). Uma
imagem dessa aptidão a deixar convergir para si o
efeito é a do mar que recolhe as águas (§ 3 2 , 66).
“ O que faz que os rios e o mar devam poder reinar
sobre todos os cursos d’água é sua aptidão em co-
locar-se abaixo deles” : o m ar deixa os rios escoa­
rem em sua direção seguindo sua inclinação e os
domina em nível inferior. D o mesmo m odo, o sá­
O m ar: é
estan do em baixo bio domina o povo ao se colocar “por suas palavras
que se dom ina abaixo dele” (o imperador chamar-se-ia a si próprio
“eu, o hum ilde” ou “o que está s ó ”; cf. § 3 9 ); por
isso, quando ele se encontra acima do povo, este não
o considera “ pesado” de carregar, fica “ feliz de em ­
purrá-lo para a frente” , e sem se cansar (§ 6 6 ); e o
sábio, por sua vez, pode utilizar sem dificuldade a
energia dos outros (§ 6 8). Essa humildade (no sen­
tido próprio: a escolha de colocar-se em baixo) não
é nem moral nem psicológica, é puramente estraté­
gica (§ 61). E o Laozi desenvolve sua im portância
no plano diplom ático: em vez de impor sua hege­
m onia, que desde então será contestada, um gran-

142 François Jullien


de país se co lo ca por si mesmo “ a ju san te” para
deixar os países pequenos “correrem ” em sua dire­
ção: assim lhe vem a “ ascendência” .
D ito de um m odo con trário, isso resulta n a­
quelas fórmulas prediletas do Laozi: “ Quem se põe
a si mesmo em evidência não é notad o” (ou “quem
se aprova a si mesmo não é reconhecido” ; “quem
se exalta a si mesmo é sem m érito” , “quem se glo-
rifica a si mesmo não pode durar” , § 2 4 ). Em o u - '
N ão sc pode
tras palavras, quem pretende obter diretamente o 1' o b ter diretam ente
que quer barra a possibilidade de consegui-lo. N ão o efeito
porque fosse im paciente (querendo chegar depres­
sa demais ao objetivo fixad o), mas porque se equi­
voca fundam entalm ente sobre a m aneira com o se
realiza a realidade: o que se realiza efetivamente s ó } I
pode ser da ordem do efeito, e é sempre por u m 1
processo (que transform a a situação), e não em fun-i j
ção de um objetivo que conduz (diretamente) à açãoji Deve haver
um processo
que se chega ao efeito, a título de resultado; en g a -.
nam o-nos, portanto, sobre a natureza deste se pen­
samos poder obtê-lo à força, com violência, em vez
de seguir o cam inho, o tao, que faz que o efeito,
implicado progressivamente pela situação, advenha
no final sozinho. Assim, é “não se pondo a si mes­
mo em evidência que se pode ser n otad o” (“não se
aprovando a si mesmo que se pode ser reconheci­
d o” etc., § 2 2 ). O que a experiência moral com p ro­
va: quem pretende ser grande terá sempre apenas
uma falsa grandeza, sua grandeza justam ente é pre­
tensiosa, ele perm anecerá irremediavelmente mes­
quinho; ao contrário, é porque “até o fim não bus­
ca ser grande” que “ o sábio é capaz de fazer advir
sua grandeza” (§ 6 3 ), que ele é verdadeiram ente
grande.
T oda estratégia se resumiria, afinal, no simples (
V o lta r a esta
fato de saber implicar o efeito: saber estabelecer a
concep ção de
situação a m ontante de tal m odo que o efeito dese­
base: saber impli
jado resulte em seguida “naturalm ente”. Levando c a r o efeito
essa lógica até o fim, chega-se a isto: o estrategista

Tratado da Eficácia
é aquele que sabe dispor da m elhor m aneira a falta
no seio da situação (com o condição), de modo que
um efeito compensador, jogando a seu favor, resulte
a seguir tanto m ais im perativam ente. O Laozi se
com praz nestas fórm ulas: “de ser dobrado [ou de
ser parcial] resulta que se fique in teiro ”, “ de ser
curvado, que se fique ereto ”, ou “de ser vazio, que
D eixar-se
se esteja repleto” (§ 2 2 ). Ao nos situarm os num ex ­
levar pela lógica
tremo, tanto mais dirigimos e carregamos a propen­
com pen sad ora
são que nos levará ao outro extrem o: assim , ao es­
colherm os colocar-nos no extrem o do negativo, so­
mos conduzidos com o que contra a nossa vontade,
levados pela tensão reguladora do real, à plenitude
inversa. Com preender isso é o que o Laozi cham a
“ a sutil inteligência”, da qual se pode tam bém ser-
vir-se, de um modo contrário, contra os adversários:
“Se você quiser que algo seja dobrado, é preciso
primeiro desd obrá-lo” (com o situação de partida,
da qual possa o efeito decorrer de m aneira “intrín­
seca”; cf. o sentido de g i f ); assim também, “se você
quiser que algo seja enfraquecido, é preciso primeiro
fortalecê-lo; se quiser que algo seja eliminado, é pre­
ciso prim eiro prom ovê-lo; se quiser que algo seja
retirado, é preciso primeiro con ced ê-lo” (§ 3 6 ). O
com entador (W ang Bi) não hesita em tirar daí as
conseqüências no plano político: se quiser se livrar
de um déspota, deixe-o seguir sua inclinação e m er­
gulhar no extrem o da tirania, pois assim provoca­
rá muito melhor sua perdição, por si próprio, do que
^ se resolver castigá-lo. Tirarem os disso a lição: a Chi­
na esperaria sua libertação muito m ais da auto-re-
R egu lação
gulação do real que da revolução... M a s é verda­
(por propensão) de que a revolução é o paroxism o da ação , concen­
ou revolução (cf. trada com o esta em seu objetivo, confiando no m o­
ação) delo, e querendo ser uma epopéia*'.

* Sua revo lu ção , neste século, a C hina efetivam ente


tom ou de em préstim o, em ruptura com sua n o çã o tra d icio ­
nal de “m an d ato ” e de seu “ co rte ” (ge-ming ) qu e, p o r a co -

144 François Juilien


Se não estivéssemos suficientem ente adverti­
dos, poderíam os tom ar com o palavras do Evange­
A generosida
lho o que lemos nas últimas linhas do Laozi'. “V is­
de ou a humildade
to que é para os outros, a gente mesma tem m ais” , recompensam na­
“visto que se concede aos outros, possui-se ainda turalm ente (por
m ais” ( § 8 1 ). M as o com entador não nos deixa ne­ aquilo que im pli­
nhuma dúvida a esse respeito: se nós mesmos temos cam de necessária
com pensação)
mais, é que “os outros nos honram ”; se possuímos
muito m ais, é que “os outros vêm naturalm ente até
E n ão por
n ó s”. T a l atitude não espera portanto sua retribui-"/) retrib u ição tran s­
ção de um outro mundo, seu ganho é im ediato ej/ cendente
temporal. Ao mesmo tempo, essa atitude é bem real, ^
e de modo nenhum falaciosa, não nos contentam os O u por falsa
aparência
em fingir, com o o faria um príncipe maquiaveliano:
o mundo não se deixa dividir entre aparência e ver- !•
dade (para m elhor fazer passar a crueldade de suas
m anobras, ou para pegar o outro na arm adilha de
uma exterioridade enganosa); pois é por reação à
efetividade que essa atitude põe em ação , que o
mundo, em troca, pode ser ganho. Nada impede que'
tal “generosidade” , ou que tal “ humildade” perma­
neça suspeita à m oral; e, mesmo na China, letrados
confucianos temeram que o Laozi, sob a capa de sa­
bedoria, patenteasse a estratégia mais astuta para
servir fins interessados (cf. Liu Y in , século X II,
Jingxiu xiansheng wenji, “T u izh aiji” ). Partindo do
princípio da interdependência dos contrários, que
constitui cada aspecto do real com o polaridade, e
contando com o fato de que as propensões que dele
derivam “ se procuram ” e se atraem m utuam ente
(cada uma devendo converter-se na outra, sob pena

m od ação de sentido, lhe serviu p ara dizer “ rev o lu ção” . Ela


tom ou de em préstim o pelo m enos o m odelo desta, e so b re­
tudo a idéia de m odelo: a de que, na base de uma teoria re­
volu cionária (o m arxism o-leninism o co p iad o do país co n si­
d erado m ais p ró xim o pela situ ação social e política e cu ja
revo lu ção teria sido bem -sucedida: a R ú ssia, em 1 9 1 7 ), se
possa, pela p ráxis, m udar a realidade. — Será que ela ainda
acred ita nisso hoje?

Tratado da Eficácia
ilc esgotar-se), poder-se-á usar deliberadam ente a
lógica com pensadora do real para fazer reagir a si­
tuação no sentido desejado: bastará para isso “co ­
meçar por andar na con tracorren te” do resultado
Kstr.uógúi de ao qual se quer chegar (assim, com o vimos, recua­
scihkI»contrário mos para serm os levados à frente, colocam o-n os
— a mais astuta? em baixo para poderm os subir etc.); sendo assim,
“ainda não se entrou” e já se tem “em vista a saí­
da* ”” e, sem que os outros “percebam vestígio dis­
so ” , recolhe-se para si todo o proveito... N o fundo,
para que nossos fins mais interessados possam re­
sultar a título de efeito, caberia não mais querer, fa-
;zendo peso sobre as coisas; basta inscrevê-los na
trajetória das coisas, de m odo que, entregue à sua
( im anência, o efeito seja aí um fenôm eno.

146 François Jullien


VIII.
1)A EFICÁ C IA À EFIC IÊN C IA

2. C aberia portanto pensar não uma psicolo­


gia do querer — a C hina, aliás, nem mesmo formu­
lou essa noção — mas uma fenom enologia do efei­
to. Ou melhor, do efecto, dever-se-ia dizer-escrever, Início da
a partir do latim effectu (com o o francês diz afecto, décalage : efeito/
efecto
afeto, a partir de affectu). Isso porque o efeito é ao
mesmo tempo simplesmente causai demais e pura­
mente explicativo demais, ao mesmo tempo produ­
zido demais e acabado demais, para poder dar co n ­
ta da efetividade que está em ação; seu conceito é
ao m esmo tempo demasiado tolhido e demasiado
estreito: separado por demais do processo de co n ­
junto que o fez advir, o efeito é chãm ente resul-
tativo demais, com isso é ainda demasiado espeta­
cular e dem onstrativo (a ponto de poder parecer
artificial, com o quando se trata de buscar efeitos,
em música ou em poesia, ou quando se fala de um
“belo efeito”: esse efeito é ao mesmo tempo dem a­
siado teatral e técnico). Por diferença em relação a
ele, e por perm anecer mais próxim o de sua origem
verbal (efficere: fazer de modo que), o efecto é a di­
mensão operatória do efeito, é aquilo que conduz O efeito é
visado, o efecto
a ele e que o torna efetivo: é o efeito em curso, efei­
decorre de um
to capaz de se reproduzir, tal com o decorre do pro­
processo
cesso encetado (e que não cessa de decorrer dele),
dependendo de uma lógica não de produção mas
de advento. Assim, o efeito é o aspecto pleno, sa-
rurado, do efecto e, com o tal, é realmente feito em
excesso; em contrapartida, o efecto é o efeito ha­
bitado de vazio e levado a se m anifestar, é o efeito
que se opera, que prossegue, e por isso jam ais com -

Tratado da Eficácia 14
plctam ente m anifestado, com o que em falta mas
inesgotável.
O ra, é essa capacidade de efecto que o pensa­
mento chinês, de seu lado, não cessou de investigar.
Ele não se preocupou em opor o ser à aparência,
tam pouco o ser ao devir, não se perguntou de onde
vem o real (e por quê; por isso, não desenvolveu
m itos); sua questão é antes como o real advém: co ­
mo ele “fu n cio n a” (n oção de y o n $ ) e se torna
“viável” (ao ser regulado: o tao). Pois, não cessan­
Efecto/afeto do de se entre-afetar (gan ^ ), a realidade não cessa
de tornar-se efetiva: estando sempre a se desdobrar,
e justam ente por ser coerente e regulada, realidade
nunca acaba de advir e não pode se esgotar.
Um pensamento da processualidade, poder-se-
ia dizer, tam bém aqui esticando as palavras (mas
com o fazer de outro m odo se se quer abri-las à di­
N o ça o centra] ferença?) — a noção precisa ser forjada. T o d o real
de processitalidade
não passa de um processo, e portanto, no plano da
conduta, só se torna real o que é ob jeto de um pro­
cesso, isto é, o que resulta de um processo. D iferen­
tem ente do efeito (visado pelo agir num a relação
m eios-fim ), o efecto não deve ser “ bu scad o”, de
form a direta e voluntária; ele é cham ado a decor­
rer “naturalm ente” do processo encetado. Toda es­
tratégia consistirá, em contrapartida, em saber im ­
plicar o processo a m ontante, de onde o efeito em
O efecto n ão é seguida será levado por si m esmo a “vir”. Porque
bu scad o co m o é da ordem da conseqüência, porque im plica por­
m eta, m as resulta tanto, para resultar, passar por um processo que é
a título de co n se­
sua cond ição, essa eficácia é indireta em relação ao
qü ência
objetivo considerado. Ela é da ordem do fruto que,
transform ando-se im perceptivelm ente, é levado a
amadurecer, não do gesto heróico que pretende con ­
quistar à força. Pois não se pode esperar “tom ar de
assalto ” o real, ou tom á-lo “de surpresa”, diz tam ­
bém M êncio (II, A, 2 ), é preciso haver sempre um
desenvolvimento (o que, para o efecto, é a con d i­
ção de seu desdobram ento); é im possível, com o se

148 François Jullien


sabe, atacar “d iretam ente” a planta para fazê-la
crescer (M Z , ihid.), é preciso deixá-la brotar.
Poder-se-ia, no entanto, acreditar no parado­
xo: “A virtude superior [ou a capacidade superior]
não é virtuosa, é por isso que ela possui dentro de
si a virtude [ou a capacidade]; a virtude [ou a ca­
pacidade] inferior não perde a virtude, por isso ela Q u an d o a
co n trad ição serve
é sem virtude” (L Z , § 38). Sob a contrad ição, rea­
para m o strar a
parece de modo ainda m elhor a evidência: apenas ~
evidência
quando não a buscam os nom eadam ente com o tal
(eu quero ser virtuoso), m as quando ela decorre
sponte sua, quando ela flui naturalm ente, com o se
diz, é que a virtude (ou a capacidade) existe em
abundância e não pode esgotar-se — que se pode
servir-se dela sem pre; quem, ao con trário, não ces­
sa de querer alcançar a virtude, fixando-a com o ob­
jetivo e “em penhando-se” nisso, quem busca a todo
instante ser virtuoso, “ agindo” sem pre “ de caso A intenção de
efeito m ata o
pensado” — sem portanto perder de vista a virtu­
efeito — seca-o,
de, sem jam ais se afastar de seu projeto — , este ja ­
esgoca-o
mais será suficientem ente rico de virtude ou de ca­
pacidade. O que podia fazer que a fórm ula, em sua
concisão, parecesse um paradoxo é, pois, que ela
subentende, mas para m elhor im plicá-lo, o proces­
so que, a m ontante, a título de condição, é o único
capaz de conduzir ao pleno efeito (a título de efecto):
quem pretende fazer econom ia disso e não cessa de
visar o efeito, está sempre carente de efetividade.
Isso porque esse desígnio penaliza o efeito — para­
lisa-o: tão logo “existe [algo] em vista do que se
age”, tão logo esse agir é concertado, esse agir ne­
cessariam ente é “in ju sto ” (W ang Bi), pois foi fo r­
çado a privilegiar, na partida, aquele em vista do que
ele age; e, feito de caso pensado, seu efeito é irre­
mediavelmente m esquinho, pois está diminuído de
antem ão por suas m otivações e não pode ultrapas­
sar o que m om entaneam ente se concebeu da situa­
ção. Ao passo que, levado por esta, ele pode, em
função de sua evolução, renovar-se indefinidamente.

Tratado da Eficácia
M ostra-o a sutil distinção que foi traçad a a
esse respeito entre as virtudes de “hum anidade” e
de “eqüidade” (§ 38 e seguintes). N a medida em que
“agem ”, am bas são virtudes inferiores, mas uma é
não obstante superior à outra, a humanidade à eqüi­
l>oís jçrnus de dade, posto que, quando se age por hum anidade,
agir: <> agir sem “age-se” mas sem “visar a agir” , e mesmo sem ter
desígnio é gene­
em mira o agir, movido com o se é de repente pela
ro so , abu nd ante;
com p aixão, muito mais se reage, portan to, do que
o agir co n certad o
c m esquinho se age, e o sentim ento que se eleva em nós, sem que
tenhamos sido forçados a prever ou escolher, possui
uma globalidade de princípio (é para com todo ho­
mem, simplesmente por ser hom em, que se tem pie­
dade): essa virtude de hum anidade “a b ra ça ” então
a humanidade inteira e a “recobre” generosamente;
ao passo que, quando, por não ser mais tão extenso
■,esse amor aos outros, se age por “eqüidade”, apenas
para ser justo, esse agir justam ente é aju stad o, é
adaptado e medido caso a caso, e sua virtude se es-
tiola em sua pontualidade; ela não mais poderá re­
sultar, um grau mais ab aixo , senão no form alism o
dos ritos. Poder-se-ia dizer assim que, enquanto a
O prim eiro é eqüidade, procedendo passo a passo (taco a taco),
generoso porque se limita ao efeito, a virtude de humanidade é capaz
procede de um
de efecto (enraizando-se ela própria em sua cap a­
lastro de efeito
cidade de afeto); pois em seu caso se revela um lastro
de efeito que, com um ente latente, faz que o efeito,
quando é suscitado, não se esgote e possa exercer
O que a exp e­ seu pleno efeito (cf. Zhuyi, “X ic i”, A, 5 1 ). A inten-
riência m oral per­ cionalidade do efeito, ao con trário, mantém o efei­
m ite esclarecer do
to na superfície, produzido, içado, ele é saliente por­
real (passando-se
que é forçado (cf. o sentido de yfl , para exprim ir a
de uma visão m e­
tafísica a uma intencionalidade; cf. L Z , § 2 0 e tam bém M Z , VII,
visão “processual” B, 33). O que reage à fenomenalidade respectiva de
da realidade) ambas: com o a capacidade superior não visa ao efei­
to , ela passa despercebida (eis por que, com o é dito
no início, “a virtude superior não é virtuosa” ): já
C onseqüência: que se confunde com a efetividade, ela não pode ser
co m o n ão visa ao nom ead a (aparecend o “ à p a rte” ) e recon h ecid a

150 François Jullien


(W ang Bi; cf. o grande general que ninguém pensa efeito, a cap.Kid.i
em enaltecer); ao passo que, com o visa ostensiva­ de superior passa
despercebida
mente ao efeito e se alça a todo m om ento para al­
cançá-lo, é a capacidade inferior que tem um nome,
ela cujos efeitos se vêem brilhar dessa maneira, e que
se poderia tom ar pela verdadeira capacidade. Que
se poderia tom ar... Pois, é claro, tão logo se afirm a,
ela dá ensejo im ediatam ente à refu tação — ela é
ob jeto de resistência (o que faz com que a vejam),
é ao mesmo tempo reivindicada e contestada.
A fenomenologia a desenvolver não é, portan­
to, a do efeito visível, mas de seu m ontante invisí­ Para uma
vel. J á que não é situando-se no próprio nível do fenom en ologia
do efecto
efeito que se pode obter a plenitude desse efeito: a
propósito da “espessura” , ou da “consistência”, da
virtude de hum anidade que existe em nós, não é
pondo em prática diretamente essa humanidade que
se pode gabar-se de tê-la (W ang Bi, § 3 8 ); do mes­
mo modo, não é aplicando-se à virtude de eqüida­
de que se pode chegar à retidão contínua de uma
conduta eqüitativa, nem é executando m inuciosa­
mente os ritos que se pode chegar à pureza do res­
peito ritual (assim tam bém , não é pela regra que se
pode fazer reinar a retidão, pois o desvio logo apa­
rece, cf. § 5 7 ; ou ainda, o puro não pode chegar à
pureza, o pleno à plenitude; § 3 9 ). Pois quando se
atinge precisamente a capacidade de efeito, e se deve
ir até o fim de suas possibilidades para exercê-la, não
se tem condição de realizar verdadeiramente o efeito
(W ang Bi, § 4): se me atenho à “capacidade de uma
casa” , não posso “tornar completa minha casa” ; se,
um grau acim a, me atenho à “capacidade de um
reino”, não posso fazer “advir completamente o rei­
no” . Esse nível que julgaríam os suficiente não bas­
ta: para que o efeito atue plenamente (com o efecto, E feito pleno/
pleno efeito
em oposição a um efeito pleno ou saturado: o ple­
(h ab itad o de
no efeito, com o vimos, é o contrário de um efeito
v azio, p roced en­
pleno), é preciso que haja sempre eficácia de sobra do de um lastro,
e disponível; ou ainda, o que permite ao efeito efe- a títu lo de efecto)

Tratado da Eficácia ISI


1
lirumente operar é justamente esse “ lastro” discreto
— nos antípodas do efeito que vê — que nenhum
uso poderia esgotar.
Posto que é sempre a m ontante, de mais aci­
ma, que o efeito obtém seu efeito, que ele possui efei­
to de sobra e tira daí seu recurso, cumpre que se
encete aquém — em sua fonte — o processo que
conduz a ele; do contrário, ele se esgota logo. “Vol-
ta r” a esse ponto de partida do processo, tal é o
“m ovim ento” em retorno que é próprio do “cam i­
n h o ”, do tao (§ 4 0 ), e todo o Laozi se caracteriza
por essa lógica da regressão (cf. o tema do “ rude”
ou do “recém -nascido” , § 2 8 ): não para se opor à
progressão, mas, ao contrário, para que a possibi-
, | lidade de progredir possa sempre permanecer intei­
R em o n tar ao ra, a jusante. Esse recurso ou esse lastro de efeito,
lastro de imanèn- com o se diz de alguém que tem “fundos” , é o las­
cia do efeito tro de im anência do efeito. De acordo com imagens
tradicionais na C hina, ele é a cepa e o tron co da
árvore a partir dos quais se desenvolvem natural­
mente os ram os com o outros tantos efeitos singu­
lares (cf. W ang Bi, § 5 7 ); ou ainda, ele é a “mãe do
efeito” e os efeitos são seus “ filhos” (§ 5 2 ; cf. W ang
Bi, S 32, 3 8 k’ ): ao se situar no nível da “mãe do efei­
to ”, não há mais necessidade de forçar o efeito para
fazê-lo advir, a capacidade “aparece” sem que se
tenha de “ilustrá-la”, ela se m anifesta “sem rivali­
zar” . Ao passo que, abandonando o lastro de im a­
nência de onde advém espontaneam ente o efeito (a
título de efecto), fica-se “congelado no próprio es­
tágio de advento do efeito” (W ang Bi, § 3 9 ), por
mais que se force o efeito, ele está condenado a se
perder. Entre os dois estágios, há uma diferença não
de essência, com o em nossa metafísica, mas de atua­
lização. O ra, é retornando ao estágio do não-atua-
lizado que se pode tornar constantem ente com ple­
ta sua realização; pois, voltando a m ontante do efei-
F ora da m eta­ ! to , antes que ele tenha com eçado a concretizar-se
física (cf. a lógica ao se diferenciar (cf. o uno original do Laozi), não

152 François Jullien


,i[H‘nas conferimos ao efeito sua m aior carreira, mas processual): r por
sobretudo impedimos que ele advenha definitiva- sua dimcnsfm
, ^ • virtual que «im
mente, m antem o-io em continuo m ovim ento, em . . M
— — -—------------------------------------------ efeito perm anece
sua capacidade infinita de erecto: graças a esse las-, I j
tro de virtualidade, m antem o-lo em ação, conser- 1
vam o-lo atual.

2. É nesse sentido, finalm ente, que se deve


com preender o “n ão-agir” do sábio, ou, mais pre­
cisam ente, que ele possa “agir sem agir” . Dissolve-
se o que podia parecer um paradoxo: o sábio “age”, -Xc-
é dito, mas quando a realidade “ainda não se atua­
lizou”1’ (§ 64). H á de fato agir, mas é um agir a
O n ão -agir é
montante ; e este opera tão a m ontante que não o
um agir a m on­
vemos mais agir. Pois, em vez de pretender gerir a tante
realidade opondo-se diretamente à situação presen­
te, e esperar ser bem -sucedido à base de façanhas,
o sábio sabe (é sábio aquele que sabe) que é preci­
so sempre passar por um processo para chegar ao
efeito. Ele sabe, segundo aqueles adágios que o Lao­
zi se com praz em repetir, que a árvore “cu jo tron ­
co se pode ab raçar” “nasceu da semente mais ínfi­
m a”; ou que, para erigir uma torre, é preciso com e­
çar por “am ontoar terra no nível do ch ão ”; ou ain­
da, que a viagem ao longe inicia “sob nossos pés” ...
Não im porta o que se queira empreender (torre ou
trajeto ), voltam os sempre à categoria do processo
(a árvore que brota). Por isso, por mais contido e 1
m odesto que seja o início, esse início serve de ati­
vação (do processo que ele enceta); e, quanto mais
cedo se age no curso das coisas, tanto menos se pre^
cisa agir sobre ele. N o estágio de atualização das cò i-ji^ P ^ montante o
sas, na verdade o real se tornou rígido e ao m esmo rea[ ng0 resiste
tempo exclusivo, com isso opõe-se ao que se em ­
preende em relação a ele: somos então levados a for­
çar nosso “agir” , a nos concentrar nele, o que o faz
sobressair ainda mais com o ação; com o no estágio ' r
de atualização o agir se em bate contra a resistên-||
cia do real, esse agir é obstaculizado, ao agirm os, i

Tratado da Eficácia 15.?


licam os exau stos, e o efeito tem pouco efeito. A
montante da atualização, em troca, a realidade ain­
da é maleável e fluida, não há necessidade de de­
safiá-la, não adveio (porque só pode advir no está­
gio do concreto) aquilo sobre que seria preciso c a r­
regar. Nesse estágio (o do pum , cf. § 2 8 ,3 2 ) , o real
\"ainda é largamente disponível, suas funções não es­
tão canalizadas: assim, pode-se infleti-lo suavemen­
te, e a m enor inflexão será decisiva, porque é leva­
da pela processualidade das coisas a se m anifestar.
O Laozi rira daí as conseqüências para a co
C onseqüência duta: é com relação àquilo que “ ainda não deixou
em estratégia aparecer sintom a” , nesse estágio do m ontante, que
“é fácil conceber uma estratégia” (§ 6 4 ; cf. também
§ 73). O que se aplica em primeiro lugar, obviam en­
te, ao plano militar. x\s artes da guerra, na China,
insistem no fato de que vencemos muito mais facil­
mente o inimigo quando o vencemos num estágio
em que a situação antagônica ainda não tom ou for­
ma. Lem brem o-nos daquela gradação, que deve ser
relida no sentido de uma degradação do efeito: a
m elhor estratégia é atacar o adversário assim que
ele com eça a conceber sua estratégia, depois atacá-
lo em suas “ alianças” (ou quando “ os exércitos fa­
zem sua ju n ção ” ), depois em suas “tro p a s”, e fi­
nalm ente em suas “p o siçõ es” (SZ , cap. 3 , “ M ou
gong” ). Nossa eficácia decresce, de fato, à medida
Q u a n to m ais que se especifica o curso das coisas: quanto mais o
cedo se intervém , real é determinado de maneira concreta, mais é di­
a m on tan te, fícil geri-lo; quanto mais o conflito tom a form a e o
m enos é preciso
$
processo avançou, mais travada é nossa conduta —
agir — intervir
será preciso “agir” mais e “esforçar-se” mais. No
nível das “posições”, na guerra de cerco , quando a
situação antagônica está com pletam ente desenvol­
vida (a ponto de se im obilizar), nossa iniciativa se
vê paralisada: há então necessidade de mais meios
materiais, e sofrem-se muito mais perdas; custa mais
tempo e mais esforço vencer.
Por isso, enquanto “arrebatar cem vitórias em

154 François Jullien


i cm baralhas” não passa, no fundo, de um resultado
"m edíocre” , mesmo que pareça grandioso, o cúmu­ /-
lo da arte, em contrapartida, é fazer o inimigo “ce­
der" antecipadam ente, e discretam ente, intervindo
,i montante do desenrolar do conflito, e portanto . A arte está em
v iu precisar travar verdadeiro com bate a seguir (SZ, vencer antes de
i .ip. 3, “M ou gong” ). Intervir a m ontante permite ter co m b atid o

nbrcr o efeito à distância; em vez de esperar o efei-


11 >do confronto, melhor será atingir indiretamente
0 mimigo da m aior distância possível: “ Se souber­
mos perscrutar as intenções do adversário”, pode­
remos m atar seu chefe “a milhares de li” (SZ, cap.
1 l, “Jiu di” ). Pois, com o vimos, a vitória se deter­
mina bem antes de ser consagrada pelo aconteci­
mento. Enquanto, novam ente, é “m edíocre” ver a
vitória som ente quando ela chega, e quando os ou­
tros tam bém se dão conta dela, o verdadeiro estra­
tegista é capaz de perceber seu “germ e” antes que
tenha brotado (SZ, cap. 4 , “X in g ”; cf. Cao C ao):
por isso, ele pode, identificando de antem ão suas
condições de possibilidade, teleguiar a evolução da
situação no sentido desejado.
D isso resultou uma distinção sutil para pen­
sar o sucesso: convém distinguir entre, de um lado,
As duas confi­
a “configuração pela qual triu n fo ” e “ que todo o
gurações da situa­
mundo con h ece” e, do outro, a configuração pela
ção: a m ontante
qual “determ ino” ou “d irijo ” esse triunfo, e “que (determinante m as
ninguém conh ece” (SZ , cap. 6, “X u sh i” ). E segu­ imperceptível), a
ramente essa configuração anterior àquela que se jusante (patente

atualiza e se torna patente que é a disposição efi­ — exposta)

caz (em si mesma, aliás, ela é mais do que uma “dis­


posição” , já que se constitui de todas as fases do pro­
cesso pelo qual faço passar o adversário para pa-
ralisá-lo progressivam ente). Uma outra distinção,
que com pleta a precedente, permite precisar o c a ­
ráter imperceptível dessa predeterminação (cf. o co ­
m entário de M ei Yaochen): as pessoas se dão co n ­
ta das marcas tangíveis, ou dos “traço s”, que con s­
tituem o sucesso, mas não das “configurações im­

Tratado da Eficácia I.S5


plícitas'1 ” cujos lineamentos condicionaram a evo­
lução anterior, e pelas quais cheguei ao sucesso. Ou
seja, as pessoas vêem o efeito (logo que ele adveio,
adquire um aspecto dado e lim itado, a título de re-
. sultado), mas não de onde vem o efeito, a que re-
mete o “tra ço ” — todo o seu passado de efecto.
O u ainda pode-se representar esses dois está­
gios, de acordo com o antigo tratado de diplom a­
cia, pela oposição do redondo e do quadrado: en­
quanto nada tom ou form a de maneira visível, e isso
primeiramente da parte do interlocutor, é na “ re­
“ R ed ond ez” e dondez” que se conduz o curso das coisas; depois,
m obilidade a tão logo apareceram sinais, é de m aneira “q u a ­
m on tan te, “ qu a­
d rad a” que se gere a situação (G G Z , cap. 2 , “Fan
d ra d o ” e esta b ili­
ying” ). Dito de outro m odo, convém ser “redondo”
dade a jusante
antes que a situação se atualize, e “ quadrado” de­
pois que ela se atualizou. “ R ed on d o” significa que
|~se permanece móvel, aberto aos diferentes possíveis,
sem se enrijecer em nenhuma posição, sem oferecer
aresta ou ângulo; “qu ad rad o” significa que, uma
vez fixad a uma regra (uma d ireção), sabe-se dar
prova de determ inação e, escorado em sua posição,
não mais se deixar abalar. Primeiro (a m ontante),
“procuramos afinar-nos” com a conjuntura, depois,
quando a situação tom a form a, gerim o-la por meio
de “medidas” ; primeiro, “evoluímos” com diploma­
cia, depois a decisão é “assentada” (com o a pedra
quando é quadrada; G G Z , cap. “ Ben Jin g ” ). N o
r estágio inicial, quando nada ainda está determ ina­
do, “conhece-se” pela redondez, graças à sua per­
feita disponibilidade com relação a tudo o que se
pode ativar; depois, quando o processo é ativado,
“segue-se” de maneira quadrada, sem perder com
sua estabilidade. Ou ainda, o céu, que inicia o cu r­
so das coisas, é “redondo” , e a terra, que as m ate­
rializa, é “quadrada” . (De maneira técnica e em con­
texto divinatório: a redondez remete à das hastes de
aquilégia que deslizam entre os dedos e permitem
apreender a evolução invisível (im-previsível); en-

l.5(. I i .mv■ms 11illifti


quanto o quadrado é o da figura do hexagrama cujo
i|uadro definitivamente estabelecido permite iden-
lificar em sua constância o tipo de caso en contra­
do; cf. Zhuyi, “X ic i” A, 11.) D os dois estágios, é ^
obviamente o prim eiro que é estrategicam ente de- |
terminante e que o tratado de diplom acia se e m p e -.
ilha captar: sempre prontos a girar em qualquer sen­
tido, som os sensíveis à m enor eventualidade e, ca ­
minhando assim sempre ao lado do início das co i­
sas, aproveitarem os desde o ponto de partida, e em
lodo o seu alcance, a m enor possibilidade delas.

3. Porque opera a m ontante, no estágio em que


mdo ainda é maleável, onde nada já oferece resis­
tência, porque, pronto a responder à m enor opor-
lunidade que se anuncia, a adequar-se a cada m o­
dificação que se ativa, jam ais se deixa reificar nem
codificar, esse agir inicial é “ não faz carreiro ” , diz O agir a m on­
tante “ n ã o faz
o Laozi (§ 2 7 ). O carreiro é o traço daquilo que
c a rre iro ”
pesou, m arca de carga e de rotina; enquanto a efi­
cácia verdadeira não cessa de im provisar; ela não
sc enterrou em nenhum traçado, ela não terá de car­
regar. N ão fosse assim, poderíamos tom ar com o um
resquício de pensamento m ágico estes aforism os do
Laozi {ibid.): “ Q uem sabe andar bem não deixa
nenhum traço de rod a” ; ou “quem sabe contar bem
não emprega nem tentos nem tabu inhas”; “ quem
sabe fechar bem não emprega nem tranca nem fer-
rolho, e no entanto não se pode ab rir”; “quem sabe
am arrar bem não utiliza nem cordas nem atilhos, e
no entanto não se pode desatar” . Em vez de tratar-
se aí de um poder sobrenatural, é ao contrário por­
que apenas se esposa o que “é n atu ral” , insiste o
com entador (W ang Bi), que, sem “ instaurar” nem
“aplicar” o que quer que seja, se chega tão facilmen­
te ao resultado: essa perfeita facilidade vem da ima-
ncncia, e o agir se confunde com ela.
N ão sendo m ágica, essa eficácia tam bém não
é técnica (ora, temos revelado a tendência a ver aí

IS7
uma alternativa, sendo a eficácia que não é técnica
rechaçada obrigatoriam ente para o dom ínio do ir­
racional e da magia): intervindo o mais cedo possí­
vel, no estágio em que nada ainda se enrijeceu nem
com plicou, não precisam os descer à particularida­
de das coisas (cf. § 4 7 ), nem obrar com a instru-
mentalidade de uma coisa (m im -obrar, com o se diz);
nesse estágio não existem “coisas”, nem coisas nem
causas (individuadas), tudo o que obstaculiza. Pois
o carreiro deixado pela roda, o recurso ao instru­
m ento são com o que tantas outras deficiências com
respeito a uma pura processualidade, todos esses
traços são defeitos (cf. na série das fórmulas: “quem
sabe falar bem fala sem defeito” : pois ele se abstém
de “análises” e de “distinções”, acrescenta o com en­
tador, operando-se estas apenas no nível de um real
T ra ço s, defei­ i que se diferencia ao se atualizar). T raço s, defeitos,
tos, instrum entos: instrum entos são o quinhão de um real que adveio
é a jusante que se
com pletam ente e se concretizou, que portanto im ­
tem de fazer esfor­
plica agir e forçar; ao passo que, quando operam os
ç o , em face do
co n cre to no estágio anterior à atualização, não precisam os
determ inar o curso das coisas por vir, conclui o co ­
m entador, “com o atualizad o”0 .
Antes da atualização, de um lado — tão logo
ocorreu a individuação, do outro: teremos assim que
r' 0 mudar de m etafísica, ou, m elhor, renunciar à m e­
K ã o dois
níveis de ser, mas tafísica (a do ser eterno oposto ao devir, ou do ser
dois estágios do absoluto oposto à aparência), para que, passando
processo por essa outra distinção prim ária, mas que, desta
vez, se recusa à separação (ela sublinha, ao co n trá ­
rio, a constante transição do real), possamos entrar
nessa lógica da processualidade (mesmo a distinção
aristotélica entre potência e ato não caberia aqui, e
inclusive nada tem a ver, visto que, do lado chinês,
vê-se m uito bem que não se trata de uma “ form a”
que, em ato, conduziria teleologicam ente o desen­
volvim ento). Resultou disso uma concepção da efi­
cácia que se perceberá m elhor a contrario : o erro
que com etem os ao visar diretam ente o efeito é que

158 François Jullien


somos levados a tom ar medidas individuais, com
vistas a alcançar esse efeito, sem nos darm os conta Agir am es iln
estágio da iiu lm
de que tudo aquilo que se individua, ao se individuar
d uação co ncreta:
necessariamente num sentido, faz aparecer im edia­ porque toda
tamente seu oposto e inaugura um cam inho em sen­ individuação faz
tido con trário. x\ssim, tudo o que se particulariza surgir seu op osto
com o “bem ” faz surgir a possibilidade do “ m al”, (e p o rtan to , nesse
estágio, todo
tudo o que se faz reconhecer com o “d ireito” suben­
efeito tem seu
tende que há um “to rto ” — “m al” e “to rto ” que,
co n tra-efeito)
a partir daí, vão prosperar; do mesmo m odo, qu en íl
adota medidas particulares para atingir (diretamen-
te) o efeito faz aparecer em concavidade possibili­
■$>
dades opostas e gera no mesmo m om ento um con- í
i
tra-efeito.
É tam bém , portanto, para escapar a essa ar-
inadilha da individuação que a eficácia preconiza­
da pelo Laozi recusa distinguir por medidas visíveis
que pretendam agir diretamente sobre a situação (a
jusante) e se com praz em perm anecer na “indistin­
ç ã o ” (§ 2 0 , 5 8 ), aquém de uma exp licitação das
clivagens e, por conseguinte, a m ontante do proces­
so. Pois é por ter se perdido a plenitude do cam i­
nho que nos pusemos a falar de “hum anidade” e de
“eqüidade”; depois que o país mergulhou na desor­ Virtudes só se
destacam (a jusan­
dem é que se vêem m inistros “ leais e devotados” (§
te) porque a ple­
18). D e fato , acrescenta o com entador (W ang Bi), nitude da ca p a ci­
se o país estivesse em ordem, esses ministros leais e dade se perdeu (a
devotados, “ não saberíam os onde estão” . A capa^I m on tan te)
cidade som ente coagula, poder-se-ia dizer, ou se
sobressai, porque há deficiência; caso contrário, per­
manece fluida, difusa, indiferentemente presente —
não é por conseguinte perceptível. O ra, assim com o
toda virtude revela uma insuficiência, todo efeito
que se ajusta faz o resto parecer desajustado (cf.
W ang Bi que diz isso ao inverso, § 3 5 : “Desde o
instante em que é com o se nada houvesse que fosse
visado exatam ente (com o um alvo), o uso é inesgo­
tável”). Daí a corrida desenfreada na qual doravante
nos envolvemos para operar sucessivamente todos

Tratado da Eficácia
os outros ajustes cuja necessidade se torna flagran­
te a cada novo ajuste... Por princípio, im aginam os,
essa corrida jam ais terá fim. Ela não cessará p o r­
tanto de fazer o mundo correr em busca de uma efi­
cácia que, para chegar mais rapidamente ao o b je­
tivo (procurando os meios mais diretos: falsos “ata­
lhos” , diz o Laozi, § 5 3 ), se afasta cada vez mais
de seu objetivo.
O ra, não se poderia sair dessa concepção ne­
gativa da eficácia sem co lo ca r em questão o que
corre o risco de estar em seu princípio mesmo: não
apenas a relação m eios-fim , seu aspecto ao mesmo
tem po instrum ental e pontual (o das medidas indi­
viduais), mas tam bém seu caráter aleatório (vencer
ou não: m om ento crucial e trágico) e sua im plica­
ção de esforço (em função de tarefas que nos fix a ­
mos com o meio para vencer). Por mais que se re-
trabalhe a n o ção , a eficácia perm anecerá ainda de­
masiadam ente do lado da ação; e, assim com o foi
preciso rem ontar do efeito patente ao efecto, seria
preciso extrair de debaixo da eficácia uma noção
que não fosse mais tão onerada pelo peso do tan­
gível. N o fundo, aquilo de que nos fala desde o iní­
cio o pensamento chinês ao nos colocar numa pers­
pectiva de transform ação, até nos conduzir à idéia
de uma eficácia indireta (que seria apenas indireta;
o que, pelo próprio interior da n oção, permanece
Fim da déca- um p arad oxo), é menos de eficácia, propriam ente
lage: eficácia/ falando, do que — mais radicalm ente — de eficiên­
eficiência cia. Pelo m enos, vê-se agora m elhor delineado o
conceito desta. À eficiência pertencem a fluidez e a
Fazer da continuidade do processo: ela abre a eficácia a uma
eficiên cia um aptidão que não mais necessita do co n creto para
co n ceito operar; procedendo de uma econom ia de conjunto,
ela dispensa tanto o objetivo quanto o esforço; e,
porque, em vez de ser voluntária, decorre das co n ­
dições im plicadas não poderia de repente faltar ou
desviar-se. Ela está m enos do lado do agir (em ter­
mos de acontecim ento) que de um advento-realiza-

160 François Jullicn


(,'ào. Enquanto a eficácia é localm ente designável,
c portanto diretamente perceptível em seu resulta­
do, é legítimo que a eficiência passe despercebida,
lodo efeito pontual remetendo a ela apenas indire­
tamente — indiferentemente tam bém . Entre a efi­
cácia e a eficiência haveria a mesma diferença, em
'.uma, que existe entre um remédio e o sol (cf. diz-
se que o sol é causa “eficiente”, ao passo que de um
remédio se diz que é eficaz). R elacion ad a com o '
pensamento chinês e separada da noção de causa,
eficiência não seria som ente uma eficácia que não
mais estaria presa a uma ocasião particular, com
isso se dissolvendo no fundo das coisas, mas ela
própria se torna o lastro das coisas, de onde não^
cessa de decorrer todo advento. E nisso ela se con-
A eficiência
Iunde com a im anência. O ra, é esse fundo/lastro de confunde-se com
ríiciência (imanência) que o sábio chinês quer rea­ a im anência
ver sob o acúmulo das coisas (e o encadeamento das
causas); e que o estrategista procura cap tar para
vencer.
Se, abrindo a eficácia para além dela mesma,
descobrim o-la então em toda parte no fundo das
coisas e erigim o-la em princípio absolu to, somos
logo apanhados por este dilema: ou ela se torna o
fficaz que, enquanto apanágio da transcendência,
escapa à vontade dos homens; ou ela se torna a efi-
Eficácia/efi­
i ivncia, cuja processualidade depende de um lastro ciência (Deus ou a
ile im anência. N um a base teológica, foi fácil jogar processualidade)
com o dualismo para conceber o eficaz de Deus em
i «posição ao esforço hum ano. M as com o se pode­
ria pensar o inverso — em sentido inverso? N ão
mais opor os planos mas juntá-los (e tam bém não \
mais para adorar mas para “seguir o processo” ): !
enraizar seu agir na processualidade das coisas (a
ponto de não mais se ter necessidade de agir), em
<xit ras palavras, ramificar a eficácia sobre a eficiên-
i i.i (segundo a m etáfora, arquetípica na C hina, da
icpn e dos ram os). Está claro, em todo caso, que
lesiiltaram daí duas ancoragens: sabem os que a pri-

I l . l l . u l l l <1.1 l . t l l . k W
m nrn, pela separação dos planos que autorizava,
permitiu fundar uma ciência (teórica) na Europa; ao
passo que a outra ancoragem , a chinesa, serviu de
base à estratégia.
Da evolução que, na C hina, leva o Invisível
religioso (e antes de tudo o dos espíritos dos m or­
N;i origem da tos, sbenp ) a significar essa eficiência do recurso de
noi,'.m de eficiên­
im anência, o próprio Laozi fornece uma referência
cia na China
pela seguinte denegação em série (§ 6 0 ; é claro que
não leio aqui essas fórm ulas de um ponto de vista
estritam ente histórico-religioso, mas em função do
que elas deixam ver da m utação, e destacando esse
significado possível): “Q uando se aborda o mundo
hum ano seguindo o cam inho, os espíritos dos m or­
tos já não m anifestam eficiência”. Aqui, a eficiên­
cia do invisível (shen) ainda está próxim a de um
eficaz religioso; mas o au tor retom a em seguida:
“O u, m elhor, não é que já não manifestem eficiên­
cia, mas é que sua eficiência não prejudica os ho­
mens; e não é som ente que sua eficiência não pre­
judique os hom ens, mas o sábio tam bém não pre­
judica os hom ens” . Isso porque a eficiência (do in­
visível) não prejudica o que é “n atu ral”, acrescen­
ta o com entador (W ang Bi); “e, quando os existen­
tes preservam o que é natural, não há nada que seja
acrescentado pela eficiência invisível; e, quando não
há nada que seja acrescentado pela eficiência invi­
sível, não mais nos damos conta da eficiência com o
eficiên cia” . Essa eficiência da qual não mais nos
damos conta (e que se opõe portanto ao milagre),
que não “acrescenta” nada ao natural (e não é por-
D o plano de
( tanto soí?re-natural), torna-se o lastro de im anên-
fundo religioso à , cia. O espírito “do vale”, do qual foi dito que “não
concepção de um m o rre”, oferece uma imagem dela (§ 6): ele é a “fê­
lastro de imanência m ea abissal” cu ja “p o rta” não cessa de se abrir à
existência; “de m aneira ininterrupta”, é especifica­
do, “com o se isso existisse” : a eficiência perm ane­
ce indistinta, vimos por que, ao operar con tin u a­
mente a m ontante; mas assim, é dito a seguir, “ser-

162 François Jullien


vimo-nos dela sem jam ais esgotá-la” : em outras pa­
lavras, esse lastro não tem fundo, dele não cessa de
advir o efeito.
Através das mutações sofridas pela antiga cren­
ça religiosa, essa concepção da eficiência nos traz
de volta àquilo que o pensam ento chinês não cessa
de querer elucidar de nossa experiência: quanto mais R eto rn o à

eficaz é a conduta, menos ela é visível (porque mais experiência: a


eficácia é tanto
ela se confunde com a processualidade). V ale dizer
m aior qu anto ela
que^a eficiência e a visibilidade se opõem , mas sem não se vê (enquan­
que a invisibilidade da eficiência seja em absoluto to eficiência)
de uma ordem diferente da do visível (ela não ad­
quire estatuto m etafísico separado, com o o do “in-J,
'f
teligível” ou do Invisível acessível à “alm a” ): sua in­
visibilidade é antes a de um visível livre da rigidez
e do peso que cam inham junto com a concretiza­
ção das coisas (da ordem do “carreiro ” ou do “tra­
ç o ” ), decantado de toda opacidade (cf. o “vazio” ),
a ponto de existir apenas com o passagem e com o
fluxo, e que portanto — à força de ser “ínfim o” e
“ s u t i l — já não se vê. Ele se torna invisível por­
que o real nele já não tem nada de reificado, p o r­ M as esse invi­
que, pronto a responder à menor solicitação, é cons­ sível é da ordem
tantem ente reativo; nesse estágio, o real não tem do qu e ainda não
é perceptível (a
mais nada de inerte, tornou-se com pletam ente aler­
m on tan te)
ta: jam ais suficientem ente exposto, por conseguin­
te, para que possa ser identificado. Esse invisível ê*T
da ordem do imperceptível, e se a eficiência, nesse
sentido, é invisível, é que, diferentemente da e fic á -; '
cia, ela jam ais se deixa coagular. E por isso que o
antigo tratado de estratégia tam bém não hesita em
invocá-lo, mas já sem nenhuma co n o tação religio­
sa, simplesmente para evocar a m aleabilidade com
que o estrategista frustra o inimigo, tanto no ata­ O invisível em
que quanto na defesa, quando evita m ergulhar em estratégia

m anobras ou deixar j amais que a configuração de


suas tropas pareça fixa e identificável, por menor
que seja. Tam bém ele é “sem tra ço ” , já que sua dis­
posição não cessa de se modificar: “ Sutil! Sutil! Até

Tratado da Eficácia Ih.l


não ter mais form a atualizada! Eficiente! Eficiente!
Até não mais deixar ouvir um so m !” (SZ , cap. 6,
“X u sh i”). Q uando a estratégia se eleva a esse grau
j de perfeição, a eficiência se vê transposta ao nível
1 da conduta hum ana, em bora m antendo inteira a
'.^eficácia que a antiga crença podia lhe creditar: “Com
isso, esse estrategista pode ser aquele que conduz
[rege] o destino do inim igo”; e, com o “sua dispo­
sição estratégica jamais permanece a mesma”, e por­
que “ não cessa de se transform ar em função do ad­
versário”, pode-se “dizer” então que ele é plenamen­
te “eficiente” .
De um pensamento que não apenas é não-me-
tafísico, porém, ainda mais, um pensamento da não-
metafísica, com o é o caso do taoísm o, vê-se ao m e­
nos do que ele seria produtor — na falta de ser fun­
dador (isto é, renunciando a “ fundar” , com o o fez
a ontologia): ele põe às claras as condições de pos­
sibilidade de uma eficiência humana — esclarece ao
m esmo tem po seus m odos de coerência e de que
m aneira eles são vetores de estratégia. R esta consi-
Fim do desvio derar mais de perto, agora, e para confrontá-los aos
nossos, quais são esses procedimentos estratégicos;
e, sobretudo, compreender de que m aneira reger a
situação, a m ontante de sua atualização, poderia
constituir uma arte da m anipulação.

164 François Jullien


IX .
I IX ilC A DA M A N IPU LA ÇÃ O

1. A rigor, a “m anipulação” só existe entre nós


no sentido próprio, em laboratório, no domínio das
ciências e das técnicas, quando se trata de m anipu­
lar substâncias ou produtos. Diz-se tam bém , pelo
menos de um tempo para cá, que se pode manipu­
“ M an ip u la r”
lar os homens; m as, no sentido figurado, a noção
o s hom ens: com
não adquire consistência, continua fortem ente pe- que rigor?
lorativa, hesita-se em levar mais a fundo a analo­
gia. Inversamente, o pensamento chinês, a partir do
ponto de vista estratégico que é o seu, porque não
estabeleceu clivagem entre o mundo e a consciên­
cia (ou entre natureza e vida interior, leis físicas e
leis morais etc.), e não teve, portanto, posteriorm en­
te que tentar reaproxim ar as duas ordens para co ­
brir a falha, forçando analogias, já que tudo para
ele é uma questão de processo, inclusive a conduta
humana, o pensamento chinês não hesitou em pen­
sar a m anipulação a m ontante do processo. M an i­
pulação imperceptível, por conseguinte, no estágio
em que, tudo sendo ainda liso, e dúctil, os homens
se deixam dirigir tão facilm ente que não oferecem
resistência — que não se é mais incom odado pela
consciência.
Até onde se poderá desenvolver esse conceito
— e qual o custo disso? C om ecem os por recapitu-
lar: toda a estratégia chinesa, com o não cessamos
de ver, consiste em fazer evoluir suficientemente a
relação antagonista — a título preliminar — de m o­
do que, no final, o con flito já esteja resolvido antes
mesmo que se tenha com eçado a decidi-lo. Tudo se
resolve nesse já que julgaríam os inicial, mas que, na

Tratado da Eficácia 165


verdade, é um resultado: afigura-se aos outros como
um dado de partida (no m om ento em que com eça
o confronto) o que na realidade não passa da co n ­
seqüência de um processo ao qual eles foram sub­
metidos anteriormente, mas que lhes escapou (e cujo
sucesso decorre a seguir espontaneam ente, sem que
se pense em louvar as qualidades de coragem ou de
sagacidade daquele que conseguiu triunfar tão “fa ­
cilm ente” ). Essa arte discreta da transform ação, que
opera a título de condição, é a da manipulação. C o­
O m on tan te mo tal, ela com porta dois aspectos com plem enta-
da m anipulação res: lançar m ão progressivam ente da iniciativa, no
seio da situação, de m odo a fazê-la chegar às co n ­
dições desejadas; e, para tanto, reduzir o adversário
à passividade, privando-o aos poucos de sua capaci­
dade de reagir. A ponto de, no limite, poder-se ven­
cê-lo sem disparar um tiro ; pois, quando o co m b a­
te finalmente com eça, ele se encontra já derrotado.
N o cam po das operações, essa iniciativa se tra­
duz prim eiram ente pelo fato de o adversário ser
atraído para onde se quer e quando se quer: assim
se poderá esperá-lo de pé firme enquanto ele, che­
gando depois e na precipitação, estará “extenuado”
(SZ, cap. 6, “X u sh i”, início). Para isso — e nesse
ponto o antigo tratad o militar não faz rodeios — ,
basta “ seduzi-lo” e “ fisgá-lo” : para fazer que o ad­
versário “venha esp on tan eam en te” para onde se
quer, é preciso “armar-lhe uma vantagem ”; do mes­
mo m odo que, para fazer que não possa ir lá a o n ­
de não se quer que ele vá, é preciso “arm ar-lhe um
perigo” . Vantagem ou perigo lhe são arm ados, o b ­
viamente, com o se arma uma arm adilha. Pois esse
é o princípio mesmo da m anipulação e o que a to r­
na fascinante: manipular o outro é fazer de tal modo
que ele deseje fazer, “ por si m esm o” e com vonta­
de, aquilo que, na verdade, eu quero que ele faça e
que prevejo ser-lhe-á prejudicial (mas que ele julga
Fazer de m odo vantajoso). Ele pensa decidir-se voluntariam ente,
que o ou tro dese- quando sou eu que o estou conduzindo indiretamen-

166 François Jullien


tc .Com o ele próprio o deseja e se esforça para fazê- jc <> i]iir prrvrin
irá prcjudic.» Io
lo, nãò preciso forçar nem portanto me dispender
para conduzi-lo a isso. Ao mesmo tem po, se ele de­
seja por ser de seu interesse o que na verdade vem
a meu favor, não é que aquilo que lhe estendo com o
vantagem não lhe seja m om entaneam ente provei­
toso (por exem plo, deixá-lo ocupar uma posição,
e é por isso que ele pode realm ente ter vontade dis­
so); mas essa vantagem que lhe arm o, e que ele efe­
tivamente tom a, com prom ete-o num processo ao
cabo do qual é a mim que ele serve e não a ele (as­
sim a posição oferecida consegue enganá-lo). Como
o resume uma form ulação anterior do tratado (SZ,
cap. 5, “ Sh i” ), a capacidade de “pôr em movimen­
to ” o adversário, para manipulá-lo, consiste em co n ­
ferir à situação uma “co n fig u ração ” tal que o ini­
migo seja depois obrigado a “segui-la”r . Para que
ele “siga” , é preciso que veja de fato nisso uma van­
tagem, e é esta que lhe armo, aparentemente em meu
detrim ento; mas o que co n ta, em realidade, é que
ele “ segue”, tornando-se dependente.
N o final, se desejo travar com bate, por mais
entrincheirado que o adversário esteja “atrás de al­
tas muralhas e profundos fossos”, ele “não poderá
deixar d e” vir travar com bate; ou, inversamente, se
sou eu que desejo não travar com bate, bastar-m e-
á “traçar uma simples linha no ch ã o ” para tornar-
me inatacável. É que, no prim eiro caso, eu soube
atacar o que ele se vê “obrigado a socorrer” e que
o leva portanto a sair de seu reduto; e, no segundo,
vir atacar-m e o “desviaria” do cam inho que eu sou­
be fazê-lo tom ar e no qual ele se acha empenhado
{SZ , cap. 6, “X u sh i” ). T anto num caso com o no
outro, por mais desequilibrados que sejam os meios
m ateriais entre os dois cam pos, com o muralhas ou
trincheiras, eles quase não pesam em relação a este
outro fator de determ inação que é a orientação de
espírito do adversário e que soubemos guiar. Pois,
uma vez estabelecidas essas condições, o outro “não

Tratado da Eficácia Ift7


poderá deixar d e” se com portar com o o entende­
mos, e o desenvolvimento vindouro não contém ris­
co. Considerada literalmente, a fórmula parece pro­
vir da m ais elem entar evidência: “ Se, no ataque,
estam os certos a todo instante de triunfar, é que ata­
cam os o que o inimigo não defende; e se, na defe­
sa, estam os certos a todo instante de m anter, é que
defendem os o que o inimigo não a ta ca ” (SZ , cap.
6 , “X u sh i” ). M as saibam os ler o raciocínio im plí­
cito so b esse aparente truísm o: é preciso primeiro
fazer com que, pela m aneira com o infletim os a si­
tu ação , o inimigo já não esteja em condição de de­
fender ou de atacar, antes de decidir por si mesmo
defender ou atacar.
M as com o receber inimigos “em grande nú­
m ero” e “em boa ordem ” , que “estão a ponto de
chegar” ? Resposta: “é preciso com eçar por tom ar
aquilo que eles consideram p rioritário” e então eles
“vos escu tarão ”, isto é, com eçarão a ser reduzidos
à passividade. Em lugar, portanto, de aceitar travar
com bate diretam ente com ele, o que seria arrisca­
do, convém , com o vimos, com eçar por desestruturar
o adversário — e para isso d esconcertá-lo, deses-
tabilizá-lo, confundi-lo (e essa desarticulação é ela
própria compreendida de maneira sistemática, como
o explica o tratado: de m odo que a vanguarda e a
retaguarda do inimigo não mais se liguem; que, en­
tre o lugar onde há mais soldados e o lugar onde
há m enos, já não possa se fazer nenhum a com pen­
sação; que, entre os mais valorosos e os que o são
m enos, nenhum socorro possa mais ser prestado;
que não haja mais “ju n ção ” possível entre a base v
o topo etc.; cf. SZ, cap. 1 1 , “Jiu d i”, e tam bém Sim
Bin, cap. “Sh an” ). C om o não cessam os de vê-lo re­
com endar, trata-se de com eçar por implicar um pro­
cesso cu jo resultado esperado possa decorrer espon
tânea e indiretamente — mas inelutavelmenrc — da
situação experimentada; trata-se tamlx'in de preferir
ao heroísmo pomposo d.i ação, que senloi ihca com
0 perigo enfrentado, o trabalho discreto da trans­
formação que corrói aos poucos a capacidade de re­
sistência do adversário. A eficácia chinesa não é agir
.1 favor ou contra, empreender ou se opor, mas sim­
plesmente, entendendo-se em term os de processo,
•Uivar e desativar (ativar aquilo que, ao se desenvol­ Ativar/desativar
v er, tenderá espontaneam ente a um sentido favorá­
vel; e desativar aquilo que, por ínfim o que seja mas
|.i contido na situação, fá-la-ia evoluir de maneira
negativa). Basta obrigar e desobrigar, e o real dá em
*cguida seus frutos. Por isso, à inflexão a que deve
ser submetido previamente o adversário e da qual
p o r autodesdobram ento decorrerá a vitória, a an-
n^a literatura estratégica volta várias vezes (SZ, cap.
A vitó ria p ro ­
1 ,6 , 11, e tam bém Sun Bin, cap. “Shan” ): se o ad­ cede por auto-
versário está “cheio de ardor”, convém com eçar por d esdobram ento a
instilar nele a confusão e fazê-lo perder esse entu- partir de uma
M.ismo; do mesmo modo, se ele é “prudente” e man- ínfim a inflexão

in n -se na defensiva, convém com eçar por torná-lo


“arrebatad o” para que aja irrefletidam ente (assim
41 uno, no que diz respeito ao general, fazê-lo per­
der as estribeiras, cf. cap. 7); ainda do mesmo modo,
M’ ele está “co eso ”, convém com eçar por dividi-lo;
«• está “em form a”, por esgotá-lo; se está “ sacia -
iln ", por deixá-lo fam into; e se está “em repouso” ,
|>oi abalá-lo...

2. A balar o adversário não conduz apenas a


l.»/ê-lo perder confiança, m as leva-o tam bém a sair
ilc m u ireserva, a deixar a impassibilidade que o dis-
Mtmila, a m ostrar traços particulares e a deixar as-
«m.ilar sua posição. D e fato , a exigência estratégi-
«.i .i esse respeito é dupla: de um lado, convém co n ­ A exigência
duzir o adversário a “tom ar uma configuração” , de estratégica: fazer
m.mrira a poder ter dom ínio sobre ele e saber com o o ou tro ad otar
um a disposição
1 por onde atacá-lo; por ou tro, evitar que o adver-
sem que nós m es­
i.i nn veja nossa configuração, a fim de constante-
m os ad otem os
mrnie cscapar-lhe*’’ (SZ, cap. f>, “ Xu shi” ). F.nquan- uma
111 lenço o ouiro a aiualizar sua disposição, expon ­
do-a no terreno de forma patente, e que sempre será
um pouco fix a, eu mesmo evito qualquer atualiza­
ção em minha própria disposição, de m odo a per­
A ausência de m anecer totalm ente disponível: enquanto o outro
disposição cria a “tom ou fo rm a” e, estando aqui e não ali, posso fa­
d isponibilidade cilm ente co n tro lá-lo , eu mesmo perm aneço im pe­
netrável — não me deixando dispor — ao mesmo
tempo em que preservo inteira m inha reatividade.
Pois toda disposição é por si mesma im obilizante
(por perda de dinam ism o), reificante (por perda de
possibilidade) e, com o tal, está sujeita à natureza ex­
clusiva do co n creto; por isso, ao se deixar dispor,
isto é, ao se d eixar levar a tom ar uma disposição,
o outro está entorpecido — e eu, alerta. Entre um
e outro, a diferença de potencial não consiste em
prim eiro lugar no m aior ou m enor número de tro ­
pas, nos fatores materiais, nos meios dados: mas no
fato de um ter se deixado bloquear a ju san te do
processo da realidad e, p ortan to num grau menor
de efetividade, e se acha doravante travado no ní­
vel das coisas e, a exem plo delas, dando ocasião;
enquanto o outro, perm anecendo a m ontante, pode
facilmente induzir e dirigir tudo, sem jam ais deixar-
se ele próprio sondar.
É nesse sentido que devemos com preender o
princípio que está inscrito na base da arte militar,
com o risco, aliás, de tom á-lo por um simples su­
plem ento de astúcia e de perder sua dimensão de
conjunto: a guerra, é dito sem rodeios, repousa so­
bre a arte de “engan ar” (SZ, cap. 1, “J i ”; 7, “ |un
zheng” ). A m anipulação, presume-se, é uma ques­
M an ip u lação
— d issim ulação
tão de dissim ulação e de segredo: “quando se estii
em condição de poder”, fazer ver ao outro “ que não
se pode”; “quando se faz”, fazer ver ao outro “que
não se faz”, “ quando se está p róxim o”, m ostrar-se
“ distante” e, “ quando se está distante” , “ mostrar
se p róxim o” etc. O primeiro benefício disso é segu
ramente o efeito de surpresa que, junto j mobilidade
facilitada pela ausência de disposição, permito ".it.i
car o adversário onde ele não está precavido” e “fa­
zer uma investida quando ele não a espera” (SZ,
cap. 1, “J i ” ). N a verdade, tão com pleta é a recipro­
cidade entre esses contrários que a arte do ataque
se reduz a que o adversário “não saiba defender”;
assim com o a arte da defesa, a que ele “ não saiba
ata ca r” (SZ , cap. 6 , “X u sh i” ).
Isso porque, além de poder desconcertá-lo por
um efeito de surpresa, tal é a vantagem de condu­
zir o adversário a tom ar uma disposição sem que
eu mesmo adote uma, pelo menos uma que seja de-
tcrminável: não sabendo onde posso atacá-lo, o ad­
versário se protege em muitos lugares e, protegen­
do-se em muitos lugares, é numericamente fraco em
cada um deles. A fraqueza num érica, de que advém
a derrota, não é portanto um dado de saída, mas
resulta da manipulação: enquanto aquele que se dei­
xou levar a tom ar uma disposição deve “ dividir-se”
para se defender de todos os lados, aquele que não
deixou ver sua disposição pode, por sua vez, “co n ­
centrar-se” . Por isso, a inferioridade numérica de­
corre simplesmente de “termos de nos precaver con ­
tra os o u tro s”, e a superioridade, inversam ente, de
“ tazer de modo que os outros é que tenham de se
precaver contra n ó s” . Em outras palavras, quanto
m.iis tem os de nos precaver, mais estam os desguar­
necidos. “O núm ero” , assim com o anteriorm ente O nú m ero, no
,i “coragem ”, não faz parte das condições iniciais, co m b ate, depen­
mas depende do efeito: ainda que o adversário es­ de tam bém do
teja inicialmente em grande número, poderemos não efeito

nhstante vencê-lo fazendo de m odo que a m aior


parte de suas tropas, dispersa nos outros pontos,
permaneça inutilizada.
Esse poder atribuído à m anipulação é tã o de-
i i m v o que leva esse tratado a voltar a uma de suas
,ilu m ações precedentes. N o ponto de partida, afir­
mava (SZ , cap. 4 , “ X ing”, início), e isso parecia de
In mi senso, a vitória pode ser “conhecida” , mas não
"nlM ula" com cerle/a, Pois, se aquilo que se deve
primeiro buscar na guerra é tornar-se invencível, e
isso não depende apenas de nós, o princípio vale
tam bém para o adversário e, portanto, se volta con ­
tra nós. Se, tendo com eçado por tornar-m e inven­
cível, pus-me em cond ição de “esperar” (indefini­
damente) que o adversário possa ser vencido, não
depende mais de m im , em contrapartida, que esse
adversário faça o mesmo: que, permanecendo igual­
mente sem falha, ele jam ais me ofereça a ocasião de
triunfar. Nesse sentido, deve-se conceder, “ não se
pode fazer de m odo que o inimigo possa ser venci­
d o ” . O ra, eis que se afirm a agora o co n trá rio : a
vitória sempre é “factível” (cap. 6, “Xu sh i” ). Po­
sição mais forte, e até mesmo escandalosa por seu
desafio, e que não poderíam os explicar de outra
form a senão pelo fato de que, no transcurso, a pró­
pria idéia da ocasião (fornecida pelo outro) se dis­
solveu na da m anipulação (conduzida por nós): en­
tre uma e outra se interpôs a de um processo pelo
qual faço infletir progressivam ente a situação de
m odo que basta que o outro n ão com eta uma fal­
ta, ou apenas se desguarneça, mas simplesmente que
adote uma disposição, para que eu, não a ad otan­
do, possa afirm ar minha superioridade em relação
a ele. N ão espero mais a falha do outro, mas, a par­
tir do m om ento em que o faço tom ar form a, tenho
influência sobre ele e o tran sform o (assim posso
forçá-lo a se precaver, portanto a se debilitar e fi­
nalm ente a ceder). N ão atua mais a estrita rever-
sibilidade das posições evocada anteriorm ente en­
tre o adversário e mim (o que depende dele/ o que
depende de mim: cada um concentrado em sua in ­
vencibilidade), já que estas não se inscrevem mais
no mesmo terreno; ou, m elhor, ocupando o mesmo
Sem pre se terreno (o das operações), elas diferem entre si por
pode vencer o
seu grau de atualização. O ra , por esse lado, a pos­
ad versário se o
sibilidade de uma diferença sempre existe (ela per­
precederm os na
m an ip u lação tence ao fundo sem fundo do lastro de im anência),
e um sempre poderá prevalecer sobre o outro: cabe­

172 François Jullien


rá ao mais hábil rem ontar m ais acim a na prede-
term inação das condições e, tornando-se ele próprio
cada vez mais inapreensível, a exemplo da Eficiência
invisível, guiar de mais longe o curso do processo.

3. Ao conclu ir com segurança que a vitória


sempre é “factível”, a tese do antigo tratado m ili­
tar chinês força a reagir. Pois, desta vez, a tese é clara
— não desgastada pelas acom odações contextuais
e pelo jogo das interpretações (mesmo que, tam bém
aí, tenha sido possível à tradição filológica tentar
to rcer o cam inho). Ao mesmo tempo dem asiado
brutal em sua posição, e crucial pelo que está em
jogo, para não nos devolver a questão: essa concep­
ção da m anipulação estratégica, que nos garantem
conduzir inelutavelmente ao sucesso, até que pon­
to a temos desenvolvido de nosso lado (o “lad o” eu­
ropeu) — ou desconhecido, ou rejeitado, ou enco­
berto? (E, se não chegam os a desenvolvê-la, o que
nos impediu de fazê-lo? E por quê?)
É inegável que, do lado europeu, não cessamos
de levar em conta as vicissitudes da guerra, de re­
correr aos deuses ou à sorte, de invocar o gênio. É
verdade que insistimos tam bém no efeito surpresa,
que louvamos a astúcia, que recom endam os o se­
gredo; mas, com parado à elaboração chinesa, tem-
se a im pressão de que se trata antes de concessões
feitas à experiência, ou de apartes na reflexão, sem P or que, do
que esses diversos elementos estejam suficientemente lado europeu, a
ligados entre si para dar corpo a uma concepção de m anipulação
estratégica n ão se
co n ju n to e se organizar com o teoria. Entre a Chi­
organizou com o
na e a Europa, a diferença não é tão grande que se teoria ?
tivesse desconhecido aqui o que lá se teria conheci­
do melhor (ou vice-versa), mas sim que as ferramen­
tas teóricas em pregadas lá e aqui, em função dos
pressupostos desenvolvidos, foram mais aptas para
explorar esta ou aquela fonte possível de inteligi­
bilidade — e que estão mais ou m enos afastadas
entre si; aptas, portanto, para tom ar mais legível sob

Tratado da Eficácia 17.»


esse viés o que o era m enos sob aquele. A viagem à
China não tem assim por objetivo imaginar — mui­
to menos im itar — outras “m entalidades” (o pra­
zer sempre um pouco confuso do exotism o), mas
simplesmente tirar proveito de outros recursos even­
tuais de inteligibilidade (que, com o tais, são ao mes­
mo tempo mais globais e mais radicais do que todas
as invenções particulares da filosofia, e esta apenas
os explicita). Questão de com odidade, em suma: se
se revela que a idéia de uma m anipulação estratégica
corresponde m elhor ao quadro nocional do pensa­
m ento chinês, e que ela se esclarece sob sua ótica,
valia a pena passar pela China para desenvolvê-la.
Para nos convencerm os disso, voltem os aos
gregos. Fiéis à antiga tradição da metis, seus tra ta ­
dos militares fazem abundantes menções a arm adi­
lhas, com o alternativa à batalha organizada (falsos
refo rço s, falsas em boscad as, falsas in form ações
etc.); eles tam pouco deixam de preconizar o fingi­
m ento e a duplicidade (fazer parecer numerosa uma
tropa que não o é, parecer ausente quando se está
presente etc.; cf. o cavalo de T ró ia ). Estratagem a
remete evidentemente a estratégia, ainda que C lau­
sewitz, mais tarde, possa desconfiar desse parentes­
co. N o entanto, m esmo quando pretende ensinar
com o enfrentar um inimigo superior em núm ero,
E ntre os g re­ um tratado com o o Hiparco não nos explica com o
gos, o estratage­ transformar a situação para tornar esse adversário
m a co ntin u a sen­ numericamente inferior (cap. 8 ); e, de maneira mais
do um expediente geral, em bora enumere um grande número de meios
de derrotar o adversário, as expressões não conver­
gem para eles a fim de torná-los o ponto forte da
reflexão: por astuciosos que sejam , esses estratage­
mas não passam , em suma, de expedientes, não tra­
çam nenhuma linha de exploração do real, ninguém
supõe que possam servir de eixo à teoria. Ao lermos
os antigos tratados gregos sobre a guerra, e se reti­
vermos com o testemunha um X en ofon te, percebe­
mos que seu interesse, no fundo, é duplo: seja téc­

174 François Jullien


nico (a tática, a poliorcética etc.), seja organiza
cional e político (assegurar a ordem, “to m ar feli­
zes os subordinados” e mesmo “ser eloqüente”: con­
duzir um exército é com o “adm inistrar uma ca sa ”
ou com o “organizar um c o ro ” , lem os nos Ditos
memoráveis de Sócrates, III, 1): considerando um
aspecto ou o outro, mas sempre em vista de uma
forma de ordem , ele deixa entrever neles o que se­
ria o objeto próprio da estratégia.
O mesmo acontece, no fundo, com M aqu ia­
vel, cuja Arte da guerra é o menos m aquiaveliano
de seus escritos. E , no entanto, encontram os nele
esporadicam ente muitos pontos de junção com o
pensam ento chinês: não apenas a necessidade de
fingir, de surpreender, e de saber ocultar suas dis­
posições; mas igualmente, com o vim os, de não en­
curralar o adversário (mas, sim, as próprias tropas);
e também desconfiar dos chamarizes, “anzóis escon­
didos sob a isca”, pelos quais o adversário pode nos
arrastar para onde quiser; “acim a de tu d o”, enfim ,
buscar dividir as forças adversárias: “V ários gene­
rais deixaram propositadamente o inimigo penetrar
em seu país e se apoderar de algumas praças fortes,
a fim de que, obrigando-o a colocar guarnições nes­
sas cidades, e a enfraquecer assim suas forças, pu­
dessem mais facilm ente atacá-lo e vencê-lo” (VI).
Até m esmo a idéia de um potencial de situação é
percebida de passagem: “Na guerra, a coragem con­
ta mais que a multidão; mas o que conta ainda mais
são posições van tajo sas” (V II). Todavia, trata-se aí
de simples observações, tiradas da experiência, e que
não adquirem consistência. Por mais que M aq u ia­
vel faça listas de armadilhas e de estratagemas (mas
justam ente não são mais que listas), nelas se perce­
be apenas medidas de proteção para responder a
práticas correntes, mas deploráveis, e seu principal
interesse não é esse. O que lhe interessa em prim ei­
ro lugar é a instituição m ilitar e seu m odo de estru­
turação (escolha da milícia, papel primordial da dis­

Tracado da Eficácia
ciplina etc.): sempre a descrição de formas , em su­
ma (form a da batalha, da m archa, do acam pam en­
to , e, antes de tudo, do recrutam ento), ou seja, um
O próprio
problem a ao m esmo tem po de ordem e de modelo
M aq u iavel se (de ordem pelo m odelo; cf. o dos rom anos), cuja
interessa m ais simples instauração, segundo ele, cria a força e que,
pelas form as de com o tais, nos remetem inexoravelm ente ao lado
ordem do que
grego.
pela estratégia
Q uanto a Clausewitz, certam ente é quem m e­
lhor nos esclareceria sobre as reticências da refle­
x ã o ocidental acerca da m anipulação estratégica.
N o entanto, ele tem a idéia de um “desgaste” do
inimigo, com o esgotam ento gradual das forças e da
vontade do adversário ao longo do tem po (cf. o
exem plo de Frederico, o G rande, durante a Guerra
dos Sete Anos), mesmo que restrinja seu emprego
à defesa e o conceba apenas para resistir. Ou ain ­
da, concebendo a guerra a partir do engajam ento
arm ado que ele distribui sistem aticam ente entre es­
tes três objetivos — a destruição das forças adver­
sárias, a conquista de um lugar e de um objeto — ,
Clausewitz sugere porém uma “quarta categoria de
co m b ate”, em bora limitado dessa vez unicamente
à ofensiva, o qual repousa sobre o fingimento e cor­
responde aos “ reconhecim entos em que se busca
conseguir que o inimigo se descubra” (bem com o
aos “ alertas com que se procura fatig á-lo ” ou às
“dem onstrações destinadas a impedi-lo de abando­
nar uma posição ou de se dirigir a uma o u tra” ) —
e do qual os primeiros tipos de com bate seriam ape­
nas o meio. M as, perm anecendo preso justam ente
a essa idéia de um com bate destruidor, quer este se
produza realm ente ou seja apenas possível, C lau­
sewitz não poderia ir mais longe: sendo o com bate
concebido com o ação e definido por seu objetivo,
sua lógica só pode ser a de uma eficácia direta, e
toda m anobra anterior a isso pode realm ente “ser­
Preso à n o çã o
de co m b ate, vir de guia para o princípio eficaz”, mas de modo
C lausew itz não algum ser tom ada por esse princípio. Em outras pa­

176 François Jullien


lavras, Clausewitz não desenvolve a idéia de uma co n ceb e verda­
deira eficácia a
determ inação indireta do efeito , por con d icio n a­
nâo ser d ireta —
mento progressivo e discreto da situação e mediante
por co n fro n to
a transform ação.
Percebe-se isso sobretudo pela maneira com o
ele en cara o efeito surpresa, con cebid o, segundo
uma lógica com um , com o o fruto do segredo e da
rapidez. N ão hesitando em colocá-lo antes de tudo
“na base de todos os em preendim entos” e de apre­
sentá-lo com o a chave do sucesso, ele não cessa po­
rém de reduzir sua im portân cia: seja porque seu
perfeito sucesso é “excep cio n al”, levando em co n ­
ta o atrito da m áquina m ilitar, seja porque se des­
cobre tam bém que ele depende do acaso, tão logo
o exam inam os mais de perto. A mesma considera­
ção se verifica a propósito da astúcia, da qual os
gregos diziam, no entanto, que, na guerra, era pre­
ciso “ im aginá-la em cada o casião ”. Após recordar
o vínculo que une tradicionalm ente estratégia e as­
túcia, Clausewitz concentra-se nesta para m ostrar
sua pouca eficácia na H istória: “M as seja qual for
nossa tendência a ver os chefes de guerra superan­
do-se em astúcias, em habilidade ou em fingimen­
tos, cumpre reconhecer que essas qualidades [...] ra­
ramente se destacaram em meio à massa dos acon­
tecim entos e das circunstâncias”. N ão há aí, final­
mente, senão um jogo, semelhante ao “dito espiri­
tu o so ” na ordem do discurso, e que, com o tal, su­
cumbe diante da “seriedade” da guerra, cuja “am ar­
ga necessidade” torna “a ação direta tão urgente”.
É forçoso reconhecer, conclui Clausewitz, que, na
guerra, as peças do tabuleiro “são desprovidas da­
quela agilidade que é o elemento mesmo da artim a­
nha e da astú cia”.
O ra, a m anipulação estratégica, tal com o se
pode concebê-la a partir do horizonte chinês, é bem
mais do que “artim anha” ou “astúcia” . Inclusive,
é intrinsecam ente uma coisa distinta, m esm o que
transpareça acessoriam ente e se deixe assinalar por

Tratado da Eficácia 17
cias. Sob essas figuras familiares da “artim anha” ou
da “astúcia” , que a Europa com freqüência sentiu
prazer em psicologizar (e depois em m oralizar, ou
mesmo em diabolizar), e que são tidas assim por
anedóticas, dissimula-se, do lado chinês, a arte de
conduzir tão progressivam ente o real que já não se
precisa enfrentá-lo. O u, m elhor, arte de induzi-lo,
Induzir m ani­
poder-se-ia dizer, pois conduzir ainda é por demais
pulando
dirigista e cham ativo, por seu modo de acom panha­
m ento (cum : com ), pressupõe ainda demasiada ex-
terioridade, em relação à situação, e portanto ati­
vidade voluntarista e esforço da parte do “su jeito”.
Percebem-se assim dois dom ínios por contraste (a
ponto de se excluírem ?): ou a força repousa na co ­
lisão, com o em Clausew itz, por concentração má­
xim a da ação focalizada sobre o ponto e o instante
julgados decisivos e que se vinculam com o acon te­
cimento (a “ batalha principal”; cf. sua pesquisa dos
centros de gravidade no adversário, sendo o o b je ­
tivo reduzi-los a um só para concentrar o im pacto *);
ou existe predeterm inação do processo, por infle­
xão tão gradual de seu desenvolvimento que não há
mais senão momentos sucessivos, nenhum dos quais
se sobressai, e que nele se dissolve o acontecimen­
M omentos/
to ; e enquanto a eficácia se torna indireta e discre-
aco n tecim en to

* “N ã o foram apenas os generais au d aciosos, tem e­


rários, provocadores, foram tam bém os m ais felizes que bus­
caram realizar sua obra exp ond o-se ao grande risco que é
uma batalha d ecisiva.”
“ É por isso que uma batalha principal p ro jetad a deve
ser m ais ou m enos, m as sem pre numa certa m edida, co n si­
derada co m o o cen tro de gravidade e o ponto cen tral p rovi­
sório do sistem a in teiro. Q u an to m ais intenso fo r o espírito
guerreiro [...] que anim a o general ao iniciar uma cam panha,
q u an to m ais ele tiver o sentim ento, a idéia, isto é, a co n v ic­
ção de que deve abater seu adversário e de que o abaterá, tan ­
to m ais lançará tod os os seus pesos na balan ça da prim eira
batalh a, com a esperança e a vontade de que esta lhe faça
g an h ar tu d o .” Da guerra, IV , 11.

François Jullien
ta ao longo da m anipulação, ela é direta e manifes­
ta no co m b ate *.

4. M as sobre quem, exatam ente, se fará incidir


a m anipulação? Sobre o adversário, é claro , mas
tam bém , não se deveria escondê-lo, sobre as tropas
que se têm em m ãos, para que elas possam ser en­
curraladas e forçadas a com bater. N ão é somente
o adversário que deve ser mantido na ignorância das
m anobras que se empreendem, o segredo é também
indispensável com relação a seus próprios hom ens'
e em seu próprio cam po. A lógica da m anipulação
o exige: o bom general, afirm a o antigo tratado chi­
nês para a grande incom preensão dos com entado­
res atuais que julgam esse princípio im oral, deve ser
“ capaz de manter tapados os olhos e os ouvidos de
seus soldados e de seus oficiais, de modo que n in­
guém se dê conta [do que ele faz]” (SZ, cap. 11, “Jiu
d i” ); para que possa usar da m elhor m aneira o po­
tencial da situação, ele “impele suas tropas adian­
te com o um rebanho de ovelhas, impelindo-o num
sentido, im pelindo-o noutro, sem que ninguém no
m eio delas saiba para onde se dirige” . O ra, acon­
tece exatam ente o m esm o, na C hina, no plano po­
lítico, e isso tam bém é dito sem pudor: isolando-se
em seu segredo, o soberano “esclarecido” trata to ­
dos os seus subordinados com o puros autôm atos,
não com o pessoas, diríam os, mas com o o b jeto s.
Entre a guerra externa e o poder interno, não ape­
nas os dois cam pos se com unicam mas são análo-

1 Essa diferença entre as estratégias não é apenas te ó ­


rica, penso que foi possível co n statá-la na guerra do V ietnã:
d o Jado am erican o , buscou-se sem pre a batalha organizada,
co m o m á xim o de poder m aterial e desenvolvendo a m aior
força de luta; en qu an to, do lado adversário, essa estratégia
foi frustrada po r uma m an ip u lação contínu a — a p o n to de
ter chegado n o final à v itó ria, por desm oronam ento e, p o r­
ta n to , sem aco ntecim en to .

Tratado da Eficácia
gos, m i ti lógica é com um e suas “a rtes” se corres­
pondem (e m uito mais fortem ente ainda na China
do que em M aquiavel). Por isso, vemos desde a *\n-
tigüidade, no quadro do pensam ento do despotis­
mo, im propriam ente cham ado legista, que já evoca­
mos (cf. supra cap. 2 e 6), os chineses traçarem uma
teoria bastante com pleta da m anipulação política.
A m anip u la­
Sob esse ângulo, aliás, a noção se aproxim a mais da
çã o do poder
etim ologia do que entre nós, remetendo explicita­
mente ao que se tom a em mãos: o que o príncipe
esclarecido “tom a em m ãos” são as recom pensas e
os castigos de que se serve com o de dois “ca b o s”
ou de dois “m anípulosc” (H F Z , cap. 7, “E r bing” ),
com andando em seus súditos as reações opostas,
mas igualmente instintivas, do medo e do interesse
— e das quais a subm issão decorrerá sponte sua.
Pode-se retom ar aqui, p ortan to, o que acaba
de ser dito da m anipulação estratégica, para cons­
truir uma noção da m anipulação política que resu­
me todos os aspectos do despotism o e os articula
entre si: o segredo, em prim eiro lugar, com o aca­
bamos de ver, que o príncipe não partilha com nin­
guém , nem mesmo com seus parentes ou seus fa­
voritos (H F Z , cap. 4 8 , “Ba jin g ” , I); a to tal dis-
simetria dos papéis, a seguir, e o antagonism o das
posições: para conservar inteiro o potencial de si­
tu ação con stituíd o por sua p o sição so b eran a, o
príncipe deve considerar todos os outros, no inte­
rior de seu reino, com o adversários a subm eter à
sua autoridade; a ascendência sobre outrem que
permite dom iná-lo: assim com o o estrategista tem
vantagem sobre o inimigo graças à disposição que
este tom a, o príncipe tem vantagem sobre todos os
seus súditos ao torná-los visíveis pela vigilância e
pelo controle im postos (ao mesmo tem po em que
ele próprio evita deixar transparecer qualquer dis­
posição interior, de alegria ou de cólera, para que
não tenham com o pegá-lo); a redução do outro à
passividade: desde o m om ento em que é o único a

180 François Jullien


ter os com andos (das recompensas e dos castigos),
o príncipe polariza sobre seu tron o toda autorida­
de, e ninguém lhe pode resistir; enfim , a ilusão que
o povo acalenta sobre seu próprio interesse: con ­
duzido pelo desejo das recom pensas e pelo medo
dos castigos, todo súdito crê seguir seu proveito
pessoal sem se dar conta de que trabalha apenas
para fortalecer o poder de seu opressor*'. Reencon­
E M ao ?
tram os a partir daí, transferidas para o dom ínio
político, as duas principais características da eficá­
cia chinesa. Prim eiro, que a eficácia é indireta e de­
pende de um condicionam ento: do rigor impiedoso
da “lei” resulta um poder absoluto, por simples via
de conseqüência, sem que o príncipe tenha mais
U m perfeito
necessidade de agir ou apenas de com and ar: ele déspota n ão pre­
não precisa “bu scar” a autoridade, ela decorre do cisa m ais bu scar
regime instaurado e de maneira inelutável; a seguir, a autoridade
que a verdadeira eficácia dispensa o dispêndio de
esforço: enquanto o homem da m oral, dizem esses
teóricos do despotismo, não cessa de se fatigar para
colocar os outros sob sua influência, um verdadeiro
tirano pode dirigir tudo sem o menor esforço e sem N em tam p o u ­
mesmo intervir pessoalmente: o dispositivo do po­ co despender
der faz de modo que os outros é que sejam obriga­ esforço

dos a colocar suas capacidades a seu serviço (ibid .,


II). Com o anteriorm ente o estrategista, ele proce­
de por predeterm inação invisível, sem que seus sú­
ditos o saibam , à m aneira de um “fan tasm a”, é
dito [ibid., I), ou seja, na raiz mais íntima do dese­
jo e da repulsa deles, enquanto ele próprio perm a­
nece insondável; com o a natureza, sua influência
passa despercebida de tal form a ela está assim ila­
da, de tal form a ela é constante e geral, bem com o
inesgotavelmente reconduzida.

“ Será preciso insistir sobre o qu anto o m aoísm o per­


m aneceu fiel a essa trad ição? Com preende-se p o r que a p ró ­
pria C am arilha dos qu atro considerou esses “ legiscas” co m o
progressistas.

Tratado da Eficácia
Nada escapa a essa lógica, desde o início ela
é extrem a e sua radicalidade a torna instrutiva. Fi­
camos espantados de ver assim erguer-se inteiramen­
te pronto esse “cân o n e” de todos os totalitarism os,
com o se, nesse ponto, o pensamento não tivesse ne­
cessidade de tatear: o rigor é sem exceção, o poder
não conhece hesitação, elim ina-se cuidadosamente
toda vibração hum ana. M ais nenhum reconheci­
m ento é feito à pessoa, a idéia mesma de direito se
vê submergida sob a onipotência da “ lei”, não há
lugar para valores. Se tudo converge para o prínci­
pe e o impele para a frente, o príncipe mesmo se
m antém discreto, renunciou a toda preocupação de
glória, renunciou inclusive à sua própria individua­
lidade. C om o perfeito m anipulador, ele se dissolve
na m anipulação; e, ao tratar os outros com o au tô­
m atos, ele próprio se torna autôm ato.

François Jullien
X.
M A N IPU LA ÇÃ O VERSUS PERSU A SÃ O

1. Eis um tratado para uso dos diplom atas e


dos grandes ministros. Seu nom e é o de seu presu­
mido autor, o M estre do vale dos fantasm as, Gui
gu zi. Um nome de lugar, certam ente, esse “vale dos
fantasm as” para onde o M estre se teria retirado no
fim da vida, mas que, selando-a sob esse título, en­
cerra a obra com um segredo e faz pairar o m isté­
rio. A suspeita igualmente: pelos poderes manipu­
ladores que nela se expõem , o homem se avizinha­
ria do mundo dos fantasm as e dos espíritos; con se­
gue mais obsedar do que agir. Sem mais estar sub­
metido às incertezas ou à rigidez das condutas co ­
muns, sem mais d eixar ver m arcas tangíveis nem
enfrentar resistência. E, no entanto, o mundo no M an ip u lação :
qual ele assim evolui nada tem de diáfano ou de perigo
sobrenatural; ao contrário, é aquele, o mais realis­
ta e o mais opaco, dos conflitos de interesse, da co n ­
quista do poder e da política.
Livro estranho, de fato: certam ente do fim da
Antigüidade tam bém (século IV antes de noss^ era),
porém mais tarde atribuído a diversos e sempre um
pouco clandestino, ou pelo menos desdenhado, quan­
do não amaldiçoado, pela tradição letrada. Faz par­
te daquelas obras lidas em caráter privado para sua
própria orientação — ps im peradores tam bém o
leram — mas que se prefere não invocar, que nin­
guém se arriscaria a citar, e que assim, durante mi­
lênios, todos fingiram ignorar (e a tradição sino-
lógica tam pouco se ocupou dele); faz parte daque­
las raras o bras que de repente abrem uma chan-
fradura na cobertura ideológica da realidade e de-

Tratado da Eficácia 183


calem pôr as coisas às claras. D entro de um puro
objetivo de eficácia, e sem o menor disfarce, evitan­
do inclusive deixar transparecer qualquer sentimen­
to. Livro-lim ite, talvez único em seu rigor de co n ­
siderar as relações humanas apenas sob o ângulo das
relações de força, ou do qual pelo menos não vejo,
do lado europeu, qualquer equivalente: nele, o fra­
seado se concentra e se desenvolve mais secamente
que em outras obras, tam bém oscila mais agressi­
vamente, em leve desaprumo com relação à harm o­
nia esperada (na China, a da sentença); e sua expres­
são é tão rasa, para evitar toda afetação ou mesmo
toda coloração subjetiva, que às vezes parece m e­
nos escrita que simplesmente codificada. O u seria
que nela o sentido se torna tão perigoso, pelo que
põe a descoberto, que é levado naturalm ente a se
cifrar? Isso porque ele trata, sem dúvida, da coisa
mais candente na China — mas que ninguém ou ­
sava dizer: com o ser bem -sucedido junto ao prín­
cipe para ser bem -visto por ele e poder dom iná-lo?
De fato, esse M estre do vale dos fantasm as te­
ria form ado em sua escola os ministros mais presti­
giosos do fim da Antigüidade chinesa (Su Q in, Zhang
Yi), tanto pela autoridade que adquirem na corte dos
príncipes quanto pela habilidade das alianças que
conseguem estabelecer fora. Pois a China do fim da
Antigüidade é a dos “reinos com batentes” que, com
o desm oronam ento da antiga suserania, progressi­
L u ta de m orte vamente afirm aram sua independência e se acham
para dom inar em rivalidade contínua entre si: por meio das co n ­
federações elaboradas, mas constantem ente m utá­
veis, cada um tenta restaurar a hegemonia em seu
proveito. Traições, com plôs e mudanças de lado são
moeda corrente então, toda palavra é suspeita de cara
ou, pelo m enos, todos estão prevenidos, ninguém se
ilude com a m oral. N ão se acredita mais que uma
transcendência possa recompensar ou punir, não se
alim enta a ilusão de nenhum além, a am bição dese­
nha o único horizonte e a força é a única medida.

184 François Jullien


Em nosso cam inho, já havíam os nos depar;i
do com esse tratado. Ele ensina a considerar as re­
lações entre pessoas, e especialm ente com o prínci­
pe, em term os de potencial de situação (cf. supra
cap. 2 ); dissolve a noção de ocasião oferecida na de
uma exploração das menores “fissuras” detectadas
na posição adversária (e induzidas a aum entar, cap.
5); tam bém ordena intervir a m ontante, no estágio
em que tudo ainda é “redondo” e pode facilmente
ser gerido (cap. 8). M as seu interesse não reside ape­
nas naquilo que nos faz assim conceber da manipu­
lação hum ana, num quadro que não é mais estri­
tam ente estratégico ou p o lítico; tam bém reside no
contraste que deixa transparecer, em concavidade,
com respeito à tradição européia e que tem a ver
com o estatuto de palavra. Porquanto, em bora se
trate claram ente aqui de uma relação de discurso,
o conselheiro dirigindo-se ao príncipe, o objeto não
é a retórica. O u, m elhor, esse é um tratad o de anti-
A nti-retórica
retórica: em vez de ensinar a persuadir o outro, fa ­
zendo-o ver a justeza, ou pelo m enos o interesse de
nosso conselho, ele ensina a influenciá-lo de tal m a­
neira, antes de qualquer conselho, que seja depois
levado espontaneam ente a seguir todos os nossos
conselhos. N ão é, p ortan to, a organização da pa­
lavra, enquanto discurso, que se enfatiza, mas as
condições que convém estabelecer a m ontante, en­
tre o outro e nós, de modo que a m enor palavra que
em itam os seja tão bem-vinda pelo outro que este
logo a admita: que confie prontam ente nela e não
N ão persuadir
pense mais em interrogar-se a seu respeito — mui­
o o u tro , mas
to m enos em questioná-la. Persuadir o outro, sabe- cond uzi-lo de
se, sempre exige um dispêndio — o da retórica — antem ão a aderir
e jam ais é garantido; persuadir o outro é travar a
cada vez uma nova batalha. x\o passo que, se o ou­
tro não mais desconfia (é levado a não mais descon­
fiar), não precisamos mais fazer esforço e a parti­
da está ganha de saída.
O fato de se tratar aqui da palavra não altera

Tratado da Eficácia
cm nada, portanto, os dois pontos precedentes —
a transform ação prévia e a eficácia indireta por co n ­
dicionam ento. E, de fato , enquanto o mundo gre­
go se apegou, sabe-se quanto, aos prestígios p ró ­
prios do discurso e não cessou de estudar a arte de
servir-se deles, constatam os, em troca, que a C hi­
na antiga se desinteressa dos procedim entos de ar­
gum entação, das partes do discurso e das figuras da
retórica. A eloqüência e a valorização que ela tem
em mira estariam portanto igualmente relacionadas
E loqü ência, com o espetacular e com a ação: há efetivam ente
ação , espetáculo uma “ação oratória”, e o orador também está diante
de um público; ao tornar sua palavra mais veemente
graças à retórica, ao colocá-la “diante dos o lh o s”
de seus ouvintes, com o é recom endado, ele busca
atingir ainda mais diretam ente o efeito. Ao passo
que quem “fala” , segundo o tratado chinês, fala o
m ínim o possível ou, m elh or, não o vemos falar :
aquilo a que assistim os, em troca, é a maneira dis­
creta pela qual, a m ontante e por inflexão progres­
M a s tudo se siva, com o anteriorm ente o estrategista, ele prepa­
decide a m o n ta n ­ ra o terreno para se fazer ouvir; e falar e propor, do
te da palavra mesmo modo que com bater, é algo que está, para
ele, num longínqüo jusante.
Certam ente, foi dito que a retórica serve tam ­
bém à m anipulação. Pois ela não ordena apenas
instruir o destinatário; ele tam bém é recom endado,
com o se sabe, a buscar agradá-lo e com ovê-lo; in­
clusive freqüentemente ela visa fazê-lo reagir, e sem
que ele tenha consciência disso, m ais no nível de
suas “p aixões” , com o se diz, que de sua razão (“ra-
zão ” - “p aix ão ” : uma das velhas clivagens européi­
as que a retórica contribuiu para enraizar). M esm o
assim argumentos se enfrentam , uma escolha está
aberta, p o rtan to , e uma convicção pode se criar.
Uma lógica se exp licita, tendo por o b jeto o veros­
sím il, quando não a verdade: sobre a qual se tem
sempre m aior ou menor dom ínio e que se pode re­
futar. Enquanto que, do lado chinês, tudo incide

186 François Jullien


so b re a m aneira de predispor o destinatário antes
de c o m e ç a r a dar-lhe um conselho. Tam bém aí, a
b a ta lh a , a da palavra, deve ser ganha antes que o
c o m b a te o co rra, isto é, antes que se ponha a falar. F a la r, ou com
O q u e pressupõe que a captação da benevolência bater, situa-se
não se faz ao longo do discurso, com o trabalha para num longínquo
isso a eloqüên cia, mas precedentemente; não à luz jusante

do d ia , na sala do conselho, mas durante a noite;


não n o instante (o acontecim ento da palavra), mas
de m a n eira progressiva e a todo m om ento: graças
à re la çã o de confiança na qual o outro se deixou en­
v o lv er, e portanto à influência que adquirim os so­
bre e le , instaura-se, aos poucos, uma “ propensão”
que o leva a nos escutar.
Pode-se então esperar que a relação de pala­
vra seja concebida a partir do mesmo encadeamento
de n o çõ e s que, precedentemente, em estratégia. O
im p ortan te é “dirigir” o outro, em vez de “ ser diri­
g id o ” pelo outrou’ ; é preciso deter um “pod er” so­
bre ele e não deixar seu “destino” ser determinado
por ele (G G Z , cap. 1 0 , “M o u ”; cf. SZ, cap. 6, “X u
sh i” ). Porquanto, na perspectiva adotada por esse
tra ta d o , os interesses seriam necessariamente opos­
tos entre os interlocutores, cada um fechado em sua
p o sição , e o destinatário deve sempre ser tom ado
por um adversário; sendo assim, se tudo deve ser
A relação de
feito para que o outro tenha confiança em nós, es­ palavra é regida
sa co n fian ça é sempre uma arm adilha. “Seduzir”, por um a m anipu
“ a tra ir” , “fisg ar” constituem a etapa prelim inar, lação estratégica

tan to aqui com o em estratégia, para fazer passar o


outro para a nossa influência (G G Z , cap. 2, “Fan
ying” ; cap. 8, “M o ” ); a com paração de costum e é
a do anzol e da rede: convém oferecer ostensivamen­
te ao outro o que ele julga ser de seu interesse para
que se torne “receptivo” (G G Z , cap. 11, “Ju e ”), en­
quanto progressivamente vamos nos apoderando de
toda iniciativa: por m aior príncipe que seja, o o u ­
tro deixa-se então dirigir tanto num sentido quan­
to no outro, “tanto ao leste quanto ao oeste, tanto

Tratado da Eficácia 18
ao norte quanto ao sul”, fazemos dele um joguch'
(G G Z ,cap . 3, “Nei qian ”; cap. 5, “Fei qian” ); c tios
mesmos evoluímos com tal facilidade que não rcsi.t
mais o menor “interstício” entre o outro e nós e não
se vê nenhum “sinal” exterior dessa dependência.
Em si, não é tanto o que é proposto aqui qur
é espantoso, pois se percebe bem sua lógica, mas mi.i
absolutização: espantoso que não se trate aí de e x ­
pedientes, mais ou m enos vergonhosos, mas do ca
minho norm al, e que seria mesmo ideal. Que qual­
quer outra possibilidade seja excluída e o outro (mas
se trata ainda de um “outro” ?) reduzido a uma com ­
pleta passividade. M esm o “M aqu iavel”, entre nós,
não considerou isso.

2. Que m anipular o outro pela palavra é aqui


o objetivo único, é o que se percebe pelos dois ter­
mos que logo de início servem para definir seu uso
e com andam todo o tratad o: “a b rir” e “ fech ar”v
(G G Z , cap. 1, “ Bai h e” ). Duas puras operações —
As duas ope­ dois gestos, em suma: abrir , diz o tratad o, é incitar
raçõ es: “ a b rir” e o outro a expor livremente o que ele pensa de modo
“ fech a r” a perceber se seu sentim ento é sem elhante ao nos­
so; fechar é ir em sentido inverso para forçar o ou ­
tro a reagir e com provar se ele diz realmente a ver­
dade. O ra, as duas operações devem ser praticadas
alternadam ente porque se com pletam : quer, teste­
m unhando-lhe nosso assentim ento, conduzim os o
outro a “ se ab rir” e, saindo de sua reserva, a expri­
mir com pletam ente seu sentim ento; quer, ao co n ­
trário , opom o-nos deliberadam ente a ele para que,
diante desse “ bloqueio”, deixe aparecer de repente
seu verdadeiro sentimento — e possamos “concluir”
sobre a veracidade do que dizia.
A primeira m anobra é exp loratória, a outra,
de controle; a primeira, favorecendo sua expansão,
faz aparecer o que o outro quer; a segunda, susci­
tando sua reação, deixa transparecer o que ele pre­
tendia ocultar; com binadas, elas servem para “son­

188 François Jullien


d ar” o outro e para “aferi-lo ” : ou se vai em seu
sentido, para que ele próprio se deixe ir; ou se vai
cm sentido contrário, para que, recalcitrando, ele
nos permita avaliar sua resistência. Sua reticência
e seu silêncio tam bém são reveladores. T an to num
caso com o no outro, quer ele “a b ra ” quer “feche”
a boca, quer se libere quer o reprim am os, o outro
é percebido, ou, m elhor, m anejado, com o um puro
dispositivo (a exemplo, é dito, dos dois fatores opos­
O “ ou cro”
tos e com plem entares, yin e yang, que constituem co m o dispositivo
toda a realidade). E essa polaridade vale tam bém no a m anipular
que concerne à natureza da palavra: há, de um lado,
temas positivos (yang) que servem para “ab rir”; do
outro, temas negativos (yin) que servem para “fe­
ch a r” ; recorrer-se-á aos primeiros para encorajar o
outro em seu em preendim ento, aos segundos para
obrigá-lo a renunciar a seus propósitos. Assim, será
suficiente abrir e fechar para que “não h aja mais
nada que não saia” (do foro íntim o do outro, com o
sentim ento oculto), assim com o, em sentido inver­
so e por via de conseqüência, para que “não haja
mais nada que não entre” (com o conselho que se
quer fazê-lo adotar), em suma, “para que não haja
mais nada que não seja possível”, e não im porta em
que escala — seja em relação a um indivíduo, a uma
fam ília, a um país ou ao “ mundo inteiro” .
Essa onipotência atribuída à palavra concorda
com tudo o que se pôde dizer dela do lado grego e
latino, salvo que os meios em pregados são intrin-
secamente diferentes. A palavra não serve aqui para
falar, mas para conduzir o outro a fazê-lo; ela não
Falar, n ão
visa a m ostrar nosso sentimento, mas a fazer de m o­ para dizer ao
do que o outro mostre o seu: de maneira a podermos o u tro m as para
nos adaptar a ele e, por conseguinte, sermos bem fazê-lo falar
recebidos e, conseqüentem ente tam bém , acred ita­
dos por ele. T ã o logo o outro se tornou transpa­
rente, ele não oferece mais resistência, afirmava tam ­
bém o teórico do despotism o. Segundo os próprios
term os desse tratad o, “ ab rir” e “fech ar” têm por

Tratado da Eficácia 189


objetivo prim eiro, ao subm eterm os o outro a isso,
exam inar “o que há dentro dele” e “o que não há ”
e, apoiando-nos n o que assim se revela “ch eio” o u
“vazio”, verídico ou falacioso, sermos capazes de
“esposar seu d esejo” e, com isso, perceberm os sni
fundo secreto (este constituindo, com o em estraté­
gia, sua verdadeira “disposição” : aqui, suas dispo
sições interiores, suas intenções e seus sentimentos).
D isp osição e m an ejo , arm adilha e segredo:
nesse deserto de hum anidade, toda subjetividade
está excluída, ou, m elhor, é negativa (já que é por
ela que se tem dom ínio); há, de fato, uma intim i­
dade do outro, mas esta só serve para ser desen-
tocada. N ão se imagina, por exem plo, que ela pos­
sa se dar espontaneam ente, animada que fosse de
sinceridade; não se considera sequer que o outro
diga simplesmente o que pensa. Por isso, a palavra
é concebida prim eiram ente com o uma armadilha
para cap tar a palavra do outro e “abrim os” e “ fe­
ch am o s” sucessivamente para forçá-lo a se revelar.
C o m o fo rça r
o o u tro a se Dois m étodos, a esse respeito, são possíveis (G G Z ,
revelar? cap. 2 , “Fan ying” ). O u nos calam os enquanto o
outro fala e, tão logo algo não parece mais con cor­
dar em suas palavras, “caím os em cim a ” para bus­
car-lhes a verdade. Pois, dado que a palavra serve
para “figurar” a realidade e os fatos “se associam ”
entre si, pela com paração que deles se faz, toda pa­
lavra é reveladora e permite ver “o que há por trás” :
assim é possível, sem deixarm os nós mesmos trans­
parecer configuração (por nosso silêncio), pegar o
o utro numa “ rede” . C om efeito, por pouco que ele
diga, e mesmo que não fale do que está em ques­
tão, poderemos sempre retirar daí indícios e dedu­
zir o resto por aproxim ação. M as suponham os, e é
o segundo caso, que o outro, não falando, não nos
deixe transparecer absolutamente nada: cumpre en­
tão mudar de tática e proporm os-lhe nós mesmos
“figurações” que o abalem e o forcem a reagir. O
que lhe concedem os en tão , co m o in fo rm a çã o , é

190 François Jullien


“quase n ada” , mas ele não tardará a se descobrir.
I'ara tanto, bastará introduzir a lógica de polaridade
entre o outro e nós: indo num sentido, fazê-lo vir
mo sentido inverso; ou escavar uma falta que exija
sua com pensação: se queremos que ele fale, redu- '
zimo-nos ao silêncio; para que ele se abra, fechamo-
nos etc. Indo eu mesmo deliberadam ente em senti­
do contrário do que quero que ele faça, suscito sua
conduta em contrapartida e o atraio do jeito que me
interessa. Induzo o papel que lhe caberá assumir em
função da situação ativada: basta im plicar em co n ­
cavidade o efeito para que este se produza a seguir
plenam ente, por si mesmo e por im anência. O ou­
tro responde então, no pleno sentido do term o, que
não é apenas com u n icacional, correspondendo à
situação criada e produzindo o que dela se espera.
Uma outra tática ainda, para sondar os senti­
mentos de outrem e forçá-lo a nada encobrir, será
levá-los ao extrem o (cap. 7 , “ C huai” }: ou se esco­
lhe o m om ento em que o outro está mais contente .
Levar o ou tro
e se vai em seu sentido para que, no auge do con- a não mais po£)er
tentam ento, ele deixe surgir seu sentim ento mais se controlar
íntimo; ou se escolhe o m om ento inverso e faz-se do
mesmo m odo: no auge do m edo, ele tam bém se en­
tregará. Levados a seu paroxism o, um ou o outro
sentim ento fazem-no perder seu controle ou, pelo
menos, pelas m odificações que acarretam , deixam
aparecer sintomas. Pois tudo o que se modifica “por
dentro”, é afirmado em princípio, deixa-se ver “por
fo ra ” , e é o que torna possível essa detecção: “a
partir do que se vê” percebe-se “o que não se vê”
(cap. 7); e, uma vez sondado assim o sentimento do
in terlocu tor, pode-se ter certeza de que ele irá se
com portar em conformidade com ele (cap. 8). Aliás,
se o outro conseguisse escapar-nos a despeito des­
sa provocação em ocional, seria m elhor “d eixá-lo ”
e não mais lhe falar, para reencetar em seguida a
detecção por outro m eio, e de maneira ainda mais
indireta, tom ando informações em seu “séquito” ou

Tratado da Eficácia 191


procurando conhecer m elhor a “ base” de su.i pei
sonalidade. Pois, à força de “acercar-se” dele, e de
poli-lo com o um jade (sentido de m o "' , cf. cap. H,
T u d o n cl c sc
torna sintom ático
“ M o ” ), o outro acab ará por d eixar transparecer
suas disposições: não há pura aparência, deve-se
concluir, na qual ele possa esperar refugiar-se.
Paralelam ente, convém , com o em estratégi.i,
nada deixar perceber de nossa própria disposição:
não deixar perceber nossa “p o rta”, com o se diz, ser
em relação a outrem com o um fantasm a ou um es
pírito (cap. 2 , “Fan ying”). Se a palavra se expõe .i
luz (}'<j?2g), ela am adureceu na som bra \yin): quer
nos “abram os” ou nos “fechem os” em frente do ou
tro, convém operar da m aneira mais discreta (cap.
1, “B ai h e” ); e, quando nos acercam os do outro
para observar de esguelha, obviam ente deve-se evi­
tar que ele se dê conta disso, deve-se “tapar os bu­
racos” e “ocultar as pontas” (cap. 8, “M o ”). O fru­
A palavra às to da palavra, em sum a, é criar esse contraste: o
avessas: to rn ar o
outro tornou-se transparente e eu me to rn o opaco.
ou tro tran sp aren ­
te, en q u an to nos A palavra é realm ente eficaz, com o o afirm ava a
torn am o s opacos retórica, mas funcionando às avessas. N ão esse aves­
so demasiadamente simples, e ingênuo, que seria a
recusa de com unicar-se e a escolha da m entira, pois
verificam os que a natureza sintom ática da palavra
torna a m entira impossível; mas por uma subver­
são m uito mais fina que a atinge em suas funções
mesmas: falo, não para dizer ao outro, mas para
fazê-lo dizer; e, do mesmo m odo, escuto, não para
seguir o outro, mas para me impor a ele.

3. Pois esse ponto é crucial tanto na relação


de palavra com o em estratégia: eu me ajusto ao ou­
tro , mas para d om iná-lo; pod er-se-ia até mesmo
dizer, tornando a afirm ação exclusiva: é somente
adaptando-m e à disposição dele, e portanto, de um
A ju star-se ao
certo m odo, começando por submeter-me a ele, que
o u tro para do-
m in á-lo posso estar seguro de dirigi-lo. Ao m esmo tempo
estar certo de podê-lo e saber co m o me a rran jar

192 François Jullien


nis so . O u, pura tornar esse sentido ainda mais in­
c is iv o , e de m odo a aguçar seu paradoxo: eu o sigo
Inira conduzi-lo (para, isto é, ter condições de). Pa-
u d o x o — ou simples evidência? Pois, ao esticar
•issim a fórm ula e forçá-la em seus redutos, acredi­
ta-se jogar com o paradoxo e levar o discurso a seu
lim ite ; no entanto, trata-se de uma evidência, e de
lima tal evidência que só se pode com preendê-la, e
mesmo com eçar a vê-la, se a dobrarm os em para­
doxo. O pensamento chinês, porém, contenta-se em
deslizar continuam ente por cim a, sem pensar em
desdobrá-la; ele a subentende sempre, ou, m elhor,
deixa-a entender, sem deter-se mais longamente nela
e sem erigi-la em princípio. C om o risco, para nós,
de perdê-la, não percebendo sua im portância, de tal
modo ela está im plicada ao longo de todo o trata­
do — mas em concavidade e não em relevo. R eto­
mando o fio da m anipulação: “ C om o conduzo o
outro a reagir pelas figurações propostas em minhas
palavras, posso conciliar-m e com sua consciência e
suas disposições interiores me serão manifestas; por
isso, seguindo [suas disposições interiores], tenho
condições de conduzi-lo” (G G Z , com ent. do cap.
2 , “ Fan ying” ). “C onduzi-lo” no sentido pleno do
term o (mu), com o um pastor conduz seu rebanho.
Eis-nos distantes, assim, de um certo m ito eu­
ropeu, demiúrgico e portanto heróico, do puro po­
der de com eço. Ser o prim eiro, empreender, iniciar: R isco e dis­
a solidão e o investimento de um sujeito, sempre o pêndio de um
risco e o dispêndío. Tam bém o júbilo, certam ente, co m eço

e o fascínio do desconhecido — mas então se per­


de de vista a eficácia e se cai numa outra lógica: a
do desejo e de um dispêndio descarado. Pois, se é
de fato a eficácia que se tem em vista, revela-se mui­
to mais rentável “acom p anhar” o real, com o não
cessam de dizê-lo a sabedoria e a estratégia chinesas,
e com portar-se em conform idade. Em conformida­
d e, isto é, “ seguindo” suas vicissitudes para poder,
coH-formando-se a elas, tirar proveito.

Tratado da Eficácia 193


É o momento inclusive de levantar uma am bi­
güidade que, de outro modo, arriscaria tornar inin­
teligível essa concepção: querer progressivamente
A iniciati v a
m onopolizar a iniciativa em seu proveito, tanto na
n ã o sign ific a guerra com o na relação de palavra, não significa
in ic iar que se tenha de iniciar a situação. Acontece ex ata­
mente o contrário, pois, enquanto aquele que in i­
cia é sempre mais ou m enos obrigado a se arriscar,
e com isso se esgota abrindo o cam inho, aquele que
segue se beneficia de todas as balízas necessárias
para não precisar se aventurar e evolui tanto mais
à vontade quanto sabe com que se orientar. Ele tem
domínio e o outro não. Sua conduta adquire assim
um rigor e uma determ inação, e portanto uma fo r­
ça injuntiva, que reagem às escondidas à relação
inicial a ponto de, progressivamente, e sem deixar
de adaptar-se ao outro exteriorm ente, ele ser cada
vez mais capaz de dirigi-lo interiorm ente. Em ou­
tras palavras, não cessando de seguir e de se dei­
xar levar pela frente, tem -se acesso a uma posição
m uito mais rica de efeito possível, em seu recuo,
que a frente trabalhosa de quem cam inha adiante:
Ela se adquire a capacidade de iniciativa se revela m enos no início
gradativam ente que no fim, ela tam bém é fruto de uma evolução,
num desenvolvi­
obtém -se por acúm ulo e manifesta-se com o um re­
m ento
sultado. D urante o percurso, a iniciativa passou de
um para outro e o potencial se inverteu. Inversão
que não é dialética, com o entre o Senhor e o Es­
cravo, mesmo que seja de certo m odo seu corres­
pondente sim étrico, porque procede de uma trans­
form ação contínua e não m arca data na H istória,
com o acontecim ento: ninguém se dá co n ta, nem
mesmo quem o padece, de que, à força de nos co n ­
form arm os ao outro e de esposarmos seu sentimen­
to , discretam ente o impelimos para a frente do jei­
to que queremos.
Esse tratado exem plifica-o com um príncipe e
seu súdito (cap. 3, “N ei qian” ). Se, com o acabam os
de dizer, é fundam ental detectar as disposições in­

194 François Jullien


teriores do príncipe, isso se faz para esposar sua
Lógica e ser bem-visto por ele (não im porta por qual
cam inho: a “m o ral” , ou uma aliança “ partid ária”,
ou o desejo de “riqueza”, ou o “sex o ” etc.): à for­
ça de sugerir propósitos que vão em seu sentido,
consegue-se “entrar em sua intim idade” , com o a
chave na fechadura, é dito, e pode-se então “servir-
se” das próprias am bições. Basta “atingir o senti­
m ento interior” do príncipe para em seguida poder
“determinar as medidas que ele tom a” . Pois, saben­ Servir-se da
do “servir-nos de sua intencionalidade” , é dito, di- intencionalidad e
rigim o-no à vontade e sem que ele possa oferecer do ou tro para
resistência: “Se você quiser que ele venha procurá- d eterm inar as
m edidas que ele
lo, ele virá p rocurá-lo”, “se quiser que ele pense em
tom a
você, ele pensará em vo cê” etc. O súdito se co n fo r­
mou tão bem aos desejos do príncipe que o prínci­
pe se tornou inseparável de seu súdito; a relação de
dependência não apenas se inverteu, mas tam bém
se tornou tanto mais forte, nesse caso, quanto é pu­
ramente interior e “ não deixa transparecer nenhum
sinal”. Uma vez mais, a eficácia obtida será tanto
m aior quanto seu modo de determ inação é da or­
dem da conseqüência, quanto ela não age direta­
mente, por uma força im posta, mas resulta; aqui,
ela resulta do que se afiguraria o contrário de um
recurso à força, ela é fruto da confiança.
O u ainda, segundo o título de um outro capí­
tulo (cap. 5 , “ Fei qian ” ), faz-se o parceiro “ levan­ Fazê-lo “ le­
tar v ô o ” sob nossos elogios para em seguida pegá- vantar v ô o ” para
lo “com pinças” . C om o o glosa o com entador, para “ p in çá-lo ”

adquirir uma “influência” sobre outrem , convém


“com eçar por louvá-lo de modo a fazê-lo levantar
vôo: im ediatamente o outro deixará ver seu senti­
m ento, até o fundo e sem nada esconder, e então,
em função daquilo que ele gosta, puxam o-lo atrás
de nós e prendemo-lo, a ponto de ele não poder mais
se virar nem se d eslocar”. Essas palavras fazem o
outro “levantar v ô o ” para em seguida nos “apode­
rarm o s” dele: tanto para “harm onizar” nossa rela­

Tratado da Eficácia 195


ção com ele quanto, em função de nossa intenção,
para “dirigi-lo”. É o que o tratad o cham a: “Ir va­
zio e voltar cheio” . Fazê-lo levantar vôo à custa de
simples elogios é “ir vazio”; e o outro abrir seu co ­
ração e deixar ver seus sentim entos, de modo a pas­
sar à nossa esfera e tornar-se dependente, é o que
se cham a “voltar cheio” .
M as a m aneira mesma de “louvar” e de “pin-
ça r” o outro depende ainda dele. Com efeito, são
muito diversas as formas de se “a cercar” do outro
para poli-lo e poder detectar suas inclinações, e elas
devem ser apropriadas a cada caso. O u é feito de
form a “pacífica”, ou observando o “rigo r” de seus
princípios, ou seguindo o que dá “prazer” ao ou ­
tro, ou que o põe em “có lera” , ou apoiando-se em
seu desejo de “g ló ria” etc. (cap. 8, “ M o ”; cf. cap.
10, “M o u ” ). De fato, se aquilo que o sábio (enten-
da-se aqui o estrategista da palavra) emprega, “to ­
dos os outros o possuem igualm ente”, só ele é ca ­
paz de adaptá-lo ao outro, e disso decorre todo o
R e to rn o à sucesso de sua fala, que é fazer-se “escutar com ple­
lógica da p ro p en­ tam ente” (cap. 8, “M o ” }. Esse tratado analisa in ­
são: aqu i, a fazer- clusive em detalhe o porquê do benefício da adap­
se escutar tação. Se adaptar-se é eficaz, é em virtude do p ró­
prio princípio que não cessam os de invocar desde
o com eço deste livro: criando propensão. Aqui, a
do mesmo que tende em direção ao mesmo, por afi­
nidade (a exem plo da madeira seca que, lançada ao
fogo, diz o tratad o, é a primeira a se inflam ar, ou
da terra úmida que, quando nela se derram a água,
é a primeira a umedecer). O mesmo atrai o mesmo,
sponte sua: adaptar-se ao outro é portanto criar o
mesmo em face do outro para que ele, por isso ape­
nas, seja atraído para nós.

4. Tod a a “dificuldade da palavra” , resume o


teórico do autoritarism o, dito “ legista”, repetindo
esse tratad o de diplom acia, consiste em “conhecer
a consciência daquele a quem nos dirigimos de m o­

196 François Jullien


do que nossa palavra esreja sempre cm adequação”
(H FZ, cap. 12, “Shui nan” ); não, portanto, em per­
suadir o outro, por razões, mas em corresponder à
situação: se aquele a quem nos dirigim os é apai­
xonado por glória e lhe falam os de vantagens m a­
teriais, “ele nos olhará com desprezo e nos expulsará
com o um indivíduo vil” ; se ocorre o inverso, se ele
sonha com vantagens m ateriais e lhe falam os de
glória, ele julgará nosso propósito “sem interesse”
para ele, “porque muito distante da realidade”, e
tampouco “o acolherá” . As coisas são inclusive mais
com plicadas. Pode acontecer que, em seu foro ín ­
tim o, ele só pense em lucros m as queira parecer
apaixonado por glória: se lhe falarm os de glória,
fingirá nos escutar, m as, na verdade, nos afastará;
e, se lhe falarm os de lucros, seguirá nosso conselho
às escondidas, mas, para preservar a fachada, nos
dispensará...
Vê-se, por diferença com a G récia, o que im­
pediu a retórica de se desenvolver na China. Do lado
Por que a
grego, isto é, da pólis, o orador dirige-se comumente retórica n ão se
a uma coletividade que delibera, a do tribunal, do desenvolveu na
conselho, da assem bléia: se deve levar em conta o C hina
estado de espírito de seu público, ele não pode p o ­
rém penetrar na lógica pessoal de cada um dos que
o escutam ; além disso, sua fala se inscreve em ge­
ral no quadro de um debate co n trad itório , logos
contra logos , ela refuta ou é destinada a ser refuta­
da: p ortan to, ele é levado a apoiar seu discurso nas
razões julgadas as mais objetivas, ainda que apenas
Palavra pu bli­
prováveis, e recorre ao rigor da argumentação com o
ca/palavra priva­
denominador comum do pensamento. M as, na Chi­ da: por argu m en­
na, com o em todo regime m onárquico (e a China ta çã o ou p o r
não concebeu outro — mesmo atualm ente: o Par­ insin u ação, de
tido), a palavra, dirigindo-se ao príncipe, jam ais se frente — de viés

afasta com pletam ente de seu caráter privado; incli­


nada com o é a privilegiar a perspectiva do interlo­
cu tor, ela busca m enos provar do que insinuar; e,
raram ente dando ensejo a debates contraditórios,

Tratado da Eficácia 197


procede na m aioria das vezes, com o em estratégia,
de uma m aneira oblíqua. Por isso, o próprio racio­
cínio seria chamado legitimamente a desviar-se para
servir de forma capciosa: se existe algo que, por inte­
resse pessoal, o príncipe deseje urgentemente, pros­
segue o teórico do despotism o, cumpre “pressioná-
lo a isso” fazendo-o ver que se trata de “um dever
público”; se ele é propenso a algo baixo e não pode
se abster disso, cumpre “enaltecer-lhe os aspectos
vantajosos” e “ minimizar seu lado repreensível” etc.
Nesse caso, a captação da benevolência é apenas um
preâm bulo: “Se você se fizer am ar pelo príncipe,
suas opiniões esclarecidas serão bem -vindas e você
gozará, por acréscim o, de seu favor; m as, se for
odiado por ele, suas opiniões esclarecidas não se­
rão bem-vindas, você será julgado crim inoso e será
a fastad o ”: da “ b o ca ” , órgão fetiche da retó rica,
boca da divina Peithô, o centro e gravidade deslo-
cou-se para o orelha; e ter a orelha do príncipe é a
garantia do sucesso.
M as, com o o objetivo do teórico do au to ri­
tarism o é to m a r absoluta a autoridade do prínci­
pe, e, por isso, a perspectiva que ele adota é a do
déspota e não a de seus súditos, e mesmo que ela
se oponha à dos súditos, já que suas posições res­
pectivas são percebidas com o antagônicas, é de es­
A ntíd oto perar que essa captação da benevolência seja vista
com um ente em sentido con trário. T u d o o que aca ­
ba de ser aconselhado se transform a em advertên­
cia (H FZ, cap. 14, “Jian jie shi chen” ): a tarefa prin­
cipal que com pete ao príncipe, para proteger sua
autoridade, será proteger-se de todos aqueles que,
por suas palavras atenciosas, quiserem penetrar em
sua intimidade. O que, de um lado, é tentado com o
insinuação deve ser, do outro, desm ascarado com o
insidioso; e a resposta a essa confiança secretamente
urdida em torno do príncipe será uma desconfian­
ça generalizada. Uma desconfiança, aliás, não tan ­
to com relação aos outros quanto com relação a si

198 François Jullien


diante dos outros. Pois o príncipe sabe que, “ por
causa da precedente concordância com o o u tro ”, é
levado “a confiar no que o outro diz h o je” , e que
este, opinando em seu sentido, buscou obter seu
favor para em seguida enganá-lo e arrogar-se o po­
der. X com placência o príncipe responde com a sus­
peita — de modo a conservar inteiro o potencial de
sua posição.
Com prova-se assim de fora (da China) o vín­
culo que une retórica e democracia. M as os dois pro­
cedim entos que assim se opõem , persuasão ou m a­
nipulação, ultrapassam o quadro histórico que fa­
voreceu seu desenvolvimento — público ou priva­
do, organizando o confronto dos discursos ou fa­
vorecendo uma relação indireta. Separados de seu Persuadir por
con texto, eles se erigem em alternativa para a co n ­ argum entos:
duta: ou fazemos diretamente pressão sobre outrem dispêndio
pela p alav ra, sim ultaneam ente m ostrando e de­
m onstrando, colocando-a “ante seus olh os” graças
à veemência oratória, ao mesmo tempo em que nos
apegam os à necessidade exigida pelo raciocínio (e,
de fato, a eloqüência contém tanto o teatro quanto O u im plicar
a lógica, esses dois componentes gregos de nossa his­ pela situação:
tória); ou é sobre a situação que operamos para atin­ tod a resiscência é
desativada
gir indiretamente o adversário, orientando-o pro­
gressivamente de tal m aneira que, sem nos desco­
brirm os, e pelo simples efeito do que está im plica­
do, ela envolva o outro e o desarme.
O utrora o duque W u de Zheng desejava ata­
car Hu. Conseqüentem ente, diz-nos o teórico do
despotism o (H FZ , cap. 12), ele com eçou por casar
sua filha com o príncipe de Hu “para voltar o pen­
samento deste para os prazeres” . Depois interrogou
seus ministros: “G ostaria de em pregar minhas tro ­
pas, a quem posso a tacar?” Seu grão-oficial, Guan
Q isi, respondeu-lhe: “ Hu pode ser atacado” . O du­
que W u ficou furioso e mandou m atá-lo, dizendo:
“ Hu é um país irmão. Aconselhar-m e atacá-lo, co ­
mo pôde pensar nisso?” . “Tom ando conhecim en­

Tratado da Eficácia
to disso, o príncipe de Hu acreditou que Zheng ti­
nha boas intenções a seu respeito. Assim, não se
precaveu. O s homens de Zheng o atacaram repen­
tinamente e tom aram o principado.”

20 0 François Jullien
X I.
IM A G E N S DA ÁGUA

2. U m a imagem atravessa o pensam ento da


China antiga — ligando-o e irrigando-o ao mesmo
tem po — , a imagem da água. Ela é, diz o Laozi ( §
8 ), o que mais se aproxim a do “cam inho” , do tao.
A água não é o cam inho porque é uma realidade
A água é o
particular, e por isso mesmo exclusiva, enquanto o
que “m ais se
cam inho abrange todo o real em sua plenitude e nele ap ro xim a do
se fundem as incompatibilidades: a água já faz parte ca m in h o ”
das realidades “atualizadas”, enquanto o cam inho
nos faz voltar ao fundo/lastro indíferenciado das
coisas. Todavia, por ser infinitamente maleável, flui­
da, por não ter form a nem aresta, por correr inces­
santem ente e jam ais se esgotar, a água nos coloca
no cam inho do C am inho, ela nos faz rem ontar ao
indíferenciado. Indiferenciado que não se poderia
ver (isoladamente) nem nomear (separadamente), de
onde tudo não cessa de provir, para onde tudo não
cessa de voltar. De todas as realidades atualizadas,
a água seria assim a que o é m enos: ela não se co n ­
gela em nenhum aspecto determinado, não se im o­
biliza em nenhum lugar particular. A menos coisa
entre as coisas — a mais viva, a mais alerta.
Com freqüência celebrou-se a água por sua
pureza; em alguma outra parte, na aridez do deserto,
ela serviu para estancar a sede — a da alm a tam ­
bém: ela foi vista com o fonte de vida. Ao “tudo flui”
heracliteano (ou “não se pode entrar duas vezes no
mesmo rio ”; fr. 1 34 [91]) a tradição atribuiu o sen­
tim ento pungente do efêm ero e o movim ento inin­
terrupto das coisas, a fugacidade e a insubstancia-
lidade das existências: “Som os e não som os” (fr.

Tratado da Eficácia 201


D u as vertentes 133 149 a]); ao passo que na exclam ação igualmente
de uma mesma lacônica de C onfúcio à beira do rio: “Passar assim,
im agem : 1 lerácli-
sem trégua, tanto de dia com o de n o ite !” (Conver­
to ou C o n fiicio
sas, IX , 16), a tradição reconhece a adm iração dian­
te desse escoar contínuo, a exem plo do grande pro­
cesso do mundo, e cuja fonte é inesgotável (cf. M Z ,
IV, B, 18). Sob a aparência de um lugar-com um , de
um lado, a imagem aponta para o não-ser e, do ou­
tro, para o lastro de im anência. Porque se renova
constantem ente por si mesma e porque seu curso,
escoando a partir de um m ontante invisível, não
cessa de avançar, a água ilustra a eficácia. O u, antes
— e a imagem do fluxo permite apreender melhor
a diferença — , em que pode consistir a eficiência.
Na verdade, ela esclarece os diversos aspectos
da eficiência, tudo o que desta se disse se reflete nela.
A ponto de, a seu respeito, o discurso “parecer in­
vertido”, diz o Laozi, fazendo pensar, mais uma vez,
no paradoxo: “ N o mundo, não há nada mais m a­
“ M alea b ilid a ­
leável nem mais fraco do que a água, m as, para ata ­
d e” e “ fraq u eza”
da água a to m a m car o que é duro e forte, nada pode superá-la” —
m ais forte que a tam pouco “substituí-la” (LZ , § 7 8 ); ou ainda, é “o
força que há de m ais maleável que se sobrepõe ao que há
de mais duro” (L Z , § 4 3 ). Por não ter rigidez, com
efeito, não há nada em que a água não “se insinue”
— ao mesmo tempo em que ela própria não se “rom ­
pe” (cf. W ang Bi). Enquanto quem quer “guardarem
si a força não é forte” , “é guardando em si a m a­
leabilidade que se é forte” (LZ , § 5 2 ); ou ainda, é não
oferecendo resistência que se é mais resistente. N is­
A água/a
so a água se opõe à pedra: por ser sólida, a pedra se
pedra
desgasta e se quebra, mesmo que seja brilhante com o
o jade; por sua im obilidade e sua dureza, ela repre­
senta o que foi “até o extrem o de sua atu alização”
(LZ , § 3 8 , cf. com entário de W ang Bi), congela-se
em sua configuração. A m aleabilidade da água, ao
contrário, lembra a do corpo do recém-nascido (LZ,
§ 76): quando o homem nasce, quando as plantas
brotam , a ternura e a flexibilidade dos m em bros,

202 François Jullien


assim com o a ondeante gracilidade das ramagens,
respiram alegremente a vida; ao passo que, na m or­
te tanto do homem quanto da árvore, o corpo é sem­
pre duro e ressecado. E isso, acrescenta o Laozi, se
aplica tam bém em estratégia: quando as tropas são
“ duras”, “rígidas”, elas não poderiam triunfar.
Prevalecendo assim de modo geral sobre a for­
ça, a “fraqueza” é a m aneira da qual procederia o
cam inho, o tao (L Z , § 4 0 ). Pois a força verdadeira
é a força contida, implicada, e não a que, para se
m ostrar, deve enrijecer-se e, enrijecendo-se, tende
a se rom per ou pelo m enos a se desgastar; em ou­
tras palavras, a força verdadeira não é a potência
ostentada, mas o poder do potencial: em estratégia,
Im agem de
o do potencial de situação ilustrado pela água acumu­ pocencial: a água
lada. “As tropas são empregadas no com bate pelo acum ulada
vencedor com o água acumulada à qual se abre uma
brecha num precipício” (SZ , cap. 4 , “ X in g ”, final);
por causa da im portância do desnível e da estreite-
za de seu leito, a violência da água pode chegar a
arrastar as pedras ( i b i d cap. 5, “S h i” ): sendo a
natureza da água “maleável e fraca” e a das pedras,
“ dura e pesada” (Du Y ou ), a água triunfa do peso
das pedras graças unicam ente à disposição.
O que caracteriza a verdadeira força, em últi­
ma análise, é que ela não (se) força. O pensamento
chinês não se cansa de voltar a esse motivo: pertence
à natureza da água correr para baixo; se ela pode
arrastar até as pedras em sua passagem, é conten­
tando-se em seguir o declive que se lhe oferece. A
água é a imagem daquilo que não cessa de buscar
uma saída, para prosseguir seu cam inho, mas sem
fazer violência à sua inclinação, seguindo sua pro­
pensão: “A conform ação das tropas deve se asse­
melhar à água. Assim com o está na conform ação
F o rça —
da água evitar o que é alto e tender em direção ao
p ro p en são: a
que é baixo, também a conform ação das tropas deve
água segue sua
evitar os pontos fortes do adversário e atacar seus in clin ação para
pontos fraco s” (SZ , cap. 6, “X u shi” ). Os pontos avançar

Tratado da Eficácia 203


fortes são aqueles em que o inimigo está “ch eio ” e
faz obstáculo; os pontos fracos, aqueles em que está
“vazio” — deficiente ou desarm ado: o estrategista,
com o a água, contorna os obstáculos e se insinua
por onde o cam inho está livre à sua frente; com o a
água, ele não cessa de esposar a linha de m enor re­
sistência e descobrir, a todo m om ento, por onde é
mais fácil progredir.

2. Esse baixo para o qual a água não cessa de


correr, seguindo sua inclinação, é o que lhe perm i­
tirá dominar. Se os rios e o mar são capazes de “rei­
nar sobre os cem riachos” (L Z , § 6 6 ; cf. supra, cap.
7), é porque têm a virtude de se situar abaixo de­
les; por isso, têm condições de reinar sobre eles. Um
primeiro sentido é óbvio — e nos é fam iliar: o efei­
to se recolhe na base da inclinação, a jusante, e o
mar se alim enta de todas as águas do mundo sem
ter de buscá-las; as águas tendem e convergem para
ele em função unicamente de sua inclinação, ele só
precisa acolhê-las. M as, sob esse sentido, insinua-
se um outro que é mais habilm ente estratégico, com
o risco de parecer contrário à estratégia, e mesmo
A água em bai­ de extinguir sua possibilidade: tendendo para b ai­
x o : suprim ir a
x o , a água consegue jam ais “enfrentar” (LZ , § 8).
rivalidade
Para estar em baixo, ninguém se bate. A m elhor es­
tratégia é com eçar por desmobilizar toda estratégia
adversária, suprimindo a com petição, e esse efeito
é astucioso. Pois, quem não en fren ta, nada mais
pode tam pouco enfrentá-lo (LZ , § 22). N ão som en­
te não se cogitaria isso, mas inclusive não se pode
cogitá-lo — pois se está sem ação. Ao situar-nos de­
liberadam ente mais ab aixo , lá onde o outro repug-
naria estar, privamo-lo da possibilidade do confron­
to e da rivalidade, e com isso desativam os sua re­
sistência; frustrando o antagonism o, desarm amo-lo
antecipadam ente.
M ais uma vez, tudo depende da cond ição à
qual, pela posição que se tom a, se levou no mesmo

204 François Jullien


m om ento o outro: colocando-m e voluntariam ente
numa posição de retirada em relação aos outros, su­
primi toda pretensão dos outros a me contestarem ,
paraliso sua agressividade. “ Quem possui em si a
plenitude da capacidade é co m o a criança recém-
nascida” : torna-se inatacável (L Z , § 55 ). Ao co n ­
trário, quem exerce sua força e sua inteligência em
face dos outros incita os outros a fazerem o mes­
mo a seu respeito, ele próprio lhes forneceu arm as
e se oferece a seus golpes (cf. W ang Bi, § 4 9 ). D aí
este princípio que é estabelecido sob o aspecto mais
geral: o “cam inho do Céu” , que é o mais natural,
consiste em “conseguir vencer sem en frentar” (LZ, V en cer sem
enfrentar
§ 7 3 ); e o Laozi aplica esse princípio à estratégia:
um bom chefe de guerra não é “belico so ” , isto é,
com preende o com entad or (W ang Bi, § 6 9 }, não
busca tom ar a dianteira e agredir; em outras pala­
vras, “quem é apto a vencer o inimigo não trava
com bate com ele”, e é somente por essa “capacidade
de n âo-en fren tam en to” que se pode “em pregar a
força dos ou tros” .
M as com o pensar essa relação com o outro em
que se conseguiria derrotá-lo sem precisar com ba­
ter? O Laozi explica-o por uma série de form ula­
ções paradoxais, retirando a cada vez o complemen­
to de objeto interno ao verbo proposto (segundo o
modo do agir-sem -agir): “m archar em expedição”
“sem que h aja exped ição”, ou “ arregaçar as m an­
gas sem que haja braço”, ou “ instar ao com bate sem
que haja inimigo”, ou “manter firmemente em mãos
uma ausência de arm as” (§ 69). Isso significa “que
não há resistência devida ao co m bate” , acrescenta
laconicam ente o com entador. D esdobrando a fór­
mula: a pressão se exerce sobre o adversário — pois
há realmente pressão, tensão, am eaça — mas sem
se traduzir de m aneira ofensiva (inclusive se está
pronto a recuar), sem mesmo se m anifestar de ma­
neira pontual — ou seja, sem que se precise defron­
tar-se com o adversário, num lugar e num m om en­

Tratado da Eficácia 205


C om o parali­ to dados, durante uma certa expedição, pegando um
sar a resistência dia em arm as, lançando-se ao ataque. H á realm en­
n ão oferecendo
te “exped ição”, mas não expedição claram ente de-
nada de tangível
a que se op or
signável; há realm ente a atitude de “arregaçar as
m angas” , mas não corp o-a-corpo que venha a en-
carná-la — ou seja, há realm ente o gesto mas não
o objeto (individual e lim itado). Nada de tangível,
em suma, que oferecesse ao adversário a chance e
o suporte de uma ocasião, permitindo-lhe enfim to­
mar pé e se opor. Ele será derrotado sem ter podi­
do travar uma batalha — sem ter sequer encontra­
do o adversário: uma pressão se exerce, mas sem
jam ais se concretizar completamente (portanto sem
se reificar e se lim itar), sem que jam ais a tenham os
deixado focalizar-se num ponto ou num ob jeto de
disputa particulares, p o rtan to sem que ela possa
cristalizar resistência. Sem que o outro, nesse fur­
tar-se e nesse escoar con tín u os, tão lisos com o a
corrente d’água, jam ais tenha podido pôr a mão
sobre uma aspereza na qual se agarrar.
Ao acontecim ento da batalha, ele que faz bro­
tar a resistência, se opõe a continuidade de um de­
senvolvimento em que a força antagonista progres­
sivamente se dissolve: não tanto desgastada — pois
nisso haveria ainda um custo — quanto frustrada,
paralisad a, tornada vã e sem o b jeto . T ra ta -se de
“vencer dia após dia” , responde em eco o tratado
de diplom acia (G G Z , cap. 8, “M o ” ) “por um co m ­
bate constante [mas] que seja sem confronto” . Com ­
bate constante mas difuso, envolvente, e que se evita
travar ostensivam ente: o país “não despende n e­
nhum esforço” e os outros sequer percebem “com o
se subm eteram ”. Até m esmo o tratado de estraté­
gia m ilitar, em seu capítulo dedicado não obstante
ao “ataq u e” (SZ , cap. 3, “M ou gong” ), desacon­
selha enfrentar: “ O bter cem vitórias em cem bata­
lhas é o bem na ordem do não-bem ; mas conseguir
subm eter o inimigo sem precisar com bater, tal é o
m áxim o da excelência” . Assim, “os peritos na arte

206 François Jullien


da guerra submetem o exército inimigo sem travar
com b ate, tom am as cidades sem atacá-las e des-
troem o país adversário sem operações prolonga­
das” : no fim de contas, esse desenvolvimento pro­
gressivo é mais breve, para chegar à decisão, do que
uma série de batalhas, espetaculares por suas ações
brilhantes, mas que suscitam reações em cadeia, e
cujo resultado pode acabar se invertendo.

3. Uma imagem desse tratado m ilitar permite


conceber ainda mais precisamente de onde vem a
possibilidade do sucesso: “E em função do terreno O curso da
que a água determina seu curso; e é em função do água se determ i­
na em fu n ção do
inimigo que se determina a vitória” (SZ, cap. 6, “Xu
terren o, a vitória
sh i” ). Imagem a ser lida mais de perto. Pois ela não em fu n ção do
está aí para ilustrar algum princípio anterior, tam ­ inim igo
pouco será explicitada posteriorm ente: é nela, no
simples rigor do paralelo, que a teoria se ajusta e
se concentra. O u, m elhor, a idéia dela estava em
toda parte, mas é aqui que ela se estabelece. A água,
por si mesma, não tem form a própria: ela não ces­
sa de conform ar-se, ela evolui adaptando-se, e é por
se adaptar sempre que é sempre levada a progredir.
D o mesmo modo, vamos que é apenas se adaptan­
do ao adversário que se pode triunfar. A situação
do adversário está para mim assim com o o relevo
para a água: eu me am oldo a ela, sigo-a em vez de C o nform ar-se
co n trariá-la, em suma, não me enrijeço em nenhu­ co m o a água
ma forma mas me con-form o; e então a vitória é tão
irresistível, e irreversível, quanto a água em seu cur­
so: água que não se extravia, por ser levada a co r­
rer sempre mais para b aixo , e que jam ais hesita.
A forma da água “não está na água”, mas pro­
vém do relevo; do m esm o modo, “o potencial não
está em m im ” (Du M u), mas provém de meu adver­
sário. O u, m elhor, se não está em mim (eu me es­
gotaria), tam pouco está exatam ente nele, mas o ob­
tenho dele. O potencial, em outras palavras, não é
uma questão de forças, uma enfrentando a outra e

Tratado da Eficácia 207


D a c o n fo r ­ cada um de nós possuindo a sua; ele é o potencial
m a çã o vem o da situação, pela qual se consegue, ao longo de seu
p o ten cial
desenvolvimento, e sem precisar fazer esforço, co n ­
tinuam ente se fortalecer. Ele está na possibilidade
que a situação abre, com o o relevo deixa passar a
água, e que se explora, com o o faz a água, por sa­
ber correr nela. Assim, “corresponder ao adversá­
rio é que constitui o potencialx ” (M ei Yaochen) e
este se manifesta por aquilo que oferece à m anipu­
lação: se as tropas adversárias estão “exaltadas”, eu
as “ u ltrajo ” , se estão “cheias de an im ação” , eu as
“afro u x o ”; se o general está “cheio de sob erb a” , é
conveniente “hum ilhá-lo”; se é “cúpido”, “interes­
sá-lo” etc. (Li Quan). Por estar livre de qualquer dis­
posição, a água pode se valer da menor anfractuo-
sidade para avançar; do mesmo m odo, é na medi­
da em que me torno constantem ente disponível —
não apenas deixando de adotar alguma form a, mas
inclusive jam ais me estabilizando naquela à qual me
conform o — que posso me aproveitar da menor bre­
cha oferecida pela situação e continuar minha pro­
gressão. De uma maneira geral, é sempre a partir
do inimigo que concebo m inha estratégia: se somos
“dez contra um ”, convém “cercá-lo ”; “cinco co n ­
tra um ” , “atacá-lo ” , “dois contra um ”, “entrar em
com bate com ele”, se há “ igualdade de forças”, di­
vidi-lo, enfim, se estamos “em menor núm ero”, “fu­
g ir” dele e “evitá-lo” (SZ , cap. 3 , “M o u gong” ).
Assim co m o a Pois, assim com o a água contorna os obstáculos em
água co n to rn a os sua passagem, jam ais há interesse em resistir. “Se
ob stá cu lo s, não
o adversário em situação de inferioridade quiser
resistir
resistir, ele é presa do mais pod eroso.” Nessa lógi­
ca de um potencial que procede apenas da situação,
não há mais lugar para aquele excedente — gratui­
to — de esforço hum ano. O sacrifício é inútil, seu
heroísm o é mesmo perigoso.
Tam pouco há lugar para um plano traçado de
antem ão, e todo general tem o direito de desobede­
cer às ordens que recebeu, quando elas não mais

208 François Jullien


convêm ; não há outra exigência a não ser a da si­
tu ação, ela é, diríam os, a única instância: ao mes­
mo tempo aquilo que permite decidir entre “o que
convém ” e “o que não convém ” (SZ , cap. 3 , “M ou
gong”, cf. Jia Lin) e aquilo de que provém todo o
dinamismo. Assim tam bém , sabe-se que nada é pior
do que querer repetir o que anteriorm ente condu­
ziu ao sucesso: posto que a situação é nova, seu
potencial tam bém o é e o precedente está supera­
do. Se, inversamente, é “correspondendo à configu­
ração adversa” que se determina a vitória, esse po­
tencial é “inesgotável” (SZ , cap. 6 , “X u sh i” ), a
estratégia empregada não cessará de surpreender o
adversário e de derrotá-lo. Pois é nessa constante
con-form ação que ela encontra seu “im pulso”, essa
adaptação é “m o to ra” (M ei Y aochen, cf. o senti­
do de jF ). Isolada, ou dependendo principalm en­
te de si mesma, tod a disposição permanece relati­
vamente inerte, sua funcionalidade perm anece es­
parsa, não é mais tensionada; ao passo que, ajus­
tando-se ao outro, ela se mobiliza e se torna reativa,
sua coerência se intensifica, ela se m antém pronta,
em estado de alerta.

4. A co m p aração prossegue: assim com o a


água “não tem form a con stan te”, as tropas “tam ­
pouco têm potencial que seja co n stan te” (SZ , cap.
6 , “X u sh i” ). A água não sim boliza apenas o p o ­
tencial por sua capacidade de adaptação, ela o ilus­
tra tam bém por sua variabilidade. Pois compreen- A água, im a­
gem de v ariab ili­
de-se bem que, sendo a configuração adversa sem­
dade estratégica
pre levada, por pouco que seja, a se m odificar, tão
logo continuo a me coM-formar a ela, não cesso em
mim mesmo de me trans-form ar. As duas noções
devem ser distinguidas, pois, em bora se encadean­
do ( bian-huaz ), elas correspondem a dois graus di­
ferentes de implicação: enquanto a modificação que
o outro conhece, quando ela se ativa, é sempre ape­
nas pontual, eu mesmo devo me m obilizar toda vez

Tratado da Eficácia 20 9
completamente para reagir a ela e me adaptar; c, ao
transformar-me assim globalm ente por ela, renovo
me inteiramente a partir do interior e mantenho-me
dinâm ico. A ponto de que esse efeito que se mani­
festa continuam ente através do desenvolvim ento
não é mais, propriam ente falando, eficácia — a no­
ção se revela mais uma vez demasiado estreita —
mas se desdobra em “eficiência”: “ Ser capaz de se
transform ar em função das m odificações do adver­
sário de m odo a obter a vitória é o que se cham a a
[divina] eficiência” ( ibid .). Eficiência infinitam en­
te “sutil” e, com o tal, insondável, que se confunde
com a do fundo de im anência do qual não cessa de
proceder a grande renovação do m undo — a dos
“dias” e das “estações”: a mais “divina”, por seu
êxito, ao mesmo tempo que a mais natural.
Teríam os portanto que repartir assim o “cons­
tan te” e o “m utável”: na guerra, há uma “ló g ica”
constante mas o “potencial” não o éa ; do mesmo
m odo que a água tem uma “natureza” constante,
mas sua “ form a” não o é (W ang X i). Pois, se a n a­
tureza constante da água é tender para baixo , ela
não tem form a constante, já que é em função do
terreno que ela a determ ina; do mesmo m odo, se a
lógica constante, na guerra, é atacar os pontos fra­
cos, o potencial nela é constantemente mutável, por­
que depende do inimigo ao qual se responde e es­
ses pontos fracos não cessam de variar em função
Sem form a da situação. Por isso, não se pode modelizar a guer­
co n stan te: a ra, isto é, construir uma form a (eidos) que seja vá­
im possível m o-
lida a despeito da diferença dos casos: “ O ataque e
d elização
a defesa são infinitamente sutis, não se lhes pode dar
form a no nível do enunciado” (Li Q uan). Pois, se
se quisesse dispor a forma no enunciado, erigi-la em
paradigm a, perder-se-ia todo o seu potencial.
N a falta de poder modelizar o conflito, já que
ele é constantemente mutável, não resta outro “enun­
ciado” possível senão o da variável: em vez de cons­
truir uma teoria das form as, o pensam ento chinês

210 François Jullien


elabora um sistema das diferenças; ou seja, em vez
de empenhar-se em extrair traços com uns e que se­
riam mais ou menos fixos, mais ou m enos estáveis,
ele explora até onde vão as possibilidades da m u­
dança. Para ele, não se trata de identificar, em bus­
ca de essências, com o na esteira de nossa m etafísi­
ca, mas, antes, de inventariar (a título de recursos).
Por isso, após ter posto à luz a “lógica” única ine­
O ú n ico siste­
rente à guerra, esse tratado militar se ocupa apenas
m a possível é da
em traçar o quadro dos desvios: não dos desvios no variável
nível do que seria a aplicação de sua lógica, com o
se ela fosse abstrata e voltasse a se encarnar, o que
redunda no modelo (cf. os desvios e os atritos da
prática), mas dos desvios que a diversidade das si­
N esse caso , a
tuações encontradas oferece e que essa lógica úni­ unidade não p ro ­
ca atravessa, de lado a lado, e permite reunir em cede por uma
quadro e com parar. Isso é feito nos últim os cap í­ a b stração de es­
tulos do tratado, quer se trate das “Nove variáveis” sên cia, m as por
“co m u n ica çã o ”
ou dos “Nove terrenos” (“nove” não sendo lim ita-
através da dife­
tivo mas servindo de “ algarismo extrem o” — “que
ren ça e p o r “ lis­
vai até o extrem o da m udança” ): conform e o ter­ ta g em " dos casos
reno esteja “em nível inferior” ou “se preste às c o ­
m unicações”, ou esteja “separado de tu d o”, ou es­
teja “fechado”, ou seja “m ortal” etc.; ou, se dermos
a “terreno” o sentido mais amplo de configuração
antagonista: conform e ele seja “de dispersão” , “ fá­
cil” , “de co n fro n to ”, “de co m u n icação ” , de “con­
vergência” , “ pesado” , “ d ifícil” etc. Listadas para
poderem ser exploradas cada uma à sua m aneira,
essas diferenças o são tam bém , e sobretudo, para
fazerem perceber com o se passa de uma a outra: “Se
o general não compreende o proveito das nove va­
riáveis (tong b”’: vendo com o elas se com unicam en­
tre si), ele não poderá tirar vantagem da configu­
ração do terreno, por mais que a conheça” (SZ, cap.
8 , “Jiu b ian ” ).
Esse quadro não se constitui portanto em ver­
dadeira tipologia, seu objetivo não é dispor à parte
cada um dos casos (prova disso é que há interseções

Tratado da Eficácia 211


de uma lista para a outra), mas valorizar as possi­
bilidades de variação. Porquanto se sabe que não
há pior perigo, na guerra, do que imobilizar-se num
caso dado; que não há dano m aior do que estabe­
lecer regras e fixar imperativos para si mesmo: pois
estes enrijecem nossa conduta e nos impedem de
aproveitar a variação, da qual provém o potencial
(e o mesmo acontece em m oral). N ão há nada, in­
siste o tratad o, que se deva “manter a qualquer pre­
Pois o essen­
cial, em estraté­ ç o ” (sentido de bF’"; SZ , cap. 8, “Jiu b ian ” ): nem
gia, é sab er pas­ “arriscar sua vida”, tam pouco “ salvar sua vida”,
sar de um caso nem estar “pronto a se arrebatar”, nem querer per­
a o outro m anecer “puro” em sua honra, nem mesmo “amar
seu povo” (seus soldados). N ão que uma ou outra
dessas atitudes seja em si condenável; repreensível
é apegar-se a uma delas, porque se é arrastado por
ela a não mais concordar com a renovação da si­
tuação; ela conduzirá finalm ente, conform e os c a ­
sos, a ser “m o rto ” , “ feito prisioneiro” , “escarneci­
d o ”, “ insultado”, “constrangid o”. C om o o sábio
(cf. Conversas de C onfúcio, IV , 10), o estrategista
“não se fixa num p o n to ”; toda a sua arte é saber
variar de um extrem o a outro — tão amplamente
quanto o faz a realidade.

S. O co tejo entre a guerra e a diplom acia, sob


esse aspecto, é esclarecedor. Na guerra, a alterna­
tiva é atacar ou se defender, e na corte, “associar-
se” ou “separar-se” , estabelecer alianças ou rompê-
A diplom acia las (G G Z , cap. 6, “W u he” ); mas a lógica é a m es­
tam bém é uma
m a — a mesma que para todo cam po sujeito à p o ­
arte da variação
laridade, a exem plo da natureza: “De m aneira ge­
ral, quer se trate de tender para ou de ir contra, a
estratégia é adaptar-se: as transform ações se suce­
dem sem interrupção, a cada vez há uma configu­
ração dada com seu potencial particular: seja num
sentido ou noutro, é em função da situação que nos
determ inam os” . O diplom ata, com o o estrategista,
não se adapta apenas à situação, ele tam bém espo­

212 François JuLIien


sa sua variação: esposar significa que, “apoiando-
se” na “co n ju n tu ra” cuja “ adequação m om entâ­
n ea” ele percebe, bem com o no que está “crescen­
d o” ou “dim inuindo” nela, ele pode “antecipar-se”
à situação vindoura e “transform ar sua conduta de
acordo com ela” . Já que nada é estável, e sobretu­
do não “o que se tem com o ponto de h o n ra”, não
há nada a que o “sáb io ” (entenda-se aqui o diplo­
mata) esteja ligado para sempre, ou de que esteja
separado definitivamente; mas, com o “ associar-se”
a um implica “dissociar-se” do outro, ele vai de um
lado para o outro para sondar seu interesse e po­
der aderir em seguida, sem mais dúvidas, a quem
der mais (assim teriam feito os grãos-m inistros, na
m udança de dinastia). E , quando se está junto ao
príncipe, é tam bém “variando” que se busca pene­ U m sistem a de
trar em sua intimidade (G G Z , cap. 3 , “Nei qian ” ). variân cia substi­
Para isso servem todos os casos de variância que esse tu i tod o m odelo

tratado igualmente enumera e organiza sistem atica­


mente com o referências para a conduta: seja a p ro­
pósito das capacidades do parceiro (cap. 10, “M o u ” ),
das m aneiras de se “acercar” dele {cap. 8, “ M o ” ),
ou das m odalidades da fala em relação com os di­
ferentes tipos de situação (palavras “lisonjeiras” — O p ró p rio
discurso é c o n c e ­
“com placentes” — “resolutas” — “próxim as” —
bido em fu n ção,
“serenas” ; cap. 9, “ Q u an ” ). Enquanto, na G récia,
n ão de form as
a retórica elaborou listas de figuras, com o formas p róp rias, m as das
próprias ao discurso, esse tratado só concebe a di­ d iferenças de
versidade da fala em função de listas de circunstân­ situ ação
cias e de ocasiões.
Uma noção consagra essa im portância da si­
tu ação (qtian^ , cf. G G Z , cap. 9). Designando no
sentido próprio a balança e a operação da pesagem,
ela serviu para exprim ir tanto o poder, sobretudo U m m esm o
o político (quan I f ), quanto o que entendemos por sentido chinês:
b a lan ça, poder e
circunstância ou por expediente (quan-bian , quan-
circu n stân cia
m o u aquilo que, por sua variação, e opondo-se
à fixidez das regras (jing& }, permite à situação não
se bloquear, mas continuar a evoluir de acordo com

Tratado da Eficácia 213


a lógica do processo com eçado. O ra, o fato de es­
ses dois sentidos se juntarem no interior da mesma
palavra e serem am bos concebidos a partir do m o ­
vimento da balança faz pensar que só há determ i­
nação do real, ou, pelo m enos em últim a instância,
a não ser pela m aneira com o a situação pende para
Repensar o que um ou para outro lado: a “circunstância” é por onde
entendemos por
o real não cessa de m odificar-se para continuar a
“circunstância”
se desenvolver (noção de bian-tong^ ) ; e o peso do
poder não é senão a resultante de tal inflexão. En­
quanto, em nossa declinação do real, a circunstân­
cia só recebeu um estatuto acessório, relegada com o
está ao último caso da m orfologia e lim itando-se a
cercar ( circum ) a perspectiva hegem ônica do caso
sujeito (e de sua relação constitutiva com o objeto),
essa ininterrupção da variância, tão bem ilustrada
pelo curso da água, é entendida, na C hina, com o
aquilo que constitui o próprio curso da realidade;
C urso da água
e se, no século X X , a C hina acrescentou um novo
ou do real — sem
sentido à noção para traduzir a idéia nova de direito
form a fix a
que ela descobria no O cidente (cf. ren-quan1”: “di­
reito (s) do hom em ”; literalm ente, “poder do h o ­
m em ” ?}, percebe-se muito bem o quanto esse sen­
tido im portado, que se justificaria pelo fato de que
o direito tam bém deve levar em con ta a diferença
dos casos, continua sendo um revestimento aplica­
P o r isso, a do sobre a n oção — e m esmo contradizê-la-ia (e
China pensou o constatam os isso ainda hoje na vida política da C hi­
poder e n ão o na). Pois, enquanto o poder emana da situação, o
d ireito direito a transcende: este último implica o reconhe­
cim ento da pessoa, no plano dos valores, com o a b ­
soluto; e tam bém , no plano das funções, a de uma
autonom ia do sujeito.
O s gregos tam bém foram sensíveis à variável,
e mesmo ela chegou a ultrapassar, a seus olhos, toda
N a G récia , a
formalização possível. M as então ela escapa ao co n ­
infinidade da
trole. N a navegação, reconhece Aristóteles — e ele
variável co lo ca
em situação a associa nesse ponto à estratégia — , não há um
crítica o sistem a saber geral de todos os casos particulares, os ven­

214 François Jullien


tos que agitam as águas são m uito diversos para
poderem ser codificados. Segundo seu parentesco
m ítico, T u ché, a chance, o acaso, é filha de O cea­
no e de T étis; ela é irm ã de M étis, a astúcia. O ra,
eis aí o m otivo da água m enos desenvolvido na li­
teratura e no pensam ento da China antiga: o pilo­ A imagem
to sacudido pelas ondas e tentando achar nelas uma grega da água
ignorada pelos
saída, poros, rezando à divindade e usando de as­
chineses: o m ar
túcia com as correntes, está singularmente ausente
em que nos aven­
do horizonte chinês. D ecepcionado por ver seu c a ­ turam os
minho tão pouco seguido, Confúcio fala um dia em
“subir numa jangada de alto-m ar e sair ao largo ”
(C otiversas, V , 6); m as, a seu discípulo que o toma
ao pé da letra, ele não demora a retorquir que era
apenas um g racejo... N ão há verdadeiro alhures, na
China, para onde em barcar. Ao contrário da Grécia,
onde o m ar penetra a terra por todos os lados e a
fratura, e suas “costas” constantem ente móveis são
o plano onde não cessa de se descortinar uma aven­
tura — não apenas do m arinheiro, mas tam bém , à
sua imagem, do estrategista e do filósofo: em bus­
ca do R eto rn o e derivando para o desconhecido,
Ulisses já é, não o prim eiro filósofo, mas o pai da U lisses, pai da
filosofia. filo sofia

N a China, o mar cinge a terra ao termo de um


escoam ento natural, ao rés da inclinação. Ele não
convida à viagem , não inquieta nem tenta por seu
perigo — não exige desterritorwlizar o pensam en­
to. A im anência não se apresenta ali com o um “pla­
n o ”, o mar (“cortando o caos” , Deleuze), mas com o Plano ou fun­
do de im anência
um lastro (o da processualidade das coisas). Por isso,
o estrategista não se arrisca — e o sábio não duvida.

Tratado da Eficácia 215


X II.
E L O G IO DA FA C ILID A D E

1. D esta imagem banal do que não cessa de


desenvolver-se a nossos pés — da água que segue
as ondulações do terreno sem se deter, con form an ­
do-se para avançar — , seria infindável avaliar suas
repercussões num plano teórico. E inclusive, quan­
to mais banal é a imagem, menos se pode dizer tudo
o que ela implica. O pensamento chinês, porém, não
cessou de se inspirar nela para justificar o que é mais
difícil de dizer: a evidência, a “ facilidade” — o que C u rso da
se realiza, incessantem ente, sem se tornar fam oso água, co rp o do
d ragão
ou se fazer notar. Por isso, com o que para lê-la m e­
lhor, ele a projetou no céu, encam ando-a no corpo
em blem ático do dragão, cujos contornos mal trans­
parecem enquanto ele evolui, enrola-se e desenro-
la-se, ao sabor das nuvens.
Em concavidade e por com p aração , lê-se aí
particularm ente o seguinte: a água não tem consis­
tência própria, ou m elhor, tem uma consistência,
m as essa consistência não cessa de se am oldar e de
se transform ar, é por isso que não se desgasta nem
se desfaz, e que a água, definitivam ente, não a per­
de jam ais. D o mesmo m odo, se o dragão é a mais
m aravilhosa das criaturas, se apenas o sábio ou o
im perador se lhe com param , é que ele esposa tão
bem o curso do mundo que seu dinamismo é co n ­
tinuamente renovado. T an to a água com o o dragão
não oferecem form as definidas, fixas, tangíveis —
por isso, não cessam de ser anim ados. Em outras
palavras, preocupado em captar a capacidade inves­
tida nos processos, o pensam ento chinês desconfia
do que seria a autoconsistência e a visibilidade de

Tratado da Eficácia 217


um sujeito. N ão que esse sujeito seja declarado au­
sente, ou que seja ignorado, muito m enos que ele
próprio se negue ou se condene (ele tem claram en­
te em vista vencer), mas porque permanece liso, flui­
do, discreto.
Sabe-se disso, mas se torna ainda mais evidente
visto da China: o pensamento europeu se relê com o
a história da edificação progressiva, até sua explo­
são m oderna, de uma autoconsistência do sujeito;
A utoconsis-
cência do su jeito, ou, m elhor, se muito se falou do sujeito do conhe­
na Europa cim ento, talvez isso se perceba m enos do ponto de
vista da ação. V oltando em poucas palavras ao pre­
cedente balizam ento: desde A ristóteles e na esteira
das categorias elaboradas pela epopéia e pelo tea­
tro, vemos se instalarem , para fins éticos, os diver­
sos elementos do quadro teórico do que seria um
sujeito da ação , ao mesmo tem po seus referenciais
e seus critérios: as faculdades de “d esejo”, de “de­
liberação ”, de “escolh a”, e antes de tudo a distin­
ção do que é feito “ de plena vontade” ou contra a
vontade, indicam a gama de sua autonom ia — dis­
tinções que, com o constatam os, jam ais foram e x ­
plicitadas na C hina. Segundo tem po forte, no R e­
nascim ento, quando vemos aparecer, especialm en­
te em M aqu iavel, um aum ento desse im pério do
sujeito. Pois, renunciando a ver o ideal da ação na
contem plação de uma ordem das coisas, já que, a
seu ver, não há m ais ordem das co isas, o sujeito
m aquiaveliano entende im por-se ao mundo para
imprimir a sua: a virtü é, em face da fortuna, aque­
la capacidade de enfrentar a situação, que ele sabe
ser arriscada, para dar-lhe form a segundo seu p ro­
jeto. Em Clausewitz, enfim, quando o pós-kantismo
abandona a m oral, essa afirm ação do sujeito dian­
te da situação se condensa na força da vontade. A
Ela culm ina
“resistência” , resume Clausewitz, é o produto des­
na vontade
tes dois fatores conjuntos — a “extensão dos meios”
(as forças m ateriais) e a “força da vontade”; reci­
procam ente, quando submetemos o outro, é a von­

218 François JulLien


tade dele que “ jugulam os”. Inclusive, é com a sim ­
ples vontade que o estrategista pode co n tar, em úl­
tima instância, para sair da indecisão em que o mer­
gulha o caráter aleatório da situação (assim é pre­
ciso mais vontade, deduz-se, no nível da estratégia
que da tática): isso para fazer calar as dúvidas que
não deixarão de surgir em conseqüência da lentidão
e da dificuldade de “ex ecu ção ”, e para resolver o
problem a do “a trito ” .
Espantosa vontade... O pensam ento europeu
convergiu para transform á-la em capacidade de en-
frentam ento em face do m undo, para erigi-la em
poder do sujeito de se afirm ar e de (se) realizar. E
inclusive por ela que mais nos aproxim aríam os de
Deus, graças ao infinito que ela revela em nós (Des­
cartes); ela foi para o homem, em suma, sua maneira
de ser Deus. D epois, assim com o a Deus, o pensa­
m ento europeu a m atou (sua morte constata-se em
Freud, a derrubada opera-se em N ietzsche ou, pou­
co antes, em Schopenhauer, a vontade afirm ando-
se e negando-se neles) — , no entanto ele não pode
passar sem ela. O ra, o pensam ento chinês, por seu
lado, assim com o não procurou postular Deus, tam ­ In exp licitação
pouco explicitou a vontade, e isso se constata ta n ­ da vontade na
China
to em m oral quanto em estratégia. Para ele, a opo­
sição é entre o que se “fa z ” e o que se “pode”, não
entre o que se pode e o que se quer (cf. M Z , I, A,
7), tudo é força para ele, a interior tam bém (cf. a
n oção com um de //' ). Assim com o não explicitou
a vontade, tam bém não concebeu o direito ou a li­
berdade, isto é, não buscou pensar a pessoa isolan­
do-a e abstraindo-a da situação, para afirm á-la c o ­
mo sujeito (de ação): em vez de culm inar na ex al­
tação da pessoa, o ideal que ele preconiza é dissol­
ver-se no m undo, a ponto de parecer não mais in ­
tervir nele (cf. o não-agir), e fundir-se em sua pro-
cessualidade para ser bem-sucedido.
“Ele se conhece mas não se m ostra”, diz o h o­
mem do “cam inh o”, do tao, o Laozi (§ 72 ); ele “se

Tratado da Eficácia 219


am a” (ai^ ou seja, zela por sua pessoa) m as “não
se preza”. Assim, o pensam ento chinês se recusa
tanto à valorização do sujeito quanto a seu avesso
ascético (que cam inha junto com ela, o do “eu des­
prezível” ). C om o acontece com freqüência nesse
pensam ento, é por meio da nuance que se percebe
o essencial: do homem do “cam inho” dir-se-á, tam ­
bém , que ele “ ilum ina” mas “não b rilh a” (§ 5 8).
Pois ele tende antes a suavizar e a “harm onizar” a
luz à sua volta, uma vez que sabe que apenas aque­
le que não se valoriza pode escapar ao confronto (cf.
W ang Bi). M elhor ainda, ele sabe que o que se m a­
O que se nifesta com o virtude ou com o capacidade só se m a­
m anifesta co m o
nifesta assim para reparar uma falta, e essa deficiên­
virtude tra i uma
deficiência
cia exige ser compensada pelo m érito e pela proe­
za com o excedente de esforço e de efeito (cf. § 1 7 ,
18): que tudo o que se separa e se individualiza co ­
mo qualidade não é senão uma saliência m om en­
tânea que, com o tal, jam ais é com pletam ente adap­
tada (caso con trário, confundir-se-ia com o curso
do mundo e não se veria); em tro ca, essa qualidade
que valoriza o sujeito faz obstrução à regulação dos
processos que é a única a assegurar o pleno regime
da eficácia {enquanto eficiência; cf. § 19): as m an i­
festações de virtude ou de capacidade não passam
de acessos-excessos, de arrancadas ou de erupções,
que produzem tanto mais sensação quanto menos
se integram à realidade. Por isso, o sábio/estrategista
é um hom em sem qualidades. Se operam os a tem ­
po, quando a configuração antagonista ainda não
se form ou, com o a estratégia não cessa de recom en­
O ideal é quan­
dar, com o vim os, vencemos sem que ninguém se dê
do o efeito passa conta disso, e o outro se submete sem que haja ne­
despercebido cessidade de co rrer sangue (SZ , cap . 5 , “X in g ” ).
Pelo m enos, esse é o “cam inho” — pois também há
carnificinas na C hina... M as é justam ente a não-
batalha, o não-enfrentam ento, o não-acontecim en-
to , ou seja, o com um , em sum a, que preocupa o
pensamento chinês e que ele pretende explicar. Pois

220 François Jullien


é no com um que repousaria o ideal (o da proces-
sualidade; cf. especialmente Z Y , § 11): quando não
há mais nada a louvar nem mesmo a ver, quando
não há vestígio de façanha e isso passa despercebi­
do (“isso” : que não se saberia portanto particula-
rizar, e assim permanece indiferenciado); quando a
“sagacidade”, em seu auge, não precisa m ais “bri­
lh ar” (M ei Y aochen), nem o “m érito” , de tão gran­
de que é, “se m anifestar” .

2. Assim, sob as velhas clivagens que fizeram


a história da filosofia, pelas quais ela se form ou mas
nas quais não se reconhece mais inteiram ente hoje,
clivagens não resolvidas nem assim iladas — quer
tenham sido concebidas do ponto de vista do “co ­
nhecim ento” (do gênero: a matéria e o espírito) ou
da “ação ” (a liberdade oposta à necessidade) — , per-
filar-se-ia uma outra que ao mesmo tempo as reto­
ma e as desloca: sujeito ou situação. Ela as recorta e
as confunde (prova está que se revela sempre vão, a
despeito dos esforços feitos recentemente na China,
apresentar o pensam ento chinês tanto em term os de
materialismo quanto de idealismo; e, do mesmo m o­
do, ele não pode ser rotulado de determinista, já que
não topou com a liberdade). A alternativa que ve­
mos aparecer seria antes a da instância que se esta­
belece no ponto de partida da realidade. Assim, em
vez de postularem um Deus, ao mesmo tempo com o
arquétipo e com o exaltação do sujeito, os chineses
procuraram com preender o real a partir da tensão
que se manifesta na menor situação e da qual decorre
É a situ ação
sua evolução. “Um yin — um yang (ao mesmo tem ­ que é determ i­
po yin e yang), é o que se cham a o cam inho, o tao”, n an te, por sua
resume o pensamento chinês (Zhuyi , “X ic i”, A, 5). polaridade
O tao, o “cam inho” , que é o termo último do pen­
sam ento, não consiste ele próprio em nada mais se­
não a relação ininterrupta desses fatores — yin e
yang, ou seja qual for o nome que lhes demos — que
constituem a situação com o polaridade.

Tratado da Eficácia 221


De im ediato, isso leva a repensar o que é uma
“situação” . Pois ela não se reduz a ser o conjunto
das circunstâncias nas quais um sujeito se encontra,
com o a definimos geralm ente: ela não é com o um
quadro onde viria inserir-se sua ação, ou com o um
meio onde se exerceriam suas capacidades; não se
contenta em revestir e em exaltar o sujeito. Nem tela
(sobre a qual se p ro jetariam suas faculdades) —
tam pouco estojo. Foi visto que, se som os covardes
ou corajosos em com bate, isso não se deve ao fato
de possuirmos ou não essa qualidade, mas ao fato
de a situação nos fazer reagir assim. “A covardia [de
um] nasce da coragem [do o u tro ]”, assim com o “a
desordem [de um] nasce da boa ordem [do o u tro ]”
(ou a fraqueza de um nasce da força do outro) (SZ ,
cap. 5, “ Sh i” ). A coragem é não apenas o resulta­
do e mesmo o produto da situação (o antagonism o,
na guerra, form ando a polaridade; por isso, o pen­
sam ento chinês, pensando o real sob o ângulo da
polaridade, se predispunha à estratégia); porém ,
mais ainda, e com o o dá a entender este paralelis­
m o, ela não se separa essencialmente desses aspec­
tos “objetivos” que são a relação de força ou a boa
ordem. Quem é hábil no com bate, conclui o tra ta ­
A vitória deve
do, busca o sucesso no potencial da situação “em
ser pedida n ão
vez de pedi-lo aos homens que tem sob seu com an ­
aos hom ens, mas
à situ ação d o ” : sua arte consiste em “apoiar-se no potencial” ,
e ele “escolhe seus hom ens” em consonância com
isso.
Em segundo lugar, uma situação jam ais é imo-
bilizável — ela não é um lugar, um sítio. T rab alh a­
da com o é por sua polaridade, sua configuração está
em constante transform ação, ela não cessa de ser
orientada por uma propensão. Dos dois fatores que
se respondem, um cresce quando o outro decresce,
e a regulação nasce dessa com pensação contínua;
ao mesmo tem po que um obtém seu potencial da
relação com o outro e se renova nele: o que desa­
parece reaparecerá de outro modo e, sob o nome de

222 François Jullien


situação, estam os sempre lidando apenas com mu­ Situação —
tações. “Um yin — um yang (ora yin, ora yang), evolu ção

pode-se também dizer, é o que se cham a o cam inho,


o tao”: fruto dessas interações sem fim, o “cam i­
n h o ” que o real segue em seu advento, e que o es­
trategista esposa para vencer, não deixa de ser ló ­
gico, mesmo através do que pareceriam ser “crises”,
mas é sempre inédito.
Resumindo a diferença: ou construímos uma
form a-m odelo que projetam os sobre a situação, o
que implica imobilizá-la momentaneamente; ou nos R e to rn o à
apoiamos na situação com o numa disposição acerca clivagem
da qual se sabe que não cessa de evoluir. D isposi­
ção que funciona com o um dispositivo — mais uma
vez, o term o deve ser deslocado. Pois, em bora com
vocação estratégica, tal dispositivo não deve ser to­
mado no sentido militar que lhe foi dado entre nós
(“ um conjunto de meios dispostos de acordo com
um p lano” ), m as, sim, com o o que descobrimos em
seu avesso: uma certa configuração que se oferece
à m anipulação e que por si mesma é produtora de
efeito. Desse dispositivo, o pensam ento chinês fo r­
neceu uma imagem em blem ática: a porta (rnetè ,
de dois batentes). Frente a frente e com suas respec­
tivas dobradiças, os dois batentes remetem à pola­
ridade inerente a toda situação; ao mesmo tempo
em que, considerada globalm ente, a porta é o que
não cessa de alternar, de se “abrir” e de se “fechar” , Im agens de
tam bém é por ela que se exerce um controle e que dispositivo: a por
se pode deixar passar. D e seu dispositivo, em suma, ta, a d obradiça

proviria a possibilidade de um curso regulado (ao


mesmo tempo a possibilidade do curso e a da regu­
lação). É por ela que passa o suceder infinito do real
— suceder “ insondável” , em constante renovação,
é dito no início do Laozi (§ 1). Imagem últim a, ou
antes prelim inar, e que rem onta ao mais alto para
instaurar a coerência; pois a própria natureza de­
veria ser concebida com o uma “p o rta” : seja a da
Fêmea obscura, por onde não cessa de vir a vida (§

Tratado da Eficácia 22.


6 ), seja a do Céu, cuja alternância de “abertura” e
de “fecham ento” é preciso esposar com o “fêm ea”
— ao invés de pretender arrogar-se de saída a in i­
ciativa — para deixar advir o efeito (§ 10, Wang Bi).
Do mesmo m odo, é dito com o preâm bulo ao
tratado de diplom acia (G G Z , cap. 1, “Bai h e”, iní­
cio), “considerando a abertura-fecham ento do yin
e do yang, de maneira a nom ear e determinar o qui­
nhão de todos os existentes” , o sábio/estrategista
“conhece a porta da vida e da m orte” , do “sucesso
ou do fracasso ” . C onhecim ento que não é teórico
— já que o êxito estratégico consiste em “guardar”
essa porta: se som os capazes de sim ultaneam ente
“calcular o fim-início de c a d j espécie” e de “apreen­
der a lógica interna à consciência hum ana”, ou seja,
se compreendemos a coerência interna à regulação,
“percebem os os sinais precursores de m udança” e
podemos “controlar a p o rta” do sucesso. Com efei­
to , a porta não cessa de ir num sentido ou no ou­
tro , e é cada movim ento num sentido que possibi­
lita o outro em sentido inverso. Por isso, “ab rir” e
“ fech ar” é ao mesmo tempo a m aneira com o pro­
cede a “transform ação” natural, pela alternância do
yin e do yang (cf. a renovação do dia e da noite, das
estações), e com o se deve operar a “m o d ificação ”
em nossa relação de palavra (diplom ática) com ou­
trem 01 : não é a própria “ b o ca ” uma espécie de
“p o rta ” (a da con sciên cia), já que é tam bém um
órgão ao mesmo tem po de “ passagem ” e de “ b lo­
qu eio” ? O utra imagem reduzida desse dispositivo:
a “dobrad iça” ou o “e ix o ” em que a porta está fi­
xada mas que, por isso mesmo, lhe permite girar (cf.
G G Z , cap. “Chi shu” ). “M anter a posição da d o­
bradiça, explica o com entador, é ocupar o centro
para fazer virar para fora, residir na proximidade
para reger à d istância.” A dobradiça, com efeito,
não se m exe — com o o sábio — , não é valorizada
e nem sequer a vem os, mas é a partir dela que, sem
oferecer atrito ou resistência, o resto se deixa girar.

224 François Jullien


Por aí reencontram os a metis. O que caracte­
rizava a metis, dizem M areei Detienne e Jean-Pierre
V ernant, para explicar que a noção dessa inteligên­
cia astuciosa, percebida na aurora do pensamento
grego, não pôde mais tarde ganhar consistência teó­
rica, é precisamente “operar por um contínuo jogo
de b áscula, de ir e vir entre pólos o p o sto s” (Les
Ruses de Vintelligence [As artimanhas da inteligên­
cia], p. 11). Se a metis se viu precocem ente evacua­ A C h in a per­
da do pensam ento e mesmo da língua gregas, é que m itiria esclarecer
o pensam ento grego, com o se sabe, acabou por de­ a metis, cu ja
finir “dois planos de realidade que se excluem m u­ teoria o pensa­
tu am en te”: de um lad o, o dom ínio do “se r” , do m ento grego não
pôde fazer
“uno” , do “ im óvel”, do “lim itado” , do “saber reto
e fix o ” ; do outro, “o dom ínio do devir, do m últi­
plo, do instável, do ilim itado, da opinião enviesada
e flutuante” (ibid.). Clivagem talvez um pouco es-
quem ática, mas que serviu de base à nossa m etafí­
sica: o cam inho estaria barrado à metis pela opção,
feita pela filoso fia, de pensar por essências e por
antinom ias. Revelam -se assim ainda m elhor, por
contraste, dois aspectos pelos quais a inteligência
chinesa se predisporia à estratégia: além da polarida­
de sob cujo ângulo ela percebe todo real, sua cons­
ciência aguda do ir-e-vir entre um e outro — pelo
fato de um im plicar o outro e de um se transform ar
no ou tro (sentido de fan-fun cf. especialm ente
G G Z , cap. 2, “Fan ying” ): inversão com pensadora,
mas que por isso m esmo não cessa de ser inovado­
ra, e que, se nada tem de “dialética”, apesar do que
dizem dela hoje os chineses para fazê-la reconhecer
pela filosofia, seguramente favoreceu, pelo que re­
vela da reatividade dos fatores em jogo, uma ab o r­
dagem situacional — ao mesmo tempo contextual
e predisposicional — daquilo de que nos prevale­
ceríam os com o a “eficácia” de um sujeito.
A partir da construção de um m odelo, a úni­
ca relação que se pode m anter com o futuro é da
ordem da projeção (devendo o que escapa ao pro­

Tratado da Eficácia 225


jeto ser rem etido ao dom ínio do acaso ou da so r­
te); se partim os do potencial da situação, em tro ­
ca, a relação com o futuro é de antecipação: seguin­
P ro jeçã o ou
an tecip ação do a curva reguladora de sua evolução e detectan­
do na situação atual a ativação da transform ação
vindoura, adiantamo-nos, logicamente, a seu desen­
volvimento. P ortanto, em vez de buscar ler signos
no universo, de interpretar seu sentido e de fazer uso
de seu sím bolo, em vez de se com portar com o her-
meneuta, em suma (estando nossa hermenêutica as­
sociada nas origens com a adivinhação), o estrate­
D iferen ça no gista está atento aos menores indícios — pródromos
estatu to do signo: de uma m odificação (cf. noções de zben, zhao°'";
sim bólico ou
G G Z , cap. 1). O que remete a um a diferença de
p recursor
fundo, entre a China e a G récia, no estatuto do in­
visível: o invisível da form a-m odelo ( eidos ) é um
invisível da ordem do inteligível — o do “o lh o ” do
O invisível espírito, da teoria; enquanto o invisível pelo qual se
co n ceb id o co m o
interessam os chineses é o ainda não visível do fundo
o inteligível ou o
indiferenciado, a m ontante dos processos: entre o
aind a não visível
invisível e o visível, as fases do “ sutil” e do “ínfi­
m o ” (iveP ) perm item assegurar a transição, e é
nelas que o estrategista se apóia para se orientar. Por
isso, em bora sabendo que não dispõe de regras ou
de norm as para codificar o futuro, já que o curso
da realidade está em constante inovação, ele está
livre de angústia em relação a ele (isso dito em sen­
tido oposto à nossa última moda ideológica — a da
"in certeza” , das “turbulências” e do “c a o s ”...).

3. D o lado chinês, tudo levaria a concluir por


um elogio da “facilidade”. Enquanto, do lado eu­
ropeu, foi mais o difícil que se valorizou, e o efeito
esperado é proporcional à dificuldade abordada. Tal
é, de fato , a prova da “ fundação”, em M aquiavel:
o príncipe novo adquire sua soberania com muita
E logio do
dificuldade, pois “nada é mais difícil, nem de suces­
heroísm o e do
difícil so mais duvidoso, nem mais perigoso de executar,
que a introdução de leis novas” (Príncipe , V I), por­

226 François Jullien


tanto ele enfrenta inicialm ente grandes obstáculos
e “perigos a cada passo”; mas a seguir conservará
essa soberania com tanto m aior facilidade. A difi­
culdade enfrentada no m undo não permite apenas
im prim ir mais vigorosam ente nele a m arca de seu
p rojeto, ela é fecunda tam bém por si mesma, é por
ela que o príncipe se eleva à grandeza, devendo de­
m onstrar um excedente de capacidade — capacida­
des que de outro m odo ele jam ais teria m anifesta­
do, das quais inclusive jam ais teria suspeitado. Para
vencer o obstáculo, será preciso superar-se: sempre
a exaltação de um eu-sujeito e o heroísm o da pes­
soa. A lição se repete em Clausewitz: “Q uase não
há façanha gloriosa que não se realize à custa de es­
forços infinitos, de sofrimentos e de privações” {Da
guerra, III, 7); poder-se-ia mesmo estabelecer com o
lei que a eficácia é proporcional à dificuldade, com o
a surpresa permite avaliar: “E evidente que o que a
surpresa ganha em facilidade, ela o perde em eficá­
cia , assim com o esta aum enta no sentido inverso”
(ibid., III, 9).
O ra, nesse ponto, os pensadores chineses to ­
m aram explicitam ente o partido contrário. Quem
é avisado, lê-se no tratado de diplomacia (G G Z , cap.
1 0 , “M o u ” ), “gere” as coisas e as situações “ na
O u da fa cili­
facilidade” , “adm inistra” sem dificuldade, poder-
dade
se-ia dizer; enquanto quem não o é “gere” — “ad ­
m in istra” — “na dificuldade” . N ão que o sábio/
estrategista despreze ou subestime as dificuldades;
ao con trário, ele está muito atento com relação a
elas (cf. L Z , § 63). M as ele sabe, segundo o ensi­
nam ento do Laozi, que, com o todos os outros pa­
res de opostos, o fácil e o difícil, longe de serem
antinôm icos, “fazem advir um ao o u tro ” (LZ , § 2):
em vez de serem dois estados irredutíveis, e mesmo
excludentes, são duas etapas consecutivas do des­
dobram ento do real — das quais uma conduz à ou­
tra, das quais uma é “já ” a outra: do mesmo m odo,
o “fundo indiferenciado” e a “atualização concre­

Tratado da Eficácia 227


ta ” “se engendram m utuam ente” (em vez de se opo­
rem categoricam ente, com o o fazem o ser e o não-
ser), ou o “an tes” e o “depois” “se seguem um ao
o u tro ”, em vez de serem independentes. Posto que,
nessa lógica processual, tudo não passa de transi­
ção e desenvolvimento, a estratégia consistirá em
A bo rd ar a abordar a situação no estágio em que ela é fácil, para
situ ação n o está­
deixar-se levar em seguida, pelo desdobram ento da
g io em que ela é
lógica im plicada, até o da dificuldade. O sábio/es­
fácil p ara se
d eix ar levar até a trategista encara e “p lan ifica ” a dificuldade “no
dificuldade estágio da facilidade”, é dito, do m esmo modo que
“realiza grandes coisas no estágio em que elas são
ainda ínfim as” (L Z , § 63 ): assim, “ as coisas difíceis
de fazer no m undo devem ser empreendidas no es­
tágio da facilidade, do mesmo m odo que as gran­
des coisas no mundo devem ser empreendidas no
É d o ínfim o estágio de sua infim idade” . Pois é do ínfim o que o
que vem o efeito sábio espera o efeito (cf. Z Y , § 1 4 , 15). Portanto,
ao invés de enfrentar diretam ente a dificuldade, ele
aborda a situação situando-se no ponto de partida
da evolução que a fará desenvolver-se no sentido
desejado; do mesmo m odo, ao invés de realizar de
saída grandes façanhas, começará por uma interven­
ção m ínim a, que não se percebe, mas que, por aqui­
lo que espontaneam ente produz, a título de con d i­
ção , perm ite posteriorm ente a lcan çar os m aiores
resultados.
Ele não “faz” nada, em suma, não em preen­
de nad a, sem que a situação que aborda esteja pre­
parada: o que é estável, que está em repouso, con s­
tata-se, “é fácil de segurar”, o que é frágil “é fácil
de qu ebrar” (L Z , § 64 ). V ale dizer que, para com e­
çar a tom ar em mãos e segurar, será preciso primeiro
ter chegado a essa estabilidade; ou que, para pen­
sar em quebrar, será preciso prim eiro ter advindo
essa fragilidade. Tod a a arte está nessa capacidade
de predispor (o outro ou o mundo: por exem plo,
Predispor a predispor o outro a “escutar”, ou a ser derrotado
situ ação p ara etc.). Por isso, intervindo m anifestam ente apenas

228 François Jullien


para responder à inclinação das coisas, o sábio/es­ to m á -la propensa
a m anifestar o
trategista não “faz” nada de “d ifícil” ; e, com o se
efeito
contenta em ativar discretam ente processos que se
desenvolverão sozinhos, ele tam bém não faz nada
de “grande” . M as é por isso mesmo que tem con ­
dições de realizar o que finalm ente “ será grande” .
O que a arte m ilitar ilustra: o bom general
“vence quando/onde é fácil” (SZ , cap. 4 , “X in g ” ).
O b ter vitórias
Pois, com o foi visto, ele “só ataca o que pode ser
fáceis
vencido” (C ao C ao). Enquanto espera, ele dispõe
— desde cedo — as condições do sucesso; pois é
“rem ontando” ao estágio mais “sutil” da determ i­
nação das coisas que obterá a seguir “a vitória fá­
cil” . Q uando ainda não há senão “indícios” do con ­
flito, “evoluo de maneira subterrânea” , secretamen­
te, para atacar os projetos do adversário: conside­
rando que, nesse estágio, “a força empregada é fra­
ca ” e que “o que determina a vitória é ínfim o”, “po­
de-se dizer então que a vitória é fácil” {Du M u).
V oltam os logicam ente ao potencial de situa­
ção — e doravante mais nenhuma chance de des­
vio, ou mesmo de digressão, é possível, não há mais
nada a dizer, só se poderá repisar a evidência: “ Se
utilizam os os homens em função do potencial de A facilidade
vem do potencial
situação, é fácil; enquanto o que exigim os deles re­
de situação
correndo à força, é d ifícil” (SZ , cap. 5 , “Shi” , M ei
Y aochen). Basta obter esse potencial para que “a
vitória venha naturalm ente”, não há mais necessi­
dade de exigir “especialm ente” alguma coisa (He
Shi): por pesadas que sejam toras de m adeira ou
pedras, é fácil, graças à encosta, fazê-las moverem-
se, “ ao passo que é difícil, pela força, deslocá-las” .
E o argum ento vale tam bém para os teóricos do
despotismo (H FZ, cap. 3 4 ): é fácil fazermo-nos obe­
decer se nos apoiam os no potencial de nossa posi­
ção , ao passo que isso é difícil se contam os com o
m érito ou os bons sentim entos.
M as os próprios m oralistas não aceitariam a A m o ral tam ­
crítica, já que tam bém eles afirm am que o cam inho bém se prevalece

Tratado da Eficácia 229


da facilidade do que preconizam , que conduz ao sucesso pela virtu­
sucesso de, é o mais fácil de chegar ao êxito. Para tirar pro­
veito da facilidade do resultado, nesse fim de Anti­
güidade, todas as escolas juntam-se em coro. O erro
dos hom ens é “buscar o cam inho longe quando ele
está p ró xim o ”, diz M ên cio , “ buscar no plano do
difícil o que em realidade é fácil” — e por isso eles
fracassam (M Z , IV, A, 11). Ao passo que, se par­
tissem do mais simples e que está na base da evolu­
ção das coisas, e deixassem a seguir esse efeito di­
fundir-se e propagar-se, poderiam fazer o mundo
girar “na palma de sua m ão ” (M Z , 1, A, 7): basta­
ria que os hom ens se conform assem à ordem das
coisas, tal com o está ao alcance deles, “tratassem
com o próxim os os que lhes são próxim os”, “tratas­
sem com o mais velhos os que são mais velhos que
eles” , o que em verdade não significa obedecer a
regras, o que nem mesmo é prescritivo, posto que
é evidente (isto é, perm aneçam os na tau tologia),
“ para que o mundo inteiro vivesse em paz” . Além
disso, quanto mais duros forem os tempos e mais
sujeito à violência for o mundo, tanto mais sensí­
veis são os homens ao menor traço de hum anida­
de: tanto mais estariam dispostos a correr ao encon­
tro de um príncipe que fosse menos cruel e, alinhan­
do-se com ardor sob sua autoridade, em breve o
fariam garantir seu sucesso5' (M Z , II, A, 1).
À figura de Hércules, que a G récia celebrou
com o o homem dos trabalhos perigosos e difíceis,
o herói do ponos [fadiga], a China ofereceria um
H ércules ou
equivalente na figura de Y u , o G rande. N o tempo
Y u , o G rande

* M ais significativo ainda: o Clássico da mudança IYV-


king ), que é o livro de fundo do pensam ento ch in ês, poderia
ter seu títu lo traduzido igualm ente por “ C lássico da facili­
d ade” , pois y; significa a o m esm o tem po “ m ud ar” e “ fá c il” :
o que leva a pensar que a m udança se opera sem pre na rea­
lidade seguindo a linha de m enor resistência (com o a água),
por onde é m ais fácil avan çar; cf. figuras da im anência , E d i­
tora 3 4 , 1 9 9 7 .

230 François Jullien


do dilúvio, quando as águas cobriam a terra e os
m onstros a ocupavam , quando os hom ens não sa­
biam mais aonde ir, o grande Yu escavou o leito dos
rios e, conduzindo a água até o m ar, tornou a terra
habitável (cf. M Z , III, B, 9). M as justam ente, espe­
cifica M êncio, para evacuar a água, Y u a fez escoar
por onde “ isso não lhe causasse o bstácu lo ”, valen­
do-se da encosta e sem esforço, e é nisso que ele nos
dá uma lição (ibid ., IV, B, 2 6 ): “ O que detesto nas
pessoas pretensam ente avisadas é que elas não ces­
sam de ‘furar’ e de ‘forçar’, fazem violência à natu­
reza e acabam por se atrapalhar” . O ra, mesmo pa­
ra pôr fim ao dilúvio, o grande Y u não forçou, ele
levou em conta a situação (o relevo que se inclina
em direção ao mar), apoiou-se na propensão — sem
enfrentar.
N isso, obviam ente, há um custo. Um custo a
respeito do qual é desesperador constatar que o pen­
sador chinês, de qualquer tendência, não parece se­
quer suspeitar: pois, ao enfrentarm os o mundo, nos
em ancipamos dele, não apenas fornecemos um ma­
terial à narrativa heróica e ao júbilo do sujeito, mas
também, por meio da resistência, abrimos um acesso
à liberdade. Principalmente, há tudo o que essa con ­
cepção tão coerente m atou. E nós mesmos, à força
de seguirmos essa coerência e de nos deixarm os le­
var por ela, a ponto de não podermos mais livrar-
nos dela, a ponto m esmo de nos cansarm os de evi­
dência, esqueceríam os quase tudo o que, nesse per­
curso, foi deixado de lado: sob o “su jeito”, o infi­
nito da subjetividade, a p aixão , obviam ente, e o
prazer do dispêndio, um “outro” sobretudo que seja
verdadeiram ente um outro enfim (que esteja por
“ d esco b rir” , e não sem pre esse “o u tro ” pólo do
parceiro/adversário). E cabe aqui pensar em H ér­
cules, subindo em sua fogueira, feliz por ter-se ex ­
tenuado por nada...
Im aginam o-lo replicando ao estrategista: “—
E se não apenas o m aior prazer, m as inclusive o

Tratado da Eficácia 231


maior ‘proveito’, com o você diz, fosse perder e não
ganhar (perder realmente — para sempre, para e x ­
perim entar esse valor do sem pre, com o Sísifo ou
Prometeu — e não para que essa perda, graças aos
ricochetes do real, se converta em ganho)? E se a
melhor maneira de se sentir viver — fora do mun­
do, enfim — não fosse a eficácia, mas exatam ente
seu co n trário ?” C aberia então reescrever o ensaio
em sentido oposto. Ele se cham aria: elogio da re­
sistência — ou da não-tolerância ao real, do con-
tra-efeito.

232 François Jullien


G L O SSÁ R IO DAS E X P R E SSÕ E S C H IN ESA S

a) Xing ; shi \

b) Yottg li shao er de gong duo j f ] 'Jf rüí ^

c) X iao ; ji - $ f

d) Ji li yi ting, nai wei zhi shi, yi zuo qi tvai

i t 4'} A
e) Bing fa wu ding, wei yin shi er cheng

f) Li sbi er zhi shi

Shi zhe, li hai zhi ju e

g) Shi hu d e yi ^ T ' 4^- £-


h) Bu qiu er de % . ib

i) Ze

j) Bu te % .

k) Bi

1) Fan qi ben J Á .J L

m) Yong e ti

n) Hua - í í ,

o) Bu jian er zhang

p) Wu wei er cheng

q) Jiu er hua cheng (5> - f t .

r) W a fang jjL ~j£

s) Zhu shi ri cheng er ren bu zhi ^ S ifo A »

Tratado da Eficácia 233


t) /('(' ip

ii I J t i b i s h i

V) Jl wei zbi juv

W)P i, ; usei J L e wei í & .

x) J i w ei zhi dong zi wei zbi zhu

y) Zhi yu ivei zh ao , cba yu wei xing - £ a " f yh i f í

z) Bi xun jian er dong i>Ü' jfjj <íp ^ f}

a ’ ) Tui /ian fg J

b ! l Sbengren yi wu wei dai you de

c ’ ) Cf. Bi yu shen qi bian bua

d’ ) Bian hua wu qiong, ge you suo gui

e ’ l M o bua

f ) Wu w ei er wu bu ivei _ & &3 'T ' ,%}

g’ ) Bu gan wei X ' f K %}

h') Wei zbe bai zhi J í j

i’ ) Shi - wei - zhi - ge

j ’ ) Y w g ) — w ei £

k ’ ) Tian xia shen qi ^ ^

1’) Wei wu wei JSfj _^S.

m ’ ) Wei er bu zbeng J í * * %

n ’ l Ziran &
** «t»e»%
o ’) Xi yan zi ran

p ’ ) You de wu zhu 4 & & JL

q ’ ) X uan - J *

r ’ J Cbeng Í & > ren yi-~

s’ í You , wu _ á L

c’ ) Gui

13 4 François Jullien
u’) Shun , yin {í]

v’ ) Ying

w’) Ying yu w u fan g A - f J s - á r

x ’ l G u o er bu d e yi

y’) K on g 'JP , xu

z’l V\7k J L

a” ) Tong

b”) Shen

c” ) M ou zhi wu g o n g zhi shi U £ --& t/l i - f y

d” ) E t

e” l G u jf]

f”) Fang sb i er ni qi z h on g - i ê tÍ7 $4-

Wei ru er tu q i chu X - fifj ^ _ j L i

g” ) Yong f l por relação a ti

h”) Ga«

i”) Xwn re«, zang zí>« vo«g "$& $1

i” ! Yi em wu yi w ei JÍS-, ►'/. ^ , >'oh yi «'e/ v'/l ^

k” ) G o«g bu k e qtt, cban g chu qi mu j f ) 3 J jj| X ,

1” ! Wei zhi yu ivei you 3t_ - í s|L ^

m" )P u

n” ) X iang oposto a ji

o ”) Bu yi J«Hg zhi w u VÁ

p”) Shen

q”) W« ^
r” ) Xing zbi, d i b i con g zhi

s” ) Xing ren er w o wu x in g A . iÍ J ^

t” ) Fr bi«g er yi *fo t *

Tratado da Eficácia 235


u” ) C u i z b i r r n , cr h u g u i jta n z b i y u re n

v” l Ha, he 4 $ jg

w” |Mo

x ” ) Yin g d i wei shi jfk,

y” ) Bh zbi gu tai, ying xing you ji

z”) Bian-bua

a’” ) Btng you cbcmg li er wu chatig shi Jjfc ^

b’” ) B« fong yu jiu bian zbi li * i à - Í 5 L 4 £ £ . * 3

c’” >B í

d” ’) Quan

e’” ) Quan-li j}

f ” ) Q uan-bian j g ^ , quan-m ou ^j|

g”’) Cf. Wang Bi: Qm<í«, /ã« jing er be d ao , Á. A / £ v ijí_

h”’) Bian-tong >St 4 .

i’”} Ren-quan

j ” ’) Li D
k'” )A i ^

1”’) jVfen

m’” ) B ai be zhe, d ao zhi da hua, shui zbi bian

n” ') Fan-fu

o”’) Zhen zhao

p ’” ) W « ^

236 François Jullien


DO M ESM O AUTOR

Lu Xun, écriture et révolution. Paris, Presses de TÉcole norm ale su-


périeure, 1 979.
La Valeur allusive: des catégories originales de 1’interpretation poéti-
que dans la tradition chinoise. Paris, École française d’Extrêm e-
O rient, 1 985.
Procès ou création: une introduction à la pensée des lettrés chinois.
Paris, Seuil, 1 9 8 9 .
Éloge de la fadeur. Paris, Philippe Picquier, 1 9 9 1 .
Figures de Vimmanence: pour une lecture pbilosophique du Y i king,
le Classique du changement, Paris, G rasset, 1 9 9 3 [trad. bras.
Figuras da imanência: para uma leitura filosófica do I Chíng, o
Clássico da mutação, São Paulo, Editora 3 4 , 1 9 9 7 ].
La Propension des choses: pour une bistoire de 1’efficacité en Chine.
Paris, Seuil, 1 9 9 2 .
Le Détour et l’accès: stratégies du sens en Cbine, en Grèce. Paris,
G rasset, 1 9 9 5 .
Fonder la morale: dialogue de Mencius avec un philosophe des Lu-
mières. Paris, Grasset, 1 9 9 5 .

Você também pode gostar